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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LUTA DE MORTE / Allan Carson
LUTA DE MORTE / Allan Carson

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

LUTA DE MORTE

 

A luta pelo poder na Polônia, agora invadida pelos russos, matava e maltrava os defensores de Stalin, perseguidos até à morte, eram unidos na sua luta, se ajudavam como podiam. Alex Grotowsky, descendente de polonês e norte americano, compreendia a luta deste povo. No Hospital Josef, estava internado um guerrelheiro que de grande ajuda era para estes agentes do FBI, muitas informações eram obtidas atraves dele, a perseguição para com Julian tinha começado, para tras tinha deixado sua mulher Ursula e Maria Teresa sua filhinha de apenas dois anos, o facto de nunca mais as ver, estava a levar este guerrilheiro à loucura. A voz das suas raizes falaram mais alto que a razão no coração de Alex, ele sabia que tinha de resgatar a familia deste seu novo amigo.

 

              

HA boas notícias, Grotowsky - disse o comandante McCally,  sentado  diante de sua mesa e fazendo um gesto para que o agente do FBI,  Alex Grotowsky, sentasse - Bem novas...

- Daqui, de Munique? - perguntou Grotowsky, aceitando um cigarro do chefe do Depar­tamento Militar de Investigações da Baviera, no exército de ocupação americano.

- Não, não. De mais longe, de muito mais longe - sorriu o comandante, de feições finas, inteligentes. - Da... Polônia, exatamente. Foi uma grande sorte que esse pobre homem tenha podido escapar. Ele nos trouxe informações va­liosas a respeito de muitas coisas. Inclusive de certas ramificações comunistas na Alemanha Oci­dental, que desconhecíamos.

- Então, vou ter trabalho - suspirou Gro­towsky. - Eu teria jurado que aqui não acon­tecia nada, comandante.

- Nos países democráticos sempre acontece alguma coisa, graças à liberdade de que gozam os homens bons... e os maus - sorriu o coman­dante. - Em Munique, mesmo, há células clan­destinas comunistas muito mais fortes do que teríamos podido imaginar. Chelminsky garan­tiu-nos.

- Foi ele quem escapou da Polônia?

- Sim. Ainda não pôde prestar declarações completas. Chegou depauperado, moralmente des­troçado. Está no Hospital Josef, submetendo-se a um tratamento de vitaminas e de reconstituintes. O pior é que teme as represálias. Deixou em Varsóvia mulher e uma filhinha de dois anos. Vá vê-lo, Alex. No fim de contas, é seu compa­triota, embora você tenha nascido em Nova Ior­que - disse, rindo.

- Irei, comandante. Ele se chama Chelmins­ky?

- Sim, Julian Chelminsky. Foi combatente do general Anders, sabe? Primeiro contra os ale­mães, depois contra os russos. Guerrilheiro. E nosso espião, há uns três anos. É um homem de fibra!

- Tenho interesse em conhecer o homem. Deve ser um desses patriotas cem por cento, que há em quantidade na terra de meus pais.

- Vai encontrá-lo num péssimo estado. Não parou de lamentar-se e de chorar, pensando na sorte que correrão sua esposa e filhinha - mur­murou o comandante, encolhendo os ombros com desânimo.

- Não conseguiu trazê-las?

- Ele próprio vai lhe contar tudo. Teve que sair da Polônia de um momento para outro, an­dando, ou melhor, caminhando de noite, com a polícia russa secreta atrás dele. Levou muito mais de um mês para chegar a Berlim. Ali, pas­sou para a nossa zona e para evitar que fosse assassinado mandaram-no para Munique a toda pressa, sem nem sequer ter prestado declarações.

- Posso ir vê-lo agora mesmo? - perguntou Grotowsky, erguendo-se.

- Claro. Esta manhã foram lá alguns taquígrafos, com o capitão Spencer, mas o homem está tão fraco que é preciso espaçar o interro­gatório. Não o canse muito.

- Bem, comandante. Tomarei nota de tudo quanto possa interessar a Washington, como sempre.

- Das informações de contra-espionagem? Sim, é claro. Chelminsky sabe de tudo, conforme diz. Informações militares de espionagem, existência de células clandestinas...

- Vai precisar guardá-lo bem, chefe. Neiti mesmo aqui estará seguro um homem que é tão perigoso para eles.

- Logo que se recuperar, vamos mandá-lo para os Estados Unidos. O homem merece viver lá o resto de seus dias, ou, pelo menos, até que a Polônia seja uma nação onde se possa viver.

- Vou para lá. Quer alguma coisa, chefe?  

- Nada, amigo. Não o canse demais. Os mé­dicos dizem que precisa de tratamento por mui­to tempo. Sua maior preocupação são a mulher e a filha. Para isso não há remédio, infelizmente, Grotowsky baixou a cabeça, preocupado. De­pois, fez um gesto de despedida com a mão e saiu do gabinete do comandante, instalado no Palácio de Justiça, em Elisenstrasse.

Subiu para seu jipe e partiu, velozmente, para o Hospital Josef, agora sob direção americana, onde recebiam assistência os súditos americanos e ingleses.

O casarão, de pedra branca, estava na esquina da mesma rua e em frente ao jardim sempre havia muitos carros oficiais. O agente especial pediu que lhe informassem a sala onde estava seu compatriota, sendo atendido por uma moça americana.

- Boa tarde, senhor Chelminsky - disse Alex, enquanto avançava para ele, de mão estendida.

- Espero que coma tudo o que lhe serviram - continuou em polonês muito correto, e o enfermo olhou-o com assombro e simpatia.

- É demais, homem - disse, mostrando o prato, onde havia marmelada. - Faz menos de duas horas que comi um igual. De hora em hora me servem. Dão-me fortificantes todo o tempo. Eu estava morto de fome, mas agora acho que morrerei pelo contraste. Mas, quem é o senhor? Outro médico?

- Não. Sou um compatriota seu. Polonês-americano - tirou seu "carnet" do FBI e mos­trou-lho. - Foi o comandante McCally quem me mandou procurá-lo para conversarmos, isso se estiver em condições, é claro. |

- Ele poderá falar, se não se exceder - disse a enfermeira, que se retirava.

- Já me falaram do FBI - disse Chelminsky. Era um homem de trinta e quatro anos, de rosto delgado, longo, no qual se adivinhava a origem eslava. Seus olhos negros eram grandes,  de olhar profundo, não isento de ternura. Os cabelos, igualmente negros, eram ralos, muito lon­gos, caindo-lhe de ambos os lados do rosto. - O que é que lhe interessa saber?

- Eu me chamo Alex Grotowsky, nasci em Nova Iorque há trinta e dois anos. O FBI desta­cou-me para cá para controlar as atividades an­tidemocráticas dos alemães, particularmente dos comunistas. Encarregou-me, também, da contra-espionagem. O senhor disse ao comandante Mc­Cally que sabia que existem aqui células clandes­tinas comunistas, não foi?

- Sim. Eu disse isso aos taquígrafos que vieram com um capitão do Exército. Interrogaram- me e eu disse tudo quanto sabia. Precisam agir com cuidado, compatriota - respondeu Chelmins­ky, abanando a cabeça com ar pessimista. - Eles levam a vantagem de que, com as liberdades que encontram, podem conspirar para perdê-los. Em caso de invasão, iriam ver...

- Se já o disse aos taquigrafos, é inútil que eu o interrogue novamente. Encontraremos re­médio para essa situação, pode confiar. Parece-me que sofreu muito para conseguir escapar, não foi?

Chelminsky fez um gesto de pavor, fechando os olhos por um instante. Aceitou um cigarro que lhe estendia Alex. E rompeu a chorar subi­tamente, ocultando o rosto entre ai roupas da cama. Alex olhou-o com compaixão, guardando silêncio. Que aquele homem chorasse, depois de haver demonstrado uma grande coragem., segun­do dissera o comandante McCally, em inúmeras ocasiões, não seria por um motivo fútil, certa­mente. Além disso, seus nervos deviam estar em frangalhos, depois dos sofrimentos passados. E o fato de que sua esposa e filha tivessem perma­necido em Varsóvia, expostas a mil perigos mor­tais, se a NKWD chegasse a saber que ele havia fugido...

- Bem, meu amigo - murmurou, por fim, Grotowsky, vendo que aquele homem não conse­guia dominar seu desespero e dor. - O coman­dante já me falou sobre o que acontece - pôs a mão sobre uma das suas, esqueléticas, muito longas, apertando-as cordialmente. - É pelo mesmo, sempre? Acha que sua esposa vai sofrer as consequências de sua fuga?

- Tenho certeza. Escapei quando a Polícia secreta russa havia descoberto que eu possuía bons dados. Não pude senão dar um beijo em Ursula e em Maria Teresa, minha filhinha. Eu não estava preparado para a fuga - murmu­rou Chelminsky, soluçando. - Se tivesse podido, eu as teria trazido comigo. Foi horrível, Gro­towsky. Quando eu dobrava a esquina de minha rua, chegavam os agentes à paisana para me deterem. Andei toda a noite, vagando pelas ruas mais desertas do Ghetto judeu, até que consegui sair para o campo. Quase sem nenhum dinhei­ro... Mais de um mês andando, vagando, até chegar a Berlim. Estava meio louco, mas pre­cisava cuidar para não esquecer os dados que consegui, pois não os podia trazer apontados.

- Não tinha amigos, companheiros, que o pudessem ajudar?

- Numa situação dessas, era melhor deixá-los em paz. Ficam muito comprometidos. Pedi a vários, avisando-os de minha fuga, que ajudas­sem minha mulher e minha filha, mas...

- Devem ter feito, Chelminsky. Acho que não deve pensar no pior. Qual era sua profis­são lá?

- Professor. Como ela, Ursula. Fui afastado, quando eles entraram. Já, antes, os nazistas o haviam feito. Fui guerrilheiro, servi de elo en­tre eles e os camaradas da capital. Sabotagens, espionagem... Uma delícia! Nossa Polônia não deve morrer, Grotowsky - exclamou, com voz exaltada, olhando com olhos de louco para o agente especial. - Mas eu já fiz bastante. Deus meu! Logo que estiver forte, voltarei para lá, para o lado delas, de minhas pobres...

- Isso seria o mesmo que se entregar para que o liquidassem, eu acho - objetou Alex, en­colhendo os ombros.

- Eu só vim aqui para cumprir com meu dever de patriota, não por medo de perder a vida. Desde 1939 tenho estado lutando pela pá­tria, contra uns e outros invasores. Já entreguei aqui o que me pediam e agora tenho que vol­tar. Se eles as mataram... - encheram-se de lágrimas seus olhos - eu, também morrerei. Que mais me importa?

Alex contemplava com admiração aquele ho­mem exausto, exemplo vivo do patriotismo e da fé do povo polonês. E sentiu-se orgulhoso de per­tencer àquela indomável raça, à qual pertenciam seus pais, residentes nos Estados Unidos desde 1910. Também seu pai tivera de fugir, então, da fúria de russos e alemães, considerado como um rebelde contumaz.

- Quando se refizer irá para os Estados Uni­dos - disse Alex, sorrindo-lhe com simpatia. - Já fez bastante. Lá, também, pode-se trabalhar pela causa.

- E Ursula e minha filha? - gritou Chel­minsky, em tom exasperado. - Não sabe o que está dizendo! Eu me recuso a isso! Irei buscá-las, ou morrerei onde elas tiveram morrido! Mas, morrerei matando!

Alex suspirou compungido. O pobre homem tinha sobejas razões. Sua vida já não tinha ne­nhum objetivo sem a mulher e a filha. Tra­balhara como um bravo patriota, mas por um preço terrível. Não obstante, era preciso evitar-lhe aquele novo sacrifício que ele desejava impor-se. Voltar à Polônia seria voltar a uma mor­te espantosa, sem benefícios para ninguém.

- Como é que nosso povo resiste à domina­ção? - perguntou, depois, a Chelminsky, que parecia ausente, com um olhar perdido, fixo na parede em frente.

- Creio que é o povo dominado que menos se entrega - respondeu o polonês, soturno. - Não acredita nunca que a Polônia se tornou co­munista, como não se tornou nazista. Lá, até os comunistas são inimigos da Rússia. Todos nos tornamos membros do partido, como um meio de combatê-lo em sua própria guarida. Mas, antes de mais nada, somos poloneses, católicos e ho­mens de bem. Por isso os russos se desesperam conosco. Julgam ter formado um partido e só recebem desvantagens de nossa parte. Suas re­presálias são terríveis, tanto quanto as nossas, quando a ocasião se nos apresenta.

- O senhor estava ligado a pessoas bem in­formadas de tudo? - perguntou Alex depois. - Como obteve os dados que nos trouxe?

- Entre nós não há segredos, com as exce­ções de rigor, é.claro. Mas um militar polonês dirá tudo quanto souber a quem se interessar, se fôr para prejudicar a Rússia, para uma sa­botagem,. para um serviço de espionagem. Um empregado do Governo dará quantos dados lhe forem pedidos. Um policial faria o mesmo. O operário de uma fábrica de material bélico fa­lará diante de um patriota, facilitando-lhe tudo quanto souber e lhe proporcionará meios de co­meter atos de sabotagem. A Polônia nunca se renderá, como nunca se rendeu quando esteve subjugada pelos alemães, austríacos, russos.

Alex levantou-se. Notava que aquele homem estava febril, exaltado, e isso lhe era proibido.

- Continue o tratamento. Voltarei a vê-lo por­que somos amigos, não é? - estendeu-lhe a mão, que Chelminsky estreitou com a força possível.

- Somos compatriotas e amigos - respondeu, olhando-o fixamente. - E diga que estou decidido a voltar para lá, queiram ou não. Diga ao coman­dante, ao general, a quem quer que seja. Cumpri com meu dever de espião e agora devo cumpri-lo com minha esposa e minha filha!

Alex saiu muito mal impressionado daquela entrevista. Compreendia em toda sua  amplitude os sofrimentos de Chelminsky, o homem que, antes de tudo, cumprira com seu dever. Agora o polonês dava-se conta do que havia deixado na pátria, considerando como um verdadeiro suicídio o fato de voltar para unir sua sorte à da mulher e filhinha, mas mostrando-se disposto a isso, sem vacilar. Era o mais lógico.

Antes da hora da ceia, voltou ao gabinete do comandante McCally.

- Falou com Chelminsky? - perguntou lhe o militar. - É um homem de verdade, não?

- Eu diria que é um herói - respondeu, sorrin­do, Grotowsky. - Também diria que em cada cem poloneses, noventa e cinco fariam o mesmo, se fosse para defender sua pátria ou sua religião. Segundo Chelminsky, a Polônia é hoje a nação mais rebelde à opressão. ,

Não sei no que pensamos quando a deixamos  ao terminar a guerra, nas mãos da Rússia.

- Foi a embriaguez do triunfo, naturalmente.

As falsas promessas da Rússia, suas artimanhas - contestou, hesitante, o comandante. - Se ti­véssemos seguido para o Leste, sem parar, em vez de nos determos no Elba, liberando a esses povos oprimidos, a Rússia já não teria forcas para nos resistir.

- O que me preocupa muito é a sorte dessa mulher, a esposa de Chelminsky, e a de sua filha - murmurou Alex, cuja voz, efetivamente, de­monstrava preocupação. - Esse homem não me­rece tal infortúnio.

- Tenho certeza de que, se não conseguiu es­conder-se a pobre mulher deve estar em péssima situação, se já não foi assassinada. É o costume dos russos. Ou ele volta, ou ela morre. Mas não creio que seja possível fazer-se alguma coisa.

- Impossível, impossível... - disse o agente especial, encolhendo os ombros. - Talvez alguma coisa fosse possível, chefe.

- Nada, Grotowsky - afirmou o comandante com aprumo. - Não há lugar para uma reclama­ção diplomática. Chelminsky é polonês... e espião a nosso favor, mesmo que instigado pelo patrio­tismo. Espero que não alimente as esperanças desse homem em tal sentido, sim? O pobre já sofreu bastante.

- Eu não o fiz. Não lhe disse nada. Somente pensei, para mim mesmo - disse Alex, aper­tando as mandíbulas - pensei que se poderia ir procurá-la e trazê-la. Nada mais do que isso.

- Não se pode fazer isso, rapaz - objetou o comandante. - E, quanto a Chelminsky, assim que aparecer na fronteira, será detido. Ainda receio mais, que venham sequestrá-lo ou assassi­ná-lo. Por isso precisamos despachá-lo para os Estados Unidos, o mais depressa possível.

- Não me refiro a ele, chefe - replicou Alex, secamente. - Ele não pode nem deve ir, porque isso equivaleria a um suicídio. Mas, poderia ir outra pessoa, devidamente preparada, documen­tada. Que conheça o idioma, a situação, as pes­soas de confiança que poderiam ajudar...

O comandante McCally olhou fixamente para Alex, que sustentou o olhar, imperturbável. Tirou o maço de cigarros e ofereceu um ao agente es­pecial.

- Impossível, Grotowsky. Certamente, essa mulher já foi sacrificada à fúria da NKWD. Ele não lhe disse que, quando fugiu, os russos já estavam em cima dele, que sabiam de seus manejos e que iam à sua procura? Desde então, passou-se um mês. Essa mulher e a filha já não devem estar no mundo dos vivos. Eu jamais au­torizaria que um homem sob o meu comando - está me entendendo, Alex? - fosse se arriscar a semelhante aventura, que equivaleria a outro suicídio. Não sonhe, meu amigo.

- Eu pertenço ao FBI, chefe - disse, suave­mente, Alex, sorrindo amistosamente, um tanto irônico. - Se meu Estado Maior me ordenar alguma coisa, eu a cumpro...

- Seu Estado Maior jamais lhe daria autori­zação para isso, Grotowsky - saltou o coman­dante, muito assombrado com as palavras do jovem. - Você é que gostaria de fazer isso, não é? Pois não seja maluco, rapaz. Não há nenhuma probabilidade de êxito nessa empresa. Não temos, sequer, a mais leve esperança de que essa mulher esteja viva, nem sua filha. Sabemos como desa­parecem as pessoas, nos países sob o domínio da Rússia.

- E se ainda estiverem vivas e for possível resgatá-las? Não seria horrível que, por uma indecisão, o fato se consumasse, quando poderia ter sido evitado? - murmurou Alex, com cres­cente exaltação. - Não creio que seja tão difícil ir à Polônia, inteirar-se do que aconteceu com ela e agir de acordo com isso. Se não houver nada para fazer, resta voltar.

- Grotowsky, parece que você quer ignorar que tudo isso é muito mais complicado do que deseja fazer-me ver - sorriu o comandante. - Está comigo há quase um ano e eu o conheço. Sei que tem uma cabeça dura como pedra e que quando alguma coisa entra nela, não há meios de sair. Mas, há coisas em que nem se deve pensar. Você está sob minhas ordens e eu me oponho, terminantemente, a dar qualquer informação fa­vorável sobre esse absurdo projeto. Sua genero­sidade ultrapassa o limite do razoável.

Alex baixou a cabeça, apertando os olhos. O comandante pensou que aquele moço, cheio de saúde e de energias, de temperamento generoso, nobre, mas também impetuoso, arrojado, estava disposto a saltar por cima de qualquer coisa para conseguir o que seu coração lhe ditava. Isso era o pior, o coração é quem o governava agora em lugar da cabeça, do raciocínio, da prudência. E isso era muito mau, tratando-se de Grotowsky, porque ele acabaria fazendo uma das suas.

- Boa noite, chefe - disse o agente especial, de olhar fugidio, apanhando o chapéu que estava sobre a mesa.

- Boa noite, Grotowsky. Escute aqui, Chel­minsky lhe disse que você poderia fazer isso que está pensando?

- Não, chefe. Ele disse que voltaria de qual­quer forma, logo que se sentir melhor. É natu­ral...

- Bem. Boa noite, rapaz. Trataremos de lhe salvar a vida, mesmo que ele não queira. Parece que ficamos todos loucos!

Alex chegou a seu hotel, em Von der Tann Strasse, bem perto de um dos portões do grande parque Englischer. Era a hora da ceia e as mesas já estavam ocupadas pelos hóspedes. Na sua, como sempre, encontrava-se o sacerdote católico polonês, Naubitch, de idade avançada, exi­lado da pátria, tinha a seu cargo duas capelas da colônia polonesa, de russos católicos e de hún­garos. Usava uma barba longa e toda a sua pes­soa era suave, discreta, mesmo sua fala era re­pousada como um murmúrio.

- Boa noite, padre - disse o agente, sentan­do-se em frente dele e olhando-o com ternura. - Fez bem em não me esperar.

- Eu estava caindo de fraqueza, filho, descul­pe-me. Passei um mau momento essa tarde, não faz nem uma hora, mas isso não me tirou o ape­tite. Não sei quem foi que disse que, nós homens, somos animais de hábitos.

- Um mau momento? Alguém que estava morrendo e que teve que assistir?

- Não. Alguém que voltou da morte. Mas que não vai saber continuar vivendo. Um pobre evadido de nossa pátria, que está no Hospital Josef. Deixou lá sua pobre mulher e uma filhinha.

- Quer dizer que esteve conversando com Julian Chelminsky? - perguntou, sorrindo, Gro­towsky.

- Sim. Também esteve com ele? Sua história é horrível, embora não seja ele o único, longe disso. Todos quantos tivemos que fugir deixamos o coração na pátria querida.

- Esse pobre homem quer voltar para Varsóvia, para buscar a mulher e a filha. É uma loucura, mas acho que ele tem razão. Se alguém pudesse ir buscar seus entes queridos...

O padre Naubitch deixou de comer suas acelgas e ficou olhando fixamente para o agente especial. Havia um brilho estranho em seus olhos casta­nhos. Era um fulgor juvenil, cheio de coragem e decisão, apesar dos oitenta e dois anos.

- Se eu tivesse sua idade, Alex, meu filho.... eu iria tirar daquele inferno esses dois seres queridos! E, se ainda vivessem, eu os traria!

No dia seguinte, Alex foi, novamente, conver­sar com Chelminsky. E, depois, passou um radiograma para o FBI, solicitando um mês de licença. Desde que estava servindo na Alema­nha não a solicitara, apesar de ter realizado tra­balhos muito penosos, cheios de atividade, e de que lhe haviam autorizado, se o desejasse, a voltar para os Estados Unidos para visitar os pais, durante o mês que agora solicitava de licença.

O comandante McCally ia observando com in­quietação os estranhos manejos de Alex, que consultava, muito excitado, planos de Varsóvia, assim como os dados que possuíam a respeito da maneira como outros exilados tinham conseguido evadir-se das nações subjugadas pela Rússia e dos que entravam, clandestinamente, em cumpri­mento de ordens secretas. O agente especial nada lhe dizia a respeito, mas ele já o conhecia bem e sabia que naquela cabeça de pedra havia germinado a idéia quixotesca que expusera naquela entrevista.

A resposta do Estado Maior do FBI foi favo­rável. Podia fazer uso da licença de trinta dias que havia solicitado, pondo-se de acordo com o comandante McCally.

- Meus superiores me deram a licença que solicitei, chefe - disse o agente especial, mostrando-lhe o cabograma. - Se o senhor não precisar de mim...

O comandante leu atentamente o papel. Lar­gou-o sobre a mesa, pensativo, acariciando o fino bigode branco.

- Não disse para o que solicita a licença, Alex - disse, depois, olhando com reprovação para o agente especial. - Ocultou a verdade a seus chefes. Acha que a concederiam se soubes­sem o que pensa fazer?

- Nesses trinta dias posso ir caçar na África, dedicar-me à pesca de trutas no Reno ou visitar as pirâmides do Egito - replicou, sorrindo, Alex. - Sou livre de fazer o que bem me parecer, não?

- Sim, sim... Menos de ir nos arranjar preo­cupações desnecessárias, rapaz. Há o perigo certo de que passe os trinta dias de licença sem que apareça por aqui. E daí? Vamos ter que lamentar sua loucura, imaginando-o assassinado na Polô­nia? Uma desgraça a mais, mas, desta vez, pro­curada por você mesmo. E seus pais? Que é que vou lhes dizer, se não voltar mais?

- Eles compreenderão. São poloneses e enten­dem bem isso. Também tiveram que fugir de lá. E meu pai esteve em Varsóvia, clandestinamente, para conspirar contra os russos. Era um homem diferente...

- Como você. Bem, já nem sei o que lhe dizer. Acho que deveria informar seus chefes sobre o que se propõe fazer. Quero ter a consciência tranquila e que não me digam que não aconse­lhei um bom amigo como você. É absurdo o que planeja, Alex. Essa mulher e essa criança já não devem mais estar vivas.

- Não encare as coisas assim, chefe - riu Alex, de bom humor. - Não é mais do que uma pequena aventura, acredite. Eu penso na felici­dade que poderia proporcionar a Chelminsky, aos três, se conseguisse reuni-los nos Estados Uni­dos, sem temores, como o merecem. E esse homem merece tudo. Façamos alguma coisa por ele, já que se sacrificou pela boa causa da liberdade.

- Mas você não vai encontrá-las, Alex! O máximo que poderá encontrar será o túmulo onde repousam. Se houvesse uma possibilidade míni­ma de resgatá-las, pode acreditar que eu próprio o acompanharia, apesar de não ser polonês. Mas, em troca, vamos nos expor a perdê-lo.

- Eu voltarei, chefe. Se eu não fosse um pou­co mais esperto do que os russos, embora também seja eslavo, iria me jogar embaixo de um cami­nhão - respondeu Alex, com seu bom humor con­tagioso, que fez rir o comandante.

No dia seguinte tornou a ver Chelminsky, que continuava de cama, sujeito a um plano rigoroso de restabelecimento. Sentou-se a seu lado, estreitando-lhe a mão carinhosamente.

- Julian, acha que eu poderia tentar resgatar sua mulher e filhinha? - perguntou, com voz indiferente, enquanto o observava de soslaio.

