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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LUVAS NEGRAS / Alex Simmons
LUVAS NEGRAS / Alex Simmons

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Tentando conter o avanço nazista e não se importando com o perigo, ele arriscava a vida nas mais perigosas missões, desafiando a morte e sempre saindo vitorioso. Ele era conhecido como Luvas Negras, um homem que ninguém realmente conhecia, que provocava tanto ódio quanto admiração.

O interesse extraordinário que despertara aquela partida, estava expresso nitidamente no rosto dos expectadores, que acompanhavam atentamente cada jogada. O desafio entre as duas equipes fora o prato preferido de todos, nas últimas duas semanas, e as apostas, em um ou noutro grupo, alcançaram cifras impressionan­tes.

Por outro lado, a coincidência dos dois regi­mentos, naquela localidade da índia, fez com que a paixão por aquela partida de polo chegasse ao auge, ouvindo-se gritos frenéticos to­da a vez que um ou outro grupo marcava um ponto.

O jogo tinha começado muito cedo, a fim de evitar as horas quentes daquela região tropi­cal. Afortunadamente, o campo estava rodeado por espesso arvoredo, onde ficavam as tribunas e as arquibancadas dos expectadores.

Desde o primeiro momento, as duas equipes demonstraram ser igualmente fortes e aquilo au­mentou o entusiasmo dos torcedores. Os joga­dores da equipe que representava o 113º Regi­mento de Cavalaria das Índias, quatro homens que sabiam perfeitamente o que tinham entre as mãos, chamavam-se Henderson, Yerex, Crane e Roberts. Seus adversários, pertencentes todos ao 218º da Rainha eram Markey, Park, Sullivan e Cooper.

O primeiro tento foi marcado por Sullivan, para o 218º, depois de extraordinária tabelinha. Mas seus adversários não se entregaram e logo reagiram valentemente, empatando o jogo em seis tentos. Restava o tempo justo para uma das equipes conseguirem a vitória, já que se não houvesse desempate no tempo regulamentar, haveria uma pequena prorrogação, já que nenhum dos apostadores se conformaria com o empate.

Aproveitando uma breve pausa, os dos 113º reuniram-se, e Crane, que montava um cavalo alazão, olhou fixamente Henderson, dizendo:

— Tudo depende de você agora rapaz. Pro­cure se manter na esquerda e nós três faremos o impossível para passar-lhe a bola. Seu cavalo é o mais veloz e o menos cansado de nosso time.

Edwin Henderson sorriu. Era um rapaz alto, forte, de ombros largos. Seu rosto estava curti­do pelo sol e o ar dos espaços livres, os olhos verdes escuros formavam um bonito contraste com sua pele bronzeada. Era, sem dú­vida, o mais predisposto ás cavalgadas, entre to­dos do113º Regimento de e demonstrara muitas vezes, revelando-se um cavaleiro de primeira li­nha.

— Farei o possível Crane, mas não se preocupe, a vitória será nossa.

— Oxalá tenha razão — desejou Yerex.

Momentos depois, recomeçava o jogo e o in­cansável Sullivan recolhia a pelota. Mas Crane estava perto dele e, com uma habilidade extra­ordinária, logrou tomá-la com um certeiro golpe, tentando lançá-la imediatamente a Hender­son. Mas, atacado por Markey e Park, teve de fazer um passe curto a Roberts.

Este, embora marcado por um adversário, logrou com mais facilidade, enviar a bola a Henderson, livre de marcação, que logo partiu em direção á meta, perseguido desesperadamente pelos adversários.

O tiro final foi certeiro. Uma ovação ensur­decedora acolheu a jogada de Henderson, que rodeado pelos companheiros, recebeu galhardamente, tapas amistosos que lhe davam nas costas. Enquanto isto, o público de pé, gritava sem cessar. Os membros dos 113º pulavam freneticamente alegres, inclusive com os lucros das apostas.

Os vencedores deixaram os cavalos com os tratadores e dirigiram-se aos vestiários, por on­de desapareceram os homens da equipe derrotada.

Estes tiveram tempo de adiantar-se aos adversários, já que o clamor do público, ovacionando os outros, retardou-os o suficiente. De todos, Markey era o que mais sentia a derrota, pois jogara todo o dinheiro que possuía.

Era difícil entender o que se passava no ín­timo dos componentes dos diversos regimentos estabelecidos na Índia. Por baixo das saudações amáveis, dos apertos de mão, dos sorrisos, escon­dia-se uma rivalidade que chegava, muitas vezes, a converter-se num ódio profundo. Por isto não foi de estranhar que Markey e os membros de sua equipe discutissem acaloradamente, quando se dirigiam aos chuveiros. O próprio Markey, a quem não faltava à inteligência e astúcia, jurou vingar-se do adversário que, no último instante, destruíra todas as ilusões dos homens do 218º e, sobretudo, as suas próprias. Ao ouvir as atre­vidas palavras de Markey, seus companheiros sorriam, mostrando-se dispostos a ajudá-lo na vingança contra Henderson.

Tiveram tempo suficiente de planejar a des­forra e, depois do banho, deixaram o recinto, certos de que a saída, na pequena cantina, po­deriam obter notícias frescas do resultado da pe­ça previamente preparada contra Edwin.

Este junto aos companheiros depois de es­capar com dificuldade ao entusiasmo dos torce­dores, dirigiu-se aos chuveiros, onde estava o armário metálico em que guardaram os unifor­mes militares.

Alheio aos planos dos adversários, Edwin despiu-se, entrando na ducha, enquanto na can­tina, com os olhos fixos nas portas do vestiário, os quatro homens do 218º mostravam-se nervo­sos, fumando continuamente e esperando ouvir os gemidos de Henderson que, sem dúvida, ia receber a mais dolorosa surpresa de sua vida.

— Tem certeza de que tudo foi bem exe­cutado? — perguntou Pack, de repente.

— Claro amigo — respondeu Markey. — Fechamos o registro de água fria e abrimos ao máximo o de água quente. Não morrerá, mas duvido que se apresente esta noite na festa do coronel. Ficará de cama, na certa, com o cor­po untado de pomada.

— Não acha que é uma brincadeira um tan­to pesada? — censurou Sullivan, franzindo o cenho.

— Está arrependido?

— Não, mas as queimaduras poderão ser graves e...

— Pior para ele! — grunhiu Markey. — Se­rá que ainda não entenderam o que significa para nós a derrota que acabamos de sofrer? Eu não sei, mas, às vezes, fico em dúvida se a cabe­ça de vocês funciona bem. Eu e vocês perdemos o último níquel que tínhamos. Esta noite tere­mos de pedir dinheiro emprestado, e duvido que alguém nos empreste. Por mim, se recupe­rasse meu dinheiro com isso, eu assaria Hender­son vivo.

— É estranho — lembrou Cooper. — Não ouvi ainda nenhum grito.

— Não se preocupe — tranquilizou Markey. — Logo gritará.

— Eh! Olhem! Aí vêm os três! — exclamou Pack surpreso.

De fato, Yerex, Crane e Roberts saíam do vestiário, envergando os respectivos uniformes. Todos os componentes das duas equipes eram sargentos. Os três amigos de Henderson saíram, olhando a porta onde Henderson tomava banho. Crane aproximou-se e bateu com os nós dos de­dos, gritando tão alto, que os do 218º ouviram perfeitamente.

— Ei, Edwin!? Vai ficar velho aí dentro? Não esqueça que temos de receber o dinheiro das apostas. Boa farra vamos fazer esta noite!

A porta do chuveiro abriu-se e Henderson apareceu. Markey, Park, Sullivan e Cooper ficaram boquiabertos ao vê-lo tão resplandecente, ves­tido com seu uniforme, sorridente como se nada tivesse ocorrido.

— Deve ter falhado — comentou Pack, mordendo os lábios.

— Não compreendo — disse Markey intrigado.

Mas Henderson, depois de saudar os amigos, aproximou-se, juntamente com estes, da mesa ocupada pelos do 218º. Olharam um por um os quatro adversários e acusou:

— Estou certo de que foram vocês que fe­charam o registro da água fria, deixando aberto o da água fervendo. Só tipos sem caráter, incapazes de aceitar a derrota com espírito des­portivo, seriam capazes de semelhante baixeza, Mas enganaram-se, amiguinhos. Devo ter uma pele de aço, porque estou intacto, embora, tenha saído debaixo da água fervente para abrir à fria. Se não tivesse tanta resistência na pele estaria queimado agora. Claro que nenhum de vocês é suficientemente valente para apontar o autor de tão brilhante ideia.

— Não sei de que está falando — dissimu­lou Markey, querendo sorrir. — E está sendo injusto, quando diz que não temos espírito es­portivo. Fique sabendo que estávamos à espera de vocês, a fim de celebrarmos a vitória.

— Prefiro morrer de sede a beber com vo­cês. Vamos rapazes!

* * *

A festa dada no palácio do Governador, foi um êxito completo. Todos se divertiram, com exceção de Henderson, que passou a noite toda sentado em uma das mesas, ser­vidas pelos criados hindus.

— Será que perdeu o gosto pela dança ra­paz? — perguntou Crane, aproximando-se dele.

— Ou as pequenas daqui não lhe agradam?

— Não estou disposto a divertir-me Crane — respondeu Edwin, com um sorriso. — Além disso, comunicaram que vou gozar uma li­cença na Inglaterra dentro de duas semanas. Vo­cê já sabe o que significa esta licença.

— Claro! Você tem uma bela noiva, rapaz.

— Exato. Não posso dançar com estas pe­quenas, enquanto penso em Clarisse.

— Você está ficando muito nobre Edwin. Mas acho que tem razão. Não posso deixar de pensar na brincadeira pesada que você quase sofreu esta manhã.

— Esses tipos do 218º são uns covardes.

— Sim. Mas estou curioso por saber como você não se queimou.

— Foi coisa rápida, na verdade. Dei um pulo dos diabos, quando senti a água quente. Contudo devo ter uma pele muito resistente.

— Talvez por causa do sol.

— Deve ser. Afinal, foi o único sargento que passou todo o tempo na zona tórrida do oeste. Ali só existe miséria e doença. E eu re­sisti a tudo. Vi adoecer muitos dos meus ho­mens e os indígenas morria como moscas. No entanto, voltei ileso depois de ficar lá mais de três anos. Ainda há quem não acredite em milagres.

— Você pensa voltar à Índia?

— Ainda não sei, mas acho que não. Estou farto deste país. E cada vez mais que sinto sauda­des da Inglaterra. Por outro lado, Clarisse é uma jovem fraca e não suportaria este clima. Está acostumada a seu ambiente na Inglaterra e morreria de tédio aqui. Não se esqueça de que os Collins é uma das famílias mais ricas do Reino Unido.

— Você teve sorte rapaz.

— O dinheiro da família de minha futura mulher não me preocupa. Além disso, sendo ór­fã de pai e mãe, só tem um irmão, que mal co­nheço. Sei apenas que se chama Clyde. É quem dirige agora, os negócios da família e, pelo que sei, não abrirá muito a mão para ajudar o cunhado. Eu tenho minha profissão. O resto não me preocupa. Lógico que Clarisse terá de acostumar-se a viver um pouco mais modesta­mente, mas sei que está disposta ao sacrifício. É uma excelente pequena.

— Pois desejo-lhe muita felicidade Edwin.

— Obrigado Crane. Talvez algum dia nós dois possamos nos encontrar na Inglaterra.

— Naturalmente. Também penso largar daqui o mais depressa possível. Claro que antes de três anos não posso obter transferên­cia. Mas, se estourar uma guerra, poderão le­var-nos daqui mais cedo.

— Não creio que haja guerra. Ninguém es­quece a de catorze.

— Você é um otimista. Leio os jornais to­dos os dias e estou certo de que esse tal Hitler, que acaba de subir ao poder na Alemanha, tem muita vontade de demonstrar a seus patrícios que o tratado de Versalhes, como ele diz, não passam de papel higiênico sem rolo. Dê tempo ao tempo e verá que não estou enganado.

— Pois torço para que você esteja. A ver­dade é que não tenho vontade de separar-me de Clarisse depois de casado.

Crane sorriu, deu-lhe uma palmadinha no ombro e afastou-se, atrás de uma linda jovem, que acabava de passar junto a eles.

Edwin olhou em volta, como se estivesse des­pedindo-se daquele ambiente em que vivera tan­to tempo. Mas lembrava-se também, fora das lindas cidades, dos ásperos desertos, das monta­nhas altíssimas, os vales profundos e cheios de febres. Sim, estava muito contente de poder abandonar a Índia misteriosa e voltar à Ingla­terra, onde a mulher mais bela do mundo o es­perava com ansiedade.

 

Para os americanos aquele mês de julho de 1939 não foi muito diferente dos anteriores. Sobretudo para os ricos, que nas praias mais concorridas sentiam prazer em combater de mil maneiras diferentes, o calor escaldante. A Europa estava mais longe que nunca e embora os jor­nais reproduzissem constantemente em grandes manchetes, os passos balbuciantes mas seguros do novo chanceler da Alemanha, que não hesi­tava em anexar territórios e armar seu país até os dentes, os norte-americanos deixavam cair os jornais e fechavam os olhos, deitados em espreguiçadeiras sobre a areia, protegidos por gran­des barracas multicoloridas ou expondo-se aos raios do sol que os queimava bronzeando-os.

Um pouco além da praia, os suntuosos ho­téis levantavam-se audaciosos em arquitetura, e neles sob o zumbido suave dos refrigeradores, os homens de negócios ligeiramente vestidos, tomavam refrigerantes em canudinhos de pa­lha. Outros fumavam, tomavam nota de futuros negócios ou com as mãos sobre o abdômen, onde a curva da felicidade se desenhava amplamente, deixava-se levar por aquele “dolce farniente”, uma espécie de nirvana ocidental que nada fica­va a dever ao que sonhavam os povos do oriente.

Numa das mesas de um daqueles elegantes estabelecimentos, três homens conversavam animadamente. Dois deles, já bastante idosos, com o tipo característico dos grandes capitães da indústria americana, embora estes pertences­sem a um ramo um tanto obscuro do qual os agentes do fisco desejariam possuir mais conhe­cimentos do que tinham.

Walter Randall e Danny Silk eram dois des­ses indivíduos inescrupulosos que amealharam uma grande fortuna, satisfazendo desejos pú­blicos mais ou menos confessáveis. Como todos os grandes homens daquele país, passavam lon­gas férias na Flórida e agora, diante de seus uísques, olhavam, falavam e ouviam os compa­nheiros de mesa.

