Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
LUA DE MEL
Sedução com sabor de ódio e gosto de prazer…
No luxuoso Rolls-Royce que a conduzia a lua-de-mel na paradisíaca praia de Sandbourne, Geórgia fitava disfarçadamente o perfil de seu marido. Como duas safiras, seus olhos faiscavam de ódio e ressentimento e não viam os belos traços que encantavam as mulheres, nem os cabelos negros e brilhantes ou a boca sensual de Renzo Talmonte. A seu lado estava um homem sem escrúpulos, um chantagista impiedoso que a forçara ao casamento para executar uma vingança. A vítima era ela, mas os culpados verdadeiros, sua impulsiva irmã e o irresponsável irmão dele, que haviam fugido juntos, deixando para trás um noivo apaixonado, ficariam impunes.
Furiosa, Geórgia se perguntava por que deveria pagar pelos pecados alheios, unindo-se a um homem que desejava destruir tudo à sua volta para aplacar a ira de ter sido traído. Foi nesse instante que ela decidiu frustrar aquele plano de vingança: jamais daria a Renzo seu corpo ainda virgem de carícias.
A magnífica construção em pedra rosada, abrindo suas incontáveis janelas para os verdes gramados do Hyde Park, refletia o luxo clássico e toda a glória da época vitoriana. Por entre os inúmeros salões, cheios de peças requintadas daquele período de poderio do Império Britânico, já haviam passado grandes personalidades, chefes de Estado e a maioria dos seletos freqüentadores do Buckhingam Palace.
Em tons de rosa, creme e dourado, o Palm Court abrigava agora centenas de convidados que se agrupavam ao redor da magnífica fonte dourada ou entre as delicadas palmeiras espalhadas pelo terraço.
Estava ali a nata da sociedade londrina. Mulheres belíssimas, cobertas de jóias, desfilavam sua elegância ímpar e misturavam-se com o mundo das artes. Cantores famosos, artistas de cinema mesclavam as vozes animadas e risadas alegres ao som da água que jorrava de três golfinhos dourados.
— Cortem o bolo!
Com um sorriso indecifrável, o noivo rompeu a superfície brilhante e muito branca do imenso bolo de casamento.
Só uma pessoa fitava aquela fabulosa criação dos mais famosos confeiteiros de Londres como se a quisesse atirar ao chão e pisoteá-la até a total destruição… a noiva de Renzo Talmonte!
O vestido clássico, em organdi e rendas francesas, transformava a jovem loira na modelo da noiva perfeita. O véu, preso por singelas flores de laranjeira, não escondia o rosto delicado, onde não se notava nem a sombra de um sorriso.
Era muito difícil sorrir quando as emoções a impediam de raciocinar e aceitar a realidade: o reverendo Michael Norman se recusara a comparecer ao casamento da filha!
Geórgia não conseguia superar a terrível injustiça cometida por seu pai, que a obrigara a entrar na igreja acompanhada por um desconhecido para ser entregue a outro estranho… Sozinha, com um anel cujo significado era angustiante demais para pensar, ela reagia contra o sentimento de revolta que crescia a cada momento.
Aquela situação trágica ocorrera apenas para o bem dele… para evitar uma profunda decepção naquele homem austero e cumpridor das leis divinas!
Geórgia havia mergulhado num pesadelo, aceitando a aliança de Renzo por um dever de consciência. Salvara o pai de descobrir quem era exatamente sua idolatrada filha predileta: Angélica! A criatura tão amada revelara seu lado negro: não era o anjo de candura que mostrava ser!
O aroma sofisticado de um perfume francês a fez lembrar da fragrância inocente das rosas no jardim da residência paroquial do reverendo Norman.
Estavam distantes as flores singelas, os dias tranqüilos, o campo intocado pela corrupção do mundo moderno.
Numa tarde de primavera, Renzo Talmonte surgira diante dela e, entre a inocência da natureza, destruíra mais do que apenas a pureza do seu lar. Impassível, ele lhe entregou algumas cartas de Angélica, e foi como se um raio desabasse sobre as campinas muito verdes de Sussex!
Frases eróticas misturavam-se a pedidos insistentes para que Stélvio, o amante de Angélica, abandonasse sua esposa e filhos. Cenas descritas com paixão, detalhes que não deixavam nada à imaginação cobriam Geórgia de vergonha. Desesperada, ela rasgou as evidências concretas do comportamento vil da irmã.
Levados pela brisa, os pedacinhos de papel espalharam-se elo jardim da casa de seu pai. Ao levantar os olhos, Geórgia sentiu como se o chão lhe fugisse debaixo dos pés. Uma premonição invadiu-a: algo terrível ia acontecer e nada poderia evitar a tragédia!
O olhar sarcástico e arrogante de Renzo, sem uma única sombra de piedade, demonstrava claramente sua intenção de obter vingança.
— São apenas cópias, signorina… Não pensou que eu fosse tão tolo a ponto de entregar em suas mãos os originais, não é? Pois ouça bem! Sua irmã conseguiu destruir um casamento… Stélvio deixou a família, fugiram juntos! Meu irmão esqueceu-se de todos os mandamentos de sua religião por causa dela, e eu pretendo fazer o mesmo. Quando ele se cansar desse sórdido envolvimento e os dois voltarem para casa, me encontrarão casado… e com a irmã de Angélica. Serei o seu marido!
As palavras cheias de ódio soaram como gritos no silêncio da tarde. Geórgia levou algum tempo até compreender o significado do que escutara. O arrogante italiano, bem vestido e ameaçador, pronunciara sua sentença de morte!
— Você enlouqueceu?
Recuando diante da expressão fria e implacável, ela observou melhor aquele homem que há pouco menos de um mês nem sequer conhecia.
Quando Angélica trouxera o noivo para apresentar a sua família, Geórgia tinha ficado extremamente surpresa com a escolha da irmã. Ela sempre insistia em sua fascinação por homens altos e atraentes, porém Renzo Talmonte era mais do que apenas um indivíduo bonito e charmoso. Ele mostrava claramente origens nobres e parecia ser bem mais intelectual do que os habituais acompanhantes da jovem modelo, bela mas incapaz de qualquer raciocínio mais complexo.
Ao serem apresentados, Renzo beijou-lhe a mão e Geórgia lutou para ocultar daquele olhar penetrante seus sentimentos contraditórios. Pensamentos inquietantes cruzaram sua mente por alguns segundos… Ele não era o homem ideal para Angélica! As normas rígidas de sua moral católica, a profundidade de uma educação formal e bem cuidada o tornavam distante demais daquela criatura fútil e superficial, sempre preocupada em brilhar!
O que Renzo teria lido em seu olhar naquela tarde? A verdade, ou tivera a impressão falsa de que a irmã solteirona se apaixonara perdidamente por ele? Seria por acreditá-la vulnerável ao seu fascínio que estava agora ali? Após a destruição das cartas obscenas de sua irmã, ele a informara de suas intenções… Tinha esperanças de ser aceito?
Renzo também observava a figura esguia e muito loira, de traços delicados mas sem o esplendor da irmã. Desceu o olhar até o decote discreto, onde uma cruz de ouro brilhava sobre a pele muito alva, e percebeu a oscilação dos seios bem-feitos, a respiração ofegante revelando uma tensão incontrolável. Nenhuma evidência do nervosismo extremo daquela jovem que parecia viver isolada do mundo escapou do seu olhar atento. Jamais encontrara alguém tão distante da realidade, como se não tivesse sido tocada pelo progresso do século vinte. Nada porém poderia deter o curso dos acontecimentos. Ele planejara cuidadosamente cada detalhe e seu plano seria executado a qualquer custo!
— Tem uma semana, signorina. Então voltarei e me responderá se aceita minha proposta ou… se devo mostrar aquelas cartas encantadoras a seu pai. Tenho certeza absoluta de que certos detalhes ousados das descrições de Angélica irão chocá-lo profundamente. A paz de espírito do reverendo está em suas mãos… é a sua decisão que manterá a tranqüilidade dele ou destruirá irreparavelmente a imagem falsa da filhinha inocente!
Sem sequer dizer adeus, Renzo afastou-se, apoiando-se na bengala de que dependia para poder andar melhor.
Foram os sete dias mais longos da vida de Geórgia. Sentia um desespero profundo. Cada minuto a levava para mais perto do desenlace e ela rezava fervorosamente para que Renzo caísse em si, percebendo o absurdo de sua atitude.
Nunca a rotina plácida e monótona da casa paroquial lhe parecera tão agradável… Mas uma espada pendente sobre sua cabeça ameaçava destruir a única vida que conhecia! Londres lhe parecia estar num outro planeta, e, no entanto, iria viver naquela metrópole agitada se Renzo levasse sua ameaça até o fim!
O sábado chegou finalmente e lhe bastou um único olhar para saber que haviam terminado para sempre seus dias passados entre a pureza do campo e o perfume singelo das rosas!
Geórgia recebeu Renzo, como da outra vez, no jardim ainda úmido pela chuva e, sem emitir um som, ouviu-o determinar em poucas palavras o futuro terrível à sua espera.
— Não me subestime, signorina. Estou com as cartas originais em meu carro e, sem dúvida, seu pai reconhecerá a letra no instante em que as vir. Ele tem um código moral rígido, não é verdade? Pois infelizmente não conseguiu transmiti-lo a sua filha caçula. No entanto, tenho certeza de que a mais velha possui incontáveis virtudes!
— Como ousa falar em retidão moral, signore? Chegou à nossa casa fazendo ameaças que irão destruir a felicidade de meu pai! Como…
— Está em seu poder a chave da futura tranqüilidade do reverendo Norman! É só casar-se comigo!
— Isso é chantagem!
— Dê o nome que quiser, signorina!
Como quem perde subitamente todo o apoio, Geórgia oscilou e, ao tentar apoiar-se, fechou a mão sobre os espinhos da roseira mais próxima.
Renzo viu a jovem cambalear e ouviu o seu gemido de dor quando os espinhos se cravaram em sua mão delicada. Num gesto solícito, mas sem o menor calor humano, segurou-a e, com toda delicadeza, começou a retirá-los. Sentiu-a ficar tensa e tentar recuar, porém a manteve presa em seus braços, percebendo os contornos suaves do corpo escondido pêlos trajes largos e austeros.
"Como alguém pode vestir-se de modo tão puritano e antiquado num mundo onde estar na moda é uma obsessão? Será o Sussex tão afastado de Londres ou a jovem é impermeável ao progresso?", pensou curioso.
Mas, se quisesse levar adiante seus planos meticulosos, precisava considerá-la como uma inimiga ou com certeza ficaria com pena da pobre moça de olhar aterrorizado!
Num gesto brusco, empurrou-a na direção da casa, disposto a obrigá-la a enfrentar a difícil decisão.
Foram os passos mais difíceis de toda a vida de Geórgia! Sem sequer dar-lhe tempo para explicar a situação ao pai, Renzo comunicou que iriam se casar o mais breve possível!
— Como? Não estou entendendo…
— É muito simples. Geórgia e eu vamos nos casar.
— Mas… o senhor pretendia tomar Angélica como esposa! Eu nem sabia que o noivado foi desfeito e já quer roubar minha outra filha?
— Não acha desumano manter uma jovem presa aos deveres domésticos da casa paroquial por toda a sua vida?
— Geórgia não é mais uma garotinha!
— Mesmo assim tem direito a aproveitar sua juventude. Afinal o senhor permitiu que Angélica deixasse o lar…
— As situações são totalmente diferentes! Angélica foi feita para brilhar, merecia ser admirada por outros olhos que não os meus… Geórgia é feita de outro estofo… é calma e dócil.
— A diferença é bastante clara, reverendo… a qualquer observador mais atento. Não há como confundir as duas!
— Exatamente, signore. Embora muito parecidas, sempre tiveram temperamentos opostos. Minha filha já está com vinte e sete anos e nunca sentiu a menor vontade de afastar-se do meu lado… Geórgia! Por favor diga a este homem que seu dever filial vem antes de qualquer outro desejo ou idéia sua! Não há possibilidades de deixá-la ir. Jamais darei minha permissão!
— Pois sua filha já aceitou o meu pedido… — disse Renzo, com uma voz controlada e baixa, enquanto apertava o ombro da jovem como se a desafiasse a desmenti-lo.
Ela percebeu, pelo olhar frio e pelo toque quase violento, que o orgulho de Renzo fora mortalmente ferido pela traição de Angélica, e talvez até seu coração… se é que ele tinha um!
Os dois homens se enfrentavam como dois lutadores na arena e não havia dúvida sobre qual deles seria o vencedor!
— Deve haver alguma senhora que possa vir à casa paroquial e fazer o serviço pesado… Geórgia tem direito de levar sua própria vida, é mais do que hora!
— Vamos, filha… diga alguma coisa! — rugiu o reverendo, olhando-a como que à espera da costumeira obediência. — Você não deixará a minha casa, não pode!
— Por favor, cara, diga a seu pai que já decidimos a respeito do casamento!
Geórgia sentia-se como um joguete entre duas vontades inabaláveis, e, ao ver o olhar ameaçador de Renzo, estremeceu em pânico. Jamais teria condições de lutar contra um homem tão duro e decidido!
Sua experiência de vida limitava-se à rotina da casa paroquial, onde os maiores problemas eram a alimentação do reverendo e o bem-estar dos paroquianos.
Havia uma única certeza: Renzo entregaria as cartas a seu pai se ela se recusasse a ceder aos seus caprichos! E como ele seria magoado…
Desde a morte de sua mãe, Geórgia se transformara na imagem viva daquela mulher meiga e doce; assumira todas as suas qualidades. O reverendo via a filha como o retrato da esposa adorada e perfeita!
— Papai... eu aceitei o pedido de Renzo…
Por longos minutos suas palavras ecoaram no silêncio da sala, diante do olhar incrédulo do reverendo Norman.
— Oh, Deus! O que fiz para ser atraiçoado… e por minha própria filha?
— Não ouse usar esta palavra! Traição é um termo vil e Geórgia não seria capaz de tal indignidade.
A expressão de Renzo revelava o quanto ele fora ferido pela atitude de Angélica, a quem perdera para seu irmão. Não havia dúvidas da intensidade de seu desejo por ela, mas, na impossibilidade de tê-la, forçaria Geórgia a substituí-la num casamento baseado em chantagem!
Se Geórgia não usasse aquele momento para contar a verdade, estaria condenada a viver ao lado de um homem a quem não amava; iria jurar obediência e submissão por toda uma vida!
No entanto, a paz de espírito de seu pai precisava ser mantida a qualquer custo.
— Tia Beatrice pode vir para tomar conta da casa, papai. Ela detesta a pensão em que está morando, vai ficar feliz e…
— Esse dever é seu, Geórgia, de mais ninguém!
— Está agindo de maneira egoísta demais, reverendo! Não é justo prender a filha ao seu lado, negando-lhe o direito de ter um marido, filhos… Nem parece um homem de Deus!
Até então, Geórgia não avaliara a que iria se submeter. Ele não pretendia aceitar um casamento de conveniência... queria uma esposa… em todos os sentidos!
Ela estava disposta a tudo para salvar o pai de uma terrível decepção, porém… como permitir a Renzo que a tomasse sem amor? E ele ainda amava a infiel Angélica, continuava obcecado pela figura sensual e excitante de sua irmã!
Desesperada ao ver-se sem saída, Geórgia cerrou as mãos e não pôde evitar um gemido de dor.
— O que tem na mão, filha?
— Eu... machuquei-a... os espinhos...
— Que isto seja um aviso! Se persistir nessa atitude inconcebível de casar-se com um homem que pertence a sua irmã, os espinhos ferirão muito mais do que suas mãos!
— Por favor, papai…
O reverendo Norman olhou-a com desprezo antes de retirar-se da sala e Geórgia viu-se abandonada, à mercê de Renzo.
Seu pai jamais saberia que ela o poupara de um grande sofrimento. Não descobriria a falsidade da filha, a quem chamava de "anjo", nem abriria os olhos para a verdade!
E seu amor filial a colocara nas mãos daquele homem arrogante e amargo, disposto a mostrar ao mundo como substituíra rapidamente um grande amor. Uma irmã iria ocupar o lugar da outra!
Geórgia nunca sentira raiva de Angélica mas, diante da visão de seu futuro sombrio, teve ímpetos de assassiná-la!
Em menos de dois meses Renzo Talmonte conseguiu realizar seu plano de vingança...
Na luxuosa limusine, ele tinha a seu lado a figura esguia da jovem loira, de quem dependia para atingir sua meta. Fria, distante e contrariada, Geórgia seguia para a igreja, sem armas para lutar contra ele!
— É mesmo uma pena que seu pai tenha decidido não comparecer ao casamento, cara. Considero uma atitude inesperada para um homem de Deus... tão pouca capacidade de perdoar, não acha?
— Se julgou que ele viria, foi muito ingênuo. Além disso, não se trata de perdão… você roubou a filha dele, o seu consolo para a velhice! Papai jamais voltará atrás!
— É mesmo triste, cara… para o reverendo, é claro! No seu caso, deveria estar dando graças aos céus por ter escapado daquela prisão dourada!
Geórgia afastou-se, repugnando as palavras brutais daquele homem que muito em breve seria seu marido. Chegava a perder o fôlego ao pensar que em poucas horas estaria presa a um indivíduo tão sem escrúpulos.
A figura de Renzo, extremamente elegante, era de chamar a atenção de qualquer mulher e, se hoje ela estivesse entre os convidados do casamento de Angélica, o admiraria como um noivo atraente e aristocrático. Mas…
Cada passo em direção ao altar lhe custou muito. As delicadas pétalas de rosa roçando seu rosto pareciam-lhe pedras de gelo!
Sem dúvida todos deviam estar pensando em como ela fora rápida em ocupar o lugar da irmã! Ninguém hesitaria em julgá-la uma jovem esperta e de muita sorte por ter conseguido "agarrar" um noivo tão cheio de qualidades e... de dinheiro! Mas Geórgia sentia-se uma ilha de dor em meio a tanta alegria. Discursos e risadas ecoavam ao longe, sem sentido ou significado. Estava irremediavelmente perdida!
A inevitável crise de depressão que ameaçava tomar conta dela foi afastada pela chegada providencial de Bruce Clayton, que colocou-lhe uma taça de champanhe nas mãos.
— Beba um pouquinho, querida, ou irá desmaiar. Sinto-me responsável por você, agora… Afinal fui eu quem a conduziu até o altar!
— Obrigada, Bruce. Estou me sentindo completamente deslocada nesse ambiente sofisticado.
— Deixe de tolices, Geórgia! Agradeça a Deus por não ser igual a esse bando de pessoas infelizes e insatisfeitas. Você é diferente… para sorte de Renzo!
Ela lutou para sorrir àquele homem que lhe demonstrava simpatia e apoio durante as horas mais difíceis de sua vida.
Renzo e Bruce haviam começado juntos a carreira no mundo do cinema e agora o italiano temperamental escrevia as músicas para os filmes do amigo. Em muito pouco tempo, a genialidade de Renzo o colocara entre os grandes compositores da Inglaterra. Ele conseguia equilibrar com perfeição o lado artístico e o financeiro. Apesar de dedicar-se com paixão às suas composições, não deixava de lado os investimentos que o tinham tornado um homem muito rico.
Tão logo Geórgia curvara-se diante de sua vontade férrea, Renzo se vira na obrigação de colocá-la a par das origens de sua família.
Os Talmonte vinham da mais alta aristocracia romana, um nome respeitado desde a época dos Césares, quando viviam em palácios à beira do rio Tibre. Com o tempo, a fortuna fabulosa da família foi diminuindo, até restar apenas um palazzo em Florença, cheio de peças magníficas que jamais seriam vendidas, e dinheiro suficiente apenas para que ele e seu irmão pudessem estudar.
O dom artístico de Renzo levou-o a entrar para o único ramo em que a música poderia render algum dinheiro: o cinema. Em pouco tempo ele teve condições de restaurar a morada ancestral e ajudar o irmão a terminar com mais conforto seu curso de advocacia.
Era impossível para Renzo disfarçar a amargura de ver Stélvio destruir uma carreira brilhante e um casamento feliz por causa de Angélica! O irmão mostrara-se indigno do nome ilustre que carregava ao deixar-se levar por impulsos, causando uma tristeza e uma vergonha sem redenção para toda a família!
Como Bruce percebera que ela estava ficando tonta, Geórgia não soube como, mas, antes de poder protestar, encontrou um prato com iguarias refinadas em suas mãos.
— Eu não… céus! Tudo está girando! Filha do pastor não costuma beber, desculpe-me…
— Acho melhor comer um pouco, assim se sentirá melhor. Vamos sentar, pois logo Renzo se livrará daquela mulher terrível e virá ao seu encontro. Aposto como ela está tentando conseguir alguma informação inédita para usar em sua coluna de mexericos sociais. Connie Caswell é uma víbora!
— E esse casamento, sem dúvida, dará origem a grandes fofocas, não é, Bruce? Menos de dois meses depois do rompimento de seu noivado com uma linda modelo, o famoso compositor italiano… casa-se com a irmã da ex-noiva! Sem dúvida todos devem estar comentando sobre o assunto… sobre como eu trabalhei rápido!
— Posso lhe garantir que muitos estão pensando na sorte de Renzo!
— Duvido muito! A maioria julga que a maior sorte foi minha.
Bruce analisou cada traço daquele rosto delicado, sem a sofisticação de todas as mulheres que conhecia. Algo indefinível a tornava mais atraente, deixando as outras como que figuras gastas, excessivamente maquiladas e falsas. Mas o olhar era melancólico, triste demais para uma noiva!
Do outro lado da sala, Renzo conversava com Connie, e seu ar distante não ocultava sua exaustão. Estaria sentindo dores na perna?
Renzo mal completara dezoito anos quando sofrera um terrível acidente durante uma caçada nas colinas próximas a Florença. O cavalo caíra sobre sua perna, fraturando-a em diversos lugares, e o cirurgião, ao ver a gravidade dos ferimentos, decidira amputá-la como única solução possível. Sua mãe, porém, se opusera à decisão do médico e insistira para que tentassem o engessamento antes de tão drástica medida.
O resultado não foi muito compensador, pois um dos ossos soldou de maneira imperfeita, provocando um ligeiro claudicar. Ele usava uma bengala para disfarçar o defeito, o que, sem dúvida, era melhor do que ter perdido a perna!
Renzo confessou a Geórgia o quanto seu defeito o perturbara quando muito jovem; com o tempo, tornara-se mais tolerante, até finalmente superar o problema em definitivo. Chegara mesmo a ver o lado positivo de sua lesão: não precisava estar constantemente provando sua masculinidade em quadras de squash ou de tênis, ou correndo quilômetros todas as manhãs!
No entanto, Geórgia tinha grandes dúvidas quanto a essa atitude aparentemente tão segura. Notara uma sombra de dor transformando a fisionomia de Renzo sempre que ele se excedia; e agora, ao vê-lo em pé ao lado de Connie, poderia jurar que estava se controlando para não demonstrar seu mal-estar.
A voz serena de Bruce interrompeu seus pensamentos depressivos.
— Coma um pouquinho, por favor! Você logo estará morrendo de fome. Quer que eu vá buscar uma fatia do seu bolo?
— Oh! Não! Seria capaz de parar na minha garganta!
— Por Deus, Geórgia! Estou bastante preocupado com você! As noivas costumam ficar nervosas e tensas no dia de seu casamento, mas sua aparência é de relutância!
— Verdade? Pois eu... — O ar preocupado de Bruce a deixou temerosa, e quis evitar que seu segredo fosse descoberto. — Sempre levei uma vida muito tranqüila, isolada do mundo, e nesta sala há mais de cem pessoas. Você e Renzo estão acostumados a essa agitação, eu não! Toda essa gente, com sua conversa sofisticada, deixa-me tonta e com a sensação de ser uma simplória.
— É só isso? Tem certeza?
— Lógico! Já pensou em como minha vida irá mudar? Sou uma pessoa acostumada a viver entre a natureza e me casei com um homem da cidade, que aprecia as multidões! Embora eu e minha irmã sejamos muito parecidas fisicamente, não há a menor semelhança entre nossos temperamentos.
— Acredita mesmo que é parecida com Angélica?
— Renzo nos acha idênticas e isso basta! Ele não pode ter o original, aceitou a cópia... e todos sabem que os valores jamais serão os mesmos aos olhos do dono.
— Pensa em seu marido como… um dono?
— Ora! Olhe bem para ele, Bruce! Não consegue notar a possessividade de Renzo Talmonte? Eles são donos desde os dias dos Césares e seu sobrenome pertence à História… bem ao lado dos Bórgia!
Ao perceber a exclamação de espanto e o olhar perplexo de Bruce, Geórgia recuou. Estava revelando mais do que era prudente a respeito de seus sentimentos sobre o marido.
— Bem… estou muito perturbada por meu pai ter-se recusado a comparecer… Sempre cuidei dele, desde a morte de minha mãe, e ficou muito magoado ao saber do meu casamento. Achava que eu me sentia plenamente feliz em casa, isolada…
Quantas vezes Geórgia sentira inveja da irmã, de sua liberdade para ir de encontro ao mundo alegre dos jovens!
No entanto, há muito ela deixara de pensar em casamento e vivia bastante feliz em Duncton, um vilarejo perdido entre as campinas de Sussex. Os moradores da vila também haviam acreditado que ela jamais partiria e estaria sempre ao lado do pai, seguindo uma velha tradição: a da filha solteirona que permanece no lar à disposição da família. Então Renzo apareceu.
Com a força de um furacão e deixando um rastro de destruição após sua passagem, ele mudara todos os seus planos, arrastando-a como uma folha em meio à torrente caudalosa… Tudo se transformara!
O olhar de Bruce alertou-a da chegada de seu marido. Apesar da bengala, Renzo tinha um ar dominador, emanava autoridade! Como seria ele se aquele acidente não o tivesse tornado diferente dos outros homens? Seria mais descontraído, menos distante?
Talvez por ter aprendido a controlar dores terríveis durante tantos anos, ele também tivesse se tornado insensível aos sentimentos dos outros...
— Então, cara… que tal iniciarmos nossa lua-de-mel?
— Bem... eu... sim, é claro.
— Ê melhor acompanhar Flávia e trocar esse vestido logo.
Geórgia fez um esforço sobre-humano para não chorar. Aquele homem, muito próximo dela, era agora seu marido e em poucas palavras estaria a sós com ele... Com toda a sua ironia e arrogância!
— Bem, não está ansiosa por chegar à praia? Afinal, a escolha foi sua… Imagine só, Bruce! Eu a convidei para conhecer Caribe em nossa lua-de-mel, e sabe o que ela disse? Afirmou que adorava as praias inglesas, em especial Sandbourne, onde costumava ir quando criança acompanhada pela mãe. Embora não me seja possível imaginar como alguém possa preferir o clima horrível da Inglaterra em lugar das brisas cálidas dos trópicos… iremos para esse paraíso de sua infância!
Bruce fitava os dois com uma expressão de perplexidade. Havia algo estranho mas não era possível definir qual o problema.
— Enfim… o paraíso nos espera. Mas você parece ter se tornado uma estátua de pedra! Se não trocar logo o seu vestido, eu a levarei daqui assim mesmo!
— Oh! Eu… já vou…
Acompanhada por Flávia, a jovem secretária italiana de Renzo que organizara a festa do casamento, Geórgia deixou o salão sentindo o pânico crescer.
"Como poderei ficar a sós com esse homem… o meu marido?", pensou.
Um magnífico casaco de vison cor de mel, jogado sobre a cama com a displicência dos muito ricos, esperava Geórgia no quarto reservado para que ela mudasse seus trajes de viagem. Todo o resto de seu enxoval encontrava-se num luxuoso conjunto de malas, já à sua espera no Rolls-Royce de Renzo.
Ruiva e falante, Flávia ajudou-a a soltar os minúsculos botões do seu delicado vestido de noiva, porém a cada momento a sensação de abandono que Geórgia experimentava parecia aumentar. Por que estava ali, casada com um homem quase desconhecido e tão distante de sua vida, até então, sem surpresas mas também sem contrariedades?
— Céus, Geórgia! É tão difícil assim casar-se? Você está pálida, tensa. . .
— Eu... sinto-me um pouco distante da realidade. Talvez seja efeito do champanhe, nunca bebo e…
— Verdade? Bem, não sei por que me espanto, é visível a qualquer um que você levou uma vida recatada, longe da boemia e das noitadas de festa! Deixe-me ajudá-la a vestir seu traje de viagem. É maravilhoso!
A seda francesa do vestido azul-hortênsia era de alta qualidade, como tudo o que Renzo tinha escolhido para seu enxoval. Não fora uma seleção baseada na fabulosa fortuna e sim no gosto impecável de seu marido.
Logo ao chegar a Londres, ela fora arrastada às lojas mais sofisticadas daquela cidade que se vangloriava de ter as mercadorias mais luxuosas do mundo! Chanel, Burberrys, Laura Ashley's eram templos da moda, imponentes e assustadoramente requintados para uma jovem simples e pouco habituada a ambientes tão fantásticos.
Renzo, porém, dedicara dias a escolher cada peça com atenção, até mesmo a famosa lingerie do Bradley's!
Ela se sentira encabulada ao ver os tecidos diáfanos e as rendas que mal esconderiam seu corpo. Jamais teria coragem de apresentar-se diante do marido em trajes tão reveladores, seria o mesmo que estar nua!
Renzo mantinha a habitual expressão enigmática e impassível e parecia estar escolhendo livros ou acessórios para o carro.
No entanto, seria absurdo para Geórgia negar como sua imagem se tornara mais atraente. A figura refletida na infinidade de espelhos surpreendia por seu encanto. Ela nunca se julgara tão bonita!
Todavia, nada entre os artigos luxuosos escolhidos por ele teria sido do gosto de Angélica. Tudo lembrava a personalidade mais recatada e sem sensacionalismos de Geórgia. Uma simplicidade ilusória, pois o aspecto informal ocultava preços exorbitantes!
— Esse tom de azul é perfeito! Acentua a cor dos seus olhos… Como você e sua irmã são parecidas! Bem… ao mesmo tempo que se parecem muito, são completamente diferentes.
Ouvindo o monólogo ininterrupto da jovem italiana, Geórgia perguntava-se até que ponto ela sabia da verdade. "Terá Renzo conseguido ocultar os fatos dos amigos menos próximos do que Bruce?", questionou-se.
Sem dúvida, ele devia ter pensado em seu irmão e impedido que estourasse um escândalo. Havia a reputação profissional de Stélvio a ser salva, além da situação da jovem esposa e do filho, que se magoariam demais com a repercussão de um assunto tão íntimo.
— Há uma diferença… indefinível entre vocês duas. Não sei bem o quê, mas…
— Angélica sempre foi arrojada e sociável, Flávia. Eu preferi viver isolada, apenas em casa...
— Que ótimo os dois terem percebido a incompatibilidade antes do casamento, não acha? Renzo, como a maioria dos italianos, é católico e jamais se divorciaria. Oh! Vou levar o vestido de noiva para sua nova casa, em Hanson Square… Quer que eu lhe envie a correspondência para o Hotel em Sandbourne?
— Se chegar alguma carta…
"Algum dia meu pai se arrependerá da atitude inflexível e injusta? Voltará atrás e me tratará como uma filha querida?", Geórgia pensava, rezando com fervor para que ele deixasse de considerá-la uma traidora. Seria terrível viver o resto de seus dias com esse peso na alma... E saber-se injustiçada!
Mas ela jamais revelaria a atitude sórdida de Angélica ou seu pai perderia toda a razão de viver. Só esperava que algum dia ele a visse novamente com olhos cheios de amor!
A figura elegante refletida no espelho não lhe parecia real… Onde estava aquela pessoa simples e sem luxos, sempre de saias clássicas e blusas austeras, que vivia na casa paroquial?
Longe ficaram os dias de poupar cada peça do vestuário que não poderia ser substituída tão cedo! Hoje, Geórgia tinha mais do que jamais usaria em toda a sua vida, e por insistência de Renzo, que queria vê-la vestida como uma princesa!
Sem dúvida, esse era o sonho de qualquer mulher: viver entre a elite, coberta de sedas e peles! Geórgia sentia em cada presente um elo a mais nas correntes que a aprisionavam!
Ela evitou olhar-se no espelho. Não queria ver os cabelos cor de ouro iguais aos de Angélica, nem os olhos azuis e os traços delicados da sua irmã! Tudo lembrava a jovem cheia de vida, cujo objetivo na vida era seduzir e encantar o mundo!
Uma cópia, uma sombra apagada que brilhava apenas por estar longe do original! Seu dono, porém, já tivera nas mãos a obra de arte verdadeira e jamais lhe daria o valor real, nunca veria suas características pessoais…
Geórgia estremeceu ao pensar que pelo resto de seus dias estaria ao lado de um homem para quem sua única qualidade era ser irmã da mulher que ele amava com desespero.
— Meu Deus, Geórgia! Estou preocupadíssima com sua aparência… Está tremula. Pelo jeito o casamento é bem mais divertido para os convidados do que para os noivos, não?
— Sem dúvida alguma!
— Mas… por favor, tente sorrir e parecer menos contrariada. Deve ter notado aquela víbora, Connie Caswell, interpelando Renzo, não? Ela tem olhos de águia, e é o terror de Fleet Street, o centro do jornalismo londrino. Imagino que deve estar pensando em sua irmã, mas… tente disfarçar. Tem que lembrar de Renzo… para o bem dele.
— Toda essa encenação foi pelo bem de Renzo, não é verdade, Flávia? — explodiu Geórgia, apanhando a bolsa e levantando-se para sair.
Tanta generosidade só podia se igualar à imensa crueldade daquele homem, em cujas veias corria o sangue dos Césares romanos que lançavam os cristãos aos leões em épocas remotas!
Renzo colocara na bolsa Chanel de crocodilo as chaves de um carro, um perfume francês… Todos os detalhes haviam sido lembrados e todas as necessidades supridas com luxo, sem medir as despesas.
Se ao menos ela fosse do tipo que se impressiona com tanta riqueza! Nada, porém, tiraria o peso terrível de seu coração por ter se deixado prender em um casamento sem amor!
O champanhe continuava a correr como água, as vozes e as risadas a cada minuto se tornaram mais altas e Geórgia, ao voltar para o salão, teve a impressão de que até os golfinhos dourados da fonte estavam embriagados!
Só Renzo mantinha-se intocado pela alegria reinante, frio e distante.
Não, não era verdade! Apesar de disfarçar muito bem, ele também começava a demonstrar sinais de tensão. Para ele, o casamento não deixara de ser um sofrimento, com certeza pensava que a mulher ao seu lado devia ser Angélica!
Um sorriso simpático de Bruce deu-lhe mais coragem para enfrentar a multidão festiva. Como ele era diferente de Renzo!
Os traços perfeitos mas duros, os olhos ameaçadores como o aço de espadas mortíferas… tudo a assustava em seu marido, um homem que parecia pertencer a outras épocas, mais violentas e sem lei. No entanto, unira-se a ele e nada os separaria! A mão firme que a segurou pelo braço e a dirigia lenta mas inexoravelmente para longe de todos era a mão de seu marido… de seu dono!
— Bem, amigos… Geórgia e eu temos um compromisso bem mais agradável do que conversar com vocês. Vamos deixá-los, e obrigado por terem vindo ao nosso casamento!
— O prazer foi todo nosso, querido! — replicou Connie Caswell, sorrindo. — Afinal, vocês me proporcionaram um assunto excitante!
— Não tenho a menor dúvida!
Geórgia ergueu o queixo, desafiante, pensando em como a imprensa iria explorar o fato de uma irmã ter substituído a outra no altar! Se a repercussão dessa notícia perturbasse Renzo, tanto pior! Afinal, toda a sua infelicidade fora causada por ele mesmo. Todas as contrariedades que se originariam de um casamento sem o menor laço de afeição eram culpa exclusiva daquele homem implacável!
— Jogue o buquê… o buquê… — ele falou.
As vozes se elevavam, estridentes e ensurdecedoras, e, como num sonho, Geórgia atirou o delicado arranjo de botões de rosa e flores de laranjeira para a multidão.
Nunca soube quem o pegou, pois Renzo a guiou com firmeza e pressa em direção à porta. Geórgia se deixou levar, tomada por um pânico incontrolável. Agora não haveria mais ninguém entre ela e aquele homem ameaçador.
Suas pernas recusavam-se a caminhar, mas ele parecia arrastá-la para longe de todos, ao encontro do momento que mais temia…
O Rolls-Royce antigo ostentava um luxo tradicional, com bancos de veludo e revestimento de madeira polida, A aparelhagem de som excepcional enchia o silêncio do carro com uma melodia suave e romântica.
O trânsito do fim da tarde estava como sempre denso e congestionado. Multidões saíam dos escritórios, espalhando-se nas calçadas, e todos olhavam com admiração para os dois belos ocupantes daquele carro majestoso.
Entretanto, a idéia de um casal feliz partindo para uma lua-de-mel cheia de amor não podia estar mais longe da realidade!
Geórgia fitava disfarçadamente o perfil do atraente italiano, e seus olhos brilhavam como pedras preciosas, duas safiras frias e faiscantes de ódio. Não via os traços finos que costumavam encantar todas as mulheres nem os cabelos negros e brilhantes ou os ombros largos… Ao seu lado estava um homem sem escrúpulos, um chantagista impiedoso que a forçara ao casamento. "Como alguém pode ser tão implacável em sua vingança? Ele quer punir todos à sua volta quando os únicos culpados são uma mulher impulsiva e sem princípios e o irmão irresponsável. Por que eu devo pagar pêlos pecados alheios?", refletiu desolada.
No entanto, essa atitude lhe parecia típica, uma vingança brutal e sem perdão a todos os membros da família que o magoara. E Renzo conseguira destruir tudo à sua volta: afastara pai e filha de tal modo que seria muito difícil superar o abismo surgido entre eles!
Renzo Talmonte vivia há muitos anos na Inglaterra mas continuava a ter o sangue quente dos latinos, o temperamento explosivo tão incompreensível para os controlados e calmos ingleses. Ao tomá-la como esposa há poucas horas, ele dera mais um passo em direção a uma vingança completa e arrasadora.
Geórgia tinha notado um sorriso de satisfação curvar os lábios bem desenhados e sensuais, como se estivesse extremamente satisfeito por ver seus planos caminharem tão bem! E agora ele devia estar planejando o próximo passo, mais uma tortura a ser enfrentada por ela, por culpa de sua irmã!
Se ela soubesse como seus pensamentos eram transparentes!
Renzo observava a jovem encantadora sentada ao seu lado, uma imagem de inocência e recato. Ou era ainda mais falsa do que imaginara, ou não se parecia tanto com Angélica como ele havia julgado.
O vestido elegante realçava as formas delicadas, que muito em breve seriam reveladas ao seu olhar e acariciadas por suas mãos. Ela talvez não tivesse o brilho cintilante da irmã, porém seria um prazer único fazê-la enfrentar a realidade do relacionamento entre um homem e uma mulher!
No instante em que a tivesse despida de todos os artifícios, saberia se era falso ou não o pudor excessivo, o ar tímido de virgem assustada.
E então… a desforra seria ainda mais doce!
Iria desvendar os mistérios daquele corpo jamais tocado por um homem e arrastá-la para o reino da volúpia, levando-a por todos os caminhos do sexo até destruí-la por completo!
Só assim se sentiria livre da imagem torturante de Angélica, o sorriso fascinante mas falso, o corpo sensual e cheio de um primitivismo pagão mas que se oferecia sem restrições a qualquer homem…
Seu olhar percorreu novamente cada curva da mulher que agora era sua esposa, e jurou submetê-la a todos os seus caprichos e torná-la sua de todas as formas.
Gotas de chuva começaram a cair tornando a tarde ainda mais fria e desanimadora, e Renzo, ao ver o tempo tão tipicamente inglês, úmido e cinzento, olhou-a com irritação.
— E pensar que poderíamos estar no Caribe, com sol e calor à vontade! Isso se você não tivesse escolhido uma praia inglesa!
— Lugar algum seria quente ao seu lado, Renzo!
— A festa foi um sucesso! — continuou ele, deliberadamente ignorando o comentário ferino. — Flávia organizou tudo , muito bem, ela é uma perfeição! Não sei o que faria sem sua ajuda.
— Devia ter se casado com ela! — explodiu Geórgia, descontrolada pelas horas de tensão. — Por que tinha que destruir minha vida? Qual o mal que eu lhe fiz?
— Você se tornou minha esposa há algum tempo, cara, enfrente a única realidade possível! Todos a acharam linda apesar de parecer uma estátua de gelo. Pelo menos Connie Caswell a descreveu assim! Ela chegou ao despropósito de perguntar-me se nos amávamos.
— Oh! Não diga! E o que lhe respondeu, Renzo? Contou-lhe sobre a paixão arrasadora existente entre nós? Ou preferiu revelar-lhe toda a minha revolta contra você?
— Afirmei apenas que jamais discuto meus sentimentos em público!
— Seria muito difícil dizer a qualquer pessoa como o casal "encantador" que se prendeu pêlos laços sagrados do matrimônio nem ao menos se conhece, não é? E que a única emoção a nos unir é o seu ódio?
— Há quem diga que amor e ódio são tão inseparáveis quanto o dia e a noite, que não existe um sem o outro.
— Pois eu discordo totalmente! O dia e a noite nem ao menos se parecem. É muito fácil distingui-los, assim como essas duas emoções em completa oposição.
— Não pare, Geórgia! Sua teoria está me deixando interessadíssimo — retorquiu Renzo, diminuindo a velocidade do carro ao entrar na avenida ao lado do rio Tamisa.
Ela olhou para a multidão que fugia da chuva e desejou estar entre eles, livre e ansiosa por voltar para o aconchego de sua casa. Qualquer lugar no mundo seria melhor do que a situação que a esperava quando chegassem a Sandbourne!
— Então, cara?
— Quando se ama alguém, o maior desejo é partilhar cada momento com o ser amado, dividir as alegrias e todos os nossos pensamentos. Se existe ódio, porém, há a necessidade de fugir, de estar o mais longe possível daquela pessoa, não vê-la ou ouvi-la…Tem idéia agora dos meus sentimentos, Renzo?
— Você foi muito clara! Suponho que irá detestar cada segundo passado ao meu lado, certo? É uma pena, pensei que gostasse de Sandbourne…
— Sempre adorei aquela praia mas, desta vez, sei que não me trará prazer algum.
— Sinto muito. Eu, pelo menos, tenho intenção de me divertir muito! Apesar de viver há tantos anos na Inglaterra, jamais fui a nenhuma das cidades à beira-mar e estou esperando ansiosamente pelos dias que passaremos lá.
— Mesmo na companhia de uma esposa que o odeia?
Geórgia usava a única maneira ao seu alcance para feri-lo: as palavras. Recusava-se a ser uma vítima dócil e submissa às torturas provocadas por uma vingança insensata!
— Não estou absolutamente preocupado com os seus sentimentos a meu respeito! As reações que você provoca em mim são muito mais importantes e, sem dúvida, irá se surpreender com a intensidade de minhas emoções. Terei ao meu lado uma mulher atraente e será extremamente agradável revelar-lhe os prazeres do sexo…
Era impossível ignorar o significado daquelas palavras cruas! Renzo pretendia tomá-la sem a menor consideração por sua inocência, e quanto mais ela lutasse contra a degradação de ser possuída sem amor, mais completa tornaria a sua intenção!
Uma onda de desespero invadiu-a e sentiu o rosto rubro de vergonha. Seria menos terrível se ela se jogasse sobre a direção, fazendo o carro perder o rumo e cair nas águas geladas do rio! A morte a atraía mais do que sentir-se um objeto de prazer para aquele homem sem emoções dignas!
Uma imagem muito clara impediu-a de cometer esse ato de loucura: a casa paroquial coberta de hera e seu pai, no escritório austero, escrevendo o sermão de domingo. Àquela hora as luzes estariam acesas, tornando o ambiente acolhedor, e um aroma de tortas e doces emanaria da cozinha, anunciando a hora do jantar.
Se ela agisse tão impensadamente, iria abalar todo o universo do pai e seu sacrifício teria sido inútil e sem sentido!
Tomada por tremores de frio, Geórgia fechou mais o casaco e sentiu-se desprezível por estar vestindo roupas compradas por ele. Lutara muito até ser vencida pela vontade férrea de Renzo e aceitar aqueles vestidos luxuosos e magníficos demais para ela!
"Não adianta discutir, cara! Recuso-me a ver minha esposa mal vestida; você mais parece uma… maltrapilha!", lembrou-se.
Ela tinha sido arrastada de uma loja a outra, de salão a salão, todos imponentes e faustosos. Os incontáveis espelhos refletiam sua imagem de todos os ângulos e também mostravam as expressões desdenhosas das vendedoras…Geórgia sentira-se como uma rude e desajeitada simplória!
Todo o ódio, acumulado desde o dia em que Renzo surgira furioso no seu refúgio tranqüilo, transbordou em suas palavras cheias de desespero!
— Vai se arrepender mortalmente, Renzo Talmonte! Eu o detesto e sei que vou detestá-lo cada dia mais!
— Então posso me considerar um homem de muita sorte por não estar apaixonado por você, cara.
— Nossa situação é trágica demais. Não há lugar para "paixões"! Seu amor por Angélica foi a causa desse sofrimento todo. Mas, infelizmente, ela não será atingida! Os únicos a serem magoados seremos nós dois!
— Você está sendo dramática demais, Geórgia! Não foi obrigada a casar-se comigo, eu lhe dei uma opção. A escolha foi sua!
— Opção? Escolha? Não banque o cavalheiro bem-intencionado, Renzo! No minuto em que pousou os olhos em mim, já me avaliou e julgou uma filha dedicada que amava o pai a ponto de protegê-lo a qualquer custo, não é verdade? O tipo de filha que você despreza pela falta de encanto, por não procurar diversões e deixar o lar vazio! Eu e Angélica temos temperamentos opostos e você notou o contraste desde que me viu pela primeira vez. Já sabia que eu não teria outra saída a não ser aceitar a sua chantagem, tornando-me sua esposa. Sabia que eu não iria magoar meu pai!
— Mas é lógico, cara! Eu jamais teria voltado a Duncton se não tivesse certeza absoluta de que você acabaria cedendo à minha vontade.
— Oh! Meu Deus! Não é possível existir tanta maldade... Deve haver um nome para homens como você!
— Os franceses dizem… homme sans merci…
— Homem sem piedade?
— Sim, cara. Cai-me como uma luva, não acha?
As palavras carregadas de amargura não receberam resposta e um silêncio pesado e tenso tomou conta do carro.
Geórgia olhou para aquela cidade frenética que seria seu lar quando voltassem da praia e sentiu imensas saudades dos verdes campos de Sussex.
Cinzenta e fria, Londres lhe parecia um formigueiro agitado e hostil, cheio de sons desagradáveis e odores repulsivos. As fisionomias fechadas, que transmitiam a incomunicabilidade da cidade grande, a assustavam demais. No entanto, não havia como fugir do futuro sombrio que a aguardava. Iria viver na casa de Renzo Talmonte, o cavalheiro sem piedade!
Aos poucos, a cidade ficava para trás e a natureza tranqüila dos campos ingleses surgiu diante dos olhos desesperados de Geórgia como um bálsamo bem-vindo.
O sol do final da tarde transformava a pequena cidade à beira-mar num poema cor-de-rosa. As primeiras luzes começavam a se acender, rebrilhando ao longe nas poças de água deixadas pela chuva.
O imponente Rolls-Royce de Renzo entrou pela ampla alameda que cortava os magníficos jardins floridos do Duke's Hotel.
Geórgia não se lembrava qual tinha sido o primeiro ano em que viera com sua família para Sandbourne, mas jamais conseguira esquecer a fascinação provocada por aquele luxuoso hotel, desde que o vira, ainda muito criança.
Ela e Angélica admiravam a distância aquela construção suntuosa, de onde homens e mulheres ricamente vestidos entravam e saíam como príncipes distantes e inatingíveis.
E, invariavelmente, a irmã mais nova, voluntariosa e consciente de seus desejos de grandeza, repetia que algum dia estaria entre aquelas pessoas privilegiadas, freqüentando hotéis de luxo e ostentando jóias preciosas.
Se não fosse pela presença de Renzo, que assinava as fichas na recepção, Geórgia se sentiria realizando um sonho jamais admitido antes. Era a filha despretensiosa e sem atrativos do reverendo Michael Norman que estava agora entre a elite, hospedando-se no Duke's, um dos hotéis mais tradicionais e requintados da Inglaterra!
As colunas de mármore alcançavam o teto muito alto, onde imensos lustres de cristal francês brilhavam, ofuscando a vista. No fundo do imenso saguão, uma escadaria larga levava ao mezanino e, através de arcos dourados, podiam-se ver as inúmeras mesas onde os hóspedes tomavam o tradicional chá das cinco.
Ah! Como seria bom saborear um chá tranqüilamente, sem pensar que, no final daquele dia terrível, algo ainda mais traumatizante a esperava! Geórgia não percebeu o quanto sua expressão era transparente e revelava seu desejo prosaico… Renzo notou-lhe o olhar perdido entre as colunas do salão de chá e segurou-a firmemente pelo braço, levando-a em direção aos elevadores.
— Vamos, cara! Apesar de achar-me impiedoso e desalmado, não é possível resistir a um apelo tão claro como o que vejo em seus olhos.
Geórgia deixou-se dirigir-se e, ao entrar no salão suntuoso, sentiu que todos os olhares convergiam em sua direção. Tímida e insegura, ela abaixou os olhos e sentou-se à mesa escolhida por Renzo.
Como ele parecia à vontade naquele ambiente formal e refinado! Nem mesmo o fato de ser um recém-casado tirava-lhe a calma! Mas, sem dúvida, seu marido já havia, freqüentado hotéis até mais finos em companhia de outras mulheres… ou pelo menos tivera Angélica ao seu lado!
Enquanto Renzo fazia o pedido, Geórgia tirou o casaco de vison e procurou ignorar o exame detalhado que parecia despi-la. O olhar de Renzo percorreu seu rosto e desceu, insultuoso, pelo seu corpo, sem o menor constrangimento.
"Estará lembrando-se de Angélica?", perguntou-se.
Sem dúvida, sua irmã partilhara inúmeras refeições com Renzo durante o longo noivado e talvez tivesse até mesmo se tornado sua amante. Todavia, ela não queria pensar nessa possibilidade, pois a traição de Angélica teria sido ainda mais grave. E sua situação insustentável era um resultado direto dessas ações impensadas!
"Que emoções violentas estarão escondidas atrás da aparência formal e controlada de Renzo Talmonte? Quando ele deixará cair a máscara fria, mostrando seus desejos amargos?", pensou angustiada.
Seria uma insensatez ignorar o físico atlético daquele homem diabólico, subestimando sua força pelo fato de usar uma bengala, Geórgia tinha plena consciência de que não poderia resistir a ele no momento em que ficassem a sós num quarto. Afastados do mundo, as paixões violentas certamente viriam à tona!
— Então? Não vai mostrar a educação de jovem de casa paroquial e servir-me o chá?
— Sim… é claro!
— Ótimo. Coma um doce, você mal tocou na comida durante a recepção, deve estar faminta!
Renzo observava com frieza os gestos delicados de Geórgia enquanto analisava o corpo que muito em breve seria seu.
Parecia com a irmã e totalmente diferente… Os seios menores, a cintura mais fina e as pernas mais esguias evidenciavam em seu recato um corpo à espera do toque de um homem para despertar paixões incontroláveis. Sim, ela não deixaria de reagir com volúpia às suas carícias! Não havia no mundo uma mulher que fosse fiel aos seus princípios! Em muito pouco tempo aquela jovem puritana se comportaria com tanto abandono quanto uma cortesã, apreciando jóias e peles sem lembrar-se de seus ideais românticos e puros.
Naquele momento um pianista encheu o salão com sua melodia suave, uma canção antiga e cheia de encanto.
A música romântica dedilhada ao piano espalhou-se por entre arcos dourados, trazendo uma sensação de calma profunda a Geórgia. Subitamente ela se sentiu faminta pois, além de não ter comido nada em sua festa de casamento, nem mesmo conseguira tomar o café da manhã preparado por Flávia.
O apartamento da jovem italiana ficava numa pitoresca pracinha que parecia muita distante do burburinho agitado de Londres, e Geórgia passara inúmeras manhãs sentada sob as árvores, tentando superar a terrível tensão causada pela decisão categórica de Renzo em desposá-la.
A situação na casa paroquial atingira limites insuportáveis e, tão logo tia Beatrice chegara para tomar conta de seu pai, Geórgia havia aceitado de bom grado o convite de Flávia para passar as últimas semanas no apartamento de Euston Mews.
A velha tia imediatamente percebera a irritação do reverendo Michael Norman e o constrangimento de Geórgia, e rebelara-se contra a atitude ríspida do irmão.
— Você devia estar contente por sua filha, mano! Tem idéia do que é viver sozinha, entre mulheres solitárias e sem família, num hotel de quinta categoria, como eu faço? Não sabe como se torna dura a vida quando se depende de uma pensão escassa para pagar o quarto e a comida. Não há dinheiro para diversões, nem mesmo um cinema, e nossas refeições são frugais, quase sempre chá e pão!
O pai de Geórgia saíra da sala furioso. Depois de várias insinuações deste tipo, ela dera graças a Deus por trocar Duncton e aquela casa sombria pelo moderno e alegre apartamento de Flávia.
Nos seus intermináveis passeios por Hyde Park, quase deserto no começo da manhã, ela pensava na incrível mudança de sua vida em tão poucos meses. Mas nada a reconciliava com o futuro que a esperava!
Aquele homem atraente fascinaria qualquer mulher, e mesmo Geórgia, quando observava os traços perfeitos e os olhos muito verdes em contraste com os cílios negros, deixava-se levar por fantasias, lembrando-se das estátuas de heróis romanos cheios de bravura. Só quando via o sorriso frio e irônico vinham à sua mente as intenções vingativas de Renzo e sentia o coração apertar!
— Você está muito pensativa, Geórgia.
— Há tanto em que pensar…
— E nada a meu favor, certo?
— Nada! Se espera uma reação afetuosa da minha parte, Renzo… engana-se por completo! Cumpri a minha parte casando-me com você, como era seu desejo, mas as promessas feitas diante do padre foram tão vazias quanto está o meu coração.
