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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LUA AZUL / Ethel M. Dell
LUA AZUL / Ethel M. Dell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

LUA AZUL

 

- Amanhã far-nos-emos ao mar - avisou Saltash, numa decisão súbita. - Estou farto deste lugar, Larpent! Abarroto!

- Seja, milorde - aquiesceu o interpelado, com o fugidio sorriso que, raramente, se permitia.

- Creio que também já está farto, não? - insinuou, fitando-o com ar trocista.

O capitão Larpent não respondeu. Detestava desbaratar palavras e todos sabiam que, em seu entender, era tempo perdido o que passava atracado.

Saltash voltou-lhe as costas e, com ar aborrecido, fitou a linha do horizonte. Os olhos, um preto e outro cinzento, davam um ar curiosamente irresoluto ao rosto que, sem essa particularidade, traduziria firmeza e decisão. As sobrancelhas, negras e bem pronunciadas, moviam-se ao compasso dos seus pensamentos, do que resultava a face mover-se e contrair-se quase sem descanso.

Dizia-se que lhe corria nas veias uma mistura de sangue real e, talvez por isso, nos dias estouvados da sua juventude - nada exemplar, acrescente-se... - lhe chamavam o "Alegre Monarca". Isso fora, porém, nos velhos tempos, quando ainda não herdara o título e era, simplesmente, Charles Burchester, irrequieto e ousado. Ultimamente, porém, um amigo encontrara um título mais pomposo, que lhe assentava como uma luva: "Charles, Rex". Desde então, todos quantos se podiam gabar de ser seus íntimos não o tratavam doutro modo. Este nome ajustava-se maravilhosamente à sua arrogância e realeza de porte, ambas, aliás, absolutamente naturais e inconscientes. Fizesse o que fizesse - e raramente podia orgulhar-se

das suas acções - em tudo imprimia o cunho da sua majestosa e descuidada distinção. Por isso, e Apesar de todos os seus erros, granjeava em toda a parte um respeito quase involuntário.

O próprio capitão Larpent, comandante do «Mariposa Nocturna», o seu iate, era o homem mais calado e melancólico que pode conceber-se, prestando-lhe a homenagem da suprema aquiescência. Fossem quais fossem as suas opiniões pessoais, nunca as exprimia, a não ser que o patrão o convidasse a fazê-lo, nem nunca o criticava, quer por palavras, quer por gestos... Se Saltash, por qualquer fantasia, resolvesse tornar-se pirata, podia estar certo de que Larpent continuaria no seu posto, imperturbável e sereno. Levantar um protesto, por mínimo que fosse, era contrário à sua natureza; limitava-se a cumprir o seu dever, sem perguntas e com completo à-vontade.

Não lhe desagradava - nem admirava, tão-pouco que Saltash estivesse, finalmente, cansado, depois de, durante perto de seis semanas, terem cirandado no Mediterrâneo, de porto para porto. O tempo estava calmo - demasiado calmo para o seu gosto, e sentia-se saturado ao interminável sol primaveril e das hordas elegantes e palradoras que o patrão recebia a bordo. Era tempo! com que sublime paciência aguardara a palavra de ordem que os arrastaria para as grandes vagas atlânticas! com que saudades recordava as ondas alterosas que faziam tremer o iate, e a sensação cortante do vento e da espuma oceânicos a fustigar-lhe o rosto queimado! Oh, era essa vida que o atraía! Nem a civilização nem o brilho da sociedade o satisfaziam; preferia algo mais profundo, mais viril.

Pelo seu lado, Saltash era um verdadeiro cosmopolita nos seus gostos. Gostava de divertir-se, mas detestava o enfastiamento, que era, como costumava dizer, a fonte de todos os seus males. Nunca estava realmente mal disposto, a não ser que estivesse enfadado. E depois - Que voulez-vous? - não comandava a estrela do destino...

- sim - murmurou, após um silêncio meditativo com certeza far-nos-emos amanhã ao mar a não ser que... - voltou a cabeça e fez uma careta cómica ao companheiro-a não ser que a Fortuna me reserve alguma surpresa, pois vou a terra esta noite, para mais uma paródia.

Larpent continuava a fumar, impassível, com os olhos

cinzento-azulados fitos na linha do horizonte, e o rosto tisnado, sereno e calmo.

- Estaremos prontos para largar assim que o senhor regressar - murmurou.

- Óptimo! - exclamou Saltash, alegremente. - Posso vir tarde ou, o que é mais provável, muito cedo, de manhãzinha... Deixe o portaló descido, para eu entrar. Quando chegar, aviso-o.

Levantou-se, como se o impelisse uma mola, e, encostando-se à balaustrada, observou, com ar cínico, o homem que continuava a fumar, impenetrável e mudo, numa das cadeiras da coberta. Não devia haver duas pessoas que formassem contraste mais vincado do que aqueles dois homens: o capitão do iate, de barba alourada e feições de "Viking", e o dono do iate, moreno, vivo, com uma espécie de finura francesa que lhe emprestava um encanto estranho e sedutor.

- Sabe, Larpent, que, às vezes, me espanto com as partidas que o Acaso nos faz? - perguntou o último, bruscamente, soltando uma gargalhada. - Você, por exemplo, é capitão de um iate particular, quando devia cruzar os grandes mares, feito "Viking"! Talvez o tivesse sido, há algumas gerações...

- Ah - suspirou o homem, através duma nuvem de fumo - a vida nem sempre é o que parece!

- Sim, a maior parte das vezes é uma fraude infernal. Sempre a prometer e raramente a cumprir...

- Não é bom esperar demasiado.

- Tem razão! Por outro lado, porém, nem sempre é acertado contentarmo-nos facilmente. Alguma vez esteve apaixonado? - concluiu, com certo ar de troça.

Larpent moveu-se bruscamente, deixando cair um pouco de cinza no casaco. Endireitou-se, vagaroso, e sacudiu-a.

- Então? - perguntou Saltash, observando-o.

- Uma vez - respondeu o capitão, depois de se recostar de novo e expelir grossa baforada de fumo.

- Só uma vez? - sorriu o patrão. - Homem, como pode isso ser, se tive essa doença vezes sem conta, e você é meia geração mais velho do que eu?!

- Bem sei - murmurou Larpent, fitando sem pestanejar o azul puríssimo da - esteve apaixonado tantas vezes, que não toma o caso a sério.

- Para si, pelo contrário, parece pior do que a peste!

- exclamou Saltash, rindo.

- Não - o interpelado, mal humorado.

- Talvez a senhora tenha morrido... - insinuou o outro.

- Não, ela também não morreu - esclareceu o capitão, levantando vagarosamente o rosto para os olhos que o fitavam, trocistas. - Pelo que sei, deve ainda viver.

- Valha-nos Deus, Larpent! - exclamou o patrão, com ar cómico. - E, desde então, foi como se tivesse apanhado uma indigestão, nem?... Há quanto tempo foi isso? Vinte anos?

- Mais ou menos.

- Valha-nos Deus! - repetiu Saltash. - Gostava de conhecer a mulher capaz de me prender... vinte anos!

- Também eu - concordou Larpent, secamente.

- Não existe, meu bom amigo - afirmou o outro, fazendo estalar os dedos. - Mas, se existir... Oh, se existir, que mundo deve ser!

- Não será suficientemente grande para si, milorde!

- resmungou o marinheiro, sardónico.

- Bem, esta noite vou a terra - declarou Saltash, abrindo os braços, num gesto teatral. - Quem sabe o que os deuses me reservam? Deseja-me sorte, Larpent!

- Desejo-lhe que regresse... são e salvo! - murmurou o capitão, depois de observar a figura inquieta de Saltash, com um sorriso irónico.

Este riu alto, e afastou-se, no seu passo elástico, que fazia lembrar o do macaco e em nada mostrava a firmeza de andar dos marinheiros.

A pequena cidade italiana, alcandorada nas escarpas alcantiladas que emergiam do mar, brilhava, entre os seus terraços ajardinados, como uma jóia de múltiplos cambiantes, sob o afago do Sol, já no Poente. A cúpula do Casino faiscava no centro - um lugar de encanto e de sonho.

No entanto, a expressão de Saltash, quando desembarcou no cais, era de puro descontentamento. Chegara há perto de quinze dias, resolvido a divertir-se, mas os antigos prazeres haviam perdido o sabor, inexplicavelmente, e apenas conseguira cansar-se.

"Envelheço", resmungou para consigo, fazendo uma careta de desgosto.

Mas não era ainda velho - apenas trinta e seis anos escassos. O mal provinha de ter tido o mundo a seus pés durante muito tempo.

Naquela noite haveria uma festa à beira de água, em Valrosa, e, por isso, o caminho estava enfeitado de flores e lâmpadas coloridas. A estação ia adiantada e aquela seria, provavelmente, a última diversão. Saltash examinava os preparativos com um interesse indolente, enquanto se dirigia para o hotel, perto do Casino, onde se propunha jantar.

Encontrou alguns conhecidos e preparou-se para uma noite mais ou menos divertida. Pelo menos podia contar com uma boa recepção e uma partida de bridge, se lhe apetecesse. Estava também perto do Casino, se lhe viesse a fantasia de tentar a sorte... Mas não, o Casino já não o atraía. Desejava algo de novo, nenhum dos antigos divertimentos o tentava... Sentia-se velho, muito velho e falhado.

Subiu as escadas, ladeadas de ciprestes, parando em cada terraço para admirar o mar maravilhoso, cujo aspecto se mudava a todo instante devido à mutação de cambiantes do crepúsculo. Sim, era, de facto, um lugar de sonho. Até mesmo Larpent lhe sentia o encanto, o velho Larpent, que se apaixonara há vinte anos, pela primeira e última vez! Escapou-lhe uma risada irreprimível. Era cómico, o capitão! O vinho dos deuses fora, por certo, demasiado forte para ele, tão forte que ficara sem desejos de repetir!

No último terraço, ficou parado mais tempo, admirando a beleza do anoitecer, antes de entrar no hotel. O mar tinha a cor pérola, com laivos de rosa, do interior de uma casca de ostra, e a linha do horizonte desaparecia, desvànecendo-se numa imensa calma, enquanto as sombras sucediam ao sol.

De súbito, um ruído de luta chegou até ali, vindo dos jardins escondidos, por baixo dele. Ficou à escuta, com os olhos brilhantes e a boca contraída num sorriso trocista. Naquela noite tudo era doce, mais do que doce, naquele lugar delicioso!... E no entanto... no entanto...

Bruscamente, outro som rompeu o silêncio, um som que o pôs alerta. Fora um grito, um grito agudo, vindo do jardim do hotel, ali perto dele, logo seguido duma voz colérica e de várias pancadas.

- Diabo! - exclamou, correndo para uma porta estreita, de madeira, aberta na parede de pedra.

Abriu-a de repelão e achou-se num pequeno jardim, escuro e cheio de arbustos, por detrás de um caramanchão que dettava para o mar. Era nesse caramanchão que se desenrolava a luta. Num segundo abriu caminho entre os arbustos e parou à entrada.

- Diabo! - repetiu, - está a fazer? Deixe o rapaz!

Um homem agarrava um rapazito louro, com a farda do hotel, e batia-lhe impiedosamente na cabeça descoberta. O agressor endireitou-se bruscamente, voltando-se para o tempestuoso visitante: era o gerente do hotel.

O reconhecimento foi mútuo. O homem atirou com o rapaz para um canto e encarou Saltash, bufando de cólera e com os olhos brilhantes.

- Ah, é o senhor! - exclamou, num inglês deficiente, curvando-se submisso, embora ainda tremesse de raiva. Que posso fazer por Vossa Excelência?

- Que diabo se passa aqui? - perguntou Saltash, abolindo toda a cerimónia. - Por que motivo estava a esmurrar o pobre rapaz? Não seria melhor bater num homem do seu tamanho?

- É desprezível! - declarou o italiano, olhando a sua vítima, por cima do ombro. - Dei-lhe uma lição, mas é um tipo desprezível. Vossa Excelência perdoe, mas ele é... inglês e os ingleses são... bem... não são bons para o trabalho... não servem!

-Oh, indolentes até à alma! - concordou Saltash, levantando còmicamente as - não devia assassinar o rapaz por esse motivo, António. Ele é indolente pela sua má fortuna... não por sua culpa.

-'Mas eu não o assassinei! - protestou o gerente, com veemência. - Apenas o castiguei. Não o feri... até lhe fiz bem.

- Oh! - exclamou Saltash, olhando para a figura trémula do rapazito. - É remédio, não? No entanto, é demasiado forte para uma criatura deste tamanho. No seu lugar, tentaria ser mais suave para a próxima vez...

- Para a próxima vez, Excelência - respondeu António, com um riso contrafeito - agarro-o assim - e exemplificou com as mãos - e torço-lhe o pescoço - e, voltando-se para a presumível vítima, acrescentou: - Levanta-te, filho dum porco, e vai para o teu trabalho!

- Mais devagar, mais devagar! - interrompeu Saltash, - não nos dirigimos assim aos ingleses... nem mesmo aos mais insignificantes e fracos. Deixe-me falar ao rapaz... Levanta a cabeça, pequeno, deixa-me ver-te!

- ordenou, baixando-se para a figura encolhida ao canto.

Como não obtivesse qualquer resposta, colocou a mão num ombro do garoto, sentindo-o tremer convulsivamente.

- Parece-me que o magoou - observou, baixando-se mais. - Eh, Tonimy, levanta a cabeça, não tenhas medo! É um amigo.

Mas o pequeno limitou-se a encolher-se ainda mais.

- Ele chama-se Toby - informou António, num tom azedo. - Um nome de cão, Excelência, mas assenta-lhe bem. É um cão lazarento.

Saltash não lhe prestou a mínima atenção. Estava todo curvado, com o rosto moreno na sombra.

- Não tenhas medo - repetiu. - Ninguém te faz mal. Vamos, deixa-me ver-te!

Agarrou o rapaz com mais força e começou a levantá-lo. De súbito, porém, sentiu entre as mãos uma luta feroz, tão primitiva como a dum animal lutando pela liberdade, mas, também, de efeitos igualmente positivos. com um esforço violento o rapaz soltou-se e fugiu, deixando os dois homens em frente um do outro.

- Mas que diabinho! - comentou Saltash.

- Sim, Excelência, um verdadeiro diabo! - corroborou, vingativo, o hospedeiro. - Não estou para o aturar mais, não, não estou! Que rebente para aí de fome!

- Que encantador, António! -troçou Saltash. - Na realidade, talvez isso aconteça, pois estamos no fim da estação...

- Talvez, talvez... - concordou António, lambendo os beiços.

Era já tarde e a festa atingia o apogeu quando Saltash passou de novo sob os ciprestes, em direcção à beira de água. Estava uma noite propícia a sonhos.

No palco florido, uma orquestra de instrumentos de corda tocava muito docemente uma música suave, que parecia encher o mundo de magia. Era como uma droga para os sentidos, excitante, embriagadora e loucamente doce.

Saltash vagueou por ali, com o rosto voltado para o mar, no qual se reflectiam miríades de luzes coloridas.

Mas, apesar de tudo, continuava com uma expressão na qual se misturavam a ironia e o descontentamento. Sentia a excitação de todo aquele cenário, mas não a achava suficientemente forte, a sua influência perdera todo o poder sobre si.

Precisava de não estar só. Saíra do hotel na companhia de alguns amigos, mas perdera-os na multidão. Um deles

uma rapariga - lutara um tanto energicamente para se manter a seu lado. Chegara a corresponder-lhe com algum entusiasmo, mas, depois, qualquer coisa nela lhe desagradara e o encanto quebrara-se.

"Doidinha!" murmurou para consigo. "Ter-me-ia dado o coração, para eu o partir, se me apetecesse".

Riu-se do ridículo dos seus próprios sentidos cansados, da indiferença proveniente da saciedade. Uma conquista fácil já não o atraía.

Começou a dirigir-se para o cais, parando aqui e ali, como se quisesse proporcionar ao Acaso oportunidade para o beneficiar. Sim, Sheila Melrose não passava duma idiotazinha. Por que não compreendia que era apenas uma das centenas com quem se divertia, dia após dia? Não podia ser mais do que um passatempo, um brinquedo para o seu feitio caprichoso, e ele vencera a antiga propensão para quebrar os brinquedos, quando deixava de lhes encontrar novidade... Agora, revoltava-o a vista dum brinquedo quebrado.

Sentia, aborrecido, o olhar da rapariga cravado nele, através da multidão inquieta. Que esperaria ela, perguntava a si mesmo, irritado. Conhecia-o, não ignorava a sua reputação, ninguém ignorava a sua reputação... Julgar-se-ia capaz de o prender mais do que um momento fugidio? Aliás, que valia ele, pondo de parte título e fortuna?

Um grupo de risonhas italianas, com lenços garridos na cabeça, rodearam-no, enchendo-o de confetti. Como que por encanto a sua disposição transformou-se. Ela veria o que a esperava! Sem hesitar, agarrou a que estava mais perto, levantou-a ao ar e, apertando-a impiedosamente, beijou-lhe os lábios, numa fúria ardente, só a largando quando a sentiu suspirar de prazer. Depois pegou na seguinte e repetiu a cena.

Muito depois de ter partido, com o sangue a ferver-lhe nas veias, ainda as raparigas de Valrosa falavam do fogoso inglês, com os olhos brilhantes e a respiração opressa.

A magia daquela noite à beira-mar levara tempo a prendê-lo, mas agora sentia-a com mais insistência. O fogo da juventude reacendera-se com impetuosidade e nada o impediria de satisfazer o momentâneo desejo. Tiraria o maior partido possível daquela festa maravilhosa! Para onde quer que se dirigisse, sentia-se rodeado de admiração, de febril alegria, e o seu entusiasmo aumentava. A certa altura, encontrou-se cara a cara com Sheila Melrose, mas a rapariga voltou-lhe o rosto, francamente desgostosa. Riu-se maliciosa e escarnecedoramente, como os seus ancestrais deviam ter rido, há muito tempo, e deixou-se arrastar pela turba.

Horas depois, quando, acabada a festa, a praia dormia, silenciosa, sob as estrelas, afastou-se ao longo do cais, no seu passo arrogante, com um cigarro entre os lábios e o olhar brilhante. Fora uma noite divertida, apesar de tudo.

Ao subir o portaló para o iate, que oscilava docemente nas águas cintilantes, parou um instante e voltou-se, num adeus, para a cidadezinha que jazia adormecida entre os ciprestes. De novo ouviu um ruído de luta vindo de algum recôndito jardim de prazer. Era como se a magia continuasse a chamá-lo, tentando-o, estendendo os braços brancos para o prender.

- Adeus, caprichosa e perversa! - exclamou, curvando-se ligeiramente na direcção donde vinha o som. - Não voltarei... nunca mais!

O cigarro caiu-lhe dos lábios e, ao entrar em contacto com a água, produziu um ruído como o silvo duma serpente. Saltash riu-se e continuou a subir o portaló.

Encontrou um marinheiro, provavelmente à espera que regressasse, dormitando a um canto, e despertou-o.

O homem ergueu-se, murmurou atabalhoadamente uma desculpa, e Saltash riu-se de novo, trocista.

- Desperdiçando, a dormir, as horas mágicas, Parker? Bem, creio que sonhar é melhor do que nada... E os teus sonhos eram bons?

- Não sei, meu senhor - retorquiu o homem, cheio de humildade.

- Bem, estou pronto para partirmos - declarou Saltash, batendo-lhe no ombro e afastando-se. - Deixemos os nossos sonhos para trás.

Era sempre cordial para os marinheiros, que o adoravam.

Começou a assobiar, descuidado, enquanto se dirigia para os seus aposentos. A tentação de Valrosa esfumara-se. Agora pensava apenas no grande oceano e nas ondas altas que o esperavam. Acendeu a luz do salão, disposto a fumar outro cigarro e a beber qualquer coisa, e começou a andar dum lado para outro. De súbito, deixando-se afundar numa poltrona de veludo vermelho, entregou-se, deliciado, a um repouso de que só naquele momento sentiu necessidade.

Naquela posição ouviu os passos dos homens, em cima, as suas vozes e o levantar do portaló. Pouco depois o iate começou a trepidar, as amarras foram soltas e a hélice

cortou o mar.

Recostou-se, numa volúpia preguiçosa. Era bom ir e vir, à medida dos seus desejos, sem nada que o prendesse! Supunha que seria sempre um vagabundo à face da Terra e, apesar de tudo, a vagabundagem era o que melhor lhe convinha, o que melhor se quadrava com o seu feitio. É certo que, às vezes, o pensamento da casa o atraía, que, em certas ocasiões, a ideia de se casar com uma mulher que o amasse lhe surgia como uma redenção, mas continuava solteiro, solteiro e vagabundo. Os outros homens escolhiam um lugar permanente para viver e sentiam-se lá satisfeitos; por que não acontecia o mesmo consigo? Estas considerações, porém, apenas serviam de divagação, não o atraiam verdadeiramente. Não se sentia talhado para o casamento e, como dissera a Larpent, não existia mulher que pudesse prendê-lo. O pensamento de Sheila Melrose fê-lo sorrir, irónico. Pensaria ela, realmente, que reunia as qualidades necessárias para aprisionar um homem com a sua experiência? com um gesto da mão tirou-a da ideia. Sheila tinha, a bem dizer, tudo para aprender e ele não estava disposto a ensiná-la.

O cigarro acabara-se. Ergueu-se. O iate afastava-se, veloz, como se tivesse, asas. Nunca havia complicações quando Larpent dirigia as manobras de partida. Ficou uns momentos indeciso, sem saber se havia de subir à ponte e conversar com o capitão. Deteve-se, porém. Já se despedira e não queria rever Valrosa. Dirigiu-se, por isso, para a sua cabina.

As divisões do iate eram extremamente luxuosas, com todos os requisitos imagináveis para o conforto dos que nele viajavam e, sobretudo os camarotes, eram um milagre de luxo e bem-estar.

Saltash nunca contratava criado de quarto quando partia em viagem. O criado de bordo tratava-lhe das roupas, e ele olhava por si próprio. Gostava de ter o maior espaço livre possível, tanto na coberta como nos seus aposentos.

Abriu a porta do camarote e procurou o interruptor, mas, ao encontrá-lo, não o accionou. Qualquer coisa lhe fez mudar de ideias. A ténue luz das estrelas reflectida no mar chamou-lhe a atenção, através da vigia aberta. Encaminhou-se para esta, para melhor admirar o espectáculo, mas, de novo, algo indefinido o deteve.

- Está aí alguém? - perguntou.

Pareceu-lhe ouvir um leve movimento e pressentiu uma presença estranha, talvez de qualquer animalzito.

Voltou atrás e acendeu rapidamente a luz. No mesmo instante deparou-se-lhe um rapazito louro e pálido, metido numa farda castanha com botões amarelos, que o fitava com os olhos muito abertos e assustados.

Saltash foi o primeiro a recompor-se da surpresa. Raramente se desconcertava e, quando tal acontecia, era por muito pouco tempo.

- Viva! - exclamou, franzindo còmicamente as sobrancelhas. - És então tu! e que queres?

O rapazito baixou a cabeça, corando até à raiz dos cabelos.

- Vim - começou muito baixo - vim... para... para... lhe pedir uma coisa.

-Então vais ficar longe, rapaz! - riu-se -Sabes que nunca volto atrás, seja pelo que for? Talvez fosse essa a tua ideia, não?

- Não, não! - respondeu, sacudindo violentamente a cabeça. - Não calculava que partisse tão cedo. Julgava que... tinha tempo de pedir-lhe primeiro.

- Ah, sim?! - e inesperadamente agarrou o rapazito pelo ombro e fê-lo levantar a cabeça. - Bem me parecia que ele te tinha marcado, o porco! Por que te bateu? Anda, conta-me!

Uma grande nódoa negra sobre um dos olhos atestava a violência do correctivo.

O rapazito tremia violentamente e, num gesto brusco, agarrou o braço de Saltash com ambas as mãos.

- Então? - insistiu este.

- Oh, senhor, por favor, por favor! - suplicou. - Deixe-me ficar consigo! Trabalharei e... não ocupo muito espaço! Por favor!

- É então isso, hem?

- Sim, sim! - afirmou, implorando com o olhar humilde e triste. - Posso fazer seja o que for, não quero viver de esmolas, posso trabalhar e... gostarei de trabalhar para si!

- És um diabinho, não és?

- Sou honrado, meu senhor! Acredite! - e as mãos ossudas apertaram-no, ansiosas. - Não se arrependerá se ficar comigo, juro que não se arrependerá!

- E tu? - perguntou Saltash, fitando-o comovido. Creio que também não te arrependerás nunca, hem?

-Evidentemente que não! - afirmou, com um súbito sorriso. - O senhor é inglês.

-Ah! - exclamou, com uma expressão forçadamente séria. - Não contes muito com isso, meu amigo! Sou muito capaz de te dar uma trepa, como a que te deu o António, por exemplo, se a mereceres. Não te esqueças de que, se a ocasião se oferecer, posso ser tão bruto ou mais ainda do que ele. Bem, mas vamos lá! Tens fome? Queres comer alguma coisa?

- Não, meu senhor, não! - e voltou a apertar-lhe o - poucas vezes... estou acostumado.

- Mas porquê? Não te davam de comer?

- Sim, sim, davam, mas eu não queria. Sentia-me muito... desgraçado - e os olhos azuis baixaram-se, como que assustados.

- Patetinha! - exclamou, tentando confortá-lo. Senta-te ali! Não te mexas até eu voltar.

Apontou o sofá e, docemente mas com firmeza, libertou o braço das mãos enclavinhadas do rapaz.

- Não me manda embora? - perguntou, suplicante.

- Não, não mando - e afastou-se.

Amaldiçoou o ausente António numa linguagem que teria petrificado o italiano, e depois, mais aliviado, riu-se e seguiu o seu caminho.

Quando voltou encontrou o seu protegido enovelado no sofá, com a cabeça escondida na almofada, como se quisesse defendê-la da luz. Teve de novo a impressão de que se tratava de qualquer animalzito, e o pensamento fê-lo franzir as sobrancelhas. O aspecto encolhido do pobre rapaz dizia mais do que todas as palavras.

- Olha... Toby - chamou. - Trago aqui qualquer coisa para comeres. Depois, o melhor é dormires um bom sono. Amanhã, se quiseres, poderás, então, contar-me tudo.

O rapaz endireitara-se à sua entrada e fitava-o com ar assustado. Dir-se-ia que esperava, a todo o momento, levar um pontapé. Por fim, olhou para o tabuleiro que Saltash trazia e escondeu o rosto nas mãos.

- Oh, deixa-te de asneiras! É preciso ter um bocadinho de juízo. - Pousou o tabuleiro e afagou-lhe a cabeça, sempre de cenho franzido. - Vamos, sê um homenzinho!

O rapaz endireitou-se, num esforço tremendo, mas não levantou os olhos para Saltash, mantendo-os fixos nas mãos trémulas, apertadas uma na outra.

- Farei... tudo quanto quiser - murmurou. - Nunca ninguém foi assim para mim!

- Deixa-te disso! Come um destes pães - convidou, com ar prático. - Falarás melhor com o estômago cheio.

Sentou-se na ponta do divã e acendeu um cigarro, numa atitude de real indiferença, mas os seus olhos, fitos no infeliz companheiro, não perdiam um só dos seus gestos.

- Já há algum tempo que andavas a matar-te à fome, não? - perguntou pouco depois. - Não admira que não pudesses trabalhar.

- Mas eu posso trabalhar - garantiu o rapaz, com o rosto magro franzido num sorriso triste. - Sei fazer de tudo, tanto trabalho de mulher como de homem. Sei cozinhar, limpar sapatos e facas, pregar botões, lavar roupa, servir à mesa, fazer camas, lavar e...

- Cala-te, por Deus! Atordoas-me. Diz-me antes o que não sabes fazer. Levará menos tempo, por certo.

- Não sei conduzir automóveis - respondeu Toby, após um momento de reflexão. - Mas sei limpá-los e... gostaria de aprender a guiá-los.

- É essa a única excepção? - perguntou, - Deves ter aprendido muito em pouco tempo... Ensinaram-te isso tudo aqui?

- Tenho andado por muitos lados - respondeu o rapaz, sacudindo a cabeça.

- E sabes tudo, evidentemente. Por que te lembraste

de vir aqui ter?

- Porque o barco é seu - retorquiu, com o olhar brilhante.

- Oh, resolveste, então, ligar o teu destino ao meu...

- Bem queria... se ficasse comigo.

- Parece que não tenho outra alternativa. E que farás, quando estiveres farto de mim? Agarras-te a qualquer outro, creio?

- Não, não farei tal - afirmou, corando, mas sem o desfitar. - Não, da próxima vez acabarei comigo...

- Deveras? Bem, mas deixemos isso. Disseste que eras honrado?

- Sim, meu senhor! - declarou com firmeza, pondo-se de pé, como se desafiasse quaisquer censuras.

- Fazes-me uma promessa! - perguntou Saltash, olhando-o com interesse.

- Tudo quanto quiser, meu senhor!

- Toma cuidado! Já vi que és impulsivo e irreflectido e eu gosto que os meus criados sejam, pelo menos, um bocadinho discretos. A promessa que quero é esta: aconteça o que acontecer, mesmo que eu te bata ou te humilhe, nunca sairás de bordo nem farás nenhuma tontice no género.

Entendido?

Toby estava na sua frente, encarando-o com os olhos meigos. Não pareceu surpreender-se com as insinuações tão friamente feitas. Saltash teve a impressão de que não o impressionavam.

- Muito bem, meu senhor - afirmou, pouco depois.

- É uma promessa?

- Sim, meu senhor.

- Bem! - e bateu-lhe suavemente no ombro. - Sentes-te melhor agora?

- Sim, meu senhor, muito obrigado - e sorriu-lhe,

agradecido.

- Muito bem. Ficas então comigo. Alguém te viu entrar a bordo?

- Não, meu senhor.

- Nesse caso, se alguém perguntar, dizes que vieste comigo. Percebes?

- Muito bem. Obrigado, meu senhor.

- Chamas-te Toby, não é? Toby quê?

- Toby Wright, senhor - respondeu prontamente.

- Espero que tudo corra bem - murmurou, observando-o com olhar irónico. - O melhor é ires para a cama. Trouxeste alguma bagagem?

- Não, meu senhor. Sinto muito, mas não trouxe nada... Vim à pressa.

- Vieste à pressa e roubaste o fardamento do hotel.

- Não, meu senhor! Foi um empréstimo - garantiu, muito sério.

- Hum! Vais pagá-lo, não?

- Sim, qualquer dia. O primeiro dinheiro que ganhar será para isso. Não quero ficar com coisa alguma daquele maldito cão italiano! - terminou, enfaticamente.

- óptimo! - riu-se Saltash, apertando-lhe o braço.

- Bem, anda comigo para te mostrar onde vais dormir ordenou, puxando-o docemente. - Há uma pequena cabina a seguir ao meu quarto de vestir, que podes usar, por agora. Não trouxe o meu criado.

- É muito boa, meu senhor, muito obrigado. A que horas deseja que o chame?

- Não precisas de me chamar. Deixa-te estar quietinho e trata desse olho. Quando quiser alguma coisa, chamo.

- Sim, meu senhor - murmurou, com ar aborrecido.

- Fazes o que te mandarem, entendido? Sempre, hem?

- Sim, senhor, sempre! - exclamou, sorrindo de novo, cheio de gratidão. - Quer que lhe tire os sapatos antes de ir deitar-me?

- Não. Por agora olha por ti. E toma cautela! O capitão deste barco é muito severo e tens de andar direitinho!

O rapaz fitou-o, compreendendo, já totalmente esquecido do desespero que quase o vencera.

- Oh, serei bom! - prometeu. - Não quero causar-lhe quaisquer aborrecimentos.

- óptimo! - declarou Saltash, puxando-lhe uma orelha

- Descarado, julgas que te vou suportar com essa importância toda? Passa a marca e vais ver!

- Não passarei, meu senhor! - prometeu, tornando-se sério e - um bom criado, o melhor que já teve. Nunca esquecerei a bondade que teve para comigo e hei-de recompensá-lo de qualquer maneira, creia.

A voz juvenil tremeu de comoção. De novo parecia um animalzito abandonado e infeliz.

- Pronto, pronto, não dramatizes! - e afagou-o amigavelmente. - Vamos, vai dormir um grande sono!

Levou-o para fora do camarote e Toby obedeceu, submisso.

Poucos minutos depois, Saltash voltou, com um sorriso meio irónico, meio comovido.

"Pobre diabito!" murmurou, enquanto se despia. "Afinal, os deuses sempre tinham uma dádiva para mim! Só gostava de saber o que hei-de fazer dela!"

E, subitamente, o sorriso transformou-se numa careta trocista, que apagou toda a generosidade da sua face. Sacudiu os dedos e riu-se, como rira um pouco antes quando o cigarro, ao cair no mar, produzira um som semelhante ao silvo da serpente.

"Sim... pergunto a mim mesmo!" repetiu.

Era contrário aos hábitos do capitão Larpent mostrar-se surpreendido com os caprichos do patrão, fossem eles quais fossem. No entanto, quando Saltash, com a brandura habitual, lhe comunicou a nova e inesperada adição, não pôde impedir-se de manifestar um certo espanto. Franziu as sobrancelhas e afagou a barba, como que indeciso.

- Bem, não esteja o senhor a incomodar-se com ele murmurou após breve reflexão. - O melhor será deixá-lo dormir no castelo da proa.

- Por agora não - discordou Saltash. - vou começar a treiná-lo e quero mantê-lo à vista. A julgar pelas aparências, o pobrezito deve ter tido uma vida horrível e apetece-me olhar por ele eu próprio.

- Que pensa fazer dele? - perguntou Larpent.

- Dir-lho-ei quando lhe puder mostrar a obra completa

- declarou, rindo-se descuidadamente e sacudindo a cinza do cigarro. - Por agora, quero tê-lo perto. Tem um olho em mísero estado, o pobre diabo. Deseja vê-lo? Como é o médico de bordo...

- Talvez seja melhor - concordou o capitão, encolhendo os ombros.

- Não que simpatize muito com as aquisições impensadas; nunca se sabe o que valem...

- Será melhor vacinar imediatamente toda a tripulação! - retorquiu Saltash, com os olhos brilhantes de raiva. Ele é mais um cachorro desgarrado do que qualquer outra coisa.

-Bem, vamos lá ver o rapaz! - acudiu Larpent, conciliador.

Desceram as escadas e Saltash começou a assobiar despreocupado. Quando não estava aborrecido assobiava com frequência.

Mais alguém assobiava, nas vizinhanças da sua cabina. As notas alegres não provinham, porém, do quarto do pequeno criado, mas da casa-de-banho, onde o foram encontrar dando brilho às torneiras.

Parou imediatamente, ao pressenti-los. Tinha o olho muito inchado e negro, mas, apesar disso e do seu aspecto de doente, tentou sorrir para Saltash, que o agarrou por um ombro e o obrigou a voltar-se para a luz:

- Que estás aqui a fazer, meu... palhaço? Não te disse

que estivesses quieto? - E voltando-se para o capitão:.

Ei-lo, Larpent! Que tal o acha? Um pobre diabo, não?

- Como se chama? - perguntou o capitão.

-Toby Barnes-respondeu o rapaz, prontamente. - E não há nada que não saiba fazer, além de guiar automóveis e obedecer a ordens - acrescentou Saltash.

- Desculpe, senhor-murmurou o rapazito. - Só queria ser útil. Voltarei para a cama, se desejar.

- Que diz, capitão?

O homem baixou-se e examinou cuidadosamente a ferida.

- Quanto mais depressa, melhor - respondeu. - Deixa-te estar uma semana na cama. Depois venho ver-te de novo.

- Oh, uma semana, não! - suplicou o garoto, que logo levou as mãos à boca, arrependido.

- Bem, bem - murmurou Saltash, comovido com o olhar implorativo dele - veremos como te portas. Se tivermos tempestade, verás que até te sentirás satisfeito por estar na cama!

Toby sorriu tristemente, e não disse nada.

- vou buscar umas ligaduras - disse Larpent, afastando-se. - É melhor ligar isso. Dói-te, hem?

- Não, senhor - mentiu o rapaz, corajosamente.

Soltou, porém, um grito de dor quando o capitão, inesperadamente, lhe tocou na ferida.

- Não magoe o miúdo! - exclamou Saltash, em tom áspero.

O capitão sorriu, um sorriso fugidio e sardónico, e saiu. Toby encostou o rosto à mão de Saltash, num gesto infantil e meigo:

- Não me faça ir para a cama! - suplicou. - Sinto-me lá tão triste!

- O teu quarto é quase um buraco-murmurou aquele, levantando as sobrancelhas, num gesto cómico. - Bem, escusas de ir para lá. Podes deitar-te no sofá da minha sala, se quiseres. Só quero é que não te levantes nem faças disparates. Não te esqueças de que sou responsável por ti!

Toby agradeceu-lhe, prometendo obedecer e portar-se com juízo. Deixou cair o corpo magro no sofá, que ficava sob a vigia, recebendo o ar fresco do mar.

- Isso mesmo! - aprovou Saltash, vendo-o sorrir.- É verdade, como disseste tu que te chamavas?

- Toby, senhor.

- Toby Barnes ou Toby Wright?

O rapaz corou, depois empalideceu, abriu a boca tentando falar, mas acabou por não responder. Entretanto, Saltash puxou da cigarreira e abriu-a vagarosamente. Sempre a sorrir, bateu o cigarro e olhou, por fim, para o protegido:

- Ou Toby nada?

O rapaz fitou-o, embora o esforço para erguer os olhos o fizesse contrair o rosto de dor.

- O que quiser, meu senhor - tartamudeou. - Responderei a qualquer nome.

O rosto de Saltash suavizou-se. Continuou a olhar para Toby e a bater o cigarro na tampa da cigarreira.

- Quantos anos tens? - perguntou, por fim.

- Dezasseis - respondeu, sem deixar de o fitar, cheio de ansiedade.

- Está bem, não te preocupes! - consolou Saltash, baixando-se impulsivamente e pousando-lhe a mão nos olhos, com cuidado.-És suficientemente novo para esquecer o passado e recomeçar.

- Quem me dera, senhor! - murmurou o pequeno, com voz trémula. - Não tenho tido muitas oportunidades... até agora.

- Está bem, está - Mas agora acabou-se. Não te impedirei de esquecer, só te peço que não esperes muito de mim. Não sou considerado companheiro capaz para rapazes da tua idade...

Retirou as mãos e acendeu o cigarro, enquanto o garoto voltava a cara para a almofada.

Quando Larpent voltou, perguntou a si mesmo o que teria o patrão dito para os olhos do miúdo estarem cheios de lágrimas. No entanto, não deixou transparecer a sua curiosidade.

- Vai deixá-lo ficar aqui? - perguntou, pondo um penso no olho ferido.

- Por agora. Tem alguma objecção?

- Absolutamente nenhuma - retorquiu, indiferente. Só acho que deve estar quieto, nada mais.

- Ele estará quieto - afirmou.

- Ou me engano muito ou vamos ter barulho antes de chegarmos a Gibraltar - informou o capitão, mudando de assunto.

- Isso fará bem a todos.

Larpent não concordou nem discordou. Calou-se e saiu.

- Assustado? - perguntou Saltash a Toby, quando ficaram sós.

- Nada mesmo - respondeu, rindo-se.

- És bom marinheiro, por acaso?

- Não, meu senhor, pelo contrário!

- Bem, fecha os olhos e dorme - ordenou, pondo um cobertor sobre o corpo encolhido no sofá.

Toby murmurou um agradecimento e suspirou, satisfeito.

Horas mais tarde, quando o barulho que Larpent profetizara estoirou e o iate dançava nas águas tumultuosas, Saltash desceu ao seu camarote, para mudar de fato, e foi encontrar Toby com uma cara horrível, mas tentando sempre sorrir.

Quis levantar-se para o receber de pé, mas caiu, meio desmaiado.

- Pateta! - murmurou Saltash, segurando-se, para não cair também sobre ele.

Pegou-lhe com mil cuidados e voltou a pô-lo no sofá. Depois fez uma mistura de água com brande e obrigou o rapaz a bebê-la, segurando-lhe na cabeça, enquanto o iate oscilava furiosamente.

- Agora fica quieto! Não mexas sequer um dedo enquanto não te mandar.

A vigia estava fechada e a atmosfera pesada e doentia.

- Não posso ir para a coberta? - pediu Toby, agarrando, suplicante, a manga do casaco de Saltash.

- Não.

O rapaz calou-se, mas apertou-lhe mais o braço com os dedos trémulos.

- Estás assustado!

- Não, não! - protestou.

- Estás, sim. Não vale a pena dares-te ao trabalho de me mentir. Não o consegues nunca - avisou-o, num tom de camaradagem. - É uma sensação estúpida, o medo, não achas? Olha, bebe mais umas gotas de brande.

Como Toby recusasse, sentou-se inesperadamente na beira do sofá e estendeu-lhe um braço. O rapaz acolheu-se nele, todo trémulo, como um cão nervoso.

- Pateta! - repetiu. - Tens estado aqui sozinho, aterrorizado, não tens? Não há de que ter medo, acredita! O barco é tão sólido como as casas.

- Sim, meu senhor, eu sei - murmurou, em tom de desculpa.

- Pobre pigmeuzinho! - e chegou-o mais para si, tentando confortá-lo. - E a cabeça? Como vai?

- Melhor, muito obrigado.

- Por que não dizes a verdade, duma vez para sempre, e confessas que te dói diabòlicamente? O rapaz ficou silencioso.

- Sabes o que vou fazer-te?

- Não, meu senhor - titubeou, pouco à vontade.

O barco oscilou violentamente e Saltash estendeu o outro braço para proteger a cabeça de Toby.

- Vais-te deitar na minha cama. Tens de dormir um sono capaz, esta noite.

- Obrigado, mas não posso dormir na sua cama! Por favor! Não, não posso! - pediu, quase a chorar.

-Tu fazes o que te mandar, agora e sempre - afirmou, seguro de si. - Puseste-te nas minhas mãos e agora tens de sofrer as consequências. Entendido?

- Entendido - disse com brandura.

- Então não te esqueças!

O rapaz concordou sem mais protestos. Talvez o brande fosse o culpado dessa submissão, ou talvez Toby compreendesse a sua extrema fraqueza e dependência. O que é certo é que, a partir daquele momento, se mostrou tão submisso como se fosse, de facto, um animalzito amigo do novo dono. Pouco depois, com a ajuda de Saltash, foi para o seu quarto despir a farda do hotel e vestir um pijama, enorme para o seu tamanho, que Murray, o marinheiro, lhe trouxera, juntamente com outras roupas.

Depois, descalço, trémulo e com os dentes a bater, voltou para junto de Saltash, que o esperava na sala, a fumar.

Sem uma palavra, levantou-o nos braços e, segundos depois, Toby descansava numa cama luxuosíssima. Tentou murmurar um agradecimento, mas o queixo tremeu-lhe e ficou calado.

- Agora dorme, meu pateta!

E Toby mergulhou, finalmente, num sono profundo e calmo, num sono de puro cansaço, inconsciente de tudo quanto o rodeava, sem notar, sequer, as constantes entradas e saídas do homem que velava por aquele repouso sereno, por aquele sono que podia ser o último da sua vida.

Saltash passou a noite no sofá de veludo, sob a vigia, dormitando de vez em quando, para, logo a seguir, acordar bruscamente, prestes a ser atirado ao chão por um balanço mais forte. Não era uma maneira confortável de descansar, mas suportou-a num silêncio absoluto, permitindo-se apenas uma ou outra careta, que diziam mais do que todas as palavras.

E, durante todas aquelas horas, o presente que os deuses lhe haviam dado dormia na sua cama, tão imóvel e sereno como uma efígie sobre uma tumba.

A tempestade amainou antes de chegarem a Gibraltar, e Toby emergiu, sorridente, do cativeiro forçado. Continuava a usar a farda castanha do hotel, visto que a bordo não havia nada que lhe servisse, mas Saltash expediu um maço de notas para António, em pagamento do... empréstimo.

-Agora pertences-me de corpo e alma - disse ao rapaz, cujos olhos brilharam de satisfação.

O negro da ferida transformara-se num amarelo escuro, não sendo já necessária a ligadura. Quando partiram de novo, deixara de ser um inválido, seguindo Saltash por todo o lado, escrupulosamente atento ao seu conforto. Quando não tinha que fazer, contentava-se em enroscar-se, como um cão, perto dele, numa adoração muda, mas sempre pronto para o servir.

Saltash tratava-o com uma generosidade descuidada, que escondia uma boa dose de consideração. Nunca o interrogava acerca do seu passado, demonstrando-lhe uma confiança que punha o rapaz inteiramente à vontade. Ninguém mais se preocupava muito com ele. Larpent ignorava-o e Murray, o criado de bordo, olhava-o com uma suspeita tão grande, que não convidava a intimidades.

Mas Toby era feliz. Continuamente se ouvia o seu assobio alegre, quer estivesse a limpar os sapatos de Saltash e a escovar a sua roupa, quer limpasse o aposento onde este dormia. Voltara para o pequeno compartimento que ficava a seguir ao quarto de vestir do patrão, mas as portas ficavam sempre abertas, por ordem de Saltash. Enfim, estavam sempre perto um do outro.

O tempo de Verão estava esplêndido e, durante uma semana, viajaram sobre águas calmas e azuis, tão azuis como o céu sem nuvens que os cobria. A pele branca de Toby começou a escurecer, as faces angulosas ganharam carne e cor, e as suas risadas tornaram-se frequentes e descuidadas. Tornou-se, até, um pouco descarado nas suas atitudes para com Saltash, mas este olhava tudo quanto ele fazia com a mesma tolerância com que observaria as travessuras dum cão favorito. Aceitava os serviços de Toby, mas nunca o tratava como se fosse um criado.

Havia entre ambos uma camaradagem um tanto exagerada, que só a vida isolada que levavam podia justificar. Quando Saltash estava aborrecido, divertia-se a ensinar ao rapaz xadrez e outros jogos, admirando-se da rapidez e entusiasmo com que ele os aprendia. Havia no espírito de Toby uma boa dose de paixão pelo jogo, paixão que Saltash alimentava levianamente, pois isso o divertia. Ria-se com a subtileza do adversário, preparava jogadas complicadas e, até, se deixava perder de bom humor.

Um dia, porém, descobriu Toby a fazer trapaça. Era uma eventualidade que devia ter previsto, uma vez que fora ele que encorajara o vício, que, praticamente, deitara a semente. No entanto, sentiu-se estranhamente perturbado, desconcertado como há muitos anos não lhe acontecia, com as consequências das suas irreflexões. Ele, que nunca se impressionara com coisa alguma, cujos princípios eram demasiado elásticos, elásticos até ao relaxamento, sentiu-se invadido por uma cólera surda. O facto de Toby, o garoto que recolhera e acarinhara como se se tratasse dum cachorrinho doente, fazer tal coisa, fora um golpe fundo, tão fundo que cortara toda a sua complacência.

- Vais levar uma trepa por causa disso! - exclamou, com as sobrancelhas unidas numa linha severa. - Vai lá para baixo e espera por mim.

Toby afastou-se como uma seta, e Saltash, durante mais de meia hora, vagueou na coberta, amaldiçoando-se a si, ao rapaz e ao ridículo e insensato acaso que os unira.

Por fim, desceu aos seus aposentos para, pela primeira vez na vida, administrar castigo corporal a um ser humano. Ele que, durante a sua repreensível existência, recebera correcções de todo o género, ia agora aplicar sanções! Pela primeira vez na vida, invertiam-se os papéis, passava de réu a juiz!

Foi encontrar Toby em mangas de camisa, pálido, mas sereno, e a sua chibata de equitação bem à vista.

- Nunca levaste uma sova de chibata? - perguntou, em tom azedo, agarrando-o ameaçadoramente.

- Não, senhor - retorquiu o rapaz, de olhos baixos.

- Porquê? Nunca a mereceste?

- Não, senhor. Nunca fui apanhado antes - respondeu, deitando-lhe uma olhadela nervosa.

A sombra dum sorriso pairou, por instantes, nos olhos de Saltash, mas dominou-se imediatamente:

- Bem, desta vez foste apanhado, claramente apanhado. Posso não ser a pessoa mais indicada para te castigar pelo que fizeste, mas nem por isso deixarei de o fazer.

- Pois faça-o, senhor! - exclamou, com as mãos enclavinhadas uma na outra.

E Saltash fê-lo. O seu coração não entrava na contenda, pelo contrário, gritava-lhe censuras e vergonha enquanto a chibata fustigava o rapaz. Toby não emitia o mínimo som, mas à terceira vergastada curvou-se mais e Saltash, soltando uma terrível praga em francês, atirou com a chibata contra a parede.

- Pronto! Não voltes a fazer o mesmo! - gritou, voltando o rapaz de molde a ver-lhe a cara. - Estás arrependido?

Ao ver, porém, o rosto infantil coberto de lágrimas, largou-o bruscamente, dirigindo-se ao salão-de-jantar e depois para o tombadilho, soltando pragas nas mais variadas línguas.

Mostrou-se rude para com Larpent quando este, um pouco depois, se lhe dirigiu, mas o capitão limitou-se a encolher indiferentemente os ombros, como era seu costume, e afastou-se.

Quando, como habitualmente, desceu, a fim de se vestir para o jantar, encontrou a roupa pronta, mas não viu Toby. Refreando o primeiro impulso de ir procurá-lo, vestiu-se sozinho, murmurando para consigo que, custasse o que custasse, aquele caso tinha de ser levado "judicialmente".

Foi para o salão-de-jantar e sentou-se à mesa, com o capitão, que já o esperava. Geralmente, Toby ficava por detrás dele, mas desta vez não apareceu. A sua ausência oprimia Saltash que, para disfarçar, começou a falar sacudidamente e com grandes intervalos de silêncio penoso.

Larpent limitou-se a trocar algumas palavras de mera cortesia. Comeu bem, bebeu com sobriedade e, nos intervalos da espasmódica conversa do patrão, parecia imerso nos seus pensamentos. Quando a refeição terminou, levantou-se para ir para a coberta, recusando o café.

- Fique mais um momento, Larpent! - pediu Saltash, num gesto impulsivo. - A não ser que tenha pressa... Fume um cigarro comigo.

O capitão parou, fitando o rosto moreno e inquieto do patrão, como se o observasse com minúcia:

- Não podemos fumar na coberta? - perguntou por fim.

- Está bem - aquiesceu Saltash, levantando-se num pulo, como que impulsionado por uma mola. - Traga os cigarros, Murray! - e voltando-se de novo para o capitão:

- Receava que recusasse. Há pouco fui demasiado incorrecto para consigo. Desculpe. O facto é que... estou farto disto. Lamento se vou desapontá-lo, mas vamos voltar para Inglaterra.

- Vossa Excelência nunca me desaponta - murmurou Larpent, com o seu enigmático sorriso.

- Gosto de você, capitão-disse Saltash, olhando-o e soltando uma gargalhada também um tanto enigmática. Você, ao menos, diz sempre a verdade. Bem, continuemos.

Desta vez não iremos a Jamaica, mas isso não interessa. Seja como for, é uma pena perder a Primavera de Inglaterra.

- A Primavera ou as reuniões da Primavera?

- Sim, tem razão - concordou, quase com alívio. O meu velho domador de cavalos - o homem que comprou o meu campo de equitação - convida-me sempre nesta altura. Devia gostar de o conhecer. É outro amante das verdades amargas.

Deu o braço ao capitão e dirigiram-se, juntos, para a coberta. Embora Larpent não desse sinais de ressentimento, Saltash nunca se sentia inteiramente à vontade quando sabia que não se portara com decência. Por isso se deu ao trabalho de se mostrar ainda mais agradável do que de costume.

A noite estava maravilhosa e o mar parecia uma vasta extensão de reflexos de prata, através dos quais o iate deslizava suavemente, deixando uma fita branca atrás de si. Saltash estendeu-se numa cadeira, com o rosto voltado para o céu, mas a sua atitude não traduzia o repouso sereno que caracterizava a do seu companheiro. Fumava o cigarro com gestos inquietos e fumaças impacientes e, quando este chegou a meio, resmungou uma praga e arremessou-o pela borda fora. - Larpent-murmurou pouco depois - se você fosse um maldito escroque como eu, que faria?

O capitão voltou a cabeça, encarando-o com calma.

- Não recolheria vagabundos e extraviados - respondeu por fim, martelando bem as palavras.

- Nesse caso, deixá-los-ia no lodo, até esticarem de fome, não? - perguntou, tentando dominar o tom violento da voz.

- Não, também não faria isso. Pagaria a alguém, alguém que não fosse aquilo que o senhor se intitulou, há pouco, para olhar por eles - declarou, num tom prático, inteiramente desprovido de simpatia. - Essa escumalha tem, geralmente, uma grande intuição para aprender e imitar aquilo que não deve - terminou, em tom seco.

Saltash moveu-se na cadeira, como se alguma coisa o incomodasse.

- Acha que sou uma influência contaminadora? - perguntou.

- Não me cabe a mim dizê-lo - declarou o capitão, encolhendo os ombros no seu jeito - todas as doenças são contagiosas... desde que não sejam incuráveis.

Saltash, inesperadamente, soltou uma risada amarga:

- Está a sugerir... uma cura?

- Há cura para muitas coisas - retorquiu Larpent, recostando-se e expelindo uma nuvem de fumo.

- Acaso pode o etíope mudar a pele? - volveu o outro.

- A dar-se, seria uma coisa dolorosa, sem dúvida murmurou o capitão, após breve silêncio. - No entanto, têm-se verificado coisas mais espantosas.

- Ora, ora!

Quando, um pouco mais tarde, Larpent se levantou e lhe deu as boas-noites, Saltash estendeu-lhe a mão, num gesto cheio de camaradagem:

- Boas-noites, meu velho! E... obrigado pela franqueza! Tem a certeza de que não lhe apetece dar-me uma sova?

- De modo nenhum, visto que o senhor a dá a si mesmo! - replicou, com o habitual sorriso.

Agarrou na mão que se lhe oferecia e ficou surpreendido com o calor e firmeza com que a sua foi apertada. Enquanto se afastava, porém, foi reflectindo em que Saltash sempre fora um diabo desequilibrado, impulsivo e irresponsável, mas que possuía também um encanto pessoal muito grande, que atenuava em grande parte as suas loucuras. Por instinto compreendia que, naquela noite, o patrão travava uma luta consigo mesmo, mas, porque o conhecia melhor do que a maioria dos seus amigos, não arriscaria nada pelo resultado da batalha. Havia em Saltash duas vontades contraditórias, mas de igual força. Isto na sua opinião.

Depois de, durante cerca de uma hora, andar dum lado para o outro, no convés, à luz das estrelas, Saltash reparou bruscamente numa figura franzina, postada atrás da cadeira onde estivera sentado. Encarou-a com o rosto contraído por inexplicável comoção, esteve um momento indeciso, e acabou por sentar-se.

Ao recostar-se, porém, abriu um braço, e Toby, num segundo, estava ajoelhado a seu lado. O braço fechou-se à volta do corpo franzino e o rapaz, deixando escapar um soluço abafado, escondeu a cara.

Durante um bocado nada se ouviu, além do resfolegar das máquinas e do marulhar da água. Saltash estava absolutamente imóvel, com os olhos semicerrados, e poder-se-ia julgá-lo adormecido se não fosse a força com que abraçava Toby. Este, pelo seu lado, continuava com a cabeça escondida nas mãos, de tal forma imóvel que mais parecia uma estátua.

O homem moveu-se, por fim, abrindo e fechando os olhos diversas vezes, como se fosse uma força invisível e não a sua vontade que lhe comandasse os movimentos.

- Tens estado amuado todo este tempo? - perguntou com uma voz que se esforçava por ser severa, não obstante continuasse a apertá-lo a si.

O rapaz estremeceu e encolheu-se mais:

- Não, meu senhor.

- Então por que não vieste há mais tempo?

- Tive... medo - confessou, esforçando-se por não chorar.

-Medo! Mas medo porquê? - e começou a afagar-lhe suavemente os cabelos. - Não te parece que és um grande pateta? - E na sua voz já não havia severidade, mas ternura, uma ternura que queria fazer-se passar por ironia, sem o conseguir. - Havia alguma razão para teres medo?

Toby não conseguiu responder. Limitou-se a sentar-se mais comodamente e a apoiar-se com mais confiança no braço que o rodeava.

- Vamos-continuou - te magoei muito, pois não?

-Não, meu senhor, não me magoou... nada! Não... não... queria magoar-me, pois não?

- Para a próxima vez já sei que terei de bater com mais força- disse com um sorriso que desmentia as palavras.

- Não, meu senhor, não! - exclamou Toby, com veemência

- Não haverá... próxima vez! Só fiz aquilo... só fiz aquilo... bem... para ver... Não farei mais... nunca mais!

- Só para ver o quê? - perguntou, curioso.

Mas Toby não soube novamente explicar-se e ele não insistiu.

- Bem, o que interessa é que não voltes a fazer o mesmo. No teu lugar, não faria disso... profissão. Bem vês, não seria vida para ti.

Calou-se, mas numa atitude de quem quer dizer mais qualquer coisa. Toby compreendeu e aguardou, silencioso.

- Não que eu seja pessoa para pregar moral a este respeito ou outro qualquer - observou, por fim, em tom sacudido, e com uma careta, como se uma força interior o compelisse. - Bem vês... eu próprio sou uma espécie de escroque.

- O senhor! - protestou Toby, endireitando a cabeça e fitando-o com os olhos ardentes. - Não diga isso! Não é verdade!

- Não precisas acreditar, meu filho, se assim desejares - murmurou, com o rosto sombrio - mas não deixa de ser verdade. Foi por isso que te bati, compreendes? Precisamente para salientar que há uma diferença entre nós.

- Oh, não é verdade! - repetiu o rapaz, com o mesmo ardor. - Serei capaz de matar quem disser semelhante mentira!

- Oh, não precisas de fazer tal coisa! - exclamou, rindo-se. - Obrigado, no entanto, meu galinho da índia! Se alguma vez precisar da tua protecção, descansa que ta pedirei - e beliscou, comovido, o rosto quase infantil. Mas não te esqueças de que não deves seguir o meu exemplo! Quero que leves uma vida recta. És suficientemente novo para o fazeres e eu... velarei para que tenhas oportunidade.

- Mas deixe-me ficar consigo! Deixe-me ficar sempre consigo!

- Ah! - exclamou Saltash, unindo as sobrancelhas, em atitude meditativa. - Compreendes, não posso dizer o que vou fazer de ti... És um problema complicado, sabes?

- Sim, meu senhor, eu sei, eu sei! - atropelava as palavras, agitado e nervoso. - Mas não me separe de si, prometa que não me separa de si!

- Não posso prometer nada. Olha, creio que já conversámos bastante. O melhor é ires para a cama.

Mas Toby não lhe largava a manga do casaco.

- Por favor, meu senhor, disse que eu lhe pertencia de corpo e alma - suplicou, com os lábios trémulos. - com certeza que não pensa mandar-me embora! Por favor! Eu farei tudo, tudo, por si! E o senhor pode bater-me, fazer-me o que quiser, que nunca soltarei uma queixa. Eu pertenço-lhe... durante toda a vida! Por favor, não me mande embora! Prefiro morrer a abandoná-lo! - e encostou a cabeça à mão de Saltash, a soluçar, mas esforçando-se desesperadamente por abafar os soluços.

- Toby, meu tonto, cala-te, cala-te! - murmurou, comovido. - Cala-te, meu filho, e vai para baixo.

As palavras, apesar de toda a comoção que as ditava, eram firmes e autoritárias.

- Levanta-te, rapaz! - ordenou, continuando a tentar libertar-se das mãos do pupilo. - Vá, levanta-te e vai para a cama. Anda, não chores, acalma-te! Não ouves, Toby?

- Está bem, meu senhor - murmurou o rapaz, erguendo para ele o rosto pálido e sulcado de lágrimas, onde os olhos, muito azuis, se destacavam, enormes e tristes, muito tristes

- Eu sei que sou um doido, perdoe! Não tenho culpa... Nunca ninguém foi decente para comigo... até que o encontrei. E agora... agora vou outra vez abaixo.

- Oh, cala-te com isso! - declarou Saltash, quase com violência. - Não compreendes... que é isso precisamente o que quero evitar? Creio que não desejas ir para o inferno?

- Iria para o inferno e ficaria lá para sempre... se o senhor lá estivesse! - bom Deus! - comentou Saltash.

E levantou-se, no seu jeito brusco, indo encostar-se à amurada, olhando, sem ver, as águas prateadas. Voltou-se por fim, encarando a figura silenciosa com um sorriso estranho a contrair-lhe o rosto.

- Está bem - dis'se, batendo no ombro de Toby com certa arrogância. - Fica comigo e transforma a vida num inferno, se assim o desejas! No fim de contas, creio que, duma maneira ou doutra, o resultado seria o mesmo.

- Isso significa que o senhor não me manda embora?

- perguntou o rapaz, irradiando ansiedade.

No rosto de Saltash continuava a pairar o mesmo sorriso estranho, um sorriso que era uma mistura de cinismo e de vaga comoção.

- Sim, significa que ficas comigo - respondeu, sem o desfitar.

- Para bem, senhor? - Toby sustentava-lhe o olhar, com os olhos muito abertos e intensamente brilhantes.

- Para o melhor... e para o pior, meu Toby! - e soltou uma gargalhada curta e zombeteira. - Agora vai!

Bateu-lhe amigavelmente nas costas e Toby afastou-se, muito depressa, sem olhar para trás.

Avistaram a costa inglesa alguns dias depois, numa tarde de nevoeiro e chuva. O mar estava cinzento e turvo, e o ar frio e desagradável.

- É assim a Inglaterra! - exclamou Saltash. - Nunca sorri aos filhos pródigos.

Jantava sozinho na casa-de-jantar, com Toby atrás da sua cadeira, pois Larpent não saíra da ponte.

- Não gosta da Inglaterra? - perguntou Toby.

- Adoro-a! - afirmou, com a mais cómica das caretas. - Mas não regresso para me divertir.

- Demasiado apertada, meu senhor? - insinuou o rapaz, avançando para lhe encher o copo.

- Demasiado limitada em muitos aspectos, meu Toby

- admitiu - mas, ao mesmo tempo, útil em certas emergências. Uma mãe severa, talvez, mas, no conjunto, sensata. Tu, por exemplo... É lá que te vais fazer.

- Eu, senhor? - perguntou, já todo trémulo, e voltando para trás da cadeira.

Saltash fez um gesto afirmativo e, com os olhos um pouco brilhantes, começou a girar o copo nos dedos.

- Temos de fazer de ti um respeitável cidadão - murmurou.

- Acha que isso tem importância?

- Bem sabes que não serás sempre um rapaz de dezasseis anos - declarou, levantando o copo. - Temos de pensar no futuro, quer queiramos, quer não.

- Não vejo, porquê, meu senhor.

- És ainda novo - e bebeu, com ar de quem faz um brinde. - À nossa última noite a bordo! - exclamou de súbito, voltando-se na cadeira. - Tens de beber comigo!

- convidou, num gesto real. Toby fez-se escarlate e recuou:

- Não, não... do seu copo não! Licor... não!

- Porquê? Tens medo? - zombou Saltash.

O rapaz não respondeu. Involuntariamente, agarrou-se às costas da cadeira.

Saltash encarou-o alguns segundos, sempre com os olhos a brilhar, e, por fim, levantou-se, deixando ficar um joelho sobre a cadeira, e levou o copo aos lábios do rapaz.

- Medo? - repetiu, falando muito suavemente, como se se dirigisse a uma criança assustada.

Toby levantou a mão, na intenção de afastar o copo, mas, em vez disso, apertou nervosamente o pulso do seu protector. Bebeu, obedecendo à muda insistência dele, mas sem deixar de o fitar.

- Não, não estou com medo - disse, por fim, com um sorriso triste. - Apenas... receio não lhe dar boa sorte.

- Não te preocupes com isso! Não estou acostumado a ter sorte.

Os olhos de Toby abriram-se, de espanto:

- Pensava que o senhor... tinha tudo! O homem riu-se e pousou o copo.

- Pelo contrário, meu caro! Não sou mais rico do que tu. Como Tântalo, não conseguirei nunca apaziguar a minha sede... Como a maioria dos homens - dos homens melhores do que eu - vejo as estrelas, mas nunca consigo alcançá-las.

- Alguém consegue?

Saltash riu-se de novo, uma risada breve e enigmática:

- Meu filho, há quem voe muito alto, mas geralmente acabam por vir cá parar abaixo outra vez, enquanto que os que não conseguem levantar os pés do chão não correm esse risco... A queda desses é mais pequena... A lei das compensações, afinal. Bem, mas mudemos de assunto. Temos de conversar a sério.

- Sim, meu senhor.

- Que queres tu ser, Toby? - perguntou, fitando-o com um sorriso vago, meio irónico, meio terno. - A conversa resume-se nisso.

- O senhor é que decide - murmurou o rapaz, muito direito, mas sem largar as costas da cadeira.

- Sim? - e de novo os olhos lhe brilharam. - Achas que sou eu que tenho de decidir?

- Sim, é só o senhor que deve decidir - repetiu, muito sereno e firme.

- Queres dizer só o que as tuas palavras traduzem, mais nada? - perguntou, apertando a boca, como que para reprimir qualquer frase mais comovida.

- Só, meu senhor. Quero dizer que estou... à sua disposição.

Saltash agarrou-o pelos ombros, num dos seus gestos impulsivos e bruscos, e observou-o com atenção.

- Toby! Tens a certeza de que não estás a ser um tonto, um grande tonto?

- Não estou, meu senhor! - foi a resposta rápida, inesperadamente veemente. - Faço a única coisa possível. Mas se... mas se...

- Então? Se, o quê?

- Se quiser livrar-se de mim... em qualquer altura...

- começou, dominando-se com um esforço - eu irei, senhor, eu irei!

- E irás para onde? - Os seus olhos não zombavam já; pelo contrário, estavam iluminados por uma centelha que muito poucos tinham ainda admirado.

Toby sacudiu as mãos, num gesto vago, e deixou-as cair, moles, ao longo do corpo:

- Ver-me-ei também livre de mim, senhor - murmurou, com uma espécie de orgulho doloroso. - Não será difícil... e eu farei tudo de molde a que nunca o saiba.

- Toby, tu és único! - exclamou Saltash, levantando-se bruscamente. - Soberbo também, à tua maneira. A única desculpa é que ainda és novo. Nunca te ocorreu que te afeiçoaste à pessoa menos indicada?

- Não, senhor - murmurou, muito baixo.

- Não tens medo de perder tudo quanto conseguiste numa cartada má?

- Não, senhor - e acrescentou, com o seu sorriso infantil: - De qualquer modo, não teria muito que perder.

A mão de Saltash apertou-lhe mais o ombro, enquanto que o brilho dos seus olhos se transformava numa chama viva.

- Bem - começou, lentamente - até agora nunca recusei... uma dádiva dos deuses.

Calou-se porque, de súbito, ultrapassando todas as vozes, se ouviu um estrondo que parecia ser o desmoronar do próprio mundo. No mesmo instante um choque tremendo atirou com ambos ao chão.

Saltash caiu como cairia um macaco, agarrando-se a uma coisa e depois a outra, para se proteger, acabandopor ficar de joelhos, totalmente às escuras, sempre com o braço de Toby apertado na mão. Este, porém, batera com a cabeça num armário e estatelara-se, aturdido e impotente.

Ouvia-se agora, nítido e arrepiante, o silvo duma sirene.

- Malvados! - gritou Saltash, em tom brutal. - Quererão, ainda por cima, ensurdecer-nos?

Mas, tal como viera, o silvo extinguiu-se, deixando um vácuo logo preenchido por outros ruídos menores, como uma confusão de vozes e de passos apressados, escape de vapor e enxurrada de água.