Este, mais curtido que eles, tinha olhos verde escuro e um gesto voluntarioso no rosto. Vestia de modo um tanto extravagante, chaman­do a atenção de todos que o viam. Seu terno era claro, a camisa branca, sobre a qual caía uma gravata azul com linhas vermelhas. Mas o que chamava mais a atenção eram as luvas ne­gras que cobriam completamente as mãos até desaparecerem sob as mangas do paletó e que lhe davam um aspecto verdadeiramente sur­preendente.

Seu inglês era britânico, embora de vez em quando, seus dois companheiros percebessem um tom diferente que em vão, ten­tavam reconhecer. Mas tanto Walter como Danny estava mais interessados no que fa­lava aquele homem para se preocuparem com o sotaque tipicamente britânico. De fato, o estra­nho explicava um fabuloso negócio, cuja reali­zação dependia de uma quantia extraordinária.

— Tudo isso é muito interessante Senhor Brock — interrompeu Walter Randall, em dado momento. — Pelo que acaba de expor, o ne­gócio não oferece nenhuma dificuldade. O se­nhor tem a mercadoria que nos interessa, em quantidade suficiente para atender nossas ne­cessidades. Claro que jamais pensamos que um inglês cem por cento fosse capaz de transportar, da maneira curiosa que nos explicou, essa tre­menda quantidade de droga. Não acha?

— Vocês esquecem um detalhe importante senhores — replicou Max Brock sorridente. — Já lhes expliquei que não venho diretamente da Inglaterra, mas da índia. Eu ocupava ali um dos postos mais importantes no controle da re­de hospitalar da península. O fato de eu obter a droga bruta e transportar para os Estados Unidos é assunto meu. Se não quiserem reali­zar o negócio, procurarei outras pessoas que não hesitarão em pagar-me muito mais do que lhes pedi. O que não quero é perder tempo. Acho que trezentos mil dólares não paga a quantidade de mercadoria que estou disposto a fornecer.

— Não se aborreça Senhor Brock — inter­veio Danny Silk. — Meu sócio e eu estamos dis­postos a pagar a quantia. O que nos incomoda, de certa forma, é irmos ao México apanhar a mercadoria. Afinal está nos exigindo pagamento adiantado, e não temos nenhuma garan­tia.

— Acha que pretendo enganá-los.

— Não, não é isso — ponderou Silk. — Bem, acho que é hora de esclarecermos as coisas. O senhor de fato poderia nos enganar, mas aviso que apesar do mundo ser muito grande tem meios de encontrá-lo. Então, se arrependeria de sua esperteza.

— Jamais pensei nisso.

— Está certo — voltou-se Silk para o com­panheiro observando. — Creio que já falamos muito Walter. Vamos dar o dinheiro ao Se­nhor Brock e que este nos diga onde encontra­remos a droga. Nossos rapazes se encarregarão de passá-la pela fronteira. Creio que o Senhor Brock não pensa realmente em enganar-nos.

— Se não confiam em mim...

— Chega de conversa — cortou Walter Randall. — Vou dar o dinheiro imediatamente. Trago-o comigo.

Tirou um maço de notas de um bolso do paletó, entregando a Max.

— Conte por favor.

— Não é necessário.

— Insisto. Gosto de que as pessoas com quem negocio fiquem certas de que não desejo enganá-las.

Max Brock obedeceu. Comprovou que os tre­zentos mil dólares estavam de fato no pacote que Randall lhe entregara. Depois sor­riu.

— A mercadoria está numa pequena praia, no lugar marcado em um mapa que eu desenhei. Ha quatro homens de guarda. Eu lhes da­rei um bilhete, mediante o qual eles lhes entre­garão a droga.

Max tirou do bolso um papel onde se viam algumas linhas traçadas, e estendeu-o sobre a mesa. Em outro papel lia-se apenas, duas pala­vras, "Luvas Negras".

— Curioso de fato — comentou Walter sor­ridente. — E agora que já estamos convencidos de sua boa fé, Senhor Brock, poderia explicar uma coisa?

— Se estiver a meu alcance...

— Por que usa essas luvas negras?

— Você quer dizer — explicou Silk — por que está usando luvas neste tempo?

— Terminamos nosso negócio senhores — respondeu Brock muito sério. — Foi um pra­zer tê-los conhecido. Espero encontrá-los de novo quando tiver outra mercadoria que possa lhes interessar.

Levantou, inclinou-se ligeiramente, girou sobre os calcanhares e afastou-se, deixando o res­taurante do hotel pela porta giratória.

— Que tipo! — exclamou Randall.

— É um homem curioso e cheio de misté­rios — acrescentou Silk. — Mas desde que nos procure, oferecendo-nos bons lucros, que nos im­porta como se veste?

— Tem razão, Danny. Acho que fizemos um excelente negócio.

 

Edward Dolan nunca sentira tanto ódio em sua vida. Quando se apresentara volun­tariamente, estava possuído de um sentimento patriótico, convencido de que todos os soldados alemães também eram vítimas do louco que os dirigia. A agressão da Alemanha á Polônia, a declaração de guerra feita pela França e Ingla­terra, imediatamente depois ao III Reich, o ti­nha emocionado a ponto de transforma-lo num ótimo combatente. Desejando exterminar o inimigo, evitando assim que se repetisse o prolongado calvário da I Guerra Mundial.

Mas dentro de pouco tempo, Edward perce­beu existir algo mais odioso: o comandante do pelotão que estava se tornando famoso, denominado de Luvas Negras.

Max Brock, o sargento que comandava o pe­lotão, era um homem valente, muito va­lente. Desde o primeiro momento, quando as tropas inglesas chegaram à Bélgica e a Holan­da, para ajudar seus aliados na defesa das linhas que ia ser envolvida pelos alemães, o Sargento Brock demonstrara que a vida nada representava para ele. O pior de tudo era que expunha constantemente seus homens, obrigando-os a combater nas piores condições, sofrendo baixas tremendas. Porem ele saía sempre ileso desses combates, vitorioso e sor­ridente, como se desprezasse a morte ou desejasse ardentemente. Edward Dolan chegou à conclusão de que nisso residia o ódio que todos os homens expe­rimentavam contra o Luvas Negras. No entan­to não achavam um meio de levar isso ao co­nhecimento do alto comando. Em momentos de perigo quando o exército aliado retrocedia sob a poderosa ofensiva das forças do III Reich, melhor armadas e mais disciplinadas que seus adversários, um protesto daquela natureza seria muito mal recebido pelos superiores. Justamente quando o Sargento Brock começava a fazer-se homem, quando, por seu arrojo, coragem e deci­são que não deixava de demonstrar um só ins­tante, servia de exemplo a todas as unidades combatentes.

Como chamá-lo de suicida ou atentar contra ele, que era o primeiro a expor a vida? Não, não havia nada a fazer.

Edward Dolan, como os demais homens do pelotão, os poucos que ainda sobreviviam depois das baixas de cada dia, passava as horas medi­tando, as noites intranquilas, imaginando sempre que seria aquele seu último dia de vida, que a qualquer instante, por culpa do sargento, uma bala inimiga iria tirar-lhe a vida.

Comparando com os chefes de outras uni­dades, os rapazes do pelotão do Luvas Negras percebiam que os outros sargentos não expunham seus homens daquela forma louca. Bastava saber de uma missão perigosa, que Max Brock corria ao posto de comando e pedia que fosse seu pelotão a realizá-la.

A princípio obtivera entusiasmo e orgulho de seus homens. Mas, pouco a pouco, à medida que muitos deles iam caindo em combate os sobreviventes notavam o desprezo que o sar­gento experimentava em cada uma das perigosas saídas, chegaram à conclusão de que tiveram a má sorte de servir sob o comando de um deses­perado, no mais amplo sentido da palavra.

Principalmente quando demandavam do porto de Dunquerque, numa dramática reti­rada que ficaria na história, empurrada pelas potentes colunas inimigas, os homens do pelotão de Luvas Negras estremeciam, temendo não al­cançarem os barcos, permanecendo ali, na cabeça da praia, à espera de uma bala inimiga, ou de serem feitos prisioneiros.

Edward Dolan lançou um suspiro e falou com o companheiro.

— Teremos que matá-lo!

— Pensei nisso muitas vezes Edward — respondeu o outro. — Mas creio que seja im­possível.

— Por quê?

— Ainda pergunta rapaz?! — exclamou Leo Everett. — Você sabe a sorte que ele tem. Estou convencido de que se colocasse a boca do fuzil no peito dele, a arma engasgaria.

Edward cuspiu sem responder. Tornara-se tão famosa a sorte extraordinária do homem cha­mado de Luvas Negras, que uma espécie de lenda já percorria as linhas inglesas. Mas a verdade era que os homens o temiam como ao próprio demônio e o entusiasmo inicial por pertencer a seu pelotão, tinha desaparecido por completo. Ninguém mais se apresentava voluntário e quan­do era necessário substituir os homens de Brock, tinham de serem enviados outros à força.

Toda a companhia estava em retirada, e Max Brock com a metralhadora na mão, permane­cia ali, olhando com desprezo às negras silhuetas dos tanques nazistas, que se aproximavam, dispa­rando sem cessar.

Sem resistir mais, Edward aproximou-se do lugar onde estava o sargento.

— Que foi Dolan? — perguntou Max voltando-se.

— Estamos ficando sozinho senhor. Temos a cidade de Dunquerque atrás de nós, e os barcos estão embarcando homens, sem parar. Será que não vamos também?

— Iremos quando eu julgar oportuno.

— Não tem esse direito! — gri­tou o jovem impulsivamente.

— Está bem rapaz — replicou Max sorri­dente. — Atreva-se a sair da trincheira e o dei­xarei seco com um tiro. O capitão da companhia nos confiou à cobertura dos demais, ordenando que nos retirássemos em último lugar.

— Não estranho — contestou Edward. — Sempre nos manda dançar com a dama mais feia.

— Bonita frase menino! Mas não temos outro remédio a não ser obedecer.

— Como quiser sargento.

Dolan voltou praguejando, para junto de sua metralhadora.

— Está convencido de que deseja cobrir o peito de medalhas? Será que uma bendita bala alemã não o manda para o inferno?

— Nada. Ele domesticou todas as balas nazistas.

— Maldito seja!

Tiveram de retroceder depois do cair da noite. Do pelotão de Max Brock res­tavam apenas três homens, mas o sargento não foi além das primeiras casas da cidade, entrincheirando-se numa delas e organizando a resis­tência. Durante o dia, a batalha alcançava di­mensões colossais. Desaparecida quase por com­pleto, a aviação aliada no céu de Dunquerque. Os aviões alemães passeavam sossegados, no es­paço aéreo; os grandes canhões bombardeavam sem cessar, as vias de comunicações e amontoa­vam os escombros sobre a cidade já destruída; os Stukas desciam em voo picado, bombardeando e metralhando os navios que se aproximavam do porto, onde uma massa de soldados desespera­dos aguardava o momento de ser embarcada, fu­gindo daquele inferno.

A situação agravava-se a cada instante e, embora tivessem evacuado grandes contingentes de soldados ingleses e franceses, devia aproveitar aquela memorável noite a fim de escapar à ação das armas germânicas, que descarrega­vam sem descanso e sob a luz de fogos de ben­gala e refletores, toneladas de cargas mortíferas contra a cidade mártir.

Ao amanhecer, Dunquerque e sua praia, bem como o pequeno porto ofereciam um aspecto dantesco. Os cadáveres não se amontoavam apenas sobre os diques, nas ruas e praças, mas flutua­vam de forma grotesca e macabra sobre as águas, junto aos restos das embarcações afundadas pe­los Stukas. A cidade estava envolta em chamas e uma densa coluna de fumaça elevava-se no espaço.

As ruas estavam completamente abandona­das, restando somente uns poucos sobreviventes do pelotão de Luvas Negras que com alguns sol­dados ingleses e franceses agarrados à força, for­mavam um foco de resistência suicida, debaixo do incessante bombardeio nazista.

Max Brock percebera desde o início, a enor­me importância daquela resistência, que estava disposta a levar até o extremo. Se deixasse passar por ali os carros alemães, estes iriam diretamen­te ao porto, cortando as poucas possibilidades que restavam para a evasão marítima.

Nas primeiras horas da manhã, um homem acompanhado de um grupo de fuzileiros, apre­sentou-se no posto de Max Brock. Era o Capitão Silverton, a quem a morte de seu comandante convertera em chefe do regimento. Apertou a mão enluvada de Max dizendo:

— Portou-se magnificamente. Se não tivesse permanecido aqui durante a noite, os tanques alemães estariam passeando livremen­te no porto. Soube de sua valente decisão, e fiz questão de vir felicitá-lo pessoalmente. Agora de­sejaria que se retirasse, porque você também, merece um lugar num dos barcos que estão re­gressando à Inglaterra.

— Não meu comandante — recusou Max. — Ainda restam muitos homens a embarcar nestas próximas horas. Este é meu posto senhor. E vou permanecer aqui.

— Sabe que vai sacrificar-se e a seus ho­mens também?

— Sim senhor, mas alguém tinha de cum­prir esta dolorosa missão.

— Você é magnífico sargento. Nunca o es­queceremos, pode estar certo.

— Obrigado senhor.

Nesse momento, um homem da escolta do capitão aproximou-se do grupo. Levava uma câ­mera fotográfica a tiracolo e tirou algumas fotos do novo chefe do regimento conversando com o Sargento Brock. Depois se apresentou sorri­dente:

— Sou David Carson, do Tribune Herald. Gostaria de apertar-lhe a mão sargento. Já tirei algumas fotos e queria fazer uma reportagem, mostrando a nossos compatriotas como é a guer­ra no front.

— Não tem nenhuma importância — respondeu Max dando de ombros. — Não fiz mais que cumprir meu dever.

— Não concordo sargento — interveio o co­mandante.

— Sei que o tempo é ouro sargento, mas gostaria de fazer-lhe algumas perguntas. Por exemplo, sabe que todos o chamam de Luvas Negras?

— Sim.

— Não vou perguntar-lhe por que as usa, pois certamente não me responderia.

— Adivinhou David.

— Já imaginava. Mas o que você fará, se che­gar vivo à França?

— Tratarei de unir-me aos grupos de re­sistência, que sem dúvida alguma, se formarão no território ocupado, embora seja mais prová­vel que nenhum de nós escape daqui com vida.

