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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LUÍS, O BEM AMADO / Jean Plaidy
LUÍS, O BEM AMADO / Jean Plaidy

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A mulher na janela olhava para a avenue de Paris; dali, podia divisar a Grande Écurie e a Petite Écurie; e havia muito movimento nas calçadas. Trémula, tentava evitar que a criança notasse seu nervosismo.

Mas o menino puxava-lhe a saia.

- Maman Ventadour, você está olhando lá para fora e não para mim!

Deu as costas para a janela e, ao pousar os olhos no garoto, sua expressão suavizou-se, como sempre fazia por esta criança tão linda e amada.

- Olhe! - comandou ele.

Enquanto a duquesa de Ventadour assentia para denotar que ele tinha sua atenção, o menino colocou as mãos no tapete e lançou os pés ao ar. Seu rosto, de cabeça para baixo, avermelhado pelo esforço, ria para ela, exigindo sua aprovação.

- Muito bem, muito bem, meu querido - aprovou a duquesa. - Mas você já me mostrou o quanto é inteligente, e isso me basta.

Ao pôr-se em pé, o menino inclinou a cabeça para um lado, seus cabelos castanhos e grossos caindo sobre o rosto animado.

- Quero lhe mostrar de novo, mamãe.

- Agora já chega, meu amor.

- Só mais uma vez, maman.

- Só mais uma vez - concordou.

 

 

 

 

Ela o observou dar sua cambalhota e gritar deliciado enquanto punha mais uma vez os pés no ar. E ela sorriu, dizendo a si mesma: Quem conseguiria ferir esta criança? Quem sentiria por ela qualquer coisa além de encanto por seu charme e beleza?

Agora o menino estava satisfeito. Caminhou até a duquesa e parou ao seu lado. Deitou a cabeça sobre um seio da duquesa enquanto ela se permitia enroscar os dedos naquelas mechas de cabelo castanho.

A duquesa foi incapaz de resistir ao impulso de abraçá-lo forte, porque temia que, com um de seus movimentos súbitos, o menino fitasse seu rosto e sentisse nele sua apreensão.

- Você está me machucando, maman - disse o menino. Mas a duquesa não ouviu o menino, porque agora estava recordando do dia, três anos antes, em que salvara sua vida ao entrar na sala do dr. Fagon. Caso ela não tivesse interferido, o médico teria empreendido uma de suas "curas" drásticas neste corpinho precioso, assim como fizera na mãe, no pai e no irmão do menino.

- Cuidarei desta criança-dissera a duquesa naquele dia. E acrescentara, com uma determinação feroz: - Apenas eu e mais ninguém.

Não houve protesto, o que foi estranho, considerando que madame de Maintenon acreditava que Fagon era o maior médico da França. Mas talvez três mortes em um ano tivessem abalado até mesmo a sua fé. Ou talvez, ao perceber o tom ferozmente maternal da duquesa de Ventadour, madame de Maintenon tenha considerado sensato experimentar os seus cuidados em lugar do tratamento desastroso de Fagon.

Assim, para fora da sala do médico - com a criança de dois anos nos braços, envolvida nos lençóis que levara consigo marchara a madame de Ventadour; e dia e noite passara cuidando sozinha da criança doente, tornando-se sua guardiã e dama de companhia, e ocupando o lugar da mãe do menino, que morrera seis dias antes do pai dele.

Agora o menino desvencilhou-se de seus braços, e duas mãos gorduchas pousaram no colo da mulher enquanto ele a fitava.

- O bisavô está indo embora - disse o menino a ela.

Ela respirou fundo, mas não respondeu nada.

- Então ele não vai mais ser rei - prosseguiu o menino. Assim, só pode haver um rei da França. Você sabe quem, mamãe.

Ela colocou a mão no seio; o menino era tão observador que devia ter notado seu coração tamborilante perturbando o tecido da blusa.

Ele tinha recuado e estava apoiado sobre as mãos, as pernas meneando no ar, o rosto corado e travesso.

- Eu vou lhe dizer, maman. Quando meu bisavô for embora, eu serei o rei da França.

No quarto real, Lê Rói Soleil aguardava a morte da mesma forma como vivera, com absoluta dignidade. Estava deitado na cama grande, quase tão alta quanto a cornija, que tinha os cantos decorados com penas de pavão. As cortinas douradas e prateadas eram de damasco; sendo final de agosto, ainda não era época para as mais pesadas, de veludo vermelho.

Em vida, o rei seguira o rígido Protocolo de Versalhes, e era característico dele que continuasse a segui-lo mesmo com a morte tão próxima. A pessoa mais calma na câmara do moribundo era o próprio, Luís XIV.

O rei confessara e recebera a extrema-unção, cerimónia que ocorrera sob o testemunho dos súditos que foram ao palácio vêlo morrer, como no passado tinham ido assisti-lo dançar nos salões e caminhar nos jardins belíssimos nas cercanias do castelo. Luís aceitou-os agora como aceitara-os sempre. Ele era seu rei e, embora exigisse deles obediência cabal, não faltaria em cumprir o que julgava seu dever para com os súditos.

O rei dispensara madame de Maintenon, a guardiã de seus filhos, com quem se casara secretamente trinta anos antes. Ela chorara com grande pesar, e o rei não suportava vê-la às lágrimas.

- Você lamenta ver que pouco tempo me resta - dissera-lhe o rei. - Mas não deve chorar por mim, pois sou um velho e vivi por muito tempo. Achou que eu era imortal? Já fiz a minha confissão. Coloquei minha alma na guarda do Senhor. Agora que me encontro em meu leito de morte, lamento apenas não ter levado uma vida santa.

Madame de Maintenon concordara com um meneio de cabeça. Ela jamais perdera ocasião de recordá-lo de seus pecados; e quando ela não estava presente, o rei sentia mais facilidade em esquecê-los.

A dor em sua perna às vezes era tão aguda, que o rei não conseguia pensar em mais nada. Os banhos de ervas e leite de asno tinham falhado em curar sua perna, e de nada adiantara quando tentaram esconder-lhe que a gangrena havia se instalado; ele mesmo sugerira a amputação, mas era tarde demais. O rei estava vivendo suas últimas horas.

Estava tudo acabado; o longo reinado chegara a um fim. Durante 72 anos Luís XIV fora rei da França, ascendendo de estimado a adorado; e talvez porque em toda a sua vida jamais esquecera completamente a humilhação sofrida por sua família durante a guerra da Fronda, quando era apenas um menino, Luís adquirira aquela dignidade suprema, aquela determinação de que ele sozinho deveria ser o chefe de seu reino. Létat, cest mói!, "O Estado sou eu!", dissera ele. E isso jamais fora esquecido.

Quando se vê à beira de seu fim, um homem recorda incidentes que pareceram insignificantes quando ocorridos, mas que ao serem recordados, revelam-se marcantes. Houve uma ocasião em que Luís prestou visita ao conde de Chantilly, e o peixe encomendado para o banquete não chegou. O cozinheiro, tão transtornado pelo que lhe pareceu uma grande tragédia - o rei por direito divino precisar sentar-se a um banquete que não era perfeito -, cometeu suicídio por ser incapaz de conviver com tamanho opróbrio.

E, naquela época, pensou Luís, isso não parecera incongruente.

Olhou para o passado e se viu caminhando majestoso através da vida. As cerimónias da corte na qual desempenhara a parte central foram executadas como se a sua pessoa fosse sacra; e ele chegara mesmo a acreditar nisso. Luís defendera ferreamente sua posição como chefe do Estado; e ao contrário de outros reis da França, não permitira que suas amantes influenciassem o governo de seu reino. Ele era o Estado - ele e mais ninguém.

Aqui nesta cama, da qual sabia que jamais iria se levantar, Luís dispunha de tempo para rever sua vida e, até certo ponto, avaliar seus atos. Sempre houvera aqueles que lhe diziam que ele era um deus, e ele não tivera qualquer intento em contradizer isto. Mas deuses não agonizavam numa cama com um membro podre a destruí-los. Ele era mortal; ele era repleto de fraquezas humanas; e como nunca houvera quem lhe apontasse essas fraquezas, ele jamais tentara suprimi-las.

Ele sabia que a cada dia na França havia pessoas que morriam de fome, e que fora ele quem desperdiçara em guerras a substância da França. Ah, mas ele não fizera isso pela glória da França, pelo enriquecimento de seu povo? Não, ele fizera isso pela glória de Luís XIV, pelo enriquecimento de Luís XIV! A guerra sempre o excitara. Luís nutrira sonhos de um império colonial francês, o maior do mundo. E por todo o país havia exemplos de seu amor pela ostentação.

Havia este castelo em si, Versalhes, que ele exigira ser o mais esplêndido no mundo; e não foi por acidente que muitos simbolismos infiltraram-se nas decorações. As colunas de Lê Vau tinham tencionado representar os meses do ano; as máscaras sobre as janelas do térreo mostravam o progresso de um homem ao longo da vida, pois Versalhes pretendia representar um sistema solar que circundava um grande sol... e esse sol era Lê Rói Soleil, o Rei Sol.

E devido a essa paixão por erigir castelos altos, devido a essa determinação em ir à guerra, muitos de seus súditos tinham sofrido.

Se pudesse recomeçar tudo, pensou o rei moribundo, eu agiria diferente. Faria dos meus súditos a minha primeira preocupação, e eles iriam amar-me agora como amaram-me no dia em que me fizeram seu rei - aos quatro anos de idade.

Quatro anos de idade!, ruminou. Jovem demais para ser rei da França.

E agora, na ala infantil, tão próxima a este aposento, havia outro menininho que dentro de um ou dois dias - talvez dois, porém não mais - usaria a coroa da França.

Contemplando a ascensão de Luís XV, Luís XIV ficou tão alarmado com o futuro que esqueceu de lamentar o passado.

Ergueu a mão e prontamente um homem com cerca de quarenta anos abeirou-se de seu leito.

- Vossa vontade, sire. - indagou.

Luís perscrutou o rosto de seu neto, Philippe, duque de Orléans, que tanto lembrava ao rei seu próprio irmão, o monsieur ardiloso e por vezes violento que sempre amaldiçoara o destino que o trouxe ao mundo dois anos depois de Luís.

Orléans também possuía uma reputação um tanto má. Seus casos com mulheres - porque neste aspecto era diferente do pai -eram notórios; sua ambição era extrema; desprezava a religião e levava volumes de Rabelais para a igreja, para lê-los durante a missa; dizia-se que ele nutria interesse por magia negra e detinha um conhecimento vasto de poções (era suspeito de haver envenenado os pais do pequeno delfim, o duque e a duquesa de Bourgogne); e bebia desregradamente. Ainda assim, Luís sabia que Orléans não era tão mau quanto os rumores faziam-no parecer, e que por gozar de certo prazer com sua notoriedade, exagerava-a. Talvez quisesse inspirar medo naqueles que o cercavam.

Orléans tinha uma natureza boa e um coração generoso; era inteligente; possuía consciência plena dos perigos que ameaçariam um país sem líder; e nutria um grande amor por sua família. Seu amor pela mãe era testemunho disso. Era gentil e terno com o delfim. Luís sabia que os rumores de que Orléans envenenara os pais do menino eram falsos. Ele era um homem forte, e um país governado por um príncipe regente necessitava de homens fortes.

- Sobrinho, traga o menino. Preciso falar com ele antes de morrer.

Orléans prestou uma mesura ao rei. Em seguida, chamou um dos seus homens, posicionado à porta da câmara:

- Sua Majestade convoca o delfim. Traga-o imediatamente.

O pequeno Luís, mão dada com madame de Ventadour, permitiu-se ser conduzido à câmara do rei. Estava ciente da solenidade da ocasião, pois todas as visitas ao bisavô eram solenes. Ao ser chamado, não teve certeza se queria ir; preferiria ser levado a um dos pajens jovens e brincar com ele de cavalinho ou amarelinha.

Esse aí, pensou Luís, sorrindo para o menino enquanto passava. O menino fez uma mesura, mas madame de Ventadour estava puxando o delfim.

A atenção de Luís foi inconsequentemente direcionada para as esculturas de crianças brincando, que o rei imaginara para o jardim. As esculturas pareceram-lhe reais.

- Maman, eu queria pular o muro e ir brincar com eles. Mas madame de Ventadour não o ouvia, e ao ver seus lábios

premidos, o menino lembrou que ela o levava para visitar seu bisavô; mas apenas por um momento, porque sua atenção logo foi capturada pelo vitral oeil-de-boeuf, que dava nome a esta câmara. Soltando a mão de madame de Ventadour, o pequeno Luís correu até o vitral.

Mas ela logo estava ao seu lado.

- Agora não, meu querido. Recebemos uma convocação do rei, e quando o rei ordena, todos devem obedecê-lo.

Luís se manteve de semblante cerrado, uma pergunta nos lábios; mas não a formulou, sabendo que se o fizesse madame de Ventadour não iria responder. Ela não estava pensando nele; estava pensando no quarto estatal por trás deste oeil-de-oeuf, ao qual ele e ela tinham sido ordenados a comparecer, e no qual estavam prestes a entrar.

O silêncio naquele quarto alarmou a criança. O menino logo percebeu que todos ali voltaram sua atenção para ele. Viu homens e mulheres lacrimosos. Viu seu bisavô deitado na cama magnífica. Um padre rezava à balaustrada que ficava a alguns metros da cama, e o propósito para tal era impedir que as pessoas se aproximassem demais. Porém o que mais chamou a atenção do menino foi o cheiro doentio que lhe era novo e que o encheu de repulsa.

Madame de Ventadour levara-o à beira da cama. Ali ela se ajoelhou, mas sem soltar-lhe a mão. O pequeno Luís observou a mão trémula do bisavô estender-se para tocar o ombro da guardiã.

- Eu lhe agradeço, madame - disse o rei. - Acomode o delfim naquela cadeira de braço para que eu possa olhar para ele.

Madame de Ventadour obedeceu. A atenção do pequeno Luís foi momentaneamente desviada da cama para a cadeira de braço que era vasta e parecia prestes a engoli-lo. Suas pernas ficaram mantidas retas para fora e ele olhou para os próprios pés como se pertencessem a um estranho; mas então a percepção daquele cheiro doentio de morte lembrou-o de que esta era uma ocasião diferente de todas as outras.

Ele não queria estar aqui. Ansiava pela informalidade de seus próprios aposentos, ou pela fascinação do oeil-de-boeuf; queria perambular pelos jardins, brincando de se esconder de madame de Ventadour. Queria menear os dedos nas águas frias das fontes; brincar na Groute de Thétis ou na Orangerie. Arqueou os ombros, esquecendo novamente do odor nestes aposentos, envolvido por uma tensão reconhecível até mesmo por sua mente infantil.

Mas seu bisavô estava falando com ele, e todos ouviam e olhavam solenemente para o menino.

- Minha criança querida - começou o bisavô, e Luís dirigiu-lhe o sorriso que madame de Ventadour acreditava ser o mais encantador do mundo. - Muito em breve você será rei.

O delfim continuou a sorrir. Ele teria uma coroa. Será que conseguiria dar cambalhotas usando uma coroa? Mal podia esperar para tentar.

- O maior rei no mundo - prosseguiu o bisavô. - E jamais deverá esquecer o seu dever para com Deus. Rezo para que não venha a agir como eu. Evite guerras, minha criança. Permaneça em paz com os seus vizinhos. Existe felicidade na paz. Sirva o povo. Trabalhe arduamente para aliviar o sofrimento de seus súditos. Ouça os bons conselheiros...

O pequeno Luís observava aboca do bisavô; ele continuou a sorrir. Mas sua atenção logo foi atraída pelo quadro de Davi tocando a harpa, que pendia a um lado da cama, com o de João Batista do outro. Ele sabia quem eram eles, porque madame de Ventadour uma vez lhe dissera. Será que ele conseguiria tocar uma harpa? Ele ia ser rei... o maior rei no mundo, então poderia tocar harpa, se quisesse. Ele se perguntou se João Batista sabia dar cambalhotas.

- Eu quero agradecer-vos, madame-estava dizendo o rei -, pelo cuidado com que brindou a esta criança. Continue a fazêlo, eu vos rogo.

Madame de Ventadour respondeu, numa voz embargada de emoção, que seria de seu maior prazer obedecer ao comando de Sua Majestade.

- Minha criança - disse o rei ao pequeno Luís -, é seu dever amar madame de Ventadour. Jamais esqueça o que ela fez por você.

com essas palavras o rei capturou a atenção do garoto. Isto era algo que podia compreender. Ele começou a se remexer na cadeira; queria pegar a mão de madame de Ventadour e arrastá-la dali. Estava cansado deste cómodo; não gostava mais dele. Nem Davi nem João Batista encantavam-no mais.

- Madame, traga o menino para perto de mim - disse o rei. - Meus olhos estão falhando e não posso vê-lo com clareza.

Quando madame de Ventadour o tomou nos braços, o menino sussurrou:

- Não.

Mas madame de Ventadour não lhe deu confiança. O menino foi sentado na cama e ficou tão perto do velho, que pôde ver as linhas profundas em seu rosto e o suor em sua fronte. As linhas pareciam sulcos de arados nos campos. Luís imaginou-se correndo por esses campos, para longe... muito longe de Versalhes e do leito de morte de seu bisavô.

As mãos velhas seguraram o menino; ele foi capturado num abraço apertado - um abraço com a morte, assim lhe pareceu. O pequeno Luís estava se sentindo sufocado; o rosto velho e o odor onipresente nauseavam-no; ele queria gritar para ser resgatado, mas tinha medo. Prendeu a respiração. Maman Ventadour dissera que todas as coisas ruins passam depressa. Como tomar remédio. Seja um menino bom; tome este remédio e logo lhe darei um doce para remover o gosto.

- Senhor, ofereço-vos esta criança - disse o rei. - Rogo-vos para que a abençoe. Para que ela possa honrar ao Senhor como um verdadeiro rei cristão e um rei da França.

- Não consigo respirar - disse o delfim baixinho. - Não gosto do senhor, bisavô. O senhor é muito quente e as suas mãos me queimam.

O pior ainda estava por vir. Os lábios velhos tocaram os lábios novos. Esta era uma coisa ruim que não podia ser suportada.

Um choro alto se elevou do delfim.

- Maman, maman... - suplicou.

Madame de Ventadour estava agora ao lado da cama, preparada para, em defesa de sua criança adorada, enfrentar a majestade de um rei e a dignidade da morte.

Enquanto a madame tomava o menino nos braços, o pequeno Luís virou-se para ela, sorriso estampado no rosto, e abraçou com força seu pescoço, aninhando o rosto em sua curva delicada - a doce e cheirosa maman, o refúgio seguro num mundo assustador.

Os olhos de madame de Ventadour rogaram compreensão ao rei.

- A senhora deve levar o delfim de volta aos seus aposentos - disse o moribundo Luís.

Quando o rei sentou-se calmamente em sua cama, não houve uma pessoa sequer no castelo que não tenha ficado pasma com a forma como ele se preparou para morrer.

Profundamente arrependido de seus erros passados, Luís estava determinado a deixar o Estado em ordem. Luís compreendera que, embora na primeira metade de seu reinado tivesse engrandecido o país e brindado a França com uma era próspera, o país agora estava atolado em dívidas, a população se encontrava reduzida, e havia pobreza por toda parte. Essas eram consequências da guerra, e Luís aprendera tarde demais que as guerras traziam mais desastres que glórias. Os impostos estavam mais altos, e novas taxas, como a capitation, haviam sido impostas. Quando viajara através do país e admirara as construções suntuosas que mandara erigir, deveria tê-los vistos não como monumentos à arte e ao bom gosto do rei, mas como o sinal de uma extravagância pela qual o povo sofrido não podia pagar.

Luís tardou demais a ver esses erros, mas agora estava disposto a fazer o que estivesse ao seu alcance para retificá-los. A França precisava de um rei tão forte quanto ele fora em sua juventude, e o que a França tinha? Um menininho de cinco anos.

Que calamidade caíra sobre este país! Seu filho, o Grande Delfim, sucumbira à varíola. O filho do Grande Delfim, o duque de Bourgogne, morrera, segundo diziam, de desgosto - seis dias depois de ter a esposa vitimada pela rubéola -, pois era lendária a devoção do duque à duquesa. O filho mais velho deles, o duque de Bretagne, então com cinco anos, morrera no mesmo ano, deixando seu irmão mais novo como o delfim da França. Era como se um feitiço maligno tivesse sido lançado sobre a França para privá-la de seus governantes.

Um menininho de cinco anos como rei da França! Ele sabia que não havia tempo para remorso; precisava agir depressa. Ainda assim, tudo que podia fazer era aconselhar seus ministros, pois apesar de o rei jamais ter sido desobedecido em vida, quem poderia dizer que isso continuaria assim depois de sua morte?

Colocou de lado as caixas de despacho e convocou aos seus aposentos os homens mais importantes da França.

Silenciosa, demoradamente, Luís estudou os rostos dos homens a quem pretendia confiar as tarefas mais importantes do reino: o duque de Orléans e o duque de Maine. Orléans era arguto; ele seria, até que o pequeno Luís alcançasse a maioridade, o chefe da família real; ele deveria ser o regente. Maine, o filho do rei com madame de Montespan, fora legitimado; era um homem admirável, religioso, que seguia uma vida virtuosa; ele era a escolha ideal para ser o encarregado pela educação do rei.

Os olhos do velho rei começavam a embaçar, mas ele conseguiu levantar um pouco o corpo e falar aos homens que ladeavam seu leito:

- Meus amigos, estou imensamente satisfeito com seus serviços, e lamento não tê-los recompensado como merecem. Eu lhes imploro, sirvam ao delfim como serviram a mim. Lembrem, ele ainda é jovem, tem apenas cinco anos. Recordo vividamente das provações que sofri em minha infância quando, quase com a mesma idade, herdei o trono da França. Que haja harmonia entre vocês todos; é nela que repousa a segurança do Estado. Nomeio o meu sobrinho, o duque de Orléans, regente da França. Rezo para que ele governe bem e que vocês o obedeçam e que algumas vezes pensem em mim.

Muitos dos homens de pé em torno da cama estavam chorando.

- Não tenho muitas horas mais para viver - prosseguiu Luís. - Sinto a morte próxima a mim. Sobrinho, nomeio-o regente. E a você, Maine, meu filho, peço que cuide da educação desta criança. Eu pediria a vocês que não esquecessem de que ele ainda é jovem... jovem demais. Eu manteria o menino com sua guardiã, por quem, como todos vimos, ele é tão profundamente afeiçoado, até seus sete anos. Ao chegar a essa idade, ele deve ser tirado de madame de Ventadour e aprender a se tornar um rei. Cavalheiros, despeço-me de todos. Vocês vêem um rei próximo à sepultura e outro ainda perto do berço. Cumpram seu dever para com o seu país. Longa vida à França!

Não havia mais nada que ele pudesse fazer. A noite estava próxima e ele não tinha certeza se veria outro dia. Convocou seus sacerdotes e, durante a noite inteira, eles permaneceram ao seu lado.

O rei rezou com eles. Ele estava preparado para partir.

- Senhor meu Deus, não me faça esperar muito - murmurou.

Quando, na manhã de 1 de setembro, a luz do alvorecer penetrou aquela câmara dourada, as pessoas ao redor da cama ouviram o estertor em sua garganta. Os olhares que trocaram foram significativos.

- Uma hora, talvez duas... - sussurraram.

Estavam certos. Às oito e quinze daquela manhã, Luís XIV abdicou do esplendor que ele criara em Versalhes e o legou aos seus herdeiros.

O grão-camarista foi solicitado à câmara. Ele já sabia para qual propósito.

Dali a pouco ele caminhou até a sacada, e as pessoas que haviam se aglomerado lá embaixo em expectativa a este evento suspiraram ao ver a pluma negra no chapéu do camarista.

- Lê Rol est mort! - gritou.

.Então ele deu um passo para trás e apareceu novamente, desta vez usando um chapéu com uma pluma branca.

- Vive lê Rói! - bradou.

O jovem Luís fora levado por madame de Ventadour até a Galerie dês Glaces. A galeria fascinou-o imensamente. Ela lhe parecia imensa, um mundo em si própria. Ele ficou parado em pé, fitando as figuras alegóricas que decoravam o teto e se imaginou lá em cima entre elas; era fascinante ver-se refletido nos espelhos com aquele cenário de conto de fadas de flores prateadas e candelabros imensos.

Sentia-se feliz em estar ali porque naquele dia vira pessoas demais pela janela de seus aposentos. Elas estavam todas vigiando o castelo, e todas lhe pareceram insuportavelmente feias. Aqui na grande galeria ele estava sozinho com madame de Ventadour, e tudo que podia ver (por quilómetros e quilómetros, disse a si mesmo) era brilhante e bonito. Ele sentia um desejo ardente de correr de uma extremidade à outra da galeria e estava prestes a fazê-lo quando sentiu a mão de sua guardiã pressionando seu ombro, e viu que várias pessoas vinham em sua direção.

À frente dessas pessoas estava seu tio Orléans; Luís gostava do tio, que estava sempre preparado para uma brincadeira e o fascinava porque todos o consideravam malvado. E ali estavam também o duque de Maine, o conde de Toulouse, o duque de Bourbon e o duque de Villeroi. Esta era realmente uma ocasião especial.

Como sempre, Luís virou-se para maman Ventadour para ver qual era sua reação a essa intrusão. Ela estava em pé completamente imóvel, quase como um soldado em posição de sentido, e quando seus olhos encontraram os dele, Luís soube que ela estava muito ansiosa e que ele deveria comportar-se de uma forma que a deixasse orgulhosa. E como amava-a tanto e sempre queria agradá-la, o que aliás não era difícil, ele também se manteve imóvel, esperando.

Seu tio Orléans foi o primeiro a chegar a ele. Em vez de erguê-lo e colocá-lo em seu ombro como sempre fazia, ajoelhou-se, tomou sua mão e a beijou.

- Como o primeiro de seus súditos, sire, venho prestar minha homenagem e meus serviços à Vossa Majestade - disse Orléans.

Luís compreendeu. Seu bisavô havia partido, conforme ele ouvira sussurrarem que aconteceria, e ele próprio era agora o rei. Seus pensamentos inquietos estavam estranhamente concentrados; ele não tentou puxar a espada do tio ou puxar os botões de ouro em seu casaco; estava absorvido por apenas um pensamento: Ele era o rei. A partir de agora ele seria chamado de "sire" e "Vossa Majestade"; os homens iriam curvar-se diante dele e um dia ele iria dormir na grande cama real.

Portanto, à medida que cada um desses homens ajoelhou-se diante dele e jurou sua fidelidade, o pequeno Luís manteve-se ereto, olhos brilhando, para que aqueles que o vissem perguntassem a si mesmos: É possível que alguém tão jovem possa entender tanto? E madame de Ventadour manteve-se ao seu lado, transparecendo seu orgulho pela criança a quem tanto amava.

Nos dias que se seguiram, o jovem Luís descobriu que havia desvantagens em ser rei. Ele queria dizer: "Basta! Nada mais de reis!", como quando fazia quando brincava. Era desconcertante descobrir que isto não era um jogo, e que prosseguiria por toda sua vida.

Ele precisava comparecer a certas ocasiões solenes, ficar imóvel durante um longo tempo e dizer o que lhe mandavam. Isso podia ser cansativo.

Madame de Ventadour estava vestindo-o em roupas novas de que ele não gostava. Elas eram pretas e roxas, e ele precisava usar um chapéu de crepe hediondo.

- Não gosto destas coisas, maman - protestou.

- Precisaremos usá-las ao menos uma vez.

- Mas não quero usá-las nem mesmo uma vez.

- Você precisa ser obediente, meu amor.

- Eu não sou o rei, maman! Os reis precisam usar roupas feias? O bisavô não usava.

- Ele as teria usado se o povo esperasse isso dele. Reis precisam fazer o que o povo espera que eles façam.

- Então de que vale ser rei? - inquiriu Luís.

- Isso é uma coisa que você ainda vai descobrir - prometeu madame de Ventadour.

E o pequeno Luís se calou, ansioso por fazer essa descoberta.

Mas a espera era longa e tediosa. Ele precisou ir a Paris e lá comparecer a um lit de justice no qual o duque de Orléans seria proclamado formalmente regente.

Foi um momento empolgante quando ele foi conduzido para a Grande Chambre. Parecia haver uma miríade de pessoas em toda parte, e quando ele entrou, todos se levantaram e tiraram os seus chapéus. Ele olhou-os com uma curiosidade tímida e alguém gritou:

- Vive lê Rói!

Esse viva ao rei era dedicado a ele próprio, e Luís teria corrido na direção do homem que gritara isso, não houvesse uma mão contentora sobre ele. Madame de Ventador ficava o tempo todo ao seu lado. Luís declarara que não iria a parte alguma sem ela, e embora a madame tivesse meneado a cabeça e dito que ele deveria crescer depressa e aprender a estar sem sua companhia, ele sabia que ela ficaria feliz com isso; assim, era seguro insistir; ele bateria o pé se necessário e diria a todos eles... a cada um deles... que não iria a parte alguma sem a sua querida maman.

Ele foi erguido num par de braços fortes que, logo descobriu, pertenciam ao duque de Tresmes, que era o grão-camarista. Mas tudo estava bem, porque maman caminhava bem ao lado do duque.

Numa extremidade da Grande Chambre ficava um trono, e neste fora colocada uma almofada de veludo. O duque de Tresmes acomodou Luís na almofada, e madame de Ventadour disse em voz alta:

- Messiews, o rei os convocou para expressar seus desejos. Seu camarista irá explicá-los.

Luís olhou intensamente para a sua guardiã. Os desejos dele? Ele se perguntou quais seriam. Seria uma surpresa? Alguma coisa que ele tinha dito a ela que queria... como fazia nos dias santos?

Mas ele não conseguia entender sobre o que eles falavam. Era tedioso ficar sentado naquela almofada de veludo. Levantou os olhos para sua governanta, dirigindo-lhe uma expressão suplicante. "Vamos embora agora", queria sussurrar-lhe. Mas quando estava prestes a falar ela desviou o olhar rápido e ele sentiu medo de falar.

Ficou olhando fixamente para o veludo azul com as flores-de-lis bordadas. Então notou o chapéu vermelho maravilhoso que era usado pelo arcebispo de Paris. Ele nunca tinha visto um chapéu como aquele antes. Luís agora sabia o que queria. Queria aquele chapéu vermelho porque odiava o seu próprio chapéu de crepe preto. Ele era o rei e podia ter o que quisesse, porque, do contrário, de que valia a pena ser rei?

O arcebispo ajoelhou-se e o chapéu ficou muito perto. As mãpzinhas de Luís investiram para agarrá-lo; e ele teria conseguido se a sempre vigilante madame de Ventadour não o tivesse detido a tempo.

- Eu quero o chapéu vermelho - sussurrou, ansioso.

- Quieto, querido. " Monsieur de Villeroi curvou-se sobre Luís.

- Sire, é necessário que preste atenção no que está sendo dito - murmurou.

- Eu quero o chapéu vermelho - sussurrou Luís. Monsieur de Villeroi pareceu desconcertado, e um suave coro

de risos se elevou do grupo de pessoas paradas junto ao trono.

- Você não pode ter o chapéu vermelho... agora - disse madame de Ventadour com o canto da boca.

Luís começou a se divertir com aquilo.

- Eu sou o rei-respondeu, também com o canto da boca.

- Vossa Majestade precisa prestar atenção-sibilou Monsieur de Villeroi, parecendo muito feroz.

Luís fez uma careta para ele. E baixinho, disse:

- Vá embora.

Subitamente o menino sentia-se cansado e irritado, mas manteve os olhos fixos no chapéu do arcebispo.

Perguntaram-lhe se ele aprovava a cerimónia que acabara de ocorrer, durante a qual o duque de Orléans fora nomeado regente do reino. Luís fitou o duque de Villeroi sem saber o que dizer.

- Diga sim - instruíram-no.

Ele premiu os lábios com força e continuou fitando monsieur de Villeroi, que olhou desesperado para madame de Ventadour.

- Diga sim - comandou a maman. - Diga em voz alta... grite, para que todos ouçam.

Mas não, pensou Luís. Tinham recusado-lhe o chapéu vermelho, então ele recusaria a dizer sim. Do outro lado dele, madame de Ventadour e o duque de Villeroi continuavam a incitá-lo; ele fitou-os com seus lindos olhos azuis-escuros franjados por cílios compridos e premiu os lábios ainda mais forte; não iria falar.

- Tire o seu chapéu - disse-lhe a madame de Ventadour. Então Luís sorriu. Estava ansioso por tirar aquele horrível chapéu preto que lhe tinham dado; e mantendo os olhos fixos no chapéu vermelho do arcebispo, ele o fez.

- O rei nos deu o sinal de sua aprovação - disse Villeroi. E a reunião terminou.

Mas lá fora as pessoas chamavam por ele. Elas queriam pôr os olhos no seu reizinho. Nos degraus da Sainte-Chapelle, Luís foi erguido pelos braços do grão-camarista, e o povo bradou seu nome.

Luís olhou para as pessoas. Muitas eram tão feias quanto aqueles que ele vira por suas janelas. Ele não gostava muito dessa gente; elas gritavam alto demais e cada olho na multidão estava fixo nele.

- Ele está cansado - alertou madame de Ventadour. - É bom irmos.

Dali a pouco Luís estava na carruagem, ao lado de sua maman, e com ela segurando sua mão, ele não se sentiu perturbado pelos rostos das pessoas paradas ao longo do caminho. Agora curioso, Luís espiou pelas janelas da carruagem.

Ele ouviu o ribombar de armas.

- Eles estão atirando da Bastilha porque você é o rei e eles o amam - disse-lhe madame de Ventadour.

E Luís viu alguns dos pássaros que haviam sido libertos dos quatro cantos de Paris.

- Isso simboliza que a liberdade renasceu - explicou-lhe madame de Ventadour.

- O que é liberdade, maman? E o que é renascer? - perguntou Luís.

- Isso significa que eles estão felizes por você ser o rei foi a resposta.

- Para onde estamos indo?

- Para Vincennes. Lá ficaremos sozinhos, como era antes.

- Mesmo eu sendo o rei? - quis saber.

- Mesmo sendo o rei, você ainda é um menininho. Nós vamos brincar e estudar juntos. Por ora você não irá mais sentar em almofadas de veludo nem usar um chapéu de crepe preto.

- Oh! - exprimiu Luís reflexivamente.

Então eles riram. Ser rei não era o que ele tinha pensado. Ele achara que os reis tinham tudo que queriam, mas isso era falso, porque eles não podiam ter os chapéus vermelhos dos arcebispos.

 

Era uma manhã de fins de setembro, mais ou menos um ano depois da morte de Luís XIV, e a mãe de Philippe de Orléans, a idosa madame de Court, convocara seu filho ao Falais Royal.

Quando madame de Ventadour levara o reizinho para Vincennes, a corte mudara-se de Versalhes e se estabelecera no Falais Royal, o lar do regente.

O duque de Orléans não estava insatisfeito com sua vida. Ele visitava seu pequeno sobrinho constantemente e estava seguro de que madame de Ventadour era a melhor guardiã possível para o menino naquele momento. Contudo, procurava garantir que o pequeno Luís não perdesse a afeição por seu tio. Entrementes, era muito agradável assumir o papel do rei no lugar do garoto.

Madame abraçou-o com afeto e ele imediatamente dispensou todos os seus atendentes para que pudessem estar a sós; e quando se viram assim, o duque olhou para ela com candura e disse:

- A madame veio puxar a orelha de seu filho malvado, não foi?

Ela riu.

- Meu querido Philippe, a sua reputação piora a cada dia!

- Eu sei - admitiu alegremente.

- Meu querido, não havia problema nisso quando era apenas duque de Orléans, mas não concorda que agora que se encontra na posição de regente da França deveria aprender a se comportar?

- Já passei da idade em que se aprende isso, maman.

- É necessário promover um banquete no Falais Royal todas as noites e um baile de máscaras na Opera uma vez por semana?

- Muito necessário para o meu prazer e o de meus amigos.

- O povo chama os seus amigos de o bando de roués do regente.

- A descrição é adequada.

Madame estalou a língua, mas a expressão de censura que lançou ao filho mal disfarçava o carinho que nutria por ele.

De que vale fingir desaprová-lo?, pensou.

Philippe era muito menos malvado do que fingia ser. Gostava muito de sua maman, e suas visitas diárias significavam tanto para ele quanto significavam para ela. Qualquer mãe orgulharse-ia de um filho como Philippe, e uma mulher não seria normal se não o adorasse. Ele era divertido - ninguém a fazia rir como ele. Ademais, ele realmente se importava com o país e trabalhava arduamente para melhorar suas condições. Mas fora criado para uma vida de intemperança. Madame jamais deveria ter aprovado o guardião que fora escolhido pelo pai dele. O abade Dubois, que fora o braço direito e génio maligno do pai de Philippe, apresentara muito cedo o rapaz à lascívia, e o jovem logo não sabia viver de outra forma. Esse seu filho era um méchanl, mas como ela o amava!

-       Não obstante, meu querido, já é tempo de você aprender

-       a empregar um pouco de moderação.

- Mas maman, a moderação não me apetece, particularmente no aspecto que você chama de "moral".

- Você possui amantes demais. Ele estalou os dedos.

- De que importa isso, contanto que eu permaneça fiel a uma doutrina? A senhora sabe que jamais permito que a minha vida particular interfira com a política. Desde que eu faça isso, que importa quantas amantes eu tenha?

- Isso é verdade - concordou. - Mas e quanto a sua filha? - repetiu.

Philippe virou-se para ela quase com raiva.

- Minha filha! - repetiu.

- Você precisa encarar a verdade - disse madame. Comenta-se que você visita a duquesa de Berry frequentemente e que sua atenção por ela excede o paternal.

- Meu Deus - murmurou Philippe. - Um homem não pode nutrir afeto por sua filha?

- Não o seu tipo de homem, com esse tipo de filha e esse tipo de afeto.

Philippe se manteve imóvel enquanto lutava contra a raiva. Finalmente, virou-se para a mãe e, colocando o braço sobre os ombros dela, começou a caminhar de um lado para o outro pelos aposentos.

- Maman, já lhe ocorreu que esses casamentos que são arranjados para nós deveriam ser considerados desculpas suficientes para os pecados que cometemos? Eu precisei casar porque meu tio rei queria encontrar um esposo para a sua filha, que era também filha de sua amante. E minha filhinha tinha quatorze anos quando casou com o seu primo, o duque de Berry, porque ele é o neto mais jovem do rei. Frequentemente não existe afeto, ou mesmo amizade entre nós, mas é preciso haver casamento porque o rei... o reino... assim o quer. Portanto, precisamos gozar de compensações.

- Sei bem disso, meu filho - disse madame. - E não o culpo, apenas o aconselho.

- Minha pobre menininha! - prosseguiu. - Casada aos quatorze anos, viúva aos dezoito! Ela se encontra rica e livre. Eu sei... eu sei... ela se tornou tão notória quanto o pai. A cada noite ela faz amor com um amante diferente... ela bebe mais do que a razão recomenda. Surda à opinião pública, fez de seus amigos seus "roués". Ela herdou cada um dos pecados do pai, e assim proporcionou escândalos para a corte e toda Paris. E quando seus escândalos não chocavam mais, criou-se o rumor de uma união incestuosa entre ela e o seu pai! Maman, você não sabe que tenho meus inimigos?

- Seria notável se um homem em sua posição não os tivesse.

- E alguns deles estão muito perto de mim - acrescentou Philippe.

Tomada por um temor súbito, madame segurou o braço do filho.

- Tome cuidado, meu Philippe!

Ele beijou carinhosamente o rosto da mãe.

- Não perturbe a sua doce cabecinha com meus perigos. Sou um homem malvado, caminhando para o fogo do inferno, mas posso me defender de meus inimigos.

Agora madame tinha perdido todo o humor.

- Lembro da época em que o duque de Bourgogne foi sepultado...

- Eu também recordo, maman. Como posso esquecer? A multidão gritava insultos para mim. Fui tratado com frieza e olhares suspeitos na corte. Falava-se que eu tinha matado meus pais para limpar meu caminho até o trono.

- Se alguma coisa acontecer a Luís, eles irão culpá-lo.

- Nada acontecerá a Luís. Rei da França! Esse é um título grandioso. Um homem deve sentir orgulho por aspirar a ele. Maman, suspeite de mim de toda espécie de pecado que sua mente possa conceber. Chame-me de bêbado, jogador, até me acuse de um relacionamento incestuoso com minha filha, mas nunca... nunca deixe passar por sua cabeça a possibilidade de que eu seja um assassino.

Ela se voltou para ele, olhos faiscando.

- Você não precisa pedir-me isso. O que temo é que outros possam maldizer você.

Ele a puxou para si e a abraçou.

- Querida mamãe, Por que devemos sentir essa raiva? Luís está em Vincennes, bem guardado. Uma tigresa não protegeria melhor o filhote do que a velha Ventadour faz com seu pequeno rei. Luís não precisa temer nenhum mal enquanto estiver com sua velha maman Ventadour. Ele está seguro... e eu também. Devo permanecer no comando da política até meu pequeno sobrinho chegar à maioridade. Não tema, maman. Tudo está bem.

Ela riu.

- Você está certo, é claro. Você entende, meu filho, o quanto o seu bem-estar é importante para mim.

- Sei bem disso. Vamos falar de outros assuntos, sim? Ela inclinou a cabeça para um lado e o fitou:

- Não adianta pedir a você para manter menos amantes, mas ao menos poderia ser mais seletivo? Poucas delas são verdadeiras beldades. Para satisfazer você, elas precisam apenas ser bem-humoradas e rudes.

- Vou lhe contar um segredo, maman - disse Philippe com ar travesso. - À noite, todos os gatos são pardos.

Logo depois, quando o deixou, ela estava se sentindo menos perturbada. Tinha certeza de que o pusera em guarda contra os seus inimigos. Naquele mesmo momento, um deles estava de visita ao Falais Royal.

Philippe recebeu o marechal duque de Villeroi com muito menos prazer do que recebera sua mãe.

Ele sabia o que Villeroi queria. Ele era um velho e temia morrer antes de ter uma oportunidade de desempenhar a tarefa que lhe fora incumbida.

Ele que espere, pensou Philippe. O jovem Luís deve continuar um bebé durante mais algum tempo.

De fato, no que dizia respeito a Philippe, quanto mais tempo Luís permanecesse um bebé, melhor.

- Ah, monsieur de Villeroi, é um grande prazer-murmurou falsamente.

O sorriso que dirigiu ao velho nobre foi ligeiramente cínico. O sujeito seguia as antigas tradições, e sem dúvida fora por isso que Luís XIV selecionara-o para ser o guardião do jovem rei quando o menino fosse retirado dos cuidados de madame de Ventadour. Villeroi tinha muitas qualidades que o velho Luís desejaria ver passadas ao neto; e como Villeroi estava impaciente por passá-las!

- Está perturbado por alguma coisa?-indagou o regente.

- Perturbado? Sim, confesso que estou. Desde a morte do rei a França parece ter entrado numa nova era de lascívia. Os jovens de hoje em dia parecem completamente desprovidos de moral.

Philippe sorriu, insolente. Ele sabia que o velho camarada estava insinuando que o regente era um mau exemplo para a juventude do país.

- O rei ficou pio na velhice - murmurou lânguido. - Estou certo de que o senhor já ouviu o adágio: "Quando o Diabo está doente, o Diabo um monge se torna." - Os dedos de Philippe acariciaram os bordados dourados em seu casaco. - É um estado mental que pode vir a afetar a todos nós. Deixemos que os jovens se divirtam. A juventude é curta.

Villeroi olhou para o teto e suspirou antes de dizer:

- Monsieur duque sabe que não tive a vida de um santo, mas as orgias de que tanto falam...

- Ah, eu sei que o senhor fez muitas conquistas - interrompeu Philippe. - Lembro do que nos contou sobre elas. Elas realmente eram dignas de serem gabadas. Para certas pessoas, as conquistas no amor são de maior consequência do que as conquistas na guerra. Desconfio de que o senhor seja uma dessas pessoas.

Villeroi estremeceu ao ouvir a referência sarcástica a sua tendência a se vangloriar de seus casos amorosos e a sua carreira militar escassa em glórias. Ele mudou de assunto abruptamente:

- Parece-me que uma mulher não é a pessoa certa para criar o rei da França.

- Concordo nesse ponto - disse Philippe. - Mas até os reis precisam primeiro ser bebés. Como Sua Majestade, que ainda é jovem demais para deixar os cuidados de sua guardiã.

- Reitero que é hora de colocá-lo aos cuidados de seu guardião.

Philippe sorriu.

- Podemos perguntar à Sua Majestade com quem ele prefere viver: maman Ventadour ou papa Villeroi.

- Ele é demasiado jovem para tomar essas decisões.

- Mas não duvido que ele tomaria. Ele tem uma grande força de vontade.

- Mas o rei logo se acostumaria à mudança. Ele recisa aprender a ser um homem, não o mascote das damas.

- Por que não pode ser ambas coisas?-provocou Philippe.

- Muitos de nós aspiramos a isso.

- Receio, monsieur duque, que tenha compreendido mal o que eu quis dizer.

- O que o senhor quis dizer é perfeitamente claro para mim, monsieur marechal. É isto: O rei deve ser retirado dos cuidados de sua guardiã e colocado sob os seus. Ainda não, monsieur. Ainda não. Ele está apenas com seis anos. Aos sete será uma boa idade.

- Mais um ano!

- Passará depressa. Seja paciente. A sua vez chegará.

Villeroi mordeu o lábio de raiva. Seus dedos tremiam, pedindo para alcançar a espada e trespassá-la no coração do regente sarcástico. Este homem se importava apenas com libidinagem, jogos e bebidas. Villeroi tinha certeza de que Philippe era capaz de tudo. Era um dos que acreditavam nas histórias sobre Orléans e sua filha. Pior ainda, acreditava que Philippe fora responsável pelas três mortes que tinham acontecido em um ano - as do pai, da mãe e do irmão do rei.

E se Orléans tinha levado essas três pessoas à sepultura, quais eram as chances do pequeno Luís - guardado apenas por uma mulher tola, ainda que devotada à criança - contra este assassino?

Mas Villeroi não via agora nada que pudesse fazer. Precisava esperar mais um ano antes de devotar sua vida à preservação do rei.

A vida era agradável para Luís. Ficara deliciado quando ele e madame de Ventadour tinham trocado Paris por Vincennes. Sua nova casa era as Tulherias e, embora ela não o fascinasse tanto quanto Versalhes, ele estava interessado na grande cidade onde lhe permitiam passear de carruagem, sentado ao lado de madame de Ventadour.

As pessoas o fascinavam, ainda que lhe causassem certo alarme. Ele não conseguia acostumar-se aos olhares. Gostaria de poder passear entre elas sem ser notado, mas isso parecia impossível, porque para qualquer lugar que fosse, as pessoas sempre se ajuntavam para vê-lo e gritar seu nome. Mesmo quando brincava nos terraços das Tulherias, as pessoas chegavam o mais perto que podiam, apontavam para ele e diziam: .- Vejam, lá está ele!

Nada podia ser desfrutado sem a presença das pessoas. Elas estavam nos Champs Elysées quando ele passava de carruagem por lá, e se congregavam diante do Falais Royal quando ele ia visitar o tio. Ele estava sempre erguido nos braços de algum oficial para acenar para o povo, ou em alguma sacada onde podiam gritar para ele.

- Argh! - exclamou Luís.-Acho que não gosto do povo.

Mamem Ventadour já lhe dissera que isso era algo que ele jamais deveria dizer. Ele pertencia ao povo e o povo pertencia a ele. Ele não devia esquecer nunca de que era o rei da França.

Ainda assim, ele esquecia. E às vezes esquecia por dias a fio. Quando brincava com seu melhor amigo, um de seus pajens, eles soltavam pipas, brincavam de amarelinha, fingiam lutas, gritavam um com o outro e ambos esqueciam que ele era rei. Esses foram tempos felizes.

Jamais ocorreu a Luís que a vida não poderia continuar para sempre como era, com ele vivendo sob os cuidados indulgentes de maman Ventadour; pelo menos não até um dia, quando ele estava com sete anos, quando notou que ela parecia triste e solene.

Ficou imediatamente alarmado. Embora fosse uma criança birrenta, amava profundamente sua maman, e quando a via triste - e não fingindo estar triste por causa de alguma de suas peraltices -, ficava genuinamente sentido.

- Maman, o que a aflige?

- Meu querido, em algum momento você será tirado de meus cuidados.

- Não, isso não! - exclamou Luís.

- É necessário. Sou apenas uma mulher, e seu bisavô teceu planos cuidadosos para a sua educação e criação.

- Mas ele está morto, maman, e eu sou o rei agora! Madame de Ventadour não insistiu no assunto. Não havia motivo para deixá-lo infeliz antes que fosse necessário - ainda que isso pudesse significar apenas mais um dia ou dois.

Madame desejava profundamente que ela e Luís continuassem vivendo sua velha vida, mas ela não podia conter o tempo. E assim, chegou o dia em que o menino, estarrecido, foi levado até uma ante-sala e despido de todas as suas roupas. Em seguida, foi levado até uma grande câmara onde todos os altos oficiais da corte estavam reunidos com os maiores doutores da França.

Luís ficou parado pasmo, fitando todos eles, mas seu tio segurou-lhe a mão e o conduziu até a sala.

- É um velho costume - sussurrou Philippe. - Apenas para mostrar a eles que homem bonito o senhor é.

- Mas não quero estar aqui sem as minhas roupas - protestou Luís.

- Não é nada. Os homens não ligam para isso.

Então ele foi sondado e apalpado e virado para este e para aquele lado. Seu físico foi objeto de admiração, bem como sua beleza. Ainda que humilhado e zangado, Luís sabia que este era mais um dos fardos que precisavam ser carregados pelos reis. Então um dos homens falou:

- Todos concordamos que nosso rei Luís XV está sadio em todos os seus membros, assim como bem nutrido e saudável?

- Sim - responderam em coro.

Em seguida, madame de Ventadour tomou o menino pela mão e o levou de volta até a pequena câmara, onde foi vestido.

Luís esqueceu rápido o incidente; ele não percebeu que aquilo fora a preliminar de um evento mais significativo.

Duas semanas mais tarde, madame de Ventadour procurou Philippe de Orléans, de acordo com a cerimónia formal que a ocasião exigia, e disse a ele:

- É seu desejo, monseigneur, que eu abdique da pessoa do rei para o senhor?

E a isso Orléans replicou:

- É a minha vontade, madame.

- Então lhe peço que me siga.

Quando viu o tio, Luís se preparou para saltar para os seus braços, mas Philippe ergueu a mão para alertar o menino que esta era uma daquelas ocasiões em que um cerimonial precisava ser seguido.

Então , madame de Ventadour disse, numa voz embargada de emoção:

- Monseigneur, cumpri o dever que me foi designado pelo rei Luís XIV. Cuidei deste jovem com todas as minhas capacidades, e agora o entrego em saúde perfeita.

Philippe se ajoelhou, enquanto o olhar pasmo de Luís se alternava entre seu tio e sua querida maman Ventadour.

- Sire, rogo para que jamais esqueça o que esta mulher fez por Vossa Majestade - disse Philippe. - Quando o senhor era muito pequeno, ela salvou a sua vida, e desde então o tem tratado com a mesma devoção com que uma mãe trataria o próprio filho.

Luís concordou com a cabeça. Estava procurando por palavras para perguntar o que isto significava, mas não conseguia achá-las. Uma sensação estranha no fundo de seu estômago alertou-o de que estava muito amedrontado.

Nesse momento, três homens adentraram a sala. Um era o duque de Maine, a quem Luís chamava de tio e por quem nutria grande afeição. Os outros eram o duque de Villeroi e André Hercule de Fleury.

- Sire, o senhor não é mais uma criança e precisa se devotar a assuntos mais sérios - anunciou Phillipe. - Precisa começar a se preparar para o seu grande destino. Para ajudá-lo nisto, aqui estão o duque de Maine, que irá superintender a sua educação, e monsieur de Fleury, bispo de Fréjus, que será o seu tutor, e o duque de Villeroi, que será o seu guardião.

com uma expressão pétrea, Luís fitou os três homens.

- E maman Ventadour? - perguntou o menino.

- Sire, madame de Ventadour sempre será sua amiga, mas o senhor deixará de viver com ela e terá o seu próprio lar.

Luís bateu o pé no chão.

- Eu quero maman Ventadour! - gritou.

Madame de Ventadour ajoelhou-se ao lado de Luís e o abraçou. Ela se sentiu envolvida num abraço firme e quente.

- Escute, querido, você apenas terá o seu próprio lar. Irei visitá-lo sempre.

- Mas não quero eles - sussurrou Luís. - Quero você, maman.

Os três homens estavam tentando não olhar para Luís. Philippe prosseguiu, como se o rei não tivesse falado:

- Messieurs, esta é uma incumbência sagrada. Tenho certeza de que os senhores irão colocá-la acima de todas as outras coisas. Os senhores terão de conceder ao nosso rei todo o carinho e afeto que conseguirem.

- Nós juramos fazer isto - disseram os três juntos, enquanto o rei momentaneamente desviava os olhos de madame de Ventadour para fitá-los de cara feia.

Madame de Ventadour se levantou. Ela segurou a mão de Luís e o conduziu até os homens. Villeroi estendeu o braço para segurar a mão do rei, mas Luís tinha agarrado a saia de madame de Ventadour e não fez nada além de olhar zangado para o seu novo guardião.

Madame de Ventadour disse a Luís:

- Agora, meu querido, preciso ir e deixá-lo com os seus novos guardiães.

Ela puxou a saia para que ele a soltasse, mas chorando alto, ele se jogou nos braços dela e gritou:

- Não vá, maman! Não deixe eles me tirarem de você! Sobre sua cabeça, ela olhou para os três homens.

- com o tempo ele irá compreender - disse ela. Assim, eles fizeram que sim com a cabeça e deixaram-na a sós com a criança.

Luís recusava-se a comer. De vez em quando um soluço estremecia seu corpinho. Madame de Ventadour tentou acalmálo, mas havia pouco conforto para oferecer, porque tudo que ele pedia era para ficar com ela, e isso não era possível. Finalmente exausto, ele adormeceu, e ao acordar encontrou, em vez de madame de Ventadour, seu guardião, o duque de Villeroi, sentado ao lado de sua cama. Ele fitou-o decepcionado, mas o duque disse:

- Não há nada a temer, sire. Em pouco tempo o senhor gostará do seu guardião tanto quanto gostou de sua guardiã.

- Vá embora - disse Luís.

- Sire, é vontade do povo...

- Eu sou o rei. Também tenho vontades.

- Elas serão saciadas, mas...

- Eu quero minha maman-disse Luís.-Traga-a para mim.

- O senhor tem muitas coisas a aprender, e irá achá-las muito interessantes. Aprenderá a esgrimir, dançar e cantar. Irá caçar. Achará a vida muito mais interessante quando estiver vivendo entre homens.

- Eu quero maman Ventadour - ordenou Luís.

- Irá vê-la de vez em quando.

- Agora!

- Primeiro irá comer, sire.

Luís hesitou. Ele estava com fome, mas seu medo do futuro era maior do que a fome.

- Traga minha maman primeiro.

E depois de muita insistência da parte do rei, finalmente foi compreendido que madame de Ventadour precisava ser trazida de volta.

Ela o confortou. Explicou que ele era o rei e precisava fazer não o que queria, mas o que era certo. Se fizesse isso, disse ela, iria ser um homem muito feliz.

Luís se manteve abraçado a ela e chorou até ficar exausto. E então, subitamente, compreendeu que não havia nada que pudesse fazer, exceto aceitar esta vida que lhe era empurrada.

Corajosamente, beijou madame de Ventadour e permitiu-se ser levado até a sua vida nova, na qual seria dominado por seu guardião, o duque de Villeroi.

Era uma vida menos infeliz do que ele previra. De fato, Luís começou a perceber que aquilo que tinham lhe dito era verdade; viver com homens era mais interessante do que viver com madame de Ventadour. Além disso, ele a via frequentemente e isso era sempre um prazer. Ele estava percebendo que agora tinha não apenas madame de Ventadour como também uma experiência nova e empolgante.

Em primeiro lugar, o duque de Villeroi procurava agradá-lo de todas as formas possíveis. Ele o paparicava e não perdia uma oportunidade de chamar a atenção de todos para a beleza e a inteligência extraordinária de seu pupilo. Isso era agradável. Ele também via com mais frequência seu divertido tio Philippe, que sempre o fazia rir e cuja chegada sempre punha monsieur de Villeroi de mau humor, que ele tentava sem sucesso ocultar de Luís. Mas tio Phillipe ria do mau humor de monsieur de Villeroi, e Luís se juntava a ele.

O tutor causou uma impressão profunda no menino. Fleury não aparentava ser um sicofanta, e talvez por causa disso tenha obtido o respeito do menino. Ele possuía uma dignidade calma e, como raramente dava uma ordem que parecesse uma, extraía o máximo de obediência de seu aluno.

Tendo certeza de que a educação do rei deveria ser tão perfeita quanto pudesse torná-la, Fleury convocou assistentes. Havia um colega historiador, Alrey, para somar sua sabedoria à de Fleury em benefício do rei, porque era de máxima importância que o soberano possuísse conhecimentos de história; havia o matemático, Chevalier, e o geógrafo, Guillaume Delishe. E se Fleury sentisse que mais especialistas seriam necessários, não hesitaria em convocar professores do Lycée Louis-le-Grand.

Fleury programou as aulas para as manhãs e os fins de tarde, para que houvesse um intervalo durante o qual o menino pudesse se divertir com seus jogos e passatempos favoritos.

Assuntos importantes, como redação, latim e história, apareciam no currículo todos os dias; outros eram distribuídos durante a semana. Fleury providenciou uma prensa para Luís aprender tipografia. A ciência militar não foi esquecida; como era desejo de Fleury que as lições fossem de natureza prática, providenciou para que os mosqueteiros e o Regimento Real executassem manobras das quais o rei pudesse tomar parte.

Portanto, ser educado tornou-se um assunto de interesse absorvente para o menino, que revelou possuir uma inteligência acima da média.

Havia outros assuntos que o interessavam. Ele formou uma amizade com um de seus pajens, o marquês de Calvière, e os dois passavam muitas horas felizes brincando e quebrando seus brinquedos para consertá-los em seguida. Luís desenvolveu um interesse por culinária. Ele adorava fazer doces e presenteá-los a madame de Ventadour, tio Phillipe, Villeroi, Fleury... qualquer um de quem gostasse particularmente.

Era impossível ficar entediado com tanta coisa interessante acontecendo, e não tardou para que Luís descobrisse a intriga que estava em andamento.

Monsieur de Villeroi temia e odiava alguém. Luís perguntava-se quem.

Certo dia, quando estavam fazendo doces enquanto o duque de Villeroi desfrutava de uma sesta, Luís perguntou ao jovem Calvière se ele também havia notado.

- Veja, este doce será um ovo de Páscoa - disse o rei. Para quem será? O meu guardião? Tio Philippe? Ou maman Ventadour? Ou monsieur de Fleury?

- Cabe a você decidir isso - disse Calvière.

- Monsieur de Villeroi tranca meu pão e minha manteiga - anunciou Luís.

O pajem fez que sim com a cabeça.

- E os meus lenços - prosseguiu Luís. - Eles são mantidos numa caixa com um cadeado triplo.

- Ele teme - disse Calvière.

- O quê?

- Ele teme envenenadores.

- Ele teme que alguém envenene a mim!-exclamou o rei.

- Quem?

Calvière deu de ombros.

- Esse ovo não está no formato certo - disse o jovem.

- Está sim - replicou Luís.

- Está não.

- Está.

Luís pegou uma colher de pau e a teria usado para golpear a cabeça do pajem, mas Calvière brandiu a mão e a colher atingiu Luís no rosto. Logo, os dois meninos estavam se engalfinhando no chão.

Subitamente eles pararam e voltaram para a mesa.

- vou fazer docinhos de açúcar - declarou Calvière.

- Meu ovo de Páscoa será para tio Philippe. É a ele a quem amo mais hoje.

- Eu sei por quê - disse Calvière, rindo. - Porque monsieur de Villeroi fez você dançar para os embaixadores.

Luís permaneceu parado, lembrando. Era verdade. O marechal o fizera bailar diante dos embaixadores estrangeiros. "O que vocês acham da beleza do rei?", perguntara. "Olhem essa figura belissimamente proporcionada, olhem esses lindos cabelos." Então Villeroi pedira ao rei para correr pela sala, para que os embaixadores pudessem ver o quanto ele era ágil; e dançar para eles para mostrar-lhes o quanto era gracioso. "Vejam! Poderia ser seu bisavô dançando para os senhores. O povo diz que ninguém jamais dançou tão graciosamente quanto Luís XIV. Isso porque eles ainda não viram Luís XV."

- Prefiro fazer doces a dançar-disse Luís. - Tio Philippe jamais me pede para dançar. Ele ri do velho Villeroi. Sim, o meu ovo de Páscoa irá para o tio Philippe.

E enquanto os dois meninos continuavam a fazer os doces, o pajem disse:

- Queria saber quem Villeroi pensa que está tentando envenenar você.

As crianças puseram-se a enumerar todas as pessoas na corte, até que isso as cansou. E quando o ovo estava pronto e amarrado com um laço azul, tio Philippe entrou na sala. Enquanto saltava para os braços de Philippe e era colocado sobre seus ombros para passear pelos aposentos, Luís gritou para o seu pajem que era realmente tio Philippe quem merecia o ovo de Páscoa, porque era sua pessoa favorita naquele dia.

Tio Philippe tinha trazido ovos de Páscoa para Luís, que imediatamente dividiu um com Calvière, enquanto o duque de Orléans divertia-se ouvindo as comparações entre os doces das outras pessoas com os seus.

Mais tarde, quando Philippe já tinha saído, Luís mostrou os ovos para Villeroi, que se apoderou deles imediatamente e disse que precisavam ser examinados.

- Nós já comemos um - disse-lhe Luís. E o rosto de Villeroi se encheu de pavor.

Naquele momento, Luís não notou nada de estranho nisso; contudo, mais tarde, quando estava escrevendo em latim no livro de cópia, sua mente se desviou dos sentimentos que estava expressando.

"O rei e seu povo estão unidos por laços de obrigação mútua", escreveu. "O povo deve prestar ao rei respeito, obediência, socorro, serviços e dizer-lhe sempre a verdade. O rei promete ao seu povo vigilância, proteção, paz, justiça e uma administração igualitária e transparente.

Aquilo tudo era muito tedioso, e não era de admirar que sua atenção tenha se desviado do texto.

Súbito, ele começou a rir. Papa Villeroi acha que tio Philippe está tentando me envenenar!, disse a si mesmo.

Aquilo pareceu-lhe indescritivelmente engraçado; uma daquelas aventuras loucas que ocorriam na imaginação e que ele e Calvière gostavam de construir; era como um jogo; só podia ser umjogo. Ele se perguntou se tio Phillipe sabia desse jogo.

 

Era impossível não perceber a admiração que ele, um menino de dez anos, conseguia inspirar naqueles que o cercavam. Não havia sequer um desses homens dignos que o cercavam em sua morada ou que pertenciam ao Conselho Regente que não fizesse de tudo para agradá-lo. Isso dava ao rei um prazer secreto, mas ele era inteligente o bastante para não superestimar o seu poder. Sabia que em pequenos assuntos ele tinha voz, mas nos assuntos maiores - como sua separação de madame de Ventadour - esses homens importantes que o cercavam tomavam sempre a decisão final.

Ele e Calvière gostavam de observar a rixa entre o seu tio Philippe e seu guardião Villeroi. Os dois meninos entraram no jogo. Quando estavam a sós, Calvière saltava para a frente sempre que Luís estava para comer alguma coisa, tomava o petisco dele e fingia cair morto aos pés do rei ou declarava:

- Está tudo bem. Enganamos os envenenadores desta vez, sire.

Às vezes Luís fazia o papel do pajem. Isso adicionava variedade à brincadeira.

O duque de Orléans notou a diversão secreta dos meninos, os olhares que trocavam entre si, e percebeu que ele e Villeroi eram os causadores.

Orléans então se perguntou o que Villeroi teria insinuado para Luís. Não deveria ter sido nada claramente ofensivo, porque Luís gostava tanto dele quanto gostava do garoto. Mas Villeroi tinha insinuado alguma coisa. Orléans colocou-se duplamente em alerta e decidiu tirar o reizinho dos cuidados de Villeroi tão logo fosse possível. Villeroi, por sua vez, apercebeu-se da prontidão na atitude de Orléans e aumentou a sua própria.

Villeroi estava determinado a fazer de seu pupilo um outro GrandMonarque. Frequentemente, em lugar do menininho bonito, ele via o rei bonito. Ele queria que o jovem Luís seguisse os passos de seu bisavô.

O menino precisava saber bailar, porque Luís XIV fora um bailarino soberbo. Todos diziam que a dança do menino fazia-os lembrar tanto do grande Luís que era como se ele revivesse em seu bisneto. Isso deliciava Villeroi.

A criança precisava estar com o povo sempre que a oportunidade se apresentasse. Quando os gritos de "Vive notrepetit Rói" ecoavam em seus ouvidos, Villeroi declarava-se tomado por uma alegria suprema. Ele insistia para que seu pequeno pupilo viajasse com ele pelas ruas de Paris e aparecesse frequentemente nos balcões.

Em seus sonhos, muitas vezes Luís ouvia os gritos das pessoas e vias seus rostos, que assumiam uma qualidade de pesadelo. Os gritos ficavam ameaçadores, os rostos assumiam formas selvagens e inumanas.

Ele protestava contra tantas aparições públicas.

- Mas você precisa amar o povo tanto quanto ele o amadisse-lhe Villeroi.

Ele amava algumas pessoas do povo. Amava maman Ventadour, tio fhillipe,papa Villeroi, e muitos outros. Mas eles não o fitavam nem gritavam para ele.

- Papa Villeroi, deixe-nos ir a Versalhes - pediu Luís. Não gosto de Paris. Lá tem gente demais.

- Algum dia, algum dia... - disse-lhe Villeroi.

E Luís sentia-se cada vez mais saudoso de Versalhes, aquele castelo de conto de fadas que lhe parecera repleto de uma centena de deleites, e no qual ele podia isolar-se das pessoas que gritavam.

Philippe, ansioso por desmamar Luís de seu guardião Villeroi, levou-o ao Conselho de Regência. Luís ficou um pouco entediado com os discursos longos e com as discussões intermináveis, mas gostou de estar sentado ali entre aqueles homens e sentir que era o rei deles.

Luís perguntou se podia comparecer sempre que o Conselho se reunisse.

Villeroi não conseguiu conter sua alegria.

- Veja como Sua Majestade é inteligente! - disse ao duque de Orléans.-Não sou o único que sente dificuldade de lembrar que ele tem apenas dez anos de idade.

- Ah! - exprimiu Orléans. - Ele cresce a olhos vistos em corpo e mente. Anseia pelo dia em que escapará dos cordões de seu guardião.

Houve uma ameaça nessas palavras. Em breve, queria dizer Orléans, ele não precisará de seus serviços, papa Villeroi.

Quando esse momento chegar, pensou Villeroi, irei expô-lo, monsieur Orléans, em toda a sua infâmia, antes que tenha uma oportunidade de fazer a esta criança inocente o que fez aos seus pais.

Villeroi tinha certeza de que apenas seu cuidado e vigília preservaram a vida de Luís até aqui. O rei deveria permanecer sob seus cuidados.

Creio que o cérebro de velho tolo está amolecendo, pensou Orléans.

Em certa ocasião, quando o Conselho de Regência conduzia seus negócios e Luís estava sentado numa cadeira real, pés balançando sobre o assoalho e lutando contra o desejo de adormecer, ouviu um leve arranhar nas pernas da cadeira. Quando olhou para ver o que era, um gatinho preto e branco saltou sobre seu colo.

Luís pôs-se a acarinhar o corpinho peludo. O bichano examinou-o com seu par de grandes olhos verdes enquanto miava. Os cavalheiros do Conselho interromperam seu debate para olhar para o rei e o gatinho.

O duque de Noailles, que não suportava estar na mesma sala que gatos, levantou-se rápido como um boneco de molas.

- Sire, ordenarei que essa criatura seja removida prontamente.

Tio Philippe estendeu o braço para tomar o gato de Luís, mas o rei manteve o pequeno animal apertado em seus braços. Ele adorou o gato, que já tinha sentido a simpatia do menino e começou a ronronar contente.

Luís então decidiu exercer sua autoridade, para mostrar a esses homens que ele era o rei.

Ele acariciou o gatinho e, sem olhar para monsieur de Noailles ou para tio Philippe, proferiu:

- O gato permanecerá.

Houve um breve silêncio, e então Orléans dirigiu um sorriso para Noailles e murmurou:

- O rei falou.

