Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LUZ PERDIDA / Michael Connelly
LUZ PERDIDA / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Desiludido com a hipocrisia da polícia de Los Angeles, depois de mais de duas décadas de serviços prestados, Harry Bosch decide se aposentar.
Como outros ex-policiais, não agüenta ficar muito tempo "olhando para as paredes e dormindo até tarde".
O detetive resolve então investigar por conta própria um antigo caso: a morte da funcionária de uma produtora de cinema, seguida pelo roubo de US$ 2 milhões.
Uma investigação aparentemente simples, mas que atrai o interesse de agentes do FBI.
Sem perceber, Harry Bosch se vê no meio de um caso envolvendo terroristas internacionais, em uma Los Angeles assustada pelos atentados de 11 de setembro.

 

 

 

 

 

 

 

 

"Meu trabalho neste mundo, com ou sem distintivo, é defender os mortos."
O Detetive Harry Bosch
cansado da burocracia no Departamento de Polícia de LosAngeles, Harry Bosch resolve entregar o distintivo e se aposentar. Em quase trinta anos de serviços
prestados, nunca
imaginou que jogaria tudo para o alto e ficaria "acordado até tarde, olhando
para as paredes e bebendo vinho tinto".
Até o dia em que recebe a ligação de um colega: "Harry, você ainda pensa em Angella Belton?" Sim, todos os dias aquele
caso não resolvido assombrava o detetive.
Alguns meses atrás, ao bater às suas costas a porta da delegacia, levou consigo uma caixa cheia de pastas, todas com inquéritos sem solução.
O assassinato da assistente de estúdio em Hollywood, quatro anos antes, seguido do roubo de US$ 2 milhões de um
set de filmagens, ficara marcado na memória de Harry. Ele havia chegado rapidamente à
cena do crime. E ainda se lembra com
perfeição das mãos inertes da vítima, dispostas ao lado da cabeça como se implorasse por ajuda. Naquela época, todos os indícios apontavam para uma conexão
entre os dois acontecimentos. Entretanto,
nada havia sido provado até então.
O detetive decide reabrir o caso por conta própria, longe dos entraves burocráticos. No decorrer das investigações, descobre que o FBI havia recuperado parte da
importância roubada. O dinheiro estava com Mousouwa
Aziz, jordaniano suspeito de integrar uma célula da Al Qaeda. Agora, os federais estão rastreando o paradeiro do restante da quantia. E o interesse de Harry pode
se tornar uma ameaça à segurança nacional, fortemente abalada pós-11 de setembro.
com Luz perdida, Michael Connelly continua, brilhantemente, a dar forma à
personalidade complexa do detetive Harry Bosch, em uma obra à altura dos clássicos
de Raymond Chandler.
Michael Connelly deixou de lado sua carreira jornalística para se dedicar
à literatura e obteve reconhecimento mundial com a série de livros estrelada
pelo detetive Harry Bosch. O autor ganhou prêmios no mundo todo por sua obra, incluindo o Bancarella (Itália), o Calibre
38 (França) e o Falcão Maltês (Japão). Do mesmo autor, a Editora Recordjá publicou Cidade dos ossos, Mais escuro que a noite, O vôo dos anjos e Chamada perdida.
www.michaelconnelly.com
Capa de Glenda Rubinstein sobre ilustração de César Lobo

Michael Connelly
Luz perdida
TRADUÇÃO DE Edmundo Barreiros
EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2006
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Connelly, Michael, 1956-
C762L Luz perdida / Michael Connelly; tradução de Edmundo
Barreiros. - Rio de Janeiro: Record, 2006.
352p.
Tradução de: Lost light
ISBN 85-01-06765-2
1. Ficção policial. 2. Romance americano. I. Barreiros, E. II. Título.
CDD - 813
06-0599 CDU-821.111(73)-3
Título original norte-americano: LOST LIGHT
Copyright (c) 2003 by Hieronymus, Inc.
Publicado mediante acordo com Little, Brown and Company (Inc.),
Nova York, Nova York, EUA.
Todos os direitos reservados.
Ilustração de capa e miolo: César Lobo
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.

Este é para: Noel Megan Sam Devin Maddie Michael Brendan Connor Callie Rachel Maggie e Katie
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente
para o Brasil adquiridos pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
ISBN 85-01-06765-2 ^"'Ss^
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
EDITORA AFILIADA

# LUZ PERDIDA Michael Connelly

Não há fim para o que está no coração.
Alguém me contou isso uma vez. Ela disse que vinha de um poema em que acreditava. Pelo que entendi, significava que aquilo que você guardasse no coração, bem dentro
das suas dobras vermelhas e aveludadas, sempre estaria ali para você. Não importa o que acontecesse, estaria ali esperando. Ela disse que podia ser uma pessoa, um
lugar, um sonho. Uma missão. Qualquer coisa sagrada. Contou que tudo está conectado naquelas dobras secretas. Sempre. E tudo parte do mesmo, e sempre estará ali,
pulsando no mesmo ritmo de seu coração.
Tenho 52 anos e acredito nisso. À noite, quando tento dormir mas não consigo, é quando tenho certeza. É quando todos os caminhos parecem se conectar e vejo as pessoas
que amei e odiei, ajudei e machuquei. Vejo as mãos que projetam-se em minha direção. Ouço a batida e compreendo o que devo fazer. Sei qual é minha missão e sei que
não há como ignorá-la ou voltar atrás. E nesses momentos sei que não há fim para o que está no coração.

Capítulo 1
A última coisa que eu podia esperar era que o próprio Alexander Taylor viesse atender à porta. Isso desmentia tudo o que eu sabia sobre Hollywood. Um homem com
uma história de um bilhão de dólares de sucessos de bilheteria não atendia à porta para pessoa alguma. Em vez disso, havia um homem uniformizado postado em tempo
integral diante da entrada. E esse porteiro só permitiria a minha passagem após checar com cuidado minha identificação e confirmar minha entrevista. Então me levaria
a um mordomo ou à criada do primeiro andar, que me conduziria pelo resto do caminho, os passos tão silenciosos quanto a neve.
Mas não havia nada disso naquela mansão em Crest Road, Bel Air. O portão da garagem estava aberto. E, depois que estacionei no largo circular diante da entrada e
bati na porta, foi o próprio campeão de bilheteria que a abriu e me introduziu em uma casa cujas dimensões pareciam ter sido copiadas diretamente do Terminal Internacional
do aeroporto de Los Angeles.
Taylor era um homem grande. Mais de 1,80m e 120 quilos. Mas era bem proporcionado, com uma cabeça coberta de vastos cabelos castanhos encaracolados e olhos azuis
contrastantes. A barba no queixo acrescentava à sua imagem o ar intelectual de um artista, apesar de arte ter muito pouco a ver com o seu campo de trabalho.
10
Ele usava uma roupa de corrida azul-clara que provavelmente custava mais do que qualquer coisa que eu estava vestindo. Tinha uma toalha branca bem enrolada em torno
do pescoço e enfiada na gola. O rosto estava corado, a respiração pesada e cansada. Eu o pegara no meio de algo e ele parecia um pouco desconcertado por isso.
Eu tinha chegado àquela porta em meu melhor terno, um cinza, não trespassado, pelo qual pagara 1.200 dólares três anos antes. Não o usava havia mais de nove meses,
e naquela manhã precisei limpar a poeira dos seus ombros quando o tirei do armário. Eu estava bem barbeado e tinha um propósito, o primeiro desde que pendurara o
terno naquele cabide, tantos meses antes.
- Entre - pediu Taylor -, não tem ninguém em casa, e eu estava fazendo ginástica. Ainda bem que a academia fica logo no corredor, ou eu provavelmente não iria nem
escutar você. O lugar é grande.
- E, foi mesmo muita sorte.
Ele virou-se e entrou sem apertar minha mão, e eu me lembrei de quando nos conhecemos, havia quatro anos. Seguiu na frente, deixando que eu fechasse a porta.
- Se importa se eu terminar os exercícios na bicicleta enquanto conversamos?
- Não, tudo bem.
Atravessamos um saguão de mármore, Taylor sempre três passos na minha frente, como se eu fosse parte de sua entourage. Ele devia sentir-se mais confortável daquele
jeito e, por mim, estava tudo certo. Isso me dava tempo para olhar ao redor.
O conjunto de janelas à esquerda dava vista para os opulentos jardins - um retângulo verde e liso do tamanho de um campo de futebol que levava ao que eu imaginei
ser uma casa de hóspedes ou de piscina, ou as duas coisas. Havia um carrinho de golfe estacionado diante da estrutura distante. No gramado bem cuidado, vi as marcas
deixadas por suas muitas idas e vindas até a casa principal. Já havia visto muita coisa em L.A., dos guetos mais pobres às mansões no alto das colinas. Mas era a
primeira vez que via dentro da cidade uma propriedade tão grande que fosse necessário um carrinho de golfe para atravessá-la.
11
Cartazes emoldurados dos muitos filmes produzidos por Alexander Taylor cobriam a parede da direita. Eu tinha visto alguns deles quando passaram na televisão, e propagandas
dos outros. Em sua maioria eram o tipo de filme de ação que cabe perfeitamente nos limites de um comercial de trinta segundos, o tipo que não provoca em você nenhuma
vontade irresistível de realmente assistir ao filme. Nenhum deles seria considerado arte por qualquer parâmetro no mundo. Mas em Hollywood eram muito mais valorizados
que arte. Eram lucrativos. E isso era a única coisa que realmente importava.
Taylor virou à direita de repente, e entrei atrás dele na sala de ginástica. O salão dava um novo significado ao conceito de academia particular. Havia todo tipo
de equipamentos de ginástica alinhadas contra as paredes espelhadas. No centro havia o que parecia ser um ringue de boxe em tamanho natural. Taylor montou devagar
numa bicicleta ergométrica, apertou alguns botões no visor digital e começou a pedalar.
Montadas lado a lado no alto da parede oposta, havia três grandes TVs de tela plana sintonizadas em canais concorrentes de notícias 24 horas e o boletim de negócios
do Bloomberg. O som na tela do Bloomberg estava ligado. Taylor pegou o controle remoto e o silenciou. Outra vez, uma cortesia que eu não estava esperando. Quando
falei com sua secretária para marcar a entrevista, ela deu a impressão de que eu teria muita sorte em conseguir fazer algumas perguntas enquanto o grande homem
trabalhava no seu telefone celular.
- Sem parceiro? - perguntou Taylor. - Achei que vocês trabalhavam sempre em dupla.
- Gosto de trabalhar sozinho.
Não toquei mais no assunto. Fiquei em silêncio enquanto Taylor pegava ritmo na bicicleta. Ele tinha uns quarenta e tantos anos, mas parecia muito mais jovem. Talvez
o truque fosse viver cercado de todo aquele equipamento e maquinário de saúde. Mas também podia ser por plásticas e injeções de botox.
- Posso dar a você cinco quilômetros. - Tirou a toalha do pescoço e pendurou-a no guidom. - Uns vinte minutos.
12
- Vão ser suficientes.
Peguei o caderno no bolso interno do meu paletó. Era um caderno em espiral e a mola de arame se prendeu no forro. Eu me senti um babaca tentando soltá-lo e, finalmente,
dei um arranco forte para liberá-lo. Ouvi o pano rasgar, mas sorri para afastar o embaraço. Taylor me deu uma colher de chá. Olhou para outro lado, para uma das
telas de TV silenciosas.
Acho que as pequenas coisas são aquilo de que mais sinto falta de minha antiga vida. Por mais de vinte anos, carreguei um caderninho de capa dura no bolso do meu
paletó. Cadernos espirais não eram permitidos - um advogado esperto poderia argumentar que páginas de anotações que inocentariam um cliente tinham sido arrancadas.
Os encadernados evitavam esse problema e ainda castigavam menos o forro dos paletós.
- Fiquei feliz com seu contato - exclamou Taylor. - Essa história da Angie sempre me incomodou. Até hoje. Era uma garota legal, sabia? E esse tempo todo eu achava
que vocês tinham simplesmente desistido, porque ela não tinha importância.
Assenti com a cabeça. Tinha sido cuidadoso com minhas palavras quando falei ao telefone com a secretária. Se não havia mentido para ela, era culpado de tê-la
conduzido e a deixado presumir algumas coisas. Era uma necessidade. Se tivesse dito a ela que eu era um ex-policial trabalhando por conta própria em um caso antigo,
tenho quase certeza de que não teria conseguido me aproximar nem um pouco do campeão de bilheteria para a entrevista.
- E, antes de começar, acho que houve um mal entendido. Não sei o que sua secretária disse ao senhor, mas não sou policial. Não mais.
Taylor, por um momento, parou de pedalar, mas logo retomou o ritmo. Seu rosto estava vermelho e ele suava muito. Em um porta-copos, ao lado do painel de controle
digital, ele pegou um par de óculos de leitura e um cartão com a logo de sua produtora no alto - um quadrado com o desenho de um labirinto cheio de espirais -
e várias anotações abaixo dele. Botou os óculos, mas mesmo assim apertou os olhos para ler o cartão.
13
- Não é o que tenho aqui. Está escrito Detetive Harry Bosch do DPLA às lOh. Audrey escreveu isso. Ela está comigo há oito anos, desde o tempo em que eu fazia lixo
em vídeo, lá em Valley. Ela é muito boa no que faz. E costuma ser bastante precisa.
- Bem, fui esse aí durante muito tempo. Mas não desde o ano passado. Eu me aposentei. Posso não ter sido muito claro sobre isso ao telefone. Se fosse o senhor, não
culparia Audrey.
- Não vou.
Ele olhou para mim, de cima a baixo, inclinando a cabeça à frente para enxergar por sobre os óculos.
- Então o que posso fazer pelo senhor, detetive? Ou devo dizer Sr. Bosch? Faltam mais quatro quilômetros, e então nós terminamos.
À direita de Taylor havia uma mesa de massagem. Aproximeime dela e me sentei. Peguei a caneta no bolso da camisa - dessa vez nenhuma ponta ficou presa - e me preparei
para escrever.
- Não sei se o senhor se lembra, mas nós já conversamos, Sr. Taylor. Há quatro anos, quando o corpo de Angella Benton foi encontrado no hall do prédio dela, o caso
foi passado para mim. Eu e o senhor conversamos em seu escritório na Eidolon. Nos Estúdios Archway. Uma das minhas parceiras, Kiz Rider, estava comigo.
- Eu me lembro. Uma negra... ela disse que conhecia Angie. Da academia, eu acho. Lembro que, na época, vocês dois me inspiraram muita confiança. Mas então desapareceram.
Nunca mais ouvi falar de...
- Fomos tirados do caso. Éramos da Divisão de Hollywood. Depois do roubo e do tiroteio, alguns dias depois, o caso foi tirado de nós. Ficou com a Divisão de Roubos
e Homicídios.
Um bipe baixo soou, saindo da bicicleta ergométrica, e achei que significava que Taylor tinha terminado seu segundo quilômetro.
- Lembro daqueles caras - comentou Taylor com uma voz de escárnio. - Tico e Teco. Eles não me animaram nem um pouco. Lembro que um deles estava mais interessado
em garantir uma posição de consultor técnico dos meus filmes do que no caso. O que aconteceu com eles?
- Um morreu e o outro se aposentou.
14
Dorsey e Cross. Eu conhecia os dois. Apesar da descrição de Taylor, os dois eram bons investigadores. Você não chegava à Roubos e Homicídios sem se esforçar. O que
eu não contei a Taylor foi que Jack Dorsey e Lawton Cross ficaram conhecidos entre os detetives como os parceiros que tiveram o maior azar do mundo. Estavam trabalhando
em uma investigação meses depois do caso Angella Benton. Pararam em um bar de Hollywood para almoçar e tomar uma dose para animar. Estavam sentados em um reservado
com seus sanduíches de presunto e copos de uísque Bushmills quando o lugar foi assaltado por um homem armado. Parece que Dorsey, que estava sentado de frente para
a porta, tentou algo, mas foi lento demais. O bandido o acertou antes que conseguisse tirar a trava de segurança de sua arma e ele estava morto antes mesmo de chegar
ao chão. Um disparo contra Cross raspou em seu crânio e um segundo o acertou no pescoço, alojou-se em sua espinha. O
barman foi executado por último, à queima-roupa.
- E então o que aconteceu com o caso? - Era uma pergunta retórica. Taylor não tinha um pingo de simpatia pelos tiras mortos em sua voz. - Não aconteceu porra nenhuma.
Posso garantir que está juntando poeira como esse terno barato que você tirou do armário antes de vir falar comigo.
Engoli o insulto porque precisava fazê-lo. Apenas balancei a cabeça como se concordasse com ele. Não podia dizer se sua raiva era pelo assassinato não vingado de
Angella Benton ou pelo que aconteceu depois: o roubo, o outro assassinato e o cancelamento de seu filme.
- Aqueles caras trabalharam nisso por seis meses, em tempo integral - continuei. - Depois disso houve outros casos. Os casos não param de chegar, Sr. Taylor. Não
é como nos seus filmes. Eu gostaria que fosse.
- Sim, sempre há outros casos - rebateu Taylor. - Essa é sempre a saída fácil, não é? Culpar o excesso de trabalho. Enquanto isso, a garota está morta e o dinheiro
continua desaparecido, e isso é muito ruim. Próximo caso. Um passo à frente.
Esperei para ter certeza de que ele tinha terminado. Não tinha.
- Mas agora já se passaram quatro anos e você aparece. Qual é a sua história, Bosch? Enrolou a família dela para contratar você? Foi isso?
15
Não. A família dela é toda de Ohio. Não entrei em contato com eles.
- Então o que foi?
Não foi resolvido, Sr. Taylor. E eu ainda me importo. Não
acho que ele está sendo investigado com nenhum tipo de... dedicação.
- Então é isso?
Balancei a cabeça. Então Taylor balançou a sua para si próprio.
- Cinqüenta mil.
- Como?
- Eu vou pagar a você cinqüenta mil... se você resolver isso. Se não resolver, não tem filme.
- Sr. Taylor, o senhor está com a impressão errada. Não quero seu dinheiro e isso não é um filme. Tudo o que quero, agora, é sua ajuda.
- Escute. Reconheço uma boa história quando escuto uma. Detetive assombrado por um homem que escapou. E um tema universal, testado e aprovado. Cinqüenta mil só para
começar. Depois podemos discutir o valor final.
Recolhi o caderno e a caneta, e me levantei. Aquilo não estava indo a lugar algum, pelo menos não na direção que eu esperava.
- Obrigado pelo seu tempo, Sr. Taylor. Se eu não conseguir encontrar a saída, solto um sinalizador.
Quando dei meu primeiro passo na direção da porta, um segundo bipe saiu da bicicleta de exercício. Taylor falou para as minhas costas.
- Ainda faltam alguns metros, Bosch. Volte e faça as suas perguntas. E eu fico com meus cinqüenta mil se você não quiser.
Voltei-me para ele, mas permaneci de pé. Abri outra vez o caderno.
- Vamos começar com o assalto - falei. - Quem em sua empresa sabia dos dois milhões de dólares? Estou falando de pessoas que conheciam os detalhes... quando chegariam
para a filmagem e como iam ser enviados. Qualquer coisa e qualquer pessoa de que você possa se lembrar. Estou começando do princípio.
Capítulo 2