— Obrigado sargento!

Momentos depois, o grupo se retirava, e os homens do Sargento Brock olhavam-no com um ódio que nem ao menos tentavam dissimular. Edward Dolan dirigiu-se a ele sarcástico.

— Contente agora sargento?

— Que quer dizer, rapaz?

— Que já não falta nada sargento. Você vai sair nos jornais. Dentro de algumas horas terá convertido em herói nacional. Mais que isso, em herói mundial. Os povos dos quatro conti­nentes conhecerão o Sargento Brock, que será cantado em poemas épicos.

— Deixe-me em paz por favor.

— Deixá-lo em paz? Você sim, é que devia deixar-nos em paz! Não percebeu ainda, que todos esses tipos querem embarcar e que nós, por sua culpa vamos ficar aqui?

— Você tem sorte rapaz. Preciso de você aqui. Do contrário, agora mesmo eu lhe mete­ria uma bala nos miolos.

— Faça sargento! Vai receber outra me­dalha por enviar-me ao infer...

Não chegou a terminar a frase. Uma bala inimiga penetrou-lhe na fronte, fulminando-o.

 

Olharam ela subir a encosta, depois de passar a ponte e dirigir-se diretamente a eles. Jean Litier sorriu, observando:

— É uma pequena e tanto, não acha Charles?

— Claro que sim. Não sei o que faríamos sem Andrée. Há uns poucos alemães ainda em Villesur Laude. As coisas ficarão piores, quando acabarem de construir o acampamento e o cam­po de avião vizinho.

— Talvez não possamos mais apanhar pro­visões no povoado. Mas já pensou nos belos obje­tivos que teremos ao alcance da mão?

— Sim.

Calaram-se de repente. Estavam há seis me­ses no Mont Cenis, nas cavernas perdidas entre labirintos de rochas daquela complicada formação geológicas. Mais abaixo, do outro lado do rio, Laude o povoado, estava albergado num co­tovelo. Só dois dos homens daquele núcleo de resistência, Jean Litier e Charles Baumont tinham nascido em Ville-sur-Laude. Os outros, procediam de muitos lugares diferentes, e a jovem a única mulher entre eles, Andrée Serval, era uma linda parisiense, de cabelos louros e olhos azuis, dis­posta a jogar tudo, a fim de que não faltassem alimentos a seus companheiros.

Uma vez por semana, durante a noite, a jovem descia do monte e percorria os lugares indicados por Jean e Charles. Os habitantes, que conheciam a existência dos guerrilheiros, entre­gavam quanto podiam à jovem, e esta, ao rom­per da aurora atravessava a ponte da estrada e voltava ao lugar onde os dois homens costuma­vam esperá-la, ajudando-a a levar a pesada carga,

Fora alguns dormentes e trilhos, cortados da linha férrea, o grupo, comandado por Jean Li­tier, não realizara ainda nenhuma incursão pe­rigosa contra o batalhão alemão, alojado numa série de construções novas do outro lado da es­tação, junto a um terreno plano que os nazistas converteriam rapidamente em campo de aviação.

A proximidade da costa atlântica transfor­mara aquele lugar numa das localidades prefe­ridas para a defesa da muralha que os nazistas estavam levantando no litoral. Também para os maquis, a existência daquela montanha de ro­chas disformes constituirá num refúgio ideal e um ponto de onde mais cedo ou mais tarde poderiam organizar uma verdadeira campanha de guerrilhas contra as tropas alemãs, nos arredores do pequeno povoado.

Quando a jovem Andrée aproximou-se dos dois homens, estes tomaram os pacotes que ela trazia e os três começaram a subir a ladeira que conduzia ao Vale Perdido, único ponto por onde podiam chegar à parte posterior de Mont Cenis, tomando um solitário caminho que ia até o cume rochoso. Percorreram o primeiro quarto de hora em silêncio. Depois já no vale, descan­saram um pouco. Jean perguntou à jovem, em dado momento:

— Como vão as coisas em Ville-sur-Laude, Andrée?

— Há mais alemães que na semana passa­da. Estão ultimando as construções dos quartéis que abrigarão o batalhão. Também estão traba­lhando, segundo me disseram no campo de avia­ção. Muitos dos homens do povoado são obriga­dos a colaborar com os engenheiros alemães. Os trens chegam constantemente carregados de ma­terial e de aviões desmontados, que logo são transportados por caminhões até o campo.

— Precisamos tomar uma decisão Jean — falou Charles.

— Estava pensando nisso amigo. Claro que temos poucas armas e só uma pequena quan­tidade de granadas e cargas explosivas. Mas não temos outro remédio senão começar a trabalhar seriamente.

— Estou louco por fazer algo verdadeira­mente importante! — manifestou Charles Baumont. — Já perdemos muito tempo Jean. É hora de esses malditos nazistas conhecerem nossa exis­tência.

— Esta noite falaremos com os rapazes — pro­meteu Jean.

Foi quando a jovem sorriu, de uma maneira estranha, fazendo com que os companheiros fran­zissem o cenho. Depois disse:

— Vou dar-lhes uma boa notícia amigos. Ouvi falar no povoado, mas ninguém tem certeza ainda

— De que está falando? — perguntou Jean.

— Vocês lembram do Luvas Negras?

— Naturalmente! — exclamou Charles. — Era um sargento britânico, creio. Foi um tipo corajoso que tornou possível a evacuação de muita gente em Dunquerque. Refere-se a ele?

— Sim — confirmou a jovem.

— E que há com esse tipo?

— Alain o ferreiro, jurou que o viu passar pelo povoado de noite. Ia coberto de farrapos, mas Alain reparou muito bem nas luvas negras. Como conhecia a fama desse inglês, resolveu segui-lo.

— Aonde ia?

— Alain não me disse, porque não sabia. Viu-o atravessar a ponte apenas.

— Que demônio o faz por aqui?

— Talvez esteja fugindo — acrescentou a jo­vem. — Creio que não se atreveu a atravessar o rio, com medo que os alemães o seguissem, porém acho que veio encontrar-se conosco.

— Oxalá você não esteja enganada! — disse Charles.

— Acredita mesmo que ele veio procurar-nos? — indagou Jean.

— É o mais certo. Todo o mundo pensa que ele morreu ou caiu prisioneiro em Dunquerque. Mas a verdade é que ninguém sabe o que ocorreu de fato. O Luvas Negras é demasiado valente para se deixar prender. Agora imaginem como fiquei, quando Alain me contou o que vira, Se esse ho­mem se incorporasse a nosso grupo, as coisas mudariam.

— Você está dizendo que não sirvo para che­fe? — resmungou Jean.

— Não seja tolo Jean! — repreendeu An­drée. — Ninguém tem queixas de você rapaz. Referia-me à experiência do Luvas Negras, ao que poderia ensinar e o que poderia acontecer aos alemães. Percebeu agora?

— Desculpe Andrée. Eu também o deseja­ria, de todo o coração. Todos nós fomos solda­dos, mas não temos experiência, já que não pu­demos combater o inimigo nessa guerra estra­nha que foi a nossa. Um homem como ele, de quem contam coisas extraordinárias, seria bem-vindo a nosso grupo, embora nós os franceses, continuaríamos sendo os chefes, já que não po­demos consentir, por muito que valha nosso co­laborador, que um estrangeiro tome o comando de uma unidade que defende nosso país.

— Você está ficando muito sensível! — ex­clamou Charles.

— É uma questão de princípio. Mas vol­tando ao Luvas Negras, não acha que devería­mos procurá-lo?

— Acho — respondeu a jovem. — Pode ter-se perdido, já que não conhece os montes como nós, nem o caminho que leva ao nosso escon­derijo.

Levantaram-se e reiniciaram a marcha. Du­rante algum tempo caminharam em silêncio, tão distraídos em seus pensamentos, que foram co­lhidos de surpresa, por uma voz forte que soou à esquerda do caminho. Andrée foi a única a sacar o revólver, embora não fizesse uso dele.

— Jogue fora essa arma pequena! — orde­nou a voz. — Não gostaria de machucá-la.

Andrée obedeceu. Então surgindo de um matagal, um homem alto, com o uniforme ras­gado, apareceu diante deles, empunhando uma metralhadora e os carregadores pendurados ao cinto, bem como algumas granadas num velho embornal.

Mas os olhos dos três franceses cravaram-se ao mesmo tempo, nas mãos cobertas por luvas negras, já bastante surradas.

— É ele! — exclamou Andrée Serval, sem se conter.

— Os segui amigos. Vocês são muito im­prudentes. Eu procurava o grupo de vocês. Fazem parte de um maqui, não?

— Sim, eu sou o chefe. Chamo-me Jean Litier. Você não é Luvas Negras?

— Exato. Já me conheciam?

— Todo mundo o conhece amigo. Vire essa arma para lá. Se veio nos procurar, já nos en­controu.

— Não estava muito certo sobre vocês — respondeu Max Brock, baixando à metralhadora. — Alguém me seguiu uma destas noites, mas eu estava tão fraco que não pude dar-lhe o que merecia. Estive a ponto de esmagar a cabe­ça com uma coronhada, mas no último mo­mento, vi que se tratava de um homem do po­voado.

— Era Alain, o ferreiro — respondeu Char­les. — Livrou-se de boa, então. Ele está certo de que você não o viu.

— Ao contrário. Bem, mas mudando de assunto, o que preciso agora é chegar ao es­conderijo de vocês e dormir um pouco. Claro que não perguntei ainda o que desejam de mim...

— Estávamos falando de você agora mes­mo — disse Charles, oferecendo-lhe a mão. — Seja bem-vindo companheiro.

— Obrigado — agradeceu Max, sem aper­tar a mão do outro.

 

Clyde Colins abandonou seu escritório no War Office já de madrugada. Trabalhara du­rante toda a noite, decifrando as mensagens pro­cedentes das cinco partes do mundo. Ele perten­cia à seção de códigos do Ministério da Guerra e seu serviço era dos mais importantes.

A fadiga ia se apoderando de seu corpo e só o fato de sair dos porões do edifício, acalmou-lhe os nervos. Respirou o ar fresco da madrugada, sentindo-se bem melhor.

Apesar do nome de família, Clyde não era um homem pretensioso e se apresentara para servir como simples soldado. Mas seus conheci­mentos de criptografia o tornaram um elemen­to precioso naquela espécie de trabalho. Por isto, obrigaram a assumir aquele cargo, ficando na Inglaterra.

Clyde era um dos poucos soldados que po­diam dar-se ao luxo de deixar seu carro num es­tacionamento subterrâneo, não muito longe do War Office. Dirigiu-se a ele, depois de levantar a gola do casaco abrigando-se do frio. Momen­tos depois, já no veículo, tomou a parte norte da cidade, onde o Collins possuía uma casa bastante afastada do centro barulhento da grande metrópole.

Londres mudara muito nos últimos tempos. O ambiente que se respirava era diferente, e Cly­de cada vez que percorria as ruas, ao sair do War Office, notava mais e mais ruínas, vias en­tulhadas de escombros, bombeiros, trabalha­dores que removiam corpos soterrados pelo últi­mo bombardeio.

Quando o veículo penetrou pelo amplo por­tão de ferro que delimitava o imenso jardim ro­deando a casa, Clyde diminuiu a velocidade até parar na entrada do pórtico adornado de co­lunas. O jovem saiu do carro, subiu pela es­cadaria e empurrou a porta. Thomas o mordo­mo, deixava aberta, sabendo que o patrão cos­tumava chegar alta madrugada.

O salão estava mobiliado em puro estilo vi­toriano, com imensos quadros a óleo nas pare­des, reproduzindo figuras dos antepassados dos Collins, entre os quais se contavam alguns no­bres cavalheiros de outros tempos e vários cama­reiros de suas majestades.

Uma porta, abriu à esquerda, e a alta figura de Thomas, metida em seu impecável uni­forme apareceu no umbral.

— Bom dia senhor.

— Bom dia Thomas. E minha irmã?

— A Senhorita Clarisse está, como sempre no jardim. Quer que a chame senhor?

— Não,Thomas. Ordene que me pre­parem a refeição e bastante café forte. A ver­dade é que estou cheio de sono.

— Posso aconselhar o senhor a deitar-se?

— Excelente conselho Thomas — riu o jo­vem. — Infelizmente, você sabe que sou incapaz de me meter na cama durante o dia. Vou ver minha irmã...

— Como quiser senhor.

Atravessou o salão e entrou em uma porta que dava em um largo corredor, cujas paredes, também estavam repletas de quadros. Estes re­presentavam paisagens e cenas campestres, for­mando a parte mais importante da coleção pictórica dos Collins. Ao estourar a guerra e quan­do começaram os primeiros ataques aéreos ale­mães, Clyde pensou em empacotar toda aquela maravilhosa pinacoteca familiar e guardá-la num dos enormes porões da casa; mas os aconteci­mentos e, sobretudo o pesar que desabara sobre os Collins, fez que esquecesse a ideia de proteção, e os quadros continuaram pendurados ali, como sempre estiveram.

Clyde dirigiu-se ao jardim e não tardou a ver sentada num banco, a irmã Clarisse. Desde que seu marido a tinha abandonado, pouco antes de começar a guerra, de uma maneira incom­preensível, a jovem caíra num estado de apatia completa. Para Clyde, que amava a irmã acima de tudo, aquilo fora uma punhalada no coração, já que antes, Clarisse era como a nota musical que animava o casarão construí­do pelos Collins.

A depressão da jovem aumentava dia a dia infelizmente. A partir do início da guerra, Cla­risse foi se afundando mais e mais em seus pen­samentos, afastando-se de tudo e de todos.

O irmão consultara os melhores médicos da cidade e estes, depois de examinarem a jovem, atestaram que seu mal não era físico. Ela so­frerá um violento choque emocional, ao ver der­rubadas suas melhores ilusões. Não restava dú­vida de que amara e continuava a amar Edwin Henderson.

Recordando o homem que tanto mal causa­ra a Clarisse, Clyde confessava que Edwin se mostrara simplesmente maravilhoso com ela. Nunca vira casal tão feliz. De repente, sem que ninguém pudesse explicar o motivo, Henderson desapareceu mis­teriosamente.

De nada serviram as investigações feitas por Clyde. O tempo foi passando, eclo­diu a guerra, o que tornou impossível o pros­seguimento das investigações.