- Você... ir lá... procurá-las?... — murmu­rou, muito pálido. - Você?...

- Eu, sim. O impossível é que seja você. Isso precisa tirar da cabeça. Eu poderia ir tentar a sorte. Não me faço ilusões, claro, mas...

- Deus meu, isso é uma loucura! Eu sou co­nhecido lá. Tenho amigos, como irmãos, que me esconderiam, me ajudariam... Você se sentiria ali como uma rocha em meio ao mar furioso. Des­confiariam de você, não lhe fariam caso e é até possível que o julgando um confidente da NKWD, o matassem. Você não poderia encontrar Ursula, se meus amigos a esconderam. Não vão querer, nada como você ....

- Se me ajudar, dando-me informações, tudo isso se poderia arranjar. Tenho alguma confiança em mim, Julian. Na minha profissão, quase sem­pre sabemos sair das dificuldades.

- Não, não! É uma loucura, Alex! - respon­deu, soluçando, o polonês. - Por que me disse isso, homem? Não compreende que, agora, mi­nhas esperanças são maiores, que, graças a você, irmão, poderei imaginar que voltarei a ver mi­nhas pobres abandonadas? Não, não o faça! Isso é problema meu, meu!

- Bem, julian, deixemos isso, por enquanto. Conte-me coisas de Varsóvia. Eu estive lá em 1935. Fiz a viagem para conhecer a terra de meus pais. Então Varsóvia era uma cidade alegre, qua­se feliz. Preciso que me dê os nomes de seus bons amigos, os de confiança; os que me pos­sam orientar e ajudar a encontrar Ursula e a menina. Aqui temos todas as espécies de documen­tos falsos, que valerão para atravessar a cortina de ferro. Poderei ir até Varsóvia e isso não me preocupa. O que quero é encontrar pessoas que confiem em mim e eu nelas.

- Deus o abençoe, Alex! Eu queria... - lim­pou os olhos com o dorso da mão. - Nem sei o que quero! Se você voltasse com elas... meu Deus! Mas, se encontrasse a morte... O que faria eu, se já não posso sentir mais dor do que a que tenho, se você caísse nessa missão, que não lhe diz respeito.

- Bobagens, Julian, bobagens - respondeu, afetuosamente, Alex. - Puxe pela cabeça e me dite nomes, endereços.

- Tenho uma fotografia de Ursula e de Maria Teresa. Apanhe, naquele armário, meu paletó, faça o favor. São duas criaturas divinas, lin­das...

Alex obedeceu. Tirou uma carteira, em muito mau estado, e entregou-a a Chelminsky, quechorava de emoção, com os nervos descontrola­dos. De mãos trêmulas apanhou um retrato muito maltratado e beijou-o muitas vezes, murmurando frases carinhosas. Depois, secou-o com o lençol e entregou-o a Alex, que o examinou com curiosi­dade. Era uma bela mulher a que se via na fotografia, de frente, apertando contra o peito uma criança de tenra idade. Tinha uma fisionomia pálida e belos olhos. Lábios finos e feições regulares, amáveis, doces. Sorria, assim como a criança, de rosto bonito e olhos grandes e escuros.

- Foi tirada há alguns meses - explicou Chelminsky. — Ela me disse que como eu estava correndo tantos perigos, queria que o trouxesse perto do coração, para que não as esquecesse. Eu tirei outra, que ela deve ter. É tudo quanto temos um do outro - guardou a fotografia na carteira, depois de beijá-la.

E Chelminsky foi fornecendo os dados que o agente especial lhe pedia, assim como nomes e endereços.

- Tudo isso guardarei de memória, porque não poderei levar comigo nenhuma documentação que possa comprometer seus amigos de Varsóvia - explicou Grotowsky, quando terminou de to­mar notas.

E pouco depois, deixava o polonês que, de sua cama, lhe enviava milhares de bênçãos, com os olhos cheios de lágrimas de gratidão.

No Palácio de Justiça andou, de sala em sala, solicitando impressos falsificados de documen­tos, salvo-condutos, cartões de racionamento, passaportes, "carnets" do partido comunista po­lonês, tudo isso copiado de originais que os espiões poloneses faziam chegar aos aliados, assim como aos exilados e refugiados. Pouco de­pois, possuía uma documentação completa, em seu nome. Nela constava, em diversos ofícios, que era um dos membros que haviam assistido à conferência pela paz em Berlim, em nome do Comitê Provincial do Partido Comunista da Po­lônia, em Varsóvia.

Em seu hotel, teve de passar parte da noite recitando nomes e sobrenomes poloneses, com seus endereços, assim como um resumo dos cargos do Partido comunista, tendo diante dos olhos as notas de Chelminsky. Devia, como um ator, aprender de cor seu papel, com o inconveniente de que não poderia usar o ponto.

Na manhã seguinte foi ver seu chefe, o co­mandante McCally.

- Já tem seu lugar no avião das três da tarde que parte para Berlim - disse o militar, olhando-o sombrio. - Está, também, com tudo que é seu pronto?

- Sim, chefe. Levo roupas usadas, das que se fabricam na Polônia e na Rússia, com as etiquetas dos estabelecimentos coletivos de Var­sóvia, assim como calçado e roupa interior, len­ços e todo o resto. O que sinto é ter que deixar minha "Lugger" aqui.

- Conseguiu o que queria, rapaz - disse o comandante, olhando-o com fingida animosidade.- Deus queira que volte, porque, em caso con­trário, seus chefes do FBI vão me culpar de sua loucura. Saiba que se dentro de um mês não tiver voltado, vou dar parte ao FBI e não calarei nada, ouviu?

- De acordo. Espero estar aqui bem antes disso, com a mulher e a criança - respondeu Grotowsky, sorrindo animado. - Vai ser uma aventura estupenda, comandante. É uma lástima que não queira me acompanhar.

- Nem fale! - o comandante deu um soco na mesa. - Acha que, se eu pudesse não o faria, e ainda mais sendo com você? Eu o invejo, de verdade. Às vezes a gente tem vontade de que­brar com a rotina da vida, fazendo coisas extraor­dinárias, cheias de excentricidade e perigo. Se você conseguir o que quer, vai se ver rodeado de glória. Será um herói... Mas meu dever, compeenda, é evitar lhe todo o perigo desnecessário. Você não é una simples cidadão, que faz o que quer de sua pessoa, mas um agente do Governo, cujos serviços são úteis, necessários. Bem, vá embora e que Deus o ajude.

- Obrigado, chefe. Se dentro de um mês eu não tiver voltado, peço-lhe que diga a meus ve­lhos ... que rezem por mim. Não vão estranhar muito o que eu fiz, porque nosso sangue é o mesmo. Adeus, chefe - estendeu-lhe a mão, como se aquela despedida fosse somente por algumas horas e saiu com um passo vivo, nervoso, sorrindo alegre.

De volta ao hotel foi metendo suas roupas em uma maleta especial, tosca, de fibra de madeira, mas engenhosamente construída para os serviços secretos do FBI. Entre a armadura de madeira e a cobertura de fibra, havia esconderijos onde se podiam guardar documentos, tubos de vidros com poderosos explosivos, narcóticos, uma pis­tola pequena, ultra-plana, com suas munições; uma lima de bom aço e um punhal de lâmina dobrável. Tudo isso quase não aumentava seu peso, uma vez cheia, e seria preciso ter uma fundamentada suspeita e muita astúcia para en­contrar aqueles objetos.

Às duas e meia já estava no aeroporto, entre civis e militares que iam tomar o avião para Ber­lim. Vestia um sobretudo grosso, um gorro de corte comum, como os usados pelos operários das cidades polonesas e botas toscas e sujas. Não lhe foi preciso passar diante da inspeção de vigilância americana, para ser revisado seu pas­saporte. O FBI o protegia, assim como o coman­dante McCally, enquanto estivesse na Alemanha Ocidental.

O avião decolou com a lotação completa e Alex olhou para baixo com certa melancolia, con­templando a cidade. Sua aventura começava. E com ela, Deus sabe que azares, perigos e sorte. No Hospital Josef ficava um homem atribulado, um herói da luta contra o mal, que tudo esperava dele. Chelminsky já fizera muito mais do que o que lhe correspondia. Tudo o que significa felicidade para ele, sacrificara para cumprir seu dever. Era um exemplo admirável de patrio­tismo e abnegação, que requeria seu prêmio. E era preciso recompensá-lo, devolvendo-lhe a mu­lher e a filha.

O "DC-6" voava diretamente para o noroeste por cima das campinas verdes, das aldeias e cidades alemãs. Aquele caminho aéreo ele já o havia percorrido muitas vezes, em missões ofi­ciais, mas sempre mais tranquilo do que agora. Ia a seu lado um oficial inglês, muito rígido, que lutava para não encostar nele seu uniforme flamante, irreprochável, dirigindo-lhe olhares descontentes. Certamente estava aborre­cido que um simples operário, nada asseado, compartilhasse o mesmo assento que ele.

Pelas seis horas, o avião tomou o corredor aéreo que conduzia às pistas de aterragem do Tem-pelhof. Alguns caças soviéticos vigiavam, ostensivamente, o espaço, aproximando-se do avião de transporte e fazendo evoluções em volta.

Desceu do "Douglas" e tomou, imediatamente, um táxi. Ordenou ao motorista que o levasse a Wurzestrasse, muito próximo ao limite de demar­cação da zona americana com a russa. Ali estava o Hotel Neckar, no qual jamais estivera, mas que lhe haviam recomendado como frequentado por berlinenses da zona oriental e russa.

Lavou-se um pouco, no quarto e, depois, saiu. Queria ver se a vigilância russa era severa na barreira de demarcação. Mas constatou que assim não era, pelo menos com aqueles que considera­vam como operários, os quais só precisavam exibir seus salvo-condutos e passavam, frequen­temente, para o zona oriental.

Voltou ao hotel, jantou bem e apanhou sua maleta, depois de pagar a breve hospedagem. Com passos firmes dirigiu-se para a barreira, tirou do bolso o salvo-conduto, amassado e um pouco sujo, e mostrou-o à sentinela soviética, com uma metralhadora presa ao ombro.

- A maleta aí? - disse a sentinela, fazendo um gesto para que a abrisse. - Vai para a Polônia?

- Sim, camarada - e Grotowsky abriu-a, erguendo-se.

O soldado remexeu um pouco nas roupas, fechando-a logo depois.

- Passe - disse secamente. - Tem todos os papéis em ordem? Entre para aquele departa­mento.

- Sim, camarada - e obedeceu, diligentemen­te, à ordem.

No departamento de revisão de passaportes, um sargento examinou-o detidamente. Sorriu ao perguntar a Grotowsky:

- Viu alguma coisa mais colossal do que o nosso Congresso pela Paz, camarada? Deve pro­clamá-lo aos gritos em Varsóvia, que eles bem precisam. Que vejam que não somos demago­gos ... Continue, camarada. Tem uma hora, até que o trem parta.

- Foi estupendo, estupendo! - exclamou Gro­towsky, enquanto se afastava a toda pressa.

Sorriu quando se viu na rua, mal iluminada, pela qual circulavam os transeuntes com passos rápidos. Estava a poucos metros da zona ame­ricana e já lhe parecia ter entrado em uma cidade soviética, bem do interior. Havia mais policiais, mais jipes indo e vindo rapidamente, muito menos tráfego particular.

Já estava naquela tenebrosidade palpável, que se podia observar nos estabelecimentos alemães, com vitrinas pobres, que exibiam mercadorias de mau gosto, sem enfeites e nem ostentação, e que em muitos estavam vazias.

Foi andando até a estação. Encontrar um táxi ali, era uma empresa difícil, senão impossível.

Por entre os edifícios em ruínas, cercados por arames farpados, foi avançando muitas vezes quase às escuras. Os berlinenses daquela zona andavam mal vestidos e todos pareciam descon­fiados, em seu andar rápido, lançando olhares de través pelos arredores.

Teve que postar-se no final de uma longa fila diante do guichê que vendia passagens para Varsóvia. Um agente alemão, com outro sovié­tico, empurravam o público, ordenando, à sua ma­neira, aquela fila. Ninguém protestava quando um soldado soviético ou um à paisana, com uma estrela vermelha no gorro, se colocava diante do guichê, exigindo a passagem sem esperar por seu turno.

Quando faltavam cinco minutos para o trem sair, o agente especial subiu para o vagão de ter­ceira classe, velho, sem pintura, com muitos vi­dros quebrados nas janelinhas. E suspirou, amar­gurado, quando viu que teria de sair de Berlim sem ter conseguido um assento. Os corredores já estavam cheios, com uma multidão de fardos que impediam qualquer movimento, além dos viajantes silenciosos, que liam os jornais da tarde.

Fazia frio e teve que erguer a gola do sobre­tudo, enquanto o comboio avançava, lentamente, pelas planícies sem fim, em direção ao misterio­so leste sombrio. Em menos de duas horas lhe haviam pedido três vezes os documentos, agentes à paisana russos, seguidos de soldados. Mas a exibição de seu "carnet" do partido punha cer­ta condescendência naqueles tipos, que não es­condiam seu mau humor quando se dirigiam a simples cidadãos poloneses ou alemães, que so­mente mostravam salvo-condutos ou passaportes.

Passou assim a noite, em pé no corredor quase sempre, em meio a um ambiente frio, sem se falarem os viajantes uns com os outros, talvez por temor de terem a seu lado agentes secretos ou espiões.

O amanhecer chegou quando faltavam poucas horas para entrarem em Varsóvia.

Em Lodz, novos agentes policiais, com soldados, revisaram os documentos. Seu "carnet" valeu-lhe, como sempre, um sorriso do agente soviético. Ofereceram-lhe, em outro vagão, um assento livre, mas Alex recusou-o, prevendo que trata­riam de entabular conversa com ele.

Por fim, ao longe, já perto do meio-dia, distin­guiu a mancha cinzenta da cidade de Varsóvia e, pouco depois, o curso do Vísíula, largo, de côr suja, por entre as fileiras de choupos e pradarias verdes. O trem dava uma enorme volta para entrar na cidade pelo leste, passando por uma grande ponte de ferro.

Desceu do vagão na estação ainda meio des­truída pela guerra e seguiu os viajantes, condu­zidos por agentes policiais de uniforme, polone­ses, para a inspeção. Deixou a maleta aberta sobre um balcão e um agente examinou-a, cui­dadosamente, esvaziando-a. Alex sentiu-se ura pouco inquieto quando o homem, desconfiado, começou a examinar-lhe o peso, verificando sua fabricação.

- Vem de Berlim? - perguntou ao agente especial, apesar de já ter visto seu passaporte e seu "carnet". - Por que veio para Varsóvia?

- Sou daqui, camarada - respondeu, seca­mente, Alex. - Fui ao Congresso Pró Paz, que foi estupendo...

O agente lançou-lhe um olhar furioso. Alex pensou que aquele homem não sentia simpatia alguma pêlo comunismo. Era um dos tantos po­loneses patriotas, infiltrado na máquina soviêtiva de repressão.

- Que lhe faça bom proveito - respondeu o funcionário, traçando um sinal sobre a tampa da maleta. - Outro!

Bem, pois já estava em Varsóvia... Na praça Konsommol, segundo dizia uma placa, sob um farol. E as casas, em redor, destruídas pelas gra­nadas e bombas alemãs e russas. O asfalto esta­va, em grandes trechos, arrebentado e as poças sujas pareciam foscas produzidas pelos projéteis caídos no ano de 1939.

Não se lhe aproximou nenhum carregador, não os havia, para transportar lhe a mala. Havia, sim, vários homens esfarrapados, que o olharam como se tivessem desejado prestar-lhe tal serviço, mas um agente de policia polonês os impedia. Na "democrática" Polônia não havia empregados, Carregadores nem servidores. Nem um táxi tão pouco.

Tomou por uma rua larga, que ia para o cen­tro da cidade. Mais edifícios em ruínas, cercados de arames farpados, mal-cheirosos e, entre eles, pequenos casebres de madeira com telhados de zinco, onde pululavam crianças mal vestidas, desgrenhadas, sujas.

A praça Vermelha, antigamente praça Muni­cipal, tinha, igualmente, muitos edifícios destruí­dos, embora estivessem sendo reconstruídos. No meio dos jardins, havia uma estátua de Stalin, de tamanho natural. E, rodeando a figura, um grupo alegórico dos combatentes poloneses que lutaram "pelas democracias populares."

Grotowsky, todo olhos, examinava aquela ci­dade que ele conhecera, não fazia muitos anos, alegre, elegante em sua parte central, com um milhão e meio de habitantes. As moças de Varsó­via que via agora vestiam-se pior que as "slums" do Harlem italiano ou hispano-americano. E seus rostos expressavam cansaço, falta de alegria e de coquetismo. Sapatos de modelos muito anti­quados, estragados, ou botas horríveis; saias lon­gas, de corte estranho, que as faziam parecer velhas solteironas virtuosas. E blusas sujas, ve­lhas, de cores desbotadas.

A praça estava muito movimentada, cheia de pessoas que pareciam passear, mas que, na rea­lidade, com vozes abafadas, ofereciam artigos de venda controlada: pão, cigarros, bebidas russas e polonesas, tecidos, calçados, meias e calças. Os agentes da Polícia passeavam entre os vendedo­res clandestinos, com ar indiferente.

Já perto do rio, o moço dobrou para a esquer­da e meteu-se num emaranhado de ruelas, onde havia muitas mulheres passeando, que fugiam apressadamente ao aparecer um policial. Alex sentiu-se confuso quando uma bela mulher pe­diu-lhe, com voz lastimosa, alguns "zlotys", en­quanto o olhava com seus maravilhosos olhos, de brilho prometedor.

A rua Wraskaia era uma sucessão de solares formados por edifícios em ruínas, em cujos bu­racos que antes haviam sido janelas e balcões, surgiam cordas com roupas secando ao sol. Por ali também surgiam rostos sujos de mulheres, crianças e homens. E no número 23, em uma casa de quatro andares, não muito danificada pelos bombardeios, havia uma pequenina loja, com um cartaz em letras vermelhas: "Sapatei­ro". Ali entrou Grotowsky, empurrando a porta, de vidros quebrados, grudados com fita colante.

Um homem, de alta estatura, forte, de uns quarenta e oito a cinquenta anos, estava em pé atrás de um balcão de madeira, examinando umas botas. Tinha os cabelos brancos, lisos, com­pridos, caindo-lhe pelas orelhas e sua fisionomia expressava decisão, fortaleza, com os olhos casta­nhos de olhar profundo.

- Bom dia, camarada - disse, obsequiosamente, deixando o que tinha nas mãos para esfre­gá-las nervosamente. - Em que posso servi-lo?

Alex deixou a maleta no chão, sorrindo amá­vel. Tirou sua cigarreira e dela dois cigarros, estendendo um a Sérgio Brdozi, o sapateiro, que o agarrou com excessiva precipitação, de olhar espantado. Eram cigarros americanos, "Chesterfield", que valiam ali várias centenas de "zlotys", quando os havia.

- Bom-dia, camarada - disse o agente especial. Baixou a voz, depois, para murmurar, en­quanto olhava fixamente para o sapateiro: - "Paderewsky".

Brdozi aproximou-se da porta, andando lenta­mente, com indiferença e, através dos vidros que­brados, olhou para a rua. Aspirou, profundamen­te, uma baforada de fumo e voltou de novo para o balcão, apanhando uma bota. Alex contempla­va-o atentamente, um pouco regozijado por aque­las precauções e reservas do polonês.

- Fale, camarada - disse, por fim, Sérgio Brdozi, inclinando-se para o balcão e contem­plando com pena, o delicioso cigarro que se con­sumia. - Quem é que o manda?

- Chegou, felizmente, a Munique, na Alema­nha ocidental, Julian Chelminsky. Eu sou polonês-americano e me chamo Alex Grotowsky. Per­tenço ao Federal Bureau of Investigation. Sabe o que é isso?

- Sim. Os jornais soviéticos falam muito em vocês, e não bem, naturalmente. Diz que Julian chegou bem... - seu rosto expressou uma controlada alegria e deu um último chupão no cigarro, que já lhe queimava os dedos. - Deus seja louvado. É claro que foi ele quem o enviou, não é?

- Sim. Olhe - tirou um velho relógio de prata e mostrou-lhe. Sérgio olhou-o e o devolveu, sor­rindo. Estendeu-lhe a mão, depois, com um gesto de confiança. - E Ursula e sua filha Maria Teresa?

Brdozi fez um gesto de desalento. Alex estre­meceu. Se tivesse feito a viagem em vão, e já estivessem mortos aqueles dois seres queridos do pobre Chelminsky...

- É como se tivessem morrido, Alex - disse o sapateiro, abanando os ombros e contemplando com estranho interesse o cigarro de Alex, que se consumia no chão.

- Mas não morreram, claro - disse o moço, com tom aliviado. - Não é o mesmo, amigo.

O sapateiro olhou-o como com lástima e voltou a encolher os ombros. Sua alma eslava parecia aceitar resignadamente o fato, um mais entre os milhares que conhecia. .

- Estão mãe e filha em um campo de con­centração perto da cidade. Em Mlociny. Viverão o tempo que seus organismos resistirem. A pri­meira que morrerá, naturalmente, será a peque­na Maria Teresa. Deus assim e quis...

- Venho para tirá-las da Polônia, Brdozi - disse Alex, com resolução. — Eu não conhecia Chelminsky até ele chegar em Munique. É um homem formidável, que lutou valentemente. Me­rece que, agora, se faça por ele tudo quanto se puder.

- Todos merecemos que se faça por nós tudo quanto se puder - respondeu o sapateiro, com um sorriso triste. - E nada se fez... Vocês, americanos, vivem felizes, não é? Que Deus con­tinue protegendo-os. Já sei que é um país feliz, onde nada falta. Onde podem falar, escrever, fazer o que quiserem, sem que ninguém os per­siga. O que vocês jogam no lixo, cada dia, por não servir, ou porque seus estômagos cheios já não querem... Bem, parece que eu me torno grosseiro, perdoe-me - largou a bota sobre o balcão, com um olhar triste, cravado na porta da loja.

Alex também baixou os olhos, como se sentis­se certa vergonha de ser americano e de viver da maneira que Brdozi havia dito.

- Acha que não se pode fazer nada por Ur­sula e por sua filha? - perguntou, depois, ofe­recendo outro cigarro a Sérgio, que o tomou com a mesma ânsia que ao primeiro.

- Nada. Se veio para levá-las, perdeu tempo. Mas é bom que veja o que há por aqui, na Po­lônia, e que depois conte aos americanos. Isso se puder sair...

- Não irei embora sem tentar arrancá-las do campo de concentração, Brdozi - respondeu Alex, firmemente. - Há pessoas que conseguiram fugir de campos de concentração e chegaram ao outro lado. Julian disse-me que eu poderia con­tar com você, embora eu não deseje, de modo algum, comprometê-lo. Saberei me arranjar. Nós, os agentes do FBI, estamos preparados para toda espécie de contingências desagradáveis. O campo de concentração soviético não me assusta.

Brdozi olhou-o com lástima e chupou com ânsia o cigarro, encolhendo os ombros depois.

- Mais vale assim, Alex - respondeu, com desânimo. - Eu o ajudarei no que puder. Julian era um grande amigo, um patriota que nos enchia de esperanças e de forças. Todos nós se­guimos seu exemplo, no que pudemos. Mas, você não sabe o que é isso. Não é possível, que vocês, que vêm do paraíso, possam compreender, em toda sua plenitude, o que é um país sovietizado, ocupado militarmente, politicamente, pelos russos.

- Se eu não sei, posso imaginar. Sei que será preciso agir com astúcia, com mais astúcia do que eles, e com uma coragem desesperada. Eu o farei, Brdozi, porque estou preparado para isso. Não sou um turista, um curioso que vem para observar e que foge aterrorizado. Venho para lutar e para vencer. Não me tome por um iludido ou por um inconsciente.

Brdozi deu um último chupão no cigarro, apa­gou-o e guardou o toco no bolso do paletó sujo e rasgado. Não usava gravata e sua camisa apa­recia muita cerzida no peito.

- Farei o que puder por Julian - respondeu, secamente. - Somos muitos os patriotas que es­tamos de acordo para tudo. Tenho um cargo no grupo. Vou apresentá-lo a alguns camaradas e conversaremos. Mas, de antemão, eu lhe digo que, se Deus Nosso Senhor não fizer um mila­gre, nem Úrsula e nem sua filha sairão do cam­po de concentração e nem você da Polônia. Foi uma loucura que você fez, moço, vindo aqui.

Alex alojou-se na casa do sapateiro Brdozi, que ocupava o primeiro andar do prédio. Este andar era, também, ocupado por outra família, composta de um casal e de uma filha de quinze anos, Mlada, uma mocinha alta, muito pálida, devido a um longo processo de avitaminose que não podia ser cortado, pela falta de recursos dos pais. Delgada, seus enormes olhos negros enlanguesciam, cheios de tristeza, como vislumbrando uma morte próxima. O pai, homem de uns sessenta anos, não encontrava trabalho em parte alguma. Passava todas as horas do dia nas filas dos sindicatos que proporcionavam co­locações e onde nunca colocavam ninguém. A mãe, pequena, de rosto redondo, olhos negros de olhar profundo, ia aos quartéis e postos de polí­cia, em busca de restos de comida, que fornecia à alimentação da família.

Sérgio Brdozi era viúvo. Vivia só, e a mulher de Wachelo, com uma diligência insuspeitada nela, pois também já tinha uns sessenta anos, atendia-o com ternura. O sapateiro não lhes co­brava nada pelo aluguel das duas peças e, fre­quentemente, compartilhava com eles sua refei­ção, não muito melhor do que a de seus hóspedes.

Alex ocupou um quarto onde havia uma cama, uma mesa, duas cadeiras e uma pia, além de um pequeno armário. O sapateiro olhou-o curio­samente, com seus grandes olhos melancólicos, sorrindo tristemente.

