Biblio VT
Vi o movimento pesado de suas nádegas pálidas quando ela caminhou descalça pelo telhado e passou pela porta. Ainda havia luar suficiente e iluminação da rua para eu ver que o topo do terraço havia sido transformado em um jardim suspenso, e havia sido um trabalho profissional, com lajes sólidas embaixo e grade de ferro na altura da cintura. Tubos de madeira haviam sido instalados nos quatro cantos, cada um deles plantado com alguma coisa que, ou era uma planta realmente grande ou uma pequena árvore. O colchão onde eu estava deitado era, na verdade, uma almofada para uso ao ar livre com um revestimento de PVC à prova de água. Ele esfriava sob meu traseiro nu, e eu também sentia cada vez mais frio.
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Lá de baixo vinha o barulho abafado dos gritos festivos de mais uma noite no Soho. De repente lembrei que estava completamente nu, deitado no telhado de um prédio no centro de Londres. Esperava realmente que o pessoal do Apoio Aéreo não fosse convocado para a patrulha, ou poderia ir parar no YouTube, como aquele idiota pelado no telhado.
Estava pensando seriamente em procurar minhas roupas, quando Simone voltou com um cobertor e uma cesta de piquenique muito antiga com um F&M gravado em uma das laterais.
Ela deixou a cesta ao lado do colchão e se deitou ao meu lado, jogando o cobertor sobre nós.
– Você está congelando – disse ela.
– Você me deixou no telhado. Quase morri congelado. Já estavam preparando os helicópteros de resgate e tudo mais.
Ela me aqueceu por um tempo, e depois investigamos o conteúdo da cesta. Era uma cesta de piquenique Fortnum e Mason autêntica, com garrafa térmica de aço inox com chocolate quente, uma garrafa de conhaque Hine e um bolo Battenberg inteiro embrulhado em papel manteiga. Por isso ela havia demorado tanto a voltar.
– Tinha essas coisas em casa? – perguntei.
– Gosto de estar preparada – ela respondeu.
– Sabia que Casanova se instalava aqui quando estava em Londres? Quando saía para um encontro ele costumava levar uma pequena valise com ovos, pratos e uma espiriteira.
– Deslizei minha mão pela curva suave e quente de seu seio. – Assim, onde quer que estivesse, ele podia sempre comer um ovo frito no café da manhã. – Eu a beijei
e senti nela o gosto de chocolate.
– Nunca soube que Casanova era escoteiro – Simone comentou.
Nós nos sentamos sob o cobertor e vimos a lua descer por trás dos telhados do Soho. Comemos bolo Battenberg e ouvimos as sirenes da polícia descendo e subindo Charing
Cross Road e Oxford Street. Quando terminamos de comer, fizemos sexo até o equivalente ao coro da aurora no Soho anunciar a chegada de um novo dia.
Gosto de pensar que o velho Giacomo teria aprovado.
2 Roberto Calvi – apelidado de Banqueiro de Deus devido a sua ligação estreita com a Santa Sé – foi um banqueiro italiano que morreu perto da ponte do Tâmisa em
junho de 1982. (N. da E.)
7
Quase como estar apaixonado
Sir Robert Mark foi comissário da Polícia Metropolitana de 1972 a 1977, e é famoso por duas coisas: a propaganda dos pneus Goodyear na qual ele dizia “Acredito que
essa é uma grande contribuição para a segurança nas estradas”, e a Operação Homem do Campo, uma investigação sobre corrupção dentro do grupo que ele mesmo comandava.
Nos tempos que o Daily Mail chama de bons e velhos dias, um policial consciente podia triplicar seu rendimento simplesmente por estender a mão no momento certo,
e um bandido armado podia escapar da coleira mediante uma modesta colaboração. Justiça seja feita, eles sempre tentavam condenar alguém pela transgressão para, pelo
menos, dar a impressão de que a lei era aplicada, e isso é o principal. O Comissário Mark, que não concordava com isso, começou o mais abrangente esforço anticorrupção
que a Metropolitana já viu, e é por isso que ele é o símbolo que os pais policiais usam para manter seus filhotes policiais na linha. Comporte-se, ou o terrível
Sir Robert Mark vai aparecer e chutar você da força. É por isso, provavelmente, que o atual comissário tem um retrato de Mark pendurado no átrio de seu gabinete,
estrategicamente colocado de frente para a fileira de desconfortáveis poltronas de falso couro verde em que Nightingale e eu tivemos que nos sentar para esperar.
Quando você é um policial pouco importante, nada de bom pode decorrer da convivência próxima com seu superior. Na última vez que estive ali havia sido para o juramento
de aprendiz de mago. Dessa vez, eu desconfiava de que seriam basicamente xingamentos. Ao meu lado, Nightingale parecia relaxado enquanto lia o Telegraph vestindo
um terno Davies & Son que, ou era novo, ou, mais provável, voltava à moda. Eu usava meu uniforme porque, diante de uma autoridade, o uniforme é o melhor amigo de
um oficial, especialmente se foi perfeitamente passado por Molly, que parecia considerar o vinco de uma calça uma arma agressiva convenientemente localizada.
Uma secretária abriu a porta para nós.
– O comissário vai recebê-los agora – ela disse, e nós nos levantamos para enfrentar a situação.
O gabinete do comissário não é tão impressionante, e apesar do tapete não ser dos mais baratos, não havia revestimento de madeira capaz de disfarçar o cinza sem
graça da estrutura de concreto criada no meio da década de 1960 para abrigar o edifício da Nova Scotland Yard. Mas a Polícia Metropolitana tem mais de cinquenta
mil funcionários e um orçamento de quatro bilhões e meio de libras, e é responsável por tudo, de comportamento antissocial em Kingston a antiterrorismo em Whitehall,
por isso o gabinete do comissário nem precisa impressionar.
Ele estava sentado esperando por nós. Usava o quepe do uniforme, e foi isso que me fez perceber que estávamos realmente encrencados. Paramos na frente da mesa e
Nightingale estremeceu, como se contivesse com esforço o impulso de bater continência. O comissário continuou sentado. Nenhum aperto de mão, nenhum convite para
nos sentarmos.
– Inspetor chefe Nightingale – disse ele –, imagino que já tenha lido os relatórios sobre as ocorrências da noite da última quinta-feira.
– Sim, senhor – respondeu Nightingale.
– Tem consciência das acusações registradas pelos membros do serviço de ambulâncias de Londres e do relatório preliminar da DPP?
– Sim, senhor – disse Nightingale.
Eu me encolhi. O DPP é o Diretório de Padrões Profissionais, inimigos em forma humana que caminham entre nós para manter as fileiras com medo e obedientes. Se você
sentir o hálito frio do DPP na nuca, como eu sentia nesse momento, precisa descobrir que parte da diretoria está respirando. Eu não acreditava que poderia ser o
CAC, Comando Anticorrupção, nem o CII, o Comando de Investigações Internas, porque sequestrar uma ambulância era mais criminosamente estúpido do que estupidamente
criminoso. Pelo menos, era assim que eu esperava que eles vissem a situação, porque eu então seria punido pelo CIHAC, o Comando de Infrações de Habilitação e Atos
Civis, cuja função era lidar com os oficiais que expunham a Metropolitana a processos nos tribunais, por exemplo, por paramédicas traumatizadas.
– Mantém sua avaliação das atitudes do oficial Grant naquela noite?
– Sim, senhor – disse Nightingale. – Acredito que o oficial Grant, diante de circunstâncias difíceis, avaliou a situação corretamente e agiu de maneira rápida e
decisiva para impedir a morte do indivíduo conhecido como Ash Thames. Se ele não houvesse removido o ferro frio do ferimento, ou, depois de removê-lo, se não houvesse
transportado Ash até o rio, não tenho dúvida de que a vítima teria, no mínimo, morrido de hemorragia.
O comissário olhou diretamente para mim, e prendi a respiração até ele olhar novamente para Nightingale.
– Foi deixado em um cargo de supervisão, apesar de sua condição de saúde, porque me garantiram que você era o único oficial qualificado para lidar com casos “especiais”
– disse ele. – Cometi um engano?
– Não, senhor – respondeu Nightingale. – Até o momento em que o comissário Grant concluir o treinamento, continuo sendo o único oficial adequadamente qualificado
a serviço da Polícia Metropolitana. Acredite, senhor, estou tão alarmado quanto o senhor com essa perspectiva.
O comissário assentiu.
– Como, aparentemente, Grant não teve alternativa além de agir como agiu, estou disposto a enquadrar o episódio como falha de supervisão de sua parte. Vamos considerar
isto aqui uma advertência verbal, e uma anotação será feita no seu prontuário.
Ele olhou para mim, e eu mantive o olhar seguramente fixo em um ponto aleatório da parede cerca de dois centímetros à esquerda de sua cabeça.
– Aceito que é inexperiente e que foi forçado a se basear no próprio julgamento em circunstâncias que estão... – o Comissário parou para escolher as palavras – além
do seu trabalho convencional de policial, mas gostaria de lembrar que fez um juramento, como oficial e como aprendiz. E quando fez esse juramento, você foi prevenido
sobre as coisas extraordinárias que seriam esperadas de você. Nesse momento, nenhuma ação disciplinar será tomada e não haverá nenhum registro em seu prontuário.
Porém, no futuro, quero vê-lo exercendo mais tato e mais discrição, e quero que tente manter o dano à propriedade restrito a um nível mínimo. Fui claro?
– Sim, senhor – respondi.
– O dano causado à propriedade – continuou o Comissário, olhando novamente para Nightingale –, inclusive o que foi causado à ambulância, será ressarcido com recursos
do orçamento da Folly, não do fundo geral para contingências da Metropolitana. O mesmo vale para quaisquer custos legais e indenizações por danos que possam decorrer
de litígio legal contra a Polícia Metropolitana. Ficou claro?
– Sim, senhor – nós dois respondemos.
Eu suava de alívio. Só não enfrentaria uma séria audiência disciplinar porque o comissário, provavelmente, não queria ter que explicar à Autoridade da Polícia Metropolitana
porque um oficial comum havia estado à frente de uma Unidade de Comando Operacional. Qualquer advogado da Federação de Polícia teria um prato cheio com a falta de
supervisão de um oficial sênior – e era preciso lembrar que Nightingale havia estado de licença médica. Sem mencionar as implicações de saúde e segurança por ter
sido forçado a pular no Tâmisa no meio da noite.
Pensei que o caso estava encerrado, mas não estava. O comissário usou seu interfone.
– Pode mandá-los entrar agora, por favor.
Reconheci os convidados: o primeiro era um homem branco, baixo e de meia-idade que parecia surpreendentemente elegante em um terno M&S de tecido risca-de-giz azul.
Notei que ele não usava gravata, e o cabelo era tão resistente ao pente quanto uma cerca viva. Oxley Thames, o mais sábio dos filhos de Pai Thames, seu conselheiro
chefe, guru de mídia e responsável pelas tarefas mais difíceis. Ele me olhou desconfiado quando se sentou na cadeira indicada pelo comissário, à direita da mesa.
A segunda pessoa era uma mulher bonita, de pele clara, nariz fino e olhos puxados. Ela vestia um tailleur Chanel preto que, se fosse um carro, iria de zero a noventa
por hora em menos de 3,8 segundos. Lady Ty, a filha favorita de Mãe Tâmisa, formada em Oxford e ambiciosa, parecia feliz por me ver, o que não era bom. Quando ela
se juntou a Oxley, percebi que a bronca ainda não havia acabado, e agora seria a vez de A Bronca 2: dessa vez é pessoal.
– Suponho que conheçam Oxley e Lady Tyburn – disse o comissário. – Eles foram convidados por seus “diretores” a se manifestarem com relação a Ash Thames. – Olhando
para os dois convidados, ele perguntou quem gostaria de ser o primeiro.
Ty olhou para o comissário.
– Eu tenho uma pergunta para o oficial Grant. Posso? – indagou ela.
O comissário fez um gesto sugerindo que eu era todo dela.
– Em algum momento passou por sua cabeça o que teria acontecido com minha irmã se Ash morresse? – ela me perguntou.
– Não, senhora. – Era verdade. Não havia passado por minha cabeça e, quando passou, a sensação não foi agradável.
– Uma declaração interessante, considerando que ajudou na negociação do acordo – continuou ela. – Não conhecia a exata natureza de uma troca de reféns, talvez? Ou
esqueceu que, caso Ash morresse enquanto estivesse sob nossos cuidados, a vida de minha irmã seria objeto de confisco? Sabe o que significa a palavra “confisco”?
Fiquei gelado, porque não havia pensado nisso, não quando recrutara Ash para a missão de vigilância, nem quando nadava com ele no Tâmisa. Se ele houvesse morrido,
Beverley Brook, irmã de Lady Ty, teria sido objeto de confisco definitivo. Resumindo, eu quase havia matado duas pessoas naquela noite.
Olhei para Nightingale, que franziu as sobrancelhas e moveu a cabeça indicando que eu deveria responder.
– Sei o que significa a palavra confisco – falei. – E em minha defesa, gostaria de dizer que nunca imaginei que Ash se colocaria em risco. Sempre o considerei uma
pessoa sóbria e confiável, como todos os irmãos dele.
Oxley bufou, o que atraiu um olhar reprovador de Lady Ty.
– Não esperava que ele fosse tão corajoso ou rápido – continuei, e Oxley me olhou como se quisesse dizer que para todo exagero tem que haver um limite. Não tinha
importância, porque o motivo pelo qual você não discute com Lady Ty é que ela simplesmente espera você espernear, e depois acerta o golpe final.
– Apesar de ter consciência do papel desempenhado pelo inspetor Nightingale e pelo oficial Grant na facilitação de um quadro de conciliação – disse Lady Ty –, creio
que seria melhor, considerando os eventos recentes, se eles ocupassem posições menos proativas com relação aos assuntos concernentes à diplomacia ribeirinha.
Senti vontade de aplaudir. O comissário assentiu, o que só comprovou que Ty, como sempre, tentava manipular a situação em proveito próprio – provavelmente com a
intenção de se aproximar da Autoridade Maior da Polícia de Londres e do Gabinete do Prefeito. Ele provavelmente sentia que já tinha problemas demais sem os que poderíamos
criar, e olhou para Oxley para perguntar se ele queria acrescentar alguma coisa.
– Ash é jovem – disse Oxley –, e todo mundo sabe como são os garotos. Mesmo assim, creio que não faria mal nenhum se o oficial Grant tivesse um pouco mais de responsabilidade
ao lidar com ele.
Esperamos mais um momento, mas Oxley não disse mais nada. Lady Ty não parecia satisfeita, sinal de que seu plano não era tão bem-sucedido quanto ela gostaria que
fosse.
Sorri para ela daquele jeito infantil e quase imperceptível, um sorriso que eu usava desde os 8 anos para irritar minha mãe. Ela comprimiu os lábios, mas era mais
resistente que minha mãe, evidentemente.
– Isso parece razoável – disse Nightingale. – Desde que todas as partes cumpram o acordo e a lei, tenho certeza de que podemos concordar com uma abordagem menos
participativa.
– Muito bom – respondeu o comissário. – E apesar de gostar dessas conversinhas, vamos tentar mantê-las fora do meu gabinete no futuro.
E assim nós fomos dispensados.
– Podia ter sido pior – comentei quando passamos pela chama eterna da lembrança acesa no saguão da Nova Scotland Yard. Ela existe para lembrar homens e mulheres
corajosos que caíram durante o cumprimento do dever, e para lembrar que nós, os vivos, precisamos ser muito cuidadosos.
– Tyburn é perigoso – Nightingale falou enquanto nos dirigíamos ao estacionamento subterrâneo. – Ela acredita que pode definir seu papel na cidade por meio de manobras
burocráticas e política de gabinete. Mais cedo ou mais tarde, vai entrar em conflito com a mãe.
– E se isso acontecer?
– As consequências podem ser espetaculares – disse Nightingale. – Acho melhor não estarmos entre as duas quando isso acontecer. – Ele me olhou pensativo. – Ou em
qualquer lugar no Vale do Tâmisa, na verdade.
Nightingale tinha exames médicos marcados no UCH, por isso ele me deixou em Leicester Square, e eu telefonei para Simone.
– Preciso de uma hora para dar um jeito em tudo – disse ela. – Depois pode vir.
Eu ainda estava uniformizado, o que me impedia de ir beber em um bar, então fui tomar um café em um lugar italiano na Frith Street antes de subir sem pressa e a
pé a Old Compton Street. Estava pensando em parar na Patisserie Valerie para comprar um bolo, quando meu instinto de policial me fez notar que havia algo errado
em Dean Street.
Alguma coisa além da fita, dos peritos e do pessoal uniformizado que cumpria a excitante tarefa de proteger a cena do crime. A curiosidade profissional me dominou,
e eu me aproximei para dar uma olhada.
Vi Stephanopoulos falando com dois policiais da Equipe de Homicídios. Não se pode simplesmente entrar na cena do crime de outra equipe sem pedir autorização, por
isso parei perto da fita e esperei até Stephanopoulos notar minha presença. Um minuto depois ela se aproximou e apontou meu uniforme.
– Voltou à patrulha com meros mortais como a gente? – perguntou. – Acho que ficou barato. O pessoal apostava que você seria suspenso.
– Advertência verbal – contei.
Stephanopoulos parecia incrédula.
– Por sequestrar uma ambulância? Só uma advertência verbal? Não vai ganhar amigos entre os colegas, sabe?
– Eu sei. Quem é o morto?
– Ninguém que tenha a ver com você – respondeu ela. – Um operário que trabalhava na obra da Crossrail. Foi encontrado hoje de manhã em um dos poços de acesso. –
A maior parte da obra de construção das novas estações da Crossrail estava concluída, mas os empreiteiros ainda pareciam determinados em abrir buracos nas ruas.
– De qualquer maneira, pode ter sido um acidente; saúde e segurança nesses canteiros de obras são quase tão ruins quanto na Metropolitana.
Saúde e segurança eram as atuais obsessões da Federação de Polícia. No ano passado haviam sido os coletes à prova de balas, mas, ultimamente, eles acreditavam que
os oficiais estavam se expondo a riscos desnecessários quando perseguiam suspeitos. Queriam diretrizes melhores de saúde e segurança para prevenir ocorrências e,
eu imaginava, robôs operados por controle remoto para as perseguições.
– Aconteceu enquanto estava escuro?
– Não, às oito da manhã. Em plena luz do dia – respondeu Stephanopoulos. – O que significa que ele deve ter sido empurrado, mas, e essa é a parte importante para
você, não há nada nem remotamente sobrenatural na cena do crime, graças a Deus. Sendo assim, pode sumir daqui.
– Obrigado, sargento. É o que vou fazer.
– Espere – Stephanopoulos chamou. – Quero que dê uma olhada nas entrevistas de acompanhamento feitas com Colin Sandbrow. Já devem estar no sistema.
– Quem é Colin Sandbrow?
– O homem que teria sido a próxima vítima, se seu amigo maluco não houvesse atravessado o caminho. Acha que pode fazer o que pedi sem causar mais danos à propriedade?
Eu ri para mostrar que tinha espírito esportivo, mas, conhecendo o humor policial como conhecia, sabia que ia carregar essa história da ambulância até o fim da minha
carreira. Deixei Stephanopoulos trabalhando na cena do crime e segui por St. Anne’s Court e D’Arblay Street para Berwick Street. Como não havia prestado atenção
na noite anterior, tive que parar e olhar em volta para localizar a porta, que encontrei espremida entre uma loja de produtos químicos e uma de discos especializada
em antigos vinis. A tinta preta estava descascando e as plaquinhas no interfone estavam manchadas ou ausentes. Não tinha importância. Eu sabia que ela estava no
último andar.
– Que droga – o interfone chiou. – Ainda não estou pronta.
– Posso dar mais uma volta no quarteirão – sugeri.
A trava vibrou e eu empurrei a porta. A escada não parecia melhor à luz do dia; o carpete era azul-claro e gasto em vários lugares, e as paredes tinham manchas escuras
onde as pessoas apoiavam as mãos para se equilibrar. Em cada andar havia portas que, no Soho, podiam se abrir para qualquer coisa, de disciplina severa por preços
razoáveis a uma produtora de televisão. Subi num ritmo moderado para não chegar arfando ao último andar, e lá bati na porta.
Quando abriu a porta e me viu vestindo uniforme, Simone recuou um passo e bateu palmas.
– Olhe para isso – ela disse. – É um stripper!
Ela fazia a limpeza da casa com um short cinza de corrida e um moletom azul-marinho que parecia ter sido cortado com uma tesourinha de unhas. Os cabelos estavam
presos por um lenço à moda britânica, de um jeito que eu só havia visto em Coronation Street. Entrei e a agarrei. Ela cheirava a suor e lustra-móveis. Teria sido
ali mesmo no chão, se ela não houvesse exclamado, ofegante, que a porta continuava aberta. Só nos soltamos para fechar a porta e ir para a cama. Só uma cama, notei,
mas era uma king size, e nos esforçamos para usar todo o espaço. Em algum momento meu uniforme saiu de cena, e nunca conseguimos entender o que aconteceu com o moletom
dela. Mas ela continuou de lenço, porque alguma coisa nele me excitava.
Uma hora e pouco mais tarde, tive uma oportunidade de olhar o apartamento. A cama ocupava um canto do aposento principal e era, além de uma poltrona de couro, o
único lugar para sentar. Além disso, havia três guarda-roupas diferentes encostados a uma das paredes e uma sólida cômoda de carvalho, um móvel tão grande que só
podia ter sido levado ao apartamento pela janela. Não vi nenhuma televisão, nem um aparelho de som, mas um pequeno aparelho de MP3 podia ter desaparecido entre as
roupas que dominavam o lugar. Sou filho único, por isso só tive que dividir a casa com uma mulher de cada vez. Não estava preparado para a quantidade de roupas que
podia ser gerada por três irmãs dividindo um apartamento. Os sapatos eram especialmente predominantes. Havia fileiras seguidas de modelos, idênticos para mim, de
frente aberta, tira no calcanhar e salto fino. Sandálias de todos os tipos ocupavam espaços aleatórios, enquanto caixas de mocassins preenchiam as lacunas entre
os guarda-roupas. Pares de botas, de canos baixos e até a altura das coxas, pendiam de cabides nas paredes como fileiras de espadas em um castelo.
Simone me viu olhando para um par de botas com salto de quinze centímetros e começou a se soltar dos meus braços.
– Quer que eu experimente? – ela perguntou.
Eu a puxei de volta contra o peito e beijei seu pescoço. Não queria que ela fosse a lugar nenhum. Simone se virou em meus braços e nós nos beijamos até ela dizer
que precisava ir ao banheiro. Quando sua amante deixa a cama, você pode aproveitar para se levantar também, e foi assim que pouco depois cheguei ao banheiro, um
cubículo com espaço suficiente apenas para uma ducha surpreendentemente moderna, vaso sanitário e uma pia pequena e antiga encaixada no canto que sobrava. Enquanto
estava ali, o instinto de policial me dominou e eu vasculhei o armário. Simone e as irmãs eram claramente a favor de grandes e duradouros estoques de substâncias
químicas perigosas, porque havia cartelas de analgésico e comprimidos para dormir vencidos havia dez anos.
– Está revistando minhas coisas? – Simone perguntou da cozinha.
Perguntei como ela e as irmãs conseguiam dividir um banheiro tão pequeno.
– Todas nós estudamos em colégio interno, meu bem – Simone respondeu. – Quem sobrevive a essa experiência consegue lidar com qualquer coisa.
Quando saí do banheiro ela me perguntou se eu queria chá. Eu aceitei, e nós tomamos um chá inglês completo em uma bandeja com cerâmica Wedgwood azul e dourada, geleia
de amora silvestre e bolinhos cheios de manteiga.
Eu gostava de vê-la nua, reclinada na cama como uma obra da Galeria Nacional com uma xícara de chá em uma das mãos e um bolinho na outra. Considerando que o verão
havia acabado recentemente, sua pele era clara, quase translúcida. Quando tirei a mão de sua coxa, ficou no lugar uma marca cor-de-rosa.
– Sim – disse ela. – Algumas pessoas não conseguem se bronzear. Obrigada por me lembrar.
Beijei a marca como um pedido de desculpas, e depois sua barriga como um convite. Ela riu e me empurrou.
– Sinto cócegas – explicou. – Termine seu chá, seu selvagem. Você não tem modos?
Peguei a xícara de chá com desenhos de salgueiro e bebi um pouco de chá. O sabor era diferente, exótico. Uma mistura requintada, desconfiei, tirada de outra cesta
Fortnum e Mason. Ela me deu um pedaço de bolinho, e perguntei por que ela não tinha televisão.
– Não tínhamos televisão quando éramos pequenas. Não desenvolvemos o hábito de assistir à TV. Tem um rádio em algum lugar para ouvir The Archers. Nunca perdemos
um episódio. Mas devo admitir que nem sempre consigo acompanhar todos os personagens; eles parecem estar sempre se casando, tendo romances secretos, e quando consigo
me familiarizar com um ou outro, eles morrem ou deixam Ambridge. – Ela me olhou por cima da borda da xícara. – Não acompanha The Archers, não é?
– Na verdade, não.
– Deve achar que somos estranhas – continuou ela, esvaziando sua xícara de chá. – Morando em um buraco apertado de um cômodo, sem televisão, no meio da zona do Soho.
Simone deixou a bandeja com a xícara de chá no chão, ao lado da cama, antes de esticar o braço para pegar minha xícara vazia.
– Acho que você se preocupa demais com o que eu penso – respondi.
Simone recolheu a xícara da cama e beijou meu joelho.
– Você acha? – ela perguntou, e segurou meu membro com uma das mãos.
– Tenho certeza. – Tentei não gemer quando ela começou a beijar minha coxa e subir por ela.
Duas horas mais tarde ela me expulsou da cama, mas com toda gentileza possível.
– Minhas irmãs vão chegar logo – Simone explicou. – Temos regras. Nada de homens na cama depois das dez da noite.
– Tem havido outros homens? – perguntei enquanto procurava minha cueca.
– É claro que não. Você é meu primeiro.
Ela recolhia coisas que achava no chão, entre elas uma calcinha de cetim que parecia uma segunda pele sobre seu corpo. Vê-la vestir a calcinha era quase tão sexy
quanto seria vê-la despi-la. Ela me viu ofegando e apontou o indicador para mim, balançando-o com reprovação.
– Não – disse ela. – Se começarmos de novo, não vamos mais parar.
Eu teria vivido bem com isso, mas um cavalheiro sabe quando é hora de desistir e sair de cena com elegância. Mas não sem antes beijá-la demoradamente na porta.
Caminhei pelo Soho com o cheiro de madressilva em meu nariz e, de acordo com relatórios feitos posteriormente, ajudei colegas oficiais de Charing Cross e West End
Central a encerrar duas brigas, uma doméstica e outra em uma festa de despedida de solteira que havia acabado com uma tentativa de abuso sexual contra um stripper.
Mas não me lembro de nada disso.
Você pratica Scindere fazendo uma maçã levitar com Impello e depois fixando-a no lugar enquanto seu professor tenta deslocá-la com um bastão de críquete. Na manhã
seguinte enfileirei três maçãs, e elas nem balançaram quando Nightingale as acertou com o bastão. Ele as atingiu com força suficiente para estraçalhar as maçãs,
é claro, mas os pedaços ficaram no ar como um acidente alimentar em uma estação espacial. Ele havia dito que tudo dependia da quantidade de magia que permeava a
maçã. Para a maioria dos aprendizes, isso significava qualquer coisa até meia hora. Essa imprecisão resumia a atitude de Nightingale frente ao empirismo. Por outro
lado, eu estava preparado dessa vez. Havia levado um cronômetro, um relógio antigo com o mostrador grande, do tamanho da palma da minha mão, meu notebook e a transcrição
da entrevista de Colin Sandbrow extraída das anotações do caso da Vagina dentata. Enquanto Nightingale subia, eu me sentei em uma mesa e comecei a examinar o arquivo.
Colin Sandbrow, 21 anos, chegara de Ilford para uma noite de diversão. Havia conhecido alguém que ele pensava ser gótico e não falava muito, mas parecia se interessar
por um pouco de ação ao ar livre. Tudo indica que Sandbrow era jovem e estava em boa forma, mas seu rosto tinha uma espécie de ausência de graça e encanto – como
se o criador houvesse trabalhado nele no fim do dia e estivesse apressado, ansioso para cumprir uma cota. Isso provavelmente explicava por que ele estava tão interessado
em deixar a boate.
– Não achou um pouco suspeito ele ter se mostrado tão entusiasmado? – Stephanopoulos havia perguntado.
Sandbrow explicara que não se sentira inclinado a olhar os dentes de um cavalo dado, embora no futuro pretendesse adotar uma abordagem mais cautelosa ao lidar com
membros do sexo oposto.
Começou a chover polpa de maçã dezesseis minutos e trinta e quatro segundos depois de eu ter feito o feitiço. Deixei a entrevista de lado e anotei o horário. Havia
aproveitado a oportunidade para espalhar sacolas plásticas embaixo da cena, de forma que não tivesse que limpar tudo depois. Meus textos e os de Nightingale eram
um pouco vagos sobre a origem do poder que mantinha as maçãs no ar. E a magia ainda era sugada de dentro da minha cabeça, quantas eu poderia manter pairando no lugar
simultaneamente até meu cérebro encolher? E se a magia não saía de mim, de onde vinha o poder? Sou um policial à moda antiga – não acredito em desrespeitar as leis
da termodinâmica.
Terminei minhas anotações e saí para ir ao apartamento sobre a garagem da casa, onde havia rudimentos do conforto do século XXI, coisas como uma TV tela plana, internet
banda larga e HOLMES. E foi assim que encontrei Nightingale confortavelmente instalado no sofá, bebendo cerveja nigeriana Star Beer e assistindo a uma partida de
rúgbi pela televisão. Ele teve a delicadeza de se mostrar constrangido.
– Não pensei que você se importaria – disse. – Tem mais duas caixas desta coisa no canto.
– É muito – respondi. – Em comparação com o que proporcionei a Mamãe Tâmisa, um caminhão cheio de bebida.
– Isso esclarece muita coisa – ele falou, e mostrou a lata. – Não conte a Molly sobre a cerveja. Ela se tornou meio superprotetora.
Disse a ele que seu segredo estava seguro comigo.
– Quem está jogando? – perguntei.
– Harlequins e Wasps.
Eu o deixei assistir ao jogo. Gosto bastante de futebol e de uma boa luta de boxe, mas, diferente de minha mãe, que assiste a qualquer jogo envolvendo uma bola,
até mesmo golfe, nunca apreciei muito rúgbi. Então, fui me sentar à escrivaninha e liguei meu segundo melhor notebook, que uso como um terminal HOLMES, e voltei
ao caso.
O pessoal de Stephanopoulos era eficiente. A equipe havia conversado com todos os amigos de Sandbrow e todo e qualquer cliente aleatório que conseguiram encontrar.
Os frequentadores do clube haviam sido taxativos ao afirmar que não viram o suspeito entrar, apesar de as imagens da câmera do circuito interno de TV mostrarem claramente
o indivíduo passando por eles. O ataque lembrava mais o incidente de St. John Giles no verão anterior do que o assassinato de Jason Dunlop. Eu me preparava para
fazer essa anotação no arquivo, quando percebi que Stephanopoulos já havia feito isso.
Queria saber como Lesley estava. Ela não havia respondido meus e-mails, nem as mensagens de texto, então liguei para a casa dela e falei com uma das irmãs.
– Lesley está em Londres. Tinha consulta com o especialista.
– Ela não disse nada – respondi.
– Não esperava que ela dissesse, esperava? – perguntou a irmã.
– Pode me dizer em que hospital ela marcou consulta?
– Não. Se ela quisesse que você soubesse, teria dito pessoalmente.
Não havia argumento contra isso.
O jogo de rúgbi acabou. Nightingale agradeceu pela cerveja e foi embora. Sintonizei um canal de notícias para ver se a história sobre o sequestro de uma ambulância
ainda era divulgada e discutida, mas a matéria havia sido superada por uma ocorrência séria em Marlow. Havia muitas imagens de carros derrapando em lençóis de água
em estradas da área rural e moradores sendo resgatados pelo Batalhão de Bombeiros. Por um momento tive a horrível suspeita de que a inundação podia ser uma reação
do Pai Tâmisa ao que havia acontecido com Ash, mas quando pesquisei os detalhes no Google descobri que tudo havia acontecido na noite seguinte, quando eu me divertia
no telhado com Simone.
Aquilo foi um alívio. Eu já estava bem encrencado, mesmo sem ter participado involuntariamente de uma inundação que deixara submersa parte do Vale do Tâmisa.
Um repórter perguntou a uma mulher da Agência Ambiental por que ninguém emitira o alerta de inundação, e ela explicava que o Tâmisa tinha uma bacia muito complexa,
complicada ainda mais pela interferência do desenvolvimento humano.
– Às vezes o rio simplesmente surpreende – disse ela.
Havia acontecido uma segunda e repentina elevação no nível do rio na noite anterior, e ela se recusava a eliminar a possibilidade de mais um transbordamento naquele
dia. Como a maioria dos londrinos, eu achava que só os ricos podiam se dar o luxo de morar perto de um rio, por isso assistia ao desconforto daquela gente sem me
abalar.
Terminei meu trabalho com o HOLMES e desliguei o sistema. Stephanopoulos não encontrara conexões entre nossas duas vítimas e meia. Pior, St. John Giles e Sandbrow
foram visitar as boates onde as vítimas encontraram nosso misterioso assassino. Em suas anotações anexadas aos relatórios nominais Stephanopoulos sugeria, e eu concordava,
que os dois jovens haviam sido escolhidos aleatoriamente, mas que o ataque contra Jason Dunlop parecia ter sido mais pessoal. Um motivo para essa suposição era o
fato de a Dama Pálida, como eu agora pensava nela, ter feito contato com sua vítima em um lugar público e diante de uma possível testemunha. Talvez fosse alguma
coisa relacionada ao equilíbrio entre vida e trabalho. Talvez os dois garotos das boates fossem diversão, e Jason Dunlop fosse trabalho.
Minha mãe ligou para mim e lembrou que eu devia apresentar meu pai aos rapazes da The Irregulars naquela tarde. Respondi que essa era a terceira vez que ela telefonava
para me lembrar da mesma coisa, mas, como é habitual, minha mãe nem registrou o comentário. Garanti a ela que estaria lá. Pensei em ligar para Simone e convidá-la
para ir também, mas decidi que estava vivendo uma coisa boa demais para correr o risco de estragar tudo apresentando a família, principalmente minha mãe.
Mesmo assim, liguei para ela. Simone disse que estava desanimada sem mim. Ouvi risadas femininas ao fundo e alguns comentários em voz baixa, tão baixa que não consegui
escutar. Desconfiei que fossem as irmãs dela.
– Muito desanimada – ela continuou. – Acha que pode passar por aqui mais tarde e me animar?
– O que aconteceu com a regra que proíbe homens na cama depois das dez da noite?
– Estava pensando se você não tem uma cama que não seja limitada por essa regra.
Pensei se poderia levá-la à Folly sem ninguém perceber. Na verdade, Nightingale nunca havia proibido visitantes noturnos, mas eu não sabia bem como introduzir a
questão na conversa. Eu dormia no sofá da casa, mas o sofá era apertado para duas pessoas. Mesmo assim, a questão merecia ser considerada.
– Ligo para você mais tarde – falei, e fui pesquisar o preço dos hotéis no centro de Londres. Porém, mesmo com minhas finanças saudáveis, essa opção foi eliminada.
Só então pensei que menos de duas semanas atrás ela era a amante enlutada de Cyrus Wilkinson, músico falecido que tocava na banda com que meu pai ia ensaiar naquela
tarde. Mais uma razão para não convidá-la.
Praticamente todos os complexos de casas populares que conheço têm um conjunto de salas comunitárias. Deve haver alguma coisa em empilhar pessoas em caixas de ovos
que faz arquitetos e urbanistas pensarem que um conjunto de salas comunitárias vai compensar a ausência de um jardim ou, em alguns apartamentos, de espaço até para
se mexer. Talvez imaginem com carinho os moradores se reunindo espontaneamente para coloridos festivais do proletariado. Na verdade, os salões geralmente são usados
para duas coisas: festas infantis e reuniões de condomínio. Mas naquela tarde íamos inovar e promover um ensaio de jazz.
Como James era o baterista, ele era o proprietário da van, uma Transit adequadamente velha que ele deixava destrancada, com as chaves na ignição e uma placa no para-brisa
dizendo: “Leve-me, sou sua.” E ele não tinha medo de não encontrá-la quando voltava ao local onde a deixara estacionada. Enquanto eu ajudava a levar as peças da
bateria da van ao local do ensaio, ele me disse que essa prática era deliberada.
– Sou de Glasgow – contou ele. – Não tem muito que Londres tenha para me ensinar sobre segurança pessoal.
Tivemos que fazer mais três viagens para levar amplificadores e alto-falantes, e como era horário de trânsito escolar, logo reunimos uma plateia de aspirantes a
meninos de rua. Supostamente, os meninos de rua em Glasgow são maiores e mais durões que os de Londres, porque James não deu atenção a eles. Mas notei que Daniel
e Max estavam incomodados. Ninguém demonstra curiosidade hostil como um bando de garotos de 13 anos fugindo do dever de casa. Uma garota mestiça e magrela inclinou
a cabeça para o lado e perguntou se tocávamos em uma banda.
– O que você acha? – indaguei.
– Que tipo de música tocam? – ela insistiu. As amigas que a seguiam riram. Eu frequentara a escola com seus irmãos mais velhos. Elas me conheciam, mas eu ainda era
uma possível vítima.
– Jazz – respondi. – Vocês não iam gostar.
– Ah. Swing, latino ou fusion?
O grupo de adolescentes riu. Eu a encarei sério, mas ela ignorou o aviso silencioso.
– No último semestre de música nós escolhemos jazz – explicou ela.
– Sua mãe deve estar procurando você – falei.
– Não está. Podemos ir ver?
– Não.
– Vamos ficar em silêncio – a menina persistiu.
– Não, não vão.
– Como sabe?
– Prevejo o futuro.
– Mentira, você não é capaz disso.
– Por que não?
– Porque isso seria uma violação da causticidade.
– Isso é culpa de Doctor Who – disse James.
– Causalidade – eu a corrigi.
– Tanto faz. Podemos ir ver?
Eu as deixei assistir ao ensaio, e elas aguentaram dois minutos de “Airegin”, o que foi mais do que eu esperava.
– Aquele é seu pai, não é? – a menina perguntou quando papai apareceu. – Não sabia que ele tocava.
Era estranho ver meu pai tocar teclado com outros músicos. Eu nunca o havia visto tocar ao vivo, mas minhas lembranças são cheias de fotos em preto e branco, e nelas
papai sempre tinha o trompete nas mãos. Tentava segurá-lo como fazia Miles Davis, como se fosse uma arma, como um rifle em um intervalo da parada. Mas ele sabia
tocar teclado. Até eu podia perceber. Mesmo assim, tinha a impressão de que aquele era o instrumento errado.
Aquilo me incomodou até o fim do ensaio, mas eu não consegui entender por quê.
Depois do ensaio, esperava que todos nós fôssemos a Leverton Street para uma cerveja no Pineapple, mas minha mãe convidou todo mundo para ir ao apartamento. Quando
subíamos a escada, a menina do ensaio me viu e se aproximou. A pose de antes havia desaparecido.
– Ouvi dizer que você faz magia – disse ela.
– Onde ouviu isso?
– Tenho minhas fontes. É verdade?