Angella Benton morreu em seu 24o aniversário. O corpo foi encontrado encolhido sobre as lajotas decoradas em estilo espanhol, no hall do edifício em que morava na
Fountain, perto de La Brea. Sua chave estava na caixa de correio. Dentro da caixa havia dois cartões de aniversário enviados de Columbus por sua mãe e seu pai. Eles
não eram divorciados, mas cada um queria escrever os próprios votos de felicidades para a única filha.
Benton tinha sido estrangulada. Antes ou depois de sua morte, mais provavelmente depois, a blusa fora rasgada e o sutiã levantado para expor os seios. Aparentemente,
o assassino havia se masturbado sobre o cadáver, produzindo uma pequena quantidade de ejaculação que, mais tarde, foi coletada por técnicos forenses para análise
de DNA. A bolsa dela foi levada e nunca recuperada
A hora da morte foi calculada entre onze horas e rneia-noite. O corpo foi encontrado por outro morador do prédio, quando saía de casa à meia-noite e meia para dar
uma volta com o cachorro.
Foi nesse ponto que eu entrei. Na época, era detetive classe três lotado na Divisão de Hollywood do Departamento de Polícia de Los Angeles. Eu tinha dois parceiros.
Naquele tempo, trabalhávamos em trios, não em duplas. Fazíamos parte de uma configuração experimental projetada para solucionar rapidamente os casos. Kizmin Rider,
Jerry Edgar e eu fomos alertados por pager e assumimos
18
o caso à uma da manhã. Nós nos encontramos na Divisão de Hollywood, pegamos dois Crown Victorias e fomos para a cena do crime. Vimos o corpo de Angella Benton
pela primeira vez cerca de duas ou três horas após sua morte.
Estava deitada de lado sobre as lajotas marrons, a cor de sangue seco. Seus olhos estavam abertos e saltados. Distorciam o que, eu sei, fora um rosto bonito. As
córneas apresentavam hemorragias. Percebi que seu peito exposto era praticamente liso, como o de um garoto e eu achei que isso devia ser, para ela, motivo de embaraço,
em uma cidade na qual os atributos físicos costumavam ser mais valorizados que os interiores. Aquilo fazia com que o ato de rasgar sua blusa e tirar seu sutiã fosse
mais que um ataque: além de tirar-lhe a vida, o assassino tinha de expor sua vulnerabilidade mais íntima.
Mas era de suas mãos que eu mais me lembrava. De alguma forma, quando o corpo sem vida foi largado sobre as lajotas, as mãos caíram juntas. Do lado esquerdo do corpo,
erguiam-se acima da cabeça, como se ela tentasse alcançar alguém, suplicando, implorando alguma coisa. Pareciam mãos de uma pintura renascentista, como as mãos de
condenados pedindo clemência aos céus. Em minha vida trabalhei em quase mil homicídios, mas a posição de nenhum outro corpo me fez pensar tanto.
Talvez eu tenha visto demais na maneira caprichosa com que ela caíra. Mas todo caso é uma batalha, numa guerra que nunca termina. Acredite, você precisa de algo
para levar consigo sempre que vai para a luta. Algo em que se segurar, uma força que o impulsione ou empurre. E foram as mãos dela que fizeram isso por mim. Não
podia esquecer suas mãos. Eu achava que estavam tentando me alcançar. Ainda acho.
Demos logo um grande salto na investigação porque Kizmin Rider identificou a vítima. Se conheciam da academia El Centro, onde faziam ginástica. Por causa da rotina
irregular que acompanhava seu trabalho na mesa da Homicídios, Rider não conseguia manter um horário fixo de malhação. Ela fazia exercícios em horas diferentes em
dias variados, dependendo de seu tempo e do caso em que estivesse trabalhando. Tinha encontrado Angella Benton
19
várias vezes na academia e elas costumavam conversar enquanto se exercitavam lado a lado nos aparelhos de ginástica.
Rider sabia que Angella se esforçava muito para ter uma carreira no cinema, na área de produção. Trabalhava como assistente de produção para a Eidolon Productions,
empresa comandada por Alexander Taylor. O trabalho tomava as 24 horas do relógio, dependendo da disponibilidade de locações e pessoal. Isso significava que seu horário
na academia era muito parecido com o de Rider. E também que tinha pouco tempo para relacionamentos. Ela contou a Rider que tivera apenas dois encontros no ano anterior
e que não havia homens em sua vida.
Era apenas uma amizade superficial e Rider nunca se encontrara com Angella fora da academia. Eram duas negras bonitas que lutavam para evitar que seus corpos as
traíssem enquanto mantinham vidas profissionais ocupadas e tentavam subir novos degraus que levavam a mundos diferentes.
Entretanto, o fato de Kiz conhecê-la nos deu um bom empurrão. Soubemos imediatamente com quem estávamos lidando. Uma mulher jovem, confiante e responsável que
dava importância tanto ao corpo quanto à carreira. Isso eliminava uma variedade de ângulos sobre seu estilo de vida que poderíamos ter perseguido por engano. O lado
negativo foi que, pela primeira vez, Rider tinha se deparado com uma pessoa que conhecia como vítima de um homicídio que fora incumbida de investigar. Na cena,
logo percebi que isso a deixara hesitante. Costumava ser muito falante ao examinar uma cena de crime e desenvolver uma teoria investigativa. Naquela cena, ficava
em silêncio se não falássemos com ela.
Não houve testemunhas do assassinato. O hall não podia ser visto da rua e oferecia ao assassino um ponto cego perfeito. Poderia ter entrado e atacado naquele espaço
reduzido sem medo de ser visto de fora. Mesmo assim, ainda havia um risco naquele crime. A qualquer momento, outro morador do edifício poderia ter chegado ou saído
e encontrado Angella Benton e seu assassino. Se o dono do cachorro tivesse levado seu bichinho para um passeio uma hora mais cedo, poderia ter-se deparado com um
crime em andamento. Poderia tê-la salvo, ou ter-se transformado, também, em vítima.
20
21
Anomalias. Grande parte do trabalho estava ligada ao estudo das anomalias. O crime tinha a aparência de um ataque de oportu i" nidade. O assassino havia seguido
Angella Benton e esperado pelo momento em que ela estivesse fora de vista. Ainda assim havia aspectos da cena - sua privacidade, por exemplo - que sugeriam que ele
já sabia sobre o hall e podia ter esperado ali, como um caçador à espreita perto de uma isca.
Anomalias. Angella Benton não tinha mais de 1,65m, mas era uma mulher jovem e forte. Rider havia testemunhado seu programa de exercícios e conhecia sua força e resistência.
Mesmo assim não havia sinal de luta. O exame das unhas não revelou pele ou sangue de qualquer outra pessoa. Será que ela conhecia o assassino? Por que não havia
lutado? A masturbação e o ato de rasgar a blusa sugeriam um crime de motivação psico-sexual, um crime cometido por uma só pessoa. Mas, mesmo assim, a ausência de
qualquer luta pela vida sugeria que Angella Benton tinha sido completamente dominada em muito pouco tempo. Será que havia mais de um assassino?
Nas primeiras 24 horas, nosso objetivo era coletar provas, fazer notificações e conduzir os primeiros interrogatórios com as pessoas diretamente ligadas à cena
do crime. O trabalho aprofundouse nas segundas 24 horas. Começamos a trabalhar as anomalias, tentando chegar a seu âmago, quebrando-as como nozes. Ao final do segundo
dia, tínhamos chegado à conclusão de que a cena do crime fora montada. Quer dizer, uma cena criada pelo perpetrador para transmitir idéias falsas sobre o crime.
Concluímos que tínhamos um assassino que se achava mais esperto que nós, que estava nos guiando para o caminho do predador psicossexual quando a realidade do crime
era algo completamente diferente.
O que nos apontou esta direção foi o sêmen encontrado sobre o corpo. Ao estudar as fotos da cena do crime, percebi que as gotas de sêmen se espalhavam pelo corpo
da vítima em uma trajetória sugestiva. Entretanto, as gotas eram redondas. Era conhecimento investigativo comum, em relação a provas de borrifos de sangue, que gotas
redondas são formadas quando o sangue cai diretamente sobre uma superfície. Gotas de forma elíptica ocorrem quando o sangue é
borrifado numa trajetória ou em ângulo em relação à superfície. Consultamos o especialista em manchas de sangue do departamento para ver se as normas de provas de
sangue se aplicavam a outros fluidos corporais. Ele nos disse que sim, e para nós isso revelou uma anomalia. Agora teorizávamos que havia uma maior possibilidade
de que o assassino ou assassinos tivessem plantado o sêmen no corpo. Possivelmente fora levado para a cena do crime e então pingado sobre o corpo como parte de um
plano para nos despistar.
Mudamos o foco da investigação. Não a víamos mais como um caso no qual a vítima sem querer entrara na zona de caça de um predador. Angella Benton era a zona de caça.
Havia algo em sua vida, circunstâncias que levaram o assassino até ela.
Mergulhamos em sua vida e em seu trabalho, à procura daquele algo escondido que tinha acionado o plano de matá-la. Alguém a queria morta e pensou que era esperto
o suficiente para disfarçar isso como o trabalho de um psicopata oportunista. Em público insistíamos junto à máquina da imprensa na perspectiva do maníaco assassino,
em particular começamos a procurar em outro lugar.
No terceiro dia da investigação, Edgar assumiu a autópsia e a montanha de tarefas burocráticas, enquanto eu e Rider ficamos com o campo. Passamos 12 horas nos escritórios
da Eidolon Productions que ficavam na Archway Pictures, em Melrose. A máquina de fazer filmes de Alexander Taylor ocupava quase um terço das salas dos Estúdios Archway.
Tinha mais de cinqüenta empregados. Em função de seu trabalho como assistente de produção, Angella Benton se relacionava com todos eles. Um assistente de produção
fica na parte mais baixa da pirâmide social de Hollywood. Benton era uma faz-tudo, uma mensageira. Não tinha um escritório, só uma mesa na sala de correspondência
sem janelas. Mas não importava, porque estava sempre em movimento, sempre correndo sem parar entre os escritórios na Archway e os sets de filmagem. Naquela época,
a Eidolon estava rodando dois filmes e um Programa de TV em locações diferentes em Los Angeles e em torno da cidade. Cada uma dessas produções era quase uma cidade,
uma cidade de barracas que era empacotada e movida de locação Para locação quase todas as noites. Uma cidade com cem pessoas
22
ou mais que podiam ter-se relacionado com Angella Benton e precisavam ser interrogadas.
A tarefa que tínhamos pela frente era desanimadora. Pedimos reforços para ajudar com os interrogatórios. O tenente não pôde liberar ninguém. Levou o dia inteiro
para Rider e eu terminarmos na sede da empresa, na Archway. E aquela foi a primeira e única vez em que falei com Alexander Taylor. Rider e eu tivemos meia hora
com ele e a conversa foi superficial. Ele conhecia Angella Benton, é claro, mas não muito bem. Enquanto ela estava na base da pirâmide, ele estava no topo. O contato
entre os dois era rápido e pouco freqüente. Ela estava na empresa havia menos de seis meses e ele não fora o responsável por sua contratação.
Não conseguimos qualquer pista naquele primeiro dia de interrogatório. Quer dizer, nenhuma pergunta que fizemos resultou em novo rumo ou enfoque na investigação.
Estávamos sem rumo. Ninguém com quem falamos tinha a menor idéia de por que alguém iria querer matar Angella Benton.
No dia seguinte, nós nos dividimos para que cada detetive pudesse visitar uma locação de produção e conduzir interrogatórios. Edgar ficou com a produção para a
TV em Valencia. Era uma comédia familiar sobre um casal com um filho que trama para evitar que seus pais tenham mais filhos. Rider ficou com a produção cinematográfica
mais perto de sua casa, em Santa Monica. Era a história de um homem que assume o crédito por um presente anônimo enviado a uma colega de trabalho no dia dos namorados,
e o romance entre os dois se constrói sobre uma mentira que cresce dentro dele como um câncer. Eu fiquei com o segundo filme, que estava sendo rodado em Hollywood.
Era um policial com muita ação, sobre uma ladra que rouba uma mala com dois milhões, sem saber que o dinheiro pertencia à máfia.
Como detetive classe três, eu era o líder da equipe. Assim, tomei a decisão de não informar a Taylor ou a qualquer outro dos administradores de sua empresa que membros
de minha equipe estariam visitando as locações. Não queria que a notícia nos precedesse. Simplesmente dividimos as locações e na manhã seguinte cada um de nós chegou
sem ser anunciado e usou o poder do distintivo para conseguir entrar.
23
O que aconteceu nesse dia seguinte logo depois que cheguei no set de filmagens está bem documentado. Às vezes repasso todos os movimentos da investigação e desejo
ter chegado ao local um dia mais cedo. Acho que teria ouvido alguém mencionar o dinheiro e juntaria todas as peças. A verdade é que lidamos de maneira apropriada
com aquela investigação. Fizemos o que devia ser feito e na hora certa. Não tenho nenhum arrependimento em relação a isso.
Mas, depois daquela quarta manhã, a investigação não era mais minha. A Divisão de Roubos e Homicídios entrou e tomou conta do caso. Jack Dorsey e Lawton Cross assumiram.
Havia de tudo o que interessa à DRH: cinema, dinheiro e assassinato. Mas eles não chegaram a lugar algum, passaram para outros casos e, então, foram ao Nat's comer
um sanduíche de presunto e tomar um trago. O caso meio que morreu com Dorsey. Cross sobreviveu, mas não se recuperou. Saiu de um coma de seis semanas sem memória
do tiroteio e sem sentir coisa alguma do pescoço para baixo. Uma máquina respirava por ele e muita gente no departamento achou que ele tivera menos sorte que Dorsey
por sobreviver daquele jeito.
Mas o caso Angella Benton acabou infectado pelo destino dos dois. Assombrado. Ninguém mais trabalhava nele. A cada seis meses alguém na DRH pegava o inquérito, espanava
a poeira acumulada na pasta, escrevia uma data e "Sem novas informações", e então a guardava no lugar, onde ficava até a próxima vez. No DPLA, isso é chamado "Persistência
necessária".
Quatro anos haviam se passado e eu, agora, estava aposentado. Supostamente confortável. Tinha uma casa sem hipoteca e um carro pelo qual pagara à vista. Recebia
uma pensão que cobria mais do que eu necessitava. Era como estar de férias. Sem trabalho, sem preocupações, sem problemas. Mas faltava algo e, lá no fundo, eu sabia
disso. Estava vivendo como um músico de jazz à espera de um show. Ficava acordado até tarde, olhando para as paredes e bebendo vinho tinto demais. Precisava penhorar
meu instrumento ou encontrar algum lugar para tocar.
E então recebi a ligação. Lawton Cross estava na linha. Tinha finalmente descoberto que eu havia caído fora. Pediu à mulher que telefonasse e ela segurou o fone
para que ele pudesse falar comigo.
24
- Harry, por acaso você às vezes pensa em Angella Benton?
- O tempo todo - respondi.
- Eu também, Harry. Minha memória voltou e eu penso muito sobre aquele caso.
Isso bastou. Quando deixei a Divisão de Hollywood pela última vez, achava que tinha sido o suficiente, que havia andado em volta de meu último cadáver, conduzido
meu último interrogatório com alguém que eu sabia ser um mentiroso. Mas, por via das dúvidas, me garanti. Saí levando uma caixa cheia de arquivos - cópias de meus
casos não solucionados em 12 anos de homicídios em Hollywood.
A pasta com o inquérito de Angella Benton estava naquela caixa. Não precisei abri-la para lembrar os detalhes, lembrar a aparência de seu corpo sobre o chão de
lajotas, tão exposto e violado. Aquilo ainda tinha um forte efeito sobre mim. Aborrecia-me que tivessem se esquecido dela quando começou o frenesi, por sua vida
não ter importância, até que dois milhões de dólares fossem roubados.
Nunca encerrei aquele caso. Ele tinha sido tirado de mim pelos figurões antes que eu conseguisse resolvê-lo. Assim era a vida no DPLA. Mas era naquela época. Agora
a situação é outra. A ligação de Lawton Cross mudou tudo. Terminou com minhas férias prolongadas. Conseguiu-me um emprego.
Capítulo 3
Eu não tinha mais um distintivo, mas ainda levava comigo mil hábitos e instintos que vinham com ele. Como um ex-fumante cujas mãos procuram no bolso da camisa o
cigarro que não está mais ali, de alguma forma sempre me via procurando o conforto do meu distintivo. Por quase trinta anos de minha vida eu tinha sido parte de
uma organização que promovia isolamento do mundo exterior, que cultivava a ética do "nós contra eles". Tinha sido parte do culto da religião de azul e agora estava
de fora, excomungado, parte do mundo exterior. Não tinha distintivo. Era um
dos outros. A medida que os meses se passaram, não houve um dia em que não sentisse, alternadamente, arrependimento e satisfação com minha decisão de deixar para
trás o departamento.
Foi um período em que minha principal ocupação foi separar o distintivo, e o que ele representava, de minha missão pessoal. Pelo mais longo dos períodos, acreditei
que os dois estavam interligados inextrincavelmente. Não podia ter um sem o outro. Mas depois de semanas e, meses, veio a consciência de que uma das identidades
era maior, superava a outra. Minha missão permanecia intacta. Meu trabalho neste mundo, com ou sem distintivo, era defender os mortos.
Quando desliguei o telefone após falar com Lawton Cross, sabia que estava pronto e que era hora de me levantar outra vez. Fui até o armário no corredor e peguei
a caixa com as pastas
26
empoeiradas e todas as vozes dos mortos. Eles falavam comigo em memórias. Em visões de cenas de crime. De todos eles, eu me lembrava mais de Angella Benton. Lembrava