— Ora… há muitos anos já não acredito que as mulheres tenham um coração! Parecem anjos doces e ternos e no fundo não passam de frias calculistas mercenárias! Veja o seu comportamento, cara… uma noiva frágil e etérea… e agora come doces como uma trabalhadora braçal! — A sugestão foi sua, Renzo! Eu não comeria…
— Calma! Nunca vi ninguém tão sensível assim! Se você tomar como um insulto pessoal tudo o que digo, brigaremos noite e dia.
— Pois é exatamente isso que acontecerá! Você me julga uma pessoa cordata e dominável porque fui uma filha dedicada e permaneci ao lado de meu pai cuidando da casa e dos paroquianos. Talvez ignore que foi uma escolha minha! Preferi essa vida sem brilho e nunca me arrependi por não ter feito uma carreira ou procurado o sucesso. No entanto, se pensa que vai pisar em mim… prepare-se para ter uma terrível surpresa!
— Eu jamais perderia meu tempo brigando ou tentando dominá-la, cara. Uma mulher assim tão delicada e virginal foi feita para ser saboreada… tenho planos muito mais agradáveis do que pisar em você!
Os dedos longos e morenos, num gesto rápido, tomavam o pulso frágil de Geórgia e ela, sobressaltada, tentou soltar-se.
— Deixe de agir como um noivo apaixonado, signore! Sabemos o quanto é mentira e, além disso, detesto ser vista como recém-casada! Há uma senhora na mesa atrás de nós que não pára de olhar-nos como se fôssemos animais estranhos!
— Talvez ela esteja esperando o momento em que comecemos a nos agredir fisicamente!
— Talvez não demore muito!
Ao menos a atitude fria de ambos poupava Geórgia do terrível embaraço de ser considerada uma noivinha inocente à espera da tão desejada noite de núpcias!
Ela jamais pensara em casar-se, mas agora percebia que tinha perdido uma chance, ainda que remota, de unir-se a um homem por amor. Nunca seria tocada com carinho nem partilharia seus pensamentos com alguém querido…
— Coma o último doce — murmurou Renzo com uma doçura fingida e um sorriso malicioso. — Não deve ficar muito fraca...
— Deixei-o para você, "querido"!
— Prefiro conservar meu apetite. Há tantos petiscos mais do meu gosto!
— Não diga! Provavelmente você prefere salgados, não é? — retorquiu Geórgia, tentando mostrar-se calma diante da alusão clara às próximas horas.
Embora Renzo tivesse a expressão tranqüila, algo em seu tom de voz fez Geórgia estremecer. No minuto em que fossem para o quarto, estariam completamente desligados do mundo e ninguém poderia evitar a sua degradação. Olhando para a mão-ainda presa à do marido, ela viu as cicatrizes deixadas pêlos espinhos no dia em que o recebera entre as roseiras de sua casa. Eram marcas profundas, lembrando-a de como fora forçada a se submeter.
E agora nada mais poderia salvá-la! Ele se sentia com todos os direitos de impor sua vontade como marido e, a portas fechadas, tomaria seu corpo sem consideração alguma por sua repulsa e seu terror.
— Terminou o chá, cara? Estou ansioso para irmos até nosso quarto. Este salão tem gente demais para o meu gosto. Quero ficar a sós com minha noivinha… virginal!
— Não! E eu… preciso caminhar um pouco…
— Deixe de agir como uma idiota, Geórgia!
— Vou dar uma volta!
Sem ouvir mais nada, ela se levantou da cadeira, não se preocupando com a raiva que iria provocar naquele homem violento. Nada mais importava nesse instante a não ser fugir de Renzo! Jamais sentira tanto medo de alguém em toda a sua ! Agarrando o casaco, correu pelas escadas e atravessou o saguão do hotel como se estivesse sendo perseguida.
Ele permaneceu imóvel, observando através das arcadas o pânico e o desespero que impeliam-na a fugir. Um sorriso curvava seus lábios bem desenhados e sensuais, mas o olhar frio e cheio de ódio revelava sua irritação por ter sido abandonado em público.
Mas havia muito tempo para domar aquela criatura ao mesmo tempo assustada e rebelde. Ele a imaginara menos ousada, uma jovem puritana e fraca, mas aquela faceta inesperada de um temperamento combativo só lhe traria mais prazer. Tinha se preparado para levar uma mulher passiva e atemorizada a aceitar suas carícias, e a reação de Geórgia o tomara de surpresa.
Ao caminhar para a suíte luxuosa que reservara para a lua-de-mel, Renzo antecipava os prazeres da noite tão próxima, quando, com toda certeza, seria obrigado a dominar Geórgia pela força.
Como as mulheres sabiam fingir bem! Aquela tola demonstrava por todas as suas ações uma inocência na qual ele jamais acreditaria! Esperava ansiosamente o momento de desmascará-la. Iria levá-la a se comportar como uma cortesã, destruindo aquela falsa pureza, e só quando a visse implorar por ele poderia rir vitorioso!
Uma brisa suave soprava, trazendo o cheiro agreste do mar, e, apesar das poças de água da chuva entre as pedras da alameda em frente ao hotel, Geórgia corria em direção à praia.
Renzo não podia alcançá-la se andasse depressa pois o chão irregular iria dificultar sua perseguição; isso se ele estivesse disposto a trazê-la de volta.
Atravessando a avenida, Geórgia chegou até a escada que levava à praia e, com passos rápidos, alcançou os grupos que aproveitavam as poucas horas antes do jantar. Rodeada de gente, ela se sentia segura, apenas uma entre tantas pessoas felizes por estarem passando as férias em Sandbourne… sorridentes e sem problemas!
Três jovens, de braços dados, eram a imagem da despreocupação e Geórgia invejou-as como jamais invejara alguém em toda a sua vida.
Depois do passeio vespertino pela praia, elas voltariam à pensão simples, e sem luxo onde, sem dúvida, estavam hospedadas e, depois de um banho, se vestiriam para o jantar. A noite lhes reservava prazeres despreocupados: um baile ou uma peça teatral ou até mesmo um passeio nas ruas pitorescas da cidade.
As lágrimas começaram a correr pelas faces de Geórgia, quê lutou para controlar uma onda de autopiedade. Como Renzo se cansara de repetir, ela havia escolhido o seu caminho e não tinha como escapar. Se essa mesma situação fosse apresentada a Angélica, ela jamais hesitaria em destruir a felicidade do pai, pois não suportaria sacrificar-se aceitando um homem a quem não amava!
Por que Geórgia não era como a irmã? Não só na aparência mas também no temperamento?
Mas, desde muito pequenas, elas se pareciam como duas rosas, uma cheia de espinhos e a outra desprotegida!
Angélica sempre fora egoísta e preocupada apenas consigo mesma, mas todos a agradavam e desculpavam, enquanto ela própria era tratada como uma garota responsável e sem desejos pessoais. Era dez meses mais velha, muito mais frágil e miúda e no entanto a viam como uma pessoa adulta, que já ultrapassara o período despreocupado da infância.
A mãe morrera muito perto de seu décimo quinto aniversário e os deveres da casa passaram a ser função sua… por que motivo, Geórgia jamais soube! Aos poucos, toda a responsabilidade doméstica recaíra sobre seus ombros. Ao voltar da escola, fazia seus deveres rapidamente e procurava preparar um jantar simples ou passariam a chá e torradas.
A velha mulher que fora contratada para tomar conta da casa quando a sra. Norman adoecera estava com mais de sessenta anos e Geórgia começara a ajudá-la em pequenos serviços, mas, gradualmente, suas tarefas aumentaram até que assumisse todo o trabalho.
E Angélica… jamais se dignara a assumir tarefas tão prosaicas!
Com um dom inato de fugir das responsabilidades, a irmã assumiu o papel de anjo caridoso, ocupada sempre em consolar o pai acabrunhado pela perda da esposa. Com um sorriso brilhante e uma expressão de falsa modéstia, ela insistia em declarar-se uma péssima dona-de-casa, ao mesmo tempo exaltando as qualidades de Geórgia como cozinheira. Suspirando desanimada, afirmava que jamais se encontraria alguém tão desajeitada ao varrer uma casa que, como ela, batesse nos móveis e arrancasse lascas das portas.
— Tenho inclinações artísticas. É uma pena, pois gostaria de ser uma mulher prendada!
O mais incrível não eram as declarações de Angélica e sim a sua capacidade de convencer a todos, incluindo ao reverendo Norman!
Sem dúvida, ela tocava um pouco de piano e copiava vestidos das revistas de moda, mas jamais criava nada. Além disso, tinha a reputação de ser a bela filha do pastor, embora as duas se parecessem demais para que Geórgia fosse considerada feia.
Essas brilhantes qualidades — inexistentes na "pobre" irmã mais velha — levaram o reverendo a aceitar sem protestos a partida da filha para Londres, onde freqüentaria uma escola de modelos. O pai retirou do banco o dinheiro posto de lado para garantir-lhe a velhice e Angélica partiu para o mundo da fama com a certeza absoluta de que se tornaria um sucesso.
Uma autoconfiança inabalável e sua capacidade de convencer a todos de ser uma criatura excepcional logo deram frutos. Revistas famosas como Bon Marche e Exclusive disputavam a jovem modelo, tão fotogênica e sedutora que chamava a atenção, sobressaindo-se sobre as outras.
O orgulhoso pai carregava as revistas por toda a parte, mostrando-as aos paroquianos, cujos comentários eram inevitavelmente os mesmos: todos sabiam que uma garota fascinante e simpática como Angélica só poderia ter sucesso e ficar muito famosa!
Quanto a Geórgia, a filha meiga e dedicada apenas em tornar agradável a vida do reverendo, receberia sua recompensa no céu!
Portanto, não era surpreendente a reação indignada do pai ao saber que ela o deixaria sozinho. Sem dúvida, sentira-se traído pois cansara de ouvir que Angélica colheria os louros da fama e da glória enquanto Geórgia continuaria a cozinhar, tomar conta da casa e do jardim, sem esquecer do chá e dos bolos a serem oferecidos às senhoras da comunidade uma vez por semana!
O bater insistente das ondas sobre as pedras, o grito das gaivotas e o som dos próprios passos faziam eco aos pensamentos torturantes de Geórgia, que, levantando o olhar, viu a praia quase vazia.
A luz surgia iluminando os poucos veranistas que se apressavam em voltar aos hotéis, e preparar-se para o jantar.
"O que fazer, para onde ir?", questionou-se.
Havia fugido do Duke's sem ao menos pegar a bolsa, estava sem um tostão! Sozinha na praia, ela não tinha nada além das roupas que vestia e do anel de safiras no quarto dedo da mão esquerda. O anel! Se ao menos não fosse tão tarde talvez ela encontrasse uma loja aberta onde tentaria vender aquela jóia cara e pesada.
Era impossível evitar as lembranças do momento em que aquele aro de pedras frias fora colocado em seu dedo. Um homem odioso tornara-se seu marido e, mesmo tendo apenas murmurado os juramentos, ela se comprometera a amá-lo e respeitá-lo diante de um padre.
Que respeito poderia sentir por alguém que a obrigara através de chantagem a participar da farsa de um casamento forçado? Como pensar em afeição se entre ela e Renzo existia apenas ódio e não um amor terno unindo duas almas gêmeas?, refletiu.
O vento frio lembrou-a de que não poderia passar a noite na praia. Precisava voltar ao hotel e tentar convencer Renzo da loucura cometida num impulso de raiva.
Existiria alguém tão impiedoso e cruel a ponto de esquecer a decência e a moral por causa de uma vingança fútil? Poderia um homem dobrar uma mulher pela força física, com o intuito de destruí-la moralmente?
Renzo era um artista, um gênio musical cujas melodias românticas encantavam o mundo e, sem dúvida, uma pessoa culta e com princípios e ideais elevados. Devia haver um ponto fraco na atitude dura e ela tentaria apelar para o sentimento de dignidade daquele homem famoso pelo temperamento artístico e sensível.
Relutante, Geórgia começou a voltar, rezando para não encontrá-lo à sua espera num lugar público onde todos veriam sua humilhação ao ser repreendida como uma criança irresponsável…
A escada imponente do hotel, coberta por espessos tapetes, estava deserta. Por sorte, todos os hóspedes encontravam-se em seus quartos, preparando-se para o jantar!
Geórgia preferiu evitar os elevadores, onde poderia encontrar alguém que testemunhasse seu estado de perturbação profunda.
O imenso corredor abria-se à sua frente como o caminho para a guilhotina! Nunca foi tão terrível, percorrer um trajeto pequeno como o que levava ao seu quarto! Diante da porta, Geórgia parou, em pânico.
À sua espera estava um homem que pretendia arrasá-la e que, depois de sua fuga indesculpável, com certeza ficara ainda mais irritado. Mas nada podia ser feito para evitar aquele encontro desagradável e inevitável.
Geórgia tocou a campainha e esperou por um longo tempo. Talvez Renzo não fosse abrir a porta, deixando-a em pé no meio do corredor como uma criança que merecia ser punida. Seu coração batia forte e lhe dava a impressão de que o som ecoava pelo hotel silencioso e deserto!
Subitamente a porta se abriu e Renzo, os cabelos úmidos do banho e um roupão de seda verde que mal cobria o corpo magnífico, a fitava com uma expressão sarcástica.
— Ora! Seja bem-vinda, signora! Afinal, o que seria de uma noite de núpcias sem a presença da noivinha tremula e ansiosa?
— Eu não sou sua "noivinha"!
— Pois devia ser! O noivo a espera, se não tremulo, com muita ansiedade. Estava me preparando para recebê-la, cara… nosso quarto foi preparado com todo o requinte necessário para uma noite tão gloriosa!
Geórgia deu apenas alguns passos e parou, intimidada pela grandiosidade do aposento. A saleta era bem maior do que toda a casa paroquial e sua decoração, tão requintada quanto a de um palácio!
Paredes recobertas de tecidos preciosos, sofás de veludo e uma infinidade de espelhos dourados recriavam o ambiente de esplendor da época georgiana. As cortinas de brocado já haviam sido fechadas e velas em castiçais de prata iluminavam romanticamente os inúmeros vasos de flores espalhados em mesinhas delicadas.
Entretanto nada estava mais longe da realidade do que uma situação romântica! Bastava olhar para o homem alto e ameaçador, cujos olhos tinham um brilho frio, para esquecer toda a suntuosidade que a rodeava e fazê-la estremecer de medo e revolta.
Mas Geórgia estava decidida a enfrentá-lo antes que fosse tarde demais!
— Mas eu precisava ficar sozinha por alguns minutos! Não imagina o quanto este dia foi desgastante para mim. Nem sei como consegui suportar tanto tempo e…
— Pois o dia ainda não terminou, cara! Você suportou o anel em sua mão esquerda, as bênçãos do padre e a assinatura do casamento civil. Agora, goste ou não, somos marido e mulher. Não há nada além da morte que possa nos separar!
— É... é sobre isso que gostaria de conversar. Esta situação é insustentável, Renzo! Nós dois nunca deveríamos ter casado… você ainda ama Angélica, apesar de tudo, seria imoral se eu e você... se nós…
— Continue, Geórgia. Diga exatamente o que está pensando! Não banque a pura e tímida donzela pois somos ambos adultos e sabemos muito bem o que acontece na noite de núpcias. Aliás, esta noite promete ser diferente de todas as outras.
Geórgia tremeu ao notar-lhe o tom carregado de malícia e encarou-o como se o visse pela primeira vez.
Com o robe de veludo verde, Renzo perdia o ar formal e polido, transformando-se num deus pagão cuja sensualidade era clara e inegável. Como poderia resistir a um homem forte e disposto a forçá-la? Como escapar à mente vingativa que decidira usá-la dos modos mais sórdidos, possuindo-a com um desejo nascido do ódio, sem a menor parcela de amor?
— Por favor, Renzo! Para que continuar esta farsa absurda? — Quase em lágrimas, Geórgia recuava como se estivesse diante de um animal selvagem.
— Já conseguiu o seu objetivo… Colocou uma barreira intransponível entre você e Angélica, caso ela tente voltar. Por que ir às últimas conseqüências?
— Ora, quando você aceitou meu pedido de casamento, sabia muito bem que eu iria exigir o uso de seu corpo. Se tinha tanto medo desta última… "conseqüência", devia ter recusado há muito tempo, agora é tarde demais. E cuidado com o próximo passo para trás ou derrubará o belo vaso na mesinha às suas costas!
Geórgia virou-se para olhar e Renzo, como um felino ágil, aproveitou o momento de desatenção e prendeu-a num abraço.
— Cara mia… desista de lutar contra mim, não tem condições de vencer! Fugiu hoje do hotel sem ao menos levar a bolsa, o que me poupou o trabalho de segui-la. Não poderia ir a parte alguma sem dinheiro ou documentos, portanto esperei a sua volta sem qualquer preocupação.
— Voltei com esperanças de que pudéssemos discutir racionalmente sobre o nosso casamento. — Geórgia lutava para escapar dos braços que a prendiam, como um círculo de ferro, mas em vão. Os ternos clássicos e o uso da bengala disfarçavam um corpo musculoso e atlético, capaz de subjugá-la sem esforço algum. Se não o convencesse a manter um casamento apenas de aparências, seria tomada à força! — Somos muito diferentes, Renzo, não existe nem uma sombra de afeição entre nós! Não sou o tipo de mulher à qual está acostumado; jamais conseguiremos viver em harmonia e…
— Sei muito bem qual é o seu tipo, cara. Uma jovem que não só vivia fora do mundo mas também o envolvia em fantasias românticas! Quando lhe sobrava algum tempo livre, enfiava o nariz nos livros de poesia e acreditava num amor ideal e perfeito, não é? Uma emoção rara que envolve alma e coração, tão espiritual e refinada a ponto de ser o paraíso na Terra! — Não! Eu não sou romântica assim, mas...
— Então enfrente a verdade! O único paraíso a ser encontrado em vida vem do prazer dos sentidos, e só saberá quando entregar o seu corpo…
— Não! Prefiro atirar-me da janela! Eu…
Geórgia sentiu as mãos de Renzo deslizando sobre a seda muito fina de seu vestido em carícias mais íntimas e tentou afastá-lo. O corpo nu, apenas coberto pelo roupão, amedrontava-a, trazendo uma realidade dolorosa à sua mente.
— Por favor, Renzo, não faça isso! Solte-me…
— Está realmente com medo de mim? Mal posso acreditar que você e Angélica tenham crescido juntas! Percebi o quanto ficou chocada ao ler aquelas cartas obscenas, mas… nunca passou pela sua cabeça, nem por um instante, sentir os lábios de um homem descobrindo os segredos de seu corpo?
— E eu… não sou Angélica! Você quer acreditar que nós duas somos iguais para ter a sensação de estar casado com ela, mas eu prefiro morrer a deixá-lo me… a permitir que…
— Ah! Que esposa tola e… engraçada! Você tem um senso de humor único, Geórgia! Por um mero acaso eu sou o seu marido e, como tal, pretendo deliciar-me com o corpo da minha esposa! Quando eu a vi pela primeira vez percebi um brilho em seu olhar que me deixou intrigado. Sentiu alguma atração proibida pelo noivo de sua irmã? Se não me enganei, você me desejou sem o saber, portanto agora poderá libertar suas fantasias proibidas!
— É mentira! Eu odeio você, sempre odiei e…
Uma dúvida tênue mas perturbadora invadiu Geórgia. Teria mesmo sentido algum desejo por Renzo há tanto tempo atrás?, pensou. Ela jamais pensara em homem algum, mas a imagem do italiano atraente e sensual não saíra de sua mente por muito tempo.
— Há uma estranha alquimia entre o ódio e o desejo, cara! Nós dois sabemos disso…
A voz de Renzo se transformava numa melodia sensual e seus lábios tocaram levemente o rosto de Geórgia.
Em pânico, ela tentou se esquivar da boca possessiva que procurava a sua. Iria se desprezar até o fim de seus dias se deixasse aquela sensação nova e perturbadora tomar conta dela.
De nada adiantou sua luta pois Renzo já lhe alcançara os lábios e forçava-os a se abrirem, num beijo dominador e violento que anunciava claramente o seu domínio sobre ela, uma invasão ao mesmo tempo brutal e perturbadora.
Enquanto ele começava a desabotoar-lhe o vestido sem pressa, Geórgia procurava desesperadamente uma maneira de destruir aquela barreira de indiferença que o impedia de vê-la como um ser humano, cujos princípios morais estava destruindo sem a menor consideração.
Mas Renzo continuava a tocá-la cada segundo com mais ousadia, tirando-lhe a capacidade de raciocinar com clareza.
— Duas irmãs… uma tão ávida pêlos prazeres da vida, a outra tão indiferente e fria! Ou será que você criou essa imagem de virgem pura por ter medo de aceitar um temperamento tão sensual quanto o de Angélica? Que tal provar-lhe que existe um vulcão ardente sob a aparência puritana e etérea da jovem Geórgia?
— Só estará me provando que precisa de fantasias para se iludir!
— Quem precisa de ilusões diante de uma realidade tão perfeita, cara? Seu corpo é cálido, feito para ser saboreado…
Paralisada de pânico e prazer, Geórgia sentiu que Renzo a deitava sobre as almofadas do sofá e abria os últimos botões de seu vestido.
Fitando os seios rijos, mal cobertos pela renda transparente, Renzo soltou um murmúrio rouco e, num gesto brusco, retirou o último obstáculo que o impedia de tocar a pele muito alva e sedosa.
Eram seios perfeitos, ainda mais belos do que os de Angélica porque jamais haviam sido tocados antes por homem algum. O prazer de colar os lábios nos mamilos que se enrijeciam à espera de seu toque seria maior por saber que era o primeiro. O primeiro a ouvir os gemidos de prazer e sentir o tremor do desejo incendiando aquela mulher que ainda lutava para não se entregar ao delírio dos sentidos!
Geórgia viu as mãos morenas e finas cobrirem seus seios e tomarem os delicados botões entre os dedos, pressionando-os sensualmente. Ela estava perdendo a noção de tudo à sua volta e revoltou-se contra sua fraqueza. Aquele homem a estava dominando através de carícias hábeis, sempre dono da situação e surdo aos seus protestos. O que o faria parar?
— Por favor… eu não sou Angélica, você está se iludindo, eu…
— Não quero mais ouvi-la pronunciar este nome! — explodiu Renzo com a voz dura e amarga.
Não, ela não era aquela mulher sensual e traiçoeira para quem o sexo não passava de uma mercadoria, um favor a ser dispensado em troca de benefícios!
No entanto, ele só se recuperaria da terrível humilhação que sofrera nas mãos de uma irmã através da destruição da outra.
Geórgia percebeu o momento em que o toque de Renzo perdeu toda a delicadeza e o respeito. Lábios quentes sugavam os mamilos sensíveis com avidez e selvageria e ela sentiu-se submergir numa onda de prazer intenso. Gemidos de paixão escapavam incontroláveis e o corpo se arqueava contra sua vontade, oferecendo-se sem pudor.
Seus sentidos a haviam traído, mostrando a força que tinham, reprimidos num corpo jovem. Deixara de lado todos os seus escrúpulos, caindo sem resistência nos braços daquele homem sensual, desejando apenas perder-se no abismo da paixão. Mostrara-se uma presa fácil, mesmo sabendo que não era o seu corpo que Renzo acariciava com tanto ardor, não era ela a fonte de tanto desejo…
Ele beijava e acariciava outra mulher, gemia de prazer por Angélica!
Mas a força do desejo iria arrastá-la para a maior das degradações: oferecer seu corpo a um homem que não a via como mulher e a possuiria pensando em outra.
— Não, por favor, pare…
O tom de desespero contido na voz suave da mulher em seus braços lembrou-o da inocência que ele iria destruir. Renzo sentiu um ódio profundo de si próprio e de Geórgia. Cerrando os dentes no mamilo rosado, ele mordeu-o até ouvir o grito de dor ecoar no quarto.
O som de sua própria voz fez com que Geórgia reagisse violentamente. Num último recurso, ela esbofeteou o rosto curvado sobre seu corpo, tentando feri-lo tanto quanto se sentia magoada por estar sendo usada.
— Você é um selvagem! Afaste-se de mim, não suporto que me toque!
— Sou assim tão insuportável, Geórgia?
— Sim! Disse que me faria sentir o mesmo que minha irmã, não foi? Pois agora eu sei por que ela agiu daquela maneira. Nós dois sabemos por que ela o deixou para ficar com Stélvio!
Por alguns segundos, um silêncio absoluto reinou no quarto e Geórgia sentiu apenas a pressão dos dedos cravados em seu braço aumentar brutalmente.
Finalmente Renzo soltou-a e levantou-se do sofá, indo até a mesinha onde havia uma caixa de charutos.
Desde que ela chegara ao quarto, Renzo não tinha usado a bengala e parecia andar sem o menor sinal de defeito em sua perna. Agora, porém, notava-se claramente que ele mancava.
— Está absolutamente certa, cara. Jamais tive a menor dúvida sobre o motivo pelo qual Angélica preferiu meu irmão. Ela apenas se entrega a homens ricos e de sucesso mas…
— Ë mentira! Você a fez parecer uma… cortesã sem princípios, uma mulher que se oferece pelo maior preço, e eu jamais acreditarei nisso!
— Não seja mais inocente e ingênua do que é possível, Geórgia! Ela nunca aceitaria um homem pobre. Seus gostos são caros demais. A única superioridade de Stélvio sobre mim é que ele não precisa de uma bengala para andar!
Geórgia ficou muda e imóvel diante da violência amarga das palavras de Renzo. Não poderia supor que seu defeito o perturbasse tanto!
Ele acendeu um charuto e fitou a jovem tremula que tentava se recompor depois de breves momentos de paixão. O corpo delicado ainda mostrava as marcas de suas carícias e uma onda de desejo invadiu-o. Já não sabia mais se a queria por vingança ou pela sensualidade ingênua e sem malícia daquela mulher ainda adormecida para o prazer. Fosse qual fosse o motivo, não iria deixar-se levar por simpatia ou piedade! Se Geórgia não cedesse, comportando-se como uma esposa verdadeira, ele a forçaria a submeter-se!
— É melhor vestir-se para o jantar, Geórgia, ou iremos nos atrasar.
— Eu não tenho fome…
— Pois eu estou faminto e não tenho intenções de jantar sozinho! Vá trocar de roupa, a não ser que prefira trocar o jantar por um encontro mais íntimo e agradável!
— Não! Você sabe muito bem o que eu prefiro…Se tivesse um pingo de decência, me deixaria ir embora! Não sou um objeto, um brinquedo para seus caprichos…
— Você é minha esposa, Geórgia Talmonte! Como tal, deve-me obediência e respeito. Ou será que já esqueceu de suas promessas diante do padre? Existem apenas duas opções à sua espera: ou partilha da cama de seu marido… ou irei até o seu "piedoso" pai e lhe fornecerei material suficiente para uma dúzia de sermões sobre adultério e conduta pecaminosa! Ele não me pareceu ser um homem com muita capacidade de perdoar e até mesmo a filha adorada seria castigada por cometer atos tão vergonhosos, não acha?
— É isso o que mais deseja, não? Quer ver minha irmã tão humilhada quanto você o foi? Pobre coitado… você gostaria de sentir ódio de Angélica e não consegue!
— Sentir ódio é uma capacidade que você tem por nós dois, cara.
— Ficarei ao seu lado já que não me resta nenhuma outra opção. Mas prepare-se, Renzo Talmonte! Eu não vou ceder aos seus caprichos sem luta, não sou uma boneca frágil, nem me dobro facilmente.
— Não mesmo? Pois eu vejo uma mulher delicada, um anjo de olhos azuis... Linda! E pensar que me casei com uma solteirona tímida, puritana e tive a sorte única de encontrar uma mulher fogosa e sensual!
Geórgia enrubesceu diante da verdade daquelas palavras. Não havia como negar a sua reação ao toque de Renzo: ela vibrava ao sentir as mãos fortes acariciando-a com volúpia e desejava perder-se no tumulto de sensações inebriantes. Sempre ignorava, seu próprio corpo e pela primeira vez na vida percebia que ansiava pelos carinhos de um homem…
Mas o que Renzo sentia por ela a não ser um desejo físico nascido do ódio?
— Nada poderá nos aproximar, signore! Eu jamais o escolheria para ser meu amigo e…
Uma gargalhada sonora ecoou pela sala.
— Amigo? Queria um esposo… amigo? Você é realmente cômica, cara! No meu país, os homens escolhem os amigos entre seus companheiros do mesmo sexo. As mulheres não foram criadas para serem "amigas"! Acho melhor explicar-lhe bem o papel da mulher na vida de homens como eu. O lugar de uma donna é na cama, dando prazer e carinho ao seu esposo!
— Esqueceu-se de que está na Inglaterra, signore! Aqui, marido e mulher se completam, são amantes e amigos! As dedicadas esposas não se limitam a cozinhar ou manter a casa limpa. Elas participam de uma vida em comum, tem sua vontade própria, enfrentam os homens num mesmo palco e... muitas vezes os vencem!
— Está insinuando que pretende me enfrentar, donna!
— Talvez…
— Quem sabe é mais excitante ter na minha cama uma esposa combativa e disposta a vencer do que uma "amiga" suave? Tenho impressão de que nossa noite será muito estimulante!
Geórgia saiu precipitadamente da sala, prestes a perder o controle. As repetidas menções de que muito em breve os dois iriam partilhar de uma experiência tão íntima a deixavam atemorizada e... ansiosa!
Os cabelos loiros brilhavam como ouro sob a luz das velas. Geórgia parou de escová-los para colocar os brincos de brilhantes e safiras. Não era ela a mulher bela e sofisticada refletida no espelho!
O vestido de seda azul-noite fora escolhido por Renzo e o decote a perturbava por julgá-lo excessivo. A típica filha do pastor jamais teria usado um traje tão ousado! A curva dos seios, realçada pelo tecido muito fino, mostrava ainda a marca de carícias, cujas sensações atordoantes ela não conseguia esquecer.
Um beijo e afagos banais, talvez um fato costumeiro na vida de tantas jovens, tinha sido uma revelação espantosa para Geórgia. Homem algum tocara seu corpo até Renzo tê-la tomado nos braços.
Os únicos sinais da terrível situação em que fora envolvida eram uma certa palidez e olheiras, que tornavam seus olhos ainda maiores. Perdera muito naquele dia fatídico: sua independência, sua dignidade ao se tornar uma esposa que deve obediência ao marido. Mas… ainda lhe restava um bem precioso, prestes a ser arrebatado: a sua virgindade.
Arrebatado? Nunca ela tomara consciência com tanta intensidade de seu corpo. A seda tocando a pele provocava-lhe arrepios e despertava um desejo inconfessável de sentir as mãos de Renzo a desencadear deliciosas sensações.
Como queria voltar a ser a jovem controlada que passava os dias ocupada por incontáveis tarefas na casa paroquial!
Essa paz de espírito, porém, não voltaria jamais. Renzo destruíra sua tranqüilidade, revelando uma faceta de seu temperamento até então sufocada.
Ela se tornara a esposa de Renzo Talmonte e iria viver numa belíssima mansão georgiana em Hanson Square, uma praça calma e exclusiva, quieta mas a poucos passos do movimento do Strand. E muito…muito longe da simplicidade rústica do Sussex, onde Geórgia levara uma vida modesta e sem luxos. Precisava acostumar-se a tanto requinte e sofisticação.
No entanto, estavam ainda mais distantes da Itália, da terra natal daquele homem que, embora tivesse se tornado um sucesso em Londres, jamais se afastaria das noções arraigadas sobre moral, típicas de seu povo. Nem toda a aparência requintada de Renzo ocultava seus princípios rígidos em relação às mulheres.
Para Geórgia era mais evidente a intolerância de Renzo do que sua beleza máscula, uma herança de seus antepassados romanos. Embora continuasse a ansiar por Angélica com um desejo inextinguível, ela se transformara numa mulher indigna e desprezível aos olhos dele. Ao entregar seu corpo a outros homens, de acordo com a visão de Renzo, passara a ocupar agora a posição mais ínfima — uma prostituta a vender-se por dinheiro ou prazer! Apesar de tudo, ele não podia tirá-la de seu coração nem sufocar o desejo de tê-la nos braços…
"Oh, Deus! E eu? O que serei na vida desse homem? Uma substituta para um corpo que ele já não mais pode tocar?", lamentou-se.
Naquele momento, Renzo entrou no quarto, vindo da saleta, Geórgia recuou até as portas de veneziana que se abriam para o terraço, temerosa. Não podia deixá-lo chegar mais perto, a cena interrompida pelo tapa nascido do desespero não podia prosseguir!
Imóvel, ela observou o homem alto e elegante atravessando o quarto apoiado numa bengala de ébano. Por que razão ele insistia em usá-la sempre que estavam em lugares públicos? Seria medo de vacilar e cair na frente de desconhecidos?
No entanto, ele andava em segurança quando estavam a sós... Talvez fosse insegurança. Geórgia não entendia como alguém tão sofisticado e sedutor podia sentir-se inseguro!
Um smoking muito bem cortado realçava os ombros largos e as pernas musculosas e a camisa branca destacava o rosto moreno, onde os olhos verdes brilhavam como esmeraldas, tão frios quanto as pedras preciosas de suas abotoaduras de brilhantes.
— Vim ver se já estava pronta para irmos até o restaurante do hotel... ou se tinha decidido ficar e iniciar mais cedo a nossa noite de prazer.
— Não, eu também estou com fome. Vamos…
— Ótimo! Ainda continua pálida, mas belíssima! Quando a vejo, sinto-me satisfeito por tê-la arrancado de uma vida sufocante e monótona. Você não foi feita para se ocultar e sim para brilhar… — murmurou Renzo, retirando um pequeno pacote do bolso e colocando-o nas mãos de Geórgia.
Em silêncio, ela aceitou o presente; ao abri-lo, porém, soltou uma exclamação de surpresa. No veludo negro da caixa rebrilhava o colar mais luxuoso que já vira. Safiras e brilhantes formavam um cordão grosso, de onde pendia uma conta branca e brilhante.
— E-eu preferia que você não me desse presentes… ainda mais jóias. Não sou do tipo de usá-las com graça e…
— Sinto prazer em dar presentes e... deixe-me colocá-lo — disse ele retirando-lhe o colar das mãos e prendendo-o no pescoço esguio e delicado. — Você fará o papel de minha esposa até nos menores detalhes, cara, mesmo revoltada e sem vontade. Dei-lhe o roteiro completo naquela tarde de sol entre as roseiras da casa paroquial e, hoje de manhã, você recitou as suas linhas quase com perfeição diante das centenas de convidados. Creio que chegou a convencer a todos!
— Duvido muito! Bruce Clayton ao menos não se iludiu…
— O que ele lhe disse? — perguntou Renzo segurando o queixo delicado com violência e obrigando-a a encará-lo.
— Foi apenas gentil comigo e achou que eu parecia relutante.
— Verdade? Preste bem atenção, donna, eu valorizo demais a nossa amizade. Faça o possível e o impossível para que esse laço não seja destruído.
— Não entendo…
— Oh! Você entende e muito, Geórgia! Quando voltarmos para Londres iremos encontrá-lo com muita freqüência.
— Tem medo de que eu aja como Angélica? — perguntou ela, tomada de ódio. Algum dia seria vista como uma pessoa? Renzo a olharia sem ver apenas a outra? Se ao menos pudesse ter certeza de não estar sendo constantemente comparada com a irmã! — Vou avisá-la apenas uma vez para que você não tenha a desculpa de ignorar a minha visão das coisas. Se eu perceber que está encorajando as atenções de outro homem, tornando-me ridículo e motivo de zombaria diante da sociedade, juro que se arrependerá de ter nascido, donna
— E como sabe se já não estou me sentindo assim? Ignoro o que realmente quer de mim, Renzo, porém eu vou lhe dar um aviso agora: jamais conseguirá me comprar com jóias caras. Sempre preferi flores dadas com amor!
— Isso foi no passado. Aos poucos você se sentirá igualzinha a todas as mulheres, poderá ser comprada!
Renzo, que não a soltara ainda, afastou-se e admirou a beleza esguia e a elegância de Geórgia. O tom do vestido realçava o azul dos olhos imensos, muito mais bonitos que os da irmã.
— Se as pessoas de Duncton pudessem vê-la agora, não acreditariam. Você não tem meios de negar-me o prazer de olhá-la, donna bella.
Ele estava vendo uma mulher bonita ou apenas a imagem que criara para substituir a criatura infiel que, apesar de desprezar, não conseguia esquecer?
Cada momento ao lado daquele homem aumentava o ódio de Geórgia! Ela não queria ser vista como um reflexo da irmã. Era uma criatura diferente, com valores próprios, e recusava-se a ser comprada com jóias ou lisonjas!
— Dispenso os seus elogios, Renzo! São falsos, a sua sinceridade é uma qualidade que você desconhece!
— Grazie, donna bella… Sente algum prazer em usar esses lábios macios e tentadores apenas para dizer palavras duras e ofensivas? Mas… não importa, quem sabe a magia do vinho a torne mais doce e sensível aos meus desejos?
— Nunca! Nem mesmo uma adega inteira seria capaz de mudar minha opinião!
Impulsivamente, Geórgia saiu do quarto e, depois de atravessar a saleta, dirigiu-se à escada. Mas parou e voltou até os elevadores, à espera de Renzo. Gostaria de ser tão egoísta e insensível quanto Angélica. Por que preocupar-se com a dificuldade de Renzo em descer as escadas? Talvez ele caísse e a deixasse livre para sempre!
Assim que entraram no antigo elevador de ferro trabalhado, ele a segurou pela cintura, num gesto possessivo destinado a mostrar ao mundo sua supremacia masculina.
Geórgia já não suportava mais o olhar fixo sobre ela, como se quisesse ler seus pensamentos, nem o sorriso irônico nos lábios bem desenhados. Ele parecia divertir-se muito com as suas tentativas de agredi-lo! Sem dúvida achava a discussão estimulante e sua reserva um obstáculo a ser conquistado, um desafio! Pois encontraria uma oponente à altura!
Renzo deslizava a mão na cintura esguia, tocando levemente os seios rijos. Estava adorando ver as reações de indignação daquela jovem puritana ao ser acariciada em público. Antes que ela pudesse esboçar qualquer reação, beijou-a com uma selvageria inesperada, mergulhando na boca cálida e macia como um conquistador sem escrúpulos. Em muito pouco tempo, ele a teria como uma gatinha dócil enroscando-se a seus pés à espera de carícias, dependente de seu amor!
Quando a porta do elevador se abriu, Geórgia lutava para recuperar o controle perdido diante do beijo violento de Renzo. Quando conseguiria prever as ações daquele homem incompreensível? Entretanto, nada era mais importante do que manter as aparências diante de todos!
No imenso salão, mesas redondas rebrilhavam com cristais e pratarias, e os enormes lustres pendentes do teto iluminavam centenas de hóspedes impecavelmente vestidos.
Era uma visão surgida de um passado glorioso, quando se considerava o Duke's como o ponto de encontro da elite inglesa. Ao caminhar por entre as mesas, Geórgia sentiu uma onda de insegurança. Ela não pertencia a esse mundo! Ao seu lado estava um homem atraente, de maneiras perfeitas, e ninguém poderia imaginar que, sob os trajes elegantes, escondido atrás da fisionomia máscula, ocultava-se um demônio impiedoso!
Como tinham ficado distantes os dias em que as duas garotas loiras olhavam as luzes daquele palácio de sonho… Tudo mudara desde aquela época feliz, quando limonada e castelos na areia simbolizavam o mais completo dos prazeres!
O reverendo Norman era então um homem alegre e cheio de entusiasmo, apaixonado pela bela e jovem esposa. Tinha sido a morte daquela mulher encantadora o motivo da transformação de seu pai num indivíduo duro e sem condescendência para com os que acreditavam ser possível encontrar a felicidade na Terra. Seu único ponto fraco passara a ser Angélica. O encanto e a beleza superficiais da moça ocultavam um temperamento egoísta e disposto a conseguir a realização de todos os seus desejos, não importando os obstáculos a serem destruídos na sua passagem.
Suspirando, Geórgia abriu o cardápio escrito à mão. A não ser pelo chá da tarde, ela pouco se alimentara e começava a sentir-se fraca de fome.
— Ë um hotel excelente. Agora sei por que você preferiu vir para cá em vez de conhecer o sol dourado das Bermudas, Geórgia.
— Oh! Sempre quis conhecer o Duke's por dentro! Desde criança, admirava sua imponência e os hóspedes que entravam e saíam em seus carros magníficos. Era o tipo de lugar que despertava a imaginação de pessoas que, como eu, se hospedavam em pensões modestas. Comenta-se que membros da família real vinham para cá no passado, misturando-se com artistas famosos, milionários... A maioria dos visitantes de Sandbourne compra um cartão deste hotel para enviar aos amigos.
— E está à altura do que imaginou, Geórgia?
— Ë muito bonito mas nada se iguala aos sonhos infantis.
Como aquele poderia ser o lugar maravilhoso criado em sua mente se o conhecia na companhia de um marido que detestava? Por certo Renzo devia ter pago uma fortuna incalculável pela suíte, mas não era problema dela! Talvez a única maneira de atingi-lo era fazê-lo gastar rios de dinheiro. O colar de brilhantes e safiras fora comprado na Asprey's, uma das lojas mais exclusivas e caras de Londres. Mas quem poderia afirmar que ele não tinha sido escolhido para combinar com a cor dos olhos de Angélica?
O garçom aproximou-se para anotar os pedidos e, depois de muita hesitação, Geórgia decidiu-se pelo pato com laranja, enquanto Renzo preferiu o rosbife.
— Nossa escolha criou um problema, donna.
— Oh! O vinho?
— Exatamente. Tomaremos branco ou tinto?
— Eu... podíamos pedir um champanhe…
— Ora, ora! A garota inocente da casa paroquial descobriu que tem uma paixão secreta por champanhe?
— Que tal a Belle Epôque Rosé?
— Não se importa de tomar… um champanhe rosé?
— Não, deve ser deliciosa!
Geórgia vira esse tipo de bebida numa das revistas de moda para a qual Angélica havia posado. A irmã enviava os números atrasados para o pai pois sabia o quanto ele apreciava mostrar aos fiéis da paróquia a prova evidente do sucesso da filha adorada.
Ao ouvir o marido discutir em francês com o garçom, Geórgia percebeu o quanto se mostrara ingênua e sem sofisticação… A "garota da casa paroquial" não sabia comportar-se em companhia tão requintada nem escolher a bebida certa! Ela tivera essa mesma sensação quando a irmã voltara para casa depois do primeiro mês em Londres. Angélica adquirira um verniz de jovem cosmopolita, que contrastava com seus modos simples e suas roupas modestas. Sem dúvida, elas não tinham nada em comum a não ser a semelhança de traços.
— Quantas línguas você fala, Renzo?
— Várias. Isso a faz sentir-se orgulhosa de seu marido?
— Não me causa surpresa alguma… apenas o torna ainda mais perigoso. Para um homem esclarecido e conhecedor do mundo é ainda mais incompreensível a sua necessidade de vingança maquiavélica!
— Você me julga mal, cara. Sou um homem comum…
— Oh, não! Você me faz recordar os aventureiros cruéis da época dos Médici. Homens orgulhosos e enigmáticos mas sem coração, dispostos a matar para atingir seus objetivos.
— Por certo não me acredita capaz de tentar apunhalá-la pelas costas, não é?
— Já o fez quando me obrigou a aceitar esta farsa absurda e cruel! Sei que é inútil discutir racionalmente com você, pois fará o impossível a fim de saciar a sua sede de justiça, mas… nunca passou pela sua cabeça que eu também gostaria de ser tratada com retidão? Não sentiu a consciência doer por ter destruído minha família, Renzo?
— E você não sentiu um impulso de gratidão por ter sido salva de uma escravidão sem fim? Alguma vez seu pai lhe agradeceu pelas horas de trabalho pesado, Geórgia? Mostrou-se reconhecido por sua dedicação total? Pois eu duvido que ele a tenha notado a não ser no dia em que alguém tentou roubar a filha apagada, cuja tarefa era tornar-lhe a vida mais fácil!
— Com que direito você ousa julgar os meus sentimentos ou os de meu pai? Até a sua chegada, vivíamos felizes e nos entendíamos muito bem. Foi a sua interferência a causa de um desentendimento lamentável.
— É lógico que ele não reclamava! Você se matava de trabalhar sem nunca se queixar, fazendo o papel de criada enquanto sua irmã recebia os louvores e era considerada a perfeição da família. Seu coração é mole demais, cara.
— Em relação a você, Renzo, meu coração é feito de pedra! — murmurou Geórgia lutando contra as lágrimas. Seria a humilhação mais arrasadora se ela desatasse a chorar em pleno salão de jantar. E como Renzo se divertiria!
— Um coração de pedra… Acredite em mim, cara, eu sei perfeitamente como dói! Por acaso imagina que não sofri terrivelmente quando minha cunhada mostrou-me as cartas de Angélica? A mulher que eu amava declarando uma paixão devastadora… e logo a quem? Ao meu irmão Stélvio! Aquele imbecil devia tê-las queimado, mas por certo não conseguiu resistir à tentação de reler páginas tão… excitantes! Pelo menos não podia guardar documentos de tal importância em sua própria casa, onde Mônica as encontraria por acaso. Mas o amor nos torna cegos… cegos e idiotas!
— Reconheço que você se magoou profundamente, porém eu não o feri, não sou culpada do seu sofrimento. Por que arrastar-me para o meio de tanta traição e dor?
— Sossegue, Geórgia! Não sou um discípulo do Marquês de Sade, não tenho intenções de torturá-la, muito pelo contrário!
— Eu jamais leio pornografia!
— Ah! Você leu as cartas de Angélica, lembra-se?
— Oh! Deus! Como pode ser tão cruel?
— Não me considero cruel, Geórgia. A vingança, embora maldosa, é um impulso bastante natural.
— Seria assim se você estivesse maltratando Angélica. Mas sou eu a vítima de seus impulsos maldosos!
— Dio! E quando a tratei com maldade ou grosseria, donna! Minhas mãos a tocaram apenas para sentir a maciez de sua pele aveludada, não para agredi-la…
— É... é exatamente isso…
— Como? Seja sincera! Quando a toco, sente-se agredida? Ou não sente nada?
— Eu... não…
— Tive em meus braços uma jovem sem experiência, ansiando por conhecer os prazeres do sexo. Você vibrou quando eu a beijei e por pouco não se entregou no sofá! Qual é o problema de soltar os seus desejos ocultos e deixar-se levar pelo delírio dos sentidos? O homem ao seu lado é também o seu marido... Qual a grande dificuldade?
— E o amor?
— Santo Dio! Não posso acreditar que você viva no mesmo mundo das outras mulheres! Acho que o tempo parou em Duncton e tenho diante de mim a última das virgens na face da Terra!
— Você… — Geórgia corou e mal podia falar, tal a sua indignação. — Você parece aqueles selvagens que raptavam as Sabinas, um bruto sem moral…
— Ao menos minha esposa conhece bastante História. Em menos de vinte e quatro horas, já lembrou de todos os piores bandidos para comparar com o seu marido!
— Um marido… com um coração de pedra!
— E você tem o coração mole demais… Somos um casal equilibrado, cara, bem combinado, não acha?
— É… como um coelho e uma cascavel!
— Você faz comparações perfeitas, donna mia!
Com um sorriso irônico, Geórgia concentrou sua atenção na comida deliciosa que fora servida há poucos instantes. O champanhe era excelente e seu copo mantinha-se cheio por obra de um garçom atencioso. Ela jamais bebera tanto em toda a sua vida, nem comera com tanto apetite. Se o excesso a deixasse indisposta, pagaria de bom grado esse preço para escapar das intenções de sedução de Renzo quando voltassem a ficar completamente sós!
— A comida está do seu gosto, Geórgia?
— Excelente!
— Percebe-se que seu apetite é…saudável!
Geórgia sentiu-se embaraçada pelo sorriso malicioso de Renzo. Realmente ela comera como se estivesse em jejum há semanas! Mas Sandbourne sempre abria o seu apetite e o passeio solitário pela praia ajudara a aumentá-lo. Ah! As resoluções tomadas durante a caminhada tinham sido ignoradas por Renzo! Para fugir ao olhar penetrante do marido ela examinou com atenção os outros hóspedes do hotel.
Quantas mulheres elegantes… e todas pareciam à vontade e seguras em meio ao fausto e ao luxo que as circundavam. Será que elas alguma vez questionavam o seu direito de receber tanta atenção? Sentiam-se merecedoras do trabalho exaustivo dos criados que preparavam pratos perfeitos e os serviam com amabilidade?, pensou desanimada.
Geórgia não conseguia identificar-se com aquelas pessoas, apesar de estar tão ricamente vestida e com jóias tão fabulosas quanto as das outras mulheres. Reconhecia a sua simplicidade e para ela o imenso salão mais parecia um teatro, onde cada um desempenhava um papel longamente ensaiado. Só ela parecia não ter decorado as suas linhas!
Uma risada ecoou no salão e Geórgia a achou tão artificial que sentiu novamente o impulso de fugir da vida de Renzo Talmonte antes de transformar-se numa criatura vazia, vivendo apenas para o luxo. Precisava escapar do modelo de mulher no qual ele desejava enquadrá-la, um ser desprezível que pagava as jóias e as peles com um corpo onde os sentimentos não existiam.
Renzo percebeu a fisionomia transtornada da jovem e sentiu um surpreendente remorso por tê-la tirado da tranqüilidade da vida campestre do Sussex.
— Por que está tão absorta, cara?
— Eu pensava em...
— Isso é mais do que claro! Sobre o quê?
— Você admira estas mulheres elegantes e sofisticadas? Sei que é esse o seu mundo mas…
— Que resposta devo lhe dar? Está querendo ser elogiada? Como comparar um botão de rosa a orquídeas artificiais e sem viço?
— E-então também vê o ar falso delas, como de atores a desempenharem um papel?
— Não foi um grande autor conterrâneo seu quem afirmou que a vida é um palco? Shakespeare, estou certo?
— Sim… mas será que não entende, Renzo? Jamais terei condições de comportar-me como a esposa ideal para você! Seu mundo é sofisticado demais, eu não conseguirei tomar conta de sua casa em Londres… Por favor, deixe-me ir embora! Escolheu a atriz errada para a sua peça!
— Povero me! Outra vez o mesmo assunto! Já estou ficando saturado de ouvir sempre as mesmas queixas! Ouça bem, cara! Você teve seis semanas para criar coragem e enfrentar seu pai, contando-lhe a verdade sobre Angélica. E o que fez? Preferiu mantê-lo na santa ignorância a respeito da vida pecaminosa de sua filha querida, deixou que ele continuasse a viver uma mentira! A escolha foi sua! Além disso, seria capaz de voltar àquela vida provinciana e sem horizontes? Quer continuar a ser tratada como o burro de carga da casa enquanto sua irmã recebe amor e homenagens pelo brilhantismo de sua "carreira"? Se é este o seu desejo, Geórgia…como você adora ser punida!
Ela baixou os olhos, chocada pela violência das palavras de Renzo, que, no fundo, revelavam uma grande verdade. Tivera realmente mais de um mês para contar tudo ao reverendo Norman… e não o fizera! A cada manhã tentava reunir forças e, a cada noite, deitava-se e passava horas acordada, perturbada por não encontrar uma solução para o seu dilema. Não podia submetê-lo à tortura de ler aquelas cartas sórdidas onde Angélica descrevia com detalhes crus o comportamento do seu amante. Além de citar cada uma das carícias feitas por Stélvio, num relato pornográfico, repetia inúmeras vezes o fato de ele ser um homem casado e insistia em que se separasse da mulher e do filho para poderem ficar juntos.
Para um homem tão religioso quanto o reverendo Norman, cuja visão da vida se baseava na fidelidade aos votos matrimoniais, o fato de sua filha adorada ter destruído um casamento seria um choque brutal!
— Pelo amor de Deus, não chore, cara! Todos os homens no salão a olham embevecidos e irão julgar-me um selvagem grosseiro por maltratá-la!
— E terão toda razão! No entanto, não se preocupe! Jamais terá o prazer de ver minhas lágrimas! E... poupe-me a sua ironia, Renzo!
— Eu… irônico? Você está sonhando! — Não sou tão simplória assim, a ponto de não perceber quando alguém está se divertindo às minhas custas! Há um duplo sentido em tudo o que diz... Nós temos um ditado no campo, sabe? "Nunca acredite num homem de cabelos negros como a noite!"
— E no meu país costuma-se dizer que não é aconselhável colher frutas verdes. Talvez eu devesse ter esperado que você amadurecesse antes de... colhê-la!
— Como assim? Não entendo.
— Céus! Se não compreende é ainda mais imatura do que eu julgava.
Apesar de sua ingenuidade, Geórgia não pudera deixar de entender o significado oculto daquelas palavras. Renzo jamais recuaria, por mais que ela implorasse! Nada o faria renunciar ao prazer de sua vingança.
— Escolha os ditados que quiser, Renzo... eu sei muito bem o que quer!
— Por acaso imagina que eu esteja irremediavelmente preso ao seu encanto, cara? Acredita que não possa resistir ao seu charme?
— Você é incapaz de resistir ao desejo de recuperar cada centavo que investiu em mim! Quer recebê-los de volta!
— Que visão mais mercenária! Eu a julgava uma jovem idealista, distante do materialismo do mundo, mas vejo que me enganei!
— Não sou "mercenária"! Esquece-se de que passei toda a minha vida tentando subsistir com o reduzido salário de meu pai? Quando os paroquianos nos davam de presente um frango ou ovos, era uma verdadeira festa.
— Deve ter sido muito duro, não? Sinceramente, lamento as dificuldades pelas quais passou, eu também não…
— Você não imaginará jamais o que é uma vida onde é preciso contar cada centavo! Apesar de sua família ter perdido a fortuna, havia um fundo que o ajudou a terminar os estudos…Não foi isso que me contou? Eu mal tinha tempo para fazer os deveres da escola depois da morte de minha mãe! Se alguém não tomasse as rédeas da casa, tudo se tornaria um caos insuportável. Veja bem, não estou me queixando! Nunca tive o temperamento ambicioso de Angélica e me bastava saber o quanto eu era necessária a todos.
