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LUGARES ETRUSCOS / D.H. Lawrence
LUGARES ETRUSCOS / D.H. Lawrence

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

LUGARES ETRUSCOS

 

Os etruscos, como é sabido, foram um povo que ocupou o centro da Itália nos primeiros tempos romanos e a quem os romanos, com a sua habitual maneira de estabelecer relações de vizinhança, trataram de erradicar completamente, a fim de criar espaço para uma Roma com R bem grande. Não conseguiram fazê-los desaparecer na totalidade, porque eram muitos. Mas acabaram com a existência dos etruscos como nação e como povo. O que é uma consequência inevitável da Expansão, com E também muito grande, a única raison d’être de povos como os romanos.

 

Ora, dos etruscos apenas sabemos o que encontramos nos seus túmulos. E há também algumas referências em escritores latinos. Mas conhecimento em primeira mão só o que os túmulos facultam.

 

É então para lá que nos devemos dirigir: ou para os museus que contêm as coisas que lhes foram subtraídas.

 

No que me diz respeito, a primeira vez que tive consciência de estar perante objectos etruscos, no museu de Perugia, fiquei instintivamente atraído. Ao que parece, acontece sempre assim. Ou se sente imediata simpatia ou imediato desdém e indiferença. Há muita gente que despreza tudo o que, antes de Cristo, não seja grego, pela simples razão de que, se não é grego, devia sê-lo. E assim, tudo o que é etrusco é desvalorizado como fraca imitação greco-romana. Um grande historiador, Mommsen, chega mesmo a pôr em dúvida que os etruscos tenham existido. Talvez porque não lhe era conveniente reconhecer a sua existência. O que havia de prussiano nele estava fascinado pelo que havia de prussiano nos conquistadores romanos. E o reputado historiador quase chega a negar a existência do próprio povo etrusco. Apenas porque a ideia não lhe agradava. O que pelos vistos bastava ao suposto grande cientista da História.

 

Além do mais, os etruscos eram um povo vicioso. Julgamos sabê-lo, porque nos foi dito pelos seus inimigos e exterminadores. Tal como nós julgávamos saber dos sentimentos profundos dos nossos inimigos, na última Grande Guerra. Quem não é vicioso aos olhos do seu inimigo? Para os meus detractores eu sou a própria efígie do vício. À la bonne heure!

 

Ora, foram os romanos, esses seres tão inocentes, de hábitos tão puros e tão delicada alma, esses mesmos que esmagaram nação atrás de nação e destruíram a alma livre de tantos povos, que foram governados por Messalina, Heliogábalo e outros da mesma estirpe, foram eles que passaram a ideia de que os etruscos são viciosos. Portanto basta! Quandle maitre parle, tout lê monde se tait. Os etruscos eram viciosos! Até mesmo, quem sabe, possivelmente o único povo vicioso à face da terra. Você e eu, caro leitor, nós dois não temos mácula, pois não? Por isso, temos o direito de julgar por nós próprios.

 

No que me diz respeito, de resto, se os etruscos foram viciosos, tanto melhor. Para os puritanos tudo é impuro, como alguém já afirmou. E esses joviais vizinhos dos romanos, pelo menos, conseguiram evitar ser puritanos.

 

Mas para os túmulos sigamos então, para os túmulos! Numa solarenga manhã de verão, lá nos dirigimos aos túmulos. Saindo de Roma, a cidade eterna, agora já envolta em fumo escuro. Não foi longa a viagem - cerca de trinta e dois quilómetros pela Campânia em direcção ao mar, no sentido de Pisa.

 

A Campânia, com a vasta extensão verde do trigo já crescido, quase volta a ser humana. Embora se vejam também faixas de terreno molhadas e sem nada, pois os pequenos narcisos crescem agora nas pequenas matas ou então ocupam campos inteiros. E há zonas verdes e branco-espuma, cheias de camomila, na manhã solarenga deste princípio de Abril.

 

Dirigimo-nos a Cervetri, antigamente Caere, ou Cete, e que teve também nome grego, Agylla. Era uma cidade alegre e divertida ao tempo em que Roma apenas começava a erguer os primeiros casebres: é a tese mais provável. Seja como for, agora só restam os túmulos.

 

O inestimável e volumoso guia ferroviário italiano indica que a estação se chama Paio e que Cervetri dista oito quilómetros e meio: cerca de cinco milhas. Mas há uma camioneta que faz o transbordo.

 

Chegamos a Paio, uma estação no meio do nada, e perguntamos se há camioneta para Cervetri. Não! Lá fora está uma espécie de carroça muito velha, com um cavalo branco igualmente velho. Para onde vai? Para Ladispoli. Como não é para Ladispoli que queremos ir, ficamos ali a olhar para a paisagem. Não se arranjaria uma carruagem ou coisa que o valesse? Era difícil. Diziam sempre a mesma coisa: difícil! O que significava impossível. E não mexem uma palha para ajudar. Há algum hotel em Cervetri? Não sabem. Nunca ninguém lá esteve, apesar de ficar apenas a oito quilómetros e meio, uns túmulos, sim, parece que há. Bom, se calhar o melhor é deixar os nossos dois sacos na estação. Mas não os querem aceitar. Dizem que não estão fechados. Mas porque haveria um saco destes de ter chave e fechadura? Era difícil! Pois bem, ficam assim, e que os roubem se quiserem. Impossível! É uma responsabilidade moral muito grande! É impossível deixar um saco que não esteja fechado à guarda da estação. Uma grande responsabilidade para os empregados!


Assim sendo, fazemos uma última tentativa junto do homem que está a atender no pequeno bar. É muito lacónico, mas não parece má pessoa. Lá nos deixa pôr as coisas num canto do pequeno e obscuro lugar de comes e bebes e partimos a pé. Felizmente ainda só passa pouco das dez da manhã.

 

Era uma estrada direita e de terra esbranquiçada, ladeada por imponentes pinheiros de copa arredondada nas primeiras centenas de metros, uma estrada não muito longe do mar, deserta, espalmada e batida pelo sol. Ao longe na distância apenas um carro de bois aos solavancos, como se fosse um enorme caracol com os quatro cornichos no ar. Ao lado da estrada um alto asfódelo deixa cair as suas pintas espasmódicas e cor-de rosa totalmente ao acaso, sente-se um cheiro a gatos. Um pouco mais à frente, à esquerda, por trás do trigo verde e rasteiro, está o mar, o Mediterrâneo a brilhar calmo e indolente, como sempre sucede nas zonas mais baixas. Mais à frente vêem-se uns montes, e entre eles o pequeno fragmento de uma cidade cinzenta, com um edifício enorme e feio, também cinzento: eis Cervetri. Avançamos penosamente ao longo daquela estrada desoladora. Até nem é muito, apenas uns oito quilómetros e mais qualquer coisa.

 

Continuamos até mais perto e iniciamos a subida. Caere, como a maior parte das cidades etruscas, ficava no cimo de um monte escarpado, de altos rochedos. Não que esta Cervetri seja a mesma cidade etrusca. Caere, a verdadeira cidade etrusca, foi absorvida pelos romanos e, depois da queda do Império Romano, deixou de existir. Mas acabou por renascer timidamente e hoje o que se nos depara, fechada nas suas muralhas empedernidas, não passa de uma velha vila italiana, com algumas casas novas que parecem caixas iguais, todas cor-de-rosa, e moradias no lado de fora da muralha.

 

Passamos a porta da cidade, onde estão homens na conversa e mulas amarradas e, por entre aquelas ruas sinuosas e cinzentas, vamos à procura de um sítio para comer. Uma tabuleta diz Vini e Cucina, Vinhos e Refeições; mas o que se nos depara é um buraco cavernoso onde os condutores de mulas bebem um vinho quase negro.

 

Ainda assim, perguntamos ao homem que está na rua a limpar a camioneta se não há outro sítio. Diz-nos que não e por isso não temos outro remédio senão descer uns degraus e penetrar naquele esconso buraco.

 

As pessoas parecem todas muito afáveis. Mas a comida é a de sempre, guisado de carne, um caldo deslavado com macarrão desfiado lá dentro, tripas, e também espinafres. O guisado não sabe a nada, a carne ainda sabe a menos, os espinafres, ai de nós, foram cozinhados no vapor gorduroso do próprio guisado. Mas sempre era uma refeição - que incluía um bocado de uma coisa a que chamavam queijo de ovelha, tão salgado e rançoso que só podia ser da Sardenha; e um vinho que sabia, e certamente era, aquele vinho escuro da Calábria, acrescentado de uma boa percentagem de água. Mas como refeição até serviu. Assim já podíamos ir ver os túmulos.

 

Lá dentro, na caverna, pavoneia-se um pastor, de esporas e calças de pele de cabra, com o pêlo em farripas já de um castanho enferrujado a pender-lhe das pernas. Sorri, bebe o seu vinho, e logo nos vem à memória o antigo fauno, com as pernas todas cobertas de pêlos. O seu rosto é o rosto de um fauno, jamais tocado por qualquer moral. Sorri calmamente e fala de forma suave e tímida com o homem que tira o vinho dos barris. Vê-se bem como os faunos são tímidos, muito tímidos, sobretudo na presença de gente moderna como nós. Lança-nos um olhar pelo canto do olho mas logo o desvia, limpa a boca com as costas da mão e sai, as pernas cobertas de peles saltam para cima do esquálido pónei e aí vai ele num redemoinho sob as muralhas a caminho do campo aberto, deixando no ar o som suave e harmonioso dos cascos. É o fauno, mais uma vez escapando-se para fora do espaço da cidade, muito mais tímido e evanescente do que qualquer virgem da cristandade. Ninguém consegue decifrar os seus sentimentos.

 

Ocorre-me agora como raramente se vêem na Itália de hoje desses rostos de fauno que se viam antes da guerra: rostos morenos, de nariz afilado, com um pequeno bigode preto e por vezes uma pequena barbicha preta: olhos desconfiados, muito tímidos por trás de longas pestanas, mas capazes, uma vez por outra, de um olhar intenso e atrevido; e lábios que se mexiam muito e tinham esse modo atrevido de deixar ver os dentes, uns dentes sempre resplandecentes e brancos. Eram um tipo humano muito, muito antigo e bastante comum no sul. Mas agora só raramente se vêem desses homens de rosto de fauno, sem mácula e sem inconsciente. Aparentemente, morreram todos na guerra: sabiam que não podiam sobreviver numa guerra assim. O último que conheci, um simpático indivíduo da minha idade - quarenta e poucos anos - tornou-se uma criatura estranha e rabugenta, esmagada entre memórias de guerra constantemente presentes na sua mente e mulheres muito nervosas e sem sombra de remorso. Quando voltar ao Sul, provavelmente já terá desaparecido. Não podem sobreviver, esses homens com rosto de fauno, de perfil tão puro e uma estranha quietude, fora de qualquer moral. Porque só os rostos dilacerados sobrevivem.

 

E tudo isto a propósito de um pastor de Marema! Saímos dispostos a enfrentar o sol de Abril nas ruas de Cervetri, Cerevetus, a velha Caere. E um pequeno emaranhado de ruas já muito batidas, fechadas no interior de muralhas. Erguendo-se, à esquerda, fica a citadela, a acrópole, a zona alta, a arx da cidade etrusca. Mas agora a zona alta está abandonada, vê-se apenas um edifício grande e agressivo, parecido com qualquer palácio de governador ou bispo, ocupando todo o cimo a seguir ao portão do castelo, e um terreiro desolador prolongando-se por trás dele, com uma cerca estragada e a cair aos bocados a toda a volta. Não há palavras que possam descrever o estado de abandono em que se encontra, sente-se ali a morte mas é uma morte que contém uma grandeza muito maior do que a daquele emaranhado de pequenas ruas com gente que está viva.

 

A rapariga que trabalhava naquele buraco esconso, simpática mas má cozinheira, arranjou-nos um guia, o irmão dela, pois claro, para nos levar à necrópole. É um rapaz dos seus catorze anos e, tal como toda a gente neste lugar ermo, é tímido e desconfiado, do género de manter as distâncias. Pede-nos que esperemos um pouco e parte a correr para fazer qualquer coisa. Por isso, tomamos um café no pequeno café perto do qual a camioneta se mantém todo o dia parada, até o rapaz regressar com um amigo, que também irá connosco e sabe melhor o caminho. Vão os dois no seu próprio pequeno mundo à parte, caminhando à nossa frente um pouco afastados, ignorando-nos na medida do possível. Porque um estrangeiro é sempre uma ameaça. O B. e eu somos de boas maneiras, incapazes de fazer mal a quem quer que seja. Mas ao primeiro rapaz nem lhe passaria pela cabeça ir sozinho connosco. Sozinho nunca! Sentiria medo, aquele medo que se tem do escuro.

 

Conduziram-nos pela única porta que saía dali até à cidade velha. As mulas e os póneis estavam amarrados lá fora, na ladeira daquele lugar ermo, e mulas de carga iam chegando, tal como se vê no México. Virámos à esquerda, junto ao rochedo no cimo do qual o palácio, ou coisa do género, irrompia subitamente, de janelas escancaradas sobre o mundo. É de crer que tenham sido os etruscos a desbastar toda aquela parte do rochedo, e que toda a coroa onde agora se situa o perímetro da aldeia de Cervetri possa ter sido a arx, a arca, citadela interior e lugar sagrado da cidade de Caere, ou Agylla, a magnífica cidade etrusca, com os seus bairros de gregos. Havia, na movimentada Caere, uma colónia estabelecida de gregos da Jónia, ou de Atenas, quando Roma não passava ainda de um lugar quase inóspito. Cerca do ano de 390 a.C. os gauleses atacaram Roma de surpresa. E devido a isso os romanos enviaram as virgens vestais e outras mulheres e crianças para a então cidade rica de Caere, onde foram acolhidas pelos etruscos. É possível que as vestais refugiadas tivessem ficado alojadas neste rochedo. Ou talvez não. Pode não ter sido exactamente esta a localização de Caere. Contudo, sabe-se que ocupava esta mesma encosta, para leste e para sul, à volta do pequeno planalto, numa extensão de sete ou oito quilómetros, e por onde se estendia uma cidade enorme, trinta vezes maior do que a actual Cervetri. Mas acontece que os etruscos construíam tudo em madeira - desde casas a templos -, à excepção das muralhas de fortificação, dos enormes portões, das pontes e de outras obras de drenagem. E, tal como acontece com as flores, as cidades etruscas acabaram por desvanecer-se completamente. Só os montes tumulares, os grandes bolbos de terra, ficavam debaixo do chão. Porque as cidades, os etruscos construíam-nas, sempre que possível, num pequeno planalto não muito largo ou num pequeno monte entre os campos, preferindo como base um rochedo bem firme, tal como em Cervetri. À volta do topo do rochedo e do pequeno monte, passavam as muralhas da cidade, por vezes quilómetros envolvendo todo o perímetro. Dentro das muralhas escolhiam um lugar mais elevado para a citadela, a arx. E no exterior agradava-lhes que houvesse um declive pronunciado ou uma ravina, com outro monte do outro lado. Era nesse outro monte que situavam a sua cidade dos mortos, a necrópole. E assim, do cimo das suas muralhas, sobre esse vale onde o curso da água seguia o seu caminho entre os bosques, ali, desde a cidade cheia de vida, com as suas casas coloridas e alegres e os seus templos, podiam contemplar a cidade dos seus queridos mortos, tão perto, tão delicada na calma das suas veredas e símbolos de pedra, nas pinturas dos seus túmulos.

 

É assim Cervetri. Desde a orla do mar - e o mar, nos tempos etruscos, provavelmente estaria cerca de dois quilómetros mais perto -, a terra deixa a costa e vai subindo em encosta pouco íngreme até ao cimo dos pequenos rochedos da cidade. Mas mais atrás, saindo pela porta da cidade e virando na direcção oposta à do mar, tem de passar-se junto ao pequeno e abrupto rochedo da vila e continuar para baixo, pela rua empedrada até à pequena ravina coberta de bosques.

 

Mesmo no fim da ravina, a cidade - ou vila, para ser mais preciso - construiu uma lavandaria comunitária, onde as mulheres lavam a roupa branca quase em silêncio. São mulheres muito bonitas, pertencem a um velho mundo, atraem pela quietude e pelo recolhimento que todas as mulheres devem ter tido um dia. Como se, no íntimo de cada mulher, voltasse a haver de novo algo a procurar, algo que não se pode ver a olho nu. Algo que pode estar perdido, mas que também pode nunca vir a ser descoberto.

 

Junto do cimo, no outro lado da ravina, há uma pequena subida íngreme, com um carreiro definido na rocha, que vai dar a um caminho livre e os dois rapazes começam a trepar decididos, um pouco à nossa frente. Passamos através de uma porta rasgada na rocha. Dou uma espreitadela para dentro daquele buraco húmido e escuro que, aparentemente, terá sido um túmulo. Mas deve ter pertencido a gente de pouca importância, é apenas uma pequena cavidade na rocha, agora já vazia. As grandes sepulturas da Bandittacia têm a cobri-las montes tumulares, os tumuli. Ninguém se demora a ver aquelas pequenas reentrâncias escavadas na superfície do rochedo, entre os bosques. E eu trepo também, tento apressar-me atrás dos outros.

 

Para chegar ao topo e olhar a planície espraiando-se, rude e inculta. Como no México, mas numa escala mais pequena, a planície, extensa e incólume; ao longe, pequenas montanhas em forma de pirâmide alinhavam-se um pouco acima da zona plana, a curta distância; e no meio um pastor, de montada a galope à volta de um rebanho de ovelhas e cabras misturadas, parecendo de tamanho mínimo. Exactamente como no México, mas mais pequeno e mais humano.

 

Os rapazes seguiam à frente, através da terra bravia, onde havia muitas flores, frágeis verbenas de cor púrpura, frágeis malmequeres e muitas resedas selvagens que exalavam um perfume suave e adocicado. Perguntei aos rapazes como lhes chamavam. Deram a habitual e estúpida resposta: «É uma flor!». Nos pequenos montes que se sucediam na direcção do cimo da ravina os asfódelos cresciam selvagens e largos, com flores altas que me chegavam aos ombros, cor-de-rosa e bastante espasmódicos. Estes asfódelos são bem conhecidos e muito típicos de toda esta zona costeira. Pensei que os rapazes haviam de saber que nome tinham. Mas não! com ar envergonhado, voltaram a dar a mesma resposta: «É un flore! Puzza!» - É uma flor. Cheira mal! - Como ambos os factos eram mais do que evidentes, não havia nada que os pudesse contradizer. Embora o cheiro do asfódelo não seja desagradável, para mim: e acho a flor, agora que a conheço bem, muito bonita, no modo como abre as suas flores esbatidas, enormes, estelares e cor-de-rosa e como deixa muitos dos seus botões fechados, com as suas riscas escuras e avermelhadas.

 

Muita gente, contudo, fica desapontada quando verifica que os gregos atribuíram tanta importância a esta flor. Verdade seja dita que a palavra «asfódelo» faz pensar mais num lírio grande e misterioso do que nesta flor vigorosa e assertiva que espalha à sua volta um leve cheiro a cebola. Mas o suposto mistério dos lírios, a mim, não diz muito, nem mesmo a enigmática timidez dos lírios-mariposa. E tendo eu já estado naqueles montes rochosos da Sicília, entre os asfódelos cor-de-rosa, orgulhosos e altivos, elevando-se no ar como nuvens sobre o mar, maiores do que eu, desprendendo flores pequenas todas diferentes num esplendor impetuoso e fulgurante, ao mesmo tempo que guarda os botões listrados nas suas espigas, devo confessar que admiro a flor. Há nela uma glória altiva, tal como estimavam os gregos.

 

Houve alguém que afirmou julgar que nos enganamos quando chamamos a esta flor o asfódelo grego, pois algures no grego o asfódelo é chamado amarelo. Por isso, segundo certo escolástico cidadão inglês, o asfódelo dos gregos não seria outro senão o simples narciso.

 

Nada disso! Há no Etna um asfódelo muito bonito, amarelo e sedoso, puro oiro. E sabe Deus quão comuns são os narcisos selvagens na Grécia. Não parece ser uma flor tipicamente mediterrânica. Uma outra variedade de narciso, o narciso poliante, é puramente mediterrânico, e também grego. Mas não se pode dizer que o narciso comum seja a mesma coisa que o narciso-dos-prados!

 

De facto, só um inglês, e dos modernos, para querer transformar o asfódelo, flor de porte elevado, orgulhosa, altiva e audaz, num vulgar narciso! Eu acho que nós não gostamos do asfódelo, porque não gostamos de nada que mostre orgulho e altivez. O mirto desabrocha do mesmo modo que o asfódelo, de forma explosiva, lançando dos estames pequenas pétalas cintilantes. Creio que foi o que os gregos viram. Porque também eles eram assim.

 

Mas isto são cogitações enquanto se vai caminhando na direcção dos túmulos: que estão já ali à nossa frente, uns montes em forma de cogumelo, cobertos de erva, montes enormes que lembram cogumelos, ao longo da parte superior da ravina. Quando digo ravina, não se imagine uma coisa tipo Grand Canyon. Apenas uma dessas modestas ribanceiras, muito comuns por toda a Itália, e cujo fundo quase pode atingir-se de um salto.

 

Quando nos aproximamos, vemos que os montes estão apoiados numa base de alvenaria, com enormes cordões biselados e cinzelados na própria pedra, a toda a volta, tocando o chão em linhas flexíveis e assimétricas, tal como as cordas que prendem as bóias enormes e instáveis, meio submersas no mar. Também eles penetram ligeiramente no chão. E há uma correnteza de montes tumulares, com um caminho um pouco afundado entre os dois lados, paralelo à ravina. Parece evidente que era este o caminho principal da necrópole, tal como no cemitério-dos-milionários em Nova Orleães. Absit omenl

 

Entre nós e os montes tumulares há uma vedação de arame farpado. E um portão, também de arame, no qual está escrito que não é permitido apanhar flores, seja o que for que isso queira dizer, uma vez que não se vislumbra uma única flor. Um outro aviso diz para não dar gorjeta ao guia, porque o trabalho é gratuito.

 

Os rapazes correm até à pequena casa de cimento, ali mesmo ao lado, e trazem o guia: um rapaz jovem, de olhos avermelhados e com uma das mãos envolta em ligaduras. Perdeu um dedo no caminho-de-ferro, há um mês. É tímido, fala em voz baixa, não mostra qualquer simpatia ou jovialidade, mas não tem ar de má pessoa. Traz chaves e um candeeiro a gás, e nós atravessamos com ele o portão de arame e entramos para o sítio onde estão os túmulos.

 

Há uma estranha quietude e uma calma pacífica e invulgar nos lugares etruscos que já visitei, diferente da agressividade latente dos lugares celtas, da alguma repugnância que se sente em Roma e na antiga Campânia, ou do sentimento de profundo horror nos lugares das grandes pirâmides no México, Teotihuacán e Cholula, e Mitla, mais a sul; ou mesmo dos acolhedores lugares de culto de Buda, no Ceilão. Há nesses enormes montes tumulares cobertos de erva, com os seus antigos aros circundantes em pedra, uma quietude e uma suavidade tais que transmitem, à medida que vamos andando ao longo do caminho principal, uma sensação de isolamento e de felicidade. É verdade que era uma manhã calma e solarenga de Abril e que as cotovias levantavam voo da erva macia dos túmulos. Mas irradiava no ar daquele lugar profundo uma tão grande quietude, uma tão grande suavidade, que nos faziam sentir que estar ali era uma coisa boa para a alma.

 

E a mesma sensação ocorria quando descíamos os poucos degraus e entrávamos nas salas de pedra, já dentro do túmulo. Agora já nada ali existe. É como uma casa que foi esvaziada: os inquilinos partiram e parece aguardar que outros cheguem. Mas seja quem for que ali esteve, deixou no ar um sentimento benfazejo que aquece o coração e apazigua as entranhas.

 

São surpreendentemente amplas e acolhedoras estas casas dos mortos. Feitas na rocha maciça, parecem-se exactamente como quaisquer outras casas. O tecto tem uma viga central, para imitar as traves-mestras das casas comuns. Sim, é mesmo uma casa, um lar.

 

Logo à entrada, há duas pequenas salas, uma à direita, outra à esquerda, as antecâmaras. Diz-se que as cinzas dos escravos eram colocadas aqui, em urnas, sobre grandes mesas de pedra. Porque os escravos eram sempre queimados, supõe-se. Mas em Cervetri os grandes senhores eram sepultados de corpo inteiro, por vezes no grande sarcófago de pedra, de outras vezes em grandes caixões de terracota, com os seus melhores bens. Na maior parte das vezes, todavia, ficavam apenas ali colocados, no largo leito de pedra que circunda o túmulo, agora vazio, e aí ficavam a repousar, sobre um ataúde, sem estarem fechados em sarcófagos mas parecendo dormir, como em vida.

A sala central é a maior; ao meio deve ter havido uma grande coluna em forma de quadrado, aparentemente para suportar um telhado firme, tal como o pau de fieira suporta o telhado de uma casa. E a toda a volta da sala corre um largo leito de pedra, por vezes de duas prateleiras, onde se punham os mortos, nos seus caixões, ou a descoberto em padiolas de pedra ou madeira cinzeladas, um homem resplandecente na sua armadura doirada, uma mulher vestida de branco e carmesim, com colares grandes no pescoço e anéis nos dedos. Aqui ficava toda a família, os grandes chefes e suas mulheres, os lucumones, mais os seus filhos e filhas, todos num único túmulo.

 

Um pouco mais à frente há um caminho em pedra, muito apertado, estreitando ainda mais à medida que sobe, tal como no Egipto. Tudo, de resto, faz lembrar o Egipto: aqui, porém, tudo é plano, simples, quase sempre sem qualquer decoração e de proporções tão simples e naturais que quase não damos pela beleza das coisas, pois apresentam-se-nos assim naturalmente, fisicamente. É a beleza natural da proporção da consciência fálica, em contraste com a proporção, mais estudada e mais estática, da Consciência mental e espiritual a que estamos habituados.

 

Através do corredor interior chega-se à última sala, pequena e escura, e a mais importante. Mesmo frente à porta começa o leito de pedra, onde presumivelmente ficava o lucumo e o tesouro sagrado que o acompanhava, o pequeno barco da morte que o levaria para o outro mundo, os vasos de jóias com os seus adornos, os vasos com as pequenas taças, as pequenas estatuetas e utensílios de bronze, as armas, a armadura: a imponente bagagem dos mortos importantes. Por vezes, nesta sala interior, podia também ficar a mulher, a grande dama, com todos os seus mantos, de espelho na mão, e os seus tesouros, jóias, pentes, caixas de prata com cosméticos, em urnas e vasos colocados a seguir uns aos outros. É extraordinária a quantidade enorme de coisas que levavam na viagem para a morte.

 

Um dos túmulos mais importantes é o túmulo dos Tarquínios, a família que deu reis etruscos à primitiva Roma. Desce-se um pequeno lanço de escadas e entra-se no lar subterrâneo dos Tarchne, como os etruscos escreviam. No meio da sala grande há dois pilares, à esquerda em relação ao rochedo. As paredes da enorme sala de estar dos Tarquínios mortos, se podemos dizer assim, são estucadas, mas não existem quaisquer pinturas. Há apenas uns escritos nas paredes e nos nichos das sepulturas na parede acima do longo leito de prateleira dupla; pequenas frases escritas desordenadamente a tinta vermelha ou preta, ou arranhadas com as unhas no estuque, ao acaso, por vezes de baixo para cima e da direita para a esquerda, sintoma da própria vida etrusca, tão despreocupada e tão cheia de vida. Podemos ler com grande facilidade estas joviais inscrições, que parecem ter sido escritas a giz, com as arcaicas letras etruscas, no dia anterior e sem qualquer intenção especial. Mas quando as lemos não sabemos o que significam. Avie - Tarchnas - Lanhai- Clan. Parece claro. Mas que querem dizer? Ninguém sabe ao certo. Nomes, nomes de famílias, relações de parentesco, títulos de mortos - pode ser tudo isso. «Aule, filho de Larte Tarchna», concluem os especialistas, depois de aturados esforços. Mas a verdade é que não é possível decifrar uma frase completa. A língua etrusca é um autêntico mistério. E contudo, nos tempos de César, era a língua usada no dia a dia da maior parte das populações da Itália central - ou, pelo menos, da sua parte leste. E muitos romanos falavam etrusco, tal como hoje nós falamos francês. Apesar disso, a língua está completamente extinta. O destino é uma coisa estranha.

 

O túmulo chamado Grotta Bella é interessante devido aos pilares, com baixos-relevos gravados e relevos em estuque, e às paredes que envolvem os nichos das sepulturas e também se encontram por cima do leito da morte à volta de todo o túmulo. As coisas representadas são, na sua maior parte, armas de guerreiros e insígnias: escudos, capacetes, armaduras, caneleiras, espadas, sapatas, cintos, os colares dos nobres: e a taça sagrada por onde se bebia, o ceptro, o cão que é o guardião do homem até na viagem para a morte, os dois leões que ladeiam o portão da morte ou da vida, o tritlo, ou peixe-homem, e o ganso, a ave que desliza sobre as águas e mergulha bem fundo a cabeça no dilúvio do Princípio e do Fim. Tudo isto está nas paredes. Fossem coisas reais ou imagens que os representavam, apareciam sempre nos túmulos. Mas já nada resta. E quando nos lembramos da quantidade de coisas que aqueles tesouros dos mortos mais notáveis devem ter contido, e de cada túmulo grande cobrir vários outros, e de ser possível encontrar centenas de túmulos na necrópole de Cervetri, e de existirem túmulos em grande número no outro lado da velha cidade, na direcção do mar, podemos fazer uma ideia da riqueza imensa que a cidade sepultava juntamente com os seus mortos, nos dias em que Roma tinha muito pouco ouro e em que até o bronze era precioso.

 

Os túmulos parecem pacíficos e amistosos, assim escavados na rocha sob a terra. Não se sente nenhuma sensação de opressão quando descemos. Isso dever-se-á, em parte, ao sortilégio que emana das proporções naturais de um mundo que não fora ainda estragado nem ficcionado e que está presente em tudo o que é etrusco. Há nas formas e nos movimentos das paredes daquele mundo dos mortos uma tal simplicidade, aliada a uma naturalidade e a uma espontaneidade muito peculiares e livres de amarras, que reconforta a alma quase imediatamente. Os gregos procuravam provocar determinados efeitos sobre a mente, e os povos góticos ainda mais. Mas os etruscos, não. Tudo o que fizeram, ao longo de séculos de vida simples, era tão natural e tão simples como respirar. Deixavam que tudo brotasse em liberdade e alegria, gozavam a vida plena. Até nos túmulos isso se pode ver. A verdadeira característica dos etruscos reside nisso: simplicidade, naturalidade, e uma plenitude vital que não sentia necessidade de orientar a mente ou a alma nesta ou naquela direcção.

 

A morte era, para os etruscos, uma continuação agradável da vida, com jóias e vinhos e flautas tocando para se dançar. Não era êxtase bem-aventurado, nem um qualquer céu, nem purgatório de tormentos. Era apenas a continuação natural da plenitude da vida. Tudo era realizado em função da vida e do vivê-la.

 

E todavia, tudo o que era etrusco, à excepção dos túmulos, desapareceu completamente. Parece quase impossível. Quando saímos, enfrentando de novo o sol de Abril e caminhando pela estrada funda que passa entre os montes tumulares, tão suaves na erva que os cobre, deitamos um olhar na direcção dos degraus das escadas que conduzem aos túmulos sem portas. E o que sentimos é a plenitude, a amenidade, a satisfação que deles vem. Um lugar de quietude.

 

O B., que regressou há pouco tempo da índia, fica surpreendido ao ver pedras fálicas à entrada de muitos túmulos. Mas são como as lingas de Xiva, em Benares! São exactamente como as pedras fálicas nas grutas de Xiva e nos templos de Xiva!

 

Ora aqui está uma coisa curiosa. Pode passar-se o tempo de uma vida a ler tudo o que há sobre a índia ou sobre a Etrúria, sem que se encontre uma só linha a falar daquilo que mais impressiona o visitante logo nos primeiros cinco minutos da sua chegada a Benares ou a qualquer necrópole etrusca: o símbolo fálico. Ei-lo por todo o lado, inquestionável, em pedra, à volta de todos estes túmulos. Ei-lo, grande ou pequeno, na vertical, junto às entradas ou inserido, pequeníssimo, na rocha. A pedra fálica! Talvez alguns dos tumuli tivessem uma grande coluna fálica no topo: outros talvez junto à porta. Há ainda pequenas pedras fálicas, mais ou menos de quinze centímetros, inseridas na parte de fora da rocha, junto à porta: parecem ter estado sempre no exterior. Ao mesmo tempo, parece que fazem parte da própria rocha. Mas não, o B. tira um deles. É esculpido e tem um encaixe, executado previamente. O B. volta a colocar a pedra fálica no encaixe onde provavelmente foi colocado quinhentos ou seiscentos anos antes do nascimento de Jesus Cristo.

 

As enormes pedras fálicas que, segundo se diz, existiam no topo dos tumuli, têm por vezes entalhes belíssimos, e por vezes também inscrições. Os historiadores chamam-lhes cippus, cippi. Mas o certo é que o cippus é uma coluna truncada, habitualmente usada como pedra tumular: uma coluna baixa, muitas vezes quadrada, cortada de lado a lado, truncada, para representar possivelmente uma vida que terminou cedo. Algumas das pequenas pedras fálicas são assim - truncadas. Mas outras são bastante altas, enormes e decoradas, com um cone duplo que é seguramente fálico. Quanto às pequenas pedras fálicas inseridas nas rochas, essas, não podem representar vidas que terminaram cedo.

 

Em alguns túmulos, logo à entrada, há uma pequena casa em pedra trabalhada, ou uma arca a imitar pedra, com dois tampos inclinados, como os lados do telhado de uma casa oblonga. O rapaz que é nosso guia, que trabalha nos caminhos-de-ferro e está longe de ser um erudito, vai dizendo quase em surdina que os túmulos das mulheres tinham destas casas de pedra, ou arcas, sobre eles - à entrada, diz ele - e que os túmulos dos homens tinham pedras fálicas, as lingas. Mas, uma vez que os túmulos maiores eram túmulos de família, é de crer que tivessem as duas coisas.

 

A casa de pedra, como o rapaz dizia, sugere a Arca de Noé sem a parte do barco: a caixa com a Arca de Noé que tivemos em crianças, cheia de animais. E é precisamente o que ela é, a Arca, arx, o útero. O útero do mundo, do qual nasceram todas as criaturas. O útero, arx, o último refúgio a que a vida regressa. O útero, a arca da aliança, onde reside o mistério da vida eterna, o maná e os mistérios. Ali estava, colocada à entrada dos túmulos etruscos de Cervetri.

 

Talvez a insistência nestes dois símbolos, no mundo etrusco, possa explicar as razões que levaram à completa destruição e aniquilação da consciência etrusca. O novo mundo quis livrar-se desses símbolos do velho mundo, do velho mundo físico. A consciência etrusca estava muito profundamente enraizada nestes símbolos, o falo e a arx. E por isso a consciência etrusca, todo o seu pulsar e ritmo, tinha de ser apagada.

 

E, ouvindo as cotovias a cantar sob o céu azul e sentindo o calor do sol de Abril, voltamos a perceber por que razão os romanos chamavam viciosos aos etruscos. Mesmo nos seus tempos mais prósperos os romanos estavam muito longe de serem uns santos. Embora achassem que deviam sê-lo. Odiavam o falo e a arca, porque desejavam impérios e dominações e, acima de tudo, riqueza: ganho social. Não é possível dançar alegremente ao som da flauta e ao mesmo tempo conquistar nações e arrebanhar quantidades enormes de dinheiro. Delenda est Cartago. Para os ambiciosos, tudo o que se interponha entre eles e o objecto da sua ambição é a incarnação do vício.

 

Ainda há muitos túmulos, embora já pouco reste dos grandes montes tumulares. A maior parte foi-se desgastando ao longo do tempo. Mas existem bastantes: alguns ainda de pé, com água até meio; outros em trabalho de escavações num lugar que mais parecia uma pedreira, transmitindo uma sensação de silêncio e abandono. Muitos, muitos, muitos túmulos e a todos se tem de descer, dado que foram escavados abaixo da superfície da terra: nos casos em que há ainda uma elevação tumular, pode ver-se que era construída posteriormente, com terra solta, dentro do perímetro definido pelo aro de pedras à volta. Apesar de alguns dos tumuli já estarem desgastados, toda a paisagem aparece como se estivesse empolada com pequenos grumos. Mas as casas tumulares foram ficando, aqui todas mais ou menos iguais, embora haja maiores e mais pequenas, e umas tenham aparência nobre e outras mais humilde. A maior parte parece ter, para lá da antecâmara, várias divisões. E as casas ao longo da rua dos mortos dão a sensação de terem sido cobertas, há muito tempo, pela circular beleza dos tumuli) casas tumulares para fruição dos mortos, com o cone alto e fálico erguendo-se no topo.