de seu corpo encolhido sobre as lajotas espanholas, as mãos estendidas de um jeito que pareciam estendidas para
mim. Eu tinha a minha missão.
Capítulo 4
Na manhã seguinte ao encontro com Alexander Taylor, eu estava sentado à mesa da sala de jantar em minha casa na Woodrow Wilson Drive. Havia um bule de café na cozinha.
Tinha colocado no meu CD-player cinco discos com uma coletânea dos últimos trabalhos de Art Pepper como músico de apoio. Eu estava com os documentos e as fotos
da pasta de Angella Benton espalhados à minha frente.
O arquivo não estava completo porque o caso tinha sido assumido pela DRH justo quando minha investigação começava a entrar em foco e antes que muitos dos relatórios
fossem escritos. Era só um ponto de partida. Mas aquilo que fora extraído da cena do crime quatro anos antes era tudo o que eu tinha. Aquilo e a lista de nomes que
Alexander Taylor me dera na véspera.
Enquanto me aprontava para um dia de busca de nomes e marcação de interrogatórios, meus olhos foram atraídos pela pequena pilha de recortes de jornais com as pontas
amareladas pelo tempo em que permaneceram guardados na pasta. Peguei os recortes e comecei a examiná-los.
No início, o assassinato de Angella Benton mereceu apenas uma reportagem pequena no Los Angeles Times. Eu lembrava como aquilo me deixara frustrado. Precisávamos
de testemunhas. Não só do crime propriamente dito, mas talvez do carro do assassino ou da
28
rota de fuga. Precisávamos conhecer os movimentos da vítima antes de ser atacada. Era seu aniversário. Onde e com quem ela havia passado aquela noite antes de voltar
para casa? Uma das melhores maneiras de estimular as denúncias dos cidadãos é através de reportagens. Mas como o Times decidiu publicar apenas uma pequena nota escondida
no meio do jornal, praticamente não conseguimos ajuda alguma do público. Quando telefonei para a repórter para expressar minha frustração, ouvi que as pesquisas
mostravam que os clientes estavam cansados de histórias de morte e tragédia. A repórter disse que o espaço para notícias policiais estava encolhendo e não havia
nada que ela pudesse fazer. Como consolo, escreveu uma suíte para a edição do dia seguinte na qual uma linha dizia que a polícia estava em busca da ajuda do público
naquele caso. Mas a reportagem era ainda mais curta que a primeira e foi enterrada ainda mais fundo no meio do jornal. Naquele dia, não recebemos sequer uma ligação
de algum cidadão.
Tudo mudou três dias mais tarde, quando a história chegou à primeira página e tornou-se a notícia principal dos telejornais de todas as emissoras locais. Apanhei
o primeiro artigo recortado de uma primeira página e o li outra vez.
TIROTEIO NO SET DE FILMAGEM
UM MORTO E UM FERIDO QUANDO POLÍCIA E LADRÕES DE VERDADE
ROUBAM A CENA DE SEUS PERSONAGENS DAS TELAS
por Keisha Russett repórter do Times
Sexta-feira de manhã, uma realidade mortal invadiu a fantasia de Hollywood. A polícia de Los Angeles e seguranças trocaram tiros com ladrões armados. Os assaltantes
foram atraídos pelo dinheiro que estava sendo usado para a cena do filme sobre o roubo de dois milhões de dólares. Dois funcionários do banco foram baleados e um
deles não sobreviveu.
Os ladrões armados fugiram com os dois milhões depois de abrir fogo contra os seguranças e um detetive de polícia de
29
verdade que por acaso estava no set. A polícia disse que o sangue encontrado mais tarde no carro usado para a fuga e abandonado indicava que pelo menos um dos ladrões
também tinha sido baleado.
Na hora dos tiros, a estrela do filme, Brenda Barstow, estava em um trailer próximo. Ela nada sofreu e não testemunhou o verdadeiro tiroteio.
Segundo o porta-voz da polícia, o incidente ocorreu em frente a um bangalô na Selma Avenue pouco antes das dez da manhã. Um carro-forte chegou na locação das filmagens
levando dois milhões a serem usados numa seqüência que seria rodada dentro da casa. Segundo testemunhas, o set de filmagem estava sob segurança pesada naquela hora,
apesar de não ser conhecido o número exato de policiais e guardas armados no local.
A vítima que levou o tiro fatal foi identificada como Raymond Vaughn, 43 anos, diretor de segurança do BankLA, o banco que fez a remessa do dinheiro para a locação.
Linus Simson, 27 anos, outro funcionário do BankLA, também foi baleado. Ele foi atingido na parte inferior das costas e, ao final da sexta-feira, o Centro Médico
Cedars-Sinai declarou que estava fora de perigo.
O detetive Jack Dorsey, do DPLA, disse que, enquanto dois seguranças levavam o dinheiro do carro-forte para o interior da casa, três homens fortemente armados saltaram
de uma van estacionada ali perto, enquanto um quarto ficou esperando ao volante. Os bandidos renderam os seguranças e levaram o dinheiro. Enquanto os suspeitos recuavam
para a van com os quatro malotes de dinheiro, um deles abriu fogo. "Aquilo virou um inferno. Era tiro para todo lado", contou Dorsey.
Até sexta-feira, ainda não estava claro o que deu início à troca de tiros. Testemunhas disseram à polícia que os ladrões não encontraram resistência dos seguranças
na cena do crime. "Pelo que soubemos, eles simplesmente começaram a atirar", afirmou o detetive Lawton Cross.
30
31
Segundo a polícia, vários seguranças responderam ao fogo, junto com pelo menos dois policiais de folga no serviço que trabalhavam no set, e um detetive de polícia,
Harry Bosch, que estava em um dos trailers do set de filmagens, conduzindo uma investigação aparentemente sem qualquer conexão.
Ontem, a polícia estimou que mais de cem tiros foram disparados durante o tiroteio selvagem.
Apesar disso, a troca de tiros não durou mais que um minuto, segundo uma testemunha. Os ladrões conseguiram entrar na van e fugiram. O veículo, crivado de balas,
mais tarde foi encontrado abandonado perto da entrada do Sunset Boulevard para a Hollywood Freeway. Ele tinha sido roubado da garagem de um estúdio cinematográfico
na noite da véspera.
Perguntado se havia indentificação dos suspeitos, Dorsey respondeu que ainda não. "Estamos seguindo várias pistas que, acreditamos, vão se mostrar úteis à investigação",
completou.
O tiroteio levou uma forte dose de realidade ao acampamento da produção cinematográfica. "No início achei que eram os caras da contra-regragem atirando com balas
de festim", comentou Sean O'Malley, assistente de produção do filme. "Achei que era algum tipo de brincadeira. Então comecei a ouvir umas pessoas gritando para a
gente se abaixar e balas de verdade começaram a atingir a casa. Aí eu soube que era de verdade. Eu me joguei no chão, cara, e comecei a rezar. Foi assustador", contou
ele.
O filme, ainda sem título, é sobre uma ladra que rouba uma mala com dois milhões de dólares da máfia de Las Vegas e foge para Los Angeles. Segundo os especialistas,
é muito raro o uso de dinheiro de verdade nas filmagens, mas o diretor, Wolfgang Haus, insistiu em usar notas verdadeiras porque as cenas que estavam sendo rodadas
na casa da Selma Avenue iriam precisar de muitos closes da ladra, interpretada por Barstow, e do dinheiro.
Haus disse que o roteiro pedia que a personagem espalhasse o dinheiro sobre uma cama, mergulhasse e rolasse nele e o jogasse para o alto em comemoração. Em outra
cena, a ladra se
afundava em uma banheira cheia de dinheiro. Haus disse que dinheiro falso iria ser identificado facilmente quando o filme estivesse pronto.
O cineasta alemão também insistiu que usar notas de verdade iria ajudar os atores a terem um desempenho melhor nas cenas com dinheiro. "Se você usa dinheiro cenográfico,
então o resultado não é bom, é fingido", justificou-se Haus. "Precisamos ir além disso. Quero que essa mulher sinta que roubou dois milhões de dólares. Seria impossível
fazer isso de outro jeito. Meus filmes se baseiam na verdade e na exatidão fria. Se usássemos dinheiro de banco imobiliário, o filme seria uma mentira, e todos os
que assistissem a ele iriam perceber", acrescentou.
Os produtores do filme, a Eidolon Productions, conseguiram o dinheiro emprestado por um dia e uma falange de seguranças para acompanhá-lo, segundo os detetives de
polícia contaram aos repórteres. O carro-forte deveria ficar na cena enquanto ela fosse rodada e, assim que a filmagem terminasse, o dinheiro seria imediatamente
devolvido. A quantia estava toda em notas de cem dólares presas em maços de 25 mil.
Alexander Taylor, dono da produtora do filme, não comentou o roubo ou a decisão de usar dinheiro de verdade nas filmagens. Não ficou claro se o empréstimo incluía
seguro contra roubos.
A polícia também recusou-se a revelar por que o detetive Bosch estava no local quando aconteceu o tiroteio. Mas fontes contaram ao Times que Bosch estava investigando
a morte de Angella Benton, que, quatro dias antes do assalto, tinha sido encontrada estrangulada no edifício onde morava, em Hollywood. Benton, 24 anos, era uma
funcionária da Eidolon Productions, e agora a polícia está investigando a possibilidade de uma conexão entre o assassinato e o assalto.
O assessor de imprensa de Brenda Barstow divulgou que a atriz estava "chocada com o ocorrido" e que apresentava suas condolências para a família do morto.
Um porta voz do BankLA afirmou que Raymond Vaughn trabalhava no banco havia sete anos. Antes disso, foi
32
lotado em diversos departamentos em Nova York e na Pensilvânia. Simonson, o funcionário ferido, era assistente de Gordon Scaggs, vice-presidente responsável pelo
empréstimo do dinheiro por um dia ao estúdio de cinema. Scaggs não foi encontrado pela equipe de reportagem.
A produção do filme foi temporariamente suspensa. Sextafeira, ainda não estava claro quando as câmeras voltariam a funcionar, ou se dinheiro de verdade seria novamente
utilizado para as filmagens.
Eu me lembrava da cena surreal daquele dia. Os gritos, a nuvem de fumaça deixada após todo aquele tiroteio. As pessoas no chão e eu sem saber se tinham sido atingidas
ou se estavam apenas se protegendo. Ninguém se levantou por um bom tempo, mesmo quando a van usada na fuga já estava longe.
Eu passei os olhos pelo box que dizia como era raro o uso de dinheiro de verdade - e uma quantidade daquelas - em uma filmagem, não importa que precauções fossem
tomadas. A reportagem dizia que o volume de dinheiro precisara de quatro malotes e destacou corretamente que era improvável que os dois milhões aparecessem ao mesmo
tempo em uma única tomada de câmera. Ainda assim, os produtores do filme cederam à exigência do diretor para usar dinheiro de verdade, com todos os dois milhões
à disposição para dar verossimilhança. Mas fontes não identificadas e as pessoas em Hollywood citadas na matéria pareciam sugerir que não era pelo dinheiro, por
verossimilhança ou mesmo arte. Era simplesmente um jogo de poder. Wolfgang Haus fez aquilo porque podia. O diretor tinha acabado de fazer dois filmes que renderam
mais de duzentos milhões cada. Em apenas quatro anos ele havia deixado as pequenas produções independentes e se transformara em uma figura poderosa de Hollywood.
Ao exigir que dois milhões de dólares em dinheiro verdadeiro estivessem à disposição para filmar cenas bem rotineiras, estava exercitando seus músculos recém-descobertos.
Ele tinha poder para pedir e conseguir dois milhões no set. Apenas mais uma história de ego de Hollywood. Só que dessa vez envolvia assassinato.
33
Prossegui para outra reportagem publicada dois dias depois do roubo, acompanhando o andamento da história. Era um resumo
das reportagens do primeiro dia com poucas
informações novas sobre a investigação. Nenhuma prisão ou suspeitos. A novidade mais importante era que a Warner Bros., o estúdio por trás do filme, tinha roído
a corda. Cancelou o investimento de sete dias de produção assim que a estrela, Brenda Barstow, desistiu do projeto, alegando motivos de segurança. A reportagem citava
fontes não identificadas dentro da produção que sugeriram que Barstow tinha saído por outras razões, mas estava usando uma cláusula de segurança pessoal em seu contrato
para desistir. As outras razões sugeridas foram que ela percebera que uma mortalha tinha sido lançada sobre a produção, que também podia enterrar o apelo de bilheteria
do filme, e seu desapontamento com o roteiro final, que só foi terminado depois de ela ter assinado o contrato.
A conclusão da segunda reportagem voltava à investigação e contava que o caso do roubo e do tiroteio tinha sido ampliado para abranger o assassinato de Angella Benton,
e que a Divisão de Roubos e Homicídios tinha assumido o caso no lugar da Divisão de Hollywood. Percebi que havia um parágrafo circulado no fim do recorte. Provavelmente
por mim, quatro anos antes.
Fontes confirmaram ao The Times que a remessa de dinheiro roubada tinha seguro e continha apenas notas marcadas. Investigadores revelaram que rastrear o dinheiro
pode ser a melhor chance de identificar e capturar os suspeitos.
Não me lembrava de ter marcado aquele parágrafo havia quatro anos e me perguntei por que tinha feito aquilo - quando a matéria foi publicada, eu estava fora do caso.
Achei que, na época, eu continuara interessado, estando ou não no caso. Curioso para descobrir se a fonte da repórter tinha dado informação precisa ou apenas torcendo
para que os ladrões lessem a matéria e entrassem em pânico com a possibilidade de o dinheiro ser rastreado. Talvez isto fizesse com que eles o segurassem por mais
tempo e aumentassem as chances de uma recuperação total do dinheiro.
34
Pensamento positivo. Agora não importava. Dobrei e guardei os recortes. Pensei no trailer onde eu estava naquele dia em que tudo começou. As reportagens dos jornais
davam apenas uma idéia geral e tão distante quanto uma vista aérea. Como se alguém tentasse compreender o Vietnã em 1967 só de assistir ao Walter Cronkite de noite
na TV. As matérias não transmitiam a confusão, o cheiro de sangue e medo, a carga de adrenalina em ebulição entrando nas veias como uma tropa de pára-quedistas descendo
pela rampa de um C-130 sobre território hostil, "Vai! Vai! Vai!".
O trailer estava estacionado na Selma. Eu estava falando com Haus, o diretor, sobre Angella Benton. Estava à procura de qualquer coisa em que pudesse me agarrar.
Estava obcecado com as mãos dela e, de repente, naquele trailer, comecei a achar que as mãos faziam parte da montagem daquela cena de crime. Montada por um diretor.
Estava apertando Haus, dando uma prensa, tentando descobrir seu paradeiro na noite em questão. E então bateram à porta, ela se abriu e tudo mudou.
- Wolfgang - adiantou-se o homem com um boné de beisebol. - O carro-forte chegou com o dinheiro.
Eu olhei para Haus.
- Que dinheiro?
Na hora eu soube, por instinto, o que estava para acontecer.
Agora olho para aquela cena de memória e vejo tudo em câmera lenta. Vejo todos os movimentos, todos os detalhes. Saí do trailer do diretor para ver o carro-forte
vermelho no meio da rua, duas casas abaixo. A porta traseira estava aberta e, lá de dentro, um homem uniformizado entregava os malotes de dinheiro para dois outros
no chão. Dois homens de terno, um muito mais velho que o outro, observavam de perto.
Quando os homens que levavam o dinheiro voltaram-se para a casa, a porta lateral de uma van estacionada do outro lado da rua deslizou e se abriu, dela saíram três
homens com máscaras de esquiador, todos armados. Pela porta aberta, vi o quarto, atrás do volante. Minha mão entrou no paletó e foi até o revólver no quadril, mas
eu o mantive ali. A situação era arriscada demais. Muita gente em volta e no meio de um possível fogo cruzado. Esperei.
35
Os assaltantes chegaram de surpresa por trás dos seguranças com o dinheiro e tomaram os malotes sem dar um tiro. Então, enquanto voltavam pela rua para a van, aconteceu
o inexplicável. O homem da cobertura que não carregava um malote parou, afastou as pernas para se posicionar melhor e apontou a arma em uma empunhadura com as duas
mãos. Não entendi. O que ele tinha visto? Onde estava a ameaça? Quem tinha feito algum movimento? O pistoleiro abriu fogo e o homem mais velho de terno, as mãos
erguidas, nenhuma ameaça, caiu de costas na rua.
Em menos de um segundo o tiroteio todo explodiu. O guarda no carro-forte, os seguranças e os tiras de folga que estavam no gramado, todos abriram fogo. Puxei minha
arma e desci o gramado na direção da van.
- No chão! Todo mundo no chão!
Enquanto os membros da equipe e os técnicos mergulhavam para se protegerem no chão, eu me aproximei. Ouvi alguém começar a gritar e o motor da van começou a acelerar.
O cheiro da pólvora invadiu e queimou minhas narinas. Quando consegui campo aberto para atirar com segurança, os ladrões tinham chegado à van. Um jogou seus malotes
pela porta aberta, virou-se e sacou duas pistolas do cinto.
Ele nem conseguiu atirar. Apertei o gatilho e o vi voar de costas para dentro da van. Os outros, então, mergulharam atrás dele e partiram cantando pneus e com a
porta ainda aberta, o pé do homem ferido projetando-se para fora. Vi a van dobrar a esquina e rumar para o Sunset e para a auto-estrada. Meu Ford Crown Victoria
estava estacionado a mais de um quarteirão de distância.
Em vez de correr, abri meu celular e liguei para o D.P. Pedi que mandassem ambulâncias e uma equipe grande. Informei a direção que a van tinha tomado e disse a eles
que fossem para a autoestrada.
Durante todo esse tempo, o berreiro ao fundo não parou. Fechei o telefone e fui até o homem que gritava. Era o mais jovem de terno. Ele estava de lado, a mão agarrada