- É verdade que na América pode-se comer quantas salsichas se quiser, e presunto, ovos e chá, por muito pouco dinheiro? - perguntou-lhe Mlada, e Alex sorriu afirmativamente.

- Sim. Mas não creia que todas as pessoas possam gastar muito dinheiro com essas coisas. Não há miséria, mas nem todos somos ricos.

- Mas não passam fome. Ninguém terá avitaminose e nem estará exposta a morrer de tu­berculose. Por que Deus permitirá que alguns povos tenham tanta felicidade e outros sejam desgraçados, como na Polônia? - perguntou a mocinha, cujo rosto apresentava profundas ru­gas nas comissuras dos lábios e nos olhos..

Alex não soube o que responder. Era muito difícil. Mas tirou de entre as camisas várias bar­ras de chocolate, entregando-as uma a uma, com um gesto amável. Mlada contemplava-as fixa­mente, como se fossem brilhantes. Lágrimas sal­taram-lhe dos olhos e saiu correndo do quarto.

Na hora do jantar, Alex tomou um prato de purê de soja e um peixe frito, provavelmente pescado no Vístula. O pão era de centeio, muito negro, com mais casca do que miolo, e duro. Nada mais. O sapateiro desculpou-se por lhe servir só aquilo, que era repartido quatro ou cinco dias na semana. E graças...

Basil Waschelo e sua família comeram os res­tos de um quartel: batatas com peixe, numa mis­tura repugnante à vista, e pão de centeio.

- Logo sairemos, Alex - disse Brdozi, quan­do todos haviam ceado e fumado cigarros que o agente especial oferecera. - Basil é dos nossos, como sua mulher e Mlada. - Olhou-os com cari­nho e eles sorriram.

- Eu já estou velho mas, faz algumas noites, deixei uma bombinha embaixo de um ônibus cheio de russos - disse, maliciosamente, o ve­lho. - A gente faz o que pode...

- Não sobrou nem um inteiro, Alex - afir­mou Brdozi, com orgulho. - Eles haviam fuzi­lado oito patriotas no dia anterior, como repre­sália por outra diabrura nossa. Assim andamos. Vingando mutuamente nossas ofensas. Mas eles são os invasores.

- Não têm razão nenhuma para estarem aqui - disse Mlada, em cujos olhos surgiu uma cha­ma de ódio. - Estão-nos matando de fome. Eu morrerei tuberculosa, por culpa deles!

A mãe abraçou-se, chorando, à moça. Basil impôs silêncio com um gesto solene.

- Não se chora por isso, mulheres - disse, surdamente. - A gente se vinga e que Deus nos perdoe se ofendemos. Nossa guerra é santa, porque a fazemos ao demônio, a seus enviados na terra.

Alex e Brdozi olharam-se silenciosamente, co­movidos.

- Todos nós somos assim, diante da desgraça comum - disse o sapateiro. - Em casa choramos e nos lamentamos, mas, diante deles, não deixamos que nossa dor transpareça. Há de che­gar o dia em que tudo isso acabe, não é?

- Muitas vezes eu me perguntei, sem encon­trar a resposta, por que a Polônia foi sacrificada, quando França, Bélgica, Dinamarca, Itália e ou­tras nações foram libertadas. Já sei que a Polô­nia estava longe dos libertadores, mas isso teria sido possível se tivesse havido uma atitude de­cidida e firme por parte dos aliados. Se tivessem continuado avançando para o Leste... - disse Basil.

- A Polônia foi a primeira que lutou contra os alemães e, depois, contra a Rússia - disse Mlada, com energia selvagem. - As grandes na­ções foram ferozmente egoístas, talvez medro­sas. Nunca poderão reparar o mal que, com sua conduta, nos causaram. E Alex, pode guardar sua barra de chocolate, porque nós não somos pedintes, não mendigamos, mas exigimos ser tão felizes quanto os americanos! Não gostamos de ser olhados como párias, que não merecem ajuda nem proteção!

- Basta, filha - disse o pai, olhando-a com severidade. - Alex é polonês e nos compreende muito bem. Deixou tudo o que há de bom no outro lado, para praticar uma boa ação aqui. Que Deus o ajude.

- Vamos, Alex - disse Brdozi, levantando-se da mesa. - Vamos ao setor do partido, Basil. Temos reunião - sorriu com ironia, - e eu apre­sentarei Alex. Temos de começar nossa tarefa em seu favor.

- Todos são de confiança, moça - disse Basil, bocejando. - Todos comunistas... - riu sar­cástico. - Eles assim o querem, sabe? Pois so­mos todos submissos, filhos de Stalin!

Brdozi vestiu um velho sobretudo, com uma gola rasgada de pele e Alex o seu. Saíram para a rua, quase às escuras, tenebrosa.

- O setor é perto - disse o sapateiro, cami­nhando lentamente. - Ali se reúne a célula de nossa rua, Wraskaia, e de outras. Tratamos, por cima, dos assuntos do partido e, depois, dos nos­sos.

- E não têm medo que certos elementos trai­dores estejam ali infiltrados? - perguntou Alex.

- Já os tivemos. Mas, agora, eles jazem sob a terra. Um polonês jamais poderá ser um deles. Nem mesmo os personagens mais graduados são comunistas verdadeiros, amigos da Rússia. A prova é que, com muita frequência, há mudan­ças de postos, porque os soviéticos desconfiam. Vêem-se isolados, desprezados, odiados de morte.

Caminhavam lentamente por entre as sombras. Os edifícios destruídos pareciam como espanto­sas decorações de um teatro de horror. Fugaz­mente, algumas mulheres apareciam, murmura­vam algo ao se aproximarem, para logo desapa­recerem.

- As pobres, para não morrer... - disse Sérgio, com tristeza. - Essa é a liberdade que nos trouxeram nossos protetores.

Em uma rua estreita, sem lampiões, brilhava uma lanterna, em cujos vidros estavam pintados uma foice e um martelo. Na porta, um homem vigiava, com as mãos metidas nos bolsos do so­bretudo cinza, de corte militar.

- Alô, Korsawa - disse o sapateiro, quando chegaram ao portal. - Trago um camarada, que é do partido e que mora comigo.

- Bem-vindo. Subam. Esta noite não há pe­rigo.

Entraram no andar térreo de uma casa espa­çosa, em cujas paredes estavam encostados ban­cos de madeira. Neles estavam sentados vários homens, mal vestidos, que conversavam em voz baixa. No centro havia uma mesa espaçosa e, sobre ela, montes de papéis, cartazes do partido comunista polonês. Num canto, um mural de propaganda com a efígie de Stalin sobre um fundo do Exército Vermelho Soviético.

- Alô - disse Brdozi aos homens, que se le­vantaram, tomando os bancos e sentando-se di­ante da mesa. Responderam ao cumprimento, olhando com curiosidade para Grotowsky. Um homem, o encarregado de controlar a reunião da célula em nome do setor do bairro, entrou, sau­dando, sorridente.

- Este camarada - disse o sapateiro, mos­trando o agente especial - é polonês-americano. Pertence ao FBI. Ao Governo dos Estados Uni­dos. Não receie nada, Grotowsky - observou, ao ver que o jovem fazia um gesto de contrariedade.

- Todos aqui somos irmãos. Este camarada, ou irmão, veio, expressamente, para levar Ur­sula, a mulher de Chelminsky, que chegou bem na Alemanha ocidental. Pede nossa ajuda e temos que dar-lha.

- Um momento - disse o que exercia o con­trole, sem demonstrar muito assombro com a presença de Grotowsky. - Façamos, antes, a comédia de realizar nossa reunião de célula. Pode vir outro militante da Central, que não seja de nossa confiança e nos deixar em apu­ros. Sérgio, leia a ordem do dia e despache­mos. É sempre o mesmo.

- Enviar saudações ao camarada Vichinsky, por sua atuação brilhante ante os covardes e criminosos acordos militaristas e imperialistas americanos e ingleses.

- Aprovado! - gritaram, ironicamente, os membros da reunião - Enviar saudações comu­nistas ao Comitê do Congresso Pró Paz que atuou em Berlim, por sua extraordinária ação contra os manejos criminosos dos imperialistas e provocadores de guerra americanos e ingleses.

- Aprovado — gritaram os presentes. - Vin­te saudações, em vez de uma!

- Enviar entusiástica adesão ao camarada Joseph Stalin, condutor e guia dos trabalhadores do mundo honrado por sua onisciente, maravi­lhosa e única direção dos povos livres e demo­cráticos, que jamais se submeterão à crueldade criminosa dos provocadores...

- Americanos e ingleses! - terminaram, rin­do, os presentes. - Aprovado!

- Adesão fraternal e comunista aos bravos combatentes coreanos e chineses, que lutam he­roicamente contra os imperialistas e provocado­res americanos e ingleses, aos quais estão der­rotando vergonhosamente. Comunica-se que, se­gundo as últimas notícias recebidas do front, os criminosos imperialistas suplicaram aos comandos coreanos e chineses a permissão para se re­tirarem da Coréia, mas...

- Aprovado! - exclamaram os camaradas, aplaudindo. - Os coreanos vão desembarcar em Nova Iorque!

O camarada controlador, rindo, ia tomando nota dos acordos, para logo levá-los ao Comitê Provincial do Partido, dando conta de que a cé­lula cumprira com seu dever.

- E agora - disse o sapateiro, quando seus camaradas recobraram a seriedade. - Vamos ao que interessa. Nosso amigo Grotowsky deve ser ajudado para que Ursula e sua filha saiam daqui. Já lhe disse como vai ser difícil conse­guir isso.

- Não preciso que se comprometam a fundo nesse assunto - disse Grotowsky, erguendo a mão para pedir silêncio. - Eu sentiria muito se, conseguindo sair com ela da Polônia, vocês fiquem em má situação por terem me ajudado. Eu é que tenho que arcar com o peso dessa aventura.

- Vai se fazer o que se puder - disse um homem jovem e forte, de rosto enérgico. - Di­ga-nos o que necessita. Eu sou funcionário do Ministério do Interior e sei muitas coisas. É fá­cil lhe dar informações.

- Preciso saber em que condições está Ursula, quem vigia o campo de concentração, se há pes­soas ligadas a vocês e como se poderia pla­nejar uma evasão. Tudo isso com muita rapidez - disse Grotowsky.

- No campo de concentração onde está Ur­sula, a vigilância é feita por agentes poloneses, comandados por outros, soviéticos, da NKWD. Considera-se muito difícil alguém poder fugir dali - respondeu outro, em tom concludente. - Tenha em mente que, se alguém fugir, todos os vigilantes poloneses serão fuzilados no dia se­guinte. Por mais patriota que sejam esses homens, antes de tudo põem suas vidas. Isto já aconteceu.

Grotowsky estremeceu. Era natural o que o in­vasor adotasse aquelas medidas de segurança. Impunha-se pelo terror e considerava o Comando russo que ninguém melhor do que um polonês aterrorizado poderia guardar outro.

- Bem. Com isso eu já contava - murmurou o agente especial. - Não devemos contar com os guardas poloneses. Mas, é possível que entre eles se introduza um patriota, eu, por exemplo, disfarçado de agente soviético, com a documen­tação precisa e que reclame Ursula e sua filha para serem julgadas por um tribunal, sendo este, realmente, o meio de arrancá-las dali? Os guar­das poloneses não teriam responsabilidade, mas sim os agentes da NKWD.

Seguiu-se um silêncio prolongado. Grotowsky tirou do bolso um pacote de cigarros e repar­tiu-os entre os assombrados e ansiosos camara­das, que os acenderam logo, fumando-os com grande prazer.

- Eu creio que se o irmão Grotowsky con­seguir essa documentação e disfarce, os incon­venientes se terão reduzido em noventa por cen­to - respondeu outro camarada, que vestia uni­forme de agente de polícia soviética. - O difícil será conseguir tudo isso.

- Eu tenho impressos falsos da Chefatura da NKWD em Varsóvia e outras cidades. Carimbos, facsímiles e assinaturas, salvo-condutos e outras coisas mais - contestou, sorrindo, Grotowsky. - O FBI sabe o que faz.

- O FBI não poderia tocar os russos daqui, irmão? - perguntou, sorrindo com amargura, outro militante. - Em vez de armar, novamente, as potências do Eixo, resulta ser a Polônia a mais maltratada, porque se defendeu dos comu­nistas e dos nazistas.

- Não é justo o que diz, irmão - disse Brdozi, severamente, ao que havia falado. - Deus assim o quis. E Grotowsky é apenas um cidadão americano e não o Governo americano. Parece que agora o que Alex precisa é de uma orienta­ção sobre as formalidades e trâmites necessários para tirar oficialmente Ursula do campo de con­centração. Sobre isso não pode haver erros, por­que fracassaria de início, talvez por pormenores insignificantes. Temos que instruí-lo bem. Algum de vocês poderia fazer isso?

- Eu - disse o que trabalhava no Ministério do Interior. - Eu posso me informar logo e lhe direi quais os documentos, os trâmites. E ainda assim, Grotowsky, que Deus o proteja, pois vai bem precisar. O que vai fazer, no caso em que consiga tirar a mulher e a menina, cuja falta será notada em bem poucas horas?

- Escondê-las - respondeu Brdozi, encolhen­do os ombros. - Terá onde as esconder, não há a menor dúvida. Todos os lares poloneses lhe oferecerão asilo.

- Mas não poderá sair da Polônia - disse o militante, dando uma palmada na mesa. - E quanto mais tardar, mais precauções serão toma­das para impedir a fuga. Isso deve ser feito em dois ou três dias, no máximo. Uma mulher, com urna criança de dois anos, não pode ser guarda­da no bolso. Aqui também se sabe o que faz a NKWD, Eu conheço uma história assim. Um po­lonês fugiu para a Austrália e ali caiu para sem­pre. Onde haja um comunista, haverá um punhal ou uma pistola obedientes às ordens de Moicou.

- Será um caso de astúcia, de coragem e do serenidade - falou Brdozi. - Então, todos os irmãos que puderem deverão aconselhar e aju­dar Grotowsky em sua tentativa. Agora, irmãos, como sempre, rezemos nosso Santo Rosário, pe­dindo a Deus que ajude nossa bendita Polônia e pedindo justiça para aqueles que, enganados, oprimem a tantos povos, renegados de Deus.

Mirsky, coloque-se na porta e vigie enquanto re­zamos. Tussa se vir alguém suspeito.

Grotowsky sentiu-se profundamente comovido ao comprovar a fervorosa fé daqueles homens oprimidos, que não renegavam seus ideais, nem mesmo diante da morte, das torturas e da fome. E com eles rezou.

Saíram, depois, pouco a pouco, da casa onde brilhava o lampião vermelho com a foice e o martelo.

- O que achou de tudo isso? - perguntou-lhe o sapateiro, enquanto, caminhavam, lentamente, pelo meio da rua, em direção à casa. - Nos Estados Unidos fariam alguma coisa igual ao que nós fazemos?

Grotowsky não soube o que responder. Era muito diferente, com efeito, a vida na Polônia da que viviam na América. A Polônia sempre fora desgraçada, oprimida e era maravilhoso ver como se mantinha o espírito patriótico dos polo­neses, mais rebeldes quanto mais os oprimiam. A América, em troca, estava acostumada a não sofrer, a não ter inimigos pela frente, a viver bem, a ser boa e generosa. Poderia um povo, nessas condições, encontrar, na desgraça, a de­vida coragem para lutar como a Polônia?

Chegaram na casa de Brdozi quase à meia-noite, quando as ruas estavam desertas, silen­ciosas, escuras. Este silêncio só era perturbado, de quando em quando, pela marcha de uma pa­trulha de agentes da Policia polonesa, armados de metralhadoras.

- Vai precisar de armas para o seu trabalho? - perguntou o sapateiro ao agente especial, quando entravam em casa, vendo passar a pa­trulha.

- Tenho uma pequena pistola escondida na mala, mas é de pequeno calibre, embora muito rápida no manejo.

- Eu tenho armas, não se preocupe. Posso dar-lhe uma pistola "Mauser", muito boa, das que os alemães deixaram quando se retiravam, para que nós fôssemos liquidando os russos. E bomba de mão e metralhadoras. De vez em quando, nossos camaradas da Polícia nos dão mais armas e munições.

O agente especial sorriu. Era um fato certo que, na Polônia os soviéticos estavam encontran­do seus mais temíveis inimigos e, talvez, os mais bem armados.

Depois de fumar um cigarro com Sérgio e Ba­sil, que esperara que voltassem, retiraram-se para dormir.

Alex ficou sentado na cama, refletindo demoradamente sobre as possibilidades que poderia encontrar para salvar Ursula e a menina. Aque­les patriotas ofereciam-lhe uma boa ajuda, mas ele não pensava comprometê-los excessivamente, pois as represálias seriam duríssimas se a polí­cia secreta soviética chegasse a desconfiar da classe de colaboradores que tivera em sua em­presa, assim como de seus nomes.

Na manhã seguinte, por volta de doze horas, quando Alex estava na oficina conversando com Brdozi, entrou ali o funcionário do Ministério do Interior polonês. Aceitou alegre o cigarro que o agente especial lhe ofereceu, sen­tando-se, e exibindo uma fisionomia sorridente e bem barbeada.

- Já consegui algumas informações - disse, piscando para o agente especial. - Claro que é muito difícil tirar Ursula e a criança do caimpo de concentração de Mlociny. Estão ali umas Qui­nhentas mulheres, cujos maridos, pais ou filhos, fugiram da Polônia ou são guerrilheiros. São con­sideradas como reféns de grande valor e esperam que, sabendo eles que estão prisioneiras e que sofrem terrivelmente, voltem e se entreguem. Quando não há mais nenhuma probabilidade que os homens voltem para se deixarem matar, mor­rem elas.

- Este será o caso de Ursula - disse o sapa­teiro, apertando os punhos com raiva.

- E o de muitas mais - disse o funcionário, chamado Karolwicky, de uns quarenta anos, alto e muito magro. - Bem, vamos ao que interessa: somente, mediante uma ordem escrita do comis­sário soviético da NKWD, em Varsóvia, é pos­sível tirar uma prisioneira do campo de concen­tração de Mlociny, e isso para sofrer interroga­tórios "especiais" - sorriu o homem sinistra­mente, - ou para ser liquidada. Esta ordem é cumprida por um agente da NKWD, devidamen­te documentado, com a autorização do chefe na mão.

- Vão de uniforme? - perguntou Alex.

- Se o agente fôr um militar, sim. Mas pode ser um civil, também, o que lhe será mais fácil. Há outros inconvenientes, não pense que tudo se reduz a isso. Quando vão tirar uma prisioneira, o Comissariado da NKWD adverte o comandante do campo de concentração com antecedência que um agente seu vai cumprir tal ordem, indicando a hora em que se apresentará no campo. Se apa­recer outro, em lugar do descrito, será recebido a bala, naturalmente. Os russos estão bem pre­venidos porque muitas mulheres prisioneiras já escaparam, tiradas por companheiros nossos.

Grotowsky guardou silêncio enquanto fumava. O sapateiro e Karolwicky também refletiam, con­siderando aquelas dificuldades quase insuperá­veis.

- Não haveria uma maneira de usar um car­ro oficial da NKWD, nada mais do que por al­guns minutos, os que eu me apresentar no campo de concentração para ir buscar Ursula? - per­guntou, por fim, Alex, encarando Karolwicky.

- Um carro oficial! - exclamou o funcioná­rio do Ministério do Interior, olhando espantado para Grotowsky. - Está pedindo a lua, meu amigo...

- Daria mais autenticidade ao ato, camarada - disse o sapateiro, aprovando a idéia do agente especial.

- E também me ajudaria a pôr distância en­tre nós, antes que o logro fosse percebido - Karolwicky meditou, chupando o cigarro apa­gado para manter durante mais tempo o gosto do fumo na boca.

- Talvez fosse possível, mas... - disse de­pois, coçando o queixo. - O senhor precisaria ir ao Parque Móvel e retirar um, mas seria pre­ciso a autorização do chefe, naturalmente. Tam­bém poderia acontecer que não lho quisessem dar cem um chofer, que seria um russo.

- Isso não me importaria - respondeu Alex, sorrindo maliciosamente. - Uma pequena carí-cia na cabeça e eu o deixo dormindo. Poderia conseguir um papel do Parque Móvel, necessário para retirar um carro?

- Antes, será preciso exibir a ordem do comis­sária da NKWD ao Parque Móvel, pedindo o carro para uma missão oficial. Nessa ordem pode-se pedir com ou sem chofer. O senhor encheria depois o impresso, firmando-o.

- Encantado - disse Alex, levantando-se. - Esperem um pouco. Eu tenho impressos, falsifi­cados pelo FBI.

Subiu ao outro andar, entrou no quarto e abriu a mala. Movendo, habilmente, algumas molas, en­tre os vãos do encaixe surgiu uma abertura de onde tirou um pacote de impressos.

- Esse é o que deve servir - disse, mostrando-o ao espantado Karolwicky, que o examinou, enquanto o sapateiro olhava por cima de seu om­bro. o Esse é o selo que está em vigor? E a assinatura do general Koronshy? Este impresso foi feito há menos de um mês, tomando como modelo outro que nos levou um fugitivo da Po­lônia, de Lemberg e que passou por Varsóvia.

- Perfeito! Deus meu, se nós tivéssemos estas facilidades! - exclamou o funcionário, olhando fixamente para o impresso. - Basta só preen­chê-lo, fechá-lo e por o número de registro de saída do Comissariado. Com isso pode ir ao Par­que Móvel, na Towarneia, subúrbio de Wola, ao oeste da cidade e dirigir-se, diretamente, ao cam­po de concentração.

- Será preciso eu me dirigir, diretamente, ao chefe do campo de concentração?

- O chefe receberá urna chamada telefônica do Comissariado, dizendo que você irá buscar Ursula e sua filha, na hora indicada, e que de­vem entregá-las. Pode indicar no impresso que é para "indagações" durante vários dias. Esta é a dificuldade: como telefonar ao chefe do campo?

- Você pode fazer isso, Karolwicky. Fala mui­to beta o russo. Use um tom autoritário e breve. Não diga senão o que for preciso e com energia - explicou o sapateiro, dando um soco no balcão.

- Dá-me um cigarro, Alex. Não posso mais con­trolar os nervos.

Alex sorriu e lho entregou, assim como a Karolwickcy, que refletia profundamente.

- Claro que eu o farei! - exclamou, com ar decidido. - Isso não me compromete quase nada. Ando, livremente, pelo Ministério. Num momento dado, peço uma comunicação com o campo de concentração e falo. Está feito, irmão! Diga-me quando pretende dar o golpe.

- O mais rápido possível. A NKWD poderia adiantar-se a mim e liquidar Ursula. Acham que devo ficar escondido na cidade, até que passe o reboliço da busca, ou correr logo para a frontei­ra? Eu não sou partidário de ir para Berlim, embora fosse isso o melhor. Lá se agruparão policiais, esperando-nos. Se eu fosse sozinho, po­deria enganá-los, mas, com uma mulher e uma criança... Tinha pensado em ir para Dantzig, onde não seremos esperados. Ali tomar um navio estrangeiro, sueco ou finlandês... ou um barco de pesca. Faz pouco tempo chegaram vários po­loneses, fugidos, a um porto sueco.

- O difícil é ir daqui para Dantzig, irmão - disse o sapateiro, franzindo o cenho. - Claro que não pode ser nem de trem e nem de carro. Vi­giarão tudo e os controles serão avisados. Levar uma mulher e uma criança...

- É uma empresa desesperada - murmurou Karolwicky, abanando a cabeça com ar pessi­mista. - Podem matar os três. Isso será o mais provável.

- Vim aqui para levá-las - respondeu, firme­mente, Alex e seu rosto pareceu endurecer-se, brilhando-lhe os olhos escuros. - E hei de con­segui-lo! Amanhã, por volta das três horas, tele­fone ao chefe do campo de concentração dizendo que eu, Alex Grotowsky, da NKWD, irei buscar Ursula Chelminsky e sua filha Maria Teresa, às quatro em ponto. Que ficarão quatro dias fora do campo de concentração e que, depois, voltarão.

- Que cargo vai exibir? - perguntou Karol­wicky, cujo rosto estava pálido, como assustado. - Pode passar pelo camarada comissário, encar­regado do processo de Ursula.

- Secretário, será melhor - objetou Alex, es­fregando as mãos nervosamente. - Um comis­sário não vai, pessoalmente, recolher uma detida, como se fosse um oficial qualquer. Sou o secre­tário do comissário, lembre-se. Vou encher este impresso com a data de amanhã.

Karolwiclry levantou-se com esforço. Sua testa estava molhada de suor e o sapateiro já fumara todo o cigarro e lançava olhares ansiosos para o pacote que Alex deixava sobre o balcão. Final­mente, não podendo mais se conter, tomou outro com violência, respirando ruidosamente. Alex sorriu com benevolência.

- Tranquilizem-se, irmãos - disse com suavi­dade. - Todos nós passamos por momentos de­cisivos e vocês, talvez, mais do que eu. Só o que é preciso é calma, nervos controlados. Karol­wicky, faça o que eu lhe disse. Avise o campo que irei amanhã, às quatro horas. Telefone às três ou um pouco depois, para que não tenham tempo de pedir confirmação ao Comissariado.

- Bem, bem... - respondeu o funcionário, sorrindo com esforço. - Você é corajoso, irmão. Que Deus o ajude. 

E saiu rapidamente. Brdozi olhava fixamente para Alex, que examinava a rua, distraído.

- De acordo com as circunstâncias, voltarei para Varsóvia ou irei para Dantzig - disse, vol-tando-se para o sapateiro. - Mas, é claro, não voltarei para cá, para não os comprometer.