– Sim – respondi, porque às vezes a verdade cala a boca de uma criança mais depressa que um tapa na orelha, e tem a vantagem de não ser considerada agressão a menor
de idade aos olhos da lei. – Eu sei fazer magia. E aí?
– Magia de verdade – explicou ela. – Não estou falando de truques.
– Magia de verdade – confirmei.
– Quero aprender.
– Vamos combinar uma coisa – falei. – Você aprende latim, e eu te ensino magia.
– Combinado. – Ela estendeu a mão.
Apertei a mão dela, que era pequena e seca.
– Jure pela vida de sua mãe – a menina exigiu.
Hesitei, e ela apertou minha mão com mais força do que eu esperava.
– Pela vida de sua mãe – insistiu.
– Eu não juro por minha mãe – respondi.
– Tudo bem. Mas trato é trato... certo?
– Certo – concordei. Mas estava começando a ficar desconfiado. – Quem é você?
– Meu nome é Abigail. Moro nessa mesma rua, mais acima.
– Vai mesmo aprender latim?
– Agora vou – disse ela. – Até mais. – E se afastou para voltar à rua.
Contei os dedos para ter certeza de que todos estavam ali, e não precisava da ajuda de Nightingale para saber que não havia lidado bem com aquela garota. Uma coisa
era certa: Abigail, que morava naquela rua, ia entrar na minha lista de atenção. Na verdade, eu ia criar uma lista de atenção só para poder pôr o nome de Abigail
no topo.
Quando subi para o apartamento, os músicos haviam ido para o quarto, onde admiravam a coleção de discos de meu pai. Minha mãe havia mergulhado fundo no freezer de
petiscos da Iceland, e havia pratos de pequenos enroladinhos de salsicha, minipizzas e salgadinhos sobre a mesinha de centro. Também havia refrigerante, chá, café
e suco de laranja. Minha mãe parecia muito satisfeita.
– Conhece Abigail? – perguntei.
– É claro – ela disse. – Ela é filha de Adam Kamara.
Reconheci vagamente o nome. Era um entre dúzias de parentes definidos superficialmente como primos – um título que tanto podia dizer respeito ao filho de um dos
meus tios quanto ao homem branco do Peace Corps que havia aparecido no complexo de meu avô em 1977 e nunca mais partira.
– Contou a ela que eu sabia fazer magia?
Mamãe deu de ombros.
– Ela esteve aqui com o pai, talvez tenha ouvido alguma coisa.
– Então você fala sobre mim quando não estou aqui?
– Você ficaria surpreso – respondeu ela.
Sim, eu ficaria, pensei, e me servi de um punhado de salgadinhos.
Atendendo a uma solicitação de minha mãe, fui ao quarto perguntar se os rapazes queriam comer alguma coisa. Meu pai disse que eles iriam para a sala em um minuto.
Ele não permitia nenhum tipo de alimento perto de sua coleção, é claro, e continuou conversando com Daniel e Max sobre a transição de Stan Keton para o Third Stream.
James estava sentado na cama com um LP nas mãos, e vivia o terrível dilema do fã devotado dos discos de vinil: queria pedir o LP emprestado, mas sabia que, se fosse
dele, jamais o deixaria sair de casa. O pobre coitado estava à beira das lágrimas.
– Sei que saiu de moda – James estava dizendo depois de ter falado sobre Don Cherry por um tempo –, mas sempre gostei muito de corneta. – E nesse momento, se eu
fosse um personagem de desenho animado, uma lâmpada acesa teria aparecido sobre minha cabeça.
Peguei emprestado o iPod de meu pai e examinei suas listas procurando uma determinada música. Levei o aparelho comigo pela cozinha até a varanda com sua vista única
dos apartamentos em frente. Encontrei o que procurava, “Body and Soul”, de Blitzkrieg Babies and Bands – Snakehips Johnson dando à melodia um ritmo tão dançante
que Coleman Hawkins teve que inventar um novo ramo do jazz para divulgá-lo. Era a mesma versão que ouvi no Café de Paris quando dançava com Simone.
O vestigia deixado no corpo de Mickey the Bone soara como um trombone. No corpo de Cyrus Wilkinson havia sido um sax alto. Os instrumentos que os músicos haviam
tocado em vida. Henry Bellrush tocava corneta, mas eu não sentira uma corneta no Café de Paris.
Havia sentido Ken “Snakehips” Johnson e sua Orquestra West Indian, cujos membros haviam morrido todos ali, no Café de Paris, havia mais de setenta anos.
Isso não podia ser uma coincidência.
Na manhã seguinte troquei o treino por uma visita ao Clerkenwell e ao Arquivo Metropolitano. A Corporação de Londres, organização dedicada a garantir que a cidade,
a porção financeira de Londres, não seja atingida por toda essa democracia ultramoderna que tem mostrado sua cara feia nos aproximadamente últimos duzentos anos.
Se uma oligarquia havia sido boa o bastante para Dick Whittington, eles argumentavam, também era boa o bastante para o coração da Londres do século XXI. Afinal,
diziam, isso funciona na China.
Eles também eram encarregados pelos arquivos do Conselho do Condado de Londres, que são mantidos em um prédio art déco bem conservado e ainda elegante com paredes
brancas e carpete cinza. Mostrei minha credencial para uma das bibliotecárias, e ela pegou rapidamente uma lista de documentos e me mostrou como solicitá-los.
Ela também se ofereceu para verificar o arquivo digital e descobrir se havia imagens disponíveis.
– É um caso de arquivo morto? – perguntou ela.
– Muito morto – respondi.
A primeira coisa a sair da sala de arquivo foi a LCC/CE/4/7, uma caixa de papelão cheia de pastas amarradas com fitas brancas e sujas. Eu procurava o item n° 39,
relatórios de 8 de março de 1941. A identificação era manuscrita em tinta preta, e eu desamarrei as pastas e encontrei o relatório impresso em tinta vermelha sobre
papel amarelo claro, um sinal evidente, contou a bibliotecária, de que o documento havia sido duplicado com um mimeógrafo. Estava marcado com a palavra Secreto e
datado de 9 de março de 1941. O título era Relatório de situação em 0600 horas e relacionava, em ordem de importância, danos causados em fábricas, ferrovias, telecomunicações,
fornecimento de energia elétrica, docas, estradas, hospitais e prédios públicos. O Hostel St. Thomas Babie’s em Lambeth havia sido atingido e, eu li com alívio,
não houvera nenhuma baixa. Esse alívio era estranho, considerando que tudo havia acontecido meio século antes do meu nascimento. Encontrei o que procurava na metade
da terceira página.
2140: HE CAFÉ DE PARIS, COVENTRY STREET
OCORRÊNCIAS – 34 MORTES, APROXIMADAMENTE 80
FERIDOS GRAVEMENTE.
Enquanto esperava os outros arquivos saírem da sala, a bibliotecária me chamou para mostrar algumas fotos que encontrara no arquivo digital. Muitas eram do Daily
Mail, que devia ter enviado um fotógrafo ao local assim que as bombas caíram. Em preto e branco tudo parecia curiosamente livre de sangue. Mas tudo muda quando você
percebe que o cilindro cinza embaixo de uma das mesas é o braço de uma mulher e que o lugar é uma casa mortuária. Havia mais seis fotos do interior da boate, e várias
dos mortos chegando ao Charing Cross Hospital, rostos pálidos e expressões perplexas entre os cobertores e o equipamento primitivo de um hospital em tempos de guerra.
Quase não notei, mas um lampejo de reconhecimento me fez clicar de volta em uma das fotos e examiná-la melhor.
A imagem era confusa, e não consegui identificar onde a foto havia sido tirada, talvez na área de ambulâncias. Um grupo de mulheres passava pela frente da câmera,
todas encolhidas e com cobertores sobre os ombros. Todas, menos uma. Um rosto olhava para a câmera, a expressão chocada contida em um pálido e liso oval. Um rosto
que eu reconhecia, e que vira pela última vez no salão verde no The Mysterioso na noite em que Mickey the Bone havia morrido.
Ela se apresentava como Peggy. Eu me perguntava se esse era seu nome verdadeiro.
8
Fumaça nos seus olhos
O Café de Paris havia sido construído seis metros abaixo do nível do solo, e era considerado seguro pela gerência e pela clientela. A menos que você fosse se abrigar
no sistema de túneis do metrô, nenhum outro abrigo para civis em Londres era tão profundo. Mais tarde foi comprovado que duas bombas haviam penetrado o prédio sobre
a boate – uma não detonara, a outra, jogada de uma aeronave, havia explodido bem na frente da banda, matando os músicos e a maioria dos dançarinos. Ken Johnson teve
a cabeça arrancada dos ombros, e havia relatos de clientes mortos onde estavam sentados, e os corpos permaneceram eretos em suas mesas. Testemunhas oculares lembraram
que havia muitos enfermeiros e oficiais canadenses na boate naquela noite, mas, apesar de ter ido à área de armazenagem com a biblioteca, não consegui encontrar
nada nem remotamente parecido com uma lista de mortes. Encontrei duplicatas datilografadas em papel fino, tratando de uma troca de correspondência que lidava com
queixas sobre as ambulâncias não terem chegado com a rapidez necessária para cuidar das ocorrências, e um relatório sobre a chocante ousadia dos saqueadores que
haviam invadido o local recolhendo objetos de valor.
Não encontrei mais nada sobre a misteriosa Peggy que, se fosse a mesma pessoa, devia estar beirando os 90 anos, no mínimo. Há um ano eu teria considerado isso improvável,
mas recentemente eu trabalhava com um cara que nasceu em 1900, e nem é a pessoa mais velha que conheço. Oxley foi monge medieval, e o “pai” dele é contemporâneo
da fundação da Cidade no primeiro século d.C.
O Manual operacional da polícia de Blackstone recomenda o ABC da investigação séria: presumir nada, acreditar em nada e checar tudo. Mas você tem que começar em
algum lugar, e eu ia começar com Peggy.
O arquivo era uma sala de paredes caiadas com armários, duas cafeteiras e uma dessas máquinas que vende barras de chocolate e salgadinhos velhos. Peguei uma xícara
de café e um chocolate e pedi ao Sistema Nacional de Computadores da Polícia uma verificação sobre Peggy, mulher, e passei altura e peso aproximados. A operadora
civil do outro lado da linha riu de mim, depois disse que nem conseguia me dar uma ideia do tamanho da lista de indivíduos que esses dados resultariam. Pedi a ela
para limitar a área de busca ao Soho e voltar até 1941. Ela não perguntou por quê.
– Nem todas as ocorrências dessa época estão no sistema – explicou a operadora. Ela tinha um sotaque forte e específico de uma determinada região, e isso a fez soar
como se eu fosse culpado por essa ausência de informações. – Tenho uma relação de indivíduos que se enquadram nesses parâmetros – a mulher continuou. – A maioria
foi presa por prostituição e porte de drogas. – Mas não havia nada que se destacasse. Pedi a ela para mandar a lista nominal para o arquivo do caso HOLMES que eu
estava construindo. Ela ficou impressionada. A maioria dos policiais nem sabia que isso era possível.
Peggy havia estado no The Mysterioso na noite em que Mickey the Bone morrera. Ela havia mencionado Cherry, que, provavelmente, era Cherie, a dose de elegância na
vida de Mickey, a mulher sobre quem a irmã dele havia falado. Nos velhos tempos eu teria que voltar a Cheam para mostrar uma foto para a irmã dele, mas agora só
precisava mandar a foto e uma mensagem para o celular dela. Cortei a imagem de 1941 até deixar apenas o rosto, e mandei a foto.
– Ela parece bem familiar – disse a irmã de Mickey. Ao fundo eu ouvia vozes e música abafadas por uma porta fechada – o velório do irmão dela prosseguia.
– Tem o endereço de Cherie? – perguntei.
– Ela morava na cidade – respondeu a irmã de Mickey. – Não sei onde.
Perguntei se ela tinha alguma foto de Cherie. Ela disse que podia ter, e prometeu me avisar se encontrasse alguma. Agradeci e perguntei como ela estava reagindo
à perda.
– Estou bem, acho.
Disse a ela para ser forte. O que mais poderia dizer?
Graças à magia da ciência, copiei o resto das fotos em um flash drive que, graças à ciência da magia, eu havia testado, e assim descobrira que não os arruinava cada
vez que fazia magia. Até onde eu podia determinar, o uso de magia em área próxima só degradava chips que estavam constantemente submetidos ao fluxo de energia, mas
era frustrante não ter nem uma teoria sobre como a magia realmente funcionava. Uma vozinha analítica em minha cabeça apontou que toda teoria funcional provavelmente,
em algum momento, envolveria física quântica – a parte da física que fazia meu cérebro derreter e escorrer pelas orelhas.
Providenciei que os relatórios do bombardeio e os outros documentos fossem copiados, e me certifiquei de agradecer à bibliotecária antes de voltar ao local onde
havia estacionado o Asbo naquela manhã.
Quando voltei à Folly, encontrei o Dr. Walid no átrio conversando com Molly.
– Ah, que bom, Peter – disse ele. – Que bom que voltou. Vamos tomar um chá?
Molly me olhou com ar reprovador e se dirigiu à cozinha. O Dr. Walid me levou até uma coleção de poltronas vermelhas e mesas de mogno reunidas sob o beiral da varanda
ao leste. Notei que ele carregava sua valise de médico, uma ultramoderna pasta de plástico coberta com couro cor de vinho, uma peça cuja única concessão à tradição
era o estetoscópio pendurado na alça.
– Estou preocupado – disse ele. – Receio que Thomas o esteja pressionando demais.
– Ele está bem?
– Contraiu uma infecção e tem febre – respondeu o Dr. Walid.
– Ele estava bem no café da manhã – comentei.
– Um homem pode estar morrendo em pé e não admitir. Não quero que ele seja perturbado nos próximos dois dias. Ele levou um tiro no peito, Peter, e alguns tecidos
lesionados nunca se recuperarão completamente, o que o deixará propenso a infecções como a que ele tem agora. Prescrevi antibióticos que, espero, Molly vai administrar
de acordo com minha orientação.
Molly chegou com o bom chá Wedgwood sobre uma bandeja de madeira laqueada. Ela serviu o Dr. Walid com movimentos delicados, e saiu em seguida sem me servir. Era
evidente que ela me culpava pela recaída de Nightingale. Talvez ela soubesse sobre a cerveja.
O Dr. Walid serviu meu chá e serviu-se de um biscoito.
– Ouvi dizer que Lesley está na cidade para uma cirurgia – falei.
– Ela vai ficar bem – garantiu o Dr. Walid. – Você só precisa se certificar de que, quando ela pedir sua ajuda, vai estar pronto para ajudá-la. Como se sente com
relação aos ferimentos dela?
– Não foi comigo que aconteceu. Foi com Lesley e o Dr. Framline, e com aquele pobre Hare Krishna e os outros.
– Mas você se sente culpado?
– Não. Não fiz nada com eles, e me esforcei ao máximo para impedir o que aconteceu. Mas me sinto culpado por não sentir culpa, se isso ajuda em alguma coisa.
– Nem todos os meus pacientes chegam mortos – contou o Dr. Walid. – Não no meu consultório médico, pelo menos. Às vezes, por mais que você se esforce, o resultado
pode ser menos que ótimo. Não se trata de sentir-se responsável ou não, mas de não se esquivar quando ela precisar de você.
– Pensar no rosto dela me apavora – confessei antes de me conter.
– Não tanto quanto apavora a ela – o médico respondeu, e bateu no meu braço. – Nem tanto quanto ela fica apavorada quando pensa que você pode rejeitá-la. Trate de
estar disponível quando ela precisar de você. Essa é sua responsabilidade nisso. Sua parte do trabalho, se preferir.
Havíamos estourado nossa cota diária de emoção, por isso mudei de assunto.
– Sabe sobre o ninho de vampiros em Purley? – perguntei.
– Aquilo foi feio.
– Nightingale chamou o que senti naquele lugar de tactus disvitae, antivida. Ele sugeriu que os vampiros sugavam a “vida” do ambiente em que estavam.
– Concordo com ele.
– Já teve oportunidade de dissecar o cérebro de uma das vítimas deles?
– Normalmente, elas já estão em avançado estado de dissecação quando as encontramos – respondeu o Dr. Walid. – Mas uma ou duas eram suficientemente recentes para
termos conseguido bons resultados. Acho que sei aonde quer chegar com isso.
– Encontrou sinais de degradação hipertaumática?
– É degradação hipertaumatúrgica – o médico corrigiu. – E, sim, havia níveis terminais de DHT, lesões afetando pelo menos 90% do cérebro.
– É possível que energia “vital” e magia sejam a mesma coisa, essencialmente? – perguntei.
– Isso não contradiria nada do que tenho observado.
Contei ao médico sobre os experimentos que havia feito com minhas calculadoras portáteis, e como o dano causado a seus microprocessadores era semelhante às lesões
causadas ao cérebro humano pela DHT.
– Isso significaria que a magia afetava construções biológicas e não biológicas – disse o Dr. Walid. – O que significa que pode ser possível desenvolver alguma forma
de instrumentalidade não subjetiva. – Ele se sentia tão frustrado quanto eu com o método “Toby o Cão” de detecção de magia. – Temos que replicar seus experimentos.
Isso precisa ser documentado.
– Podemos fazer isso mais tarde – falei. – Agora, preciso saber que efeito isso pode ter no prolongamento da vida.
O Dr. Walid me encarou sério.
– Está falando sobre Thomas – deduziu.
– Estou falando sobre os vampiros. Verifiquei em Wolfe, e ele relaciona três casos, pelo menos, nos quais ficou confirmado que os vampiros tinham 200 anos de idade,
no mínimo.
O Dr. Walid era um cientista bom demais para simplesmente aceitar a palavra de um filósofo natural do início do século XIX, mas reconheceu que a evidência indicava
que, sim, essa era uma possibilidade. Francamente, eu esperava que um criptopatologista fosse um pouco mais crédulo. Mesmo assim, não ia deixar uma dose de ceticismo
ficar na frente de uma teoria perfeitamente boa.
– Por ora, digamos que eu esteja certo – argumentei. – É possível que todas as criaturas com vida prolongada, os genii locorum, Nightingale, Molly, os vampiros,
é possível que todos estejam extraindo magia do ambiente para não envelhecer?
– A vida se protege. Até onde eu sei, vampiros são as únicas criaturas que podem extrair vida, magia, o que for, diretamente das pessoas.
– Exatamente – insisti. – Vamos esquecer os deuses, Molly e os outros esquisitos por enquanto, e vamos nos concentrar nos vampiros. Seria possível a existência de
uma criatura parecida com os vampiros, mas que se alimentasse de músicas? Seria possível que o ato de fazer música os tenha tornado singularmente vulneráveis?
– Acha que existem vampiros que se alimentam de jazz? – ele perguntou.
– Por que não?
– Vampiros do jazz?
– Se anda como um pato e grasna como um pato...
– Por que jazz?
– Não sei. Meu pai teria uma resposta. Ele diria que tinha que ser jazz porque essa era a única música adequada que existia. Suponho que poderíamos enfileirar diferentes
músicos, expô-los ao nosso vampiro e descobrir quais deles sofrem lesão cerebral.
– Não sei se isso corresponderia aos padrões de ética da ABM, a Associação Britânica de Medicina, sobre experimentação com humanos – disse ele. – Sem mencionar que
seria difícil encontrar voluntários para o papel de cobaia.
– Não sei. Músicos? Se oferecer dinheiro... Cerveja de graça, até.
– Então, essa é sua hipótese para o que aconteceu com Cyrus Wilkinson?
– É mais que isso. Acho que posso ter encontrado um evento gatilho. – Expliquei sobre Peggy e Snakehips Johnson e o Café de Paris, e tudo soava cada vez menos denso
enquanto eu fazia minha exposição.
O Dr. Walid terminou de beber seu chá enquanto eu falava. – Temos que encontrar essa Peggy – concluí.
– Isso é certo – concordou o Dr. Walid.
Eu não estava com disposição para inserir dados, e ainda não conseguira falar com Lesley pelo telefone. Então cortei uma imagem em alta resolução de Peggy em 1941
e imprimi uma dúzia de cópias na impressora a laser. Com as fotos em mãos, fui ao Soho para tentar encontrar alguém que se lembrasse dela, começando por Alexander
Smith. Afinal, Peggy e Henry Bellrush estavam entre seus maiores artistas.
Quando não estava pagando mulheres para se despirem de um jeito irônico, pós-moderno, Alexander Smith trabalhava em um pequeno escritório do primeiro andar de um
prédio em Greek Street, em cima de uma antiga sex shop reformada e transformada em cafeteria. Toquei o interfone e uma voz perguntou quem era.
– Oficial Grant. Quero falar com Alexander Smith – respondi.
– Quem é? – a voz insistiu.
– Oficial Grant.
– O quê?
– Polícia! – exclamei. – Abra a droga da porta.
O mecanismo estalou e eu entrei. Subi outra estreita escada comunitária do Soho, degraus forrados de carpete de nylon gasto e paredes com marcas de mãos. Um homem
esperava por mim no alto da escada. Ele parecia bem comum quando o vi lá de baixo, mas como uma ilusão de ótica, foi ficando cada vez maior na medida em que eu me
aproximava. Quando cheguei ao topo da escada ele era dez centímetros maior que eu, e parecia ocupar toda a largura do corredor. Vestia um paletó azul-marinho High
and Mighty sobre camiseta preta do Led Zeppelin. O homem parecia não ter pescoço, e eu era capaz de apostar que ele guardava uma carta escondida na manga. Olhar
para suas narinas peludas me deixou nostálgico. Não se vê mais músculos à moda antiga como aqueles em Londres. Hoje em dia os caras são magrelos, brancos, com olhos
transtornados e moletons de capuz. Esse era um vilão que meu pai teria reconhecido, e eu senti vontade de abraçá-lo e beijá-lo nas faces.
– Que merda você quer? – ele perguntou.
Ou não.
– Falar com Alexander – respondi.
– Ele está ocupado – avisou Sem Pescoço.
Nesse momento um policial tem algumas opções. Meu treinamento na Hendon enfatizava a firmeza educada – “receio, senhor, que preciso pedir para se afastar” – enquanto
minha experiência nas ruas sugeria que a melhor atitude seria chamar uma van cheia de homens do Grupo de Apoio Tático e deixá-los resolver o problema usando um taser,
se fosse necessário. Além disso, gerações de velhotes arrogantes da família de meu pai gritavam para mim que isso era um diabólico desrespeito e que ele merecia
uns bons chutes.
– Escute, sou policial – falei. – Poderíamos fazer as coisas como manda o manual, mas você seria preso, haveria complicações, tudo isso, e só quero trocar algumas
palavras com ele. Então, para que tudo... isso?
Sem Pescoço refletiu por um instante, antes de grunhir e dar um passo para o lado, abrindo um pequeno espaço para me deixar passar. É assim que homens de verdade
resolvem suas diferenças, com uma discussão razoável e análise imparcial. Ele soltou alguns gases quando eu me aproximava da porta interna, um sinal, decidi, de
seu respeito por mim.
O escritório de Alexander Smith era surpreendentemente organizado. Duas escrivaninhas, duas paredes forradas de prateleiras cobertas de revistas, livros, papéis,
caixas cheias de pastas e DVDs. As janelas tinham persianas beges empoeiradas, uma delas emperrada na metade do caminho mais ou menos na virada do século, quando
deixou de ser tocada. Smith trabalhava em um notebook, mas o fechou ostensivamente quando eu entrei na sala. Ele ainda era um almofadinha no blazer amarelo com echarpe
vermelha, mas, fora do clube, parecia menor e mais mesquinho.
– Olá, Alexander – falei, e desabei na cadeira diante da mesa. – Como vão as coisas?
– Oficial Grant – ele respondeu, e notei um involuntário tremor em sua perna. Ele percebeu que eu havia notado e apoiou a mão sobre o joelho para conter o movimento.
– Em que posso ajudá-lo?
Definitivamente, estava nervoso com alguma coisa. E mesmo que fosse alta a probabilidade de o nervosismo não ter nada a ver com meu caso, uma pequena vantagem não
faz mal nenhum.
– Tem alguma coisa urgente para fazer?
– Só o de sempre – ele respondeu.
Perguntei se as meninas estavam bem, e ele relaxou visivelmente. Não era essa a fonte de sua tensão.
Droga, pensei. Agora ele sabe que eu não sei.
Prova disso era que me ofereceu uma xícara de café solúvel, que eu recusei.
– Está esperando alguém? – perguntei.
– Como assim?
– Por que mantém um gorila na porta?
– Ah, Tony. Eu o herdei de meu irmão. Quero dizer, não podia mandá-lo embora. Ele é praticamente um bem de família.
– Não é caro alimentá-lo?
– As meninas gostam de tê-lo por perto. Então, posso ajudá-lo de algum jeito?
Peguei uma das fotos de 1941 e a entreguei a Smith.
– Essa é Peggy?
– É parecida com ela. O que tem ela?
– Você a viu recentemente?
– Não depois da apresentação no Café de Paris. Que foi espetacular, aliás. Eu já contei isso? Espetacular.
E uma coincidência sinistra, mas eu não ia falar sobre isso com Smith.
– Tem um endereço residencial? – perguntei.
– Não – respondeu Smith. – No nosso ramo sempre fazemos negócio em dinheiro. O que a Receita não vê, a Receita não sente.
– Não posso opinar – respondi. – Meus rendimentos são de conhecimento público.
– Isso pode mudar – Smith falou. – Precisa de mais alguma coisa? Nem todo mundo recebe por hora.
– Você é dessa época, não é? – perguntei.
– Todos nós temos um passado – disse ele. – Alguns têm um passado maior que outros.
– Ela já estava no ramo?
– Quem?
– Peggy. Ela dançava na década de 1990?
– Geralmente fico nervoso quando elas ainda estão na escola infantil.
– Que tal nos anos de 1980?
– Agora sei que está brincando comigo – ele respondeu, mas hesitou por um instante longo demais.
– Talvez não fosse ela, então. Talvez a mãe dela. A aparência é a mesma.
– Lamento, mas passei a maior parte das décadas de 1970 e 1980 fora do país. Havia, sim, uma garota que fazia a dança do leque no Windmill Theatre, mas isso foi
em 1962. Seria demais até para a mãe de Peggy.
– Por que teve que sair do país?
– Não tive que sair. Mas esse lugar era um buraco sujo, então, eu saí.
– Mas voltou para cá.
– Senti saudade das enguias gelatinosas – ele explicou.
Mas eu não acreditava nisso.
Não conseguiria descobrir mais nada de útil, mas decidi investigar Smith no sistema de computadores da Polícia assim que voltasse à caverna tecnológica. Quando passei
por Tony Sem Pescoço, me despedi dele com um amigável tapa no ombro.
– Você é um tesouro vivo, meu filho – comentei.
Ele grunhiu e eu me dei por satisfeito com a conexão estabelecida.
De qualquer maneira, a confirmação – ou a avó de Peggy tinha uma semelhança sobrenatural com a neta, ou Peggy andava pelo mundo desde 1941 se alimentando de músicos
do jazz. Até então, todas as vezes que vi Peggy e todas as mortes recentes haviam sido na região do Soho. Então, esse era o lugar para começar. Também seria útil
observar alguns “associados conhecidos”, especialmente Cherry ou Cherie – a namorada de Mickey the Bone. É nesse ponto que alguém que está trabalhando em uma investigação
de verdade pede ao seu supervisor alguns auxiliares para fazer uma varredura de porta em porta, mas era só eu. Então, comecei em uma ponta da Old Compton Street
e fui descendo a rua.
Ninguém a conhecia no The Spice of Life ou no Ed’s Diner, nem em outros restaurantes do lado leste da rua. Um funcionário da bilheteria do GAY disse que ela parecia
familiar, mas era só isso. Uma mulher que trabalhava em um mercadinho de esquina disse que achava que havia visto Peggy entrar e comprar cigarros. Não consegui nada
no Admiral Duncan, exceto alguns convites para jantar. Eles a conheciam na Trashy Lingerie como “aquela mulher elegante que vem de vez em quando e torce o nariz
para os nossos produtos”. Eu estava pensando que talvez valesse a pena ir dar uma olhada na loja A Glimpse of Stocking, quando uma mulher maluca saiu correndo da
Patisserie Valerie gritando meu nome.
Era Simone, os saltos altos fazendo barulho na calçada e derrapando quando ela desviou de um pedestre assustado. Simone vestia jeans stretch desbotado e cardigã
cor de vinho que se abria para revelar o sutiã de renda vermelha, única peça que ela vestia por baixo. Sutiã de fecho frontal, eu notei. Ela acenava e gritava, e
vi que havia creme em seu rosto.
Quando percebeu que eu a vi, parou de gritar e fechou o cardigã sobre o peito de um jeito acanhado.
– Oi, Peter – disse quando me aproximei. – Que bom encontrar você assim. – Ela tocou o próprio rosto, sentiu o creme, riu e tentou limpá-lo com a manga. Depois passou
os braços em torno do meu pescoço e puxou meu rosto para um beijo.
– Deve achar que sou completamente maluca – Simone falou quando nos afastamos.
– Demente, mesmo – respondi.
Ela puxou minha cabeça de novo e perguntou cochichando se eu estaria livre à tarde.
– Você me deixou sozinha ontem – reclamou. – Acho que me deve uma tarde de prazeres carnais, no mínimo.
Considerando que a alternativa era passar horas na varredura de porta em porta, não precisei pensar muito. Simone riu, enganchou o braço no meu e me levou rua acima.
Apontei a Patisserie Valerie.
– Não vai pagar?
– Não precisa se preocupar com a patisserie – ela respondeu. – Tenho uma conta.
Começou a chover em algum momento depois do almoço. Acordei na grande cama de Simone e vi a chuva lavando a janela e aquela luminosidade cinza invadindo a sala.
Simone estava colada em mim, o rosto em meu ombro, um braço sobre meu peito. Depois de algumas manobras, consegui enxergar meu relógio e descobri que passava das
duas horas. O braço de Simone me apertou, seus olhos se abriram e ela me fitou por um instante antes de beijar meu pescoço. Decidi que estava chovendo demais para
continuar a varredura, e que compensaria cumprindo a tediosa tarefa de introduzir todos aqueles dados no sistema assim que voltasse à Folly. Com meu cronograma satisfatoriamente
modificado, deitei Simone de costas e me dediquei a descobrir quanto conseguia excitá-la sem usar as mãos. Ela suspirou quando meus lábios encontraram um mamilo,
uma resposta que não era a que eu queria causar, e afagou suavemente minha cabeça.
– Vem cá – disse, e me puxou pelos ombros, encaixando-me entre suas pernas de um jeito que me fez penetrá-la sem tentar. Quando me posicionou como queria, ela me
segurou ali com um ar satisfeito.
Meu quadril se moveu.
– Espere – disse ela.
– Não consigo evitar – respondi.
– Se puder se controlar só por um momento, prometo que vou fazer valer a pena.
Ficamos parados. Senti uma estranha vibração em meu peito e no ventre, e percebi que Simone cantarolava no fundo do diafragma, ou sei lá que órgão os cantores usavam
para produzir aquele som. Não consegui identificar a música, mas ela me fez pensar em cafés enfumaçados e mulheres em paletós estofados e cartolas.
– Ninguém me faz sentir como você – Simone comentou.
– Pensei que eu fosse o primeiro – respondi.
– Hipoteticamente. Se houvesse outros, nenhum teria me feito sentir como você.
Movi o quadril de novo, e dessa vez ela levantou a pélvis para me encontrar.
Mais tarde cochilamos outra vez, suados e satisfeitos nos braços um do outro. Eu teria ficado ali para sempre se minha bexiga não me houvesse obrigado a sair da
cama, além do sentimento de culpa por eu ter abandonado as coisas que deveria estar fazendo. Coisas importantes.
Simone ficou deitada na cama, nua e convidativa, me observando com olhos provocantes enquanto eu vestia as roupas.
– Volte para a cama – ela disse, passando a ponta de um dedo em torno de um mamilo, depois do outro.
– Lamento, mas o poderoso exército de justiça que é a Polícia Metropolitana nunca dorme.
– Não quero que o poderoso exército de justiça durma. Pelo contrário, espero que ele seja diligente comigo. Sou uma menina má, preciso ser castigada por meus atos.
– Lamento – repeti.
– Ao menos me leve à apresentação de seu pai – ela pediu.
Eu havia contado a ela sobre a apresentação, mas não havia revelado que meu pai ia tocar com a antiga banda de Cyrus Wilkinson.
– Quero conhecer sua mãe, seu pai e seus amigos – Simone falou. – Vou me comportar bem.
Eu me ajoelhei ao lado da cama e a beijei. Ela me segurou pelos braços, e eu pensei, dane-se, eles vão acabar sabendo, mais cedo ou mais tarde. Disse a ela que a
levaria.
Simone encerrou nosso beijo e se jogou novamente sobre a cama.
– Isso era tudo que eu queria – disse, e moveu a mão como a realeza dispensando um súdito. – Pode ir cuidar dos seus deveres, oficial, e eu vou ficar aqui desanimada,
esperando nosso próximo encontro.
A chuva havia diminuído, mas ainda caía uma garoa que, para um londrino, é praticamente nada. Mesmo assim, peguei um táxi para voltar à Folly, onde Molly me serviu
filé e torta de carne e rim com batatas assadas, ervilhas e cenouras.
– Ela sempre faz isso quando estou doente – disse Nightingale. – Amanhã vai ser torta negra no café da manhã. Com sangue de porco. Engrossa o sangue.
Jantávamos na chamada Sala de Jantar Privada, que ficava ao lado da biblioteca inglesa no primeiro andar. Como a sala de jantar principal podia acomodar sessenta
pessoas sentadas à mesa, nunca a usávamos por medo de Molly decidir arrumar todos os lugares. Mesmo assim, Nightingale e eu nos vestíamos especialmente para jantar
– nós dois temos padrões, e um de nós havia se exercitado muito naquela tarde.
Eu sabia por experiência própria que não é bom mergulhar no filé com torta de carne e rim de Molly até parte do vapor superaquecido se dissipar e o interior deixar
de ser quente o bastante para queimar cerâmica.
Nightingale engoliu dois comprimidos com água e perguntou sobre o caso.
– Qual deles? – indaguei.
– O dos músicos primeiro.
Contei sobre o bombardeio do Café de Paris e minha investigação sobre Peggy e, possivelmente, Cherie.
– Acha que há mais que um... – ele fez uma pausa. – Como você os chama?
– Vampiros do jazz. Mas não acho que se alimentem da música. Creio que é só um efeito colateral, como o som que faz um gerador quando é ligado.
– Tactus disvitae – falou Nightingale. – Outra espécie de vampiro. Wolfe ficaria satisfeito.
A torta havia esfriado o bastante para eu poder comê-la. A tarde com Simone me deixara faminto e, de acordo com Nightingale, Molly havia feito a torta com fígado
de touro que, ela explicara, era a receita antiga e correta.
– Por que Molly não sai para fazer compras? – perguntei.
– Por que a pergunta?
– Porque ela é diferente, como o vampiro do jazz e a Dama Pálida. Mas, diferentes deles, tivemos uma chance de descobrir o que a faz vibrar.
Nightingale terminou de engolir a comida que tinha na boca e limpou os lábios com seu guardanapo.
– A Dama Pálida?
– Foi como Ash a chamou – expliquei.
– Nome interessante. Com relação aos ingredientes para a comida, o que sei é que ela recebe as compras em casa.
– Compra pela internet?
– Meu Deus, não – disse Nightingale. – Ainda existem estabelecimentos que fazem as coisas à moda antiga, com funcionários capazes de ler um bilhete manuscrito.
– Ela pode sair, se quiser?
– Molly não é uma prisioneira. Nem uma escrava, se é isso que está insinuando.
– Então, ela poderia simplesmente ir embora amanhã?
– Se quisesse, sim – Nightingale revelou.
– O que a impede de ir?
– Medo. Acho que ela tem medo do que vai encontrar lá fora.
– E o que ela vai encontrar? – perguntei.
– Não sei ao certo. Ela não conta.
– Você deve ter uma teoria – insisti.
Nightingale deu de ombros.
– Outras criaturas como Molly – disse.
– Criaturas?
– Pessoas, se quiser. Pessoas que, como Molly, não são como você ou eu, nem mesmo como os genii locorum. Foram modificados por magia, ou nasceram de linhagens modificadas.
E até onde sei, isso os deixa... incompletos.
Nightingale, apesar de ser literalmente uma relíquia de uma era passada, havia aprendido a modificar sua linguagem quando estava perto de mim, porque, quando pesquisei
a literatura apropriada, vi que a maioria dos termos comuns começava com “im” ou “in” – inadequado, impróprio, indesejado – e atrás deles vinham os termos que começavam
com “sub”. Porém, quando eu traduzia, ficava claro que pessoas “incompletas” como Molly eram vulneráveis a abuso e exploração praticados por seus semelhantes sobrenaturais
mais poderosos, e por praticantes sem escrúpulos morais. Magos que Nightingale dizia serem da mais escura negritude.
– Desculpe. Praticantes etnicamente desfavorecidos – falou ele. – Meu primeiro superior, o inspetor Murville, havia supervisionado um caso famoso em Limehouse em
1911. Envolvia um conhecido mago que se apresentava com o nome artístico de Manchu, o Magnífico, e que colecionava algumas pessoas muito “estranhas”, usadas para
pôr em prática seus planos nefastos.
– Que planos nefastos? – eu quis saber.
Nada menos que derrubar o Império Britânico. Aparentemente, o inspetor Murville descobriu que Manchu, o Magnífico, administrava uma casa de ópio em Limehouse Causeway.
Lá o demônio oriental sentava-se como uma aranha gorda no centro de uma rede de tramas, sendo a escravidão branca apenas o começo delas.
– O que é escravidão branca em um país de predominância branca?
Nightingale precisou pensar um pouco, mas, aparentemente, quando ele era criança, escravidão branca referia-se principalmente ao tráfico de mulheres brancas e crianças
para fins de prostituição. O inescrutável chinês era suspeito de estar por trás desse repugnante comércio de carne branca e feminina. Imaginei se parte do ultraje
era resultado de uma consciência culpada. E expressei minha dúvida.
– Havia casos estabelecidos, Peter – Nightingale respondeu sério. – Mulheres e crianças eram compradas e vendidas em circunstâncias bestiais e sofriam muito. Duvido
que se sentissem confortadas pela ironia histórica.
O inspetor Murville, convencido da seriedade da ameaça, organizara uma patrulha com metade dos magos disponíveis em Londres e um grupo numeroso de oficiais emprestados
pelo comissário. Seguiu-se uma quantidade considerável de batidas em portas e gritos de “Quieto, seu demônio oriental”, e depois um silêncio perplexo.
– O grande Manchu, o Magnífico – contou Nightingale –, era, na verdade, um canadense chamado Henry Speltz, casado com uma chinesa com quem teve cinco filhas, tendo
todas elas atuado como sua bela assistente “Li Ping” em algum momento.
Nada foi encontrado na casa, exceto uma estranha jovem europeia que morava ali e trabalhava como criada. Em depoimento, Speltz contou ao inspetor Murville que a
garota, que ninguém na casa chamava por um nome, havia sido encontrada encolhida em uma de suas caixas de desaparecimento no fim de uma apresentação vespertina no
Hackney Empire.
Limpei o que restava de molho de cebola com o último pedaço de pão no cesto. Nightingale havia deixado metade de sua torta.
– Não vai comer? – perguntei.
– Não, pode comer – ele respondeu, o que fiz enquanto ele terminou de contar a história.