ao quadril esquerdo. O sangue escorria-lhe entre os dedos. Seu dia e seu terno estavam estragados, mas eu sabia que ele ia escapar.
36
- Levei um tiro! - gritava e se contorcia. - Levei uma porra de um tiro!
Deixei a recordação e voltei para minha mesa de jantar quando Art Pepper começou a tocar "You'd be só nice to come home to", com Jack Sheldon no trompete. Tinha
pelo menos dois ou três discos com versões de Pepper daquele clássico de Cole Porter. Em todas elas ele sempre a atacava, arrancava suas tripas fora. Era da única
maneira que ele sabia tocar e aquele jeito implacável era o que eu mais gostava nele. Era o que eu queria
compartlhar com ele.
Abri meu caderno numa nova página e estava prestes a anotar algo que tinha lembrado sobre o tiroteio quando alguém bateu à porta.
Capítulo 5
Levantei, fui até o hall de entrada e espiei pelo olho mágico. Então voltei correndo para a sala de jantar e peguei uma toalha de mesa no armário na parede. Nunca
tinha sido usada. Fora comprada por minha ex-mulher e guardada no armário para quando recebêssemos alguém. Mas nunca recebemos. Eu não tinha mais a mulher, mas agora
a toalha ia servir para alguma coisa. Bateram outra vez. Desta vez com mais força. Terminei logo de cobrir as fotos e os documentos e fui até a porta.
Kiz Rider estava de costas para mim e olhava para a rua quando abri.
- Desculpe, Kiz. Estava no deque lá dos fundos e não ouvi a primeira vez que você bateu.
Ela passou por mim, atravessou o pequeno hall e entrou na área das salas de estar e de jantar. Provavelmente viu que a porta de correr do deque estava fechada.
- Então como você sabe que eu bati uma primeira vez? - perguntou sem se deter.
- Eu, um... só achei que a batida que ouvi foi tão alta que significava que, quem quer que estivesse lá fora, tinha...
- Está bem, está bem, Harry, já entendi.
Não a via fazia quase oito meses. Desde minha festa de aposentadoria, que ela tinha organizado no Musso's. Ela alugou o lugar inteiro e convidou todo mundo da Divisão
de Hollywood.
38
Ela entrou na sala de jantar e eu vi seus olhos passarem pela toalha de mesa enrugada. Era óbvio que eu estava escondendo alguma coisa e imediatamente me arrependi
de ter feito aquilo.
Ela estava vestindo um tailleur grafite com a saia abaixo do joelho. A roupa me pegou de surpresa. Em 90% do tempo que trabalhamos juntos como parceiros, ela vestia
jeans preto e um blazer sobre uma blusa branca. Isso lhe dava liberdade de movimentos, podia correr, se necessário. No tailleur, ela parecia mais uma vicepresidente
de banco que uma detetive da Homicídios. com os olhos ainda na mesa, ela comentou:
- Oh, Harry, você sempre arruma a mesa com tanto capricho. O que você comeu no almoço?
- Desculpe. Não sabia quem estava na porta e meio que joguei aquilo em cima de uns troços que estavam na mesa.
Ela virou o rosto para mim.
- Que troços, Harry?
- Só uns troços. De um caso antigo. Então me conte, como andam as coisas lá na DRH? Melhor que da última vez em que a gente conversou?
Ela tinha sido promovida para o Centro mais ou menos um ano antes de eu deixar o departamento. Teve problemas com o novo parceiro e outras pessoas na DRH, e me
confidenciou aquilo. Tinha, com ela, uma relação de mentor que continuou depois que foi transferida para a DRH. Mas terminou quando eu decidi pela aposentadoria
em vez de continuar na ativa, o que teria nos tornado parceiros na DRH. Sabia que aquilo a magoara. Ter organizado minha festa de aposentadoria foi um belo gesto,
mas também seu grande adeus.
- DRH? A DRH não funcionou.
- O quê? Do que você está falando?
Eu estava mesmo surpreso. Rider tinha sido a parceira mais habilidosa e intuitiva com quem trabalhara. Era feita para a missão. O departamento precisava de mais
gente como Rider. Tomei como certo que ela iria ser capaz de se ajustar à vida no esquadrão, com a elite do departamento, e fazer um bom trabalho.
39
- Fui transferida de lá no início do verão. Agora estou no gabinete do chefe.
- Você está brincando? Ai, cara...
Eu estava surpreso. Era óbvio que ela tinha escolhido um rumo em sua carreira que passava pelo departamento. Se estivesse trabalhando como adjunta em projetos especiais,
então estava sendo preparada para um cargo de comando administrativo. Não havia coisa alguma errada com aquilo. Sabia que Rider era tão ambiciosa quanto qualquer
tira. Mas a Homicídios era um chamado, não uma carreira. Sempre pensei que ela entendia e aceitava aquilo. Tinha ouvido o chamado.
- Kiz, nem sei o que dizer. Queria...
- O quê, que eu tivesse falado sobre isso com você? Você largou o barco, Harry. Está lembrado? Como você ia me dizer para ficar na DRH se você mesmo pulou fora?
- Para mim era diferente, Kiz. Eu desenvolvi resistência demais. Estava carregando muito peso. Você era diferente. Você era a estrela, Kiz.
- Bem, as estrelas se apagam. O terceiro andar era pequeno e político. Eu mudei meus objetivos. Fiz a prova para tenente. E o chefe é um sujeito legal. Ele quer
fazer coisas boas e quero estar junto. Engraçado, tem menos política no sexto andar. E você sempre imagina o contrário.
Parecia mais estar tentando convencer a si mesma do que a mim. Tudo o que eu podia fazer era balançar a cabeça, inundado por um sentimento de perda e culpa. Se eu
tivesse ficado e aceitado o posto na DRH, ela também teria ficado. Entrei na sala e caí no sofá. Ela me seguiu, mas permaneceu de pé.
Eu me estiquei para abaixar o som, mas não demais. Gostava daquela música. Fiquei olhando, através da porta de correr e por sobre o deque, para a vista das montanhas
no fundo do vale. Lá, a nuvem de poluição não era maior do que na maioria dos dias. Mas, de alguma forma, o céu encoberto pareceu se encaixar quando Pepper pegou
o clarinete para acompanhar Lee Konitz em "The Shadow of Your Smile". Havia tamanha melancolia naquilo que acho que até Rider fez uma pausa. Ela estava ouvindo em
silêncio.
40
Foi um amigo chamado Quentin McKinzie quem me deu aqueles discos, um velho músico de jazz que tinha conhecido Pepper e tocado com ele décadas atrás no Shelly Manne's,
no Dante's e em alguns outros clubes de jazz há muito desaparecidos, que ficaram famosos com o jazz da Costa Oeste. McKinzie me disse para ouvir e estudar aqueles
discos. Eram algumas das últimas gravações de Pepper. Depois de anos em cadeias e penitenciárias por causa de seus vícios, o artista estava recuperando o tempo perdido.
Mesmo em seu trabalho como músico de apoio ele era implacável. Não parou até que seu coração parasse. Havia uma espécie de integridade naquilo e na música que meu
amigo admirava. Ele me deu os discos e me disse que nunca parasse de recuperar o tempo perdido.
Logo a música acabou, e Kiz virou-se para mim.
- Quem era esse?
- Art Pepper, Lee Konitz.
- Brancos? Assenti com a cabeça.
- Uau. Aquilo estava muito bom. Balancei novamente a cabeça.
- Então, Harry, o que tem embaixo da toalha de mesa? Eu dei de ombros.
- E a primeira vez que você vem aqui em oito meses. Eu acho que você sabe.
Ela balançou a cabeça.
- É.
- Deixe adivinhar. O Alexander Taylor está ligado com o chefe ou com o prefeito ou com os dois e ele ligou para se informar sobre mim.
Ela assentiu com a cabeça. Eu tinha acertado.
- E o chefe sabia que eu e você fomos próximos há algum tempo, então...
Há aígum tempo. Ela pareceu tropeçar quando falou aquela parte.
- De qualquer jeito, ele me mandou dizer que você está batendo na porta errada.
41
Ela sentou-se na cadeira em frente ao sofá e olhou para fora por sobre o deque. Eu podia ver que ela não estava interessada no que estava lá fora. Só não queria
olhar para mim.
- Então foi por isso que você deixou a Homicídios, para fazer tarefas para o chefe.
Ela olhou para mim com raiva e notei a ofensa nos seus olhos. Mas não me arrependi do que disse. Estava com tanta raiva dela quanto ela de mim.
- É fácil para você dizer isso, Harry. Você já saiu da guerra.
- A guerra nunca acaba, Kiz.
Quase sorri da coincidência da música que estava tocando agora enquanto Rider transmitia sua mensagem. Era "High Jingo", com Pepper ainda acompanhando Konitz. Pepper
morreu seis meses depois de gravar aquela faixa. A coincidência era que, quando eu era novo no departamento, high jingo era como os detetives da velha-guarda descreviam
um caso que tinha despertado um interesse incomum no sexto andar ou tinha outros perigos políticos ou burocráticos ocultos. Quando um caso tinha highjingo, você
precisava tomar cuidado. Tinha de cuidar de si mesmo por que ninguém mais faria isso por você.
Eu me levantei e fui até a janela. O sol estava refletindo um bilhão de partículas que pairavam no ar. Era laranja e rosa, e estava lindo. Não parecia que podia
ser tóxico.
- Então esse é o recado do chefe... caia fora, Bosch? Você agora é um civil, deixe isso com os profissionais?
- Mais ou menos.
- Esse caso está juntando poeira, Kiz. Por que ele liga se eu estou dando uma olhada por aí enquanto ninguém no departamento dele faz nada? Será que está com medo
de ficar em má situação, ou alguma outra coisa, se eu encontrar a solução?
- Quem disse que está juntando poeira? Eu virei e olhei para ela.
- Dá um tempo, não me venha com esse papo de persistência necessária. Eu sei como funciona. Uma assinatura na ficha a cada seis meses, "Ah, é, nenhuma novidade".
Será que você não se
42
importa com isso, Kiz? Você conhecia Angella Benton. Não quer ver tudo esclarecido?
- Claro que quero. Não ache, nem por um momento, que vou fazer por menos. Mas as coisas estão andando, Harry. Fui mandada aqui por cortesia a você. Não se envolva.
Você pode se deparar com algo que não deveria. Pode atrapalhar mais que ajudar.
Voltei a me sentar e olhei para ela por um momento longo enquanto tentava ler nas entrelinhas. Eu não estava convencido.
- Se estão trabalhando ativamente, quem está fazendo isso? Ela sacudiu a cabeça.
- Não posso contar a você. Só posso dizer para não mexer
nesse caso.
- Olhe, Kiz, ainda sou o mesmo. Por mais raiva que esteja sentindo porque eu caí fora, isso não deve impedir você de...
- De quê? De fazer o que eu devo fazer? De cumprir ordens? Harry, você não tem mais o distintivo. Gente com distintivo está trabalhando ativamente nisso. Ativamente.
Entendeu? Deixe as coisas como estão.
Antes que eu pudesse falar, ela disparou outra rajada sobre mim.
- E não se preocupe comigo, está bem? Não tenho mais raiva de você, Harry. Você me deixou na mão, mas isso foi há muito tempo. E, eu fiquei com raiva, mas já passou
faz tempo. Nem queria ter vindo aqui, mas ele me fez vir. Achou que eu podia convencer você.
Eu supus que ele devia ser o chefe. Fiquei sentado em silêncio por um instante, esperando para ver se havia mais. Mas ela havia terminado. Então falei baixo e com
calma, quase como se estivesse me confessando a um padre por trás de uma treliça.
- E se eu não deixar as coisas como estão? E se por motivos que nada têm a ver com o caso eu precisar trabalhar nele? Motivos meus. Então o que vai acontecer?
Ela sacudiu a cabeça, contrariada.
- Então você vai acabar se machucando. Essas pessoas não estão de brincadeira. Ache outro caso ou outra maneira de exorcizar seus demônios.
43
Que pessoas?
Rider se levantou.
Kiz, que pessoas?
Já contei a você o suficiente, Harry. Mensagem transmitida.
Boa sorte.
Ela se dirigiu para o hall que dava para a porta. Levantei-me e a segui, minha mente agitada com o que eu sabia.
- Quem está trabalhando no caso? - perguntei. - Conte
para mim.
Ela virou-se e me deu uma olhada, mas continuou caminhando para a porta.
- Conte, Kiz. Quem?
Ela parou de repente e virou-se para mim. Vi raiva e desafio em seus olhos.
- Pelos velhos tempos, Harry? É isso o que você quer dizer? Eu recuei. A raiva dela era como um campo de força em volta
de seu corpo que me empurrava para trás. Estendi minhas mãos bem abertas em rendição e não falei coisa alguma. Ela esperou um instante e então virou-se outra vez
para a porta.
- Até logo, Harry.
Ela abriu a porta e saiu, então fechou-a atrás de si.
- Até logo, Kiz.
Mas ela já havia ido embora. Por um bom tempo fiquei ali de pé pensando sobre o que ela havia dito e não dito. Havia uma mensagem dentro da mensagem, mas eu ainda
não conseguia lê-la. A água estava turva demais.
- Highjingo, querida - falei para mim mesmo enquanto trancava a porta.
Capítulo 6
A viagem até Woodland Hills levou quase uma hora. Esse lugar costumava ser o local onde, se você esperasse, entrasse nos lugares certos e fosse contra o fluxo do
trânsito, poderia chegar em algum lugar num tempo razoável. Não era mais assim. Para mim, parecia que as vias expressas, não importava a hora ou o lugar, eram sempre
um pesadelo. Nunca havia descanso. E, tendo feito poucas viagens ao volante nos últimos meses, a reimersão na rotina era um exercício incômodo e frustrante. Quando
cheguei, por fim, ao meu limite, deixei a 101 na saída de Topanga Canyon e fiz todo o resto do meu caminho em ruas secundárias. Tomei o cuidado de não tentar recuperar
o tempo perdido acelerando no meio dos bairros residenciais. No bolso interno do meu paletó havia uma garrafinha de bebida. Se eu fosse parado, isso poderia ser
um problema.
Em quinze minutos cheguei na casa da Melba Avenue. Parei roeu carro atrás da van e saí. Subi a rampa de madeira que começava ao lado da porta lateral da van, construída
por cima dos degraus da frente da casa.
À porta fui recebido por Danielle Cross, que fez um aceno
sil
encioso para que eu entrasse.
- Como ele está hoje, Danny? -- Como sempre.
- Certo.
46
Não sabia o que mais dizer. Não podia imaginar qual era a sua visão do mundo, como tinha mudado de um conjunto de esperanças e planos para algo completamente diferente
da noite para o dia. Sabia que ela não podia ser muito mais velha que o marido. Quarenta e poucos. Mas era impossível dizer. Tinha olhos envelhecidos e uma boca
que parecia estar o tempo inteiro apertada e caída nos cantos.
Eu conhecia o caminho e ela me deixou ir. Passei pela sala de estar e segui o corredor até o último quarto à esquerda. Entrei e vi Lawton Cross em sua cadeira -
comprada junto com a van depois da campanha de arrecadação de fundos feita pelo sindicato da polícia. Ele estava assistindo à CNN numa televisão montada no canto,
em uma armação metálica presa ao teto. Outra reportagem sobre a situação no Oriente Médio.
Seus olhos se moveram em minha direção, mas o rosto, não. Havia uma tira por cima de suas sobrancelhas que prendia-lhe a cabeça à almofada atrás dela. Uma rede de
tubos conectava seu braço direito a uma bolsa com um fluido claro que pendia de um suporte preso ao encosto da cadeira. Sua pele tinha uma cor doentia. Ele não
pesava mais de 60 quilos e suas clavículas projetavam-se como cacos quebrados de cerâmica. Os lábios estavam secos e rachados, o cabelo, um ninho despenteado. Eu
tinha ficado chocado com sua aparência quando fui visitá-lo após receber um telefonema dele. Tentei não demonstrar isso outra vez.
- Oi, Law! Tudo bem com você?
Era uma pergunta que eu odiava fazer, mas sentia que devia isso a ele.
- Dentro do possível, Harry.
- Sei.
A voz dele era um murmúrio rouco, como um técnico de futebol universitário que passou quarenta anos gritando da lateral do campo.
- Escute - comecei. - Desculpe por ter voltado tão rápido, mas havia algumas outras coisas.
- Você viu o produtor?
Vi. Comecei ontem, com ele. Ele me deu vinte minutos.
47
Havia um som baixo e sibilante no quarto, que eu já percebera da outra vez em que fora lá, no início da semana. Acho que era um ventilador, que bombeava ar pela
rede de tubos claros que passavam por baixo da camisa de Cross, saíam da gola e subiam pelos dois lados de seu rosto antes de entrarem no nariz.
- Alguma coisa?
- Ele me deu alguns nomes. Todo mundo da Eidolon Pictures que supostamente sabia do dinheiro. Ainda não tive a oportunidade de verificar esse pessoal.
- Você já perguntou a ele o que significa Eidolon?
- Não, nunca pensei em fazer isso. O que é, um nome de família, ou algo assim?
- Não, significa fantasma. Essa é uma das coisas que voltaram à minha cabeça. Meio que apareceram de repente enquanto eu pensava sobre o caso. Eu perguntei a ele
uma vez. Ele disse que era de um poema. Algo sobre um fantasma sentado em um trono na escuridão. Para mim, ele acha que é o próprio.
- Estranho.
- É. Ei, Harry, você podia desligar o rádio? Para a gente não incomodar a Danny?
Ele me pedira para fazer o mesmo na primeira visita. Dei a volta em sua cadeira até uma escrivaninha. Sobre ela havia um pequeno aparelho de plástico com uma luzinha
verde brilhando na frente. Era um rádio feito para os pais poderem escutar seus bebês adormecidos. Isso ajudava Cross a chamar sua mulher quando precisava mudar
de canal ou qualquer outra coisa. Eu o desliguei para que pudéssemos falar com privacidade e voltei para a frente da cadeira.
- bom - disse Cross. - Por que agora você não fecha a porta? Fiz como ele instruiu. Sabia aonde aquilo ia levar.
- Você me trouxe alguma coisa dessa vez? - perguntou Cross. - Como eu pedi?
- É, trouxe, sim.
- bom. Vamos começar. Vá ao banheiro, atrás de você, e veja se deixei minha garrafa lá.
No banheiro, a bancada em torno da pia estava lotada com todos os tipos de remédios e pequenos equipamentos médicos. Em
48
cima de uma saboneteira havia uma garrafa plástica com a tampa aberta. Parecia o tipo normalmente usado em bicicletas, mas um pouco diferente. O gargalo era mais