Saltash soergueu-se, na escuridão, tentando arrastar também Toby, mas este, por estar desmaiado, parecia pesar toneladas. Teve de chamar a si todas as forças e, num esforço prodigioso, levantou-o nos braços. A sua volta amontoavam-se vidros e pratos partidos e, lá em cima, o barulho aumentava. Pôs ao ombro o peso morto e começou, desesperadamente, a abrir caminho. O barulho e o instinto eram os seus únicos guias, pois a escuridão tornara-se completa, mas ele não era homem que se deixasse morrer, como qualquer animal apanhado numa armadilha, enquanto houvesse uma possibilidade de salvação, por mínima e distante que fosse. Embora, por todo o lado, encontrasse obstáculos, e os pés se lhe prendessem e enterrassem em toda a sorte de coisas, tentava sempre abrir caminho, com os dentes cerrados e soltando, como desabafo, pragas horríveis, em língua estrangeira.

Nunca soube se aquele esforço desesperado para se libertar teria ou não sido coroado de êxito, pois, após um espaço que nenhum tempo podia medir, brilhou à sua frente a luz duma lâmpada eléctrica, e viu a saída apenas a alguns passos de distância.

- Saltash! - gritava uma voz acima de todos os -

Aqui! - gritou, ainda lutando por lugar onde pôr os pés. - É você, Larpent? Temos tempo?

- Segundos apenas! - informou em tom breve. - Dê-me o miúdo.

-Não! Basta que me ajude com a sua mão! com força! É só um puxão!

Fez um esforço supremo para a frente, com a mão livre aberta, escorregou e, por um triz, não se estatelava outra vez. Por fim, sentiu que qualquer coisa com a força duma garra o erguia no ar. No mesmo instante encontrou-se junto da ombreira da porta, quase apoiado nela. com a lâmpada, Larpent iluminou as escadas, praticamente perpendiculares, mas que era preciso subir.

- É melhor dar-me o rapaz - insistiu. - O senhor é que conta.

- Saia da frente, diabo! - ordenou Saltash, começando a subir os degraus, sempre com Toby dependurado do ombro.

O capitão seguia atrás, empunhando a lâmpada, para alumiar o caminho, até alcançarem um indescritível pandemónio de barulho e estragos.

Havia luz, ali. Uma luz que brilhava em grandes clarões através do nevoeiro, delimitando a silhueta monstruosa dum enorme navio, afastado deles apenas algumas polegadas, mas alto, alto como uma torre. A coberta, onde se encontravam, empinou-se, formando um grande ângulo agudo, enquanto em baixo continuava o resfolegar do vapor a escapar-se, acompanhado por ruídos espasmódicos, como o inútil bater de gigantescas asas contra grades de titânio.

Um grupo de homens lutava para descer uma baleeira, à luz fantasmagórica que iluminava a noite, enquanto uma voz, para além da cortina de nevoeiro, emitia, por meio dum alto-falante, ordens incompreensíveis.

Todos estes pormenores eram registados pelo cérebro de Saltash, cuja percepção saltava dum para outro, com uma agilidade mental a que a sua vontade era absolutamente estranha. Era arrastado pelas circunstâncias, como uma ave é arrastada pela tormenta, mas deixava-se arrastar sem desfalecimentos, sem deixar perder nenhuma possibilidade de refúgio.

Os seus olhos foram atraídos por uma bóia, pendurada ao lado duma escotilha, e logo se precipitou para ela. Ao inclinar-se, porém, Toby deslizou-lhe do ombro, recuperando os sentidos, mas deixou-se ficar, fitando, com os olhos espantados, o homem que, numa fúria, desatava a corda que prendia a bóia.

Larpent estava de novo junto deles. Levantou Toby, ao mesmo tempo que Saltash se voltava, com a bóia na mão.

- Que vai fazer? -perguntou o capitão. - Já libertaram o barco, vá enquanto é tempo!

Mas o outro nem olhou. Enfiou a bóia pela cabeça de Toby e começou a enrolar a corda ao seu corpo. Não era preciso olhar para saber que o bote nunca sairia dali.

De súbito, porém, Toby compreendeu o que se passava. Libertou um braço e fez menção de se agarrar a Saltash.

- Deixe-me estar ao pé de si! - gritou, angustiado. Não quero ir sozinho!

O homem agarrou-lhe a mão, deixando cair a ponta da corda. Larpent apanhou-a, enrolou-a ao corpo do patrão e atou-a, enquanto este passava Toby para fora da amurada.

Depois, durante o espaço dum segundo, ficou suspenso, uma das mãos ainda presa a Toby, a outra à amurada do iate que se afundava, ambos, lado a lado, acima do abismo.

- Salve-se, Larpent! - gritou. - Quero que se salve! Depois voltou-se para o trémulo companheiro e sorriu-lhe, sorriu-lhe para os olhos aterrados:

- Anda, Toby! Vamos... juntos!

Atirou as pernas para fora e deixou-se cair. O grito de Toby ouviu-se acima de todos os ruídos, quando mergulharam nas águas cinzentas e profundas.

O afundamento do "Mariposa Nocturna", como consequência da colisão com o "Corfe Castle", em viagem para o Brasil, era assunto de importância suficiente para merecer lugar de destaque nos jornais do dia seguinte. Lorde Saltash era conhecido como bom marinheiro, e a notícia, primeiramente espalhada, de que era um dos afogados, foi recebida com desgosto por aquele círculo no meio do qual era uma figura familiar. À última hora, porém, tudo foi esclarecido, e os seus amigos sorriram, observando que ele tinha a agilidade duma enguia para se escapar de apertos e que, portanto, só acreditariam na sua morte quando fossem ao seu funeral.

Muito antes da publicação da segunda notícia, Saltash fazia, na cabina do comandante do "Corfe Castle", e diante dum reanimador brande com soda, uma reportagem breve e clara dos acontecimentos, identificando-se e à sua tripulação. Sim, era Charles Burchester, Visconde Saltash, dono do iate "Mariposa Nocturna". Voltava de Valrosa, sozinho com o seu comandante e respectiva tripulação. Tinham cruzado o Atlântico com ideia de irem para o sul, mas recentemente mudara de ideias, decidindo voltar à Pátria. Não esperara ter o azar de ir para o fundo em águas territoriais, mas confessava que a sorte o perseguia.

Só pedia que o desembarcassem o mais depressa possível, pois, na ocasião, estava farto, fartíssimo, de viagens por mar.

Tudo isto dito com a mais cómica das caretas e ouvido pelo capitão Beaumont, comandante do "Corfe Castle", com a mais grave e oficial das simpatias.

- Bem, espero que nos não acuse da sua pouca sorte... Podíamos ter ido, nós próprios, para o fundo...

- Nunca culpo ninguém, além do diabo, pela minha pouca sorte. E, uma vez que conseguiram salvar-nos a todos, estou satisfeito por não lhes ter acontecido o mesmo que ao meu barco...

Bateram à porta e ele voltou-se, brusco como sempre, deparando com um homem magro e chupado, que o fitava curiosamente como se nunca tivesse visto ninguém parecido com ele.

O capitão Beaumont apresentou-o:

- É o Dr. Hurst. Então, doutor? Espero que traga boas notícias.

O homem aproximou-se, sem deixar de observar Saltash, cujos olhos o desafiavam com soberana arrogância.

- Então? - perguntou este - Quais são as notícias? Andava à pesca do carapau e apanhou uma baleia... ou ao contrário?

- Bem - começou o médico, pigarreando e voltando-se, ostensivamente, para o capitão. - No geral, trago boas notícias. Nenhum dos homens se encontra gravemente ferido, graças às medidas rápidas que o senhor tomou para os salvar. O capitão Larpent está ainda inconsciente, apanhou uma grande comoção, mas creio que se cura. E... e... - hesitou, olhando de novo para Saltash - a pessoa cuja vida o senhor salvou...

- Bem sei! - interrompeu, recostando-se na cadeira.

- A pessoa que salvei! Que lhe aconteceu, Dr. Hurst?

- Tinha algum passageiro? - interveio o capitão. Ouvi dizer que tinha salvo um rapaz.

-Por favor, continue! - ordenou Saltash, rindo-se abertamente na cara do médico. - Que aconteceu? Espero que nada de grave.

A figura descarnada do doutor endireitou-se, num movimento de desprazer.

- Vejo que o senhor está ao corrente de certo facto que, devo admitir, me causou uma surpresa um tanto desagradável - declarou.

Saltash voltou-se para o capitão, sem responder ao médico:

- Perguntou-me se tinha um passageiro - disse, com certa altivez. - Antes que comece, também, a ter surpresas desagradáveis, deixe-me explicar-lhe que trazia a bordo uma criança que não fazia parte da tripulação.

- Uma criança? - e o capitão encarou-o, - Pensava... julgava... Refere-se ao rapaz?

- Ao rapaz, não... à rapariga - explicou em tom muito suave e sorridente. - Uma jovem, capitão Beaumont, mas

garanto-lhe que amplamente protegida. Era a última noite

que passávamos a bordo e, para comemorar a despedida, resolvera mascarar-se, vestindo um fardamento de groom.

l Estava a preparar-se quando o vosso barco nos abalroou

e, se não fosse Larpent, teríamos ido para o fundo, como ratos - e voltou-se de novo para o médico, mostrando os dentes por entre os lábios sorridentes: - Sinto sinceramente desapontá-lo, mas a realidade é, muitas vezes, tão extravagante como os nossos desagradáveis pensamentos...

A pequena é... filha de Larpent! - Levantou-se, sempre a sorrir. - E agora agradecia-lhe que me levasse junto dela, isto no caso de se achar capaz de receber visitas.

Será melhor que seja eu a dar-lhe notícias da doença do pai, em vez de um estranho.

Apesar de toda a delicadeza que alardeava, as suas últimas palavras encobriam uma ordem clara. O médico percebeu-o e, embora o olhasse com a antipatia nascida no malogro, não levantou a mínima objecção.

- Pode, evidentemente, vê-la, se deseja - declarou, arrogante. - Na realidade, tem chamado por si.

- Ah! - exclamou, ao mesmo tempo que se voltava, cerimonioso, para o capitão: - Dá-me licença que vá?

- Decerto, decerto. Espero vê-lo depois, Lorde Saltash.

- Obrigado. Pensava que estivesse desejoso de me ver pelas costas, antes que a minha má sorte alastre...

O "Corfe Castle", também ligeiramente avariado, voltava para Southampton, a fim de desembarcar os náufragos e fazer algumas reparações necessárias. Apesar do mau tempo e de, consequentemente, o avanço ser lento, esperavam atracar por volta do meio-dia.

Enquanto seguia o médico, Saltash foi objecto de considerável interesse por parte dos passageiros já levantados, chegando, alguns, até, a detê-lo para o felicitarem por ter-se salvo. Ele, porém, desculpava-se que tinha assuntos a tratar e que o médico estava à sua espera, e afastava-se logo.

Chegaram, por fim, a uma cabina, ao fundo dum comprido corredor, à porta da qual uma criada de cara simpática trocou algumas palavras com o médico.

- Posso entrar? - perguntou Saltash, mais impaciente. A mulher fitou-o, com uma espécie de espanto e compaixão nos olhos agradáveis:

- A pobrezinha está muito abatida! - Não tem feito mais do que tremer e, quanto a falar, só tem chamado pelo senhor.

- Está bem, deixe-me passar! - ordenou, imperioso.

- Preciso de conversar com ela.

A mulher afastou-se, submissa, e ele entrou, como um rei entraria no quarto dum escravo, fechando a porta com decisão sobre os que ficaram do lado de fora.

Depois, por um segundo, um segundo apenas, hesitou.

- Toby! - exclamou por fim.

No mesmo instante dois braços magros e nus estenderam-se para ele e, logo a seguir, apertava a si uma criaturinha pequena e sofredora, que escondia o rosto no seu peito, esquivando-se a erguê-lo sempre que Saltash o tentava.

- Está tudo bem, pequena - consolou, numa voz que não deixava de ser autoritária, apesar de toda a sua meiguice. - Eu sei. Soube sempre. Não estejas a preocupar-te, pois não vale a pena. Estás sob a minha protecção e não te acontecerá mal algum.

- Sabia! - exclamou uma voz trémula, a voz de Toby, mas singularmente desprovida da sua habitual confiança.

- Oh, o que deve ter pensado!

- Eu?! - admirou-se, soltando uma risada. - Nunca penso, pequena. Dou a toda a gente, sempre, o benefício da dúvida, que é muito mais do que me dão a mim.

- É... salvou-me! Porquê? Porquê?

- Porque quis-afirmou - escuta. Este jogo terminou e precisamos de inventar outro. Tens de mudar de novo o teu nome e eu já disse a alguém que eras filha de Larpent.

- Mas... mas... o capitão... - titubeou, levantando a cabeça para ele.

- Oh, não te incomodes com o capitão! Eu tratarei dele. Deixa o assunto comigo e não te preocupes. Convencerei o Larpent, convencerei toda a gente, se for preciso. Tudo quanto tens a fazer é deixares-te estar sossegadinha, até te desembarcarem. E depois... depois achas que podes confiar em mim?

Falava com as sobrancelhas levantadas, num gesto cómico, e um sorriso meio terno, meio zombeteiro, a brincar-lhe nos lábios. Quando terminou, a criaturinha deprimida que apertava nos braços endireitou-se, num movimento apaixonado, pegou-lhe numa das mãos e apertou-a contra os lábios trémulos.

- Viverei... ou morrerei... para si! - Sou... sou... sua.

Saltash inclinou-se, impulsivo, e por um momento encostou o rosto moreno aos cabelos louros e curtos da rapariga. Uma sombra de comoção brilhou-lhe nos olhos, mas desvaneceu-se depressa.

- Bem, não te esqueças do novo jogo! - avisou, endireitando-se, com uma careta de quem se reconhece ridículo.

- Larpent - o teu papàzinho - está doente, por enquanto inconsciente, mas o médico pensa que ficará bom. Não te esqueças, hem? O tal doutor parece uma ave de rapina... Ah, é verdade, Toby é diminutivo de quê?! Compreendes, é melhor eu saber.

- Antoinette - murmuraram os lábios que continuavam a acariciar-lhe a mão.

- Antoinette! - e apertou-lhe meigamente o queixo pontiagudo, largando-o em seguida com a mesma delicadeza. - Na minha opinião, "Mignonette" assentava-te melhor. Bem, como já é tempo de escolher um nome para ti, escolho este.

- Esse ou... "Nada de Nenhures" - suspirou, com um sorriso - esse... ainda me fica melhor.

-Não, não! - protestou Saltash, largando-a de mansinho. - Não te esqueças de que és uma favorita dos deuses! Isso sempre vale alguma coisa, pois eles não escolhem qualquer!

- Não têm feito muito por mim, até agora! - exclamou, numa rebelião brusca.

- Caluda! - ralhou, com ar cómico. - Ainda és muito nova para dizer uma coisa dessas.

- Sou mais velha do que pensa - murmurou, corando e voltando o rosto.

- Não, não és! - afirmou, com certa arrogância - Sei a tua idade, criança. Está escrita nos teus olhos. Foram eles que me disseram... tudo quanto quis saber. Mas, "Mignonette", nunca me disseram nada que pudesses desejar que eu ignorasse - concluiu, com ternura, ao ver a rapariga tapar os olhos com as mãos.

Passou-lhe novamente o braço à volta dos ombros estreitos, apertou-a um momento a si, e depois levantou-se, voltando-se para sair.

Quando se encontrou de novo no corredor tinha o rosto iluminado por um sorriso - o sorriso do jogador que se sabe possuidor dum trunfo valioso.

 

Uma semana depois do afundamento do "Mariposa Nocturna", Saltash fez a sua primeira reaparição em público, numa reunião efectuada no Hipódromo de Graydown, a poucas milhas do seu antigo castelo de Burchester. Impecavelmente vestido e com o melhor aspecto possível, vagabundeou entre os numerosos amigos presentes, sem dar o mínimo sinal de desgosto pelo desastre sofrido. Como sempre, mostrava-se muito senhor de si, sem esconder uma certa arrogância.

Não havia ainda muitos anos que tivera o seu próprio estábulo de cavalos de raça. Nesse tempo, as corridas eram o seu capricho. Porém, como com todas as outras, a paixão não durou muito. Não era homem para se prender demasiado a qualquer objectivo e, com a sua volubilidade característica, deixou esse passatempo para se entregar a outros. No entanto, nunca perdeu completamente o interesse pelos cavalos que tinham sido seus.

Vendera-os a Jake Bolton, um homem de aspecto rude, mas duma integridade que se tornara proverbial nos meios hípicos, e que, noutros tempos, fora seu treinador. Absolutamente desiguais em tudo, tão subtil um quanto o outro era simples, eram, apesar disso, amigos, ligados por uma amizade que nenhum deles podia explicar como nascera. No tempo em que Saltash fora patrão de Jake Bolton, este desprezara-o e perdera toda a confiança nele. No entanto, presentemente, os seus sentimentos tinham sofrido grande modificação.

Saudou Saltash com a mão, de longe, e este, como sempre, correspondeu com um sorriso dúbio e um tanto irónico.

Saltash costumava dizer que era fácil a um homem tornar-se seu inimigo, mas muito difícil conservar-se tal. Talvez a sua própria volubilidade tornasse impossível uma inimizade prolongada, ou talvez isso se devesse ao facto de possuir um sentido de humor tão ilimitado e tão louco que tudo o fazia rir, até as coisas mais sérias. Muitos homens tinham tentado tomá-lo a sério, mas em vão. Para ele, tudo merecia uma gargalhada ou um sorriso de mofa. Costumava dizer, com uma risada cínica, que a vida já era bastante difícil sem a seriedade a complicá-la. Portanto, tudo quanto lhe pedia era uma certa medida de alegria. Tudo o que passasse disso era loucura. Felicidade! O que era isso? Uma balela para crianças. Nunca deparara com uma alegria duradoura e estava inclinado a crer que tal coisa nunca saíra das páginas dos livros.

Jake Bolton poderia contradizê-lo, mas ele e Saltash nunca falavam de coisas abstractas. Este, se quisesse, poderia ver a ventura suprema nos olhos do outro, mas não se dava a esse trabalho e, se se desse, talvez zombasse. Fosse como fosse, do que não restava dúvida é que Bolton e Saltash tinham sido feitos em formas diferentes, e o que ao primeiro bastava para encher de júbilo a vida inteira, ao último ocuparia apenas breve período. Uma sua amiga costumava dizer que Charles Rex era um viajante demasiado rápido para colher muito no caminho. Embora ávido de prazer, era por demais irrequieto para o gozar, quando conseguia alcançá-lo.

No entanto, nem mesmo essa mulher imaginava todas as possibilidades daquela estranha personalidade. Talvez existisse apenas uma mulher, uma única, que podia gabar-se de o conhecer.

O dia estava esplêndido, fazendo brilhar, mais verde, a relva do campo de corridas. Saltash atravessou as pastagens, à procura de Jake Bolton, assobiando descuidadamente, cumprimentado aqui e ali por alguns moços de estrebaria. Encontrou, por fim, um homem que conhecia, Sam Vickers, a mão direita de Bolton.

- Procura Mr. Bolton, milorde? - perguntou o homem.

- Está para os escritórios, com Sir Bernard Brian. Temos aí um cavalo de dois anos que é um primor! Chama-se Príncipe Carlos e é filho do velho Hundredth Chance e da Queen of the Earth. Devia vê-lo! É uma estampa e manso como um cão! E esperto! Oh, Vossa Excelência talvez não acredite, mas, às vezes, temos de falar francês para ele não perceber!

- Fez bem em avisar-me, Sam - riu-se Saltash. Hei-de ir ver esse fenómeno! Ah, cá está Sir Bernard! Viva, Bunny, meu rapaz! Onde está o patrão?

Um rapaz de cabelos e olhos pretos, aparentando uns vinte e três anos, elegante, magro e muito direito, apareceu à esquina de um dos edifícios.

- Viva, Charlie! - cumprimentou, - Estou encantado por voltar a vê-lo, homem! Que azar ter perdido o "Mariposa Nocturna"! Espero que, ao menos, estivesse bem seguro. Você está bem, não?

- Esplêndido. E tu? Um feixe de ossos, como sempre?

- Cale-se com isso! Bem vê que cresci - protestou Bunny. - Sou tão alto como você.

- Oh, decerto, estás bastante alto! - troçou o outro.

- Mas estás também formidavelmente... estreito! Era capaz de apostar que a Maud te faria passar através da aliança de casamento, se experimentasse.

-Cale-se! - repetiu o rapaz, que era um tanto sensível a esta espécie de cumprimentos. - Sinto-me bem, e o resto que interessa? Vai ver a Maud quando isto acabar?

- Depende.

- De quê? - perguntou Bunny, dando-lhe o braço e arrastando-o consigo, com a familiaridade nascida duma amizade de muitos anos.

Saltash fitou-o, com aqueles olhos de cor diferente que pareciam sempre calcular, como os dum macaco, a que distância o levaria o próximo salto, e respondeu:

- Depende de Jake, evidentemente. O teu excelente cunhado nem sempre está disposto a convidar o lobo a visitar o redil, meu caro.

- Como se fosse preciso convidá-lo! - protestou, - Bem, convido-o eu, pronto! Tenho a certeza de que a Maud ficará aborrecidíssima se não for contar-lhe, tim-tim por tim-tim, a sua aventura marítima. Ainda esta manhã falámos em si.

- Sério? Será indelicadeza perguntar o que disseram?

- No que me diz respeito, pode sabê-lo - confessou francamente, corando. - Defendo-o sempre, Charlie.

- Sim? Que delicadeza! Estou comovido, indizivelmente comovido! E o irmão Jake, que diz a isso?

- Oh, Jake chama-me burro, mas, na realidade, estima-o deveras. Não tenha dúvidas a esse respeito – afirmou corando ainda mais. - No entanto, há pessoas que dizem uma série de coisas a seu respeito, como deve calcular... Não lhes chega a própria vida.

- E seria uma estupidez se chegasse. Não há neste mundo acção livre e independente, estamos todos dependentes uns dos outros, como um enxame de abelhas. Bem, mas, pelo que depreendo, estiveste a defender-me. E Maud, que diz ela?

Bunny soltou uma gargalhada:

- Oh, ela reserva o julgamento! Por isso tem de ir vê-la. Deve ir visitá-la e aos miúdos, Charlie. Já são quatro, sabe? E a mais velha é encantadora.

-Elen! Oh, lembro-me dela! Uma vez até lhe permitiram que fosse tomar chá comigo, ao Castelo! Não me consideram tão venenoso para as rapariguinhas pequenas como para os rapazes de vinte e dois ou vinte e três anos...

- Cale-se lá! - repetiu Bunny. - Olhe, o Jake! Venha falar-lhe.

Não havia nada de ornamental na figura de Jake Bolton. Baixo, entroncado, forte como um touro - e semelhante a ele no desprezo que mostrava pelos obstáculos colocados no seu caminho - com olhos castanho-avermelhados, francos, mas impiedosamente penetrantes, tal era o homem que desposara, oito anos antes, Maud Brian, arrebatando-a, praticamente, a Saltash, que a namorara. Os dois homens tinham, no entanto, esquecido há muito a inimizade causada por esse facto. Saltash sabia ser intoleràvelmente malicioso e vingativo, quando tal lhe dava na gana, mas essas disposições de espírito não duravam muito. Quanto a Bolton, uma vez que conquistara e possuía o anelo do seu coração, podia dar-se ao luxo de ser magnânimo.

Naquele momento saudou-o, também, com generosidade, mas com certa reserva.

- Muito prazer em vê-lo são e salvo, lorde - declarou, numa voz propositadamente doce e severa, depois de lhe apertar a mão.

- Desusada amabilidade da sua parte, Jake! -observou, rindo-se, com graciosa altivez. - Compartilho os seus sentimentos. Sei que a minha perca lhes despedaçaria os corações... Como está Maud?

- Bem... desde que não trabalhe muito. Tenho que mantê-la na ordem a esse respeito - disse Bolton, com um sorriso súbito que lhe desanuviou o rosto sombrio.

- Você foi sempre um fanfarrão, mas ia apostar em como ela lhe leva sempre a melhor... Então lá conseguiu um herdeiro varão, hem?! Espero que seja um rapazão!

- Há-de ser, não há-de, Jake? - interrompeu Bunny.

- O descarado tem seis meses e, sempre que estou em casa, dá um meio galope no Hundredth Chance! Ainda não o viu, Charlie? Que estupidez a sua em passar todo o Inverno fora!

- Bem, mas agora estou cá - murmurou Saltash, deitando uma olhadela cómica a Jake. - É-me permitido ir ver a última aquisição?

Jake encarava-o fixamente.

- Está sozinho no Castelo, lorde? - perguntou, um momento depois.

- Evidentemente que estou! - afirmou, começando a - esperava? Ah, compreendo! - e olhou de esguelha para Bunny. - Estou completamente só, conspícua e virtuosamente desacompanhado! Venha verificar, se quiser! Não encontrará nada, além da mais monástica solidão. Transformei-me em eremita! Ainda não tinham descoberto? O meu recente salvamento do que, para mim, foi um desairoso mergulho, tornou-me sóbrio numa tal extensão, que começo a duvidar se voltarei a ser outra coisa além de macambúzio! É a verdade, Jake, mas você pode acreditar ou não, é consigo. O que lhe garanto é que vou ver a Maud, dê lá por onde der! Em que ocasiões lhe pode a minha presença causar inconveniente?

- Diabos te levem, Jake! - explodiu Bunny, com calor.

- Bem sabes que a Maud te disse que o convidasses para jantar, se o visses!

- Cala-te, meu filho! - ordenou o homem, com absoluta serenidade. - Não são assuntos da tua conta e, se não tomas cuidadinho, vais para a cama antes de jantar!

Bunny riu-se com a ameaça, mas corou, sentido.

- Oh, não precisa de fazer tal coisa! - exclamou Saltash, também a rir. - Garanto-lhe que sou tão inofensivo como um pombinho! Bem, mas vamos lá a saber, quando posso ir?

- Esta noite - informou Jake, muito calmo. - Às oito horas, se lhe convém. Agora desculpe-me que tenho de ir andando. Bunny, mostra o Príncipe Carlos a Lorde Saltash!

Levantou a mão, numa despedida, e afastou-se. Era um homem sem pretensões, quer sociais, quer intelectuais, mas que sabia comportar-se, sem perder as suas prerrogativas, tanto com os superiores como com os inferiores a si, na escala social.

- Faz-te andar direitinho, hem? - troçou Saltash, vendo-o afastar-se. - Parece-me, no entanto, que já estás muito crescido para precisar de mentor, meu caro.

- Não o conhece - murmurou Bunny, de cenho -Não é o que julga. Somos amigos, Jake e eu, e orgulho-me disso.

- Evidentemente, evidentemente - concordou. - Não te disse, há muito tempo já, que ele era um gentleman? Pois é verdade, é assim mesmo. Um pouco tosco, no aspecto, mas são. Nunca deves zangar-te com ele por minha causa, rapaz. Era perder palavras, Bunny.

- Não me zango com ele, Charlie, mas o Jake vai acabando por lhe fazer justiça. A Maud é da mesma opinião.

- Mas, meu amigo, nunca ninguém me fez tal coisa! - exclamou, rindo alto. - Nem eu próprio!

- Você sempre se esforçou por parecer pior do que é na realidade, não acha, Charlie? - perguntou Bunny, fitando-o com afeição. - Estou sempre a dizer isso ao meu cunhado.

- Não, rapaz, eu não faço tal coisa - afirmou Saltash, despreocupado. - São os outros que o fazem. Gostam de quadros profusamente coloridos. E sendo assim... pourquoi pás?

Sacudiu os dedos, riu-se, e continuaram a caminhar, sorrindo e conversando amigavelmente. Saltash procedera sempre bem para com o jovem Bernard Brian, que fora paralítico, na infância, e não esquecia nunca os que tinham sido generosos para com ele. Por isso, fosse qual fosse a moral de Saltash, era um amigo, e como tal o trajava sempre.

Passaram o resto da tarde juntos e quando, no meio de desmesurado entusiasmo, o Príncipe Carlos ganhou a louca corrida, esperaram por Jake para o felicitarem.

Quando o carro arrancou, levando Saltash para o Castelo, a fim de se vestir para o jantar, Bunny voltou-se para o cunhado, e disse, entre sorridente e envergonhado:

- Não posso evitar de ser assim para o Charlie, Jake.

Não me importo nada, absolutamente nada, com o que dizem dele.

- Não te censuro - redarguiu Jake, olhando-o bem de frente.

Alguém cantava, docemente, uma canção de embalar, na bonita sala de grandes janelas abertas para os campos. Quem cantava tinha uma voz muito doce e, às vezes, nas notas mais baixas, um pouco trémula, como se a invadisse uma onda de ternura. Estava recostada numa cadeira, perto da janela, com o nené ao colo.

Para lá das encostas acidentadas estendia-se um braço de mar, prateado, que parecia mais brilhante sob os últimos e fracos raios de sol. E Maud Bolton, que fora a orgulhosa e desolada Maud Brian, espraiava os olhos, sonhadores e felizes, por aquela beleza dia a dia renovada.

O dia estivera quente e, por isso, sentia-se cansada, mas com um cansaço agradável, que lhe fazia saborear melhor a ventura de apertar contra o peito o corpinho tenro do filho, do rapazinho por que esperara durante tanto tempo.

Um leve ruído numa porta de comunicação, atrás dela, fê-la voltar a cabeça, sorridente.

- Jake!

Ele aproximou-se, devagar, e parou ao lado da mulher. A luz fraca do anoitecer, ao incidir-lhe no rosto, mostrou-o extraordinariamente suavizado, quase transformado.

Pouco depois baixou-se, beijando-a.

- Por que não está na cama? - perguntou, fitando o rostinho adormecido.

- Achei que, tanto ele como eu, merecíamos uma pequena festa, esta noite - murmurou, ainda com o sorriso a bailar-lhe nos lábios. - Esqueces-te de que faz hoje seis meses?

- Não, não me esqueci - respondeu, afagando a testa do filho com os dedos grossos.

- E por isso - explicou a mulher, soltando um suspiro imperceptível - de acordo com os bons costumes, vai deixar de dormir com a sua mãezinha, passando a fazê-lo no quarto das crianças. Adormeci-o primeiro, para não estranhar muito, coitadinho.

- Não te importes com os bons costumes, querida! Deixa-o ficar contigo mais algum tempo, se queres.

Maud levantou os olhos para o marido, uns lindos olhos cor de violeta:

- Obrigada, Jake - murmurou, cheia de ternura. Mas não é preciso. Já está tudo preparado e... ele não se Importa!

- Ele ainda se importa com muito poucas coisas observou Jake.

- Demais, ele e a ama entendem-se bem. Agora, só voltará para mim se adoecer, sim, se adoecer tem de voltar para mim.

- Decerto - concordou o marido, baixando-se. - Deixa-o ver, que vou levá-lo para o quarto das crianças.

- Não o acordes! - recomendou.

Jake pegou cuidadosamente no filho, que soltou um vagido, como que a protestar, mas não abriu os olhos.

- Não precisas de vir - disse para a mulher. - Eu trato dele.

E afastou-se, pé ante pé, seguido pelo olhar levemente ansioso de Maud, que não se moveu até ele voltar, poucos minutos depois.

- Minha querida! - murmurou Jake, ajoelhando-se e apertando-a com força nos braços. - Minha muito querida!

Maud encostou a cabeça à dele, sem uma palavra.

- Cansada?

- Não... creio que não! De qualquer modo, demasiado feliz para me queixar - respondeu em voz muito baixa, como se a contrariasse quebrar o silêncio.

- Precisas que te ajudem mais.

- Não, querido - retorquiu, beijando-lhe o pescoço.

- Não quero abandonar inteiramente as crianças. Que havia de fazer sem elas?

- Cuidar de mim, em troca - insinuou ele.

- E eu não cuido de ti, Jake? - perguntou ela, soltando uma risada.

- Cuidas, sim! - confessou o homem. - Nunca ninguém teve uma esposa como tu! Creio que, mesmo agora... estou em primeiro lugar.

- Sempre, sempre em primeiro lugar! - murmurou, encostando os lábios aos do marido.

Jake deixou-se ficar, apertando-a a si, sem nada dizer.

Amara-a, numa adoração ardente, desde a primeira vez em que a vira, mas o facto de ser também amado ainda hoje lhe enchia a alma de espanto. Dizia constantemente a si mesmo que não era a espécie de marido que lhe convinha, mas quando a tinha assim, palpitante, contra o seu coração, sabia, tinha a certeza absoluta, que eram um só.

- Ainda não me disseste nada acerca da reunião desta tarde - murmurou Maud, pouco depois.

- Pela minha alma que me esqueci por completo! riu-se Jake. - O Príncipe Carlos ganhou os primeiros louros! Venceu por dois comprimentos e meio.

- Oh, Jake, esplêndido! Deves sentir-te orgulhoso, querido! Estou satisfeitíssima. E a respeito de Charlie? Esteve presente para ver o seu... homónimo levar tudo à sua frente?

- Referes-te a Saltash? - inquiriu, num tom seco. Sim, esteve lá.

Maud afastou-se um pouco, para lhe ver o rosto.

- Espero que o tenhas convidado para jantar?

- Oh, certamente! - afirmou, levemente carrancudo.

- Bunny encarregou-se disso, por sua própria conta. Acha, e com razão, que tens o direito de convidar seja quem for para a tua própria casa.

- Jake! - e Maud endireitou-se bruscamente, com os olhos brilhantes. - Se Bunny disse isso...

- Não disse.

- Se insinuou, então... foi odioso! vou falar com ele!

- Não, não, pequena! Acalma-te! Sei haver-me com o teu irmão e ele, aliás, não teve má intenção. De qualquer maneira, convidei Saltash, e ele virá.

- Contra tua vontade.

- Não. Contra a minha opinião, talvez; contra a minha vontade, não. Não me importo de o receber, se isso te dá prazer. Tu e eu não discutimos por causa de bagatelas como Saltash, não é verdade? - e bateu-lhe carinhosamente na cara.

- Obrigada, Jake, meu querido. Mas... não te esqueças de que és o dono desta casa. Ninguém aqui entra sem teu consentimento.

- Nem mesmo Saltash? - perguntou, sorrindo.

- Nem mesmo... Bunny! - afirmou, ainda sentida.

- Olha, querida, não quero que digas nada ao rapaz a este respeito, ouviste? Se soubesse que te zangavas tanto, não teria falado no caso. De resto, ele não teve má intenção, porque, se tivesse, tinha-lhe partido a cabeça. E, afinal, eu vivo da generosidade de minha mulher, não é verdade? - perguntou, sorrindo. - Não estaria a esta hora a guardar gado, no outro lado do Atlântico, se não fosse ela?

- Não, querido. A esta hora dirigirias o teu próprio rancho e seleccionarias raças, como só tu sabes fazer.

- Oh, patetices! - protestou, beijando-a de novo nos lábios. - Prefiro isto a tudo o mais, querida. Bem, o que é facto é que receberemos Saltash e, portanto, temos de fazer por que tudo corra o melhor possível. Se não fosse por causa do teu irmão, não me importaria nada com este assunto, mas o rapaz gosta demasiado da companhia dele e eu não a acho aconselhável.

- Oh, Jake - exclamou Maud, corando um pouco creio que a companhia de Charlie não lhe fará mal algum - Intencionalmente, talvez não. Deus sabe que não tenho má vontade nenhuma contra o homem, mas o que não posso dizer é que acho a sua companhia proveitosa seja para quem for.

- Vejo que não o compreendes bem - observou a mulher, pensativa.

Jake riu-se tão inesperadamente, que Maud o fitou, de sobrancelhas franzidas.

- com certeza que o não compreendo - declarou Jake, levantando-se, mas sem deixar de rir. - Entre mim e ele houve grande número de mal-entendidos, desde o dia em que descobri que Sua Excelência era um patife até ao dia em que quase o matei por o considerar um biltre.

- Oh, isso foi há tanto tempo já! - apressou-se Maud a desculpar. - Charlie não era mais do que um rapazote. Cresceu muito, desde então.

- De que maneira? - resmungou Jake. - Bem, tenho de me ir arranjar, pois ele é capaz de aparecer de um momento para o outro.

Ia a encaminhar-se para o seu quarto, mas a mulher deteve-o:

- Jake, bem sabes que, apesar de todas as suas faltas, sempre teve possibilidades...

- Bem sei, possibilidades que aproveitou o melhor possível, à sua maneira, claro - cortou, severo.

- Por favor - suplicou Maud, com os lábios trémulos.

- Não é... desleal condenar um homem sem o ouvir primeiro?

O marido fez um trejeito desdenhoso e céptico, mas não disse nada.

- Jake, preciso que faças qualquer coisa por mim murmurou, levantando-se apoiada ao seu braço.

- O quê?

-Consente que, esta noite, seja uma amiga para ele! Deixa-me só com ele para ver se consigo que me diga se há alguma verdade nesse boato de que havia uma mulher a bordo!

- E depois?

- Deixas isso comigo, sim? Às vezes penso que o poderei auxiliar, se se apresentar oportunidade. Não te importas que tente ajudá-lo, pois não? Sabes, é que estou convencida de que o compreendo melhor do que a maioria das pessoas.

- Creio que é um sentimento desperdiçado; no entanto... faz como melhor te parecer, querida. Não interferirei.

- Mas tu não te sentirás... vexado?

Jake sorriu, com o seu sorriso inesperado e luminoso:

- Não. Tenho a certeza de que nunca mais me vexarás a... esse respeito.

- Decerto que não, Jake. Mas... não compreendes? Detesto ir contra os teus desejos, os teus preconceitos...

- Não tens de que recear, querida. O que tu fazes... está sempre bem feito.

Maud apertou-lhe com força as mãos, murmurando:

- Nunca me disseste nada que me comovesse tanto, amor! Tens a certeza de que... pensas assim?

- Absoluta - e atraiu-a a si, para de novo a beijar.

Quando, naquela noite, Saltash chegou, encontrou Jake e Bunny juntos, no terraço que ficava defronte da casa. Conduziu o automóvel ao seu encontro, com a brusquidão que lhe era peculiar, acabando por parar à entrada, onde encontrou Maud.

- Oh, Charlie! - saudou, com os olhos brilhantes de alegria. - Tenho andado ansiosa por lhe apertar as mãos desde que soube que se tinha salvo.

- Gentil como sempre! - exclamou Saltash, curvando-se para lhe beijar a mão. - Chegou a usar luto por mim? Garanto-lhe que foi um banho exageradamente frio, de que nenhum de nós gostou.

- Acredito! - concordou, envolvendo o rosto moreno e trocista num sorriso cheio de ternura maternal. - Que pouca sorte, perder assim aquele esplêndido iate!

- Já passei da idade em que se lamentam essas ninharias, Maud das Rosas - observou, com uma careta cómica, e usando ousadamente o nome por que a chamava - Tenho sofrido piores percas na minha vida.

- Mas continua a sorrir.

- Um sorriso pode esconder tanta coisa! - murmurou, fazendo uma vénia, e voltando-se, logo a seguir, para o marido de Maud, que se aproximava: - Viva, amigo! Como vê, peguei-lhe na deixa e introduzi-me no seu virtuoso lar. Como estão Eileen, Molly, Betty e... o filho e herdeiro?

- Esplêndidos, Charlie! - exclamou Maud, sorridente.

- Foi encantador, lembrando-se de todos.

- Oh, evidentemente, sou muito encantador! - zombou, enquanto apertava a mão ao dono da casa. - Demasiado encantador, às vezes. Não preciso de perguntar se a vida lhe corre bem, homem! A sua prosperidade é óbvia, mas não deixe que acumule banhas! Isso é bom para o Bunny, que está elegante como uma girafa! Não pode fazer nada por ele? Dá a impressão de que, se lhe tocamos, se volatiliza.

- Não seja estúpido! - protestou o rapaz, sentindo que lhe tocavam no ponto fraco. - Estou forte como um cavalo. Jake, diz-lhe que não seja estúpido.

- Receio que não valha a pena - insinuou o homem, sorrindo. - Entre, por favor. Os garotos estão todos esplêndidos, mas já deitados. Quanto ao nené...

- Oh, eu tenho de ver o miúdo! - declarou Saltash,

voltando-se para Maud.

- Mostrar-lho-ei depois do jantar - prometeu a rapariga, dando-lhe o braço.

- Sério? Será delicioso, mas depois talvez me apeteça bater no Jake... Acha que ele aguenta?

- Acho que sim - declarou, sorrindo-lhe confiadamente. - Seja como for, não tenho medo.

- Vamos para a mesa! - ordenou Jake.

Enquanto comeram, Saltash falou descuidadamente da sua estadia em Valrosa, da consequente viagem e do afundamento do iate, mas não se referiu à dádiva que os deuses lhe destinaram naquela noite de estrelas, no Mediterrâneo. Estava sempre à vontade em casa de Jake, mas, na presença de Maud, nunca tocava em assuntos que não pudessem ser discutidos diante dela. A sua intimidade, embora grande, tinha certas reservas.

Maud, na sua calma felicidade, não notou nas suas maneiras qualquer sombra de constrangimento, tanto mais que ele fora sempre subtil e ardiloso. Também não esperava candura, da parte de Charles Rex, a não ser que lha pedisse.

Observando-o naquela noite de Primavera, com a luz suave dos candeeiros a vincar-lhe o rosto inquieto e a variedade das conversas pondo a descoberto a vastidão e agilidade da sua inteligência, perguntava a si mesma, não pela primeira vez, que espécie de alma se esconderia por detrás daquela máscara. Sem saber porquê, não acreditava que a personalidade do amigo fosse aquela que as aparências e os factos se esforçavam por fazer vingar. Estava convencida de que o verdadeiro "eu" de Saltash era absolutamente diferente daquele que todos conheciam - uma personalidade talvez bastas vezes violentada, mas, mesmo assim, dona dum dom de ressurreição que nenhuma violência podia destruir.

- Porque olha para mim dessa maneira, como se me quisesse dissecar? - perguntou Saltash, rindo-se e mudando logo em seguida de assunto.

Quando o jantar terminou e Maud se ergueu, apressou-se a ir abrir-lhe a porta, com aquela soberana bonomia que, por artes mágicas, lhe consentia sempre que entrasse livremente onde os outros tinham de pedir licença e esperar autorização.

- Leve o Bunny consigo - murmurou. - Preciso de falar com o seu marido.

Maud fitou-o, surpreendida.

- E depois a si, Rainha das Rosas - acrescentou, fazendo uma vénia. - Não me esquecerei de reclamar os meus privilégios a esse respeito.

Maud riu-se, mas obedeceu-lhe, como era infalível.

- Anda comigo dar uma volta no jardim, Bunny. Mal te vi em todo o dia - disse ao irmão.

O rapaz levantou-se, dando uma palmada no ombro do cunhado, o que testemunhava a excelente camaradagem existente entre ambos.

Saltash foi sentar-se junto do dono da casa, mal a porta se fechou sobre os dois irmãos.

- Bem, agora podemos conversar.

Jake estendeu-lhe uma caixa de charutos, com os olhos alerta, como os de um homem que está habituado a fazer sondagens. Poucos havia que conseguissem esconder de Jake Bolton qualquer coisa que ele desejasse saber.

Saltash piscou um olho, enquanto escolhia um charuto. Não era nunca tão trocista como quando queria mostrar-se cândido.

- Há diversas coisas sobre as quais desejo consultá-lo

- começou, aceitando o lume que Jake lhe oferecia.

- Sou todo ouvidos.

- Preparado para me pôr "K. O."?

- Preparado para ouvir, sobretudo - retorquiu, com a sombra dum sorriso. - Suponho que é qualquer coisa relacionado com Bunny?

- Oh, que perspicácia! - zombou, recostando-se na cadeira. - O seu cunhado é, de facto, um dos assuntos. Que pensa fazer dele?

Jake reclinou-se também, fumando em silêncio, sempre observado por Saltash com uma curiosidade meio cómica.

- É um problema bicudo, hem? - observou este último, não podendo ficar calado durante mais tempo.

- Não se tornará nenhum inútil, milorde - afirmou por fim, na sua voz suave e ponderada, fixando em Saltash os olhos perscrutadores. - Eu velarei para que tal não aconteça.

- Não seja impertinente, Jake! - protestou o lorde com um sorriso. - Não me proponho adoptá-lo, mas posso dar-lhe emprego, se ele quiser. Que pretende que ele seja?

- Simplesmente um homem honesto - replicou, sem o desfitar.

- Ah, pois claro! - exclamou, zombando - as influências contagiosas devem ser afastadas! Não é isto?

Jake não respondeu.

- Concordo consigo-declarou Saltash, expelindo uma nuvem de fumo. - Não devemos consentir que o rapaz se perca. Não serei eu quem lhe ensine algo de desonroso ou desonesto. Creia, é uma promessa! De resto, não sou já um patife tão grande como era.

- com certeza?

- com certeza absoluta, meu digno filósofo - afirmou, de novo zombeteiro. - Evidentemente que não me considero um modelo de virtude, mas, presentemente, nunca me apodero daquilo que não posso pagar.

- Sim? - e Bolton ficou uns momentos silencioso, tirando por fim o charuto da boca, para falar. - É verdade que Bunny é um problema. Não é forte, e, embora tenha adquirido fibra, não tem aquilo a que chamo poder de encaixe. Os médicos aconselharam-lhe uma vida ao ar livre, e, por isso, quer associar-se a mim, nesta coisa dos cavalos. Podia concordar, evidentemente, mas repugna-me, pelo menos enquanto ele não for mais velho. Não é a atmosfera que lhe convém nem o relaciona com pessoas da craveira dele. Devia estar na tropa, mas ficou isento por não ser bastante forte. Considera o facto uma injustiça, porque não tem nenhuma doença declarada, apenas tendências que pode vencer se levar uma vida saudável, que não exceda as suas forças. Por agora, temo-nos limitado a marcar passo e, por isso, se tem alguma sugestão a fazer... bem, não duvido de que o rapaz ficará mais do que grato.

- E você? - perguntou Saltash, fazendo uma careta para o tecto.

- Eu também, se for para seu bem.

- Não terá necessidade de me apontar uma pistola à cabeça, verá! Não lhe encurtarei o caminho para o inferno. Tudo quanto tenho para oferecer-lhe é o lugar de intendente no Castelo de Burchester, pois o velho Bishop já não pode dar conta do recado. Evidentemente que não vou mandá-lo embora, mas preciso dum homem novo para, aos poucos, lhe ir tirando o fardo dos ombros. Acha que o lugar estaria abaixo da dignidade de Bunny ou seria capaz de lhe levantar o moral?

- Acho que ele pulará de contente.

- O que é muito mais do que faz o seu digno cunhado...

- Compreendo que é uma oportunidade que não se apresenta todos os dias e acredito que o senhor tem boas intenções - replicou Jake, sustentando o olhar trocista de Saltash. - Pelo meu lado, não ponho o mínimo obstáculo.

- Nesse caso, está o assunto arrumado.

- Não o creio - discordou Jake, sempre a fitá-lo, mas já sem aquele ar de quem procura descobrir qualquer coisa.

- Para que o quer, afinal?

- Talvez me esteja a tornar filantropo, Jake - respondeu, sacudindo a cinza do charuto. - Conhece os sintomas? ultimamente, tenho-me sentido um tanto ansioso a meu respeito.

- Isso aconteceu muito de repente, não acha?

- É da idade, creio. Seja como for, desejo proporcionar um bom futuro a Bunny. O rapaz pode divertir-se e trabalhar ao mesmo tempo. Pode, por exemplo, entrar para o clube de polo, em Fairharbour. Apresentá-lo-ei.

- E onde viverá?

- com os velhotes, os Bishops, claro. Estará em segurança junto deles, com a vantagem de ficar perto de vocês. Já é tempo de lhe afrouxar um pouco a trela, amigo. Se não o fizer, é capaz de começar aos pinotes.

- Não o creio. Ele faz o que entende, dentro dos limites que lhe são salutares, claro, e eu não tenho necessidade de o apertar muito. Não é recalcitrante.

- Isso quer dizer que o treinou bem - riu-se Saltash.

- Felicito-o! É um génio nessa espécie de trabalho, Jake. O rapaz responde, naturalmente, ao mínimo toque seu, sem sequer reparar no que faz.

- Qual era a outra coisa que me queria dizer? - perguntou Jake, como se não o tivesse ouvido.

- Oh, a outra coisa! - e os olhos de Saltash baixaram-se bruscamente para o copo vazio, cujo rebordo tacteou durante algum tempo, curiosamente irresoluto. Sabe, creio que prefiro falar primeiro a Maud - confessou por fim, com um sorriso um tanto envergonhado.

- O resultado será o mesmo.

Saltash fitou-o, quase em tom de desafio:

- Bem sei que é o dono da sua casa, e longe de mim pôr tal facto em dúvida.

- Não pretendi dizer isso. Desejei apenas fazer-lhe entender-e os olhos iluminaram-se-lhe num sorriso-que a afeição entre mim e Maud é tão grande, que geralmente queremos a mesma coisa.

- Não é muito mau, depois de oito anos de casados -

observou com malícia.

- Não é mau, milorde, é muito. O senhor pensava que fazíamos um par desigual, mas aprendemos a proceder como se tal diferença nunca tivesse existido.

- Não, amigo, nunca pensei que fariam um par desigual - afirmou o outro, inesperadamente. - Vocês foram sempre quase da mesma altura e largura... Compreendi isso há muito tempo e afirmo-lhe que o dia mais afortunado para Maud foi aquele em que você me pôs fora de combate.

- Acha? - disse Jake simplesmente. - Bem, receio, no entanto, que não foi muito afortunado para si.

- Já me recompus. Sou um patife muito grande, como sabe, para levar as coisas muito a peito. Tenho amado montanhas de mulheres depois disso... algumas, até, excelentes criaturas. Mas nunca me tomaram a sério e, talvez por isso, parece-me que continuarei a corromper-me.

- Pensava que se tivesse emendado - observou.

De novo o olhar de Saltash se voltou para o rebordo do copo. Por momentos a inquietação do seu rosto aproximou-se muito da melancolia, mas foi apenas por momentos.

- Estou cansado, Jake - disse, bruscamente. - Percorri toda a escala de prazeres e estou exausto, saturado até à alma. Desejo fazer bem a alguém, apenas para saborear a mudança, para sentir essa nova sensação. Talvez quem sabe! - me faça perder o gosto pela depravação. Vocês, os que levam uma vida decente e ordenada, não sabem o que acontece quando o vinho se transforma em vinagre e as doçuras em fel.

- Deve ser... triste - interrompeu Jake.

- É pó e cinzas, meu bom Jake - suspirou, fazendo uma careta de macaco cansado. - Mas não discutamos este assunto. Vamos aos negócios. Conhece Larpent, o capitão do meu barco? Um dos melhores homens, creia!

- Já o vi, sim - respondeu Bolton, acenando com a cabeça.

- Ficou ferido quando o iate se afundou - explicou Saltash, recostando-se e fumando nervosamente - e agora está numa casa-de-saúde, a convalescer. Tem uma filha, uma rapariga chamada Antoinette, que esteve a estudar em França, numa escola qualquer, e que ele trazia a bordo, de regresso a Inglaterra. É uma garota interessante, de dezanove anos, filha duma francesa. O pior é que Larpent não sabe o que lhe há-de fazer. Não tem família e a rapariga parece disposta a fazer vida independente, mas é ainda demasiado nova para isso. O pai é um judeu errante que nunca se sente bem em terra e, por isso, a garota nunca soube, a bem dizer, o que fosse um lar, encontrando-se numa idade em que tem necessidade dele. Lembrei-me de vocês... Talvez o meu amigo não goste da graça, mas creia que, além de si e da Maud, não tenho mais a quem recorrer. Há, é certo, a minha velha amiga Lady Jo - senhora Green, como gosta de ser chamada-mas nesta altura encontra-se adoentada e não devo incomodá-la. Além disso, não tem uma casa como a vossa e vive na capital. Calou-se, observando Jake, furtivamente, através do fumo dos charutos.

- Pretende que... a filha de Larpent venha para minha casa? - perguntou Jake, devagar, após uma pausa um tanto prolongada.

- Será muito útil - declarou Saltash, no seu modo rápido e acalorado. - Ajudará a Maud a tratar dos pequenos e fará tudo quanto for preciso, pois parece que não há nada que não saiba fazer. Pelo meu lado, ficar-lhe-ia reconhecidíssimo e você não havia de arrepender-se, pois é uma garota simpática. Acho que o melhor seria ficarem com ela um mês, por exemplo, e, se não se sentissem satisfeitos... bem... devolviam-na para Larpent. Nessa altura já ele deve estar bom, mas, se não estiver, enfim, olharei eu por ela.

- A quem está entregue agora? Onde se encontra?

- Julga que caí na asneira de a trazer para Burchester, a fim de dar pasto às más línguas que abundam por estes sítios? - perguntou arrastando a cadeira, impaciente. -Está segura e sob a minha protecção-continuou, levantando-se e medindo a sala a largas passadas, com o rosto arrogantemente erguido. - Sei perfeitamente o que andam por aí a dizer, mas se você for justo, ajudar-me-á a desmascarar essa corja de mentirosos. Não ignoro que sou um patife, Jake, nem nunca fingi ser outra coisa, mas considero-me, também, um gentleman... pelo menos nos assuntos referentes a mulheres. Você tem de acreditar que não tenho qualquer intenção reservada ao pretender facilitar a vida a esta pequena - nem ela, tão-pouco.

- Está bem.

Saltash continuava a andar dum lado para o outro, furioso, com as mãos atrás das costas.

- Gostava que o reconhecessem, porque você é um homem honesto e aqui nada de mal podia acontecer-lhe, nada mais! Nunca pactuou com o demónio, pois não, Jake?

Lembra-se daquela vez - há pouco mais de dez anos que um homem tentou suborná-lo, para fazer trapaça com um dos seus cavalos, e você o chicoteou por causa de tamanha baixeza?

- Prefiro não me lembrar, milorde - replicou Jake. Saltash parou, agarrando-o com força por um ombro:

- Fiquei a gostar de si desde essa ocasião - confessou. - Ouça, Jake: agora não estou a persuadi-lo a cometer qualquer má acção, creia! Peço-lhe, antes, que faça uma coisa que pode, talvez, não lhe agradar, mas que, se a realizar, será a melhor acção de toda a sua vida. A pequena está absolutamente só... com excepção da minha pessoa, Jake. Não é capaz de a recolher, até que se encontre outra solução viável?

- Tenho de discutir o caso com a minha mulher declarou o outro.

- Sabe perfeitamente qual será a resposta de Maud!

- protestou, sem poder conter a impaciência. - Não seja teimoso! Diga não, duma vez, se está disposto a isso!

Chegou até eles o ruído de passos e vozes, no terraço, e Jake levantou a cabeça, carrancudo.

- Disse-me a verdade absoluta acerca da rapariga? perguntou, olhando fixamente para Saltash. - Jura?

- Acha que qualquer jura que eu possa fazer é mais valiosa do que a minha palavra, Jake? - perguntou, com os lábios crispados. - Há muita gente que não é dessa opinião.

Jake levantou-se e, por momentos, encarou Saltash, perscrutadoramente, como se estivesse a ler-lhe na alma. Por fim, inesperadamente, sorriu:

- Confio na sua palavra, milorde - murmurou.

- E a garota?

- A garota virá... se Maud concordar.

- Obrigado - e sorriu, aquele sorriso que lhe inundava o rosto feio dum encanto enorme. - Estou-lhe muito grato, amigo, e creio que a Maud concordará.

- Vamos ter com ela?

Foram juntar-se aos dois irmãos, no terraço, e pouco depois todos riam das graças de Saltash, que sabia como tornar efervescentes até as águas mais calmas. Estiveram um bocado sentados, gozando as delícias daquela noite primaveril e luarenta e extasiando-se com o trinar quase fantástico dos rouxinóis, até que Jake se afastou, levando Bunny, para uma última inspecção aos estábulos.

Saltash aproximou-se imediatamente de Maud, estendendo o braço ao comprido do banco, por detrás das costas dela. A seus pés dormitava Chops, um velho perdigueiro que pertencera a Jake antes do seu casamento, e que se devotara inteiramente a Maud.

- Que paz, meu Deus! - exclamou Saltash, estendendo a mão para acariciar o animal. - Sabe Maud, foi uma grande ideia não ter casado comigo, uma vez que esta vida a torna feliz.

- Concordo consigo, Charlie - retorquiu ela, sorrindo.

- Esta vida, como diz, decerto nunca lhe teria agradado.

- Nada me agrada - confessou ele, com tristeza. - sou um vagabundo à face da terra e pouco colho no meu caminho. Envelheço, minha amiga, e a vida já não tem o sabor antigo.

Maud ficou silenciosa uns momentos, com o brilho das estrelas reflectindo nos olhos meigos.

- Às vezes pergunto a mim mesma - disse por fim se você já viveu, realmente.

- Minha querida amiga, eu que, a bem dizer, já fiz tudo quanto é possível fazer-se numa vida inteira! - zombou Saltash, soltando uma gargalhada.

- Não, Charlie, não fez tudo - afirmou, sacudindo a cabeça.

- Tudo quanto é mau... - insinuou, com indiferença.

- Não acredito que esteja realmente velho - murmurou Maud, estendendo-lhe confiadamente a mão, que ele apertou. - Parece-me, antes, que começa agora a ser adulto. Não, não se ria! Estou a falar a sério. Você está a começar agora a distinguir entre as coisas que são dignas e as que o não são.

- Mas há nessas coisas dignas alguma que valha a pena?...

- Sim, há muitas, muitas mesmo. Mas não são as que lhe agradam, não são os prazeres desregrados. Charlie, eu não sei exprimir-me bem e receio um pouco... receio exceder-me, apesar de sermos tão velhos amigos.

- Minha bela rainha - murmurou Saltash, beijando-lhe a mão - acha possível que isso aconteça? Acha possível exceder-se em relação a mim?

- Custa-me vê-lo saturado e solitário - disse Maud apertando-lhe os dedos - mas prefiro que assim seja, a observá-lo sorridente, no meio do lodo.

- Não acontece isso, agora. Vivo como um estúpido eremita, com a diferença de que corto as unhas e escovo ocasionalmente o cabelo... Claro que você também já ouviu falar na... mulher do iate?

O silêncio de Maud foi resposta suficiente.

- Uma mentira, querida rainha! - afirmou ele, rindo alto. - Não havia mulher nenhuma.

-Oh, Charlie, perdoe-me por ter acreditado! - pediu, impulsiva.

- Perdoo! - declarou, com um gesto soberano. - De mais a mais, bem, não é... totalmente mentira. Havia uma criança a bordo, uma criança do sexo feminino, mas... muito pequena e horrivelmente assustada. Salvámo-la, Larpent e eu. Ela pertence-lhe a ele, não a mim.

- Quer dizer que é filha dele?

- Exactamente. Uma explicação simples, não acha? O capitão ficou ferido, teve de ser internado numa casa de saúde e a pequena... bem, tive de me encarregar dela. Imagine, minha amiga! Eu, protector de crianças! Um pouco cómico, não acha?

- Ah! - exclamou Maud, comovida. - A pobrezinha tem que vir para aqui. Eu tomarei conta dela. Quando a traz?

- Acha que o seu actual tutor não deve ser aturado nem mais um momento, hem? - perguntou, rindo. - Bem, mando-lha amanhã.

- Não quis dizer que não estivesse em boas mãos

- protestou ela. - Que idade tem? É mais velha do que Eileen?

- Um pouco mais. Tem... dezanove anos!

- Oh!

- Talvez já tenha mudado de opinião acerca das "boas mãos" que a protegem! - declarou Saltash, erguendo-se bruscamente.

- Não, Charlie, não mudei - retrucou Maud, levantando-se também. - Não mudei porque sei que também é capaz de fazer boas acções. Confiar-lhe-ia o que tenho de mais precioso.

- Mas quando eu lho devolvesse, veria bem se vinha como tinha ido, não é verdade, Maud das Rosas?

- Não, Charlie, não faria tal. Conheço... Charles Rex...

melhor do que julga.

- Linda e graciosa dama - zombou ele, fazendo uma vénia exagerada. - Não esqueça que o meu brasão é uma cabeça de raposa e a legenda "Sem virtude"!

- Dar-lhe-ei outra legenda, Charlie - murmurou, fitando-o serenamente: - "Confiamos naqueles que amamos".

- Há quanto tempo? - perguntou, num gesto brusco, quase que protestando. - Ama-me realmente, Maud das Rosas?

Maud estendeu-lhe ambas as mãos, com os olhos brilhantes e húmidos.

- Amo-o, sim, Charlie, e tanto que não posso continuar a ser feliz enquanto não souber que o é também.

Saltash curvou a cabeça, de modo a esconder dela o rosto moreno.

- Não voltei a ser verdadeiramente feliz... desde o dia em que a perdi.

Maud apertou-lhe carinhosamente as mãos e ficou uns momentos silenciosa, dizendo, por fim, com uma sombra de timidez:

- Você nunca foi plenamente feliz em toda a sua vida. Não sabe, ainda, o significado da palavra felicidade.

- Não? E eu a julgar que tinha provado de tudo!

- Não, há uma coisa que não provou.

- Qual?

- Nunca saboreou a ventura de amar alguém mais, muito mais, do que se ama a si próprio - volveu ela, após novo silêncio. - Creio que é essa a maior alegria que Deus nos pode dar.

- Maud-murmurou, inclinando-se um pouco - podia tê-la amado assim, em tempos.

- Não, meu caro, acredite que não! - afirmou, sacudindo a cabeça, com um sorriso triste. - Eu não podia inspirar-lhe tal sentimento, era também muito egoísta, nesses tempos. Uma outra mulher o ensinará, qualquer dia.

- Duvido - murmurou, entre comovido e zombeteiro.

- Bem, vamos ver o nené! - decidiu Maud, dando-lhe o braço e mudando de assunto, com um leve suspiro. É encantador!

- Segundo o seu ponto de vista ou o de Jake?

- Segundo o meu! Há-de ser tal qual o pai!

- Os céus nos defendam! Lamento-a, lamento-a sinceramente! Você, minha querida, nunca poderá competir com dois! Dão conta de si!

- Não seja absurdo! - censurou ela, levando-o do terraço para a casa silenciosa. - O nosso rapazinho há-de ser o amparo da nossa velhice.

Saltash continuou a brincar, mas quando entraram na casa das crianças, onde dormiam os dois mais novos, as suas maneiras mudaram, tornaram-se, até, reverentes.

Pararam junto do berço e Saltash admirou o rostinho rosado, sorrindo com ternura.

- Afinal, ser casado sempre tem as suas compensações! - murmurou.

Parou, a seguir, junto da caminha da outra garota, Betty, de dois anos, e acariciou suavemente o cabelinho louro e sedoso, mas não a beijou, porque estava a dormir profundamente.

Pouco depois entrou sozinho no quarto pegado, onde dormiam as duas mais velhas, Eileen de cinco anos e Molly, que ainda não tinha quatro. Maud viu-o sair, um bocadinho mais tarde, em bicos de pés e com mil cautelas.

- Posso então mandar-lhe a pequena amanhã? -perguntou de súbito, quando atravessavam juntos o corredor.

- Por que não a traz você - indagou, a sorrir.

- Não. Voltarei qualquer outro dia, talvez domingo, para os ver a todos. Se a trouxesse, podia causar-lhe embaraços, e não quero.

Maud compreendeu e estendeu-lhe a mão, mas o ardor com que ele a apertou e beijou surpreendeu-a, fazendo-a retirá-la mais bruscamente do que desejava.

- Estava apenas a saudar a maternidade! - riu Saltash, ao notar o gesto da amiga.

Mas Maud sacudiu a cabeça e não disse nada. Havia momentos em que, até ela, que o conhecia tão bem, não se sentia totalmente segura dele.

- Vamos tocar! - convidou, entrando na sala e sentando-se ao piano de Maud. - Como está cansada, ficará a ouvir.

Começou a tocar uma velha canção francesa, que tinham cantado juntos, antes de Maud casar, e esta recostou-se numa cadeira, perto dele, rendendo-se sonhadoramente ao encanto da música.

Encantara-a sempre a maneira de executar de Charlie que, ainda agora, exercia sobre ela a mesma atracção doce. Os espíritos de ambos encontravam-se e compreendiam-se, com uma intimidade nunca atingida em qualquer conversa. Fora por meio da música que primeiro lhe falara à alma e, neste pormenor, sentiam-se sempre de acordo.

Estava meio adormecida no seu canto, com o cão aos pés, quando Jake e Bunny apareceram. Saltash, apressadamente, deixou de tocar.

- Estive a namorar a sua mulher, Jake - declarou, erguendo-se - mas ela lutou heroicamente, embora em vão, para me manter a distância... O melhor é ir andando antes de ser corrido a pontapés, não?

- Por minha causa, escusa de ir! - afirmou Jake.

- Generoso como sempre! - exclamou, num gesto teatral. - Mas como sou um detestável vilão e nunca pude suportar esse sentimento, mantenho a minha decisão, tanto mais que a sua virtuosa presença é a gota que faz transbordar a taça. Adeus e... muito obrigado!

Estendeu a mão direita a Maud e a esquerda a Jake, com um sorriso dúbio.

- Não há nada como apostar no Undredth chance!

- exclamou. - Eu próprio o hei-de fazer, um destes dias.

- Desejo-lhe muita sorte - comentou Jake, no tom habitual.

Saltash riu-se e dispôs-se a sair, mas foi logo detido por Bunny.

- Você é um camaradão! - elogiou o rapaz. - O meu cunhado disse-me que me arranjou trabalho.

- Se quiseres, podes contar com ele - confirmou.

- Quererei tudo quanto venha de si, Charlie - afirmou, entusiasmado, dando-lhe o braço. - Só espero é não o desiludir.

- Está descansado que não desiludes. É precisamente um homem como tu que eu quero. Bem, agora não me posso demorar mais, mas voltarei no domingo para combinarmos tudo, se Jake permitir.

- Venha quando quiser.

- Bem. Então telefonar-lhe-ei amanhã, Maud. Está certa de que não se importa que seja amanhã?

- Absolutamente certa - aquiesceu, sorrindo. Saltash fez-lhe uma vénia e saiu com Bunny.

Maud voltou-se imediatamente para o marido:

- Jake, preciso de falar contigo... de pedir a tua opinião.

- Oh, não me parece! - murmurou ele, com aquele sorriso que lhe ficava tão bem. - Tu resolveste tudo já, sem precisares da minha opinião... No entanto, Saltash teve, pela primeira vez, a diplomacia de falar primeiro comigo.

- Sério? - perguntou, momentaneamente - Não te importas, pois não, Jake? Fiz a única coisa possível.

- Dir-te-ei se me importo... daqui a uma semana observou, conduzindo-a para a porta. - Pareces-me extenuada, querida. Vamos, vai deitar-te!

- Jake... - murmurou, apoiando-se no marido. - Tenho uma pena enorme de Charlie.

- É um sentimento desperdiçado.

- Não, não é. Não é, porque ele começa precisamente a ter pena de si próprio. Entristece-me...

- Bem, mas não vás ficar acordada por causa disso declarou, zangado. - Eu adivinharei, se não dormires, e obrigar-te-ei a ficar na cama todo o dia. Entendido?

- És horrível!

- Bem sei. Aliás, alguém tem de ser horrível. Este mundo é feito de contrastes, nem todos podemos ser reis e rainhas. Vá, vai para a cama. Darei as boas-noites ao teu irmão, em teu lugar.

Mas Maud não se decidiu.

- O que vai Charlie fazer por Bunny?

- Vai dar-lhe trabalho, vai pô-lo a ajudar o velho Bishop - informou, empurrando-a devagar, mas com firmeza, para o vestíbulo. - Será excelente... se não houver muito Saltash de mistura.

- Oh, como ele é bom!

- Sim, desta vez tem boas intenções - concedeu, empurrando-a pelas escadas acima. - Só é de desejar que as boas intenções sejam perduráveis, pois o contrário não me surpreenderia. Nunca foi uma pessoa assente e agora já é tarde para começar a sê-lo.