— Será essa a sua maior mágoa agora, cara! Perdeu a única razão de sua vida?
A fisionomia enigmática de Renzo não revelava se suas palavras eram como sempre irônicas ou se ele começava a enxergá-la como uma pessoa muito diferente da irmã.
Mas, antes que pudesse descobrir as intenções de seu marido, o garçom chegou com o restante do jantar. Um rapaz, quase um garoto ainda, que o ajudava, não tirava os olhos do decote de Geórgia, como se estivesse hipnotizado pelo brilho do colar.
Geórgia sentia-se tão insegura e pouco à vontade naquele ambiente que não parecia notar os olhares admirados de todos os homens no salão do jantar. Considerou o comentário de Renzo, sobre o efeito causado por ela nos outros, como mais uma prova de que ele acreditava estar sempre com Angélica, o centro de todas as atenções. Aliás, sua irmã aceitava esses tributos como uma obrigação e ela jamais poderia ser tão atraente!
Se Renzo esquecesse por algum tempo sua obsessão pela mulher fascinante que o traíra, veria Geórgia como realmente era: uma jovem imatura e inexperiente, para quem ser possuída sem amor significava uma degradação tão grande como vender seu corpo por dinheiro!
A voz grave e melodiosa de Renzo interrompeu seus pensamentos, a cada minuto mais angustiantes. O jantar chegava ao fim e logo não haveria no mundo nada que evitasse seu aviltamento.
— Se eu sugerir que façamos um brinde ao nosso futuro, irá julgar-me sarcástico e irônico?
— Haverá um futuro para nós, Renzo? Que espécie de vida devemos esperar?
— Como você gostaria que fosse?
— Bem… não sei... muito depende de você, não acha?
— Por tudo que disse até agora deduzo que prefere ser considerada um enfeite em minha casa e jamais uma… propriedade minha, estou certo?
— Pelo menos poderia tratar-me como uma hóspede…
— Santo Dio! O que pensariam os meus criados se a signora Talmonte agisse como uma visitante temporária? Vai precisar ao menos fingir que vivemos juntos…
— Quer dizer que irá aceitar essa farsa de casamento apenas como uma barreira no caso de Angélica tentar uma reconciliação? Não me obrigará a...
— Seria absurdamente ridículo forçá-la a me aceitar, cara. Eu a estaria violentando se agisse assim. Além disso, pode imaginar uma cena tão grotesca quanto um aleijado correndo atrás de uma noiva apavorada por entre os móveis do quarto?
— Por favor, não gosto quando você usa essa palavra, eu...
— Que palavra? Violentar?
— Não, minha sensibilidade não é tão exagerada assim. — Geórgia evitou o olhar penetrante de Renzo, sem coragem de encará-lo.
— Você não é um aleijado. O defeito de sua perna quase não se percebe e a maioria das pessoas vê a bengala como parte de sua elegância clássica.
Ela se surpreendeu com o silêncio de Renzo, que concentrava toda a sua atenção no jantar. Tinha imaginado receber uma resposta ferina e ele não fizera comentário algum sobre suas palavras. Aquele homem era um enigma indecifrável, não havia como prever as suas reações.
Mas sua maior surpresa foi saber que não seria obrigada a partilhar com ele atos sobre os quais sofria só em pensar! Ele afirmara que não a forçaria a entregar-se e Geórgia apreciou-o com outros olhos. Talvez conseguissem estabelecer um relacionamento amigável, sem exigências da parte de nenhum deles; talvez o casamento não se tornasse uma tragédia irremediável. Cheia de esperanças, ela admirou o desembaraço daquele homem num ambiente tão requintado, e decidiu olhá-lo como um tutor, um amigo que a ensinaria a viver entre tanto luxo!
A melodia alegre vinda do magnífico salão de baile ecoava no estado de espírito de Geórgia, muito mais aliviada e feliz depois da conversa com Renzo. Saber-se liberada de cumprir seus deveres de esposa a deixava descontraída e disposta a aproveitar cada momento naquele hotel fabuloso.
Num impulso, ela segurou o braço do marido e pediu-lhe para apreciarem, ao menos por alguns minutos, os pares que dançavam.
— Como quiser, donna… se você contentar-se apenas em olhar, pois não poderei ser seu par.
— Oh! Eu também não sei dançar!
Na verdade, Geórgia já participara de algumas festas no salão paroquial de Duncton, onde, como filha do vigário, não podia recusar nenhum convite. Mas as modestas instalações de Sussex não se comparavam ao luxo daquele salão com piso de mármore rosa e imensos candelabros de cristal refletindo seu brilho sobre os dançarinos.
Renzo conduziu-a a uma das arcadas, que rodeavam todo o aposento e se abriam para o terraço, até uma mesa de onde podiam apreciar as belas mulheres e seus elegantes cavalheiros deslizando ao som de um excelente conjunto.
Geórgia sentia-se livre de todas as preocupações que a haviam atormentado por tantas semanas, e disposta a conversar com aquele homem cuja aparência exterior era de polidez e extrema firmeza.
— É como se o tempo tivesse parado durante o reinado de George V... Tenho a impressão de pertencer àquela época requintada e sem as pressões da vida moderna!
— Só que a música não é uma valsa. Estão tocando uma balada de Jerome Kern, um dos compositores mais populares que já houve!
— Você conhece muito sobre música, não?
— É a minha profissão, cara.
Ele desviou o olhar em busca de um garçom para pedir-lhe um conhaque e Geórgia admirou novamente o desembaraço e a perfeição do comportamento social de Renzo. Até mesmo a perna, seu único defeito visível, não destoava em seus modos elegantes.
Mas como teria ficado a perna depois do acidente em que os ossos se haviam quebrado? O cirurgião quisera amputá-la mas a mãe de Renzo não o permitira. Subitamente ela desejou saber mais sobre essa senhora corajosa que enfrentara uma luta árdua ao lado do filho até sua completa reabilitação. Seria viva ainda? Onde morava? Entretanto, se o marido não julgara necessário tocar nesse assunto, sua curiosidade poderia ser mal interpretada. A situação entre eles era tão delicada que ela deveria se ater apenas a temas neutros.
— Conhece esta música, Renzo?
— Chama-se Fine Romance, bem apropriada à nossa situação, não concorda?
— Bem, não sei...
— Então a minha puritana esposa não ouve nem rádio?
— Quase nunca… O nosso quebrou e meu pai sempre se esquecia de mandá-lo para o conserto.
— A letra é bastante significativa. Trata-se de um romance frustrado. Não há abraços ou beijos e o rapaz queixa-se de sua namorada, que permanece tão fria quanto uma manhã de inverno e é excitante como um jogo de gamão com sua tia solteirona de setenta anos. A moça não reage nem a carícias nem a provocações. Enfim... o romance não tem chance!
— Exatamente como o nosso?
—- Sem dúvida, cara!
O garçom aproximou-se para servir-lhes o conhaque e, tão logo a música recomeçou, um rapaz aproximou-se da mesa deles com um sorriso nos lábios.
— O senhor permitiria que eu dançasse com a jovem?
— Oh! Eu não sei dançar…
— É muito fácil, eu lhe ensino em dois minutos.
— Por que não tenta, Geórgia? — murmurou Renzo com um olhar irônico. — Aproveite a música, não vai querer ficar a noite toda sentada ao meu lado.
— Mas…
— Vamos! Eu não aceitarei uma negativa! O conjunto é excepcional e logo você estará deslizando nessa pista de mármore como se fosse uma bailarina — afirmou o rapaz segurando-a pela mão para ajudá-la a levantar-se.
— Tem certeza, Renzo? Eu... — Geórgia morria de vontade de dançar mas não lhe parecia justo abandonar o marido, que apenas não a acompanhava devido ao seu defeito.
Antes que Renzo pudesse responder, o jovem puxou-a em direção à pista com um ar satisfeito.
Geórgia deixou-se levar pela música. Sempre adorara dançar mas seus parceiros tinham sido conhecidos de longa data. Pessoas simples e sem malícia, que nunca a haviam apertado tanto em seus braços! Tímida e envergonhada, ela tentou afastar-se do corpo másculo que se colava ao seu.
— Ora, ora! Por que me disse que não sabia dançar? Você é esplêndida! Foi para não ferir os sentimentos de seu amigo? Eu os vi entrando no salão… ele usa uma bengala, não é?
— Sim... e ele não é meu amigo. Somos casados.
— O quê? Está brincando!
— E por que não?
— Bem, ele parece um pouco mais velho do que você, mas isso não seria nada de excepcional, porém… é um estrangeiro! Nota-se imediatamente que não é inglês e, além disso, não se comporta como um marido amoroso. Se fosse assim, não a teria deixado dançar comigo.
— Há muitos tipos de casamentos…
— Sem dúvida! — O rapaz fitou com arrogância as jóias de Geórgia e declarou num tom insolente: — Ele deve ser muito rico!
— Não me casei por dinheiro!
— Então qual foi o motivo tão fascinante que a levou a aceitar um homem com essa aparência autoritária?
— Você é curioso demais.
— Lógico que sim! Vejo sempre os seus retratos nas capas das revistas e mal pude acreditar nos meus olhos quando a reconheci no salão de jantar!
As palavras do rapaz provocaram um impacto tão grande em Geórgia que ela perdeu o ritmo.
— Desculpe-me, acho que pisei no seu pé.
— Não foi nada. Espere até eu contar aos meus amigos que dancei com Angélica Norman! Eles vão se morder de raiva! Acho que não vou mencionar o fato de você ter um marido…
Geórgia não se deu ao trabalho de explicar a verdade. O vestido sofisticado e as jóias valiosas aumentavam sua semelhança com a modelo famosa. Este fato a deprimia intensamente, pois provava que nem Renzo nem este rapaz a viam como uma mulher bonita ou com qualidades próprias. Ela não passava de um reflexo, uma sombra, uma cópia vulgar!
Mas os seus aborrecimentos ainda não haviam terminado. Com um sorriso insultuoso, o rapaz aproximou ainda mais o rosto do seu.
— Tenho uma perguntinha bem íntima a fazer... É verdade que você apareceu num filme pornográfico? Um amigo meu jura tê-la visto e disse que nunca assistiu a cenas tão "quentes".
Por alguns segundos, Geórgia não absorveu a verdade. Subitamente, o significado daquele comentário a atingiu como uma bofetada! À sua volta, o salão e as luzes começaram a girar com uma velocidade incrível e, involuntariamente, ela agarrou-se ao ombro de seu par a fim de não cair.
O jovem, convencido e arrogante, interpretou a pressão das mãos de Geórgia como um convite e a apertou mais contra si, colando o rosto ao dela.
Esse tipo de intimidade provocou uma sensação de repulsa violenta em Geórgia. Empurrando-o com violência, ela tentou recuperar uma aparência calma, mas o choque tinha sido grande demais. Gostaria de negar, de acusá-lo de mentiroso, mas, depois de ter lido as cartas da irmã, nada lhe parecia impossível! Já não tinha mais certeza de conhecer a verdadeira personalidade de Angélica, a mulher sem moral que se escondia atrás de uma fisionomia angelical e pura.
Nesse momento a música parou e ela sentiu um alívio enorme. Afastando-se de seu par, só queria fugir para algum lugar tranqüilo e recuperar-se da revelação chocante.
— Não vai dançar a próxima…
— Não! Eu…
— Ah! É esse o segredo que está escondendo de seu "maridinho" milionário? Ele não sabe nada sobre os filmes de décima categoria em que você apareceu?
— Afaste-se de mim!
— Mesmo sem saber, ele deve estar se deliciando com sua experiência! Pelo que me disseram, você mostrou-se uma perita na arte de satisfazer um homem! Eu...
Geórgia não queria ouvir mais nada e saiu desesperada do salão à procura de Renzo.
Ela não poderia saber como seus olhos revelavam toda a angústia e o desamparo de encontrar-se sozinha, depois daquela cena desagradável. Mas uma senhora que a notara desde a hora do chá e sentara-se na mesa ao lado do casal durante o jantar aproximou-se dela com pena.
— Está procurando o seu marido, não é? Eu o vi entrar no salão de jogos…
— O-obrigada… por avisar-me.
— Não quer tomar um licor comigo? Minha amiga e eu também estamos no hotel, e como não gostamos de jogar…
— A senhora é muito gentil, mas estou um pouco cansada. Acho que vou deitar-me...
— Realmente sua aparência é de exaustão, querida. Com certeza foi por causa da viagem. Veio de muito longe, não é? Como seu marido parece italiano, eu julguei…
— Sim… foi a viagem… Boa noite!
Geórgia tinha certeza de que, quando a senhora se reunisse à sua amiga, as duas discutiriam com avidez o italiano distinto e sofisticado e sua esposa sem atrativos ou refinamento. Pois que falassem à vontade! Jamais chegariam nem perto da verdade trágica de seu casamento!
Havia um grupo de pessoas à espera do elevador e Geórgia correu até as escadas, incapaz de suportar por mais tempo os olhares curiosos e penalizados.
Só ao chegar ao refúgio tranqüilo do corredor deserto, lembrou-se de que não tinha a chave do quarto! Ficara com Renzo, e ele não teria coragem de entrar no salão de jogos.
Para seu alívio a porta abriu-se e a camareira saiu, dando-lhe um sorriso educado.
— Desculpe-me, madame. Eu não imaginava que a senhora fosse recolher-se tão cedo. O quarto já está pronto.
— Muito obrigada…
Geórgia fechou a porta atrás de si e acendeu os abajures e as velas da saleta para criar um ambiente acolhedor. Sentia-se enregelada e exausta como se estivesse no fim de suas forças. Todos os seus problemas pessoais haviam se desvanecido diante da baixeza do comportamento de Angélica.
Não podia ser verdade! Sua irmã jamais se rebaixaria a tal ponto… Como aceitar que a filha de um pai amoroso mas severo e rígido em seus princípios se sujeitaria a participar de filmes sórdidos, exibidos em festas exclusivamente masculinas para o deleite e a cobiça de um grupo de bêbados?
E se não fosse apenas uma invenção maldosa daquele rapaz insolente? Que tipo de mulher se despiria diante de uma câmera e praticaria atos além de sua imaginação com homens estranhos, apenas por dinheiro? questionou-se. 06/09/2006 06:58 Por mais reveladoras que fossem as cartas de Angélica, ela parecia estar sinceramente apaixonada por Stélvio Talmonte e as escrevera para serem lidas apenas por ele. Ninguém mais saberia dos detalhes íntimos descritos com minúcias por uma mulher perdida de amor! Mas os filmes seriam exibidos ao mundo!
Esgotada, Geórgia deitou-se no sofá para esperar por Renzo. Saberia ele dessas atividades degradantes de sua ex-noiva? Ela porém jamais teria coragem de denunciar a irmã e muito menos desencadear a fúria daquele homem de temperamento tempestuoso.
Talvez seu marido ficasse jogando até tarde da noite. Conhecia-o muito pouco para saber se casara ou não com um jogador.
Com as emoções descontroladas após um dia tão desgastante e cheio de tensão, Geórgia começou a rir histericamente.
Uma noite de núpcias inacreditável! Ela permanecia sozinha, às voltas com pensamentos torturantes sobre a mulher que a colocara naquela situação trágica… e seu marido de apenas dez horas jogava cartas com desconhecidos!
Muito ao longe, Geórgia ouviu o relógio bater dez horas antes de mergulhar num sono profundo.
Quando Renzo chegou, muito mais tarde, ficou imóvel um longo tempo diante da figura adormecida no sofá.
Tão parecida com um anjo mas no fundo feita do mesmo material que todas as outras mulheres: fácil de ser corrompida pelo dinheiro, luxo ou prazer!
Duraria muito pouco tempo esse ar etéreo de flor pura e inocente. Logo a ambição transformaria os traços doces numa máscara dura e implacável!
Nenhuma mulher merecia um amor verdadeiro…
Renzo lembrava como se fosse ontem o dia em que conhecera Angélica…
Entre a multidão agitada e ruidosa que sempre circulava nos ambientes boêmios, festas, estréias de filmes ou peças, lançamentos de discos, reuniam-se as mesmas mulheres: maquiadas com perfeição, cobertas de jóias e vestidas na última moda! Entre tantas figuras sem brilho ou frescor, ele divisou uma jovem cujas feições doces o faziam lembrar de uma madona de Boticelli!
Desembaraçada e até mesmo ousada em público, ela comportava-se como uma namorada meiga e afetuosa na intimidade. Recusava-se terminantemente a permitir carícias mais sensuais, alegando que precisava ter certeza de ter encontrado o amor verdadeiro.
— Meu comportamento social é ditado pelas obrigações da minha profissão, querido. Onde já se viu uma manequim tímida e envergonhada? Mas não passa de uma encenação sem a qual eu perderia meu emprego. Quando estamos a sós tudo muda: posso ser eu mesma, uma jovem criada na casa paroquial, para quem os hábitos desta cidade depravada são chocantes.
Encantado por ter encontrado a personificação de seu ideal feminino, ele a cobriu de presentes caros, sempre surpreendendo-se com o ar quase relutante de Angélica ao recebê-los.
— Não há necessidade de gastar tanto dinheiro comigo… Eu me contentaria com uma flor!
Apesar de não ser uma italiana, a jovem trouxe-lhe à mente imagens do amanhecer nos campos da Toscania. Cabelos dourados como o trigo, olhos azuis como o céu puro da manhã e um frescor inexistente nas fisionomias gastas pêlos prazeres excessivos da vida londrina.
Ele se considerava um homem cínico, incapaz de se envolver por ardis femininos, mas todas as barreiras que erguera em torno de si ruíram facilmente.
Com uma capacidade digna de uma grande atriz, Angélica mostrou-se tímida, recatada e ao mesmo tempo brilhante e sedutora. Todos os homens a desejavam mas ela não escolhia nenhum. Afirmava com convicção que estava se guardando para um grande amor.
"Não vou mentir e dizer que sou virgem, amor. Houve um único homem em minha vida e eu julguei estar perdidamente apaixonada. Deixei-me levar por juras falsas e perdi o que tinha de mais precioso, minha pureza", Renzo relembrava.
Até hoje ele não saberia dizer quando ou como percebera um brilho de ambição naquele olhar aparentemente tão puro. Mas, aos poucos, pequenos descuidos foram revelando uma alma não tão doce quanto seria de se esperar.
Talvez tivesse sido logo após pedi-la em casamento, quando pudera pela primeira vez tocar o corpo que o enlouquecia há meses!
No instante em que Angélica abriu a caixinha de veludo negro onde rebrilhava um brilhante quadrado, que a maioria das mulheres só via nas vitrinas das joalherias, ela mudou. A recusa categórica de ceder aos avanços amorosos dos namorados caíram por terra diante de um "noivo".
E a mulher inexperiente que se entregara a um único homem revelou-se uma amante sensual e sem qualquer vestígio de timidez.
O abandono às suas carícias foi tão grande que ele, embora fascinado e preso pelo prazer provocado por Angélica, sentiu a primeira dúvida.
Torturado pela incerteza, observava cada sorriso e cada gesto daquela mulher que tinha o dom de conquistar os homens. E dia a dia suas suspeitas se avolumavam.
À medida que Angélica sentia-se mais segura em relação ao casamento, cada dia mais próximo, sua doçura se transformava em ambição e sua pureza se esvaía como fumaça.
Em muito pouco tempo já não mais existia a jovem que o atraíra por sua personalidade íntegra, mas ainda o prendia a mulher sensual inigualável nos momentos de prazer.
O golpe final naquele romance nascido com base em mentira e dissimulação ocorrera na ocasião da visita a Florença. Renzo queria apresentar sua noiva à mãe e nessa ocasião Angélica conheceu Stélvio.
O irmão caçula, apesar de não ter ainda uma situação tão sólida quanto a sua, impressionou-a muito mais. Com um palazzo em Roma — que não lhe pertencia — e todos os privilégios de um título de nobreza, era o alvo ideal para as ambições de Angélica.
E aquela jovem adormecida no sofá, com os cabelos louros formando um halo dourado como o dos anjos barrocos…também não permaneceria pura!
Ele se encarregaria de transformá-la, a faria igual a todas as mulheres, uma cópia da irmã. Só que jamais a deixaria livre!
Os raios do sol forte atravessaram as venezianas do terraço e acordaram Geórgia, que logo se assustou por estar num quarto estranho. Imóvel, ela tentou localizar-se, como quem sai de um sonho agitado e não sabe onde está. Ela adormecera no sofá da saleta. Como acordara na cama?
Sua mente começou a clarear e ela percebeu, atônita, que estava nua! Alguém a despira antes de cobri-la com o lençol! Suas roupas jaziam espalhadas sobre uma das cadeiras; o vestido, o sutiã, as meias…Só uma pessoa poderia ter sido tão ousada: Renzo Talmonte!
Como em resposta a seus pensamentos, a figura alta e atlética surgiu à porta do quarto. Um estranho atraente mas ameaçador e com todos os direitos de vir até sua cama sem sequer pedir licença!
— Buongiornol Não vou lhe perguntar se dormiu bem, donna, porque já sei que repousou bastante. Quando voltei para o quarto ontem, perto das duas horas da manhã, você dormia como uma pedra e nem percebeu que eu a carreguei para a cama.
— Oh! Então foi você quem…
— Quem mais poderia ter sido? E não me olhe com esse ar de ofendida… Se na minha idade eu não conhecesse de sobra o mistério das formas de um corpo feminino, seria bem estranho, não acha? Sua expressão dá a entender que você tem algo a esconder, algum defeito terrível…
— Devia ter-me acordado… — O rubor cobriu o rosto de Geórgia, embaraçando-a ainda mais.
— Seria um crime despertar um anjo adormecido. Além disso, não sou tão incapaz quanto pensa, tenho perfeitas condições de carregar uma mulher, ainda mais sendo leve como você.
— Eu sei. Nunca me passou pela cabeça. Devo ter adormecido enquanto a camareira arrumava o quarto. Foi ela quem abriu a porta para mim. Uma senhora avisou-me que você tinha ido para a sala de jogos e eu não quis perturbá-lo. Dormiu na saleta?
— Sabe muito bem que sim! Não foi assim que combinamos durante o jantar de ontem? Ou imaginou que eu iria aproveitar-me da pureza de seu sono? Não sou um adolescente desesperado por sexo nem estou tão ávido assim por seu corpo, embora poucas vezes tenha visto um tão perfeito.
Geórgia desviou o olhar, embaraçada. As palavras de Renzo despertavam-lhe imagens perturbadoras. Aquelas mãos morenas, de dedos longos e fortes, tinham retirado a sua roupa, até mesmo as peças mais íntimas. O sangue correu-lhe agitado nas veias, deixando-a desnorteada. Tinham sido gestos de um amante…
Ele percebeu o embaraço da jovem e sentiu uma onda de desejo. Quando vira a pele alva como a neve, lembrara-se de uma deusa nórdica… Seria Geórgia tão fria quanto as geleiras do norte ou cálida como o sol que banha de ouro as planícies da Itália? Só poderia sabê-lo de uma única maneira…
Geórgia não esperava o movimento de Renzo, que, aproximando-se da cama, inclinou-se e tomou-lhe a boca de maneira possessiva. Por mais que sua mente a avisasse para interromper aquele beijo, ela não reagiu. Uma carícia suave, com a ponta da língua, tentava entreabrir-lhe os lábios.
Invadida por uma onda de calor, ela permitiu a entrada da língua morna e úmida, numa exploração sensual dos recônditos misteriosos de sua boca. Tentou ainda protestar, mas o beijo aprofundou-se, excitante, e Renzo empurrou sua cabeça de encontro ao travesseiro e puxou os lençóis de cetim.
— Lindos… seios feitos de alabastro... — murmurou ele baixinho, antes de circundar um dos mamilos excitados com os lábios ávidos.
Uma sensação estranha e desconhecida crescia no âmago de seu ser, e Geórgia, embora amedrontada, permitiu que Renzo cobrisse de beijos os seios palpitantes.
Perplexo pelo prazer — que o deixava descontrolado como nunca — de tocar o corpo delicado e inexperiente de Geórgia, ele deslizou a mão sob o lençol e acariciou as pernas esguias, em busca da parte mais secreta de uma mulher.
O coração de Geórgia quase parou ao perceber que os dedos forte a tocavam com tal ousadia, numa intimidade jamais imaginada por ela. O choque foi ainda mais brutal por que, ao mesmo tempo em que se revoltava, desejava entregar-se à onda de prazer que a arrastava.
Nesse instante, batidas à porta quebraram o feitiço que a envolvera e Geórgia cobriu-se, envergonhada de sua atitude.
— Deve ser o camareiro trazendo o nosso café da manhã. Pedi para que o servissem no terraço, já que o dia está lindo.
— Irei daqui a pouco… Gostaria de tomar um banho antes.
— Esteja à vontade, cara — Renzo sorriu com malícia e abriu a porta que dava para o enorme terraço.
Mais uma vez Geórgia surpreendeu-se com a elasticidade de Renzo em caminhar sem a ajuda da bengala, que ele jamais dispensava em público, quase como se fosse um complemento de seu vestuário elegante e clássico. No entanto, quando a deixava de lado, parecia muito mais jovem e flexível e notava-se claramente a força física e a intensa masculinidade daquele homem atraente.
Um pensamento proibido cruzou a mente de Geórgia por uma fração de segundos. Angélica não só agira mal ao traí-lo mas também demonstrava ser muito tola em desprezar um homem por quem todas as mulheres lutariam para obter atenções!
Mas ela não queria vê-lo assim, precisava continuar a odiá-lo ou se envolveria numa situação trágica. Renzo amava sua irmã e jamais sentiria nada pela jovem sem atrativos ou qualquer refinamento. Além disso, não estava gostando nenhum pouco das reações que ele lhe provocava, obrigando-a a enfrentar aspectos desconhecidos de sua personalidade.
Enrolando-se no lençol, Geórgia entrou no banheiro e ficou alguns minutos admirando o luxo daquela peça, tão diferente de tudo a que estava acostumada.
Paredes cobertas de espelhos, mármores e toalhas felpudas com o monograma do hotel bordado em dourado convidavam a permanecer um longo tempo na banheira, ao lado da qual havia toda espécie de xampus e sais de banho.
Ela passara anos usando um banheiro rústico em que a água jamais ficava realmente quente e onde as frestas da porta permitiam a passagem de correntes de vento gélidas. Ou a pessoa se enxugava com toda a rapidez possível ou morria congelada! Os planos para reformá-lo eram sempre adiados, pois o dinheiro nunca sobrava para luxos. Apesar de dizer que ganhava fortunas posando como modelo, Angélica vivia pedindo quantias exorbitantes ao pai que preferia morrer a negar qualquer desejo da filha adorada.
Além disso, o reverendo Norman acreditava piamente na teoria de que o ser humano devia aprender a viver sem luxos desnecessários! Nunca lhe passara pela cabeça que a visão do que é supérfluo ou não variava de pessoa para pessoa!
Ao enxugar-se com a aveludada toalha do Duke’s, Geórgia sentia pela primeira vez o conforto e o prazer proporcionados por certos detalhes que tornavam a vida mais agradável.
Aliás, seu pai se chocaria com tudo que a rodeava! O vestido de cambraia semitransparente, de alças final e saia esvoaçante, causaria um ataque de fúria no reverendo, acostumado a vê-la sempre coberta dos pés à cabeça com camisas fechadas e saias austeras.
Até ela estava se sentido ousada demais com aqueles trajes modernos, muito mais adequados a Angélica, que mostrava seu corpo sem qualquer pudor. Precisou forçar-se a ir vestida daquela maneira para o terraço, onde Renzo a esperava.
Sempre cortês, ele levantou-se para recebê-la e mostrou em seu olhar toda a admiração que aquela visão primaveril lhe causava.
— Você está encantadora, donna. Depois de tomarmos o café, gostaria de mostrar-me as belezas de Sandbourne?
— Seria ótimo! Numa manhã ensolarada como esta, o ideal é caminhar sem destino…
— Se puder suportar a lentidão que o defeito em minha perna irá causar…
— O problema de sua perna não me perturba absolutamente, Renzo.
— Não mesmo? Ontem você deixou bem claro que se importava e muito!
— Você interpretou dessa forma as minhas palavras?
— Não devia tê-lo feito?
— Ah! Eu jamais usaria o seu defeito para atingi-lo. Não ouviu comentário algum da minha parte sobre sua perna e tudo o que eu disse foi provocado por sua atitude…
— …amorosa? Sua mente puritana revoltou-se contra intimidades, tão banais entre marido e mulher, mas que em nossa situação considera imorais e pecaminosas?
Geórgia tentou manter uma aparência de calma, pois fora profundamente atingida pela capacidade de Renzo em analisar seus receios mais profundos. Não devia apenas ao fato de ter sido criada na casa paroquial ter se tornado uma pessoa idealista. Provavelmente tinha crescido com idéias elevadas sobre os seres humanos mas, a cada dia, as pessoas mais próximas a ela vinham mostrando suas fraquezas. Sempre reconhecera falhas na personalidade de Angélica, pequenos defeitos que o encanto e a vivacidade da irmã ajudavam a desculpar. Todos desconheciam a verdadeira mulher oculta atrás da máscara brilhante e sedutora!
E Renzo? Conheceria todas as atividades de Angélica?, pensou. Sem dúvida, seria um golpe brutal ao seu orgulho se algum dia visse os filmes onde ela se entregava a todo tipo de atividades sexuais com homens desconhecidos.
Como sempre Renzo parecia ler seus pensamentos.
— Gostou de seu companheiro de ontem, Geórgia?
— Bem… não muito.
— Por acaso ele tentou conquistá-la?
— De certo modo...
— Só há uma maneira de seduzir mulheres, cara.
— Ele… O rapaz julgou que eu fosse Angélica.
— Santo Dio! Há uma certa semelhança, principalmente quando você usa maquilagem e vestidos luxuosos, mas não é possível confundi-las. Aborreceu-se com esse mal-entendido? Esclareceu o engano?
— Não… não disse nada. Que diferença faria?
— Você não se importa que a tomem por sua irmã? Não acredito!
— Achei que seria perda de tempo e de esforço! Pouco me importa o que aquele idiota pense ou não! Detesto esse tipo de rapaz, com todo refinamento resultante da educação primorosa de uma escola particular, mas que no fundo tem uma mente suja!
— Céus! Você tem opiniões bem definidas sobre esse assunto, não?
— Minhas críticas não foram causadas por ter sido confundida com Angélica. Sempre julguei que nossas escolas particulares, acessíveis apenas a quem tem muito dinheiro, produzem um tipo de esnobe sem qualquer qualidade positiva. Eles não se dedicam aos estudos, mas o fato de terem pertencido a uma escola de prestígio os faz pensar que são donos do mundo.
— Então não se divertiu ontem à noite… Julguei que apreciasse mais a companhia de um jovem inglês, criado com os mesmos hábitos que os seus, às minhas atitudes de estrangeiro!
— Ele se mostrou extremamente enfadonho — concluiu Geórgia, concentrando-se no farto desjejum à sua frente. Em hipótese alguma iria revelar a Renzo que sua opinião sobre o rapaz tinha se deteriorado ainda mais quando o ouvira mencionar um aspecto revoltante da vida de Angélica.
Mas o olhar de Renzo não se afastava dela, fazendo-a perder o apetite.
— Seu país é estranho para um italiano acostumado a um clima estável e ensolarado. Aqui o tempo me surpreende constantemente. Cinzento e úmido num dia e cheio de sol no outro! Aliás, não é apenas o tempo que revela uma instabilidade imprevisível… As mulheres também!
Se Renzo não conseguia prever as suas atitudes, não era o único! Ela também já não tinha mais controle sobre suas reações, agindo como uma mulher desconhecida, aos poucos perdendo a força do ódio que a consumira para ceder a sentimentos estranhos e… perigosos demais!
A proximidade daquele homem a perturbava e Geórgia levantou-se da mesinha de junco onde fora colocado o café. Apoiando os braços no parapeito de pedra do terraço, deliciou-se com a vista dos jardins do hotel.
A enorme piscina reluzia como uma safira ao sol da manhã, entre gramados extremamente bem cuidados e canteiros de flores.
— O terraço é enorme!
— Você tinha toda razão ao sugerir que viéssemos passar nossa lua-de-mel em Sandbourne.
Como a vida dá voltas e cria situações inacreditáveis! Geórgia jamais poderia imaginar que seu sonho infantil de conhecer o Duke's se tornaria realidade. As risadas alegres vindas da piscina, o sol aquecendo as pedras do parapeito e o homem alto que se levantava da mesa e vinha postar-se ao seu lado eram a sua vida agora!
O aroma másculo do perfume de Renzo já se tornara tão familiar quanto as nuances daquela voz grave, ora revelando ódio e desprezo, ora murmurando sensualmente.
— Gostaria de ir à piscina, cara? Eu prefiro nadar no mar, mas se você quiser... — Ao perceber o ar de surpresa dela, continuou com a voz amarga: — Pareço assim tão incapaz?
— De maneira alguma! Eu apenas ia…
— Fique sabendo que na água eu sou tão normal quanto qualquer outro homem!
— Meu Deus, Renzo! Você tem um complexo profundo a respeito de sua perna, não? No entanto, eu duvido que tenha deixado de fazer esportes ou qualquer atividade que lhe desse prazer. Continua a andar a cavalo?
— Tenho dois puros-sangues num estábulo em Londres. Você também morre de medo de montar, como Angélica?
— Não… eu gosto muito. Estou começando a ficar cansada com essa insistência em me compararem com ela! Sinto-me como se fosse apenas uma sombra e não uma pessoa com gostos próprios, medos e ousadias apenas minhas. Desejaria muito…
— Não ser irmã de Angélica?
— Exatamente! Tenho a impressão de estar vivendo a vida dela. Há uma falsidade em nosso casamento que nada poderá sanar: sou uma substituta da estrela da peça!
— Você é a signora Talmonte! E ela... o que é? A amante daquele idiota do meu irmão, que, como a maioria dos homens, voltará humilde e arrependido para os braços da esposa tão logo a excitação da novidade esmorecer. E isso fatalmente acontecerá, sabe? Romances furtivos têm tendência de perder muito rapidamente o encanto… Além disso, Stélvio é um católico fervoroso e sua consciência culpada o levará em primeiro lugar a um padre. Vai sentir um impulso irresistível de pedir perdão pelo mal que causou e, quando receber a absolvição, correrá de volta à família.
— E acha que a esposa o aceitará?
— Mônica continua apaixonada por aquele patife! As mulheres italianas são muito compreensivas e amorosas, sabem perdoar os maus passos de seus maridos. Talvez porque eles sempre voltem para casa arrependidos!
— Mas foi sua cunhada quem lhe mostrou as cartas do marido, não?
— Ah! Mônica o fez apenas porque estava tomada pelo ódio e sofrendo demais… Você também não se sentiria revoltada numa situação semelhante? Bem, se amasse seu esposo tanto quanto ela ama Stélvio, é claro.
— Tenho a impressão de que você acha absolutamente normal a mulher aceitar de volta o homem infiel. No entanto, recusa-se a desculpar Angélica, não é? Por que essa discriminação?
— A mulher recebeu o dom divino de gerar filhos e, como tal, deve preservar-se. Foi colocada numa categoria especial como criadora de novas vidas. Quando ela se entrega a um relacionamento ilícito é o mesmo que… atirar pedras numa igreja!
O tom violento das palavras de Renzo fez com que Geórgia o fitasse e ela surpreendeu-se ao ver a máscara de ódio transfigurando aquelas feições geralmente frias e controladas.
— Angélica… ifiore delia morte.
— Você… e-está desejando a morte dela?
— Disse apenas que ela me faz lembrar das flores brancas que nós colocamos sobre os mortos na Itália. Mas pode considerá-la morta para mim!
Geórgia recuou diante da intensidade dos sentimentos de Renzo. Sua vida no pacato vilarejo de Duncton não a preparara para encontrar pessoas que colocavam tanta emoção em suas reações.
No verdejante vale do Sussex, os dias corriam tranqüilos e só tempestades que arruinavam a colheita ou uma vaca que perdia seu bezerrinho alteravam o ritmo dolente e sem excitações da vida campestre.
Ou será que ela teria vivido isolada do mundo real entre as roseiras e os velhos muros de pedra da casa paroquial? Procurara não ver a verdade nas pessoas que a rodeavam, todas extasiadas com os triunfos de Angélica, como se as imperfeições de um caráter cheio de falhas as deixassem mais à vontade com os seus próprios defeitos?, refletiu.
Porque nem todo o brilho e vivacidade de sua irmã seriam capazes de ocultar seu egoísmo se alguém quisesse realmente vê-la com olhos críticos!
Pela primeira vez na vida, Geórgia perguntou a si mesma se teria, ainda que sem sabê-lo, se ressentido com a popularidade da irmã. Tentou lembrar-se de alguma vez em que a tivesse olhado sem sentir-se fascinada e envolvida pelo encanto irresistível. Não havia ninguém que escapasse ao fascínio daqueles olhos sedutores, à magia do sorriso envolvente… e Renzo também não tivera forças para resistir! Só agora, traído e humilhado, ele a via como uma mulher falsa e sem princípios, mas no início fora conquistado como todos os outros.
Mesmo assim, era difícil acreditar que ele desejasse a morte de uma criatura tão cheia de entusiasmo e alegria.
A tarde de verão em que Angélica trouxera seu noivo até Duncton ficara gravada na mente de Geórgia com uma nitidez surpreendente. Como uma bela pintura, impossível de se esquecer, ela lembrava a chegada do casal atraente e sofisticado, que tornara a sala sem luxos da casa paroquial ainda mais deprimente em sua rusticidade.
Angélica era a essência da formosura feminina inglesa: pele alva, faces rosadas, olhos muito azuis e uma gloriosa cabeleira dourada. E Renzo… parecia um herói romano, cujos olhos verdes lembravam as águas do Mediterrâneo.
Apenas um detalhe quebrava a perfeição daquele quadro: o defeito de Renzo, que o fazia mancar levemente, era uma afronta à obsessão de Angélica pela perfeição física.
Talvez naquele dia Geórgia vira nascer um pensamento reprovável a respeito da irmã, e uma reação instintiva e pouco louvável a fizera desconfiar das intenções verdadeiras de Angélica. A sensação desagradável de não confiar numa pessoa capaz de colocar a satisfação de seus desejos acima da felicidade dos outros, sem importar-se em ferir ou não a quem a rodeava, foi prontamente abafada pelo amor fraternal.
A amargura profunda de Renzo só podia resultar de um amor não correspondido e igualmente profundo pela fidanzata, muito mais fascinada com o magnífico brilhante cintilando em sua mão do que com o noivo.
Nos poucos momentos em que as duas irmãs ficaram a sós no quarto, ocupado por elas desde a infância, Angélica estendeu a mão fina e bem tratada, mostrando o símbolo concreto de sua vitória.
— Já viu algo mais fabuloso? Esta pedra custa milhões e milhões! Mas Renzo é milionário, um gasto desses nem o afeta! E sua família tem um título de nobreza na Itália. Me aborrece bastante o fato de ele não usá-lo aqui na Inglaterra. Eu adoraria ser a Condessa Talmonte!
— Só há um aspecto importante, mana. Você o ama?
— Ai! Para você é apenas o amor que conta, não? Nunca me apaixonaria do mesmo modo que minha romântica irmãzinha!
— O que quer dizer com isso, Angélica?
— Bem…quando você der seu amor a um homem, se entregará de corpo e alma. Esse tipo de paixão absoluta já está fora de moda, sabia? Hoje em dia, uma mulher precisa ser, antes de tudo, prática. Na minha profissão, é importante garantir o futuro enquanto se está no auge, e eu pretendo viver com muito... muito luxo!
— O seu noivo me pareceu sinceramente apaixonado por você… Isso não a perturba?
— Espero mesmo que ele esteja loucamente preso aos meus encantos! —exclamou Angélica, sorrindo, sem deixar de se olhar no espelho nem por um minuto, como fizera desde que tinham entrado no quarto. — Se você soubesse como me esforcei para levá-lo a pedir-me em casamento! Foi uma luta dura mas venci! Se não fosse aquela perna defeituosa, ele seria perfeito… Sei que é um homem atraente e que todas as mulheres dariam alguns anos de sua vida para tê-lo como amante, porém ainda não me conformei com a impossibilidade de fazê-lo submeter-se a uma operação. Renzo insiste que nada recuperará a flexibilidade do joelho, no entanto para quem tem tanto dinheiro nada é impossível.
— Eu nem notei que ele tinha algum defeito...
— Na certa ficou encantada com aqueles olhos verdes e não viu mais nada, não é?
Geórgia lembrava de cada palavra dita entre as paredes do quarto gracioso, onde nada fora mudado desde que Angélica partira para Londres. Até mesmo a cama da irmã, com a delicada colcha de babados, permanecera intocada, sempre à espera de uma visita nos fins de semana.
Infelizmente, a jovem modelo tornara-se logo um sucesso e não tinha tempo para visitar a família num lugar tão pacato como Duncton. Compromissos importantes impediam sua vinda; não podia perder contatos valiosos para subir mais em sua carreira. Só quando decidiu casar-se, trouxe o noivo para conhecê-los, mais uma obrigação do que uma visita causada por saudades do pai ou da irmã.
Logo depois da partida dos dois, no reluzente carro de Renzo, Geórgia foi ao encontro do pai, sentado na sala de visitas às escuras. Ela sabia o quanto ele devia estar sofrendo por ver sua filha predileta prestes a casar-se e a abandonar o lar definitivamente.
Solícita, ela preparou um chá e sentou-se ao lado do reverendo, tentando mostrar-se o mais à vontade possível.
— O que achou da grande novidade, papai?
— Meu único desejo na vida é ver Angélica feliz. Quero apenas que ela consiga realizar todos os seus sonhos de garota romântica. Se para isso minha filha adorada precisa casar-se com um… italiano, aceito de bom grado. Pelo menos escolheu um cavalheiro, um homem fino e educado.
Como o reverendo Norman mudara sua opinião a respeito de Renzo! No dia em que Geórgia deixara a casa paroquial para tornar-se uma noiva… de "segunda mão", ouvira palavras terríveis. O distinto cavalheiro transformou-se num crápula, um oportunista sem escrúpulos, que, além de roubar-lhe a filha destinada a cuidar de seus anos de velhice, iria magoar a adorada Angélica!
Durante a viagem de trem até Londres, a chuva tornava a paisagem cinzenta e hostil, ecoando os pensamentos depressivos de Geórgia, que só via diante de seus olhos a fisionomia amarga e desdenhosa do pai.
Angélica não tinha o dom de trazer alegria, como todos julgavam, e sim de ferir sem remorsos!
Geórgia estremeceu ao se lembrar de sua partida de Duncton, e Renzo, julgando-a com frio colocou o braço sobre os ombros frágeis.
— Seu vestido é muito leve… Não acha melhor pegar um agasalho?
— Não, não é frio, eu estava apenas pensando…
— Sobre o quê?
— Não consegue adivinhar? Você é um perito em ler meus pensamentos!
— Já sei! Acha que deveria ser Angélica a partilhar comigo estes momentos, não é?
— Exatamente!
— Já lhe disse, vezes sem conta, mas você parece não ter compreendido bem, Geórgia! Ela não tem mais lugar em minha vida! Pode se humilhar, ficar de joelhos implorando para voltar... Eu não a aceitaria em hipótese alguma. É um caso terminado e enterrado para sempre!
— Eu tenho minhas dúvidas…
A mão no ombro de Geórgia parecia queimar e a fisionomia de Renzo transformou-se numa máscara de ódio, ameaçadora e dura. Era a imagem da desigualdade de força entre o homem e a mulher, uma força intensificada pela súbita onda de fúria.
— Como ousa duvidar de minhas decisões? Mal me conhece e não tem a menor noção do comportamento masculino. Quem é você senão uma ingênua, criada entre as quatro paredes de uma casa paroquial, que nem mesmo sabe beijar?
Com um gesto quase brutal, Renzo apertou-a de encontro ao seu peito musculoso, apoderando-se dos lábios macios e inexperientes. Era um beijo nascido do ódio, selvagem e possessivo, obrigando-a a ceder à invasão de sua boca.
Geórgia tentou ainda escapar daquele domínio contra o qual não tinha forças para lutar. Ele perdera a noção de tudo e só queria obrigá-la a se submeter.
— Eu devia tê-la possuído ontem à noite em vez de aceitar seus planos sem sentido. Quem sabe teria agora em meus braços uma verdadeira mulher, uma donna sensual e ardente, e não uma pedra de gelo! Vou acabar de uma vez por todas com a puritana e frígida filha do pastor!
Entre palavras cruéis, Renzo continuava a beijá-la, a cada momento com mais ousadia. Os lábios ávidos desceram do pescoço esguio para os ombros descobertos em busca das curvas semi-ocultas pelo decote. Arrebatado por um desejo onde não existia amor, ele desnudou-lhe os seios e mergulhou o rosto no vale macio e muito alvo.
Subitamente, Renzo afastou-se e fitou a jovem de olhos arregalados e boca tremula. Controlando-se com dificuldade, desviou o olhar do corpo delicado que ele quisera tomar com violência.
— A lição foi suficiente, cara? Trate de vestir-se ou os hospedes do terraço vizinho terão a visão inesquecível de seus seios marcados pela paixão dos meus beijos. Eles nunca acreditariam que um corpo tão sensual jamais foi tocado antes!
Geórgia não se movia, ainda em choque diante daquela atitude dominadora. Não podia nem mesmo protestar, pois ele agira apenas como um marido diante de uma esposa relutante. E aquela onda de sensualidade não a deixara incólume: sentira-se arrastada por emoções novas e extremamente perturbadoras.
Enquanto Renzo, segurando-lhe a mão, conduzia-a através da suíte em direção aos elevadores, ela pensava naquelas palavras ditas num momento de fúria. Seria mesmo frígida e puritana? Sem dúvida estava sendo comparada com Angélica, ardente e voluptuosa. Teria sido assim que ele a beijava? Mas com sua irmã Renzo fora impulsionado pelo desejo e não pelo ódio intenso de encontrar apenas a cópia esmaecida de seu amor.
Geórgia chegou até o saguão como se estivesse num sonho confuso. Nada lhe parecia real a não ser a pressão dos lábios rijos sobre os seus, o corpo atlético colando-se às suas curvas… A exuberante senhora que na noite anterior a avisara do paradeiro de seu marido aproximou-se sorridente, trazendo-a bruscamente de volta à realidade.
— Preciso apresentar-me a vocês. Sou a sra. Cartwright e fico feliz por encontrar um casal tão distinto entre nós, aqui no Duke's. Por sorte, este é um dos únicos hotéis na Inglaterra onde podemos conviver apenas com pessoas de nossa classe social! Aliás, ele mantém o mesmo padrão luxuoso desde a época em que vim pela primeira vez em lua-de-mel com meu finado esposo, e jamais deixei de voltar todos os anos! Ah! Encontrei sua jovem esposa ontem à noite… Ela lhe contou, não? A pobrezinha parecia completamente desorientada por não saber onde achá-lo e eu me encarreguei de informá-la sobre sua ida ao salão de jogos. Ela estava quase chorando…
— Muito obrigada, senhora. Foi muito gentil de sua parte ajudá-la. Como pode notar, eu não danço, mas achei um desperdício privar minha esposa de divertir-se um pouco.
— Ah! Sua queridinha é muito tímida, signore. Ela dançou apenas uma música e saiu do salão, ansiosa, à sua procura. Sem dúvida, prefere a sua companhia a qualquer outra. Eu também era assim quando recém-casada!
Geórgia enrubesceu ante aquelas palavras ditas em voz tão alta que todas as pessoas do saguão não poderiam deixar de ouvir.
— Não se preocupe, querida! Não contarei a ninguém que vocês estão em lua-de-mel. Lembro-me muito bem de como eu ficava embaraçada diante dos olhares curiosos dos outros hóspedes. As pessoas são tão intrometidas, não é verdade?
— Incrivelmente, senhora… Por favor, desculpe-nos mas estamos de saída para um passeio. Ë minha primeira visita a Sandbourne e estou bastante ansioso por caminhar à beira-mar.
— Oh! Não deveria ir a pé! Há carruagens cômodas e muito pitorescas à disposição dos turistas. Precisa poupar sua perna… Eu também tenho um problema de coluna; sei como são exaustivas longas caminhadas quando se tem um defeito. 06/09/2006 21:28 Geórgia queria morrer diante da insensibilidade grosseira daquela mulher, mas Renzo aceitou o comentário sem o menor constrangimento. E, com sua polidez característica, despediu-se rapidamente, afastando-se do saguão em direção aos jardins.
— Você precisa aprender a não se ferir com insignificâncias, cara. Damas da idade da sra. Cartwright se julgam no direito de tomarem atitudes de intimidade.
— Ela nos observou desde que chegamos e… eu não estava quase chorando, foi um exagero!
— Que pena! Começava a sentir-me envaidecido. Por um minuto, acreditei que minha esposa tinha se desapontado porque não fiquei admirando sua "evolução" na pista de danças!
— Foi você quem insistiu para que eu dançasse! Na verdade, preferia ficar apenas apreciando o baile e, se você queria tanto ir jogar, não precisava ter usado um pretexto tão tolo! Bastava ter-me dito, não tenho a menor intenção de me pôr no seu caminho!
— Não seja petulante só porque ficou embaraçada com as insinuações da sra. Cartwright. Por que se aborrecer por todos saberem que você é recém-casada e está em viagem de núpcias? Qual o problema de imaginarem que nos amamos a todo momento? Não é isso que fazem os casais em lua-de-mel? Ou é o fato de pensar em intimidades conjugais que lhe causa repulsa?
— É isso mesmo! Sabendo o que eu sei…
— E o que julga saber? — perguntou Renzo, lutando para manter a calma. — Vamos deixar esta explicação para mais tarde, cara. Agora quero aproveitar a manhã sem lamúrias ou queixas amargas!
Geórgia não respondeu, fascinada com a família que passava diante deles numa carruagem. Duas meninas, excitadas com o passeio, riam felizes. Ah! Como seria bom poder fechar os olhos e voltar àquela época despreocupada, ser outra vez a criança inconsciente dos problemas que a vida adulta traz!
— Para que lado gostaria de ir, Renzo? À esquerda fica o centro da cidade e, à direita, Ocean Head, a parte mais agreste de Sandbourne.
— Então vamos para onde não haja essa multidão de turistas com máquinas fotográficas e sorrisos embevecidos!
— Temos que chegar até a praia e... a escada é íngreme…
— Posso muito bem descê-la sem causar um espetáculo ridículo em público!
— E eu... É muito difícil para mim saber o que você pode ou não fazer… Você já está acostumado!
— E você logo se acostumará, cara! Em muito pouco tempo, acredite!
Renzo desceu a escadaria íngreme com muito menos dificuldade do que se poderia imaginar e, juntos, os dois atravessaram um trecho de praia para alcançar o atalho que os levaria ao Ocean Head, a ponta de pedras mais afastada do movimento.
Um grupo de rapazes disputava uma partida de vôlei. Ao notarem a aproximação do casal, pararam de jogar para admirar com insolência a jovem loira.
— Quem é a boneca?
— Bem que você gostaria de saber, não?
— Ela é um pedaço de mulher!
Geórgia enrubesceu e olhou para Renzo, a fim de certificar-se de sua reação. Ele porém permanecia impassível, como se não tivesse ouvido nada!
Sem dúvida, os rapazes a estavam apontando como sendo a modelo que participara de filmes pornográficos! Muito em breve esse rumor se espalharia pêlos hóspedes do hotel e ela seria criticada em voz baixa! E um silêncio profundo se faria cada vez que eles entrassem em qualquer local público!
As mulheres se entreolhariam e, com sorrisos maliciosos, comentariam que seu ar inocente nunca as convencera. E os homens teriam no olhar a insolência de seu parceiro de dança! Quando conseguiria apagar a sombra funesta de Angélica Norman?, pensou, angustiada.
Aquele lugar agreste, onde o mar chocava-se contra as rochas num duelo eterno, despertava-lhe tantas lembranças! Gostaria de partilhar com Renzo recordações agradáveis de sua infância, mas, ao tocar no passado, colocaria entre eles a imagem da irmã! Ela era um fantasma constante a destruir os momentos presentes...
Sempre em silêncio, alcançaram um bosque de pinheiros à beira das rochas pré-históricas onde as gaivotas pousavam, enchendo o ar com seus gritos estridentes.
Geórgia sentia ainda mais a força da personalidade de Renzo quando ele permanecia calado, talvez pensando em Angélica. Era preciso encontrar um assunto que excluísse sua presença indesejável.
— Um lugar bonito como este não o inspira a criar novas músicas, Renzo?
— Estou realmente surpreso com essa beleza primitiva. Não imaginava que houvesse, numa cidade tão freqüentada por turistas, um refúgio ainda intocado pela mão destrutiva dos homens!
— Poucos se aventuram até aqui... A maioria prefere a agitação dos bares e teatros.
— Ë o paraíso da sua infância, não? Você se recorda de dias dourados com um céu azul sem nuvens… uma criança livre e sem visões de um futuro complexo. Sem preocupações ou tristezas, aproveitando apenas o escoar de minutos de sonho.
— Quando fala assim, eu compreendo a sua vocação de compositor. Há sensibilidade nas palavras como também na melodia.
— Você gosta de música, Geórgia?
— Muito!
— Deixe-me adivinhar… Prefere, acima de tudo, o tema de amor de Romeu e Julieta, melodias irlandesas tocadas por harpas românticas…
— Se está querendo me colocar na categoria de jovem sentimental, esqueceu-se de Chopin!
— Ah! É lógico! O Sétimo Prelúdio quando seu estado de espírito é de alegria e o Segundo Noturno nos momentos de enlevo.
— Nunca houve tempo para momentos românticos…
— Mas agora tem todo o tempo do mundo, cara. Renzo parou de caminhar e encostou-se numa pedra, à espera da resposta de Geórgia.
As gaivotas já haviam partido em revoada e reinava o silêncio, rompido apenas pelo estourar das ondas. Os pinheiros filtravam os raios do sol que formavam manchas douradas na relva macia.
Geórgia também parou, inquieta. As palavras dele pareciam ter um significado oculto e vagamente assustador. O rosto de traços firmes e fascinantes não demonstrava nenhuma emoção mas os olhos, de um verde intenso, a fitavam como se quisessem hipnotizá-la.