Algumas coisas nunca mudam, e um oficial sênior não organiza uma batida policial e admite o fracasso, ou uma violação da Carta Magna, até ter feito de tudo para
convencer alguém de alguma coisa. Se Speltz fosse realmente chinês, as coisas podiam ter ficado muito difíceis para ele. Mas, no final, ele foi formalmente acusado
de perturbar a paz e liberado depois de ser fichado.
– A jovem passou a ter proteção policial – acrescentou Nightingale. – Até o velho Murville sentiu que havia algo de estranho com ela. – E olhou rapidamente para
a porta. – Terminou de comer?
Respondi que sim, e Nightingale pegou o prato vazio e o posicionou diante dele um segundo antes de Molly entrar na sala empurrando o carrinho de doces. Enquanto
recolhia os pratos, ela olhou desconfiada para Nightingale. Mas não podia provar nada.
Ela olha nos olhos com a testa franzida, e nós sorrimos.
– Muito bom – falei.
Molly deixou sobre a mesa uma torta custard e, depois de olhar desconfiada para mim pela última vez, saiu da sala em silêncio.
– O que aconteceu com a garota? – perguntei enquanto me servia.
– Foi trazida para cá e examinada. E o resultado provou que ela era anormal demais para ser posta em lares transitórios ou abrigos...
– Ou para trabalhar em casas de família – concluí. Por baixo de uma camada generosa de noz-moscada, a custard era boa o bastante para ter saído da Patisserie Valerie.
Pensei se seria possível levar um pedaço para Simone. Ou, melhor ainda, trazê-la para jantar.
– Talvez fique mais tranquilo por saber que tínhamos um acordo com o hospital Corum’s Foundling – falou Nightingale. – Ela teria vindo para cá, não fosse pelo desafortunado
detalhe de que, uma vez admitida na Folly, ela não permitiria que a tirassem daqui.
Ouvi Toby embaixo da mesa, esperando pelas sobras do jantar.
– Estamos falando de Molly – deduzi.
– Então, ela dormia na copa e foi criada pelos empregados – Nightingale continuou.
Eu me servi de mais uma fatia de torta.
– Postmartin estava certo – falou Nightingale. – Eu me acomodei. E enquanto fiquei morando aqui com a Molly, o mundo seguiu em frente sem mim.
Eu havia comido demais, mas me obriguei a ir ao apartamento sobre a garagem para introduzir alguns dados no sistema. Lá, me senti irresistivelmente atraído pelo
sofá e pelo jogo do Arsenal contra o Tottenham. A coisa estava complicada para Spurs quando meu telefone tocou e uma voz estranha disse: – Oi, Peter.
Examinei o identificador de chamadas.
– É você, Lesley?
Ouvi um som ofegante, rouco.
– Não – ela respondeu. – É Darth Vader.
Eu ri. Não queria rir, mas não consegui me conter.
– É melhor que Stephen Hawking – Lesley continuou. Sua voz dava a impressão de que ela tentava falar com uma garrafa plástica na boca, e tive a sensação de que o
esforço era doloroso para ela.
– Esteve em Londres para fazer uma cirurgia – eu disse. – Podia ter me avisado.
– Ninguém sabia se ia dar certo.
– E deu?
– Estou falando, não estou? – Lesley perguntou. – Dói muito, mas estou falando.
– Quer voltar às mensagens de texto?
– Não. Estou cansada de digitar. Já examinou suas pastas no HOLMES?
– Ainda não – respondi. – Estava fazendo uma varredura de porta em porta.
– Estudei os registros que você mandou, e o professor Geoffrey Wheatcroft nem lecionou formalmente para Jason Dunlop, mas a dedicatória no primeiro livro de Dunlop
era “Ao mestre Geoffrey, de quem recebi minha verdadeira educação”. Não é assim que vocês, magos treinados, chamam seus professores?
Não aquele aprendiz. Mas “mestre” não significa a mesma coisa para os garotos brancos em Oxford. Considerando os livros no apartamento de Dunlop, e eliminando a
possibilidade de um conjunto realmente bizarro de coincidências, isso só podia significar que Geoffrey Wheatcroft havia ensinado a Dunlop magia formal newtoniana.
Eu disse isso a Lesley.
– Eu já imaginava – respondeu ela. – A pergunta é: ele era o único? E se não era, como vamos descobrir?
– Temos que examinar os arquivos da Equipe de Homicídios e ver se havia associados ou indiciados conhecidos que estiveram na faculdade Magdalen na mesma época que
ele.
– Adoro quando fala bobagens – comentou ela. – Faz você parecer um policial de verdade.
– Acha que pode cuidar disso? – perguntei.
– Por que não? Não tenho nada melhor para fazer. Quando vem me ver?
– Assim que tiver uma chance – menti.
– Tenho que desligar – Lesley avisou. – Não posso falar muito.
– Cuide-se – eu a aconselhei.
– Você também. – E ela desligou.
Quantos aprendizes um mestre pode ensinar? É preciso ser um mago treinado para agir na capacidade do que Nightingale chamou de um “exemplar”, para demonstrar a forma.
Mas eu não via por que não era possível ser mestre para mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Dependia da motivação de seus alunos. Em algum lugar como a velha escola
de Nightingale, você lidaria com a medida habitual de talento e entusiasmo. Mas alunos universitários aprendendo magia por diversão? Nightingale dizia que eram necessários
dez anos para ser um mago de verdade, mas eu havia conseguido fazer muito estrago nos três meses desde que começara a estudar. Duvidava de que Jason Dunlop ou outros
estudantes fossem diferentes.
Liguei o terminal HOLMES e comecei a procurar conexões com a Universidade de Oxford, ligações que houvessem durado mais que o tempo dele lá. Isso me rendeu uma lista
de mais de vinte nomes, a maioria de ex-alunos cujos caminhos se cruzaram profissionalmente ou, até onde a Equipe de Homicídios podia dizer, socialmente com o de
Jason Dunlop.
Em um inquérito de grande porte, uma pessoa que chama a atenção da polícia é arrolada no HOLMES como um nominal. Qualquer tarefa que um oficial da investigação decida
que é necessário desenvolver é chamada de ação. Ações são priorizadas e colocadas em uma lista, e oficiais são designados para cumpri-las. Ações levam a mais nominais
e mais ações, e a investigação toda se torna rapidamente um turbilhão de informações do qual parece não haver saída. HOLMES permite buscas por palavras e testes
de comparação, mas, na metade do tempo, isso só leva a mais ações e mais nominais e mais itens de informação. Trabalhe com isso por qualquer período de tempo e você
vai começar a sentir saudade dos velhos tempos, quando simplesmente encontrava um suspeito que, para você, parecia interessante, e batia nele com uma lista telefônica
até fazê-lo confessar.
Verificações de nomes da Universidade da Oxford não eram prioritárias, por isso comecei com o Sistema de Computadores da Polícia para verificar se algum deles tinha
registro criminal, pelo menos, e para tentar encontrar semelhanças em suas carteiras de habilitação. Não era um processo rápido, mas graças a ele eu ainda estava
vestido e acordado quando Stephanopoulos telefonou para mim à uma da manhã.
– Prepare uma valise com algumas peças de roupa – disse ela. – Vou buscá-lo em dez minutos.
Eu não tinha uma valise, por isso peguei a bolsa da academia e torci para ninguém me convidar para um jantar formal durante esse período de ausência. Peguei um Airwave
extra com meu laptop de backup, só para garantir. Para ganhar tempo, saí pela porta lateral e subi a Bedford Palace até Russell Square. Estava garoando, e a umidade
desenhava halos amarelos em torno das lâmpadas da rua.
Stephanopoulos não teria me ligado de madrugada por menos que outro assassinato, e a valise sugeria que o crime havia acontecido fora de Londres.
Ouvi o barulho antes de ver o carro, um Jaguar XJ preto com rodas de cinquenta centímetros e, inconfundível pelo som, motor V8 superpotente. Pelo jeito como o carro
parou, ficou evidente que o motorista havia passado por todos os cursos e treinamentos e tinha autorização para dirigir em velocidade insana.
A porta de trás do lado do passageiro se abriu e eu entrei. Stephanopoulos esperava por mim cercada pelo cheiro de couro limpo recentemente. O carro arrancou assim
que a porta foi fechada, e eu escorreguei pelo banco traseiro até conseguir prender o cinto de segurança.
– Aonde vamos? – perguntei.
– Norwich – respondeu Stephanopoulos. – Nosso amigo andou se alimentando de novo.
– Um morto?
– Ah, sim – disse o homem no banco da frente.
– Bem morto. – Stephanopoulos apresentou o detetive inspetor chefe Zachary Thompson.
– As pessoas me chamam de Zack – ele avisou ao apertar minha mão.
E eu vou chamá-lo de inspetor chefe, pensei. Mas não disse nada. Thompson era um homem alto com rosto estreito e um enorme nariz que parecia um bico. Ele devia ser
mais duro do que sugeria sua voz, ou não teria suportado a vida com um nariz como aquele.
– Zack é o supervisor do caso – Stephanopoulos avisou.
– Sou a barba dela – o inspetor brincou animado.
Não faço parte da famosa cultura de cantina da Metropolitana. Não lamento pelos velhos tempos quando policiais eram policiais de verdade, no mínimo porque isso me
poupa do que teria sido um contínuo abuso racista. Mas até eu fico nervoso quando um oficial sênior sugere que eu o trate pelo primeiro nome. Nada de bom pode resultar
desse tipo de coisa.
– Alguma coisa incomum nesse caso? – perguntei. – Quero dizer, mais incomum que de costume?
– Ele era policial – revelou Stephanopoulos. – Detetive inspetor chefe Jerry Johnson, aposentou-se na Metropolitana em 1979.
– Alguma conexão com Jason Dunlop?
– Há uma anotação no diário de Dunlop, no mês de março – respondeu o inspetor Thompson. – “Conheci J. J. Norwich.” As faturas do cartão de crédito mostram que ele
comprou uma passagem de volta para Norwich em Liverpool Street naquele dia. Acreditamos que Johnson podia ser a fonte para um artigo que Dunlop estava escrevendo.
– Se for o mesmo J.J. – apontei.
– Deixe essa preocupação com a gente – disse Stephanopoulos. – Você está aqui para verificar se há sinais de magia negra.
Para minha surpresa, estávamos atrás de uma escolta formada por dois motociclistas, e quando chegamos ao acesso para a pista da MII estávamos a 190 km/h.
9
A estufa
Meu pai diz que ser londrino não tem nada a ver com o lugar onde você nasceu. Ele diz que há pessoas que descem de um avião em Heathrow, passam pela imigração brandindo
um passaporte qualquer, entram no metrô e, quando o trem entra em Piccadilly Circus, já se tornaram londrinos. E ele diz que há outras, algumas nascidas no centro
da capital inglesa, que passam a vida toda sonhando sair de lá. Quando saem, quase sempre vão para Norfolk, onde o céu é vasto, a terra é plana e a população é majoritariamente
branca. Meu pai diz que essa é a alternativa do homem pobre à Austrália, agora que a África do Sul tornou-se multicultural.
Jerry Johnson era um desses londrinos que descrevi por último, nascido em Finchley em 1940 pela graça de Deus e morto em um chalé na periferia de Norwick com o pênis
arrancado por uma mordida. Esse último detalhe explica por que eu e a mais assustadora oficial da Metropolitana, seu supervisor e dois batedores seguíamos em alta
velocidade pela MII. Eram duas da manhã quando saímos da estrada, por isso continuamos pela pista local quase sem reduzir o ritmo. Chegamos à cena do crime em menos
de noventa minutos, o que era impressionante, mas descobrimos que a polícia de Norfolk já havia removido o corpo, o que era péssimo. Stephanopoulos saiu do local
furiosa na companhia do inspetor chefe Thompson, e eu sabia que ela ia arrancar cabeças na delegacia local. Fiquei sozinho para examinar a cena do crime.
– Nenhum sinal de arrombamento – falou o detetive Trollope.
Contrariando os preconceitos de meu pai, a polícia local não era estúpida nem tinha sinais de prejuízo por relações em família. Se os primos por ali se beijavam
e levavam a história adiante, pelo menos os frutos dessa relação não ingressavam na polícia. O detetive David Trollope era o tipo de homem jovem, sóbrio e forte,
alguém que faria bater mais forte o coração de qualquer jovem da região.
– Acha que ele deixou o agressor entrar? – perguntei.
– É o que parece. O que você acha? – o detetive me perguntou.
Oficiais da polícia, como matronas africanas em um casamento, têm consciência e respeitam todas as sutis graduações de posição. Tínhamos a mesma patente e mais ou
menos a mesma idade, mas a desvantagem que eu tinha por estar na área dele era compensada por eu ter chegado em um Jaguar XJ V8 que havia sido emprestado pela Proteção
Diplomática. Adotamos uma espécie de cordialidade desconfortável que, como com as matronas africanas, e desde que ninguém misturasse mais álcool ao ponche, nos ajudaria
a encerrar o encontro sem nenhum incidente constrangedor.
– Ele tinha algum sistema de alarme? – perguntei.
– Sim – respondeu Trollope. – E dos bons.
O chalé era uma horrível estrutura construída de tijolos vermelhos, eu poderia apostar, no início da década de 1980 por algum arquiteto maluco que pretendia art
déco, mas só conseguiu chegar em Tracy Emin. O interior era tão sem personalidade quanto o exterior: sofá da World of Leather, mobília genérica, cozinha comum. Havia
três quartos, o que me surpreendeu.
– Ele tinha família? – perguntei.
Trollope examinou suas anotações.
– Ex-mulher, filha, netos... Todos morando em Melbourne, Austrália.
Os dois quartos extras pareciam ter sido mobiliados na década de 1980 e eram arrumados, limpos e desprovidos de sinais de vida. Trollope disse que Johnson tinha
uma mulher polonesa que ia visitá-lo duas vezes por semana.
– Foi ela quem encontrou o corpo – contou o policial.
No quarto principal, que ainda estava interditado para quem não fosse da polícia técnica, fiquei parado na porta e examinei a cama da melhor maneira possível. A
equipe de peritos havia removido lençóis e travesseiros, mas o colchão ainda estava no lugar e tinha uma nódoa escura mais ou menos a um terço da área a partir do
pé da cama. Muito sangue encharcara o material para o colchão ter secado desde a remoção do corpo, por isso ainda consegui sentir o cheiro característico quando
me afastei para ir dar uma olhada nos outros cômodos. Eu havia levado luvas comigo, mas pedi um par a Trollope para dar a ele algo para fazer e um motivo para sentir-se
superior.
Se Johnson morrera no quarto dele, havia passado a maior parte da vida na sala de estar. TV tela plana de LCD, DVD, controles remotos ainda sobre a mesinha de centro,
ao lado de uma cópia do Radio Times. Havia uma escrivaninha antiga que, Trollope me contou, ainda não fora examinada para a coleta de impressões digitais, por isso
não mexemos nela. Duas estantes com portas de vidro eram ocupadas por livros. Penguins, Corgis e Panthers das décadas de 1960 e 1970 – Len Deightom, Ian Fleming
e Clive Cussler. Parecia a seção de ficção de um bazar de caridade. As prateleiras eram duplas, com a parte inferior servindo como um pedestal para a superior e
ligeiramente mais profunda, e as portas eram opacas. Com cuidado, porque as impressões digitais também não haviam sido colhidas no móvel, abri as partes inferiores
e as encontrei vazias, exceto por dois pedaços de papel que deixei onde estavam – mais uma deferência à perícia.
Havia duas gravuras muito boas na parede, cenas de caça, e uma foto emoldurada de sua turma de formandos em Hendon. Não consegui determinar qual dos radiantes jovens
uniformizados era ele. Ao lado havia uma foto dele recebendo uma comenda de um oficial sênior que, mais tarde descobri, era Sir John Waldron, comissário da Polícia
Metropolitana de 1968 a 1972, nada menos. Havia fotos de família sobre o console da lareira, um casamento, dois filhos, um menino e uma menina em várias idades,
bebês, pré-escolares, em uma praia amarela à beira de um mar verde em algum lugar no exterior. Havia duas fotos tiradas fora do chalé, e nelas as crianças pareciam
ter 9 ou 10 anos – nada além disso. Fiz um rápido cálculo mental e deduzi que a última foto havia sido feita no início dos anos 1980. Há mais de trinta anos.
– A família na Austrália ainda vive, não? – perguntei. – Não houve nenhuma tragédia como um acidente de carro, ou coisa parecida?
– Vou ter que descobrir – disse Trollope. – Por quê?
– Trinta anos é muito tempo para viver sem nenhuma fotografia nova.
As duas últimas fotos estavam na segunda fileira, meio escondida pelas outras, as da esposa e dos filhos. Mais homens engravatados, com costeletas e lapelas constrangedoramente
largas, fotografados em um bar que parecia familiar e que reconheci de repente. Era o French House, no Soho. Também percebi que estava olhando para o jovem Alexander
Smith, o dono da boate, que naquela época já se apresentava como um almofadinha com paletó de veludo amassado e camisa de babados.
– Por acaso não tem detalhes sobre a carreira dele, tem? – indaguei.
Trollope examinou as anotações novamente, mas, antes mesmo de ouvir a resposta, eu já sabia que a maior parte da carreira do inspetor Johnson havia acontecido no
Soho e na região em torno dele.
– Ele foi detetive inspetor chefe em West End Central, e antes disso esteve em algum agrupamento chamado de EPO.
Pedi as datas, e o policial disse que 1967 a 1975.
O EPO era o Esquadrão de Publicações Obscenas, a unidade especialista mais corrupta da divisão mais corrupta da Polícia Metropolitana. E Johnson havia sido membro
da equipe durante a década mais corrupta.
Não era à toa que Alexander Smith estava na fotografia. O EPO havia criado uma rede de proteção para lojas de pornografia e boates de strip. Os proprietários pagavam
um valor diário aos policiais, e eles garantiam que ninguém os incomodaria com fiscalizações e batidas. Ou, se fosse inevitável, eles avisavam com antecedência,
de forma que havia um bom tempo para esconder tudo que era indesejável ou reprovável. E se você oferecia um “drinque” aos caras uniformizados, ainda tinha direito
a um bônus: eles direcionavam a fiscalização para a concorrência, depois vendiam os produtos confiscados para você do lado de fora da sala de evidências em Holborn.
Isso também explicava como Johnson havia conseguido se aposentar cedo e, provavelmente, por que tivera que se aposentar.
Olhei para os três controles remotos deixados casualmente sobre a mesa de centro.
Abaixei-me ao lado do móvel onde ficava a televisão. Era um desses móveis baratos de laminado, e a quantidade de fios e cabos atrás do móvel dificultava a adequada
remoção da poeira.
– Pode me ajudar aqui? – pedi, e expliquei a Trollope o que queria que ele fizesse. Com cuidado para não interferir em nenhuma evidência, pegamos o DVD player e
o levantamos. Embaixo do aparelho havia um retângulo cinza-claro onde alguma coisa protegera a superfície laminada de anos de poeira, alguma coisa menor que a base
do DVD player. Assenti e devolvemos o aparelho ao lugar com todo cuidado.
– O que foi isso? – quis saber Trollope.
– Ele tinha um videocassete – expliquei, apontando os controles sobre a mesa. Um para a TV, um para o DVD e...
– Caramba – Trollope murmurou.
– Você precisa dizer ao pessoal que está analisando a cena do crime que alguém levou as fitas de VHS que estavam aqui – falei.
– Por que ele ainda tinha um videocassete? – o policial questionou. – Conhece alguém que ainda tenha um VHS?
– Deve ser alguma coisa que ele não quis correr o risco de digitalizar.
– Hoje em dia? Deve ser alguma coisa muito repulsiva ou ilegal. Pornografia infantil, snuff ou, sei lá, estrangulamento de gatos.
– É preciso conversar com a esposa – continuei. – Talvez ela saiba alguma coisa.
– Talvez por isso tenha ido embora – acrescentou Trollope. – Alguém vai ter que ir à Austrália?
– Não seremos nós. A polícia nunca manda um detetive para esse tipo de viagem. É sempre um “oficial experiente” que acaba sendo premiado com essas viagens gratuitas.
– Vivemos um momento de solidariedade deprimida. – Se tivesse coisas que queria desesperadamente esconder, onde as guardaria?
– No galpão do jardim – respondeu Trollope.
– É mesmo?
– É onde meu pai guarda a erva.
– Sério?
– Cultivar a própria erva é uma longa tradição por aqui.
– Nunca se sentiu tentado a prendê-lo por posse?
– Só no Natal – ele contou.
O ideal seria sairmos para irmos nós mesmos dar uma olhada no galpão, mas não se faz uma coisa dessas em uma moderna cena de crime sem antes conversar com a equipe
de perícia, e eles disseram que não poderíamos sair enquanto eles não examinassem o gramado para ver se havia pegadas. E eles não podiam examinar o gramado enquanto
não amanhecesse. Muito bem. Sendo assim, fomos levar nossas conclusões a Stephanopoulos, que ficou muito satisfeita e demonstrou seu contentamento com sanduíches
e café. Tivemos que ir comer na rua para não deixar cair migalhas na cena do crime. Fazia um frio surpreendente, mas a polícia de Norfolk mantinha duas vans Transit
do lado de fora do chalé, e nós nos acomodamos em uma delas. Mesmo tão perto de Norwich, o céu era espantosamente amplo e cheio de estrelas. Stephanopoulos percebeu
que eu olhava para cima.
– Garoto da cidade – disse ela.
Sugeri que a esposa de Johnson fosse entrevistada na Austrália e ela concordou, embora fosse da opinião de que a polícia local podia perfeitamente cuidar disso sem
a necessidade de enviarmos um oficial britânico, sênior ou não. Trollope sufocou o riso.
– Qual é a graça, policial? – perguntou Stephanopoulos.
– Nenhuma, senhora – respondeu ele.
Os sanduíches eram do tipo que se podia comprar em lojas de conveniência de postos de gasolina, daqueles que conseguem a proeza de ser, ao mesmo tempo, úmidos e
duros. Acho que o meu era de salada e presunto, mas nem sentia o gosto. Stephanopoulos abandonou o dela depois da primeira mordida.
– Precisamos saber o que Johnson disse a Dunlop – falou ela.
– Aposto que tinha alguma coisa a ver com o Esquadrão de Publicações Obscenas – respondi. – O que mais ele teria para falar?
– As pessoas são mais que seus empregos – Stephanopoulos lembrou.
– Não esse homem – insisti. – Se ele se interessava por alguma coisa em especial era pelas fitas roubadas. Acredito que pode ter sido morto, em parte, na tentativa
de recuperá-las.
– Entendo. EPO mais fitas de vídeo, mais a matéria de um jornalista, algum escândalo suculento da década de 1960? Talvez alguém quisesse silenciá-lo. Se descobrirmos
que matéria era essa, descobrimos quem tem um motivo.
Contei a ela sobre a presença de Alexander Smith em uma das fotos no console da lareira.
– Quem é ele quando está em casa? – perguntou a oficial.
– Empresário da noite. Boates. Está no ramo desde os anos 1960, teve um período de férias prolongadas na Costa del Sol nas décadas de 1970 e 1980.
– Um gângster? – Trollope perguntou.
– Um espertalhão – esclareci.
– Como ele chamou sua atenção? – Stephanopoulos quis saber.
– Durante o andamento de outro inquérito – revelei, e olhei para Trollope. Não sabia quanto Stephanopoulos ia querer que eu revelasse fora da Metropolitana.
– Acha que são casos relacionados? – ela me perguntou.
– Não sei. Mas, definitivamente, é um ponto de partida.
Ela assentiu e apontou para mim.
– Vá dormir um pouco. Quero que esteja bem e animado amanhã – disse, depois olhou para Trollope. – Você... Seu chefe o colocou à minha disposição, então, preciso
que faça algumas coisas. Tudo bem?
– Sim, senhora.
– O que faremos amanhã? – indaguei.
– Vamos ter uma longa e agradável conversa com esse Alexander Smith.
Descobri que era muito fácil dormir no banco traseiro da Transit, mas acordei para uma manhã clara e gelada e fiquei realmente feliz quando o detetive Trollope apareceu
com um Mondeo sem identificação para nos levar à estação de trem. Trollope e eu trocamos números de celular, porque é sempre bom manter contatos, e Stephanopoulos
e eu fomos procurar café. A estação de Norwich seguia o padrão vitoriano de tijolos, ferro e vidro, modernizada pelo colorido plástico moldado de vários quiosques
de fast-food. Dirigi-me animado ao quiosque da Upper Crust, pensando seriamente em pedir se podia me sentar embaixo da torneira da máquina de café, mas me conformei
com dois expressos duplos e uma baguete de frango. Stephanopoulos não aprovou.
– O frango que está comendo é cheio de conservantes, desidratado e prensado, e depois ainda é temperado com mais química – disse.
– Estou com fome demais para me importar – respondi.
Pegamos o expresso para Liverpool Street e Stephanopoulos conseguiu nos colocar na primeira classe usando sua credencial, o que, em uma rota tão curta como aquela,
significava apenas assentos um pouco mais largos e um punhado de passageiros a menos. Isso era conveniente para Stephanopoulos, porque ela dormiu antes de o trem
deixar a estação.
Não havia wi-fi no trem, por isso abri um arquivo PDF de Latim para leigos em meu notebook e passei uma hora e meia me debatendo entre adjetivos de terceira declinação.
Estávamos a vinte minutos de Liverpool Street, vendo os bairros como uma confortante mancha chuvosa, quando Trollope me ligou.
– Eles me deixaram entrar no galpão – disse. – Eu estava certo. A porta foi arrombada. – O método de arrombamento havia intrigado a todos, porque a fechadura e um
pequeno círculo da madeira em torno dela haviam sido extraídos. – Ninguém consegue entender como foi feito.
Eu sabia. Era um encantamento. Na verdade, era um feitiço que eu havia visto Nightingale usar no portão do jardim em Purley, quando fomos ao covil do vampiro. Ou
nosso mago negro está ficando descuidado, não sabia que havia alguém capaz de rastreá-lo, ou simplesmente não se importava com a possibilidade de nos alertar para
sua presença.
De acordo com Trollope, o galpão era como todos os outros, uma bagunça de ferramentas de jardinagem, vasos de flores, mangueira e peças de bicicleta.
– Não acredito que vamos conseguir descobrir se alguma coisa foi levada de lá – continuou ele.
Mesmo assim, os peritos estavam recolhendo impressões digitais. Os detalhes desse procedimento e da remoção da fechadura, e também o relatório sobre duas possíveis
pegadas encontradas no jardim, foram anexadas ao HOLMES. Agradeci a Trollope e prometi que o avisaria, caso acontecesse alguma coisa importante.
Stephanopoulos acordou com um ronco quando estávamos parando na estação, e me olhou por um instante confusa antes de conseguir se orientar. Contei a ela as novidades
sobre a fechadura do galpão, e a oficial moveu a cabeça em sentido afirmativo.
– Devemos informar nosso superior? – perguntou ela.
O Dr. Walid havia sido firme.
– Ainda não – respondi. – Vamos ver se consigo a confirmação de Alexander Smith primeiro, antes de tirá-lo da cama.
– Ah, sim, Smith – Stephanopoulos lembrou quando o trem parou. – Um vilão da antiga escola. Isso vai ser interessante.
Stephanopoulos decidiu usar West End Central como cenário para a entrevista. Construída na década de 1930 em Savile Row, o local é um grande bloco quadrado de escritórios
revestido com cara Pedra Portland num esforço para disfarçar sua essencial falta de graça. Do outro lado da Regent Street, saindo do Soho, ele é a principal base
de operações da Boates e Vícios, e Stephanopoulos havia convencido um velho amigo que trabalhava lá a pegar Alexander Smith para nós. A ideia era convencê-lo de
que ele era só um peixe pequeno capturado por uma grande e impessoal máquina de moer carne. Pretendíamos pôr em prática uma mistura de Kafka e Orwell, o que mostra
quanto pode ser perigoso atravessar o caminho de policiais que leram mais do que você. Nós o deixamos cozinhar na sala de entrevistas por cerca de uma hora e pouco,
enquanto Stephanopoulos e eu ficamos sentados na cantina bebendo aquele café horroroso, traçando nossa estratégia para o interrogatório. Bem, na verdade, Stephanopoulos
cuidava da estratégia, enquanto eu ficava ali sentado e acatava tudo.
Alexander Smith havia morado fora do país nos anos de 1970 e 1980, sim, vivera perto de Marbella, no sul da Espanha, na famosa Costa del Crime, com um punhado de
homens durões de meia idade que falavam como Ray Winston e tinham a fibra moral de um lenço de papel úmido. Ele era um vilão da velha escola, mas era esperto, porque
nunca havia sido preso ou processado. Tinha uma boate, mas sua principal fonte de renda era o trabalho de intermediário entre policiais corruptos e os barões da
pornografia no Soho. Ele sabia onde os corpos eram enterrados, literalmente, e devia estar esperando que começássemos falando sobre isso.
– Mas ele está com medo – opinou Stephanopoulos. – Não pediu informações nem quis dar um telefonema. Ele quer ser pego.
– Por que não pede proteção, então?
– Criminosos como ele não pedem proteção. Não falam com a polícia, a menos que seja para comprá-la. Mas ele está com medo de alguma coisa, e precisamos descobrir
do quê. Então enfiamos a faca, torcemos, e ele vai se abrir como um caramujo.
– Não seria uma ostra? – sugeri.
– Siga minhas indicações – Stephanopoulos falou.
– E se tivermos que entrar na minha área de conhecimento?
Ela riu.
– Se por acaso tivermos que entrar no pequeno território do desconhecido, você faz as perguntas que tiver que fazer. Mas seja sensato e cuidadoso, porque não gosto
de chutar as pessoas por baixo da mesa. Não é profissional.
Terminamos nosso café horroroso e discutimos rapidamente o tamanho da pasta. Não é novidade que oficiais da polícia dirijam-se a uma entrevista levando pastas cheias
de papéis em branco, um truque para dar a ideia de que nós, os policiais, já sabemos de tudo, e que o interrogado pode economizar tempo e falar logo tudo que sabe.
Mas Stephanopoulos achava que um velhaco como Smith não ia cair nesse truque. Além do mais, queríamos dar a impressão de que nem estávamos tão interessados.
– Ele quer alguma coisa de nós – Stephanopoulos continuou. – Quer ser convencido a se entregar. Quanto mais pensar que não estamos interessados, mais propenso ele
estará a falar.
Smith usava novamente o blazer azul-marinho, mas a camisa estava aberta no colarinho e seu rosto estava pálido, coberto pela sombra da barba por fazer. Fizemos uma
grande encenação colocando as fitas na máquina, depois nos apresentamos e o informamos sobre seus direitos.
– Entenda que não está detido, e que pode encerrar essa entrevista no momento que quiser.
– Não, sério? – perguntou Smith.
– Você também tem direito a um advogado ou representante de sua escolha.
– Sim, sim – retrucou Smith. – Podemos ir em frente?
– Não quer ouvir um resumo do caso? – estranhei.
– Não, não quero a droga do resumo.
– Parece estar com pressa. Tem que ir a algum lugar? – perguntou Stephanopoulos. – Alguém espera por você, talvez?
– O que vocês querem? – Smith irritou-se.
– Estamos aqui para esclarecer seu envolvimento em vários crimes – falou a oficial.
– Que crimes? Nessa época eu era um empresário respeitável, tinha uma boate, só isso.
– Que época? – interferi.
– Nos velhos tempos. Não é sobre isso que estão perguntando? Porque eu era um empresário respeitável.
– Mas, meu querido Smith – Stephanopoulos falou com tom doce –, não acredito em empresários respeitáveis. Estou na polícia há mais de cinco minutos. E o oficial
aqui também não acha que você é respeitável, porque ele é membro de carteirinha do Partido dos Trabalhadores Revolucionários e considera toda forma de propriedade
um crime contra o proletariado.
Essa me pegou de surpresa, e o máximo que consegui falar foi: – Poder para o povo.
Smith olhava para nós como se fôssemos malucos.
– Então – continuei –, esteve envolvido em vários crimes naquela época, Smithy?
– Não fui nenhum anjo – ele confirmou. – E reconheço que fui forçado a me relacionar com elementos insalubres nos velhos tempos. Esse foi um dos motivos pelos quais
me mudei para o exterior, para me afastar de tudo isso.
– Por que voltou?
– Saudades da velha Bretanha.
– É mesmo? – ironizei. – Você me disse que a Inglaterra era um buraco.
– Bem, pelo menos é um buraco de língua inglesa – respondeu Smith.
– O dinheiro acabou – Stephanopoulos arriscou. – Foi isso, Smithy?
– Ah, por favor – ele riu. – Eu poderia comprar você e todos os oficiais sêniores nesta delegacia e ainda ter o suficiente para comprar um apartamento em Mayfair.
– Faça uma oferta – sugeriu Stephanopoulos. – Estou precisando de um galinheiro novo. E também seria bom aumentar a estufa.
Smith, que não ia dizer nada que pudesse ser mal interpretado ou editado digitalmente para se transformar em uma admissão de culpa, sorriu para nós com ironia.
– Se não foi pelo dinheiro – interferi –, por que voltou?
– Fui para Marbella porque estava cansado, queria me aposentar. Comprei uma bela villa para nós, minha esposa e eu, e não vou mentir, a vida era ótima até os malditos
anos oitenta, quando os russos começaram a aparecer. Depois disso, não havia mais segurança nem mesmo dentro de casa. Então, decidi que, se tinha que enfrentar tiros
e ameaças, melhor que fosse em Londres.
– Perdeu Marbella, ganhou Londres – sugeriu Stephanopoulos. – Não é isso, oficial?
– Com certeza – concordei. – Você traz necessárias cores populares às vias históricas de Londres.
Sabíamos por relatórios que Stephanopoulos havia conseguido com a Agência de Crime Grave e Organizado que o verdadeiro motivo da volta de Smith a Londres era uma
série de transações com drogas que haviam acabado mal. Seu produto era regularmente confiscado na Espanha e em Amsterdã, e quando ele finalmente embarcou no avião
para Gatwick, tudo que deixava para trás eram dívidas e a esposa, que acabou indo morar com um dentista brasileiro. Essa deve ter doído.
– De onde você é? – ele me perguntou.
– De onde acha que sou? – devolvi, porque a regra principal e inquebrável de uma entrevista policial é nunca fornecer informações – especialmente sobre si mesmo.
– Não sei. Mas parece que não sei mais merda nenhuma.
– Conhece Jerry Johnson? – perguntou Stephanopoulos.
– Quem é esse? – ele disparou, mas tremeu, e sabia que havíamos percebido.
– Detetive inspetor chefe Johnson – falei, e mostrei a fotografia da casa de Johnson.
Ele parecia surpreso.
– Estão falando sobre Greasy Johnson? Aquele idiota?
– Então você o conhece? – indaguei.
– Ele costumava andar pelo Soho com a mão estendida – disse Smith. – Como o resto da laia imunda. Como eles fazem agora, na verdade. Quantos anos o Greasy tem? Ouvi
dizer que ele teve que se aposentar.
Eu tinha uma boa fotografia da cena do crime de Jerry Johnson deitado nu em sua cama, sem os órgãos sexuais, pronta para ser passada para Smith, mas Stephanopoulos
bateu o dedo uma vez na mesa, o que significava contenha-se. Olhei bem para Smith e vi que sua perna estava com o mesmo tremor que eu tinha visto em seu escritório.
Queríamos que ele ficasse com medo, mas não com tanto medo a ponto de ficar calado ou tentar escapar.
– Ele foi assassinado ontem – disse Stephanopoulos. – Na casa dele em Norfolk.
Os ombros de Smith relaxaram. Alívio, defesa, desespero? Eu não conseguiria dizer.
– Você sabia disso antes – eu disse –, não sabia?
– Não sei do que você está falando.
– Ontem – eu disse –, quando vim chamar... é por isso que o Sem Pescoço não foi atender, por isso você estava suando.
– Ouvi alguns sussurros – disse Smith.
– Que tipo de sussurros? – perguntou Stephanopoulos.
– Que alguém que eu pensava que estava morto pode não estar – disse ele.
– O cara morto tem nome? – perguntou Stephanopoulos.
– Johnson estava com esse cara estranho; que parecia um mago – disse Smith.
– Ele fez truques com cartas? – perguntou Stephanopoulos.
– Não esse tipo de mágica – disse Smith. – Era como magia vudu real, apesar de ele ser um velho branco.
– Você disse que era como vudu? – perguntei. – O que aconteceu, cantaram para os espíritos que o possuíam? Ele fazia sacrifícios e rituais?
– Não sei – Smith respondeu. – Eu sempre fiquei bem longe.
– Mas acha que ele conseguia fazer feitiços de verdade?
– Eu não acho – respondeu ele. – Eu vi.
– Viu o quê?
– Quero dizer, acho que vi – disse Smith, e pareceu murchar dentro do colarinho da camisa. – Você não vai acreditar em mim.
– Não vou acreditar em você – confirmou Stephanopoulos. – Mas o oficial Grant aqui é pago para acreditar nessas coisas. Ele também tem que acreditar em fadas, magos
e duendes.
– E em hobbits – acrescentei.
Smith se agitou.
– Acham que é engraçado. Larry Piercingham, que costumavam chamar de Larry, a Cotovia, porque ele gostava de fazer suas rondas bem cedo. Lembram-se dele?
– Não sou tão velha quanto pareço ser – disse Stephanopoulos enquanto eu anotava o nome.
– Não tenho os detalhes, mas sei que ele se deu mal com um mago...
– Ele tinha nome? – Stephanopoulos o interrompeu.
– Quem?
– Esse mago. Qual era o nome dele?
– Não sei – disse Smith. – Quando falávamos sobre ele era só o Mago e, na maioria das vezes, nem falávamos sobre ele.
– E o que aconteceu com Larry, a Cotovia? – interroguei.
– Larry se envolveu com uma turma da pesada de Somers Town, ladrões e assaltantes, entre outros. O tipo de gente que não levava desaforo para casa nos velhos tempos.
Não era gente que se podia desrespeitar... entendem?
Nós entendíamos. Somers Town era um bloco concentrado de criminalidade espremido entre as estações Euston e St. Pancras. Nos dias anteriores aos rottweilers, aquele
era o tipo de lugar onde as pessoas mantinham uma pistola de cano serrado perto da porta da frente, caso aparecesse algum visitante indesejado ou assistente social.
Larry que, quando não estava roubando carros de segurança, trabalhava como segurança para vários empresários do pornô, cafetões e outros profissionais do ramo, um
dia desapareceu. A esposa andou pela região por um tempo perguntando a todo mundo se alguém o vira, mas ninguém sabia de nada.
– Não que houvesse alguém procurando, na verdade – Smith acrescentou.
Um mês depois, houve uma grande comemoração com lugares marcados na Acropolis em Frith Street. Toda a gangue de Somers Town estava lá, e também havia convidados
selecionados da nata do submundo do Soho.
– O que estavam celebrando? – quis saber Stephanopoulos.
– Não lembro – disse Smith. – Acho que ninguém lá lembra o motivo da comemoração.
Era um lugar grego, cipriota, e havia muita carne grelhada, peixes e azeitonas.
– Uma verdadeira festa grega – comentou Smith. – Nada daquela coisa curda.
– Se era uma festa de criminosos, por que você estava lá? – Stephanopoulos perguntou.
– Eu tinha interesse em alguns negócios deles – Smith falou. – Mas, principalmente, estava lá porque eles me convidaram, e quando gente como eles convidavam, você
ia.
Smith não havia notado nada de incomum até cerca de duas horas depois, quando boa parte da comida havia acabado e dois garçons entraram com uma grande bandeja coberta,
abriram espaço e a colocaram no centro da mesa. Michael “Mick” McCullough, que era então o líder indiscutível da gangue, havia perguntado: – O que é isso? Não é
meu aniversário.