Luís adorou ver o horror na face de Noailles. Ele ficou muito feliz naquele dia; tinha um novo companheiro e compreendera que, em pequenas questões, podia impor sua vontade.

Depois dessa ocasião, o gato juntou-se aos folguedos que ele compartilhava com Calvière; e Luís ficou atento para que nenhum mal lhe acontecesse. Estava preparado para verter sua fúria contra qualquer um que parecesse querer maltratar o bicho. Assim, muito em breve todos aprenderam a prestar respeito apropriado ao pequeno "Blanc et Noir".

Luís levava-o para toda a parte e, se não o levasse, o gato o seguia.

A corte declarou que havia um novo membro do Conselho Real: o gato de Sua Majestade.

Fazia calor na igreja e Luís queria que a missa acabasse logo.

O ar dentro do prédio estava quente, visto que o lugar estava abarrotado por pessoas que tinham vindo celebrar o dia de São Germano.

O zumbido das vozes pareceu diminuir; ele estava apenas vagamente cônscio do duque de Orléans sentado a seu lado, e quando juntou as mãos, descobriu que elas ardiam.

Orléans pousou a mão no ombro do rei e sussurrou:

- Sente-se mal?

Luís ergueu um par de olhos vítreos para o duque e, ao fazer isso, teria caído se Orléans não houvesse avançado rapidamente e o colhido nos braços.

Havia testemunhas demais para manter o incidente em segredo. Por toda Paris espalhou-se a notícia:

- O rei está adoentado.

Muitos falaram sobre a temida varíola. Mas também houve muitos que sussurraram a palavra: veneno.

Villeroi torceu as mãos. Andava em círculos pelo aposento.

- Como isto foi acontecer depois de todas as precauções que tomei?- gritou para todos que tinham se reunido para ouvilo. - É cruel. É maligno demais para ser contemplado sem fúria. Aqueles que fizeram isto merecem morrer da morte mais cruel que possa ser infligida. Esta criança inocente, esta criança sagrada... tão jovem, tão plena de saúde num dia, abatida no seguinte!

Fleury fez tudo que pôde para acalmar o velho.

- Monsieur marechal está exagerando-asseverou. - Não deve fazer acusações tão graves sem provas. Comenta-se que o rei sofre de varíola. Esse é um ato de Deus, não do homem.

- Varíola! - gritou o velho, furibundo. - São diabólicos, esses envenenadores. Podem elaborar suas poções malignas de modo que suas vítimas pareçam sofrer de qualquer doença. O que nós ouvimos, eu lhes pergunto? A duquesa de Bourgogne morreu de sarampo. Sarampo! Sarampo administrado por uma dose fatal de veneno. O pequeno duque de Bretagne, de meros cinco anos de idade, morreu do mesmo mal! Os mesmos inimigos provocaram sua morte como antes fizeram com sua mãe... e com seu pai. Sim, também com seu pai. Foi-nos dito que ele morreu de desgosto. É assim que agem os homens malignos que desejam remover quem se coloca em seu caminho. Eles matam com sarampo ou desgosto. Eles são inimigos... inimigos, repito. E agora iniciaram seus truques malignos em meu amado rei.

- Por favor, procure se acalmar - rogou Fleury. - Haverá quem reporte as suas suspeitas a pessoas que podem espalhá-las.

- Que as espalhem! - gritou o velho. - Que façam isso. Se algum mal ocorrer ao meu rei...

Fleury tentou apaziguá-lo, mas suas insinuações eram tão obviamente dirigidas ao duque de Orléans que Fleury teve certeza de que Villeroi não permaneceria por muito tempo guardião do rei.

Isso não desagradou Fleury completamente. Ele próprio era homem ambicioso, e a remoção do guardião do rei poderia aproximar mais o tutor de seu aluno. Ele conquistara o afeto do menino rei; e se Luís se recobrasse de sua doença, quem poderia dizer o que o futuro traria para o seu querido Fleury? Quanto a Villeroi, o velho era um tolo. A esta altura já deveria saber que é mais sábio demonstrar afeto por seus inimigos, a despeito do que se sinta por eles. Orléans poderia rir do antagonismo do velho, mas em ocasiões como esta ele podia ver o quão perigoso isso poderia ser.

Os impropérios de Villeroi não ecoaram por muito tempo. No terceiro dia depois que Luís caíra doente, ficou claro que ele iria se recuperar.

- Vive lê Rói! - As palavras ecoaram pelas ruas durante todo o dia.

Luís estremeceu ao ouvi-las, e planejou trancar-se num armário com seu gatinho até que a gritaria terminasse. Isso não era possível, porque iriam caçá-lo até que o encontrassem; iriam lembrá-lo de que toda aquela gritaria era um reflexo do amor que o povo nutria por ele.

As celebrações continuaram por dias. Um TeDeum especial fora cantado na Sainte-Chapelle, procissões foram realizadas nas ruas, e o Louvre foi brindado com um fluxo infindável de delegações. As mulheres de Lês Halles marcharam triunfais até ali ao som dos tambores, trazendo presentes que representavam suas profissões. O rei foi presenteado com um esturjão de dois metros e meio, uma ovelha e baldes de vegetais.

Louvado seja Deus por preservar o nosso amado reizinho!

bradavam. - Deus abençoe o rei. Longa vida ao nosso amado Luís!

Houve dança nas ruas. E o coração das pândegas concentrava-se nas Tulherias, o lar do rei.

Villeroi saiu abraçando a todos - exceto o duque de Orléans e sua facção -, declarando que teria aberto mão do resto de sua vida para testemunhar este momento.

O povo de Paris, tendo uma desculpa tão boa para festejos, não parecia disposto a parar. Violinos juntaram-se aos tambores e as danças ficaram ainda mais animadas. Houve apresentações gratuitas na Comédie Française e na Ópera, e espetáculos de fogos de artifício no rio, quando imensas serpentes marinhas, com fogo a sair das bocas, singraram entre os barcos. Foi uma festa que toda Paris amou, mas frequentemente aparecia em meio à multidão um homem ou mulher declarando que a visão que mais lhe aprazia era a do pequeno rei vestido em veludo, observando o povo com tamanha dignidade que parecia uma miniatura de Luís XIV - o Luís XIV de seus dias de glória, é claro, não tendo sido o velho rei tão popular no fim da vida. Mas aqui estava um rei que levaria a França à prosperidade. Aqui estava um rei a quem seu povo amaria de um modo que não amavam um rei desde o grande Henrique IV.

A empolgação alcançou o auge no dia em que o rei emergiu das Tulherias para comparecer à cerimónia de ação de graças na Catedral de Notre Dame. Trajado com um casaco de veludo azul e um chapéu de pluma branca, Luís fazia uma figura encantadora; os cabelos castanhos agitavam-se sobre os ombros e os olhos grandes e azuis perscrutavam a multidão com uma calma aparente, embora em seu coração odiasse essas cenas. Ele não gostava das pessoas en massa, mesmo quando elas o aclamavam e bradavam bênçãos ao seu queridinho.

Sem qualquer emoção, divisou as bandeiras adejarem dos prédios, a multidão dançando nas ruas, as mulheres que lhe sopravam beijos e enxugavam os olhos felizes por ele estar vivo e bem.

- Veja como o povo ama seu rei! - gritou Villeroi, sempre ao seu lado, sempre incentivando-o a exibir seu charme e sua bela aparência.

Os olhos de Villeroi abrasavam de orgulho, mas Luís, de pé a seu lado, fazendo mesuras solenes para a plebe, desejava apenas escapar. Seu comportamento servia para deixar as pessoas ainda mais entusiasmadas.

Ele levantou seu chapéu e se curvou para o povo, mas aproveitou a primeira oportunidade para dar as costas ao balcão e entrar na sala.

Ali ele permaneceu entre as cortinas, embrulhando-as em torno de si como se pudesse esconder-se daqueles que queriam mandá-lo uma vez mais para o balcão. Ele sabia que fariam isso, porque a plebe ainda bradava seu nome.

Villeroi estava puxando as cortinas.

- Venha, sire, o povo jamais se cansa do senhor.

Luís pôs a cabeça para fora das dobras do damasco pesado, mantendo o resto do corpo oculto.

- Eu já me cansei deles - anunciou.

- Está brincando, querido mestre.

- Não é brincadeira - disse o rei. - Agora vou procurar Blanc et Noir. É hora de alimentá-lo e não confio em mais ninguém para fazer isso.

- Sire, prefere brincar com um gato quando seu povo chama seu nome?

- Sim - respondeu Luís. - Prefiro. Amo o meu gato.

- E o seu povo?

Luís meneou a cabeça.

Villeroi fingiu considerar o comentário uma piada do menino.

- Todas essas pessoas são subordinadas ao senhor. - Ele se ajoelhou diante de Luís e a criança viu o brilho nos olhos do homem. - Pense nisto: a França e todos os seus cidadãos estão sob o seu comando.

Sob o meu comando, ponderou Luís. Então quando digo "vão embora", eles devem ir embora. Subordinadas a mim? Mas isso deve ser para mais tarde, é claro, quando eu for crescido. Agora sou apenas uma criança, ainda que rei, e devo obedecer ao que me mandam fazer. Mas um dia não haverá ninguém para negar meus desejos. Todos serão meus... todos estarão sob o meu comando.

Estava resignado. Devia esperar. A infância não dura para sempre.

- Vossa Majestade deve voltar uma vez mais ao balcão.. Ouça! Como eles clamam por seu rei!

Mas Luís meneou a cabeça. Villeroi viu a teimosia assentada nos lábios da criança e, como sempre, cedeu.

- Então, rogo que caminhe a minha frente até as janelas

- arriscou. - vou puxar as cortinas. Então o povo irá vê-lo. Temo que eles jamais irão para casa antes de vê-lo mais uma vez. Eles o amam tanto!

Luís considerou. Queria escapar do som dos gritos. Assentiu lentamente e Villeroi puxou as cortinas.

Agora as pessoas podiam ver seu rei na janela e um grito se elevou de milhares de gargantas:

- Longa vida ao rei! Longa vida a Luís!

Villeroi estava enxugando os olhos, incapaz de controlar sua emoção.

Um dia eles farão tudo que eu quiser, pensou Luís. Então poderão gritar até ficarem roucos, que não lhes darei ouvidos.

Mais planos eram tecidos para o futuro do rei. Sua doença deixara muitos membros da corte pensativos. A morte estava sempre à espreita nas ruas de Paris e nem todo o esplendor de Versalhes nem os doutores da França podiam lutar contra ela. O duque de Bourbon, neto de Luís XIV, estava muito ansioso por realizar um pacto matrimonial para o rei, pois se o menino morresse sem herdeiros a coroa passaria para Orléans, e isso seria muito difícil para a casa rival, Bourbon, tolerar.

- O rei deve casar - anunciou o duque ao conselho.

- Em sua idade! -gritou Orléans.

- Ainda que a consumação do casamento seja postergada por algum tempo, um casamento deve ser arranjado. Dentro de três anos Sua Majestade terá quatorze anos. Idade suficiente para o casório. É dever do rei gerar herdeiros para a França, e não há idade que possa ser considerada precoce demais para isso.

- Mas ele tem apenas onze anos! -gritou Villeroi. Bourbon e Orléans olharam intrigados para o homem. Era evidente o que transcorria por sua cabeça. Uma esposa para o seu queridinho! Alguém que teria influência maior sobre ele do que seu envelhecido guardião!

Os dois duques evitaram o olhar um do outro. Eles eram os verdadeiros rivais. Villeroi não contava. O motivo pelo qual Orléans permitira-lhe continuar no cargo foi porque sabia que podia dispensá-lo a qualquer momento. Bourbon era outro assunto.

Mas o arguto Orléans viu como virar a situação a seu favor.

Filipe V, o primeiro Bourbon rei da Espanha, assumira essa coroa 21 anos antes da morte de Filipe IV. Ele era o neto de Luís XIV e portanto intimamente relacionado por parentesco com a casa real da França. Ele tinha uma filha jovem, Maria Anna; ela tinha apenas cinco anos, seis a menos que o rei, mas se fosse trazida à França para o noivado, isso satisfaria àqueles que exigiam um casamento e ao mesmo tempo protelaria por anos a possibilidade desse casamento acontecer e ser consumado.

Além disso, o filho de Filipe V, Luís, príncipe das Astúrias, poderia ser casado com mademoiselle de Montpensier, que era filha do regente.

Um arranjo excelente, pensou Orléans, porque então, caso o rei morresse sem herdeiros, seus laços próximos com a Espanha decerto ajudá-lo-iam a conseguir o trono para si próprio.

com um sorriso cândido, Orléans falou ao Conselho:

- Messieurs, então todos concordamos que seria para o bem de Sua Majestade contemplar o casamento. O povo ficará deliciado. O que seria mais encantador do que ver não apenas seu lindo queridinho nas ruas de sua capital, mas também ladeado por uma linda menininha! Amigos, há um país ao qual somos mais próximos do que qualquer outro. O rei da Espanha é nosso parente. Ele tem uma filha. Vamos trazer a Paris Maria Anna, infanta da Espanha. Ela será criada juntamente com o rei, e quando essas duas crianças estiverem em idade para casar, a cerimónia e a consumação deverão ocorrer!

Orléans acabou obtendo o apoio do Conselho, estando todos cientes das vantagens em estreitar relacionamentos com a Espanha. Por hora não havia necessidade em expressar suas intenções em relação a mademoiselle de Montpensier e o infante Luís.

O arranjo deixou Orléans bastante satisfeito. Ele se virou para Villeroi:

- Informará a Sua Majestade sobre a nossa decisão?

Villeroi meneou a cabeça, solene.

- Informarei a Sua Majestade, mas se Sua Majestade concordará... isso é outra questão.

Orléans dirigiu a Villeroi seu sorriso insolente.

- Na condição de guardião de Sua Majestade, o senhor sem dúvida ensinou-lhe que o bem do povo se coloca adiante dos desejos do rei.

Villeroi deu de ombros.

- Farei o melhor que puder.

Luís recebeu a notícia com uma expressão vazia. Uma esposa? Ele não queria esposa. Ele não gostava muito de mulheres... exceto, claro, sua querida maman Ventadour.

Ele preferia muito mais a sociedade de homens e meninos com quem podia caçar e jogar cartas, dois passatempos pelos quais desenvolvera uma paixão.

- Não permitirei que essa menina seja trazida ao meu reino - declarou.

- Sire, é vontade do Conselho que ela venha.

- Eu sou o rei.

- É vontade do governo.

- Os desejos do rei nunca prevalecem?

- Um rei precisa considerar seu povo.

- Mas você sempre disse que sou o rei e que o povo está sob o meu comando. Não,papa Villeroi, não permitirei que essa menina seja trazida à França.

Villeroi retornou, não sem alguma arrogância, ao regente.

- Sua Majestade não casará - disse-lhe.

- Sua Majestade deve ser persuadida - respondeu-lhe Orléans.

Villeroi inclinou a cabeça para o lado e sorriu.

- Conheço Sua Majestade melhor do que qualquer outro, e existe um traço de obstinação em sua personalidade.

Velho idiota, pensou Orléans. Você amoleceu com o tempo.

Ele dispensou Villeroi e mandou chamar Fleury. Aqui estava um homem que valia quatro do velho marechal.

Fleury fez que sim com a cabeça. Orléans estava certo. Foi Fleury quem, com seus modos lúcidos, mostrou ao rei o quanto seria insensato ofender o rei da Espanha, não confiando em seu regente que decidira que o casamento seria uma boa coisa, não aceitando esta menina que não faria qualquer diferença na vida de Sua Majestade ainda por anos a fio.

Foi Fleury quem conduziu ao Conselho um agastado Luís.

Ele foi sem Blanc et Noir, e seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Quando lhe foi perguntado se concordaria com a união com a Espanha ele lhes deu um "sim" baixo.

Ele perdera seu gatinho, que escapulira de sua vida tão casualmente quanto entrara. Ninguém conseguia encontrá-lo, e a necessidade de aceitar uma esposa pareceu-lhe de pequena monta em comparação com a perda de seu querido Blanc et Noir.

A linda menina de cinco anos chegara a Paris. Era uma criança encantadora e os parisienses ficaram prontamente encantados. Ver aqueles dois juntos - o lindo Luís de cabelos castanhos e sua pequena infanta rosa e branca - derreteria o coração mais empedernido, e as pessoas esperavam vê-los juntos com frequência.

Esperava-se coisas demais de um rei, pensou Luís.

Ele precisava ter essa garotinha ridícula ao seu lado o dia inteiro. Ele precisava segurar sua mão enquanto o povo os aplaudia.

Luís estava determinado a fazê-la ver que estava sendo forçado àquele compromisso com ela. Ele não falara com a menina desde sua chegada.

Mas era quase impossível desdenhar a menina. Tinham-lhe dito que ela estava para fazer um casamento brilhante com o monarca mais desejável do mundo. Ela achou Luís muito bonito e que tudo que ouvira a seu respeito era verdade. Parecia-lhe natural, portanto, que tal criatura divina não se dignasse a falar com ela.

Ela estava deliciada com todas as coisas francesas. Ela pulava e corria pelo palácio por puro prazer e dizia a todos, desde o mais alto oficial ao mais humilde lacaio, que um dia iria casar com Luís e seria rainha da França.

A chegada da infanta foi seguida por um período de celebrações, e sempre no centro delas Luís podia ser visto com a menininha de cinco anos a seu lado.

Quando ela o fitava em adoração, Luís queria dizer-lhe que era por causa dela que não podia caçar mais como gostava ou jogar cartas com seu pajem favorito; todo dia precisava haver este carrossel sem fim de comemorações.

Ele não queria isso. Ele não queria uma esposa.

Humildemente, Maria Anna aguardava pela atenção de Luís. Ela haveria de vir, Maria Anna iria ser rainha da França e esposa de Luís. Todos os maridos amavam suas esposas, de modo que Luís um dia iria amá-la.

Nesse ínterim, ela estava feliz em desfrutar dos paparicos da corte que fazia de tudo para agradar uma criaturinha tão encantadora - especialmente estando ela destinada ao trono.

Ela e Luís compareceram juntos aos festejos realizados em honra do embaixador espanhol, e um dia houve uma apresentação muito especial de fogos de artifício a que Luís e Maria Anna assistiram juntos.

Maria Anna dava gritinhos de prazer enquanto os fogos estouravam no céu. Ela parecia tão jovem, tão empolgada, que por um momento fez Luís lembrar-se de seu gatinho perdido.

- Luís! - gritou. - Olhe os fogos de artifício. Ah... tão adoráveis! Gosta deles, Luís?

Estava acostumada a tagarelar para Luís sem obter resposta. E assim, quando ele olhou para ela, sorriu e disse "sim", Maria Ana ficou estarrecida.

Ela se virou para ele, olhos arregalados de empolgação, e um sorriso do mais puro prazer estampado no rosto. Ela se levantou, correu até o oficial mais próximo, segurou seu joelho e tentou balançá-lo. Ela então deu pulinhos de alegria.

- Você ouviu? - inquiriu. - Luís falou comigo... Finalmente ele sorriu e falou comigo!

Logo depois da chegada da infanta, um dos desejos mais profundos de Luís foi satisfeito. Permitiram-lhe partir de Paris para Versalhes.

Isso lhe proporcionou um grande prazer. Significava, até certo ponto, uma fuga do povo. Versalhes era um pouco longe demais da capital para eles irem todos os dias até o castelo. Talvez fosse um dos motivos para ele amar tanto o lugar.

Mas não era o único. A beleza de Versalhes encantava-o

desde o primeiro momento em que vira o lugar. Ele herdara de Luís XIV o interesse e amor pela arquitetura. Portanto, ficou deliciado em ver novamente aquele castelo magnífico levantarse diante dele com suas fachadas naquela pedra belíssima que tinha a cor do mel; a fonte reluzindo ao sol, as estátuas lindíssimas, a beleza de suas avenidas, o encanto de seus jardins cada flor, cada pedra deste palácio deliciava-o tanto quanto deliciara ao avô que o criara.

Não importava que ao seu lado viajasse a menina de cinco anos, cujas exuberância e adoração ele considerava tão incómodas. Deixe-a balançar em seu assento, deixe-a tagarelar. Ele não olharia para ela; ele não responderia a ela. Ele iria apenas pensar: voltei para casa... para Versalhes. E nunca mais, se estivesse em seu poder, iria sair de lá.

Luís ocupou o quarto real de seu bisavô, com a câmara do conselho a um lado e o oeil-de-boeufao outro. Não gostava muito deste quarto, porque era grande e frio; além disso, sempre iria lembrar do dia em que madame de Ventadour o trouxera aqui para ver o velho rei pela última vez.

Mas era muito bom estar aqui. Ele estava aprendendo a ser filosófico. Não pediria muita coisa. Mais tarde escolheria o seu próprio quarto, a sua própria suíte de quartos. Mas isso seria quando ele saísse desta infância restritiva.

Agora havia novamente uma corte em Versalhes e, como o rei era jovem demais para liderá-la, precisava ser conduzida pelo regente. Philippe estava envelhecendo e se sentia menos inclinado a aventuras. As orgias que o povo lhe atribuía eram mais frutos da imaginação do que da realidade, mas ele não se importava. Não tinha qualquer desejo de perder sua reputação como um dos maiores farristas de toda a França.

Contudo, isto significava que os jovens da corte tomavam como modelo o que eles acreditavam que o regente era, e a promiscuidade tornou-se a ordem do dia.

Esta situação alcançou seu zénite quando uma orgia que ocorrera no parque de Versalhes chegou ao conhecimento do público.

Nela, muitos dos jovens das casas mais nobres da França apareceram vestidos de mulheres; mas a orgia não se confinou à prática da perversão; homens e mulheres rolaram na grama e fizeram amor à sombra das árvores... enquanto muitos nem mesmo procuraram por uma sombra.

Madame, a mãe do regente, convocou-o no dia seguinte ao desenrolar dessas cenas.

- Eles foram longe demais - disse a ele. - Em Paris as pessoas não falam de outra coisa. Você é o regente, meu filho, e foi sob o seu regime que isto aconteceu. Haverá muitos que dirão que Luís está em mãos inadequadas. Acautele-se.

Orléans entendeu o que ela quis dizer. Quanto a si próprio, estava velho demais para esse tipo de diversão, e isso facilitou-o acreditar que desta vez eles tinham ido longe demais.

Villeroi estava furioso. Ele não permitiria que seu amado rei permanecesse exposto a esses perigos. Ele ia perguntar ao Conselho o que eles achavam de um regente sob cujo regime tais coisas eram possíveis.

Orléans ficou muito feliz em descobrir que dois dos netos de Villeroi tinham participado da aventura.

- Que escândalo! - disse, manhoso. - Netos do próprio guardião do rei! Isso não ficará assim, marechal. Não ficará assim.

- Se eles agiram errado, devem ser punidos - disse o marechal. - Contudo, eles não foram os líderes, e são jovens demais.

- Num assunto dessa natureza, não podemos favorecer ninguém, marechal - disse o regente. - Não concorda comigo?

- São os líderes que merecem a punição... - murmurou Villeroi.

- Nós mandaremos os líderes para a Bastilha, mas todos...

- Orléans fez uma pausa e sorriu para o velho - ...todos que tomaram parte dessa exibição vergonhosa serão banidos.

O marechal sabia que de nada valia interceder por eles. Era melhor deixar que o assunto passasse da forma mais discreta possível. Mas não era da natureza do marechal demonstrar tato. Ele continuou vociferando pelo palácio:

- Muito fácil culpar esses jovens. Mas quem dá o exemplo, hein? Digam-me, quem dá o exemplo?

- Quero falar com o rei - disse o regente ao marechal quando convocou Luís, que estava, como sempre, em companhia de seu guardião. - E quero ter com ele a sós.

- Mas monsieur duque! - O sorriso de Villeroi foi ténue. -É dever do guardião de Sua Majestade acompanhá-lo em todas as ocasiões.

- Sua Majestade não é mais uma criança.

- Mas doze anos!

- Velho o bastante para ouvir o conselho de seus ministros sem a presença de sua... babá.

Villeroi ficou roxo de raiva.

- Não permitirei! - gritou.

Luís olhou de um homem para o outro e compreendeu que se equivocara em pensar que esta inimizade entre eles era um jogo.

Orléans foi o primeiro a se recuperar. Ele meneou a cabeça para Villeroi e falou com Luís enquanto o guardião permaneceu próximo, sua peruca levemente caída sobre a fronte, sua raiva dando lugar ao triunfo.

Mas depois o marechal se sentiu inquieto. Orléans era o homem mais importante do país, e fora insensato opor-se tão abertamente a seus desejos.

Villeroi sabia que Orléans não deixaria aquele desacato passar sem alguma retaliação e, depois de muito considerar, concluiu que seu plano mais sábio seria demonstrar humildade e se desculpar com o regente. Decidiu fazer isso prontamente e o convocou.

Ao entrar nos aposentos do regente, foi interceptado pelo capitão dos mosqueteiros, o conde dArtagnan.

- Conduza-me imediatamente à presença do duque de Orléans - ordenou Villeroi ao mosqueteiro.

- Senhor, ele está ocupado no momento.

Villeroi não gostou da insolência desse homem e tentou passar por ele.

- O senhor está preso-disse o conde dArtagnan. - Devo pedir que me entregue sua espada.

- O senhor esqueceu com quem está falando?

- Estou plenamente cônscio de com quem estou falando, e minhas ordens são para tomar sua espada.

- O que não farei - asseverou Villeroi.

Mas quando dArtagnan ergueu a mão, vários de seus mosqueteiros aproximaram-se e cercaram o velho. Em poucos momentos tinham-no imobilizado e arrastado para fora do palácio.

Havia uma carruagem à espera, e dArtagnan forçou-o a entrar.

- Chicoteie os cavalos! - gritou dArtagnan.

- Isto é monstruoso! - vociferou Villeroi. - Tenho meu trabalho no palácio. Para onde me levam?

- Para as suas terras em Brie - respondeu dArtagnan. O senhor deverá permanecer lá sob as ordens do duque de Orléans.

- Eu... eu... sou o guardião do rei!

- O senhor não mais detém esse posto.

- Não acatarei isso!

- Então há uma alternativa, senhor.

- Que é...?

- A Bastilha - disse o mosqueteiro.

Villeroi afundou no estofado da carruagem. Subitamente compreendeu que era um velho que cometera uma tolice; e velhos não podiam permitir-se tolices. A longa batalha entre o regente e o guardião do rei estava terminada.

- Onde está papa Villeroi? - perguntou Luís. - Não o vi o dia inteiro.

Ninguém sabia. Pela manhã Villeroi fora visto preparando-se para falar com o regente, e desde então ninguém o vira.

Luís convocou Orléans.

- O marechal está desaparecido - disse Luís. - Estou preocupado com ele.

O regente esboçou um sorriso suave.

- Majestade, não há motivo para alarme. O velho papa Villeroi é um ancião. Ele anseia pela paz do campo... a onde pertence.

- Ele saiu em férias! Mas ele não pediu permissão para partir.

- Ele saiu em férias muito, muito longas. Considerei que seria melhor não perturbar Vossa Majestade com adeuses melancólicos.

Luís, fitando o rosto de seu tio, compreendeu. Lágrimas afloraram aos seus olhos. Ele amara o velho que tanto o bajulava.

Mas Orléans abraçou Luís.

- Meu amado senhor está velho demais para esse tipo de companhia. Vossa Majestade logo verá que os maiores prazeres da vida o aguardam.

Luís deu-lhe as costas. Ele chorou a noite inteira pela perda do pobre papa Villeroi. Mas ele sabia que era inútil exigir seu retorno. Precisava esperar por aquele dia glorioso em que comandar seria sua prerrogativa.

Houve pouco tempo para tristeza. A vida mudou abruptamente. Luís tinha um novo guardião, o duque de Charost. A vida em Versalhes tonou-se recatada, como nos últimos anos de Luís XIV

Mas o rei passou de uma cerimónia para outra. No outono ele foi coroado em Rheims, e imediatamente após a coroação precisou passar por outra provação que lhe foi muito desagradável.

Muitos tinham vindo a Rheims para ver o menino de doze anos ser coroado rei da França; e entre ele estavam os aleijados e os sofredores. Eles ficaram acampados nos campos próximos à Abadia de Rheims, esperando a chegada do rei. Luís - quase sobrenaturalmente belo em seu manto em tecido de ouro, com seus imensos olhos azuis-escuros destacando-se no rosto delicado, e os cabelos castanhos pendendo em cachos naturais sobre os ombros - precisou caminhar entre aquelas pessoas doentes. Precisou parar diante de cada uma delas, e mesmo quando seus corpos estavam cobertos de pústulas teve de colocar a palma da mão sobre seus joelhos e murmurar seu desejo de que Deus os curasse.

Os doentes recuperavam a esperança ao ver seu rei, e os campos de Rheims inundaram-se de emoção. Eles tinham certeza de que a Providência escolhera este menino de saúde estupenda e feições belas para levar a França ao progresso.

Luís ansiava pela paz de Versalhes, mas antes de retornar para lá precisou ser entretido pelo duque de Orléans em VillersCotterets. E como os condes de Bourbon-Condés jamais permitiam-se ficar à sombra da casa rival de Orléans, Luís foi entretido com a mesma pompa em Chantilly.

Em fevereiro seguinte, o rei embarcou em seu 14.o ano, e foi considerado maior de idade. Mais festividades foram celebradas por sua maioridade, em cuja honra realizou-se o lit de justice na Grande Chambre, onde o regente concedeu solenemente a Luís o Grande Selo.

Orléans continuou sendo o ministro mais importante na França. Não foi esquecido que se o rei morresse sem herdeiro ele era o nome seguinte na linha de sucessão. Seu maior rival era o duque de Bourbon, que cobiçava sua posição.

Bourbon não era muito respeitado. Tinha 31 anos e sua mãe era uma das bastardas de Luís XIV; portanto, podia afirmar ser neto do velho rei, o que jamais esquecia nem permitia que qualquer um esquecesse. Detinha grande riqueza e Chantilly era uma das casas mais luxuosas na França. Dedicava grande parte de seu tempo à comida e ao sexo; o resto do tempo passava perguntando a si mesmo por que não poderia um dia derrubar Orléans de seu posto e ocupá-lo.

Era assombrado continuamente pelo medo de que o rei morresse e Orléans ocupasse o trono, deste modo frustrando suas próprias ambições.

Extremamente feio, tinha pouco que atraísse mulheres, exceto sua riqueza e títulos; e era principalmente graças à sua amante, madame de Prie, que essa ambição nascera nele. Alto e esquálido, tinha pernas tão compridas e ossudas que parecia caminhar sobre pernas de pau. Sendo tão alto, assumira o hábito de andar curvo, o que deixara-o com ombros arqueados. E como se já não fosse suficientemente desprovido de atrativos, na juventude sofrera um acidente a cavalo que resultara na perda de um olho.

Ainda assim, madame de Prie, uma das mulheres mais bonitas da corte, tornara-se sua amante, e era ambição de madame de Prie ser o poder por trás do trono.

A Luís ela não considerava; era apenas uma criança. Estava determinada a fazer seu amante ocupar o lugar de Orléans como primeiro-ministro da França; e como o rei não tinha ainda quatorze anos, isso significava que o duque de Bourbon iria ser, em tudo que importava, o regente do país.

Bourbon, recém-viúvo, permitiu que madame de Prie o dominasse. Esta mulher, esposa do marquês de Prie e filha de um financista riquíssimo, era insidiosa por natureza; e embora Bourbon preferisse fazer amor com ela, permitia-se ouvir seus esquemas e concordar com eles.

Orléans sabia o que eles planejavam. Estava determinado a frustrar os esquemas de madame de Prie quando ela os pusesse em prática. A possibilidade de morte do rei não o atormentava; pois se Luís morresse, ele assumiria o trono, e quando ele próprio morresse, seu filho, o atual duque de Chartres, o sucederia.

Era verdade que o duque de Chartres nutria mais interesse por religião do que por política. O que isso importava? O duque de Orléans não via como sua família poderia não conseguir permanecer no poder para o detrimento dos Bourbons.

Certa noite, pensando nesta situação e extraindo grande satisfação dela, estava sentado em seu quarto na parte baixa do castelo - pois ocupava os aposentos que haviam sido usados pelos delfins. Em breve ele iria aos aposentos do rei apresentarlhe certos documentos para assinar, mas ainda não era hora de ir e ele começou a se embebedar.

Estava vagamente deprimido. Seus aposentos estavam tão silenciosos que ele pareceu deslizar para um sonho do passado. Pensava em sua filha, a duquesa de Berry, que morrera recentemente - amara-a apaixonadamente e sua morte deixara-o com o coração afogado em dor - quando um pajem veio dizer-lhe que a duquesa de Falari requisitara vê-lo.

A duquesa era uma de suas amantes e estava alojada no palácio. Desde a orgia no parque a vida no palácio tornara-se recatada, e ele mantinha apenas umas poucas amantes em Versalhes.

Pediu que ela fosse trazida à sua presença; pareceu-lhe que, em seu humor atual, ela, que era conhecida por sua vivacidade, era o tipo de companhia de que precisava.

- Venha, minha querida - convidou Orléans. - Sente-se um pouco ao meu lado. Estava me sentindo um pouco deprimido. Tenho certeza de que a senhora irá me alegrar.

- Deprimido! - gritou a duquesa. - Mas por quê? O que pode deprimi-lo, monsieur duque... quando o senhor é aquele que dizem ser rei em tudo, menos no nome?

- Ah!-exprimiu Orléans.-Em outra ocasião esse comentário teria me agradado muito. Devo estar envelhecendo, pois meus pensamentos desta noite desviaram-se dos assuntos terrenos.

A duquesa olhou para ele, alarmada. O duque prosseguiu:

- A senhora acredita em vida após a morte?

A duquesa estava agora estarrecida. Este era o homem que levara Rabelais para ler na igreja durante a missa!

- O senhor está doente?

- Fiz uma pergunta.

- Se acredito em vida após a morte? Sim, acredito.

- Então como a senhora pôde adotar o estilo de vida em que vive aqui na Terra?

- Antes de morrer, farei a minha contrição - esclareceu a duquesa.-É assim que o mundo é. Se eu me arrependesse agora, teria de mudar os meus hábitos. Mas que perspectiva desanimadora! Concorda comigo?

Ele não respondeu.

- Não concorda comigo? - repetiu a duquesa.

Então ela viu que ele ainda estava sentado, mas havia escorregado para o lado.

A duquesa se inclinou sobre ele e entendeu, alarmada. Saiu do apartamento gritando por ajuda. Mas quando a ajuda chegou o duque de Orléans estava morto.

Luís chorou amargamente. Seu genial tio Philippe... morto! A vida era cruel demais. Ele fora tomado de madame de Ventadour; papa Villeroi fora arrancado dele, e agora tio Philippe estava morto.

Só havia uma pessoa a quem ele podia recorrer: Fleury. Seu tutor agora ocupava o primeiro lugar em suas afeições; e Fleury estava lá para confortar e aconselhar.

O arguto bispo de Fréjus estava determinado a um dia ser primeiro-ministro da França, mas era inteligente o bastante para ver que a hora ainda não chegara. Teria de esperar até que chegasse a ocasião em que contaria com o apoio sólido do rei, e quando o apoio do rei valesse de alguma coisa.

No momento teria muitos adversários caso se prontificasse para o posto que cobiçava. Ele avaliou as qualidades do duque de Bourbon que, acreditava, faria prontamente tudo que estivesse ao seu alcance para assumir o lugar que Orléans deixara vago, e decidiu que Bourbon não era um rival formidável.

Que Bourbon conquistasse o lugar que tanto cobiçava; que o ocupasse... durante algum tempo, até que o momento fosse favorável para que Fleury, bispo de Fréjus, se tornasse o poder por detrás do trono.

Bourbon não perdeu tempo em se candidatar, como sempre estimulado por sua amante ambiciosa. O duque de Chartres (agora de Orléans), contando com menos de vinte anos e sendo devotado à teologia, não era uma pessoa adequada ao posto, declarou. Sendo um príncipe de sangue real, conforme sempre lembrava a todos, e aparentado com o grande Henrique IV, era ele a pessoa ideal a assumir o posto.

O rei aceitá-lo-ia?

O rei, pesaroso pela perda de seu amado tio Philippe, e estimulado por Fleury, deu a resposta que Bourbon queria ouvir.

Madame de Prie era agora a dama mais importante da corte. Ela se entregou alegremente à tarefa de governar a França.

Contudo, ela compreendeu que seus favores vinham de seu amante, e estava determinada a não permiti-lo casar-se com uma dama que fosse tão sedenta de poder quanto ela. Assim, sua primeira tarefa foi encontrar uma esposa adequada para ele. Ela precisava ser a mulher mais insignificante do mundo.

- O senhor casará com a dama que eu escolher? - perguntou a ele.

- Se a senhora ordenar - foi a resposta.

- Então prepare-se, porque já a encontrei.

- Por favor, diga-me seu nome.

- É Marie Leczinska, filha de Stanislas.

- O quê? O exilado rei da Polónia?

- Exatamente. Por que você não poderia ter a filha de um rei? Estando exilado, ele ficará feliz com qualquer união para sua filha. Ela é muito insossa, mas estarei por perto para compensar isso.

- A senhora possui beleza suficiente para satisfazer qualquer homem.

- É por causa disso que o senhor deverá ter a esposa menos atraente do mundo.

Bourbon sorriu amarelo. Madame de Prie prosseguiu:

- Insossa, honesta, pobre e humilde, ela ficará deliciada em desposar um Bourbon de sangue azul. Ela é exatamente a esposa que tenho procurado para o senhor. Ela jamais interferirá conosco. Não é isso que o senhor quer?

- Sim, é.

- Então deixe ao meu encargo - sentenciou madame de Prie. - Providenciarei o casório.

No escândalo que terminou com a dispensa do duque de La Tremouille, Bourbon esqueceu a sugestão de casamento com a filha do rei da Polónia. O duque de La Tremouille era o líder de um pequeno grupo de rapazes que incluía o duque dEpernon, filho da condessa de Toulouse, o jovem duque de Gesvres e outro moço que, embora com apenas quinze anos, já era um secretário de Estado. Este último era de Maurepas - muito mais inteligente do que qualquer um dos outros mas, como não era de berço tão dourado, menos proeminente.

Fleury, temeroso de que Luís não se tornasse interessado em mulheres, encorajara o relacionamento do rei com esses rapazes, sem inicialmente perceber que em seus jeitos lânguidos, e em seu gosto por deitar-se em almofadas, tecer bordados, falar sobre escândalos e comer uma imensa quantidade de docinhos jazia perigo.

A corte estava horrorizada. Será que Luís iria se tornar outro Henrique III para ser governado por seus mignonsl Luís tinha quatorze anos - forte e saudável, descontando aqueles surtos ocasionais de febre que pareciam atacá-lo de tempos em tempos, era perfeitamente capaz de gerar filhos. O que o duque de Bourbon estava pensando, o que Fleury estava pensando, para permitir que tais perigos se acercassem do rei?

Bourbon agiu prontamente. Ordenou que o guardião de La Tremouille arranjasse um casamento para o rapaz e o removesse da corte; assim, o grupo desfez-se.

Luís permitiu que eles se fossem sem comentários. Agora já estava se acostumando a perder seus amigos.

Logo depois da dispensa de La Tremouille, Luís foi acometido por uma febre violenta, e mais uma vez o alarme se espalhou por Paris.

Tão logo ouviu as notícias, madame de Prie foi ter com seu amante.

- O que acontecerá conosco se o rei morrer? - inquiriu.

Bourbon fitou-a, perplexo.

- vou explicar - disse madame de Prie. - O jovem Orléans subirá ao trono. Então, monsieur duque, o senhor será dispensado do seu posto.

Bourbon fez que sim com a cabeça e declarou:

- O rei não deve morrer.

- com toda certeza que não! E não devem haver mais choques como este.

- Como podemos impedi-lo de contrair essas febres?

- Não podemos. Portanto, ele precisa produzir um herdeiro.para o trono. Então, se o menino morrer o senhor continuará na sua posição.

- Mas a infanta é apenas uma criança. O rei não poderá ter um herdeiro nos próximos anos.

- Não se ele for esperar pela infanta.

- Mas ele precisa esperar pela infanta. Que outra opção ele tem?

- Tomar outra esposa, claro.

- Ele está prometido à infanta.

- Uma menina de oito anos! É absolutamente ridículo. Aquele menino se tornou um homem, estou lhe dizendo. O que acontecerá se o senhor o mantiver solteiro? Em breve ele terá uma amante. Uma amante! Imagine isso. Quantas mulheres ambiciosas da corte você imagina que estão simplesmente aguardando para saltar na cama do rei? E então, o que será de nós? Ou se ele achar que precisa de um amigo... um mignon, como de La Tremouille? A situação seria a mesma para nós. Meu querido amigo, nós somos o poder por trás do trono. Não podemos ser insensatos e permitir que outros tomem nosso lugar.

- Mas um herdeiro... é impossível!

- Nenhuma coisa é impossível se optarmos por ela. O rei precisa ganhar uma esposa, e aquela menininha idiota deve ser mandada para onde é seu lugar... seu próprio país.

- Isso significaria guerra com a Espanha!

- Bobagem! E a Espanha quer guerrear com a França? França e Espanha... não são ambas regidas por reis Bourbons? Não! Isso gerará um pouco de frieza, talvez. Mas e daí? O incidente logo será esquecido, e faremos de nosso reizinho um esposo e ganharemos o herdeiro de que precisamos.

- Mas... - balbuciou Bourbon - ...como podemos fazer isso?

Ela sorriu e, colocando as mãos sobre os ombros de Bourbon, puxou-o para si e o beijou.

- Primeiro, faremos as pessoas falarem - disse ela. - É sempre assim que os assuntos delicados começam. Oh, o povo de Paris! Como amam seu reizinho! O senhor verá, em pouco tempo o povo estará dizendo que o nosso rei é um homem, que se ele se casasse com uma mulher de sua idade a França logo ganharia um herdeiro. Espere, meu querido. Tudo que precisa fazer é deixar esse pequeno assunto em minhas mãos.

- A senhora não é apenas a mulher mais desejável da França - murmurou o duque. - É também uma mulher genial.

Lágrimas corriam pelas faces róseas de Maria Anna enquanto sua carruagem rumava para o sul.

Luís não lhe dissera adeus. A princípio ela não entendera que estava sendo mandada embora. Ela pensara que apenas estava partindo para fazer uma visita.

E agora tinham lhe dito.

- Você está indo para casa. Não será maravilhoso? Verá a sua família amada. E como será agradável viver no seu próprio país!

- Luís virá? - perguntara Maria Ana.

- Não. Luís precisa permanecer na França. Entenda, ele é o rei.

- Mas eu serei a rainha.

- De algum outro país, quem sabe?

Então ela entendera, e não conseguira dizer nada porque os soluços não deixariam. Desde aquele dia na exibição de fogos de artifício, quando ele falara com ela, Maria Anna sempre acreditara que um dia Luís iria amá-la. Desde então ele falara muitas vezes com ela - não muito, mas quando ela dizia a ele que o dia estava bonito, ele concordava, e ela o adorava.

Mas agora estava tudo acabado. Ela não era mais a noiva prometida do garboso rei da França.

Assim, enquanto olhava a paisagem do interior francês, a pequena infanta não se apercebia de nada além de sua própria dor.

Madame de Prie riu quando soube das reações de Filipe V.

- Filipe ficou furioso e está preparado para iniciar uma guerra. Ele declarou que não permitirá que sua filha seja insultada dessa maneira.

- Não devemos nos preocupar com ele.

- Ele está mandando de volta a filha do regente, viúva de Luís.

Madame de Prie estalou os dedos.

- Dane-se a filha do regente! Que retorne. Nós a aceitaremos em troca daquela infanta ridícula. Vamos, precisamos pensar logo numa esposa para Luís.

A persistente madame de Prie já tinha uma lista de 99 nomes; entre eles havia as filhas de quinze e trinta anos do príncipe de Gales, Anne e Amélia Sophia Eleanor.

Bourbon hesitou por um instante antes de dizer:

- Mas elas são protestantes! A França jamais aceitaria uma rainha protestante.

Até mesmo madame de Prie estava pronta para concordar com ele nesse ponto.

- Há a jovem Elisabete da Rússia... - começou e então parou.

Ela precisava ser muito cuidadosa nesta escolha de uma esposa para o rei. Se uma mulher dominadora fosse escolhida, todos os seus esforços seriam em vão. Quem sabia que influência uma esposa poderia exercer sobre um homem jovem e impressionável como o rei?

Então ela se virou para o seu amante, olhos brilhando. E disse lentamente:

- Quando eu estava procurando por uma esposa para o senhor, selecionei a mulher mais humilde que consegui encontrar.

- Marie Leczinska - disse Bourbon.

- Meu amigo! -gritou madame de Prie. - vou pedir que abra mão de sua noiva. O rei deve tê-la em seu lugar,

- Impossível! - murmurou Bourbon, mas uma luz de empolgação já brilhava em seus olhos.

- Eu não disse ao senhor que nada deve ser impossível?

- O povo jamais irá aceitá-la.

Ela se jogou nos braços de Bourbon. Estava rindo tanto que Bourbon chegou a temer que ela estivesse à beira da histeria.

- Já decidi - disse ela. - Juro que em muito pouco tempo Marie Leczinska será rainha da França!

 

Havia silêncio na sala de costura da casa Wissembourg. Mãe e filha costuravam diligentemente; ambas trabalhavam num vês- tido da filha, que as fez trocar vários olhares tristes, pois o vestido a esta altura já devia ter sido transformado em pano de chão ou oferecido a uma criada.

Como estou cansada, pensou a ex-rainha da Polónia, de viver em tamanha pobreza!

A mulher mais jovem não lamentava tanto, não conseguindo lembrar de qualquer outra coisa além de uma vida de exílio e pobreza. Ela remendava suas roupas desde que se entendia por gente.

Talvez a nossa sorte mude algum dia - disse a rainha.

- A senhora acha que meu pai será chamado de volta para a Polónia?

A rainha Catherine soltou uma risada amarga.

- Não vejo nenhum motivo para que façam isso.

- Então, como a nossa situação poderá mudar?-perguntou Marie Leczinska.

- O seu pai espera conseguir um bom casamento para você.

- Para mim? - Marie riu e, enquanto fitava o vestido em sua mão, um rubor tocou suas faces. - Que chance tem de conseguir um bom casamento uma princesa sem tostão, filha de um rei exilado, e sem graça ou beleza?

- Marie Leczinska, não diga essas coisas!

Marie sabia que sua mãe estava realmente zangada quando ela a chamava de Marie Leczinska; pois no coração da família era chamada afetuosamente por seu apelido, Maruchna.

- Não devo dizer sempre a verdade? - perguntou em voz baixa.

- Mulheres bem menos bonitas do que você fizeram grandes casamentos.

- De que vale nos iludirmos? - disse Marie. - Não esqueci as palavras de Anne da Baviera quando ouviu que havia planos para casar-me com o duque de Bourbon.

- Aqueles Bourbons! - gritou a rainha Catherine. - Eles têm a si mesmos num conceito exagerado. Anne da Baviera, princesa Palatina, não esquece que é viúva de um Conde e, portanto, acha seu neto bom demais para você. Ela esquece que os Condes não são mais o que foram na França desde a morte do grande Conde.

- Oh, mãe, não falemos de grandeza e casamentos para mim que podem apenas ocorrer em nossa imaginação. Estamos nesta casa e estamos juntas. Amamos uma à outra. Por que não podemos nos contentar em sermos uma pequena família de nenhuma importância?

- Porque o trono da Polónia pertence ao seu pai, não a Augusto, eleitor da Saxônia; e ele jamais abdicará. Ele sempre nutre a esperança de poder reconquistar o trono. Maruchna, todas as noites ele reza para que seu maior desejo seja concedido. Reis jamais se conformam em viver em pobreza, dependendo da ajuda de amigos. É uma humilhação grande demais para ser suportada.

- Mas para mim - disse Marie, pegando sua agulha e começando a trabalhar na veste rasgada - é muito mais humilhante ser oferecida como noiva por toda a Europa... e ser rejeitada todas as vezes.

- Isso aconteceu com muitas princesas mais afortunadas do que você.

- Ainda assim eu preferia que não acontecesse comigo. Eu preferia ficar aqui, vivendo como vivemos, dando a vestidos velhos uma nova chance na vida. Espero não ser oferecida a mais ninguém. Fiquei doente de vergonha quando papai tentou de tudo para casar-me com Ludwig Georg de Baden. Ele não quis nada comigo; e agora a senhora vê que não fui considerada boa o bastante para o duque de Bourbon.

Catherine sorriu secretamente.

- Houve uma grande troca de correspondências entre Bourbon e o seu pai. Madame de Prie envia cartas regularmente.

- Madame de Prie?

- Sim. Ela atua em nome do duque de Bourbon. Ela é uma dama de certa influência na corte.

Marie não respondeu; tinha certeza de que os arranjos para o casamento com Bourbon terminariam como todos os outros haviam terminado. Ela estava pensando que provavelmente iria casar-se com Lê Tellier de Coirtenvaux, que estava apenas ao comando de um regimento de cavalaria em Wissembourg. Ele tinha pedido sua mão mas seu pai negara, indignado. Sua filha casada com um homem que não era um nobre francês!

Mas papai há de esquecer suas grandes ilusões, pensou Marie. Ele acabará por compreender nossa posição e aceitá-la.

Ela se imaginou jamais casando, permanecendo nesta casa

- se eles lhe permitissem ficar - durante todos os dias de sua vida.

A mãe leu os pensamentos da moça.

- O seu pai jamais consentirá um casamento que ele considere indigno para você.

- Então, mãe, esqueçamos esse assunto de casamento.

- Se você se casar com o duque de Bourbon, nós ao menos seremos tirados desta maldita pobreza - divagou a rainha Catherine. - Como o seu pai sofreu! Ser deposto do trono e deportado para viver de caridade! Isso é mais do que o espírito orgulhoso dele pode suportar.

- Ele suporta há muito tempo, e se for preciso que continue a fazê-lo, ele continuará.

- Você não deveria ser tão resignada, Maruchna. Como vivemos aqui... numa casa emprestada de um conselheiro do eleitor do Palatinado, sob uma pensão do duque de Orléans que nem sempre é paga regularmente... de dinheiro enviado por amigos na Lorena, Suécia e Espanha. E nunca temos certeza se receberemos os valores remetidos. Quando penso nos velhos dias, sinto vontade de chorar.

- Lágrimas serão de pouca valia. Veja, mãe, quando tivermos terminado este vestido, creio que ele não durará mais um mês. O esforço valerá?

A rainha balançou a cabeça, impaciente.

- Deposito grandes esperanças em madame de Prie.

- Se eu deixar a Alsácia, levarei a senhora e papai comigo. A rainha sorriu. O resultado do exílio, supunha, unira ainda mais a família. Seu esposo Stanislas amava sua Maruchna com um amor que decerto era cego, pois ele a via - pobre e simples como era - como um dos partidos mais desejáveis da Europa.

- Mas sentirei pena de deixar a Alsácia - murmurou Marie. - Temos nossos amigos aqui.

A rainha sorriu tristemente. Pobre Maruchna! Ela nunca conhecera o que significava a vida da filha de um rei. Ela pensava ser maravilhoso visitar Saverne, a casa do cardeal de Rohan em Estrasburgo, ou a do conde de Bourg na mesma cidade. Era bem representativo do quanto eles haviam caído o fato de que a filha do rei pudesse ficar maravilhada com a hospitalidade de amigos como esses.

Ela precisava casar-se com Bourbon. Ela e Stanislas ansiavam fervorosamente por isso, pois o duque era ligado à casa real francesa, e esse casamento significaria o fim da pobreza.

- Escute, ouço alguém chegando a cavalo - disse a rainha. Ela largou o vestido no qual trabalhava e foi até a janela. Então virou-se e sorriu para sua filha. - Estão vindo! - gritou. - Mais cartas do duque de Bourbon ou de madame de Prie. Reconheço as cores da farda do homem.

- Mãe, não se empolgue tanto. Podem ser cartas contendo mais motivos para eu não ser uma noiva adequada para o duque.

Catherine voltou à mesa.

- Oh, Maruchna, você desiste fácil. Um dia a nossa sorte mudará.

- Vamos terminar o vestido, mãe. Já dedicamos tempo demais a ele e, se não valerá o esforço, é melhor que não demoremos muito mais.

Elas estavam trabalhando quando Stanislas, rei deposto da Polónia, irrompeu na sala.

Nunca em toda sua vida Marie vira seu pai tão empolgado. Era estranho que ele viesse procurá-las com tamanha falta de cerimónia, porque embora vivesse no exílio e dependendo da caridade de amigos, sempre tentava preservar a atmosfera da corte em seu lar. Era verdade que ela consistia em poucos, muito poucos, nobres que o tinham seguido ao exílio e agora ostentavam nomes de sonoridade espetacular como grãocamarista, secretário e marechal; havia apenas dois padres poloneses na casa. Como não havia assuntos de Estado a ser discutidos, o tempo desses homens era gasto comparecendo à missa, lendo e ensinando Marie a dançar, cantar e tocar a harpa.

- Esposa! Filha! -gritou Stanislas. - Tenho novidades. Primeiro ajoelhemos para dar graças a Deus pela maior sorte que poderia ter cruzado nosso caminho.

Marie obedeceu a seu pai; Catherine olhou para ele intrigada, mas o marido nada disse até que tinham acabado de rezar.

Enquanto se juntava à oração de graças, Marie pensou:

Que estranho ser grata quando não se sabe por quê. Será Bourbon ? Não. Tinha de ser algo maior do que isso. A maior sorte que poderia ter-lhes cruzado o caminho. Isso só podia significar uma coisa.

A oração acabou e Marie olhou para o pai, os olhos reluzindo de afeto.

- Pai, o senhor foi reconvocado ao seu trono? Stanislas sorriu para a filha e meneou a cabeça.

- São notícias melhores do que essas. Sim, muito melhores do que essas.

- Mas o que poderia ser melhor? - inquiriu a rainha.

- Madame - disse Stanislas, o olhar alternando entre sua esposa e sua filha. - Olhe para a nossa pequena Maruchna. E

então agradeça aos céus por nossa boa sorte. Nossa filha será a rainha da França.

Não desagradou ao jovem rei saber do casamento proposto. Ele estava agora com quinze anos e ansioso por uma esposa. Até agora ele não demonstrara interesse por mulheres, o que se devia principalmente à influência de Fleury, que estava determinado a não deixá-lo ser dominado por ninguém além dele próprio.

A rainha proposta pareceu tão ideal para Fleury quanto parecera para o duque de Bourbon e madame de Prie. Uma menina pobre e sem atrativos, criada para ser humilde e honesta... o que podia ser melhor? Fleury estava tão ansioso quanto o duque e sua amante por promover este casamento.

A menina tinha 21 anos... apenas sete a mais que o rei. E para anunciar o casamento proposto, eles precisavam apenas esperar até que a pequena infanta tivesse sido recebida na Espanha por sua família ultrajada.

Num domingo de maio, o próprio Luís anunciou a membros do Conselho:

- Cavalheiros, vou desposar a princesa da Polónia. Ela nasceu em 23 de junho de 1703 e é a única filha de Stanislas Leczinska, que foi eleito rei da Polónia em julho de 1704. Ele e a rainha Catherine virão à França com sua filha. Já coloquei o castelo de Saint-Germain-en-Laye ao dispor da família. A mãe do rei Stanislas irá acompanhá-los.

A notícia logo se espalhou por toda Paris. O rei ia se casar com a filha de um exilado! Isso era quase inacreditável, considerando que qualquer uma das princesas mais importantes da Europa teria se prontificado a se casar com Luís, porque ele não apenas era o monarca do maior país da Europa, como jovem e belo como um deus. E ele ia desposar essa mulher sobre quem tão poucos tinham ouvido, a filha de um rei exilado, sem tostão. E ainda por cima, sete anos mais velha que o rei!

Rumores espalharam-se pela capital como uma praga. No primeiro dia, disseram que a rainha proposta não apenas era pobre, como terrivelmente feia. No segundo dia, ela era deformada; no terceiro, tinha pele entre os dedos dos pés, como um pato. O casamento, decidiu-se, só poderia mesmo ter sido arranjado por madame de Prie, que decerto desejava permanecer como o poder por trás do trono.

Paris murmurava zangada. Entoaram-se canções que descreviam a aparência de Marie como hedionda. "Apolonesa", ela era chamada, a mulher cujo nome terminava em "ska".

Eles a chamaram de Demoiselle Leczinska e aguardaram indignados por sua chegada.

Tudo agora estava diferente na casa em Wissembourg. Aqueles que tinham acompanhado Stanislas ao exílio ostentavam expressões de contentamento manhoso. Quando o cardeal de Rohan e o marechal du Bourg visitaram a família, seus modos manifestaram uma mudança sutil, particularmente em relação a Marie.

A rainha Catherine deixou de lamentar o passado, e até abandonou o luto pela morte recente de uma de suas filhas; ela ainda tinha Marie, e Marie iria realizar uma grande mudança nas vidas de seus pais.

Stanislas estava jovial, e Marie ficava deliciada em vê-lo assim; ela e seu pai amavam um ao outro mais do que amavam qualquer outra pessoa. Muito parecidos em temperamento, ambos sabiam aceitar a sorte com prazer e o azar com resignação... ao contrário da rainha, que fora incapaz de ocultar a dor e a insatisfação que sentira durante os longos anos de exílio.

- Minha querida, agora é hora de resgatar suas jóias-disse o rei alegremente.

- Os judeus de Frankfurt jamais irão devolvê-las se não forem pagos até o último centavo - declarou Catherine.

- Ora, mas eles serão pagos - riu Stanislas. - Não perdi tempo em levantar os empréstimos necessários.

- Mas como o senhor conseguiu?!

- Minha esposa, a senhora esquece que não sou mais meramente o rei exilado da Polónia; sou o pai da futura rainha da França.

Os preparativos foram realizados a toque de caixa. Todos trabalhavam fervorosamente, assombrados por um grande medo. E se o rei da França mudasse de ideia? Essa era uma perspectiva assustadora mas aparentemente improvável, considerando as notícias de que madame de Prie chegara a Estrasburgo e vinha visitar Marie e seus pais.

Madame de Prie! Como eles poderiam pagar a esta mulher, a quem deviam tudo? Stanislas, que se apressara em colher informações sobre a situação na corte francesa, já sabia da importância de madame de Prie.

Um banquete precisava ser preparado para ela - pelo menos um banquete que eles pudessem pagar e que pudesse ser servido numa casa tão pequena.

Madame de Prie chegou, graciosa e charmosa, mas ainda assim determinada a não deixar nem por um momento que eles perdessem de vista sua importância.

Ela atentou para cada detalhe da aparência de Marie.

É verdade que ela não é nenhuma beldade, pensou madame de Prie com prazer.

A moça era desprovida de elegância; de forma alguma o tipo de mulher capaz de controlar um homem através de seus encantos pessoais. Ela parecia agradecida a sua boa sorte e completamente cônscia de que a devia em grande parte a madame de Prie. A ardilosa mulher não poderia ter encontrado ninguém mais ao seu gosto.

- Trouxe presentes do duque de Bourbon, para você e seus pais - disse a Marie. - E não pude resistir a trazer eu mesma uma coisa para você, e creio que sei que irá gostar e de que certamente precisa. Permita-me mostrar.

Imperiosamente, madame de Prie ordenou que as caixas fossem trazidas para a sala, e quando foram abertas, ela tirou lingeríe e meias de seda tão finas que Marie arfou de pasmo.

- São para você, minha querida - disse madame de Prie, tomando Marie nos braços e a beijando.

- Agradeço à senhora de todo coração! - gritou Marie.

- Nunca em minha vida vi coisas tão bonitas.

Madame de Prie riu com prazer. Estava pensando num futuro em que ela teria a posição suprema na corte - porque a rainha da França jamais esqueceria a quem devia sua posição e sempre seria grata à todo-poderosa madame de Prie.

Stanislas - não menos do que madame de Prie, o duque de Bourbon e Fleury-estava ansioso por não haver qualquer atraso. Atrasos podiam ser perigosos, particularmente em vista da postura dos parisienses para com a "Demoiselle" que não julgavam à altura de seu reizinho lindo.

Em 15 de agosto o casamento foi celebrado em Estrasburgo pelo cardeal de Rohan, bispo de Estrasburgo, com o jovem duque de Orléans, na qualidade de primeiro príncipe de sangue real, representando Luís.

O deleite de Stanislas estava mesclado com apreensão. Não fora fácil para ele reunir uma corte à altura da ocasião, ainda que agora, com os arranjos já avançados, ele tivesse encontrado novos amigos. Além disso, a enérgica madame de Prie estava ali para ajudá-lo, e como estava determinada a fazer com que o casamento se desse sem atraso, assim aconteceu. Toda a nobreza da Alsácia veio ao resgate, enviando seus filhos como pajens para preencher qualquer papel que fosse necessário. O duque de Antin concedeu dignidade à corte exilada aparecendo como embaixador extraordinário e ministro plenipotenciário da França, e Stanislaus concedeu posto semelhante a um membro de sua casa, de modo que a dignidade diplomática foi preservada.

Marie, trajada como nunca na vida, num vestido de brocado verde ornado com desenhos belíssimos em relevo e franjado com seda prateada, tinha uma aparência agradável e nem de perto era a criatura deformada que o povo de Paris pensava ser.

Ela ficou entorpecida com todo aquele esplendor ao entrar na igreja, seu pai e sua mãe cada um a um lado dela, o duque de Orléans, seu noivo por procuração, caminhando na frente com os dois embaixadores.

Marie sentiu dificuldade em acreditar, quando a cerimónia tinha acabado, quando o TeDeum tinha sido cantado e os cânones entoados, que ela era a rainha da França.

Jantou em público, servida pelos oficiais do rei no Hotel de Ville, e houve dança nas ruas, onde se ofereceu a todos pão e cerveja gratuita.

Marie sentia-se tensa; embora todos esses grandes nobres e o povo de Estrasburgo a aclamassem e chamassem de rainha, ela ainda não se vira frente a frente com o povo de Paris e o seu marido.

Houve pouco tempo para contemplação; dois dias depois da cerimónia em Estrasburgo a jornada para Fontainebleau começou.

Assim que a procissão começou, a chuva se pôs a cair. Sentada no coche real, Marie divisava os campos nos quais milho precioso era arruinado, enquanto o duque de Orléans e sua comitiva cavalgava à sua frente para poder recebê-las nas cidades através das quais passassem. A carruagem do duque de Noailles ia na frente, seguida por pajens montados, e os guardas cavalgavam ao lado do coche real; atrás deles vinham as carruagens dos nobres que tinham ido a Estrasburgo para comparecer ao casamento. A procissão chegava a três quilómetros e meio de comprimento, incluindo as carroças de serviço.

O povo do interior apareceu para saudar a rainha enquanto ela atravessava os campos. Eles jogaram flores em sua carruagem, e ela viu que até mesmo as menores aldeias tinham hasteado bandeiras. A despeito do clima ruim, eles estavam determinados a dar-lhe boas-vindas dignas.

Marie teve a impressão de que o povo ao menos estava feliz por vê-la, mas ficou horrorizada com os sinais de pobreza que vislumbrou nessas aldeias. Quando notou o quanto as pessoas eram magras e malvestidas, ficou feliz pelo rei ter mandado quinze mil moedas de ouro para que ela distribuísse durante sua passagem pelo campo.

Avançava-se lentamente devido ao clima, e frequentemente a carruagem da rainha atolava na lama. Houve diversos atrasos e frequentemente ela ouvia notícias que a perturbaram.

Havia escassez de pão e tinham ocorrido distúrbios não apenas em Paris, mas nas províncias, quando o povo invadira as padarias para roubar pão.

Os nomes do duque de Bourbon e de sua amante, madame de Prie, foram mencionados. Dizia-se que haviam tirado vantagem da situação e se tornado ainda mais ricos especulando o valor do grão em detrimento do povo.

Contudo, Marie, por mais caridosa que fosse, não podia fazer nada mais além de distribuir seus presentes, e antes da jornada terminar ela viu que sua bolsa estava vazia. Mas havia pouco espaço em seus pensamentos para qualquer coisa além de seu encontro com o rei, porque finalmente a procissão aproximava-se de Moret, onde Luís iria encontrá-la.

Luís estava inquieto. Ele estava tão ansioso por uma esposa que talvez tivesse aceitado esta prontamente demais. As palavras dos parisienses ecoavam em seus ouvidos, porque ouvira algumas das canções que vinham sendo entoadas nas ruas de Paris.

A chuva incessante era deprimente. Ele ouvira que estavam ocorrendo distúrbios em Paris. Eles não o culpavam por sua pobreza; eles não o culpavam por nada, e Luís era aclamado aonde quer que fosse. Mas eles culpavam o duque de Bourbon e madame de Prie, particularmente a última, que eles acreditavam ser o génio maligno do primeiro-ministro.

Luís não queria pensar no sofrimento do povo; ele não queria pensar no povo. Desde a época em qnepapa Villeroi forçava-o a realizar muitas aparições públicas ele as evitava com todas as suas forças.

Agora ele começava a pensar em sua esposa. Se não gostasse dela iria ignorá-la, conforme ouvira dizer que de La Tremouille ignorava sua esposa. Ele iria fazê-la saber que ele era o rei e que se não estava feliz com seu casamento, então seria como se não houvesse casamento algum.

Corcunda! com pés de pato! Era alarmante.

Mas não havia mais retorno. Luís precisava comparecer a Moret e conhecê-la.

Ela estava atrasada. Ele recebeu notícias de que sua carruagem ficara atolada na lama e que trinta cavalos tinham sido atrelados para puxá-la.

Os serviçais estavam colocando um tapete sobre a lama onde a carruagem de Marie iria parar e ele estava esperando para saudá-la. E aqui estava a carruagem, e aqui estava ela.

Os olhos ávidos de Luís apoderaram-se de cada detalhe da aparência de Marie enquanto ela descia da carruagem.

Ela estava usando o vestido com o qual havia se casado, e as cores verde e prata caíam-lhe bem; sobre o vestido ela usava um manto de veludo púrpura e seu chapéu grande estava ornado com penas de pavão.

A chuva parara e até o vento estava imóvel. Trombetas soaram uma fanfarra e tambores rufaram; todos reunidos para ver Daquele encontro histórico ovacionaram animadamente. Luís, olhando para sua noiva, sentiu um tremor de emoção trespassálo. Ela certamente não era deformada; não era nem mesmo feia; e com as penas de pavão pairando diante de seu rosto, Luís achou-a linda.

Ele, que nunca sentira interesse por mulheres até aquele momento, descobriu-se invadido por uma excitação, um grande deleite.

Ele era um rei e ela era uma esposa. Sentiu-se satisfeito com o que a vida lhe dera.

Ela teria se ajoelhado, mas ele não lhe permitiu fazê-lo. Luís colocou os braços em torno de sua noiva e a abraçou.

Então eles ficaram parados por alguns segundos, sorrindo um para o outro. Luís, em sua masculinidade nascente, consideroua a mulher mais bonita na qual já tinha posto os olhos.

Quanto a Marie, ela considerou que os relatos sobre Luís não tinham sido exagerados. Ela podia dizer honestamente que jamais vira um jovem tão bonito. E agora, quando Luís sorriu ternamente para ela, saudando-a ao seu país, satisfeito por ele, o maior monarca do mundo, poder dividir seu trono com uma mulher que era pouco mais do que uma mendiga, Marie sentiu que havia conquistado uma felicidade maior do que qualquer uma com a qual havia sonhado.

A segunda cerimónia de casamento foi realizada no dia seguinte na capela do Palácio de Fontainebleau. Esta foi uma ocasião muito mais espetacular do que a primeira. Todos os grandes nobres da corte estavam presentes, pedras preciosas reluzindo em seus mantos. A capela tinha sido decorada para a ocasião e salpicada nas cortinas havia uma miríade de lírios franceses dourados.

Luís liderou a procissão que passou da grande câmara real para a galeria Francisco I e a Escadaria, em cujas laterais estavam posicionados Guardas Suíços.

A beleza de Luís despertou a admiração de todos que o viram caminhar entre os príncipes de sangue real. Era gracioso demais; seus modos, reminescentes de seu bisavô, conforme tanto insistira papa Villeroi, eram tão graciosos, tão reais, que se tornava difícil acreditar que tivesse apenas quinze anos e meio.

A rainha o seguia, o duque de Bourbon a um lado, o duque de Orléans ao outro, enquanto a princesa de Conti, a duquesa-mãe de Bourbon e mademoiselle de Charolais seguravam a cauda de veludo púrpura franjado com arminho.

Essas princesas estavam um pouco ressentidas. Elas - damas reais - segurando a cauda do vestido de noiva da filha do rei da Polónia que, mesmo se não fosse um rei exilado, teria parecido muito abaixo do nível delas!