Renzo cerrou os punhos, exasperado. Aquela jovem tremula e ingênua não era Angélica, mas ele não conseguia abafar o desejo que sentia de apoderar-se de tanta pureza. O sol transformava os cabelos loiros numa cascata de ouro reluzente e a brisa, agitando o tecido fino do vestido, moldava as curvas perfeitas.
— Está em suas mãos transformar uma farsa em uma relação satisfatória, donna.
— Mas… nós já decidimos sobre isso ontem à noite… durante o jantar, não foi?
— Sei muito bem sobre o que discutimos ontem! Mas hoje é outro dia e, depois de pensar muito sobre nossas resoluções, cheguei à conclusão de que não seria possível. Um homem e uma mulher jamais conseguiriam viver numa mesma casa, ignorando a atração inevitável do sexo. Somos apenas seres humanos. Talvez fosse melhor iniciarmos um relacionamento conjugal normal! Uma longa espera poderá trazer resultados bastante desagradáveis para você, cara. Concorda?
Ela continuava tentando decifrar as intenções de Renzo. Olhou-o sem saber o que responder.
— Santo Dio! Você não pode ser ingênua a esse ponto!
Num relance, voltou-lhe à mente a cena de momentos atrás, no terraço junto ao quarto. Renzo a tinha beijado com ardor e a proximidade dos corpos revelara a força do desejo do homem que a prendera em seus braços. Ele não dissera claramente, mas queria avisá-la de um lado seu sobre o qual não tinha controle e, por mais inocente que fosse, não devia ignorar.
Havia se comportado com muita ingenuidade ao acreditar que poderiam discutir racionalmente as correntes subterrâneas dos impulsos sexuais masculinos à mesa do jantar. Tinha sido uma tola em imaginar que um homem tão viril quanto Renzo fosse aceitar que vivessem como frades num convento!
O olhar, a cada instante mais sensual, percorrendo seu corpo, fez Geórgia estremecer. Imagens que ela sempre abafara vieram à tona. Quais seriam as sensações causadas pelo corpo de um homem sobre o seu? Como reagiria à invasão de sua intimidade, oferecendo sem obstáculos a visão de sua nudez? Teria as mesmas emoções arrebatadoras e apaixonadas que seu amante?, questionou-se.
Envergonhada, Geórgia desviou o olhar antes que Renzo pudesse ler seus pensamentos. Ele conhecia, através da experiência, o que existia apenas em sua imaginação. Não podia saber dos terrores profundos de uma jovem que nem ao menos tinha sido beijada até a noite anterior.
Renzo Talmonte fora apresentado a ela como noivo de Angélica e jamais imaginara nada além de um beijo na mão, pois seria vergonhoso alimentar fantasias eróticas com seu futuro cunhado.
No entanto, Geórgia nunca pensara em homem algum em termos de intimidades físicas, e, quando Renzo a beijara, tinha despertado um lado desconhecido de sua personalidade.
Havia terrores… tantos! O maior deles era ser tomada como se fosse outra mulher; por isso queria ser o mais diferente possível de Angélica. Onde sua irmã se mostrara sensual e ardente, ela precisava ser fria e distante. Mas, ao ser envolvida pêlos braços daquele homem, Geórgia sentia desaparecer a sua própria identidade. Quando ele a tocava com dedos mágicos, conseguia transformá-la, moldando-a na imagem da qual queria fugir!
No momento em que se deixasse possuir, teria se igualado a Angélica!
— Olhe para mim, Geórgia.
Mas ela não podia encará-lo. Em seu rosto estariam claros tomo a luz do sol todo o seu dilema, suas incertezas… Levantando-lhe o queixo com os dedos, Renzo obrigou-a a fitá-lo. A pressão aumentava enquanto ele tocava com o polegar o lábio inferior tremulo e rosado.
— Vou lhe perguntar mais uma vez e peço que olhe bem para dentro de si mesma e responda apenas a verdade. O fato de pensar em intimidades conjugais causa-lhe repulsa ou esse sentimento existe só em relação a mim?
— E-eu… não sei!
— Precisa saber! O meu toque deve causar alguma reação. Repulsa, desejo, raiva? O que sente?
— Não posso deixar de pensar que é Angélica quem você deseja, é ela quem está beijando, acariciando... não eu! Recuso-me a ser usada como uma substituta!
— Dio! Voltamos a este assunto irritante. Já cansei de discuti-lo!
O olhar de Renzo, cheio de desejo segundos atrás, mostrava-se agora duro, com um brilho quase selvagem. A expressão revelava os sentimentos controlados bem melhor do que palavras raivosas poderiam fazê-lo. Com um gesto brusco segurou o braço de Geórgia. Sentindo a resistência dela em aproximar-se, usou de força para prendê-la bem junto ao seu corpo.
— Esqueça de uma vez por todas a existência de sua irmã. Da minha parte, ela não existe mais. Faça o mesmo, Geórgia. Agora!
Numa carícia leve e sensual, ele beijou-lhe o queixo, e, sem pressa, circundou os lábios delicados com a ponta da língua, numa tentativa de penetrá-los.
— Abra a boca, donna… Entregue-se ao prazer de ser beijada como uma mulher...
Geórgia sentia as mãos percorrendo seu corpo, provocando-lhe arrepios de prazer, e, incapaz de resistir, obedeceu-o. Uma sensação arrebatadora invadiu-a ao deixar que as línguas se tocassem, numa exploração íntima e sensual.
A virilidade agressiva de Renzo fazia com que ela perdesse o contato com a realidade. A pressão esmagadora da boca firme tornara-se menos violenta e mais sensualmente persuasiva.
Apenas semiconsciente, ela percebeu, sem poder reagir, que Renzo descobrira-lhe os seios. Sentiu os mamilos enrijecerem sob o toque ainda muito leve e desesperou-se ante a incapacidade de controlar as reações de seu corpo.
Embora soubesse que seu comportamento era o de uma mulher depravada e permissiva, permitiu que a boca de Renzo se apoderasse dos bicos rijos, soltando um gemido involuntário de prazer.
Sem pressa, ele a inclinou sobre a superfície cálida da rocha banhada pelo sol e, afastando o tecido diáfano do vestido, tocou as pernas esguias. Suas mãos exploravam a maciez das coxas, buscando a suavidade dos recantos mais secretos do frágil corpo de mulher.
Como uma folha girando ao vento, Geórgia estremeceu. Perdera algo tão importante quanto a sua virgindade: o seu amor-próprio!
Sem forças para voltar ao seu estado normal, deixava-se acariciar num lugar público, onde a qualquer momento alguém poderia surgir, presenciando aquela cena chocante! Entretanto, como evitar o fogo que ardia dentro dela, transformando-se em labaredas pelo simples contato daquele corpo rijo contra o seu? Músculos e toques tão diferentes e desconhecidos para ela atraíam-na de tal modo que liberavam uma paixão urgente, fazendo-a esquecer por momentos que ele destruíra a harmonia de sua família, arrasara a sua vida apenas para se vingar de Angélica!
Quando Renzo percebeu que a resistência às suas carícias desaparecia, dando lugar a uma vibração nascida do desejo, sentiu uma exultação intensa tomar conta dele.
Finalmente derrubara as barreiras erguidas em torno daquela jovem puritana e libertara a mulher ardente… idêntica à irmã! Iria destruir-lhe todos os ideais românticos, transformando-a numa presa fácil do delírio dos sentidos!
Por um instante, sentiu uma pontada de remorso diante do olhar meigo e confiante que o fitava cheio de desejo. Mas sua hesitação durou muito pouco. Deitou-se sobre ela, obrigando-a a admitir a força de seus desejos.
Um apelo mudo para que a poupasse dessa tortura não chegou aos lábios de Geórgia! Não podia sentir prazer nas mãos dele, precisava alimentar o ódio existente em seu coração…
Hesitante e tímida, ela segurou os ombros musculosos, sentindo-os ondularem sob o seu toque e, como se fosse afogar-se num mar de emoções, agarrou-se a Renzo, esquecida de tudo.
Sua vida até aquele momento deixara de existir; agora havia apenas o toque dos lábios ávidos, a carícia das mãos fortes e peritas a despertar-lhe desejos incontroláveis.
Acima de todos os sentimentos, estava a necessidade de pertencer àquele homem, a urgência de tornar-se mulher nos braços de Renzo… Jamais poderia ser indiferente ao toque erótico de seu marido!
Mas ele queria prolongar ao máximo o prazer de sua vingança!
— Percebeu agora a força dos desejos reprimidos por sua educação puritana, donna? Está pronta a libertar-se de preconceitos absurdos e partir para uma viagem ao mundo dos prazeres físicos? Só continuarei a tocá-la se me disser que está pronta a se entregar.
Geórgia acreditava no fundo de sua alma que o sexo era a união íntima de dois seres apaixonados mas, naquele momento, aceitaria submeter-se à vontade de um homem... Afinal existia um tênue laço ligando-os. O casamento!
Uma sensação de pânico incontrolável voltou a tomar conta de Geórgia no momento em que Renzo, trancando a porta, atravessou a saleta em direção às janelas. Apesar de ter se deixado levar pelo domínio dos sentidos há poucos instantes, a caminhada de volta ao hotel a ajudara a recuperar um estado de espírito mais racional e equilibrado. Era uma situação jamais enfrentada antes. Sentia-se indefesa sem saber como agir. Imóvel, esperava que Renzo desse o primeiro passo para ultrapassar o embaraço daquele momento tão difícil.
— Prefere que eu feche as cortinas, donna?
— Sim... é melhor.. .
O sol iluminava a saleta de ponta a ponta e o ritual que se desenvolveria naquele quarto pertencia à penumbra aveludada de desejos noturnos.
O brocado pesado transformou o ambiente num recanto de sombras suaves e Renzo, com uma lentidão exasperante, começou a acender as inúmeras velas dos candelabros de prata espalhados pelo recinto. Ao terminar, voltou-se e encarou a jovem que, como uma estátua, permanecia parada no centro da sala.
— Assim fica mais aconchegante e íntimo, não acha?
Geórgia não conseguia emitir um único som. Sua garganta parecia cerrada e ouvia apenas as batidas descompassadas do coração ao ver o brilho dos olhos dele. Uma nova mulher surgiria nos braços de Renzo!
Ela sabia que não havia amor: estava sendo dominada por desejos físicos, naturais e que haviam sido reprimidos por um tempo excessivo. Tornara-se uma pessoa apagada e sem vontade própria, ocupando-se apenas em servir ao pai. Abafara por completo o seu lado feminino, que ansiava por carinho e paixão.
Aproximando-se com cautela, como se Geórgia fosse um animalzinho assustado, Renzo segurou-a pela cintura e mergulhou o rosto na cabeleira dourada.
— Seus cabelos são como os trigais maduros sob o sol da minha terra… e macios como seda…
A voz suave e murmurante aplacou o intenso nervosismo de Geórgia, que se deixou levar pela gentileza do toque em seu rosto. Os lábios de Renzo deslizavam em suas faces, tão leves como o roçar das asas de uma borboleta. Não havia a exigência e o domínio dos beijos anteriores. Ele parecia apenas querê-la nos braços.
— Sua pele também é macia como seda, tão branca… Quero tocá-la sem pressa ou receio de que chegue alguém…
O momento de harmonia afetuosa fora rompido pela chegada do desejo físico que ela temia e, ao mesmo tempo, ansiava. E a perícia das mãos daquele homem, que já despira tantas mulheres, deixou-a nua antes de poder protestar.
Uma vergonha intensa invadiu-a ao perceber que seu corpo se revelava ao olhar ávido de Renzo, mal coberto por duas minúsculas peças de renda. No entanto, sentia-se incapaz de reagir, um calor espalhando-se em suas veias à medida que as mãos ardentes continuavam a fazer carícias ainda suaves.
Não havia como controlar o desejo febril que se apoderava dela e seus seios se intumesceram antes mesmo de serem tocados.
A luz das velas iluminava o corpo agora totalmente nu, transformando-o numa estátua de mármore, perfeita e imóvel. Nos olhos de Renzo, o fogo de um desejo ardente irradiava-se por toda a sua fisionomia.
— Você é a encarnação da primavera, donna. Cabelos como trigo maduro, seios como frutas firmes e prontos para serem colhidas e saboreadas . . .
E, como se quisesse provar a doçura de uma uva, Renzo tomou em seus lábios o mamilo rosado e latejante. Geórgia tremia ao ver desvendadas as partes de seu corpo secretas e sempre ocultas por roupas austeras. Apenas o espelho do banheiro tinha sido testemunha de sua feminilidade, e agora olhos semicerrados e cheios de prazer sensual deleitavam-se em vê-la e tocá-la.
— Meu desejo por você é tão grande que me faz agir de modo grosseiro…Uma noiva tem o privilégio de preparar-se, vestir a camisola escolhida com carinho para esse momento supremo… e eu me precipitei. Se não tivesse visto o temor em seus olhos, talvez a possuísse aqui mesmo na sala, e não seria correto. A noite de núpcias exige um ritual delicado, mesmo num casamento sem amor como o nosso.
Geórgia sentiu-se abandonada quando Renzo não mais a tocou e, com passos incertos, dirigiu-se ao quarto. Sobre a cama estava uma das inúmeras camisolas que ele lhe comprara e a que menos a atraía. Todas lhe pareciam ousadas demais mas aquela não passava de uma nuvem de gaze azul, onde a renda delicada deixava os seios quase totalmente à mostra. Seria o tipo de lingerie escolhida por Angélica e isso a desagradava demais.
Não! Recusava-se a pensar na presença incômoda e constante da irmã! Queria viver aquela noite como se fosse ela mesma quem Renzo desejava com loucura… e iria consegui-lo!
Mal terminara de vestir-se quando seu marido entrou no quarto com uma garrafa de champanhe. Ela não percebeu o tremor em suas mãos quando aceitou a taça de cristal com o líquido dourado.
Renzo lutou para controlar a surpresa brutal de ver Geórgia com aquela camisola azul. Como não percebera, ao comprá-la, o quanto era idêntica a uma de Angélica? Apenas o olhar tímido e a pose recatada diferiam aquela jovem sentada à cama da mulher sensual e vibrante que o enlouquecera de desejo.
— Faz parte do ritual celebrarmos com champanhe o momento de sua passagem de jovem virgem a mulher plenamente realizada…
Mas para ele o encanto se rompera! Tinha saído de sua mente a imagem da virgem frágil a quem deveria introduzir no prazer com delicadeza e paciência. Em seu lugar, surgira a sombra maléfica de uma mulher destrutiva.
Suas carícias já não mais se destinavam a excitá-la sem causar-lhe medo. Soltou as rédeas de sua paixão, uma torrente tempestuosa e sem retorno.
Retirando-lhe a taça das mãos, Renzo tomou posse dos lábios trêmulos, aumentando a intimidade de seu toque até forçá-la a entreabrir a boca delicada. A exploração sensual de sua língua desvendava todos os recantos, provocando-lhe chamas de um desejo incontrolável.
As mãos percorriam o corpo delicado como se tivessem vida própria, buscando cada centímetro da pele febril e despertando reações jamais imaginadas por Geórgia, que se entregava sem pensar em mais nada.
Só quando Renzo despiu o roupão e revelou sua beleza máscula, Geórgia voltou a si. De repente, todas as histórias sussurradas pelas mulheres, às quais não deveria estar ouvindo, voltaram à sua mente. Ameaçadores e apavorantes, vinham retalhos de comentários sobre esse momento crucial da vida de uma jovem: o sofrimento, a dor, a dominação! Incertezas e medos provocados por distorções da verdade e pelo desconhecimento do que a esperava a impeliram a fugir. Precisava escapar daquele tormento!
Virando-se bruscamente na cama, ela tentou alcançar o outro lado e sair para a saleta, mas Renzo segurou-a, alcançando apenas o tecido fino da camisola, que se rompeu em suas mãos.
Geórgia subestimará a agilidade daquele homem e, em uma fração de segundo, estava de volta à cama, sentindo o calor ardente do corpo musculoso colado ao seu.
— Fique calma, bambina. Você não passa de uma criança apavorada diante de algo que não conhece. Se soubesse o paraíso que a espera, não tentaria fugir e se jogaria em meus braços… — Ele tomou o seio rijo em suas mãos, acariciando-o com ardor. — Nada poderá evitar a realização dos meus desejos e…verá logo que serão também os seus!
Os dedos de Renzo percorriam o corpo de Geórgia, em busca da pele macia no interior das coxas e do recanto mais íntimo de uma mulher.
Ao sentir o corpo forte pressionando o seu, Geórgia foi invadida por um desejo enorme e desconhecido. Todo o pânico desapareceu para dar lugar a uma ânsia urgente de ser possuída. Os lábios úmidos e quentes sugavam o mamilo sensível e, quando ele começou a mordiscá-lo, Geórgia não pôde mais conter os gemidos de prazer. Seu corpo se arqueava de encontro ao dele, sentindo a virilidade possante tocar-lhe a coxa macia.
— Quer mesmo tornar-se minha, donna?
— Por favor, Renzo... Eu o desejo...
Renzo separou-lhe as pernas e musculosos, Geórgia deixou que ele a guiasse pelos caminhos do prazer. Lábios firmes abafaram seu grito de dor e braços fortes seguraram seu corpo, que se debatia em pânico. Mas, tão rapidamente quanto viera, a sensação brutal se transformou numa chama ardente.
Nada mais havia a não ser o domínio absoluto da paixão, o clamor de um desejo incontrolável, arrastando seu corpo para regiões desconhecidas onde reinavam a volúpia e o prazer.
Nada mais havia a não ser o homem viril e ardente, mãos e lábios de um fogo intenso, um amante que a tornara prisioneira da loucura dos sentidos.
A melodia suave das palavras murmuradas em italiano acompanhava os dois corpos unidos numa fusão completa. Momentos antes do êxtase, ele tomou o mamilo entre os lábios e, segurando-a com mais firmeza, mergulhou sem receios na maciez do corpo feminino, arrastando-os a uma explosão inesquecível de gozo!
Mesmo sem amor ou ternura, seus corpos se completavam com perfeição. Em movimentos harmônicos, pareciam alçar-se num vôo sem limites, num espaço único onde existiam apenas sensações partilhadas.
Geórgia movia-se num ritmo instintivo, inocente das artes do sexo, e, entre suspiros e gemidos de delírio, desejava viver o resto de seus dias envolvida pelos braços de Renzo, sentindo-o parte de seu corpo... ou então morrer!
— Você é linda… excitante, minha puritana sensual…
Toda a paixão reprimida durante anos de uma vida vazia e sem sonhos de realizar-se como mulher explodiu, apagando os limites entre a realidade e o sonho.
Numa melodia erótica suas vozes se mesclaram no momento de supremo prazer…
Um beijo muito suave secou-lhe as lágrimas de alegria… Geórgia não sabia se ria ou chorava diante da imensa descoberta do prazer. Ela se sentia uma mulher desconhecida, capaz de vibrar de paixão e de dar a mesma sensação indizível a um homem.
Renzo a tirara da enorme e velha cozinha da casa paroquial e a tornara mulher, mas não desnudara apenas o seu corpo. Sua alma também se entregara por completo. Um arrepio de medo percorreu-a: teria se apaixonado após alguns minutos de sexo? Ou seria ela tão puritana que não admitia um relacionamento sexual satisfatório sem haver amor?, questionou-se.
Ele sentiu o tremor do corpo em seus braços e procurou transmitir-lhe seu calor.
— Donna… donna bella, tão branca e tão suave! Seus lábios são vermelhos como os cravos das colinas da Florença, feitos para beijar, E não há estátua feminina cujo corpo se iguale ao seu. São todas de mármore frio e sua pele é cálida, sedosa como as pétalas de uma rosa.
— Você tem o dom da poesia, Renzo... Ou melhor da música das palavras…
— Talvez eu componha algum dia uma canção sobre uma virgem ardente como as chamas... — Ao vê-la enrubescer ele sorriu e, incapaz de manter as mãos longe do corpo fascinante, acariciou-a docemente. — Desculpe-me, Geórgia… Você é intensa, entrega-se por completo, não nega parte alguma de seu corpo ou de sua alma a seu amante; isso é muito raro. Descanse um pouco. Foi uma experiência desgastante, tenho certeza.
— Oh! Não, estou me sentindo tão bem…
Não era hora de pensar no que o futuro traria para eles! Geórgia deveria apenas desfrutar cada segundo daqueles dias dourados de sua lua-de-mel. Mesmo que fosse uma ilusão tênue e que seria facilmente arrasada, eterna apenas enquanto durasse. A sensação de euforia e satisfação lhe bastaria pelo momento presente. Depois…
As carícias de Renzo ainda em seu corpo tornavam-lhe difícil exprimir tudo o que sentia.
— Está muito quieta. Por acaso a magoei com a urgência de meu desejo?
— Não, estou feliz, realizada…
— Jamais senti tanto prazer ao possuir uma mulher como com você, donna. E agora tenho nos braços não mais uma jovenzinha ingênua, não é? Se eu pudesse dizer-lhe em italiano tudo o que penso, seria tão bom! É uma língua feita para os amantes, doce, sonora e… sensual. Mas, como você não me entenderia, tentarei explicar-lhe em seu próprio idioma… ou a embaraçarei?
— Talvez um pouco, mas não faz mal.
— Ótimo. Eu, como todos os homens latinos, aprecio seu comportamento refinado e discreto em público. Mas, na cama, desejo uma mulher ardente. Sua entrega, sem pudores ou reservas, foi...
— Por favor, Renzo. Ainda não consegui aceitar por completo meus... impulsos.
— Não há por que se envergonhar. Entre marido e mulher, nada é errado, proibido ou pecaminoso. Vamos provar esta teoria? Quero que você me conheça com tanta intimidade quanto eu a conheci… Não se acanhe, toque-me.
O corpo de um homem era ainda um mistério para Geórgia. Ângulos rijos, músculos… tudo a intimidava. Com dedos trêmulos e hesitantes, ela começou uma viagem a um mundo desconhecido. Tímida, fechou os olhos, temendo revelar o quanto desejava tocá-lo. Seria prova de que era uma mulher depravada? Ou Renzo estava certo dizendo que nada era errado ou proibido?, pensou.
Subitamente, uma imagem interpôs-se entre ela e o corpo moreno cuja pele tocava. Quantas vezes Renzo estivera nessa mesma situação com Angélica? Teria ela tocado a pele dourada com igual volúpia, ouvindo o murmúrio sempre crescente de prazer? Com os olhos cheios de lágrimas, Geórgia tentou afastar a visão da irmã naqueles momentos só seus. Era ela e não Angélica que estava nua ao lado daquele homem sensual, era ela a vibrar de prazer e gemer com as carícias enlouquecedoras. Aqueles dias seriam só seus!
Talvez Renzo tivesse aberto as cortinas enquanto ela dormia, pois o quarto resplandecia como se fosse de prata com o luar que entrava pelas portas do terraço.
Imóvel. Geórgia queria desfrutar a sensação de proteção por estar entre os braços do marido, cuja respiração indicava um sono profundo. Seus braços o rodeavam como se temesse que a ilusão de tê-lo dormindo ao seu lado pudesse se desvanecer. Um grande mistério fora revelado a ela naquela tarde de amor… Um mistério que tinha sido sufocado por anos e só existia nos livros lidos em horas roubadas de um horário rígido de trabalho. Como estava longe o vale de Duncton!
Ninguém mais do que ela se surpreenderia ao imaginar-se tão à vontade nos braços de um homem, partilhando seu corpo sem medo ou pudores. Tudo mudara em sua vida e a realidade agora era aquele quarto e não a serenidade distante de Sussex. Real e atraente era a cabeça pousada sobre seus seios, num sono plácido.
Renzo porém não dormia. Os acontecimentos daquela tarde o haviam perturbado de tal forma que não conseguia conciliar o sono.
Não estava em seus planos sentir tanto prazer na posse de Geórgia! Sua vingança se baseara num ato de degradação, onde a despojaria de sua inocência sem remorsos ou ternura. No entanto, a diferença entre o dia de hoje e o relacionamento com Angélica…
Sempre soubera que ela não era virgem mas aceitara sem hesitar a existência de um único homem antes dele. As negativas de Angélica diante de qualquer carícia mais ousada confirmavam a pureza de sua índole.
Quando ela finalmente cedera, agira como se fosse ainda uma garota inexperiente, mas com uma capacidade incrível de aprender!
Depois da noite em que ele a possuíra no tapete, diante da lareira de seu apartamento, foi tomado por uma obsessão inelutável. Queria-a a todo momento, vivia para os instantes em que estariam juntos, amando-se loucamente.
Cego, ele não percebera o desembaraço, a falta de recato de sua noiva, cuja peça única sobre o corpo escultural era o magnífico anel de noivado. E a cada dia ela se mostrava mais ousada e audaciosa em suas carícias.
Então houve a festa em que ele assistiu ao filme…
Uma onda de revolta cresceu dentro de Renzo e, ao ver o mamilo delicado de Geórgia próximo aos seus lábios, tomou-o com violência. Não tivera tanto trabalho em arquitetar um plano cuidadoso e cheio de detalhes para sentir ternura pela jovem que representava a sua vingança!
Suas mãos tocaram o corpo adormecido sem ternura, exigentes e ávidas. Não era Geórgia a mulher que ele arrastava em direção a um prazer intenso e primitivo, era Angélica!
Mal desperta de um sono feliz, de realização e sonhos de um amor apenas seu, ela sentiu a avidez do homem que a acariciava com urgência e possessividade.
Até então, as sombras das velas haviam ocultado a fisionomia de Renzo durante os momentos de paixão suprema. Agora, o luar muito claro revelava o corpo musculoso e um olhar cheio de um desejo selvagem.
Frio e determinado, ele a excitou de todas as maneiras, sempre mantendo-se distante e com um sorriso gélido nos lábios duros.
Geórgia, apesar de chocada com a atitude de Renzo, não conseguiu controlar suas reações de prazer e, envergonhada, seguiu-o na escalada de um desejo incontrolável!
Não era mais o seu marido, um músico sensível, um homem refinado do século vinte quem a tocava no leito conjugal… Um deus pagão, indomável como os elementos da natureza, levava-a a um mundo onde os desejos eram livres e primitivos, sem falsos pudores ou limites ditados pela sociedade.
Esgotada por orgasmos sucessivos, Geórgia estremeceu em pânico, ao perceber que Renzo ainda não terminara de despertar-lhe os sentidos.
Erguendo-a como se fosse uma pluma, ele a deitou sobre o peito amplo e musculoso e, segurando-lhe as nádegas macias com firmeza, mergulhou no calor daquele corpo feminino vibrante e receptivo.
Num bale erótico, eles ultrapassaram todos os limites da paixão, dissolvendo-se num êxtase tão profundo que os deixou surpresos e abalados.
Geórgia escondeu o rosto no peito de Renzo para ocultar a vergonha de ter-se entregado com tanto abandono. Jamais julgara que algum dia fosse deixar se levar por tanta sensualidade. E Renzo… sentiu-se ainda mais perdido! Não havia como identificar aquela jovem esposa, onde doçura e volúpia se mesclavam com harmonia, com a mulher de sensualidade sem disfarces cuja imagem ainda o torturava…
Com todo o cuidado para não acordá-lo, Geórgia saiu da cama e, sem acender as luzes, foi até o banheiro.
Sentia uma enorme timidez por estar nua e queria esconder seu corpo dos olhares ávidos de Renzo. Talvez ainda não tivesse se acostumado às intimidades do casamento ou... quem sabe seria mesmo uma puritana?
Ao olhar seu corpo no imenso espelho do banheiro, a pele muito alva cheia de marcas da paixão, ela sorriu. Como julgar-se puritana depois de ter partilhado momentos de um prazer sem limites?, refletiu.
Subitamente, ela viu refletida uma outra mulher no espelho. Os cabelos revoltos, as faces coradas e os olhos quase negros de paixão eram de Angélica…
Um frio intenso invadiu-a. Teria sido ela a quem Renzo amara com tanta loucura ou a sua irmã? Fora uma fantasia que acendera o fogo de um desejo infinito no corpo másculo de seu marido?
Seus olhos encheram-se de lágrimas. A consciência de que ela e sua irmã eram semelhantes em sua sensualidade à flor da pele a deprimia. Sabia que jamais voltaria a ser a mesma! A partir da experiência da tarde de amor tornara-se uma prisioneira do desejo, dependente das sensações vividas nos braços de Renzo Talmonte.
A jovem que entrou na saleta, com uma camisola branca e muito simples, os cabelos brilhantes e cuidadosamente escovados, mais parecia ter saído do dormitório de um colégio ou talvez de um convento. O rosto delicado em nada fazia lembrar a mulher sensual e ardente que estivera há poucas horas vibrando em seus braços.
Renzo sentiu, para grande surpresa sua, uma enorme satisfação por não ter conseguido destruir o ar inocente e puro de Geórgia. Embora não fosse esse o objetivo de seus planos, era-lhe muito agradável saber que aquela garota podia mudar tanto apenas com algumas carícias suas.
— Você parece uma menininha de quinze anos, jamais tocada por um homem, donna.
— E você lembra-me as estátuas gregas de deuses pagãos…
— Qual delas especificamente?
— A de Adonis…
— Ah! O deus do amor?
— Bem… pelo menos a divindade da arte de fazer amor.
— Você compreendeu finalmente que pode existir uma satisfação plena dos sentidos sem o que chama de amor? Sem arrependimentos, donna?
Geórgia apenas acenou afirmativamente, incapaz de confiar na firmeza de sua voz. Lembrar de suas ilusões românticas sobre a união de dois seres apaixonados destruiria o tênue laço que haviam conseguido estabelecer. Sua vida, presa a um casamento forçado, estendia-se diante dela sem possibilidades de fuga, e era melhor esquecer por completo as ilusões juvenis sobre o amor e se contentar com o único elo que os unia: uma sensualidade poderosa!
Tomando-a nos braços, Renzo tocou a pele alva exposta pelo modesto decote da camisola.
— Quero dar-lhe pérolas para brilharem sobre sua pele sedosa, rubis para mostrarem que seus lábios são ainda mais rubros. Diamantes são frios demais, não combinam com sua doçura, e safiras... há quem as julgue sinistras, de mau agouro. Não sei no que estava pensando quando lhe comprei o colar. Geórgia não tinha dúvida sobre em quem Renzo pensara ao escolher aquela jóia suntuosa e cara!
— Eu preferiria flores...
— Ah! Elas fenecem rapidamente e quero vê-la adornada com pérolas e rubis. Você é ainda mais bela do que eu imaginava.
— Oh! É apenas gratidão que o faz julgar-me bonita…
— O que quer dizer com... gratidão?
— Por hoje… pelos momentos que…
— Está insinuando que estou grato por você ter-se entregado a mim?
— É... eu... — O olhar sardônico de Renzo a fez enrubescer .
— Não sou um adolescente ávido que se sente privilegiado por receber os favores sexuais de uma mulher bonita!
— Oh! Sem dúvida você não é um garoto. É um homem viril e fascinante e eu é que estou grata por ter-me tornado uma mulher completa. Vivi tão longe de qualquer contato físico… Depois da morte de minha mãe, jamais soube o que é um abraço ou um carinho…
Houve um momento de profundo silêncio e então Renzo cobriu o rosto velado de tristeza com beijos delicados e cheios de ternura.
— Dio! Como conseguiu tornar-se uma mulher sensível e generosa tendo vivido numa casa tão fria e sem calor humano? Devia ter-se transformado numa criatura dura e não nessa jovem ardente e ao mesmo tempo doce que me enlouqueceu esta tarde! — Ele se afastou sorrindo com malícia. — Acho melhor eu tomar um banho gelado! Pedi o jantar e, se continuar a beijá-la, nem ouviremos as batidas à porta!
Sozinha na saleta, Geórgia desejou ardentemente que nada rompesse a magia daqueles momentos. Os laços muito frágeis que os uniam eram apenas desejo e volúpia, mas não queria vê-los se partirem. Renzo despertara nela sensações desconhecidas e não mais se sentiria feliz sem a presença viril e ardente ao seu lado todas as noites. No entanto, sabia o quanto esse relacionamento era instável e que muito pouco poderia destruí-lo. Ele mesmo afirmara que, tão logo o sabor da novidade se tornasse insípido, Stélvio se cansaria da amante…
Não! Ela não devia preocupar-se agora com problemas ainda pertencentes ao futuro! Para distrair sua mente agitada por pensamentos perturbadores, decidiu arrumar o quarto. Roupas jogadas pelo chão, cobertas amassadas, tudo ali lembrava as horas de prazer partilhadas com um amante, por mero acaso o seu marido!
Ao voltar para a sala, encontrou Renzo fechando a porta para o camareiro, que trouxera o jantar. Na mesinha em frente às portas do terraço, prata e cristais brilhavam à luz das velas.
— Pedi seus pratos prediletos... e champanhe rosé! Temos muito o que brindar, não acha?
— Sim... eu...
— Continua a mesma tímida donzela, donna? Aliás, notei que arrumou o quarto.
— Bem, estava tão desarrumado que mais parecia o desembarque da Normandia.
— Dio! O que sabe sobre essa batalha? Por certo ainda não tinha nascido e…
— Meu pai lutou na guerra. Embora o julgue uma espécie de monstro, lembro-me dele quando minha mãe ainda vivia… Era apaixonado pela esposa.
— Se ela se parecia com você…
— Era uma mulher em que as qualidades se igualavam à beleza. Alegre, doce e muito amorosa… Eles se amavam muito e meu pai jamais foi o mesmo depois de sua morte. Lembro-me de cada detalhe do enterro… Segurei-me com força no braço dele, temia que se jogasse sobre o caixão…
Geórgia calou-se, comovida demais para continuar. Além disso, não queria contar a Renzo que, no caminho de volta à casa paroquial, tinha sido em Angélica que seu pai se apoiara. Nunca tivera dúvidas sobre o fato de sua irmã ser a filha predileta. Aliás, sua tia Beatrice sempre dissera que Angélica dominaria qualquer homem com seu olhar, seu sorriso. E a essência da arte feminina de enfeitiçar corações!
— Não fique triste, Geórgia. Vamos pensar apenas em nós dois, é um privilégio dos recém-casados em lua-de-mel. Existimos apenas um para o outro…
— Você se sente feliz, Renzo? — murmurou Geórgia, em dúvida quanto aos verdadeiros sentimentos daquele homem que continuava a ser um desconhecido para ela.
Teria tocado seu coração ou os elogios e as atitudes ternas eram resultado do prazer que sentira ao possuí-la? Seria apenas o seu corpo que ele desejava, a excitação dos sentidos e nada mais?,perguntou-se.
— Sem dúvida, minha aparência é de um homem plenamente satisfeito, não acha? Se encontrarmos de novo aquela senhora intrometida, agora você terá motivos para enrubescer! — Renzo deu uma risada feliz ao ver o ar envergonhado da esposa. — Ela tinha toda razão ao elogiar o Duke’s. além do excelente serviço, a cama é uma das maiores em que já dormi, ou melhor, não dormi!
— Sei que me julga muito puritana por ter arrumado o quarto, mas não quis que a camareira visse a desordem e, imaginasse…
— …imaginasse cenas de paixão? Pois eu não ligo a mínima sobre comentários desse tipo! Aliás, vai ficar muito pouco tempo arrumado!
Geórgia baixou os olhos, tremula só em pensar na noite à espera deles. As sensações que Renzo despertava nela apenas com palavras ou olhares a deixavam cheia de expectativa.
— Você tem olhos imensos, donna… Lagos plácidos, mas muito profundos. Jamais encontrei tão belos…
Qualquer elogio à sua aparência trazia a presença indesejável de Angélica entre eles. Elas eram tão parecidas! Aflita, Geórgia procurou um assunto neutro.
A música! Esse era um tema seguro!, pensou.
— Você compõe o fundo musical de um filme depois de terminado ou trabalhado junto com Bruce… com o sr. Clayton, desde o início da filmagem?
— Chame-o de Bruce. Somos muito amigos e, afinal, foi ele quem a entregou a mim, não é?
— Eu gostaria de conversar sobre seu trabalho, Renzo, partilhar dos seus interesses e... — Ao ver a expressão do marido transformar-se numa máscara fria, ela se irritou. — Não quer que eu demonstre nenhum interesse em sua vida, só me quer partilhando sua cama?
— Existe lugar melhor para partilhar, donna?
Bem… a magia dos momentos de paixão terminara! Renzo tinha voltado a ser o homem duro e sem piedade que a obrigara a ceder sob ameaças. Sem esforço algum ele apagara as horas de prazer!
Como havia sido tola ao pensar que poderia ser mais do que uma simples companheira de cama! Seu marido não pretendia abrir-lhe as portas de sua intimidade. Apenas um homem apaixonado divide todos os problemas e alegrias com a mulher amada… Com aquela que lhe dá prazer, ele divide apenas sexo!
— Julguei que seria interessante termos assuntos comuns. Não é possível para um casal comunicar-se apenas no plano físico.
Por um longo tempo Renzo a fitou sem responder. Seu olhar tinha o mesmo brilho frio e cortante daquela tarde terrível em que lhe mostrara as cartas de Angélica. Mas então ele era um completo estranho, embora houvessem se tocado com tanta intimidade e paixão! Mesmo revoltada contra a sua fraqueza diante da atração física por um homem sem escrúpulos, ela o desejava com desespero, e só o seu orgulho a salvaria de humilhar-se diante dele.
— Como não respondeu à minha pergunta, devo deduzir que deseja de mim apenas esse tipo de comunicação. Uma ligação meramente física. Recusa-se a discutir sua carreira com… uma meretriz?
A palavra ofensiva ecoou no silêncio da sala até que Renzo, num gesto rápido, segurou-a pelos braços e a colocou de pé. Geórgia estremeceu, certa de que seria castigada por ter reagido com agressividade excessiva às atitudes de desprezo de seu marido.
— Como ousa falar assim? Julga que eu tolerarei tal insolência? Nunca em toda a sua vida você se dirigiu a alguém com tanta grosseria, portanto não tente fazê-lo comigo!
Como sempre, Geórgia subestimará a explosividade do temperamento latino. A fúria de Renzo era arrasadora e deixava-a indefesa e à mercê de um homem cujos limites da violência ela não conhecia.
— Grande Dio! Já não sei mais como tratá-la! Pelo jeito mentiu ao dizer que não havia se arrependido!
— Não, apenas acho que, se tivéssemos mantido a distância entre nós, eu não estaria forçando-o a partilhar algo mais de você do que apenas o desejo! Sou pouco sofisticada, vivi num mundo diferente do seu, Renzo... Ê difícil saber como agir num casamento tão… diferente quanto o nosso.
— E pensa que eu acho fácil? Há um ditado da minha terra que diz: "Quando cessam os beijos, começam as perguntas!" E não tenho intenções de perder um tempo precioso, que podemos utilizar de modo extremamente agradável, respondendo a perguntas!
Renzo levou-a até o sofá, afastando-se apenas para pegar duas taças de champanhe.
— Vamos, beba, a situação é realmente difícil para nós dois, mas conseguiremos superá-la, não é?
Na verdade, Geórgia não via saída alguma para aquele relacionamento. Sentia-se como a personagem de uma tragédia, sem futuro ou ilusões quanto à possibilidade de ser feliz algum dia. Se ela não tivesse ideais tão românticos, talvez conseguisse aceitar o fato de que Renzo desejava apenas o seu corpo e se sentisse feliz por haver ao menos esse ponto de contato entre eles. Todavia, sua imagem de um casamento incluía ternura, uma comunicação íntima e sincera de almas, não apenas um desejo incontrolável!
Perdida em seus pensamentos, ela estremeceu quando Renzo a puxou para mais perto. Com rapidez, ele abaixou a alça da camisola e expôs o seio amplo e palpitante. Tocando o mamilo rosado, que enrijeceu, sorriu vitorioso.
— Está vendo, querida? Seu corpo foi feito para ser acariciado… e não adianta afirmar que seus desejos não são tão ardentes quanto os meus! Tire essa camisola de freira! Quero ver a beleza de sua nudez…
— Afaste-se de mim! Não me toque!
— Ora! Voltou a ser a solteirona frígida? Não pense que vou aceitar a senhorita puritana depois que conheci a mulher ardente!
Geórgia sabia muito bem que Renzo seria capaz de obrigá-la a ceder e a possuiria com ódio, punindo-a através de seus desejos, e tentou explicar-se.
— Não quis ofendê-lo mas… você não me vê como uma pessoa!
— Dio! Esta tarde toda eu a tratei como o quê?
— Estou me referindo à maneira de me ver… fora da cama, Renzo! Só se preocupa com o exterior: meus seios, minha boca, com o que lhe dá prazer. Nem por um minuto pensou em mim como pessoa com sentimentos e idéias próprias!
— Muitas mulheres dariam alguns anos de sua vida para serem admiradas pela beleza de seu exterior apenas. Ou serem elogiadas por sua sensualidade e ardor… Mas você tem toda razão, Geórgia. Eu vejo apenas sua aparência, que me excita, e suas reações às minhas carícias, que me levam ao delírio. Nada mais quero de você! Entretanto, não irei implorar para que me permita tocá-la. Como minha esposa, estará à disposição de meus desejos e a terei quando, como e onde eu quiser. Entendeu bem?
— Independentemente dos meus desejos? Você seria capaz?
Como Geórgia gostaria de retirar aquelas palavras ditas num impulso! Era evidente que ele jamais iria pensar nos seus desejos. A harmonia que haviam encontrado na fusão de seus corpos, o êxtase intenso do ato sexual não mudaram em nada as intenções de Renzo. Continuava a ser para ele a irmã de Angélica, com quem ele se casara para vingar-se e para obter o mesmo prazer num corpo muito semelhante ao da mulher que o abandonara. Um ódio profundo contra aquele homem cruel cresceu em seu íntimo!
— Sofre-se apenas uma vez ao ser rejeitado por uma mulher... na primeira recusa! Aproveite o resto da noite em sua solidão pois eu vou à procura de companhias menos desagradáveis, minha cara esposa! Jogar cartas é mais satisfatório do que partilhar um quarto com uma… puritana amarga!
— Prefiro mesmo ficar livre da sua presença arrogante e grosseira! E pode ir jogar com o diabo! Eu o odeio!
— Bem… sinto-me muito mais tranqüilo por ter o seu ódio. O amor de uma Norman é muito mais perigoso e falso!
A porta bateu com estrondo e Geórgia sentiu que as lágrimas começavam a correr livremente em seu rosto. Renzo afirmara que amor e ódio eram inseparáveis e só agora ela percebia a verdade daquelas palavras. Duas emoções, como dois lados de uma moeda, tão imprevisíveis… ora uma, ora outra se revelava com violência, alternando-se num duelo destrutivo.
A beleza do luar atraiu Geórgia até o terraço e a paisagem prateada provocou-lhe uma angústia profunda. Estava sozinha, não apenas sem a presença física de Renzo, mas sem nada que o ligasse a ela.
"Sofre-se apenas uma vez ao ser rejeitado por uma mulher”… Geórgia não tinha dúvida alguma de que essa mulher não era ela.
No quarto, Renzo lutava para controlar o ódio que a rejeição de Geórgia despertara nele. Nem mesmo a traição de Angélica tocara-o tão fundo.
Aquela jovem doce e tímida se entregara a ele com tanta paixão e abandono que o abalara até o mais íntimo de sua alma. Tinha-a obrigado, através de chantagem, a casar-se com ele, haviam discutido com ódio e, no entanto, seus corpos atingiram uma harmonia muito rara.
Com Angélica, jamais desaparecera a sombra do outro homem a quem ela se entregara… Mesmo obcecado pelo corpo da modelo fascinante e sensual, sabia que algum dia haveria outro. Por esse motivo decidira casar-se; julgara que laços matrimoniais seriam fortes o suficiente para prendê-la ao seu lado.
No dia em que soube da fuga de Angélica com seu irmão, uma fúria intensa o levou a beber como jamais fizera antes. Os amigos de bar, desconhecidos até aquela ocasião, o convidaram para uma festa, e ele, como uma nau perdida na noite, aceitou.
Nada o preparara para a terrível revelação. Quando as luzes diminuíram e as imagens do filme surgiram na tela improvisada na sala, Renzo sentiu o mundo desabar à sua volta. A mulher que jurara ter pertencido a apenas um homem, a quem se entregara por amor, mostrava seu corpo nu diante dos olhos cobiçosos de todos, praticando atos vergonhosos frente a uma câmera! A habilidade de dar e receber prazer não fora tão instintiva e sim uma arte longamente apurada em muitas camas, em muitas noites de abandono nos braços de quem pudesse pagar o luxo de ter por algumas horas a fascinante Angélica Norman.
Ele tinha sido o tolo, o bem-intencionado namorado que esperara para possuí-la só após ter-lhe colocado um anel de noivado na mão delicada mas maculada por tantas carícias compradas!
Sua sede de vingança naquele instante atingiu limites absurdos. Hoje, já não mais sabia se os seus planos lhe trariam a satisfação almejada!
Antes de sair para o salão de jogos, Renzo foi até o terraço e colocou um casaco sobre os ombros de Geórgia.
— Está muito frio, cara… embora talvez o vento ajude a esfriar sua raiva! Você é bem temperamental, apesar da aparência doce, não? E não fique aqui fora a noite toda, sim?
— O que você tem a ver com isso?
— Céus, Geórgia! Como começamos essa briga absurda? Num minuto, a criatura doce e meiga tornou uma fera, afirmando ser a minha… meretriz!
— Talvez não seja exatamente esse o termo, mas sou algo desse tipo. O fato de termos estado diante de um padre não muda os motivos que nos levaram até o altar.
— Motivos? Se pensar bem, donna, só existe um! Você descobriu o prazer e vibrou cada minuto passado em meus braços. É um absurdo sentir-se culpada. Não tenho dúvida alguma de que sua reação desproporcional de momentos atrás foi provocada por um profundo sentimento de culpa. Somos marido e mulher e como tal não é pecado sentir desejo e entregar-se à paixão. Você é muito inocente para saber que a sua reação ao sexo é bastante rara. Muito poucas conseguem esse nível de satisfação na primeira experiência. Liberte o seu corpo, donna.
— Como você o faz, não é?
— Exatamente! Eu não tenho preconceitos puritanos. — Num gesto rápido, Renzo apoderou-se dos lábios frios de Geórgia, forçando-os a aceitar o seu domínio. — Ainda quer que eu vá jogar cartas com o diabo ou prefere passar o resto da noite fazendo amor comigo?
A palavra "amor" transformou-a numa estátua de gelo. Se houvesse um mínimo de afeição nos sentimentos daquele homem, e não apenas desejo, teria cedido sem hesitar, pois o desejava mais do que tudo. Entretanto, nem mesmo o desejo que o atormentava era provocado por ela. Renzo possuíra alguém que era o reflexo de Angélica!
Seria humilhante demais aceitar carícias que não lhe pertenciam, só porque ele lhe despertara uma onda avassaladora de desejos desconhecidos e irresistíveis.
Sua única resposta foi afastar-se bruscamente. Por alguns instantes, Renzo fitou-a com uma intensidade ameaçadora. Parecia estar em dúvida se aceitava sua recusa ou a forçava a aceitar suas intenções. Mas a máscara de impassibilidade não permitiu saber se ele sentia alívio ou pena por deixá-la a sós no terraço.
Por muito tempo, Geórgia permaneceu com os braços apoiados na balaustrada de pedra do terraço, revivendo os momentos que haviam mudado sua vida. Não havia dúvida alguma de que o desejava como jamais pensara ser possível. A lembrança das mãos morenas, tocando seu corpo com a mestria de um artista, deixava-a tremula e ansiosa por tê-lo ao seu lado novamente.
Como fora orgulhosa e tola ao recusar a oferta de paz! Mas, no fundo, sua recusa vinha da necessidade de mostrar-se o mais diferente possível de sua irmã. Queria que Renzo confiasse em sua capacidade de não ceder aos impulsos do corpo, entregando-se sem medir as conseqüências. Será que alguém, além dela mesma, entenderia suas atitudes?, pensou.
A música flutuava na noite, vinda do salão de baile. Uma melodia plangente trazia à tona todo o romantismo de uma jovem recém-casada…
Teria se apaixonado pelo marido ou apenas pelo prazer que ele lhe provocava? Sentia-se tão despreparada para julgar esse tipo de emoção!
No dia em que conhecera Renzo, tinha achado que ele era o homem mais atraente do mundo e, sem dúvida, o mais apaixonado… por sua fascinante irmã. O amor por Angélica estava gravado em cada traço daquele rosto aristocrático e jamais acreditaria que ele tivesse forças de recusar-se a aceitá-la de volta. Nem todos os juramentos do mundo a convenceriam de que Renzo fecharia todas as portas a Angélica. Ninguém consegue fugir da tirania de um amor profundo. Agora ela sabia quão fortes podiam ser os laços de uma emoção. Amor ou desejo, não importa qual deles fosse, mas o resultado seria o mesmo: uma prisão inescapável! Se o que sentia pelo marido era mesmo amor, estava cometendo um grande erro. Iria passar o resto de seus dias dominada por um terror infinito. A volta de Angélica ameaçaria sua vida pois, com um sorriso ou um olhar, faria qualquer homem esquecer-se de tudo para segui-la.
Talvez desde criança Geórgia já desconfiasse de que jamais escaparia da supremacia da irmã. Outrora, ela amara os pássaros que vinham comer as migalhas de pão no jardim das roseiras, e hoje transformara-se no pássaro que se contentava com as migalhas deixadas por Angélica.
Por mais que tentasse se convencer de sua capacidade em aceitar o amor de Renzo pela irmã, sofria ao pensar em como teria sido perfeita a união dos dois sem uma sombra a colocar-se entre eles.
Geórgia sabia ter qualidades mais louváveis, como constância, lealdade, meiguice… mas quem pode dominar os rumos de uma paixão? Ela não vê as virtudes e quase sempre pousa na árvore mais florida, porém incapaz de dar frutos, ou numa folhagem densa para evitar o frio do inverno. A única maneira de escapar aos pensamentos deprimentes que a impediam de raciocinar com coerência era tentar dormir, esquecendo-se de que estava sozinha.
Mas, no escuro do quarto, a cama lhe parecia um deserto imenso e frio sem a presença de Renzo. Como podia ter-se apegado em tão pouco tempo ao calor daquela pele bronzeada, do corpo rijo e musculoso junto ao seu?
Um desejo intenso de sentir-se envolvida pelos braços fortes que a levavam ao mundo indistinto das sensações a fez gemer de frustração. Ninguém tinha culpa a não ser ela própria! Por um orgulho idiota se privara de momentos sublimes e, se pudesse retirar suas palavras ofensivas, o faria de bom grado, em troca do prazer selvagem de ser amada por Renzo.
Embora muito raramente, na vida de Geórgia houve momentos em que pensou nas sensações do contato íntimo entre um homem e uma mulher. Evitava sempre demorar-se conjecturando sobre um assunto do qual jamais conheceria a verdade por experiência própria. Mas, mesmo em suas mais loucas fantasias, não chegara nem perto de sonhar com uma união tão profunda e sublime. Quando dois seres se tornavam um só, atingiam uma outra dimensão, alcançavam algo além do humano, talvez a fusão das almas ao atingir o êxtase do corpo.
Esse tipo de comunicação perfeita com Renzo valia todo e qualquer sacrifício. Se ela não vivesse cada minuto dessa lua-de-mel encantada com toda a intensidade, com certeza se arrependeria no futuro. Precisava desfrutar o dia de hoje; o amanhã era uma incógnita. Principalmente se Angélica voltasse para exigir o que lhe pertencia!
Na enorme cama vazia, Geórgia usou toda a força de seu pensamento para trazer Renzo de volta e, murmurando seu nome, adormeceu à espera de novos momentos de paixão.
Entrando silenciosamente no quarto, Renzo viu a figura adormecida, iluminada pelo luar que atravessava as cortinas entreabertas. Pôde observá-la em cada detalhe: um corpo delicado e ao mesmo tempo sensual em suas curvas perfeitas. A seda fina da camisola moldava os seios altos e as coxas esguias, e a cabeleira dourada espalhada no travesseiro lembrava-lhe um anjo adormecido.
Ele devia estar sofrendo de alucinações! Em sua mente se alternavam as imagens de uma mulher doce e sensível e as da criatura devassa e desleal. Mas, a cada hora que se passava, as diferenças se acentuavam e se sobressaía a meiga Geórgia.
No entanto, Angélica destruíra toda a sua fé nas mulheres, que já não era muito profunda. Sempre desconfiara das atitudes sedutoras mas fingidas, dos beijos ardentes mas falsos.
Tinha certeza de que, algum dia, sua esposa se mostraria tão facilmente corruptível quanto as outras.
Mas essa transformação degradante pertencia ao futuro. Nesse momento existia apenas um corpo cálido, uma boca rosada, todo um universo de delícias à sua espera.
Despindo-se rapidamente, Renzo deitou-se ao lado dela, sem no entanto acordá-la. Queria saber se sua presença apenas a tiraria do sono profundo!
Alguns segundos depois, Geórgia moveu-se inquieta, murmurando:
— Renzo! Você voltou?
— Sim, querida. Acordei-a?
— Não... eu o esperava. .. Renzo, eu... por favor, me ame...
As mãos quentes tocaram-na, retirando a camisola que o impedia de alcançar a pele ainda mais macia do que a seda.
Tomando os seios em suas mãos, ele ouviu o suspiro de prazer e aumentou a intensidade de seu toque até fazê-la gemer.
— Então, donna bella, agora me quer?
— Sim, eu fui muito orgulhosa. Você tinha razão quando me chamou de tola, eu o quero…
— Diga-me quanto.
— V-você sabe...
— Quero ouvi-la dizer.
— Com palavras?
— Ou gestos, donna...
— Você consegue ser cruel, não, Renzo? Eu era uma pessoa tranqüila e equilibrada até ser tocada e…
— Não fale mais, minha linda prisioneira, minha garota dourada, minha...
Os lábios de Renzo a excitavam com paixão crescente. Geórgia enterrou os dedos nos cabelos negros como a noite enquanto as chamas irradiadas pelas carícias transformavam seu sangue em lava ardente. Aos poucos, a suavidade se perdia e a língua dele percorria todos os recônditos de sua boca.
Subitamente, Renzo afastou-a e, levantando-se da cama, começou a acender os abajures espalhados pelo quarto. Uma luz coloriu o ambiente de tons rosados, dando ao corpo de Geórgia um brilho de madrepérola.