Alguém havia sugerido que poderia ser a stripper.
– Só se for meia stripper – McCullough respondera, e removeu a tampa da bandeja. Embaixo dela estava a cabeça de Larry, a Cotovia, com uma aparência tão fresca quanto
no dia em que havia sido cortada. Guarnecida com folhas de azevinho e visco e tudo. Anotei esse detalhe para o caso de ter alguma importância.
A gangue de Somers Town era, por definição, formada por homens duros, matadores implacáveis. Sabiam como plantar o medo nas pessoas e não se deixariam abalar por
uma coisa tão rotineira quanto uma cabeça na bandeja.
– Essa deve ser a stripper mais feia que já vi – comentou McCullough.
Todos riram, e continuaram rindo até o momento em que a cabeça falou.
– Ajudem-me – ela disse.
A voz, de acordo com Alexander Smith, soava meio parecida com a de Larry, a Cotovia, mas tinha uma qualidade sibilante, com se o ar fosse empurrado por um cano.
Bem, isso amedrontou a gangue de Somers Town, que se afastou da mesa tão depressa que várias cadeiras caíram. Todos se apavoraram, menos Michael McCullough, que
não era um homem supersticioso.
– Isso é um truque, bando de covardes estúpidos – ele havia gritado enquanto, sem hesitar, virava a bandeja.
– Acho que ele esperava encontrar um buraco na mesa – disse Smith. – Para ser bem honesto, eu também esperava. Imaginei que Larry, a Cotovia, estava ali abaixado
rindo de nós. Mas não havia buraco. Nem Larry. Quero dizer, nada além da cabeça dele.
A cabeça cortada saiu rolando pela mesa e caiu no chão, enquanto todos os valentões, durões e grandalhões gritavam como garotinhas e tentavam sair do caminho. Mas
não McCullough, porque uma coisa que se podia dizer sobre ele era que o homem não sentia medo. McCullough contornou a mesa, pegou a cabeça pelos cabelos e a sacudiu
diante de seus convidados.
– É um truque – gritou. – Não acredito nisso. Que bando de florzinhas!
– Mickey – disse a cabeça de Larry, a Cotovia. – Pelo amor de Deus, me ajude.
– Como McCullough reagiu? – quis saber Stephanopoulos.
Smith arrastou os pés no chão de ladrilhos, fazendo barulho na sala de interrogatório.
– Não sei – respondeu ele. – Porque, como todo mundo ali, eu saí correndo. Depois disso, ninguém falou sobre aquela noite, ninguém falou sobre Larry, a Cotovia,
e o restaurante foi fechado. Eu tratei de ficar calado, ganhei meu dinheiro e saí do país.
– O que o Mago queria do detetive inspetor chefe Johnson? – indagou Stephanopoulos.
– O de sempre – falou Smith. – Queria proteção contra qualquer interferência indevida das forças da lei e da ordem.
Perguntei o que precisava ser protegido.
– Uma boate. Em Brewer Street.
– Não há nenhuma boate em Brewer Street – falei.
– Era um clube fechado – Smith explicou.
– O que Johnson obteve do Mago? – Stephanopoulos continuou perguntando.
– Greasy Johnson tinha necessidades. Ele era um homem muito carente, tinha necessidades especiais.
– De que tipo? Drogas, jogo, bebida, mulheres... o quê?
– Sexo.
– Que tipo de sexo? – interferi. – Meninos, meninas, meias curtas, cabras?
– O último – Smith respondeu.
– Cabras – Stephanopoulos manifestou-se. – Está brincando.
– Não sei se eram exatamente cabras – revelou Smith –, mas era alguma coisa relacionada com animais. Sabe o que é uma menina-gata?
– Mangás – deduzi. – Garotas com orelhas e caudas de gatos. São chamadas de Neko-chan, acho.
– Graças a Deus pelos japoneses, não? – Smith comentou. – Sem eles, não teríamos nomes para todas essas coisas. Era disso que Greasy Johnson gostava. Meninas-gatas.
– Está falando sobre garotas vestidas de gatos – sugeriu Stephanopoulos.
– Escute, eu não sabia sobre essas coisas, e fiz questão de nunca saber, mas fantasia de gato? Não, não foi isso que ouvi. Pelo que escutei, eram criaturas de natureza
esquisita.
– Ele ainda estava por aqui? – Stephanopoulos indagou.
– Quem? – Smith parecia confuso.
– O Mago. Ele ainda estava aqui quando você sentiu saudades e voltou para casa?
– Não. Fiz questão de perguntar por aí, se ele ainda estivesse por aqui, eu teria ido para Manchester.
– Manchester – repeti. – Sério?
– Blackpool, se Manchester não fosse suficientemente longe.
– E ele não estava mais aqui?
– Não.
Stephanopoulos voltou a perguntar.
– Então, quem matou Jerry Johnson?
– Não sei. – A perna de Smith voltou a tremer.
– Foi o Mago? – ela insistiu.
– Não sei.
– Foi o maldito Mago?
A cabeça de Smith sofreu dois pequenos espasmos, para um lado e para o outro.
– Não sabe o que está perguntando – disse ele.
– Podemos proteger você – ela ofereceu.
– O que acha que sabe sobre esse assunto? – Smith disparou. – Não sabe nada.
– Mostre a ele, oficial – Stephanopoulos ordenou.
Abri a mão e conjurei uma bola de luz. Carreguei no vermelho e adicionei um pouco de brilho e movimento para torná-la mais impressionante.
Smith olhou para a luz com uma gratificante expressão de surpresa estupefata.
– Sabemos do que estamos falando – eu disse. Havia praticado essa variação como um número de demonstração de baixa energia na esperança de ser menos prejudicial,
com menor capacidade para explodir aparelhos eletrônicos à minha volta. Mesmo assim, olhei preocupado para o gravador e o desliguei rapidamente, só por precaução.
Smith me encarava.
– O que é isso? – ele se inquietou. – Agora temos policiais mágicos? Desde quando?
– Desde Bow Street – respondi.
– Ah, sim. E onde estavam quando Larry, a Cotovia, teve a cabeça cortada?
Era uma boa pergunta, e eu pretendia repeti-la para Nightingale assim que tivesse tempo.
– Eram os anos 1970 – respondi. – Agora é outra história.
– Ou você pode voltar para Marbella – Stephanopoulos acrescentou esperançosa.
– Ou Manchester – sugeri.
– Ou Blackpool – disse ela.
– Burlesco entre as luzes – falei.
– Tem outro cara – Smith falou de repente. – Outro maldito mago, não sei de onde ele saiu. Um minuto não estava lá, no outro estava.
– Quando ele apareceu? – perguntei.
– No verão. Algumas semanas depois do incêndio em Covent Garden.
– Você o viu?
Smith balançou a cabeça.
– Não vi nada. E ninguém disse nada.
– Então, como soube que ele estava lá? – Stephanopoulos indagou.
– Vocês, policiais modernos, pensam que controlam tudo – Smith comentou. – Isto aqui é o Soho, essa é minha casa, meu chão. Sou como um tigre. Sei quando alguma
coisa está diferente no meu território. Droga, sei quando alguém abriu um novo serviço de entrega de comida chinesa. Quando alguma coisa tão diabólica se esgueira
de volta... Eu senti. – Ele nos olhou com piedade. – Um policial à moda antiga também teria sentido, até um paspalho como Johnson teria percebido alguma coisa.
– Teria saído procurando uma rolha para tapar o buraco – Stephanopoulos deduziu.
Smith deu de ombros.
– Para que mais elas servem?
– Então, por que não evitou tudo isso? – eu quis saber.
– Hoje em dia não me meto mais em nada que não seja da minha conta, e minha clientela agora é outra. Sou kosher. Então, por que me preocupar? Além do mais, tudo
que tenho está investido no meu negócio.
– O que mudou, então? – perguntei.
– Acho que você. Naquela primeira vez, você mal havia saído quando ele entrou todo animado e se sentou na mesma cadeira.
– Quem entrou? – Stephanopoulos tentou esclarecer.
– Esse é o ponto – Smith respondeu. – Não sei. Lembro a voz, lembro o que ele disse, mas não consigo me lembrar do rosto.
– Como é possível não lembrar o rosto?
– Nunca esqueceu onde deixou as chaves? É assim, eu sei que ele esteve lá, sei que se sentou na minha frente, mas não consigo lembrar como ele era.
– Como sabe que ele era esse novo mago, então? – Stephanopoulos perguntou novamente.
– Você é surda? – Smith se impacientou. – Acha que sou demente, que tenho a doença da vaca louca? Não lembro o rosto do homem... Acha que isso é um fenômeno natural?
Stephanopoulos olhou para mim, mas só pude dar de ombros. Magicamente falando, isso estava bem acima do conteúdo do meu nível. Eu também começava a sentir um frio
no estômago quando pensava em como meus dois casos estavam se fundindo.
– O que o Sr. Esquecível queria? – arrisquei.
– Ele procurava a mesma mulher que você.
– Peggy? – estranhei.
Smith assentiu.
– O que eu sabia sobre ela, o que sabia sobre você, se eu não era uma das pessoas na casa na apresentação de Larry, a Cotovia... Foi assim que ele chamou, apresentação.
Stephanopoulos ficou tensa. Ela queria saber quem era Peggy, mas a segunda regra crucial de uma entrevista como aquela era que policiais precisam parecer unidos
o tempo todo. Não se deve interrogar o parceiro, superior ou subordinado na frente de um suspeito. Tecnicamente, isso é um desrespeito à regra número um: nunca dar
informações. Mas somos a polícia, gostamos de simplificar as coisas.
– Tem certeza de que não era o antigo Mago? – Stephanopoulos perguntou.
– O que posso dizer? – Smith respondeu. – Ele era jovem e elegante... e isso é tudo que sei.
– Onde ficava o clube do velho Mago? – indaguei.
– Você não vai querer saber.
– Sim, Smithy. Na verdade, eu quero muito saber.
A menos que tenha ficado maluco, você não chega em um lugar chutando a porta. Principalmente porque não é tão fácil abrir uma porta com um chute. Na última vez que
tentei, quebrei um dedo do pé. Edifícios comerciais são ainda mais difíceis de invadir que uma casa residencial, então, antes de mais nada, nós nos certificamos
de que havia uma equipe especializada em arrombamento disponível para o serviço, e combinamos tudo para aquela tarde. Isso nos deixava tempo suficiente para ir pedir
um mandado de busca de acordo com a Seção Oito do Ato de 1984 sobre Evidência Criminal e Polícia, utilizando destaques cuidadosamente selecionados na entrevista
com Alexander Smith. Estou falando em “nós”, mas uma das vantagens de trabalhar com uma equipe completa do pessoal da Homicídios é que Stephanopoulos tinha muitos
subordinados para cuidar da burocracia e da papelada. Enquanto isso, ela e eu fomos ao Burlington Arms para uma bebida forte. Decidimos que merecíamos.
Nos velhos tempos de indiferença, um bar apropriado para policiais teria piso de linóleo, revestimento de madeira manchado de nicotina e móveis de latão que eram
verdadeiras antiguidades, mas só porque ninguém se dava o trabalho de trocá-los. Mas os tempos mudaram, porque agora era possível comer uma linguiça Cumberland em
molho de cebolas e uma porção de batatas fritas no salão do andar superior, tudo acompanhado por uma boa cidra Jack Scrumpy depois de uma manhã inteira de interrogatório.
Stephanopoulos pediu a sopa de alho-poró, salada de rúcula e um uísque puro. Notei uma máquina de karaokê em um canto, e perguntei se era muito usada.
– Devia vir para uma noite de competição – falou Stephanopoulos. – Clubes e Vícios contra Artes e Antiguidades sempre é um confronto muito animado. Tiveram que eliminar
da lista “I Will Survive” depois de uma briga. Mas me conte sobre sua investigação.
E eu contei a ela sobre os músicos de jazz mortos, e sobre meu esforço para encontrar a pessoa que parecia se alimentar deles.
– Vampiros do jazz – resumiu Stephanopoulos.
– Preferia não ter começado a chamá-los dessa maneira – confessei.
– O que acha que o mago quer com eles?
– Não sei – eu disse. – Para estudar a escravidão, temos que saber mais.
A conversa foi interrompida por um detetive de expressão carrancuda que se aproximou de nós com o mandado de segurança. Ele entregou o documento a sua superiora.
Stephanopoulos teve o cuidado de esperar ele sair, e só então me perguntou como eu achava que deveria ser a abordagem.
A menos que seja para bater na porta e pedir licença, só existem duas maneiras de pôr em prática um mandado de busca. A primeira e a tradicional aproximação silenciosa,
seguida pelo arrombamento violento da porta e os gritos de “polícia” e “saiam da frente”, com um ou outro chute em quem não deitar no chão com o rosto para baixo
assim que receber a ordem. A segunda variação também não tem um nome formal, mas envolve policiais à paisana batendo na porta e entrando como um bando de vendedores
insistentes. Sugeri a segunda alternativa, considerando que não sabíamos em que tipo de ambiente íamos entrar.
– Mantenha algumas pessoas de prontidão – eu disse. – Só por precaução.
– É fácil falar. Não é você que vai estourar o orçamento de horas extras. – Stephanopoulos terminou seu uísque. – Quem vai primeiro?
– Eu vou.
– De jeito nenhum.
Decidimos que nós dois iríamos na frente.
Nos anos 1950 e 1960 os terrenos e imóveis no Soho eram baratos. Afinal, quem ia querer viver no meio da enfumaçada Londres? A classe média se mudava para os subúrbios
arborizados, e a classe trabalhadora era despachada para cidades novas construídas em Essex e Hertfordshire. Eram chamadas de Cidades Novas, mas só porque o termo
“bantustão” ainda não havia sido inventado. As casas do período da Regência, que ainda compunham a maior parte das construções sobreviventes e eram usadas para guardar
gado, foram reformadas, divididas em apartamentos e lojas; porões foram expandidos para abrigar boates e bares. Com o preço das propriedades começando a subir, incorporadores
compraram áreas bombardeadas e prédios em ruínas e erigiram blocos de concreto sem forma que fizeram dos anos 1970 o radiante farol do esplendor arquitetônico que
é a região. Infelizmente para os proponentes do futurismo, o Soho não seria suplantado com tanta facilidade. Um emaranhado de direito de posse, boa e velha teimosia
e corrupção declarada manteve o desenvolvimento longe dali até a estranha urgência de transformar o centro histórico de cidades britânicas em gigantescos banheiros
ao ar livre perder força. Mesmo assim, os incorporadores são astutos, e um estratagema, se você pagar o preço da jogada, é deixar uma propriedade vazia até ela cair
em ruínas e, por isso, ter que ser demolida.
Era essa a aparência que tinha o local que procurávamos. Espremido entre um minimercado e uma sex shop em Brewer Street, o edifício era bem mal conservado, em comparação
aos prédios vizinhos. Janelas sujas, paredes escurecidas e pintura descascada no batente da porta. Como parte do processo de obtenção de um mandado de busca, um
dos subordinados de Stephanopoulos havia feito uma pesquisa de propriedade e descobrira uma típica empresa testa de ferro envolvida no ramo imobiliário. A descoberta
nos fez pedir um mandado para o prédio inteiro.
Ficamos sentados no interior do Astra prateado e observamos o lugar por uma hora antes de entrarmos, só por precaução. Ninguém entrou ou saiu do prédio, então, depois
de se certificar de que todas as equipes estavam posicionadas, Stephanopoulos deu a ordem para o início da operação.
Saímos todos dos carros e percorremos a distância de cem metros que nos separava da porta lateral, onde uma das equipes de arrombamento já estava posicionada e um
técnico manejou vinte quilos de CQB com agilidade decorrente da prática. Outro policial entrou na frente com um escudo plástico, enquanto um terceiro ia atrás dele
com a arma em punho. A arma era para o caso de o proprietário do prédio ter um cachorro, mas não gostamos de falar nisso porque as pessoas ficam perturbadas.
Stephanopoulos e eu fomos atrás deles, o que conta como ir na frente, se você não é da equipe de arrombamento, caso você esteja pensando nisso, e também estávamos
preparados com nossos coletes à prova de balas e cassetetes prolongáveis na cintura. Além da porta havia um corredor sem janelas com uma porta interna fechada à
esquerda e uma escada dupla que descia à direita. Quando encontrei um interruptor de luz, fomos recompensados por uma luminosidade pálida proveniente de uma lâmpada
de quarenta watts sem proteção. Um velho papel de parede dourado e vermelho cobria as paredes, descascando onde encontrava o teto.
Stephanopoulos bateu no ombro de um dos especialistas em invasão e apontou a porta. O poderoso CQB entrou em ação de novo, e a dupla que empunhava escudo e arma
subiu a escada seguida por meia dúzia de elementos da Equipe de Homicídios e do Grupo de Apoio Tático local. O trabalho deles seria vasculhar os andares de cima
enquanto Stephanopoulos e eu descíamos.
Acendi minha lanterna e a direcionei para as profundezas sombrias da escada. O carpete era de nylon, cerdas curtas e duras, típico de cinemas e escolas primárias.
Era vermelho e dourado para combinar com o papel de parede. Tive um forte pressentimento, uma sensação que podia ser vestigia ou só uma sensata relutância em descer
a escada sinistra e escura.
Ouvíamos a equipe trabalhando lá em cima como uma manada de filhotes de elefante em uma loja de material de construção. Stephanopoulos olhou para mim, eu assenti
e começamos a descer a escada. A luz das lanternas que pegamos emprestadas com o pessoal do GAT iluminou uma bilheteria no primeiro andar. Ao lado dela havia uma
alcova com um balcão, e atrás do balcão uma escuridão completa que eu esperava ser só a chapelaria.
Desci com cuidado, tocando a parede para poder sentir onde ela acabava. Não queria surpresas. A escada fazia uma curva em U e continuava descendo para mais escuridão
e uma porta na ponta mais distante do corredor. Nela havia uma placa: Funcionários. Senti cheiro de umidade e carpete podre, o que me tranquilizou. Debrucei-me sobre
o balcão da chapelaria e movi a lanterna pelo interior do espaço em L com araras para roupa e cabides vazios. Pulei o balcão e fui dar uma olhada na saleta. Não
havia casacos nem bolsas esquecidas, mas notei pedaços de papel no chão. Peguei um deles. Era um canhoto de ingresso. Fui até a porta dos funcionários e a abri.
Stephanopoulos estava lá, olhando desconfiada para a escada.
– Alguma coisa? – ela perguntou.
Balancei a cabeça.
Ela estalou os dedos e dois detetives da Equipe de Homicídios desceu a escada levando luvas e embalagens para evidências. Stephanopoulos apontou a porta para funcionários
e, obedientes, eles passaram por mim para fazer uma varredura mais minuciosa na chapelaria. Um dos detetives era uma jovem somali vestindo jaqueta de couro e hijab
de caríssima seda preta. Ela percebeu que eu estava olhando e sorriu.
– Ninja muçulmana – cochichou.
Normalmente a polícia gosta de fazer muito barulho quando entra em um prédio porque, a menos que você esteja lidando com um lunático, é melhor dar aos possíveis
detidos uma chance de pensar no que vão fazer, antes de cometerem uma grande estupidez. Nesse caso estávamos em silêncio – o que não era natural – para eu poder
sentir qualquer vestigia existente no local. Tentei explicar a Stephanopoulos o que era vestigia, mas acho que ela não entendeu, embora tenha concordado prontamente
em me deixar ir na frente.
A primeira coisa que vi foi a base do armário, mogno e metal iluminados pela luz da lanterna, áreas maiores se tornando visíveis à medida que eu descia a escada.
Havia um reflexo duplo da frente e da parte de trás de uma estante de vidro, e percebi que estava olhando para uma máquina de ler a sorte posicionada bem no meio
da entrada da boate propriamente dita. Girei a lanterna pelo ambiente e vi flashes de um bar, cadeiras empilhadas sobre mesas, retângulos escuros que eram outras
portas.
O vestigia estava lá: um lampejo nítido de luz do sol e fumaça de cigarro, gasolina e colônia cara, assentos novos de couro e os Rolling Stones cantando “I can’t
get no satisfaction”. Dei dois passos rápidos para trás e direcionei a luz da lanterna para o armário.
O manequim na máquina de ler a sorte não era o habitual modelo de cabeça e ombros. Em vez disso, a cabeça repousava diretamente sobre um bastão de vidro transparente
reforçado por tiras de metal. Saindo do pescoço havia duas bexigas de material parecido com couro, desagradavelmente semelhantes a pulmões. A cabeça era coberta
pelo turbante obrigatório, mas não tinha o cavanhaque e o bigode que compunham a imagem padrão. A pele era cerúlea e o conjunto todo parecia perturbadoramente real...
porque, é claro, era real.
– Larry, a Cotovia, suponho – falei.
Stephanopoulos se aproximou de mim.
– Ah, meu Deus – ela disse. E tirou do bolso uma foto que examinou com atenção, tentando fazer a comparação.
– Ele tinha uma aparência melhor quando estava vivo – opinei.
Senti pouco antes de acontecer. A sensação tinha uma semelhança sinistra com aquela que eu experimentava quando Nightingale estava demonstrando uma forma ou um encantamento.
O mesmo magnetismo barulhento em um canto da mente. Mas esse era diferente. Ele girava e estalava como se fosse o mecanismo de um relógio.
E o verdadeiro relógio começou a funcionar quando, com um chiado empoeirado, as bexigas embaixo do pescoço de Larry inflaram e sua boca se abriu para revelar dentes
espantosamente brancos. Vi os músculos de sua garganta se moverem, e então ele falou: – Sejam todos bem-vindos ao jardim das delícias sobrenaturais. Onde o cansado
peregrino pode despir o manto da reserva puritana, desamarrar o espartilho da moralidade burguesa e se empanturrar com tudo que a vida tem a oferecer.
A boca permaneceu aberta, enquanto o mecanismo oculto estalava e girava para encher as bexigas de ar mais uma vez.
– Por favor, pelo amor de Deus, me mate – disse Larry. – Por favor, me mate.
10
Funland
Stephanopoulos pôs a mão sobre meu ombro e me puxou de volta para a base da escada.
– Chame seu chefe – disse ela.
As bexigas de Larry inchavam pela terceira vez, mas não chegamos a saber se ele suplicaria novamente pela morte ou anunciaria os deliciosos lanches disponíveis no
bar. Assim que nos afastamos mais de um metro, a boca se fechou e as bexigas murcharam com um desagradável apito.
– Peter – insistiu Stephanopoulos. – Chame seu chefe.
Tentei usar o rádio Airwave – que, surpreendentemente, tinha sinal – e chamei a Folly. Nightingale atendeu, e eu descrevi o que via.
– Estou a caminho – ele respondeu. – Não vá mais adiante. Não deixe nada sair.
Disse a ele que havia entendido, e desligamos.
– Está tudo bem aí? – perguntou uma voz do alto da escada. Era a oficial de lenço, a Ninja Somali.
– Vou resolver as coisas lá em cima – Stephanopoulous avisou. – Vai ficar bem aqui?
– Sim – respondi. – Ficarei tão feliz quanto Larry.
– Bom garoto – ela disse. E deu um tapinha no meu ombro antes de subir.
– Veja se consegue mandar um pouco de luz para cá – pedi.
– Assim que eu puder – ela concordou.
Mantive a lanterna acesa e a inclinei um pouco para baixo, criando um confortável círculo de luz que se abria até o gabinete de Larry. O rosto de Larry, graças a
Deus, estava no campo de sombra. Havia um reflexo mais claro na escuridão além dele. Direcionei a lanterna para lá e vi uma fileira de garrafas no fundo do bar.
Pensei ter ouvido uma respiração, mas quando apontei a lanterna para Larry, ele e as bexigas estavam imóveis.
Nightingale havia dito para eu não deixar nada sair. Eu preferia que ele não tivesse feito esse comentário, ou, pelo menos, que me houvesse contado o que pensava
que poderia haver ali.
Por quanto tempo a magia poderia preservar carne morta? Ou a cabeça de Larry havia sido embalsamada como um troféu de caça? Havia um cérebro lá dentro? E se havia,
como ele era alimentado com os necessários nutrientes? O Dr. Walid uma vez havia colhido amostras de células e sangue de Nightingale, mas elas se comportavam em
cultura exatamente como as células de um homem de 40 anos. Quando perguntei se ele havia feito esses testes com algum dos deuses do rio, ele riu e disse que eu podia
tentar colher as amostras, se quisesse. Nenhum de nós jamais considerou a ideia de pedir para Molly doar material. A teoria do Dr. Walid era que, qualquer que fosse
o funcionamento, funcionava no nível do corpo todo. Então, quando as células eram removidas do corpo, não retinham a qualidade que as mantinham jovens.
– Ou que reduz erros de multiplicação – o Dr. Walid havia continuado. – Ou entropia reversa, também pode ser. É frustrante.
Ash estava quase morto quando mergulhara no Tâmisa, e eu já havia sido informado por fonte confiável que ele andava por Chelsea e fazia sucesso entre os habitantes
da classe média rural. Alguma coisa reparara o dano extensivo causado aos tecidos de seu peito, e se era possível com ele, por que não com o rosto de Lesley? Talvez
ela estivesse certa. O que a magia fazia, a magia podia desfazer.
Ouvi um barulho na escuridão atrás do gabinete de Larry – um som abafado que era regular demais para ser de ratos correndo. Virei a lanterna naquela direção, mas
tudo que vi foram as sombras entre os pés da mesa. Os olhos de Larry brilhavam fixos em mim. Não pareciam ser de vidro.
Ouvi o ruído de novo.
Usei o rádio para perguntar a Stephanopoulos se ela sabia alguma coisa sobre Nightingale, ou se conseguira as luzes portáteis. Como o sistema é digital, a transmissão
não tem a estática desagradável de um walkie-talkie analógico. Em vez disso, a pessoa com quem se fala responde em intervalos aleatórios. Acho que Stephanopoulos
respondeu que “alguma coisa” ia demorar dez minutos, e que eu devia permanecer onde estava.
O barulho de novo. Era como se alguma coisa se arrastasse, arranhasse uma superfície.
Tirei as pilhas do rádio, desliguei o celular e conjurei uma bela e radiante bola de luz que fiz flutuar pelo salão e ir além do gabinete de Larry. Quando você domina
a forma Impello, aprende a guiar qualquer coisa que queira mover, mas é complicado. Quase como operar um avião de controle remoto com os dedos dos pés. Quando a
luz fez a curva contornando o armário, notei que os olhos de Larry se moviam para acompanhá-la. Tentei trazê-la de volta descrevendo um círculo para ter certeza
do movimento, mas só consegui reduzir a velocidade da esfera e fazê-la tremer. Tive que fechar os olhos e me concentrar para recuperar a estabilidade da bola de
luz. E quando os abri, vi realmente o salão pela primeira vez.
Mais do onipresente papel de parede dourado e vermelho, e também pesadas cortinas de veludo vermelho emoldurando arcadas mais afastadas. Portas de pinho manchado
e quase sem brilho com placas de metal identificando Masculino e Feminino à direita. O bar tinha um espelho na parede do fundo, o que significava que eu podia ver
pelo reflexo que nada se escondia atrás do balcão.
Meu pai havia tocado em boates parecidas com essa. Eu havia frequentado boates como essa – o que me fez perceber que era muito suspeito as cortinas não terem apodrecido,
apesar do cheiro de umidade. Então eu vi, pendurada em um soquete de luz, a forma familiar de uma lâmpada fria compacta que, definitivamente, não era vendida na
década de 1970. Alguém havia estado ali recentemente, e com a frequência suficiente para decidir que valia a pena investir em lâmpadas novas.
Dessa vez, quando ouvi o ruído, também notei movimento do outro lado do salão, onde cortinas mantinham meio escondidas as arcadas que eram a passagem para outro
ambiente da boate. As cortinas balançavam. Consegui direcionar minha bola de luz mágica para onde eu queria e vi duas pernas humanas, provavelmente femininas, aparecendo
abaixo da bainha das cortinas. E um dos pés ainda calçava um sapato vermelho de bico fino e salto agulha. Quando minha luz mágica se aproximou, as pernas começaram
a chutar, um movimento mecânico e espasmódico que me lembrava experimentos biológicos com sapos. Não havia sons humanos, só o barulho dos saltos batendo no carpete.
As cortinas escondiam tudo que havia acima das coxas – presumindo que havia alguma coisa.
Era possível que um ser humano estivesse com dificuldades, e era meu dever ir verificar, mas eu não conseguia obrigar meus pés a se moverem. As pernas começaram
a chutar com mais violência, e percebi que minha luz mágica tremulava e adquiria um brilho mais avermelhado. A essa altura eu tinha alguma prática com luzes mágicas
e, normalmente, elas nunca mudavam de cor sem que eu mudasse a forma. Havia visto aquilo antes, quando eu “alimentara” o fantasma do Capitão de Veil, e meu palpite
era que, à medida que a magia se esgotava, a luz de ondas curtas e maior energia era a primeira a se apagar. Porém, explicar o fenômeno dessa maneira não expressa
quanto o efeito era sinistro na vida real.
As pernas chutavam mais depressa, o pé de sapato se soltou e desapareceu nas sombras. A luz enfraqueceu ainda mais, e eu não conseguia dar um passo à frente.
– Apague, Peter – disse Nightingale atrás de mim. Apaguei a luz mágica, e as pernas pararam imediatamente de se mover. Ele havia chegado com um grupo de peritos
de aparência muito séria em trajes de Pateta, todos com seus estojos contendo os kits de coleta. Atrás deles, dois policiais da Equipe de Homicídios, inclusive a
Ninja Somali, arrastavam holofotes portáteis pela escada. O próprio Nightingale vestia um traje de Pateta que, apesar de ser a roupa mais moderna que eu já o vira
usar, ainda o deixava parecido com o protagonista de um clássico de ficção científica da década de 1950. Ele carregava uma de suas bengalas de cabo de prata na mão
direita e um rolo de corda de nylon pendurado no ombro.
– Não alimente os animais – Nightingale falou.
– Acha que pode haver alguma coisa viva aqui? – perguntei.
– Vamos ter que descobrir – ele respondeu.
Enquanto o pessoal da perícia ajudava a instalar os holofotes, Nightingale se equipou com arreios de alpinista, prendeu ao corpo uma ponta da corda e me entregou
o rolo. Ele me chamou para mais perto e falou baixo, evitando que os outros escutassem.
– É possível que haja alçapões. Se a corda ficar frouxa, você vai ter que usá-la para me puxar para fora. Mas em nenhuma circunstância deve ir atrás de mim. Qualquer
coisa forte demais para mim será fatal para você. Entendeu?
– Perfeitamente.
– Também existe uma pequena chance de alguma coisa, além de mim, tentar escapar passando por aqui. Pode ser uma coisa parecida comigo, pode até estar usando meu
corpo, mas conto com você para perceber a diferença.
– E se isso acontecer?
– Acredito que vai conseguir conter essa coisa pelo tempo necessário até os outros... – ele inclinou a cabeça na direção do grupo de peritos e oficiais – escaparem.
Ataque-o com tudo que tiver, mas sua melhor alternativa, provavelmente, vai ser tentar derrubar o teto em cima dele.
– Em cima de você, quer dizer.
– Não serei eu – argumentou Nightingale. – Não precisa se preocupar com a chance de ferir meus sentimentos.
– Reconfortante – respondi. – Imaginando que eu sobreviva à minha heroica ação de retaguarda, o que devo fazer depois disso?
Nightingale olhou para mim com um sorriso encantado.
– Lembra-se do covil do vampiro em Purley?
Onde havíamos arremessado granadas de fósforo branco no interior do porão onde os vampiros viviam, ou não viviam, ou sei lá o que faziam.
– Como eu poderia esquecer?
– Um procedimento semelhante àquele – Nightingale revelou. – Porém, em maior escala.
– E depois?
– Aí já não será problema meu – ele resumiu com animação. – Você vai ter que ir procurar Postmartin o mais rápido possível.
– Tem certeza de que está bem o bastante para isso? Se tiver uma recaída, o Dr. Walid vai me matar.
Os holofotes portáteis foram acesos, e uma intensa luz branca invadiu o salão. O rosto de Larry, a Cotovia, ficou branco como osso, e as meias vermelhas na perna
da mulher ganharam a cor do sangue. Nightingale respirou fundo.
Olhei para as pessoas que esperavam ao lado dos holofotes.
– Senhoras e senhores, sugiro que desliguem laptops, iPads, iPhones, rádios Airwave, enfim, tudo que tiver um microprocessador. Desliguem os aparelhos e removam
as baterias e pilhas.
Os técnicos da equipe de perícia me olharam confusos. Um deles perguntou por quê. Era uma boa pergunta, e eu realmente não tinha tempo para responder.
– Acreditamos que pode haver uma bomba eletromagnética experimental em algum lugar por aqui – improvisei. – É melhor prevenir...
Eles não acreditavam muito nisso, mas deviam ter escutado boatos estranhos sobre Nightingale, o suficiente para fazê-los seguir minha orientação.
– O que é uma bomba eletromagnética? – Nightingale me perguntou.
– É complicado, senhor – respondi.
– Você me explica depois, então. Todos prontos?
Todos estavam. Ou, pelo menos, disseram que estavam.
– Lembre – disse Nightingale –, não vai conseguir me puxar de volta em segurança se você se deixar capturar pela coisa que me pegar. – Ele se virou, ajeitou a bengala
na mão direita e deu um passo à frente. Fui soltando a corda enquanto ele contornava o gabinete de Larry passando bem longe dele a caminho da arcada protegida pela
cortina.
A Ninja Somali se aproximou de mim.
– O que está acontecendo? – ela perguntou.
– Quer ajudar? – eu disse.
– Sim.
– Pode fazer as anotações.
A jovem fez uma careta.
– Estou falando sério – insisti.
– Ah... – Ela pegou seu bloco de anotações e a caneta.
Pela abertura entre as cortinas, vi Nightingale parar e se ajoelhar ao lado das pernas femininas.
– Tenho aqui um cadáver de mulher – ele disse, e a Ninja Somali começou a escrever. – Nua, vinte e poucos anos, caucasiana, sem ferimentos ou rigor visíveis. O que
parece ser um grampo de prata foi enfiado em sua têmpora, a pele parece ter cicatrizado em torno da ferida, o que me faz pensar que, ou isto é um objeto de decoração,
ou um possível aparato taumatológico.
A Ninja Somali parou de escrever e olhou para mim.
– Ponha mágico – eu a orientei. – Aparato mágico.
Nightingale levantou-se e seguiu em frente. A julgar pela corda que ia passando por minhas mãos, ele percorreu cerca de três metros antes de parar.
– Esta área foi bastante modificada recentemente – ele relatou com voz surpreendentemente nítida. – Jaulas de metal foram encaixadas nos espaços que, imagino, eram
alcovas de estar. Quatro à minha esquerda e quatro à direita. A primeira gaiola à esquerda está vazia, a segunda contém o cadáver de um... macaco, ou de um homem
adulto. A terceira gaiola tem o que parecem ser os restos de um felino de grande porte e pelo negro, uma pantera ou um leopardo, acho. A última gaiola à esquerda
está vazia. Agora vou examinar as do lado direito.
Dei um passo para a esquerda, tentando manter a corda em linha reta enquanto Nightingale ia para a direita.
– A primeira gaiola à direita contém o cadáver de uma mulher caucasiana com alguma medida de hibridização ou modificação cirúrgica. O corpo está vestido com malha
com estampa de tigre, e o macacão foi modificado para acomodar uma cauda. Não sei dizer se é prótese ou natural.
Mulher-Gato, pensei enjoado. De verdade.
– A segunda e a terceira gaiola estão vazias – anunciou Nightingale. – Graças a Deus.
Ele se moveu novamente, e mais dois metros de corda passaram entre minhas mãos.
– Encontrei um alçapão. – Dessa vez Nightingale teve que elevar o tom de voz para se fazer ouvir. – Parece uma armadilha improvisada para demônios.
Olhei para a Ninja Somali, que hesitou antes de escrever “para demônios”.
– É de um tipo alemão – gritou Nightingale. – Mas, considerando os componentes, foi fabricada há pouco tempo. Vou tentar desarmá-la, então, Peter, fique alerta,
caso eu precise de você.
Gritei que estava pronto.
O vestigia que se manifestou antes da explosão foi exatamente como a sensação de estar chegando ao topo de uma grande subida em uma montanha-russa, o momento de
terror e excitação antes do mergulho. Depois uma confusão de sensações, a sensação do veludo em meu rosto, o cheiro de formol e uma repentina e ofegante onda de
desejo sexual.
Então a onda da explosão nos atingiu, uma muralha de pressão em movimento, algo parecido com levar um tapa na orelha pelas costas. A energia empurrou todos nós para
trás. Ouvi a Ninja Somali dizer alguma coisa breve e cóptica, e mais alguém atrás de mim querendo saber que diabo era aquilo.
– Armadilha para demônio – respondi, tentando soar experiente. Ao mesmo tempo, todos os holofotes explodiram. Mergulhado na escuridão repentina, o gabinete de Larry,
a Cotovia, se acendeu com um brilho alegre de pequeninas lâmpadas coloridas, as bexigas se encheram de ar e ele abriu a boca para gritar: – Finalmente!
Com um som que sugeria asfixia, as bexigas de ar se esvaziaram pela última vez. O silêncio voltou, e um pedaço do maxilar de Larry caiu de seu rosto e bateu na base
do armário.
Tateei na escuridão procurando minha lanterna, eu a acendi e apontei rapidamente para o salão. Outros raios de luz cortaram a escuridão. Todos ali estavam tão aflitos
quanto eu para se certificar de que o que vinha em nossa direção era alguém conhecido.
A corda estava frouxa em minhas mãos.
– Inspetor – chamei. – Tudo bem?
De repente a corda ficou tensa e tive que resistir para não ser puxado por ela.
– Estou bem – respondeu Nightingale. – Obrigado por perguntar.
Fui enrolando a corda enquanto ele retornava. Seu rosto era pálido à luz da lanterna. Perguntei novamente se ele estava bem, mas Nightingale apenas me olhou com
uma careta estranha, como se lembrasse uma dor intensa. Depois ele soltou a ponta da corda de seu corpo e foi falar com o chefe da equipe de peritos. Não sei o que
ele falou, mas o perito não ficou satisfeito. Quando Nightingale terminou, o homem chamou dois de seus técnicos de aparência mais jovem e disse a eles alguma coisa
em voz baixa.
Um dos técnicos, um rapaz com óculos à moda Trotsky e franja emo, protestou, mas o chefe o silenciou e mandou subir com o colega.
Nightingale aproximou-se e pediu à Ninja Somali para subir e avisar Stephanopoulos que o prédio estava seguro, mas que não havíamos encontrado suspeitos.
– Uma armadilha para demônio? – perguntei.
– Isso é só um apelido – ele disse. – É um alçapão; acho que poderíamos chamar de mina terrestre mágica. Não via uma daquelas desde 1946.
– Eu não devia saber sobre essas coisas? – indaguei.
– A lista de coisas sobre as quais você precisa saber, Peter, é extraordinariamente longa. E não tenho dúvida de que, com o tempo, vai tomar conhecimento de todas
elas. Mas é inútil aprender sobre armadilhas para demônios se você ainda não estudou encantamento básico. – Ele levantou a bengala para mostrar que a ponta prateada
estava escura e derretida em alguns pontos.
Encantamento, eu sabia pelas leituras que fazia, era o processo pelo qual objetos inanimados são imbuídos de qualidades mágicas.
Nightingale examinou a bengala com pesar.
– É possível que eu demonstre como isso é feito nos próximos meses – disse. – E se assim for, vamos ter que providenciar um cajado de treinamento.