 

A necrópole, segundo podemos ver, termina num descampado com umas escavações deixadas a meio e parcialmente alagadas. Olhamos para trás enquanto vamos saindo do cemitério dos etruscos. Todos os túmulos se encontram vazios. Foram todos saqueados. Os romanos chegaram a ter respeito pelos mortos, durante o tempo em que a sua religião era suficientemente etrusca para exercer algum poder sobre eles. Mas depois, quando eles próprios começaram a coleccionar antiguidades etruscas - precisamente da mesma forma como hoje se coleccionam antiguidades de toda a espécie -, deve ter havido as maiores pilhagens. Mesmo após o desaparecimento do ouro, da prata e das jóias - o que é natural que tenha ocorrido pouco tempo depois do início da dominação romana - é de crer que os vasos e os objectos de bronze tenham permanecido nos seus lugares. Até ao dia em que romanos mais endinheirados se lembraram de começar a coleccionar vasos, vasos «gregos», com motivos pintados. E a partir daí, as pequenas figuras de bronze, as estatuetas, os animais, as embarcações de bronze que os etruscos colocavam aos milhares nos seus túmulos, passaram a ser a grande moda entre os coleccionadores romanos. Alguns romanos gabavam-se mesmo de possuir um ou dois milhares dessas pequenas figuras de bronze etruscas. Depois, com a queda de Roma, os bárbaros pilharam o que ainda restava. E assim foi continuando ao longo dos tempos.

 

Apesar de tudo, há túmulos que se conservaram virgens, porque a terra os foi enchendo, tapou mesmo a porta de entrada e cobriu a estrutura de pedra das casas tumulares: e árvores e arbustos foram crescendo sobre os túmulos; parecia um campo sem nada de especial, apenas com uns pequenos montes, umas elevações e arvoredo.

 

E sob tudo isso ali continuavam os túmulos no seu silêncio, alguns saqueados mas outros, por incrível que pareça, ainda virgens. Foi assim, absolutamente inviolado, que foi encontrado um em Cervetri, isolado dos outros e afastado da necrópole, situada no outro lado da cidade e oculta até 1836, quando foi descoberta e, claro está, já esvaziada de tudo. O general Galassi e o arcipreste Regolini foram as pessoas que o trouxeram de novo à luz do dia e por isso é conhecido como o túmulo de Regolini-Galassi.

 

Ainda hoje constitui motivo de grande interesse: o túmulo propriamente dito é rudimentar e estreito, uma espécie de passagem com uma divisória a meio, coberto por um tecto em ogiva, habitualmente conhecida como falsa ogiva, e que é feito deixando as pedras horizontais e lisas do tecto um pouco salientes umas a seguir às outras, à medida que vão subindo dos dois lados até quase se tocarem. Só depois eram colocadas as pedras maiores, que funcionavam como cobertura e modificavam o tecto liso numa quase ogiva gótica: uma ogiva construída, imagine-se, oito séculos antes de Cristo.

 

Na primeira sala estavam os despojos de um guerreiro, com a sua armadura em ferro, bela e harmoniosa como se tivesse acompanhado sempre o crescimento daquele corpo durante a vida, como se estivesse entranhada nas suas cinzas. Na sala interior havia peças de joalharia muito belas e frágeis, de um doirado claro, sobre o leito de pedra, brincos no sítio de orelhas que já só eram cinza, braceletes nas cinzas que já foram braços, certamente de uma dama nobre, há uns três mil anos.

 

Tudo foi saqueado. O que ficou desse tesouro tão delicado, sensível e belo, está na sua maior parte no Museu Gregoriano do Vaticano. Em dois dos pequenos vasos de prata do túmulo de Regolini-Galassi há uma inscrição arranhada - Mi Larthia. Foram as primeiras palavras escritas em etrusco a serem conhecidas. Mas afinal que significam? «Esta é Larthia» - se é que Larthia foi uma mulher.

 

Caere ainda deve ter sido, setecentos anos antes de Cristo, uma cidade rica e luxuriosa, apreciadora de ouros finos e banquetes, danças, e grandes vasos gregos. Agora, porém, já nada disso se pode ver. Os túmulos estão vazios: os tesouros que guardavam, e Cervetri manteve guardadas, apesar de tudo, muitas coisas, estão nos museus. Se lá forem hão-de ver, como eu, uma vila pequena e escura, meio abandonada nas suas apertadas muralhas - com não mais do que uns mil habitantes - e algumas sepulturas já vazias.

 

Mas pelas quatro horas de uma tarde solarenga, quando tomamos o nosso lugar na camioneta que nos levará aos solavancos até à estação, vemos que está rodeada por umas doze mulheres, simpáticas e robustas, despedindo-se de uma sua conterrânea. E nesses rostos cheios, de pele tisnada, tão simpáticos e joviais, de novo surge a quietude esplendorosa desses etruscos amantes da vida! Notam-se sobrancelhas gregas quase todas iguais umas às outras. Mas sobressaem mais aqueles rostos intensos e calorosos, ainda com a jovialidade da vitalidade etrusca, muito belos no seu mistério da arca ainda virgem, na plenitude do conhecimento fálico e na maneira despreocupada como os etruscos viviam a vida!

Povoação de Cervetri. Vista da necrópole de Banditaccia, Cervetri.

 

Túmulo Maroi.

Túmulo II, utilizado desd meados do século VIII até ao final do século V a.C.

 

Túmulo dos Cinco Assentos em Cervetri.

 

Túmulo nº9 ou dos Vasos Gregos no interior do túmulo II.

 

. Túmulo G. Moretti em Cervetri.

 

Túmulo dos Relevos. Túmulo dos Tarquínios.

 

Cipos masculinos. Cipos femininos.

 

Túmulo Regolinni-Galassi, encontrado intacto em 1836 (necrópole do Sorbo).

 

Necrópole de Banditaccia, Cervetri.

 

Em Cervetri não há onde dormir, pelo que só nos restava regressar a Roma ou então continuar até à Cività Vecchia. A camioneta fazia a ligação para Roma e por isso deixou-nos na estação de Paio por volta das cinco horas da tarde, no meio do nada. Mas nós íamos para Tarquínios e não para Roma, de modo que tínhamos mais duas horas de espera, até às sete.

 

À distância era possível ver as moradias de betão e as casas mais recentes do que devia ser Ladispoli, uma estância balnear, a cerca de três quilómetros. E assim lá resolvemos partir a pé para Ladispoli, pela estrada plana ao nível do mar. À nossa esquerda, no bosque que faz parte de um extenso parque natural, os rouxinóis já tinham começado o seu canto e, olhando sobre a muralha, podiam ver-se muitos ciclames pequenos e cor-de-rosa brilhando, pela luz da tarde, à superfície da terra.

 

Continuámos a andar e à saída de uma curva vimos surgir de repente o comboio para Roma. Não pára em Ladispoli, cujos três quilómetros de ramal só estão em funcionamento na época de verão. Quando nos aproximávamos das primeiras e horrendas moradias de betão, passou por nós a chiar a velha carroça puxada pelo velho cavalo branco, ambos com ar de fantasmas batidos pelo sol. Quase nos atingia.

 

Ladispoli é uma daquelas terras pequenas e feias da costa romana, com moradias recentes em betão, hotéis igualmente recentes e também de betão, quiosques e lojas de praia; pobreza e apatia durante dez meses do ano e uma agitação fervilhante em Julho e Agosto, à custa de banhistas em traje ligeiro. Agora estava deserta, quase completamente deserta, à excepção de dois ou três funcionários e quatro crianças mais rabinas.

 

O B. e eu estávamos sentados na areia de lava cinzento-escura, junto àquele mar calmo e fundo sobre o qual o céu, cinzento e informe, emitia uma luz vaga, pálida. Pequenas ondas verdes saíam da escuridão cinzenta do mar, da estranha e funda quietude da água, e vinham rebentar em pequenos redemoinhos. É uma costa que possui um estranho ar de abandono, como estranho é o mar, parado e fundo, sem vida, a terra parecendo ter exalado o seu último suspiro, inerte para sempre.

 

E contudo este é o mesmo mar Tirreno onde os barcos etruscos desfraldavam as velas imponentes e batiam os mares a poder do braço de escravos, deambulando por eles até à Grécia e à Sicília, a Sicília dos tiranos gregos; ou por Cumae, a cidade da velha colónia grega da Campânia, que é hoje a província de Nápoles; ou até ao Elba, de onde os etruscos extraíam minério de ferro. Os etruscos eram marinheiros. Diz-se até que são originários da Lídia, na Ásia Menor, e que daí vieram por mar em data que se perde na bruma do tempo, antes do século VIII a.C. É difícil imaginar que todo um povo, ou uma grande parte dele, se tenha aventurado pelos mares nas frágeis embarcações daqueles tempos e dirigido, ao mesmo tempo, para uma zona precisa e pouco povoada da Itália central. Mas pode ser que alguns barcos o tenham feito - até mesmo antes de Ulisses. Como também pode ser que os marinheiros tenham desembarcado nas costas desse mar tão estranho e calmo, tenham feito acampamentos e entrado em contacto com os nativos. Se os vindouros eram lídios ou hititas, de cabelo apanhado atrás com tranças, ou se vinham de Micenas ou Creta, ninguém sabe. Talvez todos, afinal, tenham ali chegado em momentos diferentes. Isto porque, nos tempos homéricos, uma movimentação sem descanso parecia ter tomado conta da bacia do Mediterrâneo, e barcos de todos os povos pejavam o mar e multiplicavam-se como carneiros. E, para além de gregos, helenos e indo-germânicos, outros povos se preparavam para avançar também.

 

Contudo, fossem quais fossem as pequenas embarcações que, há três mil anos ou mais, vieram dar a esta areia vulcânica, suave, profunda, de cinza escura, os seus marinheiros decerto não encontraram despovoados aqueles montes em terra. Se os lídios ou os hititas transportaram para terra os seus pequenos barcos de proa dupla e aí fizeram acampamentos por trás das dunas para se abrigarem do vento forte e húmido, que nativos se terão aproximado a espreitar com a sua curiosidade? Porque havia nativos, disso não restam dúvidas. Antes da queda de Tróia, antes mesmo de Atenas ter sido sequer sonhada, havia nativos na região. Viviam nos montes, em cabanas cobertas de colmo e em grupos dispersos; com as sementes que deitavam à terra, com os seus rebanhos de cabras e talvez de gado bovino. Provavelmente não há grande diferença entre o que vê quem chega a uma qualquer velha aldeia irlandesa, ou a qualquer aldeia das Hébridas escocesas no dia da festa do príncipe Charlie, e quem chegasse a uma aldeia destes nativos italianos, junto ao Mar Tirreno, há três mil anos. Mas no tempo em que a história etrusca começa, em Caere, cerca de oitocentos anos a.C., havia muito mais do que uma simples aldeia em cada monte. Havia uma cidade erguida pelos próprios nativos, disso podemos estar certos; fiavam o linho e trabalhavam o ouro muito antes de o túmulo de Regolini-Galassi ter sido construído.

 

Seja como for que tudo tenha acontecido, a verdade é que houve gente que chegou e outra que já lá existia; quanto a isso nenhuma dúvida. E também, acima de tudo, que nem uns nem outros eram gregos ou helenos. Foi nos tempos que antecederam a ascensão de Roma: provavelmente os primeiros marinheiros terão desembarcado em tempos muito anteriores a Homero. E parece que, tenham vindo em pequeno ou grande número, eram oriundos do oriente, da Ásia Menor, ou de Creta, ou de Chipre. Eram, devemos aceitá-lo, da mais longínqua e antiga proveniência mediterrânica e asiática ou egeia. O período inicial da nossa história corresponde ao declínio de uma história que lhe é anterior, e essa nunca poderá ser escrita. A palavra pelágio não é senão uma palavra-sombra. Mas as palavras hitita e minoano, lídio, cariano, etrusco, essas emergem da própria sombra, da mesma sombra profunda de onde vêm os povos a que os nomes pertencem.

 

A civilização etrusca surge-nos como a representação, possivelmente derradeira, do mundo pré-histórico mediterrânico, e os etruscos, tanto os que vieram depois como os nativos, devem ter pertencido a esse velho mundo, apesar de serem de nações diferentes e de terem graus de cultura diferentes. Mais tarde, os gregos vieram a exercer uma influência muito forte. Mas isso é uma outra questão.

 

Seja o que for que tenha acontecido, a verdade é que os povos que chegaram à antiga Itália central encontraram lá muitos nativos que viviam prosperamente da terra. Estes nativos, agora chamados ridiculamente vilanovenses, não foram aniquilados nem reprimidos. É mesmo provável que tenham saudado com boas-vindas os forasteiros, cuja relação com a vida não lhes deveria ser hostil. Como também é provável que a religião mais desenvolvida dos recém-chegados não fosse hostil à forma primitiva de religião que os etruscos praticavam: não há dúvida de que as duas religiões tinham a mesma raiz. E então provável que os nativos tivessem formado, de livre vontade, uma espécie de aristocracia religiosa conjugada com a dos povos que chegaram ao território: hoje em dia, de resto, os italianos fazem precisamente o mesmo. E assim se ergueu o mundo etrusco. Mas foi um processo que durou séculos. A Etrúria não era uma colónia, era um território que se foi desenvolvendo de forma muito lenta.

 

Não se pode dizer que tenha havido uma nação etrusca: houve sim, em tempos bastante remotos, uma liga de tribos ou nações que usavam a língua etrusca e a escrita etrusca - pelo menos oficialmente - e que comungavam do mesmo sentimento religioso e dos mesmos ritos. O alfabeto etrusco parece ter sido tomado dos velhos gregos, aparentemente dos calcidianos da Cumeia - a colónia grega a norte de onde fica actualmente Nápoles. Apesar disso, a língua etrusca não se assemelha a nenhum dos dialectos gregos nem, aparentemente, ao itálico. Mas não podemos saber ao certo. Provavelmente terá sido a língua maioritária dos antigos habitantes da Etrúria meridional, tal como há fortes probabilidades da religião ter sido basicamente nativa, pertencendo a uma grande religião antiga do mundo pré-histórico. Das sombras do mundo pré-histórico nasceram religiões já desaparecidas que não inventaram deuses ou deusas, antes louvavam a vida através do mistério dos poderes elementares do Universo e das vitalidades complexas a que hoje chamamos frouxamente Natureza. Uma dessas religiões foi certamente a etrusca. Porque os deuses e as deusas, de facto, não parecem ter tido origem em formas muito definidas.

 

Não me cabe a mim asseverar nada. Quero apenas notar que tudo o que emergiu dos fundos obscuros do tempo, e que não representa senão metade do que terá acontecido, produz uma estranha sensação de arrebatamento; e que, tendo lido as hipóteses mais eruditas, quase todas, de resto, contradizendo-se umas às outras; e tendo procurado olhar de forma sensível para os túmulos e para as outras coisas que os etruscos deixaram, sou levado a concluir que é preferível uma pessoa deixar-se guiar pelo seu próprio sentir.

 

Começaram a chegar barcos a este mar pouco profundo e incaracterístico, podemos imaginá-lo, vindos do Próximo Oriente, possivelmente no tempo de Salomão - até mesmo, talvez, no tempo de Abraão. E nunca mais pararam de chegar. À medida que a luz da história se vai espalhando e ficando mais clara, vemo-los cortando os mares com as suas velas brancas e escarlates. Só quando os gregos começaram a estabelecer colónias em Itália e os fenícios começaram a explorar o Mediterrâneo ocidental, se começa a ouvir falar dos discretos etruscos, e a poder vê-los.

 

A norte daqui Caere fundou um porto chamado Pyrgi e sabe-se que os navios gregos não demoraram a aparecer em grande número, trazendo vasos e tecidos e colonos oriundos da Hélade ou Magna Grécia, o mesmo acontecendo com os fenícios, que também não esperaram muito para sulcar aqueles mares, vindos de todo lado, da Sardenha e de Cartago, de Tiro e de Sídon; os etruscos, por seu lado, tinham também a sua frota, feita com a madeira das montanhas, calafetada com pez que vinha do norte, de Volterra, aparelhada com velas de Tarquínios e carregada com o trigo das suas férteis planícies ou com os célebres objectos etruscos de bronze e ferro, que transportavam consigo até Corinto, Atenas e aos portos da Ásia Menor. São conhecidas grandes batalhas navais, que terminaram de forma desastrosa, entre os fenícios e o tirano de Siracusa. Diz-se também que, nessa época, os etruscos, à excepção dos de Caere, se tornaram piratas impiedosos, quase como os mouros e os corsários bárbaros que haviam de surgir mais tarde. Era algo que fazia parte da sua natureza viciosa e, portanto, uma ameaça para os seus encantadores e cordatos vizinhos romanos, tão respeitadores da lei e tão crentes nas leis supremas da conquista.

 

Tudo isto se passou há muito tempo. A própria costa, hoje, está bastante mudada. O mar, outrora tão batido, recuou muito e é agora mais profundo, a terra tem um ar desolador, parece ter sido obrigada a existir contra a sua vontade e os lugares de encanto ao longo da costa hoje não são senão lugares miseráveis, como Ladispoli e a praia de Óstia, onde a negligência se junta à desolação, para grande gáudio dos mosquitos.

 

O vento soprava do mar escuro, vagaroso e quase fresco, e sob o céu carregado as pequenas ondas elevavam desse cinzento-chumbo lampejos de verde. Levantámo-nos da areia escura e fina e regressámos pela estrada até à estação, observados pelas poucas pessoas e pelas autoridades que asseguravam a ordem na localidade até à chegada dos banhistas seguintes.

 

A estação estava completamente deserta. Mas as nossas coisas continuavam no mesmo sítio, no pequeno canto esconso do bar, e o homem serviu-nos uma refeição aceitável, de carnes frias, vinho e laranjas. O comboio chegou mesmo à tabela.

 

É uma hora de viagem até à Cività Vecchia, um porto que só é importante por dele saírem carreiras regulares de barco para a Sardenha. Entregamos as nossas coisas a um simpático bagageiro já de certa idade e pedimos-lhe que nos leve ao hotel mais perto. Já era noite cerrada quando saímos da estação.

 

Imediatamente se aproximou de mim um indivíduo.

 

- Estrangeiro, não é verdade?

 

- Sim.

 

- De que nacionalidade?

 

- Inglesa.

 

- Tem consigo a autorização de residência em Itália - ou o passaporte?

 

- Tenho o passaporte - mas que deseja de mim?

 

Apenas ver o seu passaporte.

 

- Está no saco! Mas porquê? Que história vem a ser esta?

 

- Isto é um porto e é nosso dever verificar os documentos dos estrangeiros.

 

- Porquê? Génova é um porto e ninguém se lembra de andar a pedir documentos.

 

Estava furioso. Mas o homem não adiantou mais nada. Pedi ao bagageiro que continuasse até ao hotel e o indivíduo seguiu-nos furtivamente, meio passo atrás, naquele modo ambíguo e espião que caracteriza os paus-mandados.

 

No hotel, pedi um quarto, fiz a inscrição e o indivíduo voltou a exigir o passaporte. Quis saber porque o fazia, por que razão me tinha abordado à saída da estação como se fosse um criminoso, por que razão nos estava a insultar com as suas exigências quando, em qualquer lugar de Itália, se pode andar à vontade, sem ser incomodado - cada vez mais irado e mais fora de mim.

 

Não se dignou responder mas olhava-me de forma obstinada, como se a qualquer momento pudesse tornar-se desagradável. Deu uma vista de olhos pelo passaporte - embora duvide que estivesse a ligar ao que lá estava -, perguntou-nos para onde íamos, passou também os olhos pelo passaporte do B., fez um esforço para balbuciar umas desculpas de forma atabalhoada e ridícula e desapareceu na noite. Um esbirro autêntico.

 

Estava mesmo furioso. Se não tivesse comigo o passaporte e habitualmente nem me passa pela cabeça andar com ele -, os problemas que aquele sujeito não me teria arranjado! O mais certo era ter de passar a noite na prisão a ser interpelado por meia dúzia de fanfarrões.

 

Aquelas ratazanas de Ladispoli tinham-me visto ir com o B. até perto do mar e ficar ali sentados cerca de meia hora. Foi quanto bastou para levantar suspeições, suponho, e para terem telegrafado para a Cività Vecchia. Mas por que será que esta gente da polícia é sempre tão idiota? Mesmo quando não se está em tempo de guerra! Que pensavam eles que estávamos a fazer?

 

O gerente do hotel, muito oportuno, disse que havia um museu muito interessante na Cività Vecchia, talvez fosse boa ideia ficar para ir vê-lo no dia seguinte. «Ah, isso!», respondi-lhe. «Só tem coisas romanas e não nos interessa muito». Fui malicioso, porque o regime actual considera-se descendente da antiga linhagem romana. O homem olhou para mim em pânico e eu sorri-lhe. «Que sentido tem», disse eu, «tratarem um simples visitante desta maneira, ainda por cima num país que convida a que venham visitá-lo?». «Ah!», disse o bagageiro, com modos calmos e tranquilos. «Isto é o município de Roma. Nada disto acontece fora da Provinzia di Roma». E quando os italianos dizem destas frases simpáticas para acalmar os ânimos, os ânimos acalmam-se como por magia.

 

Caminhámos durante uma hora pelas ruas monótonas da Cività Vecchia. Pairava no ar um clima de suspeição tão grande que mais parecia estar a haver várias guerras ao mesmo tempo. O gerente do hotel perguntou-nos se sempre ficávamos. Disse-lhe que partíamos no dia seguinte, no comboio das oito da manhã.

 

E lá fomos no comboio das oito, sem hesitação de espécie alguma. Tarquínios ficava apenas a uma estação da Cività Vecchia - cerca de vinte minutos por entre as terras planas de Marema, com o mar à esquerda, o trigo verde em pleno e luxuriante crescimento e o asfódelo já a abrir as suas espigas.

 

Não demorou muito até vermos Tarquínios, com as suas torres irrompendo como antenas numa elevação pronunciada da encosta de um monte, a poucos quilómetros do mar. Esta foi, outrora, a metrópole da Etrúria, a cidade principal da Liga Etrusca. Morreu, como todas as cidades etruscas, e renasceu mais tarde, na época medieval, com outro nome. Dante conhecia-a como Corneto - Corgnetum ou Cornetium -, como há séculos era conhecida, mas o seu passado etrusco estava já esquecido. Há perto de cem anos houve uma espécie de regresso das memórias e a cidade voltou a colocar o nome Corneto junto ao nome Tarquínios: Corneto-Tarquínios. O regime fascista, porém, sempre glorificador das origens italianas do país, retirou Corneto e a cidade ficou só Tarquínios. Quando o autocarro que apanhámos na estação se aproxima da entrada da porta da cidade, vêem-se logo as letras da palavra Tarquinia, pintadas a negro numa parede branca. Assim vai girando a roda da revolução. A palavra etrusca - do etrusco latinizado -, essa, está caída junto ao portão medieval, retirada pelo poder fascista na dança dos nomes.

 

A verdade é que os fascistas, que se consideram herdeiros dos romanos em tudo, herdeiros da Roma dos Césares, do Império e do seu poder sobre o mundo, não podem estar interessados em restituir qualquer espécie de dignidade aos lugares etruscos. Porque, de todos os povos italianos que existiram, os etruscos foram certamente os menos romanos. Do mesmo modo que, de todos os povos que alguma vez habitaram a Itália, os romanos foram certamente os mais não-italianos, a avaliar pela gente que lá se encontra hoje.

 

Tarquínios fica apenas a cerca de cinco quilómetros do mar. O autocarro galga os primeiros dois num ápice, vai depois por ali fora, entra na larga porta da cidade e rodopia até estacar no terreno descampado por trás dela. Descemos ali, naquele lugar desértico que não parece aguardar nada nem ninguém. À esquerda há um palazzo em pedra, muito belo - à direita um café, construído na zona das muralhas inferiores. O funcionário da Dazio, a alfândega local, aparece para ver se trazemos connosco produtos alimentares mas dá só uma vista de olhos e nada mais. Pergunto-lhe onde fica o hotel. Responde-me: «Um sítio para dormir?». Digo que sim. E ele faz sinal a um rapazito para pegar no meu saco e conduz-nos ao Gentile. Nada fica longe de nada, nestas pequenas terras dentro de muralhas. Na quente manhã de Abril a pequena cidade de pedra parece meio adormecida. Mas acontece que a maioria dos seus habitantes trabalha nos campos e só voltarão a cruzar a porta da cidade lá para o fim do dia. Há uma vaga sensação de abandono que invade tudo - até mesmo a pensão onde ficamos e cujas escadas temos de subir, uma vez que é no primeiro andar e o rés-do-chão não lhe pertence. Um rapaz de baixa estatura, de calças compridas e aparentando não mais do que doze anos, embora já com ar de homem maduro, aparece-nos todo empertigado. Perguntamos se tem quartos. Deita-nos um rápido olhar, sai que nem uma seta para ir buscar uma chave e depois conduz-nos pelas escadas até ao andar de cima, gritando a uma rapariga, que deve fazer de criada de quarto, que nos siga. Mostra-nos dois quartos pequenos e, contígua aos dois, uma sala grande, uma espécie de salão de festas muito comum neste tipo de pensões. «E não se sentirão sós», disse ele, com certa vivacidade, «pois podem conversar um com o outro através da parede. Toh! Lina!». Levanta um dedo e fica à escuta. «Eh!», ouve-se através da parede, como um eco, com surpreendente proximidade e nitidez. «Fai presto!», diz Albertino. «Épronto!», responde-lhe a voz de Lina. «Ecco!», diz Albertino, dirigindo-se a nós. «Ouviram?!». De facto, ouvíramos. A parede devia ser forrada a musselina. E Albertino estava radiante por poder assegurar-nos que não nos íamos sentir solitários nem ter medo durante a noite. Era o gerente de pensão mais decidido e com mais autoridade que conheci, tudo passava por ele. Na realidade, tinha catorze anos mas parecia atrofiado. Das cinco da manhã às dez da noite nunca parava, numa actividade inusitada e frenética, sempre ziguezagueando numa roda viva, o que lhe deve ter feito gastar muitas energias. O pai e a mãe trabalhavam lá dentro - ambos ainda novos e bem simpáticos. Mas dava a ideia que não tinham muito que fazer. Parecia que o Albertino tratava de tudo. Como Dickens gostaria de o ter conhecido! Mas Dickens não seria capaz de ver no rapaz a sua invulgar capacidade, a confiança que colocava nos seus actos, a sua coragem. Nele não havia qualquer suspeição em relação a nós, estrangeiros. As pessoas devem ser mais humanas e decentes aqui em Tarquínios, até mesmo os caixeiros-viajantes: que presumivelmente serão, na sua maior parte, compradores de produtos agrícolas, vendedores de utensílios para a agricultura, ou qualquer coisa assim.

 

Resolvemos dar um passeio por ali, voltámos ao terreiro junto à porta da entrada e sentámo-nos a uma mesa de ferro cá fora, para tomar café. Do outro lado da muralha havia algumas moradias novas - a terra descia, verde e abrupta, até à linha da costa, muito nítida junto a um mar indistinto, quase sem brilho e nem sequer parecendo bem um mar.

 

Eu entretanto pensava que, se esta ainda fosse uma cidade etrusca, decerto haveria um terreiro do lado de dentro da entrada. Mas, em vez de um lugar ermo e abandonado, seria um espaço sagrado, com um pequeno templo a mantê-lo bem vivo.

 

Por mim, gosto de pensar nos pequenos templos de madeira dos primeiros gregos e dos etruscos: baixos, graciosos, frágeis e evanescentes como flores. Chegámos a um ponto em que já nos cansam as enormes construções de betão e começamos a compreender que é preferível manter a vida fluida e mutável do que fixá-la, atada ao peso de grandes monumentos. Essas construções que o homem põe na superfície da terra não representam senão os fardos da sua existência.

 

Os etruscos construíam os templos pequenos, semelhantes a casas pequenas com o telhado em ponta, totalmente em madeira. No exterior, contudo, havia frisos, cornijas e cristas de terracota, de tal forma que a parte superior do templo quase parecia feita de faiança, com as suas placas de terraço ajustadas harmoniosamente e plenas de vida nas figuras pintadas em relevo, criaturas alegres a dançar, filas de patos, rostos redondos como o sol, rostos sorrindo e focinhos de animais com a língua de fora, tudo mostrando a intensa vida, tão jovial e tão despretensiosa. Um sentido delicado percorria a proporção que se estabelecia entre todas aquelas pequenas imagens e, na jovialidade que delas se desprendia, sobressaía sobretudo um grande encanto. No instinto etrusco parece ter havido um desejo real de preservar a glória natural da vida. E essa é uma tarefa muito mais meritória, mais ainda se vista ao longo do tempo, do que conquistar o mundo, sacrificar o eu ou salvar a alma imortal.

 

Por que tenderá parte da humanidade para esta ânsia desmedida em querer impor-se aos outros? Porquê esta vontade de impor credos, impor atitudes, impor certo tipo de edifícios, impor uma língua, impor obras de arte? Até porque tudo o que é imposto à força acaba sempre por provocar desgaste. Antes pudesse haver coisas vivas e flexíveis, que não durassem muito tempo e não causassem desgaste ou obstrução em nós. Até Miguel Angelo se pode tornar enfadonho, pesado e aborrecido. É tão difícil ver para lá dele...

 

Do outro lado do terreiro, em frente do café, situa-se o Palazzo Vitelleschi, um belo edifício que é agora museu nacional assim o indica a tabuleta de mármore. Mas as suas pesadas portas ainda estão cerradas. Abre às dez, diz-nos um homem. São nove e trinta. Decidimos subir a pé até ao cimo pela rua íngreme e não muito comprida.

 

No cimo encontramos uma pequena parcela de jardim público e um miradouro. Debaixo de uma árvore há dois homens sentados. Chegamo-nos ao parapeito e de repente depara-se-nos uma das mais extraordinárias paisagens que me foi dado ver: o nosso olhar desflora, por assim dizer, toda a virgindade daquele campo verde com os seus montes. Só se vê trigo, apenas trigo - verde, delicado, ondulando ao vento, ondulando para cima e para baixo, brilhando no seu renovado verde, sem uma única casa. Mais abaixo o declive acentua-se, depois faz uma curva e sobe de novo até atingir o outro monte em frente, verde e imaculado desde sempre. Um pouco mais longe os montes encavalitam-se uns nos outros até atingirem as montanhas e, mais longe ainda, ergue-se um pico arredondado onde parece haver uma cidade encantada.

 

A essência pura, revitalizadora, sem mácula, nesse verde de campos repletos de trigo numa manhã de Abril! - e o misterioso entrançado dos montes! Aqui não há qualquer sinal do mundo moderno - não há casas, não há invenções humanas, apenas uma espécie de prodigioso deslumbramento e quietude, uma exuberância que ainda não foi violada.

 

O monte em frente é a companhia mais distinta para um cenário assim. A parte mais baixa do sopé é bastante íngreme e bravia, com carvalhos persistentes e vegetação pobre, e manchas pretas e brancas de gado nas suas encostas de pastagens comuns. O extenso cume, porém, volta a ter o verde do trigo, correndo e ondulando na direcção do sul. E há qualquer coisa que se sente imediatamente: há naquele monte uma alma, um significado.

 

Encontrando-se este monte em frente do outro monte maior, onde fica Tarquínios, escolhido em função deste, dada a sua situação numa curva ligeira e pouco pronunciada do vale, logo depreendemos que estamos no monte onde os tarquinianos construíram as suas alegres casas de madeira e que o outro em frente é onde ficavam sepultados os mortos, tal e qual como se fossem vivos, como se fossem sementes sob a terra onde lhes faziam casas decoradas como as dos próprios vivos. Os dois montes são tão inseparáveis como a vida e a morte e isso sente-se ainda, aqui e agora, nesta manha solarenga de Abril rodeada de verde e com a leve brisa soprando do mar. Mais além, a terra parece tão misteriosa e resplandecente como se fosse fruto da primeira manhã do Tempo.

 

Mas o B. quer voltar ao Palazzo Vitelleschi: já deve estar aberto a esta hora. Descemos a rua e vemos que, de facto, as portas já estão abertas e que no sombrio pátio da entrada há vários funcionários. Saúdam-nos à maneira fascista; alla Romana! Porque não usam a saudação etrusca e nos saúdam alVEtmsca?. A verdade é que são bastante gentis e simpáticos. E dali passamos ao pátio grande do palácio.

 

O museu tem um interesse e um encanto extraordinários para quem se dedica às coisas etruscas. Contém um grande número de objectos encontrados em Tarquínios, dos mais importantes, diga-se.

 

O melhor seria não retirar nada do ambiente onde as coisas existiram. E por isso, de certo modo, os museus são um erro. Mas já que tem de haver, ao menos que sejam de pequena dimensão e, acima de tudo, que se situem nos próprios lugares de origem. Se o museu etrusco de Florença já é esplêndido, o de Tarquínios é-o ainda mais, todas as coisas nele são tarquinianas e têm uma ligação entre si que forma uma espécie de todo orgânico.

 

Numa primeira sala, cuja entrada dá para o átrio do museu, estão alguns dos longos sarcófagos em que eram sepultados os nobres. Ao que parece, os habitantes primitivos desta parte da Itália queimavam os seus mortos e punham depois as cinzas num vaso, por vezes cobrindo o vaso com o elmo do morto, de outras vezes com uma salva rasa a servir de tampa, e depois colocando a urna com as cinzas numa pequena sepultura redonda, espécie de poço. Esta é a maneira vilanovense de enterrar os mortos, na sepultura-poço.

 

Mas, aparentemente, os que chegaram posteriormente ao território, tinham o costume de sepultá-los de corpo inteiro. Aqui, em Tarquínios, ainda é possível ver os montes onde foram descobertas as sepulturas dos nativos que a habitaram, em forma de poço, com os vasos contendo ainda as cinzas. Encontram-se depois os túmulos em que os mortos eram enterrados sem serem queimados, muito semelhantes aos dos dias de hoje. Porém, perto deles ou mesmo em ligação com eles podiam encontrar-se túmulos com vasos cinerários do mesmo período. Portanto, os povos mais antigos e os que chegaram depois conviveram lado a lado em harmonia desde os tempos mais remotos, ao longo de vários séculos e muito antes de os túmulos pintados terem sido feitos.

 

Em Tarquínios, contudo, o costume dominante parece ter sido, pelo menos a partir do século VII, sepultar os nobres em grandes sarcófagos ou colocá-los em padiolas no interior de câmaras tumulares, enquanto os escravos, aparentemente, eram cremados, as suas cinzas introduzidas em vasos e estes, por sua vez, postos no túmulo da família, onde repousavam os caixões de pedra dos seus amos. A gente comum, por seu lado, seria por vezes cremada e de outras vezes enterrada em túmulos muito parecidos com os actuais, embora com os lados revestidos de pedra. A grande massa da população era constituída por uma mistura de raças, uma espécie de servos da gleba, na sua maioria, e muitos artesãos semi-livres. E quanto ao modo como eram sepultados, variava conforme a sua vontade: alguns tinham túmulos, outros devem ter sido cremados e as suas cinzas postas em vasos ou jarras, pois ocupavam pouco espaço nas pequenas casas tumulares da gente mais pobre. É provável que também os membros menos importantes das famílias nobres fossem cremados e os seus haveres colocados em vasos, cada vez mais belos à medida que o contacto com a Grécia se foi intensificando.

 

É reconfortante saber que até os escravos - e os voluptuosos etruscos tinham muitos, nesses tempos históricos - colocavam os seus restos mortais cuidadosamente dentro de vasos e em lugares sagrados. Aparentemente, os «viciosos etruscos» não tinham nada que se comparasse com as valas comuns no exterior de Roma, mesmo ao lado da via principal, para onde os corpos dos escravos eram atirados promiscuamente.

 

É tudo uma questão de sensibilidade. A força bruta e opressiva pode produzir efeitos dos mais terríveis. Apesar disso, é a delicadeza do sensível que faz com que a vida seja vida. Se ela fosse apenas força bruta nem uma única criança sobreviveria mais do que quinze dias. Tem sido a mais frágil de todas as coisas, a erva que desponta nos campos, a salvar as várias formas de vida ao longo dos tempos. Mas pudesse a erva exprimir-se e diria não a todo e qualquer império, diria não ao próprio pão que os homens comem: pois as sementes são também erva; e a Hércules, a Napoleão, a Henry Ford, a existência seria igualmente negada.

 

A força bruta esmaga muitas plantas. Contudo, as plantas acabam sempre por renascer. As Pirâmides, se as compararmos com os malmequeres, não correspondem senão a um fugaz momento. Muito antes de se ouvir a palavra de Buda, já o rouxinol cantava e muito tempo depois de deixar de ouvir-se a palavra de Buda e de Jesus Cristo, o rouxinol continuará a cantar. Porque não prega nem ensina, não manda nem exorta. No princípio não era o Verbo mas o canto do pássaro.

