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O centurião Titus Cornelius Pollenius secou a testa ao observar o extenso campo de batalha ao seu redor. A encosta do morro estampava os corpos empilhados nos pontos onde o combate fora mais intenso. Seus homens, à procura de companheiros feridos, saqueavam o pouco que era possível dos inimigos caídos. Aqui e ali os feridos gritavam de forma lastimável enquanto se contorciam em meio à carnificina. Entre os corpos estavam legionários romanos em túnicas vermelhas e cotas de malha agora manchadas de sangue. Titus calculou que milhares de companheiros haviam morrido na batalha. Mesmo assim, as perdas romanas não eram nada comparadas às do inimigo.
Ele balançou a cabeça espantado diante dos homens - e mulheres - que havia enfrentado mais cedo. Muitos deles munidos apenas com facas e utensílios agrícolas, e a maioria não tinha armaduras, tampouco escudos. Mesmo assim, eles se jogaram contra Titus e seus companheiros, gritando com raiva e uma coragem desesperada no olhar.
Nada disso os salvou da derrota contra os soldados com treinamento melhor e adequadamente equipados do general Pompeius, o comandante dos exércitos romanos que perseguiram e encurralaram o inimigo.
- Escravos - murmurou Titus para si mesmo, espantado ao ver os corpos. - Apenas escravos.
Quem imaginaria que homens e mulheres, considerados ferramentas ambulantes pela maioria dos romanos, teriam tanto espírito de luta? Havia quase dois anos desde o início da revolta dos escravos, e desde então eles derrotaram cinco das legiões que Roma enviou contra os rebeldes. Também queimaram muitas das vilas e pilharam as propriedades das famílias mais poderosas de Roma. Certa vez, Titus se lembrou, os escravos marcharam até mesmo contra a própria Roma.
Ao olhar para baixo, Titus viu o corpo de um menino e imaginou que ele tivesse pouco mais de 10 anos de idade. Louro e de feições delicadas, a cabeça do garoto estava apoiada na armadura de um legionário morto. Seus olhos encaravam o céu claro, e a boca entreaberta parecia estar prestes a falar. Titus sentiu uma pontada de tristeza no coração ao olhar a criança. Não havia lugar para crianças em uma batalha, pensou. Não havia honra em derrotá-las ou matá-las.
- Centurião Titus!
Ele se virou ao ouvir o grito e viu um pequeno grupamento de oficiais andando entre os corpos, vindo em sua direção. À frente, uma figura grande de ombros largos
usava um peitoral reluzente de prata. Amarrada à cintura, a faixa vermelha indicava o status. Ao contrário dos homens que estiveram no coração da batalha, o general
Pompeius e seus oficiais mantiveram-se intocados pelo sangue e sujeira, e alguns dos mais jovens e sensíveis torciam a boca ao passarem, com dificuldade, sobre os
mortos.
- General. - Titus ficou em posição de sentido e baixou a cabeça diante da aproximação do comandante.
- Que sangueira - comentou o general Pompeius, ao apontar para o campo de batalha. - Quem imaginaria que reles escravos resistiriam tanto, hein?
- Com certeza, senhor.
Pompeius franziu um pouco os lábios e a testa.
- O líder deles, aquele tal Spartacus, deve ter sido um homem e tanto.
- Ele foi um gladiador, senhor - respondeu Titus. - Eles são uma raça especial. Os que sobrevivem na arena por algum tempo, pelo menos.
- O senhor conhece muita coisa a respeito dele, centurião? Quero dizer, antes de se tornar um rebelde?
- Nada além dos rumores, senhor. Parece que ele apenas apareceu um punhado de vezes na arena antes de a rebelião estourar.
- E, no entanto, ele se sentiu à vontade no comando, como um pato no lago - refletiu Pompeius. - É uma pena que eu nunca tenha tido a oportunidade de conhecer esse
homem, esse Spartacus. Eu poderia tê-lo admirado. - O general ergueu o olhar rapidamente para os oficiais. Um breve sorriso surgiu em seus lábios ao encarar um oficial
em especial, um jovem alto e de rosto estreito. - Fique calmo aí, Gaius Julius. Eu não passei para o lado do inimigo. O Spartacus é, ou era, apenas um escravo no
fim das contas. Nosso inimigo. Agora ele foi destruído e o perigo acabou.
O jovem oficial deu de ombros.
- Nós ganhamos a batalha, senhor. Mas a fama de alguns homens continua viva por muito tempo depois de caírem. Se é que ele caiu.
- Então temos de encontrar o corpo - respondeu Pompeius laconicamente. - Assim que o pegarmos e o exibirmos para todo mundo, daremos um basta a qualquer ideia de
rebelião no coração dos malditos escravos na Itália.
Ele se virou para encarar Titus.
- Centurião, onde o Spartacus deve ter caído?
Titus franziu os lábios e apontou para um pequeno monte a cem passos. Ali havia mais corpos empilhados do que em qualquer outro ponto do campo de batalha.
- Foi lá que eu vi o estandarte dele durante o combate, onde os últimos escravos lutaram até o fim. É lá que o encontraremos, se é que ele está em algum lugar, senhor.
- Ótimo, então vamos lá.
O general Pompeius partiu apressado, caminhando sobre os corpos, em direção ao monte. Titus e os demais o seguiam às pressas, e os soldados espalhados à frente faziam
posição de sentido enquanto o pequeno grupamento passava. Quando chegaram próximo ao monte, Pompeius fez uma pausa para observar a terrível cena. O combate mais
feroz ocorrera ali, e os corpos estavam cobertos por ferimentos. Titus estremeceu ao se lembrar de que muitos dos escravos lutaram com as próprias mãos, inclusive
com os dentes, até serem massacrados. A maioria dos corpos estava tão mutilada que ele mal conseguia reconhecê-los como pessoas.
O general soltou um suspiro de frustração, avançou mais sobre a pilha de corpos e colocou as mãos na cintura.
- Bem, se o Spartacus foi morto aqui, então será difícil identificá-lo. Arrisco dizer que não teremos a cooperação dos prisioneiros para encontrá-lo. - Ele indicou
com a cabeça um grupo de figuras a uma pequena distância do limite do campo de batalha, cercadas por legionários atentos. - Maldição! Precisamos do corpo dele...
Titus viu o comandante subir com cuidado o topo do monte, evitando pisar em braços e pernas retorcidos e corpos mutilados. Pompeius estava no meio do caminho quando
um movimento chamou a atenção de Titus. Uma cabeça se ergueu ligeiramente entre os corpos e, no instante seguinte, uma figura ensanguentada que Titus imaginou estar
morta disparou por trás do general. O escravo tinha cabelos escuros escorridos, uma barba rala e dentes podres revelados pela boca aberta ao rosnar. Sua mão segurava
firme um gládio, e ele correu, equilibrando-se entre os corpos empilhados, em direção ao general romano.
- Senhor! - berrou Gaius Julius. - Cuidado!
Titus já estava em movimento quando Pompeius virou-se para trás. O general arregalou os olhos ao ver o escravo correndo com o gládio em riste apontado em sua direção.
Titus arrancou a espada da bainha e subiu correndo a pilha de corpos, a carne cedendo debaixo de suas botas com travas. Nesse momento, o escravo deflagrou um golpe
contra a garganta de Pompeius. O general tropeçou ao desviar-se do ataque, prendendo um de seus calcanhares sob um corpo. Ele caiu de mau jeito e gritou assustado.
O escravo chegou mais próximo, pulou em cima do general e, em seguida, ergueu a espada, preparando-se para o ataque final.
Titus cerrou os dentes e correu desesperadamente. No último momento, o escravo percebeu o perigo e olhou por detrás do ombro. Naquele instante, Titus o acertou com
todo o peso do corpo, e o gládio do escravo caiu da mão. Ambos rolaram no chão e, por pouco, erraram o general Pompeius.
Titus tentou mover a espada, mas a arma estava presa embaixo do escravo; então, ele a soltou e pegou a garganta do homem. O corpo do escravo se contorcia debaixo
de Titus e suas mãos arranhavam os braços do centurião ao mesmo tempo que rosnava com uma fúria quase animalesca. Titus apertou mais e sufocou os ruídos do escravo.
Ao sentir a pressão na traqueia, o homem renovou a resistência. Uma das mãos agarrou o pulso de Titus na tentativa de soltar os dedos, enquanto a outra, que tateava
o rosto do centurião, conseguiu, ao subir, arranhar as bochechas. Titus pressionou os olhos ao máximo e fez o mesmo com as mãos. O escravo reagiu com uma joelhada
e seus próprios olhos se esbugalharam ao arranhar os de Titus. O centurião virou o rosto.
Os movimentos do escravo se tornaram frenéticos, mas, de repente, perderam força, até que as mãos se soltaram e a cabeça caiu para trás. Titus continuou pressionando
por mais um instante e, em seguida, abriu os olhos. Viu que o homem estava morto, com a língua estirada para fora entre os dentes. O centurião o soltou, rolou para
longe e ficou de pé, respirando com dificuldade. Ele olhou para baixo e percebeu que sua espada havia perfurado as costelas do homem - por isso não conseguira movê-la.
O escravo teria morrido de qualquer forma.
Ao lado dele, o general, derrubado pelo peso do peitoral todo trabalhado e decorado, tentava se levantar. Ele viu o escravo morto e Titus sobre o corpo, puxando
a espada para soltá-la.
- Pelos deuses, essa passou perto! - Pompeius baixou o olhar para o corpo do escravo. - Ele teria me matado se não fosse por você, centurião Titus.
Titus não respondeu, e usou a túnica suja do escravo para limpar o sangue da lâmina da espada. Em seguida, embainhou a arma e se empertigou novamente. O general
dirigiu-lhe um breve sorriso.
- Eu lhe devo a vida. Não me esquecerei disso.
Titus agradeceu com um aceno da cabeça.
- O senhor merece uma recompensa. - O general coçou o queixo e em seguida apontou para os escravos que foram feitos prisioneiros. - Escolha um deles em meu nome.
Esse é um prêmio digno por salvar a minha vida, mas também fique sabendo, centurião, que, se um dia precisar de ajuda, tem a minha palavra de que farei o que for
possível pelo senhor.
- O senhor é muito generoso, meu general.
- Não. O senhor salvou a minha vida. Não existe recompensa suficiente para tal ato. Agora escolha um prisioneiro para ser seu escravo. Uma boa mulher, talvez.
- Sim, senhor. E quanto ao resto? Deverão ser partilhados entre os homens?
O general Pompeius fez que não com a cabeça.
- Normalmente, eu adoraria fazer isso. Mas todos os escravos espalhados pelo império precisam aprender uma lição. Precisam ver o que aguarda aqueles que se rebelam
contra seus senhores. - Ele fez uma pausa e a expressão ficou séria. - Assim que fizer sua escolha, dê a ordem para que os que foram capturados armados sejam crucificados.
Eles serão pregados ao longo da estrada de Roma a Cápua, onde a revolta começou.
Titus sentiu um frio na espinha diante da ordem brutal do general. Por um momento, ele sentiu vontade de discordar. Os escravos foram vencidos. A rebelião havia
sido destruída. Qual era a necessidade de uma punição tão bárbara? Porém, então, o treinamento e a disciplina assumiram o controle, e Titus bateu continência para
o general. Em seguida, atravessou o campo de batalha em direção aos prisioneiros, para escolher aquele que seria poupado antes que os demais fossem levados para
uma morte longa e dolorosa.
1
ILHA DE LÊUCADE, DEZ ANOS DEPOIS
No início daquela manhã de verão, quando o velho Aristides entrou correndo no pátio, Marcus sabia que haveria encrenca. Estava brincando com Cerberus, o cão de caça
de pelo áspero, tentando treiná-lo a obedecer aos seus comandos de sentar e deitar. Mas Cerberus apenas inclinava a cabeça de lado com a língua para fora e olhava
o jovem dono com um olhar vazio. Assim que viu Aristides, correu para o velho e sacudiu o rabo.
O pastor de cabras perdera o fôlego, então se apoiou no cajado e engoliu em seco, a fim de recuperar o ar. Em seguida, disse:
- Três homens. - Ele apontou com um dedo trêmulo para a trilha que subia o morro em direção a Nidri. - Grandes... soldados, imagino.
O pai de Marcus encontrava-se sentado a uma mesa comprida e desgastada pelo clima à sombra de uma caniçada entrelaçada por videiras tão grossas quanto seu pulso.
Titus Cornelius, que até aquele momento mantinha-se ocupado trabalhando nas finanças da fazenda, abaixou a pena sobre a tábula, levantou-se do banco e foi cruzar
o pequeno pátio.
- Você disse "soldados"?
- Sim, amo.
- Entendo. - O sorriso de Titus sumiu, mas ele manteve a voz em tom ameno: - E o que você sabe sobre soldados, velho? Animais, tudo bem. Mas soldados?
Aristides se empertigou e encarou seu amo.
- Dois deles têm lanças e todos carregam espadas.
Marcus olhou para o pai e notou em sua expressão um breve indício de ansiedade. Ele nunca havia visto o pai sequer preocupado. Seu rosto áspero era marcado por várias
cicatrizes, relíquias dos tempos em que serviu nas legiões do general Pompeius. Ele era um centurião - um oficial endurecido pelo combate - quando dera baixa e deixara
o exército. Comprara a fazenda na ilha de Lêucade e se aposentara. Ali foi viver com a mãe de Marcus, que dera à luz o menino poucos meses depois. Desde então, Titus
tirava um rendimento estável do pequeno rebanho de cabras cuidado por Aristides e das videiras que cobriam sua terra. Tinha sido forçado a pegar dinheiro emprestado.
Marcus sabia que era muito - ouvira os pais sussurrando a respeito durante a noite, quando imaginavam-no dormindo, e continuou preocupado com o assunto bem depois
de os dois se calarem.
O som de passos fez Marcus se virar e ver a mãe, que surgia de seu aposento no outro lado do pátio. Ela tecia uma nova túnica para ele, mas abandonou o tear assim
que ouviu Aristides.
- Eles têm lanças - murmurou ela, e depois olhou para Titus. - Talvez estejam indo para as colinas caçar javalis.
- Creio que não. - O velho centurião balançou a cabeça. - Se estão pretendendo caçar javalis, por que levariam espadas? Não, isso é outra coisa. Eles estão vindo
para a fazenda. - Titus deu um passo à frente e um tapinha no ombro de Aristides. - Você fez bem em me alertar, velho amigo.
- Velho? - Os olhos do pastor de cabras brilharam brevemente. - Ora, nem tenho dez anos a mais que o senhor, amo.
Titus gargalhou, uma risada alta e forte que Marcus conhecia a vida inteira e sempre considerara reconfortante. Apesar de ter tido uma vida dura nas legiões, o pai
sempre fora bem-humorado. De vez em quando, Titus era severo com Marcus ao insistir que ele encarasse as próprias brigas com algumas das crianças de Nidri, mas não
havia como duvidar de seu carinho.
- Por que eles estão vindo para cá? - perguntou a mãe. - O que querem conosco?
Marcus viu o sorriso do pai sumir.
- Encrenca - rosnou. - É o que querem conosco. Decimus deve tê-los mandado.
- Decimus? - Enquanto Livia falava, Marcus viu a mãe levar a mão à boca, horrorizada. - Eu disse que não deveríamos nos envolver com ele.
- Bem, é um pouco tarde para isso agora, Livia. Vou ter que lidar com ele.
Marcus ficou assustado com a reação da mãe. Ele pigarreou.
- Quem é Decimus, pai?
- Decimus? - Titus fez uma expressão de desdém e cuspiu no chão. - Apenas um porco sanguessuga qualquer a quem alguém deveria ter ensinado uma lição há anos.
Marcus lançou um olhar questionador para o pai. Titus riu e acarinhou os cachos escuros do filho.
- Ele é uma figura, nosso Decimus. O agiota mais rico de Lêucade e, graças à influência junto ao governador romano, agora também é o cobrador de impostos.
- Uma combinação infeliz de funções - acrescentou Livia baixinho. - Ele já arruinou vários fazendeiros ao redor de Nidri.
- Bem, este aqui ele não vai arruinar! - rosnou Titus. - Aristides, traga a minha espada.
O pastor ergueu as sobrancelhas ansiosamente e, em seguida, correu para o interior da casa. Cerberus encarou Aristides por um momento, até voltar trotando para o
lado de Marcus, que afagou suavemente a cabeça do cachorro. Livia segurou o braço forte do pai de Marcus.
- No que está pensando, Titus? Você ouviu o Aristides. São três homens armados. Soldados, disse ele. Não pode lutar contra eles. Nem sequer pense nisso.
Titus fez que não com a cabeça.
- Eu já estive em desvantagens maiores e venci. Como você bem sabe.
A expressão da mãe de Marcus ficou mais séria.
- Isso aconteceu há muito tempo. Você não participa de qualquer tipo de combate há mais de dez anos.
- Eu não lutarei contra eles se não for preciso. Mas Decimus mandou os homens para cobrar dinheiro. Não irão embora sem ele.
- Quanto dinheiro?
Titus baixou o olhar e coçou a nuca.
- Novecentos sestércios.
- Novecentos?!
- Eu atrasei três pagamentos - explicou Titus. - Estava esperando por isso.
- Você pode pagá-los? - perguntou ela ansiosamente.
- Não. Não há muito dinheiro no baú. O suficiente para passarmos o inverno, e aí... - Ele balançou a cabeça.
Livia franziu a testa com raiva.
- É bom você me explicar tudo mais tarde. Marcus! - Ela se virou para o filho. - Vá pegar o baú de dinheiro debaixo do santuário no átrio. Agora.
Marcus concordou com a cabeça e fez menção de correr para a casa.
- Fique aí mesmo, garoto! - gritou Titus, alto o suficiente para ser ouvido a cem passos em todas as direções. - Deixe o baú onde está. Não serei forçado a pagar
uma única moeda antes que seja preciso.
- Ficou maluco? - perguntou Livia. - Você não pode lutar contra homens armados sozinho.
- Veremos - respondeu Titus seriamente. - Agora leve o garoto e fique dentro da casa. Eu cuido disso.
- Você vai se machucar ou morrer, Titus. E aí, o que será do Marcus e de mim, me diga?
- Entre na casa - ordenou Titus.
Marcus viu a mãe abrir a boca para reclamar, mas ambos conheciam o olhar duro de Titus. Ela balançou a cabeça, contrariada, e estendeu a mão para Marcus.
- Venha comigo.
Marcus olhou para a mãe, depois para Titus, e ficou parado, determinado a provar seu valor para o pai.
- Marcus, venha comigo. Agora!
- Não, eu vou ficar aqui. - Ele se empertigou e colocou as mãos na cintura. - O Cerberus e eu podemos ficar ao lado de papai, se houver uma luta. - Ele queria que
as palavras soassem corajosas, mas a voz tremeu um pouco.
- O quê? Ficar? - perguntou Titus, perplexo. - Você não está pronto para participar de uma batalha, meu garoto. Vá com a sua mãe.
Marcus fez que não com a cabeça.
- O senhor precisa de mim. De nós. - Ele acenou para Cerberus, e o cachorro ergueu as orelhas e balançou o rabo peludo.
Antes que Titus pudesse reclamar, Aristides saiu da casa. Segurava em uma de suas mãos o cajado; na outra, uma bainha de espada com a alça pendurada. Titus pegou
a arma e passou a alça pela cabeça, mexeu o ombro até se convencer de que a espada estivesse bem colocada e o cabo, facilmente acessível. Ao chegar no portão, Aristides
passou a vigiar a estrada que descia a encosta em direção a Nidri. De repente, Titus pegou o cabo da espada e sacou a arma em um único movimento, tão rápido que
Marcus se retraiu. Ele soltou um ligeiro grito. Cerberus rosnou.
O pai olhou para Marcus com um sorriso e embainhou a espada.
- Calma, eu estava apenas verificando se a espada saía rapidamente. É por isso que mantenho a bainha e a arma azeitadas, em caso de necessidade.
Marcos engoliu em seco de nervoso.
- Que tipo de necessidade, pai?
- Como a que temos neste momento. Agora, deixe isso comigo. Fique na casa até eu chamar você.
Marcus encarou Titus com um olhar de contestação.
- Meu lugar é ao seu lado, pai. Eu sei lutar. - Ele pegou a bolsa de couro e as tiras do estilingue enfiado no cinto. - Eu consigo acertar uma lebre a 50 passos
com isso.
A mãe ficou olhando os dois e disse quase aos berros:
- Tenha dó, Marcus! Entre agora!
- Livia - interrompeu o marido. - Vá você. Abrigue-se na cozinha. Eu falo com o Marcus. Ele irá diretamente até você.
Ela fez menção de protestar, mas então viu o olhar intenso do marido e deu meia-volta; as sandálias arrastavam nos ladrilhos. Titus se virou para Marcus e deu um
sorriso afetuoso.
- Meu garoto, você ainda é jovem demais para lutar as minhas batalhas. Por favor, vá com a sua mãe.
Mas era tarde demais. Antes que Titus terminasse de falar, ouviu-se o assobio forte de Aristides. O pastor levou as mãos em concha à boca e chamou o mais alto que
ousou se arriscar:
- Amo! Eles estão chegando!
2
O pai apontou para a entrada da casa.
- Marcus, fique ali e não se mova.
Marcus concordou com a cabeça e estalou os dedos para chamar a atenção do cachorro.
- Siga!
Eles se posicionaram à sombra do pequeno pórtico que levava ao humilde átrio da casa, fora de vista do portão. Aristides segurou firme o cajado e esticou-se de prontidão
ao lado do portão.
Tudo ficou quieto por um momento. O coração de Marcus batia forte no peito e sua boca estava seca. Em seguida, ele ouviu as vozes abafadas, e cada vez mais próximas,
dos três homens subindo o caminho em direção ao portão. Um deles fez um comentário qualquer e os demais riram. Era um barulho cruel e desagradável, e Marcus ficou
irritado consigo mesmo. Dissera que poderia ajudar o pai, mas não tinha um projétil para o estilingue e, de qualquer maneira, precisava de espaço e tempo para aprontar
a arma.
Marcus sabia que tinha uma boa mira. Aristides havia ensinado bem a ele - bem o suficiente para matar um dos cães selvagens que atacaram as cabras no início da primavera.
No entanto, a arma era inútil agora.
Foi então que ele viu uma das varas de videira do pai encostada no canto da entrada. Marcus pegou a vara e a deixou de prontidão, determinado a bater forte, com
a ponta retorcida, se houvesse uma luta.
As vozes dos homens iam sumindo à medida que se aproximavam do portão, as botas rangeram sobre a brita e eles entraram na fazenda. Marcus olhou pelo canto do pórtico
e viu os visitantes indesejados. Um homem alto e musculoso vinha à frente. Ele tinha um cabelo bagunçado com mechas grisalhas, preso por uma tira de couro. Marcus
imaginou que o homem não era muito mais jovem do que seu pai. Parecia bem robusto, e a cicatriz em diagonal atravessando seu rosto era prova de que estava acostumado
a lutar. De cada lado do homem, e a um passo atrás do líder, os outros dois pareciam igualmente valentões; cada um carregava uma lança, além das espadas penduradas
nos cintos.
Titus olhou o trio de cima a baixo antes de pigarrear e ir direto ao assunto:
- Quem são vocês? Digam o que querem e vão embora.
A expressão dura do líder formou um sorriso e ele ergueu as mãos para acalmar Titus.
- Calma aí, senhor! Não há motivo para bancar o centurião durão para cima de nós. Estamos aqui apenas para trazer uma mensagem. De Decimus. - O sorriso desapareceu.
- Primeiro, diga seu nome.
- Por quê?
- Eu gosto de saber com quem estou lidando - respondeu Titus, sem alterar o tom de voz, enquanto a mão desceu e pousou sobre o pomo do cabo da espada.
- Muito bem. Eu sou Thermon. Cuido dos clientes mais difíceis do meu senhor.
- Fale o que tem a dizer, Thermon, e vá embora.
- Ora, ora, não há razão para uma atitude tão inóspita, senhor. O motivo para estarmos aqui é bem simples. O senhor deve dinheiro ao nosso amo. Mil e cinquenta sestércios,
para ser exato. Ele nos mandou cobrar a dívida.
- Novecentos - respondeu Titus, sem alterar o tom de voz.
- Perdão, senhor?
- Eu devo 900 sestércios. Não 1.050.
O líder entrelaçou os dedos e estalou-os.
- Ah, veja bem o senhor, há a questão de juros adicionais a serem pagos com a dívida. O senhor deve 1.050 sestércios ao Decimus, como eu disse... Meu amo quer o
dinheiro. Agora.
Titus suspirou, cansado.
- Eu não tenho esse dinheiro. Decimus sabe disso. Eu falei ao agente dele que pagarei no próximo ano, assim que tiver uma boa colheita. É melhor você dar meia-volta,
ir até o Decimus e explicar isso a ele com cuidado, de maneira que não haja um mal-entendido desta vez. Diga que ele terá o dinheiro assim que eu puder pagá-lo.
- Titus fez uma pausa curta. - E não haverá juros adicionais. Ele receberá o que devo e nada mais. Agora, estou dizendo pela última vez: saia da minha propriedade.
O líder inflou as bochechas e balançou a cabeça.
- Sinto muito, centurião, mas isso simplesmente não basta. Ou nós saímos com o dinheiro, ou com bens suficientes para cobrir o valor - todo o valor - que o senhor
deve ao Decimus. É assim que vai ser.
Titus encarou o sujeito, e os outros homens pegaram as lanças com mais firmeza e inclinaram as pontas levemente na direção do antigo centurião. Marcus percebeu que
a confrontação descambaria para violência a qualquer momento. Ele crispou os punhos na vara de videira. Sabia que Cerberus tinha percebido o perigo também. Os pelos
começaram a se eriçar ao longo da espinha do cachorro, que rosnou e revelou presas brancas e reluzentes.
Antes que Titus ou os visitantes pudessem agir, houve um movimento brusco ao lado do portão no momento em que Aristides deu um passo à frente, segurando o cajado
com as mãos fracas.
- O amo mandou vocês irem embora! - A voz era fraca e aguda, mas a determinação nos olhos fundos embaixo dos espessos tufos de sobrancelhas brancas não deixava dúvidas.
- Saiam!
Thermon pestanejou surpreso e, em seguida, soltou uma imensa gargalhada. Seus dois homens o acompanharam e riram nervosamente enquanto olhavam de Aristides para
Titus.
- Centurião, onde o senhor encontrou essa relíquia? - Thermon balançou a cabeça e rapidamente avaliou Aristides. - Duvido que precisaremos incluí-lo no inventário.
Ele não vale nada. O senhor teria que doá-lo.
Marcus sentiu uma raiva ardente no coração quando os homens insultaram Aristides. Viu a expressão do pai ficar mais séria. Titus cerrou os dentes e rosnou:
- Meu escravo não está à venda. E você vai obedecê-lo e sair da minha terra.
O humor de Thermon imediatamente mudou. Ele sacou a espada e se virou, a fim de acenar com a cabeça para os homens, que baixaram as pontas das lanças. Thermon encarou
Titus novamente.
- A escolha é sua, centurião. Pague, ou então...
Titus fez uma careta de desdém ao sacar a própria espada e ficou em posição de combate.
- Acho que escolho "ou então".
Marcus olhou ansiosamente para o pai. Seus braços e pernas tremeram. Não havia jeito de Titus vencer sozinho três homens. Marcus tinha que fazer alguma coisa.
Naquele instante, Aristides disparou contra o homem de Thermon que estava mais próximo, soltou um grito agudo e brandiu o cajado em um arco. O sujeito se virou e
esticou a lança para bloquear o golpe com um estalo forte de madeira contra madeira. O pastor de cabras avançou e gemeu pelo esforço. O homem de Thermon era mais
jovem, mais forte, acostumado a usar armas, e absorveu a carga facilmente. Ele empurrou de volta e Aristides saiu voando. Com um gemido de dor, o pastor caiu de
costas. Imediatamente o oponente ficou sobre ele e puxou a lança para trás, como se fosse atacar.
- Cerberus! Pegue! - gritou Marcus, e jogou a vara de videira no homem. Um borrão de pelos e dentes surgiu quando o cachorro pulou para pegá-la. O corpo do cão bateu
contra o sujeito, que se dobrou e deixou a lança cair. Aristides rolou para o lado, ficou de pé cambaleando e tentou desesperadamente sair do alcance antes que o
homem se recuperasse.
Enquanto isso, Titus deu um golpe à frente para aparar com violência uma estocada da lança do outro companheiro de Thermon e bateu com o pesado cabo de latão da
espada no rosto do homem. A cabeça do sujeito estalou para trás e ele caiu inconsciente.
Porém, antes que Titus pudesse se voltar contra Thermon, o intruso já estava atacando. Ele estocou o peito de Titus com a espada. O centurião fez uma curva com a
própria arma e aparou o golpe bem na hora. A ponta varou o ar a centímetros de seu couro cabeludo. Imediatamente, Thermon recolheu o braço e estocou novamente. Dessa
vez Titus não foi rápido o bastante, e a arma varou o braço armado.
- Ahh! - gritou Titus, que instintivamente afrouxou a mão na arma.
Thermon aproveitou a vantagem e desarmou Titus com um golpe estridente.
Marcus sentiu um aperto gelado de terror no coração. Após respirar fundo, ele saiu correndo da entrada, pulou nas costas de Thermon e envolveu a garganta do homem
com os braços finos.
- O que é isto, por Hades? - rosnou Thermon.
Marcus segurou firme o máximo que conseguiu - estava assustado, mas determinado a não soltar. Ele ouviu um latido empolgado e, em seguida, Cerberus pulou e cravou
os dentes no braço armado de Thermon. Preso entre o cachorro e o menino tentando estrangulá-lo, Thermon praguejou contra ambos furiosamente entre os dentes cerrados.
Ele soltou a espada, que caiu no chão.
- Bom garoto! - gritou Titus, ao pegar sua espada e avançar contra o homem que enfrentava Aristides.
- Cuidado! - grunhiu Thermon.
A atenção do companheiro de Thermon ainda estava voltada para o velho pastor, portanto ele mal teve tempo para notar o alerta antes que Titus golpeasse seu braço
e o cortasse até o osso. Com um grito agudo de agonia, o homem soltou a lança e segurou com força o braço junto ao peito. Titus chutou a lança na direção de Aristides.
- Pegue. Se o sujeito tentar alguma coisa, enfie nele.
- Sim, amo! - O pastor sorriu. - Será um prazer.
Titus se virou e ergueu a espada até a garganta de Thermon.
- Solte-o, Marcus, e mande o cachorro parar de atacar.
Marcos soltou-o e caiu no chão com o coração disparado. Ele recuperou o fôlego e estalou os dedos.
- Cerberus! Solte!
Relutantemente, o cão abriu as mandíbulas e deu uma volta por Thermon, soltando um rosnado de despedida antes de voltar para o lado de Marcus. Ele ficou orgulhoso
do cachorro e deu um tapinha em sua cabeça.
- Bom garoto.
Thermon esfregou a garganta com a mão. Sangue escorria das marcas de presas no outro braço. Ele encarou Titus com uma expressão intensa de ódio.
Titus sorriu.
- Acho melhor você recolher seus homens e voltar para o Decimus. Diga que ele vai receber o dinheiro no tempo certo. Diga que, se ele tentar mandar mais de seus
capangas para me intimidar, eles vão receber o mesmo tratamento que você.
Titus apontou para o homem caído no chão.
- Agora, levante-o e saia da minha terra.
Thermon e o homem com o braço machucado levantaram o companheiro com alguma dificuldade. Com os braços do sujeito sobre seus ombros, eles foram para a entrada. Thermon
parou por um breve instante para olhar para trás.
- Centurião, isso aqui não acabou. Fique sabendo que vou voltar com mais homens. O senhor vai pagar muito caro por desafiar Decimus.
- Bá! - Titus cuspiu no chão.
Em seguida, os visitantes indesejados foram embora e sobrou apenas o som das botas se arrastando pelo caminho. Marcus olhou para o pai e Aristides. Todos os três
ofegavam. De repente, Titus comemorou, e Marcus acompanhou o pai, seu coração disparou aliviado por todos estarem inteiros e também orgulhoso por terem derrotado
os inimigos. Titus bateu no ombro de Marcus.
- Bem, você puxou ao seu velho, com certeza!
Marcus ergueu o olhar para ele e ficou radiante de felicidade com o elogio.
- E o Cerberus também, pai. Ele ajudou.
- Ajudou mesmo! - Titus fez carinho na cabeça do cachorro.
Aristides jogou a lança longe e se juntou a eles. Embora o velho fosse um escravo, Titus passou o braço por ele e deu tapinhas nos ombros dos dois.
- Uma vitória tão boa quanto qualquer outra que tive. Muito bem, homens!
Marcus e Aristides riram de felicidade, e Titus se juntou a eles até notar uma figura parada na entrada da casa, olhando os três com frieza.
- Espero que esteja contente consigo mesmo - disse Livia.
Titus se empertigou com uma expressão de provocação.
- Estou mesmo.
- Sério? Acha que isso acabou? Você o ouviu. Ele disse que vai voltar com mais homens.
Titus fez um gesto de desdém.
- Duvido. Demos uma lição a ele e ao Decimus. Você vai ver. Se ele tentar alguma coisa contra um cidadão romano, e ainda por cima um centurião condecorado, sabe
que vai ter o que merece. Porém, vamos ficar de olho neles, se isso a deixa mais tranquila.
Marcus viu a mãe balançar a cabeça. Ela deu meia-volta e entrou novamente na casa. Embora seu coração ardesse de orgulho por ter lutado ao lado do pai, ele não conseguiu
evitar pensar se a mãe estava certa. E se Decimus realmente mandasse mais homens? Eles com certeza estariam mais preparados para enfrentar seu pai da próxima vez.
- Bem, isso foi divertido! - Titus sorriu. - Algo digno de uma comemoração. Aristides!
- Senhor?
- Mate sua melhor cabra. Hoje à noite celebraremos nossa vitória com um banquete!
Marcus ergueu o olhar e trocou um sorriso com o pai. Titus deu um tapinha em sua bochecha e um aceno de satisfação com a cabeça.
- Meu pequeno soldado. Você vai dar um belo guerreiro um dia. Vai ver só.
3
Muitos dias depois de os homens de Decimus terem sido escorraçados, Marcus e Aristides estavam sentados em uma pedra, vigiando as cabras.
- O Cerberus lhe serviu bem naquele dia. - Aristides sorriu e, em seguida, sua expressão ficou mais séria. - No entanto, ainda falta algum tempo até esse cachorro
estar completamente treinado.
Marcus baixou o olhar para Cerberus. O cachorro sentiu a atenção, olhou para cima com uma expressão de devoção e abanou o rabo, feliz.
- Ele parece bem domesticado.
- Ele foi domesticado, mas não treinado - disse Aristides, em tom firme. - O senhor pensou rápido ao jogar aquele bastão para ele, mas não pode confiar que aquilo
funcione da próxima vez.
- Da próxima vez? Você realmente acha que aqueles homens vão voltar?
- É possível. - Aristides fez um esforço para dar um sorriso desdenhoso. - Mesmo que eles não voltem, isso não é motivo para deixar de terminar o treinamento de
Cerberus. Ele tem se saído bem desde que o senhor o encontrou, amo Marcus.
Marcus concordou com a cabeça. Havia mais de um ano que o ambulante tinha passado pela casa com a carroça cheia de velhas panelas, facas, canecas e outros utensílios.
Cerberus estava acorrentado na traseira da carroça para proteger as mercadorias. Ele era mantido faminto e apanhava para se tornar o mais feroz possível, para deter
qualquer um que tentasse roubar algo da carroça. Na ocasião, a mãe de Marcus deu uma olhada no conteúdo da carroça e estava prestes a mandar o ambulante embora,
quando Marcus interveio. A imagem do cachorro magoou seu jovem coração.
- Deixe-me comprá-lo, mãe - sussurrou Marcus para ela.
- Comprá-lo? - A mãe pareceu se divertir. - Com o quê? Você não tem dinheiro.
- Então a senhora compra. Por favor!
Ela balançou a cabeça.
- Ele é um animal selvagem e inútil, Marcus. Não serve para nada.
Marcus olhou para o animal e viu o que existia por trás do pelo emaranhado e das presas arreganhadas - viu a criatura atormentada e assustada. - Ele está sendo maltratado.
Precisa de cuidado. Deixe-me ficar com ele e prometo treiná-lo e torná-lo útil para a fazenda! Por favor! - Marcus pegou a manga da túnica da mãe e ergueu os olhos
para ela. - Se deixarem esse homem ficar com ele por mais tempo, o pobre cachorro vai morrer.
A mãe lhe devolveu o olhar e, em seguida, franziu a testa, como se uma lembrança tivesse surgido. Ela olhou para o ambulante e perguntou, curta e grossa:
- Quanto pelo cachorro?
O ambulante franziu os olhos com uma expressão astuta.
- Vinte sestércios, visto que é para o jovem aqui.
- Dez. E nada mais.
- Dez? - O ambulante pareceu surpreso. - Mas o Cerberus é um cão de caça de primeira classe. Boa linhagem e tudo o mais. Vale uma fortuna.
- Dez - falou Livia com firmeza.
O ambulante fez, então, uma pausa, como se avaliasse a oferta. Depois, concordou com a cabeça.
- Tudo bem então, mas estou saindo no prejuízo.
Ele soltou o cachorro da carroça e ofereceu a corda para Marcus. Livia conteve o menino enquanto falava com o ambulante:
- Não. Amarre-o àquele poste atrás do celeiro.
Assim que o cachorro foi preso, ela entrou na casa para pegar o dinheiro e contou as moedas ao colocá-las na mão do ambulante. Ele fechou os dedos imediatamente
e voltou correndo para a carroça.
- Boa sorte com ele. A senhora vai precisar.
Em seguida, o ambulante estalou o chicote, a carroça foi embora e deixou Marcus olhando o cachorro, que recuou até a parede do celeiro e observou os novos donos
com suspeita.
Aristides tinha um talento especial para domesticar animais, e ele passava o tempo livre tentando ensinar seus conhecimentos para Marcus. Juntos, eles trabalharam
com Cerberus em um depósito gradeado atrás da prensa de azeitonas. Marcus se lembrou da primeira noite - o velho deu uma poção de dormir para Cerberus, e depois
os dois entraram de mansinho e lavaram as feridas do cachorro. Em seguida, ele recebeu uma dieta de papinha feita com farinha de cevada com sobras de carne da cozinha.
Semanas se passaram, e o cachorro recuperou a saúde em pouco tempo, o pelo cresceu novamente nos trechos pelados e cobriu os ferimentos e cicatrizes. Orientado por
Aristides, Marcus começou a dar pedaços de carne ao cão. A princípio, ele oferecia através das barras, e Cerberus se aproximava desconfiado antes de pegar um pedaço
e correr de volta para o fundo do depósito, onde engolia de uma vez só. Depois, Aristides e Marcus entraram no depósito, e o velho encorajou gentilmente o menino
a oferecer a carne na mão. Foi necessária toda a coragem de Marcus para dar um passo à frente e esticar a mão.
- Não recue - encorajou o pastor. - O senhor não pode demonstrar que está com medo.
Nas primeiras vezes, Cerberus arrancou a carne e correu; porém, depois de alguns dias, ele a pegou e comeu onde estava. Então, um dia, depois de engolir a comida,
o cão avançou cautelosamente e cheirou Marcus. O hálito quente na pele deixou Marcus nervoso, mas ele manteve a mão esticada e firme, até que, de repente, sentiu
a língua de Cerberus lambendo seus dedos. Seu peito se encheu de orgulho e amor pelo animal, e Marcus olhou para Aristides com um sorriso de satisfação.
- Você viu?
O velho pastor de cabras concordou e devolveu o sorriso ao afagar a cabeça do menino.
- Pronto, eu falei que nós iríamos conquistá-lo se o senhor fosse paciente.
Em pouco tempo, Cerberus passou a ter o maior prazer em deixar Marcus afagá-lo e, um mês após sua chegada, eles o tiraram do depósito para dar uma volta pela fazenda.
O cachorro ficou desconfiado a princípio, até ser tomado pelo prazer de cada cheiro, e passou a ir de um lado para o outro cheirando o solo, mas sempre se manteve
perto de Marcus e Aristides. Não demorou muito até Marcus levar o cachorro para passear sozinho e começar as primeiras lições simples de obediência. Três meses depois
de Cerberus ter chegado à fazenda, Marcus apresentou o cão ao pai e à mãe no pátio.
- Bem! Ele melhorou bastante - disse Livia, com uma expressão de surpresa. - O pelo parece estar em boas condições e ele ganhou algum peso.
- Verdade - ponderou Titus, ao ficar de cócoras para olhar o cachorro mais atentamente. Ele passou a mão nos músculos e levantou a pele da mandíbula para verificar
os dentes, tudo isso sem nenhuma reação de Cerberus. Titus olhou para o filho.
- Fez um bom trabalho, garoto.
Marcus deu um sorriso orgulhoso e apontou em seguida para o pastor de cabras.
- O Aristides me ajudou, pai. Eu não teria conseguido sem ele.
- Sim, o Aristides leva jeito com animais. Sempre levou. Agora a questão é: que uso podemos dar para ele? Pode ser treinado, imagino?
Marcus sorriu.
- Observe.
Ele estalou os dedos e apontou para o chão ao lado.
- Sente!
Cerberus se afastou de Titus, trotou até chegar ao lado de Marcus e se sentou. Em seguida, o menino abriu a mão com a palma virada para o chão.
- Deite!
Cerberus empurrou as patas da frente e se deitou no chão. Marcus fez uma pausa e, depois, um círculo com a mão.
- Morra por Roma!
Cerberus rolou de costas com as patas bambas. A mãe de Marcus bateu palmas de satisfação.
- Que cachorro esperto!
- Esperto? - Titus franziu a testa. - É um truque simples. Além disso, um cachorro esperto não morreria por alguém. Se você conseguir ensinar algo útil que nos ajude
na fazenda, ele é seu, garoto. Do contrário, ele terá que ir embora.
Marcus e Aristides tentaram ensinar Cerberus a cuidar do rebanho, mas o cachorro sempre tratava as lições como um jogo e corria latindo atrás das cabras até ser
mandado parar e preso novamente na guia. Eles tiveram mais êxito com as caçadas. Cerberus tinha um bom olfato para presas e, na maioria das vezes, conseguia perseguir
qualquer lebre antes que ela alcançasse a segurança das tocas. A contragosto, Titus permitiu que o cachorro ficasse.
Agora, depois da visita dos homens de Decimus, Marcus estava decidido a completar o treinamento de Cerberus com um conjunto mais perigoso de habilidades. Quando
ele explicou suas ideias para Aristides, o pastor de cabras inflou as bochechas e coçou a cabeça.
- Não tenho certeza de que essa seja uma boa ideia, Marcus. No momento, o cachorro tem uma boa índole. Ele adora pessoas. Se eu fizer o que está me pedindo e nós
o treinarmos para atacar, então o senhor pode perder esse lado dele. O Cerberus vai se tornar realmente um cachorro bem diferente.
Marcus já estava decidido. Se, ou mais provavelmente quando, Decimus mandasse mais homens para a fazenda, então seu pai precisaria de toda a ajuda possível. Ele
olhou firme nos olhos de Aristides e acenou com a cabeça.
- Temos que fazer isso.
Aristides suspirou, baixou o olhar para o cachorro e afagou sua orelha com tristeza.
- Muito bem, então. Vamos começar hoje.
Enquanto eles treinavam o cachorro, Titus mandou todo mundo ficar de olho em qualquer homem que se aproximasse da fazenda. Ele organizou um cronograma para si mesmo
e Aristides, a fim de que mantivessem uma vigília durante as noites. Titus ficava com o primeiro e o último turnos de guarda. A cada noite, quando Marcus se recolhia
para a cama, ele via o pai sentado em um banco dentro do pátio do portão, com a espada desembainhada sobre as coxas e um grande prato de cobre pendurado ao lado
para ser batido caso tivesse que soar o alarme. Marcus se preocupava constantemente com essa situação, mas ninguém apareceu nos dias que se seguiram, e então os
dias viraram um mês e ainda assim Decimus não mandou homem algum ou mesmo uma mensagem.
A vida na fazenda continuou com a rotina normal e, depois que Marcus terminava as tarefas diárias, ele dedicava seu tempo a treinar Cerberus. Como Aristides alertara,
o cachorro se tornou tenso e aparentemente desconfiado de todo mundo, a não ser de Marcus e do pastor de cabras.
Uma noite, ao pegar no sono - o brilho amarelo-claro de uma lamparina a óleo tremeluzia sobre o simplório baú, que era a única peça de mobília no quarto de Marcus
-, sua mãe entrou e se sentou na cama.
- Eu não tenho visto muito o Cerberus ultimamente - disse ela, afagando o cabelo do filho. - Ele nunca aparece na casa. Houve uma época em que eu tinha que ficar
de olho para garantir que o malandro não roubasse nada da cozinha.
- Eu estou mantendo o Cerberus no depósito outra vez.
- Por quê? Não é problema que fique dentro de casa.
- Isso tem a ver com o treinamento dele - explicou Marcus. - O Aristides falou que seria melhor que ele ficasse afastado de outras pessoas por um tempo.
A mãe ergueu as sobrancelhas e deu de ombros.
- Bem, o velho deve estar certo. Ele conhece muito bem seus animais.
Marcus concordou e sorriu para a mãe. Ela voltou a olhar para o menino e a mão pousou em sua cabeça. Uma expressão de dor momentânea passou pelo rosto dela e Marcus
sentiu uma pontada de preocupação.
- Mãe, o que foi?
Ela retirou a mão rapidamente.
- Nada. De verdade. Apenas que você me lembrou do seu pai por um instante. Apenas isso. - Livia deu um tapinha na bochecha do filho e se debruçou para beijá-lo.
Ela fez menção de se levantar, mas, antes que conseguisse, Marcus colocou a mão em seu braço.
- Nós vamos ficar bem? - perguntou baixinho.
- Perdão?
- Os homens vão voltar?
Ela ficou calada por um momento, antes de concordar com a cabeça.
- Não se preocupe. O Titus vai nos proteger. Ele sempre protegeu.
Marcus ficou tranquilo ao ouvir isso e, por um instante, sua mente vagou. Depois, perguntou:
- O papai foi um bom soldado?
- Ah, sim. Um dos melhores. - Ela fechou os olhos. - Eu soube assim que o vi.
- Quando a senhora o conheceu?
Os olhos de Livia se abriram novamente e ela fez uma pausa antes de responder:
- Eu conheci o Titus logo depois de a revolta ser debelada.
- A revolta dos escravos? Aquela que foi liderada pelo gladiador?
- Sim. O Spartacus.
- Meu pai me falou sobre isso uma vez. Ele disse que o Spartacus e seus rebeldes foram a maior ameaça que Roma jamais enfrentou. Contou que eles eram os homens mais
determinados e corajosos que jamais havia enfrentado. Ele esteve lá na batalha final com os escravos. - Marcus se lembrou da história que o pai havia lhe contado.
- Ele disse que foi a batalha mais intensa de que jamais participou. Os escravos não tinham muitas armaduras e praticamente nenhuma arma, mas lutaram até o fim.
Apenas um pequeno número se rendeu.
- Sim...
- Se o papai pôde derrotar o Spartacus e os escravos, então deve ser capaz de vencer os homens do Decimus.
- Isso foi há mais de dez anos - disse a mãe. - Titus agora é um homem mais velho. E não é mais um centurião.
- Mas ele vai nos proteger, não vai?
Ela deu um leve sorriso e afagou o rosto do filho.
- Sim. É claro. Agora vá dormir, meu menino querido.
- Sim, mãe - respondeu Marcus, com sono. Em seguida, rolou de lado e aninhou a cabeça no travesseiro. Livia continuou a afagar o cabelo dele por um tempo, até que
os olhos do filho se fecharam e a respiração serenou. Então se levantou e cruzou o quarto em silêncio até a porta. Ela parou ali por um momento, e Marcus, sonolento,
abriu levemente os olhos para vê-la, curioso a respeito da estranha expressão que a mãe fez quando ele falou sobre Spartacus. Na luz tênue da lamparina, Marcus notou
que os olhos dela estavam brilhando e uma lágrima escorria por sua bochecha. Livia fungou e abruptamente secou a lágrima antes de se virar para a lamparina e apagar
a chama. O quarto mergulhou na escuridão enquanto Marcus ouviu os passos leves da mãe descendo o corredor.
Ele ficou ali deitado, inquieto. Por que sua mãe estava chorando? Estava assustada como ele? Marcus sempre pensara no pai como um homem destemido e forte. Ele nunca
ficava doente e trabalhava na fazenda sob a chuva e o vento frio do inverno e sob o calor escaldante do verão, sem uma palavra de reclamação ou qualquer sinal de
incômodo. Marcus sabia que o pai era mais velho do que a mãe. Muito mais velho. O rosto dele estava abatido e enrugado, o cabelo ralo era marcado por mechas grisalhas.
Em compensação, ela tinha cabelos negros, era magra e bem bonita, pensou Marcus. Como chegou a se casar com ele? Quanto mais pensava nisso, mais perguntas surgiam
na mente de Marcus. Era engraçado, refletiu, como ele sabia pouco a respeito dos pais. Os dois sempre haviam estado ali, sempre juntos, e Marcus considerava o casamento
deles como algo trivial. No entanto, agora que pensou a respeito, eles pareciam ser um casal pouco provável. Marcus sentiu uma coceira nas costas, na omoplata direita,
e esticou o braço para coçar. Os dedos tocaram a cicatriz de formato estranho que estava ali desde que ele se entendia por gente. Marcus enfiou as unhas com delicadeza
e esfregou até a coceira ir embora.
Ele rolou de costas e encarou a escuridão das vigas acima. Resolveu que, a partir daquele momento, iria dedicar toda hora livre para treinar Cerberus. Se aqueles
homens voltassem, pelo que sua mãe falou, não havia garantia de que o pai seria capaz de vencê-los novamente. Marcus teria que ficar ao lado dele. Era grande o suficiente
para empunhar um cutelo ou um dos dardos de caça do pai. E teria Cerberus com ele. Marcus abriu um meio-sorriso ao pensar nisso e ficou tranquilo com a ideia de
que Cerberus os protegeria. Em seguida, teve um sono inquieto, atormentado por imagens vagas de figuras sombrias avançando de mansinho pela noite em direção à fazenda.
4
A manhã do dia seguinte foi quente, embora o céu estivesse nublado o suficiente para esconder as montanhas do continente, do outro lado da estreita faixa do mar
de Lêucade. O ar estava parado e, tirando o leve chiado ritmado das cigarras, tudo estava em silêncio. Centenas de corvos sobrevoavam de um arvoredo ao outro como
sombras negras esvoaçantes.
- Vai chover - comentou Aristides, ao ver o céu com os olhos franzidos. - Posso sentir.
Marcus concordou com a cabeça. Ele havia ajudado Aristides a escolher dez das cabras mais jovens para vender no mercado em Nidri. Não havia sido fácil, pois os animais
estavam nervosos por um motivo qualquer e os dois tiveram que andar com muito cuidado para não assustar os filhotes. Assim que passaram o laço pelo pescoço, foi
fácil levar as cabras para se juntarem às demais no cercadinho a uma distância curta da fazenda. Os dois tinham acabado de pegar a última cabra e agora estavam descansando
à sombra das oliveiras.
- O Cerberus precisa sair para passear - continuou Aristides. - Ele passou a manhã inteira trancado no depósito.
Marcus concordou com a cabeça novamente. Ele fez questão de tirar o cachorro do caminho enquanto reuniam as cabras.
- Vou cuidar disso em um instante.