– A armadilha para demônios – insisti. – Reconheceu a assinatura?
– A Signare? Não a individual, mas acho que sei quem treinou o pequeno e cruel filho da mãe.
– Geoffrey Wheatcroft? – arrisquei.
– Ele mesmo.
– Ele pode ter sido o mago original?
– Isso nós vamos ter que investigar – Nightingale respondeu.
– Ele teria que se deslocar de Oxford para cá e de volta para lá – lembrei. – E se era assim que acontecia, ele deve ter um assistente.
– Um de seus alunos?
– Que pode ter se desenvolvido e ser nosso novo mago.
– Isso tudo é especulação. Precisamos encontrar o assistente.
– Devemos começar entrevistando todas as pessoas que tiveram contato com Geoffrey Wheatcroft ou Jason Dunlop.
Houve um aplauso irônico quando um dos holofotes portáteis foi restaurado.
– Sua lista de suspeitos é ambiciosa – comentou Nightingale.
– Então, vamos começar com aqueles que conheciam os dois. Podemos agir sob o pretexto de estarmos investigando a morte de Jason Dunlop.
– Primeiro, quero que vá garantir a segurança do escritório de Smith.
– Não precisa de mim aqui? – estranhei.
– Prefiro que não veja o que tem lá dentro – Nightingale respondeu.
Por um momento, pensei ter ouvido mal.
– O que tem lá dentro? – repeti.
– Coisas bestiais. O Dr. Walid está enviando pessoas que já lidaram com esse tipo de situação antes.
– Que tipo de situação? Que tipo de pessoas?
– Peritos patologistas – respondeu ele. – Pessoas que trabalharam na Bósnia, em Ruanda... esse tipo de situação.
– Estamos falando de sepulturas coletivas?
– Entre outras coisas.
– Não acha que eu devia...
– Não – Nightingale me interrompeu. – Não vai ganhar nada vendo aquelas coisas. Confie em mim, Peter, como mestre para aprendiz, como o homem que jurou proteger
e cuidar de você. Não quero que vá lá.
– Posso ir ver se Tony Sem Pescoço sabe de alguma coisa – sugeri.
Nightingale parecia aliviado.
– Ótima ideia.
Stephanopoulos me emprestou a Ninja Somali, cujo nome era Sahra Guleed e que era de Gospel Oak, que fica bem perto da rua onde cresci, mas estudou em outra escola.
Quando dois oficiais étnicos se encontram pela primeira vez, a primeira pergunta pode ser sobre qualquer coisa, mas a segunda sempre é “por que entrou para a polícia?”.
– Está brincando? – respondeu Guleed. – Para punir as pessoas legalmente.
A resposta quase sempre é uma mentira. Eu conhecia uma idealista quando a via. Apesar da garoa, o movimento de sábado à noite era intenso na Old Compton Street,
e tivemos que desviar de vários bêbados. Vi meu antigo parceiro, o policial Purdy, levando um homem de meia-idade e ar atordoado para o banco traseiro de uma viatura.
O homem vestia um tutu cor-de-rosa, e eu tinha certeza de que o conhecia de algum lugar. Purdy me viu e acenou animado quando se acomodou ao volante do carro. Durante
as duas horas seguintes ele estaria fora da chuva.
Como, com um pouco de persuasão, Alexander Smith havia permitido anteriormente que fizéssemos uma revista em seu escritório, eu tinha as chaves. Mas quando chegamos
à porta na Greek Street, ela estava apenas encostada. Olhei para Guleed, que empunhou seu cassetete e fez um gesto indicando que eu devia ir na frente.
– Primeiro as damas – falei.
– A idade é mais importante que a beleza – ela respondeu.
– Pensei que gostasse de punir pessoas.
– Esse caso é seu – ela lembrou.
Peguei meu cassetete e subi a escada na frente de Guleed. Ela esperou, depois começou a subir alguns metros atrás de mim. Quando só há duas pessoas, é sempre sensato
manter um intervalo considerável. Assim, se alguma coisa acontecer com o policial da frente, o que vai atrás tem tempo para reagir de maneira calma e racional. Ou,
mais provavelmente, correr e pedir ajuda. Quando cheguei ao primeiro andar, encontrei a porta do escritório de Smith aberta. O compensado barato em volta da fechadura
estava lascado. Esperei até Guleed se aproximar, e só então empurrei a porta lentamente usando a mão esquerda.
O escritório havia sido revirado. Todas as gavetas foram tiradas de seus lugares, todas as caixas de pastas foram esvaziadas. Os pôsteres emoldurados haviam sido
arrancados das paredes e tiveram o fundo da moldura rasgado. O resultado era caótico, mas era possível ver no caos os indícios de uma busca sistemática e minuciosa.
No Soho era possível fazer muito barulho antes de alguém chamar a polícia, mas eu gostaria de saber onde estava o Sem Pescoço enquanto o escritório era revirado.
Descobri quando pisei na perna dele. Pisar em cima de um pobre coitado deve ser a pior maneira de encontrar um corpo. Eu recuei.
Sem Pescoço havia sido meio soterrado por uma pilha de papéis e revistas requintadas. Eu só conseguia ver a perna sobre a qual pisara, e o suficiente do rosto para
fazer a identificação.
– Céus – Guleed murmurou ao ver o corpo. – Está morto?
Com cuidado para não interferir na cena do crime, abaixei-me e procurei a pulsação onde, em alguém com um formato normal, seria o pescoço. Não encontrei nada. Enquanto
Guleed ligava para Stephanopoulos, pus minhas luvas e verifiquei se havia alguma causa óbvia para a morte. Havia. Dois ferimentos no peito, difíceis de ver por causa
da camiseta preta: estavam logo depois do Z e do primeiro P de Zeppelin. Podiam ser ferimentos à bala, tiros à queima-roupa. Mas como essa era a primeira possível
vítima de tiros, que experiência eu tinha?
De acordo com Guleed, a primeira coisa que precisávamos fazer era sair do escritório, parar de contaminar a cena do crime. Como ela era oficial da Equipe de Homicídios,
segui a orientação.
– Temos que ir olhar lá em cima – ela falou. – Para o caso de possíveis suspeitos ainda estarem no edifício.
– Só nós dois?
Guleed mordeu o lábio.
– Tem razão – respondeu. – Vamos ficar onde estamos. Assim impedimos que alguém tente entrar ou sair da cena do crime.
– E se houver uma escada de incêndio no fundo?
– Você tinha que dizer isso, não tinha? – Ela bateu com o cassetete na perna e me olhou contrariada. – Tudo bem, você vai vigiar a escada de incêndio. Eu fico guardando
a cena do crime.
– Vou sozinho? E se não tiver nenhuma escada de incêndio?
– Está bancando o engraçadinho, não é?
– Sim – respondi. – Sim, estou.
O rádio dela apitou. Era Stephanopoulos.
– Sim, chefe – Guleed atendeu.
– Estou na Greek Street – Stephanopoulos anunciou. – É só um corpo?
– Por enquanto – eu disse.
– Por enquanto – Guleed repetiu no rádio.
– Diga a Grant que vou expulsá-lo de Westminster – ameaçou Stephanopoulos. – Não preciso tanto de horas extras. Em que lugar do prédio vocês estão?
– No corredor do primeiro andar.
– Por que um de vocês não foi vigiar a escada de incêndio. Se houver uma escada de incêndio.
Guleed e eu começamos uma daquelas discussões inúteis e silenciosas que acontecem quando se está tentando esclarecer alguma coisa sem alertar alguém do outro lado
da linha telefônica. Eu havia acabado de mover os lábios para dizer com ênfase eu vou, quando ouvimos a porta da frente se abrir.
– Não se incomodem com isso – disse Stephanopoulos. – Já cheguei.
Ela subiu a escada, passou por nós e deu uma olhada em tudo da porta.
– Como era o nome dele? – perguntou.
Tive que admitir que tudo que sabia era seu primeiro nome, Tony, e que ele trabalhava para Alexander Smith como segurança. E que não tinha pescoço. Indicações sutis
em sua atitude me diziam que Stephanopoulos não estava muito impressionada com meu trabalho na polícia.
– Peter, seu idiota – ela disse. – Como deixou de verificar o nome da vítima? Tudo, Peter, você tem que investigar tudo.
Guleed permanecia em silêncio atrás de mim.
– Quero que você, Peter, volte a West End Central e interrogue Smith sobre quem é esse cara e o que ele sabe sobre a vítima – Stephanopoulos ordenou.
– Devo dizer que o homem está morto?
– Francamente... – ela falou com ar cansado. – Quando ele souber sobre isto aqui vai fechar a boca para sempre, e não posso dizer que o critico por isso.
– Sim, chefe.
Guleed perguntou a Stephanopoulos se ela devia ir comigo.
– Por Deus, não! Não quero que seja ainda mais contaminada pelos maus hábitos dele. – E olhou para mim de novo. – Ainda está aqui?
Dizem que em um prédio seguro como uma estação de polícia, depois que passa pelas barreiras de segurança você se movimenta sem ser incomodado simplesmente adotando
um ar determinado e carregando uma prancheta. Não recomendo o teste dessa teoria por duas razões: não há nada em uma estação de polícia que não se possa conseguir
com muito mais facilidade em outro lugar, normalmente subornando um policial. Segundo, o lugar é cheio de policiais que estão sempre desconfiados, uma desconfiança
que beira a paranoia clínica. E isso vale também para um aclamado portador de uniforme e exemplo de desperdício de espaço como o policial John Purdy. Naquela noite,
ele havia dado um passo muito importante para escrever meu nome no Livro de Memórias da polícia. Mais tarde, quando os fatos foram reconstruídos, Purdy, tendo encaminhado
com sucesso seu prisioneiro de tutu para a cela de custódia, estava a caminho da cantina para “preencher a papelada” quando viu uma policial subindo uma escada lateral
a caminho das salas de interrogatório do Departamento de Investigações Criminais. Nas cenas do circuito interno gravadas pela câmera da escada, ele é visto chamando
a policial e, quando ela não responde, subindo a escada atrás dela.
Nesse exato momento, de acordo com o time code da câmera de circuito interno no saguão, este que vos escreve exibia sua credencial e entrava no edifício. Dirijo-me
então, levando meu macchiato Costa Coffee duplo em uma das mãos e um pão doce de canela na outra, a uma escada central e subo a caminho da mesma sala de interrogatório.
Nesse estágio estou um andar abaixo.
As salas de interrogatório antes eram só escritórios comuns mobiliados com mesa, duas cadeiras, um bom isolamento acústico e um lugar para deixar as listas telefônicas
quando você terminasse. Hoje uma moderna sala de interrogatório tem duas câmeras, um gravador, um espelho unilateral e uma suíte de gravação separada, de onde um
dedicado Oficial Investigador Sênior pode monitorar vários interrogatórios ao mesmo tempo ou dar um cochilo. Como em West End Central tudo isso tem que caber no
espaço projetado na década de 1930 como um modesto escritório em plano aberto, o corredor de acesso do lado de fora das salas de interrogatório é um pouco estreito.
A única câmera de circuito interno que cobria o corredor começou a falhar quando eu subia a escada, e o equipamento de gravação das salas de interrogatório estava
desligado. Melhor para mim, porque assim, quando pisei no corredor e dei de cara com a Dama Pálida, meus trinta segundos de indecisão perplexa não ficaram registrados
para a posteridade.
Com exceção do cabelo, que havia sido cortado curto, ela era exatamente como descreviam as testemunhas: rosto pálido, olhos grandes, boca perturbadora. Vestia calça
de moletom cinza e jaqueta cor-de-rosa com capuz, e no início ela não me viu porque estava tentando arrancar o policial John Purdy de sua perna. Ele estava deitado
no chão com o braço esquerdo, quebrado em dois lugares, eu soube posteriormente, inerte ao lado do corpo, enquanto a mão direita agarrava o tornozelo surpreendentemente
delgado da Dama Pálida. Um dos olhos dele começava a inchar e se fechar, e havia sangue escorrendo de seu nariz.
Não sei se foi o choque, se foi porque eu estava com a boca cheia de pão de canela, ou simplesmente porque já havia enfrentado um dia cheio de esquisitices e começava
a ficar atordoado, mas eu simplesmente não conseguia me mover.
Mas Purdy me viu.
– Socorro – ele grasnou.
A Dama Pálida olhou para mim e inclinou a cabeça para o lado.
– Socorro – Purdy repetiu.
Tentei dizer a ele para largá-la e se afastar, mas as palavras saíram abafadas em meio a uma chuva de migalhas de pão de canela.
Sem desviar os olhos de mim, a Dama Pálida levantou uma das mãos e a abaixou em seguida, agarrando o pulso de Purdy. Ouvi o barulho de ossos se quebrando, e Purdy
gemeu e a soltou. Ela sorriu, revelando dentes demais – eu já havia encarado um sorriso como aquele antes. Sabia o que viria em seguida. Ela ficou tensa, eu também,
e de repente a criatura investiu contra mim com uma aterrorizante explosão de velocidade, a cabeça à frente do corpo, a boca aberta, os dentes expostos. Quando ela
se aproximou, joguei o café em seu rosto. Havia acabado de comprá-lo. Estava muito quente.
Ela gritou, e eu me joguei para o lado, saindo de seu caminho. Mas o corredor era estreito, e o ombro dela bateu no meu. O impacto me desequilibrou e jogou no chão.
Foi como ser atropelado por um ciclista veloz. Rolei para escapar de um possível ataque e me levantei depressa, mas a Dama Pálida havia desaparecido. Cada sala de
interrogatório tinha um botão de alarme ao lado da porta, e eu apertei um deles enquanto passava por cima de Purdy e entrava na sala onde mantínhamos Alexander Smith.
Ele estava caído para trás na cadeira, a cabeça pendendo no vazio, a boca aberta e o que parecia um buraco de bala no peito, e em torno dele um chamuscado na camisa
como o que eu vira no Sem Pescoço anteriormente.
Uma policial uniformizada apareceu na porta e, cautelosa, apontou uma taser para mim.
– Quem é você? – ela perguntou.
– Oficial Grant – respondi. – A suspeita é uma mulher, calça cinza de corrida, jaqueta cor-de-rosa com capuz. – Se eu parasse por aí, algum idiota ia ser capado
tentando capturá-la. – Paciente psiquiátrica, muito perigosa, possivelmente armada. Deve estar no prédio.
A policial me olhou aturdida.
– Sim, certo – disse.
– Fez o curso de primeiros socorros? – perguntei.
– No mês passado.
– Ok, me dê a taser e cuide de Purdy – falei.
Ela me entregou a pistola de choque. Era pesada, de plástico, e parecia alguma coisa extraída de Doctor Who. Mesmo chocada, a policial podia perceber que Smith estava
morto, então foi buscar o kit de primeiros socorros para Purdy.
Voltei para perto dele e verifiquei se estava vivo.
– O socorro está a caminho – avisei. – Que diabo estava fazendo aqui?
O rosto de Purdy estava pálido e suado por causa da dor, mas ele sorriu. Ou tentou.
– A cantina é melhor – disse.
Disse a ele para aguentar firme e me dirigi à escada.
O negócio com patrulha é que é algo que você faz nas ruas, não no interior de uma estação de polícia. Durante um dia de trabalho normal, a equipe civil é praticamente
três vezes maior do que a de policiais. O que significa que, quando aparece algum problema na base, todos têm que voltar correndo para ajudar, e isso leva tempo.
A Dama Pálida podia ser feroz, mas eu não acreditava que fosse burra. O que significava que ela sairia pelo caminho mais rápido antes de todos os oficiais voltarem
correndo.
Desde que as campanhas de bombardeamento do IRA começaram nos anos de 1970, as estações de polícia em Londres desenvolveram uma ideia muito clara do que constitui
dentro e fora, e instalaram uma boa quantidade de laminado reforçado de fibra de vidro entre um e outro. West End Central não era exceção. Mas a entrada também tinha
uma escada externa revestida de mármore que, definitivamente, não havia sido construída para atender aos cadeirantes, e por isso há uma segunda porta no nível da
rua e à esquerda da porta principal, aberta posteriormente e localizada de forma bem conveniente na base da escada, de forma que é possível entrar direto no elevador.
Mas os projetistas não eram estúpidos. A porta era muito grossa, e o sistema de segurança permitia que o sargento sentado na recepção pudesse ver a pessoa pela câmera
de circuito interno antes de destravar a porta e permitir a saída. A passagem seria totalmente segura se um jovem detetive não estivesse voltando à estação carregando
várias caixas de comida chinesa e decidisse cortar caminho usando a porta secundária, em vez de passar pelo saguão do prédio.
A Dama Pálida o pegara quando ele estava passando pela porta. Desci a escada a tempo de vê-lo cair em meio a uma chuva de molho agridoce.
– Peça reforço – gritei, pulando por cima dele para sair do prédio.
Chovia muito. Eu a vi virar à direita em Savile Row e correr pelo meio da rua. Uma Mercedes Sl 500 prateada desviou para tentar evitar o atropelamento e bateu na
lateral de um Porsche Carrera que estava estacionado, fazendo disparar vários alarmes de carros parados nas imediações. Continuei correndo atrás dela, tentando diminuir
a distância. Até onde sabia, eu era o único oficial que tinha o suspeito em seu campo de visão. Era noite de sábado no West End, e havia muita gente na rua, apesar
da chuva. Se eu a perdesse de vista, ela desapareceria sem deixar rastro.
Enfiei a taser no bolso da jaqueta e tentei pegar o rádio. Consegui pegá-lo, apertei o botão de chamada várias vezes, mas havia me esquecido de devolver as baterias
ao rádio. A Dama Pálida saía da estrada onde a Savile Row formava uma junção em T com a Vigo Street. Ela foi para a esquerda, para Regent Street e Soho. Quando virei
na mesma esquina, o rádio escapou da minha mão e caiu embaixo de um carro estacionado.
Vigo Street era pouco mais que uma viela cheia de pretensões, uma ruazinha estreita com cafeterias e bares e que ligava Savile Row e Regent Street. Já era suficientemente
tarde para os bares estarem fechando, e a Dama Pálida teve que desviar de alguns pedestres, talvez porque passar por cima deles a retardaria ainda mais. Consegui
tirar o telefone do bolso. Como todo oficial de polícia com menos de 40 anos, eu tinha o número direto da Metropolitana na discagem rápida. Esse número é atendido
diretamente por um operador sem toda aquela perda de tempo de “escolher o ramal ou serviço”.
Quando se está correndo atrás de um suspeito por uma rua estreita e na chuva forte, é quase impossível ouvir alguém falando com você ao telefone, então esperei um
intervalo adequado e, ofegante, identifiquei-me e identifiquei o suspeito que perseguia. É difícil falar e acompanhar um suspeito em fuga, especialmente se ele atravessa
um importante cruzamento de avenidas movimentadas sem esperar pela mudança do semáforo.
A Regent Street era um rio lento de metal molhado, mas cheguei a pensar que ela conseguiria escapar, até o Homem da Van Branca me ajudar e ela ser jogada contra
a frente de uma Ford Transit. A mulher ricocheteou e bateu na traseira de um Citroën com um grito furioso, e continuou correndo e cambaleando na direção da entrada
da Glasshouse Street.
Felizmente para mim, o rio de metal encalhou nas pedras de possíveis acidentes, e o tráfego havia parado quando a segui. Estava agora menos de cinco metros distante
da Dama Pálida, então saquei o taser e tentei lembrar qual era o alcance da arma. Também percebi para onde ela ia – vinte metros adiante pela Glasshouse Street travessas
seguiam para a Brewer Street. Ela estava voltando à boate.
De repente, a mulher acelerou. Sou um homem jovem, estou em boa forma e costumava correr quando estava no colégio. Mas ela simplesmente me deixou para trás como
se eu fosse o garoto gordinho na aula de educação física. Parei na esquina da Brewer com a Glasshouse, apoiei as mãos nos joelhos e tentei recuperar o fôlego. Os
fumantes inveterados na porta do pub Glassblower, na esquina, me aplaudiram com ironia.
Bastardos, pensei. Queria ver vocês correndo atrás dela.
Ouvi uma sirene distante e levantei a cabeça. Ela corria em minha direção. Atrás dela, vi as luzes giratórias de pelo menos duas viaturas. Quando me viu esperando,
a mulher me olhou sem ódio ou medo, mas com uma espécie de desgosto cansado. Como se eu fosse um cheiro desagradável e particularmente persistente. Sentime ofendido,
por isso a acertei no peito com a taser.
A Polícia Metropolitana usa um modelo X-26 fabricado pela empresa com o criativo nome de Taser International Company. Ela utiliza uma carga de nitrogênio comprimido
para disparar duas pinças metálicas contra o suspeito e carregá-las com 50 mil volts. A descarga causa incapacitação neuromuscular, que provoca queda. Por isso fiquei
um pouco desapontado quando a Dama Pálida grunhiu, piscou e arrancou as pinças do peito. Ela me encarou, eu dei um passo involuntário para trás e ela girou sobre
os calcanhares, correndo pela Glasshouse Street e derrubando os fumantes ao passar por eles.
Derrubei a taser e comecei a correr. Apesar do piso molhado e escorregadio, gosto de pensar que ganhei tempo com aquela saída. Se conseguisse me aproximar o suficiente
para bater no tornozelo dela, conseguiria derrubá-la e me jogar em cima dela. E com a ajuda de metade dos passageiros de uma van da TSG, finalmente a imobilizaria.
Ela descia a Glasshouse Street correndo, e só então percebi que estava descalça. Fui atrás dela suando e bufando. Mas, estranhamente, ou ela reduzia a velocidade
ou eu finalmente me aquecera, porque a estava alcançando. Mas para onde ela ia? No extremo oposto da Glasshouse Street ficava Piccadilly Circus, muito trânsito,
vários grupos de turista no meio dos quais podia se perder e uma estação de metrô. O metrô. Havia uma escada para a estação de Piccadilly Circus bem onde a Glasshouse
encontrava a Circus.
Eu estava certo. Quando chegou à feia fachada cor-de-rosa da loja de rosquinhas, a mulher começou a virar para a direita, para a entrada da estação. Aumentei a velocidade,
mas não tinha energia para diminuir muito a distância, não mais que dois metros. Então, de repente, ela virou para a esquerda novamente e começou a descrever uma
curva contornando a grande Boots e indo em direção a Shaftesbury Avenue. Eu não consegui adivinhar o que ela pretendia até ver uma dupla de policiais na frente da
escada da estação. A Dama Pálida devia ter pensado que eles estavam atrás dela.
Ela atravessou a rua no meio do trânsito pesado, bateu na traseira de um carro e correu por cima do capô de um Ford Mondeo antes de passar correndo pelo Rainforest
Café, derrubando turistas por onde passava. Fui contornando os carros ao som de um coro de buzinas, ainda atrás dela, mas não contive um gemido quando a mulher virou
de repente para Trocadero Centre. A única via de acesso era uma escada rolante. Perseguir suspeitos em escadas ou escadas rolantes é um pesadelo, porque há sempre
a possibilidade de ele esperar naquele ponto cego depois do último degrau e chutar você de volta escada abaixo. Mas eu não podia correr o risco de perder a Dama
Pálida, então subi correndo pela escada que descia, presumindo que, se estivesse esperando por mim, ela ficaria do outro lado. Era uma boa teoria, e se ela estivesse
mesmo esperando por mim eu teria ficado muito satisfeito.
O Trocadero era um prédio de cinco andares, filho bastardo de outro construído em estilo barroco em 1896 e usado ao longo dos séculos como tudo, desde sala de concertos
a restaurante e museu de cera. Na metade dos anos de 1980 o interior havia sido completamente removido e substituído pelos cenários de Logan’s Run – ou pode ser
assim que me lembro disso. O prédio tem um cinema e um salão de jogos eletrônicos de vários andares de que me lembro bem, porque minha mãe costumava limpar o local.
E um dos meus tios sabia um truque para conseguir jogadas grátis em Street Fighter II.
Vi um lampejo cor-de-rosa quando cheguei ao topo da escada rolante. A Dama Pálida pulou os degraus que desciam para o mezanino. Um grupo de roliças garotas brancas
vestindo moletons pretos se espalhou quando ela aterrissou bem no meio das meninas. Enquanto a perseguia eu rezava, pedindo a Deus para não deixá-la entrar no cinema,
porque depois de um campo minado, um multiplex é o último lugar onde você vai querer perseguir um suspeito. Ela derrapou no piso encerado e correu para a esquerda.
Gritei “polícia” para as garotas brancas e gordinhas, e elas se espalharam de novo.
Uma delas gritou “punheteiro” quando pulei a escada e corri atrás da Dama Pálida pelo mezanino. Ela passou por um café com algumas mesas e cadeiras de alumínio impedindo
a passagem. Um pobre coitado levantou-se no momento errado e teve a cabeça atingida pelo antebraço da Dama Pálida. Ele caiu desajeitado, derrubou uma das mesas e
mandou uma bandeja por cima da grade, para o átrio três andares abaixo.
– Polícia – gritei novamente, o que só serviu para atrair olhares assustadores dos transeuntes. Francamente, não sei por que não economizamos fôlego. E posso dizer
que, nesse momento, eu precisava muito dele!
A Dama Pálida subiu mais um lance curto de escada e entrou em uma escura e barulhenta caverna cheia de luzes piscando. Um luminoso de neon azul na entrada anunciava:
Bem-vindo ao Funland.
Estava cheio, principalmente de adolescentes e jovens adultos matando o tempo até a hora em que as boates abriam. Eles jogavam em máquinas de moedas e disputavam
antiquados jogos de corrida que eu me lembrava de ter visto dez anos atrás. Se a Dama Pálida se jogasse no chão no meio de toda aquela gente eu poderia perdê-la,
mas, ou ela cumpria um horário, ou era esperta o bastante para saber que a ira da Polícia Metropolitana estava prestes a cair sobre ela de uma grande altura. Ninguém
mata um suspeito em um prédio da polícia e escapa ileso. Ninguém sem uma credencial, pelo menos.
Entre os jogos e as máquinas, duas escadas rolantes subiam. Quando vi um garoto apontando e o amigo dele pegando o celular para filmar alguma coisa que eu não via,
soube que a Dama Pálida subia por ali. Eu já havia calculado que podia subir em uma das máquinas e pular para o corrimão da escada rolante, e de lá saltar para os
degraus. Aterrissei bem perto da Dama Pálida, que subia deitada de costas para se esconder. Ela bufou e tentou chutar meu rosto, mas me esquivei no último instante
e ouvi o salto do sapato passando bem perto da minha orelha com um som como de seda rasgando. Recuei e tentei pisar no joelho que estava no chão, mas ela rastejou
para trás e tentou me chutar entre as pernas. Girei o corpo e o chute pegou de raspão em minha coxa, mas com a intensidade suficiente para me desequilibrar. Ela
se preparava para me chutar de novo quando chegamos ao topo da escada.
A Dama Pálida gritou, e percebi que o cabelo dela, embora curto, havia ficado preso nos dentes de metal entre o degrau e a base da escada. Ela se debateu, girou
o corpo e levantou a cabeça, desesperada para se soltar. Peguei meu cassetete, respirei fundo e bati com toda força que tinha. Não teria outra chance como essa.
Eles nos treinam para usar essas coisas. Não é como se nos dessem um cassetete e dissessem: “Pronto, tente não matar ninguém.” Há batidas leves de advertência, movimentos
amplos com o braço que são deliberadamente lentos para fazer o suspeito desviar, a pancada certeira e furtiva na coxa que não é fácil de ver nas imagens registradas
pelos jornais. Mas o princípio básico é sempre usar força controlada e apropriada. Por isso me inclinei para a frente enquanto ela estava presa e a acertei no quadril
com toda força que tinha. Alguma coisa rangeu sob o cassetete e ela uivou alto o bastante para superar a música e os efeitos sonoros. Depois me chutou no rosto.
Não foi seu melhor movimento, mas foi forte o bastante para jogar minha cabeça para trás, me impedir de ver o fim da escada e me fazer tropeçar e perder o equilíbrio,
enquanto ela dava um salto para trás e tentava escapar rastejando. Eu não ia deixar, por isso me joguei sobre as costas dela. Caí com todo o peso do corpo, tentando
deixá-la sem ar. Mas com um movimento incrivelmente fluido, ela arqueou as costas e me jogou contra a lateral de uma máquina Spinna Winna. Meu cotovelo estilhaçou
o vidro, e eu tive a sensação de que ficaria entorpecido agora, mas sentiria a dor mais tarde. Levantei a cabeça bem em tempo de ver o punho vindo em direção ao
meu rosto. Ela devia estar perdendo a velocidade, porque consegui desviar, e o soco atravessou o vidro da máquina. Virei-me e bati com o cassetete em seu pulso com
toda a força que ainda tinha. De novo ouvi um estalo, e vi o jato de sangue quando o vidro rasgou sua pele. Ela deixou escapar uma exclamação chocada e virou a cabeça
para olhar para mim.
– Desista – eu disse.
Havia dor e raiva em seu rosto, e o tipo de autopiedade que se vê na expressão de um valentão derrotado. Ela mostrou os dentes num rosnado desafiador e arrancou
a mão da máquina Spinna Winna, e respingos de sangue atingiram meu rosto. Adiantei-me mantendo a cabeça baixa e enfiei o ombro em seu peito. Ela se agarrava aos
meus ombros enquanto eu a empurrava para trás, para a grade. Era uma mulher de força sobrenatural, mas eu ainda era maior e mais forte que ela. E se conseguisse
me manter próximo e me esquivar dos ataques, talvez pudesse segurá-la até o reforço chegar.
O reforço devia chegar logo, certamente.
As costas dela se chocaram contra a grade, e nós paramos. Agarrei o joelho dela tentando levantá-la, mas ela acertou um golpe surpreendente em um lado da minha cabeça,
depois me empurrou com tanta força que eu caí de lado, mais ou menos a três metros dela. Balancei a cabeça e ergui os olhos, e vi a Dama Pálida correndo em minha
direção com sangue nas roupas e morte nos olhos.
Ela podia ao menos ter tentado escapar. Eu não ia mais segui-la. Mas acho que ela sabia que ia cair e pretendia fazer alguém pagar por isso antes de desaparecer.
E esse alguém era eu.
Não tive tempo para gritar o aviso, apenas formei a imagem correta em minha cabeça e gritei mais alto do que pretendia: – Impello.
O encantamento a tirou do chão, jogou contra a grade de proteção e, pavorosamente, ela caiu para trás e desapareceu.
11
Essas coisas bobas
O átrio central do Trocadero Centre tem uma altura equivalente a quatro andares, com um porão aberto que acrescentou mais um andar à queda. O espaço é atravessado
aleatoriamente por escadas rolantes, talvez porque os arquitetos acharam que a desorientação e dificuldade para encontrar os banheiros eram partes integrantes da
experiência em um shopping. Muito mais tarde eu soube que a Dama Pálida havia batido na lateral de uma das escadas rolantes na queda, que podia até ter se inclinado
para tentar aterrissar nela, mas não conseguiu percorrer toda a distância. O impacto quebrou suas costas em dois lugares, mas ela ainda estava viva quando chegou
ao piso do porão mergulhando de cabeça.
Foi instantâneo, disse o Dr. Walid.
Uma queda de trinta metros a 9,8 metros por segundo – calculei que eram mais ou menos dois segundos e meio vendo o chão vindo ao seu encontro. Isso não é o que eu
chamo de instantâneo.
O reforço estava a menos de um minuto dali. Eles a viram cair. Foram úteis e rápidos para isolar o andar e tomar o depoimento das testemunhas. Dei uma rápida declaração
a Stephanopoulos, e depois Nightingale insistiu para que fôssemos ao pronto-socorro. Quando dei por mim, estávamos na ala de emergência do UCH, e o Dr. Walid nos
acompanhava e observava tudo de perto, deixando nervoso o jovem médico que me atendia. Então o Dr. Walid percebeu que Nightingale estava um pouco pálido e trêmulo,
e o fez deitar em outra salinha de exame. O jovem médico relaxou visivelmente e começou a conversar comigo enquanto examinava meus ferimentos e hematomas, mas não
lembro o que ele falou. Quando saiu para pedir as radiografias necessárias, ele me deixou com uma enfermeira ruiva australiana que reconheci do caso Punchinello.
Ela piscou para mim enquanto limpava o sangue em meu rosto e fechava um corte que eu nem sabia que existia.
– Que as bênçãos do rio estejam com você – a enfermeira falou quando me levaram na maca para a sala de raio X.
Minutos depois fui levado de volta à salinha de exames, onde fiquei por cerca de uma hora vestindo uma horrível camisola do hospital. Talvez tenha ficado lá por
mais tempo, porque acho que cochilei. Era sábado à noite, por isso havia muitos bêbados gritando e gemendo, e era possível ouvir meus colegas da polícia pedindo
calma e perguntando o que havia acontecido. O Dr. Walid apareceu para avisar que ia manter Nightingale no hospital naquela noite. Pedi água, ele tocou minha testa,
depois desapareceu.
Alguém com sotaque londrino em um dos cubículos próximos ao meu disse que queria ir para casa. O médico respondeu que antes eles teriam que cuidar da fratura na
perna. O homem disse que estava bem, mas o médico explicou que seria preciso esperar até o efeito do álcool passar, e só então poderiam aplicar a anestesia.
– Quero ir para casa – falou novamente o homem de sotaque londrino.
– Assim que estiver bem – respondeu o médico.
– Aqui não é minha casa – o desconhecido explicou choroso. – Quero voltar pra Liverpool.
Eu queria que a luz fluorescente parasse de alimentar minha dor de cabeça.
O Dr. Walid voltou com água e dois comprimidos. Ele não podia ficar, porque tinha um novo cadáver para analisar. Depois de mais algum tempo, o jovem médico voltou.
– Pode ir para casa agora – ele anunciou. – Não tem nenhuma fratura.
Acho que fui a pé até a Folly. Não é muito longe.
Na manhã seguinte, acordei e descobri que o café da manhã não estava servido. Quando desci à cozinha para saber por que, encontrei Molly sentada à mesa de costas
para a porta. Toby estava sentado ao lado dela, mas, pelo menos, levantou a cabeça quando eu entrei.
– Algum problema? – perguntei.
Ela não se moveu. Toby ganiu.
– Vou sair e tomar café – avisei. – No parque.
Molly não reagiu.
Toby se levantou e veio atrás de mim.
– Você é muito mercenário – eu disse a ele.
O cachorro latiu. Acho que, do ponto de vista de Toby, uma salsicha é uma salsicha.
A Folly fica no lado sul da Russell Square, uma praça cujo centro é ocupado por um parque com alamedas de cascalho, grandes árvores cujos nomes desconheço, uma fonte
que foi projetada para deixar crianças e pequenos cães ensopados e, do lado norte, um café que serve salsicha decente, bacon, torta negra, ovos e batatas. O dia
era ensolarado, por isso me sentei na varanda da cafeteria e comi de um jeito mecânico. Não sentia o gosto da comida e, no fim, pus meu prato no chão e deixei Toby
acabar com o que restava.
Voltei a pé para a Folly e entrei pela porta principal, onde encontrei uma pilha de correspondência inútil. Peguei os panfletos de pizzarias e casas de kebab, e
notei que havia entre eles uma propaganda horrível de um vidente ganense que tinha certeza de que poderíamos nos beneficiar de sua visão de eventos futuros. Deixei
tudo no porta-revistas que Molly colocou no átrio para esse fim.
Estava me sentindo meio enjoado, por isso fui ao banheiro e vomitei o café da manhã, depois voltei para a cama e dormi.
Acordei novamente no fim da tarde, suando muito e com aquela sensação de desorientação que se tem depois de passar um dia inteiro dormindo sem nenhum bom motivo
para isso. Atravessei o corredor e fui encher a monstruosidade esmaltada que tínhamos no lugar de um chuveiro. Deixei a água bem quente, tanto quanto eu podia suportar,
gritei quando ela envolveu os ferimentos em minha coxa, mas fiquei ali até sentir que os músculos começavam a relaxar, até enjoar de imitar Louis Armstrong cantando
“Ain’t Misbehavin”. Não podia me barbear por causa do corte no rosto, então deixei meu queixo coberto por pelos másculos e fui procurar roupas limpas.
Quando eu era mais novo, a única maneira de manter minha mãe fora do meu quarto teria sido instalar uma porta de aço, e acho que nem isso teria resolvido. Isso não
significa que não sei sentir gratidão pelas pessoas que visitam meu quarto, especialmente se for só para cuidar da limpeza e da roupa. Vesti calça cáqui, camisa
com botões, e calcei meus sapatos bons. Olhei para o espelho. Miles Davis teria se orgulhado de mim. Só faltava um trompete. Só há uma coisa que você pode fazer
quando tem essa boa aparência, então peguei meu celular e liguei para Simone.
Ou melhor, tentei ligar. Não consegui. Havia arruinado o chip quando usei magia no confronto com a Dama Pálida.
Peguei um dos telefones de reserva na gaveta da escrivaninha, um Nokia muito arranhado com dois anos de idade e chip pré-pago. Já havia salvado todos os números
na memória do aparelho, então acrescentei o de Simone e liguei para ela.
– Oi, benzinho – falei. – Quer sair?
Quando parou de rir, ela disse que adoraria.
Só estudantes e pessoas de Basildon iam a uma boate no domingo, por isso fomos ao Renoir assistir ao Espírito da escada rolante, um filme de Dominique Baudis que,
apesar do título, era uma comédia romântica. O Renoir é um cinema de arte e fica embaixo do Brunswick Centre, um shopping cor de creme em uma área cujo urbanismo
me faz pensar em uma pirâmide asteca de cabeça para baixo. Fica a menos de dois minutos de caminhada da Folly, por isso era conveniente. Além disso, ele ainda tem
aquelas poltronas antigas que permite que os casais de namorados se beijem sem se machucar no porta-copos. Ela me perguntou sobre o corte no rosto, e eu disse que
havia me envolvido em uma briga.
Mais tarde jantamos no YO! Sushi, um lugar que Simone não conhecia, apesar de haver uma loja praticamente na porta do prédio onde ela morava.
– Sou terrivelmente leal a Patisserie Valerie – explicou ela.
Simone adorou as pequenas vasilhas coloridas desfilando em cima da esteira rolante, e logo empilhava várias delas, todas vazias, ao lado de seu prato. Ela comia
pequenas porções, mas era constante e determinada. Peguei uma porção de arroz e salmão picante. Meu estômago ainda não voltara ao normal, mas era uma delícia ver
o prazer com que ela saboreava cada prato. Felizmente, o YO! Sushi fechou antes de ela estourar o limite do meu cartão de crédito, e nós saímos do Brunswick Centre
e caminhamos pela Bernard Street para a estação de metrô na Russell Square. Havia chovido enquanto estávamos no cinema, e as ruas estavam molhadas e escorregadias.
Simone parou de andar e segurou minha cabeça para me beijar. Ela tinha gosto de molho de soja.
– Não quero ir para casa – disse.
– Que tal irmos para a minha? – sugeri.
– Sua casa?
– Bem, mais ou menos...
O apartamento em cima da garagem não era exatamente um ninho de amor, mas eu não queria que Simone conhecesse Molly quando ela estava em um de seus momentos de mau
humor. Simone passou direto por meus aproximados dois mil dólares em equipamentos eletrônicos e foi diretamente para o estúdio sob a claraboia.
– De quem é isto? – perguntou. Ela havia encontrado a foto de Molly nua e reclinada comendo cerejas.
– De alguém que trabalhava aqui há anos – respondi.
Simone me olhou com ar misterioso.
– Vire-se – ela disse. – E feche os olhos.