Clyde aproximou-se da irmã, sentando a seu lado. Estava certo de que ela não pronun­ciaria uma só palavra. Limitava-se a assentir com a cabeça, como se a voz de seu irmão che­gasse de muito longe, de um ponto do mundo que ela tinha abandonado. Permaneceu junto da jovem durante meia hora, contemplando-a em silêncio. Suspirando, beijou-a na face. De­pois, voltou a casa com a cabeça baixa e o co­ração repleto de sentimentos adversos, de pena e de cólera ao mesmo tempo.

Acabava de penetrar no salão, quando Tho­mas aproximou-se dele, com um jornal entre as mãos.

— Posso incomodar um momento senhor? — perguntou o criado, inclinando-se respeitosa­mente.

— O que houve Thomas? — inquiriu o jovem, estranhando a atitude um tanto solene do mor­domo.

— Acredito que é importante. Já leu os jornais desta manhã senhor?

— Você sabe que mal tenho tempo...

— Veja esta fotografia senhor.

Clyde tomou o jornal das mãos do criado e olhou a foto estampada na primeira página, sob a manchete que iniciava uma reportagem a res­peito das aventuras de um homem, na praia de Dunquerque, onde graças a sua co­ragem e sacrifício pessoal, fora possível embar­car as últimas tropas, que chegou à costa francesa rumo à Inglaterra. Mas tudo o que ali se encontrava, Clyde sabia de memória pelos milhares de telegramas passados por suas mãos, naquela desventurada operação. Seus olhos por­tanto, cravou-se na foto, sem poder evitar que um calafrio lhe percorre-se a espinha, deixando-o boquiaberto.

— Não é possível Thomas! — exclamou afinal.

— Também me custou acreditar senhor. Mas não há dúvida de que este homem é o Senhor Edwin Henderson.

— Não posso acreditar. Aqui diz que se chama Max Brock. Como pode explicar?

— Ignoro senhor.

Clyde mordeu os lábios. Estava pensando que a casualidade fizera um homem, tremenda­mente parecido com o esposo de sua irmã, surgir na primeira página dos jornais. Uma semelhan­ça é sempre possível. Mas apesar disto, a ima­gem da foto era tão parecida com a de Hender­son que Clyde vacilava. Ficaram alguns instantes contemplando a fotografia depois, encarando Thomas avisou:

— Vou sair um momento. Vigie minha irmã por favor.

— Pode ir tranquilo senhor.

Clyde correu a toda à velocidade até parar o carro diante do edifício em que ficava a reda­ção do jornal, cujo exemplar levava na mão. Foi logo atendido pelo diretor, que exibiu imediatamente as fotos publicadas naque­le número. Examinando com todo o cuidado, Clyde compreendeu que não se enganou. Aquele homem era realmente Edwin Henderson.

Falou durante uma hora com o diretor, depois com David Carson, o autor da reporta­gem. Carson esclareceu certos detalhes que terminaram por convencer completamente Clyde sobre a identidade do fabuloso Luvas Negras. Des­pedindo-se dos jornalistas, Clyde foi diretamen­te ao War Office, onde se entrevistou com o te­nente coronel encarregado da Seção de Códigos.

— Venho pedir-lhe um grande favor senhor.

— Sabe, estamos sempre à sua dis­posição Collins — respondeu o militar

— Desejo ir à França meu coronel.

— Que bicho o mordeu meu caro? — per­guntou o oficial.

— É muito necessário senhor. Se­ria muito difícil explicar os motivos que me levaram a tomar tal decisão, contudo espero que me faça este favor.

— E como irá?

— Não sei ainda coronel. Pensei que o se­nhor poderia destinar-me a um corpo de co­mandos, desses que estão sempre em contato com os grupos da resistência francesa. Não seria possível?

— Não há nada impossível Collins.

— Então...?

— De acordo... — assentiu o oficial sus­pirando. — Você é um homem a quem não pos­so negar nada Collins. Portou-se maravilhosa­mente bem. Vai obrigar-nos a mudar certos có­digos, embora já estivesse em nossos projetos fazer isto. Compreenda que se por desgraça for cap­turado pelo inimigo, nossa segurança de comu­nicações estará em perigo.

— Compreendo senhor. E agradeço de todo o coração.

O coronel ofereceu-lhe a mão, e Collins apertou-a com força.

— Não conheço seus motivos Collins — dis­se o militar. — Mas de qualquer modo, o conhe­ço bastante e conheci muito bem sua família para saber que nenhum motivo menos nobre o levou a tomar essa surpreendente decisão. Dese­jo-lhe muita sorte. Agora pode voltar para casa. Eu lhe comunicarei, hoje mesmo o corpo ao qual será destinado a sua nova graduação. Me­rece ser pelo menos sargento.

— Às suas ordens senhor e obrigado!

 

Walter Randall, tirando o perfumado cha­ruto da boca, soltou uma praga. Do outro lado da sala, Danny Silk levantou a cabeça e olhou o sócio com um ar de surpresa no rosto:

— Que houve Walter?

— Veja esta foto! — exclamou Walter, mostrando um jornal.

— Mas... É nosso amigo Max Brock! — exclamou Danny, após um rápido olhar à fo­tografia.

— Naturalmente que é. Pois aí o tem, con­vertido em herói, o maldito cão. Gastamos um bocado de tempo e dinheiro procurando ele e pronto! Aí está!

— É simplesmente fantástico.

— É só o que sabe dizer?

— Não, mas admiro esse tipo de qualquer modo. Você não?

— Ao diabo com suas admirações Danny! Esse bandido nos roubou, com uma tranquilida­de espantosa, trezentos mil dólares. E dólares de antes da guerra, o que significa mais de meio milhão de agora. Será que não compreende?

— Sim, eu compreendo.

— Pois acho que não. Claro que a sorte é uma dama curiosa que, às vezes nos dá as costas, e de repente volta a sorrir. Este é nosso caso agora Danny. Já encontramos o maldito patife!

— De pouco adianta Walter. Pelo que se lê aqui, o tipo pode estar morto, ou na melhor das hipóteses, prisioneiro dos alemães.

— Não creio Danny. É um tipo muito as­tuto, e a morte ou a prisão respeitam gente dessa classe. Não. Aí diz, que talvez ele tenha se reunido aos resistentes da França. Já perce­beu o que isto significa?

— Naturalmente.

— Pois penso que não. Porque da minha parte, estou decidido a não permitir que nenhum sem vergonha ria de Walter Randall. Você me conhece Danny. Estamos juntos há muitos anos e jamais consentimos em coisa semelhante. Lem­bra-se do que fizemos com aquele tipo que nos levou vinte e cinco mil na operação de Nova Orleans?

— Não esqueci nunca.

— Se nunca permitimos que alguém nos en­ganasse, não é agora que vamos abrir exceção, certo?

— Certo, amigo — respondeu Silk, paciente­mente. — Mas eu quero saber como podemos nos vingar. Já sabemos onde está, ou, pelo me­nos, o supomos que esteja vivo. Vamos esperar com um pou­co de paciência que termine a guerra. Depois, visto que temos de ir à Europa para ampliar nosso negócio, nos encarregare­mos de encontrar Max, a fim de cobrar a dí­vida que tem conosco.

— Não pretendo esperar tanto!

— E pode-se saber que diabo vai fazer com a fim de antecipar vingança?

— Muito simples. Não é pelo dinheiro Silk, embora trezentos mil dólares sejam uma quantia muito respeitável. Mas estou disposto a gastar outros trezentos, contanto que ponha as mãos em cima dele.

— Continuo sem entender.

— Vou mandar dois de nossos melhores ho­mens à França. Pouco me importa como che­guem lá. Mas Frank Jellco e Joe Groat são dois tipos com sangue na guelra, e estou certo de que cumprirão a missão. Que acha você?

— Não é má ideia... — concordou Silk.

— Claro que não é. Se oferecermos a Frank e Joe cem mil dólares, eles irão até a China atrás dele. Vou tomar as primeiras providências agora mesmo.

Foi ao telefone e conversou duran­te alguns minutos com alguém. Depois, voltou sorridente.

— Pronto. Virão já.

De fato, quinze minutos mais tarde, dois ho­mens penetravam no luxuoso apartamento que Walter e Danny ocupavam numa das ruas mais tranquilas de Nova Iorque.

Os dois homens tinham um aspecto tão se­melhante que pareciam moldados com o mesmo modelo. Altos, fortes, de costas largas, com ros­tos sérios e expressões um tanto feroz, vestiam-se da mesma maneira, com elegância um tanto exa­gerada. Mas bastava contemplá-los um instante para compreender a classe a que pertenciam. Desde a segunda década do século, os ho­mens como Frank Jellco e Joe Groat prolifera­vam nas filas dos grandes chefes dos bandos de gângster americanos.

Homens como aqueles, acompanhavam os fi­gurões do submundo do crime, que encharcaram de sangue as ruas de Chicago, de Nova Iorque,e de tantas cidades americanas. Talvez suas roupas variassem, mas podia-se iden­tificá-los facilmente pelo chapéu de aba caída, o casaco curto e os sapatos pontiagudos nos anos de vinte e três e vinte e quatro, quando os carros negros escoltavam os caminhões cheios de álcool ou assaltavam as cervejarias e as destilarias adversárias, deixando sobre um lago de cerveja recém-fabricada, corpos dos inimigos.

Walter foi diretamente ao assunto e expli­cou sem rodeios, o que fizera Max Brock. Os dois homens entreolharam-se assombrados, estranhando que alguém fosse capaz de enga­nar seus chefes, daquela maneira.

Mas nenhum deles abriu a boca e esperaram que Walter Randall terminasse de fa­lar. Só quando este pronunciou as palavras "cem mil" o brilho dos olhos dos dois homens subiu de tom e uma espécie de sorriso, que não era mais que uma careta, entreabriu-lhes ligei­ramente os lábios.

— Que acham? — perguntou Randall, por fim.

— Negócio fechado, Senhor Randall — res­pondeu Frank. — É muito mais fácil do que parece. Ao menos, eu penso assim.

— Já pensaram num plano? — interveio Silk.

— Não vamos ingressar no Exército — riu Jellco. — Nem pensar nisso. Mas temos amigos na Europa; sobretudo em Lisboa. Iremos dire­tamente a Portugal e depois, atravessaremos a Espanha e penetraremos em França pelo sul. É muito possível que precisemos de algum dinhei­ro Senhor Randall...

— Contem com outros cinquenta mil para os gastos de viagem.

Frank riu, mostrando uma dentadura amarelecida pelo tabaco.

— O senhor sim sabe tratar de negó­cios, patrão. Joe e eu estamos de acordo. Saire­mos o quanto antes e podem dormir tranquilos. Se esse Max Brock viver, nós o encontraremos. Queremos saber somente o que vamos fazer com ele.

— O pior rapaz. Quero que o façam so­frer, antes de matá-lo. É preciso que chore, que grite, que peça perdão e que se arraste a seus pés. Depois, quando voltarem, quero que apre­sentem um relatório completo de tudo o que o patife sofreu. E se me fizerem rir, como espero, eu lhes darei um bom prêmio.

Quando Frank Jellco e Joe Groat deixaram o apartamento, levavam um importante cheque e a certeza de receber muito mais dinheiro se as coisas saíssem a gosto de Walter Randall. Este, uma vez a sós com Danny Silk, tomou o jornal e olhou a foto do Luvas Negras.

— Você vai amaldiçoar o momento em que me conheceu, cão! Daria outros cem mil dóla­res só para ver sua cara, quando eles o pega­rem!

 

Jean Litier, o chefe dos maquis, aproxi­mou-se do lugar em que Andrée Serval se en­contrava. A jovem estava remendando a roupa de um dos companheiros e levantou a cabeça ao ouvir os passos do homem que se sentou a seu lado.

— Continua dormindo? — perguntou o jo­vem, depois de acender um cigarro.

— Sim — respondeu a moça, sem deixar o trabalho.

— Não entendo! Não está com a doença do sono, não? — tornou Jean.

A jovem sorriu. Terminou o trabalho e dei­xou a peça de lado, voltando-se para Jean.

— Não seja muito duro com ele, amigo — pediu ela. — Deve ter andado sem descanso por toda a parte. Compreenda que há um mês que aconteceu aquela tragédia de Dunquerque e que a distância de lá até aqui é enorme. Não sabemos o que esse homem padeceu até chegar aqui. Não é de estranhar, que passe três dias dormindo, acordando apenas para co­mer um pouco.

— Tem razão — concordou Jean. — Mas de qualquer forma, compreenda minha impa­ciência. Há muito que não fazemos nada im­portante e agora, quando eu esperava que o Lu­vas Negras nos desse alguma ideia, passa os dias roncando como um porco.

— Não creio que demore muito a despertar definitivamente. E você verá como as coisas mudarão.

— Confia tanto nesse homem?

— Sim, Jean. Já ouvi falar muito dele e seu aspecto corresponde perfeitamente à ideia que eu fazia. Estou absolutamente certa de que nosso grupo se converterá no mais ativo de todos, dentro de pouco.

— Oxalá!

Naquele momento a alta silhueta de Max Brock surgiu atrás dela. Continuava com o uniforme sujo e rasgado, as botas com o couro levantado, mas tinha feito à barba, e o rosto perdera o aspecto de dureza que apresentava quando encontrou os franceses. Ouvira parte da conversa de Jean e Andrée, mas fez caso omisso, limitando-se a saudá-los.

— Já se sente melhor, rapaz? — pergun­tou Litier.

— Sim, creio que sim. Devo ter dormido um bocado, não?

— Exatamente três dias e três noites! — respondeu Andrée.

— Caramba! Muito mais tempo do que ti­nha imaginado. Mas a verdade é que estava exausto. Agora estou perfeitamente bem. E os outros?

— Estão um pouco mais além, jogando car­tas. Estamos todos a sua espera — avisou Jean.

— Compreendo. Bem, vamos até lá. Preci­so falar com vocês todos. Andrée levantou-se, e os três caminharam por uma vereda até o ou­tro ponto do aglomerado de rochas que forma­vam parte do Mont Cenis.

Entraram na caverna mais ampla, onde se encontrava o restante do grupo. Olharam Max com curiosidade e este, se­guido por Jean e Andrée, tomou lugar a um la­do, afastando a mesa e formando um círculo.

— Quem me dá um cigarro? — pediu Brock.

Jean apressou-se a oferecer-lhe um pacote, e Max acendeu um, lentamente, olhando os ho­mens que o rodeavam. Estudava-os atentamente e ficou satisfeito com os resultados da observa­ção, eram todos muito jovens, mas via neles uma indiscutível fé, claramente expressa na fisionomia serena de cada um. Ao mesmo tempo, Brock notou a esperança que sua presença despertava em todos eles. Não tinha duvida de que estavam dispostos a ouvi-lo e obedecer-lhe.