Elas tinham sido alertadas que precisavam lembrar que Marie Leczinska não era mais meramente filha de Stanislas; ela era rainha da França. Elas estavam tentando lembrar isso agora, mas sua dificuldade em fazê-lo era evidente em suas expressões.

O cardeal de Rohan, grão-esmoler, oficializou o casamento como o fizera em Estrasburgo. Ele chamou a atenção para a grandeza do amado rei da França e para o renome de seus antepassados. Ele declarou que era com grande alegria que presenteava Sua Majestade com uma mulher tão virtuosa e prudente.

Hinos de ação de graças ecoaram pela capela, e Luís, segurando timidamente a mão de sua noiva, liderou o cortejo até os apartamentos reais.

Ali foi oferecido um banquete e, enquanto o rei e a rainha estavam sentados lado a lado, o duque de Mortemart ajoelhouse diante de Marie para presenteá-la com um baú coberto com veludo e bordado em fios de ouro; ele continha jóias que eram chamadas de corbellle - presentes de matrimónio para a rainha dar aos membros de sua casa.

Marie olhou para eles, deliciada. Ela voltou o rosto corado para o de seu esposo e exclamou por simples prazer:

- Nunca em toda a minha vida fui capaz de dar presentes.

Luís, tocado profundamente por essas palavras, segurou a mão de Marie e apertou-a calorosamente.

Ela não era feia; e era boa. Ele estava satisfeito; e naquele momento Luís disse a si mesmo que preferia ter Marie Leczinska por esposa do que qualquer outra mulher no mundo.

Depois do banquete uma peça de Molière foi encenada diante do rei e da rainha para a satisfação de todos, exceto a de Voltaire, que, tendo sido trazido para a corte por madame de Prie, escrevera ele mesmo um entretenimento e estava profundamente desapontado pela preferência ter sido dada a um escritor morto quando um vivente tinha sua reputação para estabelecer.

No dia seguinte todos notaram a mudança no rei. Ele estava extasiadamente feliz, completamente satisfeito. Os cortesãos sorriram gentilmente para ele e maldosamente uns para os outros. O casamento era um sucesso.

Exuberante, e com a rainha sorrindo ao seu lado, Luís chamou seus barbeiros.

- Cortem estes cachos - disse ele. - Não sou mais uma criança.

Então o cabelo adorável foi cortado, e Luís não olhou com remorso para os cachos castanhos que jaziam no chão. Eles assentaram a peruca em sua cabeça. Aquilo surtiu o efeito desejado. Ele agora aparentava ter dezoito ou dezenove anos... mais próximo da idade de sua noiva.

Os dias seguintes foram dedicados à celebração do casamento. Houve exibições de fogos de artifício, iluminações e danças nas ruas que pouco tempo antes haviam sido cenário dos "distúrbios do pão". Houve farta distribuição de vinho, o que significava que o povo podia esquecer suas angústias por algum tempo.

- Nosso pequeno Luís é um marido! - diziam uns aos outros. - Em breve ele dispensará seus ministros e reinará só. Deus o abençoe! Esse será um dia feliz para a França.

Luís era o herói do povo. Os vilões eram o primeiro-ministro e sua amante, e também a criatura deles, Pâris-Duverney, a quem tinham feito ministro das finanças.

Até Voltaire estava feliz. Madame de Prie apresentou-o à rainha e uma de suas peças foi encenada; além disso, uma pensão lhe tinha sido concedida, de modo que sua insatisfação com os procedimentos tinha se extinguido.

Delegações de mercadores foram recebidas na corte; como era usual nessas ocasiões, as mulheres de Lês Halles foram proeminentes. Foram elas que, em suas melhores roupas, trouxeram uma cesta de trufas.

- Coma muitas delas, minha rainha - disse a porta-voz.

- E implore à Sua Majestade que faça o mesmo. Estas trufas [ irão ajudá-los a ter crianças.

Marie graciosamente aceitou as trufas e assegurou à mulher que ela cumpriria seu dever, e que ela rezava, com todo fervor, que não passasse muito tempo antes que ela e o rei pudessem lhes dar um delfim.

Enquanto isso, Luís, explorando a estrada da aventura conjugal, estava ficando cada vez mais satisfeito com Marie. Esta era sua primeira experiência com uma mulher, e ele estava descobrindo em si próprio uma sensualidade exuberante que até agora passara despercebida. Graças a Fleury ele tinha sido mantido, ao contrário de muitos rapazes de sua corte, inocente e quase ignorante do amor carnal. Agora estava exultante porque descobrira uma avenida que lhe parecia oferecer uma excitação ainda maior que a caça ou o jogo.

Ele se sentia profundamente grato à rainha - sua parceira neste prazer; seu êxtase mútuo a envolvia com uma beleza que a Luís parecia deslumbrante. Ao lado dela, todas as outras mulheres eram imperfeitas.

Se algum dos cortesãos de Luís referia-se à beleza de outra mulher, ele respondia:

- Ela não é má, mas comparada à rainha é quase repelente. Fleury estava deliciado com esta situação. Estava feliz por

não ter permitido que o rei conhecesse o prazer carnal antes de seu casamento. Reconhecia que o caso de La Tremouille tinha sido um risco, mas fora superado sem problemas; e agora aqui estava Luís, ardorosamente apaixonado pela sua rainha - a melhor forma de garantir uma união fértil.

Não era necessário esperar que seus espiões lhe dissessem a frequência com que o rei passava a noite com a rainha, porque isso acontecia todas as noites.

Villeroi instilara no rei um respeito pelo protocolo, que não foi esquecido nem mesmo no primeiro calor da paixão. O lever e o coucher, os cerimoniais do levantar e do deitar, eram conduzidas como nos dias de Luís XIV. A rainha primeiro era conduzida até sua cama, e o coucher do rei se dava em seu próprio quarto. Depois que o rei estava devidamente instalado em sua cama e os nobres privilegiados que o haviam assistido no coucher tinham sido dispensados, o rei atravessava a Galerie dês Glaces até o quarto da rainha, acompanhado apenas por seu valet de chambre.

A espada de Luís era pousada ao lado da cama da rainha. Antes de se retirar, a dama de companhia da rainha fechava as cortinas em torno da cama, fechando-a nela com seu esposo.

Pela manhã o rei deixava a cama da rainha e retornava para a grande cama real no quarto Luís XIV para o cerimonial do lever. Esta era uma ocasião que instigava a rivalidade pelo privilégio em dar as roupas a Luís, que eram passadas de mão em mão na ordem de posto dos presentes - até alcançar o próprio rei.

Era uma existência deliciosa. Naqueles dias o rei e a rainha jamais eram vistos fora da companhia um do outro. A rainha o acompanhava às caçadas, e sentava ao seu lado quando eles faziam piqueniques nas florestas durante o verão. O idílio prosseguia durante o inverno quando os passeios de trenó tomavam o lugar dos piqueniques. As pessoas aglomeravam-se para ver o rei e a rainha deslizarem pelo gelo num trenó feito para parecer um grande concha do mar decorada com cupidos abraçados uns aos outros - um casal encantador de amantes para deliciar olhos gálicos.

- Dias bons estão por vir - diziam as pessoas umas às outras. - Dê-lhe um pouco de tempo para ser jovem e apaixonado, deixe-o prolongar um pouco mais sua lua-de-mel. Quando ela terminar, o rei dispensará seus ministros mercenários e governará sozinho. Ele é bom e gentil, e compreenderá os nossos sofrimentos. Longa vida ao rei Luís!

Luís não estava ciente do povo; estava ciente apenas dos encantos de sua Marie e dos deleites do amor carnal.

O prazer de Marie ficou completo quando seu pai compareceu a Fontainebleau. Por mais alegre que seu pai sempre aparentasse ser, Marie sempre vira a nuvem que pairava sobre sua felicidade. Stanislas lamentava constantemente o trono que perdera. Mas agora, garantiu-lhe ele, nada no mundo poderia darlhe mais prazer do que ver a esposa amada do rei.

Ele e a mãe de Marie permaneceram com ela por três dias em Fontainebleau. Até Catheríne estava satisfeita. Eles não precisavam mais lutar contra a pobreza. Não eram sogro e sogra do maior rei na Europa? O esplendor da corte francesa maravilhava-os, e ver Marie em seu centro - não apenas como rainha da França mas também como amada do rei - fazia-os pensar que estavam sonhando e que uma sorte tão repentina não podia ter acontecido com eles.

Luís era gentil com eles. com seus modos, parecia agradecerlhes por terem produzido um ser tão perfeito quanto a sua rainha. Em vez do castelo de Saint-Germain, eles foram mandados para o castelo de Chambord, que Luís estava remobiliando e preparando para os sogros. Enquanto a morada não estivesse pronta, ficariam hospedados em sua residência no castelo de Bourron.

Andes de partirem para Bourron, Stanislas e Catheríne abraçaram sua filha com fervor.

- Não se esqueça de que é o duque de Bourbon quem rege a França - disse Stanislas à filha. - Não se oponha a ele de forma alguma. Lembre-se também de que você deve tudo a madame de Prie.

- Nunca esquecerei isso - murmurou Marie.

- Eles são seus amigos. O rei a ama. Só há uma coisa de que preciso para completar minha felicidade. É um delfim para a França.

E Marie, tão estupefata quanto seus pais com a sorte repentina, tão grata quanto eles por tudo que lhe acontecera, e ciente de que um delfim era desejado por toda a França, estava disposta a cumprir seu dever tão logo pudesse.

 

Foi durante o inverno que Luís levou Marie pela primeira vez até Marly, aquele castelo maravilhoso que Luís XIV construíra entre Versalhes e Saint-Germain.

Marie ficou deliciada com o castelo de Marly, talvez porque fosse bonito demais, instalado entre os bosques e com vista para o rio, talvez porque nessa época estivesse apaixonada pela vida.

Os campos nos arredores eram propensos à boa caça, e todos os dias o rei e sua esposa cavalgavam por eles, retornando à noite para jogos de cartas e outros entretenimentos.

O casal real era sempre acompanhado pelo duque de Bourbon e por madame de Prie. A última fora designada chefe das damas de companhia de Marie. Era agora rotineiro que quem quisesse aproximar-se do rei e da rainha apenas pudesse fazer isso através das boas graças de madame de Prie.

Não estivessem tão absorvidos um pelo outro, Luís e Marie teriam notado que a rainha da corte não era Marie, mas madame de Prie, que embora insistisse que todos observassem as regras estritas do protocolo, não as seguia ela própria.

Madame de Prie entrava e saía do apartamento da rainha sem ser anunciada. Aconselhava a rainha não apenas no que fazer mas no que vestir; e lembrando do conselho do pai de sua própria gratidão, Marie aceitava de bom grado essas sugestões.

Instigada por Luís, Marie jogou desregradamente durante aquelas semanas no castelo de Marly. Ele achou muito engraçado quando, ao contar as dívidas da rainha, descobriu que elas somavam duzentas mil moedas de outro.

- Duzentas mil moedas de ouro! - gritou Marie. - Mas é uma fortuna. Nos dias em Wissembourg poderíamos ter vivido com isso por muito tempo.

Isso deliciou Luís, que contou orgulhoso que ela não precisava preocupar-se em perder duzentas mil moedas de ouro. Para provar isso, eles iriam jogar com a mesma imprudência na noite seguinte.

Certo dia, Marie flagrou três de suas damas - as duquesas de Epernon, Béthune e Tallard - mexericando a um canto, e notou que ao aproximar-se elas ficaram caladas. Naturalmente, Marie estava ansiosa por saber tudo que acontecia na corte, e essas damas, ela acreditava, podiam dizer-lhe muita coisa.

- Vocês não devem se calar quando apareço - disse a elas.

- Gosto de me juntar à diversão.

As damas tentaram parecer inocentes, mas não conseguiram. Quando Marie insistiu em saber do que estavam falando, as damas disseram que conversavam sobre o duque de Richelieu, que, muito bonito, era conhecido como um dos maiores conquistadores de todos os tempos.

Marie, cuja criação em Wissembourg fora muito conservadora, não entendeu de imediato a natureza das aventuras às quais o duque de Richelieu aparentemente se dedicava com tanto ardor.

- Estamos falando sobre o duelo que a marquesa de Nesle travou com madame de Polignac-acabou por explicar madame de Tallard.

- Um duelo entre damas!

- Sim. Foi com pistolas. Ambas estavam desesperadamente apaixonadas pelo duque de Richelieu e decidiram travar um duelo.

- Quão... impudico! - exclamou a rainha. A duquesa de Epernon murmurou:

- Mas, majestade, essas coisas acontecem.

- Espero que jamais tenhamos nada de tão grande desrespeito em nossa corte. Espero que todas as minhas damas vivam virtuosamente e de uma forma que sirva de exemplo a todos. Digam-me, esse tipo de imoralidade ocorre hoje... aqui? - Marie premiu os lábios de uma forma que a fez parecer arrogante. - Preciso falar a esse respeito com madame de Prie.

A duquesa de Béthune se esforçou para não sorrir, mas não conseguiu, e Marie foi tomada por uma suspeita súbita e terrível. Madame de Prie e o duque de Bourbon eram, de fato, muito íntimos. Eram vistos frequentemente na companhia um do outro e pareciam nutrir um grande carinho mútuo.

- Qual é o relacionamento entre o duque de Bourbon e madame de Prie? - perguntou Marie, tensa.

- Ora, madame, é de conhecimento comum que ela é amante dele.

- Mas... madame de Prie tem um marido...

As damas simplesmente continuaram olhando caladas para a rainha.

Marie percebeu que nesta corte deslumbrante decerto aconteciam muitas coisas que ela ignorava por completo.

Ela estava profundamente chocada. Seu primeiro impulso foi chamar madame de Prie, para dizer-lhe que essa associação vergonhosa precisava cessar. Mas isto dizia respeito ao duque de Bourbon, primeiro-ministro da França, e madame de Prie, cujo poder pusera Marie onde ela estava.

Então Marie compreendeu que era necessário ajustar seus princípios. O relacionamento entre essas duas pessoas poderosas era algo que ela precisava aceitar, por mais que o desaprovasse.

Esses dias marcaram o destino de Luís e Marie. Suas vidas estendiam-se diante deles, e para cada um o destino ofereceu uma escolha entre dois caminhos. Para cada um deles foi dada a oportunidade de moldar o destino da França; mas cada um deles era jovem demais, inexperiente demais - no caso de Luís, preguiçoso demais, no caso de Marie, inocente demais - para escolher o caminho que os teria conduzido à glória.

Luís era amado por seu povo. Sua beleza tinha conquistado os corações dos plebeus; seus modos perfeitos encantavam-nos. O povo esperava que ele trouxesse a prosperidade para o país e, como ele era jovem e conquistara seu afeto, não lhe pediam coisas impossíveis. Estavam dispostos a ser pacientes. Tudo que pediam dele era que, quando tivesse idade suficiente para governar, que os governasse bem. Pediam-lhe consideração por seus sofrimentos; pediam que Luís usasse seus talentos para servi-los.

Luís, encantado em ser um esposo, ansiava por desfrutar de prazeres como caça e jogo, e como sempre confiou em seus regentes e tutores para cuidar dos assuntos sérios do reino, tudo fazia para escapar do povo e desfrutar de sua vida. Eles iriam perdoá-lo enquanto fosse jovem, mas já estava crescendo rumo a uma idade de responsabilidade.

Quanto a Marie, Luís estava apaixonado por ela e preparado para se deixar guiar pela esposa. Nesta época, quando podia dar ao marido a satisfação sexual que ele desejava, Marie poderia ter-se estabelecido como sua confidente e conselheira para o resto da vida. Era verdade que um homem de desejo insaciável, como Luís já dava sinais de estar se tornando, não poderia satisfazer-se com uma só mulher; uma mulher experiente na vida teria percebido isto e consolidado sua posição enquanto tinha oportunidade de fazê-lo.

Marie, mal aconselhada por seus pais, julgava erroneamente não apenas o caráter do marido e suas próprias possibilidades, como também a verdadeira qualidade dos homens que procuravam governar o rei.

Marie acreditava na inteligência astuta do duque de Bourbon e atendia às vontades dele e da sua amante em todos os aspectos possíveis. Contudo, ignorava completamente o homem por quem Luís nutria mais respeito e afeto, e que era inteligente o bastante para compreender a situação do reino e ter para com ele uma atitude mais altruísta: Fleury, o bispo de Fréjus.

Contudo, Marie sabia que o duque de Bourbon e seu braço direito, Pâris-Duverney, juntamente com madame de Prie, procuravam por uma oportunidade para derrubar Fleury de sua posição porque era evidente que ele estava tentando obter uma influência maior sobre o rei. Por exemplo, era impossível falar a sós com Luís sobre assuntos do reino; Fleury sempre tomava como seu dever estar presente.

Madame de Prie comentou para a rainha que o rei era agora um esposo e de idade suficiente para agir sem a presença contínua de seu tutor. Marie declarou que ela acreditava que Luís tinha um grande afeto e também muito respeito por monsieur de Fleury.

- Sua Majestade formará um hábito - disse madame de Prie. -Monsieur de Fleury pertence aos dias da meninice de Sua Majestade. E Sua Majestade não está disposto a desalojá-lo de seu coração.

- O rei tem um coração gentil e leal - disse Marie, complacente, porque essa qualidade no rei agradava-a muitíssimo.

Na vez seguinte em que se viu a sós com o rei, Marie falou sobre seus ministros e comentou subitamente: i

- Luís, o quanto você gosta de monsieur de Fleury?

- Muito - foi a resposta do rei.

- E do duque de Bourbon?

- Bem... - Luís deu com os ombros. - O bastante.

Os tons com que falou sobre os dois homens foram tão diferentes que Marie deveria ter reconhecido a sabedoria em fortalecer seu relacionamento com o tutor, mesmo se isso significasse irritar o duque de Bourbon e sua amante. Mas Marie não aprendera diplomacia no lar de seu pai exilado e tinha pouco entendimento da importância dos tons e das insinuações na corte francesa.

Madame de Prie concebeu um plano cujo resultado decerto seria a expulsão de Fleury da corte.

- Meu senhor, esse homem faz de tudo para obstruir o seu caminho-disse madame de Prie ao amante.-Ele é astuto, mas o que deseja é muito claro. Ele deseja tomar o seu lugar. Não irei me sentir feliz até monsieur de Fleury receber sua lettre de cachei.

- Como a senhora planeja removê-lo? Não esqueça de que ele possui a confiança do rei.

- Pretendo removê-lo por intermédio da rainha. Bourbon sorriu. Sempre ficava impressionado com os planos urdidos por sua amante.

- O senhor tem aquela carta do cardeal de Polignac-prosseguiu madame de Prie. - Essa carta é um ataque direto contra Fleury. Ela o mostra sob uma luz muito desfavorável, não concorda? E há verdade nela. O homem deseja duas coisas: conseguir seu chapéu de cardeal e reger a França. Ele quer ser outro cardeal Richelieu ou Mazarino. Aquela carta deve ser mostrada ao rei quando Fleury não estiver presente para se defender. Então o senhor poderia discutir as ambições de Fleury com Luís, fazê-lo compreender exatamente quais são os propósitos desse homem.

- - Mas como estar com Luís sem a presença de Fleury? O problema é esse.

- Creio que nossa querida rainha pode ajudar nesse sentido - disse madame de Prie. - Afinal de contas, ela nos deve tudo.

- O que a senhora propõe?

- Que a rainha peça a Luís que vá aos seus aposentos. Quando ele chegar, o senhor estará lá com a carta. E a dará a ele.

- E se Fleury ouvir isso e tentar juntar-se a nós?

- Sua presença nos aposentos da rainha será recusada. Ela não gosta muito dele, o senhor sabe disso. Ela concordará prontamente. Repito, ela não nos deve isso?

- Minha amada, a senhora é inteligente como uma raposa.

- É preciso ter inteligência, mon ami, primeiro para alcançar um posto elevado nesta corte... e depois para mantê-lo.

Luís, tendo sido convidado pela rainha ao seu quarto, ficou estarrecido em encontrar ali o duque de Bourbon, e sua irritação se misturou com surpresa quando o duque tirou um papel do bolso, dizendo que aquilo era de interesse do rei.

Luís leu as acusações contra Fleury. Considerando as acusações falsas, Luís ficou irritado por ter sido induzido a aceitar e ler um documento como aquele em particular. Se o duque de Bourbon queria apresentar uma carta como aquela a ele deveria tê-lo feito na câmara do Conselho, quando Fleury estaria presente para responder a qualquer acusação contra sua pessoa.

Luís raramente demonstrava raiva e conteve a que sentia agora. Assim, simplesmente dobrou o papel e o devolveu ao duque de Bourbon.

- Posso perguntar o que Vossa Majestade pensa dos sentimentos expressados nesta carta? - indagou o duque.

- Nada - respondeu secamente o rei.

- Mas... sire... Se essas acusações são corretas, Vossa Majestade não tem certas ordens a dar?

Caso estivesse presente, madame de Prie teria lançado um olhar de aviso ao seu amante. O duque estava sugerindo que Luís era incapaz de tomar suas próprias decisões e deveria aceitar o conselho de seus ministros, como fizera antes de alcançar a maioridade.

- Minhas ordens são de que a situação deve permanecer como se encontra agora - retorquiu o rei.

A face de Bourbon expressou sua preocupação. O coração de Marie tinha começado a bater rápido com apreensão, porque o rei a tinha incluído em seus olhares frios.

- Vossa... Vossa Majestade está descontente... e comigo?

- murmurou Bourbon.

- Estou - retorquiu o rei.

- Vossa... Vossa Majestade continua a nutrir confiança máxima em monsieur de Fleury?

- Exatamente.

O duque agora suava de apreensão.

- Sire, eu daria minha vida para servi-lo. Se eu tiver feito qualquer coisa errada, rogo por seu perdão.

Luís detestava cenas. Elas o cansavam. Ele raramente repreendia qualquer pessoa; quando uma reprimenda se fazia necessária, ele providenciava para que outros a administrassem. Estava irritado com a rainha por tê-lo colocado nessa posição. Mas em vez de demonstrar sua irritação com ambos, ele caminhou rapidamente até a porta.

Marie, tremendo de medo, estendeu a mão para tocar o braço de Luís quando ele passou por ela. Luís fingiu não perceber.

Fleury tinha amigos na corte. Havia algumas pessoas argutas que compreendiam o afeto e o respeito que esse homem despertava em seu pupilo. O duque de Bourbon e sua amante ambiciosa não podiam reinar supremos para sempre. Eles só poderiam manter seu poder enquanto o rei fosse jovem demais, inexperiente demais para reconhecer a inutilidade deles.

Portanto, quando Bourbon visitou a rainha, e a rainha pediu ao rei para juntar-se a eles, o evento foi prontamente reportado a Fleury que, ciente da existência da carta de Polignac e deduzindo o projeto de Bourbon, foi imediatamente aos aposentos da rainha e exigiu ser levado à sua presença.

- Monsieur de Fleury, o rei está com a rainha, e monsieur duque está com eles - foi a resposta. - Foram dadas ordens de que ninguém, nem mesmo o senhor, deve entrar.

Isto era um insulto que não podia ser tolerado. Se o rei dera tais ordens, Fleury jamais concretizaria sua ambição de se tornar primeiro-ministro da França. Por outro lado, era provável que isto fosse o resultado de um dos planos de Bourbon para abalar o relacionamento do rei com seu tutor, e portanto urgia agir prontamente.

Fleury, demonstrando uma astúcia superior à de Bourbon, calculou que se Bourbon tivesse vencido, ele, Fleury, seria expulso da corte; portanto, não perderia nada e manteria sua dignidade se partisse por vontade própria.

Se, por outro lado, o rei se recusasse a ouvir as acusações de Bourbon, ele ficaria mais furioso do que nunca com o duque se Fleury partisse.

Assim, Fleury correu para seus aposentos e escreveu uma carta ao rei. Na carta, Fleury dizia que se os seus conselhos estavam excluídos das considerações de Sua Majestade, então aparentemente seus serviços não eram mais necessários. Portanto, ele iria retirar-se da corte para viver em paz com os sulpicianos de Issy. Ele estava partindo imediatamente para evitar a dor da despedida.

Quando esta carta foi levada ao rei, Luís ficou estupefato. Fleury partira! Mas como ele poderia conduzir seus assuntos sem Fleury? Ele recorria ao seu tutor em todas as questões importantes.

Luís estava alarmado. Ele se trancou em seus aposentos e chorou amargamente. Praguejou contra o duque de Bourbon e sua amante ardilosa. E praguejou também contra a rainha, cuja estupidez possibilitara aquilo.

Foi a primeira vez em que viu Marie com olhos críticos. Não fosse a ignorância de Marie em protocolo da corte, ele não estaria diante dessa controvérsia terrível com a qual precisava lidar. Ele tinha dezesseis anos, carecia da experiência tão necessária numa situação como esta, e temia que Marie não apenas tivesse permitido que Bourbon a usasse em suas intrigas mas também se envolvido com elas.

- Mulher imbecil! - murmurou; e ficou impressionado consigo mesmo por ver assim a rainha que, há até bem pouco tempo, parecia perfeita aos seus olhos.

O rei não podia permanecer trancado em seus aposentos por muito tempo. Ele precisava resolver como agir e, como estava inseguro, mandou chamar um homem em quem depositava confiança. Este era monsieurâe Mortemart, que era o grão-camarista da alcova real.

Luís instruiu monsieur de Mortemart a fechar a porta e dispensar todos seus subordinados; queria conversar com ele sobre um assunto particular.

- A rainha está envolvida - explicou a Mortemart. Monsieur duque é o primeiro-ministro e monsieur Fleury é meramente o meu tutor.

- Mas não importa se monsieur duque é o primeiro-ministro e monsieur Fleury é meramente o seu tutor! - exclamou Mortemart. - O senhor é o rei.

Mortemart era um daqueles cortesãos astutos que reconheciam os poderes superiores de Fleury, e portanto estava preparado para voltar o tutor contra o primeiro-ministro.

- No meu lugar, o que você faria? - perguntou Luís.

- Exigiria a volta imediata de monsieur Fleury. Eu obrigaria... creio que obrigaria... monsieur duque a escrever para ele pedindo que retorne.

Luís sorriu lentamente.

- E creio que gosto do seu conselho - disse o rei a Mortemart.

Marie estava assustada. Fleury retornara à corte, e o rei mostrava abertamente seu afeto pelo velho e sua frieza para com o duque e sua amante.

E não era tudo. A atitude do rei em relação a Marie mudara. com frequência ele olhava para ela criticamente, como se estivesse descobrindo certos fatos sobre ela que não notara antes.

Marie sabia que não era bonita; ela sempre compreendera que era desprovida de atrativos, antes de Luís tê-la assegurado do contrário.

Ele ainda passava suas noites com ela, deixando o quarto real depois do coucher cerimonial, seu valei de chambre carregando sua espada e pousando-a ao lado da cama antes de ajudar o rei a despir a camisola e os chinelos. Mas ocorrera uma mudança na forma como Luís fazia amor. Ele mantinha seu fascínio pelo ato do amor carnal, mas agora era como se tivesse feito uma nova descoberta. Era o ato em si que o interessava; sua excitação tinha pouco a ver com a mulher com quem compartilhava a cama. Foram sua juventude e inexperiência, aliadas a um despertar repentino para a masculinidade, que o tinham levado a pensar o contrário.

A paixão de Luís fora contaminada por uma frieza terrível. E a rainha estava terrivelmente assustada.

Fleury não ficaria satisfeito antes de expulsar da corte todos os seus inimigos. Não queria incluir a rainha entre eles porque não podia expulsá-la. Quase sentia pena de Marie; apenas uma mulher realmente estúpida permaneceria ao lado do duque quando qualquer pessoa sensata na corte via que ele estava em declínio.

E ele sabia que Bourbon e sua amante não nutriam qualquer afeto por Marie. Estavam usando-a agora como a tinham usado desde o começo; e ela, pobre idiota, parecia incapaz de ver isso.

Fleury decidiu que não havia necessidade de se indispor com a rainha. Antes ele pensava que Marie podia tornar-se influente na corte; agora sabia que esse dia jamais iria chegar. Luís estava se afastando de Marie; muito em breve procuraria outra companhia de alcova. Fleury torcia para que o rei não adotasse apenas uma amante. Era um mal necessário, mas bem menos perigoso no plural do que no singular.

Ele estava concentrando todos os seus esforços na tentativa de despejar Bourbon da corte. Era hora de Fleury assumir o leme, agora que tinha prova da lealdade do rei para com ele. Quanto mais cedo Bourbon, Pâris-Duverney e madame de Prie fossem relegados à obscuridade, melhor.

Marie pediu o conselho do velho marechal Villars, em quem acreditava poder confiar.

- O rei já me amou - disse Marie, a voz embargada em lágrimas. - Temo que já não me ame.

O velho general olhou tristemente para Marie.

- Madame, está claro que os sentimentos do rei para com a senhora mudaram. A senhora não deve se mostrar abatida por causa disso. Lembre-se de que há muitas mulheres na corte atentas para o tipo de oportunidade que uma situação como essa oferece.

A assustada rainha não pôde resistir à tentação de recorrer ao próprio Fleury.

- Madame, a senhora claramente apoia aqueles que não agradam ao rei - repreendeu-a o bispo.

- O senhor está se referindo a monsieur duque e a madame de Prie?

- Esses dois e também monsieur Pâris-Duverney.

- Mas o que eles fizeram? Por que devo subitamente deixar de demonstrar afeto pelos meus amigos? - choramingou Marie.

- Pâris-Duverney reduziu o valor da moeda. Suas leis criaram caos nas fábricas. O duque e sua amante são absolutamente egoístas. Eles não buscam prosperidade para a França, mas apenas para si próprios.

- Como eu poderia me voltar contra elesquando foram meus amigos?

Fleury abriu um sorriso condescendente.

- Eles podem ter sido seus amigos um dia, madame. Não são mais.

Fleury estava insinuando que, não fosse por eles e sua política egoísta, a rainha da França não seria agora Marie Leczinska.

É verdade, pensou Marie.

Seu casamento de conto de fadas fora resultado da determinação de duas pessoas muito ambiciosas em tomar o poder.

Marie pousou a mão no braço de Fleury, apelando por seu auxílio.

- Eu... eu descobri que o rei me trata cada vez com mais frieza.

Fleury fitou a rainha, e havia um pouco de piedade em seus olhos.

- Isso, madame, eu não posso mudar.

Marie não tinha a quem pedir ajuda. Ela não podia contar aos pais o que estava acontecendo com seu casamento. Eles acreditavam que o conto de fadas não tinha acabado; acreditavam que sua filha e o rei iriam ser "felizes para sempre". Não lhes causava dano continuar acreditando nisso; como no caso de Fleury, eles não podiam fazer Luís apaixonar-se por ela novamente.

A corte estava esperando. Os cortesãos sabiam que não podia ser postergado por muito tempo, estando Fleury tão impaciente e Luís cada vez mais ligado ao seu conselheiro.

O povo estava inquieto. Os plebeus demonstravam claramente sua insatisfação com o governo do duque e sua amante. Todos os dias havia protestos em Paris. Os impostos pesados precisavam ser abolidos. O preço do pão precisava baixar. A culpa dos problemas sociais era sempre atribuída ao duque de Bourbon, sua amante, ou o ministro das Finanças.

Subitamente o rei pareceu esquecer sua inimizade para com o duque de Bourbon. Passou a recebê-lo com mais frequência e de forma mais amistosa.

Num belo dia de verão, Luís decidiu visitar Rambouillet porque queria caçar durante alguns dias.

A carruagem que o levaria até lá chegou. Quando estava prestes a embarcar, Luís viu o duque de Bourbon entre os cortesãos.

- Junte-se a mim em Rambouillet - disse a Bourbon, sorrindo afavelmente. - Não se atrase, iremos esperá-lo para o jantar.

O rosto de Bourbon corou de prazer; seus olhos brilharam ao cruzar com os de Fleury e seus outros inimigos. Vejam, ele parecia dizer, vocês pensaram que o meu fim tinha chegado. Esqueceram que sou um príncipe da Casa Real... o rei e eu somos unidos por laços de sangue. Não posso ser dispensado facilmente.

A carruagem do rei partiu. Bourbon estava se preparando para entrar na sua quando o duque de Charost se aproximou.

- Monsieur duque, Sua Majestade ordenou-me entregar-lhe isto.

Bourbon olhou para o papel na mão de Charost e uma suspeita terrível passou por sua cabeça. Pegou o papel e seu rosto empalideceu ao descobrir que a suspeita tinha fundamento. A carta dizia:

"Eu ordeno ao senhor que se retire para Chantilly. Lá permanecerá até segunda ordem. A desobediência será punida. Luís."

Esta era sua lettre de cachei, a dispensa da corte.

Foi a primeira indicação dos métodos de Luís, de sua determinação em evitar situações desagradáveis.

Aqueles que tinham visto o sorriso amistoso dirigido por Luís ao duque antes de subir em sua carruagem ficaram estarrecidos com o comportamento do rei. Como ele podia agir tão amigavelmente, sabendo que o pior golpe que podia ser desferido contra um homem ambicioso estava prestes a cair sobre Bourbon?

A rainha ficou arrasada.

Seus amigos dispensados da corte! Ela teria se sentido desleal se não tivesse intercedido por eles.

O rei ouviu-a com frieza.

- Você está perdendo o seu tempo.

- Mas Luís... eles eram meus amigos!

- Você foi insensata ao confiar sua amizade a pessoas como eles.

- Mas... eles foram tão bons comigo! Quando cheguei à corte...

- Você chegou à corte como rainha. Se tivesse demonstrado a dignidade exigida por seu posto, não teria permitido que essas pessoas a dominassem. Você precisa compreender que o duque de Bourbon não é mais primeiro-ministro. Não creio que madame de Prie permanecerá por muito tempo na corte. E você, Marie, ouvirá o que monsieur de Fréjus lhe disser, porque ele comunicará meus desejos a você.

- Mas Luís, você certamente comunicará seus desejos a mim.

Luís sorriu para ela, quase ternamente, não porque sentisse ternura por ela, mas porque podia sentir sua histeria crescente. O rei acariciou o braço de sua esposa.

- Está tudo bem - disse a ela. - Livramos a corte daqueles que causavam danos ao reino. O povo ficará satisfeito por termos agido com firmeza.

Marie controlou seus sentimentos e abaixou a cabeça.

Não haveria como retornar à sua lua-de-mel de conto de fadas?

Embora Fleury não tenha recebido o título de primeiro-ministro, ele certamente assumiu o poder. Seus primeiros atos foram mandar Pâris-Duverney para a Bastilha e banir madame de Prie ao seu castelo em Courve-pin, que ficava na Normandia. E ela foi, praguejando contra Fleury e seu destino.

Um chapéu de cardeal chegou de Roma para o bispo de Fréjus... uma honra adicional. Graças à sua estratégia paciente, Fleury finalmente triunfou.

O povo aplaudiu sua ascensão ao poder, porque a primeira lei que ele revogou foi a taxa impopular conhecida como Cinquantième. Eles acreditaram que, com a dispensa de Bourbon e sua amante, a prosperidade retornaria à França; e o dia em que o séquito do duque partiu para Chantilly foi de festa por toda a capital.

Marie compensou o sofrimento causado pela perda do amor de seu marido com sua paixão por comida. Seu apetite estarrecia a todos. Ela se sentava à mesa para comer calmamente, porque não deixava que nada perturbasse suas refeições, e a quantidade de alimento que consumia era fenomenal.

Houve uma ocasião em que, tendo comido 180 ostras e bebido uma grande quantidade de cerveja, Marie sofreu uma indigestão tão aguda que se acreditou que havia contraído uma febre.

Luís estava caçando e chegou ao palácio muito cansado e faminto. Depois de consumir uma grande quantidade de figos, nozes e leite, ele também adoeceu.

O rumor se espalhou por Paris.

"O rei e a rainha estão febris! Ambos estão doentes! Terá sido veneno?"

O rei se recuperou rapidamente, mas o mesmo não aconteceu com Marie, e sua doença se postergou por vários dias.

Durante essa época, Luís visitou-a. Apiedado por vê-la tão doente, foi tomado por uma ternura imensa por Marie. Na verdade, jamais gostara tanto dela quanto agora.

Os ânimos de Marie se levantaram. Ela acreditou que agora que o duque de Bourbon e madame de Prie estavam exilados em segurança e o cardeal Fleury colocava o país novamente na trilha da prosperidade, Luís esqueceria sua decepção com ela.

Enquanto Luís estava com ela era fácil para Marie acreditar nisso. No final daquele ano, a boa notícia se espalhou pelo país: a rainha estava grávida.

Os dois maiores desejos de Fleury eram manter a paz e conter os gastos do país. Embora tivesse 72 anos ao alcançar o poder, sua vitalidade era surpreendente e ele parecia considerar que tinha uns bons vinte anos de trabalho pela frente. Os cortesãos referiam-se a ele sob a alcunha de Sua Eternidade.

Tendo dispensado alguns dos apoiadores do duque de Bourbon, Fleury escolheu seus próprios ministros com cuidado. Os dois principais homens de Fleury eram Chauvelin, a quem ele fez Protetor dos Selos e secretário do Estado para as Relações Exteriores, e Orry, que ele nomeou tesoureiro-geral. Esses dois homens apoiavam Fleury ferreamente, e formavam um trio formidável - Fleury astuto e cauteloso, Chauvelin detentor de uma inteligência sagaz e uma língua satírica, e Orry um homem altivo que era capaz de dominar até o mais corajoso dos homens com um simples olhar.

Fleury sabia que não podia ter dois homens melhores a seu serviço do que Maurepas e Saint Florentin, e manteve esses dois em seus respectivos postos.

Fleury tinha inimigos que, pelas costas, comparavam-no cinicamente a dois outros grandes cardeais que haviam governado a França - Richelieu e Mazarino.

Quanta diferença!, diziam sarcásticos. , Eles recordavam a magnificência desses cardeais do passado e a comparavam com o modo como Fleury vivia. Dizia-se que seupetit-coucherera o cerimonial mais ridículo já testemunhado em Versalhes. Fleury entrava em seu gabinete - ao qual afluíam todos que queriam pedir favores ao homem mais poderoso da França - e despia ele mesmo suas roupas; em seguida dobrava-as como se precisasse tomar o máximo de cuidado com esses trajes simples; depois colocava sua velha batina e penteava lentamente a peruca de cabelos brancos (ele não possuía mais do que quatro perucas, diziam os cortesãos), enquanto conversava com aqueles que o tinham ido ver.

Ele mantinha uma mesa livre, que era necessária ao seu posto, mas o mesmo prato era sempre servido nela, e frequentemente não havia o suficiente para todos que se reuniam ali. Ao ser reprochado diretamente por isso, ele respondia:

- Prata e ouro não caem das árvores como as folhas no outono.

Seu plano principal era restaurar as boas relações entre França e Espanha, que naturalmente haviam-se deteriorado desde que a pequena infanta fora mandada para casa de forma tão insultuosa para abrir caminho para Marie Leczinska. Ele se apressou em deixar claro para a Espanha que ele, Fleury, não tivera qualquer relação com esse incidente lamentável.

Luís acompanhava os atos do homem que, embora não portasse o título de primeiro-ministro da França, era exatamente isso. O rei sentia-se feliz por sua certeza de que a administração do reino estava em mãos tão capazes. Assim, podia entregar-se de consciência limpa a atividades que mais lhe apeteciam, como caça e jogo de cartas.

Fazia calor na alcova. Lá fora o sol de agosto deitava seus raios sobre as pessoas reunidas à espera das notícias. Muitos plebeus tinham cercado o palácio e até adentrado a alcova da rainha; era privilégio do povo testemunhar o nascimento de crianças da realeza.

Luís estava profundamente emocionado. Esta era outra experiência nova. Estava prestes a tornar-se pai, e exultava com isso.

Ele esqueceu sua irritação com a rainha. Pobre Marie, ela tinha sido iludida por aquela mulher ardilosa, madame de Prie. Não devia culpá-la; ela chegara à corte sem qualquer experiência com mulheres assim. Pobre Marie! E agora ela ia dar um herdeiro para Luís e a França.

Na cama, embora sofresse as dores do parto, Marie sentia-se intensamente feliz. Estava prestes a provar que podia cumprir seu dever para com o rei e a França. A forma como Luís a tratava tinha mudado. Ele falava animadamente da criança que em breve faria sua aparição.

Luís referia-se ao bebé como "Ele".

- Que a criança seja um delfim - rezava Marie.

Ela sabia que seu pai e sua mãe, todos aqueles que a amavam, estavam torcendo por ela. Marie acreditava que se pudesse produzir um delfim reconquistaria todo o êxtase que fora dela ao chegar à França.

- Um delfim! - sussurrava, enquanto as parteiras enxugavam o suor de seu semblante. - Dê-me um delfim.

Toda Paris celebrava. Os fogos de artifício eram magníficos; as igrejas estavam cheias de pessoas que tinham ido dar graças a Deus. Das igrejas, os plebeus corriam para a Comédie Française e para a Opera de Paris, porque nessas ocasiões de regozijo os atores e a administração tradicionalmente realizavam espetáculos.gratuitos.

Os parisienses aproveitavam todas as oportunidades para celebrar; mas a alegria não estava tão intensa quanto se as comemorações fossem por um delfim.

- Ora, eles ainda são jovens - diziam os cidadãos filosóficos. - Têm todo o tempo do mundo; e ao menos a rainha demonstrou que é fértil.

A plebe aglomerou-se em torno do palácio e gritou por seu rei. Quando ele apareceu na sacada, um bebé em cada braço, a multidão ovacionou.

Duas menininhas! Era quase tão bom quanto um delfim; e um delfim viria no devido tempo.

- Longa vida ao rei! - gritava o povo. - Longa vida às madames Première e Seconde!

Os gritos vinham de toda Paris. Luís, caminhando para cima e para baixo pelos aposentos, uma menininha em cada braço, ouvia o regozijo e sorriu para a esposa.

- Creio que o povo está satisfeito com madame LouiseElisabeth e madame Anne-Henriette. Ouviu-os, Marie? Eles estão rogando por outro vislumbre de madame Première e madame Seconde.

- Você... está satisfeito?-perguntou ansiosamente Marie. Luís deitou um dos bebés nos braços de Marie e gentilmente tocou a face do outro.

- Quando olho estas duas criaturinhas, não sinto qualquer vontade de mudá-las... mesmo por um delfim. Ademais!... - Seu sorriso foi afetuoso. -... o próximo será um delfim!

Assim, Marie pôde fechar os olhos, para mergulhar num sono de exaustão, profundamente satisfeita, acreditando que a vida que se estendia à sua frente seria bondosa com suas filhas e seu esposo amoroso.

O duque de Bourbon fazia esforços frenéticos para retornar à corte. Sua punição fora severa demais. A corte tinha sido sua vida, e ser forçado a viver no campo sem a companhia de madame de Prie era realmente difícil de suportar; mas um tormento adicional lhe fora infligido. Ele, cujo grande prazer era a caça, tam- bem fora proibido de caçar.

Bourbon estava desolado e disposto a humilhar-se para reaver sua posição. Isto era o que Fleury e o rei tinham desejado para ele; era gratificante ver o duque, outrora arrogante, humilde como um cordeiro.

Bourbon estava constantemente apelando aos nobres da corte para usarem sua influência para ao menos rescindir o veto à caça, enquanto em Chantilly ele lamentava em altos brados seu destino e passava o tempo planejando como escapar desta privação de todas as coisas que tinham lhe dado grande prazer em sua vida.

com o tempo, o duque de Bourbon concretizou seus desejos, conseguindo-os através de seu casamento com Charlotte de Hesse-Rheinfels - que, agradando o rei e Fleury, resultou na sua volta à corte.

Madame de Prie detinha uma dignidade bem maior que a de seu amante.

Em seu castelo na Normandia, ela tentou reunir ao seu redor um círculo de intelectuais e escritores, e quantos cortesãos ela pudesse trazer de Versalhes. Ela queria tornar seu círculo renomado e até temido na corte.

Desprezando a fraqueza de seu amante Bourbon, e compreendendo que ele lhe havia escapado, assumiu um novo amante

- um jovem cavalheiro do campo, detentor de grande encanto pessoal.

- Estava sempre animada e parecia feliz, mas pensava apenas na corte e sonhava em voltar a ser o seu membro mais reluzente. Passava seus dias planejando festas e escrevendo cartas para seu amigo, o mulherengo duque de Richelieu, que estava afastado, numa embaixada em Viena.

Determinada a atrair atenção para si, fingiu ser uma profetisa e previu a própria morte, mas ninguém acreditou nela, porque ela era extremamente bela, cheia de vitalidade e com apenas 27 anos de idade.

- Não obstante, meu fim está próximo - declarou. - Sinto essas coisas, eu sei.

Ela continuou a viver alegremente, adorada por seu amante, escrevendo versos e cartas, oferecendo uma festa magnífica atrás da outra.

Quando estava próximo o dia para o qual profetizara sua morte, ela viu olhares céticos nos olhos de seus amigos, e decidiu dar um grande banquete três dias antes do anunciado para o seu fim. Foi a mais brilhante de todas as suas festas. Ela leu seus

versos mais recentes para seus convidados e disse-lhes que aquele era um banquete de despedida.

Seu amante implorou-lhe que não brincasse com um assunto tão sério, mas sua resposta foi tirar um anel de diamante do dedo e dá-lo a ele.

- Vale uma pequena fortuna - disse. - É seu, como uma lembrança minha. Tenho outros presentes para você, mon ami. Diamantes e outras pedras preciosas. Eles não me serão úteis para onde vou.

Seus convidados brincaram com ela.

- Chega de falar de morte - disseram. - Você dará muito mais festas como esta.

O amante de madame de Prie tentou devolver-lhe o anel, mas ela não o aceitou, e dois dias depois ela lhe empurrou mais jóias.

- Agora saia, porque quero ficar sozinha.

Ele sempre a obedecera, e assim o fez agora. Ele sorriu ternamente para ela e disse:

- Au revolr, minha querida. Mas ela respondeu:

- Adieu,

No dia seguinte - aquele que ela indicara como sendo o seu último na Terra - madame de Prie trancou-se sozinha em seus aposentos e pensou no passado: em toda a ambição e glória que tinham sido suas e que nunca mais conheceria.

Ela se serviu de uma taça de vinho e incluiu nela uma dose de veneno.

Quando suas criadas entraram no quarto encontraram-na morta.

Stanislas e sua esposa vieram de Chambord para Versalhes.

O rei deposto da Polónia abraçou sua filha com lágrimas nos olhos. A rainha Catherine observou-os com recato: ela nunca fora dada a demonstrações de afeto como esses dois. Ela acreditava ser mais realista que o esposo e a filha.

Stanislas, braço dado com a filha, conduziu-a até um assento de janela. com os braços ainda entrelaçados, sentaram-se.

- E como é o sentimento do rei para com você agora, minha querida filha?

- Tão amoroso, pai! É como se fosse uma segunda lua-de-mel.

O alívio de Stanislas foi óbvio.

- Como fico feliz em ouvir isso! Tive alguns momentos de ansiedade. Na época da dispensa do duque de Bourbon...

- Eu sei, pai - disse Marie. - Luís estava muito zangado naquela época.

- A corte inteira esperava que ele tomasse uma amante. Mas ele não o fez.

- Eu não teria suportado isso - disse Marie diretamente. O pai encostou a cabeça na dela e disse:

- Mas se essa situação vier a acontecer, minha criança, você deverá enfrentá-la de queixo erguido.

Seu semblante já estava levemente enrugado. Ele estava constrangido pela presença da esposa; não queria que ela lembrasse dos seus pecadilhos, porque ele próprio considerava impossível viver sem mulheres. Sua esposa era uma mulher muito recatada e ele temia que Marie - por mais que a amasse - fosse igual.

- Luís é jovem e viril - murmurou Stanislas. - Situações como essa serão inevitáveis.

Marie riu.

- Tenho uma coisa para contar-lhe, pai.

Stanislas tomou as mãos de Marie nas suas e as beijou.

- Novamente? - perguntou.

- Sim, pai. Já estou grávida.

- São notícias excelentes. Rezaremos para que desta vez você dê à luz um delfim.

- Luís está encantado! - exclamou Marie.

- Mantenha-o assim, minha criança. E lembre-se: quanto mais filhos uma rainha possui, mais forte a sua posição. Você precisa ter muitos filhos, porque crianças adoecem e morrem facilmente. Um filho... dois... três... você nunca tem filhos demais.

Marie fez que sim com a cabeça.

- Será assim - disse ela. - É o que eu e Luís queremos. Os bebés foram trazidos, e madame Première e madame

Seconde chutaram suas perninhas gorduchas e deram gritinhos, para o deleite de todos que estavam ali.

Um pouco mais tarde o rei se juntou a eles, e seu orgulho por suas filhas era óbvio.

Stanislas, observando Luís e Marie juntos, rezou para que Marie tomasse a atitude certa quando as amantes aparecessem... porque elas inevitavelmente apareceriam.

Ali estava ele, o belo rei da França - suas feições delicadas ao ponto de serem quase femininas; ainda assim, havia uma certa sensualidade começando a alvorecer naquele rosto bonito. Como era gracioso, como eram perfeitos sua postura e modos! Até Stanislas podia ver que Marie parecia tosca ao lado dele, carecendo de sua graça, parecendo mais a filha de um comerciante próspero que a filha de um rei.

Que ela encontre felicidade em suas crianças, e aceite com resignação o que a sorte lhe trouxer, pensou Stanislas.

Porque essa seria a única maneira com que Marie Leczinska conseguiria manter-se firme no trono da França.

 

Toda a França comemorava, porque num belo dia de setembro do ano de 1729 a rainha deu à luz o delfim.

A criança foi duplamente bem recebida, porque o bebé que nascera no ano seguinte à chegada das gémeas fora uma menina

- Louise-Marie, madame Troisième.

A rainha emergiu triunfal da provação. Ela mostrara ao povo que podia parir filhos - em 1727, as gémeas, em 1728, madame Troisième, e agora em 1729 o delfim. Quem podia pedir mais do que isso?

Os sinos repicavam por toda Paris e o povo estava determinado a fazer essas celebrações superarem aquelas que aconteceram em honra das meninas. Os fogos de artifício eram mais deslumbrantes, as iluminações mais brilhantes. Assim que a noite caiu, barcos portando luzes singraram o rio e o povo dançou e cantou nas ruas.

Quando o rei foi à catedral de Notre-Dame para a missa de ação de graças, o povo ovacionou-o com mais fervor do que nunca. Eles estavam deliciados com seu rei - bonito e gracioso, tinha provado novamente a sua virilidade. Eles não tinham aprovado quando uma criatura tão divina casara-se com uma mulher desprovida de atrativos ou importância, mas o casamento revelara-se bem-sucedido. Quatro crianças em três anos! Era como se a Providência tivesse enviado as gémeas como um sinal da fertilidade da rainha.

Luís insistiu para que o menininho tivesse como governanta a pessoa que ele considerava mais adequada à tarefa, uma a quem ele amara por toda a vida: madame de Ventadour.

E ao tomar a criança em seus braços, imediatamente depois de seu batismo pelo cardeal de Rohan, madame de Ventadour olhou para a pequena figura com o laço de Saint-Esprit envolvendo seu corpo e chorou. Porque, como ela disse, era como se o seu querido fosse mais uma vez um bebé.

Os anos seguintes transcorreram agradáveis para o rei, e um pouco menos para a rainha.

Ela estava cada vez mais privada da sociedade do rei. Percebeu que não encontrava felicidade no meio dos amigos do esposo. Havia muita coisa na corte que chocava Marie.

O rei era um esposo fiel - embora exigente. Mas, a despeito disso, a moral da corte era ultrajante aos olhos da rainha.

Um dos líderes era Louis Armand du Plessis, o duque de Richelieu, notório por seus casos amorosos e que enchia as paredes de seus aposentos com pinturas de formas femininas nuas em atitudes que ele considerava divertidas. A rainha lembrava que antes de conhecer pessoalmente esse homem-ele estivera afastado durante algum tempo da corte, numa missão em Viena -, ouvira falar que duas mulheres tinham travado um duelo por seus favores. Dizia-se que iniciara sua carreira de mulherengo numa idade muito tenra na corte de Luís XIV, e que sua primeira amante fora a duquesa de Bourgogne, a mãe do rei.

Igualando-se a ele em devassidão estava a mademoiselle de Charolais, que tinha como política tomar um amante novo a cada ano. Para serem completos, os casos amorosos deviam ser frutíferos, costumava declarar; e para provar o quanto era bem-sucedida, tinha a cada ano uma criança com um amante diferente.

O conde de Clermont mantinha inúmeras amantes e não fazia qualquer segredo disso.

Como esses comportamentos eram típicos das pessoas que participavam dos grupos de caça do rei, não era de estranhar que a rainha não se sentisse disposta a frequentá-los. De fato, durante esses anos Marie tinha a impressão de sempre estar convalescendo de um parto ou grávida de uma nova criança. O pequeno duque dAnjou nasceu em 1730, o ano seguinte ao nascimento do delfim. O ano de 1731 foi surpreendentemente infecundo, mas em 1732 veio Adelaide; e Marie logo estava grávida novamente.

A cada noite, com exceções ocasionais, o rei a visitava; ela se sentia exausta por suas noites com ele e com suas gravidezes frequentes, e dava desculpas para dormir sozinha.

- Creio que é pecado saciar os desejos da carne em certas épocas - disse a Luís.

Ele era indulgente e, contanto que os dias santos não fossem muito frequentes, protestava pouco.

Os cortesãos divertiam-se assistindo a essa situação entre a rainha e o rei. Faziam apostas secretas sobre quanto tempo levaria para que o rei tomasse uma amante.

Richelieu e outro mulherengo, o conde de Clermont, tinham contado ao rei todos os prazeres que ele estava perdendo mantendo-se fiel à esposa pouco atraente, mas não percebiam que Fleury, ao seu modo cauteloso, estava observando Luís com a mesma atenção que eles.

Fleury não tinha qualquer vontade em ver o rei escolhendo uma amante. Graças ao seu estudo de registros do passado, Fleury sabia o caos que uma amante podia causar nos assuntos do reino. No momento, o rei era fiel à rainha e esta gerava filhos. Isso era satisfatório. Fleury queria manter essa situação estabilizada enquanto fosse possível; e recordando a conduta astuta de Fleury no caso do duque de Bourbon, aqueles cortesãos que poderiam induzir o rei a satisfazer os desejos da carne fora da cama matrimonial sentiam-se desestimulados a fazê-lo.

O ano de 1733 foi significativo na vida de Marie. Um evento que pareceu de importância extraordinária para ela foi a morte súbita do rei Augusto II, que havia usurpado o trono de seu pai.

Marie estremeceu de excitação ao ouvir as notícias, e perguntou a si mesma: agora que Stanislas é sogro de Luís, por que ele não pode reconquistar seu trono com a ajuda da França?

O maior rival de Stanislas pelo poder era o filho de Augusto, a quem a Áustria e a Rússia favoreciam. Contudo, Marie considerou que Stanislas, tendo a França por trás dele, tinha uma chance muito boa de aspirar ao trono da Polónia.

Fleury não estava ansioso em dar esse apoio. Tanto Portugal quanto a Prússia tinham candidatos e, com a Áustria e a Rússia apoiando o filho de Augusto, ele temia a guerra. Também estava inseguro sobre o efeito que a reconquista do trono por Stanislas exerceria sobre a rainha. A rainha naturalmente adquiriria mais influência, e ele e ela jamais tinham sido bons amigos.

Havia na França muitos que estavam preparados para ir à Polónia defender a causa de Stanislas. Fleury sabia que a Inglaterra iria assistir de perto à situação. Fleury estava ansioso por bons relacionamentos com a Inglaterra e tinha formado uma amizade com o primeiro-ministro, Robert Walpole, conde de Orford.

O conselho de Walpole a Fleury foi que os eleitores da Polónia deviam ser subornados para eleger Stanislas, e que o rei deposto deveria ir pessoalmente à Polónia para conduzir a campanha. Fleury decidiu aceitar esse conselho. Assim, a rainha despediu-se calorosamente do pai. Ao abraçá-la, Stanislas declarou que a amava acima de todas as outras pessoas e que acreditava ter sido ela a catalisadora desta grande mudança na sorte da família.

Ele partiu da França disfarçado como mercador, em companhia de apenas um amigo, que por sua vez ocultou sua identidade no disfarce de criado de mercador. Concomitantemente, um nobre francês, o conde de Thianges, que possuía uma leve semelhança com Stanislas, partiu de navio do porto de Brest com toda a pompa de um rei. Esse foi um projeto um tanto desnecessário e farsesco, possivelmente maquinado na Inglaterra por Walpole.

Stanislas teve algum sucesso inicial. Os subornos foram eficazes e ele foi eleito rei da Polónia.

A notícia foi levada em primeira mão a Luís, que leu o despacho e correu até o quarto da rainha para explicar-lhe o que tinha acontecido.

Eles se abraçaram e, quando Marie chorou, o rei ficou comovido em vê-la assim; naquela noite eles foram muito ternos um com o outro, e Marie teve a impressão de que os tempos de lua-de-mel realmente tinham voltado.

Mas aquele não foi um ano feliz.

O pequeno duque dAnjou, que desde o nascimento não tinha sido tão robusto quanto seu irmão, o delfim, debilitou-se à medida que o ano passou. Estava morto antes do final do ano.

A dor de Luís foi tão grande quanto a da rainha. Eles tinham agora apenas um filho e estavam alarmados pela saúde das outras crianças. Todas, com exceção da pequena Louise-Marie, de apenas cinco anos, eram saudáveis, mas a morte atacava súbita e inesperadamente e houve medo no lar real.

Infelizmente, o medo não era infundado. Logo depois da morte do duque dAnjou, a pequena madame Troisième adoeceu, e nenhum dos doutores conseguiu salvá-la.

Perder dois filhos tão repentinamente, e com um intervalo de tempo tão curto entre as duas mortes, lançou Marie num frenesi de medo supersticioso.

- É como se Deus nos quisesse punir por alguma coisa disse Marie às suas aias.

Ela pensou na sensualidade extrema do rei, à qual era forçada a se juntar, e estremeceu.

Chegaram más notícias da Polónia. Os russos e austríacos não estavam preparados para ver Stanislas derrotar seu candidato ao trono.

Eles ameaçavam invasão, e Stanislas, vendo-se deserdado por aqueles amigos que o haviam acompanhado ao seu país, percebeu que não havia nada que pudesse fazer além de abdicar.

O filho de Augusto II, Augusto III, foi eleito rei da Polónia.

Stanislas apelou à França; e Fleury, compreendendo a importância estratégica do país, decidiu declarar guerra.

- Desastre! - lamentou a rainha. - Desastres avultam-se de todos os lados.

Então ela pensou na morte de seu filho e de sua filha e tornou a chorar.

- É como se todos a quem eu amo estivessem amaldiçoados! - gritou. - O que será de meu pai querido?

Naquela noite, quando Luís foi procurar Marie, ela lhe disse que era dia santo e que como já estava grávida, não havia motivo para eles desfrutarem de relações sexuais, a não ser por pura concupiscência.

O rei ficou irritado.

- Estamos casados - argumentou. - Agora, se eu fosse como certos membros da corte você teria motivo para se queixar.

- Como é um dia santo... - começou.

- Um dia santo muito obscuro - resmungou ele.

- Luís, essas tragédias deixaram-me preocupada - disse Marie, com toda franqueza. - Acho que deveríamos fazer abstinência em todos os dias santos.

Luís fitou-a, aterrorizado.

- Você se esqueceu de quantos dias santos há no calendário? - inquiriu.

- Não, não esqueci - respondeu Marie. - E precisamos lembrar deles no futuro.

Como não gostava de cenas, Luís não insistiu em compartilhar sua cama.

Ele a deixou. Em seu caminho de volta aos próprios aposentos, encontrou-se com o incorrigível Richelieu que, vendo o rei retornando da alcova da rainha, apressou-se em esconder sua expressão; mas Luís tinha visto o sorriso cínico, o olhar intrigado que indicava que Richelieu estava tentando se lembrar de que dia santo era aquele.

Luís sentiu-se zangado. A rainha o estava colocando numa situação ridícula. Ele pensou em Richelieu e suas inumeráveis aventuras amorosas; ele recordou alguns dos casos do conde de Clermont. Parecia que em toda a corte apenas o rei se comportava como um esposo respeitável... e a rainha tivera a temeridade de recusar suas atenções.

Não obstante, ela sofrera imensamente com a perda das crianças e com o temor pela posição do pai. Luís não se enfurecia com facilidade; era um homem paciente.

Dê-lhe tempo, pensou Luís. Ela irá se recuperar da tristeza. Quando começar a perceber quantos dias santos há num ano, cederá à tentação.

Na noite seguinte, ele se sentou com seus amigos num pequeno jantar, Richelieu estava à sua direita, gabando-se como sempre de seus casos com mulheres. O rei bebeu mais do que o usual e depois do coucher solene no quarto real, seguiu até a alcova da rainha.

Quando sua camisola e chinelos tinham sido despidos pelo valet de chambre de Luís, a rainha acordou e se sentou na cama. Horrorizada, ela fitou o rosto rubro de Luís.

- Mas Luís, você nem mesmo está sóbrio! - argumentou. Ele fez um sinal para as cortinas serem fechadas em torno

da cama, e isso foi feito imediatamente. Mas Marie torceu o rosto numa expressão muito casta. Isto era mais deplorável do que o usual. Era lascívia alcoolizada.

- Não! - protestou Marie. - Deixe-me imediatamente.

- Não seja estúpida - disse Luís, o vinho tendo aquecido seu sangue, destruindo sua calma usual.

- É estúpido odiar... estupro? - gritou Marie, braços cruzados sobre os seios.

Luís olhou para ela e subitamente entendeu que não gostava dela. Lembrou que antes de desposá-la ela era meramente a filha de um exilado sem vintém.

- Madame, a senhora se esquece de com quem está falando.

- Estou em plena posse de meus sentidos. Eu não estou bêbada - retorquiu.

- Você irá se arrepender por esta noite - ameaçou Luís.

- Arrepender-me? Se conseguir mandá-lo devolta para os seus aposentos, não irei me arrepender de nada.

- Repito que irá se arrepender, madame.

Ele se levantou da cama. Ficou parado um instante, olhando para ela através das cortinas, esforçando-se para manter sua cabeça nivelada.

- Por favor, nunca mais se esforce tanto para proteger aquilo que não é desejado - disse Luís.

E então Luís a deixou e voltou para o quarto real.

Seu valete ficou estarrecido ao ver o rei. Luís não apenas retornara, mas retornara num estado de raiva incomum.

Olhando para o homem, Luís soube que mesmo se ninguém tivesse escutado a discussão no quarto de sua esposa, o que acontecera em breve seria conjeturado e o rumor se espalharia.

- Saia e me traga uma mulher! - disse ao valete. - Encontre uma mulher bonita e a traga para mim... sem demora.

O valete saiu correndo dos aposentos do rei. Finalmente acontecera. Agora a diversão iria começar. Isto seria apenas um começo. Amanhã a corte inteira estaria fervilhando com os comentários.

Quem?, perguntou-se o valete. Isso era importante.

Ele precisava de um conselho - o conselho do cardeal Fleury ou de monsieur Richelieu. Mas não havia tempo. O rei não estava com humor para tolerar atrasos. O rei mudara; ele jamais havia se comportado como naquela noite. Estava zangado e o valete precisava agir com rapidez.

A primeira candidata que viu foi uma das aias da princesa de Rohan.

Ele a deteve e perguntou:

- A senhorita passaria a noite com o rei? Ela o fitou, embasbacada.

- Você está se sentindo bem? - perguntou.

- Estou, e não há tempo a perder. O rei está furioso com a rainha. Ele quer que você tome o lugar dela.

- Apenas por esta noite? - perguntou e seus olhos brilharam. O rei era bonito, e as possibilidades eram infinitas.

- Isso é com vocês - disse o valete.

Ela jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

- Leve-me até ele.

O valete perguntou-se o que encontraria quando voltasse à alcova real. Estaria Luís mais sóbrio? Ou será que o valete iria colocar a si próprio e a esta aia numa situação delicada?

Ele se preocupou em vão. Quando retornou, o rei esperava impaciente - um estranho rei novo cheio de fogo e paixão, um rei cansado de fazer o papel de marido fiel de uma mulher que se preocupava demais com os dias santos.

No dia seguinte houve muita excitação na corte. Uma era havia acabado; uma nova estava prestes a começar. Richelieu, Clermont, tnademoiselle de Charolais deviam estar contentes; os ministros do rei-Fleury à frente deviam estar profundamente preocupados.

Era insensato deixar aquela situação seguir naturalmente o seu curso.

A jovem da aventura da noite anterior provavelmente não tinha qualquer importância. Não era excepcionalmente bonita ou inteligente, e a própria forma como fora parar na cama do rei dificultaria para ela ser a participante de qualquer coisa além de um caso amoroso fugaz.

Ela não dava a menor importância para aquilo. Era-lhe perfeitamente claro que muito em breve apareceria alguém que iria exercer uma influência muito maior sobre o rei.

Havia dois círculos rivais na corte. Um deles, conhecido como o círculo de Chantilly, que tinha seu quartel-general na casa dos Bourbons e na casa de mademoiselle de Charolais, a filha do duque de Bourbon, era a líder; o outro, o de Rambouillet, era presidido pelo conde e pela condessa de Toulouse.

Os mais respeitáveis desses dois grupos era o de Rambouillet, e era o círculo que Fleury propunha procurar para a mulher que iria ser a nova amante do rei.

O conde de Toulouse era o filho ilegítimo de Luís XIV e madame de Montespan, e portanto aparentado ao rei; e foi com sua condessa que Fleury decidiu discutir este assunto de prover uma amante para o rei. Assim, convidou a duquesa a visitá-lo, o que ela fez prontamente, presumindo a natureza do assunto que ele tinha a discutir com ela.

Madame de Toulouse ficou felicíssima em poder ser útil. Pois se a amante do rei fosse uma amiga dela, não perderia nada com essa conexão.

Fleury beijou a mão da condessa e a convidou a se sentar. Em seguida, foi direto ao ponto.

- Madame, a senhora está ciente da desavença entre Suas Majestades?

- Sim, monsieur cardeal. Quem não está?

- Era inevitável. A rainha tem muitas virtudes, mas carece de algumas que são necessárias a um homem como o rei.

- É verdade - concordou a condessa. - Em primeiro lugar, ela é sete anos mais velha do que ele. Isso não é bom. Algumas mulheres poderiam parecer mais próximas à idade dele, mas ela, que está sempre embrulhada em xales e não possui qualquer senso de elegância... - A condessa deu de ombros. - Pobre dama. Está sempre grávida, e temo que isso não seja favorável à manutenção de um corpo elegante.

- Ela realiza um grande número de boas ações - prosseguiu Fleury. - Os amigos dela são virtuosos.

- Mas tão tediosos... - murmurou a condessa.

Ela sorriu, pensando nos esforços da rainha em adquirir cultura. Marie cantava, tocava harpa, pintava, mas não era realmente boa em nenhuma dessas atividades, e os cortesões gemiam por dentro quando eram convidados a ouvi-la cantar e tocar. E quando ganhavam algum de seus quadros, elogiavam-no entusiasticamente e colocavam-no em posição de destaque em seus aposentos, mas apenas para evitar que a rainha percebesse que eles não apreciavam sua arte.

- É natural - acrescentou Fleury.

- E me pergunto como demorou tanto tempo para isso acontecer.

- Temo que não falta muito para o rei entregar seus afetos a alguma mulher que não seja a sua esposa - conjeturou Fleury.

- E quando isso acontecer, será melhor para todos nós que seja a mulher certa.

- com toda certeza - concordou a condessa.

- Eu gostaria que ela fosse modesta - prosseguiu o cardeal. - Seria doloroso se ela pedisse grandes favores para si e para sua família. Por essa razão, não quero que ela seja um membro de uma casa da alta nobreza.

A surpresa fez a condessa soerguer as sobrancelhas.

- Vossa Eminência não deseja deitar uma mulher da plebe na cama do rei!

- Oh, não, isso seria impensável. O que precisamos é de uma mulher que possua encantos, seja da nobreza mas não da haute noblesse. Ela precisa ser discreta, sentir-se honrada em servir ao rei nessa capacidade e não pedir muito em troca.

- Serei franca - disse a condessa. - Antecipei este nosso encontro e já pensei muito no assunto.

- A senhora tem alguma sugestão?

- Tenho. Estou pensando na filha mais velha da família Nesle, Louise-Julie. Ela é casada com o conde de Mailly. Ele é muito pobre e não tenho dúvida de que poderia ser persuadido a não se intrometer. Louise-Julie é uma criatura agradável. Eu não diria que seja bonita, mas possui um grande encanto.

- A família Nesle - interrompeu o cardeal, olhos brilhando. - Vejo que a senhora me entendeu perfeitamente, madame. Mas madame de Mailly não é uma das aias da rainha?