Fiz o que ela dizia. Atrás de mim, ouvi o farfalhar de roupas, um palavrão sussurrado seguido pelo ruído de um zíper, o baque das botas caindo no chão, o sibilar
de seda escorregando sobre a pele. Houve uma longa pausa, e então ouvi o rangido de um móvel velho enquanto ela se ajeitava.
Simone me fez esperar um pouco mais.
– Pode virar agora – anunciou finalmente.
Ela estava reclinada, linda e nua na chaise longue. Como não dispunha de uma tigela de cerejas, deixou os dedos deslizarem pelo corpo e descerem até encontrarem
os caracóis castanhos. Era tão deliciosa que eu nem sabia por onde começar.
Então eu vi, uma mancha como uma marca de nascença cor de vinho no canto de sua boca. Pensei que fosse alguma coisa que ela havia comido, mas a mancha começou a
se abrir diante de meus olhos. Com um rangido horroroso, sua mandíbula rasgou e um triângulo de pele se soltou do rosto. Vi músculos, tendões e ossos saltando pela
abertura, e seu queixo caiu sem movimento como o de um fantoche abandonado.
– O que foi? – Simone perguntou.
Nada. O rosto voltara ao normal, lindo, o arco do sorriso se apagando enquanto eu recuava cambaleando.
– Peter?
– Desculpe – murmurei. – Não sei o que aconteceu. – Ajoelhei-me ao lado da chaise longue e segurei o rosto dela entre as mãos. Os ossos sob a pele eram sólidos,
o que me tranquilizou. Eu a beijei, mas, depois de um momento, ela empurrou meu rosto.
– Aconteceu alguma coisa?
– Eu me envolvi em um acidente – contei. – Alguém morreu.
– Oh – Simone exclamou e me abraçou. – O que aconteceu?
– Não devia falar sobre isso – respondi, e deixei a mão escorregar por seu quadril na esperança de distraí-la.
– Mas se pudesse falar, falaria comigo? – ela perguntou.
– É claro que sim – menti.
– Pobrezinho – Simone murmurou. E me beijou.
Descobri que não tinha mais nenhum pesadelo quando a abraçava. Em um determinado momento a chaise longue balançou, rangeu, e eu ouvi o barulho de madeira quebrando.
Nós nos separamos apressados, só pelo tempo necessário para eu ajeitar algumas almofadas no chão e jogar um cobertor sobre elas. Simone me fez deitar de costas,
sentou-se sobre mim e tudo ficou maravilhosamente agitado e quente, até ela finalmente cair sobre mim lânguida e escorregadia como um peixe.
– É peculiar – ela comentou depois de recuperar o fôlego. – Antes eu sempre queria sair. Mas, com você, quero ficar em casa o tempo todo.
Ela rolou para o lado e deslizou a mão por meu peito para segurar minhas bolas.
– Sabe o que eu realmente queria agora? – perguntou.
– Tem bolo na geladeira – respondi.
Estava ereto outra vez, e ela segurou meu membro.
– Você é um homem terrível – disse, me sacudindo com suavidade como se quisesse testar a resistência da minha ereção. Em seguida, com uma breve pausa para beijar
a ponta do meu pênis, ela se levantou e caminhou para o refrigerador. – Aquela comida japonesa é boa, mas duvido que eles conheçam os caminhos da boa confeitaria.
Mais tarde, exausto, mas incapaz de dormir, fiquei deitado com ela sob a claraboia e vi a chuva lavando o vidro. Simone dormiu com a cabeça apoiada em meu ombro,
uma das pernas sobre as minhas coxas e um braço envolvendo minha cintura – como se quisesse se certificar de que eu não ia fugir no meio da noite.
Não sou um jogador, mas nunca tive uma namorada que durasse mais de três meses. Lesley dizia que elas sabiam que depois de certo momento eu perdia o interesse, e
que, por isso, sempre me chutavam primeiro. Não é bem isso que eu lembro, mas Lesley jurava que poderia criar um calendário baseado em minha vida amorosa. Um calendário,
cíclico, ela dizia, como o dos maias, uma contagem regressiva para o desastre. Às vezes ela era surpreendentemente erudita.
Por outro lado, pensei quando Simone se ajeitou ao meu lado, mesmo que o pior se confirmasse, eu ainda tinha mais dois meses pela frente. Mas aquele recanto do meu
cérebro que é sempre o policial quis saber se eu tinha certeza de que Simone não estava envolvida no caso da morte dos músicos de jazz. Afinal, ela vivia com Cyrus
Wilkinson. Por outro lado, Henry Bellrush morava com a esposa quando morreu. Mais sugestivo, se Simone era realmente uma criatura da noite que seduzia para depois
sugar a vida de músicos de jazz, por que ela estava dormindo comigo, se não herdei o talento de meu pai e nem seu gosto pela música? E o rosto dela não havia aparecido
em nenhuma das fotos de 1941, havia?
Na verdade, você ouve esse tipo de palestra durante o treinamento, mas confesso que a maioria dorme nessa parte, porque ela não está associada a nenhuma prova ou
tarefa escrita. Lembro-me de ter ouvido o palestrante dizer que os instintos naturais de um policial podem transbordar rapidamente para uma paranoia sem fundamento.
A vida é incrivelmente complicada, disse o palestrante, e coincidências acontecem o tempo todo. Se a suspeita persistir quando a manhã chegar, disse a mim mesmo,
posso verificar o álibi de Simone para o período em que ocorreram as mortes no ano passado, porque nada é melhor para construir uma relação saudável do que um interrogatório
à mesa do café da manhã.
Esse havia sido meu último pensamento antes de dormir, por isso esperava que não fosse um mau presságio descobrir que Simone havia ido embora antes do dia nascer,
enquanto eu ainda dormia.
Naquela manhã fui chamado ao John Peel Centre, em Hendon, onde fui “interrogado” por dois oficiais do Diretório de Padrões Profissionais. A conversa aconteceu em
uma sala de reuniões com chá, café, biscoitos e uma atmosfera muito civilizada. Depois de determinar que eu tinha um motivo legítimo para estar naquele andar do
West End Central, eles me perguntaram sobre a perseguição até o Trocadero Centre e a consequente morte da suspeita em uma queda de um andar superior. Aparentemente,
as imagens do circuito interno eram muito claras – eu não estava nem perto da suspeita quando ela despencou por cima da grade, portanto, não podia tê-la empurrado,
nem teria conseguido segurá-la em tempo de impedir a queda. Eles pareciam satisfeitos e me mandaram retomar o trabalho, mas me avisaram que a investigação estava
apenas começando.
– Podemos ter outras perguntas para você mais tarde – disseram.
Tenho certeza de que eles deviam ter me oferecido aconselhamento psicológico nesse ponto da reunião, mas não foi o que fizeram. O que era uma pena, porque eu teria
gostado disso. Infelizmente, as regras são muito claras. Um oficial das fileiras inferiores só pode aceitar aconselhamento se ele for oferecido por gente com cara
de assistente social e leitor do The Guardian. Não preciso disso, você declara aos colegas, mas conhece esses tipos sentimentais e melindrosos. Então é hora de se
afastar com a dignidade intacta.
Além do depoimento aos oficiais do DPP, tive que fazer meu relatório para o caso, o que fiz na segurança do apartamento sobre a garagem, enviando-os para a revisão
e eventual correção de Lesley antes de entregar o documento. Ela sugeriu que eu cometesse alguns erros deliberados, porque nada aponta uma “maquiagem” com mais clareza
do que declarações perfeitamente coerentes. Fingi que era um cidadão comum e esqueci alguns detalhes. Ela também comentou que correr até o Trocadero Centre sem nenhum
reforço havia sido tolice e, pior, pouco profissional. Lamentava dizer que eu estava piorando rapidamente sem sua valiosa presença para corrigir meus maus hábitos.
Deixei Lesley continuar me criticando por algum tempo, porque ela parecia estar se divertindo com isso.
Prometi ser mais cuidadoso no futuro.
O Dr. Walid liberou Nightingale do hospital naquela tarde, e ele voltou à Folly pelo tempo necessário para trocar de roupa antes de ir supervisionar o trabalho da
perícia na boate. Perguntei se ele precisava de mim, mas ele recusou minha ajuda e me deu uma lista de material de leitura. Um dos títulos era um volume muito grosso
de Bartholomew escrito em latim. Acho que ele esperava que eu passasse o dia todo com o livro em uma das mãos e um dicionário na outra, mas simplesmente digitei
os trechos relevantes na barra de busca de um tradutor on-line e depois interpretei as esquisitices resultantes.
Creio que Bartholomew sugeria que talvez fosse possível usar a magia para combinar as características de duas criaturas em violação da grande cadeia de seres, a
grande hierarquia das criaturas, lodo na base e anjos no topo, ordenada por Deus. Alguém havia feito anotações nas margens das páginas de meu exemplar, letras bem
pequenas formando palavras em latim que meu tradutor on-line disse que significavam: Pessoas se tornam natureza e vice-versa.
Mulheres-Gato reais, pensei. A Boate de Strip do Dr. Moreau. Imaginei como seria dormir com alguma coisa esquiva e peluda como um tigre. O dono da boate devia ter
feito uma fortuna. O velho mago praticante etnicamente prejudicado tinha o inspetor chefe Johnson para ajudar a garantir a discrição, mas o novo cara, seu possível
aprendiz, o Sem Rosto, como ele planejava preservar o segredo?
Na manhã seguinte, Nightingale me levou para visitar a Boate de Strip do Dr. Moreau. A área do corredor e da chapelaria havia sido transformada em vestiário para
o pessoal vestir e despir seus trajes de Pateta. O Dr. Walid esperava por nós e nos avisou para tomar cuidado ao andar. Muitos metros de cabos haviam sido esticados
escada abaixo e presos às paredes com fita adesiva.
– Queremos evitar a ativação de todo e qualquer circuito elétrico do prédio – ele explicou. – Só por precaução.
O médico me levou ao hall, onde notei que o gabinete de Larry havia sido removido, bem como as pernas que se debatiam.
– Tive que reservar espaço extra no UCH – contou o Dr. Walid. – Nunca tive tanto material antes.
As cortinas do hall haviam sido removidas, e passamos à sala seguinte onde funcionava a boate propriamente dita, onde a pista de dança e o palco estariam, se não
houvesse jaulas presas ao chão. Elas aparentavam ser novas, e eram parecidas com aquelas usadas para manter animais em laboratórios.
– Exatamente igual – confirmou o Dr. Walid quando fiz esse comentário em voz alta. – Bollingtek Animal Containment Systems. Usamos os produtos no hospital. Foram
instalados esse ano.
– Stephanopoulos mandou alguém da equipe rastrear os números de série – disse Nightingale.
As jaulas estavam vazias, mas eu sentia o cheiro de excremento animal. Vi pó para coleta de impressões digitais em torno das fechaduras e em todas as superfícies
onde alguém poderia ter tocado enquanto cuidada de seus cativos.
– Quantos eram? – perguntei.
– Cinco nas gaiolas – respondeu o Dr. Walid. – Ainda estou fazendo testes, mas todos parecem ser quimeras.
Eu havia pesquisado essa palavra na noite anterior, quando traduzia Bartholomew. O termo refere-se a uma criatura que tem algumas células com um DNA e outras com
outro DNA. É rara e está em extinção nos mamíferos, e normalmente acontece quando dois ovos são fertilizados por esperma diferente, depois se fundem antes da transformação
em feto. Bartholomew não sabia o que era quimerismo tetragamético. Os pais da genética, Crick e Watson, ainda não eram sequer um brilho nos olhos de seus avós quando
ele escrevera o livro. Bartholomew descrevera quimeras como o produto degenerado de uniões não naturais criadas pela mais negra e imunda magia. Mas eu tinha a horrível
sensação de que as duas definições podiam servir.
– Havia alguma viva? – perguntei.
O Dr. Walid olhou com desconforto para Nightingale, que balançou a cabeça.
– Uma delas ainda estava viva – falou Nightingale. – Mas morreu depois que a transferimos.
– Sem dizer nada? – indaguei.
– Estava inconsciente – explicou o Dr. Walid.
Concluímos que, considerando que as jaulas eram novas, elas deviam ser obra do Novo Mago, não do Velho.
– Podemos pensar que Geoffrey Wheatcroft é o Velho Mago? – perguntei.
– Não temos nada que o ligue a este lugar – respondeu Nightingale. – Além disso, acho improvável que ele tenha se dedicado à carreira acadêmica e construído uma
vida dupla como empresário da noite.
– Mas ele treinou o Novo Mago? – perguntei. – O Sem Rosto?
– Ah, sem dúvida – Nightingale confirmou. – Estou certo disso.
– Gosto de “Sem Nome” – confessou o Dr. Walid. – Você inventou?
– Ele pode ter tido cúmplices – opinei. – Outro praticante que se encarregou da operação em Londres. É possível, não é?
– Bem possível – confirmou Nightingale. – Boa ideia.
– Ou mais de um parceiro. Podia ser um... Que nome se dá a um grupo de magos? – perguntei. – Gangue? Convenção?
– Argumento – disse o Dr. Walid. – É um argumento de magos.
Nós dois olhamos para o médico legista, que deu de ombros.
– Vocês dois precisam ler mais – ele disse. Ele, o homem que fazia crítica acadêmica para o European Journal of Gastroenterology and Hepatology.
– Uma cabala – Nightingale declarou. – O nome é cabala de magos.
– Operando embaixo do nosso nariz desde os anos de 1960 – acrescentou o Dr. Walid.
– Só para jogar mais sal na ferida – Nightingale resmungou.
– Eu devia começar a relacionar os nomes que temos de Oxford e relacioná-los aos membros conhecidos das gangues do Soho – sugeri.
– Não antes de ver outra coisa – ele protestou.
Fiquei gelado quando ele falou que ainda tinha alguma coisa para me mostrar. Havia sido uma alegria saber que tudo fora removido e limpo, e eu realmente não queria
ver mais nada. Mas Nightingale me levou para outro lugar na boate. Além das gaiolas, havia outra porta de acesso restrito a funcionários, e por ela passamos a um
corredor curto e a um conjunto de cômodos que podiam ter sido escritórios ou depósitos. Todos eram basicamente iguais, com colchões sujos no chão, uma coleção de
roupas e sapatos em caixas de papelão, um aparelho de DVD e uma antiga TV com tubo de imagem, algumas tentativas patéticas de enfeitar as paredes, uma foto de gatinhos
e um pôster de Justin Timberlake. Era desanimadoramente familiar para qualquer um que já houvesse ajudado a invadir um esconderijo usado por traficantes de pessoas.
– Quantos? – perguntei.
– Encontramos muitas amostras de DNA – disse o Dr. Walid. – Sangue, sêmen, fios de cabelo. Até agora identificamos oito indivíduos, todos quimeras.
– Oh, Deus – falei.
– Ele devia ter outro esconderijo – opinou Nightingale. – Mas pode ser em qualquer lugar.
Nem todas as notícias eram ruins. Lesley ligou mais tarde com uma possibilidade inteiramente nova para eu me enfiar em um buraco. Ela a encontrara enquanto examinava
os registros da Universidade de Oxford. Não havia identificado nenhuma conexão óbvia entre Wheatcroft e Alexander, mas...
– Adivinhe que nome encontrei? – ela perguntou.
– Príncipe Harry?
– Não seja bobo – ela falou. – Harry estudou em Sandhurst. Encontrei outra aluna que atendia pelo nome de Cecelia Tyburn Thames.
– Lady Ty conheceu Wheatcroft?
– Não, idiota – respondeu Lesley. – Mas... – Ela parou para tossir. Afastou o fone da boca, mas ouvi a tosse e os palavrões. Depois uma pausa para beber água.
Perguntei se ela estava bem, e Lesley disse que sim. Haveria outra cirurgia no fim do ano para tentar recuperar mais funções de sua caixa de voz.
– Mas – ela prosseguiu –, o que importa é que Tyburn esteve em Oxford mais ou menos na mesma época que Jason Dunlop, e você uma vez me disse que uma das irmãs dela
sentiu o cheiro da magia em você.
– Foi Brent – confirmei. – Ela tem 4 anos de idade.
– Isso indica uma habilidade natural.
Eu disse que era improvável que Tyburn me contasse sobre magia em Oxford, mesmo que a houvesse percebido.
– Você só não quer encontrá-la novamente – disse Lesley.
Certo, eu não queria encontrar Tyburn outra vez. Eu a havia humilhado na frente da mãe, o que significava que ela teria ficado menos furiosa comigo se eu a houvesse
chicoteado nua em Kensington High Street. Mas eu só discuto com Lesley por duas coisas, e nenhuma delas tem a ver com o trabalho na polícia. Tinha que valer a pena.
Eu sabia que Tyburn tinha uma casa em Hampstead. Havia explodido uma fonte particularmente rara na última vez que fora visitá-la – embora, em minha defesa, eu deva
dizer que ela tentava controlar minha mente naquele momento. Mas aquela era só a nascente do rio. Ouvi dizer que ela mora em algum lugar em Mayfair. Os muito ricos
e muito pobres têm uma coisa em comum: ambos geram muita informação – os ricos na mídia, os pobres, no vasto e inclemente banco de dados do estado. Os ricos, desde
que evitem a celebridade, podem tomar medidas para preservar o anonimato – a página de Lady Ty no Wikipedia parecia ter sido produzida por um gênio de RP, porque,
sem dúvida, Lady Ty havia contratado um gênio de RP para garantir que a página ficaria como ela queria. Ou, mais provavelmente, uma das “pessoas” de Lady Ty havia
contratado uma empresa de RP que contratara um free-lancer que havia cuidado de tudo em meia hora, para depois se concentrar no romance que estava escrevendo. A
página revelava que Lady Ty era casada – nada menos que com um engenheiro civil – e que eles tinham dois lindos filhos, um deles, o menino, com 18 anos. Idade suficiente
para dirigir, mas ainda jovem o bastante para morar com os pais.
Ser policial é aprender a trapacear. Você pode descobrir as coisas no SCP, coisas que até os mais ricos e influentes são obrigados a informar com precisão – nesse
caso, exames de motorista. Stephen George McAllister-Thames foi aprovado no dele em janeiro, e o endereço do registro era Chesterfield Hill, Mayfair.
Era o tipo perfeito de casa avarandada em estilo Regência, com uma fachada rústica e trabalho decorativo em ferro que faz um corretor de imóveis chorar de alegria.
Ficava menos de meio quilômetro a oeste do Trocadero Centre, em ruas que seriam muito mais agradáveis se toda personalidade não houvesse sido tirada delas por décadas
de dinheiro.
A porta foi aberta por um homem jovem, alto e mestiço que reconheci da foto na carteira de motorista. Ele havia herdado um infeliz par de orelhas e o que minha mãe
teria chamado de cabelo “melhor” do pai, mas os olhos de gato eram da mãe. E não havia sido essa a única herança.
– Mãe – ele gritou para o fundo da casa. – Tem um mago aqui procurando você. – E então, só para o caso de eu não ter notado que ele era um adolescente, o rapaz voltou
ao que estava fazendo antes de eu interromper tão rudemente. A mãe passou por ele no corredor e se aproximou da porta, onde parou com os braços cruzados. Ela me
encarou em silêncio por uns dez segundos antes de perguntar o que eu queria.
– Estava imaginando se poderia me ajudar com meu inquérito – disse ele.
Lady Ty me levou à cozinha decorada com carvalho francês e azulejos verdes. Ela me ofereceu chá que, por segurança, recusei. Então, ela se serviu de vinho branco.
– Que inquérito é esse? – perguntou.
Pedi a ela para voltar ao tempo em que era uma jovem estudante na Universidade de Oxford.
– Onde conquistei meu primeiro duplo – ela disse. – Não que considere uma grande conquista. É menos importante do que ter nascido no perímetro urbano de Londres.
– Lady Ty esvaziou o copo e voltou a enchê-lo.
– Enquanto estava em Oxford – falei –, notou alguém praticando magia, talvez clandestinamente?
– Isso tem alguma coisa a ver com a confusão no Trocadero Centre?
– Está relacionado, sim. E com o ataque contra Ash também.
– Estou curiosa. O que o faz pensar que vou contar alguma coisa?
– Então, sabia que havia magia em prática – deduzi.
– Por que chegou a essa conclusão?
– Porque você acredita que tem alguma coisa para esconder – respondi.
– Admito que é um pouco irracional, mas ainda me sinto inclinada a mandar você para o inferno – ela comentou. – Por que devo ajudá-lo?
– Se me contar o que sabe, prometo que vou embora.
– Tentador – reconheceu.
– E pelo fato de acharmos que tem um mago do mal atuando em Londres, e acreditamos que ele pode ter estado em Oxford, e na mesma época em que você esteve. – Eu a
encarei. – Talvez até o conheça.
– Não. Eu o teria farejado. Da mesma forma que posso farejar você agora.
– E que cheiro eu tenho?
– Ambição, vaidade, orgulho – ela deu de ombros. – Banana frita e madressilva. Não me pergunte por quê.
– Quem eram eles? Os praticantes de Oxford... Sei que você sabe.
Ela tentou não falar, mas a verdade é que existem algumas variedades de informação que só têm graça se você as compartilha com alguém.
– Havia um clube de alimentação. Sabe o que é? – ela perguntou.
Uma desculpa para os estudantes se reunirem e ficarem furiosos, até onde eu saiba. O critério de associação era estabelecido em vários níveis de exclusividade e
preço. Eu não acreditava que Tyburn se houvesse associado a um deles e, se eu houvesse ido para Oxford, não sei se poderia ter me associado a um, se quisesse.
Tyburn me contou que o nome do clube era Little Crocodiles. E era só para rapazes, e apesar de não ser exclusivo de uma faculdade, o grupo era basicamente de Magdalen
College Oxford. Eles eram considerados muito sem graça, desprovidos da necessária aristocracia para conviver com os arrivistas sociais e tranquilos demais para os
aristocratas.
– Não eram da minha turma – respondeu Tyburn. – Mas eu me lembro de ter encontrado alguns membros em uma festa certa vez e ter sentido aquele cheiro. – Ela balançou
a mão na frente do nariz. – Como disse, ambição, suor, como alguém trabalhando duro demais.
– Lembra o nome deles?
Ela lembrava, porque não esquecer quem era quem era parte de quem era ela. E ela também tinha meia dúzia de outros nomes de possíveis Little Crocodiles.
– E tem certeza de que o clube de alimentação treinava ativamente? – indaguei.
– Fiz questão de me aproximar o bastante para cheirar todos os membros que pudesse encontrar – ela contou. – Pensei que tivessem alguma relação com o professor Postmartin
e seu chefe. Deduzi que estavam tentando expandir a influência da Folly.
Ela balançou a garrafa de vinho e despejou a meia dose restante em seu copo.
Considerei que agora seria um momento oportuno para ir embora, então agradeci, guardei meu bloco de anotações e me levantei.
– Durante cinquenta anos eles não fizeram nada, e de repente você aparece. Como aquilo aconteceu? – Lady Ty disparou.
– Sabe que cheiro eu sinto em você, Ty? Conhaque, cigarro e corda velha.
– Enforcaram Jonathan Wild em Tyburn – ela disse. – Porque ele se considerava o justiceiro geral da Grã-Bretanha.
Não respondi, porque decidi que sair inteiro pela porta da frente era mais importante.
Na manhã seguinte, durante o café da manhã, contei a Nightingale o que havia descoberto, e ele disse que devíamos descer ao porão para explodir uns alvos na área
de prática de tiro. Na verdade, acho que ele planejava a sessão de treinamento há algum tempo.
Vários meses de tiros aleatórios disparados por mim haviam reduzido muito nosso estoque de silhuetas vintage da Segunda Guerra Mundial, por isso comprei pela internet
alguns alvos da OTAN da década de 1960. Os capacetes do exército alemão e os ferozes hunos deram lugar a figuras de expressão beligerante e cuidadosamente destituída
de toda e qualquer identidade nacional ou étnica. Essas figuras sugeriam que a OTAN estava pronta para pegar seus soldados de papel de qualquer lugar.
Nightingale cravou três bolas de fogo no centro do alto à esquerda.
– O que o fez pensar que Ty contaria? – ele perguntou.
– Ela não conseguiu se conter – respondi. – Primeira lei da fofoca: é inútil saber alguma coisa se ninguém mais sabe que você sabe. Além do mais, acho que a opinião
que ela tem sobre nós é tão negativa que acredita que é só uma questão de tempo até nós... errarmos e ela poder entrar em cena salvando o mundo como a cavalaria.
– Considerando nosso histórico até aqui, não podemos dizer que ela está errada – opinou Nightingale.
– Um Ministério da Magia – falei. – É isso mesmo que ela quer?
– Respire fundo. E solte!
O truque por trás de uma bola de fogo eficiente é que ela se torna uma forma impregnada. Um encantamento no qual o mago não precisa pensar para realizar. Soltei
três bolas de fogo que um espectador podia ver se movendo, o que era ruim, mas consegui acertar o alvo, pelo menos, ou um alvo. Também me esqueci de soltá-las imediatamente,
o que significa que elas ficaram pairando e chiando por um instante antes de explodirem.
– Esteve praticando? – Nightingale quis saber.
– É claro que sim, chefe. Veja isso – respondi, e arremessei uma “granada” que atingiu o centro do alvo.
– Sua pontaria está melhorando – ele reconheceu. – Pena que o arremesso...
A granada detonou e rasgou o alvo ao meio.
– E o que foi isso? – Nightingale reagiu. Ele nem sempre aprovava quando eu me desviava das formas estritas que ele estipulava para os encantamentos. Seu lema era
que maus hábitos no presente poderiam matá-lo no futuro.
– Granada – falei. – É só usar Scindere como no Lux impello scindere, mas, em vez de uma luz no ponto fixo, você usa uma bomba.
– Uma granada? – Nightingale balançou a cabeça. – E como você controla o tempo?
– Aí entra um pouco de tentativa e erro. Fiz alguns testes, e a explosão acontece entre dez segundos e cinco minutos.
– Então, não sabe quando ela vai explodir?
– Na verdade, não – confessei.
– Tem alguma coisa que eu possa dizer para demovê-lo desse experimento não autorizado?
– Francamente? Acho que não.
– Preciso perguntar – ele continuou. – Por que usou Impello no Trocadero Centre? Por que não uma bola de fogo?
– Eu não queria matá-la – falei. – E ainda sou mais confiante com Impello do que com qualquer outra coisa.
– Deve saber que ela foi só uma distração. Alexander Smith foi atingido no peito com algumas bolas de fogo de curta distância.
– Pensei que fossem tiros comuns.
– Por isso o atacante usou bolas de fogo de curta distância. Para disfarçar o ferimento.
– Prevenção contra a perícia – deduzi. – O cara é esperto demais.
– Ele deve ter saído pelos fundos enquanto você perseguia a Dama Pálida na frente.
Cortei um alvo ao meio com minha bola de fogo seguinte.
– Bem melhor – aprovou Nightingale. – Só precisa de mais rapidez. Se o inimigo puder ver a bola se aproximando, melhor usar uma arma comum e atirar com ela.
– Por que não usamos armas comuns? – perguntei. – Sei que tem uma sala cheia delas.
– Bem, para começar, a burocracia começou a ficar muito cansativa, e ainda tem os cuidados necessários, a manutenção e a preocupação com a possibilidade de uma delas
ser esquecida em algum lugar por engano. Além disso, uma bola de fogo é mais versátil e tem mais impacto que uma pistola de qualquer calibre.
– Sério? Mais até que uma Magnun calibre 44?
– Sem dúvida – ele confirmou.
– Qual foi a maior coisa que você já destruiu com uma bola de fogo?
– Um tigre – Nightingale contou.
– Bem, não deixe o Greenpeace saber. Eles são uma espécie em risco.
– Não esse tipo de tigre. Era um Panzerkampfwagen Ausf E.
Eu o encarei boquiaberto.
– Você destruiu um tanque Tiger com uma bola de fogo?
– Foram dois, na verdade. Tenho que admitir que o primeiro só explodiu no terceiro tiro. Um parou as esteiras, o segundo entrou pela fenda de visibilidade do motorista,
e o terceiro desceu pela escotilha do comandante, e esse foi o melhor.
– E o segundo tanque?
– Ah, com esse não tive tempo para ser tão esperto. Um tiro frontal direito no ponto fraco, onde a torre encontra o casco. Deve ter atingido o depósito de munição,
porque explodiu como uma fábrica de fogos. A torre voou longe.
– Foi em Ettersberg, não foi?
– Sim, foi o ato final em Ettersberg. Estávamos tentando sair de lá quando um pelotão de Tigers apareceu do meio das árvores. Não esperávamos que os alemães tivessem
mais que algumas tropas de segundo escalão, por isso fomos pegos de surpresa. Eu era a retaguarda, então, tive que cuidar dos tanques.
– Sorte sua – respondi. Mas ainda estava tentando assimilar a ideia de que Nightingale era capaz de abrir um buraco em dez centímetros de aço blindado, quando eu
ainda tenho problemas de vez em quando para atravessar o papel dos alvos.
– Prática e treinamento – disse Nightingale. – Não é sorte.
Continuamos treinando até a hora do almoço, e depois disso fomos cuidar da excitante burocracia, que incluía um formulário surpreendentemente longo no qual eu explicava
como havia conseguido perder uma cara pistola taser X-26 e reduzir a areia o mecanismo interno de um rádio Airwave. Formular explicações plausíveis me manteve ocupado
até o fim da tarde, quando Simone telefonou.
– Encontrei um quarto de hotel para nós – ela disse, e me deu um endereço em Argyle Square.
– Quando vamos nos encontrar? – perguntei.
– Já estou aqui – ela respondeu. – Nua e enfeitada com chantilly.
– Sério?
– Na verdade, eu comi o chantilly. Mas a intenção é que conta.
Argyle Square fica a uma caminhada de quinze minutos da Folly. Vinte, se você parar no minimercado para comprar duas latas de chantilly. É sempre bom estar preparado.
O hotel era simples, só duas estrelas, mas os lençóis eram limpos, a cama era sólida e a suíte tinha um banheiro com vaso sanitário e ducha. As paredes eram um pouco
finas, mas só percebemos quando o vizinho de quarto bateu na parede reclamando do barulho. Fizemos o possível para diminuir o barulho naquela última vez que, estou
calculando, durou cerca de duas horas e nos fez andar de um jeito esquisito na manhã seguinte.
Depois disso, dormimos na cama sólida embalados pela trilha sonora de Londres, sirenes de viaturas de polícia, trens e carros.
– Peter – Simone falou –, você não mudou de ideia sobre amanhã, não é?
– O que tem amanhã?
– O concerto de seu pai. Você disse que eu poderia ir. Prometeu.
– Pode me encontrar lá – falei.
– Ótimo – ela falou. E dormiu nos meus braços.
O importante sobre Camden Market é que ninguém planejou aquilo. Antes de Londres engolir a cidade inteira, Camden Town era uma bifurcação na estrada, um ponto mais
conhecido pela hospedaria chamada Mother Red Cap. Era a última chance para uma cerveja, assaltos na estrada e gonorreia antes de seguir viagem para o norte, para
a natureza intocada de Middlesex. No início do século XIX, homens usando cartola e exibindo costeletas imponentes construíram o afluente leste do canal Regents ao
norte dessa hospedaria. Eu digo que eles o construíram, mas o trabalho de verdade foi realizado por alguns milhares de irlandeses que se tornaram conhecidos, por
causa desse trabalho, como os “escavadores do interior”, ou cavadores.
Eles e os cavadores que chegaram depois construíram as três fases principais do desenvolvimento da infraestrutura que caracteriza a história da revolução industrial:
os canais, as estradas de ferro e as rodovias. Sei disso porque construí uma maquete da área no ginásio e ganhei uma estrela dourada, uma medalha e o ódio eterno
de Barry Sedgeworth, valentão do playground e fracassado. Alguns importantes cruzamentos de canais foram construídos perto da Estrada Chalk Farm, de onde o mercado
tirou seu nome – Camden Lock. Havia grandes depósitos ao longo do canal, e um vasto mercado de lenha.
Na década de 1960 o departamento de planejamento do Conselho do Condado de Londres, cujo lema não oficial era “terminar o que a Luftwaffle começou”, decidiu que
Londres precisava, na verdade, de uma série de vias orbitais atravessando seu centro. O prejuízo causado ao planejamento por essa ideia resultou em terras que teriam
sido lucrativas se transformadas em estacionamentos de muitos andares ou habitações municipais minúsculas sendo entregues nas mãos de garotos londrinos vestidos
com casacos forrados de pele. Esses rapazes montaram oficinas de artesanato no velho pátio dos lenhadores e, nos fins de semana, organizavam um mercado onde os produtos
podiam ser vendidos. Na metade da década de 1980 o mercado se alastrara por Chalk Farm e pela Electric Ballroom, e o Conselho de Camden finalmente desistiu de tentar
fechá-lo. Atualmente ele é a segunda atração turística mais visitada em Londres e abriga a casa noturna Arches, especializada em jazz, onde meu pai faria sua grande
apresentação com The Irregulars.
Os rapazes da The Irregulars estavam nervosos, mas meu pai estava muito tranquilo.
– Já fiz concertos maiores – ele disse. – Uma vez toquei com Joe Harriott em um porão em Catford. Depois disso, nunca mais fiquei nervoso antes de me apresentar.
A boate Arches havia sido, no início de Camden Lock, um lugar de má fama localizada em uma antiga prisão embaixo dos arcos de uma ferrovia, daí o nome. Com a prosperidade
do mercado, a boate se mudou para uma das unidades no pátio a oeste, bem perto da ponte para cavalos, de forma que, enquanto esperava uma apresentação, o cliente
podia se sentar ao ar livre e tomar um drinque apreciando a vista da bacia. Hoje em dia, meu pai me garantiu, já quase não se vê cachorros mortos flutuando no canal.
Lord Grant e The Irregulars fariam a abertura para a banda principal da noite. No palco, Daniel e Max montavam o equipamento e faziam a passagem de som. Ainda não
havia muitos clientes. A maioria estava do lado de fora, apreciando as peças de artesanato ou bebendo alguma coisa. Perguntei onde estava James.
– Vomitando no banheiro – respondeu Daniel. – Ele está muito nervoso.
Olhei para onde minha mãe esperava vestida com suas melhores roupas, alternando o peso do corpo de um pé para o outro por causa do nervosismo. Ela acenou para mim,
e avisei com um gesto que ia sair para esperar Simone. Ela assentiu e me seguiu.
Era fim de setembro e a noite chegava antes das sete da noite, mas as nuvens se dissiparam e os últimos raios de sol pintavam os tijolos da frente da área de um
tom dourado de cor de laranja. Vi Simone descendo a Chalk Farm. Ela acenou animada e se aproximou caminhando sobre os saltos altos. O modelo dos sapatos que ela
usava, aquele tipo com uma tira na parte de trás do calcanhar, era o que minha mãe comprava de vez em quando, mas nunca usava. Evidentemente, a noite era um tributo
à década de 1980, porque Simone tinha os cabelos presos sob o chapéu de aba larga, e a camisa transparente só não era considerada ilegal para usar em público porque,
sobre a blusa, ela vestira uma jaqueta abotoada.
Olhei para minha mãe.
– Mãe, esta é Simone.
Ela não disse nada, o que não era o que eu esperava. Depois cerrou os punhos e passou por mim.
– Saia daqui, sua vadia – minha mãe gritou.
Simone parou, olhou para minha mãe caminhando em sua direção, depois para mim. Antes que eu pudesse reagir, mamãe acertou uma bofetada tão violenta em Simone que
a jogou para trás.
– Saia daqui – gritou minha mãe.
Simone recuou, o rosto expressando uma mistura de choque e ultraje, a mão pálida cobrindo o lado do rosto onde havia levado a bofetada. Corri para conter minha mãe,
mas, antes que eu pudesse segurá-la, ela havia agarrado os cabelos de Simone com a mão esquerda e puxava sua jaqueta com a direita. Simone gritava e se debatia,
tentando se livrar da mão que rasgava sua camisa.
Ninguém bate na mãe, nem mesmo quando ela está agredindo sua namorada. E também não é aconselhável agarrá-la como se fosse um jogador de rúgbi, jogá-la no chão e
imobilizá-la com uma das várias técnicas destinadas a dominar suspeitos violentos. Por isso me limitei a segurá-la pelos pulsos e gritar “pare” bem perto de sua
orelha e o mais alto que pude.
Ela soltou Simone, que se afastou cambaleando, e virou para me encarar.
– O que está fazendo? – minha mãe me perguntou, sacudindo as mãos para se soltar. Depois esbofeteou meu rosto. – Perguntei o que está fazendo!
– O que eu estou fazendo? Que diabo você está fazendo?
Isso me rendeu mais um tapa, mas esse foi mais suave e nem fez meu ouvido apitar.
– Como se atreve a trazer essa bruxa aqui? – minha mãe perguntou.
Olhei em volta, mas Simone havia desaparecido.
– Mãe – gritei. – Mãe, o que está fazendo?
Ela falou alguma coisa em crioulo, escolhendo palavras que eu nunca havia escutado antes. Depois ergueu os ombros e cuspiu no chão.
– Fique longe dela – disse. – Essa mulher é uma bruxa. Estava atrás de seu pai, agora está atrás de você.
– Como assim, estava atrás do meu pai? – perguntei. – Atrás do meu pai... o quê?
Minha mãe me olhou daquele jeito como ela sempre me olha quando faço uma pergunta idiota. Agora que Simone havia desaparecido, ela parecia se acalmar.
– Ela estava atrás do seu pai quando eu o encontrei – disse.
– Quando o encontrou onde?
– Quando o conheci – ela explicou. – Antes de você nascer.
– Mãe, ela tem a mesma idade que eu. Como podia estar por perto quando você conheceu o papai?
– É isso que estou tentando dizer – minha mãe falou com tom firme e direto. – Ela é uma bruxa má.
12
Isso não significa nada Eu a encontrei sentada na calçada na frente da loja de piercing ao lado do KFC. Acho que ela me viu chegando, porque se levantou depressa,
hesitou por um momento, depois girou e começou a se afastar. Naquele salto, não foi difícil alcançá-la. Eu a chamei pelo nome.
– Pare de olhar para mim – disse ela.
– Não consigo.
Ela parou e, antes que pudesse protestar, eu a abracei. Ela me abraçou de volta e pressionou o rosto contra meu peito. Simone soluçou uma vez, conteve-se e respirou
fundo.
– O que foi aquilo? – ela perguntou.
– Aquilo foi minha mãe – respondi. – Ela é um pouco agitada.
Simone recuou para me encarar.
– Mas as coisas que ela disse... Não entendo de onde ela tirou a ideia que eu... O que ela estava fazendo?
– Mamãe toma remédios – falei.
– Não entendo. O que foi aquilo?
– Ela não está bem – insisti.
– Está dizendo que sua mãe é maluca?
Olhei para ela com expressão sofrida.
– Oh – disse Simone. – Pobrezinho. Acho que não podemos voltar.
Percebi que as pessoas nos observavam do interior do KFC. Talvez pensassem que éramos artistas de rua.
– E eu queria tanto ouvir seu pai tocar – ela falou.
– Vai haver outras apresentações – respondi. – Vamos aproveitar a noite no chez Peter.
– Não quero mais saber da chaise longue – ela protestou. – Ainda sinto dores nas costas.
– Comprei bolo.
– Isso é suspeito – ela apontou. – É quase como se você estivesse esperando companhia depois da apresentação. Quem planejava levar para casa?
Passei um braço em torno dos ombros dela e a levei pela rua para Camden Town.
– Não gostei do seu tom, mocinha – eu disse.
– Onde comprou o bolo? – Simone quis saber. – Tesco?
– Marks e Spencer.
Ela suspirou, e o braço apertou minha cintura.