- Tu não o compreendes - censurou Maud.

- Talvez não - replicou o marido, num tom levemente brusco, como se quisesse frisar que não tinha intenção de discutir o assunto.

Maud compreendeu, e continuaram a subir as escadas, em silêncio. À porta do quarto, voltou-se e rodeou-lhe o pescoço com os braços, sempre sem falar.

- Queres que te ajude a deitar? - perguntou Jake, abraçando-a também.

- Não, querido, não! Não te demores também, já é tarde. E... e... obrigada por seres bom para mim!

- Oh, tolices, tolices!

Maud agarrou-lhe na cara e fitou os olhos francos e dominadores, deixando transparecer toda a sua alma.

- Não há ninguém como tu, amor! - És maior do que os reis.

- É a tua opinião, querida, mas, deves concordar, não és um juiz imparcial. Excluindo o facto de ser teu marido, sou um pecador vulgaríssimo. De mais a mais, Saltash disse-me que começo a engordar, vê lá tu!

- Ele ousou?!

Jake riu-se, ao vê-la indignada:

- Eis a minha vingança! - exclamou. - Não te excites! Ele não teve má intenção e, de facto, estou um bocadinho mais pesado. Amar-me-ás quando for gordo?

- Não sejas absurdo - disse ela, encostando à sua a cara sorridente e queimada do sol.

E os lábios de ambos encontraram-se, num beijo muito, muito longo.

- Parece-me que estás tão louca como eu - murmurou Jake, meigamente.

- Também o creio - retorquiu.

Na manhã seguinte, Jake cumpriu a ameaça, e Maud teve de ficar na cama. Uma violenta dor de cabeça impediu-a de protestar e, por isso, deixou-se ficar no quarto, demasiado cansada para pensar, enquanto ele, com a sua característica decisão, assumia a direcção da casa, provocando a simpatia involuntária da governanta - senhora Lovelace - que tinha por hábito definir os homens como "pobres diabos incapazes de fazer fosse o que fosse, desde que tivessem mulher para o fazer".

Levou ele próprio uma bandeja com o pequeno almoço ao quarto da mulher, correndo com as duas filhas mais novas, Betty e Molly, que encontrou saltando na cama como cabritos, e instalando a mais velhinha, Eileen, como enfermeira.

Eileen era um amor. Tímida e meiga, mas curiosamente resoluta e protectora para com a mãe e reservada para com o pai. Este costumava dizer, sorrindo, que não tinha a certeza de ser aprovado pela filha mais velha, mas sabia, em contrapartida, que o amor por ele era o sentimento mais forte do pequenino coração. Bunny impacientava-se com ela, devido ao seu medo dos cavalos e ao facto de nunca querer aproximar-se dos animais na sua companhia, enquanto que, com o pai, andava no meio deles, sem sequer esboçar uma queixa. Raramente lhe fazia confidências, mas gostava que Jake lhe segurasse a mãozita.

Ficou calada, ao lado do pai, vendo-o servir à mulher o chá forte que lhe trouxera. Depois, enquanto a mãe o bebia, deu-lhe a mão, que o pai apertou com carinho.

- Temos de olhar pela mãezinha, minha querida. Ela tem trabalhado demais.

- Eu tomo conta dela, papá.

- E não deixas entrar nem a Molly nem a Betty?

- Não, papá, não deixo.

- Meu policiazinho querido! - disse Maud, sorrindo à garota.

- Tenho a certeza de que também não me deixavas entrar a mim, se te parecesse conveniente-observou Jake, sorrindo.

Os dedos de Eileen apertaram os seus, mas não o desmentiu. Apenas os olhos, cor de violeta, igualzinhos aos da mãe, se ergueram suplicantes.

- Está bem, o paizinho compreende - murmurou Jake, beijando-a.

E a garota sorriu, um sorriso tímido e satisfeito, sem dizer uma palavra.

O som duma campainha de telefone, no vestíbulo, fez Maud franzir as sobrancelhas.

- Deve ser Charlie. Tenho de lhe responder.

- Não te preocupes - ordenou - Eu atendo. Saiu antes que ela pudesse protestar, andando sem pressa mas com uma firmeza que não admitia discussões, e Maud suspirou, deixando-se afundar nas almofadas. Na realidade, era um alívio poder contar com ele.

Jake voltou poucos minutos depois, sorridente, sentou-se na beira da cama e puxou a filha para os joelhos.

- Bem - murmurou - creio que está tudo combinado. Vai haver uma preceptora para as crianças, Inocência. Espero que a tratem com respeito.

- Mas, Jake!... - protestou Maud.

- Sim, querida, a pequena tem de se tornar útil. Não gosto de ver ociosos e ela pode ajudar. Disse isto mesmo a Saltash. Se não servir... bem... creio que volta para o sítio donde veio.

- E ele?

- Concordou, evidentemente - elucidou, irónico. Afirmou que ela própria não era mais do que uma criança... Frisou bem este pormenor, por sinal...

- Não acreditas nele? - inquiriu a mulher, levemente aborrecida.

- Geralmente, não... e muito menos quando frisa as coisas. No entanto, o tempo dirá. Chega à hora do almoço e já pedi ao teu irmão que a fosse esperar.

- Vamos ter lições? - perguntou Eileen.

Jake fixou os olhos doces da filha, e toda a ironia se lhe desvaneceu do rosto, como que por encanto.

- Não sei se consentirei que te ensinem alguma coisa, Inocência. Estás tão bem assim!

Acostumara-se a tratar a filha por Inocência e sempre o fazia com ternura.

- Mas eu gostava de aprender algumas lições, paizinho - pediu a pequenita, chegando-se mais para ele. - Já tenho idade de aprender e... estou a crescer.

- Talvez estejas. Mas não cresças muito depressa, pequenina! Não te tornes tão grande que, para veres o teu pobre pai, tenhas de olhar para baixo!

- Ela nunca fará isso! - interveio Maud. - Nenhum filho meu o fará, Jake!

- Oh, creio que manterei a minha posição entre eles, façam o que fizerem! Bem, agora dorme e deixa-te de preocupações. Preciso de ir andando, mas daqui a bocadinho virei ver como estás. Até já!

Levou a mão da mulher à cara, numa carícia, e saiu.

- Eileen, meu amor - disse Maud, mal a porta se fechou - lembra-te sempre de que o papá é o melhor homem que existe!

- Eu sei, mamã - afirmou a garota, com os olhos brilhantes.

Jake dirigiu-se aos estábulos, entregando-se ao trabalho.

Sempre fora um homem muito activo e, por isso, o tempo não lhe custava a passar. Ele e Sam Vickers tinham levado as cavalariças a uma tal perfeição, que os cavalos por eles criados haviam granjeado grande fama entre os conhecedores. Fama merecida, aliás, não só pelas reais qualidades dos animais, como, também, pela proverbial honestidade do seu dono, de quem se dizia que tinha uma honra tão grande, que se bastava por si própria. O que é certo é que nunca ninguém duvidava dela.

Como um dos cavalos correria naquela tarde, em Graydown, Jake foi a casa para almoçar, apressadamente, antes de partir para o hipódromo. Esquecera-se completamente da existência da protegida de Saltash, mas quando viu o talher a mais lembrou-se logo. Olhou para o relógio e calculou que a rapariga devia ter chegado meia hora antes, embora ainda ali não estivesse. Bunny também ainda não aparecera.

Antes de sair foi ter com a mulher, que achou melhor, já meio vestida e sentada num sofá, no quarto. Obrigou-a a prometer-lhe que não sairia antes da hora do chá, apesar de todos os protestos, baseados na chegada da pequena.

- Deixa-a ao cuidado do teu irmão! Ele é capaz de a entreter uma ou duas horas.

- Parece-me que Bunny tenciona ir às corridas.

- Bem, mas não irá - contrapôs, de cenho carregado.

- Não te preocupes com o caso, que tudo correrá pelo melhor.

- Pronto, mas, ao menos, que a mandem ter comigo assim que chegar! - pediu ela. - Não dormirei e, como vês, já estou muito melhor.

- Seja! - concedeu o marido.

Depois de Jake sair, Maud sentiu-se invadida pela paz daquela tarde primaveril. Lá longe, um cuco cantava, suave e monotonamente, e, no jardim, gorjeava um tordo, enquanto Chops, enroscado a um canto soalhento, dormitava. As crianças tinham saído, o que aumentava ainda mais o sossego da casa.

Maud pensava em Saltash. Que pena ele não encontrar uma rapariga ajuizada que o desposasse! A sua confiança nele, tantas vezes abalada como renovada, tomara raízes mais fundas depois da conversa da noite anterior. Charlie começava a cansar-se da vida vazia que levava, começava a ansiar por coisas melhores. No entanto, havia perigo na sua nova disposição, pois chegara a um ponto crítico da sua vida e, de duas uma, ou se elevava ou se afundava definitivamente. Não haveria meio termo. Porém, conhecendo-o como o conhecia, sabia, também, que uma pequena pressão para um lado ou para outro o influenciaria para o bem ou para o mal. Era como se a própria vida do amigo estivesse em suspenso, dependendo vitalmente do lado para onde fosse feita a pressão.

"Se, ao menos, alguma mulher decente se apaixonasse por ele! - suspirou, sorrindo, logo a seguir, ao recordar como o coração de Saltash seria difícil de conquistar, acostumado como estava à adulação. - além disso, só pensa em divertir-se. Nunca se sabe se está ou não apaixonado, até que o desastre acontece..."

A persistência do cuco começava a tornar-se maçadora.

"Quando o passaroco tiver repetido aquele grito, sempre da mesma maneira, quatrocentas e cinquenta vezes, será absolvido e autorizado a mudar de ritmo - pensou.

- Pergunto a mim própria se o pobre Charles Rex não terá repetido a mesma coisa igual número de vezes, ou talvez mais, e se é por esse motivo que se sente saturado".

O cérebro começou a enevoar-se-lhe, tornando vago o grito monótono do cuco e, até, o gorjeio harmonioso do tordo. Uma deliciosa sonolência invadiu-a e ela entregou-se-lhe, deliciada. Era tão bom sentir afrouxar o nó de ferro que lhe apertara as fontes durante tantas horas! E deixou-se adormecer.

Cerca de duas horas depois notou, subitamente, o ruído de pés sob a sua janela e o som de vozes juvenis.

- Viva! - exclamava Bunny, descuidado. - Esteja quieta um minuto! Está uma enorme lagarta verde a cumprimentar-me, empoleirada na beira do seu chapéu.

- Oh, diabo! Tire-a depressa! - respondeu imediatamente uma voz clara e aguda, como a de um rapaz.

Maud despertou de todo, estremecendo contra vontade. Bunny soltou uma risada e, após uma pausa e o eloquente bater dum tacão, repreendeu:

- Não fale assim!

- Rapazes! - exclamou a voz juvenil. - Querem ver que ficou ofendido?

- De modo nenhum - sossegou Bunny, delicadamente.

- Então que mal faz que eu tivesse dito?

- Não faz mal nenhum - tornou Bunny, contendo o riso. - Isto é, não faz mal se não repetir a graça lá dentro de casa.

- Oh, maldição! - exclamou outra voz, desconsolada.

- Isso significa que me devolverão em breve à procedência, caída em desgraça.

- Não entristeça! Nesta terra não se toma uma primeira ofensa a sério!

- Mas eu nunca me lembrarei! - replicou e, pela primeira vez, a voz não soava inteiramente infantil, mas triste, quase assustada. - As maneiras das pessoas são tão diferentes umas das outras! É um inferno ter de agradar a todos, Bunny.

- Não se importe! - consolou o rapaz em tom jovial.

- Eu toco-lhe todas as vezes que sentir aproximar-se essa linguagem.

- Sério? Oh, que bom! - e a tristeza dissipou-se numa gargalhada espontânea e musical.

- Pode ter a certeza.

- Combinado! Agora saia do caminho, que vou saltar por cima daquela roseira.

Maud levantou-se e espreitou pela janela, a tempo de ver uma figurinha atlética, vestida de azul marinho e com um elegante panamá, passar como um pássaro sobre uma "Dorothy Perkins", que começava a florir, e cair no outro lado, sobre uma perna, com a pose perfeita dum Mercúrio alado.

Bunny imitou-a, saltando a roseira, mas com muito menos graça, o que fez rir de novo a rapariga.

- Que grotesco! - exclamou, trocista. - Estava a ver que pisava a roseira. Mas... que está a fazer? - perguntou, ao reparar que o rapaz lhe tocava nos ombros.

- Estou a ver se descubro as asas - replicou Bunny, sorridente. - Ia jurar que você não saltou: voou! Vamos, diga lá onde as escondeu?

- Oh, não tenho tal coisa! - protestou, afastando-se.

- As pessoas como eu não têm asas. Não fiquemos aqui, por favor. Tenho a impressão de que estamos a ser espiados.

Foi nesse momento que Maud falou, da janela, com a sua voz serena e meiga:

- Bunny, traz cá a tua amiguinha!

Tanto o rapaz como a companheira olharam para cima e, pela primeira vez, Maud pôde ver-lhe a cara toda uma cara pequena e nervosa, com uns olhos azuis grandes e fundos, uns olhos que as pestanas fartas e escuras tornavam ainda maiores e que pareciam suplicar ternura. No queixo pontiagudo e na boca pequena havia encanto e doçura, mas foi o olhar que mais prendeu a atenção de Maud. Eram os olhos duma criatura que conhecera a angústia tremenda do medo, colocados num rosto ainda infantil.

- Venha conversar comigo - convidou Maud, debruçando-se um pouco mais da janela. - Meu irmão indica-lhe o caminho.

A rapariga respondeu-lhe com um sorriso trémulo e tímido, ao mesmo tempo que olhava interrogativamente para Bunny.

- É Maud, a minha irmã - informou o rapaz, compreendendo a pergunta muda. - Venha!

Entraram em casa e Maud recolheu-se também, perguntando a si mesma que haveria na expressão da garota que tanto atraía a sua feminilidade, desvanecendo totalmente o primeiro sentimento de desconfiança. Não sabia. Apenas sentia que a mulher que havia em si fremia de compaixão. Ficou à espera, numa expectativa curiosamente dolorosa.

Ouviu a voz alegre de Bunny, nas escadas, mas a rapariga não lhe respondia. Sem se poder conter mais, foi abrir a porta, saindo para o corredor.

- Mademoiselle Antoinette Larpent! - anunciou o rapaz, com uma vénia exagerada.

A rapariguita, reunindo todas as forças, avançou para Maud, que lhe estendeu ambas as mãos:

- Minha querida, já a esperava há muito tempo!

As mãos que apertou eram pequenas e frias e, ao contrário do que chegara a esperar, não agarraram as suas. Apenas os olhos azuis a fitaram um instante, mas baixaram-se logo.

- Peço desculpa de ter vindo tarde, minha senhora murmurou, em voz baixa e submissa.

- Entre e sente-se - convidou, sentindo-se ao mesmo tempo alegre e deprimida. - Tomaremos chá lá em cima. Bunny, importas-te de ir dar o recado?

- com muito prazer. E posso voltar?

- com certeza! Mas volta só quando estiver pronto

- respondeu, sorrindo ao irmão e passando o braço pelos ombros da recém-vinda. - Venha para aqui! Deve estar desejosa por mudar de fato. Há quanto tempo chegou?

- Há apenas cinco minutos - murmurou, numa voz que parecia envolver uma súplica.

- Deve estar cansada. Veio da cidade? Por que se atrasou tanto? Perdeu o comboio, naturalmente?

- Não, minha senhora - respondeu, nervosa.

O contraste entre a sua maneira de falar naquele momento e a liberdade arrapazada de há pouco, no terraço, seria burlesco, se não fosse um tanto patético.

Maud não insistiu, demasiado prudente para se prender com pormenores.

- Não quer tirar o casaco e o chapéu? Depois do chá levo-a ao seu quarto.

Satisfazia-a notar que a protegida de Charlie vestia com extrema simplicidade. O cabelo louro, ainda curto, começava a ondular-se nas pontas e as veias das têmporas sobressaíam na pele muito branca, assim como o negro das sobrancelhas e das pestanas dava mais realce ao azul puríssimo dos olhos.

- Sente-se - convidou de novo. - E agora diga-me como quer que a trate. Chama-se Antoinette, não é?

- Geralmente tratam-me por Toby, mas a senhora pode chamar-me o que quiser.

- Não se importa que lhe chame, também, Toby?

- Oh, por favor! - exclamou, com inesperada vivacidade.

- Muito bem, então, querida - disse Maud, sorrindo.

- Não vamos tratar-nos como duas estranhas, entendido? Creio que sabe que Lorde Saltash e eu somos grandes amigos...

A rapariga corou e ficou um momento silenciosa.

- Lorde Saltash foi muito bom para mim - confessou por fim, com voz tímida. - Salvou-me... de morrer afogada. Não foi... encantador ter-se dado a esse trabalho?

- Ele é sempre encantador-concordou - tem tido muito medo?

- Muito - afirmou, estremecendo. - A água estava terrivelmente fria e eu julguei... julguei... que nunca de lá sairíamos. Era como... como... Bem, ele disse para não pensar nem falar mais no caso; por isso, se não se importa...

- Fale-me então de seu pai - pediu, compreensiva.

- Oh, está ainda numa casa-de-saúde e não recebe ninguém! - respondeu, desprendida. - Dizem que se restabelecerá... mas eu não sei.

- Está preocupada por causa dele?

- Não, não estou. Não gosto muito dele. É demasiado grosseiro.

- Querida! - protestou Maud, desconcertada.

- Bem, não é leal pretender que gosto dele quando não gosto, não é verdade? - alegou a pequena, - tenho culpa. Não somos amigos... nunca fomos. Mal nos conhecemos... nunca tinha estado na "Mariposa Nocturna"...

- Nem voltará a estar - comentou Bunny, entrando.

- Sabes, Maud, que levei Miss Larpent às corridas, em vez de vir direito aqui, como o Jake mandou?

-Ah, foi então por isso que se demoraram!

- Exactamente! - confirmou o rapaz, escarranchando-se numa cadeira. - Apostámos e perdemos. Depois fomos dar uma volta, para nos refrescarmos, mas encontrámos o patrão que, um tanto rudemente, correu connosco para casa. Tenho a impressão de que está aborrecido comigo por qualquer motivo - continuou, coçando, pensativamente, o queixo. - Parece-me que terei de o ouvir...

- Que pena terem-se lembrado de ir às corridas! lamentou Maud.

- Pena não! - protestou o rapaz. - Divertimo-nos imenso! É engraçado fazer tolices, umas vezes por outras, não é, Miss Larpent?

- Não seja pateta!

Maud levantou as sobrancelhas, mas Bunny soltou uma gargalhada.

- Obrigado, Toby. Percebi. Não haverá mais cerimónia entre nós, não é? Olhem, lá vêm as miúdas! - Correu para a janela e soltou um assobio agudo, arrependendo-se imediatamente: - Desculpa, Maud. Esqueci-me da tua dor de cabeça. Como te sentes?

E, sem esperar pela resposta, voltou a debruçar-se da janela, acolhendo as sobrinhas ruidosamente.

Toby olhou para Maud, hesitou, mas por fim levantou-se:

- Deixe-nos ir tomar o chá com as meninas! Será mais sossegado para si.

- Não, querida. Bunny pode ir, se lhe apetecer, mas você fica comigo.

Desta vez os dedos de Toby apertaram-lhe a mão:

- Não se importa?

-Absolutamente nada, até o desejo - afirmou, sorrindo-lhe.

Toby voltou-se, impulsiva, e beliscou o cotovelo de Bunny, que a encarou, surpreso.

- Está aqui a fazer muito barulho - ralhou, severa. Vá fazer essa algazarra lá para baixo!

O rapaz abriu os olhos, espantado, mas acabou por se rir.

- Gosto de si! - declarou. - É a rapariga mais cómica que conheço!

Toby continuava a beliscar-lhe o cotovelo, como um cãozito teimoso.

- Vá, corra para junto delas! - ordenou. - A senhora Bolton e eu tomaremos o chá sozinhas. Daqui a bocadinho irei brincar consigo... se se portar com juízo.

Não havia o mínimo coquetismo na sua maneira de falar, dir-se-ia, antes, que era um irmão mais velho a falar a outro mais novo. Era evidente que queria ser obedecida, embora Maud, que tinha Bunny na conta de um pouco teimoso e repontão, duvidasse muito se o conseguiria. O rapaz, porém, divertia-se. A maneira de Toby falar dava-lhe vontade de rir e, após recalcitrar um pouco, acabou por sair, sem deixar de lhe achar graça.

Quando a porta se fechou, Toby voltou-se para Maud, calma e triunfante.

- Belo trabalho! - elogiou esta. - É evidente que sabe lidar com crianças teimosas.

A rapariga sentou-se, fitando-a perscrutadoramente, quase como se suspeitasse dum segundo sentido nas palavras da outra.

- Refere-se a... homens? - perguntou e, por um instante, a sua face infantil mostrou sinais de hostilidade. Qualquer pessoa pode lidar com eles, com um bocadinho de jeito. Não é preciso ser muito esperto.

Falava com a segurança de quem era conhecedora do assunto e, apesar da diferença de idades existente entre ambas, Maud não teve coragem de discutir o caso. Pressentia que, quer por experiência, quer por intuição, aquela garota sabia mais a tal respeito do que ela própria.

Não fez qualquer comentário e, após um silêncio curto, Toby prosseguiu, senhora de si:

- Só há uma maneira de lidar com os homens, se queremos ter paz e sossego: mantermo-nos fiéis às resoluções que tomarmos! Se eles não gostam, então é deixá-los ir para... - calou-se bruscamente, tornando-se escarlate. - Quero dizer, é deixá-los fazer o contrário... - emendou, como quem pede desculpa.

- Compreendo - retorquiu Maud, suavemente, fazendo-lhe notar que a desculpava.

A garota sorriu-lhe, meio agradecida, meio envergonhada, e, a partir daquele momento, ficaram unidas por laços destinados a perdurar através de todas as vicissitudes.

Não havia dúvida de que o rosto sereno de Jake estava, naquela tarde, um pouco crispado. Ao regressar a casa, mais tarde do que habitualmente, parou junto de Bunny que, de mãos nas algibeiras, conversava com um dos empregados.

- Ouve cá, rapaz, preciso de falar contigo - declarou, com a franqueza habitual, agarrando o cunhado por um ombro.

De cigarro nos lábios, Bunny fitou-o, rindo-se para ele, sem se desconcertar:

- Muito bem, patrão. Vamos a isso - e deu-lhe o braço, num gesto de camaradagem.

Era meia cabeça mais alto do que o cunhado, mas a expressão de força, tão evidente no outro, não existia nele. Movia as pernas compridas em passadas frouxas, falhas de energia, mas que denotavam uma certa inquietação.

- Pergunto a mim mesmo o que farás quando eu aqui não estiver - observou, vendo que o cunhado não falava.

- O que te digo é que quanto mais cedo fores para o teu trabalho, melhor - atalhou o outro, com certa brutalidade. - Se ao menos tivesse a certeza de que ias para um bom lugar!

- Tira um cigarro! - ofereceu o rapaz, estendendo-lhe a cigarreira.

Jake empurrou-a, com um gesto de desagrado.

- Não queiras, mais fica!-replicou Bunny, guardando-a na algibeira.

Por sua vontade retiraria a mão do braço do cunhado, mas este retinha-a à força, arrastando-o para o seu gabinete particular.

Bunny submeteu-se, mas o rosto ensombrou-se-lhe enquanto o seguia. Quando se aproximaram, endireitòu-se, num gesto de quem se vale de todos os músculos para uma resistência súbita, transformando-se num homem mais velho, mais ponderado e mais digno.

- Assim é melhor - observou Jake, dando-lhe passagem. - Há ocasiões em que me apetece bater-lhe, Sir Bernard Brian, como, infelizmente, nunca lhe bateram quando era pequeno. Outras vezes, como agora, a sua aristocracia é tão visível e sobranceira, que apenas posso parar e... admirar!

- Não sejas idiota, Jake! - protestou Bunny, já envergonhado.

- Senta-te e reduz-te à minha craveira, apenas por um minuto! - ordenou, batendo-lhe no ombro. - Talvez seja um idiota, como dizes, talvez o não seja, mas do que sou capaz, se me der na gana, é de te agarrar pelos calcanhares e espetar contigo no tanque dos cavalos, ali à esquina! Portanto, o melhor é mostrares-te o mais cordato possível, não por mim, mas por ti.

Bunny sentou-se, arquejante. O cigarro caiu-lhe ao chão e ele baixou-se para o apanhar, mas o cunhado, sem lhe largar o ombro, antecipou-se-lhe, e atirou-o pela janela fora.

- Fumas demais - declarou, à guisa de explicação.

- Vai para o diabo! - explodiu Bunny, furioso.

Por sua vontade ter-se-ia levantado, mas as mãos do cunhado, como tenazes de ferro, mantinham-no firme, na cadeira.

- Bem sabes que não passo dum estúpido cocheiro começou o outro, devagar, com uma ponta de humor - por isso não deves esperar boas maneiras da minha parte.

Bunny estremeceu, como se as palavras o magoassem. Os olhos de Jake, muito brilhantes, mas sem sombra de despeito, mantinham-se fixos nos seus.

- Desembucha! - exclamou, deixando de lutar contra as mãos que o retinham. - Já calculava que me querias fazer um sermão por qualquer motivo. De que se trata?

Apesar de a voz ser ríspida, já não se mostrava hostil, mas, antes, envergonhado.

- Ai, Bunny, Bunny! - murmurou o cunhado, sentando-se na ponta da secretária. - Sabes que és o único homem capaz de me ofender sem engolires logo os dentes?

O rapaz olhou para ele e, de repente, como um raio de sol através duma nuvem, sorriu-se.

- Fala, homem! Desconfio que me vais fazer varrer o chão! Não queria ofender-te e peço-te desculpa. Agora começa.

Apertou com força a mão do cunhado, num gesto que captava.

- Sabes que sou muito teu amigo, não sabes, rapaz?

- perguntou o outro, olhando-o com simpatia. - Por isso mesmo, Bunny, não consentirei que te afundes.

- Porque me hei-de afundar? Não sejas idiota, não?

- Não, não serei idiota. Ou, por outra, não serei idiota da categoria dos mansos... Não te esqueças de que tenho tido sempre muita paciência contigo.

- Achas? - perguntou, mexendo-se, inquieto, na cadeira. - É uma grande qualidade, essa. Eu, por exemplo, não posso admitir ameaças de ninguém... Começava a ver tudo vermelho.

- Bem sei. No entanto, nunca te ameacei. Agora, porém, estou à beira de entrar em guerra contigo e tens de defender o físico, quer queiras, quer não. Dize-me cá: quanto perdeste nas corridas, esta tarde?

- Que te importa?

- Já esperava essa resposta - declarou, franzindo o cenho. - com medo, nem?

- Não tenho medo absolutamente nenhum. Acho, porém, que não tens o direito de saber. Mais nada.

- Compreendo. Achas que devo manter-me no meu lugar, não é?

Já é a quarta vez que insinuas isso - atalhou o rapaz, corando. - Que queres dizer?

- Que quero dizer? - perguntou, com tristeza. - Talvez queira dizer, apenas, que começas a passar os limites.

- Parvoíce! - protestou Bunny, corando ainda mais.

- Bem sabes que não há outro tipo a quem respeite mais do que a ti. Mas, Jake, deves deixar-me... crescer!

- É isso que quero. Mas, por amor de Deus, cresce escorreito! vou pedir-te uma coisa muito grande, meu filho, e creio que avaliarei pela tua resposta a extensão do teu respeito por mim.

- De que se trata?

- Disto apenas: Quero que ponhas as corridas completamente de parte, durante um ano!

- Pôr as corridas de parte?! - e levantou-se, como impelido por uma mola. - Porquê, Jake?

Este voltou a agarrar-lhe o ombro, sorrindo, mas com um sorriso um tanto forçado:

- Oh, simplesmente para me agradares!

- Pôr as corridas de parte! - repetiu o rapaz, - Estás doido!

- Não, creio que não estou - replicou, imperturbável.

- Não acuso as corridas seja do que for. Tomadas com senso, considero-as o melhor jogo do mundo! Peço-te apenas um favor pessoal.

Bunny tinha os olhos brilhantes de fúria, como se estivesse pronto a rebelar-se, mas, inesperadamente, o braço de Jake rodeou-lhe os ombros, num aperto fraternal.

- Não o faças, se vais ficar a odiar-me por isso! Não quero, de maneira nenhuma, que tal aconteça. Fiz-te o pedido como quem faz um jogo. Posso perder ou ganhar. Mas não quero que fiques zangado comigo.

Bunny encostou o rosto à mão do cunhado, num gesto de ternura infantil, e, por fim, riu-se, fitando-o nos olhos:

- Jake, não sejas estúpido! Bem sabes que sou capaz de fazer seja o que for para te agradar.

- Fazes, então, o que te pedi?

- Primeiro diz-me por que queres que o faça.

- Porque pretendo saber se tens o vício das apostas e, também, porque a rapariga que hoje chegou é jogadora até à medula dos ossos e não quero encorajá-la.

- Como sabes isso? - perguntou o rapaz, admirado. - Foi Charlie que te disse?

- Não, ninguém me disse nada. Li-lho na cara, esta tarde. Conheço aquela febre pelo jogo e, bem... estou inclinado a crer que sempre a sentiu durante toda a vida, sob uma forma ou outra.

- É ainda uma garota, uma garota simpática - defendeu Bunny, condescendente.

- Não é da tua qualidade, Sir Bernard Brian - obseryou Jake, sorrindo, mas sem perder a firmeza. - Ia apostar em como é capaz de te ensinar a ti mais coisas do que tu a ela.

- Que queres dizer?

O outro voltou-se, para fechar a janela, preparando-se para sair.

- Bem, filho, quero dizer apenas o que ouviste - respondeu, desinteressado. - Se não tens argúcia suficiente para tirares as tuas próprias conclusões, a culpa não é minha. - E após uma pausa:-Quanto à minha proposta? Aceitas?

- Pôr as corridas de lado durante um ano? - perguntou, levantando-se, sem ressentimento, embora continuasse corado. - É muito tempo, não achas, Jake?

- Muito?

- Sim, um ano é demais! Reduz para três meses!

- Reduzirei para seis meses-concedeu, resoluto-se fores capaz de me dizer que não arriscaste mais de cinquenta libras esta tarde!

- Esta tarde foi uma excepção! - desculpou-se o rapaz, tornando-se escarlate.

- Já calculava - murmurou o outro, secamente.

-Que diabo, é um castigo muito grande! - protestou o rapaz, ao mesmo tempo que estendia a mão. - Prometo-te que não torno!

Os dedos de Jake agarraram-lhe na mão e apertaram-na com força. Não disse nada, apenas esperou. E, inesperadamente, Bunny rendeu-se:

-Acabemos com isto, meu teimoso! - exclamou, correspondendo à pressão do cunhado com toda a sua força.

- Está bem, aceito!

Jake suspirou, como se acabasse de vencer enorme obstáculo. Bateu levemente no ombro do rapaz, sorrindo:

- Nunca fizeste tanto por mim, meu caro. Não me esquecerei! Podes desforrar-te quando quiseres.

- Está descansado, não cais em cesto roto!

Deu o braço ao cunhado e saíram, ambos com os olhos brilhantes. Fizeram um grande sacrifício, mas Jake tivera o condão de lhe fazer compreender que valia a pena!

O comprido corredor que ligava os aposentos das crianças aos outros compartimentos, estremecia sob uma trovoada de risos infantis e corridas.

- Agarra-te bem! - recomendou uma voz alegre e arrapazada. - vou galopar!

Seguiu-se uma barulheira infernal, um verdadeiro galope, e novos gritos de prazer das três crianças, excitadas pela brincadeira. Jake, que começara a subir as escadas, parou, à escuta, mas, quase no mesmo instante, ouviu o rumor duma queda e pequenas exclamações de susto. Retomou logo o caminho, indo dar com a nova hóspede caída de costas, enquanto as suas três filhas cavalgavam, agitadas, o corpo inerte.

Ficou indeciso, sem saber se devia ou não terminar a brincadeira, mas Betty, a filha mais nova, descobriu-o e deu o alarme. O monte emaranhado de corpos transformou-se, como que por encanto, em quatro serzinhos distintos, um dos quais, Toby, se levantou com a ligeireza de esquilo, encarando-o numa atitude simultaneamente graciosa e levemente provocante.

Jake estendeu-lhe a mão, compreendendo o desafio.

- Creio que me considerou um grande bruto, quando nos encontrámos esta tarde - disse com a costumada franqueza. - Lamento. Não era consigo que estava zangado, mas com Bunny.

- Não era comigo? - perguntou a pequena, com os olhos muito abertos. - Tem a certeza?

O homem bateu-lhe na mãozita, sem cerimónia. Conquistara-o depressa, aquela garota de rosto franco e expressão patética!

- Bem, contigo não estava muito zangado! - emendou Jake. - Mas o Bunny sabe perfeitamente que apostar em grande escala não é para garotos como ele.

- Oh, compreendo! - exclamou, sorrindo e libertando a mão. - Sim, eu sou mais velha do que o Bunny e, portanto, o raspanete não me serve. Aliás, o seu cunhado não estava a apostar...

- Supus.

- Nesse caso, está outra vez zangado... murmurou ela, pegando em Molly e encobrindo parcialmente o rosto com os caracóis da petiza.

- Não, não estou-afirmou Jake, com um acento compassivo na voz. - De qualquer maneira, não vamos discutir enquanto não nos conhecermos melhor um ao outro. Vejo que estás já em muito boas relações com as miúdas.

- É fácil, não acha? As crianças tomam-nos sempre por aquilo que lhes parecemos. Não têm a precaução de estar de pé atrás com as pessoas...

Betty protestava, agarrada aos joelhos da rapariga, e esta baixou-se, pegando-lhe com o braço livre. Jake, porém, libertou-a imediatamente da carga, tomando as filhas nos braços fortes.

- Não voltes a fazer isto - ordenou, com a intonação de quem está habituado a ser obedecido. - Entendido?

- Porquê?

- Porque eu te digo que o não faças - e voltou-se, levando as garotas para o quarto delas.

- Mas isso não é razão! - insistiu ela, muito segura de si.

Eileen encarou-a, estupefacta.

- Dizes que não é razão, quando o papá diz que é? perguntou, espantada.

Toby agarrou-a, sentando-a num ombro, e exclamou:

- És leve como uma pluma! O teu papá é apenas um homem, querida!

- Evidentemente - concordou o atingido. - Apenas um homem que quer sempre aquilo que diz, e que arranja maneira de lhe obedecerem.

- Que confiança! - e Toby riu-se. - Quer dizer, se me mandasse deitar ao fogo, havia de conseguir que eu me deitasse mesmo, não?

Seguiu-se uma pausa. As mãozitas de Eileen entrelaçaram-se nervosamente, como se receasse qualquer coisa.

No mesmo instante a voz de Jake soou, calma e distinta, da entrada da porta:

- Essa é uma das coisas que não te mandaria dizer.

- Graças! - exclamou a rapariga.

Poucos minutos depois, após uma última brincadeira com as crianças, saíram juntos do quarto. Não havia já cerimónias entre eles, portavam-se como dois camaradas, rindo da mesma graça, aparentemente esquecidos da recente escaramuça.

Toby, porém, voltou bruscamente ao assunto, enquanto caminhavam pelo corredor:

- Mr. Bolton, lamento ter colocado o Bunny em maus lençóis. A culpa foi toda minha. Estou também envergonhada de ter dito... parvoíces, diante das crianças. Bata-me, quando fizer destas coisas, e verá que não me esquecerei.

Jake parou, encarando-a:

- Mas... és um rapaz ou uma rapariga?

Toby sorriu, um sorriso frouxo e dúbio, mas respondeu sem delongas:

- Principalmente rapaz... E é isso que torna tudo tão difícil!

- Escuta, chama-me Jake, sim? - ordenou, agarrando-a pelos ombros. - Gostas de cavalos?

- Loucamente! - replicou, com os olhos brilhantes.

- Amanhã quero ver-te cavalgar.

- Nesse caso, alguém tem de me emprestar uns calções - declarou Toby, pulando de alegria. - Não quer ver-me montar em camisa, pois não?

- Não tenho nenhum interesse especial nisso. com que roupa costumas montar?

- Calças justas - e logo levou a mão à boca, - Oh! Bem, agora já está! Não diz a ninguém, pois não? Prometa!

- Pois sim - assentiu, sorrindo, mas com uma sombra de compaixão nos olhos.

- Gosto de si - confessou a rapariga, estendendo-lhe a mão, numa brusca manifestação de simpatia. - É amigo.

- Havemos de nos entender - prometeu o homem, apertando-lhe a mão com força.

- Foi vaqueiro, não foi? Descobri isso assim que o vi!

- Fui muitas coisas...

- Mas sempre no bom caminho - murmurou Toby, acenando a cabeça em sinal de compreensão.

- Desejava - mas calou-se bruscamente.

- O quê?

- Oh, nada! - replicou, soltando uma gargalhada forçada.

- Desembucha!

Não soltou a mão que Jake lhe agarrou nem procurou esconder o rosto; pelo contrário, os seus olhos azuis, francos e infantis, fitaram-no corajosamente:

- Desejava apenas tê-lo encontrado antes...

- Antes de quê? Antes de conheceres Saltash?

- Não! - ripostou, enérgica. - Não, isso não! Lorde Saltash está entre os reis. Se não fosse ele, a esta hora estaria morta! - Os olhos enterneceram-se-lhe e corou, corou como uma criança. - Conhece-o? Não é... não o acha... esplêndido?

Falava com reverência, quase com devoção, mas a expressão do homem modificou-se, tornou-se mais dura.

- Não o tenho na conta de grande herói... No entanto, talvez tenha as suas virtudes.

- Tem, com certeza! - afirmou, fervorosa. - Não o conhece como eu! Ele é... ele é... uma obra-prima!

- Sim?

Talvez porque sentisse falta de simpatia na voz do companheiro, Toby mudou de assunto, voltando à conversa primitiva:

- Bem, em todo o caso, não era isso que queria dizer. Desejava tê-lo conhecido há mais tempo, há muitos, muitos anos... quando você era vaqueiro.

- Eras uma garota de colo, nessa altura.

- Eis uma coisa que nunca fui! - murmurou, abanando a cabeça e sorrindo, afectada. - Às vezes penso que nasci velha, que, por qualquer sortilégio, comecei ao contrário. Há pessoas a quem isto acontece.

- Bem sei. Mas essas pessoas têm apenas uma coisa a fazer.

- O que é?

Os olhos de Jake fitavam-na, perscrutadores, mas não havia neles nada que a assustasse:

- Recomeçar - respondeu, com ternura.

- Ah! - suspirou, estendendo-lhe a outra mão, num gesto impulsivo, e levantando para ele o rosto trémulo. Vai ajudar-me?

Jake comoveu-se e prometeu, agarrando-a pelos ombros, como teria feito a um rapaz:

- Sim, vou ajudar-te.

- Será bom para mim? - insistiu ela, com voz mal segura e repassada de lágrimas.

- Decerto! - retorquiu, lacónico e convincente.

- Vai olhar por mim e meter-me na ordem quando proceder mal?

- Sim, farei isso.

- E... e... não fará queixa de mim a... a... ninguém?

- Não.

- Nem a Lorde Saltash? Nem a ninguém?

- Não - repetiu, severo.

Toby engoliu os soluços, ficou uns momentos calada, e por fim sorriu-lhe, um sorriso claro e inocente:

-Agora creio que o tenho por aliado - murmurou, - senhor é bom e... sólido, Mr. Bolton. Quando nos arrancaram do próprio fundo do mar, sabe bem ter alguém grande e seguro a quem nos possamos agarrar.

- Sim?

- Sim, e agora já sei a razão por que Lorde Saltash me mandou para cá! Precisamente porque ele sabe que o senhor é grande e... seguro!

- Oh, muito seguro! - concordou Jake, com o sorriso fugidio.

Sentiu, como Saltash sentira já, que a rapariga lhe fazia lembrar um animalzito escorraçado à procura de abrigo, e que, até nos seus momentos mais alegres, parecia suplicar que fossem generosos.

- Olharei por ti - prometeu, batendo-lhe levemente no ombro - se fizeres o jogo...

- Qual jogo?

- O único que vale a pena jogar - respondeu ele, fitando-a nos olhos - o jogo franco e honesto.

- Compreendo - declarou, dócil. - Sem batota, não é o que quer dizer? Lorde Saltash também não admitia batota.

- Valha-me Deus! - exclamou Jake, francamente espantado.

- Não o conhece-insistiu a rapariga, muito convicta.

- Talvez eu ainda tenha que aprender alguma coisa condescendeu, com um sorriso bem humorado, mas céptico.

- Tenho, porém, a impressão de que em velhacaria e duplicidade ele é capaz de levar a palma a todos os seres vivos sobre a face da terra!

- Oh, se é só isso que sabe a seu respeito, então... então... não o conhece!

- E tu? - perguntou, brusco.

Toby corou, corou até à raiz dos cabelos louros que lhe ornavam as têmporas, raiadas de finas veias azuis, e afastou-se, com a respiração opressa.

- Sim! - exclamou. - Sim! - parou, como se fosse dizer mais qualquer coisa, mas repetiu apenas, num sussurro: - Sim! - e desapareceu, a correr, como se achasse o assunto demasiado sagrado para o discutir.

- Valha-me Deus! - repetiu Jake, dirigindo-se para o seu quarto.

Saltash pecador, conhecia-o bem e já nem se admirava, mas Saltash santo, não apenas acreditado como tal, mas ainda reverenciado e adorado como uma relíquia, era algo fora do seu entendimento! Como diabo conseguira ele tal santidade?

- E então? - perguntou Saltash, com um interesse zombeteiro. - Onde está ela? Como se tem portado?

Cumpria a promessa de os visitar, no domingo à tarde. O dia estava sereno, enfeitado pelas flores primaveris e pelo brilho do sol. Maud, sentada na varanda, numa cadeirinha baixa, olhava-o, admirada:

- Charlie, donde veio ela? - perguntou, por sua vez, sem lhe responder.

Saltash ergueu os ombros, significativamente:

- Donde vêm todas as mulheres? E para quê, minha rainha? Seria um mundo tão pacífico sem elas!

Estava disposto a brincar e Maud sabia que, assim, o melhor era desistir. Suspirou e fez-lhe a vontade.

- Ela não é uma mulher, é uma criança, uma criança encantadora, mas extremamente irresponsável. A esta hora está no campo de treino, com o Jake e o meu irmão. O meu marido diverte-se com ela, acha-a um verdadeiro encanto e diz que faz tudo quanto quer com os cavalos.

- Para si não é o mesmo encanto, pois não? -insinuou.

- Gosto dela, é certo - murmurou Maud, após momentânea hesitação - mas, embora tenha tentado pô-la à vontade, creio que se sente um pouco receosa a meu respeito, receosa ao ponto de não ser natural na minha presença.

- Mas há alguém a quem isso não aconteça? - protestou Saltash. - Não nos portamos todos o melhor possível na sala das audiências?

Maud suspirou de novo.

- São todos grandes amigos - prosseguiu, como se o não tivesse ouvido. - Ela e o Bunny, então, mostram-se irrequietos ao máximo e eu só receio que acabem por partir o pescoço.

- O pescoço ou os corações? - insinuou ele, trocista.

- Creio que não há esse perigo, pelo menos por agora - replicou Maud, - é uma verdadeira criança, Charlie! Tão criança como a Eileen, nalguns aspectos, ou talvez mais. Vamos vê-los ao campo.

- Sou um vosso servo, minha senhora!

Ergueu-se, como que impulsionado por uma mola, e Maud compreendeu que Saltash estivera ansiando por aquele convite desde que chegara.

- Vejo que está muito interessado pela pequena observou, enquanto atravessavam o terraço.

- Nunca tinha tido uma criança sob a minha tutela!

- respondeu Saltash, fazendo uma careta cómica. - E... tenho de fazer o meu relatório para Larpent...

- Ah, sim! Como vai ele?

- A garota tem-se mostrado ansiosa a seu respeito? perguntou por seu turno, olhando-a de revés.

- Absolutamente nada. Creio mesmo que nunca pensa nele. Logo no primeiro dia me disse que mal o conhece...

Saltash soltou uma gargalhada:

- Que franqueza a dela! Bem, o homem vai indo melhor, mas ainda não está bom. Posso deixá-la aqui mais uns tempos?

- Pois claro - concordou, pressurosa. - Gosto de a cá ter e, além disso, ajuda-me muito. As pequenas adoram-na e têm razão. É esplêndida para elas! Tenho até a impressão de que a Eileen acabará por perder o medo aos cavalos.

- A Toby monta?

- Como um vaqueiro. É extremamente audaciosa e uma queda a mais ou a menos parece não ter a mínima importância. Faz coisas extraordinárias, como se fosse um rapaz, e chega a assustar-me.

-Que diabrete!

- Duma coisa tenho a certeza - prosseguiu Maud nada do que faz aprendeu na escola, embora me diga que frequentou muitas.

- Acredito. Imagino que aprende tudo com muita facilidade, mas, pelo meu lado, também não a conheço há muito tempo.

- Deve ter aprendido muito no "Mariposa Nocturna"

- observou ela, inesperadamente.

- Por que diz isso? - inquiriu, olhando-a novamente de revés.

- Estava sob a minha protecção... e a de Larpent.

- Bem sei. Ela idolatra-o - e sorriu-lhe, um sorriso dúbio e no entanto, deve ter convivido livremente com a tripulação, pelo que deduzo da linguagem que, às vezes, emprega.

As sobrancelhas de Saltash contraíram-se, num trejeito cómico e observou numa desculpa:

- Às vezes temos essa tendência. O seu digno Jake, por exemplo...

-Oh, Jake emendou-se! - interrompeu. - Raramente lhe escapa qualquer palavra menos correcta, nem o consente a Bunny. Mas Toby... Toby parece que nem sabe distinguir o bom do mau.

- Jake tomou-a à sua conta, não? - perguntou, pigarreando.

- Pois claro! Repreende-a constantemente e, verdade seja, ela mostra-se demasiado dócil, oferecendo-se, até, para comer no quarto quando ele, ontem, se destemperou um pouco mais do que o habitual. Desarmou-o imediatamente, claro. Que havia ele de fazer?

- Sim, sim, esse diabinho desarma toda a gente-concordou Saltash. - Eu nunca fui notável a tratar com crianças, mas o seu marido... Bem, a garota verga-se ao grande Jake, não é?

- Oh, não completamente! - e riu-se. - Ainda esta manhã tiveram uma disputa. Nem sei como vai acabar, mas... ela sabe mostrar-se firme.

- Nunca tentou disputar comigo - informou ele, complacente.

- É natural. O seu sentido do dever é muito mais elástico do que o do Jake, e talvez nunca lhe tenha pedido para fazer algo que ela não quisesse.

- Não me lembro. Mas que lhe pediu o Jake?

- Vai-se rir, claro, mas nem por isso o meu marido deixa de ter razão: queria que ela fosse à igreja, esta manhã, comigo e com a Eileen. Toby é uma criança e ele, muito naturalmente, convenceu-se de que iria, sem objecções. No entanto, no último momento, recusou, declarando francamente que era... ateísta!

Saltash soltou uma gargalhada, meio trocista, meio exultante:

- E o digno Jake, que disse a isso? Oh, eu sei o que ele disse! "Podes atribuir-te o nome que te agradar, por mais louco que seja, mas terás de ir à igreja, como uma respeitável cidadã, se eu te disser que vás!" Foi ou não foi?

- Mais ou menos-admitiu - adivinhou?

- Conheço-o-afirmou ele, - depois que aconteceu? Toby recusou?

- Recusou. Estava assustada, mas recusou. Parecia que ia fugir, mas no fim Jake saiu com ela, dizendo que iríamos esta noite. Quando voltei a vê-los estavam novamente amigos, mas a pobrezinha tinha chorado. Gostava de ter podido ajudá-la, mas não me foi possível aproximar... Jake parece compreendê-la melhor.

- Pergunto a mim mesmo se ela cederá,

Aproximavam-se do campo de treinos e aos seus ouvidos chegava o ruído das ferraduras galopando na relva curta.

- Não tenho muitas dúvidas a esse respeito - observou Maud.

Saltash soltou nova gargalhada zombeteira:

- Todos nós sabemos que Jake é invencível, a incarnação da própria virtude! No entanto, não podemos obrigar uma rapariga a submeter-se, como se fosse um rapaz,

- e eu imagino que Toby não ignora de todo a arte de levar a sua avante...

- Jake nunca obrigou Bunny - observou Maud, calmamente- e, no entanto, lida bem com ele.

Deram uma curva e pararam diante dum portão que conduzia ao campo. No mesmo instante passaram por eles dois cavaleiros, a toda a velocidade. Um deles, Bunny, agarrava-se ao pescoço da montada, encorajando-a energicamente. O outro, uma figura magra e infantil, ajoelhava na sela, insignificante e temerário, num equilíbrio perfeito e sem sinais de medo. Era Toby. Quando o cavalo que a conduzia reduziu o andamento para meio galope, ao subir a encosta, levantou-se com absoluto à vontade e manteve-se assim, de braços abertos e oscilando com os movimentos do animal, até que, noutra curva, voltou a ajoelhar-se, desaparecendo na peugada de Bunny.

- Bela exibição! - elogiou - está Jake?

O próprio Jake apareceu nesse instante, montado no cavalo favorito, o Hundredth Chance. Cumprimentou Saltash com um sorriso, desmontou, juntando-se-lhes no portão.

-Eles voltam já. Assim acalmam os nervos - explicou, no seu modo simples e breve. - Veio de automóvel?

Saltash acenou afirmativamente, com certa impaciência. Espiava, ansioso, o regresso da amazona. Não o vira, quando passara por ali, e, sem saber porquê, a sua arrogância rebelava-se contra o facto de lhe ter passado despercebido.

Jake ficou também à espera, sem se dar ao trabalho de conversar. Não estava no seu feitio.

Chegaram por fim, cavalgando lado a lado e rindo em descuidada camaradagem. Toby vinha levemente corada, em cabelo e vestida exactamente como um rapaz. Ao ver Saltash, toda a sua atitude se modificou. Soltou uma exclamação, meio grito, meio soluço, e atirou-se para o chão. No minuto seguinte estava agarrada ao braço dele, numa saudação muda, esquecida de tudo o mais. Era uma cena patética, como a do encontro dum cão perdido com o dono.

- Então, "Mignonette"! - e o rosto endurecido suavizou-se como que por milagre, desaparecendo-lhe dos lábios o quase eterno sorriso de mofa. - "Mignonette"!

Toby sufocou novo soluço, com o rosto escaldante e trémulo, agora muito diferente do de um rapaz, e disse:

- Pensei que se tivesse esquecido de vir.

- O quê? Esperavam-me para almoçar? Ah, era por isso que não querias ir à igreja?!

Toby fitou-o, lutando desesperadamente por sorrir:

- Em parte... foi. Mas nunca costumo ir. E o senhor?

- Raramente - confessou. - Mas iria, se estivesse aqui. Bem, espero que fiques contente por saber que o teu pai está melhor. Vai convalescer para o castelo, sabes? Quando estiver bom, darei uma festa... uma festa para ti!

- Para mim?! - perguntou a garota, com os olhos dilatados de susto. - Espero que não dê!

Saltash riu-se, com as sobrancelhas a subir e a descer, no gesto habitual:

- Por que não, boneca? Já tens idade para ires a festas! Maud acompanhar-te-á e fará as honras da casa, não é verdade, rainha? O Jake irá também, se quiseres, para te manter na ordem... No fim de tudo, tens de ser apresentada em sociedade, quando tiveres aprendido a ser cortês, em vez de dar cambalhotas. Deixarás crescer o cabelo e porás de parte as calças de homem. Tens de ser um crédito para mim, entendes?

- Oli, diabo! - exclamou, aflita. - Oh... eu queria dizer... que maçada!

- Bem, bem, já é uma grande coisa que quisesses dizer só isso, não achas? - e soltou nova gargalhada. - Se continuas a usar essas vestimentas de homem durante muito tempo, não tardará que o Jake te bata por... pequenos deslizes como o de há pouco... Disseram-me que ele se está a tornar muito poderoso!

- Não tenho medo do Jake! - afirmou a rapariga, olhando de soslaio para o visado, que acendia o cachimbo ao mesmo tempo que segurava os dois cavalos, o seu e o dela.

- Não vais andar mais? - perguntou, sorrindo.

- Não! - respondeu a rapariga.

- Oh, vem! - pediu Bunny, avançando, mas sem desmontar. - Prazer em vê-lo, Charlie, mas temos de dar outra galopada. Anda, Toby! Sê desportista!

- Não vou! - repetiu ela, limitando-se a olhá-lo, sem largar a manga de Saltash.

- Está bem! - gritou o rapaz, corando e picando furiosamente a montada, que se afastou a toda a velocidade.

- Feriste-lhe as susceptibilidadezinhas! - troçou Saltash.

- Que importa? - comentou Toby, chegando-se mais para ele, até que, com uma gargalhada, Saltash lhe passou o braço pelos ombros.

- Sabes o que te digo, começas a estragar-te com mimos! Temos de fazer qualquer coisa para obstar a que tal se dê! Levo-a, Jake?

- E traz-me de novo, quando for boa?

- Quando fores boa, querer-te-ei comigo! - exclamou, puxando-lhe a orelha. - Ainda não encontrei ninguém como tu para manter os meus botões bem pregados! Não, minha querida, tens de ficar aqui e penitenciar-te dos teus pecados! Jake, sendo tão eminentemente virtuos-o, é melhor disciplinador do que eu... Espero que lhe dê palmatoadas, Jake, pois estou certo de que as merece.

- Não darei - replicou o outro, montando de novo. Até agora não foi preciso.

Toby ficou a observá-lo, vendo-o afastar-se com os dois cavalos:

- Tenho-me esforçado por ser boa - murmurou - e ele bem o sabe.

- Sim, esforça-se muito - concordou Maud, com doçura. - Ainda havemos de nos orgulhar dela.

- Duvido! - exclamou Saltash, zombeteiro. - Não te tornes demasiado boa, querida! Não poderei alcançar-te.

Toby encarou-o, impulsiva, fitando os olhos maliciosos com clara adoração:

- O senhor! - exclamou. - O senhor!

- Bem, e depois? Eu, quê?

- Nada, nada! - murmurou, tornando-se escarlate. -

Mas... o senhor é tão grande!

Saltash beliscou-lhe a face, fazendo uma careta:

- É essa a maneira delicada que escolheste para me dizeres que sou o maior patife que jamais encontraste,

não é?

- Oh! - protestou Toby, incapaz de se exprimir doutro modo. - Eu... eu... acho que é um rei! Se... se... alguém fosse capaz de me fazer crer em Deus, esse alguém seria o senhor!

Falava com tal sinceridade e paixão, que a careta desapareceu do rosto de Saltash, como uma figura desaparece dum écran. Por momentos dir-se-ia um homem a quem tinham batido, mas que não sabia onde fora atingido; depois, com rapidez incrível, voltou-se para Maud:

- Está a ouvir? - perguntou, como que num desafio.

- Por que não se ri?

Maud encarou-o com absoluta firmeza e uma expressão onde se adivinhava certa pena, e afirmou docemente:

- Porque é a verdade.

No silêncio que se seguiu, Maud ficou à espera de o ouvir rir, mas o silêncio manteve-se. Os olhos trocistas compreenderam-na e, ultrapassando-a, foram pousar em Toby, inundados de ternura:

- Sempre te disse que eras uma parvinha, não disse, Toby?

Esta voltou-se, com um murmúrio inaudível e, baixando-se, beijou-lhe suavemente a mão.

Saltash partiu com Bunny, que ia passar a noite em Burchester, e Toby foi à igreja, com grande decoro. O seu comportamento, no trajecto e durante a cerimónia, foi verdadeiramente modelar, mas, no regresso, pediu a Jake um cigarro, como recompensa da virtude...

- Isto vai fazer com que fique boa durante muitas horas - assegurou.

E Jake, que também ansiava por um cigarro, não encontrou meio de recusar.

- Só te peço que não fumes demasiado! - - O Bunny passa a vida de cigarro na boca, o que não lhe faz nada bem.

- Oh, mas eu tenho toneladas de senso a mais do que o Bunny! - garantiu, afectada.

Fumou o cigarro apreciativamente, embora o tabaco de Jake não fosse, de modo nenhum, próprio para o paladar feminino, e chegaram a casa em paz com todo o mundo.

Maud, que os aguardara com alguma ansiedade, verificou, aliviada, que os seus receios eram infundados. A serena compostura de Toby informou-a de que tudo correra bem e que, no fim de contas, não fora tão detestável como julgara. De qualquer maneira, não era assunto para se zangarem. Iria de novo, se Jake quisesse.

Parecia, até, divertida com a ideia de que era tão fácil contentá-lo e, um pouco mais tarde, perguntou-lhe, de nariz no ar, se tinha mais tarefas aborrecidas para lhe confiar.

Quando, daí a bocado, Maud foi sentar-se ao piano, sentou-se também, junto dela, numa cadeira baixa, escutando num silêncio absoluto. Estavam sós, e Maud foi tocando, quase esquecida da silenciosa companheira, deixando os dedos vaguear em uníssono com os pensamentos. Durante toda a sua vida a música fora sempre a sua grande alegria e consolo. Embora não fosse pianista brilhante, como Saltash, tinha o dom de mergulhar de tal forma na música que, dessa forma, expressava o que, por Palavras, parecia, às vezes, inexprimível - as escondidas emoções da sua alma.

Passou perto de uma hora sem que se lembrasse da pequena figura encolhida atrás de si e, quando se recordou, foi com vivo sentimento de compunção que levantou os dedos das teclas.

- Toby, querida, isto deve ser aborrecidíssimo para ti! Estás a dormir? Então, criança, que é?

Admirada, viu que a cabeça da rapariga estava apoiada nos braços, numa atitude de amargura e desespero.

Estremeceu convulsivamente ao ouvir a voz de Maud e, pouco depois, levantou para ela o rosto pálido e dolorido.

- Estou apenas um pouco cansada - desculpou-se, numa voz que tremia apesar de todos os seus esforços. Continue a tocar! Eu gosto.

Maud levantou-se, mas, antes de ter tempo de chegar junto dela, Toby ergueu-se também, fitando-a com aquele ar de animal escorraçado tão seu característico, e torcendo nervosamente as mãos.

- Vamos conversar, sim? - convidou Maud, agarrando-lhe carinhosamente por um braço.

Toby submeteu-se, quase sem dar por isso, ao contacto delicado. com aquela blusa branca, simples, de gola à marinheira, não parecia mais do que uma criança, uma criança tímida e infeliz.

Usando a mesma delicada firmeza, Maud fê-la sentar-se no sofá, a seu lado. Não obstante todos os seus sentimentos maternais vibrarem de piedade por aquela criaturinha desamparada, hesitou na atitude a tomar, receando tocar numa tecla errada. No entanto, ao senti-la tremer, decidiu-se, passando-lhe o braço à roda dos ombros.

- Gostava de conhecer o meio de te fazer feliz, querida

- murmurou.

- É muito amável e eu sou estúpida, estúpida! exclamou, sufocando um soluço. - Tentarei ser feliz, tentarei com todas as forças!

Maud começou a apertá-la a si, mas Toby surpreendeu-a com um movimento apaixonado e brusco, deixando-se cair para o chão e escondendo o rosto no regaço da amiga,

- Não mereço que fale comigo! - declarou, com a voz estrangulada e veemente. - Sou tão má, tão má! E queria tanto ser boa!

- Criança, minha querida pequena!

Lutou consigo própria durante algum tempo, rodeando os joelhos de Maud com os braços magros, mas, por fim, não fazendo caso do desespero, levantou corajosamente a cabeça:

- desculpe! Não se preocupe por causa disto, por favor, nem diga a... ao... Jake!

- Confia em mim, querida! Mas não achas que poderei ajudar-te?

Sabia perfeitamente que Toby não estava em condições de lhe dar toda a sua confiança e, por estranho que parecesse, a sua própria reserva a impedia de lha pedir, embora desejasse de todo o coração ser-lhe útil.

- Oh, é muito boa! - murmurou a rapariga, com os lábios trémulos, interrompendo-lhe a divagação. - Gostava de me parecer consigo, de ser boa como é, mas creio que nunca o conseguirei!

- Não me julgo especialmente boa, querida - confortou-a Maud, passando-lhe a mão pela testa.

- Se te pareço o que dizes, é porque na minha vida há tão poucas tentações, que não posso ser outra coisa.

- Ah! - admirou-se, suspirando. - E acha que as pessoas têm de sofrer por coisas de que... não têm culpa?

- Bem sei que é triste, querida, mas muitas vezes assim acontece.

- E, mesmo assim, crê em Deus?

- Sim, creio em Deus - respondeu, com serena reverência. - E tenho a certeza, Toby, a certeza absoluta, de que Ele nunca torna as pessoas responsáveis por aquilo de que não tiveram culpa, pelos acontecimentos que não puderam evitar.

- Então por que...

- Não, não! - interrompeu Maud. - Não perguntes porquê! O mundo é como Ele o fez, nós somos a Sua obra! Deixemo-Lo proceder connosco como entender!

Toby apertou as mãos uma na outra, enquanto uma ruga nada infantil lhe vincava a fronte:

- Temos, então, de ser absolutamente passivos? Como... escravos?

- Não, querida, como servos, apenas. Há uma grande diferença entre servo e escravo e todos nós - cada um de nós, repara bem! - tem trabalho de Deus a fazer na terra!

- E acha que as pessoas más, como eu, podem fazer alguma coisa?

- Querida, tenho a certeza de que o teu trabalho te espera - replicou, sorrindo.

- Não sei por onde hei-de começar - lamentou-se

Toby, com um suspiro.

- Já começaste, querida! - afirmou Maud, afagando-lhe os cabelos. - Julgas que não sei como te tens empenhado em modificar-te?

- Mas vale de alguma coisa tentar modificar-me? insistiu, com os olhos cheios de lágrimas. - Alguma vez... alguma vez... - e fez uma pausa, olhando nervosamente para Maud. - Alguma vez passarei do princípio? - Claro que passarás. És nova, demasiado nova, para te preocupares com o passado. Tens a vida à tua frente e, de certo modo, podes fazer dela o que quiseres, moldá-la à tua vontade. Não há necessidade de olhar para trás, acredita que não há! O tempo é apenas suficiente para o presente, para o momento que se vive! Por isso, continua a tentar, a empenhar-te na luta! Tira o melhor partido possível do presente e verás que o futuro se apresentará sem dificuldades!

- Sim? - perguntou Toby, duvidosa.

- Certamente, pequena - e beijou-a. - Sobretudo, nunca duvides disso. Pode não ser o futuro que tenhamos planeado, mas será, com certeza, o melhor possível, se não deixarmos de tirar o melhor partido do presente.

- Obrigada - murmurou, comovida. - E está convencida... realmente convencida... de que o passado não conta?

Maud ficou algum tempo silenciosa. Pensava em Saltash, nas suas evasivas, no seu ar de descuidado proprietário. Que haveria no passado daquela criança que ela desejava tão ardentemente esquecer? Gostaria de ter coragem para lhe perguntar, mas não, não podia!

Um tremor nervoso agitou o corpo ajoelhado a seus pés, em atitude suplicante, e, sentindo-o, Maud deixou que a piedade vencesse a dúvida, e respondeu:

- Creio que o facto de o passado contar ou não está inteiramente nas nossas mãos. O passado pode sempre ficar para trás, ser apenas passado, se trabalharmos com vontade para que assim suceda.

- Oh, obrigada! - repetiu a pequena, beijando-lhe impulsivamente as mãos. - vou trabalhar com vontade. Sei que me ajudará. Tenho de... de... deixar de dar cambalhotas e aprender a ser cortês.

Sorriu, tímida, a Maud, e esta, quase sem dar por isso, correspondeu-lhe. Havia naquela garota qualquer coisa muito forte que exercia sobre todos uma atracção irresistível. Era tão nova e ardente como pateticamente ansiosa por agradar.

- Claro que te ajudarei - respondeu Maud. - Ajudar-te-ei sempre, minha querida.

E Toby, entusiasmada, passou-lhe os braços pelo pescoço e apertou-a muito contra o coração.

Escurecia. A luz fantasmagórica daquele perfeito crepúsculo de Junho filtrava-se através dos pinheiros de Burchester Park, dando aos troncos acastanhados um aspecto incandescente. Ao fundo duma comprida álea arrelvada, a lua nova reflectia-se no mar, parecendo um barco prateado flutuando na imensidão verde e transparente. Sobre todas as coisas, o silêncio pesado e sereno dos dias de Estio.

O trotar abafado dum cavalo, ao longo da álea, mal quebrava aquele mágico silêncio. Um coelho, assustado, correu à procura de refúgio enquanto, muito ao longe, o cuco chamava ternamente, persistentemente, e, mais perto, um melro assobiava uma ária doce à sua companheira. Mas tudo isto fazia parte do silêncio e da noite que se aproximava. O cavaleiro que conduzia o cavalo saboreava a paz que o rodeava e, numa reverência trocista, tirou o chapéu à Lua.

Quando chegou ao fim da álea fez estacar o cavalo, à beira de uma íngreme descida. A seus pés ficava o parque, envolto em mistério, e, a uma milha de distância, na outra encosta, dominava o castelo, altivo, recortado de ameias, esplêndido na sua idade de séculos, com a janela do oeste a brilhar, como que incendiada. Ficou um momento imóvel, com os olhos fixos e uma estranha expressão de desgosto.

Por fim, num gesto brusco, fustigou o cavalo, que se precipitou, num galope desenfreado, pela encosta abaixo. Passou como o vento, deixando atrás de si a floresta encantada.

Quando, poucos minutos depois, subia a outra encosta, na direcção do castelo, ouviu assobiar e puxou as rédeas, olhando para trás. Uma figura de pernas muito compridas destacou-se dum grupo de árvores, junto da casa do intendente, e correu ao seu encontro.

- Eh, Charlie! Não vá com tanta pressa, homem! vou para o mesmo sítio.

Saltash esperou, impaciente.

- Meu velho, tu já estás vestido e eu ainda não! Atrasar-me-ei.

- Que importância tem isso? - perguntou Bunny, alcançando-o, quase a rebentar de cansaço. - A Maud e o Jake não são de cerimónias e a Toby é uma garota. Tenho a impressão de que é a primeira vez que ela vai a um jantar.

- Está em boa idade de começar - observou Saltash.

- Sim, sim, está a começar... - insinuou o outro, fazendo uma careta e andando ao lado do cavalo. - Há várias semanas que a não vê, não é? Vai achá-la diferente.

- Diferente como?

- Principalmente no vestuário. Bem sabe que a Maud tem dedo para essas coisas. Pouco a tenho visto nos últimos tempos... Anda quase sempre a cavalo, com o Jake. No entanto, das duas vezes que a vi com a Maud, pareceu-me muito senhora de si... Está-se a tornar apresentável - informou, num tom desinteressado.

- Não aprovas?

- Não a vejo vezes suficientes para me interessar ou não - declarou, sacudindo os ombros. - É apenas uma garota, como sabe.

- Gostas do teu trabalho? - perguntou inesperadamente Saltash, mudando de assunto.

- Muito! - foi a resposta rápida e entusiástica. - Fui feito para aquilo! O velhote, o Bishop, é um camarada, estamos a tornar-nos amigos.

- Gostas então dessa vida?

- Muito! - repetiu o rapaz. - Sempre acreditei que gostaria de dirigir uma grande propriedade. Quem me dera ter uma!

- Não te aflijas, adoptar-te-ei! Serás o filho da minha velhice.

- Não seja estúpido! Por que diabo não se casa?

- Receio já ter vivido demais, meu velho! - replicou, franzindo as sobrancelhas. - Se tivesse desposado a tua irmã, há muito tempo, as coisas teriam sido diferentes...

Assim, não vejo perspectivas de mudar de estado. Achas que tenha importância?