- Nessa casa você poderá ficar vários dias, irmão - disse Brdozi com calor. - Pertenço ao Partido, sou secretário da célula e sou bem con­siderado... pelos meus - riu com esforço. - Venha, se precisar.

Depois, Alex dedicou-se a encher o impresso do Comissariado da NKWD, em Varsóvia, redigindo, em seguida, o ofício ao comandante-chefe do cam­po de concentração de Mlociny. Quando tudo es­tava pronto, mostrou a Brdozi que os leu aten­tamente, enquanto sua mão tremia.

- Está perfeito - disse, devolvendo-o. - O selo, a assinatura, o número do registro de saída... Fala bem o russo?

- Sim. Meus pais me ensinaram e muitas ve­zes tive que falar russo, especialmente quando fiz parte da Comissão russa do Controle de Ber­lim, por parte dos americanos. Tenho sotaque de Moscou - riu, irônico.

No dia seguinte, Alex apresentava-se nas ofi­cinas do Parque Móvel da NKWD, em Towar-neia, subúrbio de Wola. O Parque estava insta­lado com profusão de barracões, onde havia car­ros de turismo autocarros, autos blindados com metralhadoras e até tanques leves do Exército Vermelho.

- Desejo ver o comandante Gavrow - disse secamente a um ordenança, que estava diante de uma mesinha. E mostrou-lhe seu "carnet" do Par­tido e o ofício do Comissariado da NKWD. - É urgente, camarada.

- Sim, camarada - o ordenança levantou-se, era um soldado soviético, fazendo a continência militar. - Sente-se.

Voltou dois minutos depois e fe-lo passar para um gabinete amplo, bem mobilado, em uma de cujas paredes havia um plano da cidade de Var­sóvia e na outra, em grande tamanho, um mapa da Polônia. Em ambos havia profusão de bandeirinhas, fios que os cruzavam em todos os sentidos e fitas que pendiam de certas bandeirinhas.

O comandante soviético, Gavrow, era de esta­tura mediana, obeso, de olhos oblíquos e nariz achatado. Seu olhar era duro, firme, e estava de pé, ostentando o uniforme do Exército Vermelho.

- Trago uma ordem do Comissariado para que me seja entregue um carro de turismo, ca­marada comandante - disse Alex,  estendendo o ofício. - É urgente.

O homem apanhou o papel e leu-o detida­mente. Alex tocou com o cotovelo esquerdo o coldre da pistola "Mauser" que trazia sob o bra­ço. Se aquele homem quisesse pedir confirmação telefônica ao Comissariado... Bem, teria que matá-lo, não haveria outro remédio.

- Com chofer? - perguntou o comandante, largando o ofício sobre a mesa. - Se é para ir buscar uma prisioneira...

- Posso fazê-lo sozinho, comandante. Uma mu­lher algemada não dará nenhum trabalho - dis­se, sorrindo, Alex.

- Alegro-me que seja assim. Tenho pouca gen­te disponível, nesse momento - apertou um bo­tão sobre a mesa, sentando-se. Alex também sen­tou-se, permanecendo rígido, de olhar fixo naque­le homem de raça mongólica.

- Um carro imediatamente, para o camarada secretário - ordenou Gavrow ao ordenança. -

Bem, aqui está, camarada. Quando devolverá o carro? Não demore muito, porque há bastante serviço.

- Nessa mesma tarde, camarada comandante. Obrigado - saiu rapidamente do gabinete, de­pois de fazer a saudação comunista. O ordenança, respeitosamente, andava à sua frente.

Chegaram diante de um barracão onde havia muitos carros negros, em cujas portas estava o emblema do Exército Vermelho russo.

- Sargento Titcherin, um carro para o cama­rada do Comissariado, da parte do chefe. Sem chofer.

- Bem. Dirige melhor nossos carros ou os americanos? - perguntou o sargento, encarre­gado  daquele barracão.

- É indiferente. Prefiro os americanos, se es­tão em bom estado - respondeu, secamente, Alex. - Mas é urgente, camarada.

O sargento mostrou-lhe um Chevrolet, modelo 1943. Ali havia um pouco de sua querida América, tão distante. Entrou nele e ligou o motor. Falhou duas vezes, sorrindo o sargento.

- Estes nos fazem o boicote, camarada - disse, rindo. - São imperialistas, também, e não nos pedem ver. Experimente outra vez.

Alex, muito severo, tornou a experimentar e o motor pôs-se em marcha. Arrancou sem se des­pedir.

Saiu em grande velocidade do Parque, enquanto dava um profundo suspiro. Já estava feita uma das coisas essenciais. Mas o perigo imediato subsistia. Se aquele comandante Gavrow tele­fonasse ao Comissariado e descobrisse todo o enredo, iriam esperá-lo no campo de concentra­ção e seria recebido a bala, ou detido, o que seria pior.

Tomou a estrada de Mlociny por Okopwkaia, para o norte da cidade. O Chevrolet, ainda com a carroçaria rangendo, corria bem e foi desen­volvendo quase o máximo de velocidade na es­trada asfaltada.

Passou por vários povoados, com edificações em ruínas, muitas delas mal reconstruídas, onde os camponeses trabalhavam duramente nos campos de plantação de batatas e trigo. Seus olhares voltávam-se sombrios ao verem o emblema do Exér­cito Vermelho soviético nas portas do carro, fa­zendo Alex sorrir.

Uma hora depois, passava pela cidade de Mlociny, também muito estragada pela guerra e se­guiu à direita, conforme lhe dissera Brdozi, en­trando em uma pista de terra, que conduzia ao campo de concentração.

De longe viu várias altas torres de madeira, que descreviam como um círculo extenso em redor de uma aglomeração de barracas grandes, de cor escura. Muito antes, várias fileiras de arames farpados, presos com postes metálicos, rodeavam, igualmente, o campo de concentração.

Entrou na estrada que conduzia à entrada prin­cipal. Havia ali duas guaritas cinzentas, com suas sentinelas armadas de metralhadoras. Ao fundo, um pavilhão de ladrilhos, onde estava o corpo da guarda. Um cabo soviético adiantou-se. Alex estendeu-lhe a ordem, que o militar leu.

- Entre. Naquele pavilhão, à direita, será aten­dido - disse concisamente.

O agente especial entrou nas oficinas onde tra­balhavam vários militares russos e algumas mo­ças de igual nacionalidade, de rostos duros, sérios, sem nenhum atrativo.

O capitão tomou a ordem, lendo-a atentamente. Alex, em pé, com ar desdenhoso, esperava.

- Faz pouco tempo que avisaram do Comissa­riado que você viria, camarada - disse o militar, deixando o papel sobre a mesa. - Vou dar ordem para que tragam essa mulher. Ela é dura de lascar, camarada - acrescentou, apertando seus olhos mongólicos. - Não conseguimos arrancar-lhe uma só palavra, apesar de a termos apertado ao máximo.

- Nós temos melhores argumentos - disse Alex, sorrindo também. - Se desta vez se negar a falar, irá para a Sibéria, para as minas. E vamos lhe tirar a criança. Não há mãe que resista a isso.

- Claro. Escute, Ogranoff - disse a um sub-oficial que trabalhava à sua frente: - traga Ursula Chelminsky e sua filha. Com a bagagem. Sente-se, camarada.

Alex sentou-se diante da mesa do capitão, que continuou seu trabalho. Alex pensou que seu plano estava dando bons resultados, até o mo­mento. Karolwicky, o funcionário do Ministério do Interior, havia agido muito bem, adiantando-se a dar a ordem de entrega de Ursula, por tele­fone. Tinha quatro dias disponíveis para fugir com ela, se antes não descobrissem a trama e não começassem a caçada.

Meia hora depois, entrou o sub-oficial Ogranoff no gabinete. Atrás dele vinha uma mulher alta, esbelta, talvez excessivamente magra, com um vestido cinza rasgado e cheio de manchas. Tinha a cabeça coberta por um pano colorido, multo sujo também, atado no queixo. Era muito bela, apesar da palidez, da sujeira e em seu rosto anguloso viam-se as marcas de rudes golpe? Seus imensos olhos castanhos, de olhar desafiante, superior, cravaram-se em Alex, faixado o es­tremecer. Trazia nos braços uma criança de tenra idade, de uns dois anos, muito magra, com as faces avermelhadas pela febre, parecendo dormir.

Aquela era Ursula, pensou Alex, comtemplando-a friamente, sem demonstrar emoção alguma. Era a pobre esposa de Chelminsky, que estava pagando o fato de seu marido ter fugido.

- Esta é a mulher, camarada - disse o ca­pitão, mostrando Ursula. - Você vai acompanhar Este camarada - disse, dirigindo-se a ela, secamente. - Vamos a ver se, desta vez, se mostra mais ajuizada, porque senão...

- Traz tudo o que é seu? - perguntou Alex, rudemente. - Tem que vir comigo.

Ursula encolheu os ombros e tomou um pacote formado por um grande lenço, atado nas pontas. Alex agarrou-a pelo braço, mas ela livrou-se com um puxão, com olhos brilhando selvagemente. O agente especial sorriu e deu-lhe um empurrão brutal. O capitão também sorriu.

- Tá uma fera, camarada - disse, franzindo o sobrolho.

- Tocê tem umas algemas? Eu mandarei de­volve-las. Essa bruxa bem pode tentar escapar - murmurou o agente especial, contemplando Úrsula com rancor.

O capitão entregou-as, junto com a chave. E colocou-as, fazendo com que ela pudesse continuar com a criança nos braços e sujeitando, também, a trouxa. Depois, deu-lhe outro empurrão, que a fez cambaloar.

- Boa sorte. Escute, camarada, seria melhor que essa deliciosa bonequinha não voltasse mais para cá - disse o capitão, rindo. - Ela tem estado tentando revoltar suas companheiras.

- Não acredito que volte - replicou Alex, sorrindo também. - Desta aqui, eu me encarre­go. Obrigado por tudo, camaradas.

Empurrou Ursula para a frente e saíram para a estrada. Obrigou-a a entrar no carro e sentar-se a seu lado. Ela, com os olhos cheios de lágrimas, de mandíbulas apertadas, olhava-o com feroci­dade.

Saíram do campo de concentração em boa velo­cidade, dirigindo Alex, impassível. A criança abriu os olhos e olhou-o demoradamente. Alex sorriu e, com a mão direita, fez-lhe uma carícia Ursula afastou a criança, rapidamente, apertando-a con­tra o peito.

Já estavam na estrada que levava a Mlociny e Alex diminuiu bastante a velocidade. De um dos bolsos tirou uma barra de chocolate, retirou o papel e ofereceu-o a Maria Teresa. Ursula em-palideceu e de seus belos olhos brotaram lágri­mas.

- Felicidades, senhora Chelminsky - disse Alex, com voz suave, carinhosa, estreitando as mãos dela, cujos punhos estavam apertados pelas algemas. - Creio que tudo vai bem. Está em liberdade.

Ursula olhou-o com desconfiança. Maria Teresa devorava o chocolate com avidez, de olhos fecha­dos. Alex tirou do bolso o relógio de Chelminsky e mostrou-o a Ursula, que empalideceu.

- Seu marido está em Munique, Alemanha Ocidental e venho da parte dele para levá-las para lá - disse Alex, sorrindo. - Quer acre­ditar em mim?

Ursula estava bastante desconfiada. Os agen­tes da NKWD já lhe haviam dito isso, além de outras coisas também engenhosas, para que ela confessasse onde se encontrava Julian e também para que denunciasse outros camaradas. Depois, haviam apelado para os golpes, para os castigos, para os interrogatórios ferozes, mantendo-a em pé, sem consentir que se sentasse durante dias inteiros, num quarto onde só assim se podia ficar.

- Ele me deu a contra-senha que é "Pade-rewster", para que eu me desse a conhecer à senhora. Estou com Sérgio Brdozi, o sapateiro, e Basil e Mlava. Sou seu amigo, acredite. Sou polonês-americano e prometi a Julian que a leva­ria para seu lado, junto com Maria Teresa. Pode acreditar em mini.

Ursula olhava-o profundamente, com o corpo todo tremendo pela emoção. Mas tinha tanta ex­periência... Não se atrevia nem sequer a falar.

- Vou levá-la para a casa de Brdozi. Preciso devolver o carro ao Parque, Ursula, acredite em mim, por favor! Sou seu amigo - parou o carro e contemplou-a com compaixão, enquanto ela o olhava friamente. - Depois, eu lhe tirarei as algemas. Deixo-as para dissimular, para o caso em que a Polícia nos detenha. Alegre-se, por favor, porque, se Deus quiser, todos os três nos salvaremos. Julian me falou na senhora. Disse que quando se casaram foram para Cracóvia e se embebedaram com vodca e que a senhora queria sair para a rua vestida de homem e ele de mulher, para irem a um baile. E, como ele não quis, a senhora ficou furiosa.

Ursula estremeceu. E lágrimas brotaram de seus olhos imensos. Aquela história derreteu o gelo que lhe envolvia o coração, pelo temor e pela desconfiança.

- Deus meu, obrigada! - exclamou com voz trêmula, soluçando. - Obrigada, obrigada! Que­ro acreditar que o senhor seja seu amigo... Como está Juljan? Como conseguiu vir aqui e fazer tudo isso? Quem é o senhor?

- Julian está bem, embora muito angustiado. Levou um mês para chegar a Berlim e estava can­sado, faminto. Mas está bem. Eu lhe disse que tentaria chegar aqui e levá-las para o lado dele. Deve acreditar em mim, Ursula, confiar em mim. Sou um agente do Governo americano, nascido na América e de pais. poloneses. Meu nome é Alex Grotowsky - tirou outra barra de choco­late e entregou-lha, depois de retirar o papel. Ela quis dar para a filha que dormia, mas Alex colocou-a em sua boca, rindo, Ursula viu-se obri­gada a mastigá-la, contendo, a duras penas, sua ânsia de devorá-la. Estava faminta, depauperada e o agente especial sentiu uma profunda angústia.

- Obrigada, Deus meu! - murmurou ela, lim­pando as lágrimas nos trapos que cobriam sua filhinha. - Obrigada, Alex. Diga-me como está Julian, meu pobre querido... eu teria morrido alegre por ele. Só minha filha é que me retinha. Ela está doente, tem febre. Foi surrada diante de mim, como se ela tivesse alguma culpa.

- Agora aparente indiferença. Como se esti­vesse, realmente, detida. Vamos passar pelo con­trole da entrada de Varsóvia. Não se assuste, se eu me mostrar bruto como antes.

- Nada me assusta agora, Alex. Só esse exces­so de felicidade - murmurou ela, limpando, apressadamente, as lágrimas. - Não se está comprometendo muito por minha causa? Deus o abençoe! É comunista?

- Tanto quanto a senhora - disse Alex, rindo. - Sou cristão, católico. Acho que foi por isso que me decidi a vir. Pensei que Deus nos ajudaria e com Ele tudo sairá bem. Ânimo, Ursula, que já falta pouco!

O carro parou diante de uma barreira formada por arame farpado, em plena estrada. Um solda­do soviético e um policial polonês avançaram para o veículo. O soldado russo tomou o documento que Alex lhe estendia e leu-o. O policial polonês lançou um olhar enviezado para a moça, que sorriu levemente.

- Adiante, camarada - disse o soldado, fa­zendo continência. - Quer que um dos nossos vá junto para cuidar dessa cadela?

- Desta? - exclamou Alex, brutalmente, dan­do um golpe no ombro de Ursula. - Está alge­mada, mas se ela tentar fazer qualquer coisa, vai direto para a Sibéria.

Arrancou o carro velozmente. Ursula sorriu, olhando-o com admiração.

- Desculpe. Eu não a machuquei? - disse Alex, envergonhado. E ela negou com um gesto de compreensão e de alegria.

- Acha que comprometeremos muito a Brdozi, se eu a levar para a casa dele? - perguntou o agente, enquanto conduzia o carro pela Norolewskaia, em direção ao sul da cidade.

- Não o creio. Mas, se assim fosse, tenho muitos lugares para onde ir e ficar escondida Vários dias. O que mais eu sentiria era se o senhor... - murmurou Ursula, com voz como­vida. - É quase inconcebível que tome tanto in­teresse por nós, sem nem nos conhecer.

- Estamos chegando em Wraskaia - inter­rompeu-a Alex, sorrindo. - Seria conveniente que saltasse e fosse andando até a casa de Brdozi. Os vizinhos iriam estranhar, se vissem um carro oficial parando ali e nós três saindo dele.

- Sim, sim - concordou a moça. - Mas deve me tirar estas algemas odiosas - estendeu-lhe as mãos e Alex abriu-as, deixando-a livre.

- Desça. Eu vou entregar o carro no Parque e voltarei em seguida.

Ela obedeceu, apertando a filha contra o peito. Antes de começar a caminhar lançou um olhar de gratidão para Alex. Este sorriu, fazendo um gesto com a mão. E partiu veloz para o Parque Móvel, no bairro de Wola.

O sargento recebeu o carro e Alex voltou, a pé, para a casa de Brdozi. Era um bom passeio e o agente especial aproveitou-o para examinar a capital, suas ruas e suas casas. A impressão era por demais penosa, já que Varsóvia não passava de um monte de ruínas em quase um terço da cidade. Havia edifícios oficiais, governamentais, que estavam sendo reconstruídos embora lenta­mente, com grande pobreza de recursos. A pró­pria Berlim, comparada com aquela cidade, pa­recia mais bonita, muito mais animada e alegre.

Os varsovianos não ocultavam seu constante mau humor, seu ódio ao invasor. Andavam apres­sados pelas ruas, de cabeças baixas, como lamentando-se por terem de sair de sua casas destruí­das, onde viviam mergulhados em deveres e obrigações inevitáveis. Não se viam grupos de pessoas conversando, nem homens sentados nas mesas dos cafés, os transportes passavam cheios, rangendo, mas ninguém falava.

Tudo estava coletivizado. As lojas não expu­nham nada nas vitrinas. Havia grandes filas para comprar comestíveis racionados, roupas, calçados velhos. Não havia quase cinemas abertos, onde se podiam ver filmes soviéticos nos que funcionavam e que ninguém desejava ver. E grupos de policiais poloneses e soviéticos. E ho­mens à paisana, de rostos duros, que não podiam ocultar sua condição de alçaguetes.

Na praça Vermelha havia um monumento aos combatentes poloneses, tombados na última guer­ra, lutando contra os alemães. Mas, no meio, havia um busto em bronze de Stalin. Durante muito tempo, todas as noites, aquele busto ama­nhecia no chão, derrubado por mãos misteriosas e os rostos dos poloneses vermelhos, mortos, eram cobertos com uma crosta de barro. Foi preciso estabelecer uma vigilância contínua, dia e noite, para evitar que Stalin passasse mais tempo no chão do que em seu pedestal.

Alex comprou, com algumas precauções, víveres das mulheres e homens que os vendiam a preços altíssimos, num mercado negro permitido. Ofereceu dólares americanos e os negociantes o encheram de pacotes, contentes com aquele di­nheiro que, ainda ali, tinha um valor imenso. Pão, presunto, conservas, legumes, cigarros, café, tudo isso tirado pelos russos dos enormes depó­sitos de sua Intendência Militar.

Na casa de Brdozi tudo era regozijo, embora muito silencioso. Quando o agente especial en­tregou os pacotes, então tornou-se mais ruidoso.

- Foi formidável, moço - disse o sapateiro, que guardou dois pacotes de cigarros americanos, logo que Alex lhos ofereceu. - Isso nos teria custado meses inteiros, com o evidente perigo de um fracasso. O FBI é maravilhoso. Ursula e a filha estavam dormindo, depois de terem-se fartado de comer farinha de soja. Mlava devorava barras de chocolate, agora sem nenhu­ma repugnância e Basil fumava, incansável, seu cachimbo, bem cheio de fumo.

- Agora é preciso planejar a fuga – disse Alex. - Eu avisei, no campo de concentração, que Úrsula não voltaria antes de quatro dias, ou talvez, nunca mais.

Karolwicky entrou, muito pálido.

- Foi tudo descoberto, Grotowsky - disse, com voz trêmula. - Já andam atrás de vocês....

Brdozi, muito pálido, deixando de fumar um instante. Alex  sorriu,  embora percebesse, perfeitamente, que seu generoso esforço estava a ponto de desmoronar. Estava ' acostumado a vencer obstáculos e aquele não o assustava demais.

— Como foi? — perguntou ao funcionário do Ministério do Interior, que se sentara e fumava aflitivamente, com os olhos postos no chão. - Foi por casualidade, naturalmente...

- Isso mesmo. Um dos inspetores perguntou ao chefe do campo de concentração se havia mo­vimento de prisioneiros, antes de dar o relatório diário de "existências" e, então, disseram-lhe que Ursula e a filha haviam saído, reclamadas por um secretário, para interrogatórios e "diligên­cias". O inspetor pôs a boca no mundo, porque, antes de mais ninguém, ele devia saber se uma prisioneira tinha ou não que sair, e ele não dera nenhuma autorização para Ursula. Do campo le­ram o ofício do Comissariado e disseram que alguém, por telefone, ratificara a ordem e que um carro oficial apresentara-se, com o secretá­rio, para recolher Úrsula.

Alex começou a rir alegremente, ante a estu­pefação de Karolwicky, que não via graça ne­nhuma no incidente. Brdozi também estava de cara fechada, preocupado.

- Você telefonou para o campo, como eu lhe disse? Com alguma coisa tapando a boca, para disfarçar a voz? - perguntou o agente especial ao funcionário.

- Meti uma moeda na boca e modifiquei a voz, mas agora estão atrás do que deu o recado por telefone. Tomei minhas precauções, mas não sei...

- Não receie nada. Eles não podem saber se falaram do Ministério ou de outro lugar qualquer. Como coincidiu com minha chegada, minutos de­pois, no campo não puderam tomar precauções para saber de onde telefonou. Se lhe pergunta­rem, negue, negue sempre. Deus o ajudará por­que é uma boa causa.

Karolwicky assentiu silenciosamente. A tran­quilidade e o sangue-frio de Alex influíam gran­demente sobre ele, dando-lhe confiança. Brdozi passeava pela sala, de mãos às cestas e cigarro nos lábios. Basil, sentado, fumava nervosamente, pensativo..

- Temos que ver se Maria Teresa está em condições de pôr-se a caminho - disse, depois, Alex, sentado numa ponta da mesa. - Não po­deria ser examinada por um médico?

- Vou trazer um de confiança - disse Sérgio. - Acho que o que ela tem é anemia. Estão mortas de fome, mãe e filha. Como nós todos... - encolheu os ombros, continuando a andar.

- Ande, Mlava - disse Basil à filha. - Vá buscar o doutor Kolsky e diga-lhe que venha ime­diatamente.

A moça saiu, continuando a comer chocolate.

- Se ele disser que podemos partir, sairemos imediatamente - disse Alex, pensativo.

- Eu acho que, agora, é que não deviam sair. A estas horas, a NKWD está telefonando para todas as cidades da Polônia e vilas importantes, dando instruções para que os detenham. Uma mulher, um homem e uma criança de dois anos... é bastante fácil, irmão - disse secamente Brdozi, parando diante de Alex e olhando-o fixamente.

- Esta noite vão ser detidos centenas de nossos irmãos para serem interrogados. Muitos cairão... Você os enganou muito bem e isso os deixa fu­riosos.

- Mas eu não posso ficar esperando meses e meses até que a NKWD abandone esse caso, o que nunca fará definitivamente - objetou Alex, acendendo um cigarro. - Penso que po­derei engana-los, mesmo diante de seus narizes.

Brdozi e Karolwicky olharam-se com espanto e Basil sorriu astutamente.

- Não poderá tomar um trem, nem um ônibus, nem um carro, nem um táxi, nem um barco -exclamou Brdozi, encolhendo os ombros. - Eles o esperam em todos os controles das estradas, se for a pé. Espera que venha um avião ameri­cano, protegido por caças? Sendo assim...

- Bem, bem... - respondeu Alex, sorrindo.

- Resta o campo, os atalhos, a noite, os campo­neses ... Se eu pedir abrigo na casa de um cam­ponês, ele me denunciará?

- Não. Pode crer que não. Mas poderia acon­tecer que, se visse perigo no fato de o esconder, ele se recusasse. Eles temem as represálias. Um operário não pode ficar pior do que está. Um camponês vê sua colheita arrasada, seus ani­mais mortos, sua choça ardendo e ele fuzilado, e não o delata, mas não o ajuda. Se puder, sim. Os russos tratam-nos melhor do que os da cidade.

- Eu tenho dólares - disse Alex, ostentando sua carteira, orgulhosamente. - E aqui também impera nossa moeda. Por cinco dólares consegui trazer tudo isso que vocês vêem.

Pouco depois voltou Mlava, acompanhada por um homem de idade, de cabelos brancos, rosto enrugado e alegre.

- Deus os guarde - disse, lançando um olhar de assombro e cobiça para os pacotes de cigarros.

- Hum! Fumo e do bom!

- É o doutor Kolsky - disse o sapateiro e tomou um maço de "Chesterfield", que lhe en­tregou.

- Deus lhe pague - respondeu o médico, ti­rando, com mão trêmula, um cigarro e acendendo-o apressadamente. - Quem está doente?

- A filha de Úrsula. Está com febre e...

- Mas, ela está aqui? - exclamou o médico, com assombro. - Aqueles amaldiçoados a liber­taram?

- Estão ela e a mãe. Fugiram, Kolsky. Já sabe: nem uma palavra - murmurou Brdozi. - Passe para o quarto.

- Agora eu compreendo - respondeu o velho.

- Por isso é que há tanta polícia pelas ruas. Revistam todo o mundo e eu vi os da NKWD entrando, à força, em algumas casas, perto da­qui. Deus nos proteja! Vamos, vamos, irmão.

Ele e o sapateiro entraram no quarto onde estavam Ursula e sua filha.