largo e levemente curvado. Provavelmente para deixar mais confortável o ângulo de beber, pensei. Rapidamente peguei a garrafinha do bolso do meu paletó e então servi
um pouco de Bushmills na garrafa. Quando levei-a para o quarto, os olhos de Cross se arregalaram de horror.
- Não, isso não! Isso é uma garrafa para xixi! Ela está embaixo da cadeira!
- Merda. Desculpe.
Dei a volta e retornei ao banheiro, onde derramei a birita na pia bem no momento em que Cross gritou:
- Não, não faça isso! Virei o rosto e olhei para ele.
- Eu ia beber.
- Não se preocupe, eu tenho mais.
Depois de lavar a garrafinha de xixi e devolvê-la à saboneteira, voltei para o quarto.
- Law, não tem nenhuma garrafa para beber, aqui. O que você quer que eu faça?
- Droga. Ela deve ter pego. Ela sabe o que eu estou armando. Você está com a garrafinha?
- Estou, bem aqui.
Dei um tapinha nela por fora do meu paletó esporte.
- Tire daí. Deixe eu dar uma provada.
Peguei a garrafa e a abri. Levei o gargalo até a boca dele e deixei que tomasse um gole. Ele tossiu alto e derramou um pouco sobre o rosto e o pescoço.
- Meu Deus - engasgou.
- O quê?
- Meu Deus...
- O que foi, Law? Você está bem? vou chamar a Danny. Fiz um movimento em direção à porta, mas ele me impediu.
Não, não. Eu estou bem. Só que... faz muito tempo, só isso. Me dá mais um pouco.
Law, a gente precisa conversar.
49
- Eu sei. Mas me dê só mais um gole.
Levei a garrafa até a boca dele outra vez e derramei uma boa dose. Dessa vez, ele recebeu bem e fechou os olhos.
- Black Bush... Meu Deus, isso é bom. Eu sorri e balancei a cabeça.
- Que se fodam os remédios - exclamou ele. - Me dê Bushmills a qualquer hora, Harry. A qualquer hora, porra.
Ele era um homem que não podia se mover, mas eu ainda podia ver o uísque fazer efeito nos olhos dele, deixando-os mais tranqüilos.
- Ela não me dá nada - reclamou. - Ordens médicas. Eu só consigo dar uma bicada quando um de vocês passa aqui para uma visita. E isso não é muito freqüente. Quem
vai querer vir aqui para ver essa cena triste... - fez uma pausa e pediu: - Você tem que continuar a vir aqui, Harry. Não ligo para o caso. Resolvendo ou não, continue
a vir me ver.
Os olhos dele moveram-se para a garrafa.
- E traga o seu amigo aí. Sempre traga o amigo.
Eu estava começando a compreender. Cross tinha ocultado coisas de mim. Eu o procurara na véspera do dia em que falei com o Taylor. Cross havia sido o ponto de partida,
mas tinha ocultado coisas para me trazer de volta... com uma garrafa. Talvez tudo aquilo, sua ligação para despertar outra vez o caso em mim, tivesse a ver com
apenas uma coisa. A garrafa.
Ergui a garrafinha do tamanho de uma carteira.
- Você não me contou tudo, Law, só para que eu trouxesse isto para você?
- Não. Eu ia mandar a Danny ligar para você. Eu me esqueci de uma coisa.
- É, eu já sei. Fui falar com o Taylor e logo depois recebi uma visita do sexto andar que me disse para cair fora, que já estão trabalhando no caso. Pessoas que
não estão de brincadeira.
Os olhos de Cross moviam-se velozes para frente e para trás no rosto congelado.
- Não - disse ele.
- Quem veio ver você antes de mim, Law?
- Ninguém. Ninguém veio falar desse caso.
50
- Para quem você telefonou antes de me ligar?
- Ninguém, Harry, eu juro.
Devo ter levantado a voz porque, de repente, a porta do quarto se abriu e a mulher de Cross apareceu.
- Está tudo bem?
- Tudo bem, Danny - respondeu o marido.- Deixe a gente sozinho.
Ela ficou parada de pé sob a porta e vi os olhos dela se dirigirem para minha mão. Por um instante, pensei em tomar eu mesmo um gole, para que ela pensasse que aquilo
era meu. Mas podia ver em seus olhos que ela sabia exatamente o que estava acontecendo. Não se mexeu por um bom tempo, em seguida seus olhos se fixaram nos meus
por instantes. Então deu um passo para trás e fechou a porta. Voltei a olhar para Cross.
- Se ela não sabia, agora sabe.
- Deixa pra lá. Que horas são, Harry? Não estou conseguindo ver a TV direito.
Olhei para o canto da tela da TV onde a CNN sempre exibia a hora.
- São 11h15. Quem veio ver você, Law? Quero saber quem está trabalhando no caso.
- Estou dizendo, Harry, não veio ninguém. Pelo que eu sei, o caso está mais morto do que a droga das minhas pernas.
- Então o que foi que você não me contou da outra vez que vim aqui?
Seus olhos foram até a garrafa e nem precisou pedir. Segurei-a junto a seus lábios rachados e descarnados. Ele tomou um gole grande e fechou os olhos.
- Ah, meu Deus... - balbuciou ele - Eu preciso...
Seus olhos se abriram e saltaram sobre mim como lobos sobre um veado.
- É ela que está me mantendo vivo - sussurrou desesperado.
- Acha que é isso o que quero? Ficar sentado em minha própria merda metade do tempo? Ela recebe salário integral enquanto eu estou vivo: salário e auxílio médico.
Se eu morrer ela fica com uma
51
pensão de viúva. E eu não trabalhei tanto tempo. Quatorze anos. É mais ou menos metade do que recebe enquanto estou vivo.
Olhei para ele por um bom tempo, sempre me perguntando se ela estaria escutando do outro lado da porta.
- Então o que você quer de mim, Law? Que eu desligue a tomada? Não posso fazer isso. Posso conseguir um advogado, se você quiser, mas eu não...
- E ela também não me trata direito.
Fiz outra pausa. Senti uma sensação de aperto na boca do estômago. Se o que estivesse me contando fosse verdade, então sua vida era um inferno pior do que eu podia
imaginar. Baixei minha voz quando falei.
- O que ela faz com você, Law?
- Fica com raiva. Faz coisas. Não quero falar sobre isso, não é culpa dela.
- Escute, você quer que eu traga um advogado aqui? Também posso conseguir um investigador do serviço social.
- Não, nada de advogados. Nunca. Nem investigadores. Não quero isso. E não quero dar trabalho a você, Harry, mas o que eu posso fazer? Se eu pudesse desligar a tomada
sozinho...
Ele expirou com força. O único gesto que seu corpo permitia que fizesse. Eu podia apenas imaginar a frustração horrorosa.
- Isso não é jeito de se viver, Harry. Não é vida. Concordei com a cabeça. Nada disso tinha vindo à baila na
primeira visita. Falamos sobre o caso, o que se lembrava dele. As lembranças da investigação estavam voltando aos pedaços. Tinha sido uma conversa difícil, mas não
havia qualquer sensação de auto-aversão ou desespero. Nenhuma depressão além do esperado. Eu me perguntei se tinha sido o álcool que de repente trouxera aquilo.
- Sinto muito, Law.
Era tudo o que eu podia dizer. Os olhos dele se afastaram e foram para a tela da TV, acima do meu ombro esquerdo.
- Que horas são agora, Harry? Dessa vez eu conferi meu relógio.
52
- Onze e vinte. Qual é a pressa, Law? Está esperando mais alguém?
- Não, nada disso. E só um programa que eu quero ver na Court TV. Começa ao meio-dia. Rikki Klieman. Gosto dela.
- Então você ainda tem tempo para conversar comigo. Por que não arranja um relógio maior para cá?
- Ela não deixa. Diz que o médico falou que não faz bem para mim ficar olhando para um relógio.
- Ela deve ter razão.
Foi a coisa errada a dizer. Vi a raiva encher seus olhos e imediatamente me arrependi daquelas palavras.
- Desculpe, eu não devia...
- Você sabe como é não poder levantar a porra do pulso para ver o próprio relógio?
- Não, Law, não faço idéia.
- Você sabe como é cagar num saco que a sua mulher leva para o banheiro? Ter que pedir a ela tudo, até um gole de uísque?
- Eu sinto muito, Law.
- É, sente. Todo mundo sente pra caralho, mas ninguém... Ele não concluiu. Parecia morder o fim da frase como um cão
que apanha um pedaço de carne crua. Afastou o olhar e ficou em silêncio por um bom tempo, até que achei que a raiva tinha voltado por sua garganta para o poço aparentemente
sem fundo de frustrações e autocomiseração que havia dentro dele.
- Ei, Law?
Os olhos dele voltaram para mim.
- O quê, Harry?
Ele estava calmo. O momento tinha passado.
- Vamos voltar. Você disse que ia me telefonar porque havia uma coisa que tinha esquecido. Sabe, quando repassamos o caso na outra vez? O que você esqueceu de me
contar?
- Ninguém veio aqui e falou comigo sobre o caso, Harry. Você foi o único. Estou falando sério.
- Eu acredito. Eu estava enganado. Mas o que você esqueceu de me dizer antes? Por que ia me telefonar?
53
Ele fechou os olhos por um instante, mas logo os abriu. Estavam claros e focados.
- Eu contei que Taylor tinha posto o dinheiro no seguro, não
foi?
- É, você me contou isso.
- O que esqueci foi que a seguradora... agora não consigo me lembrar do nome...
- Global Underwriters. Você se lembrou no outro dia.
- Isso, Global Underwriters. Como condição para fechar o contrato, a Global exigiu que quem estava emprestando o dinheiro, o BankLA, escaneasse todas as notas.
- Como assim, escanear as notas?
- Registrar os números de série.
Eu me lembrei do parágrafo que circulara nos recortes de jornal. Aparentemente era verdade. Comecei a fazer as contas de cabeça. Dois milhões divididos por cem.
Quase cheguei ao resultado, mas o número me escapou.
- Isso dá um monte de números.
- Eu sei. O banco deu pra trás... disse que precisaria de quatro pessoas por uma semana, algo assim. Então eles negociaram e chegaram a um acordo. Amostragem. Pegaram
dez números de cada maço de notas.
Eu lembrava, da matéria do Times, que o dinheiro tinha sido enviado em maços de vinte e cinco mil dólares. Aquela conta eu conseguia fazer. Oitenta maços faziam
dois milhões.
- Então eles anotaram oitocentos números. Ainda é muita coisa.
- E, lembro que a lista impressa tinha seis páginas.
- E o que você fez com ela?
- Deixe eu dar mais um gole nesse Black Bush.
Dei a ele. Senti que a garrafinha estava quase vazia. Precisava conseguir o que tinha para me dar e cair fora de lá. Eu estava sendo sugado por seu mundo infeliz
e não estava gostando.
- Vocês liberaram esses números?
- Claro que liberamos a lista. Demos para os federais. E aproveitamos os caras da Roubos e Furtos para passar a lista para todos
54
os bancos do condado. Também mandamos para a Metropolitana de Vegas para que elas chegassem aos cassinos. Assenti com a cabeça, esperando por mais.
- Mas você sabe como isso funciona, Harry. Uma lista como essa só serve para alguma coisa se as pessoas conferirem. Acredite, há um montão de notas de cem dólares
aí fora, e se você usá-las nos lugares certos, as pessoas não vão dar a mínima. Não vão perder tempo em conferir o número numa lista de seis páginas. Não têm tempo
nem vontade.
Era verdade. A maioria das vezes que dinheiro registrado era usado como prova era quando o encontravam com um suspeito de um crime como um assalto a banco. Não
lembrava de ter funcionado ou sequer de ouvir falar em um caso em que uma transação com dinheiro marcado ou registrado tivesse levado até um suspeito.
- Você ia me ligar porque tinha esquecido de me contar isso?
- Não, não só isso. Tem mais. Sobrou alguma coisa nessa sua garrafinha?
Sacudi a garrafa para que ouvisse que estava quase vazia. Dei a ele o que sobrara e então tampei-a outra vez e a guardei no bolso.
- É isso, Law. Até a próxima vez. Termine o que ia me dizer. A língua dele projetou-se do horrível buraco que era sua boca
e lambeu uma gota de uísque que estava no canto. Era patético e eu virei-me como que para conferir a hora na televisão para que ele não precisasse saber que eu havia
visto. Na tela passava uma reportagem sobre finanças. Havia um gráfico com uma linha vermelha descendente ao lado do rosto preocupado e empoado do âncora. Olhei
de volta para Cross e aguardei.
- Bem - começou ele -, quando o caso tinha por volta de, sei lá, dez meses, quer dizer, depois que eu e Jack tínhamos seguido em frente e estávamos trabalhando em
outras coisas, Jack recebeu um telefonema de Westwood sobre os números de série. Isso tudo voltou à minha cabeça no outro dia, depois que você saiu.
Presumi que Cross estava falando sobre um agente do FBI ligando para seu parceiro. Era prática comum no DPLA que os investigadores jamais se referissem a agentes
do FBI desta forma,
55
como se negar a eles seu título meio que os reduzisse um ponto ou dois. As duas organizações rivais nunca morreram de amores uma pela outra. Mas o principal prédio
federal em Los Angeles ficava no Wilshire Boulevard, em Westwood, e ele abrigava todo o aparato federal de segurança. Deixei de lado todos os preconceitos. Eu precisava
ter certeza.
- Um agente do FBI?
- E, um agente. Na verdade, uma mulher.
- Certo. E o que ela contou para vocês?
- Ela só falou com o Jack, e então ele me contou. A agente disse que um dos números de série estava errado e o Jack falou: "Tem certeza? Como assim?" E a agente
disse a ele que a lista havia circulado pelo prédio e que tinha ido parar na mesa dela, que teve tempo para conferir os números em seu computador e encontrou um
problema em um deles.
Ele parou, como que para recuperar o fôlego. Lambeu os lábios outra vez e aquilo me fez lembrar alguma espécie de criatura submarina projetando-se de uma fenda.
- Como eu queria que você tivesse mais nessa garrafinha, Harry.
- Desculpe, acabou. Fica para a próxima. Qual era o problema com o número?
- Bem, pelo que eu me lembro, essa garota disse ao Jack que colecionava números. Sabe o que estou dizendo? Sempre que um memorando chegava na mesa dela com números
de série de notas, ela registrava no computador, num banco de dados. Assim, ela podia cruzar as informações. Era um programa novo em que ela estava trabalhando.
Fazia aquilo havia alguns anos e já tinha muitos números armazenados. Sabe de uma coisa, preciso de água. Minha garganta... estou falando demais.
- vou chamar a Danny.
- Não, não, isso não... faz uma coisa, vai até a pia e bota um POUCO de água nesse negócio que você trouxe e posso beber nele. Assim está bem. Não precisamos incomodar
a Danny. Ela já é incomodada o suficiente.
56
No banheiro, enchi a garrafinha até a metade com água da torneira. Agitei-a e a levei para ele, que bebeu tudo. Depois de um tempo, finalmente continuou a história.
- Ela disse que um dos números na nossa lista estava em outra lista também, e isso era impossível.
- O que você quer dizer? Não estou entendendo.
- Deixe eu ver se me lembro disso direito. Ela disse que uma das notas de cem que estava na nossa lista tinha o mesmo número de série de outra nota de cem, parte
de um pacote isca em um caso de assalto a banco ocorrido seis anos antes do roubo no set de filmagem.
- E onde foi esse assalto?
- Marina del Rey, eu acho. Mas não tenho certeza disso.
- Está bem, mas e então, qual o era problema? Por que a nota de cem do roubo anterior não podia ter voltado a circular e ido parar outra vez em um banco e então
fazer parte dos dois milhões mandados para a filmagem?
- Foi isso o que eu falei, e Jack me disse que era impossível. Disse que a agente contou que o cara que pegou aquela nota primeiro em Marina
del Rey foi apanhado.
Estava carregando o dinheiro usado como isca e foi para uma prisão federal, e a nota ficou retida como prova.
Concordei com a cabeça e pensei naquilo, tentando entender direito.
- Você está dizendo que ela contou que teria sido impossível que a nota de cem na sua lista fizesse parte da remessa para o filme porque, naquela época, aquela nota
de cem estava no depósito de provas, ligada ao assalto a banco de Marina del Rey.
- Exatamente. Ela chegou a conferir a prova para ter certeza de que a nota de cem ainda estava lá. Estava.
Tentei imaginar o que aquilo podia significar, se é que significava alguma coisa.
- O que você e Jack fizeram?
- Bem, não muito. Havia um monte de números, seis páginas. Achamos que um deles estivesse errado. Sabe, talvez o cara que
57
tinha feito a lista tivesse trocado um número, sei lá. Na época, já estávamos trabalhando em outro caso. Jack falou que ia dar uns telefonemas para o banco e para
a Global Underwriters. Mas não sei se ligou. Então, pouco depois disso, entramos naquela merda do bar e todo o resto meio que se apagou... até que eu pensei em Angella
Benton e liguei para você. Sabe, as coisas, agora, estão começando a voltar.
- Entendo. Você se lembra do nome da agente?
- Desculpe, Harry, não me lembro do nome. Talvez nunca tenha sabido. Não falei com ela e acho que o Jack nunca me contou.
Fiquei em silêncio enquanto refletia se aquela era uma pista que valia a pena ser seguida. Pensei no que Kiz Rider dissera sobre estarem trabalhando no caso. Talvez
fosse por esse ângulo. Talvez as pessoas sobre as quais ela me falou fossem agentes do FBI. Enquanto eu pensava nisso, Cross começou a falar outra vez.
- Não tenho certeza, mas pelo que o Jack me falou acho que essa agente, quem quer que seja ela, meio que descobriu aquilo por conta própria. Estava trabalhando em
seu programinha particular. Quase um hobby. Não era no computador oficial.
- Está bem. Você lembra se teve alguma outra notícia dos números? Antes daquela?
- Teve uma, mas não deu em nada. Na verdade, ela surgiu bem cedo.
- O que foi?
- Apareceu em um depósito bancário. Acho que em Phoenix. Minha memória está como um queijo suíço, cheia de buracos.
- Você se lembra de qualquer coisa sobre isso?
- Só que foi o depósito de uma empresa que recebia em dinheiro vivo, como um restaurante. Algum negócio que tornava impossível rastrear mais adiante.
- Mas foi logo depois do roubo?
- Foi, lembro que pulamos sobre essa pista. Jack foi até lá, não deu em nada.
- Quanto tempo depois do roubo, você lembra?
- Talvez umas semanas depois, não tenho certeza.