- É verdade, mas isso é importante? Os reis já escolheram muitas vezes suas amantes nos círculos de suas esposas. E em todo caso, se ela já não fosse uma das aias da rainha, muito em breve desejaria ser.

O cardeal assentiu com a cabeça.

- Veremos o que acontecerá com madame de Mailly. Primeiro precisamos colocar o rei num humor receptivo. Não creio que vá ser difícil. Ele está furioso com as recusas da rainha e seu orgulho está ferido. Acho que neste estágio devemos pedir ajuda a um dos amigos íntimos do rei. Tenho certeza de que o duque de Richelieu ficará deliciado em ajudar. Sei que há muito tempo ele tenta seduzir o rei para a infidelidade. vou chamá-lo agora, e explicaremos nosso projeto a ele.

Quando ouviu os planos do cardeal e da condessa, o duque de Richelieu ficou muito animado.

- Eu aprovo! - exclamou. - Aprovo de todo o coração. Se não fizermos alguma coisa por nosso amado Luís, ele irá se tornar tão tedioso quanto a sua rainha. Temo vê-lo caminhando pela corte embrulhado em xales, pintando e... Deus, nos poupe disso!... tocando harpa e nos dizendo que madame Adelaide já deu três passos, ou que aprendeu a dizer "Vossa Majestade" Não! Alguma coisa precisa ser feita.

Ele lhes deu o benefício de seu sorriso sardónico.

- Madame de Mailly? Hum.... Encantadora. Ela tem pernas maravilhosas. Uma daquelas mulheres que possuem dons mais sutis que a beleza. Madame de Mailly seria a mulher ideal...

para começar.

- Então lhe peço que prepare Sua Majestade para se encontrar com a dama - disse o cardeal. - Você pode explicar melhor do que ninguém as...

- As delícias do amor! - gritou Richelieu. - Mas isso parece lógico, não parece? Eu, um pecador, devo conhecê-las melhor do que um homem da Santa Igreja.

O cardeal estava satisfeito demais com o plano para ficar irritado. Madame de Mailly seria uma amante perfeita. Ele tinha certeza de que ela não apenas manteria seus dedos afastados da grande torta do reino, como também impediria o rei de fazer o mesmo.

- Deixe Sua Majestade comigo-disse Richelieu, piscando maliciosamente para o cardeal. - A tarefa de desencaminhá-lo das trilhas virtuosas do matrimónio deve ser iniciada sem demora!

Os três principais valeis de chambre do rei - Bachelier, Lê Bei e Barjac - estavam empolgados. A vida até agora tinha sido um pouco maçante. Não era muito divertido conduzir o rei até a alcova da rainha todas as noites, colocar a espada próxima à cama, pegar a camisola e os chinelos do rei e voltar silenciosamente para a alcova real, para ali aguardar a jornada de retorno na manhã seguinte e conduzir o rei de volta ao quarto real para o lever cerimonial.

Agora tempos mais emocionantes se avizinhavam. E se o rei desenvolvesse um gosto por outras mulheres além da rainha, os deveres dos valeis de chambre não apenas se tornariam mais interessantes como mais lucrativos.

Madame de Mailly, quando abordada pela condessa de Toulouse, mostrou-se empolgada.

Ela não nutria qualquer amor pelo marido, seu primo, o mercenário conde de Mailly, que chafurdava continuamente na pobreza. Ademais, sempre admirara o rei. Ela e Luís tinham ambos 23 anos e ela, de acordo com a opinião da maioria, sempre considerara o rei o homem mais bonito da corte.

Um encontro foi arranjado entre eles, e Bachelier levou madame de Mailly até o apartamento do rei; mas, quando estavam a sós, os dois foram acometidos pela timidez.

Até esta época Luís jamais se sentira à vontade com mulheres. Os esforços - primeiro de Villeroi e em seguida de Fleury - para mantê-lo inocente tinham surtido este efeito nele, que embora fosse um homem profundamente sensual, sentia dificuldade em lidar com o tipo de situação na qual se via agora.

Madame de Mailly, que de forma alguma era inexperiente, estava um tanto apaixonada pelo rei, e por este motivo sentia-se embaraçada. Ela desejava que eles tivessem se encontrado por acaso numa das reuniões em Rambouillet e sentido atração mútua. O fato de ter sido trazida aos aposentos do rei por seu valete aumentava seu constrangimento.

Ela, que era conhecida por sua vivacidade e língua solta, viu-se subitamente sem palavras. O rei, incapaz de banir de sua mente as imagens eróticas que a conversa do mulherengo Richelieu pusera ali, estava igualmente incapaz de iniciar uma conversa adequada.

Eles foram frios e polidos um com o outro e o encontro foi um fracasso completo.

Ela deixou o rei, certa de que jamais seria convidada novamente aos seus aposentos.

Luís não estava ansioso por conceder outra entrevista privada à condessa. Aqueles que haviam planejado o encontro temeram que em breve Luís caísse nas garras de alguma mulher maquiavélica que tentasse reger a França através de seu rei.

Madame de Mailly foi reprimida severamente por seus patronos. Ela havia se comportado como uma virgem tímida! Ela não compreendia que o rei estava revoltado contra a castidade da rainha? Ela precisava tratá-lo com olhares voluptuosos. Não podia entrar nos aposentos do rei e se comportar como uma mocinha recatada. Que ela se deitasse num sofá, digamos, en déshabillé; seus dotes mais atraentes eram as pernas, que todos concordavam ser as mais belas da corte. Então que empregasse todos os seus talentos. Ela poderia tentar novamente?

Ela estava ansiosa por fazê-lo. Tudo que faltava era persuadir Luís a se encontrar com ela mais uma vez. Isso foi difícil, mas quando foi dito que ela ficaria de coração partido se não o encontrasse de novo, Luís, homem de bom coração que era, cedeu.

Sua surpresa foi intensa quando entrou no apartamento íntimo para já encontrá-la ali. Durante alguns segundos ficou parado em pé, fitando a jovem seminua que lhe sorria sedutoramente do sofá.

Por um momento ele se preparou para se virar e fugir; mas Bachelier estava atrás dele, e ele não queria que o valete testemunhasse seu embaraço.

- A dama aguarda Vossa Majestade - disse Bachelier e, na excitação do momento, deu em Luís um empurrão que o fez cambalear à frente.

Madame de Mailly estendeu os braços e tomou Luís neles, enquanto Bachelier fechava a porta gentilmente.

A sedução do rei foi assim efetuada, e Fleury suspirou de alívio. Ele agora estava livre para lidar com assuntos do reino.

Mas primeiro ele presenteou o conde de Mailly com vinte mil moedas de ouro - sua recompensa por ser um marido complacente. Fleury também desejava que o caso fosse conduzido com o máximo de segredo. Obviamente era impossível esconder de Versalhes que o rei tinha uma amante, mas Fleury não queria que o povo da França soubesse do lapso do rei.

Nessa época Luís era adorado por seus súditos; e embora a rainha baixa e atarracada não lhes encantasse tanto quanto o seu belo rei, eles admitiam que Marie era uma rainha boa, que cumprira seu dever para com o reino. O povo gostava de pensar que Luís era um jovem tranquilo e cumpridor de seus deveres, e um esposo e pai de valor - ainda que apenas porque era bonito e parecia um deus em seus trajes reais.

Fleury considerou que realmente não poderia ter havido escolha melhor, porque madame de Mailly era uma mulher gentil que, satisfeita com o afeto do rei, não procurava honras para si.

Depois do começo desajeitado, Luís tornou-se cada vez mais interessado em Louise-Julie de Mailly. A rainha jamais juntara-se a ele em seu êxtase como esta mulher fazia. Era como aprender lições novas, cada uma mais deliciosa que a anterior.

Para Luís a sua amante era a mulher mais bonita da corte, como a rainha tido sido nos primeiros dias de matrimónio. Alta e esguia, os únicos aspectos realmente atraentes de Louise-Julie eram os olhos negros e as pernas pelas quais já era famosa. Sua compleição era pálida, seus traços irregulares; mas era encantadora e dotada de uma natureza particularmente doce.

Luís tivera sorte. Sua amante não buscava honras. Apaixonou-se rapidamente pelo rei e declarou que apenas estar com ele já lhe era recompensa suficiente.

O rei estava encantado; sua amante estava sempre pronta a conduzi-lo a novas regiões de sensualidade que ele jamais sonhara existir.

Ela não se dava ares de importância na corte e sempre era extremamente respeitosa para com a rainha. O relacionamento era ideal, e o rei e Louise-Julie de Mailly acreditavam que duraria pelo resto de suas vidas.

Marie deu à luz mais uma filha naquele ano; esta foi Victoire.

O rei não negligenciou completamente a sua esposa, nem esqueceu a necessidade em aumentar o número de ocupantes do berçário real. Quase imediatamente após o nascimento de Victoire, a rainha já estava grávida de novo. Marie ficara ainda mais amarga, e declarava para quem quisesse ouvir que sua vida praticamente se resumia a deitar para conceber e a deitar para parir.

Enquanto isso o rei e madame de Mailly apaixonavam-se profundamente. Era ela quem estava sempre presente em todas as caçadas; quem cavalgava ao lado do rei; quem se sentava ao seu lado nos jantares íntimos que Luís oferecia aos seus amigos.

Parecia agora que o rei seria tão fiel como amante quanto o fora como marido.

 

Nos últimos quatro anos a rainha conseguira aceitar o romance do rei e madame de Mailly. Marie compreendia que Luís precisava possuir algum tipo de amante, e sentia-se grata por ele ter escolhido uma que não causava consternações.

Marie tinha seus filhos para consolá-la. Sophie nascera em 1734, Thérèse-Félicité em 1736, e Louise-Marie acabara de chegar ao mundo. Dez filhos em dez anos; ninguém podia pedir mais do que isso a uma rainha.

Não haveria outros. Nem mesmo o desejo de ter mais um menino (das oito crianças sobreviventes, sete eram meninas). Luís raramente visitava-a à noite.

Muitos atribuíam a culpa disso à rainha. Mas ela estava debilitada pela atividade exaustiva de gerar filhos, e seus médicos tinham-na aconselhado a privar-se disso durante algum tempo. Quando Luís ia visitá-la, a rainha punha-se a rezar em seu lado da cama, na esperança de que o rei adormecesse enquanto aguardava o fim das preces. Isso acontecia com frequência. As abstenções nos dias santos eram uma grande ajuda; e as visitas ficavam cada vez mais escassas porque madame de Mailly estava sempre ao dispor de Luís.

Marie agora criara o seu próprio estilo de vida; e sua pequena corte era separada da do rei. Seu dia era planejado para seguir um padrão lento e sereno. Pela manhã comparecia à missa e estudava livros teológicos; depois realizava uma visita formal ao rei; em seguida pintava, porque sentia grande prazer em dar quadros de presente aos amigos. Comparecia à missa noturna e em seguida jantava. Isto ela fazia com suas damas de companhia, a maioria detentora de gostos semelhantes aos seus. Mais tarde retirava-se para o seu quarto para tecer tapeçarias ou tocar harpa. Depois lia tranquilamente até a hora de se deitar. Ocasionalmente visitava os aposentos de amigos; mas todos entendiam que a conversa em sua presença jamais deveria incluir mexericos de escândalos. Marie tornara-se muito pia e se dedicava a caridades. Seu maior pecado era à mesa; e sua silhueta, devido à gula mas também aos partos contínuos, ficara cada vez mais robusta; e como era pouco vaidosa, jamais fazia qualquer coisa para melhorar isto. Muitos dos cortesãos não gostavam de ser convidados às festas noturnas da rainha; temiam ser incapazes de conter os bocejos ou, pior ainda, adormecerem.

Como era diferente ser convidado a juntar-se ao rei! De fato, considerava-se uma grande honra receber um convite, porque Luís, que sempre desejara desfrutar de privacidade e da companhia de uns poucos amigos íntimos, mandara construir ospetits cablnets. Eles ficavam sob o teto do palácio, construídos em torno do pequeno pátio, o Cour dês Cerfs, e consistiam numa série de salinhas ligadas por escadas espirais e pequenas galerias.

Muito cuidado fora tomado na construção dessas salinhas, porque Luís estava descobrindo a grande paixão pela arquitetura que herdara de seu bisavô.

Os painéis eram belamente esculpidos, e as paredes tinham sido tratadas para parecerem de porcelana. Luís divertira-se muito planejando esses cómodos, que eram extremamente graciosos e desprovidos de ostentação. As decorações eram pergaminhos delicados e vasos de flores.

Ospetits cabinets eram como um palácio em miniatura, isolado do maior. Aqui Luís tinha seu quarto, sua biblioteca e - o cómodo mais importante de todos, porque era ali que entretinha seus amigos-o salle à manger. Luís ficara tão fascinado com esses pequenos aposentos que não conseguia resistir à tentação de expandi-los. Interessado em esculpir marfim, criara um ateliê. Tinha também sua própria cozinha, porque jamais perdera seu interesse inicial por culinária. Tinha grande prazer em convocar especialistas a esses cómodos e ter aulas com eles.

Durante esses jantares íntimos, Luís frequentemente preparava ele mesmo o café e até o servia. Era durante essas ocasiões que era mais encantador - talvez porque realmente ficasse feliz nesses momentos. As cerimónias da corte, que tinham sido um deleite para o seu bisavô, eram extremamente tediosas para ele. Portanto, estar em seus amados pequenos aposentos em companhia de madame de Mailly e alguns amigos com quem podia conversar, não como um rei mas como um deles, era sua ideia de prazer.

Nessas ocasiões não havia espaço para reverências e etiqueta; alguns sentavam-se no chão, o rei frequentemente era um deles. Todos sempre sentiam-se relaxados e lamentavam quando o rei dizia o costumeiro "Allons nous coucher" e o grupo se dissolvia.

Era quase com tristeza que Luís caminhava até sua imensa alcova, onde precisava submeter-se ao tedioso cerimonial do coucher.

Luís jamais gostara do enorme quarto de dormir de Luís XIV, e durante anos tivera o costume de, após o coucher, escapulir para um quarto menor e mais aconchegante que dividia com madame de Mailly. Mas agora perguntou-se por que não podia ter o seu próprio quarto real, e mandou que esse aposento lhe fosse preparado. Este cómodo, na ala norte do Cour de Marbre e no segundo andar do palácio, que fora decorado pelo escultor Verberckt e onde fora incluída a cama com balaustrada, rapidamente tornou-se o centro de atividades do castelo.

Marie raramente era convidada às reuniões às quais os cortesãos mais eméritos ansiavam comparecer. Tanto melhor para ela, que estava satisfeita com o seu próprio estilo de vida.

Marie queria criar ela própria seus filhos, mas isto lhe era negado. As menininhas tinham suas governantas, nomeadas pelo rei, e visitavam a mãe apenas uma vez por dia, sempre na presença de outras pessoas. As menininhas eram encantadoras Adelaide era muito bonita e um tanto teimosa -, mas sempre ficavam em pé diante de sua mãe; afinal não era isso que rezava o protocolo?

Ela via o delfim com mais frequência porque os aposentos do menino ficavam no andar térreo do castelo, imediatamente abaixo do seu; mas, como no caso de suas filhas, a educação do delfim fora tirada de suas mãos.

Luís aparecia frequentemente nos aposentos do menino. O rei sentia um orgulho imenso de seu filhinho de nove anos e repetia as coisas inteligentes que ele dizia para os amigos, que sempre se divertiam em ouvi-lo.

Certo dia, quando as meninas foram trazidas para a visita diária à rainha, Marie viu que alguma coisa as atormentava. As duas meninas mais velhas - as gémeas, Louise-Elisabeth e AnneHenriette - não as acompanharam; e Adelaide, de seis anos, liderava o grupo.

Todos gostavam de ver a dignidade dessa menina e a forma como ela inspirava respeito nas outras. Victoire e Sophie sentiam-se particularmente impressionadas por ela; talvez ThérèseFélicité, de dois anos, e a bebé Louise-Marie fossem jovens demais para ser influenciadas.

Quando elas se aproximaram e fizeram uma mesura para a rainha, Marie notou que os olhos de Adelaide estavam anuviados.

- Está tudo bem, minha filha? - indagou a rainha.

- Não, maman.

Victoire soluçou e Sophie, seu olhar alternando-se entre Victoire e Adelaide, fez o mesmo.

- Conte-me o que a atormenta - pediu a rainha.

- Maman, ouvimos dizer que seremos mandadas para longe! - As palavras irromperam de Adelaide.

Victoire confirmou com a cabeça, e Sophie, observando sua irmã, fez o mesmo.

- Não queremos ir para longe, maman - prosseguiu Adelaide. - Seremos mandadas a um convento. Não queremos ir.

- Ah, minha filha - disse a rainha.-Para todas nós, chega um momento na vida em que somos forçadas a fazer aquilo que não gostamos.

Os olhos de Adelaide apelavam piedade.

- Maman, a senhora não pode dizer que devemos ficar? Marie foi tomada por uma grande tristeza. Que poder tinha

ela para decidir o destino dos filhos? Sabia que as meninas seriam mandadas para longe. Isso fora decidido sem que a consultassem. Elas precisavam ir para a abadia de Fontevrault, onde viveriam espartanamente e seriam ensinadas por freiras. Pobres criaturinhas; ficariam chocadas com o contraste entre o esplendor de Versalhes e a austeridade da abadia. Sentia-se triste por elas, mas não havia nada que pudesse fazer em seu benefício.

Não podia contar às filhas que não fora consultada e que seria ignorada se opinasse. Fazer isso estaria abaixo de sua dignidade como rainha. Assim, não suportando mais as expressões suplicantes daqueles cinco pares de olhos, fitou-as com um ar severo

- E vocês, estão progredindo no bordado? - perguntou às duas crianças mais velhas.

Victoire, como sempre, voltou-se para Adelaide, para que esta respondesse à pergunta da mãe, mas Adelaide suplicou fervorosamente:

- Maman, não deixe que eles nos mandem embora! Marie sentiu um impulso de juntar as filhas em seus braços,

de dizer-lhes que lutaria contra todos que tentassem tomar suas menininhas; mas como poderia fazer isso? Havia muitas testemunhas presentes e o protocolo do castelo precisava ser mantido, ainda que as jovens pudessem considerá-la ríspida ou cruel. Era quase impensável abraçá-las àquela hora da manhã. Que mau exemplo para elas seria isso! Assim, a rainha declarou:

- Minhas crianças, a primeira coisa que as princesas precisam aprender é a obediência.

Adelaide parecia prestes a romper em lágrimas. Marie torceu para que não o fizesse, porque isso seria o sinal para as outras começarem. Lembrando-se a tempo de onde estava e o ensinamento de seus seis anos, Adelaide engoliu suas lágrimas e manteve a cabeça erguida; e quando Marie deu sua permissão para que as meninas saíssem, ela lhe fez uma reverência impecável.

As outras, prontas a seguir o exemplo de Adelaide, comportaram-se com o mesmo decoro.

Depois que as filhas se retiraram, Marie perguntou-se em pensamento:

Por que devo permitir que elas sejam tiradas de mim ? Elas permanecerão em Fontervrault durante anos. Por que devo ser separada de minhas filhas?

Ela sabia que aquilo fora ideia de Fleury. Era o velho cardeal - agora com mais de oitenta anos e tão enérgico quanto sempre - quem tomava todas as decisões.

Marie pediria ao cardeal que comparecesse à sua presença, e então veria se poderia ajudar as menininhas, ainda que odiasse a ideia de pedir qualquer coisa a Fleury. Fora graças a esse homem que o seu pai perdera o trono da Polónia. Fleury sempre punha em Stanislas a culpa pela França ter sido ser arrastada para a guerra. Contudo, a França não fora à guerra em defesa de Stanislas. Pela vontade de Fleury, o país jamais teria ido à guerra, mas naquela época havia na França um grupo poderoso que aproveitava cada oportunidade para guerrear contra o Império Austríaco, e Fleury vira-se impotente diante de sua pressão; assim, a França juntara forças com a Espanha e a Sardenha e o ataque começara.

Mas isso de pouco ajudou Stanislas, que por ocasião da eleição de Frederico Augusto fugira para Danzig, onde aguardou a ajuda que esperava do país de seu genro.

Alguns franceses teriam abraçado a causa de Stanislas; Fleury não estava entre eles. Mas havia um cavalheiro muito galante, o conde de Plélo, embaixador de Copenhague, que estava determinado a fazê-lo.

Quando o comandante da pequena flotilha enviada por Fleury percebeu a superioridade numérica dos russos mandados contra ele, decidiu que não lutaria e recuou de Danzig. Então o próprio de Plélo liderou uma pequena força contra os russos; foi um esforço galante, mas Plélo foi morto e Stanislas forçado a deixar Danzig, disfarçado de pedinte.

Mas na Renânia e na Itália a guerra prosseguiu. Fleury, obcecado por manter a França afastada de conflitos bélicos, ficou atento para a primeira oportunidade para fazer paz. E assim, e no outono de 1735, as negociações começaram.

Frederico Augusto foi aclamado Augusto III, rei da Polónia, a Áustria tomou Parma e Piacenza, e a Espanha adquiriu Nápoles e Sicília.

E quanto a Stanislas?

Foi decidido que ele deveria entregar a Lorena, pois François, duque de Lorena, estava para casar com Maria Theresa, que era a filha do imperador e sua herdeira. Era impensável que a França deixasse a Lorena cair em mãos austríacas; portanto o duque François tomou a Toscana para trocá-la pela Lorena, e esta foi dada a Stanislas, embora após sua morte devesse ser devolvida à França.

Portanto, em vez da Polónia, Stanislas ganhara a Lorena.

Um pálido consolo para um rei, pensou Marie, amarga.

E ela atribuía a culpa por isso a Fleury, que negara a seu pai a ajuda que ele pedira em seu momento de necessidade.

Ao menos, como recusara a ajudar o pai de Marie, Fleury decerto não recusaria a ajudá-la com as menininhas.

Fleury aceitou o convite de comparecer aos aposentos da rainha. Quando pediu ao velho cardeal que se sentasse, Marie disse:

- Fui visitada por minhas filhas, monsiew. Elas estão muito abaladas.

Fleury pareceu surpreso por Marie importuná-lo com problemas de crianças.

- É triste ser expulso de sua própria casa - prosseguiu.

- Madame, as crianças precisam ser educadas.

- Elas poderiam gozar de uma educação melhor aqui no palácio.

- Mas Vossa Majestade já considerou o custo para o tesouro?

Ela lançou-lhe um olhar impaciente. Fleury estava obcecado com economias. Recentemente ele mandara a bela cascata de mármore de Marly ser removida e a substituíra por grama. Isto, dissera ele, aumentara o tesouro em mil coroas.

Marie ficara zangada ao saber disso; havia sido na época em que seu pai fora recompensado com a Lorena. Fleury dissera-lhe na época que o trono de Lorena era um lugar melhor para o seu pai do que o da Polónia, e a rainha retrucara amargamente:

- Ah, sim, monsieur lê cardinal, da mesma forma que um canteiro de grama é melhor do que uma cascata de mármore!

De nada adiantava argumentar com um homem como esse. Fleury acreditava que sabia curar os males de seu país e sua impopularidade com a rainha não o detinha, sendo ele detentor da confiança absoluta do rei.

- Elas estão de coração partido - prosseguiu a rainha. O senhor não consegue entender? Aqui em Versalhes elas são felizes. O senhor irá banir essas crianças para aquela abadia sombria!

- Madame, os custos de hospedagem das princesas são altos. Na abadia de Fontevrault elas aprenderão disciplina. Acredito que, ao enviá-las para lá, estaremos fazendo não apenas o que é mais sensato, como também o que é mais certo.

Ele não estava nem um pouco comovido. Ele não via o sofrimento de crianças arrancadas de seus lares; via apenas a economia para o tesouro.

Marie suspirou. Tinha sido uma tola ao pensar que poderia contar com a cooperação desse homem.

Adelaide conseguiu escapulir de Victoire e Sophie. Isso não era fácil, porque elas a seguiam para toda parte; e embora considerasse tomar conta das meninas como seu dever e em geral gostasse disso, às vezes podia ser irritante.

Ela alisou o seu vestido de veludo. Era da cor azul-escura que na corte era chamada de loeil du Rói, por assemelhar-se à cor dos olhos de Luís. Ela pedira para usar o vestido hoje, alegando haver um objetivo especial para isso. O vestido não lhe fora negado; penalizadas pela menininha que seria banida da corte, as babás estavam propensas a realizar seus pequenos caprichos.

Victoire dissera:

- Adelaide, o que você vai fazer?

E Sophie, ao seu jeito calado, ficara em pé, olhando para as duas irmãs.

- É um segredo - respondera Adelaide. - Talvez eu lhes conte depois.

Victoire e Sophie tinham olhado uma para a outra e se percebido satisfeitas com a resposta.

Depois de deixar as irmãs, Adelaide subiu para o segundo andar e se dirigiu aos pequenos aposentos do rei. Adelaide não se sentia constrangida diante do pai. Ela o via como o homem mais gentil na Terra, porque sempre a tratava com carinho. Luís gostava de brincar com ela, e Adelaide sabia que quando podia pensar em alguma coisa inteligente para dizer, isso o agradava.

Adelaide também sabia que Luís não aguentava ver lágrimas nos rostos de menininhas, e que se chorasse conseguia fazê-lo prometer qualquer coisa - embora essas promessas nem sempre fossem cumpridas. Havia outro aspecto: ela era bonita. Ela tinha ouvido a marquesa de La Lande, sua sous-governante, mencionar isso com frequência para as babás:

- Madame Adelaide é a mais bonita de todas.

E se você era bonita e ousada talvez pudesse pedir favores. Adelaide estava tão desesperada que ia tentar.

Ela viu um dos pajens e, quando ele lhe fez uma reverência, Adelaide disse, imperiosa:

- Vim falar com Sua Majestade.

O homem, tentando não sorrir com o jeito de adulta da menininha, respondeu com o máximo de respeito:

- Madame, Sua Majestade, até onde sei, está na missa. Adelaide inclinou a cabeça e entrou nos pequenos aposentos.

Ao retornar da missa, Luís sentia-se angustiado. Era comum sentir-se assim nesses momentos. Ele queria levar uma vida virtuosa e, por mais que desfrutasse de sua sociedade com madame de Mailly, havia momentos em que tinha certeza de que os prazeres que gozava com ela eram pecaminosos.

Tentou animar-se recordando que em breve partiria para Choisy, aquele castelo delicioso no bosque banhado pelo Sena, que ele comprara para prover refúgio para si mesmo e para madame de Mailly; e tendo-o comprado, não resistira a reformálo. Agora estava realmente bonito, com suas decorações azuis e douradas e suas salas espelhadas.

Estava ansioso pela paz que ele e sua amante iriam desfrutar na companhia de alguns amigos escolhidos a dedo. Mas como queria não sentir essas dores de consciência, apesar de que, com certeza, merecesse perdão por seus pecados. Marie, sua rainha, não tinha satisfação física para oferecer-lhe, e ele era um homem saudável de 28 anos.

- Podemos esperar pelos quarenta anos; é uma boa idade para a contrição! - costumava dizer o duque de Richelieu.

Mas Luís tinha uma consciência que vez por outra sabia ser muito incómoda.

Portanto, estava pensativo enquanto caminhava até sua alcova; e ao chegar à ante-sala, ficou estarrecido em ver uma pequena figura correndo até ele.

Os joelhos de Luís foram capturados num abraço apertado enquanto uma voz, embargada de lágrimas, gritava:

- Papai! Papai! É sua madame Adelaide quem veio lhe falar.

Luís levantou a criança nos braços. Havia lágrimas verdadeiras em suas faces. Assim que nivelou o rosto da menininha com o seu, Luís sentiu os bracinhos enrodilharem seu pescoço, e o rostinho quente enterrar-se em suas faces.

- O que atormenta a minha filha mais querida?-perguntou Luís, ternamente.

- Eles vão mandar Adelaide para longe do seu papá.

- E quem vai fazer essa coisa terrível?

- Eles dizem que o senhor vai.

- Eu? Por que mandaria minha querida madame Adelaide para longe de mim?

- Não... não... papai É por isso que o senhor precisa impedi-los antes que eles façam isso. Eles vão nos mandar para as freiras durante anos... e anos e anos....

- É porque vocês precisam aprender lições, minha querida.

- Eu as aprenderia aqui... mais rápido.

- Ah, mas esse assunto já foi muito pensado e discutido. Foi decidido que as freiras serão as melhores professoras para você e as suas irmãs. Não demorará muito para vocês voltarem para casa.

- Anos e anos! - gritou; e se pôs a soluçar alto.

- Calma, pequenina - disse Luís, olhando em torno, esperando que alguém viesse tomar dele a criança atormentada. Mas Adelaide não iria deixá-lo escapar tão fácil. Ela o apertou com mais força e soluçou ainda mais alto.

- Calma, calma! - gritou Luís.

- Mas eles vão me tomar do meu papai... Não deixe, papai. Por favor, por lavor, por favorl

- Mas minha querida...

- O senhor é o rei. O senhor podei

- Adelaide...

A menina começou a golpear o peito de Luís com seus pequenos punhos.

- O senhor pode? Pode? Pode?

- Entenda, Adelaide...

- O senhor vai me mandar para longe e eu vou morrer. Sim, vou morrer, porque não vou conseguir viver longe do meu papai...

E então um choro genuíno aflorou do coração da menininha. Isto não era sofrimento fingido. Era mais velha que as outras crianças e sabia que se partisse para Fontevrault realmente ficaria lá durante anos.

O duque de Richelieu deu um passo à frente e murmurou:

- Majestade, devo mandar chamar a governante de madame?

- Não... não! -gritou Adelaide. - Não vou permitir que meu papai me deixe.

- O que posso fazer? - perguntou o rei, desnorteado.

- Majestade, como a dama declara que não irá soltá-lo, creio que o senhor ou deverá acompanhá-la até Fontevrault ou mantê-la aqui em Versalhes.

- Ou insistir que ela vá sem mim - disse o rei.

- Não creio, majestade, que esteja em vossa natureza recusar o pedido de uma jovem tão bonita.

Adelaide estava alerta, mas continuou chorando e agarrada ao pai.

- Bem, mais uma pessoa em Versalhes não custará tanto ao tesouro - disse o rei. - Vamos, minha filha, enxugue os olhos. Você ficará com o seu papai em Versalhes.

A resposta de Adelaide foi um abraço sufocante.

- Meu vestido novo é da cor dos olhos de Sua Majestade

- disse a menina. - É por isso que gosto tanto dele.

- Como as damas são encantadoras... quando suas exigências são atendidas - murmurou Richelieu.

O rei gargalhou; ele segurou Adelaide bem alto acima da cabeça, de modo que os entalhes no teto pareceram mergulhar para encontrá-la.

- Madame Adelaide, fico tão feliz quanto a senhorita em saber que irá permanecer conosco.

E no dia seguinte Adelaide assistiu às suas quatro irmãs serem conduzidas para Fontevrault em companhia da marquesa de La Lande. Chorou um pouco por perdê-las, mas estava cheia de gratidão porque ficaria no palácio e porque descobrira que, quando quisesse alguma coisa, poderia consegui-la pedindo da maneira e no momento adequados.

As pequenas princesas estavam fora havia um ano, e Adelaide frequentemente esquecia sua existência por dias a fio. Quando pensava nelas, sentia pena das irmãs por estarem naquela abadia velha e sombria. Era muito mais divertido estar em Versalhes onde ficava frequentemente com seu pai. Às vezes ele vinha visitá-la na ala infantil; às vezes ela o acompanhava até os apartamentos do delfim... embora não gostasse tanto disto porque seu irmão era capaz de monopolizar a atenção do pai.

Adelaide adorava seu pai, e todos sabiam dessa adoração. Não que Adelaide tentasse escondê-la. Isso seria tolice. Seu pai era a pessoa mais importante na corte, e enquanto ele amasse sua Adelaide, ela também seria importante.

Em relação à mãe, ela era quase indiferente. A menina já sentira a separação entre o rei e a rainha e concedia sua aliança ao seu pai belo, encantador e todo-poderoso, em vez de à mãe gorda e pia.

Luís estava cada vez mais interessado em seus filhos, porque à medida que deixavam de ser bebés o atraíam mais fortemente. Tanto Adelaide quanto o delfim tinham humor, e ele os admirava por essa qualidade.

Adelaide era uma menininha muito bonita e portanto deliciosa, mas o delfim, sendo seu herdeiro ao trono, era o membro mais importante da família.

Certo dia o rei foi aconselhado de que alguém precisava falar com o menino, porque ele estava ficando teimoso demais. A não ser o rei, ninguém impunha-lhe autoridade. O jovem delfim declarara aos seus tutores que um dia seria rei e que portanto eram eles que deviam acatar suas ordens, não o contrário.

Quando Luís visitou o delfim no andar térreo do grande castelo, o menino de dez anos, vendo seu pai aproximar-se, fez-lhe

uma mesura.

O rei sorriu. O delfim costumava saudar seu pai saltando em seus braços e pedindo para passear sentado em seus ombros. O delfim estava amadurecendo e adquirindo dignidade.

Luís tentou lembrar de si mesmo com a idade de dez anos. Como se comportava naquela época? Era tão prepotente quanto o delfim? Ele achava que não; mas se tivesse sido, em seu caso havia uma desculpa, porque então já era rei.

- Bem, meu filho, ouvi relatos de sua conduta.

O delfim virou-se para o seu tutor, que estava parado ali perto, e disse:

- Deixe-nos a sós.

O tutor olhou para o rei, e Luís meneou a cabeça para confirmar a ordem do menino. O delfim sabia que ele ia ser repreendido e não queria que isto acontecesse diante de seu tutor. Quando o tutor havia se retirado, o rei se sentou e, puxando o menino para si, disse:

- Aquele era o homem que você esbofeteou no rosto?

- Sim, papai Ele mereceu!

- Na sua opinião ou na dele? O menino fitou Luís, estarrecido.

- Ele é um homem que não escuta a razão - disse, arrogante.

O rei precisou se esforçar para não rir.

- A sua razão, naturalmente.

- A razão!Adisse com firmeza o delfim.

Luís riu.

- Meu filho, um dia você irá governar este reino. Um rei que não escuta seus conselheiros não é um rei sábio.

- Estou pronto para ouvir, papai

- Ouvir não é o bastante - disse o rei. - Os conselhos precisam ser considerados e, em geral, quando se é muito jovem, seguidos. Quando eu tinha a sua idade...

A expressão do menino mudara. Ele se aproximou mais do pai.

- Conte-me, pai, sobre como o senhor era quando menino. Conte-me sobre o dia em que foi carregado para a Grande Chambre e pediu o chapéu do arcebispo, ou quando ordenou que o pequeno Blanch et Noir comparecesse aos encontros do conselho.

Luís contou ao menino, projetando-se de volta àqueles dias de sua infância, torcendo para que, ao fazer isso, desse a este menino, destinado a ser rei da França, um vislumbre dos deveres reais.

Os olhos do menino brilhavam enquanto ouvia seu pai. Quando Luís terminou, o delfim disse:

- Papai, eu preferia que o senhor fosse o meu tutor, em vez do abade de Saint-Cyr...

- Entendo, meu filho. Para que você pudesse esbofetear meu rosto, não é?

- Eu jamais faria isso - disse o menino solenemente.

- Mesmo se eu não ouvisse a sua razão?

- Eu amaria tanto o meu tutor que a razão não importaria - disse o menino.

Luís nunca conseguia deixar de se gabar da inteligência de seu filho. Ele contava aos cortesãos tudo que o delfim dizia, até sentir que já tinha se repetido muito. Luís estava se tornando um pai carinhoso, e infinitamente orgulhoso de seu delfim.

Algumas pessoas argutas começaram a pedir ao menino que intercedesse por elas junto ao rei. O jovem delfim, gostando de se sentir importante, satisfazia a vontade dessas pessoas. E como Luís queria que toda a corte soubesse de sua estima pelo filho, invariavelmente atendia a esses pedidos, a não ser quando absurdos, é claro.

Era encantador ter uma família na corte. Luís frequentemente lamentava a ausência das quatro menininhas que estavam em Fontevrault. As gémeas o deliciavam, e era triste pensar que elas estavam se aproximando da idade em que casamentos lhes seriam arranjados.

Louise-Elisabeth e Anne-Henriette estavam com doze anos, e dom Filipe, o filho de Filipe V e sua segunda esposa Elisabete Farnese, procurava por uma noiva.

com sete filhas para quem era preciso encontrar maridos, o problema do casamento precisava ser resolvido cedo. Uma das gémeas tinha de ir para a Espanha.

As gémeas sabiam disso e estavam muito nervosas.

Elas gostavam de caminhar juntas nos jardins do castelo, conversando sobre o futuro depois que fossem separadas.

Num dia do ano de 1739, estavam caminhando sob as limeiras quando Louise-Elisabeth disse:

- O embaixador espanhol tem conversado muito com papá. Anne-Henriette fez que sim com a cabeça. Elas fitaram o lago

artificial com seus ladrilhos de porcelana nos quais pássaros pintados pareciam tão naturais que podiam ser reais.

Ela não disse que ele tinha vindo falar com o pai delas naquela manhã, e que agora estava trancado com ele, o cardeal e outras pessoas importantes. Ela estava com medo, porque Louise-Elisabeth era considerada a mais velha e tinha certeza de que se este casamento fosse arranjado, seria para sua irmã e não para ela.

- Gostaria de saber como é a Espanha - disse ela. Quando Louise-Elisabeth respondeu, houve um tom de histeria na sua voz:

- Eles dizem que é muito solitário lá.

- Isso faz muito tempo. O rei é parente nosso. Ouvi dizer que a corte da Espanha é mais francesa do que espanhola desde que os Bourbons assumiram o governo.

- Parece-me natural que seja assim - disse Louise-Elisabeth, olhando para as pedras cor de mel do castelo que era o seu lar, e sentiu um grande amor por ele e por tudo que continha.

- Talvez lá não seja muito diferente de Versalhes - prosseguiu sua irmã.

- Mas você não estaria lá... nosso irmão e nossa mãe não estariam lá. E papai... Haverá outro rei lá... e não papai! Imagine isso! Você consegue? Eu não. Um rei que não seja nosso pai.

- Talvez ele também seja muito gentil.

- Ele não pode ser como o nosso pai - disse LouiseElisabeth, um soluço preso na garganta.

- É possível acostumar-se a ele. E um dia se tornar rainha da Espanha.

- Não, existem muitos filhos antes de dom Filipe - disse Louise-Elisabeth.

Mas sua irmã notou que seus olhos tinham começado a brilhar, e ela se sentiu satisfeita com isso.

A gentil Anne-Henriette sofreria mais se fosse arrastada de sua casa. Ela não tinha o desejo por poder de Louise-Elisabeth. A gémea mais velha tinha sido sempre a mais imperiosa, a mais ambiciosa, a líder. Anne-Henriette nunca tivera qualquer problema em obedecer àqueles a quem amava.

Agora ela acreditava que, se uma delas precisava ir, seria melhor que fosse Louise-Elisabeth. Ela ficaria infeliz durante algum tempo, mas logo começaria a fazer do novo país seu lar. Em contrapartida, se ela, Anne-Henriette, fosse ordenada a deixar Versalhes, seu coração ficaria partido. Ela ficaria muito triste ao se despedir de Louise-Elisabeth, mas pelo menos o resto da família ficaria com ela. Ela poderia curar a dor em sua casa linda e amada. com o tempo, ficaria curada do sofrimento.

Ela rezou para que, caso se casasse, fosse com alguém que morasse aqui. Talvez isso não fosse uma impossibilidade.

Louise-Elisabeth continuou a falar sobre a Espanha. Ela estivera lendo sobre esse país. Dizia-se que Elisabete Farnese nutria grandes ambições para os seus filhos e que ela comandava o rei.

Ela já está planejando, pensou Anne-Henriette.

Então ela sorriu, pois ouviu alguém vindo em sua direção e, antes mesmo de vê-lo, Anne-Henriette presumiu que era o jovem duque de Chartres, o neto do falecido regente, o duque de Orléans.

Ele era muito bonito; de fato, aos olhos de Anne-Henriette, ele era a pessoa mais bonita na corte, comparado favoravelmente até com o seu pai. Ele fez uma mesura para as princesas.

- Madame Première, Madame Seconde! - murmurou.

- Saudações nesta bela manhã. : Ambas as princesas sorriram para ele, mas seus olhos demoraram sobre Anne-Henriette.

- Espero que eu não esteja interrompendo nada - disse o duque. - Posso caminhar com a senhorita?

Anne-Henriette olhou para a irmã.

- Mas é claro - disse rapidamente Louise-Elisabeth; e ficou evidente que seus pensamentos estavam com a conferência no palácio e não com esses assuntos triviais.

- Hoje está havendo muita atividade no palácio, monsieur de Chartres - disse Anne-Henriette.

- É verdade, madame.

Um olhar de ansiedade surgira em seus olhos; ele continuou a fitá-la como se não percebesse a presença de madame LouiseElisabeth.

Quando o duque de Chartres havia se juntado às meninas, suas gouvemaníe e sous-gouvemante, que as vinham mantendo sob vigilância a uma certa distância, aproximaram-se; mas antes que alcançassem o pequeno grupo, um pajem esbaforido correu até elas.

Tanto as princesas quando o duque de Chartres pareceram perder a respiração, esperando pelas palavras do pajem que, elas acreditavam, poderia contar-lhes muita coisa.

- O que você quer? - inquiriu Louise-Elisabeth.

- Madame... - Ele fez uma pausa, e a todos eles pareceu que seu silêncio se estendeu por um longo tempo; mas isso foi uma ilusão. Finalmente, ele disse:

- Madame Louise-Elisabeth, Sua Majestade deseja falar imediatamente com a senhorita.

A tensão relaxou. Louise-Elisabeth respondeu com um meneio de cabeça. Ela começou a acompanhar o pajem pelo gramado, de volta ao palácio, em seu caminho para a Espanha e talvez a honra e a glória.

Anne-Henriette observou-a afastar-se. Ela não percebeu que as mulheres agora tinham se juntado a ela. Estava apenas ciente da beleza de Versalhes e da alegria intensa nos olhos do jovem duque de Chartres.

Na abadia de Fort Royal uma jovem tricotava furiosamente. com uma expressão concentrada, ela fazia a agulha mergulhar e aflorar da peça.

Ela tinha ordenado a uma das jovens, que também estava no convento e em posição semelhante à sua, que viesse falar com ela. Pauline-Félicité de Nesle sempre comandava e, estranhamente, os outros obedeciam. As conversas que ocorriam entre ela e suas companhias eram geralmente monólogos interrompidos apenas por exclamações de admiração, surpresa ou comentários monossilábicos. Ela não permitia mais que isso. Agora ela estava dizendo:

- Você sabe que tenho vinte e quatro anos? Vinte e quatro! E estou trancada num lugar como este. Querem de mim que eu seja calada, modesta e satisfeita com o que a vida me deu. Satisfeita! Eu, Pauline-Félicité de Nesle, condenada a passar o restante de meus dias aqui! Não é ridículo?

Fez uma pausa para sua companhia poder fazer que sim com a cabeça; o que aconteceu rapidamente.

- Tudo isto... enquanto a minha irmã está na corte. E ainda por cima não como uma humilde dama de companhia. Minha irmã poderia reger a França, se quisesse. Ela só não o faz porque é uma tola. Louise-Julie é a amante do rei. Pense nisso. Imagine os prazeres dos quais ela desfruta... e compare sua vida com a minha. Só uma tola gostaria de viver como eu. Eu não sou uma tola. Você acha que sou uma tola?

- Claro que não, mademoiselle de Nesle.

- Então por que devo estar aqui, tricotando bobagens como esta? Orando? Vendo a minha juventude passar? As amantes dos reis deviam ajudar suas famílias. É um dever. Se eu estivesse no lugar de Louise-Julie... mas não estou. E por que não estou? Eu lhe digo: por falta de oportunidade. Ela desposou o nosso primo, o conde de Mailly, e ele a levou para a corte. Se eu fosse a filha mais velha, eu teria casado com o conde e ido para a corte. E lhe digo, se isso tivesse acontecido, a mulher mais importante da corte seria agora Pauline-Félicité, e não Louise-Julie. Concorda comigo?

- Oh, sim, mademoiselle de Nesle.

- E se eu fosse a amante do rei, não ficaria satisfeita em permanecer por trás dos panos. Eu governaria a França. Eu daria a Fleury, aquele velho idiota, o seu congé, porque é ele, e não a minha irmã, quem governa o país. Todo mundo sabe que é a amante do rei quem deve reger, e não algum ministro velho e estúpido que já devia estar debaixo de sete palmos de terra. Oh, se eu estivesse no lugar da minha irmã, as coisas seriam muito diferentes na corte. Você acredita nisso?

- Oh, sim, mademoiselle de Nesle - disse a jovem, que olhando para ela, pensou: Oh, não, mademoiselle de Nesle.

Pauline-Félicité não se via como os outros a viam. Ela, de forma alguma, era provida de qualquer beleza. Era muito alta e, de fato, muito feia, embora fosse uma feiúra que atraísse atenção. Era impossível estar numa sala com Pauline-Félicité, a despeito de quantos mais estivessem presentes, e não notá-la. Ademais, ela era inteligente. Ela sabia muito mais sobre os casos do país do que qualquer outra pessoa no convento. Ela tomava como obrigação saber, como se isso fizesse parte de um grande plano. Todo mundo ficava pasmo com ela - até a madre superiora, porque sua língua era rápida e arguta e ninguém conseguia escapar dela.

Portanto, era necessário continuar dizendo: "Oh, sim", ou "Oh, não" mademoiselle de Nesle, sempre que a feroz PaulineFélicité exigia.

- vou lhe contar o que pretendo fazer - disse PaulineFélicité. - vou escrever para a minha irmã e lembrá-la de seu dever. vou dizer a ela que precisa providenciar minha ida à corte sem delongas. É uma expressão cética que vejo no seu rosto?

- Oh, não, mademoiselle de Nesle.

- Estou feliz por isso, porque senão depois você iria se sentir estúpida. Você iria se sentir muito estúpida quando o meu convite chegasse, não iria? Decidi que não devo mais perder tempo. Escreverei imediatamente para a minha irmã. Aqui... você pode terminar esta peça de tricô para mim.

Pauline-Félicité jogou o seu trabalho no colo de sua companhia e saiu marchando do aposento.

Uma atmosfera tensa pairava nos círculos íntimos da corte.

Luís ainda prestava ocasionalmente visitas noturnas à rainha, que ainda tentava com todas as suas forças evitá-lo. Frequentemente Luís bebia demais nos jantares e se via abandonado por sua prudência.

Marie engravidara mais uma vez, mas devido ao excesso de esforço acabara sofrendo um aborto. Seus médicos achavam que ela havia gerado filhos demais com muita rapidez. Marie também achava e, em uma ocasião em que Luís foi ao seu quarto, ocorreu uma cena que não foi testemunhada por nenhum membro da corte, porque se deu nas primeiras horas da manhã. Tudo que os servos do rei souberam foi que ele saiu do quarto da rainha parecendo ter chegado a uma decisão.

Eles estavam certos. Luís decidira que dali em diante todas as relações conjugais deveriam cessar, e assim Louise-Marie permaneceria a princesa mais recente, madame Dernière.

Dessa data em diante seu relacionamento com madame de Mailly não mais seria mantido em segredo. As pessoas precisariam compreender que, como a rainha precisava não mais ter filhos, o rei tinha o direito de possuir uma amante. O povo da França era muito indulgente com esses assuntos.

Ainda que agora fosse reconhecida como amante do rei, Louise-Julie estava inquieta. Ela sentia que o rei dependia dela um pouco menos do que antes, e que se ele não tivesse um coração tão bom a teria abandonado por outra mulher. Ardorosamente apaixonada por ele, ficava muito mais feliz quando podia viver com Luís no isolamento relativo do castelo de Choisy do que em Versalhes, onde eles ficavam expostos a todos.

Louise-Julie sabia que estava cercada por homens e mulheres que invejavam sua influência sobre o rei da França. Sempre atentas para o menor sinal de perda de interesse de Luís por sua amante, centenas de cortesãs aguardavam uma oportunidade para tomar o seu lugar.

Mas Luís mantinha-se simples de coração. E à medida que amadurecia, era cada vez mais atormentado por sua consciência. Ele teria de estar muito enamorado de outra mulher antes de dispensar sua amante atual.

Estranhamente, a mulher a quem Louise-Julie mais temia era a recém-viúva condessa de Toulouse. Ainda que gordinha e bem avançada na meia-idade, a condessa ainda era uma mulher atraente. Ela já havia abordado Luís timidamente; ela não procurava tornar-se sua amante, pois se sentia como uma mãe para ele. Luís agora estava sempre em Rambouillet, porque a condessa, por ocasião da morte de seu esposo, implorara a Luís que cuidasse dela e de seu filho.

Era uma mulher inteligente, essa condessa, pois sabia que os condes estavam planejando roubar o título de seu filho. Seu marido, o conde, fora o filho ilegítimo de Luís XIV e madame de Montespan, e seu pai o legitimara. Agora que ele estava morto, diziam os condes, não viam por que o filho deveria ser considerado como detentor de laços legítimos com a família real. Madame condessa estava disposta a lutar com toda sua astúcia para preservar o título de seu filho, o duque de Penthièvre, e se o amor maternal que estava preparada para dar ao rei se tornasse outro tipo de amor, ainda melhor para os Toulouses.

com toda certeza, ela fora bem-sucedida. Não apenas o jovem duque fora nomeado príncipe de sangue, como a condessa recebera um aposento especial em Rambouillet, ao lado dos aposentos do rei - um refúgio, como ela o chamava, ao qual Luís podia recorrer quando se sentisse oprimido por deveres de Estado e precisasse de um pouco de carinho maternal.

O próprio Luís estava se sentindo muito triste, porque estava na hora de sua filha Louise-Elisabeth sair de casa para seu casamento com o infante dom Filipe.

Luís assistira com apenas um leve pesar à partida das filhas menores: elas eram tão jovens que ainda não tinham capturado completamente seu afeto. Mas foi muito diferente ver a princesa de doze anos partir, particularmente porque ele testemunhou a dor de Anne-Henriette e da pequena Adelaide, às quais começava a amar tão profundamente.

Ultimamente, Luís tinha estado doente e nervoso. O tédio começava a tomar posse de seu coração. A vida parecia seguir um padrão monótono, e até a caça, o jogo, o amor maternal da condessa de Toulouse e a paixão de Louise-Julie de Mailly não conseguiam salvá-lo desta preguiça mesclada com melancolia.

Certo dia, Louise-Julie lhe disse:

- Luís, tenho recebido muitas cartas de minha irmã mais nova. Ela quer vir à corte.

Luís fez que sim com a cabeça, desinteressado.

- Ela escreve cartas muito divertidas. Pauline-Félicité nunca fez o tipo tímido. Veja só como sua caligrafia parece embebida de ousadia. E veja a frequência com que se refere a si mesma: eu, eu, eu! Veja, o pronome está espalhado por toda a página.

Luís pegou a carta e a leu. Ele abriu um leve sorriso.

- Ela está mesmo animada - concordou.

- Posso convidá-la à corte?

- Seria uma grosseria negar-lhe uma coisa que ela claramente deseja de coração.

- Escreverei hoje mesmo para ela - disse Louise-Julie. Acho que você irá considerá-la um tanto extravagante... e muito diferente de todos aqui.

- Será uma mudança - disse Luís, bocejando em seguida. Louise-Julie viu que ele não estava realmente interessado em

sua irmã. Será que isso significava que Luís também não estava mais interessado nela?

Pauline-Félicité varreu a corte como um tornado. Decerto, diziam os cortesãos, jamais houvera mulher tão feia que se desse tantos ares de importância. Mas precisavam admitir que era uma feiúra que não poderia ser ignorada. Era uma feiúra tão arrebatadora que Pauline-Félicité tornou-se automaticamente um imã de atenção.

O dom dessa senhora para as palavras era inegável. Não demorou uma semana para que toda a corte estivesse citando as coisas que ela dizia. Ela não respeitava posto ou título, e fazia comentários ácidos até sobre o rei.

- O rei passou toda a sua vida controlado por cordões declarou. - O que importa quem manipula os cordões? Ele é controlado pela idade avançada, pela meia-idade e pela juventude... pelas mãos anciãs do cardeal, pelas mãos maternais de madame de Toulouse e pelas mãos amorosas de minha irmã. Como seria divertido se Sua Majestade escapasse dos cordões e aprendesse a engatinhar sozinho!

Esses comentários foram repassados ao rei. Quando, num de seus jantares íntimos, Luís a viu próxima a ele, convidou-a a sentar-se ao seu lado.

- A senhorita é uma mulher de língua solta - disse a ela.

- Eu falo a verdade - retorquiu. - É mais estimulante do que mentiras, que podem ser tediosas. Vossa Majestade deve saber disso, porque é constantemente alimentado com mentiras.

Luís sorriu.

- Acredito que em certas ocasiões senti um leve sabor de verdade em minha dieta.

- Apenas uma especiaria. Porém, mais pitadas dela não lhe fariam mal.

- Para tornar a refeição mais saborosa - murmurou Luís.

- Sim. Resta saber se Vossa Majestade não perdeu o paladar para a verdade, depois de saborear quase nada além de lisonjas e mentiras.

- Como a senhorita sabe tanto a meu respeito?

- Apesar da sua coroa, Vossa Majestade não é nada além de um homem. Portanto, empregando o meu conhecimento de homens aprendo um pouco sobre Vossa Majestade.

- Há muitas pessoas aqui que a consideram insolente, mademoiselle de Nesle.

- Mas todos me consideram interessante. Vossa Majestade vê como eles se esforçam para ouvir o que estou dizendo?

- Será que o esforço não é para ouvir o que eu estou dizendo?

- Não, basta que Vossa Majestade esteja falando comigo. Não é preciso nenhum esforço para ver isso. Mas o que ouso dizer a Vossa Majestade é do máximo interesse.

- Então as freiras no convento ensinaram a senhorita a dizer a verdade?

- De forma alguma! Elas me ensinaram protocolo, boas maneiras e como bordar flores numa peça de lona. Era insuportável.

- E a senhorita queria conhecer a corte? Ela ergueu os olhos para o rosto de Luís.

- Não, eu queria conhecer Vossa Majestade - disse, ousada.

O rei estava excitado. Ela era suficientemente parecida com a irmã para lhe interessar. O fato de que estivesse longe de ser bonita acrescentava um tempero picante à atração. Havia na corte tantas mulheres bonitas aguardando uma vaga em sua cama, que Luís frequentemente voltava a sentir o impulso que conhecera na meninice, aquele desejo fervoroso de fugir das pessoas. Mas não queria escapar de mademoiselle de Nesle. Ela o divertia, e Luís descobriu que sua companhia jamais o entediava.

Agora Luís precisava vê-la todos os dias. Isso deixou Fleury nervoso, madame de Toulouse furiosa, e madame de Mailly arrasada de tristeza, porque o inevitável acontecera. Luís não mais estava apaixonado por sua amante. A irmã de madame de Mailly tomara seu lugar no coração do rei da França.

Agora Pauline-Félicité era uma visita constante aos petits appartements, e nos jantares íntimos o seu lugar era ao lado do rei.

A prevalência de Pauline-Félicité sobre o rei pasmava a todos. Parecia incrível que Luís, que por toda a vida fora acostumado a lisonjas, ficasse tão encantado com uma mulher cujas características mais atraentes eram a franqueza e a língua cáustica.

Quando foi anunciado que mademoiselle de Nesle estava para se casar, toda a corte compreendeu o que isso significava. A jovem era agora a amante do rei, e os reis sempre tomavam por amantes mulheres casadas; e quando por acaso apaixonavam-se por descasadas, concentravam todos os seus esforços em desatolá-las do celibato.

Félix de Vintimille, que era filho do conde du Luc, foi selecionado para a honra de se tornar o esposo da favorita do rei. A cerimónia foi realizada pelo arcebispo de Paris que, tio do noivo, estava deliciado com o rumo dos eventos, pois a família não perderia nada associando-se dessa forma ao rei.

Luís compareceu ao casamento e assumiu uma parte proeminente na cerimónia hilária de colocar o casal na cama. Esta cerimónia foi ainda mais farsesca que o usual, porque foi o rei quem assumiu o lugar do noivo, e foi o conde de Vintmille quem depois foi conduzido na carruagem real.

Agora Pauline-Félicité começava a concretizar suas ambições. No curto tempo desde que chegara à corte conquistara a primeira. Os seus planos não acabavam ali. Ela agora era madame de Vintimille, com um marido apenas no nome; era a amada do rei e pretendia livrá-lo da influência daquele cardeal senil e acender seu interesse pelos assuntos do reino, nos quais obviamente ele agiria sob seus aconselhamentos.

Madame de Vintimille estava acompanhando com grande interesse os acontecimentos no exterior.

O imperador Carlos VI da Áustria havia morrido. Ele era o último descendente homem do grande imperador Carlos V, e portanto não tinha filho para sucedê-lo. Contudo, tinha uma filha, Maria Theresa, que recentemente casara-se com o duque François da Lorena.

Maria Theresa tinha 23 anos de idade, e sabendo que um dia herdaria os domínios do pai, preparara-se para esse dever. Jovem inteligente, determinada a conduzir seu país à grandeza, estava plenamente cônscia das dificuldades que a cercavam. A guerra da sucessão polonesa enfraquecera imensamente a nação - o exército fora reduzido e o tesouro sangrado.

Seu império era amplo mas espalhado. Consistia na Áustria, Hungria e Boémia, e tinha posses na Itália e na Holanda. Era sábia o bastante para saber que essas posses espalhadas ofereceriam grandes dificuldades ao seu governante.

Ademais, havia muito que, crendo possuir direito sob o Império Austríaco, argumentavam que seu governo não deveria ser entregue às mãos de uma mulher. Augusto in, que agora era não apenas o rei da Polónia como também o eleitor da Saxônia, exigiu assumir o governo sob a alegação de que sua esposa era sobrinha do imperador Carlos VI. Charles-Albert, o eleitor da Baviera, clamou seu direito ao trono através da avó, que também era sobrinha de Carlos VI.

Quando a nobreza tomou tenência dessas requisições ao trono, outras surgiram. Entre os nobres que clamaram seu direito ao governo do Império Austríaco estiveram Carlos Emanuel da Sardenha, Filipe V da Espanha e Frederico II da Prússia.

Não era de espantar que a jovem visse problemas para onde quer que olhasse; mas ela sabia que seu inimigo mais formidável era Frederico da Prússia.

Frederico foi o primeiro a agir. Ele reclamou a Silésia e ofereceu dinheiro e uma aliança a Maria Theresa em troca do território, mas Maria Theresa, jovem e idealista, retorquiu que seu dever era defender seus súditos, e não vendê-los.

Era por isto que Frederico estava esperando. Ele deu aos seus exércitos a ordem de marchar para a Silésia.

Até agora a França mantivera-se afastada do conflito e Fleury, agora beirando os noventa anos, pretendia manter a situação assim. Mas havia na França homens com outras ideias; homens que eram jovens e apaixonadamente ávidos por aumentar a glória de seu país. Agora que os meios para fazer isso tinham se apresentado, um grupo poderoso, liderado por Charles Louis Auguste Fouquet, o conde de Belle-Isle, levantou-se em oposição ao cardeal, e decidiu colocar Charles-Albert, eleitor da Baviera, no trono imperial.

Sob a influência de madame de Vintimille, o rei pôs-se ao lado dos jovens ávidos por guerra.

Fleury protestou, mas não pôde fazer nada mais que isso. Os franceses estavam prontos para se levantar contra a odiada Áustria, e o país estava a favor da guerra.

O resultado foi um tratado entre Prússia, Baviera e França, e o exército francês foi mandado para fazer guerra contra a Áustria.

O rei, agora visivelmente sob a influência de sua amante, acompanhou o progresso da guerra com entusiasmo. Madame de Vintimille atiçava o interesse de Luís, que logo percebeu que seu tédio estava diminuindo.

Havia uma situação que madame de Vintimille estava determinada a mudar, embora soubesse que essa seria a mais difícil de todas as suas missões. Por mais que tentasse remover Fleury da corte, o rei permanecia firme em sua determinação de manter o velho no cargo.

- Ora, madame, ele é um velho - argumentou Luís.-Eu partiria o seu coração se o expulsasse da corte.

- Então a França deve ser destruída em benefício do coração de um velho idiota!

- Fleury não é idiota.

- Oh, não é não! - escarneceu. - Ele é tão alerta e viril quanto se poderia esperar... de um homem de noventa anos!

- Ele ainda não completou noventa - disse Luís, rindo.

- Ora, vamos falar de outros assuntos.

- Então Fleury permanece? - perguntou madame de Vintimille, quase desafiadora.

Mas a expressão de Luís foi igualmente desafiadora.

- Fleury permanece - repetiu.

Madame de Vintimille ficou furiosa. Odiava ter suas vontades frustradas. Além disso, a posição de Fleury fora fortalecida pela morte recente do duque de Bourbon, aquele inimigo a quem o cardeal dispensara da corte. Fleury jamais se sentira seguro com Bourbon na corte; sabia que monsieur lê Duc não esquecera a humilhação terrível sofrida em suas mãos. O duque de Bourbon não era um velho ao morrer, estando com apenas 47 anos, mas criara para si uma reputação ridícula em seus últimos anos, devido ao ciúme doentio por sua esposa. Durante anos, o duque fora abertamente amante da condessa de Egmont, mas ficou furioso quando sua esposa tomou um amante em retaliação, e criou um grande escândalo ao fazê-la prisioneira numa sala trancada no topo de seu castelo.

Madame de Vintimille tinha certeza de uma coisa: ela não permitiria que muitos meses se passassem antes que Fleury recebesse a temida lettre de cachet.

Nesse ínterim, sua atenção foi levemente distraída ao descobrir que estava grávida.

Deliciada, levou a notícia ao rei.

- Nossa criança será um menino! - garantiu a amante do rei.

Luís ficou maravilhado.

- Tenho certeza de que você está certa - disse. - A Providência não ousaria frustrar seus desejos num assunto como esse.

Assim, durante os meses que se seguiram madame de Vintimille esteve constantemente ao lado do rei. Sua arrogância não incomodava Luís, que admirava sua mente alerta e apreciava sua sinceridade.

Ela era inteligente e sem dúvida sua mente brilhante colaborava para o estudo dos assuntos do reino. Luís descobriu que, com ela ao seu lado nesses momentos, a posição de rei, embora trouxesse ansiedades, era muito interessante.

Embora os dois brigassem frequentemente, ela significava para Luís mais do que qualquer outra mulher até aquele ponto de sua vida, e ele estava ansioso pelo nascimento da criança.

- Você é amarga e maliciosa! - disse-lhe Luís em certa ocasião. - Sabe o que a curaria disso? Ter a sua cabeça cortada. Você tem um pescoço comprido demais. Cortá-lo lhe faria bem. O seu sangue deve ser drenado e substituído por sangue de ovelha.

- Que besteira você está falando! - exclamou madame de Vintimille. - Sem cabeça, que uso eu teria para você? E se você quer uma mulher que concorde humildemente em todas as ocasiões, apenas diga, e retornarei para a abadia de Port Royal.

Luís riu dela.

- Você preferiria morrer a isso. Ah, descobri uma forma de vingança: mandá-la de volta para o seu convento.

- Muito bem, mande-me de volta para o convento e o mandarei de volta para o tédio.

Foi uma boa resposta e Luís achou-a divertida.

- Jamais irei mandá-la de volta - disse Luís. - Você permanecerá ao meu lado para sempre.

Então ela sorriu, pensando nas honras que seriam concedidas ao filho que ela podia sentir mover-se em sua barriga.

Era agosto do ano de 1741, e madame de Vintimille fez todos os preparativos necessários para o seu confinamento. Ela queria que o nascimento de seu filho fosse mais imponente que o de um delfim. Aquele menino mimado que morava na ala infantil estava agora com doze anos, e era dado a caminhar para cima e para baixo de peito estofado e queixo erguido. Sua petulância era irritante.

Alguns dias antes do previsto para o nascimento da criança, madame de Vintimille estava no castelo de Choisy quando sentiu-se subitamente tão exausta que se retirou para a sua cama. Quando as aias viram-na tão abatida, ficaram alarmadas. Suas dores de parto tinham começado? Não, elas não começaram, respondeu a amante do rei. Ela apenas sentia-se cansada. Ela iria descansar e estaria bem pela manhã.

As aias notaram que madame de Vintimille começou a tremer, e que suas mãos estavam ardendo.

- Madame está febril - disse uma.

- Não é desejado que isso aconteça... num momento como este.

- Ora, ela irá se recuperar. Se madame de Vintimille está determinada a ter uma criança saudável, como poderá acontecer outra coisa senão isso?

Mas durante a noite os servos ficaram preocupados. Ela estava delirando um pouco e parecia achar que era a simples mademoiselle de Nesle, vivendo num convento.

Pela manhã o rei foi visitá-la e ficou horrorizado ao vê-la. Ela nem ao menos o reconheceu.

- Ela não pode permanecer aqui - disse o rei. - Precisa ser levada para Versalhes. Lá ela contará com os melhores cuidados possíveis. Sua criança deve nascer lá.

Assim, improvisou-se uma liteira e madame de Vintimille foi levada de Choisy para Versalhes. Quando foi levada ao castelo, o cardeal de Rohan apressou-se em colocar seus aposentos à sua disposição, e ela foi acomodada enquanto o rei convocava seus doutores.

Ficou deitada por uma semana, ardendo de febre nesse estado de exaustão. Ao final desse tempo, sua criança nasceu.

Um menino. Naturalmente, disse a corte. Como poderia ser outra coisa quando madame decidira que seria assim? Agora ela iria recuperar-se.

Mas ela continuava num estado de semi-esquecimento, e foi necessário que outros cuidassem da apresentação ao mundo deste menino a quem sua mãe planejara com tanto cuidado. Caso estivesse consciente, ela não teria ficado satisfeita com essa recepção. O conde de Vintimille fez um protesto de que a criança, a quem eles iriam batizá-la como dele, decerto não era seu filho. Luís, entretanto, comandou que ele retirasse esse protesto. Monsieur de Vintimille o fez a contragosto, mas seus parentes importantes, o cardeal de Noailles e o marquês de Luc, estavam presentes no batismo.

Mesmo assim, madame de Vintimille não se recuperou. Ao invés disso, seu estado de saúde piorou a olhos vistos, e menos de uma semana depois do nascimento de seu filho, ela morreu.

Luís ficou abismado. Ela sempre fora tão cheia de vida, e a relação tempestuosa do casal durara tão pouco! Ele não conseguia encarar ninguém; queria estar a sós com a sua dor. Chorava copiosamente, recordando cenas de sua vida juntos. A missa foi rezada no quarto dele, porque ele não podia encarar seus amigos neste primeiro estágio de sua agonia.

A rainha visitou-o em seu apartamento. Gentilmente, ela expressou sua simpatia:

- Sei o apreço que você nutria por madame de Vintimille. O rei fitou-a com olhos cansados de chorar.

- Luís, você não pode se render à dor dessa forma - disse a rainha. - Você tem os seus deveres.

Luís olhou para ela, quase zangado.

- Ela era jovem... Ela tinha mais vitalidade do que o resto de nós. Por quê? Por quê?

- Deus tem seus motivos - disse a rainha, significativamente.

Luís fitou-a, horrorizado. Então disse:

- Agradeço sua visita. Mas ficarei mais feliz sozinho. Marie se retirou, mas Luís ficou refletindo sobre o que ela

dissera. Seria esta a vingança de Deus, sua punição pelo pecado que ele e madame de Vintimille tinham cometido? Então ele esqueceu seus próprios medos na contemplação de sua amante, fulminada pela morte sem tempo para a contrição. O que estaria acontecendo com ela agora? Ele ainda estava vivo; tinha tempo para fazer a sua contrição. Mas e ela?

Luís estava com o coração pesado de remorso.

Eu não devia tê-la tomado como amante, disse a si mesmo, esquecendo a determinação de madame para ocupar esse posto. Se eu não tivesse feito isso, ela teria retomado para o seu convento... tão pura quanto fora ao chegará cone. E este era mais um remorso para punir Luís.

O rei recebeu outra visita. Foi a condessa de Toulouse, que o abraçou com seu afeto meio sensual, meio maternal, que ela jamais deixava de oferecer em cada ocasião possível.

- Meu amado rei - murmurou. - O que posso fazer por Vossa Majestade? Como posso confortá-lo?

Houve conforto em chorar nos braços maternais de madame de Toulouse.

Madame de Mailly também foi vê-lo. Ela ficou parada a uma certa distância, olhando para ele, e subitamente ele soube que, de todas as simpatias que lhe tinham sido oferecidas, esta da amante descartada foi a mais sincera.

- Então você voltou - disse Luís, envergonhado.

- Sim, Luís, como farei sempre que considerar que posso lhe ser útil.