- Escute, Karolwicky - disse Alex, que estava sentado, entregue a profundas meditações. -Você conhece, ou algum de seus amigos, alguém que dirija caminhões para fora de Varsóvia?

- Eu conheço vários, que estão numa empre­sa coletivizada - respondeu Basil. - São gente nossa. As vezes nos trazem farinha...

- Eu também. Há três irmãos que são chofe­res do Ministério e que vão às províncias buscar víveres para os funcionários, para os dirigentes. Por quê?

- Pode ser um meio de sair daqui - respondeu Alex, pensativo. - Se eles concordarem em nos levar, é claro. Podemos ir escondidos entre os mantimentos. Imagino que a Polícia não re­vista estes caminhões oficiais.

- Não creio. Mas é difícil que o deixem na fronteira. Não costumam ir ate a Alemanha - disse Karolwicky.

- Não importa. Iremos por etapas. Agora que­ro ir a Berlim, mais do que a Dantzig. Seria um grande problema poder encontrar uma em­barcação que atravessasse o Báltico até a Sué­cia. Se não nos tivessem descoberto tão depressa, eu não teria mudado de programa. Bem, é pre­ciso que vocês entrem em comunicação com al­guns desses motoristas. Eu darei cem dólares a quem nos levar o mais longe possível daqui, com úrsula e a menina, e o mais cedo possível.

- Cem dólares! - exclamou Basil, arrega­lando muito os olhos. - Se eu tivesse um cami­nhão!

O doutor Kolsky voltou, seguido por Brdozi. Fumava com rapidez assombrosa, acendendo um cigarro no toco do outro. Sorriu para Alex.

- Não tem nada de grave, a não ser que se considere grave entre nós o fato de ter uma fome canina e fraqueza. Claro que se a menina con­tinuar assim mais um tempo, vai morrer, como estão morrendo, aos milhares, esses anjinhos - encolheu os ombros, desalentado. - Não tem nada, boa comida, se puder, e logo ficará bem.

- E a febre? - perguntou Alex.

- Não é febre, propriamente dita. É fraqueza, com seus estados febris, desmaios, o pulso que quase nem se sente. Comida, comida...

- E Ursula? Foi bem maltratada...

- É forte e continua forte, embora esteja debilitada. Comida, comida... - repetiu Kolsky, sorrindo. - Se houvesse vitaminas, cálcio, seria bom para elas, mas isso fica só para os invasores e suas famílias.

- Nós poderíamos nos pôr a caminho, com algumas dificuldades, amanhã mesmo? - per­guntou Alex ao médico.

- Comida, comida, amigo. Se puderem comer, claro que podem. Uma vez livres, seus males baixarão de noventa por cento. O mesmo acontece com todos nós. Falta de comida e excesso de medo, de terror.

Alex entregou ao médico mais dois pacotes de cigarros. O velho os tomou, murmurando agra­decimentos com voz comovida.

- Não vou fumar todos, irmão. Hã doentes que ficariam bons, se eu lhes der alguns cigarros. E com eles podem comprar ovos, pão... Que Deus o abençoe, irmão, e que o ajude nessa empresa.

Quando Brdozi voltou, depois de ter acompa­nhado o médico, Alex expôs-lhe seu projeto de sair de Varsóvia em algum caminhão que fosse para o interior, em direção à fronteira alemã. O sapateiro olhou-o com admiração.

- Eu não tinha pensado nisso - disse, acen­dendo um novo cigarro. - Pode-se arranjar, sim. Temos irmãos que dirigem caminhões. Até o farão de graça, garanto. Se você lhes der alguns dólares, melhor ainda. Basil, não sabe quando sai o caminhão de Warcha? Ele vai buscar víveres para o chefe do Comitê Central do Partido Comunista. É um moço decente, Alex. E não encontra obstáculos no caminho, porque leva uma documentação de primeira classe, como pode compreender. Vai com outro camarada, também de confiança.

- Vou me informar - disse Basil, levantando-se.-— Escute, Alex: posso pegar um pedacinho de presunto e de pão? - acrescentou em tom suplicante, olhando, com ansiedade, para os peda­ços de pão que estavam sobre a mesa.

- Isso é de todos, irmão - respondeu Alex, sorrindo. - Pode apanhar o que quiser. Tome - deu-lhe algumas notas de dez dólares. - Traga mais, já que vai sair.

Basil cortou um bom naco de presunto que meteu no meio do pão. Karolwicky, com olhar suplicante, adiantou-se e imitou-o, enrolando-o num papel e guardando-o no bolso.

- E para minha mulher e minha filha - disse com voz comovida. - E que Deus lhe pague, irmão. Nós todos vamos sentir muito sua falta.

Alex riu, comovido. Compreendia, em todo seu horror, o sofrimento daquela gente. Basil e Ka­rolwicky retiraram-se.

- Eu poderia entrar para ver Maria Teresa? - perguntou Alex a Brdozi.

- Claro que sim. Estão deitadas, mas pode entrar.

O agente especial bateu na porta.

- É Alex - disse com voz suave. - Posso entrar?

- Sim, Alex. Entre - respondeu Ursula. Ela estava sentada na cama, envolvida em alguns trapos. Junto a ela dormia a criança, Ursula, já lavada e penteada, estava mais bela, com seu branco rosto mais animado. Sorriu com gratidão ao ver Alex, que se aproximou lenta­mente, arrastando uma cadeira para o lado da cama e sentando-se.

- Está melhor, não é? - disse em voz baixa, para não acordar Maria Teresa. - O médico disse que sua filha só o que tem é... um pouco de apetite - riu desajeitado. - E que quando comer tudo o que precisa, vai ficar boa.

- É isso mesmo. No campo de concentração, "esqueciam" de nos dar comida, para me casti­garem por ser rebelde. Que Deus lhes perdoe suas maldades. Não sei como lhe agradecer, Alex, por tudo isso... - olhou em volta, en­quanto as lágrimas rolavam de seus belos olhos.

- Especialmente por minha filhinha.

- O descanso vai durar pouco, Ursula - res­pondeu ele, sorrindo. - Temos de sair de Varsó­via, o mais cedo possível. Logo que nos disserem que há um caminhão para sair. Basil e Karclwteky estão fazendo os arranjos. Sente-se com coragem para isso?

- Estou tão desesperada que faria as coisas mais absurdas, com o fim de salvar Maria Te­resa. Não receie por nós, Alex. Se eu sinto medo, precipitação ou remorso, é só por sua causa. Sua bondade é sublime. Juljan e eu jamais lhe pode­remos pagar esta dívida.

- O essencial é que tenhamos êxito, Ursula - disse ele, gravemente. - Eu acredito que sim, mas só Deus pode saber.

Na porta embaixo soaram fortes golpes, Ursu­la e Alex olharam-se com inquietação. O agente especial levantou-se e saiu apressado do quarto. Com a mão direita apalpou a pistola "Mauser", que guardava no peito.

Brdozi preparava-se para ir abrir, mas estava um pouco pálido. Alex acompanhou-o até a porta. O sapateiro perguntou, antes de abrir:

- Quem é?

- Abram para a NKWD! - disse uma voz grossa, num mau polonês. - Abram!

Sérgio dirigiu um olhar desesperado para Alex, que lhe indicou com um gesto que devia abrir. Não fazê-lo seria pior.

Entrou um homem, vestido à paisana, alto, forte, com as mãos metidas nos bolsos de uma espécie de capote cinzento. Usava um gorro da mesma cor, no qual havia uma estrela vermelha de cinco pontas. Alex olhou para a escada, obser­vando que aquele homem, de rosto impassível, não vinha seguido por outros.

- Documentos - disse o agente, secamente, entrando no corredor e dirigindo-se para a sala, sem tirar as mãos dos bolsos do capote. - Va­mos, os seus - olhou para Brdozi, que meteu a mão dentro do paletó, tirando uma carteira, da qual extraiu seu "carnet" do Partido. O soviético examinou-o, sem tirar as mãos dos bolsos.

- É um intruso no partido, não? - disse, sorrindo com maldade. - Seus documentos - disse, depois, examinando Grotowsky dos pés à cabeça.

- Quantas pessoas vivem aqui? Que saiam as mulheres e crianças...

Alex não f-z nenhum movimento para mostrar seus documentos. Estavam em seu nome e isso bastaria para que aquele homem o detivesse imediatamente. Brdozi, muito pálido, olhava an­sioso para Alex, compreendendo sua terrível di­ficuldade.

- Vamos de uma vez! - exclamou o agente, observando Alex com desconfiança. - Não tem documentos para mostrar?

- É um parente meu, que acaba de chegar de Lemberg - explicou Brdozi, com voz calma.

- Deixei seu "carnet" no Setor do Partido, para que a visassem- Ele é do Partido, camarada.

- Vai me acompanhar, para vermos se isso é verdade - respondeu o policial. - Que ban­quete vão dar, amigos! - exclamou, depois, vendo os alimentos sobre a mesa. - Bem, vou revistar a casa. Procuro uma mulher e uma criança de dois anos. Não estão aqui?

Brdozi e Alex permaneceram mudos. O policial olhou-os fixamente e deu um passo para o quarto de Ursula. O sapateiro apertou os punhos com raiva, lívido. Alex deixou-o passar, sorrindo diabolicamente. E quando ficou nas costas do sovié­tico, tirou a pistola e com a coronha descarregou-lhe um tremendo golpe na cabeça.

O russo levou ambas as mãos à parte ferida, lançando um gemido. Um segundo golpe que Alex lhe propiciou, com redobrada fúria, fez com que ele cambaleasse, estendendo os braços para a frente. E o agente especial golpeou-o de novo, espantado com a dureza daquela cabeça.

- O que aconteceu? Sérgio! - gritava Ursula, do quarto. - Sérgio!

Brdozi inclinou-se para o russo. Ergueu a cabe­ça para olhar aterrorizado Alex, que estava muito pálido, porém calmo.

- Está morto, não é? - disse em voz rouca. - Não havia outro remédio...

- Está morto, sim - murmurou Brdozi, sol­tando o pulso do russo. - Deus nos proteja, irmão! Se vierem outros agentes...

- Vamos, depressa! Deixe que eu o tire da casa! Ponha-lhe um trapo, alguma coisa sobre a cabeça, para que não escorra sangue na escada e para que não me manche! - disse Alex, preci­pitadamente.

- O que foi que houve, Alex? Sérgio! - gri­tava Ursula, ansiosa. - O que foi?

Brdozi, nervosamente, saiu correndo pelo corre­dor, arquejando angustiado. Voltou com uma ve­lha toalha, suja. Ajoelhou-se e, ajudado por Alex, fizeram uma espécie de turbante, que aplicaram no ferimento, contendo a hemorragia. Depois, puseram-lhe o gorro, forçando para enfiá-lo na cabeça do morto. Seus oblíquos olhos estavam muito abertos, sem brilho.

Alex colocou-o nas costas, com as pernas do morto pendendo em seu peito. Brdozi abriu a porta.

- Veja se há um carro diante da porta - sussurrou Alex. - Depressa!

Brdozi avançou, descendo a escada silenciosa­mente. Alex esperou, suportando nas costas o peso do morto.

- Pode descer - disse em voz baixa o sapa­teiro, aparecendo no vão da escada. - Veio só, é incompreensível!

Alex desceu apressado a escada, transportando sua carga sinistra. Atravessaram o portal apres­sados, saindo para a rua escura.

- Para as ruínas daquelas casas! - exclamou o sapateiro, indo na frente de Alex e empunhando um revólver. - Quer que eu o ajude?

- Não. Olhe bem, para ver se vem alguém - murmurou Alex, caminhando depressa, como se não levasse o cadáver de um homem forte e alto.

Atravessaram a rua, sem iluminação, deserta, silenciosa. E Brdozi foi guiando-o por entre as ruínas de alguns edifícios, afastando-se de sua casa.

- Quanto mais longe, melhor - disse o sapa­teiro.

Iam subindo e descendo por entre as ruínas, com muros que pareciam fantasmas imóveis, com janelas vazias.

- Ali, no fim daquele pátio - disse o sapa­teiro, sempre na frente. - Entre o monte de ladrilhos. Largue-o ali...

Alex jogou o cadáver no chão. Mas inclinou-se, revistando-o. Tirou-lhe uma pistola automática, três pentes e a carteira. Depois, ambos deram começo à terrível tarefa de jogar ladrilhos e casca-lhos sobre o cadáver, que já estava metido num fosso. O terreno logo ficou nivelado e sobre ele jogaram mais ladrilhos, terra, cascalhos, até for­mar um monte como o que havia ao lado.

- Vão custar para encontrá-lo - disse Brdozi, em voz rouca. - Deus nos perdoe o que fize­mos...

- Ele nos teria mandado, a todos, para o pelo­tão de fuzilamento - disse Alex, ofegante. - A luta estava assim planejada, irmão, e o Senhor dará a cada um o que merecer,  vamos.

Dando uma volta por entre as ruínas, voltaram lentamente para a casa, sempre receosos, prontos para a luta, se fosse preciso.

Brdozi abriu com sua chave a porta. No corre­dor, Ursula, com um velho vestido, estava sen­tada, soluçando. A mulher de Basil e sua filha lavavam o sangue da sala.

- O que foi que fizeram? - perguntou ela, espantada. - Mataram o...

- Sim. Um agente russo, filha - murmurou o sapateiro, fazendo um gesto de desalento. - Vinha atrás de você. Ou morria ele, ou todos nós.

- Deus meu, sempre sangue, sempre terror! - exclamou a moça, desesperada. - Que mal nós lhes fizemos? Por que temos de lutar como feras, sem compaixão, sem nos lembrarmos de Deus?

- Volte para a cama, filha - disse o sapa­teiro, tomando-a pelos ombros. - Não se deixe levar pelos nervos. Sempre foi assim, desde 1939, não sabe? Ande, ande...

Pouco depois voltou Basil, carregado de pacotes, muito contente, com um cigarro americano nos lábios.

- Isto é que é vida! - exclamou, soltando os viveres sobre a mesa. - Escute, Alex, ama­nhã de tarde, ao anoitecer, sai um caminhão para Kutno, a uns cem quilômetros daqui. Vai vazio, com sacos para trazer farinha.

- Pode nos levar? - perguntou Alex, ansioso.

- Sim. É um polonês e, naturalmente, do Partido. Vai com outro camarada e pertencem ao serviço de abastecimentos do Comitê Central. Não costumam ser molestados pela polícia das estradas. Se se mostrarem exigentes, eles lhe darão um pouco de farinha ou de trigo, e logo se conformam.

- Graças a Deus! - exclamou Brdozi. - Mas isso é só uma etapa, irmão - e olhou an­gustiado para Alex. - E, depois, até Berlim?

- Logo veremos. Acho que o pior é ficar aqui, sem sair e expostos a novas revistas.

- Revistas? - exclamou Basil, estalando os dedos da mão direita. - Vocês nem sabem de nada. Parece que toda a NKWD está, esta noite, nas ruas, sem faltar um só.

- Um vai faltar na lista - respondeu Alex, sorrindo cruelmente. - Sérgio que o diga...

O dia seguinte, quase ao anoitecer, Alex es­perava com impaciência o caminhão no qual devia partir com Ursula e a menina. Tinham combinado que o veículo pararia em fren­te da casa, quando a escuridão fosse quase total.

Brdozi, Basil, sua mulher e Mlava estavam sen­tados na sala de jantar, esperando, com tristeza, o momento das despedidas. Alex trouxera-lhes, a todos, uma nova coragem para viver, alegrias, esperanças e com sua generosidade, bem ameri­cana, enchera-lhes a despensa de víveres, que há muito tempo eles não viam.. O jovem trouxera consigo mais de dois mil dólares que, trocados uns quinhentos em "zlotys", fizeram uma soma fabulosa. O sapateiro ficou com eles para conti­nuar comprando mais víveres, fumo, roupas e calçados para seus amigos.

O noite chegou e Alex, de rosto grudado à janela, olhava as sombras da rua. Ursula fazia sua filha dormir, como sempre num grande estado de fraqueza. Os demais, calados, escutavam atentamente, esperando a chegada do caminhão.

E, repentinamente, ele chegou. Uma buzina soou, fortemente, duas vezes. Alex viu os faróis pequenos, de cidade. Era grande, fechado. De novo soou a rouca buzina, com impaciência.

- Vamos, Ursula! - exclamou Alex, com voz comovida. Tomou sua maleta, sorrindo. Brdozi, Basil sua mulher, Mlava, todos ao mesmo tempo, soluçando, jogaram-se-lhe em cima, beijando-o, abraçando-o. Depois, chegou a vez de Ursula, que também chorava.

- Que Deus os proteja - murmurou Brdozi. em voz rouca. - Alex, você foi um anjo para nós. Nunca vi um homem tão bom e nobre como você. Se puder, faça-nos saber que chegaram bem, como eu imploro ao bom Deus.

- Adeus, adeus - disse Alex, sorrindo. - Vamos, Ursula, vamos...

- Que Deus os proteja! - exclamou Basil, cho­rando.

- Que Deus nos proteja a todos! Venham, logo, para a Polônia! - disse Mlava, de mãos postas e começou a rezar, de joelhos.

Desceram as escadas silenciosamente, para que os vizinhos não escutassem seus passos. Brdozi tambem desceu, colocando uma de suas mãos no ombro de Alex e apertando-o com força.

Atravessaram, rapidamente, a rua. O ajudante do motorista, ao vê-los, saltou do carro e foi baixar a tampa traseira do caminhão.

- Depressa, irmãos! - disse em voz baixa. - Metam-se no fundo. Ali há lugar onde podem ir deitados ou sentados. Nada de barulho, sim? A criança, quietinha, senão pode nos perder a todos!

Brdozi, soluçando baixo, abraçou-se desesperadamente a Alex, a Ursula e beijou, com ternura, a adormecida Maria Teresa.

- Deus os acompanhe - murmurou.

No fundo do caminhão, entre os vultos dos sacos de farinha, vazios, havia dois nichos, bem dissimulados, Ursula foi içada e levada para o esconderijo. Alex seguiu-a. O ajudante jogou vá­rios sacos vazios por cima deles, arrumando outras pilhas mais.

- Se precisarem de alguma coisa, batam na parede da cabina - disse.

E desceu imediatamente. O motor pôs-se em marcha, roucamente.

- Adeus, irmãos - disse Brdozi.

E o veículo partiu em grande velocidade.

- Está bem, Ursula? - perguntou, encorajadoramente, Alex. Aqui está bem macio.

- Estou bem, Alex - respondeu ela, com voz trêmula pelo pranto. - Que Deus nos ampare, especialmente a você, que é tão bom e corajoso.

- Estão bem? - a voz do motorista ouviu-se, quando correu uma janelinha da cabina, que dava para o interior. - Por amor de Deus, cuidem para que a criança não chore e nem fale!

- Pode ficar descansado - afirmou Ursula, - Obrigada por tudo, irmãos. Muito estão se comprometendo por mim e por minha filhinha.

- Não é a primeira que levamos para fora daqui - disse, rindo, o motorista. - Cada um deve servir como puder à nossa boa causa.

- Cigarros? - disse Alex, estendendo o pa­cote ao homem, que os aceitou alegre. - A que horas chegamos a Kutno?

- Pelas doze. Veremos se é possível levá-los mais longe. Acho que as estradas estão muito vigiadas, por causa de vocês. Foi uma fuga sen­sacional - riu o polonês - e que deixou os outros furiosos.

Fechou a janelinha e o caminhão acelerou a marcha. Alex acendeu um cigarro e procurou lançar a fumaça pela fresta da carroçaria. Ouviu que Ursula rezava baixinho. E os roncos abafados de Maria Teresa, nos braços da mãe.

Um momento depois, o caminhão parou. Alex tirou a pistola que trazia sob o braço, atento ao que poderia acontecer.

- Vai sem carga, Mirsky? - dizia uma voz em polonês, com mau sotaque.

Devia ser um russo, em algum posto de con­trole, nos arredores da cidade.

- Sim, camarada. Vamos buscar trigo e fari­nha - respondeu o motorista. - Quer alguma coisa? Um saco de batatas?

- Pois, homem, sim. Se o preço for bom. Es­cute: não levam ninguém? Temos ordens severas de revistar tudo quanto sair. Houve uma fuga no, campo de concentração de Mlociny e se ten­tarem fugir...

- Reviste, se quiser - respondeu, rindo, o motorista.-— Ande, Igor, abra o caminhão, atrás, para que o camarada possa entrar.

Ursula estendeu o braço e tocou no rosto de Alex, que lhe estreitou a mão suavemente. Seus corações pareciam paralisados. - Deixe, deixe - disse o russo. - Não esqueça as batatas. Na volta eu lhe pago.

- Amanhã de manhã - respondeu o motorista, pondo o caminhão em marcha.

O ronco do motor aumentou, trepidando o ca­minhão sobre o esburacado asfalto da estrada.

- Um pequeno susto, hem? - disse Igor, abrindo a janelinha. - Se isso tornar a acon­tecer, não haverá outro remédio do que atirar, irmão, e nós faremos o mesmo. Isso em caso de desespero.

- Está bem - respondeu Alex, com um sorriso frio. - Eu já estava preparado.

- Vamos ter que parar diante de mais dois postos de controle. Mas todos são amigos... como aquele desgraçado russo que quer batatas para vendê-las por um preço absurdo. Um dia nós lhe cobraremos...

Fechou a janelinha em seguida. Alex refletia profundamente. A situação era grave. Uma vez poderia ser evitada a revisão, mas outras talvez não e, então, teria que arriscar tudo, usando uma violência selvagem para defender aquelas vidas que ele se comprometera a levar para a distante Alemanha, para Munique. Sim, ele era um ro­mântico... um impulsivo que se metera numa complicação terrível, fazendo renascer as espe­ranças no pobre Julian Chelminsky, em Ursula. Até agora tudo havia corrido bem; mas, na ver­dade, até aquele momento o perigo não tinha sido muito grave. O caso do campo de concentra­ção fora um pouco infantil, como num filme. Os russos eram mais ingênuos do que ele, do que o FBI, por isso é que tudo saíra bem. Mas, agora, estavam arriscados a que um guarda quisesse revistar o caminhão. Ou que um motorista russo os fizesse deter e metesse o nariz lá dentro. Ou, ainda, que uma patrulha de soldados...

Ursula continuava rezando. Maria Teresa bocejou e moveu-se.

- Mamãe - disse, tentando livrar-se dos bra­ços da mãe. - Chocolate...

- Cale a boca, filhinha. Tome - disse Ursula, movendo-se. - Quietinha, minha filha.

- E papai Alex? E o outro papai?

Alex sorriu. Quem dissera à menina que ele era seu pai? Talvez Úrsula, querendo ensiná-la á chamá-lo de papai, no caso de um interrogatório da polícia..

- Está aqui, está dormindo. Quietinha. Coma e cale a boca. Aqui não se pode fazer barulho, ouviu? Como no campo de concentração. Se a filhinha falar, vão bater na mamãe. Durma...

- E o outro papai? Nunca vem com a gente - murmurou a menina.

- Cale a boca, Maria Teresa! - respondeu Ursula, com impaciência. - Durma, eu disse.

A buzina de uma motocicleta, atrás, soou com insistência. Alex estremeceu. Um motociclista, com certeza um russo, mandava que o caminhão parasse.

- Atenção, irmão - disse Igor, abrindo a janelinha. - Tenho que parar. Parece que querem entrar... - Mas, antes, terá que se entender conosco.

O rangido da motocicleta tornou-se mais rápi­do, soando seu motor com muita potência. O caminhão foi freando aos poucos e por fim se deteve.

- O que é que há, camarada? — perguntou 0 motorista, olhando para fora. - Somos do Comitê Central de Abastecimento. Está tudo em regra, examine, se quiser.

- Documentos - respondeu, secamente, o rus­so, parando o motor da motocicleta.

- Quem é, mamãe? - perguntou Maria Te­resa, de repente.

E sua voz foi sufocada pela mão de Ursula. Alex, de joelhos, lançou, mentalmente, uma pra­ga. O motorista russo a teria ouvido?

Igor e o motorista começaram a tossir, imedia­tamente.

- Carga? - perguntou o motociclista.

- Vazio, camarada. Vamos buscar farinha e trigo para o Comitê Central - respondeu Igor, sem deixar de tossir. - Se quer revistar...

- Parece que vocês levam galinhas. Ouvi uma cacarejar - respondeu, em tom de zombaria, o motociclista. - Abra, vamos ver o que é que há.

- Só levamos sacos vazios, camarada - disse o chofer, com voz dura.

- Abra, estou dizendo! - gritou o russo, fu­rioso.

- Abra, Igor - ordenou o motorista. - Va­mos, camarada, não se irrite. Outras noites você nos deixou passar sem dizer nada.

- Nas outras noites não tinha fugido ninguém daquela maldita corja de vocês.

Alex empunhou a pistola. Ouviam que Igór e o motorista desciam. Depois, mais alguns movi­mentos rápidos sobre o asfalto, como de uma luta. E a respiração ofegante do motociclista, que gritou algo em russo. Um golpe sobre o pavimento...

- Na cabeça, Igor! Com força! Deixe para mim!

- Deus meu! - gemeu Ursula e houve um grito sufocado de Maria Teresa, que se debatia, quase sem poder respirar.

Os corpos dos três rolaram pela estrada. Gol­pes, pragas e o arrastar de um corpo, que gritava e amaldiçoava em russo. Um grito de agonia e, depois, um silêncio quase absoluto.

- Tivemos que matá-lo, irmão - disse Igor, aproximando-se do caminhão e dando algumas ba­tidas. - Ele se mostrou muito violento. Desça para nos ajudar a levá-lo para longe daqui.

Igor abriu a tampa traseira e Alex saiu rápido, de pistola na mão.

O corpo do motociclista estava estendido na estrada. Um charco de sangue escorria, lentamen­te, embaixo dele.

- Vamos! Todos os três, para aquela colina - ordenou o motorista, nervoso. - Nós o mata­mos com a chave inglesa.