- Acho que é uma vergonha deixar extinguir-se um nome como o seu - censurou. - Além disso, não me parece justo que fale assim da Maud. Não me venha dizer que se manteve apaixonado por ela durante todos estes anos! Deve ter tido montanhas de mulheres, depois dela.

- Não digo tal coisa, evidentemente. Como afirmas, tive... montanhas de mulheres! Há sempre milhares de estrelas, Bunny - declarou, apontando para o céu, atrás deles - mas uma única lua.

- Parvoíce!

- É, não é? - e riu-se. - Bem, tenho de andar. Recebe tu os convidados, se eu me atrasar. Diz-lhes que fui à cidade e só regressarei ao meio-dia! Não te preocupes com o Larpent, eu tratarei dele.

Bateu no pescoço do cavalo e afastou-se.

Bunny viu-o afastar-se, até que os abetos da avenida o esconderam.

"Grande excêntrico!" murmurou para consigo.

Pouco depois entrou no castelo pelo grande vestíbulo de pedra, encontrando tudo iluminado de ponta a ponta. Há muitos anos que ali entrava, mas tamanha magnificência era sempre uma sensação nova para si. Parecia uma casa de reis! Aqui e ali viam-se esculturas, de mármore e bronze, brilhando, sobre cada uma, uma luz velada. Ao fundo, uma larga escada de carvalho conduzia a vasta galeria da mesma madeira, que ocupava três paredes do aposento. A meio do caminho, a escada bifurcava-se, deixando ver uma porta alta, aberta para um compartimento iluminado.

Bunny entregou o casaco ao silencioso mordomo e encaminhou-se para essa porta, esperando encontrar a sala ainda vazia. Mais uma vez admirou a vastíssima quadra, com as paredes forradas de cetim e mobilada com soberbos e antigos móveis franceses, dourados e estofados de azul. Ia a encaminhar-se para uma outra sala, mais adiante, mas deteve-o um homem vestido para jantar, que surgiu de uma das janelas do lado sul:

- Sir Bernard Brian? - perguntou.

- É o capitão Larpent, evidentemente-saudou Bunny, estendendo a mão. - Tenho ouvido falar de si tantas vezes, que até me admiro de já não nos conhecermos!

Lamento a pouca sorte que teve com o "Mariposa Nocturna".

- Oh, uma sorte diabólica! - concordou o marinheiro,

carrancudo.

- Mas está vivo, felizmente - consolou Bunny - e sua filha também. Podia ter sido pior.

- Parece-lhe? - resmungou.

- Sua filha, pelo menos, é dessa opinião.

- Um barco não é lugar para uma rapariga - resmungou de novo.

- Toby nunca me pareceu tão à vontade como montada num cavalo - observou o rapaz, para manter a conversa.

- Ah, ainda a tratam por esse nome?! - admirou-se,

encarando-o com um olhar interessado.

- Como a chama?

Como resposta, Larpent fez um gesto de chamamento

com os dedos.

- E ela vai?

- Geralmente.

- Nesse caso, é mais dócil do que supunha - comentou Bunny.

Larpent não respondeu. Encostou-se ao parapeito e ficou a olhar para as encostas arborizadas do parque.

- Deve detestar a vida em terra - observou o rapaz.

- Por que diz isso? - perguntou Larpent, mal desviando os olhos.

- É a sua cara que mo diz-retorquiu, com uma ponta de zombaria. - Saltash vai comprar outro iate, não vai?

- continuou, fitando aquele taciturno descarnado com um interesse trocista, e sentando-se numa das cadeiras douradas.

- E supõe também, por acaso, que será a mesma coisa? - perguntou, olhando-o, por fim, de mau humor. -Não sei, cavalheiro! - confessou Bunny, corando um pouco. - Bem vê, nunca fui capitão dum iate.

O rosto duro de Larpent distendeu-se um pouco, e os seus olhos tristes continuaram a fitar a floresta distante. Pelo seu lado, Bunny levantou-se e, a assobiar, começou a andar dum lado para o outro. Não podia ficar quieto durante muito tempo. Não estava muito familiarizado com as salas de recepção de Burchester e encontrou sobejos motivos de interesse e distracção.

Quase se esquecera de que estava só quando Larpent, saindo da melancólica deambulação, o interrogou:

- Há quanto tempo está a pequena com esses tais Boltons?

- Deixe-me ver... - murmurou Bunny, - Foi já há algum tempo. Creio que logo a seguir ao naufrágio. Seis semanas, pouco mais ou menos. Sim, ela chegou precisamente antes de eu vir para este emprego, na semana das corridas de Graydown - e os olhos brilharam-lhe, ao lembrar-se. - Recordo-me de que nos divertimos no dia da sua chegada, um divertimento um pouco censurável... Apostámos tão alto, que cheguei a pensar que íamos causar sensação. Mas, de repente... - assobiou, em tom dramático -saiu tudo branco e eu fiquei falido!

- e soltou uma gargalhada. - É uma vergonha dizer-lhe isto, não é? Mas não me queira mal, não voltámos a fazer o mesmo.

- Não quero mal a ninguém - replicou Larpent.

- Óptimo! Vejo que é desportista!

O comentário sincero de Bunny fez brilhar um clarão fugidio e gelado nos olhos do outro, que voltou a embrenhar-se no seu silêncio.

com um sorriso infantil no rosto simpático, Bunny continuou o passeio, acostumado já ao pouco expansivo marinheiro.

- Linda casa! - exclamou segundos depois. - É pena que Saltash esteja cá tão pouco tempo. Só aqui fica umas três vezes por ano e, mesmo assim, apenas umas duas noites de cada vez. A mata está a abarrotar de caça, mas não há quem lhe atire...

- Ele deve saber o que lhe convém melhor do que nós

- foi a réplica cortante.

- Talvez. No entanto, a propriedade é mal empregada nele - insistiu Bunny de cenho franzido. - Não faço ideia por que motivo não se casa e fica de vez aqui! Não é capaz de o persuadir?

- Não.

- Não compreendo - continuou o rapaz. - Sei que tem levado uma vida um pouco desregrada, mas, mesmo assim, não é pior do que centenas de outros! Por que diabo não se casará?

- Não mo pergunte a mim - declarou Larpent, sacudindo os ombros.

- Mas devia casar - teimou Bunny. - Se tem alguma influência sobre ele, deve empregá-la.

- Não tenho.

- É uma vergonha! - explodiu o rapaz, impaciente. Um lugar como este habitado apenas pelos criados!

- É não é? - zombou Saltash, entrando inesperadamente por uma das portas mais distantes. - É uma casa bastante grande para cinquenta esposas, hem, Bunny?! Bem, como já te disse, casas-te tu e eu adopto-te. Poupar-me-ás uma série de trabalhos. Como és tão veemente em aconselhar o casamento aos outros, experimenta o remédio

e vê se gostas!

Foi atravessando a comprida sala enquanto falava, passando por Bunny e Larpent sem se deter junto de qualquer deles. E continuou:

- Gosto de os ouvir, aos dois, a discutir o meu caso. Tu, Bunny, que nunca tiveste a grande doença, e Larpent, que nunca se curou dela!

Aproximou-se da porta que dava para as escadas, sempre de sorriso zombeteiro nos lábios e no olhar. Parou, estendendo ambas as mãos num gesto gentil de cumprimento:

- Benvinda seja à minha pobre choça! Madame, ajoelho a vossos pés!

Uma gargalhada clara e vibrante obrigou os dois homens que tinham ficado na sala a voltarem a cabeça, num movimento brusco.

Uma figura de branco, infantil e fresca como a manhã, fez a sua aparição. O rosto vivo tinha a cor delicada da rosa brava, o cabelo rodeava-lhe as têmporas de anéis dourados e os olhos, azuis e brilhantes, davam-lhe o aspecto duma criança acabada de despertar dum sonho feliz, uma criança que esperava que a levantassem e a

beijassem.

-Céus! - exclamou Bunny, francamente espantado.

- Céus!

E não encontrou mais palavras. Nunca se sentira tão fascinado! Aquela rapariga - aquela endiabrada Toby, de feições vincadas e queixo pontiagudo, com quem se divertira e brincara - era uma verdadeira beldade e só agora o descobria!

Enquanto se aproximava para a cumprimentar, verificou que Larpent também estava admirado, e riu-se interiormente.

Na realidade, o choque devia ser maior para o capitão do que para ele próprio, visto que, pelo menos, a vira no estado de crisálida, embora nunca esperasse que surgisse tão radiosa borboleta.

Maud fora, sem dúvida, a fada que operara tão maravilhosa transformação, com a sua ternura maternal que adivinhava tantas coisas! Voltou o olhar para a irmã e perguntou a si mesmo, ao vê-la sorrir, se se daria conta da enormidade que conseguira.

No meio de todos os seus pensamentos, a voz de Saltash, escarnecedora como sempre, comentava:

- Mas, "Nonette", "Nonette", és uma visão dos deuses!

E um calor asfixiante, quase como uma dor física, percorreu-o então todo. Como ousava Charlie empregar aquele tom descuidado com Toby, como se ela fosse uma simples e vulgar mulher que precisasse de ser adulada? Nunca reprovara o comportamento de Saltash, mas, naquele momento, quase o odiava! Ela era tão jovem, tão doce... tão diferente... para ser tratada assim!

No mesmo instante Saltash, rindo, puxou-o para a frente:

- Conheces este cavalheiro, minha querida?

- Oh, Bunny! - saudou-o, com um alegre sorriso de camaradagem. - Estou tão satisfeita por também estares aqui, neste castelo do... papão!

Estendeu-lhe a mãozita confiante, que Bunny apertou com força. Pressentiu-a nervosa e todo o cavalheirismo da sua natureza veio ao de cima, pronto a protegê-la. Por momentos manteve-lhe a mãozita nas suas até que Saltash, despreocupado, a soltou:

- Vem! Há mais alguém a quem tens de falar.

E levou-a consigo até junto de Larpent. Seguiu-se um silêncio incómodo, que Toby interrompeu com uma gargalhadinha trémula.

- Viva... capitão!

- Viva! - correspondeu ele, e, após uma pausa, agarrou-lhe no queixo e, bruscamente, aflorou-lhe a testa com os lábios. - Tudo bem?

Toby suspirou. Parecia tremer, mas no mesmo instante soltou nova gargalhada, já mais segura:

- Tudo bem, capitão! Estou... estou... satisfeita por voltar a vê-lo. Está bom, também?

Observando a cena, Bunny fez a inesperada descoberta de que Larpent estava também embaraçado. Foi Saltash quem salvou a situação, vencendo o acanhamento momentâneo com o seu à vontade inato, que parecia nunca o abandonar:

- Está bom, sim. Não te preocupes com ele! Compraremos outro barco, assim que a companhia de seguros arrumar o assunto. Maud, este é o meu capitão, o melhor marinheiro que conheço e meu bom amigo.

Fitou Larpent com o olhar atrevido e trocista, e voltou-se logo a seguir para Jake:

- Os dois devem entender-se bem. Ele reprova-me quase tanto como você, mas suporta-me, também como o meu amigo, sem bem saber por que razão!

Nos olhos de Jake cintilou um sorriso que lhe tornou o

rosto severo mais amável:

- Talvez que ambos tenhamos uma aptidão especial para descobrir vencedores... - insinuou.

- Talvez, também, tenham a pouca sorte de perder bom dinheiro antes de concluírem a tarefa - zombou Saltash, levantando as sobrancelhas.

- Não o creio - replicou Jake. - Conheço diversos que tiveram pior começo e acabaram por entrar no bom caminho.

Saltash riu alto e Toby encarou-o, corada e ardente. O olhar trocista do fidalgo pousou nela por momentos, desviando-se, depois, para Bunny.

- Não, não deve ter conhecido ninguém com piores começos-desmentiu, após uma pausa - mas, se eu entrar no bom caminho, será graças a si.

Como que por encanto, todo o ressentimento de Bunny se desvaneceu.

- Vamos para o jardim! - pediu Bunny, impaciente.

O jantar terminara e Maud e Saltash estavam ao piano, no outro extremo da sala, enquanto Larpent e Jake fumavam, silenciosos, a considerável distância dos dois jovens. Toby, que estivera muito sossegada durante todo o jantar, estava sentada numa cadeira baixa, com os braços à volta dos joelhos, seguindo com os olhos o passeio agitado do rapaz. Ao ouvi-lo, fitou-o com ar trocista e levantou-se.

- Queres ir? - insistiu Bunny.

- Claro que quero. Como sabes o caminho, vai à frente. O rapaz não esperou por mais nada: caminhou a largas passadas para a porta, abrindo-lha para ela passar. Toby saiu, direita e imponente no seu vestido branco, mas, mal se encontraram sós, não conteve o riso:

- Oh, agora, sim, vamos divertir-nos! Já estava farta de me portar como pessoa... decente. Depressa! Para onde vamos?

- Para o jardim. Não, espera! Vamos antes para as ameias!

- Esplêndido! - exclamou ela, dando-lhe a mão

- Qual é o caminho?

- Vamos pela sala de música.

Subiram de mãos dadas uma das escadas que se ramificava ao norte e ao sul para a galeria, sempre seguidos pela música que Saltash tocava na sala de recepções. Era uma canção de amor, espanhola, que fez Toby estremecer e alargar o passo.

Alcançaram nova porta de carvalho, que Bunny abriu, empurrando a companheira para dentro.

- Aqui é o santuário particular de Saltash. Glacial, hem? Há uma porta secreta, que leva não sei aonde, mas ninguém dá com ela.

Conduziu-a a seguir a um aposento comprido, quase vazio, com janelas em ogiva em cada extremidade e um grande piano junto duma delas, brilhando sinistramente sob uma luz velada. No chão, ricas carpetas persas, de cores esquisitas. Dois ou três divãs profundos completavam o mobiliário, dando ao aposento um ar de magnificência oriental que perturbava estranhamente os sentidos.

- Faz-me sempre lembrar um harém - murmurou Bunny, olhando à volta. - Dá-nos a sensação de viver um conto das "Mil e Uma Noites". Mas quê?! Estás a tremer? Tens frio?

- Não, não tenho frio. Simplesmente não gosto disto! Bule-me com os nervos. Vamos!

Mas Bunny deixou-se ficar.

- Porquê? É bastante luxuosa. Sempre gostei de aqui entrar.

- Nesse caso, gostas de coisas horríveis! - replicou, com um gesto veemente de protesto. - Não se respira aqui ar, apenas... apenas perfume!

- No entanto é um perfume deveras subtil, que não faz mal a ninguém - insistiu o rapaz. - É, até, um perfume sedutor! - e aspirou, com ar cómico.

-É grosseiro, odioso! - gritou Toby, batendo os pés com tal fúria que o surpreendeu. - Como podes gostar disto? É mau, é... um lugar feio e horrível!

- Bem, foi Charlie quem o decorou - informou o rapaz, com ar espantado. - É a única sala do castelo que lhe pertence só a ele. Que há aqui de que possas não gostar?

- Tudo, tudo! - gritou ela, apaixonadamente. - Não quero permanecer aqui nem mais um minuto! Mostra-me a saída!

Falava com tal altivez, que Bunny achou melhor obedecer. Indicou-lhe uma porta coberta por pesada cortina vermelha.

- Pode-se ir para os baluartes por esse caminho, mas espera um pouco que eu procuro o interruptor. De que foges? Não há papões no castelo.

- Oh, isto é um lugar horrível! - confessou a rapariga, respirando a custo. - Preciso de tomar ar, ar puro!

- Gostas mais disto? - perguntou ele quando a porta se abriu, mostrando um corredor escuro.

- Muito mais! - declarou, mergulhando às cegas na escuridão, enquanto Bunny continuava à procura do interruptor, às apalpadelas.

- Parece-me bem que não há aqui interruptor - resmungou, riscando um fósforo. - Não, não há. Estupidamente medieval. Eh, espera enquanto vou buscar uma pilha eléctrica!

- Não; procuremos o caminho! Tenho a certeza de que encontraremos. Anda e fecha a porta! Vai ser cómico!

O espírito de aventura avassalou Bunny. Fechou a porta e deu de novo a mão à companheira. O riso satisfeito desta fê-lo acreditar que retomara o equilíbrio, esquecida da irritação de há pouco.

- Agora é que vai ser engraçado! - exclamou Toby. Caminharam alguns metros numa escuridão total até chegarem a um espaço frouxamente iluminado por uma luz filtrada de algures, acima deles.

- É das escadas - informou Bunny. - Uma daquelas fendas por onde, nos velhos tempos da hospitalidade, se dava de beber a todos os que passavam. Vê onde pões os pés!

Palavras não eram ditas, tropeçaram ambos no primeiro degrau da escada, estendendo-se ao comprido.

Toby riu-se, Bunny praguejou, mas acabou por rir também.

-Eu bem dizia que ia ser engraçado! - comentou a rapariga. - Magoaste-te?

- Não - respondeu ele, levantando-a. - E tu?

- Também não e... divirto-me! Que vai acontecer a seguir? As escadas vão caracolando até chegarmos lá acima?

- Vão. São perto de seiscentos degraus. Achas-te com coragem?

- Acho-me com coragem para tudo! Deixa-me ir à frente!

- Por que não hei-de ir buscar uma luz? - perguntou Bunny, com certo receio.

- Porque não, porque é muito mais cómico às escuras! Além disso, há uma quantidade de luzes por aí acima. Estás pronto? Vamos, então.

A voz vibrava-lhe de indomável resolução. Libertou-se das mãos do companheiro e começou a subir.

- Sabes a história do fantasma? - perguntou Bunny, trocista. - Uma vez capturaram uma linda dama e aprisionaram-na nesta torre, nos velhos tempos em que toda a gente fazia destas coisas, dando-lhe a escolher entre atirar-se das ameias ou desposar o odiado raptor - um antepassado de Charlie, por sinal. Ela optou pela última hipótese e morreu com o coração despedaçado, como quase todas as mulheres... Desde então, o seu fantasma vagueia por estas escadas, acima e abaixo, incansavelmente.

- Idiota! - murmurou Toby, por entre dentes.

- Quem? E porquê?

- A mulher. Por que não se atirou cá para baixo? Seria mais fácil.

- Talvez não fosse dessa opinião e, mesmo que o fizesse, inventariam do mesmo modo a história do fantasma.

- Então por que não desposou o bruto e... e... o mandou para o inferno?

Bunny soltou uma gargalhada que ecoou pela escada:

- Era isso que farias?

- Faria uma coisa ou outra.

- Que sedenta de sangue pareces! Falas sério?

- Falo sério, sim - e na resposta de Toby havia uma nota de amargo desafio. - Se uma mulher não tem capacidade para se defender a si própria, o melhor é morrer.

- Nesse ponto, estamos de acordo. Só não compreendo como sabes disso...

- Oh, sei muitas coisas! - E desta vez a sua voz soava estranhamente fria, como se as paredes de pedra que os rodeavam lha tivessem gelado.

Bunny estendeu a mão e tocou-lhe, pois tivera a sensação de que ela se afastara, se tornara longínqua e abstracta como os ecos que cortavam o silêncio.

- Apesar disso, há muitas coisas que não sabes, muitas mesmo. És ainda uma garota.

- Achas?

E escapou-se-lhe da mão, como que voando na direcção duma fenda aberta na parede, através da qual entrava vagamente a meia luz daquela noite de Verão. Ao alcançá-la, Bunny pôde divisar-lhe a figura, lembrando-se então da beleza que lhe descobrira, ainda há poucas horas, e que tanto o perturbara.

- Não, não acho que sejas apenas uma garota declarou por fim. - Já passaste esse período. Que te fez a minha irmã? Acreditas que mal te reconheci quando apareceste, esta noite?

Toby riu-se. Parecia uma borboleta branca, flutuando

à sua frente, na semiescuridão.

- Já calculava - ripostou, acabando de rir. - Deixei de saltar por cima das roseiras e estou a aprender a ser... respeitável! Às vezes também tem a sua graça. Maud tem sido muito boa para mim e... adoro o Jake. E tu?

- Também. É esplêndido, sempre foi! - concordou, entusiasmado. - Lembro-me muitas vezes dele. Mas, voltando à tua pessoa, não te tornes demasiado respeitável, não? Não sei porquê, não diz muito bem contigo.

De novo se fez ouvir uma gargalhada na escuridão uma gargalhada curta e sufocada.

- Acho que nunca serei tal coisa. E tu?

- Não sei. Parecias assustadíssima quando chegaste, como se estivesses montada num cavalo demasiado alto para ti. Tenho a impressão de que estavas com medo do teu pai.

- Estava - concordou a rapariga. - Bem vês, não o conheço bem e não tenho a certeza de que ele goste de mim.

- Claro que gosta.

- E por que há-de gostar? Não vejo razão para isso. - Toda a gente gosta de ti - afirmou Bunny, muito senhor de si.

- Não sejas parvo!

Caminhavam agora na direcção de outra fenda. Bunny deixou a resposta para mais tarde, chegando à conclusão de que precisava de todo o fôlego para continuar a subir aqueles malditos degraus que cada vez se tornavam mais estreitos, íngremes e em espiral. Toby subia tão depressa, que se lhe tornou difícil segui-la de perto. A subida parecia infindável.

Ultrapassaram nova fenda e Bunny notou, admirado, que Toby tentava aumentar a distância entre eles. Estava a tentá-lo, a enlouquecê-lo! Esta descoberta deslumbrou-o, primeiro, como o acender inesperado de uma luz na escuridão, mas, por fim, espicaçou-o, obrigou-o a persegui-la, como ela queria. Tinha nas veias uma mistura de diabólico sangue irlandês e, ao mínimo sinal de desafio, todo ele latejava num crescendo intolerável. com um rugido que encheu a escadaria de ecos assustadores, começou a caçada.

Era a corrida mais louca que jamais fizera. Toby voava à sua frente como o vento, sempre para cima, para cima, à roda das espirais da escada, num avançar doido, como se tivesse asas nos pés. Ele perseguia-a, obstinado, usando todas as forças, tropeçando, por vezes, nos intermináveis degraus, mas prosseguindo sempre, atraído pelo deslizar de borboleta da sua amiguinha. Uma das vezes quase a teve nas mãos, mas tropeçou e perdeu-a, recebendo ainda uma gargalhada de escárnio.

E aquela subida que não acabava! O coração batia-lhe como um cavalo, mas não desistia. Não havia de vencê-lo, aquela trocista, aquela rapariga-borboleta que, desde o princípio, o prendera com uma fascinação inimaginável. Havia de pagar a audácia! Ensinar-lhe-ia a vê-lo doutro modo, a não o considerar apenas um alvo para as suas brincadeiras! Mostrar-lhe-ia...

De súbito uma porta bateu por cima dele. Compreendeu que Toby alcançara o fim da torre, saindo para os baluartes, e um estranho sentimento lhe apertou o peito, quase que uma sensação de pavor. Era uma criaturinha tão impulsiva e bravia e estava tão loucamente excitada! O coração já não lhe cavalgava, sufocando-o, pois uns dedos de gelo apertavam-lho, apertavam-lho com força, inexoráveis!

Fora tudo uma brincadeira, uma brincadeira apenas! Mas, às vezes, as brincadeiras acabam em desastre e Toby... Toby não era uma pessoa vulgar. Era uma cabecinha oca ou um génio, não sabia bem. Talvez as duas coisas, sem qualquer divisão clara a separá-las. Do que não havia dúvida é que era extraordinária. Oh, por que aceitara o desafio?! Se não a seguisse, ela abandonaria aquele absurdo voo na escuridão. Absurdo, sim! Tudo aquilo era absurdo, desde o facto de terem subido aquela escadaria sem uma luz! De maneira estranha, o desaparecimento de Toby e o bater daquela maldita porta tinham-no acalmado a pontos de se classificar de doido varrido. A brincadeira fora demasiado longe e devia-o ter previsto. Bruscamente foi de encontro a uma porta chapeada de ferro, e voltou a praguejar. Sim, tudo aquilo era mais do que uma brincadeira!

A porta resistia-lhe e Bunny batia com os punhos cerrados, furiosamente, como se descarregasse a ira num obstáculo vivo que lhe impedisse a passagem.

Começava a pensar que Toby devia ter fechado a porta do outro lado quando esta, inesperadamente, cedeu à sua violenta "pressão", atirando-o para o meio da noite e das estrelas. Estava sobre os baluartes e, diante dos seus olhos esbugalhados, estendiam-se sinistras florestas, em direcção ao mar.

O primeiro facto de que teve conhecimento foi de que o lugar estava vazio. Era terrível, hediondo!

Atrás dele a porta batia, produzindo o único som que quebrava o silêncio daquela encantadora noite de Junho. Mas aquele único som tinha para ele um significado diabólico, era como que o tanger de um sino, enchia-lhe o coração de medo e ele sabia, sabia perfeitamente que tinha medo!

Desesperado, venceu o pavor e avançou para o parapeito. A parede era espessa, mas, entre as ameias, havia apenas a altura do seu joelho... Para baixo, profundidade, infindável profundidade, vácuo.

Olhou e viu o terraço de pedra, mal iluminado pelas estrelas, lá em baixo, muito em baixo. Os jardins eram um borrão escuro, onde mal se divisava o brilho do lago, entre as árvores.

O coração voltava a bater com força, a sufocá-lo, e Bunny lutava por acalmar a respiração, por pensar. Ela estava algures, perto dele, com certeza que estava, tinha de estar! Mas o aguilhão da caça abandonara-o, sentia-se assustado, doente, com vertigens. Experimentou chamá-la, mas verificou que até a voz o deixara. Encostou-se ao parapeito e, resolutamente, chamou a si todas as energias.

Avançou, encontrando-se sobre uma passagem de pedra, na realidade a parede do castelo, entre dois parapeitos, um dos quais, o da esquerda se erguia acima da parte interior do edifício com os seus intermináveis telhados de pedra; e o outro, o da direita, se debruçava sobre o terraço - um pulo de cem pés ou mais.

O vácuo e o silêncio pareciam enfrentá-lo com hostilidade, à medida que avançava, dando-lhe o sentimento vago de ser um intruso, de pisar terreno proibido. Já não sentia o sangue quente; pelo contrário, tremia de frio enquanto percorria aquele tortuoso caminho entre os baluartes.

Mas agora estava de novo senhor de si e, à medida que avançava, ia gritando:

- Toby! Toby! Aparece! Não estou a brincar!

Mas o silêncio parecia zombar dele. Oh, e de novo aqueles dedos gelados a roubarem-lhe a respiração! Levou a mão à testa e sentiu-a húmida, fria de suor.

- Toby! - gritou de novo, mas desta vez num apelo ansioso. - Volta, o jogo acabou!

Não lhe respondeu nem voltou, mas Bunny sentiu, sem saber como nem porquê, que fora ouvido por ela. Continuou a andar, com mais firmeza, sufocando um soluço de raiva. Sabia que a passagem terminava no lado norte do castelo, numa parede lisa construída séculos atrás como última defesa contra os inimigos. Só escalando essa parede se podia chegar à parte oriental do edifício; portanto havia de encontrá-la lá, não podia escapar-lhe! Toby não poderia enganá-lo durante muito mais tempo e isto dava-lhe um pouco de confiança.

Estugou o passo, cerrou os dentes, pronto para a última batalha. Toby levara o caso demasiado longe e havia de lho dizer. Contornou a curva da parede... já devia estar perto dela... Mas, de súbito, parou estarrecido. Ouvira uma gargalhada de mofa, a "sua" gargalhada de mofa, mas viera de trás, da torre que o conduzira aos baluartes!

Voltou-se, violento, e começou a percorrer o caminho já andado. Nunca tinham escarnecido tanto dele e estava furioso, doidamente furioso!

Mais uma vez contornou a curva e se aproximou da torre. Embora já tivesse os olhos acostumados à meia escuridão, ainda não a divisava. Colérico, percorreu todo o caminho até à porta chapeada de ferro que ouvira bater atrás de si. Estendeu a mão para a abrir, pois era óbvio que ela lhe fugira escondendo-se atrás da porta. Devia estar nas escadas. Mas, com a mesma brusquidão de há pouco, ouviu nova gargalhada, muito distante, na direcção da parede norte.

Voltou-se, demasiado furioso para se admirar. Toby tinha as asas de Mercúrio, era evidente! Mas havia de apanhá-la, havia de apanhá-la naquele momento ou morrer na tentativa! Mais uma vez atravessou o passeio de pedra entre a dupla fila de ameias, procurando em cada seteira à medida que avançava.

Durante todo o caminho até à parede norte foi ruminando na vingança, exteriormente calmo, mas a ferver de fúria por dentro. Atingiu a parede, mas... não encontrou nada. O vazio sorveu-o de novo, a fantasmagórica serenidade do lugar envolvia tudo num véu quase visível. Fugira-lhe outra vez! Fugira-lhe e ele sentia-se impotente.

Mas a cólera transformou-se em fogo, tanto mais abrasador e bravio quanto fora longo o tempo em que estivera sujeito. Voltou para trás, decidido, abandonando a luta.

Estava disposto a descer de novo as escadas, a ir para junto dos outros, deixando-a sozinha com aquela estúpida brincadeira. Tinha a certeza de que se aborreceria depressa, mas o que jurava é que não voltaria a servir-lhe de troça! Enlouquecera-o até ao frenesi!

Pela quarta vez contornou a parede e parou diante da porta da torre. Ao aproximar-se, uma figura de branco saiu detrás dum grande bastião de pedra que se erguia ao lado da porta e, com um gesto estudado, abriu-a para ele passar.

Fora uma partida ousada que surtiria efeito sobre um homem mais velho. Saltash, por exemplo, teria soltado a sua gargalhada cínica e trocista, aceitando a derrota com graciosidade real. Mas Bunny era jovem, veemente e impetuoso, e as labaredas da cólera lambiam-lhe a alma com um calor insuportável. Zombara dele, aterrara-o, humilhara-o, mas não ficaria impune!

Ficou um instante parado e depois, com o mesmo fogo que o consumia, apertou-a nos braços.

Ao sentir-se agarrada, Toby soltou um grito agudo, lutando como possessa para se libertar. Bunny, porém, segurava-a com força. A sua coragem fora duramente posta à prova, mas agora, que a tensão passara, toda a paixão tanto tempo contida se libertava, descontrolada e ardente. Primeiro agarrara-a como um rapaz agarraria um camarada que o tivesse provocado até ao desespero, mas, ao senti-la resistir-lhe com tanta fúria, uma nova sensação o tomou, escaldante como o fogo, avassaladora e louca - a sensação de que, pela primeira vez na vida, tinha uma mulher nos braços!

Estranha e embriagadora revelação, que o fazia sentir-se num mundo novo, totalmente desconhecido! Toby provocara-o demasiado, desequilibrara-o, tirara-lhe a força para resistir àquela nova provocação, mil vezes mais forte do que todas. Os sentidos dementavam-no e o contacto com aquele corpo era um vinho mais forte do que todos os que provara. Ouviu-se rir, como um doido, ante os seus vãos esforços para fugir e, no momento seguinte, tendo-a completamente dominada, beijava-lhe, febril, os lábios trémulos e secos.

Mas Toby continuava a lutar. Ele beijava-a, mas não lhe retribuiria, não lhe saborearia os beijos! Batia-lhe freneticamente com as mãos e com os pés, num esforço violento e bravio, mas Bunny ergueu-a do chão, mantendo o seu corpo esbelto de encontro ao peito.

- Maluquinha! - censurou, com os lábios ardentes colados à garganta da rapariga. - Pensas que te deixo fugir, agora?

Vencida pela paixão surda que vibrava na voz do rapaz ou pela força dos seus braços, Toby deixou subitamente de se debater, endireitando-se, até ficar hirta como uma estátua.

- Deixa-me ir embora! - suplicou.

- Não deixo.

Estava louco, louco de mocidade e de amor, e apertava-a, apertava-a cada vez mais, num abraço violento e feroz. Deixá-la ir, agora! E nova gargalhada, uma gargalhada que nem ele reconhecia, cortou o silêncio.

- Oh, minha maluquinha, minha borboletazinha! exclamou, beijando-lhe de novo a garganta branca e palpitante

- Apanhei-te, apanhei-te e não te deixo fugir!

- Já... já... te vingaste - titubeou Toby - e és um... um... grosseirão se não me largas.

Aquelas pobres palavras titubeadas tiveram o condão de o acalmar de uma maneira que nenhum protesto mais feminino teria conseguido. Pousou-a no chão, mas não a largou.

- Ainda não acabei - resmungou, teimoso.

- Oh, já sei! - exclamou ela, com amargura

- És como todos os homens, não sabes fazer jogo limpo. Os homens não sabem fazer tal coisa.

- Limpo ou sujo, o jogo acabou! - gritou, ofendido.

- Tu mesma o levaste demasiado longe. Se pensavas que eu era tão inofensivo e dócil a pontos de levar tudo como brincadeira, a culpa não é minha!

- Pois não, a culpa nunca é vossa! - murmurou ela, fazendo novo movimento para se libertar, mas desistindo logo ao compreender a inutilidade. - Tu não és dócil nem inofensivo, Bunny Brian! És uma besta e um cobarde! Aí tens o que és.

- Tem cuidado com o que dizes! - avisou, com os olhos soltando chispas.

- Oh, não tenho medo de ti! - exclamou Toby, com uma gargalhada de desafio. - Ainda não és homem feito e, neste momento, já te envergonhas de ti próprio.

Bunny fez-se escarlate, mas continuou a prendê-la.

- Muito bem - gritou

- Envergonhado ou não, como entenderes, o facto permanece...

- Qual facto? - cortou a rapariga.

- Bem - murmurou, apertando-a um pouco mais julgas que vou deixar-te fugir-me... depois disto?

- Que queres dizer? Não entendo.

Queria mostrar-se firme, mas a voz tremia-lhe. De novo tentou soltar-se, mas de novo ele a impediu, também, embora o seu abraço perdesse a violência primitiva.

- Quero dizer - explicou Bunny, com certa dignidade - que, uma vez que te capturei, minha borboletazinha, quero que fiques comigo. Casaremos e tu farás de mim o que quiseres.

- Casar contigo! - exclamou, incrédula.

- Claro! Que há de absurdo na ideia? Não queres? e aproximou a cara simpática e jovem, sorridente e implorante.

- És doido! - replicou Toby, após curto silêncio.

- Não sou tal! Estou no meu perfeito juízo e falo com toda a seriedade. Não sabes que, quando uma coisa destas se apodera de uma pessoa, não vale a pena querer fugir-lhe? Não podemos, evidentemente, voltar a ser e a comportarmo-nos como éramos e nos comportávamos antes disto, como se nada tivesse acontecido. Não querias com certeza que assim fosse, pois não?

Falava agora com uma leve súplica na voz e Toby fez um gesto quase imperceptível, que parecia traduzir confiança, mas acabou por murmurar, desalentada:

- Não sei.

- Não estás zangada, pois não? - perguntou, com doçura.

- Estive - retorquiu, hesitante.

- Sim, mas agora, agora que começaste a compreender como deve ser bom vivermos juntos, já não estás. Não será difícil, pois já nos conhecemos, já somos amigos.

- Sim, já somos amigos - murmurou, no mesmo tom desalentado.

- Vamos, sê desportista! Disseste que não tinhas medo de mim, lembras-te? Não deixes fugir a melhor coisa da vida por falta de um pouco de coragem.

- A que chamas... a melhor coisa da vida?

-"-Casa comigo - murmurou, apertando-a mais, mas com suavidade - e eu mostrar-te-ei.

A segurança com que falava não o tornava ridículo, pelo contrário, dava-lhe um ar digno e nobre. Ao ouvi-lo, Toby susteve a respiração, como se fosse soltar uma gargalhada, mas, de súbito, inesperadamente, começou a chorar.

- Então, queridinha!

Encostou a cabeça contra o ombro dele, soltando grandes soluços, que pareciam estrangulá-la. Toby raramente chorava e Bunny compreendeu que, desta vez, não era um mero choro de criança. Havia naqueles soluços qualquer coisa que o atemorizava, sem saber porquê. Manteve-a apertada a si, num amplexo reconfortante, mas sentiu-se incapaz de falar ou de tentar desvendar o mistério daquelas lágrimas. Como antes acontecera com sua irmã, pressentia, quase inconscientemente, que se erguera entre ambos uma barreira que não podia vencer.

Toby acabou por se dominar. Ficou uns instantes em silêncio, com a cara escondida, e depois, inesperadamente como sempre, olhou para o rapaz e soltou uma gargalhada trémula.

- Tu, meu grande estúpido! - exclamou com ternura.

- Não casarei contigo, pronto! Agora deixa-me ir embora.

Aquele tom e aquelas palavras puseram-no imediatamente à vontade. Oh, aquela sim, era a Toby que conhecia!

- Casas comigo, sim, senhora. Portanto, não te deixo ir embora.

- Não, Bunny! - teimou, encarando-o com firmeza

- Foste muito gentil pensando tal coisa, mas não pode ser.

- Porquê?

Toby hesitou e Bunny agarrou-a pelos ombros, sacudindo-a:

- Diz-me por que motivo não pode ser!

- Não quero dizer-te.

- Tens de dizer! - teimou, decidido.

- Não quero! - repetiu ela, estremecendo sob o olhar fixo do rapaz.

- Fala! - ordenou, autoritário.

- Muito bem - começou Toby, espalmando as mãos contra o peito dele - já que queres saber, eu digo: por que sou anos e anos mais velha do que tu...

- Asneira! - cortou ele.

- e por que - prosseguiu, como se o não tivesse ouvido-não sou suficientemente boa para ti!

- Parvoíce!

- Não é tal - desmentiu, toda trémula. - Transformaste uma brincadeira estúpida numa coisa séria e não devias, não devias!... Se soubesse, não teria brincado. É um erro tão grande... é sempre um erro tão grande... levar uma brincadeira a sério! Dizes que não podemos voltar a ser como dantes, mas podemos, podemos! Experimentemos, ao menos!

- Não podemos - afirmou o rapaz, com segurança. Não há, mesmo, nenhuma razão para voltarmos atrás. Ouve, querida! Não queres casar com qualquer outra pessoa, pois não?

- Não quero mesmo casar - afirmou Toby.

- Claro que casarás, querida - murmurou, sorrindo.

- Tanto posso ser o primeiro como o último, mas não encontrarás nenhum outro rapaz que te queira tanto como eu. Então? Diz que aceitas! Vamos, tens de aceitar! Não me odeias, pois não?

Toby comoveu-se com o tom suplicante de Bunny, comoveu-se quase involuntariamente. A resposta, porém, foi evasiva:

- Não sou suficientemente boa para ti - repetiu, pondo-lhe as mãos nos ombros.

- Oh, deixa-te disso! - e apertou-a muito, cheio de ternura. - Não ouvirei palermices.

- Tu... tu... és muito estúpido! - murmurou ela, com a cabeça encostada ao pescoço de Bunny.

- Não sou, não. O que sou é muito sensível. Bem, estamos comprometidos, não estamos?

- Não, não! - gritou, abafando a voz contra o casaco dele. - Não deves pensar nisso durante muito, muito, muito tempo!

- Parvoíce! - repetiu, impaciente. - Detesto esperar, sobretudo quando não há motivo para tal. Não vais dizer-me que não.

Os rostos de ambos estavam quase unidos, mas Toby pôs-lhe a mão no queixo e empurrou-o. -Bunny!

- Que temos?

- Bunny! - repetiu, com esforço visível. - Tenho de te dizer uma coisa... Ouve-me apenas um minuto! Jake... Jake não quererá que te comprometas comigo.

- O quê? - E estremeceu, como se se recordasse subitamente duma coisa esquecida. - Jake! Que raio tem ele a ver com isto? - perguntou, furioso.

- Cala-te, Bunny! Jake é justo, conhece-me e é mais velho do que tu. Devias... seria melhor... pedir-lhe.

- Pedir ao Jake! - gritou, explodindo a ira que o tornava escarlate. - Quem manda em mim sou eu! Casarei com quem quiser e me apetecer! Por que diabo havia de pedir ao Jake?

- Não precisas de o fazer, se não queres - murmurou, suspirando. - Mas... se fores sensato, fá-lo-ás. Ele compreende, compreende que não deves casar comigo. Bem vês, Bunny, estive em muitas escolas diferentes - em muitas escolas estrangeiras - e aprendi muitas coisas, muitas coisas que podem parecer estranhas... É por isso que, ao contrário da maioria das raparigas, não quero casar-me... É por isso que, embora não o sendo, pareço mais velha do que tu. Não devo casar-me, Bunny, conheço muito a vida.

- Mas casarás comigo? - insistiu, sem lhe dar atenção.

- Não sei. Pelo menos por enquanto, não. Se quiseres esperar seis meses... talvez... talvez pense no caso. Mas... creio que voltarás ao teu juízo muito antes de terminar o prazo, Bunny - e uma nota muito triste e desolada tremia-lhe na voz. - Se assim for, verás como será bom não teres de... correr comigo!

- Estás a dizer asneiras.

- Não estou tal. Estou a ser sensata, vulgarmente sensata. Não consentiria que nenhum homem se comprometesse comigo sob a influência do que aconteceu esta noite! Nem sequer tinhas pensado em mim nesse sentido quando para aqui viemos.

- Não estou tão certo disso como tu. De qualquer modo, o mal está feito e tu não deves recear que eu corra contigo porque - e um soluço inesperado fez-lhe tremer a voz - porque... agora sei que tenho de te ter, que preciso de ti.

- Mas, se não mereço que esperes por mim, também não mereço que me aceites já - argumentou, suspirando de novo.

- Mas esperar porquê? - indagou Bunny.

- Por centenas de razões. Uma delas, por que não estás realmente apaixonado por mim - afirmou, convicta.

- Estou, sim! - contradisse, teimoso.

- Não estás! Ouve, Bunny, o amor não é precisamente uma flor de paixão que desabrocha numa única noite e depois fenece. Tu és, de facto, demasiado jovem para compreender, mas eu sei, eu sei! O amor é mais semelhante a uma videira, leva muito tempo a crescer até alcançar a perfeição e, antes disso, tem muitos obstáculos a vencer.

Bunny achou-a estranha. Não duvidava de que aquelas palavras eram duma mulher, duma mulher feita, e não da bravia rapariguinha que conhecia. No entanto, paradoxalmente, os seus conselhos apenas serviram para lhe fortalecer a vontade:

- Podes continuar a argumentar até à meia-noite, mas não me convences. Se não queres que ninguém saiba que estamos comprometidos, guardaremos segredo durante algum tempo. Serve assim? Encontrar-nos-emos e passaremos momentos agradáveis, sem termos de comunicar a ninguém. Achas melhor?

- Não ficaremos comprometidos?

- Não, se me beijares como se estivéssemos! - concedeu, generoso.

- Oh, não me importo de te beijar, se isso não significar coisa nenhuma! - afirmou ela, oferecendo-lhe imediatamente os lábios.

Bunny baixou-se e beijou-a, num beijo prolongado e terno, e Toby rodeou-lhe o pescoço com os braços, retribuindo-lho. O rapaz sentiu que um soluço a percorria, embora não lhe visse lágrimas, e sentiu-se enternecido como nunca:

- Isto significa, pelo menos, uma coisa, querida: que nos amamos, não é verdade?

- Pode significar isso - murmurou, após um silêncio.

- Não sei muita coisa acerca do... amor. Nunca ninguém me quis, verdadeiramente.

- Quero-te eu, querida. Amo-te.

- Obrigada.

- Nunca mais me fugirás? Promete!

Toby sacudiu prontamente a cabeça, soltando uma gargalhada muito semelhante à que, minutos antes, quase o enlouquecera:

- Não prometo nada! Mas mostro-te onde estive escondida, se quiseres.

- Está bem, mostra lá.

Toby libertou-se com um pequeno puxão e dirigiu-se para o contraforte de pedra contra o qual ele a encontrara. Bunny seguiu-a muito de perto, meio receoso de a perder de novo, mas ela não tentou enganá-lo.

- Olha, descobri este rebordo! - exclamou, sorridente. O referido rebordo ficava ao nível do parapeito e não tinha mais do que seis polegadas de largura. Corria a par com os contrafortes que, do lado de fora, deitavam para o terraço.

- Tu não foste por aí! - gritou o rapaz, sentindo-se desfalecer.

- Fui, sim, senhor! - afirmou, soltando uma gargalhada. - É fácil, se deixarmos deslizar os pés. Queres ver?

- Eh, não, não quero ver! Em que estás a pensar? Como aprendeste a fazer semelhantes coisas?

- Queria assustar-te e consegui-o, não consegui? perguntou, sem lhe dar resposta. - Fingi que era Andrómeda quando contornei a esquina, mas não apareceu nenhum Perseu para me salvar! Apenas um dragão - Mas uma vez estiveste lá em cima, naquela parede norte - murmurou Bunny, encarando-a como se estivesse enfeitiçada. - Ia jurar que estiveste lá!

- Não jures! - troçou. - Não jures porque não estive lá. Apenas dirigi a voz para esse lado, para te assustar.

- Valha-me Deus!

- Não te proporcionei uma esplêndida distracção? perguntou Toby, soltando uma gargalhada descuidada. Bem, agora acabou o espectáculo e o pano desceu! Vamos embora!

Deu-lhe a mão e conduziu-o para a porta da torre.

- Promete que não voltarás a fazer o mesmo - pediu Bunny, tentando detê-la. - Promete!

- Não prometo coisa nenhuma.

- Mas deves prometer - insistiu, carinhoso. - Podias ter morrido, Toby!

- Oh, não! - e soltou uma gargalhada - Nunca me matarei em casa de Lorde Saltash!

- Por que dizes isso?

- Porque - que voulez-vous? - ele não me quereria cá nem viva nem morta - foi a resposta indiferente.

- E ainda bem! - exclamou Bunny, com fervor.

Os ecos das gargalhadas de Toby, enquanto desciam as escadas escuras e frias, pareciam tão fantásticos que o coração de Bunny se contraía de medo. Lembravam-lhe a alma errante que, dizia-se, habitava o local - uma alma que vagueava sozinha, sempre sozinha, na maior desolação.

 

- Por quanto tempo se prolongará esta farsa absurda? - perguntou Larpent.

- Não lhe agrada? - zombou Saltash. - Meu digníssimo pirata, não avalia quanto é feliz! Se tivesse uma reputação como a sua... - e interrompeu-se, sempre com o mesmo sorriso de mofa. - Bem, mas não vale a pena chorar depois do leite derramado. Entornemos antes algum whisky... Quando chegar, avise.

- Chega, obrigado - resmungou o capitão, de cenho carregado. - Gostaria que respondesse à minha pergunta, se não vê objecção. Quanto tempo vai durar esta comédia?

- Não sei, realmente, o que o apoquenta - observou o outro, analisando-o, - Tem tudo a seu favor, eu próprio trocaria o meu lugar pelo seu, com o maior dos prazeres, se as circunstâncias o permitissem...

- Não é essa a questão, pois não? - insistiu Larpent.

- Não? Então qual é? - e voltou-se de novo para o whisky.

- Bem, você meteu-me numa tremenda camisa de onze varas e eu gostava de saber como vai desembaraçar-me dela - declarou, rabugento e teimoso, encarando o copo em cujo conteúdo não tocara.

- Meu velho, não posso desembaraçá-lo - replicou Saltash, rindo para consigo próprio. - Quero que continue metido na dita camisa.

Larpent resmungou qualquer coisa e começou a beber, enquanto Saltash, de copo na mão, se foi sentar na ponta do guarda-fogo.

- Não creio que tenha razão para lamentar-se murmurou, descuidado. - A rapariga depressa casará e o deixará em paz.

- Oh, é essa a ideia, não é?! Quem vai desposá-la? O jovem Brian?

- Não aprova?

- Não creio que isso se dê.

- Porquê? - inquiriu Saltash, com os olhos instantaneamente iluminados. - Vai recusar o seu consentimento?

- Eu? - E sacudiu os ombros. - E o senhor, dá o seu?

- Dar-lhe-ei a minha bênção com ambas as mãos! declarou, com um gesto significativo.

Larpent encarou-o fixamente, durante segundos.

- O senhor é um homem surpreendente! - observou por fim, em tom seco.

- Só agora o descobriu? - perguntou, rindo.

O marinheiro esvaziou gravemente o copo, largou-o em seguida, e declarou:

- De qualquer modo não creio que esse casamento se realize.

- Você foi sempre um descrente - replicou Saltash, já impaciente. - Toda a gente vê que foram feitos um para o outro e, sendo assim, o casamento verificar-se-á.

- E o senhor deseja-o?

- É minha intenção que assim seja - afirmou, majestoso.

- O senhor anda a fazer o papel da Providência, a favor da rapariga, não é? - E, de novo, os seus olhos perscrutadores e verrumantes se fixaram nele, com um brilho trocista. - É um papel perigoso, deixe-me dizer-lhe. Arrepender-se-á antes do fim.

- Acha?

- Se é que já não começou a arrepender-se - insinuou.

Saltash fitou-o, com as sobrancelhas unidas no gesto habitual:

- Está muito analisador, esta noite. Que se passa?

- Nada - respondeu o outro, secamente. - Isto é, nada, além do erro que anda a fazer.

- De verdade? - Por momentos, pareceu altivo, mas logo voltou a sorrir. - Já descobri que está sobre brasas para dar o seu conselho. Vamos, desembuche, se isso lhe faz bem!

Os olhos de Larpent, muito firmes sob as sobrancelhas espessas e louras, continuavam a observá-lo descaradamente:

- Não, não tenho a veleidade de lhe dar um conselho, apenas, porém, lhe quero dizer uma coisa que talvez já saiba: essa rapariga, que tão "amavelmente" declarou ser minha filha, adora o chão que o senhor pisa e, sendo assim, o seu casamento com Bernard Brian não será bem sucedido.

Calou-se, ao mesmo tempo que Saltash se levantava, soltando uma praga em francês que mais parecia o rugido dum animal raivoso. Atravessou a sala e parou diante duma das janelas abertas, com a cabeça descaída para trás, como se desafiasse o Universo.

Pelo seu lado, Larpent recostou-se na cadeira, sem sequer se dar ao trabalho de ver o efeito que as suas palavras tinham tido sobre o outro.

Seguiu-se uma pausa prolongada, que Saltash acabou por cortar:

- Larpent! - gritou com voz cortante. - Por que me disse isso? Não compreende que é precisamente contra tal facto que eu luto? O jovem Bunny é o melhor remédio que ela pode tomar para uma doença desse género. Além disso... Toby é apenas uma criança.

-Diz isso para si... ou para mim? - perguntou, sem voltar a cabeça.

-Que quer insinuar? - gritou Saltash, colérico, mas o outro continuou, imperturbável:

- Sabe perfeitamente o que quero dizer. Sabe perfeitamente, também, que não é verdade...

- Não é verdade o quê?! - E voltou para junto de Larpent, como se o aguilhoassem, pegou no copo e esvaziou-o dum trago.

- vamos, continue! Já que começou, acabe!

Larpent observou-o, mas não se mexeu.

- Quando uma coisa existe realmente, quando é um facto consumado, é fútil e vão dizer-se que se luta contra ela - declarou, no seu modo firme e antipático. - O senhor foi extraordinariamente generoso para com a pequena e, portanto, não é de admirar que ela se sinta extraordinariamente grata. Não seria humana se não o estivesse. Mas, no que respeita a dá-la a outro tipo, bem, talvez consinta, não porque o deseje, mas porque sabe que é a única solução. Neste momento já ela deve ter compreendido que aquilo que realmente quer está fora do seu alcance.

Saltash fez um gesto de impaciência, mas não disse nada.

- O senhor tem sido um bom amigo para ela - prosseguiu o outro, enchendo o cachimbo - e não é feito do material conveniente para essa espécie de coisa. Tenho pena, por causa da garota, pois é difícil aparentar respeitabilidade quando se é pagã, como ela.

- Diabos o levem! - explodiu, violento. - Que mais poderia um homem fazer? A que quer você chegar?

Encarou Larpent quase ameaçadoramente, mas deparou com os seus olhos firmes, ainda iluminados friamente por uma ponta de zombaria, aceitando, imperturbáveis, o desafio.

- O senhor quer casar-se - replicou o marinheiro.

- Então, em nome de todas as estrelas do destino, por que não casa com ela? Pode não ter sangue azul nas veias, mas o sangue não é tudo e, além disso, o senhor tem-no em quantidade suficiente para os dois. Na minha opinião, achá-la-á mais fácil de contentar do que algumas que conhecemos, e de vistas menos rígidas, também, o que, para um homem com o seu gosto de variar, é uma vantagem.

A gargalhada que Saltash soltou tinha um som estranho, como o de qualquer coisa que se estilhaçasse:

- Oh, acha, então, que seria um acordo vantajoso, hem? E durante quanto tempo pensa que poderei contar com ela? Quanto tempo se passaria antes que ela fugisse?

- Nunca faço cálculos sobre o que lhe diz respeito retorquiu Larpent, guardando o tabaco.

- Talvez pense que isso não teria importância? A minha casa real anda tão ligada ao escândalo, que ninguém esperaria outra coisa, hem?

- Não a creio da espécie das que fogem. E estou muito certo duma coisa: mesmo que ela o fosse, o senhor poderia mantê-la junto de si, se tentasse.

- Um casamento ideal! E eu devia, então, assentar, levar uma vida recta e sóbria, não acha?

- É o senhor quem o diz - respondeu o marinheiro, levando o cachimbo à boca.

Saltash pôs um dos pés no guarda-fogo e fixou os olhos na biqueira do sapato. O ar zombeteiro e escarninho desvaneceu-se, dando lugar ao velho ar maldoso e melancólico.

- Há oito anos que não encaro seriamente a ideia do casamento - murmurou, com a boca um pouco torcida, como se reprimisse um sorriso. - Não penso em tal desde o dia em que tentei conquistar Maud Brian a Jake e falhei, falhei notavelmente. Não creio que, depois disso, tenha feito um disparate tão grande.

- Uma boa coisa para ambos, esse fracasso - observou Larpent, acendendo o cachimbo.

- Parece-lhe? E pode saber-se porquê?

- Porque ela não é mulher para si - afirmou com a perfeita convicção dos conhecedores. - Tem muitos ideais, enquanto que essa garota que recolheu em Valrosa não tem nenhuns.

- Não estou tão certo disso.

- De qualquer modo, não tenha ilusões - prosseguiu Larpent, com uma ponta de compaixão. - Não foi por confiar em si que se colocou sob a sua protecção. Não confiava em si, agarrou-se-lhe apenas, com os olhos bem abertos. Apostava uma quantia razoável em como nunca teve ilusões a seu respeito, mas se o senhor levantar o dedo pequenino, ela virá. É sua pertença e não está na sua maneira de ser proceder doutro modo.

- Poupe-me, meu amigo! É aí, precisamente, que o sapato aperta! Já perdi a fé nela, mas, que diabo, que mais podia fazer? Não escolho para mim o papel de herói virtuoso, não o escolho, mas deram-mo! Os deuses divertem-se comigo, perdi-me num labirinto de virtude, mas estou enjoado, horrivelmente enjoado! Uma vez quase que me libertei, mas o naufrágio estragou tudo e, quando dei por mim, estava mais perdido do que nunca.

- Nesse caso, também não lhe agrada a brincadeira...

- observou Larpent, com a sombra dum sorriso.

- Jurei mantê-la comigo - declarou o outro, batendo com o pé no chão. - Tencionava... oh, Deus sabe o que eu tencionava! Quebrei o juramento, mandei-a embora, e não proferiu uma palavra de censura, uma única! Acha que devo consentir na sua ruína, casando com ela? Tentei trazê-la para terra seca, duma maneira ou doutra, mas, se se atolar de novo, a culpa não será minha.

Começou a rir-se, um riso amargo e cínico, o riso dum homem que esconde a alma. Larpent recostou-se de novo, como se reconhecesse que a conversa terminara.

- Creio que não o censurarão por isso - murmurou.

- Ninguém terá oportunidade de o fazer - retorquiu Saltash.

O campo de polo de Fairharbour era considerado uma das maiores atracções da cidade. Graças a ele e ao hipódromo de Graydown, um número sempre maior de visitantes acorria anualmente ao local e arredores, enchendo os hotéis recentemente construídos de multidões elegantes.

O velho Hotel Âncora, defronte da praia, fora comprado e reconstruído por um sindicato, transformando-se num edifício moderníssimo e favorito dos turistas. Ostentava um átrio majestoso, ornado de âncoras e coberto de vidro, no qual uma orquestra de instrumentos de corda tocava durante várias horas por dia. O constante bater das suas portas confirmava a enorme popularidade que adquirira após a reconstrução.

Para Bunny que, na infância, conhecera o hotel em circunstâncias muito diferentes, era sempre uma alegria verificar os constantes progressos. O campo de polo ficava a poucos metros de distância e o rapaz tornara-se fervoroso membro do Clube, ao qual dedicava, invariavelmente, duas tardes por semana.

Prometia vir a ser grande jogador, sendo já um dos favoritos pela sua subtileza e perspicácia. Montava os garranos de Lorde Saltash, que raramente aparecia, desculpando-se com falta de tempo para jogos, o que, até certo ponto, as suas frequentes ausências justificavam. Via-se, assim, impossibilitado de tomar parte nas reuniões do Clube, inaugurado por ele próprio numa hora de ócio. Aparecia ocasionalmente, para ver um jogo ou admirar os progressos de Bunny, mas só de longe em longe se dava ao trabalho de jogar. Era demasiado impaciente e inconstante para manter entusiasmo duradoiro por qualquer passatempo. Quando estava em Burchester, ninguém se podia gabar de ter visto dele mais do que uma imagem fugidia, conduzindo o automóvel a velocidades loucas ou galopando, furiosamente, nos seus passeios matinais.

Geralmente passava algum tempo na cidade, durante a época, mas quando começava a debandada, em Junho, era sempre um dos primeiros a partir, minado por uma febre de variar que não lhe dava descanso. A maior parte das vezes nem os seus amigos mais íntimos sabiam onde poderiam encontrá-lo nem onde o levaria a próxima fantasia. Nunca se podia contar com ele fosse para o que fosse, pois tão depressa aceitava um convite como, pouco depois, não fazia caso dele, se não lhe apetecesse aparecer. Apesar disso, era sempre bem recebido em toda a parte, pelo menos pelo elemento feminino, que declarava, desculpando-o, que Charles Rex não podia ser julgado pelos padrões vulgares, pois era uma excepção a todas as regras, uma excepção e uma lei.

Nem o próprio Bunny sabia onde se encontrava o amigo naquela tarde abafada de meados de Julho, quando toda a gente de Fairharbour se comprimia para assistir a um desafio entre o grupo local e o dos visitantes. Prometia ser um jogo excitante e o rapaz exultava por ter sido um dos escolhidos para a prova. Demais a mais, Maud prometera-lhe, a seu pedido, trazer Toby para assistir... Vira-a muito poucas vezes depois daquela noite, no castelo, mas forçoso lhe era admitir que, se Toby o evitava de propósito, o fazia tão bem que difícil era acusá-la de tal partidinha. Parecia ter-se transformado num componente regular do lar de Jake, entregando-se, quase exclusivamente, à tarefa de ajudar Maud a tratar das crianças e concedendo-se, apenas, as cavalgadas matinais com Jake. Aliviara de maneira considerável o fardo da irmã e, graças à sua constante boa disposição e temperamento meigo, era adorada pelas garotas. Ela própria não passava duma garota, mas Bunny pressentia, magoado, que uma transformação se operava na sua maneira de ser.

O rapaz perguntava muitas vezes a si mesmo se, no fim daqueles longos seis meses de espera que lhe fixara, Toby não arranjaria maneira de se colocar fora do seu alcance. Era essa suspeita que mantinha viva e firme a determinação de a conquistar a todo o preço e o mais depressa possível, pois sabia muito bem que, uma vez apresentada na sociedade, as suas probabilidades de êxito ficavam muito reduzidas. Oh, mesmo à distância se sentia estranhamente perturbado pelo seu encanto! Talvez não tivesse feito mal procurando o capitão Larpent para captar a sua simpatia, mas o homem saíra do castelo com Saltash e nem a própria filha sabia onde ele parava. No fim de contas, talvez nem valesse a pena, dada a indiferença existente entre pai e filha.

Estava resolvido a conquistá-la e não recuaria ante nenhum obstáculo. Não dissera ainda nada à irmã nem ao cunhado, embora os visitasse com frequência, pois não queria que Toby pensasse que se servia da influência deles para obter os seus intentos. Nunca a via sem sentir crescer-lhe no coração o desejo ardente de a abraçar, e ela sabia-o bem, tinha a certeza. O desejo, porém, ficava sempre por realizar. Toby mostrava-se camarada como dantes, sem nenhum embaraço, mas Bunny sentia, sem saber explicar porquê, que, por qualquer manobra subtil, o mantinha a distância, do lado de lá da invisível barreira que os separava. Não tinha outro remédio senão esperar, com toda a paciência, que se resolvesse, mas jurava, jurava a si mesmo, que não havia de ser por muito tempo!

O trabalho na propriedade de Saltash fazia-lhe bem. A vida sã e vigorosa, ao ar livre, agradava-lhe, quadrava bem com o seu feitio, e o próprio Jake verificava, satisfeito, que se manifestava nele uma confiança e domínio que, até então, o não caracterizavam. Pusera de parte as corridas, conforme prometera, e a vida que levava era, na opinião do cunhado, uma existência toda feita de actividade, a existência, em suma, que fazia dele o tipo de homem em que desejaria vê-lo transformado. Jake exultava. Descobrira sempre no rapaz qualidades que atraíam a sua simpatia, e fora, em grande parte, devido à sua influência que essas qualidades tinham vindo ao de cima, tornando-se visíveis e úteis.

Naquele dia não acompanhou Maud e Toby a Fairharbour, pois os negócios obrigavam-no a ficar, mas recomendou à mulher, à partida:

- Trá-lo contigo!

E Maud sorriu, prometendo. Bunny era tão fácil de convencer!

Quando chegaram ao campo e o viram rodeado por uma multidão de visitantes, supuseram que não poderia vir falar-lhes. Enganavam-se, porém, pois no mesmo instante o viram abrir caminho e chegar junto delas, risonho e ardente:

- Estou encantado por terem vindo! Há aqui umas pessoas que conhecias, Maud, relações antigas. Lembras-te dos Melroses, não lembras? São também amigos de Charlie.

Aquele nome produziu em Maud uma estranha comoção. Se se lembrava dos Melroses! Pertenciam ao passado, àquele passado longínquo, antes do seu casamento, aos tempos da sua juventude em que todo o seu mundo se resumia a Charlie Burchester! Como parecia distante essa época! Tinham pertencido todos ao mesmo grupo, os Melroses e os Cressadys, estes últimos responsáveis pelo escândalo que tanto ferira o seu coração orgulhoso. Lady Cressady morrera havia anos e Maud perguntava a si mesma se Charlie lamentara a sua morte. Fora tudo uma fantasia passageira, e parecia-lhe bem que Charlie esquecera tudo aquilo há muito tempo. Agora estava convencida de que ele nunca tomara Lady Cressady a sério, pois, naqueles tempos, a vida era, para ele, um simples passatempo. Só agora, recentemente, começara a ser algo mais...

Não tinha interesse especial em reatar as antigas e já tão esquecidas relações com os Melroses, mas Bunny, que esperara o contrário, prometera-lhes levar-lha e, assim, Maud não teve outra solução.

Seguiu-o, portanto, acompanhada de Toby, muito direita e senhora de si. A pequena parecia mais encantadora do que nunca naquele dia! Habitualmente, o seu aspecto variava como uma paisagem num dia de vento, mas naquela tarde estava o melhor possível. Os olhos azuis fixavam a multidão com uma pontinha de audácia, e o rosto pequeno e atrevido irradiava encanto.

Bunny olhou-a, enquanto se afastava para a irmã entrar no pavilhão, e beliscou-lhe um cotovelo, sorrindo:

- Não precisas de ir falar a essa gente. Vem antes ver os garranos comigo!

Toby respondeu-lhe com a impulsividade característica:

- Posso? Mas Maud não se importará? Achas que devo?

- Claro que deves - afirmou ele, decidido. - A minha irmã não se importa. Trago-te para junto dela antes de começar o jogo.

Conduziu-a através da multidão e Toby acompanhou-o, sem protestar. Bunny era alto e distinto e, naquele momento, havia nele algo que atraía, que atraía a própria Toby.

- Ouve cá - disse ele de repente, quando ficaram mais livres de gente - tenho de te ver mais vezes, seja lá como for! Tens estado a troçar de mim todo este tempo?

- Eu? - inquiriu, ingénua, com os olhos a brilhar de malícia.

- Não estou a brincar - avisou o rapaz, apertando-lhe a mão. - Não estás a ser leal, fugindo de mim. Para que vale ir lá a casa, se nunca nos encontramos?

- Não compreendo.

- Compreendes, sim. Basta quereres, para compreenderes tudo e mais alguma coisa. Parece que, agora, nunca tens um momento livre. É obra da Maud ou tua?

- Eu posso fazer o que quero! - exclamou ela, soltando uma risadinha trocista.

- Ah, podes?! Nesse caso tens de arranjar maneira de te encontrares comigo uma vez por outra, sem testemunhas. Compreendes? Assim é que é ser leal.

- E se eu não quiser? - perguntou a rapariga, fazendo-lhe uma careta.

- Nem me digas tal coisa! - replicou ele, rindo-se-lhe na cara. - Quando e onde?

Toby voltou a rir-se, sem muita vontade, pois achava difícil resistir-lhe.

- Não sei, tenho muito que fazer.

- Parvoíce!

- És muito grosseiro.

- Ainda serei mais, quando tiver oportunidade-e riu-se de novo. - Olha, querida, preciso de te ver a sós, preciso duma maneira espantosa! Não me vais dizer que não...

- Não sei ainda o que te vou dizer.

Mas era-lhe impossível fitar com severidade aquele rosto simpático e jovem que se inclinava para ela, custava-lhe deveras a encarar a ideia de o desgostar.

- vou dizer-te o que tens a fazer - declarou Bunny, descobrindo-lhe a fraqueza. - Amanhã à tardinha sais com o Chops para um passeio nas matas de Burchester. Sabes onde fica aquela cancela da mata de corte? Está lá às sete horas e talvez - quem sabe? - talvez Chops encontre alguém de que gosta muito.

- E daí... talvez não encontre!

- Oh, isso seria uma má acção! Vais dar-lhe oportunidade, não vais?

A voz de Bunny, apesar do tom brincalhão em que falava, era suplicante, e Toby baixou os olhos, como se lutasse consigo mesma para recusar.

Bunny viu o perigo e não perdeu tempo:

- Dá-lhe oportunidade! - pediu-lhe, ao ouvido.

- Verás que não te arrependerás!

Toby não levantou os olhos. Numa manobra ágil, o rapaz rompera-lhe a linha de defesa e, naquele momento, faltava-lhe a coragem para contra-atacar. Manteve-se silenciosa.

- Vais? - murmurou Bunny.

Aproximavam-se dum grupo de garranos que preparavam para o jogo, no fim do campo. Toby alargou o passo. Bunny imitou-a, mantendo-se a seu lado, mas não voltou a falar. Talvez o seu silêncio fosse mais eloquente do que as palavras, pois a rapariga voltou-se bruscamente para ele, sorrindo-lhe:

- Está combinado. Irei.

- Viva! - exclamou o rapaz, radiante.

- Mas não me demorarei; e, se não me agradar, não voltarei mais.

- Agrada-te, com certeza.

- Não sei - retorquiu ela, de queixo no ar.

Naquela tarde Bunny ultrapassou-se a si próprio. Fosse para onde fosse que se dirigisse, o êxito seguia-o, assim como os aplausos da multidão.

- Aquele rapaz é um génio! - elogiou o general Melrose, que percebia do assunto.

- Por que não está na tropa, Mrs. Bolton? Está na idade, não está?

- Não o acharam suficientemente forte - elucidou Maud. - Ficou desapontadíssimo, coitado! Bem vê, passou a infância toda deitado de costas, num tabuleiro, com uma doença na espinha...