Ele olhou para a base do morro. A quase dois quilômetros ficava o conjunto de telhados vermelhos e paredes brancas de Nidri à beira do mar, hoje com um tom metálico
de azul e trechos mais claros e mais escuros onde a superfície ondulava sob a brisa fraca. Marcus limpou uma gota de suor da testa.
- Aqui é lindo, não é?
Aristides olhou para ele com uma expressão de surpresa.
- Ora, sim, creio que sim.
- Às vezes penso que gostaria de viver aqui para sempre. Na fazenda, com a minha família. Isso inclui você, Aristides.
O velho sorriu.
- É gentileza sua dizer isso. Mas o senhor será um jovem adulto dentro de alguns anos, ansioso para sair de casa e ver o mundo com os próprios olhos. Já pensou no
que gostaria de fazer?
Marcus concordou com a cabeça mais uma vez.
- Eu gostaria de ser um treinador de animais. Como você.
Aristides riu.
- Eu sou apenas um escravo, Marcus. Nasci como escravo. A vida inteira eu fui propriedade de outros homens e jamais tive a chance de fazer o que queria ou ir aonde
desejava. Eu era deles para ser tratado como eles desejavam. Nem todos os donos são gentis ou justos como seu pai. Acredite em mim. O senhor não gostaria de ser
um escravo.
- Creio que não. - Marcus encarou o mar novamente por um momento. - Meu pai quer que eu seja um soldado. Ele diz que ainda tem alguma influência com o general Pompeius
e que consegue me alistar em uma legião. Se eu for um bom soldado e provar minha coragem, então posso me tornar um centurião como ele.
- Entendi. - Aristides concordou com a cabeça. - E o senhor gostaria disso?
- Acho que sim. Eu ouvi meu pai contar histórias de sua época na legião. Eu ficaria orgulhoso se pudesse ser como ele. E ele ficaria orgulhoso de mim.
- Sim, imagino que sim. O que sua mãe pensa disso?
Marcus franziu a testa.
- Não sei. Sempre que falo no assunto, ela fica muito calada. Não entendo por quê. Pensei que ela quisesse que eu fosse como ele.
Marcus sentiu algo batendo de leve em seu ombro e ergueu o olhar.
- Aqui está a chuva.
Mais gotas caíram, e eles viram que o céu nublado havia escurecido sobre as montanhas atrás da fazenda e que um véu de chuva estava descendo pelo morro em direção
a eles.
- Volte para casa - disse Aristides. - Eu fico aqui e cuido das cabras. Não queremos que elas entrem em pânico e tentem fugir do cercado.
Marcus concordou com a cabeça e ficou de pé rapidamente. Agora a chuva estava caindo de forma constante, batendo nas folhas das árvores. Marcus correu para o depósito,
abriu o ferrolho e pulou para dentro. Imediatamente surgiu o barulho de unhas no pavimento, quando Cerberus correu em sua direção e pulou para lamber o rosto de
Marcus.
- Chega, garoto! - Marcus riu e depois se lembrou do que Aristides dissera sobre ser firme. Ele endureceu o tom de voz: - Sente!
Cerberus instantaneamente se sentou, balançou o rabo peludo uma vez e depois parou, olhando para Marcus e esperando pela próxima instrução.
- Bom garoto. - Ele afagou a cabeça do cachorro, que começou a balançar o rabo novamente.
Lá fora a chuva desmoronava com força, batia nas telhas e pingava onde quer que encontrasse um buraco. Um clarão ofuscante de luz acendeu a fenda da porta. Marcus
olhou para fora. A chuva caía como milhares de varetas prateadas e, com as nuvens negras acima, era difícil enxergar além de cem passos à frente. Um terrível estouro
de trovão tremeu o ar e Cerberus recuou, depois soltou um ganido, assustado.
Marcus se ajoelhou e passou o braço pelas costas do cachorro. Ele estava tremendo.
- Calma, garoto. Vai passar logo.
Porém, algum tempo depois, a chuva não tinha diminuído em nada. Marcus ficou no depósito e observou enquanto ela continuava a castigar a fazenda. De vez em quando,
raios paralisavam o mundo com um espalhafatoso clarão branco, e o trovão rasgava os céus. Marcus viu que era impossível evitar os filetes de chuva que atravessavam
o velho telhado, e Cerberus ficou mais assustado com o passar do tempo. Finalmente, Marcus decidiu que era melhor se abrigar na casa. A cozinha estaria quente e
poderia haver sobras que ele pudesse usar para acalmar o animal.
- Vamos, garoto. - Ele deu um tapinha no flanco do cachorro. - Vamos!
Depois de abrir a porta devagar, Marcus se preparou e correu pela lateral do depósito em direção ao portão, sendo seguido por Cerberus. Ele disparou pelo pátio até
a entrada da casa. Não levou mais do que dez batidas do coração para chegar ao abrigo, mas a túnica estava ensopada e os pelos dos flancos de Cerberus ficaram emaranhados.
Imediatamente, Marcus soube o que iria acontecer.
- Cerberus, não!
Mas era tarde demais - o cachorro se sacudiu e espirrou gotas de água no corredor de entrada assim que a mãe de Marcus saiu do quarto para ver quem tinha entrado
na casa.
- Mas o que é isso? - Ela ergueu as mãos para proteger o rosto da chuva de respingos.
Cerberus parou de se sacudir e olhou para o dono com a língua de fora.
Livia abaixou as mãos e olhou feio para o filho.
- O que este cachorro molhado está fazendo na minha casa?
Outra figura surgiu do fundo do corredor e Titus riu ao ver a cena.
- Não há como fugir da chuva dentro ou fora de casa, ao que parece!
A esposa fez uma cara feia para ele.
- Fico contente que ache engraçado.
- Bem, sim, é engraçado. - Titus coçou a cabeça. - Muito engraçado, na verdade.
Ele piscou para o filho e ambos riram. Livia fez uma careta de desdém.
- Homens e meninos, não sei o que é pior. Se fosse por mim...
Ela foi interrompida por um grito de pânico vindo do portão. A risada morreu na garganta de Marcus e na de seu pai.
- Amo! - berrou Aristides.
Livia levou o punho fechado ao rosto.
Titus disparou pelo corredor até o pátio e Marcus o seguiu. No portão, o pastor estava caído contra a arcada. Havia uma flecha em seu peito. Sangue se espalhava
por sua túnica. Ele apoiou a cabeça para trás e gemeu enquanto a chuva escorria pelo rosto e pela barba irregular. Quando Marcus e Titus chegaram e se ajoelharam
ao lado dele, seus olhos se abriram. O pastor ergueu a mão e agarrou a manga de Titus.
- Amo, eles voltaram!
O velho tossiu e espumou sangue. Gemeu novamente ao soltar a manga de Titus e estremeceu. Marcus ergueu o olhar e viu o caminho do lado de fora do portão tomado,
agora, por minúsculos córregos. Notou movimento debaixo das oliveiras. Com um ofuscante clarão branco, outro raio acendeu o céu e, lá, parados como estátuas, ele
viu vários homens armados com lanças e espadas - um deles tinha um arco erguido, pronto para disparar uma flecha na direção da casa. Marcus viu a flecha voar mesmo
quando o raio sumiu e, antes que soasse o trovão, ele escutou o baque. Então baixou os olhos e Aristides lhe devolveu um olhar arregalado. A flecha havia acertado
seu pescoço. A ponta ensanguentada havia irrompido do outro lado, a um palmo de distância da pele. O pastor de cabras abriu a boca, mas não houve palavras, apenas
um jato de sangue antes que tombasse de lado.
Titus reagiu imediatamente:
- Pegue minha espada!
Marcus correu de volta para o vestíbulo, onde a arma ficava pendurada em um prego. Ele olhou para trás e viu o pai empurrando o portão de madeira maciça para fechá-lo.
Através da abertura cada vez menor, Marcus mal conseguiu enxergar os homens saindo da cobertura das oliveiras e correndo pelo caminho estreito em campo aberto na
direção do portão. Ele virou o rosto, disparou para o vestíbulo e escorregou nos ladrilhos. A mãe agarrou seu braço.
- O que está acontecendo? - Ela viu o pastor caído no chão. - Aristides?
- Ele está morto - respondeu Marcus secamente. Em seguida, soltou o braço para pegar a espada do pai pelo cabo e a desembainhou.
- O que você está fazendo? - perguntou Livia, assustada.
Marcus não respondeu, mas bateu a mão na cintura ao olhar para Cerberus.
- Venha!
Os dois saíram correndo do vestíbulo para a chuva. Do outro lado do pátio, Marcus viu que o pai quase havia conseguido fechar o portão. Mas, na hora em que Marcus
o alcançou, o primeiro dos invasores estava se espremendo pela abertura.
- Pai! Sua espada! - Marcus a entregou com o cabo à frente.
Titus pegou a arma, enfiou o ombro esquerdo no portão e meteu a espada pela borda. Houve um rugido de dor e a pressão sobre o portão diminuiu momentaneamente, permitindo
que Titus o empurrasse de volta mais alguns centímetros. Marcus fincou os pés e juntou seu peso contra o portão.
- Marcus! Saia daqui! - rosnou o pai, entre os dentes cerrados. - Corra! Pegue sua mãe e corra! Não pare por nada!
- NÃO! - Marcus balançou a cabeça, com o coração partido. - Não vou deixar você!
- Pelos deuses! Faça o que eu mandei! - A expressão de raiva de Titus cedeu ao medo e à ansiedade. - Eu imploro. Corra. Salvem-se.
Marcus fez que não com a cabeça novamente, os pés derraparam no chão molhado enquanto tentava ajudar o pai. Do outro lado, os invasores forçavam a entrada gradativamente.
Cerberus ficou atrás do dono, latindo loucamente. Centímetro a centímetro, Marcus e o pai foram forçados para trás. Titus tentou o mesmo truque anterior, estocar
com a espada pela borda do portão, mas desta vez eles estavam preparados e a arma foi aparada com o baque estridente de metal contra metal. Ele rapidamente recolheu
o braço e olhou para Marcus.
- Não podemos detê-los. Temos que recuar. Pegue o cajado do Aristides, depois se prepare para lutar quando eu me afastar do portão.
- Sim, pai. - Marcus sentiu o coração batendo freneticamente. Apesar da chuva que escorria pelo rosto, sua boca parecia seca. Era assim que os soldados se sentiam
em batalha? Ele pensou brevemente, depois se abaixou, deu a volta correndo pelo pai e pegou o cajado caído ao lado do corpo de Aristides. Seus olhos viram os do
homem que estava mais próximo do lado de fora. O sujeito franziu os lábios com desdém e estendeu a mão na direção de Marcus.
- Cerberus! Pegue!
O cão respondeu ao comando imediatamente, avançou pela abertura e pulou para pegar a mão do homem com as mandíbulas poderosas. Ele mordeu com força e triturou carne
e osso com os dentes. O homem gritou e puxou a mão, mas não conseguiu se soltar. Marcus chamou o cachorro novamente:
- Cerberus! Saia!
O cachorro soltou a mão e recuou, rosnando. Com um último empurrão inútil no portão, Titus recuou até chegar ao lado do filho e ficou em posição de combate, com
a espada de prontidão.
- Segure o cajado como uma lança - falou depressa. - Ataque o rosto deles.
Marcus concordou com a cabeça e pegou mais firme no cajado no momento em que o portão, sem resistência do lado de dentro, foi subitamente escancarado. Dois dos homens
caíram esparramados no pátio. Titus deu um pulo à frente e atacou um deles com um corte violento no ombro. O osso quebrou assim que a lâmina entrou. Em seguida,
Titus puxou a arma para soltá-la e deu um golpe lateral que cortou o rosto do outro homem. Ele caiu de lado com as mãos na cabeça enquanto gritava de agonia. Mais
homens surgiram pela abertura e um deles deu uma estocada com a espada em Titus. O veterano conseguiu aparar a tempo, mas ficou desequilibrado e teve que recuar
um passo.
Marcus deu um passo à frente e enfiou o cajado no rosto do homem, que tentou acertá-lo com um golpe. O menino sentiu o impacto no braço até o ombro. A cabeça do
homem foi para trás e ele caiu no chão, inconsciente e com o nariz esmagado pela ponta do cajado.
- Bom trabalho! - gritou Titus, com os lábios franzidos em um sorriso assustador.
Por um momento, os outros invasores hesitaram, mas então a voz de Thermon surgiu do fundo:
- O que vocês, covardes, estão esperando? Ataquem!
No momento em que eles avançaram, Marcus berrou:
- Cerberus! Pegue!
O cão virou um borrão de pelo encharcado ao pular e morder pernas e mãos. Mas havia muitos invasores. Eles avançaram em massa. Titus conseguiu atacar mais uma vez
e enfiou a espada fundo na barriga de um homem antes de ser golpeado no ombro por uma lança. Ele cambaleou para trás e, em seguida, outro sujeito atacou o braço
em que ele levava sua espada; a lâmina cortou fundo e quebrou o osso. A arma caiu dos dedos de Titus. Outro golpe acertou seu joelho e ele desmoronou, soltando um
gemido.
- Pai! - Marcus olhou à volta e abaixou um pouco o cajado. Ele encarou o pai com uma angústia terrível.
- Mantenha a arma erguida! - berrou Titus. - Olhe para a frente!
A voz tonitruante fez com que os invasores parassem; eles ficaram atrás, em um arco em volta de Titus, com as armas apontadas. Marcus estava ao lado do pai, com
o cajado novamente erguido, desafiando os homens a enfrentá-lo. Cerberus tinha enfiado as presas em outro invasor e estava dilacerando o braço, até que o homem,
que empunhava um longo porrete, bateu com a arma na cabeça do cachorro. Cerberus desmoronou no chão e ficou deitado de lado, a cabeça sobre uma poça enquanto a chuva
caía em volta do focinho.
- Cerberus! - Marcus gritou horrorizado, mas o cachorro continuou imóvel. Marcus queria ir até ele, mas nesse instante Thermon abriu caminho entre seus homens e
parou em frente a Titus.
Ele deu um sorriso cruel enquanto batia com a espada de lado na palma da mão.
- Muito bem, centurião, parece que a situação se inverteu. Como é a sensação de ser vencido? De perder a batalha final?
Titus ergueu os olhos e pestanejou para se livrar da chuva.
- Você não vai conseguir se safar dessa. Assim que o governador souber o que você fez, ele vai mandar crucificá-lo. Você, seus homens e o Decimus.
Thermon balançou a cabeça.
- Apenas se sobrar alguém para contar ao governador o que aconteceu.
Titus o encarou por um momento e depois murmurou:
- Você não ousaria.
- Sério? - Thermon fingiu surpresa. De repente ele retraiu o braço em que carregava a espada e a estocou com toda a força. A ponta da lâmina entrou no peito de Titus,
rompeu o coração e o espremeu até a parte traseira da costela. Titus arfou e depois soltou um longo suspiro. Thermon colocou a bota contra o ombro do centurião e
puxou a espada para soltá-la.
- Pai! - Marcus olhou sem acreditar o corpo do pai desmoronar contra sua perna e depois cair de cara no chão. - Pai! - Marcus soltou um grito agudo. - Não morra!
Não me deixe! Por favor... por favor, não morra!
Imediatamente alguém arrancou o cajado de Marcus. Mãos brutas agarraram o menino e prenderam seus braços ao lado do corpo.
Houve um grito. Marcus se virou e viu a mãe com as mãos de cada lado da cabeça, como se tentasse não ouvir um som ruim. Ela gritou novamente:
- Titus! Ah, meus deuses! Titus...
- Peguem a mulher! - ordenou Thermon. - Prendam-na com correntes. Depois, vasculhem o lugar atrás de objetos de valor. O Decimus quer qualquer coisa que possa ser
vendida.
Marcus olhou para o corpo do pai e ficou paralisado com a cena. Mas, então, assim que um dos homens de Thermon avançou em direção à mãe, ele sentiu um estalo por
dentro. Marcus mordeu o braço do homem que o segurava. O sujeito gritou e afrouxou a pressão, e Marcus rosnou ao morder ainda mais e chutá-lo com os pés.
Thermon se virou para ele.
- Alguém cuide desse fedelho.
O homem do porrete, o que havia derrubado Cerberus, fez que sim e se virou na direção de Marcus. Sem hesitar, ele ergueu o porrete e bateu na cabeça do menino. Marcus
não sentiu o golpe. O mundo subitamente explodiu em um clarão branco e depois veio o nada.
5
A princípio, Marcus sentiu uma dor latejando no crânio. Depois, vieram o solavanco irregular e o guincho estridente e constante de um eixo. Ele percebeu que havia
luz e calor em seu rosto, remexeu-se lentamente e abriu os olhos pestanejando. O mundo era um borrão que girava. Ele se sentiu mal e fechou os olhos novamente.
- Marcus.
Sua bochecha foi tocada com delicadeza.
- Marcus, está me ouvindo?
Ele reconheceu a voz como sendo a de sua mãe; havia ansiedade no tom. Marcus abriu a boca, mas a língua e os lábios estavam secos demais para falar.
- Um instante - disse ela. Algo pressionou de leve sua boca e Marcus sentiu que era água. Ele tomou alguns goles antes de virar o rosto e lamber os lábios.
- Mãe, eu estou bem. - Marcus conseguiu falar, com a voz rouca.
Ele abriu os olhos novamente e fez um esforço para enxergar direito. Estava vendo uma grade de metal. Marcus se apoiou nos ombros, olhou em volta e viu que estava
em uma grande jaula em cima de uma carroça puxada por mulas. Uma cobertura de couro suja estava amarrada em cima da jaula, fazendo sombra para os ocupantes. Ao lado
dele e da mãe havia outras quatro pessoas, duas delas - homens altos e magros - tinham a pele tão negra quanto madeira queimada. Os outros dois eram meninos adolescentes,
talvez cinco ou seis anos mais velhos do que Marcus.
- Não tente se mexer tão rápido - alertou a mãe. - Você levou uma bela pancada na cabeça.
Marcus ergueu a mão para tatear o lugar onde o crânio doía e fez uma careta quando os dedos descobriram um grande e sólido calombo. Fez um esforço para se lembrar
do que havia acontecido com ele. Então tudo voltou de supetão em uma onda terrível de imagens. Aristides, Cerberus... e seu pai. Ele se voltou para a mãe com olhos
arregalados de sofrimento.
- Meu pai!
Ela o abraçou e o segurou contra os seios, afagando a parte de trás de sua cabeça.
- Sim, o Titus morreu. Foi assassinado.
Marcus sentiu uma dor terrível pelo corpo, como se seu coração tivesse sido arrancado do peito. Ele queria o pai como nunca antes. Queria ali e agora. Queria se
sentir seguro nos braços fortes, ouvir a risada possante mais uma vez. A dor era insuportável, e ele enfiou o rosto nas dobras do manto da mãe e soluçou.
- Calma, criança - disse a mãe, após um tempo. - Não há nada que você possa fazer. Ele se foi. Sua sombra se juntou às sombras dos companheiros no mundo subterrâneo.
O Titus está em paz. Está olhando por nós agora. Você deve mostrar para ele que é forte. Então, limpe os olhos. - Ela fez uma pausa por um momento e depois prosseguiu:
- Deixe seu pai orgulhoso de você. Deve honrar a memória dele, mesmo que ainda não saiba... - Livia parou e deitou o filho com delicadeza. Os olhos de Marcus estavam
irritados por ele ter chorado, e a cabeça estava pior do que nunca, latejando. Ela olhou bem para o filho e fez que sim.
Com grande dificuldade, ele controlou a tristeza e olhou em volta da jaula novamente.
- Aonde estamos indo?
- Estão nos levando para Stratos.
Marcus franziu a testa. Nunca tinha ouvido falar do lugar.
- É longe de casa?
Ela concordou com a cabeça.
Ele olhou para fora através das grades. A carroça seguia fazendo barulho por uma estrada larga. De um lado, havia morros cobertos por densas florestas de pinheiros
e carvalhos. Do outro, se estendiam olivais. Nas brechas do cenário, às vezes, notava o mar reluzindo ao longe. Marcus não reconheceu a paisagem.
- Há quanto tempo nós estamos nessa... jaula?
- Três dias. Você esteve inconsciente enquanto nós fomos levados de barco até o continente e colocados nesta carroça.
Três dias! Marcus ficou chocado ao pensar nisso. Eles já deviam estar mais longe de casa do que ele jamais tinha estado. Marcus sentiu medo.
- Marcus, preste atenção: nós estamos sendo levados para o mercado de escravos - explicou a mãe, com o máximo de gentileza possível. - O Decimus ordenou que fôssemos
vendidos como escravos para cobrir a dívida. Eu acho que ele está tentando nos levar para o mais longe possível de Lêucade, a fim de diminuir a chance de alguém
descobrir exatamente o que o Decimus fez para recuperar o dinheiro.
Marcus ouviu as palavras com dificuldade. A ideia de ser vendido como escravo o abalou como outro golpe. De todos os destinos que alguém podia ter, a escravidão
era um dos piores. Um escravo não era mais uma pessoa, mas, sim, um mero objeto. Ele ergueu o olhar para a mãe.
- Eles não podem nos vender, nós somos livres! Somos cidadãos!
- Não se não conseguirmos pagar o dinheiro ao Decimus - respondeu Livia com tristeza. - Apenas nessa questão ele está agindo dentro da lei, mas o Decimus sabe que,
se a notícia de que ele matou um dos veteranos do Pompeius e escravizou sua família se espalhar, sua vida pode se tornar bem difícil caso o general descubra. - Ela
ergueu o queixo do filho e encarou seus olhos. - Nós temos que tomar cuidado, Marcus. O Thermon disse que mandaria nos espancar se falássemos uma palavra sequer
sobre essa situação com qualquer pessoa. Você entendeu?
Marcus concordou com a cabeça.
- O que podemos fazer?
- Fazer? Nada, por enquanto. - Ela virou o rosto, e a voz continuou a sair abatida e desesperada: - Os deuses me abandonaram. Só podem ter abandonado. Depois de
tudo o que aconteceu, ser devolvida à escravidão é um golpe cruel. Muito cruel.
Marcus sentiu o coração gelar. O que sua mãe queria dizer com "ser devolvida à escravidão"?
- Você era uma escrava, mãe?
Ela manteve o rosto virado ao responder:
- Sim.
- Quando?
- Quando eu era uma criança, Marcus.
- Não.
Ela fez que sim com a cabeça.
- Eu fui vendida para uma família na Campânia, ao sul de Roma, quando tinha quatro anos de idade. Fui escrava por 16 anos, até que o Spartacus e seus rebeldes vieram
à casa e nos libertaram.
- A senhora se juntou ao Spartacus? - A mente de Marcus se encheu com as lembranças das histórias que o pai havia contado sobre a grande revolta dos escravos. E
o tempo todo a mãe sempre mantivera silêncio. Ele pigarreou. - O papai sabia?
Ela voltou a olhar para ele com uma expressão de alegria amarga.
- Claro que o Titus sabia. Ele estava lá no final. Na batalha final. Ele me encontrou no acampamento dos escravos que as legiões saquearam após a batalha. O Titus
me tomou como um espólio de guerra. - O tom ficou amargurado. Ela engoliu em seco e continuou mais calmamente: - Foi assim que nos conhecemos, Marcus. Eu era a escrava
dele. A mulher dele. Pelos primeiros dois anos, até me dar a liberdade, sob a condição de me tornar a sua esposa.
Marcus ficou calado ao refletir sobre o que ela havia lhe contado. Jamais lhe ocorrera que os pais se conheceram dessa forma. Eles sempre estiveram ali, estáveis
e imutáveis, e a ideia de que podiam ter tido vidas bem diferentes antes era algo que Marcus jamais havia considerado realmente. Era verdade que o pai tinha contado
histórias de sua vida na legião; porém, aos olhos de Marcus, o herói de tais histórias não era um jovem, era apenas um homem diferente. Marcus sempre imaginara o
pai como ele era agora. O menino sentiu uma pontada de tristeza ao se corrigir: como seu pai era quando estava vivo.
Então lhe ocorreu outra coisa e Marcus ergueu o olhar para a mãe novamente.
- A revolta dos escravos foi há dez anos, não foi?
- Sim.
- Eu tenho dez anos. Se a senhora se casou com o papai dois anos depois, isso significa então que eu devo ter nascido um escravo.
Ela fez que não.
- O Titus fez questão de constar que você era filho dele e, portanto, livre, no momento em que nasceu.
- Entendi. - Marcus não tinha certeza sobre seus sentimentos. Tudo era uma novidade muito dolorosa para ele, e ainda maior se somada ao que havia acontecido quando
os homens chegaram à fazenda. Os pensamentos foram interrompidos pela risada amarga da mãe. Marcus olhou preocupado para ela. Havia uma expressão um pouco louca
nos olhos escuros de Livia.
- Mãe? Mãe, o que é tão engraçado?
- Engraçado? Nada é engraçado. - Os lábios dela tremeram. - É apenas que eu nasci livre na Trácia, e depois fui escravizada quando era criança. Então o Spartacus
me libertou, aí me tornei uma escrava novamente, até seu pai me libertar. E agora? Uma escrava outra vez. - Ela baixou a cabeça e ficou imóvel por um momento. Então
Marcus viu uma lágrima pingar na coxa da mãe e se remexeu para conseguir colocar uma das mãos no ombro dela.
- Mãe? - Marcus engoliu em seco, nervoso. - Eu vou cuidar de você. Juro. Pela minha vida.
- Você é um menino. Meu menininho - murmurou Livia. - Eu deveria estar cuidando de você. No entanto, o que eu posso fazer? Sou uma escrava... Não há nada que eu
possa fazer. - Ela ergueu a cabeça e Marcus viu a tristeza em seu olhar. - Depois de tudo que os deuses fizeram comigo, pensei que finalmente tinham me dado alguma
paz naquela fazenda. Paz para eu poder envelhecer ao lado do Titus e criar um belo filho que jamais conhecesse o terrível fardo da escravidão.
- Nós não seremos escravos por muito tempo, mãe. O Decimus não pode fazer isso conosco. - Ele franziu a testa, determinado. - Eu não vou deixá-lo ficar impune.
Livia encarou os olhos do filho com pena, em seguida o puxou para seus braços e apertou com força.
- Marcus. Você é tudo que me sobrou.
As lágrimas de Livia começaram a fluir novamente, e Marcus sentiu os próprios olhos arderem com a mesma vontade de chorar. Ele cerrou os dentes e viu, por sobre
os ombros da mãe, os outros escravos na jaula, enquanto continha as lágrimas. Eles devolveram o olhar com expressões vazias, cansados ou desesperados demais para
reagir. Marcus fez um juramento silencioso de que jamais aceitaria a escravidão. Jamais.
6
A carroça levou mais quatro longos dias para chegar ao seu destino, porém, finalmente, ao anoitecer do último dia, eles entraram na cidade de Stratos.
Estendendo-se em uma das principais rotas de comércio que atravessava o interior montanhoso da Grécia, a cidade há muito crescera além das muralhas que datavam da
época das pequenas cidades-estados que quase sempre estavam em guerra umas com as outras. Hoje, as muralhas da cidade envolviam um labirinto de ruas estreitas onde
as famílias mais ricas viviam e realizavam seus negócios. Para além das muralhas se espalhavam os prédios decrépitos dos pobres.
Durante a jornada, Marcus e a mãe tiveram pouco contato com os outros que também estavam dentro da jaula. Os companheiros escravos sabiam apenas poucas palavras
em grego, não entendiam latim e falavam em línguas bárbaras desconhecidas.
A carroça seguiu sacolejando pela estrada principal até o coração da cidade, em direção ao mercado de escravos.
Para Marcus, que fora criado a vida inteira em uma fazenda, e que apenas conhecia a vila de pescadores de Nidri, a cidade era perturbadora. Os gritos agudos dos
ambulantes e mendigos feriram seus ouvidos, enquanto o fedor de lixo e esgoto tomava conta do ar. Ele franziu o nariz ao respirar.
- Eca! Todas as cidades fedem assim?
- Até onde eu sei - respondeu a mãe, com uma cara igual de nojo.
A carroça entrou na grande praça do mercado no centro de Stratos, depois virou e cruzou um portão para um pátio estreito. Dois guardas musculosos ficavam bem do
lado de fora, armados com clavas. O lugar servira de estábulo antigamente, mas agora havia barras de ferro na entrada de cada baia, e Marcus viu as silhuetas irregulares
de homens, mulheres e crianças de todas as idades encolhidas atrás das grades. Debaixo delas estava espalhada uma camada fina e suja de palha.
- Ô! - gritou o carroceiro, ao puxar as rédeas com força. As mulas trotaram até parar. Um homem grande em uma simplória túnica marrom saiu cambaleando de uma porta
e se aproximou da carroça. Ele cumprimentou o carroceiro com a cabeça enquanto o homem descia do banco, todo dolorido, e esticava as costas.
- O que é essa gente aí? - O homem apontou com o polegar para os prisioneiros na jaula.
- Escravos. - O carroceiro bocejou. - Propriedade do Decimus. Quer que sejam colocados no próximo leilão.
Marcos agarrou as barras e se levantou.
- Nós não somos escravos!
- Cale a boca, você aí! - O carroceiro se virou e bateu com o chicote nos dedos de Marcus. Ele recuou com um grito de dor. - Mais uma palavra fora de hora e vai
ficar roxo de tanto apanhar.
O carroceiro se virou para o outro homem e deu uma risada.
- O garoto é um mentiroso nato. Como todos os escravos. Apenas o ignore e a mãe dele ali. Eles vão a leilão, como eu disse. Certo?
O leiloeiro concordou com a cabeça e apontou para a única cela que permanecia vazia.
- Coloque-os lá dentro. Eu vou adicioná-los ao inventário de venda para amanhã.
- Certo.
Enquanto o leiloeiro voltou bamboleando ao escritório, o carroceiro foi até a traseira da carroça e soltou o chicote. Ele pegou a chave pendurada no pescoço, destrancou
a porta e deu um passo para trás ao abri-la.
- Saiam! - Ele apontou para o chão para ter certeza de que todos os prisioneiros entenderam sua instrução.
Um por um, eles saíram; Marcus e a mãe foram os últimos. O carroceiro apontou para uma cela e empurrou um dos outros prisioneiros para dentro dela. Todos estavam
famintos e doloridos depois de viverem no espaço confinado da jaula por vários dias, tirando uma curta pausa, dia sim, dia não, para trocar a palha suja. Eles foram
alimentados duas vezes ao dia com pão velho e água. Os prisioneiros entraram lentamente na cela. O carroceiro empurrou Marcus para dentro e o menino esbarrou na
mãe; depois, o homem bateu a porta com força e virou a chave na tranca antes de ir se juntar ao leiloeiro.
Dentro da cela, Marcus e a mãe se sentaram na palha e se encostaram à parede de reboco sujo. Enquanto a mãe encarava a parede à frente, a mente de Marcus foi tomada
por pensamentos assustadores a respeito do leilão do dia seguinte. E se eles fossem comprados pelo dono de uma mina? Ele tinha ouvido histórias terríveis sobre as
condições que os escravos enfrentam nas minas. Era pouco mais do que ser um morto-vivo. Então lhe ocorreu a pior de todas as possibilidades. Marcus se virou para
a mãe com uma expressão horrorizada.
- O que acontece se nós formos vendidos para donos diferentes amanhã?
A mãe estremeceu como se saísse de um sono conturbado e olhou para ele.
- Desculpe, Marcus, o que você disse?
- O que acontece se nós formos separados no leilão?
Ela o encarou e deu um sorriso forçado.
- Não acho que isso vá ocorrer. Os leiloeiros não gostam de separar famílias. Gera insatisfação.
- Mas e se nos separarem? - Marcus sentiu uma pontada de medo. - Eu não quero deixar você.
Ela pegou a mão do filho e a apertou.
- Nós vamos ficar juntos. Você vai ver. Agora tente dormir. Aqui, coloque a cabeça no meu colo.
Marcus girou o corpo e deitou a cabeça sobre as dobras da longa túnica da mãe, que começou a passar os dedos delicadamente por seus cachos escuros. Ela o confortava
dessa maneira desde que ele se entendia por gente, e uma vez havia comentado que Marcus tinha o mesmo cabelo do pai. Ele lembrou que rira na ocasião, pois a cabeça
do pai tinha apenas uma fina camada de cabelo crespo. À medida que a mãe afagava seu cabelo naquele momento, o corpo de Marcus começou a relaxar e, por um tempo,
a mente retornou às vagas lembranças da fazenda, com Aristides e Cerberus, como se eles ainda estivessem vivos. Acima de tudo, ele pensou no pai, forte e orgulhoso.
Marcus desejou que Titus estivesse ali para protegê-los. Uma imagem do pai morto na chuva tomou conta de sua mente, e levou muito tempo até que ele finalmente dormisse
um sono conturbado.
Durante a noite, ele foi acordado por uma grande confusão. Gritos e berros vieram de outra cela no momento em que aconteceu uma briga. O leiloeiro e seus guardas
surgiram com tochas acesas e porretes, e a partir daí tudo o que Marcus ouviu foi a surra dada por eles nos prisioneiros até que houvesse silêncio. Tentou voltar
a dormir, mas ficou abalado pela violência, e os pensamentos novamente se voltaram para a situação cruel em que ele e a mãe se encontravam. O que seria deles?
Houve um ruído ensurdecedor quando o guarda passou o porrete pelas barras de ferro, e Marcus acordou assustado.
- De pé, escravos! - berrou o guarda, que foi para a próxima cela. - Hora de acordar!
A partir das celas mais próximas do portão principal, os prisioneiros foram acorrentados juntos pelos tornozelos e depois acompanhados para fora do pátio até o mercado.
Marcus calculou que havia pelo menos cem pessoas esperando para ser vendidas. A manhã se arrastou conforme eles foram levados para fora em lotes para serem leiloados.
O tempo todo Marcus sentiu um nó de ansiedade na barriga diante da terrível perspectiva de ser separado da mãe.
Finalmente um guarda foi até a cela dos dois com um porrete na mão e uma corrente pesada com algemas de ferro na outra. O homem deixou que eles saíssem um de cada
vez, prendeu as algemas de ferro nos tornozelos de cada prisioneiro e, em seguida, martelou o pino da tranca. Quando Marcus e a mãe se juntaram à pequena fila, os
últimos seis escravos foram conduzidos para fora do pátio. A praça do mercado estava lotada e as pessoas se amontoaram ao redor de Marcus e dos outros. Os prisioneiros
arrastaram os pés até um palanque a uma pequena distância dali, onde o leiloeiro estava esperando. Marcus sentiu mãos apertando seus braços ao passar, e um homem
abriu sua boca à força para olhar seus dentes antes de ser empurrado pelo guarda.
- Você vai poder examinar a mercadoria em breve, assim que comprá-la.
Eles foram conduzidos a um pequeno lance de escadas e enfileirados no fundo do palanque. Em seguida, o guarda pegou o pequeno martelo e tirou o pino da algema do
tornozelo do primeiro prisioneiro; um dos negros. O guarda o arrastou para a frente, ao lado do leiloeiro. Tinha sido uma manhã cheia e o sol estava no alto do céu.
O suor escorria pelas bochechas do gordo e o cabelo estava grudado na cabeça. Ele respirou fundo, ergueu os braços para chamar a atenção da multidão e berrou:
- Eu tenho a honra de vender seis escravos em nome de Decimus, um integrante do conselho municipal de Stratos e conhecido por toda a província. Os dois primeiros
são núbios. Ambos são jovens, fortes e saudáveis. - Ele pegou e ergueu o braço do homem. - Olhem estes músculos! Com um pouco de treinamento, os núbios se tornarão
exóticos escravos domésticos. Ou, se os senhores quiserem fazer pleno uso destes músculos, talvez trabalhadores agrícolas ou pugilistas. Ou talvez até mesmo gladiadores!
Com certeza será um belo investimento sob todos os aspectos. Então, venham! Qual é o lance?
- Duzentos sestércios! - gritou uma voz.
- Duzentos? - O leiloeiro se voltou em direção à voz. - É o senhor aí? Sim. Duzentos então!
- Duzentos e cinquenta! - gritou outra voz.
- Trezentos! - veio a resposta.
Os lances continuaram freneticamente, um preço gritado atrás do outro, e o leiloeiro teve dificuldade em acompanhar o ritmo. Então, finalmente, os lances pararam
em 1.200 sestércios.
- Mil e duzentos... essa é a oferta final? Mil e duzentos? Honoráveis senhoras e senhores, belos espécimes como este raramente chegam ao mercado. Ora, vamos, com
certeza alguém com tino para um bom negócio pode aumentar o lance! - Ele olhou em volta cheio de esperança, mas não houve resposta. O leiloeiro esperou mais um instante
e em seguida bateu palmas. - Vendido!
O homem foi levado para fora do palanque a um cercadinho onde um escriba anotou os detalhes da venda em uma tábula e recebeu o pagamento do comprador. O segundo
núbio foi vendido por um preço similar, e depois os dois adolescentes foram comprados por um valor bem menor por um homem alto e magro com cabelo impecavelmente
oleado e maquiagem nos olhos. O leiloeiro secou a testa com um trapo e, depois, apontou para Marcus e sua mãe.
- O lote final das vendas da manhã de hoje, honoráveis senhoras e senhores. Uma mãe com o filho. A mulher ainda não tem 30 anos. Ela sabe cozinhar, tecer e deve
ser fértil o suficiente para ainda procriar por alguns anos. O menino tem dez anos e goza de boa saúde. Ele foi ensinado a ler, escrever e contar. Com um pouquinho
de treinamento, pode ser útil em uma profissão.
Marcus baixou a cabeça, envergonhado. Ouvir sua descrição e a da mãe dessa forma fez com que se sentisse como um animal.
- Tenho certeza de que os senhores concordarão que eles são um bom negócio juntos - continuou o leiloeiro. - É claro que qualquer comprador com tino para negócios
pode considerar vender o menino quando ele ficar mais velho. E, se a mulher for fértil, quem sabe o lucro que ela dará ao procriar?
- Não! - gritou Marcus. - Você não pode fazer isso! Nós fomos raptados!
O leiloeiro rapidamente acenou com a cabeça para o guarda, que deu um tapa forte no rosto de Marcus e o derrubou sobre o palanque. O homem pegou Marcus pelo cabelo,
levantou-o e sussurrou em seu ouvido:
- Mais uma palavra e eu vou machucar a sua mãe, não você. Entendeu?
Marcus fez que sim com a cabeça e tentou não chorar com o couro cabeludo ardendo de dor. O guarda o manteve seguro pelo cabelo por mais um instante, antes de soltá-lo.
- O menino só precisa de um pulso firme, como os senhores podem ver - falou o leiloeiro, dando um falso sorriso. - Então, quem dará o primeiro lance?
Houve uma pequena pausa enquanto o público avaliava as duas figuras de aparência desesperada e, em seguida, um grandalhão com um sorriso cruel ergueu a mão. Antes
que ele pudesse falar, houve um grito próximo ao fundo da multidão:
- Pare aí! Eles não estão à venda.
O leiloeiro e a multidão se voltaram em direção à voz. Marcus também tentou ver quem havia falado, e uma pequena esperança acendeu no seu peito. Talvez esse fosse
o momento. Aquele que tinha rezado para acontecer. Talvez eles estivessem salvos.
Uma figura abriu caminho na multidão e, conforme o homem foi se aproximando do palanque, Marcus o reconheceu e foi tomado pela decepção.
Thermon.
Thermon subiu no palanque enquanto o leiloeiro olhou feio para ele com as mãos na cintura gorda.
- O que significa isso? O que você quer dizer com "eles não estão à venda"?
- Eu falo em nome do Decimus. Sou seu procurador - respondeu Thermon, com arrogância. - Meu senhor disse que esses dois não serão vendidos, no fim das contas.
- Não serão vendidos? - O leiloeiro ergueu as sobrancelhas. - Por que não?
- Eu não preciso explicar o motivo para você. É a vontade do meu senhor, entendeu?
O leiloeiro fez que sim.
- Como desejar. - Ele se virou para o guarda. - Leve-os de volta à cela.
Enquanto o público passou a cochichar diante dos novos acontecimentos, Thermon se aproximou de Marcus e sua mãe.
- O Decimus mudou de ideia. - Ele deu um sorriso gelado, e Marcus sentiu um arrepio na nuca quando Thermon continuou: - Ele tem outra coisa em mente para vocês dois.
7
Pouco tempo depois de eles terem sido levados de volta à cela, um homem entrou no pátio. Era alto e magro, e o rosto fino fazia com que parecesse ainda mais comprido.
Tirando uma franja de cabelo grisalho, era completamente careca, e o cocuruto brilhava como se tivesse sido polido. Marcus notou que o homem mancava, mas tentava
disfarçar, na medida do possível, andando devagar. Ele usava uma túnica de seda com botas claras de couro e havia um bracelete de ouro em cada pulso.
Deu um sorriso tímido ao se aproximar das barras da cela.
- A adorável esposa do centurião Titus e seu jovem filho, se não me engano. Creio que sejam capazes de imaginar quem sou eu.
A mãe de Marcus manteve uma expressão firme enquanto encarava o homem. Ele deu de ombros e inclinou levemente a cabeça para o lado.
- Bem, estou desapontado. Eu esperava que a esposa de um dos melhores centuriões do general Pompeius fosse mais educada. Não importa. Pois então, eu sou o Decimus,
integrante do conselho municipal de Stratos e oficialmente nomeado cobrador de impostos da Grécia. - Ele baixou a cabeça em uma saudação irônica. Decimus observou
os dois em silêncio por um momento, até fazer uma expressão de desprezo. - Não tão cheia de si agora, não é? Nem você, nem aquele tolo do Titus. Arrogante como sempre,
achando que poderia ignorar a dívida e espantar meus homens. Eu esperava por isso há muito tempo, mas agora dei o troco a Titus em sua própria moeda, por assim dizer.
Ele subitamente fingiu estar surpreso e estalou os dedos.
- Ah! Mas imagino que você não soubesse que seu marido e eu éramos velhos amigos. Talvez não amigos, mas certamente companheiros.
Marcus ergueu o olhar para a mãe, mas ela ainda se recusava a falar.
- Nós servimos na gloriosa Décima Sexta Legião, na Espanha, sob o comando do Pompeius. Nós éramos optios. Sabe o que isso significa? Éramos os homens que aguardavam
a oportunidade de ser promovidos a centurião. Então a oportunidade chegou. Um dos centuriões foi morto em uma escaramuça, e o velho e bom Titus e eu estávamos esperando
para ver qual de nós receberia a promoção. Deveria ter sido eu. Eu era o melhor soldado, sem dúvida. Todo mundo sabia disso. De qualquer forma, no dia anterior à
decisão do general, Titus e eu bebemos um pouco. Depois bebemos mais, uma coisa levou a outra, e daí ele sugeriu que fizéssemos um duelo de mentirinha para provar
quem era o melhor com a espada. Só de brincadeira, você entende. Só que não era apenas de brincadeira. O Titus sequer estava bêbado, ele estava fingindo. Nós simulamos
um ataque a ele, e aí ele pareceu escorregar, tropeçou para a frente e a espada varou a minha coxa.
Decimus se aproximou das barras. Ele parecia ter esquecido a mãe de Marcus e agora estava olhando intensamente para o menino.
- Um acidente, entende? Portanto eu não o dedurei. - Decimus deu um sorriso amargo. - O ferimento foi grave o suficiente para a legião me dispensar. Lá estava eu,
despedido, e o Titus ganhou a promoção. Ele sempre alegou que foi um acidente, é claro. Espere, vou mostrar para você.
Decimus levantou a ponta da túnica até exibir a coxa direita. Marcus prendeu o fôlego ao ver a cicatriz grossa, branca e saliente que subia a partir do joelho.
- Uma cicatriz e tanto, não é, meu garoto? - Decimus abaixou a túnica. - Creio que seu pai me fez um favor, de certa forma. Se eu tivesse permanecido no exército,
teria terminado em uma fazendinha miserável em alguma ilha obscura, como ele. Do jeito que foi, eu fiz minha fortuna fornecendo grãos para as legiões. Subornei as
pessoas certas e ganhei o contrato para cobrança de impostos nesta província. Você pode imaginar a minha surpresa, e depois a alegria, quando Titus me procurou para
um empréstimo. Imagino que ele tenha pensado que "o tempo é um santo remédio". Para mim não foi. Então eu emprestei um dinheiro para ele sob suaves condições - suaves
o suficiente para o Titus pedir mais emprestado, e em pouco tempo ele estava mergulhado em dívidas e eu tinha o direito legal de me vingar. - Ele ergueu as mãos.
- O resto da história vocês conhecem.
A mãe de Titus pigarreou e falou com firmeza:
- Você podia ter o direito legal de cobrar sua dívida, mas não de matar o Titus e escravizar a família dele.
- Sério? Eu simplesmente mandei meus homens cobrarem o que me era devido. O fato de seu marido ter resistido com violência e infelizmente ter morrido como consequência
não é culpa minha. Como qualquer tribunal desta cidade concordaria.
- Será que o general Pompeius vai concordar quando souber desse escândalo?
- O general Pompeius jamais vai descobrir. Eu não sou um tolo, Livia. Se o Pompeius soubesse que um de seus veteranos teve um destino assim, ele descarregaria sua
raiva sobre o homem responsável, com certeza. Foi por isso que vocês foram retirados do leilão. - Decimus sorriu. - Aquilo foi apenas uma encenação a meu favor,
para que eu pudesse ter um gostinho a mais de vingança com essa situação. Eu jamais poderia permitir que vocês fossem comprados por alguém que pudesse ouvir sua
história e acreditar que foram injustiçados.
- Então, o que o senhor vai fazer conosco? - perguntou Marcus com ansiedade.
Decimus olhou para baixo através das grades.
- Posso mandar matá-los, jovem. Estrangulá-los à surdina e de um penhasco jogar os corpos no mar. Posso fazer isso. - Ele fez uma pausa para as palavras fazerem
efeito. Marcus recuou horrorizado.
- Porém, assim como eu vivo com a lembrança do mal que seu pai fez para mim, você também viverá com a lembrança de como teve que pagar pelos atos do Titus. - Decimus
coçou o queixo pontudo. - Eu tenho uma fazenda no Peloponeso. Fica em um pequeno vale cercado por colinas. É quente no verão e muito frio no inverno, e eu passo
o menor tempo possível lá. No entanto, o solo é bom para o plantio de cevada e os escravos da fazenda são bem explorados para aumentar minha fortuna. É para lá que
eu vou mandá-lo, para passar o resto da vida trabalhando sob chicote como um escravo em meus campos. Lá você morrerá, esquecido, sem fazer falta para ninguém. O
general Pompeius jamais saberá o que aconteceu com você ou com o Titus. - Ele respirou fundo e deu um breve sorriso. - Uma vingança adequada, não acha?
Marcus sentiu um breve momento de medo, mas em seguida foi tomado pela fúria e por um desejo de esganar o cobrador de impostos. Com um grito estridente e animalesco,
ele avançou entre as grades e tentou agarrar a túnica do homem.
- Marcus! - gritou a mãe. - Isso não vai nos ajudar!
Ela puxou o filho e segurou seus braços com força enquanto Decimus ria.
- Que temperamento o dele. Mas tem coragem também. Ele é filho de um soldado, com certeza.
Os olhos de Livia arderam.
- Ele é... meu filho.
Decimus pareceu intrigado pela resposta, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, Livia olhou para ele com uma expressão de súplica.
- O que quer que tenha acontecido entre você e o Titus, ocorreu há anos. Ele está morto e você se vingou. Não há necessidade de infligir essa vingança a mim e ao
menino.
- Ah, se ao menos isso fosse possível. Você deve entender a situação pelo meu ponto de vista, minha cara. Se eu os soltar agora, com o Titus morto, será apenas uma
questão de tempo até o menino procurar vingar o pai. Não estou certo? - Ele sorriu para Marcus.
Marcus olhou com ódio e concordou devagar com a cabeça.
- Um dia eu vou encontrá-lo e matá-lo.
A mãe baixou os ombros em desespero.
- Decimus, ele tem apenas dez anos. Não sabe o que está dizendo. Seja clemente e ele se lembrará dessa clemência.
- Se eu for clemente com ele, estarei simplesmente assinando minha própria sentença de morte. Ele deve desaparecer como o pai, assim como você.
Livia pensou rápido.
- Solte-o. Mande-me para sua fazenda. Enquanto eu for sua refém, ele não fará mal a você, não é, Marcus?
Marcus encarou os olhos da mãe e entendeu que ela estava implorando que ele concordasse. Mas jamais houve um instante de indecisão na determinação de Marcus em cumprir
seu dever e fazer justiça à memória do pai. Claro que ele estava com medo, totalmente assustado pelo terrível destino que Decimus havia preparado para eles, mas
havia uma fúria intensa - mais forte do que o medo, mais forte até mesmo do que a dor ou preocupação pela mãe. Ele fez que não.
- Sinto muito, mãe, mas esse homem está certo. Enquanto eu viver, vou pensar apenas em dar o troco pelo que ele fez.
- Viu só? - Decimus ergueu as mãos em um gesto de impotência. - O que um homem pode fazer? Sinto muito, mas a situação é esta: vocês dois irão para a fazenda e lá
trabalharão até morrer. Adeus. - Ele acenou com a cabeça formalmente e depois, antes de se virar, encarou os olhos cheios de ódio de Marcus por um momento. - Você
se tornou um belo rapaz, Marcus. Pena que a situação tenha que acabar assim. Eu o respeito e ficaria orgulhoso de ter um menino como você como filho. Que pena...
Em seguida, ele foi embora no mesmo ritmo lento, com um andar levemente arrastado. Livia o observou até ele desaparecer pela entrada do pátio e depois se virou para
o filho.
- Seu pequeno tolo! - Ela segurou seu braço com firmeza, o que provocou uma careta de dor em Marcus. - Está tentando se matar? Você é igualzinho ao seu pai, cheio
de belos princípios e nenhum bom-senso. Eu disse para ele que jamais conseguiria vencer. Eu disse para ele... - Livia parou abruptamente e cerrou os dentes.
- Mãe, você está me machucando - falou Marcus, ao olhar para o braço.
Ela baixou o olhar, depois soltou o filho e cobriu o rosto com as mãos.
- Sinto muito, meu querido. Muito mesmo. Perdoe-me. - Livia começou a chorar.
- Mãe, não chore - falou Marcus. Ele sentiu como se seu coração estivesse sendo despedaçado. Tocou o rosto dela com delicadeza. - Eu amo você. Sinto muito.
Ela abaixou as mãos e deu um beijo na testa do filho.
- Oh, Marcus, meu filhinho! O que será de nós?
Assim que clareou o dia, o carroceiro veio pegá-los. Mandou que eles subissem de volta na jaula, enquanto observava desconfiado, com um porrete na mão. Assim que
a porta da jaula foi fechada e trancada, o carroceiro subiu no banco, pegou o chicote e estalou acima da cabeça das mulas. A carroça sacolejou e saiu do pátio do
leiloeiro de escravos fazendo barulho. Marcus estremeceu quando a carroça passou pelo palanque onde ele havia estado no dia anterior. Por um instante, reviveu o
terror que sentira ao pensar em ser separado da mãe. A praça do mercado estava vazia, tirando um punhado de mendigos que dormiam nas arcadas do pórtico.
Depois que passaram pelos portões da cidade e foram para uma larga estrada ladeada por pequenas casas, Marcus sentiu a mãe cutucá-lo.
- Temos que escapar - sussurrou ela, dando um olhar nervoso para o carroceiro. - Temos que descobrir um jeito de sair daqui.
- Como?
A mãe deu um leve sorriso.
- Existe uma maneira. - Ela indicou o motorista com a cabeça. Marcos levantou o olhar para os ombros largos do homem sentado no banco, um pouco curvado para a frente
enquanto segurava as rédeas e ocasionalmente estalava a língua para encorajar as mulas a manter o ritmo.