Agarraram-no pelas pernas e braços, levando-o a toda a pressa para o terreno ondulado. Alex voltou para buscar a motocicleta e levá-la, tam­bém, para longe.

- Esta menina! - resmungou o motorista, irritado. - Ela vai nos perder.

- Ponham uma mordaça nela - aconselhou Igor. - É uma monstruosidade, mas não há outro remédio.

Colocaram o cadáver e a motocicleta na colina. Havia luar e puderam orientar-se bem. Não se via nenhuma casa por perto.

- Aqui - disse o chofer e soltaram o cadáver. A motocicleta foi, também, largada, mas, antes, Igor bateu com força no cilindro e no carburador, arrebentando-os com fúria.

- Com isso não farão mais nenhum mal aos nossos - murmurou, sorrindo.

Voltaram para a estrada, rapidamente. Apare­ceram os faróis do caminhão, iluminando a faixa negra do pavimento.

- Jogue terra sobre esse sangue - disse Alex e, com as mãos, começou a apanhar a poeira do valo, espalhando-a sobre o asfalto avermelha­do. Os outros dois homens empurraram, depois, aquela espécie de pasta, formada por areia e sangue, para o valo, jogando mais pó por cima dela.

- Vamos! Aqui não ficou rasto de nada. Quan­do sentirem falta desse homem e descobrirem, já terão passado muitas horas - disse o motorista.

- Vão jogar a culpa nos guerrilheiros - mur­murou Igor, o ajudante.

Subiram para o caminhão e o motor começou a roncar.

- Ele está morto, Alex? - perguntou, angus­tiada, Ursula.

- Sim, não houve outro remédio - respondeu, confuso, o agente especial. - Ele queria ver se aqui havia galinhas. Por tudo quanto mais quei­ra, tem que evitar que a menina fale ou chore, especialmente quando houver certo perigo.

A janelinha abriu-se.

- Ursula - disse Igor, severo. - Que a me­nina não fale, por amor de Deus. Ponha-lhe uma mordaça, quando pararmos diante dos postos de controle, ou dos motociclistas.

- Desculpe, Igor. Meu Deus, mais sangue, mais mortos! - começou a soluçar, silenciosamente.

Alex estendeu o braço e apertou, compadecido, a mão dela.

- Isso tudo logo vai acabar, Ursula - disse, suavemente. - Dentro de poucos dias estaremos em Munique. Como Julian vai ficar contente! Já pensou nisso?

- Tenho muito medo. Parece-me algo impos­sível de conseguir. Está vendo, mal saímos de Varsóvia e quantos perigos, evitados por ver­dadeiro milagre.

- Deus assim o quis e esperemos que Ele continue nos ajudando - respondeu Alex, com fervor.

- Papai Alex - sussurrou Maria Teresa. - Quero ir com você. Mamãe me bateu.

- Venha. Mas eu não me chamo Alex, querida. Meu nome é Jorge. Jorge, repita.

- Jorge. Jorge. Jorge Alex - disse a menina.

- É melhor que você me chame sempre de papai, viu? - insinuou, rindo, Alex. - Só de papai. Se me chamar outra vez de Alex, não lhe dou mais chocolate, nem biscoitos, e nem vou gostar mais de você. Agora, durma.

A menina adormeceu nos braços de Alex. Pou­co depois, este ouviu, também, o ressonar de Ursula. O motorista e Igor conversavam na ca­bina, enquanto o caminhão corria em grande velocidade, fazendo curvas fechadas.

Ele próprio adormeceu, cansado de pensar e de se atormentar com as negras idéias sobre as dificuldades da empresa que estavam realizando. Pensou, também, um pouco envergonhado, na be­leza de Ursula, em sua triste expressão de sofri­mento, de cansaço e de angústia. Parecia uma excelente mulher. E muito bonita... Compreendia a dor de Julian ao considerá-la perdida. Aquela moça de vinte e cinco anos, bem cuidada, sem preocupações, devia ser encantadora. Julian tive­ra, mesmo, muita sorte em se casar com ela.

A janelinha abriu-se de novo.

- Estamos chegando no posto de controle de Wraksitch - disse Igor. - Vamos ver se esta menina...

- Pode ficar descansado. Ela está comigo e não vai se mexer - respondeu Alex.

- Não convém que fique com você, irmão. Pode precisar usar o revólver. Com a fuga de Úrsula a vigilância foi redobrada.

Alex levou a menina, delicadamente, para o lado da mãe, que envolveu a cabeça de Maria Teresa numa touca de lã, deixando-lhe o nariz de fora.

O caminhão freou. Ouviam-se vozes em russo e polonês.

- Alô, camarada - disse um polonês. - Não me trouxe uma garrafa de vodka, Igor?

- E para mim? - perguntou um russo.  Igor riu, enquanto remexia no banco.

Está aqui, seus bêbedos. Desta vez é presente. Bem, estamos com pressa. Até amanhã.

- Escute aqui - disse o russo, secamente. - Vocês não levam ninguém ai dentro? Recebemos ordens severas e temos que revistar.

- Pode olhar, meu filho - respondeu o cho­fer, com ironia. - Vamos carregados de guerri­lheiros, de bombas atômicas e de americanos - soltou uma gargalhada. - Abra, Igor, para que ele se acalme.

- Podem ir andando, amigos - disse o polo­nês. - Não seja estúpido, camarada - dirigiu-se ao russo, que sorriu um pouco envergonhado.

- Até amanhã. Vamos trazer farinha para vocês - disse o motorista, partindo rapidamente.

Alex deu um suspiro, guardando a pistola. Era verdade que a vigilância tinha sido redobrada. Queriam capturar Úrsula e agarrá-lo. Felizmente, o motorista e Igor já eram muito conhecidos na estrada e não despertavam suspeitas. O que aconteceria, quando abandonassem o caminhão e aqueles fieis amigos?

- Quase aconteceu outra tragédia, irmão - disse Igor, surgindo na janelinha. - Poucas vezes vi tanta vigilância. Mas, graças a Deus, tudo vai-se resolvendo.

- Falta muito para a chegada? - perguntou Alex.

- Não muito. Daqui a uma hora estaremos na cidade. Se for possível, tocaremos para diante, para adiantar caminho.

- Vão nos deixar no campo? - perguntou Alex, pensando que, então, surgiriam as verdadeiras dificuldades e os perigos, com Ursula e a pequena a seu cargo.

- Em alguma casa no campo. Com gente de confiança. Acho que não poderemos fazer mais por vocês, irmão. Nossas viagens são controladas e não podemos ir até à fronteira, porque amanhã, ao meio-dia, temos de estar em Varsóvia de volta. Sabe, as represálias, à menor suspeita...

- Está bem. Vocês já fizeram demais por nós - respondeu Alex.

O caminhão seguia devorando distâncias numa velocidade vertiginosa, guiado pelo motorista que queria, assim, ganhar tempo para ultrapassar Kutno, adiantar o caminho para Alex e Ursula e logo voltar para a cidade polonesa.

Uma hora depois, Igor surgiu na janelinha.

- Cuidado com a menina. Vamos chegar ao controle de Kutno, na entrada da cidade.

Ursula acordou e pôs a touca na cabeça da criança, que dormia tranquilamente. Alex tornou a empunhar sua "Mauser", ficando em expecta­tiva.

O caminhão parou pouco depois. De novo, houve uma conversa cordial das sentinelas com Igor e com o motorista.

- Vamos para o armazém, esperar que carre­guem os sacos de farinha e trigo - disse Igor, descendo. - O que é há por aqui, camaradas?

- Levam passageiros? - perguntou uma sen­tinela polonesa. Depois, em voz baixa acrescentou: — Se tiverem, despachem-nos de uma vez. Podem ir andando.

- Vamos só os dois - respondeu Igor em voz alta, acendendo um cigarro. — Bem, até amanhã, camaradas.

O caminhão arrancou de novo. E o chofer bus­cou ruas afastadas para encontrar a saída no extremo oeste da cidade, tomando, depois, a estrada geral. Partiu, então, em grande veloci­dade, fazendo o veículo saltar pelos caminhos esburacados.

- Tudo foi bem. Agora vamos correr o que pudermos para deixá-los o mais longe possível. Em Kutno, qualquer hotel seria perigoso para vocês. Daqui por diante não terão que passar por cidades e nem por grandes vilas. Podem dar uma volta.

- Está bem, irmão. Faremos o que pudermos. Eu tenho dólares e acho que poderei comprar comida dos camponeses.

- Se eles tiverem, lhes darão de graça - afirmou Igor.

Duas horas depois, sem incidentes, o caminhão parou na estrada. Alex consultou as horas em seu relógio de pulso, iluminando-o com um fós­foro. Faltavam quinze minutos para a meia-noite.

- Estamos a oitenta quilômetros de Kutno, ao oeste. - disse Igor, depois de baixar a tampa, para que descessem Alex, Ursula e a menina, que acordou chorando. - Posen está a uns cento e vinte quilômetros, seguindo esta estrada. Acho que poderão passar um dia ou dois em alguma dessas casas - mostrou várias, no monte, ilu­minadas pela luz da lua. - Eles lhes dirão a melhor maneira de seguirem a viagem. Têm ca­minhões para levarem víveres à cidade, ou carros.

- Obrigado por tudo, irmãos - disse Alex, estreitando a mão daqueles homens..- Permitam-me que lhes dê alguns dólares.

- Nem um só, irmão - disse o motorista, empurrando a mão de Alex, que procurava a car­teira. - Nem por mil dólares teríamos feito isso. Mas, por vocês, sim. Que Deus os proteja.

- A vocês também - murmurou Ursula, aper­tando as mãos dos dois homens.

O caminhão deu a volta e empreendeu, a toda velocidade, o regresso a Kutno. As luzes dos faróis foram-se afastando, contempladas com me­lancolia por Alex e Ursula.

- Bem - disse Alex, alegre, tomando a ma­leta. - Agora, vamos andando para aquele morro.

É uma lástima que o caminhão não tivesse ido até Berlim.

- Encontraremos outros - respondeu Ursula, sem muita convicção.

E levando a filha nos braços, outra vez ador­mecida, sob a suave brisa primaveril, começaram a caminhar pelo campo, subindo para as colinas próximas.

Havia ali um silêncio quase completo, parecen­do um lugar cheio de paz. À esquerda, viam-se alguns bosques, com sua massa negra, sinistra. Vários coelhos saltaram de entre o matagal, assustados pelos passos humanos.

Pararam ao ouvirem o ruido de um motor e, pouco depois, as brancas luzes dos faróis de um carro, que passava rapidamente pela estrada, lá em baixo.

Ursula mostrava-se animada. O longo tempo que permanecera encolhida no caminhão, havia-lhe adormecido as pernas e agora sentia-se bem, caminhando. Transpuseram a fralda da colina, com alguns pinheiros, cujos ramos eram sacudidos pela brisa fresca. E encontraram-se diante de um claro, em cujo centro havia uma casa de fa­chada branca, com três janelas e uma porta no centro. De uma das janelas saía uma tênue luz e, de quando em quando, a sombra de uma pessoa passava e repassava, ocultando um pouco a cla­ridade.

- Será que vão querer nos receber? - per­guntou Alex, soltando a maleta no chão e olhando para a casa com curiosidade.

- Se forem poloneses, sim. E devem ser, sem dúvida alguma. Há, também, refugiados-lituanos, expulsos de seu país pelos russos, que costumam ser de confiança. Todos somos movidos pelo mes­mo ódio contra os russos. Bata, não tenha medo.

Alex bateu com a aldrava da porta, grande e pesada. Um latido de cão respondeu-lhe, imediata­mente. Pouco depois, uma das janelas se abriu, surgindo a cabeça de um homem.

- Quem é? - perguntou em polonês. - Que querem?

Alex aproximou-se da janela. A casa só tinha um andar.

- Desculpe, irmão - disse, com voz amável.

- Gostaríamos de passar o resto da noite em sua casa, se isso não o incomodar. Estou com minha mulher e minha filhinha. Vamos para Posen e...

- Sabe que a situação não está boa para se dar asilo a qualquer pessoa - respondeu, com voz dura, o camponês. - Daqui a pouco, sur­gem os da polícia secreta e a gente é acusado de ajudar os guerrilheiros ou suas famílias.

- Eu não sou guerrilheiro, irmão. E se não quiser nos dar asilo, os russos vão nos agarrar. Somos bons poloneses...

- Todos nós o somos. É muito arriscado, ir­mão, eu sinto muito, mas...

- Se você for um bom polonês, deve nos deixar entrar - disse Ursula, com voz fria. - Sou uma mulher perseguida e, se nos capturarem, minha filha vai morrer, e eu, e meu marido. Só por esta noite, irmão...

- Vou abrir. Esperem - respondeu o campo­nês e retirou-se da janela aberta. Pouco depois, a porta rangia e um cão ladrou forte, assustado. O camponês, sua mulher e dois rapazes, surgiram no umbral. - Entrem, irmãos. Malditos tempos esses, que não se pode viver com, tranquilidade!- resmungou.

Alex e Ursula entraram na peça grande, com cadeiras em volta de uma mesa. Havia uma la­reira acesa e, dependurados na parede, tachos de cobre, vasilhas e pratos coloridos.

O camponês já era velho, com grandes bigodes brancos. Vestia uma jaqueta de bom tecido, mas gasta, e calças cinzas, remendadas nos joelhos. Sua mulher era também velha e trazia um lenço amarrado na cabeça. Tinha olhos negros, bondosos, lacrimosos e era de pequena estatura e gorda. Os dois filhos, de uns vinte e três e dezoito anos, eram robustos, de rostos marcadamente es­lavos, de faces largas.

- Obrigado, irmãos - disse Alex, estendendo a mão a todos. - Nós não queremos lhes dar muito trabalho. Minha mulher e minha filha estão cansadas. Basta que elas possam deitar um pouco. Eu posso dormir no chão ou numa ca­deira.

- Antes vão comer. Somos pobres - disse o camponês, sorrindo - mas uma sopa quente de repolho, com ovos, vai lhes fazer bem. Ande, Wanda, prepare-lhes alguma coisa. Estão can­sados. Malditos tempos esses, irmão! O que terão que fazer esses russos em nossa Polônia? Será que nós já alguma vez invadimos a grande Rús­sia?

Os moços riram. Sabiam que o velho ia começar a discursar contra os russos, com os argumentos que ele julgava profundos, esmagadores.

- Estamos sendo perseguidos, irmão - disse Ursula, com voz triste.

- Cale-se! Não nos diga nada, irmã - disse o camponês, autoritário. - É melhor não se saber nada, filha. Assim, se a NKWD nos inter­rogar, nada poderemos dizer, porque nada sabe­mos. Nem de onde vêm e nem para onde vão. Por que esses hereges hão de querer saber sem­pre o que fazemos, o que pensamos, se rezamos ou não ao bom. Deus, eu me pergunto?

- Não comece a discursar, velho - disse a mulher do camponês, abanando a cabeça com aborrecimento, enquanto preparava a sopa de repolhos, jogando nela quatro ovos. - Você é bom para fazer discursos nessas células do diabo.

Alex riu alegre. Era uma grande sorte terem caido ali. Tirou de um dos bolsos um pacote de cigarros e deixou-o sobre a mesa. O velho olhou-o com assombro e alegria. Os moços riram tambêm e estenderam as mãos para apanharem o pacote. O velho o fez antes que eles, rindo.

- Cigarro americano! Deus meu! - cheirou-os, tirou os cigarros e lambeu-os, comicamente. - Irmão, você tem um tesouro. Pelo menos, dez mil "zlotys" isso deve ter-lhe custado. Talvez, mesmo, vinte...

Fumaram com verdadeiro deleite os campo­neses, enquanto comiam Alex, Ursula e Maria Teresa, que agora falava sem parar, comendo com a mesma voracidade de sempre.

- Quando acabarem, para a cama - disse o velho. - Temos um quarto nos fundos e duas boas camas.

Ursula e Alex olharam-se com certo embaraço. Claro, haviam dito que eram casados e agora...

Quando acabaram de comer, todos rezaram implorando à Divina Providência a salvação da Polônia e de todos os poloneses, Bocejando, o velho guardou o pacote de cigarros e piscou, ma­licioso, para Alex, que lhe sorriu.

- Se o deixar aqui, esses pelintras vão fumar tudo em cinco minutos. Para a cama, todos! Amanhã precisam ir a Gròswice para levar as verduras.

- Tem um caminhão? - perguntou Alex, com ansiedade, ao velho.

- Caminhão? Não, não. Um carro com cavalo e graças a Deus que não nos tiraram.

- Sabe de alguém que nos pudesse levar até à fronteira, mesmo que fosse por etapas? Eu pagaria bem.

- Saber, eu sei - disse o camponês, pensativo. - Se não na própria fronteira, mas bem perto, ele poderia os deixar. É um tal de Ruilsky, um homem dos melhores, que está filiado ao Partido e tem contrato para o transporte de carvão. Vai e vem como quer, sem que ninguém lhe diga nada. Vou falar com ele amanhã, quando eu for a Gròswice. Acho, até, que não cobrará nada mais, além da gasolina.

Todos se levantaram para ir se deitar, mas Alex, de ouvido aguçado, parou rígido, em pé, fazendo um sinal aos demais.

- Um carro está-se aproximando - disse, consultando com um olhar os camponeses.

Todos escutaram, intrigados.

- Estão subindo pela nossa estrada - disse o mais velho, empalidecendo. - Vão se esconder no quarto, depressa! - disse, agitado.

- Por aqui, por aqui! - exclamou a mulher. - Venham! A essas horas, só podem ser esses diabos! Deus meu!

Ursula e Alex, tomando a menina nos braços, seguiram-na. O camponês falava com os filhos em voz baixa, mas autoritária, seca.

Ursula e Alex entraram num quarto espaçoso, onde havia duas camas, uma mesa e várias ca­deiras. O agente especial empunhou a pistola e, com um rápido movimento, pôs uma bala na agulha.

- Não falem, nem se movam! - sussurrou a velha. - Outras vezes já vieram indagar, revis­taram e foram embora, calmamente. Psiu!

Ursula lançou a Alex um olhar aterrorizado. Então, eles haviam revistado... Que grande con­solo!

Alex sorriu sem jeito. A velha saiu precipitada­mente, resmungando algo contra os diabos ver­melhos.

Fortes batidas soaram na porta. Ürsula deixou-se cair na cama que estava mais perto, apertan­do contra o peito Maria Teresa, enquanto lhe tapava a boca com uma das mãos. A criança, espantada, estava imóvel, com os olhos muito abertos olhando para Alex que, ao lado da porta, escutava, com a "Máuser" na mão.

Abriu-se a porta da casa. E Alex e Ürsula ouviram que dois homens falavam com vozes mui­to duras, fortes, imperiosas, num polonês errado. Eram russos...

Os dois russos discutiam com os camponeses. Alex ouviu quando os policiais disseram que iam revistar. - Uma mulher, um homem e uma criança fugiram. Queremos ver se não estão aqui - disse um deles, dando um soco na mesa. - Meu cama­rada vai ficar com vocês. Se se moverem, ele vai atirar para matar. Vocês são todos uns ca­chorros ... São todos comunistas, mas não pas­sam de traidores.

Seguiu-se um silêncio pesado, quebrado apenas pelos passos firmes de um homem que entrava e saía de várias peças, revistando. A mulher do camponês gritou, furiosa, quando viu o barulho de alguma coisa que caía, talvez um espelho quebrando-se em cacos.

Os passos do russo aproximavam-se do quarto onde estavam Alex e Ursula. Maria Teresa, de boca tapada, olhava, para Alex aterrorizada, con­vencida de que o "papai" ia fazer alguma coisa para sair daquela terrível situação que ela pres­sentia.

No quarto ao lado, o russo mexia nos móveis, afastando uma cama, abrindo e fechando um ar­mário com brutalidade. Fora reinava o maior si­lêncio.

Alex fez um sinal para que Ursula se colocasse a seu lado, atrás da porta. Ela obedeceu com os olhos cheios de lágrimas. E apoiou a cabeça no ombro de Alex que, suavemente, afastou-a. Tinha que ficar com movimentos livres. Passou-lhe a mão pelo rosto, sorrindo-lhe com meiguice.

No corredor, os passos do russo aproximavam-se. Parou diante da porta, hesitando. Alex, rígido, grudado à parede, tinha a "Mauser" na mão direita, segura pelo cano. Ursula olhava-o com espanto e Maria Teresa, incompreensivelmente, sorriu-lhe com seus enormes olhos, já que a boca estava tapada pela mão de sua mãe.

O russo pôs a mão no trinco. Alex ergueu o braço armado... E e porta abriu-se, lentamente. Úrsula apagara a luz e ali só entrava alguma claridade vinda da sala de jantar.

O agente da NKWD entrou. Tinha na mão uma pistola...

Alex descarregou, com terrível força, a "Mau­ser" sobre a cabeça descoberta do russo, que era de estatura mediana, forte e, imediatamente, fe­chou a porta.

O rosto largo do homem cobriu-se de sangue. Hesitou, tentando erguer o braço para atirar, mas Alex, como uma fera, sabendo tudo quanto arriscava naqueles momentos decisivos, atacou-o para matar. Várias vezes ergueu e baixou o braço, cuja mão sustentava a pistola pelo cano. No chão, o agente especial continuou, ainda, golpeando-lhe o crânio.

Ursula agarrou-o apavorada. Alex estava como um possesso, louco de fúria, com os olhos conges­tionados. O russo, com o crânio arrebentado, caído no meio do quarto, já não se movia mais.—

Maria Teresa escondera a cabecinha no peito da mãe, tremendo horrivelmente.

Alex passou a mão pela testa, coberta de suor. Também tremia, espantado com sua crueldade. Mas tinha de ser assim. Era uma questão de vida ou morte. Ou deixar-se agarrar, o que signi­ficaria uma morte horrível para Ursula, para a menina e para ele, ou matar, matar...

Saiu para o corredor, esgrimindo a pistola, Ursula quis retê-lo, implorante, mas ele a afastou com um gesto duro.

- Sérgio! Não acabou ainda? - gritou o outro russo, em seu idioma natal. - Encontrou alguma coisa?

Alex caminhou lentamente pelo corredor e deu uma volta. O outro russo também avançava, es­tranhando que seu camarada não respondesse.

Ambos ficaram frente a frente, de pistolas nas mãos. A mulher do camponês gritava histéricamente, implorando a ajuda de Deus.

O agente da NKWD quis ser mais rápido do que Alex. Mas, para atirar, ele tinha que levan­tar o braço e pôr a arma à altura do rosto, à maneira clássica. Alex deixou-o fazer, divertido. Mas, antes que a arma do soviético conseguisse apontar para ele, já Alex disparara duas vezes seguidas. E jogou-se para trás.

O russo caiu de costas, com incrível violência, deixando cair a pistola para levar as duas mãos ao peito, de onde já brotava o sangue.

O camponês, sua mulher e os dois filhos preci­pitaram-se para o corredor. Contemplaram, com espanto, o cadáver do russo, para logo observa­rem Alex, que estava recostado à parede, como aniquilado pela emoção.

Ursula também chegou, sem a criança, que gritava na outra extremidade do corredor.

- Está ferido? - gritou a moça, jogando-se ao pescoço de Alex. - Deus meu, está ferido!

- Não, não. Não lhe dei tempo para atirar, e ele bem o podia ter feito.

O camponês e a mulher olharam-se com assom­bro. Viam que Alex e Ursula não se tratavam com intimidade.

- Temos que tirar esses cadáveres daqui - disse, por fim, o agente especial. - Antes que amanheça.

- Mas, matou o outro? - exclamou o velho, levando as duas mãos à cabeça. - Que o Senhor: nos proteja!

- Não havia escolha - desculpou-se Alex, encolhendo os ombros. - Por isso temos que levar os cadáveres para longe daqui. Precisamos ir até o carro, para ver se trouxeram chofer.

- Podia ter ouvido os tiros - disse o cam­ponês, tremendo de pavor.

Os dois moços saíram. Alex seguiu-os, empu­nhando a "Mauser". O carro estava vazio. Apaga­ram os faróis que estavam acesos. Era um "jeep" russo, imitação de modelo americano. Na parte traseira havia uma lata de gasolina, com uns cinquenta litros.

Alex abriu a tampa e comprovou que estava cheia. Examinou, também, o tanque, verificando que havia mais de três quartas partes de gaso­lina.

Entrou, rapidamente, na casa, de olhos bri­lhando.

- Ursula, depressa! Vamos embora! Traga a mala e todas as suas coisas! - exclamou, alegre. - Diretamente para Berlim!

A moça olhou-o espantada. Os rapazes expli­caram-lhe tudo. O carro tinha muita gasolina. Era pouco mais de uma da madrugada e até que amanhecesse, lá pelas cinco horas, correndo a toda velocidade, poderiam entrar na Alemanha, não longe de Berlim.

- Vocês, meus filhos - disse o camponês - vão enterrar longe daqui esses cadáveres. De­pressa, antes que possam chegar outros diabos de russos! E eu me pergunto, por que teriam vindo esses homens para a Polônia, Deus meu?

Para nos matar e para que nós matemos todos os que pudermos. Devem ser burros, Deus meu!

Alex, com movimentos precisos, rápidos, aju­dou Ursula a transportar a maleta. A camponesa meteu na parte traseira do carro uma cesta com frutas, um queijo, vários pães novos e duas gar­rafas de leite. Os dois rapazes já tiravam um dos cadáveres e desapareciam nas sombras da noite.

- Adeus e que o Senhor lhes pague tudo o que fizeram por nós! - exclamou Alex, entrando no carro, Ursula e a menina estavam no banco de trás. - Ursula, logo que eu mandar, jogue-se no chão, para que os do controle não as vejam.

- Deus os ajude! - gritou o velho camponês, agitando as mãos em sinal de despedida.