- Ah, agora me lembro! A senhora costumava passear o pobrezito numa cama de rodas, não era? Mudou muito! E a doença?

- Já não tem nada.

- Em que se ocupa? - perguntou o general, seguindo a figura distante que, naquele momento, galopava num dos cantos do campo.

- Trabalha na propriedade de Lorde Saltash, em Burchester - informou a filha, entrando na conversa. - Falou-me a esse respeito, ao almoço. É amigo de Lorde Saltash.

- Ah! - e o olhar do general fixou-se subitamente em Maud, que corou um pouco.

- É um velho amigo da família - esclareceu. - Não vivemos muito longe do castelo, pois, como deve saber, meu marido é proprietário das cavalariças de Graydown.

- Ah, sim, conheço-as! - declarou o outro, cortesmente. - Conheço também seu marido, Mrs. Bolton, e orgulho-me disso. O que ignorava, até agora, é que era seu marido. Nunca ouvi falar no seu casamento.

- Casámo-nos já há seis anos - murmurou, sorrindo.

- Há, pelo menos, dez que a não via! Esta minha filha, Sheila, devia andar na escola, nessa altura. Não a conhecia?

- Não me lembro de a ter visto antes - disse Maud, voltando-se para a rapariga. - É a sua primeira visita a Fairharbour?

- É, sim - respondeu a interpelada, uma linda rapariga de vinte e dois anos, com abundantes cabelos pretos e sorridentes olhos cinzentos. - Geralmente não vimos para o mar no Verão. Fartamo-nos dele no Inverno... Meu pai passa sempre o tempo frio no Sul, e ainda há poucas semanas regressámos de Valrosa.

Maud sentiu que Toby estremecia, a seu lado, e agarrou-lhe suavemente no braço com a intenção amável de a misturar na conversa. Surpreendeu-se, porém, ao senti-la retesar-se e voltou-se para lhe ver a cara - estava terrivelmente pálida e olhava, com os olhos muito abertos e aterrorizados, para o campo de jogo.

- Que tens, querida? - perguntou Maud, cheia de ansiedade.

Toby tremia e a voz saiu-lhe com esforço:

- Tive a impressão de que ele ia saltar do cavalo. Não reparou? - E não tirava os olhos de Bunny, que voltava para o meio do campo, triunfante.

- Oh, não me parece que haja perigo de isso acontecer! - sossegou Maud, sorrindo. - Miss Melrose estava a falar de Valrosa. Também lá estiveste este Inverno, não estiveste?

A cor voltou ao rosto da rapariga, que tomou um ar quase de desafio:

- Um ou dois dias, apenas. Estava em Genebra, na escola, e fui lá juntar-me a meu pai.

- Também estive numa escola em Genebra, há alguns anos - informou Sheila. - Não foi aluna de Mademoiselle Dénise, creio?

- Não! - replicou, lacónica. - Madame Beaumonde.

- Nunca ouvi falar dela. Deve ter sido depois de me vir embora.

- Não estive lá muito tempo - continuou - Nunca estive muito tempo em parte alguma, aliás. Mas agora já saí da escola e posso fazer o que me apetecer.

- Uma resolução sensatíssima! - comentou uma voz risonha por trás dela. - Fazer o que me apetecer é um dos princípios da minha vida!

Todos se voltaram e Toby sufocou uma exclamação. Saltash, vestido de branco dos pés à cabeça e mais distinto do que nunca, apoiava-se nas costas da cadeira da sua protegida.

- Que lindo grupo de velhas amizades! - exclamou, sorrindo imparcialmente para todos.

- Viva, Saltash! - cumprimentou o general, estendendo-lhe a mão. - De onde diabo surgiu você? Ou terá caído dos céus?

-Como Lucifer, filho da manhã! - comentou o interpelado, rindo. - Bem, não surgi nem caí. Cheguei, simplesmente.

- Venha sentar-se! - convidou Toby, em voz baixa, levantando-se.

- Não, minha querida - recusou, abanando a cabeça.

- Ficarei atrás de ti. Miss Melrose, os meus humildes respeitos! O meu nome ainda tem o sinalzinho preto?

Sheila fitou-o com altivez, mas depressa sorriu. Aprendera a lição, em Valrosa, e nada havia a acrescentar. Aquele homem nunca agia a sério, mas, também, nunca tencionara que ela pensasse tal coisa.

- Há muito tempo que o excomunguei como impudente e mau - explicou. - Não creio que tenha feito algo que me leve a modificar o meu juízo.

Saltash riu-se, despreocupado e enigmático:

- Receio que, na sua presença, nada tenha, de facto, feito. O destino tem-se sempre divertido à minha custa... Mas, na verdade, agora já não sou tão mau, pois não, Mrs. Bolton?

- Creio que não - concordou Maud. - Mas, por favor, não me nomeie seu advogado de defesa! Bem sabe que não posso desempenhar esse papel!

- Pergunte-me a mim! - pediu Toby, subitamente, com o rosto muito corado. - Salvou-me a vida quando a "Mariposa Nocturna" se afundou, numa ocasião em que a maioria dos homens apenas se preocuparia com a sua própria salvação!

- Que libelo! - exclamou o visado, sempre a rir.

- Não sabes, então, que apenas me agarrei a ti porque tinhas um cinto de salvação?

- Oh, naturalmente! - e o general riu também.

- Deve ter sido esse o seu motivo. Tive pena do que aconteceu ao seu iate, mas o senhor teve sorte em salvar-se.

- Salvo-me sempre, duma maneira ou doutra - observou Saltash, complacente. - Serve-me de consolação o facto de que a "Mariposa Nocturna" precisava de motores novos... Acabo precisamente de comprar outro - acrescentou, tocando no ombro de Toby. - O teu pai está satisfeitíssimo com ele. Chegámos de Londres, vindos nele.

- Oh, comprou?! - Ansiosos, os olhos de Toby fitaram-no. - Como é? Que nome vai dar-lhe?

- Ainda não o baptizei. vou dar uma recepção a bordo, e Maud será a madrinha. Chamar-lhe-ei "Lua Azul", a não ser que se lembrem de outro nome melhor - e olhou para Maud. - Queria dar-lhe o seu nome, mas receei que Jake não gostasse.

- Acho que "Lua Azul" é muito mais bonito e próprio. É assim tão raro como parece, pelo nome?

- É lindo e bom! Vá visitá-lo, viaje nele, se lhe agradar! É novinho, acabado de sair dos estaleiros. Foi uma sorte tê-lo encontrado! Desliza como um pássaro!

- Por que não lhe chama, então, "Pássaro Azul"? sugeriu Sheila.

Saltash abanou a cabeça, fazendo uma careta:

- Porque essa é uma das coisas que eu não possuirei nunca, Miss Melrose! A lua azul pode ocorrer uma vez na minha vida, se me der para ser excepcionalmente virtuoso, mas o pássaro azul não aparecerá nunca. Já deixei de o esperar - e olhou para a frente, para o campo de jogos.

- Bunny está a distinguir-se, esta tarde.

Toda a gente batia palmas, excepto Toby, que tinha as mãos no regaço e os olhos fixos, muito abertos, mas cegos a tudo quanto se desenrolava à sua frente.

- Voará para ti, queridinha - segredou de súbito uma voz ao seu ouvido. - Está já a experimentar as asas...

Percorreu-a um tremor, mas não voltou a cabeça, limitando-se a passar a mão para trás, através das costas da cadeira.

Uns dedos ossudos agarraram-na, apertaram-na muito e largaram-na logo.

- Quando o vires, segura-o bem! - aconselhou, no mesmo sussurrar. - Não vem duas vezes, o pássaro azul!

Os lábios de Toby tremiam, apesar de todos os seus esforços, e os olhos estavam brilhantes de lágrimas. Não podia falar.

- É uma dádiva dos deuses, queridinha! - as palavras eram suaves, ternas, mas pareciam perfurá-la, rasgar-lhe a carne até irem magoar-lhe o coração. - Não se deitam fora as dádivas dos deuses... Vêm tão raramente!

Toby estremeceu quase convulsivamente, como se a acordassem, com violência, dum sono profundo. Soltou um gemido rouco e depois riu-se, riu-se muito e bateu as palmas, frenética, com os olhos postos, como todos, na figura jovem e triunfante que tinha à frente. Quando os aplausos esmoreceram Saltash tinha desaparecido, inesperadamente, como viera. E, embora o vissem ao longe várias vezes, não voltou a juntar-se-lhes.

A tarde estava silenciosa e dourada e, na sua imobilidade, a mata de corte fazia lembrar uma floresta encantada. De vez em quando, qualquer coisa se movia nos abrolhos, provocando leve restolhada, ou um melro irrompia num longo voo de alarme, mas tudo o mais permanecia silencioso e imóvel. Não corria a mais suave brisa e, para os lados do poente, longa linha de nuvens negras atravessava o Sol, como uma barreira, de tal forma que os raios deste incidiam, oblíquos, sobre o mar e a terra, transformando tudo com o seu brilho radiante.

Um assobio suave e baixo cortou o silêncio, misturando-se com ele, e os farrapos de melodia chegavam ali, vindos do outro lado da mata, como que saídos duma flauta mágica. De novo se ouviu restolhada nas ervas secas, perto da cancela de entrada na propriedade de Burchester. Dir-se-ia que qualquer serzinho minúsculo lutava por libertar-se duma prisão. Ouviu-se, a seguir, o farejar dum cão, e o velho Chops precipitou-se através da sebe que limitava a mata.

Atravessou as ervas altas com uma agilidade que desmentia a sua avançada idade e, no mesmo instante, soou um grito, lancinante e doloroso, e toda a mata estremeceu de pavor. O silêncio encantado estilhaçou-se como uma bola de cristal e, quando Chops ia a precipitar-se sobre a presa invisível, ouviu-se novo grito, claro e autoritário, do outro lado da sebe.

- Chops! Vem cá, Chops! Vem cá!

O animal não obedeceu, mas parou, sobre a presa, com a bocarra aberta e a língua pendente e palpitante. Se fosse o dono que o chamasse assim, obedeceria imediatamente, mas Toby não era o dono e aquela coisa convulsiva e frenética, ali, à sua frente, era uma tentação dilacerante para os seus instintos.

A breve hesitação, porém, fê-lo perder a partida. Toby atravessou a sebe como se tivesse asas, galgou a cancela e caiu sobre ele, sem lhe dar tempo de protestar. Deu consigo a ser puxado para trás, vencido o instinto pelo longo hábito da obediência. A rapariga ajoelhou-se, descobrindo uma lebre novinha presa numa armadilha, sob a erva.

Era uma armadilha vulgar dos ladrões de caça, feita de arame, que prendia o animalzinho pelo meio do corpo, e a tensão da mola demonstrava bem a sua angústia e os vãos esforços que fizera por libertar-se. O arame rasgara-lhe um ombro e os olhinhos, redondos e esbugalhados, deitavam chispas de pavor. Não seria tarefa fácil desarmar a armadilha, e as mãos de Toby sujaram-se de sangue ao tentar libertar a lebre.

Estava demasiado embebida no trabalho para notar qualquer ruído, e quando as patas dum cavalo bateram na relva, ali perto, nem levantou a cabeça. Apenas olhou para cima, assustada, quando duas mãos, passando sobre ela, agarraram na lebre, com força, fazendo cessar toda a luta do animal.

- Ficas toda arranhada! - disse Bunny, zangado.

- Mato-a? Está ferida. Ou queres que a deixe ir?

- Deixa-a ir embora, claro! - gritou a rapariga, lutando incansavelmente com o arame. - Olha, está a ceder! Agarra-a bem enquanto eu a tiro.

O arame cedeu, finalmente. Toby tirou a armadilha e a vítima ficou livre. Bunny colocou-a na erva e a rapariga precipitou-se a segurar o cão. Chorava, furiosa.

- Por que armam esta coisa cruel? Porquê? Não está morta, pois não? Por que não foge?

- Porque está ferida - respondeu Bunny. - Deixa-me matá-la. Deixa o Chops acabar com ela.

- Não, não, não! - protestou, violenta. - Pode estar ferida, mas cura-se. Pelo menos dêmos-lhe essa oportunidade. Olha! Está a mexer-se! Não seria leal recusar-lhe oportunidade de se salvar!

- Será mais generoso matá-la - teimou o rapaz.

- Odeio-te! - gritou, sempre a segurar o cão com todas as forças.

- se... lhe tocas... nunca, nunca mais te falo!

Bunny voltou-se para ela, agarrou Chops pela coleira e prendeu-o à cancela com o chicote, e fitou de novo a rapariga com o rosto severo.

- Deixa de chorar! Mostra-me as mãos.

Começou a olhar para os inúmeros arranhões que as sulcavam, mas Toby retirou-as, escondendo-as atrás das costas. Engoliu as lágrimas e fitou-o, com os olhos brilhantes de indignação:

- Que vergonha armar uma coisa daquelas! Foste tu? - Eu? Não! Não sou ladrão de caça! - respondeu, de cenho franzido.

Aquele clarão de cólera tornava-a mais bonita, mas Bunny sabia que, se cedesse à tentação e a abraçasse naquele momento, nunca seria perdoado.

- Sê razoável - pediu. - Tens de vir lavar as mãos. Não podem ficar nesse estado.

- Oh, que importância tem?! - perguntou, impaciente.

- Tenho suportado coisas muito piores do que esta, Bunny. Eu sei que crês em Deus, mas porque consente Ele que se armem estas coisas? Não é leal, nem justo. É... é... tão doloroso!

- Há muitas coisas que ferem! - observou Bunny.

- Sim, mas não há nada tão cruel como uma armadilha. Eu... era capaz de matar o homem que a armou! Ainda bem que não foste tu!

- De acordo, ainda bem que não fui eu! -e agarrou na armadilha.

- Que vais fazer com isso? - perguntou ela, ainda sentada na erva.

- Destruí-la.

- És bom! - elogiou, sorrindo-lhe com as lágrimas nos olhos. - Bunny... não trouxe lenço.

O rapaz deu-lhe o dele e Toby enxugou os olhos, levantando-se em seguida. A lebre deitou-lhe um olhar assustado e, sentindo-se por certo melhor, desapareceu entre os abrolhos.

- Desculpa ter sido rabugenta - murmurou, olhando para Bunny. - Estás zangado comigo?

- Nem por isso - replicou ele, suspirando de alívio.

- Não estejas! Não soube dominar-me, mas a pobrezinha sofria horrivelmente e eu sei... eu sei demasiado bem como é doloroso!

- Sabes como?

Toby baixou os olhos, sentindo um estremeção violento percorrê-la.

- Não penses mais no pobre bicharoco - sussurrou Bunny, rodeando-a com um braço. - Já se foi embora e, se queres que te diga, não estou bem certo de quem sofreu mais, se ele, se tu. Vamos, sentes-te melhor agora?

- Sim, muito melhor! - afirmou a rapariga, meneando a cabeça. - Gosto de ti, Bunny, mas não posso evitar o pensamento de que és um pouco cruel. Não querias matar a pobrezita, pois não?

- Na minha opinião, deixá-la viva foi prolongar-lhe a agonia. Bem, mas mostra-me as mãos.

Quis esquivar-se, mas o rapaz sabia ser persistente e, por fim, venceu-a.

- Tens de vir lavá-las, ali em baixo, a casa dos velhos Bishops.

- Não, não vou! - afirmou, sacudindo vigorosamente a cabeça. - Prefiro ir ao lago, se não te importares. com certeza não está lá ninguém.

- Está bem! - concordou ele, sem retirar o braço com que a rodeava, e perguntando inesperadamente: - Beijas-me, Toby?

- Não! - replicou ela, fugindo logo com o rosto. Apertou-a mais, por um segundo apenas, mas largou-a

logo ao senti-la esforçar-se por se soltar.

- Pois sim, vamos, então, até ao lago.

Toby olhou-o, surpreendida, mas já ele se voltava para desprender o cão e o cavalo.

Seguiram por uma comprida álea relvosa, ao longo da mata de corte, ele muito grave, segurando as rédeas da montada, e ela, despreocupada, a seu lado.

Para trás ficava o silêncio, macio e pesado como as pregas dum reposteiro, mas pletórico de vida. À medida que se afastavam, um homem saiu do meio das árvores e parou, a observá-los. Um sorriso estranho e amargo distendia-lhe a boca e, quando os perdeu de vista, voltou a embrenhar-se na mata, silencioso e apressado.

Entretanto, os dois jovens venciam, calados, a distância que os separava do lago, cerca duma milha. Chops brincava, de vez em quando, com a mão da rapariga, pois o dono mostrava-se de rosto severo, como se tivesse tomado uma decisão inabalável.

Chegaram à mata de faias que rodeava o lago. Lá do alto, o castelo debruçava-se sobre os jardins, numa paisagem fantástica.

- Deixo aqui o cavalo - murmurou Bunny, parando ao princípio duma alameda íngreme.

Sem lhe responder, Toby desceu rapidamente a alameda, ajoelhou num monte de musgo e mergulhou as mãos na água. Bunny foi juntar-se-lhe e ajoelhou-se também, a seu lado, pegando-lhe nos pulsos molhados, suavemente mas com energia. A rapariga tentou resistir, mas acabou por ceder ao verificar que, naquele momento, Bunny parecia ter amadurecido, ter-se tornado mais homem do que nunca.

- Que é, pequena? - perguntou ele, docemente. - De que tens medo?

- De nada! - replicou sem demora, levantando o queixo no conhecido gesto de altivez.

- com certeza? - insistiu Bunny, olhando-a fixamente.

- com certeza, evidentemente! - retorquiu, sustentando com firmeza o olhar dele. - Aquela maldita armadilha enervou-me.

- Creio que não é por esse motivo que não tens nada para me dizer.

A rapariga corou, mas não desviou os olhos.

- Tem alguma importância o motivo por que não tenho nada a dizer-te? - indagou.

- Tem, porque quero sabê-lo! - E ao ver-lhe as mãos:

- Como aquela brutinha te arranhou! Linda gratidão!

- Não se deve esperar gratidão dum ser bravio e assustado.

Falava em tom abafado e Bunny compreendeu que a rapariga estava de novo quase a chorar.

- Passeemos um pouco - convidou, levãntando-se e erguendo-a suavemente.

Mas Toby ficou parada, como que indecisa, toda trémula.

- Por favor, não chores! - pediu Bunny, carinhoso.

- Juro-te que não farei nada que te desagrade, que não te aborrecerei. Não me acreditas?

Passou-lhe o braço pelos ombros e começaram a andar, lado a lado.

- Foste uma jóia por teres vindo! - murmurou Bunny, naquele novo tom de voz, meigo e suave, que Toby lhe desconhecia. - Não tencionava chegar depois de ti, mas o Bishop pôs-se de conversa e atrasou-me.

- Não tem importância - declarou ela, com um sorriso nervoso.

- Teve, sim. Se tivesse chegado primeiro ter-te-ia poupado, pelo menos, aquele espectáculo.

- Terias morto a lebre.

- Se não estivesse ferida não a mataria. Não sou nenhum bruto que mate pelo prazer de matar.

- A maioria dos homens procede assim! - declarou, incrédula. - Não caças, não pescas?

- Oh, estás a falar de desportos!

- Sim, chamam-lhe desporto! - exclamou, vibrante de indignação. - Foi um nome que se arranjou para sinónimo de matar, não foi?

O rapaz não respondeu logo, como se pensasse no assunto.

- Não, isso não é real - disse por fim. - Desporto é desporto, e eu prefiro divertir-me a jogar, pois não encontro prazer nenhum em fazer sair uma raposa da toca. Não é desporto.

- Há muito poucos desportistas no mundo - comentou Toby.

- Não sei. De qualquer modo, creio que sou um deles. Tento sê-lo, pelo menos.

- Creio que és, tu e o Jake - afirmou, fitando-o.

- Oh, Jake, Jake é magnífico! Foi ele que me ensinou tudo quanto sei a esse respeito. Não era nada antes de o conhecer. Foi ele que, a bem dizer, me fez, de corpo e alma

- confessou, candidamente.

- Talvez o material fosse bom...

- Não o creio - murmurou, atraindo-a imperceptivelmente a si. - Meu pai era um irlandês bravio, meio selvagem, e a minha mãe... bem, já morreu, também, mas não foi pessoa de quem nos devêssemos sentir especialmente orgulhosos...

- Oh, era má?! - inquiriu Toby, com súbito interesse.

- Nem eu nem a Maud falamos muito dela - murmurou o rapaz, fazendo um sinal afirmativo com a cabeça. Casou segunda vez com um brutamontes que costumava andar pelo Hotel Âncora, partiram para o Canadá e ela morreu.

- No Hotel Âncora! - exclamou a rapariga.

- É aquele em Fairharbour, perto da praia?

- Sim. Também lá vivi com a Maud, antes de morar aqui. Era aleijado, nem andar podia... Passámos coisas horríveis... até que Jake apareceu.

- Ah! - E os olhos azuis da rapariga começaram a brilhar. - Maud casou com o Jake para... se libertar?

- Sim. Estávamos numa situação terrível, os dois, e era preciso fazer alguma coisa.

- Ela não o amava? - inquiriu, quase ansiosa.

- Não, nessa altura não, nem durante muito tempo depois. Eu e o meu cunhado éramos amigos e ele sempre gostara dela, mas Charlie complicava tudo, nesses tempos. Compreendes, a minha irmã conheceu-o antes de Jake aparecer...

- Charlie?

- Sim, Lorde Saltash. Não sabias que era um nosso velho amigo?

- Não sabia que... se tinham amado... ele e a Maud

- titubeou Toby, como se as palavras fossem incompreensivelmente difíceis de pronunciar.

- Oh, isso é uma história muito antiga! - elucidou o rapaz, despreocupado. - Gostavam muito um do outro, quando eram novos, e chegaram a estar praticamente noivos. Mas Charlie foi sempre um estouvado e adiantou-se um pouco longe com Lady Cressady, também um bocadinho cabeça no ar. O marido dela, Sir Philip Cressady, quis divorciar-se, mas não conseguiu. O assunto ficou por aí, mas Maud não se conformou e cortou com Charlie. Ele fingiu que não se importou, mas importou-se, e muito, pois ainda está solteiro.

- Oh, é então por isso?! - perguntou, admirada.

- É, é por isso. Depois do que se passou tem vivido à doida, mas, no fundo, é bom rapaz. O próprio Jake o pensa, agora, e conhece-o melhor do que ninguém.

- E... Maud? - perguntou em voz baixa, com os olhos fixos nas águas serenas do lago.

- Maud reservou-lhe sempre um cantinho no coração... É um fraco que não pode vencer. As mulheres são assim...

- Compreendo. E Jake? Não se importa?

- Jake? Não, absolutamente nada. Tem-na bem segura, agora. Ela diz que não há no mundo ninguém como ele e tem razão, pois não há! - afirmou, entusiasmado.

- Então... não ama... Lorde Saltash? - perguntou a rapariga, franzindo as sobrancelhas num esforço de compreensão.

- Não, agora não o ama. Interessa-se por ele maternalmente, esforçando-se por persuadi-lo a assentar e ser bom. Tenho a impressão de que se sente responsável pelas suas estouvanices, pois creio que ele ficou assim depois de se zangarem. Passou-se tudo há muitos anos, evidentemente, mas Charlie nunca mais sossegou... nem sossegará.

- Compreendo... - e olhou para o rapaz com um sorriso incrédulo. - Imagina... a Maud a correr com ele!

- Bem, a minha irmã sempre teve o seu orgulhozinho, mas ele não se portou decentemente. Devia saber que Maud não era pessoa para lhe suportar a desconsideração. A culpa é toda dele.

- E ele que parece um rei! - observou a rapariga, em tom patético.

- Não imaginava que lhe pudessem ter acontecido tais coisas.

De novo o braço de Bunny apertou os ombros estreitos. Havia nela qualquer coisa que o atraía profundamente, qualquer coisa que sentia mais do que via.

- Já falámos demasiado na vida dos outros. E se voltássemos a atenção para nós próprios?

- Se quiseres - aquiesceu Toby, corando.

- Não achas que mereço o tal beijo? - pediu Bunny, docemente. - Fui tão paciente!

Toby ofereceu-lhe os lábios, num gesto de submissão, sem proferir palavra.

- Oh, assim não gosto! - protestou ele, no mesmo tom suave. - Se preferes não me beijar, não o faças, querida!

Toby susteve a respiração, como se engolisse um soluço, e depois abriu muito os olhos e soltou uma gargalhada:

- Oh, grande estúpido! Não conheço ninguém tão fácil de convencer como tu!

- Minha querida borboletazinha! - E apertou-a nos braços, beijando-a com ternura. - Apanhei-te finalmente, finalmente!

Toby apoiou a cabeça no pescoço dele, trémula e silenciosa.

- Estás cansada! Dou-te uma boleia até casa, sim? O Folly leva-te.

Toby sorriu, nervosa, e beijou-o de livre vontade.

- És extremamente bom para mim, Bunny querido. Talvez... talvez... fiquemos noivos... depressa.

- Oh, querida! - exclamou o rapaz, extasiado.

Na manhã seguinte Maud encontrou, ao lado do prato, uma carta com uma cabeça de raposa e a legenda "Sem virtude", no verso.

- É do Charlie - elucidou, mostrando-a ao marido, que acabava de entrar na sala. - Talvez seja acerca do novo iate. Outro dia disse-me que queria que eu fosse a madrinha.

- Tens a minha autorização. Que nome lhe tenciona ele dar?

- "Lua Azul", suponho. Mas estava caprichoso e talvez já tenha mudado de opinião.

- Onde está a pequena? - perguntou Jake, olhando em volta.

- Quem? A Toby? Julguei que tivesse saído cedo. Não andou a cavalo contigo?

- Não, desta vez logrou-me. Saiu por sua alta recreação num dos potros novos. Quando chegar tem de me ouvir.

- Espero que não tenha feito nada... - começou, ansiosa.

- Não, não fez nada.

- Mas então por que dizes que te logrou? Discutiram?

E ficou a olhar para o marido, com a carta na mão, tão assustada que eie riu:

- Também não discutimos. Mal a vi, desde ontem de manhã. Não posso explicar-te por que me acho logrado, mas sei que o estou.

- Oh, que marota!

Jake sentou-se e pegou no jornal, de cenho franzido.

- Daqui a bocadinho já saberei tudo murmurou

- Podes ler a carta; não estou com pressa.

Maud abriu a carta de Saltash, seguindo-se um breve silêncio, que Toby cortou entrando na sala, ainda com traje de montar, corada e sorridente.

- Desculpem vir atrasada - declarou, à vontade. Aquele brutinho parecia um demónio e tivemos de travar uma luta gigantesca. Importam-se que me sente mesmo assim?

Foi beijar Maud, repetindo a pergunta:

- Importa-se?

- Minha querida - começou a outra, em tom suave

- Jake vai ralhar-te por teres montado esse potro meio selvagem. Foi muito arriscado. Por que o fizeste?

- Oh, Jake, está zangado?!

Encarou-o, maliciosa, e, vendo que continuava embrenhado no jornal, deixou Maud e foi colocar-se à sua frente, exclamando entre trocista e aduladora:

- Alegre-se, Jake! Não ponha nuvens neste dia claro!

- Senta-te e come! - ordenou ele, de rosto severo.

- Depois falaremos.

Obedeceu-lhe, encolhendo levemente os ombros:

- Talvez não possa ficar para tomar parte na conversa - declarou, no mesmo tom. - Prometi a Eileen e Molly levá-las a passear, de manhãzinha, e, portanto, se o sermão vai ser grande, talvez seja melhor começar já.

Mas Jake não lhe deu ouvidos, começando a destapar os pratos do pequeno almoço.

A rapariga recostou-se na cadeira, provocadora, e começou a assobiar baixinho. Sentia-se diabòlicamente atrevida e ousada, embora não tivesse por costume sê-lo para com Jake.

- Que te aconteceu às mãos? - perguntou este, quando ela ia a agarrar o prato.

- Nada... isto é... nada de importante! - titubeou, corando. - Arranho-me com frequência nas mãos.

- Por que não dizes a verdade?

- É o que eu pensava - declarou Maud levantando os olhos da carta e interrompendo a conversa. - Charlie quer-nos em Fairharbour, amanhã. Dá um almoço a bordo. Convidou os Melroses e alguns hóspedes do "Âncora". Acompanhas-me, Jake?

- Bunny pode encarregar-se disso - recusou, abanando a cabeça. - Tenho de preparar as coisas para a corrida de Goodwood. O Forest Pire vai fazer figura...

- Oh, deixa lá o Forest Pire! - pediu Maud, aborrecida. - Preciso de ti.

- Para quê?

- Bem, o general Melrose conhece-te, falou-me de ti no Clube, outro dia, e eu queria que te visse... comigo. Por favor, Jake!

- Está bem! - aquiesceu.

- Vais?

- vou! - repetiu, sorrindo. - Raramente costumas interferir na minha liberdade... Lembro-me do velho Melrose, conheci-o há anos, em Doncaster. Foi sempre entusiasta de cavalos e mostrou-se a meu favor quando... alguém... tentou pregar-me uma partidinha.

- Oh! -exclamou Maud. - Referes-te a Charlie. Pobre rapaz! Depois sentiu-se envergonhadíssimo de si próprio.

Toby olhou para ambos, e de novo corou. Por momentos pareceu que ia falar, mas as palavras morreram-lhe na garganta.

- Creio que amadureceu um pouco depois disso prosseguiu Jake, no seu modo calmo e pausado. - No entanto, fossem quais fossem as suas intenções, não conseguiu fazer-me mal. Estou convencido de que, agora, já deixou de ser mau.

- Não foi agora que deixou de o ser, mas há muito tempo, Jake - observou Maud. - E deve-te muito, pois foste tu que o ensinaste a ser homem.

- Eu? És uma criatura muito parcial, querida! Come presunto!

E, assim, desviou a conversa, começando a falar de animais. O almoço prosseguiu, mas Toby mal falou e ainda menos comeu.

- Está muito calor - desculpou-se quando, pouco depois, Maud lhe fez notar o facto. - Não sou capaz de comer quando está assim calor. - Empurrou o prato e levantou-se. - Dão-me licença?

- Não, eu não dou! - declarou Jake, peremptório.

- Senta-te naquela cadeira, a fumar um cigarro. Quando acabares estarei pronto para falarmos.

Estendeu-lhe a cigarreira e a rapariga obedeceu-lhe, embora lhe fizesse uma careta descarada. Sentou-se e fumou o cigarro, silenciosamente.

Chops foi descansar-lhe a cabeça nos joelhos e ela brincou-lhe com as orelhas, mas parecia ausente, com os olhos fixos num ponto distante, abertos e duros.

- vou ter com as pequenas - declarou Maud, quando acabou de comer. - Não te preocupes por sua causa, Toby querida, podem brincar no jardim enquanto não te despachares.

- Não a demorarei - prometeu Jake.

Toby voltou-se na cadeira com os olhos brilhantes de ira e desafio:

- Gostaria de conhecer o homem que fosse capaz de me manter em qualquer parte sem eu querer.

- Muito bem-murmurou Jake, baixando a cabeça numa vénia. - Podes conhecê-lo agora, se quiseres. Porque montaste aquele diabólico Knuckle-Duster, uma vez que to tinha proibido?

- Não recebo ordens suas! - ripostou, furiosa.

- Oh, recebes, sim, às vezes!... - A porta fechou-se devagarinho sobre Maud e Jake voltou-se de frente, para encarar bem a antagonista. - Sabes bem que foi uma loucura, concordes ou não comigo.

Toby pusera-se de pé, hirta e decidida, mas a cor desaparecera-lhe do rosto, que estava pálido e vincado de cólera.

- Muito bem! -exclamou, nervosa. - E depois? Não o trouxe são e salvo?

- Não estava a pensar no cavalo. É um brutinho selvagem e duvido muito que consigamos fazer algo dele. Evidentemente que não é próprio para ser montado por uma senhora, mas isso também não interessa. O que está em causa é que o montaste contra as minhas ordens. E trocaste-me as voltas para o fazer, não foi?

- Não lhe troquei as voltas por esse motivo; tê-lo-ia montado de qualquer maneira, estivesse lá ou não.

- Não o creio. Em todo o caso, vais dar-me a tua palavra de honra em como não voltarás a montar aquele cavalo.

- A minha quê? - E Toby desatou a rir como uma doida. - Oh, não seja cómico, Jake! Se Bunny o monta, por que não hei-de fazer o mesmo?

- É diferente. Bunny tem força de homem e tu não. É perigoso para ti, compreendes? E eu não consinto.

- Está bem - declarou ela, pegando no chicote e preparando-se para sair.

- Tens de me prometer - disse Jake, estendendo a mão para a deter.

Toby parou, suportando o olhar inflexível de Jake. De súbito, um clarão iluminou-lhe os olhos e, num movimento brusco, fez estalar o chicote e tocou com ele, levemente, na mão estendida à sua frente.

Foi um acto de suprema insolência, executado a sangue-frio e com plena consciência. A mão de Jake saltou, como um cão furioso, e agarrou o chicote.

- Foi um erro - declarou e, embora falasse lentamente, havia nas palavras algo de mais cortante do que a ira.

Toby encarou-o com a mesma coragem, mas não disse nada. Começava a arrepender-se.

Largando o chicote, Jake tirou o cachimbo, com dignidade, com a dignidade própria da força que desdenha afirmar-se. No mesmo instante toda a bela ousadia da pequena se desmoronou, reduzida a nada:

- Oh, Jake, perdoe! - suplicou, agarrando-lhe o braço, como uma criança arrependida. - Perdoe-me, por favor, perdoe-me! Sou uma estúpida, uma bruta!

Jake fitou-a, com a sombra dum sorriso na boca severa e murmurou:

- Não creio. És apenas... jovem.

- Não sou, não! Oh, Jake! Magoei-o?

- Não.

- Não voltarei a desobedecer-lhe - prometeu, sem lhe largar o braço. - Não voltarei a fazer seja o que for que me proíba. É verdade, Jake! De que se ri?

- Não estou a rir - afirmou, largando o cachimbo e batendo-lhe levemente no ombro. - Está bem, não falemos mais no caso.

- Tenho de falar - titubeou a pequena, engolindo os soluços. - Tenho de lhe pedir uma coisa, Jake. Você é tão bom que não quero, não posso, fazer coisas que lhe desagradem.

- De que se trata?

- Não sei como explicar - começou, agarrando-lhe o outro braço. - Passei... passei uma noite horrível... foi por causa disso que saí sozinha, esta manhã. E... e... levei o Knuckle-Duster porque... porque... o próprio diabo me tentou!

- Compreendo - declarou, olhando-a com ternura. Por que motivo passaste uma noite horrível?

- Não sei como explicar - repetiu, apertando-lhe os braços numa súplica muda.

- Talvez eu adivinhe...

- Ah! - e escondeu o rosto na manga dele.

- Bunny, não é? - perguntou, afagando-lhe a cabeça com a mão livre.

- Sim, é Bunny - respondeu, apressada.

- Então?

- Não quer que case com ele, pois não? - perguntou, sempre com o rosto escondido. - Não o farei sem... o seu consentimento.

- O meu?

- Sim. Gosta de Bunny, sabe o que melhor lhe convém e deseja que ele o obtenha...

- Sim, creio que assim é, de facto - concordou, sem deixar de a afagar. - Mas... gosto de ti do mesmo modo. Quereria que, também tu, obtivesses o melhor.

- Não se importaria que eu tivesse o Bunny? - perguntou, admirada, levantando a cabeça. - com certeza?

- com certeza, se isso fizesse a ambos felizes.

- Ah! - e engoliu um soluço. - Mas ninguém pode ter a certeza da felicidade, pois não? O casamento é um enigma tão grande, não é? Creio que o Bunny se cansará depressa de mim.

- Por que dizes isso?

- Não sei! - E estremeceu, como se tivesse frio. - Os homens são assim, não são? Não os homens como você, evidentemente, mas o senhor é a maior excepção a quase todas as regras.

- Suponho-me tão humano como os outros - contestou Jake, franzindo as sobrancelhas.

- Mas, dize-me cá, por que pensas que Bunny possa ser... inconstante?

- É tão novo!

- Só isso? - perguntou, começando a sorrir.

- Sim, mas isso conta, Jake. Qualquer dia será um homem, mas agora ainda não é.

- Está bem, mas não há pressa, pois não? As pessoas não se casam de afogadilho.

- Você casou! - afirmou, com os olhos brilhantes de acusação.

- Eu? - perguntou Jake, momentaneamente desconcertado. - Bem, mas eu tinha certa desculpa. Que sabes tu desse caso?

- Sei o que Bunny me disse. Maud não gostava de si quando casaram, só gostou depois. Amava Lorde Saltash e era amada por ele - declarou, como se o desafiasse a desmenti-la. - Teria casado com ele... se não fosse o senhor.

- Possivelmente teria - retorquiu, aceitando o desafio. - E achas que teria sido mais feliz?

- Não! - afirmou ela, sacudindo vigorosamente a cabeça. - Você era o homem que lhe estava destinado. Mas... foi duro para ele - e a voz tremeu-lhe um pouco.

- Bunny disse-me que, por isso, nunca se casou.

- Não se casou porque não é dessa qualidade. Não me importo que cases com Bunny, mas nada deste mundo me persuadiria a deixar-te casar com Saltash.

- Não? -e um sorrizinho triste contraiu-lhe os cantos da boca. - Bem, também não o consultaria a tal respeito. Tem a certeza de que não se importa de que eu case com o Bunny?

- Absoluta, desde que tenhas também a certeza de que o desejas.

Os olhos de Toby tornaram-se brilhantes e húmidos. Afastou-se de Jake, mas, no mesmo instante, num gesto arrapazado, estendeu-lhe a mão:

- Obrigada, Jake. Você é uma jóia! Faça o que fizer, hei-de fazê-lo com... lisura! E... ajudar-me-á?

- Decerto - e apertou com força a mãozita estendida.

A multidão que se juntava no cais de Fairharbour, naquele dia quente de Julho que Saltash escolhera para baptizar o novo iate, era alegre e multicor. O próprio iate estava embandeirado e o hotel fronteiriço, o "Âncora", também. Todos os visitantes da cidade se amontoavam na praia ou se divertiam em barcos de recreio, perto do centro de atracção.

O iate estava atracado ao cais, sobre o qual Saltash mandara colocar uma comprida passadeira vermelha, até ao portaló atapetado de flores. O dia mostrava-se brilhante e sem nuvens e o mar com aquele azul intenso que se confunde com o horizonte sem qualquer linha divisória.

A ideia de Saltash era levar os convidados num cruzeiro através da baía, depois da cerimónia, completando as celebrações com uma festa nocturna, na água. Estava tudo a postos e, às duas horas, começou a receber os convivas.

Maud e Jake acompanhavam-no, e a pequena Eileen, muito sossegada, estava por trás deles, agarrando a mão de Toby. Na ponte, carrancudo e desdenhoso, via-se Larpent. Desagradavam-lhe sobremaneira as multidões alegres com que Saltash se comprazia em rodear-se. Indiferente e acima da frivolidade que pululava por ali, tinha, mais do que nunca, o aspecto de imponente "Viking". Nem sequer se dignava descansar os olhos nos visitantes, mantendo-os teimosamente fixos em qualquer ponto imaginário.

O general Melrose e a filha vieram no último grupo, assim como Bunny, feliz e elegante, que logo descobriu Toby.

- Viva! - cumprimentou, aproximando-se no momento em que a rapariga colocava Eileen de maneira a poder ver o que se passava. - Vim mais tarde do que tencionava, mas almocei com o general Melrose. Ih, tanta gente! Donde saiu esta multidão? - E baixando-se para a sobrinha: - Então, amor? Divertes-te?

-'-É delicioso! - disse a garota, levantando o rostinho para o beijo habitual, com os olhos brilhantes de contentamento.

Endireitou-se e voltou a fitar Toby, apreciativamente. A rapariga trazia um vestido branco, muito simples, e, na cabeça, um grande chapéu de palha, que lhe sombreava o rosto.

- Por amor de Deus não me olhes assim! - protestou, fazendo uma careta de desagrado. - Pareço uma "marionette" pintada!

- Estás pintada? Não pareces.

- Assim que isto acabar, vestirei roupa de montar e correrei como... como...

- Como o prato quando voa com a colher - zombou Bunny, fazendo uma careta. - Bem, se fores a colher, eu serei o prato e havemos de mostrar-lhes que belo par de esporas temos! Valeu?

- Mas eu não serei a colher - afirmou, decidida. Podes arranjar quem quiseres para desempenhar o papel. Experimenta Miss Melrose, por exemplo. Parece-me que não se importaria.

- É uma rapariga bem bonita! - declarou Bunny, agressivo.

- Ah, mas decerto! É mesmo só para o que serve, para rapariga bonita-troçou, levantando o queixo. - Não deve ter outra serventia.

Bunny riu-se.

- Muito bem, toca a divertir! Mas não é só Miss Melrose que está a bordo, há mais gente. Não conheces ninguém?

- Não conheço nem quero conhecer - replicou Toby, sacudindo a cabeça com força. - Não os achas enfadonhos? Olha, o Jake! Muito gostaria de saber se ele se diverte com esta pasmaceira.

Se Jake se divertia ou não, não o diziam os modos com que apertou a mão de Bunny e pegou na filha, para a colocar sobre o ombro.

- Segura-te bem, Inocência! Que te parece tudo isto?

- Parece-me delicioso, papá! - respondeu a garota, agarrando-se ao pai. - A mamã também gosta?

- Creio que suportará tudo muito bem - respondeu, sorrindo ante a ansiedade da filha. - Não é muito entusiasta por este género de festas, mas estamos nós aqui, não é verdade, Inocência?

O general Melrose voltou-se bruscamente ao ouvir aquela voz suave. Ainda não tinha reparado em Jake até àquele momento.

- Bolton! - saudou. - Que faz aqui?

- Bem, suponho que vim acompanhar minha mulher, que desempenhará o papel principal na cerimónia a realizar- explicou, avançando ao encontro do outro.

- Ah, sim, a sua mulher! Maud Brian, não é? Não sei porquê, quando penso nela é sempre como Maud Brian.

Então ela ainda mantém a velha amizade por Saltash, hem? Admira-me que você consinta...

- Agrada-lhe, sir, e... agrada-me - replicou, sorrindo.

- É sua filha? Nem é preciso perguntar. Tem os olhos de Maud. Sheila, vem ver a garotinha de Maud.

- Oh, que linda! - elogiou a rapariga, aproximando-se. - Como passa, Mr. Bolton? Conheço-o bem, de nome. É, então, sua filhinha! Como se chama?

- Eileen-respondeu a garota, agarrando-se, nervosa, ao ombro do pai.

- Oh, que encanto! - prosseguiu a outra. - Tenho de pedir à sua mamã que me vá visitar, consigo. Gostava?

- Penso que sim - murmurou, tímida.

- Por que não vai visitar-nos primeiro? - convidou Jake. - Gostaria que seu pai visse aquilo tudo! Comprei alguns exemplares que lhe interessarão, com certeza.

- Será esplêndido! - exclamou Sheila, no seu modo encantador. - Ficaremos cá mais quinze dias, pois não calculava que isto fosse tão bonito.

- Viu Burchester? - perguntou Bunny.

- Não, mas desejo ver. Lorde Saltash falou no assunto, há dias, portanto espero ter oportunidade de satisfazer o meu desejo. O senhor gosta muito da propriedade, Sir Bernard?

- Decerto, é lá que trabalho. Sou intendente-informou o rapaz, rindo. - Miss Larpent julga-me muito ineficaz, mas faço o melhor que posso.

- Nunca disse tal coisa! - declarou Toby. Desagradava-lhe verificar que Bunny queria metê-la na conversa, mas nada pôde fazer, pois Sheila estendeu-lhe a mão, amável e sorridente:

- Sabe que tenho a impressão de já a ter visto algures, Miss Larpent? Não consigo lembrar-me onde, mas já a vi! Não seria em Valrosa?

- Oh, não! Não deve ter sido aí.

- No entanto, parece-me que foi - insistiu a outra, observando-a de sobrancelhas erguidas. - Não esteve naquele baile de máscaras, no Casino Hotel? Tenho a impressão de que a vi em qualquer parte, mascarada.

- Oh, não! - negou, com energia. - Deve tratar-se de outra pessoa.

- Espere! - disse Sheila, sem deixar de a fitar.

- Creio que vou lembrar-me... Era alguém exactamente como você, alguém... vestido de rapaz.

- Olhem, olhem! - gritou Toby, batendo excitadamente as palmas. - Aí vem a garrafa! Oxalá ela consiga parti-la!

A atenção de Sheila desviou-se momentaneamente do assunto, para se fixar em Maud que, com Saltash à direita e Larpent à esquerda, exibia uma garrafa que brilhava ao sol, como oiro.

Ao ver Saltash, risonho e em cabelo, os olhos de Toby fixaram-se nele e permaneceram imóveis. Bunny, que reparara no gesto, sentiu-se estranhamente impressionado, como se lhe fosse dado assistir à transformação de um fogo sagrado em ardente flama, diante de distante relicário. No mesmo instante ouviu-se a voz de Maud, doce e clara, pronunciando o nome do iate.

Seguiu-se um murmúrio e um estrondo e, como uma cascata dourada, o vinho correu para a água.

Impelido por qualquer sentimento indefinível, Bunny agarrou Toby pelo cotovelo, quase a sacudindo:

- Viva! - gritou. - Já está!

Toby olhou-o, com olhos vagos, como se sonhasse, e, por fim, contraiu o rosto, despertando. Riu-se e, rindo, levou-o dali.

O iate começava a mover-se, a trepidar e, ao afastarem-se do cais, as sirenes deixaram escapar um apito rouco.

Por toda a parte havia tumulto, alegria, risos, chapéus e lenços a acenar desenfreadamente. O mundo todo parecia uma enorme montanha de prazer e, no meio de toda aquela balbúrdia, Toby balbuciou ao ouvido de Bunny:

-Vamos, vamos ter com Lorde Saltash e... e... felicitá-lo.

Apertava o braço do rapaz com insistência e ele seguiu-a, de novo impressionado pelo mesmo sentimento estranho e inexplicável. Deu-lhe a mão e foi abrindo caminho até ao grupo que estava perto da amurada.

Saltash, ao lado de Maud, dizia-lhe qualquer graça, despreocupado, mas, de súbito, voltou-se e deu com os dois, de mãos dadas, atrás dele.

Fitou-os a ambos e, impulsivo, segurou um ombro a cada um, rindo como se procurasse esconder qualquer ferida oculta.

- Viemos felicitá-lo! - disse Bunny. - Boa sorte para o navio!

- Agradeço as felicitações, meus filhos - retorquiu, com a graciosidade habitual - mas que a sorte seja vossa! Vejo-a despontar!

E misturou-se com os convidados, dispensando a todos um sorriso, alegrando todos os recantos, menos aquele onde o rapaz e a rapariga permaneciam, num silêncio que nada poderia quebrar.

A baía de Fairharbour assemelhava-se, naquela noite, a imenso escrínio de veludo sobre o qual faiscassem inúmeras jóias. Ao centro, como atracção principal, sobressaía o "Lua Azul", iluminado da proa à popa, da coberta do qual eram lançados foguetões coloridos, que caíam no mar como chuva de fogo. A bordo tocava uma orquestra cujos acordes flutuavam sobre as águas, como ecos dum outro mundo - um mundo fantástico, de melodias doces, vozes alegres e bater cadenciado de remos.

Toby passeava num dos barcos de recreio e, distraída, mergulhava os dedos na água. Estava sem chapéu, com os cabelos louros levemente revolvidos pela suave brisa do mar, e o rosto, que o clarão do fogo de artifício deixava de vez em quando divisar, tinha um ar esquisito, uma expressão de medo que os olhos azuis, muito abertos e assustados, como os duma criança, mais acentuava ainda.

Mal falava e Bunny respeitava-lhe o silêncio, limitando-se a fitá-la, gravemente, enquanto remava. Convidara-a com bastante antecedência para aquele passeio e, embora não esboçasse sequer uma recusa, aquele seu silêncio meio assustado impressionava-o. Mantinha-se também calado, num mutismo protector e deliberadamente tranquilizador.

Toby estremeceu, nervosa, com o estrondo inesperado dum foguete e o rapaz sossegou-a, como sossegaria um animalzito pequeno e apavorado.

- Não é nada, querida. Afastemo-nos um pouco mais, sim? Essa brincadeira faz um barulho ensurdecedor.

Toby agradeceu-lhe, num murmúrio, e ele começou a remar com vigor, afastando-se do iate e dos barquitos que pululavam à sua volta.

- Se achares que me afasto demais, avisa-me - recomendou.

Mas ela não disse nada e Bunny foi remando sempre, sempre em frente, cortando o silêncio apenas com o bater cadenciado dos remos.

Deixaram para trás os risos e o barulho, dirigindo-se para o ponto mais afastado da baía. Divisava-se já a praia e ouvia-se o bater das ondas contra a muralha.

- Bunny - chamou a rapariga, quebrando inesperadamente o mutismo - crês, realmente, que... seríamos bem sucedidos?

- com certeza - afirmou sem demora.

Recolheu os remos e deixou o barco deslizar, sozinho, nas águas tranquilas. Inclinou-se para a frente, estendendo-lhe as mãos, comovido com o olhar triste e irresoluto de Toby.

- Diz-me porque estás preocupada - pediu, com doçura.

- Pareces um ratinho assustado! Achas que não te farei feliz?

-Creio que... tentarás.

Por momentos pareceu pronta a recuar, hesitante, mas depois, impulsivamente, como se se libertasse dum fardo, colocou nas dele as mãos trémulas. Bunny apertou-as com força e foi-as puxando, com suavidade, até poder encostá-las ao coração.

- Pois tentarei, querida-murmurou, no mesmo tom meigo.

- Tentarás? - murmurou, absorta, e tão perto dele que Bunny a sentia tremer toda. - Tentarás?

- Receias que não o consiga? Tens medo que te torne infeliz?

- Não sei... Estou a pensar... principalmente em ti.

- A pensar se será bom para mim satisfazer o maior desejo do meu coração? Achas que seria demasiado para as minhas forças, não, querida? - perguntou, brincando.

-Não, não é isso! Pensava, apenas, se o teu desejo será... certo, se desejarás a coisa própria e boa, se aquilo a que chamas o maior desejo do teu coração te trará felicidade. Bem sabes que nem sempre acontece assim, Bunny. É a vida...

- E que sabes tu da vida?

- Oh, muito, muito! - exclamou a rapariga, abanando a cabeça e deixando pender o rosto.

Bunny ficou uns momentos imóvel, mas o aperto das suas mãos era suave e reconfortante. Depois, quase insensivelmente, foi-a atraindo a si, com doçura, e, ao contrário do que esperara, Toby não resistia, deixava-se atrair, até que, com um soluço, se deixou abraçar, escondendo a cara no ombro dele. Sem uma palavra, o rapaz encostou a face aos cabelos dela e ficou imóvel.

Toby soluçava e Bunny, carinhosamente, batia-lhe no ombro, calado e sério, até que, com um suspiro trémulo e angustiado, a rapariga sossegou.

-Toby adorada-murmurou, muito baixo - vou dizer-te uma coisa que me ocorreu há pouco, uma coisa que adivinhei. Não precisas de me responder. Não quero que me respondas, apenas desejo que saibas que... sei. Há outro homem no teu coração, outro homem que conseguiu nele um lugar muito maior do que o meu... presentemente. Não, não tremas, querida! Eu compreendo... compreendo bem! Pertence àquele tipo de homens a que as mulheres não sabem resistir, mas é bom, é bom, e eu estimo-o, sempre o estimei. Mas, querida, apesar de tudo, não quero que quebres o teu coraçãozinho por causa dele. Sabes que seria assim, não sabes? Sabes que o teu... sentimento... é inútil, não é verdade? Sabes, também, pelo menos até certo ponto, o que ele é, não sabes?

Parou, como se esperasse a resposta, mas Toby não falou.

- Nunca se casará - prosseguiu o rapaz, chegando-lhe a cabeça para o peito. - Não tenciona fazê-lo, quase mo disse, há dias. Mas... Toby, interessa-se por ti e por mim, como amigo, e gostaria que nos déssemos um ao outro. Não achas - e a sua voz deixava transparecer um pouco de alegria - não achas que podíamos combinar tudo para o satisfazer? Talvez... qualquer dia... verificasses que, satisfazendo-o, nos satisfizemos.

- Oh, querido! - murmurou, passando-lhe os braços pelo pescoço, mas sem levantar a cabeça.

- Amo-te o bastante para pensar primeiro na tua felicidade, querida - disse, apertando-a mais a si. - Agora não és feliz, sei muito bem que não és, mas serás, juro que serás, se casares comigo! Gostas um bocadinho só de mim, não gostas? E... não terias medo de te confiares a mim?

- Não, não teria... medo.

- Vais aceitar-me, querida? Vais colocar a tua mão na minha e confiar, confiar em mim? Sim, querida? Sim? Mas Toby manteve-se silenciosa.

- Não queres? - insistiu, baixinho.

Os braços de Toby apertaram-no mais, enquanto a respiração lhe saia arquejante, nervosa. Através das águas chegavam-lhe aos ouvidos risos alegres e as notas doces da orquestra que tocava na coberta do "Lua Azul". Mas, ali perto, apenas o agitar das águas e o bater das ondas na muralha quebravam a monotonia. Flutuavam, sozinhos, sobre as águas negras, subindo e descendo nas vagas, ao sabor da maré.

- Não queres? - repetiu Bunny, após longa pausa.

- Farei... tudo o que quiseres - prometeu a rapariga, levantando a cabeça.

A voz tremia-lhe um pouco, mas era segura, sem indecisões, e os olhos, os grandes olhos azuis, olhavam-no a direito, à luz das estrelas. Bunny adivinhou-os cheios de lágrimas, mas as lágrimas não caíram nem os lábios se furtaram quando os seus os procuraram, na ânsia dum beijo. Apertou-o a si, apertou-o com força.

- Serás bom para mim, Bunny? - sussurrou.

E ele respondeu-lhe sem demora, sem despregar os lábios dos dela:

- Serei bom para ti, querida. Assim Deus me ajude.

- Não consigo lembrar-me onde vi já aquela rapariga

- murmurou Sheila, pensativa, com os olhos postos na baía iluminada. -Tem uma cara simpática, que não esquece.

- Não a viu em parte alguma - comentou Saltash, sacudindo, descuidado, a cinza do cigarro para a água. Tem uma daquelas caras que os antigos italianos adoravam, e que alguns modernos adoram igualmente. Talvez tenha visto algum quadro com um rosto semelhante.

- Tenho a certeza de que a vi, fosse onde fosse, vestida de rapaz - teimou a rapariga, franzindo as sobrancelhas, num esforço de memória. - Teria de facto sido num quadro?

- Foi, sim. E até lhe digo quem era o autor: Spentoli.

Tenho uma cópia, algures. Chama-se "A Vítima" e representa um rapazinho parecido com a filha de Larpent, lutando com um leopardo.

Saltash falava muito convencido, com o olhar irrequieto saltitando dum lado para o outro, parando, por vezes, na rapariga que tinha a seu lado, mas nunca se detendo nela.

-A sua impressão deve provir daí. Por sinal, o quadro é até insuficiente, deixa-nos na dúvida de qual será a vítima. Essa particularidade, porém, é própria do autor. É um pintor que nos deixa sempre na dúvida.

- Sei a que se refere - observou Sheila, meditativa.

- Sim, é, de facto, parecido com ela. É o rapaz a vítima, evidentemente-e, voltando-se inesperadamente para ele, afirmou: -Não se pode ter dúvidas a tal respeito, pois os dentes do monstro estão quase a cravar-se-lhe na garganta. Na minha opinião, é uma pintura horrível.

- Por vezes aparece um salvador, nem que seja no último momento - observou Saltash, soltando uma das suas gargalhadas. - Nunca pensou que, frequentemente, não acontecem as coisas que esperávamos como certas?

- Talvez seja melhor não esperar-retorquiu a rapariga, entreabrindo os lábios num gesto desdenhoso.

- Talvez - concordou o homem. - Pela minha parte, aprendi essa lição há muito tempo. Acontecem demasiados percalços, sobretudo quando a taça está cheia - acrescentou, como se não ligasse importância ao que dizia. - Quando isso sucede, quando a taça transborda, o vinho, se o provamos, é sempre azedo.

- Não duvido - murmurou Sheila, olhando uma vez mais para as águas da baía.

Saltash soltou nova gargalhada, ao ver-lhe a boca severa:

- Sabe, Miss Melrose, que, embora pareça curioso, você também me faz lembrar Spentoli? Não sei se você e Miss Larpent têm as mesmas características, mas suponho que as de Toby podiam desenvolver-se em si, se as circunstâncias fossem idênticas.

- Estou absolutamente convencida de que se engana!

- replicou Sheila, em tom frio, endireitando desafiadoramente o busto. - A filha do capitão Larpent é, sob todos os aspectos, uma criança impulsiva e eu... não o sou!

- Creio que o é o bastante para lutar com o leopardo, se ele lhe aparecesse - observou Saltash. - Oh, não, talvez... o enfeitiçasse! Devia estar mais na sua maneira de ser...

Os lábios da rapariga contraíram-se de novo, na mesma linha severa e firme. Ficou uns momentos calada, mas, por fim, declarou, martelando as palavras:

- Não, Lorde Saltash, nunca tentaria enfeitiçar um bruto.

- Prefere-os selvagens?

Sheila fez um gesto desdenhoso com a mão, sem se dignar responder-lhe, nem, sequer, olhá-lo.

- Creio que Miss Larpent teria maiores probabilidades de êxito, nesse capítulo - declarou, pouco depois.

- É uma feiticeira nata.

- Meu Deus, que cruel cumprimento!

Sheila ficou calada. Tinha os olhos presos num pequeno barco que se dirigia para eles e parecia atrair-lhe a atenção. Saltash seguiu-lhe o olhar, fazendo uma careta amarga, como se visse algo que lhe desagradasse. Depois, sem transição, mudou de conversa:

- Alguma vez viu Rozelle Daubeni, a feiticeira?

- Não - respondeu a rapariga, olhando-o admirada.

- Tenho ouvido falar a seu respeito, mas nunca a vi... nem tenho desejos. Por que pergunta?

- Porque lhe faria bem conhecê-la! - afirmou, ousado.

- Ela, sim, é uma feiticeira nata, se assim quiser chamar-lhe. Enfeitiça mulheres, homens e... brutos!

- Uma aventureira?

- Sim, uma aventureira. Confesso-lhe, porém, que é uma das mais encantadoras que jamais existiram. Agora está ela em Paris. Quando vier a Inglaterra - e de novo o seu olhar a fitou com ousadia - levá-la-ei para a ver. Será uma lição para si.

- Obrigada.

Saltash riu alto e, inesperadamente, estendeu-lhe a mão, num gesto de boa camaradagem:

- Estava só a arreliá-la. Não se zangue. Nem por todo o oiro do mundo a levaria a vê-la. É uma mulher abjecta, demasiado abjecta para mim próprio, o que já é alguma coisa...

Sheila hesitou uns segundos antes de lhe estender a mão:

- Por que me falou nela? Que motivo a trouxe ao seu pensamento?

Saltash voltou a olhar para o barquito, agora mais perto do iate, mas não respondeu, enquanto ela não lhe apertou a mão.

- O meu pensamento é... um tanto elástico - declarou então, com um sorriso cativante. - A culpa foi sua, por falar em feiticeiras. Estava a ver se me lembrava de todas as que conheci.

- De todas as Rozelles e Tobies! - exclamou, com uma gargalhadinha trocista.

- Nunca conheci mais do que uma de cada género declarou, largando-lhe a mão. - Talvez seja esse o segredo do seu feitiço. Por favor não as classifique juntas no seu cérebro! A filha de Larpent pode ser uma feiticeira nata - pelo menos parece ser essa a opinião do jovem Bunny Brian, mas não é, nem nunca será, aventureira!

- Bunny está apaixonado por ela... verdadeiramente apaixonado por ela?

- Pois decerto, como diria Jake! É um excelente rapaz e desejo bem que a conquiste.

- Ela não é de qualidade de se fazer rogada - observou a rapariga, voltando as costas à água.

Estalou um foguete no ar, fazendo um clarão violeta que iluminou o mar e a praia. A festa estava no fim e os convidados começavam a juntar-se a bordo. A orquestra tocava uma selecção duma ópera cómica, acompanhada por algumas vozes sentimentais.

- E agora vamos cear no "Âncora"! - declarou Saltash, dirigindo-se à rapariga. - Tenho de ir procurar Mrs. Bolton. O pobre Jake está farto, mas suporta tudo como um homem. É um excelente tipo.

- Seu amigo? Quero dizer, um amigo muito especial?

- Não, não o creio! -e fez uma careta para as estrelas. - Pergunte-lhe! Ele conhece-me melhor do que muita gente e eu também o conheço.

Saíram da amurada e foram juntar-se aos outros convidados. Tudo aquilo parecia um maravilhoso conto de fadas: os balõezinhos chineses, brilhando aqui e ali, como grandes pirilampos, a multidão vestida de cores alegres, o iate branco e brilhante balouçando docemente nas águas! Ria-se e cantava-se por toda a parte, não se vendo uma única cara séria.

- Onde está Toby? - perguntou Maud ao marido, com certa ansiedade.

- Não há perigo, está com o Bunny.

- Mas ainda não voltaram para bordo e já saíram há tanto tempo! É estranho como o capitão Larpent se interessa tão pouco pelo que a filha faz.

- É, realmente! - concordou Jake.

O alvejado mantivera-se quase toda a tarde na ponte, com ar triste e reservado. Lá se encontrava agora, fitando aquela multidão barulhenta e inconstante. Quanto tempo levaria Saltash a cansar-se de tudo aquilo e a fazer-se ao mar? Esperava-o com paciência evangélica, e a esperar continuaria, dia após dia, até que o desejado momento chegasse. Já sucedera o mesmo tantas vezes! Os caprichos de Saltash faziam-no, em certas ocasiões, sentir ganas de se rebelar, mas nunca ninguém suspeitou tal coisa, nem o próprio Saltash. Silencioso, fleumático, inexpressivo, Larpent cumpria as ordens e seguia o seu caminho.

A atenção de Maud não se prendeu muito nele. Nunca ninguém se preocupava muito com ele, salvo, talvez, Saltash.

- Até que enfim! - gritou Maud, olhando para o portaló. - Lá vêm eles!

-Cinderela e o Príncipe! - exclamou uma voz risonha, atrás dela.

Maud assustou-se e deu de cara com Saltash, que a fitava com ar malicioso.

-Veja como os meus planos se realizam! Estendo a mão e vocês contemplam os resultados!

Maud desviou o olhar, para o fixar de novo no par que chegava. Subiam sozinhos o portaló - Toby delgada, infantil, com os olhos azuis muito brilhantes, Bunny, logo atrás, segurando-a pelos ombros, posse e protecção em cada gesto. Dizia-lhe qualquer coisa ao ouvido e o rosto resplandecia-lhe, com uma luz quase sobrenatural.

- Ei-los! - exclamou Saltash, avançando para os receber.

No mesmo instante o par juvenil transformou-se no centro geral de observação, desvanecendo todas as conversas. Maud estendeu a mão ao marido, que a agarrou e apertou com força.

Saltash ria-se muito, mas não se ouvia o que dizia, apenas se via que pegara na mão de Toby e de Bunny e as unira. Maud viu os olhos de Toby postos em Saltash, os seus lábios trémulos e entreabertos, e sentiu o coração confranger-se-lhe de pena, sem bem saber explicar porquê. Desejava com toda a alma tomar a garota nos braços e confortá-la.

Depois Toby riu-se também, e a voz de Saltash soou, clara e meiga:

- Estas coisas apenas acontecem uma vez... numa "lua azul", minha querida. Dou, a ambos, a minha bênção, pela segunda vez neste dia. Desejo-lhes melhor sorte do que a que me tem cabido.

Deitou uma olhadela alegre e maliciosa para a ponte, onde Larpent, majestoso como um "Viking", permanecia.

- É melhor irmos dar a novidade a teu pai. Venham! Conduziu-os por entre a multidão, que abriu alas para os deixar passar, soltando graças e gargalhadas.

Toby caminhava entre os dois homens, pálida, mas ainda a sorrir - um sorriso semelhante ao de uma criança que se esforça por não chorar.

- Oh, pobre queridinha! - murmurou Maud, voltando a cara para Jake como se não pudesse suportar a cena.

- Não te preocupes - sossegou o marido. - Tudo correrá bem. Bunny é uma jóia.

- Oh, bem sei, bem sei, mas ela! É tão nova! E ama-o?

- Talvez o não ame com o amor que nós conhecemos.

- murmurou Jake, apertando-lhe mais a mão. - Não se ama assim, logo de princípio.

Maud não pôde deixar de lhe sorrir, embora meneasse a cabeça, duvidosa.

- Às vezes... não se chega nunca a amar assim! sussurrou.

Pareceu a Maud que, nos dias que se seguiram ao seu noivado, Toby se desenvolveu como uma flor a desabrochar. Agia em casa como se sempre lá tivesse vivido e tomou sobre si responsabilidades que Maud nunca ousaria atribuir-lhe.

Observando-a com ansiedade, parecia-lhe que a rapariga assentara mais, se tornara mais sossegada do que nunca fora. A expressão assustada adormecera-lhe no fundo dos olhos e as habituais e inesperadas explosões de cólera tinham cessado também, totalmente. Maud não tentou sondá-la no interior, compreendendo quanto seria desaconselhável tal atitude, pois os primeiros dias dum noivado raramente são dados a expansões, cheios como costumam estar de emoções variadas e novas. Tinha a certeza de que Toby, se viesse a precisar de um confidente, não deixaria de recorrer a si ou a Jake. Portanto, o melhor seria deixá-la saborear à vontade a nova situação. Além de tudo, tinha muita fé em Bunny, que era uma jóia, como Jake dissera. O irmão por certo arranjaria maneira de afastar quaisquer receios que Toby tivesse.

Dir-se-ia, até, que já o conseguira, pois Toby nunca se mostrava nervosa na sua presença. Saudava-o com prazer e seguia-o satisfeita, para onde quer que ele indicasse. Encontravam-se todos os dias, geralmente ao anoitecer, quando o trabalho de Bunny terminava e as crianças se deitavam. Maud via-os, às vezes, a passear juntos, seguidos de Chops, e sorria ternamente. Acreditava que Toby conquistara a felicidade e desejava, com toda a alma, que fosse uma felicidade duradoura.

Saltash não voltara a aparecer. Partira, bruscamente, como de costume, no seu primeiro cruzeiro a bordo do "Lua Azul", levando consigo, apenas, o sempre presente capitão, a fim de quebrar a monotonia. Ninguém sabia para onde tinha ido ou se a viagem seria longa ou curta. Desaparecera do seu círculo de relações, como um macaco desaparece duma árvore, e, além de passageira surpresa, os seus amigos nem se deram ao trabalho de perguntar quais teriam sido as razões ou intenções de tal viagem. Provàvelmente não teria nem umas nem outras em quantidade apreciável, mas, apenas, como habitualmente, um capricho momentâneo. O novo brinquedo seduzia-o e não regressaria sem se cansar dele.

Neste comenos, os veraneantes entravam e saíam de Fairharbour, apinhando-se no "Ancora", e Sheila e o pai começavam a falar na partida para a Escócia. Jake seguira para uma importante reunião hípica no Norte, e a sugestão de Bunny, para visitarem a propriedade, parecia ter sido esquecida.

Não o fora, porém, na realidade. Numa tarde dos fins de Agosto, quando Bunny, após renhido jogo de pólo, conversava com Sheila, esta recordou-lhe:

- Há mais de quinze dias que me prometeu mostrar os cavalos...

- Oh, desculpe! Não me tinha esquecido, mas, ultimamente, tenho muito em que pensar. Vão tomar chá com Maud, qualquer dia destes. Quando?

- Não será melhor perguntar, primeiro, à sua irmã?

- inquiriu, sorridente.