– Você me conhece bem – disse.
Parei um táxi para nos levar de volta a Folly. Era a coisa mais segura a fazer naquele momento.
Quando voltamos à casa de treino, ela retocou a maquiagem usando meu espelho de fazer a barba.
– Estou horrível? – Simone perguntou. – Não consigo decidir com esse espelho tão pequeno.
Eu disse que ela estava linda, e era verdade. A marca da mão de minha mãe, que ainda era um desenho vermelho vivo quando estávamos no táxi, começava a desaparecer,
e ela não aplicara mais batom. Ainda havia o suficiente da blusa transparente para me fazer desejar rasgá-la, e o desejo me deixava enjoado e com calor. Concentrei-me
em escolher a lista de músicas ideais no meu iPod e ligar o aparelho nos falantes.
– Prometi bolo – lembrei quando ela se aproximou de mim.
Mas Simone não era o tipo de mulher que se deixava distrair com facilidade.
– O bolo fica para mais tarde – ela disse, enlaçando minha cintura e introduzindo uma das mãos sob a camiseta. Estendi um braço e apertei o play no iPod.
– O que é isso? – ela perguntou quando a música começou a tocar.
– Coleman Hawkins – falei. – “Body and Soul”. – E estava errado. A primeira música devia ser da Billie Holiday.
– É mesmo? – ela perguntou. – Estranho, não parece real quando é gravado.
Enfiei a mão por baixo da jaqueta e a puxei para mim. A pele de suas costas era quente sob meus dedos.
– Assim é melhor – Simone murmurou, e se inclinou para arrancar com os dentes o primeiro botão da minha camisa.
– Ei!
– O que é justo, é justo – ela respondeu.
– Já ouviu Coleman tocar? Ao vivo? – perguntei.
– Ah, sim. As pessoas sempre queriam ouvir essa música. Ele ficava muito irritado. – Simone arrancou mais um botão e beijou meu peito; senti a língua desenhar uma
linha acompanhando o desenho do osso.
Então senti o cheiro. O perfume de madressilva e, por trás dele, tijolo quebrado e madeira partida. Como eu podia ter imaginado que era o perfume dela?
– Cyrus tocava “Body and Soul”? – perguntei.
– Quem é Cyrus? – ela murmurou, e arrancou o terceiro botão. Eu ia ficar sem nenhum.
– Você saía com ele – lembrei. – Morava na casa dele.
– Eu? Parece que faz tanto tempo – Simone comentou, e beijou meu peito. – Eu adorava vê-los tocar.
– Eles quem?
– Todos meus adoráveis homens do jazz. Eu era mais feliz quando eles estavam tocando. Gostava do sexo e da companhia, mas era realmente mais feliz quando eles estavam
tocando.
Gemi quando a música seguinte do iPod começou a tocar. Era John Coltrane. Eu havia deixado no aleatório sem perceber? É impossível dançar devagar ao som dessa versão
de “Body and Soul” – para começar, ele nunca mantém a melodia por mais que três notas, e depois de algumas variações acaba se perdendo naquele lugar musical maluco
que só pessoas como meu pai conseguem visitar. Sem soltá-la, me aproximei mais do refrigerador para poder apertar a tecla do iPod para passar à faixa seguinte. Era
Nina Simone, graças a Deus, uma jovem com uma voz capaz de derreter uma escultura de gelo em uma convenção de banqueiros escoceses.
– E Lord Grant? – tive que perguntar.
– O que desapareceu. As pessoas diziam que ele seria um Clifford Brown inglês, mas ele estava sempre deixando o cenário. Cherie ficava furiosa. Ela o havia escolhido
sabe? Uma vez chegou a dizer que o fisgara, mas depois ele desapareceu. – Simone sorriu ao lembrar. – Acho que eu era mais o tipo dele, e quem sabe o que poderia
ter acontecido, se ele não tivesse aquela esposa amedrontadora?
– Ela era amedrontadora? Quanto?
– Ah, aterrorizante. Mas você devia saber. Ela é sua... – Simone congelou em meus braços e me olhou com a testa franzida, mas eu continuei dançando e a fiz me acompanhar.
Vi a lembrança desaparecendo de seus olhos.
– Sempre gostou de jazz? – perguntei.
– Sempre.
– Mesmo quando estava na escola?
– Ah, tínhamos uma diretora musical muito estranha no colégio – Simone contou. – O nome dela era Srta. Patternost. Ela costumava chamar seus favoritos para tomar
chá, e lá tocava alguns discos e nos incentivava a “comungar” com a música.
– Você era uma das favoritas?
– É claro que sim – Simone confirmou, enfiando a mão embaixo de minha camisa outra vez. – Eu era a favorita de todo mundo. Não sou sua favorita também?
– Definitivamente. Cherie e Peggy também eram favoritas?
– Sim, eram. Nós praticamente morávamos na sala de Patternost.
– Então, você e suas irmãs estudaram na mesma escola?
– Elas não são minhas irmãs, não de verdade. São como irmãs, as irmãs que eu nunca tive. Nós nos conhecemos na escola.
– Qual era o nome da escola? – Com essa informação, eu provavelmente poderia rastrear as três identidades.
– Cosgrove Hall – respondeu Simone. – Na periferia de Hastings.
– Era uma boa escola?
– Sim, acho que era boa. Os professores não eram cruéis, tinha um estábulo com cavalos que podíamos montar, e havia a Srta. Patternost, não posso me esquecer dela.
Patternost gostava muito de “Stormy Weather” de Elisabeth Welch, era sua favorita. Ela costumava nos fazer deitar no tapete, um lindo tapete oriental, persa, acho,
e criava imagens mentais para nós.
Perguntei que músicas ela costumava ouvir, e Simone disse que era só jazz, praticamente: Fletcher Henderson, Duke Ellington, Fats Walles e, é claro, Billie Holiday.
A Srta. Patternost dizia às garotas que o jazz era grande contribuição dos negros para o mundo cultural, e que, em sua opinião, eles podiam comer quantos missionários
quisessem, desde que continuassem produzindo músicas tão lindas. Afinal, dizia a Srta. Patternost, as várias sociedades produziam centenas de missionários por semana,
mas só havia um Louis Armstrong.
Pela coleção de meu pai, eu sabia que alguns daqueles discos teriam sido difíceis de conseguir da maneira tradicional. Quando perguntei de onde vinham os discos,
Simone me contou sobre Sadie, a amiga da Srta. Patternost.
– Ela tinha um sobrenome?
– Simone parou de tirar a camisa de dentro de minha calça.
– Por que quer saber?
– Sou policial – justifiquei. – Nascemos curiosos.
Simone dizia que, até onde ela e todas as outras garotas sabiam, a amiga da Srta. Patternost sempre havia sido chamada simplesmente de “Sadie”.
– Era assim que a Srta. Patternost costumava apresentá-la – ela concluiu.
Nunca foi divulgado o que Sadie fazia, mas as meninas deduziram, por dicas e sugestões que acabavam surgindo em conversas, que ela trabalhava no cinema em Hollywood,
e que ela e a Srta. Patternost mantinham apaixonada correspondência havia mais de quinze anos. Uma vez por mês, mais ou menos, além das cartas diárias, chegava um
pacote embrulhado em papel pardo e amarrado com barbante, identificado com um carimbo de frágil. Eram os preciosos discos da Vocalion, Okeh e Gennett. Uma vez por
ano Sadie chegava, sempre um pouco antes da Páscoa, e se instalava nos aposentos da Srta. Patternost, onde se ouvia os discos de jazz até a madrugada. Era um escândalo,
diziam as meninas do sexto ano. Mas Simone, Peggy e Cherie não se importavam.
– Besouros esmagados – Simone falou de repente.
– O que têm eles? – perguntei. Uma pena eu ter explodido meu iPhone, porque o aplicativo de gravação teria sido muito útil agora.
– A cobertura no meu bolo de aniversário. – Aparentemente, o grande presente de aniversário para uma garota em Cosgrove Hall era escolher a cor da cobertura de seu
bolo. Era uma questão de honra que a aniversariante tentasse pensar na cor mais improvável, sendo violeta e laranja muito populares, com manchas azuis. A cozinha
sempre conseguia encontrar o corante, e as meninas tinham certeza de que a coloração era alcançada com a adição de besouros esmagados.
Nos dias antes das tabelas nutricionais e dos tecnólogos da alimentação, eu pensei. No tempo onde eu queria estar, na verdade. Felizmente, o iPod escolheu esse momento
para tocar a última faixa da lista – Ken “Snakeships” Johnson e sua versão de “Body and Soul”. Não me interessa o que pensam os puristas como meu pai. Se você quer
dançar, nada melhor que um toque de swing. Simone certamente concordava com isso, porque parou de tentar me despir e começou a me conduzir em volta do sofá em pequenos
círculos. Ela estava conduzindo, sim, mas eu não me importava – isso era parte do plano.
– Já ouviu Ken Johnson tocar ao vivo? – perguntou, adotando um tom tão casual quanto era possível.
– Só uma vez – respondeu Simone.
Em março de 1941, é claro.
– Era nosso último dia de liberdade – ela contou. – Todos nós nos alistamos assim que atingimos a idade mínima. – Ela me disse que Cherie se alistou no Serviço Territorial
Auxiliar, e Peggy foi para o Serviço Naval Real Feminino. Mas Simone escolheu a Força Aérea Auxiliar Feminina, porque alguém havia dito que existia uma chance de
ela conseguir voar.
– Ou, pelo menos, conhecer um piloto bonitão que me levasse em sua cabine – ela disse. Foi o tio canadense de Peggy quem as levou ao Café de Paris, e Cherie havia
garantido que elas ficariam bem, que conseguiriam pagar a conta, desde que não pedissem comida e parassem no primeiro drinque.
Simone colou o rosto ao meu peito e eu afaguei os cabelos dela.
– Acho que nossa mesa podia ter sido melhor – Simone continuou. – Era muito pequena, mal localizada. Se a banda estivesse na posição das seis horas, nós estávamos
na posição de uma e meia.
O lugar era cheio de belos oficiais canadenses, e um deles mandou uma garrafa de champanhe para a mesa das garotas, dando início à discussão sobre quanto seria apropriado
elas aceitarem a bebida, o que só terminou quando Peggy esvaziou sua taça de um gole só. Isso levou a outra discussão, dessa vez sobre se poderiam conseguir outra
garrafa com os canadenses e o que, Cherie perguntou de forma sombria, o que eles poderiam esperar em troca.
Peggy disse que, por ela, os canadenses teriam o que quisessem. Na verdade, ela considerava que era dever patriótico de todas ali dar as boas-vindas aos bravos soldados
da Comunidade de Nações, e ela estava preparada para cumprir seu dever e pensar na Inglaterra.
Mas elas não receberam a segunda garrafa de champanhe, nem os canadenses tiveram sua justa recompensa. Porque nesse ponto a banda começou a tocar “Body and Soul”,
e as garotas só tinham olhos para Ken Johnson.
– Ninguém nunca me disse que um homem de cor podia ser tão bonito – comentou Simone. – E a maneira como ele se movia... Não era à toa que o chamavam de Snakehips...
Quadril de Serpente. – Ela me olhou com a testa franzida. – Você não me beija há muito tempo.
Simone fez um biquinho contrariado, e eu a beijei. Foi a coisa mais estúpida que já fiz, e isso inclui correr para dentro de uma torre trinta segundos antes da hora
marcada para ela ser demolida.
Normalmente, vestigia é difícil de identificar. É a sensação de desconforto que você tem em um cemitério, a meia lembrança de crianças rindo em um playground, ou
um rosto familiar pelo canto do olho. O que senti naquele beijo foi uma completa reprodução com qualidade HD dos últimos momentos de Ken Johnson e outras quarenta
e poucas pessoas que estavam no Café de Paris. Não consegui apreciar muito o ambiente. Risadas, uniformes, uma orquestra no auge da animação e então... silêncio.
Durante o Renascentismo, quando houve um florescimento da arte, a cultura, e guerras sangrentas quase contínuas, alguns engenheiros especialmente astutos rompiam
cercos correndo para o castelo e prendendo uma carga moldada ao portão. Às vezes, pelo fato de o pavio ser mais uma arte do que uma ciência naqueles dias, a carga
explodia antes do desafortunado engenheiro correr, e ele era feito em pedaços, ou arremessado longe – também em pedaços. Os franceses, com aquela agudeza sutil que
os tornou famosos, apelidaram as bombas de “petardos”, ou peidos. As pessoas ainda usam a expressão “atingido pelo próprio petardo” para se referir a uma situação
na qual alguém é prejudicado pelo próprio plano. E foi isso que aconteceu comigo quando guiei Simone de volta às suas lembranças, e ela conseguiu sugar meu cérebro.
Você não sente tanto o impacto da explosão de uma bomba quanto se lembra dele depois. É como uma edição ruim ou um disco arranhado. De um lado do momento há música,
riso e romance, e do outro – não há dor, isso vem mais tarde – mas uma perplexa incompreensão. Um emaranhado de poeira e pedaços de madeira, um lampejo de branco
e vermelho que se transforma na camisa social de um homem, mesas viradas revelando pernas sem corpo e corpos sem cabeça, um trombone sem vara em pé sobre uma das
mesas, como se o músico o houvesse deixado lá, enquanto dois homens vestindo uniforme cáqui olham para ele sem ver – mortos pela onda da explosão.
Depois, barulho, gritos e o gosto de sangue na boca de Simone.
Meu sangue, percebi – eu havia mordido meu lábio.
Foi Simone quem me empurrou.
– Quantos anos eu tenho? – ela perguntou.
– Estou calculando um pouco menos de noventa – respondi, porque às vezes não consigo ficar de boca fechada.
– Sua mãe estava certa – ela falou. – Sou uma bruxa.
Descobri que estava balançando e minha mão tremia. Eu a segurei na frente do rosto.
– Ela estava certa – Simone continuou. – Não sou uma pessoa. Sou uma criatura, uma abominação.
Tentei dizer que ela era um ser humano, sem dúvida, e que alguns de meus melhores amigos eram imortais, funcionalmente falando. Queria dizer que podíamos resolver
tudo isso, mas só consegui fazer uns ruídos como uah-uah-uah, sons parecidos com os do professor do Charlie Brown.
– Sinto muito – ela falou. – Preciso ir conversar com minhas irmãs. – Simone riu amargurada. – Mas elas não são minhas irmãs, são? Eu sou Lucy, todas nós somos Lucy
Westenra.
Simone virou-se e saiu correndo. Ouvi os saltos batendo nos degraus da escada em espiral. Tentei segui-la, mas, em vez disso, caí lentamente para frente, de cara
no chão.
– Essa não foi a coisa mais inteligente que você já fez – Nightingale comentou enquanto o Dr. Walid apontava a luz de uma lanterna para os olhos, tentando se certificar
de que meu cérebro estava intacto. Não sei quanto tempo passei caído no chão da casa sobre a garagem, mas assim que recuperei controle muscular suficiente para usar
um telefone, liguei para o Dr. Walid. Ele chamava o quadro de surto atônico porque, mesmo que não soubesse o motivo dos sintomas, era importante dar a eles um nome
legal. Eu esperava ter uma chance de encontrar uma explicação plausível antes da chegada de Nightingale, mas ele apareceu logo depois do Dr. Walid.
– Eu precisava ter certeza de que tinha a ver com o caso do Café de Paris, não com o Strip Club do Dr. Moreau – falei. – Quero dizer, ela não é uma quimera como
a Dama Pálida. Na verdade, acho que ela é um acidente. – Expliquei sobre a Srta. Patternost e suas formas musicais.
– Acha que as “formas” funcionavam como forma? – perguntou Nightingale.
– Por que não? – indaguei. – Eu costumava criar formas quando era pequeno e ia dormir, ou quando ouvia música. Todo mundo faz isso, e entre bilhões de pessoas, por
mais improvável que seja alguma coisa, se você repete a ação pelo número suficiente de vezes, vai haver um resultado, vai haver magia. De que outra forma Newton
poderia ter se deparado com o princípio? Elas eram as garotas erradas fazendo a coisa errada no lugar errado e...
– E o quê? – quis saber o Dr. Walid.
– Acho que elas sobreviveram à explosão no Café de Paris porque canalizaram magia, ou energia vital, ou seja lá o que for essa coisa, por intermédio da forma que
havia na cabeça delas. Sabemos que a magia pode ser liberada no momento da morte, daí os sacrifícios.
– Daí os vampiros – acrescentou Nightingale.
– Não os vampiros – protestei. Havia estudado meu Wolfe. – Tactus disvitae, a antivida, essa é a marca do vampiro. Isso é mais como dependência de álcool ou drogas:
o dano é uma consequência indesejada, como cirrose hepática ou gota.
– Seres humanos não são garrafas de conhaque – falou Nightingale. – E Wolfe sempre foi muito propenso a categorizar e subcategorizar tudo. Uma rosa com qualquer
outro nome, tudo isso. Mesmo assim... para onde ela pode ter ido?
– O mais provável é o apartamento em Berwick Street – eu disse.
– De volta ao ninho – resumiu Nightingale. E não gostei do tom de voz que ele usou.
O Dr. Walid me deu dois analgésicos e meia garrafa de Pepsi diet que deve ter encontrado no refrigerador. Não havia gás quando removi a tampa, e o sabor era horrível
quando engoli os comprimidos. A garrafa devia estar na geladeira há eras.
Ele se sentou ao meu lado no sofá e tocou meu braço.
– Se seu pai teve realmente um encontro próximo com Simone em algum momento do passado, talvez possamos encontrar evidências disso. Quero que leve seu pai ao hospital
UCH amanhã, às onze – ele disse, e apontou para Nightingale. – E você eu quero na cama na próxima meia hora com um copo de leite quente e um comprimido para dor.
– Mas tem... – Nightingale tentou.
O Dr. Walid não o deixou nem começar, muito menos terminar.
– Se não seguir minhas instruções, juro pela vida de meu pai que afasto vocês dois. Licença médica. É isso que querem?
Balançamos a cabeça numa resposta obediente.
– Ótimo – concluiu o médico. – Vejo vocês amanhã.
Mais tarde, quando esperávamos Molly preparar bebidas quentes na cozinha, Nightingale me perguntou se eu achava que o Dr. Walid tinha autoridade para cumprir a ameaça.
– Acho que sim – falei. – Ele é nosso orientador médico, está registrado formalmente em um documento assinado. Se tivéssemos celas aqui, seria ele que chamaríamos
para tratar dos prisioneiros em caso de necessidade. Nós temos celas?
– Não temos mais – respondeu Nightingale. – Foram todas lacradas depois da guerra.
– De qualquer maneira, acho melhor não tentarmos descobrir até onde vai a autoridade dele.
– Por que ele quer ver seu pai?
– Não sei, mas estou imaginando que ele quer verificar se o encontro de meu pai com a irmã de Simone deixou traços físicos.
– Ah... Muito astuto. – Molly entregou a Nightingale uma caneca de chocolate quente. – Obrigado – ele disse.
– E a minha? – perguntei.
Molly segurou a coleira de Toby e a balançou na minha direção.
– Eu de novo? Não.
– Estou de repouso – disse Nightingale. – Ordens médicas.
Olhei para Toby, que estava abaixado e meio escondido atrás de Molly. Ele latiu para mim uma vez.
– Não está conquistando amizades por aqui – falei.
O Dr. Walid me deixou assistir enquanto ele submetia meu pai a uma ressonância magnética no UCH. Ele disse que aquela era uma máquina Tesla 3.0, o que era bom, mas
que o hospital precisava de outra para poder atender à demanda.
Há um microfone dentro do tubo, de forma que você pode ouvir se o paciente tiver alguma queixa. Eu ouvia meu pai cantarolar.
– Que barulho é esse? – perguntou o Dr.Walid.
– Meu pai – respondi. – Ele está cantando “Ain’t Misbehavin”.
O Dr. Walid sentou-se atrás de um painel de controle complicado o bastante para lançar um satélite em órbita baixa em volta da terra ou mixar uma sequência de vinte
músicas. O tambor magnético no scanner começou a rodar com um barulho parecido com aquele que faz você levar seu carro à oficina mais próxima. Meu pai não parecia
incomodado, porque continuava cantarolando, embora mudasse o ritmo para acompanhar o da máquina.
As leituras continuaram por um bom tempo, e num dado momento o microfone capturou os roncos suaves de meu pai.
O Dr. Walid olhou para mim e levantou uma sobrancelha.
– Quem consegue dormir enquanto minha mãe fala ao telefone – falei –, consegue dormir em qualquer situação.
Quando concluiu o exame de meu pai, o Dr. Walid olhou para mim e disse para eu me despir e deitar na máquina.
– O quê?
– Simone devia estar se alimentando de você também – ele explicou.
– Mas eu não toco jazz – protestei. – Nem gosto muito disso.
– Está fazendo suposições, Peter. Esse aspecto do jazz pode ser apenas um efeito limitador. Se sua amiga é uma categoria não classificada de thaumovore, não podemos
saber qual é o mecanismo. Precisamos de mais dados, por isso você tem que enfiar sua cabeça na máquina de ressonância magnética. – Ele tocou meu ombro. – É pela
ciência – concluiu.
Tem algo de singularmente catastrófico em entrar em uma máquina de ressonância magnética. Os magnetos rotatórios são em escala industrial e geram um campo magnético
sessenta mil vezes maior que o da terra. E eles o colocam lá dentro vestido apenas com uma camisola de hospital que deixa a brisa bater em suas partes privadas.
Pelo menos o Dr. Walid não me fez esperar pelo resultado.
– Esses são os do seu pai – ele disse. E apontou algumas manchas escuras, acinzentadas. – Parecem lesões menores, provavelmente degradação hipertaumatúrgica. Vou
ter que refinar mais a imagem e fazer algumas comparações para ter certeza. Esse é seu cérebro. Não há sinais de lesões.
– O que significa que ela não se alimentava de mim. Então, por que desmaiei?
– Acho que ela estava se alimentando de você, sim. Mas não o suficiente para causar danos cerebrais.
– Ela se alimentava enquanto fazíamos sexo – deduzi. – Ela mesma me disse. Ou praticamente me disse. Sabemos do que ela se alimenta, exatamente?
– O dano que estou vendo é condizente com os primeiros estágios de degradação hipertaumatúrgica.
– Ela é uma vampira – falei. – Uma vampira do jazz.
– Jazz pode ser só o sabor – respondeu o Dr. Walid. – O que é consumido é magia.
– Que é o que, exatamente?
– Não sabemos, como você já deve saber – ele respondeu, e me mandou vestir a roupa.
– É câncer no cérebro, então? – meu pai perguntou enquanto nos vestíamos.
– Não, eles só querem gravar sua cabeça vazia para a posteridade – falei.
– Você nunca teve muita sorte com as garotas, não é?
É estranho ver um pai idoso seminu. Você se descobre olhando fascinado para a pele flácida, as rugas e as manchas hepáticas e pensando, um dia tudo isso será seu.
Isto é, será, se você não se matar antes nem se apaixonar por vampiros.
– Exceto pelo episódio com a mamãe, como foi a apresentação?
– Nada mal – ele respondeu. – Teria sido melhor se houvéssemos ensaiado mais, mas sempre é melhor com mais ensaio.
Mesmo com as agulhas estéreis fornecidas pelo Serviço Nacional de Saúde meu pai ainda tinha veias colapsadas nos braços, e eu imaginei se ele estava injetando nas
pernas. Mas, olhando agora, não consegui encontrar nenhum rastro.
– Quando foi a última vez que você tomou seu remédio? – perguntei.
– Estou temporariamente livre dessa obrigação.
– Desde quando?
– Desde o verão – meu pai respondeu. – Pensei que sua mãe houvesse contato.
– Ela disse que você parou de fumar.
– E o resto. – Meu pai vestiu a camisa verde e sacudiu os braços para ajeitá-la sobre os ombros. – Desci dos dois cavalos. E, para ser honesto, parar de fumar foi
o mais difícil.
Eu me ofereci para levá-lo em casa, mas meu pai disse que estava bem, e que queria mesmo um pouco de paz e sossego. Mesmo assim, o sol estava se pondo, então esperei
com ele no ponto até o ônibus chegar, e depois fui a pé até Russell Square.
Estou acostumado a ter a Folly só para mim, por isso foi um choque entrar no átrio e encontrar meia dúzia de homens confortavelmente instalados nas poltronas. Reconheci
um deles, um grandalhão com o nariz quebrado. Era Frank Caffrey, nosso contato no Batalhão de Bombeiros e reservista no Regimento de Paraquedistas. Ele se levantou
e apertou minha mão.
– Esses são meus colegas – disse.
Cumprimentei os outros com um aceno de cabeça. Todos eram homens de meia-idade e boa forma física e cabelos curtos, e embora vestissem roupas civis, a atitude sugeria
que uniforme era uma possibilidade muito real. Molly havia servido chá aos visitantes, mas sob as mesas e ao lado das poltronas todos eles tinham valises de nylon
preto. Valises com alças reforçadas, do tipo ideal para se carregar objetos pequenos, mas pesados, com segurança e relativo conforto.
Perguntei onde estava Nightingale.
– No telefone com o comissário – ele disse. – Estamos só esperando a ordem.
A “ordem” me fez suar frio. Eu duvidava de que essa ordem fosse para convidar Simone e as irmãs para um chá. Consegui disfarçar o medo, acenei animado para Caffrey
e os amigos dele e me dirigi à porta dos fundos, por onde saí para atravessar o quintal e escapar pelo portão da casa na garagem. Sabia que tinha pelo menos dez
minutos antes de Nightingale perceber que eu havia escapado, vinte se eu deixasse o carro na garagem. Ele me conhecia bem o bastante para saber o que eu faria em
seguida. Ele provavelmente pensava que ia me proteger de alguma coisa, o que era irônico, porque eu pensava que estava tentando protegê-lo de mim mesmo.
Vinte minutos para notar que eu havia desaparecido, dez minutos para levar pessoal e equipamento para a van sem identificação que a equipe havia levado, dez minutos
para chegar a Berwick Street. Quarenta minutos, no máximo.
Um táxi preto virava a esquina quando pisei na calçada, e eu gritei para pará-lo. Estendi o braço, mas o bastardo fingiu que não me viu e seguiu viagem. Resmunguei
um palavrão e memorizei seu número de identificação, caso uma chance de vingança barata, mas profundamente satisfatória, aparecesse mais tarde. Felizmente, outro
táxi apareceu em seguida e parou para deixar alguns turistas na frente de um dos hotéis em Southampton Row, e eu entrei no carro antes que o motorista pudesse ter
algum problema de visão noturna. Ele tinha cabelos bem curtos, sinais de que era orgulhoso demais para cobrir a careca com fios puxados das laterais. Só para alegrar
seu dia, mostrei minha credencial.
– Se me levar até Berwick Street em menos de dez minutos, arrumo um passe livre para você até o fim do ano – propus.
– E o carro da minha esposa?
– Também – concordei, e dei a ele meu cartão.
– Combinado – ele disse, e demonstrou a incrível capacidade dos taxistas de Londres fazendo um retorno ilegal que me jogou contra a porta lateral e acelerou pela
Bedford Place. Ou era maluco, ou a esposa dele realmente precisava de ajuda com as multas de trânsito, porque fizemos o trajeto em menos de cinco minutos. Fiquei
tão impressionado que até paguei a corrida.
Sexta à noite em Berwick Street, e os clientes entravam e saíam discretamente da sex shop na esquina com a Peter Street. O mercado já estava fechado, mas os bares
e as lojas de discos ainda estavam abertos, e um fluxo constante de profissionais da mídia voltava para casa desviando dos turistas. Levei um tempo examinando a
frente da casa de Simone – a luz do quinto andar estava acesa.
Eu não gostava da ideia de Simone e suas irmãs desaparecendo nas mãos de Caffrey e sua turma. Acredito na lei e isso era, por mais estranho que parecesse, um assunto
de polícia, e eu era um oficial juramentado que estava prestes a exercer sua discrição para resolver uma perturbação à Paz da Rainha.
Ou, como Lesley teria resumido, eu havia perdido a merda do juízo.
Apertei botões aleatórios no interfone até alguém atender.
– Vim ler o relógio de água, benzinho – eu disse, e a pessoa destravou a porta. Disse a mim mesmo que não podia me esquecer de passar o endereço do prédio para a
equipe de prevenção contra o crime da West End Central para um sermão bem duro, e comecei a subir a escada.
Ela ainda era íngreme. Não era à toa que Simone e as irmãs tinham que sugar a força da vida das pessoas.
Estava recuperando o fôlego na frente da porta do apartamento delas, quando alguém me agarrou por trás e aproximou uma faca do meu pescoço.
– É ele – a voz feminina sussurrou. – Abra a porta.
Por causa da diferença de estatura, ela teve que enfiar o braço por baixo do meu para manter a lâmina, uma faca de cozinha, contra meu pescoço. Teria sido melhor
se ela mirasse minhas costas ou a barriga. Se estivesse desesperado, eu poderia abaixar o braço e empurrar a mão dela. Tudo dependeria da rapidez da atacante e de
sua disponibilidade para matar.
A porta foi aberta e Simone olhou para fora.
– Oi, Simone. Precisamos conversar.
Ela parecia chocada por me ver.
A mulher com a faca me empurrou, e eu entrei na sala. Peggy também estava lá, ainda vestindo macacão, com o cabelo espetado e o rosto pálido e assustado. Sendo assim,
era Cherie quem empunhava a faca. Simone fechou a porta atrás de nós.
– Pegue as algemas dele – disse Cherie.
Peggy me apalpou em torno da cintura.
– Ele não tem algemas.
– Por que não trouxe suas algemas? – Simone perguntou. – Eu disse a elas que você tinha algemas.
– Não estou aqui para prender ninguém – expliquei.
– Sim, nós sabemos – Cherie sibilou. – Está aqui para nos matar.
– O quê? Sozinho? – Mas eu pensava em Caffrey e em sua pose bebendo chá no átrio da Folly. Nesse momento eles já haviam terminado o chá e deviam estar dentro da
van, uma Ford Transit sem identificação, provavelmente, fazendo as últimas verificações em suas armas e no equipamento de visão noturna. – Não estou aqui para matar
ninguém – declarei.
– Mentiroso – Cherie respondeu. – Ele disse que você sumiria com a gente.
– Talvez devamos deixar – Peggy opinou.
– Não fizemos nada de errado – Cherie continuou, e sua faca riscou meu pescoço por acidente. Felizmente não estava afiada.
– Sim, fizemos – retrucou Simone. Havia lágrimas em seu rosto, e quando viu que eu a encarava, ela desviou os olhos.
– Quem disse que mataríamos vocês? – perguntei.
– Aquele homem – falou Cherie.
– Você o conheceu em um pub? – perguntei. – Que homem? Consegue lembrar como ele é?
Cherie hesitou, e foi então que eu soube.
– Não lembro – ela disse. – Não importa a aparência do homem. Ele disse que você trabalha para o governo, e que o governo só está interessado em eliminar quem não
é normal.
O que eu podia dizer? Eu estava ali para dizer a mesma coisa.
– De que cor eram os olhos dele? – insisti. – Ele era branco, negro, alguma outra coisa?
– Por que se importa? – Cherie gritou.
– Por que não consegue lembrar? – indaguei.
– Não sei – disse Cherie, e seu braço relaxou.
Não esperei que ela lembrasse que devia me segurar, que eu era um prisioneiro, e torci o braço com a faca. A regra para lutar contra uma pessoa armada com uma faca
é começar desviando a lâmina de você e tornando doloroso demais o esforço para segurá-la. Senti alguma coisa estalar sob meus dedos. Cherie gritou e soltou a faca.
Peggy tentou me atacar, mas eu já estava girando o corpo e saindo do caminho, e ela acabou acertando o rosto de Cherie.
– Pare – gritou Simone.
Empurrei Cherie contra as irmãs. Ela tropeçou em Peggy, e as duas caíram em cima do colchão e rolaram para o chão. Peggy se levantou cuspindo como um gato.
– Um minuto – eu disse. – Estou aqui tentando fazer um favor a vocês. Tem um homem lá fora, um homem realmente mau com quem vocês não vão querer se meter.
– E você sabe, é claro – Peggy respondeu. – Trabalha para ele.
– Não é nossa culpa – Cherie choramingou derrotada.
Simone sentou-se ao lado dela e passou um braço sobre seus ombros.
– Eu sei – reconheci. – De verdade. Mas, qualquer que seja a opinião de vocês sobre meu superior, tem outro bastardo muito mau solto por aí, e aliás... por que diabos
ainda estão aqui? Todo mundo sabe onde vocês moram.
Imaginei que podia ter mais dez minutos antes de Nightingale e Caffrey aparecerem para demonstrar a versão militar da entrada hard-target, seguida por uma visão
única e próxima de seus procedimentos de busca e destruição.
– Ele tem razão – disse Peggy. – Não podemos ficar aqui.
– Aonde podemos ir? – Cherie perguntou.
– Vou levá-las para um hotel – avisei. – Depois conversamos sobre o que fazer. – Concentrei-me em Simone, que olhava para mim com uma espécie de anseio doentio.
– Simone, não temos muito tempo.
Ela assentiu.
– Ele tem razão – disse. – Acho que devemos partir imediatamente e nunca mais voltar.
– Mas e as minhas coisas? – Cherie chorou.
– Compramos mais coisas para você – Peggy prometeu, fazendo-a ficar em pé.
– Vou ver se a costa está livre – avisei. Fui ao corredor e acendi a lâmpada de quarenta watts.
Houve um estrondo lá embaixo, o baque claro de uma porta pesada sendo arrombada e batendo contra a parede. Não é brincadeira, a porta bate com tanta força que volta
e, em muitos casos, acerta o primeiro homem a entrar, e é uma pancada tão violenta que o coitado é jogado de volta para fora.
Era tarde demais. Eu não sabia se era Nightingale com Caffrey dando apoio, ou uma equipe de resposta armada, uma CO19 enviada por Stephanopoulos. De qualquer maneira,
eu tinha que reverter a situação antes que eles chegassem ao topo da escada. Disse a Simone e às outras para ficarem na sala.
– Oficial no local – gritei. – Não há armas, nem reféns. Repito, sem armas e reféns.
Parei para ouvir. Lá embaixo, pensei ter ouvido uma risada baixa e depois uma voz profunda com um sotaque dizer “excelente”.
Depois ouvi passos correndo nos degraus mais baixos. Levantei as mãos abertas para mostrar que estava desarmado. Não era fácil. Uma das razões pelas quais a Metropolitana
tem que treinar seus oficiais em resolução de conflito é a necessidade de controlar nossa urgência londrina natural para atacar primeiro.
O temporizador apagou a luz do corredor e, desesperado, bati no interruptor para acendê-la outra vez. Qualquer coisa pode dar errado com homens armados, e os riscos
de erro duplicam no escuro.
Os passos agora soavam no corredor do andar de baixo, e o primeiro homem apareceu na escada.
E foi então que meu cérebro me abandonou. Não sei o que disseram a você, mas ver não é crer. Seu cérebro faz um grande trabalho de interpretação antes de permitir
que a consciência saiba que diabo está acontecendo. Se de repente somos expostos a alguma coisa que não é familiar, um rosto humano danificado, um carro voando em
nossa direção, alguma coisa que parece quase humana, mas não é, pode levar algum tempo, até dez segundos, para a mente reagir. E esses segundos podem ser cruciais.
Como quando uma quimera está correndo escada acima em sua direção.
Ele era homem, musculoso, e estava nu da cintura para cima, revelando a pele coberta de pelos curtos e castanhos avermelhados. Os cabelos eram negros, oleosos e
compridos demais. O nariz era todo errado, preto e brilhante como o focinho de um gato saudável. Quando ele saltou os degraus e se aproximou de mim, a boca se abriu
para revelar dentes brancos e afiados e uma língua rosada. Nada disso fez sentido até ele estar quase em cima de mim, e eu não tive tempo para fazer nada além de
recuar alguns passos e atacar com um pé.
Doc Martens, as resistentes botas de couro reforçado e sola à prova de ácido, recomendadas por oficiais de polícia e skinheads de todos os lugares. Nada pode ser
melhor quando você precisa chutar alguém escada abaixo.
Previsivelmente, o Garoto-Tigre aterrissou como um gato, torcendo a coluna ao cair abaixado no corredor de baixo.
– Para o telhado – gritei em direção à porta do apartamento.
O Garoto-Tigre sacudiu a cabeça e mostrou os dentes num grande sorriso felino. Seus olhos eram bonitos, cor de âmbar e puxados como os de um gato, obviamente adaptados
para a visão noturna.
Ouvi a porta abrir e Peggy e Simone arrastando Cherie, ainda choramingando, para fora do apartamento e em direção à escada para o telhado. Eu não me atrevia a desviar
os olhos do Garoto-Tigre. Ele só estava esperando eu perder a concentração.
– Quem diabo é aquele? – perguntou Simone.
– Ninguém que você queira conhecer – eu disse.
O Garoto-Tigre sibilou. Vi a cauda se mover e me peguei imaginando se ele havia aberto um buraco na parte de trás da cauda para deixá-la do lado de fora.
– Ratinho – falou o Garoto-Tigre com um sotaque estranho. – Por que não pula e corre? É mais divertido quando você pula.
A lâmpada do corredor apagou, tudo ficou escuro e o Garoto-Tigre pulou em minha direção.
Acendi uma luz mágica direcionada para seus olhos.
Eu havia praticado, e consegui produzir uma luz tão brilhante quanto uma chama de magnésio. Mantinha meus olhos fechados, e ainda conseguia ver a claridade como
se ela estivesse dentro das pálpebras. A luminosidade devia ter atingido o Garoto-Tigre e seus olhos especialmente adaptados para a penumbra.
Ele rugiu, eu pulei, e dessa vez consegui acertar os dois pés em seu corpo. Ele era mais pesado que eu, mas Isaac Newton estava do meu lado, e descemos e rolamos
pela escada juntos. Porém, ele batia em todos os degraus, e eu surfava sobre seu corpo. Pelo menos, essa era a teoria. Chegamos ao fim da escada mais depressa e
com mais força do que eu esperava. Ouvi um estalo embaixo do meu pé e senti uma dor aguda no joelho. Eu gritei, e ele uivou.
– Tem razão – falei. – É mais divertido quando você pula.
Eu não tinha algemas ou cordas para imobilizá-lo, por isso me contentei em subir a escada correndo, ignorando a dor intensa no joelho. Atrás de mim, o Garoto-Tigre
uivava de maneira patética e, mais importante, continuava onde estava. Corri para a porta do telhado, me esquivei de um golpe desajeitado de Peggy e bati a porta
atrás de mim.
– Desculpe – Peggy pediu. – Pensei que fosse ele.
Olhei para as três mulheres. Elas se agarravam uma à outra em busca de apoio e tinham aquele olhar atordoado e sem foco de quem escapa de incidentes com bombas e
engavetamentos na estrada.
Apontei para o norte.
– Subam na grade, atravessem o telhado por ali – eu disse. – Sigam para a direita. Tem uma escada de incêndio que desce para Duck Lane. – Eu havia notado a escada
durante minha noite de paixão com Simone, e havia pensado que ela era um possível ponto de acesso para invasores. O que prova, no mínimo, que um oficial de polícia
nunca tem folga, nem quando está vestindo apenas a cueca.
Elas não se moviam; era estranho, as três agiam como se estivessem atordoadas, lentas. Como se estivessem drogadas ou distraídas.
– Vamos – falei. – Temos que sair daqui.
– Fique quieto – Peggy respondeu. – Estamos falando com alguém.
Eu me virei e descobri que um mago do mal estava parado atrás de mim.