O "jeep" desceu o caminho, de faróis acesos, ziguezagueando, até entrar na estrada geral.

- Procurem dormir - disse Alex. - Eu vou correr, como se o próprio Stalin nos estivesse perseguindo. Até Berlim!

- Deus o ouça, querido! - respondeu Ursula. - Vamos para um lugar onde não seja preciso matar, onde não se torne mais a ver sangue humano derramado. Onde minha filhinha possa viver longe do medo e da fome. Quanto eu lhe devo, Alex!

O agente sorriu, enquanto pisava a fundo no acelerador. O "jeep" copiado do "Willys" ameri­cano, deu um salto e partiu veloz, pulando pelo estragado asfalto como uma corça.

O vento zunia pela janelinha aberta, indo re­frescar o rosto de Alex que, com os olhos fixos na frente, pouco se preocupava, naquela veloci­dade de cem quilômetros por hora, de evitar os buracos da estrada.

Ursula e a filha logo adormeceram, foi o que constatou Alex, olhando pelo espelho retrovisor. Contemplou-a alguns instantes. Como era linda! Que suave a expressão do rosto, onde estavam marcados o sofrimento, os sustos, a angústia e o passado de fome. Ainda tinha na face esquerda uma mancha avermelhada, de algum golpe recebido.

Ao longe, divisou uma linha de luzes que pis cavam. Era muito extensa e concluiu que deveria ser Posen. Antes haviam passado por vários po­voados que dormiam, onde não havia postos de controle. Agora era preciso dar uma volta pela cidade para evitar que os detivessem e que o submetessem a um incômodo interrogatório. De um dos agentes mortos havia retirado a carteira de identidade e o "carnet", mas seria difícil que não desconfiassem do fato de estar acompanhado por aquela mulher e aquela criança. E, ainda mais, a NKWD já sabia que devia deter um homem, uma mulher e uma criança.

Freou quando o carro estava a uns dez quilô­metros de Posen. Não sabia como fazer para dar a volta pela cidade e tornar a tomar a estrada geral, que leva a Berlim.

Olhou no porta-luvas e deu um suspiro de alívio ao ver vários planos e mapas, em russo, da Polônia e de suas estradas, assim como das vias férreas. Procurou o daquela região no mapa de Posen e seus arredores.

Pôs o "jeep" em marcha. Já sabia por onde tinha que ir, graças àqueles bons mapas da NKWD.

- Está perdido, querido? - perguntou Ursula, que acordara ao sentir que o carro parará. - Aquilo deve ser Posen. Eu estive ali, várias vezes, antes da guerra.

- Encontrei mapas e plantas. Vou evitar de entrar na cidade. Continue dormindo. São apenas duas horas e quinze.

- Não teremos tempo de chegar a Berlim. Vai amanhecer antes - murmurou Ürsula.

- Não importa. Quando clarear vamos nos meter num bosque ou num lugar afastado e es­peraremos que anoiteça - replicou Alex, sor­rindo.

Foi deixando Posen à direita, com suas luzes de grande cidade. Iam por uma avenida subur­bana, cheia de vivendas e hotéis, quase todos destruidos pela guerra. Ao longe, viam grandes bricas, com altas chaminés, que lançavam den­sos rolos de fumaça. Um trem corria, mal ilumi­nado, paralelo à estrada, certamente a caminho ate Berlim.

Repentinamente, surgiu uma guarida de con­trole, a um lado da estrada. Apareceu uma sen­tinela, levantando os braços e empunhando um fuzil.

- Vamos com Deus! - murmurou Alex e acelerou mais ainda o "jeep".

No "capot" do carro tremulava a bandeirinha com a foice e o martelo e a sentinela mal teve tempo de jogar-se para um lado, gritando alguma coisa. O carro passou como um relâmpago.

Logo entrou, novamente, na estrada geral, mais ao oeste do posto de controle. A estrada corria quase paralela à linha férrea e o trem que se adiantara antes, ficou para trás, quando Alex pôde acelerar o "jeep". A grande cidade imediata seria, certamente, Francfort, sobre o Odèr. Mas ainda faltavam duzentos quilômetros para atin­gi-la.

A monotonia da viagem estava começando a lhe dar sono, com todo o perigo que isso re­presentava. Passavam por povoados, diminuindo um pouco a velocidade, para logo aumentá-la ao voltarem à estrada principal. Era uma carreira desenfreada contra o relógio, na ânsia de chega­rem a Berlim, cuja metade não era comunista e onde estava a salvação. Se não o conseguissem, teriam de acampar em algum lugar retirado, durante todo o dia, esperando a noite para reco­meçarem a marcha com mais probabilidades de fuga.

- Alex - disse, de repente, Ursula. - Estou vendo luzes que se movem, que vêm atrás de nós.

O agente especial arrumou o espelho retrovisor, èe maneira que pudesse ver o que se passava atrás.

- Alguém está nos seguindo? - perguntou, Não conseguindo ver nada.

- Sim. Devem ser motociclos, porque só têm um farol pequeno. São duas. Agora, quando fize­rem aquela volta, vou poder ver melhor.

Alex franziu a testa. Podiam ser motociclistas, avisados pela sentinela daquele posto de controle. O fato de não fazer caso das sentinelas, quando ordenavam que parassem, podia acarretar coisas como aquela.

- Veja se eu os deixo para trás - pediu Alex, e pisou fundo no acelerador. O "jeep" rangeu e correu mais, muito mais do que antes.

- Ficaram para trás, Alex, mas não muito - respondeu Ursula, depois de uns momentos de espera angustiosa. - Os motociclos correm mais do que os carros, não é?

- Às vezes, depende de quem os dirigir. Se surgissem muitas curvas eu os deixaria para trás. Estão mais longe?

- Ainda não. Temos que ganhar terreno. Cor­ra mais, Alex, pelo amor de Deus!

Infelizmente a estrada era agora reta, sem nenhuma volta, sem descidas e nem subidas. Era a imensa extensão da Silésia, plana, infinita. E, embora o "jeep" voasse a uns cento e trinta e cinco quilômetros por hora, os motociclistas ga­nhavam terreno pouco a pouco.

As sirenas começaram a soar, logo, ordenando que o carro fugitivo parasse. Alex, com o pé apertando o acelerador, não lhes fez o menor caso. Não sabia o que iria acontecer, mas não estava disposto a entregar-se. Enquanto durasse a gasolina do depósito, continuaria correndo.

Um dos motociclos colocou-se a uma centena de metros do "jeep". E, subitamente, o vidro tra­seiro quebrou-se em mil pedaços, enquanto uma bala assobiava, correndo pelo teto do veículo.

- Estão atirando, Alex! - gritou Ursula. - Querem nos matar!

- Ao chão! - gritou Alex, sem voltar a ca­beça. - Se puder observar o que eles fazem, diga-me em seguida. Se se puserem ao lado do carro, vão ver...

Com uma das mãos tomou sua pistola "Mauser", deixando-a sobre os joelhos. Estava pronta para ser usada.

A madeira da carroçaria tornou a ser perfurada, assobiando a bala por cima da cabeça de | Alex, que empalideceu.

- Sabe dirigir, Ursula? - perguntou ele.

- Sim. Antes da guerra nós tínhamos um car­rinho, um "Adler", econômico e meu pobre Julian me ensinou a dirigir. Por quê? Corra mais, Alex!

- Venha para o meu lado, procurando não se expor aos tiros - respondeu o agente especial., Ursula obedeceu, saltando por cima do assento do carro.

- Tome o volante. Cuidado! A estrada é hor­rível - disse Alex, com calma. Cedeu-lhe o lugar, lentamente. - Se não puder dominar bem a mar­cha, diminua. Vou responder à saudação desses amigos.

Ursula não diminuiu a velocidade, pisando, va­lentemente, no acelerador. Alex sorriu, satisfeito. Depois, passou para o assento traseiro e, final­mente, para a espécie de plataforma posterior, onde estava a lata de gasolina, um pneu sobressalente e sua mala, assim como a cesta de víve­res.

Os dois motociclistas estavam bem perto e Alex compreendeu que não desejavam ultrapassar o "jeep", mas atacá-los sem correrem o risco de serem apanhados pelo carro.

Pela janelinha traseira, de vidros quebrados, colocou o cano da "Mauser". Os faróis das mo­tocicletas iluminavam mal, mas bastava para que Alex fixasse a pontaria.

Uma nova bala atravessou a carroçaria. Agora, tinham atirado mais baixo. Queriam arrebentar os pneus, com certeza.

Alex então atirou, quando o mais avançado dos motociclistas estendia o braço para disparar no­vamente, Ursula gritou, quando ouviu a detona­ção da "Mauser".

Algo espantoso sucedeu atrás, o motorista devia ter recebido a bala no peito, porque abriu os braços, repentinamente, deixando o motociclo sem direção. A máquina saltou durante algum tempo, virou e pareceu incrustar-se no solo, para logo tornar a saltar, brincando como um potro selva­gem. O tripulante, por sua vez, rolava vertigi­nosamente e ia bater contra o grosso tronco de uma árvore.

- Acertei o primeiro! - gritou Alex. - Va­mos ver se o segundo se atreve... Se eu fosse ele, trataria de voltar.

O segundo motociclista evitou, como pôde, o obstáculo de seu camarada e do motociclo saltador e continuou na perseguição, atirando como um louco, mas aquilo durou pouco. Alex obser­vava-o atentamente. Maria Teresa acordara e, deitada no chão do carro, como lhe ordenara seu "papai", tapava os ouvidos com as mãos, sem se mostrar muito assustada.

O motociclista, talvez furioso com a morte de seu camarada, decidira vingá-lo completamente. E avançava de uma forma suicida, até quase roçar o "jeep". Atirou contra a janelinha dian­teira, com a intenção de matar Ursula, que dirigia tranquilamente.

Alex atirou só três vezes nas costas do soviético. Falhou duas, mas na terceira o homem se in­clinou repentinamente. E veio depois a segunda catástrofe: ao perder a direção, foi se lançar no valo dando saltos espantosos, até cair enredado entre as rodas, com a cabeça e as pernas parti­das.

Pode diminuir a marcha, Ursula — disse

Alex, indo para o lado dela. - Tudo acabou bastante bem.

- É horrível... - gemeu ela, passando-lhe o volante. - Mas eu acho que isso não vai termi­nar aqui. É de imaginar que tenham telefonado, para outros postos e que saiam em nossa perse­guição.

- Começa a amanhecer - respondeu Alex, tranqüulamente. - Agora, vamos procurar um lugar, onde possamos nos esconder. - E entre­gou, de novo, o volante a Ursula, enquanto exa­minava alguns planos.

- Deixamos para trás o povoado de Warsburh, você se lembra? Bem, pois então aqui, à direita, deve haver um bosque. Está assinalado. A um quilômetro da estrada. Para lá é que iremos.

Acelerou a marcha e, quando as sombras da noite iam-se transformando numa neblina acinzentada e depois rósea, Alex tirou o carro da estrada e o meteu, forçando a marcha, por um terreno, entre estevas e espinheiros, que subia para uma colina de uns cento e cinquenta me­tros. Em cima divisava-se uma massa negra, espessa.

— Aquele é o bosque — disse Alex, apagando os faróis de estrada. — Vai ser nosso, refúgio durante todo o dia. Comeremos e dormiremos.

Alex acordou várias vezes durante o dia. Le­vantou-se e percorreu, atento, uma parte do grande bosque, Ursula e a filha dormiam um sono pesado, esgotadas pelo cansaço e pelas emo­ções vividas. O "jeep" estava coberto pelas ramagens dos pinheiros e eles haviam penetrado profundamente por entre o arvoredo, buscando um esconderijo entre as rochas e as sarças.

Eram quase cinco horas da tarde. Alex acordou outra vez e dirigiu-se para um arroio próximo, lavando-se cuidadosamente nas claras águas. Sentia-se bem descansado e otimista. O sol ainda estava alto na tarde primaveril e, através do espesso arvoredo, enviava-lhes o fraco calor de seus raios. Tomou os planos das estradas e estudou-os detidamente. Aquele bosque não dis­tava mais de trinta e cinco quilômetros de Francfort sobre o Oder, a oeste. Precisamente aquela linha de árvores, ao longe, que ondulava caprichosamente, devia ser o curso do impor­tante rio, em cujas margens estavam as árvores.

Ursula acordou também e sorriu para Alex, que lhe fez um gesto carinhoso de saudação.

- Dormiu bem? - perguntou-lhe. - Ali tem um arroio - apontou para o lugar - onde pode lavar-se e até tomar um banho, se quiser. Foi o que eu acabei de fazer e é delicioso.

Entregou-lhe uma toalha e sabonete, tirados de sua mala. Ela os tomou, retendo a mão de Alex entre as suas, num gesto de ternura.

- Você é tão bom, tão bom, Alex... - disse com a voz estrangulada pelos soluços. - Jamais esquecerei o que fez por nós.

- Psiu! - ordenou ele, suavemente. - Vai acordar Maria Teresa. Vá se lavar.

Viu-a caminhar por entre os pinheiros com seu andar elástico, de mulher forte e ágil. Os cabelos castanhos claros caíam-lhe pelas costas, graciosamente. Ursula era muito bonita. A mu­lher mais bonita que ele já vira. Pelo menos, era o que lhe parecia. Quando pudesse arranjar-se bem, como qualquer outra mulher, aquela beleza iria sobressair muito mais. Deu um suspiro que lhe fêz mal ao coração, ao pensar que devia levá-la para Julian Chelminsky, seu marido, para que eles fossem felizes.

Maria Teresa acordou pouco depois. Alex es­tava sentado a seu lado e sorriu ao vê-la abrir seus imensos olhos e espreguiçar-se. A criança estendeu-lhe os braços, dengosa e o agente incli­nou-se para receber o abraço carinhoso. Beijou-a comovido, sentando-a em seu colo e apertando-a contra seu forte peito.

- E mamãe? - perguntou ela, olhando um pouco inquieta em volta.

- Já vem, Foi se lavar no rio. Quer ir lá com ela? Olhe, é por ali - mostrou-lhe o Jugar bem perto. - Não grite, ouviu?

A criança, com seu andar vacilante, afastou-se rindo. Inclinou-se para apanhar algumas florinhas silvestres. E continuou seu caminho, sem gritar e nem chamar a mãe. A menininha já se havia habituado a obedecer cegamente as ordens de não gritar, nem falar e nem se mover em certos momentos.

Pouco depois, mãe e filha voltavam de mãos dadas. Alex sorriu, encantado. Estavam ambas muito mais bonitas, depois de terem se lavado e penteado. Parecia como se os três estivessem numa excursão, num fim de semana da longín­qua América.

- Vamos comer - disse ele, tirando do carro um pão, frutas e queijo. E se dirigiram para o rio, sentando-se à margem; para poderem beber a água clara e fresca, Ursula olhava-o às vezes e quando ele a observava, baixava a cabeça e sorria. Alex sentiu-se meio inquieto e desejou, ardentemente, que tudo aquilo acabasse logo, que ela voltasse para o lado do marido e que partis­sem para os Estados Unidos. Sentia algo estranho e doloroso. Não sabia bem o que era, mas era preciso precaver-se, afastar aquela sensação que o entristecia e que, ao mesmo tempo, o enchia de felicidade.

Depois de comer, ficaram os dois brincando com Maria Teresa, que se sentia feliz, com a barriguinha bem cheia e podendo correr e falar à vontade, juntando flores e pinhas.

- Já pensou no que vamos fazer essa noite, Alex? - perguntou em voz suave Úrsula, obser­vando, pensativa, o agente que fumava tranquilo, recostado num pinheiro e com as pernas estiradas preguiçosamente.

- Sim. Se nos deixarem, vamos chegar a Ber­lim, ou bem perto - respondeu ele, com um sorriso infantil. - Ainda me pergunto se os obstáculos não serão maiores quando formos nos aproximando da porta do paraíso ocidental. Mas, conseguiremos vencê-los, não tenha dúvidas.

- Deus nos ajude - suspirou ela, de rosto sombrio. - Vai anoitecer. Não quer rezar, Alex? Estamos nas mãos de Deus...

- Sim Até agora. Ele não nos abandonou, pediremos que não nos esqueça nesses críticos momentos que nos faltam para voltarmos à liberdade. E, também, por aqueles que ficaram, em Varsóvia, sem esperança alguma de liber­tação.

- E pelos que você... matou, também, Alex - murmurou ela, angustiada. - Ter que matar para poder viver!

Começaram a rezar em voz baixa, tirando Ursula um rosário que trazia no peito, dentro da blusa. Maria Teresa brincava com alguns galhos, que jogava no rio, como se fossem barcos, rindo alegre.

O silêncio, apenas perturbado pelo canto dos pássaros na floresta, foi cortado por um ruído mais forte, no alto, no céu.

- Um avião - murmurou Alex, pondo-se de pé, inquieto. - Está se aproximando...

- Mas, e daí? - perguntou Ursula com natu­ralidade, não compreendendo a inquietação do agente. Este olhava para o alto, caminhando por entre as árvores, para encontrar um claro entre a ramagem.

O avião aproximava-se, à baixa altura. Seu mo­tor roncava forte.

- É um caça! - exclamou Alex. - Tome a menina e esconda-se entre as sarças! Depressa, Ursula, depressa! - e ele próprio jogou-se por terra, ocultando-se entre alguns pinheiros baixos, de copas largas.

A moça, assustada, estava no meio de um matagal, cuja ramagem jogara-se por cima para esconder sua blusa branca e o vestido da mesma côr de Maria Teresa.

O caça passou velozmente, a uns cem metros de altura, por cima do bosque. Alex felicitou-se de haver camuflado bem o "jeep". E escutou com ansiedade o ir e vir do aparelho, voando muito baixo, buscando-os, certamente.

- É por nós que veio? - perguntou Ursula, assustada.

- Acho que sim. Querem descobrir o "jeep", caçar-nos. Não se movam ainda. Se nos virem, certamente vão nos metralhar e anunciar nosso esconderijo à NKWD.

O caça passava e repassava por cima do bos­que, picando sobre os claros com um ronco en­surdecedor. Mas já a luz ia faltando e Alex foi recobrando um pouco a calma, quando o aparelho afastou-se definitivamente.

- Terá nos descoberto? - perguntou Ursula, ansiosa.

- Não creio. Teria usado as metralhadoras. Mas isso não poderemos saber, enquanto não tivermos voltado à estrada. Deve haver uma vigilância rigorosa.

Esperaram até às nove da noite, depois janta­ram sem acender nenhum fogo. Alex encheu o tanque de gasolina até à borda, colocou óleo, exa­minando o motor.

- Vamos - disse, por fim, olhando para Ursu­la, que tomara a filha nos braços. - Sente-se com coragem?

- Com você eu irei até onde for preciso, que­rido Alex - ele estremeceu de alegria. - Quando quiser e que Deus nos ajude.

O agente especial tirou as ramagens que ocul­tavam o "jeep" e todos entraram.

- Vou procurar andar pelas estradas de se­gunda categoria. Já examinei os planos antes. Talvez estejam menos vigiadas do que as princi­pais.

- Podemos chegar a Berlim esta noite, Alex? - perguntou ela, ansiosa.

- Há tempo para isso, mas não sabemos quais os obstáculos que podem-se apresentar. Os da NKWD devem estar espantados com o desa­parecimento desse carro e de seus dois agentes. E como imaginam que vamos para Berlim, ali será, onde teremos a batalha final - respondeu Alex.

Sem acender os faróis, o "jeep" começou a rodar por entre as árvores, buscando Alex a estrada para descer a colina e entrar na principal. Foi uma rude prova para o "jeep", cujas molas ge­miam ao cruzar pequenos valos, baixar pendentes curtas e rápidas e meter-se em penhascos, que quase o fizeram capotar.

Por fim, entraram na estrada principal e Alex pisou no acelerador, ao ver que o asfalto estava em melhores condições que as partes de caminho deixadas para trás. Úrsula ia sentada na parte traseira com a filha, olhando através da jane­linha sem vidros, para ver se alguém os perse­guia.

Meia hora depois, as luzes da cidade de Francfort piscavam ao longe. Alex freou o carro, apro­ximando-se da beira da estrada. Acendeu a luz do teto e olhou o plano detidamente.

- À direita há uma estrada secundária, que não passa pela cidade - disse, guardando o mapa, e apagando a luz. - Vamos para ela. Deve estar perto.

Assim era com efeito. Muito antes de entrar nos arrabaldes da cidade, já na Alemanha, uma faixa escura desenhou-se, arrancando da estrada que haviam seguido. O "jeep" tornou a correr velozmente, em busca da não muito distante Ber­lim, a menos de oitenta quilômetros dali.

- Corra, corra, Alex! - gritou Ursula, ner­vosa. - Não pare até Berlim!

- Até Munique, é melhor - respondeu Alex, rindo. - Quando chegarmos a Berlim, vou pôr umas asas nesse bichinho e aterraremos ao lado de seu marido.

- Pobre Julian, que nem sabe que estamos nos aproximando dele! - exclamou a moça, com voz triste - Se pudermos dar-lhe essa surpresa tão feliz...

- Poderemos, não tenha dúvidas - respondeu Alex, com firmeza.  Agora, olhe bem para trás. Estamos contornando a cidade e os carros da polícia russa podem sair atrás de nós. Essa faixa prateada é o Oder.

Mas não lhes aconteceu nenhum incidente de­sagradável. Passaram por vários carros, cami­nhões e motociclos, mas sem nenhum perigo. Talvez os esperassem nas estradas de primeira ordem e por isso tinham sido logrados.

- Estamos a quarenta quilômetros de Berlim - disse Alex, quando já haviam passado quase duas horas. - A caminho do paraíso.

- Corra, corra - pedia sempre Ursula. - Deixe-me dirigir e verá se não chegaremos antes.

- Seria perigoso se vissem uma mulher diri­gindo um carro da NKWD - respondeu, rindo, o agente. - Vamos a mais de cem por hora. Não nos faltam mais de quarenta quilômetros. Trinta e nove e...

- Trinta e oito - disse Úrsula, quando viu outro marco branco e vermelho na estrada. - Asas, Deus meu, para voar!

- Trinta e sete...

O "jeep" corria desenfreadamente pelo estreito caminho, com os faróis apagados. Só quando cruzavam outro veículo é que Alex os acendia, para não despertar suspeitas. O terreno era plano e a estrada reta.

Ursula, deixando a adormecida Maria Teresa sobre o banco, enrolada em seu casacão, foi sentar-se ao lado de Alex. Tomou um cigarro, acendeu-o, mantendo-o nos lábios e ofereceu-o a Alex, que sorriu e o tomou, fumando com ar satisfeito.

- Vinte e nove, Ursula - disse ele, alegre. - Aquilo que brilha, à esquerda, é um lago. Vão aparecer outros, depois.

- Vinte e oito - murmurou ela,olhando para o marco. - Corra mais, Alex! - e rindo, aper­tou o acelerador, pisando no pé de Alex.

- Cuidado, minha filha - respondeu ele, ma­nobrando com o volante. - Já à vista de Berlim, não podemos capotar. Isso seria lamentável, não acha?

- Olhe lá! - exclamou, de repente, Ursula, mostrando uma grande luminosidade, como uma mancha imensa, que parecia proceder de um incêndio colossal. - É... Berlim? É Berlim, Alex?

- É Berlim, sim. A zona soviética. As outras zonas estão ainda mais iluminadas. Já estamos perto.

- Deus meu! Do outro lado está a salvação... Mais uns passos e... livres, livres para sempre. Julian, já estamos perto! - rompeu a chorar, apoiando a cabeça no ombro de Alex, que dimi­nuiu um pouco a marcha, sorrindo. Sua mão, suavemente, acariciou os cabelos dela, sentindo que o coração batia-lhe agitado.

- Estamos perto, sim. Mas ainda falta o pior, Ursula. É dar o salto, esses poucos passos de uma zona à outra. Milhares de pessoas morreram ao tentar isso, caçados pelos soldados soviéticos, pelos cães amestrados, ao pé dos arames far­pados. Não chore, Ursula.

- É de alegria, Alex querido. E tudo graças a você - soergueu-se, repentinamente, e beijou-o no rosto, com força, deixando-o molhado com suas lágrimas.

Alex sobressaltou-se, mas procurou rir, tomando-o como brincadeira. Fez um enorme esforço para não corresponder, beijando-a também. Não podia ser... Ela era uma mulher casada e o que fizera tinha sido num momento de entusiasmo, de efusão. Mas se ele a beijasse, teria sido por­que a queria, porque a amava, e cometeria uma hipocrisia. Era a esposa de Julian, daquele bravo homem que lutara como um herói, por uma justa causa. E Julian tinha confiança nele, assim como ela também.

Ficou um bom momento em silêncio. Ursula olhou-o, várias vezes, disfarçadamente e ele a observou, também, confuso. Sentia como um fogo no lugar que ela beijara.

- Entramos no subúrbio - disse, por fim, Alex, diminuindo a marcha do "jeep". - Tere­mos que descer e largar esse traste. Os postos de controle vão se multiplicar, daqui por diante.

- Que pena! Não poderíamos passar a barrei­ra com ele?

- Não. Talvez, se eu estivesse sozinho, pu­desse. Mas com você e a menina é impossível. Eles a estão esperando, não esqueça. Uma mulher com uma criança...

Alex levou o "jeep" para uma rua escura, es­treita, por onde não passava ninguém. Tirou para fora a mala, deixando a cesta com os víveres. Ursula tomou a menina nos braços, adormecida como estava.

Alex olhou as horas em seu relógio de pulso. Erá uma e vinte da madrugada.

- As barreiras já estão fechadas - disse, encolhendo os ombros. - Teremos que esperar até amanhã de manhã, para darmos o salto.

- Clandestinamente? - perguntou Ursula, com medo.

- Enchi uns salvos-condutos, que espero que sirvam. Mas, não sabemos se haverá uma vigi­lância rigorosa. Agora, vamos dormir em casa de um amigo.