— Creio que alguns de vocês nasceram aqui — disse Max, rompendo o silen­cio. — Devem conhecer esta região palmo a palmo. Isto pode ser necessário, porém o que mais me interessa ago­ra é que alguém, o melhor informado, fale o que os alemães construíram no povoado e seus arredores, da maneira mais detalhada possível.

— Bem — começou Jean Litier. — A ver­dade é que não sabemos seu nome, ainda. Pode­ria dizer?

—Me chamo Max. Os nomes não têm importância nenhuma. Vocês sabem que todos me conhecem por Luvas Negras. Os que quise­rem, podem me chamar assim.

— Muito bem. Agora ao que in­teressa, Luvas Negras. Você sabe que Ville-sur-Laude está situado a uns quinze quilômetros da costa bretã. Forma parte do que os nazistas chamam Muralha do Atlântico. Por isto, começaram a construir uma série de edifícios onde alojarão, segundo creio, um batalhão dis­posto a intervir, se os aliados desembarcarem nesta parte da França. Estão aplainando ra­pidamente o terreno, a fim de convertê-lo num aeródromo cujos aparelhos estejam em condi­ções de atacar e repelir ataques num amplo se­tor. É só o que sabemos.

— E não é pouco — admitiu Max. — Que fizeram até agora contra os alemães?

— Fizemos saltar, duas vezes, os trilhos da estrada, mas não temos explosivos suficientes para cortá-la definitivamente. Pensamos em des­truir a ponte que há antes da estação, mas não fizemos pelo mesmo motivo. O pior de tudo é a falta de meios. Temos algumas armas, mas encontrar explosivos não é nada fácil.

— Compreendo perfeitamente. Já percebi como é precária a situação no que se refere a armamento, munições e explosivos. Ou­tra coisa, como se arranjam com a comida?

— É outro problema — explicou Litier. — Vamos uma vez por semana, durante a noite, em visita a nossos amigos e parentes no povoa­do. Eles nos dão o que podem, mas nunca é su­ficiente. Estamos emagrecendo e ficando fracos. Bem, agora você já sabe de tudo, Luvas Negras. As dificuldades são estas, em resumo: primeiro, não somos mais que seis, com você, sete. Se­gundo: cada qual tem seu fuzil e, agora, conta­mos com sua metralhadora. Terceiro: temos mu­nições, aproximadamente cem cartuchos cada um. Quarto: restam-nos doze granadas de mão e aproximadamente um quarto de quilo de tri­nta. Quinto: passamos mal, no que concerne a alimentação, e se os alemães se empenhassem em vigiar melhor o povoado, não teremos o que comer.

Durante um longo silêncio, Max acendeu outro cigarro e pareceu afundar em seus pen­samentos por alguns instantes. Depois, levantou a cabeça e olhou Litier:

— Explicou-se muito claramente, ami­go. Assim é que eu gosto. A situação não é boa mas creio que podemos dar um jeitinho. Pri­meiro, temos de resolver o problema dos alimentos e material suficiente para nos defender­mos aqui. Depois de um golpe de verdade, os alemães não se limitarão a disparar contra nós, mas virão caçar-nos neste monte como feras. O grupo não pode sair assim e portanto, é pre­ciso trabalhar rapidamente.

— E quais são seus planos? — inquiriu Li­tier.

— Os que qualquer de vocês teria pensado — respondeu Brock. — Como não poderemos fazer várias expedições à procura do que necessi­tamos, é preciso fazer uma, definitiva e direta, que resolva todos os nossos problemas. Portanto esta noite será muito importante para nós. Eu e mais três homens sairemos em busca de armas, munições e os explosivos necessários às expedições. Como quatro, por muita força que te­nham, não poderão transportar o que necessita­mos, aí vai outra pergunta, conhecem alguém que possa arranjar umas mulas ou uns bur­ricos?

— Conte com eles, Luvas Negras — respon­deu um rapaz de cabelo vermelho. — Meu pai é camponês e tem alguns desses animais. Eu mes­mo tratarei disso.

— Como é seu nome?

— Paul Michau.

— Perfeito, Paul. Quantos animais de car­ga seu pai possui?

— Seis.

— Muito bem. Se pudermos encontrar mais, melhor. Os dois grupos que sairão esta noite deverão levar o máximo de coisas do nosso esconderijo. Esses seis animais irão conosco, com o primeiro grupo, já que as munições e os explosivos são o mais importante para executar algo positivo. Você, Jean, se encarregará do segundo grupo, podendo levar a moça também e tratará de arranjar mais animais de carga. A missão de vocês é a de procurar a maior quan­tidade de comida possível. Temos de obter uma reserva capaz de pelo menos suprir nossos estô­magos por três semanas. Acham que poderão encontrar no povoado?

— Claro — respondeu Litier. — É um sa­crifício muito grande, mas todos os habitantes de Ville-sur-Laude estão dispostos a ajudar.

— Ótimo. Então, trate de designar os três homens que sairão comigo, Jean. Você é o chefe.

Aquelas últimas palavras agradaram muito a Litier, que se limitou a sorrir. Depois, virou-se para os demais, e sugeriu:

— Acho melhor Paul Michau, Henri De-lavier e Claude Aistain acompanharem Luvas Ne­gras. Mas antes, gostaria de saber de uma coisa.

— Qual?

— Como vai fazer para pegar tu­do o que deseja recolher?

— Deixe comigo. Sairemos ao anoitecer e nos separamos antes de atravessar o rio. Nós, rapazes — continuou, olhando os três homens que Jean lhe tinha designado. — Passaremos pela ponte da estrada de ferro que, como pude obser­var, é a mais afastada do povoado. Se a ponte estiver vigiada, como suponho, encontraremos outra passagem. Mas antes, você Paul, irá em busca dos animais e os levará a um lugar com­binado, onde os deixaremos bem atados. Não é preciso dizer que não levaremos armas.

— Ficou louco? — inquiriu Jean.

— Não, meu caro. Pense que um disparo poderia causar um dano terrível. Com dois grupos movendo-se ali, com todas as forças ale­mãs e junto dos quartéis, o alarme seria catas­trófico para nós. Levaremos nossos pu­nhais e, se alguém tiver a pouca sorte de ser descoberto, que morra lutando com, arma bran­ca, sem atirar, garantindo assim, a segurança dos demais. Acho que estou sendo claro, não?

Olharam-no, em silêncio. Viram tanta von­tade em seu olhar e tanta experiência em seus argumentos, que se convenceram de ter encon­trado o comandante adequado.

Andrée estava profundamente emocionada e sentiu contra sua vontade, o co­ração bater acelerado.

Mas Brock não notava qualquer coisa de ex­traordinário na jovem. Limitava-se a dar instruções, dominado apenas pelo desejo de executar com êxito, a missão.

Dentro de poucas horas, teria início a ver­dadeira ação que o grupo esperava com tanto ar­dor. Começaria a operar um foco de resistência a mais, contra o inimigo. Era pelo menos, o que esperavam Jean Litier e seus amigos.

 

Os dois grupos desceram juntos do Mont Cenis pelo caminho aberto na vertente oriental e adentraram pelo Vale Perdido a fim de chegar, após três horas de marcha, ao povoado de Ville-sur-Laude.

Os maquis bordejaram até a altura da ponte da estrada, que atravessava o rio e penetrava diretamente no povoado. A ponte estava vigiada por sentinelas alemãs. Assim como a outra, que cortava a estrada de ferro, situada três quilôme­tros mais abaixo. Mas quase todos os homens de Jean Litier conheciam perfeitamente cem lugares diferentes onde podiam atravessar o rio sem dificuldade e sem utilizar as pontes.

Uma vez ali, e depois das últimas instru­ções do Luvas Negras, os dois grupos se separaram definitivamente. Paul Michau partiu com o de Jean Litier, já que devia procurar os animais necessários ao transporte das munições e das armas, que Max Brock pensava tirar dos ale­mães.

O grupo dirigido por Max seguiu pela mar­gem do rio até chegar muito perto da ponte da estrada de ferro que, com uma só via, atraves­sava o rio. Atravessaram o rio, um pou­co mais acima, em um ponto conhecido por Henri Dela vier. Uma vez do outro lado, encontraram-se exatamente atrás das construções, feitas pe­los alemães e entre estas o campo de aviação recentemente terminado.

— Só preciso que um de vocês venha comi­go — manifestou Brock, em dado momento. — Os outros esperem aqui. Quem quer vir comigo?

Claude e Henri ofereceram-se ao mesmo tem­po. Sorridente, Brock escolheu Claude Aistain e, dando umas palmadinhas nas costas de Henri, consolou-o:

— Não se preocupe, rapaz. Você terá opor­tunidade de sobra de entrar em outras missões. Além disso não pense que esta vai ser muito cômoda. Espere aqui, escondido até nossa volta. De acordo?

Deixando Claude guiá-lo, Max avançou, dei­xando pela esquerda a via férrea. Os prédios cons­truídos pelos nazistas levantavam-se como grandes silhuetas maciças, na escuridão quase completa da noite. Enquanto se aproximavam, Max per­guntava-se como iria descobrir o lugar exato onde os alemães ocultavam suas munições, ar­mas e cargas explosivas. Não poderiam, andar de um lado a outro, examinando todos os prédios até encontrarem o que procura­vam. E quando chegou à conclusão de que devia agir de maneira firme, cochichou com o compa­nheiro.

— Não temos outro remédio senão caçar um desses tipos, Claude.

— Pegar uma das sentinelas? — espantou-se o outro.

— Exatamente, amigo. Tem algum incon­veniente?

— Sim. Imagine se houver mudança de guarda, logo depois de pegarmos o tipo? Haverá alarme e tudo virá abaixo.

— Muito bem pensado, Claude. Mas de qualquer modo, temos de arriscar. Além disso, a sentinela poderá dizer se a mudança de guarda será feita cedo ou tarde. No segundo caso, agiremos depressa. Espere aqui um mo­mento.

— Não, vou também?

— Para este trabalho é melhor um homem só. Não se mova, já volto.

Separou-se de Aistain e avançou rapidamen­te, encurvado, em direção aos prédios. Não tardou muito em ver a guarita onde estava a sentinela. Deu um pequeno giro e foi se aproximando passo a passo, no maior silêncio, pisando na ponta dos pés, a fim de evitar qualquer ruído. Chegou perto da guarita e, movendo-se um pou­co para a direita, viu a silhueta do alemão que, com o fuzil na mão, estava junto à portinhola.

Segurou o punhal com a mão direita. Mo­mentos depois, executava um movimento rápido e segurava o pescoço do alemão com uma gra­vata firme. O soldado experimentou os primei­ros sinais da asfixia e deixou cair o fuzil.

Arrastando o germânico, sem soltar o pescoço, mas apertando com menos força, Max afastou-se dali, depois soltou o sentinela, ao perceber que este tinha desmaiado. Segurou-o em seus fortes braços e o levou até junto de Claude. Deixou-o ali, sorrindo ao ver o rosto do companheiro expressando surpresa.

— Temos de reanimá-lo depressa — balbuciou Max. — Ele precisa falar.

Sacudiram, obrigando-o a abrir os olhos. O alemão olhou-os surpreso, ao sentir o punhal cutucando o pescoço, compreendeu que não tinha outro remédio senão falar.

— Há quanto tempo você está de guarda? — inquiriu Max, num alemão quase correto.

— Meia hora.

— Quando haverá mudança da guarda?

— Dentro de uma hora e meia.

— Perfeito. Não queremos machucá-lo, mas enterrarei este punhal em sua garganta, se não responder corretamente. Se fizer, eu amarrarei seus pés e mãos e o deixarei aqui, poupando sua vida. Entendido?

— Sim.

— Ouça, agora, onde fica o depósito de munições e armas?

O alemão vacilou uns instantes, mas dian­te da pressão do punhal, apressou-se a respon­der :

— No último prédio.

— Qual?

— O último à direita, isto é, terceiro de­pois do que está a guarita que eu ocupava.

— Entendido. Repare bem que vamos dei­xá-lo aqui. Se nos enganar, voltaremos, e eu o degolarei.

— Não os enganei — respondeu o outro.

Amarraram e amordaçaram solidamente o germânico. Depois avançaram ao longo das fa­chadas dos prédios, que formavam um bloco, si­tuado à direita das demais construções, em nú­mero de nove. Não havia outra sentinela à vista, visto que os alemães não poderiam imaginar que alguém tivesse a audácia de invadir, da­quela maneira, seus quartéis. A estrutura do último prédio era um pouco diferente da dos demais. Por sorte, os alemães tinham cons­truído sem pensar, naturalmente, que alguém tentasse roubar o que estivesse ali guardando. Uma das janelas cedeu logo e os dois homens penetraram num amplo depósito de caixas onde os olhos penetrante do Luvas Negras, ajudados pelo raio de luz da única lanterna que porta­vam, leram os rótulos de cada volume.

Passaram a trabalhar a uma velocidade im­pressionante. Desprezando os fuzis, Max Brock dedicou-se a apanhar quatorze metralhadoras, duas para cada guerrilheiro. Depois, tiraram grande quantidade de carregadores, cargas ex­plosivas e granadas, selecionando as antitanques que, por serem mais potentes, tinham maior uti­lidade em caso de combate.

Gastaram perto de cinquenta minutos neste trabalho. Depois, carregando o que foi possível, fizeram a primeira viagem até se encontrarem com Henri Dela vier. Paul Michau já tinha atra­vessado o rio e estava ali, conforme combina­ram.

— E os animais?

— Estão do outro lado — informou Michau. — Trouxe oito.

— Ótimo. Michau vai levando pouco a pouco o que deixarmos aqui. Quanto a você Henri, venha comigo. Assim acabaremos mais depressa.

Luvas Negras não deixava de olhar, de vez cm quando, seu relógio de pulso. O tempo pas­sava muito mais depressa do que ele tinha pen­sado e fez com que seus dois acompanhantes apertassem o passo, fazendo viagens e mais via­gens, na margem de tempo que lhes restava, até a hora da rendição da guarda. Quinze minutos antes desta hora, tinham todas as armas do ou­tro lado do rio e estavam carregando os ani­mais. O saque fora realmente, farto.