58
Balancei a cabeça. A memória dele estava voltando, mas ainda não era confiável. Servia para me lembrar que sem o inquérito, a documentação do caso, eu tinha uma
desvantagem enorme.
- Está bem, Law. Obrigado. Se você lembrar ou pensar em mais alguma coisa, peça à Danny para me ligar. Mas mesmo que isso não aconteça, volto para ver você.
- E vai me trazer...
Ele não terminou e nem precisava.
- vou trazer, sim. Tem certeza de que não quer que eu traga mais alguém? Talvez um advogado que pudesse conversar com você sobre...
- Não, Harry. Nada de advogados. Ainda não.
- Quer que eu converse com a Danny?
- Não, Harry, não fale com ela.
- Tem certeza?
- Tenho. Despedi-me com um aceno de cabeça e saí do quarto. Queria
chegar ao meu carro para logo tomar notas sobre a ligação que Jack Dorsey tinha recebido do agente do FBI. Mas quando saí do corredor e entrei na sala, Danielle
Cross estava sentada, esperando por mim. Do sofá, ela me lançava um olhar acusador. Devolvi o olhar para ela.
- Acho que está quase na hora de um programa que ele quer ver na Court TV.
- Pode deixar.
- Certo. Estou indo embora.
- Queria que você nunca voltasse.
- Talvez eu precise.
- Ele está em um equilíbrio delicado... mental e físico. O álcool afeta isso. Leva dias para ele se recuperar.
- Para mim, parece que deixa as coisas melhores para ele.
- Então volte amanhã para dar uma olhada.
Assenti com a cabeça. Ela estava certa. Eu tinha passado meia hora com o cara, não minha vida. Esperei. Sabia que ela estava se preparando para dizer algo.
59
Imagino que ele tenha contado a você que quer morrer e
que eu o mantenho vivo. Pelo dinheiro. Hesitei, mas concordei com a cabeça.
- Ele disse que eu o maltrato. Concordei outra vez.
- Ele diz isso para todo mundo que vem visitar. Todos os tiras.
- Verdade?
- A parte sobre querer morrer? Alguns dias. Em outros, não.
- E sobre a parte de ser maltratado? Ela desviou o olhar.
- É muito frustrante lidar com ele. Ele não está feliz. E descarrega em cima de mim. Uma vez eu descarreguei em cima dele. Desliguei a televisão. Ele começou a
chorar como um bebê.
Ela ergueu os olhos para mim.
- Isso foi tudo o que fiz, mas foi o suficiente. Odeio o que fiz, o que me tornei naquele momento. Tudo isso está acabando comigo.
Tentei ler seus olhos, a posição do queixo e da boca. Suas mãos estavam juntas à frente do corpo, os dedos de uma delas mexendo nos anéis da outra. Um gesto nervoso.
Vi seu queixo começar a tremer e então as lágrimas brotaram.
- O que eu devo fazer?
Balancei a cabeça. Eu não sabia. A única coisa que sabia era que precisava sair dali.
- Não sei, Danny. Não sei o que nenhum de nós deve fazer. Foi tudo o que consegui pensar em dizer. Andei apressado até a
porta da frente e saí. Senti-me um covarde, indo embora e deixando-os sozinhos naquela casa.
Capítulo 7
O peixe morre pela boca. A teoria do caso seguida por Cross e Dorsey quatro anos antes era simples. Eles acreditavam que Angella Benton, por causa de seu trabalho,
sabia em detalhes como os dois milhões seriam levados até a locação da filmagem, e que a sua morte fora provocada por ter, intencionalmente ou por engano, falado
sobre o dinheiro. Seus próprios lábios plantaram a semente do roubo e, conseqüentemente, seu próprio fim. Por ser a ligação interna com os assaltantes, ela precisava
ser eliminada para encobrir a pista deles. Por ter sido assassinada quatro dias antes do roubo, os investigadores acreditavam que o envolvimento dela não tinha sido
intencional. De alguma forma, havia fornecido a informação que levou ao assalto e precisava ser eliminada antes de perceber o que tinha feito. Também precisava ser
eliminada de uma maneira que não levantasse suspeitas sobre o iminente envio de dinheiro. Por isso os aspectos
psicossexuais da cena do crime - as roupas rasgadas e os indícios de masturbação - eram, de certa forma, só fachada.
Além disso, se ela tivesse sido participante voluntária no planejamento do assalto, os investigadores achavam que sua morte só teria ocorrido após o assalto ser
realizado com sucesso.
A teoria pareceu bem sólida quando me foi contada por Lewton Cross em minha primeira visita à sua casa. Provavelmente,
62
seria o caminho que eu teria tomado se me houvessem deixado continuar no caso. Mas, no fim das contas, a teoria não deu em nada. Cross me disse que ele e seu parceiro
fizeram uma investigação de campo completa sobre Angella Benton, mas não encontraram qualquer pista que abrisse uma brecha no caso. Passaram cinco meses completos
nela. Investigaram seus movimentos, hábitos pessoais e rotinas diárias. Estudaram seu cartão de crédito e informações bancárias e telefônicas. Interrogaram mais
de uma vez todos os membros da família, amigos e ligações profissionais. Só em Columbus, eles ficaram oito dias. Dorsey foi até Phoenix por causa de uma única nota
de cem dólares. Passaram tanto tempo na Eidolon Productions que, durante um mês, cederam a eles um escritório na Archway Pictures para fazerem os interrogatórios.
E não conseguiram coisa alguma.
Como costuma acontecer com casos de homicídio, eles reuniram uma grande quantidade de informação sobre a vítima, mas não a informação-chave que levaria à identidade
do assassino. Acabaram descobrindo com quem ela tinha dormido na faculdade, mas não onde passara a última noite de sua vida. Sabiam que sua última refeição havia
sido mexicana - as tortillas de milho com feijões ainda estavam no seu trato digestivo -, mas não em qual dos milhares de estabelecimentos do gênero na cidade fora
servida.
E depois de seis meses no caso, eles não encontraram qualquer ligação entre Angella Benton e o roubo, além da conexão superficial de seu emprego como assistente
de produção na produtora do filme em que o dinheiro seria um dos astros.
Seis meses naquilo e estavam num beco sem saída. O que tinham como prova eram as 46 balas e cartuchos vazios recolhidos depois do tiroteio, o sangue coletado na
van usada na fuga e o sêmen da cena do assassinato. Eram boas provas. Exames de balística e de DNA poderiam ligar um suspeito a um crime sem deixar dúvidas - a menos
que seu advogado fosse Johnnie Cochran. Mas aquela prova era como a cobertura de um bolo; o tipo que liga um suspeito e uma arma já identificados e normalmente sob
custódia. Não ajudava muito a encontrar esse suspeito. Depois de meio ano no caso, eles tinham a cobertura, mas ainda não tinham o bolo.
63
Quando chegaram nesse beco sem saída, era o momento de avaliar a investigação na marca dos seis meses. Nesse ponto, devem ser feitas escolhas muito difíceis. A probabilidade
de solução é pesada contra a necessidade de pôr a dupla de detetives para trabalhar em outros casos e ajudarem a carregar o fardo da Divisão. O supervisor tirou
o status de tempo integral do crime e Dorsey e Cross voltaram ao rodízio na DRH. Tinham liberdade para trabalhar no caso Benton o máximo possível, mas também assumiram
novas tarefas. Como era de se esperar, o inquérito Benton sofreu com isso. Cross logo admitiu isso para mim. Disse que tinha se tornado uma investigação de meio
expediente, com Dorsey fazendo a maior parte do acompanhamento enquanto Cross se concentrava nas novas missões para as quais eram designados.
Então aquilo tudo virou apenas teoria quando a dupla foi baleada no Nat's, em Hollywood. O assassinato de Angella Benton entrou nos arquivos AN. Abertos e Não-solucionados.
E ficou órfão. Nenhum detetive gosta de receber casos de segunda mão, como o de Angella Benton. Ninguém gosta da idéia de abrir uma pasta e ver que seus colegas
estavam errados. Que estavam sendo conduzidos na direção errada, eram incompetentes ou preguiçosos. Além dessa dificuldade, o caso Angella Benton, agora, estava
assombrado. Tiras são uma espécie supersticiosa. O destino dos dois investigadores originais - um morto, o outro em uma cadeira para toda a vida - estava ligado
inextrincavelmente às investigações em que tinham trabalhado, fossem diretamente relacionados a eles ou não. Ninguém, estou dizendo, ninguém ia assumir o caso Benton
agora.
Exceto eu, agora que estava fora do jogo oficial.
E, quatro anos mais tarde, eu tinha de confiar que Cross e Dorsey tivessem feito direito o trabalho de investigação da morte de Angella Benton e de sua ligação com
o roubo. Na verdade, não tinha outra escolha. Como seguir o caminho que os levara a um beco sem saída não parecia a melhor opção, fui ver Taylor. Meu plano era Presumir
que a investigação deles tivesse sido bem-feita, se não impecável, e encará-la de um novo ângulo. Eu estava trabalhando com a crença de que Cross e Dorsey não haviam
encontrado nada
64
que ligasse Angella Benton ao assalto porque nada havia a encontrar. A morte dela tinha sido parte de um plano, um indício falso plantado com muito cuidado dentro
de um esquema para despistar a polícia. Agora eu tinha uma lista com nove nomes, conseguida em meu passeio de cinco quilômetros com Taylor. Todas as pessoas envolvidas
no planejamento da cena do assalto. Todos - segundo ele - que sabiam que o dinheiro estava chegando, quando estava chegando e quem o levaria. Eu ia começar dali.
Mas eu estava em uma sinuca; o que Cross tinha me contado sobre os números de série e como pelo menos um deles estava errado. Ele disse que tinha deixado que Dorsey
fosse atrás daquilo e não sabia o que havia acontecido. Logo depois, Dorsey estava morto e o caso foi enterrado com ele. Mas agora eu estava interessado. Aquela
era uma anomalia que devia ser olhada com cuidado. Ao somar-se ao aviso de Kiz Rider e sua referência indireta a "essas pessoas", senti algo que estava ausente
há muito tempo ferver dentro de mim. Um pequeno impulso para dentro da escuridão que, em uma época, eu conhecia tão bem.
Capítulo 8
Voltei de carro para Hollywood e almocei tarde no Musso's. Um vodca-martíni de Ketel One como aperitivo para começar, seguido por um empadão de frango, acompanhado
de creme de espinafre. Uma boa combinação, mas não o suficiente para me fazer esquecer de Lawton Cross e seu estado. Pedi um segundo martíni para ajudar e tentei
me concentrar em outras coisas.
Não ia ao Musso's desde minha festa de aposentadoria, e sentia falta do lugar. Eu estava de cabeça baixa, lendo e tomando notas, quando ouvi uma voz conhecida no
restaurante. Levantei os olhos e vi a capitão LeValley ser conduzida a uma mesa acompanhada por um homem que não reconheci. Ela era a comandante da Divisão de Hollywood,
que ficava a poucas quadras dali. Três dias depois que deixei meu distintivo numa gaveta da mesa e caí fora, ela me telefonou e pediu que eu reconsiderasse. Quase
me convenceu, mas respondi que não. Pedi que me mandasse meus papéis e ela mandou, mas não apareceu na minha festa de aposentadoria e nós nunca mais nos falamos.
Ela não me viu e sentou de costas para mim em um reservado longe o suficiente para eu não conseguir ouvir a conversa. Saí pelos fundos sem terminar o segundo martíni.
Paguei o estacionamento e entrei no meu carro, um Mercedes-Benz ML55 usado que comprei de um cara que ia se mudar para a Flórida. Para mim, ML55
M
66
significava Muito Luxo: porque 55 mil dólares foi quanto paguei por ele. Era um dos utilitários esportivos mais rápidos que havia. Mas não foi por isso que eu o
comprei. Tampouco pela baixa quilometragem. Foi porque era preto e discreto. Um em cada cinco carros em L.A. é um Mercedes, e desses um em cada cinco é um utilitário
como o meu. Acho que talvez soubesse onde eu iria parar antes mesmo de começar a andar. Oito meses antes de precisar, eu tinha comprado um carro que me serviria
bem como detetive particular. Era rápido, confortável e tinha vidros escuros. Em L.A., se você visse um desses no seu retrovisor, não daria a menor importância.
Demorei para me acostumar com o Mercedes, em termos de conforto, operação de rotina e manutenção. Na verdade, fiquei sem gasolina no meio da rua duas vezes. Era
uma dessas coisinhas que acontecem quando se deixa o distintivo. Durante muitos anos, antes de minha aposentadoria, fui um detetive classe três, um cargo de supervisão
que vinha acompanhado de um carro que eu podia levar para casa. Era um Ford Crown Victoria, o modelo policial de interceptação que parecia um tanque. Tinha assentos
laváveis de vinil, suspensão dura e um tanque de gasolina aumentado. Nunca fiquei sem gasolina no trabalho. E o carro era sempre reabastecido no distrito pelos caras
da garagem. Como cidadão, tive de reaprender a olhar para o ponteiro de combustível. Ou ia ficar a pé na estrada de novo.
Peguei meu celular no console e o liguei. Não precisava muito de um celular, mas mantive o que usava no trabalho. Não sei, talvez tenha pensado que alguém da divisão
iria ligar para pedir meu conselho em um caso, ou algo assim. Durante quatro meses eu o mantive carregado e ligado todos os dias. Ninguém telefonou. Depois da segunda
vez em que parei sem gasolina, eu o liguei no carregador que ficava no console e o deixei ali para a próxima vez que precisasse de ajuda na estrada.
Agora eu precisava de ajuda, mas não do tipo que precisamos na estrada. Liguei para o serviço de auxílio à lista e peguei o número do FBI em Los Angeles. Liguei
e pedi para falar com o agente supervisor da Unidade de Roubo a Bancos. Achei que a agente que contactara Dorsey talvez trabalhasse na unidade que lidava com
67
assalto a bancos. Era a unidade que, com mais freqüência, lidava com números de série de dinheiro.
Minha ligação foi transferida e atendida por alguém que disse apenas:
- Nunez.
- Agente Nunez?
- Sim, em que posso ajudar?
Eu sabia que lidar com um agente supervisor do FBI não era o mesmo que lidar com a secretária de um superprodutor de Hollywood. Tinha de ser o mais direto possível
com Nunez.
- Meu nome é Harry Bosch e acabo de me aposentar do DPLA depois de 30 anos e eu...
- Que bom para você - disse rudemente. - Em que posso ajudar?
- Bem, isso é o que estou tentando contar para você. Há uns quatro anos eu estava trabalhando em um caso de homicídio ligado a um grande roubo de dinheiro que envolvia
notas com números registrados.
- Que caso?
- Bem, provavelmente você não vai reconhecer o caso pelo nome, mas foi o assassinato de Angella Benton. O crime antecedeu o roubo de dois milhões de dólares, que
aconteceu durante uma filmagem de cinema. Oitocentas das notas de cem dólares foram registradas.
- Eu me lembro, mas nós não trabalhamos nisso. Não tínhamos na...
- Eu sei. Como já disse, eu estava no caso.
- Então continue, o que posso fazer por você?
- Depois de meses na investigação, uma agente federal entrou em contato com o DPLA para relatar uma anomalia nos números registrados. Ela havia recebido a lista
dos números de série porque nós a enviamos para todos os lugares.
- Uma anomalia?
- Uma anomalia é um desvio, algo que não...
- Eu sei o que a palavra significa. De que anomalia você está falando?
68
69
- Desculpe. Essa agente ligou e disse que um dos nossos números estava com erro de impressão ou que algum dos dígitos devia estar trocado, algo assim. Mas não é
por isso que eu estou ligando. Ela falou que tinha um programa de computador que fazia o cruzamento de números de série de vários casos desse tipo. Algo que ela
mesma havia desenvolvido. Será que isso não diz nada a você? Não o caso, mas a agente. Uma agente que tinha esse programa.
- Por quê?
- Bem, porque não sei onde botei o nome dela. Na verdade, nunca soube porque ela falou com outro dos investigadores no caso. Mas, se eu pudesse, gostaria de falar
com ela.
- Falar com ela sobre o quê?
Eu sabia que iria chegar àquele ponto, e era o meu ponto fraco. Eu não tinha um cargo ou qualquer autoridade. Ou você tinha um distintivo que abria todas as portas,
ou não. Eu não tinha.
- Alguns casos teimam em não morrer, agente Nunez. Eu ainda estou trabalhando nesse, mais ninguém, então resolvi arriscar. Você sabe como é.
- Na verdade, não. Não estou aposentado.
Um verdadeiro caxias. Ficou em silêncio depois daquilo, e comecei a sentir raiva daquele homem sem rosto que estava, provavelmente, tentando equilibrar um monte
de casos com falta de pessoal e de fundos. L.A. era a capital mundial dos assaltos a banco. Eram, em média, três por dia, e o FBI tinha de investigar todos eles.
- Olhe, cara - falei. - Não quero desperdiçar seu tempo. Ou você pode me ajudar, ou não. Ou sabe de quem eu estou falando, ou não sabe.
- É, eu sei de quem você está falando.
Mas então ele ficou em silêncio. Tentei um último ângulo. Havia evitado esse porque não tinha certeza de que queria que certos círculos soubessem o que eu estava
fazendo. Mas, de qualquer jeito, isso já não fazia sentido depois da visita de Kiz Rider.
- Olhe, você quer um nome, alguém com quem possa checar minha identidade? Ligue para os detetives de Hollywood e pergunte à tenente. O nome dela é Billets e pode
falar por mim. Mas não
sabe de nada sobre isso. Ela acha que eu estou balançando numa
rede.
-- Está bem, vou fazer isso. Por que não me liga depois? Me dê
dez minutos.
- Está bem. Eu ligo.
Desliguei o telefone e vi as horas no meu relógio. Eram quase três. Liguei o Mercedes, peguei a Sunset e fui para o Leste. Liguei o rádio, mas não gostei do fusion
que estava tocando. Desliguei-o outra vez. Na marca dos dez minutos, encostei no meio-fio em frente ao Lar de Idosos Splendid Age. Peguei o telefone para ligar para
o Nunez quando ele tocou em minha mão. Achei que o Nunez devia ter um identificador de chamadas em sua linha e pegara o número. Mas então lembrei-me de que tinha