- Um amigo? Conhece alguém, nessa parte de Berlim?

- Sim. É um confidente do FBI. Imagino que devem ter-lhe avisado de Munique que devíamos chegar. É um alemão.

- Alemão... — murmurou Ursula, meio abor­recida.

- Como amigos, os alemães são os mais fiéis - respondeu, sorrindo, Alex. - Esse Bultz nos presta bons serviços.

Num bom passo, andaram pelas ruas quase desertas, com edifícios em ruínas. Foram pene­trando no centro da cidade internacionalizada.

De quando em quando encontravam agentes da Polícia Popular, alemães, que não lhes prestavam atenção.

Num emaranhado de ruas estreitas, perto da Potsdamerstrasse, entraram em uma delas, de­pois de Alex hesitar um instante.

- Acho que é esta - disse, por fim. - Pro­curei, antes, na planta, quando estávamos no bosque. Está cansada, Ursula? Deixe eu levar a menina.

- Não estou cansada, obrigada. A pobrezinha pesa como se tivesse só seis meses.

Diante do número 98, Alex parou. Era uma casa quase intacta, na qual se viam alguns furos de balas, mas não profundos. Deu duas batidas espaçadas com a aldrava e, depois, outras duas, na porta fechada.

- Esse homem é de confiança, Alex? - pergun­tou Ursula, com receio. - Se ele nos delatasse,..

A porta abriu-se e um homem, com um sobre­tudo sobre os ombros e uma lanterna na mão, ficou parado no umbral. Devia ter uns quarenta anos, era magro e baixo, de fisionomia inteligente.

- Boa noite, Bultz. Sou do FBI - disse, sim­plesmente, Alex. - "McCally" - acrescentou, como se dissesse o santo e a senha.

- Fui avisado, camarada. Entrem. Esta senho­ra é... - começou o alemão.

- Ursula e sua filha. Conseguimos chegar, graças a Deus.

- Graças a Deus. Entrem, entrem - fez uma reverência à moça, que sorriu por aquela de­monstração de cortesia.

Subiram ao andar principal, o alemão ilumi­nando a escada com sua lanterna. E, abrindo uma porta, entraram para uma sala, correta­mente mobilada. Ali estava sentada uma mulher de uns trinta e cinco anos, gorda e bonita, com os cabelos presos numa rede, e que logo se levantou.

- É Berta, minha mulher. Um amigo ameri­cano e uma senhora que o acompanha - apre­sentou Bultz, tornando a fazer reverências. - Querida, prepare dois quartos para nossos hós­pedes. Sentem-se, camaradas. Tenho um pouco de café, salsichas e pão. Gostaria de poder ofe­recer mais, mas... - sorriu, amavelmente, desculpando-se.

- Não é preciso, Bultz. Como está a passagem pelas barreiras? - disse Alex, entregando-lhe um pacote de cigarros.

- Há novas ordens - respondeu Bultz, fa­zendo um gesto aborrecido. - Desde uns três dias que não deixam atravessar mulheres, entre vinte e quarenta anos. Isso deve ser, certamente, por sua causa. Não querem que saia da zona soviética. Essa manhã Berta quis passar, man­dada por mim, e foi afastada. Eles podem come­ter, impunemente, tais atos.

Alex ficou sombrio. A coisa se complicava ao máximo. Precisava saber quais as formalidades que necessitavam para deixar passar as mulheres até quarenta anos.

- Será preciso ter novos impressos das dele­gações da Polícia soviética e os dados que pe­dem são inúmeros - continuou Bultz

- As camas estão prontas - avisou Berta entrando. — Vou lhes preparar alguma, comida.

- Acho que vai ser impossível sair daqui, legalmente, senhora - dirigiu-se a Ursula, com um olhar de pena. - Há novas ordens, muito severas.

- Já lhes expliquei, Berta querida - disse Bultz. - Mas podem ficar conosco, até que sus­pendam essas ordens. Não sei é quanto tempo durarão. Receio que comecem a revistar as casas e que os espiões descubram alguma coisa.

Comeram rapidamente pão e salsichas, todos depois tomando café americano, contrabandeado.

- O que faremos, Alex? - perguntou Ursula, angustiada, dando de beber à filha, que exami­nava, curiosa, sem falar, Berta e o marido.

- Está cansada? - perguntou lhe, por sua vez, Alex, olhando-a fixamente, enquanto sorria enigmático.

- Não. Passamos todo o dia dormindo e, de­pois, no carro, de maneira que não posso estar cansada. Por quê?

- Perfeito. Prefere passar a noite nessa zona ou na americana ? - tornou a perguntar o agente especial.

- Isso é uma loucura - disse, assustado, Bultz. - Um homem sozinho podia tentar passar, com muito perigo, mas com a senhora e a me­nina. ..

- Não façam isso! - exclamou Berta, tam­bém assustada. - A vigilância é muito grande. Nem mesmo os que costumam fazer isso, segui­damente, trazendo contrabando, não se atrevem, por esses dias, a cruzar clandestinamente a fron­teira. Atiram sem avisar, têm cães amestrados...

- Eu farei o que você disser, Alex - respon­deu Ursula, muito pálida. - Se Bultz diz que vão revistar e que os espiões estão agindo, o perigo é quase o mesmo. Não quero voltar para lá! Não quero que minha filha morra!

- Talvez morramos todos, Ursula - respon­deu, suavemente, Alex, olhando-a com ternura. - Não lhe posso prometer êxito, compreenda. Mas, também, acho que se permanecermos aqui, acabarão por nos apanhar, como ratos numa ratoeira.

- Se sua vida pode correr perigo, fique, Alex querido - murmurou ela, com os olhos cheios de lágrimas. - Digam-me o que devo fazer e eu tentarei com minha filha. Já é demais o que você sofreu por nós, e não quero que, por minha causa...

- Bultz, vamos embora esta mesma noite - respondeu, secamente, Alex, levantando-se. - Di­ga-nos qual é a parte melhor da cidade para se passar. Vamos agora mesmo, antes que ama­nheça.

Bultz levantou os braços, desesperado.

- É um suicídio, camarada. É muito pior do que eu disse - continuou, com amargura. - Quatro homens morreram ontem, de noite, por tentarem passar mulheres! Eu sei disso, muito bem! Mesmo que o senhor seja do FBI, isso é um suicídio!

- Deixo aqui a mala. Já não me serve mais. Ela lhe será útil, Bultz. Vamos!

Bultz ia na frente, indicando o caminho. Atrás, numa distância de uns doze metros, seguia-o Ursula com a filha nos braços. E, por último, Alex, levando a mão direita metida no bolso, empunhando a "Mauser", examinando um lado e outro.

As ruas estavam desertas. Uma escassa ilumi­nação, por cima das casas, quase todas estraga­das pela guerra recente, mal permitia ver um vulto que estivesse a uns vinte metros.

Bultz atravessou ruas, grudado às paredes, me­tendo se em outras muito estreitas, adiantando caminho, como um bom conhecedor da cidade. Ia para o centro da zona soviética; para a parte americana, por vezes visivel, com sua profusa iluminação e mais ruidosa, mais livre em sua vida noturna. Havia um forte contraste entre as duas zonas.

Deviam estar andando há meia hora, quando Bultz parou junto a uma casa e acendeu um cigarro, Ursula aproximou-se dele. Pouco depois, chegava Alex, com passos firmes. Havia um par­que, sem iluminação alguma e, mais adiante, podia-se distinguir uma escura massa emaranha­da, no solo.

- Ali estão os arames farpados - disse Bultz, mostrando com a mão aquela massa, como uma cerca, sustentada por altos postes de madeira. - Ainda está em tempo. Voltem. Talvez, dentro de poucos dias essa severidade diminua. É um suicídio, de verdade.

- Obrigado, camarada - disse Alex, estrei­tando a trêmula mão do alemão. - Nós prefe­rimos a liberdade. Estamos decididos, Ursula? Haja o que houver?

- Haja o que houver, Alex. Com você vou para qualquer lugar. Gostaria de poder fazê-lo, sempre. Obrigada, Bultz. Peça a Deus por nós.

E que Ele o proteja também, por todo o bem que nos fez.

- É um suicídio... - murmurou o alemão. E ficou olhando-os se afastar, tremendo a mão que sustentava o cigarro. Alex tomara Maria Teresa nos braços e Ursula agarrou-se, tam­bém, a ele, caminhando depressa, encolhida, tre­mula. Era um grupo que podia simbolizar a fuga do terror, da perseguição, da morte.

Bultz afastou-se apressadamente, em direção à sua casa. Sabia que dentro de poucos minutos aquele silêncio seria rompido estrondosamente pelo ruído dos tiros, de vozes de comando e gritos de alarma. Na escuridão, precisamente, oculta­vam-se os olhos e os ouvidos da NKWD, esprei­tando.

Atravessaram o parque, cujas árvores pareciam enormes sentinelas, imóveis. No fim de um cor­redor, entre arbustos, estava o emaranhado de arames farpados, em rolos, espirais, estendidos, que subiam e baixavam, sustentados pelos postes até à altura de uns três metros.

- Solte-me o braço - disse Alex num sussurro a Ursula, que o obedeceu. E tirou a mão direita do bolso, empunhando a "Mauser". Ela lançou um fraco gemido e apertou-se a ele, que a afastou suavemente, enquanto com o braço esquerdo sus­tentava Maria Teresa, que se agarrava a seu pescoço, meio dormindo.

- Calma, querida. Quando eu correr, siga-me, se for preciso. Calma e coragem - murmurou Alex.

Caminharam ao lado do aramado. Uma lua, que se ocultava com frequência entre as nuvens negras, permitia-lhes, de quando em quando, ver por onde passavam. Alex parou de repente, incli-nando-se.

- Por aqui - disse, baixo, tomando Ursula pelo braço. - Meta-se aí, depressa! Não se im­porte se rasgar a roupa. Depressa! Já lhe entre­garei a menina.

O aramado estava parcialmente destruído, com um poste muito inclinado, deixando um buraco estreito, com menos obstáculo do que o resto. E Ursula pôs-se de joelhos por terra, buscando pas­sar pelo buraco.

Bultz deve ter ouvido, como tanto temia, os disparos de uma metralhadora. Soou muito perto e, em seguida, os passos de um homem que gri­tava e que, pouco depois, fazia soar um apito com insistência.

- Desgraçado! - disse Alex, olhando em volta com espanto. - Viu-nos! Corra, saia, mulher! Depressa!

- Deus meu! Para onde vamos? - exclamou ela, escondendo a cabeça no peito de Alex. - Vão nos cortar a passagem contra o aramado. Minha filha, salve minha filha! Mesmo que seja só ela!

- Continue sozinha! Sempre pegada ao arama­do — rugiu Alex, quando viu várias sombras que avançavam correndo para eles. Parou, pondo um joelho por terra, ao lado de um grosso poste.

E atirou várias vezes contra os soldados sovié­ticos. Ergueu-se e correu até alcançar Ursula.

- Por esse vão, depressa! Entre, entre! - exclamou Alex e voltou-se para os soldados, que se ocultavam entre as árvores do parque. Dali dispararam várias rajadas de metralhadoras. Eram mais de doze, mas Alex os conteve com seus disparos, que, talvez, eles não esperassem.

Ursula meteu-se por aquele labirinto de arames farpados, afastando-os com as mãos, gemendo de dor e desespero.

- Dê-me a menina - disse, estendendo os bra­ços. - Venha, também, Alex.

O agente especial carregou de novo a "Mauser". As descargas sucediam-se e ele tinha que agir como um louco, fugindo às balas. Aproximou-se de onde estava Úrsula e, envolvendo o corpo da menina com as roupas, beijou-a com desespero e entregou-lha.

- Venha, Alex! Não fique aí, que vão matá-lo! - gritou a moça, com terrível angústia. - Venha, Alex!

- Ande, Ursula! - berrou Alex, sem deixar de atirar, mantendo afastados os soldados russos.

- Ande, ande, ande!

As sentinelas gritavam, dando-se ordens para cercar Alex, que não encontrava oportunidade para seguir Úrsula. Quando o tentasse, seria fu­zilado, e depois Úrsula e a menina. Mas o prin­cipal era protegê-las, fazê-las sair da zona mortal, e que chegassem do outro lado, a menos de uma centena de metros, onde estavam os soldados americanos.

Foi até uma árvore próxima, grossa, e entrin­cheirou-se atrás dela. A lua iluminou um pouco a cena. Dois soldados, encurvados, queriam ata­ca lo pelas costas. Um carro aproximou-se, repen­tinamente e a luz intensa, branca, ofuscante de um refletor, deixou a descoberto a árvore, atrás da qual se protegia.

Alex atirou sobre os dois soldados. Um deles encolheu-se, soltou a metralhadora e caiu, lan­çando um grito abafado. Furiosas rajadas de balas incrustaram-se na árvore, assobiando outras ao lado. O feixe luminoso procurou, então, Ursula que, arrastando-se com a menina nos braços, estava no meio do aramado, tentando afastá-los, pisando-os, passando por cima deles. O agente especial apontou para o globo luminoso e dispa­rou duas vezes consecutivas.

Soou um estalido e o facho desapareceu, ins­tantaneamente. A escuridão deixou a todos como cegos que gritavam, correndo, seguidos pelas ba­las de Alex. Encontrou no caminho uma metra­lhadora e viu que ela ainda dispunha de umas quarenta balas. Correu desesperadamente para a abertura do arame farpado, por onde passara Ursula. Meteu-se de cabeça e sentiu na carne as fincadas das pontas.

Voltavam os soldados, quase às cegas. Mas disparavam como demônios suas metralhadoras e fuzis. Alex também atirou e, de novo, reinou a confusão.

Ursula estava quase no fim do aramado, do outro lado da mortal faixa. Depois, viria a "terra de ninguém" em campo aberto. Na zona ame­ricana, tão perto deles, soaram, também, apitos de alarme.

Alex batia-se ferozmente, rechaçando, com seus tiros, os soldados russos mais próximos. Ti­nha uma formidável pontaria e derrubava alguns. E avançou atrás de Úrsula que lhe gritava, aflita, que se unisse a ela.

- Siga! Siga! Não pare um minuto! - gritou ele, furioso. - Eu os contenho! Não pare, pelo que mais queira!

Era um milagre que as descargas cerradas dos russos não o atingissem. Mas tudo era devido ao fato de eles não avançarem até o aramado, temen­do servir de alvo às balas de Alex. Este retrocedia, protegendo o corpo da moça, que chorava de dor ao sentir-se ferida pelas aguçadas farpas.

- Siga! Siga! Não pare, que nos matam! - gritou Alex, que atirava com a metralhadora curtas rajadas sobre os soldados mais próximos.

Aquela faixa cheia de arame farpado parecia não ter mais fim, pensavam o agente e Ursula. Mas ela conseguiu transpor os últimos arames, caindo várias vezes e gemendo de dor. Maria Teresa também gritava ao sentir-se ferida.

- Corra, fazendo ziguezague! De vez em quan­do, jogue-se no chão! - ordenou Alex, com voz rouca. - Vou em seguida. Coragem e corra!

As balas assobiavam por cima, em volta do corpo de Alex, que retrocedia penosamente, ati­rando de quando em quando. A metralhadora descarregada, já não lhe valia de mais nada. Voltou a cabeça para ver Ürsula, que corria desesperadamente, jogando-se, de tempos em tem­pos, no chão. Ia a caminho da salvação ou da morte, porque de outros pontos partiram fortes rajadas e até algumas bombas de mão, que explodiam, levantando terra e arame para o alto.

Alex retrocedia lentamente. Viu que jogavam por cima do aramado algumas tábuas largas e compridas. E ouviu algo que o fez estremecer de horror.

Cães ladravam furiosamente. Foram coloca­dos nas tábuas e caíram quase ao lado de Alex, que, vertiginosamente, tornou a carregar a "Mauser". As metralhadoras pararam de funcionar para que não atingissem os terríveis cães, edu­cados na perseguição de fugitivos.

Ursula corria para a zona americana. Isso alegrou Alex, que se dispôs a não deixar passar nenhum cão atrás dela e da menina.

Uma luta feroz, de tiros e mordidas, iniciou-se. Os cães, quatro, aproximaram-se impetuosamente de Alex, que os recebeu a balas, fixando bem, a pontaria. Um só cão daqueles poderia destroçar Ursula.

Atraiu-os com astúcia e atirou sobre o que estava mais perto, pondo-se em pé. Um dos sol­dados russos assobiava de maneira estranha, atiçando-os. O cão lançou um uivo e caiu sobre os arames. Os outros, mais enfurecidos ainda, ladra­ram de raiva.

Alex disparava à queima-roupa, apoiando o cano no corpo dos cães alsacianos. Um deles, que quis se afastar para perseguir Ursula, foi derrubado com três tiros. E o agente voltou-se logo, buscando os outros dois. Jogou-se-lhes em cima, oferecendo-se às suas presas, numa cora­gem suicida. Assim não perseguiriam a Ursula e à menina.

Outro cão caiu, com a cabeça arrebentada. O que sobrava, vacilou. Mas os assobios do soldado lhe devolveram a valentia. Alex não podia seguir seus movimentos rápidos, seus saltos e investidas.

Retrocedeu passo a passo, sem deixar de apon­tar para o cão. O animal o estava protegendo, pois enquanto estivesse ali, os soldados não dis­paravam. E retrocedeu, retrocedeu sem cessar, evitando as mordidas, as investidas do cão.

O último arame. Estendeu a mão e já não sentiu mais as pontas. Estava na "terra de nin­guém". Voltou a cabeça. Já não viu Ursula. Tal­vez ela já estivesse na zona americana.

O cão atacava-o ferozmente, agora sem o obs­táculo dos arames farpados, que também lhe fe­riam as patas. Mas não quis ainda matá-lo. Os russos não atirariam, enquanto seu cão atacasse o fugitivo, para não matá-lo.

Outro refletor iluminou o espaço onde luta­vam Alex e o cão. O agente especial considerou-se perdido. Se se livrasse do cão, matando o, o refle­tor já o iluminava suficientemente para que os soldados soviéticos descarregassem sobre ele suas armas. Se pudesse ir arrastando o cão atrás de si, sem matá-lo...

Algo imprevisto veio aliviar sua situação. E foi um facho, muito mais forte de luz, que partiu da zona americana e que depois de percorrer um pouco os aramados russos, fixou-se, obstina­damente, nos soldados soviéticos, postados atrás dele, deixando-os ofuscados. Uma gritaria infer­nal de protestos elevou-se imediatamente. Outro potente refletor americano acendeu-se e foi ilu­minar os soviéticos.

Alex compreendeu o hábil estratagema de seus compatriotas. Já que não podiam atirar contra os russos, para evitar um grave conflito, pelo menos o ajudavam, cegando-os. E sem mais es­perar, descarregou dois tiros na cabeça do cão, que não cessava de atacá-lo furiosamente.

Correu, desalentado, seguido já pelas balas, às cegas, que lhe enviavam os russos. Foi uma cor­rida desesperada, fazendo curvas, como uma lebre perseguida pelos projéteis dos caçadores.

Chocou-se contra um parapeito de sacos de areia, saltou uma simples cerca de arame e foi cair nos braços de vários soldados americanos.

- E ela? - gritou, aflito, coberto de sangue dos pés à cabeça, as mãos todas arrebentadas. - E ela?

- Já passou. Não se apresse. Siga em frente, por esse corredor - disseram-lhe. - De boa escapou, amigo! A moça já nos disse que é do FBI, Nós não podíamos fazer nada mais.

Correu para um barracão de madeira. Ali havia vários oficiais, que contemplavam Úrsula e sua filha, tomando café com uísque.

- Alex! - gritou ela, soluçando. E jogou-se em seu braços, acariciando-lhe o rosto, coberto pelo sangue que lhe brotava da cabeça.

Ele a afastou suavemente, sorrindo, contendo o desejo de apertá-la contra o peito, de cobri-la de beijos. E deu-os todos em Maria Teresa, que também chorava de alegria.

- Livres enfim! - exclamou ele, tomando a xícara de café que lhe ofereciam e bebendo-a de um trago. Depois, acendeu um cigarro, nervoso, sem deixar de olhar para Úrsula, com paixão. Agora dava-se perfeita conta de quanto a amava e do quanto ia ser infeliz, precisamente quando ela entrava para a felicidade, reunindo-se ao ma­rido, ao bravo Julian.

Na manhã seguinte, curado de seus ferimentos, quase todos produzidos pelo arame farpado, Alex telefonava ao comandante McCally, que estava em Munique.

- Felicidades, rapaz! - exclamou o militar. - Eu já imaginava que sairia bem de sua empresa. E a môga e a menina?

- Estão perfeitas. Com os corpos como pe­neiras, por causa do arame farpado, mas isso não impedirá que de noite estejamos aí. E Julian? Não lhe diga que chegamos bem, que conseguimos fugir. Ursula quer dar-lhe uma boa surpresa...

- Mas, acontece, Grotowsky, que... - a voz do comandante tornou-se um pouco trêmula - que surgiram certos imprevistos. Vamos ver como se arranja para dar, uma má, uma péssi­ma notícia, à mulher...

- O quê? - perguntou Alex, nervoso, fran­zindo o cenho. - O que foi que disse?

- Que o pobre homem morreu anteontem, Alex. Foi repentino. Uma congestão cerebral.

- Deus meu! - gemeu o agente especial, lívido. - E agora, o que vai ser dessa pobre mu­lher, que só vive pensando em ver Julian...

- Deus assim o quis, meu filho. Se sabe dar essa espécie de notícia, diga-lhe logo. Se não, veremos, entre nós, como se há de fazer. Ela poderá seguir para a América. O Governo a receberá bem.

Pouco depois, Alex desligou o aparelho, fican­do longo tempo como estonteado, sentado diante da mesa do Comissariado americano de Berlim. Um turbilhão de idéias o assaltava, embrulhando-lhe o cérebro Ursula, já vestida decentemente, mais bela do que nunca e alegre, entrou no gabinete, trazendo Maria Teresa, também bem vestida.

- Alô, Alex - disse ela, sorrindo. - Conse­guirá lugares no avião para Berlim? Vamos ver o papai, minha filhinha! Hoje mesmo!

Alex beijou a menina, que lhe jogou os braços ao pescoço, rindo alegre.

- Eu só quero o papai Alex - disse com sua vozinha fina, apaixonada. - Eu gosto dele.

O agente especial soltou-a. Seu rosto expressava uma intensa e angustiosa emoção. Não sabia como transformar a alegria de Ursula em uma dor terrível. Foi ela quem, com seu instinto femi­nino, leu no rosto dele que devia ter havido algo muito grave.

- Falou com Munique, como disse que ia fa­zer, Alex? - perguntou, olhando-o fixamente.

- Sim. Acabo de falar com o comandante McCally - respondeu ele, secamente. E não disse nada mais, baixando os olhos, dando voltas no cigarro, nervosamente.

- O que foi que ele disse? Como está Julian? - perguntou Ursula, aproximando se dele. To­mou-lhe o queixo e obrigou que a olhasse frente a frente. Mas Alex desviou o olhar, muito pálido.

- Alex! O que foi? - gritou ela, empalidecendo. - O que aconteceu a Julian? Diga-o, sem medo! De vez em quando, ele tinha ataques... ataques cerebrais. Sofria tanto... Alex, diga-me tudo! - e rompeu a chorar, abrindo os braços para que a espantada Maria Teresa se refugias­se neles. - Morreu, não é? - sussurrou ela, olhando apavorada para Alex. Este levantou-se, depois de fazer um sinal afirmativo com a cabeça.

Úrsula partiu naquela mesma semana para os Estados Unidos. Tinha direito a uma pensão do Governo americano, por ter sido Julian um espião a serviço daquele país. E, em Washington, a moça logo conseguiu um lugar de professora numa escola para crianças polonesas, custeada pelos re­fugiados dessa nacionalidade.

Passados alguns meses, Alex pediu e obteve transferência para Washington, para a sede do FBI. Queria estar perto de Ursula. Amava-a profundamente. Com o passar dos tempos, em sua mente foi amadurecendo um projeto que já o tornava feliz. Saíram juntos muita vezes e Maria Teresa nunca deixou de chamá-lo de papai. E a mãe não se opunha a que Alex fosse assim chamado pela menina. Sempre sorria e corava. Ia renascendo nela, além da conformidade com o que Deus lhe havia enviado, um novo desejo de viver, de conseguir um pouco de felicidade, áo lado da filha e do bom e alegre Alex.

Depois de um ano da morte de Julian, Alex julgou que já era tempo de deixar transparecer um pouco do que lhe ia no coração. Cheio de temor e gaguejando de emoção, disse-lhe tudo.

- Não devíamos desiludir Maria Teresa - disse, sorrindo, timidamente. - Ela me chama de "papai" e, embora eu saiba que não serei nunca igual a Julian... gostaria de tentar a experiência. Não pretendo que me ame, logo. Tal­vez isso aconteça mais tarde. Esta esperança já seria muito para mim. Eu a amo desde que a vi pela primeira vez. Tudo aquilo que juntos passa­mos, fez com que eu tivesse certeza de minha ternura. Se algum dia quiser me responder, po­derá me fazer muito feliz...

- Sempre hei de reverenciar a memória de Juljan, de meu pobre Juljan - disse ela triste. - Mas tenho certeza de que, se ele nos vê, aprovará que eu me una a um homem que foi leal com ele e comigo. Acho que podemos nos casar quan­do você quiser, Alex. Peçamos a Deus que tenha Julian a seu lado, porque Ele assim o dispôs. E nós podemos nos amar, pois ambos merecemos isso.

Alex estreitou-a em seus braços, sorrindo, imensamente feliz e beijou-lhe os lábios com timidez, respeitando a dor de quem se mostrava tão compreensiva e boa. 

 

                                                                                            Allan Carson

 

 

                      

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