 

Lá porque um louco qualquer mata um rouxinol à pedrada, isso fá-lo mais importante do que o rouxinol? E se o romano destruiu a vida do etrusco, isso faz com que tenha maior grandeza do que o etrusco? De forma nenhuma! Roma caiu e com ela o fenómeno que Roma foi. Hoje em dia, a Itália possui uma vibração mais etrusca do que romana, e sempre há-de ser assim. Para quê regressar ao mecanismo opressor latino-romano?

 

Num espaço a céu aberto, logo a seguir ao pátio de entrada do Palazzo Vitelleschi, há alguns sarcófagos em pedra, com as efígies entalhadas na parte superior, um pouco como os túmulos dos cruzados nas igrejas inglesas. Aqui, em Tarquínios, as efígies ainda se parecem mais com cruzados do que é habitual, pois alguns jazem de costas e têm um cão aos pés; normalmente, a figura esculpida do morto está um pouco reclinada em relação à tampa da sepultura, como se estivesse viva, apoiando-se num cotovelo e olhando com ar orgulhoso e severo. Se é homem, o corpo desnuda-se até um pouco abaixo do umbigo e ele segura na mão apatera sagrada, ou mundum, a salva redonda com um pequeno botão de flor saliente ao centro, que representa o embrião cíclico do céu e da terra. Alude também ao plasma, à célula viva com o seu núcleo, ao indivisível Deus dos primórdios, permanecendo vivo e uno até ao fim, à qualidade eterna de todas as coisas vivas, dividindo e subdividindo para se tornar sol do firmamento e loto das águas sob a terra ou rosa de toda a existência à superfície da terra: assim mantém o sol a sua vitalidade própria, inviolável para todo o sempre; vitalidade que é também a do mar, e de todas as águas; a inesgotável vitalidade que está na mínima coisa viva. Cada homem transporta dentro de si desde tenra idade a sua força vital, que está sempre presente, mesmo quando é velho; ele é a fulguração de uma centelha imorredoira e eterna, contida no electrão da vida. É isto o que a patera simboliza, florescendo como rosa ou como sol mas sempre evocando o embrião central no interior do plasma vivo.

 

Esta patera, este símbolo, encontra-se quase invariavelmente na mão do morto. Mas se se trata de uma mulher, o seu vestido cai em suaves pregas a partir do pescoço, tem jóias magníficas e não segura na mão o mundum mas um espelho, um estojo de perfumes ou uma romã, símbolos que reflectem a sua natureza ou as suas qualidades de mulher. Mas, tal como o homem, possui o mesmo olhar orgulhoso e altivo: porque também ela pertence às famílias sagradas que governam e lêem os símbolos.

 

Estes sarcófagos e efígies pertencem todos aos séculos do declínio etrusco, depois da longa ligação aos gregos, e a maioria deve ter sido feita depois da conquista da Etrúria pelos romanos. Daí que não nos surjam obras de arte de cariz mais espontâneo e vigoroso, o mesmo que acontece, de resto, com os monumentos memoriais modernos. As artes funerárias são sempre, de algum modo, comerciais. Os ricos encomendavam os sarcófagos ainda em vida e o entalhador fazia-os de forma mais ou menos elaborada, de acordo com o preço estabelecido. A imagem corresponderia a uma espécie de retrato de quem a encomendava, o que nos permite ficar a saber como foram os últimos etruscos. Nos séculos III e II a.C., no final da sua existência enquanto povo, são semelhantes aos romanos desse tempo, cujos bustos conhecemos tão bem. Têm muitas vezes o ar altivo e desgastado de quem já não domina e apenas evoca a suposta virtude da riqueza.

 

Contudo, mesmo quando a arte etrusca é romanizada e contaminada, ainda se escapa dela uma certa naturalidade, um certo sentir. Os lucumones etruscos, ou magistrados-príncipes, eram, antes do mais, chefes de religião e só depois magistrados; e só depois príncipes. Não eram aristocratas, no sentido germânico do termo, nem patrícios, à maneira romana. Acima de tudo, e em primeiro lugar, eram os guias dos mistérios sagrados e só depois magistrados, só depois homens com a sua família e a sua riqueza. Há sempre neles, portanto, um elemento de essência vital, de significação profunda da vida. Em vão se procurará na escultura funerária moderna algo de tão belo quanto o Sarcófago do Magistrado, com o pergaminho escrito desenrolando-se por trás dele, o rosto já velho, mas enérgico e vigilante, lançando um olhar severo, o colar dos ofícios à volta do pescoço, o anel da sua posição hierárquica no dedo. Assim jaz, nesse museu em Tarquínios. A vestimenta deixa-o desnudado até à anca e o corpo possui a delicadeza e a tranquilidade que só o artista etrusco, com a sua delicada expressão, capaz de mostrar todo o relaxamento natural da carne, pode dar e que é tão difícil de transmitir. No lado esculpido do sarcófago os dois agentes da morte empenham a maçaneta da morte, são figuras aladas que aguardam as almas e que nada poderá afastar. É algo de muito belo, com a beleza que tem a simplicidade natural da vida. Mas pertence já a um tempo mais recente. O mais provável é que este velho magistrado etrusco seja um provisor, já sob a égide da autoridade romana: porque não tem consigo o mundum sagrado, a salva, tem apenas o pergaminho escrito, eventualmente com leis. Como se já não fosse chefe religioso ou lucumo. Embora neste caso, a bem dizer, ele possa não ter sido sequer um dos lucumones.

 

No piso superior do museu encontram-se muitos vasos, desde a cerâmica rude dos vilanovenses até utensílios mais antigos, decorados com rabiscos ou sem qualquer decoração, os chamados bucchero, taças, pratos e ânforas pintadas, oriundas de Corinto ou de Atenas, e potes pintados feitos pelos próprios etruscos a partir de padrões gregos. Tudo isto pode ser muito interessante, ou não: a verdade é que não foi com estes pratos pintados que os etruscos manifestaram o melhor do seu gosto. Mas, apesar disso, devem ter gostado muito deles. Em tempos mais remotos, todos estes enormes jarrões e taças, todas as outras taças mais pequenas, chávenas e cântaros, outras taças mais baixas para vinho, tudo fazia parte do valioso tesouro da casa. Em tempos ainda mais remotos, os etruscos devem ter navegado até Corinto e Atenas, possivelmente levando nos seus navios trigo e mel, cera e artefactos de bronze e trazendo de lá estes preciosos jarrões, ingredientes, essências, perfumes e especiarias. Esses jarrões que vinham de além-mar vieram a tornar-se, devido à beleza das suas pinturas, tesouros das famílias.

 

Mas quando os etruscos faziam a sua própria cerâmica, e faziam-no aos milhares de unidades, eram os vasos gregos que imitavam. Na Etrúria, portanto, deve ter havido milhões desses magníficos vasos. Já no século I a.C. havia entre os romanos a paixão de coleccionar jarrões pintados, retirados aos etruscos, sobretudo aos túmulos etruscos; e tanto coleccionavam os jarrões como as pequenas e votivas figuras e estatuetas de bronze, as sigilla Tyrrhena da luxúria romana. E quando os túmulos foram saqueados pela primeira vez, na busca de ouro e prata, centenas dos mais belos jarrões devem ter sido jogados fora ou destruídos. Porque mesmo nos dias de hoje, quando se descobre e abre um desses túmulos já parcialmente saqueado, encontram-se fragmentos de vasos partidos no seu interior.

 

Apesar de tudo, os museus estão cheios de vasos de toda a espécie. Se se vai à procura da elegância e do convencionalismo gregos, dessas elegantes e «ainda invioladas noivas da quietude», fica-se desapontado. Mas se se conseguir ultrapassar esse estranho desejo de elegância convencional, então os vasos e as salvas etruscas, sobretudo os bucchero pretos, abrem-se-nos como estranhas flores, flores pretas contendo toda a suavidade e rebeldia da vida em oposição à ideia de convenção, ou outras vermelhas e pretas com curiosos desenhos que respiram arrojo e liberdade. Está presente em quase tudo o que é etrusco essa natural tendência para o lugar-comum, mas sem nunca o chegar a ser, antes atingindo muitas vezes uma originalidade livre e arrojada, tão expressiva que nós, que gostamos do que é convencional e das coisas «reduzidas a uma norma», lhe chamamos arte bastarda e lugar-comum.

 

É inútil procurar «elevação» nas coisas etruscas. Se é elevação o que se pretende, o melhor é procurá-la nos gregos e nos godos. E se se quer produção em massa, os romanos têm-na em abundância. Mas se se amam as formas ousadas e espontâneas que jamais poderão ser estandartizadas, então só nos etruscos elas se deixam ver. E muitas mais horas podiam passar-se no pequeno e fascinante Palazzo Vitelleschi se a quantidade de coisas que há sempre nos museus não obrigasse a ver tudo um pouco à pressa.

 

Palácio Vitelleschi, Museu Nacional de Tarquinios. Pormenor do sarcófago Laris Pulena (séculos III-II a. C.) no Museu Nacional de Tarquinios.

Túmulo da Caça e da Pesca (cerca de 530 a. C), encontrado em 1873.

 

Pormenores do Túmulo da Caça e da Pesca.

 

Túmulo dos Leopardos (475-450 a. C.), encontrado em 1875.

 

       OS TÚMULOS PINTADOS DE TARQUÍNIOS


Arranjámos um guia para nos levar aos túmulos pintados, que são o que torna Tarquínios famosa. Partimos depois do almoço, subindo até ao cimo da vila e atravessando depois a porta sudoeste na área mais plana do cume do monte. Ao olhar para trás, a muralha medieval da cidade, com um pedaço da outra muralha escura e mais antiga um pouco mais abaixo, parece-nos incaracterística. Logo a seguir à porta vêem-se uma ou duas casas isoladas e, em frente, o vasto e extenso planalto com a via principal, muito branca, descendo abruptamente em direcção a Viterbo, no interior.

 

«Todo esse monte aí em frente», disse o guia, «só tem túmulos! Túmulos e mais túmulos! É a cidade dos mortos».

 

Cá está ela, então! Este monte é a necrópole! Os etruscos nunca sepultavam os seus mortos dentro das muralhas da cidade. Ora o cemitério actual e os primeiros túmulos etruscos ficam quase junto à actual porta da cidade. Assim, se a antiga cidade de Tarquínios se situasse neste monte dificilmente podia ocupar mais espaço do que a pequena vila de agora, com as suas poucas centenas de habitantes. O que parece impossível. Mais provável é que a cidade ficasse no outro monte em frente, um monte soberbo e imaculado, paralelo em relação àquele em que nos encontramos.

 

Caminhamos por entre a vegetação selvagem e esparsa do cume do monte onde as pedras surgem de vez em quando aqui e ali, as primeiras estevas ondulam ao vento e os asfódelos irrompem no ar. É aqui a necrópole. Outrora houve nela bastantes túmulos, ruas inteiras cheias deles. Agora, porém, não há sinal de um único: nada a não ser o cume agreste e quase despido, com as suas pedras, a sua erva rasteira, as flores, o mar brilhando à direita, sob o sol, e a terra mole, mais para o interior, resplandecente, muito verde e pura.

 

Vê-se um pequeno pedaço de muralha, talvez construída para cobrir uma gamela. É para lá que o nosso guia se dirige. É um rapaz corpulento e descontraído que ninguém diria poder interessar-se por túmulos. A verdade é que sabe bastantes coisas, o seu interesse é perspicaz e sensível, embora absolutamente discreto, e revela-se a companhia mais agradável que se podia ter para uma visita deste género.

 

O pedaço de muralha a descoberto é uma pequena cobertura em alvenaria, com uma porta de ferro a tapar um pequeno lanço de degraus que conduzem abaixo do chão. E, perante a aspereza agreste daquele monte que quase nada tem, é natural que nos precipitemos para lá. O guia ajoelha-se para acender o candeeiro a gás enquanto o seu velho temer, resignado, estende-se ao sol e à brisa que vai soprando persistentemente de sudoeste sobre os vastos cumes a ela expostos.

 

O candeeiro começa a dar luz e a deitar cheiro mas depois fica só a luz e o cheiro desaparece: o guia abre a porta e nós começamos a descer os degraus íngremes até ao túmulo. Parece um pequeno buraco escuro debaixo da terra: um pequeno buraco escuro, depois de todo o sol da vida! Mas o candeeiro do guia dá agora mais luz, o que nos deixa ver que estamos numa pequena câmara escavada na rocha, uma espécie de cela vazia e mínima que podia muito bem ter sido de um anacoreta. É mesmo muito pequena e nada existe nela mas possui qualquer coisa de familiar, bem diferente dos amplos e esplêndidos túmulos de Cervetri.

O candeeiro continua a brilhar e nós acostumamo-nos à alteração da luz, o que nos permite ver os frescos nas pequenas paredes. E o Túmulo da Caça e da Pesca, assim chamado devido aos motivos pintados nas paredes, e supõe-se que date do século VI a.C. Encontra-se já muito deteriorado, bocados da parede caíram e desapareceram, a humidade comeu as cores e já quase nada resta. Apesar de toda a imprecisão, é possível distinguir pássaros a voar por entre a neblina e com o sopro da vida em cada asa. À medida que nos vamos habituando ao lugar e olhamos mais de perto, vemos que a pequena sala está toda pintada de mar e céu nevoento, pássaros voando e peixes saltando, homens de baixa estatura a caçar ou a pescar, barcos com remadores. A parte inferior da parede é toda ocupada por um mar azul esverdeado, com uma superfície em silhueta que ondula ao longo de toda a sala. Uma rocha alta sai do mar e dela um homem nu, de forma esbatida mas, ainda assim, bem nítida, mergulha no mar num gesto belo e perfeito, enquanto um seu companheiro vai trepando pela rocha um pouco atrás dele e um barco está parado na água, de remos suspensos, com três outros homens olhando para o que mergulha, o do meio em pé, nu, de braços abertos. Ao mesmo tempo, um golfinho salta junto ao barco e um bando de pássaros eleva-se no céu para sobrevoar a rocha. Acima de tudo isto, a partir de barras coloridas que bordejam a parte superior da parede, pendem grinaldas entrelaçadas, grinaldas de flores, folhas, rebentos e bagas, grinaldas que pertencem a donzelas ou a mulheres e que representam o ciclo do florescimento ligado à vida e ao sexo feminino. A parte de cima da parede é formada por tiras horizontais ou faixas coloridas que circundam toda a sala, umas vermelhas ou negras, outras de um doirado baço, azuis e amarelo-claro - são estas as cores invariavelmente presentes. Os homens são quase sempre pintados de vermelho-escuro, a cor de muitos italianos depois de se exporem quase nus ao sol, tal como faziam os etruscos. As mulheres têm um tom mais pálido, porque as mulheres não se despiam ao sol.

 

Na extremidade da sala, onde há uma reentrância na parede, está pintada uma outra rocha saindo do mar e nela um homem com uma funda tenta acertar nos pássaros que o sobrevoam em todas as direcções. Um barco com um remo de pá larga parte da rocha e, no meio dele, um homem nu faz uma saudação enigmática ao que está com a funda, enquanto um outro homem, de joelhos e de costas voltadas para os outros, lança uma rede. A proa do barco tem um olho maravilhosamente pintado, para que o barco veja por onde vai. Em Siracusa, actualmente, podem ver-se, chegando ao cais, barcos com um olho pintado de cada lado. Um golfinho mergulha no mar e outro salta, saindo dele. Os pássaros voam e as grinaldas pendem da parte de cima da parede.

 

Tudo é pequeno, alegre e resplandecente de vida, espontâneo como só a vida plena pode ser. Se as paredes não estivessem tão deterioradas, maior seria o nosso contentamento, pois o que ali se representa é toda a naturalidade vivencial dos etruscos. E não tem nada de impressionante ou grandioso. Ainda assim, se nos satisfizer o esplendor expressivo da vida, é ali que o encontramos.

 

À excepção daquelas pinturas já esbatidas, o pequeno túmulo nada tem. À sua volta não existe qualquer leito em pedra: apenas um pequeno nicho para colocar os vasos, talvez com haveres preciosos. O sarcófago ficava no chão, possivelmente abaixo do atirador com a funda, na extremidade da parede. Era aí posto, isolado, porque este é um túmulo individual, de uma pessoa só, como era costume nos túmulos mais antigos da necrópole.

 

Na empena triangular da parede, acima do atirador e do barco, o espaço está preenchido com uma cena frequente nos etruscos, o banquete dos mortos. O morto, infelizmente já quase desvanecido, está reclinado numa espécie de canapé e, apoiando-se nos cotovelos, segura com uma das mãos a salva rasa para o vinho, enquanto a seu lado, também meio erguida e reclinada, uma mulher bonita, cheia de jóias e elegantemente vestida, parece apoiar a mão esquerda sobre o peito nu do homem, ao mesmo tempo que a direita lhe estende a grinalda - a grinalda da feliz dádiva feminina. Por trás do homem está um rapaz escravo, nu, provavelmente tocando um instrumento musical, enquanto outro escravo, também nu, vasa vinho de uma ânfora ou pote para dentro de um jarro. Ao lado da mulher está uma donzela, aparentemente tocando flauta: era costume as mulheres tocarem flauta nos funerais; mais atrás, sentadas, há outras duas donzelas com grinaldas, uma delas virando-se para observar o casal no seu banquete da morte e a outra de costas completamente voltadas. Por trás destas duas donzelas, ao canto, mais grinaldas e dois pássaros, possivelmente pombos. Na parede por trás da cabeça da mulher do casal encontra-se um objecto indecifrável, talvez uma gaiola.

 

A cena possui a naturalidade da própria vida e, ao mesmo tempo, há nela uma profundidade ancestral, cheia de significado. É o banquete da morte; mas é também o banquete de um morto no próprio mundo dos mortos. Para os etruscos este é um lugar de alegria. Do mesmo modo que os vivos faziam uma festa no exterior do túmulo, também o morto festejava, de modo semelhante, no outro mundo dos mortos, com a mulher oferecendo-lhe grinaldas e escravos servindo vinho. A vida na terra era tão boa que a vida nesse outro mundo não podia senão ser a continuação dela.

 

Esta crença profunda na vida, esta aceitação profunda da vida, é característica dos etruscos. E é bem nítida nos túmulos pintados. Há em todos os movimentos, mesmo nos dos escravos nus, algo de dança e de fascínio. Não são lacaios oprimidos, como depois fizeram crer os romanos. Nos escravos pintados nos túmulos, o que se mostra é a plenitude da própria vida.

 

Voltamos a subir os degraus na direcção do mundo dos vivos, da brisa marítima e do sol. O velho cão arrasta as patas, o guia apaga o candeeiro com um sopro e lá partimos de novo, com o cão rodopiando à volta dos calcanhares do dono e este falando-lhe com aquela familiaridade delicada dos italianos, tão diferente do modo romano, autoritário e ostensivo na sua latinidade.

 

O guia leva-nos de um lado ao outro do cume do monte pela tarde solarenga e limpa e na direcção de outra cobertura de alvenaria. Salta à vista que há um número significativo de pequenos portões, mandados pôr pelas autoridades para proteger os degraus que conduzem aos vários túmulos, separados uns dos outros. É muitíssimo diferente de Cervetri, embora a distância entre as duas terras não seja superior a sessenta quilómetros. Aqui não existe o que se possa chamar cidade tumular, com uma rua principal entre os túmulos e casas tumulares da gente nobre, com muitas salas. Aqui, os pequenos túmulos de uma só sala parecem espalhados ao acaso sobre o monte, um aqui, outro acolá: embora seja provável que, a serem feitas escavações, se pudesse vir a encontrar também uma cidade dos mortos, com as suas ruas e as suas encruzilhadas. E é igualmente provável que cada sepulcro tivesse o seu tumulus de cúpula arredondada, devendo haver à superfície, portanto, ruas ladeadas por elevações tumulares e com entrada para os túmulos propriamente ditos. Seja como for, seriam sempre diferentes das de Cervetri, ou Caere; as elevações seriam certamente mais baixas e as ruas mais irregulares. De qualquer modo, hoje ainda há, disseminados, muitos túmulos com uma única sala e nós introduzimo-nos neles como coelhos na toca. Todo o lugar, de resto, parece uma enorme toca.

 

É curioso como é tão diferente de Cervetri. Os etruscos puseram em prática o que parece ser um instinto tipicamente italiano: cidades autónomas e independentes, com algum território à volta, cada região falando o seu dialecto próprio, com a pequena capital onde tudo era sentido como familiar e uma confederação de cidades-estado informalmente ligadas por religião comum e interesses mais ou menos comuns. Mesmo actualmente, Lucca é muito diferente de Ferrara e a língua está longe de ser idêntica. Na antiga Etrúria, este modo de as cidades se desenvolverem de forma autónoma, de acordo com a sua idiossincrasia, ligadas entre si de uma maneira tão ténue que dificilmente constituíam uma nação, deve ter sido total. O contacto entre a gente da plebe, a maioria da população de Caere e Tarquínios, foi quase nula. Eram praticamente como se fossem estrangeiros uns para os outros. Apenas os lucumones, altos magistrados sagrados de origem nobre, os sacerdotes e outros nobres, e os mercadores, mantinham certo intercâmbio, falando o etrusco «correcto», enquanto o povo, não há dúvida, falava dialectos tão diferentes que funcionavam mais como línguas autónomas. Para se poder ter uma ideia do passado pré-romano é preciso esquecer o princípio da unicidade e da uniformidade e compreender a vasta imensidão das diferenças.

 

Descemos agora a outro túmulo, chamado, segundo o guia, Túmulos dos Leopardos. A cada túmulo foi atribuído um nome, a fim de poder ser distinguido dos seus vizinhos. O Túmulo dos Leopardos tem dois leopardos malhados no triângulo situado na parede de fundo, entre os dois telhados inclinados. Daí o seu nome.

 

O Túmulo dos Leopardos é uma pequena sala fascinante e acolhedora e os desenhos das paredes não se encontram muito deteriorados. Os túmulos estão todos, de algum modo, em ruínas, devido aos efeitos do clima e do vandalismo e, depois de terem sido abertos e saqueados até ao último objecto, foram ficando abandonados, negligenciados como quaisquer buracos sem importância.

 

Apesar disso, as pinturas mantêm a sua frescura e a sua vivacidade: os vermelhos-ocre, os pretos, os azuis e os azuis-esverdeados, curiosamente, continuam bem nítidos e em harmonia com o amarelo suave das paredes. A maior parte da superfície das paredes dos túmulos tem uma fina camada de estuque, mas do mesmo tom da rocha, de um amarelo pouco exuberante que vai passando a um doirado delicado e muito belo, uma cor perfeita para fundo.

 

As paredes do pequeno túmulo mostram uma dança do mais puro prazer. A sala parece ainda habitada pelos etruscos do século VI a.C., um povo tão aberto à vida e às suas fulgurações que só pode tê-la vivido em intensa plenitude. Logo se nos deparam os dançarinos e os músicos, em movimento ao longo de um friso largo próximo da parede frontal do túmulo, que vemos mesmo à nossa frente mal entramos depois de termos descido as escadas e onde se desenrola o banquete em todo o seu esplendor. Acima do próprio banquete, no ângulo da empena, estão os dois leopardos malhados, olhando-se heraldicamente através de uma pequena árvore. O tecto de pedra tem quadrados de cores variadas, vermelhos e negros, amarelos e azuis, e a viga central está pintada com círculos coloridos, vermelhos-escuros, azuis e amarelos. Tudo ali vive da cor e por isso nem nos lembramos que estamos abaixo do chão, mais parece uma qualquer alegre sala numa casa de tempos passados.

 

Os dançarinos da parede do lado direito movem-se com inusitada e enérgica vivacidade. Os homens não têm sobre eles mais do que uma túnica solta ou então uma clâmide posta como capa. O subulo toca flauta dupla, instrumento de que os etruscos tanto gostavam, com as suas mãos enormes, exageradamente grandes, colocadas sobre os orifícios, enquanto o homem atrás dele toca lira de sete cordas e o que está à frente faz um gesto de saudação com a mão esquerda, ao mesmo tempo que segura uma salva para vinho na direita. E assim seguem aqueles pés enormes, de sandálias, frente às oliveiras cheias de pequenas azeitonas, num movimento rápido que nos mostra pernas e braços plenos de vida, plenos de vida em cada um dos seus músculos.

 

A consciência de uma energia e de um vigor assentes no fortalecimento do corpo é uma das características dos etruscos e está, de certa forma, para lá da arte. Não se pensa na arte mas na própria vida, como se a vida dos etruscos fosse a exemplificação da verdadeira vida, dançando envoltos nas suas túnicas coloridas, com membros maciços e cheios de exuberância na sua nudez, tisnados do ar e da luz marítima, dançando e tocando flauta por entre as pequenas oliveiras ao ar livre e fresco.

 

A parede do fundo contém uma cena de banquete esplêndida. Os convivas estão reclinados sobre uma coberta em xadrez, possivelmente de lã, que cobre o canapé, situado ao ar livre, pois vêem-se algumas árvores por trás. Os seis convivas têm o aspecto vigoroso e resplandecente de vida que também está presente nos dançarinos, uma energia integrada numa vida tão feliz e plena que não tem necessidade de soltar-se, nem mesmo nos momentos mais exuberantes. Estão aos pares, homem com mulher, todos reclinados no canapé, olhando-se de modo sugestivamente amistoso. As duas mulheres da ponta são chamadas hetaere, cortesãs; sobretudo devido aos seus cabelos loiros, que era característica muito apreciada nas mulheres de prazer. Os homens têm a pele avermelhada e escura e estão nus até à cintura. As mulheres, delineadas na rocha amarela, são bonitas e usam vestidos delicados e mantas decoradas à volta das ancas. Têm um certo olhar ousado e livre, não espantaria se tivessem sido cortesãs.

 

O homem do mesmo lado segura um ovo entre o polegar e o indicador, mostrando-o à mulher de cabelos loiros que se reclina perto dele e esta, por sua vez, estende a mão esquerda na sua direcção como se lhe fosse tocar o peito. E ele segura na mão direita uma enorme salva de vinho, para usar na festa.

 

O casal perto do anterior, um homem e uma mulher de belos cabelos, olha na sua direcção, ambos fazendo a típica saudação etrusca, com a mão direita ligeiramente encurvada para trás. Também eles parecem saudar o misterioso ovo que o outro homem segura na mão; este é, sem dúvida, o homem que morreu e cuja festa está a ser celebrada. Frente a este segundo casal há um escravo com uma coroa de grinaldas na cabeça que ergue um jarro de vinho vazio, como a querer dizer que vai buscar mais. Um pouco mais abaixo, outro escravo segura um estranho objecto, talvez um pequeno machado ou um leque. Os dois últimos convivas estão muito deteriorados. Um deles estende ao outro uma grinalda mas sem a colocar à volta do pescoço, como ainda hoje se faz na índia quando se quer homenagear alguém.

 

Acima da cena do banquete, na empena, os dois enormes leopardos-machos malhados estão com a língua de fora e olham um para o outro heraldicamente, levantando uma das patas de cada lado de uma pequena árvore. São os leopardos e as panteras de Baco, o dominador do mundo da morte, guardando as saídas e as entradas da paixão da vida.

 

Há um mistério e uma prodigiosidade nestas cenas simples muito mais profundos do que a trivialidade da vida quotidiana. Tudo parece alegre e leve. Mas, apesar disso, há também o peso de uma significação profunda que vai para além da beleza estética.

 

Se se olhar com atenção, muito há a ver. Mas se apenas se passar os olhos superficialmente, o que se vê não passa de uma pequena e modesta sala, com umas pinturas a têmpera, pouco expressivas, meio estragadas e irregulares.

 

Os túmulos são muitos. Mal acabamos de ver um, logo subimos outra vez um pouco atordoados e, enfrentando o sol da tarde, continuamos ao longo deste monte algo inóspito e agreste e voltamos a penetrar no chão da terra como coelhos nas tocas. Todo o cume é, na verdade, um enorme emaranhado de túmulos. Gradualmente, o mundo etrusco dos mortos vai-se tornando mais real do que o dia lá fora. E começa a ficar-se com a sensação de estar a viver ao mesmo tempo que os dançarinos, os convivas e os enlutados; então, com alguma avidez, começamos a tentar ver melhor onde estão.

 

Um túmulo belíssimo, também com motivos ligados à dança, é o Tomba del Triclinio, ou del Convito, ambas as designações significando o mesmo: Túmulo das Festividades. Em tamanho e forma não difere muito dos outros túmulos que já víramos. É uma pequena sala com cerca de 4,5m por 3,5m, paredes de 1,8m e, ao centro, 2,4m de altura. Trata-se, mais uma vez, de um túmulo individual, como quase todos os túmulos pintados que se encontram aqui. Não há, portanto, qualquer objecto no seu interior. Somente a metade mais distante do chão de pedra, de um amarelo pálido e esbranquiçado, se encontra um pouco levantada, cerca de cinco ou seis centímetros, e é nesta zona que se podem ver quatro buracos, onde estavam colocados os pés do sarcófago. Para além disto, o túmulo apenas tem as pinturas das paredes e do tecto.

 

Como devem ter sido belas! E como o são ainda! O friso com as figuras dos dançarinos que circunda a sala ainda tem as cores brilhantes e vivas, as mulheres com os seus vestidos de musselina de linho salpicados e capas coloridas de orlas muito belas, os homens apenas com a sua túnica. Num gesto arrojado, a mulher báquica lança a cabeça para trás e curva os dedos compridos e fortes, mas é um arrojo que está controlado dentro do seu ser. Ao mesmo tempo o jovem corpulento volta-se para ela, erguendo a mão num movimento de dança até quase tocar completamente os seus dedos. Dançam ao ar livre, junto de pequenas árvores, há pássaros correndo e um cão com cauda de raposa olha para qualquer coisa com aquela intensidade ingénua que caracteriza os seres jovens. A mulher seguinte, com as suas botas elegantes e a capa orlada, de jóias nos braços, dança também cheia de entusiasmo e satisfação, tudo nela é dança; e então lembramo-nos da antiga convicção que nos diz como toda e qualquer parte do corpo e da anima está ligada à religião e em contacto com os deuses. O jovem que toca flauta dupla aproxima-se na sua direcção, dançando ao mesmo tempo que avança. Traz apenas vestida uma fina túnica orlada, que lhe pende dos braços e sobre as pernas, tão fortes que parecem dançar por si próprias, plenas de vida. Mais uma vez, porém, há uma certa intensidade solene no seu rosto ao voltar-se para a mulher a seu lado, que inclina o corpo para si enquanto faz vibrar castanholas.

 

Ela está com a pele branca, como sempre acontece quando são pintadas mulheres, e ele com uma cor vermelho escura. É essa a convenção, nos túmulos. Mas é mais do que uma convenção. Nos tempos primitivos os homens untavam-se com tinta escarlate sempre que queriam acentuar a sua natureza sagrada. Os índios ainda hoje o fazem. Quando querem invocar a natureza sagrada e misteriosa do seu ser, cobrem os corpos de vermelho. Deve ser por isso que lhes chamam peles-vermelhas. No passado, nas cerimónias sagradas mais importantes, esfregavam pigmentos vermelhos na pele. E o mesmo acontece actualmente. Quando querem melhorar a visão ou perceber melhor as coisas, põem vermelhão à volta dos olhos, espalhando-o depois sobre a pele. E possível encontrá-los em algumas cidades da América.

 

Trata-se de um costume muito antigo. Qualquer índio americano poderá dizer: «A tinta vermelha é um remédio, faz ver melhor!». Mas não aplica a palavra remédio da mesma maneira que nós. O seu significado é ainda mais profundo do que a própria magia. O vermelhão é a cor do seu corpo sagrado, forte e endeusado. E, aparentemente, era assim que se passava em todo o mundo antigo. A cor escarlate representava a ligação aos deuses no corpo do homem. Sabemos que os reis da Roma antiga, que foram provavelmente etruscos, apareciam em público com as caras pintadas de vermelhão e mínio. E Ezequiel afirma (XXIII. 14, 15): «Ela viu homens pintados na parede, imagens de caldeus, pintados de vermelho [...], todos com o parecer de príncipes semelhantes aos filhos de Babilónia, na Caldeia, terra do seu nascimento».

 

Para os etruscos, portanto, representar os homens com a cor vermelha, com esse forte vermelhão, é em parte uma convenção mas esta estabelece também uma relação com o simbólico. Nos túmulos tudo existe em função do seu significado sagrado e profundo. Além disso, a cor vermelha não é assim tão pouco natural. Actualmente, quando um italiano vai para a praia, quase sem roupa nenhuma sobre o corpo, fica com uma cor belíssima, de um vermelho escuro igual a qualquer índio. Ora, os etruscos também andavam muito tempo nus ao sol. E o sol colocava neles o mínio sagrado.

 

Os dançarinos vão na sua dança, os pássaros correm, perto de uma pequena árvore um coelho enfia-se num arbusto, exultante de vida. Da árvore pende uma túnica estreita, com franjas, como a estola de um sacerdote; e é um outro símbolo.

 

A parede do fundo contém a cena do banquete, já bastante deteriorada mas, ainda assim, com muitos motivos de interesse. Podem ver-se dois canapés separados, com o homem num e a mulher noutro. Desta vez a mulher tem cabelo escuro, pelo que não deverá ser uma cortesã. Os etruscos partilhavam as refeições com as suas mulheres, que é muito mais do que faziam gregos e romanos neste mesmo período de tempo. O mundo clássico considerava ultrajante uma mulher sentar-se assim para comer, reclinada como os homens, mesmo que fosse à mesa da família. E se por vezes tinha de estar, sentava-se, muito direita, numa cadeira.

 

Aqui as mulheres estão calmamente reclinadas com os homens e uma delas mostra um pé descalço junto à extremidade do canapé mais escuro. Frente aos lecti, os canapés, está, junto de cada um, uma pequena mesa baixa e quadrada com delicadas iguarias para os convivas. Eles, contudo, não estão a comer. Uma das mulheres levanta a mão até à cabeça numa estranha saudação ao tocador de flauta que tem túnica e se encontra mais atrás, enquanto a outra faz o mesmo, como a querer dizer Não! à encantadora rapariga, talvez uma escrava, que está de pé a seu lado, possivelmente oferecendo o alabastron, a taça dos unguentos, e o homem ao fundo parece segurar um ovo. Grinaldas pendem do florão coberto de hera, um rapaz traz um jarro de vinho, a música continua e, sob os canapés, um gato parece prestes a caçar alguma coisa, enquanto um galo, atento, o observa. A tonta da perdiz, contudo, está de costas voltadas e vai seguindo inocentemente com toda a calma.

 

Este túmulo magnífico tem, ao longo da viga central e na barra a toda a volta do cimo das paredes, um padrão de heras e rebentos de heras, as heras do Baco do mundo dos mortos. E nas duas partes do tecto há quadrados vermelhos e negros, brancos, azuis, castanhos e amarelos. No espaço que faz o ângulo da empena, em vez dos dois animais heráldicos, há dois homens nus, sentados, que parecem querer tocar o centro de um altar coberto de hera, por trás deles, estendendo o braço através da própria hera. Um dos homens, porém, está quase apagado. Aos pés do outro homem, no ângulo mais apertado da empena, há um pombo, o pássaro da alma que arrulha desde o além.

 

Este túmulo está aberto desde 1830 e ainda se encontra em boas condições. No livro de Fritz Weege, Etruskische Malerei, é interessante observar a imagem de uma aguarela que pretende reproduzir os dançarinos da parede à direita. É um bom desenho mas, olhado mais atentamente, deixa transparecer algumas falhas, não só em relação ao traço mas ao próprio posicionamento. É que as pinturas etruscas, não pertencendo ao domínio das nossas convenções, são muito difíceis de imitar. A imagem mostra o coelho que referi todo malhado, como se fosse uma espécie peculiar de gato. E também um esquilo numa pequena árvore em frente do tocador de flauta, flores e outros pormenores já desaparecidos.

 

Apesar de tudo, é um bom desenho, ao contrário de outras reproduções do livro de Weege, demasiado flaxmanizadas e «gregas»; e feitas de acordo com aquilo que os nossos trisavôs pensavam que deviam ser para se tornarem mais aceitáveis e servirem de aviso aos que pudessem discordar de como as coisas deviam ser, pois que estavam muito bem como eram.

 

Voltamos a subir até à superfície e passamos alguns minutos a céu aberto. E depois descemos de novo. No Túmulo das Bacantes as cores já quase não existem. Mas na parede do fundo ainda é possível ver um dançarino estranho e com ar enigmático, vindo da noite dos tempos com a sua cítara e por trás dele e da pequena árvore, um homem das brumas do mundo antigo, um homem de barba, de aspecto forte e misteriosamente masculino, que procura alcançar uma mulher arcaica e desafiadora, enquanto esta ergue as mãos no ar e volta o rosto, ao mesmo tempo ousado e subtil, na sua direcção. É uma coisa maravilhosa sentir a força e o mistério da vida da antiguidade que emana destas imagens já quase desvanecidas. Os etruscos vivem ainda nas pinturas daquelas paredes.