13
Folhas de outono
Ele estava em pé do outro lado do jardim suspenso, apoiado à grade e relaxado. Vestia o habitual terno escuro e bem cortado, usava uma gravata de seda clara e carregava
uma bengala com cabo de madrepérola. As testemunhas estavam certas sobre o rosto. Mesmo concentrado nos traços, percebi que notava o brilho das abotoaduras de ouro,
o triângulo vermelho do lenço de bolso, tudo, exceto seu rosto. Era ele: o Sem Rosto.
– Oi – gritei. – O que pensa que está fazendo?
– Se não se incomoda, estou tentando falar com as moças. – O sotaque era elegante, escola pública, Oxbridge, o que combinava com o perfil e não o tornava simpático
à minha alma proletária.
– Bem, pode falar comigo primeiro – sugeri –, ou pode ir ao hospital.
– Por outro lado – respondeu o Sem Rosto –, você pode pular o parapeito.
O tom era tão razoável que cheguei a dar três passos na direção da grade antes de me conter. Era Seducere, é claro, o glamour, e teria funcionado comigo se eu não
tivesse passado o ano com vários semideuses e espíritos da natureza tentando bagunçar minha cabeça. Nada provoca tanta dificuldade mental quanto a insistência de
Lady Ty em tentar transformá-lo em seu escravo doméstico. Mas continuei me aproximando da grade, porque não há razão para abrir mão de uma vantagem, e estava curioso
para saber o que ele queria de Simone e das irmãs dela.
– Senhoritas – ele falou –, compreendo que sua verdadeira natureza pode ter se revelado de maneira chocante, e agora estão um pouco confusas. – A voz soava muito
suave, mas eu ouvia as palavras com clareza sobrenatural. Parte do Seducere? Nightingale e eu teríamos que ter uma longa conversa sobre esse assunto em breve.
Cheguei à beirada do telhado, virei-me e apoiei um pé sobre a grade como se fosse subir e me jogar para uma morte horrível. O movimento me deu a chance de descobrir
o que o Sem Rosto pretendia.
Ele ainda falava com as garotas.
– Sei que acreditam que foram amaldiçoadas, forçadas a saciar seus apetites nada naturais sugando a força vital de outras pessoas. Mas quero que pensem de maneira
inovadora.
Eu ainda não conseguia ver seu rosto, mas havia lido muito desde que Alexander Smith nos dera a descrição de seu rosto, ou, mais precisamente, da ausência dele.
Victor Bartholomew, possivelmente o mago mais chato que já existira, chamava essa ocorrência de Vultus occulto, que até eu sei que é um latim porco, e dedicou um
capítulo inteiro ao assunto das contramedidas que, como é típico com os temas tratados por Bartholomew, eu podia resumir em uma frase: Continue olhando fixamente,
e mais cedo ou mais tarde você vai enxergar através do véu. E foi o que eu fiz.
– E se – continuou o Sem Rosto – estou falando de maneira hipotética, e se não houvesse problema nenhum em se alimentar de pessoas? O que é se alimentar de pessoas,
aliás, se não a boa e velha exploração? E nos sentimentos perfeitamente felizes explorando pessoas, não?
Olhei para Simone. Ela e a irmã não se abraçavam mais como antes, e agora encaravam o Sem Rosto com o mesmo interesse educado que alguém demonstra a um dignitário
na esperança de que ele conclua o assunto logo e cale a boca.
Ah, pensei, Tyburn já a teria de joelhos a essa altura.
– Essa ideia de que somos todos iguais é intelectualmente falida, de qualquer forma. – Enquanto ele falava, pisquei algumas vezes e, de repente, consegui ver seu
rosto. Ou melhor, não consegui, porque ele o escondia como uma máscara bege comum que cobria toda a cabeça. A peça dava a ele a aparência de um lutador mexicano
de incomum bom gosto. Talvez ele tenha sentido que consegui penetrar o disfarce, porque se virou para olhar para mim.
– Ainda está aí? – ele perguntou.
– Não consegui decidir se pulo de cabeça ou em pé – respondi.
– Acha que vai fazer diferença?
– Estatisticamente, as chances de sobrevivência são maiores se você pula em pé.
– Por que não pula? – ele disse. – Assim podemos descobrir.
Então senti. O Seducere, dessa vez mais forte e acompanhado pelo cheiro de porco assado, grama molhada, o odor de corpos sujos e um gosto metálico, como ferro, em
minha boca. Virei de frente para a grade, parei e virei de volta.
– Como disse que era seu nome, mesmo?
– Pule! – o Sem Nome gritou.
Ele me dava toda sua atenção, mas Seducere nunca funciona duas vezes, e enquanto usava o feitiço contra mim, ele não podia usá-lo com Simone.
– Corram! – gritei.
Vi Simone despertar do transe primeiro e puxar o braço de Peggy. As duas me olharam amedrontadas e, graças a Deus, agarraram Cherie e começaram a subir no parapeito
que separava o jardim suspenso da porta mais próxima. Olhei para o Sem Rosto bem a tempo de ver o movimento de seus ombros conforme o braço ia se erguendo em minha
direção. Reconheci o gesto: eu mesmo o praticava há seis meses. Isso salvou minha vida, porque eu já me jogava para a esquerda quando alguma coisa brilhante e quente
passou raspando meu ombro e abriu um buraco de meio metro na grade, exatamente no lugar onde estaria meu estômago, se eu não houvesse me movido.
Joguei duas granadas em cima dele enquanto ainda me movia pelo ar, o que teria sido mais impressionante se eu não estivesse tentando uma bola de fogo direta. Eu
ainda derrapava pelo chão quando outro pedaço da grade de metal derreteu atrás de mim, e vi que uma das minhas granadas havia estourado inofensiva no ar, e a outra
caiu e foi rolando até parar aos pés do Sem Rosto. Ele olhou para baixo, e minha sorte foi que a granada escolheu justamente esse momento para explodir. O impacto
o jogou para trás e o fez girar. Aproveitei esse tempo para me levantar e encará-lo.
– Polícia armada – gritei. – Fique quieto e ponha as mãos na cabeça. – Dessa vez eu sabia que havia preparado o encantamento certo.
Ele se virou e olhou para mim. Apesar da máscara, pude perceber sua incredulidade.
– Você é da polícia?
– Polícia armada – confirmei. – Vire-se e ponha as mãos na cabeça.
Arrisquei uma olhada rápida para ter certeza de que Simone e as irmãs haviam saído do telhado.
– Ah, não se preocupe com elas – disse o mago. – Já encontrei algo mais interessante. Afinal, sempre posso fazer mais gente gostar delas.
– Polícia armada – gritei novamente. – Vire-se e ponha as mãos na cabeça. – Eles deixam isso bem claro em Hendon: se você vai partir para a ação, não pode haver
dúvida de que você se identificou e de que o suspeito o ouviu.
– Se vai atirar – ele respondeu –, atire logo.
Eu atirei. Valeu a pena simplesmente pelo ultraje que causei a ele, e me diverti com isso até o momento em que ele pegou a droga da bola de fogo. Simplesmente a
agarrou no ar e segurou diante do rosto.
Eu a soltei assim que a bola se aproximou dele, mas ela não explodiu. O mago a torceu para lá e para cá, como se a examinasse com ares de especialista, o que talvez
fosse. Imaginei que ele queria que eu arremessasse mais uma só para poder pegá-la, ou desviá-la, ou fazer alguma outra coisa com irritante indiferença. Por isso
não arremessei. Além do mais, quanto mais tempo ele passasse me provocando, mais Simone poderia se afastar dali.
– Sabe – o mago falou –, quando o vi pela primeira vez pensei que estivesse com as garotas Thames, ou que fosse algum tipo novo de encantado, ou alguma coisa realmente
diferente, como um médico bruxo ou um americano. – O homem estourou a bola de fogo como se fosse uma bolha de sabão, e esfregou o polegar e o indicador embaixo do
nariz. – Quem o treinou? Não foi Jeffers, disso tenho certeza. Não que ele não tenha a habilidade, mas você tem espírito. Foi Gripper? Ele é do tipo que anuncia
por aí o que está fazendo. Já notou isso nos jornalistas? Tudo que querem falar é sobre eles mesmos.
Gripper era, obviamente, Jason Dunlop. Pneus Dunlop, aderência, grip, Gripper, aderente em inglês – o que serve para dar uma ideia da criatividade dinâmica promovida
por nossas instituições de ensino da elite. E Gripper obviamente não era o único que queria falar. Não tem graça olhar de cima para as pessoas se você não pode fazê-las
perceber que é superior a elas.
Vamos lá, filho da mãe. Recite mais alguns nomes.
– Você fala pouco – ele comentou. – Não confio em você.
De repente o mundo foi inundado por luz, e o vento provocado pelas hélices de um helicóptero jogou poeira e lixo em todas as direções. Ele jogou uma bola de fogo
contra mim. Retribuí com uma coluna de chaminé – esse é o jeito londrino.
Eu havia trabalhado para soltar a coluna da chaminé com o que eu chamo de Impello vibrato, mas que Nightingale chama de pare de mexer em tudo e preste atenção, enquanto
o Sem Rosto entoava um cântico. Quando a luz de busca do helicóptero da polícia o atingiu no rosto, criei uma forma Impello tão pura quanto Nightingale poderia ter
desejado e a arremessei contra o bastardo. Sabia que ele ia tentar revidar, por isso me joguei para a direita e senti a bola de fogo passando bem perto do meu ombro.
Minha esperança era de que ele me seguisse com os olhos e não visse um quarto de tonelada de tijolos e cerâmica se aproximando dele pelo outro lado, mas ele deve
ter percebido o movimento com o canto do olho, porque levantou a mão e a coluna da chaminé se desintegrou meio metro antes dele.
Não parei para olhar com muita atenção para os fragmentos de tijolos, cimento e areia que voavam em torno dele, como se encontrassem uma esfera invisível e escorregassem
por ela, porque estava ocupado demais percorrendo a distância entre nós. Se nos limitássemos à magia, era evidente que ele ia acabar me jogando de cima do telhado,
por isso corri para ele esperando acertá-lo no rosto.
Estava perto, a menos de um metro de distância, mas o filho da mãe se virou, levantou a mão aberta em minha direção, e bati contra a mesma barreira que ele havia
usado com a chaminé. Não foi como bater em uma parede de fibra de vidro. Era escorregadio, como aquela sensação de resistência oscilante que experimentamos quando
tentamos unir dois ímãs. Caí deitado e comecei a girar sobre minhas costas, e ele caminhou para mim. Não esperei para descobrir se ele pretendia se gabar ou simplesmente
me matar. Em vez disso, usei Impello para agarrar a mesa de plástico do jardim, atrás do Sem Rosto, e arremessá-la contra a parte de trás das pernas dele. O mago
foi jogado para frente e encontrou meus dois pés.
– Merda! – ele gritou, alto o bastante para ser ouvido do helicóptero.
Agora eu olhava para ele de cima, e consegui acertar um bom soco no rosto dele antes de alguma coisa peluda e rosnando me acertar pela direita. Era o Garoto-Tigre,
que havia conseguido arrombar a porta do telhado para ir atrás de nós. Batemos contra a grade do parapeito, e eu só não despenquei para a morte porque me agarrei
com a mão direita a uma barra de ferro. Puxei o corpo de volta para a segurança do telhado e olhei para cima a tempo de ver o Garoto-Tigre levantando um braço musculoso,
pronto para me acertar. Ele tinha garras na ponta dos dedos. O que se deve fazer contra alguém que tem garras?
Com o barulho do helicóptero e meu medo, não ouvi o tiro. Vi a cabeça do Garoto-Tigre ser jogada para trás, e atrás dela um jato de sangue iluminado pelo farol do
helicóptero.
A cavalaria havia chegado, mas eu não conseguia ver se era Caffrey com seus ex-paraquedistas ou um atirador da CO19, o braço armado da Polícia Metropolitana. Fiz
a forma de uma pistola com a mão e a movi na direção do Sem Rosto. Esperava que o atirador fosse alguém da equipe de Caffrey, porque um oficial da CO19 não atiraria
com um civil aparentemente desarmado simplesmente porque era isso que meu gesto sugeria. Não sem uma autorização apropriada. Nove entre dez vezes, pelo menos.
O Sem Rosto não era idiota. Ele sabia que as probabilidades agora eram outras. Arremessou mais uma bola de fogo e eu me esquivei, mas o disparo não havia sido feito
contra mim. A bola de fogo subiu, e um instante depois a luz do helicóptero desapareceu. Ataquei a última posição conhecida do Sem Rosto, mas ele não estava mais
lá, e quando meus olhos se ajustaram à escuridão, descobri que ele havia abandonado o telhado. Sobre mim, o helicóptero fazia um barulho irregular e entrecortado.
Não é o tipo de som que você quer ouvir de um helicóptero, especialmente se ele estiver em cima da sua cabeça.
Vi a aeronave tombar para o lado sobre a rua, balançando enquanto o piloto tentava recuperar o controle. Eu devia estar saindo do telhado, mas não conseguia desviar
os olhos da nave. Soho é uma área urbana de grande densidade, como você pode imaginar. Se o helicóptero caísse ali, haveria centenas de mortos. Ouvi o motor mudar
de velocidade quando o piloto tentou ganhar altitude. Pessoas gritavam na rua acompanhando o que acontecia. Naquela noite haveria muitas imagens gravadas por celulares
e enviadas aos telejornais por pessoas com mais conhecimento de mídia do que bom senso.
Decidi que eu fazia parte desse grupo de pessoas destituídas de bom senso quando o helicóptero se aproximou de mim e percebi que meu rosto estava no mesmo nível
das hélices. Abaixei-me quando elas passaram por cima da minha cabeça, espalhando à minha volta um jato de ar quente que carregava o cheiro de combustível superaquecido.
Consegui ver onde os destroços voadores haviam riscado a pintura da parte inferior da fuselagem, e onde o Garoto Mascarado havia aberto um buraco do tamanho do meu
punho perto do nariz da aeronave. Com um estrondo pavoroso, o helicóptero ganhou altitude e se afastou. O piloto foi procurar um lugar seguro para pousar.
Com exceção das sirenes se aproximando, de repente tudo ficou muito mais quieto. Sentei-me no colchão que eu ainda gostava de pensar que era meu e de Simone, recuperei
o fôlego e esperei a chegada de mais problemas.
O primeiro a passar pela porta do telhado foi Thomas “Tanque Tiger” Nightingale. Ele me viu e me mostrou com os olhos uma área escondida atrás da escada. Balancei
a cabeça, apontei o corpo do Garoto-Tigre e usei os dedos para imitar o movimento de andar. Nightingale parecia confuso.
– Ele fugiu – gritei.
Nightingale saiu da área protegida e fez um giro completo em torno dele mesmo, só por garantia. Frank Caffrey e alguns homens de sua equipe saíram atrás dele. Eu
esperava ver os paraquedistas vestidos e equipados como ninjas, mas, é claro, eles ainda usavam roupas comuns. Se não estivessem armados com seus rifles, eu nem
teria prestado muita atenção neles.
Dois se afastaram do grupo para examinar o Garoto-Tigre, que continuou morto mesmo quando um deles chutou suas costelas.
Quando teve certeza de que o telhado era seguro, Nightingale se aproximou, e eu me levantei para recebê-lo – afinal, ninguém gosta de ser repreendido sentado.
– Era ele? – Nightingale perguntou.
– Era o Sem Rosto – contei. – Ele usa uma máscara.
– É parte do encantamento. Está ferido?
Dei uma olhada rápida.
– Só hematomas e um joelho torcido.
Ele apontou para os destroços da chaminé.
– Você fez aquilo?
– Sim, fui eu. Mas não deu certo. Ele estava cercado por uma espécie de campo de força.
As sirenes da polícia agora soavam na rua lá embaixo, e ouvimos o barulho das portas dos carros.
Nightingale olhou para Caffrey.
– Frank, é melhor voltar para a van com sua equipe. Iremos encontrá-los assim que esclarecermos tudo com a polícia local.
Os paraquedistas foram pulando de telhado em telhado em direção à escada de incêndio para Duck Lane. Eu esperava que Simone e as irmãs tivessem tido o bom senso
de seguir adiante depois que conseguiram escapar do prédio.
– Um campo de força – Nightingale falou, retomando nossa discussão.
– E ele pegou minha bola de fogo – revelei. – Já contei isso? Simplesmente a pegou no ar.
– Esse homem foi treinado por um mestre. Tem ideia de quantos anos de prática são necessários para chegar a esse nível? A dedicação e a disciplina necessárias para
isso? Você acabou de conhecer um dos homens mais perigosos do mundo. – Ele bateu no meu ombro. – E continua vivo. Isso é impressionante.
Por um momento aterrorizante pensei que ele ia me abraçar, mas, felizmente, nós dois lembramos a tempo que éramos britânicos. Mesmo assim, foi por pouco.
Ouvimos os passos dos policiais subindo a escada dentro do prédio.
Apontei para o corpo do Garoto-Tigre.
– O que vou dizer a eles sobre aquilo?
– Você não sabe quem atirou. Acha que pode ter sido um atirador da polícia. Não é isso?
Assenti. É sempre melhor dizer uma meia verdade do que uma meia mentira. Estamos em Londres, chefe, aqui não existem paramilitares reunidos em esquadrões da morte.
– Temos que conversar sobre isso – falei. – Antes de fazermos qualquer outra coisa.
– Sim – Nightingale concordou sombrio. – Acredito que temos.
Ele se encaminhou para a porta e avisou que estava no comando, e que o telhado era cena de um crime. Portanto, a menos que os policiais fossem da Equipe de Homicídios,
era melhor não se aproximarem dali, se sabiam o que era bom para eles.
– Eu sou da maldita Equipe de Homicídios – Stephanopoulos gritou lá de baixo. Cinco lances de escada não melhoraram seu humor, e ela apareceu no telhado como uma
cobradora de impostos vencidos há muito tempo. Olhou para Nightingale e então, caminhando com cuidado para preservar a cena, aproximou-se de onde o Garoto-Tigre
estava caído no chão. O sangue formara uma poça sob a cabeça dele, pegajoso e negro à luz que era refletida da rua.
Stephanopoulos olhou para o corpo, depois para mim.
– Outro não – disse cansada. – Devia prestar atenção nisso, filho. Nesse ritmo o Diretório de Padrões Profissionais vai ter o seu número na discagem rápida. – Ela
encarou Nightingale estreitando os olhos. – Qual é sua opinião, senhor? – perguntou.
Nightingale apontou o corpo com a bengala.
– É claro que foi alvejado por pessoa ou pessoas desconhecidas, sargento. – A bengala agora apontava o outro lado da rua. – Eu diria que os tiros foram disparados
do telhado ou do último andar daquele edifício.
Stephanopoulos nem se deu o trabalho de olhar.
– Alguma ideia de quem foi?
– Nenhuma, infelizmente. Mas duvido que ele tenha amigos ou família.
O que significava que ninguém ia criar problemas para acelerar o inquérito, ninguém ia reclamar o corpo. O que significava, em minha opinião, que uma boa parte dele
ia acabar no freezer do Dr. Walid.
Levei uma hora para sair daquele telhado, e novamente tive que entregar as camadas mais externas das minhas roupas a peritos que agora deviam ter mais pares dos
meus sapatos que eu. Eles recolheram amostras das minhas mãos e das de Nightingale para verificar se havia resíduos de pólvora, e nós dois descemos e seguimos em
carros separados para prestar os depoimentos preliminares. Eram três horas da manhã quando Stephanopoulos nos liberou, e essa hora até o sonho parece exausto.
Caffrey e os paraquedistas esperavam em uma via secundária perto de Broadwick Street. Eu estava certo sobre a van Transit, que era branca e tinha placas frias.
– Não gostamos de pagar o pedágio urbano – Caffrey respondeu quando perguntei sobre as placas. – Mas a van é limpa, pertence ao meu cunhado. – Os paramédicos conseguiram
me dar uma calça jeans preta, um moletom cinza com capuz e uma estampa AGRO no peito e um par de tênis, o suficiente para eu poder me livrar do traje de Pateta que
os peritos haviam me dado. Senti cheiro de óleo de arma de fogo no jeans, e tive uma forte suspeita de que a calça e o moletom haviam estado na bolsa com as armas
para abafar o barulho dos rifles.
Nightingale esperava paciente na garoa enquanto eu me vestia. Antes que pudesse ir me juntar a ele, Caffrey segurou meu braço.
– Não queremos estar aqui quando clarear – ele disse.
– Não se preocupe, isso não vai demorar – respondi.
Nightingale parecia magro e abatido sob as luzes de sódio, havia círculos escuros sob seus olhos e, quando ele tentou disfarçar, notei o tremor. Ele mantinha a expressão
neutra.
– Quer ir primeiro, senhor? – perguntei.
Ele assentiu, mas me olhou com frieza por um longo instante antes de finalmente suspirar.
– Quando o aceitei como meu aprendiz, pensei que poderia protegê-lo da necessidade de fazer certas “escolhas”. Agora vejo que estava enganado, e peço desculpas por
isso. Mas quero saber: que diabos estava tentando fazer?
– Eu tentava fazer minha obrigação como oficial juramentado de acordo com a Lei dos Direitos Humanos – respondi. – Mais especificamente, o direito da vida citado
no artigo dois, que determina que a força só deve ser usada em caso de absoluta necessidade, e que qualquer pobre bastardo que matarmos deve ser devidamente informado
sobre o que vai acontecer.
– E você expandiu a definição de ser humano para vampiros e quimeras – Nightingale concluiu.
– Podemos levar o caso para ser julgado no tribunal ou, melhor ainda, fazer uma petição ao parlamento para que a lei seja esclarecida – eu disse. – Mas não cabe
a nós tomar essa decisão, senhor... Certo? Somos só policiais.
– Se elas fossem feias, Peter, você teria se incomodado tanto? – Nightingale quis saber. – Existem algumas coisas horrendas andando por aí, falando e argumentando,
e queria saber se você também correria para defender essas criaturas.
– Talvez não – reconheci. – Mas isso só me torna superficial. Não quer dizer que eu esteja errado.
– Calculo que Simone e as irmãs tenham matado ou mutilado quase 229 pessoas desde 1941. Essas pessoas também tinham seus direitos humanos.
– Estou dizendo que não podemos simplesmente fingir que a lei não existe – respondi.
– Muito bem – Nightingale retrucou. – Vamos imaginar que as prendemos e que, sabe Deus como, elas sejam julgadas e condenadas por...
– Homicídio involuntário por evidente negligência, senhor – sugeri. – Creio que é razoável esperar que, depois de vinte anos, mais ou menos, elas tivessem notado
que não estavam envelhecendo e que os namorados morriam regularmente.
– Elas vão dizer que não lembravam – apontou Nightingale.
– E eu acredito nelas, senhor. O que significa que estão sofrendo de uma desordem mental conforme definição da Lei de Saúde Mental de 1983, e como representam uma
óbvia ameaça aos membros da população, podemos detê-las de acordo com a Seção 135 dessa lei, e removê-las para local seguro, onde receberão cuidado e avaliação.
– E quando elas ficarem com fome? Acha que deixá-las morrer de inanição é mais humano?
– Não sabemos se elas vão morrer. Talvez haja uma reversão do metabolismo, e se nada mais der certo, nós podemos alimentá-las. Elas fazem menos de uma vítima por
ano. Não devem precisar de muito.
– E quer passar o resto de sua vida assim?
– Não pode simplesmente eliminar alguém só porque é mais conveniente – argumentei. – Por que morreram todos os seus amigos, todos aqueles nomes na parede, se não
foi por isso?
– Não sei por que eles morreram. Não os conheci e continuo sem saber.
– Pois bem, eu sei, mesmo que você pareça ter esquecido. Eles morreram porque acreditavam que havia um jeito melhor de fazer as coisas, mesmo que ainda debatessem
que jeito era esse.
Eu vi nos olhos dele a vontade de acreditar.
– Não é nada que não possamos fazer – insisti. – Está me dizendo que você, eu e o Dr. Walid não podemos encontrar uma solução para isso? Talvez eu consiga encontrar
um jeito de alimentá-las com calculadoras de bolso e telefones celulares. E se pudermos encontrar um jeito de curá-las, também poderemos curar os outros. Não seria
melhor que simplesmente jogar uma granada de fósforo em todos? Além do mais, Molly talvez goste da companhia.
– Quer mantê-las na Folly?
– No início, sim, até descobrirmos em que medida elas são dignas de confiança. Quando elas estiverem estabilizadas, podemos montar uma casa intermediária. De preferência
em algum lugar onde não haja bares e boates de jazz.
– Isso é loucura – Nightingale opinou.
– E elas podem levar Toby para passear – acrescentei.
– Ah, bem, nesse caso, por que não abrimos nossas portas para todo mundo?
Eu soube que o havia convencido.
– Não sei, senhor – respondi. – Um projeto piloto não seria mais sensato em primeira instância?
– Ainda não sabemos para onde elas foram.
– Eu sei.
Levamos a van Transit para a Great Windmill Street e estacionamos ao lado do McDonald’s, e lá deixamos nosso exército particular enquanto íamos verificar a entrada
de serviço do Café de Paris.
– Por que não mandamos Frank para casa? – perguntei.
– Podemos precisar dele se aquele bastardo do mago negro aparecer de novo – Nightingale explicou.
– Está dizendo que não pode enfrentá-lo?
– A sorte favorece os preparados.
A porta de serviço estava encostada, o que significava que Simone estava lá dentro, provavelmente, e que tínhamos motivos suficientes para entrar no local sem um
mandado de busca, de acordo com a Seção 17 da Lei de Evidências Policiais e Criminais de 1984. Havia vidro quebrado na cozinha. Evidentemente, elas haviam feito
um lanchinho noturno. A porta do refrigerador de champanhe havia sido deixada aberta, e o barulho do compressor nos acompanhou pelo corredor de serviço.
– Devem estar no salão – falei, e Nightingale assentiu. – Dê-me cinco minutos para acalmá-las, depois pode entrar.
– Tome cuidado.
O corredor de serviço fazia uma curva e terminava em uma porta que se abria para um corredor sobre o salão. Diferentemente da última vez que eu estivera ali, as
mesas estavam arrumadas formando um oval em torno da pista de dança e eram cobertas por impecáveis toalhas brancas.
Eu soube assim que as vi sentadas à mesa que ocupavam antigamente, surpreendentemente pequena e localizada na posição da uma e meia em relação à banda. Havia três
garrafas em cima dela – uma para cada garota. Senti um vazio no estômago e um zumbido nos ouvidos, mas me obriguei a descer a escada para verificar. Elas ainda usavam
as roupas que vestiam quando partiram, mas retocaram o batom e o rímel para se tornarem mais apresentáveis. Testes posteriores realizados pelo Dr. Walid indicaram
que haviam usado álcool e fenobarbital, fórmula coerente com as cartelas vazias de comprimidos que encontramos guardadas na bolsa de Peggy.
Suicidas raramente são bonitos, mas as irmãs haviam conseguido evitar o vômito e a baba nas roupas. Acho que elas teriam ficado satisfeitas com o cenário que criaram
– três jovens radiantes no auge do início do futuro. Fiquei tão furioso que tive que me forçar a parar e respirar fundo antes de poder prosseguir.
Os olhos de Simone estavam abertos. Seus cabelos caíam soltos sobre os ombros, e tive que empurrá-los para trás para tocar seu pescoço com os dedos. A pele estava
apenas um pouco fria, e mais tarde foi determinado que a morte havia acontecido aproximadamente vinte minutos antes da minha chegada – mais ou menos quando eu discutia
ética comparativa com Nightingale. Tão perto dela, eu sentia o cheiro de madressilva e pó de tijolo. Mas a música, que só agora eu percebia que havia estado ali
o tempo todo, silenciara.
Não a beijei, nem fiz nada parecido.
Não queria contaminar a cena do crime.
14
Esta manhã eu acordei É assim que você sai da cama no dia seguinte. Você empurra o cobertor, gira o corpo, põe os pés no chão e se levanta. Vai ao banheiro, toma
um banho, se veste, desce, toma café, conversa com seu chefe, pratica sua forma, almoça, espanca o saco de areia na academia, toma uma ducha, se veste, entra no
Ford Asbo e vai à cidade para ter certeza de que seu rosto é visto. Você faz isso porque é seu trabalho, porque é necessário e porque, para ser honesto, você ama
tudo isso. Repita esse processo até os pesadelos pararem ou se acostumar com eles – o que acontecer primeiro.
Havia um relatório da perícia sobre as mortes das garotas, e os legistas atestavam suicídio. As irmãs tiveram um breve momento de fama quando foi discutida a hipótese
de um pacto suicida. Mas ninguém na mídia estava interessado o bastante para fazer uma investigação. Nightingale se encarregou do inquérito seguinte com a ajuda
de dois detetives emprestados pelo Departamento de Investigações Criminais de Westminster, e uma delas era minha Ninja Somali favorita. Não podíamos contar a eles
que as vítimas eram vampiras imortais do jazz, por isso fui encarregado de levar a história de volta aos tempos da guerra.
Simone Fitzwilliam, Cherie Mensier e Margaret “Peggy” Brown foram registradas como desaparecidas pelos pais em 1941, e embora a polícia houvesse conduzido uma investigação,
havia sido tudo muito superficial, na melhor das hipóteses. E por que não? A cidade estava em chamas naquela época. Pensei em procurar os parentes mais próximos,
mas o que diria a eles? Que uma tia-avó meio esquecida havia morrido no famoso bombardeio no Café de Paris, mas conseguira ter uma pós-vida bem divertida mesmo assim?
Até eu aparecer e acabar com a vida delas de novo?
Procurei a professora, a Srta. Patternost, que havia atravessado o Atlântico depois da guerra e fora morar com Sadie Weintroub, uma secretária de produção na Warner
Brothers, em seu agradável bangalô em Glendale.
Encontrei pessoas que cresceram no Soho depois da guerra, e elas se lembravam das três garotas que moravam na Berwick Street. Alguns pensavam que eram vadias, outros
achavam que eram lésbicas, mas a maioria não prestava muita atenção. Naquele tempo o Soho era assim.
Encontrei evidências suficientes para relacioná-las às outras quinze mortes, todas de músicos de jazz, bem como a outros 96 casos para os quais elas provavelmente
contribuíram para enfermidade crônica e colapso profissional, e meu pai estava entre eles. Nada do que descobri me convenceu de que Simone e as “irmãs” tinham a
mais vaga ideia da dor e do sofrimento que deixavam para trás. O Dr. Walid tentou me convencer de que era possível que Simone tivesse plena consciência de suas atitudes,
e que eu havia caído na mentira esfarrapada de um monstro doentio e sociopata. Mas eu sabia que ele só queria me fazer sentir melhor.
Escrevi a narrativa do caso com notas de rodapé, imprimi, anexei os documentos que comprovavam o relato, guardei tudo em uma pasta de arquivo e deixei a pasta na
seção de arquivo seguro na biblioteca comum. Depois apaguei tudo do meu computador e modifiquei o número de identificação do caso no HOLMES e no Sistema de Computadores
da Polícia para garantir que surgisse alguma indicação, caso alguém fosse procurar por ele. É possível que algum jornalista investigativo particularmente talentoso
notasse que havia vários veredictos disparatados de legistas com as mesmas tags de referência da Polícia Metropolitana, mas, considerando que não havia jogadores
de futebol, astros pop ou membros da realeza envolvidos, eu não precisava me preocupar com isso.
O que me preocupa é o Sem Rosto, o homem de máscara, que podia pegar bolas de fogo e desviar ataques de colunas de chaminé. A única coisa que me preocupava mais
que a ideia de um mago muito bem treinado com um gosto transtornado por experimentos com seres humanos era pensar que Geoffrey Wheatcroft provavelmente havia treinado
mais que um deles em seu clubinho de magia. Quantos Little Crocodiles havia por aí, e quantos deles eram magos do mal como o Sem Rosto? Sei que Nightingale se preocupa
com isso também, porque passávamos mais tempo na área de treino de tiro do que jamais passamos antes.
Na primeira segunda-feira de outubro, meu pai e The Irregulars fizeram a primeira apresentação oficial com o novo nome. Foi no Round Midnight em Chapel Market, Inslington.
Meu pai cumpriu duas horas de concerto sem errar nenhuma vez, e houve um momento, durante o famoso solo em “Love for Sale”, quando a expressão em seu rosto se tornou
tão transcendente que me perguntei se havia uma ligação entre música e magia, se talvez o jazz era realmente vida.
Ele estava exausto depois da apresentação, apesar de tentar esconder, por isso o coloquei em um táxi com a mamãe, dei uma gorjeta ao motorista e mostrei minha credencial
para garantir que a viagem seria rápida e sem incidentes. Depois voltei para tomar um drinque de comemoração com Max, Daniel e James, mas o Round Midnight é um pouco
caro, por isso subimos a rua até o Alma, onde a cerveja é mais barata e eles mantêm um canal pay-per-view de futebol.
– Eles nos convidaram para voltar – disse James.
– Porque fizemos os clientes deles beberem mais – explicou Max. – É bom para os negócios.
– Música sempre é algo bom para os negócios – James acrescentou.
– Parabéns – eu disse. – Vocês são uma banda de verdade, e desconhecidos vão pagar para ver vocês tocando.
– Graças ao seu pai – Max respondeu.
– E a Cyrus – opinou Daniel.
– A Cyrus – Max propôs, e nós fizemos um brinde solene.
– Conseguiu descobrir o que aconteceu? – perguntou James. – Com Cyrus, quero dizer.
– Não, parceiro – respondi. – A investigação foi inconclusiva.
– Um brinde aos mistérios não solucionados da Polícia do Jazz – ele propôs.
Bebemos a isso.
– E aos Irregulars de Lord Grant – adicionei, e fizemos mais um brinde.
Brindamos mais vezes ao longo de três rodadas, depois fomos comer um curry, e só então fomos para casa.
Não costumo ter pesadelos. Durmo bem, considerando todas as circunstâncias, mas tenho lembranças tão nítidas quanto vestigia. O cheiro de madressilva, o som rouco
que ela fazia quando ria, seu corpo curvilíneo em meus braços. Às vezes essas recordações me mantinham acordado até o dia nascer.
Então eu estivera dormindo com uma vampira do jazz. Fazia sentido de um jeito sinistro. Deusa de um pequeno rio no sul de Londres, vampira do jazz do Soho, o que
viria a seguir? Um lobisomem de Chelsea, uma súcubo de Sydenham? Decidi inventar algumas regras só para poder acrescentar uma nova regra às regras; nunca desrespeitar
a mãe de ninguém, nunca jogar xadrez com a máfia curda e nunca me deitar com uma mulher mais mágica que eu.
Fazia um dia frio e miserável de outubro quando saí de Londres. Rastejando para fora da cidade na hora do rush, tive tempo para observar as pessoas indo para o trabalho,
os ombros encurvados sob os casacos pesados, cabeça baixa. O verão havia acabado, e o promissor centroavante estava a bordo de um avião para o rio ao lado de uma
esteticista de Málaga.
Mas Londres não se importava. Ela nunca se incomoda quando a deixo, porque sabe que, para cada um que parte, dois chegam. Além do mais, ela estava ocupada demais
se arrumando em tons de vermelho e dourado e retocando o batom neon. Você não sabe, querido, jogadores de futebol saíram de moda. Agora a ação está no teatro. Ela
procurava um astro de Hollywood para provar seu talento em West End.
Passei por Colchester de novo, e dessa vez telefonei para avisar Lesley que estava a caminho. Quando me aproximei de um horizonte cinza chumbo, Brightlingsea cercou
meu carro como gelo endurecido sob um céu escuro. Quando parei na frente da casa do pai dela, Lesley esperava por mim parada embaixo de uma lâmpada externa. Em deferência
ao tempo, ela vestia um impermeável azul com capuz e havia trocado o echarpe e os óculos escuros de estrela do rock por uma máscara feita de plástico hipoalergênico
cor-de-rosa. Quando ela falou, ainda foi com a voz de outra pessoa.
– Tenho algo para lhe mostrar – disse.
No caminho de ruas escorregadias encontramos alguns moradores que acenaram com alegria para Lesley, olhando para mim com ar desconfiado.
– A vantagem de viver em uma cidade pequena – ela disse. – Todo mundo sabe, ninguém fica chocado.
– Acho que não gostam de mim – falei.
– Eles percebem que você pertence ao lado perverso da cidade do pecado.
Seguimos em frente passando por um estacionamento cheio de barcos cobertos com lonas batidas pelo vento frio, e saímos do outro lado na esplanada com a longa fila
de quiosques de praia e a piscina de concreto. Lesley me levou de volta ao abrigo de tijolos com seu improvável mural de céu azul e praias brancas.
– Agora vou tirar a máscara – ela avisou. – Acha que vai resistir?
– Não – respondi. – Mas vou me esforçar.
Lesley abriu as fivelas nas laterais.
– Esta é mais sofisticada – ela comentou. – Tenho outra de fecho de velcro que é pior ainda... Pronto.
E antes que eu tivesse uma chance de me preparar, a máscara havia sido removida.
Era pior do que eu imaginava. Tão terrível que minha mente não conseguia aceitar que aquilo era um rosto. O queixo havia desaparecido. No lugar dele, a pele embaixo de um lábio grotescamente grosso descia sobre uma série de caroços irregulares até se juntar à pele lisa e intacta do pescoço. O nariz era desforme, plano, uma saliência distorcida de carne rosada no meio de uma série de cicatrizes brancas e salientes riscando a testa e as faces. Eu me encolhi. Se não estivesse tenso, rígido, teria
recuado até a parede do abrigo.
– Posso abrir os olhos agora? – ela perguntou. – Já terminou?
Falei alguma coisa; não lembro o que foi.
Lesley abriu os olhos. Ainda eram azuis. Ainda eram os olhos de Lesley. Tentei me manter focado naqueles olhos.
– O que acha? – ela perguntou.
– Já vi coisa pior – respondi.
– Mentiroso. Que coisa? Quem?
– Seu pai.
Não era engraçado, mas percebi que ela reconhecia meu esforço.
– Acha que vai se acostumar com isso?
– Com isso o quê? – estranhei.
– Meu rosto.
– Você está sempre falando sobre seu rosto. É vaidosa demais. Precisa pensar em outras pessoas, em vez de passar o tempo todo pensando em você.
– Em quem eu deveria estar pensando?
Era realmente feio o jeito como a pele embaixo da boca enrugava quando ela falava.
– Ah, em mim, por exemplo. Quando você me arrastou no meio de todos aqueles barcos, bati com o dedão na calçada.
– Ah, é?
– Está doendo muito. Aposto que meu dedo inchou. Quer ver?
– Não quero ver seu dedo.
– Tem certeza?
– Certeza absoluta – ela disse, e começou a colocar a máscara de volta.
– Isso não é necessário – falei.
– Não gosto quando as crianças fogem.
Tentei não demonstrar o alívio que senti quando a máscara escondeu seu rosto outra vez.
– Vai haver mais cirurgias? – perguntei.
– Talvez – ela disse. – Mas quero lhe mostrar outra coisa agora.
– Tudo bem. O que é?
Lesley estendeu a mão, e sobre ela se formou um globo de luz com um belo brilho opalino – muito mais bonita que qualquer luz mágica que eu já havia produzido.
– Caramba – falei. – Você faz magia.
Nota histórica
Ken “Snakehips” Johnson realmente morreu em 8 de março de 1941, quando se apresentava no Café de Paris. Testemunhas oculares afirmam que ele tocava “Oh Johnny” quando a bomba atingiu o local, mas tomei a liberdade de mudar esse detalhe porque, francamente, “Body and Soul” é muito melhor como título de um capítulo.
Ben Aaronovitch
O melhor da literatura para todos os gostos e idades