— Estou cansado de amá-la na penumbra, donna. Já não é mais a virgem apavorada que necessita de escuro para ocultar seus temores. Quero ver seu corpo e seus olhos brilhando de prazer.
O coração de Geórgia batia desordenadamente diante da onda de sensualidade que a envolvia. Quando Renzo iniciou uma lenta exploração erótica de seu corpo, ela gemeu e arqueou-se para a frente, com os seios palpitantes à altura dos lábios dele.
Renzo tomou o mamilo rosado com avidez, sugando-os até sentir que ela perdia o controle.
Numa busca apaixonada e mútua de sensações alucinantes, os corpos se moldaram, enlouquecidos de desejo. O ardor de Renzo contagiou-a, aumentando o prazer de oferecer a sua feminilidade com um abandono total.
Mas ele queria prolongar ao máximo aqueles momentos de volúpia, queria ouvi-la implorar pela posse. Buscando o recanto mais íntimo do corpo fremente, Renzo tocou-a e sentiu em suas mãos as vibrações descontroladas de Geórgia.
— Renzo…agora… não me faça esperar…
E então mergulhou no calor de seu corpo, que, como uma flor úmida de orvalho abrindo-se diante do calor do sol, o recebeu com um abandono ousado.
Numa ciranda alucinante, ela sentiu o desejo aumentar até um ponto jamais alcançado, e juntos mergulharam num êxtase quase insuportável de tanta intensidade.
Mas, mesmo durante os momentos de delírio, Geórgia não conseguiu esquecer que Renzo a chamara de "garota dourada", como todos se referiam a Angélica. Ela continuava em seus braços mas fora de seu coração, onde só havia lugar para uma mulher. Apesar de toda a dor e mágoa, sua irmã ainda dominava os sentimentos do homem que agora era seu marido.
— Renzo?
— Sim, bella?
— E se… eu ficar grávida? O que acontecerá?
— Ora! Os fatos habituais, creio eu: seus seios ficarão maiores, o ventre arredondado… você tem medo de engravidar?
— Não sei ainda…
— Bem, realmente devíamos ter tocado neste assunto antes. Foi muito egoísmo da minha parte não conversar com você… Céus, Geórgia, está tremendo como se estivesse com febre!
— Eu não estou, mas. .. não sei por que tremo tanto.
— Precisa tomar uma bebida forte, um conhaque.
Enquanto Renzo dirigiu-se à saleta, Geórgia tentou controlar-se, mas em vão. Sabia muito bem o porquê de sua reação violenta. Aqueles momentos de paixão alucinada seriam tão magníficos se fosse ela a mulher a quem Renzo possuíra! Mas ele usava o seu corpo pensando na "garota dourada", egoísta, desleal, traidora, mas sempre fascinante e sempre amada.
Depois de alguns goles de conhaque, Geórgia voltou à temperatura normal, pelo menos no exterior.
— Bella… você mesma disse que muita coisa mudou em sua vida em tão pouco tempo. Eu devia ter sido mais atencioso e menos ávido, deixando-a acostumar-se a tantas alterações. Tirei-a de um mundo calmo e sem agitação e joguei-a em meu ritmo de vida frenético. É mais do que natural a sua perturbação. Beba mais um pouco.
Como Renzo tinha razão! Jamais tivera em Duncton acontecimentos tão excitantes como os do dia que terminava agora. Se nem mesmo havia tido um namorado! Talvez fosse esse o momento de pedir-lhe para deixá-la voltar àquela vida pacata à qual estava acostumada. Mas, as palavras não vinham, já não mais havia a urgência de fugir para o refúgio seguro da casa paroquial. No lugar dessa necessidade, tinham surgido outras! Não seria mais possível para ela afastar-se de Renzo…ele se apoderara de seu corpo! As palavras de Angélica sobre a forma como ela amaria um homem voltaram à sua mente. Corpo e alma…
— Foi a primeira crise de nervos de toda a minha vida!
— Por excesso de novidades, desgaste e tensão... Não podia ter esquecido nossas diferenças de idade, experiência e temperamento.
— Já não importa mais.
— Não! Não devo perder de vista como tudo é novo para você e como é jovem!
— Não quero ser tratada como uma criança, Renzo!
— Seria uma criança precoce demais, não acha? Agora trate de dormir.
No escuro, Geórgia esperou que ele a tomasse nos braços para confortá-la. Mas os minutos passaram e Renzo não se moveu.
Ela permaneceu imóvel e angustiada, sem coragem de tomar a iniciativa de aconchegar-se. Sem dúvida, seu ataque de nervos, típico de uma virgem em pânico, o fizera perceber o quanto ela era diferente da auto-suficiente modelo que cruzava as passarelas partindo corações e destruindo casamentos sem perder o sorriso de felicidade!
Tarde demais, seu marido se lembrara de como as intimidades conjugais iriam perturbá-la. Agora ele a levara passo a passo até o mundo das sensações físicas, despertando-lhe desejos tão intensos que chegara a se humilhar, implorando para ser amada. Colocara nela sua marca e já não era mais dona de seu corpo.
Incapaz de conciliar o sono, Geórgia pensou na possibilidade de ter um filho de Renzo. O bebê se moveria em seu ventre, lembrando-a de que não estava mais sozinha, e logo teria nos braços um pequeno ser. Já não mais importaria então se Renzo a amava ou não. Seu filho a fitaria com os olhos cheios de amor, uma afeição sem motivos ocultos ou dúvidas. E, acima de tudo, ela teria dado ao marido algo que jamais receberia de Angélica.
Uma gravidez significava a deformação do corpo, enjôos constantes, pés inchados e sabe Deus quais outros sintomas desagradáveis. Sua vaidosa irmã sempre tivera idéias bem definidas a esse respeito! Completamente devotada à perfeição de suas formas, ela havia jurado jamais arriscar sua beleza pelo mero gosto de tornar-se mãe. Nunca se apaixonaria por homem algum a ponto de cometer a loucura de dar-lhe um filho!
Mas Geórgia sonhava em ter nos braços um bebê que representasse uma parcela de Renzo que seria realmente sua. Rememorando cada detalhe daquele dia dedicado ao amor, ela rezou para que já carregasse no ventre um filho dele…
Ao acordar na manhã seguinte, Geórgia estava sozinha e, depois de procurar Renzo por toda a suíte, decidiu vestir-se. Talvez ele tivesse resolvido tomar o café da manhã no salão.
O sol quente convidava a usar vestidos leves e diáfanos, e Geórgia escolheu um dos que ele mais gostava. Queria mostrar-se bela aos olhos de Renzo.
Depois de percorrer inúmeros salões e corredores infindáveis, ela começou a se preocupar. Onde estaria Renzo? Quando descobriu a sala de leituras, sentiu as esperanças renascerem. Sem dúvida, resolvera ler os jornais!
Entretanto, não havia ninguém no aposento bem decorado mas sombrio. Desanimada, resolveu voltar para o quarto e esperar.
No momento em que ia sair, viu sua passagem bloqueada pelo jovem com quem dançara na primeira noite passada no Duke’s.
Alô, boneca… Senti sua falta ontem no baile!
Geórgia tentou alcançar a porta mas ele a segurou pelo pulso.
— Tinha compromissos mais agradáveis.
— Compromissos consigo própria?
— O que o fez pensar que eu estava sozinha? Tenho um marido, sabia?
— E ele jogou cartas até tarde da noite. Eu o vi entrar no salão de jogos… mancando!
O tom de voz cheio de desprezo despertou a fúria de Geórgia.
— Meu marido é muito mais homem do que você jamais será. É mais fascinante dormindo do que você acordado, seu pirralho insolente.
Os olhos azuis muito claros revelaram o choque causado por aquelas palavras ofensivas. Ele não estava acostumado a ser contrariado e, rubro de ódio, empurrou-a de encontro a um vão escondido entre duas estantes.
— Vagabunda!
Geórgia sentiu uma onda de pânico envolvê-la. Não havia ninguém na sala e ele conseguira encurralá-la num canto onde quem entrasse não os veria. Sentiu as coxas musculosas sobre as suas e a revoltante evidência de um desejo voraz.
Lutou para fugir dos beijos úmidos sobre seus ombros enquanto ele a tocava ousadamente.
— Solte-me ou vou gritar por socorro!
— E alguém irá acreditar? Você não passa de uma prostituta que se despe diante de uma câmera e é possuída por um bando de homens, das maneiras mais aviltantes! Esse seu olhar inocente é uma farsa! Sua capacidade como a triz convence até o Papa!
Sem que ela soubesse como, o rapaz conseguiu agarrar um dos seios com sua mão rude. Com a outra, tentava descobrir-lhe as pernas.
— Que tal vir até meu quarto fazer uma demonstração de sua perícia em satisfazer um homem? Deve ter truques incríveis, próprios da sua profissão!
Desesperada, Geórgia ergueu o joelho com toda a força e atingiu-o no ponto mais vulnerável. Enquanto o rapaz se dobrava de dor ela fugiu do salão, desejando tê-lo incapacitado para sempre!
Correndo sem rumo, Geórgia encontrou uma saída para os jardins e para o sol. Sentia-se suja e corrompida pelo ataque à sua feminilidade. Até quando a sombra de Angélica iria destruir sua vida?, pensou angustiada.
Ao mesmo tempo, não conseguia parar de pensar nos atos cometidos por sua irmã, agora gravados num filme acessível a quem o quisesse ver! Por dinheiro, ela permitira intimidades que significam a expressão máxima do amor entre um homem e uma mulher.
Sem perceber a atenção que sua figura esguia e atraente despertava, ela seguia sem direção certa, cega a tudo. Não tinha meios de escapar a um destino cruel. A cada pequena alegria alcançada, surgiria uma evidência dolorosa do comportamento devasso de sua irmã.
Entre ela e o marido existiria sempre uma sombra, uma presença maligna da qual jamais conseguiriam se libertar.
Se ao menos Geórgia tivesse confiança em suas qualidades, talvez a figura de Angélica lhe parecesse menos ameaçadora. Mas vivera sempre em segundo plano, apagada e sem desejos próprios. Os elogios sempre tinham sido dirigidos à outra...
Sentando-se num banco no recanto mais isolado do jardim, deixou o pranto correr livre. Não adiantava iludir-se! Renzo queria dela exatamente o mesmo que aquele rapaz insolente, Um era elegante e refinado, o outro um grosseiro e vulgar estudante, mas seus desejos não eram diferentes: queriam apenas o seu corpo!
Como era difícil para Geórgia conviver com um aspecto de sua personalidade que até então desconhecia: o lado sensual! Nunca assumira essa faceta tão importante na vida de uma mulher, e aceitara o papel bem menos perturbador de dona-de-casa. Mas ela possuía um corpo, com desejos e reações independentes à sua vontade racional.
E, à medida que tomava conhecimento do mundo novo das sensações, também começava a notar o efeito de sua feminilidade nos homens. Jamais prestara a menor atenção se a olhavam ou admiravam; vivia num mundo onde a haviam catalogado como a filha do pastor, solteirona e dedicada aos afazeres domésticos e aos problemas da paróquia de Duncton.
A mulher que fazia os homens perderem a cabeça, sensual, atraente e cheia de magia... era Angélica, não Geórgia!
Nem mesmo depois de seu noivado com Renzo ou durante a cerimônia do casamento reconhecera os olhares lisonjeiros dos homens.
Só após o despertar de seus sentidos, numa explosão inesperada de prazeres sensuais através das mãos hábeis de Renzo, Geórgia descobrira a força de ser mulher!
No entanto, o poder da atração a atemorizava. Era tudo muito recente ainda e temia, aos poucos, perder todos os princípios rígidos de sua educação para entregar-se à escravidão de satisfazer seus desejos acima de tudo.
Perturbada, Geórgia abandonou o refúgio entre os canteiros floridos e dirigiu-se à praia, procurando a paz que o mar sempre lhe trouxera.
Queria evitar a qualquer custo a multidão de turistas e o único lugar onde não os encontraria era em Ocean Head. Entretanto, voltar àquele recanto onde descortinara a intensidade de seus desejos seria péssimo para seu estado de espírito, já bastante conturbado.
Entre tantos pensamentos conflitantes, Geórgia viu os pôneis…
Bandos de crianças esperavam entusiasmadas sua vez de montarem um dos três cavalinhos à disposição delas na praia. Inconscientes e mimadas, gritavam e puxavam as rédeas, tentando forçá-los a andarem mais depressa. Subitamente, Geórgia esqueceu-se de todos os seus problemas. A visão do dono dos pôneis, batendo com um chicotinho justamente no mais frágil deles para que se movesse, fez com que ela perdesse a cabeça.
Com uma violência inexistente em sua personalidade meiga, empurrou sem remorsos o grupo numeroso de pais que se deliciavam em ver seus filhos se divertirem mesmo às custas do sofrimento de um animal.
Ela alcançou o proprietário no momento exato em que ia tornar a bater no pônei, que, além de ligeiramente manco, parecia subnutrido e sedento. Mesmo sabendo que estava se intrometendo, a falta de compreensão e sensibilidade daquelas pessoas levou-a a agir num impulso.
— Pare já com isso! Não percebeu que o animal está com uma das patas machucadas? Se tornar a bater-lhe, é capaz de cair!
O homem olhou-a sem a menor surpresa, totalmente indiferente ao seu comentário indignado.
Sem dúvida, ele tinha pleno conhecimento das condições precárias do animal e não lhe importava a mínima o seu sofrimento.
— Por que não vai tratar da própria vida, moça? Tomo conta de pôneis há mais de trinta anos e não preciso de nenhuma intrometida me ensinando como lidar com eles.
— Pois então fique sabendo que estou disposta a ir até a Sociedade Protetora dos Animais. Se ganha seu sustento através do trabalho deles, tem a obrigação de tratá-los com humanidade e respeito. Este pobrezinho não está só manco… vai cair a qualquer momento! E se derrubar uma criança e ela se machucar será processado pelos pais!
Geórgia conseguira atingi-lo! O homem, com um ar enfurecido, foi até o pônei cor de mel, que recusava o mover-se. O garoto em cima dele batia em vão com os punhos e os calcanhares para incitá-lo a galopar.
— Vamos descer, garoto…
Imediatamente, os pais do menino vieram verificar por que motivo o filho não pudera continuar seu "inocente" passeio.
— O pônei está machucado… É melhor o garotinho montar um dos outros…
Enquanto o proprietário explicava tudo aos pais ofendidos, Geórgia aproximou-se do animal e sentiu uma vontade imensa de chorar. O pobrezinho estava tão maltratado!
Sem ao menos pensar na reação do marido quando ela aparecesse ao hotel com um companheiro de quatro patas, Geórgia decidiu comprá-lo.
— Este animal tem direito a uma vida melhor do que seus maus tratos. Quanto quer por ele?
— A senhora é uma lunática, sabia? Não tenho intenções de vendê-lo, ele rende muito dinheiro para mim. Hoje não está bem mas sempre trabalhou duro. Dependo disso!
— O que acha de cinqüenta libras? Em suas mãos, não irá durar muito tempo mais e, quando for vendê-lo, não receberá nem a metade do que estou lhe oferecendo.
Depois de poucos segundos de hesitação, ele aceitou a oferta, que ultrapassava muito o valor daquele animal no fim de suas forças.
— É todo seu, madame… O nome dele é "Melado", por causa da cor do pêlo.
Uma multidão os rodeava, interessada na discussão acalorada. Geórgia podia ver os olhares irônicos dirigidos a ela. Todos a julgavam uma idiota por comprar um pônei tão maltratado. Pois ao diabo com o que as pessoas pensavam!
Aquele animalzinho agora era seu e receberia uma alimentação decente, cuidados de um bom veterinário e muito carinho. Estava saturada da desumanidade das criaturas, preocupadas em viver no luxo, esquecendo-se de princípios básicos como a compaixão!
Tomando as rédeas do pônei, olhou com desprezo para os curiosos e dirigiu-se para as cocheiras do hotel. Em Londres, ela o acomodaria junto com os cavalos de Renzo… Ele era rico o bastante para satisfazer-lhe um capricho tão pouco dispendioso.
No momento em que entrou no gramado bem cuidado ao redor das cocheiras, quatro cavalheiros chegavam, montados em magníficos animais. Ao vê-la, caíram todos numa gargalhada desdenhosa.
— Será que não se enganou de endereço? Este hotel não irá aceitar um traste desses entre as melhores montarias do país. O lugar dele é na praia!
— Foi de lá mesmo que eu o trouxe… e vai ficar aqui! Comprei-o há poucos minutos e duvido que o gerente do hotel coloque algum impedimento à vontade do meu marido!
Entretanto, a situação mostrou-se bem mais difícil do que Geórgia previra.
— Deve estar brincando, madame! — disse o rapaz da cocheira.
— Não o faria a respeito de um animal ferido! Meu marido e eu somos hóspedes do Duke's e exijo que o veterinário o examine. Não tenha medo, vocês serão pagos!
— Vai lhe custar uma fortuna!
— Pouco me importa! Não existe mais compaixão neste país?
— Bem… nem todos têm um coração sensível como o seu, madame. O gerente do Duke's, por exemplo, é famoso por sua intransigência, e vai ser uma tarefa árdua convencê-lo…
— Pois terá que se conformar! Meu marido, Renzo Talmonte, costuma conseguir tudo o que quer!
Como se a tivesse ouvido, Renzo aproximou-se, curioso com o grupo exaltado que discutia e gesticulava. Para surpresa total, viu, no centro da acirrada disputa, sua discreta e tímida esposa.
Simultaneamente, chegou um senhor de aparência severa, que fora chamado às pressas — o gerente do Duke's!
Enquanto Renzo e o gerente discutiam, Geórgia tentava analisar as reações do marido. Estaria apenas defendendo-a por solidariedade? Teria ficado com raiva ou se divertia com toda aquela confusão?, questionou-se.
Desesperada por garantir o bem-estar de seu protegido, ela o olhou num apelo mudo mas veemente. Sabia que Renzo tinha condições de forçar o gerente a ceder. Quem resistia ao poder que emanava daquele homem?
E, realmente, em menos de quinze minutos, o gerente capitulou e pediu ao rapaz para que cumprisse as ordens de madame Talmonte.
Assim que ficaram a sós, Geórgia deu um sorriso agradecido ao marido mas Renzo não moveu um músculo do rosto impassível.
— Dio! Não posso deixá-la sozinha nem por meia hora? Precisei resolver alguns negócios urgentes no banco e... veja o que aconteceu! Explique-se!
Depois de contar toda a sua aventura, Geórgia dirigiu-se a Freddy, o rapaz que cuidava dos animais, dando-lhe todas as instruções sobre o tratamento de "Melado".
Impaciente, Renzo apressou-a. Já passava de meio-dia e ele estava faminto!
— Vamos logo, cara. Seu pônei de três pernas receberá alfafa, mas eu também preciso me alimentar. Acompanhe-me para o almoço ou prefere fazer companhia a "Melado"?
— Oh! Eu vou com você, querido! Muito obrigada por ter me ajudado… Fui arrastada por um impulso incontrolável. Não pude suportar a maneira com que tratavam o pobrezinho. Está zangado comigo?
— Não, de modo algum!
— Então por que… esse ar estranho?
— Quero apenas beijá-la… e não em público. Deixei-a dormindo esta manhã e foi difícil não tocá-la. Há quanto tempo não ficamos a sós?
Aquelas palavras tocaram na mente de Geórgia, que baixou o olhar, envergonhada. Ainda não conseguia aceitar o seu comportamento da noite anterior, como também não tinha superado a vergonha de falar em assuntos tão íntimos como se fossem fatos habituais de sua vida.
No elevador que os levava até o segundo andar, um silêncio tenso tornou-a ainda mais inquieta. Numa manhã ensolarada, eles se dirigiam para o quarto! Era quase imoral!
Mas Renzo fechou a porta atrás de si, envolveu-a num abraço, os olhos brilhando com um desejo intenso e indisfarçável. Fitou por um longo tempo os inocentes olhos azuis até que Geórgia criou coragem e abraçou-o também.
— Ah!... A cada momento me é revelada uma nova faceta da personalidade de minha esposa. Uma surpresa após a outra… e todas agradáveis até agora.
— E-eu também estou surpresa com minhas atitudes inesperadas... Nunca fui assim...
No momento em que Renzo a beijou, todas as suas objeções quanto aos desejos masculinos em relação ao seu corpo se desvaneceram. Os músculos rijos pressionando-a apagaram a lembrança repulsiva do jovem insolente que a insultara aquela manhã. As mãos, que desciam lentamente até alcançar-lhe os quadris, desencadeavam uma tormenta em seus sentidos e ela só podia deixar-se envolver pelo calor da paixão.
Se Geórgia se surpreendia por suas reações inesperadas, Renzo perdera totalmente a visão de seus objetivos frios e racionais. O feitiço que aquela jovem ingênua exercia sobre ele ultrapassara todos os limites sensuais que esperava encontrar numa mulher. A própria inexperiência e timidez de suas carícias ainda hesitantes não escondiam que, em cada gesto, havia uma entrega total, uma magia nascida do instinto.
Com a ponta dos dedos, ele percorreu os contornos dos lábios vermelhos e ainda molhados de seus beijos. Sem qualquer pressa, despiu-a, saboreando cada detalhe do corpo sensual revelando-se aos poucos diante de seus olhos.
Geórgia sentia as emoções tumultuadas, preparando-se para o prazer de ser possuída por Renzo. Mas, para sua surpresa, ele a carregou até o banheiro com um sorriso malicioso nos lábios.
— Onde… o que vai fazer?
— Há uma infinidade de prazeres a serem partilhados numa lua-de-mel, donna bella. Você irá experimentar todos, e um deles é ver seu corpo molhado, brilhando como se estivesse coberto por minúsculos diamantes.
Apesar de ter conseguido uma certa descontração diante do marido, sua nudez em plena luz do dia ainda a encabulava. Mas tomar banho com alguém era… uma depravação!
Tentou escapar dos braços de Renzo, mas, à medida que os beijos tornavam-se mais urgentes e possessivos, suas resistências caíram por terra. O toque mágico dos dedos longos em sua pele a transformava numa mulher ardente e repleta de desejo.
Sob a água morna, ele procurou cada centímetro do corpo esguio em busca de um prazer sempre mais intenso e embriagador. Os minutos se escoavam lentos enquanto as mãos fortes deslizavam-lhe pelas coxas e alcançavam as nádegas, num passeio erótico e alucinante.
Só então Geórgia ousou acariciar o corpo másculo que apenas tocara no escuro na noite anterior. Vencendo a hesitação, procurou conhecê-lo em cada detalhe, até ouvi-lo gemer de prazer.
Incapaz de suportar a ânsia incontida de possuir aquela muIher-menina, Renzo levantou-a e, encostando-a na parede, beijou-a com sofreguidão enquanto tocava o recanto mais secreto do corpo feminino, o centro de todo o prazer. Ao sentir as vibrações incontidas, prendeu entre os lábios os seios enrijecidos de desejo, sugando-os com avidez até Geórgia implorar para que ele a possuísse.
Erguendo-a pêlos quadris, colocou-lhe as pernas em torno de sua cintura e, sem poder mais esperar, penetrou-a num movimento rápido.
O ruído de água encobria os suspiros de prazer e apenas o gemido incontrolável do êxtase superou todos os sons…
Envolvendo-a numa toalha, Renzo carregou para a cama a mulher que despertara nele emoções jamais sentidas antes. Unidos na paz de perfeita harmonia, deixaram que o sol que entrava pela janela secasse as gotas de água… Já não mais constrangida por sua nudez, Geórgia revelou toda a glória de um corpo jovem saciado de amor…
O som, agudo e insistente, penetrou finalmente as barreiras erguidas pelo desejo em torno deles, uma muralha não de pedras, mas de beijos e carícias.
Sem soltar aquele corpo cuja entrega despertara nele a mais pura forma de prazer, Renzo atendeu o telefone e ouviu por um longo tempo, sem dizer uma única palavra.
Mas Geórgia percebia claramente que as feições até então refletindo paixão iam perdendo todo o calor. A cada segundo, seus traços se endureciam mais até que ele a soltou e concentrou-se apenas em ouvir… A notícia não devia ser nada agradável!
Quem poderia ser tão sem consideração a ponto de absorvê-lo por tanto tempo? Teriam se esquecido de que estavam interrompendo as atividades típicas de um casal em lua-de-mel? E porque Renzo não dizia logo que não queria ser perturbado por telefonemas inoportunos?, refletiu.
O relógio ao lado da cama indicava que haviam perdido a hora do almoço. Afinal, a fome de amor era muito mais urgente e aqueles dias seriam poucos e muito especiais. Dentro de pouco tempo, o mundo voltaria a se fazer presente e toda a ilusão criada naquele quarto de hotel se desfaria como cinzas ao vento.
O homem moreno e musculoso, nu ao seu lado, deixaria de ser um amante apenas para se tornar um marido, e a jovem sensual… uma esposa! Que tipo de vida teriam pela frente? Breves momentos de profundo prazer e longas horas de incomunicação e ódio… Voltaria a sentir a ânsia intensa nos braços de Renzo, onde perdia todas as noções de vida que a haviam guiado até então? E ele? Tornaria a possuí-la com tanta avidez, enlouquecendo-a com carícias ousadas, ou deixaria o afastamento das mentes transformar em indiferença a necessidade de seus corpos?
Como uma estátua de Michelangelo, cada músculo se desenhava na pele dourada de Renzo como uma obra de arte esculpida por séculos de sangue nobre.
Subitamente a voz fria rompeu seu devaneio:
— Si, você tinha razão em telefonar-me, Flávia. Comunicarei a Geórgia seu pedido de desculpas por ter-nos perturbado. Arriverdérci!
— O que houve, Renzo? Algum problema sério? — perguntou Geórgia, em pânico. Seria algo relacionado a Angélica?
— Nossa lua-de-mel terminou…agora! Preciso voltar a Londres com urgência, sinto muito.
— Mas… por que motivo? — murmurou ela, rezando para que a irmã não tivesse voltado a fim de reclamar a sua… "propriedade"!
— Chegou um telex em meu escritório, enviado por Mônica, de Roma. Ela avisa que minha mãe embarca hoje à noite para Londres, onde irá consultar um cardiologista de Harley Street. Foi uma decisão muito súbita e isso me inquieta, mas o fato de Mônica pedir-me para encontrar mamãe no aeroporto ainda aumenta mais minha preocupação. Seu coração é fraco e talvez tenha havido alguma piora em seu estado geral.
— Oh! Temos que voltar… é lógico! — exclamou Geórgia, preocupada com o ar perturbado de Renzo. Parecia haver uma ligação profunda entre ele e a mãe, embora pouco soubesse da vida daquele homem a não ser detalhes desconexos e banais.
No entanto, foi-lhe difícil esconder o terrível desapontamento. Tivera esperanças de que uma semana passada em Sandbourne os aproximasse, ajudando a criar um elo mais forte entre duas criaturas unidas sem o menor laço de afeição ou pontos em comum. Poderiam conversar, descobrir a verdadeira personalidade um do outro e, quem sabe, alcançar um grau de envolvimento para impedir que alguém se colocasse entre eles, destruindo o pouco que tinham conseguido: a harmonia dos sentidos!
Infelizmente, esses dias mágicos haviam terminado cedo demais! Seu marido começava a vestir-se, e sua expressão distante evidenciava que nem mais se lembrava da existência de uma esposa!
— Mamãe sofreu um enfarte há dois anos e, desde então, tem vivido em tratamentos bastante severos. De acordo com as palavras de Flávia, parece que as palpitações aumentaram e o remédio já não faz nenhum efeito... — Olhando à sua volta, Renzo deu um suspiro exasperado. — Como iremos arrumar tudo em tão pouco tempo? Chamarei a camareira para ajudar…ou será que você não prefere ficar aqui no hotel até o final da semana, como havia sido previsto?
— Oh! Não! Eu o acompanharei.
— Tem certeza absoluta? E seu pônei?
— Tomarei providências para que o enviem a Londres o mais rapidamente possível.
Geórgia teve a sensação de estar sendo deliberadamente afastada da vida do marido. Só o fato de Renzo jamais ter mencionado o nome da mãe evidenciava sua intenção de mantê-la de fora dos aspectos mais importantes de sua existência. Uma dor inesperada invadiu-a. Sentiu ódio de si mesma por ter sido tão vulnerável ao estado de espírito de um homem para quem não significava nada além de um corpo à disposição nos momentos de prazer.
— Renzo querido… não acha melhor comermos algo antes de ir?
— Não! Quero partir o mais depressa possível para Londres. Talvez no caminho, se você tiver muita fome, possa comer um sanduíche.
— Como preferir… — murmurou Geórgia, e uma sensação de abandono tomou conta dela. Embora o sol ainda banhasse o quarto de dourado, sentia um frio intenso. As portas haviam se fechado novamente entre os dois.
— Pelo amor de Deus, Geórgia! Não fique parada… vista-se depressa.
Sem olhá-la mais, Renzo saiu do quarto com passos rápidos, deixando-a sozinha.
Avaliando a desordem à sua volta, Geórgia permaneceu imóvel por alguns segundos, sem saber por onde começar. Então, reunindo coragem para enfrentar a situação, vestiu-se e chamou uma camareira para fazer as malas.
A única lembrança daquela lua-de-mel, abruptamente cortada, permaneceria nos estábulos do Duke's, onde o veterinário terminaria de examiná-lo. O simpático homem tinha afirmado que o pônei magro e de pêlo sem brilho logo se tornaria um belo animal, ideal para crianças.
Enquanto reunia as miudezas espalhadas pelo quarto, Geórgia pensou nos caminhos tortuosos do destino... Seria "Melado", um maltratado e subnutrido pônei, o animalzinho predileto de um filho que ela daria a Renzo?
Os poucos dias passados naquele belo hotel à beira-mar, um recanto de ilusão e fantasia, tinham sido repletos de paixão. Se não existia amor, ao menos o desejo os impelira desenfreadamente a se procurarem… Estaria já carregando a semente de um futuro ser?
Como iria sentir saudade da construção branca, rodeada de jardins floridos. Chegara ali uma jovem tímida, inexperiente e aterrorizada diante da realidade da vida conjugal. Partia agora uma mulher plenamente realizada, desperta para o prazer. ..
O amor físico havia se desdobrado em todas as suas formas, apurando a harmonia de dois corpos até que seus sentidos alcançassem o requinte máximo. Naquele quarto, o mundo não penetrava, era um refúgio contra as pressões, as mágoas e principalmente um esconderijo da verdade. 11/09/2006 21:04 Mesmo tendo sido muito curta, a lua-de-mel transformara um breve espaço de tempo numa eternidade… Dias longos em que ela vibrara e fora arrastada por uma paixão sem limites. Vivera, com intensidade, mais do que muitas mulheres em muitos anos, e tinha plena consciência disso.
Com os olhos cheios de lágrimas, Geórgia olhou uma última vez para o terraço que se abria para o mar e sentiu uma vontade insensata e inútil de que o tempo parasse!
A fisionomia de Renzo parecia talhada em granito enquanto tomava seu café da manhã, já pronto para ir receber sua mãe no Heathrow Airport de Londres. Ele não pronunciara uma única palavra nem olhara para a esposa desde que haviam saído do quarto.
Geórgia se ressentira profundamente por não ter sido convidada para acompanhá-lo, e sentia-se outra vez a simples filha do pastor, sem refinamentos ou desembaraço social.
O silêncio foi rompido pela voz ríspida de Renzo.
— Mia Madre adora flores, mas apenas brancas. Faça o favor de encomendar uma grande quantidade para colocá-las na saleta e no quarto de hóspedes. Ah… você não sabe ainda, só as encomendo na Gudrun's, uma das melhores floriculturas de Londres, portanto basta mencionar o meu nome. Providencie também um rádio e uma televisão. Há tanto tempo a condessa não fica em minha casa... Só me perturba que esta visita seja ocasionada por motivos de saúde.
A maneira rude de seu marido dar-lhe ordens em vez de pedir-lhe favores a magoava e destruía sua autoconfiança ainda tão frágil.
— Sei tão pouco sobre sua mãe…
— Por acaso acha que os homens discutem as mães durante a lua-de-mel, cara?
— Não… suponho que não. Mas você é tão fechado, jamais conta nada sobre sua família. Preciso saber um pouco mais sobre todos. Por exemplo…
— Sim? Pergunte o que quiser, a curiosidade é sua!
— Ela é realmente uma condessa?
— Deve ser, não acha? Seria crime usar um título falso.
— Renzo! Está me tratando como se eu não tivesse o direito de mencionar o nome de sua mãe! Por acaso vai nos apresentar? — reagiu Geórgia, ofendida com o tom de desprezo.
Ele a fitou por algum tempo, enquanto se servia de mais café. O sol entrava pela janela aberta do gracioso salão da luxuosa casa onde era servido o desjejum todas as manhãs, fazendo brilhar a porcelana de delicados arabescos dourados.
— Bem, cara… acho melhor colocá-la a par da situação difícil em que nos encontramos. Minha mãe não tem a menor idéia do nosso casamento, acredita que minha noiva ainda seja Angélica…
— Meu Deus! Como pôde…
— A esposa de Stélvio e eu decidimos ocultar-lhe a fuga do meu irmão com aquela… depravada. O coração de minha mãe já apresentou problemas sérios, e saber que o filho querido abandonou o lar para viver em pecado poderia afetá-la. Além disso, nós dois acreditamos que esse caso sórdido será de pouca duração.
O choque daquela revelação deixou Geórgia sem voz. Como enfrentar uma sogra que nem ao menos sabia que o filho tinha se casado? E não com a noiva a quem já conhecera, pensou desanimada.
— Estou começando a entender por que queria tanto que eu ficasse em Sandbourne! Seria muito mais fácil, não? Longe dos olhos, longe do coração… Nenhuma explicação, nenhuma mentira!
— Sua permanência lá teria tornado a visita de mamãe bem menos tensa e, mais tarde, numa ocasião oportuna, eu lhe contaria tudo.
— Mas sua "esposinha" recusou-se a separar-se do marido, e agora será obrigado a explicar por que se casou com uma irmã e não com a outra! Céus! Que situação absurda e confusa! Sua mãe vai ficar curiosa por saber o motivo do rompimento de seu noivado, não acha?
— Sem dúvida, cara.
— E…”sem dúvida", não poderá dizer a verdade ou lhe causará um choque que será perigoso para a saúde dela.
— Stélvio sempre foi o filho predileto, o menino dourado da condessa… Saber de sua atitude indecorosa de abandonar a família magoaria demais minha mãe. Evitarei isso a qualquer custo.
— Pelo menos já pensou em quais mentiras irá inventar? Passou uma boa parte da noite na saleta. Pensei que estivesse lendo mas, pelo jeito, quebrava a cabeça para encontrar uma saída, não? É uma pena não poder dizer-lhe que foi tudo apenas uma... vingança!
— Ouça bem, Geórgia. Se mencionar algo a minha mãe e ela desconfiar… só Deus sabe o que eu farei! A história oficial, repetida por nós dois, será a de que Angélica preferiu a carreira ao casamento e eu desposei sua irmã.
— É... não me parece muito convincente mas terá que servir! — comentou Geórgia, pensativa. Sem dúvida aquela explicação a colocava bem em seu lugar! Uma noiva de "segunda mão"! Se deixara as noites de paixão afastarem essa noção de sua mente, a culpa era só sua! Mas, para o bem do marido, devia comportar-se como uma esposa real e amorosa.
— Você não comeu nada, Renzo.
— Não tenho fome, cara.
— Por favor, não fique tão ansioso assim! Tudo vai dar certo, você vai ver! Diga-me, então é o conde Talmonte?
— Não uso o título. Quando decidi lutar por um lugar ao sol no mundo do trabalho sério, ocultei minhas origens nobres. Há uma idéia preconcebida de que membros da aristocracia são irresponsáveis, jogadores ou playboys, nunca homens de negócio estáveis ou talentosos.
— Mas Angélica sabia, não?
Foi uma pergunta difícil de fazer, pois Geórgia lembrava-se muito bem de quando a irmã tinha mencionado o título do noivo. Hoje, conhecendo melhor o lado negativo de Angélica, acreditava que ela tivesse sido atraída mais pelo fato de ser um dia uma condessa do que pelo casamento!
— Julguei que ela tivesse sabido só quando conheceu Stélvio, mas descobri depois que já tinha conhecimento de minha posição logo após nosso primeiro encontro. Manteve em segredo esse fato pois queria a qualquer custo pertencer a uma família nobre. Para azar de sua irmã, ela não sabia que apenas o filho mais velho herda o título e fugiu com o mais novo!
O olhar de Renzo revelava todo o ódio de um temperamento latino ofendido e disposto a levar a cabo a sua vendetta.
— Agora você é minha condessa, donna, mesmo que eu mantenha meu título sob a rosa.
— Sob a rosa? Não entendo!
— Desde a época de glória dos romanos, nos aposentos dissimulados onde se deliberavam os destinos dos povos, havia no teto um medalhão com uma rosa esculpida. E era sob essa rosa que os juramentos secretos se faziam com toda solenidade.
Pela primeira vez naquela manhã, Renzo sorriu e, levantando-se da mesa, teve um gesto de ternura com Geórgia. Beijou-lhe levemente a testa... um toque muito leve e distante.
— Deu-me um beijo em lugar de uma tiara? Prefiro mil vezes ler beijada do que ostentar jóias, sabe disso, não?
— Pois eu continuo achando que uma mulher bonita foi criada pela natureza para usá-las!
Geórgia sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha quando Renzo tocou a pele delicada de sua nuca sob os cabelos soltos. Tornara-se tão sensível àqueles dedos mágicos que um simples toque despertava-lhe um desejo intenso. Suas reações chegavam a atemorizá-la! Como pudera tornar-se tão sem decoro ou amor-próprio diante de um homem?, questionou-se.
A mão deslizou do pescoço para os ombros, roçou levemente os seios e, firmando-se na cintura, levantou-a e prendeu-a num abraço.
— Preciso ir embora já, donna, ou chegarei atrasado para receber minha mãe. Vou explicar-lhe tudo muito bem, portanto não passe as próximas horas se torturando. Lembre-se apenas das flores e discuta o cardápio do almoço com a sra. Alberti, a cozinheira. Seja gentil mas firme com os criados. Você é a dona desta casa.
— Que, por sinal, é belíssima, Renzo.
— Significa muito para mim. — Segurando o rosto delicado entre as mãos, ele a beijou por um longo tempo. — Donna Bella… mesmo com camisolas sofisticadas, você mais parece uma garotinha. Aliás, uma criança perdida, sem saber onde está nem para onde vai. É assim que se sente?
— Um pouco. Estou tão ansiosa! Queria tanto que sua mãe gostasse de mim… Acha que ela vai me apreciar?
— Ora, eu gosto de você, não? — Um olhar ao relógio o fez soltá-la abruptamente. — Dio! Se não correr vou perder a chegada do avião! Fique à vontade e sem preocupações, Geórgia. Minha mãe vai achá-la tão encantadora quanto eu… Arriverdérci!
— Até logo mais — murmurou Geórgia, incapaz de conter a onda de desânimo que a envolveu no momento em que a porta se fechou.
Ela estava sozinha agora, numa casa que não lhe era familiar, numa cidade estranha, e nem ao menos podia sentir-se segura em relação ao marido. Há poucos instantes ele afirmara que "gostava" dela, uma maneira gentil de dizer-lhe que não a amava!
— Posso retirar o café, madame?
Sylvia, a imponente criada, permanecia parada à porta, esperando as ordens da signora Talmonte.
Lembrando-se das instruções de Renzo, Geórgia tentou manter um ar de quem convivera com arrumadeiras, cozinheiras — sem mencionar um mordomo — por toda a sua vida. Não ia ser nada fácil fingir!
— Sim, eu já terminei, Sylvia. Depois de vestir-me, gostaria ir até o quarto que será ocupado pela condessa para verificar se tudo está perfeito. Logo encomendarei as flores e meu marido quer um rádio e uma televisão na saleta da suíte.
— Tenho certeza de que tudo estará prefeito, madame. A signorina Flávia veio ontem aqui e já deu todas as ordens a Torrence a esse respeito. Organizou todos os detalhes para que a condessa fique bem acomodada.
— Ótimo, Sylvia. Obrigada.
Geórgia lutou para esconder seu desapontamento. Sua presença em Hanson Square era totalmente desnecessária! Flávia mostrava-se indispensável a Renzo por sua capacidade de organização, os criados dirigiam a casa sem que fosse preciso dar-lhes ordens… Qual era a sua função ali? Apenas dar prazer ao dono da casa?
Depois de saber que seu casamento não fora mencionado à mãe de Renzo, uma sensação terrível de ser uma pessoa sem valor invadiu-a. Ele não quisera esposa alguma a não ser Angélica. Sua presença naquela casa era a prova concreta de uma vingança, a arma a ser usada contra a mulher que o traíra. Precisava prevenir-se contra a tentação de transformar momentos gloriosos de comunicação física em sinais de afeição. Continuava a ser apenas uma companheira de sexo, desejável e que dava um prazer supremo, mas, fora do quarto, não havia lugar para ela na vida dele!
Aliás, o quarto do casal era o aposento mais lindo que Geórgia já vira em toda a sua vida. Entre as paredes forradas de brocado azul, o tempo parecia ter parado. Duas portas se abriam para um balcão de ferro batido, de onde se via o jardim dos fundos da casa. Uma enorme cama de madeira rosada, com incrustações em ouro e marfim, dominava o aposento cheio de peças preciosas. Alguém com um gosto extremamente refinado encolherá cada detalhe e Geórgia não duvidava de que essa pessoa tinha sido Renzo. Ele criara um interior tão belo quanto a arquitetura graciosa e elegante daquela casa em estilo georgiano.
Outrora, a mansão tinha pertencido a um destacado juiz, temido e respeitado por sua justiça implacável. No vestíbulo havia um quadro desse homem imponente e assustador e, sempre que o via, Geórgia pensava no quão significativo era o fato de Renzo morar agora ali: ele também acreditava no castigo sem apelação. Na verdade, Geórgia não tinha nada a fazer a não ser encomendar as flores. Flávia já tomara todas as providências e ela se sentia inútil e desocupada. Não fora criada como uma boneca, sempre trabalhara duro!
A enorme banheira antiga, cujas torneiras eram sereias douradas, a atraíra desde a noite de sua chegada. Sem pressa ou compromissos, Geórgia tomou um longo banho. Sentia-se uma estrela de Hollywood ao telefonar para a floricultura, enquanto relaxava entre bolhas de espuma perfumadas.
Mas, bem no fundo, uma pontada de medo a deixava tensa. Como seria a condessa Talmonte? Uma senhora altiva e orgulhosa, extremamente bem vestida por um famoso costureiro de Roma? Uma mãe possessiva e ciumenta dos filhos atraentes, que se ressentiria com a nora inesperada e desconhecida?
Enquanto se enxugava, lembrou-se de que Angélica havia conhecido a mãe de Renzo e sido aprovada como a noiva do filho mais velho. Alguém deixaria de se fascinar pelo sorriso insinuante de sua irmã? Quem poderia adivinhar que, atrás de tanta beleza e aparente integridade, existia uma mulher egoísta e decidida a obter tudo para si mesma à custa do sofrimento alheio? Se nem mesmo ela, sua irmã, aceitara essa verdade até há poucos dias!
Geórgia não pretendia iniciar seu relacionamento com a sogra com bases falsas. Não era igual à irmã, não atraía pessoas como o mel atrai as moscas e não tentaria convencê-la de ser uma esposa adorada. Queria mostrar-se como uma jovem simples e qualidades exteriores admiráveis: seu valor só se revelaria através de um longo tempo de convivência, e talvez isso nunca chegasse a acontecer.
Escolheu o vestido mais simples e não usou jóias. Não haveria fingimentos: ou seria apreciada pelo que era ou rejeitada. Mais valia a pena arriscar!
Ao olhar-se no espelho, sua autoconfiança diminuiu assustadoramente. Aquela jovem de vestido azul, muito simples, com os cabelos soltos, não parecia ser a dona de uma mansão magnífica num dos bairros mais refinados de Londres!
E nem ao menos conhecia sua casa!
Quem sabe depois de familiarizar-se com cada recanto do seu novo lar se sentisse mais segura?, pensou.
Descendo a escadaria curva, Geórgia atravessou o vestíbulo e entrou num aposento suntuoso, em tons de verde e dourado. Do lado pendia um lustre de cristal de Veneza, como uma imensa jóia brilhante. Sofás e poltronas espalhadas informalmente amenizavam a suntuosidade daquela sala onde todas as peças eram antiguidades valiosas. Alguém tossiu discretamente para chamar sua atenção e, ao virar-se, viu Torrence, o mordomo, que a fitava com um olhar perplexo.
— Gostaria de tomar seu chá na saleta do jardim, madame? São onze horas…
— Estamos na sala de visitas, não?
— Sim, madame.
— É belíssima! E estas portas são do salão de jantar?
— Exatamente, madame.
Nem por um minuto, Geórgia acreditou ter enganado o mordomo com seu ar desembaraçado. Ele sabia perfeitamente que a patroa vinha de um ambiente muito mais simples e jamais vivera numa casa tão luxuosa. O requinte das paredes forradas de tecido, cortinas de veludo e tapetes persas tornavam ainda mais deprimente a aparência da casa paroquial, cuja mobília antiga passava de família a família.
— Bem... eu gostaria de ir até o jardim…Se você indicar me o caminho, por favor, Torrence.
Geórgia seguiu-o até uma porta de ferro que se abria para uma saleta toda de vidro. As paredes pareciam não existir e tinha-se a impressão de estar no meio do jardim.
Móveis de junco estofados em motivos florais e vasos com gerânios transformavam aquele aposento num refúgio aconchegante. Havia até uma pequena fonte de mármore com uma estatueta do Deus Pan.
Geórgia ficou encantada com a saleta, o local onde se sentia mais à vontade naquela casa requintada.
— Há peixes no laguinho, Torrence?
— Eles se escondem sob as plantas. São dourados, prateados e pretos e, se jogar-lhes comida, sairão de seus esconderijos.
O mordomo indicou-lhe um valioso vaso chinês, onde era guardado o alimento, avisando-a que lhe enviaria a criada com o chá. Torrence deixou-a a sós para explorar os detalhes requintados daquele paraíso.
Numa estante de junco, além dos livros havia um aparelho de som e inúmeras fitas. Geórgia podia imaginar Renzo, sentado ah, no final da tarde, fumando um charuto e ouvindo a música que compusera enquanto o aroma da natureza enchia a sala com o perfume eterno da primavera.
Alguns minutos mais tarde, sentada em uma das confortáveis poltronas de junco, Geórgia saboreava seu chá, enquanto ouvia a melodia ritmada das gotas que jorravam da flauta de Pan e caíam como o ruído da chuva sobre a superfície plácida da água.
À sua frente, estendiam-se os gramados, verdes como esmeraldas, onde salgueiros e cerejeiras sombreavam canteiros de hortênsias. Pássaros cantavam como se estivessem em pleno campo e uma serenidade profunda permeava o ambiente. Era difícil imaginar que além dos altos muros existia todo o tumulto de uma metrópole. Todos os problemas que tanto a perturbavam pareciam distantes, pertencentes a outra realidade. Nesse momento Renzo estava voltando com a mãe para Hanson Square mas, como sempre, em harmonia com a natureza, Geórgia sentia-se segura e em paz naquele jardim. Não era preciso muito esforço para imaginar os habitantes desta casa em outras épocas mais gentis!
Damas com longos vestidos rebordados e cavalheiros elegantes teriam jogado pólo no gramado verde, sua intimidade protegida pelos muros altos… ou conversado em vozes sussurrantes ao passar entre os canteiros de flores. A arquitetura requintada, os quadros cheios de detalhes vívidos e as magníficas peças de arte daquele passado distante levavam a crer num tipo de vida onde a qualidade era bem mais valorizada do que a quantidade!
Geórgia não tinha dúvidas de que Renzo se adaptaria muito melhor àqueles dias de luxo e refinamento. Sua aparência e a maneira cortês de tratar as mulheres pertenciam ao período de glória que havia sido o reinado de George IV.
O sol batendo em sua aliança trouxe-a de volta à realidade, seria difícil ajustar-se a um casamento baseado em falsidade gora que a condessa testemunharia o comportamento de ambos! O desgaste de fingir cada segundo que não havia ressentimento algum entre Renzo e Angélica acabaria por esgotá-los!
Desde muito pequena, Geórgia aprendera a respeitar os mandamentos divinos, e a verdade lhe parecia ser o melhor caminho sempre. Uma mentira desencadeia uma série infinita de fingimentos e dissimulações, tornando a vida num labirinto sem saída!
A ansiedade em conhecer a sogra crescia a um nível acima do normal porque seu casamento diferia de todos os outros. Como gostaria de receber a condessa com um sorriso afetuoso e seguro por saber que seu marido a amava e nada, nem ninguém, conseguiria separá-los!
Seria a visão de um paraíso. Mas havia uma serpente no jardim do Éden! Precisava fingir que Renzo a adorava para ocultar uma presença secreta entre os dois. A condessa ficaria ansiosa para saber como o filho trocara tão rapidamente de noiva!
Geórgia levantou-se num salto. Aquela saleta iria ser o seu refúgio e não queria maculá-lo, lembrando-se da irmã. Ali, ela seria a esposa adorada de Renzo, a condessa Geórgia Talmonte… uma mulher apaixonada!
Rosas, crisântemos, lírios, espécies sem fim de flores brancas enchiam o vestíbulo com seu aroma e beleza. A encomenda da Gudrun's chegara.
Imediatamente, Geórgia dirigiu-se à suíte da condessa para fazer os arranjos. Em menos de meia hora, sala e quarto assemelhavam-se a um jardim encantado.
A cada novo aposento que conhecia naquela casa, mais fascinada ficava. Ali o motivo predominante era uma estampa oriental em tons de rosa e dourado, que se repetia nos tecidos das paredes, de brocado luxuoso, e nas cortinas, leves e diáfanas. Na cama, uma colcha de cetim de um rosa muito claro servia de fundo para inúmeras almofadas em forma de coração, desde o branco rosado até o carmesim. Um quarto digno de uma princesa!
Preocupada em rever todos os detalhes, Geórgia distribuiu melhor os vasos entre o quarto e a saleta e pediu a Torrence que providenciasse uma cesta de frutas. A televisão e o rádio funcionavam perfeitamente bem. Enfim, tudo estava de acordo com os desejos de seu marido.
Um santuário de paz e beleza fora criado para receber a mãe de Renzo e Geórgia só esperava que nada acontecesse durante aquela visita para perturbar a saúde da sogra. E tantos problemas poderiam surgir, principalmente por causa de Stélvio.
Ela se esforçaria ao máximo por aparentar uma felicidade serena, um amor profundo, como era de se esperar numa recém-casada. Renzo também faria sua parte, mas, se chegasse alguma notícia até a condessa sobre as atitudes de seu filho mais novo, tudo estaria perdido.
Renzo dera a entender que seu irmão sempre tinha sido o favorito da mãe, um fato bastante comum em relação ao caçula. Era como se o primogênito sempre pertencesse ao pai e o mais novinho fosse um bebê para o resto da vida.
Quando Sylvia trouxe-lhe as frutas, ela voltou ao quarto e ficou por um longo tempo admirando a perfeição de cada detalhe… um recinto cheio de encanto e conforto!
Uma onda de tristeza invadiu-a ao lembrar-se de sua mãe e de como tinha lutado com dignidade e coragem contra a doença que a destruíra. Num quarto frio e desprovido de qualquer luxo e até mesmo de conforto, Anne Norman enfrentara a morte com um sorriso doce e confiante nos lábios.
Aborrecida, Geórgia tentou afastar aqueles pensamentos depressivos. Sem dúvida, a sogra reagiria ao tratamento que viera fazer em Londres. Os Talmonte eram ricos o bastante para consultarem os melhores médicos e fazerem os mais caros exames e tratamentos. Mas… nem sempre o dinheiro conseguia afastar a presença fatal da morte! Ricos e pobres estavam ao alcance de tragédias sem retorno mas, ao menos, a mãe de Renzo teria todo o conforto e o apoio do filho mais velho.
Fechando a porta do quarto, Geórgia dirigiu-se às escadas, pensando nos ombros largos e na força física de Renzo. Como seria fácil apoiar-se nele, deixando-se levar pelo fascínio de sua sensualidade! A condessa certamente perceberia o quanto a nora se afetava com a proximidade do marido!
Um barulho na rua avisou-a da chegada do carro e, ansiosa, ela abriu a porta de entrada e viu Renzo ajudando a mãe sair do carro.
Quando os dois se voltaram para a porta, viram uma jovem loira e esguia, dourada pelo sol à espera deles. A condessa segurou-se ao braço do filho como se fosse cair e murmurou algumas palavras em italiano.
Mesmo sem entender a língua, Geórgia sabia qual tinha sido o comentário. A mãe de Renzo com certeza se surpreendera ao ver sua semelhança com Angélica. Em seguida, o olhar curioso tornou-se duro.
Nunca ficaria livre das comparações? Todos teriam sempre a mesma reação ao encontrá-la, ligando-a à figura vistosa da irmã? Em Duncton, isso jamais acontecia pois quem iria confundir a jovem expansiva e vestida com ousadia com a irmã austera e sempre dedicada aos afazeres domésticos?
Só as roupas caras e o ambiente elegante as tornavam mais parecidas, além de um brilho nos cabelos e na pele radiante, que ela devia muito a Renzo. O amor cria beleza e Geórgia não podia ignorar o quanto se apaixonara pelo marido! Pena que seu amor não fosse retribuído!
Apoiada pelo braço musculoso do filho, a senhora miúda e esbelta aproximou-se com um sorriso hesitante e Geórgia lutou contra um nervosismo intenso para retribuí-lo. Estava ainda mais tensa do que no dia do seu casamento, quando se sentira perdida numa multidão de desconhecidos, sem ninguém ao seu lado para dar-lhe forças.
Mas agora, muitos fatos tinham diminuído para contribuir a sensação de abandono. Angélica estava a milhares de quilômetros daquela casa magnífica e quem vibrava nos braços de Renzo, partilhando sua cama e tocando cada centímetro daquela pele morena… era Geórgia Talmonte!