 

Acima das figuras humanas, no ângulo superior do triângulo da empena, dois veados malhados empinam-se heraldicamente um em frente do outro, de cada lado do altar, e por trás deles dois leões escuros mas de juba clara, de língua de fora, levantam uma das patas e tentam agarrá-los pelos quadris. É a velha história a repetir-se.

 

Da barra com tiras pendem grinaldas do campo e no tecto estão pintadas pequenas estrelas, ou flores de quatro pétalas. Já tanta coisa se dissipou! E contudo quanta vida há no que resta da cor e das formas!

 

No Tomba del Morto, o Túmulo do Homem Morto, a cena do banquete é substituída por outra em que, aparentemente, se vê um homem deitado no seu leito e uma mulher que gentilmente se debruça sobre o seu rosto. É muito parecida com as habituais cenas de banquete. Mas está tão estragada! Na empena do tecto, dois leões heráldicos levantam a pata na direcção de dois pássaros que pulam assustados, olhando para trás. Há aqui uma variante nova. Na parede estalada somente podem ver-se as pernas de um dançarino mas, apesar de haver só alguns fragmentos, são suficientes para perceber que há nelas mais vivacidade do que nos corpos todos dos homens da actualidade. Há ainda uma figura mais escura, deveras impressionante, de um homem nu que estende os braços de forma a manter na vertical um grande jarro de vinho, ao mesmo tempo que a mão aberta e o fácies cerrado revelam um estranho gesto de peremptória decisão. Tem uma coroa na cabeça e barba pontiaguda e vive ali, na penumbra do tempo, a profundidade da sua significação.

 

Igualmente magnífico é o Tomba delle Leonesse, o Túmulo das Leoas. Na empena frontal, duas leoas malhadas baloiçam as tetas em forma de sinos e olham-se uma à outra heraldicamente frente ao altar. Mais abaixo há um vaso grande, vendo-se um tocador de flauta num dos lados e um tocador de cítara no outro, executando a música sagrada. Ao lado de cada um deles passa um estreito friso de dançarinos fortes e garbosos. Sob o friso dos dançarinos e ainda mais abaixo, a toda a volta da sala, golfinhos saltam para voltarem a mergulhar no mar ondulado, enquanto pássaros voam entre os peixes.

 

Na parede da direita vê-se reclinada a figura impressionante de um homem pintado a vermelho-escuro, que tem na cabeça uma espécie de gorro, ou toucado, muito peculiar, com umas farripas parecidas com tranças. Na mão direita segura um ovo e na direita a salva rasa do vinho para a festa. A túnica ou estola, que representa a sua profissão em vida, pende de uma pequena árvore atrás dele e a grinalda, que evoca os prazeres vividos, cai mesmo a seu lado. O ovo que ele segura na mão é o ovo da ressurreição, dentro do qual dorme o embrião, tal como a alma dorme no túmulo, antes de quebrar a casca e emergir outra vez. Há um outro homem reclinado, já bastante apagado, e a seu lado pende uma grinalda ou entrançado, como fazíamos na infância com as hastes dos dentes-de-leão. Na direcção deste homem caminha um rapaz tocador de flauta, nu, magnificamente desenhado na sua nudez.

 

O Tomba della Pulcella, ou Túmulo da Donzela, tem figuras que, embora já esbatidas, mostram ainda o seu vigor numa cena de banquete em que há colchas cheias de ornamentos e com motivos aos quadrados e capas de grande beleza.

 

O Tomba dei Vasi Dipinti, Túmulo dos Vasos Pintados, tem enormes ânforas pintadas na parede lateral e um misterioso dançarino que caminha na sua direcção com a túnica ao vento. As ânforas, que são duas, têm algumas cenas pintadas que se podem perceber com facilidade. Na parede do fundo há uma pequena e curiosa cena de banquete na qual se vê um homem de barba a tocar delicadamente, um pouco abaixo do queixo, a mulher que está com ele, um rapaz escravo, ainda com ar de criança, de pé atrás dele e um cão vigilante debaixo do canapé. O kylix, ou taça do vinho, que o homem segura, é certamente o maior de que há registo; não há dúvida de que está propositadamente exagerado, de modo a mostrar a importância especial das festividades. O gesto com que toca na mulher abaixo do queixo, com uma delicada carícia, é de uma subtileza e de um encanto enormes. Aí reside mais uma das seduções das pinturas etruscas: há nelas um sentido real do acto de tocar; as pessoas e os animais estabelecem um contacto verdadeiro. E essa é uma qualidade que é raro encontrar, na vida como nas artes. Habitualmente, sobretudo na pintura, vê-se que as pessoas se tocam e se agarram mas sem nelas passar qualquer corrente mais profunda ou mais delicada, inerente ao próprio acto de tocar. Não provém do cerne do ser humano, resume-se a um mero contacto de superfície, a uma justaposição de objectos. É isto, precisamente, o que torna aborrecidos muitos dos grandes mestres, apesar da qualidade das suas composições. Aqui, nesta pintura etrusca quase desvanecida, a corrente existe, é a sua força profunda, a sua delicadeza, que estabelece a união entre o homem e a mulher reclinada sobre o canapé, o rapaz de ar tímido mais atrás, o cão que levanta o nariz, e mesmo as grinaldas que pendem da parede.

 

Acima da cena do banquete, no triângulo da empena, em vez de leões ou leopardos, temos o hipocampo, animal muito frequente na imaginação etrusca. É uma espécie de cavalo cujo corpo termina numa longa e ondulante cauda semelhante à dos peixes. Neste caso, dois hipocampos estão face a face, erguem as patas da frente no ar e as suas caudas ondeiam no ângulo superior do tecto. São um dos símbolos favoritos dos etruscos da costa litoral.

 

No Tomba del Vecchio, o Túmulo do Velho, uma mulher muito bela, com o cabelo puxado atrás em forma de pinha, como era costume no oriente, e aqui parecendo uma bolota inclinada, oferece esplêndidas grinaldas entrançadas a um velho homem de barba branca que, neste caso, está atrás delas. Ele levanta a mão esquerda na sua direcção, num gesto que é tão intenso entre este povo e que tem uma significação profunda de cada vez que é feito.

 

Um pouco acima deles, dois veados malhados e de patas erguidas são atacados nos quadris por dois leões. Sobre eles passam silenciosamente as sombras da deterioração, a passagem do tempo e as agressões dos homens.

 

E assim seguimos, túmulo após túmulo, passando de uma a outra obscura luminosidade, divididos entre o prazer de encontrar tanto e o desapontamento de restar tão pouco. Não há túmulo em que quase tudo não esteja já desvanecido, corroído pelo alcali ou intencionalmente destruído. Fragmentos de pessoas em banquetes, pernas e braços dançando sem que se vejam os dançarinos, pássaros que voam onde já não há céu, leões com focinhos devoradores que, por sua vez, acabam devorados pelo tempo! Outrora tudo foi alegre, o espírito da dança tudo abraçava: o prazer prolongava-se no mundo dos mortos; honravam-se os mortos com vinho, flautas convidavam à dança, pernas e braços volteavam no ar a sua energia. Eram honras profundas e sinceras prestadas ao morto e aos mistérios. O que é algo contrário às nossas ideias; os antigos, contudo, tinham uma filosofia muito própria. Como diz um velho escritor pagão: «Nenhuma parte de nós ou do nosso corpo ficará fora do sentido da religião: que à alma nunca falte o canto, que às pernas e ao coração nunca falte o movimento e a dança; pois que através de tais coisas se conhecem os deuses».

 

É algo de muito evidente nos dançarinos etruscos. Eles sentem o conhecimento dos deuses até à ponta de cada dedo. Os maravilhosos fragmentos de membros e corpos que dançam num ambiente quase desvanecido contêm em si esse conhecimento e tornam-no evidente para nós.

 

Mas agora já não somos capazes de ver muitos mais túmulos. Quando subimos de novo à superfície, o ar parece evanescente e incorpóreo, ainda mais branco com a luz do mar e o aproximar do fim do dia. O cão, exausto e lento, ergue-se uma vez mais para nos seguir.

 

Decidimos que o Tomba delle Iscrízioni, o Túmulo das Inscrições, será o último a ver hoje. É bastante escuro mas, à medida que a luz vai aumentando, começa a revelar-nos o seu fascínio, vendo-se em frente a parede do fundo com as vigas já descoloridas e uma porta falsa, como se conduzisse a outra câmara; da esquerda vêm cavaleiros muito altos cavalgando uns atrás dos outros e da direita vêm correndo, também em fila, dançarinos cuja imagem esbatida ainda deixa transparecer uma agitação quase demoníaca.

 

Os cavaleiros estão nus e em pêlo estão também os cavalos, e abrem gestos à medida que se aproximam da porta pintada. Os cavalos são, alternadamente, vermelhos e pretos, os vermelhos com crinas e cascos azuis e os negros com vermelhas ou brancas. São cavalos arcaicos, altos e de pernas delgadas, com os pescoços em arco como facas curvas. E vêm a galope, elegantes e garbosos nas suas longas caudas, em direcção à porta vermelho-escura da morte.

 

A partir da esquerda, os dançarinos surgem em fila, saltitando alegremente, tocando música, trazendo grinaldas ou jarros de vinho e, inebriados de folia, elevando os braços e os joelhos, pujantes de vida, enquanto acenam com as suas mãos enormes. Alguns têm pequenas inscrições junto deles: são os seus nomes.

 

Acima da porta falsa, no ângulo da empena, há um desenho magnífico: dois leões escuros, de boca completamente aberta e juba clara, estão de costas encostadas um ao outro, vendo-se, entre ambos, as caudas levantando-se no ar como hastes encurvadas; cada um deles ergue uma pata negra na direcção da cabeça amedrontada de um veado malhado, já agachado e tremendo perante o bafo da morte. Atrás de cada veado, no ângulo junto ao tecto, está outro leão mais pequeno e também de cor escura, que se ergue para morder o tolhido veado nos quadris e assim provocar a segunda ferida mortal. Porque os golpes mortais são sempre desfechados no pescoço e nos quadris.

 

Na outra extremidade do túmulo há lutadores e jogadores, mas já tão esbatidos! Não somos capazes de ver mais nada nem de procurar nas sombras a insuperável vida dos etruscos, a quem os romanos chamavam viciosos mas cuja vida se mostra nestes túmulos tão plena e tão fulgurantemente imaculada.

 

O ar à superfície é imenso e límpido mas parece que há nele um vazio. Não conseguimos olhar para nenhum dos mundos, o mundo etrusco dos mortos e o que nos traz a luz do dia. Cansados e em silêncio, enfrentamos o vento em direcção à cidade, com o cão que nos segue estoicamente. O guia promete levar-nos aos outros túmulos no dia seguinte.

 

Há uma característica das representações etruscas que nos prende para sempre. Os leopardos com as línguas de fora, os hipocampos ondulantes, os veados malhados, amedrontados e atacados na cabeça e nos quadris, entram na nossa imaginação para nunca mais saírem. E nela ficam também as ondas da beira-mar, os golfinhos em arco sobre ele, a elegância do mergulhador que se atira, o homem pequeno trepando a rocha atrás dele, tão decidido. E os homens de barba que se reclinam nos canapés, nas cenas de banquete: como seguram o ovo misterioso! E as mulheres, com o toucado em pinha, como se inclinam sobre eles com carícias que já não sabemos fazer! Também os escravos sabem inclinar assim o corpo, nus, sobre os jarros de vinho. A nudez é a sua roupa e muito mais fácil de usar. As curvas dos seus membros mostram um puro prazer de viver, um prazer que se acentua ainda mais nos membros dos dançarinos, nas mãos fortes e compridas volteando no ar e vibrantes de dança até às pontas dos dedos, uma dança que irrompe de dentro, como as correntes do mar. É como se outra corrente, oriunda de uma forma de vida poderosa e diferente da nossa, que é tão banal, os percorresse: como se fossem buscar a sua vitalidade ao profundo sentir que nos é negado.

 

Poucos séculos bastaram, porém, para que essa vitalidade fosse perdida. Os romanos extorquiram-lhes a vida. Parece que o poder de resistência à vida, o auto-convencimento e a arrogância autoritária, tal como os entendiam os romanos, tem forçosamente de ter uma moral ou arrastar consigo uma moralidade, como uma capa para esconder a fealdade mais hedionda. Parece que tal poder será sempre bem sucedido na tentativa de destruir o florescimento natural da vida. Mas, apesar disso, estão continuamente a nascer flores rebeldes e criaturas rebeldes.

 

O florescimento natural da vida! Não é coisa tão ao alcance da mão humana quanto parece! Por trás do gosto etrusco pela vida estava uma religião da vida, pela qual eram empenhadamente responsáveis os chefes máximos. Por trás de cada acto de dança havia uma visão e mesmo uma ciência da vida, uma concepção do universo e do lugar do homem no universo que fazia os seres humanos viver até ao limite mais profundo das suas capacidades.

 

Para os etruscos tudo continha vida; todo o universo era uma essência viva; e ao homem cabia viver na intensidade viva de todas as coisas. A partir das intensas e poderosas forças vitais do mundo à sua volta, inscreviam em si a própria vida. O cosmos possuía vida, como se fosse um enorme ser. Tudo respirava, tudo se movia. As águas evaporavam-se como se lançadas ao ar pelas narinas de uma baleia. E o céu recebia-as no seu peito azul, inspirava o seu vapor, consubstanciava-se nelas antes de voltar a expirar. No interior da terra havia fogo, como o que arde nos fígados vermelhos dos animais selvagens. Das fissuras da terra saía uma respiração diferente, vapores que chegavam de um mundo vivo e físico sob a terra, uma vida sustentada por um espírito superior, ou anima: mas para lá desse espírito superior havia uma miríade de espíritos errantes que habitavam cada homem e cada animal, cada árvore, lago, montanha ou curso de água, dando a cada coisa uma consciência específica. Que ainda hoje se mantém.

 

O cosmos era uno, e a anima era una; mas as criaturas vivas tanto pertenciam a um como a outra. A terra era a maior de todas, com o fogo interior que constituía o seu espírito. E o sol não era senão um reflexo, a manifestação visível e resplandecente desse grande fogo interior. Justapostos à terra, o mar, os cursos de água, as águas paradas, possuíam também um espírito profundo e próprio. A terra e todas as águas existiam lado a lado, juntas e, ao mesmo tempo, tão profundamente diferentes.

 

Assim era. O universo, que era uma entidade viva e única, com um espírito também único, mudou num abrir e fechar de olhos e passou a ser uma entidade dual, com dois espíritos, o do fogo e o da água, para sempre misturando-se e para sempre afastando-se mas unidos na força viva e decisiva do equilíbrio universal. Uniram-se e afastaram-se numa primeira vez e desse momento único nasceu imediatamente uma miríade de dualidades: vulcões e mares, rios e montanhas, árvores, animais, homens. E tudo a partir daí, em cada acto de aproximação ou de afastamento, permaneceu dual ou conteve em si dualidade própria.

 

A antiga ideia da vitalidade do universo desenvolveu-se muito antes da História ter começado e estava inserida numa religião muito vasta, antes de a podermos ter sequer apreendido. Quando a História efectivamente começa, na China ou na índia, no Egipto, na Babilónia, ou mesmo no Pacífico, ou com os nativos americanos, vemos que há uma evidência que subjaz a uma ideia religiosa: a concepção da vitalidade do cosmos, uma miríade de vitalidades várias em agitado turbilhão e que ainda hoje se manifestam em diversas circunstâncias; e no meio de toda essa fascinante confusão, o homem, ousando, lutando, batalhando por uma única coisa: pela vida, pela sua vitalidade, por uma cada vez maior vitalidade. E para reter em si a fascinante energia do universo. É esse o tesouro. A ideia religiosa induzia a uma acção: o homem, desperto para a essência da vida através do exercício da atenção, da subtileza e da sua força, seria capaz de incluir nele cada vez mais vida, mais vida e mais esplendor vital, até se tornar límpido como a manhã e resplandecente como um deus. Quando a plenitude o atingia, pintava-se de vermelhão, como o vulcão das madrugadas, e o deus fazia-se carne, vermelho, à vista de todos, profundamente possuído de energia vital. E assim se mostrava príncipe e rei; deus e lucumo etrusco; faraó ou Baltasar, Assurbanípal ou Tarquínio; e também, mas em contagem decrescente, Alexandre, César, Napoleão.

 

Foi esta a ideia que esteve na base de todas as grandes civilizações antigas. E, embora semi-transformada, esteve também na origem do pensamento de David, a que os Salmos deram voz. Mas em David o cosmos vivo tornou-se um mero deus personalizado. Nos egípcios, nos babilónios e nos etruscos não havia propriamente deuses personalizados. Os deuses eram apenas ídolos ou símbolos. Era o próprio cosmos, na pulsão deslumbrante da sua complexidade, que era divino, contemplado apenas por espíritos intensos e somente durante breves momentos. Apenas um espírito único podia incorporar alguma centelha da grande chama da vida. E nesse momento far-se-ia então rei-deus.

 

É a antiga noção dos reis que se fazem deuses pela incorporação da energia vital. Iam reunindo neles os núcleos de potência vital do universo e, merecedores das vestes escarlates, constituíam-se parte física do fogo profundo. Os faraós e os reis de Ninive, os reis do oriente, os lucumones etruscos, são os guias vivos do caminho para o fogo puro, para a vitalidade cósmica. São a chave da própria vida, os guias tocados pelo vermelhão da vida, conduzindo ao mistério e ao prazer da morte e da vida. No seu próprio corpo, eles abrem ao seu povo a vasta casa-tesouro que é o cosmos e fazem brotar a vida, mostram o caminho para a obscuridade da morte, o azul que sai do fogo primordial. Nos seus corpos, eles são os que trazem consigo a vida e os que guiam para a morte, os primeiros a entrar na obscuridade e a trazer dela para a luz do dia muito mais do que o brilho do sol. Podemos duvidar que tais mortos estejam envoltos em ouro? Ou que tivessem estado, nesses tempos remotos?

 

Tanto eram portadores de vida como guias para a morte. Montavam guarda às portas da vida e às portas da morte. Guardavam os segredos e vigiavam os caminhos. Só alguns eram iniciados no mistério do banho da vida e do banho da morte: pia sagrada dentro de outra e de outra ainda e na qual, quando um homem é mergulhado, fica mais escuro do que o sangue, com a cor da morte, e mais resplandecente do que o fogo, com a cor da vida; até atingir o escarlate real, o vermelhão puro, e assim incluir em si a essência da energia vital.

 

O povo não era iniciado nas ideias cósmicas nem nas pulsões que o acordariam para uma consciência mais vital. Por mais que se tente, nunca se conseguirá fazer com que as grandes massas despertem totalmente para essa consciência. Não podem senão chegar a uma pequena parte dela. Por isso, era preciso dar-lhes símbolos, rituais e sinais que se integrassem nos seus corpos até à capacidade máxima que cada um deles pudesse reter. Mais do que isso seria fatal. E era essa a razão pela qual o conhecimento verdadeiro lhes devia ser ocultado, dado que, conhecedores apenas das fórmulas mas sem terem passado por todas as experiências que lhes correspondem, tornar-se-iam insolentes e ímpios, pensando ter chegado ao todo quando, em vez dele, mais não teriam do que o mero vazio de um embuste. O conhecimento esotérico será sempre esotérico, pois qualquer conhecimento é uma experiência, não uma fórmula. E um conhecimento defeituoso é, na verdade, um conhecimento perigoso. Nenhuma época o prova mais do que a nossa. Os embustes tornaram-se as mais desastrosas de todas as coisas.

 

A chave para a vida etrusca era o lucumo, o príncipe religioso. A seguir vinham os sacerdotes e os guerreiros. E só depois o povo e os escravos. O povo, os guerreiros e os escravos não pensavam a religião. Só com eles, a religião extinguir-se-ia rapidamente. Contudo, sentiam os símbolos e dançavam as danças sagradas. Porque permaneciam sempre em contacto, fisicamente, com os mistérios. O contacto era estabelecido pelo lucumo e ia até ao escravo mais humilde. A corrente do sangue nunca se quebrava. Mas quanto ao conhecimento, esse pertencia ao escol por nascimento, aos altos nobres.

 

Nos túmulos, portanto, encontramos apenas a visão simples e não iniciada do povo. Não há, como no Egipto, expressão da visão dos sacerdotes. Os símbolos, para o artista, não são senão formas, tão carregadas de emoção como úteis para a composição. Os artistas pertenciam, claro está, ao povo, eram artesãos. É possível que tivessem a sua origem nos antigos povos itálicos e pouco entendessem da religião na sua forma mais intrincada, tal como chegara do oriente: embora não restem dúvidas de que os imperfeitos fundamentos da religião oficial eram os mesmos dos da religião primitiva dos nativos. Tais fundamentos atravessaram, de resto, as religiões de todo o mundo bárbaro, dos druidas, dos teutões, dos celtas. Os povos que chegaram à Etrúria, porém, mantiveram secretas a ciência e a filosofia da sua religião e deram ao povo os seus símbolos, ao mesmo tempo que permitiam aos artistas toda a liberdade no uso desses símbolos; o que demonstra como não havia uma orientação dirigida pelos sacerdotes.

 

Mais tarde, quando o cepticismo se apoderou de todo o mundo civilizado, como aconteceu a partir de Sócrates, a religião etrusca começou a morrer, os gregos e o racionalismo grego espalharam-se por toda a parte e as concepções gregas acabaram por tomar o lugar do antigo pensamento simbólico dos etruscos. E, mais uma vez por falta de conhecimento, os artistas etruscos utilizaram as histórias gregas como já tinham utilizado os símbolos etruscos, em toda a liberdade, refazendo-as a seu bel-prazer.

 

Há, contudo, uma coisa essencial de que o povo etrusco nunca se esqueceu: o mistério da viagem que saía da vida e entrava na morte; a viagem-da-morte e a estada no pós-vida. O deslumbramento do seu espírito continuava a exibir-se no mistério dessa viagem e na permanência no mundo dos mortos.

 

É precisamente isso o que podemos ver nos túmulos, vibrações de um deslumbramento e de um sentir vital que pulsa sobre a própria morte. O homem caminha nu e iluminado através do universo. Depois a morte chega: e ele mergulha no mar, parte para viver no outro mundo.

 

O mar é a entidade vasta e primordial, igualmente possuidora de espírito próprio, cuja essência é o útero matricial de todas as coisas, do qual todas as coisas emergem e para dentro do qual voltarão. A terra, com o seu fogo interior de ante-vida e pós-vida, equilibra o poder do mar. Para lá das águas e do fogo elementar, há apenas a unicidade que o povo desconhecia: um segredo que os lucumones guardavam em si, tal como guardavam na mão o seu símbolo.

 

Mas o mar, isso o povo conhecia bem. O golfinho salta e mergulha nele subitamente, como criatura que adquire existência súbita, vinda do nada. Não existe e de repente: Olha! Está ali um! É o mesmo golfinho que só desiste dos arcos-íris do mar quando morre. Lá vai ele num salto; e depois, inclinando a cabeça para a água, mergulha novamente. Todo ele respira vida, é como o falo transportando a fogosa centelha da procriação até à húmida obscuridade do útero. O mesmo faz o mergulhador, falo levando consigo a pequena centelha do seu fogo até às profundezas da morte. E o mar submete-se aos seus mortos, deixa que o golfinho emerja e volte, trazendo o arco-íris no seu ser.

 

O pato que nada sobre as águas e abre as suas asas, porém, representa uma coisa completamente diferente: é o pato azul, ou ganso, tantas vezes evocado pelos etruscos. É o mesmo que despertou durante a noite para salvar Roma.

 

Os patos, ao contrário dos peixes, não vivem sob as águas. O peixe é a anima, a vida animada, a chave para a vastidão do mar, o elemento aquático da primeira submissão. É por esta razão que Jesus Cristo era representado, nos primeiros séculos da cristandade, por um peixe, sobretudo em Itália, onde o povo pensava ainda de acordo com os símbolos etruscos. Cristo foi a anima desse elemento líquido, para sempre submisso, para sempre oposição e contrapartida à chama escarlate com que os faraós e os reis do oriente se investiram.

 

O pato, contudo, não tem a natureza subaquática dos peixes. Nada à superfície das águas e tem sangue quente, pertence à chama escarlate do corpo animal da vida. Mas também sabe mergulhar na água e, mesmo em tempo de cheias, não se esquece de compor as suas penas. Não é de estranhar que se tenha tornado, para o homem, o símbolo dessa parte dele próprio que se deleita nas águas e mergulha, e de novo regressa sacudindo as asas. Ele é o símbolo do falo do homem e da vida fálica. Daí a imagem do homem que segura na mão um pato fogoso, delicado e vivaz, e o oferece a uma donzela. Actualmente, também os índios peles-vermelhas fazem oferenda de noivado às virgens de um pato oco em barrro, dentro do qual arde um pequeno lume onde queimam incenso. É essa a parte do seu corpo, o fogo da vida, que o homem tem para oferecer à mulher. E é a mesma consciência do conhecimento e da atenção vigilante que desperta na noite e dá o alerta à cidade.

 

A rapariga, por seu lado, oferece ao homem a grinalda, a coroa de flores à volta da pia sagrada, que pode ser colocada sobre a cabeça ou sobre os ombros e simboliza que ele fica investido de um novo poder e de uma força diferente, a do poder feminino, num mistério que lhe é transmitido pela donzela. Tudo o que é colocado sobre os ombros é sinal de um poder que se acrescenta.

 

Os pássaros voam de forma maravilhosa nas paredes dos túmulos. É de crer que os artistas tenham observado os sacerdotes, ou augures, munidos com os seus bordões encurvados e encimados por uma cabeça de pássaro, num qualquer lugar mais elevado, olhando o voo de cotovias e pombos na imensidão dos céus. Liam indícios e presságios à procura do conhecimento que lhes permitisse dar solução a determinado assunto concreto. A nós pode parecer coisa sem sentido. Mas para eles esses pássaros de sangue quente voavam através da vida do universo, tal como os sentimentos e as premonições atravessam o peito do homem e os pensamentos viajam na mente. Tanto os pássaros que irrompem subitamente no ar como os que, vindos de muito longe, trazem uma finalidade no seu voo, estão no interior de uma forma mais profunda de consciência e do destino complexo de todas as coisas. E dado que, no mundo antigo, todas as coisas tinham correspondência e as emoções que o homem sentia no seu peito eram o reflexo do sentir do universo, ou vice-versa, os pássaros voavam com uma prodigiosa finalidade, que tanto atingia o peito do homem que observava como assinalava, no seu voo, o próprio sentir do universo. Se o augure podia ver os pássaros voando no seu coração, então também saberia em que direcção o seu destino voava.

 

A ciência do augúrio não era, evidentemente, uma ciência exacta. Mas era tão exacta quanto são hoje as ciências da psicologia e da economia política. Os augures eram, no mínimo, tão hábeis como os nossos políticos, que deveriam praticar também a adivinhação, se é que são alguma vez capazes de fazer algo que não desmereça esse nome. Não há outra via, quando é da vida que se trata. E se vivemos no cosmos, é no cosmos que devemos encontrar a chave. Se se vive em função de um deus personalizado, ora-se-lhe. Se se é racional, vê-se tudo através do pensamento. Ao fim e ao cabo, porém, tudo vai dar ao mesmo. A oração, o pensamento, o estudo das estrelas, a observação do voo dos pássaros, o estudo das entranhas sacrificiais, tudo faz parte, em última análise, do mesmo processo: a adivinhação. Aquilo de que todas essas coisas dependem é do grau de concentração verdadeira, sincera, religiosa, aplicada a cada objecto. E, se formos capazes de um gesto de pura atenção, extrairemos dele a resposta. Toda e qualquer descoberta alguma vez realizada, toda e qualquer decisão significativa tomada seriamente, foi atingida através da arte da adivinhação. O espírito move-se e, num acto de pura atenção, produz uma descoberta. A ciência do augure e do arúspice não era tão ridícula como a moderna ciência da economia política. Se o fígado latejante de um animal limpava o espírito do arúspice e o tornava capaz da decisiva atenção que lhe permitia saber aquilo de que precisava, porquê pôr em causa o arúspice? Para ele, o universo era uma entidade viva com a qual estabelecia uma relação intensa. Para ele, o sangue possuía consciência: era com o coração que ele pensava. Daí que o fígado, esse órgão grande onde o sangue luta e «triunfa sobre a morte», fosse para ele sinal de profundo mistério e significado. Fazia actuar o espírito e purificava a consciência; pois que era também sua vítima. E ali ficava, concentrado sobre o fígado latejante, dividido em zonas e regiões da cintilante consciência de cor vermelha que percorre todo o reino animal. Por isso, o fígado continha as respostas às questões que o seu próprio sangue pusesse.

 

O mesmo acontece com o estudo das estrelas, ou do céu das estrelas. Seja qual for o objecto que, em tempos de perplexidade, leve a consciência ao estado de atenção pura, será capaz de fornecer uma resposta a essa mesma perplexidade. Mas, na verdade, trata-se sempre de uma questão de adivinhação. Assim que surgem pretensões de infalibilidade ou de cálculo científico puro, tudo se transforma em fraude e impostura. Isto tanto se aplica ao augúrio e à astrologia como à oração e à razão pura, e mesmo à descoberta das leis mais importantes e dos grandes princípios científicos.

 

Nos dias de hoje, o homem usa a oração como outrora usou o augúrio; e como, de certo modo, usa a ciência. Qualquer grande descoberta ou decisão provém de um acto de adivinhação. Os factos só depois se vêm ajustar a esse primeiro acto. Porém, todas as tentativas de adivinhação, incluindo a oração, a razão e mesmo a investigação, caem facilmente na impostura quando o coração perde a sua pureza. Na impureza do seu coração, Sócrates tornou a lógica muitas vezes uma desagradável impostura. E também não há dúvida de que, quando o cepticismo se abateu sobre o mundo antigo, tanto o arúspice como o augure se tornaram impostores e farsantes. Durante séculos, porém, exerceram grande preponderância. E é extraordinário constatar, em Livy, o enorme papel que terão representado na construção da grande Roma da República.

 

Passando dos pássaros aos animais ditos selvagens, verificamos nos túmulos uma constante repetição de cenas em que leões e veados se enfrentam. De acordo com a ideia antiga, o mundo baseou-se na dualidade mal foi criado. Tudo se tornou dual, não só na dualidade dos sexos como também na polaridade da acção. Nisto consistia a «dualidade ímpia dos pagãos». Mas não continha a piedosa dualidade do bem e do mal, que só mais tarde havia de surgir. O leopardo e o veado, o leão e o touro, o gato e a pomba ou a perdiz, fazem parte da grande dualidade, ou polaridade, do mundo animal. Mas não representam acções boas ou más em si. Pelo contrário, representam a actividade polarizada do cosmos divino na sua forma animal.

 

O tesouro dos tesouros é o espírito, o qual, em cada criatura, em cada árvore ou charco, significa o ponto de harmonia e de equilíbrio, ao mesmo tempo misterioso e consciente, entre as duas metades da dualidade, a ígnea e a aquática. Esse ponto misterioso estabelece-se, fulgor após fulgor, a partir da mão esquerda. E não desaparece com a morte, fica guardado dentro do ovo, ou numa jarra, ou mesmo numa árvore, até voltar a despontar outra vez.

 

Contudo, o espírito em si, a centelha consciente que habita cada criatura, não é dual; e, pertencendo ao domínio da imortalidade, é também o altar sobre o qual a nossa imortalidade é sacrificada.

 

Assim, como imagem-chave dos túmulos, estão constantemente presentes animais heráldicos, de frente um para o outro, com um altar, uma árvore ou um vaso entre eles; e constante também é sempre o ataque do leão, mordendo o veado nos quadris e no pescoço. O veado é sempre malhado, porque tem em si o dia e a noite, mas é o leão quem incorpora a luz e a escuridão.

 

O veado-fêmea, a ovelha, a cabra e a vaca, são as dóceis criaturas de úberes transbordantes de leite e fertilidade; por outro lado, o veado-macho, o carneiro e o toiro, são os grandes chefes das manadas, com chifres na cabeça indicando o perigo inerente às bestas da fertilidade. São os proliferadores da procriação ilimitada, as bestas da paz e do desenvolvimento. Perante eles, até mesmo Jesus Cristo pode ser cordeiro. A vocação interminável e infinita desta tendência encheria toda a terra de manadas tão encostadas umas às outras que nem espaço haveria para que uma só árvore crescesse.

 

Todavia, as coisas não têm de passar-se necessariamente assim, pois tais bestas não representam senão metade das criaturas vivas, ou nem isso. Há um equilíbrio que precisa de ser mantido. É aí que reside o altar onde somos todos sacrificados: aí reside a morte; mas é também aí que está o nosso espírito e o nosso tesouro mais puro.

 

Ao contrário do significado inscrito nos veados, há o que se encontra nas leoas e nos leopardos. Nestes também existe a dualidade do masculino e do feminino. As fêmeas também têm úberes cheios de leite para alimentar as crias, tal como a loba que alimentou os primeiros romanos, profeticamente nomeando-os aniquiladores de muitos veados, incluindo os etruscos. São estes animais ferozes os guardiões do tesouro que, por vontade dos prolíficos, seria completamente esbanjado, e do portão da morte que, de outro modo, teria de encerrar definitivamente por excesso de reprodução. Quando mordem um veado no pescoço e nos quadris sabem que é daí que começa a brotar a grande corrente do sangue.

 

Este simbolismo atravessa todos os túmulos etruscos. E é o simbolismo, no fundo, de todo o mundo antigo. Mas aqui não é exacto ou científico, como no Egipto. É simples e rudimentar e está para o artista como os contos de fadas para as crianças. Apesar disso, é o elemento simbólico que provoca a emoção mais profunda, daí o encantamento peculiar que se desprende das figuras dos dançarinos e dos animais. Um pintor como Sargent, por exemplo, é considerado muito capaz. Mas acaba por tornar-se profundamente desinteressante e enfadonho. E nem sequer suspeita da futilidade e da tolice patente nos seus quadros. Um leopardo etrusco, até mesmo a mais pequena das codornizes, valem mais do que tudo o que ele produziu.

 

Pormenor do Túmulo do Triclínio (480-470 A. C.)

 

Vista geral e pormenor do Túmulo do Triclinio.

 

Túmulo das Bacantes (finais do século VI a. C.), encontrado em 1874.

 

Túmulo do Homem Morto (finais do século VI a. C.), encontrado em 1832.

 

Túmulo das Leoas (cerca de 530 a.C), encontrado em 1877.

 

Túmulo das Donzelas (século V a.C.), encontrado em 1865.

 

Túmulo dos vasos pintados (finais do século VI a. C.) encontrado em 1864.

 

Túmulo do velho (finais do século VI a.c.), encontrado em 1864

 

Túmulo das inscrições (finais do século VI a.C.), encontrado em 1827.

 

Túmulo dos Touros (cerca de 550-540 a. C.).

 

Pormenores do Túmulo dos Touros (cerca de 550-540 a.C).

 

Túmulo de Francesca Giustiniani (século V a. C.), encontrado em 1833.

 

Bronze restaurado por Benvenuto Celinni (finais do século V a. C.), museu arqueológico de Florença.

 

Túmulo dos Augures (cerca de 530 a. C.), encontrado em 1877.

 

Sarcófago das Amazonas Pintadas, Museu Arqueológico de Florença (cerca de século IV a.C.).

 

Túmulo do Barão (cerca de 500 a.C), encontrado em 1827.

Túmulo dos Escudos (cerca de século IV a. C.), encontrado em 1870.

 

Pormenor do túmulo dos escudos.

 

Túmulo de Orcus (século IV a. C.), encontrado em 1868.

 

Pormenores do Túmulo de Orcus.

 

Túmulo de Tífon (século II a. C,), encontrado em 1832.

 

         OS TÚMULOS PINTADOS DE TARQUÍNIOS

 

Sentamo-nos a uma das mesas de ferro do café a seguir à porta de entrada, observando os camponeses que chegam com os seus utensílios e fardos às costas. À medida que vão entrando, o funcionário da Dazio, a alfândega local, olha-os atentamente e pergunta-lhes se vêm só com mato, perfura os feixes que trazem às costas e, quando os pequenos ramos se soltam, aguenta-os com uma longa vara metálica e examina-os cuidadosamente na expectativa de poder encontrar barris de vinho, garrafões de azeite, ramadas de laranjas ou qualquer outra coisa que seja para a alimentação. E isto porque, para entrar em qualquer cidade italiana, um produto desse tipo - e muitos outros para além dos comestíveis - têm de pagar uma taxa, que é, muitas vezes, bastante pesada.