- Você é bem-vinda.

Madame de Toulouse não ficou feliz em ver madame de Mailly recebida de volta, mas era sensata demais para demonstrar isso.

- Juntas, devolveremos a felicidade ao seu coração, meu querido - disse madame de Toulouse.

- Não posso mais ficar aqui... perto do leito de morte dela

- disse Luís.

- Então vamos para longe - disse madame de Toulouse.

- Devemos partir imediatamente. Vamos para Saint-Léger. Lá estaremos em paz.

- Obrigado, minhas queridas - disse o rei.

Em Saint-Léger, Luís prosseguiu seu luto.

Ficava sentado por horas a fio pensando em seu breve caso amoroso com aquela mulher notável. Luís disse a si mesmo que jamais haveria outra como ela; e embora o amor maternal de madame de Toulouse e a devoção altruísta de madame de Mailly o confortassem, nada que elas faziam podia tirá-lo de sua melancolia.

Luís ficou horrorizado ao ouvir que, quando o cadáver de sua querida amante fora retirado do palácio, embrulhado em sua mortalha, uma turba nas ruas o havia roubado e mutilado.

Os plebeus lembraram de seus sofrimentos, e acreditaram que as extravagâncias das amantes do rei apenas os aumentavam. Eles não culpavam seu belo rei que, aos seus olhos, nada podia fazer de errado; mas com o pão escasso e grandes famílias para alimentar, eles precisavam de um bode expiatório.

A dor de Luís arrefeceu para melancolia. Madame de Mailly ofereceu-lhe o grande conforto que ela sabia prover, mas ele se negou a isso.

A partir de agora, decidiu Luís, ele iria mudar seu estilo de vida. Ele ia viver virtuosamente. Como sempre, sua amada madame de Vintimille mostrara-lhe o que precisava fazer, só que agora o fizera com sua morte.

- Fico satisfeita com sua amizade, meu querido - disse madame de Mailly. - Mas o relacionamento entre nós não precisa ultrapassar isso. A partir de agora irei me abster de todos os prazeres carnais. Espero que assim eu possa expiar os pecados de minha irmã... e os meus próprios.

E assim transcorreram várias semanas em Saint-Léger.

 

Aos olhos de mulherengos como o duque de Richelieu, um rei penitente significava uma corte tediosa. Além disso, homens ambiciosos - como o duque tinha tempo para ser quando não estava desfrutando de seus amores - sempre sonhavam em promover alguma mulher de sua escolha ao posto de amante do rei, desta forma garantindo favores especiais para si próprios.

O celibato de um homem como Luís não podia durar muito. O próprio Luís não conseguia imaginar exatamente como isso seria. Mas Luís, sob muitos aspectos, estava levando um bom tempo para amadurecer. Sua inocência natural era tão enraizada que apenas uma vida longa de devassidão poderia destruí-la.

Luís tinha um grande carinho pelas mulheres da família Nesle. A marquesa de Nesle tivera cinco filhas; a família era da velha nobreza e, como muitos nessa categoria, vivera mais do que sua riqueza. Parecia estranho que essas mulheres apelassem sensualmente ao rei. Nem madame de Mailly nem madame de Vintimille tinham sido beldades; ainda assim, durante anos a primeira permanecera como a única amante do rei, apenas para ser destituída de seu posto por sua irmã feia.

Havia uma certa qualidade nas mulheres da família Nesle que apenas Luís tinha descoberto, pensou Richelieu. E ele considerou o resto da família. Das três irmãs remanescentes uma era feia, ainda mais do que madame de Vintimille havia sido. Esta era DianeAdelaide, a mais jovem da família. Depois havia madame de Flavacourt, que tinha alguma beleza e muito charme. Mas aquela na qual a atenção do duque de Richelieu se fixara era a enviuvada madame de La Tournelle. Esta sim era belíssima - a única beldade

entre as mulheres da família Nesle. A compleição era assombrosamente clara, os olhos grandes e de um azul profundo, o rosto perfeito em seus contornos; e acima de tudo ela possuía uma graça e uma elegância que não conheciam par nem mesmo na corte.

Richelieu considerou-a. Era sua prima e Richelieu sabia que era amante de seu sobrinho, o duque dAiguillon, e que os dois estavam ardorosamente apaixonados um pelo outro. O duque estava tão enamorado que vinha contemplando o casamento.

Marie-Anne de La Tournelle podia ser uma mulher ambiciosa, pensou Richelieu. Era também uma mulher inteligente. No momento seu amor pelo fraco mas belo duque dAiguillon obscurecia seu julgamento, mas Richelieu acreditava que ela encantaria tanto o rei que o estimularia a desertar sua vida celibatária. E então a corte reencontraria seus dias de glória.

Por que ele não se interessaria pela jovem viúva? Era muito bonita e tinha aquela qualidade misteriosa de ser uma Nesle.

Ao caminhar com o rei em Saint-Léger, Richelieu abordou

o assunto:

- Meu sobrinho está me causando uma certa preocupação, majestade - disse ele. - Ele deseja casar-se com madame de La Tournelle.

- E você não aprova a união? - perguntou Luís. Richelieu ponderou por um momento, e então disse:

- É uma boa união.

- Espere, ela não é a irmã de... - Os olhos do rei encheram-se de lágrimas. - De...?

- De nossa querida madame de Vintimille, sim. É estranho que ela não tenha trazido a jovem ao seu conhecimento. Mas talvez tenha sido sábia em não fazê-lo. Madame de Vintimille era famosa por sua sabedoria.

- Por que ela foi sábia em não trazer a jovem ao meu conhecimento?

- Ah, majestade, um único olhar para essa bela criatura responderia a isso. É a mulher mais bonita que a corte viu em muito, muito tempo.

- Madame de Vintimille era suficientemente sábia para saber que não havia motivo para não me apresentar à sua irmã

- disse friamente o rei.

- Realmente, majestade. Realmente. Mas os que amam podem ser ciumentos, mesmo quando é ridículo sê-lo. Não concorda comigo? E madame de La Tournelle é... muito encantadora.

- Por que você é contra sua união com dAiguillon?

- O menino é meu sobrinho e, mulherengo como sou, prefiro não ser tentado a seduzir a esposa dele!

- Estou surpreso que você considere esse tipo de obstáculo

- disse o rei.

- Até um homem como eu tem os seus limites, majestade. E a moça... Deus, ela é tão encantadora!

Luís ficou pensativo. Fazia tempo que ele vivia no celibato; e ele começara a imaginar uma mulher que pudesse compensálo por sua perda: ela demonstraria a devoção de madame de Mailly e a vitalidade de madame de Vintimille - e se ainda por cima fosse bonita, que grande felizardo ele seria! Mas onde encontrar tal modelo de perfeição? Talvez na família Nesle, que já tinha lhe dado tanto?

Richelieu convocou madame de La Tounelle. Chegou desconfiada, acreditando que ele estava ansioso por estragar seu romance com o sobrinho dele.

- Saudações à mais bela dama da corte! - exclamou Richelieu.

Marie-Anne de La Tournelle inclinou a cabeça em reconhecimento ao cumprimento.

- E meu sobrinho é o homem mais sortudo de toda a França. Eu compreendo a devoção dele, mas francamente, madame, se me perdoa a impertinência, a sua escolha é um tanto surpreendente.

- Eu acho difícil perdoar a sua impertinência - disse ela num tom gélido.

- Não obstante, a senhora irá. Aiguillon... ele é um bom camarada, um homem de coração simples... mas uma dama de tamanha graça e beleza parece muito além de seu alcance.

Ela estava alerta. Ela vira suas irmãs instalarem-se em Versalhes como amantes do rei; ela considerara Louise-Julie uma tola, mas admirara Pauline-Félicité. Caso se visse numa posição semelhante, imitaria mais a segunda do que a primeira.

Sendo ambiciosa, possuindo grande imaginação, era impossível não ter-se visualizado na mesma posição que suas irmãs. Estaria Richelieu sugerindo que, se ela tentasse seguir os passos de suas irmãs, poderia contar com sua ajuda?

- Minhas irmãs subiram alto, e o que foi que ganharam?

- disse Marie-Anne de La Tournelle. - Não sou a única que sente pena de madame de Mailly; e madame de Vintimille está além de toda piedade e inveja.

Madame de Vintimille foi desafortunada. Madame de Mailly foi uma tola. Se a senhora se visse numa situação similar, não precisaria ser desafortunada nem tola.

- Monsieur, vejo que está determinado a me tirar dos braços do duque dAiguillon - disse madame de La Tournelle. Sinto dizer que as suas chances de cumprir esse objetivo são bem escassas.

A sugestão de Richelieu havia impressionado Luís. Ele não podia viver celibatário para sempre. Seus pensamentos continuamente vagavam para madame de La Tournelle. Decerto, se havia alguém capaz de fazê-lo esquecer seu sofrimento, seria a irmã de sua amante morta.

Luís retornou a Versalhes e, quando a viu, ele, que se abstivera de companhias femininas por tanto tempo, tornou-se obcecado por uma ideia: tornar madame de La Tournelle sua amante.

Marie-Anne viu-se numa situação difícil. Ela era ambiciosa. Não via fim para as honras que conquistaria caso se tornasse amante do rei. Por outro lado, ela tinha o exemplo humilhante de sua irmã mais velha e, estranhamente, ainda estava profundamente enamorada do duque dAiguillon.

Luís procurava sua companhia em todas as ocasiões possíveis. Começou falando sobre sua devoção a madame de Vintimille. Ela ouviu isso solenemente mas se recusou a dar sinais de entender as intenções de Luís para com ela. Ela havia chorado muito quando sua irmã morrera e disse a Luís o quanto lamentava isso, deixando claro para ele que não tinha qualquer intento de tomar o lugar de sua irmã.

Luís ficou perplexo. A maioria das mulheres da corte tinha demonstrado claramente sua vontade de confortá-lo.

Estranhamente ela parecia interessada em conquistar o afeto da rainha, comportando-se com o máximo de decoro e aproveitando todas as oportunidades possíveis para estar em companhia de Marie. Por outro lado, quando recebia convites para comparecer aos jantares nospetits appartments, ela inventava toda sorte de desculpas para recusá-los.

Quanto mais ela se desviava dos avanços de Luís, mais a paixão do rei crescia.

- Receio que madame de La Tournelle está determinada a permanecer fiel ao duque dAiguillon - disse Luís a Richelieu.

- Majestade, isso apenas demonstra que mulher humilde ela é. Escolhe meu sobrinho pobre quando poderia ser amiga de Vossa Majestade! Vale a pena lutar pelo tipo de afeto que ela sabe oferecer.

- Ela me faz lembrar madame de Vintimille-ruminou Luís.

- Ah, a chama daquela querida dama arde no coração de sua irmã.

- Será que não existe forma de tentá-la?-perguntou Luís.

- Ela está além de toda a tentação, majestade. A única maneira seria mostrar-lhe que dAiguillon não é merecedor de tanto afeto. Ai, que jovem virtuoso ele é. Isso é tão tedioso!

Richelieu olhou ardilosamente para o rei, perguntando-se o quanto ele estava preparado para esperar por madame de La Tournelle.

Richelieu decidiu tomar a situação em suas próprias mãos. DAiguillon poderia ser um jovem virtuoso, mas era humano. Se lhe fosse oferecido o suficiente, ele decerto sucumbiria.

Mandou chamar uma mulher muito bonita que fora sua amante e que estava disposta a lucrar com os benefícios que a influência de Richelieu poderia brindar a ela e à sua família.

A mulher chegou e, quando perguntou o que ele queria, Richelieu disse simplesmente:

- Quero que você tente o meu sobrinho a escrever-lhe uma carta indiscreta.

- Mas como?

- Ele é jovem; ele é suscetível; e você é bonita. Se você escrever a ele... não apenas uma vez mas muitas... dizendo-lhe que se apaixonou perdidamente por ele, decerto receberá alguma resposta.

- E quando devo fazer isso?

..- Quero que obtenha uma carta dele na qual ele concorde em visitá-la. Ela não deve conter termos incertos, é claro.

- Entendo - disse a ex-amante do duque. - Farei tudo que estiver ao meu alcance.

- Minha querida, sei que você será bem-sucedida. O jovem não é um imbecil completo. Ele não terá como não considerar você... irresistível, assim como considerei no passado e como muitos considerarão no futuro.

- E que recompensa receberei... além das atenções amorosas de monsieur duque dAiguillon? - perguntou a dama.

- Você será apresentada à corte. Apresentada pelo duque de Richelieu. Isso, minha beldade, não é recompensa suficiente? Porque, se for inteligente, conquistará um amante muito generoso. Mas primeiro, é claro, deve trazer-me o que preciso.

Richelieu não ficou desapontado.

Poucas semanas depois da entrevista com sua ex-amante, Richelieu pôde levar uma carta ao rei.

- Majestade, venho requerer uma audiência privada. Luís atendeu sua vontade e, quando se viram a sós, o duque mostrou a carta.

- É de dAiguillon... para quem?

- Para a sua mais recente inamorata.

- Madame de La Tournelle sabe disto...?

- Ainda não. Achei que Vossa Majestade apreciaria o prazer de mostrar a carta a ela.

O rei leu a carta. Não era escrita em termos incertos. O duque dAiguillon lamentava ter ignorado as cartas anteriores da dama, mas ela não devia desesperar-se. Ele ia vê-la, e então, ele acreditava, ele poderia aliviá-la de sua tristeza e enxugar suas lágrimas.

- Você providenciou isto? - Luís acusou o duque. Richelieu abriu seu sorriso arguto.

- Majestade, eu não aguentava mais ver o seu sofrimento. Ele me atormentava ainda mais do que o desatino da dama. Devo convocá-la à sua presença?

Luís meditou por um instante antes de dizer:

- Sim. Mande-a a mim.

Madame de La Tournelle compareceu ao comando do rei, parecendo adorável num vestido de seda lilás; e Luís exultou ao vê-la. Quando ela se ajoelhou diante de seu rei, Luís a levantou.

- Madame de La Tournelle, há muito tempo busco conquistar a sua amizade... o seu afeto... e a senhora me repudia a cada tentativa.

- Majestade, sou uma mulher tola que não consegue governar seus próprios sentimentos.

- Eu a admiro por isso, madame.

- E eu agradeço a Vossa Majestade pela indulgência com que tem me tratado.

Luís inclinou a cabeça.

- Temo que a senhora foi traída pela pessoa em quem mais confiava.

- Majestade?

- Leia isto.

Enquanto ela lia a carta, o rubor que se espalhou por suas faces deixou-a mais linda do que nunca, e seus olhos azuis ardiam de raiva.

- Vê por quem a carta foi escrita?

- Pelo duque dAiguillon.

- E não para a senhora. Apesar de jamais ter imaginado que ele escreveria uma carta como essa para outra pessoa além da senhora.

Ela amassou o papel na mão.

- Cometi um erro, majestade.

Luís deu sinal de que tentaria envolvê-la em seus braços, mas ela recuou e ele viu que ela tremia de angústia ou ódio... e não pôde dizer ao certo qual.

- Majestade, tenho sua permissão para me retirar? Luís sorriu ternamente.

- Qualquer desejo seu é uma ordem, madame - disse a ela.

Marie-Anne de La Tournelle andava em círculos por seu quarto. A raiva pelo duque dAiguillon era grande, mas sua mente não estava concentrada apenas no amante. Há muito ela vinha sendo tentada pelo pensamento de tornar-se a amante do rei, e frequentemente xingara-se de tola por recusar tal triunfo. Agora parecia que outros haviam tomado a decisão por ela. Seu romance com o duque dAiguillon estava acabado. O amor a traíra; agora ela estava livre para se devotar à ambição.

Sentou-se à mesa de seu toilette e olhou seu reflexo no espelho. Ela podia ser considerada uma das mulheres mais bonitas na corte; ao mesmo tempo, o rosto que a fitava de volta não era o de uma ingénua.

Pensando no futuro, ela podia parar de pensar em dAiguillon. Via a si própria como uma figura de grande poder. A França estava em guerra e havia muito sofrimento no país. E se ela, através do país, governasse a França? E se o seu nome fosse cantado através dos anos vindouros como a mulher que conduzira a França à grandeza?

Ela poderia fazer do rei um grande soldado, conduzindo seus exércitos à vitória. Ela livraria o país do cardeal que já devia terse aposentado da vida na corte há muitos anos. O conde de Maurepas era outro que devia ser dispensado. Ele não era adequado para deter um posto no governo do país. Não mais do que um bufão elegante, era frívolo demais para a política. Suas sátiras e epigramas divertiam os cortesãos, mas esse tipo de esperteza não era requerido a um ministro. O estado do país não era assunto para piadas.

Quanto mais considerava aquele que poderia ser o seu novo papel, mais deliciada ficava com ele. Acalmava-a contemplar essas possibilidades, porque ao fazê-lo sentia-se menos humilhada pela traição de dAiguillon. Secretamente, até sentia-se feliz por aquele idiota ter-lhe dado o pretexto de que precisava para seguir o caminho da glória. Agora podia dedicar-se à ambição e à França.

Uma de suas aias veio dizer-lhe que o duque de Richelieu tinha requisitado uma audiência.

- Não o traga até mim - disse Marie-Anne de La Tournelle.

- Eu irei até ele.

Ela foi até a sala na qual o duque esperava; ele estava à janela olhando para os jardins, e girou nos calcanhares quando ela entrou, fazendo o que ela julgou ser uma mesura irónica mas triunfante.

- Bem, madame, então o meu sobrinho expôs a sua perfídia.

- Não falemos sobre o seu sobrinho - disse ela. - Ele é uma página virada.

- Eu sempre soube que havia algum bom senso escondido por baixo dos seus sentimentos por aquele rapaz. Sopre para longe a névoa da paixão e o que você vê? Horizontes sem limites.

- O senhor veio oferecer conselhos?

- Então a senhora acataria meus conselhos? Essa é uma grande demonstração de inteligência! A senhora, tão jovem e bonita, aceitando os conselhos de alguém que não é jovem nem belo.

- Isso demonstra inteligência? - perguntou, irónica. Desejo seus conselhos sobre assuntos que não compreendo.

Ele meneou a cabeça lentamente antes de dizer:

- A senhora não facilitou a conquista para Sua Majestade. Isso tornou a caçada mais longa, mais empolgante e... felizmente, graças à traição do meu sobrinho... não tão fatigante. Vale a pena lembrar que é assim que toda boa caçada deve ser. Precisa ser empolgante e de duração suficiente. Mas nunca, nunca deve cansar o caçador a ponto de fazê-lo desistir de continuar. A senhora tem dois exemplos para contemplar. Madame de Mailly foi burra; ela não ofereceu nenhuma caçada. Por que caçar o coração domado? Madame de Vintimille... esta morreu cedo demais. Quem sabe... Talvez com o tempo Sua Majestade tivesse se cansado das provocações dessa dama.

Madame de La Tournelle meneou a cabeça, concordando.

- Nenhuma das duas possuía encantos físicos.

- Ainda assim, até a beleza pode empalidecer. Há um ponto que devo enfatizar: insista no reconhecimento. Não permita que este affaire seja secreto. Isso estaria abaixo da sua dignidade. Insista para que a senhora seja proclamada mâitresse-en-titre. A sua posição não deve ser de uma amante passageira.

- Já refleti sobre isso.

- Posso ver, madame, que quando a senhora pediu o meu conselho não foi porque precisava dele, mas porque queria ser gentil com uma pessoa que a adora e que lhe deseja todo o sucesso.

- Pensei também em mais uma coisa: "Se eu e Luís tivermos filhos, que eles sejam legitimados." E quanto à minha posição financeira...

- Seria indigno para a senhora ser forçada a considerar dinheiro. Portanto, deve ser colocado à sua disposição como o ar que a senhora respira.

- Também precisarei de um título...

- Uma duquesa... não menos que isso.

- Há certas pessoas que não desejo que permaneçam na corte.

- O cardeal é muito idoso. Não faz sentido um nonagenário permanecer ao governo do reino.

- Monsieur duque, vejo que suas opiniões coincidem com as minhas - disse Marie-Anne de La Tournelle com um sorriso.

- Então, a senhora e eu somos amigos. Há apenas outro relacionamento que poderia conceder-me mais deleite.

Sua resposta foi um olhar frio. Richelieu sorriu por dentro.

Ela já se dá ares de primeira-dama da corte. Será preciso muito cuidado no trato com esta madame de La Tournelle, mas ela nunca esquecerá o amigo que possibilitou a sua ascensão.

Marie-Anne de La Tournelle era a favorita aceita. O rei estava completamente enfeitiçado. Ela fez por ele o que Luís não conseguira fazer por si próprio: banir da memória a feia madame de Vintimille.

Aqueles que lembravam dos tempos de Luís XIV disseram que aqui estava outra madame de Montespan. Richelieu estava deliciado com os planos de Marie-Anne de La Tournelle; ele oferecia conselhos contínuos à prima, que agora chamava-o de tio; ela achava que Richelieu estava em idade para ser seu tio e gostava de pensar nele nesse papel.

Trabalhavam juntos, e dois de seus primeiros objetivos eram a dispensa de Fleury e a redução do poder de Maurepas. Tanto Fleury quanto Maurepas estavam cientes das intenções dela e determinados a lutar por seus postos.

Madame de La Tournelle decidira que iria controlar o rei; e embora desprezasse sua irmã, madame de Mailly, compreendia que Luís, ainda que cansado de sua antiga amante, retinha algum afeto por ela.

Louise-Julie era uma tola, mas sua disposição gentil e natureza generosa tornavam-na querida por muitos, e Luís considerava doloroso ser rude com uma pessoa como ela. Mas Marie-Anne tinha decidido que Louise-Julie precisava ir embora, porque ela não ia dividir a atenção do rei com ninguém.

Ela fez seus planos. Forçaria o rei a adquirir um interesse por assuntos do Estado, e faria tudo que estivesse ao seu alcance para torná-lo um soldado. A França estava engajada numa guerra; quem mais adequado do que um rei deveria aparecer ao comando de seus exércitos?

Mas isso podia esperar. Nesse meio tempo ela tinha batalhas para travar em casa.

O rei prometera cumprir todas as condições que ela impusera antes de sua rendição. A corte inteira agora a aceitava como amante do rei. Ela era rica; ela era paparicada por todos; cortesões e comerciantes compareciam ao seu toilette como se ela fosse da realeza ou de máxima importância... o que ela acreditava ser.

Se ainda não era uma duquesa, isso se devia ao ardiloso Maurepas, que estava fazendo tudo que podia para impedi-la de desempenhar as formalidades necessárias; mas no devido tempo ele pagaria por isso.

Fleury fazia das tripas coração para persuadir o rei a romper com a nova amante; e por causa disso os dias do cardeal estavam contados.

Mas ela não era uma tola impetuosa. Sabia como esperar pelo que queria.

O rei bateu a sua porta e ela o recebeu com todo o prazer. Ele viera sozinho e, depois do amor, ela decidiu que era a hora de fazer sua primeira exigência.

- Luís, considero humilhante que minha irmã permaneça na corte.

Luís ficou chocado ao ouvir isso.

- Mas... ela não causa mal nenhum.

- A mim ela causa. Como posso suportar olhar para uma mulher a quem você já amou?

- Você não tem motivos para ciúmes. Como se eu pudesse pensar nela agora!

- Então lhe peço que atenda a este meu capricho. Mande-a embora.

Luís visualizou a cena desagradável. Era esse tipo de situação que ele sempre se sentia compelido a evitar.

- Você não se importa se ela parte ou fica - disse MarieAnne. - Você a deixa permanecer porque carece da coragem de mandá-la ir.

Luís fitou-a, surpreso, mas ela estava suficientemente segura de si para prosseguir:

- Uma de nós precisa deixar a corte. Considero muito humilhante saber que sou conhecida como uma das mulheres da família Nesle.

- Mas você não é. Você é a condessa de Châteauroux.

- Sim, ou ao menos serei quando monsieur de Maurepas assim decidir. Luís, você é o rei, mas há momentos em que parece difícil de acreditar. Maurepas, Fleury.... eles parecem ser os verdadeiros governantes da França.

- Eles são bons ministros. Fazem o que acreditam ser o seu dever.

- Que é aconselhar você a me abandonar!

- Bem, isto não é tudo que eles fazem - frisou Luís, que se apressou em acrescentar: - Em todo caso, esse é um propósito que eles jamais irão concretizar.

- Ainda assim, eles devem ser expulsos da corte, pensou a marquesa. Mas ainda era cedo para tratar disso.

- Você precisa decidir - disse a Luís. - Eu e minha irmã não podemos conviver na corte. Uma de nós deve ir.

Luís olhou tristemente para Louise-Julie de Mailly. Ele não conseguia lembrar o quanto tinham sido felizes durante os primeiros anos de sua associação. Luís sabia que ela ainda o amava; e o amava tão sinceramente que mesmo se Luís perdesse a coroa e se tornasse um joão-ninguém, seu amor em nada mudaria. Luís era inteligente o bastante para saber que aquele era um afeto que um rei encontrava raras vezes em sua vida. Cercado por bajuladores e sicofantas, ele gostaria de desfrutar da companhia desta mulher até o fim de seus dias.

Mas a dominadora madame de La Tournelle, sua irmã irresistível, expressara seus termos e eles deveriam ser cumpridos.

- Eu... eu não exijo a sua presença em Versalhes - disse Luís a Louise-Julie.

Ela o fitou com olhos tão afogados em dor que Luís sentiu vergonha.

Ele pousou a mão no ombro dela e prosseguiu:

- Sinto muito, minha querida, mas é assim que deve ser. Louise-Julie logo compreendeu quem causara isto, mas não

odiou sua irmã brilhante; não estava surpresa em ter toda a alegria de sua vida roubada por um membro da família.

Luís lembrou que, quando madame de Vintimille morrera, fora esta mulher quem esquecera sua humilhação e viera confortá-lo; ele lembrou de como ela assumira a responsabilidade sobre o filho de madame de Vintimille e cuidara dele para Luís. O que ele estava fazendo agora era uma coisa muito cruel, e se sentia envergonhado por isso. Mas era preciso fazê-lo, porque Marie-Anne determinara que uma delas deveria ir - e Luís não podia permitir que essa fosse a mulher por quem estava apaixonado no momento.

Ele olhou sem jeito para Louise-Julie, querendo que ela compreendesse que ele havia sido forçado a essa atitude.

Louise-Julie percebeu o embaraço do rei, e sabia muito bem que ele odiava cenas daquele tipo. Como era típico dela, LouiseJulie humildemente baixou a cabeça para que ele não se sentisse mais perturbado pela angústia em seu rosto.

- Partirei imediatamente.

- Obrigado - disse Luís, e sua gratidão era evidente. Louise-Julie lhe deu as costas e partiu para um futuro vazio;

porque não sabia como iria viver. A dispensa da corte significava que ela não era mais uma dame dupalais e ela sabia que apenas a obscuridade e a pobreza a aguardavam.

Mas este fora o decreto de madame de La Tournelle e, como Luís, ela devia aceitá-lo.

Marie-Anne estava triunfante. Um de seus planos fruíra.

Finalmente ela era a duquesa de Châteauroux, um título que carregava consigo uma renda anual de 85 mil moedas de ouro.

Sua tarefa seguinte era impelir o rei a agir. Ela acreditava que se Luís se tornasse um rei no sentido da palavra e se colocasse no comando das questões, os ministros dele, cuja queda ela havia decretado, seriam despojados de sua importância.

Ela se entregava ao sexo com o ardor requerido, mas depois, quando o rei descansava sentado ao seu lado, ela o atraía para discussões sobre seus ministros.

- Minha querida, você se preocupa sobremaneira com os assuntos do reino - disse o rei. - Por que não podemos nos dedicar inteiramente ao prazer? Há outros plenamente capazes de gerir os assuntos do reino.

- Não entendo, meu amado, por que não podemos ter tanto o prazer de estarmos juntos quanto a satisfação de governar o reino.

- Você vai me matar! - brincou Luís.

Ela cerrou o punho subitamente e disse com veemência:

- Que seja, então. Eu mataria o rei que você foi e então iria ressuscitá-lo. Você renasceria como um rei de verdade.

- Fala sério?

- Sim, é claro que falo sério. - Ela se apoiou no cotovelo para observá-lo, os lindos cabelos caindo sobre o rosto, os grandes olhos azuis reluzindo com entusiasmo. - Luís, você ainda é jovem; é bonito. O povo o ama; mas se não se dedicar ao governo do povo, eles deixarão de amá-lo.

- Eles não estão satisfeitos agora porque você usurpou o lugar da rainha - lembrou-a Luís.

- A rainha! Ela é indigna de você, Luís.

- Apenas você é digna de compartilhar o trono, mas o povo não pensa desse jeito.

Segurou a mão de sua amante e a teria beijado e em seguida puxado seu corpo para o seu lado, colocando um fim nesta conversa, mas ela não lhe permitiu fazer isso.

- Quero vê-lo como o maior rei da história da França-disse Marie-Anne.-Quero vê-lo liderar os seus exércitos à vitória. Quero vê-lo retornar a Paris... vitorioso. Como então eles iriam amá-lo!

- Ainda assim, não amariam você.

- Por que não? Eles saberiam que colaborei na sua mudança.

- Que você me matou - murmurou Luís languidamente -, que me ressuscitou... e que renasci.

Desta vez ela não resistiu. Lembrou-se do alerta do tio Richelieu: A caçada não pode ser cansativa.

Mas ela conseguiria fazer as coisas do seu jeito. Exatamente como conseguira antes.

Este interlúdio aconteceu no delicioso castelo em Choisy e, alguns dias depois, um mensageiro chegou de Issy.

O rei recebeu o mensageiro prontamente, porque sabia que Fleury estava descansando lá.

- O cardeal está muito doente - foi dito a Luís. - Ele mandou chamar Vossa Majestade.

- Leve esta mensagem para ele - disse o rei. - vou partir imediatamente. Talvez chegue a Issy antes de você.

Marie-Anne foi falar com Luís.

- Você considera digno para um rei correr até um súdito porque ele exigiu isso?

- Ele é meu amigo, o tutor de minha infância - disse Luís.

- Ademais, é um homem velho e doente. Nada... nada... me impediria de estar ao seu lado num momento como esse.

Marie-Anne compreendeu seu erro. Como Luís era capaz de fazer tudo ao seu alcance para evitar uma cena, ela deduzira erroneamente que ele era completamente maleável.

- Eu não sabia que ele estava tão doente - disse MarieAnne.

Luís partiu e chegou a Issy quase imediatamente depois que o mensageiro tinha dito ao cardeal que o rei estava vindo.

Enquanto Luís abraçava seu velho mentor, lágrimas correram de seus olhos.

- Não chore porque estou indo, majestade - disse o cardeal. - Tive uma vida longa e estou feliz por grande parte dela ter sido posta ao seu serviço.

- Sentirei muitas saudades de você.

- Haverá outros.... - O cardeal franziu a testa, preocupado; mas este não era o momento para alertar o rei contra madame de Châteauroux. O cardeal conhecia o seu rei; se a duquesa desaparecesse da corte, outras tomariam o seu lugar. Assim, o cardeal disse: - Parto deixando a França como um país doente. Ela agora está mergulhada na guerra, e jamais gostei de guerras. Guerras não trazem prosperidade. Há conflitos religiosos... problemas parlamentares..

- Não deixe que essas coisas o preocupem agora, meu querido amigo - disse Luís. - Você deu o melhor de si. Agora cabe a outros lidar com os nossos problemas.

- Foi uma vida boa - disse o cardeal.

Luís segurou sua mão e a beijou.

- Você me trouxe muitas coisas boas.

- Quero dizer adeus ao delfim - disse o cardeal.

- Isso iria perturbá-lo - protestou Luís. - É apenas uma criança.

- Ele precisa acostumar-se a despedir-se de velhos amigos, majestade.

- Seja como quiser. Darei ordens ao guardião do delfim que o traga.

Luís não disse mais nada, mas continuou sentado ao lado da cama do cardeal.

- No que pensa, majestade?

- Nos primeiros dias. No nosso primeiro encontro. Nas suas tentativas de me ensinar.

- Eu vos amo muito - disse o cardeal.

- Eu também vos amo - respondeu o rei.

- Sempre que meus inimigos me atacaram... o senhor me defendeu - disse o velho. - Minhas bênçãos a Vossa Majestade. Longa vida, sire. Prosperidade à França!

Houve silêncio enquanto lágrimas corriam pelas faces de ambos.

Fleury estava morto. A notícia se espalhou por Paris. O ar frio de Paris pareceu mais revigorante. E especulações pipocaram por toda a capital.

O cardeal permanecera por tanto tempo no poder que o povo estava feliz por vê-lo partir.

A França estava sofrendo com a guerra e com seu irmão gémeo, o imposto. A ordem antiga estava passando; a nova não poderia ser pior.

O rei agora estava no apogeu. Tinha trinta e três anos de idade e, como dizia o povo, jamais tivera permissão para governar. O cardeal mantivera as rédeas em suas mãos e agora o cardeal estava morto.

Um novo grito ecoava nas ruas de Paris e nas cercanias do castelo de Versalhes. A duquesa de Châteauroux ouviu-o e exultou. O destino tinha se encarregado de cumprir para ela uma de suas missões.

- Lê cardinal est mort! - bradava o povo. - Vive lê Rói!

Todos estavam maravilhados com a energia demonstrada pelo rei. Assim que o cardeal morrera, Luís assumira a administração do reino e se posicionara com firmeza na proa do Estado. Ele era tão encantador que tinha conquistado não apenas o respeito como a afeição de todos. Os plebeus deixaram de resmungar. Agora diziam a si mesmos que, tendo um rei para governá-los em vez de um cardeal, os problemas da França logo estariam superados.

Luís descansava dos assuntos do reino dedicando-se à sua paixão pela caça, e era seu costume fazer isso a alguma distância da capital, perto da floresta de Sénart.

Certo dia, ele notou uma jovem acompanhando a caçada. Ela era muito elegante e bonita, e Luís decidiu descobrir quem era. Presumiu que fosse membro da nobreza - do contrário não poderia ter-se juntado à caçada -, ou talvez a proprietária de terras na floresta ou em suas imediações, pois aqueles que viviam próximo aos campos de caça do rei tinham permissão para acompanhar a caçada real quando esta se dava em sua vizinhança.

Ao final do dia ele se esquecera da jovem, mas na vez seguinte em que caçou, ali estava ela novamente. Vestia-se belissimamente e desta vez não cavalgava, mas conduzia uma carruagem, uma carruagem muito elegante.

O rei virou-se para o servo que era mestre de seus cães e perguntou:

- Quem é aquela criatura belíssima?

- Ora, majestade, é a dama que porta o nome de madame dEtioles. Ela mora no castelo dEtioles, embora eu tenha ouvido dizer que ela também tem casa em Paris.

- Você sabe muito sobre a dama, não é mesmo, meu caro Landsmath?

- Bem, majestade, ela é uma beldade. Creio que não há mulher mais bonita em toda a França. Mas isso é apenas a minha opinião.

- Creio que concordo com você - disse Luís. - Ela deve gostar de caçadas. Eu já a vi em mais de uma ocasião.

- Ela também está ansiosa por vê-lo, majestade. Disso tenho certeza.

- Uma coroa é como um imã, Landsmath.

- É o que parece, majestade. Principalmente quando pousada numa cabeça tão bonita.

- Imagino se ela acompanhará a caçada amanhã. Richelieu aproximou o seu cavalo da montaria do rei.

- Majestade, se quer estar presente ao abate da presa, deve se apressar - disse Richelieu.

Durante a caçada o rei esqueceu a bela madame dEtioles; mas Richelieu, que escutara as perguntas do rei, não esqueceu. Assim que pôde, aproximou-se do cavalo montado pela duquesa de Châteauroux.

Ela olhou por sobre o ombro e ele fez um sinal para que ela acompanhasse o rei de perto.

- Por quê? - perguntou a ele.

- Apenas cautela. O rei vem sendo seguido por uma mulher muito bonita.

Madame de Châteauroux franziu a testa, indignada.

- Você acha que não sou capaz de prender a atenção do rei?

- Isso pode ser uma tarefa difícil quando a sua oponente é tão encantadora.

- Quem é ela?

- Madame dEtioles, do Castelo dEtioles. Ela aparece na caçada todos os dias... e vestida de modo muito atraente. Ela não olha na direção do rei, mas está claro que toda essa pompa é para ele.

- O que sabe dela?

- Pouco, exceto que é muito bonita, que é elegante e que usa roupas que por si próprias atrairiam a atenção de qualquer pessoa. Acautele-se, madame. Esta dama pode ser uma inimiga formidável.

- Bobagem - disse a duquesa. - Tenho Sua Majestade totalmente sob meu controle. Não pense mais nesse assunto.

Richelieu deu de ombros.

- Eu a avisei - murmurou e tocou seu cavalo.

Em seus aposentos em Versalhes, Marie Leczinska passava dias terríveis. Luís agora lhe estava completamente perdido e ela sabia que não tinha como recuperar seu afeto.

Estava condenada a uma vida solitária, que era devotada a boas ações, comer, e à indulgência daquela vaidade que a fez acreditar secretamente que era uma musicista muito boa e uma grande pintora.

Tinha visualizado seu futuro de uma forma tão diferente! Havia sonhado com uma família feliz e unida. Talvez esses sonhos tenham sido resultantes da inexperiência. Será que algum rei levava uma vida doméstica feliz?

Não obstante, tinha muito pelo que agradecer. Ela tinha seus filhos. Havia o delfim, a quem visitava frequentemente; o menino, que amadurecera, perdendo um pouco de sua prepotência, parecia ter puxado à mãe. Era agora muito sério e estudioso. Marie tinha certeza de que ele um dia seria um bom rei.

Ela queria ter todas as suas crianças perto de si, mas as pequenas ainda estavam em Fontevrault. Adelaide era a menina dos olhos de seu pai. Como estava bonita e feliz. Mas a pobre Anne-Henriette... como andava desanimada! Havia momentos em que Marie temia que ela estivesse sucumbindo à letargia. Será que amava tanto assim o duque de Chartres? Era uma pena que não tivessem podido casar-se. Se isso tivesse acontecido, AnneHenriette permaneceria na França e não teria perdido sua felicidade.

Mas um dia ela vai se recuperar, pensou a rainha.

Afinal, Anne-Henriette ainda era jovem e propensa ao romantismo. Aliás, como era perigoso para as filhas de reis pensarem em romance!

O casamento de Louise-Elisabeth não tinha sido muito bemsucedido. Dom Filipe carecia de energia e sua mãe - auxiliada pela nora, que estava se revelando igualmente ambiciosa - fazia de tudo para despertar alguma vitalidade nele.

Era a hora em que as filhas de Marie vinham visitá-la. Nesses momentos Marie desejava ser capaz de se entrosar com elas tão bem quanto Luís o fazia. Queria assegurar-lhes que, a despeito de seus modos solenes e distanciados, ela as amava muito.

Marie pensou no quanto eram encantadoras. Anne-Henriette, sua filha triste de dezessete anos, em seu vestido malvaclaro, e Adelaide, em seda tingida de rosa.

Fizeram uma mesura para a mãe e Adelaide pediu para ver sua última pintura.

Marie Leczinska ficou deliciada, porque não lhe ocorreu que Adelaide não tinha qualquer vontade em ver a pintura, e que esse fora um dos assuntos escolhidos pelas jovens ao preparar sua entrevista com a mãe.

- Eu pedirei para ver os quadros - dissera Adelaide.

- Isso deixa a música para mim - acrescentou AnneHenriette. - Mas perguntarei sobre a música quase no fim, para que não tenhamos de ouvi-la tocar harpa por uma hora inteira.

- Isso é pior do que apenas conversar? - perguntara Adelaide.

E Anne-Henriette replicara que não tinha certeza.

- Mas talvez não seja tão difícil ouvi-la tocar. Ao menos posso ficar sentada e pensar em outras coisas.

- Você ainda está pensando em monsieur de Chartres! exclamara Adelaide. E Anne-Henriette fechara os olhos como se tivesse levado um tapa. Adelaide então segurara o braço da irmã e o apertara, acrescentando: - Sinto muito, eu não devia ter lembrado isso a você.

Lembrado!, pensara Anne-Henriette. Como se um dia eu fosse esquecer!

- Não diga mais nada, por favor - murmurara AnneHenriette.

Agora elas estavam na presença da mãe, e Adelaide dizia:

- Por favor, maman, podemos ver seu último quadro?

E assim a rainha mostrou sua pintura de uma parte dos jardins de Versalhes, e as meninas disseram falsamente que a paisagem era mais bonita que a original. E mais tarde Anne-Henriette perguntou pela música, e elas se sentaram, fingindo ouvir o flerte trôpego de sua mãe com a harpa. Adelaide estava sonhando com o pai decidindo ir à guerra e levá-la consigo. Ela se via cavalgando ao lado dele em escarlate e dourado, portando o estandarte real, com todos ovacionando quando ela passava. Ela se viu executando feitos de grande coragem e vencendo a guerra. Ali estava ela, cavalgando triunfal através das ruas de Paris com seu pai ao lado, enquanto homens e mulheres jogavam grinaldas de flores aos seus pés e gritavam que essa linda princesa era a salvadora da França.

Anne-Henriette pensava em todas as esperanças que um dia acalentara e que agora estavam mortas. Por que eles tinham sido levados a acreditar que iriam casar-se? Era tudo uma questão de política. Um grupo de ministros empurrando numa direção, e outro empurrando na direção oposta; e dos ditames desses homens dependia a felicidade de suas pessoas.

Ela ouvira dizer que o cardeal Fleury havia desaprovado a união devido à sua antipatia pela Casa de Orléans. O cardeal decerto acreditara que o casamento do duque de Chartres com uma princesa do rei reinante concederia ao noivo e à sua família ambições ainda maiores do que já tinham. Como se ele já não fosse de sangue real! E como se ele pensasse em qualquer outra coisa além de Anne-Henriette!

Ela lembrou o dia em que seu noivo retornara de uma caçada. Até aquele momento o coração da princesa estivera cheio de esperança. Antes de partir, ele lhe dissera:

- Enquanto caça, o seu pai está sempre satisfeito com a vida. Se houver oportunidade, farei o pedido a ele.

Ela não via a figura atarracada e desajeitada de sua mãe, com aquele sorriso satisfeito no rosto enquanto dedilhava as cordas; ela via o duque de Chartres retornando da caçada com uma expressão de desespero estampada na face.

- Você fez o pedido ao meu pai? - indagara a princesa. E ele respondera:

- Sim. Ele não falou. Apenas fitou-me com uma grande tristeza nos olhos, apertou minha mão e balançou a cabeça negativamente. Como ele pôde fazer isto conosco! Logo ele, que tem... tem... esposa, família e amigos.

Mas mesmo naquele momento de angústia, Anne-Henriette não admitira ouvir uma palavra contra seu pai.

- Ele não nos proibiria. Isso foi obra de outros. Isso foi obra do cardeal!

Oh, como eles tinham odiado o cardeal; e agora ele estava além do alcance de seu ódio. Mas o casamento também estava além de seu alcance, porque o duque de Chartres casara-se com a filha da princesa de Conti, e Anne-Henriette fora deixada sozinha com sua dor.

Enquanto as três mulheres estavam juntas, chegaram para a rainha notícias da abadia de Fontevrault. As duas jovens observaram a mãe ler a carta que lhe fora entregue. Então Adelaide caminhou até a rainha e perguntou:

- Maman, são notícias ruins de Fontevrault? A rainha fez que sim com a cabeça e respondeu:

- A sua irmãzinha Thérèse-Félicité está perigosamente doente.

Adelaide e Anne-Henriette tentaram lembrar tudo que sabiam sobre Thérèse-Félicité, mas seis anos tinham se passado desde a última vez em que a tinham visto, e ela tinha apenas dois anos de idade ao partir de Versalhes. Era impossível sentir dor genuína por uma irmã de quem não podiam lembrar.

Marie lembrava. Ficou sentada lembrando. As suas menininhas tinham sido tomadas dela havia seis anos, porque o cardeal Fleury quisera conter gastos.

Sua filha mais velha também lhe fora tomada; Louise-Elisabeth, longe na Espanha, parecia perdida para Marie. A morte reclamara o pequeno duque dAnjou e madame Troisième, e agora parecia reclamar mais uma criança. Marie lembrou que Thérèse-Félicité, madame Sixtième, era a criança que mais parecia com o avô, Stanislas.

Ela não chorou. Derramar lágrimas diante das filhas seria indigno. Ficou sentada ereta, e a expressão digna em seu rosto não permitia que ninguém imaginasse o desespero em seu coração.

As notícias da doença de Thérèse-Félicité deprimiram o rei. Ele queria ter conhecido essa criança tanto quanto conhecera Anne Henriette e Adelaide. As outras iriam crescer. Em breve elas retornariam, mas com a França talvez em guerra e com ele próprio indo juntar-se ao seu exército, seria melhor que permanecessem mais um pouco em Fontevrault. Além disso, Thérèse-Félicité não devia ser movida agora.

Procurando animá-lo, madame de Châteauroux decidiu promover uma grande festa em Choisy. Luís ficou deliciado, e ele e alguns de seus amigos íntimos chegaram ao castelo.

Richelieu, que como grão-camarista da alcova real acompanhava o rei a toda parte, era um dos membros do grupo. Ele estava tenso. Vinha pensando muito na jovem bonita que aparecera na caçada na floresta de Sénart. Madame de Châteauroux era sua protegida e ele queria que ela mantivesse sua posição como amante do rei.

Ele fizera perguntas sobre madame dEtioles, e essas haviam resultado numa descoberta estarrecedora. Ela era filha de um

certo François Poisson, um homem que fizera fortuna mas fora obrigado a deixar Paris durante uma temporada de fome por ser suspeito de estocar grãos. Seu filho e sua filha tinham sido bem criados, e a moça, Jeanne-Antoinette, acabara desposando um homem de certa riqueza. Este era monsieur Charles-Guillaume Lenormant dEtioles. Em Paris eles recebiam luxuosamente seus convidados e a jovem, que era claramente ambiciosa, reunira um pequeno círculo de literatos. Dizia-se que Voltaire afiliara-se a esse círculo e que era um grande admirador de madame dEtioles.

Tudo isso era interessante, mas havia outra informação que preocupara enormemente o duque, e que ele pretendia passar sem demora para a duquesa de Châteauroux.

Assim, ele encontrou uma forma de falar em particular com ela.

- Qual é o assunto que merece tanta urgência? - perguntou-lhe arrogante.

Ela já começa a esquecer quem a ajudou a conquistar sua posição, pensou o duque.

- É um assunto do seu interesse, madame-disse-lhe friamente.

Ela logo percebeu que ele ficara ofendido e decidiu acalmá-lo.

- Desculpe-me, meu querido tio. Estou cansada. O rei precisa ser salvo da melancolia na qual mergulhou porque uma de suas filhas está doente. Espero que você o divirta muito esta noite.

- Tudo a seu tempo - disse Richelieu. - Mas quero que a senhora compreenda a importância do affaire dEtioles.

- DEtioles! Aquela mulher do campo?

- Ela também é de Paris. Tamanha elegância só podia ser originária de Paris.

- Ela parece ter conquistado a sua admiração.

- Antes fosse só a minha. Descobri uma coisa assustadora sobre essa mulher. Quando tinha nove anos, uma cartomante lhe disse que ela um dia seria amante do rei e a mulher mais poderosa da França. A família da jovem acreditou nisso, e ela própria também. Foi educada para esse propósito.

A duquesa gargalhou alto.

- Cartomantes! - gritou. - Ora, mon onde, você acredita nas histórias de ciganas sujas?

- Não. Mas madame dEtioles acredita. Isso é o que importa neste caso.

- Acreditar que tomará meu lugar irá ajudá-la muito pouco. Richelieu segurou o braço da duquesa.

- Mas ela está convencida e fará tudo que estiver ao seu alcance para tornar seu sonho uma realidade. Essa determinação pode trazer resultados. Ela é bonita. E já desperta a atenção do rei. Acautele-se, senhora!

- Querido tio, você é o meu guia e conselheiro - disse a duquesa, segurando seu braço e puxando o corpo do conde para si. - Jamais esquecerei isso. Mas o rei me adora... mais ainda do que adorou minha irmã, Vintimille. Não vê que as mulheres da família Nesle têm alguma coisa de que ele precisa?

- Ele se cansou de uma Nesle.

- Louise-Julie! Pobre madame de Mailly!

- Pobre, realmente - suspirou Richelieu. - Ontem ouvi dizer que ela está tão pobre que parece uma mendiga. Que suas roupas estão esburacadas e que ela não tem dinheiro para dar de comer aos seus criados.

- Que tola ela foi! - gritou a duquesa. - Podia ter-se tornado rica enquanto desfrutava da predileção de Luís. Mas esta é uma ocasião feliz. Não pensemos em nada deprimente.

- Tudo que lhe peço é que a senhora recorde que ela foi uma mulher da família Nesle, e que o rei a substituiu.

- Por suas irmãs! Tenho duas que ainda não despertaram o interesse do rei, mas Diane-Adelaide é tão feia, e recentemente casou-se com o duque de Lauraguais. Quanto à outra, seu marido é tão ciumento que já declarou que se Luís pousar os olhos nela ele não hesitará em derramar o sangue real. Luís pode ter pousado os olhos nela, mas você sabe como ele odeia qualquer tipo de escândalo. Não, Luís permanecerá fiel a mim porque minhas duas irmãs estão protegidas dele: uma por um homem ciumento, a outra por sua feiúra.

- Ele poderia procurar fora da família Nesle. Ele poderia se encantar com essa jovem.

- Mas ele não se encantará, meu querido tio.

Ainda assim, ela se sentiu tensa depois que o conde se retirou.

Ela lembrava agora da jovem, vestida em azul-claro com uma grande pena de pavão no chapéu. Vestida para atrair atenção, conduzindo uma carruagem que atrairia atenção... e sempre se colocando no caminho do rei.

O rei decidira caçar na floresta em Sénart, e a duquesa de Châterauroux, que não acreditava seriamente nos alertas de Richelieu, esquecera a mulher que morava perto da floresta e que capturara o interesse passageiro do rei.

O grupo partiu para a floresta e, enquanto a caçada estava em andamento, a chuva começou. Ninguém se importava com uma chuva leve, mas esta estava forte e alguém - talvez induzido por um motivo secreto - sugeriu que o grupo buscasse abrigo, acrescentando que não muito longe dali havia um castelo onde decerto seriam recebidos com hospitalidade.

O rei concordou que era uma boa ideia e, contando com a aprovação da duquesa, o grupo partiu para o castelo.

Mas a duquesa mal pôde conter sua raiva quando viu que a castelã não era outra senão a bela jovem que acompanhara a caçada em suas roupas e carruagens atraentes.

- Majestade! - exclamou a criatura, prestando-lhe uma mesura que não teria envergonhado Versalhes. - Não posso descrever a honra que sinto em recebê-lo.

Os olhos do rei brilharam, porque ela era realmente encantadora.

- Fico feliz em ouvi-la dizer isso - replicou. - Sinto muito pela inconveniência de aparecer tão subitamente.

- Vossa Majestade seria bem-vindo a qualquer tempo. Lamento apenas não termos tido a oportunidade de nos preparar para esta grande honra.

A duquesa estava fitando friamente madame dEtioles.

- Não fomos alertados de que haveria uma tempestade disse, implicando que apenas uma tempestade poderia levá-los a uma casa que claramente não pertencia a membros da nobreza.

O rei pareceu achar isso descortês e murmurou:

- Estou começando a ficar feliz por termos sido surpreendidos pela chuva.

Madame dEtioles, mantendo sua dignidade, ordenou aos criados que trouxessem bebidas para os caçadores. Quando os caçadores foram servidos à mesa, a anfitriã providenciou para sentar-se ao lado do rei, mas a duquesa, do outro lado, não permitiu que essa mulher atirada dissesse muita coisa, desviando continuamente a atenção do rei da anfitriã para si mesma.

Assim que a chuva parasse, declarou, eles deviam seguir seu caminho e o rei, não querendo ofendê-la, concordou.

- Este é o dia mais importante de minha vida - disse madame dEtioles, levantando seus olhos reluzentes para o rei, com um olhar que transparecia um sentimento de dedicação. Jamais esquecerei o dia em que o rei visitou o meu humilde castelo.

- Também jamais esquecerei - murmurou Luís, galante. Madame de Châteauroux puxou Luís e o conduziu até os seus cavalos. Estava determinada a não permitir que esse tipo de contratempo se repetisse.

Naquela noite o rei estava jovial e disposto a ser entretido. Ele foi extremamente gracioso com a duquesa, como se para compensar seu leve interesse pela linda e jovem dama da aventura daquela tarde.

Os jogos de cartas começaram e, durante um intervalo entre as partidas, uma das integrantes de grupo, madame de Chevreuse, disse com a voz cheia de malícia:

- Que criatura linda era aquela mulher! Refiro-me, claro, à nossa anfitriã desta tarde.

Houve silêncio à mesa, mas o rei sorriu, benevolente. Madame de Chevreuse prosseguiu:

- Madame dEtioles estava tão bem-vestida que poderia ser tomada por uma dama da corte.

A duquesa repentinamente percebeu que o rei estava mais do que um pouco interessado nessa mulher que não perdia uma oportunidade de se colocar em seu caminho. Sentiu muita raiva de madame dEtioles que, não satisfeita por intrometer-se com a caçada e atrair o rei até o seu castelo, conseguira fazer-se reconhecida por este grupo.

A duquesa passou ao lado de madame de Chevreuse e, tendo ouvido essa dama reclamar amargamente de uma bolha no pé direito, pisou fortemente no local. com todo seu peso, ela pressionou o pé de madame de Chevreuse.

Madame de Chevreuse emitiu um grito de agonia e se deixou cair numa cadeira.

- Devo ter tropeçado no pé dela - disse a duquesa. Chamaremos seus criados para levá-la para a cama. Ela vai se recuperar lá.

Madame de Chevreuse foi levada até seu quarto, mas todos os presentes viram o brilho de batalha vencida nos olhos da duquesa.

O nome de madame dEtioles não foi mencionado novamente na presença do rei.

Logo depois, a dama recebeu o comunicado de que não deveria aparecer na floresta enquanto o rei estivesse caçando. Fazer isso causaria um extremo desprazer à duquesa de Châteauroux, que tomaria medidas para compartilhar esse desprazer com a intrusa.

 

Luís decidira juntar-se aos seus exércitos e assumir um papel ativo na guerra da sucessão austríaca.

Por ocasião da morte de Fleury ele escolhera o marechal duque de Noailles como seu mentor porque, por mais determinado que estivesse em ele próprio governar, Luís não podia livrar-se facilmente da influência de sua criação. Desde que se tornara rei da França com a idade de cinco anos, vira-se cercado por homens mais velhos e em cuja sabedoria fora ensinado a confiar. Assim, Luís precisou encontrar um substituto para o cardeal.

De Noailles, que desfrutara da confiança de Luís XIV, aconselhou Luís em políticas semelhantes àquelas que tinham sido conduzidas sob seu predecessor. Noailles lembrou ao rei que seu bisavô Henrique IV, para desvantagem do Senado, jamais se permitira ser governado por favoritos. Luís decidiu seguir essa regra.

Seus súditos ficaram deliciados em ver o rei no comando e se perguntaram como o detentor de tamanha inteligência permitira-se ser governado por tanto tempo pelo cardeal. Na época eles não compreendiam a indolência inerente à natureza de Luís, e esse fatalismo estava começando a crescer dentro dele. Nessa época, quando estava aprendendo a compreender a glória e o estímulo de ser um rei em mais do que no nome, Luís não estava ciente dessas qualidades que, se não fossem mantidas em xeque, poderiam destruir a ele ou à França... talvez a ambos.

Os ingleses haviam entrado na guerra ao lado do inimigo da França, e Noailles estava alarmado com a disposição da infantaria de Jorge II em lutar.

Nessa época a França tinha um número considerável de homens no campo e estava envolvida em atividades em três frentes... na Alsácia, no Reno e a oeste de Flandres. Noailles estava ao comando do exército de Flandres e foi a essa frente que o rei decidiu ir.

Esta decisão foi amplamente discutida em Versalhes. A rainha quis acompanhar seu rei, o que não era, ela acreditava, um pedido absurdo. Rainhas já tinham acompanhado seus esposos à batalha antes, e ela e suas damas de companhia podiam fazer muitas coisas úteis.

Ela queria pedir a Luís que a levasse, mas desde o nascimento de sua amizade com madame de Châteauroux, o relacionamento entre eles tinha deteriorado rapidamente. Eles chegavam o mais próximo de brigar quanto era possível para um homem como Luís. Ela objetara ferozmente contra a posição que a duquesa ocupava como mâitresse-en-titre e que parecia colocá-la acima da rainha. Luís retorquira que a rainha precisava aceitar madame de Châteauroux.

Marie agora parecia incapaz de controlar sua têmpera; estava mais enciumada do que qualquer um julgara possível.

Quanto ao rei, ele não podia perdoá-la por haver recusado continuamente suas atenções maritais. Ele argumentou que ela não tinha o direito de impedir que outras aceitassem aquilo que ela havia recusado.

Portanto, eles não se falavam mais, exceto, obviamente, em público.

Mas agora que Luís ia para a guerra ela temeu pela segurança dele e, por mais abatida que estivesse pelas notícias ruins sobre a pequena Thérèse-Félicité em Fontevrault, estava determinada a fazer tudo que pudesse para acompanhá-lo. Assim, ela engoliu o orgulho e escreveu para o rei uma carta pedindo-lhe que lhe permitisse acompanhá-lo em qualquer capacidade que ele julgasse adequada. Ela implorou a Luís que não ignorasse sua carta.

Luís não ignorou a carta, mas respondeu que o lugar de Marie era na corte, e ela não serviria a qualquer utilidade seguindo-o à guerra. Ademais, o tesouro não podia arcar com as despesas de sua jornada.

Foi durante o mês de maio que o rei deixou Versalhes. Sua partida foi um daqueles "segredos" dos quais todos na corte estavam cientes.

Após o jantar do dia 3, o coucher de Luís foi realizado à uma e meia da manhã com a formalidade usual. Foi providenciado para assim que os presentes ao coucher fossem dispensados, o rei levantasse novamente e se preparasse para sua jornada.

Agora o coucher tinha acabado. A camisola do rei foi vestida, sua touca posta no lugar da peruca, seu lenço lhe fora entregue numa almofada de veludo, e as cortinas haviam sido fechadas em torno da cama.

Ele estava empolgado. Perguntava-se por que não assumira antes um papel ativo nas questões do reino. Agora sim, estava vivendo como um rei.

Liderados por Richelieu, os poucos que ajudaram-no a se vestir novamente deram-lhe suas roupas, mesmo então não esquecendo de que elas deveriam passar por numerosas mãos antes de chegar ao monarca.

Houve silêncio enquanto o rei era vestido, e então, quando bateram na porta, todos ouviram.

- Vejam quem é.

Todos olharam para o rei, que hesitou por um segundo e depois acenou lentamente com a cabeça.

A porta foi aberta e uma pequena figura de camisola e chinelos adentrou a alcova. Era o delfim.

Ele correu até o pai e se jogou em seus braços.

- Mas meu filho, qual é o significado disto?

- Quero ir com você. Quero ser um soldado.

- Como soube que eu ia partir para a guerra? - inquiriu o rei.

- Era meu dever saber - disse o menino com dignidade. O rei o abraçou.

- Meu querido filho! - disse o rei. - Qual seria a minha felicidade se pudesse levá-lo comigo!

- Tenho quinze anos - disse o delfim Luís. - É idade suficiente, pai.

- Ainda não os completou - disse o rei. - Ademais, você é o delfim e meu único filho. Você precisa considerar como é importante que um de nós permaneça aqui.

- Minha mãe pode cuidar de tudo aqui. O rei sorriu.

- Não, meu filho. O seu desejo em ir à guerra lhe concede crédito, mas, por mais que me deleitasse levá-lo comigo, nós dois precisamos lembrar de nosso dever para com a França. Você não pode ser colocado em perigo... ao menos não até ter uma esposa e um filho. Então você já terá dado um herdeiro à França. O menino meneou a cabeça solenemente.

- Papai, então devo me casar em breve e ter um herdeiro. E então estarei livre para guerrear contra os inimigos da França.

- Muito bem dito - declarou o rei. - E agora... de volta para a sua cama. Vá depressa para que ninguém o veja, porque, meu menino, vindo até mim você se comportou sem o decoro que sempre deve ser observado pelo delfim da França.

O menino olhou solene para o pai e então, compreendendo subitamente que ele iria para longe e se colocaria em perigo, jogou-se em seus braços. E relutou tanto em soltá-lo que o próprio rei precisou se desvencilhar.

Em seguida, o delfim caiu de joelhos, beijou a mão do pai e, levantando-se sem dizer uma palavra, saiu correndo da sala para que ninguém visse que chorava.

Luís esboçou um sorriso melancólico e então conclamou:

- Vamos, há muito a fazer se quisermos partir às três da manhã.

Em seguida Luís pediu que o deixassem a sós para que pudesse escrever algumas cartas. Ele escreveu para a rainha, para as duas princesas e para madame de Ventadour. Depois passou algum tempo com seu confessor antes de, ao sereno daquela manhã de maio, partir de Versalhes para a frente de batalha.

Assim que Luís chegou a Lille, sua presença causou uma impressão profunda.

Não havia nada mais inspirador a soldados do que a visão de seu rei marchando à sua frente, juntando-se à luta com eles, comandando-os à batalha - o que, eles declararam, era o que um rei tinha de fazer.

Muitos dos homens das cidades provincianas, vilarejos e bairros pobres de Paris jamais tinham conhecido o seu rei. Quando o viram, julgaram sua figura quase divina, porque não apenas era um homem extraordinariamente bonito, como trazia no rosto expressões de benevolência e gentileza; afinal, como pretendia provar sua bravura, Luís queria causar em seus homens a melhor impressão possível.

Como sempre evitava situações desagradáveis, os modos de Luís eram afáveis ao extremo; além disso, como fora bem treinado em boas maneiras, não perdia sua dignidade por um monento sequer.

Portanto, assim que apareceu, trouxe consigo um ânimo renovado para o exército.

Devotando-se entusiasticamente à tarefa, Luís planejou a campanha com Noailles. Como resultado, Menin caiu perante a França, e a isso rapidamente se seguiu a captura de Ypres.

Em Paris houve muitos festejos. O povo sempre tivera razão: bastava seu rei livrar-se dos ministros para conduzir a nação à vitória e à prosperidade.

- Vida longa a Luís! - bradavam os plebeus de Paris.

A duquesa de Châteauroux, que estivera vivendo na região campestre de Plaisance com sua irmã - a feia que se tornara duquesa de Lauraguais -, soube das vitórias do rei.

- Ora, Lille agora deve ser tão segura quanto Paris. E estando apenas na companhia de soldados, como Luís deve estar necessitado de minhas atenções!

A irmã olhou para ela, estarrecida.

- Você pretende juntar-se a ele na guerra?

Por que não? Tenho certeza de que ele ficará feliz em me ver.

- Mas ele se recusou a permitir que a rainha acompanhasse o exército.

- A rainha! É claro que ele recusou a rainha.

- Então... você decidiu ir?

- Sim, e levarei você comigo. Deve começar a se preparar imediatamente. - Os olhos da duquesa começaram a brilhar como faziam quando ela estava ansiosa por colocar algum projeto em movimento.-Não vejo motivo para não partirmos sem delongas.

- Marie-Anne, já lhe ocorreu que embora o rei seja muito popular com seus soldados, você talvez não seja?-perguntou a irmã, ainda preocupada.

- Soldados! Quem se importa com o que os soldados pensam?

- Luís pode se importar.

- Tolinha! Ele se importa mais comigo do que com todos os soldados do seu exército.

- Você é muito segura de si, irmã.

- Conheço Luís. Você não conhece. É claro que nós duas procuraremos ser úteis. Nós iremos nos tornar... vivandières, o que acha?

Madame de Lauraguais não gostou nem um pouco disso, mas sabia por experiência própria que depois que sua irmã colocava uma coisa na cabeça, era impossível fazê-la mudar de ideia.

A duquesa de Châteauroux começou a trabalhar com a energia pela qual já era bem conhecida. A primeira coisa que ela precisava era o consentimento do rei. Isso não seria difícil de obter. Em seguida precisavam comunicar seu intento à rainha e pedir sua permissão. Não que Marie-Anne desse importância a qualquer uma dessas coisas; mas Luís preferiria que tudo fosse feito com a menor controvérsia possível.

Estranhamente, a rainha não impôs qualquer obstáculo à expedição. Ela deu de ombros.

- Deixe as mulheres irem, se assim quiserem - disse a rainha.

Mas quando retornou aos seus bordados e pinturas, a rainha carregava no coração um grande arrependimento por não tê-las impedido de ir.

A duquesa, sua irmã e algumas outras damas partiram imediatamente para Lille. Foi um certo choque descobrir que sua beleza não causou qualquer impressão no exército... ou talvez tenha causado uma impressão ruim.

As jóias reluzentes e os vestidos elegantes apenas despertaram irritação entre os soldados.

- Não há mulheres suficientes em Flandres? - perguntavam os soldados uns aos outros. - Se o rei quer uma mulher dessa espécie, não teria dificuldade em encontrá-la por lá.

Canções picantes foram entoadas sobre a duquesa. Ela as ignorou.

- Eu não me importo! - disse ela a Luís. - Minha alegria em ver o seu sucesso na guerra supera qualquer amargura. Luís, esta é a realização do meu sonho: vê-lo livre de velhos ditadores, rei por direito próprio, reconquistando a glória para a França. Eu sou a mulher mais feliz no mundo.

No começo de agosto Luís chegou a Metz. Aqui ele preparava mais campanhas.

Frederico da Prússia estivera observando os triunfos do rei com grande interesse, e sentia que enquanto as forças de Maria Theresa ocupavam-se em outras regiões, aqui estava uma oportunidade excelente para ele atacar a imperatriz na frente da Boémia. Considerando o momento perfeito para forjar uma aliança com Luís, iniciou as negociações.

Quando madame de Châteauroux e sua irmã chegaram a Metz logo depois do rei, o povo vaiou-os enquanto cavalgavam pelas ruas; mas nem Luís nem sua amante importaram-se com os plebeus, e como eles não podiam ser hospedados juntos, o rei ordenou que uma galeria encoberta fosse construída entre os aposentos que ele ocupava e a abadia de Saint-Arnoud, onde as irmãs estavam alojadas.

Foi anunciado que a galeria encoberta seria usada pelo rei quando ele fosse de seus aposentos até a missa; mas os cidadãos sabiam muito bem para qual propósito a galeria fora construída, e seu ódio pela favorita do rei aumentou imensamente. Contudo, eles continuavam a ser condescendentes com Luís. Luís era seu rei amado, mas era tão jovem e bondoso que uma mulher diabólica podia controlá-lo facilmente.

Foi enquanto o rei estava em Metz que o enviado de Frederico da Prússia chegou, e um banquete foi oferecido em sua honra. A duquesa, que aprovava plenamente a aliança sugerida com a Prússia, e cuja importância era compreendida por Frederico (ele escrevera cartas lisonjeiras para ela), sentou-se à direita do rei e todos se divertiram muito.

Talvez o rei tenha comido e bebido com exagero, ou talvez toda a excitação e fadiga dos últimos meses finalmente se tivessem feito sentir, porque no dia seguinte ao banquete aqueles que vieram acordar Luís verificaram que sua temperatura estava muito alta, que sua pele parecia excessivamente pálida, e que ele delirava.

Alarme se espalhou pelo acampamento francês. O rei, diziam, estava à morte.

A duquesa de Châteauroux correu até o quarto de Luís e, levando a irmã consigo, instalou-se ali. Ela decidiria quem iria ver o rei. Estava determinada a mantê-lo vivo, compreendendo que, se morresse, Luís levaria para a cova todas as esperanças de sua amante.

Relutante, ela permitiu que príncipes de sangue real - o jovem duque de Chartres e o conde de Clermont-vissem o rei. Eles insistiram na presença do bispo de Soissons, o capelão do rei, que declarou que, em vista da condição do rei, seu confessor, padre Pérusseau, deveria ser chamado.

- Se trouxer o confessor, o rei pensará que está morrendo! - protestou a duquesa.

- Madame, o rei está morrendo - respondeu o bispo de Soissons.

- Não! - gritou a duquesa.

Mas o grito soou mais como um protesto do que a declaração de uma crença. A duquesa cobriu o rosto com as mãos, porque via o império que construíra desmoronar diante de seus olhos.

Padre Pérusseau chegou ao leito de morte do rei. Era um homem com um dilema. Quando olhou para o rei ficou chocado em ver o quanto Luís estava doente, embora lembrasse que o monarca fosse propenso a febres e que em outras ocasiões estivera próximo à morte.