- Ele? - Marcus ergueu as sobrancelhas, surpreso. - Ele é grande demais para encararmos. Não somos fortes o suficiente.
- Existe um jeito, Marcus, mas você tem que fazer exatamente o que eu disser.
8
Em pouco tempo a carroça passou pelo vasto vilarejo pobre que cercava a cidade e saiu para o campo aberto. Stratos ficava à beira de um rio que corria para o mar
Jônio. De cada lado das águas plácidas, a terra era coberta por campos de trigo até a subida íngreme das colinas cobertas por florestas que surgiam na planície.
Sem demora, a carroça subia com dificuldade a trilha estreita que tinha sido aberta na encosta de um morro. Os pinheiros altos de ambos os lados proporcionavam uma
sombra agradável, e o ar morno estava tomado pelo cheiro deles. A colina era coberta por um denso tapete de carumas marrons que era interrompido por grupos de samambaias
e um ocasional afloramento de rochas. Não havia mais ninguém à vista e a carroça não tinha passado por ninguém no decorrer do caminho até agora. No entanto, Marcus
e a mãe estavam longe de ficar relaxados.
- Este ponto serve - murmurou Livia. - Marcus, eu vou fingir que estou doente. Vou fazer o possível para parecer convincente, mas você tem que fazer a sua parte.
Tem que convencê-lo de que estou morrendo. Você consegue?
Marcus concordou com a cabeça.
- Farei o melhor que puder.
- Então vamos torcer que seja o suficiente. - Ela deu um sorriso encorajador. - Ele vai parar e vir aqui para ver melhor. Você tem que convencê-lo a abrir a jaula.
Eu o observei quando chegamos a Stratos. Não acho que tenha uma vista boa. Ele se inclinou para a frente para enxergar quando colocou a chave na fechadura. Esse
é o momento em que devemos atacar. Quando eu disser "Agora!", nós chutamos a porta da jaula na cara dele, com o máximo de força. Se o pegarmos de surpresa, poderemos
sair daqui antes que ele se recupere.
- E depois, mãe?
- Depois nós corremos como o vento.
- Não, quero dizer, aonde vamos?
Ela franziu a testa brevemente.
- Vamos pensar depois. O melhor é encontrar o general Pompeius, imagino. Se alguém for capaz de nos oferecer justiça e punir o Decimus, essa pessoa só pode ser o
Pompeius. Ele tem grande poder e, além disso, deve um favor ao Titus.
- Que favor?
- O Titus salvou a vida do general na batalha final contra o Spartacus. Pompeius tem que honrar essa dívida. - Livia saiu do lado da jaula e se deitou na palha suja
que cobria o fundo. - Pronto?
Marcus concordou com a cabeça, mas não estava seguro. Seu coração bateu mais rápido.
A mãe produziu saliva e depois a colocou para fora da boca como se estivesse espumando. Ela encolheu o corpo e pôs as mãos no estômago. Piscou para Marcus, em seguida
revirou os olhos e começou a tremer, enquanto soltava um gemido baixo e animalesco. O efeito foi bem perturbador e, embora soubesse que ela estava fingindo, Marcus
não conseguiu evitar o susto. Ele a agarrou pelo ombro e gritou em um tom de preocupação:
- Mãe?... Mãe? - Então a voz aumentou para um timbre angustiado: - Mãe!
O carroceiro deu uma olhada para trás.
- Cale a boca, você aí.
- Minha mãe está doente! - berrou Marcus. - Ela está realmente doente. Você tem que ajudá-la!
A mãe começou a tremer violentamente e rolou de um lado para o outro enquanto gemia em aparente agonia.
O carroceiro suspirou de frustração e puxou as rédeas.
- Ô! Ô, vocês aí, suas malditas!
As mulas trotaram até parar e esperaram pacientemente nos arreios. O carroceiro abaixou as rédeas e se virou para olhar dentro da jaula.
- O que ela tem, afinal?
- Ela está doente. - Marcus engoliu em seco nervosamente e fez uma careta assustada. - Acho que está morrendo. Por favor, ajude!
- Morrendo? - O carroceiro apertou a vista. - Ela não está morrendo. Vai ter que aguentar até pararmos à noite.
- Vai ser tarde demais - respondeu Marcus desesperadamente. - Ela precisa de ajuda agora.
- Ajuda? Ora, o que eu posso fazer? Sou apenas um pobre carroceiro.
Marcus pensou rápido.
- Se ela morrer, você vai ter que se explicar ao Decimus. Vou contar para ele que você simplesmente ficou aí sentado e viu tudo acontecer.
O carroceiro fez uma cara feia para ele, depois desceu do banco e passou pela lateral da carroça. Houve um leve farfalhar de palha quando a mãe de Marcus colocou
os pés contra as grades de ferro da porta da jaula. O homem parou ao chegar à traseira da carroça.
- O que ela tem de errado, afinal?
- Eu não sei - respondeu Marcus ansiosamente. - Ela precisa de sombra e água.
- Hummm. - O carroceiro coçou a cabeça, duvidando.
Livia começou a fazer sons de quem ia vomitar.
- Não vomite! - rosnou o carroceiro. - Com o calor que está fazendo, se você vomitar vamos ter que aguentar o fedor até o fim da viagem.
- Então deixe minha mãe sair antes que ela vomite - disparou Marcus.
O carroceiro pensou por um momento.
- Está bom, então. Mas apenas ela. Você fica na jaula e eu deixo sua mãe sair.
Marcus concordou com a cabeça.
O carroceiro pegou a corrente em volta do pescoço e puxou a chave. Em seguida, ele apertou a vista novamente e se inclinou para a frente com a intenção de enfiar
a chave na tranca. Marcus retesou os músculos e o coração bateu freneticamente. Ao mesmo tempo, fez um esforço para dar a impressão de que a única preocupação era
a mãe, e pegou sua mão. Houve um barulho metálico no momento em que a chave começou a girar, depois um clique alto quando o ferrolho recuou.
- Agora! - gritou Livia. Quando ela chutou, Marcus se lançou na direção da porta e bateu com força. As grades de ferro voaram para trás e acertaram o rosto do carroceiro.
Ele gritou de dor e surpresa e caiu na estrada. Marcus saiu da jaula e pulou para o lado, longe do carroceiro, que ficou sentado na estrada com sangue escorrendo
do nariz quebrado. Livia agarrou as bordas da porta e pulou para fora. Caiu pesadamente ao lado de Marcus e pegou a mão do filho.
- Corra!
Eles dispararam para a margem da trilha. Atrás deles, o carroceiro ficou de pé e berrou:
- Parem!
Era uma reação tola, que permitiu que Marcus e a mãe dessem mais alguns passos antes de o homem começar a persegui-los, com as sandálias pesadas raspando na terra
cheia de sulcos da estrada. Livia foi para a margem da estrada e agora os dois atravessavam as pilhas macias de carumas enquanto desciam correndo a colina.
- Parem! - gritou o homem atrás deles. - Parem agora ou vou virá-los do avesso quando eu os pegar.
Marcus arriscou uma olhadela para trás e viu que o carroceiro talvez estivesse a dez metros de distância. O menino estava ligeiramente à frente da mãe e pegou sua
mão.
- Vamos!
Ela fez uma careta ao tentar manter o ritmo no terreno acidentado. Ao redor deles, a colina era marcada por fachos de luz do sol que atravessam os galhos dos pinheiros;
o contraste de luz e sombra tornava complicado se concentrar no chão adiante.
Foi quando aconteceu.
Com um grito repentino, a mãe de Marcus caiu para a frente no momento em que o pé bateu em uma rocha encoberta pelas carumas macias. Ela caiu com força no chão e
perdeu o fôlego ao rolar colina abaixo. Marcus ficou de joelhos ao lado dela.
- Meu tornozelo! - sibilou Livia, entre os dentes cerrados. - Aaaai, meu tornozelo!
Marcus viu que a pele estava rompida na lateral do pé da mãe e o sangue saía pulsando. Ela apertou a mão do filho com força ao tentar se levantar. Imediatamente,
Livia soltou um grito de agonia e desmoronou de novo sobre o chão. Ela suportou a dor e encarou o menino.
- Corra, Marcus! Corra!
Ele balançou a cabeça freneticamente.
- Não! Não posso deixar você!
Livia soltou a mão do filho e o empurrou.
- Corra!
A essa altura o carroceiro já estava a uma distância curta, com uma expressão triunfante. Marcus devolveu o olhar da mãe.
- Eu não posso deixar você. Não posso.
- Corra! Salve-se. Encontre o Pompeius. Vá!
Ela o empurrou novamente. Fez um esforço para ficar de joelhos e se virar para encarar o carroceiro. Marcus recuou alguns passos, depois se virou e correu. O coração
foi tomado de medo pela mãe, mas ao mesmo tempo sabia que ela estava certa. Se ficasse, ambos seriam capturados. Se ele escapasse, então poderia encontrar alguma
maneira de resgatá-la. Ele olhou para trás pela última vez e viu a mãe se atirar nas pernas do carroceiro. Ela abraçou os joelhos do homem e berrou:
- Corra, Marcus!
Então a voz de Livia foi interrompida, quando o carroceiro tentou furiosamente empurrá-la para o lado. Marcus continuou correndo colina abaixo, na direção de um
ponto onde os pinheiros cresciam mais próximos uns dos outros e ficaria difícil ser seguido pelo homem. A mãe gritou novamente, a voz ficou mais distante e abafada
pela floresta:
- Corra!
- Pare, seu moleque! - berrou o carroceiro.
Marcus alcançou o pinheiral e continuou avançando, empurrou os galhos finos de lado e ignorou os arranhões nas mãos e nos braços. Os berros foram ficando gradativamente
mais fracos e depois sobraram apenas os sons dos pés passando entre as carumas, o assobio dos galhos e os soluços de profundo desespero que Marcus soltou enquanto
fugia, cada vez mais distante da mãe.
9
Marcus correu por mais de um quilômetro e meio com os olhos cheios d'água. O coração batia freneticamente e o calor do sol da manhã debaixo dos galhos dos pinheiros
fez com que ficasse encharcado de suor. A corrida entre as árvores deixou seu rosto e suas mãos arranhados e sangrando, e os músculos doíam pelo esforço. No entanto,
a dor na pele, nos braços e nas pernas não era nada comparada à agonia que envolvia seu coração. Ele parou e se inclinou para a frente, apoiando as mãos nos joelhos
enquanto tentava respirar. Fez um esforço para ouvir qualquer barulho de perseguição mais alto do que o som do sangue latejando na cabeça, mas não havia nada, a
não ser o baixo crocitar dos corvos que cruzavam a floresta.
Enquanto recuperava o fôlego, Marcus tentou pensar a respeito da situação, mas era impossível se concentrar enquanto as imagens de sua mãe, ferida e à mercê do carroceiro,
tomavam conta de sua cabeça. Seus gritos para que ele corresse ainda ecoavam em sua mente. Marcus se endireitou e se virou para olhar em direção à estrada morro
acima. Sentiu-se um covarde. Também sentiu mais medo de ficar sozinho do que medo do carroceiro e do castigo que o homem havia lhe prometido. Marcus respirou fundo
e decidiu sobre o que precisava fazer. Ele se virou e vasculhou o chão até encontrar o que procurava. Havia uma árvore caída a uma curta distância. Ele correu até
lá e arrancou o maior galho que conseguiu empunhar. Após tirar correndo alguns dos menores ramos, Marcus pegou a ponta do galho e o balançou de um lado para o outro,
depois bateu no tronco da árvore. O golpe fez seus braços tremerem, mas o galho não se quebrou.
- Vai servir - murmurou para si mesmo. Depois começou a subir a colina de volta pela direção de onde fugiu. Marcus sabia que tinha pouca chance contra o carroceiro
grandalhão, a não ser que encontrasse alguma maneira de surpreendê-lo. Se Marcus conseguisse fazer isso, então talvez fosse possível deixar o homem inconsciente,
talvez até matá-lo. Daí ele resgataria a mãe e levaria a carroça para algum lugar, a fim de encontrar ajuda. Os pensamentos pararam por um momento. Será que ele
realmente conseguiria matar o carroceiro se tivesse a chance?
- Sim - rosnou para si mesmo. Ele faria se fosse preciso.
Ao surgir pelo pinheiral que tinha usado para escapar do carroceiro, Marcus se abaixou e passou com cuidado pela cobertura de carumas sem fazer barulho. Os olhos
e ouvidos tiveram dificuldade para perceber qualquer sinal de vida adiante. Não havia movimento, exceto pelo leve tremeluzir de luz e sombras no chão. Quando chegou
ao lugar onde havia deixado a mãe, Marcus se ajoelhou. As carumas estavam remexidas e havia uma mancha de sangue em uma pedra. Ele encarou o sangue por um momento,
enquanto o corpo foi tomado por uma onda de ansiedade. Então Marcus engoliu em seco, agarrou com mais força o porrete improvisado e subiu de mansinho até a estrada.
Assim que seus olhos se nivelaram com a superfície cheia de sulcos, Marcus parou e olhou com cuidado de um lado para o outro. A estrada estava vazia.
Não havia sinal da carroça.
Ele subiu até a estrada e parou, em silêncio; olhou na direção para onde ia o veículo. Não sabia o que fazer. Não tinha ideia alguma. O primeiro instinto foi correr
atrás da carroça e levar a cabo o plano de atacar o carroceiro e salvar a mãe. Mas o pânico e medo que tomaram conta de Marcus antes começaram a recuar, e ele foi
capaz de pensar mais claramente. Podia seguir a carroça e esperar pela chance de atacar, porém, após ter sido atacado uma vez, o carroceiro estaria alerta. Se Marcus
fosse capturado, tudo teria sido em vão e ele e a mãe estariam condenados a uma morte em vida, como escravos na fazenda de Decimus. E não havia dúvidas de que o
carroceiro também lhe daria uma surra violenta antes de jogá-lo de volta dentro da jaula.
Sua mãe estava certa. Ele precisava encontrar ajuda. Encontrar alguém que ouvisse o que ele tinha a dizer, que proporcionasse justiça para Marcus e ela, que punisse
Decimus. Uma faísca de fúria acendeu em seu peito ao pensar no homem que levara embora sua vida feliz e seus pais. Punição não seria suficiente para Decimus. Ele
tinha que pagar com a vida.
Muito deprimido, deu meia-volta e começou a recuar na direção de Stratos. Não havia como entrar na cidade novamente. Se fosse reconhecido, Marcus seria capturado
e jogado na cela do leiloeiro, enquanto uma mensagem seria enviada para Decimus informando que o escravo fugitivo fora capturado. Em vez disso, Marcus decidiu avançar
até o rio e depois segui-lo ao mar, onde poderia encontrar um porto. Então, precisaria pegar um navio para a Itália, onde encontraria o general Pompeius e lhe contaria
tudo. Porém, mesmo ao resolver seguir com esse plano, Marcus sabia que o caminho diante de si era difícil e perigoso.
Ele apoiou o porrete no ombro e apertou o passo ao andar pela trilha acidentada. Acima, o sol estava no apogeu, o calor era escaldante e emanava da terra batida
da estrada à frente. Assim que deixou os pinheiros para trás, Marcus pôde ver Stratos no vale lá embaixo e a larga faixa prateada do rio serpenteando no fundo antes
de atravessar alguns morros ao longe. Ele saiu da estrada e atravessou o mato em direção ao rio, passou com cuidado por vários olivais e um vinhedo. De vez em quando
viu pessoas, mas se manteve bem longe delas. Marcus não tinha certeza se podia arriscar pedir ajuda para alguém que morasse perto de Stratos. Elas podiam conhecer
Decimus e torcer para que recebessem uma recompensa por devolver um escravo fugitivo.
Na hora em que chegou ao rio, a garganta de Marcus estava seca. Ele descobriu um lugar tranquilo onde os juncos cresciam ao longo da margem e se ajoelhou para beber
com as mãos em concha na água fria. Depois que se refrescou, Marcus tirou as botas e entrou no rio. Em seguida, se despiu da túnica, lavou-a na corrente leve e tirou
a sujeira que havia encardido o tecido durante os dias que passara trancado na jaula. Quando terminou, pôs a túnica na margem para secar ao sol. Marcus se acomodou
por perto, à sombra de um pequeno arbusto, e descansou. O estresse dos dias anteriores passou um pouco ao tomar o banho de rio e ele, aos poucos, caiu em um sono
profundo.
Quando acordou, a noite havia caído. Ao redor, o som das cigarras preencheu a escuridão. O ar estava frio. Marcus pegou a túnica, que estava seca, e se sentiu mais
confortável assim que a vestiu. Ergueu o olhar enquanto calçava as botas e amarrava os cadarços. A lua em quarto crescente iluminava a paisagem em tons suaves de
azul. Marcus sentiu fome e se deu conta de que não comera nada desde a tarde anterior. Ele se agachou na beira do rio para beber água com as mãos em concha antes
de ir embora.
Marcus se manteve o mais próximo possível do rio e seguiu o fluxo da corrente. A princípio, achou a experiência irritante, e cada súbito barulho na grama ou ramo
que estalava faziam com que se abaixasse e ficasse imóvel. O coração disparava, os olhos e ouvidos ficavam atentos para qualquer sinal de que estivesse sendo caçado.
Somente quando tinha certeza de que o barulho fora feito por um animal qualquer, Marcus continuava a seguir cautelosamente pelo caminho.
Duas vezes durante a noite ele topou com pequenos vilarejos à margem do rio. Passou de mansinho em volta da massa escura de pequenas casas e cabanas, mas não havia
lamparinas a óleo brilhando na escuridão nem movimento, exceto por um cachorro no segundo vilarejo que latiu um pouco e soltou um longo uivo antes de ficar calado.
Assim que a primeira luz tênue da aurora surgiu no horizonte, Marcus topou com um terceiro vilarejo. O estômago não parava de doer, e ele relutantemente decidiu
que deveria arriscar encontrar algo para comer. Não fazia ideia de como o povo do vilarejo iria reagir ao encontrar um menino romano na porta de casa. Ele teria
que tentar roubar alguma comida. A ideia de roubar o preocupou por um momento. Seu pai colocara em sua cabeça que roubar era um ato desonroso e que o homem que rouba
dos companheiros deve ser severamente punido. No entanto, no momento, Marcus estava faminto, tão faminto que a fome era dolorosa e lhe tirava a concentração. Há
um ano ele ficara doente, não conseguia manter a comida no estômago e passara dias sem comer, portanto sabia que, se não comesse, em breve iria se sentir zonzo e
fraco. Não havia como evitar. Ele tinha que arrumar comida, não importava como.
Marcus se aproximou com cuidado de uma casa grande no limite do vilarejo. Do lado de fora da entrada, uma pequena chama tremeluzia em um braseiro. Na luz, Marcus
viu um homem encolhido no chão. Ele parou um momento, verificou que o sujeito estava dormindo e se aproximou de mansinho. Havia duas construções baixas que se estendiam
de cada lado da casa e um cheiro pungente de cabras no ar. Marcus imaginou que eram os barracões que guardavam os animais e a comida. Ele foi até o fim do barracão
mais próximo e se espremeu contra a parede rústica de reboco.
Marcus parou por um momento para prestar atenção a qualquer movimento, mas não havia nada além de uma cabra se mexendo na cama de palha - e depois silêncio. Ele
tateou pela parede até achar a porta. Abriu o ferrolho devagar e fez uma careta quando rangeu. A porta era montada em pesadas dobradiças de madeira, que também rangeram
quando Marcus abriu uma passagem suficiente para entrar se espremendo. Um fino raio de luar recaiu sobre o piso do barracão. Na luz, foi possível ver outra porta
na parede do lado oposto. Ao lado dela havia estantes cheias de potes tampados. Marcus entrou mais um pouco no barracão e chegou a algumas prateleiras. Os dedos
tocaram de leve os objetos guardados ali. Havia algumas raízes comestíveis, depois sacos cheios de grãos. Ele encontrou alguns objetos duros do tamanho de pedras
grandes. Apertou com força e os objetos cederam. Marcus pegou um. O objeto era leve e, ao levá-lo ao nariz, o menino sorriu. Pão. Ele rapidamente pegou alguns pãezinhos
e continuou procurando. A próxima prateleira continha alguns queijos, e Marcus pegou o maior que conseguiu, depois catou um odre vazio caído ao lado das prateleiras.
Poderia enchê-lo no rio, decidiu enquanto voltava para a porta, feliz com os achados.
Porém, ao sair rapidamente, o pé de Marcus esbarrou em alguma coisa pesada. Houve um rangido e, um instante depois, um pote pesado se quebrou nos ladrilhos. Um líquido
espirrou em suas pernas e o ar foi tomado por um aroma de azeite. Ele sentiu um frio na espinha. O som foi suficiente para alertar os fazendeiros, tinha certeza.
Ele correu para a porta, mas o azeite derramado deixou os ladrilhos escorregadios, e Marcus foi forçado a andar com cuidado. Ouviu um berro vindo da casa principal
da fazenda e, ao sair do barracão para o luar, viu que o homem ao lado do braseiro havia levantado e estava soando o alarme. Marcus se abaixou atrás de uma pilha
de lenha ao lado do barracão para que não fosse visto. Embora fosse noite, o luar poderia gerar claridade suficiente para Marcus ser visto pelo homem. Uma porta
se abriu com violência na entrada e, um momento depois, mais dois homens se juntaram ao primeiro.
- O que está acontecendo? - perguntou um deles.
- Ouvi alguma coisa quebrando em um dos depósitos.
- Um animal?
- Vamos descobrir logo! Venha.
O primeiro homem enfiou uma tocha no braseiro e as chamas rapidamente se espalharam pelo farrapo embebido em óleo amarrado na ponta. O trio começou a ir ao barracão,
que estava sendo iluminado pela luz laranja das chamas da tocha. Marcus percebeu que seria visto por eles em questão de segundos. Não conseguiria fugir sobrecarregado
com a comida que pegara, mas também sabia que estava faminto e não seria capaz de prosseguir sem comer. Marcus olhou em volta desesperadamente, mas parou quando
viu o azeite reluzindo depois da entrada do depósito.
Ele saiu de trás das toras de lenha e voltou correndo para a porta.
- Lá! - O homem com a tocha esticou o braço. - Aquele menino!
- Ladrãozinho! Vamos pegá-lo!
Eles saíram em disparada. Marcus olhou em volta e depois pulou dentro do barracão.
- Rá! Ele está encurralado agora - berrou um dos homens, com satisfação. - Nós o pegamos!
Marcus passou com cuidado pela poça de azeite perto da porta, do lado de dentro. Ela era presa por um ferrolho simples, que estava duro, e rangeu baixinho quando
Marcus fez um esforço para abri-lo. Surgiu um brilho no depósito assim que o homem da tocha apareceu na entrada. Marcus tentou não entrar em pânico e novamente fez
força para abrir o ferrolho. Seu coração disparou, aterrorizado pela ideia de ser capturado. Foi aí que o ferrolho se abriu e Marcus escancarou a porta.
- Parado, você aí! - gritou o homem do outro lado do depósito.
Marcus olhou para trás.
- Venha me parar.
Em seguida, ele correu para a noite. Marcus ouviu os homens entrarem no barracão atrás dele, depois houve um grito de susto e um baque suave, seguido de outro, quando
eles escorregaram e perderam o equilíbrio no azeite.
- Cuidado com essa tocha, seu tolo! - gritou uma voz.
Marcus continuou correndo para longe do vilarejo, em direção à segurança das sombras do olival mais próximo, a cem passos de distância. Ele não arriscou olhar para
trás enquanto os perseguidores gritavam em pânico. Somente quando alcançou as árvores Marcus fez uma pausa e virou o rosto. A porta estava fácil de ser vista, iluminada
por um brilho vermelho e laranja cada vez mais forte vindo de dentro do barracão. Um dos homens saiu cambaleando, recortado pelo brilho do interior. A tocha deve
ter posto fogo em alguma coisa dentro do depósito, e agora as chamas se espalhavam rapidamente. Os gritos dos homens despertaram mais pessoas na casa. O peito de
Marcus ofegou enquanto ele tomava fôlego e observava por um momento, contente por não estar sendo perseguido por ninguém. Ele mordeu um dos pãezinhos e mastigou
rapidamente. As primeiras chamas romperam o telhado do barracão, enquanto várias figuras começaram a jogar baldes d'água no fogo.
Marcus sentiu uma pontada de culpa diante daquela imagem. Ele apenas queria comer, e ficou chocado pelo fogo que aumentava. Assim que fosse apagado, os donos da
fazenda certamente mandariam homens à procura do culpado. Ele tinha que andar rápido e se afastar o máximo possível dali antes do amanhecer. Marcus mordeu mais pão,
deu meia-volta e correu pelo olival. Andou o mais depressa possível, mas não arriscou correr por medo de tropeçar e torcer o tornozelo no escuro. Depois de se afastar
um quilômetro e meio da fazenda, Marcus voltou para o rio e continuou a seguir a corrente.
Assim que amanheceu, ele viu que o rio passava por um desfiladeiro estreito e foi forçado a seguir por um caminho íngreme que subia pela colina ao lado. Quando alcançou
o topo, bufando pelo esforço, Marcus parou imediatamente. Do outro lado, o solo descia até uma faixa estreita de litoral. Lá embaixo existia um enorme porto à sombra
do morro. Atrás das grossas muralhas de pedra havia um labirinto confuso de telhados foscos de telhas vermelhas que se espalhava até a costa, onde existia uma enorme
baía. Vinte ou trinta navios estavam atracados no cais e havia muitos outros ancorados no mar.
Pela primeira vez, Marcus se animou ao ver os navios. Alguns deles com certeza deveriam ir para a Itália, e ele daria um jeito de entrar a bordo. Trabalharia para
pagar a passagem e, se necessário, entraria como clandestino e pularia no mar assim que o navio ancorasse na costa da Itália. Depois, teria que ir a Roma e encontrar
o general Pompeius. Marcus sabia que havia uma longa estrada pela frente, que deveria viajar sozinho e superar os perigos que encontrasse contando apenas consigo
mesmo. Se ao menos o pai ainda estivesse vivo e ali com ele... Saberia o que fazer e seria forte o suficiente para passar por isso. Por um breve momento, Marcus
duvidou se seria capaz, mas então se lembrou da mãe e o coração foi tomado por uma determinação renovada para resgatá-la.
Marcus comeu metade de um pão e um pouco do queijo, e em seguida começou a descer o morro em direção ao porto.
10
- Você quer se juntar à minha tripulação? - O capitão do Bons Ventos sorriu ao olhar para Marcus. Eles estavam parados no convés do navio no porto de Durrës e, em
volta, a tripulação olhava para a pequena figura com expressões alegres. Ele engoliu em seco, nervoso, antes de responder ao capitão:
- Sim, senhor.
- Entendi. Pois, então, que experiência você tem? - perguntou o capitão, ao colocar as mãos na cintura.
- Experiência?
- Em relação a navios. Como este aqui. - O capitão gesticulou para o convés.
Naquele momento, a carga estava sendo embarcada. Carregadores subiam sem parar pela prancha levando fardos de material ricamente trabalhado. A tripulação do navio
pegou os fardos dos carregadores e desceu a carga para alguns marinheiros no porão, que a guardaram com cuidado. Acima deles subia o mastro com uma vela dobrada
e levemente inclinada. Cabos desciam por todas as direções do mastro e da vela.
Marcus tomou fôlego e tentou parecer confiante ao mentir:
- Eu já estive em um navio antes, senhor. Com certeza vou me lembrar de tudo.
O capitão coçou o maxilar, depois andou até o mastro, puxou um dos cabos e inclinou a cabeça para Marcus.
- Muito bem, então, meu jovem marujo. Como se chama esse aqui?
Marcus viu o cabo, acompanhando o traçado pelo mastro acima até perdê-lo de vista entre outros cabos e roldanas. Ele ficou desanimado ao voltar a olhar para o capitão.
- Não me lembro, senhor.
- Mentira! Você não é um marujo. Isso ficou claro. Você não distingue uma ponta de um navio da outra.
- Mas eu tenho que ir a Roma! - reclamou Marcus. - Eu não como muito e posso trabalhar duro.
- Talvez sim, mas não no meu navio. - O capitão balançou a cabeça. - Você não tem utilidade para mim, rapaz. Não até você ganhar alguma experiência como marujo.
Agora saia do meu navio, antes que eu lhe dê uma bela surra!
Marcus concordou com a cabeça ao recuar cautelosamente e, depois, virou-se para descer correndo a rampa até o cais. Já passava do meio-dia e as pedras do calçamento
estavam escaldantes. Ele correu em direção à sombra de um dos armazéns. Um leve aroma de especiarias lutava para competir com o odor de peixe, suor e esgoto. Apesar
do calor, o cais estava cheio de vida e marinheiros, carregadores, mercadores, ambulantes e pescadores, que se misturavam na larga passarela ao lado da água. Marcus
os observou por um momento, depois olhou para a massa de mastros e cordames acima da cabeça da multidão. Não faltavam navios. O único problema era descobrir um jeito
de conseguir uma passagem grátis para a Itália. Se isso provasse ser impossível, então ele tinha que viajar como clandestino, decidiu Marcus.
Ele passou a maior parte da manhã indo de navio em navio para encontrar aqueles que fossem atravessar o mar Adriático, depois perguntou se poderia viajar e pagar
a passagem com trabalho. Porém um menino de dez anos não tinha utilidade para ninguém. Enquanto alguns o recusaram com grosseria, outros ficaram desconfiados, e
um capitão perguntou de cara se ele era um escravo fugitivo. Marcus negou, deu desculpas e saiu do navio imediatamente. Decidiu que deveria ter mais cuidado. Decimus
ofereceria uma recompensa pela devolução de um escravo fugitivo, e os fazendeiros também estariam igualmente interessados em encontrar o ladrão que fizera o depósito
pegar fogo.
Ele tinha metade de um pão e algum queijo sobrando, que tirou da túnica e começou a mastigar sem muito entusiasmo. Quando a comida acabasse, Marcus não teria mais
nada sobrando e, a não ser que desse um jeito de ganhar algum dinheiro ou se juntar à tripulação de um navio, seria forçado a roubar novamente. Ele se sentiu culpado
ao considerar essa perspectiva. Não pela primeira vez, amaldiçoou Decimus por ser a causa de todo o seu sofrimento. Assim que terminou de comer, Marcus encheu o
odre no bebedouro público e depois se acomodou na soleira da porta de uma loja interditada para fazer a digestão e descansar um pouco.
O calor da tarde se tornou opressivo e o cais começou a ficar menos cheio, conforme as pessoas saíam para descansar por uma hora ou duas. As equipes de carregadores
se recolheram para a sombra dentro dos armazéns, onde alguns deles jogavam dados, enquanto outros comiam ou dormiam. A bordo dos navios, as tripulações também descansavam
esparramadas no convés, onde conseguiam encontrar uma sombra. Em pouco tempo, tudo ficou calmo e apenas um punhado de pessoas ainda continuava tocando a vida em
toda a extensão do cais. Marcus se deu conta de que essa podia ser a melhor oportunidade para entrar em um navio, enquanto as tripulações estavam cochilando. Ele
limpou as migalhas da túnica e ficou de pé. À frente, o convés do Bons Ventos parecia deserto, e Marcus andou casualmente pelo cais observando o navio de rabo de
olho. Descobriu que o navio ia para Brindes, um porto movimentado diretamente do outro lado, no litoral da Grécia. Uma escolha ideal para Marcus.
Ao passar lentamente, notou que a maior parte da tripulação estava deitada debaixo de um toldo aberto sobre o convés da popa, onde a haste do timão estava pendurada
para o lado de fora. Havia apenas um homem na amurada da embarcação. Um odre de vinho estava preso ao peito e ele roncava alto. A escotilha do porão estava aberta
bem ao lado da prancha. Com uma rápida olhadela em volta para garantir que não estava sendo observado por algum tripulante, Marcus voltou à prancha e subiu confiante,
como se fosse um integrante da tripulação retornando a bordo - caso alguém no cais estivesse prestando atenção nele. Quando chegou à brecha na amurada do navio,
Marcus se abaixou e entrou de mansinho no convés. Fez uma pausa e olhou para os dois lados. O bêbado continuava dormindo, e o ronco era tão alto que Marcus podia
jurar que sentia as vibrações pelo tabuado do convés debaixo dos pés. Ele olhou para o outro lado e notou que ninguém havia se mexido debaixo do toldo.
- Até agora, tudo bem - murmurou para si mesmo.
A braçola de madeira da escotilha do porão estava a menos de dois metros de distância. Ele se aproximou engatinhando cuidadosamente e fez uma careta por causa do
calor do convés. Quando chegou à escotilha, olhou com cautela pela beirada e viu o interior do porão. A carga do navio parecia consistir principalmente de fardos
de lã, que foram cuidadosamente empilhados no fundo do porão. A frente estava cheia de tábuas de madeira escura, quase negras. Havia pouco espaço disponível e Marcus
se deu conta de que o Bons Ventos iria terminar de ser carregado em breve e, depois, içaria as velas. Perfeito, pensou.
Marcus passou por cima da beirada gasta da braçola e caiu sobre um enorme fardo de lã com um leve baque. Parou por um momento para ouvir algum sinal de que tinha
sido detectado e, depois, subiu pelos fardos em direção ao fundo do porão. Escolheu um ponto perto do topo, no meio da embarcação. Ali, Marcus soltou devagar um
dos fardos e, lutando contra o peso, colocou-o sobre o resto da pilha debaixo da escotilha. Depois de entrar no vão que havia criado, Marcus puxou outro fardo e
colocou-o com cuidado debaixo do buraco. Em seguida, lá dentro, ele empurrou um terceiro fardo para a frente e girou para esconder o espaço que criara no topo dos
fardos. Havia um pequeno vão lateral apenas grande o suficiente para Marcus entrar se espremendo. Do outro lado era possível ver todo o porão e, assim que a grade
da escotilha estivesse no lugar, ele poderia ter um pouco de luz e ar na viagem pelo mar.
Estava quente no porão. Enquanto permanecia ali e esperava pela retomada do carregamento, Marcus sentiu o corpo inteiro suar. Em pouco tempo ele sentiu sede, mas
lutou contra a tentação de beber do odre. Tinha que fazer a água durar. Se ela acabasse, ou se ele começasse a passar fome e a situação ficasse desconfortável demais,
então, Marcus decidiu, ele simplesmente teria que se entregar à tripulação e torcer que eles não o devolvessem à Grécia ou, pior ainda, o entregassem a Decimus assim
que descobrissem sua identidade.
Depois de quase uma hora, até onde conseguia calcular a passagem do tempo, Marcus ouviu o bater de pés no convés quando a tripulação se levantou para continuar com
o serviço.
- Voltem ao trabalho! - vociferou o capitão. - E vocês aí! Vocês, carregadores, coloquem o resto da carga a bordo. Este navio tem que navegar antes do anoitecer.
Andem!
Pouco tempo depois, Marcus observou, através da pequena brecha que deixou para entrar, dois tripulantes descerem ao porão e começarem a arrumar os últimos fardos
em posição. Acima, ouviu o barulho constante de pés no convés. Alguns caixotes de madeira e vários engradados com grandes ânforas foram descidos ao interior do porão,
o que completou o carregamento. Depois, os homens subiram ao convés e houve um ruído grave quando a grade foi colocada sobre a escotilha do porão. Marcus respirou
aliviado por não ter sido descoberto e se espreguiçou no pequeno esconderijo que havia criado. Pelo menos com o material de luxo ao redor ele teria uma superfície
confortável para descansar. Os maiores problemas seriam o incômodo do calor no porão e a sede, que já aumentava em sua garganta.
Assim que o Bons Ventos foi carregado, o capitão vociferou ordens para que a tripulação se preparasse para navegar. A rampa foi recolhida a bordo, a vela foi desfraldada
e em seguida os remos foram colocados nas laterais a fim de empurrar o navio para longe do cais. Os longos remos rangeram e espirraram água regularmente enquanto
impulsionavam o navio para o porto, entre as embarcações que aguardavam, e depois para o mar aberto. Marcus sentiu a súbita alteração no movimento do navio quando
ele encontrou as ondas suaves das águas desprotegidas fora do porto. Imediatamente, seu estômago revirou, e Marcus sentiu uma tontura horrível tomar seu corpo. Tapou
a boca com a mão e tentou não ficar enjoado. A última coisa que queria era passar a viagem cercado pelo próprio vômito.
Do lado de fora do esconderijo, ele conseguiu ouvir os gritos abafados do capitão, enquanto o homem dava ordens à tripulação para firmar a vela e colocar o navio
no rumo para cruzar a grande extensão de mar que separava a Grécia da Itália. Conforme o Bons Ventos começou a navegar pelas ondas em movimentos longos e descendentes,
Marcus encolheu o corpo e gemeu. Seu estômago estava revirado e ele teve que usar todo o autocontrole para não vomitar. Finalmente, não conseguiu mais resistir à
ânsia. Empurrou o fardo de lã para o lado, debruçou o corpo sobre o porão e vomitou. A náusea não parava e, em pouco tempo, Marcus não tinha mais nada sobrando dentro
de si. No entanto, ele continuava vomitando, e o estômago se contraiu e doeu até a ânsia passar e deixá-lo suando. Marcus sabia que o vômito certamente seria visto
quando o navio aportasse, mas torceu que considerassem que alguém da tripulação não houvesse conseguido chegar à amurada do navio a tempo.
Ao cair da noite, ele tomou um pequeno gole d'água, molhou a boca e cuspiu antes de beber um bocado. Em seguida, depois de garantir que havia coberto a entrada do
esconderijo, Marcus se encolheu novamente e planejou o que faria para tentar parar de pensar na náusea. Assim que chegassem a Brindes, ele precisaria sair da embarcação
sem ser visto. Depois, teria que ir a Roma e encontrar a casa do general Pompeius.
Por um instante, Marcus foi tomado pelo terrível medo da decisão que havia tomado, a de realizar uma tarefa impossível. Afinal de contas, ele era apenas um menininho
totalmente por conta própria. Nascido e criado na fazenda do pai, jamais tinha viajado mais do que 30 quilômetros de casa até recentemente. Ele ainda tinha um longo
caminho até chegar a Roma, e mesmo assim precisaria dar um jeito de falar com o general Pompeius. Se o general fosse tão grande e poderoso como o pai havia lhe dito,
então não seria fácil. À medida que as dúvidas e os medos penetraram em sua mente, a imagem da mãe subitamente irrompeu em seus pensamentos. Marcus cerrou os punhos,
afastou as preocupações com raiva e disse para si mesmo que estava sendo um covarde. Seu pai teria ficado envergonhado dele. Marcus se enfiou no cantinho do esconderijo
e fechou os olhos, depois tentou lutar contra a ansiedade em relação ao futuro e à náusea que aumentava juntamente com o movimento do navio.
Ele passou a noite e o resto do dia seguinte no esconderijo, saindo apenas para esvaziar a bexiga no fundo do navio, mas tomando cuidado para não ser visto pela
grade que cobria o porão. Na noite seguinte, Marcus começou a superar a pior parte do enjoo do mar, mas o odre estava vazio e o estômago roncava de fome. Ele ficou
deitado no fardo de lã por algumas horas, no escuro, sem conseguir dormir, e nas primeiras horas da madrugada ouviu a voz do capitão parado ao lado do mastro, logo
à frente da escotilha de carga:
- Maldito seja este vento ruim... Imediato!
Surgiram passos sobre o convés e, em seguida, um tripulante respondeu:
- Sim, senhor?
- O vento mudou de novo. Acorde o plantão. Eu quero essa vela bem firme. Diga ao timoneiro para se manter o mais próximo do vento que conseguir. A não ser que ele
mude, nós vamos perder um dia, talvez dois, antes de aportarmos.
- Sim, senhor, concordo.
- Prossiga.
O imediato foi embora para chamar o plantão e Marcus ouviu gritos e pés batendo no convés. Pouco tempo depois, o navio adernou um pouquinho mais. O movimento ficou
menos suave quando a proa se chocou contra as ondas. Marcus ficou desapontado ao pensar sobre a curta conversa que ouvira. O navio estava atrasado. Se o capitão
estivesse certo, então poderia levar alguns dias até eles aportarem. Marcus sabia que ele precisava arrumar água e comida antes disso para sobreviver e ter forças
para continuar à procura do general Pompeius. Só havia uma coisa a fazer: ele teria que sair do porão e tentar encontrar alguma coisa para comer e beber. E era melhor
fazer agora, enquanto estava escuro e havia menos chance de ser visto.
Marcus esperou um pouco para dar tempo de a tripulação voltar a dormir, depois saiu se espremendo do esconderijo. O porão estava tomado pelo barulho de tábuas rangendo
e de água batendo no fundo do navio. Acima dele, Marcus só conseguia distinguir as grossas linhas cruzadas da grade que tampava o porão, exceto por um canto em que
havia um buraco quadrado. Era um espaço apenas grande o suficiente para um homem passar. Marcus calculou que o buraco estava ali caso a tripulação precisasse verificar
o porão sem ter que retirar a grade. Marcus passou de mansinho e com cuidado pelos fardos de lã e potes que foram armazenados bem juntinhos e chegou perto do vão.
O porão estava suficientemente cheio para que ele pudesse alcançar o buraco sem nenhuma dificuldade. Marcus se esticou, agarrou a borda da escotilha e, em seguida,
ergueu o corpo com um esforço dos músculos. Assim que seus olhos ficaram no mesmo nível da borda da escotilha, Marcus deu uma olhada em volta do convés.
O primeiro brilho da aurora estava surgindo no horizonte. Na popa, havia um homem segurando o timão que controlava o imenso leme. Um punhado de homens estava deitado
no convés diante dele. Mais perto da escotilha, mais algumas figuras se sentavam juntas e curvadas contra a lateral do navio. Uma delas se mexeu e Marcus ouviu o
tinir de uma corrente. Eles deviam ser escravos, percebeu Marcus. Parte da carga do navio. Ninguém parecia tê-lo visto e Marcus soltou um longo suspiro baixo de
alívio. Então seus olhos se fixaram em algumas cestas e um barril na base do mastro.
Marcus subiu pela beirada da escotilha para o convés. Depois, manteve-se agachado e atravessou o tabuado desgastado e castigado pelo tempo até chegar ao pé do mastro.
Os dedos tatearam a borda da cesta mais próxima e encontraram alguns objetos duros e redondos. Maçãs. Ele sorriu e se serviu de quatro delas, que enfiou dentro da
túnica. Embora estivesse contente com o achado, Marcus sabia que apenas as maçãs não satisfariam sua fome.
Um ronco súbito fez com que Marcus desse um pulo e olhasse em volta, aterrorizado. A apenas poucos passos, encolhido sobre o convés, estava um dos tripulantes. O
homem murmurou alguma coisa e começou a respirar profundamente. Marcus estava prestes a voltar a atenção para as cestas quando viu o meio pedaço de pão comido e
algumas salsichas no convés ao lado do homem. Ele lambeu os beiços ao pensar em transformar em refeição a comida que o tripulante não terminara. Com uma rápida olhadela
em volta para garantir que ninguém estivesse prestando atenção, Marcus avançou devagar em direção ao marujo que roncava. Parou a uma pequena distância e esticou
furtivamente a mão para pegar o pão e depois a salsicha. Com um pequeno sorriso de alívio porque o homem continuava dormindo, Marcus deu meia-volta em direção à
escotilha de carga. Pretendia voltar ao esconderijo e comer antes que a luz ficasse mais forte e o revelasse. Ele quase tinha alcançado a escotilha quando a voz
grossa do timoneiro ecoou pelo convés:
- Troca do plantão! Troca do plantão! Plantão da manhã, desdobrar a vela mestra!
A tripulação começou a se mexer. O dono da comida que Marcus havia pegado roncou e depois começou a se sentar, desanimado, a mão tateando na direção onde a comida
estivera. Ele abriu os olhos e encarou Marcus. O homem pestanejou e franziu a testa, depois notou a salsicha e o pão na mão do menino e arregalou os olhos, surpreso.
- Ladrão! - gritou ele, e correu pelo convés em direção a Marcus.
11
Marcus deu um chute com a bota, e o couro rebitado acertou o marujo no rosto. O homem gritou de dor e levou as mãos ao nariz, enquanto o sangue começou a escorrer.
O som alertou os demais por perto, que se viraram para olhar.
- Quem é este menino? - berrou alguém.
- Bem, passageiro ele não é! - respondeu outra voz, e alguns dos homens no convés riram. - Parece que arrumamos um clandestino, rapazes.
Marcus se afastou do homem que tinha chutado, depois ficou agachado. Mordeu um pedaço da salsicha e mastigou furiosamente. Ele observou os homens no convés com cuidado
e recuou para o outro lado do navio. Muitos tripulantes se aproximaram lentamente, curiosos, enquanto ao fundo da embarcação o capitão surgiu da escotilha que levava
ao punhado de pequenos camarotes na popa. Ele foi seguido por um homem grande de túnica vermelha que subiu ao lado do timoneiro para ver melhor.
- Que bagunça toda é essa? - vociferou o capitão. - O que está acontecendo aqui?
- Um clandestino, capitão - respondeu um dos marinheiros, apontando para Marcus. - Deve ter se escondido no porão e ficado com fome. Foi por isso que roubou a comida
do Spiro.
O homem que havia levado o chute de Marcus limpou o sangue do rosto e ficou de pé, rosnando.
- Muito bem, garoto - sibilou ele. - Você vai pagar por isso. Achou que ia pegar a ração de Spiro e ficar impune, hein?
Ele levou a mão ao lado e sacou uma adaga do cinto largo de couro. Marcus rapidamente o avaliou. O marinheiro não era tão velho quanto seu pai, o cabelo escuro despenteado
caía solto sobre o rosto. Os lábios se abriram em uma careta cruel de desprezo e relevaram dentes tortos. Ao levantar a faca, ele cambaleou um pouco e Marcus calculou
que o marinheiro devia ter bebido mais do que podia na noite anterior. Ele deu outra mordida na salsicha enquanto observava o homem com atenção.
A careta de desprezo do marinheiro virou um ranger de dentes de fúria.
- Ladrão!
Ele avançou contra Marcus com a faca reluzindo na luz fraca da aurora. No último instante, Marcus desviou para a esquerda e o marinheiro tropeçou na amurada que
percorria a lateral do navio. Alguns dos outros homens riram e Spiro olhou feio em volta antes de fixar o olhar em Marcus novamente.
- Acha que é esperto, menino? Bem, vou meter a faca em você por isto.
Pelo tom de voz do homem, Marcus soube que estava em grave perigo. Ele poderia até mesmo matá-lo, se tivesse a chance. Por um momento, parecia que uma mão gelada
tinha agarrado sua nuca. Marcus teve mais medo do que nunca na vida. Deixou o pão e a salsicha caírem dos dedos e se abaixou, pronto para pular de lado. Já estava
pensando nos próximos movimentos, a mente ficando aguçada pela noção de que estava lutando pela sobrevivência.
- Vamos, Spiro! - gritou um marinheiro. - Mostre para o menino como você é macho!
Houve mais risadas, mas Marcus notou que o comentário deixara o marinheiro ainda mais enfurecido. Ele brandiu a faca, enquanto avançava contra o garoto. Marcus pulou
para o lado e ouviu um leve assobio perto da orelha, quando a lâmina cortou o ar fresco da aurora. Ele correu para o meio do convés e se voltou para encarar Spiro,
quando o marinheiro avançou em sua direção, curvando-se para a frente.
- Continue correndo, menino. Vou encurralar você, mais cedo ou mais tarde.
Marcus olhou de relance para o lado e viu as linhas escuras dos cabos do mastro descendo até uma série de pinos pesados de madeira. Voltou a olhar para Spiro bem
na hora em que ele fez outro ataque, com o corpo inclinado para a frente e a ponta da faca esticada. Marcus desviou para o lado, depois foi forçado a recuar novamente,
quando Spiro golpeou seu rosto. A pequena multidão de espectadores se desfez de cada lado conforme o marinheiro perseguia a presa em direção à popa.
- Aqui, moleque! - berrou uma voz, e houve um barulho no convés perto de Marcus quando uma faca caiu sobre o tabuado. - Pegue!
Marcus pegou a faca e fugiu de mais um ataque. Desta vez alguns dos marinheiros torceram por ele, admiraram a forma ágil como estava evitando os ataques de Spiro.
Mas Marcus sabia que o tempo estava ao lado do marinheiro. Ele daria um jeito de encurralá-lo, e aí seria o fim. O homem lhe meteria a faca ali mesmo e jogaria seu
corpo no mar.
Marcus esquivou-se do homem e correu de volta na direção do lado do navio onde os cabos se curvavam para baixo. Ali, ele se virou para enfrentar Spiro novamente.
O marinheiro andou calmamente na direção de Marcus, respirando fundo pelo esforço físico.
Ele balançou a cabeça em tom de deboche e jogou para o lado uma mecha grossa de cabelo, que caiu sobre o olho.
- Você tem uma faca, mas sabe como usá-la?
Marcus engoliu em seco, nervoso.
- Por que não chega mais perto e descobre?
Spiro fintou com a adaga. Marcus colocou a faca à frente com as duas mãos para aparar o ataque e recuou contra a lateral do navio. Ele mudou a arma para a mão esquerda,
para manter a direita solta, tateou um dos pinos atrás de si e o tirou do buraco.
O marinheiro ficou diante dele, mantendo distância. Abriu bem os braços, como se fosse pegar Marcus em qualquer lugar para que ele tentasse correr.
- Hora de pagar ao velho Spiro o preço por roubar - falou com desprezo.
Marcus engoliu em seco, nervoso. Era hora de atacar, porém ele sabia que teria que desviar a atenção do marinheiro no momento crítico. Marcus abaixou a mão esquerda.
- Por favor, não me machuque - implorou baixinho. - Eu desisto.
Ele atirou a faca para o lado sobre o convés, logo atrás do marinheiro. O homem baixou o olhar para o lado, por instinto, e o cabelo se jogou contra o rosto como
uma cortina. Marcus ergueu o pino, pulou para a frente e bateu a massa pesada de madeira contra o lado da cabeça de Spiro. O marinheiro caiu de joelhos, gemendo,
e a cabeça rolou para trás com a boca mole aberta. A adaga caiu das suas mãos e ele encarou Marcus com uma expressão confusa, antes de desabar inconsciente aos pés
do menino.
Houve um breve silêncio, até que um tripulante soltou um assobio baixo. Em seguida, outro homem comemorou e mais marinheiros se juntaram a ele em um coro de gritos
de aprovação. Marcus olhou os rostos em volta e viu a alegre admiração nas expressões. Muitos estavam sorrindo para ele, que sentiu uma pontada de euforia. Triunfo
tomou conta de seu coração e de sua mente. Então ele olhou para o homem caído aos seus pés. Há apenas um instante o marinheiro estava decidido a matá-lo sem piedade.
Marcus o encarou com um ódio intenso. Em seguida, abaixou-se e pegou a faca que tinha sido atirada em sua direção.
Por um instante, ele ficou parado, sem saber o que fazer. De algum lugar dentro de Marcus brotou uma vontade sombria de buscar vingança. Não era contra esse marinheiro,
mas, sim, um desejo de vingança contra todos aqueles que o tinham feito chegar a esse ponto, separado da mãe, do lar e do abraço caloroso e amoroso da idílica vida
que levava na fazenda. Ele tomou fôlego e ergueu a faca, pronto para enfiá-la no coração do marinheiro.
- Acho que não! - rosnou uma voz. Alguém pegou o pulso de Marcus com força. - Largue a faca.
Marcus se virou e viu o capitão, bem mais alto do que ele. Tentou soltar o braço, mas o homem era muito mais forte. O capitão deixou que lutasse por um momento e,
em seguida, levantou Marcus com uma expressão de desprezo. O menino ficou pendurado sobre o convés, sentindo uma dor ardente no ombro à medida que as juntas e os
músculos se esticavam, e não conseguiu evitar soltar um grito agudo de agonia.