 

Nos tempos etruscos, é provável que os camponeses também assim regressassem à cidade pelo fim do dia. Os etruscos tinham a noção instintiva da cidadania. Mesmo os camponeses habitavam dentro das muralhas. E não há dúvida de que, nesses tempos, os camponeses eram tão escravizados como são actualmente em Itália, trabalhando a terra sem receber salário e ficando apenas com uma parte do que produzem; mas sempre trabalhando a terra com o vigor intenso, cuidadoso e quase apaixonado que o italiano põe na sua relação com o solo; ele pode viver na cidade ou na aldeia, mas vai de chapéu de palha trabalhar para o campo, no verão.

 

Nesses outros tempos, numa tarde tão agradável como esta, os homens chegariam decerto quase nus, com a pele escura e avermelhada do sol e do vento, caminhando na leveza firme dos seus corpos; e as mulheres, com as suas capas de linho azul ou branco, viriam também entrando, ao mesmo tempo que alguém tocaria flauta e alguém decerto cantaria, pois os etruscos tinham uma grande paixão pela música e uma alegria interior que os italianos da actualidade já perderam. Os camponeses entrariam no espaço livre, limpo e sagrado do lado de dentro das muralhas, fariam depois uma saudação ao pequeno templo de cores vivas e seguiriam ao longo da rua que subia até à arx, entre correntezas de casas baixas com frontarias pintadas de cores também garridas ou então suspensas e cobertas de terracota brilhante. Quase podemos ouvi-los ainda, falando uns com os outros, gritando, tocando flauta, cantando, caminhando entre o rebanho misto de ovelhas e cabras, que seguem silenciosamente abrindo o caminho para os bois lentos, brancos e fantasmagóricos, com a junta ainda à volta das cabeças.

 

E certamente que, nesses tempos, jovens nobres viriam, de pernas e braços descobertos, a trote nos seus cavalos, cavalgando montadas quase em pêlo, provavelmente empunhando uma lança e passando depois a meio galope por entre o grupo de camponeses de pele suave, vermelho-acastanhada, e membros firmes. Talvez até pudesse aparecer um lucumo, com o seu ar nobre, sentado numa quadriga conduzida por um cocheiro, entrando na cidade ao pôr do sol e parando frente ao templo para cumprir o breve ritual da entrada na cidade. E toda a população estaria à sua espera; à espera desse lucumo dos velhos tempos, resplandecente no seu corpo avermelhado, de barba cofiada e aparada à maneira oriental, com o colar de oiro ao pescoço e o manto ou colcha de orla escarlate, caindo em pregas cheias e deixando a descoberto o peito nu, divino, sentado na quadriga com a tranquila solenidade do poder. O povo fortalecia-se pelo mero facto de o olhar.

 

A quadriga avançava um pouco mais, deixando o templo para trás; o lucumo, sentado, com o tronco muito direito e de ombros e peito destapados, ficava a aguardar que o povo se aproximasse. Nesse momento, os camponeses decerto recuariam, temerosos. E podia ser que um cidadão de túnica branca erguesse o braço numa saudação e passasse a expor uma qualquer situação mais difícil ou simplesmente pedir justiça. E o lucumo, continuando sentado e em silêncio, espiritualmente ligado a uma outra dimensão do poder e aplicando a disciplina que lhe advinha da responsabilidade de transmitir conhecimento ao povo, tudo escutaria até ao fim. Depois, algumas palavras - e logo partiria num redemoinho a quadriga de reluzente bronze, trepando pelo monte acima até à casa do chefe, enquanto as pessoas se encaminhavam para casa ao som da música que ecoava nas ruas já escuras, as tochas tremeluzindo, toda a gente a comer e a dançar, divertindo-se quanto podia, num tempo feliz.

 

Agora é diferente. Cabisbaixos e com uma roupa incaracterística, os camponeses seguem dispersos pela vazia terra-de-ninguém, dirigem os passos para casa sem que uma só canção se oiça, sem um sentido nas suas vidas. Perdemos a arte de viver; e no que diz respeito à mais importante de todas as ciências, a ciência da vida quotidiana, a ciência do comportamento, tornámo-nos completamente ignorantes. Em vez disso, temos a psicologia. Em Itália, actualmente, com o calor que faz no verão, se um cabouqueiro tirar a camisola para trabalhar mais à vontade de tronco nu, logo aparece um polícia a ordenar-lhe insultuosamente que a torne a vestir. Deve pensar-se que o corpo é uma coisa tão indecente e tão chocante que a vida só pode existir se a indecência for constantemente combatida. A ver assim, também a exposição dos braços e das pernas das mulheres que seguem o seu caminho na via pública seria um insulto a todo e qualquer corpo humano. «Olhem para isto! E eles não dizem nada!».

 

Nem tinham de o fazer, claro! Mas então porque proíbem os trabalhadores de andar de tronco nu?

 

No hotel há três japoneses, três pequenos seres amarelados que contrastam com a vazia obscuridade do lugar. Alguém nos diz que estão ali para inspeccionar o trabalho nas salinas, situadas abaixo de Tarquínios, e que têm autorização do governo. As salinas, a extracção do sal das silhas que guardam a água após a maré-cheia, são uma espécie de prisões, pois nelas trabalham condenados. Fica-se a pensar por que razão há-de haver japoneses a inspeccionar aqueles lugares. Mas a única coisa que nos sabem dizer é que o trabalho nas salinas é «muito importante».

 

O Albertino parece entender-se já muito bem com os três japoneses e ter mesmo ganho confiança com eles, inclina-se sobre a mesa com a pequena cabeça castanha sobressaindo no meio das outras três, de cabelo preto, afável e atento ao que vive. Logo se afasta rapidamente para ir pedir o que escolheram - e depois chega-se cheio de pressa à nossa mesa para ver o que queremos comer.

 

«O que é aquilo?»

 

«Hum - Começa sempre a falar com uma ênfase extraordinária, como se fosse indicar o menu para um czar. Mas de repente pára e diz: «vou perguntar à mamma» - sai que nem uma flecha e regressa, dizendo com voz jovial, como se fosse anunciar a Nova Jerusalém: «São ovos - hum - e bife - hum e traz batatas pequenas a acompanhar». Ovos e bife, que grande novidade! Ainda assim, lá pedi mais uma vez os ovos e o bife, com as tais batatas fritas que, por sorte, deviam ter sobrado do almoço. Lá vai o Albertino disparado para voltar num ápice e dizer que as batatas e os bifes acabaram («os últimos foram ali para os chineses», confidencia-nos), «mas posso arranjar umas rãs». «Arranjar o quê?». «Lê rane, rãs». «Mas rãs como?». «Já vos mostro». Sai de novo a grande velocidade e regressa com uma travessa com oito ou nove pares de coxas de rã já sem pele. O B. desvia o olhar mas eu opto pelas rãs - estão com muito bom aspecto.

 

Satisfeito por ter conseguido levar as rãs a bom porto, o Albertino dá um pequeno pulo antes de desaparecer novamente a grande velocidade: para voltar quase de seguida com uma garrafa de cerveja e nos segredar informações que tinha sobre os chineses, como lhes chamava. Não sabem uma palavra de italiano. Quando precisam vão ver a um pequeno dicionário de Francês-Italiano. Pão, hein? Vão ver como é que se diz. Hum! - Albertino resmunga um concentrado de vírgulas e pontos e vírgulas, que eu traduzo aqui por hum, finge que pega num pequeno dicionário e que o põe em cima da toalha, humedece o dedo e começa a passar folhas imaginárias -pão - hum! - p - é preciso procurar na letra ’p’ - hum! - ecco! Panei-fanei - si capisce - pão! É pão o que eles querem. E também vinho! hum Finge que pega outra vez no livro, passando as folhas com grande desembaraço - hum Cá está, vino - pane, e vino. E é assim que fazem! Chegam lá pelo nome! Hum! Chega! Hum! Digo-lhe: Albertino Mas o rapaz continua e só pára quando lhe pergunto: então e as ranes! Ah! Hum Lê rane Sai disparado e regressa rodopiando com uma travessa de coxas de rã fritas, dispostas aos pares.

 

É um rapaz vivo e bem disposto, embora algo triste e melancólico por dentro, certamente por causa das responsabilidades que tem. No dia seguinte apareceu de repente para nos mostrar um livro com imagens de Veneza, que os chineses, como persistia em chamar-lhes, tinham deixado e pergunta-me se o quero. Digo que não. Depois mostra-nos dois selos de correio e a morada de um dos japoneses, escrita num pedaço de papel. O senhor japonês e o Albertino terão combinado trocar postais ilustrados. Insisto em como os japoneses não são chineses. «Hum!», diz Albertino. «Mas os japoneses também são chineses!». Volto a insistir que não, que vivem em países diferentes. Sai apressadamente e regressa com um atlas na mão. «Hum! A China fica na Ásia! Ásia! Ásia!» - e vai folheando o livro. Não há dúvida de que ele é um rapaz inteligente mas, na complicada idade dos catorze anos, devia andar na escola, em vez de ter de dirigir um hotel.

 

O nosso guia dos túmulos esteve toda a noite em serviço de vigilância no museu e, por isso, precisava de umas horas de sono. Daí que só tivéssemos partido às dez. A cidade já está vazia, as pessoas já partiram para os campos. Vêem-se apenas por ali alguns homens, que não estão a fazer nada. Agora as portas da cidade estão abertas de par em par. Mas de noite ficam fechadas, para que o homem da Dazio possa dormir - e ninguém pode entrar ou sair da cidade. O melhor é tomar outro café. A ração matinal que o Albertino nos serviu era tudo menos generosa.

 

Olhamos e vemos o nosso guia a falar com um jovem de pele clara, vestido com velhos calções de bombazina até ao joelho, um chapéu de estilo antigo, como os calções, e botas grossas. Aproximamo-nos, damos os bons-dias, cumprimentamos com um aceno de cabeça o jovem alemão, que tem o ar de quem parece ter bebido vinagre ao pequeno-almoço, e partimos. Esta manhã temos de andar uns três quilómetros até chegarmos à extremidade mais distante da necrópole. Ainda há cerca de doze túmulos que queremos ver, sendo que, no total, há vinte e cinco ou vinte e sete em condições de serem visitados.

 

Na manhã de hoje há uma brisa forte que sopra de sudoeste. Mas é fresca e não traz nuvens, ao contrário do desagradável libeccio. Caminhamos despreocupadamente ao longo da estrada principal, com o velho cão novamente aos saltos atrás de nós. Adora passar uma manhã no meio dos túmulos. O mar liberta uma claridade especial que torna a atmosfera duplamente límpida e convidativa. Há um autocarro que passa, vindo de Viterbo. Passamos por camponeses no seu trabalho e, uma vez por outra, o nosso guia dirige uma saudação às mulheres, que retribuem. O jovem alemão vai caminhando, resoluto: mas o seu estado de espírito não parece ao nível da sua forma física. Não sabemos bem o que havemos de dizer-lhe, não abre o jogo e parece que não deseja que lhe dirijam a palavra, embora também seja possível que se sinta ofendido por não lhe dizermos nada. O guia, com a sua proverbial jovialidade, tenta meter conversa com ele, em italiano: mas, passado pouco tempo, acaba por regressar à companhia mais civilizada do B., deixando-me junto do jovem alemão que, tenho a certeza, terá bebido o seu vinagre por mais do que uma vez.

 

A verdade é que sinto em relação a ele o mesmo que sinto em relação à maioria dos jovens de hoje: pecaram contra ele mais do que ele terá pecado. Alguém lhe deu o vinagre a beber. Expressando-me relutantemente em alemão, já que ele considerava o italiano uma língua sem nexo e o inglês fora de questão, descobri, ao fim de uns oitocentos metros de caminhada, que tem vinte e três anos (embora não aparente mais do que dezanove), acabou o curso universitário, quer ser arqueólogo, e que as suas viagens à Sicília e a Tunes, de onde regressou há pouco tempo, se devem a esse seu interesse pela arqueologia; nenhum dos dois lugares o impressionou por aí além - mehr Schrei wie Wert, atira ele como quem deita fora um cigarro de que já estivesse farto; aqueles lugares não o impressionaram; os etruscos não o impressionam nicht viel Wert; e eu, aparentemente, também não o impressiono lá muito; conhece um ou dois professores com quem já estive; conhece muito bem os túmulos de Tarquínios, uma vez que já lá foi, e lá ficou, por duas vezes; também não o impressionaram muito; está a pensar em ir à Grécia; mas não espera ver nada que o impressione; está noutro hotel, não no Gentile, porque é ainda mais barato: ficará talvez duas semanas, para fotografar os túmulos todos com a sua máquina enorme - tem autorização do governo, como os japoneses -, parece não ter muito dinheiro, fazendo verdadeiros milagres a partir do nada para concretizar o que pretende - espera tornar-se um professor famoso numa ciência que está longe de o impressionar - e eu pergunto-me se terá tido sempre oportunidade de se alimentar como deve ser.

 

É, não há dúvida, um jovem irritante e impertinente, embora também possa haver nele, de certa forma, um certo estoicismo silencioso. Nicht viel wertl- não vale muito a pena - não acrescenta nada de novo - é a sua frase preferida, tal como é a frase preferida de quase todos os jovens de hoje. Nada vale muito a pena, para os jovens.

 

Mas, sentindo que a culpa não é minha, tento ver as coisas de outra maneira. É certamente uma coisa terrível pertencer a uma geração que fez a guerra, mas deve ser ainda pior crescer a seguir a essa mesma guerra. Não podemos censurar os jovens por não ligarem a nada. A guerra destruiu-lhes o sentido das coisas.

 

E este jovem nem sequer é má pessoa: possivelmente, gostaria mesmo de ser levado a acreditar em qualquer coisa. Há nele, algures, uma ânsia de atingir um qualquer patos.

 

Passamos pelo cemitério actual, com as lápides funerárias e os arcos de um aqueduto medieval atravessando misteriosamente um declive de um lado ao outro, deixamos a estrada principal e seguimos por um caminho ao longo do longo monte, entre o brilho maravilhoso da manhã e o trigo verde que se agita e ondula ao vento marítimo como se o compusessem penas muito delicadas. Aqui e ali há pendões de anémonas cor de malva, alguma verbena, muitos malmequeres, tufos de camomila. Num monte rochoso, que outrora foi um tumulus, os asfódelos levam vantagem e erguem no ar fresco e límpido os seus espigões, como um destacamento de soldados guardando o monte. Assim prosseguimos pela fulgurância verde do trigo desta terra - áspera e rude, apesar de tudo, pois dantes nada havia aqui senão tumuli -, com o rosto sentindo a brisa e o brilho da luz marítima enchendo o ar de alegria no meio da quietude e do silêncio em redor de nós, ao mesmo tempo que vamos falando alemão com a mesma prudência cautelosa com que os cães se cheiram.

 

De repente, voltamos na direcção de um túmulo quase escondido - o rapaz alemão conhece o caminho perfeitamente. O guia apressa-se a acender o candeeiro a gás e o cão procura vagarosamente um sítio ao abrigo do vento e enrosca-se nele: à medida que penetramos no sub-solo, vamos deixando o nosso mundo e entrando devagar no mundo etrusco uma vez mais.

 

Um dos túmulos mais famosos nesta extremidade da necrópole é o Túmulo dos Touros. Contém o que o guia chama un pó’ di pornográfico - mas não muito. O rapaz alemão, como de costume, encolhe os ombros: mas informa-nos de que este é um dos túmulos mais antigos, e eu acredito, porque também acho o mesmo.

 

É mais largo do que os outros, o tecto não é muito inclinado, há um leito de pedra para os sarcófagos junto a cada uma das paredes laterais, e duas entradas feitas na parede de fundo que dão para outra sala, mais obscura e soturna. O rapaz alemão diz que, em relação à primeira, esta segunda sala foi aberta posteriormente. Não contém pinturas de grande importância.

 

Voltamos à primeira sala, a mais antiga. O nome Túmulo dos Touros advém das imagens de dois toiros, por cima das duas entradas da parede do fundo, um deles com rosto de homem e responsável pelo que há di pornográfico, enquanto o outro está tranquilamente deitado e olha misteriosamente para o interior da sala, de dorso voltado para uma segunda imagem, que o guia refere como não ’pornográfica - «porque tem uma mulher». O jovem alemão sorri, com aquela ácida expressão que costuma fazer.

 

Tudo neste túmulo sugere o antigo oriente: Chipre, os hititas, ou a cultura de Minos de Creta. Entre as duas entradas da parede do fundo há uma sugestiva pintura de um homem nu em cima de um cavalo em pêlo, que empunha uma lança e segue na direcção de uma pequena e graciosa palmeira e de uma nascente ou fonte, sobre a qual se encontram esculpidos dois animais selvagens de focinho negro, semelhantes a leões de focinho negro e agressivo. A água corre da boca do que está mais perto da palmeira para uma espécie de pia de altar, enquanto, na extremidade oposta, um guerreiro avança, de capacete de bronze e caneleiras, aparentemente ameaçando o cavaleiro com uma espada que brande no ar com o braço esquerdo, ao mesmo tempo que põe o pé no degrau da fonte. Tanto o guerreiro como o cavaleiro usam botas compridas e pontiagudas, como as que se usavam no oriente: e a palmeira também não parece muito italiana.

 

Esta imagem exerce sobre nós uma curiosa atracção e é evidentemente simbólica. Pergunto ao alemão: «Que significado tem?». «Ah, nenhum! O homem no cavalo vai dar-lhe água a beber: nada mais do que isso». «E quanto ao homem da espada?». «Oh, se calhar é um inimigo». «E os leões com o focinho preto?». «Ah, nada de especial. São meras decorações da fonte». Sob estas imagens há árvores de onde pendem uma grinalda e a estola da fertilidade. Todo o padrão pintado à volta tem, em vez do ovo e da flecha, bolas com cruzes ligadas na parte de baixo e encimadas por dois círculos pequenos, o chamado sinal de Vénus. «E isto, não será um símbolo?», perguntei ao alemão. «Nem pensar!», replicou ele, abruptamente. «Não passa de uma decoração!» - o que talvez seja verdade. Mas que os artistas etruscos tivessem por ele, enquanto símbolo, o mesmo tipo de sentimento que têm os nossos actuais decoradores de interiores, nisso não é possível acreditar.

 

Descanso da conversa, por um momento. Mas depois, ao ver que há uma frase etrusca ali escrita, já muito esvaída e parecendo garatujada, pergunto ao rapaz alemão: «Sabe lê-la?». Leu-a com uma rapidez estonteante. Eu, confesso, teria de ir letra por letra. «E que quer dizer?», perguntei. Ele encolheu os ombros. «Ninguém sabe».

 

No ângulo superior, junto ao tecto, os animais heráldicos são bastante curiosos. A peça bojuda que se vê ao centro, o chamado altar, tem quatro cabeças de carneiro nos cantos. Da direita vem a galope a rédea solta, num cavalo preto, um homem de pele clara e rosto escuro, perseguido por um touro também a galope. À esquerda há a imagem muito maior de um leão de aspecto estranho, igualmente a galope e com a língua de fora. Mas, em vez de asas, nasce-lhe dos ombros um segundo pescoço, de um bode barbudo e de cabeça escura: o estranho animal tem, assim, um segundo pescoço e uma segunda cabeça, que está orientada em direcção oposta à primeira, com a habitual juba e a cabeça ameaçadora dos leões. Será esta a verdadeira Quimera. Não é de estranhar que, a seguir à cauda do leão, e também a galope, surja uma esfinge feminina alada.

 

«Qual é o significado deste leão com duas cabeças e dois pescoços?» perguntei eu ao alemão. Encolheu novamente os ombros e disse: «Nenhum!». Não significava nada, porque tudo o que seja o b-a-ba dos factos não tem qualquer significado para ele. É um homem de ciência e quando não quer que alguma coisa tenha significado, declara, ipso facto, que o não tem.

 

Mas o leão com cabeça de bode a nascer-lhe dos ombros num movimento para trás tem mesmo um significado, como é visível na expressiva e famosa Quimera de Arezzo, uma estátua em bronze que está actualmente no Museu de Florença, foi restaurada por Benvenuto Celline e é uma das mais fascinantes estátuas em bronze de todo o mundo. Nela, inclinando-se para trás, a cabeça barbuda do bode eleva-se a partir do quarto dianteiro do leão, enquanto o chifre direito do bode penetra na boca da serpente, que é a própria cauda do leão, enrolada no ar sobre o seu dorso.

 

Embora esta seja a Quimera original, com as feridas que Belerofonte lhe provocou nos quadris e no pescoço, não se pode dizer que seja um mero brinquedo em tamanho gigante. De facto, os mitos gregos são apenas representações grosseiras de certas concepções esotéricas muito antigas e de grande transparência, muito mais longínquas no tempo do que os mitos: ou do que os próprios gregos. Os mitos e os deuses personalizados não representam senão a decadência de uma religião cósmica que lhes foi anterior.

 

A estranha força e a estranha beleza das coisas etruscas advêm, parece-me, da profundidade da significação simbólica que os artistas, de alguma forma, conheciam. A religião etrusca nunca foi antropomórfica, isso é um dado adquirido: ou seja, os deuses que nela existiam não eram seres, mas símbolos dos poderes elementares e não mais do que símbolos: como aconteceu nos primeiros tempos do Egipto. A Divindade indivisível, se podemos chamar-lhe assim, era simbolizada pelo mundum, o plasma celular com o seu núcleo: o princípio de tudo; ao invés do que acontece connosco, em que um deus personalizado, uma só pessoa, representa a finalidade de toda a criação e de toda a evolução. Tem sido assim até aos nossos dias; a religião etrusca dizia respeito aos poderes físicos e criativos que estão na origem da construção e da destruição do espírito. E o espírito, a personalidade, integrava tudo o que nascesse gradualmente do caos, como uma flor, e voltasse a desaparecer no caos, o outro mundo. Nós, pelo contrário, dizemos: No princípio era o Verbo! - e negamos a existência física e verdadeira do universo. Existimos apenas no Verbo, que é usado até à exaustão para cobrir, disfarçar e esconder todas as coisas.

 

O ser humano, para os etruscos, estava no touro ou no carneiro, no leão ou no veado, conforme as capacidades e as energias que nele irrompiam. O ser humano trazia nas veias o sangue das asas dos pássaros e o veneno das serpentes. Tudo emergia da corrente do sangue e a relação com o sangue, por mais complexa e contraditória que pudesse tornar-se, nunca era interrompida ou esquecida. Havia outras correntes que passavam na corrente do sangue e que, por vezes, entravam em choque: o pássaro e a serpente, o leão e o veado, o leopardo e o cordeiro. Mas até esse choque fazia parte de uma completude uníssona, como é visível no leão que tinha também cabeça de bode.

 

O jovem alemão, porém, não quer ver o que ali está contido. É um espírito moderno, só o óbvio tem para ele existência verdadeira. Um leão que, para além da sua, tem também cabeça de bode, é uma coisa impensável. E uma coisa impensável não existe, não é nada. Assim, todos os símbolos etruscos são, para ele, não existentes e não representam senão uma mera forma imperfeita de pensar. Não lhes dedica um só pensamento: são sinais de impotência mental e, portanto, negligenciáveis.

 

Mas talvez ele pretenda resguardar qualquer coisa ou esteja a evitar divulgar algum segredo que mais tarde o venha a tornar um arqueólogo famoso. Embora eu não ache que seja esse o caso. Seja como for, mostrou-se simpático para comigo, dando-me a ver coisas com a sua lanterna que, de outro modo, me escapariam. Em relação ao cavalo branco, por exemplo, observa-se que o desenho foi sendo alterado a pouco e pouco quase na sua totalidade: é possível perceber o traço original das patas traseiras e do peito do cavalo, mas também se pode ver que o artista alterou o desenho, em certas zonas, mais do que uma vez. O trabalho parece ter sido dado por acabado mas depois, porque o autor mudava de posição, mudava também a orientação do desenho, para corresponder à nova perspectiva de ver as coisas. E como não havia borracha para apagar as primeiras tentativas, assim permaneceram desde, pelo menos, seiscentos anos antes de Cristo: erros delicados de um artista etrusco que tanto possuía o instinto puro do artista verdadeiro como a indiferença despreocupada sobre o facto de alguém poder ver, se quisesse, todas as suas tentativas.

 

Para esboçar os desenhos, os artistas etruscos usavam o pincel ou então rasgavam com uma espécie de cavilha o estuque pouco espesso; só depois aplicavam as cores ao fresco. Por isso, tinham de ser rápidos no trabalho. Algumas das pinturas pareceram-me feitas a têmpera e num dos túmulos, creio que o de Francesca Giustiniani, a pintura parece ter sido feita directamente sobre a rocha nua, de tom amarelado. Nesta, a cor azul da túnica do homem é maravilhosamente exuberante.

 

A subtileza da pintura etrusca, tal como a chinesa e a hindu, reside no contorno sugestivo e maravilhoso das figuras. Não há um delineamento. Nem sequer se trata bem daquilo a que podemos chamar «desenho». São linhas evanescentes de onde os corpos subitamente partem para se integrarem na atmosfera. O artista etrusco terá certamente observado o modo como tudo o que nasce abandona o seu núcleo central para chegar até à superfície. As curvas e contornos das orlas em silhueta podem sugerir uma modelação no seu interior. Essa modelação, todavia, não existe. As figuras são pintadas de forma simples e directa. Apesar disso, parecem conter uma musculosidade plena e quase túrgida. Só quando chegamos a um túmulo mais tardio, o Túmulo de Tífon, se nos depara a figura modelada, de estilo pompeiano, com contrastes de luz e sombra.

 

Deve ter sido, sem sombra de dúvida, um mundo maravilhoso esse antigo mundo em que tudo surgia vivo e que, pelo contacto de todas as coisas entre si, até ao crepúsculo brilhava, sem que cada elemento tivesse apenas existência individual e se deixasse ver apenas à luz do dia; em que tudo tinha, visualmente, um perfil nítido, mas de uma nitidez emocionalmente ou vitalmente relacionada com coisas que lhe podiam ser estranhas, cada uma brotando da outra, mentalmente contraditórias mas em fusão emocional, ao ponto de um leão poder ser, ao mesmo tempo, um bode e outro animal que não um bode.

 

Nesses tempos, um homem num cavalo de pêlo ruivo não era qualquer Zé Ninguém em cima de uma pileca; era uma criatura de pele suave, com a morte e a vida estampadas no rosto, incluído na vaga de um poder animal que exultava ao mais pequeno passo que desse e que, movido pela apaixonante impulsão do sangue, ia em direcção a uma finalidade desconhecida com exaltante confiança e no turbilhão de uma espiral de que fazia parte. Também o touro não era o animal utilitário que é hoje, quando o seu destino é invariavelmente o matadouro. Era um poderoso animal-prodígio, a fonte inicial de uma paixão tórrida e torrencial que faz girar o mundo e despontar o sol, e dá ao homem a sua força procriadora; o touro, o chefe da manada, o pai de vitelos e bezerras, o pai de vacas; esse que tem na cabeça os chifres do poder, simbolizando o carácter guerreiro do chifre da fertilidade; e com um rugido de força dominadora, ciumento, armado de chifres, carregando sobre toda e qualquer oposição. O bode está na mesma linha de simbolismo, também ele é o pai do leite mas, em vez da força bruta, havia nele astúcia, ele era a consciência e a autoconsciência astuta desse pai da procriação ciumento e fogoso. O leão, que vai buscar ao sol a sua cor amarela e ruge com a energia que lhe dá o sangue que bebe, era o mais terrível de todos os animais. O sol que ele representa, contudo, é um sol apostado em sorver toda a vida que existe na terra. Porque o sol pode aquecer o mundo, tal como faz a galinha amarela que se senta sobre os seus ovos. Mas a sua língua de fogo também pode destruí-lo. O bode afirma: que eu seja, para todo o sempre, o procriador do mundo, até que o meu odor se torne o seu único odor. Mas, de uma outra corrente do sangue, que também habita no homem, logo ruge o leão e a pata que ergue no ar não significa senão que está pronto para atacar, em nome da paixão de um outro conhecimento.

 

Na verdade, todas as criaturas possuem, à sua maneira, um poder latente, uma consciência infinita e multifacetada que age no interior de contradições e oposições eternas e está para lá de qualquer possibilidade de reconciliação mental. Só simbolicamente podemos conhecer o mundo que vive. Mas qualquer forma de consciência, do furor do leão ao veneno da serpente, é existente e, por isso, divina. Tudo emerge a partir do círculo inviolável com o seu núcleo, o gérmen, o Uno, o deus, se assim lhe quisermos chamar. E o homem, com o seu espírito e a sua personalidade, emerge dele em ligação eterna com tudo o resto. Se a corrente do sangue é una e inviolável, nela actuam em tumulto oposições e contradições variadas.

 

Os antigos viam de forma consciente aquilo que as crianças de hoje vêem de forma inconsciente, ou seja, o maravilhamento perante todas as coisas. No mundo antigo, as três emoções mais fortes devem ter sido emoções de maravilhamento, medo e admiração; admiração no sentido latino da palavra e no que hoje lhe atribuímos; e medo em sentido mais amplo, incluindo repulsa, pavor e ódio: só depois vinha a última das emoções individuais, o orgulho. Quanto ao amor, é apenas um factor subsidiário do maravilhamento e da admiração.

 

Foi precisamente por sentirem o carácter vivo de todas as coisas, latejando na relação apaixonada e cheia de significação que se estabelecia entre elas, que os antigos souberam guardar, por um lado, o maravilhamento e o prazer da vida, por outro, o pavor e a repugnância. Eram como as crianças: mas tinham a força, o poder e o conhecimento sensual de verdadeiros adultos. Havia neles um mundo de conhecimento efectivo que hoje está totalmente arredado de nós. Onde eles eram verdadeiros adultos, somos nós crianças; e vice-versa.

 

Mesmo os dois fragmentos que dizem conter algo de ’pornográfico’, não são pequenas pinturas obscenas. Muito longe disso. Tal como nós, também o rapaz alemão o sentiu. As pinturas têm o mesmo carácter de maravilhamento ingénuo que têm todas as outras, a mesma inocência arcaica, aceitadora da vida, conhecedora de tudo o que lhe diz respeito, e sentindo o seu significado, assim como uma espécie de pedra que, ao bater na consciência, lança os círculos provocados pelo embate em vagas sucessivas, umas após as outras, até aos mais longínquos extremos possíveis. As duas pequenas pinturas têm um significado simbólico que não envolve qualquer significado moral - nem imoral. As palavras moral e imoral, de resto, não servem neste contexto. O toiro com cara de homem aceita certos actos - esses que Dennis classificaria como obscenidades flagrantes - tranquilamente, mantendo-se deitado; mas, perante outros actos, baixa os chifres e ataca. Não se trata de um juízo. Mas do impulso passional estabelecido entre acção e reacção: a acção e a reacção do pai do leite.

 

Há túmulos muito belos neste monte mais afastado, coberto de trigo. Um, o Túmulo dos Augures, impressiona sobremaneira. Na parede do fundo está pintada uma porta que dá para outro túmulo e de cada um dos lados há um homem que faz determinado gesto, provavelmente de luto, um gesto algo estranho e grave, em que uma das mãos está sobre a testa, até meio da cabeça. Os dois homens fazem o seu luto à porta do túmulo.

 

«Não!», diz o alemão. «A porta pintada não representa qualquer porta que dê para um túmulo, com figuras de enlutados de cada lado. É apenas uma porta que foi pintada para mais tarde abrirem uma segunda sala neste túmulo. E os homens não estão a fazer luto nenhum».

 

«Mas estarão a fazer o quê, afinal?»

 

E encolhe os ombros!

 

No triângulo acima da porta pintada, dois leões, um de focinho claro e outro de focinho escuro, estão agarrados a um bode, ou antílope: o de focinho mais escuro volta-se ao contrário para poder morder de lado o pescoço do bode, o outro morde nos quadris. Aqui temos, de novo, as duas bestas heráldicas: mas, em vez de rugirem a um altar, ou a uma árvore, mordem um bode, o pai que faz nascer o leite, no pescoço e nos quadris.

 

Nas paredes laterais encontram-se dois magníficos frescos de lutadores nus e, logo a seguir, uma cena que tem feito correr muita tinta acerca da crueldade etrusca. Um homem com um saco na cabeça, usando apenas uma faixa à volta da cintura, está a ser mordido na coxa por um cão feroz, que é agarrado por outro homem através de uma trela presa ao que parece ser um chicote de madeira, ao mesmo tempo que uma pega, também de madeira, está ligada à coleira do cão. O homem que segura na trela usa um peculiar e alto chapéu cónico e vai, excitado e firme no vigor dos seus membros, atrás do homem com o saco na cabeça. A vítima está prestes a ficar enredada na trela, nessa corda muito, muito comprida que segura o cão; com a mão esquerda, porém, parece agarrar a trela e ir fazer com que o cão despegue, enquanto com a direita segura uma moca enorme com a qual poderá atacar o cão quando este estiver ao seu alcance.

 

Supostamente, esta imagem revelaria o carácter bárbaro e cruel dos espectáculos etruscos. Mas dado que no túmulo um augure ergue tensamente a mão na direcção de um pássaro escuro que vai a passar; e que os lutadores lutam sobre uma curiosa pilha de três pias sagradas; e que, no outro lado do túmulo está o homem com o chapéu cónico, o mesmo que empunhava a trela na primeira imagem e agora dança com prazer inusitado, como se festejasse uma vitória ou uma libertação, por tudo isso devemos considerar o simbolismo da imagem ao nível de todas as outras: a luta do encapuçado contra um elemento raivoso que o ataca. Se fosse um espectáculo, teria de haver espectadores, como no caso do Túmulo das Quadrigas; mas aqui não existem.

 

Contudo, as cenas mostradas no túmulo são tão reais que parecem ter sido extraídas da vida quotidiana. Pode ser que houvesse uma qualquer espécie de prova ou julgamento, no qual se daria a um homem uma moca enorme, se encapuçasse a sua cabeça e o deixassem depois a lutar com um cão feroz que, embora podendo atacá-lo, estava preso a uma trela e tinha uma pega de madeira ligada à coleira, com a qual o homem podia aguentá-lo e mantê-lo controlado até lhe poder acertar na cabeça. O encapuçado tinha, assim, muitas hipóteses de sair vencedor. E mesmo concedendo que se tratava de um espectáculo, e não de uma prova ou de um julgamento, a crueldade não pode ser considerada excessiva, pois o homem tem a possibilidade de bater na cabeça do cão logo no início da contenda. Se compararmos com os espectáculos dos gladiadores romanos, isto é quase «jogo limpo».

 

Deverá, contudo, ser mais do que um mero espectáculo. A dança do homem que segura a trela tem um esplendor extraordinário. Por outro lado, o túmulo deixa transparecer, de certa forma, uma intensidade e uma significação muito fortes. E o cão

- ou lobo, ou leão - que morde a coxa do homem é um símbolo também muito antigo. O que é muito evidente na parte superior do Sarcófago das Amazonas Pintadas, no Museu de Florença. O sarcófago é oriundo de Tarquínios - há, na extremidade da tampa, a figura embutida de um homem nu, de pernas afastadas, e dois cães que lhe mordem as coxas, um de cada lado. São os cães da doença e da morte, mordendo as grandes artérias situadas nas coxas, a zona onde, no homem, irrompe a vida elementar. O motivo é comum, de resto, em todos os simbolismos antigos. E a ideia esotérica das influências malévolas atacando as grandes artérias das coxas veio a originar, na Grécia, o mito de Acteão e dos seus cães.

 

Outro túmulo de grande beleza é o Túmulo do Barão, com o seu friso de figuras individuais, em tons escuros sobre um fundo claro a toda a volta das paredes. Há cavalos e homens, todos numa silhueta mais escura e desenhados com um traço de fascinante intensidade. Estes cavalos arcaicos satisfazem-nos perfeitamente enquanto cavalos: embora possam ser considerados próximos de Rosa Bonheur, Rubens e mesmo Velázquez, é sobretudo neles que o espírito reconhece a realidade intrínseca do cavalo, ao ponto de ter de perguntar-se em que consistirá, afinal, a qualidade que faz de cada cavalo um cavalo. Que vê uma pessoa quando olha para um cavalo? - que coisa será essa que jamais poderá ser posta em palavras? Porque, quando se olha, não se vê o que uma máquina fotográfica capta quando tira um instantâneo, ou mesmo uma câmara de filmar quando nos dá a sucessão das imagens; há uma espécie de estranho caudal que atravessa a visão e nele a própria imagem fervilha e flui; só a mente é capaz de distinguir certos factores que devem compor a imagem que é vista. É por isso que a perspectiva dada pela máquina nunca pode satisfazer-nos totalmente: a sua objectiva é uniforme, está somente em relação com um negativo situado dentro dela, ao passo que dentro de nós existe uma máquina viva, intrinsecamente positiva.