- Para quê? Tanto ela como a Toby estão sempre em casa e, evidentemente, a minha irmã terá muito prazer em vê-la, seja em que ocasião for. Quando vão?

- Partimos depois de amanhã.

- Então fica combinado para amanhã!

- A sua irmã pode não nos querer lá assim, tão à pressa - insistiu, hesitante.

-Mas quer, com certeza! Ainda não viu o castelo?

- Já. Almoçámos com Lorde Saltash antes dele partir. Não gostei muito, se quer que lhe diga. Pareceu-me feio...

- Oh, é magnífico! - contradisse Bunny, com ardor.

- É mal empregado em Charlie, claro, mas, pelo meu lado, adoro cada uma daquelas pedras.

- Que pena não lhe pertencer a si, então! - comentou a rapariga, trocista. - Onde vai viver depois de se casar?

- Não casamos ainda - declarou ele, corando. - Espero continuar no meu trabalho, mesmo depois de casado.

- Sim? - interrogou Sheila, pouco surpreendida. E Miss Larpent, concorda com a ideia?

- Não vejo motivo para não concordar. Adora a região, gosta de montar a cavalo e de todas as coisas que, aqui, se lhe podem proporcionar. Sobretudo, detesta a cidade.

- Sim? - repetiu, levemente incrédula.

- Por que pergunta? Ela é muito nova, pouco mais do que uma garota, e não lhe interessam nem as pessoas nem as cidades. Por que haviam de lhe interessar, de resto?

Bunny fez a pergunta num tom meio indignado e Sheila sorriu-lhe, apaziguadora.

- Não faço a mínima ideia, apenas pensava que gostaria. É muito bonita, sabe? E, geralmente, as raparigas bonitas não se interessam pelo casamento sem se terem, primeiro, divertido. Mesmo depois disso, nem sempre se interessam...

- Oh, supõe que ela não se diverte! - exclamou o rapaz, ainda ressentido.

- Não penso tal coisa, evidentemente. Você sabe muito melhor do que eu aquilo de que ela gosta. Só me admira que Maud não se tenha lembrado de lhe proporcionar, pelo menos, uma época na cidade. Não acha que seria bom para ela?

- Não sei - declarou Bunny secamente. - A Maud não tem grandes simpatias pela cidade; quanto a Toby, acho que está melhor aqui.

- Ah, está com medo que ela lhe escape se conhecer muito o mundo! - zombou, soltando uma gargalhadinha.

- Eu? Nem tinha pensado em tal coisa! Só gostava que não se tornasse adulta e... sofisticada! O seu maior encanto é ser assim, tal qual é.

-Oh, tem de facto muito encanto! - concordou ela, franzindo pensativamente as sobrancelhas. - Só gostaria de me lembrar com quem ela se parece! Mas não consigo, é o resultado de ter muitos conhecimentos...

- Pelo meu lado, nunca conheci ninguém que se lhe assemelhasse - declarou o rapaz. - Bem, tenho de ir. vou avisar a Maud da vossa visita e espero-os amanhã, a si e a seu pai.

- Acha que devemos ir? - teimou a rapariga, estendendo-lhe a mão.

-Sem dúvida! Minha irmã ficará encantada. Só é pena que não tenham ido há mais tempo. Então, por volta das três, se lhes convier. Adeus!

Sorriu, o seu sorriso agradável e juvenil, e afastou-se.

Mas quando, pouco depois, se dirigia para as dunas, ao encontro da noiva, as palavras de Sheila martelavam-lhe o cérebro, fazendo-o carregar o sobrolho. Na verdade não pensavam casar-se nos meses mais próximos e os seus planos eram, ainda, um tanto vagos; no entanto, a ideia de esperar que Toby se divertisse na capital, durante toda uma temporada, revoltava-o sobremaneira. Não sabia explicar a razão de tal revolta, apenas sabia que queria conservar a sua borboletazinha tal como os seus olhos a viam: fresca, jovem e inocente. Amaldiçoava Sheila por lhe ter falado em tal coisa e esforçava-se por deixar de pensar no assunto.

No entanto, mal se encontrou a passear com Toby ao longo das dunas, falou-lhe no caso, com a franqueza habitual:

- Sheila acha que devias passar uma temporada na capital, antes de nos casarmos. Gostavas?

Toby encarou-o, com a surpresa estampada no rosto:

- Mas que diabo tem Sheila Melrose a ver com o assunto? - perguntou, martelando as palavras.

- Nada, querida, menos do que nada, até! É, apenas, um ponto de vista. Acha que és demasiado bonita para te casares assim, sem primeiro te divertires.

- Sem me divertir! - E aninhou-se contra o braço que lhe rodeava os ombros, num movimento brusco, quase violento. - Bem sabes que detestaria tal coisa.

- Já sabia, querida. Comigo acontece o mesmo, detesto as elegâncias. Mas tu... tu... és linda, Toby, e eu não queria parecer-te desleal, fosse de que maneira fosse.

- Patranhas!

- Começas, por acaso, a interessar-te por mim, um bocadinho só? - perguntou, curvando o rosto para ela.

Toby riu-se e corou, entrelaçando os dedos nos dele, mas não respondeu.

- Preferias casar comigo a ir para Londres procurar alguém de quem gostasses mais? - insistiu. - Diz, preferias?

- Sem dúvida! Bem sabes que aborreço Londres.

- E não me aborreces a mim? - teimou ele, com os olhos negros muito ternos e persuasivos.

Toby baixou a cara e ficou silenciosa.

-Responde, queridinha!

-Falemos de outra coisa! - pediu ela, sacudindo a cabeça.

- Muito bem! - concordou o rapaz, com ar descarado.

- Falemos do nosso casamento, por exemplo. Já é tempo de começarmos.

- Oh, não queria referir-me a isso! - protestou ela. -Claro que não. No entanto, era nisso que estavas a pensar. Sabes que o Bishop vai deixar o trabalho e mudar-se para Fairharbour? Ficarei sozinho e, tu bem sabes, amor, é estúpido viver sozinho.

- Ainda não experimentaste.

- Pois não, mas já sei que é. vou detestar tal vida

- garantiu, convencido e triste.

- Não ter ninguém com quem fazer de galo da índia!

- zombou a rapariga, soltando uma gargalhada. - Tens razão, deve, de facto, ser estúpido. Por que não te apaixonas por Sheila Melrose?

- Sheila Melrose! - exclamou, com azedume. - Por que diabo havia de acontecer tal disparate?

- Ela é bonita, graciosa, perfeita! - elogiou Toby, fitando-o com os olhos cheios de malícia. - Seria uma encantadora Lady Brian e, além disso, tem fortuna pessoal para administrares. Seria conveniente para vocês dois!

- Não digas asneiras! - gritou Bunny, com súbito calor.

Apertou-a com mais força, e Toby fez um gesto instintivo, como se quisesse libertar-se.

-Bem sabes que não estou a dizer asneiras! - afirmou a rapariga. - Bem sabes que, se não fosse eu... se não fosse teres-me encontrado primeiro... te terias enamorado dela!

Arquejava, martelando um pouco as sílabas, como acontecia sempre que estava agitada. Tinha a cara escondida e resistia, resistia com todas as forças, à tentação cada vez mais forte dos braços do namorado.

Mas havia ocasiões em que Bunny não tolerava resistência, e esta era uma delas. Continuou a atraí-la, ignorando os seus esforços, até que ela cedeu, por fim.

- Por que dizes isso? - perguntou, muito terno, baixando-se de forma a poder ver-lhe o rosto. - Vamos, diz-me! Estarás, por acaso, ciumenta?

- Oh, não! - gritou ela, veemente. - Não, não e não!

- Então porquê? Não gostas dela, pois não? - concluiu, com súbita intuição.

- É ela que não gosta de mim - retorquiu Toby, com a cara escaldante.

- Enganas-te. Todos gostam de ti.

- Menos ela. Pensa que sou má forma e... tem razão. Pensa também - e levantou a cara, desafiando-o - pensa também que me dispus a apanhar-te e o consegui.

- Não pensa tal! - gritou, furioso. - Isso é uma parvoíce, uma maldita parvoíce! Não deves dizer essas coisas. Sheila é boa rapariga e está pronta a ser tua amiga, se lho consentires.

- Já sabia que começavas a gostar dela - atirou, de cara fechada. - É bonita, elegante e... muito mais própria para ti do que eu. Por que não lhe pedes que case contigo? Não te dirá que não, acredita! - e soltou uma gargalhada cínica e trémula.

Bunny, com os olhos incendiados de cólera, agarrou-a pelos ombros, com força, como se fosse sacudi-la:

- Cala-te e está quieta! - ordenou, sentindo-a tremer toda. - Ouves? Estás a ir demasiado longe! Por que falas dessa maneira? Que te fez ela?

- Nada! - retorquiu Toby, recuando, num vão esforço por lhe fugir. - Mal me conhece, ainda, mas é o instinto, o instinto é que a faz não simpatizar comigo. Além disso, gosta de ti o suficiente para não desejar que cases comigo. Não supões... não - palavras saíam-lhe arquejantes, aos saltos - não supões, com certeza, que essa sugestão da estadia na capital foi... para meu bem, pois não?

- Que outra razão poderia ela ter? - inquiriu o rapaz, em tom duro.

- Como estás verde! - e soltou uma gargalhada forçada. - Precisas, realmente, que te explique?

- Preciso. Vamos, fala! - A sua voz era dura, como dura era a pressão das suas mãos, mas Bunny sabia que, se a largasse naquele momento, ela lhe fugiria como caça acossada.

Toby continuava a fitá-lo com a mesma expressão de desafio, mas, bem no fundo dos olhos, lia-se medo e desejo de escapar, de fugir. Os lábios abriam-se-lhe num sorriso, mas, entre eles, divisavam-se os dentes, pequenos e brancos, cerrados com força.

- Vamos, fala! - repetiu. - Não te largarei, juro-te que não te largarei, enquanto não me disseres!

- Julgas que... julgas que tenho medo de ti? - bravateou a rapariga.

- Julgo, apenas, que vais responder-me - declarou ele num tom profundo, olhando-a a direito nos olhos, sem cólera, mas também sem compaixão. - Vais dizer-me que outra razão podia Miss Melrose ter para fazer tal sugestão, além do teu benefício? Vamos, estou à espera!

Tinha o rosto pálido, mas estava absolutamente senhor de si. Talvez tivesse aprendido com Jake aquela verdade fundamental tantas vezes ignorada: se queremos dominar os outros, devemos, primeiro, aprender a dominarmo-nos a nós próprios. Continuava a segurá-la pelos ombros, mas abandonara toda a violência. No entanto, também não se mostrava terno.

E, estranhamente, uma chama de admiração brilhou nos olhos da rapariga, que se endireitou, encarando-o sem vacilar.

- Não me importa de te responder - murmurou ela. - Por que havia de me importar? Alguém to dirá, cedo ou tarde, se eu o não fizer primeiro. Ela disse-te isso porque sabia, e desejava que soubesses, que não pertenço ao género de raparigas que os homens desejam para esposas. Estava pálida, mas mantinha-se muito direita, sem baixar os olhos ou procurar fugir-lhe.

- Por favor... que queres dizer? - perguntou Bunny muito devagar, como se lhe tivessem dado uma pancada que o desnorteasse.

Toby soltou uma gargalhadinha, quebrando bruscamente toda a tensão:

- Oh, não te digo mais nada! Ela acha que eu sou muito atraente, mais nada. Não sei porquê, mas é isso. Nunca me achaste assim, pois não, Bunny?

A antiga expressão provocadora espalhou-se-lhe no rosto, e Toby aninhou-se no círculo dos seus braços, como uma avezita que procura refúgio após extenuante voo.

E Bunny suspirou, cônscio dum alívio tão grande que excedia todos os argumentos.

- Oh, minha macaquinha! - ralhou, - Estavas a divertir-te à minha custa! Como ousas atormentar-me deste modo? Mas pagarás, pagarás tudo! Não voltarei a ter piedade!

Beijou-a com toda a renovada loucura do amor momentaneamente recusado, fazendo a cor voltar ao rosto da noiva, ao mesmo tempo que o medo lhe abandonava o coraçãozinho. Naquele dia Toby deu-lhe mais do que nunca lhe dera e, no êxtase da posse, Bunny esqueceu o que acabava de passar-se entre eles.

Só mais tarde voltou a recordar as estranhas reticências, as palavras entrecortadas e aquela esquisita atitude de autodefesa. E sentiu, apesar de todos os esforços para se esquecer, que Toby conseguira lográ-lo.

Já a tarde ia no fim quando Bunny se dirigiu para a clareira de larlcios, a sua preferida em Burchester Park, disposto a vaguear por ali e a fumar umas cachimbadas, a fim de recordar os acontecimentos recentes. Andava vagarosamente, com as mãos cruzadas nas costas e os olhos fixos à sua frente.

Conseguira que Toby lhe prometesse desposá-lo assim que o velho Bishop abandonasse a casa, mas, embora tivesse vencido essa primeira batalha, não sentia a desejada paz de espírito. As palavras de Sheila tinham-no perturbado muito, mas as de Toby, a interpretação que ela dava à sugestão da outra, tinham-no perturbado ainda mais. O instinto da lealdade era muito forte em Bunny Brian e, agora que vencera, via-se assaltado por uma dúvida grave, perguntava a si mesmo se estaria a proceder lealmente para com a rapariga. Toby era jovem, mas havia muitas raparigas que casavam novas. Não, não era a sua juventude que importava, nem a sua juventude nem o facto de conhecer tão pouco do mundo. Havia qualquer coisa, qualquer coisa que se manifestava nos olhos da noiva e nos modos de Sheila, que o fazia pensar. Perguntava a si mesmo, sem bem saber porquê, se, no fim de contas, não seria mais decente e justo esperar.

Gostava de poder aconselhar-se com Jake, embora temesse não saber definir por palavras os receios que o atormentavam. Jake era um camaradão e compreendia muitas coisas, mas, infelizmente, estaria ausente mais uma semana...

A recordação do pai da rapariga atravessou-lhe o cérebro, mas foi logo posta de parte. Estava, também, ausente, mas, mesmo que não estivesse, o exterior rude e inacessível do capitão Larpent fá-lo-ia engolir as palavras. Tinha uma certa simpatia pelo homem, mas parecia-lhe que o procedimento de Toby não lhe merecia grande interesse. Apenas lhe interessavam o mar e o iate.

Bunny pensava, melancólico, que a vida era um caso muito mais complicado do que, até então, lhe parecera. Assim pensando, chegou à cancela que levava à mata de corte e notou que o ar estava impregnado de fumo de cigarro, mais activo do que o do seu cachimbo.

Tirou-o da boca, e olhou à sua volta, admirado.

- Viva! - exclamou uma voz muito sua conhecida.

- Incomodo?

E Saltash saiu do meio das árvores, estendendo-lhe a mão.

- Viva! - repetiu Bunny, sem esconder a surpresa. Um sorriso de boas-vindas iluminou-lhe o rosto, e os olhos do outro responderam-lhe, enquanto os seus dedos lhe apertavam a mão, como se fossem molas.

- Que fazes por aqui?

- Ia fazer-lhe a mesma pergunta - declarou Bunny.

- Venho aqui muitas vezes, à tarde. É o meu local favorito. Mas o senhor...

- Faço o mesmo, pela mesma razão.

- Pensava que estivesse longe, no mar alto!

- Bem, estive, de facto-concordou, - não me demorei. As máquinas do "Lua Azul" avariaram-se, nada de importância, evidentemente, mas regressámos para se fazerem as necessárias reparações. Nunca se sabe o que acontece numa primeira viagem. Sobretudo, meu amigo, estava com uma certa curiosidade de saber como iam progredindo os negócios daqui. Vai tudo bem?

- Suficientemente bem.

-Já resolveram quando se casam? - perguntou Saltash, dando-lhe amigavelmente o braço.

Bunny empertigou-se momentaneamente, como se o instinto o pusesse em guarda contra a amável pergunta, mas, logo a seguir, distendeu-se, impulsivo e confiante:

- Bem, está mais ou menos combinado - respondeu.

- Mas... não a acha demasiado nova para se casar? Pouco viu ainda... Não lhe parece injusto levá-la a casar-se sem se lhe proporcionarem as mesmas oportunidades que se ofereçam às outras raparigas?

- Não, meu Deus! - E olhou o rapaz, de olhos semicerrados. - Por que pensas em tal coisa?

Bunny tornou-se escarlate. Apoiou as mãos na cancela e olhou para longe, para o vale distante.

- Foi Sheila Melrose quem mo sugeriu, esta tarde, embora deva admitir que já tinha pensado no caso. Sabe que Toby conhece pouca gente e, como disse já, é muito nova. Não quero apoderar-me dela por uma vantagem desleal.

- A vida é demasiado curta para se pensar nessas coisas - cortou Saltash, secamente. - Casa com ela enquanto a tens nas mãos e não sejas burro! Se, na minha juventude, tivesse feito o mesmo, estaria agora muito melhor.

- Estaria, talvez, desejando ter feito o contrário msinuou o rapaz, sorrindo.

- Oh, não há dúvida de que estás muito bem informado! Mas olha cá, sabes para que regressei? Para os ver casados! Todos os preliminares habituais, todos os compassos de espera são apenas sensaborias, maçadas, parvoíces! Arruma o caso, homem! Nada te faz esperar. Larpent está ansioso por que tudo se resolva e, como eu, acha que, quanto mais cedo, melhor.

- Era de esperar - murmurou o rapaz, com certa amargura.

- Bem, no teu caso não podias desejar mais. Ele tem o seu trabalho e não é aquilo a que se chama um pai de família. Também não é nenhum gastador e, por isso, não precisas de te pôr com esses ares de mártir!

- Não faço tal coisa!

Saltash riu-se e bateu-lhe no ombro:

- Estou a falar para bem da tua alma, meu velho! Não te fies em mais conselhos, sobretudo nos de Sheila Melrose! Segue para a frente e casa! Sei que tens dinheiro, mas não deixes o trabalho por esse motivo. Continua aqui, terás a Dower House enquanto eu servir de estorvo sobre a terra, e o castelo Burchester assim que me puserem, sossegadinho, debaixo dela!

- O quê? - perguntou Bunny, duro. - Charlie, cale-se, por favor! Está a dizer patetices, como sempre. Não quero o seu castelo para nada! Deve casar-se e arranjar um herdeiro seu. Diabos me levem se vou consentir que me adopte!

Saltash ria-se descuidado e trocista, mas com um certo ar de majestade e segurança que transparecia em todos os seus gestos:

- Faz o que te dizem, meu amigo! Aceita o que os deuses te mandam, sem contestações! Quanto a mim, sigo o meu caminho. Nunca casarei nem terei, portanto, um herdeiro do meu sangue. Burchester significa mais para ti do que para mim e, por isso, passará para as tuas mãos quando eu morrer. Achas que serás aqui feliz, com a Toby?

- Diabos levem tudo! - vociferou o rapaz, colérico.

- O senhor fala como se fosse morrer amanhã!

- Oh, amanhã talvez não! Mas receio bem não chegar à velhice. Sou um homem que gosta de agarrar as oportunidades, de se aventurar, e, àqueles que jogam com os deuses, acontece-lhes, infalivelmente, haver um dia em que erram na jogada - por um momento toda a zombaria lhe desapareceu no rosto, que se tornou tão sério como Bunny nunca o vira. - A vida é uma velha feira onde tudo se prova e tudo se esgota à primeira dentada... Sabe-se, tem-se a maldita certeza de que não se provará duas vezes o mesmo fruto bom. Mas tu nunca saberás o que isto é, meu amigo! Tiveste o bom senso de seguir pelo caminho certo, e verificarás que a paga compensa a caminhada. Jake ensinou-te, hem? Deves agradecer à tua boa estrela o facto de o teres tido a ele como cunhado, em vez de me teres a mim.

- Não diga asneiras! - resmungou Bunny.

- De acordo! Falemos de coisas sensatas e sérias exclamou, levantando os braços e rindo. - Posso contar que continuarás a administrar a propriedade? Se te aborreceres, arranjaremos um agente, mas estou satisfeito com as coisas assim, como estão agora. Amanhã vamos deitar uma olhadela à velha Dower House. Fica num sítio bonito, como sabes - domina Graydown. Esse facto deve agradar a ambos.

- Diabos levem tudo, Charlie! - repetiu o rapaz, desesperado. - Não posso falar nesse assunto, não posso aceitar! Você é excessivamente generoso e eu não fiz nada para o merecer.

- Oh, fizeste, sim! - afirmou, inesperadamente. - Fizeste-me muitas coisas boas. Foste sempre o "bom amigo", fossem quais fossem os meus actos, desde a tua infância até - e o rosto moreno sorriu, amigo e terno. - Estiveste sempre do meu lado, não foi, Bunny? Defendeste-me sempre!

- Mas que tem isso? Um homem deve defender sempre os seus amigos!

- Mesmo que saiba que eles o não merecem? Sim, é precisamente isso que me faz gostar de ti, é esse o único ponto em que nos parecemos. Não tenho, no entanto, a certeza absoluta de que me defendesses se soubesses precisamente por que espécie de tipo lutavas...

- Oh, cale-se com isso!

- Muito bem, voltemos aos teus negócios. Já mandaste lançar os banhos? Arruma as coisas depressa, suplico-te! Não posso ficar aqui indefinidamente. Para te falar verdade, nesta ocasião devia estar na Escócia. Não podes fixar a data imediatamente? Serve-te do carro pequeno e desaparece, para tratares de tudo. O velho Bishop vai Aguentando isto até ao Inverno e a Maud preparará a IJower House. Quanto a mim... ficarei em liberdade para vaguear, mais uma vez, pelo deserto.

- Você é... fantasticamente bom para mim.

- Parece-te? - Franziu as sobrancelhas, divertido.

- Receio que se esteja desenvolvendo em mim o gosto pelas boas acções! Bem, o que não vejo é razão para que vocês se não casem e arrumem a vida o mais depressa possível! Esta noite irei falar no assunto a Larpent e, amanhã, podes ir combinar tudo com o padre. Verás que Toby não porá dificuldades. É uma boa menina e faz o que lhe mandam.

- Sim, a Toby não se importará - concordou Bunny, recordando, enternecido, a sua súbita rendição. - Pelos deuses, Charlie, é um amigo, ajudando-me assim. Ninguém consegue resolver as coisas como você!

- Oh, podes contar comigo! Nunca gostei de marcar passo. A vida é demasiado curta para isso. Voltaremos a encontrar-nos amanhã. Vai jantar comigo, se quiseres, e depois me contas o que tiveres arranjado. Boa noite e... boa sorte!

E voltou-se, sumindo-se entre os larícios, quase sem ruído, como viera, deixando Bunny de novo só.

O rapaz ficou quieto, encostado à cancela, admirando a duna calma e coberta pelo manto da noite. Não havia satisfação na sua atitude, apenas meditação, meditação profunda. Nunca compreendera Charlie, embora, por estranho que parecesse, sempre tivesse confiado nele. Mas, naquela noite, uma dúvida o magoava, uma dúvida que se entrepunha entre ele e a natural exultação que devia sentir. Por que voltara Charlie tão depressa? Por que estava tão interessado em ingerir naquele assunto? Por que se mostrava tão magnânimamente generoso? Tinha o doloroso pressentimento de que havia algo por detrás de tudo aquilo, qualquer motivo que não compreendia, qualquer incentivo que ele, Bunny, não aprovaria se o conhecesse. Gostaria de adivinhar de que se tratava. Não era próprio de Saltash interessar-se tanto por um assunto e parecia-lhe que, por qualquer modo inexplicável, o estavam a trapacear.

Quis afastar o pensamento, mas não o conseguiu. Do mesmo modo que, um pouco antes, se sentira logrado por Toby, se sentia agora por Saltash, que não conseguia compreender. Era como se tivesse na sua frente uma porta fechada e não encontrasse a chave. Uma vez mais desejou que Jake estivesse presente.

Dirigiu-se, finalmente, para casa, descontente e mal disposto, censurando-se a si próprio por teimar em ver mistérios onde não existiam.

Os estábulos de Graydown eram um modelo de bem ordenada eficiência, e Bunny orgulhara-se sempre de mostrá-los aos amigos. Desta vez, porém, o sentimento dominante com que aguardava o general Melrose e a filha era de impaciência. Viera mais cedo na esperança de encontrar Toby em liberdade, mas não conseguia descobri-la em parte alguma. Esquecera-se de a avisar na véspera e ela saíra a cavalo, logo a seguir ao almoço, segundo Maud lhe dissera.

- Virá a horas do chá - prometera a irmã, e Bunny teve de contentar-se com a perspectiva de lhe falar no interesse de Saltash por ambos, depois de os visitantes se irem embora.

Nunca se sentira com menos disposição para receber amigos do que naquela tarde soalhenta de Setembro. No entanto, esperava-os no largo pátio, passeando dum lado para o outro.

Entretanto, ia pensando que sempre tivera muitos pontos comuns com Sheila Melrose e que, talvez por isso, gostava da rapariga. Desta vez, porém, era precisamente essa amizade que, por motivo estranho e incompreensível, lhe tirava toda a vontade de a receber. Achava-a desconcertante, talvez por se mostrar demasiado directa nas suas opiniões. Para cúmulo, as palavras de Toby martelavam-lhe constantemente o cérebro: "ela gosta o suficiente de ti para não querer que cases comigo". Não havia dúvida de que aquelas palavras tinham qualquer significado. Talvez fosse apenas instinto, como Toby dissera, mas estava convencido de que Sheila considerava o seu noivado um erro. Que nutrisse por ele qualquer sentimento além de simples amizade, nem por momentos admitia. A esse respeito, Bunny não tinha vaidade nenhuma. Havia muito de rapaz, de camarada, na sua maneira de ser para com as raparigas e, por isso, a ideia vaidosa de que pudessem amá-lo nunca o assaltava. com Sheila sucedia o mesmo; eram amigos e essa ideia, só por si, afastava a possibilidade de existir algo de mais profundo entre ambos. Era honesto em todos os seus actos, e o seu amor por Toby

- aquele amor delicioso e bravio, o primeiro amor da sua vida - enchia-lhe todos os pensamentos, excluindo tudo o mais. A sua beleza estranha e doce prendia-o, fascinava-o. Achava-a tão absolutamente diferente de todas as raparigas que conhecia! A cada encontro aumentava a embriaguez, a admiração e o encanto.

Mas Sheila não aprovava o seu casamento e, por esse motivo, um naturalíssimo sentimento de irritação indispunha-o contra ela. Miss Melrose tinha, sem dúvida, o direito de ter as opiniões que quisesse, mas devia guardá-las para si. Entre a teimosa insistência de Saltash para se despachar, e o desejo velado de Sheila para impedir, Bunny sentia-se embaraçado e achava que a vida se lhe complicava, como se, a despeito dos seus esforços para conduzir o seu barco, surgissem correntes contrárias ante as quais ficava impotente.

Desejava ardentemente ter Toby junto de si e a sua ausência aborrecia-o, embora soubesse que não estava a ser razoável. Porém, quando viu o automóvel do general entrar no portão, sentiu-se estranhamente aliviado por se encontrar só. Toby não se mostrava à vontade com eles, imaginava que não a aprovavam e, quer a ideia fosse ou não justificada, ainda bem que não estava ali para os receber. Despachá-los-ia o mais depressa possível, resolveu.

Sheila, envergando vaporoso vestido de Verão, parecia mais bela do que nunca, e Bunny notou-o, embora contra vontade. Contra sua vontade, também, o sentimento de irritação desvaneceu-se, após escassos minutos da sua companhia. O encanto de Sheila ultrapassava a mera beleza, a rapariga tinha um tacto e umas maneiras que só a experiência da sociedade podem conceder. Era simpática e de compreensão viva, pondo todos à vontade, sem necessitar de ser aduladora. Raramente se mostrava indignada e, neste particular, talvez só Saltash soubesse até que ponto era capaz de o fazer. Mas Saltash não era homem para comunicar aos outros o que descobria.

Assim, naquela tarde de Setembro conseguiu restaurar, sem o mínimo esforço, não só o bom humor de Bunny, como também, a sua amizade. Percorreram as cavalariças e o rapaz descreveu-lhes as qualidades dos seus favoritos, com um entusiasmo de que, pouco antes, se julgara desprovido. Os estábulos tinham sido o seu grande prazer desde a infância, e tanto o general como a filha se mostravam interessadíssimos pelo que viam.

O tempo passou com incrível rapidez, até que o badalar do grande relógio da propriedade veio recordar a Bunny que a tarde estava, praticamente, acabada.

- A Maud vai supor que nos esquecemos do chá! exclamou, sorrindo. - Vamos para casa, sim? Ela espera-os e recomendou-me que os obrigasse a ir.

Sheila sorriu também e aceitou o convite.

- Não deixaríamos de nos despedirmos de Mr. Bolton

- disse. - Miss Larpent não está hoje em casa?

- Está, mas foi dar uma volta a cavalo. Deve chegar dum momento para o outro. É pena que o meu cunhado não esteja, mas só deve vir para a semana.

- É de facto pena, pois gostava de lhe falar - confessou o general. - Diga-lhe que gostei muito de ver os animais, e que tem tudo isto num primor! Nunca consegui compreender como Saltash se resolveu a separar-se dos estábulos.

- Raramente está em casa - desculpou Bunny. - Fazer cruzeiros agrada-lhe mais do que criar cavalos. Sabem que já chegou?

- Sim? Tem a certeza? - perguntou a rapariga, surpreendida. - Pensava que estaria ausente durante muito tempo!

- As suas intenções nunca duram mais do que dois dias - observou o general, azedo. - Nada do que ele faz me surpreende.

- É uma excelente pessoa-defendeu -, então, tem sido de uma verdadeira bondade. Mas olhem!

- gritou bruscamente.

- Ei-lo! Ele e... Toby!

À esquina de uma das cavalariças apareceram duas figuras caminhando a par. Ambas vestiam traje de montar, mas, como o dia estava quente, a rapariga despira o casaco e trazia-o, sem cerimónia, sobre o braço. A camisa de seda abria-se-lhe no pescoço, e o chapéu descaía-lhe airosamente para um dos lados. Ria-se alegremente, parecendo um pequeno vaqueiro saído das pradarias.

O homem que vinha a seu lado também se ria, mas não havia nele a graciosidade da companheira, apenas um ar naturalmente majestoso que lhe conquistara o título de "Rex". Depressa viu os visitantes, tirando o chapéu num gesto real de saudação.

Toby corou e pareceu, por momentos, disposta a fugir. No mesmo instante, porém, se recompôs e, tomando uma atitude meio provocadora, voltou a sorrir. Bateu com o chicote nas polainas e aproximou-se.

Bunny franziu a testa ao observá-la.

- Parece que saíste duma ópera cómica - censurou, mesmo antes de se encontrarem. - Por que não vestes o casaco?

- Porque tenho menos calor sem ele - retorquiu, fazendo-lhe uma careta. - Podes levá-lo, se quiseres - atirou-lho despreocupadamente, e voltou-se para Sheila. Visitaram as cavalariças? Gostaram? Andei a treinar um dos potros mais novos. Quase me arrancou os braços, mas mesmo assim ensaiámos alguns saltos.

- O que não devias fazer! - declarou Bunny - o terreno é muito duro para saltos.

- Ninguém pediu a tua opinião-replicou Toby, encarando-o mal humorada. - Sei muito bem quando se podem dar saltos com segurança. Vai tomar chá, Miss Melrose? Então, não perca tempo. Que é? Diga?

Soltou as duas perguntas em tom diferente, como que assustada. Sheila fitava-a intensamente, com uma espécie de pasmo e reconhecimento no olhar.

A rapariga recuou, rindo, mas com uma expressão que não era bem de riso.

- Que se passa? - insistiu. - São os meus calções de montar? Bunny, deixa ver o casaco! Depressa, antes que Miss Melrose desmaie! Causei-lhe o maior choque da sua vida!

- Por favor - protestou Sheila, recompondo-se. Não seja absurda. Apenas me fez lembrar alguém... muito ao vivo. Ainda não sei bem quem é, mas é alguém...

Bunny ajudou Toby a vestir o casaco, carrancudo, sem proferir palavra. Como o general conversava com Saltash, os três jovens estavam, a bem dizer, sós.

- Já me viste neste preparo centenas de vezes - disse Toby ao namorado, soltando uma gargalhada. - E hás-de ver mais ainda. Como és ridículo! - e voltando-se para Sheila - Miss. Melrose, esqueci-me de que a menina não me tinha ainda visto assim e lamento muito tê-la... chocado. Vamos agora tomar chá?

Sheila ainda tinha a mesma expressão de pasmo; no entanto, sorriu-lhe:

- Não fiquei chocada, evidentemente, mas... mas...

- Mas? - interrompeu a rapariga, como num desafio. No mesmo instante Saltash voltou-se, metendo-se na conversa:

- Tive o prazer de cumprimentar Miss Larpent pela excelência da sua arte... - murmurou, descuidado. - Encontrámo-nos no portão das dunas e fui testemunha de óptimos momentos de equitação. Miss Melrose, ouvi dizer que partia amanhã e a notícia desolou-me. Tenho sempre o azar de ficar para trás.

O sorrisinho duro que só ele conseguia provocar em Sheila desenhou-se-lhe nos lábios, ao responder:

- Para uma tão rápida cavaleira, é na verdade infeliz. Saltash riu-se, impudente.

- Sim, pois que, segundo me contaram, o diabo costuma agarrar sempre o último - replicou. - De qualquer modo, Miss Larpent regressou sã e salva e, por isso, será sempre, facilmente, a primeira.

- Mas que vantagem há em andar muito depressa? perguntou Bunny, escarninho.

- A vantagem de nos afastarmos completamente retorquiu Toby, espirituosa.

Os olhos do rapaz brilharam de fúria. Não sabia explicar por que motivo o contraste entre as duas raparigas

- a de vaporoso vestido de Verão e a de traje de montar arrapazado - o enfurecia de tal modo.

Toby compreendeu-o e, por seu turno, os olhos brilharam-lhe também. Ficou à espera da resposta, maldosa e ousada. Bunny, no entanto, não lhe respondeu. Respirou fundo, cravou os dentes no lábio inferior e voltou-se na direcção da casa.

- Que diabo! - exclamou Toby, batendo o calcanhar no chão.

E afastou-se, entre Saltash e o general, que brincaram com ela. Atrás, Bunny e Sheila caminhavam em silêncio.

Toby encontrou Maud aguardando as visitas, na sala comprida e baixa donde se desfrutava a melhor vista das dunas. Saltash entrou como se pertencesse à casa e Maud cumprimentou-o com leve surpresa e evidente prazer.

- Não podia estar vinte e quatro horas em Burchester sem vir vê-la - murmurou Saltash.

- É sempre bem-vindo, como sabe - respondeu-lhe, com um sorriso que só os amigos mais íntimos conheciam.

Sentaram-se perto de uma das largas janelas e o general Melrose não perdeu tempo, começando logo a prender a atenção da anfitriã. Sheila sentou-se numa cadeira que Bunny lhe ofereceu e Saltash olhou à sua volta, à procura de Toby. A rapariga tinha-se sentado na ponta dum sofá e brincava com as orelhas do cão. Sem hesitar, Charles Rex atravessou o aposento e, ao chegar junto dela, baixou-se, começando também a entreter o animal.

Toby estremeceu e corou um pouco ao senti-lo chegar, mas nem olhou para ele nem, sequer, disse qualquer palavra. Naquele momento estavam, a bem dizer, sós, esquecidos pelo grupo que ria perto da janela.

- Vai vestir o fato mais juvenil que tiveres! Anda, corre! - murmurou, curvando-se mais.

A rapariga levantou a cabeça, procurando-lhe os olhos. Uma súbita chama de compreensão brilhou-lhe no olhar e, sem uma palavra, levantou-se.

Quando, poucos segundos depois, Maud procurou a amiguinha com o olhar, deparou com Saltash recostado no sofá, brincando distraidamente com as orelhas do cão e de olhos fixos em frente, numa abstracção muito rara nele.

Chamou-o, para se lhes juntar e tomar chá, e ele levantou-se dum pulo, aproximando-se com o trejeito amacacado que Maud considerava a máscara atrás da qual escondia a alma.

Sentou-se a seu lado, tratando-a com a galantaria que sempre empregava quando estava junto dela. Ninguém parecia reparar na ausência de Toby. Falavam de tudo: de cavalos, de Jake e das suas recentes vitórias, da temporada em Fairharbour e dos planos dos Melroses para o Inverno. E, quando o general quis saber os de Saltash, este respondeu-lhe aereamente que jamais fazia planos.

- Para que os hei-de fazer se nunca me regulo por eles?

- Que fraqueza a sua! - censurou Maud. Sorrindo-lhe, com aquele sorriso antigo, entre terno e audacioso, Saltash mudou de assunto.

Quando a refeição terminou foi o primeiro a levantar-se, mas não se foi embora. Limitou-se a encostar-se à ombreira da porta, a fumar, enquanto Bunny e Sheila falavam de ténis e golfe e Maud escutava, com bem dissimulada paciência, as velhas e repetidíssimas recordações bélicas do general.

E foi então, quando o chá estava frio e esquecido e Sheila começava a pensar que se fazia tarde, que se ouviu um coro de gargalhadas, no jardim, e Toby apareceu à vista, com Molly sentada num ombro e Eileen a correr à sua volta. Trazia um vestido branco e parecia apenas uma garota, a dançar na relva como uma fada, misturando as suas gargalhadas com os risos infantis das amiguinhas. A mais novinha agarrava-se-lhe com força ao pescoço e fitava-a com um ar de adoração infantil, enquanto Eileen, a mais velhita, olhava para cima num ar da mais séria devoção.

- Santo Deus, Mrs. Bolton! - exclamou o general, interrompendo a conversa e encarando o trio que avançava.

- Que belo quadro!

Sheila deixou também de conversar com Bunny e Saltash esboçou um movimento quase imperceptível, como se quisesse, ao mesmo tempo, avançar e permanecer imóvel.

- Há muitos anos que não via um quadro tão lindo!

- repetiu o general. - com que facilidade se modifica a filha de Larpent! É um perfeito azougue! Que idade tem?

- Quase vinte anos - informou Bunny, com a resposta pronta do "dono".

- Quase vinte anos! Quem diria? Nesta altura não aparenta mais de catorze! Olhem para aquilo, olhem para aquilo! - Toby acabava de atravessar o jardim, como uma borboleta num voo vertiginoso, quase nem tocando com os pés no chão, mas sempre com a garota sentada no ombro.

- Sim, parece, de facto, ter catorze anos - concordou Maud, com o seu sorriso doce. - Sabem o que ela fez, outro dia? Foi uma loucura, evidentemente, e o meu marido zangou-se muito. Também me assustei, embora tenha mais fé nela do que ele. Amarinha como um gato e lembrou-se de colocar as duas pequenitas num dos ramos altos da faia! Não faço ideia de como conseguiu tal proeza! Nenhuma das garotas se mostrava assustada até Jake entrar em cena, com uma escada, e trazer as filhas para baixo. Quis também trazê-la, mas Toby subiu mais para cima e começou a atirar-lhe com os frutos da árvore, até ele desistir, a meu pedido.

- E que aconteceu depois? - perguntou Saltash, sem despegar os olhos da rapariga. - Pelo que tenho podido observar, Jake não é daqueles que toleram uma retirada ignominiosa...

- Oh, Jake sabe ser generoso, quando quer! - elogiou Maud, sorrindo. - Ralhou-lhe, claro, mas não se mostrou muito severo. Ah, olhem! Vai subir ao relógio de sol!

- Deve estar nervosa, Mrs. Bolton! - declarou Sheila, voltando-se para ela. - Se Toby cai, a garotinha magoa-se muito, com certeza.

- Mas não cairá - afirmou Maud, confiada.

No mesmo instante, a alvejada começou a amarinhar pelo relógio, deixando o chão como uma ave o deixa, sem o mínimo esforço, e voltando a pousar, como um pássaro pousa após um voo curvo, com absoluta liberdade e uma elegância de movimentos indescritíveis e agradáveis à vista.

- Um verdadeiro número de circo! - comentou o general, enquanto a testa de Bunny se desanuviava.

- Um número de circo, na verdade! - concordou Sheila, como se falasse para consigo própria. - Como conseguirá fazer aquilo?

- É como um rapaz, em muitos aspectos - murmurou Maud.

- Sim, é precisamente como um rapaz... Ou, pelo menos - seu olhar passou de Maud para Saltash e em seguida desviou-se, perdendo-se ao longe.

Pouco depois Toby entrou na sala, com as duas garotas coradas e sorridentes, ela própria parecendo uma menina saída da escola. Nesse instante Sheila levantou-se.

- Agora temos de ir andando - murmurou, olhando para Bunny. - vou dar a volta ao carro.

- Eu vou - ofereceu-se o rapaz.

E acabaram por ir os dois. Afastaram-se lado a lado, silenciosos como tinham vindo poucas horas antes. Ao vê-los partir, Saltash levantou-se também:

- Vou-me embora. Bunny jantará comigo esta noite

- disse para Maud. - Não vai também?

- Obrigada, mas não posso! - recusou, estendendo-lhe a mão. - Convide-me qualquer outro dia. Certamente que o jantar correrá melhor só consigo e o Bunny presentes.

- Impossível! - declarou, galante, mas não insistiu. Despediu-se do general e saiu.

Toby e as duas garotas acompanharam-no até ao fim do terraço, falando todos ao mesmo tempo. A rapariga parecia estar alegre e bem disposta e Saltash riu e brincou com ela, como se, na realidade, a considerasse apenas a criança que parecia. Só à despedida a deteve, com uma simples palavra:

- Nonette!

E ela, que ia já a fugir-lhe, ficou imóvel, como se ouvisse uma palavra de ordem.

Saltash não a olhava nem o sorriso que tinha nos lábios se adequava às palavras que pronunciou:

-Tem cuidado com a maneira como te portas! E... não voltes a ver Bunny enquanto eu não falar com ele.

Toby respirava com dificuldade. Parecia uma estátua, com as duas garotas a agarrarem-lhe as mãos, o rosto pálido e os olhos azuis fitos nele, numa interrogação muda.

- Porquê? Porquê? - murmurou, por fim.

- Aquela rapariga lembra-se de ti. Acabará por fazer com que ele te ponha de parte, talvez, até, já esteja a fazê-lo. Eu falarei com ele, dir-lhe-ei a verdade, se for preciso. De qualquer maneira, deixa-me tratar do assunto!

- Dizer-lhe... a verdade? - As palavras saíram-lhe roucas, como um grito, e os olhos alargaram-se-lhe de terror.

- Vai-te embora, criança! Vai! O que eu fizer será apenas para teu bem. Não te esqueças de que velo por ti. Não tenhas medo! Vamos, vai!

Era uma ordem e ela obedeceu-lhe, sem largar as garotas. Logo a seguir deitou a correr e sSaltash, voltando-se para o lado oposto, caminhou na direcção do pátio das cavalariças.

Caminhava descuidadamente, como era seu hábito, assobiando baixinho uma canção alegre ao compasso da qual toda a Inglaterra dançava, naquela época. O seu rosto moreno tinha aquela expressão meio divertida meio maliciosa com que costumava afrontar - e enganar - o mundo. Ninguém sabia o que ficava para lá daquela máscara e apenas muito poucos suspeitavam de que havia qualquer coisa.

Ao ouvir o bater das esporas no empedrado branco, Sheila Melrose, que estava parada junto do automóvel do pai, voltou-se bruscamente e viu-o. Tinha o rosto contraído, mas a expressão modificou-se-lhe imediatamente, dando lugar àquele desdém gelado com que o olhara, há tempos, numa festa alegre em Valrosa.

Bunny, que se inclinava para o automóvel, notou-lhe a presença quase ao mesmo tempo e endireitou-se, encarando-o. Sheila estava pálida, mas ele estava mais branco do que a cal, com a testa coberta de suor e o olhar que deitava ao amigo transbordando censuras.

Saltash deixou de assobiar, ao aproximar-se, mas manteve a mesma expressão, como se não notasse nada de anormal.

- Posso dar uma ajuda? - perguntou, descuidado.

-O general já aí vem.

Sheila voltou-lhe as costas e entrou no automóvel, sem proferir palavra.

Bunny também não se mexeu nem falou. Parecia paralisado. Foi Saltash quem, com o seu ar majestoso, pôs o motor a funcionar, accionando a manivela.

A rapariga nem sequer lhe agradeceu, limitando-se a voltar-se para Bunny, quando o carro começou a andar, dizendo-lhe um simples adeus.

- Escreve? - perguntou o rapaz, como um autómato.

A garganta contraía-se-lhe espasmòdicamente e as palavras pareciam sair à custa de gigantescos esforços. Sheila baixou a cabeça, numa afirmativa, e passou entre ambos, pelo portão que conduzia à outra entrada da casa.

- Anda comigo para conversarmos - ordenou Saltash, assim que a perdeu de vista.

Mas o rapaz recuou, num gesto instintivo de defesa. Continuava a olhar para o outro, sem falar, a tremer da cabeça aos pés.

- Agora não sejas burro! - murmurou Saltash, num tom suave e compassivo. - Mergulharam-te num pesadelo, mas eu posso explicar tudo.

Bunny estremeceu, cada vez mais pálido, mas conseguiu, por fim, falar:

- Pode guardar para si as suas malditas mentiras. Não me interessam.

O contacto dum chicote no seu ombro fê-lo estremecer, como um animal excitado estremece ao sentir as esporas. Saltash, no entanto, ria-se.

- Vais bater-te comigo, por causa do que disseste!

- murmurou.

- Não lhe tocarei! - replicou o rapaz.

- Ai não? - e troçava dele, abertamente. - Então... retirarás o insulto... com desculpas?

- Desculpas... a si!

- Ou desculpas ou luta! Creio que a última hipótese te faria melhor, mas tu decidirás.

- Não farei nem uma coisa nem outra - declarou, virando-lhe as costas. - Os meus assuntos consigo estão todos arrumados.

- Enganas-te. Tens de encarar a verdade, e essa só eu ta poderei dizer. Essa rapariga não sabe nada. Bunny!

- gritou, em tom seco e autoritário. - Volta-te, estás a ouvir? Volta-te, danado! Dou-te um pontapé se não te voltares!

E Bunny voltou-se. Era inevitável. Ficaram cara a cara e Saltash, esquecida toda a zombaria, agarrou-o por um braço, com força, como se os dedos descarregassem electricidade. Naquele momento - só naquele momento - era perigoso. Havia algo de tigre nos seus gestos.

- Doido! - gritou, com os dentes cerrados. - Tiveste a coragem de supor que eu seria capaz de tal patifaria?

- Deixe-me ir embora - pediu, muito pálido. - Factos são factos.

- Onde está o Jake? - perguntou, sem o largar.

- Está fora.

- Diabos o levem! Está fora precisamente na ocasião em que era preciso - a ferocidade desaparecera, extinta como a última labareda entre cinzas. - Bem, então escuta. Juro-te por tudo quanto há de sagrado que laboras num erro. Sheila deve ter-te dito uma verdade, mas tu deixaste a tua imaginação soltar-se, correr à desfilada! O resto é falso.

Falava com tal ênfase que Bunny se interessou, mau grado seu. O fogo da ira extinguiu-se-lhe também.

- Se o teu cunhado aqui estivesse, dir-te-ia que estou a dizer a verdade e tu acreditarias - insistiu o outro, adivinhando a vantagem que conseguira e agarrando-a com as mãos ambas. - Segues uma pista errada. Pela parte que me toca, podes segui-la até te fartares, pois já estou acostumado a que os meus amigos me presenteiem com gracinhas desse género, mas maldito seja se vou consentir que a garota seja prejudicada sem motivo nenhum! Estás a ouvir, Bunny! - e sacudiu, impaciente, o braço que segurava. - Ver-te-ei primeiro no inferno!

A boca de Bunny contraiu-se num esforço penoso para sorrir:

- Já estou no inferno! - declarou.

- Por que deste ouvidos a essa rapariga, porquê? Vamos, temos de resolver este assunto. Manda um homem levar o meu cavalo, que nós vamos a pé, pelo parque.

Ganhara a primeira etapa da batalha graças à sua insistência, e sabia, tão bem como Bunny, que ele se amaldiçoava pela sua fraqueza. Atravessara-lhe uma espada no coração, mas, mesmo assim, o rapaz conseguira suportá-lo e ouvi-lo!

Seguiu-o em silêncio, maldizendo tudo e, sobretudo, aquele magnetismo a que não sabia resistir.

Quando deixaram os limites da casa e começaram a percorrer as dunas, Saltash iniciou a sua defesa, crua e veementemente, como era seu hábito:

- Não está no meu carácter dar uma resposta a qualquer homem que faça uma pergunta, mas tu, tu nem sequer perguntaste! É por isso que te vou dizer a verdade. Sheila viu Toby a trabalhar como pajem no Casino Hotel de Valrosa, não foi? Já calculava. Uma tragédia numa casca de noz. Talvez a tenha visto, também, mas nunca reparei nela, até à última noite que lá passei. Nessa ocasião encontrei António, o gerente do Casino, a espancar a pobrezita, no jardim, e fi-lo acabar com a paródia. Terias feito o mesmo. Depois, já noite alta, voltei para bordo e encontrei-a no salão. O iate já ia a caminho. Podia ter voltado atrás, mas não o fiz. Tu também o não terias feito. Ela procurou refúgio junto de mim e eu dei-lho. Veio para mim como um rapaz e como um rapaz a tratei.

- E sabia?

A careta zombeteira atravessou-lhe o rosto, fugidiamente, como um meteoro atravessa um céu enevoado.

- Suspeitava, meu amigo, mas nem o confessava a mim próprio. Fi-la meu criado de quarto, consenti que me engraxasse os sapatos e escovasse os fatos. Certa vez, meti-a na ordem com isto - e mostrou o chicote.

- Não acredito! - resmungou Bunny.

- Como queiras, meu caro - declarou, encolhendo, desdenhoso, os ombros. - Tratei-a como a um cachorrinho de estimação, mostrando-me amável, mas não excessivamente. Chegou a altura em que, por acaso, resolvi voltar a Inglaterra, pois nada pode durar eternamente. Voltámos e, na última noite que passaríamos a bordo, fomos ao fundo. Naturalmente, os meus planos foram, também, por água abaixo. Salvámo-nos, os dois juntos, e logo se propalou a notícia escandalosa de que havia uma mulher a bordo. Bem sabes, meu amigo, como uma pequena faísca pode produzir um incêndio... Em defesa própria, vi-me obrigado a inventar qualquer coisa, e inventei-a rapidamente: disse que a pequena era filha de Larpent. Não sei se terias pensado no mesmo, mas, se pensasses, procederias como eu.

Voltou-se para o rapaz, com um brilho triunfante no olhar, mas não obteve resposta ao seu júbilo. Bunny caminhava pesadamente, com os olhos fixos em frente e o rosto vincado de tristeza.

- Bem, acabei! - murmurou Saltash. - Agora conheces a verdade, simples e pura, como Sheila Melrose não a sabe. Mesmo que a soubesse, talvez não a compreendesse.

- Não a meta neste assunto! - gritou, com a voz estrangulada. - Tirou a conclusão... óbvia.

- Oh, a conclusão óbvia! óbvia! - e havia cinismo latente na palávra.

- Só os jovens e inocentes podem dizer com alguma convicção quais são as acções... óbvias dos patifes. Tu não o podes dizer... nem eu. Um simples impulso decente da parte dos patifes é capaz de reduzir a pó todos os cálculos dos virtuosos. Oh, Bunny, é preciso que sejas muito doido para quereres deitar tudo a perder, no ponto em que as coisas estão! Não vês que recebeste uma dádiva dos céus? Aceita-a, homem, e agradece por te considerarem digno dela.

Bunny fez um gesto de protesto. Saltash observava-o com uma compaixão meio cómica, como um adulto que olha para uma criança que partiu um brinquedo, e o rapaz sentiu que perdia terreno. No entanto, não se considerou ainda vencido. Charles tinha, até certo ponto, vingado Toby, mas ainda teria muito que lutar para chegar ao fim.

- Por que estava tão ansioso pelo meu casamento com ela? - perguntou Bunny, parando. - Preciso que mo diga.

Compreendeu que Saltash ia mentir-lhe, embora o outro, ao responder-lhe, o olhasse bem de frente:

- Nada me custa dizer-to, meu rapaz. Tenho, por acaso, um interesse paternal por ambos vós.

Bunny sentiu-se amolecer. Algo naquela resposta o comovia, embora não soubesse explicar o quê nem porquê.

- Só isso? - perguntou, com a voz presa.

- Só isso - e sorriu ao de leve, o sorriso do espadachim experimentado por detrás da espada.

Bunny ficou uns momentos a olhá-lo, com o rosto severo e preocupado. Até àquele ponto, e embora contra vontade, acreditara-o; dali em diante não o acreditaria mais. No entanto, sentia-se impotente ante um esgrimista habilidoso. A experiência do outro podia lográ-lo a cada instante.

- Nunca notou que ela gostava de si? - perguntou, com a voz estrangulada, compreendendo que expunha o peito ao ataque.

Mas Saltash não feriu. Apenas, por um momento, se mostrou surpreendido. Depois, bruscamente, baixou a arma e encarou Bunny com um sorriso de camaradagem.

- Francamente, Bunny, se tivesse notado tal coisa o resultado seria o mesmo. Na minha idade, não há lugar para devaneios sentimentais. Ela nunca foi para mim mais do que um cachorrinho, um daqueles cachorrinhos que brinca com as nossas mãos.

- Oh, creio que é assim que as trata a todas! - exclamou Bunny, recomeçando a andar. - Mulheres e cães... são muito semelhantes.

- Nem todas - retorquiu. - Toby, por exemplo, é uma excepção. Sabe levar as coisas a sério.

- Sim? - e fez uma pausa, como se chamasse a si todas as forças, voltando-se, depois, de novo para o outro.

- Agora vou-me embora. Não posso jantar consigo, embora não esteja desejoso de me zangar. Mas bem vê... deve compreender... não posso... não posso nunca mais... aceitar seja o que for de si. Lamento... mas não posso.

- Que vais fazer?

Bunny hesitou, pálido e desesperado.

- Que se passa, Bunny? - insistiu Saltash, tocando-lhe levemente, quase numa carícia, com a ponta do chicote. Pensas que te menti?

- Não quero zangar-me consigo - declarou o rapaz, sustentando-lhe o olhar. - Não vale a pena, não vale.

- Obrigado - e soltou uma gargalhada. - Colocas a minha amizade num lugar bem alto. Diz-me o que vais fazer.

- Que lhe interessa o que vou fazer? - e os olhos de Bunny brilharam de súbito, furiosos. - Não estou a pedir-lhe que me ajude.

-Já o compreendi, mas, mesmo assim, talvez possa ajudar-te. Como disseste, não vale a pena discutirmos nem zangarmo-nos. Nem vejo razão para tal, a não ser o facto de me teres chamado mentiroso sem nenhum motivo particular para o fazeres.

-Tem alguma objecção a esse respeito? - indagou Bunny.

- Talvez, como disseste, não valha a pena - declarou Saltash, com um gesto de indiferença. - No entanto, tenho um certo direito de saber o que te propões fazer, uma vez que, como deduzo, não consegui satisfazer-te.

- Tem um direito! - gritou Bunny, indignado.

- Sim, tenho um direito - repetiu Saltash, com voz suave e confiante. - Talvez te esqueças - ou te lembres

- de que protegi Nonette no dia em que ela me pediu auxílio e, depois disso, nunca deixei de o fazer. O que lhe interessa, interessa-me a mim.

- Compreendo! - gritou, agressivo. - Sou responsável perante si, não é?

- Era isso, precisamente, o que tentava dar-te a entender.

Os olhos de Bunny brilharam uns momentos, mas a ira acabou por os abandonar de novo. Se tivesse que lutar com Jake, teria lançado um desafio aberto, mas Saltash, com quem nunca se zangara, era menos fácil de resistir, pois sabia, dum modo subtil, deitar por terra toda a resistência e levar a sua avante.

E foi o que aconteceu desta vez. Quase sem dar por isso, Bunny disse tudo:

- vou ter com ela e perguntar-lhe a verdade, toda a verdade, acerca do seu passado.

- Conheces alguma mulher capaz de dizer uma verdade tão grande?

- Descobrirei, se não ma disser.

- E servir-te-á de alguma ajuda? - A nota trocista que nunca ficava ausente por muito tempo da sua voz, voltava a fazer-se ouvir. - Não sabes que, às vezes, não é conveniente saber demasiado? É tão perigoso ser-se perscrutador, meu amigo. Chega uma altura em que pagamos o erro.

- Imagina que a ignorância me pode satisfazer?

- Insinuei, apenas, que ias demasiado longe - murmurou, sacudindo os ombros. - Mas o caso é contigo, não comigo. Os deuses mandaram-te uma dádiva e tu vais fazê-la em bocados, para satisfazeres a curiosidade. E, depois de a destroçares, atirá-la-ás fora, porque... ficaste na mesma ignorância. Não compreendes, nunca saberás compreender, que as melhores coisas que a vida nos dá são as que nunca conseguimos ver em toda a claridade, mas apenas divisar de modo indistinto.

Havia sinceridade e zombaria na sua voz e Bunny compreendeu-o, sentindo nascer dentro de si uma espécie de respeito reverente. Era como se assistisse à revelação de qualquer coisa sagrada, num deserto.

Comoveu-se. Embora estivesse convencido de que, pelo menos num ponto, Saltash o iludira, sentia-se fortemente inclinado a seu favor. Contra a própria vontade, continuava a encará-lo como amigo.

- Importa-se de me dizer - começou, falando devagar e com os olhos fitos em Saltash - se alguma vez tentou saber donde ela veio... o que ela é?

- O que ela é, sempre o soube; donde veio... nunca tive necessidade de saber - afirmou, com um pequeno gesto de admoestação.

- Então - começou, com dificuldade, mas sem levantar os olhos - diga-me... como se estivesse diante de Deus... o que supõe que ela é!

- O que eu "sei" que ela é - corrigiu - dir-te-ei de bom grado: é uma criança que viu o inferno, mas... continua a ser uma criança.

- Que quer dizer?

Os olhos de Saltash, um preto e outro cinzento, fitaram-no num inesperado desafio:

- Quero dizer que o fogo a lambeu, mas que, na realidade, não lhe tocou.

- Sabe isso? - perguntou arquejante, com o olhar torturado. - Homem, pelo amor de Deus, a verdade!

- Disse-te a verdade.

- Como a sabe? Não tem provas. Como pode ter a certeza? - e as palavras soavam cada vez mais angustiadas.

- Como sei? As provas? Bunny, meu doido, sabes tão pouco do mundo, das mulheres? De que provas precisas? Olha-lhe para os olhos, basta isso!

A voz soava-lhe apaixonada e Bunny compreendeu, ao ouvi-la, que divisava, finalmente, a verdade pura. Sentiu-se fascinado por ela e verificou que não podia ir mais longe, que não precisava de ir mais longe.

Impulsivamente, mastigando uma desculpa, estendeu a mão, que Charlie apertou com força.

- Satisfeito? - perguntou, com aquela máscara sorridente que tão pouco deixava ver.

- Sim, satisfeito - afirmou o rapaz, encarando-o bem de frente.

E separaram-se, poucos minutos depois, quase sem proferirem palavra. Nada mais havia a dizer.

Naquela noite Saltash jantou sozinho. Sentia-se impaciente e preocupado, mal reparando no que lhe punham à frente, e nem sequer tocou no vinho. Levantou-se, por fim, sem dissimular um gesto de enfado.

- vou fumar para os baluartes - disse ao mordomo.

- Se vier alguém, que espere na sala-de-música.

- Muito bem, senhor. E onde deseja que lhe sirva o café?

- Nos baluartes não, com certeza! -exclamou, rindo.

- Tenho suficiente pena de ti para não te fazer amarinhar até lá cima. Põe-no numa lamparina de álcool, na sala-de-música, e não te preocupes. Não precisam de ficar a pé, nem tu nem ninguém. Apagarei as luzes.

- Muito bem, senhor - repetiu o criado, retirando-se em seguida.

Saltash escolheu um charuto e acendeu-o, fazendo uma careta que lhe repuxou as feições. Tinha o ar dum homem que olha a última carta e sabe que vai perder. Saiu da sala e subiu as grandes escadas que conduziam à sala-de-música, de cabeça levantada e ar indiferente. No entanto, quem o observasse ver-lhe-ia as sobrancelhas franzidas e uma expressão de incomensurável enfado.

Uma única lâmpada encarnada iluminava o aposento, que parecia sombrio e fantasmagórico. Saltash ficou uns instantes parado, olhando à sua volta, e depois, encolhendo ligeiramente os ombros, afastou os cortinados que escondiam a porta de acesso à torre. A escuridão, porém, não o atraiu, pois voltou atrás, resmungando, e tirou uma pilha eléctrica de cima da escarpa da chaminé. Acendeu-a e abriu a porta, que se fechou silenciosamente sobre ele.

A medida que subia as escadas acompanhava-o, prolongado, o eco dos seus passos nos degraus de pedra, e as paredes cinzentas apareciam, foscas e desoladas, sob o foco de luz. A meio do caminho, parou para sacudir a cinza do charuto e riu de alto. Os ecos da gargalhada repercutiram-se como vozes gritando no escuro, e Saltash retomou a subida, mais depressa, como um fantasma aprisionado que procura a saída. Os ecos perseguiam-no, a solidão era como uma praga, e o próprio ar cheirava a morte.

Chegou, finalmente, à pesada porta que conduzia aos baluartes. Abriu-a com esforço, saindo para o ar livre.

Sob a luz da Lua cheia divisavam-se, lá em baixo, as suas terras. Um quadro maravilhoso a preto e prata. Parou junto da primeira fresta das ameias, subiu ao parapeito e deixou-se ficar, com as mãos apoiadas, uma de cada lado.

A noite silenciosa trazia até ali o marulhar doce do mar. Os olhos irrequietos de Saltash moviam-se dum lado para o outro, parando em todos os pormenores da cena tranquila, mas não se demorando em nenhum. Os pinheiros agitavam as ramarias, lá muito em baixo, como se segredassem uns com os outros e, para os lados do lago, um mocho piava, teimoso, num piar que se assemelhava a uma voz humana, quase a um grito de angústia. Depois calou-se e as árvores ficaram imóveis.

O silêncio impôs-se, como uma cortina pesada a cobrir tudo, e a solidão insinuou-se no coração do homem.

- Eis o teu reino, Charles Rex! - exclamou, irónico e triste, tirando o charuto da boca.

Voltou-se e saltou para a passagem estreita, entre as ameias. O piar do mocho fez-se de novo ouvir, mas a desolação persistiu. Saltash começou a andar, de mãos cruzadas nas costas e cabeça pendente. Ali ninguém o veria, podia tirar a máscara trocista. Era como um prisioneiro a tentar desviar, com as mãos, as paredes de pedra que o não devolveriam à liberdade.

Parou um instante, para atirar fora o charuto, mas não voltou a olhar para a paisagem fantástica das suas terras. Olhava para outras coisas, entre elas para o vasto vazio de toda uma vida, que se estendia, inútil, desde os anos que já vivera até aos que teria ainda de viver. Como um viajante solitário que parasse no meio do deserto, assim parava e via a nudez que o rodeava.

Fora até muito longe, calcara, com ardor, diversos caminhos, mas, agora, o ardor abandonara-o, deixando-lhe apenas o vazio e a solidão. Vivera uma vida febril e variada, bebera, profundamente, muitas águas, mas nunca ficara satisfeito. E agora parecia-lhe que tudo quanto vira, tudo quanto conseguira, não passava de miragem. Não possuía nada daquilo por que lutara, o fruto transformara-se-lhe em cinzas, na boca, e não divisava uma única fonte onde pudesse mitigar a sede.

Talvez poucos homens conseguissem avaliar, como Charles Rex avaliou, naquela noite, o desperdício total de uma vida má. Mas ele avaliava-o bem, via-o com nitidez para qualquer lado que se voltasse. Fora sempre seu hábito satisfazer os caprichos de momento, quer o impulsionassem para o bem ou para o mal. No entanto, nunca estivera na sua maneira de ser sacrificar-se, até que uma noite lhe aparecera uma criança, de olhos espantados, e lhe pedira protecção e abrigo.

Fora este o começo de uma era nova. Atraíra-o como nada o atraíra ainda, fazendo-lhe entrar no coração qualquer coisa nova de que não mais conseguira libertar-se, reduzindo a insignificâncias tudo o mais.

Saltash pensava em tudo isto enquanto ia passeando entre as ameias do seu castelo. Começava a colher o que semeara, e como a safra era pobre!

O tempo passava e Saltash continuava a caminhar, incansável. Se passasse toda a noite nos baluartes, ninguém o saberia nem se preocuparia com isso. Era melhor estar ali do que debater-se com a insónia, dentro de casa. Oh, naquela altura uma casa sufocá-lo-ia! Mas, por fim,

o cansaço físico começou a apoderar-se dele. Sentia-se fatigado, mortalmente fatigado.

Sentou-se num pequeno vão, entre as ameias, e mergulhou num estado de entorpecimento propício a visões. Nem estava a dormir, nem podia considerar-se acordado. Por momentos nada aconteceu, até que, bruscamente, como se saísse do vácuo, uma presença se lhe impôs, lhe alcançou e penetrou o espírito. Intangivelmente, sentiu um chamamento, uma voz a falar-lhe na alma.

Levantou a cabeça e olhou à sua volta. Vazio, simples vazio, era tudo quanto o rodeava. No entanto, como se lhe acenassem, ergueu-se e, sem olhar para trás, venceu a distância que o separava da porta da torre. Abriu-a e começou a descer no escuro, sem acender a pilha eléctrica.

Um raio de luar filtrava-se por uma das frestas da parede, como uma espada que se lhe atravessasse no caminho. Saltash parou, por uma fracção de segundo apenas, e logo continuou a descer, seguro e confiante. Quando chegou ao fim da descida arquejava e tinha nos olhos um fogo estranho. Abriu a porta e passou pelos cortinados, com os movimentos rápidos de um homem que não pode tolerar demoras, entrando na sala comprida que apenas uma lâmpada vermelha iluminava, num canto distante. Começou a caminhar para a porta de acesso à galeria, mas, mal dados meia dúzia de passos, estacou. Nenhum som, nenhuma circunstância visível o fizera parar, mas havia qualquer coisa que o detinha, como uma palavra de ordem. Passou o olhar à sua volta, rapidamente, e, de súbito, estremeceu, fixando a luz vermelha.

Passaram-se segundos antes que se movesse. Depois, veloz e silencioso, atravessou a sala. Junto da lâmpada ficava um sofá, profundo, no qual sobressaíam as manchas duma pele de leopardo. Na extremidade do sofá, sobre a pele, brilhava qualquer coisa da cor do oiro, a que os olhos de Saltash se prenderam.

Parou, silencioso, e ficou-se a admirar. E, naquela cara morena, de feições cansadas, boca cínica e expressão amarga e melancólica, espalhou-se uma luz tão radiosa como nunca ninguém, homem ou mulher, lhe vira. À sua frente, enroscada como um cãozinho cansado, com os caracóis louros espalhados pela pele de leopardo, estava Toby, adormecida.

Permaneceu imóvel, durante minutos, olhando-a sem que ela acordasse, sempre com aquela luz estranha a iluminar-lhe o rosto amargo e melancólico. Não se mexia, nem, sequer, parecia respirar, mas, de qualquer modo, Toby pressentiu a sua presença, pois, com serenidade e naturalidade extraordinárias, os olhos azuis abriram-se, pousando nele.

- Viva! - saudou, sonolenta. - Já são horas de levantar?

Mas logo se ergueu, com brusquidão, o rosto aflito e envergonhado:

- Pensava... pensava... que estava no iate! Não queria... adormecer aqui! Vim para lhe falar, porque precisava de o ver.

Pôs-lhe a mão no ombro, tranquilizando-a, e falou-lhe com uma voz suave, mas singularmente vacilante:

- Está bem, Nonette! Desculpa ter-te feito esperar. A rapariga olhou, com os lábios trémulos, e murmurou patética:

- Foi horrível! Estive aqui horas e horas, pensando que não vinha nunca mais. O seu criado... disse-me que não devia interrompê-lo.