Se ele ia absolver o rei seria necessário expulsar de Metz madame de Châteauroux, porque não poderia prometer a redenção se Luís continuasse com sua amante ao seu lado. Expulsá-la não causaria qualquer problema caso o rei realmente morresse; o delfim não iria se revoltar contra isso, e a maioria dos cortesãos ficaria satisfeita em saber que ela fora humilhada.

Por outro lado, caso o rei não morresse... o que aconteceria a pérusseau? A duquesa era impiedosa com seus inimigos.

Enquanto isso, a duquesa travava uma conversa ansiosa com o seu conselheiro, o tio Richelieu, que na condição de grãocamarista naturalmente estava presente.

- O que vai acontecer? - inquiriu ao duque.

- É impossível predizer - foi a resposta. - Se ele está realmente morrendo, a senhora terá de partir. A questão é: como fazer isso em segredo? O povo não irá tratá-la de forma muito gentil se o rei não mais puder usar sua autoridade para defendê-la.

Ela estava com medo, e Richelieu, que tantas vezes sentira-se irritado com sua arrogância, não pôde deixar de sentir um leve triunfo, embora tivesse aliado a sua causa à dela.

Estavam falando numa pequena ante-sala que conduzia à alcova do rei.

- Chame o padre - comandou a duquesa. Richelieu assim o fez.

O atormentado padre Pérusseau parecia preferir olhar para o rosto da Medusa a olhar para a duquesa de Châteauroux.

- O rei vai se confessar? - inquiriu a duquesa.

- Não posso responder a isso, madame. Depende dos desejos do rei.

- Se ele for se confessar, então será necessário que eu parta?

- Madame deve compreender como é difícil para mim responder a essa pergunta.

- Mas o senhor deve! - replicou. - Não quero ser expulsa aos olhos de todos. Se devo partir, viajarei em segredo.

- É possível... é possível que o rei não queira se confessar

- murmurou o padre.

- Precisamos evitar um escândalo-asseverou a duquesa.

- Admito que pequei com o rei. Mas... os reis não devem gozar de exceções especiais?

Padre Pérusseau ficou tão constrangido que não soube o que dizer, e Richelieu segurou seu braço.

- Sempre fui um bom amigo de vocês, jesuítas - disse Richelieu. - Vocês precisam de bons amigos na corte, como sabe. Estou pedindo ao senhor que decida se a duquesa deve permanecer aqui ou escapulir discretamente. Se ela vai partir, deve fazê-lo sem espalhafato.

- Não posso ajudar! - gritou o padre, à beira das lágrimas. - Não sei o que decidir!

A duquesa trocou um olhar aborrecido com Richelieu. Não havia motivo para torturar mais o homem. Eles apenas podiam esperar e torcer.

Entrementes, a condição do rei havia piorado, e o bispo dissera-lhe que era hora de fazer suas pazes com Deus.

- E isso Vossa Majestade não pode fazer enquanto a sua amante permanecer aqui. Há apenas uma coisa a ser feita. Darlhe a ordem de partir sem demora para que Vossa Majestade possa se arrepender a tempo.

O rei concordou, e por seus aposentos espalhou-se a notícia de que finalmente o rei dera seu consentimento. A galeria que conectava seus aposentos aos de sua amante foi fechada, de modo a passar a mensagem de que ela tinha sido expulsa. Agora era a hora de a duquesa e sua irmã escapulirem de Metz com o máximo de rapidez e segredo que conseguissem.

Mas elas tinham muitos inimigos.

- O rei está morrendo - disseram aquelas princesas que a duquesa tentara manter afastadas do leito de morte do rei. Não há mais necessidade de obedecer à favorita.

Nas ruas de Metz, nas tavernas, as pessoas falavam do destino da amante. Eles iriam conduzi-la para fora da cidade a toques de tambor, diziam. Eles iam ensiná-la a ser menos arrogante do que fora ao chegar.

A duquesa alternava-se entre furiosa e assustada; temia cair nas mãos da multidão - um destino que seus inimigos desejavam ver.

Maurepas estava deliciado com a virada dos eventos e não fez qualquer tentativa para ocultar seu prazer. O duque de Châtillon, que era o tutor do delfim, dizia a quem quisesse ouvir que a dispensa da favorita do rei era a melhor coisa que podia acontecer à Casa Real da França.

Richelieu viu todos os seus aliados darem-lhe as costas e percebeu que havia em andamento um plano para exilá-lo. Enquanto isso, a duquesa sabia que suas horas em Metz estavam contadas, e que ela e sua irmã teriam de enfrentar a multidão hostil em seu caminho para fora da cidade e através da França.

Enquanto preparavam-se para partir, o marechal de BelleIsle chamou-as. Ele expressou sua simpatia, e disse que não gostava de ver damas em apuros.

- Madame, a senhora deve saber que multidões hostis estão aguardando a sua carruagem.

- Sei disso, monsieur de Belle-Isle - disse ela, tentando desesperadamente reter a sua coragem.

- Então espero que a senhora permita-me colocar minha carruagem à sua disposição - disse o marechal. - Ela é grande e, se as persianas da janela estiverem abaixadas, ninguém verá quem está viajando nela.

- Como posso lhe agradecer? - perguntou a duquesa, lágrimas nos olhos.

- Não é nada-disse o marechal. - Não posso ver damas em apuros. Prepare-se para partir em minha carruagem. Eu sairei daqui a pé. As persianas da carruagem estão abaixadas. A carruagem estará longe de Metz antes que o povo descubra que a senhora partiu.

E assim a duquesa de Châteauroux partiu despercebida de Metz.

O bispo de Soissons e padre Pérusseau estavam no comando. Afinal o rei, por demais doente, era uma marionete em suas mãos. Eles davam suas ordens e cabia ao rei obedecê-las. Luís acreditava que em breve partiria deste mundo, e era tarefa dos clérigos conduzi-lo ao Paraíso.

Ele se arrependia de seus pecados?

Ele se arrependia com todo o seu coração.

Isso era bom, porque apenas o arrependimento completo salvaria a sua alma.

O arrependimento de Luís precisava ser tornado público; ele precisava confessar seus diversos pecados; precisava concordar em banir a duquesa de Châteauroux a um lugar que ficava a 240 quilómetros de Versalhes.

O rei começava a perder a consciência; estava doente demais para compreender qualquer coisa além do fato de que sua alma estava sendo salva.

Assim, os inimigos de Richelieu e da duquesa estavam triunfantes, e os homens e mulheres já demonstraram um novo respeito pelo delfim.

O bispo declarou que a rainha precisava comparecer imediatamente ao leito de morte do rei, e que toda a França devia saber que a concubina fora dispensada, e que marido e esposa estavam juntos novamente.

Luís consentiu tudo isso, mas o fez sem perceber.

E então, subitamente, o milagre aconteceu. Certa manhã, Luís acordou e descobriu que sua febre havia desaparecido.

Enquanto a duquesa era conduzida para fora da cidade de Metz, a rainha era conduzida para dentro. A rainha era uma mulher muito infeliz, porque acreditava que o rei só podia ter dispensado sua amante e mandado chamar sua esposa se estivesse às portas da morte. Além disso, acabara de receber notícias de que sua pequena Thérèse-Félicité havia morrido.

Houve um pouco de conforto na conduta dos plebeus, que tinham saído às ruas para ver as carruagens da esposa e da amante do rei tomarem direções diferentes. Eles gritaram impropérios para a amante, cuspiram em sua carruagem e arremessaram pedras nela; enquanto isso, gritaram vivas para a rainha.

Luís ainda estava muito fraco quando a rainha chegou a Metz. Ele ficou comovido quando a rainha o visitou e se ajoelhou diante de sua cama, derretida em lágrimas.

- Peço o seu perdão - disse ele. - Perdão pelas humilhações que a fiz sofrer.

Marie balançou a cabeça e sorriu para ele através das lágrimas.

- Você tem o meu perdão - disse ela. - Tudo que você precisa é pedir o perdão de Deus.

Foi um comentário irritante e típico de sua esposa, mas Luís sentia-se genuinamente arrependido pelo tormento que lhe causara e agora ansiava por paz. Assim, ele segurou a mão de sua mulher.

Paris explodiu em alegria. Luís tinha se recuperado e dispensado a duquesa. Ele e a rainha estavam juntos de novo. Ele havia se comportado com coragem entre os seus soldados. Ele iria governá-los com nobreza e justiça; e os bons tempos retornariam para a França.

Todos falavam sobre Luís com o máximo de apreço. Ele ia ser o maior rei que a França já tinha conhecido.

Foi nessa época que eles não se referiram a Luís meramente como o rei. Eles o chamaram de "Luís, o Bem-Amado".

Assim que se recuperou completamente, Luís voltou a comandar o seu exército. Noailles não havia sido muito bem-sucedido durante a doença do rei, e Luís estava começando a compreender que ele se enganara em considerar este homem um grande general.

Tolamente, ele permitira a Carlos da Lorena cruzar o Reno sem ser molestado em seu caminho para ajudar a Boémia contra o ataque de Frederico da Prússia. O fato de Noailles ter-lhe permitido escapar foi motivo de desgraça. O povo gritou impropérios contra ele e, quando ele retomou a Metz para conferenciar com o rei, o velho marechal descobriu que não tinha a confiança de Luís; quanto ao novo aliado, Frederico da Prússia, ele estava furioso com o comportamento relaxado de Noailles que, disse ele, beirava a traição.

Luís reuniu seus exércitos em Freiburg, que foi tomada pelos franceses. Mas o inverno já os alcançara e era impossível continuar a guerra.

Luís partiu para Paris, onde recebeu boas-vindas calorosas. A despeito do frio, o povo enchia as ruas para mostrar-lhe o quanto o amava.

Sentado em sua carruagem dourada, Luís parecia belo como um deus, e quando os plebeus recordaram sua coragem no campo de batalha, gritaram até ficar roucos.

Em meio à multidão, uma mulher com o corpo todo embrulhado num xale observava atentamente a carruagem e seu ocupante.

Ele não a viu, mas incauta, ela se permitiu despir o xale e revelar suas feições.

Um homem ao seu lado reconheceu-a e riu alto.

- Châteauroux! - gritou o homem e ela logo estava cercada.

Desesperadamente, ela lutou para escapar da multidão.

- Vocês estão enganados... estão cometendo um erro terrível... - insistiu.

Más eles não estavam. Eles cuspiram nela; procuraram por pedras e excrementos nas ruas para arremessar na mulher; gritaram insultos para ela.

Chorando de ódio e humilhação, ela correu o mais depressa que pôde; e quando conseguiu escapar dos plebeus - porque eles não queriam perder a chance de ver a procissão do rei apenas para atormentá-la-ela se encostou nos muros de um beco, ofegante e amedrontada.

À distância, ela ouviu o som de tambores e os gritos da multidão.

- Longa vida a Luís! Luís está de volta. Longa vida a Luís, idolatrado por seu povo!

O duque de Richelieu novamente estava servindo ao rei no palácio de Versalhes. Muitos perguntavam-se o que iria acontecer em seguida, e suas pernas tremiam como vara verde.

O duque de Châtillon e sua duquesa estavam aterrorizados. Eles tinham agido insensatamente. Embora Luís houvesse dito que não queria que o delfim fosse levado ao seu leito em Metz, quando o delfim implorara para ir até lá, o duque ignorara os desejos do rei e resolvera atender aos desejos de seu pupilo. Ele fizera isso porque então acreditava que o rei estava morrendo, e que apenas obedecia aos desejos do menino que em breve seria rei.

O duque, como outros, havia cometido um erro, e acreditava que iria pagar por ele.

Luís não demonstrara qualquer descontentamento, e fora até mesmo afável como sempre com os Châtillon, mas eles agora estavam começando a conhecer os métodos de seu rei.

Maurepas perguntava-se o que iria acontecer com ele. Havia outros que estavam tensos. E numa casa na rue du Bac, onde a duquesa de Châteaurouxestava alojada com sua irmã, pessoas apareciam com frequência, e se dizia que mensagens do rei eram levadas para a dama.

O povo de Paris ficou chocado com esses rumores. Eles tinham acreditado que seu rei havia se reconciliado com a rainha, que o casal voltaria a gerar filhos, que eles iriam desfrutar de felicidade conjugal, e que o rei iria descartar sua amante e se concentrar na regência da França.

A duquesa recebeu a notícia de que um cavalheiro da corte chegara em visita.

Ela o recebeu com grande ânimo, acreditando que lhe trazia uma mensagem do rei. Contudo, quando o homem baixou seu capuz, a duquesa deixou escapar um grito de grande prazer; ele não era outro senão o próprio Luís.

Ela se jogou em seus braços e chorou de alegria.

- Luís... meu Luís... Eu sabia que você viria chamar-me.

- Você vai voltar para Versalhes.

- Fui tão humilhada... humilhada tão cruelmente!

- Eu sei.

Ela segurou as mãos de Luís e as beijou, primeiro terna, e em seguida ardorosamente. A duquesa sabia como atiçar o desejo de Luís por ela, um desejo que obliterava tudo mais.

- Preciso voltar! - gritou ela. - Não posso suportar mais esta separação.

- Você vai voltar.

- Jamais serei tratada com respeito novamente enquanto os meus inimigos ainda estiverem lá. Luís, eles estão lá? Maurepas... ele é o maior deles. Desde que deixei Metz fiquei doente muitas vezes. Luís, acho que esse homem tentou envenenar-me.

- Não, ele não faria isso.

- Não faria? Ele me odeia porque sabe que eu o odeio. Châtillon, ele é outro. Ele e sua esposa fizeram com que o delfim me odiasse.

- Ele será dispensado da corte... e sua esposa também. A duquesa assentiu com a cabeça, feliz.

- O bispo de Soissons e aquele confessor patético...

- Dispensaremos a todos... se você achar que só poderá retornar à corte sob essa condição.

Ela o abraçou forte. Os olhos da duquesa estavam estranhamente brilhantes, como se afetados por uma febre. Ela sentiu que aquele era o seu momento de maior triunfo.

Luís passou a noite com ela na rue du Bac e, antes de partir, ele disse:

- É imperativo que você retorne imediatamente a Versalhes. Já ficamos afastados por tempo demais.

- Retornarei assim que o conde de Maurepas me trouxer um comando seu para fazer isso.

Luís riu.

- Será assim - prometeu.

Os olhos da duquesa se estreitaram.

- Eu quero que monsieur de Maurepas saiba que, por mais inteligente que se julgue, ele agiu estupidamente ao se proclamar inimigo meu.

Depois que Luís saiu, a duquesa chamou sua irmã.

- Triunfo! - gritou. - Apronte-se. Logo voltaremos para Versalhes. Todas as humilhações sofridas em Metz serão esquecidas.

- Essa é uma grande notícia - disse a irmã. - Quando partimos? - Ela parou abruptamente e fitou a duquesa. - Sente-se bem? Você parece tão estranha.

- Estranha? Eu?

- Seus olhos estão muito brilhantes. Eles parecem quase vítreos... e como as suas bochechas estão quentes!

A duquesa virou-se para ela.

- Eu sofri muito, não sofri? Metz! Será que conseguirei esquecer o que aconteceu lá? Mas agora outros sofrerão como me fizeram sofrer?

- O amor de Sua Majestade foi... muito exigente?

- E não foi sempre?

- Minha irmã, se eu fosse você, deitaria um pouco. Está empolgada demais. vou lhe trazer uma bebida fria e calmante.

- Muito bem.

Quando a duquesa segurou a mão da irmã e a apertou, madame de Lauraguais notou o quanto estava quente, e saiu correndo para pegar a bebida. Quando retornou, encontrou a duquesa deitada na cama.

Madame de Lauraguais tentou fazer sua irmã tomar a bebida, mas ela não pareceu entender; então ela se ajoelhou ao lado da cama.

- Tenho medo... - murmurou madame de Châteauroux.

- Eles querem me apedrejar. Baixe as persianas...

- A excitação foi forte demais para você - murmurou madame de Lauraguais. - Amanhã você irá se sentir melhor.

Mas no dia seguinte a duquesa não se sentia melhor. Estava acometida por uma febre e parecia muito, muito doente.

Por duas semanas ela esteve à beira da morte. Os plebeus de Paris reuniram-se nos mercados e nas esquinas para falar sobre ela. Todos diziam que ela faria um grande bem à França se jamais se recuperasse.

Muitos diziam que Maurepas envenenara a duquesa.

A cada hora do dia mensageiros iam e vinham entre a rue du Bac e o palácio. O rei, dizia-se, estava sofrendo em simpatia à sua favorita.

Madame de Mailly saiu do exílio para visitar a irmã e dizerlhe que não lhe desejava nenhum mal devido ao tratamento cruel que lhe dispensara. E a duquesa ficou aliviada em ver a irmã e receber pessoalmente seu perdão.

- vou morrer - disse a duquesa. - E fiz muitas coisas que agora desejava jamais ter feito.

No começo de dezembro, a duquesa confessou seus pecados e recebeu os últimos sacramentos, e no oitavo dia desse mês ela faleceu.

Alguns dias depois, a duquesa foi enterrada discretamente na capela de Saint Michel, em Saint-Sulpice, muito cedo pela manhã sob as ordens do rei que, lembrando da forma como o cadáver de madame de Vintimille fora tratado, quis poupar sua amada duquesa dessa última humilhação.

Luís ficou arrasado e nada que qualquer um lhe dissesse podia tirá-lo de sua melancolia.

Até a rainha enviou suas simpatias, e a plebe de Paris, que inicialmente quis formar procissões para proclamar seu deleite pela morte dessa mulher a quem haviam odiado, refreou seu desejo de fazê-lo.

- Ela foi arrogante e exerceu uma influência maligna sobre o rei, mas ele a amou - diziam os plebeus. - Comemorar sua morte agora não irá magoá-la, mas causará ainda mais dor ao rei.

Magoar Luís! Como eles poderiam? Não era ele seu querido jovem rei, Luís, o Bem-Amado?

 

Houve uma mulher na França que recebeu a notícia da morte de madame de Châteauroux com uma calma fatalista. Alguma coisa precisava acontecer para cortar o relacionamento entre o rei e a duquesa, e embora ela não tivesse esperado que o motivo fosse a morte da duquesa, a causa não era importante. A única coisa importante era que o rei estava livre.

Quando recebeu as notícias no castelo dEtioles, ela começou a tecer seus planos. Ela estava próxima de concretizar a ambição de sua vida, mas sabia que para tal precisaria fazer tudo que estivesse ao seu alcance.

Madame dEtioles nascera Jeanne-Antoinette Poisson. Não um nome muito elegante, significando "peixe" em francês; mas sua família sempre fora mais arguta do que elegante.

Seu pai, François Poisson, havia sido um homem de ideias, determinado a fazer sua fortuna. Havia muitas formas de um homem enriquecer em Paris, desde que esse homem não fosse apegado a convenções, e François não era.

Ele era um açougueiro - um açougueiro muitíssimo bemsucedido - com um brilhantismo para fazer contratos. Ele obteve rapidamente um contrato para suprir com carne o Hôpital dês Invalides, mas a despeito de sua prosperidade, não estava satisfeito. Colheitas ruins tinham significado escassez de cereais, e um homem como François podia descobrir formas de explorar situações como essa.

Infelizmente, quando um homem mantinha-se apenas no lado correto da lei, um passo em falso poderia mandá-lo para o lado errado.

François foi pego num escândalo de cereais, e não havia nada que enfurecesse mais os famintos de Paris do que os homens que enriqueciam com a miséria do povo. Provada sua culpa, ele precisou deixar a capital às pressas antes que a turba pusesse suas mãos nele.

Ele fez isso, deixando madame Poisson para defender a si própria e aos seus dois filhos - Jeanne-Antoinette e Abel.

Madame Poisson decerto era capaz de fazer isso. Era uma mulher muito bonita, socialmente um pouco acima de François, considerando a influência que obtivera através dos amigos homens que continuara a entreter depois de seu casamento.

Um desses amigos era o riquíssimo fazendeiro-geral Lenormant de Tourneheim; este homem ainda estava enamorado da bela madame Poisson e era seu amante há muitos anos. Algumas pessoas diziam que ele era o pai verdadeiro de JeanneAntoinette, dado o carinho que dedicava à menina. Entretanto, ninguém além de madame Poisson sabia a verdade por trás disso, e talvez até ela não tivesse certeza. Mas era sensato permitir que o rico financista acreditasse que aquela linda criatura era dele

- particularmente quando, depois da fuga de François, a família precisara cuidar de si própria.

Os bens de François tinham sido disponibilizados para o pagamento de dívidas, e a família teria se visto em graves condições não fosse a gentileza de monsieur de Tourneheim.

Monsieur de Tourneheim era realmente um grande protetor; não apenas era rico como também aparentado dos Pâris-Duverneys, que podiam exercer alguma influência em círculos elevados.

Portanto, quando François desapareceu, monsieur de Tourneheim assumiu a guarda da família.

A sua filha, dizia madame Poisson, estava claramente destinada a tornar-se uma beldade, e queria garantir a melhor educação possível para ela. Quanto a Abel, ele iria ser o irmão de uma beldade celebrizada e portanto não poderia desgraçá-la com sua falta de educação.

- Que futuro você planeja para a criança? - perguntara monsieur de Tourneheim.

- O maior que a menina poderá conquistar com sua beleza e educação - foi a resposta que ela teve na ponta da língua.

A família mudou-se para a casa grande que pertencera ao fazendeiro-geral, o Hotel de Gesvres; Jeanne-Antoinette foi mandada para um convento em Poissy, e Abel para uma escola para gentios.

Era um lar feliz, pois madame Poisson era tão inteligente e agradável quanto atraente; ela estava muito satisfeita com sua vida, e tendo tudo que queria, dedicava-se a contemplar o futuro de sua filha. Foi depois de uma visita a uma quermesse que essas ambições tomaram um caminho definido.

O passeio à quermesse tinha sido uma diversão prometida às crianças, e madame Poisson, andando pelo lugar com uma delas em cada braço - seu belo filho e sua adorável filha -, estava orgulhosa e feliz naquele dia, particularmente quando as pessoas paravam para dizer o quanto a menina era linda.

Jeanne-Antoinette implorou para visitar a cartomante, e como ela própria estava ansiosa por saber que grande futuro aguardava a menina, madame Poisson não foi muito difícil de ser persuadida.

A velha cigana ficou de queixo caído ao ver a menina. Sua pele era quase imaculada e quase translúcida; seus olhos eram grandes e reluziam com inteligência e vitalidade; era extremamente feminina e mesmo aos nove anos de idade envergava seu vestido com tamanha graça e dignidade que parecia mais apropriada a uma corte do que a uma feira.

- Sente-se, lindeza - disse a velha. Ela olhou para a mãe orgulhosa e acrescentou: - Não é sempre que tenho o prazer de olhar para um futuro como o desta menina.

Ela estudou a palma pequenina, os dedos compridos, a pele delicada, e procurou dotar essa jovem com o melhor futuro que conseguisse imaginar.

Por que ela pensou no rei naquele momento? Teria sido porque o vira recentemente cavalgando através de Paris? Oh, que rapaz bonito! Ele estava a caminho de Notre-Dame para agradecer a Deus pelo nascimento do delfim.

Todos diziam que ele tinha uma rainha que não lhe era digna, uma que parecia mais uma mulher do povo do que uma rainha. O povo dizia que com uma rainha como aquela o rei deveria ter amantes, assim como seu bisavô tivera antes dele.

Então a cigana proferiu:

- Um grande destino a aguarda, bela menina. - Ela apertou a mãozinha da criança com a sua, encarquilhada e amarronzada. - Vejo-a de mãos dadas com um rei... um grande rei... o maior de todos os reis. Ele é bonito. Ele a ama, minha querida; ele a ama profundamente... e ele coloca você acima de todas as outras.

Madame Poisson pagou à cigana o dobro de seus honorários. Ela mal podia esperar para retornar ao Hotel Gesvres, para contar ao seu amante a predição da cigana.

Monsieur de Tourneheim estava se divertindo, mas era tão grande a crença de madame Poisson na profecia dos ciganos que ela não conseguia pensar em muitas coisas.

- Agora, mais do que nunca, é essencial que ela goze da melhor educação possível - declarou. - Só assim será recebida na corte. Ela precisa aprender a dançar e cantar... precisa aprender tudo que uma dama da corte deve saber. Ela precisa ser tão inteligente quanto bonita. Como conquistará seu lugar entre todos aqueles homens e mulheres ciumentos se não estiver preparada para fazê-lo?

Monsieur de Tourneheim não conseguiu resistir a ser contaminado pelo entusiasmo de madame Poisson. Jeanne-Antoinette deveria gozar da melhor educação que o dinheiro pudesse pagar.

Madame Poisson estava deliciada. Ela ficava eufórica ao ver cada progresso da filha.

- Ninguém pode negar que ela é digna de um rei!

Jeanne-Antoinette não foi mantida na ignorância do destino que sua mãe e monsieur de Tourneheim planejaram para ela.

Desde os nove anos de idade ela começou a se preparar para o papel que deveria desempenhar. Aprendeu a dançar e cantar e sua voz revelou-se deliciosa. Gostava de teatro e queria atuar. Isto ela fazia com graça e elegância durante as pequenas peças encenadas para amigos no Hotel de Gesvres.

- Ela seria uma ótima atriz, se um destino maior não a aguardasse - declarou madame Poisson.

Ela pintava com talento e tocava vários instrumentos musicais com a mesma perícia. A moça era realmente talentosa, e sua beleza aumentava a cada dia, o que induziu monsieur de Tourneheim a acreditar que as aspirações de madame Poisson para a filha não eram tão absurdas, afinal de contas.

Enquanto isso, Jeanne-Antoinette aproveitava cada oportunidade para ver o rei. Elas não eram muitas, porque Luís evitava ao máximo aparecer em público, mas quando a garota viu aquele homem bonito em suas vestes reais, considerou-o quase divino e se apaixonou por ele.

Quando ela estava chegando ao fim da adolescência, madame Poisson decidiu que chegara a hora de a jovem se casar. Quem seria um marido adequado para uma mulher com aquele destino? Um conde? Um duque? Qualquer uma das duas coisas era impossível. Nenhum conde ou duque teria permissão para desposar uma garota cujo pai era pouco mais do que um mercador. Madame Poisson estava preocupada. Jeanne-Antoinette não poderia tornar-se amante do rei até se casar, e ela precisava de um marido. Que coisa maravilhosa seria se algum homem, digamos das famílias Orléans e Conde, ficasse tão enamorado de Jeanne-Antoinette que decidisse, a despeito da oposição de sua família, casar-se com a jovem!

Madame Poisson pediu auxílio ao seu benfeitor, Lenormant de Tourneheim.

Monsieur Poisson retornara Paris. Madame Poisson acreditava que agora que Jeanne-Antoinette estava crescendo, não lhe faria bem ter um pai desterrado, e assim pedira ao influente Lenormant que providenciasse para que as acusações contra ele fossem retiradas. François instalou-se no Hotel dês Gesvres, e madame Poisson foi capaz de manter os dois homens satisfeitos.

Agora monsieur de Tourneheim tinha um marido em perspectiva para Jeanne-Antoinette. O herdeiro de sua fortuna era seu sobrinho, Charles-Guillaume Lenormant dEtioles; este rapaz seria o noivo de Jeanne-Antoinette.

Quando soube que iria casar-se com a filha de François Poisson, o homem que estivera envolvido num escândalo de cereais, o rapaz ficou indignado.

- Recuso-me - disse ao tio.

- Rapaz, faça isso e minha fortuna será deixada para outro

- sentenciou monsieur de Tourneheim.

A ameaça chocou o rapaz, que hesitou durante algum tempo até ceder.

Casaram-se em março do ano de 1741. Jeanne-Antoinette, agora com pouco mais de vinte anos, era uma noiva bonita e o rapaz sentia sua excitação e interesse por ela crescerem a cada minuto.

Depois da noite de núpcias o rapaz se viu profundamente apaixonado, e Jeanne-Antoinette, que aceitara o casamento como um passo necessário na estrada para o seu destino, ficou estarrecida com a paixão do marido. Contudo, ela se resignou a aceitá-la.

- Jure que você sempre me será fiel - disse o jovem esposo em certa ocasião.

- Serei uma esposa fiel - respondeu num tom solene. Exceto, é claro, no caso do rei.

Charles-Guillaume ficou apalermado com essa resposta, mas acreditando tratar-se de uma piada, não pensou mais nela.

Jeanne-Antoinette estava descobrindo que era muito diferente ser esposa de um homem jovem e rico, herdeiro de uma grande fortuna, do que ser meramente a filha de um homem rico. Charles-Guillaume sempre lhe dava tudo que queria, e ela frequentemente tinha oportunidades de exibir os talentos que cultivava desde os nove anos de idade.

No Hotel dês Gresvres ela estabeleceu o seu salon, onde recebia os intelectuais de Paris. Suas festas eram frequentadas por escritores e músicos, e sempre no centro dessas reuniões estava a exuberante Jeanne-Antoinette, encantando-os com sua beleza e prosa.

Deu à luz duas crianças, uma menina e um menino; e, embora os amasse devotadamente, jamais perdia de vista o que ela passara a acreditar ser o seu destino.

Voltaire, que era um visitante assíduo dessas reuniões no Hotel dês Gesvres, sentiu-se muito atraído por sua anfitriã, que o deliciava comentando sua obra com grande inteligência e encorajando-o a visitá-la e conferir às suas reuniões o éclat que, dizia ela, se irradiava de seu génio.

Certo dia, ela disse a ele:

- Se um dia estiver em meu poder ajudá-lo, tenha certeza de que o farei.

Voltaire beijou a mão de sua anfitriã e, como ela sentiu que ele não a compreendera completamente, acrescentou:

- Tenho o pressentimento de que um dia, que está mais próximo a cada instante, o rei irá se apaixonar por mim.

- Para isso bastará que ele deite os olhos na senhora - foi a resposta de Voltaire.

Ela sorriu para ele.

- O rei vive cercado por mulheres bonitas e educadas, mulheres que nasceram para a vida da corte, e que portanto enquadram-se perfeitamente no palácio de Versalhes e tudo que ele representa Mas eu sei. Alguma coisa dentro de mim me diz isso. Eu o amo desde o momento em que o vi. De fato, creio que o amo desde antes de tê-lo visto.

Ela percebeu que o escritor não levou essa conversa muito a sério, e isso a divertiu.

Um dia ele lembrará, disse Jeanne-Antoinette a si mesma.

Ela começou a sentir uma certa inquietação. O tempo estava passando, e se ela iria cativar o rei precisaria fazê-lo sem delongas. Já tinha mais de vinte anos e era mãe de dois filhos.

Então ouviu dizer que Luís ocasionalmente caçava na floresta de Sénart, e lembrou do velho castelo que ficava próximo à floresta e pertencia à família Tourneheim.

- Por que não podemos ter uma morada no campo? - disse ao marido. - Vamos inspecionar o velho castelo.

E assim Jeanne-Antoinette e Charles-Guillaume partiram para o castelo. Ela decidiu que o lugar poderia ficar atraente e Charles-Guillaume concordou com ela. Jeanne-Antoinette pôsse a planejar a reforma com entusiasmo; ela própria projetou as alterações; os arquitetos e construtores puseram-se a trabalhar, e logo ela tinha o seu castelo no campo.

Jeanne-Antoinette planejou um guarda-roupa suntuoso e ordenou que duas ou três carruagens fossem feitas para ela. Essas carruagens precisavam ser diferentes das outras; deviam ser leves e delicadas, desenhadas especificamente para levá-la em passeios pelos arredores do castelo. Elas foram feitas em cores que combinavam com sua dama - delicados tons de rosa e azul.

Foi assim que Jeanne-Antoinette se fez notar pelo rei quando ele estava caçando na floresta. Esse poderia ter sido o grande momento, se o rei já não estivesse sob o encanto daquela mulher determinada, madame de Châteauroux.

O dia em que a comitiva do rei se abrigou no castelo durante uma tempestade pareceu uma oportunidade enviada pelos céus. Mas novamente madame de Châteauroux estava presente para impedir que os planos de Jeanne-Antoinette se concretizassem. Além disso, o rei não se encontrava suficientemente cônscio de seu destino para ajudar a situação, insistindo para que a bela madame dEtioles fosse recebida numa de suas festas.

Pior ainda, madame de Châteauroux começara a suspeitar que tinha uma rival na bela dama do castelo da floresta, e daquele dia em diante ela providenciou para que fosse impossível para Jeanne-Antoinette colocar-se no caminho do rei.

Isso fora muito deprimente. Mas agora madame de Châteauroux estava morta.

No final do ano de 1744 foi decidido que, como o delfim tinha agora quinze anos e o rei casara-se com essa idade, era hora de arranjar uma esposa para o herdeiro do trono.

O delfim mudara muito. De um menino bonito animado que sempre mantivera o rei interessado com seus comentários inteligentes, agora era um rapaz gordinho, cada vez mais interessado por religião.

Ele não herdara o amor dos Bourbons pela caça. Pelo contrário, era avesso a esportes. Isso poderia dever-se ao fato de que, em sua primeira expedição de caça, o menino acidentalmente matara um homem. Isso o deixara abalado e jamais sumira de seus pensamentos, e quando foi convencido a participar de uma expedição similar e uma de suas flechas acidentalmente feriu uma mulher, ele declarou que não sentia mais prazer nos esportes.

Ele e Luís estavam se afastando cada vez mais. De fato, o interesse de Luís concentrava-se em suas filhas, e ele frequentemente era visto em companhia de Anne-Henriette e Adelaide. O bom humor de Adelaide divertia Luís, mas sua predileção por Anne-Henriette era evidente. Ele parecia jamais poder dar-lhe afeição suficiente para compensar ter negado seu casamento com o duque de Chartres.

O delfim estava empolgado com a perspectiva de ter uma noiva, e quando a infanta Marie-Thérèse-Raphaèlle chegou, ele decidiu que deveria amá-la.

Ela era irmã da pequena infanta que anos antes fora mandada para a França como noiva de Luís e que, por ser jovem demais, tinha sido enviada rudemente de volta para casa pelo duque de Bourbon e pela dominadora madame de Prie.

Marie-Thérèse-Raphaêlle era quatro anos mais velha que o delfim. Tinha cabelos ruivos abundantes, mas com estes vinha uma pele muito clara e um conjunto de feições não muito atraentes. Ela chegou à França temerosa; lembrando do tratamento dispensado pelos franceses à sua irmã, estava determinada a não permitir que fosse tratada dessa forma e, conseqúentemente, comportava-se com arrogância extrema. Ela possuía a solenidade que era típica da corte espanhola, em contraste absoluto com o esplendor e a alegria que compunham a essência de Versalhes.

Apenas o delfim mantinha-se encantado com Marie-ThérèseRaphaélle. À medida que deixou isso claro para a infanta, ela começou a ficar um pouco mais cândida, mas só para com ele.

O rei, sorrindo ao ver o jovem casal, recordou os dias em que Marie Leczinska chegara à França e ele a considerara a mulher mais bonita na corte.

Cego, disse a si mesmo. Absolutamente cego! Mas faz bem ser cego em certas ocasiões. Vamos torcer para que o delfim seja afligido pelo mesmo mal.

O casamento do delfim foi comemorado com uma série de festividades, e o evento culminante foi o baile de máscaras realizado no próprio castelo de Versalhes.

A empolgação se espalhou por todo o palácio, não só porque iria haver um baile no qual homens e mulheres mascarados poderiam pôr de lado todo o decoro durante uma noite inteira, mas porque, com as festividades que se seguiriam ao casamento do delfim, o rei sairia do luto por madame de Châteauroux. Ele não era o tipo de homem capaz de existir durante muito tempo desprovido de amizade feminina e, cedo ou tarde, alguém ocuparia o lugar da falecida.

Assim, muitas mulheres, enquanto se preparavam para o baile, torciam para que aquela noite marcasse o começo de uma vida de prestígio e poder; e as amigas das beldades ajudavam-nas a preparar suas armas para o ataque.

Foi uma ocasião magnífica. O Salon dHercule e a Galerie dês Glaces, com as seis salas de recepção entre elas, foram colocados à disposição dos convidados, e mesmo isso parecia pouco espaço para acomodar todos que compareceram. As fantasias, belas e bizarras, encantadoras e reluzentes, compunham uma visão digna de lembrança. Sob a cornija dourada do Salon dHercule, os convidados se reuniram; eles sentaram-se em belíssimos guéridons prateados na Galerie dês Glaces; a luz dos dezessete candelabros de cristal e dos candelabros menores captava as cores na galáxia de jóias. O baile foi um dos mais deslumbrantes já realizados no palácio de Versalhes.

E a toda aquela cor, refulgência e esplendor acrescentava-se a tensão que tinha suas raízes numa pergunta empolgante: Quem o rei escolheria como nova amante naquela noite?

Anne-Henriette era uma das poucas mulheres que compareceram ao baile sem qualquer empolgação. Sempre que uma ocasião como aquela se apresentava e ela testemunhava a excitação das outras pessoas, Anne-Henriette sentia-se triste. Tinha apenas dezoito anos, e ainda assim sentia que toda esperança e felicidade estavam perdidas para ela.

Ela acreditava que o duque de Chartres resignara-se com o destino. Ele tinha uma esposa agora; às vezes ele olhava para ela com pesar, mas será que isso se devia a ele ter sido forçado a um casamento menos brilhante do que esperara? Ele fora para a guerra e fizera uma nova vida para si no exército. Quando ele tinha sido ferido naquela campanha da qual Luís participara, Anne-Henriette ouvira dizer que a duquesa de Chartres tinha ido para a guerra para estar com o duque.

Essa tarefa devia caber a mim, pensara na época.

Ele tinha ofendido madame de Châteauroux quando aquela mulher fora dispensada do quarto do rei em Metz. E quando o rei convalescera, e madame de Châteauroux recuperara o favoritismo de Luís, o jovem duque ficara alarmado com seu futuro.

Estava tudo acabado agora, mas esses alarmes e excitações iriam ajudá-lo a esquecer. E o que mais uma princesa poderia fazer senão sentar-se diante de seu bordado, submeter-se a todas as cerimónias que lhe eram exigidas e continuar a lamentar a perda de seu amante?

Anne-Henriette ajustou sua máscara e se manteve parada em pé diante das cortinas douradas que decoravam a galeria. Esta era uma das raras ocasiões em que uma princesa poderia imiscuir-se com o povo como um deles, e ela tinha ouvido que não apenas a nobreza seria admitida no baile daquela noite.

Enquanto olhava para a massa coleante de pessoas, ela sentiu alguém tocar levemente a sua mão. Assustada, virou-se para encontrar um rosto mascarado perto do seu.

- Já viu tanta gente reunida antes na galeria? - perguntou uma voz diferente daquelas que costumava ouvir, o que a fez imaginar o motivo.

- Eu... creio que nunca houve tanta gente.

- A senhorita não acha isso um pouco... sufocante?

- Sim, acho. Gostaria que houvesse menos pessoas.

- As pessoas que estão aqui jamais viram nada tão maravilhoso quanto esta galeria de vocês.

"De vocês?" Ele soava como se não fosse francês. Claro que ele não era. Seu sotaque não era da França.

- A senhorita está se perguntando quem sou eu - prosseguiu o cavalheiro. - Enquanto isso podemos dançar?

- Não vejo por que não - respondeu Anne-Henriette. Eles se moveram entre as pessoas que rodopiavam no salão.

- Tanto barulho! - disse ele. - Mal é possível ouvir a música. Também não é fácil conversar, não é mesmo?

- Precisamos conversar?

- Ainda não. Talvez mais tarde.

Ela descobriu que parara de se perguntar se iria encontrar o duque de Chartres naquela noite e, se ela o fizesse, o que diriam um ao outro.

Fazia muito tempo desde a última vez em que Anne-Henriette dançara daquele jeito. Ela estava consciente de um grande prazer, não apenas porque sentia que o futuro não precisaria ser afogado em melancolia, mas porque ela estava subitamente cônscia de que talvez fosse possível escapar do passado.

Ele dançou com ela para fora da galeria e através de várias salas de recepção; ela não soube por quanto tempo dançaram ou para onde ele a levou, mas finalmente se viu a sós com ele numa pequena ante-sala, e ali pararam ofegantes para olhar um para o outro.

- A senhorita está fatigada? - perguntou gentilmente o cavalheiro.

- Não... não - respondeu rapidamente Anne-Henriette e se viu maravilhada com o fato de realmente não estar, porque recentemente andava muito frágil e dada a cansar-se por qualquer coisa.

- Preciso confessar uma coisa - disse o cavalheiro. - Sei que a senhorita é madame Seconde. Sabe quem sou?

- Sei que não é francês - respondeu Anne-Henriette.

- Então você adivinhou metade da verdade. O resto é simples. Ou devo retirar minha máscara?

- Não... eu lhe rogo, não o faça. Deixe-me adivinhar.

- Posso lhe dar uma pista? Sou um príncipe, de sangue tão azul quanto o da senhorita. Se não fosse, não teria me aproximado como fiz. Também sou um mendigo, um exilado, que veio à França para pedir ajuda ao seu pai.

- Agora sei quem você é! - exclamou Anne-Henriette. Você é o jovem Cavaleiro de São Jorge.

Ele segurou a mão dela e a beijou.

- Carlos Eduardo Stuart, ao seu dispor.

- Estou feliz por ter uma oportunidade de lhe desejar sorte em sua aventura.

- Que Deus a abençoe por isso. vou conseguir, claro que vou. Quando tiver tirado a Alemanha do trono da Inglaterra, quando o meu pai estiver restaurado no poder e os Stuarts tiverem recuperado o que é seu por direito... ah, então...

- Sim - disse ela. - O que acontecerá então?

- Então não virei como mendigo à França. Não virei para rogar por dinheiro... homens... navios. - Ele riu de repente, e seus olhos brilharam através de sua máscara. E então, ele acrescentou: - Mas jamais esquecerei de uma noite de fevereiro de 1745, quando dancei com uma princesa num baile de máscaras. E talvez, porque não posso esquecer, voltarei e farei mais um pedido ao rei da França.

- Que discurso encantador! - comentou Anne-Henriette.

- Podemos dançar de novo?

- Está cansada?

- Não... não estou cansada. Isto é estranho, porque deveria estar. Quero me misturar com as pessoas nos salões. Quero dançar. Tenho a impressão de que poderia dançar a noite inteira.

- Talvez o seu coração estivesse pesado, e agora ficou leve.

- Você diz coisas muito estranhas.

- Venha - disse ele. - Você tem razão. Devemos nos juntar aos outros convidados. Tenho muita coisa a fazer. No verão retornarei à Inglaterra... para a Escócia... A senhorita pensará em mim enquanto eu estiver longe?

- Pensarei em você constantemente, e rezarei pelo seu sucesso.

- Reze, minha princesa, reze com todo o seu coração. Porque o que me acontecer lá fora neste verão poderá ser de grande importância para nós dois.

E assim o casal voltou a dançar e, debaixo daquele teto com seus entalhes belíssimos, a princesa Anne-Henriette começou a ser feliz de novo. O Cavaleiro de São Jorge havia se apresentado a ela, e uma pressão de sua mão e uma ternura em sua voz a resgataram do passado melancólico e a fizeram olhar para um futuro que guardava uma promessa indefinível.

A rainha Marie observava os dançarinos. Reconheceu Luís, a despeito de seu disfarce absurdo. Ainda que vários de seus amigos estivessem usando fantasias semelhantes, ela soube de imediato qual deles era o rei. Ele e seus amigos tinham tentado vestir-se como árvores em formas bizarras; o efeito era eficaz e provocou muitos risos e aplausos - o que mostrava que muitos outros também sabiam que Luís estava naquele grupo.

Ela estava sentimental naquela noite. Ocasiões como essa lembravam-na das festividades após o seu casamento. Naquela época eles haviam estado juntos, ela e Luís... Luís um menino com a mesma idade do noivo de hoje. Será que Luís lembrava, ao ver seu filho com sua noiva, o quanto ele e Marie tinham sido felizes?

O casamento é tão parecido com o nosso, pensou. Pobre MarieThérèse-Raphaêlle! Espero que ela seja mais feliz do que eu.

Mas um rei precisava ter amantes, ou pelo menos era o que parecia. O querido pai de Marie, Stanislas, também era culpado nesse tocante. Era a sina das rainhas olhar com resignação para as mulheres amadas por seus esposos.

Agora Luís estava dançando com uma mulher usando uma fantasia que lhe ressaltava as formas, e que evidentemente procurava representar uma caçadora, porque ela carregava um arco no ombro.

Uma criatura de graça infinita, pensou a rainha. E ela sabe perfeitamente a silhueta extraordinária que possui.

Marie decidiu retirar-se mais cedo do baile.

- Essas festas não são para mim - disse a rainha. - Prefiro a quietude de meus aposentos.

Um baile de máscaras como aquele oferecia ao menos uma vantagem para a rainha: ela podia retirar-se sem estardalhaço. Enquanto saía, Marie notou que o rei conversava animadamente com a caçadora mascarada.

A caçadora estava dizendo:

- Vossa Majestade não poderia ocultar sua identidade de mim. Confesso que descobri a sua identidade no instante em que falou comigo.

- Você não parece estar se dirigindo ao rei.

- É um baile de máscaras, majestade.

- E agora que fui exposto, você poderia me dizer onde nos

encontramos antes.

- Vossa Majestade não consegue lembrar?

Luís procurou desesperadamente pela resposta certa. Esta mulher era encantadora; ele tinha certeza de que ela era bela. Seu corpo era perfumado e convidativo; nenhuma máscara podia cobrir seu encanto. Ele a reconheceu vagamente, mas ainda assim não podia lembrar de onde eles haviam se conhecido. Ele tentou lembrar repassando mentalmente todas as mulheres da corte.

- Eu posso ajudar Vossa Majestade. Lembra de uma certa noite chuvosa em Sénart?

- Ah! - gritou Luís. - Estou lembrando. Você era a minha anfitriã encantadora.

Luís ficou melancólico por um momento, ao lembrar que madame de Châteauroux estivera lá com ele; mas, enciumada, ela não lhe permitira descobrir mais nada a respeito da proprietária do castelo próximo à floresta. Ele agora estava tentando recordar o seu nome.

- Foi muito bondade sua dar-nos abrigo.

- Majestade, aquele foi o dia mais feliz de minha vida.

Ele podia ver os olhos brilhantes da dama através da máscara. Ela o lisonjeava, mas de uma forma encantadora e inocente. Ele estava deliciado com ela e agora, tendo recordado que a conhecia, não precisava temer o momento em que a máscara removida revelasse alguma falha. A jovem da floresta tinha sido uma das mulheres mais bonitas que Luís vira em toda a sua vida.

- Admirava muito as suas carruagens - disse a ela.

- Então Vossa Majestade as notou!

- Como poderia deixar de notá-las?

- Se eu soubesse...

- Esse teria sido o dia mais feliz da sua vida-zombou Luís carinhosamente. Então ele viu um leve rubor no pescoço da dama e acrescentou: - Mil perdões. Eu disse isso como uma piada.

- Vossa Majestade pede perdão a mim!

Ela decerto era encantadora. Como ela seria diferente das queridas madame de Châteauroux ou madame de Vintimille! De natureza mais próxima a madame de Mailly, porém mil vezes mais bonita.

- Diga-me, como está aqui esta noite? - perguntou o rei.

- Monsieur Lenormant de Tourneheim passou-me seu convite.

- Então sou muito grato a monsieur Lenormant de Tourneheim.

- Oh... - disse ela, seu corpo parecendo desabar sob o peso da tristeza.

- Algum problema? - perguntou ele.

- Apenas lembrei de que Vossa Majestade é o homem mais cortês de toda a França. Fui uma tola em imaginar que as coisas bonitas que Vossa Majestade disse eram para mim... apenas para mim.

- Se soubesse que as minhas palavras são apenas para você... - disse o rei que, tocando suavemente a sua mão, acrescentou: - ...diga-me, esta seria...?

Ela riu; foi uma risada deliciosa e espontânea que exibiu seus dentes brancos e perfeitos.

Ela levantou a cabeça repentinamente e Luís viu seu lindo pescoço, branco como leite, forte mas gracioso. Ela disse, ousada:

- Sim, esta seria a noite mais feliz de minha vida. Outras pessoas tinham ouvido a risada e Luís percebeu que os dois estavam sendo observados. Ele estava relutante em se comprometer. Sabia quem ela era. Sua aventura poderia avançar noite adentro, mas ele precisava permanecer no baile até o fim, que só terminaria ao raiar do dia. Ele se virou para a dama e disse:

- Chegou a hora em que devo remover minha máscara e me misturar aos convidados.

Então ele a deixou.

Luís tirou a máscara, e os convivas permaneceram mudos por alguns segundos antes de começarem a prestar reverências.

- Ordeno que as máscaras sejam retiradas - anunciou o rei.

Todos obedeceram. Cada dançarino virou para o seu par com gritos de surpresa, tanto fingidos quanto reais.

- Eu lhes peço, continuem se divertindo - prosseguiu Luís com um aceno de mão e um sorriso, enquanto se virava para falar com uma mulher adorável a quem elogiou a fantasia.

Em seguida, caminhou entre os convidados, parando para conversar aqui e ali, mas geralmente com mulheres, as mais sensuais ou bonitas.

Ela o viu caminhando em sua direção e segurou a respiração, ansiosa. Tinha sido fácil falar com ele usando uma máscara, mas agora ela estava com medo, medo de dar um passo em falso que pudesse colocar um fim no sonho.

Ao vê-la, Luís sorriu, como se estivesse procurando especificamente por ela em meio à multidão. Ele sabia que o sorriso era o segredo de seu charme - que podia usar em benefício do soldado mais humilde ou da mulher mais ambiciosa em Versalhes.

- Madame, a sua fantasia é encantadora!

As pernas de Jeanne-Antoinette tremeram enquanto ela se curvava até quase tocar o chão em sua reverência ao rei. Teria sido uma reverência exagerada? Será que era assim que as mulheres saudavam o rei em Versalhes? O palácio de Versalhes era cheio de armadilhas para quem nunca havia aprendido seu protocolo. Ela precisava tomar cuidado.

- Você é uma caçadora perigosa - disse Luís em tom jocoso. - Tenho certeza de que as suas flechas poderiam ferir... mortalmente.

As pessoas paradas ao redor dos dois riram educadamente, e ela, que depois iria se perguntar se o fizera de propósito ou por acidente, deixou cair seu pequeno lenço de seda no chão. Ele pousou aos pés do rei.

Luís olhou para ele e se abaixou para pegá-lo. Ele sorriu e o jogou para ela. E então Luís se afastou.

As pessoas reunidas ali trocaram olhares. Teria sido isso um gesto? Será que significara alguma coisa? E jogá-lo daquela forma para ela! Era como um convite... oferecido e aceito.

Será que naquela noite o rei realmente escolhera sua nova amante?

Ela mal podia esperar que a carruagem de sua filha a trouxesse para casa. Madame Poisson não fora para a cama. Como ela poderia numa ocasião como aquela? Ela estava esperando ansiosa para saber o que acontecera. Madame Poisson abraçou a filha.

- Oh, como você está linda... linda! Aposto que não havia uma única dama no baile tão elegante quanto você. - Ela fitou os olhos reluzentes da filha. - E então, querida?

- Ele dançou comigo. Ele conversou comigo. Ele pareceu gostar de mim.

- E ele a convidou ao palácio? Jeanne-Antoinette respondeu com um meneio de cabeça negativo.

- É assim que acontece - explicou madame Poisson. O rei oferece à dama um jantar numa das salas menores. Apenas ele, ela e mais um ou dois convidados. Depois do jantar o rei faz um gesto e os convidados desaparecem. O rei e a dama ficam a sós. Tem certeza de que ele não a convidou para um jantar?

- Tenho, maman.

Madame Poisson deu de ombros.

- Bem, o mundo não foi feito num dia.

- Num dia! Há quinze anos nos preparamos para criar esse mundo.

- Mas ele gostou de você, não gostou?

- Gostou. Tenho certeza absoluta.

- Venha, vamos pentear os seus cabelos. Você precisa vêlo novamente em breve. Ele é o tipo de homem que depois que adquire o hábito de ver uma mulher, passa a querer vê-la sempre.

Ela ajudou a filha a deitar, e ali ela estava na cama, olhos reluzentes com as lembranças da noite, os cabelos espalhados sobre o travesseiro.

Se ao menos ele pudesse vê-la agora, pensou madame de Poisson. Morceau du rói! Nunca houve mulher mais digna dessa posição.

Mais tarde, madame Poisson diria que aquela situação havia provado o quanto é inútil desesperar-se. Porque na manhã seguinte uma carruagem parou diante do Hotel dês Gesvres e um hotneni saltou dela.

Ele pediu para falar com madame dEtioles, e quando, na companhia de sua mãe, Jeanne-Antoinette recebeu-o, ele lhe disse que seu nome era Lê Bei e que ele era um dos principais valeis de chambre do rei.

- Madame, a senhora está convidada a um jantar que Sua Majestade oferecerá no Hôtel-de-Ville. Será um jantar íntimo, para uns poucos convidados.

- Estou honrada - disse Jeanne-Antoinette.

E depois que o mensageiro do rei havia partido, ela e madame Poisson entreolharam-se em silêncio por um segundo; e então trocaram um abraço apertado.

Seus risos beiraram a histeria. Esta era a realização do sonho que começara na tenda da cartomante.

- Não há dúvida do que isto significa! - gritou finalmente madame Poisson. - E temos muito a fazer. Você precisa de um novo vestido. Cor-de-rosa, creio. Precisamos pôr mãos à obra imediatamente. Graças a Deus Charles-Guillaume está fora a negócios.

De repente Jeanne-Antoinette interrompeu sua alegria, que parecia tocada por uma dose de delírio; ela esquecera de CharlesGuillaume, que a amava com uma paixão que beirava a loucura.

Jeanne-Antoinette sempre dissera ao seu marido que só poderia ser-lhe fiel até que o rei a convocasse. Ela não podia evitar o seu destino.

O baile do Hôtel-de-Ville foi diferente daquele oferecido em Versalhes. O povo de Paris estava determinado a assumir uma parte mais ativa nas celebrações, e os plebeus invadiram o prédio e dançaram entre os nobres.

Jeanne-Antoinette, acompanhada por Lenormant e sua mãe, estava alarmada. O delfim e sua noiva estavam presentes, mas decidiram partir o mais cedo possível, e os frequentadores estavam tão animados que mal notaram sua saída.

Na estrada para Versalhes as duas carruagens reais se encontraram. O delfim ordenou que a sua carruagem parasse, saltou e caminhou até a do rei.

- Majestade, eu o aconselho a não prosseguir até o Hôtel-de-Ville. O povo invadiu a festa. O lugar parece um manicômio.

O rei sorriu.

- Onde está a delfina? - perguntou.

- Em sua carruagem.

- Então leve-a de volta a Versalhes. Devo prosseguir. Porque, meu filho, você tem negócios em Versalhes para tratar; os meus irão levar-me esta noite para Paris.

Acompanhado por Richelieu, o rei atravessou a multidão sem ser reconhecido. Finalmente, ele a viu sentada com sua mãe e Lenormant. Ele mandou que Richelieu fosse falar com eles.

Richelieu caminhou até a mesa dos três convidados do rei e

fez uma mesura.

- Creio que a senhorita espera por um amigo.

- Espero, de fato - respondeu Jeanne-Antoinette. Richelieu correu os olhos pelas formas amplas mas ainda atraentes de madame Poisson.

- Sua Majestade a aguarda ansiosamente. Por favor, considere a impaciência de Sua Majestade e me acompanhe imediatamente.

- Vá agora - disse madame Poisson. - Nós voltaremos para casa. Desejo-lhe boa sorte.

- Esta dama já tem toda de que precisa - murmurou Richelieu.

Luís tomou o braço de Jeanne-Antoinette quando ela se aproximou.

- Devemos nos retirar imediatamente. Jantaremos aqui perto.

Richelieu acompanhou-os ao seu quarto particular, e então Luís disse:

- A sua presença, meu amigo, não é mais necessária.

Foi nesse momento que Jeanne-Antoinette descobriu que o destino que lhe fora prometido pela cigana finalmente iria se materializar.

Ao raiar do dia ela foi levada de volta para o Hotel dês Gesvres na carruagem real e, depois de uma despedida terna, o rei deixou-a e retornou até Versalhes.

Até aqui, tudo bem; mas e agora?

Mais uma vez ela havia se preocupado em vão. Monsieur Lê Bei apareceu mais tarde naquele mesmo dia para entregar a madame detiotes um convite para jantar nospetits appartements no palácio de Versalhes.

Madame Poisson parecia a ponto de estourar de alegria.

- Lenormant, você precisa manter Charles-Guillaume nas províncias por algum tempo - disse ao seu amante. - Ele é um marido muito ciumento. Quem sabe do que ele seria capaz se descobrisse o que se passa!

Assim, Lenormant e madame Poisson conspiraram para acelerar o romance entre o rei e Jeanne-Antoinette.

A cada vez que via Jeanne-Antoinette, Luís ficava um pouco mais enamorado por ela. Desde os tempos de madame de Mailly que ele não era tão amado.

Jeanne-Antoinette sabia que os amigos de Luís, e em particular o duque de Richelieu, não pareciam gostar dela. Richelieu, talvez porque não tivesse tomado parte em sua apresentação ao rei, não lhe prestava o respeito de que ela se julgava merecedora. Ela não pertencia à corte. Ela não podia aparecer em nenhum evento importante porque jamais havia sido apresentada à corte. Os amigos de Luís viam-na como uma amante do rei que chegara ao seu quarto pela cozinha.

Se este comportamento se mantivesse, em breve o próprio rei passaria a vê-la assim; e isso não fazia parte do destino com o qual ela sonhara.

Ela precisava pertencer à corte, e ser aceita como a amante do rei. Apenas então o seu sonho iria realmente se realizar.

Certo dia, ela disse a Luís:

- Majestade, o meu esposo retornará em breve. Ele é ardentemente ciumento. Não poderei comparecer aos seus jantares depois que ele retornar.

Luís ficou estarrecido. Ele julgava que não era da natureza dos maridos impedir suas esposas de satisfazerem os prazeres do rei. Mas esta pequena bourgeoise era simplesmente maravilhosa. Graciosa e dotada de um humor inteligente, ela divertia Luís justamente por ser muito diferente das outras mulheres que ele conhecia.

- Você precisa deixar o seu marido para ficar comigo - disse Luís.

Agora ele estava ciente da dignidade de Jeanne-Antoinette.

- Mas, majestade, devo deixar minha casa, e meus bens, para... para... algumas semanas de prazeres como este?

O rei ficou surpreso. Ela era tão humilde em seu amor por ele, que Luís duvidou se ouvira direito. Então ele achou que havia entendido. Ela havia conquistado uma posição de destaque em seu mundo burguês, assim como os cortesãos conquistavam posições em Versalhes. Ser apresentada à corte e aceita como amante do rei dar-lhe-ia motivos para deixar seu esposo; mas ela não o faria para continuar sendo contrabandeada pela entrada dos fundos de modo a passar uma ou duas horas com o rei.

Luís entendeu sua posição. Havia um protocolo a ser seguido em cada camada da sociedade, e ele, que o aceitara em Versalhes, precisava respeitá-lo em outros aspectos da vida.

Olhou para ela. Era realmente muito bonita. Luís acreditava que ela gostava muito dele, e não porque ele fosse o rei. Ele, por sua vez, estava deliciado com ela. Ela era bem-educada. Ele pensou em Adelaide e em Anne-Henriette, e naquelas suas filhas que ainda estavam em Fontevrault. Esta linda burguesinha recebera uma educação muito melhor do que qualquer uma de suas filhas. Era mais inteligente do que elas. A única coisa da qual carecia era um entendimento do protocolo no palácio, que poderiam ser-lhe ensinado em uma ou duas semanas. E então... que encanto ela seria! Ela ofuscaria qualquer outra mulher na corte.

E por que sua educação deveria ser ministrada por outra pessoa? Ele poderia cuidar disso pessoalmente.

Uma apresentação à corte! Um título digno! Então poderia ter a mulher mais deliciosa com ele em todas as ocasiões.

Luís chegou a uma decisão.

- Minha querida, você não precisa retornar ao seu marido. Faremos de você uma dama da corte.

- E então... poderei estar com você... sempre? Ele segurou sua mão e a beijou.

Ela sabia o que isto significava. Ela seria trazida para a corte; seria agraciada com muitas honras. E seria reconhecida como a amante do rei.

Seus olhos reluziam de emoção. Seus lábios se moveram.

- vou dizer por você! - exclamou Luís. - Esta é a noite mais feliz das nossas vidas.

Charles-Guillaume chegou ao Hotel dês Gesvres todo animado. Ele estivera afastado por muito tempo, e ansiava pela companhia de sua esposa e seus dois filhos... mas principalmente pela companhia de Jeanne-Antoinette.

Quando entrou na casa foi recebido por seu tio, que o fitou solenemente.

- Alguma coisa errada? - perguntou Charles-Guillaume.

- Entre - disse monsieur de Tourneheim. - Tenho uma coisa para dizer-lhe.

- Jeanne-Antoinette... ela está bem?

O tio assentiu.

- As crianças, então?

- Também estão muito bem.

Ele o conduziu para a saleta onde os Poissons estavam à sua

espera.

Foi madame Poisson quem explicou:

- Jeanne-Antoinette foi embora.

- Embora! Para onde?

- Ela está em Versalhes.

- Versalhes! - com o rei.

- Mas... eu não compreendo.

- Ela sempre deixou bem claro, não deixou? - disse madame Poisson. - Não é culpa de minha filha. É o destino dela. Ela deve permanecer em Versalhes com o rei.

- Mas isso é fantasia. Não pode ser verdade.

- É a mais pura verdade-disse François.-Nossa JeanneAntoinette se tornou a puta do rei.

Ele levou uma cotovelada da esposa.

- Não diga uma coisa dessas! Ela vai ser reconhecida como

sua amante.

- Sou um homem simples com uma forma simples de dizer o que penso - disse François.

- Ela precisa voltar!-gritou Charles-Guillaume.-Ela precisa voltar imediatamente. E quanto a mim... e quanto às crianças?

- O destino quis que isto acontecesse - disse madame Poisson. - Ela sempre avisou a você.

- Mas isso era uma piada!

- Não há nada que você possa fazer a respeito - disse François. Ele apontou para sua esposa e Lenormant. - Eles arranjaram isso. Eles sempre planejaram isso.

Madame Poisson dobrou os braços sobre os seios.

- O que será, será - decretou. - Ninguém pode lutar contra o destino.

- Minha Jeanne-Antoinette... - murmurou o marido agoniado.

Ele se trancou no quarto que compartilhara com a esposa, e não saía quando alguém aparecia para consolá-lo.

Ele escreveu para ela:

"Jeanne-Antoinette, volte. Esta é a sua casa. Eu sou o esposo. Os seus filhos estão aqui. Volte para nós.

Aborrecido, ele esperou pela resposta dela. Ela era gentil, ele sabia disso. Ela não iria ignorar um apelo angustiado.

E Jeanne-Antoinette respondeu.

Ela ia passar o resto de sua vida com o rei. Assim fora previsto, e ninguém podia mudar isso. Aos nove anos de idade ela soubera que este seria o seu destino. Jeanne-Antoinette jamais deixaria o rei.

com a chegada da primavera fez-se necessário que Luís retornasse aos seus exércitos, e enquanto estivesse longe, queria que Jeanne-Antoinette aprendesse os detalhes do protocolo da corte, de modo que, quando retornasse, ela pudesse juntar-se a ele na corte, ser apresentada, e daí em diante deixar que toda a França soubesse que ela fora a escolhida para compartilhar da vida do rei.

A mãe de Jeanne-Antoinette e monsieur de Tourneheim fizeram os preparativos, enquanto o pobre Charles-Guillaume foi despachado de coração partido para o sul da França, onde poderia trabalhar sem perturbar ninguém com sua dor.

Não era aconselhável permanecer em Paris porque o povo descobrira a respeito da existência de madame dEtioles, e os plebeus não eram muito gentis com as amantes do rei quando ele não estava por perto para protegê-las. E assim, JeanneAntoinette partiu para o castelo dEtioles.

Mas agora a vida ali seria diferente de quando ela tentava atrair as atenções do rei durante suas caçadas na floresta.

Agora cortesãos visitavam o castelo para cimentar sua amizade com a dama destinada a se tornar rainha sem coroa.

Sob as ordens do rei, o abade de Bernis chegou ao castelo. Sua missão lá seria ensinar-lhe as histórias das famílias mais nobres da corte. O marquês de Gontaut precisava ensinar-lhe o protocolo da corte. Era importante prestar mesuras para algumas pessoas e apenas menear a cabeça para outras, porque uma mesura conferida a alguém merecedor de um simples meneio de cabeça poderia criar um escândalo em Versalhes. Certos termos de linguagem eram usados em Versalhes que lá fora não seriam compreendidos ou teriam um significado diferente. A amante de um rei precisava conhecer a fundo o protocolo, que regia a corte com mais rigidez do que o rei.

Ela trabalhou com afinco e com um desejo ardente de ser bem-sucedida. Caminhava pelos gramados do castelo dEtioles como se eles fossem os castelos de Versalhes. Ela adquiriu mais dignidade e beleza.

Madame Poisson quase chorava de alegria a cada vez que olhava para ela. Poucos são abençoados em ver tudo com que sonharam e pelo que batalharam tornar-se realidade.

O rei escrevia regularmente para ela, de modo a não lhe deixar dúvidas sobre sua devoção.

Ele estava ansioso, tanto quanto ela, pelo momento em que poderiam reunir-se em Versalhes... à vista de todos.

E certo dia mais um exemplo de sua estima chegou ao castelo dEtioles na forma de documentos que asseguravam que ela não era mais madame dEtioles; ela era a marquesa de Pompadour.

 

A guerra da sucessão austríaca tomara um novo rumo porque Carlos da Baviera, o candidato apoiado pelos franceses, morrera, deixando como eleitor um filho jovem demais para governar a Baviera, quanto mais para usar a coroa imperial.

Aqui estava uma chance de paz, mas Frederico da Prússia não tinha qualquer desejo por paz e queria que seus aliados mantivessem a Áustria ocupada com um lado enquanto ele atacava o outro. Maria Theresa mantinha-se eternamente pronta para fazer paz sob a condição de que seu marido François, grão-duque da Toscana, fosse proclamado imperador da Áustria; e a França, sofrendo sob impostos pesados, poderia ter aproveitado essa oportunidade; contudo, o ministro das Relações Exteriores, o marquês dArgenson, não tinha visão suficiente para compreender a perda e a dor que ele poderia ter poupado ao seu país, e, confiando em Frederico da Prússia, ele decidiu que a guerra devia continuar.

Enquanto isso, o novo eleitor da Baviera fazia paz com Maria Theresa em termos muito favoráveis a ela. O eleitor renunciaria a todas as suas pretensões ao trono, para apoiar o esposo de Maria Theresa, o grão-duque, em sua posição de requerente ao trono imperial e para servir às suas alianças com a Prússia e a França.

Isso levou dArgenson a aumentar sua atividade contra os austríacos, e apesar dos preparativos que haviam sido feitos durante o inverno para guerrear na frente de Flandres, foi decidido que com a chegada da primavera eles lançariam um ataque.

O grão-conde de Saxe estivera a cargo das operações para os franceses, e conquistara para si o reconhecimento como um dos maiores soldados na Europa.

Homem extraordinário, de energia inesgotável, conhecido por sua bravura ímpar, ele alegava ser filho bastardo de Augusto II da Polónia e Saxônia - Augusto era conhecido por ter tido três ou quatro filhos ilegítimos - com a condessa de Kõnigsmarck, da Suécia.

Dizia-se que Maurice de Saxe pretendia destronar Frederico da Prússia, e fora por esse motivo que ele demonstrara tamanha coragem a serviço da França.

Luís viajou para Flandres na companhia do delfim, que estava provando a guerra pela primeira vez. Ao chegar em Tournai, Luís descobriu que uma força formidável de hanoverianos, holandeses e ingleses tinha se formado para enfrentá-lo e que um dos filhos de Jorge II da Inglaterra, o duque de Cumberland, estava no comando das operações. O conde Maurice de Saxe estava sofrendo de hidropisia, e a dor que sentia era tão terrível que cavalgar representava uma agonia para ele. Contudo, o conde se recusava a abrir mão do comando e mandara munir de rodas uma cadeira de palha, na qual podia sentar-se com algum conforto e instruir os seus homens.

Luís ficou alarmado ao vê-lo.

- Você está arriscando a sua vida, vindo para a batalha em tais condições.

- Majestade, que importa se eu morrer, contanto que vençamos esta batalha? Os ingleses estão se vangloriando de que irão vencer-nos facilmente. Cumberland diz que estará em Paris dentro de uma semana, ou irá comer as suas botas. Bem, majestade, para que ele coma suas botas, preciso preparar um bom molho para acompanhá-las.

Os exércitos encontraram-se diante de Fontenoy, e a batalha começou com o máximo de polidez de ambos os lados. O capitão da Guarda Inglesa aproximou-se do capitão francês dos Granadeiros.