sido transferido para o ramal dele. Não acho que uma identificação possa ser feita numa ligação para ramal.
- Harry Bosch.
- Harry? E o Jerry.
Jerry Edgar. Parecia uma semana de volta aos velhos tempos. Primeiro Kiz Rider e agora o Jerry Edgar.
- Jed! Tudo bem?
- Tudo bem, cara. Como está a vida de aposentado?
- Descansando muito.
- Você não está falando como se estivesse na praia, Harry. Ele estava certo. O Splendid Age ficava a apenas alguns
metros da auto-estrada de Hollywood e o ruído dos motores estava sempre presente. Quentin McKinzie me disse que, no Splendid Age, eles acomodam os residentes com
problemas de audição nos quartos da ala oeste porque fica mais perto do barulho.
- Não faço o gênero praia. O que foi, Jed? Não me diga que oito meses depois que eu pulei fora você está querendo o meu conselho em alguma coisa?
- Não, nada disso. Só recebi uma ligação de alguém que estava checando você.
Fiquei imediatamente embaraçado. Meu orgulho me fez acreditar que Edgar precisava de mim em algum caso.
- Ah, foi o agente Nunez, do FBI?
70
71
- Foi, mas não disse do que se tratava. Você está começando uma nova carreira, ou algo assim, Harry?
- Estou pensando nisso.
- Você conseguiu a licença de particular?
- Já, há uns seis meses, por via das dúvidas. Está guardada em alguma gaveta em algum lugar. O que você disse ao Nunez? Espero que tenha dito que sou um homem de
muita coragem e alto padrão moral.
- Claro que não. Dei todo o serviço. Disse que você só era confiável a uma distância segura.
Pude ouvir um sorriso na voz dele.
- Obrigado, cara. Você é um amigão.
- Só achei que você devia saber. Quer me dizer o que está acontecendo?
Fiquei em silêncio por um instante enquanto refletia sobre aquilo. Não queria contar a Edgar o que estava fazendo. Não que não confiasse nele. Eu confiava. Mas minha
regra era trabalhar sempre acreditando que quanto menos pessoas conhecessem o seu negócio, melhor.
- Agora não dá, Jed. Estou atrasado para um compromisso e tenho que ir andando. Mas vamos combinar assim... A gente almoça um dia desses. Aí eu conto tudo sobre
a minha excitante vida de aposentado.
Eu meio que dei uma risada ao dizer a última frase e achei que tinha funcionado. Ele concordou com o almoço mas disse que ia ligar de volta para marcar. Eu sabia,
por experiência própria, que era difícil marcar um almoço com antecedência quando se trabalhava com homicídios. No dia em que ele tivesse o almoço livre, ia me
dar uma ligada de manhã. Era assim que funcionava. Ficamos de manter contato e desligamos. Foi bom saber que ele não carregava o mesmo ressentimento de Kiz Rider
em relação à minha partida abrupta de nossa parceria e do departamento.
Liguei de volta para o FBI e me transferiram para Nunez.
- Você conseguiu dar aquele telefonema?
- Consegui, mas ela não estava lá. Falei com seu antigo parceiro.
- Rider?
- Não, o nome dele era Edgar.
- Ah. O Jerry. Como ele está?
- Não sei. Não perguntei. Tenho certeza de que você perguntou quando ele te ligou.
- Como? Ele tinha acabado de me pegar.
- Pode parar com essa merda, Bosch. O Edgar disse que se sentia na obrigação de ligar para você para contar que alguém estava te checando. Eu falei que estava tudo
bem. Perguntei a ele o seu número para eu saber que era o Harry Bosch de verdade. Ele me deu e quando tentei ligar, há alguns minutos, estava ocupado. Achei que
você estava conversando com Edgar, então não gostei desse seu teatrinho de se fazer de bobo.
Meu embaraço por ter sido encurralado transformou-se em raiva. Talvez fosse o aperitivo no meu estômago ou a lembrança incômoda de que eu, agora, estava de fora,
mas tinha ficado cansado de lidar com aquele sujeito.
- Cara, você é um grande investigador - respondi. - Uma mente dedutiva brilhante. Diga, você usa esse talento nos seus casos ou economiza para sacanear gente que
está só tentando fazer alguma coisa nesse mundo?
- Preciso tomar cuidado com as pessoas para quem dou informação. Você deve entender isso.
- Eu entendo. E também entendo por que a lei funciona tão bem quanto as auto-estradas dessa cidade.
- Ei, Bosch, você não precisa ir embora com raiva. Só vá embora logo.
Frustrado, sacudi a cabeça. Não sabia se tinha estragado as coisas ou se, desde o princípio, eu não iria mesmo conseguir coisa alguma com ele.
- Então esse é o seu jogo, não é? Você fala do meu teatro mas está representando o tempo todo. Nunca pensou em me dar o nome, pensou?
Ele não respondeu.
- E só um nome Nunez. Não vai doer.
72
Ainda silêncio.
- Bem, vou dizer uma coisa. Você tem meu nome e meu telefone. E acho que sabe de que agente estou falando. Então fale com ela e deixe que ela decida. Dê meu nome
e meu telefone. Não estou nem aí para o que você pensa de mim, Nunez. Você deve isso à sua colega. Do mesmo jeito que o Edgar. Ele tinha a obrigação. E você também.
Era isso. A minha jogada. Esperei em silêncio, dessa vez decidido a não falar até que Nunez o fizesse.
- Olha, Bosch, eu teria dito a ela que você andou ligando. Faria isso antes mesmo de ter falado com o Edgar. Mas minha obrigação só vai até aí. A agente sobre a
qual você perguntou não está mais aqui.
- O que você quer dizer com não está aí? Onde ela foi? Nunez ficou em silêncio. Eu me endireitei no assento, meu
cotovelo esbarrou no volante e tocou a buzina. Havia algo em minha memória, algo sobre uma agente no noticiário, mas eu não conseguia lembrar.
- Nunez, ela morreu?
- Bosch, não gosto disso. Isso de falar no telefone com alguém que eu não conheço. Por que você não vem aqui e quem sabe a gente conversa.
- Quem sabe?
- Não se preocupe, a gente vai conversar. Quando você pode vir?
O relógio do painel dizia que eram 3:05h. Olhei para a porta da frente da casa de repouso.
- Às quatro.
- vou estar aqui.
Fechei o telefone e fiquei ali parado por um bom tempo, forçando a memória. Estava bem ali, para ser lembrado.
Abri outra vez o telefone. Não estava com minha agenda, e números que eu sabia de cor tinham se apagado nos últimos oito meses como se tivessem sido escritos na
areia da praia. Liguei para o auxílio à lista e peguei o número da redação do Times. Então pedi
73
para falar com Keisha Russell. Ela se lembrava de mim como se eu nunca tivesse saído do departamento. Tínhamos um bom relacionamento. Eu a abasteci com algumas
exclusivas ao longo dos anos e ela devolvia o favor me ajudando com pesquisa de dados e mantendo alguma história nos jornais quando conseguia. O caso Angella Benton
foi um dos que ela não conseguiu.
- Harry Bosch - atendeu ela. - Tudo bem?
Percebi que ela tinha perdido quase completamente o sotaque jamaicano. Senti falta dele. Eu me perguntei se era intencional ou apenas o resultado de dez anos vivendo
no chamado caldeirão cultural.
- Tudo certo. Você ainda está na ativa?
- Claro. Há coisas que nunca mudam.
Uma vez ela me contou que a editoria de polícia era lugar para iniciantes no jornalismo, mas que ela nunca quis mudar. Achava que cobrir política, eleições, ou quase
qualquer outro acontecimento seria um tédio absoluto em comparação com as reportagens sobre vida e morte, crime e suas conseqüências. Ela era boa, ia fundo e apurava
bem. Tanto que foi convidada para minha festa de aposentadoria. Era uma raridade alguém de fora, de qualquer tipo, principalmente um jornalista, receber um convite
desses.
Ao contrário de você, Harry Bosch. Você... Achei que você ncaria para sempre na Divisão de Hollywood. Agora, quase um ano epois, ainda não consigo acreditar. Sabe,
há alguns meses estava azendo uma matéria e, por hábito, liguei para seu número. Uma Voz estranha atendeu e eu desliguei.
- Quem era?
Perkins. Foi transferido da Roubo de Automóveis, tu não estava atualizado. Não sabia quem tinha ocupado
minha vaga. Perkins era bom, mas não o suficiente. Mas
eu não falei isso para Russell.
- Então, o que está pegando?
Às vezes eu ainda voltava ao sotaque e à gíria. Era o jeito que tinha para passar direto ao assunto.
Você parece ocupada.
74
-Um pouco.
- Então não vou incomodar.
- Não, não, não. Não está incomodando. O que posso fazer por você, Harry? Você não está trabalhando em um caso, está? Virou detetive particular?
- Nada disso. Estava só curioso sobre uma coisa. Só isso. Posso esperar. Depois vejo isso com você, Keisha.
- Espere, Harry!
- Tem certeza?
- Nunca estou ocupada demais para um velho amigo, sabia? Você está curioso sobre o quê?
- Estava pensando numa coisa... Lembra há um tempo, quando uma agente do FBI desapareceu? Acho que foi em Valley. A última vez que foi vista estava voltando para
casa de carro...
- Martha Gessler.
O nome trouxe tudo de volta. Agora eu lembrava.
- Isso mesmo. O que aconteceu com ela, você sabe?
- Pelo que eu sei, ainda é considerada desaparecida em ação, provavelmente está morta.
- Não houve alguma coisa em relação a ela recentemente? Quer dizer, alguma notícia?
- Não, porque teria sido escrita por mim e eu não escrevo sobre ela há dois anos, no mínimo.
- Dois anos? Foi quando aconteceu?
- Não, quase três. Acho que fiz uma reportagem do tipo umano-depois. Recuperei o caso. Foi a última vez em que escrevi sobre ela. Mas obrigada pela lembrança. Talvez
esteja na hora de dar mais uma mexida nisso.
- Ei, se for fazer isso, espere alguns dias, está bem?
- Então você está trabalhando em alguma coisa, Harry.
- Mais ou menos. Não sei se tem relação com Martha Gessler. Mas me dê até a semana que vem, está bem?
- Sem problema, se você vier aqui e conversar comigo abertamente.
75
- Certo. Você me liga. Enquanto isso, você poderia conseguir o dipping sobre ela para mim? Queria ler o que você escreveu na época.
Sabia que ainda chamavam aquilo de dipping, apesar de tudo estar no computador, agora, e recortes de jornal serem coisa do passado.
- Claro, faço isso para você. Tem um fax ou e-mail? Eu não tinha.
- Talvez você possa me enviar. Por correio. Eu a ouvi dar uma risada.
- Harry, desse jeito, você não vai se dar bem como um detetive particular moderno. Aposto que a única coisa que você tem é um sobretudo.
- Eu tenho um celular.
- E um começo.
Sorri e dei a ela meu endereço. Ela disse que enviaria as matérias naquela mesma tarde. Pediu o número do meu celular para me ligar na semana seguinte, e eu o dei
a ela, também.
Então agradeci e desliguei o telefone. Fiquei ali sentado por um instante, refletindo. Na época, fiquei interessado pelo caso de Martha Gessler. Não a conhecia,
mas minha ex-mulher conhecia. Tinham trabalhado juntas na unidade de roubo a bancos do FBI muitos anos antes. O desaparecimento dela fora notícia por muitos dias,
então as matérias tornaram-se mais esporádicas e logo acabaram por completo. Eu tinha me esquecido dela, até agora.
Senti uma queimação no peito e sabia que não era culpa do martíni do meio-dia. Senti como se estivesse chegando a alguma coisa. Como quando uma criança não consegue
ver algo no escuro, mas, de qualquer jeito, tem certeza de que está lá.
Capítulo 9
Tirei o estojo que continha o instrumento do porta-malas do Mercedes e atravessei com ele a calçada até as portas duplas da casa de repouso. Acenei com a cabeça
para a mulher atrás do balcão e passei por ela. Ela não me impediu. Já me conhecia. Desci o corredor da direita e abri a porta da sala de música. Havia um piano
e um órgão na entrada e um pequeno grupo de cadeiras alinhadas para assistir às apresentações, mas sabia que isso não era freqüente. Quentin McKinzie estava sentado
na primeira fila. Estava encurvado, com a boca aberta e os olhos fechados. Toquei seu ombro com delicadeza e imediatamente seu rosto e seus olhos despertaram.
- Desculpe, estou atrasado, Sugar Ray.
Acho que ele gostava que eu o chamasse por seu nome artístico. Era conhecido profissionalmente como Sugar Ray McK porque, quando tocava, ele se balançava e se esquivava
no palco como
o Sugar Ray Robinson nos ringues.
Puxei uma cadeira da primeira fila até ficar de frente para ele. Sentei e pousei o estojo no chão. Destravei os fechos e o abri, revelando o instrumento brilhante
aconchegado no forro de veludo castanho.
- Hoje não posso demorar - falei. - Tenho um compromisso às quatro, em Westwood.
78
- Aposentados não têm compromissos - rebateu Sugar Ray. A voz soava como se ele tivesse crescido na mesma rua que Louis Armstrong. - Aposentados têm todo o tempo
do mundo.
- Bem, é que eu estou fazendo uma coisa e, talvez... bem, vou tentar manter nosso horário, mas as próximas semanas podem ser difíceis. Se eu não puder vir à próxima
aula, telefono para a recepção e deixo um recado.
Estávamos nos encontrando duas tardes por semanas havia seis meses. A primeira vez que vi Sugar Ray tocar foi num naviohospital no Mar da China. Ele fazia parte
da entourage de Bob Hope que foi divertir os feridos no Natal de 1969. Muitos anos depois, na verdade, em um dos meus últimos casos como tira, eu estava investigando
um homicídio e esbarrei em um saxofone roubado com o nome dele gravado do lado de dentro da embocadura. Eu o localizei no Splendid Age e o devolvi. Mas ele já estava
velho demais para tocar. Os pulmões não tinham mais força.
Ainda assim, eu fizera a coisa certa. Foi como devolver uma criança perdida aos pais. Ele me convidou para a ceia de Natal. Mantivemos contato e, depois que me aposentei,
eu o procurei com um plano que evitaria que seu instrumento ficasse juntando poeira.
Sugar Ray era um bom professor porque não sabia ensinar. Ele me contava histórias e me ensinou a amar o instrumento, a tirar dele os sons da vida. Cada nota que
eu tocasse podia trazer uma recordação e uma história. Eu sabia que nunca tocaria sax bem, mas vinha duas vezes por semana para passar uma hora com ele e escutar
suas histórias sobre jazz e sentir a paixão que ele ainda tinha por sua arte imortal. Isso, de alguma forma, entrava e saía de mim com minha respiração quando eu
levava o instrumento à boca.
Tirei o saxofone do estojo e o levei à posição para tocar. A aula sempre começava com uma tentativa minha de interpretar "Lullaby", uma música de George Cables
que ouvi pela primeira vez num disco de Frank Morgan. Era uma balada lenta e fácil de tocar, para mim. Mas também era uma composição linda. Era tris' te, firme e
para cima, tudo ao mesmo tempo. Não tinha nem um minuto e meio de duração, mas para mim dizia tudo o que era
79
preciso ser dito sobre estar sozinho no mundo. As vezes eu acreditava que seria suficiente se aprendesse a tocar bem essa música. Não precisava mais nada.
Naquele dia ela parecia uma marcha fúnebre. Enquanto tocava, não parei de pensar em Martha Gessler. Lembrei de sua foto no jornal e no noticiário noturno da TV.
Lembrei de minha ex-mulher contando sobre a presença de apenas duas agentes mulheres na unidade de roubo de bancos na época. Elas tiveram de agüentar muitos abusos
dos homens até que, quando trabalhavam juntas, prenderam um ladrão conhecido como o Bandido. Dançarino, porque sempre dava uns passinhos quando deixava o banco com
o saque.
Enquanto eu tocava, Sugar Ray observava meus dedos trabalharem e demonstrava aprovação com a cabeça. Na metade da canção ele fechou os olhos e ficou só escutando,
balançando a cabeça no ritmo. Era um grande elogio. Quando terminei, ele abriu os olhos e sorriu.
- Você está chegando lá - exclamou. Balancei a cabeça.
- Só precisa tirar a fumaça dos pulmões. Aumentar o fôlego. Concordei outra vez com a cabeça. Havia mais de um ano que
não fumava um cigarro, mas passara a maior parte de minha vida consumindo dois maços por dia, e o estrago já estava feito. As vezes, encher o instrumento de ar eqüivalia
a empurrar um bloco de pedra morro acima.
Conversamos e eu toquei por mais uns quinze minutos, fazendo uma tentativa sem esperança com "Soul Eyes", o standard de Coltrane, e então uma ponte para a música
que era a marca de Sugar Ray, "The Sweet Spot". Era um rife complicado, mas eu estava trabalhando nele em casa porque queria agradar ao velho.
Ao final da aula abreviada, agradeci a Sugar Ray e perguntei se ele precisava de alguma coisa.
- Só de música - disse ele.
Ele sempre respondia daquele jeito quando eu perguntava. Guardei o instrumento no estojo - insistia sempre que ficasse comigo para que pudesse praticar - e deixei
Sugar Ray ali na sala de música.
80
81
Quando eu estava no corredor, me dirigindo à entrada principal, uma mulher chamada Melissa Royal vinha em minha direção. Sorri.
- Melissa.
- Oi, Harry. Como foi a aula?
Ela estava ali para ver a mãe, uma vítima do Mal de Alzheimer que não a reconhecia mais. Nos conhecemos na ceia de Natal e nos esbarramos algumas vezes durante nossas
visitas separadas. Ela começou a regular suas visitas à mãe com minhas aulas das três horas da tarde. Não tinha me contado isso, mas eu sabia. Tomamos café algumas
vezes e então a convidei para ouvir um pouco de jazz no Catalina. Ela disse que tinha se divertido, mas eu sabia que ela não entendia nem ligava muito para música.
Estava apenas solitária e à procura de alguém. Tudo bem. Somos todos assim.
A coisa estava nesse pé. Um esperando que o outro fizesse o próximo movimento. Sua chegada justo quando sabia que eu estaria ali não deixava de ser um tipo de ação.
Mas vê-la naquele momento foi um problema. Eu tinha de ir andando se quisesse chegar na hora em Westwood.
- Estou chegando lá - respondi. - Pelo menos é o que o meu professor diz.
Ela sorriu.
- Legal. Um dia você vai ter de tocar para nós, aqui.