O capitão se inclinou para a frente e aproximou o rosto do de Marcus. Não havia piedade nos olhos do homem quando rosnou:
- Falei para largar a faca. Último aviso, menino.
Marcus sabia que a situação parecia perdida, mas o capitão havia cometido o erro de erguê-lo do convés. Ele jogou a perna para trás, depois chutou com a bota e acertou
o joelho do capitão. O chute pegou o homem com força, que fez uma careta ao se curvar, soltando um gemido. Imediatamente, Marcus tentou se soltar de novo, mas o
homem o manteve preso, mesmo fechando os olhos brevemente para lutar contra a dor. Quando ele recuperou o fôlego e reabriu os olhos, não havia dúvidas quanto à fúria
do capitão.
- Criaturinha desprezível - disparou o capitão. - Você já se divertiu. Agora é a minha vez.
Ele andou em direção à lateral do navio ainda segurando Marcus sobre o convés, mantendo distância.
- Você pode nadar o resto do caminho - disse o capitão com desprezo para Marcus, quando os dois chegaram à amurada.
Ele levantou Marcus com as duas mãos e o segurou acima da água. O menino olhou para baixo e viu o mar azul-leitoso se agitando ao lado do casco com um leve zumbido.
Não havia sinal de terra em lugar algum, e a perspectiva de ser abandonado no mar para morrer deixou Marcus aterrorizado. Ele agarrou a túnica do capitão com a mão
livre e se segurou para salvar a vida.
- Espere! - gritou uma voz grave. - Capitão, me escute!
Marcus olhou atrás do capitão e viu um homem de túnica vermelha. O capitão virou o rosto na direção do passageiro.
- O quê? O que foi?
- Poupe o menino - disse o homem calmamente. - Você não pode abandoná-lo para se afogar.
- Não? - O capitão deu um sorriso cruel. - Por que não? Ele é um clandestino. Um ladrão, e ainda por cima violento. Eu devia ter notado assim que o vi lá em Durrës.
Típico rato de cais. Esses trapos não merecem viver. - Ele se voltou para Marcus e preparou os músculos para atirar o menino nas ondas.
- Deixe o menino viver e eu o compro - acrescentou o homem.
O capitão fez uma pausa, dividido entre o desejo de se vingar pelo golpe que Marcus dera em seu orgulho e a chance de ganhar algum dinheiro. Ele pigarreou.
- Quanto?
- Qual é o seu preço?
- Hã? - O capitão franziu a testa sem saber muito bem quanto pedir. Depois de uma breve pausa, recuou lentamente e soltou Marcus no convés, entre ele e o homem de
túnica vermelha.
Marcus suspirou aliviado ao sentir o convés firme debaixo das costas. Por um momento, ele foi poupado, e sentiu uma ponta de esperança ao erguer os olhos para o
passageiro que se oferecera para comprá-lo. O homem tinha um corpanzil e cabelo escuro impecavelmente cortado. Ele usava braceleiras de couro em cada um dos pulsos
cabeludos. Estava parado com as mãos na cintura, esperando pela resposta do capitão.
- Por que quer comprar o menino, Lucius Porcino? Ele é apenas um nanico. - O capitão gesticulou para os homens acorrentados, sentados em silêncio no convés. - Você
negocia gladiadores.
O homem olhou para Marcus e deu de ombros.
- Ele mostrou coragem. Parece ter saúde suficiente para durar alguns anos. Mas duvido que um dia chegue a ser mais do que um escravo de cozinha. Portanto, diga o
seu preço. Eu pagarei uma bela quantia.
O capitão franziu os olhos.
- Trezentos denários.
- Trezentos? - Porcino ergueu as sobrancelhas, surpreso. - Eu poderia comprar um adulto por esse preço. Vai levar anos até que esse aí banque o próprio sustento.
Trezentos, faça-me o favor! - Ele fez que não e gesticulou com o polegar sobre a amurada. - Melhor você jogá-lo, então. Com certeza eu não vou pagar 300 denários.
Ele deu meia-volta e começou a retornar para a escotilha na popa que levava aos camarotes. Marcus olhou desesperado para o homem, com o coração pesado como uma pedra
no peito. O capitão mordeu o lábio e gritou para Porcino:
- Duzentos!
Porcino parou em meio a um passo e se virou devagar. Ele olhou para Marcus novamente e coçou a barba cerrada do queixo, pensativo.
- Eu pago 100 denários. E esse preço é um roubo.
O capitão decidiu tentar uma última vez:
- Cento e cinquenta, então.
- Feito. - Porcino andou de volta até o capitão, cuspiu na mão e a estendeu.
O capitão pegou a mão dele e os dois se cumprimentaram para selar o acordo. Marcus sentiu uma pontada de alívio - estava quase agradecido ao homem que salvara sua
vida. Deu um sorriso fraco quando Porcino olhou para ele, mas não havia amizade na expressão. Não havia impressão nenhuma de que ele tivesse salvado Marcus movido
por um impulso de altruísmo. Apenas o olhar duro de um homem de negócios, profissional.
- Piso! - Ele estalou os dedos.
Um homem magro de túnica marrom passou pelo círculo de marinheiros que se reuniram para assistir.
Porcino se voltou para ele.
- Leve o menino. Acorrente-o com os demais.
- Sim, amo. - Piso baixou a cabeça.
O capitão, enquanto isso, virou-se para berrar com os homens, ordenou que desfizessem a aglomeração e que aqueles de plantão voltassem ao trabalho. Assim que eles
se dispersaram, o capitão virou para Porcino e disse:
- Vou receber aquele dinheiro antes de aportarmos, hein?
Porcino fez que sim e, com um último olhar gelado para Marcus, o capitão deu meia-volta e retornou mancando para a popa. Porcino não conseguiu evitar um breve sorriso
diante do incômodo do homem, mas o rosto voltou a ficar sério ao se virar para Piso.
- Garanta que o menino fique bem acorrentado. Não quero que ele tente fugir quando chegarmos a Brindes.
- Sim, amo.
Porcino olhou para Marcus.
- E arrume alguma coisa para ele comer e beber.
- Sim, amo.
Porcino bufou:
- Espero que você valha o dinheiro, menino.
Marcus engoliu em seco e respondeu baixinho:
- Obrigado.
- Obrigado? - Porcino riu. - Eu o transformei em um escravo, menino, não em um amigo. Jamais se esqueça disso.
Piso se abaixou e tirou Marcus do convés. Ao ser levado em direção às figuras silenciosas dos escravos acorrentados, Marcus se deu conta de que escapara da morte
apenas para terminar como um escravo mais uma vez.
12
O Bons Ventos chegou a Brindes ao amanhecer dois dias depois. Assim que o sol bateu no convés, o capitão deu a ordem de recolher a vela e o navio passou entre as
embarcações ancoradas. O timoneiro traçou um rumo com cuidado em direção a um ancoradouro vazio enquanto vários marinheiros esperavam com as amarras, prontos para
lançar os cabos untados com alcatrão para os homens que aguardavam no cais.
Marcus ficou de pé com dificuldade e se debruçou na amurada enquanto olhava em volta. Brindes era muito maior do que o porto que eles haviam deixado para trás na
Grécia. Uma enorme cidadela, construída em uma rocha que se projetava para o porto, era ligada à terra firme por um estreito passadiço. Embarcações lotavam a água
nos dois lados da cidadela e uma esquadra de modernos navios de guerra estava ancorada perto da entrada do porto. Em terra firme, os armazéns, templos, edifícios
públicos e prédios de apartamentos apinhados de gente se espalhavam para o interior, oprimidos por uma névoa de fuligem que pairava sobre o porto.
O fedor urbano de esgoto, suor e comida podre que atacou o nariz de Marcus em Durrës era ainda mais forte ali. Ao olhar para a água plácida do porto, Marcus notou
que era coberta por detritos e peixes mortos, e o cadáver inchado de um cachorro boiava na superfície perto do navio. Ele contraiu o nariz e se perguntou como alguém
conseguia suportar viver nas cidades e portos que havia visto desde que saíra da fazenda.
Marcus afastou tais memórias da mente e passou a prestar atenção nas novas companhias. Assim como ele, havia seis homens acorrentados juntos. Eram jovens, saudáveis
e todos comprados por Porcino em mercados de escravos espalhados pela Grécia. Três vinham da Trácia e eram reservados; mantinham uma atitude arrogante em relação
aos outros escravos. Dois eram de Atenas e o último homem vinha de Esparta.
A princípio, eles ignoraram Marcus, quando Piso prendeu as algemas nos tornozelos do menino e depois passou a ponta da corrente pela argola do tornozelo direito.
Mas assim que Piso terminou o serviço e foi embora tomar seu desjejum, pão passado no molho de peixe, o homem mais próximo, um ateniense de nariz achatado, cutucou
Marcus.
- Foi bacana o jeito como você humilhou aquele marinheiro. E o capitão também. - Ele sorriu para Marcus. - Eu sou Pelleneus, de Atenas. - Ele indicou o homem ao
lado com a cabeça, um gigante muito barbudo. - Este é o Phyrus. Ele também é de Atenas.
- Rodes - murmurou o gigante. - Já disse que eu era de Rodes até ser vendido para aquela maldita ateniense. - Ele baixou o olhar e continuou murmurando, mas Marcus
não conseguiu ouvir palavra alguma.
Pelleneus deu uma piscadela.
- Não se importe com ele. O Phyrus tem seus bons momentos, o que é mais do que posso dizer de alguns aqui. - Ele se inclinou para perto de Marcus e continuou baixinho:
- O espartano não fala uma palavra, embora Piso ache que seu nome seja Patroclus. Quanto aos trácios... - Ele deu de ombros. - São reservados. Não falam comigo ou
com o Phyrus. E quanto a você, menino? Qual é o seu nome?
- Marcus Cornelius Primus.
- Um nome romano?
Marcus concordou com a cabeça.
- Meu pai era um centurião.
- Entendi. - Ele concordou com uma expressão travessa. - Então, o que o filho de um centurião romano faz se escondendo no fundo de um cargueiro?
Marcus se perguntou o quanto deveria contar. Não tinha certeza do que aconteceria se descobrissem que era propriedade de Decimus. Decidiu que seria melhor manter
a boca fechada quanto a alguns detalhes do passado até saber mais.
- Meu pai foi assassinado por um agiota. Minha mãe foi sequestrada. Eu escapei. Agora estou procurando o antigo comandante do meu pai para ver se ele pode nos ajudar
a obter justiça.
Pelleneus concordou com simpatia.
- E quem seria esse comandante?
- O general Pompeius.
- O Pompeius? - Pelleneus ergueu as sobrancelhas. - Como Pompeius, o Grande?
- Sim, era assim que meu pai o chamava. Você o conhece, então?
- Como alguém não o conhece? - O ateniense sorriu e depois sacudiu a cabeça. - Bem, jovem Marcus, se você realmente acha que Pompeius, o Grande, se mexeria para
resgatar a família de um de seus antigos oficiais subalternos... então você tem mais fé na justiça romana do que eu.
- Meu pai foi um de seus homens mais corajosos. - Marcus franziu a testa com orgulho ferido. - Um de seus soldados mais confiáveis. Pompeius até mesmo deu a ele
uma espada especial como presente quando se aposentou da legião. Claro que o Pompeius vai nos ajudar. - Marcus olhou para os pés. - Tudo que tenho a fazer é encontrá-lo.
- Hã? - interrompeu Phyrus, sem olhar em volta. - E como você vai fazer isso, moleque? - Ele mexeu o pé para que a corrente tinisse no convés. - Você é um escravo
agora.
- Não - disse Marcus furiosamente. - Seu dono, Porcino, não tinha o direito de me comprar. Vou esperar até sairmos deste navio e depois explicarei tudo para ele.
Talvez haja uma recompensa para ele se me ajudar a encontrar o Pompeius - acrescentou esperançoso.
Pelleneus riu.
- É melhor conhecer o Porcino antes de se encher de esperanças. De qualquer maneira, não acho que ele vá se interessar muito pela sua história.
- Sou um cidadão romano. Isso não pode acontecer comigo.
O ateniense olhou para ele com pesar.
- Já aconteceu. É melhor que você se acostume com isso, rapaz.
Marcus ficou em um silêncio mórbido por um tempo, antes de falar novamente:
- Esse homem, o Porcino. Ele é um mercador de escravos?
Pelleneus balançou a cabeça.
- Não, não é um mercador. O Porcino é um lanista.
- Lanista?
- Um treinador de gladiadores - explicou Pelleneus. - O Porcino dirige uma escola de gladiadores perto de Cápua. De acordo com o Piso, ele é um dos melhores treinadores
do mercado. Quanto a isso, creio eu, você deveria agradecer pelo menos.
- Agradecer? - Marcus mal podia acreditar no que ouvia. Seu pai tinha falado sobre gladiadores e ele sabia do terrível perigo que eles enfrentavam toda vez que pisavam
diante de uma plateia para entretê-la com uma luta sangrenta até a morte. - Por que eu deveria agradecer? Eu fui salvo de afogamento apenas para ser escravizado
em uma escola de gladiadores. Eu não quero morrer na areia de uma arena qualquer. - Ele estremeceu ao pensar nisso.
- Encare desta forma: se você tem que ser treinado como um gladiador, então é melhor que seja pelo melhor dos treinadores. Pode ser a vantagem de que um homem precisa
quando chegar a hora de lutar.
O ateniense podia estar certo, mas Marcus não tinha intenção de ter um lanista como dono por muito tempo para descobrir. Teria que falar com Porcino assim que pudesse
e explicar as injustiças que ocorreram com ele e sua família. Mas, antes de falar com o lanista, seria prudente ver que tipo de homem era Porcino.
- Como ele é?
- O Porcino? - Pelleneus franziu os lábios. - É durão. Tem que ser, depois de ter sobrevivido na arena tempo suficiente para ganhar a liberdade. Mas é um tipo justo.
Se você fizer o que o Porcino manda e for rápido, ele vai tratá-lo bem.
Uma sombra caiu sobre eles, e Marcus ergueu os olhos para ver Piso.
O homem deixou cair um pão velho e um naco de carne seca no colo de Marcus.
- Coma - falou simplesmente, e depois deu meia-volta para ir embora.
Marcus rapidamente atacou o pão, desesperado para matar a fome. Ao mastigar, olhou de lado para os companheiros e torceu para que Pelleneus estivesse errado. Ele
tinha que convencer Porcino a libertá-lo. A vida de sua mãe dependia disso. Apenas ele poderia salvá-la da morte lenta na fazenda de escravos de Decimus.
Assim que o navio estava firmemente ancorado ao lado do cais, o capitão deu a ordem para a rampa ser abaixada e o porão, aberto. Enquanto ele negociava com um dos
chefes dos carregadores do porto para descarregar o navio, Piso veio e trocou as algemas de tornozelo dos escravos por grandes aros de ferro, que foram presos no
pescoço. A coleira era pesada e desconfortável nos ombros de Marcus, mas ele sabia que não deveria reclamar enquanto Piso estivesse em pé diante deles com um pesado
porrete de madeira. Porcino já tinha descido do navio a fim de arrumar as provisões necessárias para a viagem a Cápua. Quando ele retornou, Piso gesticulou para
os prisioneiros acorrentados.
- De pé! Mexam-se!
Marcus respondeu com obediência e rapidez, e os demais arrastaram os pés atrás dele. Quando todos se levantaram, Piso empurrou Marcus na direção da rampa, fazendo
com que o menino tropeçasse assim que a corrente se esticou entre ele e os outros homens. Pelleneus deu um passo à frente bem a tempo de salvar Marcus de cair de
cabeça. Com o tilintar constante das correntes, os sete prisioneiros desceram a rampa arrastando os pés até o cais. Porcino esperava por eles, sentado na sela de
um pequeno cavalo à frente de três mulas carregadas com redes contendo pão e pedaços de peixe salgado cortados de qualquer maneira. Ele tinha uma espada embainhada
na cintura e um porrete pendurado no cabeçote da sela.
Com Porcino à frente e Piso fechando a retaguarda, a pequena coluna de prisioneiros avançou do cais para a rua principal que atravessava o porto. Ninguém olhou duas
vezes enquanto Marcus passava, e ele ficou desanimado ao se dar conta de que nenhuma dessas pessoas iria notar que ele havia sido injustiçado. Aos seus olhos, Marcus
era apenas outro escravo, mais um da enorme quantidade que desembarcava em Brindes no decorrer do ano. O menino imaginou se deveria berrar por socorro - se deveria
gritar todas as injustiças que aconteceram com ele. Porém, no momento em que Marcus diminuiu o passo para reunir coragem e gritar que fora sequestrado, Piso avançou
pela fila e o cutucou com a ponta do porrete.
- Mantenha o passo, menino! Sem corpo mole.
Marcus cambaleou por um curto trecho e depois entrou em um ritmo que os demais prisioneiros também acompanharam ao passar pelos portões da cidade. Após sair de Brindes,
Porcino seguiu pela estrada costeira rumo ao norte. À direita, o mar reluzia convidativo, agora que eles estavam a salvo em terra firme. À esquerda, a paisagem subia
suavemente para uma linha distante de morros. Fazendas e algumas grandes propriedades agrícolas ladeavam a estrada. Perto do porto havia um fluxo constante de tráfego:
carroças grandes e pequenas carregando bens de exportação ou empilhadas de importados vindas de todos os cantos do império.
Quando chegou o anoitecer, eles passaram por 24 marcos quilométricos e Marcus estava exausto. Os pés ardiam pelo passo constante que fora obrigado a manter pela
superfície dura da estrada. Porcino conduziu os prisioneiros ao limite de uma pequena floresta de pinheiros, a uma pequena distância da estrada.
- Vamos passar a noite aqui. Piso, acomode e alimente os escravos.
- Sim, amo.
Marcus e os demais desabaram no chão. Após tirar as botas, Marcus examinou os pés e fez uma careta ao descobrir uma bolha. Se eles marchassem a mesma distância no
dia seguinte e no dia depois dele, ele sabia que passaria por uma agonia.
Pelleneus e os outros escravos se deitaram no chão e descansaram brevemente, até Piso se aproximar com uma cesta retirada das costas de uma das mulas. Ele foi ao
fim da fila, deu a cada escravo um pouco de pão e carne seca e um naco de queijo. Marcus foi o último a ser servido e agradeceu com um breve aceno de cabeça antes
de falar com Piso em voz baixa:
- Eu quero falar com o Porcino.
Piso olhou surpreso para ele.
- Você o quê?
- Eu disse que quero falar com o Porcino.
- Escravos não dão ordens. Portanto, fique calado e coma, hein?
Marcus balançou a cabeça.
- Eu não sou um escravo. Não deveria estar aqui. Quero falar com o Porcino e explicar a situação.
Piso olhou em volta, procurando pelo dono. O lanista armava uma fogueira perto dali, com o corpanzil dobrado sobre os gravetos que estava quebrando e arrumando em
uma massa compacta. Ele sorriu internamente e se virou para Marcus.
- Bem, se você insiste, vou chamá-lo.
- Obrigado. - Marcus sorriu.
Ele se sentou e observou Piso se aproximar do patrão, baixar a cabeça e murmurar algumas palavras que Marcus não ouviu. Porcino olhou por trás de Piso na direção
de Marcus e fez que sim. Depois ele ficou de pé, esticou as costas e foi tranquilamente até os prisioneiros acorrentados.
- Você aí, menino. De pé - falou Porcino calmamente. - O Piso me disse que quer falar comigo.
- Isso mesmo - concordou Marcus. Sua esperança aumentou diante da chance de finalmente explicar a situação complicada. - Veja bem, eu fui sequestrado e...
A mão de Porcino disparou e bateu com força no lado da cabeça de Marcus. A visão do menino explodiu em uma nuvem branca de faíscas brilhantes. Ele cambaleou para
trás e se desequilibrou por conta do golpe. Porcino o atingiu novamente e Marcus caiu sentado, com um gemido. Um punho agarrou seu cabelo e o sacudiu de maneira
dolorosa.
- Quando você falar comigo - rosnou Porcino, no ouvido de Marcus -, me chame de "amo". Se não fizer isso da próxima vez, vou arrancar seus dentes, entendeu?
- Sim - respondeu Marcus, ainda tonto pelos golpes.
A mão torceu seu cabelo com violência.
- Repita!
- Sim, amo.
- Mais alto, menino!
- SIM, AMO!
Imediatamente, Marcus foi solto e caiu de costas, ofegando por causa da dor na cabeça. Porcino ficou sobre ele de punhos cerrados e olhando feio.
- Essa é a última vez que eu sou misericordioso com você. O que quer que você tenha sido antes, agora é meu escravo. Minha propriedade, para eu fazer o que quiser.
Você vai me chamar de amo e fazer o que eu disser imediatamente, sem questionar. Ficou claro?
- Sim, amo.
Porcino franziu os olhos por um momento, depois se empertigou e relaxou as mãos.
- Assim sendo, não vou tolerar mais suas besteiras. Se eu ou o Piso ouvirmos novamente mais uma palavra dessa história ridícula de ter sido sequestrado, vou bater
tanto em você que sua mãe jamais o reconheceria.
Ele se virou e voltou tranquilamente para armar a fogueira. Aterrorizado, Marcus olhou Porcino ir embora. Sentiu um puxão na manga.
- Aqui - falou Pelleneus em um tom gentil, ao passar a comida de Marcus para o menino. - Coma. Você vai precisar de toda sua energia. Temos uma longa jornada pela
frente.
13
Eles continuaram marchando e subindo a costa nos dias seguintes. Toda noite, o grupo parava e Porcino alternava turnos de vigília dos prisioneiros com Piso. Quando
teve chance, Marcus examinou com cuidado a coleira e o elo onde a corrente o prendia aos demais. O ferro era forte e o pino que fechava a coleira tinha sido posto
com firmeza, portanto Marcus não era capaz de soltá-lo de maneira alguma. Finalmente, ele se deu conta de que não conseguiria se livrar da coleira enquanto estivesse
acorrentado aos outros. Teria que ter paciência e esperar até que chegassem ao destino. Quando a coleira saísse, ele poderia voltar a pensar em escapar novamente.
O único consolo que impediu Marcus de afundar em um desespero total era saber que cada passo o deixava mais próximo de Roma e do general Pompeius. Pelo que ouvira
de Piso, a escola de gladiadores do lanista ficava bem ao redor de uma cidade chamada Cápua, na região da Campânia, a apenas 150 quilômetros ao sul de Roma. Se surgisse
a chance de escapar, Marcus tinha confiança de que pelo menos conseguiria chegar à grande cidade sozinho.
No quinto dia depois de saírem do porto, eles chegaram à pequena cidade de Ventulus, onde Porcino saiu da estrada costeira e tomou um caminho para o interior. O
terreno agrícola levemente ondulado logo deu lugar a morros e, depois, montanhas, conforme eles marchavam para o oeste. O verão chegava ao fim e as noites ficaram
frias, tanto que Marcus passou a ter dificuldade para dormir encolhido no chão, com os dentes batendo. Levou um tempo até que os efeitos da exaustão e de um desespero
entorpecedor cada vez maior permitissem que ele finalmente dormisse por algumas horas.
O tempo todo ele remoía uma raiva que ardia lentamente contra Porcino, e jurou para todos os deuses que um dia haveria um acerto de contas. Enquanto isso, evitou
o olhar do lanista e jamais arriscou se dirigir pessoalmente a ele outra vez. Em uma das noites mais frias, quando a estrada cruzou os pontos mais altos das montanhas
que desciam pela espinha dorsal da Itália, Piso acendeu uma fogueira para eles.
Enquanto os prisioneiros ficavam sentados diante do brilho quente das chamas, Marcus pensou pela primeira vez em como o restante de seus companheiros havia chegado
a esse ponto. Talvez todos tivessem histórias tão injustas quanto a sua. Ele se virou para Pelleneus.
- Como você se tornou um dos escravos do Porcino? - perguntou Marcus.
Pelleneus soltou uma risada amarga.
- Você quer saber mais a respeito da vida de um escravo, menino...? Diferente de você, um cidadão romano, eu nasci como escravo em um bordel nas favelas de Atenas.
Fui criado com um bando de outras crianças cujas mães trabalhavam lá. Assim que fiquei velho o suficiente, o escravo que gerenciava o estabelecimento em nome do
proprietário nos mandou para as ruas, a fim de roubar para ele. Joias e outros bens de valor das barracas do mercado. Também roubávamos as bolsas dos cidadãos mais
ricos da cidade enquanto passeavam pelas ruas cheias de gente. - O ateniense riu ao se lembrar, depois a expressão ficou séria ao continuar: - Aí, um dia, minha
mãe rejeitou as investidas do chefe dos escravos. Como resultado, ele se vingou e me perseguiu implacavelmente.
"No fim, perdi o controle. Eu tinha 14 anos quando finalmente enfrentei o escravo e usei os punhos. Foi uma briga curta, na cozinha do bordel, com as mulheres gritando
em pânico em volta enquanto os clientes corriam para se proteger. Eu venci a briga, bati até o homem virar uma massa sangrenta. Bati tanto que ele morreu dos ferimentos
alguns dias depois.
- Você o matou com as próprias mãos? - perguntou Marcus, surpreso.
Pelleneus concordou com a cabeça.
- Não foi a coisa mais inteligente que fiz. Assim que o proprietário soube, ele quis fazer de mim um exemplo. Exigiu que eu fosse condenado à morte. Porém, acontece
que um dos clientes que testemunharam a briga era dono de uma equipe de boxeadores e decidiu que eu tinha potencial. Então ele me comprou e me treinou até eu virar
adulto, e desde então eu luto em competições por todo o Sul da Grécia. Perdi apenas um punhado de lutas em dez anos. Foi durante uma luta montada na festa de um
rico mercador que o Porcino me viu e decidiu que meus talentos seriam mais lucrativos na arena. Ele pagou um alto preço - disse Pelleneus, com um orgulho evidente
de si mesmo. - Agora estou ansioso para lutar diante da plateia de Roma.
Marcus olhou para ele com curiosidade.
- Você quer dizer que, na verdade, quis se tornar um gladiador?
- Por que não?
Marcus não conseguiu evitar o sorriso de surpresa.
- Porque vai colocar a vida em risco toda vez que lutar.
- Eu já estive em lutas antes.
- E, como você disse, não ganhou todas.
- Verdade - reconheceu Pellenus.
- Se você perder uma luta na arena, pode muito bem ser a sua última - opinou Marcus. - Parece que é mais perigoso do que boxe.
- Então o truque é não perder. Se eu treinar duro e aprender o que puder, então terei todas as chances de vencer na arena.
- A não ser que encontre um gladiador melhor.
Pelleneu franziu os lábios.
- Então a questão é lutar bem. Se um homem fizer isso, então a plateia vai querer que seja poupado. Se eu viver por muito tempo e ganhar muitas lutas, haverá recompensas.
- Ele olhou para a fogueira e deu um sorriso desejoso. - Eu posso até ganhar minha liberdade um dia e ter dinheiro suficiente para comprar uma fazenda ou um pequeno
negócio, e viver o resto da vida no conforto.
Marcus não sabia muito da vida de um gladiador, mas o que Pelleneus tinha acabado de falar lhe dera uma ideia. Se ele não conseguisse escapar da situação atual e
fosse condenado a viver como um gladiador, o que aconteceria se sobrevivesse por tempo suficiente para fazer fortuna? Ele poderia retornar à Grécia e comprar a liberdade
da mãe, levá-la de volta para a fazenda e fazer com que as coisas fossem como eram antes de os capangas de Decimus destruírem suas vidas. Se surgisse a oportunidade,
ele então seria um guerreiro bom o suficiente para enfrentar e derrotar aqueles que mataram seu pai. Melhor de tudo, ele encontraria - e mataria - Decimus. Marcus
ficou pensando nessa possibilidade por um tempo, até perceber que a coleira de ferro estava irritando a clavícula e ajeitou a gola da túnica para proteger sua pele.
O incômodo o trouxe de volta à realidade. Fossem quais fossem as ambições de Pelleneus, a verdade daquele momento era que todos eles eram escravos. Eram propriedade
do lanista, Porcino, para ele fazer o que bem quisesse com eles. Ao pensar no assunto, Marcus decidiu que era melhor continuar com o primeiro plano. Por mais difícil
que fosse, ele deveria tentar escapar e encontrar o general Pompeius, em vez de passar anos se preparando para virar um gladiador, e depois mais anos arriscando
a vida na arena, a fim de ganhar a liberdade e riquezas para poder resgatar a mãe, se ela sobrevivesse até lá.
O fogo estava começando a apagar. Os trácios e o espartano já haviam se deitado perto da fogueira para tentar dormir. Com um suspiro profundo, Phyrus fez o mesmo
e se encolheu de lado como uma criança. Em pouco tempo, o ar reverberou com seus roncos graves, mas o sono de Phyrus foi agitado e ele frequentemente se agitava
e murmurava trechos de frases que fizeram pouco sentido para Marcus.
- Qual é a dele? - Marcus indicou o gigante dorminhoco com a cabeça. - Qual é a sua história?
Pelleneus olhou para o companheiro com uma expressão de pena.
- O pobre Phyrus não deveria estar aqui. Ele pode ser forte como um urso, mas não tem o coração de um guerreiro. Temo por ele assim que chegarmos a Cápua e entrarmos
na escola de gladiadores.
- O Porcino deve achar que ele tem potencial - refletiu Marcus. - De outra forma, por que comprá-lo?
Pelleneus olhou em volta para garantir que nem o dono nem Piso estavam ao alcance de ouvir, mas baixou a voz mesmo assim:
- O Porcino vê o tamanho do Phyrus, a força dele, porém não enxerga o homem por dentro. Bem, é mais uma criança do que um homem, creio eu.
- Como o Phyrus acabou sendo comprado pelo Porcino?
Pelleneus recolheu os joelhos e os abraçou com os braços compridos e musculosos.
- Pelo que ele me disse desde que estamos acorrentados juntos, o Phyrus era um pouco mais do que um bebê quando foi trazido para Atenas. Ele era propriedade de um
mercador de escravos grego e cresceu como um escravo doméstico, até que o mercador e a esposa tiveram um filho. O Phyrus se tornou o criado da criança. Ele carinhosamente
criou o menino e o amava como a um irmão. No entanto, à medida que a criança cresceu e começou a devolver o carinho do Phyrus, a mãe ficou com ciúmes e exigiu que
ele fosse vendido. O pai não queria saber dessa história. Ele via o quanto o Phyrus significava para o filho e sabia que o menino ficaria magoado. Então, pelo que
eu entendi, a mãe alegou um dia que seu bracelete mais precioso tinha sido roubado. Ela insistiu que a casa inteira fosse vasculhada de cima a baixo. - Pelleneus
olhou para Marcus e deu um sorriso triste. - Você pode imaginar o que aconteceu.
Marcus pensou um pouco e depois concordou com a cabeça.
- Eles acharam o bracelete nos aposentos do Phyrus?
- Sim, debaixo do colchonete. A mãe convenceu o marido a vender o Phyrus. Ele ficou magoado por deixar o menino. Foi leiloado no mercado de escravos de Atenas. O
Phyrus se destacou entre os demais escravos à venda, como você pode imaginar. O Porcino ficou impressionado o suficiente para comprá-lo. - Ele olhou para Phyrus.
- Eu duvido que ele machucaria uma mosca se pudesse. Temo por ele. Duvido que sobreviva por muito tempo assim que chegarmos à escola de gladiadores, a não ser que
ele aprenda a lutar.
Marcus pensou por um momento ao abraçar os joelhos. Desde que fora levado da fazenda, ele havia estado concentrado nos próprios problemas. Apenas a injustiça cometida
contra ele e sua família importava. Era como se o resto do mundo fosse um lugar insensível, cheio de gente que não sabia de sua dor. Ele pensou que seu sofrimento
era a pior coisa que poderia acontecer com alguém. Se outras pessoas simplesmente ouvissem a história, elas também pensariam assim e fariam o possível para corrigir
uma injustiça tão monstruosa.
Agora Marcus entendeu que o mundo estava repleto de injustiças e que outros, como Phyrus, sofriam também. Ele não era um caso especial, selecionado pelos deuses
para sofrer as mais cruéis tristezas e maldades. Havia outros com histórias similares que carregavam seus fardos. Marcus não tinha muita certeza de como se sentia
quanto a isso. A ideia de que mais pessoas sofriam como ele o deixou atônito e horrorizado. No entanto, apesar disso, pela primeira vez desde que fora capturado
pelos capangas de Decimus, sentiu que não estava sozinho. Era um pequeno alívio.
Ele ergueu a cabeça e falou suavemente:
- E quanto aos outros? Os trácios e o espartano?
Pelleneus coçou o queixo.
- Eu não sei quase nada sobre eles, apenas o que o Piso me contou, e não foram mais do que alguns comentários. Os trácios faziam parte de uma quadrilha de bandoleiros
que foi perseguida e destruída por uma coluna romana. O espartano... bem, ele é meio misterioso. O Piso diz que ele é um pária. Caiu em desgraça entre seu povo e
foi condenado à escravidão.
- Caiu em desgraça? Como?
- Quem sabe? - Pelleneus deu de ombros e olhou com cuidado para o espartano, que dormia, antes de continuar: - Eles não são civilizados como nós, atenienses. Os
espartanos são um povo irascível. Ainda acham que são a nação mais valente da Grécia. Ainda hoje eles criam os jovens como se a única coisa que importasse na vida
fosse ser valente e ir para a guerra. Vai ver que ele apenas olhou torto para a esposa de alguém. Ou talvez não quis enfrentar lobos com as mãos atadas às costas
e ficou marcado como um covarde. - Pelleneus deu um rápido sorriso para mostrar que estava brincando. - De qualquer forma, ele não fala a respeito. Não fala sobre
coisa alguma, para dizer a verdade. Só abre a boca quando o Porcino ou o Piso se dirigem a ele, e ainda assim apenas em frases de uma palavra só. Parece que os espartanos
não são chegados a conversa-fiada.
- Mas os espartanos sabem lutar - respondeu Marcus. - Meu pai me disse isso. Contou que, quando serviu no exército de Pompeius, eles lutaram ao lado de alguns mercenários
espartanos. Os homens mais valentes que ele jamais tinha visto. - Marcus se lembrou do tom de admiração na voz do pai quando falara dos espartanos. - E os mais destemidos.
- Bem, nosso amigo espartano vai precisar dessas qualidades se quiser sobreviver na arena - refletiu Pelleneus. - Claro que vai precisar de outras qualidades também.
Reflexos apurados e raciocínio rápido. E raciocinar não é fácil para um espartano.
- Nem dormir - rosnou uma voz grossa. - Não quando um ateniense qualquer mantém a pessoa acordada a noite inteira com o seu falatório.
Pelleneus se assustou, e em seguida ele e Marcus olharam através da fogueira fraca para o lugar onde o espartano estava deitado, de olhos abertos. Ele os fechou
novamente, sem dizer mais nada, e ficou imóvel. Os demais observaram o espartano por um momento, sem saber se ele estava acordado ou dormindo. Finalmente Pelleneus
murmurou:
- Melhor descansar. Com certeza teremos outro longo dia de marcha amanhã.
Marcus fez que sim, ainda observando o espartano. Depois se deitou de lado, virado de costas para o fogo o mais perto que conseguiu suportar. Por um tempo, pensou
nos companheiros. A maioria era composta por homens brutos com experiência em combate. Havia muito que Marcus podia aprender com eles. E estava começando a se dar
conta de que teria que aprender rápido para sobreviver, se tivesse que começar uma nova vida na escola de gladiadores de Porcino.
14
No dia seguinte, eles deixaram as montanhas para trás e desceram para a planície da Campânia. Uma enorme extensão de terras agrícolas se abriu diante deles, e Marcus
ficou impressionado com o número de grandes fazendas e vilas que conseguia ver do pé do morro. Os romanos da Itália eram claramente tão ricos quanto ele tinha ouvido
falar quando o pai contara sobre suas viagens pelo coração do império.
A vista também acelerou o coração de Piso, que ergueu o porrete e apontou para a planície.
- Lá está Cápua. A casa de todos nós agora, meninos!
Marcus tentou acompanhar a direção que Piso indicou, mas ele viu várias cidades na planície e, ao longe, a massa gigante de uma grande montanha apareceu como uma
vaga silhueta contra o horizonte.
- O que é aquilo? - perguntou ao apontar.
- A montanha? Aquele é o velho pai Vesúvio. Alguns dos melhores vinhos de toda a Itália são feitos com as uvas que crescem em suas encostas. Uma vista e tanto, hein,
menino? Você vai se acostumar com ela. Dá para ver a montanha claramente da escola de gladiadores.
O tom da voz de Piso era alegre, e Marcus se deu conta de que aquela era a primeira vez que tinha visto o escravo de bom humor. Ele se virou e ergueu uma sobrancelha
para Pelleneus. O ateniense respondeu com um sorriso:
- Você está animado nesta manhã, Piso.
- Claro. Estou voltando para casa. Não vejo minha esposa e as meninas há mais de quatro meses.
- Você tem uma esposa?
- Sim. - Piso olhou com desdém para Pelleneus. - E daí?
- Nada. É apenas um lado seu que eu nunca tinha visto antes. Só isso.
Piso voltou a fazer a expressão mal-humorada de sempre.
- Aumentem o passo aí. Nada de corpo mole! O amo quer chegar à escola antes do anoitecer. Andem!
Os escravos acorrentados aumentaram o ritmo, enquanto Porcino cavalgava a cerca de 20 passos à frente, mastigando casualmente uma maçã.
Quando eles desceram das colinas, a estrada desgastada deu lugar a uma superfície pavimentada que cruzava a planície em uma linha reta. O ar esteve quente na maior
parte do dia, mas no fim da tarde o céu ficou nublado, a atmosfera esquentou e ficou pesada, e os prisioneiros suaram em bicas instigados por Piso a manterem o ritmo.
Conforme o anoitecer avançava pela paisagem, surgiu o brilho de um raio ao longe, na direção do Vesúvio, e uma lufada de brisa mexeu o cabelo de Marcus e refrescou
seu rosto. Logo após o grupo passar por um marco quilométrico a uma pequena distância de Cápua, Porcino saiu da estrada principal e conduziu os prisioneiros por
uma alameda estreita ladeada por choupos. Os primeiros pingos de chuva começaram a cair quando eles chegaram ao fim da alameda. O caminho fazia uma descida suave
para um vale. Diante deles, na penumbra, Marcus viu a escola de gladiadores.
Um muro de argamassa com três metros de altura rodeava um enorme complexo de construções, cercados e áreas de treinamento. Bem do lado de fora do muro ficava uma
arena oval de madeira, talvez com 30 metros de diâmetro, ligada à escola por uma passagem coberta. Atrás da arena havia alguns estábulos e jaulas grandes, e na mais
próxima Marcus viu a silhueta cinzenta de um lobo, trotando sem parar de um lado para o outro atrás das grades. A uma curta distância se estendia uma grande vila
com um pátio jardinado, onde, Marcus imaginou, Porcino deveria morar. Em cada canto do muro havia uma torre maciça onde guardas vigiavam a escola de gladiadores
e seus prisioneiros.
Porcino conduziu a pequena coluna pelo vale ao portão principal da escola de gladiadores. Uma porta pesada de madeira, trancada por fora, tapava um arco grande o
bastante para deixar passar um carroção coberto. Assim que o lanista se aproximou, seis guardas surgiram de uma porta ao lado do portão. Marcus notou que cada homem
usava elmo e loriga de escamas com uma espada embainhada a tiracolo. Aos seus olhos, pareciam-se com soldados. Ficou claro que Porcino vigiava seus gladiadores rigorosamente.
Marcus pensou que a escola de gladiadores provavelmente seria mais bem descrita como uma prisão.
Os guardas empurraram a barra de madeira pesada sobre os apoios de ferro presos à porta e enfiaram a viga no vão da portaria antes de abri-lo. Depois, ficaram de
lado e abaixaram a cabeça enquanto o patrão passou montado. Assim que o final da fila de prisioneiros entrou, o portão foi fechado e houve um rangido grave quando
a barra de madeira foi posta novamente no lugar, trancando o portão.
Marcus olhou em volta e viu que eles estavam passando entre duas construções baixas. Um cheiro provocante de comida saiu de uma porta aberta e, lá dentro, Marcus
viu um punhado de escravos jogando verduras cortadas e pedaços de carne em caldeirões fumegantes. Do outro lado havia um depósito protegido por sólidas barras de
ferro. No interior, em prateleiras e ganchos, estava uma grande variedade de armas: espadas, lanças, tridentes, adagas, machados e maças, com versões de madeira
das mesmas armas ao lado. A visão de tantas armas letais fez Marcus recuar ao imaginar o estrago que elas poderiam fazer em seus ossos e carne. O próximo depósito
continha armaduras: elmos, escudos, braceleiras, grevas e peitorais meticulosamente arrumados em prateleiras.
Porcino conduziu o grupo pelo espaço entre as construções até uma área de treinamento aberta onde o solo era feito de terra batida coberta com cascalho fino. Ele
parou o cavalo e se virou para encarar os prisioneiros, que arrastaram os pés até pararem. Eles ficaram enfileirados e acorrentados enquanto eram observados pelo
lanista por um momento. A chuva começou a cair pra valer. Marcus e os demais rapidamente ficaram ensopados, enquanto permaneciam em silêncio e aguardavam que o lanista
se dirigisse a eles.
Porcino ficou sentado ereto na sala, tomou fôlego e falou alto para ser ouvido acima do barulho da chuva:
- Este é o seu novo lar - anunciou, com um gesto do braço. - Este é o único lar que vocês têm de agora em diante. Seu local de origem não é mais do que uma lembrança
e será mais fácil se tentarem esquecer a vida passada. Tudo isso morreu para vocês agora. Tudo que resta é aprender a lutar e sobreviver. Se dominarem essas habilidades,
poderão viver por muitos anos, e alguns de vocês poderão ganhar a liberdade um dia. Não vou fingir e dizer que as chances estão do seu lado. Não estão. A maioria
daqueles que cruzam os portões da minha escola de gladiadores vai encontrar a morte na arena. Alguns irão morrer aqui, enquanto estão sendo treinados. É uma vida
dura. Vocês serão levados à exaustão. Aprenderão a suportar a dor. Aprenderão a lutar com todas as habilidades de um guerreiro de elite. É desnecessário dizer que
será um processo longo e difícil. Se sobreviverem e obtiverem sucesso, vocês irão lutar, e talvez morrer, como homens de verdade. Se falharem aqui, então resta apenas
a morte na areia ou a morte em vida como aleijados patéticos e derrotados, para aqueles que tiverem a sorte de ser vendidos para um novo dono.
Porcino fez uma pausa para que suas palavras fizessem efeito, depois continuou no mesmo tom severo:
- Suas vidas seguirão regras rígidas. Desobedeçam por sua conta e risco. Vocês serão chicoteados por pequenas desobediências das regras. Se erguerem o punho contra
qualquer um dos treinadores ou tentarem escapar, ou se forem ouvidos tramando contra mim ou meus treinadores, vocês serão espancados até a morte por seus colegas
alunos. Trabalhem duro e nos obedeçam, e vocês serão recompensados de tempos em tempos. Aprendam tudo o que puderem e usem bem o conhecimento, e no fim das contas
vocês poderão ser recompensados com fama, glória e riquezas que jamais teriam ganhado como homens livres. Pensem nisso hoje à noite, e de manhã o treinamento começa.
Marcus estremeceu. Era isso. E não haveria escapatória.
Ao se voltar para Piso, Porcino acenou com a cabeça.
- Retire as algemas. Leve-os para os alojamentos. Dê-lhes comida e novas túnicas.
- Sim, amo.
Piso baixou a cabeça enquanto Porcino deu meia-volta com o cavalo e retornou para o portão. Ele foi até a fila de prisioneiros e tirou o martelinho do bornal. Começou
pela outra ponta da fila e Marcus foi obrigado a assistir enquanto a chuva caía forte. A última luz tinha sumido do céu e agora só havia o tênue brilho da lua, que
aparecia de maneira intermitente entre as nuvens que deslizavam pelo céu. Nas torres de vigia e ao redor das construções, escravos estavam ocupados acendendo tochas
e braseiros, que forneceriam alguma iluminação para o complexo durante a noite.
Marcus ficou encharcado e tremendo enquanto permaneceu parado ouvindo os golpes agudos e ressonantes de Piso arrancando os pinos que fechavam as coleiras de cada
prisioneiro. Um após o outro, eles esfregaram o pescoço e os ombros onde as coleiras de ferro fizeram peso sobre a pele. Finalmente, Piso terminou com Pelleneus
e se dirigiu para Marcus:
- Incline a cabeça para o lado - ordenou Piso.
Marcus obedeceu e se contraiu um pouco quando Piso pegou a coleira com grosseria e tateou à procura do fecho na penumbra. O primeiro golpe soou tão próximo da orelha
de Marcus que o impacto ressonante pareceu ter ocorrido dentro de sua cabeça. Ele não conseguiu evitar contrair a cabeça e os ombros para o lado.
- Fique parado! - rosnou Piso, ao puxar a coleira para Marcus voltar à posição.
- Ai!
- Silêncio, menino.
Houve uma pausa tensa quando Piso encontrou o pino novamente e preparou o próximo golpe. Desta vez, Marcus estava esperando o impacto e o clangor ensurdecedor no
ouvido. Ele ainda se contraiu, mas conseguiu manter o corpo e a cabeça parados quando Piso tirou o pino a marteladas.
- Pronto. - Piso deu um passo para trás com o martelo em uma das mãos e a coleira na outra.
Marcus tinha se acostumado com o peso da coleira de ferro e agora aproveitou a sensação súbita de leveza. Ele ergueu a mão e esfregou suavemente a pele onde o metal
havia ficado apoiado.
- Obrigado.
Piso recolheu as coleiras e a corrente, e acenou com a cabeça para Marcus e os demais parados na chuva.
- Muito bem, sigam-me!
Ele se virou e atravessou o pátio de treinamento em direção a dois edifícios compridos e baixos. O mais próximo era o maior da dupla e tinha uma cobertura apoiada
por uma colunata à frente. Portas se abriam em intervalos regulares pela extensão da construção. Os recém-chegados passaram por um punhado de homens corpulentos
reunidos ao redor de uma mesa onde dividiam um jarro de vinho. Um deles ergueu uma taça para Piso.
- Rapaziada nova, hein?
Piso não respondeu e passou direto com uma careta de desdém enquanto o homem continuou:
- Aqueles prestes a morrer os saúdam!
Seus companheiros irromperam em uma gargalhada bem-humorada.
Marcus olhou para os homens ao passar. Eles estavam em excelente condição física e tinham braços muito musculosos. Alguns possuíam cicatrizes no rosto e um estava
com muitas bandagens em volta do bíceps. O coração de Marcus acelerou quando percebeu que eles deviam ser gladiadores, a elite de combate do mundo romano.
- Marcus! - disparou Piso. - Não faça corpo mole, menino, ou vou deixá-lo na chuva a noite inteira.
Marcus correu para alcançar os demais. Alguns dos quartos eram iluminados por lamparinas a óleo, e ele viu de relance aposentos simples, mas que pareciam confortáveis.
- Não me parece uma vida tão dura assim - murmurou Phyrus para Pelleneus. - Pensei que os gladiadores não tivessem moleza.
- Eu também - respondeu o colega ateniense, em um tom intrigado.
Piso deu uma risada desagradável ao ouvir a breve conversa.
- Esse é o alojamento dos gladiadores que terminaram o treinamento. Eles conquistaram privilégios. Vocês estão começando por baixo com o resto dos alunos. Por aqui,
vamos!
Ele conduziu o grupo além dos alojamentos para o segundo edifício. Era uma estrutura bem mais simples, sem portas nas laterais, sem cobertura, apoiada em uma colunata
e com apenas um punhado de janelas. Havia uma grande porta em uma ponta, guarnecida por dois guardas em armadura completa como aqueles no portão principal. Ao lado
da porta havia fileiras de ganchos onde estavam penduradas correntes e coleiras. Piso pousou os bornais ao lado da porta e acenou com a cabeça para um dos guardas.
- Abra a porta. Depois traga comida.
O guarda fez que sim e deu uma olhadela por uma pequena grade antes de inserir a chave na fechadura e girá-la. Após abrir a porta o suficiente para deixar Piso e
os demais entrarem, o guarda foi para o lado enquanto eles passaram e depois fechou a porta. O interior era formado por um único salão comprido com baias em cada
uma das paredes. Uma tocha ardia em um suporte no alto de cada ponta do prédio. A luz difusa foi suficiente para que Marcus notasse que não havia camas ou colchonetes
nas baias, apenas palha. Na passarela entre as baias havia uma grande banheira e uma latrina com seis assentos sobre uma vala que corria pela parede do fundo. Figuras
difusas se mexeram ao longo do edifício para inspecionar os recém-chegados.
Piso apontou para duas das baias vazias perto da porta.
- Os trácios na primeira baia. O espartano, os atenienses e o menino na segunda. - Ele apontou para a banheira e as latrinas. - Vocês têm tudo de que precisam aqui
e duas refeições por dia. Este é seu lar até, ou se, vocês passarem pelo treino físico básico e com armas. Melhor que durmam o máximo possível antes que o treinamento
comece amanhã.
Ele se virou e bateu na porta. O guarda abriu e entregou dois sacos rústicos para Piso.
- Seu jantar! - Piso sorriu e atirou um saco para os trácios e outro para Phyrus, que se atrapalhou ao tentar pegá-lo. Pelleneus pegou o saco para ele. - Boa noite,
rapaziada.
A porta se fechou quando ele saiu e depois a fechadura foi trancada. Marcus seguiu os companheiros à baia que Piso havia indicado e viu os outros prisioneiros olhando
desconfiados para eles. Não houve tentativa de saudar os recém-chegados, nem sinal de que eram considerados companheiros de alguma forma. Apenas expressões vazias
e um silêncio triste e melancólico. Lá fora, a chuva martelava as telhas e, onde a água dava um jeito de entrar, ela pingava sobre os escravos em um ritmo constante
e miserável. Quando chegaram à baia designada para eles, Marcus e os demais desabaram sobre a palha. Pelleneus abriu o saco, meteu a mão e encontrou vários pedaços
de pão velho, duro e nada apetitoso, que dividiu com todos. Marcus desabou novamente no canto da baia e mastigou devagar, enquanto os dentes batiam e o corpo molhado
tremia incontrolavelmente.
Marcus decidiu que precisava sair dali. Deveria haver alguma maneira de escapar, um jeito qualquer de fugir desse terrível lugar e continuar sua missão de chegar
a Roma e encontrar o general Pompeius. Antes que fosse tarde demais para salvar sua mãe.
15
Um barulho forte acabou com o sono de Marcus. Ele levantou de supetão e fez uma careta ao sentir o pescoço, os braços e as pernas duros. Marcus pestanejou, olhou
em volta e viu que os companheiros também se remexiam.
- Que confusão é essa, em nome de Hades? - resmungou Phyrus enquanto se sentava, esfregando o rosto.
Marcus olhou em volta e viu os outros ocupantes do prédio saírem rolando das baias e correrem para a porta principal. Com um barulho da fechadura, a porta rangeu
nas dobradiças ao ser aberta pelos guardas do lado de fora. Um deles estava segurando um sino e batendo nele com a lateral da espada.
- Andem! - vociferou o guarda. - O último homem a sair leva uma surra!
- Vamos! - Pelleneus se levantou, trazendo Marcus com ele. - Depressa, Phyrus!