- É doido!

-Foi... foi... o que eu disse - e soltou uma gargalhada, arquejante. - Mas pensei... pensei... que talvez preferisse que eu esperasse - e estremeceu, num arrepio.

- Não gosto desta sala. Não pode levar-me para outro lado?

Saltash baixou-se e segurou-a pelo cotovelo, ajudando-a a erguer-se. Toby endireitou-se, como impelida por molas, e ficou à sua frente, ousada e tímida.

Sem lhe largar o braço, Saltash voltou-se para a parede ao lado da escarpa. Toby olhava-o, curiosa, vendo-o espalmar a mão sobre o painel de carvalho.

- vou descobrir todos os seus segredos - disse, infantilmente.

- Todos, não - volveu ele.

Ouviu-se o estalido duma mola e o painel de carvalho deslizou para o lado, deixando divisar uma abertura comprida e estreita. A rapariga voltou a olhar para ele e aninhou-se-lhe no braço, soltando nova gargalhada, desta vez exultante:

- Ainda bem que veio!

Ficaram parados, olhando o escuro. Toby, porém, não hesitava, toda ela vibrando no desejo de seguir para a frente. Depressa a luz se acendeu, iluminando o aposento.

Era uma sala estranha, apainelada e cónica, com uma espécie de cúpula de vidro a servir de telhado, e sem uma única janela. As lâmpadas estavam escondidas atrás dum fresco colorido de figuras orientais e, visível, apenas havia uma, vermelha, sobre uma mesinha, apoiada na boca duma cobra embalsamada.

- Que linda sala! - exclamou a rapariga.

- Melhor do que a sala-de-música?

- Muito melhor! - afirmou ela, procurando-lhe o olhar. - Podia ser o seu gabinete, no iate.

Saltash espalmou a mão, atrás dele, e de novo se ouviu o estalido da mola. Empurrou-a docemente para a frente. Caminhavam sobre peles de tigre, que abundavam por toda a parte, no chão e num canapé baixo, junto da mesita, o qual, com esta, formava o único mobiliário do aposento. Toby apertava o braço de Saltash, apertava com força, numa súplica muda, sentindo nele algo de diferente, de quase impossível, que a assustava. A sua chocarrice descuidada, as suas ironias de dois gumes não a incomodavam, mas aquele silêncio era como que uma espécie de barreira desconhecida e inultrapassável. Por isso se agarrava com força ao seu braço.

Conduziu-a ao canapé e deixou-se ficar, imóvel e sério.

- Então... Toby?

- Está... zangado comigo... por ter vindo? - perguntou, trémula, mas sem o largar. - Tinha... de ser!

- Está bem, pequenina! - murmurou, olhando-a nos olhos. - Quer dizer que... precisas dum amigo.

- Preciso... de si! - volveu ela, com o olhar triste. Um dos antigos sorrisos trocistas atravessou-lhe o rosto, como se a desafiasse a ser clara. A seriedade desaparecera como uma sombra que se desvanece.

- E por isso vieste, no meio da noite... arriscando a tua reputação... e a minha.

- Não era noite fechada quando vim - afirmou, com um esgar doloroso. - Esperei horas e horas. Mas não tem importância, não tem importância. Encontrei-o, por fim. E, agora, não pode mandar-me embora, como fez antes, porque... porque... bem... porque não tenho ninguém para onde ir. Tê-lo-ia feito se tivesse vindo para baixo mais cedo, mas não veio, felizmente, e agora... não o pode fazer - e a voz vibrava-lhe de triunfo. - Agora tem de me deixar ficar... e eu vim para ficar!

- O quê?! - e inclinou-se para ela, fitando-a bem.

- Tenho de te deixar ficar? Que quer isso dizer? Bunny portou-se como um bruto para contigo? E eu que ia jurar que o tinha feito compreender!

- Bunny! - exclamou, rindo. - Não esperei por ele!

- O quê?!

Num gesto nervoso, Toby encostou-lhe a mão livre ao peito e continuou a olhá-lo, com os olhos bem abertos e firmes:

- Vim... para ficar! - repetiu. - Deixei um bilhete a Bunny, avisando-o de que não voltaria.

Saltash apertou-lhe a mão com força, atraindo-a a si, e Toby deixou-se atrair, soltando aquela gargalhada trémula que era mais eloquente do que as palavras e mais comovente do que as lágrimas.

- Que vou fazer contigo? - perguntou ele, baixinho.

- Desta vez, vai ficar comigo - murmurou, abraçando-o.

- Por que me manda sempre embora, para os outros, quando lhe pertenço só a si, a mais ninguém? É por querer dar-me uma oportunidade? Mas que oportunidade posso ter, longe de si, senão as de conhecer o inferno e a maldição? Não, não, ouça-me primeiro! Não lhe peço que me dê nada, apenas que fique comigo. Serei para si aquilo que quiser que eu seja, sempre, sempre. Serei a sua criada, a sua escrava, o seu... brinquedo. Serei o pó que o senhor pisa, mas deixe-me ficar. Ninguém me comprende, ninguém pode jamais compreender-me, mas o senhor compreendeu-me sempre.

- Tens a certeza de que te compreendes a ti própria?

Tinha-a apertada nos braços, com força, mas o seu olhar inquieto não pousava nela, parecia procurar qualquer coisa, num ponto distante.

Toby juntou as mãos, por detrás do pescoço dele, apertando-o quase com loucura:

- Não pode mandar-me embora! Se o fizer, morrerei. E eu peço-lhe tão pouco, tão pouco!

- Não sabes o que pedes, criança! - murmurou, com a sombria entonação dum homem que luta com o mal. Nunca soubeste, e é isso o pior.

- Sei! - gritou com ardor. - Sei tudo quanto preciso saber. Sei muito bem - arquejava, as palavras saíam-lhe roucas da garganta, mas os olhos continuavam levantados e firmes. - Sei muito bem o que teria acontecido, o que devia acontecer, se o iate não tivesse ido para o fundo.

Não tinha medo, nessa altura, nem o tenho agora. O senhor é o único homem da terra a quem o diria, pois detesto os homens, a maioria dos homens! Mas a si... a si... - um soluço sufocou-a e ela parou, tentando manter-se firme.

- Para si só quero ser aquilo de que mais precisa na vida. E, quando já o não puder ser, desaparecerei... como prometi... e o senhor nunca saberá de nada. Juro!

Os olhos azuis estavam cheios de lágrimas e, ante eles, Saltash esboçou um gesto de capitulação. Abraçou-a com mais força e, quando falou, a sua voz soava, de novo, descuidada e zombeteira:

- Bem; queres que te diga o que vais ser para mim, pequenina? - e sorriu-lhe, com o seu ar majestoso de confiança.

Toby deixou-se ficar, trémula e silenciosa, achando que ele se decidira muito depressa e receando atrozmente o que iria ouvir. A antiga máscara de desdém e escárnio voltara ao seu lugar, substituindo toda a seriedade; mas ela sabia que, por trás dela, havia uma força algo de diferente que a atraía irresistivelmente. Quis responder-lhe, mas não conseguiu.

- Eu digo-te - murmurou, soltando uma gargalhada.

- Resolvi pisar o caminho da virtude, pequenina, e a solidão incomoda-me. Vais quebrar a monotonia. Seremos virtuosos os dois... por uns tempos. Serás... a minha mulher!

Calou-se e, antes que pudesse evitá-lo, Toby sentiu-lhe os lábios na boca. Aquele beijo, porém, embora terno, era tão enganoso como o seu sorriso. Não era um beijo de amor.

- Sua mulher! - exclamou, recuando. - Está... está... a brincar! Como podia eu... eu... ser sua mulher?

- Tu e ninguém mais! - afirmou, alegre. - Por Deus, é o que a ambos convém! Por que não pensei nisto há mais tempo? vou mandar preparar imediatamente a carruagem! Vamos para a cidade, fugimos, e casamos antes que o mundo comece a murmurar. Por que estás assustada, queridinha? Porquê esse alarme? Não achas melhor ser a minha mulher do que... o pó que piso?

- Não sei! - titubeou, escondendo a cara daquele olhar trocista.

- Atordoa-te a perspectiva? - perguntou Saltash, sem deixar de rir. - As vertigens passar-te-ão depressa!

Conquistarás o mundo, serás a conversa predilecta da cidade!

- Oh, não! Não posso!

- O quê? Vais recusar?

Toby abraçou-o, apaixonada e violenta, mas não voltou a levantar o rosto.

- Não posso... recusar-lhe nada - murmurou, abafando a voz contra o seu peito.

- Assim está bem! A minha esposa fará sempre a sua vontade, salvo no que diz respeito ao seu marido. Para ele será sempre uma submissa mulherzinha. Sabes o que dirão, todos, quando souberem que Charles Rex casou, finalmente?

- O quê? - perguntou ela, apreensiva.

- É preciso dizer-te? Não adivinhas?

- Não. Diga-me!

- Dirão assim: Deus lhe ajude a mulher! - e beijou-lhe docemente os cabelos. - E eu responderei: Ámen!

Toby levantou bruscamente o rosto, ousada, com os olhos em fogo:

- Sabe o que direi se falarem assim?

- Não. Conta-me! - pediu, com os olhos também a brilhar.

- Convidá-los-ei a... a... ir para o inferno!

- E depois... começarão a lamentar o marido!

- Serei boa - disse ela, oferecendo-lhe os lábios num gesto infantil e encantador. - Serei boa. Não voltarei a dizer tais coisas.

-Oh, não sejas demasiado boa! - troçou ele, beijando-lhe os lábios trémulos. - Não poderia suportar tal coisa! Dirás o que quiseres, farás o que te apetecer, e serás... a minha rainha!

Toby sufocou um soluço, apertando-o com mais força:

- E o senhor será... o que sempre foi: o meu rei, o meu rei, o meu rei!

No silêncio que se seguiu a estas palavras apaixonadas, Charles Rex afastou-lhe os braços, docemente, e levantou-se.

 

- Nunca pensei que fosse assim! Embora estivesse sozinha, debruçada numa grande janela de movimentado Hotel de Paris, Toby pronunciou as palavras em voz alta. No seu rosto bonito pairava uma expressão estranha, entre divertida e descontente, e nos olhos azuis havia uma sombra de ansiedade, contrastando com o seu todo absurdamente jovem, quase infantil.

Lá em baixo uma multidão de carros, dos mais variados feitios, buzinava por todos os lados, produzindo um ruído semelhante ao rebentar duma grande corrente. Parecia impossível ter pensamentos coerentes naquela babel e Toby sorriu, com os olhos interessados na movimentada cena, embora o ar melancólico não a abandonasse. Devia descobrir sobejos motivos de interesse em tudo aquilo, tanto mais que não tinha por costume deixar-se aborrecer. O ruído duma porta que se abria fê-la voltar-se de repelão, com o rosto subitamente inundado de alegria:

- Até que enfim! - murmurou.

E Saltash aproximou-se, na sua maneira elástica, sorridente e alegre, beijando-lhe levemente as mãos que ela lheestendia.

- Aborreceste-te? com certeza que não, pouco me demorei. Por que não estás a descansar, como te disse?

Toby fitou-o e, embora os olhos lhe brilhassem de satisfação, a ansiedade não se desvanecera.

- Já descansei, monseigneur. Não estou fatigada, já. Agora vai mostrar-me os sítios bonitos de Paris?

- Os que não conheces? - insinuou.

- Poucos conheço. Nunca me aventurei muito, pois tinha medo.

Saltash agarrou-lhe num pulso, com força:

- E não tens medo... comigo?

- Não, monseigneur - mas os olhos tinham respondido antes da voz.

- Por que me tratas assim? Toby corou e baixou os olhos.

- Porque... lhe fica bem - respondeu.

Saltash fez uma careta, fitando o pulso cortado de veias azuis que os seus dedos apertavam:

- Sentes-te feliz, pequenina?

A rapariga acenou afirmativamente, mas não levantou a cabeça.

- A verdade, Nonette! - exigiu ele, imperioso.

- Digo-lhe sempre... a verdade! - murmurou Toby, voltando a acenar com a cabeça.

- Sério? - e começou a rir. - Não pensava que isso pudesse acontecer. Nesse caso, não me queres deixar... ainda?

- Deixá-lo?! - e fitou-o, espantada. - Eu?!

- Já somos casados há três dias-recordou-lhe, levantando còmicamente as sobrancelhas. - Não comecei já a abandonar-te... a desprezar-te?

- Eu... eu... bem... nunca esperei outra coisa - titubeou, voltando a cara.

- Que sensatez a tua, minha querida! - exclamou ele, batendo-lhe levemente nas faces. - Que sensatez! Então ainda não estás... suficientemente aborrecida para me deixares?

- Por que... pergunta?

Saltash tinha uma expressão de malícia jovial que a constrangia. Não lhe respondeu logo e Toby agarrou-lhe no braço, atemorizada:

- É o senhor... o senhor é que está aborrecido! - murmurou, levantando para ele os olhos cheios de lágrimas.

- Não, milady Saltash! - volveu ele, afagando-lhe novamente a face.

- Para mim... o jogo ainda agora começou. Mas, se desejares abandonar-me, tens oportunidade de o fazer agora. Chegou um cavaleiro para te libertar... um poderoso cavaleiro!

- Um cavaleiro? Oh, diga-me, explique-se!

- Um cavaleiro de polainas - elucidou, zombeteiro. Um cavaleiro que traz - ou devia trazer - um chicote no lugar da espada. Isto se eu o conheço bem!...

- Jake! - exclamou, incrédula.

- Isso mesmo! - e riu alto. - Jake! Muito digno e muito... obstrutivo! Que destino vamos dar-lhe, senhora minha? Matamo-lo ou oferecemos-lhe de comer e, depois, pomo-lo a andar?

- Está... a troçar! - exclamou ela, aterrada.

- Troço sempre, quando estou muito sério,

- Por favor! - e apertou-lhe o braço, com força.

- Que vamos fazer? Ele... ele... não pode fazer nada, pois não? Estamos... estamos... realmente casados, não estamos?

- Se estamos casados? Céus, criança! Que mais queres, para teres a certeza? Não viste a notícia, o preto no branco, no maior diário londrino? E achas que um jornal londrino pode mentir? Podes ter sonhado com a boda, mas aquele parágrafo... aquele parágrafo... só um verdadeiro génio literário seria capaz de o sonhar, embora um vulgar louco bastasse para o escrever! E então? Vês alguma coisa? Nada! Nem um rato, nem uma barata, uma simples baratinha!

Toby escondera a cabeça no ombro dele, agarrando-o com força, quase aterrorizada, e Saltash afagava-lha docemente, tranquilizando-a.

- Não consinta que ele me leve! - suplicou, após uma pausa.

- Prometeu... ficar comigo!

- Pois claro que fico. Foi para isso que casámos, é essa a própria essência do jogo. Alegra-te, Nonette! Nesta viagem não dispensarei nenhum dos meus pertences.

- Tem a certeza?

- A certeza de quê? - e por um segundo, um segundo apenas, tocou-lhe com os lábios nos cabelos.

- De que... não quer dispensar? - sussurrou ela, escondendo mais o rosto.

- Ah! - exclamou, com ar melancólico.

- Sim, tenho a certeza, querida. Sabes uma coisa? Vou-me divertir enfrentando o virtuoso Jake no seu próprio terreno! É uma sensação nova, Nonette! Ajudas-me a enfrentá-lo? Ou preferes proceder como as damas da era vitoriana, que se retiravam enquanto durava o combate e apareciam depois, para recompensar o vencedor?

Toby levantou a cabeça e soltou uma gargalhadinha zombeteira, afastando-se dele. O queixo endireitou-se-lhe, num desafio:

- Ficarei a ajudá-lo! - afirmou, toda a agitação desvanecida.

- Nesse caso, levantemos o pano - e fez-lhe uma vénia estudada. - Felicito-vos, madame, pelo vosso espírito! Creio que a entrevista não porá muito à prova a tua resistência, mas lembra-te de que, se, por acaso, os teus femininos ouvidos se sentirem chocados com qualquer expressão menos delicada, te podes retirar.

- Creio que não me retirarei por essa razão, monseigneur - volveu Toby, com ar malicioso. - Onde está ele? Como soube que vinha?

- Já cá está. Vi-o no escritório, a informar-se. Estava de costas para mim, mas aquele pescoço de touro não engana. Olha! - e voltou a cabeça. - Ouvi passos. Senta-te, pequenina, senta-te e mostra-te... digna.

Mas a ideia de dignidade de Toby traduziu-se por sentar-se na ponta da mesa, com as pernas a abanar. Se, no seu espírito, havia qualquer apreensão, soube escondê-la bem. Naquele momento parecia mais um rapazote mau e alerta do que outra coisa.

Bateram à porta e, por momentos, os seus olhos procuraram os de Saltash, que fez uma careta e tirou a cigarreira.

- Entre! - ordenou.

A porta abriu-se, dando passagem a um criado, que trazia um cartão.

Saltash mal o olhou.

- Pode entrar! - convidou, afável, para quem ficara da parte de fora. - Esperávamo-lo há algum tempo.

Jake entrou. Parecia encher o limiar da porta com os ombros largos. Vinha de mãos vazias, mas transparecia decisão e firmeza em cada um dos seus traços.

Saltash despediu o criado com um olhar, defrontando o rosto severo do outro com ar seguro e provocante.

- Tal como nos velhos tempos, comentou. - A única diferença, meu bom Jake, é que, desta vez, cheguei primeiro à meta.

O olhar de Jake desviou-se dele, parando na figura delgada de Toby, que se levantara. Estava corada, mas tinha os olhos bem abertos e, também, provocantes. Jake encarou-a durante algum tempo, firmemente, até voltar a olhar para Saltash, que esperava a sua vez batendo com o cigarro na tampa da cigarreira, indiferente e desdenhoso.

- Gostaria de falar dois minutos a sós consigo, se me puder atender - pediu Jake, com a voz suave como a de uma mulher, mas, apesar disso, estranhamente dominadora.

Saltash sorria. Olhou para Toby e, depois, para Jake, com uma arrogância natural e desdenhosa:

- Por outras palavras, deseja que... Lady Saltash... nos deixe? - inquiriu.

- Mas eu não vou! - interrompeu a rapariga, com firmeza.

Tinha as mãos enclavinhadas e parecia debater-se, no limite das forças.

Jake não voltou a fitá-la. Os seus olhos estavam presos em Saltash e lá se mantiveram.

- Quero falar só consigo - repetiu, com insistência.

Saltash fitou-o com ar chocarreiro, enquanto metia o cigarro entre os lábios. Depois estendeu-lhe a cigarreira, num convite mudo.

Jake, porém, nem pestanejou, como se não notasse o gesto, e a cigarreira fechou-se, na mão do outro, com um estalido que parecia traduzir a exasperação que o possuía e que só assim se manifestava, pois o seu rosto continuava a exibir a expressão de maldade calculada que lhe era habitual.

- Bunny veio consigo? - perguntou, indiferente, tirando a caixa dos fósforos.

- Não. Vim sozinho para falar consigo em particular.

- Vem dar-me algum tiro? - perguntou, acendendo o cigarro e expelindo uma nuvem de fumo.

- Dar tiros é bom para si e para os do seu quilate.

- retorquiu Jake, sereno.

Saltash riu-se, soltando nova baforada:

- Talvez seja por isso, por você não gostar de dar tiros, que sobrevivi tanto tempo - observou, escarninho. -Mas... também não vislumbro o chicote! Jake, meu amigo, não está a portar-se com o... entusiasmo próprio da ocasião. Valerá a pena oferecer-lhe uma bebida, para o estimular?

- Não, não vale a pena. Só quero que saiba que não me vou embora enquanto não tiver obtido os meus fins. E o senhor também não.

- Compreendo - declarou Saltash, em cujos olhos brilhou um súbito mas fugidio clarão de ódio. - Minha querida - disse, dirigindo-se à mulher - creio que o assunto se arrumará mais depressa se nos deixares por uns instantes.

Toby fitou-o, suplicante, e ele segurou-lhe delicadamente num braço, conduzindo-a à porta do aposento contíguo.

- É só o tempo de fumares um cigarro, querida.

- Ficarás comigo? - perguntou, com voz trémula.

- Não és a minha mulher? - volveu Saltash, esboçando um gesto de majestosa cortesia.

Abriu a porta e Toby entrou, sem sequer olhar para trás.

- Agora estou às suas ordens! - declarou secamente, dirigindo-se para Jake com certa altivez.

- Casou, então, com ela! - exclamou Jake, endireitando os ombros.

- Casei - replicou o outro, num tom de desafio, franzindo as sobrancelhas.

- Gostaria de... ver provas - pediu Jake, após curta pausa.

- O diabo é que você vai ver!

E, de novo, os olhos lhe chisparam de raiva. Durante um escasso segundo dir-se-ia um homem prestes a cometer qualquer violência, mas, inesperadamente, a expressão modificou-se-lhe.

- O diabo é que você verá, Jake! - repetiu, mas num tom tão diferente que as palavras pareciam, até, ter sido pronunciadas noutro idioma. - E porquê, se me permite a pergunta? - acrescentou, encostando-se à escarpa da chaminé.

- Creio que sabe porquê.

- Sim? O que eu sei é que vocês, os virtuosos, são sempre os primeiros a pôr maldade nas acções dos outros

- afirmou, com ar cínico. - E, supondo que o casamento não era legítimo, como tão polidamente insinuou, que aconteceria, meu digno Jake? Vamos, que aconteceria?

-Se o casamento não fosse legítimo, levá-la-ia comigo.

- Tem a certeza? - perguntou Saltash, indolente, sem se mexer donde estava.

- Absoluta!

- E se eu recusasse? E se ela recusasse?

- De qualquer maneira.

- E porquê? - e Saltash endireitou-se, brusco. Diga-me porquê! Que tem você a ver com todo este assunto?

- Apenas isto: essa rapariga precisa de protecção e eu posso dar-lha.

- Tem, também, a certeza disso? - perguntou, chocarreiro. - Esquece-se, segundo me parece, de que fui o seu primeiro protector. Ninguém, nem mesmo Bunny, podia tê-la sem meu consentimento.

- O senhor tinha sobre ela o direito de... descobridor

- concordou. - Soube-o desde o princípio, desde aquele dia em que me mentiu a seu respeito. Mas esperava, acreditava, até, que exercia esse direito para bem da pequena... e não para seu benefício.

- E depois? E se tivesse sido assim?

- Se tivesse exercido esse direito para bem dela, teria feito uma acção louvável e digna. Bunny é um cidadão respeitável, tê-la-ia desposado, tê-la-ia feito feliz.

- Bunny teve a sua oportunidade e perdeu-a. Da próxima vez procederá com mais juízo. Não me preocupo com ele, pois não merecia ganhar.

- E por isso decidiu pregar-lhe uma partida e pô-lo fora de combate!

- Fiz por ele o que me foi possível - replicou, sacudindo os dedos. - Só não podia obrigá-lo a proceder contra vontade. Por que não a foi procurar, quando deu pela sua falta? Não sabia onde devia encontrá-la?

- Não a procurou justamente porque sabia onde ela estava.

- Maldição! - gritou, furioso. - Terá o que pretende. Se ver é crer, vai certificar-se de que até Charles Burchester pode proteger uma rapariga metida em apuros pelas armadilhas dos virtuosos! - Tirou um sobrescrito duma algibeira e lançou-o, com força, para cima da mesa.

Os olhos de Jake, serenos e firmes, seguiram a acção, contemplando-o depois, durante alguns segundos, em silêncio:

- Talvez, no fim de contas, não precise de ver, milorde - murmurou, muito devagar. - Talvez... me tenha enganado.

Falava com a maior serenidade, mas os seus modos tinham-se modificado, adquirido uma certa deferência. Não fez menção de tocar no sobrescrito.

- Satisfeito? - perguntou o outro, lacónico.

- Nesse ponto, sim - afirmou Jake, continuando a observá-lo fixamente.

- Ainda há mais pontos? - quis Saltash saber, sacudindo a cinza do cigarro num gesto de ira.

Jake voltou-se e, lentamente, dirigiu-se para a janela. Olhou para baixo, para a cena que Toby admirara pouco antes, mas não via nada do que se passava. A severidade desaparecera do seu rosto, dando lugar a profunda compaixão.

Saltash continuou a fumar e, por fim, atirou com a ponta do cigarro para um cinzeiro, perguntando:

- Há mais alguma coisa que possa fazer por si? Jake voltou-se, pesadamente, como era seu hábito, e murmurou, muito devagar:

- Confesso que tenho pena da pobre rapariga.

- E que mais?

- Se eu estivesse em casa naquela ocasião, nada disto teria acontecido! Ou, se acontecesse... se acontecesse...

-Teria ido ao casamento! - rematou Saltash, trocista.

- Se acontecesse teria conseguido resolver o assunto, de qualquer modo-prosseguiu Jake, como se o não tivesse ouvido. - Agora parece-me demasiado tarde.

- Tenho a impressão de que teria ficado mais satisfeito se não tivéssemos casado - observou o lorde guardando o sobrescrito.

- Não - murmurou o outro, abanando a cabeça.

- O que me daria satisfação era saber por que motivo você a desposou.

- Meu bom Jake, nunca me detive em intenções ou motivos. Chame-lhe casamento de conveniência, se lhe agradar. Para mim, tanto faz.

- Daria muito para não lhe dar esse nome - volveu, de cenho carregado.

- Então chame-lhe o que quiser: capricho, fantasia, loucura momentânea, o que quiser! Não precisa de desperdiçar qualquer sentimento para o classificar... Tenho pena do Bunny, mas, se não tivesse sido burro, nada disto teria acontecido. Você não pode censurar-me, afinal, porque também fez o mesmo!

- Eu! -e os olhos faiscaram-lhe. - Não lhe sigo os exemplos.

- O senhor casou com sua mulher para a poupar a um destino que lhe parecia impróprio e, tal como eu, casou à pressa.

- Mas, diabos me levem, ela precisava de protecção! E eu amava-a, pelo menos!

- Nesse caso o seu motivo era inteiramente egoísta e fez-lhe uma vénia zombeteira. - A minha mulher, pelo contrário, não tem a pesar-lhe a devoção dum marido. Até agora nunca lhe falei em amor, apenas a protegi.

Fez uma pausa e, no mesmo instante, a máscara maliciosa contraiu-lhe as feições.

- Reclamo o lugar da mais alta virtude, Jake! - murmurou. - Só Deus sabe quanto tempo isto durará. Nunca o venci, mas desta vez... - e interrompeu-se, sacudindo a mão num gesto de desinteresse.

- Sim - concordou o outro - desta vez bateu-me. No entanto, eu não lutava para meu benefício nem pelo prazer mesquinho de o vencer, lutava por amor da pobre pequena

- e na sua voz vibrou, subitamente, uma nota suplicante, embora involuntária. - Não sei quais são as suas intenções, mas ela agora é sua, para bem ou para mal. Pelo amor de Deus, seja decente para com a pobre, se puder!

- Se eu puder! - exclamou, batendo-lhe impulsivamente num ombro, num gesto ao mesmo tempo amável e constrangido. - Pensa que não sei fazer uma mulher feliz, Jake? Pensa que não estudei o assunto, sob todos os aspectos? Pensa que sou um doido?

- Não, não penso que seja doido, milorde! - concordou, fitando-o. - Mas calculo que há uma ou duas coisas que, até mesmo o senhor, ainda tem de aprender. Nunca fez nenhuma mulher permanentemente feliz e há só um meio de o conseguir. Bunny tê-lo-ia conseguido, mas o senhor, bem, não estou bem certo...

- Bunny teria então feito isso, hem? - e a mão de Saltash fechou-se-lhe com força no ombro do outro, enquanto o desafiava num sorriso.

- Sim, Bunny tê-lo-ia conseguido - disse Jake. Bunny poria sempre a felicidade dela antes da sua própria, ter-lhe-ia dado o amor que dura e que é, afinal, a única coisa digna de se possuir.

- E julga que eu sou incapaz de fazer isso?

- Não o disse - observou Jake.

- Terei de prová-lo, não? - havia certa insistência no tom de Saltash, embora os olhos brilhassem de zombaria.

Jake fitou-o, silencioso, durante alguns instantes.

- Sim, calculo que terá de o fazer. Agora vou-me embora.

- Muito bem. Felicito-o por se ter abstido de tentar tirar-ma, Jake. Quer vê-la antes de partir?

- Não tenho especial empenho nisso.

- Nem quer deixar nenhum recado? - insistiu, olhando-o com uma expressão em que havia malícia e curiosidade.

- Não.

- Não quer oferecer-lhe um porto de abrigo quando o actual lhe faltar? - zombou Saltash.

- Quando isso acontecer - disse Jack, voltando-se receio bem que o meu auxílio já de nada lhe sirva, pobre garota!

Saltash franziu as sobrancelhas e, por momentos, quase espumou de raiva. Depois murmurou friamente:

- Felicito-o de novo. Começa a ver as coisas tal como são.

Jake sufocou um gesto de desdém, abriu a porta e saiu, firme e direito como entrara. Saltash ouviu-o afastar-se com um sorriso cínico e triunfante.

- O vilão vence, finalmente! - murmurou.

No entanto, quando se dirigiu para a outra porta, o sorriso cínico desvaneceu-se. Ficou uns momentos imóvel, encostado à ombreira, e, depois, começou a assobiar despreocupadamente e abriu-a.

- Já se foi embora? - perguntou Toby, ansiosa. Que disse ele? Que fez? Estava zangado?

- Se queres que te diga, não sei bem - declarou Saltash, supremamente desinteressado. - Foi-se embora. É o principal.

- Estiveram tão calmos, os dois - murmurou ela, sem esconder a surpresa. - Zangaram-se?

- Estiveste à escuta?

- Parte do tempo... não, todo o tempo! - confessou, corando e sorrindo. - Mas não ouvi nada... não, pelo menos não ouvi nada de importância. Está zangado?

- Disse-te que fumasses um cigarro! - ralhou, levantando um dedo.

- Desculpe! - pediu. - Posso fumar agora?

- Não! - recusou, puxando-lhe levemente a orelha. Agora vamos sair. Precisas de fazer compras. Primeiro, porém, tenho uma coisa para ti. Não estou bem certo de que gostes, mas é um pormenor. Poucos são os que conseguem aquilo de que gostam, neste mundo perverso.

- O que é?

Tinha os olhos brilhantes de ansiedade e parecia, mais do que nunca, um rapazito curioso. Saltash tirou um estojo da algibeira e estendeu-lho.

- Oh, o que é?! - repetiu, muito vermelha. - Não foi... não foi... comprar-me nada?

- Abre! - ordenou, peremptório.

Mas Toby hesitou, até que ele lhe agarrou nas mãos e a obrigou a abrir o estojo - uma fieira de pérolas descansava num leito de veludo azul.

- Oh, não devo aceitar! - exclamou ela, olhando-o mortificada.

- Por que não?

- Monseigneur... - murmurou, prestes a romper em soluços.

- Trata-me por Charles!

Continuava a prender-lhe as mãos e Toby baixou a cabeça e, impulsiva, beijou-lhas.

Saltash estremeceu levemente e largou-a, deixando-lhe o estojo na mão.

- Bem, estamos entendidos. Gostas das minhas pérolas, queridinha?

- Adoro... tudo quanto vem de si! - confessou, em voz baixa. - Mas isto... isto... não devo aceitar.

- Mas porquê? Não posso oferecer-te um presente? Não és... a minha mulher?

- Sim! - volveu Toby, cada vez mais baixo. - Mas... mas... uma mulher é diferente. Uma mulher... não precisa de presentes.

- Sério? Uma mulher é, então, diferente! Mas diferente em quê, pequenina?

- Coisas destas - disse ela, tremendo - são as que um homem deve dar à... à... mulher que ama.

- E, por esse motivo, achas que não são próprias para... a minha mulher?

Toby não respondeu, limitando-se a estender-lhe o estojo, sem ousar encará-lo.

Saltash observou-a uns momentos, com um brilho estranho nos olhos; por fim, tirou o colar da caixa e, destro, colocou-lho no pescoço.

- E eu... eu não posso dar-lhe nada! - gemeu, levantando para ele o rosto trémulo e irresoluto.

- Minha querida, já me deste muito mais do que imaginas! - afirmou, agarrando-a pelos ombros, como se acariciasse uma criança. - Mas não falemos agora nisso. Vamos às compras. Depois, logo à tarde, iremos a Fontainebleau e faremos um piquenique na floresta. Gostas?

- Imenso! - confessou, entusiasmada.

No entanto, quando saíram, ainda tinha o olhar dolorido e, embora levasse as pérolas, não voltou a fazer-lhes referência.

Mergulharam nas ruas de Paris e Toby começou a fornecer-se. A princípio mostrava-se acanhada e hesitante, até que Saltash, afável e descuidado, lhe fez compreender que podia comprar tudo quanto desejasse. Daí em diante, como uma colegial em férias, pôs de parte todas as hesitações, tornando-se curiosa e animada. Tão absorvida estava que nem deu pelo passar das horas, mostrando-se admirada quando, por fim, Saltash lhe fez notar que eram horas de almoçar.

-Oh, já deve estar farto de tudo isto! - exclamou, preocupada.

- Absolutamente nada! - garantiu, entre duas bafuradas do cigarro. - Foi... uma nova experiência para mim.

Toby olhou-o, num desafio, e Saltash acabou por se rir:

- Mas, sim, Madame! Repito que foi uma experiência nova! Sinto que estou a cumprir o meu dever.

- E isso não o aborrece? - perguntou ela, trocista.

- Se estivéssemos a bordo do velho "Mariposa Nocturna", ajustaríamos contas por causa da insinuação...

- Quem me dera que estivéssemos! - exclamou Toby, atrevida.

- És muito criança, Nonette! - disse ele, sacudindo os dedos.

- Não sou - afirmou, veemente - não sou! Não compreende que apenas me faço passar por isso?

- Nunca conseguiste enganar-me, querida. Nem uma só vez, desde que te encontrei, trémula, no meu camarote, até agora. Não serias capaz de o fazer, mesmo que tentasses.

- Tem a certeza? - perguntou ela, com os olhos a brilhar. - Lê em mim tão... facilmente?

- Como num livro!

- Uma vez enganei-o.

- Mas eu descobri-te.

- Descobriu-me porque... porque... eu quis. Fiz de propósito!

Saltash fitou-a, surpreendido, e Toby desatou a rir e a bater as palmas:

- Apanhei-o... Rei Charles! Bem vê, no fim de contas, é, apenas, um homem!

- E tu o que és? - inquiriu, deitando-lhe um olhar perfurante.

Toby baixou os olhos e não respondeu.

Voltaram para o hotel e almoçaram juntos, parecendo ter esquecido completamente o incidente da manhã. O nome de Jake não foi pronunciado uma única vez. Toby mostrava-se radiante, evidentemente entusiasmada com a perspectiva do passeio a Fontainebleau.

Pouco depois do almoço foi juntar-se ao marido, no vestíbulo, envergando um fato azul claro que tinham comprado de manhã.

Saltash caminhou ao seu encontro, com uma expressão aprovadora, e um homem com quem estivera a falar - um cavalheiro elegante, estrangeirado, com bigode e barba preta - olhou-a, espantado.

Toby endireitou-se, olhando exclusivamente para o marido, com ar de verdadeira princesa.

- O carro está pronto? Podemos partir?

- Sem dúvida - afirmou Saltash, acenando distraidamente ao outro homem e seguindo-a, com os lábios abertos num sorriso e um clarão no olhar.

- Aquele sujeito é Spentoli, o escultor - informou ele, ajudando-a a entrar no automóvel. - Um génio, Nonette! Ter-to-ia apresentado se não te tivesses mostrado tão... importante.

- Detesto os génios - afirmou, lacónica.

- Sério? - perguntou, rindo-se. - E quantos conheceste?

A rapariga ficou uns instantes pensativa e, por fim, resolveu não dar resposta.

- Sim, um génio - prosseguiu ele, dando a volta ao carro com considerável perícia. - Um dos mais interessantes do século. Os seus trabalhos são espantosos, quase custando a crer que sejam humanos. Também pinta. Paris inteiro sonha com as suas obras, e com razão. Um dos seus quadros, "A Vítima"... - e interrompeu-se bruscamente, fitando-a. - Que é, querida? É o Sol?

Toby tinha a mão sobre os olhos, como que a protegê-los, e tremiam-lhe os lábios.

- Não pare! - murmurou. - Não pare! Estou, apenas, um pouco atordoada.

Saltash acelerou e, pouco depois, Toby recostou-se, olhando em frente, muito séria e pálida.

O marido não fez qualquer pergunta, nem sequer a fitou, concentrando toda a sua atenção na tarefa de se libertar, o mais depressa possível, da chusma de automóveis que os rodeava.

Estava um esplêndido dia de Outono e toda a gente gozava as delícias do sol, mas Saltash gostara sempre de viajar depressa e, por isso, bem cedo deixou a cidade para trás. No entanto, nem depois de se ter desenvencilhado do tráfego se deu ao trabalho de falar com a companheira, todo entregue ao prazer de percorrer o caminho com a velocidade do raio.

Foi Toby quem quebrou o silêncio, impulsiva e infantil

como sempre:

- Caramba, você guia bem!

- Gostas? - perguntou ele, sorrindo.

- Muito!

Embrenhou-se a seguir numa conversação descuidada, a que o marido correspondeu com o maior à vontade. Quando entraram, finalmente, na sombra da floresta, estavam ambos na melhor das disposições.

Prepararam-se para tomar chá numa clareira arrelvada, que não se via do lado da estrada.

- Eis um bom sítio para um duelo - elogiou Saltash.

- Já tomou parte nalgum? - perguntou Toby, com interesse, olhando-o por cima do cesto das provisões.

Tirara o chapéu, e o cabelo louro brilhava-lhe quase como se irradiasse luz. O marido encostou-se a uma árvore, admirando-a.

- Nunca lutei para matar - murmurou ele. - A honra satisfaz-se, facilmente, neste país e, além do mais, há muito poucas coisas por que valha a pena lutar, Nonette!

- rematou, com um sorriso cínico.

- A vida é, já de si, demasiado curta, não acha? insinuou a rapariga, no mesmo tom de cinismo.

- Absolutamente! - concordou, frio. Toby baixou a cabeça, murmurando qualquer coisa para dentro do cesto.

- O quê? - perguntou Saltash.

- Nada! - replicou, tirando um embrulho de bolos e colocando-o no chão.

- Quero saber o que disseste! - ordenou, agarrando com força a mão que Toby ia a meter de novo no cesto.

- Disse que tinha trazido só uma chávena! - declarou, entre assustada e atrevida.

-Perdão, mas não foi isso! -gritou ele, apertando-lhe a mão para não a deixar fugir.

A rapariga fitou-o, mas não disse nada.

- Vamos, responde-me! - exigiu o marido.

- Podemos arranjar-nos só com uma chávena? - perguntou ela, baixando os olhos, toda a tremer.

- Respondes-me ou não?

Toby meneou a cabeça e ficou calada.

Saltash aguardou uns dez segundos, ao mesmo tempo que variadíssimas expressões se lhe sucediam no rosto, largando-a por fim, precisamente no momento em que Toby começava a assustar-se.

-Já uma vez bebemos do mesmo copo; portanto, podemos também beber da mesma chávena.

- Está zangado? - inquiriu ela, aliviada e duvidosa.

- Não.

- Mas parece - lamentou, segurando-lhe num braço em tom conciliador.

- Não estou!

- Então porque não está? - perguntou, numa súbita manifestação de espírito.

-Porque sei perfeitamente o que disseste! - retorquiu friamente. - Não é, nem nunca será, fácil enganares-me.

- Disse... disse... que o senhor não tirava o melhor partido da vida - murmurou, com a cara a arder. - E é verdade! É verdade!

- Como sabes isso?

Toby não lhe respondeu. Baixou a cabeça e começou a tirar as coisas, uma após outra, com uma rapidez nervosa. A certa altura, Saltash teve a impressão de a ouvir soluçar e, com desconcertante brusquidão, levantou-se, começando a andar.

Quando voltou, poucos minutos depois, com um cigarro meio fumado entre os lábios, encontrou-o à sua espera, com tudo preparado para comerem.

Saltash não disse nada, mas, ao sentar-se, tocou-lhe levemente no rosto, e Toby fitou-o, sorrindo.

-Já achei a outra chávena! - murmurou.

- Bem vejo - e, antes que ela lhe compreendesse a intenção, pegou-lhe, atirando-a com força contra um tronco, onde se fez em mil pedaços.

Toby sufocou um grito, fitando-o com os olhos abertos de espanto.

- Agora beberemos pela mesma chávena - disse Saltash, rindo-se.

-Foi... foi... por isso que a partiu? - titubeou, ofegante.

- Precisamente, Madame! - afirmou, expelindo uma baforada de fumo, num gesto de majestosa indiferença.

- Fazem-se estas coisas com uma esposa... Bem vês, uma esposa é... diferente!

- Com...preendo.

Escurecera já quando voltaram ao hotel, que apresentava um ar festivo. Havia flores por todos os lados e passadeiras vermelhas nos degraus da escada.

- Espera-se a chegada de Rozelle Daubeni! - informou Saltash.

- Quem? - e Toby estacou, empalidecendo. - Que nome disse? - concluiu, mais coerente.

- Mademoiselle Daubeni, o ídolo de Paris! Nunca ouviste falar nela? Esta noite vai dançar no grande salão. Hás-de vê-la. É algo que se não esquece.

- Sim, ouvi falar muito nela, muito - volveu, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha. - Não a quero ver. Não podemos jantar lá em cima?

- Oh, creio que não! - recusou Saltash, - Mostras-te muito pacata, querida, e isso não convém a uma Lady da tua posição.

E seguiu-a, na direcção do elevador. O vestíbulo estava cheio de gente, que ria e falava, aguardando a favorita, mas, quando Toby apareceu, tudo recaiu no silêncio. As mulheres empunharam lorgnons, para a admirar, e os homens voltaram a cabeça.

Saltash avançava com a altivez habitual, sem se voltar nem para a esquerda nem para a direita, mas reparando em tudo quanto se passava. Ninguém se lhe dirigiu. Em certas ocasiões, até aqueles que melhor o conheciam hesitavam em fazê-lo, tal a atmosfera de natural impenetrabilidade de que sabia rodear-se.

Esta era uma dessas ocasiões. Atravessou pelo meio de todos, majestoso, como um rei entre os cortesãos, e só depois de desaparecer da vista é que as conversas interrompidas se reataram.

- Não queres, então, admirar a primeira bailarina do século! - comentou quando entraram na sala-de-estar dos seus aposentos.

Ela voltou-se, com os olhos abertos e cheios de censura:

- Quer que eu a veja? A essa... mulher!

- Chama-me Charles, ouviste? - pediu, aborrecido. Ou fazemos a farsa de acordo com todas as regras, ou desistimos!

- Está zangado! - lamentou, fazendo-se mais pálida.

- Não estou zangado, pequenina! - afirmou, passando-lhe um braço pela cintura. - Pelo menos contigo não estou. Mas acho que te deves pôr no teu lugar. Não posso consentir que fiques aqui escondida. Aqueles parvalhões lá de baixo têm de acabar por se convencer de que não és a minha última fantasia, mas... uma instituição permanente, a minha mulher!

- Não tenho muito a sensação de ser isso, uma instituição permanente-disse Toby, - quando está zangado...

-Mas eu não estou zangado - e beliscou-lhe a orelha, como se ela fosse um rapazito. - Quer tenhas ou não essa sensação, és a minha mulher e tens de desempenhar o teu papel. Entendido?

- Tudo quanto quiser - murmurou, desalentada.

- Tens de aparecer o mais bonita possível, esta noite - recomendou, soltando-a. - Veste-te de azul, é a cor que te fica melhor. vou apresentar-te a Spentoli. Verás que fica logo desejoso de te pintar.

- Esse... canalha! - sibilou.

- Que tens esta noite, Nonette? - perguntou Saltash, surpreendido. - Odeias o mundo inteiro...

- Não quero que me apresente a Spentoli! - afirmou ela, com os olhos faiscantes. - Tem mau cariz e eu... eu... conto consigo... para me proteger.

- Oh, criança!

E afastou-se um pouco, para acender um cigarro, enquanto Toby permanecia rígida, como que em guarda.

- Nonette-prosseguiu ele, num tom simutâneamente suave e autoritário - não deves recear nada quando eu estou contigo. Proteger-te-ei. Vá, agora vai-te vestir e, quando estiveres pronta, quero ver-te. Não te esqueças que tens de parecer o melhor possível!

Fitou-a, erguendo as sobrancelhas ao reparar na atitude de tensa resistência daquele corpito frágil. Mas foi de pouca dura aquela insubmissão muda. Toby viu-lhe o olhar carregado e, em menos dum segundo, baixou a cabeça, afastando-se.

- Farei... o que quiser! - repetiu. - Bem sabe...

- Pois sei! - concordou, com uma careta. - Agrada-me que assim seja, Nonette. Agora vai, querida, vai!

E Toby obedeceu, como um animal escorraçado.

Sacudindo os ombros, Charles Rex voltou ao vestíbulo, onde a multidão crescera. Olhavam todos para a porta principal, aguardando, ansiosos, a chegada da grande bailarina. Saltash pediu uma bebida e misturou-se com a turba.

- Espero que me dê uma grande honra - disse o italiano Spentoli, quando, pouco depois, se lhe juntou.

- Queria que me apresentasse a sua esposa.

Spentoli era um dos pouquíssimos homens que lhe mereciam respeito, talvez pelo facto de o seu trabalho exercer enorme atracção sobre a sua alma artística. Como nunca disfarçava as suas opiniões acerca das outras pessoas, também não se dera, nunca, ao trabalho de disfarçar os seus sentimentos para com o pintor.

- Minha mulher é jovem e tímida - desculpou-se, após uma pausa. - Apresentar-lha-ei qualquer dia, mas agora não.

- É a primeira visita que faz a Paris?

- Não, mas não conhece bem a cidade. No entanto, não vou mostrar-lhe tudo duma vez, parece-me errado.

- Tem razão - assentiu. - A frescura da juventude esmorece muito depressa, mas sua esposa será soberbamente bela daqui a alguns anos! Permite-me que o felicite pela excelência da escolha?

- Nós escolhemos, porventura? Não recebemos, antes, os presentes do céu, com mais ou menos prazer?

- Não pensava que escolhesse uma esposa tão nova!

- murmurou, sorrindo. - Tem o olhar atrevido dum rapaz e faz-me lembrar...

- Faz-lhe lembrar "A Vítima", um quadro pintado por... Spentoli! - rematou, em tom suave. - Um quadro cruel, meu amigo, mas dum valor extraordinário. Também descobri a semelhança. Quem era o modelo?

- Uma criança que encontrei num circo, na Califórnia

- informou, cauteloso. - Era extraordinariamente viva, uma perfeita centelha de inspiração! Uma rapariga, evidentemente, mas com todos os traços dum rapaz e as pernas soberbas dum atleta. Tirei-a do circo e tê-la-ia recompensado bem se tem ficado comigo. Mas quê? Ainda o retrato não estava acabado e já se mostrava aborrecida. Era uma serpentezinha, falsa e perversa. Um dia tivemos uma discussãozita no meu estúdio, uma coisa sem importância, e ela cuspiu-me o veneno... e sumiu-se! - os dentes brilhavam-lhe sob o bigode negro. - Não gosto destas mulheres-serpentes. Se voltar a encontrá-la, será a minha vez de ferir.

- A nossa vez chega tão raras vezes! - comentou Saltash, indolente, com os olhos voltados para a porta.

- Mademoiselle Rozelle, por exemplo, levar-nos-ia sempre a melhor, a todos nós.

- Ah, Rozelle! - e o rosto de Spentoli transfigurou-se como que por encanto. - Essa é bela, bela e sem veneno! Uma rosa sem espinhos!

- E sem coração, também? - insinuou Saltash, zombeteiro.

- Como, se toda ela é coração?! - declarou o outro, extático.

- Isso, às vezes, também é um perigo, meu amigo! Imagino que foi ela quem o atraiu aqui.

- Atraiu o mundo inteiro.

E levantou-se bruscamente, pois no vestíbulo soara como que uma exclamação velada. Dir-se-ia que ia chegar uma rainha. Todas as vozes se calaram, tudo caiu no maior silêncio. Saltash, porém, deixou-se ficar sentado, um tanto arrogante, sem deixar de olhar para a porta.

Um riso claro, infantil, irresistivelmente alegre, quebrou o silêncio, ao mesmo tempo que uma figura de azul aparecia entre os pilares de mármore. Todos se haviam preparado para a receber como a uma rainha, e como uma rainha ela apareceu - tão perfeita, tão divinal, que todas as respirações se retiveram, suspensas.

Olhou à sua volta, com os olhos brilhantes como safiras, os lábios vermelhos levemente entreabertos e um ar de meninice, embora a sua beleza tivesse um não sei quê que não se encontra na juventude. E foi a esse não sei quê, a esse pormenor quase inexplicável e intraduzível, que Saltash prestou homenagem, erguendo-se.

O olhar da mulher cruzou-se com o dele, compreendeu-lhe a intenção, e a boca sorriu mais ainda, triunfante. Depois, com uma rapidez quase impossível, voltou-se para um homem que entrara depois dela e falou-lhe baixo.

Saltash seguiu-lhe o gesto, soltando leve assobio, entre dentes. Todos sabiam que Rozelle Daubeni nunca viajava sem um par, mas aquele homem, aquele homem! Era alto e largo e mostrava-se soberanamente desdenhoso para com os outros homens. Não olhou para Saltash, dir-se-ia não reparar, sequer, naquela multidão sequiosa de beleza que não perdia um só dos gestos da mulher maravilhosa que os tinha, a todos, aos pés. Indiferente a tudo, olhava a direito, sempre a direito, como um "Viking" que perscruta os horizontes longínquos. Caminhava com a agilidade dum pirata e, quando a mulher o fitava, todos compreendiam que só a ele via e a mais ninguém.

Colocou-se-lhe ao lado e, enquanto avançavam, Rozelle tocou-lhe levemente num braço, num gesto tímido, como se estivessem sós. No mesmo instante todas as vozes se elevaram em aclamações e o encanto quebrou-se. Rozelle voltou a ver todos, novamente, e a sorrir, agradecida. O grande vestíbulo estremecia, ao som das vozes dos hóspedes, mas ela não se deteve nunca, nem ninguém tentou detê-la.

Mais tarde, daria a todos o que desejavam, mas ainda não chegara o momento. Começou, portanto, a subir a grande escada encaracolada, lado a lado com o seu "Viking" louro, rindo como uma criança feliz que aguarda o amanhã com serenidade.

Numa curva da escada tirou do peito uma rosa vermelha e atirou-a aos seus admiradores, em baixo. Era destinada a Saltash, mas foi cair diante de Spentoli, que a apanhou com os olhos brilhantes de adoração. Levou-a aos lábios e soltou um soluço.

- Meu amigo - disse Saltash, malicioso, por detrás dele - apoderou-se do que era meu, mas, visto eu não ter uso para ela, pode guardá-la.

- Ah, ria-se, pode rir-se à vontade! - volveu, ardente.

- O senhor não tem alma.

- Não acha que é melhor rir?

Spentoli ficou uns momentos calado, mas, por fim, recompôs-se.

- Sabe o que dizem dela? - perguntou. - Que está a morrer! Mas não é verdade, não é verdade. Uma beleza como aquela, um encanto tão sobrenatural, não pode morrer.

O rosto de Saltash tornou-se mais céptico do que nunca. Encolheu levemente os ombros e não disse nada.

- Quem era aquele homem que a acompanhava? perguntou o outro. - Nunca vi aquele cara de dinamarquês. Conhece-o?

- Conheço.

- Quem é? Algum novo apaixonado? - insistiu, com os olhos ardentes, tentando em vão disfarçar a ansiedade.

- Talvez seja novo, mas é mais provável que seja antigo... muito antigo - retorquiu, irónico. - Chama-se Larpent e é o comandante do meu iate.

- Veremos da galeria - disse Saltash. Toby fitou-o, agradecida.

- Sim, aí estará pouca gente.

- Mas todos saberão que Lady Saltash está presente, com seu marido! - declarou, brincalhão.

- Rei Charles - pediu ela, agarrando-lhe no braço saiamos de Paris!

- Aborrecida?

- Não, não-volveu Toby, de rosto contraído.

- Não, seja como quiser! - concluiu, sorrindo inesperadamente.

- Queres que te diga uma coisa, pequenina? - perguntou ele, afagando-lhe o rosto no seu modo habitual. Partiremos... muito em breve!

Os olhos de Toby brilharam, mais azuis do que o fato que vestia. Baixou-se, impulsiva, beijando-lhe as mãos e depois, como se receasse que ele se zangasse, afastou-se um pouco.

- Iremos viajar no iate? - perguntou ansiosa.

- Sim - afirmou ele, muito sério.

O rosto de Toby iluminou-se, mas voltou a ensombrá-lo uma expressão de dúvida:

- Se Paris o diverte... - começou.

- Paris não me diverte - garantiu, enfático. - Fuma um cigarro, querida, enquanto me vou vestir.

- Posso ajudá-lo? Já preparei tudo...

- Agora não, querida. Talvez depois, quando voltarmos para o iate...

E afastou-se, com a frase em meio, deixando Toby de olhos muito abertos, como se tivesse divisado, finalmente, a visão há muito desejada. Abriu os braços mal a porta se fechou e repetiu, docemente, as suas últimas palavras:

- Talvez depois, quando voltarmos para o iate... Quando logo a seguir se dirigiram para a sala-de-jantar, Toby mostrava-se corada e sorridente, embora olhasse à sua volta com uma expressão tímida e furtiva. Saltash tinha reservado uma mesa, num canto afastado, e a rapariga sentou-se, com uma expressão de alívio, tentando tornar-se o mais pequena possível. Ninguém se lhes dirigiu, embora várias pessoas olhassem naquela direcção. Saltash era demasiado conhecido para passar despercebido nas reuniões elegantes. No entanto, a atenção geral não se concentrava neles, naquela noite, atraída por uma atracção muito maior.

Rozelle estava sentada numa das extremidades da sala, como uma rainha com a sua corte, tendo ao lado o "Viking", muito sério e tão supremamente isolado como se estivesse com ela, sozinho, numa ilha deserta. Falava pouco e, quando o fazia, era só para ela. Nessas ocasiões Rozelle Daubeni fitava-o com a expressão radiante da mulher que tem nas mãos, bem fechado, o desejo do seu coração.

Vestia divinamente de azul matizado e, a cada movimento, faiscavam as inúmeras jóias que a adornavam. Acima da testa, anichado nos cabelos de oiro, brilhava um único e maravilhoso diamante, que parecia expelir labaredas multicores. Aquela noite marcava o apogeu do seu triunfo, pois ninguém se lembrava de a ter já visto tão bela. Parecia um ser doutro planeta, ultrapassando todas as expectativas, deixando sem respiração os que a fitavam.

A seu pedido a orquestra tocava apenas música de dança, mas uma música que embriagava e excitava irresistivelmente os sentidos, que preparava, em suma, o auditório para o que iria seguir-se. Enquanto decorria a refeição ia crescendo a excitação, tornava-se quase palpável o delírio geral.

Ainda não terminara o jantar quando ela se ergueu, imitada pelo seu cavaleiro, que dobrou no braço o manto de gaze oiro e azul que ela usava. Era o sinal para uma demonstração. No mesmo instante, um rapaz de olhos faiscantes de adoração empoleirou-se numa das mesas centrais, empunhando um copo de vinho:

- ÀRozellelÀ Rozelle!

O grito, tornado geral, aumentou, encheu a sala toda num crescendo de som, transformando-a, como que por encanto, num pandemónio de figuras excitadas, soltando gritos e vivas. Começaram a convergir para a mesa junto da qual a dançarina ainda se encontrava e por um segundo, um segundo apenas, os seus olhos traduziram uma expressão de medo. Depois sorriu, o seu sorriso sedutor, e a música das suas gargalhadas elevou-se, argêntea, sobre o tumulto de vozes. com um gesto delicado de aceitação, de concordância, de amigável apreciação, voltou-se, para se retirar.

O companheiro adiantou-se-lhe, abrindo-lhe caminho, dando a impressão de ser capaz de fazer o mesmo ainda que tivesse de desviar rochas e não homens. Aquele ar impenetrável ganhava-lhe respeito e ninguém tentava, sequer, dificultar-lhe a tarefa.

- Uma mulher admirável! - comentou Saltash. Toby fitou-o, e não disse nada. Presenciara toda a cena, do seu canto, sem perder um pormenor, mas mantivera-se sempre calada.

- Bebe um pouco de vinho, querida - convidou o marido, inclinando-se gentilmente. - Estás pálida.

Toby estremeceu, como se a despertassem dum pesadelo, pegou no copo, mas, como tinha as mãos a tremer, entornou algumas gotas.

- Vamos, bebe! - insistiu ele, segurando-lhe a mão com firmeza e levando-lhe o copo aos lábios.

Toby bebeu, sem o olhar, e depois pousou o copo.

- Agora vamos. Estás pronta?

Levantou-se e o marido apertou-lhe o braço nu, com força, numa pressão tranquilizadora, mas, além dum olhar fugidio, não obteve palavra.

Passaram entre os últimos comensais quase sem serem notados, mas, no corredor, deparou-se-lhes Spentoli, encostado a uma coluna, a fumar. Não fez um único movimento para os deter, mas os seus olhos, com o seu fogo intenso e constante, fitaram a rapariga duma maneira que a atraiu irresistivelmente.

Toby parou, como um animal perseguido que vê cortada a saída, mas a voz de Saltash, muito fria e arrogantemente controlada, sufocou o impulso de pânico:

- Segue a direito para o elevador, querida. Olha, fica mesmo na tua frente. Segue a direito. Não estará ninguém na galeria.

Obedeceu-lhe, instintivamente como era seu hábito, e, quando entrou no elevador, tremia de tal modo que o marido a obrigou a sentar-se. Ficou a seu lado, silencioso, tocando-lhe levemente com a mão na face. De repente, num gesto quase convulsivo, Toby agarrou-lhe na mão, com força, mas ele retirou-a, docemente.

A galeria, que ocupava três das paredes do grande salão, estava, de facto, deserta. Só duma das extremidades se podia observar o estrado que tinham erguido para a dançarina, e foi para lá que Saltash se dirigiu.

- Dali vê-la-emos.

O local estava frouxamente iluminado pelo reflexo das inúmeras luzes que ardiam em baixo, estando até apagados os dois grandes candelabros de cristal que pendiam em cada extremo da galeria. Sob um dos candelabros via-se um canapé, que Saltash puxou para a frente.

- Aqui ninguém nos perturbará e poderemos fumar em paz - murmurou.

Ofereceu-lhe a cigarreira, que Toby recusou, nervosamente, encolhendo-se num canto do canapé, como se procurasse esconder-se. A orquestra principiava a tocar no salão, e o público ia-se juntando.

Saltash recostou-se também, começando a fumar. Os seus olhos iam dum lado para o outro, incansáveis, mas, mesmo assim, Toby sentia que não deixavam de observá-la a todo o momento. Continuou silenciosa, apertando e desapertando as mãos, com o olhar fixo no estrado iluminado.

Depressa o salão se encheu e as luzes começaram a apagar-se, incidindo sobre o estrado apenas um feixe de luz violeta, quase cegante. A rapariga parecia ter-se esquecido de respirar.

A orquestra parou e, no silêncio que se seguiu, a multidão imóvel parecia enfeitiçada. Foi nessa altura que ela chegou.

Ninguém a viu aparecer. Chegou inesperadamente, como se tivesse deslizado pelo feixe de luz, e já dançava, dançava, como se tivesse asas, dentro daquele halo violeta, quase cegante. Nenhum som cortava o silêncio além duma vaga melodia que podia bem ser produzida pela garganta duma ave, tão suave e doce era.

A luz violeta começava a transformar-se, imperceptivelmente, num tom rosado-a cor inexprimível da alvorada - incidia sobre a dançarina e esta, erguendo o rosto belo, sorria-lhe. O manto de gaze pendia-lhe dos ombros, como uma labareda, curvando-se, subindo, caindo bruscamente, envolvendo agora os braços brancos para logo a seguir se abrir num largo círculo esplendoroso.

A assistência arquejava. Estavam todos como que fascinados, todos menos um, que se recostava no seu canto, calmo, olhando a rapariga sentada a seu lado, imóvel, com os olhos fitos na bailarina, e tão abertos que dir-se-ia fitarem uma cena horrorosa de que não podiam arredar-se.

A luz rosa tornou-se mais forte, vermelha, e a bailarina rodopiava, rodopiava, fazendo círculos e círculos, atordoada como uma mariposa multicor cega pela luz da manhã. Ouviam-se outras melodias, outros trinados de aves - uma música impetuosa e aflautada, ardilosa como os risos das ninfas dos bosques numa clareira encantada. E a multidão silenciosa viu a luz vermelha da aurora romper pelo meio das árvores duma floresta de sonho, virgem ainda de pés humanos.

Lentamente, o vermelho clareou. Chegava o dia e a veloz mariposa da noite transformava-se numa borboleta do mais puro oiro. O manto continuava a flutuar, como uma nuvem debruada a oiro. O rodopiar cessou e a bailarina estacou, trémula, sob a luz do sol nascido, cada linha do seu maravilhoso corpo numa posição de perfeita simetria. Sim, era admirável, única! Conseguia sempre fascinar a assistência, mas, naquela noite, estava inspirada, não via a multidão que a rodeava, dançava apenas para um único homem. Era, em suma, uma mulher à espera do amante.

E, de modo estranho, a certeza deste facto comunicou-se a cada um dos seus adoradores, que sabiam, sem o ver, que algures, perto daquela figura estontecedora, estava o estrangeiro que todos desconheciam. Insensivelmente, por intermédio da bailarina, a sua presença fez-se sentir. Quando aquele bailado maravilhoso terminou e a tempestade de aplausos esmoreceu, todos olharam à sua volta e perguntaram quem era ele, onde estava. Mas ninguém sabia e, apesar da curiosidade ser forte, parecia que não seria satisfeita naquela noite.

Lá em cima, na galeria, Toby suspirou, um suspiro longo, como se saísse dum transe, e olhou para o homem sentado a seu lado. As luzes reacendidas no salão incidiam-lhe no rosto, mostrando-o pálido e cansado.

- Arranjou, então, outra vítima! - murmurou ela.

- Assim parece - concordou Saltash.

- Sabia que... que... o capitão Larpent estava com ela?

- Não - afirmou ele, inclinando-se bruscamente e olhando-a nos olhos, num desafio. - E tu?

- Claro que não! Por que havia de saber alguma coisa a tal respeito?

Saltash voltou a recostar-se, sem comentários, e acendeu outro cigarro.

Após breve silêncio, Toby tornou a falar, torcendo nervosamente os dedos:

- Importa-se se... me recolher cedo? Estou muito cansada!

As luzes voltaram a apagar-se, tornando invisível o rosto de Saltash.

- Iremos depois deste bailado, se quiseres - prometeu.

A música começou, lenta e triste, e um murmúrio percorreu a assistência. Era o seu bailado mais famoso, o bailado da morte, o espectáculo mais tétrico jamais concebido por uma artista. Apareceu em cena, com a brusquidão duma seta, toda vestida de negro, falseando e cintilando a cada movimento. E começou aquele bailado espantoso que o mundo inteiro ansiava por ver.

Ao princípio era demasiado rápido, tão rápido que o olhar mal podia seguir todas as suas fases - uma febre de movimento, um delírio indescritível, uma fantasia dolorosa de ver, mas da qual os olhos não conseguiam arrancar-se. Até o próprio Saltash, que se mostrara pouco interessado pelo primeiro bailado, se inclinou para a frente, prestando, embora contra vontade, toda a sua atenção ao que se passava no estrado. O horror que se desprendia da cena magnetizava a assistência, que assistia, impotente, a uma luta de morte, à luta selvagem duma criatura dotada de vitalidade indómita contra um inimigo invisível e desapiedado que, desde o princípio, estava destinado a vencer.

Os que viram este bailado de Rozelle Daubeni nunca o esqueceram. Poucas devem ter sido as mulheres que não se sentissem arrepiar ao evocar o espectáculo monstruoso. Prendia, revoltava, era terrível e horroroso, mas era-se obrigado a ver, a seguir movimento por movimento, até ao fecho. A maioria soluçava, desejando ardentemente que chegasse o fim, mas olhando sempre, com avidez, embora com o sangue gelado de pavor.

O fim, porém, ninguém o esperava como se realizou. Precisamente quando o êxtase atingia o apogeu, as raias da loucura, precisamente quando as coisas pavorosas se aproximavam e se via, horrorizado, as garras do inimigo invisível prenderem a vítima, precisamente quando ela levantara o rosto, na última súplica angustiada, perdendo a última esperança, réndendo-se ao implacável destruidor, um súbito clarão inundou a sala, produzido pelo candelabro de cristal do fundo da galeria, sob o qual estavam sentados o homem e a rapariga.

Todos se voltaram para aquele lado, instintivamente, e Toby, mal sabendo o que fazia, obedecendo apenas ao instinto da fuga, levantou-se dum pulo.

Nesse momento, quando toda a luz incidia sobre ela, os olhos da bailarina ergueram-se, vendo a figura delgada e juvenil da rapariga. Foi um momento apenas, uns escassos segundos fugidios, mas um grito selvagem rasgou o silêncio, um grito de agonia, tão profundo e doloroso, que as mulheres estremeceram, escondendo a cara nem sabiam de quê.

A luz voltou a apagar-se e a galeria mergulhou de novo na escuridão. Mas do estrado uma voz feminina gritou três vezes: "Toinette! Toinette! Toinette!", num acento angustiado, como uma mãe que chora um filho morto, seguindo-se um silêncio trágico, mais doloroso do que todos os gritos, um silêncio só comparável ao da Morte.

E uma figura masculina, movendo-se com a agilidade dum marinheiro, aproximou-se da bailarina, enrodilhada no chão como uma coisa partida, levantou-a nos braços e afastou-se com ela.

Depois de a multidão dispersar, murmurando entre si palavras de respeito e dor, dois homens desceram a grande escadaria que conduzia ao vestíbulo, parando no fim.

- Vai deixar novamente Paris? - perguntou Saltash. Larpent acenou afirmativamente, com o rosto parado e os olhos sempre com a mesma expressão, a expressão do marinheiro que perscruta o horizonte longínquo:

- Nada me prende aqui. Sempre detestei as grandes capitais. Vim apenas porque... - interrompeu-se, pensativo, e não disse mais nada.

Os olhos de Saltash observavam-no, vivos, curiosos, mas inteiramente desprovidos da maldade habitual.

- Você veio porque... o chamaram - murmurou, concluindo a frase que o capitão deixara inacabada.

Larpent acenou de novo, pensativo, mais em resposta a qualquer pensamento íntimo do que às palavras do outro, que parecia nem ter ouvido. Riscou um fósforo, estendeu-o a Saltash e, por fim, acendeu o seu próprio cigarro, voltando a falar entre lentas baforadas de fumo:

- Havia uma única razão capaz de me ter trazido aqui.

- Compreendo - volveu o outro, sentando-se numa cadeira com o ar dum homem que tem tempo indefinido à sua frente, mas sem, por palavras ou gestos, incitar o interlocutor a fazer confidências.

- Uma única razão - repetiu Larpent, sempre como se falasse para si, para a sua própria alma. - Ela estava a morrer... e queria-me - fez uma pausa, enquanto um leve tremor o percorria. - Depois de vinte anos! - exclamou, como que espantado.

- Sim, já tinha ouvido dizer que aqueles que conquistava ficavam presos para sempre - observou Saltash, olhando-o. - Depois de Rozelle nenhuma mulher tinha interesse.

Larpent apertou as mãos, convulsivamente, mas não disse nada.