A condessa Evelina, um exemplo de elegância discreta, originária de séculos de aristocracia, chegou até a porta da mansão.
— Então é você a grande surpresa que meu filho preparou para receber-me?
— Sim, condessa. — Geórgia sorriu, já muito mais descontraída, para aquela simpática senhora que mostrava a afetividade do temperamento latino e não lhe parecia fria ou hostil.
A mãe de Renzo viera da Itália acompanhada por uma senhora que, após ser apresentada, insistiu para que saíssem do sol. No vestíbulo, reuniu as malas perguntando onde era o quarto da condessa, que deveria ir imediatamente repousar.
— Calma, Cosima. Nem ao menos pude trocar duas palavras com minha nora. — Voltando-se para Geórgia, ela mostrou no olhar toda a sua curiosidade. — Foi bastante súbito o casamento, não? Às vezes me pergunto se os jovens de hoje levam realmente a sério juramentos que a minha geração considerava… sagrados e indissolúveis! Bem… teremos tempo para um aprofundamento de nossa amizade, não é?
— Oh! Eu gostaria muito! Sabe, perdi minha mãe quando era muito jovem e ficarei imensamente feliz de tornar-me amiga da mãe de Renzo.
Sorridente, a condessa olhou para o filho.
— Você comentou o quanto sua esposa era modesta e recatada mas esqueceu de mencionar o encanto dessa jovem mulher.
— É... ela é encantadora mesmo — concordou Renzo. — Agora, mamma, vá direto para seu quarto repousar até a hora do almoço.
— Estou precisando descansar e…
Antes que ela pudesse impedir, Renzo carregou a mãe e subiu as escadas com agilidade enquanto Geórgia o observava em pânico. Temia que sua perna o fizesse tropeçar!
A acompanhante da condessa subiu mais devagar e explicou a situação da pobre senhora:
— Ela jamais deveria ter enfrentado uma viagem dessas! Há médicos tão capazes quanto os daqui em Roma, mas seu verdadeiro objetivo era ver o filho.
— Ela tem tido problemas?
— Está bastante mal, creio eu. Palpitações constantes, e, até mesmo no avião, teve uma crise respiratória. É uma mulher, corajosa, prefere morrer a queixar-se, porém sofre com o fato de os filhos não morarem em Florença. Sempre desejou o sucesso deles, mas é triste envelhecer sozinha.
Geórgia sentia uma angústia profunda. A condessa jamais iria saber do comportamento reprovável de Stélvio ou seu coração se partiria. Só agora entendia a intensidade da preocupação de Renzo em ocultar a verdade da mãe: não era preciso ir medico para perceber o quão frágil e debilitada ela estava! Apesar do cansaço evidente, a gentil senhora não poupou elogios à nora pelas flores e o cuidado e carinho em acomodá-la com todo o conforto.
— Cara… eu amo as flores brancas; têm um perfume muito intenso! Renzo mencionou a minha preferência?
— Sim, ele avisou-me.
— Minha esposa passou uma manhã bastante tensa, com medo de não ser aprovada por você, mamãe. Ela é, sem dúvida, uma das últimas jovens recatadas e tímidas que ainda restam no mundo.
— Realmente? Quando você decidiu viver rodeado pela elite, julguei que iria escolher outro tipo de esposa, nunca uma jovem despretensiosa. Parecia mais propenso a... — ela se irrompeu, numa pausa repleta de significado. — Mas as pessoas mudam muito mais rapidamente de idéia hoje. São os dias agitados em que vivemos! Por falar nisso, esta casa é tão serena, um oásis em meio a tanta agitação e ruído!
Acomodando-se na poltrona de veludo, Evelina Talmonte chamou Geórgia para sentar-se ao seu lado.
— Vivo isolada e tranqüila, apenas com a companhia de Cosima, minha amiga de muitos anos, numa villa em Florença. Convença seu marido a levá-la até lá. Ficarei tão feliz em mostra-lhe as belezas da minha cidade! Isto depois que meu especialista tiver determinado um tratamento para pôr um fim nessas desagradáveis palpitações.
— Mamma! Sente alguma dor? Diga-me a verdade… — perguntou Renzo, ansioso.
— Compreendo sua preocupação, filho, mas… fique tranqüilo! Não tenho dores, apenas canso-me com muita facilidade e Cosima coloca vários travesseiros em minha cama, pois as piores palpitações vêm à noite. São bastante desconfortáveis mas tenho certeza de que o dr. Jarmon terá um remédio específico.
— Não posso evitar minha ansiedade, mamãe. Você tem que ficar conosco até sentir-se perfeitamente bem outra vez, eu insisto!
A condessa sorriu, mostrando admiração pelo filho másculo e autoritário.
— Posso ver que o casamento lhe fez muito bem, filho. Sua encantadora esposa inglesa adoçou o seu lado temperamental.
— Temperamental? Eu?
— Ora! Desde bebê você sempre foi independente, teimoso e… "mandão"! Deve estar achando seu marido um osso duro de roer, não, Geórgia? Porém, se uma mulher decide partilhar sua existência com um homem, é melhor que seja ela a cabeça do casal, não acha? Afinal, nós mulheres somos o sexo fraco…
— Não vou discutir esse assunto com você, mamma, ou levaríamos horas debatendo, sem chegar a nenhuma conclusão.— Segurando Geórgia pelo braço, Renzo a fez levantar-se. — Descanse um pouco e... quem sabe será melhor que sirvam seu almoço aqui no quarto?
— Gostaria muito, filho. Almoçarei entre estas flores maravilhosas e os verei à hora do chá. Estou realmente cansada. Até mais, cara Geórgia…
— Até mais… condessa.
— Oh! Não quer chamar-me de mamma, como Renzo o faz?
— E-eu poderia? — balbuciou Geórgia, enrubescendo.
— Agora, você se tornou minha filha através do casamento… Gostaria tanto de tê-los visto nesse dia. Usou um vestido branco?
— Sim…
Geórgia lutou com todas as forças para evitar que o sofrimento daquele dia transparecesse em sua expressão. Ficar de pé no altar, ao lado de um orgulhoso e frio desconhecido. Parecia um pesadelo! O noivo cruel e insensível forçara sua mão ao colocar-lhe a aliança, uma pressão insuportável e ameaçadora. Hoje, os mesmos dedos sobre os seus provocavam-lhe desejo.
Mas Geórgia aprendera a temer bem mais as carícias de do que sua crueldade! Seria através delas que perderia o seu amor-próprio e toda a sua dignidade.
— Deve ter sido uma visão inesquecível vê-la vestida de noiva, filha! — Com um olhar de reprovação dirigido ao filho, ela prosseguiu: — Considerou-me frágil a ponto de perder a calma quando soubesse que tinha trocado uma irmã pela outra, não foi? É tempo de aprender o quanto as mulheres têm força, Renzo Tive dois filhos de temperamentos fortes e criei-os sozinha porque fiquei viúva muito cedo, antes dos vinte e oito anos. Minha aparência engana, como provavelmente também a de sua esposa, esguia e delicada. Nós, mulheres, não temos músculos… mas nossa força vem de dentro e é imbatível!
— Peco-lhe desculpas, mamma. Temo que a maioria dos homens tenha uma tendência de subestimar as mulheres, e não sou uma exceção. Estou desculpado?
— Não… Queria que você tivesse se casado na Itália como Stélvio, numa grande festa familiar. Renzo, caro mio, não se esqueça nunca de suas origens italianas! Há um sangue romano que há séculos corre em nossas veias, uma herança de honra e valor. Lembre-se sempre, seu irmão jamais deixou de se orgulhar dessa dádiva de nossos ancestrais!
As palavras da condessa atingiram Geórgia como punhaladas! Ela quase gemeu de dor, tal a pressão da mão de Renzo apertando a sua.
Mas aquele homem orgulhoso conseguiu controlar sua mágoa e, com um sorriso, beijou ternamente as mãos da mãe.
— Jamais poderia esquecer-me, mamma. É o passado que nos molda… pense apenas que julguei melhor poupar sua saúde e evitar-lhe um cansaço prejudicial.
— Está bem, aceito sua explicação. Não posso negar que jamais o conheci tão profundamente como a Stélvio. Há aspectos seus que nunca consegui desvendar. Talvez o casamento o faça partilhar seus sentimentos e suas emoções com mais facilidade… O tempo nos mostrará, não?
— E é tempo de descansar agora. Teremos dias e dias para conversar sem preocupações. Cosima lhe fará companhia e... até a hora do chá, mamma…
Geórgia acompanhou o marido pelo corredor atapetado que ligava o quarto da condessa ao deles, tremula de fúria. Uma sensação de injustiça cruel transformava suas feições delicadas numa máscara de indignação.
— Não é justo! Como sua mãe pode elogiar tanto Stélvio e censurar você, quando foi ele quem desonrou todas as tradições, as...
— Calma, donna — murmurou Renzo, entrando no quarto. Após fechar a porta, tomou-a nos braços. — Devo deduzir que toda a sua raiva é porque fui magoado?
— Evidentemente! Sua mãe é uma senhora encantadora, compreendo que queria evitar-lhe aborrecimentos, ocultando-lhe a verdade sobre o nosso casamento… Mas revolto-me ao vê-la considerar seu irmão um cavalheiro sem mácula!
— Foi devido a esse amor profundo de minha mãe por Stélvio que fiz tudo para não lhe destruir essa visão idealizada sobre meu irmão. Viu com seus próprios olhos o estado de saúde precário em que ela se encontra… Eu tenho uma couraça dura, Geórgia, não me magôo com facilidade.
— As marcas de suas mágoas não aparecem, mas eu sei que você as tem!
— Sabe mesmo, donna bella?
A boca de Renzo se colou quase com violência à dela e prendeu entre os dentes o lábio inferior macio e cheio, provocando-lhe um gemido de dor. Mas Geórgia cedeu ao contato agressivo, sabendo o quanto ele necessitava amenizar o sofrimento causado pelas palavras cruéis de poucos minutos atrás. O único remédio entre dois seres, cuja comunicação se fazia apenas através do contato físico, era esquecer a dor mergulhando no mundo das sensações.
Sem resistir, ela se deixou despir, percebendo que a expressão tensa dava lugar a uma emoção primitiva e voluptuosa. O zíper correu silenciosamente e o vestido caiu-lhe aos pés. A intuição de Geórgia lhe dizia que seria amada de um modo muito diferente de todas as outras vezes em que Renzo a possuirá. Havia uma ansiedade em seu toque, um ardor contagiante. O tom da voz que murmurava palavras em italiano não mais lembrava uma melodia romântica, mas um canto erótico, apelando a emoções selvagens.
Por um breve instante, Renzo admirou o corpo excitante que se oferecia a ele, sem outra intenção a não ser dar-lhe o máximo de prazer e fazê-lo esquecer. Seios amplos e firmes, onde os mamilos rosados se erguiam à espera de seu toque, a cintura fina, os quadris arredondados e o triângulo dourado… como trigal sob o sol!
— Bella… Bella comme nessuna altra!
Tremula de excitação, Geórgia sentiu-se naquele momento realmente bela… bela como nenhuma outra!
Pela primeira vez não houve ternura nas carícias preliminares. Arrastado pela impetuosidade de seu desejo, Renzo dobrou-a aos seus impulsos. O fino verniz de ternura desaparecera e um lado oculto, primitivo e pagão, se fez presente.
Geórgia soltou uma exclamação de susto ao sentir seu corpo sobre a colcha de cetim e o rosto de Renzo perder-se entre suas coxas. Queria pedir-lhe para trancar a porta, lembrá-lo dos criados, da mãe… mas sua voz se limitava a ecoar uma ânsia profunda que a impedia de resistir.
Olhou-o enquanto despia-se com urgência, ávido por encontrar nas curvas macias o bálsamo do esquecimento, a graça da ilusão, esquecendo-se de que aquele era o corpo de sua esposa e não o da outra.
Como uma estátua de bronze, Renzo parecia tão tenso quanto uma mola de aço, mas era apenas nesses momentos de delírio que ele realmente lhe pertencia. Geórgia tornava-se parte de cada músculo vibrante, de cada movimento ritmado e impetuoso. Ao sentir-se preenchida pela virilidade possante daquele homem, transformava-se numa verdadeira mulher e nem mesmo uma sombra podia se interpor entre dois corpos fundidos como se fossem um só na paixão que os consumia.
Renzo ainda hesitou um instante antes de entreabrir-lhe os joelhos, mas o aroma daquele corpo, o sabor da boca febril, o brilho dos olhos faiscantes o faziam perder a consciência e todo o seu controle se dissolveu. Apossando-se dela com voracidade, penetrou-a com violência, ignorando os apelos de Geórgia e seus gemidos de dor.
O corpo feminino finalmente cedeu ao desejo desenfreado e agora o fogo da paixão ardia como uma só chama. Liberta de toda a inibição, Geórgia movimentava-se sinuosamente. Eram o primeiro homem e a primeira mulher na face da Terra descobrindo o amor sem limites.
Ainda mais excitado pelas reações delirantes da jovem angelical que se transformava numa deusa pagã da volúpia em seus braços, Renzo puxou-a sobre si, ávido por ver nos olhos puros o brilho do êxtase. Segurando-lhe a cintura, cerrou os dentes nos mamilos escurecidos de prazer e os gemidos aumentaram de intensidade.
Geórgia sentia-se perdida num turbilhão, incapaz de controlar um corpo que sempre obedecia a sua mente e agora pertencia totalmente ao domínio sensual de um homem. A cada momento mais impetuosa e livre, ela ofereceu tudo de si a Renzo. Como uma folha levada pela torrente, era uma mulher sem passado ou futuro, vivendo apenas a vibração suprema do presente.
Renzo soltou-a apenas quando suas vozes se uniram numa explosão devastadora de prazer.
O espelho do quarto refletia os corpos enlaçados como uma estátua de amantes pagãos, unidos apenas por um engano do destino. Tímida diante da intensidade daquele ato onde sabia não existir amor, Geórgia tentou estabelecer um elo entre dois seres que se completavam com tanta perfeição.
— Renzo… nós partilhamos algo de importante, não é verdade?
— Está pensando nas palavras de minha mãe sobre minha resistência em abrir meu coração?
— É... eu...
— Esqueça esta parte, donna. Você se tortura com perguntas sem resposta. Quando estamos apenas os dois, na cama, somos felizes. Isso deveria ser suficiente, não acha?
— Não é possível ser parte de alguém apenas durante… quando há um relacionamento físico. Deve existir muito mais, algo vívido e profundo, maior do que a mera intimidade dos corpos.
— Muitos casais não conseguem nem mesmo isso, cara. Contente-se com o seu dom de completar-me como mulher alguma o fez. Agora, vamos almoçar. Se ficarmos discutindo este assunto, eu serei capaz de ter outras idéias e só sairemos do quarto para jantar.
Em silêncio, Geórgia começou a vestir-se. Compreendera muito bem as declarações de Renzo: a paixão apenas física permitia a ambos esquecerem os fatos básicos de um casamento com amor. A presença da condessa fatalmente traria de volta entre os dois a presença de Angélica e a traição de Stélvio. Apenas quando seus corpos se buscavam, ávidos, nenhum problema existia.
Depois de vestidos e preparados para enfrentar o mundo, uma distancia imensa os separava. Os lábios de Renzo retomaram o rictus de frieza, que os tornava tão diferentes daquele que formavam a boca sensual que a beijava com ardor.
Envolvidos por seus problemas pessoais, a comunicação se interrompera e, durante o almoço requintado acompanhado por um vinho francês de ótima qualidade, não havia nada a dizer entre dois estranhos.
Todas as tardes, o chá era servido na saleta do jardim e, sobre uma mesa de vidro, resplandeciam as peças de prata e cristal onde eram apresentados os mais delicados sanduíches, biscoitos e bolos de vários tipos.
A cada dia, Geórgia gostava mais daquele ambiente sereno e repousante, seu lugar predileto numa casa que ainda não conseguia considerar sua. O sol batia na loira cabeleira enquanto ela servia à condessa o seu chá predileto, uma mistura de ervas chinesas e indianas.
— Grazie, cara. Seus cabelos brilham como ouro, tenho a impressão de estar perdida num trigal… Bionda bella…
Geórgia se policiava constantemente para não demonstrar a profunda ansiedade que a situação da sogra lhe provocava, por isso escondeu a emoção causada pelas palavras carinhosas.
Depois da visita ao cardiologista, a frágil senhora se submetera a uma infinidade de testes na Regency Clinic. Uma junta médica chegara à conclusão de que seria absolutamente necessária uma operação para aliviar a artéria bloqueada.
A condessa Evelina, apesar de sua iminente internação na manhã seguinte, apresentava uma calma exterior, mas suas mãos tremiam ao segurar a xícara de chá.
— Esta é uma casa tipicamente inglesa, com uma esposa bem britânica... para meu filho italiano! Renzo jamais deixará de reagir como um latino e foi uma surpresa enorme para mim quando soube de sua decisão em fixar-se definitivamente em seu país, cara. É preciso ver também o seu lado, não acha?
— Que tal ser casada com um italiano? Está se adaptando… Como posso me explicar… não a perturba o excesso de autoridade? Sem dúvida, Renzo deve ser bem diferente do tipo de homem que você conhece.
— Só posso julgá-lo comparando-o a meu pai. Como pastor, ele dedicou toda a sua vida a uma pequena paróquia do Sussex. Sempre tomei conta da casa, não havia tempo para levar uma vida social mais…intensa.
— O que quer dizer com isso?
— Nunca tive nenhum amigo do sexo masculino e... também nunca namorei. Ao casar-me com Renzo, eu era tão inocente e ingênua que poderia ser considerada quase… uma freira.
— Foi desse tipo de vida que sua irmã fugiu, não é? Ela queria a agitação de uma cidade grande, o sucesso…
— Ë. Angélica não poderia ter permanecido em Duncton — respondeu Geórgia, rezando para que a sogra não notasse sinal algum de tensão em sua voz. Há muito esperava o momento em que a condessa dirigisse o assunto para a ex-noiva do filho. Afinal, ela conhecera Angélica e não teria deixado de notar, como Geórgia, a atração de Renzo pela jovem sedutora e provocante.
— Angélica preferiu seguir a carreira de modelo a casar-se? Foi quando Renzo descobriu a irmãzinha?
Geórgia acenou afirmativamente, lembrando-se com nitidez daquele dia terrível.
— Compreendo muito bem por que meu filho agiu assim. Angélica sempre me pareceu um pouco dura… Como um brilhante, sabe? Todos gostam de ostentar uma jóia mas… não tão vistosa! Você me lembra de pérolas! Há nelas um brilho acetinado e precisam estar em contato com a pele cálida para revelar toda a sua beleza. — Geórgia baixou a cabeça para esconder seu rosto. — Pensou que eu não tivesse notado como reage à proximidade de Renzo, cara? Todo o seu ser volta-se para ele e na sua expressão há o brilho das pérolas no calor do contato de quem as possui. Ah! Ficou tensa? Ë o seu lado inglês se revoltando contra a idéia de o marido ser o dono da esposa?
— Sempre pensei no casamento como uma amizade profunda, não um relacionamento baseado em possessividade.
— Os homens latinos são sempre possessivos em relação às suas mulheres. Talvez sua irmã tenha percebido isso e reagido… Afinal, ela teve a independência de deixar a casa paterna, fazer uma carreira. Mas deve saber melhor do que eu os motivos, pois cresceram juntas e não há uma diferença de idade grande. Você é a mais nova, certo?
— Não, ela é a caçula.
— Realmente? Bem... seus caminhos foram diferentes, as experiências diversas, daí a impressão de mais idade. Pareceu-me que Angélica aprecia, acima de tudo, ser o centro de todas as atenções. Já você se contentaria em ser apenas o centro da vida de Renzo, não é?
— E-eu… jamais seria absorvente demais. Sei o quanto ele precisa de tempo para criar sua música magnífica. Há uma carreira brilhante à sua frente, tem que dedicar-se…
— Pelo amor de Deus, não se torne uma dessas esposas apagadas, cara miai Há uma tendência dominadora em todos os homens e eles logo se aproveitam de uma atitude maleável, doce. Em muito pouco tempo, você estaria relegada a um papel secundário. É uma jovem bonita e charmosa, precisa ser vista ao lado dele em todas as ocasiões importantes. Lute contra essa timidez provocada por sua vida isolada. Se Renzo tivesse mesmo casado com Angélica, acredita que ela aceitaria apagar-se para deixar o marido brilhar?
— Oh! Nunca! Mas... posso fazer-lhe uma pergunta indiscreta, mamma?
— Sem dúvida, cara!
— Ficou desapontada por Renzo não ter se casado com minha irmã?
— Desapontada? Não, só um tanto surpresa. Serei sincera com você, embora o querido Stélvio seja dois anos mais novo do que Renzo, casou-se antes. Mônica é uma jovem italiana, muito linda e cheia de qualidades... eu a adoro. Sempre insisti com Renzo para distrair-se mais, mas ele me parecia interessado apenas no trabalho. Já começava a duvidar que algum dia o veria casado.
A condessa deu um sorriso tão enigmático quanto o do filho antes de prosseguir.
— Renzo me acalmava, jurando que, se por um milagre se apaixonasse, não deixaria a maravilhosa vida de solteiro. Mas, um dia, ele surgiu em Florença acompanhado por sua irmã. Tinham ficado noivos e me pareceram um par perfeito, não só na beleza. Ambos tinham a capacidade de entrar num recinto e tornar-se de imediato o centro das atenções... Um nunca colocaria o outro na sombra! Angélica brilharia ao lado do marido e eu julgava que Renzo precisasse desse tipo de esposa.
A condessa parou de falar, perdida em alguma lembrança distante, e Geórgia, sentada à beira da fonte, mergulhou os dedos na água.
Sem dúvida, uma mulher como Angélica ajudaria Renzo em sua carreira num ambiente onde a beleza reinava — o cinema! No entanto, onde estaria a segurança de que ela também não o trairia com qualquer homem atraente ou mais rico?
— Sempre acreditei que Renzo tivesse necessidade de uma esposa vistosa para chamar a atenção do mundo para sua carreira e não uma mulher com quem partilhar sua intimidade. Quando conheci Angélica, vi nela tudo o que faltava a meu filho para tornar-se um homem de sucesso entre os grandes nomes do cinema. Entenda-me, cara… Renzo, desde menino até hoje, jamais foi fácil de ser compreendido. Nunca teve o temperamento aberto e espontâneo de Stélvio e mantinha seus pensamentos inacessíveis a todos. Acabei julgando-o distante e orgulhoso e desisti de tentar decifrar sua personalidade enigmática. Não pense que o estou diminuindo! Apesar de muito mais inteligente, talentoso e brilhante do que Stélvio, ele é uma pessoa difícil para se amar. Espero não tê-la chocado, cara.
— Não… Eu entendo.
Era muito fácil ver esse aspecto do marido, mesmo estando casados há tão pouco tempo. Ainda não compreendia o homem cuja intimidade não ultrapassava as portas do quarto de dormir! Quando os beijos e as carícias ardentes culminavam num êxtase e vinha uma serenidade feita para ser partilhada, ele se retraía, encerrando-se numa concha. Geórgia então se esforçava para não sentir-se excluída por completo da vida dele!
Mas o amor tem tantas faces! A cada dia, ela descobria mais um aspecto dessa emoção complexa e apavorava-se, pensando se não seria mais sensato conformar-se com pouco e não tentar alcançar os picos mais altos.
— Acho que nós duas não conseguimos entender as complexidades de Renzo, não é? Já sentiu vontade de ter um filho?
— Sim, gostaria muito.
— E sua irmã não aceitaria esse fardo, certo?
— Bem… não sei.
— Eu sei! Com um corpo tão perfeito, para o que ela não poupa tempo ou esforço, Angélica lutará para mantê-lo assim enquanto for possível. — Notando o bolo apetitoso de chocolate ainda intocado, a condessa insistiu: — Coma um pedaço, cara, ou a cozinheira ficará ofendida. Além disso, você também não precisa preocupar-se com seu corpo, é perfeito. Se eu não estivesse um pouco nervosa devido à minha operação de amanhã, e portanto sem apetite, o experimentaria também. Mas você é jovem, apaixonada... o amor precisa ser bem cuidado.
— Está bem! A senhora conseguiu me convencer!
Enquanto se servia do bolo, Geórgia ouviu a música vinda de dentro da cada. Renzo estava criando o tema de amor de um novo filme, e ela suspeitava que apenas o trabalho conseguiria deixá-lo menos nervoso em relação ao dia seguinte. Quando fora decidida a operação da condessa, ele ficara extremamente abalado.
Todos os especialistas haviam afirmado que não haveria grandes riscos, mas, se a artéria não fosse reaberta, logo viria uma crise fatal.
— Deve achar a vida aqui em Londres muito diferente do que no campo, onde sempre morou, não? Barulhenta, agitada, o ar poluído pelo escapamento dos carros que não param de buzinar dia e noite! Você me parece ser do tipo que aprecia campos verdes, o cheiro de feno recém cortado, o som do vento nas árvores, a chuva… uma verdadeira filha da natureza, à vontade com a mudança das estações, não alguém para viver presos entre prédios, ruas e muros. Sabe, eu também me considero assim. Tenho uma pequena villa, muito rústica, nas colinas de Fiesole, perto de Florença, que herdei de minha mãe. Meus filhos nunca se adaptaram à vida sem luxos dos campo, mas passei ali as férias mais inesquecíveis de minha infância. Como tenho uma irmã, que mora na Grécia, esta propriedade não passou para o nome de meu marido, é apenas minha. Foi meu refúgio em momentos difíceis. Todos precisamos as vezes nos isolar e pensar. Há apenas um casal de velhos, caseiros, e a solidão inebriante dos grandes espaços livres.
Ao deixar a simplicidade agreste de Duncton, arrastada pela vingança implacável de Renzo, Geórgia julgara que iria morrer afastando-se de tudo o que mais amava. Entretanto, como por um passe de mágica, aquela mansão georgiana no centro de Londres passara a ser o único lugar no mundo onde desejava estar: ouvir a música criada pó ele, partilhar de sua vida, por mais breves que fossem os momentos de comunicações, andar pelas salas que refletiam a personalidade daquela homem… enfim, sentir-se próxima de Renzo, respirando o mesmo ar!
Por mais que tentasse diminuir essa emoção absorvente, estava irremediavelmente presa ao marido. Talvez um lado primitivo do seu temperamento vibrasse ao ser dominada por um homem autoritário, ou quem sabe o tivesse desejado desde o primeiro olhar… Provavelmente seu ideal masculino era ter para si Renzo Talmonte… ou homem nenhum no mundo!
Estava desafiando abertamente toda uma nova tendência de vida, apregoada pelas feministas, que desprezavam as mulheres tolas o bastante para mar e ceder a posição de comando ao homem amado, tanto na cama como na direção do lar.
— Seu sorriso demonstra muita satisfação, cara.
— Oh! É… é o bolo. Estava delicioso.
— Gosta de cozinhar?
— Fui cozinheira, lavadeira, arrumadeira e jardineira. Ainda me sinto um pouco estranha e inútil por não ter mais afazeres domésticos obrigatórios. Acho terrível apertar um botão para que uma criada faça o meu serviço. Lazer foi um luxo fora do meu alcance, jamais tive tempo para dedicar a mim mesma…
— Seu pai deve estar sentindo muita falta de sua presença…
— Eu…bem… não nos comunicamos desde o casamento. Ele não compareceu à cerimônia. Achou uma atitude indecorosa da minha parte aceitar o homem que tinha sido noivo de minha irmã. Meu pai sempre a tratou como a imagem da perfeição e queria que ela tivesse os mínimos desejos satisfeitos. Seu objetivo principal era a felicidade de Angélica. Mais eu não lhe roubei o noivo, jamais sonhei sequer em me casar com ele. Simplesmente… aconteceu!
— Sabe qual é a minha opinião sincera, cara? Você se deixou abafar pela personalidade forte de sua irmã! É uma criatura maravilhosa e julgo uma imensa injustiça o seu pai tê-la feito sentir-se culpada. Renzo soube dessa atitude reprovável?
— Oh! Sim…
Cenas vívidas voltaram a mente de Geórgia: a angústia, o desespero de romper com o pai, de abandonar a casa paroquial. Às vezes pensava que jamais conseguiria esquecer a expressão desdenhosa do reverendo Norman… como se ela estivesse quebrando votos de uma noviça! Uma mágoa profunda por ser apreciada apenas por suas qualidades domésticas ainda doía muito. Seu pai esperava que ela se negasse todos os prazeres, os mesmos que Angélica desfrutava com avidez!
— Perdeu-se em suas memórias, não é, cara?
— Lembrava-me de Duncton, onde ficava a paróquia de meu pai. Nunca tive intenções de ou ambição em sair de lá. Minha vida girava num ritmo constante e rotineiro, chegava a parecer eterno! Um lago tranqüilo…
— E então Renzo surgiu e atirou um seixo nas águas plácidas.
— Naqueles dias… o seixo mais parecia um racha colossal!
— Foi tomada de surpresa?
— Completamente!
— Entretanto, foi impossível dizer-lhe não…
— Ele não aceitaria uma recusa.
— Quer dizer que tentou resistir? Desculpe-me a curiosidade, mais há um lado dos filhos que as mães jamais conhecem, só as mulheres a quem eles amam.
— Eu realmente tentei, pois acreditava, e ainda acredito, que Renzo jamais se esqueceu de Angélica.
— Cara… eu…
— Não faz mal, mamma — mentiu Geórgia. — Ninguém mais do que eu conhece o poder de atração de minha irmã sobre os homens. Quando nós éramos crianças e nos fantasiávamos com as roupas de mamãe, Angélica sempre fazia o papel de Fada Morgana. É impossível para ela não partir os corações! — Como? Está dizendo que sua irmã magoou Renzo? Desdenhou o seu amor?
Geórgia hesitou, revendo como num sonho a paixão e a fúria da expressão de Renzo quando ele lhe mostrara as cartas vergonhosas de sua irmã.
— Creio que Angélica fechou as portas do coração de Renzo e jogou fora as chaves. Às vezes, chego a pensar que ela ainda permanece lá dentro, trancada… como ele julgou que fosse a verdade.
— Ele a julgava ainda dona de seu amor? Chega de evasivas, Geórgia. Que espécie de jogo sujo foi esse? Como Angélica tratou os sentimentos de Renzo? Tenho a impressão de que há algo mais nessa história e estão me escondendo. O que aconteceu realmente entre eles?
Geórgia viu a condessa colocar a mão sobre o coração e sentiu o mundo desabar. Soubera desde o início que a verdade não poderia ser revelada àquela senhora doente e quase provocara uma crise perigosa. Tinha que usar toda a sua habilidade para afastá-la dessa linha de pensamentos e tranqüilizá-la.
— Aconteceu exatamente o que lhe contei, mamma. Angélica sempre foi uma criatura de interesses intensos mas de pouca duração. Inquieta e agitada, mudava de uma paixão para outra em questão de dias. Há uma diferença muito grande em casar-se simplesmente e em ser a esposa de um homem com o temperamento de Renzo, ainda mais sendo uma modelo requisitada. Seu encanto pelo casamento desapareceu diante do fascínio supremo de continuar a brilhar nas passarelas.
— Jura que não está me escondendo nada? É bem típico de Renzo manter sua vida em segredo. E, como qualquer um pode ver o quanto você vive em função dele, seria muito fácil convencer a jovem e inocente esposa a dizer apenas o que ele quisesse! Talvez tenha até um pouco de medo de seu marido, não?
— Oh! Não! Na verdade, Angélica escolheu as luzes da fama à monotonia de ser apenas uma esposa. Pode imaginar Renzo permitindo que sua mulher posasse para revistas?
— Bem... talvez esteja sendo sincera. Mas ainda acredita que meu filho a ame, apesar de ter se casado com você?
— Angélica é belíssima...
— Ora! E você, não é?
— Não da mesma maneira…
— Ela apenas exibe o que você nem tem consciência de possuir, cara. Para sua irmã, atrair o sexo oposto é uma necessidade vital. Nota-se o seu instinto de conquistadora pela maneira de andar, ondulando os quadris mais do que você, vestindo roupas mais justas e curtas do que as suas... Só isso a torna mais atraente aos homens, fique certa disso!
Atônita, Geórgia fitou a mãe de Renzo. Aquela senhora um tanto distante, aristocrática e fina não era tão cega quanto seu pai. Não se deixara enganar pela aparência encantadora e superficial de Angélica. Vira mais longe e tinha percebido defeitos ocultos com muita habilidade. Já o reverendo Norman seria incapaz de acreditar em algum comentário maldoso sobre a filha, a luz de sua vida!
Se algum dia a verdade chegasse aos ouvidos dele…
Geórgia tentava bloquear as imagens chocantes que os fatos recentes revelados a ela sobre a vida de Angélica teimavam em despertar. Essas atividades degradantes destruiriam não só as ilusões mas a vida de seu pai. Quando os anjos transformam-se em demônios, nem sequer sentem-se culpados: não existe em suas almas nobreza suficiente para perceber o rastro de destruição deixado por sua queda. Mas aqueles que os amavam são arrasados e vivem o resto de suas vidas chorando a perda de ilusões por tanto tempo acalentadas.
— Sinto-me muito feliz por ver meu filho casado com você, cara. Você o fará feliz… ouça a melodia que ele está criando. Parece-me a melhor de todas até hoje! Renzo traz no sangue o amor do povo italiano pela música. Ê claro que eu tive sonhos de vê-lo criar sinfonias, tornar-se um mestre da música erudita ou compositor de belas óperas, como Puccini, um gênio, a alma lírica da Itália! Mas ele sempre seguiu apenas sua própria cabeça e fez apenas o que quis. Você tem algum dom artístico, Geórgia?
— Nenhum, a não ser admirar o talento.
— Não é verdade. Parece-me que seu dom consiste em criar harmonia e serenidade. Já notou como Renzo tem usado cada vez menos a bengala? Sempre acreditei ter sido o medo de falhar em público que o levou a depender de um artifício desnecessário. Agora, é como se começasse a se libertar de traumas antigos, como se as inibições em relação ao seu defeito tivessem diminuído. Ele lhe contou sobre o terrível acidente?
— Muito pouco... Só o essencial.
Como desejava conhecer mais sobre aquele homem, como queria estabelecer pontos e contato com o jovem sem complexos, com o rapaz a quem o acidente ainda não tornara amargo! O menor detalhe seria importante!, pensou ansiosa.
— Meus dois filhos sempre foram muito ativos e constantemente empenhados em competir entre si. Numa tarde em que disputavam uma corrida a cavalo, houve o acidente. Os dois saltaram um obstáculo, mas a montaria de Renzo tombou e caiu sobre ele, debatendo-se em agonia. Enfim conseguiram afastá-lo mas vários ossos da perna de Renzo estavam quebrados, quase esfacelados. Levado às pressas para o hospital, os médicos já se dirigiam para a sala de cirurgia, onde pretendiam amputar-lhe a perna, quando eu me opus com uma violência e uma obstinação inabaláveis. Colocaram pinos para soldar os ossos mas não tinham muitas esperanças.
A condessa limpou disfarçadamente uma lágrima antes de prosseguir.
— Pobre rapaz! Sentiu dores tão violentas e por tanto tempo... Foi nessa época que o temperamento de Renzo modificou-se por completo. Inseparáveis até o acidente, ele e Stélvio aos poucos foram se distanciando. Não mais podiam jogar tênis, correr ou lutar como dois jovens cheios de energia… Não mais estavam juntos nos salões de baile, disputando a jovem mais bonita... De uma vida sempre ao ar livre, Renzo passou a dedicar-se a atividades intelectuais. Retomou as aulas de música, que abandonara há alguns anos por desinteresse, e creio que foi essa a maior ajuda para que ele superasse as dores cruciantes. Tocava horas sem fim… Sei que tinha momentos de revolta profunda, sentia ódio de mim por não ter permitido que amputassem sua perna, pois uma artificial não lhe causaria tantas dores. Mas... o que eu poderia ter feito? Como ver meu filho, um rapaz atraente, ser obrigado a usar uma prótese? A teimosia dele venceu todos os desconfortos e seu defeito deixou de ser uma carga opressiva, mas, então, Renzo já não era mais o mesmo. Tinha se tornado um homem, e um homem difícil de ser compreendido.
— Deve ter sido um período terrível para vocês dois, não só para Renzo…
— Uma mãe faz o que julga melhor para o filho: nunca; erra propositalmente. Algum dia me compreenderá, Geórgia. Espero e rezo para viver o bastante e poder embalar em meus braços o filho de Renzo.
Ajoelhando-se ao lado da cadeira da condessa, Geórgia pousou o rosto sobre a mão frágil, quase transparente.
— Mamma, sua operação lhe proporcionará muitos anos de vida. Hoje se fazem milagres com novas técnicas e aparelhos especiais. Logo estará se sentindo tão bem quanto uma garotinha.
— Fico feliz por vê-la com tantas esperanças.
— Mas a senhora também precisa acreditar! Com fé, a metade da batalha já está ganha, e a senhora a teve quando acreditou na cura de Renzo. Sabia que ele tinha condições de derrotar todos os obstáculos, aquelas dores terríveis. Como eu gostaria…
— De quê, cara?
— De ter estado com ele nessa época... Gostaria de poder dar-lhe algum conforto. A dor sempre é mais atemorizante à noite, não é verdade? Eu era ainda uma garota quando minha mãe adoeceu e lembro-me de haver uma luz sempre acesa ao lado da cama dela. Não importava o quão tarde fosse, meu pai permanecia ali, lendo algum trecho dos livros que ela amava. Pela porta entreaberta, Angélica e eu ouvíamos o suave murmúrio da sua voz, lendo ou consolando-a, e também nos sentíamos confortadas por saber que mamãe nunca ficava a sós com sua dor. Procuro lembrar-me de meu pai como ele era naquela época: um homem amoroso, numa vigília constante à beira da cama da esposa até a noite em que ela se foi. Chamou-nos para que víssemos a paz em seu rosto e nunca tivéssemos medo da morte. É um longo sono sereno e sem ansiedades, não há mais dor ou angústia… gosto de pensar que nossas almas se transformam em pássaros ou borboletas, deslizando sobre a água, rebrilhando ao sol...
Uma voz irada ecoou na sala.
— Como ousa tocar num assunto fúnebre assim na frente de minha mãe? Não tem uma migalha de bom senso nesse seu cérebro infantil? Ou é tão imbecil a ponto de não perceber o alcance de suas palavras?
Como se tivesse se transformado numa estátua, Geórgia permaneceu imóvel, os lábios entreabertos, quase sem respirar. A violência de Renzo a deixara arrasada e sem ação.
Naquele instante, o homem que a fitava com evidente repulsa não era apenas o estranho que se transformava numa criatura acessível durante os momentos de paixão. Um inimigo hostil e cheio de ódio, emanando uma frieza glacial que a congelou até o fundo da alma, a encarava como se fosse agredi-la.
— E-eu… não tive… intenção.
— Renzo! Seu tom de voz foi extremamente grosseiro e desnecessário. Magoou sua esposa de uma maneira imperdoável! Veja como ela está lívida.
— Geórgia não tinha o direito de abordar um assunto tão impróprio na sua presença, uma falta de sensibilidade que chega às raias da inconsciência. Tenho todo o direito de censurá-la por tagarelar como uma criança, em vez de agir como uma mulher adulta. Não há desculpas para tal irresponsabilidade.
As palavras cruéis de Renzo atingiram-na com o impacto de uma agressão física. Num salto, ela ergueu-se e, sem dizer nada, saiu da sala correndo, antes de perder o pouco controle que lhe restava. Seus olhos ardiam de lágrimas contidas mas prestes a rolarem pelas faces rubras de vergonha.
Por alguns segundos, ela sentiu um ódio corrosivo contra aquele homem brutal e insensível, mas, ao lembrar-se de quanto a doença da mãe o deixava nervoso, tentou controlar-se.
A operação seria nas primeiras horas da manhã seguinte e já há uma semana Renzo não dormia, passando as noites a caminhar pela saleta da suíte. Mas, mesmo dando-lhe a desculpa de estar à beira de um colapso nervoso, não havia condições de justificar a atitude grosseira e agressiva. Gritar com ela como se fosse uma criança desmiolada e, acima de tudo, diante da condessa, era um abuso imperdoável.
Não poderia ao menos ter esperado até que estivessem a sós?, refletiu angustiada.
No vestíbulo, Geórgia parou, sem saber onde se esconder. Não queria ir para seu quarto, onde a presença de Renzo era forte demais e as lembranças perturbadoras!
Ao acaso, abriu uma das portas e viu-se na biblioteca sombria e silenciosa. Encostando-se contra a porta que acabara de fechar, Geórgia caiu num pranto convulsivo.
As paredes cobertas de livros encadernados em fino couro testemunhavam, impassíveis, a fragilidade do espírito humano. Depois de tantos dilemas mais difíceis de serem superados, algumas frases ditas num tom de voz alto e ríspido haviam desencadeado um desespero incontrolável!
Só depois de alguns minutos Geórgia teve a certeza de que não fora seguida pelo marido e sentou-se em uma das amplas poltronas de couro, diante da lareira apagada, tão fria e sem vida quanto ela.
Ante seus olhos úmidos, as letras douradas nas lombadas de centenas de obras-primas da literatura, reunidas por Renzo, dançavam imprecisas. Quantas tragédias, paixões e lutas havia naquelas páginas… tantos homens e mulheres perdendo-se em desencontros de opinião, cultura ou temperamento! Quantos amores destroçados e tão belamente descritos…
Mas palavra alguma, mesmo escrita pela pena genial de um grande autor, doía com a mesma intensidade do sofrimento sentido na própria carne!
Geórgia mal conseguia acreditar que Renzo tivesse perdido o controle e a tratado com tal grosseria diante da mãe. Que tipo de atitude era essa da parte de um homem recém-casado e supostamente apaixonado pela bela e jovem esposa? Ele se mostrara descontente e sem paciência com um casamento que, a olhos observadores, se mostraria vazio de qualquer vestígio de paixão.
Com uma única ação, Renzo destruíra todos os esforços — nada fáceis — de mostrarem à condessa a aparência de um casal feliz. A velha senhora, muito mais perceptiva do que deixava transparecer, iria suspeitar da existência de algum problema bastante sério entre os dois.
No entanto, tinha sido ele o mais determinado a mostrar à mãe o quanto viviam bem, apaixonados como dois "pombinhos" saindo em lua-de-mel. Aliás, uma demonstração que se fazia necessária para provar que não restara arrependimento ou mágoa ante a decisão de sua ex-noiva ao deixá-lo em favor de uma carreira brilhante.
Geórgia já sentira ódio ao ser forçada a aceitar aquele casamento, mas tinha conseguido superar sua revolta e tentara, de todas as formas, adaptar-se ao temperamento imprevisível do marido, fazendo o possível para agradá-lo durante aquela primeira semana de casados.
Mas a ferocidade daquele ataque, uma explosão tipicamente latina, provocara o renascimento de sua raiva! E ela apenas julgara estar fazendo um bem à sogra ao transmitir-lhe sua crença na imortalidade da alma. Ao contar sua atitude no período trágico em que perdera a mãe, Geórgia tinha procurado evidenciar a beleza de um mundo onde tudo se renova sob as mãos divinas.
Cerrando os dentes, ela lutou para abafar sua mágoa. Estava sendo egoísta e infantil. Sua sogra iria atravessar dias difíceis. Frágil e idosa, se submeteria a uma perigosa cirurgia. Por respeito à situação da condessa, precisava deixar seus problemas num plano secundário.
A rispidez de Renzo devia ser afastada de seus pensamentos ainda que dificilmente chegasse a perdoá-lo por completo. Tinha a impressão nítida de que seu marido se esforçava por destruir e arrasar a sua sensibilidade e idealismo, qualidades que a tornavam completamente diferente de Angélica. Ao se conhecerem um pouco mais, esses detalhes tornavam-se mais evidentes e as diferenciavam, restando apenas a semelhança física.
Geórgia podia suportar que Renzo a possuísse, certo de ter nos braços a mulher amada; aceitava vestir-se como uma princesa para lembrar-lhe a fascinante modelo… Tudo era válido pelos momentos arrebatadores de paixão física, mas, se ele pretendia mudar sua personalidade, moldando-a à semelhança de Angélica, iria enfrentar uma guerra!
Ela passou o resto da tarde escondida na biblioteca, tentando avaliar seus sentimentos e o rumo que deveria dar à sua vida. Só pouco antes do jantar voltou para o quarto a fim de vestir-se. Estava terminando de abotoar o vestido de gaze, em tons degrades de azul, quando Renzo entrou.
— Então? Continua ofendida e cheia de ressentimentos, cara?
— E você? Continua ofensivo e grosseiro?
Ele se aproximou e fitou-a com ódio.
— Onde estava com a cabeça? Minha mãe já se sente terrivelmente nervosa, sua operação será em menos de vinte e quatro horas… Não precisava ser perturbada, ainda mais com discussões sinistras sobre morte e almas voando como passarinho! Essas suas idéias mórbidas devem ser o resultado de ter passado toda a sua vida numa casa ao lado de um cemitério!
— Talvez… Só que minha intenção não foi deixá-la ainda mais nervosa e sim tranqüilizá-la. Simpatizei com sua mãe à primeira vista e, se meu intuito fosse perturbá-la, eu estaria agindo com uma maldade infinita. Posso ter inúmeros defeitos, mas esse não é um deles. Houve em minha vida uma experiência muito preciosa sobre a morte e recebi-a de meu pai. Ele mostrou um carinho profundo por mamãe, nos momentos de dor; ensinou-me como enfrentar as tristezas sem perder o controle ou deixar-me dominar pelo desespero. Quis partilhar uma visão menos amarga sobre o sofrimento e tenho certeza absoluta de que a sua mãe compreendeu perfeitamente bem a minha intenção... Enquanto você torceu minhas palavras!
Geórgia foi até a cômoda para colocar os brincos, mas, ao sentir as mãos de Renzo sobre seus ombros nus, afastou-se dele, sobressaltada.
— Não… não quero que me toque!
— Ah! Então eu tinha razão! Continua ofendida, com raiva e disposta a castigar-me, negando-me seu corpo, é isso?
— Não, Renzo. Não quero brigar com você pois imagino o quanto está ansioso com a saúde de sua mãe. No entanto, não posso aceitar essa atitude dupla! Grita comigo, me rebaixa diante de outras pessoas e depois vem à minha procura como se nada tivesse acontecido. Embora você jamais tenha me visto como uma criatura com idéias e sentimentos próprios, lembre-se ao menos de que não sou apenas um corpo de mulher!
Mas ele nem sequer tomou conhecimento da recusa de Geórgia e puxou-a de encontro ao seu peito.
— Ora, donna… deixe de dramatizar a situação. Sou eu quem tem todos os motivos para sentir-me ofendido, com direitos de castigá-la por sua insensatez. E essa irritação está aumentando a cada palavra sua, já que meu estado de espírito esta noite não é nada apropriado para debater "probleminhas" existenciais com uma esposa… adolescente. Pela idade, você deveria ser uma mulher madura, mas sua experiência de vida a torna uma garota tola de mais ou menos quinze anos! Faça o impossível para conscientizar-se de sua posição como esposa e deixe de bancar a ofendida. Trate de apoiar o seu marido numa situação difícil... É esse o seu dever! Estou terrivelmente tenso e preocupado.
— Sei o quanto você teme pela vida de sua mãe. Mas, mesmo assim, não tinha o direito de gritar comigo diante dela. Sua reação grosseira não ajudará nada, nem a ninguém, a superar esta crise. Passei a tarde toda tentando convencê-la da nossa felicidade conjugal…
— E não é verdade?
Renzo estava muito próximo dela, mas, pela primeira vez, o calor que emanava daquele corpo másculo não a perturbou. Seus sentimentos mais profundos tinham sido atingidos, a tentativa de destruição de seus valores mais queridos ainda era recente demais.
— Só conseguimos uma parcela de felicidade, muito breve e fugaz. Existe uma comunicação entre nós apenas quando estamos… ali. — Geórgia indicou a cama com um gesto, surpresa por ter tido a coragem de declarar o que considerava ser uma verdade inconfessável e vergonhosa.
Renzo olhou para a cama já preparada para a noite, os lençóis de cetim brilhando convidativos e, em sua expressão, evidenciou-se o desejo nascente.
Geórgia recuou ainda mais. Ali haviam passado horas de prazer intenso, vibrando como se fossem um único corpo, numa fusão perfeita de emoções. Ali ele murmurava apenas palavras sensuais e a envolvia na intensidade de uma paixão delirante. Não a agredia ou gritava…
As lembranças daqueles momentos eram muito perigosas pois poderiam fazê-la esquecer sua mágoa, mergulhando no mundo das sensações, e não queria transformar-se nesse tipo de mulher!
— Desde a primeira noite em Sandbourne, você não quis de mim nada além do meu corpo. Em cada hora, minuto e segundo que passávamos juntos, apenas quando me tinha em seus braços sentia-se satisfeito e era acessível. Passada a emoção do encontro físico, fechava-se em seu mundo, ignorando a minha presença. Quer por força esquecer que sou eu a sua esposa e, hoje à tarde… conseguiu! Falou comigo como se me considerasse uma criatura abaixo de todos os padrões aceitáveis, diminuiu-me e arrasou-me por completo. É como se todos os momentos em que estivemos juntos fazendo amor não tivessem significado nada, não houvessem criado um mínimo de afeição por mim… nem uma migalha!
Os olhos de Geórgia faiscavam como as safiras que adornavam seu colo e, como as pedras preciosas, emanavam um brilho perigoso e frio.
— Oh, meu Deus! Se eu pudesse, o abandonaria esta noite! Sairia desta casa, onde não significo nada além de uma presença em sua cama! Mas nós dois sabemos que não posso seguir
esse impulso. O seu querido irmão deveria estar aqui ao seu lado, dividindo com você as preocupações e a angústia do dia de amanhã, enquanto durar a operação de sua mãe. Como ele
não cumpriu seu dever filial, ou não lhe avisaram para que pudesse fazê-lo, eu ficarei e partilharei esses momentos penosos por consideração a ela, não a você! E… sabe o que mais? Não há a menor diferença entre vocês dois, ambos são feitos do mesmo barro! Disputaram durante toda a juventude para provar quem era o melhor nos cavalos, no tênis, nas competições de natação. Hoje, é Angélica, certo? Os dois a tiveram mas nenhum venceu!
As palavras ecoavam no quarto e Renzo parecia a ponto de sacudi-la até que passasse a crise de histeria quando uma batida à porta interrompeu uma situação que ameaçava tornar-se violenta e sem possibilidades de retorno.
Ao abri-la, Renzo deparou-se com Torrence, pálido e transtornado.
— Desculpe-me incomodá-lo, signore, mas… sua presença no quarto da condessa é indispensável. Ela não está bem e...
Renzo nem esperou que o mordomo terminasse de transmitir sua mensagem e Geórgia perguntou ansiosa se alguém já havia telefonado para o médico.
— Ainda não, achamos melhor que o signore…
— Não faz mal, eu providenciarei tudo, Torrence. Geórgia correu para o telefone e discou o número da residência de sir Richard Jarmon, que lhes fora dado exatamente para o caso de uma emergência. Por sorte, encontrou-o em casa, à mesa do jantar.
Quando ouviu a explicação de Geórgia sobre a súbita crise da condessa Talmonte, ele não hesitou um segundo.
— Irei imediatamente!
A urgência na voz do médico deixou-a ainda mais transtornada. Ele não ficaria tão aflito se não houvesse sérios riscos! Ao desligar o telefone, notou que Torrence permanecia parado à porta, hesitante e extremamente apreensivo.
— Oh! Madame… todos nós estávamos rezando para que a condessa resistisse até que pudesse ser feita a operação…Ela é uma senhora tão cheia de calor humano, afetuosa…
O mordomo a fitava como uma amiga, alguém em quem podia confiar, e não mais como no dia de sua chegada a Hanson Square. Naquela ocasião, fora olhada com um certo desdém, como uma jovem inexperiente, sem desembaraço social e pouco interessada em ocupar-se com a casa.
Durante os dias de convivência, tinham aprendido a respeitá-la, não só por sua gentileza em dar-lhes ordens como pelo esforço incessante de tornar a vida do signore mais serena e agradável.
Nas conversas noturnas depois de servido o jantar, todos os criados eram unânimes em considerá-la uma jóia de raro valor entre as jovens modernas, tão sem modos, egoístas e pouco interessadas em criar um ambiente familiar harmonioso.
— Eu também tenho rezado tanto, Torrence! O coração dela está tão debilitado que qualquer crise poderá… — Ela se interrompeu ao ver Cosima entrar no quarto às pressas, a fisionomia transtornada e lágrimas correndo-lhe pelas faces.
— Por favor, corra! A condessa quer vê-la… e não creio que haja muito tempo!
Geórgia jamais soube como atravessou os corredores que ligavam a ala norte à ala sul da mansão. Lembrava-se apenas da sogra, muito pálida, os lábios azulados, apoiada por inúmeros travesseiros.
Renzo segurava as mãos da mãe, esfregando-as delicadamente como se quisesse transmitir-lhe seu calor e energia.
Quando entrou no quarto, ele a fitou de um modo que Geórgia jamais esqueceria: uma angústia infinita, uma impotência profunda diante de algo que não poderia ser controlado ou modificado… O inevitável!
— Cara bella…
Ao ver a nora, um brilho tornou mais vivos os olhos da condessa, que, com esforço, soltou suas mãos das do filho e estendeu-as para Geórgia, num convite cheio de amor e compreensão.
Os dedos frágeis e muito, muito frios descontrolavam Geórgia por completo. Não era possível! A condessa precisava agüentar apenas mais algumas horas e a operação poderia ser
efetuada. E então ela voltaria a sentir-se bem, sem esses ataques e palpitações que a impediam de respirar. O destino não podia ser tão cruel… Outra vez perderia uma amizade que só existia no coração de uma mãe! Sem a sogra, dificilmente resistiria às pressões do seu casamento!
— Poupe suas forças, mamma… — suplicou ela, — O médico já deve estar chegando e logo lhe dará um remédio!
— Não existem mais dores. Nem angústias… foram estas as suas palavras, não é, cara? Como me ajudou a nossa conversa desta tarde... Só sinto não haver mais tempo para conhecê-la melhor, você me deu a sensação feliz de ter encontrado uma filha.