Eles saíram correndo da baia e se misturaram à onda de corpos que ia em direção à porta. A maioria dos outros prisioneiros era de homens, mas havia alguns meninos
entre eles, da idade de Marcus e mais velhos. Ele viu os trácios logo adiante, se enfiando entre a multidão compactada ao redor da porta. Logo os trácios se perderam
no meio das figuras altas dos adultos espremidos em volta de Marcus. Ele sentiu uma pontada de medo. E se caísse agora? Tinha certeza de que seria esmagado. Marcus
agarrou a túnica de Phyrus e avançou ao lado de seu corpanzil.
- Mas o quê...? - Phyrus olhou para trás com desprezo. Então ele viu Marcus e passou o braço pelo corpo do menino em um gesto protetor. - Fique perto e de pé - rosnou
ao avançar. - Eu vou proteger você, rapaz.
Juntos, eles se moveram lentamente em direção à porta. Espremido contra os outros, Marcus sentiu o cheiro do suor e da sujeira. Percebeu o medo dos prisioneiros
enquanto cada um lutava para que não fosse o último homem a sair pela porta. Então a esquadria de madeira surgiu à frente, delineando o céu claro da manhã. Havia
apenas um punhado de homens atrás de Marcus e Phyrus e, assim que passou pela porta, o menino se virou para trás e viu o espartano parado fora da baia, olhando os
últimos que lutavam para sair. Ele tinha uma expressão de desdém no rosto enquanto andava devagar em direção à porta.
- Não fique parado aí, rapaz!
Phyrus o empurrou para a frente e Marcus se virou para ver que o resto dos escravos fazia uma fila diante do cárcere. Um homem alto, de rosto severo, com um corpo
magro e musculoso estava parado, olhando feio para os escravos que se enfileiravam. Ele usava um colete de couro sobre uma túnica vermelha, braceleiras de couro
e pesadas botas militares como aquelas que o pai de Marcus preferia. O sujeito batia com uma vara de videira no calcanhar enquanto permanecia parado, observando.
Piso se aproximou com uma grande tábula e parou ao lado do homem, na altura de seu ombro. Marcus olhou desconfiado para o sujeito enquanto seguia Phyrus e entrou
na fila ao lado de Pelleneus. O menino ficou esperando os últimos ocupantes entrarem no fim da fila correndo. Houve uma pequena pausa antes de o espartano sair pela
porta e andar calmamente até a fila.
O homem que estava observando os prisioneiros se reunirem avançou com uma expressão furiosa. Ele parou bem em frente ao espartano e quase enfiou o rosto em seu nariz.
- Você chama isto de pressa? - vociferou o homem em latim. - Quando tocar o alarme matinal, você sai correndo para cá o mais rápido possível. Você me entendeu?
O espartano apenas devolveu o olhar sem sinal algum de medo ou mesmo de interesse.
O outro homem deu meia-volta.
- Piso! Venha aqui, depressa!
Piso chegou correndo.
- Sim, centurião Taurus?
- Quem é esse homenzinho horrível? - Ele apontou para o espartano. - Ele veio no novo lote que o Porcino trouxe?
- Sim, senhor. Eles fazem parte do último lote da nova aquisição. O amo comprou esse aí em um leilão em Esparta. O nome é Patroclus.
- Esparta, é? - Taurus se virou para o homem e apoiou a mão na cintura enquanto segurava a vara com força na outra. - Deve achar que é valente. Ele fala latim?
Piso concordou com a cabeça.
- É o que imagino, senhor. Mas ele mal falou uma palavra comigo desde que o amo o trouxe, e ainda assim apenas em grego.
- Entendo - falou Taurus com desdém para o espartano. - Pois é, imagino que você se ache a reencarnação do maldito rei Leônidas, pelo jeito que saiu calmamente da
cela. E então?
O espartano olhou para a frente em completo silêncio. Taurus subitamente bateu com a ponta da vara no estômago do homem. Patroclus dobrou o corpo com um violento
gemido.
- Como você ousa se recusar a responder? - vociferou Taurus. - Como ousa entrar no meu pátio de treinamento sem nenhum cuidado? Isso é inadmissível! - Ele golpeou
com a vara e acertou o espartano no ombro. Marcus se contraiu ao ouvir o estalo do golpe a apenas poucos passos à direita. Arriscou uma olhadela de lado e viu que
o espartano estava de joelhos. Patroclus cerrou os dentes, depois ficou de pé devagar e novamente encarou o agressor.
- Não foi forte o suficiente? - Taurus bateu forte na cara do espartano com as costas da mão e, em seguida, deu-lhe outro tapa.
Patroclus pestanejou, mas o rosto permaneceu impassível quando abriu a boca para cuspir um pouco de sangue.
- Arre! - rosnou Taurus. - Eu vou colocar você no seu devido lugar em breve, meu amigo. Vai ver só. Bem, agora... - Ele deu um passo para trás e percorreu a fila
com o olhar. Marcus demorou um pouco para virar o rosto, o que chamou a atenção do homem. Em um instante, Taurus disparou para cima dele e cutucou seu peito com
a vara, obrigando o menino a recuar.
- O que é isso? - Ele olhou para Piso. - O Porcino planeja uma luta entre pigmeus?
Piso e os outros guardas riram por educação, enquanto Taurus voltava sua atenção para Marcus.
- Nome?
- Marcus Cornelius, senhor - respondeu e, após pensar rápido, acrescentou: - Filho do centurião Titus Cornelius, da Décima Sexta Legião.
Taurus franziu a testa.
- Seu pai era um soldado?
- Um centurião, senhor.
- E agora você é um escravo, hein? - falou Taurus com desprezo. - Que ironia do destino. Deu azar, menino. De agora em diante você será simplesmente Marcus. Esse
será seu único nome até arrumarmos um nome de guerra para você, se viver tanto assim.
Ele estava prestes a prosseguir, mas Marcus não pôde acreditar que a chance de explicar a injustiça de sua situação estava escapando.
- Espere!
Taurus travou.
- O quê? Você disse alguma coisa?
- Eu não deveria estar aqui - falou Marcus, depressa. - Fui ilegalmente capturado e vendido como escravo.
Ele jamais viu o golpe, apenas sentiu a cabeça virar bruscamente quando Taurus o acertou. Marcus cambaleou para o lado, tonto, enquanto o homem berrava na sua cara:
- Nunca, jamais fale quando não for a sua vez, escravo! Está me ouvindo? Estou pouco me lixando para quem é o seu pai ou qual possa ser a sua história. Entendeu?
Você é um escravo, a escória do mundo, e odeio olhar para a sua cara. Sua única esperança agora é que eu permita que se torne um gladiador um dia. Até lá, você não
é nada. E vai me chamar de amo sempre que lhe mandarem falar. Compreendeu?
- Sim... amo - disse Marcus, sem pensar. A cabeça ainda latejava e ele se sentiu tonto a ponto de vomitar. Lutou contra a náusea enquanto cambaleava.
- Assim está melhor. - Taurus se afastou e voltou para o centro do pátio de treinamento para se dirigir à fila de homens. - Agora que estamos todos aqui, o treinamento
vai ter início. Vou começar com algumas apresentações... Sou Aulus Tullius Taurus, seu instrutor-chefe de treinamento. Eu matei soldados antes de treinar escravos,
e antes disso estava ocupado matando bárbaros em nome de Roma. Vou treiná-los para se tornarem matadores com o tempo. Antes disso, terão que entrar em forma e se
tornar destemidos, portanto vou exigir de vocês até que caiam e vou bater em quem reclamar ou ficar para trás, como nosso tolo amigo espartano ali. De tempos em
tempos, vocês terão a honra da presença do Porcino, o lanista dono desta escola. Não se dirigirão a ele, a não ser que ele fale com vocês primeiro. E vão chamá-lo
de amo. Agora, este aqui é o meu assistente, Piso. Ele é um escravo, porém, diferente de vocês aí, o Piso mostrou quem era na arena. Ele está encarregado de distribuir
equipamentos, rações e recompensas, portanto o tratem bem. - Taurus se virou para indicar quatro homens parados ao lado. - Esses homens são seus instrutores. A mim
vocês chamarão de amo. O Piso e os instrutores me chamam de senhor, e vocês os chamarão de senhor. Se falharem em obedecer a essa regra simples, vocês serão espancados.
Só existem duas outras regras aqui. Façam exatamente o que for mandado e façam imediatamente. Desobediência ou hesitação serão punidas sem piedade.
Ele fez uma pausa para garantir que todo mundo tivesse tempo para captar a mensagem.
- Pelos próximos quatro meses, vocês serão treinados para ganhar força e aumentar a forma física. Depois disso, começarão o treinamento básico com armas. Eu observarei
com atenção e, em mais quatro meses, escolherei suas especializações de combate. Alguns lutarão como infantaria pesada. Alguns usarão armas leves. Outros serão treinados
para lutar com animais. Os mais jovens trabalharão na cozinha e limpeza até eu decidir que estejam grandes o suficiente para lidar com armas. Quando estiverem prontos
para suas primeiras lutas de verdade, aí vocês serão retirados do quartel dos recrutas para alojamentos mais confortáveis. Ao trabalho, então. - Ele terminou abruptamente
e estalou os dedos para chamar Piso para o seu lado. - Hora de distribuir os grupos de treinamento.
- Sim, senhor.
Enquanto Piso abria uma tábula e pegava seu estilo de latão, quatro instrutores chegaram correndo e pararam afastados diante da fila de escravos. Marcus olhou o
quarteto com uma expressão vaga enquanto a mente era tomada por lembranças tristes da vida na fazenda perto de Nidri. Naquela época, ele fora amado e cuidado, era
feliz. Agora estava sujeito à disciplina cruel da escola de gladiadores e imaginou por quanto tempo conseguiria suportar a terrível nova vida. Taurus e Piso foram
até o fim da fila e começaram a avançar por ela. Taurus parou diante de cada homem e menino, examinou-os brevemente e depois disse a Piso para que grupo iriam. Quando
chegou aos trácios, Marcus viu Taurus apertar os ombros e braços dos homens, e depois examinar mãos e pernas.
- Armas leves - decidiu, e seguiu para Phyrus. - Pelos deuses, este aqui parece um urso. Já matou alguém com estas enormes patas que você tem?
- Não, amo - murmurou Phyrus.
- Uma pena. Mas vai matar em breve. Infantaria pesada, sem dúvida alguma.
Taurus prosseguiu para examinar Pelleneus, após dar uma olhadela na tábula que Piso lhe mostrou. O ateniense ficou imóvel enquanto era apalpado. Taurus deu um passo
para trás e o avaliou enquanto coçava o queixo.
- Músculos em boas condições, como é de esperar de um boxeador. E imagino que seja ágil. Pode tanto dar um bom secutor como um retiarius. Hum. Coloque-o no grupo
misto por enquanto.
Piso concordou com a cabeça e fez uma rápida anotação, enquanto Taurus foi para Marcus. O menino olhou reto para a frente, sem ousar mostrar qualquer gesto de rebeldia
que pudesse render um novo golpe do instrutor.
- Ah, aqui está o filho do centurião novamente. - Taurus inclinou o corpo para a frente e apertou o ombro de Marcus com a força de um torniquete, enquanto falou
em tom de deboche: - O que fazer? Torná-lo um lutador da infantaria pesada, talvez? Só que ele desmoronaria debaixo do peso da armadura. Um retiarius? Não, ele apenas
enrolaria os pés na rede. Bem, então o coloque na turma juvenil. Por enquanto, ele só presta para isso.
- Sim, senhor.
Marcus sentiu o rosto arder de vergonha e adoraria ter dito para Taurus onde ele poderia enfiar suas opiniões. Mas manteve a boca bem fechada e olhou reto para a
frente enquanto controlava a raiva.
Quando Taurus chegou ao fim da fila, ele deu uma nova olhadela rápida para o espartano e ofereceu o veredicto:
- Grupo misto. Se viver por muito tempo, duvido que esse aí jamais seja bom para qualquer outra coisa que não lutar com animais.
- Eu luto com o senhor, amo - respondeu o espartano com frieza. - Agora, se tiver coragem suficiente.
- Lutar comigo? - Taurus pareceu se divertir. - Creio que não. Se você sequer erguesse a mão contra mim, eu mandaria crucificá-lo em pouco tempo. Melhor que se lembre
disso. - Taurus fez uma pausa e depois falou alto para que todos os novos recrutas da escola de gladiadores o ouvissem: - Isso serve para todos vocês! O único destino
que aguarda qualquer um que me agrida, ou a qualquer integrante da minha equipe de instrutores, é uma morte lenta e agonizante. Não há segunda chance para um gladiador.
Lembrem-se bem disso e serão capazes de viver. Caso contrário, certamente morrerão. - Ele acrescentou em tom sombrio: - Estão dispensados!
16
Havia outros 23 meninos na turma juvenil sob o comando de um velho instrutor encarquilhado chamado Amatus. Magro e musculoso, Amatus havia lutado como um retiarius
por 15 anos. Ganhara a maioria das lutas, e fora poupado pelo público nas poucas que perdera, mas não fora capaz de se distinguir o suficiente para ganhar a fama
e as recompensas que alguns dos seus contemporâneos conseguiram. Portanto, ele decidiu passar o resto da vida como um escravo, ensinando novos recrutas na escola
de gladiadores de Porcino.
Marcus era um dos mais jovens na turma. Ele podia ser novo, mas, tendo sido criado em uma fazenda e encorajado pelo pai a se exercitar regularmente, era forte e
estava em forma para a idade. Os outros meninos vinham de todas as partes do império, tinham pele e feições diferentes, e Marcus conseguia entender apenas alguns
deles, que falavam latim ou grego. Todos chegaram à escola no último mês e já havia uma hierarquia estabelecida.
O autoproclamado líder do grupo era um menino grande, um celta chamado Ferax, vindo de uma das tribos que moravam perto dos Alpes. Era três ou quatro anos mais velho
do que Marcus, e muito mais alto e largo. Falava latim com um sotaque rústico e andava com uma nítida arrogância, ao seguir na frente da fila dos meninos todas as
manhãs. Logo de início, ele não foi com a cara de Marcus, quando os dois se falaram pela primeira vez, assim que o novo recruta chegara. Marcus havia terminado de
usar a latrina e estava voltando à baia quando Ferax e seus quatro comparsas bloquearam o caminho.
- Filho de um centurião romano, é? - falou Ferax com desprezo. - Mais parece o filho de um rato de esgoto.
Os companheiros riram. Marcus devolveu o olhar feio e cerrou os punhos. Ele não queria lutar contra o menino maior, mas ao mesmo tempo não queria ser insultado.
- Caso você não saiba, meu nome é Ferax. - O celta apontou para o peito com o polegar. - Essa é a minha gangue. Esses dois são celtas como eu. - Ele indicou os dois
louros altos ao lado. Em seguida, apontou com a cabeça para os outros dois, que eram magros e tinham a pele escura. - E esses dois foram retirados da favela de Subura,
em Roma. São cascas-grossas. - Ferax deu um passo à frente e enfiou o rosto na cara de Marcus. - Vou dizer minhas regras, rato de esgoto. Meus amigos e eu pegamos
a primeira cota das rações. Também, se eu quiser, você e os outros vão fazer nossos deveres assim que o treinamento do dia terminar, como pegar água e limpar nossos
equipamentos.
- Você pode pegar a própria água - respondeu Marcus.
Ferax riu.
- Ah, temos um valente aqui, pessoal! Melhor eu avisar que o último moleque que se recusou a fazer o que eu disse levou uma bela surra. Assim que a notícia do que
aconteceu com ele se espalhou, todos os outros meninos têm andado na linha. Portanto, você faz o que eu digo e não terá problemas. Caso contrário... - Ferax deu
um passo para trás e fechou o punho diante do rosto de Marcus. - Você vai sentir isso aqui quebrando seu nariz, entendeu?
Marcus ficou bem parado e devolveu o olhar em silêncio. Ferax acenou com a cabeça e depois se voltou para os comparsas.
- Muito bem, acabaram as saudações. Vamos deixá-lo.
Enquanto eles se afastaram, Marcus franziu os lábios. Ferax era um valentão. Ele teria que ser observado com cuidado e evitado o máximo possível. Mesmo assim, Marcus
sentiu uma forte compulsão de enfrentá-lo.
Mas não ainda. Mais tarde, quando tivesse sido treinado para lutar e soubesse como lidar com um oponente. Então ele veria como o celta era realmente valente.
Enquanto os homens treinavam o dia inteiro, os jovens recebiam tarefas de limpeza e cozinha antes e depois dos treinos. Marcus foi designado para a cozinha. Era
um trabalho duro e degradante, mas ele cumpria sem reclamar, e manteve a mente concentrada o tempo todo na necessidade de escapar da escola e chegar a Roma. Também
pensava na mãe, condenada a trabalhar duro na fazenda de Decimus. O coração ficava apertado ao pensar nela, e Marcus sabia que, por sua vez, a mãe também estaria
preocupada com ele.
Não que ela ainda pudesse reconhecê-lo, refletiu Marcus melancolicamente. Como todos aqueles que marcharam para fora do cárcere naquela primeira manhã, Marcus recebera
duas túnicas cinzentas e dois pares de botas, cada uma com um numeral impresso a fogo no salto. Todas as roupas dos prisioneiros foram confiscadas - as melhores
foram vendidas a um comerciante local; o resto, levado para ser queimado. A cabeça de Marcus fora raspada de uma maneira qualquer. Agora, todos os recrutas pareciam
embrutecidos e difíceis de ser distinguidos uns dos outros, como os condenados enviados para as minas. Marcus odiara ter a cabeça raspada. O escravo que a havia
raspado não fora cuidadoso com as tesouras e arranhara seu escalpo em vários pontos. Mas mesmo esse tormento não foi nada comparado ao que se seguiu.
Assim que os meninos saíram da jaula onde tiveram a cabeça raspada, tontos e sangrando dos cortes e arranhões no escalpo, Amatus os levou para a forja no canto do
complexo. Uma dúzia dos guardas da escola esperava pelos meninos, e atrás deles havia um escravo com suor escorrendo pelo rosto, trabalhando em uma pequena fornalha
de onde saía um longo cabo de ferro.
- Primeiro menino, apresente-se - ordenou Amatus, ao gesticular para um dos núbios. O menino recuou, mas, antes que pudesse se misturar aos companheiros, dois dos
guardas pegaram o núbio pelos braços e o prenderam entre eles. Em seguida, a dupla arrastou o menino até a forja, enquanto ele se debatia freneticamente. Amatus
pegou um farrapo molhado para segurar a ponta do cabo de ferro. Ao sacar o ferrete, o símbolo na ponta - uma grande letra "P" acima de duas espadas cruzadas - emitiu
um brilho laranja e o ar quente em volta tremulou. Ele se aproximou do menino núbio, que agora se contorcia desesperadamente nas garras dos dois guardas.
- Segurem firme - ordenou Amatus. Os guardas se posicionaram e impediram que o menino se mexesse. Amatus afastou a túnica do núbio e pressionou o ferrete em seu
peito, bem acima do coração. O garoto berrou enquanto saía um chiado, e o ar se encheu do cheiro cáustico de carne queimada. Um momento depois, tudo acabou, Amatus
deu um passo para trás e o menino desmoronou. Os guardas o arrastaram para fora da forja e o soltaram no chão.
- Próximo! - berrou Amatus.
Um por um, eles foram levados à frente e marcados com o símbolo da escola de gladiadores de Porcino. Enquanto esperavam, os meninos se entreolhavam nervosamente,
alguns se afastaram da frente do grupo como uma tentativa de adiar o tormento. Mas foi o máximo a que chegaram, pois os outros guardas os conduziram de volta. O
terror de Marcus diante da perspectiva de ser marcado a fogo piorou a cada grito de medo e berro de agonia que vinha da forja. Mas ele se manteve em silêncio e não
tentou ir para o fundo do grupo. Olhou em volta e cruzou o olhar com Ferax.
O celta devolveu o olhar e Marcus notou que ele também estava amedrontado. Ferax tremia quando eles se entreolharam, mas agora parecia furioso e encarou Marcus com
ódio. Ferax respirou fundo, avançou para a frente do grupo e se empertigou ao máximo. Cruzou os braços e esperou ser chamado. Quando a vítima mais recente foi levada
para fora, Amatus enfiou o ferrete na forja para aquecê-lo novamente e depois se virou para os meninos restantes.
- Próximo!
Ferax avançou um passo, mas Marcus falou sem pensar:
- Eu! Sou o próximo.
Amatus concordou com a cabeça e os guardas deram um passo à frente para agarrar Marcus pelos braços. Ele sentiu o coração martelando quando foi em direção à forja.
Não tinha ideia do motivo de fazer isso, a não ser que parecia querer provar alguma coisa para Ferax e os demais, sem falar em Amatus e os guardas. Ao se aproximar
da forja, Marcus puxou a túnica pelo colarinho para expor o peito.
Amatus acenou com a cabeça para os guardas.
- Segurem-no.
Marcus deixou que o pegassem pelos braços, mas ficou imóvel, com os músculos retesados e dentes tão cerrados que sua mandíbula doeu. Amatus pareceu surpreso e parou
por um momento antes de retirar o ferrete da forja novamente.
- Bem, parece que um de vocês ao menos tem coragem. - Ele deu um sorriso fraco para Marcus. - Prepare-se, moleque. Isso vai doer como nunca.
Ele ergueu o ferrete. Marcus arregalou os olhos ao ver a silhueta laranja que brilhava. Amatus colocou a mão esquerda no peito de Marcus para estabilizá-lo e levantou
o ferrete. No último instante, Marcus fechou bem os olhos. Houve um momento em que ele sentiu o calor e, em seguida, o mundo explodiu em uma onda de agonia ardente
e horror. Sentiu a carne queimando, uma dor aguda e cáustica que o deixou tonto e enjoado. O assobio e chiado continuaram por um momento. Então a pressão diminuiu
à medida que Amatus recolheu o ferrete. Mas a agonia apenas aumentou. Lágrimas saíram do canto dos olhos de Marcus e um gemido lamuriento escapou dos dentes trincados.
- Calma com esse aí - Marcus ouviu Amatus dizer. - O moleque é corajoso, tenho que admitir.
Ao saírem para o pátio aberto, os guardas colocaram Marcus devagar no chão e o apoiaram gentilmente contra a parede de reboco. Ele abriu os olhos e viu os outros
meninos em volta. O coração ainda batia rápido e a dor consumia a mente, enquanto permanecia sentado com o corpo rígido e os dentes cerrados. Os gritos e lamúrias
dos meninos que foram antes dele ecoavam em seus ouvidos. Marcus virou os olhos e viu Ferax olhando para ele. O celta estava furioso, com os lábios franzidos em
uma expressão de ódio. Então os guardas pegaram e arrastaram Ferax, que foi se debatendo para a forja. Marcus não viu - mas ouviu o gemido animalesco de raiva e
agonia quando Amatus marcou Ferax. De repente, a dor foi demais para Marcus e ele só teve tempo de se inclinar para o lado antes de vomitar. E, mais uma vez, até
que não houvesse nada no estômago. Por fim, ele desmoronou contra a parede e desmaiou.
Quando voltou a si, estava deitado na palha, olhando as vigas do cárcere. Imediatamente sentiu a pontada aguda da queimadura no peito e gemeu ao fazer esforço para
se apoiar nos cotovelos.
- Calma aí - falou uma voz em tom confortador. Pelleneus surgiu acima dele com um trapo molhado na mão, que lhe ofereceu. - Tente isso aqui. Ajuda a diminuir a dor...
um pouco.
Marcus pegou o trapo e baixou o olhar. A queimadura estava vermelha e cheia de bolhas claras que dessoravam. Ele molhou a queimadura com o máximo de delicadeza possível
e sentiu uma nova onda de dor.
- Ahhh...
O trapo molhado parecia apenas piorar o tormento, e Marcus teve que lutar contra ondas de náusea antes de devolvê-lo e se esforçar para agradecer com um aceno de
cabeça.
- É uma dor digna do Hades, não é? - falou Pelleneus, respirando fundo.
- Você também? - perguntou Marcus, ao gesticular para o peito do ateniense.
- Todos nós. Alguns foram lutando. - Ele apontou com a cabeça para Phyrus, que estava sentado apoiado no outro lado da baia, furioso. Marcus notou que ele estava
com o rosto machucado e tinha um olho bem inchado.
- Foram necessários seis de nós para segurá-lo. - Pelleneus deu um sorriso fraco. - O rapaz não tem noção da própria força.
Marcus franziu a testa.
- Você o segurou? Você os ajudou a marcar o Phyrus?
- Foi preciso. Se ficasse por conta dos guardas e instrutores, nosso amigo teria acabado com eles. Você ouviu o que fazem com qualquer um de nós, recrutas, que se
volte contra alguém da equipe do Porcino. Eu prefiro que o Phyrus me derrube, em vez de derrubar um deles e acabe sendo crucificado.
- Pode ser. - Marcus deu de ombros. - Mas não parece certo.
- Foi isso ou vê-lo morrer - respondeu Pelleneus laconicamente. - O que você teria feito?
Marcus queria dizer que teria se recusado a subjugar Phyrus, que teria lutado ao lado do gigante para resistir à agonia e à vergonha de ser marcado a fogo como propriedade
de Porcino. Porém, por mais que quisesse resistir, ele sabia que Pelleneus estava certo. Não havia nada que pudesse ter feito. Nada que qualquer um deles pudesse
ter feito. Ele olhou para o colo em desespero.
Pelleneus ficou com pena dele.
- Marcus, você é um escravo agora. Melhor se acostumar com essa ideia o quanto antes. Se ficar sentado aí sonhando com resistência e fuga, só vai tornar a vida ainda
pior para você. Vai começar a enlouquecer. - Ele fez uma pausa por um momento. - Foi o que aconteceu comigo. Eu me recusei a aceitar a escravidão. Desobedeci meus
senhores e até mesmo tentei fugir uma vez. Eles me recapturaram alguns dias depois e fui espancado. É nisso que dá resistir ao seu dono: em dor e mais sofrimento.
Ouça o que eu digo: a melhor coisa que você tem a fazer é aceitar que o passado morreu. Olhe para o futuro. Permaneça vivo e, um dia, ganhe sua liberdade. É tudo
o que lhe importa agora - terminou Pelleneus, antes de ir embora buscar mais água.
Marcus concordou devagar, como se aceitasse o conselho. Mas, por dentro, ele não poderia fazer o que Pelleneus falou. Ia contra sua natureza e era uma traição à
memória do pai e ao dever perante a mãe. Marcus fez um juramento silencioso de que jamais esqueceria o passado. Além disso, era a memória de tudo o que havia perdido
e do que tinha que vingar que lhe dava determinação para suportar a situação terrível em que se encontrava.
- Ah, então o filho do centurião está se mexendo finalmente!
Marcus ergueu os olhos e viu Ferax parado na entrada da baia. Atrás dele estavam os comparsas. Todos estavam com o torso nu, exibindo o peito e o emblema empolado
da marca da escola.
O celta encarou Marcus com desdém.
- A última vez que vi você foi quando desmaiou do lado de fora da forja.
Marcus engoliu em seco de nervoso e ficou de pé.
- Pelo menos eles não tiveram que me arrastar até lá.
- O quê? - Ferax franziu a testa. - Você está me chamando de covarde? Eu encarei o ferrete como homem. - Ele estufou o peito e colocou as mãos na cintura. - Aguentei
como um guerreiro.
- Sim. - Marcus deu um sorriso fraco. Embora Ferax fosse maior do que ele e seu coração estivesse disparado, Marcus se lembrou do medo que havia visto no rosto do
menino celta antes de ele ser marcado, o que lhe deu alguma coragem para encará-lo. - Eu ouvi o seu, bem, grito de guerra. Assim como todo mundo, imagino. Ainda
assim, foi bem doloroso.
- Pelo menos eu não desmaiei como uma menina.
- Não, não desmaiou - admitiu Marcus. - Somente gritou com uma.
Ferax franziu as narinas.
- Você vai pagar por isso, seu romano nanico. - Ele cerrou os punhos e entrou na baia.
Marcus não recuou, firmou os pés e ergueu as mãos para agarrar o inimigo ou socá-lo. Ele rosnou e mostrou os dentes.
Ferax parou para vê-lo e em seguida gargalhou.
- Pelos deuses, olhem só para ele. Deve achar que é Marte, o deus da guerra!
Os amigos riram com Ferax e, em seguida, o celta se voltou para encarar Marcus sem nenhum sinal de humor no rosto. Tudo que Marcus conseguia ver agora era uma determinação
cruel em lhe causar o máximo possível de dor e humilhação. Ele sentiu um gelo na barriga, mas continuou sem recuar, preparado para levar uma surra sem jamais pedir
por clemência.
- Eu vou adorar isso - rosnou Ferax. - Vou picar você em pedacinhos.
- Ah, não vai mesmo - retumbou uma voz grossa. Marcus se virou surpreso e viu Phyrus ficando de pé. O gigante parou entre os dois meninos e olhou feio para Ferax.
- Se você o machucar, vou machucar você muito mais. Você e esses outros aí. - Phyrus ergueu o punho imenso e bateu na palma da outra mão. - Entendeu?
Ferax se contraiu ao ouvir o barulho. Ele encarou Phyrus com uma mistura de fascínio e frustração, depois recuou para a entrada da baia. Lá, voltou a atenção para
Marcus.
- Você está a salvo por enquanto, moleque. Mas vai ter que lutar suas próprias batalhas em algum momento. Quando isso acontecer, eu vou estar lá esperando, ouviu?
Vamos, rapazes. - Ele gesticulou para os seguidores e foi embora para a outra ponta do cárcere.
Marcus relaxou ao vê-los irem embora. Ele acenou com a cabeça para Phyrus.
- Obrigado.
Phyrus deu de ombros e coçou o queixo.
- Eu não gosto de valentões. São desprezíveis. Se aquele menino criar mais problemas, me avise.
Ele voltou para o canto. Apesar da gratidão, Marcus sabia que Ferax estava certo. Ele podia esperar o momento adequado. Marcus não podia escapar, e chegaria a hora
em que ele teria que encarar o celta sozinho.
17
Os últimos dias de verão passaram em uma rotina implacável de treinamento e tarefas na cozinha. Marcus e os outros meninos eram acordados assim que amanhecia e levados
à cozinha para ajudar a preparar a refeição matinal. O filho do centurião tinha a função de acender o fogo nos fogões de ferro escurecido debaixo das grelhas. Um
pequeno braseiro era mantido permanentemente aceso em um canto da cozinha e, depois de colocar os gravetos, Marcus levava com cuidado algumas brasas e inseria na
lareira. Em seguida, ele estufava as bochechas, assoprava com delicadeza para as brasas arderem e direcionava as pequenas chamas para os gravetos. Havia três fogões
para serem mantidos acesos, e Marcus tinha que vigiar cada um. Lenha nova tinha que ser constantemente trazida do depósito fora da cozinha e colocada ao lado do
braseiro, pronta para ser usada.
O escravo responsável pela cozinha era um ex-gladiador chamado Brixus, que se machucara gravemente havia cinco anos. O tendão da perna esquerda quase fora rompido
por um golpe de espada. Embora a plateia tivesse poupado Brixus, havia sido o fim de sua carreira na arena. Porcino o transferira para a cozinha, onde ainda poderia
ser útil de alguma maneira para o dono. Brixus era forte e parecia ter a mesma idade do pai de Marcus, exceto pelo cabelo, que era espesso e escuro, sem nenhum fio
grisalho. Ele andava pela cozinha cambaleando, mancando muito.
Ferax e os amigos debochavam de Brixus pelas costas, gesticulavam em silêncio entre eles e faziam rápidas imitações de seu modo de andar. Quando Brixus olhava ou
se virava subitamente, eles imediatamente voltavam à tarefa de supervisionar os enormes caldeirões com o espesso mingau de cevada que borbulhava e assobiava baixinho,
enquanto os meninos mexiam com colheres de pau o desjejum, que ficava cada vez mais encorpado.
Uma hora depois de Marcus e os demais acordarem para preparar o café da manhã, os novos recrutas entravam em grupo no refeitório ao lado da cozinha. Os homens pegavam
as tigelas e colheres de pau e depois esperavam na fila para serem servidos do que havia nos caldeirões fumegantes. Eles se sentavam em silêncio em longos bancos
e comiam com as tigelas no colo. Os instrutores andavam devagar para cima e para baixo entre os bancos, prontos para bater com as varas de videira em qualquer homem
que falasse. Apenas quando os homens terminavam a refeição e saíam enfileirados para começar o treinamento matinal, os meninos tinham permissão para comer. Depois,
eles lavavam as tigelas e colheres e esperavam que Amatus os conduzisse ao pátio de treinamento.
O grande espaço aberto no centro da escola era rodeado por uma cerca de madeira de três metros de altura. No interior, a terra fora batida e coberta por uma areia
escura das margens da baía de Nápoles. Era ali que a nova leva de escravos começava o treinamento para a vida dura e perigosa que os aguardava. Os instrutores berravam
ordens enquanto cada um dos quatro grupos se revezava correndo ao redor do perímetro, levantando peso e correndo por uma simples pista de obstáculos; tudo feito
para aumentar a resistência, força e agilidade.
Amatus acompanhava a turma no pátio de treinamento, com a vara de videira pronta para bater em qualquer menino que ficasse muito para trás dos demais, que não se
esforçasse bastante no levantamento de peso ou tropeçasse desajeitado. Marcus tinha em mente que Amatus havia admirado sua coragem quando fora marcado a fogo e,
por isso, ele fazia o possível para manter o respeito do instrutor. Não importava o quanto os pulmões ardiam com o esforço de seu empenho, ou como os braços e pernas
pareciam pesados, Marcus seguia em frente. Alguns dos companheiros não eram tão determinados e, em pouco tempo, apresentavam hematomas e machucados feitos pela vara
de videira de Amatus. Apenas outro menino demonstrava a mesma determinação de Marcus: Ferax. Enquanto Marcus tinha mais resistência, Ferax possuía força, e eles
eram mais ou menos equivalentes em termos de agilidade.
Embora a rivalidade entre os dois fosse velada durante o treinamento, Amatus era experiente o suficiente para logo percebê-la; e, assim, ele provocava a dupla com
gosto:
- Vamos, Ferax! Aquele garoto é da metade do seu tamanho! Qual é o problema? Não consegue acompanhar o ritmo dele? Você vai conseguir, meu rapaz, ou vai sentir a
ponta da minha vara de videira! Mexa essas pernas, seu celta preguiçoso!
Ou quando Marcus fazia uma careta ao se esforçar para erguer um dos maiores pesos até o queixo, Amatus surgia ao lado dele e rugia em seu ouvido:
- Você chama isso de peso? Eu já vi vermes levantarem pedras mais pesadas do que essas! Como você espera ficar tão grande quanto o Ferax se não se esforça? Vamos,
Marcus, mostre para aquele maldito celta o que um romano pode fazer!
Marcus sentia o olhar dos outros meninos e sabia que tinha que impressioná-los para que Ferax não os trouxesse para o lado dele. Ao mesmo tempo, Marcus tinha noção
do ódio efervescente que o celta sentia por ele. Durante um tempo, não havia nada que Ferax pudesse fazer a respeito. Os dias seguiam um planejamento rígido demais
para que ele encontrasse um jeito de descontar a raiva em Marcus, e, assim que os meninos se recolhiam às baias à noite, eles estavam cansados demais para qualquer
coisa que não fosse dormir. Marcus se deitava encolhido na palha, enquanto Pelleneus e Phyrus conversavam em voz baixa por um tempo antes de adormecer também. O
espartano ainda se mantinha isolado pela maior parte do tempo, mas às vezes fazia um comentário em relação à conversa quando sentia a necessidade de corrigir uma
opinião.
Um mês depois da chegada de Marcus, Ferax teve sua oportunidade. Aconteceu após o jantar, quando Marcus foi o último a deixar a cozinha e voltar para o cárcere.
No caminho, ele parou, como sempre, na latrina que ficava no canto do muro da escola. A estação estava mudando e o ar ficava mais frio ao cair da noite. Um único
braseiro ardia na ponta da latrina quando Marcus entrou. O brilho tênue iluminou seu caminho até ele chegar a dois bancos de madeira virados um para o outro. Havia
apenas um ocupante, um menino núbio, que tinha terminado as tarefas pouco tempo antes de Marcus. Eles se cumprimentaram com a cabeça, pois o núbio só sabia falar
um punhado de palavras em latim, embora entendesse muito mais graças à vara de videira de Amatus.
Marcus levantou a túnica e se sentou no banco de madeira, que estava liso e gasto após muitos anos de uso. O som baixo de água corrente veio do canal que levava
o esgoto embora. Ele saía por debaixo da muralha para um pequeno córrego que passava perto da escola de gladiadores. Marcus quase tinha terminado o que havia ido
fazer, quando ouviu passos se aproximando da entrada da latrina.
- Ei, núbio, para fora! - Ferax apontou com o polegar para trás. - Quero trocar uma palavrinha com o filho do centurião.
O núbio concordou com a cabeça, depois ficou de pé e pegou o cabo do esfregão no balde de vinagre mais próximo, entre os dois bancos. Ele passou o esfregão rapidamente,
em seguida abaixou a túnica e saiu correndo da latrina, olhando desconfiado para Ferax ao passar disparado.
Ferax cruzou calmamente a latrina enquanto abria o cinto.
- Bem, garoto, está na hora de saber como você é corajoso. Está preparado?
Marcus sentiu um frio na barriga ao se levantar depressa e abaixar a túnica. Olhou em volta rapidamente, mas todas as janelas eram pouco mais do que frestas no alto
da parede e só havia uma porta na latrina. Ele estava encurralado. Marcus pegou o esfregão pelo cabo e o segurou diante de si. Ferax olhou para ele e riu.
- O quê? Você acha que vai me deter com um bastão?
- Deixe-me em paz - falou Marcus, com o máximo de firmeza que conseguiu. - Não vou avisar novamente.
- Ui, você me dá medo. - Ferax fingiu tremer. - Dá mesmo.
Marcus percebeu que não tinha como fugir do confronto. Não havia nada que dissesse que convencesse Ferax a recuar. Ao aceitar a situação, Marcus sentiu sua mente
e seu coração se acalmarem. Ele iria lutar e provavelmente perderia. Mas machucaria Ferax o máximo possível durante a luta.
- Eu não sou a única coisa de que você tem medo - respondeu Marcus. - Eu vi você quando a gente esperava para ser marcado. Notei como estava assustado. Vi você tremer
como um covarde. É por isso que me odeia, não é?
Ferax parou a quase dois metros de Marcus e estalou o cinto entre as mãos.
- Não importa o motivo. O fato é que eu odeio você e vou machucá-lo, romano. - Ele começou a enrolar o cinto no punho direito e terminou com a fivela sobre os nós
dos dedos. Em seguida, deu um passo cauteloso em direção a Marcus e abaixou o corpo como se fosse disparar. Marcus ergueu o esfregão e pulou antes que o oponente
atacasse. O esfregão sujo e encharcado de vinagre acertou a bochecha de Ferax, que soltou um grito curto de surpresa e dor quando Marcus deu uma estocada em seu
rosto, mirando nos olhos. Como ele esperava, Ferax ergueu as mãos por instinto para se proteger do golpe, e seus dedos pegaram o cabo e tiraram o esfregão de Marcus,
que abriu a mão e se atirou em cima do corpo do outro menino, socando o estômago de Ferax com todo o seu peso.
- Uf! - gemeu Ferax, ao dobrar o corpo.
Marcus socou de novo, depois trocou o ângulo e bateu com o punho no nariz de Ferax. A surpresa do menino mais velho passou depressa e ele soltou um rosnado animalesco.
Ferax ignorou a sequência de golpes de Marcus, empurrou o oponente para trás com a mão esquerda e depois bateu com a direita na lateral do corpo dele. O golpe foi
forte, doloroso e tirou seu fôlego, mas Marcus sabia que, se parasse de lutar, Ferax o transformaria em pó. O celta deu outro soco na lateral do corpo de Marcus,
depois mirou na cabeça e acertou a mandíbula. A fivela cortou a carne, e Marcus viu um intenso clarão branco, depois estrelinhas ao cambalear para trás. Ferax continuou
e acertou novamente, perto da orelha. Marcus sentiu as pernas bambas, caiu sobre um joelho e instintivamente ergueu as mãos para proteger a cabeça. Ferax bateu novamente,
e Marcus caiu de costas no pavimento, arfando. Acima dele, a expressão cruel do celta dançou na luz tênue do braseiro quando ele se inclinou sobre Marcus e bateu
sem parar até ele perder a consciência.
18
- Você está atrasado - falou Brixus rispidamente, ao se aproximar por trás de Marcus na manhã seguinte. - Vou lhe dar uma boa surra se não acender os fogões a tempo.
Marcus se levantou, todo duro, de onde arrumava os gravetos nos fogões. Ele baixou o olhar para as botas de Brixus e concordou com a cabeça.
- Sinto muito, Brixus. Não vai acontecer novamente.
A voz saiu forçada e abafada. Brixus foi até ele e ergueu o rosto de Marcus pelo queixo, depois respirou fundo.
- Parece que capricharam na surra, meu rapaz.
O olho esquerdo de Marcus inchou tanto que estava fechado. O rosto tinha cortes e hematomas, havia um talho e sangue seco nos lábios. Ele mantinha uma das mãos nas
costelas para protegê-las. Brixus estufou as bochechas e conduziu Marcus a um banco no canto da cozinha.
- Sente-se aí. Vou achar outra coisa para você fazer.
- Eu estou bem - murmurou Marcus.
- Não está, não - respondeu Brixus, com um sorriso irônico. - Você está um lixo. Agora obedeça e sente-se. - Ele empurrou Marcus em direção ao banco, depois se virou,
olhou em volta da cozinha e estalou os dedos ao apontar para um dos outros meninos. - Bracus! Você cuida dos fogões hoje de manhã. Coloque a lenha e acenda. E você,
Acer, vá chamar o Amatus.
- O Amatus? O instrutor? - O menino parecia assustado.
Brixus ergueu uma sobrancelha.
- Você conhece outro Amatus? Não? Então, ande logo!
Marcus se sentou devagar no banco e fez uma careta ao sentir uma pontada de dor na lateral. Respirou com a maior delicadeza possível, até que a dor passasse. Então
a mente se voltou para a noite anterior. A última coisa que conseguia se lembrar do confronto com Ferax era de apanhar enquanto tentava se encolher no chão para
se proteger. Depois, tudo ficou branco, até acordar de noite e ver Pelleneus limpando seu rosto com um pano molhado, e Phyrus ao fundo observando ansioso. O brilho
tênue de uma tocha iluminava a cena enquanto Phyrus murmurou:
- A culpa é minha. Eu devia ter ficado de olho nele.
Pelleneus balançou a cabeça.
- Não é possível. Você não poderia ter evitado isso.
Quando Marcus se mexeu e gemeu de agonia, Pelleneus se inclinou para a frente.
- Quem fez isso com você? Conte, Marcus.
Marcus fez que não com a cabeça.
- Foi o celta, não foi?
Marcus não respondeu.
- Foi o que eu pensei. - Pelleneus concordou com a cabeça. - Bem, ele não vai ficar impune, eu garanto.
- Não! - falou Marcus, com a voz rouca. - Deixe o Ferax comigo. Eu mesmo vou me vingar.
- Você acha que vai? - Pelleneus observou os ferimentos. - Da próxima vez, ele vai matar você.
- Vou me preparar melhor - murmurou Marcus entre os lábios inchados.
- Ele está certo - interrompeu uma voz. Os dois se viraram para o espartano, que estava parado ali perto. - O menino tem que lutar as próprias batalhas se quiser
virar um homem.
Pelleneus olhou em volta.
- Outra luta vai matá-lo, espartano. Apenas deixe a filosofia para nós, atenienses, certo?
O espartano deu de ombros.
- O menino sabe que falo a verdade. A luta é dele e vocês não têm o direito de tirá-la de suas mãos. - Ele virou o olhar penetrante e sombrio para Marcus. - Sei
como você pensa, menino. Você tem o sangue de um guerreiro nas veias. Não deve passar pela vergonha de abandonar essa luta.
- Não passarei. - Marcus fez que sim com a cabeça ao fechar os olhos novamente. - Eu vou vencê-lo.
Pelleneus soltou um suspiro de frustração.
- É a sua sentença de morte, Marcus. E, obrigado, espartano. Você foi útil como sempre...
Quando a aurora chegou, Marcus levou um tempo para ficar de pé. Cada movimento foi uma agonia quando se dirigiu do cárcere para a cozinha. Agora ele olhava atrás
das bancadas onde Ferax e os comparsas brincavam uns com os outros enquanto enchiam os caldeirões com farinha de cevada, óleo, sal e gordura animal. Sentiu uma vontade
de vingança. Não importava o que acontecesse, ele enfrentaria Ferax novamente. Mas, da próxima vez, estaria preparado. Estaria mais forte e aprenderia a lutar bem.
Quando estivesse pronto, Marcus ensinaria uma lição ao celta que ele jamais esqueceria. Naquele momento, Ferax ergueu os olhos e notou o olhar de Marcus. Os dois
meninos se encararam, depois Ferax deu uma piscadela e franziu os lábios em uma expressão de falsa piedade.
Marcus sentiu uma terrível onda de fúria e ódio tomar conta de seu corpo. O desejo por vingança até ofuscou o sentimento de ódio que sentia por Decimus, que, para
começo de conversa, havia causado toda aquela situação.
Amatus entrou na cozinha, olhou em volta, até ver Brixus, e depois foi na direção dele.
- Você me chamou?
- Sim, é o menino ali. - Brixus indicou Marcus com a cabeça. - Ele apanhou bastante. Duvido que consiga treinar hoje e achei que o senhor deveria saber.
- Apanhou? - Amatus foi até Marcus e notou os ferimentos. - Quem fez isso com você, menino?
- Ninguém - falou Marcus baixinho, encarando Amatus com ar de desafio. De rabo de olho, ele sabia que Ferax estava assistindo com atenção. Ele pigarreou e falou
com a maior clareza possível, para que toda a cozinha ouvisse: - Eu escorreguei na latrina.
- É mesmo? - Amatus não conseguiu evitar um sorrisinho. - Quantas vezes? Eu não sabia que defecar era tão perigoso. Olhe aqui, menino, não há razão para tapar o
sol com a peneira, eu já ouvi tudo isso antes. Alguém atacou você. Isso é contra as regras e eles serão punidos. O amo Porcino não gosta de gente que maltrata sua
propriedade. Então, me diga, quem fez isso?
- Já disse para o senhor, eu estava na latrina e escorreguei. Apenas isso.
- E isso é uma mentira, menino. - Amatus franziu a testa e meteu o dedo no peito de Marcus. - Eu não gosto que mintam para mim. Conte ou será você quem eu vou punir.
- Eu escorreguei, senhor - respondeu Marcus secamente.
- Então aguente as consequências. - Amatus se virou para o cozinheiro. - Não posso deixar que o menino piore. Ele está afastado dos treinamentos por dois dias.
- Não, eu ainda consigo treinar.
Marcus fez um esforço para ficar de pé, mas Amatus o empurrou de volta para se sentar enquanto continuou falando com Brixus:
- Você arrumou um ajudante em tempo integral por enquanto. Aproveite bem.
- Tem muito trabalho que ele pode fazer aqui. - Brixus concordou com a cabeça. - Vou mantê-lo longe de encrencas.
- É bom mesmo. - Amatus baixou o tom de voz: - Eu não posso deixar esse tipo de coisa ocorrer novamente. Da próxima vez, haverá consequências para os envolvidos.
- Ele se voltou para Marcus. - Quanto a você, como foi tão difícil se equilibrar na latrina, ela obviamente precisa de uma boa limpeza. Essa será a sua tarefa de
agora em diante. Você está liberado do turno noturno da cozinha. Em vez disso, vai esfregar e lavar a latrina toda noite. Talvez isso lhe ensine a não mentir para
mim.
Amatus saiu da cozinha em um rompante e voltou para o refeitório dos instrutores a fim de terminar o café da manhã. Assim que ele saiu de vista, Brixus olhou em
volta da cozinha e respirou fundo.
- O que todos vocês estão fazendo aí parados e de queixo caído como tolos? Voltem ao trabalho!
Os meninos instantaneamente voltaram às tarefas, de cabeça baixa, para evitar o olhar dele. Brixus encarou os garotos por um momento, para garantir que estavam concentrados
nos deveres, e depois se voltou para Marcus.
- Já poliu latão antes?
Marcus se lembrou das medalhas no peitoral do pai, cada uma recebida por um ato de bravura. Durante o inverno, o velho centurião costumava pegar a armadura e mostrar
para Marcus como deixá-la limpa e reluzente usando um pó abrasivo misturado com azeite de oliva, que era esfregado com um pano velho. Depois, era só lustrar e assoprar
até que a armadura cintilasse. Marcus olhou para Brixus.
- Eu sei polir.
- Ótimo, porque o amo quer seu aparelho de jantar pronto para um banquete em cinco dias. Você pode me ajudar com o serviço.
- Sim, senhor. Obrigado.
Assim que os homens comeram e os meninos arrumaram e limparam a cozinha antes de correr para se juntar a eles no pátio de treinamento, Brixus fez um gesto para que
Marcus o seguisse. Eles cruzaram o complexo até o portão principal, onde um dos guardas se colocou no caminho dos dois e ergueu a mão.
- Alto! O que querem aqui?
Brixus mancou até parar, meteu a mão na túnica e tirou uma tábula. Ele a abriu e apontou para as ordens gravadas na cera, juntamente com a chancela do anel de Porcino.
- Aqui.
O guarda olhou a tábula.
- E quanto ao menino?
- Ele é o meu assistente.
O guarda olhou para Marcus, foi para o lado e acenou com a cabeça para o restante dos homens, que guarneciam o portão principal.
- Abram.
A barra foi retirada e a porta grossa se abriu apenas o suficiente para que Brixus e Marcus passassem. Ela se fechou com um baque grave depois que os dois entraram
e os guardas gesticularam para que eles seguissem em direção à vila de Porcino.
- Venha - falou Brixus, ao mancar um pouco pela trilha antes de virar no caminho que levava à vila. Comparado com a vida dura da escola de gladiadores, Marcus viu
que o proprietário vivia realmente com muito conforto. O caminho que conduzia à casa era ladeado por arbustos impecavelmente podados e, de vez em quando, um pequeno
pilar apoiava o busto de um homem. Marcus achou que reconhecia alguns dos rostos pelas estátuas que tinha visto em Nidri e nos portos e cidades pelos quais passara
a caminho de Cápua.
- Quem são eles? - perguntou baixinho para Brixus.
- Esses aí? - Brixus gesticulou para os bustos. - São a alta classe romana. Cônsules, senadores, sumos sacerdotes e por aí vai. Nosso senhor gosta de impressionar
os convidados e, ao mesmo tempo, é esperto o suficiente para não ficar do lado de ninguém. Viu ali? Aquele é o Marius, e do lado oposto está o Sulla. Inimigos jurados
na vida real; o legado dos dois ainda divide o povo de Roma. Mas o Porcino quer manter ambas as facções contentes sempre que seus partidários visitam a escola.
- Eles vêm com frequência?
- Com bastante frequência. Sempre há um político qualquer querendo comprar alguns gladiadores para impressionar a plebe.
- E quanto ao general Pompeius? - perguntou Marcus, tentando não demonstrar a empolgação. - Ele vem aqui?
- Improvável! - falou Brixus com desdém. - Ele é importante demais para nos visitar pessoalmente. Mas recebemos um de seus agentes aqui há algum tempo. Ele comprou
quatro pares de lutadores para um evento privado no palácio do Pompeius fora de Roma.
Marcus sorriu internamente diante da perspectiva, por menor que fosse, de que esse destino pudesse ocorrer com ele algum dia. Talvez Pelleneus estivesse certo. Ele
deveria se concentrar em sobreviver tempo suficiente para ter uma chance de estar diante do general Pompeius.