- Monsieur- disse o inglês, prestando uma mesura para o seu adversário -, eu lhe rogo, permita que seus homens disparem primeiro.

- Mas decerto que não - replicou o francês. - Essa honra deve ser de vocês.

Então a batalha começou. E a despeito das palavras iniciais dos dois capitães, foi uma das mais ferozes já travadas no solo de Flandres. Gemendo e amaldiçoando, em dor aguda, Maurice de Saxe rugia suas ordens. O delfim precisou ser contido para não se lançar ao meio da batalha; e a presença do rei entre os seus homens concedeu-lhes a determinação para lutar até a morte pela França.

A batalha se estendeu por horas a fio, O número de mortos era alto e parecia que os franceses não seriam capazes de resistir por muito tempo.

Foi dito ao rei que ele deveria deixar o campo de batalha antes que fosse tarde demais e ele caísse nas mãos do inimigo que avançava. Luís recusou-se a partir. Ele disse que seu lugar era com seus soldados; e que não fugiria diante da primeira adversidade.

Se a batalha estava sendo ruim para a França, o outro lado enfrentava dificuldades terríveis. Os austríacos e os holandeses tinham sido sobrepujados e haviam debandado em desordem, enquanto apenas os hanoverianos e os ingleses mantinham-se firmes. O sucesso estava ao seu alcance, mas enquanto os franceses contavam com o comando de Saxe - um soldado nato e um estrategista engenhoso - os ingleses tinham apenas Cumberland, que chegara ao comando não por suas habilidades, mas por ser filho do rei.

A batalha estava nas mãos de Cumberland. Ele agora podia fazer sua cavalaria avançar e cortar os franceses pela direita e pela esquerda, mas não previra esta possibilidade e negligenciara sua cavalaria, cujos cavalos estavam inaptos a agir. Além disso, os soldados de infantaria não podiam consolidar nenhuma conquista obtida pela cavalaria porque estavam cansados depois de muitas horas de luta, e muitos deles jaziam feridos no campo de batalha.

Saxe viu essa oportunidade. Ainda que suando de dor em sua cadeira de palha, chicoteou seus homens com a língua, impulsionou-os à ação. Sua simples presença ali era um exemplo tão forte para os soldados que nenhum deles ousou reclamar. Saxe ordenou que sua artilharia atacasse a cavalaria de Cumberland.

Num curto espaço de tempo, o génio militar de Saxe transformou a derrota em vitória.

Luís caminhava triste pelo campo de batalha, o delfim ao seu lado. O rei era ovacionado freneticamente por seus soldados leais.

Mas Luís estava em silêncio. Ele olhou para os corpos mortos espalhados pelo campo e, virando-se para o delfim, disse:

- Jamais esqueça esta visão, e permita que ela lhe sirva de lição. Este é o preço que se paga por uma vitória. Quando você for rei da França, meu filho, lembre deste dia e pense duas vezes antes de permitir que o sangue de seus súditos seja derramado.

Saxe foi trazido até ele em sua cadeira de palha e Luís abraçou o velho e galante militar.

- A você devemos esta vitória, a você... que está tão doente. É um milagre que você tenha sobrevivido a tudo isto.

- Majestade, estou feliz por ter sobrevivido até este dia, no qual vejo o meu rei vitorioso. A morte nada será agora.

O rei estava visivelmente comovido, e o velho general prosseguiu:

- Os feridos necessitam de cuidados. Estamos mandando-os para Lille, onde as damas aguardam ansiosas para socorrêlos. Mas há muitos ingleses entre os feridos. O que devemos fazer com eles?

- Mande-os com os nossos homens - disse o rei. - Eles não são mais inimigos... são apenas homens necessitados de ajuda.

Então ele se virou. Luís não podia contemplar aquela carnificina sem horror; ele podia apenas lamentar que fosse necessária tanta carnificina para se obter uma vitória.

Quando o rei retornou a Paris depois da vitória de Fontenoy, o povo recebeu-o com frenesi. Os súditos acreditavam que como Luís havia se destacado no campo de batalha ao lado de Saxe, também o faria em casa, ao lado de seu governo.

Mas Luís chegara a um momento importante de mudança em sua vida sem percebê-lo. Ele fora criado com uma fé profunda no velho regime; não lhe ocorrera que ideias modernas estavam colidindo com o velho sistema feudal, e que a onda de novas opiniões que varria a França poderia levá-lo junto ou destruir a ele e à própria monarquia.

Nessa época, a onda de novas opiniões ainda era tão baixa que não foi notada em seu retorno de Flandres. Quando o povo aplaudiu Luís, quando eles demonstraram tão claramente sua fé nele, não lhe ocorreu que os filósofos e pensadores estavam começando a semear a discórdia no coração da nação.

Luís poderia ter sentido isso tão rápido quanto qualquer outra pessoa da época, mas não queria se esforçar. Queria retornar aos prazeres, particularmente agora que possuía uma nova companheira com quem compartilhá-los.

Ele não ouviu os murmúrios por baixo dos aplausos da multidão. Não percebeu que as pessoas começavam a se perguntar por que a nobreza não apenas ocupava os postos mais bem remunerados do Estado, como também era isenta dos impostos. O protocolo rígido e tolo que existia em Versalhes era um sinal externo de um Estado doente. Eram muitas as classes na França, de modo que mesmo entre as mais baixas havia inveja e queixas. Numa sociedade como essa, a camada inferior eleva um grito contínuo por uma mudança para uma situação na qual não existam mais distinções sociais.

Os impostos sobre os alimentos estavam tão altos que muitos passavam fome. Havia uma queixa crescente de que os impostos eram pagos pelos pobres. Necessitava-se urgentemente de reformas. Luís foi sábio o bastante para compreender que nenhum de seus ministros poderia suprir o que era necessário. Um novo regime clamava por nascer. Reformas sensatas poderiam ter gerado uma revolução sem derramamento de sangue. O povo apoiava solidamente o rei, mas o rei não acreditava em sua capacidade de governar o povo.

Luís sempre fugira das responsabilidades. Agora ele deixava a solução dos problemas do reino para os seus ministros enquanto se dedicava à deliciosa tarefa de erguer a marquesa de Pompadour à posição que escolhera para ela na corte.

A marquesa caminhava pelo oeil-de-boeuf. Em seu vestido de tintura delicada, cravejado de diamantes reluzentes, ela parecia uma boneca de porcelana, tão graciosa, esguia e bela.

Luís recebeu-a na Galerie dês Glaces; e nunca, pensou ele, havia deitado os olhos numa mulher tão linda quanto esta pequena bourgeoise. Nenhuma falha em sua reverência, nenhum sinal de trepidação. Ela parecia ter passado toda sua vida na corte.

Enquanto curvava a cabeça em resposta à reverência da marquesa, Luís viu que ela sorria. Ela sabia que ele estava pensando: Este é mais um de nossos dias mais felizes.

Ser apresentada à rainha foi um grande desafio para a marquesa. Jeanne-Antoinette sabia que cada movimento e expressão que ela fazia eram notados e comentados pelas pessoas reunidas para assistir a sua apresentação.

As pessoas estavam se perguntando agora como a rainha reagiria diante dessa jovem plebeia que capturara o rei e que iria tornar-se a principal dama da corte.

A rainha, paramentada com diamantes tão duros quanto ela própria, não podia ser um contraste maior com aquela jovem beldade. Seus olhos frios correram sobre Jeanne-Antoinette, enquanto esta a fitava timidamente.

Mas ela é humilde, pensou Marie. Mais do que Châleauroux e Vintimille haviam sido. Ela possui um rosto adorável e não parece prepotente. Se uma amante é necessária, por que ela não pode ser esta mulher?

Quando a rainha falou graciosamente com ela, JeanneAntoinette mostrou-se despreparada para essa reação.

- Vossa... Vossa Majestade é muito gentil para comigo balbuciou.

- Eu a recebo de braços abertos na corte - disse a rainha.

- Disseram-me que é muito talentosa. Sabe cantar e interpretar. Isso é interessante. Espero que um dia desses possa fazer uma apresentação para mim.

As pessoas presentes ficaram estarrecidas. Não apenas o rei, mas também a rainha, estava aceitando esta mulher sem berço.

- Será uma grande honra... fazer isso... perante Vossa Majestade - disse Jeanne-Antoinette.

E embora as pessoas presentes possam ter considerado seu balbuciar intolerável, a rainha gostou de ouvi-lo. Isso mostrava que a mulher não percebera sua própria importância... ainda.

A rainha curvou a cabeça e se retirou.

Jeanne-Antoinette entendeu sua deixa; sabia o que era esperado dela. Ajoelhou-se, levantando um pouco a saia da rainha, beijou-a.

A apresentação chegara ao fim. Jeanne-Antoinette, marquesa de Pompadour, estava livre para vir à corte.

A carruagem parou diante do Hotel dês Gesvres. Jeanne-Antoinette desceu e correu até a casa.

- Maman! - gritou. -Maman, onde você está? Madame Poisson levantou-se apressada de sua cama.

- Tragam a marquesa até mim! - gritou para os servos. A marquesa! Agora ela sempre se referia à sua filha assim,

desfrutando de um arrepio de deleite a cada vez que o fazia.

Agora ela está lá, dizia a si mesma madame Poisson várias vezes por dia. Nada mais importa. Posso partir satisfeita.

Quando Jeanne-Antoinette chegou correndo ao quarto, sua mãe pensou:

A criatura mais linda na qual já pus os olhos! E ela é minha... minha menininha. Minha própria marquesinha.

- E então, minha adorada? - disse, abraçando a filha. Conte-me tudo que está acontecendo.

- A senhora estava repousando, mamã.

- Ah, apenas tirando um pequeno cochilo, você sabe. Não sou tão jovem quanto     La marquise.

Jeanne-Antoinette riu.

- A primeira parte foi fácil - relatou.-A pessoa precisa apenas Caminhar com muito cuidado. Um passo fora do ritmo, e seria um escândalo.

- Mostre como se faz, minha querida - pediu madame Poisson.

Jeanne pôs-se a caminhar pelo quarto. Madame Poisson colocou a mão sobre uma costela. Ela não podia dizer-lhe agora. Sua querida marquesinha ficaria de coração partido.

- O que é, maman?

- Nada... apenas estou observando você. Foi assim que você fez, então? E o que Sua Majestade disse?

- Oh, ele foi muito gentil. Mas a rainha...

Madame Poisson estava lutando para se manter atenta, mas a dor, que vinha piorando durante as últimas semanas, intrometia-se.

Terei de contar-lhe em algum momento, pensou madame Poisson. Mas não agora... não num dia como este.

À medida que os meses se passaram, Jeanne-Antoinette entregou-se à vida que ela sempre julgara ser seu destino desfrutar. Isso não significava que ela não fazia todo o esforço possível para desempenhar seu papel com perfeição. Ela amava o rei desde antes mesmo de tê-lo visto pela primeira vez, e saber disso significava o fortalecimento desse amor. O charme de Luís era irresistível; sua cortesia gentil jamais deixava de encantá-la, mas sua sensualidade continuada, depois das primeiras semanas, era um pouco alarmante. Ela não confessaria a ninguém - nem a si própria - que julgava o ritmo da corte exaustivo e que começava a sentir-se inquieta.

Estava determinada a manter sempre uma harmonia perfeita entre eles. Ela jamais falava rudemente, como fora o costume de madame de Vintimille, jamais dominava Luís como o fizera madame de Châteauroux, e jamais o entediava ao estilo de madame de Mailly.

Ela descobrira uma coisa sobre o homem debaixo daquela concha de cortesia e encanto. O traço fatalista do rei fizera-se evidente. Ele acreditava que o que tinha de ser, seria; ele não podia fazer nada para impedir o destino. Ela também descobrira que, a despeito daquele ar de realeza quase sagrada, Luís acreditava pouco em si mesmo como governante. Ele carecia de autoconfiança, e por esses motivos ele não era um homem capaz de agir e evitar calamidades. Fora por causa disso que ele sempre cedera à vontade de seus ministros. Essas características não constituíam a estrutura de um grande governante.

Mas madame de Pompadour jamais tentaria mudar a natureza de Luís, como suas predecessoras haviam feito. Ela se entregava à grande tarefa de agradá-lo, e prover-lhe entretenimento contínuo para manter afastados os sentimentos de melancolia e tédio. Ela acreditava que apenas assim seria capaz de manter a sua posição. Ela precisava fazer de tudo para tornar-se sua amiga, a companheira que sempre podia oferecer-lhe diversão; e, quando ele pedia por isso, conselhos. Ela queria tornar-se um amálgama de todas as mulheres a quem havia amado. Ela precisava ser amante, esposa, mãe, companheira, séria e animada; ela precisava aprender a satisfazer a necessidade do momento.

Como acreditava que havia sido escolhida no nascimento para ser a amante do rei, não tinha dúvida de que, desde que se entregasse completamente a esse papel, seria bem-sucedida. Havia apenas um dentre os seus muitos deveres nos quais ela temia falhar. Estranhamente, esse dever era o de amante.

Luís talvez tivesse demorado a alcançar a maturidade, mas agora estava próximo ao clímax do vigor pleno. Jeanne-Antoinette começava a perguntar-se como, depois de sucumbir àqueles ataques de paixão, ela podia levantar-se de sua cama cheia de energia para planejar festas para o rei, quando sua inclinação seria descansar durante metade do dia seguinte.

Ela começava a ser tomada pelo pressentimento terrível de que Luís não conseguiria satisfazer-se com apenas uma mulher. E então...?

Mas ela decidiu aguardar e enfrentar esse problema quando estivesse mais próximo. Nesse ínterim, deveria consolidar sua posição em Versalhes; ela precisava tornar-se indispensável ao rei.

Ela agora estava cuidando das festas nospetits appartments. Em vez de permitir que a Comédie Française trouxesse seus espetáculos para Versalhes, ela organizava entretenimentos teatrais nos quais os membros da corte tomavam parte, desta forma acrescentando um prazer extra não apenas àqueles que atuavam, mas também aos que assistiam. Ela mesma sempre assumia um papel proeminente, porque desta forma podia exibir ao rei seus outros talentos.

Não havia dúvida de que a cada dia Luís ficava mais apaixonado pela marquesa de Pompadour.

Em certa ocasião ela interpretou o papel principal numa peça e, no final, quando saiu detrás da cortina para receber os aplausos, Luís subiu ao palco e ali, diante da plateia, beijou-a ternamente.

A corte começou a dizer que a madame La marquise estava firmemente estabelecida; que jamais Luís amara tanto uma mulher quanto ele amava La Pompadour.

Não seria da natureza de Jeanne-Antoinette esquecer sua família, e ela estava determinada a fazer com que todos lucrassem com sua boa sorte.

Ela queria que houvesse algo que pudesse fazer por CharlesGuillaume, mas sabia que aquilo que ele mais queria era que ela retornasse, e isso estava fora de questão. Mas havia os outros.

Na corte as pessoas riam às suas costas e chamavam-na de "Senhorita Peixe". Eles que o fizessem! Só podiam fazer isso secretamente. Luís estava sempre pronto a demonstrar um descontentamento por qualquer um que não a tratasse com o máximo de respeito. Por sua vez, ela não queria fazer inimigos.

Certo dia, ela disse ao rei:

- Se não fosse por monsieur de Tourneheim, jamais teríamos nos conhecido. Eu provavelmente teria morrido de fome se ele não tivesse provido ajuda a minha mãe quando nós precisamos.

- Nem fale nessa calamidade - murmurou o rei.

- Eu gostaria de mostrar-lhe a minha gratidão.

- Mostre-lhe a nossa gratidão - foi a resposta.

- Ele disse que gostaria de ser o diretor das Obras Públicas. Eu estava pensando se...

- A partir deste momento ele é o diretor das Obras Públicas.

- Não sei como lhe agradecer por tudo que fez por mim.

- Minha querida, sou eu quem devo lhe agradecer. Era simples assim.

- Meu pai devia ter uma propriedade no campo.

- Ele a terá.

- Quanto ao meu irmão... se ele viesse para a corte, oportunidades iriam lhe ocorrer.

Assim foi arranjado; uma propriedade de campo para François Poisson, o diretorado de Obras Públicas para monsieur de Tourneheim, uma posição na corte para Abel.

Os dois filhos de Jeanne-Antoinette deviam compartilhar de sua glória quando a hora certa chegasse. Nesse meio tempo eles estavam sendo criados com carinho por madame Poisson. Talvez eles devessem ser colocados nas mãos de alguém que lhes ensinasse os modos da nobreza bem antes de serem a ela elevados.

Mas ainda não, pensou Jeanne-Antoinette.

Eles ainda não deviam ser retirados de sua avó, embora esta pudesse ver, tão claro quanto sua filha, que esse dia iria chegar.

E madame Poisson, que há muito compartilhava os sonhos de sua filha e, como nenhuma outra, compartilhava seu triunfo, o que deveria ganhar?

A marquesa sorriu ternamente. Madame Poisson já tinha recebido a sua recompensa, pois cada triunfo conquistado por sua filha era um triunfo dela. Madame Poisson não pedia nada mais do que ver sua filha posicionada firmemente no papel que, durante tantos anos, elas haviam tido certeza de que JeanneAntoinette estava destinada a ocupar.

Jeanne-Antoinette apareceu no Hotel dês Gesvres. Este ia ser um dos eventos mais felizes dos últimos meses. Ela iria contarlhes sobre as coisas boas que estavam para lhes acontecer.

Mas quando chegou à casa ficou surpresa por não haver ninguém da família para recebê-la. Ficou imediatamente transtornada por aquela quietude incomum.

- Diga a madame Poisson que cheguei - comandou ao servo.

Ela notou que o servo - que geralmente parecia embaraçado quando ela aparecia, como se ela fosse uma estranha e não a mademoiselle Jeanne-Antoinette que um dia fora integrante daquele lar - não mais parecia incomodado com a importância da marquesa.

François Poisson apareceu. Ele olhou para a filha com grande tristeza e disse:

- Achamos que você viria hoje.

- O que aconteceu? O que o senhor está me escondendo?

- Foi desejo dela. "Não conte à marquesa", ela disse. Ele riu sem alegria. - Era sempre "a marquesa isto", "a marquesa aquilo". Eu lhe disse: "Ela é apenas a nossa JeanneAntoinette, e ela precisa saber a verdade... ela acabará sabendo um dia."

- A verdade!

- Ah, ela montava um espetáculo muito eficiente quando você vinha aqui. Depois pagava por ele. Não sei como ela conseguiu esconder de você. A dor... ela estava sofrendo muito.

Jeanne-Antoinette não podia ouvir mais nada; passou correndo por François e foi até o quarto da mãe.

Madame Poisson estava deitada na cama; seu rosto tinha uma coloração amarelada, os cabelos não tinham mais lustro.

- Maman... maman... - disse Jeanne-Antoinette. - O que é isto? O que é isto?

- Calma, calma - murmurou madame Poisson, acarinhando os cabelos da filha. - Não fique triste, minha adorada.

Está acontecendo o que tinha de acontecer. Você devia ter me avisado que estava vindo. Eu teria me levantado para recebê-la.

Jeanne-Antoinette levantou a cabeça e sua mãe viu lágrimas

descerem por suas faces.

- Não... não... minha belezinha. Não estrague seu rosto adorável com lágrimas por sua velha mãe. Você não precisa ficar triste. Eu não estou, minha querida. Estou feliz... e tão orgulhosa! Minha querida marquesinha... - Ela riu. - Nós conseguimos, não foi? Você está lá... exatamente como nós sempre dissemos que ficaria.

- Maman... Vim trazer notícias tão boas para todos vocês.

E isto... e isto...

- Isto não é nada. Eu não devia ter deixado você me ver

assim. Se eu soubesse...

- Não diga isso. A senhora devia ter me contado... Alguma coisa podia ter sido feita.

Madame Poisson balançou a cabeça.

- Não, minha querida marquesa. Nem todo o poder do rei, nem todas as suas riquezas poderiam ter salvo a velha maman Poisson. É o fim dela. Precisava acontecer, entenda. Mas não lamente, doce marquesa. Foi uma vida muito feliz. E veja a felicidade que encontrei no fim... tudo que pedi. Quantos podem dizer isso? Quantos?

Ela segurou uma mão da marquesa e pareceu sugar vida nova de sua linda filha.

- Não fique triste com isso. Não é... nada. Minha filha mais querida, a amada do rei... a dama mais importante de toda a França! Quantas mulheres morrem como eu morro? Sou uma das favoritas da Sorte. Eu vivi feliz e agora morro feliz. Lembre disso e me dê a última coisa que vou lhe pedir.

- Maman... Minha querida... Eu daria tudo... para vê-la bem

novamente.

- Bobagem! A vida deve terminar para todos nós. Aqueles que morrem felizes não podem pedir por uma bênção maior do que essa. Mas eu peço. Você deve me prometer.

Jeanne-Antoinette meneou a cabeça positivamente.

- Não derrame mais lágrimas por mim - disse madame Poisson. - É isso que peço. Quando pensar em mim, pense assim: "Aquela que ganhou tudo que pediu à vida e que morreu feliz."

Todos haviam notado a mudança em Anne-Henriette durante o último ano. Eles sabiam que a mudança se devia ao Cavaleiro de São Jorge. A corte era tolerante para com madame Seconde, mas ao mesmo tempo era deplorável que a pobre criança demonstrasse seus sentimentos tão abertamente. Essa conduta desobedecia o sagrado protocolo de Versalhes.

Anne-Henriette era tão gentil, tão carinhosa; mal parecia uma princesa real. Os familiares a amavam, não tinham como evitar, e desde o começo de sua amizade com Carlos Eduardo Stuart estavam satisfeitos em vê-la readquirir o interesse pela vida.

Um casamento entre o Stuart e a princesa da França? Por que não? Se a causa dos Stuart fosse bem-sucedida, Carlos Eduardo seria herdeiro do seu pai e rei da Inglaterra. Portanto, Anne-Henriette tinha mais chances de formar uma aliança com o jovem príncipe do que tivera com a família Orléans.

A própria Anne-Henriette acreditava nisso. Seu pai sugerira que um casamento com a família real inglesa seria bem-vindo. Aliados era uma coisa que nunca se tinha demais, e a melhor forma de cimentar a amizade entre dois países era através de casamentos como esses. Mas é claro que Carlos Eduardo precisava a mão de uma princesa da França.

Assim, ela acompanhava exultante as aventuras dele. Tinha certeza de que ele seria vitorioso e voltaria para ela. E então aquela felicidade completa, que há até bem pouco Anne-Henriette acreditava estar fora de seu alcance, seria dela.

Tudo graças ao meu querido papai!, pensou Anne-Henriette.

Luís queria que Carlos Eduardo fosse vitorioso, ao menos para o bem de sua filhinha. Ele emprestara navios a Carlos, e teria feito mais se, conforme explicara à sua filha, não fosse uma boa política ofender o rei inglês existente.

Carlos Eduardo havia desembarcado na Escócia, e ela ouvira dizer que ele dominara esse país, e que agora estava na Inglaterra e tomara Carlisle e Derby, que ficava a 150 quilómetros da própria Londres. Ouvira dizer também que o povo ali era letárgico e não estava ansioso por levantar armas em defesa dos alemães ou em apoio aos Stuarts.

Ele ganhará a sua coroa, disse Anne-Henriette com seus botões. E quando o tiver feito, retomará para a França.

Anne-Henriette ainda lembrava das palavras dele:

- Não virei para implorar por refúgio, ou por armas ou dinheiro. Mas virei para fazer um pedido ao rei, o seu pai.

Em breve, pensou Anne-Henriette.

E ela sonhou que o viu com a coroa na cabeça e sua rainha ao lado... Anne-Henriette, rainha da Inglaterra.

O Palácio de Versalhes estava tomado por aquele tipo de empolgação que cercava um nascimento real. Este era muito importante. O nascimento de um herdeiro para o delfim.

O delfim mal se continha de felicidade. Isto, disse ele a si próprio, era tudo que ele precisava para completar a sua felicidade. Uma criança para si próprio e para Marie-Thérèse Raphaélle. Se fosse um menino, seria a perfeição, mas eles ficariam satisfeitos com uma menina.

Havia apenas uma preocupação, e essa era por sua amada esposa. Ele sofria tanto quanto ela. Assim acontecia quando se amava.

O resto da corte não apreciava a esposa do delfim. Mas por que ela - ou ele - iriam se importar com isso? Ela fora escolhida para ele, ele para ela, e o delfim agora podia rir ao lembrar da antipatia inicial de um pelo outro. Como isso parecia estranho agora!

Nos dois anos de seu casamento, eles haviam se apaixonado cada vez mais um pelo outro, e seu amor era tão profundo que o casal pouco se importava com a opinião dos outros. Deixe-os sorrir dos modos sérios do delfim; deixe-os insistir que ele era apenas um menino. Deixe-os dizer que ela era sem graça e chata, carecendo do charme das mulheres de Versalhes. Para o delfim, ela era de uma beleza e uma graça perfeitas. Deixe os mulherengos e os farristas rirem do amor de dois jovens. Era evidente que eles sentiam ciúmes desse amor, tendo esquecido ou jamais conhecido o seu significado.

E agora... eles teriam uma criança com quem dividir sua felicidade. Mas antes ela precisava sofrer, e o sofrimento dela também era dele.

Mas não demoraria muito mais agora.

Ele andava de um lado para o outro em seus aposentos. Eles podiam sorrir da ansiedade do jovem marido, mas não podiam entendê-la. Ele não mascarava seu sofrimento porque acreditava que fazer isso seria desleal para com sua esposa.

Amar deste jeito era sofrer. Esta angústia era o preço cobrado por tanta felicidade.

Este será o último filho, disse a si mesmo o delfim. Ela jamais deverá sofrer assim novamente. Por que devo me importar com herdeiros? Por que devo me importar com a França? com um amor como o nosso, podemos nos importar apenas um com o outro.

Mais tarde ele iria dizer isso à sua esposa. Nunca mais outra vez, diria ele. Nunca mais, nunca mais.

Ele ouviu o choro de uma criança, e achou que ia explodir de felicidade. Ele ouviu as palavras:

- Uma filha para o delfim.

De que lhe importava se ela não lhe dera um filho? Estava acabado e nunca mais, nunca mais eles teriam outra criança. Ele não queria que sua esposa voltasse a sofrer assim.

Ele tinha razão. Ela não lhe deu mais filhos, porque alguns dias depois estava morta.

Um delfim de coração pesado foi visto em Versalhes, atordoado por seu sofrimento. Ele perdera a mulher que havia significado tudo para ele. Ele não parava de se perguntar como a vida podia ser tão cruel. Ela morrera dando-lhe uma filha que claramente não sobreviveria por muito tempo à mãe.

Anne-Henriette manteve-se ao seu lado para confortá-lo. Sua querida irmã conhecia bem o sofrimento. Ele podia falar com ela, e apenas com ela, sobre o que Marie-Thérèse-Raphaèlle significara para ele, porque ela entendia.

E pouco tempo depois foi sua vez de confortá-la, porque o homem a quem ela amava encontrara uma derrota cruel nas mãos do duque de Cumberland na charneca Culloden. E embora tivesse escapado, Carlos estava amargando exílio em paradeiros sobre os quais ninguém sabia ao certo. Mas havia uma coisa que todos sabiam com certeza.

Mesmo se ele vivesse, mesmo se um dia ele retornasse à França, ele jamais conquistaria o trono que fora orgulhosamente propriedade de seus ancestrais.

A marquesa de Pompadour pavoneava-se pela corte, sempre o centro das atividades. Aqueles que desejavam angariar os favores do rei precisavam homenagear a marquesa. Ela não demonstrava nenhum sinal da grande ansiedade que começara a atormentá-la.

No final de cada dia ela se sentia exausta. Não conseguia entender esses ataques de fadiga. Ela queria dar filhos ao rei, que era um homem que amava crianças. Ela acreditava que filhos iriam unir ainda mais os dois.

Ela sofrera um aborto - um grande infortúnio para ela... mas uma delícia para os seus inimigos. Ela não tinha tempo para manter-se deitada e recuperar as forças, pois sabia que seus inimigos estavam ansiosos para colocar outra em seu lugar. O conde Phélippeaux de Maurepas, que entrara em declínio após o seu conflito com madame de Châteauroux, mas que conseguira de algum modo retornar à corte, era um dos maiores inimigos da marquesa, e ela acreditava que muitas das cantigas jocosas sobre ela, que eram cantadas em Paris, tinham sido autoria desse homem. Ele precisava ser afastado da corte, porém não queria fazer mais inimigos.

Outro que não a via favoravelmente era Richelieu, aquele velho amigo do rei. Richelieu gostava de prover o rei com amantes... mulheres cuja influência ele mais tarde usaria em seu benefício. Ele ficara muito frustrado ao ver o rei escolher uma amante sem a sua ajuda.

Mas ela tentaria fazer amigos antes de tentar expulsar alguém da corte.

O rei ainda estava profundamente apaixonado por ela. Mais do que isso, ele demonstrava uma amizade estável para com ela. Essa qualidade em seu relacionamento agradava-a mais do que qualquer outra. Luís jamais conhecera uma mulher que estudava suas necessidades a cada minuto do dia como ela o fazia. Ele jamais ficava entediado em sua companhia. Havia apenas um aspecto no qual Luís não a considerava perfeita. Certa noite, ele teceu um comentário significativo quando ela não respondeu prontamente à sua paixão:

- Minha querida, você é tão fria quanto o seu nome.

A referência ao nome Poisson, que significava "peixe" em francês, aterrorizou-a. Ela sabia que em algum momento no futuro precisaria haver outra mulher. Oh, não outra mulher, outras mulheres. Essa ceria a única maneira segura. Os pequenos affaires de Luís não poderiam durar mais do que alguns dias. E se os casos de Luís fossem com mulheres muito inferiores à sua posição, não haveria risco de que alguma viesse a substituir a marquesa.

Mas ela tentou expulsar esses pensamentos de sua mente. Essa era uma preocupação para o futuro.

Por enquanto ela era jovem, e se esforçava ao máximo a atender o que lhe era exigido. Ela consultara especialistas a respeito de uma dieta que exerceria um efeito afrodisíaco, e agora estava comendo uma quantidade enorme de trufas. Ela estava preparada para enfrentar qualquer desconforto para satisfazer o rei.

Ela trouxe Voltaire, seu admirador ardente, para a corte. Ela esperava com isso divertir o rei com as peças de Voltaire, e ao mesmo tempo ajudar a consolidar a carreira do escritor.

Entretanto, Voltaire não estava acostumado com o protocolo rígido da corte e quase estragou suas chances de reconhecimento.

A marquesa jamais esqueceria de uma noite. Eles haviam produzido O Templo da Glória e a peça seria encenada nospetits appartements para uma plateia muito pequena.

Essa foi uma grande honra para Voltaire, especialmente porque ele fora convidado.

A marquesa disse ao escritor que achava que a peça iria agradar ao rei porque um dos seus personagens - Trajano - representava Sua Majestade.

A própria Jeanne-Antoinette interpretaria uma das deusas

- a deusa principal - porque, por mais cansada que estivesse, não permitiria que outra mulher exibisse seus encantos e talentos para Luís.

Na empolgação da noite, Jeanne-Antoinette se esqueceu de seu cansaço, e seus talentos patentes para esse tipo de entretenimento deliciaram o rei. Ele ficou estarrecido com sua versatilidade e não hesitou em demonstrar o seu prazer.

Infelizmente, Voltaire - empolgado pelo sucesso de sua peça e pela falta de formalidade que era costumeira nospetits appartements - caminhou até o rei e segurou o seu braço.

- Você se vê lá no palco, Trajano? - perguntou Voltaire.

Fez-se silêncio na sala enquanto a marquesa sentia seu coração afundar dentro do peito. Por maior que fosse a falta de formalidade nos petits appartements, isso não significava que os convidados pudessem esquecer a identidade do rei. O escritor cometera umfauxpas que não seria esquecido. Luís ficou embaraçado. Ele puxou o braço e deu as costas para Voltaire sem lhe responder nada.

A noite deixou de ser um sucesso.

Mais tarde, quando eles estavam a sós, Luís disse a JeanneAntoinette:

- Jamais permitiremos que esse homem volte à corte.

Jeanne-Antoinette ficou muito desapontada. Ela acreditava no talento de Voltaire e desejava ajudar seu amigo.

- Ele esqueceu suas boas maneiras - disse ela. - Mas Luís, não se coloque contra ele por causa disso. Ele sabe escrever. Não pode ser perdoado por não saber ainda como se comportar na corte?

- Foi um tanto constrangedor-murmurou o rei. Então ele sorriu para ela. -Madame La marquise tem o maior coração do mundo. Façamos o seguinte: durante algum tempo teremos as peças na corte, não o homem. - E então, vendo que ela ainda estava descontente, acrescentou:-Apenas durante algum tempo.

-" Vossa Majestade é muito bondoso comigo - murmurou ela.

Ele a deixou no começo da manhã; e ela ficou sozinha na cama sentindo-se cansada demais para dormir, mas ainda assim desfrutando do luxo de um corpo e uma mente relaxados.

Ela começou a tossir. Ultimamente vinha sendo acometida de muitos ataques de tosse, embora se esforçasse para reprimilos na presença do rei.

Ela levou aos lábios o seu fino lenço branco, e quando o retirou, ficou horrorizada em vê-lo salpicado com sangue.

A melancolia do delfim estava se tornando uma fonte de irritação na corte. Além disso, agora era considerado necessário que ele produzisse um herdeiro.

Certo dia, Luís mandou chamar o filho e lembrou-o disso.

O delfim balançou a cabeça e replicou:

- Não quero outra esposa.

- Isso é tolice - disse o rei. - Você fala como um pastor de ovelhas. É claro que você precisa ter uma esposa. Já providenciamos uma para você.

O delfim não demonstrou qualquer sinal de curiosidade e o rei prosseguiu:

- É Marie-Josèphe, filha do eleitor Frederico Augusto, da Saxônia. A rainha não está muito feliz com isso porque, como você sabe, o pai desta moça tomou a coroa da Polónia do seu avô, Stanislas. Ora, vamos, demonstre um pouco de interesse.

- Meu pai, não posso demonstrar o que estou sentindo. O rei levantou os ombros em sinal de nervosismo.

- O duque de Richelieu já partiu para Dresden - disse Luís. - Ele fará os preparativos para o seu casamento, que não deverá demorar.

Então, com seu charme irresistível, Luís cessou de ser rei e tornou-se pai. Ele pousou a mão no ombro do delfim.

- Anime-se, meu filho. E lembre disto: cada tristeza, a despeito do quanto ela for profunda, acaba por passar.

O delfim fitou seu pai com descrença em seus olhos melancólicos.

Meses depois, o delfim casou-se com uma menininha assustada de quinze anos.

Fora um sacrifício imenso para ela despedir-se de sua casa e vir para um novo país, particularmente quando a rainha desse país prometia não ser amistosa por lembrar que o seu pai usurpara o trono do dela.

Mas a pequena e solene Marie-Josèphe estava determinada a ser uma boa esposa. Ela sabia que não era bonita, mas sua predecessora também não o fora, e em dois anos ela conquistara o amor do delfim. Marie-Josèphe estava determinada a fazer o mesmo.

A frieza da rainha era evidente, mas isso foi compensado pelo calor da saudação do rei. Ele parecia entender exatamente como uma jovem se sentia ao deixar seu lar e sua família. Ele disse que seria como um pai para ela e que estava muito feliz em tê-la na família real.

Houve outra pessoa que ela notou quando fez seu primeiro contato com a família real - uma menina de olhos tristes no final da adolescência que a abraçou com um calor e uma simpatia que ela raramente encontrava.

Esta era a princesa Anne-Henriette, a irmã do delfim, que a procurou no dia das celebrações do casamento e lhe disse como o delfim tinha amado sua primeira esposa e como lamentara sua morte.

- Você não precisa sentir-se magoada por ele não aparentar interesse por você - disse a princesa. - Se ele estivesse aparentando, isso apenas mostraria a sua natureza volúvel. Seja paciente durante algum tempo e então um dia ele irá amá-la tanto quanto a amou.

- Você é muito gentil comigo - disse a noivinha assustada. - Não posso lhe dizer o que a amizade que você e Sua Majestade me demonstraram pode significar para alguém que está longe de casa.

- Temo que ser mandada para longe de casa é um destino que nós princesas devemos sempre temer - murmurou AnneHenriette. -Essa possibilidade paira sobre nós como uma sombra.

E ela estava pensando que, se tivesse sido convocada para partir de seu lar para a Inglaterra, para ser a esposa de Carlos Eduardo, seria completamente feliz. Onde ele estava agora? Era um fugitivo... escondendo-se das forças hanoverianas. Mas um dia ele iria derrubar o usurpador alemão do trono. Os rei verdadeiros, os nobres Stuarts, reinariam novamente na Inglaterra; e quando isso acontecesse, ele não esqueceria da princesa francesa a quem prometera tornar sua rainha.

A pequena delfina estava observando-a atentamente.

- Sinto muito - disse Anne-Henriette. - Os meus pensamentos estão muito longe daqui.

E a jovem noiva pousou as mãos sobre as de sua cunhada e sorriu para ela.

Como é estranho que, por ambas temermos o futuro, possamos dar coragem uma à outra, pensou Anne-Henriette.

A cerimónia para colocar na cama o casal recém-unido pelos laços do matrimónio chegara ao fim. A delfina tremia; até agora o delfim mal falara com ela.

Ele me odeia, pensou. E fervorosamente desejou estar em casa, na corte de seu pai.

O delfim estava deitado num canto da cama; ela estava em outro. Parecia que ele queria colocar a maior distância possível entre os dois.

Os dois estavam calados, mas quando não conseguia mais suportar o silêncio, ela disse:

- Eu sinto muito. Não queria casar-me mais do que você queria. Não queria vir para a França. E não pude fazer nada quanto a isso. Não era o meu desejo.

Mesmo assim, ele não disse nada. Então, ela viu lágrimas descendo pelas faces do delfim.

Vê-lo chorar fez com que ela tivesse a impressão de que ele era mais jovem do que ela, mais necessitado de conforto, e esqueceu a maior parte de seus temores.

Estendeu a mão e, timidamente, tocou o braço dele.

- Sinto muito - disse ela. - Sei como você se sente. Ele se virou ligeiramente para ela.

- Como pode saber?

- Talvez porque eu ame a minha família. Eu sei o que é amar as pessoas para depois perdê-las.

- Você não pode saber como é perder Marie-Thérèse.

- Eu sei. Você a amava profundamente, e ela morreu. Você sente que jamais será feliz novamente.

Ele fez que sim com a cabeça e, subitamente, se jogou sobre o travesseiro e começou a chorar.

- Ninguém entende... ninguém... ninguém!

- Eu entendo - garantiu e cofiou o cabelo sobre a nuca do marido. - Meu pobre delfinzinho, eu entendo.

Ele não rejeitou a carícia e ela continuou a acariciá-lo.

- Você... você vai me desprezar - disse o delfim. Então a jovem sentiu como se tivesse adquirido uma nova sabedoria.

- Não - respondeu a ele. - Não vou desprezá-lo. Eu o respeito por amá-la tanto. Isso me mostra que você é uma boa pessoa e que... e que se eu for uma boa esposa para você não terei nada a temer. Talvez você até venha a me amar assim. Isso me faria feliz, porque quando ela veio para cá, você também não a amava mais do que me ama agora.

O delfim desviou o olhar de sua noiva, e de vez em quando os soluços estremeciam o seu corpo. Ela se inclinou sobre ele.

- Por favor... você não precisa tentar esconder a sua dor. Não fará qualquer diferença para mim se você me mostrar o que sente. Eu compreendo. Fico feliz por você tê-la amado tanto.

O delfim não respondeu. Mas ele segurou a mão de sua esposa e a usou para enxugar suas faces quentes e úmidas.

E naquela noite o delfim, sofrendo pela dor da perda de sua primeira esposa, chorou até dormir nos braços da segunda.

A marquesa de Pompadour tornara-se tão necessária ao conforto do rei que se viu rica, cercada por bajuladores e praticamente primeira-ministra da França. Em cada castelo ela tinha seus aposentos especiais, e já adquirira o castelo de Selle e Crécy e gastara muito dinheiro reformando-o.

Tornou-se famosa por suas extravagâncias, pois o desejo de possuir coisas bonitas sempre estivera com ela, e no passado ela muitas vezes sonhara com o que ela iria fazer quando estivesse na posição que agora ocupava.

Abel agora estava na corte e recebera o título de marquês de Vandières; mas estava inquieto.

- Acho constrangedor ser tratado como uma pessoa tão importante - disse à irmã -, não por ter feito algo de valor, mas devido ao nosso parentesco.

- Você é importante - disse ela alegremente. - Se alguma pessoa demonstrar desrespeito por você, ficarei muito zangado com ela.

- É isso que estou dizendo - frisou. - Eles não demonstram isso, mas sei que me desprezam.

Pobre Abel!, pensou. Ele carece da ambição que possuo e que nossa mãe também possuía.

- Ficarei satisfeito se me tornar Diretor de Obras Públicas quando Lenormant se aposentar. Esse cargo será suficiente para mim.

- Estou zangada com a minha família - disse a ele. - Eu quero tanto ajudá-la, e ela não me permite.

Ela ficou triste ao lembrar da perda de sua mãe e de seu filhinho, que morrera recentemente. Agora lhe restava sua filha pequena, Alexandrine, para quem deveria arranjar um bom casamento.

E quanto a François Poisson, ele poderia ter tido um título, se o quisesse.

Ele rira quando ela havia sugerido isso. Ele lhe disse que estava satisfeitíssimo com seus próprios terrenos no campo, e não queria nada mais.

- A marquesa disto... o conde daquilo! Ah, isso não é para mim. Permanecerei simplesmente Poisson. Não se preocupe com o velho François. Pode continuar prostituindo-se no palácio. Ficarei fora do caminho, mas permanecerei um Poisson.

com toda certeza, jamais uma mulher na posição cobiçada que ocupo teve uma família que quisesse tão pouco!

Enquanto isso, ela continuava reinando na corte e ficava feliz quando ela e o rei conseguiam escapar do protocolo cansativo de Versalhes. Que prazer era sentar-se para jantar nos petits appartements sem a presença dos officers de La bouche - aqueles cinco servos que precisavam provar cada prato antes que fosse servido ao rei - ou os officers du goblet, cinco outros cujo dever era provar o vinho.

A pobre rainha não tinha oportunidade de escapar do protocolo como fazia o rei. Talvez ela fosse mais paciente e aceitasse melhor as exigências da corte. Há meses ela não pisava no Trianon devido a uma disputa que estava em andamento, entre o administrador de lá e a governanta da rainha, quanto a quem deveria suprir as velas para a casa. Era um caso delicado de protocolo, porque as velas não deviam ser fornecidas pela pessoa errada; e até que a disputa estivesse decidida, não haveria velas no Trianon.

A corte inteira ouvira falar do caso do toldo da cama oficial da rainha, e ninguém considerou-o extraordinário. Ela notara que o toldo estava empoeirado e disse isso a uma de suas damas de companhia. A queixa foi passada para o valet de chambre tapissier, que declarou que não era seu dever remover essa poeira, não sendo o toldo uma tapeçaria, e sim um móvel, e que portanto deveria ser removido por um garde meuble. Então uma controvérsia havia ocorrido entre os guardas da mobília, para descobrir de quem era o dever de limpar o toldo da cama, porque, se um servo desempenhasse esse dever quando cabia a outro, isso seria considerado uma falha no protocolo, e era desejo constante da camada inferior de Versalhes imitar a superior.

E assim, situações ridículas como essas surgiam uma atrás da outra. Mas o protocolo era sagrado e ninguém fazia nada para reformar essas regras tão ridículas.

Houve até mesmo uma ocasião em que a marquesa temeu que ela e o rei pudessem se ver numa situação difícil, e que pudessem ser culpados por uma das piores falhas de protocolo que era possível cometer.

Eles haviam ceado nospetits appartements; o rei comera bem e bebera ainda melhor. Fora uma daquelas ocasiões deliciosas em que, até onde possível, o protocolo era ignorado na hora de comer.

A marquesa estava muito animada e charmosa, e o rei dera mais cedo a ordem Allons nous coucher" para que pudesse estar a sós com sua amante.

O coucher formal no quarto real foi completado e o rei visitou madame de Pompadour em seus aposentos.

- Ah! - exclamou o rei, esticando-se na cama. - Como é bom escapar! Minha querida marquesa, cada vez fico mais cansado da formalidade de Versalhes. Eu amo meu castelo acima de todos os outros, mas sempre há um tutor irritante no meu ombro: o protocolo.

- Vossa Majestade deveria suspendê-lo.

- Eu o faço sempre que possível.

- Mas talvez em todas as ocasiões - disse ela.

- O povo jamais permitirá isso. Eles pensam em nós como marionetes... sempre vestidos em veludo e brocados, continuamente recebendo reverências e homenagens, e é isso que fazemos. - Ele bocejou. - O vinho desta noite estava bom.

- E Vossa Majestade demonstrou aprovação.

- Eu estava um pouco embriagado?

Ela se ajoelhou ao lado da cama e fitou-o com aquela expressão adorável que lhe causava tanto deleite.

- Como sempre, os seus modos foram perfeitos. Seria impossível que não fossem.

- Minha querida, como você está bonita! Por que está ajoelhada? Venha, se aproxime mais de mim.

Ela sorriu e se levantou.

Enquanto Luís despia o seu vestido, ela disse: ?

- Um dia mostrarei a você a minha Alexandrine.

- Você ama muito essa sua filha - comentou o rei. Ela é tão bonita quanto você? Embora isso seja impossível, é claro.

- Alexandrine é notavelmente feia. Não lamento isso. Não queria que ela se tornasse uma beldade.

- Coisa estranha ouvir isso de uma mãe.

- Não, não é - disse a marquesa, semicerrando os olhos.

- Grandes belezas geram grandes inimigos. E quero que minha pequena Alexandrine viva com calma e em paz. Minha mãe tinha ambições para mim, e eu as alcancei. As ambições que nutro para a minha família são inteiramente diversas. Espero também alcançá-las,

- Suponho que queira um esposo nobre para ela.

- Quero escolhê-lo com cuidado. Ele precisa ser merecedor dela.

- Rico, nobre... poderoso - murmurou o rei.

- E gentil - acrescentou. - Quero que o esposo dela seja tão gentil com ela quanto o meu rei é comigo.

Agora os olhos do rei cintilaram, porque cobrindo o corpo sinuoso de sua amada não havia nada além de seus cabelos abundantes, e, encantadoramente, eles não conseguiam fazê-lo.

O rei estendeu a mão e ela caminhou até ele.

Aproximadamente uma hora havia se passado quando ela descobriu que Luís não estava passando bem. Ele estava arfante, e quando ela acendeu um candelabro, viu que o rosto dele estava roxo.

- Luis! Luís! - gritou a marquesa. - O que você está sentindo?

Ele conseguiu balbuciar:

- Depressa... chame um médico. - Mas prontamente ele recordou que o protocolo estava se intrometendo entre eles. Diga que você está doente - acrescentou, nervoso.

Ela fez que sim com a cabeça, compreendendo a intenção de Luís. Ela chamou uma de suas aias.

- Traga o dr. Quesnay imediatamente - disse a ela. - Não lhe diga que o rei está doente. Diga que eu estou.

O doutor chegou e ficou surpreso em ser saudado pela marquesa.

- Madame, que doença lhe aflige? - perguntou o médico, balbuciante.

- Rápido, eu lhe peço. É Sua Majestade.

Quesnay foi até a cama e examinou o rei. Ele deu uma pílula a Luís e pediu água fria, com a qual banhou seu rosto. A marquesa estava parada ao lado da cama, trémula.

- Monsieur, pelo amor de Deus... Diga-me o quanto ele está doente.

O doutor olhou-a muito sério.

- Os excessos de Sua Majestade estão cobrando seu preço. O rei desfruta de prazeres demais. - Ele deu de ombros. – Ele ainda é jovem, e isso é uma bênção. Se ele tivesse sessenta anos a senhora teria um homem morto em sua cama esta noite.

- Ajude-me a levantar - pediu Luís ao médico. - Preciso voltar para a minha câmara. Se eu vou ficar doente, é necessário que não seja aqui.

Depois que tinha bebido várias xícaras de chá que as aias da marquesa haviam preparado sob as instruções do médico, Luís foi levado de volta para o seu quarto por Quesnay. A marquesa, tão ansiosa quanto o doutor em relação à saúde do rei, não conseguia parar de pensar na calamidade que teria sido se o rei tivesse morrido na cama de sua amante, pois o protocolo seria ultrajado se qualquer rei da França morresse em qualquer lugar que não fosse a cama real. Quesnay passou aquela noite com o rei, e pela manhã a marquesa recebeu um recado terno de seu amante:

"Minha querida, por que sufoco passamos! Mas eu lhe envio este bilhete através de meu doutor para que ele lhe assegure que tudo está bem..."

Parecia estranho que o protocolo tivesse se revelado tão importante para ambos ao mesmo tempo. Na verdade, o protocolo era tão respeitado na corte que dominava todas as ocasiões.

Ele constituía grande parte da vida no Palácio de Versalhes. Ninguém teria ficado surpreso em saber que o rei e a marquesa tinham passado a noite juntos; na verdade, se eles não o fizessem, isso seria tema de um mexerico que se espalharia pela corte como fogo em palha. Mesmo assim, um dos maiores escândalos possíveis teria sido a morte do rei na cama de sua amante.

Remover essa convenção irracional? Uma tarefa tão fácil quanto tirar as fundações do próprio palácio cor de mel.

 

Finalmente chegaram notícias do Cavaleiro de São Jorge. Ele chegara a solo francês e a corte se preparara para recebê-lo. Como a Inglaterra era naquele tempo inimiga da França, uma recepção deslumbrante deveria ser oferecida a esse jovem a quem o rei hanoveriano em Londres temia mais do que qualquer outro homem.

Os sentimentos de Anne-Henriette mesclavam alegria e apreensão. Fazia muito tempo desde a última vez em que ela o vira, e ela imaginara que o seu retorno seria muito diferente. Ela sonhara com ele vindo para a França na condição de herdeiro ao trono da Inglaterra para pedir ao rei francês a mão de sua filha em casamento.

Mas esta situação era completamente diferente e ela estava insegura quanto aos sentimentos verdadeiros de seu pai para com o jovem príncipe. Ele estava recebendo-o calorosamente, isso era verdade, mas estaria fazendo-o por gostar de Carlos Eduardo ou para ofender seu inimigo do outro lado das águas?

Politicamente era vantajoso hospedar um nobre que estava requerendo a coroa de um país inimigo. Teria sido por esse motivo que seu pai mandara organizar uma grande recepção para o rapaz?

Ela não ousava falar com o pai sobre a possibilidade de matrimónio. Luís não gostava de pensar no casamento de suas filhas. Se o assunto fosse aventado, Luís franzia o cenho e dizia:

- Elas ainda são jovens.

Ele falava frequentemente sobre Louise-Elisabeth, que estava na Espanha.

- Que bem aquele casamento trouxe a ela? - inquiria. Podíamos tê-la mantido em casa. Gosto de ter minhas filhas comigo.

Adelaide veio falar com sua irmã. Ela queria conversar sobre segredos, e então, ao seu modo imperioso, ordenou às aias que saíssem dos aposentos.

Adelaide era muito bonita. O povo tinha razão ao dizer que ela era a mais bonita das princesas. Mas às vezes ela deixava transparecer uma selvageria em sua expressão que parecia um pouco alarmante para a gentil Anne-Henriette.

Ela retinha muito da ousadia de sua infância quando, depois de ter recebido permissão para permanecer em Versalhes enquanto as irmãs mais novas eram enviadas para Fontevrault, ela fora mimada pelo pai e pelo restante da corte, que procurava obter favores através da filha favorita do rei.

Vezes sem conta Anne-Henriette vira Adelaide deitar no chão e espernear quando não podia ter as coisas do jeito que queria. Isso deixava os servos muito tensos, pois temiam ofendêla. Quando Anne-Henriette chamara a atenção de Adelaide sobre isso, a menina olhara estarrecida para a irmã.

- E de que outro jeito conseguirei o que quero? - questionara.

Ninguém jamais tinha certeza absoluta sobre o que Adelaide faria em seguida. Ela tinha as ideias mais malucas e jamais parava para refletir seriamente antes de implementá-las.

Recordando uma ocasião alguns anos antes, quando sua irmã mais nova realmente quisera fugir de Versalhes para alistar-se no exército, Anne-Henriette temia por seu futuro. Apenas Adelaide podia ser a um só tempo corajosa e inocente, criativa e ignorante.

Adelaide ouvira falar muito sobre os ingleses. Embora a Áustria fosse o mais odiado dos inimigos da França, a Inglaterra era a mais temida.

- Odeio os ingleses-declarou certa vez à suagouvemante.

- Odeio-os mais do que qualquer outra coisa no mundo, porque eles deixam o meu papai nervoso.

Ela havia permanecido sentada, ouvindo atentamente, enquanto sua gouvernante lia a história de Judite, a linda filha de Merari que, fascinando Holofernes, atraíra-o para sua cama e o matara.

Depois que Adelaide passara alguns dias relendo essa história, claramente tecendo planos, todos à sua volta começaram a se perguntar:

- O que há de errado com madame Adelaide?

Mas Adelaide não contou a ninguém o que se passava em seu cérebro turbulento e, alguns dias depois, deram por sua falta.

A corte entrou em polvorosa. Todos os tipos de teorias foram tecidas. Uma dizia que Adelaide fora raptada. A filha do rei, roubada do Palácio de Versalhes, debaixo das barbas da corte!

Paris inteira estava com raiva. Esta criança, esta linda princesa, fora tirada de seu lar. com que propósito? Dizia-se que ela fora roubada por inimigos da França, que iriam cobrar um resgate para devolvê-la. O rei organizou grupos de busca para procurá-la, e ele mesmo juntou-se à caçada.

E então... Adelaide foi encontrada na estrada, não muito longe do Palácio de Versalhes.

Foi trazida de volta, para a alegria da família e da França, mas para o seu próprio desgosto.

Ela tentara evitar seus captores, comandando-os a deixá-la, declarando que tinha trabalho a fazer e que ordenava que eles não se intrometessem.

Mas nessas ocasiões a imperiosa Adelaide não podia fazer tudo ao seu modo, e assim foi levada de volta para o palácio.

O rei abraçou-a. Ela respondeu ao abraço porque Luís era a única pessoa a quem não podia resistir. Aos olhos de Adelaide, seu pai era perfeito, e ela não fazia qualquer segredo de seu amor por ele.

- Mas por que você nos causou toda essa ansiedade? inquiriu Luís. - Como pôde fazer isso? Minha criança, você sabe o quanto ficamos nervosos?

- Era para ser um segredo até que estivesse feito - disse-lhe ela. - Eu ia trazer o rei da Inglaterra para você... acorrentado, papai.

Os olhos de Adelaide reluziram, e nesse momento ocorreu às pessoas reunidas ali que talvez madame Adelaide fosse um pouco desequilibrada.

- Mas, minha querida, como poderia você, uma menininha, fazer isso?

- Eu ia agir como Judite. Ela conseguiu. Por que eu não conseguiria? Ela fez isso com Holofernes, mas eu teria feito isso com todos os lordes ingleses, menos o rei, porque então ele estaria sozinho, sem ninguém para ajudá-lo, e então eu o teria posto a ferros e trazido para Vossa Majestade. Então o senhor não ficaria irritado comigo, ficaria, papai? - Ela se virou para olhar de cara feia para aqueles que a haviam levado até o rei.-Mas essa gente me trouxe de volta. Papai, eles deviam ser trancafiados nas masmorras, porque é graças a eles que a Inglaterra não será derrotada. O rei balançou a cabeça e olhou para a filha, meio achando graça, meio assustado com aquilo.

- Mas como você pretendia conquistar os ingleses? - indagou.

- Isso seria fácil. Eu iria convidar todos os lordes para dormirem comigo... não juntos, é claro, isso seria um absurdo.

- Eu... eu creio que seria sim - disse o rei, abalado.

- Um a um - confidenciou a princesa. - E então... quando eles estivessem dormindo, eu simplesmente iria cortar-lhes as cabeças.

Um murmúrio se espalhou entre os cortesãos.

- Minha querida criança, talvez fosse mais sensato desafiar cada um deles para um duelo - disse o rei.

Ela considerou isso, sorrindo ao se imaginar de espada não mão, cortando uma cabeça inglesa atrás da outra.

- Mas não, papai - disse finalmente.-Você mesmo proibiu duelos; portanto, seria pecaminoso travar duelos.

O rei olhou para a filha sem saber o que fazer. Ele se perguntou se devia ter posto sua educação em mãos melhores. Talvez tivesse sido insensato permitir que ela ficasse em Versalhes enquanto suas irmãs eram postas sob a guarda de freiras. Talvez tivesse sido insensato permitir que ela fizesse o que bem entendesse em tantas ocasiões.

Ela tinha doze anos de idade ao planejar atrair os ingleses para a sua tenda e cortar-lhes as cabeças, uma a uma.

Aos doze anos ela deveria ter uma visão mais equilibrada do mundo, pensou Anne-Henriette.

Isso acontecera alguns anos antes, e agora Adelaide estava se perguntando o que o retorno de Carlos Eduardo Stuart significaria para Anne-Henriette.

- O que vai acontecer quando ele retornar a Versalhes? indagou Adelaide.

- Não sei - replicou Anne-Henriette.

- Eu me pergunto se você terá permissão para desposá-lo.

- Não sei.

- Acho que você não receberá a permissão, Anne-Henriette

- murmurou Adelaide.

A princesa mais velha meneou a cabeça.

- Já começo a acreditar que não tenho sorte no amor.

- Primeiro Chartres, e agora o príncipe Carlos Eduardo. Ora, minha irmã, creio que você é realmente desafortunada. vou lhe dizer o que faria em seu lugar. Eu venderia todas as minhas jóias e me apoderaria das de outras pessoas, e numa bela noite fugiria do palácio e partiria com ele para a Inglaterra.

- E convidaria todos os grandes capitães ao meu coche, para poder cortar-lhes as cabeças?-disse Anne-Henriette com um sorriso.

- Bem, isso seria melhor do que ficar aqui se queixando da vida - defendeu-se Adelaide. vou lhe dizer uma coisa, minha irmã. Mesmo se o príncipe retornar como herdeiro ao trono da Inglaterra, papai não consentirá no seu casamento.

- Oh, mas então tudo seria muito diferente. Então todos os nossos problemas vão acabar.

Adelaide parecia preocupada.

- Não, Anne-Henriette. Mesmo então papai não concordaria com o seu casamento. Ele jamais irá concordar que qualquer uma de nós se case.

- Isso é bobagem. Nós precisamos nos casar um dia. LouiseElisabeth se casou.

- E papai lamenta até hoje.

- Isso porque Louise-Elisabeth ainda não recebeu todas as honras que papai desejava para ela.

Adelaide balançou a cabeça e seus olhos selvagens brilharam, como indicando que ela estava planejando alguma coisa.

- Oh, não.-Ela riu de repente.-Dizem que a nossa irmã é muito bonita. E, você sabe o quanto ele fica feliz quando ouve falar da beleza dela. Ele ficou furioso quando ouviu falar de um certo escândalo no qual nossa irmã esteve envolvida.

- Adelaide... Adelaide... o que está se passando na sua cabeça?

- Não me olhe desse jeito. Conheço o papai melhor do que você. Sei mais sobre ele do que qualquer outra pessoa no mundo. vou lhe dizer por quê. Porque o amo. Ninguém o ama como eu. Ele é o homem mais bonito do mundo. Eu não gostaria de me casar com nenhum homem além de papai.

- Você fala como uma criancinha, Adelaide, Apenas crianças querem casar-se com seus pais.

- E você... você! - gritou Adelaide. - Você pensa como lhe ensinaram a pensar. Por que os pais não amam seus filhos mais do que qualquer outra pessoa no mundo? Eles pertencem um ao outro. Eu amo o rei. Jamais amarei qualquer outra pessoa como o amo. E ele me ama... e ama você, e também Louise-Elisabeth. Foi por causa disso que ele ficou zangado quando soube que ela tivera um caso de amor com o embaixador, monsieur de Vauréal.

- Naturalmente que ele ficou zangado. Ele lamentaria se qualquer escândalo tocasse a qualquer uma de nós.

- Mas a raiva de papai foi diferente da de nossa mãe. Você não sabe?

- Adelaide, que absurdo se passa em sua cabeça agora? Adelaide agora estava insolente, cheia de dignidade, como podia ficar de repente, sem qualquer aviso.

- Se não quiser me ouvir, então não o faça. vou lhe dizer o seguinte: papai jamais permitirá que você se case com Carlos Eduardo, nem com qualquer outro homem. Ele também não permitirá que eu me case.

Dito isso, Adelaide empinou o queixo e se retirou da sala com a maior dignidade possível.

Eles dançaram - Anne-Henriette e Carlos Eduardo Stuart no baile oferecido em Versalhes em honra ao visitante.

Ele parecia mais velho, porém ainda era atraente. E vestido em veludo escarlate e brocados dourados, com as roupas cobertas por jóias, ele parecia mais um poderoso príncipe visitante do que um exilado.

Seu séquito consistia nuns poucos - bem poucos - nobres escoceses que se comportavam como se estivessem em sua pequena corte patética. Ele fizera seus servos vestirem uniformes reais da Inglaterra e usava a Ordem de São Jorge.

Quando suas mãos tocaram-se na dança, os olhos angustiados de Anne-Henriette encontraram os dele. Ele havia mudado, percebeu ela. Este não era o príncipe ideal a quem amara no começo de 1745. Até mesmo a forma como ele a olhava parecia ter mudado. Haveria uma certa especulação em seus olhos?

Que chances tenho eu de desposar esta jovem?, pensou Carlos. Quanta ajuda o rei da França estaria preparado para dar a sua filha?

Anne-Henriette era gentil, mas isso não significava que carecesse de percepção. Ela leu os pensamentos de Carlos em seu olhar.

- Ouvi dizer que meu pai colocou uma casa em Paris à sua disposição - disse a ele.

- Faubourg St. Antoine - respondeu. - Sua Majestade é generoso. O presente da casa também inclui uma pensão em dinheiro. Como vê, madame Anne-Henriette, terei tempo para fazer novos planos.

- Você está fazendo novos planos?-perguntou animada.

- Todo mundo faz planos.

- Uma pessoa na sua posição... sim.

- Lamento muito ter retornado desse jeito.

- Tive grandes esperanças. Você chegou muito perto de Londres.

Ele balançou a cabeça tristemente e ela pensou nas histórias românticas que ouvira sobre suas aventuras na ilha de Skye.

- Recebíamos notícias suas de tempos em tempos - disse a ele.-A sua amiga Flora MacDonald,.. ela... ela foi muito boa com você.

- Devo a ela a minha vida - disse ele, e por um instante pareceu que o jovem príncipe tomara o lugar deste homem desiludido.

Ele estava pensando em Flora, a corajosa e inteligente Flora; ele estava pensando em si mesmo, quase sufocado pelas roupas de uma criada - a gorducha Betty Boirke, empregada de Flora MacDonald. E como eles tinham passado juntos por perigos.

Quando ele pensava naqueles dias, esta princesa jovem parecia-lhe uma criança. Ninguém podia viver o que ele vivera, sofrer o que ele sofrera, e permanecer idealista, acreditando no amor simples, como fazia esta mocinha.

Ele deixara um pouco do príncipe romântico e encantador na charneca Culloden, com aqueles homens corajosos que jaziam enterrados lá, vítimas do maldito Cumberland.

Ele podia apenas olhar para esta jovem e pensar:

Se o rei da França permitir o casamento, ele fará tudo ao seu alcance para ajudar-me a reconquistar o trono.

Ele deixou uma máscara descer sobre o seu rosto quando disse:

- Como estou feliz por voltar a Versalhes! Não acredito que possa sentir mais felicidade do que sinto agora. Um trono... meu trono por direito... se fosse feito meu agora, não me daria mais alegria do que a que sinto por estar segurando a sua mão.

O êxtase que tocara o rosto de Anne-Henriette não permaneceu lá por muito tempo. Embora ela tenha sorrido para ele, houve uma certa tristeza nesse sorriso.

O rei recebeu seus convidados com seu charme costumeiro.

- Espero que esteja confortável em Faubourg St Antoine.

- Estou muito, majestade.

- Fico feliz em ouvir.

- Devo muito à munificência de Vossa Majestade, e tendo provado de sua generosidade, sire, ouso fazer-lhe outro pedido.

Luís pareceu embaraçado. Ele imaginava qual seria a natureza desse pedido, e sabia que seria muito desagradável negá-lo. Ele também pensou em Anne-Henriette, sua querida filha que, quando sua amizade com este homem começara a florescer, parara de lamentar a perda do duque de Chartres.

- Diz respeito à princesa, majestade - prosseguiu Carlos Eduardo.

Luís olhou fixamente para ele.

- Espero receber em breve uma visita de minha filha mais velha - disse ele. - Isso me dará uma grande prazer. Muitas vezes lamento ter dado o meu consentimento ao seu casamento. Não foi um casamento brilhante, e prometi a mim mesmo que não cometeria o mesmo erro com as outras meninas... a não ser, claro, que a união fosse importante para o reino. A França teria de ser muito beneficiada para eu perder mais uma de minhas filhas.

- Então apenas através de uma aliança que a tornasse uma rainha...

- Não menos do que isso - disse Luís. - Eu sou um rei, mas também sou um pai. Gosto de ter minha família comigo. E você... soube que tem causado palpitações nos corações de algumas de nossas damas. - Luís riu. - Ouça meu conselho, rapaz. Desfrute da vida enquanto pode. Você é jovem e a juventude passa muito depressa.

Os olhos de Luís eram amistosos, mas apresentavam um aviso.

Você está aqui na condição de meu pensionista, diziam os olhos ao jovem príncipe. Você fracassou em recuperar o seu trono em 1745, assim como seu pai fracassara em 1715. Precisamos nos acostumar a aceitar aqueles alemães como reis da Inglaterra. Nas circunstâncias atuais você não é um marido adequado para uma princesa da França e, obviamente, sob nenhuma outra circunstância deve se tornar amante de minha filha.

O príncipe leu os pensamentos de Luís em seus olhos.

O rei, ele sabia, desaprovava qualquer homem que se aproximasse de suas filhas. Ele próprio podia ter uma amante; ele se divertia em ouvir as histórias das aventuras de mulherengos como Richelieu e Clermont. Mas suas filhas eram sagradas. Ai do homem que tentasse seduzir uma delas!

Um exilado precisava jamais esquecer detalhes como esses.

O rei sorriu de repente.

- Ouvi dizer que a princesa de Talmond declarou que considera você o homem mais charmoso da corte. Soube que ela tem quarenta anos, mas devo dizer que ela poderia ser interessante... muito interessante.

- Obrigado, majestade - disse o príncipe.

E ao se retirar da presença do rei ele sabia que tudo estava acabado entre ele e Anne-Henriette, a não ser que por algum milagre o rei Jorge abdicasse e o povo colocasse os Stuarts de volta no trono, como haviam feito naquele ano glorioso de 1660 - quase cem anos atrás -, quando outro Stuart voltara para triunfar na terra que ele tinha de reger.

Luís lamentava por Anne-Henriette. A pobre criatura voltara a afundar na melancolia. Luís decidiu que, como em duas ocasiões fora obrigado a negar-lhe o homem com quem ela queria se casar, ele faria de tudo para trazê-la de volta à felicidade.

Convocava-a frequentemente aos seus aposentos, onde bebiam café, que ele próprio preparava. Ele a conduzia ao seu ateliê e lhe mostrava suas esculturas em marfim, e em seguida para a cozinha, para que ela provasse suas receitas.

- Você está crescendo depressa - disse a ela. - Deve ter a sua própria morada.

Como Luís usou todo seu charme, Anne-Henriette rapidamente sucumbiu a ele, e pai e filha passaram a ficar tanto juntos que logo se começou a dizer que o rei gostava mais de sua filha do que de madame de Pompadour.

Durante muitos anos houvera na França um conflito entre os jansenistas e os jesuítas. Os jansenistas carregavam o nome de seu fundador, Cornelius Jansen, o duque teólogo que protestara veementemente contra o amor pelo conforto que era prevalente entre altos oficiais da Igreja Católica. Os seguidores deste credo eram homens severos que buscavam trazer a austeridade de volta à religião; mas sob a cobertura do jansenismo, certos grupos na França tinham feito um esforço para atacar a Igreja. Esses homens não se preocupavam com teorias agostinianas; estavam ansiosos por tornar a França independente de Roma. Essa foi outra fase da luta entre o Estado e o papado pela supremacia; portanto, num lado da disputa estavam os jesuítas e Roma, e no outro os jansenistas e aqueles que queriam ver o Estado supremo.