Geórgia já não podia conter as lágrimas e percebeu que a condessa colocava a sua mão entre as do marido. Um olhar cheio de compreensão revelou-lhe que a sogra percebera toda a verdade oculta atrás da farsa de recém-casados felizes e, com aquele gesto, quisera uni-los ao menos por sua bênção.
— Lembre-se, cara… às vezes precisamos da solidão para pensar… ficar sozinhos…
Foram as últimas palavras daquela senhora que, através do pior, notara a falta de um elo mais profundo entre um par ainda inexperiente nos caminhos tortuosos e difíceis de um casamento.
Ela, indiretamente, pedira a Geórgia para suportar os problemas e a dificuldade de amar Renzo, o filho que sempre se mantivera distante e fechado. Tão menos afetuoso que Stélvio, mas o único presente ao seu lado no momento da partida… Sua derradeira sensação devia ter sido a do contato das três mãos unidas num gesto de amor silencioso. Renzo soltou um soluço estrangulado e Cosima desatou num choro de desespero. O quarto se encheu de tristeza diante da presença cruel da morte!
Geórgia foi invadida por lembranças penosas do sofrimento de sua própria mãe e, sentindo que perdera a madre, uma substituta do envolvente amor materno, ajoelhou-se ao lado da cama. A luz suave do abajur brilhava em seus cabelos, transformando-os num halo dourado, e Cosima teve a impressão de estar vendo um anjo…
— Eu a amei, mamma. Sinto-me feliz por tê-la conhecido, ainda que por tão pouco tempo.
Quando Geórgia levantou a cabeça, encontrou o olhar de Renzo fixo sobre ela. Havia uma dor profunda e o brilho de lágrimas mas, acima de tudo, aquele olhar anunciava distância e recusa em receber qualquer tipo de consolo.
— Quero ficar sozinho com minha mãe.
Tomando o braço de Cosima, Geórgia saiu do quarto, deixando a sós aquele homem incapaz de partilhar suas emoções. Alegrias ou tristezas sempre pertenceriam a ele apenas…
Conseguiria algum dia ultrapassar as barreiras desmedidas com que Renzo rodeara seu coração?, pensou. Toda uma vida fechada dentro de si mesmo não seria fácil de modificar. No entanto, ela imaginava existir uma riqueza imensa de sentimentos contidos naquela alma de artista. Só alguém de grande sensibilidade teria a capacidade de criar melodias tão belas, de um romantismo mesclado de sensualidade.
Ah! Como ela ansiava ter acesso a esse mundo glorioso, dividindo com Renzo todos os prazeres e tristezas que a vida traz…
Mas aos poucos começava a perder as esperanças, descrente por senti-lo mais longe e distante do que jamais estivera antes!
A profundidade do ressentimento de Renzo em relação a Stélvio só foi percebida por Geórgia quando seu marido afirmou categoricamente que a condessa seria sepultada num cemitério inglês.
— Stélvio que vá para o inferno! Foi cercado de amor e carinho e retribuiu tanta afeição com ausência no momento em que sua presença seria obrigatória. Não partilhou a dor ou a angústia e não haverá lugar para sua opinião agora. Eu decidi que mia madre será enterrada no solo da terra onde construí meu lar. Não pretendo retornar à Itália!
Renzo escolheu um cemitério no meio de um bosque, nos arredores de Londres, e, na capela simples de pedra cinzenta, repousou o caixão da condessa Evelina Talmonte. Apenas flores brancas enfeitavam o recinto, perfumando-o com sua fragrância intensa.
Geórgia preferiu ir sozinha à capela para passar as últimas horas ao lado da mamma e, ao mesmo tempo, rememorar sua verdadeira mãe, tão cedo perdida. Entre os vitrais coloridos e as flores, a morte já não era mais uma presença assustadora e sim um estado de serenidade e paz.
Apesar de ter desencadeado uma explosão de raiva em Renzo no último dia de vida da mãe, Geórgia sentia-se extremamente feliz por terem conseguido uma oportunidade de conversar sobre assuntos tão importantes.
Talvez, sem que nenhuma das duas soubesse, uma premonição as fizera se abrirem com tanta sinceridade. A tarde cheia de sol não poderia evocar uma idéia tão fúnebre como a morte, mas ambas haviam conversado como se a intuição as prevenisse de que aquela seria a última chance.
Rezando fervorosamente, Geórgia agradecia a Deus que a sogra não tivesse sofrido, pois seu ataque viera muito rapidamente.
De acordo com Cosima, Evelina estava se penteando enquanto ela preparava o traje a ser usado no jantar. Quando se levantou da penteadeira, deu alguns passos em direção à cama e, murmurando algo incompreensível, só não caiu porque Cosima a amparou. Deitando-a sobre o tapete, ela julgou que uma bebida forte pudesse reanimá-la e chamou Torrence. O mordomo, ao ver a aparência da mãe de Renzo, correu para chamá-lo.
Tinha sido o filho a carregá-la até a cama e, em menos de meia hora, tudo havia terminado. Após alguns minutos, sir Richard Jarmon chegava à mansão de Hanson Square e confirmara a morte por parada cardíaca.
Geórgia aproximou-se do caixão e fitou por um longo tempo a fisionomia serena da mulher cuja amizade teria sido tão importante para ela. Se não a tivesse perdido, talvez seu casamento pudesse algum dia se tornar um verdadeiro relacionamento conjugal. Agora, já não tinha mais esperanças.
Evelina, através de seus próprios sofrimentos, desenvolvera a capacidade de sentir as vibrações dos seres que amava. Notara a distância entre o filho e a nora, apesar de ter visto claramente a atração física entre os dois. Com sua compreensão e diplomacia, teria conseguido aproximá-los, mas o destino não o permitira…
Geórgia pegou um dos magníficos crisântemos colocados em torno do rosto plácido, agora sem as marcas de um sofrimento que a acompanhava há anos, e guardou-o em sua bolsa. Tinha implorado a Renzo para entrar em contato com Stélvio, comunicando-lhe o dia do enterro. Mas quem conseguia dobrar a Vontade férrea daquele homem?
Renzo recusara-se a tomar a menor providência! Mônica, que deveria chegar à Inglaterra dentro de algumas horas, supunha que seu marido estivesse em algum ponto do Adriático, no iate de um amigo, num cruzeiro sem roteiros estabelecidos e, provavelmente, ainda na companhia de Angélica. Era quase impossível localizá-lo!
— Eu já lhe disse, cara! Quero vê-lo arder no fogo do inferno e não moverei uma palha para dar-lhe o "prazer" de vir ao funeral de nossa mãe. Agradeço a Deus por ela jamais ter desconfiado de como o esposo perfeito, o filho adorado e o pai amoroso mostrou-se pouco digno de sua confiança. Por mim, ele e sua vagabunda podem afundar bem no meio do oceano!
Não havia como discutir com Renzo quando ele se enfurecia e já estavam quase desaparecendo de sua memória os dias em que não o via cheio de ódio e raiva. A doença da mãe o transformara demais e fechava-se a qualquer conselho, palpite ou tentativa de consolo.
O fato de a condessa ser sepultada na Inglaterra e não no túmulo da família em Florença perturbava Geórgia profundamente.
— Por Deus, Renzo! Sem dúvida, ela gostaria de repousar ao lado do marido. Seu pai está enterrado lá, não é?
— Ele morreu há muito tempo, quando seu avião explodiu, e apenas cinzas restaram. Havia uma mulher em sua companhia, jamais conseguimos identificá-la. No túmulo da família misturaram-se as cinzas de meu pai e as da desconhecida que o acompanhava… Acha que minha mãe faria questão de ficar ao lado dele? Deixe de alimentar fantasias românticas sobre a vida, a realidade é bem diferente.
Enquanto relembrava o tom áspero de Renzo ao falar com ela — agora uma atitude constante —, Geórgia cruzou o parque em frente à capela. Ia atravessar a rua quando um Porsche prateado parou à sua frente, impedindo-lhe a passagem.
— Ei! Quer uma carona? Lembra-se de mim? Fui o cavalheiro que a entregou ao seu marido na igreja!
— Oh! Bruce! Como vai?! — exclamou Geórgia, sem conseguir ocultar o tom de alegria em sua voz, e, sem hesitar, ela entrou no carro. — Ë tão bom vê-lo outra vez! — Concordo plenamente! Sinto muito pela morte de sua sogra… você deve ter sofrido, apesar de conhecê-la muito pouco, mas Evelina era uma mulher que cativava todos à primeira vista. Eu a conheci há muitos anos em Florença e, se não tivesse idade para ser minha mãe, me apaixonaria por ela!
— Apesar de termos tido muito pouco tempo, nos tornamos amigas. Eu tinha tantas esperanças nesse novo tipo de operação! Infelizmente, ela não agüentou…
— Soube da notícia através de Flávia e imediatamente entrei em contato com Renzo para oferecer minhas condolências. Pelo tom de voz, percebi o quanto ele estava perturbado, mas nada me preparou para sua reação violenta ao lhe perguntar quando iria enviar o corpo da mãe para a Itália. Respondeu-me com uma fúria contida que o enterro seria em Richmond, na sexta-feira.
— Renzo é teimoso e não há como fazê-lo mudar de idéia… Tentei argumentar mas ele não dá ouvidos a ninguém, ainda menos a mim. Não faz nada para avisar o irmão e recusa-se a tomar qualquer providência nesse sentido. Tenho a impressão de que, quando ele se decide a tomar um rumo, nem um furacão ou um maremoto o faz mudar sua meta!
— Ë a pura verdade… E eu sei qual é o grande problema que os tornou praticamente inimigos. É algo ligado à sua irmã.
— Oh... ainda bem que você sabe! Ë tão desgastante fingir o tempo todo! Fica bem mais fácil…
— Mais fácil para nós dois, Geórgia?
— S-sim...
Pela primeira vez em muitos dias, ela percebeu a tensão diminuir e uma certa alegria por sentir-se viva! Quando Renzo estava presente, tinha a impressão de encontrar-se ao lado do Vesúvio prestes a entrar em erupção! Luto, ódio e amargura se mesclavam numa torrente violenta de lava vulcânica que, a qualquer momento, alcançaria seu limite máximo, destruindo tudo à sua volta!
— Está precisando de um ombro amigo para ouvir suas confidências? Posso ser considerado um confidente ideal: sou discreto, compreensivo e sei ouvir. Não se acanhe se necessitar de apoio. Ouça! Vou almoçar sozinho, bem perto daqui. Que tal poupar-me a tristeza de uma refeição solitária fazendo- me companhia? Não tem nenhum compromisso urgente que a obrigue a voltar logo para casa, certo?
— Na verdade, nada nem ninguém está à minha espera…
— Maravilhoso!
Bruce parecia tão entusiasmado que Geórgia olhou-o extremamente surpresa. Era um homem muito atraente e as mulheres da sua vida com certeza seriam beldades exóticas e atrizes fascinantes que ele dirigia em seus filmes. Por um momento de ansiedade, ela pensou no quanto ele saberia sobre Angélica e se tinha conhecimento de certos aspectos obscuros e sensacionalistas de sua carreira no cinema... e na vida particular!
— Não consigo imaginá-lo almoçando ou jantando sozinho!
— E por que não? Acha que vivo rodeado por estrelas de cinema sedutoras e famosas?
— Deve ser assim a maior parte do tempo, não?
— Tempo demais! Coloque um homem numa estufa entre orquídeas magníficas… Em poucas horas, ele estará desesperado por respirar o ar puro e o perfume das mais singelas violetas! Pode imaginar que, desde as sete horas da manhã, estive tentando filmar uma cena com Amanda Miles? Céus! Foi uma das experiências mais exaustivas de toda a minha vida. Ela aparece nas telas como um anjo de candura e não gagueja nem uma vez sequer, não é? Pois nos ensaios, minha amiga, é bem diferente! Amanda não tem um pingo de inteligência, mal consegue decorar duas frases de cada vez e as esquece num piscar de olhos. Além desse pequeno "defeito", é temperamental, caprichosa e exige ser o centro de todas as atenções ou se torna decididamente venenosa!
— Que manhã terrível! Sua profissão não é tão glamourosa quanto pensam os fãs do cinema…
— Ê bem pior! Portanto, acredite quando lhe digo que tê-la ao meu lado agora é a paz depois do caos. Só de olhar para você, sinto-me repousado.
Geórgia sorriu discretamente, imaginando que a maioria das mulheres reagiria mal ao ser julgada "repousante". Preferiam ser consideradas excitantes, estimulantes. Mas ela compreendia muito bem a necessidade de Bruce. Também passara uma manhã debatendo-se entre pensamentos conflitantes e seria um alívio passar algumas horas serenas, sem pensar nos problemas ainda sem solução.
— Onde iremos almoçar?
— Num dos meus restaurantes prediletos. Para mim, o mais importante é a qualidade da comida, não a decoração vistosa e um luxo desnecessário, usado apenas para disfarçar a falta de um bom cozinheiro. Além disso, esses lugares da moda estão sempre cheios de executivos, alertas a qualquer boato e distribuindo sorrisos aos diretores dos bancos ou a qualquer indivíduo de uma certa importância… Ë um circo! O Silk Lantern não se parece nada com esses mercados de peixe, você vai gostar.
— Tenho certeza de que sim. — Abaixando o olhar, Geórgia perguntou timidamente: — Irá ao funeral, Bruce?
— Provavelmente sim. Sabe, eu entendo bem a decisão de Renzo em escolher um cemitério inglês para a mãe. Ele vai tão raramente à Itália… A última vez… bem, não me lembro. — Bruce calou-se, aborrecido por ter tocado naquela visita a Florença junto com Angélica. — É reconfortante poder colocar flores no túmulo, sentir-se perto. Mônica virá?
— Chega hoje de Roma…
Como ia ser difícil o encontro com a esposa de Stélvio! Mia deixara o filho com os pais na Itália e permaneceria em Hanson Square, nos dias de sua estada na Inglaterra. Haveria condições de esquecer que a esposa de Renzo era a irmã da mulher que lhe roubara o marido?, refletiu.
Tudo que a condessa tinha mencionado a respeito de Mônica, despertara-lhe o desejo de conhecer aquela jovem com qualidades tão semelhantes às suas, mas a aproximação entre elas apresentaria obstáculos intransponíveis que só a boa vontade de ambas poderia superar.
Da mesma forma que com a mãe de Renzo, uma amizade com a cunhada ajudaria a tornar seu casamento mais sólido, menos frágil diante de problemas que fatalmente surgiriam no futuro, em especial se sua irmã fosse abandonada por Stélvio e voltasse disposta a conquistar o seu marido!
— Percebe-se que está bastante preocupada com esse encontro, Geórgia.
— Realmente, sinto-me despreparada para enfrentar uma esposa magoada e ferida, por alguém tão ligado a mim.
— Precisa reagir à tendência de sentir-se responsável pelos sentimentos dos outros, minha cara. Não imagina como as pessoas conseguem reagir e superar os problemas mais sérios, se continuar a ter essa sensibilidade excessiva, sofrerá muito… principalmente no amor.
— Que palavras cheias de ceticismo, Bruce! Nunca o julguei um homem descrente...
— Considero-me apenas cauteloso. O trabalho me colocou num mundo onde o amor dura uma semana quando as pessoas têm muita sorte! Esse sentimento toma a forma de uma emoção banal e facilmente substituível. Desde os dezesseis anos, vivo nesse meio. Eu era um garoto pobre mas fascinado pelo cinema e comecei fazendo o que ninguém mais se dignava a aceitar. Hoje estou no topo! Em todos estes anos, além de tornar-me um perito na arte cinematográfica, aprendi algo ainda mais importante: conhecer as pessoas! Encontrei os tipos mais variados, dos mais encantadores aos mais repulsivos, mas todos ambiciosos ao extremo. Siga o meu conselho: mantenha uma barreira sólida protegendo sua sensibilidade, não se envolva demais nos problemas dos outros e no final vai ver que seu sofrimento não será tão profundo.
— Sem dúvida, você tem razão, Bruce, mas... já é tarde demais no meu caso.
Era tarde demais também para retirar aquelas palavras reveladoras, que fizeram Bruce encará-la cheio de suspeitas.
— Seja sincera, Geórgia. Renzo a está fazendo sofrer?
— Não é intencional… pelo menos creio que não. Ele fecha-se e repele qualquer aproximação da minha parte. Emocionalmente meu marido não me aceita. Talvez eu tenha sido;romântica demais sonhando com o impossível, pois sempre acreditei que o casamento significasse uma comunicação total em todos os níveis…
— Por que se casou com ele, Geórgia? Não posso nem calcular o número de casamentos que presenciei, e juro, nunca vi uma noiva igual a você. Parecia estar vivendo um sonho, nada era real, principalmente o seu noivo. Eu a entreguei a Renzo mas deveria mesmo tê-la arrastado para fora da igreja antes da cerimônia! Assim não estaria com esse anel em seu dedo…
— Por favor, Bruce, não continue…
Bruce tomou a mão delicada entre as dele e tocou a aliança pesada como uma algema!
— Foi pressionada de algum modo, tenho certeza! Sei que jamais contará a verdade, porém conheço bem o meu amigo! Ha um lado obscuro e violento em sua personalidade, e uma jovem meiga como você não seria uma oponente à altura de Renzo caso ele usasse força ou capacidade de sedução. Qual das duas foi a arma apontada contra você?
— Uma combinação desses dois elementos... Eu não podia evitar o casamento mesmo sabendo que... ele ainda desejava Angélica.
— Por Deus! Essa situação só existe em romances medievais. Casamentos desse tipo não acontecem mais no século vinte! Não pode submeter-se a um absurdo desses, a não ser que ele a obrigue a permanecer ao seu lado por pura maldade!
— Não é tão simples quanto parece, Bruce… — murmurou Geórgia, desviando o olhar. — Que tal entrarmos no restaurante… estou faminta.
— Eu não tinha a menor idéia de que jovens como você ainda existissem neste mundo depravado, baseado em interesse e corrupção. Julgava todas as mulheres iguais, envolvidas num brilho de falsidade e ambiciosas ao extremo.
— Ë... sei que sou uma pessoa antiquada e fora de moda, Bruce!
Segurando-a pela mão, Bruce atravessou a rua. Entraram numa viela que os levou a uma pracinha tranqüila e cheia de árvores. Um pequeno restaurante com toldos brancos tinha mesinhas na calçada, onde jovens descontraídos tomavam cerveja enquanto desfrutavam o calor do sol, tão raro em Londres.
Recebidos por um garçom que cumprimentou Bruce como a um freqüentador habitual, foram levados a uma saleta aconchegante no primeiro andar. Lanternas de seda cor de laranja espalhavam uma luz difusa sobre as mesas impecáveis e um aroma delicioso enchia o ambiente.
— Que lugar encantador!
— Costumo vir freqüentemente. Gosto da serenidade e da paz deste lugar. Nem perguntei se preferia ficar ao ar livre porque aqui teremos mais chances de conversar. O que quer beber?
— Vinho do Porto. Assumo a minha posição de mulher antiquada!
Enquanto ele fazia os pedidos, Geórgia notou com surpresa seu prazer por estar com Bruce. Era tão bom ser confortada e mimada em momentos de tensão! Tentara de todos os modos dar a Renzo seu carinho para que suportasse melhor a dor de ter perdido um ente querido, porém fora repelida com indiferença e irritação. Sentira-se magoada e triste e seu sofrimento só diminuíra quando desistira por completo de atingir o íntimo daquele homem de coração impenetrável.
Geórgia deixou que Bruce escolhesse os pratos, satisfeita por ter alguém tomando decisões por ela. Nos últimos dias, vivera completamente afastada de qualquer calor humano!
— Que bom comer um frango à moda do campo! Nós ficávamos felizes quando algum dos paroquianos nos dava um de presente e eu o preparava com ervilhas e cenouras… Nunca mais… — Geórgia interrompeu-se diante do olhar intenso de Bruce. — Julga-me ingênua demais, não é? Ainda continuo a ser a filha do pastor, sem sofisticação alguma, que sem dúvida entedia Renzo até o fundo de sua alma.
— Oh! Deus! Se aquele idiota não consegue enxergar essas qualidades raras de sinceridade e candura, eu saberia fazê-lo, e como gostaria de poder! Por que nunca pedi a Angélica para nos apresentar?
— Se algum dia ela falou sobre mim, o que eu duvido muito, deve ter pintado minha imagem como a de uma solteirona ácida e conformada por levar uma vida isolada em Sussex. Talvez não o dissesse por maldade, nunca me viu interessada em homem algum. Só depois da primeira vez que ela levou Renzo nossa casa percebi que sua presença havia deixado uma impressão muito profunda em mim.
— Profunda demais para ser eliminada?
— Por favor, Bruce! Não devíamos deixar nossa conversa tomar esse rumo…
— Talvez nosso destino fosse ter essa conversa no momento que nos conhecemos.
— Não é verdade! Você e Renzo são grandes amigos e eu… a esposa dele. Esteve presente na igreja quando fizemos juramentos de fidelidade e aceitamos viver juntos nos momentos de alegria ou de dor…
— E vai cumpri-los à risca, mesmo sabendo que ele não o irá? Apesar de acreditar que Renzo ainda ama sua irmã?
— Sempre soube disso… desde o dia em que ele me propôs casamento.
— Mas o que ele queria afinal? Um jeito de vingar-se de Angélica, usando-a como arma para feri-la?
As antigas lembranças continuavam a doer! Geórgia não podia enfrentar o olhar de Bruce ou ele leria a verdade estampada em sua expressão de angústia.
Mas o seu silêncio forneceu a confirmação que ele desejava.
— Não posso acreditar! É absurdo demais, é… irreal! Aquele miserável não tinha esse direito! Sempre soube que Renzo seria capaz de violências e atitudes tempestuosas, mas julgava que tivesse alguma sensibilidade. Afinal, é um músico, um artista, devia ter a delicadeza de levar em conta os seus sentimentos. Sem dúvida, ele não pode ignorar que você tem sentimentos sobre os quais Angélica nem sequer ouviu falar!
— Nada pode dirigir e comandar as nossas emoções, não acha?
Geórgia tomou um gole de seu vinho, esperando que ao menos seu corpo se aquecesse, pois seu coração estava frio… gelado com a morte de todas as suas ilusões.
Se algum dia alguém lhe dissesse que o amor é tão impetuoso como um vendaval, ela jamais teria acreditado, julgando ser mais um dos incontáveis exageros criado em nome de uma emoção romântica e serena. Só agora, arrastada como uma folha na tempestade, sem rumo diante de forças sobre as quais não mais podia atuar, Geórgia admitia que se tornara uma prisioneira voluntária da tortura mais dilacerante: um amor não retribuído.
Até quando Renzo a consideraria culpada pela morte de sua mãe? Até quando haveria em cada olhar uma ofensa, em cada silêncio, uma censura?, Geórgia questionou-se.
Como numa fortaleza glacial e varrida por ventos gelados, a graciosa mansão georgiana de Hanson Square guardava entre suas paredes, cobertas de quadros delicados e preciosos, dois inimigos, dois estranhos que se cruzavam por mero acaso nas salas ou corredores.
Até mesmo os criados, percebendo a tensão insuportável, como a calma ilusória antes da tormenta, não se faziam presentes a não ser quando a situação exigia.
Na noite em que a condessa falecera, Renzo tinha ficado no quarto da mãe, sozinho, até a manhã seguinte. Com a barba por fazer, o olhar distante e uma indiferença completa pelas pessoas que o rodeavam, passara a manhã na saleta do jardim. Só então, depois de arrumar-se, voltou a ser o homem elegante e dono da situação. Mas uma cortina velava seus olhos, ocultando qualquer sinal de emoção.
Eficiente, ele tinha tomado todas a decisões necessárias, inclusive a de não enviar o corpo da mãe para sua terra natal.
Geórgia mal o vira durante aqueles dias tumultuados por inúmeras providências a serem tomadas. Nos poucos momentos em que seu marido permanecia em casa, trancava-se no salão de música e tocava piano por horas a fio.
Ela se lembrou das palavras da sogra sobre como a música o ajudara a suportar as dores terríveis em sua perna depois do acidente. Quem sabe conseguiria amenizar a dor causada pela morte da mãe através da criação de melodias magníficas?
Entretanto, Geórgia encontrava-se completamente perdida num mundo estranho cujo único elo de ligação até agora tinha sido Renzo, e ele se distanciara a ponto de ignorar sua presença. Depois de tanta solidão, não podia deixar de sentir-se feliz pela companhia amistosa de Bruce! Mas ele continuava fitando-a com um olhar interrogativo e preocupado.
— Você ama Renzo, Geórgia?
Ela não respondeu, confusa com sua incapacidade de dar-lhe uma resposta direta e precisa. Seus sentimentos estavam tão tumultuados que já não mais sabia onde encontrar a verdade. Sentia-se magoada, confusa e perturbada, pois só quando tinha os braços de Renzo ao seu redor, ansiando-o com tanto ardor quanto ele a desejava, o seu mundo estava completo e nada podia ameaçá-la. Todavia, no momento em que seu marido afastava-se, plenamente satisfeito, ela se encontrava ainda mais sozinha. O único elo existente entre eles se desfazia, provocando uma sensação de abandono e desespero.
Só se sentia viva nos momentos em que ele a possuía! E depois… tudo mudava. A voz murmurante e sensual tornava-se seca e impaciente, o corpo cálido e elástico retomava sua postura rígida e formal. Como era possível conviver com um conflito tão evidente e dilacerante?
— Renzo é como Janus, o deus de duas faces. Não consegui ainda descobrir qual é a verdadeira.
— Ah, minha querida! Apesar de casada, você parece jamais ter sido tocada por homem algum, tal a sua inocência. Está querendo dizer que ele tem uma face noturna e outra diurna? Bem, só se ele fosse cego não usaria seus privilégios de marido tendo uma esposa tão atraente como você!
— Bruce… por favor, não…
— Oh! Geórgia... nem, sei o que eu daria para ouvi-la dizer: por favor, sim!
— Bruce!
— Escute-me apenas uma vez, querida. Eu gostaria de poder cobri-la de atenções e mimos, fazê-la perceber o quanto um homem pode valorizar uma mulher, quando encontra a pessoa certa. Merece um homem completo, não apenas um companheiro para os momentos de sexo! Sinto muito se estou sendo sincero a ponto de parecer grosseiro, mas é a pura verdade e você sabe disso, não?
— Eu não sei como chegamos a discutir um assunto tão… impróprio. É melhor parar, sim?
Desafiante, Geórgia fitou o homem à sua frente, surpreendentemente fixando o olhar sobre os lábios dele. Uma boca firme e máscula mas com contornos que prometiam doçura e delicadeza. Ninguém, nem mesmo Renzo, tinha conversado com ela, respeitando sua individualidade, aceitando-a como uma criatura com idéias e sentimentos pertencentes apenas a ela.
Geórgia tinha a impressão de que ao lado de Bruce seria considerada valiosa e querida o suficiente para ser colocada num pedestal e adorada como sempre acontecera com sua irmã. Suas atitudes provocariam admiração e seriam aguardadas com ansiedade! No entanto, precisava reagir contra esse tipo de fuga da realidade.
— Você quer que eu pare, porém talvez nunca mais encontremos uma oportunidade de voltar a falar sobre nós dois.
— E provavelmente será melhor...
— E o melhor para você é continuar a ser a chave que Renzo insiste em usar para abrir as portas de um coração fechado e pertencente a outra?
Geórgia estremeceu diante da realidade evocada pela pergunta de Bruce, Precisaria de uma resistência férrea para não ceder às suas ilusões sobre um futuro cheio de ternura. Como gostaria de sentir o olhar de Renzo, vindo do outro extremo de um recinto, como se estivessem unidos, apesar da distância.
Que sonho irrealizável! Jamais se tornaria real, pois, sempre que a fitasse, Renzo veria apenas a figura esguia e resplandecente de Angélica, a sedutora e cativante serpente, destruindo a harmonia do modesto jardim onde ela plantara as frágeis sementes de um amor impossível!
— Talvez você tenha vivido muito tempo num mundo onde as pessoas ignoram suas responsabilidades no instante em que deixam de ser uma fonte de alegria ou prazer. O ambiente do cinema criou uma fama que não se baseia em constância ou fidelidade, não é? Vive-se de fantasias. Mas, no mundo real, todos nós precisamos assumir nossos compromissos, e é esse o meu dever, Bruce.
— Como pode ser tão inocente e bem-intencionada, minha querida?
— Por favor, não me chame de… querida! E, definitivamente, vamos mudar de assunto. Renzo tem trabalhado bastante em uma nova música… isto é, antes… bem, me parece muito bonita. O filme é romântico?
— Será mais um drama passional. Por sorte conseguimos uma excelente atriz, sem ataques temperamentais de "estrela" e com uma responsabilidade rara hoje em dia. O enredo é excelente, bastante trágico… Sabe que Renzo financiou cinqüenta por cento dos custos?
— Verdade? Então ele deve ter muita fé no filme. Não me parece ser uma pessoa fácil de empregar seu dinheiro em projetos duvidosos.
— Tem toda razão. Seu marido é dono de uma habilidade excepcional para o mundo das altas finanças, o que é bastante raro em músicos…
O garçom interrompeu a conversa com sua chegada, trazendo os pedidos.
O aroma do frango trouxe de volta à mente de Geórgia a imagem da sala de refeições da casa paroquial, sombria e austera: o papel de parede em tons de cinza, as cadeiras de encosto alto… Uma onda de saudade e melancolia envolveu-a, tirando-lhe o apetite. Precisava telefonar a seu pai assim que voltasse para Hanson Square. Não podiam deixar uma mágoa persistir a ponto de destruir os laços familiares!
A morte da condessa mostrara-lhe como são imprevisíveis golpes do destino.. . e tão inesperados! Se não tentasse .na reconciliação, talvez se arrependesse pelo resto da vida!
Preocupado com o olhar ausente de Geórgia, Bruce procurou trazê-la de volta ao presente.
— Então Mônica chega hoje?
— Sim, Renzo irá buscá-la no aeroporto e, como já lhe disse, estou bem nervosa por recebê-la em minha casa.
— É perfeitamente natural, Geórgia. Haverá sem dúvida alguns momentos tensos, mas logo tudo se normalizará. Lembre-se do meu conselho e mantenha-se calma, não se envolva. Afinal, você não é responsável pela conduta de sua irmã.
— Mas Angélica destruiu a vida de Mônica e eu…
— Pelo amor de Deus, Geórgia! Evite essa atitude de se culpar pelos pecados de toda a humanidade! Já notou como Renzo se aproveitou dessa sua delicadeza de sentimentos, usando-a sem escrúpulos? Como saber se Mônica também não irá hostilizá-la ao perceber que se sente responsável por tudo? Se sua irmã agiu mal, o problema não lhe diz respeito. Tenho dúvidas profundas de que você conseguiria cometer um ato maldoso, mesmo se tentasse com toda a sua força de vontade…
— Não entendo bem, Bruce. O que quer dizer?
— Os mártires carregam cruzes, não flores! Você é uma pessoa meiga e cheia de calor humano. Tenho muito medo de que as pessoas se aproveitem de sua doçura para maltratá-la. Tente ser justa consigo própria, não sofra pelos outros. Evite que a atinjam com suas próprias culpas!
— Não posso mudar…Eu sou assim…
— Exatamente assim? Ou existe no fundo de sua alma uma outra mulher lutando para sair da prisão, onde grades são o resultado da sua preocupação pelo sofrimento do próximo? Viva, seja feliz, aproveite cada minuto, porque, se continuar carregando os problemas de todos sobre seus ombros, eles irão egoisticamente deduzir que você gosta de ser usada!
As palavras de Bruce tinham um fundo de verdade e Geórgia não possuía argumento algum para contradizê-lo. Seu pai sempre dissera que ela não tinha a menor necessidade dos prazeres banais de uma jovem e aceitava sua dedicação completa aos afazeres domésticos. Nunca lhe passara pela cabeça quão pesado era o encargo de cuidar de uma casa velha e sem nenhuma facilidade de aparelhos domésticos modernos, ou quanto tempo perdia aconselhando e tentando resolver os dilemas dos paroquianos que a procuravam.
Naquela época, Geórgia nem chegara a perceber quanto era exigido dela. Agora, ao relembrar sua adolescência, percebia apenas um enorme vazio. Onde estavam os sonhos juvenis de um futuro romântico, quando pensava em roupas ou estilo de penteado, como todas as jovens?
Nunca lhe sobrara tempo para se preocupar consigo mesma: ou alguém tomava as rédeas de tudo ou os três moradores da casa paroquial iriam viver entre teias de aranha e poeira, comendo apenas pão com queijo!
— Ah, Bruce! Estou quase chegando à conclusão de que eu seria mais adequada como esposa de Renzo se tivesse o temperamento de Angélica. Meu marido, meu pai, você… Todos ficariam bem mais satisfeitos.
— Deus me livre! Não foi essa a minha intenção, não quis dizer…
— Como não? insinuou que eu deveria preocupar-me menos com os outros, aproveitar a minha vida sem tomar conhecimento do que acontece ao meu redor, não é? Pois Angélica age exatamente como você descreveu! Ela pensou apenas em si própria, não se importando com os problemas que causaria com suas atitudes egoístas... A mulher fatal, a quem homem algum resiste! Bem, minha irmã nasceu assim e não pode evitar ou mudar de atitude... Eu nasci com um coração mole. Não posso ser diferente.
Bruce olhou comovido para aquela mulher que, apesar da aparência frágil e jovem, era dona de uma sabedoria profunda e uma força imensa. E, acima de tudo, com capacidade de ver o lado irônico de um mundo onde anjos e demônios se debatem num eterno conflito!
— Sabe o que eu gostaria de fazer, Geórgia? Tomá-la em meus braços e fugir para bem longe. Nunca mais a deixaria pôr os pés na casa de Renzo! Jamais desejei uma mulher como a quero... e você mesma afirmou que ele ainda está apaixonado por Angélica!
— Oh… Não diga essas barbaridades. Eu…
Dividida entre um profundo mal-estar e uma certa alegria, Geórgia não imaginava como agir numa situação daquelas. Nunca convivera com rapazes e aquela fase despreocupada de flertes sem compromisso era uma experiência desconhecida para ela. Essa falha importante em seu desenvolvimento como mulher causava-lhe dificuldades incríveis em se relacionar com os homens. Se já se atrapalhava com alguém tão transparente e sem complexidades como Bruce, como ter condições de entender o marido, cujas atitudes enigmáticas, provenientes do temperamento latino, a desconcertavam por completo? Da mais total indiferença, ele se transformava num amante ardente e sensual…
— Por que fica tão tensa com minhas palavras, Geórgia? Não lhe agrada nem um pouco o fato de estarmos a sós no meu restaurante predileto, sem que ninguém o saiba? Conversando com tanta intimidade e nos conhecendo melhor? Seja sincera consigo mesma...
— Eu nem devia ter aceitado seu convite! Meu lugar é em casa, preparando tudo para que Mônica seja bem recebida e acomodada com todo o conforto.
— Ah! A minha querida prisioneira do dever… Sempre preocupada com as necessidades dos outros antes de pensar em si mesma. Você não existe, sabia?
— Ë a sua visão da vida que o faz pensar assim, Bruce. Não disse que as mulheres do seu mundo vivem envolvidas em si mesmas?
— Não conheci todas elas intimamente. Talvez tenham até algumas virtudes ocultas, mas, neste momento, só posso pensar na garota que eu entreguei a outro homem. Se eu pudesse mudar tudo...
— Naquele dia ainda não me conhecia, éramos dois estranhos. Aliás tudo me parecia estranho e irreal! Só era concreta a consciência de que eu estava evitando um sofrimento
a meu pai…
Em pânico, Geórgia parou de falar mas percebeu que fora longe demais. Se pudesse retirar suas palavras impensadas! Com uma sentença incompleta, revelara a Bruce um segredo tão arduamente mantido.
— Com os diabos! Então foi esse o motivo? Renzo ia revelar toda a história sórdida sobre o envolvimento de Angélica com Stélvio, não é? E só não o faria se você se casasse com ele, mostrando a todos que não se magoara com a traição da noiva. Aquele miserável nunca pensou que a estava arrastando, destruindo sua dignidade como mulher? Por Deus, Geórgia! Como pode continuar com um inescrupuloso, chantagista…
Se Bruce soubesse quantas vezes ela se fizera estas mesmas perguntas! E como jamais encontrara uma única resposta satisfatória!, pensou.
Desde o início, um lado de Geórgia resistira bravamente à arrogância de Renzo, mas... em Sandbourne, descobrira que outro lado seu ansiava pelo toque daquele homem viril! Quando ele a tomava nos braços, só lhe importava sentir o calor de uma paixão irracional e irresistível!
Seu maior problema era admitir e aceitar uma verdade que a revoltava: fora conquistada por Renzo através da atração física, vivia dominada por um desejo insaciável e não conseguia afastar-se dele, mesmo admitindo o quanto fora inescrupuloso. E recusava-se a ouvir a vozinha prudente que a alertava constantemente: '"Não são para você as carícias e os beijos… são de Angélica!"
No entanto, Bruce não podia ver o que havia atrás da figura controlada da mulher à sua frente. Sabia que sua aparência era a de uma fria e recatada inglesa e não revelava nada da mulher sensual que vibrava com ardor nos braços do marido!
Por mais delirantes que fossem os momentos de paixão física, só ficavam as lembranças depois que os corpos se afastavam, saciados. O rosto mantinha-se tão puro quanto sempre o fora e o corpo não mostrava as emoções do êxtase: os desejos ardentes permaneciam um segredo dos sentidos.
— Será que algum ser humano pode ser obrigado a fazer algo realmente inaceitável aos seus princípios mais rígidos? Talvez, nos tortuosos meandros desconhecidos da nossa mente, os desejos ocultos nos impulsionem a seguir caminhos estranhos…
— Percebeu o que está afirmando, Geórgia? Admite que desejou, em segredo, o noivo de sua irmã?
— Parece tão impossível assim? Eu era uma jovem cujo mundo não ultrapassava as paredes da casa paroquial. Nos poucos momentos de lazer, meus livros prediletos eram os romances de Charlotte Brontë e Jane Austen. Heróis autoritários e dominadores povoavam minha mente e não havia outras figuras masculinas com quem compará-los a não ser meu pai. Quando Angélica chegou, acompanhada de um homem que parecia ter saído das páginas dos romances em que eu fugia da monotonia da minha vida para um mundo de fantasia, fiquei em estado de choque! Renzo vestia-se com uma elegância desconhecida para mim, e, ao ser apresentado, beijou-me a mão. Eu mesma me prendi numa armadilha cruel… Parece-lhe impossível ou inacreditável, Bruce?
— Não. Posso entender as reações da jovem romântica que não conhecia nada do mundo ou dos homens. Mas agora tudo mudou, não acha? Só quero saber se ainda continua presa a sua própria armadilha…
Geórgia baixou a cabeça e um raio de sol, batendo em seus cabelos, tornou-os um manto dourado…
Bruce sentiu uma onda de ódio contra o amigo. Será que aquele homem fechado e sem a menor confiança nas mulheres de um modo geral sabia o tesouro que tinha nas mãos? Poderia ser tão imbecil e continuar pensando na ex-noiva, fútil e vazia, dedicada apenas a tirar todo o possível da vida apenas para seu próprio proveito?
Enquanto tomava o café no final da refeição, Geórgia olhou para o homem que tinha o dom de fazê-la sentir-se tão descontraída a ponto de falar sobre seus assuntos mais íntimos. Bruce conseguira abrir as portas de seu coração e levá-la a trair a confiança do marido. Renzo nunca afirmara que a amava, porém sempre tivera plena confiança nela… como todos que a conheciam!
— Bem, querida… o que vamos fazer? Entre nós há uma ligação instintiva e…
— Não há nada a ser feito, Bruce. Simplesmente nos encontramos por acaso e decidimos almoçar juntos como bons amigos... é só! Na sexta-feira, nos veremos no enterro e trocaremos um sorriso cortês e distante… A conversa de hoje não existiu…
— Você se comportaria assim se não tivesse essa aliança em sua mão esquerda?
Geórgia fitou suas mãos por um longo tempo…
Por que caminhos teria enveredado sua vida se Bruce surgisse em Duncton, antes do dia fatídico em que Renzo a visitara levando as cartas de Angélica? Sabia que teria se sentido atraída por aquele homem tão sedutor quanto seu marido, embora tão diferente! No entanto, duvidava que ele seria capaz de arrancá-la das correntes pesadas que a prendiam à casa paroquial e a seu pai. Nem mesmo ela percebera o quanto tinha se tornado prisioneira daquela vida sem horizontes até a atitude fria e sem remorsos de Renzo quebrar seus grilhões!
— Olhe bem para mim e diga que não gosta de minha companhia.
— E-eu não posso negar, Bruce, mas nada pode alterar a realidade. Sou casada com seu melhor amigo e não vivo no seu mundo, onde as pessoas trocam de marido como quem muda de roupa. Não cometa o terrível engano de pensar que minha semelhança com Angélica vai além do exterior. Temos traços parecidos mas jamais pensarei ou agirei como minha irmã; ela segue seu caminho visando um prazer egoísta, ignora os sentimentos dos outros.
— E você não é assim, eu admito. Então por que ignorar os meus sentimentos?
— Sabe, Bruce… acho que está um pouco entediado e desiludido com o tipo de mulheres que o rodeia.
— Foi por conhecê-las que eu pude perceber o quanto estou perdendo da vida.
— Então agora já sabe o que quer, certo? Procure uma garota que mora no campo e prefere ver a pele dos animais neles mesmos, e não em magníficos casacos, e para quem o sol brilhando nas águas cristalinas de um riacho vale mais que o maior dos diamantes das joalherias de Londres.
— E não quer ser o brilho da minha vida?
— Pelo amor de Deus, Bruce… Não é uma brincadeira sem compromissos.
— Eu gostaria de beijá-la, Geórgia. No amor todas as armas são válidas, não há regras. Angélica não quebrou todas elas? Colocou irmão contra irmão e ambos continuam amando-a. Enfrente a realidade, Geórgia! No minuto em que sua irmã quiser Renzo de volta, os seus sentimentos não serão levados em conta. Aliás, ela nunca se incomodou com sua sensibilidade, não é? E quanto ao seu marido… acredita sinceramente que ele se importará com o que você irá sofrer?
Geórgia recuou como se tivesse sido agredida fisicamente. Bruce não estava lhe dizendo nada que ela já não tivesse pensado milhares de vezes. No entanto, ouvir aquelas palavras dos lábios de outras pessoas as tornavam muito mais verdadeiras e infinitamente mais dolorosas.
— Eu... está mesmo na hora de voltar para casa, Bruce. Agradeço o almoço, foram momentos deliciosos e tranqüilos. Eu estava mesmo precisando passar algumas horas longe dos problemas da minha casa. Adorei o restaurante!
— Nunca trouxe mulher alguma aqui. Ê o meu esconderijo, um refúgio contra as pressões do meu trabalho. Considere meu convite um elogio…
— Sinto-me privilegiada, Bruce…
Por uma fração de segundo, seus olhares se encontraram e Geórgia sentiu-se tentada a confessar como temia retornar à graciosa mansão de Hanson Square. A expectativa do que iria acontecer no funeral deixava-a em pânico.
Como reagiria Renzo ao enfrentar a ausência de sua mãe? Ele teria que encontrar um modo de conciliar sua dor e o possível arrependimento de não ter avisado seu irmão. Estaria sozinho, a não ser por Mônica e uma esposa a quem não amava, no momento trágico de enterrar um ser querido.
A necessidade de confiar em alguém tão compreensivo como Bruce era tão forte que ela se precipitou para fora do restaurante ou não conseguiria deter as confissões prestes a sair de seus lábios.
Já traíra a confiança de Renzo ao revelar involuntariamente o segredo do motivo de um casamento incompreensível para a maioria das pessoas. Não podia piorar ainda mais a situação!
— Acho melhor eu tomar um táxi, Bruce…
— Ficou louca? Eu a levarei. Ou está com receio de que eu tente beijá-la?
— Você não pode... é...
— Por que tem tanto medo, Geórgia? Talvez seu temor exista porque sabe que irá gostar, e muito…
Quando Bruce a abraçou, Geórgia sentiu novamente a tentação traidora de se entregar a uma afeição segura, sem as incertezas e as mágoas de seu casamento. Descobrira sua sensualidade nos braços de Renzo, mas talvez não fosse ele o único homem a despertar seus desejos. E ela precisava tanto de carinho e afeição, queria tanto ser amada… não como Angélica, mas como Geórgia!
Talvez encontrasse tudo o que mais queria nos braços de Bruce, pois, para ele, seria sempre Geórgia. Nunca a tentação se mostrara tão forte, atraindo-a como um imã. Qualquer mulher menos reprimida aceitaria aquele convite terno e se deixaria levar, mas infelizmente ela não conseguia esquecer-se de seus deveres, por mais penosos que fossem.
— Então… sua casa ou vamos para o meu apartamento?
— Por favor, leve-me para Hanson Square. — Eu já sabia… Era esperar demais da sorte!
Enquanto ligava o carro, Bruce tentou abafar o sentimento de melancolia que o invadira. Como era cruel o destino que lhe oferecia uma mulher ideal sem dar-lhe direito algum a ela. E, ao mesmo tempo, sabia que aquele casamento iniciado com bases falsas ruiria como um castelo de cartas no momento em que Angélica Norman voltasse a Londres e fosse à procura de Renzo.
Ele a conhecia tão bem! Muito mais do que Geórgia e, principalmente, do que Renzo poderia suspeitar.
Naquele mundo de fantasia e ilusão do cinema, um diretor tinha nas mãos um poder quase ilimitado: fazer de uma desconhecida a estrela disputada, brilhando em todos os filmes! A quantidade de jovens que o procuravam era tanta que Bruce já perdera a conta. Belas, com corpos esculturais, elas ofereceriam a alma ao diabo para conseguir uma "ponta" em qual quer de seus filmes. Seriam capazes até de se entregar a um homem repugnante e, ao deparar com o atraente diretor, redobravam sua atitude de conquistadoras.
Em geral ele as dispensava com alguns conselhos e um sorriso, apenas para saber logo depois que haviam repetido a mesma rotina com outros diretores.
Mas com Angélica fora impossível não se deixar atrair! Diante de tanta sedução e sensualidade, ele não conseguira resistir. O envolvimento tinha sido muito breve pois, uma tarde em que repousavam enlaçados, depois de horas de paixão desenfreada, ela lhe comunicou que ficara noiva de Renzo há uma semana.
Revoltado, Bruce quase agrediu-a, quando um sorriso malévolo o impediu de tocá-la. Angélica revelaria ao noivo que seu melhor amigo a seduzira depois de saber do noivado!
A ameaça o perturbou por muito tempo mas, no final, á situação resolveu-se sozinha. Agora retornava todo o seu temor. Geórgia era tão doce e meiga que a irmã a destruiria por completo. Se ao menos ele pudesse envolvê-la nos braços, protegendo-a de tanta amargura...
O céu se tornara subitamente escuro e uma garoa fina começava a cair quando Bruce entrou pela Chelsa Embankment, a alameda que seguia ao lado do rio Tamisa. Seu espírito brincalhão e descontraído parecia ter-se transformado como o tempo, agora sombrio, prenunciando uma tempestade.
— Ouça bem, Geórgia! Há muito tempo à nossa frente… tenho esperanças de que, algum dia, você se canse de suportar consolar quem não necessita de seu amor e lembre-se de pensar em si mesma. Mas, mesmo que isso nunca aconteça, prometa me procurar, se houver algum problema. Conte comigo como um amigo pronto a ajudá-la. Jura fazê-lo?
— Juro, Bruce. Se eu chegar a um ponto em que não souber mais como resolver sozinha a minha situação tão absurda e complexa, o procurarei.
— Moro numa casa em Ranleigh Court, uma pequena pracinha em Knightsbridge… número doze. Sempre será bem-vinda, Geórgia.
— Sabe que foi uma das poucas pessoas a me oferecer apoio? Agradeço-lhe por isso, Bruce.
— Sinto desapontá-la, querida, minhas intenções não são tão puras quanto julga. Se, neste minuto, eu a levasse a qualquer lugar, menos para casa, onde enfrentará um casamento fracassado e infeliz, estaria lhe fazendo um enorme favor. No entanto, você se recusa. Então esperarei até… Olhe! Por que não faz a mala e sai de Hanson Square? Não estou lhe fazendo um convite mal-intencionado só para levá-la ao meu apartamento. Poderia ficar alguns dias num hotel sossegado e tentar pôr em ordem as suas idéias. Precisa de solidão e tempo para pensar.
— Não posso, Bruce. Acrescentar mais um problema a tantos na vida de Renzo neste momento seria irresponsabilidade e falta de compreensão da minha parte. Tenho que manter-me ao seu lado nesta crise.
— E, sem dúvida, já sabe que não receberá nem um muito obrigado por sua atitude decente, não é?
— Provavelmente não, mas Renzo está enfrentando tudo sozinho, pois decidiu não localizar Stélvio para avisá-lo da morte da mãe.
— E Stélvio continua com Angélica, divertindo-se sem saber de nada?
— Sim... — murmurou Geórgia, olhando os pingos de chuva diminuírem e uma réstia de sol iluminar os jardins que margeavam o rio.
No entanto, a tudo se sobrepunha a fisionomia dura de Renzo. Tinha certeza absoluta de que o marido não se comunicara com o irmão por causa de Angélica. Como saber o que Stélvio faria ao receber a notícia? Talvez até trouxesse a amante para a Inglaterra junto com ele!, pensou indignada.
— Ficou tão quieta de repente… Sobre o que está pensando, Geórgia?
— Se por algum motivo eu deixar Renzo, devo voltar a Duncton. Meu pai iria reagir mal e passar o resto da vida me censurando, mas… para onde poderia ir uma pessoa como eu? Sabe, o amor não foi feito para criaturas muito sensíveis. Nós queremos demais, não nos contentamos apenas com a perfeição dos sentidos. Sem dúvida, é magnífico um ato de amor onde haja harmonia e satisfação de ambas as partes... Mas a verdadeira maravilha é sentir o amor, não apenas fazê-lo.
O carro chegava a Hanson Square. Bruce segurou as mãos de Geórgia como se não fosse deixá-la entrar naquela casa que, embora graciosa, era uma concha vazia, sem amor.
— Vejo-o na sexta-feira. Adeus, Bruce.
— Espere um pouco. Se voltar a Duncton, irei a sua procura para provar-lhe como estava errada em fugir de mim.
— Preciso entrar, Bruce.
— Ouviu o que eu disse, Geórgia?
— Sim... perfeitamente bem.
— Você se recusaria a me receber se eu a procurasse na casa de seu pai?
— Lógico que não! Retribuiria esse almoço delicioso que você me proporcionou hoje.
— Ah, Geórgia… Sempre fugindo das respostas diretas… é uma mulher incompreensível.
— Sou apenas uma novidade para um atraente diretor de cinema que está cansado de ser perseguido por mulheres.
— Pelo menos me considera um homem atraente. Graças a Deus!
— Considero-o muito mais do que isso, porém sou uma mulher casada e, se for vista de mãos dadas com você, bem diante da casa do meu marido, por certo terei sérios problemas. É o que você quer? Provocar mais complicações na minha vida?
— Sim e não… Se houvesse uma crise, ao menos tudo seria exposto às claras.
— Deixe-me entrar, Bruce.
— Tem certeza? Então convide-me para tomar um café!
— De maneira alguma!
Geórgia começava a ficar alarmada com o desejo crescente de acompanhar aquele homem e deixar para sempre os torturantes problemas que a atormentavam. A casa parecia emanar calma e dignidade, mas, atrás das paredes brancas… quanta dor, quantos sofrimentos!
— Renzo já deve ter chegado e Mônica também.
— Tudo seria mais fácil para você se eu a acompanhasse. Uma cena desagradável com a esposa de Stélvio talvez fosse evitada…
— Não tem a menor idéia do estado de espírito de Renzo nestes últimos dias, Bruce… é assustador. E, se me acompanhasse, ele poderia tirar conclusões erradas a nosso respeito.
— Seriam tão "erradas"?
— Já sabe qual é a minha resposta! Posso não ser amada, porém continuo casada com ele, e Renzo não se tornou um inglês só pelo fato de morar na Inglaterra. Para os latinos, o comportamento digno de uma esposa é tão importante quanto a morte!
— Não está querendo me dizer que ele a ameaçou! Tem medo de Renzo? Diga a verdade, Geórgia! Nunca passou pela minha cabeça o tipo de relacionamento entre Renzo e suas namoradas. Com Angélica, sem dúvida os dois se equivaliam em determinação e egoísmo, mas com você... Se ele lhe fizer algum mal...
— Calma, Bruce. Meu marido não me maltrata.
— Não fisicamente! Entretanto, se é obrigada a viver à mercê de estados de espírito instáveis e imprevisíveis, se não sabe como agradá-lo ou dar-lhe consolo, está sendo maltratada e muito! Mande esse homem para o inferno! Não vou deixá-la entrar…
Naquele momento, a porta da casa se abriu e Torrence veio até o portão, interrompendo a explosão de Bruce.
— Signora Talmonte… Esperam-na na sala de visitas.
— Adeus, Bruce…
— Quero entrar com você, Geórgia.
— Pelo amor de Deus, não torne minha situação ainda mais difícil. Vá embora!
Relutante, Bruce soltou a mão delicada e seguiu com um olhar ansioso a figura esguia que corria para dentro de uma casa que não era um lar e sim uma prisão.
No vestíbulo, Geórgia tirou o casaco e, tremula de medo de que a cena entre ela e Bruce tivesse sido presenciada por mais alguém, perguntou ao mordomo:
— O signore Talmonte já voltou do aeroporto?
— Sim, madame. Ele a viu pela janela da sala e pediu-me que fosse chamá-la.
Ela sentiu o coração disparar de terror! E, quando ouviu o ruído do Porsche de Bruce se afastando, teve ódio de si mesma. Se conseguisse ser menos responsável, poderia estar ao lado daquele homem atraente, sem complicações e claramente disposto a amá-la com paixão! Como podia ser tão fiel a juramentos que fizera num casamento cujas bases eram falsas? Teriam valor aquelas promessas?, refletiu.