Max deu ordem, de começar a marcha, atra­vessando diretamente o terreno, sem perder tem­po em seguir o curso do rio, rumando direta­mente para o Vale Perdido.

— Tudo depende da velocidade com que marcharmos. Dentro de uns quinze minutos, os alemães darão o alarme e é possível que organi­zem uma patrulha, seguindo-nos. Por sorte, o terreno não se presta ao uso de veículos. De qualquer modo, enquanto Paul Michau e Henri avançam com os animais, eu e você Claude, fi­caremos uns duzentos metros atrás, cobrindo a marcha. Agora temos cada um uma boa metra­lhadora, bastantes carregadores e granadas antitanques suficientes para mostrar aos nazistas que não será fácil deter-nos.

— E se o outro grupo não tiver terminado de colher os alimentos? — perguntou Claude.

— Não podemos perder mais tempo, ami­gos. Compreendam bem. Eu disse, antes de sair, que cada grupo devia resolver seus próprios pro­blemas. Se voltássemos agora para saber o que Litier fez, cairíamos fatalmente nas mãos de nossos inimigos. Adiante!

Apertaram o passo, enquanto Henri e Paul obrigavam os animais a andarem com mais ra­pidez. A carga era pesada, mas os burricos e as mulas estavam bem alimentados e eram fortes. Assim afastaram-se rapidamente do rio e pene­traram numa zona de terreno árido, coberto de pedras, com diversas fendas espalhadas por to­da a parte.

Já estavam a dois quilômetros do ponto de partida, quando, de repente, acenderam-se lu­zes nos prédios. Luvas Negras voltou-se, e um sorriso estranho apareceu em seus lábios.

— Já encontraram a sentinela amarrado. Não tardarão muito a organizar uma patrulha, Claude.

— Estou pensando nos outros, amigo.

— Creio que tiveram tempo de deixar o po­voado. Nossa missão agora é levar estas armas e munições ao monte.

Algumas detonações soaram no povoado, e Claude não pôde evitar um tremor. Compreendia perfeitamente porque Luvas Negras agisse daquela maneira rígida, já que era a única forma de obter algo de positivo. Mas, ao mesmo tempo, não podia evitar que sua mente estivesse asso­ciada a cada instante com o que podia ocorrer a Jean e seus companheiros. A atitude do homem de luvas negras fazia-o estremecer. Aquele des­prezo total, não apenas por sua própria vida, mas pela dos outros, deixava-o intrigado. E Claude, enquanto caminhava ao lado de Max Brock, tentava descobrir o segredo que devia es­conder-se atrás daquela fronte rugosa.

Enquanto as patrulhas se moviam pela par­te baixa do vale, procurando o ca­minho do esconderijo dos resistentes, Jean Litier e Luvas Negras, graças ao binóculo tomado da sentinela nazista, seguiam a marcha das tropas inimigas, compreendendo que tinham escapado por verdadeiro milagre.

Apesar das precauções e da rapidez com que agiram os dois grupos, Charles Baumont, que acompanhava Jean Litier e Andrée Serval, tinha desaparecido.

— Não entendo — disse Jean Litier. — Deve ter sido quando aquele maldito burrico se es­pantou. Charles foi atrás dele e não voltou. Nós não podíamos socorrê-lo entende? Há perdas ir­reparáveis

— Tivemos muita sorte, Jean. Uma baixa não significa nada para o que obtivemos. Mas, de qualquer forma, o desaparecimento de Char­les preocupa-me.

— Que quer dizer?

— Você é quem tem de dizer.

— Não entendo, Max.

— Já vai entender. Como era esse Charles?

— Ainda não entendi.

— Pergunto se era valente ou não. Você o conhece melhor que eu.

Jean refletiu alguns instantes. Estava ten­tando compreender o verdadeiro sentido da per­gunta de Luvas Negras. Depois de uma longa pausa, respondeu:

— Charles é um rapaz valente! Claro que não sei se você faz o mesmo conceito que eu do que significa ser valente. Ele sempre se portou bem, foi leal e bom companheiro.

— Não é o bastante — grunhiu Max.

— Por quê?

— Porque um homem, quando os alemães o agarram tem de ser muito mais que isso. Não basta coragem nem lealdade. É preciso ter re­sistência, morder os lábios, aguentar a dor e não falar.

— Acha que eles vão torturá-lo?

— Tenho certeza. Depois do que fizemos, es­tão loucos para descobrir nosso refúgio. O che­fe deles deve estar dando murros na mesa, e você pode imaginar o que farão com esse rapaz, se ele tiver a desgraça de ser apanhado vivo.

Litier não pôde evitar um estremecimento. Não se acostumava com a maneira dura de Lu­vas Negras encarava os acontecimentos.

Não deixava de reconhecer, por outro lado, que a guerra não era brincadeira e que, uma vez empenhados naquela luta desigual contra forças organizadas e muito mais numerosas, os senti­mentos e romantismos deviam desaparecer. Mas assim mesmo, olhou Max, resmungando:

— Prefiro que viva.

— Está cometendo um erro, Jean. Um ho­mem morto não fala. Não esqueça. Se Char­les caiu nas mãos dos nazistas, podemos ir prepa­rando a defesa do Mont Cenis.

Jean não replicou. Afastou-se magoado com as duras palavras de Max e dirigiu-se à gruta.

Durante todo o dia, os alemães foram e vie­ram, em patrulhas, chegando quase à base do Mont Cenis. Mas não encontraram a pista que buscavam e, ao entardecer, Max Brock, que per­manecera todo o tempo de vigia, comprovou que o inimigo se retirava ordenadamente, atraves­sando a ponte da rodovia, voltando aos quartéis.

Contudo, Brock não tinha ilusões. Conhe­cia perfeitamente o inimigo e sabia que não desistiriam até encontrar o caminho que dava acesso ao monte, sem se importarem com as bai­xas.

Quando estavam começando a jantar, ou­viram disparos de fuzil que chegavam claramen­te do povoado, na tranquilidade da noite.

Paul Michau lançou uma praga ao ouvir as descargas.

— Que significa isso? — inquiriu Andrée, olhando Luvas Negras, ansiosa.

Max levantou a cabeça e olhou um a um os demais membros do grupo. Compreendia claramente que ia dar-lhes um desgosto, mas era necessário fazer para que compreendessem de uma vez, que aquela aventura, a princípio encarada como romântica, era, na realidade, parte de uma suja e maldita guerra, um capí­tulo a mais na imensa obra de sangue que um homem desvairado impunha ao mundo.

— Que estarão fazendo? — voltou a inda­gar a moça.

Então a voz de Luvas Negras ressoou potente e impressionante!

— Estão fuzilando os suspeitos.

Os homens que o rodeavam não puderam conter um espasmo de dor. Andrée soltou um grito histérico, cobrindo o rosto com as mãos e seus ombros estremeceram com os soluços,

— Fuzilando? — perguntou Claude, olhan­do atônito para Max.

— Sim. Fazem sempre a mesma coisa. De­vem ter suspeitado que agimos com a cumplici­dade de alguém do povoado. É quase certo que os alemães fizeram uma recontagem dos ani­mais existentes no povoado e viram, claramente as marcas que deixaram as ferraduras das mu­las que utilizamos. A conclusão é simples.

— Não é possível! Estão matando minha família, e eu aqui, sem meios de defendê-la.

— Você vai ficar aqui Paul! — falou Max, com firmeza. — Eles o matariam, também.

— A culpa foi sua, maldito! Podíamos ter trazido menos munição nas costas e não com­prometer os nossos. Claro que você não se im­porta com isto. Você não tem ninguém neste povoado e nada significam esses disparos.

— Você fala como uma criança boba — respondeu Max, sem perder a cabeça.

— Paul tem razão —saltou a jovem. — Nós queríamos levar a luta à nossa maneira e o teríamos feito, sem necessidade de arrastar à mor­te nossos entes queridos. São nossos pais, irmãos, mães e os pequenos, que agora estão sendo fuzi­lados pelos alemães. Paul disse a verdade. Você não tem ninguém em Ville-sur-Laude e não po­de sentir a dor que sentimos ao imaginar que as balas do inimigo penetram na carne de nossa gente.

— Então por que não ficaram em suas ca­sas?

— Não era preciso — replicou a moça. — Você não é deste país e, portanto, não tem nada com o que acontece aqui. Nós os franceses, queríamos lutar, mas de outra maneira. Tería­mos feito voar a estrada de ferro, talvez arran­jássemos algumas armas, porém jamais nos pas­saria pela cabeça comprometer os nossos.

— Nenhuma guerra, e muito menos esta, é uma brincadeira — replicou Luvas Negras. — A morte compreenda bem, é o preço que se paga na guerra. A morte e o sofrimento, por­que, enquanto os seus estão caídos sob as balas dos alemães é muito provável que um de seus amigos, Charles Baumont, esteja desejando morrer, com todo o ardor de sua carne dolorida, ter­minando com o sofrimento da tortura.

Que sabem vocês de sofrimento? Ele, com toda certeza, está aprendendo agora a grande lição da vida. Não há nada cor de rosa e amá­vel em nossa porca existência. Quem não sofre de um modo, sofre de outro. Todos nós, sob o céu, temos uma forma qualquer de sofrimento.

Vocês imaginaram uma aventura ideal, permanecendo escondidos e molestando, de vez em quando, os alemães. Depois, quando a vitória sorrisse aos aliados, desceriam a montanha e penetrariam no povoado, gritando, alvoroçados, esperando que os seus os recebessem com bandeirinhas patrióticas e beijos nos lábios. Parece mentira que tenham esquecido os homens que ficaram na Bélgica, Holanda e Dunquerque. Ho­mens esmagados pelos tanques, tipos com mem­bros amputados, gritando como loucos, saben­do que ninguém poderia socorrê-los. Gente que se arrastava para a água, procurando uma em­barcação e que, ao subir nela, tinham de jogar na água, de novo, porque a metralhadora lhe cor­tara as pernas, transformando-o num pedaço de carne sangrenta que tingia as águas.

— Tudo isso é muito certo — disse Litier. — Esses homens sofreram, é verdade. Mas que podemos esperar de você, Luvas Negras? Sua família está longe, se é que tem uma, certamente longe de qualquer perigo. Ainda não compreen­de o sofrimento que agora sentimos, ao ouvir esses disparos.

— Nunca desprezei ninguém como os des­prezo agora — falou Max com voz cortante. — Não passam de crianças mimadas, que se perde­ram no caminho. Viviam tranquilos, neste po­voado e alguns de vocês foram para a guerra, uma guerra curiosa que terminou em quarenta dias. Depois voltaram até aqui e reunidos, or­ganizaram um grupo de resistência sem que lhes passasse pela cabeça um só instante a gravidade do que estavam executando. Claro que aos olhos egoístas de vocês eu não passo de um intruso, um tipo que exige e que não paga nada, não é certo?

Ninguém respondeu. Max respirou fundo, olhou firme os demais e prosseguiu:

— Que sabem, vocês? Maldigo mil vezes sua saúde, a integridade de seus corpos. Porque não a merecem. E se algum de vocês tem dúvidas do que um homem é capaz de sofrer em sua vida, olhem, agora!

Arrancou as luvas com dificuldade. E, quan­do estas caíram no chão, todos viram sob a luz da pequena fogueira que as mãos de Max só tinham dois dedos cada uma, quatro cotos, de bordos negros e pestilentos.

— Olhem minhas mãos, olhem! — rugiu Max Brock, contraindo o rosto. — Agora já sa­bem, já conhecem o segredo do Luvas Negras. Porque, como estão vendo, não sou mais que um pobre, um repugnante, um desgraçado le­proso.

 

Os acontecimentos deram razão a Luvas Ne­gras, cujos pressentimentos cumpriram-se ma­tematicamente. No dia seguinte, da elevação que cortava as rochas na parte anterior do Mont Cenis, os guerrilheiros acompanhavam os movi­mentos das tropas nazistas que, vindas do po­voado, avançavam rumo à montanha e come­çavam a rodeá-la, tornando impossível a fuga dos maquis.

Max Brock, depois de dizer aos outros que seu verdadeiro nome era Edwin Henderson, contou-lhes, enquanto os disparos dos fuzilamentos chegavam a Mont Cenis, sua triste história. E agora bastava ver os olhares que lhe dirigiam os companheiros para compreender que ganhara totalmente sua simpatia e que, por maiores que fossem os sofrimentos de suas famílias e deles próprios, não podiam ser comparados com os que o destino fizera pagar a aquele homem. Depois de cercarem o monte, começou a verdadeira operação punitiva. Os aviões come­çaram a bombardear e metralhar o que consi­deravam o esconderijo dos resistentes.

Henderson sabia que tudo aquilo não era mais que umas escaramuças e que o castigo con­tinuaria obrigando-os a esconderem-se, enquanto as tropas começavam a subir pelo caminho, cuja localização Charles Baumont devia ter expli­cado à força.

Max Brock, porém, não guardava rancor da­quele rapaz que sem dúvida, padecera muito antes que seus lábios trêmulos de dor, se mo­vessem para delatar os companheiros. As cartas estavam na mesa, e Luvas Negras estava certo de que aquela seria sua última aventura. Tudo que lhe importava era salvar as vidas daqueles jovens aos quais começara a compreen­der, ao ser compreendido por eles. Mas, apesar de estudar mentalmente e com todos os deta­lhes possíveis as prováveis saídas do vale, teve de reconhecer que não lhes restava outra alter­nativa senão se prepararem para combater, quan­do os alemães chegassem ao cume da montanha.

***

Enquanto isto, num pequeno escritório de uma das bases aéreas da Inglaterra, um homem explicava claramente a seu superior, um comandante de aviação, o que acabava de descobrir num desembarque ultrarrápido, realizado naque­la mesma noite na costa francesa.

O homem tinha as divisas de sargento, mas seu uniforme estava sujo de barro e detritos encontrados durante a ação.

— É o único ponto de resistência que os franceses têm em toda aquela parte da costa, senhor. Pudemos inteirar-nos, por um homem que fugiu da pequena localidade chamada Ville-sur-Laude, que os maquis apoderaram-se de grande quantidade de armas e munições dos quartéis nazistas. Naquela mesma noite, os ale­mães fuzilaram os parentes de muitos deles, que lhes emprestaram os animais para o transporte de material bélico.

— A esta altura, os alemães já devem ter acabado com eles.