Havia uma parte da nobreza que não acreditava no direito do Estado à supremacia, e que procurava manter o poder dos jesuítas.

O delfim apoiava esse grupo. Ele se tornara muito devoto e nisso era acompanhado pela delfina, por quem começava a sentir um afeto que quase se igualava àquele que sentira por sua primeira esposa. A rainha também apoiava os jesuítas.

Da sua parte, Luís não estava nada satisfeito com o clero. Recentemente o bispo de Soissons considerara seu dever repreendê-lo por sua associação com madame de Pompadour.

Ele ousara escrever a Luís deplorando o fato de que a nação não expressasse qualquer horror quando o pecado do adultério era cometido.

"Se Vossa Majestade fosse um simples paroquiano de minha diocese, eu não teria qualquer dúvida em reprová-lo publicamente", escreveu o bispo. "Venho por meio desta pedir a Vossa Majestade que se lembre de seu arrependimento quando acreditou estar à morte em Metz. Naquela época Vossa Majestade jurou corrigir seus hábitos. Mas Deus devolveu-lhe a vida, e o que aconteceu? Vossa Majestade tomou como amante a esposa de um de seus súditos."

Luís, ao recordar todas as vezes em que estivera próximo à morte, talvez ficasse impressionado com essa pequena homilia, mas o bispo estragara seu efeito com as palavras a seguir:

"Agora vemos na corte, com o mais elevado de todos os títulos, uma pessoa da classe inferior, uma mulher sem berço, que foi elevada em nome da perversão."

Luís estava zangado com o bispo nessa época, e quando ele comparou sua marquesa com todas as outras damas da corte, teve certeza absoluta de que o bispo não sabia o que dizia. Não, o rei definitivamente não estava feliz com o clero.

Quanto à marquesa de Pompadour, tinha medo dessa classe. Esses homens que sempre exortavam os reis a se arrependerem eram uma ameaça às amantes dos reis. Arrepender-se significava retornar à vida pia, e isso, para mulheres como ela, só podia significar o banimento da corte.

Portanto, os jesuítas não deviam esperar qualquer amizade da parte da marquesa de Pompadour. E com sua ascendência sobre o rei tornando-se cada vez mais evidente, um partido começou a se reunir em torno do delfim, tendo como objetivo fortalecer o clero e os jesuítas, e futuramente expulsar da corte todas as amantes.

E como Anne-Henriette era tão querida pelo rei, ela descobriu-se convidada aos aposentos do delfim, para lá ser paparicada e honrada pelos amigos dele.

Anne-Henriette estava um pouco confusa, mas essas atenções impediam-na de pensar no comportamento escandaloso de Carlos Eduardo, que agora estava vivendo um caso de amor tempestuoso com uma mulher de quarenta anos, a princesa de Talmond.

A marquesa de Pompadour mantinha-se permanentemente alerta. A vida era cansativa mas altamente agradável. Luís ficava deliciado em ver que ela compartilhava de seu interesse por arquitetura, e eles passaram muitas horas felizes discutindo planos para embelezar e alterar prédios existentes ou adquirir novos.

O rei lhe disse que ela fizera de Crécy um lugar encantador, e prometeu construir uma casa especialmente para ela.

Seria interessante, em vez de reformar alguma coisa que já existia, que eles construíssem juntos uma casa desde os alicerces. Ela já comprara o Hotel dEvreux em Paris, e ela e o rei, viajando juntos para lá certo dia, descobriram o lugar ideal de frente para o Sena, entre Meudon e Sèvres.

- Este é o lugar - declarou Luís. - Que vista magnífica você terá das suas janelas!

- Vossa Majestade acaba de batizar a minha casa: "Bellevue".

- Pois Bellevue será.

Era maravilhoso para os dois isolarem-se de todos e traçar planos para a casa. Isso os unia ainda mais.

- Usaremos Lassurance como arquiteto - disse Luís. Não posso pensar em nome melhor.

- Também quero Verberckt.

- Sua obra é bela.

- Também creio que devemos convocar Boucher para pintar os tetos.

- Um grande artista.

E o custo? Jamais ocorreu a nenhum deles pensar no quanto custaria o palácio. Luís estava acostumado a decidir que alguma coisa devia ser feita e então o Tesouro providenciava os meios para fazê-lo. Quanto à marquesa, embora ela cuidasse de suas finanças com cuidado, sempre acreditou que a riqueza dos reis era ilimitada.

Enquanto eles planejavam a casa e viajavam frequentemente para Bellevue para ver o progresso dos operários, ela pensou muito sobre a amizade renovada entre o rei e Anne-Henriette. Ela estava ciente, pois suas amigas lhe haviam dito isso, que as princesas estavam sendo arregimentadas para a política por seu irmão e pelo partido jesuíta.

Sempre fora política de madame de Pompadour persuadir Luís, jamais bajulá-lo ou ameaçá-lo, como tinham feito as madames Vintimille e Châteauroux. Seu plano sempre fora deixar o rei confortável, ser a pessoa que sempre lhe proporcionava algum tipo de apoio. Ela acreditava - e acertadamente - que a forma de manter sua posição era jamais colocando Luís em situações embaraçosas.

Ela jamais o reprovara por negligenciá-la em benefício de Anne-Henriette. Ela não chamava a atenção de Luís para a natureza subversiva das reuniões nos aposentos do delfim e da delfina.

Contudo, ocorrera a ela que, se uma das outras filhas fosse trazida a Versalhes, a atenção de Luís poderia ser desviada de Anne-Henriette.

Ela fizera perguntas sobre a personalidade e a aparência da filha seguinte, Victoire, que tinha agora quinze ou dezesseis anos. Ela era bonita, mas dificilmente de uma natureza que pudesse encantar demasiado a Luís.

Assim, a marquesa disse ao rei:

- Luís, faz muito tempo desde que você viu as suas filhinhas.

- Muito tempo.

- Vai deixá-las naquele convento para sempre?

- Elas ainda não completaram a sua educação.

- Mas madame Victoire é apenas um ano mais jovem do que madame Adelaide. Eu sei como é delicioso ter filhas. Eu mesma tenho a minha pequena Alexandrine, lembra?

- Ah, sim, a filha não tão bonita. Precisamos arranjar um casamento para ela um dia desses. Mas o que você dizia sobre Victoire?

- Estava me perguntando se você não gostaria se ela viesse juntar-se às irmãs, aqui em Versalhes.

Luís ficou pensativo por um momento. Sim, seria agradável ter outra filha adorável na corte.

E assim, Victoire retornou a Versalhes.

Excelentes acomodações foram preparadas para ela, e a princípio o rei ficou deliciado com sua filha.

Contudo, Victoire não era alegre por natureza e, assim que chegou a Versalhes, Adelaide decidiu que deveria cuidar dela.

Ela foi visitar a irmã em seu apartamento, e quando viu o quanto era grande, ficou enciumada. Ela estudou sua irmã, que era inclinada a ser, conforme Adelaide logo descobriu, de uma disposição extremamente letárgica.

- Vamos conversar caminhando nos jardins - declarou Adelaide.

- Prefiro conversar aqui - disse Victoire.

- Eu prefiro conversar nos jardins. Vamos, não se fica sentada o dia todo em Versalhes.

- Por que não? É muito aprazível.

Adelaide sorriu para a irmã. com toda certeza não havia necessidade de sentir ciúmes dela. O rei apenas estava interessado em Victoire porque ela era recém-chegada. Adelaide achava engraçado lembrar que esta sua irmã ficara dez anos em Fontevrault, enquanto ela ficara aqui, graças à sua argúcia. Ela sentia muito prazer na companhia de Victoire porque isso a fazia lembrar do que ela escapara.

- Venha - comandou Adelaide.

E ela já tinha tamanho poder sobre a preguiçosa Victoire que a jovem obedeceu.

Enquanto caminhavam juntas, Victoire recebeu de Adelaide a ordem de contar tudo sobre o convento. Como eram as freiras? Que roupas elas usavam? A vida lá era terrivelmente tediosa, e ela não estava transbordando de felicidade por voltar ao Palácio de Versalhes?

Victoire explicou e concordou.

- Alguém precisa tomar conta de você - disse Adelaide.

- Cuidarei disso. Há armadilhas em Versalhes. Seria um escândalo se você ofendesse o protocolo.

- O que aconteceria? - perguntou Victoire.

- Você certamente seria mandada de volta para Fontevrault. Mas não tenha medo. Eu sempre irei ajudá-la. Como são Sophie e Louise-Marie?

- Sophie só fala alguma coisa quando não pode evitar. Ela sempre tem medo.

- Medo? Do quê?

- Da vida, suponho.

- Quando Sophie voltar para casa, eu cuidarei dela.

- Mas você vai tomar conta de mim.

- Tomarei conta das duas. vou lhe dizer uma coisa. Eu sou a pessoa mais importante de Versalhes.

- Você? Mas e quanto ao nosso pai? E quanto à rainha? E à marquesa?

- A rainha não tem nenhum poder. A marquesa sempre teme perder a sua posição. E quanto ao nosso pai, ele me ama tão profundamente que sempre faz tudo que eu digo. Agora você está aqui e vou deixar que se junte a mim em meu plano.

- E que plano é esse?

- Fazer com que a marquesa seja dispensada da corte.

- Mas o rei jamais permitirá. Adelaide riu e pareceu sábia.

- Você verá. Existem vários complôs sendo tecidos aqui no Palácio de Versalhes, mas o meu é o melhor. Anne-Henriette e o delfim e a delfina também têm um complô. Não é tão bom quanto o meu.

- Como é o seu?

Adelaide encostou o dedo nos lábios.

- Quando tiver se provado merecedora de confiança, compartilharei meus segredos com você. Se Sophie é tão estúpida, não há motivo para pedir que ela seja trazida para cá, não é?

Victoire fez que sim com a cabeça.

- E quanto à nossa irmã mais nova?

- Ela não é estúpida. Ela fala muito e sempre quer fazer tudo do seu próprio jeito. Ela diz que como tem uma corcunda nas costas, precisa ter alguma compensação. Assim, ela vive exatamente como quer.

- Oh - exprimiu Adelaide.

Ela não acrescentou que estava ainda menos inclinada a apelar pelo retorno de Louise-Marie do que estava pelo de Sophie. Ela segurou o braço de Victoire e encostou seu rosto no dela.

- Nada tema. Estarei sempre por perto para cuidar de você. Victoire fez que sim com a cabeça; ela estava pensando em

ficar a sós em seus aposentos, deitar-se na cama e dormir. Depois do jantar, é claro. Ela aguardava ansiosamente pelo jantar.

- Você e eu somos aliadas - disse-lhe Adelaide. – Está me entendendo?

Victoire estava entendendo. Começou a seguir Adelaide pelo palácio em silêncio respeitoso.

A corte achava graça em ver Victoire, preguiçosa e dócil, tornar-se uma espécie de escrava da dominadora Adelaide.

Quanto ao rei, ele não estava mais encantado com esta filha recém-chegada cuja educação parecia ter sido negligenciada em Fontevrault.

Ele estava perturbado com a iniciativa do delfim em lidar com política, e para evitar eventos desagradáveis, evitava o filho. Começou a ver que era muito mais interessante passar seu tempo com a vivaz e inteligente marquesa do que com os membros de sua família.

Além disso, este interesse constante em arquitetura, que compartilhavam tão entusiasticamente, estava se tornando cada vez mais absorvente. Havia oito prédios novos em curso de construção ou reconstrução. Uma ocupação deliciosa.

Os cidadãos de Paris olhavam pasmos para a extravagância de Luís. Ocasionalmente eles viam a marquesa adornada ao custo de milhares de moedas de ouro.

Parecia incrível que Luís, o Bem-Amado, sabendo da condição de seu povo, que sofria sob impostos cruéis, pudesse permitir que essa mulher gastasse tanto dinheiro do reino.

Como era de costume, os plebeus culpavam a mulher e poupavam Luís. Mas havia aqueles que diziam:

- Mas o rei não é mais criança. Ele precisa entender o estado em que milhares de famílias francesas estão vivendo. Mas como ele pode ligar para o sofrimento de seu povo se encoraja as extravagâncias da Pompadour?

O curso da guerra mudara novamente. Frederico precisava fazer paz com a Áustria, e seus direitos na Silésia tinham sido reconhecidos. Filipe V da Espanha morrera, e seu filho, Ferdinando VI, não mais queria assumir a ofensiva. A França permanecia só, travando uma guerra na qual perdera todo o interesse. Assim, a paz que devia ter sido feita dois anos antes sob os mesmos termos, havia sido, depois de muita luta e perda de numerosas vidas francesas, finalmente alcançada.

Olhando para trás, os franceses começaram a se perguntar uns aos outros por que eles tinham se envolvido numa guerra, afinal de contas. Era verdade que eles tinham apoiado a alegação de direito de Carlos Alberto à coroa imperial, mas quando ele morrera e seu filho não demonstrara inclinação para lutar, a França não mais tinha qualquer interesse na guerra, e teria se retirado, se não tivesse sido pela administração incompetente do marquês dArgenson, ministro das Relações Exteriores. Agora, o esposo de Maria Theresa, Francisco de Lorena, fora eleito ao trono imperial; Frederico tivera seu interesse na Silésia, e porque Luís, conforme ele próprio dissera, não queria agir como um comerciante, ele devolveu tudo que ganhara em Flandres. Contudo, ele manteve Parma e Piacenza para a sua filha, LouiseElisabeth, e Guastalla para o marido dela, dom Filipe. Quanto a Louisberg e Cape Breton, que ficavam na América, foram mantidas sob posse francesa.

Este tinha sido o resultado da paz de Aix-la-Chapelle.

Os ingleses, que nem de longe haviam sido vitoriosos, foram suficientemente astutos para assegurar os melhores termos para si próprios. Sempre alerta para a expansão do comércio, a Inglaterra assegurou direitos para importar escravos e negociá-los com colónias espanholas. Havia ainda uma exigência que os ministros do hanoveriano Jorge tinham feito, para que Luís cessasse de oferecer refúgio a membros da família Stuart.

Os plebeus nas ruas discutiam a paz, estarrecidos.

A troco de quê fora tudo aquilo?, perguntavam, recordando o sofrimento dos últimos anos. Impostos contínuos para pagar pelo... quê?

E o rei não quisera agir como um comerciante!

As mulheres de Lês Halles, que eram muito influentes na formação da opinião das massas, declararam que desta vez Luís exagerara em suas boas maneiras. Era uma pena que ele, que fazia tanta questão de agir cavalheirescamente com seus inimigos, não tivesse o menor interesse em agir como um bom pai para com os seus súditos pobres.

A opinião do povo estava mudando. Carlos Eduardo sempre fora capaz de encantar as pessoas, e como entendia que corria risco de ser expulso da França, estava determinado a exercer todos os seus poderes para permanecer.

Estava apaixonado por Paris, que proporcionara muitos momentos felizes para compensar seus fracassos. O brilhantismo dos bailes e das óperas, a inteligência do povo a elegância da sociedade que ele frequentava proporcionavam-lhe grandes prazeres. com seu charme superficial e seu amor por lisonjas, ele poderia passar, sem muito arrependimento, o resto de sua vida neste lugar.

E agora viera a paz, e com ela a exigência do hanoveriano Jorge para que ele fosse expulso.

Luís viu-se numa daquelas situações que ele sempre fazia de tudo para evitar. Ele precisava pedir a um convidado que se retirasse. Era muito desagradável e, devido a isso, tentou postergar o assunto até o último minuto possível.

Entrementes, Carlos Eduardo era visto cada vez mais em público, e não perdia uma única oportunidade de conquistar a simpatia das pessoas. Ele fazia aparições regulares na Ópera, e ali era tratado como um príncipe real. A plateia levantava-se quando ele entrava em seu camarote, e ele se mantinha em pé sorrindo, reluzente em suas jóias, enquanto aceitava o reconhecimento de sua realeza e popularidade.

Ele logo notou a mudança de atitude do povo para com um rei, e sorriu um pouco tristemente durante as comemorações pela paz.

- Não posso deixar de sentir uma certa melancolia - disse aos seus amigos. -Eu amo a França. Vejo os franceses como o meu próprio povo, e penso em todo aquele sangue que eles derramaram na guerra da qual eles acreditam ter saído vitoriosos. A paz! O que ela trouxe para a França? Digam-me isso. Um quinhão de terra para a filha do rei. É motivo de glória ter a filha mais velha do rei da França como duquesa de Parma? Algumas posses miseráveis na América! E é claro, vocês irão se livrar de um hospede indesejado; isso, claro, se vocês forem deixar que o ardiloso Jorge dite ordens a vocês.

Os amigos dele falaram sobre isso. Seus lacaios os ouviram, e nos cafés e nas barbearias, e nas ruas e mercados, o grito se elevou:

- Vamos acatar ordens de Jorge, o Alemão?

A princesa de Talmond, benfeitora de seu jovem amante, estava determinada a mantê-lo em Paris. Sua voz, nada insignificante, juntou-se à dele nos protestos.

Enquanto isso, Luís procrastinava.

- Creio que seria aconselhável, tendo em vista o tratado de paz, que você começasse a pensar em deixar a França - disse Luís a Carlos Eduardo.

- Majestade, já pensei sobre essa catástrofe - respondeu o príncipe.

- Mas assim terá de ser - murmurou Luís. - Estou nas mãos de meus ministros. Precisa haver paz, e o tratado...

com isso, ele mudou de assunto. Ele pedira ao príncipe que pensasse em partir, e se viesse a se fazer necessário forçá-lo, isso ficaria a cargo de outros. Por ora ele estava disposto a deixar a situação como estava. Quem sabia se a exigência não acabaria por ser esquecida? Jorge talvez esquecesse que o rapaz estava em Paris. Isso seria muito agradável.

Luís tinha outros assuntos em que pensar. Bellevue estava perto de ser terminado. Que castelo magnífico! A marquesa era realmente uma mulher extraordinária. Ele tinha sorte, realmente muita sorte, em tê-la descoberto.

Mas Jorge II não iria permitir que o rapaz, que era a maior ameaça a sua segurança, continuasse na corte da França onde, era muito provável, em breve estaria criando outro complô para colocar os Stuarts de volta no trono. Assim, ele ordenou ao embaixador inglês que insinuasse gentilmente junto a Luís que a corte do outro lado da água estava surpresa e indignada porque, a despeito do tratado de paz, o jovem príncipe Stuart permanecia em Paris.

O príncipe de Talmond estava ansioso pelo exílio de Carlos Eduardo, pois não via com bons olhos seu caso com a princesa. Como Luís continuava postergando expulsar Carlos Eduardo da França, o príncipe de Talmond decidiu agir por conta própria.

Ele proibiu Carlos Eduardo de entrar em sua casa, mas o jovem Stuart, tão certo de que tinha os parisienses ao seu lado, continuava a visitar a princesa.

Na vez seguinte em que Carlos Eduardo se apresentou à casa de sua amante, ele recebeu a notícia de que ela não se encontrava.

- Isso é uma mentira! - gritou Carlos Eduardo, que, tendo conseguido burlar os desejos do rei da França, julgava-se no direito de não se submeter àqueles do príncipe de Talmond.

A porta foi fechada e ele, tomado por um acesso súbito de fúria e sentindo que uma derrota neste âmbito poderia ser preliminar a uma maior, começou a socar loucamente a porta.

Uma multidão se ajuntou para observar o príncipe furioso, mas ele foi alertado por alguns dos amigos escoceses que estavam com ele de que seria tolice causar esse tipo de distúrbio, porque facilitaria ao rei insistir em sua partida.

Carlos Eduardo concordou que eles estavam certos e se retirou. Enquanto se afastava, ele sorria de forma calma e amistosa para a multidão, dando de ombros.

- Vêem? - disse ele. - Não me permitem mais visitar os meus amigos. Vocês sabem por quê? Porque é o desejo de Jorge, o Alemão. Meu bom povo, meus queridos amigos, por quanto mais tempo vocês irão se sujeitar a ser regidos pelo usurpador da coroa inglesa?

Os sorrisos galantes de Carlos Eduardo para as mulheres e sua camaraderíe com os homens surtiram efeito na multidão.

- Ele tem razão - murmurou o povo. - Nós ganhamos a guerra, mas foram os ingleses que ficaram com os espólios.

Naquele dia duas mulheres, lutando em Lês Halles, juntaram uma grande multidão para assistir e torcer, de modo a incitálas a um esforço maior.

Uma delas, uma vendedora de verduras, puxou a outra, uma vendedora de café, pelos cabelos. A urna de latão pendurada nas costas da vendedora de café caiu na calçada de paralelepípedos e logo as duas mulheres rolavam numa poça de líquido preto.

- Idiota! - gritou a verdureira. - Porca! Ouça bem o que digo: você é tão estúpida quanto... quanto... a paz!

A multidão urrou em aprovação. Uma nova expressão havia nascido: "tão estúpido quanto a paz".

O rei convocou à sua presença o conde Phélippeaux de Maurepas. Ele gostava de Maurepas. O homem era muito divertido; ele jamais levava os assuntos do reino muito a sério e tratava tudo como se fosse uma piada. Era um sujeito tão divertido que o rei sempre considerava um grande prazer estar com ele. Seus inimigos diziam que ele tinha mais interesse em escrever sátiras ou epigramas do que pensar seriamente nos assuntos do reino.

Ele sofrera ao perder a predileção real por insistência de madame de Châteauroux, após a humilhação dessa senhora em Metz, e agora Luís temia que Maurepas não estivesse tentando agradar madame de Pompadour. Este homem ousado não hesitava ao demonstrar seu desprezo pelas amantes do rei - o que era uma tolice; mesmo assim, Luís não conseguia deixar de gostar dele.

Agora Luís pediu sua ajuda no caso de Carlos Eduardo Stuart.

- Não podemos postergar mais isso - disse Luís a Maurepas. - Teremos problemas com a Grã-Bretanha enquanto ele permanecer aqui. Isso faz parte do tratado de paz e precisamos cumprir nossas obrigações.

- Majestade, trata-se de um caso muito delicado. O príncipe declara possuir cartas de Vossa Majestade, oferecendo-lhe refúgio enquanto ele o desejar.

Luís deu de ombros.

- Não tínhamos como prever o futuro. Essas ofertas foram feitas anos atrás, quando julgávamos que ele tinha boas chances de ganhar sua coroa.

- Majestade, a opinião pública é fortemente favorável a este príncipe - replicou o ministro. - Ele é detentor de certo charme, e sabe usá-lo a seu favor. O povo está dizendo que lhe foi oferecido asilo e que a França deve honrar suas promessas.

- É precisamente porque precisamos honrar nossas promessas que ele deve ir - disse o rei.

- É mais importante honrar promessas feitas a uma poderosa nação do que a um exilado - concordou o ministro.

- É o que penso - disse o rei.

- E o nosso povo, que nos pede para darmos as costas para Jorge, o Alemão e manter o belo Stuart conosco para entreter plateias de teatro e seduzir nossas damas?

- Isso é uma questão diplomática.

- Majestade, o povo pode resmungar em vez de aplaudir. Será que eles poderão tomar partido do príncipe charmoso em detrimento do seu rei belo?

- O povo! - exclamou Luís, desdenhoso.

- Eles dirão que o nosso rei prometeu sua amizade a este rapaz romântico.

- É impossível para um rei ser amistoso em todas as ocasiões.

- E esta decerto é uma delas, majestade.

Luís perguntou-se por que permitia que Maurepas o desorientasse dessa forma contraditória. Súbito, entendeu o motivo: o homem o divertia. Ele pouco ligava para o seu futuro, ou talvez tivesse muita segurança quanto a ele, para pensar antes de abrir a boca. Sem dúvida era por causa disso que o rei apreciava mais a sua companhia do que a de muitos de seus cortesãos.

Então Luís disse, sem papas na língua:

- Se o príncipe não partir de sua própria vontade, deve ser preso e expulso.

- Isso causaria um escândalo, majestade. O povo pode impedir a prisão desse príncipe.

Luís sentiu um arrepio. Ele podia ver um incidente desagradável crescendo a partir de uma situação que na verdade não tinha qualquer importância. Carlos Eduardo, um exilado, era uma pessoa insignificante. Parecia absurdo que a paz de Paris e do rei pudesse ser perturbada por causa dele.

- É por causa disso que quero que você lide com este assunto. Vá falar com o príncipe. Alerte-o que deve deixar Paris sem delongas. Diga-lhe que se não fizer isto, será preso esta noite. Frise que já postergamos por muito tempo e não pretendemos esperar mais. Ele deve partir antes do anoitecer.

Maurepas se despediu com uma reverência.

Na companhia do duque de Gesvres, Maurepas visitou Carlos Eduardo numa casa que ele alugara em Quai dês Théatins.

Carlos Eduardo recebeu-os com o ar boémio que estendia a todos.

- Que grande deleite! - declarou. - Bem-vindos à morada de um exilado.

- Antes que Vossa Alteza receba-nos muito calorosamente, peço que atente para o que viemos lhe dizer - começou Maurepas. - Porque depois que tiver ouvido poderá querer esfriar sua recepção ou talvez não oferecê-la.

- Isso soa funesto - disse Carlos Eduardo.

- Lamentamos ser os portadores de notícias como estas murmurou de Gesvres.

- A bem da verdade, estamos aqui por ordem de Sua Majestade - prosseguiu Maurepas. - Ele pede que Vossa Alteza saia do país antes do anoitecer. Se fizer isso, Sua Majestade continuará pagando a sua pensão.

Carlos Eduardo dirigiu-lhes um olhar de desdém.

- É assim que o rei da França honra as suas promessas?

- É assim que ele honra a promessa feita ao rei da Inglaterra - disse Maurepas.

- Não estou preparado para discutir o meu futuro com os ministros do rei-disse Carlos Eduardo.-Se ele quiser romper suas promessas para comigo, que venha comunicar-me pessoalmente.

- Sua Majestade deseja que a sua partida seja a mais confortável possível.

- E por isso ele envia seus servos para me expulsarem? gritou Carlos Eduardo, o rosto ruborizando de raiva.

- Se o senhor for sensato, partirá antes do anoitecer.

- Impossível! - gritou Carlos Eduardo, arrogante. Tenho ingresso comprado para a Ópera.

Aquela noite na Ópera foi uma ocasião régia. Carlos Eduardo chegou, uma figura bela em seu manto de veludo vermelho e seu casaco de brocados dourados. Usava não apenas a Ordem de Santo André como também aquela de São Jorge, e quando entrou no teatro, gracioso e charmoso, a plateia levantou-se em sua homenagem. Ele estava exultante. Era ainda mais popular do que antes de seu fracasso em Culloden. A insatisfação do povo com a paz - e com seu rei - aumentara a sua popularidade. O povo gostava mais deste jovem príncipe.

Subitamente, uma grande ovação ecoou pela Ópera. Isto estava acima das maiores expectativas de Carlos Eduardo. Significava que se o rei e seu círculo imediato deploravam sua presença em Paris, o povo não concordava com eles.

Que grande alegria ver num dos camarotes o embaixador de Jorge e sua entourage. Carlos Eduardo adorou ver como eles pareciam embasbacados.

Ele ocupou seu lugar e a apresentação teve início.

Carlos Eduardo ficou tão deliciado com aquela recepção que não notou que no decorrer do espetáculo pairava uma certa tensão sobre a plateia. As pessoas sussurravam umas com as outras, porque vazara para o interior da Ópera a notícia de que mil soldados estavam estacionados no lado de fora e posicionados em todas as portas, de modo a não permitir que ninguém saísse sem permissão.

Carlos Eduardo, alheio ao que estava acontecendo, saiu da Ópera, e estava prestes a subir em sua carruagem quando viu seu caminho obstruído pelo coronel da guarda.

- Deseja falar comigo? - perguntou arrogantemente o príncipe.

- Tenho um mandado para a prisão de Vossa Alteza - foi a resposta.

O príncipe olhou à sua volta indefeso, mas imediatamente outros homens armados aproximaram-se para juntar-se ao coronel.

- Devo pedir a espada de Vossa Alteza.-O rosto do príncipe enrubesceu de raiva, mas ele viu as sugestões de cautela nos olhares dos lordes escoceses que o acompanhavam.

Ele hesitou por um momento, mas sabia que uma ovação do povo não podia salvá-lo de seu destino.

Desembainhou a espada e entregou-a ao coronel da guarda.

- Isto é monstruoso - disse ele. - Ofereceram-me refúgio na França. Se eu tivesse o mais ínfimo pedaço de terra não hesitaria em dividi-lo com os meus amigos. Este ato é uma vergonha para a nação francesa.

- Peço à Vossa Alteza que entre na carruagem. Carlos Eduardo deu de ombros e obedeceu. Amarraram seus braços e pernas com uma corda de seda, e a carruagem partiu da Ópera com rumo a Vincennes. O povo saiu às ruas para falar sobre o caso.

- Um príncipe tão bonito! - diziam. - Sentiremos sua falta em Paris. Que lástima. Por que ele foi banido? Não sabe? Direi. Foi porque Jorge, o Alemão, disse que não podemos recebê-lo aqui. Jorge, o Alemão? Ah, você não sabia? Não é o rei francês quem governa este país. Ele é um simples títere nas mãos de Jorge, o Alemão. É assim desde que ganhamos a guerra. Está tudo no tratado de paz.

Luís convocou Anne-Henriette e abraçou-a ternamente.

- Achei que você gostaria de ver isto, minha querida. Ele lhe deu uma carta que fora enviada por Carlos Eduardo.

"Meu rei, irmão e primo,

Sinto-me muito angustiado por não ter sido capaz de comunicar-me diretamente com Vossa Majestade e não tenha conseguido revelar meus sentimentos verdadeiros aos ministros. Espero que Vossa Majestade jamais duvide de meu afeto, e como Vossa Majestade deseja que eu parta da França estou pronto a fazê-lo imediatamente..."

Anne-Henriette não olhou para o pai. Ela continuou fitando a carta.

Este era o fim de suas esperanças. O caso tivera a mesma conclusão dolorosa que ela conhecera antes.

Nesse momento Anne-Henriette foi tomada por uma profunda melancolia, e jurou a si mesma que jamais amaria alguém novamente; tinha 21 anos de idade e acreditava que sua vida estava acabada.

- Ele já partiu - disse gentilmente Luís. - Está a caminho da cidade papal de Avignon. Certamente permanecerá lá até formar novos planos.

Ela não respondeu e Luís, pousando o braço no ombro da filha, conduziu-a a uma janela. Juntos, olharam para a avenue de Paris.

- Minha querida filha, compreendo a sua dor-disse o rei.

- Mas não podemos escolher nossos esposos ou esposas.

precisamos aprender a aceitar o que nos é providenciado. E a fazer o melhor que for possível com a nossa vida.

Ela pensou como era diferente para um rei como ele fazer o melhor que era possível para a sua vida. Ele tinha uma existência feliz. Tinha suas caçadas, seus jogos, sua arquitetura e, quando se apaixonava, a mulher de sua escolha ficava deliciada em compartilhar sua vida.

Havia uma lei para o rei, outra para suas filhas.

Mas ela não lhe disse isso. Ela lhe permitiu pensar que estava confortada.

 

A corte inteira se perguntava quanto tempo duraria o reinado da marquesa. Ela era inteligente, eles admitiam, mas será que continuaria a manter o afeto do rei?

Eles não duvidavam de sua sabedoria. Ela se dedicava de corpo e alma aos prazeres de seu amante. Ela fazia tudo que ele exigia, e o fazia superlativamente bem. Os interesses do rei eram também seus; se ele queria caçar, ela também queria. Jogo de cartas? Lá estava a marquesa, cintilante, cautelosa ou alegre, mimetizando o humor do rei. Ele estava melancólico? A marquesa certamente lembraria de algum mexerico apimentado para fazê-lo rir.

Tudo que ela queria era agradá-lo. Seria difícil para um homem com o temperamento de Luís encontrar defeito nisso.

Mas havia uma falha que a impedia de ser uma amante perfeita.

Sexualmente Luís parecia insaciável. Seus cortesãos falavam abertamente sobre isso. Sendo homens de grande experiência nesse campo, entendiam bem o seu monarca. Luís ainda não alcançara a maturidade sexual, o que parecia estranho para um homem de sua natureza. Ele era profundamente sensual, mas em seu caráter havia entranhada uma sentimentalidade incompatível com essa necessidade física profunda. Isso poderia ser devido a sua criação. Ele fora mantido inocente sob os olhos alertas de Villeroi e Fleury, e estava levando um longo tempo para superar sua influência.

Em meio à sua corte altamente imoral, ele permanecera um marido fiel, e apenas a falta de resposta da rainha enviara-o para madame de Mailly. A madame de Mailly ele permanecera fiel por muito tempo, assim como permanecera fiel às suas irmãs, após cujas mortes ele guardara luto durante algum tempo, abstendo-se completamente do sexo.

E agora com a Pompadour ele era o amante fiel. Ele tinha sofrido tentações, é claro. Houvera recentemente um baile durante o qual ele dedicara alguma atenção a uma mulher jovem e bonita. Mas as espiãs de madame de Pompadour tinham-na alertado rapidamente do que estava acontecendo e, ao seu modo gracioso, ela mandara a mulher ser conduzida até sua carruagem e levada para longe da corte; e Luís não estivera suficientemente interessado para impedir que isso acontecesse.

Mas poderia madame de Pompadour manter o rei como seu amante?

A verdade era que madame de Pompadour não era uma mulher saudável, e a vida exaustiva que estava vivendo começava a deixar sua marca nela.

Dizia-se que ela devia muito aos seus cosméticos, e que sem eles às vezes não conseguiria esconder o fato de que estava cansada e que não gozava da plenitude de sua saúde.

Ela tinha uma tosse que apenas com sua imensa força de vontade conseguia suprimir em ocasiões importantes. E ela estava sempre cansada.

Poderia uma mulher cansada continuar atendendo as demandas constantes do rei? Ela precisava planejar seus entretenimentos, caçar, jogar cartas, atuar, cantar, dançar noite adentro. Tudo isso ela fazia com uma graça e um charme que não encontravam rivais.

Mas como podia desempenhar bem durante aquelas noites em que era ainda mais importante que ela apetecesse ao rei?

A corte estava alerta.

Estará Luís mudando ?, era a eterna pergunta. Por quanto tempo ele manterá sua fidelidade?

Não seria por conta própria que Luís descartaria madame de Pompadour; ele era muito cortês, muito ansioso por evitar embaraços.

Mas uma nova amante poderia fazer o que Luís evitava. Eles tinham visto o que acontecera no caso de madame de Mailly.

Por quanto tempo madame de Pompadour continuaria a manter sua posição na corte?

Havia dois homens que estavam ansiosos pela dispensa de madame de Pompadour: Richelieu e Maurepas.

Richelieu, como grão-camarista, considerava-se o conselheiro do rei na escolha de amantes, e ele não escolhera madame de Pompadour. Desde o primeiro momento, quando vira o rei na floresta de Sénart, ela trabalhara inteiramente sem ajuda. Richelieu queria substituí-la por uma amante de sua própria escolha.

Maurepas não fizera nenhuma tentativa de conquistar o afeto de madame de Pompadour. Ele continuava compondo sátiras e epigramas a respeito dos tópicos mais interessantes da corte, e naturalmente a amante do rei era um deles. Ele extraía um deleite traquinas em descobrir a verdade sobre as origens da madame, e a atacava com isso. Ao menos Maurepas fazia isso com uma certa dose de anomínia, mas o estilo das canções e versos citados nas ruas definitivamente era idêntico ao seu, e poucos duvidavam de onde eles provinham.

Ele brincara muito com o nome de Poisson, e a amante do rei acabara sendo conhecida por toda Paris como "a filha da Sra. Peixe".

As canções e sátiras eram chamadas de poissonades e os parisienses aguardavam ansiosos que a próxima aparecesse; as canções podiam ser ouvidas nos cafés e mercados. Essas obras colaboravam muito para fomentar o ódio público contra a amante, porque o povo ainda mantinha sua tendência em não culpar o rei por seus infortúnios, e mademoiselle Poisson era um bode expiatório perfeito.

Através dos versos de Maurepas o povo sabia exatamente quanto o rei gastava em seus diversos projetos de construção. Dizia-se que Bellevue já custara seis milhões de moedas de ouro, embora ainda estivesse longe de ser terminado. E que fortunas eram gastas em festas num espaço de poucos dias. Calculava-se que um vestido, confeccionado para madame de Pompadour usálo em uma única ocasião, daria uma vida de luxo a uma família francesa durante um ano.

A marquesa estava ciente de que Maurepas causava-lhe muitos danos, e sabia que era importante dispensá-lo da corte. Ela não ousava pedir isso ao rei, particularmente porque sabia que Luís tinha um certo carinho por esse ministro que estava na corte há tanto tempo e que sabia fazê-lo rir. Luís sempre perdoava as pessoas que o faziam rir.

Ainda assim, ela não podia pedir a Luís que o dispensasse, e enquanto isso as danosas poissonades eram circuladas por Paris.

Richelieu planejava matar dois coelhos numa só cajadada.

Queria ver Maurepas dispensado da corte porque o ministro tinha muita influência sobre o rei. Acreditava que se ele pudesse alarmar a marquesa o bastante para que ela pedisse a Luís que dispensasse o ministro, dali a pouco tempo isso provocaria a expulsão da própria marquesa.

Era um plano que parecia perfeito para Richelieu, e ele iniciou-o requerendo uma audiência com a marquesa. A marquesa recebeu Richelieu; ela era sempre graciosa com

os ministros, seguindo sua política de fazer o mínimo possível de inimigos.

Richelieu fez uma mesura para a marquesa e beijou-lhe a mão.

- Madame marquesa, devo lhe agradecer por ter-me concedido esta audiência privada. Não farei delongas dizendo que a senhora é a mulher mais bonita da França, porque isso é incontestável. Não perderei tempo dizendo que é a mulher mais admirada e invejada...

- Não - interrompeu-o com um sorriso. - Por favor, não o faça. - Em vez disso, diga-me por que veio.

Richelieu deu um passo à frente e quase encostou o seu rosto no dela.

- Madame, sinto-me desconcertado em ver que a senhora não está parecendo tão cheia de saúde quanto todos desejamos.

O olhar da marquesa endureceu um pouco.

Terei visto uma expressão de medo?, perguntou-se Richelieu.

Mas ela recuperou imediatamente o autocontrole. Na verdade, Richelieu a admirava. Não havia dama em Versalhes que tivesse mais charme e postura do que a marquesa de Pompadour.

- Sinto-me bem - garantiu. - Muitíssimo bem.

- A senhora não sabe como me sinto aliviado em ouvir isso, embora eu tenha vindo pedir-lhe que tome o máximo possível de cuidado.

- Eu cuido da minha saúde, monsieur duque. Mas é muita gentileza sua preocupar-se comigo.

Ele se aproximou ainda mais da marquesa.

- Madame marquesa, a senhora tem inimigos na corte. Seria impossível não tê-los. A senhora... tão charmosa, tão encantadora, tão amada... tão poderosa.

- Creio, monsieur duque, que posso cuidar de meus inimigos com a mesma competência com que cuido de minha saúde.

- Mas quero falar-lhe de minhas suspeitas, madame. Já lhe ocorreu que a sua saúde pode ter sido prejudicada por seus inimigos?

- Não entendo o que o senhor quer dizer.

- A senhora confia demais nas pessoas. E se os seus inimigos tencionassem não apenas envenenar a opinião pública contra a senhora, mas também envenenar a senhora!

Subitamente esquecida de sua compostura, madame levou a mão à garganta.

- Envenenar... a mim!

- A senhora é jovem. A senhora tem tudo que deseja. Mas adoeceu subitamente. Precisa haver uma explicação para isso. A senhora concorda que a mesma pessoa capaz de dizer coisas venenosas a seu respeito não hesitaria em prejudicá-la de outras formas?

Ela riu.

- Creio que o senhor está equivocado.

- Espero que esteja - disse o duque. - Espero sinceramente.

E ao sair, o duque sabia que a havia assustado. Ele acreditava que agora a marquesa tomaria providências para expulsar Maurepas... e o rei gostava de Maurepas.

Isso seria um teste. Seria possível ver até onde ia o amor do rei por essa mulher. Se ele fosse capaz de expulsar Maurepas a pedido da marquesa, ficaria claro que ele estava tão determinado a se manter fiel à marquesa quanto estivera ao adotá-la como amante.

Richelieu mal podia esperar para ver os resultados de sua pequena-manobra.

Maurepas envenenando-a!

Era uma sugestão ridícula. Ela sabia que sua exaustão não se devia a veneno.

Richelieu era um idiota por achar que ela não entendia suas tramas. Ele queria que ela contasse essa história ridícula ao rei. Era justamente o tipo de história que irritava Luís.

Uma acusação como essa precisava ser considerada, e isso acarretaria uma cena desagradável. Maurepas provaria sua inocência e ela seria culpada.

Ela não era a idiota que Richelieu achava que fosse.

Mas era verdade que aquele homem odioso estava envenenando a mente do povo contra ela. Todos os seus atos eram vigiados, exagerados e reportados ao povo. Ela realmente ficaria muito feliz se conseguisse expulsá-lo da corte.

Certa noite, quando Luís apareceu em sua alcova, a marquesa abordou o assunto.

- Essas histórias estão ficando cada vez mais ofensivas disse ela.

O rei fez que sim com a cabeça.

- Não há dúvida de que Maurepas é o autor da maioria delas. Ele tem imitadores, isso é verdade, mas ele sempre deixa sua marca no que escreve.

- As outras são imitações pobres - avaliou o rei.

- Essas histórias não estão fazendo bem à nossa imagem perante o povo - arriscou sugerir.

- Bobagem, sempre houve rimas assim - disse o rei. Nem eu escapo delas, porque tudo que eles dizem sobre você reflete em mim.

Luís estava impaciente para terminar essa conversa e ela, sempre ciosa para nunca causar-lhe o menor tédio, parou de falar sobre o assunto.

Richelieu transmitiu a Maurepas sua crença de que a marquesa estava tentando expulsá-lo da corte, e que continuaria tentando se ele não refreasse a circulação de suas rimas maldosas por Paris.

O resultado disso foi precisamente aquele que Richelieu esperara.

Naquela mesma noite foi realizado um jantar nos pettits appartements. A marquesa sentou-se à direita do rei, e tanto Maurepas quanto Richelieu estavam no grupo.

Quando a marquesa assumiu o seu lugar, ela notou um papel enfiado no guardanapo em cima da mesa; ao abri-lo constatou que era um verso de natureza particularmente ofensiva, sugerindo que ela sofria de leucorréia.

com grande presença de espírito, ela escondeu o papel, e o rei nem mesmo notou que estivera ali.

Ela estava consciente do desapontamento de Maurepas. Ele esperara que ela lesse o verso, e o acusasse de tê-lo escrito. Em seguida ele teria usado sua argúcia para enraivecê-la até um ponto vexatório. O rei ficaria tão incomodado com essa cena que - Maurepas podia contar com sua língua ferina e engenho para conseguir isso - poria a culpa na marquesa.

Ela não fez nada assim.

Maurepas não podia reprimir sua admiração por essa mulher. E Richelieu também não, que a vira pegar o papel e presumira sua natureza pela forma com que ela se livrara rapidamente dele.

Richelieu alternou seu olhar maldoso entre o ministro mais arguto da França e aquela que provavelmente era a mulher mais inteligente do país.

Cedo ou tarde, um deles teria de partir; Richelieu tinha certeza disso.

Ele adorava assistir a esse duelo, porque ficaria deliciado em ver a dispensa de qualquer um dos dois, se não pudesse aguardar pelos dois.

Madame de Pompadour até agora não dissera nada ao rei sobre o verso encontrado na mesa. Ela não queria chamar-lhe a atenção para a sua saúde debilitada, e não queria fazer uma cena.

Mas ela sabia que não podia ignorar um insulto como aquele. Permitir sem protesto que um verso desse tipo fosse-lhe apresentado à mesa dospetits appartements seria uma admissão de sua incerteza.

Contudo, antes de falar com o rei ela precisaria fazer paz com Maurepas. Se ele parasse de circular esses versos vis a seu respeito, ela iria esquecer tudo que ele fizera antes, e haveria uma trégua entre eles.

Ela visitou Maurepas no dia seguinte. Maurepas mal conseguiu conter sua alegria ao recebê-la. Mais tarde, tudo o que fosse dito, devidamente exagerado, constituiria uma ótima história para contar aos seus amigos.

- Madame marquesa! - gritou e havia ironia até em sua mesura. - Estou assoberbado com tamanha honra.

- Quero falar com o senhor a respeito de um assunto urgente - disse a ele.

- E por que madame não requisitou a minha presença?

- Não requisito a presença de ministros-respondeu prontamente. -Seria muita presunção de minha parte fazer isso. Se tenho alguma coisa para dizer a eles, eu os visito.

- A senhora é graciosa, madame.

- Monsieur de Maurepas conhece os versos desagradáveis que têm circulado ao meu respeito.

- Isso é profundamente lamentável.

- O rei instruiu a Administração a descobrir quem é o responsável por eles.

- E eles não descobriram?

- O senhor não descobriu, porque é responsável pela Administração de Paris.

- Madame, suas censuras são mais do que posso suportar. Os esforços foram duplicados e quando o culpado for descoberto, asseguro-lhe que não perderemos tempo em levar o patife ao rei.

Ela o fitou intensamente. Afinal, disse bem devagar:

- Creio que o senhor e madame de Châteauroux não foram bons amigos.

Ele levantou os ombros e as sobrancelhas simultaneamente, uma expressão de lamento fingido.

- Pelo que vejo, monsieur não é muito amistoso para com as amantes do rei.

- Mas, madame, nutro o mais profundo respeito por elas... -Seus olhos cínicos brilharam e ele acrescentou: - ...a despeito de onde venham.

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- Fico feliz em ouvir isso - disse-lhe, ríspida. - Tenho certeza de que o senhor é sábio demais para se tornar intencionalmente inimigo das amantes do rei.

- É a senhora quem tem a sabedoria, madame. Sabedoria que combina com sua beleza jovem.

O escárnio e o significado da resposta de Maurepas foram claros como cristal.

Ela sabia agora que Maurepas pretendia continuar escrevendo versos a seu respeito, e que aquele particularmente ofensivo que a marquesa encontrara durante o jantar fora um exemplo de como eles seriam no futuro.

Muita coisa dependia disto, mas a marquesa não podia mais protelar mostrar o verso a Luís.

Ele queria fazer amor. Ele não queria sempre? Ela não podia aparentar estar cansada ou nem mesmo desanimada. Ela cavalgara com ele, e Luís era capaz de passar o dia inteiro na sela de um cavalo sem fatigar-se. Além disso, ela tomara parte numa pequena peça que montara para o entretenimento do rei.

- Madame, a senhora é a mulher mais notável na França

- disse Luís no final da noite. - Todas as melhores qualidades do género feminino repousam dentro de suas formas perfeitas.

Isso era bom; mas a noite ainda se estendia diante deles, e era à noite que ela temia estar além de seus talentos.

Mas ela estava determinada a trazer à baila o assunto dos versos. Ela sabia que tanto Richelieu quanto Maurepas aguardavam para ver o que ela faria, de modo que agir era imperativo, e ela não poderia esperar mais.

- Luís, sinto muito aborrecê-lo com este assunto, mas tenho sofrido bastante com os versos cruéis escritos por Maurepas

- disse finalmente a marquesa. - Este foi colocado na noite passada no meu lugar à mesa. Creio que ele é cruel demais para ser aceito sem objeções, e vou pedir a você que dispense esse homem da corte.

com o rosto franzido de preocupação, Luís pegou o verso. Ao lê-lo, seu rosto ruborizou-se de raiva.

Em seguida, ele encostou o papel na chama de uma vela.

Ele pegou a mão da marquesa e repetiu as palavras com as quais dispensara os convidados na festa daquela noite:

- Allons nous coucher.

Era a hora do lever, e Maurepas compareceu.

O conde estava alerta para alguma mudança na atitude do rei, porque não via como a marquesa conseguiria manter sua dignidade e não mostrar aquele verso a Luís. Os modos da marquesa ao convocá-los tinham transpirado um tom de ameaça. Um homem mais fraco, disse a si mesmo, teria sentido medo e prometido descobrir o culpado e findar aqueles versos escandalosos.

Mas não ele! Não Maurepas! Medo da amante do rei? Se ele não tivera medo de Châteauroux, por que teria de Pompadour?

Châteauroux exilara-o durante algum tempo, e o que acontecera? Ela tinha morrido, e ele voltara. Era ele quem podia rir agora da guerrinha entre eles.

As amantes deviam aprender que seu período de glória precisava ser necessariamente curto, enquanto os ministros poderiam manter-se em seus cargos enquanto fossem inteligentes o bastante para fazê-lo.

Naquela manhã, o rei estava anormalmente jocoso.

- Conde, o senhor está vestido esplendorosamente esta manhã - disse Luís.

- Comparecerei a um casamento, majestade.

- Ah! Comparecer a casamentos faz bem ao nosso amigo Maurepas, concordam, cavalheiros? - disse Luís aos cortesãos presentes.-Já viram um homem mais satisfeito consigo próprio?

- Majestade, o meu prazer é grande porque será outro homem a casar, e não eu.

O rei gargalhou com gosto, e Maurepas sentiu-se gratificado.

- Bem, extraia o máximo do seu prazer - disse o rei. Espero recebê-lo em Marly.

- Obrigado, majestade - disse Maurepas, sentindo-se ainda mais animado.

Ele estava exultante.

Ela mostrou o verso ao rei, pensou Maurepas. Madame marquesa, não há dúvida de que os seus dias no Palácio de Versalhes estão contados. Sua tola, devia ter aceitado os meus insultos. Devia ter compreendido que sou um homem cujo caminho as amantes do rei não ousam cruzar. Trago azar para elas.

Ele obedeceu ao rei, desfrutando ao máximo as festividades do casamento demademoiselle Maupéou, e quando retornou foi recebido por um servo do rei.

- Monsieur Maurepas, trago uma mensagem de Sua Majestade - disse o homem.

Maurepas tentou não parecer preocupado enquanto leu:

"Monsieur,

Eu lhe disse que comunicaria quando não precisasse mais de seus serviços. O momento chegou. Eu lhe ordeno que entregue sua demissão a monsieur de Saint Florentin. O senhor irá para Bourges. Pontchartrain fica próximo demais..."

Maurepas tentou não transparecer sua fúria e desespero. Naquele que acreditou ser o seu momento de vitória ele se viu face a face com a derrota.

A notícia se espalhou pela corte. »,

- Maurepas recebeu sua lettre de cachet. Partirá imediatamente para Bourges.

Richelieu não conseguiu ocultar o seu prazer. A rainha, cujo apoio Maurepas recebera, ficou profundamente consternada.

Mas a corte inteira agora sabia a profundidade do amor do rei pela marquesa de Pompadour.

Madame de Pompadour assumira o hábito de usar o significativo pronome "nous" ao lidar com os ministros e os embaixadores. Ela sempre estava ao lado do rei, e Luís ficava deliciado em banhá-la com presentes. Ela era fascinada por louças bonitas e assumiu um grande interesse nas obras em Vincennes. Quando o rei entregou à marquesa a vila de Sèvres, ela começou a fazer planos para levar as oficinas de louça para aquela vizinhança, de modo a poder supervisioná-las pessoalmente.

Mas os seus interesses eram sempre os interesses do rei; apenas raramente, como no caso de Maurepas - quando ela não tivera alternativa -, a marquesa impunha sua vontade a ele.

Agora estava evidente que nem mesmo as madames de Vintimille ou de Châteauroux tinham conseguido influenciá-lo tanto.

Todos na corte tratavam-na com reverência, mas o povo continuava a odiá-la. Aspoissonades tinham feito bem o seu trabalho. O fato de que a amante não fosse da nobreza apenas fazia com que o povo a odiasse ainda mais.

- Quem é ela? - indagavam os plebeus uns aos outros.

- Ora, podia ter sido uma de nós!

Essas conclusões aguçavam duplamente a inveja. O povo de Paris ainda escarnecia da paz. Agora havia queixas ainda mais veementes, porque aquele imposto conhecido como vingtíème, que surgira em 1741 e que, eles tinham sido assegurados, seria cobrado apenas durante um curto período de tempo, foi mantido. Muitos se recusavam a pagá-lo e nos conflitos entre os coletores de impostos e as pessoas que os pagavam ocorriam muitas mortes.

A gente do campo não estava mais feliz que a das cidades, e todos queixavam-se da administração em Paris quando os coletores de impostos apareciam para avaliar as plantações. Uma boa colheita significava tributação maior. Não havia incentivo à produção.

E agora um elemento novo e sutil juntava-se ao descontentamento. Antes houvera diferenças religiosas entre os jansenistas e os jesuítas; agora novos inimigos da religião haviam aparecido. Esses eram os céticos.

Em seu amor pela arte, a marquesa procurara ajudar aos escritores e filósofos, bem como aos artistas e músicos, e desta forma ela fomentara o nascimento de um campo intelectual novo.

Toussaint lançou seu livro Lê Moeurs, que foi julgado ímpio e conseqúentemente queimado em público. Diderot escreveu sua Carta sobre a cegueira para o uso daqueles que vêem. Esta obra custou-lhe o exílio em Vincennes. Voltaire, temendo o fim da liberdade de expressão, retirou-se da corte e partiu para Berlim.

Os escritores e filósofos podiam estar sendo penalizados, seus livros podiam sofrer censura, mas suas ideias já tinham entrado em circulação e estavam sendo consideradas.

O povo começava a se perguntar por que havia tantas coisas erradas no antigo regime.

Nos cafés, homens e mulheres sentavam-se para conversar ou para escutar algum entusiasta com ideias para a destruição do antigo estilo de vida e implementação de um novo.

O tecido do antigo regime ainda não estava rasgado, mas começava a esgarçar. Ele precisava ser remendado cuidadosamente, mas o rei e seus ministros não notavam isso. O antigo regime existia há tanto tempo que ninguém suspeitava que não duraria para sempre.

Assim, as festas prosseguiram em sucessões infindáveis de prazer. O rei e sua amante visitavam todos os castelos que os maravilhavam, e neles realizavam jantares íntimos, promoviam jogos e encenavam peças.

Bellevue estava prestes a ser completado, e madame de Pompadour planejava excitadamente um grande banquete e baile para inaugurar aquela casa magnífica.

Situado tão próximo à capital, Bellevue gerava um elemento de risco que o rei e sua amante ainda não haviam descoberto. Muitos parisienses haviam caminhado até lá para observar o seu progresso; e a construção de Bellevue e suas incontáveis extravagâncias haviam se tornado um dos principais tópicos de conversação nos cafés e nas esquinas das ruas.

- Você já viu o castelo recentemente? Dizem que seis milhões de moedas de ouro foram gastos naquela casa!

Seis milhões de moedas de ouro. E em Paris muitos não podiam pagar duas moedas de bronze por um pão.

A marquesa estava em Bellevue supervisionando a decoração.

Estava tomada por uma alegria suprema, porque sentia uma grande confiança desde que dispensara Maurepas. Ela amava profundamente o rei e sabia que o afeto que ele tinha por ela era muito profundo, tão profundo que ela não acreditava que um dia ele pudesse abandoná-la.

Quando chegava o momento em que era incapaz de satisfazêlo, a marquesa não o reprochava. Ela reunia todas as suas forças para dar-lhe prazer. Já tinha um plano. Ela iria encontrar outras que fornecessem aquilo que ela não podia - não mulheres inteligentes, mas mocinhas bonitas, muito jovens de preferência, com corpos perfeitos e mentes vazias.

Era um plano para o futuro - que não deveria ser implementado antes que a necessidade se apresentasse -, mas a marquesa estaria preparada para o momento quando ele chegasse.

Ela continuaria sendo a amiga e companheira mais querida de Luís, sua confidente, a pessoa na corte em quem ele podia depositar confiança absoluta; uma amiga que jamais se queixava; jamais exigia, e sempre era encantadora e disposta a se sacrificar em benefício do prazer do rei.

Portanto, ela iria manter o seu lugar; e, se madame de Pompadour não era reconhecida como a primeira-dama da França, de que isso importava, desde que seu poder fosse completo?

Agora, à festa.

Ela sentia muito orgulho deste castelo, e Luís compartilhava do sentimento. Eles ficariam sentados lado a lado a esta mesa suntuosa, decorada com flores e candelabros de ouro e prata. Entre eles haveria aquela intimidade que provocava sentimentos de inveja e pasmo.

Enquanto inspecionava uma mesa, a marquesa foi abordada por uma de suas aias. A mulher parecia agitada.

- O que é? - perguntou a marquesa com um sorriso, porque quase sempre era gentil, mesmo com os mais humildes.

- Madame, o povo está se aglomerando em Paris - disse a mulher, os dentes batendo. - Estão falando sobre o castelo de Bellevue e o dinheiro que foi gasto nele. E estão comparando-o ao preço do pão. Isso pode significar problemas.

- Problemas? Não esta noite. O rei estará aqui. Você sabe como eles amam o rei. O fato de que ele está aqui irá agradá-los.

- Madame, disseram-me que a turba está raivosa.

- Ah, esses parisienses! Tão excitáveis!

Madame de Pompadour inclinou-se à frente e se pôs a fazer um novo arranjo num vaso de flores.

- Majestade, soubemos que o povo de Paris está inquieto esta noite - comunicou Richelieu.

- E por quê? - indagou Luís, lânguido.

- Estão cada vez mais irritados desde que Bellevue foi construído.

- E por que eles deveriam preocupar-se com Bellevue?

- Eles acreditam que existe alguma conexão com o preço do pão. Ideias como essas têm circulado nos cafés.

- Não vamos dar ouvido a essas lamentações.

- Mas majestade, tenho a impressão de que eles pretendem chamar a nossa atenção esta noite. Eles estão reunidos em massa nas praças. Acabo de ouvir que seus líderes estão planejando uma marcha a Bellevue. - Richelieu sentia dificuldade em esconder a alegria maliciosa em sua voz. - Majestade, não seria mais sensato passarmos a noite no Palácio de Versalhes? Deixe a marquesa realizar a festa sem sua presença.

Luís pareceu surpreso.

- A marquesa espera por mim.

- Majestade, o povo o ama, mas eles não amam... Bellevue. Sire, não concorda que, sob as circunstâncias, deveria permanecer em Versalhes? Os plebeus podem perder o controle quando estão reunidos numa turba.

- Mas você parece esquecer que prometi minha presença à marquesa - frisou Luís.

Quando a carruagem do rei chegou a Bellevue, os gritos das pessoas podiam ser ouvidos a distância. Os plebeus pareciam zangados e violentos. Era verdade. A turba estava em marcha e seu objetivo era o castelo de Bellevue.

A marquesa viu-se repentinamente assustada, não por sua segurança durante aquela noite - e ela sabia que o povo odiava-a acima de qualquer outra coisa no reino -, mas porque fora a construção de Bellevue que os enfurecera, e Bellevue era sua criação. Portanto, a culpa de qualquer coisa que acontecesse esta noite seria atribuída a ela.

Era preciso que não acontecesse nada.

Luís viera porque havia prometido. Mas não poderia haver arrependimentos na relação do casal. Tudo que ela dava ao rei devia ser desejável aos seus olhos. Ela jamais devia causar-lhe infelicidades. Constrangimentos! A turba podia ser perigosa. E, quem sabe, em meio ao horror de um ataque a Bellevue, poderiam esquecer que Luís era o seu rei idolatrado.

Ela virou-se para Luís.

- Temo por sua segurança - disse a ele. - vou cancelar tudo que preparei. Rogo para que você não se oponha a isso. Jamais irei me perdoar se você sofrer a menor dor esta noite, devido à insatisfação do povo de Paris.

Luís apertou com força a mão de sua amante. Entristecia-o vê-la tão transtornada. Além disso, ele queria a todo custo evitar uma cena desagradável.

- Faça como bem entender, minha querida - disse Luís. Ela deu a ordem.

- Deixaremos o castelo - disse a marquesa aos seus convidados.-Jantaremos num chalé que fica no fundo dos jardins. Todas as luzes do castelo serão apagadas e a turba pensará que não há ninguém aqui. Agora... não temos tempo a perder.

" E assim a grande festa em Bellevue foi cancelada. Não houve peça teatral, fogos de artifício ou baile.

Os convidados apinharam-se na casinha nos fundos do jardim, onde um piquenique foi servido em vez do grande banquete, com os convidados sentados no chão e enchendo cada aposento.

O rei estava tão encantador quanto costumava ser durante as festas mais íntimas, e não parecia importar-se com o cancelamento da grande festa de inauguração do castelo.

Mais uma vez ele demonstra seu afeto profundo pela marquesa, disseram os cortesãos.

Naquele chalé modesto eles pareciam tão felizes quanto nos aposentos reais do Palácio de Versalhes.

Enquanto isso, a turba ansiosa marchara até o castelo para encontrá-lo mergulhado na escuridão.

Eles haviam sido enganados. Não haveria banquete naquela noite. Eles não teriam o prazer de invadir o lugar e se servir da comida que fora preparada para os convidados nobres.

Muitos deles estavam arrependidos por terem feito a jornada desde Paris. Ainda não estavam prontos para odiar o rei. Por enquanto eles ainda o viam como um jovem manipulado por seus favoritos, e extravagante apenas porque não aprendera outro modo de viver. A lenda do rei idolatrado levaria um longo tempo para morrer.

Assim, enquanto o jantar íntimo transcorria no chalé no jardim do castelo, os plebeus caminhavam de volta para Paris, tão descontentes com os líderes da marcha quanto estavam com a castelã de Bellevue.

Os resmungos de insatisfação continuavam espalhando-se pelo povo, até que, num belo dia de verão, distúrbios muito graves ocorreram em Paris.

O filho de uma trabalhadora, que vivia no Faubourg St Antoine, saiu às ruas para comprar pão para sua mãe e jamais retornou.

A mãe frenética percorreu as ruas, procurando pelo menino. Não o encontrando, continuou a correr pelas ruas lamentando seu infortúnio, descabelando-se e rasgando as roupas e gritando que seu filho havia sido sequestrado.

As pessoas se amontoaram nas ruas. Que história era essa de um menino desaparecido? Impostos. Fome. E agora os filhos dos pobres eram roubados!

O conde dArgenson implementara um plano para limpar a cidade e remover os muitos mendigos e vagabundos que a infestavam. Essas pessoas não tinham lar nem posses, e como colonos eram necessários no Império, decidiu-se que elas seriam enviadas para a Lousiana ou para o Canadá, para trabalhar nas fazendas de seda que os colonos franceses estavam estabelecendo lá.

Os mendigos reclamavam. Não havia mais liberdade na França, declaravam. Mas como o povo estava feliz por ver sua cidade livre desses pedintes, nenhum protesto significante foi realizado.

Mas era diferente quando o filho de uma mulher decente era roubado.

As pessoas reuniram-se em torno da mulher atormentada, oferecendo-lhe simpatia, e algumas declararam que tinham ouvido histórias de crianças desaparecidas - menininhos e menininhas que eram mandados para fazer compras por seus parentes e jamais retornavam.

Os rumores cresceram e as histórias assumiram um tom fantástico.

- A polícia sequestra as crianças e depois pede pagamento por elas. Houve uma mulher do Faubourg Saint-Marcel que foi forçada a trabalhar durante semanas para pagar o resgate exigido por sua filha!

- Eles estão tomando nossas crianças e mandando-as para as colónias.

- Eles estão tomando não apenas a comida do povo, mas também suas crianças.

Os rumores ficaram cada vez mais absurdos, e o mais absurdo de todos nasceu no distrito de St Antoine e rapidamente varreu Paris.

- Eles estão mandando as crianças para as colónias? Não eles. Há uma pessoa... não vamos mencionar seu nome. Uma pessoa de posição muito elevada. Ele... ou ela, digamos... sofre de uma doença terrível, e a única forma de preservar sua vida é banhando-se no sangue de crianças.

Então era isso que estava acontecendo com suas crianças! Elas estavam sendo chacinadas para que alguma pessoa de posição elevada tomasse banhos diários de sangue!

- Cem crianças estão desaparecidas - diziam nos cafés.

- Mil crianças foram sequestradas! - gritavam nas ruas.

- Povo de Paris, proteja suas crianças-era o conselho dos agitadores nas esquinas das ruas. - Aqueles monstros egoístas que aumentaram tanto o preço dos cereais que agora não podemos mais comprar nosso pão, aqueles que exigem o imposto vingtième, agora pedem pelo sangue de suas crianças.

A turba estava em marcha.

Vários gendarmes foram mortos nas ruas quando as multidões atacaram-nos com clavas, por achar que eram eles que roubavam as crianças. Um policial correu para buscar abrigo numa casa na rue de Clichy, e em pouco tempo essa casa foi arruinada. Na Croix-Rouge havia um dono de restaurante que, diziam, mantinha-se em termos muito amistosos com a polícia, que frequentemente bebia vinho em seu estabelecimento. Seu restaurante foi invadido e destruído.

Fez-se necessário convocar os guardas e mosqueteiros para restaurar a ordem. Proclamações foram lidas nas ruas. Nunca houvera ordens para sequestrar crianças. Se a polícia fosse culpada do sequestro de crianças, esses casos seriam investigados se os pais se apresentassem para prestar queixa. Todos que haviam sofrido danos receberiam ressarcimentos.

As pessoas que lideraram a revolta foram presas, julgadas, consideradas culpadas de traição e sentenciadas a enforcamento público na Place de Greve.

Luís entrou na capital a cavalo. O povo fitou-o com olhos tristes.

Na Place de Greve estavam os corpos podres das pessoas que tinham liderado a revolta. Elas não haviam sido as únicas culpadas. Havia milhares de pessoas em Paris que tinham marchado pelas ruas, destruído casas e sido responsáveis pelos assassinatos e pelas calúnias dirigidas ao rei e à sua amante.

O povo via-o agora com outros olhos. Ele não era o seu inocente Luís. Ele era o culpado. Ele esbanjava dinheiro com castelos e com sua amante, enquanto eles passavam fome.

Ninguém gritou "Longa Vida a Luís, Luís, o Bem-Amado".

Eles o receberam num silêncio que foi quebrado por uma única voz, que gritou:

- Herodes!

Várias outras vozes juntaram-se à primeira. Agora o povo acreditava em tudo que se dizia de ruim sobre o seu monarca. A história de que Luís mandara sequestrar crianças para ele, ou sua amante, banhar-se em sangue era ridícula. Contudo, os plebeus estavam tão insatisfeitos com seu rei que aceitavam acreditar nessa história, e repeti-la no momento em que Luís cavalgava entre eles.

Luís não deu qualquer indício de ter notado a indiferença do povo. Sua dignidade mantinha-se incólume. Ele não olhou para os lados enquanto cavalgava.

Assim, pela primeira vez o rei cavalgou pelas ruas de Paris e não foi aclamado por seu povo.

Se Luís tentasse estreitar seus laços com o povo, se tentasse se explicar, eles ainda o ouviriam.

Eles ainda estavam preparados para dizer:

Ele ainda é jovem. Deixem-no dispensar sua amante, deixemno dedicar seu tempo a governar seu povo e a encontrar maneiras de aliviar seu sofrimento em vez de queimar tempo e dinheiro na construção de palácios.

Mesmo depois dessa demonstração de frieza, o povo ainda estava preparado para acolhê-lo de volta em seus corações e esquecer essa pequena diferença entre eles e seu amado rei. Se ao menos Luís fizesse o gesto certo, se ao menos ele lhes assegurasse que estava pronto para ser o seu rei, o povo por sua vez estaria preparado a estimá-lo novamente, a acreditar nele, a aceitar seu governo, a continuar a servir a monarquia.

Cabia a Luís escolher. Duas estradas estendiam-se à sua frente. Se ele seguisse aquela que seu povo queria, em breve eles estariam novamente nas ruas gritando: "Longa Vida a Luís, Luís, o Bem-Amado."

Luís retornou a Versalhes.

Sentia-se magoado com aquela recepção. Aquela gente carrancuda o havia chamado de "Herodes".

Ele contou à marquesa sobre a recepção.

- Jamais irei me mostrar novamente ao povo de Paris, jamais retornarei a Paris para divertir-me. Entrarei na cidade apenas quando as cerimónias de Estado o exigirem.

- Em breve precisaremos atravessar Paris a caminho de Compiègne - lembrou-lhe a marquesa.

- Deveria haver uma estrada que ligasse Versalhes a compiègne, evitando Paris - Luís fez uma pausa. - Haverá essa estrada - acrescentou.

O rei e a marquesa sorriram um para o outro. A perspectiva de uma obra sempre era atraente para ambos.

- Uma estrada para Compiègne! - exultou o rei. - Que seja feita imediatamente!

E quando a nova estrada foi aberta, passou a ser conhecida pelo povo de Paris como La Route de Ia Revolte.

Luís escolhera o seu caminho. Nunca mais as ruas de Paris ecoariam a saudação "Luís, o Bem-Amado".

 

 

                                                                                                    Jean Plaidy

 

 

 

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