- Nunca me conquistou a mim, meu amigo - prosseguiu o lorde, em tom indiferente. - Conheci-a muito tarde, quando começava a sentir-me enfastiado. Apreciei-lhe o encanto, mas... continuei frio.

- Oh, não a viu na juventude, na adolescência, a bem dizer! - exclamou Larpent, com os olhos brilhantes, como se contemplasse uma visão.

- Como era ela, nessa altura?

Lentamente, pisando bem as palavras, o marinheiro 'respondeu-lhe, num tom que, nele, parecia impossível:

- Era como uma borboleta a brincar entre as flores, ao romper da manhã. Parecia um rapaz, com o seu ar intrépido, a sua liberdade, a sua ousadia e A sua inocência, a sua beleza... - e deteve-se, com um nó na garganta, ofegante. - Meu Deus, como ela era linda! - concluiu, num arranco estrangulado.

Saltash ergueu-se, na sua maneira brusca e elástica:

- Precisa de tomar qualquer coisa! Sente-se aqui enquanto lhe vou buscar uma bebida.

E afastou-se, sem ouvir a recusa meio murmurada do outro.

Larpent ficou uns momentos com os olhos fixos e depois, maquinalmente, deixou-se cair na cadeira. Quando Saltash voltou, encontrou-o inclinado para a frente, com as mãos enclavinhadas e os olhos vazios e espantados dum homem cansado até à alma.

- Beba, homem. Isto vai dar-lhe nova vida. Larpent bebeu, com gestos lentos e ausentes, mas,

quando devolveu o copo, o seu olhar cruzou-se com o de Saltash e um sorriso melancólico contraiu-lhe as feições: -Não consinta que lhe estrague as férias, milorde murmurou.

- Não seja doido!

Larpent voltou a mergulhar no silêncio, durante algum tempo, e depois voltou a falar, num tom mais normal:

- Vim ter com ela. Deus sabe por que motivo ela me quis, depois de tantos anos, mas eu não podia recusar. Recebi o seu recado há dois dias, dizia-me que estava só e a morrer, e eu apareci - interrompeu-se, limpando a testa. - Pensei que me tivesse enganado, quando a vi cheia de vida, soberba, mas já tinha vindo e achei que não devia deixá-la. Ela queria-me, queria-me para lhe dar uma vida nova - levantou-se, calmo, e começou a andar, vagarosamente, dum lado para o outro, como se não estivesse no vestíbulo dum hotel mas na coberta dum navio.

- Vai julgar-me doido, naturalmente, pois nunca lhe sentiu o fascínio, mas eu... eu... fui o primeiro homem da sua vida e, talvez, estivesse destinado a ser o último. Se ela ainda vivesse, tê-la-ia levado, não dançaria mais, abandonaria esta vida maldita, que a arrastava, tê-la-ia salvado, dum modo ou doutro.

- Seria difícil - afirmou Saltash. - A atracção pela vida antiga voltaria, como uma febre periódica, e você não conseguiria retê-la.

- Digo-lhe que conseguiria - afirmou, sem qualquer comoção. - Só eu o poderia fazer, mais ninguém. Já lhe disse que fui o primeiro homem da sua vida e uma mulher nunca esquece o seu primeiro amor. Além disso, tinha um poder que nenhum homem mais compartilhou nem poderia compartilhar - era seu marido.

- O quê?!

- Era seu marido - repetiu, continuando a passear, de cabeça pendida. - Mas eu andava no mar e ela estava em terra; por isso a perdi. Não tinha estofo para resistir à tentação e a tentação arrastou-a, quando eu estava no outro lado do mundo. Quando voltei, tinha partido e eu... não a segui. Não valia a pena, o mal estava-lhe no sangue, compreende. Primeiro foi um, depois outro... e eu tirei-a da minha vida, deixei-a ir. Não sabia então, como sei agora, que tinha o poder de a salvar e guardar para mim. Se o soubesse, talvez a tivesse seguido, não tenho a certeza. Mas, naquele tempo, sentia-me muito amargurado, muito céptico, para ver as coisas como devia ser. Fui para o mar e deixei-a preparar a sua própria maldição.

- Mas amava-a? - perguntou Saltash, com um esgar que, naquele momento, não era de troça.

- Amava-a, sim. Se não a amasse não teria vindo, quando me chamou. Tinha-lhe amor... uma coisa que não morre nunca - e um soluço inesperado fez-lhe estremecer a voz, mas dominou-se, continuando o interminável passeio. - O senhor talvez se ria, talvez zombe, mas há na terra uma força mais potente do que tudo o mais e, quando essa força nos fala, temos de obedecer-lhe. Eu não queria vir, o senhor deve julgar-me parvo por o ter feito, mas a verdade é que tive de vir. Era a única solução.

- Não o acho parvo, de modo nenhum - protestou Saltash. - Compreendo muito bem que seguiu o único caminho possível.

- Sim, o único caminho, o caminho que me conduzia para ela. Se não tivesse vindo, teria morrido sozinha. Mas não foi só o facto de se encontrar só que a fez chamar-me. Esse foi o motivo principal, mas não o único. Havia outro!

- E parou de caminhar, fitando Saltash bem de frente. Sabe o que aconteceu esta noite - murmurou. - Aquela garota... aquela patetinha que o senhor tirou da valeta, em Valrosa, Toby... Já compreendeu, já atingiu o significado do que se passou?

Saltash ergueu a cabeça, arrogante:

- Há uma coisa a respeito dela que o senhor ainda não sabe, mas continue. Pode dizer o que se passa.

- Quando cheguei, ontem, Rozelle disse-me que tivera uma filha... uma filha que amara, mas não soubera proteger. Era uma longa história. Spentoli, o artista italiano, sabe-a do princípio ao fim. Conhece Spentoli?

- Conheço.

- É um escroque, um escroque daqueles que já nasceram escroques, irremediável e incuravelmente. Pintou Rozelle vezes sem conta, a mulher era um verdadeiro delírio para ele. Pode ser um génio, mas é, com certeza, doido. Quis a pequena para modelo e Rozelle não soube negar-lha; naquele tempo dependia dele, como me contou; estava doente, doente do coração. O mal durava há muitos anos. Bem, a rapariga foi modelo, mas uma vez só. Tinha uma vontade de ferro e fugiu-lhe, entrando para um circo na Califórnia. Ele seguiu-a, voltou a capturá-la, tentou fazê-la sua escrava, mas uma noite ela apunhalou-o e fugiu. E Rozelle, que nunca mais voltou a saber da filha, vivia atormentada. Suplicou-me que a procurasse e salvasse e eu prometi-lhe fazer tudo quanto pudesse. Mas... não foi preciso ir procurar muito longe. Esta noite Spentoli voltou a mover os cordelinhos. Foi ele que acendeu a luz e matou Rozelle. A rapariga que estava na galeria consigo, Toby, era filha dela e... minha. Ouviu-a gritar, quando a viu. Foram as suas últimas palavras.

Larpent calou-se, deixando de olhar para Saltash. A visão longínqua parecia tê-lo capturado de novo.

- Quer reclamar a pequena? - perguntou Saltash, franzindo as sobrancelhas.

- Não reclamo nada, senhor. Mas jurei fazer quanto pudesse por ela, e hei-de cumprir o meu juramento.

- O que quer dizer?

- Sabe perfeitamente o que quero dizer - volveu o marinheiro, olhando-o bem de frente.

- Serve um duelo? - perguntou Saltash, sorrindo. Lamento, meu amigo, mas bati-o, bati-o já! Posso dizer-lhe qual a melhor maneira de cumprir a sua irreflectida promessa?

- Então? - interrogou Larpent, com o rosto duro, como se fosse de granito.

- Pode cumpri-la desaparecendo, meu velho - afirmou, agarrando-o por um ombro. - Volte para o "Lua Azul", leve-o para Fairharbour e espere por ordens minhas!

Apesar do tom indiferente e quase brincalhão, as palavras desprendiam autoridade. Charles Rex sabia usá-la nas ocasiões próprias, temperando-a com um toque de amizade.

O olhar de Larpent não se desviou, mas tornou-se menos duro. Nem ira nem indignação, apenas tristeza.

- E isso seria cumprir a minha promessa? - perguntou.

- Precisamente.

- Quer dizer que, se a deixar onde actualmente se encontra, a deixo em abrigo seguro e honroso?

- Sim, é isso - e o antigo sorriso escarninho brilhou nos olhos de Saltash. - Confia em mim, Larpent?

- Se confio em si? -e o homem parecia hesitar.

- Pergunto - frisou, apertando-lhe o ombro com certa impaciência - se acha a minha protecção conveniente para... minha mulher.

- Sua... mulher! - exclamou, surpreso. - Sua mulher, foi o que disse?

- Sim, foi isso - afirmou, soltando uma gargalhada e largando o ombro do outro. - Anda com as notícias atrasadas, meu amigo. Não me dá os parabéns? Casámos há quatro dias.

- Foi a melhor obra da sua vida, milorde - exclamou, estendendo-lhe a mão. - E creia que nunca o lamentará.

- Por que diz isso?

As mãos apertaram-se, separando-se em seguida. Larpent respondeu-lhe com o laconismo habitual:

- Digo isto principalmente porque o senhor a amava o suficiente para a desposar, quando podia tê-la do mesmo modo, sem o fazer.

O riso de Saltash era cínico, mas era um riso só dos lábios, os olhos não correspondiam.

- Que coisa é essa chamada amor? - perguntou, afastando-se.

Não era hábito de Jake insistir numa tarefa que já provara ser infrutífera e se, daquela vez, ficou mais algumas horas em Paris, não foi porque esperasse algum resultado, mas sim porque tinha relações em quase todos os cantos do mundo e a capital da França não era nenhuma excepção à regra. O resto do dia, depois de deixar Saltash, ocupou-o, filosoficamente, a descobrir amigos. Jantou a seguir num restaurante e dirigiu-se para a estação, a fim de apanhar o comboio da noite para Calais. Tanto lhe fazia viajar de noite como de dia, tão acostumado estava a adaptar-se às circunstâncias. Maud costumava dizer, sorrindo, que os luxos duma vida decente eram desperdiçados nele. Mal notava o desconforto físico, podendo dormir, praticamente, de qualquer modo.

Enquanto caminhava pelo cais, transportando a bagagem, ia pensando na rapariguinha que vira de manhã, sentada na ponta da mesa, com a perna pendente, numa indiferença estudada, toda ela instinto e defesa. Oh, provocara-o, mas, bem no fundo do coração, tivera medo, muito medo! Temera que Saltash não conseguisse ficar com ela, que não lograsse levar a melhor. E de novo uma profunda compaixão o feriu. Pobre rapariga, arremessada, como um destroço, na ressaca cruel dos que zombam da vida! Fizera o possível por libertá-la, mas o destino estava contra ele, o destino ordenara que fosse a vítima dos caprichos daquele homem, a escrava de impulsos que podiam ou não conduzi-la à destruição. Era como se a visse caminhar sobre areias movediças, impotente, sem conseguir ajudá-la. Saltash também conseguira lográ-lo, escondendo-lhe todos os motivos que o tinham levado a tal passo, se é que tinha tido alguns. Inconstante, enganoso, irresponsável como um macaco que salta de árvore para árvore, arrebatara a presa, e nem Jake, que o conhecia tão bem, fazia a mínima ideia se iria mantê-la bem alto, preservando-a da queda, ou cansar-se e atirá-la, despreocupadamente, para longe. Até ali parecia tê-lo guiado um vago sentimento de honra, mas nunca tal motivo se mostrara duradouro. A natureza daquele homem escapava-lhe, era demasiado fantástica para conseguir compreendê-la. Reconhecia-o capaz de grandeza, mas raras tinham sido as ocasiões em que o vira servir-se de tal virtude. Se o não fizesse agora, as probabilidades de Toby eram muito pequenas...

Descobriu uma carruagem vazia e atirou com a bagagem para um dos bancos. O comboio não era dos favoritos e, por esse motivo, haveria pouca gente. Como faltavam ainda alguns minutos, acendeu o cachimbo e recomeçou o passeio pelo cais. Alguns passageiros olhavam-no com interesse, pois não era homem que passasse despercebido graças, talvez, à força que emanava dos ombros largos e firmes e do pescoço forte. Não era alto, mas cada um dos seus traços denotava energia e o à vontade próprio das pessoas acostumadas a viver em sítios amplos.

Ele, porém, embebido nos seus pensamentos, não reparava em nada do que se passava à sua volta. Perguntava a si mesmo como encararia Maud a situação, e quase desejava tê-la trazido consigo. Maud tinha indubitável influência sobre Saltash, era até, talvez, a única pessoa a gozar de tal vantagem.

Chegara quase ao fim do cais e preparava-se para voltar para trás quando qualquer coisa, um impulso que nunca conseguiu compreender, o levou a parar e a observar os outros passageiros. O comboio estava quase a partir e, por isso, havia certa confusão e pressa no cais. compreendia que devia dirigir-se para a carruagem, mas a mesma força continuava a prendê-lo, a dirigir-lhe o olhar para as pessoas apressadas.

E, de repente, reparou numa rapariga de capa azul, que passou a correr, evidentemente para apanhar o comboio. Passou por ele quase o empurrando, mas sem o ver, seguida por um homem de bigode e barba negra que a acompanhava com todo o ar de "proprietário".

Jake seguiu-lhes na peugada, esquecido de toda a compostura. Apenas vira de relance o rosto da rapariga e aquela capa azul era-lhe inteiramente desconhecida, mas não podia ter dúvidas quanto àqueles modos arrapazados, nem dúvidas lhe deixou o salto atlético com que a viu subir para o compartimento que o companheiro abrira.

O homem das barbas negras ia a entrar também, quando Jake chegou. A sensação de que outra mão segurava a porta foi o primeiro sinal duma presença estranha. Voltou-se, deparando com um par de olhos vermelho acastanhados que o fitavam com a maior firmeza, enquanto uma voz serena explicava:

- Essa senhora é uma das minhas amigas, e preciso de lhe falar.

O italiano deitou-lhe um olhar carregado de ameaças, mas não teve outro remédio senão deixá-lo passar. Talvez que a calma insistência do outro lhe fizesse compreender a inutilidade de qualquer tentativa de rebelião, mas o que é certo é que Jake entrou na carruagem sem lhe dar tempo a emitir, sequer, uma palavra de protesto.

- Sapristi! - exclamou então o outro. - O senhor vai demasiado longe!

Mas Jake estava já defronte da rapariga, que o olhava pálida e assustada. E ele falou, sereno e benévolo, mas num tom a que nenhum delinquente ficaria indiferente.

- Dize-me, é assim que procedes bem?

Toby levou a mão à garganta, trémula e muda. Os olhos trágicos eram, porém, resposta mais do que suficiente. Jake enfrentara já diversas emergências inesperadas e, por isso, tratou de enfrentar também aquela com a sua característica decisão.

- Bem sabes que não fazes nada aqui - prosseguiu.

- Se não podes continuar com o homem com quem casaste, vem comigo para junto de Maud.

-Oh, quem me dera poder ir, quem me dera! - exclamou, sucumbida.

A mão de Jake, firme e cheia de força, segurou-lhe o braço, com autoridade:

- Está resolvido! Vais comigo!

Mas no mesmo instante o italiano entrou, furioso, falando iradamente.

Jake olhou-o por cima do ombro, como se o zunido de qualquer insecto o incomodasse, e depois, muito senhor de si, voltou a olhar para a rapariga, fitando-a bem nos olhos durante, talvez, uns dez segundos. Em seguida largou-lhe o braço e encarou o homem, que continuava a berrar na sua língua materna.

Ao mesmo tempo ouviu-se o bater de diversas portas e o comboio começou a deslocar-se. Sem uma palavra, Bolton agarrou no italiano furioso, transportou-o, como a brisa transporta uma folha morta, através da carruagem e, com um remesso, depô-lo no cais, fechou calmamente a porta e voltou para junto de Toby.

A rapariga soltou uma gargalhada prolongada, dobrando-se sobre si mesma num delírio histérico, arquejando, até que ele se sentou a seu lado e a rodeou com os braços.

- Sossega, pequena, sossega. Não queres, com certeza, dar espectáculo a toda esta gente. Estica bem o lábio superior, até te sentires melhor. Verás que dá resultado.

Mas, daquela vez, o lábio superior falhou na sua missão: Toby deixou de rir, mas, durante muito tempo, soluçou e tremeu contra o peito de Jake, enquanto o comboio cortava a noite.

A paciência de Jake era quase ilimitada e, entre ambos, houvera sempre certa camaradagem; por isso se mostrou carinhoso e terno.

- Conversemos agora - disse, ao vê-la mais calma. - Tens um problema complicado a enfrentar, mas não há necessidade de te assustares. De qualquer modo, estás salva daquele maldito italiano. Achar-me-ás melhor refúgio do que ele, se era isso que procuravas.

- Oh, você não sabe, não sabe! - titubeou, trémula.

- Não? Talvez me queiras esclarecer...

- Não posso! - murmurou, com um soluço. - Não posso, Jake! Importa-se?

- Creio que não há pressa - declarou, franzindo levemente as sobrancelhas. - O que interessa, agora, é chegarmos a casa. É o principal. Não te importas de voltar para Maud, pois não?

Toby respondeu-lhe com um fervor tão grande, que traduzia melhor do que quaisquer palavras a angústia que lhe dilacerava a alma:

- Oh, Jake, quem me dera ter morrido... quem me dera ter morrido... quando a deixei!

As sobrancelhas do homem contraíram-se mais, mas não voltou a tocar no assunto. Apenas, pouco depois, lhe bateu tranquilizadoramente no ombro:

- Dorme, eu olharei por ti!

- E trouxeste-a contigo! - exclamou Bunny, boquiaberto.

- Trouxeste-a! Para aqui, Jake? Para aqui?

- Era a única coisa que podia fazer - volveu o cunhado, por entre baforadas de fumo. - Lamento por ti, mas, enfim, acho que te é fácil manteres-te fora do seu caminho.

- Não conseguirás retê-la! Charlie virá buscá-la, assim que souber onde ela está. É diabólico!

- Ele já sabe onde ela está.

- Sabe? Quem lho disse?

- Eu próprio.

- Tu! Mas para quê? Não te compreendo, homem declarou Bunny, enraivecido, quase provocante.

- Disse-lhe porque é a única pessoa que tem o direito de saber onde ela se encontra - explicou Jake, com a serenidade habitual. - É o seu marido.

- Não acredito! - gritou o rapaz violento. - Nunca o faria! Enganou-te, se pretendeu tal coisa!

- Não, não enganou. Desposou-a, de facto, e cabe-lhe, portanto, proceder como achar conveniente.

- Mas, por que casou, porquê?

- Deus sabe! - replicou, sombrio. - Só sei que casou, mais nada.

-Fê-lo para me arreliar, com certeza! - afirmou Bunny, começando a andar dum lado para o outro. - Pensaria, realmente, que eu a queria, depois de... depois de...

- Bunny! - censurou Jake, cortante.

- Pára com isso! Senta-te!

O rapaz encarou-o uns momentos, e acabou por sentar-se, na ponta da mesa, mortalmente pálido.

Jake estendeu a mão e bateu-lhe suavemente num joelho:

- Aqui entre nós, meu filho, sempre te digo que estou convencido de que não o fez para te melindrar. Não posso dizer-te exactamente o que aconteceu, pois também não o sei, mas estou certo de que Saltash a desposou movido por algo mais elevado do que a maldade de te pôr fora de combate. Compreendes muito bem que podia ter casado sem se dar a tantos trabalhos. Admito que não te tenha tratado muito bem, mas é possível que não tivesse outra solução. De qualquer modo, não creio que te magoasse seriamente, a não ser no lugar onde guardas o orgulho...

- Pensas que não a amava!

- Penso, pelo menos, que já não a amas - retorquiu Jake, suportando com um leve sorriso o olhar ardente do cunhado.

- Tens razão, já não a amo. Nem quero mais vê-la, agora que sei quem é!

- Não sabes, não. Não sabes, nem nunca soubeste. Ela foi para ti, sempre, uma desconhecida e foi isso que me fez duvidar dos resultados, desde o princípio. Suponho que nunca a amaste o suficiente, rapaz, e o mal foi esse.

- Não a amei! - protestou.

- Se gostasses dela o suficiente, tê-la-ias compreendido melhor, defendido melhor.

- Teria gostado mais se me correspondesse, mas aquele tratante esteve sempre em primeiro lugar! Nunca tive uma possibilidade.

- Oh, tiveste, sim! - e voltou a sorrir. - Talvez não fossem muitas, mas uma, pelo menos, tiveste. Se ela se certificasse do teu afecto, se tivesse a certeza de que podia contar contigo, não teria fugido.

- Não? Nesse caso, também não deve estar muito certa de Saltash - observou, com uma espécie de triunfo triste.

Jake expeliu uma baforada de fumo, e ficou a vê-la erguer-se, pensativamente.

- Estou à espera de Saltash-murmurou pouco depois.

- Tenho de o experimentar.

- Acreditas nele? - perguntou Bunny, desdenhoso.

- Acredito que há sempre uma mudança na vida de todos os homens, sejam eles o que forem. Eu próprio a senti e sei o que significa. Agora é a vez de Saltash.

- Oh, parvoíces, Jake! - exclamou o rapaz, com a antiga admiração a iluminar-lhe o rosto. - Tu procedeste bem durante toda a tua vida, enquanto que Charlie fez precisamente o contrário.

- Não, Bunny. Tenho procedido bem, mas primeiro passei pelo inferno e pouco faltou para deitar tudo a perder. Talvez aconteça o mesmo com ele. Se assim for, pobre diabo, acredita que o lamento.

- Não podes lamentar um patife como Saltash.

- Estás enganado, Bunny. Confesso que o lamento mais a ele do que a ti. Tu saíste limpo de toda esta embrulhada e poderás casar com Sheila Melrose, enquanto que Saltash tem um tremendo bico de obra a resolver. Se o conseguir, acredita que será um dos mais espantosos acontecimentos que jamais vi. Mas o que é?

Bunny erguera-se e fitava o cunhado com uma expressão entre assustada e indignada:

- Jake, meu estúpido! Por que dizes isso?

- O quê? - e começou a rir-se. - Ah, parece-me que acertei na marca, hem?! Há algum tempo que adivinhava a direcção do vento... É mentira?

- Diabos te levem! - resmungou o rapaz, voltando as costas.

Jake continuou a fumar, impassível. Adivinhava os pensamentos do cunhado com a intuição dada pela longa intimidade. Quando o rapaz voltou a falar, sem se virar, quase sabia já o que ele ia dizer:

- Achas-me... muito desprezível, Jake?

Tinha a cabeça baixa, observando com nervosa concentração uma figurinha de porcelana que adornava a escarpa da chaminé.

- Nunca foste tal coisa, rapaz - afirmou Jake, batendo-lhe no ombro. - Mas aceita o conselho dum homem mais velho: não tenhas pressa! Se procederes assim, ela admirar-te-á mais.

- Nunca olhará para mim - disse Bunny, agarrando-lhe na mão, mas sem levantar os olhos.

- Não? Já a vi olhar para ti mais do que uma vez... e o general também. Calculo que te achavam mal empregado para a Toby, e talvez tivessem razão para o pensar. Nunca foi forma para o teu pé, e parece-me que to cheguei a dizer.

- Fui um doido - murmurou, endireitando-se e fitando Jake. - Toby não teve culpa - confessou, generoso. Não queria comprometer-se comigo, fui eu que a obriguei. Soube sempre que não a entusiasmava, mas acreditava amá-la o suficiente para conseguir que se interessasse por mim. Enganei-me. Não a amava o bastante.

- Começas a compreender? - inquiriu Jake, sorridente.

- Começo a avaliar como fui tolo. Mas não crês que deitei tudo a perder? Achas que ainda tenho uma possibilidade?

- com certeza! Mas tem cuidado! - fez uma pausa e apertou com força a mão do rapaz. - Acredita, Bunny, que não há nada de desprezível em cometer um erro. Só quando as coisas correm mal e nós não nos damos ao trabalho de as endireitar, há razão para se ter vergonha. E eu, confesso, estive sempre disposto a apostar o meu último dólar em como tu nunca procederias assim.

- Oh, homem, isso só mostra que me conheces bem!

- O que eu não sei a teu respeito, meu filho - começou, baixando-se para despejar na chaminé as cinzas do cachimbo - não vale o zurro dum jumento. Portanto, o melhor é calares-te. Bem, agora vou ter com a Maud. Algum recado?

- Sim - volveu Bunny, muito direito e com os olhos brilhantes. - Dá-lhes saudades minhas. Não irei para casa agora, mas diz à Toby que, quando eu for, não precisa de se preocupar com coisa alguma. Diz-lhe que não estou zangado.

- Está descansado. Ouve, não te metas com Saltash! Deixa-o resolver a sua sorte. Ele monta um cavalo bravio, mas tenho a impressão de que ainda será bem sucedido!

- Diabos o levem! Está bem, não interferirei. Depois de Jake sair, sentou-se, tirando uma carta da algibeira. Era a carta duma mulher que escrevera porque quisera escrever, não porque tivesse algo a dizer, e os olhos do rapaz brilhavam, muito ternos, quando chegou ao fim. Ficou uns momentos olhando a assinatura, toda a preocupação desvanecida do rosto, e por fim, num gesto meio envergonhado, beijou-a.

- Fui um tolo, Sheila - murmurou, docemente. - Mas, graças a Deus, compreendi a tempo. E... não voltarei a fazer o mesmo erro!

O que era, talvez, o que a signatária desejara que ele dissesse.

- Faremos um buraco muito grande, para te meteres lá dentro? - perguntou Eileen, muito séria.

- E depois cobrimos-te até à cabeça, para não apanhares frio! - concluiu Molly.

- Betty também cava! Betty também cava! - gritou a mais novinha. - Também deita areia na cabeça da tia Toby!

- Que excelente ideia! - murmurou a vítima, resignada.

Estava sentada ao sol, com o queixo apoiado nas mãos, enquanto as garotas brincavam alegremente à sua volta. Os olhos azuis que fixavam o horizonte tinham uma expressão cansada, pesados de lágrimas retidas, e o rosto perdera toda a cor delicada que o caracterizava. Dir-se-ia que murchara, deixando fugir toda a exuberante elasticidade da juventude. Por vezes escapava-se-lhe um suspiro profundo, quase como um soluço.

A vozita de Betty, a seu lado, veio arrancá-la aos seus sonhos:

-Betty 'tá cansada, tia Toby. Betty quê sentar.

Pegou na garota, aconchegou-a a si, falando-lhe ternamente, e Betty adormeceu quase imediatamente, encostando-lhe a cabeça ao pescoço. Eileen e Molly continuavam a tarefa que se tinham imposto, e Toby voltou a embrenhar-se nos seus sonhos.

Talvez tivesse também começado a dormitar, pois o dia estava quente e há muito que não dormia um bom sono, quando uma sombra a despertou, dando-lhe a consciência de que alguém se aproximara sem dar por isso. Dominou um estremecimento, receosa de acordar a petizinha, mas os olhos, quando os levantou, tinham a expressão apavorada de um animal perseguido. Encolheu-se involuntariamente e o sangue fugiu-lhe dos lábios.

Um homem de fato azul marinho fitava-a, com um olhar que se esforçava por parecer impessoal, mas que se traiu ao vê-la contrair-se:

- Deus sabe que não precisas de ter medo de mim disse ele.

- Não tenho medo! - replicou ela, - simplesmente não o esperava nesta ocasião. Sente-se e conversemos, capitão, se foi para isso que veio.

Aparentemente assim era, pois o homem baixou-se, mas logo, cedendo ao hábito irresistível, os seus olhos perscrutaram o horizonte e lá ficaram presos e esquecidos.

Toby esperou uns segundos e depois, bruscamente, murmurou:

- Por que não fuma? Verá que o ajuda.

O homem levou maquinalmente a mão ao bolso e tirou a cigarreira. Os seus olhos desprenderam-se, por fim, do ponto invisível, fixando-os na cabecita loura que a rapariga tinha nos braços.

- Voltaste, então, à antiga ocupação!

- Voltei. Foi Jake que quis. Estou à espera de... me divorciar.

O homem esboçou um pequeno gesto de surpresa, mas o rosto manteve-se-lhe impenetrável.

- Terás de esperar algum tempo...

- Não foi para falar nisso que veio, pois não? perguntou ela, com um pequeno gesto de enfado.

- Não. Vim para te dar um recado.

- Um recado! - exclamou, estremecendo. - Um recado... de quem?

- De Rozelle Daubeni - respondeu Larpent, fitando-a.

- Ah! - gritou, arrepiando-se. - Não quero ouvi-lo!

- Tenho de o dar e tu tens de o ouvir. Mas não há razão para temores, não te fará a mínima diferença, já é tarde para isso.

Larpent calou-se, e Toby continuou com o olhar fixo nos cabelos louros de Betty. Quando o homem voltou a falar, os seus olhos tinham-se perdido de novo no mar.

- Deves ter ficado surpreendida por me veres com ela em Paris - observou. - Não sou homem que corra atrás daquele tipo de mulheres, mas fui para junto de Rozelle porque ela estava a morrer e porque... há muito tempo... foi minha mulher.

Toby soltou uma exclamação abafada, mas continuou calada e de cabeça baixa.

- Ela portou-se mal, fugiu-me, enquanto eu andava no mar! - prosseguiu Larpent, frio e firme. - Era muito nova para ficar sozinha. Mais tarde, nasceu uma criança, uma criança minha, segundo ela me disse na noite anterior à sua morte.

- Santo Deus! - exclamou Toby, arquejante.

- Nunca soube da existência da criança, de contrário teria sido diferente. Agora é demasiado tarde. Pediu-me que descobrisse e protegesse a filha e eu prometi-lhe fazer o possível. Disse-me também que, quando a encontrasse, lhe dissesse que, todos os dias, suplicava aos céus o seu perdão.

Deixou de falar, seguindo-se um silêncio longo e doloroso. A maré começava a subir e o céu e o mar confundiam-se, brilhantes, à luz do sol. Os olhos de Larpent fitavam o espaço, sem verem, e os de Toby estavam rasos de lágrimas.

O homem voltou-se, por fim, olhando-a. Depois, comovido com o que viu, agarrou-lhe, desajeitado, por um braço e disse:

- Não vim pedir-te nada, mas gostava que acreditasses que, se tivesse sabido, teria feito alguma coisa.

- É... é... muito esquisito, não é? - titubeou a rapariga, retendo as lágrimas. - Lamento... lamento muito, capitão Larpent!

- Lamentas?

- Lamento... por si! - confessou ela, com voz trémula.

- Ligaram-me tantas vezes a si... e o senhor detestou tanto isso!

- Esse é o lado trágico do assunto! - concordou ele.

- Admiro-me que se tenha dado ao trabalho de me dizer - murmurou Toby, enxugando as lágrimas e tentando sorrir.

- Tinha de te dizer! - afirmou, apertando-lhe quase inconscientemente o braço. - Era uma coisa que tinhas de saber - depois hesitou uns momentos, declarando com visível esforço: - Queria, também, oferecer-te o meu auxílio.

- Obrigada - disse ela, baixinho. - O senhor... isso... é muito generoso, muito! - E engoliu os soluços, tentando recompor-se. - E... que quer fazer?

- Fazer? Sim, que podemos fazer? - inquiriu Larpent, parecendo momentaneamente desconcertado.

- Bem, com certeza que não deseja abandonar a sua vida e ir viver numa casinha, comigo, não é verdade? perguntou Toby, tornando-se de repente jovial e prática.

- Nenhum de nós gostaria de tal coisa, não lhe parece?

- A esse respeito não existe nenhum problema! afirmou ele, sereno. - O teu lugar é junto de teu marido,

e não de mim.

- Nesse caso, o meu lugar não é em parte alguma - murmurou, estremecendo. - Quando o abandonei, foi... para bem.

- Por que o abandonaste?

Toby estendeu os lábios e não respondeu.

- Não é assunto em que me deva meter - observou o capitão, após ter esperado alguns momentos - mas parece-me que te enganaste num ponto: não compreendeste o motivo por que ele te desposou.

- Sei só que não o devia ter feito! - declarou ela, com um pequeno gesto de protesto. - Não devia ter consentido, mas pensei que podia desempenhar o meu papel. Agora sei que não posso... e ele também o sabe.

- Creio que terás de o desempenhar, apesar de tudo.

- Não! É impossível. Foi demasiado bom, demasiado generoso, mas a comédia não pode continuar. Deve libertar-me. Se não o fizer... - e interrompeu-se bruscamente.

- Se o não fizer? - inquiriu Larpent, num tom involuntariamente carinhoso e compassivo.

- Encontrarei eu a maneira de o fazer! - concluiu Toby, evitando-lhe o olhar.

- Não vale de nada lutar contra o destino-observou o marinheiro, apertando-lhe de novo o braço. - Por que achas impossível continuar a viver com ele? Pelo simples motivo de teu marido saber tudo a teu respeito? Achas que esse motivo, ou qualquer outro, terá importância, no ponto em que as coisas estão? Imaginas que te deixará fugir-lhe,

por uma razão dessas?

- Terá de o fazer. Ainda não sabe tudo a meu respeito, nem o senhor, tão-pouco. E... e... nunca o saberá. A voz vibrava-lhe, apaixonada, e os olhos, assustados, olharam à roda, como que a procurar refúgio. A garotinha que tinha ao colo moveu-se e acabou por acordar.

Larpent levantou-se, como se desse por terminada a conversa, dirigindo-se às duas pequenitas que cavavam, afanosamente, a pouca distância.

Eileen cumprimentou-o, com a habitual delicadeza e timidez:

- Por que não fica mais um bocadinho? Já está quase pronto.

- Quase pronto - concordou Molly. - Não é um grande buraco?

- Para que é? - perguntou o capitão.

Foi Toby que lhe respondeu, numa voz que era uma mistura de lágrimas e risos:

- Estão a fazer um buraco para me enterrar. Não é uma grande ideia?

O capitão voltou-se e fitou-a. Não havia sinal de lágrimas naqueles grandes olhos azuis que o encaravam; no entanto, Larpent pôs-lhe a mão num ombro, como se consolasse uma criança:

- Antes de me ir embora queria dizer-te algo, algo que ninguém me disse, mas que descobri por mim próprio: no mundo há apenas uma coisa que vale a pena possuir-se, uma única coisa que tem valor. Não é hierarquia, fortuna ou mesmo felicidade. Fica acima de tudo isso porque é a única criação de Deus que é duradoura. E tu... obtiveste-a. Pelo amor de Deus não a desperdices.

Falou com a simplicidade e convicção dum homem que não costuma desbaratar palavras e, mal acabou, voltou-se sem se despedir, afastando-se.

Toby ficou alguns segundos imóvel, vendo-o afastar-se; depois, apressadamente, chamou a garota mais velha:

- Toma conta da Betty, Eileen, só um bocadinho! Eu volto já! - e desatou a correr.

Larpent deve ter-lhe ouvido os passos, mas não se voltou. Talvez os seus pensamentos andassem longe, pois quando Toby lhe segurou o braço e ele parou, a rapariga viu-lhe os olhos melancólicos e cheios de tristeza.

- Então? - perguntou o homem, com um sorriso frouxo. - Então... Toinette?

- Por favor, quero agradecer-lhe! - exclamou ela, arquejante, segurando-lhe o braço com ambas as mãos.

- O senhor foi... muito, muito bom!

- Não fiz nada - protestou ele, abanando a cabeça.

- Não me agradeças.

- Quero dizer-lhe-continuou, apressada-que estou muito satisfeita por saber, embora deva ter sido... um grande choque para si.

- Teria sido um choque muito maior e pior se fosse outra pessoa qualquer e não tu! - confessou Larpent.

- Teria? Oh, que bom é! - exclamou a rapariga, com os lábios trémulos. - Nesse caso, ainda bem que fui eu! - e começou a caminhar a seu lado. - Importa-se de me dizer se... lhe perdoou?

- Perdoei! - declarou o capitão.

- Então também devo perdoar. Pelo menos, devo tentar. Eu amei-a, em tempos, antes de começar a compreender - disse Toby.

- Todos a amavam - esclareceu Larpent.

- Mas a vida é muito difícil, não é? - inquiriu a rapariga.

- A vida tem sido - insinuou o capitão.

- Não se pode deixar de cometer erros... às vezes, até, grandes erros! - lamentou Toby.

- Tu acabas de cometer um - lembrou Larpent.

- Ah, mas o senhor não compreende! Não se pode desperdiçar aquilo que nunca se teve. Pois não?

- Mas tu queres deitar fora aquilo que tens, que obtiveste.

- Mas não, nunca tive! - protestou ela, abrindo os braços. - Nunca! Ele casou comigo por... piedade, nunca fingiu amar-me!

- Pois não! - afirmou, convicto. - Ele não finge, desta vez.

- Não finge? - perguntou Toby, parando, com os olhos muito abertos. - Que quer dizer? Por favor, que quer dizer?

- Adeus! - murmurou Larpent, estendendo-lhe a mão.

- Quero dizer, apenas, aquilo que disse.

Toby entreabriu os lábios para falar, mas algo nas feições do marinheiro lhe deteve as palavras:

- Adeus! - correspondeu, estendendo também a mão. Larpent apertou-lha, um momento, e depois, comovido pelo desespero que lhe lia nos olhos, inclinou-se, como, semanas atrás, se inclinara no castelo, e beijou-lhe levemente a testa.

-Oh, é muito bondoso! - disse ela, também comovida.

-Obrigada!

- Não me agradeças nada! Sê, apenas, honesta!

E partiu, pisando a areia com o andar balouçante que lhe era peculiar, sempre com os olhos postos no horizonte longínquo. Talvez que o seu olhar não voltasse a prender-se em coisas mais próximas, enquanto vivesse.

- Foi tudo uma comédia - murmurou Saltash, com um sorriso forçado. - Fomos ambos tão diabòlicamente subtis, que tenho a impressão de que acabámos por cair no mesmo buraco.

- Mas não podem continuar nele - protestou Maud. Saltash fitou-a, com uma sobrancelha erguida, formando um ângulo cómico:

- Minha bela rainha, se conseguir ajudar-nos a subir, ganhará a minha eterna gratidão!

- Charlie, sabe que, noite após noite, a ouço chorar, como se tivesse o coração despedaçado?

- Mas porquê? - inquiriu ele, baixando a sobrancelha.

- Eu não lho despedacei. Nunca me mostrei amoroso para com ela.

- Talvez seja esse o motivo. É tão nova, está tão desamparada e tão triste! Custa-lhe assim tanto perdoar-lhe?

- Perdoar-lhe! Ela quer ser perdoada?

- Só sei que se desespera, Charlie. Não posso vê-la sofrer assim. Não me disse nada, apenas que esperava que a libertasse, que lhe concedesse o divórcio. Não faria isso mesmo que pudesse, pois não?

Saltash manteve-se silencioso e com cara de poucos amigos.

- Diga-me que não o faria! - implorou Maud.

- Há, apenas, uma razão que me levaria a fazê-lo, minha amiga - declarou ele, fitando-a com certa malícia.

- Ela não lhe disse por que motivo fugiu com o meu amigo Spentoli?

- Não me disse coisa alguma. Sei apenas que está agradecidíssima ao Jake por a ter libertado dele.

- Ah! - e os dentes de Saltash brilharam por instantes, entre os lábios. - Também lhe estou grato por isso. Creio que dominou a situação com pulso de ferro. Ele sabe que partiu o braço de Spentoli? Nos jornais do dia seguinte, de mistura com o relato da morte de Rozelle Daubeni, destacava-se: "Famoso escultor que cai dum comboio". O "acidente" vai mantê-lo quietinho durante algum tempo e poupou-me o trabalho de o defrontar. Fui vê-lo ao hospital.

- Foi vê-lo?! - admirou-se Maud.

com um sorriso, Saltash fez um gesto afirmativo: - Sim, senhora, e fi-lo ciente da minha mágoa. Pode dizer à pequena, da minha parte, que não pedirei o divórcio por causa dele. Não é o que eu chamaria uma causa boa e suficiente.

- Graças a Deus! - exclamou Maud, aliviada.

- Ámen! - troçou Saltash, tirando a cigarreira. Maud fitou-o, com os olhos cheios de espanto, até que,

aceso o cigarro, ele lhe sorriu, através do fumo, com o ar mais jovial deste mundo.

- Como posso ajudá-lo? - perguntou Maud, ansiosa.

- Deixo o assunto inteiramente à sua discrição, madame! - replicou, com um gesto estudado. - Como já deve ter compreendido, desisti absolutamente de me ajudar a mim próprio.

- Está zangado com ela?

- Estou furioso - esclareceu, com ar majestoso.

- Não fala a sério - protestou Maud, abanando a cabeça. - Tenho a certeza de que não pode estar zangado com a pobre garota. Charlie, ama-a, não ama? Quer que ela volte? Quer?

Saltash mudou de posição, de modo a que o fumo do cigarro não incomodasse Maud, e respondeu, com um sorriso contrafeito:

- Se quero que ela volte? Palavra que é difícil de responder.

- Oh, quer com certeza! - e Maud levantou-se, impulsiva, colocando-se a seu lado. - Por que usa essa máscara comigo? Julga que não sei que Toby representa para si o mundo inteiro?

- Não existe mulher alguma sem a qual não possa viver - volveu ele, muito sério. - Aprendi isso... quando a perdi a si.

- Oh! - exclamou, estendendo-lhe a mão. - Mas agora é diferente, Charlie. Por que havia de viver sem ela? Não sabe que Toby o ama?

- Se isso é verdade - murmurou, apertando-lhe os dedos, com força, e dando à voz uma entonação dura pode voltar para mim de sua livre vontade, quando quiser.

- E se tiver medo?

- Não tem motivo algum para ter medo. Nunca lhe pedi nada, nem nunca lhe dirigi uma palavra áspera. De que há-de ter medo?

- Compreendeu-a? - inquiriu Maud, suavemente.

Saltash fez um gesto brusco, como se a pergunta, apesar de toda a suavidade com que fora feita, o magoasse. Logo a seguir, porém, desatou a rir:

- Por que perdemos tempo com esses enigmas impossíveis de resolver? Já existiu algum homem que compreendesse uma mulher? Ponhamos o assunto de parte. Uma vez que está aqui, minha bela rainha, celebremos o acontecimento com uma bebida, mesmo que seja apenas chá.

E riu-se para ela. Estavam ambos na torre, defronte do piano, onde Maud o encontrara tocando música selvagem com tal ferocidade que a comoveu.

Viera vê-lo com o desejo sincero de o ajudar, mas aquele homem de quem estivera tão perto, nos anos longínquos da mocidade, lograva-a a todo o momento. Não podia seguir-lhe o trabalho complicado do pensamento, a rapidez com que mascarava os seus sentimentos. Há muito tempo que a sua alma lhe fugira, escondendo-se.

No entanto, continuava convencida de que, se alguém conseguisse transpor a porta contra a qual todos esbarravam, esse alguém seria ela. Em tempos, possuíra a chave e não podia acreditar que não soubesse já dar-lhe a volta. Havia de ceder perante ela, embora não cedesse ante mais ninguém.

Talvez Saltash lhe lesse os pensamentos, pois o riso morreu-lhe nos lábios, transformando-se na expressão terna e trocista que lhe conhecia tão bem.

- Aceita o meu convite? - tornou ele. - Já que entrou na minha fortaleza sem a sua guarda de corpo, não levará a gentileza ao ponto de aceitar a minha hospitalidade?

- Tomarei chá na sua companhia com muito prazer, Charlie - acedeu ela. - Não vê que estava apenas à espera do convite?

- É muito gentil - elogiou, atravessando o aposento para tocar uma campainha.

Maud deixou-se ficar no seu canto, olhando as faias que resplandeciam, douradas, à luz do sol e, mais longe, a mancha negra dos pinhais.

- Que paraíso! - exclamou quando ele se lhe juntou.

Saltash seguiu-lhe o olhar, sem demonstrar o mínimo prazer. Invadira-o uma súbita melancolia, uma tristeza que os olhos não sabiam esconder.

- Sabe por que razão o Bunny não veio ver-me? perguntou inesperadamente. - Não ignora que cá estou.

- Espera que ele venha? - inquiriu, surpreendida.

- Sim, diga-lhe que venha - ordenou, arrogante.

- Não discutirei com ele nem ele comigo, prometo. Ainda está sedento do meu sangue? Se está, que venha saciar-se à vontade!

- Charlie!

Sem uma palavra, voltou-se, sentando-se ao piano. Os dedos magros começaram a acariciar as teclas e a velha e doce melodia que costumava tocar-lhe, nos tempos idos do seu noivado, encheu o aposento. Maud ia formando as palavras, à medida que ele tocava, mas não as proferia:

Caiu uma lágrima brilhante

da flor da paixão, desabrochada,

é ela que chega, o meu amor!

é ela, a minha vida, o meu destino!

A rosa vermelha grita: Está perto!

A rosa branca soluça: Vem tardei O cravo escuta: Já a ouço! Já a ouço! E o lírio murmura: Eu espero!

- Vem, realmente, muito tarde! - comentou Charles Rex, zombeteiro. - E o lírio é mais paciente do que eu. Por que não canta, Maud das rosas?

Maud estremeceu, ao ouvi-lo, mas não respondeu. Não podia dizer-lhe que tinha a garganta muda de lágrimas.

Saltash continuou ao piano, a tocar na mesma cadência doce, até que o velho mordomo apareceu com o tabuleiro do chá. Levantou-se, então, para a servir. Convidou-a a sentar-se junto da janela, sentou-se também e começaram a falar de assuntos indiferentes. Maud não tentou voltar à conversa primitiva, pois sabia bem que, se ele quisesse furtar-se-lhe, nenhum poder o poderia capturar.

No entanto, estava quase convencida de que Saltash não lhe fugiria de todo. Podia fingir que brincava, inconsequente como um macaco a saltar de ramo para ramo, mas tinha um fim em vista e havia de voltar a ele, por tortuoso que fosse o caminho escolhido.

Assim aconteceu, de facto, mas muito mais depressa do que Maud previra. Estavam a conversar acerca do novo iate e, de repente, Saltash anunciou a intenção de dar a volta ao mundo, nele.

- Sozinho? - indagou, arrependendo-se logo, receosa de ter ido demasiado longe.

- Sim, sozinho - volveu ele, sem se perturbar. - E, se não voltar, Bunny poderá desposar Toby e reinar aqui, em meu lugar. Isto se ele não for doido, porque, se o for, Toby reinará sozinha, consigo e com o Jake para velarem por ela.

- Mas, Charlie, porquê, porquê?

- Porque sempre se quiseram um ao outro- replicou, franzindo imperceptivelmente as sobrancelhas. - Não sabia? É verdade que ela me pôs numa redoma e me adorou, durante um tempo, mas eu não servia para esse papel. Imagine, minha amiga, eu... um santo de pedra!

- Nunca a compreendeu - lamentou Maud.

Saltash encolheu os ombros, e prosseguiu, despreocupado:

- Oh, sei perfeitamente que estava pronta a oferecer-me sacrifício humano, mas isso não me bastava. Além do mais, não desejo sacrifícios. Interpus-me entre ela e o mundo, protegi-a, mas fi-lo gratuitamente, não tomei nada como pagamento - uma pequena tremura soou-lhe na voz, como se reprimisse qualquer comoção, e depois prosseguiu, encostando-se à janela e pondo as mãos na nuca: - Não foi por isso que a desposei e tentei provar-lho. Pensava que podia conquistar a sua confiança, como qualquer homem vulgar, mas enganei-me, enganei-me estrondosamente. Ela nunca esperou que a tratasse decentemente, não começou, sequer, a ter confiança em mim. E, por isso, assim que o vento mudou, o barco foi ao fundo.

- E por que mudou o vento?

- Os deuses pregaram-nos uma partida - explicou, sorrindo-lhe. - Foi uma partida pequenina, mas chegou. Ela voou e, assim, cheguei à conclusão de que não podia prendê-la. Bem - prosseguiu, abrindo as mãos e endireitando-se- agora é a vez de Bunny. Deixá-la-ei ir para ele.

- Meu amigo! - exclamou Maud, comovida.

- Ficou chocada? - perguntou ele, rindo com o cinismo habitual. - Não vejo motivos para isso, visto que ambos se amam. Não a ouvi eu pregar, tantas vezes, que o amor é a maior coisa que há na terra? Não me disse, uma vez, que eu ainda havia de saborear a alegria-a alegria maravilhosa - de colocar a felicidade de alguém acima da minha própria? É uma coisa que pode fazer-se, simples e facilmente, como lhe disse, também há muito tempo. Ela terá, apenas, de fugir com o seu irmão. Eu farei o resto. Um crime moral, nada mais! É, evidentemente, contra o vosso código, mas considere! Apenas perderei aquilo que nunca tive, na realidade. Pela primeira vez na vida, faço um crime em nome... do amor!

E riu-se, num riso forçado que transbordava de mágoa. Tinha o rosto contraído, a expressão sentida dum macaco que vê arrebatarem-lhe a presa.

- Oh, está enganado! - exclamou Maud, erguendo-se, não suportando mais a atitude dele. - Está enganado! Tem o poder de fazer-se amar por ela e, sobretudo, ama-a. Charlie, esse amor não lhe foi dado para o deitar fora. Não pode fazê-lo, não pode!

- Querida Maud - disse ele, fazendo um gesto que a deteve. - há muitas coisas que não posso fazer e, uma delas, é esta: não posso prender nenhuma mulher contra sua vontade, mesmo que fosse dez vezes minha esposa! Evidentemente que não a deixaria ficar com Spentoli, mas Bunny é um caso diferente. Jake garantiu-me que faria dele melhor marido do que eu. Se Bunny deseja saber tudo acerca do seu passado e da sua família, que venha ter comigo. Informá-lo-ei de boa vontade. Diga-lhe isto. Mas, se a amar de verdade, não se importará com coisa alguma, como eu.

- Ah! - exclamou Maud.

E ficou a olhá-lo, com uma expressão maternal de amor que compreende.

- Obrigada por mo ter dito, Charlie - murmurou, estendendo-lhe a mão. - Adeus!

-Mas que lhe disse eu? - inquiriu ele, segurando-lhe os dedos.

- Oh, não se importe! Apenas me fez compreender, mais nada. Darei o recado a Bunny... a ambos. Adeus!

- No fim de contas, volto à minha antiga fidelidade - disse Saltash, galanteador, baixando-se para lhe beijar a mão. - Foi você, querida rainha, que me ensinou a amar.

- Não - desmentiu ela, soltando a mão e preparando-se para sair - não fui eu. Creio, antes, que foi Deus.

Pela segunda vez Charlie Rex não soltou a gargalhada que Maud esperava. Os olhos seguiram-na, com uma espécie de melancólica ironia:

- E para que me ensinaria?

Um vento frio filtrava-se pelos baluartes, trazendo consigo o aroma e ruído do mar. Naquela noite não havia lua, apenas nuvens, flutuando sobre as estrelas, obscurecendo-as e revelando-as, alternadamente. No parque piava um mocho, persistente, cortando a noite como um grito humano, e, perto do lago, as árvores murmuravam entre si, como se passassem umas às outras misteriosas notícias. E, uma vez mais, sozinho entre as paredes do seu castelo, Saltash vagueava, incansável, de trás para diante.

Aquela seria a sua última noite em Burchester, pelo menos até dali a um ano. A febre de mudar de ambiente atacara-o. Jogara a última cartada, mas perdera e era característico do homem voltar as costas aos prejuízos e desaparecer. A alma começava a ansiar pelos espaços largos e fora respondendo a esse apelo que subira até ali. Não podia estar quieto nem suportar a sensação de estar rodeado de paredes. Naquela noite, porém, não esperava qualquer visão, tanto mais que não havia lua e tinha de caminhar às escuras.

Lá em baixo, no porto, o iate esperava-o e perguntava-se, cinicamente, por que não ia para lá. Por que havia de ficar ali, a esvaziar até às fezes o seu cálice de amargura,

quando tinha o mundo inteiro à sua disposição? Mandara o recado a Bunny, consumara o sacrifício, e Maud nem sequer imaginara por que preço o fizera! Era o seu primeiro sacrifício voluntário, reflectia irónico, admirando-se de lhe custar tanto. No fim de contas, que sacrificara?

Nada, nada que valesse a pena, consolava-se. Possuíra a sua adoração infantil, mas nunca o seu amor, e era isso que queria, era esse amor que lhe fazia falta! Pela primeira vez na vida não desejava uma coisa mesquinha, admirou-se.

Cansado e desiludido pela longa experiência, achava-se agora ansiando por aquilo de que sempre zombara

- o amor! Mas a sua ansiedade não seria satisfeita, teria de partir vazio, continuar vazio, como sempre, mais vazio do que nunca, pois agora sabia o que lhe faltava! O facto de ter já conhecido tudo purificava-o, paradoxalmente, dos desejos terrenos; dir-se-ia que, tendo tocado o espiritual, tudo quanto era matéria caía e se afastava. Olhou para trás, para o deserto que fora toda a sua vida, e viu apenas areia.

O barulho da porta da torre, a bater, chamou-o à realidade. Reparou então que o vento estava frio e que se aproximava uma nuvem carregada de chuva, vinda do mar. Impaciente, encolheu os ombros e voltou-se. Por que continuava ali, como um bêbado sonhador diante da garrafa entornada? Iria para o iate, juntar-se a Larpent - a Larpent, que também amara e perdera o seu amor. Partiriam com a nova maré, os dois vencidos no jogo da vida, deixando o vinho entornado para trás.

Impulsivo, retrocedeu. Acabara-se, não voltaria a tentar, mas havia de, pelo menos, encarar a situação como um homem. Ninguém, nem mesmo Larpent, o veria quebrar. com este pensamento alcançou a porta da torre, estacando.

Oh, daquela vez não era nenhuma visão! Ela estava ali, com uma capa azul brilhando vagamente à luz ainda mais vaga das estrelas, pálida e de olhos assustados. Tinha as mãos unidas, apertando-as convulsivamente, mas não disse uma palavra.

Encostava-se à porta, que fechara, e tremia dos pés à cabeça.

- Então? - perguntou Saltash, fitando-a, mas sem lhe tocar.

Toby fez um pequeno gesto, com as mãos enclavinhadas, continuando imóvel, como naquela noite, no Mediterrâneo, em que lhe fora pedir protecção.

- Vim - murmurou ela numa voz que tremia, descontrolada - para lhe dizer uma coisa.

Saltash não se moveu. Tinha o rosto na sombra, mas via-se na sua atitude uma tensão nada tranquilizadora. -Então? - repetiu, maquinalmente.

- Vim dizer-lhe uma coisa - tornou Toby, torcendo as mãos, como que a querer dominar a agitação que a tomava.

- Alguma coisa que eu não saiba? - perguntou, cínico.

- Uma coisa que... que... não quer saber - titubeou ela. - Foi Maud que me obrigou a vir.

Sentiu-se um pouco comovido. Aquela maneira de titubear as palavras sempre o apiedara.

- Não te preocupes, minha querida. Sei tudo quanto há a saber, tudo acerca de Rozelle, tudo acerca de Larpent, tudo acerca de Spentoli!

- Mas não sabe... não sabe... porque lhe fugi... em Paris.

- Não? Tenho um cérebro ágil, minha filha! Leio nas entrelinhas com muita facilidade.

- E como soube o que se passou com Spentoli? Quem lhe contou?

- O próprio.

- Ah! E... que lhe disse ele? - inquiriu Toby, sem poder esconder a fúria que começava a dominá-la.

- Não me disse nada que eu já não soubesse - replicou ele, fazendo uma vénia e bloqueando o caminho, para que Toby apenas pudesse escapar-se pela porta - nada que os teus próprios olhos não me tivessem já confessado, há muito tempo.

- Que quer dizer? - inquiriu a infeliz rapariga, torcendo as mãos uma na outra.

- Quero dizer que estou ao corrente do inferno que foi a tua vida, da luta perpétua que tiveste de travar contra o destino que te perseguia - respondeu, mais amavelmente do que desejaria. - Se a tua vida não tivesse sido tudo isto, nunca terias procurado protecção junto de mim. Julgas que alguma vez imaginei que recorreras a mim por qualquer outro motivo, além da tua necessidade de abrigo? Julgas que não sabia que fora o teu último recurso, ao qual só recorreste obrigada pela força das circunstâncias? Se esse recurso tivesse falhado...

- Espere! - interrompeu ela. - O senhor tem razão numas coisas, noutras não. É verdade que comecei a fugir mal cheguei à idade de compreender a podridão da vida. Spentoli tentou arruinar-me, mas eu impedi-o. Armou-me inúmeras armadilhas, esse cão maldito, mas eu... eu... fiz o possível para o matar! -As palavras saíam-lhe agudas, quase assobiadas, por entre os dentes cerrados de ira e nojo. - Tentei apunhalá-lo no coração, Deus sabe que o tentei, mas... falhei, não acertei bem! Deixei-o, julgando-o morto, e morto o considerei até àquele dia, em Paris. Depois disso, a vida tem sido um pesadelo constante, uma luta sem tréguas pela segurança e liberdade. Se não tivesse encontrado o senhor, teria procurado qualquer outra saída, mas encontrei-o e... tive de ir para si.

- Porquê?

Toby continuou, como se não tivesse ouvido a pergunta, com o coração a saltar-lhe em cada palavra, sem esconder nada da sua alma:

- Encontrei-o e, mesmo que fosse um anjo do céu, não seria mais bondoso, mais santo! O senhor ajudou-me, acreditou em mim, deu-me, sempre, o benefício da dúvida, tornou possível a fuga do atoleiro em que me debatia... fez com que a vida me parecesse suportável, até... até... bela! Ofereci-lhe tudo, nem podia proceder doutro modo, pois o senhor era, para mim, o único homem que existia sobre a terra. Como podia deixar de adorá-lo, de venerá-lo? A si, que se mostrou sempre tão esplêndido, tão grande! A si, que me fez gostar da vida, que me levou a... acreditar em Deus? - e rompeu a chorar, desesperadamente. - Mas não me tinha amor, nem um bocadinho só, o suficiente, apenas, para aceitar o pouco que eu queria dar-lhe! Não queria que me desposasse, nunca sonhei tal coisa, e era doloroso não o querer, não dever, sequer, sonhá-lo! Sabia perfeitamente que não tinha qualidades para ser sua mulher e, por isso, recalcava tudo dentro de mim, não deixava vir nada à superfície, nem, ao menos, os sonhos! Mas... amava-o tanto! Quando soube que Bunny estava contra mim, quando compreendi que perdera a sua confiança, que podia fazer senão voltar para si? E foi então... então... que quis casar-se comigo! Não devia ter consentido tal coisa. Deus nunca me perdoará tê-lo feito, nem eu mereço ser perdoada, mas... amava-o... amava-o!

Cobriu o rosto e soluçou, num desespero inconsolável.

- Nonette! Nonette! - exclamou ele, numa voz singularmente trémula, colocando-lhe a mão sobre o ombro. Não chores, criança, não chores!

- Não! - suplicou ela, recuando. - Não me toque, não quero! Vim só para dizer-lhe a verdade... para que não pensasse que... alguma vez... me importei com o Bunny. A Maud acha que o senhor devia sabê-lo. Nós... apenas brincámos... nunca nos amámos... nem ele... nem eu. Eu não era a mulher que lhe convinha... nem ele o homem de quem eu gostava. Ele não me quer de novo... nem eu iria, se me quisesse. Fugi com aquele maldito Spentoli para... lhe dar, a si, uma possibilidade de se ver livre de mim. Não pude mais encará-lo, desde que vi que sabia tudo. O senhor nunca me teve amor e eu... menti-lhe tanto! compreendi que devia gostar de ficar livre... Por que não pede o divórcio? Porquê? Porquê?

Levantou o rosto esbraseado, como que electrificada pela força da paixão. De novo Saltash estendeu um braço para ela, mas de novo lhe fugiu, num gesto desesperado:

- Não me toque! - suplicou. - Não me toque! Não o poderia suportar. Vou-me embora, agora! Não voltará a ver-me, não voltará a saber de mim! Ficará livre, compreende? Ficará absolutamente livre! Cumprirei a promessa que lhe fiz e... não será difícil. Ninguém saberá como, e somente o senhor que nunca fingiu, sequer, amar-me, poderá imaginar porquê.

Voltou-se, tentando furiosamente abrir a porta. Teria partido se Saltash, num movimento talvez mais veloz do que todos os que fizera na sua vida, não a prendesse, apertando-a nos braços.

Toby lutou por libertar-se, como um animal apavorado, esbracejando para todos os lados, com todas as forças que lhe emprestava o desespero. E quando, finalmente, Saltash a venceu, apertando-a com ardor contra o peito, até a sentir impotente e palpitante, rompeu em pranto, implorando que a largasse.

- Por que havia de te largar? - perguntou, cingindo-a cada vez mais. - Não compreendeste ainda que essa é a última coisa que eu faria?

- Mas deve largar-me! Deve, deve largar-me! Não pode... não pode... manter-me assim, contra a minha vontade!

- É verdade - concordou Saltash, como se algo o magoasse. - E tu... és capaz de me abandonar contra a minha?

Enquanto falava abrandou o abraço e, no mesmo instante, como se tivesse asas, Toby libertou-se, saltando para o parapeito, e, em menos dum segundo, deslizava para a estreita saliência exterior que rodeava o grande contraforte de pedra da torre.

- Diabo! - praguejou Saltash, fazendo menção de a seguir, mas dominando-se, com um esforço quase sobre-humano.

Ficou com um pé no parapeito, fitando-a com os olhos ardentes e trocistas:

- Pensas, então, que te libertarás de mim desse modo, nem? - perguntou, soltando uma gargalhada. - Muito bem, faz como entenderes. Podes ficar aí até te cansares... ou atirares-te lá para baixo! Capturar-te-ei, de qualquer modo.

Toby parara, com as mãos espalmadas de cada lado e os olhos postos nele, através da bocarra enorme que se abria entre ambos. Não parecia, porém, reparar na profundeza do abismo que se estendia a seus pés.

- Atirar-me-ei - começou, resolvida - a não ser que prometa, que jure, deixar-me ir

Ele riu de novo, mas no olhar ardente que lhe dirigia não havia sombra de chocarrice, nem chocarrice nem medo, apenas o mais arrogante e absoluto domínio que Toby jamais conhecera.

- Não prometo nada - recusou ele - a não ser que, duma maneira ou doutra, acabarei por te possuir. Podes escolher: ficar aí ou mergulhar, mas não me fugirás! Há entre nós um laço que não podes quebrar, por muito que tentes. Atira-te, se achas que vale a pena! Antes de chegares ao fim da queda, estarei contigo. Viajei sozinho durante muito tempo, de hoje em diante viajaremos juntos! Juro-o a Deus!

Atirou o tremendo desafio através do abismo, com os lábios sorridentes e, nos olhos, o riso que troça do próprio Destino.

Ao ouvi-lo, Toby sentiu fugir-lhe a coragem. Começou a tremer, mas, mesmo assim, fez um último e desesperado apelo pela liberdade e orgulho:

- Não há nenhum laço entre nós - titubeou, arquejante, enclavinhando os dedos gelados nas pedras frias que a rodeavam. - Nunca, nunca houve!

- Nenhum laço entre nós! - repetiu ele.

- Santo Deus! Seguir-te-ia, na morte, se acaso não houvesse? - E, bruscamente terno, prosseguiu, numa confissão: - Toby, Toby, minha patetinha! Não sabes que te amei... desde o momento em que perdemos o "Mariposa Nocturna"?

Não valia a pena duvidar da sinceridade das palavras. Toby deixou escapar um grande soluço, que levou consigo toda a tensão que a mantivera rígida e erecta. Ficou uns momentos com o rosto levantado, inundado da luz sublime de quem vê uma visão.

- Não posso sair daqui! - gritou, angustiada. - vou cair!

- vou ter contigo! - exclamou Saltash, endireitando-se e sentindo a testa perlar-se de suor. - Não te mexas, vou estender-te a mão!

Toby obedeceu, como que fascinada. Esperou, cega, até que, agilmente, Saltash atravessou também o abismo entontecedor.

- Agora-disse, agarrando-lhe a mão - vem comigo e estarás salva. O meu amor sustém-te. Não cairás.

Toby ouviu-lhe a voz vibrante de riso e o medo abandonou-a. Entregou-se-lhe, muda, e, só pela força daquela vontade indómita, deixou para trás o abismo. No entanto, quando ele a ergueu do parapeito e a pôs no chão, salva, Toby soltou um grito e desmaiou-lhe nos braços.

Penosamente, abriu os olhos, verificando que a cena mudara. Estava deitada sobre peles de tigre, no aposento abobadado do castelo, e ele, o rei de todos os seus sonhos, ajoelhava a seu lado.

A primeira coisa que lhe ocorreu, espantando-a, foi que ele estivesse de joelhos.

- Oh, não esteja assim! - murmurou. - Não sou... a Maud!

Saltash fitou-a, jovial, mas sem a zombaria costumada. Havia nos seus olhos algo de estranho, algo que a perturbou profundamente.

- com que então, só posso ajoelhar diante de Maud!

- observou.

Toby esforçou-se por lhe suportar o olhar, mas, não o conseguindo, escondeu o rosto com as mãos:

- Sei... sei... que sempre a amou - titubeou, incoerente. - Não pode... não pode... pretender amar alguém... depois dela!

Seguiu-se breve silêncio, apenas quebrado pelo cavalgar desordenado do coração da rapariga. Depois, suavemente, Saltash pôs-lhe a mão nos cabelos e ela sentiu-se acalmar.

- Eu não pretendo, Nonette - replicou ele, num tom profundo, inteiramente desconhecido.

Aquele acariciar doce dos cabelos atraía-a, exercia sobre ela uma força magnética. Endireitou-se e, impulsiva, abraçou-o, escondendo o rosto no seu peito.

- Mas... não pode... não pode... amar-me! - protestou, como uma criança incrédula. - Tem a certeza, tem a certeza?

Como única resposta rodeou-a com os braços, apertando-a muito. Saltash, o da língua solta e zombaria pronta, estava, pela primeira vez na vida, mudo.

Toby aninhou-se contra o seu peito, como um animalzito que encontra, finalmente, abrigo. Já não estava incrédula; no entanto, não levantou o rosto.

- Por que não me disse antes?

- Nonette- volveu ele, baixando a cabeça e tocando-lhe com os lábios nos cabelos - disseste-me que te fiz acreditar em Deus.

- Sim.

- Foi por isso que me purificaste, que também me tornaste crente. Se eu te desiludisse, como receava, se não tivesse conseguido salvar-te, Deus teria razão para me amaldiçoar, de corpo e alma.

- Mas não podia falhar - protestou ela. - Não podia deixar de me salvar!

- Falhei tantas vezes, Nonette! Nunca ninguém teve tanta confiança em mim como tu, que me obrigaste, praticamente, a pôr-me à prova...

- Oh, era isso?! - perguntou, aliviada. - Estava a tentar... ser bom?

- Sim... a tentar!

- E ainda está

- Não continuarei a fazê-lo por muito tempo, a não ser que consiga o que quero.

- Haverá uma lua azul, se quiser! - retorquiu, descarada.

- Por Júpiter! - exclamou Saltash, endireitando-se.

- Mas já há uma. Vamos para ela.

- Onde? - perguntou Toby, trocista.

Com os olhos procurou o céu, através da abóbada de vidro que formava o tecto, percorrendo o azul misterioso da noite.

- Charles Rex! - exclamou, numa censura, ao sentir que a fitava, que a acariciava com o olhar ardente.

Saltash segurou-lhe no queixo e soltou uma gargalhada. Os olhos, um preto, outro cinzento, brilhavam de ternura, atraindo os dela, até que uma chama brilhou neles, em resposta.

- Como estava a dizer há uns seis meses, quando fui interrompido - observou Charles Rex, arrogante - nunca recusei uma dádiva dos deuses!

- Mas levou o seu tempo a aceitá-la, não acha? - perguntou Toby, trocista.

- Vamos - repetiu Saltash, inclinando-se.

 

                                                                                Ethel M. Dell  

 

                      

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