Mas ninguém pode mudar o temperamento e as características da personalidade só por capricho e, agora, o seu dever era enfrentar o marido.
Na imponente sala de visitas, a figura alta e extremamente sedutora de Renzo parecia mais impressionante do que qualquer das peças preciosas e raras que adornavam o aposento. As cortinas de brocado cor de ouro velho formavam a moldura perfeita para o homem moreno e sombrio!
No momento em que ela entrou, Renzo examinou-a dos pés à cabeça, com um olhar absolutamente indiferente, sem o menor sinal de alegria. Também não havia ódio, e a ausência dessa emoção, à qual Geórgia já se acostumara, era ainda mais assustadora.
— Pretendia passar o resto da tarde na calçada com Clayton? E de mãos dadas como dois namoradinhos?
— Bruce foi muito gentil em convidar-me para almoçar… Nós nos encontramos quando eu saí da capela. Ele também sentiu a morte de sua mãe.
Geórgia esperara aqueles momentos em pânico, porém havia algo de muito estranho na expressão de Renzo. Instintivamente, percebeu que a tensão não se relacionava ao fato de ter almoçado com Bruce. Problemas mais importantes o preocupavam. Ela obedeceu ao sinal do marido para que se sentasse. O que poderia ter acontecido de tão grave?
— Mônica chegou? Está aqui em casa?
— Oh, sim! Sem dúvida, ela chegou!
— O que há, Renzo? Qual é o problema?
— Minha cunhada veio e adivinhe quem a acompanhou? Meu irresponsável "irmãozinho"! Agora estão os dois juntos, no quarto de hóspedes, tentando discutir alguns detalhes íntimos demais para serem abordados num avião!
— Oh, Deus… Então Mônica conseguiu localizá-lo?
— Não foi ela, eu a proibi de fazê-lo! A minha eficiente secretária, Flávia, tirou conclusões apressadas e bastante erradas de que eu gostaria da presença de meu irmão no funeral. Com sua habitual capacidade de organização, descobriu que Stélvio já havia deixado o iate do amigo há vários dias e estava em Roma, onde, sem coragem de voltar para casa, hospedou-se num hotel. Um amigo conseguiu encontrá-lo e Flávia entrou em contato direto com ele, informando-o do dia em que Mônica viria para a Inglaterra. Não sei como mas meu irmão conseguiu reservar um lugar no mesmo vôo!
Perguntas que jamais teria coragem de formular se cruzavam na mente de Geórgia. E Angélica, onde estaria? Stélvio abandonara o iate porque os dois tinham brigado?, questionou-se.
Renzo também parecia perturbado pelas mesmas indagações e caminhava de uma ponta à outra da sala, como um felino inquieto em sua jaula.
— Mônica vai ficar no mesmo quarto que…
— Já lhe disse que estão juntos no apartamento de hóspedes, ou não estava prestando atenção? Stélvio aparenta um descontrole total por causa de mamãe, e a "doce" Mônica deve estar tentando consolá-lo. A tragédia serviu para criar uma ponte entre eles, suavizando uma reaproximação difícil de ser enfrentada.
— E você? Sentia-se tão furioso contra ele...
— Bem… Quando os vi juntos no aeroporto, que saída tinha eu a não ser recebê-los? Os olhares de Mônica me imploravam para ter um pouco de condescendência, e Stélvio parecia realmente chocado com a morte da mamma. Foi por ela que me controlei, pois seu desejo seria ver-nos como irmãos e não como inimigos.
— Sinto-me tão feliz por isso! — Geórgia levantou-se e foi até Renzo.
Ao tocar o braço musculoso, sentiu uma emoção envolvente. Há dias não havia o menor contato físico entre os dois e esquecera-se de como seus sentidos tornavam-se mais vivos com a proximidade daquele homem.
Mas Renzo afastou-se, como se os dedos levemente pousados nele o incomodassem demais.
— Eu… esperava que vocês se reconciliassem… Por respeito a ela, pelo menos.
— Pois eu preferia continuar brigado com Stélvio e ter minha mãe viva… Ela foi a única presença constante em minha vida. Uma mulher forte, sempre serena, estável e muito sábia em seus conselhos, jamais deixou de me dizer a verdade, por mais dolorosa que fosse, e nunca se desviou de seus princípios por preço algum. Não havia no mundo jóias ou ouro suficientes para comprar sua alma pura! As outras mulheres… que falsas! Criaturas vivendo o momento presente, prontas a se venderem pelo melhor preço, seja ele dinheiro, posição social ou poder. Tolo é quem confia em seres sem capacidade de julgamento, de constância ou de honra!
Esguia, quase etérea entre os móveis pesados da sala, a silhueta de Geórgia parecia prestes e se dissolver na penumbra que começava a invadir a sala. Não havia ainda nenhuma luz acesa e seus cabelos eram apenas uma mancha clara e brilhante. Naquele instante soube que já não havia mais lugar para ela naquela farsa!
— Diga-me, Renzo… Quem decidiu desistir?
— Precisa perguntar? Não é óbvio?
Geórgia não respondeu. Seu marido já se preparava para quebrar o primeiro de muitos juramentos! Angélica logo estaria de volta e ele iria recebê-la de braços abertos, apesar de ter negado tantas vezes!
Não havia mais nada a ser dito. Era seu dever acompanhar o enterro da condessa e depois enfrentar as recriminações do pai. Iria esconder sua alma ferida nos vales tranqüilos do Sussex.
Voltando para o vestíbulo, Geórgia encontrou um casal que descia as escadas: Mônica e Stélvio.
A jovem morena, com um casaco de vison negro, era muito bonita, com imensos olhos negros, uma cabeleira brilhante como a noite e traços delicados. Stélvio mostrava nitidamente ser irmão de Renzo, mas faltava-lhe o ar aristocrático, a força de caráter que torna os traços mais distintos e nobres.
Apesar de irritada com o olhar surpreso, idêntico ao de todos que a viam, Geórgia sentiu pena dele ao perceber o choque que levara ante a esposa do irmão. Sem dúvida, não a imaginara tão parecida com a mulher que quase destruíra seu casamento.
— Sou Geórgia. Espero que tenham feito uma boa viagem e estejam bem acomodados.
— Oh! Tudo está perfeito. Eu sou Mônica e fico muito feliz por conhecê-la finalmente, Geórgia. Tenho certeza de que nos tornaremos amigas… Vamos voltar a ser uma família outra vez, não é?
O tom da jovem demonstrava toda a sua tensão e o abraço que deu em Geórgia foi sincero e cheio de calor humano. Comovida com a atitude sem rancores de Mônica, ela olhou para Stélvio, parado ao pé da escada.
Havia uma resignação em seu olhar, o desespero de um homem que voltara aos braços da esposa porque fora afastado de onde queria estar. Pobre tolo! Tinha sido arrastado para uma festa inebriante nos braços de Angélica e agora... as luzes haviam se apagado, o brilho tornara-se uma ilusão amarga. Entretanto a magia permanecera em seu coração, prendendo-o como fizera a tantos outros.
O grande sofrimento porém era de Mônica. Cada toque, beijo ou carícia de seu marido não mais lhe pertenceriam! Seria o corpo da amante que ele estaria abraçando, e a sombra maléfica da outra não os deixaria, principalmente nos momentos mais íntimos.
Geórgia conhecia todas as nuances, cada detalhe desse desespero. Reconhecia-o pela intensidade no olhar, uma certa inflexão na voz, a mudança do ritmo do amor… Nada lhe era estranho num casamento onde a esposa sempre fora apenas uma substituta.
Mas, se ela aprendera a viver sob o domínio de um fantasma, Mônica também seria capaz!
O motorista de Renzo estava à espera do casal para levá-los até a capela. Depois de acompanhá-los até a porta, Geórgia foi para o seu quarto. Sentia-se esgotada, como se as emoções daquele dia tivessem consumido até a última gota de suas energias.
Deitou-se no sofá da saleta e fechou os olhos, mas seus pensamentos reviviam cada acontecimento do dia.
Quais teriam sido os pensamentos mais secretos e inconfessáveis de Renzo quando ele a vira parada à frente da casa, acompanhada pelo seu melhor e talvez único amigo? Seria impossível não ter notado as mãos entrelaçadas. E, no entanto, nem perguntara sobre o que os dois haviam falado durante tantas horas juntos.
E por acaso sua intenção involuntária teria sido obrigá-lo a fazer perguntas? A sentir ciúmes?, refletiu.
Se tinha esperado esse tipo de reação, fora uma completa idiota! Estava cansada de saber que não pode haver ciúme sem amor ou desejo… Aliás, não havia emoção alguma entre estranhos, e eles haviam se tornado ainda mais distantes do que ela poderia imaginar possível. Ao fitá-lo, via apenas o desconhecido frio e impiedoso que a forçara a ler as cartas de Angélica naquela tarde fatídica. Aumentava alarmantemente a impressão de que deixara de existir aos olhos de Renzo.
Se naqueles dias fora importante por ser uma arma de vingança, agora já cumprira sua função e perdera todo o valor. Até mesmo o único elo que os unira fora cortado pela tragédia que descera sobre aquela casa enlutada.
Ah… o desejo! Que emoção impulsiva, tão fácil de levar alguém a descaminhos e traições!
"Não posso passar mais nem um minuto longe de você Stélvio! Quando estou em seus braços e sinto seus lábios tocarem cada centímetro do meu corpo, nada mais existe para mim. Quero apenas ser possuída e me perder na sua virilidade…”
Palavras tão ardentes e tão facilmente esquecidas... Onde estaria Angélica agora? Passara-se tão pouco tempo desde que ela declarara a impossibilidade de viver sem os carinhos de Stélvio!
Teria encontrado um novo amor? Ou planos ainda mais maquiavélicos dirigiam os pensamentos daquela criatura sem respeito por nada, a não ser seus próprios desejos?
Geórgia ouviu o som da chuva, agora bastante forte, batendo nos vidros das portas do terraço, e pensou em Mônica e Stélvio na pequena e aconchegante capela, isolados do mundo por uma densa cortina de água. A trágica perda talvez o ligasse novamente à esposa, um elo que se refaria através do choque causado por um fato muito mais sério do que a infidelidade conjugal.
Quem sabe, com o tempo, ele conseguiria esquecer a mulher-feiticeira que incendiara seus desejos, desencadeando uma paixão delirante… Talvez, algum dia, tivesse condições de enxergar as mentiras e falsidades de um rosto angelical que ocultava uma maldade sem limites!
Havia uma tênue esperança de que o casamento de Mônica e Stélvio conseguisse se reerguer das ruínas, como a Fênix renasce das próprias cinzas. Tinham partilhado muitos momentos de amor, pertencentes apenas a Mônica, e bastaria o tempo apagar a imagem de Angélica para que Stélvio voltasse a amá-la, reencontrando a jovem por quem se apaixonara.
Havia sido apenas uma quebra, um espaço onde outra tomara para si corpo e alma de um homem, mas um passado de amor os ligava e esses dias se mostrariam mais fortes do que momentos de ilusão.
Mas, quanto a seu casamento com Renzo… Nada poderia salvar uma união cujo começo já fora uma farsa!
Ele nunca a vira como uma mulher, ela sempre havia sido o reflexo de Angélica. Como recuperar algo que jamais lhe pertencera? Todo o amor de que Renzo era capaz tinha sido entregue a sua irmã e, só por ter sido desprezado, ele a procurara para salvar o orgulho ferido.
As palavras de Bruce durante o almoço haviam tornado mais absurda a sua ilusão de conquistar um homem para quem ela jamais existira! Como um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento e dragões imaginários, estava gastando suas forças numa batalha sem esperanças e sem glória.
Essa certeza lhe fora revelada na tarde da morte de Evelina Talmonte: o que havia começado como uma vingança, um relacionamento baseado no ódio, perdera totalmente o sentido em comparação à magnitude da morte!
Naquele dia, Geórgia fitara Renzo bem no fundo dos olhos e encontrara a dor e o choque de um homem que, subitamente, via diante de si quão mesquinha e vergonhosa era sua atitude. Naquele momento, ele reconhecera ter perdido todos os princípios de uma moral católica para executar uma vingança sem sentido, ultrajante.
E... desde então, Renzo não mais tomara conhecimento de sua presença! Sem uma única explicação, a colocara para fora de sua vida afastando-se do quarto onde haviam partilhado emoções intensas. Passava as noites no salão de música, onde os acordes melódicos enchiam a madrugada, provocando lágrimas de desespero na mulher que o esperava solitária no leito vazio.
Geórgia tomava o café da manhã, almoçava e jantava sempre à espera da chegada do marido, mas Renzo parecia ter desaparecido da face da Terra, ou pelo menos… da sua existência.
Nos encontros ocasionais e raros, ele a fitava como se fosse de vidro transparente, fixando o olhar num ponto distante; apenas palavras indispensáveis saíam de seus lábios.
Já não podia mais se iludir… Seu destino a colocara diante de uma encruzilhada: ou esperava que ele a mandasse embora ou partia antes dessa terrível humilhação!
Porque já não mais duvidava de que, em muito pouco tempo, ao abrir a porta, depararia com Angélica, que, passando por ela sem sequer tomar conhecimento, iria se aninhar nos braços do seu marido!
E Geórgia preferia morrer a presenciar esse reencontro.
A penumbra invadira o quarto e, quando o telefone tocou, Geórgia, incapaz de enxergar o ambiente em detalhes, tateou á procura do aparelho. Foi uma surpresa ouvir a voz do marido.
— A ligação é para você, Geórgia. Um amigo seu quer lhe falar.
A voz de Bruce, do outro lado da linha, parecia ansiosa e tensa.
— Geórgia?
No mesmo instante, ela ouviu o barulho da extensão sendo desligada.
— Geórgia, eu tinha que ligar para saber como você está! Houve algum problema?
— Não, tudo correu bem, Bruce.
Mesmo ouvindo aquela voz reconfortante, Geórgia só conseguia pensar na expressão de Renzo, com certeza tão indiferente quanto sua voz. Ele não revelara aborrecimento ou surpresa por saber que Bruce lhe telefonara. Uma sensação terrível invadiu-a: conhecera nos últimos dias uma faceta ainda mais destrutiva de seu marido. Nem as carícias que a faziam perder a identidade, nem o ódio, ameaçando-a fisicamente, eram tão arrasadores quanto a punição pela indiferença!
— Renzo nos viu juntos, hoje à tarde, não foi?
— É, ele estava na janela da sala…
— E o que lhe disse? Ficou irritado ou bravo com você?
— Não me pareceu nada preocupado. Na verdade, havia outros problemas sérios a serem encarados… Renzo tinha chegado do aeroporto há poucos minutos… Mônica não veio sozinha, Bruce, Stélvio a acompanhou.
— Céus! Stélvio? Então ele…
— …já estava em Roma há vários dias… sozinho!
— Com os diabos! O romance mais ardente e escandaloso do ano terminou muito rapidamente, não acha?
— É… creio que sim!
— E Angélica? Soube dela? Telefonou-lhe ou escreveu?
— Não…
— Sua voz… O que há, Geórgia? Está com medo do que sua irmã possa fazer?
— Com medo, não!… Mas é melhor preparar-me para o pior, não acha?
— Aquela miserável sem escrúpulos! Corrompe tudo em que toca, deixa um rastro de destruição à sua passagem, com se fosse um furacão de maldade. Precisa abandonar já essa casa, Geórgia! Estou de saída para tirá-la daí antes que a sua maldita irmã chegue, afiando as garras para caçá-la como um pássaro indefeso. Você cometeu um pecado imperdoável, sabe disso, não? Casou-se com um dos homens que pertenciam a ela e jamais será perdoada. Quando um homem pertence a Angélica, é para sempre, mesmo depois de tê-lo transformado num farrapo! Faça suas malas, estarei aí em menos de vinte minutos…
— Não, Bruce. Não vou sair daqui fugindo como uma covarde, apavorada e derrotada antes mesmo…
— Pelo amor de Deus, tente enxergar a realidade e não fatos dourados por lembranças de infância. Angélica não é mais a garota com quem conviveu há décadas atrás, Geórgia. Essa aventura com Stélvio foi um jogo, uma brincadeira perigosa mas bem ao seu gosto, a atração do perigo! Ela vai voltar… Você sabe disso e eu também! O que talvez ignore é que a carreira de uma modelo não dura muito: alguns anos de glória e depois vem o esquecimento completo. Para quem viveu sob as luzes e envolvida pela admiração, essa privação pode levar a uma tragédia. Em geral, todas tentam conseguir um lugar no cinema, e, se não têm sucesso, a única saída é um bom casamento. Você mesma afirmou que Renzo ainda a deseja, não foi?
— Sim, eu disse isso mas…
— Então saia do meio da arena, Geórgia. Vai ser uma luta cruel e você não tem as mesmas armas que sua irmã. Se Renzo ainda quer Angélica a ponto de se submeter, suportando toda a dor e a humilhação causadas pelo prazer duvidoso de dormir com ela, deixe-o, ele não é digno de você! Alguém tão cego e estúpido assim merece sofrer! Saia com a cabeça erguida, será a vencedora por não se prestar a participar de uma briga sórdida. Mostre a esse homem que, apesar de tudo, ainda conserva a sua honra intacta. Venha para minha casa, sabe o quanto eu a quero… Em muito pouco tempo o amor poderá florescer entre nós, exatamente como foram seus sonhos de adolescente romântica. Nunca encontrei antes em toda a minha vida uma jovem tão meiga, sem segundas intenções e sincera assim, e, além disso… eu a desejo. Aliás, creio que a desejei desde o dia de seu casamento.
— Você é um homem maravilhoso e tenho certeza de que eu chegaria a amá-lo muito, Bruce…
— Então comece a fazer as malas.
— Não. — A firmeza de sua própria voz surpreendeu Geórgia. — Não vou fugir!
— Tentarei ser mais claro ainda, querida. Há muitos fatos que preferi não mencionar, pois não vi necessidade alguma de feri-la ou chocá-la, mas Angélica já não está mais recebendo tantas propostas para posar. Centenas de jovens com dezoito e vinte anos chegam a Londres diariamente e sua única bagagem é um belo rosto, um corpo perfeito e a disposição de fazer qualquer negócio para ver sua foto publicada. Aos poucos, sua irmã precisará se rebaixar ainda mais do que já o fez para conseguir uma mera propaganda de sabão em pó! Ela está ficando desesperada e fará tudo para ter Renzo de volta; perdeu um casamento por um erro de cálculo e vai procurar convencê-lo a reconsiderar.
— Não acredito… Ele é católico…
— Não pode ficar, Geórgia, e ser destruída por um marido que não a ama e uma irmã que magoaria a própria mãe para atingir seus objetivos, cujos caprichos e desejos precisam ser satisfeitos a qualquer custo. Ela se acostumou a ser adulada e não irá aceitar com facilidade o fato de ter sido derrotada por você. Além disso, sei que não vai gostar, mas sua irmã tentou ser atriz e apenas conseguiu trabalhar num certo tipo de filmes, tão indecentes que uma garota como você nem sabe que existem. Pagam muito bem, mas as atrizes executam todo o tipo de atividades sexuais… as mais degradantes possíveis! Angélica participou de inúmeros filmes desse tipo…
— Eu já sabia. Não vou sair de Hanson Square porque aqui é a minha casa e tenho a mesma intuição que você, Bruce. Angélica está de volta a Londres... em alguma parte desta cidade seus pensamentos estão dirigidos para Renzo…
— Meu Deus… Seu tom de voz me assusta, Geórgia! O que pretende fazer?
— Eu a matarei! Se ela tentar roubar o meu marido, a luta será um duelo mortal!
A veemência de Geórgia era tão assustadora que Bruce calou-se, chocado. Quando tornou a falar, toda a energia de sua voz se dissipara. Involuntariamente, sem pronunciar as palavras, ela lhe revelara uma verdade na qual não quisera acreditar, embora já o desconfiasse.
— Você o ama tanto assim?
— É. Os acontecimentos se precipitaram de tal modo que sou obrigada a admitir o que tenho tentado ocultar de mim mesma. — Uma energia contagiante transbordava de suas palavras. — Há poucos momentos, eu estava deitada no sofá descansando e fui tomada por uma sensação nunca experimentada antes, algo inquietante e belo! Tive a certeza absoluta de que vou ter um bebê! Não foi nada concreto como um desmaio ou tonturas, enjôos ou o desejo súbito de comer morangos com creme. Apenas um flutuar ligeiro, como as asas de uma borboletas, tocou meu coração, avisando-me para não desistir, para lutar e conservar o que é meu por direito. Tudo o que consegui ao pronunciar os juramentos de amar, cuidar e viver ao lado do homem com quem me casei me pertence!
— Mas foi obrigada a casar-se com Renzo, ele a coagiu através de chantagens! Foram promessas forçadas…
— Não há dúvida alguma sobre essa parte. No entanto, Renzo não me tomou à força. Eu me entreguei a ele por vontade própria. A escolha foi minha.
— Oh! Deus! Como fará se Renzo lhe disser claramente que não a quer mais? Que pretende viver com Angélica?
— Ele vai querer o seu filho, tenho certeza absoluta!
— E aceitará ser apenas a mãe do filho dele? Renunciará à possibilidade de viver rodeada de amor para ocupar um papel secundário?
— Se for preciso...
— Minha garota inocente e meiga… Eu faria tudo para não vê-la sofrer, e você se recusa a ser salva!
— Reconheço que sou ingênua, tola e romântica, mas também sei de um fato muito importante. Muitas vezes, uma criança vem ocupar o lugar de um ente querido que deixou de existir e eu sou capaz de ser tão inescrupulosa e egoísta quanto Angélica para conseguir atingir esse objetivo. Pode acreditar, em mim, Bruce.
— Só me resta resignar-me a perdê-la e torcer por você, querida...
— Muito obrigada por ter telefonado. Gostei de ouvir sua voz.
— Foi meu telefonema que provocou sua decisão de tomar uma atitude de autodefesa?
— Sim… acho que foi... Adeus.. .
No quarto às escuras, Geórgia sorriu. Alguns dias depois da morte da sogra ela sentira pela primeira vez a premonição de que logo seria mãe. Era como se a presença de Evelina naquela casa tivesse diminuído os atritos entre ela e Renzo, permitindo que o amor fosse mais terno e os unisse com maior intensidade, gerando um fruto.
E agora ela iria enfrentar sua primeira batalha… Renzo Talmonte!
Procurou o vestido de que ele mais gostava, mas não usou jóias. Naquele momento, não queria lembrar-se de sua semelhança com Angélica. Era Geórgia e como Geórgia iria forçá-lo a se definir!
Só depois de saber das intenções exatas do seu marido lhe revelaria o grande segredo!
Logo ao descer as escadas, ela notou que a sala, onde Renzo a recebera à tarde, estava totalmente iluminada mas deserta. Foi até o salão de música e, ao entreabrir a porta, viu o magnífico piano aberto e tão silencioso quanto os gravadores. Havia partituras espalhadas pela sala, cobertas de símbolos que se tornariam melodias românticas e cheias de encanto, porém faltava ali o gênio que as criara.
Será que Renzo sairá de casa, apesar da chuva incessante?, pensou.
A necessidade de ficar a sós com seus pensamentos se tornara uma obsessão depois da morte da mãe… O difícil era saber onde ele se escondia para pensar!
— Está procurando seu marido, madame? Sobressaltada, Geórgia virou-se e deparou com Torrence, que tinha um ar preocupado e tenso.
— Por acaso ele saiu?
— Não, madame. Pediu para que lhe servissem um café na saleta do jardim.
— Vou até lá… Obrigada.
Enquanto atravessava as salas às escuras, Geórgia pensava na preocupação de Torrence e dos outros criados em relação a ela. Já devia ser assunto aberto que o casal não mais partilhava a mesma cama, pois as criadas de quarto com certeza tinham passado a notícia aos outros.
Subitamente, ela percebeu o quanto se ressentira por não ter os braços do marido envolvendo-a enquanto dormia. Queria sentir-se novamente aquecida pela força daquele corpo másculo, ver os olhos verdes tornarem-se quase negros de desejo. Como pudera pensar que um outro homem conseguiria desencadear a mesma violência dos desejos em seu corpo? Ninguém despertaria, com um simples beijo, uma onda de prazer tão intensa quanto Renzo!
Geórgia tinha certeza de ser desejada com igual ardor, a única dúvida era se Renzo, quando a possuía, pensava em Angélica e esse seria o primeiro ponto a ser esclarecido entre eles.
Renzo estava sentado num sofá de junco próximo à fonte, e apenas um abajur iluminava a sala com uma luz cor de âmbar. Ele contemplava o jardim molhado e parecia completamente concentrado em seus pensamentos.
Geórgia sentiu um momento de hesitação e pânico, mas, reagindo, aproximou-se com passos firmes.
— Posso fazer-lhe companhia, Renzo? — Sem esperar pela resposta, sentou-se ao lado dele. — Achei que precisávamos ter uma conversa e, por sorte, encontrei-o aqui. É o aposento mais aconchegante da… nossa… casa. Sente o cheiro da grama molhada pela chuva? É um perfume único...
— Uma fragrância inocente como o despertar do mundo.
— Já lhe disse uma vez que às vezes suas palavras me fazem lembrar a música magnífica que você compõe?
— Ë meu lado bom falando.
— Bem, ninguém tem apenas bondade…Somos todos um estudo de contraste, onde luz e sombra se alternam. Há muito poucos que podem afirmar com segurança possuírem apenas o lado bom.
— Pode ser… Mas existem pessoas que não merecem se magoadas. Elas dão tudo de si sem perguntar se aquele que recebe tanto amor é digno de uma dádiva tão valiosa…
Subitamente, para grande perturbação de Geórgia, um soluço interrompeu as palavras de Renzo. Num impulso, ela o puxou para perto de si e prendeu-o em seus braços. A cabeça pousada sobre seus seios tentava ainda sufocar os soluços e ela acariciou levemente os cabelos negros e brilhantes.
— Renzo, querido… O que posso fazer para ajudá-lo? Sei como está sofrendo com a morte de sua mãe.
— Não… não é apenas esse o meu mal.
— Então…tente falar. Se você partilhar a sua dor, ela ficará mais leve. Não lute contra a necessidade de se abrir, amor.
— Como pode me chamar de amor? Como suporta ficar perto de mim? Por que não está com Bruce? Ele telefonou, percebi o quanto a deseja… Pensou que eu não fosse adivinhar?
— Bruce realmente me ligou porque julgava que eu fosse deixá-lo.
— Então foi sobre isso que conversaram na hora do almoço?
— Entre outras coisas... O maior problema debatido foi... o seu amor por Angélica.
— Mas eu lhe afirmei que não a aceitarei em hipótese alguma…
— Eu sei! No entanto, não consegue tirá-la do seu coração! Pensei muito sobre esse assunto, Renzo, desde a primeira noite em Sandbourne, quando… me revelou um mundo novo do sensações arrebatadoras. Eu sabia perfeitamente que a mulher em seus braços era minha irmã. Revoltei-me, senti ódio, mas, aos poucos, a minha necessidade de ser amada superou tudo. Já não mais me importava saber quem você enlouquecia com suas carícias. Afinal, mesmo se fosse Angélica a dona do seu coração, era eu quem estava ao seu lado. Confessei a Bruce esses meus receios, e ele me assegurou que eu tinha qualidades próprias… Decidi lutar por elas, Renzo. Não quero mais ser apenas uma sombra. Se não tem condições de me aceitar como Geórgia… diga a verdade, por favor!
— Não posso negar que minha intenção quando a forcei a casar-se comigo, além de mostrar àquela traidora que eu não sofria ao ser deixado de lado, era ter em minha cama uma cópia perfeita na qual me vingaria. Meu objetivo principal se resumia em destruir por completo a sua inocência e pureza para torná-la igual a todas as outras: vaidosas, corruptas, prisioneiras do luxo e dos impulsos de seus corpos. Jurei que iria degradá-la, transformando-a numa criatura tão vil e desprezível quanto Angélica! Por que acha que insisti para que fosse dançar com aquele rapaz, na nossa primeira noite em Sandbourne?
— Para que eu me divertisse?
— Sabia que ele iria confundi-la com sua irmã e tratá-la como uma mulher à venda pelo preço mais alto. Queria vê-la humilhada!
— Não... não acredito!
— É verdade. Se vergonha matasse, Geórgia… eu já não estaria mais vivo. Voltei do salão de jogos disposto a possuí-la sem a menor delicadeza devida a uma virgem inocente. Pretendia descarregar meu ódio por uma mulher sem moral no corpo intocado de outra. Por sorte minha, ao vê-la dormindo como um anjo… perdi a coragem. Mas, quando a despi, seu corpo reacendeu meus desejos e não por se parecer com o de Angélica. Suas formas delicadas jamais tinham sido tocadas, sem sequer vistas por homem algum… Esse fato as tornava únicas. Você tinha uma jóia muito rara para me entregar: a sua virgindade. E sua irmã já tinha sido de muitos outros.
— Ela está de volta, Renzo. Agora pode ter a mulher que o humilhou e obrigá-la a rastejar a seus pés. Angélica vai procurá-lo, quer um casamento rico e fará tudo o que lhe for pedido para ter um marido que possa dar-lhe o luxo tão necessário para viver como sempre desejou. Vou lhe fazer um pedido... Se vai aceitá-la de volta, diga agora. Não pretendo passar minhas noites sozinha e desesperada enquanto você vibra de prazer nos braços da minha irmã.
— Esqueceu-se de que é minha esposa e casou-se numa igreja onde não existe a possibilidade de divórcio?
— Mesmo assim, você pode manter-me em sua casa como a figura ideal de mulher que cumpre o seu dever e ter ao lado uma amante que o completa fisicamente.
— Alguma vez eu disse que você não me satisfazia?
— Não, mas também não afirmou ser "Geórgia" quem o fazia vibrar.
— Muito deixou de ser dito, não acha? Quando eu a possuíu pela primeira vez, soube no mesmo instante que mulher alguma havia me completado daquela forma. Entre nós, criou-se um elo mágico e muito raro, uma harmonia perfeita entre nossos corpos. Eu podia amar você sem pensar que os outros haviam desfrutado dos mesmos prazeres, podia entregar-me à paixão sem obstáculos… Com Angélica, sempre houve inúmeras barreiras. A pior delas era nunca saber se suas reações de prazer eram verdadeiras ou um fingimento de atriz! Sinto ter que dizer-lhe, mas eu a vi num filme onde ela se entregava a vários homens e foi um choque brutal reconhecer os mesmos gestos, as mesmas expressões da mulher que eu julgava me amar.
— Eu fiquei sabendo desses filmes terríveis...
— No início, amei apenas o seu corpo, o prazer que me proporcionava, sem confundi-la nunca com sua irmã. Além de ser mais sensual, você fazia de cada gesto uma entrega total.
— Quando soube que ela estava de volta descobri que o amor tem um outro lado, Renzo… não tão romântico nem cheio de ternura como eu sonhava, um lado de violência que não entrega a ninguém o que conseguiu para si próprio. Estou disposta a lutar com unhas e dentes para defender meu lar. Sei que posso lhe dar muito mais, fazê-lo infinitamente feliz e, se minha irmã chegar perto do homem que eu amo... vai se arrepender!
Geórgia sentiu os lábios ávidos de Renzo buscando os seus com urgência. A sensação continuava a ser tão delirante como sempre, mas precisava reagir e obrigá-lo a se definir. Ela sempre se entregaria àquele homem, mas uma outra vida dependia de um casamento verdadeiro e cheio de amor. Uma criança merecia ser criada num ambiente feliz, onde houvesse compreensão e uma partilha absoluta, não só de corpos mas de almas e corações, num encontro perfeito. E até agora, Renzo não pronunciara a palavra "amor".
— Ainda não me disse o que fará quando Angélica vier reclamar o que lhe pertence, Renzo!
— Por Deus! Como posso demonstrar-lhe que já não existe mais nada em mim que lembre aquela época terrível? Eu... espere um instante.
Levantando-se, Renzo foi até o aparelho de som e colocou uma fita. A melodia romântica que ele estivera compondo nos últimos dias de vida da condessa encheu o ambiente. Era realmente uma das mais belas criações do compositor Renzo Talmonte.
Voltando ao sofá, ele a tomou em seus braços e, mergulhando o rosto nos cabelos dourados, murmurou com a voz rouca de emoção:
— Gosta desta música? A letra ainda não foi aceita por mim, apesar de terem me apresentado centenas... Mas ela já tem um nome...
— Sim?
— Donna…
— Oh, Renzo… Não há palavras que possam exprimir melhor… Sei agora tudo o que precisava.
Inclinando-a no sofá, Renzo cobriu de beijos a pele suave exposta pelo decote do vestido, mas, insatisfeito, abriu com mãos tremulas os botões e desnudou os seios palpitantes de desejo.
— Geórgia, dolce mia… há quanto tempo quero possuí-la por completo, não apenas desejando e tomando seu corpo e sim todo o seu ser.
Numa mistura de inglês e italiano, Renzo murmurava palavras de amor e desejo enquanto a música declarava toda a sua paixão.
— Depois de tanta maldade e destruição por parte de Angélica, como eu poderia acreditar que você não estava apenas fingindo ser tão pura? Como um alucinado, eu procurava sem cessar motivos para culpá-la, queria descobrir defeitos… Como pude agir assim? Aqui, nesta mesma sala, eu a agredi sem piedade diante de mamãe. Queria destruí-la por ter tantas virtudes! Ela ficou tão brava comigo que pode ter sido esta a causa de seu enfarte!
— Não! Nem diga isso! Quando eu telefonei ao médico, ele me disse que estava esperando uma crise desse tipo. Acredito piamente que sua mãe soubesse que lhe restavam poucos dias de vida e quis passá-los ao seu lado. Ela falou de sua alegria por nos ver reunidos... Há um ponto em que não podemos suportar mais uma gota de sofrimento…
Depois de alguns minutos de silêncio, Renzo fitou os olhos muito doces de Geórgia.
— Se o seu amor por mim alcançou esse ponto e não tem condições de sobreviver, preciso saber, donna. Não aceito sacrifícios, fingimentos ou apenas uma parte de seu amor e desejo. Quero cada átomo de seu corpo, cada pensamento, cada sorriso ou lágrima, cada alegria ou dor.
— Tudo será partilhado, querido… A começar por algo ainda muito pequeno mas que é uma prova de como iremos nos fundir num único ser…
— Você está…? Não… não é possível!
O olhar maravilhado de Renzo ainda mostrava uma certa dúvida. Nada naquele corpo esguio poderia indicar uma gravidez!
Mas Geórgia, com um sorriso confiante, colocou as mãos morenas sobre seu ventre muito alvo e ainda liso.
— É muito cedo para notar qualquer diferença. Porém, em breve, meu corpo não será mais tão atraente como agora. Vai continuar me amando?
Ele não respondeu, ocupado em cobrir de beijos a pele delicada que abrigava o fruto de um amor…
Aquela união nascida do ódio e da vingança se transformara num encontro mágico de dois seres que se completavam com perfeição. Em pouco tempo, da avidez de uma ligação sem amor, surgiria um fruto, a prova de que todas as barreiras tinham sido superadas.
Na sala, Donna ecoava seus últimos acordes, embalando em sua melodia os dois corpos, que se procuravam com ânsia, numa união agora mais perfeita e repleta de significado.
Donna bella, sei mia...
Donna bella…
As músicas de Renzo, sempre bem-aceitas pelo público, jamais tinham alcançado antes um sucesso tão estrondoso. Rádio, televisão, discotecas, toda Londres se embalava ao som daquela melodia romântica, uma canção feita para enamorados, cantando o amor em sua infinita beleza.
Geórgia e Renzo, porém, mal percebiam toda a euforia e agitação do mundo musical... Os dois viviam isolados de tudo, embevecidos em sua descoberta pessoal do amor. Cada hora dos dias longos e cheios de encanto era dedicada a usufruir a felicidade que dominava suas vidas.
A paixão física, sempre intensa entre eles, se desdobrava em mil formas, nos corpos que se uniam agora com a fusão de seus corações.
A casa de Hanson Square irradiava o calor daquele encantamento e até mesmo o austero Torrence mantinha um discreto sorriso constantemente nos lábios. Apenas ele entrava na saleta do jardim, o refúgio predileto do casal, evitando que os criados perturbassem os momentos de paixão, tão freqüentes agora.
Renzo acompanhava, com reverência, as menores modificações no corpo adorado de Geórgia. Era o seu filho que a tornava menos esguia e com as formas mais cheias, como um fruto que amadurece à luz do sol.
E, qual uma flor se abrindo ao amor, Geórgia a cada dia parecia mais bela, irradiando uma serenidade em suas feições que fascinava a todos que a viam.
Apesar de tanta felicidade, ela ainda lutava a fim de entender a alma complicada de Renzo. Para um homem que levara toda uma vida guardando suas emoções apenas para si mesmo, não era fácil partilhar os pensamentos mais íntimos. Uma mudança tão profunda levaria tempo…
Mas Geórgia, infinitamente paciente, desdobrando-se em atenções e dedicação como alguém que trata de uma planta rara e muito frágil, conseguiu enfim derreter o gelo que cercava, como uma muralha intransponível, a alma de seu marido.
Renzo passava quase todas as manhãs no salão de música, e mandara abrir uma porta de comunicação com a saleta do jardim, onde Geórgia sentia-se completamente feliz em meio às árvores, às flores e aos pássaros. A música magnífica apenas se interrompia nos momentos em que o desejo de estar próximo daquela mulher doce e sensual o faziam deixar tudo o mais para tomá-la nos braços.
Tão freqüentes se tornavam esses encontros apaixonados que Torrence assumiu definitivamente a função de guardar as portas que levavam àquele aposento, destinado apenas ao abandono do prazer.
Mesmo embriagada de paixão, Geórgia ainda evitava pensar na irmã. O ciúme é um sentimento negativo mas incontrolável, e ela temia ver Angélica entrando em sua casa, fascinante e esguia, enquanto ela a cada dia assumia as formas arredondadas da maternidade. Evitava ler as pequenas notícias nos jornais sobre as aventuras e novos contratos da bela modelo e, acima de tudo, procurava ocultar de Renzo o seu temor.
Entretanto, sempre perceptivo, ele se tornara ainda mais sensível às nuances de expressão da mulher que aprendera a amar. Percebendo uma inquietação crescente à medida que a gravidez prosseguia seu curso, resolveu afastá-la de Londres. Afinal, a lua-de-mel tinha sido interrompida e ele queria provar-lhe que seu amor não se limitava à adoração de um corpo perfeito!
O inverno chegara e o ideal seria partir em busca do sol. Lembrando-se de sua sugestão de conhecerem as Bermudas, tocou no assunto com Geórgia e, mais uma vez, ela lhe fez um pedido especial.
Queria conhecer a Itália e, em especial, a pequena villa nas colinas de Fiesole da qual a condessa falara com tanto amor. O que ela não mencionou foi o desejo de provocar uma reunião entre os dois irmãos e conhecer melhor a cunhada, que se mostrara tão afetiva e ansiosa por tornarem a ser novamente uma família.
Stélvio e Mônica tinham se mudado para o palazzo de Florença, outrora ocupado pela mãe. Numa tentativa de recuperar um casamento abalado, procuraram novos amigos e um novo ambiente, onde nada os lembrasse da fase terrível que quase os destruíra.
Nas duas semanas passadas em Florença, Geórgia aprendeu a conhecer melhor aquela jovem italiana que havia mostrado a força de seu amor ao receber de volta o marido que a abandonara para seguir uma paixão desenfreada, um delírio dos sentidos que o deixou vazio e amargo.
Aos poucos, Mônica fora conseguindo trazer de volta à vida familiar aquele homem que a fizera tão feliz no passado. E, antes da partida de Geórgia para a villa nas colinas, confidenciou-lhe um segredo. Também estava grávida, e seu filho nasceria perto do aniversário da condessa Evelina Talmonte.
Apesar de Geórgia estar maravilhada com Florença e com o convívio familiar, vendo os dois irmãos dia a dia mais descontraídos, Renzo insistiu para que partissem. Queria tê-la só para si, retomando uma lua-de-mel que jamais se completara.
Entre os campos dourados de Fiesole, a villa muito branca os acolheu em sua simplicidade campestre. Ali não havia nada que os lembrasse da sofisticação de Hanson Square, e Geórgia deixou os vestidos de seda para usar as longas saias de algodão e as blusas folgadas das camponesas daquela região.
Foi no contato diário com aquele povo altivo e orgulhoso que ela pôde entender tantas facetas incompreensíveis do temperamento de seu marido.
Ao mesmo tempo violentos e meigos, os habitantes do local viviam para o amor. A música parecia ser um dom de Deus para aquela gente calorosa e aberta. Suas vozes sonoras ecoavam pelos campos desde o amanhecer e, nas noites cheias de magia, cantavam sempre um amor apaixonado e sensual.
Dias inesquecíveis e repletos de paixão fluíam lentos, e Geórgia ostentava com orgulho o ventre distendido e os seios túrgidos que evidenciavam o milagre que se realizava em seu corpo.
Renzo tocava, com um olhar embevecido, os mamilos escurecidos pela gravidez e tomava-a nos braços a todo momento, incapaz de manter as mãos afastadas da pele ligeiramente dourada pelo sol mediterrâneo.
No pátio interno da villa, onde os dois passavam os dias afastados de qualquer presença humana, Geórgia deixava os raios dourados colorirem seu corpo por inteiro diante dos olhares fascinados de seu marido. Não mais sentia-se inibida ao exibir sua nudez, era amada como uma mulher integral, não apenas pelo corpo, capaz de despertar desejos físicos.
Saciados de paz e amor, os dois retornaram a Londres tristes por ver chegar ao fim um período tão maravilhoso. Mas Renzo a queria perto de todo o conforto e dos progressos da medicina.
Geórgia alcançara um grau de felicidade tal que implorou a Renzo para que tentassem se reconciliar com seu pai. Era apenas esse mínimo detalhe que a impedia de usufruir completamente de uma vida perfeita.
O reverendo Norman não se negou a recebê-los e, na tarde passada em Duncton, chegaram a um relativo entendimento. A notícia de que iria ser avô o deixou satisfeito mas, a cada referência à gravidez, ele mencionava mais um dos sucessos do Angélica.
Mesmo assim, Geórgia ficou feliz por ter dado o primeiro passo para apagar uma época terrível em que sua família, já tão reduzida, quase se esfacelara por completo.
Não havia mais nuvem alguma a perturbar os dias serenos de Geórgia. Os vestidos leves e soltos só disfarçavam suas formas, já cheias nesse estágio de gravidez, e ela passava horas sentindo apenas o prazer de esperar pelo momento supremo da trazer seu filho ao mundo.
Até a violência da tempestade chegar, pois Angélica, como sempre, planejara com extrema eficiência os seus movimentos!
Nas duas últimas semanas, Renzo, que praticamente não saía mais de casa, precisou afastar-se várias vezes de Hanson Square por problemas relacionados a um de seus investimentos em Bristol. As ausências constantes no final da gravidez da esposa o perturbavam, mas mantinha contato por telefone e muito raramente passava as noites fora de casa. Mesmo assim, Geórgia sentia-se melancólica por estar mais solitária.
Naquela manhã, como sempre, ela se instalou na saleta do jardim para bordar mais uma peça do delicado enxoval, quando sua tranqüilidade foi interrompida por Torrence.
— Há... uma visita, madame.
— Faça entrar no salão, por favor, Torrence.
— Sinto muito, madame, mas ela já entrou. Sei que a senhora não recebe estranhos aqui na saleta, porém não consegui impedi-la…
Como uma miragem, uma figura fascinante entrou, desfazendo em mil pedaços a serenidade daquele refúgio de amor.
— Angélica?!
— Céus, irmãzinha! Você está mesmo deformada! Eu jamais me sujeitaria a essa vergonha, mas você sempre foi muito presa aos deveres familiares, não é verdade?
— O que veio fazer em minha casa?
— Vê-la, é claro! Há quanto tempo não ponho os olhos em minha única irmã? Desde alguns meses antes de seu casamento, certo?
— Diga logo o que quer, Angélica. Sua presença não me agrada e o quanto antes for embora, melhor!
— Ah! Primeiro vai me ouvir, querida! Fiquei tão surpresa ao saber de seu casamento! E logo com quem? Renzo estava tão apaixonado por mim que rastejou, implorando para que eu não o deixasse. Quem poderia imaginar que se casaria em tão pouco tempo? E você? Como sempre, aceitou os restos, as migalhas… Ele a desposou apenas para ter a ilusão de que era eu a partilhar sua cama! Ou foi tola o bastante para pensar em outro motivo?
— Fora daqui! O que eu aceito, ou não, não é da sua conta, Angélica.
— Pensou que eu fosse ficar quietinha e deixar tudo na mais perfeita paz? Pois enganou-se, irmãzinha. Stélvio nunca se mostrou à altura do irmão, foi um engano imaginá-lo mais sensual ou ardente. Renzo é, sem dúvida, o melhor amante que já encontrei... E você, tão puritana, como reagiu à noite de núpcias? Deve ter sido uma tragédia, ou melhor, uma comédia, não?
Geórgia já não podia mais conter o desespero. A fúria de Angélica distorcia as feições tão parecidas com as suas e ela temia que a irmã chegasse ao ponto de tentar fazer-lhe algum mal. Bruce a prevenira de que ela voltaria para retomar o que lhe pertencia, mas agora havia um filho a caminho e Renzo não o abandonaria. Apenas o bebê seria um obstáculo.
— No entanto, não foi para discutir suas crises de nervos ao ver pela primeira vez um homem nu que eu vim aqui, querida. Quis apenas lhe comunicar como se enganou ao pensar que conseguiu tirar um homem de Angélica Norman! Renzo voltou a possuir meu corpo com a mesma loucura de antes…Quem perdeu foi você!
— É mentira!
— Tem certeza? Onde ele tem passado algumas noites das últimas semanas? Ao lado da mulherzinha deformada pela gravidez ou… Pensou que um homem tão sensual e hábil na arte de fazer amor fosse se contentar com uma esposa ingênua e sem a menor noção de como dar-lhe prazer?
— Renzo tem ido a Bristol e, por mais que tente me envenenar, não acreditarei em uma só palavra. Meu marido me ama, você está apenas enfurecida por ter perdido a única chance de um casamento rico. Seu nome está sendo arrastado na lama e sua participação em filmes pornográficos já é do conhecimento de todos. A brilhante carreira chegou ao fim, Angélica, e você morre de ódio por não ter sido esperta o suficiente para ficar com Renzo.
— Está mostrando as unhas, irmãzinha? Então vou avisá-la... Já tenho seu marido de volta na minha cama e logo o terei definitivamente na minha vida. Pretendo recuperar Renzo e farei o impossível para consegui-lo.
Angélica aproximou-se com um olhar tão cheio de maldade que Geórgia recuou. A irmã lhe causava medo, dava-lhe a impressão de estar fora de si!
Seria capaz de cometer alguma loucura! Onde estaria Torrence… e Renzo?
Como se seus pensamentos tivessem sido ouvidos, ela ouviu passos. Não podia saber que Torrence, ao escutar a voz alterada de Angélica, entrara em contato com Flávia pedindo-lhe que avisasse Renzo com urgência. Era uma questão de vida ou morte!
Por sorte, Renzo desistira de ir até Bristol aquela manhã e estava no escritório, pronto para voltar para casa. Ao saber da notícia, correu para Hanson Square, em pânico. Só Deus sabia os malefícios que Angélica poderia provocar!
Ao entrar na saleta, Geórgia estava pálida e com os olhos arregalados de pavor, pois Angélica praticamente bloqueara sua saída.
— Ora! Que reunião encantadora! Veio nos visitar, Angélica?
— Oh! Querido! Que bom que você chegou! — exclamou ela, sem perder a compostura. — Sua "esposa" teve uma crise de nervos, efeitos da gravidez, sem dúvida. Aliás, como é terrível essa deformação, não acha?
Angélica, com a típica pose de modelo, postou-se ao lado da irmã como para evidenciar a perfeição de seu corpo escultural.
Renzo apenas sorriu e, aproximando-se de Geórgia, pousou as mãos no ventre distendido com reverência.
— Não é uma deformação, é um milagre. Não existe beleza igual à de um corpo de mulher grávida. Sinto por você, Angélica, que nunca perderá sua vaidade monstruosa, e por isso se privará desse prazer. Agora… posso saber o que pretende em minha casa?
— Visitar minha irmã… Ou estou proibida de vê-la?
— Depende... Se sua visita a perturbar, serei obrigado a impedir sua entrada nesta casa.
— Renzo, por favor… Deixe-a despedir-se, ela já ia embora, não é? — balbuciou Geórgia, em pânico. Queria evitar um confronto entre os dois, pois, se seu marido soubesse o que Angélica insinuara, seria capaz de uma violência incontrolável.
— Não, querida… vou ficar mais um pouco. É sempre um prazer admirar um homem tão fascinante quanto o… seu marido. Está plenamente satisfeito, caro, ou ainda sente o mesmo desejo alucinado pelo meu corpo? Foi sua mulherzinha que possuiu durante a lua-de-mel ou a ex-noiva que o fez atingir os limites máximos do delírio?
— Angélica, já lhe disse uma vez. Se perturbar Geórgia…
— Que tal se eu lhe contasse como você costumava implorar que...
— Fora daqui! Você nunca teve lugar no meu coração, Angélica... Só uma parte do meu corpo reagia à sua presença, e por muito pouco tempo! Sua única qualidade positiva é ter Geórgia como irmã! Fique avisada de que, se tornar a pôr os pés em minha casa, não serei eu a expulsá-la como farei hoje. A polícia se encarregará desse serviço.
— Você deve estar ficando louco!
— Absolutamente não… Previ que você voltaria para tentar envenenar Geórgia com mentiras! Provavelmente até lhe disse que voltamos a nos encontrar ou outro absurdo assim. Já me preveni contra suas atitudes perigosas, reunindo uma série de informações sobre sua vida que interessarão muito aos policiais. Detalhes como filmes pornográficos, drogas… minúcias sem importância.
Angélica empalideceu e recuou. Não era tão tola a ponto de ignorar quando perdia uma partida. Com um olhar cheio de ódio, dirigiu-se para a porta, não sem antes lançar um insulto final.
— Sejam muito felizes... Se pode sentir prazer em fazer amor com… um elefante, Geórgia também será capaz de vibrar com um aleijado! Vocês se merecem… Adeus!
Apenas os braços de Renzo impediram que Geórgia caísse no momento em que Angélica saiu da saleta. Muito pálida, ela estava prestes a ter o primeiro desmaio de sua vida.
Ele a deitou sobre o sofá, apoiando-lhe a cabeça nas almofadas. Um pânico profundo o invadiu: se Geórgia tivesse algum problema com o bebê por causa de Angélica, ele mataria aquela víbora sem pestanejar!
— Você está bem? Pelo amor de Deus, fale comigo!
— Calma, Renzo. Senti apenas uma tontura, foi a tensão, logo estarei ótima como sempre.
— Donna bella, o que aquela mulher lhe disse? Não há nada no mundo que eu ame tanto quanto você, portanto apague todos os absurdos, as calúnias e viva apenas pensando em nosso amor.
— Eu sei, Renzo, o quanto você me ama mas… — As lágrimas escorriam pelo rosto pálido de Geórgia. A beleza e sofisticação da irmã a tinham feito sentir-se tão inadequada para ser esposa de um homem tão atraente quanto Renzo! Sua insegurança retornara com força total!
— Diga, amor e, qual o problema então?
— Eu estou disforme, e ela... tão linda…
— Pelo amor de Deus! Como pode pensar assim? Venho provando há meses que meu desejo por você jamais deixou de existir… É como uma sede jamais saciada, um anseio incontrolável que nada pode alterar…
Com suavidade, ele afastou o tecido fino e leve, expondo-lhe os seios. O contraste das mãos muito bronzeadas em sua pele alva a lembrara das tardes de amor na villa, e, quando ele tomou entre os lábios quentes o bico dolorido e sensível, Geórgia soltou um gemido de prazer.
Sensações inebriantes tomaram conta de seu corpo enquanto Renzo acariciava lentamente o ventre redondo e brilhando como madrepérola.
— Bella comme nessuna…
Aquelas palavras mágicas fizeram a saleta do jardim transformar-se novamente no refúgio de amor e Geórgia deixou-se levar pela paixão.
Apenas o toque daquelas mãos a levava a um delírio alucinante, transformando-a numa chama ardente, incapaz de controlar as ondas de prazer.
Renzo percorreu com as mãos e os lábios os mistérios infinitos do corpo feminino, buscando, no prazer que lhe proporcionava, a afirmação de um amor que não diminuíra jamais.
Enquanto sugava avidamente o mamilo escurecido e dilatado, procurou a flor úmida e cálida que acolheria sua virilidade fremente de desejo.
Geórgia soltou um gemido de volúpia ao receber em seu corpo a prova do amor daquele homem que conseguia levá-la ao delírio.
Apenas as gotas de água caindo na fonte respondiam aos murmúrios apaixonados que, num ritmo crescente, se transformavam em gemidos até o grito de prazer de um êxtase glorioso.
O sol do meio-dia banhava os corpos entrelaçados na comunhão do amor. Geórgia adormeceu na segurança dos braços de Renzo, que continuava a beijar os seios transbordantes, prontos a alimentar mais do que a paixão de um homem.
A cada ano Londres se tornava mais agitada e cheia de carros, punks, turistas… Um caos perturbador!
Mas Hanson Square permanecia um oásis, uma ilha verde, imobilizada num momento histórico de tranqüilidade e elegância.
Entre as impecáveis babás, que escolhiam os bancos à sombra de árvores centenárias, havia agora mais uma. Em dois reluzentes carrinhos, um menino e uma menina atraíam a atenção de todos. Duas crianças de tal formosura que era impossível não parar para olhá-los.
Giórgio e Evelina… gêmeos e tão diferentes. Ele tinha os olhos tão azuis quanto os da mãe e a pele dourada do pai, e a menina, duas esmeraldas brilhantes, contrastando com a pele alva e os cabelos muito negros.
Mas o que impressionava acima de tudo era a perfeição dos traços… Os pequenos seres eram frutos de uma paixão sem limites, que crescia a cada dia.
À porta da graciosa mansão georgiana, uma bela mulher os esperava, e seus traços emanavam a mesma serenidade vinda do amor, uma donna bela… amada como nessuna altra…
Violet Winspear
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