 

Andamos de túmulo em túmulo, penetramos na obscuridade e de novo voltamos à luminosidade e ao vento; e assim vai passando o tempo do dia. Mas, à medida que avançamos, túmulo após túmulo, vamo-nos aproximando gradualmente da cidade. O cemitério novo não está longe. Passamos pelo aqueduto que atravessa o declive e segue depois por um canal subterrâneo até à cidade e, já perto do cemitério, descemos a um túmulo enorme, o maior que nos foi dado ver - uma grande caverna subterrânea com dois leitos de grandes dimensões para os sarcófagos e as padiolas e, ao centro, um pilar ou um barrote quadrado sobre o qual está pintado um Tífon - o navegador com ondulantes serpentes que lhe continuavam as pernas e asas nascidas na parte de trás dos braços que segura o tecto com as mãos; são dois Tífons, na verdade, situando-se o outro, quase idêntico ao primeiro, na face oposta do pilar.

 

Fica-se imediatamente com a impressão de que, neste lugar, o fascínio etrusco já desapareceu. O túmulo é demasiado grande e inóspito, com a fealdade que uma caverna pode ter. O Tífon, na sua pele de tom avermelhado e com os contrastes já padronizados de luz e sombra, tem um ar inteligente e podia passar por moderno, dada a intencionalidade de provocar um determinado efeito. Está já tocado pela arte pompeia - e assemelha-se, de alguma forma, a Blake. Mas é feito a partir de um nova consciência, vinda do exterior; a antiga interioridade perdeu-se. Dennis, que o viu há uns oito anos, acha-o muito mais belo do que os dançarinos arcaicos. Nós não somos da mesma opinião.

 

Há uns quantos golfinhos rodopiando nas ondas de um mar que só algum conhecimento prévio permite identificar. E pode ver-se um friso de «rosas», o símbolo sagrado do «uno», com o seu embrião nuclear, mas aqui usado pela primeira vez de forma vulgar. E também um fragmento de um cortejo a Hades, que era coisa muito adequada ao estilo greco-romano. Mas o verdadeiro fascínio arcaico, esse, está irremediavelmente perdido. E o espírito etrusco da dança morreu para sempre.

É um dos túmulos mais recentes: julga-se que pertence à segunda metade do século dois a.C., quando os romanos já há muito estavam na posse de Tarquínios. Veios, a primeira grande cidade etrusca a ceder perante Roma, foi tomada cerca de 388 a.C. e totalmente destruída. A partir daí, a Etrúria foi enfraquecendo cada vez mais até se desmoronar por completo, com a paz a ser estabelecida em 280 a.C., ano em que se dá por concluída a conquista militar da Etrúria.

 

Com a conquista, os túmulos mudam quase do dia para a noite. Os que se supõe serem do século V, como o Túmulo do Barão, com os seus frisos de cavalos e homens, ou o Túmulo dos Leopardos, são ainda perfeitamente etruscos, por muito que neles já haja de influências do oriente, e, por isso, mantêm o mesmo encanto. Mas, de repente, ao entrarmos no Túmulo de Orcus, que está datado do século quatro, tudo muda de figura. O mundo dos mortos, aqui, é um submundo de dimensões desproporcionadas, tão sombrio, tosco e desconexo como húmido e aterrorizador, com pinturas enormes, já muito estragadas, nas paredes.

 

Estas pinturas, apesar de continuarem a ter o seu interesse, e apesar das inscrições etruscas nelas rabiscadas, já não têm o mesmo fascínio. Ainda contêm algo da liberdade etrusca mas, no seu todo, são sobretudo greco-romanas. Em certo sentido, talvez possuam mais liberdade do que as pinturas dos pequenos túmulos mais antigos; ao mesmo tempo, nota-se que a ideia de movimento está totalmente ausente; as figuras parecem ter sido coladas nas paredes, sem qualquer fluxo vital que as atravesse. Deixou de existir contacto.

 

Em vez das antigas e maravilhosas formas em silhueta, surgem agora «desenhos» mais modernos, que têm por vezes muita qualidade. A mim, porém, provocam o mais profundo desapontamento.

 

Quando os romanos tomaram o poder das mãos dos lucumones etruscos - no século IV a.C. - e os fizeram, na melhor das hipóteses, magistrados de Roma, o mistério da Etrúria morreu de imediato. No antigo mundo dos reis-deuses, que governavam em função de uma concepção religiosa, a deposição dos chefes e dos sacerdotes mais importantes deixava os povos imediatamente sem voz e sem orientação. Foi assim no Egipto e na Babilónia, na Assíria, e na América, com as civilizações maia e asteca. O povo é governado pela fina-flor da raça. Corte-se a flor e a raça ficará indefesa.

 

Os etruscos não foram extintos. Mas perderam a sua identidade própria. Viviam, fundamentalmente, em função do controlo subjectivo sobre os grandes poderes naturais. Esse poder subjectivo caiu perante o poder objectivo dos romanos. E, quase de um momento para o outro, terminou também a verdadeira consciência da raça. O conhecimento etrusco tornou-se uma superstição. Os príncipes etruscos tornaram-se romanos anafados e inertes. O povo etrusco tornou-se apático e ficou desprovido de qualquer significação. Tudo aconteceu de uma forma muito rápida nos séculos III e II a.C.

 

Apesar disso, o sangue etrusco continuou a circular. Giotto e alguns escultores mais recentes, por exemplo, têm sido capazes de fazer renascer o sangue etrusco, sempre capaz de gerar a flor e sempre esmagado por qualquer «força» supostamente superior. É uma luta entre a infinita perseverança da vida e o infinito triunfo da força.

 

Dos túmulos mais tardios, há um outro também enorme, o Túmulo dos Escudos, referenciado como sendo do século III. Contém muitas pinturas fragmentadas. Tem uma cena de banquete, com um homem sentado num canapé a receber da mulher um ovo, enquanto ela lhe toca no ombro. Mas se fossem duas cadeiras postas lado a lado numa sala qualquer, era precisamente a mesma coisa. Porque nada se passa entre eles. Os seus rostos têm um ar «importante» mas há neles um vazio que vem de fora, sem nenhuma dimensão interior, o que os torna algo enfadonhos. Apesar de tudo, têm algum interesse. Quase podiam ser feitos hoje, por um qualquer artista ultra-moderno que, ligando-se à infância, quisesse regressar a essa arcaica ingenuidade. Depois de se conhecerem as verdadeiras pinturas arcaicas, estas não contêm senão vazio. E toda a atmosfera que as envolve transmite o mesmo vazio. O ovo continua lá, erguido no ar. Mas, para aquele homem e para aquela mulher, tem tanto significado como hoje têm para nós os ovos de chocolate da Páscoa. Dele só emana frieza.

 

Com o Túmulo de Orcus dá-se início à representação macabra do submundo, do inferno e dos seus horrores, algo que os etruscos certamente foram buscar aos macabros romanos. Os túmulos pequenos e acolhedores dos primeiros séculos, de uma ou duas salas, no máximo, dão lugar a estas cavernas subterrâneas, enormes e sinistras, adequadas, portanto, para a representação do inferno.

 

A antiga religião baseada numa tentativa visceral do homem em harmonizar-se com a natureza, dominá-la em si e fazê-la florescer a partir da própria alegria existencial, foi substituída pela vontade de gregos e romanos em resistir à natureza, em produzir uma habilidade mental e um mecanismo de força que iludisse a Natureza, ao ponto de prendê-la completamente, tão completamente que não possa haver nada livre na natureza e em que tudo seja controlado, domesticado, posto ao serviço dos interesses mais mesquinhos do homem. Mas não deixa de ser curioso que o conceito de triunfo sobre a natureza tenha arrastado consigo o conceito de um Hades amedrontador, de um inferno e de um purgatório. Para os povos das grandes religiões naturais, o pós-vida era a continuação de uma viagem maravilhosa pela vida. Para os povos do Conceito, o pós-vida é o inferno, o purgatório, o nada, não passando o paraíso de uma ficção inadequada.

 

E também não deixa de ser natural que os historiadores se tenham atido às evidências essencialmente não-etruscas dos túmulos mais tardios para dar dos etruscos a visão de um povo inerte e diabólico, um povo vicioso que continha em si a sinuosidade das serpentes e que, por isso, terá sido justamente eliminado por esses romanos de tão nobre perfil. É um mito que persiste. Os homens nunca querem acreditar nas evidências que os seus sentidos lhes transmitem. Preferem investigar ao pormenor o pensamento de um qualquer autor «clássico». Não admira, portanto, que toda a ciência da história se dedique a recuperar velhas fábulas e velhas mentiras, reelaborando-as vezes sem conta. Teopompo coligiu umas quantas histórias infames e, para os historiadores, foi quanto bastou. Se está escrito, é porque é verdadeiro. As evidências contidas em cerca de cinquenta mil pequenos túmulos, a alegria delicada que neles sobressai, não vale uma palha. De facto, no princípio era o Verbo! Nem que fosse o verbo de um tal Teopompo!

 

A pintura habitualmente referida para ilustrar a beleza etrusca é uma conhecida cabeça de mulher, com espigas de trigo caindo-lhe sobre as orelhas, a partir de uma coroa com uma fita a toda a volta da cabeça. Fazia parte do Túmulo de Orcus e costuma falar-se dela porque é muito mais greco-romana do que etrusca. Para ser sincero, acho-a estúpida e auto-convencida - e moderna. Como já pertence à Convenção clássica, é considerada importante, dado que os homens só conseguem ver alguma coisa por via de uma Convenção. Não se pode dizer que tenhamos ficado sem olhos para ver, mas certamente destruímos três quartos da visão que eles nos possibilitavam.

 

Depois do Túmulo de Tífon, o assunto estava encerrado. Nada mais seria possível encontrar de verdadeiramente etrusco.

O melhor era abandonar a necrópole, com a convicção de que tudo o que os autores clássicos escreveram acerca dos etruscos está em sintonia com as pinturas dos túmulos mais tardios. Só se referem aos etruscos da decadência, àqueles que foram vencidos e romanizados.

 

É uma experiência muito agradável descer o monte onde se situa a actual Tarquínios, caminhar em direcção ao vale e subir depois o monte em frente, onde os etruscos tarquinianos devem ter vivido. As flores abundam, vendo-se jacintos de flor azul ou branca, anémonas de bandeira cor de malva e, num dos cantos de uma seara de trigo, anémonas enormes de cor púrpura; num outro pequeno pedaço de terra há anémonas rosa pálido com um vermelho vibrante ao centro - da espécie que tem as pétalas grandes. É curioso como as anémonas podem variar tanto. Este lugar de Tarquínios foi o único onde encontrei essas anémonas com um cor-de-rosa esbranquiçado e o já referido centro mais escuro, em tons de vermelho vivo. Mas, se calhar, é tudo obra do acaso.

 

As muralhas indicam precisamente o limite da cidade. A partir da base das muralhas começa logo terreno bravio e ao longo da encosta só existe uma pequena quinta com uma casa, igualmente pequena, coberta de palha. No campo não há mais nenhuma casa. Os camponeses habitam na cidade.

 

Talvez se passasse a mesma coisa na antiga Etrúria mas é natural que houvesse muito mais gente nos campos, muitas cabanas de palha, pequenas casotas provisórias no meio das searas; boas estradas, como os etruscos ajudaram os romanos a fazer, percorriam os montes; e muralhas altas e negras, com torres, ponteavam os seus cumes.

 

Ao que tudo indica, apesar de se terem desenvolvido bastante como comerciantes e de terem aperfeiçoado o trabalho com os metais, os etruscos viviam sobretudo da terra. A cultura intensiva da terra, tal como a praticam actualmente os camponeses italianos, é uma reminiscência do sistema etrusco. Por outro lado, foram os romanos, não os etruscos, a construir enormes casas no campo, com anexos ou «barracões» para os escravos, que eram encerrados à noite e transportados em grupos para os campos durante o dia. As maiores quintas da Sicília e da Lombardia ainda têm dessas enormes fattorie, certamente uma reminiscência do sistema romano. Não é difícil ver as diferenças em relação ao sistema etrusco: os camponeses prestavam um serviço, não eram escravos; tinham as suas pequenas porções de terra e exploravam-na exaustivamente, pai e filho unidos numa produção que ficava parcialmente para a família, sendo a outra parte entregue aos amos.

 

Os romanos alteraram tudo isso. O campo não era coisa que lhes agradasse por aí além. Nos tempos de maior prosperidade, construíram aqueles enormes casarões no campo, com barracões para os escravos. Mas a verdade é que, para eles, era mais fácil enriquecer por via do comércio ou da conquista. E foram abandonando gradualmente os campos, que acabaram negligenciados, assim abrindo caminho aos negros tempos da Idade Média.

 

Vindo de sudoeste, o vento sopra cada vez mais agreste. Não existem árvores. Mas até as moitas se dobram perante a sua força. E quando chegamos ao alto do extenso e isolado monte que os etruscos tarquinianos habitaram, quase somos arrancados do chão e temos de procurar abrigo, por alguns momentos, atrás de uns arbustos; daí vemos a manada preta e branca descendo lentamente a encosta em direcção ao local onde há água para beber, com os touros mais pequenos em piruetas e brincadeiras. E ao longo da encosta o trigo verde ondula como leves cabelos ao vento. Mais para dentro, perdendo-se de vista, a terra verde parece quase vazia, só com a cidade lá ao longe, empoleirada no cimo do monte, como se fosse uma visão. No monte em frente, mais perto do mar, Tarquínios ainda segura, em vão, as suas torres quadradas.

 

Estamos sentados numa parte do que seria a arx da cidade desaparecida. Algures por aqui, os augures erguiam os seus bordões recurvados e observavam os pássaros voando sobre os bairros da cidade. Isso ainda é possível fazer actualmente. Mas da cidade não vejo uma única pedra. É um lugar de solidão e de vazio.

 

Hoje regressamos por outra estrada e, mal entramos na cidade, por uma porta diferente, inclinamos o corpo até mais perto do chão, onde é menos agreste, para fugir à terrível força do vento. A estrada sinuosa é fustigada insistentemente pelo vento que vem do vale mas agora já estamos abrigados. A estrada continua para dentro das muralhas, passa em frente da Dazio mas não se vislumbra mais nenhuma casa. Um grupo de homens está a jogar a morra com um entusiasmo extraordinário e, a cada número que é gritado, segue-se uma explosão enorme, uma algazarra impressionante. Os homens olham-nos de forma um pouco interrogativa mas depois começam a rir, e nós com eles.

 

Continuamos a andar, já dentro do segundo círculo de muralhas, por um outro caminho, mais sombrio. E ainda não nos encontramos na cidade propriamente dita. Há uma terceira muralha e uma terceira porta de grandes dimensões que é preciso passar. Chegamos finalmente à parte antiga da cidade, onde os pequenos e graciosos palazzos da Idade Média se transformaram em estábulos, celeiros e casas para os camponeses pobres. Em frente do piso inferior de um desses palácios, agora loja de ferreiro, o ferreiro tenta pôr ferraduras numa mula teimosa que puxa e dá coices, o que provoca inevitável galhofa por parte do pequeno grupo de assistentes.

 

Desoladoras, vazias, lúgubres, as ruas estreitas e as suas esquinas, sempre sem ninguém, parecem deixadas ao abandono dos tempos, como se pertencessem a uma época anterior. Numa varanda de pedra muito bonita há roupa de gente pobre a secar. As casas são escuras e têm qualquer coisa de furtivo, as pessoas parecem andar a esgueirar-se, como os ratos. E, de repente, ergue-se no céu mais uma torre enorme e pontiaguda, descaracterizada e inexpressiva. Produzem um efeito estranho sobre as cidades, estas torres compridas, rígidas, inexpressivas, sem nenhum significado, despontando nos ares com as suas pontas agressivas por entre os tectos das casas, sem que se perceba para quê; de longe, quando se olha a pequena cidade lá em baixo, lembram as chaminés das fábricas de qualquer cidade moderna.

 

As torres foram construídas com intuito de defesa ou para servirem em caso de retirada, quando estas costas eram atacadas por piratas, aventureiros normandos ou corsários da Barbaria, ou seja, toda a corja que assolava o Mediterrâneo. Mais tarde, contudo, os nobres medievais continuaram a construir torres só por ostentação, só para ver quem era capaz de fazer a mais alta, ao ponto da cidade de Bolonha ter ficado parecida com um porco-espinho quando está com um ataque de fúria ou com Pittsburgh, com as suas chaminés em quadrado, encostadas umas às outras. Depois, a lei proibiu as torres - e as torres, que antes haviam perscrutado os céus, começaram a vir abaixo. Mas ainda se podem ver algumas em Tarquínios, esse lugar onde o tempo se sobrepõe ao tempo.

 

                 VULCI

 

A antiga Etrúria compunha-se de uma liga, ou Confederação religiosa, de doze cidades, informalmente unidas, cada uma com algum território à volta. Pode dizer-se que havia, portanto, doze estados, ou cidades-estado, as conhecidas dodecapolis do mundo antigo, duodecim populi Etruriae, em latim. Destas doze cidades-estado, Tarquínios seria a mais antiga, e a principal. Outra cidade é Caere; e não muito longe desta, mais para norte, Vulci.

 

Vulci chama-se agora Volci - embora não exista como cidade e não passe de um poiso para quem quer ir à descoberta dos túmulos etruscos. A verdadeira cidade etrusca entrou em decadência com o declínio do Império Romano e tanto pode ter sido assolada pelo surto de malária que feriu de morte esta região ou, como defende Ducati, arrasada pelos sarracenos.

 

Perguntei ao rapaz alemão pelos lugares etruscos ao longo da costa: Volci, Vetulónia, Populónia. A resposta foi sempre a mesma: «Nada! Nada! Já não há nada!».

 

Apesar disso, decidimos dar uma vista de olhos em Volci. Fica apenas a uns vinte quilómetros a norte de Tarquínios. Apanhámos o comboio para Montalto di Castro, a estação logo a seguir, e lá fomos subindo, na cadência dos carris, um pouco mais para o interior, até à pequena cidade no cimo do monte, a pouca distância. Era bastante cedo - e sábado, ainda por cima. E a cidade, ou vila, estava ainda em silêncio, parecia semi-viva. Descemos’ junto a uma pequena piazza situada numa espécie de terra-de-ninguém; não era fácil perceber onde ficava o centro da povoação. Mas havia um café e nós entrámos, pedimos café e perguntámos por transporte para Volci.

 

O homem que nos atendeu tinha um ar amarelecido, era muitíssimo lento e havia nele aquele sorriso parado que certos camponeses põem na cara. Parecia não ter uma ponta de energia: e olhava-nos como se estivesse em letargia. Talvez tivesse malária - embora não parecesse com febre naquele momento. Mas a doença já se apoderara da sua vida.

 

Perguntou se queríamos ir pela ponte - a Ponte. Eu disse que sim, pela Ponte dell’Abbadia; porque sabia que Volci ficava perto dessa antiga e conhecida ponte do mosteiro. Perguntei-lhe se era possível arranjar uma pequena carroça que nos levasse lá. Disse que era difícil. Bom, disse eu, então vamos a pé: são só cinco milhas, uns oito quilómetros. «Oito quilómetros!», disse ele, com aquele modo arrastado e lacónico que a malária provoca, olhando para mim com um brilho nos olhos negros a insinuar o ridículo do que eu estava a dizer. «São pelo menos doze!».

 

«O guia dos transportes diz que são oito!», insisti eu, com firmeza. Quando é para alugar um carro qualquer, as distâncias aumentam logo para o dobro. Mas ele olhou-me com todo o vagar do mundo e abanou a cabeça: «Doze!», repetiu. «Então não há dúvida de que precisamos mesmo de um transporte qualquer», disse eu. «De outra forma nunca achariam o caminho», observou o homem. «Há algum disponível?». Não sabia. Havia uma carrinha mas tinha ido de manhã a um lado qualquer e só estava de volta pelas duas ou três da tarde. Sempre a velha história do costume.

 

Insisti de novo sobre se não haveria uma pequena carreta, um barrocino, um carretto. Abanou a cabeça devagar. Mas eu continuei na minha, olhando-o fixamente nos olhos, como a exigir que inventasse um transporte naquele preciso momento. Acabou por sair, para ver o que podia fazer. Regressou pouco tempo depois a abanar novamente a cabeça. Depois trocou algumas palavras com a mulher. Voltou a sair por uns dez minutos.

 

Entretanto, um padeiro de pequena estatura e todo empoeirado, com aquela vivacidade típica de muitos italianos mais baixos, entrou no café e pediu qualquer coisa para beber. Sentou-se um minuto enquanto bebia, olhando-nos de vez em quando lá do seu rosto enfarinhado. Depois levantou-se e saiu. Quase no mesmo instante, o homem do café voltou para dizer que talvez se conseguisse um carretto. Perguntei-lhe onde estava. Disse que vinha um homem com ele.

 

A viagem até à Ponte demorava aproximadamente duas horas - ao todo eram seis horas de passeio. Tínhamos de levar alguma comida - lá não havia nada.

 

Um rapaz de rosto pequeno e magro apareceu à entrada da porta: outra vez a malária! Bom, já tínhamos um carretto para nos levar. «E quanto custa?». «Setenta liras!». «É demasiado caro!», disse eu. «Um exagero! Cinquenta liras ou então nada feito. Cinquenta, é pegar ou largar!». O jovem continuava à entrada da porta, absolutamente impávido. E o homem do café, sempre com o mesmo sorriso sardónico na cara, disse-lhe que fosse saber como era. O rapaz lá foi. Nós ficámos a aguardar. Depois o rapaz voltou para dizer que estava bem. Finalmente! «Daqui a quanto tempo?». «Súbito!». Súbito quer dizer agora mas também pode significar uma eternidade. «Dez minutos?», perguntei. «Talvez vinte!», retorquiu o rapaz. «É melhor contar com vinte!», disse o homem do café, que até era pessoa decente e simpática, na sua maneira silenciosa de existir.

 

Saímos para comprar alguma comida e o homem do café seguiu-nos. Naquele lugar não havia loja que não tivesse um ar esconso. Dirigimo-nos à padaria. Cá fora, um carro estava a ser carregado com pão pelo rapaz e pelo padeiro baixo e despachado. Entrámos, comprámos um pão comprido, salsichas já cortadas e perguntámos se havia queijo. Não havia - mas iam buscar. Esperámos um tempo infinito. E eu perguntei ao homem do café, que permanecia connosco, muito interessado: «O carretto não estará já pronto?». Voltou-se para trás e apontou para a égua inquieta entre os varais do carro do pão, lá fora. «Aquele é o animal que vos vai levar. Depois de entregarem o pão, atrelam-na ao carretto e o rapaz depois conduz». Tínhamos de ter paciência, pois a égua do padeiro e o rapaz eram a nossa única esperança. E o queijo também acabou por chegar. Saímos a ver se arranjávamos laranjas. Havia uma mulher que as vendia, numa pequena banca à beira da rua, mas o B., que já estava a ficar impaciente, não gostou do aspecto delas. E lá fomos até ao outro lado da mesma rua, onde, num buraco que fazia de loja, outra mulher também tinha laranjas. Não eram grandes e o B. rejeitou-as, mostrando até certo desdém. Mas a mulher insistia em como eram doces, doces que nem maçãs, e muito sumarentas. Comprámos quatro e eu comprei também umfinocchio para fazer uma salada. De facto, ela tinha toda a razão. Quando comemos as laranjas, vimos que eram uma maravilha e arrependemo-nos por não termos comprado dez.

 

As pessoas de Montalto eram, de maneira geral, decentes e bastante atraentes mas muitas delas tinham um ar parado e estavam quase sempre em silêncio. Só podia ser da malária.

 

O homem do café perguntou-nos se passávamos lá a noite. Indagámos se havia uma estalagem. Disse-nos: «Oh, sim, há várias!». Perguntei onde e ele apontou para o cimo da estrada. «Mas», disse eu, «para que servem esses hotéis todos?». «Para os comerciantes que vêm comprar produtos agrícolas», respondeu ele. «Montalto é um grande centro agrícola e muita gente vem cá, mesmo muita!». Mas eu decidi que, se pudéssemos, partiríamos ao fim do dia. Nada havia em Montalto que nos fizesse ficar.

 

Ao fim de algum tempo, o carretto ficou disponível; era uma espécie de cabriole de duas rodas, espaçoso e aparelhado quase rente ao chão. Entrámos e sentámo-nos atrás da égua, de cor escura e arroxeada, e o rapaz do pão, que não devia lavar a cara há uns dias, deu início à viagem. Parecia atordoado, num paroxismo de timidez.

 

A cidade fica para trás quase instantaneamente. A terra verde, dividida em quadrados de oliveira cor de chumbo, disposta em filas, desce sinuosamente até à linha do caminho-de-ferro, que corre ao longo da costa, paralela à antiga Via Aurélia. Por trás da linha, vê-se toda a zona plana junto à costa e a vacuidade esbranquiçada da orla marítima. Transmite uma imensa sensação de ausência, o mar lá em baixo.

 

A égua arroxeada, magra e seca, apanha o seu ritmo e consegue uma boa passada. Pouco tempo depois, deixamos a estrada e metemos por uma azinhaga muito, muito larga, de terra argilosa e de cor rosada, que nada mais tinha senão sulcos de rodas. Em certas partes, a lama está mole e há poças, ainda com água, que têm um aspecto fantasmagórico. Felizmente que não chove há uma semana e é possível passar; os trilhos estão quase todos secos e a azinhaga, larga como um caminho no deserto, sem bermas, não oferece grandes dificuldades e o único problema são os solavancos. Porque corremos o risco do pescoço saltar da coluna devido à impetuosidade e ao trote da égua.

 

O rapaz, embalado pela sua tarefa de condutor, abandona a timidez inicial e revela-se franco e conversador. «Ainda bem que o caminho está seco!». «Se fosse há duas semanas», disse ele, «não podíamos passar». Mas ao fim do dia, quando regressávamos pelo mesmo sítio e eu lhe disse: «com mau tempo só se pode passar de cavalo», ele replicou: «com este carretto pode-se». «Sempre?», disse eu. «Sempre!», disse ele.

 

Ele era mesmo assim. O possível ou o impossível eram, para ele, apenas molduras da mente e nada mais.

 

Estávamos em Marema, essa extensa terra plana junto à costa, há muitos séculos alagada e uma das partes da Itália mais erma e abandonada. No tempo dos etruscos, segundo parece, era uma planície bastante fértil. Isto porque os etruscos possuíam grandes conhecimentos de drenagem; drenavam a terra de tal forma que os seus métodos de cultura intensiva faziam nascer nela as mais viçosas searas de trigo. Sob domínio romano, contudo, o elaborado sistema de canais e desníveis entrou em declínio e, pouco a pouco, as correntes foram lançando a lama por toda a costa até esta ficar completamente coberta, depois alastrou terra adentro, dando origem a pântanos e charcos enormes de águas estagnadas onde os mosquitos se alimentavam como espíritos malignos, milhões deles reproduzindo-se a partir dos primeiros dias quentes de Maio; e com os mosquitos veio a malária, ou febre dos pântanos, como lhe chamavam os antigos. Nos últimos anos do domínio romano, já esse mal caíra sobre as planícies etruscas e sobre a Campânia romana. Depois, aparentemente, a terra terá subido e a orla marítima ficou mais larga, mas também mais árida, os pântanos tornaram-se letais e a vida humana desapareceu ou foi destruída, ou manteve-se aqui e ali, esporadicamente.

 

Nos tempos etruscos, não há dúvida de que largas extensões desta costa estavam cobertas de pinheiros, tal como as encostas das montanhas a poucos quilómetros dali e mesmo algumas zonas da própria costa, um pouco mais para norte. O encantador pineda, de copas que parecem grandes sombrinhas, hoje faz parte de uma floresta onde abundam clareiras e apenas surge isoladamente, mas outrora existia em floresta compacta, com altos medronheiros e urze cobrindo a terra, e dela erguiam-se espontaneamente troncos avermelhados como se viessem de raízes intermináveis presas aos charcos, e tufos de medronheiros e giestas formando matas cerradas. Os bosques de pinheiros mais a norte ainda mantêm o antigo encanto e as mesmas copas arredondadas.

 

O pinheiro não se dá bem com muita água. E por isso, à medida que charcos e pântanos foram alastrando, as árvores dos tempos etruscos foram também desaparecendo, até darem lugar a grandes extensões de terreno sem uma única árvore, cobertas com uma quase impenetrável camada de mato, arbustos rasteiros e canaviais, ocupando vastos quilómetros e completamente desabitadas. Medronheiros, que têm quase sempre um verde fulgurante, mirtos, lentiscos, urzes, giestas e outras plantas espinhosas e gomosas dos pântanos, cresciam em estado selvagem e em densa exuberância, com os seus topos dobrando-se, fustigados pela constante força dos ventos marítimos, de tal forma que havia uma vegetação espessa e baixa, de arbustos escuros, sem sequer chegarem à altura de um homem mas alongando-se por todos os terrenos que iam da montanha até ao mar. Por aí corriam javalis, por aí raposas e lobos caçavam coelhos, lebres, cabritos; inumeráveis aves selvagens de toda a espécie e flamingos vagueavam junto ao mar e pelas margens onduladas dos charcos à procura de peixe.

 

As terras de Marema foram assim durante séculos, com algumas manchas de pouca vegetação e zonas mais elevadas, portanto ricas em termos de aproveitamento agrícola mas, na sua maior parte, quase desérticas; os pastores andavam por ali com os seus rebanhos e os búfalos deambulavam em liberdade. Em 1828, todavia, o Grão-Duque da Toscana, Leopoldo, assinou um decreto para a recuperação de Marema e nos tempos mais recentes o governo italiano tem conseguido obter resultados excelentes -

grandes extensões de terreno foram assim acrescentadas aos recursos do país e novas quintas começaram a surgir.

 

Ainda há, porém, vasta terra inculta. Apesar disso, persistem largas extensões de terra pantanosa. Passámos rapidamente ao longo dos sulcos cheios de erva em direcção às montanhas distantes e depois a primeira coisa que vimos foi o trigo: a seguir mais pântanos e corvos enormes, de cabeça cinzenta, flutuando sobre toda aquela desolação; depois um pequeno bosque de azinheiras; por fim uma casa de quinta, não menos desoladora, a lembrar aquelas enormes herdades da América, com uma casa isolada e tristonha no meio da pradaria.

 

O rapaz disse-me que tinha sido aqui guardiano, pastor. O gado maior deambulava à volta da casa deserta, dentro da cerca. Mas um aviso indicava que estava tudo fechado por causa da febre aftosa. O nosso condutor saudou, ao passar, uma mulher triste como a casa, e os seus dois filhos.

 

Fizemos boa andadura. O condutor, Luigi, disse-me que o pai também foi guardiano, pastor, nestas terras e que todos os seus cinco filhos fizeram o mesmo. O rapaz ia olhando a toda a volta com aquele olhar penetrante e de longo alcance que têm os que viveram sempre em terra agreste e afastada quando regressam aos lugares que foram seus. Conhecia tudo até ao pormenor. E era visível o seu contentamento por poder sair outra vez de Montalto.

 

Entretanto, o pai morreu, um dos irmãos casou, ficando a viver na casa da família, e o Luigi arranjou trabalho como ajudante de padeiro. Mas não se sentia bem, era como se estivesse fechado numa gaiola. Ali, nas terras de Marema, via-se que renascia e recuperava o seu olhar perscrutador. Vivera quase sempre sozinho toda a vida - tinha apenas dezoito anos - e o isolamento daquela terra, a sua vastidão, era tão preciosos para ele como para as aves dos pântanos.

Aqueles corvos enormes, com uma espécie de caparão na cabeça, continuavam sobrevoando a toda a volta e grandes cotovias-dos-prados erguiam-se dos charcos. Era o único ruído, tudo o mais era silêncio. O Luigi disse que a época da caça já tinha terminado mas, mesmo assim, se tivesse uma arma nas mãos, os corvos não lhe escapariam. Era óbvio que estava habituado a andar armado nesses dias longos e quentes da malária, montado num pónei a vigiar o gado que nunca deixou de deambular por Marema. Porque a malária não entra no gado.

 

Perguntei-lhe pela caça. Disse que havia muita no sopé das montanhas. E apontou na direcção precisa em que elas começam a erguer-se, a cerca de dez ou doze quilómetros dali. Agora, que muitas zonas de Marema estão drenadas e limpas, só há caça nos montes. O pai costumava acompanhar os caçadores no inverno: ainda hoje aqui vêm caçadores de Roma ou de Florença, logo no começo do inverno, com os seus apetrechos, cães, toda a agitação e parafernália próprias da caça. E caçam o javali selvagem, a raposa, o capriolo: creio que a palavra italiana se refere mais ao cabrito-montês do que ao bode selvagem. Mas a piece de résistance é o javali. Por vezes, no Inverno, é possível ver as suas carcaças, ainda com os espinhos, no mercado de Florença. Mas, tal como tudo o que é selvagem, tende a tornar-se cada vez mais raro. Não faltará muito para que só haja animais domésticos; e de todos será o homem o mais doméstico, enxameando a terra. Um dia Marema terá de dizer adeus a toda a vida selvagem.

 

«Ali à frente!», exclamou o rapaz. «Lá está a ponte do mosteiro». Olhámos para o insípido vale de terra verde e apenas vimos uma espécie de torre, pequena e negra, no meio de uns arbustos sem nada em redor. Havia uma vala desenhada a direito, ou canal, e era evidente que estavam a decorrer escavações. Eram os trabalhos de irrigação que o governo decidira mandar fazer.

Deixámos o caminho e fomos por entre a erva espontânea, nos trilhos feitos no meio de aveia com aspecto pobre. O Luigi disse-nos que a aveia era depois ceifada para servir de pasto. Depois encontrámos uns restos do que terá sido a casa de um pastor e novas vedações de arame farpado ao longo do aterro feito para as obras de irrigação do grande canal. Para o Luigi isto era novo. Orientou de novo a égua na direcção da subida, dirigiu-se à casa e perguntou a um miúdo irrequieto que por ali andava qual o melhor sítio para passar. O miúdo explicou-lhe e o Luigi percebeu imediatamente. Estava nos seus domínios e possuía aquela forma de inteligência que só se adquire no contacto com a realidade selvagem.

 

«Há cinco anos», disse ele, «não havia nada disto» - e apontou em redor. «Nem canais, nem vedações, nem aveia, nem trigo. Era tudo maremma, pântano, só havia corvos, gado e pastores. Agora desapareceram - só restam uns quantos rebanhos. As casas estão todas abandonadas». E apontou para uma delas, uma casa enorme a alguns quilómetros, perto do sopé do monte mais próximo. «Ali já não há gado, já não há pastores. Vieram com arados mecânicos lavrar a terra, e máquinas que semeiam e segam o trigo e a aveia, e em vez de haver mais gente em Marema, cada vez há menos. O trigo cresce e as máquinas fazem o resto».

 

Estávamos novamente numa espécie de trilho, descendo uma encosta pouco pronunciada em direcção a um vale arborizado e uma velha ruína de aspecto sombrio, com uma torre. No vale era bem nítida uma ravina bastante profunda, cheia de árvores. E sobre a ravina uma ponte algo estranha, descrevendo uma curva como o arco-íris, estreita e íngreme, semelhante a uma fortificação. Elevava-se sobre a ravina numa curva acentuada e as pedras do seu caminho pareciam incrustadas como algerozes entre os muros já deteriorados; conduzia à terra de lava negra frente à ruína do outro lado, que outrora fora castelo de fronteira. O pequeno rio que segue ao longo do vale, o Fiora, estabelece a fronteira entre os Estados Pontifícios e a Toscânia e por isso, hoje, o castelo ainda serve de posto fronteiriço.

 

Queríamos apear-nos mas o Luigi disse-nos que esperássemos, pois ia pedir autorização para passar. Depois voltou, trepou para cima da carroça e iniciou a subida por entre os muros da ponte. Era tão estreita que a carroça mal cabia: passava mesmo à justa. Os muros da ponte parecia que tocavam em nós. Era como subir por um algeroz. Em baixo, lá longe, descendo no meio do bosque cerrado, o rio corria - o Fiora, com o seu caudal cheio da água das chuvas.

 

Atravessámos a ponte e, logo a seguir à saída, a muralha de lava do mosteiro parecia barrar-nos o caminho e o nariz da égua quase lhe batia. A estrada, contudo, virava à esquerda e prosseguia sob um portão em arco. Luigi conduziu a égua com toda a perícia. Entre a saída da ponte e o portão havia apenas o espaço suficiente para o animal e o carretto darem a volta, quase raspando na muralha do castelo.