— Não creio. O mesmo homem explicou-me que o monte onde estão escondidos, possui características especiais que permitem a, defesa por muito tempo. Acho que devemos proteger essa montanha de qualquer forma, comandante. Dali, melhor organizados, esses valentes poderão contribuir para as nossas operações de desem­barque de comandos e, posteriormente, quando chegar o dia D, no desembarque total, colhere­mos os alemães entre dois fogos.

— Sua ideia é interessante, Sargento Col­lins. Acho que vou estudar o assunto.

— Permita-me dizer que o tempo é ouro, senhor. Um salto de paraquedas, nessa zona, formará um núcleo de resistência bastante forte para desviar os alemães da montanha.

— Quantos homens compõem esse grupo de resistência, sargento?

— Muito poucos, senhor. Soube, graças ao meu informante, fugido da vila, os nomes e o número de maquis.

— Pode dizer?

— De memória, senhor. Seu chefe é Jean Litier. Depois, vêm Claude Aistain, Henri De-lavier, Paul Michau e uma jovem chamada An­drée Serval. Outro componente, Charles Beaumont, foi capturado pelos alemães e tor­turado até ensinar o caminho secreto do alto do Monte Cenis.

— Quer dizer que os nazistas já conhecem esse caminho?

— Provavelmente sim. O monte pode ser defendido, porque o caminho é escarpado e de difícil acesso. Há algo mais, meu comandante, o senhor deve conhecer.

— Que é sargento?

— Um homem chegou até eles e converteu-se em seu chefe. Um homem a quem conhece­mos como Luvas Negras.

— Luvas Negras!? — exclamou o chefe da base.

— Ele mesmo, senhor.

— É fantástico. Pensamos que estava mor­to, embora esse homem tenha sete vidas, como os gatos.

— Talvez seja verdade, senhor.

— Agora estou mais que decidido, sargento Luvas Negras é importante demais para que os nazistas o destruam. Vou ordenar, imediatamente, que se forme uma esquadrilha. Esta noite mes­mo enviamos um comando sob suas ordens, ao Monte Cenis. Espero que leve ajuda a esses ho­mens já que a presença de Luvas Negras nos garante a defesa a todo custo.

Clyde Collins sorriu. Momentos depois, dei­xava a base, indo descansar um pouco, enquan­to a expedição era preparada. Afinal alcançava o que tanto desejara.

Não era que pensasse só em vingar a irmã, que continuava naquele estado mórbido, como se tivesse deixado o mundo. Pensava nos franceses e desejava ajudá-los, mas se tivesse a opor­tunidade que tanto esperara, muito melhor! A sorte o tinha favorecido, e Clyde Collins espe­rou impaciente, que as horas passassem, a fim de encontrar-se com o cunhado, a quem odiava.

Frank Jelleo cuspiu no chão, enquanto o companheiro olhava o monte, que se elevava diante de si. Chegara quase de manhã, detendo-se a tempo de evitar um encontro com as tropas alemães, que cercavam a montanha.

— Má sorte, companheiro — queixou-se Jell­eo. — Até aqui, tudo correu bem. Não trope­çamos com nenhuma dificuldade ao atravessar Portugal, Espanha e França, até chegarmos aqui. E, justamente agora, quando avistamos nosso objetivo, damos com isso!

— É verdade — concordou o companheiro — mas temos de nos movimentar.

— O quê?!

— Não encontra nenhuma solução?

— Nenhuma. Os alemães se encarregarão do trabalho que nossos patrões nos confiaram.

— Você é mais patife do que eu imaginava, Frank. Mas... E se os nazistas não acabarem com esse tipo? Já imaginou o que nos acontecerá, quando Walter Randall e Danny Silk descobri­rem a verdade?

— Tem razão. Mas, o que vamos fazer?

— Deixe-me pensar um pouco. Acho que podemos fazer algo. Você e eu vivemos sempre nas montanhas. Esses tipos limitam-se a cercar o monte. Se esperássemos um pouco, poderíamos passar entre eles, à noite, sem a menor dificuldade.

— E depois?

— Esses imbecis estão lá em cima, defen­dendo o refúgio e farão até que não lhes reste mais uma bala. Os alemães, es­tão esperando que se rendam, porque cedo ou tarde acabarão cedendo. Nós só temos que atravessar as linhas nazistas, ir pela mon­tanha, chegar até Max Brock, liquidá-lo e ir embora. Que tal?

— Um plano magnífico, se fosse possível executá-lo.

— Claro que é. Os alemães e os franceses estão muito ocupados uns com os outros. O que temos a fazer é evitar que nos vejam.

— Está certo. Vamos então.

Esperaram pacientemente e quando veio à noite, depois de um dia de constantes bombar­deios aéreos contra o Monte Cenis, os dois pis­toleiros puseram-se em marcha e demonstraram, de modo inequívoco, que conheciam perfeita­mente a arte de arrastar-se e de escalar as mon­tanhas, passando entre os grupos de alemães que afrouxaram a vigilância, certos de que os de cima não iriam mover-se voluntariamente dali. Dessa maneira, Frank Jelleo e Joe Groat come­çaram uma ascensão difícil, embora tivessem encontrado um caminho que lhes per­mitiu seguir muito mais facilmente até o alto.

À medida que se aproximavam do cume, au­mentavam as precauções de Frank. Em dado momento, levantou a voz e falou num francês um tanto arrastado:

— Somos amigos! Americanos!

— Levantem-se e ponham as mãos na ca­beça — responderam do refúgio.

Frank e Joe obedeceram. Momentos depois, três homens avançavam, apontando as armas para eles. Eram Paul Michau, Henri Delavier e Claude Aistain. Cercaram e tomaram as metralhadoras que os bandidos largaram no chão.

— Como chegaram até aqui?

— Não foi muito fácil. Os alemães cercam a montanha. Queríamos juntar-nos a vocês há muito tempo, mas infelizmente, quando nos de­cidimos e chegamos esta manhã, vimos que estavam em má situação. Isto nos fez esperar a noi­te, empreendendo a marcha até aqui.

— Venham.

Levaram-nos à gruta e chamaram Edwin, a quem os apresentaram.

Não foi difícil Frank contar uma fantástica história, explicando que foram lançados de paraquedas longe dali. Ambos afirmaram perten­cer ao Exército americano, embora não levassem documentação alguma por medo de serem cap­turados pelos alemães. Edwin fez-lhe algumas perguntas sobre a América e terminou fazendo um gesto de assentimento com a cabeça.

— Bem vindos, amigos. Se for verdade que estão com vontade de lutar, vão ter essa oportunida­de em breve.

Mandou-os descansar aquela noite, para que estivessem em forma, no dia seguinte. Por volta de meia noite, o ruído de aviões despertou-os, pouco depois, viram com surpresa, vários paraquedistas descerem. A princípio pensaram que eram os alemães, que desejavam apoderar-se do monte Genis. Não houve mais que um pequeno tiro­teio, embora um dos paraquedistas morresse, o que os franceses lamentaram, depois que perceberam que se tratava de ingleses. No entanto, o chefe daquele comando, o Sargento Clyde Col­lins pôde gritar, junto a seus homens, evitando que o combate prosseguisse.

Quando se reuniram todos na gruta, Luvas Negras não se encontrava ali, pois decidira vigiar a subida do morro. Ao ouvir o tiroteio, voltou rapidamente, tropeçando com Paul Michau.

— Que aconteceu?

— Um equívoco trágico. Os ingleses man­daram oito homens ajudarem-nos e matamos um, julgando tratar-se de paraquedas alemães.

— Maldição!

— O chefe está agora com Jean e os outros, na caverna.

— Vamos lá.

Momentos depois penetravam na gruta, on­de uma pequena fogueira permitia ver os rostos dos presentes. Ao entrar, Henderson ficou pa­ralisado. Acabava de reconhecer Clyde Collins!

Ao ouvir o tiroteio na parte mais alta da montanha, o comandante alemão julgou tratar-se de algum ataque aéreo aos maquis. Achou estranho não ter sido avisado, mas estava longe de perder a oportunidade e ordenou a suas tro­pas que subissem pelo caminho que Charles Baumont revelara antes de morrer.

A sorte favoreceu os alemães, que foram es­calando até ocupar certas posições, não muito longe do cume. Naturalmente os franceses e ingleses começaram a disparar incessantemente, de seus postos avançados, ao perceberem a pre­sença do inimigo.

O combate durou toda a noite, embora não se registrasse baixas em nenhum dos lados. Ao amanhecer, o comandante alemão comunicou-se pelo rádio cem os superiores e, pouco depois, as esquadrilhas começaram a surgir. Assinala­ram suas posições, permitindo aos Stukas bom­bardearem, com precisão, sem ferir os compa­triotas .

Os resistentes perceberam que a situação se­ria insustentável. Os homens começaram a cair e Luvas Negras, que assumi­ra o comando geral, sem trocar uma só palavra com o Sargento Collins, ordenou a retirada de seus homens, abrigando-se no interior das cavernas, de onde poderiam alvejar os alemães que se aproximassem do cume.

Até então, Clyde e Edwin Henderson não ti­nham trocado uma única palavra. Limitaram-se à troca de olhares e ambos souberam, logo de saída, o que significava aquele encontro. No entanto, não era o momento mais apropriado para discutirem questões pessoais. O inimigo apertava o cerco, e os franceses e ingleses iam morrer um a um. O que Edwin jamais soube era que dois deles, os americanos chegados na noite an­terior, foram destinados a matá-lo. Ambos ti­nham sido destroçados por uma bomba, lançada de um dos Stukas.

Jean Litier morreu por volta do meio-dia. Depois, chegou à vez de Paul Michau e Henri Delavier.

Os ingleses também, sofreram sérias perdas e Luvas Negras compreendeu que o final se apro­ximava inexoravelmente, o que pouco lhe im­portava.

A única tristeza que o martirizava era saber que Clyde Collins chegara com o firme propósi­to de vingar o que no fundo, estava plenamente justificado. Daria de bom grado mil vidas, se as tivesse, a fim de salvar o irmão de Clarisse. Mas sabia desde o início, que tal desejo era impossível.

Apesar disso, a resistência durou todo o dia e a noite favoreceu um os ocupantes do Monte Cenis, já que o chefe alemão, julgado ter feito bastante, dispôs-se a esperar o novo dia, para massacrar os sitiados.

Ajudado pelos ingleses, visto que apenas An­drée Serval continuava viva, entre os franceses, Edwin fez uma contagem dos elementos que po­diam combater. Alguns feridos, faleceram pou­co depois, de modo que restavam apenas seis defensores, no total, incluindo a moça.

Henderson, com o cinturão carregado de bombas, dirigiu-se à desembocadura do caminho, com o objetivo de impedir um possível avanço dos alemães, durante a noite.

De repente, vislumbrou uma sombra diante de si e levou a metralhadora à posição de tiro, porém verificou, com horror, que o índice da mão direita não obedecia. Um triste sorriso esboçou-se em seu rosto. Eram, aquele e o anular da mes­ma mão os únicos dedos que lhe restavam.

— Olá! — soou uma voz a seu lado.

Era Andrée Serval. A jovem estava muito pálida e via-se claramente que o medo a domi­nava.

— Olá, Andrée — respondeu Edwin. — Co­mo vamos de ânimo?

— Estou com medo.

— Todos nós estamos.

— Você não Max.

— Meu nome Edwin Henderson.

— Será sempre Luvas Negras. Amanhã tudo estará acabado, não?

— Acho que sim, Andrée.

— Já imaginava. Queria perguntar-lhe uma coisa, Edwin.

— Pergunte.

— Está pensando em sua mulher?

— Muito, mas é inútil sermos sentimentais agora. Só nos causará mais sofrimento. Não pensou nunca no que deve passar pela men­te de um condenado à morte?

— Não.

— Sua vida parece desfilar, como uma pro­jeção cinematográfica, por seu cérebro. Mas, no final, compreende que todas as ideias que pro­curam enfraquecê-la são más, inclusive as me­lhores recordações. Chega à conclusão de que é ele quem vai terminar e que os demais continuarão no mundo, onde sempre há esperanças. Pode parecer um pensamento egoísta, Andrée, mas é assim. De que nos valem todas as recor­dações que, afinal de contas, servem apenas para diminuir nossa coragem de enfrentar o fim?

— Você é um tipo estranho, Luvas Negras, mas no fundo, sei que só procura acalmar-me um pouco. Tudo o que sofreu até hoje deve ter sido horrível. Agora que a vida vai terminar, posso contar a verdade. Antes de saber sua his­tória, cheguei a me apaixonar por você. Pode rir se quiser, mas naquela noite, quando nos contou sua desventura, senti-me a mais desgra­çada das mulheres, porque soube que havia ou­tra em sua vida e não poderia possuí-lo.

Edwin Henderson sorriu, com tristeza. Seus olhos fixaram-se nos da jovem, pelos quais cor­riam duas simples e sinceras lágrimas

 

Apesar do avanço realizado durante aquele dia, o comandante alemão julgou conveniente não perder a ocasião e organizou duas patru­lhas, utilizando homens com prática de escalar montanhas.

Estudara devidamente o terreno, acabando por localizar o esconderijo dos resistentes.

Avançando passo a passo, sem dar atenção aos que caíam nos precipícios, o grupo alemão, depois de grande esforço, chegou silenciosamente ao cume, por um lado em que os sitiados não esperavam nenhum ataque.

Pensando logicamente, Collins ordenou a seus homens que descansassem o máximo, naque­la noite, certo de que seria ao amanhecer o ata­que decisivo dos nazistas. Depois saiu da gruta.

Estava certo de que aquela noite seria a úl­tima de sua vida mas, ao levantar a cabeça e olhar as estrelas, não sentiu amargura por abandonar a vida, aceitando o azar da guerra. Perguntava-se, também, se tinha exagerado seu desejo de vingança e se, de certo modo, seu ódio não era responsável pela morte dos homens que o acompanhavam. Mas tranquilizou-se, pensan­do que o mesmo teria acontecido, se Edwin não estivesse ali. A situação não dependia dele, e a morte chegaria inevitavelmente.

Respirou fundo, mais calmo e avançou até o lugar onde sabia que Luvas Negras se encon­trava. Tinha chegado a hora do ajuste de contas!

Mas, ao aproximar-se, ouviu a voz de Andrée falando com Edwin. Parou, sem ouvir cla­ramente o que diziam. De repente, um clarão surgiu dentro da noite e um grito ecoou diante dele. Correu até a rocha atrás da qual Hender­son e a jovem se encontravam.

Luvas Negras tinha o corpo de Andrée nos braços. Ao vê-lo chegar, Henderson levantou o olhar, cravando-o no rosto de Collins.