A vila de Porcino, como a maioria das vilas romanas, havia sido construída com um enorme pátio na frente e tinha uma arcada elaborada como entrada. Depois do pátio
vinha a casa principal, erigida em volta de um jardim meticulosamente cuidado em cujo centro havia um laguinho onde vertia delicadamente a água de uma fonte. Uma
pequena porta em um canto do pátio levava aos alojamentos dos escravos. Ali havia a mesma simplicidade sinistra da escola. Paredes nuas e aposentos sombrios com
janelas altas e gradeadas. Brixus prosseguiu por um corredor curto até um depósito. Havia pilhas de pratos, tigelas e taças de latão e prata sobre prateleiras. Em
outro canto havia um conjunto de finos utensílios sâmios e jarras e algumas tigelas de vidro. Brixus puxou um par de bancos e voltou com uma caixinha contendo alguns
trapos, potes de pó abrasivo e uma pequena jarra de azeite. Ele resmungou ao abaixar uma pilha de pratos de latão e pousá-la no chão entre os bancos. Após dar um
prato para Marcus e pegar um para si, Brixus começou a trabalhar.
- Pois então - disse Brixus, enquanto misturava um pouco de pó e azeite em um pratinho. - Qual é a sua história, jovem Marcus? Como você se tornou um gladiador na
tenra idade de... quantos anos?
- Tenho 11 anos - respondeu Marcus, chocado por ter se esquecido do seu aniversário no mês anterior.
- Tão velho assim? - brincou Brixus, com um sorriso um pouco debochado. - É quase um homem, então?
Marcus já estava acostumado à ironia dos adultos e não mordeu a isca.
- Eu fui capturado ilegalmente. Minha mãe também foi raptada, e meu pai, um centurião aposentado, foi morto.
- Ah, sim. Eu ouvi dizer que você afirmava isso. Filho de um centurião, hein?
- É verdade.
- Se você diz. - Brixus deu de ombros. - Então, quem era a sua mãe, uma princesa exótica do Oriente?
- Não. Meu pai a conheceu durante a revolta dos escravos e se casou com ela logo depois.
Brixus fez uma pausa e olhou para Marcus com o dedo envolto no trapo sobre o prato de latão na outra mão.
- Seu pai fez parte da campanha contra o Spartacus?
Marcus concordou com a cabeça.
- Ele esteve lá na batalha final, quando o exército dos escravos foi esmagado e o próprio Spartacus foi morto. Minha mãe era uma das mulheres capturadas quando as
legiões saquearam o acampamento dos escravos.
- Entendi. - Brixus baixou o olhar e continuou esfregando o pó e o azeite no prato de latão. - Tenho que lhe contar, Marcus. Eu também estive lá, no fim da grande
revolta dos escravos. Eu estive naquela batalha.
- Você? - Agora foi a vez de Marcus fazer uma pausa. - Você pode ter conhecido meu pai. Em que legião serviu?
- Eu não servi nas legiões. Eu servi ao Spartacus.
Marcus olhou surpreso para ele. Brixus retribuiu o olhar com uma expressão fria, sem emoção, e Marcus se perguntou se ele dizia a verdade. Talvez fosse uma das pegadinhas
de que os homens da escola pareciam gostar tanto.
- Eu pensei que a maioria dos escravos capturados pelo general Pompeius tivesse sido executada.
- Eles foram. Na véspera da batalha, eu me machuquei, quando o meu cavalo caiu de uma ladeira e rolou sobre mim. Eu fui forçado a assistir à batalha de um carroção
no acampamento dos escravos, caso contrário teria tido o mesmo destino de todos os homens que foram capturados armados. Assim sendo, fui levado quando os romanos
entraram no acampamento. Fui vendido a um dos mercadores de escravos que seguiam as legiões. Logo depois, ele me vendeu ao Porcino.
- Entendi. - Marcus molhou o trapo na mistura e começou a polir o prato. - Você chegou a conhecer o Spartacus?
- Ah, sim, a maioria do exército o conhecia. Ele sempre fez questão de andar pelo acampamento toda noite para falar com seus seguidores. - Brixus fez uma pausa e
olhou desconfiado para Marcus. - Eu o vi em várias ocasiões. Falei com ele também.
- Como ele era? - perguntou Marcus, ansioso.
- Um homem como eu. Não tinha chifres crescendo na cabeça. Não havia fogo queimando em seus olhos e não comia os prisioneiros, como certamente deve ter sido ensinado
para você.
- Mas ele deve ter sido um grande guerreiro. Meu pai disse que os escravos lutaram como demônios. O Spartacus deve ter sido um gigante como Phyrus.
Brixus balançou a cabeça.
- O Spartacus não era um homem grande. Ele tinha a minha altura e o meu tamanho, cabelo escuro encaracolado e olhos castanhos penetrantes, como os seus. Quando ocorreu
a revolta, ele nunca tinha matado um homem. Jamais havia lutado na arena. Mas se adaptou ao comando como um peixe na água. Em poucos dias, ele nos organizou como
uma formidável força armada. Em meses, ele arregimentou dezenas de milhares de seguidores e capturou armas suficientes para equipar todos nós. Os outros gladiadores
assumiram a tarefa de treinar os escravos, e nós cumprimos bem a tarefa, como provam os finados espíritos de muitos soldados romanos. - Brixus pegou um pouco mais
da mistura e voltou a prestar atenção a uma nova parte do prato. - Sempre que entrávamos em batalha, Spartacus ia à frente, seguido pelos homens de sua guarda pessoal.
Brixus sorriu afetuosamente pela lembrança, e Marcus parou de polir o prato para encará-lo um pouquinho, boquiaberto.
- Você era da guarda pessoal do Spartacus?
Brixus franziu a testa.
- Eu não disse isso. Tudo que falei foi que conheci o Spartacus, juntamente com muitos que o seguiram. Apenas isso. Agora não me pergunte mais sobre o Spartacus
ou você vai arrumar encrenca para nós dois.
- Encrenca?
Brixus abaixou o prato e se inclinou na direção de Marcus.
- Se o seu pai é quem você diz, então deve saber como os romanos tinham medo do Spartacus. Eles ainda têm. Sabem que o espírito do Spartacus vive no coração de cada
escravo na Itália. Nossos donos querem nos fazer esquecer. Portanto, você é capaz de imaginar como o Porcino pode ficar furioso se ouvir a nossa conversa.
- Mas nós estamos sozinhos - reclamou Marcus. - Ninguém pode nos ouvir.
- As paredes têm ouvidos. Eu já falei demais. Agora volte ao trabalho, menino, e sem conversa.
Marcus suspirou, frustrado por não poder saber mais a respeito do grande Spartacus. Ele levantou o prato e começou a esfregar o latão vigorosamente. Mesmo assim,
ele não conseguia evitar pensar em Brixus. O cozinheiro era mais do que Marcus havia imaginado. Muito mais. Apesar da negativa, Brixus claramente tinha conhecido
Spartacus bem. Bem o suficiente para colocar a própria vida em perigo, se a verdade fosse revelada. Marcus cuidadosamente olhou para ele por debaixo das sobrancelhas.
Acontecesse o que acontecesse, Marcus estava determinado a descobrir mais sobre Spartacus.
19
Assim que se recuperou da surra de Ferax, Marcus voltou a treinar com o resto da turma. O inverno varreu o interior da Campânia e trouxe ventos e borrascas geladas.
Folhas secas marrons das árvores do lado de fora da escola voavam sobre as muralhas e se acumulavam nos cantos e nas laterais dos edifícios. A mudança de estação
não teve o menor efeito na rotina diária, porém. Depois do café da manhã, Marcus e os outros meninos marchavam até o pátio de treinamento, onde Amatus imediatamente
os colocava para trabalhar.
Todo dia era o mesmo conjunto de exercícios repetidos sem parar. Os meninos ficavam exaustos e, após completarem as tarefas do dia, desmoronavam na palha das baias
e adormeciam imediatamente. Marcus era o último a dormir, pois tinha a tarefa de limpar a latrina. Ele podia descansar apenas quando os bancos de madeira fossem
esfregados, os baldes de vinagre, esvaziados e reenchidos, e os canais debaixo dos bancos, lavados. Foram necessárias semanas para que se acostumasse com as dores
musculares e melhorasse na manhã seguinte. Mas, quando o inverno se firmou, ele começou a se sentir mais forte. Marcus conseguia levantar pesos maiores do que quando
chegara. A resistência também estava aumentando gradualmente, de maneira que ele parou de se sentir exausto pelo trabalho do dia e se levantava alerta e pronto para
começar a treinar todas as manhãs.
No último mês do ano, Amatus decidiu que eles estavam prontos para começar a treinar com armas. Quando os meninos marcharam para o complexo de treinamento, eles
viram uma pequena carroça cheia de espadas de madeira e escudos de vime. Marcus sentiu a pulsação acelerar diante do que viu. Finalmente, eles seriam ensinados a
lutar! Embora soubesse que esse era mais um passo a caminho do combate mortal na arena, Marcus estava querendo aprender as habilidades que seu pai um dia possuíra.
Ele já havia se dado conta de que tinha pouca chance de escapar enquanto os guardas observavam os escravos atentamente das torres. Um dia, talvez em breve, ele ganharia
a liberdade. Então estaria mais apto a encontrar a mãe, libertá-la e protegê-la.
- Muito bem, cambada! - gritou Amatus, parado ao lado da carroça. - Cada menino pegue uma espada e um escudo e depois faça fila em frente aos postes de treinamento!
Marcus se juntou aos companheiros que se amontoavam perto da beirada da carroça e esperavam a vez para ser equipados. Ele sentiu um forte cutucão na lateral quando
Ferax se inclinou em sua direção.
- Espadas de madeira por enquanto. Mas vamos ver que estrago elas fazem, hein?
Marcus se virou e ergueu o olhar para o celta.
- Madeira ou aço, tanto faz, vou cortar você ao meio.
- Uhu! - riu Ferax. - Mal posso esperar.
- Silêncio aí! - berrou Amatus. - Mais uma palavra sua, Ferax, e vai cuidar das latrinas.
Ferax baixou a cabeça rapidamente e forçou a passagem à frente de Marcus e dos demais para pegar as armas de treinamento das mãos de Amatus. Quando foi a vez de
Marcus, ele ficou surpreso pelo peso do escudo e da espada. Deu alguns golpes soltos para testá-la, enquanto andou até um dos postes de treinamento - eram sólidos
pedaços de madeira da altura de um homem, surrados e lascados após anos levando golpes dos alunos da escola de gladiadores. Quando todos os meninos estavam posicionados,
Amatus se aproximou de um poste no meio da fileira. Ele se virou para encará-los.
- Eu passei os últimos meses deixando vocês em forma para o que vem a seguir. Agora começa o verdadeiro trabalho. Vocês vão continuar seus exercícios carregando
esses apetrechos. Também treinarão técnicas básicas de combate. Hoje, cobriremos o básico do básico: a estocada, o recuo e o bloqueio. Observem atentamente.
Amatus ergueu o escudo e colocou o pé esquerdo à frente.
- Viram isso? Vocês mantêm o peso perfeitamente equilibrado e depois baixam o corpo, a fim de ficarem prontos para jogar o peso para a frente ou para trás, conforme
necessário. Sempre avancem com o pé esquerdo e sigam com o direito. Não é como andar normalmente. - Ele olhou para os meninos. - Entenderam? Não quero ver ninguém
cruzando as pernas. Se fizerem isso em uma luta de verdade, seu oponente pode pegá-los desequilibrados e derrubá-los em um piscar de olhos. Aprendam a se mover direito
e isso vai se tornar instintivo. Muito bem, adotem a postura e, quando eu avançar, vocês recuam mantendo a mesma distância entre nós. Quando eu recuar, vocês seguem.
Ficou claro? Então, entrem em posição.
Marcus avançou com o pé posterior, ergueu o escudo e olhou para os dois lados para verificar se estava com a postura correta. Amatus andou pela fila, aprovando com
a cabeça e vociferando duras críticas enquanto inspecionava os alunos. Ele parou na frente de Marcus.
- O que diabos você está fazendo com esta espada? É uma espada, não a droga de uma bengala! Segure para o alto, paralela ao chão, com a ponta na frente do escudo!
Você tem que estar pronto para atacar ou bloquear a qualquer momento.
- Sim, senhor. - Marcus obedeceu.
- Assim está melhor. - Amatus seguiu em frente.
Quando ficou satisfeito por todo mundo estar pronto, Amatus começou a ensaiar os movimentos, aumentou o ritmo aos poucos e testou as reações dos meninos com ocasionais
avanços e recuos rápidos. Ele berrava com aqueles que eram lentos nas reações e mandava que corressem ao redor do complexo de treinamento antes de se juntar aos
companheiros. Conforme as horas foram passando, o equipamento começou a pesar e Marcus sentiu os músculos ardendo com o esforço. Mas ele cerrou os dentes e continuou,
observou Amatus com atenção e acompanhou seus movimentos o mais rápido que conseguiu.
Finalmente, Amatus se empertigou e baixou o escudo. Ele olhou para a turma com um pouco de desdém.
- Isso foi patético. Eu nunca vi um bando tão grande de derrotados em toda a minha vida. Assim sendo, vamos ter que simplesmente continuar treinando até que vocês
entendam, seus caipiras de cabeça dura. Em posição! Comecem!
O treino de movimentos continuou pelo resto do dia e na manhã seguinte. Amatus aumentou o ritmo. Ele soltava um "RÁ!" ensurdecedor sempre que estocava com a mão
direita, e os meninos respondiam erguendo os escudos e as espadas, prontos para se proteger de ataques diretos, assim como de golpes sobre a cabeça ou cortes pelas
laterais. Quando Amatus recuava e abaixava a espada, eles estocavam um inimigo imaginário e soltavam o próprio grito agudo de "RÁ!".
- O que diabos foi isso? - respondeu Amatus furiosamente, à primeira tentativa dos meninos. - Estão tentando me fazer rir? Quando atacarem, vocês vão rugir como
um leão. Vencer é mais do que usar bem uma espada. Vocês têm que assustar seus oponentes. Têm que fazer com que eles pensem que vocês são bárbaros selvagens com
sangue fervendo. Metam medo nos oponentes e a batalha estará quase vencida. Vamos tentar novamente.
Ele se abaixou, fez uma pausa, deu dois passos para trás e apontou a areia com a espada como um sinal para os alunos atacarem. Marcus deu uma estocada com a espada
de madeira com toda a força, ao mesmo tempo que um grito saiu do fundo dos pulmões e se juntou ao ruído do restante dos alunos.
Amatus franziu os lábios e concordou com a cabeça.
- Melhor, mas vocês ainda não me assustam. Mais empenho.
Eles continuaram treinando pelos próximos dias. Em seguida, Amatus ensinou golpes básicos com a espada e eles passaram horas estocando e cortando os postes de treino.
O ar foi tomado pelo estalo agudo de madeira em madeira e pelos gritos dos meninos a cada golpe.
O tempo todo Marcus observava Ferax atentamente, caso ele tentasse alguma coisa enquanto Amatus não estivesse olhando. Por sua vez, o celta o encarava com desdém
e havia contado para todo mundo que fora ele que espancara Marcus. Agora, os outros meninos encaravam Ferax com medo e faziam o possível para não chamar sua atenção.
Desse modo, nenhum deles fez amizade com Marcus nem sequer falava com ele. Marcus tentava não se importar com isso, pois ainda tinha a companhia dos dois atenienses,
bem como de Brixus, que o tratava bem e guardava algumas sobras de comida para ele no fim da maioria dos dias. No entanto, sentiu um desespero crescente no coração.
Ele não estava perto de encontrar o general Pompeius e ganhar liberdade para ele e a mãe. Nem jamais se vingaria de Decimus enquanto estivesse aprisionado nessa
escola de gladiadores.
Seu sofrimento piorava com os truques cruéis que Ferax aprontava sempre que Amatus dava as costas. Algumas vezes o celta ficava perto de Marcus de propósito e metia
o pé para ele tropeçar enquanto os meninos corriam ao redor do circuito do pátio de treinamento. Ou o empurrava, quando eles levantavam peso para derrubá-lo na areia.
Amatus dava meia-volta, xingava aos berros na cara de Marcus e batia nele com a vara de videira. Marcus aguentava tudo isso com uma determinação implacável de que
esperaria o tempo certo, ganharia força e aguardaria o dia em que estaria pronto para se voltar contra seu algoz.
O ano se aproximava do fim e nada de surgir uma possibilidade de escapar, pois os escravos eram mantidos dentro das muralhas. A escola de gladiadores começou os
preparativos para a saturnal, o festival anual em homenagem ao deus Saturno. Em uma manhã, carroções entraram na escola lotados de jarras de vinho, pães finos, peças
de carne seca e cestas de doces. Eles foram descarregados por Marcus e os demais sob o olhar atento de Amatus e de um grupo de guardas da escola para prevenir que
ninguém roubasse nada. Assim que os suprimentos para o banquete foram colocados em um dos depósitos, Amatus trancou a porta e levou a chave a Taurus.
Enquanto eles esperavam pelo retorno de Amatus, Ferax andou até a porta e fungou.
- Sentiram esse cheiro, meninos? O cheiro de toda essa boa comida? Em cinco dias a gente vai devorar tudo.
Um dos guardas riu.
- Se o amo não estiver contente com o seu progresso, vocês vão ficar com o que sobrar depois de os homens terminarem de comer, meu rapaz. É isso que vocês vão devorar.
Ferax falou em tom de desdém:
- Isso não é justo. Temos tanto direito quanto eles.
- Vocês estão na base da hierarquia. - O guarda deu um tabefe na orelha de Ferax. - E você vai me chamar de "senhor" quando falar comigo.
- Sim, senhor. - Ferax baixou a cabeça. Ele viu Marcus sorrir. - Mas o senhor está errado a respeito de uma coisa. Eu não estou na base da hierarquia. Aquele ali
está. - Os lábios se contorceram em desdém. - O filho de um centurião.
Marcus ficou imóvel e escondeu a raiva e a fúria, enquanto Ferax continuou se dirigindo para o restante da turma em um tom de voz mais alto.
- Quando a saturnal começar, eu me sirvo primeiro. Depois meus amigos, vocês aí e finalmente ele. - Ferax apontou para Marcus. - Se alguém tentar furar a fila, vai
ter que se explicar comigo, e todo mundo sabe o que acontece com aqueles que tentam me desafiar...
Quase nenhum dos meninos arriscou encarar Ferax, e alguns olharam nervosamente para Marcus ao se lembrar do que aconteceu com ele.
- Eu não tenho medo de você - disse Marcus com firmeza, embora por dentro houvesse um nó no estômago de ansiedade.
- Não? Bem, deveria ter. - Ferax olhou feio para ele e depois balançou devagar a cabeça. - Não que você vá estar por aqui por mais tempo para ter medo de mim...
Marcus franziu a testa.
- O que você quer dizer com isso?
Antes que Ferax pudesse responder, uma voz cortou o ar:
- Que bagunça é essa? - vociferou Amatus, ao voltar na direção deles. - Parados aí como um bando de caipiras. - Ele brandiu a vara de videira. - Entrem em fila,
desgraçados! Ou vão sentir isso aqui no lombo!
Imediatamente, eles correram para entrar em formação e Amatus levou os meninos para o pátio de treinamento, onde o treino foi duro pelo resto da manhã e a tarde
adentro. Assim que foram dispensados e rumaram para a cozinha, eles conversaram em tom animado sobre o vindouro festival. Marcus conhecia a saturnal da época da
fazenda. Quando o ano chegava ao fim, a casa era decorada com guirlandas feitas de galhos de pinheiros. Na cozinha, sua mãe fazia quitutes especiais. No dia do festival,
o pai de Marcus, como o chefe da casa, bancava o anfitrião igualmente para a família e para os escravos, servindo a mesa onde eles se reuniam para comer. Depois,
Aristides puxava a flauta e tocava por um tempo, enquanto outra pessoa contava uma história ou fazia mímica. Então, quando anoitecia, Marcus pedia para Titus contar
uma história da época do exército, das paisagens que tinha visto quando as legiões do general Pompeius marcharam pelo mundo conhecido. Marcus suspirou. Isso foi
na época em que a fazenda dava dinheiro e Titus possuía muito mais escravos. Quando a sorte mudou, os escravos foram vendidos um por um e a comemoração da saturnal
virou um evento bastante quieto.
Marcus sorriu ao se lembrar desses dias tão felizes que, agora, eram quase como um sonho. Um sonho doloroso. Ele se perguntou como seria o festival na escola de
gladiadores. Será que Porcino em pessoa viria servir os escravos? Parecia impossível. Pelo menos haveria uma pequena pausa na cansativa rotina diária. Já era alguma
coisa, pensou Marcus, que se concentrou na promessa de um estômago cheio de boa comida pelo restante do treinamento do dia.
Depois, ao ajudar na cozinha, Marcus notou que estava sendo observado com atenção por Brixus, como se estivesse sendo avaliado. Quando o jantar terminou e Marcus
estava prestes a ir à latrina para terminar os afazeres do dia, Brixus o pegou pelo braço quando ele fez menção de sair da cozinha.
- Marcus, você ainda quer saber mais sobre o Spartacus? - falou Brixus baixinho.
Ele fez que sim.
- Então volte aqui assim que terminar com a latrina.
- Tudo bem, eu volto.
Brixus soltou Marcus, e o menino saiu correndo. Enquanto esfregava os bancos, ele não conseguiu deixar de pensar na mudança de atitude de Brixus. Da última vez que
conversaram sobre a rebelião, Brixus terminou a conversa abruptamente, no momento em que achou que falou mais do que devia. Embora Marcus estivesse tentado a correr
com a limpeza da latrina, ele não arriscaria que Taurus encontrasse um defeito em seu trabalho; portanto, ele reencheu os baldes e limpou cuidadosamente os canais
como sempre, depois guardou as escovas e os baldes no armário ao lado da porta antes de ir embora. A noite estava escura e um vento frio soprava pela escola de gladiadores.
Brixus estava sentado a uma das mesas da cozinha quando Marcus voltou. O aposento era iluminado por uma única lamparina a óleo na ponta da mesa. Havia uma pequena
jarra de vinho diante de Brixus, que estava se servindo de outra caneca quando Marcus entrou. Brixus olhou em volta rapidamente e depois relaxou quando viu Marcus.
- Ah, que bom. Entre e sente-se, menino. - Ele indicou o banco do outro lado da mesa com a cabeça. Marcus obedeceu e notou que havia duas canecas sobre a mesa. Brixus
encheu a que sobrou e empurrou-a com cuidado para Marcus.
- Aqui, beba. Isso ajuda a afastar o frio.
- Obrigado. - Marcus acenou com a cabeça ao pegar a caneca simplória de argila e com a borda lascada. Ele já tinha bebido vinho antes, muitíssimo aguado pela mãe,
mas o sabor forte da bebida que Brixus serviu o pegou de surpresa.
- Não é dos melhores. - Brixus sorriu. - Mas vinho não é fácil de conseguir por aqui. Eu comprei esse dos guardas.
- Você tem dinheiro? - perguntou Marcus, surpreso. A maioria dos escravos que ele conhecia não tinha permissão de guardar dinheiro.
- Sim, claro. O Porcino permite que seus escravos mais confiáveis recebam e poupem dinheiro. No fim das contas, um dia podemos ter o suficiente para comprar nossa
liberdade, e ele receberá uma bela quantia, assim como não terá que nos alimentar e dar um teto conforme envelhecemos. De qualquer forma... - Ele bebeu um gole e
franziu um pouco os olhos ao encarar Marcus do outro lado da mesa. - Você quer saber sobre o Spartacus.
- Sim.
- Muito bem, mas primeiro quero esclarecer a situação entre a gente. Imagino que você não tenha esquecido aquele dia, quando nós polimos o aparelho de jantar para
o amo na casa dele.
- Eu me lembro.
- Sim. E você também deve se lembrar de que eu falei que conhecia o Spartacus.
Marcus fez que sim.
- Você disse que o conhecia muito bem.
- Então você foi embora com a impressão de que eu talvez fosse um amigo dele?
Marcus não sabia o que dizer e, em vez de falar, tomou outro gole do líquido ardente enquanto esperava Brixus continuar.
- Seja qual for a verdade, jovem Marcus, eu acho que você deve saber como seria perigoso se as pessoas imaginassem que eu era íntimo do Spartacus. Os romanos têm
boa memória e não são um povo que perdoa. Eu sei que você é um romano, mas também sinto que tem um bom coração. Você não é como alguns dos meninos que passam pela
escola. Ladrõezinhos ardilosos e valentões, alguns deles. Especialmente rapazes como aquele Ferax e seus capangas. Você não é como eles. Portanto, eu confio em você,
mas tenho que saber o quanto posso confiar. - Ele encarou Marcus por um momento. - Você não deve falar uma palavra do que eu lhe disser. Promete?
Marcus concordou solenemente com a cabeça.
- Sim.
- Ótimo. - Brixus suspirou de alívio. - Agora que tenho sua palavra, o que quer que eu conte sobre o Spartacus?
Marcus olhou para ele, ansioso.
- Você era um de seus guarda-costas?
- Não, eu era mais do que isso. Fui um dos tenentes do Spartacus. Eu comandei seus batedores. - Brixus deu um sorriso triste ao gesticular para as paredes lisas
de reboco em volta deles. - Isso é tudo o que me sobrou. Eu era um ótimo gladiador, depois um líder no exército do Spartacus. Agora sou apenas um humilde escravo.
- Se meu pai me contou a verdade, então você não é um humilde escravo. Você lutou bem, ganhou sua glória.
Brixus balançou a cabeça.
- Não houve glória naquela última batalha, Marcus. Foi um massacre sangrento. Nós estávamos fugindo há meses, sempre apenas a alguns passos adiante da perseguição
movida pelas legiões do Crassus, que nos derrotou em várias batalhas e escaramuças. Aí surgiu o Pompeius e nós ficamos encurralados entre dois exércitos. Não tivemos
escolha a não ser parar e lutar. Até então, tínhamos perdido milhares de homens por causa de doenças e ferimentos, e mal havia cinco mil que ainda pudessem brandir
uma espada ou lança. A maioria foi abatida no primeiro ataque. Mas o Spartacus e seus guarda-costas penetraram fundo nas fileiras romanas e lutaram até que fossem
detidos, cercados e mortos. Tudo acabou em menos de uma hora.
Marcus o encarou.
- Mas não foi isso que meu pai disse. Não foi o que as pessoas disseram.
- Claro que não. Muitos homens tinham que ganhar reputação, e o combate não poderia ser outra coisa que não uma grande vitória contra um inimigo perigoso. O Crassus
alegou que nos venceu, mas o Pompeius, o Grande Pompeius, relatou para Roma que foi ele quem realmente sobrepujou a horda de escravos. Quando fui aprisionado em
seu acampamento, ouvi o general fazer discursos para seus soldados dizendo que eram heróis. Ele foi muito generoso com as recompensas e os elogios, e ouso dizer
que seu pai foi um daqueles que se deram bem com aquilo. Não é de espantar que ele ficou satisfeito em manter a versão do general sobre os eventos.
Marcus sentiu um gosto ruim na boca. Ele não queria acreditar no que Brixus contava.
- Claro que a única coisa que o Pompeius não conseguiu destruir ou corromper foi a inspiração que o Spartacus nos deu. Embora a rebelião tenha sido esmagada e o
Spartacus tenha sido morto, seu exemplo continua vivo. Pergunte a qualquer escravo. Ele é o nosso herói secreto. Nós vivemos esperando o dia em que outro Spartacus
irá surgir e romper nossas correntes. E talvez, da próxima vez, seremos nós que sairemos vitoriosos e Roma que será humilhada.
Ele esvaziou a caneca e encarou Marcus.
- Pronto. Você queria saber mais e agora eu falei o que precisava ser dito. O que tenho que saber é se você vai manter isso em segredo.
Marcus concordou devagar com a cabeça.
- Vou. Eu juro pela vida da minha mãe.
Brixus observou Marcus atentamente por um momento.
- Isso basta para mim. Dê-me sua mão, jovem Marcus.
Marcus se debruçou sobre a mesa, estendeu o braço e sentiu os dedos envelhecidos de Brixus em sua mão. Eles se cumprimentaram brevemente e depois Brixus o soltou.
- Isso é tudo por hoje. Você deve estar cansado.
- Muito. - Marcus desceu escorregando do banco. - Obrigado pelo vinho.
Brixus sorriu e acenou com a mão para a porta.
Lá fora, Marcus encolheu a cabeça para dentro da túnica e percorreu rapidamente o pequeno caminho entre a cozinha e o cárcere. Os guardas o deixaram entrar e trancaram
a porta assim que passou. Quando chegou à baia na penumbra, ele tirou as botas, deitou-se na pilha de palha e se cobriu com a túnica sobressalente para se aquecer.
O sono chegou facilmente, apesar dos pensamentos que giravam em sua cabeça sobre o que Brixus contara. O sono foi profundo e sem sonhos.
Até ele ser chutado com força nas costelas.
- Levante-se! Levante-se, seu ladrão!
Marcus se remexeu; a mente estava sonolenta. Franziu os olhos quando uma tocha brilhou sobre ele. O homem que o acordou agora o colocara de pé à força. Nesse momento,
Marcus notou que a tocha estava na mão de Amatus e que o homem que o chutou foi Taurus, o instrutor-chefe da escola.
- O que você fez com ela, ladrão?
Marcus pestanejou e balançou a cabeça.
- Fiz? Fiz com o quê, amo?
- A posta de carne de cervo que você roubou do depósito.
- O quê? - Marcus olhou de um para o outro. - Que carne de cervo, amo? Juro que não peguei nada.
- Mentiroso! - Taurus ergueu uma bota. Os laços estavam abertos e a lingueta de couro sacudiu quando o instrutor balançou a bota. - Isso é seu.
Marcus olhou para o calçado e balançou a cabeça.
- Minhas botas estão ali, amo. Na entrada da baia.
- Três botas estão ali. Essa foi encontrada há pouco tempo, quando trocaram a guarda. Acho que você deve ter abandonado a bota na pressa de escapar, antes que fosse
visto, não é? Ela foi encontrada no depósito usado para a saturnal. Quebraram a tranca. Beberam um pouco de vinho e roubaram a carne de cervo. - Ele franziu a testa
e cheirou Marcus subitamente. - Você cheira a vinho!
Marcus sentiu uma onda gelada de terror descer pela espinha.
- Não fui eu! Essa não é a minha bota. Eu juro!
- Cale a boca, ladrão! - Taurus ergueu a bota até a tocha. - Está vendo? Este é o par que você recebeu. Portanto, chega de mentiras, ladrão. Você vai pagar por isso.
Sabe o que fazemos com ladrões? - Ele agarrou Marcus pela túnica. - E então?
- N-não, amo.
- Você vai passar pelo corredor. - Os lábios formaram um sorriso cruel. - Seus companheiros vão formar duas filas. Cada escravo segura um porrete e, quando é dada
a ordem, o ladrão tem que passar pelo corredor sendo espancado ao longo do trajeto. - Taurus riu. - O problema é que eu raramente vejo um escravo que sobreviva por
tempo suficiente para chegar ao final.
Marcus sentiu o estômago gelar. Ele queria negar, dizer que era inocente, mas, pela expressão de Taurus, o homem não ouviria uma palavra sequer. As vozes altas acordaram
alguns dos outros escravos e, sob a luz tênue do braseiro no fundo do alojamento, Marcus viu rostos olhando para ele pelas laterais das baias. Ele notou Ferax e
os dois se encararam enquanto um sorriso ardiloso se formava nos lábios do celta.
20
Sob a pálida luz da aurora, Marcus foi arrastado para fora da cela sem janelas onde havia sido jogado por Taurus na noite anterior. O ar estava frio e ele reprimiu
o instinto de tremer. Decidiu não deixar que ninguém visse que estava com medo. Não sentia medo apenas por ele, mas também pela mãe, e ficou irritado consigo mesmo
por ter falhado com ela. Amatus pegou seu braço com força e o conduziu pelos alojamentos e através do portão ao complexo de treinamento. Taurus estava esperando
por ele.
- Ainda diz que é inocente, menino?
Marcus concordou com a cabeça.
- Eu não roubei nada, amo. Foi outra pessoa que fez parecer que fui eu. Eu juro por todos os deuses.
Taurus franziu a testa.
- Cuidado, rapaz. Os deuses não são afeitos a serem muito misericordiosos com aqueles que fazem falsos juramentos.
- Eu sei, amo.
- Seja lá o que pensem os deuses, você agora está em minhas mãos e vai ser punido. Entendeu?
Marcus hesitou antes de dar de ombros, resignado.
- Sim, amo.
Houve um breve silêncio e, em seguida, Taurus falou novamente:
- Olhe só, Marcus, se não foi você quem roubou a carne, então quem foi, hein?
Marcus tinha uma boa ideia de quem armara a cilada para ele. Se havia alguém por trás disso, tinha que ser Ferax. Mas Marcus não tinha provas para corroborar qualquer
acusação contra o celta e, de qualquer forma, com a descoberta da bota e do hálito com cheiro do vinho de Brixus, era natural que Taurus presumisse que ele era culpado.
Tudo que Marcus podia fazer era se vingar de Ferax, se sobrevivesse ao castigo. Ele ergueu o olhar triste e encarou o instrutor-chefe.
- Não posso dizer quem foi. Apenas que não fui eu, amo.
- Então você não me deixa escolha. - Taurus se empertigou e virou o olhar duro para Amatus. - Chame todos os escravos para testemunharem.
- Sim, amo. - Amatus soltou Marcus, baixou levemente a cabeça e se virou para correr na direção dos alojamentos. Marcus ficou imóvel e olhou para a frente enquanto
Taurus batia a ponta da vara de videira na lateral da bota. Pouco tempo depois, os primeiros gladiadores passaram pelo portão e formaram uma fila diante de Marcus.
Os homens mal olharam para o jovem menino enquanto esperavam. Assim que o último gladiador chegou, em seguida vieram os meninos do grupo de Marcus. A maioria estava
curiosa, mas alguns pareciam encará-lo com medo ao se imaginar no lugar dele. Ferax e seus comparsas o observaram com sorrisos levemente debochados enquanto passavam,
e Marcus sentiu a fúria crescer por dentro. Finalmente vieram os escravos serventes da escola de gladiadores, e Brixus estava entre eles. Havia uma expressão de
surpresa em seu rosto quando ele viu Marcus. Depois, o cozinheiro e os demais correram para formar uma fila do outro lado.
Quando o último dos escravos entrou em posição, Taurus respirou fundo e andou até o meio do pátio de treinamento.
- Para aqueles que ainda não sabem, vocês foram chamados aqui para testemunhar a punição deste ladrão. O menino roubou comida da cozinha ontem à noite. Graças à
própria estupidez, ele foi capturado. Vocês já devem saber qual é o castigo para roubo. Que a manhã de hoje sirva como alerta para todos. - Ele se voltou para Amatus.
- Traga sua turma à frente. Forme duas filas no centro do pátio!
Amatus vociferou para os meninos, que rapidamente foram à frente e formaram uma avenida diante de Marcus. A outra ponta, a cinquenta passos de distância, ficava
perto da cerca do lado oposto do pátio de treinamento. Os meninos ficaram a quase dois metros um do outro, virados para a fileira oposta. Assim que eles se posicionaram,
Amatus caminhou até uma cesta de vime contendo uma pilha de bastões de madeira sólida. Ele tirou uma grande quantidade deles da cesta, segurou-os contra o peito
e depois retornou para a turma à espera.
Taurus se voltou para Marcus.
- Tire a sua túnica.
De costas para Brixus e os demais escravos, Marcus encarou o homem, depois puxou a túnica pela barra, passou pela cintura e finalmente tirou a roupa pelos ombros.
Taurus pegou a túnica e Marcus ficou de botas e tanga. Houve um pequeno suspiro de surpresa, e Marcus notou que Brixus o encarava de olhos arregalados...
- Silêncio aí! - rugiu Taurus. - Aqueles no corredor, fiquem prontos! Não quero ver ninguém fazendo corpo mole. Assim que o menino passar na sua frente, vocês farão
o melhor possível para bater nele com força. Qualquer um que errar o golpe ou bater fraquinho vai ser o próximo a passar pelo corredor. Ficou claro? - Ele pegou
Marcus pelo ombro e o conduziu até o par de meninos no começo do corredor. - Quando eu der a ordem, você começa. - Ele baixou a voz até virar um sussurro: - É melhor
correr pra valer. Mantenha os braços erguidos para proteger a cabeça. Não hesite e não caia. Se cair, você está morto, entendeu?
Marcus concordou com a cabeça; seu corpo tremia tomado por puro terror.
- Então, prepare-se. No três. Um! Dois!...
- Pare!
Taurus deu meia-volta com uma expressão de ódio.
- Quem diabos falou isso?
Marcus olhou para trás e viu os escravos olhando para Brixus. O velho cozinheiro engoliu em seco nervosamente e depois deu um passo à frente, mancando.
- Fui eu, amo.
- Brixus? Como você ousa? Como ousa intervir? - Taurus cerrou o punho na vara de videira e andou até o cozinheiro com uma expressão sombria como a noite. - O que
significa isso?
Brixus se empertigou e encarou o instrutor-chefe diretamente.
- O menino é inocente, amo. Eu o conheço. O Marcus não é o ladrão.
- Sério? - rosnou Taurus. - O que o faz pensar assim? A não ser que você tenha estado lá e visto o ladrão em pessoa. E então?
O olhar de Brixus cruzou brevemente com o de Marcus. Então Taurus deu uma estocada com a vara de videira no estômago do cozinheiro, que dobrou o corpo e soltou um
gemido ao cair de joelhos. Taurus se debruçou sobre ele ameaçadoramente.
- E então?
- Fui... eu. - Brixus arfou, tentando respirar. - Eu roubei a carne.
Taurus congelou.
- O quê? Você? Eu não acredito!
- É verdade, amo. - Brixus fez um esforço para respirar. - Eu roubei. O menino é inocente.
Marcus balançou a cabeça, perplexo. Brixus era o ladrão? Uma dúvida gelada apertou seu coração e ele se perguntou por que Brixus se manifestou. Seria culpa, talvez,
por Marcus ter sido acusado pela carne roubada? Todos os rostos no pátio de exercícios estavam voltados para os dois homens. Houve um longo silêncio, até que Taurus
se empertigou e colocou as mãos nos quadris.
- Muito bem, então. Se foi você, por que confessou agora, quando poderia ter escapado impune, hein?
Brixus recuperou o fôlego e ergueu o olhar.
- Eu não vou aceitar que um menino qualquer apanhe no meu lugar, amo.
- Por que não?
- Eu tenho meu orgulho. Posso ser um escravo, mas ainda tenho alguma noção de honra.
- Honra? - Taurus soltou uma gargalhada. - Honra! Eu não paro de me surpreender! Honra é para homens livres, Brixus. Nenhum escravo pode se dar a esse luxo.
- Embora eu seja um escravo, ainda sou um homem, amo.
Taurus deu um passo para trás.
- Muito bem, de pé então. Vamos ver como sua noção de honra aguenta uma boa surra. - Ele se virou para Marcus. - Você aí, moleque! Pegue sua túnica e saia do caminho.
Marcus hesitou, surpreso demais para se mexer. Taurus ergueu a vara de videira em ameaça e Marcus pegou a túnica e correu até os escravos. Ao passar a túnica pela
cabeça, ele ouviu o instrutor-chefe ordenar que Brixus tirasse a roupa e tomasse a posição no começo do corredor. Marcus empurrou a cabeça por dentro da gola da
túnica e viu o cozinheiro mancar em direção às filas de meninos.
Taurus ficou bem atrás dele, esperou que todos ficassem completamente imóveis e em silêncio, e depois berrou:
- Preparem-se! Um... dois... três! Vai, Brixus!
O cozinheiro baixou a cabeça e ergueu os braços para proteger o crânio dos golpes que viriam. Aí, com um rápido cambaleio à frente, ele entrou no corredor. Marcus
prendeu a respiração assim que o primeiro par de meninos atacou com os porretes improvisados. Brixus andava mais rápido do que eles esperavam, e os meninos tiveram
pouco tempo para preparar os golpes. Um bastão desviou pela lateral de Brixus e o outro pegou o ombro de raspão, quando ele correu abaixado. O segundo par de meninos
estava mais preparado, e os golpes pegaram em cheio as costas de Brixus com baques que ecoaram pelo pátio de treinamento. Ele levou os golpes e continuou correndo,
desviando irregularmente de um lado para o outro para fazer os agressores perderem a mira. Marcus assistiu ao avanço de Brixus com um nó no estômago de ansiedade.
- Vamos lá, Brixus - murmurou. - Você consegue.
Brixus tinha passado da metade do corredor. A combinação de movimentos cambaleantes e erráticos conseguiu salvá-lo da força total dos golpes. Faltavam apenas mais
ou menos vinte passos para acabar, porém, perto do fim do corredor, Marcus viu Ferax erguer o porrete e se meter no caminho de Brixus. O cozinheiro estava com a
cabeça levemente abaixada e não viu o perigo até o último momento, quando sentiu a presença de alguém diretamente em frente a ele. Com um grito selvagem de triunfo,
Ferax desceu o porrete, que acertou de raspão a lateral da cabeça de Brixus. As pernas cederam e ele desmoronou de joelhos; o torso cambaleou como se estivesse bêbado.
Ferax ergueu o porrete e parou sobre o cozinheiro indefeso.
- Não - murmurou Marcus desesperadamente. - Não... NÃO!
Ele disparou correndo na diagonal pelo pátio. Ferax estava virado meio de lado e não podia ver Marcus se aproximando; sua atenção estava voltada para a vítima. Ele
segurou o bastão com as duas mãos e começou a erguê-lo sobre a cabeça. Marcus correu pela terra batida, desesperado para salvar o amigo.
- Ei, você! - vociferou Taurus. - Aonde diabos você pensa que está indo?
Marcus o ignorou e concentrou toda a atenção em Ferax. Os músculos do ombro e do braço do celta se retesaram quando ele fez menção de golpear com o porrete. Marcus
se atirou para a frente e agarrou os pulsos do menino maior antes que seu peso colidisse com a lateral do corpo de Ferax. Eles perderam o fôlego ao cair no chão
ao lado de Brixus. Ferax ficou momentaneamente surpreso demais para reagir. Marcus aproveitou a vantagem. Deu vários golpes no estômago de Ferax para cansá-lo e
deixou o celta caído de lado, arfando. Marcus rapidamente rolou para longe e ficou agachado, pronto para continuar o ataque. Mas Ferax não conseguiu reagir por um
instante. Aproveitando a chance, Marcus foi até Brixus.
- Levante! Vamos, Brixus, de pé.
Brixus rolou a cabeça para o lado, tonto.
- E-eu não consigo.
- Tem que conseguir! Ou vai morrer aqui! - Marcus o agarrou e cerrou os dentes ao se esforçar para ajudar o homem a ficar de pé. Depois, com o braço de Brixus sobre
o ombro, ele avançou com dificuldade. À frente estavam os últimos dois meninos, dois dos companheiros de Ferax. Eles olharam para o líder e depois para Marcus, sem
saber o que fazer.
Marcus estava tomado pela fúria:
- Se sequer tocarem em Brixus, eu juro que mato vocês... - sibilou Marcus, entre os dentes cerrados.
Os meninos continuaram segurando os bastões, mas não foram em direção a ele no momento em que Marcus passou cambaleando com Brixus e desmoronou no fim do corredor.
O peito arfava pelo esforço e ele lutou para ficar de pé diante do cozinheiro, protegendo o homem.
- Ora, ora! - Taurus riu ao andar na direção deles e examinou Marcus com uma expressão alegre. - Você é pele e osso, só tem meia dúzia de músculos, mas, pelos deuses,
tem o coração de um leão! Eu talvez consiga fazer de você um gladiador, jovem.
- Não! Não se eu puder evitar! - rosnou Ferax, que se esforçou para ficar de pé e esticou a mão em direção ao porrete de madeira que deixara cair. Seus dedos pegaram
o cabo e, em seguida, Ferax soltou um grito agudo de dor quando Taurus pisou neles com as travas de suas botas.
- Solte o bastão, rapaz. Você teve a sua chance. Da próxima vez, é melhor não hesitar. Considere que aprendeu uma lição.
Ferax ergueu um olhar furioso para ele.
- Eu falei para soltar. Não vou repetir.
Depois de um momento de hesitação, Ferax abriu a mão e recuou, arrastando os pés. Ele voltou a atenção para Marcus e murmurou:
- Você está morto. Eu juro por tudo que existe de mais sagrado. Você vai morrer pelas minhas mãos.
21
Brixus fez uma careta ao se esforçar para se sentar no colchonete. Ele apoiou as costas na parede de argamassa da enfermaria e respirou com cuidado por um instante
para não aumentar a dor das costelas quebradas. Tirando as faixas de pano amarradas com firmeza em volta do torso e um antebraço preso por talas, o corpo de Brixus
estava coberto por hematomas roxos e cicatrizes escuras onde a pele estava lanhada ou cortada. Marcus se sentiu enojado e horrorizado pela surra severa que o cozinheiro
tomou por ele.
- Ora, vamos. - Brixus deu um sorriso forçado. - Eu não pareço tão mal.
Marcus balançou a cabeça.
- Você está um lixo.
- Obrigado. Se é isso o que eu ganho por salvar a sua pele, na próxima não vou perder meu tempo. - Ele fingiu estar magoado e desapontado por um momento, até voltar
a sorrir. - De qualquer forma, aquilo aconteceu há dois dias e não vejo você desde então.
- O Taurus tem me mantido ocupado. Ele disse que eu deveria pegar a maioria de suas tarefas até você se recuperar. Quando não estou treinando, estou ocupado na cozinha.
O Taurus anda vigiando o lugar como um gavião. Acho que ele está garantindo que não haja mais nenhum problema entre mim e o Ferax.
- Sem chance - falou Brixus com desdém. - Eu conheço aquele tipo. O Ferax não vai descansar até destruir você.
- Eu sei - respondeu Marcus baixinho. Ele pigarreou e continuou: - De qualquer maneira, como você está se sentindo hoje?
- O corpo todo dói, mas o médico disse que não há dano permanente. Vai levar um tempo até meu braço melhorar. Então é melhor você cuidar bem da minha cozinha, jovem
Marcus, ou o Ferax não será o único a querer o seu sangue!
Brixus fez uma pausa e encarou Marcus intensamente.
- Eu soube que você interveio para me salvar. Ainda não consigo me lembrar muito do que aconteceu. Depois do primeiro golpe na cabeça, as coisas ficaram meio confusas.
O Taurus me contou.
- O Taurus? - Marcus ficou surpreso.
- Sim. Ele deu ordens para eu ser bem cuidado. Claro que o Taurus falou que fez isso apenas para garantir que o Porcino não perdesse um escravo e que eu preciso
me recuperar o mais cedo possível para retomar meus afazeres na cozinha. Mas ele não me enganou. Notei que ficou impressionado com nós dois.
- É?
- Com certeza. Ficou impressionado comigo por levar a culpa e com você por correr para me defender. O Taurus pode ser um velho brutamonte casca-grossa, como vários
legionários veteranos são, mas ele é justo e sabe apreciar uma boa qualidade.
Marcus concordou com a cabeça, mas não estava interessado em Taurus. Apenas na pergunta que martelava em sua cabeça desde que Brixus o salvara do corredor.
- Por que você fez aquilo? Por que me salvou?
Brixus o encarou por um momento, sem mais nenhum sinal de humor no rosto. Ele deu de ombros fracamente.
- Eu não acredito que você roubou a carne. Com toda certeza foi aquele valentão, o Ferax. Ele viu uma maneira de culpá-lo e se livrar de você de um jeito que certamente
aumentaria o controle sobre os outros meninos. Eu não podia ficar parado e deixar que isso acontecesse, Marcus. Foi esse o motivo.
Marcus não tinha tanta certeza. Queria acreditar no cozinheiro. Brixus provou ser uma das poucas pessoas que ele considerava como amigo na escola de gladiadores.
No entanto, era difícil aceitar que alguém correria tamanho perigo em nome de uma amizade de poucos meses. A não ser que houvesse outra razão. Mas qual poderia ser?
- Eu lhe agradeço pela minha vida, Brixus - falou Marcus, sem jeito. - Não era apenas a minha vida em jogo, mas a de minha mãe também.
- Eu sei. Você me falou tudo a respeito dela. Sobre o que aconteceu com sua família. - Brixus ficou calado novamente e mordeu o lábio ao olhar intensamente para
Marcus. Então ele apontou para o chão ao lado do colchonete. - Sente-se. Eu quero falar uma coisa.
Marcus obedeceu e se sentou nos ladrilhos com as pernas cruzadas.
- Assim está melhor - disse Brixus. - Eu não tenho que forçar meu pescoço para olhar para você dessa maneira. Agora, Marcus, quero fazer algumas perguntas.
- Que perguntas?
- Sobre a sua família... sobre a marca no seu ombro.
Marcus ergueu as sobrancelhas, surpreso.
- Você quer dizer esta cicatriz?
- Cicatriz? Bem, acho que dá para chamar de cicatriz.
- O que você sabe sobre ela?
- Eu a vi quando o Taurus mandou que você tirasse a túnica antes de passar pelo corredor - explicou Brixus. - Como você conseguiu essa cicatriz?
Marcus deu de ombros.
- Ela sempre esteve aqui, desde que eu me lembro.
- Entendi. Você sabe como aconteceu?
Marcus fez que não.
- Deve ter sido quando eu era um bebê. Por que pergunta?
- Só por curiosidade. - Brixus franziu os lábios antes de continuar: - Você se importaria se eu visse a cicatriz outra vez?
Marcus ficou intrigado com o pedido.
- O que há de tão especial nela?
- Deixe-me ver.
Havia um brilho estranho nos olhos do homem e Marcus ficou nervoso. Ele hesitou um momento e depois tirou a túnica de cima do ombro para exibir a pele enrugada da
marca que possuía. Era estranho que ele jamais tivesse sido capaz de ver a própria cicatriz e houvesse apenas passado os dedos pelo contorno da estranha silhueta.
Ele virou um pouco o corpo para mostrar o ombro para Brixus. O cozinheiro olhou a marca em silêncio, depois tossiu.
- Obrigado.
Marcus ajeitou a túnica e recuou para encarar o homem. Brixus estava olhando para ele com uma expressão intensa.
- Você sabe o que é a marca no seu ombro?
- Não. Eu jamais a consegui ver direito.
- Não é uma cicatriz, Marcus, nem alguma espécie de marca de nascença. Você foi marcado. Foi exatamente o que eu pensei quando vi pela primeira vez, há dois dias.
- Marcado? - Marcus tremeu diante da ideia. - Por que alguém teria me marcado quando eu era um bebê? De qualquer forma, como é a marca?
- A cabeça de um lobo enfiada na ponta de uma espada.
Marcus não conseguiu evitar uma breve risada.
- O que isso significa?
- Eu não sei dizer, não ainda - respondeu Brixus baixinho, enquanto olhava sobre o ombro do garoto na direção da porta da cela. Em seguida, continuou em um tom ainda
mais baixo, pouco acima de um sussurro: - Fale sobre sua família outra vez. Você disse que seu pai era um centurião.
- Isso mesmo.
- E quanto à sua mãe? De onde ela veio? Como conheceu seu pai?
- Ela era uma escrava - respondeu Marcus. - Esteve envolvida na revolta liderada pelo Spartacus e foi comprada pelo meu pai quando os rebeldes foram esmagados. Ele
a libertou e se casou com ela.
- E aí você nasceu - refletiu Brixus. - Conte-me, como era sua mãe? Descreva-a para mim.