 

Uff! Lá passámos! Andámos ao longo da ruína mais algumas dezenas de metros e apeámo-nos num sítio cheio de erva, mesmo sobre a ravina. A paisagem era maravilhosamente romântica. A antiga ponte, que foi construída pelos etruscos de Vulci, é feita de blocos de tufo negro e eleva-se no ar como se fosse uma enorme bolha negra, redonda e enigmática. Lá em baixo, a uns trezentos metros, o pequeno rio parece uma fissura feita no bosque. E a ponte, essa enorme bolha negra tão estranha e tão solitária, sobe no ar com a pungência das coisas perfeitas e há muito esquecidas. A ponte foi depois restaurada nos tempos romanos e na Idade Média. Mas é essencialmente etrusca, uma magnífica criação etrusca.

Deste lado, quase encostado a ela, encontra-se a sombria edificação do castelo, quase todo em ruínas, com erva no topo das muralhas e na torre escura. Tal como a ponte, foi construído com blocos de um negro avermelhado, de pedra de lava, esponjosa, mas os blocos têm uma forma mais quadrada.

 

À volta há um estranho vazio. E o castelo não está totalmente em ruínas. Funciona como uma espécie de casa de herdade. O Luigi conhece as pessoas que lá vivem. Do lado de lá do rio vêem-se manchas de aveia, dois ou três animais a pastar e duas crianças. Mas deste lado, na direcção das montanhas, tudo é terra pantanosa, de vegetação rasteira, sobre a qual se vêem trilhos que conduzem aos montes e a uma casa muito grande, no meio das árvores, a mesma que víramos de longe. É a Badia, ou mosteiro, a razão do nome dado à ponte. Contudo, desde há muito tempo que a transformaram em casa de campo. A propriedade pertenceu a Lucien Bonaparte, príncipe de Canino e irmão de Napoleão. Viveu aqui depois da morte do irmão, como príncipe italiano. Em 1828, os bois que lavravam a terra perto do castelo caíram subitamente por ela dentro, precipitando-se num túmulo onde existiam alguns vasos partidos. E isto levou a que fossem feitas escavações. Era no tempo em que a «urna grega» estava na moda. Lucien Bonaparte não era de ligar muito a vasos. Contratou um capataz para orientar os trabalhos de escavação e deu ordem para que todo e qualquer fragmento com pinturas fosse salvo e os objectos mais toscos quebrados, para evitar que o valor dos outros descesse no mercado. E assim, desta forma selvática, foram prosseguindo os trabalhos, com os vasos e cestos cheios de fragmentos partidos a serem recolhidos, enquanto todos os outros objectos etruscos de cor negra, mais rudes e toscos, eram reduzidos a pedaços à medida que iam sendo encontrados, sob o olhar atento do capataz, que vigiava de espingarda nos joelhos. Dennis ainda viu fazer isto em 1846, já depois da morte de Lucien. Porque os trabalhos foram continuando, sob orientação da Princesa. Dennis chegou mesmo a implorar ao capataz que poupasse alguns desses objectos negros, considerados mais toscos, mas em vão. Não ficou um único inteiro! Depois de partidos, eram atirados para o chão, enquanto o capataz ia vigiando, de espingarda nos joelhos, pronta a disparar. Porém, os pedaços de cerâmica pintada eram cuidadosamente colados por especialistas ao serviço da Princesa e cada pátera ou ânfora assim reconstituída a partir desses pedaços dispersos era depois vendida por 1000 coroas. Os túmulos eram abertos e depois cobertos novamente com terra. Todos os proprietários da região passaram a fazer as suas escavações e assim se exumou um tesouro infindável. Dois meses após o início das escavações, Lucien Bonaparte já conseguira mais de dois mil objectos etruscos retirados de túmulos que apenas ocupavam alguns acres de terreno. Que os Bonapartes tenham herdado a fortuna dos etruscos, não deixa de ser uma ironia: mas foi mesmo isso o que aconteceu. Vulci tinha, na verdade, tesouros escondidos mas eram, na sua maior parte, ânforas pintadas, essas «noivas da quietude» já demasiadas vezes violadas. Actualmente, os túmulos nada têm para mostrar.

 

Comemos o que tínhamos levado, enquanto a égua ia comendo a erva. E eu olhava absorto à minha volta, vendo jovens de bicicleta, quatro ou cinco, surgindo de repente do nada, ir pelo trilho e atravessar o rio, desmontar, subir a pé pelo arco inclinado da ponte e desaparecer no interior do castelo. Um homem descia das montanhas montado num burro: era um jovem simpático, que vestia calças de bombazina. Montava sem sela. Trocou uma ou duas palavras com o Luigi, no tom baixo e reservado que é característico da região, e continuou na direcção da ponte. Do outro lado, dois homens montados em mulas desciam a ponte a trote; e um camponês conduzia dois novilhos cujos chifres, lá no cimo da ponte, furavam os céus.

 

Parecia ser gente a mais para um lugar tão isolado. Apesar disso, pairava no ar o peso da desolação, da suspeição, da desconfiança. Era como estar na Idade Média. Pedi ao Luigi que fosse à casa perguntar por vinho. Disse que não sabia se ia conseguir; mas acabou por ir, apesar da típica relutância quase bárbara e do medo em aproximar-se de um lugar estranho.

 

Passado algum tempo, regressou para dizer que a dispensa estava fechada e que não era possível arranjar nada. «Então», disse eu, «vamos ver os túmulos! Sabe onde ficam?». Apontou vagamente para longe, para as terras pantanosas, e disse que eram para aquele lado, mas que era preciso levar velas. Os túmulos eram muito escuros e não havia ninguém por perto. «Nesse caso, pedimos aos camponeses», disse eu. Voltou a dizer que a dispensa estava fechada e que velas também não era possível arranjar. Parecia pouco à vontade e inquieto, como habitualmente se fica perante uma pequena dificuldade. Sente-se que aquelas pessoas têm medo e que estão sempre de pé atrás.

 

Regressámos às ruínas sombrias por uma entrada não menos escura, com um gradeado em ferro que dava para um pátio também sombrio e parcialmente em ruínas, todo ele a respirar abandono. Sete ou oito homens estavam por ali, agachados ou de pé, com as bicicletas reluzentes encostadas às ruínas da muralha. Tinham um ar estranho esses homens ainda jovens e de baixa estatura, de barba por fazer e de aspecto pouco limpo; não eram camponeses mas trabalhadores de outra qualquer actividade e que pareciam ter sido arrastados no meio do lixo. Era evidente que o Luigi se sentia um pouco nervoso com a sua presença; não que fossem arruaceiros, era apenas porque não sabia quem eram. Apesar de haver um amigo seu entre eles: um jovem algo estranho, dos seus vinte anos, com uma camisola justa de cor azul, de barba preta, mesmo muito preta, e sorriso enigmático no rosto delicado, ainda de gamin. O jovem movia o olhar na nossa direcção e em toda a volta com uma curiosidade estranha e inquieta que lhe punha um sorriso no rosto. Os homens eram todos assim, tinham a inquietude que têm os proscritos mas também parecia haver neles algo de desconhecido a descobrir. Mas eram, de facto, os nativos mais misteriosos e mais pobres desta zona da Marema.

 

O pátio do castelo, apesar de escuro, sinistro e em ruínas, não tinha menos interesse. Havia sinais dispersos, como os que deixam os ratos, de trabalhos no campo. Uma escada exterior, que outrora terá sido enorme, conduzia à parte aparentemente habitada, onde se situavam duas ou três salas que davam para a ponte.

 

Sentia-se suspeição e quase oposição, uma força negativa que não se transforma em acção mas tão omnipresente que nos obrigou a sair e a pensar em retomar o trajecto pela ponte. Via-se que o Luigi estava num dilema enquanto ia falando em voz baixa com aquele seu jovem amigo de barba preta e olhos brilhantes: não havia um único daqueles homens que não tivesse olhos enigmáticos, pretos e brilhantes, com uma cintilação nos olhos como têm os ratos.

 

Acabei por perguntar-lhe, sem rodeios: «Quem são aqueles homens?». Disse que eram trabalhadores e cabouqueiros. Fiquei admirado, sem saber o porquê de haver trabalhadores e cabouqueiros num lugar tão ermo. E ele explicou que estavam a trabalhar nas obras de irrigação e que tinham vindo à dispensa para receber o salário e comprar algumas coisas - era a tarde de sábado - mas o capataz, que tomava conta da dispensa e vendia vinho e outras coisas aos trabalhadores, não tinha ainda chegado para abrir as portas e, portanto, não podíamos comprar nada.

A verdade é que a explicação do Luigi não continha todos estes pormenores. Mas quando disse que eles trabalhavam nas escavações, percebi tudo imediatamente.

 

Por esta altura, já a nossa vontade de obter velas para levar se tornara absolutamente premente. Disse ao Luigi por que não perguntávamos aos camponeses. Respondeu que não tinham. Por sorte, naquele preciso momento, uma mulher com ar de quem nunca se lavava assomou a uma janela no cimo da muralha escura. Perguntei-lhe se nos podia vender uma vela. Retirou-se e depois regressou para dizer mal-humoradamente que eram sessenta cêntimos. Atirei-lhe uma lira e ela lançou cá para baixo uma vela. Ora aí está!

 

Mas o jovem de barba preta disse logo, com aqueles seus olhos cintilantes, que devíamos precisar de mais do que uma. E então eu pedi outra à mulher e atirei-lhe mais cinquenta cêntimos - porque estava à espera para me dar o troco da lira. E lançou outra vela.

 

O B. e eu dirigimo-nos para o carretto, com o Luigi. Mas eu notei que ele continuava pouco à vontade. «Sabe onde são os túmulos?», perguntei-lhe. Voltou a apontar, de modo vago: «São naquela direcção». O seu embaraço era evidente. «Não será melhor perguntar a um destes homens se pode ser nosso guia?», disse-lhe. E obtive a resposta inevitável: «Como quiser». «Se você não sabe onde ficam os túmulos», disse-lhe, «então é melhor arranjar alguém que saiba». Mantinha-se hesitante, com aquela incerteza estúpida que é característica deste género de pessoas. «Arranje alguém», disse eu, e ele lá foi, contrariado.

 

Voltou, aliviado, com um camponês maremanno, homem baixo mas entroncado, dos seus quarenta anos, com a barba por fazer mas sem ter aspecto sujo.

 

Chamava-se Marco e vestira o seu melhor casaco para nos acompanhar. Parecia uma pessoa calma e determinada - tinha o cabelo loiro e a pele levemente acastanhada, nada que se parecesse com os outros nativos de pele mais escura, que tínhamos achado tão estranhos. com ele veio o filho, um rapaz à volta dos treze anos, e ambos subiram para a parte de trás do carretto.

 

O Marco deu as suas indicações e descemos rapidamente ao longo do trilho, depois atalhámos por uma vereda e continuámos em frente, na direcção das terras pantanosas, cobertas de vegetação rasteira. Atrás de nós veio um daqueles homens baixos, de olhos negros, montado na sua bicicleta. A esquerda havia um pequeno acampamento de cabanas provisórias e, à nossa passagem, as mulheres saíam para nos ver. Junto ao trilho havia enormes sacas de carvão e os mineiros, que tinham descido das montanhas para passar o fim-de-semana, desviavam-se enquanto iam olhando para nós. Os burros e as mulas dobravam a cabeça para o chão.

 

Era aqui o acampamento dos mineiros durante o inverno. Dentro de uma semana, aproximadamente, segundo o Marco, deixariam o acampamento para regressar às montanhas, a salvo das febres que começavam em Maio. Parecia um grupo de pessoas vigorosas, talvez com uma excitação algo exagerada. Perguntei ao Marco se havia muitas febres - querendo com isso dizer malária. Disse: «Nem por isso». Perguntei-lhe se já tinha tido sintomas alguma vez. Disse: «Não, nunca». É verdade que parecia forte e saudável mas havia também sinais de uma energia estranha, subjugada, prestes a explodir. Ao mesmo tempo, notava-se uma certa imobilidade, um olhar fatigado naquele rosto amarelecido que se desgastara a lutar contra uma força qualquer, e isso parecia-me tudo consequência da malária. Perguntei ao Luigi, o nosso condutor, se alguma vez tivera febre. A princípio disse que não. Mas depois admitiu que sim, levemente, uma vez ou outra. Era evidente, a avaliar pelo rosto pequeno e amarelo, que a doença já estava entranhada nele. Mas, tal como o Marco, também ele parecia ter uma energia enorme, masculina, maior do que é habitual ver num italiano comum. Tal como é evidente a presença da doença, também é evidente que toda a gente nestas paragens nega estar infectada.

 

Para a esquerda, já fora da charneca, erguiam-se grandes montes tumulares achatados, maiores do que os de Cervetri. Perguntei ao Marco se eram aqueles os túmulos. Disse que sim, que eram os tumuli, Coccumella e Cocumelletta - mas que era melhor começar pelos que estavam mais perto do rio.

 

íamos descendo por uma encosta rochosa em direcção à beira da ravina, que estava cheia de árvores, como esteve desde sempre. Por trás de nós, para a direita, parecendo mais longe do que estava, via-se do lado de lá do pântano de onde viéramos, isolada, a torre negra do castelo. Do outro lado da ravina havia um monte extenso e pouco elevado, com erva rasteira e terra pantanosa; e mais para baixo, depois do ribeiro, os trabalhos de irrigação. A região estava deserta e parecia abandonada mas existia nela a pungência peculiar e quase ominosa dos lugares onde a vida foi vivida de forma intensa. «Onde é que dizem que fica a cidade de Vulci?», perguntei ao Marco. Apontou para lá do ribeiro, para a extensa e baixa elevação do outro lado da ravina. Achei que devia ser ali, de facto - dado que os túmulos ficavam deste lado. Mas, ao mesmo tempo, situava-se numa zona demasiado baixa e desprotegida para uma povoação etrusca: demasiada exposta ao mundo! Suponho que confiavam nas suas muralhas voltadas para o mar e na ravina, no que diz respeito às defesas terrestres. Perguntei ao Marco se havia ali alguma coisa, qualquer sinal que indicasse por onde passava o círculo da muralha. Disse-me: «Nada!». Era evidente que nunca fora uma grande cidade, como Caere ou Tarquínios. Mas era uma das que formavam a Liga, e igualmente muito rica, a avaliar pelos milhares de vasos pintados que foram encontrados nos seus túmulos.

 

O caminho por entre as rochas tornou-se ainda mais difícil e nós tivemos de descer e prosseguir a pé. O Luigi deixou a égua e o Marco conduziu-nos até mais abaixo, na direcção de uma vedação de arame farpado. Sozinhos nunca conseguiríamos achar o lugar, nunca. O Marco afastou habilmente os arames e assim passámos para o lado mais rochoso e arborizado da ravina. As árvores erguiam-se logo a partir da beira do rio e muitas das folhas eram de um verde expressivo e brilhante. Descemos por um caminho irregular situado em frente da entrada de um túmulo cuidadosamente protegido por portão de ferro com cadeado e defendido por arame farpado, com a vegetação densa já a subir por ele acima, quase a tapá-lo, como a caverna de um eremita.

 

Serpenteando por entre a vegetação densa e as pedras caídas do topo da ravina, chegámos às aberturas dos túmulos, feitas sobre a superfície da rocha e devendo ter constituído outrora um alinhamento perfeito, uma fila de casas de pedra em frente de uma estrada aprazível, ao longo da ravina. Mas agora são buracos sombrios através dos quais se tem de passar para entrar nas escavações feitas na terra. Lá dentro, com as três velas - porque o jovem de rosto mais escuro, que viera de bicicleta, também trouxera uma - vimo-nos num lugar sombrio, parecido com um covil de lobos, de salas grandes dando umas para as outras, leitos de pedra cheios de humidade onde os caixões eram colocados e caixões de pedra, enormes e medonhos, com dois metros de comprimento, em desordem no meio de rochas e pedras caídas, alguns ainda com ossos e cinzas humanas espalhadas à volta. Nada havia para ver senão estas salas escuras e húmidas, algumas completamente vazias, outras com sarcófagos toscos, de grandes dimensões, e pedras partidas e restos do entulho das escavações, ali abandonados naquela escuridão húmida e assustadora.

 

Por vezes tínhamos de alongar o corpo para podermos entrar nos túmulos e passar por cima dos montes de entulho, como fazem os ratos para penetrar nos buracos, enquanto os morcegos voavam às cegas mesmo junto às nossas caras. Lá dentro, na escuridão indistinta, éramos obrigados a trepar por enormes bocados de rocha e pedra partida, indo de sala em sala, qual delas a mais escura, quatro ou cinco em cada túmulo, todos escavados na própria rocha e feitos de modo a parecerem casas, com os tectos subindo em arco e a viga central ao meio. Dos tectos pendiam autênticos cachos de morcegos de pele castanho-clara, molhos deles, uma espécie de grandes tufos de trepadeira envoltos numa única pele. Mal se podia acreditar que estivessem vivos mas, quando o fulano baixo e atarracado da bicicleta chegou a vela a um desses cachos de morcegos, chamuscando-lhes o pêlo e queimando as entorpecidas criaturas, as suas asas descarnadas começaram a agitar-se e eles, meio atordoados e meio mortos, tombavam das pinhocas do tecto, depois tacteavam com as asas e começavam a voar baixo, cambaleando em direcção à saída. O indivíduo baixo e moreno tirava o maior prazer de estar a queimá-los. Mas eu fi-lo parar, ficou com medo e deixou-os em paz.

 

Era um ser estranho - bastante baixo, de formas redondas e cheias mas evidenciando agilidade, cabelo preto e cara amarelecida e olhos pretos de morcego, característicos de alguma gente desta região. Talvez não tivesse mais de vinte anos e parecia daqueles animais patetas sempre a esgravatar grutas no subsolo da terra. Escorregava para dentro dos buracos da maneira mais esquisita, movimentando a zona posterior do seu corpo, de formas redondas, cheias e ágeis, como faria qualquer desses inquietantes animais. Reparei que a parte de trás das suas orelhas estava toda infectada, com escamas e feridas abertas; por mim não saberia dizer se era da porcaria ou de qualquer estranha doença. Não obstante, parecia saudável e bem vivo. E parecia não ter consciência do estado em que tinha as orelhas, com a inconsciência que é típica dos animais.

 

O Marco, que era de estatura muito mais elevada, sabia bem o terreno que pisava e nós seguíamo-lo de túmulo em túmulo, ora serpeando no meio da escuridão e de toda aquela humidade, entre destroços e morcegos, ora trepando aqui e tacteando às apalpadelas ali, ou no exterior, por entre os funchos e os arbustos do topo da ravina, e novamente para penetrar num qualquer buraco. Indicou um túmulo de onde foi retirada, apenas no ano passado, uma grande estátua de pedra - mostrou-me o sítio onde ela estava, na sala mais recôndita, de costas voltadas para a parede. E falou-me dos vasos que estavam sobre os leitos de pedra e que ele próprio ajudara a apanhar no meio de todos aqueles destroços.

 

Agora, porém, já não existe nada. E eu comecei a ficar fatigado de tanto buraco horrendo, uns a seguir aos outros, cheios de humidade e enormes pedregulhos caídos. Nada havia ali que tivesse representado o vivido ou possuísse alguma beleza - nada. Por isso, fiquei satisfeito por chegarmos ao fim da nossa visita àquela série de túmulos escavados na rocha e alegrou-me voltar a olhar a encosta da ravina, cheia de arbustos, funcho e joio. Talvez ainda haja muitos vasos e muitos caixões de pedra por descobrir - por mais mentiras que nos digam.

 

Regressámos pelo caminho por que viéramos, tendo assim de subir até à zona mais alta. Ao aproximarmo-nos do desvio para o túmulo que estava encerrado, o Marco disse-me que havia nele pinturas e outras coisas que não tinham sido destruídas. É provável que seja o famoso túmulo François, com pinturas de que foram feitas cópias, hoje no Museu do Vaticano. Foi aberto em 1857 e o nome deriva da pessoa que dirigia as escavações; é um dos raríssimos túmulos pintados que foram encontrados em Vulci.

 

Tentámos entrar mas em vão. Ainda pensámos em forçar a fechadura mas era impossível. Neste tipo de expedições, uma péssoa deve munir-se de uma autorização oficial. Mas isso significa também ter funcionários do Estado sempre à perna.

 

E assim subimos novamente até campo aberto, com o Luigi a dizer-nos para entrar no carretto. A égua ia puxando e avançando aos solavancos na direcção dos grandes tumuli que queríamos ver. ; São montes tumulares enormes, cobertos de erva e arbustos, como se fossem pequenos montes naturais de cume arredondado. A cintura de pedra trabalhada que os envolve, se ainda existe, está debaixo de terra.

 

O Marco levou-nos pela densa mata de espinheiros e arbustos onde um caminho conduzia à abertura do tumulus. A vegetação é alta e a passagem está quase bloqueada, pelo que temos de rastejar sob os picos dos espinheiros, como coelhos.

 

Finalmente conseguimos chegar à parte plana que vai dar ao próprio tumulus. Aqui, até 1829, duas misteriosas estátuas de pedra guardavam a entrada. Agora já não existe nada. Já dentro do pátio da entrada, ou nos seus cantos, havia leões e grifos a guardá-lo. Deslocando-nos à luz das velas pela passagem estreita e sinuosa, que iremos encontrar? É como estar numa mina, caminhos estreitos e sinuosos sucedendo-se uns aos outros, parecendo vir de lado nenhum e levar a lado nenhum. Já não tínhamos muito mais velas para gastar: apenas quatro cotos. O Marco deixara um aceso no cruzamento dos caminhos, para servir de orientação, e lá fomos avançando cada vez mais, de lado nenhum para lado nenhum, um pouco dobrados sobre nós mesmos, com os chapéus roçando pelos cachos de morcegos que pendiam do tecto, uns atrás dos outros, pregados às paredes dos estreitos corredores de pedra que não levavam a lado nenhum nem tinham qualquer utilidade. Por vezes havia um nicho na parede - e era tudo.

 

É natural que houvesse também uma câmara funerária central, na direcção da qual todas as passagens confluiriam. Mas não a encontrámos. Embora o Marco dissesse que não havia tal coisa

- o tumulus tinha só corredores e passagens e nada mais do que isso. Por outro lado, Dennis garante que o tumulus, quando foi aberto em 1829, tinha duas pequenas salas situadas no centro do monte tumular, delas saindo dois fustes de alvenaria que atravessavam a parte superior e que, provavelmente, serviam de suporte a pedras tumulares de grande porte como os cippi fálicos. No chão da sala encontraram-se fragmentos de bronze e ouro fino. Agora, porém, já não existe nada; o mais certo é a parte central do tumulus ter abatido.

 

Era como andar às voltas numa qualquer pirâmide da antiguidade. Este era bastante diferente dos túmulos etruscos que tínhamos visto: e se este tumulus era, de facto, uma tumba etrusca, deve ter pertencido a uma pessoa importante cujo caixão seria a noz no interior de toda aquela enorme casca - uma pessoa certamente tão importante como um faraó. Os etruscos eram um povo diferente dos outros mas este tumulus, sem sepulturas periféricas e com infindáveis e sinuosos corredores, parece uma reminiscência dos tempos pré-históricos ou das pirâmides egípcias. Quando nos fartámos de andar por todos aqueles corredores que não pareciam levar a lado nenhum, trepámos pelo emaranhado dos espinheiros e alegrou-nos voltar a ver a luz do dia.

 

Entrámos sem demora no carretto e a égua puxou-nos, decidida, pelo trilho acima. O indivíduo baixo e moreno ia à frente na bicicleta, sem fazer ruído, para nos abrir o portão. Olhámos uma vez mais em redor do monte tumular de Coccumella, que mãos antigas e há tanto tempo desaparecidas ergueram, com terra solta, sobre duas pequenas câmaras funerárias: ainda hoje a elevação sobre a plana Marema causa uma estranha sensação. Uma noz peculiar, diferente de todas as outras, e com um miolo contendo um mistério perpétuo! Pensar que outrora se ergueu, suave como um seio grande onde floresciam as estátuas dos cippi. É algo que não pode deixar de impressionar. Viramos as costas a tudo isso, enquanto o carretto vai seguindo aos solavancos sobre a terra onde já só há túmulos violados. Existe beleza em Vulci mas é uma beleza que traz consigo um peso de sombras.

 

No pequeno acampamento, os mineiros preparavam-se para lavar a cara, porque assim o exigia o domingo. As mulheres sorriam, vendo-nos passar ao longo da charneca. «Engordaste um bom bocado, hein?», gritou o Luigi para uma mulher anafada e sorridente. «Mas tu não!», respondeu-lhe ela. «.Tu pure no!».

 

À entrada da ponte, despedimo-nos do Marco e do filho, preparando-nos outra vez para o percurso ao longo do arco acentuado da ponte. Mas o Luigi estava com sede. E eu desci com ele até à fonte para bebermos água fresca. O rio corria apressado lá em baixo: sobre ele a ponte desenhava um arco-íris escurecido e altaneiro e nós podíamos ouvir os gritos dos muleteiros conduzindo as mulas pelo grande arco da ponte.

 

Noutros tempos, esta velha ponte tinha um aqueduto e é curioso ver ainda grandes bocados de estalactite presa como barba crescida na cara de um homem, no lado que dá para as montanhas. Agora o aqueduto já não existe e até os bocados de estalactite enlameada estão a desfazer-se. Tudo tem o seu fim!

 

Depois subimos para o carretto e a égua disparou logo num andamento bem vivo. Passámos pelo jovem dos calções de bombazina, montado num burro - um camponês dos montes, segundo disse o Luigi. E encontrámos outros homens a cavalo, que vinham na direcção oposta à nossa, a caminho dos montes, vindos de Montalto. Era sábado de tarde, soprava do mar um vento agradável e viam-se homens montados em cavalos, mulas e burros, regressando da semana de trabalho. Outros conduziam os burros carregados de coisas até aos montes.

 

«Deve ser bom viver aqui», disse eu ao Luigi, «viver aqui, ter uma casa nos montes, um cavalo, espaço que nunca mais acaba: o único problema é a malária!».

 

Mas, tendo previamente confessado que a malária ainda era uma coisa bastante má, embora as crianças lhe escapassem quase sempre e os adultos raramente; que era inevitável que a febre aparecesse às vezes; que Montalto era mais atacada do que o campo; e que na época das chuvas as estradas ficavam intransitáveis uma teve mesmo de ser fechada -, agora o Luigi mudava de tom: disse que já quase não havia febres em lado nenhum; que em Montalto, durante a época balnear, as pessoas tomavam banho no mar, havendo até pequenas barracas de canas na costa: as estradas estavam todas em condições e era fácil utilizá-las, muito fácil! E que nunca se apanhava febre se se estivesse bem alimentado, comendo um bocado de carne de vez em quando e um copo de bom vinho. Tentava convencer-me a instalar-me ali e a adquirir uma daquelas casas abandonadas no sopé da montanha; cuidava dos meus cavalos e até podíamos ir os dois à caça - mesmo fora de época, porque ali ninguém vigiava.

 

O B. dormitava levemente enquanto a viagem seguia aos solavancos. Era uma espécie de sonho. Agradar-me-ia bastante se me deixasse convencer acerca da malária. E não havia dúvida de que seria sempre o Luigi o escolhido para tratar dos cavalos. Ele não tem grande envergadura mas vive só, é corajoso, é de certeza honesto, não depende de ninguém e tem mais força de braço do que os homens da cidade ou do que os camponeses que ganham a vida a cavar.

 

E assim vimos tudo o que havia para ver em Vulci. Mas se quisermos ver o que os etruscos colocaram nos túmulos, teremos de ir ao Vaticano, ao Museu de Florença ou ao Museu Britânico, em Londres, e aí encontraremos vasos e estátuas, peças em bronze, sarcófagos e jóias. No Museu Britânico estão a maior parte dos objectos encontrados no famoso Túmulo de ísis, de uma mulher que Dennis acha que só podia ser egípcia, devido à sua própria estátua, muito hirta e direita, e à estatueta de «ísis», aos seis ovos de avestruz e outras coisas importantes que foram postas no seu túmulo: porque na morte ela deve continuar a ser o que foi em vida, o mais exactamente possível. Era esta a crença etrusca. Mas como aquela mulher egípcia veio parar a Vulci e como ficou sepultada juntamente com uma mulher da antiga Etrúria naquela parte da necrópole de Vulci agora chamada Polledrara, isso não se sabe. Tudo o que resta dela, porém, está agora no Museu Britânico. Em Vulci já não existe nada. Seja como for, era egípcia, sem sombra de dúvida. Dennis, de resto, considerava egípcio tudo o que de arcaico fosse oriundo da parte oriental do Mediterrâneo.

 

E assim aconteceu tudo. A zona de Vulci esteve desaparecida desde os tempos romanos até 1828. Contudo, quando foi descoberta, os proprietários das terras esvaziaram-na rapidamente, tudo o que era precioso foi retirado e os túmulos voltaram a ser fechados ou foram abandonados. Os milhares de vasos que os etruscos cuidadosamente faziam para pôr junto dos seus mortos, onde estão? Muitos existem ainda. Mas estão em toda a parte menos em Vulci.

 

               VOLTERRA

 

Das grandes cidades etruscas situadas a oeste, Volterra é a que fica mais a norte. Dista do mar cerca de quarenta e cinco quilómetros e situa-se numa grande falésia rochosa e altaneira onde se erguem vários campanários, está exposta a todos os ventos e domina sobre tudo à volta: o vale de Cecina, na direcção do mar; o vale e as terras altas até aos cumes do Elba, para sul; as montanhas de Garrara, ali tão próximas, para norte; e os vastos montes dos Pré-Apeninos, o coração da Toscana, na direcção do interior.

 

Desce-se do comboio Roma-Pisa em Cecina e logo se apanha outro, que começa a subir devagar entre os caminhos sinuosos do vale do rio com o mesmo nome da cidade, um daqueles vales verdejantes e românticos, perdidos no tempo, apesar de toda a movimentação que o tem atravessado, dos antigos etruscos e romanos aos habitantes de Volterra e Pisa, na Idade Média, e que continua nos dias de hoje com o tráfego automóvel. Embora, na verdade, o tráfego não seja muito intenso aqui. Volterra é uma espécie de ilha em terra, que se mantém estranhamente isolada, envolta numa atmosfera algo lúgubre.

 

A última paragem deste comboio pequeno e já muito gasto em que viajamos é Saline de Volterra, as famosas e antigas salinas que pertencem actualmente ao Estado e onde a água salgada é bombeada até à superfície através de poços muito profundos. Os passageiros são depois transferidos para uma pequena carruagem que os aguarda do outro lado do cais e que, ao fim de algum tempo, parte encosta acima em marcha muito lenta, como um escaravelho, por uma linha de sentido único, empurrada por uma pequena locomotiva. Vai-se subindo a passo de caracol pela encosta íngreme, apesar de curvar um pouco, entre vinhas e oliveiras, e sem se ver uma única flor; de vez em quando vem até nós uma brisa fresca que traz o odor dos feijoeiros e, à medida que se vai subindo, fica-se cada vez mais perto das terras altas a sul e da falésia rochosa em frente, onde se distinguem dois ou três campanários.

 

Depois de descair e voltar a engrenar na subida umas quantas vezes, a miniatura de comboio começa a abrandar até parar numa espécie de apeadeiro inóspito. O mundo parece ter ficado lá em baixo. Saímos do comboio e entramos num pequeno e velho autocarro que ronca estrada acima até chegar a uma praça desoladora e sombria na zona mais alta da cidade, onde está situado o hotel.

 

O hotel é modesto e, de certa forma, rústico mas acolhedor à sua maneira. O mais importante é ter aquecimento central e este estar a funcionar nesta tarde de Abril em que o frio é quase glacial. Volterra fica apenas 5500 metros acima do nível do mar mas está exposta aos ventos e é fria como qualquer alta montanha.

 

Era domingo, havia grande excitação e uma azáfama fora do vulgar, com gente ocasionalmente importante num vaivém constante, e sentia-se no ar um cheiro a política. O empregado trouxe-nos chá, ou algo parecido, e eu perguntei-lhe o que se passava. Respondeu que estava a ser preparado um grande banquete para aquela noite, em honra do novo podestà que viera de Florença para governar a cidade, nomeado pelo novo regime. Era evidente que considerava o acontecimento uma coisa extraordinariamente importante na vida do «partido» e impossível de compreender por pobres estrangeiros como nós.

 

Estava uma tarde fria e cinzenta, com o vento a soprar a cada esquina agreste, tão agreste como a própria cidade, de ruas estreitas e medievais, e havia uma multidão de gente vestida de cores escuras, composta por homens baixos e atarracados e jovens mulheres pseudo-elegantes que andavam de um lado para o outro e se espicaçavam uns aos outros, numa atmosfera furtiva de meios sorrisos, escárnios e ameaças, tão típicos das manifestações públicas - especialmente as que estão ligadas à política - na Itália das províncias afastadas dos grandes centros. É como se as pessoas, os trabalhadores das pedreiras de alabastro e os camponeses, não estivessem muito seguros do lado que escolheram e, por isso, lhes fosse mais fácil provocar os do outro lado. Esta inquietação e esta indecisão são características fundamentais do sentir italiano. É como se as pessoas não pudessem pertencer a nada de alma e coração: porque não são capazes de confiar em nada. Esta incapacidade em confiar está na origem do extremismo e do delírio político. Se não confiam neles próprios, como podem confiar nos seus «líderes» ou no «partido»?

 

Volterra, tão tristonha e fria lá no seu rochedo, foi sempre muito ciosa da sua independência e muito empenhada na sua defesa, desde os tempos etruscos. Bateu-se, por exemplo, contra o jugo florentino. Portanto, o que a cidade pensa do novo-velho cacique de província, o podestà, em honra do qual se organiza o banquete desta noite, é provavelmente uma coisa difícil de saber, até para os próprios habitantes de Volterra. Embora haja já um certo atrevimento por parte das raparigas, que têm o descaramento de saudar toda a gente à maneira «romana»: uma saudação que não tem nada a ver comigo, pelo que não a retribuo. A política é, toda ela, um anátema. E, estando eu numa cidade etrusca que enfrentou Roma durante tanto tempo, considero a saudação romana uma coisa completamente destituída de sentido e o imperium romano algo que nem sequer é digno de menção. É hilariante ver escrito nas paredes a frase Morte a Lenin!, apesar de o senhor já ter morrido há muito tempo e de ser provável que nenhum dos habitantes de Volterra tenha ouvido falar dele alguma vez. Mas há outra frase ainda mais hilariante, escrita com a intenção de permanecer: Mussolini a sempre ragione. Há quem nasça infalível, há quem venha a alcançar a infalibilidade, e há quem sofra a infalibilidade dos outros na própria pele.

 

Não pretendo afirmar que um empadão político seja melhor do que outro. Estou certo de que, no pós-guerra, cada país tem um árduo trabalho pela frente e dispensa bem interferências e críticas que venham do exterior. Que governem, então, os que acham que sabem governar.

 

Vamos caminhando, um pouco ao acaso, olhando o pedregoso empedernido da cidade medieval. Talvez possa tornar-se menos desagradável em dia solarengo, quando se anseia por uma sombra e qualquer brisa é bem-vinda. Mas nesta tarde de Abril fria, cinzenta e ventosa, ainda por cima domingo, dia já de si indolente, com as pessoas na rua, aborrecidas e apreensivas e os edifícios estranhamente sombrios, agrestes e pesados, não tem graça nenhuma. Não quero saber da inóspita, embora genuína, piazza medieval; não quero saber do Palazzo Pubblico, com as suas interessantes cotas de armas; não quero saber da catedral gélida, apesar da beleza real que possui, com as suas velas baças a brilhar e um cheiro a incenso de domingo no ar; decepciona-me a escultura em madeira da descida de Jesus Cristo da cruz e não me interessam os baixos-relevos. Em resumo, sou uma pessoa difícil de contentar.

 

A cidade moderna não é muito grande. Descemos por uma rua comprida e empedrada e saímos pela Porta dell’Arco, a famosa e antiga porta etrusca. É uma passagem extensa, quase um túnel, com o arco exterior enviesado em relação aos campos desoladores à volta, construído para ficar em ângulo com a velha estrada, de forma a proteger o seu lado direito, sem barreira que a pudesse defender. O arco eleva-se numa curva perfeita, a uma altura ideal, com a riqueza profunda e única das coisas ancestrais; há três cabeças de pedra escura salientes no arco, já gastas e deterioradas, que, a partir da cidade, olham de forma curiosamente indagadora para a vasta aridez do território em frente.

 

São as antigas e estranhas cabeças etruscas que vigiavam a entrada das cidades e estas, embora tenham perdido as formas, mantêm ainda um sopro de vida autêntica, inigualável. Ducati diz que representam as cabeças de inimigos chacinados, penduradas nas portas das cidades. Não me parece que estejam penduradas. Inclinam-se ligeiramente para a frente, de modo curiosamente perscrutador. Um disparate considerá-las cabeças de mortos. Não podem senão ser divindades protectoras da cidade.