— Mataram-na. Devem ter ouvido o ruído de seus passos.

Falara sem tom de censura e sua voz era tranquila, como se o pessimismo o envolvesse. Colocaram o corpo da jovem um pouco adiante. Depois, com toda a naturalidade, foram postar-se de vigia. O silêncio caiu sobre eles, até que Henderson o quebrou.

— Foi melhor assim. Andrée tinha medo e agora está livre dele.

— Sim, tem razão. A morte é uma espécie de libertação, menos para os que merecem a vida.

— Você veio matar-me? Não? — perguntou Edwin, calmamente.

— Acha que merece outra coisa?

— Em seu ponto de vista, sim.

— E no seu, não?

— Há muitas maneiras de ver as coisas.

— Não há mais que uma. Você abandonou Clarisse, e nem ao menos perguntou por ela. Sabe que está doente? Sabe que não fala com ninguém desde que você a deixou?

— Lamento.

— É só o que lhe ocorre dizer?

— O que importa é que seu mal seja do espírito, que sua dor e tristeza oprimam ape­nas o coração. Isto é o que importa, porque soube retirar-me a tempo.

— Que quer dizer?

— Eu sei Clyde, que você não se apaixonou nunca...

— E que tem isso a ver...

— Muito. Você não pode compreender o que uma pessoa sente por aquela a quem está ligado por toda a vida. É difícil explicar.

— Ternos tempo. Muito tempo, porque não o matarei antes que...

Edwin sentiu o contacto do cano da metralhadora nas costas.

— Não percebeu que me fará um favor, ao me matar? — perguntou Henderson.

— Não acredito. Vou disparar contra o ventre e deixarei que morra pouco a pouco, sofrendo pelo que fez a minha irmã.

— Sofrer! — Henderson deixou escapar um breve sorriso. — Não faço outra coisa há muito tempo! Que sabe você de sofrimento? Estúpido! Embora me enfiasse uma bala nas tripas e a agonia durasse mil anos, que me importaria?

— Você está louco!

— Você devia ter ficado lá e seria uma das boas soluções para meu caso. Mas isto não acon­teceu, infelizmente...

— Não entendo...

— Ouça, Clyde. Mas, antes que eu comece, me prometa que apertará o gatilho, quando eu terminar. Depois, um conselho, faça o possível para escapar. Clarisse precisa de você.

— Você importou-se muito pouco com ela, até agora! Não tente mostrar sentimentos, cão!

— Está bem. Deixemos de pensar no que vai acontecer. Ouça, há muito tempo, tanto que me parece ter sido há séculos, eu estava na índia...

— Já sei.

— Um dia joguei uma partida de polo, na qual muita gente apostou. Ganhei, mas os ven­cidos quiseram vingar-se de mim, por ter feito o ponto da vitória no último momento e abriram a torneira de água fervendo, no chuveiro.

— A que vem tudo isso, agora?

— Tenha paciência, Clyde. Mal notei o ca­lor da água, caindo sobre mim, entende?

— Não.

— Eu também não entendi, naquele mo­mento, embora tivesse estranhado. Depois, vol­tei à Inglaterra e casei-me com Clarisse.

— Para infelicidade dela!

— Tem razão — suspirou Edwin. — Mas o destino é assim. Nós estávamos loucamente apai­xonados um pelo outro e tínhamos certeza de que formaríamos um casal feliz. Mas... Não foi possível...

— Por quê? Você tinha uma amante?

— Uma amante? — Edwin sorriu. Logo se torturou grave e, com voz rouca, aduziu: — Sim, é possível que você tenha razão. Era uma amante muito perigosa. Preocupado pelo que havia ocor­rido na índia e por outros sintomas, surgidos depois de casado, comecei a perceber que perdia o tato por completo e que meu corpo tornava-se insensível ao calor, ao frio, inclusive à dor. Con­sultei um médico...

— Está tentando convencer-me de quê?

— Da verdade. O doutor me examinou, e constatou o que temia pronun­ciar em voz alta, mas que eu li em seu rosto pá­lido. Minha longa estada nas montanhas da ín­dia, em povoados asquerosos, aldeias imundas, tinha me marcado com a mais horrenda das en­fermidades que o homem já conheceu, a lepra.

Notou Clyde recuar e a pressão do cano da metralhadora se afrouxar em suas costas.

— Não tema, Clyde. Além disso, se o tivesse contagiado, que importaria?

— Lepra! — murmurou o outro.

— Sim, meu cunhado, lepra. Uma enfermi­dade muito curiosa, da qual até então não sabia quase nada. Mas tive tempo, no consultório, de conhecer tudo. Soube que era um bacilo, o de Hansen, o causador do mal. E, também, que o contágio se faz geralmente, não como todos su­põem, com o contato da pele sobretudo na primeira fase da doença, mas pelo nariz. Percebeu, Clyde? Pelo nariz!

— Meu Deus!

— Basta o enfermo ter um resfriado, uma rinite crônica, para que o ar, expelido pelo na­riz, ou um simples espirro, lance a seu redor os micróbios e contagie pessoas ou objetos atin­gidos por eles. Não, não diga nada. Fiz com que mi­nha esposa fosse ao mesmo médico, usando uma desculpa. Disse-lhe que se tratava de um exa­me geral, aconselhado como precaução para os filhos. Aceitou com prazer e assim soube que não tinha nada, mas que devia me afastar dela o quanto antes. Paguei o médico ge­nerosamente, prometendo sair da Inglaterra, indo para um lugar afastado de todos. Ele compreendeu que eu não queria encer­rar-me num leprosário e que preferia me matar antes de a moléstia alastrar-se.

— Compreendo.

Por isto, escrevi aquela carta dura a Cla­risse . Desejava que me desprezasse, que me odias­se inclusive. Era preferível isso a que se contami­nasse.

— Infelizmente, não viu satisfeito seu in­tento.

— Já imaginava, mas eu não podia ficar um minuto mais a seu lado.

— É verdade, mas por que não me contou a verdade?

— Para quê? Teria semeado a discórdia en­tre vocês. Você jamais acreditaria que sua irmã estivesse livre da enfermidade.

— Tem razão. E para onde foi, então?

— Meu projeto era fugir, voltar à índia e ficar em um daqueles povoados onde o mal é o denominador comum. Até recordei a história de Gauguin... Mas o destino modificou as coi­sas. Estava no porto, esperando um barco que me levasse ao Oriente, quando um jornal ameri­cano caiu em minhas mãos. Falava de certos ti­pos que enriqueceram de maneira suja, mas que escaparam da lei e que viviam como reis. O mé­dico que me examinou falara da luta contra a lepra no mundo e do que era necessário para erradicar o mal. Você sabe como é, falta meios econômicos. Como não tinha nada a perder, to­mei o primeiro barco, indo para os Estados Uni­dos.

— E a doença? Não se notava?

— Não. Eu estava na fase chamada de "le­pra nervosa". Minha pele estava limpa, mas sob ela, os micróbios afetavam os nervos, fazendo eu perder o tato.

— Continue.

— Cheguei à América. Protegi as mãos, por­que dava para ver uma vermelhidão nos dedos e sa­bia que, cedo ou tarde, minhas falanges cai­riam.

— Que horror!

— Encontrei os dois bandidos de que falava a reportagem e não foi difícil enganá-los. Talvez meu aspecto e as luvas negras que usava tives­sem um papel decisivo. Arranquei deles trezen­tos mil dólares e os enviei ao jovem doutor, como ajuda aos homens que lutavam contra o terrível mal.

— Você fez isso?

— Sim. Eu sabia que os gângsteres poderiam me matar, quando descobrissem o logro. Mas, outra vez tive sorte. Estourou a guerra, dando-me a oportunidade de voltar ao Exército.

— Não notaram sua enfermidade, no exa­me geral ?

— Não, porque não me examinaram. Eu continuava sendo sargento, embora tivesse pe­dido uma licença temporária. Isso abriu as portas do Exército. Naqueles dias, o que interessava eram soldados para irem à França.

— E ali você se tornou famoso...

— Como não iria ser famoso? Você não acreditará, mas eu saía para cada missão com a esperança de que um tiro acabasse com meus padecimentos.

Fez uma breve pausa, depois concluiu o re­lato, suspirando:

— Esta é a minha história, Clyde. Ago­ra basta apertar o gatilho.

— Está louco?

— Já não quer me matar?

— Não posso! E se soubesse antes...

— Compreendo. Você não estaria aqui ago­ra, não?

— Engana-se. Vim tentar manter esta po­sição.

— Sabia que eu estava aqui?

— Sim.

— É natural. Você queria matar dois pás­saros com um só tiro.

— Não fale assim! Pensar mal de você, porque não conhecia a verdade. Agora é dife­rente... Você portou-se como um homem.

— Tinha de fazer isso. Cedo ou tarde Claris­se ficará livre de sua melancolia, e então, pode­rá ser feliz outra vez. Mas é preciso você volte, Clyde.

— Voltar?

— Sim. Ela só tem você.

— Não tem ninguém Edwin. Compreenda. Assim que amanhecer estaremos fritos...

— É verdade.

— Mas não me importa! Agora posso mor­rer tranquilo. Pior seria se morresse sem saber a verdade.

— E de que isso servirá ? Clarisse precisa de você vivo, mesmo que desconhecesse a verdade.

— Não concordo. Por mais estranho que pareça, o homem deseja saber a verdade de tu­do antes de morrer. No meu caso em particular, me sinto feliz por saber que você não é o malvado que eu julgava ser e que se abandonou minha irmã foi porque a amava. Sei que você está amargurado, Edwin, me conceda ao menos ultimo favor que só um condenado à morte pode pedir.

— Que quer?

— Abraçá-lo, irmão!

— Para! Perdeu o juízo?

— Por quê?

— O que acontecerá, se você escapar?

— Ninguém escapará, você sabe muito bem.

— Não sabemos, mas não me toque.

— Para mim, você continua sendo meu ir­mão.

— Não. Não tenho família. Foi à primeira coisa que aprendi. Nem esposa, nem pais, nem parentes ou amigos.

— Não fale assim, por favor!

Mas Edwin continuou falando, porque tinha uma ideia que talvez salvasse Clyde. Por isto, quando chegou o momento, agiu com rapidez.

Desferiu um golpe, com a metralhadora, na cabeça de Clyde. O jovem soltou um gemido an­tes de cair. Henderson o olhou, com firmeza.

— Lamento, irmão — murmurou entre os dentes. — Mas não achei outro jeito. Você não deve morrer. Agora, vejamos se posso amarrá-lo.

Foi tarefa difícil. Mas, afinal, alcançou seu propósito. Depois, respirando com dificuldade, apanhou o corpo entre os braços, procurando mantê-lo o mais distante possível. Assim, le­vou-o a uma das pequenas grutas, deixando-o no interior e colocou uma metralhadora à vista, de fora, apoiada claramente na parede. Então, afas­tou-se.

Naquele instante, atrás dele, ecoou um for­midável tiroteio, seguindo das explosões de al­gumas granadas de mão.

— Escalaram as pedras — monologou, em voz baixa.

Arrancou algumas granadas antitanque e, arrancando o pino de segurança de uma delas com os dentes, correu para, o lugar onde o com­bate tornava-se cada vez mais duro.

Viu as silhuetas dos alemães e começou a lançar as granadas. Jogou-se no chão, continuando a ação. Tinha a boca sangrando, mas continuou arremessando granadas, até que percebeu estarem os inimigos recuando.

Mas aquilo durou pouco. Subindo pelo ca­minho, um capitão no comando da companhia, chegou na pequena plataforma rochosa, en­quanto seus homens disparavam continuamente. Edwin levantou-se, lançando mais granadas.

Os alemães jogaram-se ao lado e abriram fo­go contra a silhueta do inglês.

As balas assoviaram junto a Henderson. Es­te compreendeu que sua hora tinha chegado.

Um sorriso indecifrável, talvez de felicidade, se pudesse haver felicidade naquela alma ator­mentada, brotou-lhe dos lábios.

Que pensamentos teve, naquele derradeiro momento, não se saberia jamais. Talvez sua mente estivesse voltada para a figura suave e meiga de sua Clarisse que, de longe, estava en­tregue à melancolia, sem compreender que a fe­licidade com que tanto sonhara um dia, tinha-lhe escapado das mãos eternamente.

Os alemães redobraram o ataque. Dezenas de projéteis caíam ao redor do mutilado, que pa­recia um demônio, iluminado pelos clarões das bombas, numa dança fantástica e aterradora, de­safiando a morte, que parecia fugir dele.

E assim transcorreram alguns minutos que, aos olhos atônitos dos alemães, pareceram inter­mináveis . Mas, de repente...

Uma nova saraivada de balas cortou o es­paço, abrindo buracos no solo.

Algumas penetraram, também, no corpo do homem e, quando os alemães, que esperavam a chegada da aurora, avançaram, encontraram Henderson, a quem reconheceram imediata­mente.

O Luvas Negras estava morto.

 

Sim! Não restava a menor dúvida. Os aviões que cruzavam o céu eram, aliados. Podia ver em suas fuselagens a estrela branca de cinco pontas, indicando serem americanos.

Clyde seguia-os, ansioso, como todos os pri­sioneiros daquela colina. Não duvidaram, de que as tropas amigas chegariam logo e bastava ver os alemães para compreender que estavam prepa­rando a fuga apressadamente.

Voltar! Podia existir palavra mais bela?

Sorriu, recordando a última carta recebida de Clarisse, por intermédio da Cruz Vermelha.

"... estarei à sua espera, Clyde. A guerra está terminando e logo você estará ao meu lado. Não sabe quanto preciso de você! Des­de que soube da verdade, não cesso de re­zar para que Deus, que levou Edwin, me de­volva pelo menos, meu querido irmão. De­sejo que você volte e descanse a meu lado. Mas, depois, quando estiver recuperado por completo, iremos a essa montanha... Iremos, de verdade, não?..."

Claro que iriam! Chegariam ao povoado, e depois, subiriam pelo caminho escarpado. Ali, entre as rochas, pontilhavam muitas tumbas e juntos, buscariam a de Edwin, na qual, sem dú­vida, os franceses teriam colocado uma singela lápide, com a seguinte inscrição:

Aqui jaz um homem a quem chamaram Lu­vas Negras. Lutou e morreu para que os homens vivessem livres.

Não era bastante?

 

                                                                               Alex Simmons 

 

 

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