Enquanto Marcus se concentrou e dolorosamente se lembrou do máximo de detalhes sobre a mãe que foi capaz, Brixus prestou atenção o tempo todo e ocasionalmente concordou
com a cabeça, como se quisesse encorajá-lo a continuar. Quando Marcus terminou, Brixus franziu a testa e balançou a cabeça ao murmurar para si mesmo:
- Ela deve ter levado o ferrete junto...
Marcus se aproximou.
- Do que você está falando? Não está fazendo sentido algum. Brixus, diga qual é a questão. Diga!
- E-eu não tenho certeza. Minha mente ficou bastante confusa desde que vi a sua marca. Pode significar alguma coisa ou não. Porém, não posso dizer mais até ter provas.
Aí eu poderei contar o que sei. Até lá, você não deve falar nada sobre isso para ninguém. - Ele pegou o pulso de Marcus com força e o trouxe para perto. - Nenhuma
palavra para ninguém, entendeu?
- Por quê? Qual é o segredo? - perguntou Marcus, frustrado. - O que você está escondendo de mim?
- É melhor que você não saiba. Não ainda. - Brixus abriu a mão e fez uma careta ao se recostar, respirando rápido. Ele gesticulou para a porta. - Eu estou cansado
agora. Preciso descansar. Aposto que o Taurus está esperando por você na cozinha. Melhor ir para lá, se quiser evitar uma surra.
- Não - disse Marcus com firmeza. - Conte o que você sabe.
Brixus fez que não.
- É cedo e perigoso demais para isso. Vou contar tudo que sei quando for a ocasião certa. Confie em mim. Agora, vá! - Ele esticou o braço e empurrou Marcus na direção
da porta. O menino precisou se apoiar para não perder o equilíbrio.
Com a testa franzida em uma expressão sombria, Marcus ficou de pé e cerrou os punhos. Brixus virou o rosto e não falou mais nada. Marcus deixou a cela e saiu em
um rompante da enfermaria, correndo até a cozinha tomado pela frustração.
A saturnal foi celebrada em um dia frio e de ventos fortes. Enquanto o vento e a chuva açoitavam a escola de gladiadores, batendo nos ladrilhos e uivando pelas paredes,
os escravos, os instrutores, os funcionários e até mesmo o próprio Porcino estavam todos reunidos no maior dos alojamentos. Nesse ano, o lanista resolveu que todos
os seus escravos seriam alimentados na mesma hora, não importando a idade. Mesas e bancos foram trazidos da cozinha e colocados ao longo do interior do edifício.
Assim que os escravos tomaram seus lugares, Porcino e seus homens livres entraram carregando bandejas repletas de comida e bebida. Nesse dia, pelo menos uma vez,
não houve treinamento, e os homens e meninos olharam com alegria desenfreada para a comida posta diante deles. Pães frescos, pedaços de carne curada, queijos, potes
de molho de peixe e salsichas bem apimentadas.
Marcus estava sentado ao lado de Pelleneus. Em frente estavam Phyrus e o espartano. Phyrus se debruçou para a frente e pegou um dos pães, arrancou um grande bocado
e mastigou furiosamente.
- Calma aí, meu amigo - disse Pelleneus, rindo. - Ou não vai sobrar nada para o resto de nós!
- Verdade - balbuciou Phyrus, cuspindo migalhas. - Hum, tem gergelim no pão.
Ao lado dele, o espartano limpou algumas migalhas que caíram na manga da túnica, depois pegou a menor das salsichas e mordeu a ponta, comendo com uma indiferença
forçada.
Marcus esperou até que os homens enchessem seus pratos de madeira antes de pegar um pouco de carne com hesitação. Pelleneus o cutucou.
- Não existe hierarquia na saturnal. Vai pegando.
Enquanto Marcus se servia, Phyrus se debruçou sobre a mesa e engoliu depressa antes de falar:
- Como está o cozinheiro? Eu soube que você andou-o visitando.
- O Brixus está se recuperando bem. Deve voltar ao trabalho qualquer dia desses.
- Melhor assim - comentou o espartano. - Ele é praticamente o único escravo que sabe cozinhar.
Marcus ficou vermelho.
- Os outros meninos e eu fazemos o possível.
O espartano deu de ombros.
- Bem, eu espero que você aprenda a lutar melhor do que cozinha, jovem Marcus. Se quiser viver.
- Ah, ignore o que ele diz - disse Pelleneus. - Aproveite o dia.
Marcus concordou com a cabeça, feliz. Apesar de tudo o que aconteceu, ele gostava dos três companheiros e passou a considerá-los quase como se fossem irmãos mais
velhos. Não, irmãos não, pensou. Mais para tios.
- Ah, lá vem o vinho! - Pelleneus apontou a porta com a cabeça, e Marcus viu os instrutores voltando ao alojamento cheios de jarras de vinho e cestas repletas de
canecas de madeira. Taurus se aproximou do quarteto, colocou uma jarra no apoio de ferro sobre a mesa e quatro canecas.
- Não tenho certeza se realmente quero frequentar este estabelecimento - comentou o espartano secamente. - Este servente parece grosseiro demais.
- Aproveite ao máximo - resmungou Taurus. - Amanhã vocês todos são meus novamente.
Quando o instrutor foi adiante, Marcus trocou um olhar com os outros três e, em seguida, eles caíram na gargalhada.
O banquete continuou pelo dia afora e, à noite, depois que os restos foram recolhidos, as mesas foram empurradas para o lado e Porcino conduziu uma trupe de artistas
para o alojamento. Tochas foram acesas e colocadas em suportes nas paredes. Sob a luz, os artistas fizeram algumas acrobacias antes de seguirem com um repertório
de mímicas toscas que em pouco tempo fizeram os gladiadores, a maioria já bêbada a esta altura, terem acessos de risos histéricos. Marcus, que havia bebido apenas
uma caneca de vinho, ficou levemente alterado e se apoiou em uma parede para assistir ao espetáculo com um sorriso vago. Mas então seu humor piorou ao saber que
a manhã marcaria o retorno ao duro regime de treinamento de Amatus.
Quando os artistas terminaram os números e saíram do alojamento, Porcino subiu em uma mesa no fim do salão e ergueu as mãos para atrair a atenção.
- Silêncio! Silêncio aí!
Aos poucos a conversa foi diminuindo e todos os olhos se voltaram para o dono da escola de gladiadores. Porcino esperou até haver silêncio e que a atenção de todos
estivesse voltada para ele. Então o lanista respirou fundo e se dirigiu a eles:
- Gladiadores, vocês ganharam o direito de celebrar a saturnal! É um prazer recompensá-los pelo esforço que fazem no treinamento. Jamais vi uma leva tão boa de homens
e meninos. Vocês honram a minha escola de gladiadores e a tradição dos guerreiros que vieram antes de vocês. Gladiadores, eu os saúdo!
Ao redor de Marcus, os homens e meninos vibraram animadamente por um tempo. Todos eles, exceto o espartano, que olhou para os colegas escravos com um desdém mal-dissimulado.
Aos poucos a vibração diminuiu e Porcino continuou:
- Vocês realmente são um grupo de guerreiros tão bom quanto jamais treinei. Estou orgulhoso de vocês. Em poucos dias, vou ficar ainda mais orgulhoso. Nós teremos
a honra de receber um grupo das melhores famílias de Roma. Eles estão vindo à minha escola para ser entretidos por vocês. Posso afirmar que grande fama e fortuna
estão à espera em Roma, pois, com certeza, assim que os lordes romanos virem vocês em ação, eles vão querer exibi-los para os amigos e para as pessoas da maior cidade
do mundo. Pensem nisso, meus gladiadores! A grandeza está chamando. Respondam sinceramente e com todas as habilidades que lhes foram ensinadas - concluiu ele.
Houve uma vibração abafada de um punhado de homens no alojamento que estavam bêbados demais para entender plenamente as palavras do dono. A maioria estava sóbria
o suficiente para entender a importância do que Porcino falou. Marcus olhou em volta e notou a súbita mudança no ambiente. O clima de farra foi embora do alojamento
e parecia que uma sombra escura e fria havia tomado o salão. Pelleneus tirou a caneca dos lábios e a jogou para o lado, praguejando.
- Desejo a vocês boa-noite! - gritou Porcino.
Ele estava prestes a descer da mesa quando a porta do alojamento se abriu e uma sentinela entrou de lança na mão. Ele parou na frente do lanista e baixou a cabeça.
- Amo, peço licença para informar que um dos escravos sumiu.
- Sumiu?
O guarda engoliu em seco, nervoso.
- Fugiu, amo.
O alojamento ficou em silêncio conforme os homens e meninos se esforçavam para ouvir o que estava sendo dito. Porcino olhou feio para o recém-chegado.
- Fugiu? Como? Todos deveriam estar aqui hoje à noite. Como o fugitivo conseguiu passar por você e seus homens?
- Amo, o escravo não estava aqui. Estava na enfermaria.
Marcus sentiu o coração disparar.
- Que escravo é esse? Qual é o nome dele?
- Brixus, senhor.
22
Porcino imediatamente deu a ordem para os guardas e instrutores procurarem por Brixus. Os escravos foram trancados no alojamento e Marcus subiu em um banco para
enxergar o lado de fora do edifício por uma das frestas de ventilação. Através da abertura por onde passava a corrente de ar, ele viu o clarão de tochas na brisa
forte e as silhuetas escuras de homens vasculhando os outros prédios atrás de algum sinal de Brixus. As vozes de Porcino e Taurus ecoaram das muralhas ao liderarem
a caçada.
- Lá se foi o espírito festivo - murmurou uma voz ao lado de Marcus. O menino se virou e viu que o espartano tinha se juntado a ele. - É engraçado como a benevolência
do nosso dono some no momento em que sua propriedade está em jogo, e cá estamos nós novamente, escravos trancados em nossa prisão. Ai, ai. - Ele deu um sorriso sem
graça.
Marcus voltou novamente a olhar pela nesga quando um grupo de homens passou correndo. Ficou chocado com o anúncio da fuga de Brixus. O cozinheiro não dera nenhuma
indicação de seus planos e Marcus ficou magoado pelo amigo não confiar nele o suficiente para contar. Ele estava furioso por ter perdido a chance de se juntar a
Brixus na fuga. Podia estar a caminho de encontrar o general Pompeius agora mesmo, em vez de estar festejando com os outros escravos.
- Você acha que ele vai escapar? - perguntou Marcus.
- Como vou saber? - O espartano deu de ombros. - Só consigo enxergar tanto quanto você. Mas, na minha opinião, o Brixus é um tolo por tentar escapar.
- Por que diz isso?
- Por quê? O homem é coxo. Mesmo que consiga passar pelas muralhas, ele não pode acreditar que vai correr mais do que seus perseguidores. Quando a manhã chegar,
eles vão procurar pelo cozinheiro no campo. Sua única esperança é que esta chuva apague qualquer trilha que tenha deixado. O Brixus vai chamar a atenção mancando
daquele jeito. - O espartano ficou calado por um momento e depois estalou a língua. - Vou ficar surpreso se ele não for capturado antes do cair da noite de amanhã.
- E, se ele for capturado, o Porcino irá puni-lo - refletiu Marcus.
- Sim.
Ambos olharam para a noite lá fora antes de Marcus pigarrear.
- O que você acha que o Porcino vai fazer com o Brixus?
- Ele vai fazê-lo de exemplo para nos desencorajar a pensar em tentar fugir. Nessa decisão, será levado em conta o valor do Brixus. Que dilema para o nosso dono,
hein? Uma luta entre o desejo por disciplina e a ganância.
- Se a disciplina vencer, daí o que acontece?
O espartano se virou para Marcus.
- O Porcino vai crucificar o Brixus na nossa frente e deixá-lo na cruz para morrer, depois vai deixá-lo lá por mais um tempo para garantir que aprendamos a lição.
Marcus sentiu o sangue gelar.
- Você realmente acha isso?
O espartano fez que sim, depois saiu da fresta de ventilação e bocejou.
- Não há nada que possamos fazer a respeito, menino. Melhor descansar. Você vai precisar, quando voltar a treinar pela manhã.
Marcus olhou para ele e concordou com a cabeça, mas permaneceu diante da nesga, observando a caçada dentro do complexo chegar ao fim e viu Porcino ordenar que os
homens começassem a procurar fora das muralhas. O espartano estalou o ombro, virou-se na direção da baia e murmurou:
- De qualquer maneira, feliz saturnal, menino.
Mas Marcus não conseguiu responder. Estava envolvido demais com os pensamentos sobre o que aconteceria com o amigo se ele fosse encontrado.
Pelos próximos dias, Marcus viveu com medo de ouvir a notícia de que Brixus tinha sido capturado. Ele e os outros meninos continuaram treinando. O inverno estava
frio e os garotos tremiam todas as manhãs, quando se levantavam na aurora para realizar os afazeres na cozinha antes de ser conduzidos por Amatus ao pátio de treinamento.
Com o começo do novo ano, o instrutor apresentou novas técnicas de luta de espadas aos alunos e mandou que eles praticassem contra os postes até ser convencido de
que estavam prontos para o próximo estágio.
Em uma manhã fria e sombria, Marcus e os demais pegaram as armas de treino, formaram duas fileiras e esperaram por Amatus para o início da lição do dia. Ele ficou
diante dos meninos e examinou os escravos com um olhar duro. Então falou:
- Hoje colocaremos seu treinamento à prova pela primeira vez. Todos vocês estão em melhor forma, mais resistentes e fortes do que quando chegaram aqui. Também sabem
manejar uma espada e um escudo. No entanto, uma coisa é praticar contra um poste. Outra bem diferente é encarar um oponente de verdade. E é isso que vocês farão
a partir de agora.
Marcus sentiu a pulsação acelerar, e os meninos dos dois lados se remexeram com uma mistura de empolgação e ansiedade.
- Hoje vocês começam a lutar com seus companheiros. As regras são simples. Vocês lutam quando eu mandar e param no momento em que eu der a ordem "parem!". Quero
que lutem pra valer. Como se suas vidas dependessem disso, porque um dia vão depender mesmo. Só irão se prejudicar se facilitarem os golpes. Sei que alguns de vocês
podem ser amigos, mas saibam: um gladiador não pode se dar ao luxo de ter amigos de verdade. Um amigo de verdade é alguém por quem vocês podem dar a vida. Essa não
é a preocupação de um gladiador. Qualquer um que considerem como amigo pode muito bem ser seu oponente na arena amanhã. E aí, o que vocês arrumaram com essa amizade?
A morte. - Ele fez uma pausa para que as palavras duras fizessem efeito. - Agora, vocês precisam aprender onde bater. Ferax!
- Sim, senhor!
- Um passo à frente, aqui! - Amatus apontou para o ponto diante dos alunos. Ele virou o celta para que ficasse voltado para os outros meninos. - Observe atentamente.
Abaixe o escudo, Ferax.
Com o celta desprotegido parado diante deles, Amatus rapidamente ergueu a espada de treino e apontou para o rosto de Ferax. O celta recuou um pouco.
- Uma estocada aqui pode matar seu oponente se varar o crânio. No mínimo irá incapacitá-lo. No entanto, é um golpe difícil de acertar. Mas vocês podem usar para
distraí-lo, depois seguir para outro alvo. - Ele abaixou a ponta da espada. - Como a garganta, por exemplo. Um bom golpe aqui resultará em morte. Mais abaixo, temos
o peito. Melhor evitar essa área, uma vez que muitos oponentes estarão de armadura, de escudo ou ambos. Vocês terão que estar muito perto e golpear com a espada
com força e precisão se quiserem passar pelas costelas até o coração. Melhor mirar mais embaixo. Como dizemos no ramo, o coração de um homem se conquista pelo estômago.
Uma bela estocada aqui tem a chance de acertar um órgão, ou, se vocês puxarem a espada com violência, podem estripá-lo. - Amatus bateu com a ponta da espada de madeira
nas coxas e braços de Ferax. - Os braços e as pernas são bons alvos, e vocês devem tentar cortar tendões para aleijar o oponente. Ele não vai morrer de sangramento,
mas pelo menos não vai se mexer ou atacar tão rápido, e vocês poderão abatê-lo com calma. - Amatus abaixou a espada. - Não há sentido em mostrar alvos para atacar
as costas do oponente, uma vez que um gladiador que se preze não irá dar meia-volta e fugir de vocês. Se ele fizer isso, já perdeu a luta de qualquer maneira. Ficou
claro para todos vocês?
- Sim, senhor! - responderam os meninos.
Marcus se juntou a eles, embora estivesse abalado pelo conselho frio e calculista que Amatus acabara de apresentar para os meninos. Era a primeira vez que o verdadeiro
objetivo de todo o treinamento tinha sido explicado tão diretamente. Marcus se perguntou como os outros meninos reagiam à possibilidade de um dia terem que matar
alguém com quem treinaram. Ele olhou para os dois lados e notou as expressões decididas no rosto das pessoas enquanto trocavam olhadelas com os companheiros.
- Muito bem. - Amatus acenou com a cabeça para Ferax. - Volte para a sua posição.
Assim que Ferax voltou para os demais, Amatus apontou para a fileira de postes.
- Quando eu der a ordem, vocês vão esperar lá. Vou chamar dois por vez. O restante vai observar com atenção. Aprendam com os erros deles. Andem!
Eles ergueram os escudos e rapidamente andaram até os postes. Amatus esperou até que ficassem parados e apontou para um dos meninos núbios.
- Você! - Em seguida, ele apontou para um dos companheiros de Ferax, um celta parrudo e sardento. - E você! Um passo à frente.
Os dois meninos saíram hesitantes das fileiras e Amatus bateu palmas.
- Rápido! Aqui fora e um voltado para o outro, a dez passos de distância.
Eles avançaram para as posições e Amatus foi um pouco para o lado, de espada na mão.
- Preparem-se!
Os dois ficaram agachados, com os escudos erguidos e as espadas à frente, um pouco de lado.
- Comecem!
Imediatamente eles se aproximaram e pararam quase dentro do alcance, avaliando um ao outro. O celta se moveu primeiro, deu um passo à frente e arremeteu com um grito.
O núbio recuou com facilidade e bloqueou o golpe. Eles se afastaram por um momento, depois o celta atacou de novo, correu para a frente e golpeou o escudo do outro
menino. O núbio recebeu os golpes, não recuou e, então, assim que o outro começou a recuar para recuperar o fôlego, ele atacou. O núbio golpeou o braço armado do
celta com um ataque selvagem e estonteante que quase fez o oponente deixar a arma cair. Quando ele gritou de dor e surpresa, o núbio bateu em seu joelho e se jogou
para a frente, colocando todo o peso atrás do escudo. O golpe empurrou o celta para trás. Ele cambaleou, depois tropeçou e caiu de costas com um baque e uma explosão
de fôlego. O núbio disparou para a frente com os dentes arreganhados em um sorriso de triunfo. Ele ficou em cima do oponente, com a espada erguida, depois olhou
para Amatus para confirmar a vitória. No chão, o celta aproveitou a oportunidade e chutou os testículos do núbio. Com um gemido de agonia, o menino dobrou o corpo
e cambaleou para o lado. O celta se pôs de pé e socou o núbio na cabeça sem parar, até suas pernas cederem e ele cair de joelhos. O celta agarrou a espada de madeira
e a arrancou da mão do núbio. Ele sequer olhou para o treinador ao bater na lateral da cabeça do outro menino, que caiu esparramado e tonto na areia. Quando ele
ia atacar novamente, Amatus interveio:
- Parem!
O celta recuou. Amatus ignorou o menino no chão ao olhar para os alunos.
- Lição número um: a luta não acaba até vocês terem certeza de que o outro homem está derrotado. - Ele se virou para o celta. - Ajude o núbio a ficar de pé e volte
para lá. Próxima luta: Petronius e Demócrites.
Os combates duraram pela próxima hora e Marcus observou os guerreiros com atenção, notando seus erros e seus golpes bem-sucedidos. Ele sentiu uma ansiedade crescente
enquanto esperava pelo seu nome ser chamado, especialmente porque Ferax também ainda não tinha sido escolhido.
Várias lutas tinham sido travadas quando o portão do pátio de treinamento foi aberto por um guarda e dois homens entraram: Porcino e um estranho usando uma túnica
vermelha bordada e botas de couro de qualidade que batiam nas panturrilhas. Assim que os viu, Amatus mandou a turma ficar em posição de sentido e ordenou que baixassem
a cabeça.
- Este é o Amatus. - Porcino apontou casualmente para o treinador. - Ele está treinando a turma juvenil, como pode ver, meu senhor.
Os ouvidos de Marcus se aguçaram ao ouvir o tom respeitoso na voz do lanista. Claramente, a companhia de Porcino era alguém importante.
- Ah, ótimo! Treino com armas - disse o estranho. - Isso era exatamente o que eu queria ver. É a minha chance de comprar o melhor para o grupo do meu amigo. Por
favor, diga para que continuem. Podemos assistir daquele banco ali.
Porcino concordou com a cabeça.
- Como quiser. Posso pedir algo para o senhor beber?
- Não. Mais tarde, talvez, quando discutirmos os detalhes.
Porcino acenou com a cabeça para Amatus.
- Continue.
Enquanto os dois espectadores assistiam, as lutas continuaram. Amatus observou os alunos com atenção, ameaçou bater naqueles que demorassem a se aproximar um do
outro, gritou ordens e interveio para encerrar os combates no momento em que ficou evidente que um dos meninos tinha sido derrotado. Enquanto os últimos quatro permaneceram
esperando, Amatus chamou dois nomes e deixou Marcus e Ferax para a última luta.
Marcus sentiu o coração acelerar ao olhar para Ferax. O outro menino deu um sorrisinho falso.
- Ah, eu vou adorar isso - disse Ferax baixinho, para que apenas Marcus pudesse ouvir. - Pode contar que não vou facilitar os golpes para você, meu amigo.
Marcus engoliu em seco e se virou, agarrou firme a espada de madeira e o escudo de vime. Ele observou a luta, mas não percebeu nenhum detalhe, como se o penúltimo
par de guerreiros fosse apenas duas sombras dançando, uma em volta da outra. A mente estava a mil enquanto Marcus tentava se lembrar de tudo que havia aprendido
e tudo que sabia sobre Ferax. Ele tinha que pensar em uma maneira de vencer o oponente. Tinha que bolar um plano.
- Parem!
Marcus ficou chocado ao descobrir que a luta acabara. Ele viu o vencedor ajudar o outro menino a se levantar e o par se juntou aos garotos que já tinham lutado.
- Último par! - chamou Amatus.
Marcus engoliu em seco e se esforçou para parecer calmo e destemido ao andar e assumir seu lugar, virado para encarar Ferax.
- Esta é uma luta há muito esperada - anunciou Amatus, em um tom levemente divertido. - Então vamos ver do que vocês dois são capazes, hein? - Ele baixou a voz ao
continuar: - Sei que vocês se odeiam, mas mantenham o controle e, quando eu mandar parar, vocês param imediatamente. Se um ou outro tentar continuar, vai levar uma
surra minha. Preparem-se!
Marcus se agachou com o olhar fixo no inimigo. Dentro do peito, o coração batia como um tambor e todos os sentidos pareciam afinados. Qualquer sinal de sorriso ou
diversão cruel havia sumido do rosto de Ferax e ele devolveu o olhar de Marcus com uma expressão intensa.
- Comecem!
Com um rugido agudo que forçou a garganta, Marcus avançou. Surpreso, Ferax arregalou os olhos e ergueu o escudo rapidamente, em cima da hora. Houve um baque quando
os dois colidiram. Marcus atacou com a espada, o golpe passou pelo escudo e pegou de raspão o ombro do oponente. Ferax rosnou de dor e recuou o mais rápido possível
e abriu distância para poder usar a espada de maneira mais efetiva. Agora ele podia bloquear os golpes de Marcus. Após um estalo agudo de madeira, as espadas se
separaram e cada um parou para avaliar o outro com cautela.
Diferentemente das lutas anteriores, Amatus não fez nada para incentivá-los a se aproximarem. Em vez disso, ele assistiu ansiosamente. Os outros meninos também estavam
imóveis e calados, com a intenção de ver como os dois inimigos se sairiam em uma luta aberta. A animação também parecia contagiar Porcino e seu convidado, e eles
se debruçaram para frente a fim de ter uma visão melhor.
Ferax ergueu a ponta rombuda da espada e avançou. Depois, com um movimento súbito, chutou um pouco de terra, e Marcus instintivamente piscou os olhos ao ser atingido
no pescoço e queixo. Imediatamente, Ferax disparou com um berro ensurdecedor e bateu com selvageria a espada na parte baixa do escudo erguido do oponente. Cada golpe
fez o braço de Marcus se abaixar mais. Ele ignorou a trepidação no braço esquerdo e se concentrou em manter os ataques longe da cabeça. Em seguida, se apoiou em
um joelho só e ergueu o escudo, enquanto brandiu a espada para cortar a coxa do celta. O golpe o acertou em cheio com um estalo alto. Ferax rugiu novamente - de
dor desta vez - e avançou, empurrando Marcus para trás. Marcus tentou firmar as botas no cascalho para manter a posição, mas a pressão foi implacável e irresistível,
e ele teve que recuar.
Sentindo a vitória, Ferax foi em frente e atacou o oponente com a maior força possível. Então, com uma rápida mudança de direção, a espada de madeira passou por
cima da borda do escudo e acertou o braço esquerdo de Marcus com um choque estonteante. O golpe foi doloroso, deixou seu braço dormente e a pegada no escudo momentaneamente
frouxa. Mais dois golpes no vime e os dedos de Marcus se abriram, o escudo se soltando de sua mão. Ele deixou o escudo cair e recuou correndo, permanecendo agachado
enquanto Ferax rosnava em triunfo.
- Pronto! Agora termine o serviço!
Ele se aproximou gradativamente e ergueu o escudo para usar como um aríete, com a intenção de derrubar Marcus. Havia pouco tempo para pensar, mas, conforme Ferax
se aproximou, Marcus tomou fôlego e disparou para a frente. Em cima da hora, ele se abaixou e desviou do golpe cruel que passou assoviando sobre a cabeça. Em troca,
ele atacou o tornozelo de Ferax e o impacto do golpe o fez erguer o braço na hora em que o celta berrou de dor e parou abruptamente. Os dentes de Ferax estavam cerrados
e ele fez uma careta no momento em que tentou apoiar o peso no tornozelo dolorido. Marcus girou correndo para o lado e forçou o inimigo a girar também, com dor.
O menino menor se moveu rapidamente, estocou a ponta na lateral do corpo do celta e depois novamente recuou depressa para fora de alcance.
- Eu vou pegar você - rosnou Ferax. - E vou estripar você!
Marcus continuou se movendo, dando voltas no oponente e forçando Ferax a apoiar seu peso no tornozelo machucado. Finalmente, Ferax arriou em um só joelho e ergueu
o escudo para bloquear desesperadamente os ataques de Marcus. Sem conseguir passar pelas defesas do celta, Marcus recuou cinco passos e começou, aos poucos, a circular
o inimigo. Notou que, embora Ferax não conseguisse mais lançar um ataque, ele também não era capaz de chegar perto o suficiente para dar o golpe decisivo.
- Um impasse! - anunciou Amatus. - Parem!
- Não! - gritou Ferax. - Eu posso finalizá-lo. Vamos continuar a lutar!
- Por mim, tudo bem - respondeu Marcus friamente.
Amatus se colocou entre eles com uma expressão furiosa.
- Vocês ousam desobedecer minha ordem? Farei com que ambos sejam chicoteados por isso. Parem, eu disse. Parem... agora!
Marcus não respondeu, mas se lançou ao ataque novamente e estocou a lateral de Ferax. Mais uma vez, o escudo de vime aparou o golpe e Ferax atacou desesperadamente
a canela de Marcus, mas errou por pouco quando ele recuou.
- PAREM! - berrou Amatus, a plenos pulmões.
Desta vez, Marcus recuou hesitante para uma distância segura e abaixou a espada. Amatus avançou para cima de Marcus em um rompante, arrancou a arma de treino da
mão dele e se voltou para Ferax.
- Largue seu equipamento. Vocês dois estão na maior enrascada da história. Juro! Vou deixá-los roxos de tanta surra. Aqui e agora! Malditos sejam!
- Já chega! - interrompeu Porcino, enquanto ele e o outro homem se aproximavam. - Deixe-os em paz, Amatus.
O instrutor fechou a boca, baixou a cabeça e recuou com o máximo de respeito que conseguiu em meio ao calor da fúria. Marcus ficou parado, com o peito arfando, sangue
pulsando nas veias e punhos cerrados.
- Pelos deuses. - O companheiro de Porcino estava maravilhado. - Este menino é um engolidor de fogo, sem dúvida. E este jovem touro é um oponente à altura. Ah, sim!
Esses dois vão servir muito bem. - Ele se virou para Porcino. - Vou levá-los.
- Esses aí? - Porcino pareceu surpreso e fez um gesto de desdém para Marcus e Ferax. - Ora, eles ainda estão em treinamento, meu senhor.
- A técnica é tosca, mas eles têm algo mais. Um ódio vital e brutal um do outro. Posso ver claramente. Sim. Eles vão servir muito bem. Uma bela apresentação para
o filho de Varinius.
Porcino abriu a boca para reclamar, mas o outro homem o interrompeu:
- É claro que eu pagarei regiamente pelos dois, em nome do meu amigo.
Porcino fez um cálculo rápido e respondeu com um sorriso frio:
- Tenho que confessar que estou de olho nesses dois. São os recrutas mais promissores que possuo há muito tempo. Com certeza terão uma bela carreira como gladiadores
pela frente. Eu estaria perdendo um investimento e tanto se eles fossem forçados a lutar.
- Então faça um preço justo para mim quando fecharmos nosso negócio em seu escritório.
Porcino concordou com a cabeça e indicou o portão.
- Se o senhor puder ir na frente, caríssimo Marcus Antonius, eu tenho que trocar uma breve palavra com o treinador dos dois.
- Muito bem - falou o homem, com um leve sinal de frustração em seu rosto. - Mas seja breve.
Ele deu meia-volta e foi andando sem pressa em direção ao portão. Porcino chegou junto de Amatus.
- Separe-os do grupo. Encontre outro treinador para o resto de seus alunos. Quero que você se concentre nesses dois. Dê o treinamento mais completo possível. Eles
têm que estar prontos para lutar em cinco dias.
- Sim, amo.
Porcino se virou para examinar Marcus e Ferax. Havia uma expressão triste em seu rosto, mas o sentimento sumiu quando endureceu a voz:
- Eles serão mantidos com os outros pares selecionados para o evento.
- Sim, amo. Uma luta de verdade é o que esses dois precisam. Será uma luta de demonstração, amo?
Porcino fez que não com a cabeça.
- Até o primeiro que sangrar, então?
- Não. - Porcino deu de ombros. - Meu cliente quer um entretenimento muito especial. Está agindo em nome de alguém em Roma que quer celebrar um aniversário de família.
Só o entretenimento mais opulento vai servir. Quando esses dois entrarem na arena, será uma luta até a morte.
23
A chegada do grupo de Roma foi marcada por diversos preparativos. Porcino encomendou iguarias e vinhos de qualidade e a melhor comida da região, e também contratou
um famoso cozinheiro, pertencente a um comerciante de vinhos de Herculano, para preparar um banquete para os convidados. A arena ligada à escola de gladiadores tinha
uma tribuna de um lado, onde os espectadores podiam ver bem o pátio oval coberto por areia. Nos dias anteriores à chegada dos convidados, os escravos de Porcino
repintaram a estrutura de madeira e colocaram sobre ela um toldo de pele de cabra para protegê-la da chuva. Os melhores sofás da vila de Porcino foram levados com
cuidado para a tribuna e dispostos em curva, voltados para a areia. Em seguida, os sofás foram cobertos por tapetes e almofadas de qualidade, e mesinhas foram postas
diante deles. Braseiros foram instalados para manter os convidados aquecidos.
Marcus viu alguns dos preparativos enquanto foi conduzido para a arena, a fim de treinar em cada manhã que antecedia o evento. Assim que o visitante de Porcino pagou
o preço para os dois meninos lutarem, eles foram imediatamente separados dos outros escravos e transferidos para um pequeno bloco de celas individuais que dava no
alojamento dos guardas. Essas celas eram dedicadas àqueles que estavam sendo preparados para lutar. A comida foi cuidadosamente preparada para dar força: um caldo
espesso e suculento, ovos cozidos, salsichas curadas com uma grande quantidade de alho e vinho aguado. A comida era boa, mas Marcus estava com pouco apetite e se
forçou a comer; mastigou mecanicamente e não aproveitou o sabor. Sua mente foi tomada por um medo crescente a cada dia que passava.
Os homens e meninos escolhidos para entreter os romanos foram mantidos isolados dos outros gladiadores quando não treinavam. Conversas não eram permitidas nas celas,
pois cada guerreiro estava se preparando mentalmente, esquecendo os antigos companheiros e se concentrando na necessidade de vencer e viver. A cada manhã, Marcus
era acordado por Amatus, tirado da cela e levado à arena para ser treinado pessoalmente no uso das armas que empunharia na luta contra Ferax. O cliente de Porcino
decidiu que eles lutariam com gládios e pequenos escudos chamados broquéis, e usariam couraças de couro batido para proteger o corpo. Marcus achou a armadura pesada
e desconfortável, e levou um tempo para se acostumar com ela. Amatus concentrou o treino de Marcus em técnicas com a espada, adicionando um repertório de novos ataques
e defesas.
Outro instrutor estava trabalhando a forma física de Ferax no pátio de treinamento. Ao meio-dia, os dois pares trocaram de lugar. Marcus deixou de lado a espada
e o escudo e recebeu ordem para correr pelo perímetro, parando de vez em quando para levantar peso. Depois disso, Amatus o levou para o treino de agilidade e fez
com que Marcus se abaixasse e pulasse enquanto ele atacava os braços, as pernas e a cabeça do menino com um longo bambu. Marcus tinha que estar alerta para desviar
dos ataques, mas às vezes era lento demais e fazia uma careta sempre que um golpe doloroso lhe acertava.
- Deixe que isso aconteça na arena e você está morto - avisou Amatus.
Marcus concordou com a cabeça e rapidamente se preparou para o treino recomeçar, prestando muita atenção para evitar os próximos golpes. Depois que Amatus terminou
o exercício, ele permitiu que Marcus descansasse um pouco antes de pegar as armas e ir aos postes de treinamento para praticar os golpes de espada. Mais tarde, quando
Marcus estava sentado no chão, abraçando os joelhos, cansado, ele ergueu o olhar para o treinador e perguntou:
- O senhor acha que posso derrotar o Ferax?
Amatus o encarou por um momento antes de responder:
- As chances não estão a seu favor, jovem Marcus. Seu oponente é maior e mais forte. Se ele usar o peso para derrubá-lo, você vai estar à sua mercê. - Amatus fez
uma pausa, coçou o queixo e continuou em um tom mais gentil: - Mas há sempre uma possibilidade, não importam as chances. Já vi muitas lutas bem mais desequilibradas
darem um resultado surpreendente. O truque é não ficar próximo demais. Evite contato direto e não deixe que ele use o tamanho a seu favor. Você é pequeno e rápido.
Canse o Ferax. Um pequeno corte aqui e ali e você poderá sangrá-lo a ponto de torná-lo lento e dar um golpe mortal.
Marcos sentiu um arrepio na espinha ao ouvir a expressão. Embora sentisse um ódio profundo por Ferax no coração, ainda não tinha certeza de que seria capaz de matar
o celta, caso surgisse a ocasião. Marcus pigarreou e falou:
- Ouvi alguns veteranos dizerem que, se um gladiador lutar muito bem, mesmo que ele perca, pode ser poupado pela plateia.
- Sem chance - falou Amatus, com desdém. - Não com as pessoas para quem você vai lutar.
Marcus franziu a testa.
- Por quê?
- Elas pagaram por oito dos melhores homens de Porcino, alguns animais e vocês dois, garotos. Uma pequena fortuna. Pode ter certeza de que vão querer ver o dinheiro
valer a pena. Não é a mesma coisa que uma luta em uma arena pública. A plebe fica contente em ver um bom combate e é generosa com um homem que luta bem, mesmo perdendo.
Isso acontece porque eles não pagaram pelo espetáculo. Com os aristocratas a situação é diferente. Eles abrem mão de uma fortuna e só ficam contentes se sangue for
derramado. Se pagaram por uma luta até a morte, então é isso que esperam. - Amatus se debruçou para a frente e deu um soquinho de leve no ombro de Marcus. - Portanto,
quando você entrar naquela arena com o Ferax, apenas um de vocês vai sair com vida. Fique com isso na mente. Fui claro?
Marcus concordou com a cabeça.
- Então fique de pé. Temos trabalho a fazer.
Marcus não dormiu na véspera da luta. Ficou sentado, apoiado contra a parede gelada da cela. De vez em quando, escutava um som vindo de uma das outras celas, quando
um sujeito se remexia no colchão de palha ou murmurava ao dormir. Uma vez ouviu um som de choro e um lamento baixinho, até que um guarda veio pelo corredor à frente
das celas e berrou para o homem ficar quieto. Marcus nunca havia se sentido tão sozinho ou assustado, apesar de tudo que passara desde o dia em que sua vida feliz
fora cruelmente arrancada dele e da mãe. Ele fez um esforço para afastar todos esses pensamentos da mente e se concentrar na luta. Amatus estava certo - o oponente
tentaria correr para cima dele e usaria sua força superior para derrotá-lo. Ele teria que pensar rápido e estar pronto para se desviar dos ataques de Ferax. Ao mesmo
tempo, não poderia se dar ao luxo de chegar perto para dar um golpe mortal. Pouco tempo depois, Marcus se viu curioso a respeito de Ferax. Sobre o que o celta estaria
pensando? Também estava acordado, planejando a luta, atormentado pelo medo e completamente incapaz de dormir?
Finalmente, a luz tênue da aurora que se aproximava bateu na janela gradeada no alto da parede e lançou um delicado facho sobre a porta da cela. À medida que as
sombras das barras da janela ficaram mais distintas e a cela ficou mais clara, Marcus se levantou do colchonete e se espreguiçou para relaxar os músculos. Sentiu-se
cansado, mas sabia que os meses de treinamento duro e os conselhos dados por Amatus nos últimos dias significavam que ele não era mais a criança pequena e inocente
que correra pelos olivais da fazenda do pai. Era um guerreiro. Hoje, ele colocaria as habilidades à prova. Se fosse morto, então tudo seria perdido. Sua mãe morreria
sozinha e esquecida. Se ganhasse, então haveria esperança para ambos.
Houve um ruído quando a porta no fim do corredor foi aberta e o som de pés se arrastando à medida que cada porta de cela era aberta e depois fechada. Pouco tempo
depois, o ferrolho do lado de fora da porta de Marcus rangeu e ela se abriu. Um guarda entrou com uma tigela de mingau e uma jarra de água, colocou ao lado da cama
de Marcus e fez uma pausa.
- Melhor colocar isso para dentro. - Ele deu um sorriso gentil. - Você vai precisar de toda a sua energia hoje.
Marcus esticou a mão hesitante para a tigela.
- Obrigado.
Assim que o guarda saiu da cela e o ferrolho voltou ao lugar, Marcus olhou para a massa cinzenta e viscosa na tigela, depois pegou a colher e se obrigou a comer.
O mingau era espesso e salgado, mas ele saboreou a sensação quente que a comida deixou no estômago e, em pouco tempo, terminou de comer.
Uma hora após o amanhecer, a porta da cela foi aberta novamente e Amatus pôs a cabeça dentro dela.
- De pé. Está na hora de se equipar.
Marcus sentiu o corpo tremer ao seguir o treinador e sair da cela. Ele percorreu o corredor até o lado de fora. Os outros gladiadores estavam esperando por ele,
enfileirados: oito homens corpulentos com túnicas simples e sandálias, e Ferax. Nenhum olhou para ele; todos estavam voltados para a frente. Taurus estava ao lado,
batendo com a vara de videira na palma da mão.
- Último menino! Em posição, rápido!
Marcus correu até o fim da fila e se empertigou ao máximo. Olhou fixamente para a parede à frente. Taurus passou pela fila e observou de perto aqueles escolhidos
para lutar. Satisfeito que eles não estivessem demonstrando sinais óbvios de medo, ele acenou com a cabeça e começou a se dirigir aos escravos em seu habitual tom
tonitruante.
- As visitas do amo já chegaram à vila. O Porcino está servindo uma refeição leve enquanto fala de cada um de vocês, dando detalhes de seus pontos fortes e fracos
para o momento em que eles forem apostar entre si. Para aqueles de vocês que tiverem o azar de ser os favoritos, tenho um conselho: não percam. Eles não serão gratos
por isso e com certeza não aceitarão pedidos de misericórdia. A primeira luta vai ocorrer ao meio-dia, com um intervalo de meia hora para que as visitas possam comer
e conversar entre os combates. Os meninos lutarão por último. Vai haver alguns combates entre animais depois, no fim do dia. - Ele fez uma pausa para olhar feio
para os escravos. - Os fregueses do Porcino pagaram por um bom espetáculo. Não quero moleza. Nem quero ver mortes rápidas. Demonstrem alguma habilidade com a espada
primeiro. Mostrem algum drama antes de a coisa ficar séria, entenderam? Muito bem, é isso aí. Vocês sabem o que têm que fazer. Hora de separar os equipamentos. Sigam-me!
Taurus deu meia-volta abruptamente e marchou na direção do arsenal enquanto era seguido pelos gladiadores e Marcus. As armas e armaduras eram mantidas em um prédio
bem trancado, de janelas pequenas e com sólidas grades de ferro. Dentro havia suportes com lanças, tridentes, espadas e facas, bem como capacetes, armaduras para
o tronco, proteção para os braços, grevas e redes pesadas usadas por aqueles gladiadores que treinavam para se tornar retiarii - os homens que também lutavam com
tridentes e redes. Marcus olhou para as armas e tentou reprimir um calafrio. Taurus ordenou que fosse feita uma fila em frente a uma mesa sólida enquanto ele e Amatus
forneciam o equipamento.
- Primeiro homem, Hermon!
O núbio alto no começo da fila deu um passo à frente. Taurus o observou com atenção brevemente.
- Você vai lutar como um secutor. Elmo, couraça grande, escudo, greva direita e gládio.
Amatus concordou com a cabeça, selecionou as armas e armaduras onde estavam guardadas e as trouxe para a mesa. Enquanto o núbio começou a prender as correias da
armadura, Marcus olhou para o seu oponente. Ferax estava rígido, voltado para a frente. Embora ele parecesse perfeitamente imóvel e sob controle, Marcus viu uma
gota de suor descer pelo pescoço do celta. Os dedos da mão esquerda se contorceram e as pernas tremeram. Então, pensou Marcus, seu oponente estava tão assustado
quanto ele. Isso poderia equilibrar a situação.
Um por um, os guerreiros deram um passo à frente para receber o equipamento. O silêncio na sala foi quebrado apenas pelas ordens curtas e grossas de Taurus, o tinir
do metal e o remexer dos homens ao ajustarem as fivelas. Assim que os gladiadores colocaram a armadura, eles encontraram um pouco de espaço para erguer as armas
e notaram cuidadosamente como eram bem-feitas.
Ferax pegou seu equipamento e, depois, foi a vez de Marcus. Ele ergueu a pilha de armas e armaduras e notou os cortes na couraça de couro e na superfície do escudo.
Marcus foi até um dos bancos ao longo da parede, pousou o equipamento e, depois de uma pequena pausa, ergueu a placa peitoral e a traseira para começar a prendê-las
em volta do corpo. Amatus o observou com um olhar crítico, depois suspirou e foi até o menino.
- Assim não dá. - Ele cutucou a placa peitoral. - Está solta demais, Marcus.
Enquanto Amatus prendia a fivela e testava o ajuste novamente, Ferax bufou com desdém. Marcus tentou ignorá-lo e acenou com a cabeça para o treinador.
- Obrigado.
Amatus deu de ombros.
- Faça como lhe ensinaram, rapaz. Se eu tivesse visto você fazer um trabalho tão porco no treinamento, teria lhe dado um murro na orelha. É bom que faça direito
da próxima vez. - Ele fez uma pausa e deu um sorriso fraco. - Considerando que haja uma próxima vez.
- Sim, senhor.
Marcus pegou o broquel e testou o peso. O escudo pequeno era leve, e o metal da broca era grosso o suficiente para proteger a mão de qualquer golpe. A espada era
mais leve do que as que ele usava no treino, e o gume havia sido bem afiado. Marcus pegou o cabo com firmeza e testou alguns cortes e estocadas rápidos para sentir
o peso e o balanço.
Assim que os gladiadores terminaram de se armar, Taurus bateu com a vara de videira na mesa.
- Sentem-se! Cada par em lados opostos!
Os guerreiros obedeceram e ocuparam os bancos de ambos os lados do arsenal, sentados em silêncio. Taurus acenou com a cabeça para o outro treinador.
- Fique aqui, de olho nesta cambada. Não haverá cerimônia hoje, as visitas só querem as lutas. Venho chamar os homens assim que o espetáculo começar.
Quando Taurus foi embora, Marcus e os demais ficaram sentados imóveis, esperando sem fazer nenhum barulho. Ele olhou de lado para os outros guerreiros e se perguntou
como podiam parecer tão controlados diante da morte. À frente, Ferax estava com os olhos arregalados e fixos em Marcus. Depois de um tempo, Marcus desviou o olhar
e prestou atenção em um elmo sobre uma prateleira acima do inimigo. Um facho de luz vindo de fora bateu na proteção do rosto e resplandeceu em cores.
Uma longa hora se passou e, então, Marcus conseguiu distinguir os sons de risinhos e conversa animada, e imaginou que os espectadores ocupavam a tribuna acima da
arena. Não deu outra: Taurus retornou pouco tempo depois e parou na porta do arsenal.
- Os primeiros dois pares! Sigam-me!
Os quatro se levantaram: dois secutores muito bem-equipados e dois trácios armados com espadas curvas de aparência cruel. Eles saíram a passos largos do arsenal
e Marcus ouviu as botas esmagando a brita do túnel que levava à arena. Tudo ficou quieto por um momento, até que o grito dos gladiadores chegou aos ouvidos de Marcus:
- Nós, que estamos prestes a morrer, os saudamos!
Houve um tênue ruído de metal batendo e alguns gritos de apoio. O som continuou por um tempo e depois houve um gemido de decepção dos espectadores, seguido por silêncio.
- Próximo par! - berrou Taurus pela porta.
Era quase o meio da tarde quando Marcus e Ferax foram chamados. Eles pegaram as armas e seguiram Taurus até o túnel que saía da escola por um pequeno trecho e levava
a uma sólida jaula de ferro ao lado da arena. O último par de homens estava sentado em bancos opostos, com os escudos, espadas e elmos por perto. Dois guardas armados
com lanças estavam parados do lado de fora da jaula, prontos para abrir a porta de correr que levava à arena. Assim que Marcus e Ferax entraram na jaula e se sentaram,
Marcus ouviu um rosnado baixo e, ao olhar em volta, descobriu que havia outra jaula meio escondida pela curva da cerca da arena. Dentro havia uma imagem indistinta
de pelos, e Marcus ouviu outro rosnado. Lobos, percebeu ele. Prontos para o último ato do espetáculo. O som dos espectadores chegou claramente aos seus ouvidos:
o tom baixo de adultos conversando sendo cortado pela algazarra estridente de crianças.
Os quatro guerreiros esperaram sob o olhar severo de Taurus. Então a voz de Porcino veio da tribuna dos espectadores:
- Próximos!
- De pé! - Taurus deu a ordem para os dois homens, que rapidamente se levantaram, colocaram o elmo e fecharam a fivela da correia do queixo. Em seguida, pegaram
os escudos e espadas e ficaram prontos. Taurus segurou a borda da porta de correr e deu um empurrão para abri-la. Pela abertura, Marcus conseguiu ver a arena com
manchas escuras na areia. Do outro lado ficava a plateia: seis adultos - quatro homens e duas mulheres - e três crianças. Marcus não teve tempo para perceber os
detalhes dos rostos antes que os dois gladiadores entrassem na arena e a porta corresse de volta para o lugar.
- Nós, que estamos prestes a morrer, os saudamos!
Houve uma pausa, depois o som estridente de um apito, e a luta começou. O barulho de espada contra espada fez Marcus se contrair e ele foi até a borda do banco para
ver a arena através dos vãos na cerca. As silhuetas dos gladiadores eram difíceis de distinguir, exceto por rápidos vislumbres. Tirando a troca de golpes ao som
de grunhidos, havia pouco barulho. A plateia estava arrebatada e assistia ao combate com atenção. Marcus virou o rosto se sentindo enjoado. A qualquer momento seria
sua vez, e ele foi tomado por uma súbita convicção de que perderia a luta e morreria na areia. Lentamente, se dependesse da vontade de Ferax.
Houve uma rápida troca de golpes e um baque quando um corpo caiu em frente à jaula. O corpo do homem bloqueou a luz que passava pelos vãos e Marcus quase pulou do
banco no momento em que a ponta sangrenta de uma espada irrompeu entre dois postes da cerca. O corpo esmoreceu um pouco, depois houve um longo gemido quando a lâmina
foi retirada, e um tênue baque no momento em que o homem morto caiu na areia.
Um instante depois, a porta da jaula se abriu e o sobrevivente entrou cambaleando, atordoado. Ele tinha um corte profundo na coxa e deixou uma trilha de manchas
ao passar pelos meninos na jaula e entrar no túnel que levava ao complexo. Pela abertura, Marcus viu dois escravos se aproximarem do corpo e o arrastarem pela arena.
Taurus esperou até que o corpo saísse de vista, depois se virou para Marcus e Ferax e gesticulou para a arena.
- É a vez de vocês! Para fora, agora!
24
Marcus respirou fundo e, em seguida, ele e Ferax entoaram:
- Nós, que estamos prestes a morrer, os saudamos!
Eles ficaram empertigados diante dos espectadores, com as espadas erguidas na direção do grupo de romanos elegantemente vestidos. Marcus notou que dois dos homens
estavam sentados com as mulheres. Ele reconheceu um dos outros dois como o sujeito que observara os gladiadores ao lado de Porcino havia alguns dias. O quarto homem
era alto, tinha ombros largos e cabelo escuro com entradas. Ele estava sentado em um lugar de honra, no meio dos sofás dispostos com visão para a arena. O sujeito
avaliava os meninos guerreiros com expressão fria. Então sua atenção foi desviada quando uma das crianças, uma menina quase da mesma idade que Marcus, sentou-se
no sofá ao lado dele.
- Cuidado, Portia! - gritou o homem. - Você vai derrubar meu vinho!
- Desculpe, tio. Eu só queria agradecer por me trazer com o senhor. - Ela se debruçou para a frente e deu um beijo na bochecha do homem, depois se levantou rapidamente
e se juntou aos dois meninos, que estavam discutindo qual dos jovens gladiadores na arena ganharia a última luta.
- Tem que ser o celta. Olhe o tamanho dele!
- Com certeza ele vai transformar o outro menino em pó.
- Ele é muito mais forte.
- Quanto você paga pela vitória do baixinho?
- Cinco para um. Mas você vai desperdiçar seu dinheiro. Confie em mim.
Marcus e Ferax continuaram parados com as espadas erguidas, e Porcino olhou para os clientes, esperando pelo sinal para começar. No entanto, o homem sentado no centro
da tribuna estava conversando baixinho com um de seus companheiros. Porcino franziu um pouco a testa e pigarreou. O sujeito ergueu o olhar, viu os dois meninos na
arena e acenou brevemente com a cabeça para Porcino.
O lanista respirou fundo e gritou:
- Guerreiros! Aos seus lugares!