 

Isto apesar de os arqueólogos dizerem que só os suportes do arco exterior e a parte de dentro das muralhas são de origem etrusca. Os romanos terão restaurado o arco e colocado as cabeças na sua posição original. (Ninguém como os romanos para pôr o que quer que seja na sua posição original!). Dizem também que a muralha que passa por cima do arco é de construção medieval.

 

Ainda assim, continuaremos a chamar-lhe etrusco. A origem da porta, as cabeças de pedra escura, isso ninguém pode tirar aos etruscos. E elas permanecem ali, sempre vigilantes.

 

A terra entra em declive abrupto logo a seguir à estrada que sai do arco. A estrada volta à esquerda e continua sob as muralhas da cidade actual, no cimo de todo o descampado: as bermas da estrada, como é costume nas terras em que há uma porta de acesso, estão cheias de montes de lixo, montes de lixo de argamassa e pedra, montes de lixo com o pó branco das pedreiras de alabastro, no exterior da parte mais deserta da cidade.

 

O caminho prolonga-se sob as muralhas da cidade e começa logo a descer, a partir do cume do monte. À direita podemos ver, entre a irregularidade acidentada do monte, o campanário da igreja de Santa Chiara, num pequeno terreno mais plano. É para lá que nos dirigimos. Atravessamos aquelas terras dantescas e desoladoras e vamos quase a pique na direcção de Santa Chiara e do que está para lá dela. Aqui o caminho segue o que resta da parte superior da antiga muralha etrusca. À direita há pequenos olivais e plantações de trigo dispersas. E mais além estão os montes agrestes onde fica a actual Volterra. Continuando a caminhada, passamos ao longo do que foi outrora a muralha etrusca, já bastante longe da actual, agora tendo sobre ela uma ou outra flor despontando no meio de heras densas e arbustos de giesta e manjerona. À nossa esquerda, a terra cai, cada vez mais íngreme, em precipícios desnivelados e aterradores.

 

O longo cimo do monte, a vasta extensão de terra árida onde a etrusca Volterra (Velathri ou Vlathrí) estava situada, estende-se de forma irregular, com vales de ravinas mais ou menos profundas, ao longo de quatro ou cinco quilómetros. É uma espécie de mão, a palma sendo a escarpa abrupta que se estende para leste e sul, na direcção do mar, e os dedos as penínsulas cujas reentrâncias penetram terra adentro. A grande muralha da cidade etrusca envolvia a escarpa a sul e a leste, depois virava para norte entre despenhadeiros e rochedos, atravessava o primeiro dos dedos da mão e, tomando o caminho da subida, ia sobre os outros dedos através de montes, vales e declives, num percurso árduo e medonho, terminando a rodear o vasto cimo do monte. A cidade actual apenas ocupa a zona mais elevada do local onde ficava a cidade etrusca.

 

À medida que se desce e se vai observando mais de perto a muralha, vê-se que já pouco tem para oferecer ao olhar. Agora há apenas fragmentos, enormes fragmentos que não parecem ter pertencido a nenhuma muralha mas a taludes, feitos com blocos quadrados de alvenaria sem cimento e de pedra rude e escura. Há qualquer coisa que nos faz sentir deprimidos. E é uma visão bem agradável observar o rapaz que sai da cidade com a namorada e vai com ela ao longo dos terrenos que circundam os muros, agora cheios de oliveiras. Eles, ao menos, estão bem vivos, alegres e activos.

 

Depois de Santa Chiara, a estrada passa por um pequeno lugarejo de subúrbio chamado San Giusto, igualmente sinistro e deprimente, não mais do que uma rua sombria que aparece inesperadamente na aridez imensa, onde se ergue, como se fosse um enorme celeiro, a igreja de San Giusto. É tão grande que era natural ter lá dentro algo de interessante. Mas não! É de um vazio total. Os arquitectos não conseguiram fazer nada de todo aquele espaço. À volta, as crianças brincam com certa agressividade e alta vozearia. A tarde de domingo aproxima-se do pôr do sol, está frio.

 

Passado este monumento de desolação cristã, voltamos de novo às muralhas etruscas e ao que foi outrora, com toda a certeza, uma porta etrusca: uma passagem no meio da muralha e uma velha estrada que dela parte.

 

Ficamos sentados aqui, nos velhos montes de alvenaria, olhando os penhascos, cavos e misteriosos como as pedreiras mais fundas. As andorinhas volteiam no ar o dorso azulado, quase tocam ao de leve as beiras ancestrais dos precipícios e sobrevoam as suas ravinas vertiginosas, com a luz amarelada do fim do dia a servir de pano de fundo ao movimento do seu voo, aproveitando um golpe de vento para subir e depois batendo as asas trémulas como pequenos fragmentos de vida, compreensivelmente assustadas sobre aqueles buracos medonhos. As zonas mais fundas das ravinas têm uma cor cinzenta-escura, como cinza, precisamente, e estão molhadas em alguns sítios; ao mesmo tempo, tudo parece recente, como se uma enorme pedreira, ao escorregar por ali abaixo, lhes fosse revelando a cor e as formas.

 

Este lugar chama-se le Balze - os rochedos. Aparentemente, as águas que caem sobre os picos de Volterra juntam-se, em parte, numa zona situada abaixo do monte mais alto e assim desgastam as camadas inferiores da terra, o que faz com que apareçam fendas muito profundas. Do outro lado dos penhascos, já bem longe da cidade e isolado de tudo, encontra-se um edifício enorme, antigo e fora do vulgar, a Badia ou Mosteiro dos Camaldoleses, o qual parece destinado a ser engolido pelos rochedos circundantes; é uma experiência triste vê-lo assim, com as paredes cheias de rachas, prestes a desfazer-se.

 

No caminho de regresso à cidade, chegamo-nos por vezes à beira das muralhas para olhar o rasto extenso e brilhante de luz doirada trazida pelo pôr do sol, maravilhosa luz em contraste com a funda escuridão das ravinas, e o vale do outro lado, num silêncio inundado de verde e luz doirada, com os montes parecendo expandir toda a luminosidade e atravessar os raios doirados, puros e transparentes que vêm do longínquo mar, onde uma sombra, talvez uma ilha, se move como uma pequena partícula de vida. As montanhas de Garrara, quais gigantescos guardiões, destacam-se, nuas como corpos, em plena luz, com os seus cumes portentosos parecendo avançar na nossa direcção, enquanto os vastos penhascos a oeste rugem em doirada liquescência, como se fosse a hora do juízo final e os deuses voltassem a fundir-nos na unicidade transmutada da luz amarela.

 

Não há, porém, qualquer transmutação. Um pouco assustados, desviamos o olhar daquela vasta chama doirada e reparamos que nas ruas esconsas e escuras a banda local ataca umas músicas, desalmadamente, como é costume, enquanto a populaça, com algumas raparigas vestidas de branco, se dirige em vagas sucessivas na direcção da piazza. Tal como a banda, a população também desafina e anda às voltas sem saber o que fazer, agora que o falatório teve finalmente de acabar. Parece que vão formar para uma procissão.

 

Quando chegamos à praça em frente do hotel, o nosso olhar percorre a crista da montanha e as terras escarpadas a oeste e vê a luz baixar no horizonte em tons vermelhos, numa vermelhidão que cresce, pura e intensa, a partir do longínquo mar lá muito em baixo, deixando ainda mais escuros os lugares lúgubres que ficam no meio. Tudo fica envolvido numa luminosidade avermelhada. Mas insensível a tudo só a própria cidade de ruas estreitas e luz eléctrica.

 

O banquete, aparentemente, não começava antes das nove mas a confusão já era enorme. O B. e eu jantámos sozinhos, um pouco depois das sete, como dois órfãos de quem os empregados por vezes se lembravam no meio de toda aquela azáfama. Andavam frenéticos a levar copos, taças e jarras, centenas, ao que parecia, da cristaleira que ocupava a parede do fundo da sala de jantar para o salão do banquete: uma roda viva de pilhas de vidro reluzente de um lado para o outro. Entretanto, alguns jovens que tinham acabado o trabalho, de chapéu preto na cabeça e casaco ao ombro, espreitam através da porta da entrada, deitando um olhar curioso a todo o salão, como se esperassem ver a ressurreição de Lázaro mas, não estando a acontecer nada que se pareça com isso, vão-se embora para o sítio nenhum de onde vieram. Um banquete é sempre um banquete, mesmo se é dado em honra do diabo; e o podestà poderá ser, quem sabe, um anjo de luz.

 

Lá fora estava frio e escuro. Assim à distância, os músicos pareciam tocar de forma espasmódica, como se a noite agreste de domingo lhes fizesse perder o fôlego. Nós, que não tínhamos sido convidados para a festa, fomo-nos deitar. Para sermos acordados várias vezes por um barulho repentino e ensurdecedor - aplausos, talvez - ou pelo berreiro inequívoco de uma criança, isto já depois da meia-noite.

 

A manhã chegou novamente fria e cinzenta, com toda aquela paisagem assustadora e gélida a abrir-se, escancarada e funda, abaixo de nós. O mar não se deixava ver. Percorremos as ruas estreitas e geladas, cujas paredes altas, de pedra escura, tão geladas como as ruas, quase pareciam convergir numa só, e demos uma espreitadela às oficinas de alabastro, onde os trabalhadores, meio acordados, com o ar típico das manhãs de segunda-feira, torneavam o alabastro macio, cortavam-no e poliam-no.

 

Actualmente toda a gente conhece o chamado mármore de Volterra, devido aos bolbos translúcidos usados como quebra-luzes sob as lâmpadas de electricidade, pelo menos em metade dos hotéis de todo o mundo. É quase tão transparente como o alúmen, e quase tão macio. Cortam-no como se fosse sabão e depois tingem-no de cor-de-rosa, âmbar ou azul, e transformam-no em todas aquelas coisas que uma pessoa não quer: quebra-luzes tingidos, candeeiros, estatuetas, tingidas ou não, vasos, taças com pombas nos rebordos, ou folhas de videira e trivialidades do género. O comércio destas coisas parece ir de vento em popa. Talvez seja consequência da expansão da luz eléctrica ou talvez haja um novo interesse pelas coisas da «estatuária». Seja como for, a relação afectiva entre a gente de Volterra que trabalha o alabastro e esses pedaços de pedra esbranquiçada, retirados da terra de Volterra para fins de mercado, não se perdeu. Felizmente para a deusa das formas esculturais, foi daqui também que ela saiu.

 

Todavia, o que queremos ver são as antigas jarras de alabastro, não as novas. Vamos apressando o passo e descendo a rua de casas de pedra, quando começa a cair uma chuva gélida. Esgueiramo-nos pelas portas de vidro do museu, acabadas de abrir, e lá dentro até parece que o alabastro precisa de ser mantido a baixas temperaturas, pois está tanto frio como dentro de um frigorífico.

 

Frio, silencioso, vazio, desagradável, são as palavras que ocorrem para descrever o museu. Por fim, aparece um homem velho e fardado, de ar aturdido, que nos pergunta, um pouco assustado, o que queremos. «bom, queremos ver o museu, claro!». «Ah!Ah!Ah sim - sim!». De repente ocorreu-lhe que o museu existe para poder ser visto. «Ah si, si, Signori!».

 

Compramos os bilhetes e damos início à visita. Trata-se, na verdade, de um museu muito atraente e agradável, mas nós tínhamos apanhado tanto frio naquela manhã de Abril, com chuva gélida a cair em tudo quanto era sítio, que eu nunca me senti tão próximo do meu próprio túmulo. Contudo, mal entrámos nas salas e começámos a ver as centenas de pequenos sarcófagos, vasos cinerários, ou urnas, como lhes chamam, sentimos a força da antiga vida a aquecer-nos.

 

A palavra urna não é uma palavra adequada, porque sugere, pelo menos a mim, um vaso ou uma ânfora, ou qualquer espécie de jarrão, de formas arredondadas e simétricas: talvez devido à associação com o poema de Keats, Ode A Uma Urna Grega - no qual, de resto, o recipiente referido não é, de modo nenhum, uma urna mas um jarro para vinho - e o bule do chá (que se diz urn, em inglês) das festas das crianças. Estes vasos de Volterra, usados para guardar as cinzas dos mortos, não têm formas redondas e não são, portanto, jarrões mas pequenos sarcófagos de alabastro. São uma peculiaridade de Volterra. Certamente porque o alabastro estava ali mesmo à mão de semear.

 

Seja como for, a verdade é que estão aqui às centenas e despertam uma forte curiosidade, pelo que deles emana de força vital. Embora não sejam muito considerados enquanto «arte». Um dos mais recentes escritores italianos a escrever sobre as coisas etruscas, Ducati, afirma: «Se do ponto de vista artístico não têm grande interesse, são extremamente valiosos pelas cenas que representam, tanto em relação aos aspectos mitológicos como à crença na vida depois da morte».

 

George Dennis, contudo, apesar de não encontrar muita «arte» nas coisas etruscas, diz, acerca dos vasos cinerários, o seguinte: «Os sinais da Natureza nestes vasos etruscos, expressos de forma tão simples e, ao mesmo tempo, tão eloquente, não podem senão suscitar a admiração de todos - são acordes que não devem deixar indiferente a alma humana; e eu não invejo os que, visitando este museu, ficam impávidos, sem que uma só lágrima aflore aos seus rostos, sem serem capazes de ”reconhecer de quando em vez o sopro da Natureza a agitar a sua alma”.»

 

O sopro da Natureza já não põe na nossa alma gotas de orvalho, pelo menos com facilidade, mas Dennis está mais desperto do que Ducati para o que contém vida verdadeira. É difícil dizer o que significa actualmente a palavra «arte». O próprio Dennis afirmou que os etruscos nem sequer estiveram alguma vez próximos da beleza pura, sublime e perfeita, que Flaxman alcançou. Hoje em dia, isso só pode fazer-nos rir: o ilustrador helenizado do Homero de Pope! Não obstante, esse mesmo instinto persiste ainda por trás da nossa ideia de «arte». A arte ainda é para nós uma coisa que deve ser muito bem cozinhada - tal como um prato de esparguete. Uma espiga de trigo ainda não é «arte». Esperem, esperem até se transformar num esplêndido e saboroso macarrão.

 

No que me diz respeito, extraio mais prazer destes vasos cinerários de Volterra do que - já o insinuara antes - dos frisos do Parténon. Há algo que nos cansa na chamada qualidade estética

- uma qualidade que retira vitalidade a tudo e que obriga a que tudo tenha de ser apurado em «lume brando». Muita da beleza grega considerada perfeita tem em si este efeito de lume brando. A consciência artística cozinhou tudo até à exaustão.

 

Na época de Dennis, uma ânfora grega, ou similar, valia muito dinheiro no mercado, se fosse do «período» certo, etc. Estes vasos de Volterra dificilmente valiam alguma coisa. O que é uma sorte, porque senão já estariam disseminados pelos quatro cantos do mundo.

 

São, na verdade, fascinantes e uma espécie de livro aberto da vida, e ao pé deles, apesar de serem muitos, não se sente qualquer espécie de enfado. Aquecem-nos com o calor que vem do âmago da vida.

 

As salas da cave contêm os vasos cinerários que representam os motivos «etruscos»: os monstros marinhos, o homem-marinho com cauda de peixe ou com asas e o homem com pernas de serpente e asas, podendo, em ambos os casos, aparecer também a mulher. Foram os etruscos os primeiros a pôr asas nestas criaturas, não os gregos.

 

Se nos lembrarmos de que, no mundo antigo, o centro de todo o poder estava nas profundidades da terra e nas profundidades do mar, não sendo o sol senão um corpo secundário em movimento; de que a serpente representava os poderes geradores de vida que têm origem no interior da terra, não só os que dominam vulcões e sismos mas os que fazem crescer as raízes da planta e dão corpo à árvore, a árvore da vida, e sobem pelos pés e pelas pernas dos homens para fazerem nascer o coração; e de que o peixe era o símbolo da profundidade das águas, de onde até a luz é oriunda, então poderemos entender melhor o antigo poder destes símbolos sobre a imaginação da gente de Volterra. Era um povo que, simultaneamente, estava de frente para o mar e ocupava terra vulcânica.

 

Mas também acontecia que os poderes da terra e os poderes do mar não atribuíam somente vida, também a tiravam. O terrífico misturava-se, assim, com o prolífico.

 

Há quem diga que as asas das divindades aquáticas representam a evaporação face ao calor do sol e que as caudas em arco dos golfinhos representam torrentes de água. É algo que faz parte da antiga ideia ligada aos equilíbrios entre o vaivém dos poderes vitais, ou seja, entre o movimento da criação, manifestado pelo frémito das folhas e a irradiação das asas, e o movimento da cessação, com as torrentes e as ondas a dizerem do eterno dilúvio que a morte traz.

 

Outro animal simbólico muito comum em Volterra é o grifo com bico de ave, criatura gerada pelos poderes fatais da morte mas, ao mesmo tempo, guardião dos tesouros. Ele é a combinação do leão com a águia, ou do ar com a terra e as suas cavernas. Não permite que o tesouro da vida, o ouro, que talvez possamos traduzir por consciência, seja roubado pelos ladrões da vida. É ele o guardião do tesouro, mas também é ele o agente fatal que conduz os que se vão embora da vida.

 

É esta criatura nascida dos elementos que leva os homens para a morte, situada na fronteira com esses mesmos elementos. E esse é também, por vezes, o papel dos golfinhos; e dos hipocampos, ou cavalos-marinhos; e dos centauros.

 

O cavalo foi sempre o símbolo da vida animal ligada à força do homem; umas vezes, como cavalo-marinho, eleva-se dos oceanos mas de outras vezes é criatura da terra, meio homem, meio animal. E é por isso que aparece nos túmulos, representando a paixão do homem no regresso ao mar e levando consigo o espírito até ao mundo da morte, na profundidade das águas; mas também pode ser um centauro, às vezes um centauro feminino, ou com pêlo de leão, de modo a revelar o lado mais terrível da sua natureza, esse que retira o espírito à vida e o conduz de regresso ao interior do outro mundo.

 

Seria bastante interessante saber se havia uma ligação concreta entre a cena representada nos vasos cinerários e os mortos cujas cinzas eles continham. Quando o deus marinho com cauda de peixe lança as suas redes ao homem, é para o afogar no mar? E quando as pernas de serpente da Medusa, a cobra alada dos poderes superiores, enlaçam um homem, significa isso uma descida à terra e, de certa forma, que a morte é um regresso, ou que tal queda é igual à de uma pedra que cai ou à simples mordidela de uma cobra? E o espírito levado pelo centauro alado será apenas de um homem que morreu ou de uma forma de paixão que o conduz aos caminhos da morte?

 

Mais interessantes do que as cenas simbólicas, porém, são as cenas da vida real, tais como batidas aos javalis, jogos circenses, cortejos, partidas em carros cobertos, barcos que saem para o mar, tempestades abatendo-se sobre as portas das cidades, cerimónias sacrificiais, raparigas com pergaminhos desdobrados, como se estivessem na escola a ler; inúmeros banquetes com homem e mulher no canapé, escravos tocando música e crianças à volta; e também cenas do adeus à vida, de grande ternura, como a do homem que diz adeus à mulher, antes de partir para a viagem, ou no momento em que a quadriga se prepara para o levar, ou quando um cavalo o aguarda; e outras em que o espírito está só, com os agentes da morte por perto, prestes a fazer troar as suas maçanetas. E como diz a citação de Dennis, o sopro da Natureza agita-nos a alma. Perguntei ao afável homem do museu se sabia alguma coisa acerca dos vasos. Mas não! não! Não sabia absolutamente nada. Trabalhava ali, e era tudo. Não podia ajudar. E era só o que nos podia dizer. Era um daqueles italianos afáveis e tímidos, tão metido consigo que nem sequer olhava para o que tinha à sua guarda. Mas quando lhe disse o que pensava acerca do significado que tinham aquelas cenas, ficou fascinado como uma criança, espantado de admiração e com a respiração quase cortada. Ocorreu-me de novo como os italianos de hoje são mais etruscos do que romanos: sensíveis, discretos, realmente curiosos por símbolos e mistérios, capazes de se encantarem com a beleza das pequenas coisas mas tendo também irrupções violentas, embora sem perversidade e sem nenhuma apetência pelo exercício do poder. Tal apetência é, para os italianos, um aspecto secundário, inculcado pelas raças germânicas que quase os absorveram.

 

A batida ao javali ainda é, actualmente, um dos passatempos preferidos dos italianos, talvez mesmo o maior em toda a Itália. E os etruscos também devem ter sido grandes apreciadores desta actividade, porque a representam exaustivamente nos túmulos. É difícil dizer de maneira exacta o que o javali simbolizava para eles. Muitas vezes ocupa o centro da cena, onde, em princípio, deveria estar a pessoa morta - e onde se encontra o boi sacrificial. Mas também são frequentes as cenas em que é atacado, não por homens mas por jovens rapazes alados ou por espíritos. Outras há em que os cães trepam às árvores à sua volta e um machado vibra no ar, prestes a cair sobre eles, que arreganham os dentes num pathos aterrador e lancinante. Os arqueólogos dizem tratar-se de Meléagro e do javali de Cálidon, ou de Hércules e do feroz javali do monte Erimanto. Mas a explicação não é suficiente. A cena é simbólica e nela o javali, o representante da ferocidade reprodutora, surge acossado por cães e outros adversários. Porque é óbvio que o javali deve morrer: não é, como o leão ou o grifo, um atacante nato. É o pai da vida que corre livremente na floresta, e por isso deve morrer. Dizem também que representa o Inverno, a época em que eram realizados os festins dos mortos. Porém, nos vasos arcaicos mais antigos, o leão e o javali aparecem vezes sem conta de frente um para o outro, em oposição simbólica.

 

Igualmente fascinantes são as cenas de partidas para viagens, em carros cobertos puxados por dois ou mais cavalos, acompanhados por um condutor apeado, um amigo a cavalo e cães, vendo-se ao fim da rua mais alguns cavaleiros que se aproximam. Sob a lona arqueada do carro há um homem, uma mulher ou uma família inteira - e sente-se uma espécie de suave ondulação que se estende pela estrada num movimento deliciosamente lento. E o carro, pelo que vi, é sempre puxado por cavalos, nunca por bois.

 

Esta só pode ser a viagem do espírito no seu caminho para a morte. Chega a afirmar-se que os vasos cinerários eram levados para o cemitério a fim de serem colocados nos túmulos. Contudo, a memória que a cena evoca vai muito para além disso. Transmite-nos a forte sensação de um povo que, tal como os bóeres e os mórmones, fazia uso habitual deste tipo de carros para se deslocar de um lado para o outro.

 

Diz-se também que estas viagens em carros cobertos são características da gente de Volterra e que não estão representadas em mais nenhum local. No seu conjunto, emana destas cenas de Volterra um sentido, de facto, peculiar. Há uma consciência muito grande da viagem por parte de um povo que guarda na memória as suas migrações por mar e terra. E que também possui uma certa impaciência, muito diferente da sedentária alegria da Etrúria do sul: porque foi tocado pela cultura gótica.

 

Nas salas do piso superior há muitos mais vasos cinerários” mas a maior parte tem, por assim dizer, temáticas gregas. Helena e os Dioscuros, Pélope, o Minotauro, Jasão, Medeia na fuga de Corinto, Édipo e a Esfinge, Ulisses e as Sereias, Etéocles e Polinices, os Centauros e os Lápitas, o Sacrifício de Ifigénia - estão todos lá e reconhecem-se facilmente. Há tantos motivos gregos que um arqueólogo chega ao ponto de sugerir que os vasos devem ter sido feitos por colonos gregos estabelecidos em Volterra após a conquista romana.

 

Pela mesma lógica, podia também dizer-se que Timão de Atenas foi escrito por um grego que se estabeleceu em Inglaterra após o derrube da Igreja Católica. Estes relicários «gregos» são tão gregos como Timão de Atenas. Os gregos fá-los-iam certamente muito «melhor»...

 

Não, as coisas não se passaram assim, as cenas «gregas» são inúmeras mas a utilização dos seus conteúdos é de ordem superficial. Quem cinzelou estes vasos sabia muito pouco acerca das fábulas que estava a utilizar; de facto, para os artífices etruscos daquele tempo, não passavam de fábulas, sentimento idêntico, de resto, ao que têm os italianos dos dias de hoje. Cada história funcionava como um pretexto sobre o qual os nativos de Volterra colocavam as suas fantasias, precisamente o que faziam os isabelinos quando se baseavam nas histórias gregas para escrever os seus poemas. Além disso, talvez os cortadores de alabastro trabalhassem a partir de modelos mais antigos, ou da memória por eles deixada. Seja como for, as cenas pouco mostram do espírito da Hélade.

 

Não há dúvida de que estes temas «clássicos» despertam alguma curiosidade: talvez por nada terem de clássico! Para mim, estão mais relacionados com o futuro triunfo dos godos do que com o passado helénico dos etruscos de Volterra. Porque, como não podia deixar de ser, todos estes vasos cinerários de alabastro estão considerados como pertencendo a um período mais tardio, posterior ao século IV a.C. Os sarcófagos cristãos do século V d.C. são muito mais parecidos com estes vasos de Volterra do que os vasos romanos que lhes são contemporâneos: como se a cristandade tivesse tido o seu início em Itália, a partir dos etruscos e não a partir dos greco-romanos. A intensidade que emana da arte cristã mais antiga, que é, ao mesmo tempo, a mais expressiva, advém da espontaneidade de um toque gótico no interior do universo clássico, o que também é evidente nas cenas etruscas. As formas «cozinhadas» de gregos e romanos dão lugar à imperfeição no contorno das peças e a um certo desregramento entre luz e sombra, antecipador do gótico posterior mas ainda preso à densidade mística proveniente do oriente.

 

Os vasos mais antigos de Volterra eram de pedra e sem nenhuns efeitos, ou de terracota. E não há dúvida de que Volterra já era cidade muito antes da chegada dos etruscos e é provável que o seu carácter não tenha sofrido grandes alterações. Na parte final da sua existência, Volterra cremava os seus mortos: deixa de haver os longos sarcófagos de lucumones. É é aqui que se sente como a gente de Volterra, ou Velathri, não é oriunda do oriente, não é como a de Tarquínios, dada à celebração da vida. Esta foi certamente uma tribo mais selvagem e mais cruel, menos à mercê das antigas influências egeias. Em Caere e Tarquínios os nativos estavam profundamente ligados às influências vindas de oriente. Aqui não! Aqui havia a vizinhança de um povo selvagem e indomável, os lígures, com quem possivelmente os nativos estabeleceram relações de parentesco, e a sua cidade de pedra e ventos agrestes teve sempre, e ainda mantém hoje, as suas características nórdicas.

 

Ali estão, então, os vasos cinerários, disponíveis para quem os quiser interpretar em função da sua maneira de ver. Não têm mais do que sessenta centímetros de comprimento, ou à volta disso, e assim a figura que aparece no tampo surge atrofiada e desproporcionada. Não é possível que uma coisa assim possa ter sido gerada pelo classicismo grego ou asiático. É, em si, um sinal de barbarismo. Aqui, o espírito nórdico foi mais forte do que o instinto helénico ou oriental e do que o antigo instinto mediterrânico. O lucumo e a sua mulher tinham de sujeitar-se ao atrofiamento para a feitura da efígie funerária. A cabeça é quase de tamanho natural. O corpo era esmagado para ficar reduzido.

 

E aí temos à nossa frente o retrato-efígie. Em muitos casos, o tampo não parece corresponder ao próprio vaso. Costuma sugerir-se que o tampo era feito em vida da pessoa, para que a imagem ficasse o mais parecida possível com a realidade, ao passo que o vaso era adquirido em tamanho universal, à parte. Pode ser que tenha sido assim. Pode ser que tenha havido nos tempos etruscos as mesmas oficinas de alabastro, com os vasos alinhados em série, com motivos dos mais variados, para que cada um pudesse escolher aquele onde iam ficar as suas cinzas. Sendo certo que as oficinas existiam e que os vasos cinzelados também, o mais provável é que ninguém escolhesse o que queria, pois ninguém sabia qual a morte de que ia morrer. Se calhar, apenas se cuidava do retrato a pôr no tampo, deixando os outros pormenores ao cuidado de quem continuava vivo.

 

A probabilidade mais forte diz-nos que talvez os parentes do defunto fossem encomendar o tampo com o busto logo após a sua morte e escolhessem o vaso que considerassem mais apropriado. Fosse como fosse, a verdade é que as duas partes dos vasos estão muitas vezes desajustadas e foi assim que foram encontrados, ainda com as cinzas dentro.

 

Devemos aceitar que as figuras que aparecem nos tampos, reduzidas de forma tão grotesca, sejam tentativas de retratos fiéis. Mas a distinção que têm as figuras etruscas do sul não existe aqui.

 

O carácter «altivo» dos lucumones ainda está presente mas revela-se quase grotesco. O morto nobre pode usar o colar dos ofícios e segurar na mão a pátera sagrada ou a taça das oferendas mas já não aparece representado ritualisticamente, sem nada no corpo até um pouco abaixo do umbigo; a roupa que traz vestida chega-lhe até ao pescoço; e mesmo que tenha numa das mãos a salva do vinho, a pátera sagrada, e na outra mão o jarro de vinho, para o grande festim, o carácter sagrado e original dos etruscos do sul, o seu arreigado simbolismo, desapareceu. O poder religioso quebrou-se.

 

É muito evidente na representação das mulheres - e muitas das figuras são de mulheres. Podem estar ornamentadas em todo o seu esplendor. Podem ter nas mãos taças de vinho, leques e espelhos, romãs e caixas de perfumes, ou uma espécie de livros pequenos, talvez tábuas de cera para escrever. Pode até aparecer a pinha, esse antigo símbolo sexual e da morte. Mas o poder do símbolo já mal se percebe. O entendimento gótico da realidade e o seu idealismo começam a suplantar a religião física e profunda dos etruscos do sul, o verdadeiro mundo antigo.

 

No museu há potes e bocados de peças em bronze, e também páteras com uma concavidade ao meio. Podemos pôr os dois dedos médios na pátera e segurá-la para a oferenda da vida, a primeira oferenda da morte, do modo exacto como faziam os etruscos. Mas há algo que nunca seremos capazes de fazer, que é segurar a salva simbólica em posição invertida, com os dois dedos inseridos no «mundus». A tocha nessa posição significa que a chama se dirige para baixo, na direcção do mundo dos mortos. Mas ver a pátera assim é uma coisa que não pode deixar de chocar. Fica-se com a sensação de que a gente de Volterra, os homens de Velahtri, negligenciaram os antigos mistérios.

Finalmente a chuva parou de desabar glacialmente sobre o silencioso pátio interior do museu. Para um dia, já tínhamos visto o suficiente. E saímos, na esperança de que os céus nos pudessem confortar com algo de mais ameno.

 

Há um ou outro túmulo ainda aberto, em particular dois no exterior da Porta de Selei. Embora não os tenha visto, acho que devem ter pouca importância. Uma vez despojados de tudo o que estava no seu interior, quase todos os túmulos que foram abertos em Volterra voltaram a ser tapados, não fossem os camponeses perder dois ou três metros de preciosa terra cultivável. Existem muitos tumuli: mas a maior parte deles está nivelada e faz parte integrante do solo. E sob eles há alguns túmulos, circulares e de pedras não quadradas, que são interessantes, embora pouco semelhantes aos da Etrúria do sul. De resto, nada em Volterra é semelhante à Etrúria do sul.

 

Um dos túmulos foi retirado pedra por pedra e colocado nos jardins do Museu Arqueológico de Florença: pelo menos o que se encontrava dentro dele foi, de certeza. Foi reconstituído em 1861 e diz-se que os vasos cinerários ficaram exactamente iguais aos originais. Trata-se do Túmulo de Inghirami, o conhecido arqueólogo que se dedicou à investigação em Volterra.

 

Alguns degraus conduzem a uma única sala, circular, que é sustida por um pilar de forma quadrada situado ao centro, aparentemente para servir de ligação à rocha. Os relicários encontram-se em fila dupla sobre um leito de pedra baixo que circunda o túmulo, formando um grande aro a toda a volta.

 

O túmulo pertencia a uma só família e deve haver cerca de sessenta vasos cinerários, de alabastro, com aquelas cenas muito conhecidas cinzeladas neles. Se é verdade que este túmulo foi refeito com base no que ele foi originariamente e se os vasos se encontram dispostos, como é comum afirmar-se, do mais antigo para o mais recente, no sentido dos ponteiros do relógio, então temos à nossa frente um ou dois séculos do desenvolvimento que foram sofrendo os vasos cinerários de Volterra.

 

Mas assola-nos a dúvida e a desconfiança. Porque não foram deixados intactos os túmulos quando foram descobertos? Porquê? O jardim do Museu de Florença será sem dúvida muito instrutivo para quem queira lições sobre os etruscos. Mas quem é que está interessado em lições sobre raças já extintas? Aquilo que se procura é um contacto. Os etruscos não são uma teoria ou uma tese. Se são alguma coisa, são sobretudo uma experiência.

 

Essa experiência, contudo, está sempre a ser desconsiderada. Museus, museus e mais museus, lições de História para ilustrar as teorias infundadas dos arqueólogos, tentativas tontas para tentar coordenar e fixar numa ordem aquilo que não possui uma ordem fixa e jamais poderá ser coordenado! Chega a ser revoltante! Porque é que toda a experiência precisa de ser sistematizada? Porque é que mesmo uma raça já extinta, como os etruscos, precisa de ser reduzida a um sistema? Jamais o será, contudo. Partem os ovos e fazem uma omeleta que não é etrusca nem romana nem italiana nem hitita nem nada, a não ser uma trapalhada total. Porque é que as coisas que são incompatíveis não podem permanecer incompatíveis? Se se fizer uma omeleta com um ovo de galinha, um ovo de narceja e um ovo de avestruz, nunca se terá uma grandiosa amálgama ou unificação de algo a que possamos chamar «oviparidade». O que teremos, isso sim, é um objecto disforme a que chamamos omeleta.

 

É o que se passa neste caso. Se pretendermos fazer uma amálgama grandiosa de Cervetri e Tarquínios, Vulci, Vetulónia, Chiusi, Veios, nunca obteremos como resultado a essência etrusca, mas uma miscelânea confusa sem qualquer sentido vital. Um museu não é um contacto em primeira mão: é uma palestra ilustrada. Ora, o que se procura é, precisamente, a autenticidade de um sentido vital. Por mim, não tenho nenhuma vontade em ser «instruído»; e estou certo de que o mesmo se passa com muitas outras pessoas.

 

Podiam levar para os museus aqueles objectos cuja localização não é segura e deixar os outros nos seus lugares próprios, como é o caso deste Túmulo de Inghirami, aqui em Volterra.

 

Mas não há nada a fazer. Subimos o monte, no exterior da porta da cidade de onde parte a estrada para Florença, abrigados junto às muralhas do enorme castelo medieval que é agora prisão estadual. Há um passeio público junto às pesadas muralhas, um fugaz raio de sol, um abrigo para proteger do vento agreste. Apesar de tudo, há pessoas a passear com este tempo. E, mais longe, o nosso olhar alcança a terra verde e vazia e alguns pontos de referência mas é como olhar o mar da vigia de um grande navio; aqui, em Volterra, está-se de cima a ver o mundo.

 

Por trás de nós, na fortaleza exposta às intempéries, estão os prisioneiros. Um deles é um homem, agora já velho, que compôs uma ópera dentro daquelas muralhas. Tinha uma enorme paixão pelo piano: durante trinta anos a mulher moía-lhe o juízo sempre que tocava. Um dia, silenciosamente, sem que nada o fizesse supor, matou-a. Mas, tendo acabado com a causa do seu tormento ao longo de trinta anos, apanhou outros trinta anos de prisão e continua sem poder tocar piano. Dá que pensar.

 

Também é conhecida a história de dois homens que conseguiram evadir-se. Em silêncio e em segredo, foram esculpindo, de forma admirável, o seu próprio busto, com as enormes porções de pão duro que é dado aos presos. Fizeram as efígies em tamanho real, com cabelo e tudo. Depois puseram-nas nas camas para que o guarda, ao fazer a ronda com a lanterna, pensasse: «Dormem que nem uns porcos, os filhos da mãe!».

 

E assim foi. E assim fugiram. Ao director da prisão, que tanto orgulho tinha no seu agregado de malfeitores, custou-lhe o cargo. Foi despedido. É estranho. Devia merecer uma recompensa, por ter tido junto de si mentes tão inteligentes, escultores de pão.

 

Túmulo de Inghirami (cerca do século II a. C.) encontrado em 1861, Museu Arqueológico de Florença.

 

Sarcófago de Volterra em alabastro (finais do século III a. C), Museu Gregoriano Etrusco, Vaticano.

 

Sarcófago de Volterra em alabastro (cerca do século II a. C.), Museu Guarnacc

 

Sarcófago 321 (segunda metade do século II a. C.).

 

Sarcófago 57 (inícios do século II a. C.)

 

Sarcófago 183 (século II a.C.)

 

                                                                                D.H. Lawrence  

 

                      

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