Marcus baixou a espada e se virou na direção de Ferax. Ele recuou até ficarem a dez passos de distância. Houve um súbito movimento em um dos portões da arena quando
dois guardas entraram e correram para lados opostos, onde havia pequenos braseiros com ferretes protuberantes. Os guardas pegaram os ferretes, ergueram as pontas
incandescentes e ficaram parados ao lado dos postes de madeira, prontos para usar o ferro em brasa para incentivar os meninos caso eles parecessem relutantes em
travar combate.
- Eu não vou precisar desse tipo de incentivo para me fazer lutar - falou Ferax em tom baixo, enquanto se agachava com a espada e o broquel erguidos. - Mas talvez
você precise.
Marcus cerrou os dentes e permaneceu contido, esperando pelo sinal para começar.
- A luta final do dia! - anunciou Porcino. - O celta, Ferax, contra Marcus, vindo de nossos territórios gregos.
Por um breve instante Marcus se perguntou se deveria se virar para os espectadores e afirmar que era um cidadão romano. Podia fazer o apelo por justiça antes de
a luta começar. Ele poderia ser salvo e até mesmo libertado. Antes que seus pensamentos fossem mais adiante, contudo, Porcino levou a mão em concha à boca e gritou:
- Lutem!
Com um rugido, Ferax avançou correndo pela areia. Marcus firmou as botas e ergueu o broquel. No último instante, ele pulou para o lado e Ferax passou batido. Marcus
deu um corte desesperado no braço dele, mas a ponta da espada assobiou pelo ar sem acertá-lo. Imediatamente, Marcus deu meia-volta para encarar o oponente, dando
um passo à frente, como lhe fora ensinado. Ferax girou o corpo a tempo de deter a investida direcionada ao seu ombro. Por um instante, os dois trocaram uma série
de golpes de espada com um tinir estridente e, em seguida, Ferax recuou. Eles ficaram parados em guarda, encarando-se. Marcus sentiu o coração martelando contra
as costelas e havia uma sensação especial de euforia em sua mente.
- Eu disse para você! - O homem que escolhera Marcus e Ferax para a luta pegou o braço da figura imponente no assento do meio. - Eu sabia que esses dois dariam um
belo combate, Julius!
O outro sujeito coçou o queixo e então respondeu:
- Quanto você paga pelo baixinho?
- Por ele?... Vejamos. Sete para um.
- Feito. Eu aposto cinquenta moedas de ouro.
- Cinquenta? Muito bem.
As vozes não foram mais ouvidas quando Ferax soltou outro berro e avançou contra Marcus, observando cuidadosamente o oponente. No momento em que Marcus fintou para
um lado, Ferax se moveu para interromper a fuga e depois se corrigiu, quando Marcus desviou novamente para a outra direção.
- Ah, não vai, não - rosnou Ferax. - Desta vez eu pego você, seu nanico!
- Acho que não - respondeu Marcus, forçando uma expressão de desdém na boca. - Você é atolado demais, Ferax. Estúpido demais.
A cara do menino maior ficou branca de raiva e ele rosnou por um momento antes de parar e rir.
- Você acha que vai me enganar e fazer perder a calma? Pense outra vez.
Ele deu um passo à frente e soltou uma série de golpes que Marcus teve que aparar desesperadamente com a espada e o broquel. Não havia chance de contra-atacar, pois
Ferax tinha uma envergadura maior. Aos poucos, Marcus teve que ceder terreno e recuar na direção de um dos guardas que seguravam os ferretes incandescentes. Ferax
sorriu ao levar Marcus de propósito para o perigo. Em cima da hora, quando teve certeza de que sentiu o calor incandescente, Marcus se jogou para o lado e rolou
pelo chão antes de voltar a se levantar.
- Ah, que ótimo! - gritou o homem chamado Julius. - Agora não dê mais espaço, menino! Aguente firme e vença!
Ao ouvir o apoio, Ferax fechou a cara. O celta novamente se aproximou de Marcus de uma maneira ameaçadora e soltou uma série de golpes violentos contra ele. Ao bloquear
e aparar cada golpe com o broquel, Marcus se contraiu ao sentir o choque do impacto em seu braço de forma dolorosa. Ele sabia que o ombro em breve ficaria dormente
sob o ataque e havia o perigo de soltar o broquel.
Ferax recuou, respirando com dificuldade.
- Não... vai demorar muito agora, romano. Quer implorar para que o fim seja rápido?
Marcus fez que não.
- Eu quero matar você sem pressa.
- Nem tente bancar o durão - desdenhou Ferax. - Filhinho da mamãe. É o que você é, não é? Foi o que ouvi dizer. Nanico magricela, fraco demais para salvar a mãe
da escravidão.
Marcus ficou bem imóvel e devolveu o olhar de seu algoz. Por dentro, sentiu o sangue gelar. Ele parou de pensar sobre ganhar a luta. Parou de pensar completamente.
A única coisa que sobrou foi uma fúria assassina. Antes de perceber o que estava fazendo, Marcus voou em cima de Ferax. Um uivo estranho irrompeu de sua garganta
e Marcus atacou sem parar. Desceu a espada no broquel do outro menino e martelou contra a arma dele à medida que Ferax cambaleava para trás, com a expressão tomada
por surpresa e medo.
Apenas desejo e instinto animal guiaram Marcus enquanto cortava e golpeava. Ele ouviu um grito quando a espada pegou o bíceps do braço do escudo de Ferax. O broquel
abaixou e Marcus atacou novamente, passando de raspão pela borda e abrindo o antebraço do oponente. O escudo fez um baque ao cair na areia, seguido por gotas de
sangue que bateram no chão ao lado dele. Ferax se virou de lado e lutou para se defender somente com a espada agora. Marcus deu um golpe forte e deixou que Ferax
abrisse a guarda ao aparar. Assim que as espadas foram para o lado, Marcus deu um soco com o broquel na direção do rosto do outro menino. Houve um estalo quando
o nariz de Ferax foi quebrado. O celta gemeu de dor ao cambalear para trás, com sangue escorrendo pelos lábios e queixo. Marcus deu outro soco e Ferax ergueu a espada
para bloquear o golpe. Ao fazer isso, Marcus se abaixou e estocou a coxa do celta, arrancando com a ponta da espada um novo espirro de sangue. Em uma última tentativa
desesperada de salvar a própria vida, Ferax pulou em cima de Marcus, colidiu com ele e ambos rolaram na areia. Marcus viu o céu rapidamente, límpido e azul, e depois
rolou para longe de Ferax. Sua espada ficou presa debaixo de seu corpo e se soltou dos dedos quando ele rolou.
Marcus pulou em cima de Ferax, que ainda estava tonto ao tentar ficar de joelhos. Um golpe do escudo tirou a espada da mão do celta e depois Marcus o acertou duas
vezes na lateral do crânio, até Ferax desabar de costas e ficar imóvel, com a cabeça rolando de um lado para o outro enquanto seus olhos tremiam.
Marcus ficou de pé com dificuldade e cambaleou por conta do esforço nervoso do ataque. Agora que Ferax estava caído indefeso diante dele, a fúria do combate foi
embora e a razão retornou à mente. Marcus olhou em volta, viu a espada e se moveu para pegá-la. Ao voltar para Ferax, ele notou que havia um corte feio embaixo de
seu cotovelo esquerdo, embora não pudesse se lembrar do golpe que causara a ferida. Uma onda de dor lancinante subiu braço acima quando Marcus mexeu os dedos. Em
seguida, ele caiu de joelhos ao lado da cabeça de Ferax, ergueu a espada sobre a garganta exposta do oponente e hesitou. Ferax ergueu os olhos para Marcus, confuso
e indefeso. Marcus colocou a ponta da espada a dois centímetros da garganta do celta e olhou para Taurus. O instrutor-chefe fez um rápido gesto cortante com a mão
e acenou com a cabeça para Marcus. Finalize.
Marcus respirou fundo e tentou ganhar coragem, mas ainda assim não era capaz de cortar a garganta de Ferax. Em vez disso, ele olhou para a tribuna, em direção àqueles
que assistiam com expectativa. O homem no centro pareceu surpreso.
- O que você está esperando? - perguntou o companheiro dele. - Finalize-o!
- Finalize-o! - fizeram eco os demais, à exceção do homem e da menina, Portia.
Marcus balançou a cabeça e apontou para o líder do grupo romano.
- Senhor, o que me diz?
O homem ficou imóvel por um momento, com as sobrancelhas franzidas enquanto pensava. Em seguida, deu de ombros.
- Eu digo... mate-o.
Por um momento, tudo ficou quieto, então Marcus se levantou e jogou a espada para o lado.
- O que você pensa que está fazendo? - rugiu Taurus, às margens da arena. - Pegue essa maldita espada e mate-o!
- Não - respondeu Marcus com firmeza. - Não vou.
- Você vai e vai ser agora. Ou, pelos deuses, eu mesmo vou matá-lo e depois mato você.
Marcus deu de ombros, exausto. Seu corpo estava frio e o braço doía terrivelmente, o sangue escorrendo até a ponta dos dedos e pingando na arena.
Taurus andou em um rompante até a espada de Marcus e pegou a arma antes de se voltar para Ferax. Parado sobre o celta atordoado, ele ergueu a espada, pronto para
enfiá-la na garganta do menino.
- Pare! - gritou o homem na tribuna, com uma voz que foi ouvida claramente pela arena inteira. - O menino vive. Seu destino foi decidido pelo vencedor. Que assim
seja. No entanto - falou, dando um pequeno sorriso -, eu não vou tolerar qualquer ato de rebeldia da parte de um escravo. Porcino, mande seus homens levarem o celta
embora. Esse outro da Grécia fica aqui.
Porcino pareceu confuso.
- Fica? Por quê?
O homem disparou um olhar irritado para Porcino.
- Porque Gaius Julius Caesar disse. É por isso. Ele fica e vai lutar com aqueles lobos que você guardou para o último ato. Se ele perder, então é o preço que vai
pagar por nos desafiar. Se viver, então ele é protegido pelos deuses e eu não vou desafiar a vontade deles. Solte seus lobos, Porcino.
25
O dono da escola de gladiadores abriu a boca para reclamar, mas, com medo de irritar o convidado influente, concordou com a cabeça.
- Como o senhor quiser.
Ele se voltou para a arena.
- Taurus! Retire o celta e os guardas. O Marcus fica onde está. Deixe que ele fique com uma espada e...
- Não - interrompeu Caesar. - Ele vai lutar com uma adaga. Se vou testá-lo, então quero que os deuses se esforcem para salvá-lo.
- Sim, senhor. Uma adaga. Taurus, dê a sua para ele.
O instrutor-chefe obedeceu e murmurou para Marcus:
- Cuide bem dela. Custou uma fortuna. Se acontecer alguma coisa com a adaga, a culpa é sua.
- Se acontecer alguma coisa com ela, então é provável que alguma coisa tenha acontecido comigo, amo - respondeu Marcus, com a cara fechada. - Algum conselho sobre
como lutar com lobos?
- Sim. - Taurus abriu um raro sorriso ao mexer no cabelo de Marcus. - Fique longe de suas mandíbulas.
Ele se virou e foi embora da arena, fechando a porta da jaula dos gladiadores ao sair. Um momento depois, Taurus reapareceu em cima dos portões que levavam aos cercados
dos animais. Uma corda estava presa ao topo de cada portão e subia até uma roldana suspensa em um suporte. Ele fez uma pausa e olhou para Marcus.
- Pronto?
Marcus olhou em volta da arena. Havia manchas escuras na areia onde o sangue fora absorvido. Tirando os braseiros, não havia nada na arena, a não ser ele. O sangramento
na ferida no braço esquerdo diminuiu e já estava coagulando sobre a pele rasgada. Mas o braço doía toda vez que ele tentava mexê-lo e não serviria para nada. Ele
teria que se virar com a adaga. Marcus respirou fundo e ergueu o olhar.
- Pronto.
Taurus pegou a corda sobre um dos portões e puxou. A roldana rangeu com o peso e a parte de baixo do portão se ergueu devagar sobre a areia. Imediatamente, Marcus
viu as patas e o focinho escuro de um lobo se enfiando para fugir da jaula. O portão mal havia sido erguido na altura do joelho quando o lobo se espremeu por debaixo
dele e saiu para a arena. O animal ficou agachado, com a cabeça abaixada e o olhar frio fixo em Marcus. Até agora, a mente de Marcus dava voltas, aliviado por ter
derrotado Ferax, com a dor do ferimento, com a esperança de que poderia sobreviver para salvar sua mãe. A ideia de enfrentar um par de lobos não o deixou com medo.
Se eles fossem parecidos com os lobos que Marcus conhecera nas colinas acima da fazenda, então seriam criaturas patéticas, com medo das próprias sombras.
Mas o lobo que o encarava agora era completamente diferente. Era muito maior e tinha uma pelagem mais densa. Também havia passado fome e fora atiçado, como claramente
indicavam as marcas de queimaduras na pele. Enquanto observava Marcus, a pele de cada lado do focinho se contraiu e revelou presas. O lobo rosnou. O bicho não teria
piedade, Marcus se deu conta. Quando fosse a hora, ele pularia e arrancaria fora a sua garganta. Foi essa perspectiva que liberou a onda de terror que tomou conta
do corpo de Marcus. Suas pernas tremeram.
Taurus soltou a corda e o portão caiu com um estrondo. Ele foi para a outra corda, puxou e ergueu o portão para liberar o segundo lobo. Os animais se viraram para
encarar um ao outro e rosnaram. Por um momento, Marcus torceu para que eles pudessem se atacar, mas o elo natural, o cheiro de sangue e a perspectiva da caçada os
uniam. O primeiro lobo andou pelo perímetro da arena com o olhar fixo em Marcus. Ele parou em uma mancha de sangue na areia, fungou e lambeu o chão. Marcus olhou
horrorizado e fascinado, e não viu o movimento do segundo lobo, que se aproximava de mansinho, quase se arrastando sobre a barriga. Quando Marcus se virou para o
animal, ele notou, surpreso, que o lobo estava a menos de cinco metros dele. O menino recuou um passo e olhou para trás, alertado por um rosnado. O outro lobo também
havia se aproximado.
Olhando de lobo para lobo, Marcus recuou para o lado da arena abaixo dos espectadores. Sua pele ficou gelada de suor e ele não ousou piscar enquanto se movia devagar
e sem parar, agachado e com a adaga à frente ao andar. De vez em quando, um dos lobos se levantava um pouco, corria na direção de Marcus e parava. Em pouco tempo,
o menino sentiu a cerca atrás de si e parou, ciente de que os lobos pulariam nele a qualquer momento.
- Ele está com medo! - disse a voz de um garoto lá do alto, perto de Marcus.
- Claro que está - respondeu a menina. - Também acho que você estaria se estivesse na pele dele.
Marcus olhou para cima rapidamente, cruzou com o olhar dela e viu pena ali.
- Qual é o motivo do medo? - falou o menino. - Eles são apenas como cachorros. A pessoa só tem que falar com autoridade e esses lobos rolam como filhotinhos.
- Acho que não - respondeu a voz de um homem, que Marcus reconheceu como a do líder do grupo. O homem que se chamava Caesar. - Eles são bem selvagens. Bem letais.
- Eu não consigo ver direito! - reclamou o outro menino. - Diga para ele ir aonde a gente possa vê-lo, tio Julius.
O homem ignorou o menino e houve um silêncio quando os espectadores foram para o parapeito e se debruçaram a fim de ver Marcus encarar os dois lobos. Ele só podia
esperar que os animais tomassem a iniciativa. Tudo ficou quieto, tirando a pulsação martelando em seus ouvidos. Então, houve um borrão de movimento quando um dos
lobos pulou em cima dele. Marcus se abaixou, a criatura colidiu com a cerca e se contorceu para mordê-lo e arranhá-lo. Ele gritou em agonia pela dor no braço ferido
e estocou com a adaga. Errou, atacou novamente e foi recompensado com um ganido. Em vez de desestimular o lobo, a ferida apenas pareceu enfurecer a fera. O lobo
avançou e cravou os dentes na armadura de couro que cobria os ombros de Marcus. O animal começou a esmagar a junta entre as mandíbulas possantes.
Marcus esfaqueou-o sem parar e sentiu um jato quente sobre a mão. Ainda assim o lobo não soltava seu ombro; se sacudia e dilacerava agora, enquanto a outra fera
se preparava para pular em cima do garoto pelo lado.
Houve um suspiro de susto acima e, em seguida, a menina gritou:
- Eles vão comê-lo! Alguém ajude! Por favor!
- Portia! Saia do parapeito!
Marcus ouviu um grito estridente e, em seguida, o corpo da menina caiu na areia ao lado dele. Em um instante, o outro lobo se virou para ela. Portia ergueu o braço.
As mandíbulas do lobo se abriram e fecharam no cotovelo da menina. Ela gritou de dor.
Marcus tinha que ajudá-la. Ele esfaqueou sem parar em um frenesi cego o lobo que ainda atacava seu ombro. Finalmente, com um rosnado que saiu como um gargarejo,
o animal se soltou e desmoronou, levando a faca da mão de Marcus. Sem pensar, ele disparou para cima do outro lobo, pegou a fera pela garganta com as duas mãos e
esmagou sua traqueia. O lobo rosnou e sacudiu a cabeça, o que fez a menina gritar de agonia novamente quando os dentes dilaceraram sua carne. Marcus soltou o lobo,
cerrou o punho e socou o focinho com o máximo de força possível. O animal soltou Portia e recuou alguns passos antes de se virar e retesar as pernas para um próximo
ataque.
- Atrás de mim! - berrou Marcus, ao se colocar entre a menina e o lobo. - Fique atrás de mim!
Ao encarar o animal, o tempo parecia se tornar lento, e Marcus percebeu várias coisas de uma vez só. Os gritos de pânico dos espectadores. Taurus descendo da cerca.
Porcino paralisado de horror. A agonia em seu braço e o terror no coração. O lobo se preparando para pular. E o brilho da adaga na areia, a menos de dois metros
à direita. Marcus firmou as pernas, ergueu as mãos e, quando o lobo veio em sua direção, pulou para a direita e colidiu com o bicho em pleno ar. Os dois caíram no
chão. Havia uma massa de pele, garras e presas se contorcendo e se fechando com força bem na cara de Marcus. Com uma careta, Marcus agarrou a mandíbula inferior
do lobo com a mão esquerda e empurrou para cima e para longe, com toda a força. Ao mesmo tempo, a mão direita tateou freneticamente na areia. Os dedos passaram de
raspão pela lâmina da adaga, procuraram o cabo e se fecharam em volta no momento em que o lobo se soltou da mão esquerda. A cabeça peluda recuou, as mandíbulas se
abriram, o bafo quente tomou conta de seu rosto como um pano aquecido e o lobo avançou contra a garganta de Marcus.
A adaga brilhou no ar, a ponta entrou na orelha do lobo, quebrou o crânio e penetrou no cérebro do animal. O corpo se contorceu e desabou em cima de Marcus, onde
ficou tremendo por um momento antes de parar. O cheiro quente e almiscarado da pele do animal tomou conta das narinas de Marcus ao sufocar seu rosto. Ele lutou para
se soltar, mas a dor no braço esquerdo estava insuportável e a perda de sangue o fez se sentir tonto. Mãos afastaram o lobo morto e vários rostos surgiram acima
dele.
- A... a menina... está a salvo? - murmurou Marcus.
Em seguida, ele desmaiou.
26
Marcus sonhou que estava em casa, na fazenda. Era um dia claro no fim da primavera, a terra estava viva com novos botões de flores e folhas reluzindo nas árvores.
O sol banhava seu corpo em um abraço quente e borboletas se agitavam pelo ar enquanto outros insetos zumbiam lentamente. Ele saiu para caçar, mas não conseguiu pegar
nada. Ainda assim, estava feliz e cheio de alegria ao passar pela trilha entre os olivais que levava ao portão. Ficou com o coração aliviado ao ver a mãe e o pai
esperando por ele ali, sorrindo e chamando seu nome. Marcus correu na direção deles com os braços abertos.
Então, quando ele estava a menos de 20 passos dos dois, seus pais começaram a desaparecer, a se tornar sombras.
- Não... - gemeu Marcus, se mexendo.
Quando eles desapareceram totalmente, a fazenda também começou a sumir. A escuridão aumentou ao redor de Marcus e tapou a paisagem. Ele gritou em desespero:
- Mãe! Pai! Não me deixem!
Em seguida, houve uma dor intensa que ardeu na lateral de seu corpo. Marcus acordou e abriu um pouquinho os olhos. Ele estava em uma sala caiada comum. Uma porta
dava para uma colunata, com vista para um jardim bem-cuidado dentro de um pátio. Marcus reconheceu o lugar imediatamente e se deu conta de que estava na vila de
Porcino. Houve um som de algo sendo arrastado ao seu lado e ele virou a cabeça e viu um homem sentado em um banco.
- Eu não sou seu pai, infelizmente. - O sujeito sorriu. - Embora eu tenha saído com algumas mulheres na minha época e isso seja possível.
Ele riu. Uma risada calorosa e sincera.
Marcus encarou o homem.
- Eu conheço o senhor. Acho. Reconheço seu rosto. - Então lhe deu o estalo. Esse era o líder do grupo que fora assistir ao espetáculo de gladiadores.
- Nós não fomos formalmente apresentados, meu garoto. Meu nome é Gaius Julius Caesar - falou ele, como se o nome significasse algo para Marcus, e seu sorriso diminuiu
um pouco quando não provocou reação alguma. - De qualquer forma, eu queria estar aqui quando recuperasse a consciência. Queria lhe agradecer por salvar a vida da
minha sobrinha, Portia.
Marcus fechou os olhos brevemente e se esforçou para se concentrar.
- A menina que caiu na arena?
- Sim.
- Ela está bem?
- Sim. Bem e a salvo. O médico de Porcino cuidou do ferimento e disse que ela vai se recuperar muito bem. Graças a você. - Caesar se debruçou para a frente e apoiou
os cotovelos nas coxas. Ele vestia uma túnica vermelha esplendidamente bordada. - Desta vez, foi um acidente - refletiu o homem. - Da próxima vez, quem sabe?
- Próxima vez?
Caesar encarou Marcus por um momento, em silêncio.
- Acho que talvez eu tenha ficado longe de Roma por muito tempo. Você não parece ter ouvido falar de mim, jovem.
- Não, senhor - admitiu Marcus. Um pensamento lhe ocorreu e ele sentiu uma súbita pontada de esperança. - O senhor conhece o general Pompeius?
- Como alguém pode não conhecer o Pompeius? O homem mais poderoso de Roma!
- Ele é seu amigo?
- Pompeius, o Grande? - Caesar pensou por um momento e deu de ombros. - Duvido que qualquer homem que seja realmente poderoso possa ter amigos de verdade. Inimigos,
sim.
Marcus sentiu a esperança fugir de seu corpo.
- Então o senhor é inimigo dele.
- Não. É que simplesmente eu não tenho a ambição de ser amigo de um homem tão poderoso. Não ainda. - Caesar se recostou novamente e se sentou ereto, como se estivesse
em um trono. - Você me prestou um grande serviço, Marcus. Ainda assim, você pode ser mais útil para mim. Embora não tenha ouvido falar de mim, eu tenho alguma influência
em Roma, e em breve terei muito mais poder. Naturalmente, isso significa que eu terei um número cada vez maior de inimigos; eu e minha família. Os acontecimentos
de hoje me ajudaram a tomar uma decisão. Eu preciso de um guarda-costas para a Portia. Alguém durão, habilidoso com armas e valente; e alguém discreto. Não é bom
mostrar aos meus inimigos que tenho medo deles. Ninguém vai prestar muita atenção em um menino da sua idade. Por isso eu decidi torná-lo o guarda-costas de Portia.
Esse será o seu trabalho de agora em diante, ou até eu encontrar outras tarefas para você.
Marcus ficou de olhos arregalados.
- Eu? Mas, senhor, já tenho um dono. Eu pertenço ao Porcino.
- Não mais. Eu comprei você na tarde de hoje, enquanto dormia. Paguei ao Porcino a mesma quantia que ele receberia por um gladiador plenamente treinado, portanto
ele ficou mais do que contente com o negócio. Ah, e de agora em diante você me chama de amo, e não de senhor, entendeu?
- Sim... amo.
- Ótimo! - Caesar bateu palmas. - Então está resolvido. Você vai descansar aqui até que os ferimentos tenham sarado o suficiente para ser acompanhado por um dos
homens de Porcino à minha casa, em Roma. Seus deveres serão explicados depois. O que acha, Marcus?
Ele baixou o olhar e pensou por um momento. Marcus deixaria os poucos amigos para trás. Os três homens em sua baia eram seus companheiros mais chegados, e ele sentiria
falta deles, mas esse era um pequeno preço a se pagar para ficar mais perto de Pompeius e mais perto do que Marcus torcia ser o fim de sua missão. Ele ergueu os
olhos para Caesar e concordou com a cabeça.
- Estou honrado, amo.
O homem se levantou e endureceu a expressão.
- Eu declarei meu agradecimento a você. Isso é o suficiente. Nós não mencionaremos o assunto novamente. A partir deste momento, nunca se esqueça de que sou seu dono
e você é meu escravo. Isso está claro?
- Sim, amo.
- Quando nos encontrarmos da próxima vez, será em Roma. Desejo uma rápida recuperação.
Sem esperar por uma resposta, Caesar se virou para sair do quarto e deixou Marcus pensando. Os sons de seus passos foram sumindo ao longe e houve um silêncio, exceto
pelo canto dos passarinhos vindo de uma horta próxima. Marcus estava sozinho. Ele encarou o teto e se sentiu esperançoso como há muito não se sentia. Naquela manhã
mesmo Marcus teve medo de que não vivesse para ver um novo dia. Embora tivesse derrotado Ferax, ele teria sido condenado a continuar treinando como gladiador e encararia
o perigo de muitas lutas até ter a chance de ganhar a liberdade. Agora ele seria o guardião de uma aristocrata romana mimada e viveria no coração de Roma com boas
perspectivas de encontrar o general Pompeius e apresentar seu caso para ele. Sim, suspirou Marcus tranquilamente, a vida dera uma guinada para a melhor.
- Não estou incomodando, estou?
Marcus virou rapidamente a cabeça na direção da voz e se contraiu quando sentiu uma pontada aguda no ombro.
- Ah! - Portia olhou para ele ansiosamente bem do lado de fora da porta. - Eu não tinha intenção de assustar você. Sinto muito, eu deveria ter batido. Só não bati
porque não acho que eu deveria estar aqui. Meu pai não iria aprovar. Ele é amigo do tio Julius e passa a maior parte do tempo se preocupando com as aparências.
Enquanto Marcus ficou com os dentes cerrados, esperando a dor passar, ela foi para o lado de sua cama e olhou para ele.
- Você está... horrível. Todo coberto por hematomas e cortes, com o braço enfaixado.
Marcus ergueu a mão direita e apontou para ela.
- Você também não parece muito bem.
Tirando o curativo no cotovelo, Portia tinha alguns arranhões e esfolados no rosto branco.
Portia ignorou o comentário e franziu levemente a testa.
- Dói muito?
- Sim.
- Sei... - Ela o examinou e depois encarou o olhar de Marcus novamente. - Eu queria não ter caído do parapeito. Queria que você não tivesse se machucado por minha
causa. Desculpe.
- Eu teria que lutar com os lobos de qualquer maneira. - Marcus deu um sorriso fraco. - Eu iria me machucar. Na verdade, tenho sorte de estar vivo.
- Você foi bem corajoso - disse ela baixinho.
- Fiz o que tinha que ser feito.
- É, pode ser. - Ela inclinou a cabeça levemente de lado. - Você se importa se eu perguntar uma coisa?
Marcus franziu os lábios.
- Não, o que é?
- Eu estava me perguntando por que não matou aquele outro menino quando teve a chance. Percebi que ele odiava você. Ele não o teria poupado se fosse o contrário.
- Isso é bem verdade - refletiu Marcus.
- Então, por que você não o matou?
- Ele estava derrotado. Não havia sentido. A luta tinha acabado. Pareceu um desperdício matá-lo... - Marcos tentou se lembrar mais claramente do momento. - Eu não
sei. Não consigo lembrar muito bem. Apenas não pareceu... correto.
Portia o encarou e depois riu.
- Você não se parece com nenhum gladiador que eu conheço.
- E você conheceu um monte, então? - respondeu Marcus secamente.
Ela parou de rir.
- Sim, na verdade.
Houve um silêncio incômodo e depois Portia continuou a falar em um tom mais calmo:
- Parece que você será meu guarda-costas. O tio Julius acha que você será excelente. Da minha parte, eu só tenho uma pergunta: está preparado para matar alguém que
me coloque em perigo?
Marcus pensou por um momento e concordou com a cabeça.
- Se for preciso.
- Muito bem. Então vejo você mais tarde, em Roma, Marcus. - Um sorriso surgiu nos lábios de Portia ao falar o nome dele. Em seguida, ela deu um tapinha no braço
de Marcus que não estava machucado e correu para a porta. Com um olhar furtivo para os dois lados, a menina saiu do quarto e foi embora de mansinho.
Ele dormiu novamente logo depois e acordou na manhã seguinte, sentindo os músculos rígidos e doloridos. A ferida no braço e a forte mordida do lobo causavam muita
dor, e ele gemeu ao tentar sair da cama. Um momento depois, o médico da escola de gladiadores, Apócrites, entrou correndo no quarto.
- O que você pensa que está fazendo? Deite-se imediatamente antes que reabra essas feridas.
Marcus obedeceu e o médico rapidamente verificou os ferimentos e trocou o curativo em seu braço. As mordidas e os cortes menores foram deixados descobertos.
- Melhor deixar que peguem um pouco de ar fresco. Eles vão sarar bem rápido. O braço vai levar mais tempo. Eu costurei a ferida. Em oito ou dez dias os pontos podem
ser retirados. Diga isso ao médico da casa de seu novo dono. Considerando que haja um médico, quer dizer.
Marcus concordou com a cabeça e depois pigarreou.
- Como está o Ferax?
- O outro menino? Ele vai se recuperar. Você o nocauteou, é claro, e ele ainda está um pouco atordoado. Aquele crânio duro de celta que ele tem o salvou de ter a
cabeça afundada. Soube que virou uma espécie de piada para o resto da turma. Até tem um novo apelido. Ele está sendo chamado de "isca de rato". Você, por outro lado,
é uma espécie de herói.
- Um herói? - Marcus balançou a cabeça. - Eu nunca tive tanto medo na minha vida.
- Ah, e o que você esperava? - Apócrites suspirou profundamente. - Isso é o que é ser um gladiador. Sempre. De qualquer maneira, tudo isso ficou para trás agora.
Você vai para Roma, ouvi dizer.
- Vou ser um guarda-costas da sobrinha do Caesar.
- Bem, isso deve ser muito seguro. Duvido que algum dia você tenha que fazer algo mais perigoso do que evitar que sua protegida engasgue com alguma iguaria doce.
- Espero que esteja certo. - Marcus se ajeitou em uma posição mais confortável. - Quando eu estarei pronto para viajar?
Apócrites se empertigou e coçou o rosto.
- Em dois, talvez três dias. O amo vai enviar uma de suas carroças para Roma a fim de pegar algumas armaduras que encomendou. Você vai viajar naquela carroça. Apenas
pense, menino, em poucos dias você estará em Roma. Vai ser uma experiência e tanto. - Os olhos de Apócrites brilharam.
- Sim, espero que seja - concordou Marcus. Ele já estava pensando em como dar um jeito de encontrar o general Pompeius.
27
O braço ferido de Marcus estava preso a uma tipoia, e ele o segurou com o máximo de cuidado possível quando a carroça passou por um buraco e inclinou para o lado.
À frente estava a pequena cidade de Sinuessa, onde deveriam parar à noite em uma das estalagens. Com o fim do inverno e os primeiros dias da primavera chegando,
as estradas estavam cheias de negociantes e outros viajantes que aproveitavam o tempo bom. Havia carroças lotadas com todo tipo de mercadorias indo em ambas as direções,
grupos de pessoas a pé, bem como um punhado de indivíduos sozinhos. Quando a carroça passou por uma fila de prisioneiros acorrentados indo na direção oposta, Marcus
olhou para eles com pena. A maioria estava descalça e com túnicas puídas. Os rostos tristes, voltados para baixo, indicavam o desespero que sentiam por dentro ao
encarar a perspectiva de uma vida de escravidão. Ele se virou para trás a fim de vê-los por um momento, furioso. Ver criaturas tão abjetas o magoava demais. No entanto,
Marcus se lembrou, havia escravos na fazenda de seu pai. Ele aceitara o fato ao crescer com eles, havia chegado a encará-los como familiares e amigos e presumira
que eram satisfeitos com seu destino. Agora sabia que a verdade era outra. Marcus vivera como um escravo e carregava o fato dessa condição todo dia. Desejava sentir
o gosto da liberdade novamente e ser dono do próprio destino.
Marcus observou um pouco mais a fila de prisioneiros quando eles passaram por uma figura solitária em um manto longo e encapuzado a caminho de Sinuessa, a mais ou
menos 50 passos atrás da carroça. O homem segurava um cajado e uma tigelinha de esmolas, e parou para pedir algumas moedas para o guarda responsável pelos prisioneiros.
O guarda deu um murro para afastá-lo e foi embora. Talvez houvesse coisas piores do que ser um escravo, pensou Marcus ao virar o rosto. Mas, ao contrário dos escravos,
até mesmo mendigos podiam escolher o próprio caminho na vida.
O carroceiro estalou a língua e as rédeas para incentivar as mulas a irem em frente. Marcus olhou irritado para o homem. O balanço da carroça já fazia seu braço
doer bastante sem precisar ir mais rápido. No entanto, ele conteve a língua. Brutus, o carroceiro, era um homem liberto com um corpanzil enorme que se ressentia
do fato de que era tão pobre livre quanto fora como escravo. Eles mal trocaram uma palavra desde que saíram da escola de gladiadores, e Marcus não estava a fim de
passar mais outros dias na companhia do homem enquanto viajavam para Roma.
O tráfego ficou lento próximo aos portões de Sinuessa e conforme aqueles que entravam na cidade pagavam o pedágio. O resto do tráfego desviou e deu a volta na cidade
para pegar a estrada novamente do outro lado. Brutus ficou sentado impaciente, estalando a língua e murmurando:
- Vamos, vamos. Não tenho a joça do dia inteiro...
Finalmente, o líder da tropa de mulas em frente a eles pagou as moedas e passou pelo portão. Chegou, então, a vez de Brutus e Marcus. O cobrador do pedágio foi até
eles e olhou para a carroça.
- A carroça está vazia. Você não tem bens além do veículo?
- Muito bem notado - resmungou Brutus. - Apenas eu, o garoto e a carroça.
- O garoto é seu?
- Ele é um escravo que vou entregar para um patrício qualquer em Roma.
- Ah, muito bem, então. Você vai ter que pagar uma taxa por ele, bem como pela carroça.
- O quê? - Brutus juntou as sobrancelhas grossas. - Que besteira é essa? Desde quando Sinuessa cobra por escravos?
- Olhe ali. - O cobrador apontou para uma placa com as tarifas, montada acima do portão. Um novo registro fora pintado na parte de baixo. - Nova lei aprovada pelos
conselheiros municipais no mês passado. Escravos agora são incluídos como bens pagáveis. Sinto muito, senhor - desculpou-se de maneira não convincente -, mas terá
que pagar pelo menino.
Brutus se virou e olhou feio para Marcus.
- É melhor eu não terminar duro por causa disso. Seu novo dono vai ter que cobrir minhas despesas quando chegarmos a Roma.
Marcus deu de ombros.
- Você vai ter que se acertar com ele, então. Isso não tem nada a ver comigo. Sou apenas um escravo.
- E não se esqueça disso - rosnou Brutus. - Mais uma resposta malcriada e vou lhe dar uma surra, entendeu?
Brutus se virou para o cobrador do pedágio, tirou a bolsa e contou a taxa.
- Aqui! E diga aos conselheiros municipais que eles são um bando de corruptos malditos.
- Obrigado, senhor. - O outro homem sorriu. - Eu farei questão de transmitir a opinião do consumidor. Agora prossiga.
Brutus estalou as rédeas e gritou para as mulas:
- Iá! Avante, seus bichos idiotas!
A carroça passou fazendo barulho pela arcada e entrou na cidade. O cheiro de verduras podres, esgoto e umidade mofada tomava conta do ar, e Marcus franziu o nariz.
Brutus dirigiu a carroça aparentemente pouco se importando com as outras pessoas na larga via pública. Elas o xingaram e tiveram que sair correndo do caminho. O
carroceiro virou na rua principal, entrou no pátio de uma estalagem e puxou as rédeas para parar as mulas.
- Desça. Segure os arreios enquanto eu cuido da carroça.
Marcus desceu apoiando-se apenas com uma das mãos e foi à frente pegar os arreios da primeira mula. Brutus chamou um dos cavalariços, então os dois homens soltaram
o cambão e depois colocaram a carroça contra a parede. Assim que isso foi feito, Brutus pegou os arreios para levar a tropa de mulas aos estábulos. Ele indicou a
carroça com a cabeça.
- Encontre um pouco de palha para servir de cama. Você vai dormir na carroça.
- E quanto a você? - perguntou Marcus.
- Eu? Vou ficar em um leito na estalagem, depois de beber uma ou duas doses. Você fica aqui. Não saia do pátio.
- O que eu vou comer? - Marcus estava se irritando com o carroceiro. - Eu não comi nada o dia inteiro. Você não pode me deixar morrendo de fome.
- Você é um escravo. Eu posso fazer o que quiser.
- Sim, mas eu não sou seu escravo. Mandaram você cuidar de mim até chegarmos a Roma.
Brutus fungou e deu um tabefe no nariz de Marcus.
- Tudo bem - respondeu com mau humor. - Vou mandar comida para você, se eu lembrar.
Sem outra palavra, o carroceiro foi embora e entrou na porta baixa da estalagem. Marcus olhou feio para ele por pouco tempo, depois foi pegar um pouco de palha dos
estábulos e levou até a carroça. Assim que cobriu o piso com a palha, ele subiu e se recostou na lateral.
- Ainda um escravo - murmurou para si mesmo.
Por um tempo, ele apenas ficou sentado ouvindo o burburinho das ruas ao redor, cortado pelo ocasional zurro de uma mula ou pelo grito e risada estridente vindo da
estalagem. Quando estava prestes a fechar os olhos e descansar, ele viu um homem entrar cautelosamente no pátio. O sujeito vestia um longo manto e segurava uma tigeliha.
O tênue tilintar de moedas chegou aos ouvidos de Marcus quando o homem sacudiu o pequeno pote. Marcus se lembrou do mendigo que tinha visto mais cedo na estrada
e ficou quieto. O mendigo baixou a tigelinha assim que viu que não havia alguém por perto. O homem foi de mansinho ao meio do pátio e olhou em volta. Marcus notou
apenas o seu queixo, pois o capuz cobria o restante das feições. O rosto oculto se virou para ele e o mendigo fez uma pequena pausa antes de se aproximar da carroça.
- Você está perdendo seu tempo - falou Marcus. - Eu não tenho dinheiro para lhe dar.
- Dinheiro? - falou o mendigo, baixinho. - Eu não quero dinheiro de você, Marcus.
Marcus levou um susto.
- Como você sabe o meu nome?
- Eu conheço você bem o suficiente - respondeu o mendigo. - Talvez melhor do que você mesmo.
Ele se aproximou da traseira da carroça mancando um pouco e, após passar o cajado para a mão que segurava a tigelinha, baixou o capuz para revelar o rosto.
- Brixus... - Marcus sacudiu a cabeça, espantado. - Pelos deuses, eu torci para que você escapasse. O que está fazendo aqui?
- Eu estava esperando para falar com você, Marcus. Segui você o tempo todo desde Cápua. - Brixus olhou em volta para garantir que estavam sozinhos no pátio, depois
subiu na carroça e se sentou diante de Marcus. - Tem uma coisa que preciso lhe contar. Algo muito importante. Tive que falar com algumas outras pessoas antes que
pudesse lhe dizer. Agora elas sabem o que eu sei e concordam que eu devo contar tudo para você. É o seu direito. O seu destino.
Marcus ainda estava se recuperando do choque de ver o amigo novamente e sacudiu a cabeça, perplexo.
- Do que você está falando?
Brixus o encarou com uma expressão intensa.
- Não existe uma maneira fácil de contar o que eu sei e um pouco do que deduzi. Tenho que ser rápido, pois não sei quanto tempo eu tenho antes que alguém venha.
- Brixus, você tem que ir embora! - respondeu Marcus assustado. - Se você for visto e reconhecido, vai ser capturado. Você não vai escapar com a perna assim.
Brixus deu um sorriso astuto.
- Ela não está tão ruim quanto parece. Vou ficar bem. Agora, apenas preste atenção.
Marcus abriu a boca para reclamar, mas Brixus ergueu a mão para que se calasse, e o menino concordou com a cabeça. Brixus tocou no ombro direito de Marcus.
- A história tem a ver com a marca que vi. Eu a reconheci imediatamente, mas não fez sentido. Não a princípio, não até você me contar sobre a sua mãe. Você disse
que ela era uma escrava, uma seguidora do Spartacus.
- Isso mesmo. Até ela ser capturada e comprada pelo meu pai.
- Marcus, eu tenho que lhe contar: sua mãe não era uma seguidora do Spartacus.
- O que ela era, então? - Marcus se aproximou de Brixus. - Por que ela diria isso? Por que mentiria para mim?
- Não foi uma mentira. De certa forma, ela era uma seguidora. Mas era mais do que isso, bem mais. Ela era a amante dele. A esposa do Spartacus, considerando que
um escravo possa ter uma esposa.
- Esposa? - Marcus sentiu o sangue gelar. - Minha mãe... e o Spartacus?
- Sim.
- Como você sabe disso? - perguntou Marcus, intrigado.
- Porque eu era um integrante de seu grupo de escolhidos. Éramos 20 homens que juraram proteger a vida do Spartacus. Nós éramos marcados, assim como ele, com um
símbolo especial. Quando um de nós morria, outro era escolhido e marcado. Apenas nós conhecíamos o símbolo: o lobo de Roma empalado na espada de um gladiador; não,
do gladiador Spartacus. Foi ele quem desenhou o símbolo e mandou fazer. Foi ele o primeiro a se marcar e quem, por sua vez, nos marcou. Nós éramos uma irmandade,
Marcus. Seu pai e o restante de nós. Apenas a mulher dele conhecia o segredo do símbolo secreto.
Marcus engoliu em seco de nervoso.
- E é a mesma marca que tenho no ombro.
- Sim. E no meu. Olhe aqui.
Brixus abaixou o ombro do manto e da túnica e se virou para Marcus. Uma cicatriz fina e branca retratava a cabeça do lobo e a espada. Ele ajeitou as roupas no lugar.
Marcus balançou a cabeça.
- Isso não pode ser verdade. Tem que ser coincidência.
- Bem, então você consegue imaginar como fiquei surpreso ao ver a marca em seu corpo. Foi por isso que eu tive que descobrir mais a respeito. Por isso que tive que
poupá-lo do corredor. - Brixus fez uma pausa e esfregou a testa, pensativo. - Veja bem, após a batalha final, quando o Spartacus foi morto, e seu exército, derrotado,
a mulher dele, Amaratis, desapareceu.
- Amaratis? - interrompeu Marcus. - Mas o nome da minha mãe é Livia.
- É agora. - Brixus sorriu um pouco. - De qualquer maneira, ela estava grávida, e o Spartacus mandou que escapasse, se a batalha fosse perdida. Mas não houve como
fugir. Os exércitos do Crassus e do Pompeius nos encurralaram. Como você sabe, eu estava ferido e fiquei no acampamento durante a batalha. Eu vi a Amaratis. Ela
me disse que iria pegar tudo que considerava valioso e tentaria voltar para casa, para seu povo. Foi a última vez que nos falamos. Agora imagino que a Amaratis tenha
levado o ferrete com ela. Ainda devia estar com ele quando foi capturada e quando o centurião se tornou seu dono. E, quando o filho nasceu, ela o marcou. - Brixus
pegou o braço de Marcus com delicadeza. - Ela marcou você.
- Mas por quê?
- Porque ela quis que você levasse o sinal da rebelião. Um dia, imagino, ela pretendia lhe contar a verdade. Toda a verdade.
- Que verdade? - perguntou Marcus, sentindo uma náusea cada vez maior no fundo do estômago. - Que verdade?
- Que você não é filho do centurião. Que ela estava esperando um filho quando foi levada e o pai desse filho era o próprio Spartacus.
- Não... NÃO! - Marcus balançou a cabeça. - Não é verdade. Eu sei quem é meu pai. Ele era um centurião. Um herói. Eu o amava. - Ele sentiu um aperto na garganta
quando todos os sentimentos que sempre nutrira pelo homem que o havia criado como filho afloraram por dentro. Marcus sentiu o coração se encher de saudade e tristeza.
- Silêncio! - pediu Brixus, olhando em volta com ansiedade. - Marcus, a verdade é dura, mas é a verdade. Acredite em mim.
- Não, não posso acreditar. - Marcus limpou as primeiras lágrimas. - É uma mentira.
- Então, como você explica a marca?
- E-Eu não posso.
- Pense, Marcus. Pense em sua infância. Claro que você deve ter notado que sua mãe e o Titus estavam escondendo alguma coisa de você...
Marcus tentou esvaziar a mente e se lembrar. Quase sem querer, ele se recordou da vida na fazenda, da mãe e de Titus, e da natureza às vezes estranhamente formal
do relacionamento entre eles. E também se lembrou de que a mãe sempre lhe dissera que ele seria muito mais do que o filho de um fazendeiro um dia, bem mais.
- Marcus, eu não tenho muito tempo. Preste atenção. Não espero que entenda tudo isso de uma vez só. Você é o filho do Spartacus. Isso quer dizer que você é um inimigo
da escravidão, significa que é um inimigo de Roma. Se algum dia descobrirem sua verdadeira identidade, você estará em grande perigo. Jamais conte a outra alma o
que lhe contei. Porém, existe mais a respeito disso do que você sabe. O espírito do Spartacus sobreviveu à derrota. Ele continua vivo no coração dos escravos por
todo o Império Romano. Se um dia acontecer outra rebelião, haverá milhares que se reunirão para seguir o estandarte de seu filho. Esse dia pode nunca chegar. Mas,
se acontecer, então o seu destino é lutar para completar o trabalho de seu pai. Você entendeu?
- Destino? - Marcus sentiu a mente dar voltas. Ele balançou a cabeça. - Não! Meu destino é ganhar a liberdade e salvar a minha mãe da escravidão. Apenas isso.
- Por enquanto, talvez sim. Mas essa situação não muda quem você é ou o que representa. Com o tempo, você irá aceitar isso. - Brixus se recostou. - Eu contei o que
sei para outras pessoas. Foi por isso que escapei, para espalhar a notícia para outros escravos que ainda se lembram do Spartacus. Agora mesmo eles estão sussurrando
que seu filho vive.
Marcus olhou feio para Brixus.
- Então você colocou minha vida em risco.
- Não. Tudo o que eles sabem é que você vive e é um gladiador como seu pai foi.
- Isso já é saber demais - falou Marcus, contrariado. - Se aqueles que controlam Roma souberem disso, nada irá detê-los até que me encontrem.
- Então é melhor você fazer o possível para não levantar suspeitas - sugeriu Brixus. - Marcus, eu sei que esse é um segredo perigoso e sinto muito que ombros tão
jovens tenham que carregar esse fardo, mas você é o filho do seu pai. Se um dia os escravos se levantarem contra seus donos novamente, eles vão precisar de um líder.
Vão precisar de você. - Brixus o olhou outra vez, se arrastou até a borda da carroça e pousou os pés no chão. - Tenho que ir embora. Já vi um cartaz de "procurado"
com minha descrição perto da estalagem.
- Para onde você vai? - Marcus não queria que ele fosse embora. Não quando uma pergunta atrás da outra surgia por dentro.
- Vou me manter livre pelo máximo de tempo que puder. Irei aonde quer que existam escravos e direi que a Grande Revolta não acabou. A esperança vive. Onde quer que
você veja um dono batendo em um escravo, procure por mim, Marcus, e eu estarei lá. Assim como o espírito do Spartacus e do filho dele.
Ele se debruçou para a frente e pegou as mãos de Marcus.
- Cuide-se. Você é como um filho para mim.
Brixus se virou e foi embora correndo pelo portão do pátio até a rua. Marcus se sentiu tentado a fugir atrás dele, mas então se lembrou da mãe e entendeu que deveria
permanecer na carroça. Tinha que ir a Roma e fazer o possível para reverter o grande mal que fora feito à sua família...
Ele fez uma pausa e sorriu amargamente para si mesmo. Sua família era uma mentira. Ele não tinha o mesmo sangue de Titus, nem a obrigação de vingá-lo.
Enquanto esperava sentado Brutus trazer-lhe um pouco de comida, Marcus sentiu a vaga noção de um objetivo se agitando por dentro. Ele jamais tinha sido um romano
livre. Não realmente. Era sangue de escravo que corria em suas veias, sempre fora. Sua ligação era com os escravos, não com os homens livres. Ele havia começado
essa jornada para reverter o grande mal que fizeram a ele e à mãe. Agora havia uma injustiça muito maior pairando sobre Marcus e, em breve, ele deveria decidir o
que faria a respeito disso. Poderia escolher seguir o caminho que Brixus lhe mostrara ou criar o próprio destino. De um jeito ou de outro, Marcus tinha que ir a
Roma. Ele colocou a mão no ombro, os dedos percorrendo a cicatriz da marca, e sussurrou baixinho para si mesmo:
- Pai...
As lutas públicas entre gladiadores eram cuidadosamente planejadas para exibir suas habilidades de combate. Mesmo que eles estivessem lutando até a morte, os espectadores
queriam ver uma bela demonstração antes de o perdedor ser morto. Geralmente, dois gladiadores com estilos diferentes de luta eram emparelhados. Quando os recrutas
de Cápua terminavam o treinamento inicial, os instrutores decidiam em que tipo de combate eles deviam se especializar.
(guerreiro com rede)
Vestia armadura leve porque o estilo de luta dependia de movimentos ágeis e velocidade. Usava uma rede, um tridente e uma adaga para prender e matar os oponentes.
(perseguidor/seguidor)
Mais protegido que o retarius, porém com movimentos mais limitados. Usava uma espada e um escudo longo que dava uma volta ao redor do corpo, além de proteção extra
na perna esquerda e no braço e antebraço direitos (onde ficava o escudo).
(guerreiro que lutava contra animais)
Lutava contra animais selvagens, como tigres, leopardos e leões. Os bestiarii tinham sua própria escola de treinamento, mas alguns dos escravos de Cápua eram treinados
para lutar com animais, e Marcus confronta lobos em sua primeira luta. O bestiarius vestia armadura leve e elmo com visor, e usava uma lança ou faca, um chicote
e às vezes uma jaula. As lutas contra animais eram extremamente populares com o público. As recompensas para esse tipo de guerreiro eram grandes, e para os habilidosos
os combates podiam ser menos perigosos do que entre gladiadores.
A sobrevivência dos gladiadores dependia não só de vencer os oponentes, mas também de agradar o público. Um gladiador que perdesse uma luta e estivesse prestes a
ser morto podia ser salvo se a plateia considerasse que ele havia lutado bem e lhe desse o sinal positivo com o polegar.
O sinal negativo, contudo, significava que ele estava condenado à morte. Os espectadores apostavam em seus gladiadores favoritos. Marcus aprende que um gladiador
que é o favorito para ganhar certamente irá morrer se for derrotado, porque seus torcedores ficarão furiosos por terem perdido dinheiro.
Simon Scarrow
O melhor da literatura para todos os gostos e idades