- Ainda falta muito para esse dia chegar, pode acreditar em mim.
Ela balançou a cabeça de um jeito jovial e esperou. Era a mi' nha vez. Tinha quarenta e poucos anos, os cabelos com mechas mais claras que, ela me contou, fizera
no salão de beleza. Mas o negócio dela era o sorriso. Tomava todo o seu rosto e era contagiante. Ficar com ela significaria trabalhar dia e noite para manter aquele
sorriso. Eu não sabia se conseguiria fazer isso. - Como está a sua mãe?
- vou descobrir agora. Você está indo embora? Pensei em dar uma olhada nela e, depois, a gente tomar um café na cantina.
Estampei uma expressão de dor no rosto e conferi meu relógio-
- Não posso. Preciso estar em Westwood às quatro.
Ela balançou a cabeça como se compreendesse. Mas eu percebi em seus olhos que estava tomando aquilo como uma rejeição.
- Não fique preso aqui por mim. Você, provavelmente, já vai chegar atrasado.
- é, eu preciso ir.
Mas não fui. Fiquei ali olhando para ela.
- O quê? - perguntou ela, afinal.
- Não sei. Estou meio que envolvido nesse caso agora, mas estava tentando pensar em quando a gente poderia se encontrar.
A suspeita penetrou em seus olhos e ela fez um gesto na direção do estojo do saxofone em minhas
mãos.
- Você me falou que estava aposentado.
- Estou. Esse é um trabalho extra. Como um bico. E aonde tenho que ir agora, falar com um investigador no
FBI. •
- Está bem. Tome cuidado.
- Pode deixar. Então a gente pode se encontrar uma noite, semana que vem, algo assim?
- Claro, Harry. Eu ia adorar.
- Legal. Eu ia gostar, Melissa.
Acenei com a cabeça. Então ela fez um movimento em minha direção e ficou na ponta dos pés. Pôs uma das mãos no meu ombro e me deu um beijo no rosto. Então seguiu
pelo corredor. Eu me virei e a observei enquanto se afastava.
Saí daquele lugar me perguntando o que estava fazendo, hstava Cimentando esperanças de algo que, eu sabia lá no fundo, jamais Poderia dar a ela. Era um erro nascido
de boas intenções, mas ia acabar magoando-a. Quando entrei no Mercedes, disse a mim
mesmo que tinha de acabar com aquilo antes que começasse. Na próxima vez que
a visse, teria de dizer a ela que eu não era o homem Pelo qual estava procurando. Eu não ia
conseguir manter aquele Sorriso em seu rosto.
Capítulo 10
Eram 4h15 quando cheguei ao edifício federal, em Westwood. Enquanto cruzava o estacionamento na direção da entrada de segurança, o celular tocou. Era Keisha Russell.
- Ei, Harry Bosch. Só pra te dizer que imprimi tudo e botei no correio. Mas eu estava enganada sobre uma coisa.
- O que foi?
- Houve uma continuação do caso. Saiu há alguns meses. Eu estava de férias. Você fica por algum tempo aqui e eles te dão quatro semanas de férias remuneradas. Eu
tirei tudo de uma vez e fui para Londres. Quando eu estava fora, o desaparecimento da Martha Gessler fez três anos. As pessoas estavam querendo se meter na minha
área a torto e a direito, sabia? David Ferrei fez a atualização. Mas não havia nada novo. Ela ainda está sumida.
- Sumida? Isso sugere que você, ou o FBI, acham que ela está viva. Antes você falou que devia estar morta.
- Só uma expressão, cara. Não acho que ninguém esteja ansioso ou preocupado por causa dela, se é que você me entende.
- Sei. Botou essa matéria entre as que você mandou?
- Mandei tudo. E lembre de quem mandou isso pra você. Ferrell é um cara legal, mas não quero ver você ligando pra ele se descobrir alguma coisa grande.
- Nunca ia acontecer. Keisha
84
- Sei que você está fazendo alguma coisa. Já fiz meu dever de casa sobre você.
Isso me fez dar uma parada na metade da praça em frente do prédio. Se tivesse ligado para o FBI e falado com Nunez, o agente não ia estar muito satisfeito por eu
ter envolvido uma repórter enxerida.
- O que você quer dizer com isso? - perguntei com calma. O que você fez?
- Fiz mais que pesquisar matérias antigas. Liguei para Sacramento. Para a Comissão Estadual de Registros. Descobri que você requisitou e conseguiu uma licença de
investigador particular.
- E daí? Todo tira que se aposenta faz isso. Faz parte do processo de deixar o distintivo. Você pensa, Ah, bem, eu vou arranjar uma carteira de detetive particular
e continuar a pegar bandidos. A minha está numa gaveta em casa, Keisha. Não estou no negócio, nem trabalhando para ninguém.
- Está bem, Harry, está bem.
- Obrigado pelas matérias. Eu preciso ir.
- Tchau, Harry.
Fechei o celular e sorri. Gostava de provocá-la. Dez anos cobrindo o trabalho de tiras e não parecia mais cínica do que no dia em que a conheci. Isso era inacreditável
para uma jornalista, ainda mais uma jornalista negra.
Olhei para o prédio. Era um monolito de concreto que, do ângulo que eu estava, a uns dez metros da entrada, eclipsava o sol. Caminhei até uma fileira de bancos à
direita da entrada e me sentei. Conferi o relógio e vi que estava muito atrasado para meu compromisso com Nunez. O problema é que eu não sabia onde estava me metendo
e aquilo me fazia relutar em cruzar as portas. Os federais sempre tinham um jeito de botar as pessoas em seu devido lugar. Deixavam claro que aquele era o mundo
deles, e você, apenas um visitante convidado. Eu achava que, agora que não tinha um distintivo, eu seria tratado como um visitante indesejado.
Abri outra vez o celular e liguei para o número geral do Parker Center, um dos poucos telefones de que eu ainda lembrava. Pedi
85
para falar com Kiz Rider no gabinete do chefe e fui transferido. Ela atendeu imediatamente.
- Kiz, sou eu, Harry.
- Oi, Harry.
Tentei ler algo no seu tom de voz, mas a resposta não tinha qualquer inflexão. Não pude perceber o quanto ainda restava da raiva e da animosidade daquela manhã.
- Como você está? Se sentindo... ahn, melhor?
- Você pegou o recado, Harry?
- Recado? Não. O que era?
- Liguei para sua casa há pouco. Pedi desculpas. Não devia ter deixado sentimentos pessoais se misturarem com a razão que me fez ir até lá. Desculpe.
- Tudo bem, eu também peço desculpas.
- Sério? Por quê?
- Não sei. Acho que pela maneira que eu saí. Você e Edgar não mereciam aquilo. Especialmente você. Devia ter conversado sobre o assunto com vocês. É isso o que
os parceiros costumam fazer. Acho que, naquela hora, não fui um parceiro muito bom.
- Não se preocupe com isso. Foi o que eu disse no recado. Águas passadas. Vamos só ser amigos, agora.
- Eu gostaria, mas... Esperei que ela pegasse a deixa.
- Mas o quê, Harry?
- Bem, não sei se você vai querer muito ficar minha amiga depois disso porque vou fazer uma pergunta de que provavelmente você não vai gostar.
Ela suspirou tão alto no telefone que eu tive de afastá-lo do ouvido.
- Harry, assim você me mata. O que é?
- Estou sentado em frente ao edifício federal, em Westwood. Devo entrar lá para ver um sujeito chamado Nunez. Um cara do FBI. E alguma coisa parece estranha nisso
tudo. Então eu me perguntei sobre as tais pessoas sobre as quais você me avisou, que
estavam trabalhando no caso da Angella Benton. Seria um cara
86
chamado Nunez? Isso teria alguma conexão com Martha Gessler, a agente que desapareceu há alguns anos?
Houve um longo silêncio ao telefone. Longo demais.
- Kiz?
- Estou aqui. Olhe, Harry, é como eu disse na sua casa. Não posso falar sobre o caso. Tudo o que posso contar é o que eu já disse. O caso está aberto e sendo trabalhado,
e você devia ficar longe dele.
Agora era a minha vez de não responder. Ela parecia uma completa estranha. Menos de um ano antes eu teria ido para a guerra ao seu lado e confiara nela para cobrir
minhas costas enquanto eu cobria as dela. Agora não tinha certeza de poder confiar nela nem para me dizer se fazia sol, a não ser que, antes, ela tivesse conversado
com o sexto andar.
- Harry, você está aí?
- Estou aqui, sim. Estou só meio que sem fala, Kiz. Pensei que, se havia alguém no departamento que sempre jogaria limpo comigo, seria você. Só isso.
- Olhe, Harry, você já fez alguma coisa ilegal nesse seu bico?
- Não, mas obrigado por perguntar.
- Então você não tem nada com que se preocupar em relação ao Nunez. Vá lá e veja o que ele quer. Não sei nada sobre Martha Gessler. E isso é tudo o que posso contar
a você.
- Está bem, Kiz. Obrigado - respondi, modulando minha voz em um tom inexpressivo. - Você se cuide aí no sexto andar. Depois a gente conversa.
Antes que ela pudesse dizer uma última palavra, fechei o telefone. Levantei do banco e me dirigi para a entrada do prédio. Lá dentro, tive de passar por um detector
de metais, tirar os sapatos e afastar bem os braços para uma revista com um detector portátil. Mal pude entender o que disse o homem com o instrumento quan' do
ele me mandou levantar os braços. Parecia mais com um terrorista que eu, mas não reclamei. Você tem de escolher bem suas batalhas. Finalmente, entrei no elevador
e fui até o décimo segun' do andar, que, na verdade, era o décimo terceiro, já que o elevador não contava o saguão. Entrei numa sala de espera onde havia uma
87
grande janela de vidro, provavelmente à prova de balas, separando a área pública do santuário interno do FBI. Disse meu nome e quem eu queria ver num microfone,
e a mulher do outro lado me mandou sentar.
Em vez disso, fui até a janela e olhei para o cemitério dos veteranos lá embaixo, do outro lado do Wilshire Boulevard. Lembrei que, mais de doze anos antes, estava
naquela mesma posição quando conheci a mulher que, mais tarde, se tornaria minha esposa, exesposa e grande paixão.
Voltei-me da janela e sentei no sofá de plástico. Havia, sobre uma mesinha de café antiga, uma revista com a foto de Brenda Barstow na capa. Ao pé da foto, a legenda:
"Brenda, a queridinha dos Estados Unidos." Ia pegar a revista quando a porta dos escritórios internos se abriu, e dela saiu um homem de camisa branca e gravata.
- Sr. Bosch?
Levantei e fiz um aceno de cabeça. Ele estendeu a mão direita enquanto, com a esquerda, evitava que a porta interna fechasse e
se trancasse.
- Ken Nunez, obrigado por vir.
O aperto de mão foi rápido, então Nunez virou-se, entrou, e segui atrás dele. Não falou enquanto andava. Não era como eu esperava. Ao telefone soava como um veterano
cansado que já tinha visto de tudo duas vezes. Mas era jovem, 31, 32 anos. E, na verdade, não caminhava pelo corredor. Ele corria. Era um jovem faz-tudo, ainda tentando
provar algo para si mesmo e para os outros. Não sei bem quem -- um agente jovem ou velho -- eu teria preferido.
Ele abriu uma porta à esquerda e afastou-se para que eu entrasse. Quando percebi que a porta se abria para fora e que tinha um olho-mágico, vi que estava entrando
numa sala de interrogatório. Soube que não ia ser um encontro social educado. Parecia que eles iam me ferrar. No estilo federal.
Capítulo 11
Ao passar pela porta, vi uma mesa quadrada no meio da sala de interrogatório. Um homem vestindo camisa preta e jeans estava sentado à mesa, de costas para mim. Tinha
cabelos curtos, cortados bem rentes na nuca. Quando entrei, olhei por sobre seus ombros muito musculosos e vi que ele estava lendo uma pasta de investigação aberta.
Ele fechou-a e ergueu os olhos quando dei a volta na mesa até a outra cadeira, em frente a ele.
Era Roy Lindell. Ele sorriu com minha reação.
- Harry Bosch - falou. - Há quanto tempo, Podjo. Fiquei parado por um instante, mas então puxei a cadeira e me sentei. Enquanto isso, Nunez fechou a porta e me deixou
sozinho com Lindell.
Roy Lindell devia estar com uns quarenta anos. Os músculos fortes de que eu me lembrava ainda estavam no lugar, forçando os 'imites da camisa. Ele ainda mantinha
seu bronzeado Las Vegas e clareava os dentes para combinar. Eu o conheci em um caso que
me levou a Vegas e direto para o centro de uma operação secreta do FBI. Forçados
a trabalhar juntos, conseguimos deixar de lado, até um certo ponto, as rivalidades entre o departamento e o FBI e as Questões de hieraquia, e resolvemos o caso.
Claro que todo o crédito foi para o FBI. Isso tinha sido uns seis ou sete anos antes. Mais
90
tarde, esbarrei com ele em um caso em L.A., mas nunca mantivemos contato. Porque tiras e federais não se misturam.
- Quase não reconheci você sem o rabo-de-cavalo, Roy.
Ele projetou a mão grande sobre a mesa e eu, devagar, estendi a minha e a apertei. Ele tinha o ar confiante que os homens fortes quase sempre têm. E um sorriso malandro
que costuma vir junto. A frase do rabo-de-cavalo era uma piada. Quando o conheci - e antes que eu soubesse de sua condição de agente disfarçado -, tomei a liberdade
de cortar o rabo-de-cavalo da sua cabeça com um canivete.
- Como tem andado? Você disse ao Nunez que se aposentou, hein? Não sabia disso.
Balancei a cabeça, mas não respondi mais que isso. O jogo era dele. Eu queria que fizesse todos os primeiros movimentos.
- Então, como é estar aposentado da força?
- Não tenho do que reclamar.
- Demos uma checada. Você agora é um detetive particular registrado, hein?
Grande dia em Sacramento.
- É, consegui uma licença. Por que não?
Quase contei a ele a mesma história que tinha contado a Keisha Russell sobre isso ser parte do processo de deixar a polícia, mas preferi não me dar ao trabalho.
- Deve ser bom ter o próprio negócio, fazer seu horário, trabalhar para quem quiser.
Para mim já tinham sido preliminares suficientes.
- Bem, não vamos falar de mim, Roy. Vamos direto ao ponto. O que eu estou fazendo aqui?
Lindell concordou com a cabeça como se dissesse achar justo.
- Bem, o fato é que você ligou pra cá e perguntou sobre uma agente que trabalhava aqui, e ao fazer isso acendeu algumas luzes.
- Martha Gessler.
- Isso. Marty Gessler. Então você sabia sobre quem estava telefonando quando disse ao Nunez que não sabia quem era?
Neguei com a cabeça.
- Não. Eu juntei os fatos a partir da reação dele. Lembrei de uma agente que desapareceu sem deixar vestígios. Levou um tempo,
91
então lembrei do nome. Tem alguma notícia nova sobre ela? Acho que ela não foi esquecida, foi?
Lindell inclinou-se para a frente e juntou os dois braços enormes sobre a pasta fechada. Seus pulsos eram tão grossos quanto as pernas da mesa. Lembrei da dureza
que foi quando coloquei algemas nele. Lá em Vegas, quando ele estava disfarçado e eu ainda não o conhecia.
- Harry, considero nós dois velhos amigos. Não nos falamos há um bom tempo, mas já lutamos uma ou duas batalhas lado a lado, então não quero enrolar você demais.
Mas a coisa vai funcionar desse jeito. Eu vou fazer as perguntas, tudo bem?
- Até certo ponto.
- Estamos falando, aqui, sobre uma agente desaparecida. Uma mulher.
- E você não está de brincadeira.
Parafraseei o alerta de Kiz Rider. Lindell não pareceu gostar.
- Vamos começar pelo motivo que o fez ligar - resolveu ele.
- Em que você está trabalhando?
Esperei um bom tempo, tentando achar um jeito de lidar com a situação. Eu não estava trabalhando para ninguém, além de mim mesmo. Não havia qualquer contrato que
garantisse o sigilo de informações. Mas sempre tive resistência a ceder diante das forças imperialistas do FBI. Era parte da cultura inata do DPLA. Não ia mudar
agora. Eu respeitava Lindell - como ele disse, estivemos juntos nas mesmas trincheiras e eu sabia que, a princípio, ele ia jogar limpo comigo. Mas a agência para
a qual ele trabalhava gostava de jogar com cartas marcadas. Eu tinha de tomar cuidado. Tinha de me lembrar disso.
- Eu disse ao Nunez o que estava fazendo quando telefonei. Estou só checando um caso em que trabalhei há alguns anos e do qual nunca consegui me livrar. Algum problema
nisso?
- Quem é o seu cliente?
- Não tenho. Tirei a licença depois que deixei o trabalho, para ter opções. Mas comecei a mexer nesse negócio por conta própria.
Ele não acreditou em mim. Podia ver isso nos seus olhos.
- Mas esse filme policial não era nem mesmo um caso seu.
92
93
- Foi, por uns quatro dias. Então me tiraram. Mas ainda me lembro da garota. A vítima. Achava que ninguém mais ligava então comecei a remexer as coisas por aí.
- E quem disse a você para ligar para cá?
- Ninguém.
- Você pensou nisso sozinho.
- Não exatamente. Mas você me perguntou quem me disse para ligar para cá. Ninguém me disse para ligar. Fiz isso sozinho, Roy. Soube de um telefonema de Gessler para
um dos detetives do caso. Era informação nova, para mim, e não tenho certeza se foi investigada. Pode meio que ter passado despercebida. Então liguei para conferir.
Na hora, não sabia o nome. Falei com Nunez e estou aqui.
- Como você soube que Gessler ligou para um dos detetives no caso?
Parecia que a resposta era óbvia. Também não significaria coisa alguma para Lawton Cross se eu contasse a Lindell sobre algo que ele me dissera espontaneamente.
E provavelmente estava no inquérito oficial.
- Soube do telefonema por Lawton Cross. Ele foi um dos caras da Roubos e Homicídios que pegaram o caso de mim quando ficou grande. Ele me contou que o parceiro,
Jack Dorsey, foi quem recebeu a ligação da sua agente.
Lindell estava anotando os nomes em um pedaço de papel que tinha tirado da pasta. Eu continuei.
- O caso já era antigo quando Gessler ligou para ele. Tinha meses. Na época, Cross e Dorsey nem estavam mais trabalhando nele em tempo integral. E não parece que
eles ficaram muito impressionados com o que quer que Gessler tenha dito a eles.
- Você falou com Dorsey sobre isso?
- Não, Roy. Dorsey está morto. Assassinado durante um assalto a bar em Hollywood. Cross também foi baleado. Está numa cadeira de rodas com tubos enfiados nos braços
e no nariz.
-- Quando foi isso?
- Há uns três anos. Foi manchete nos jornais.
Os olhos de Lindell mostravam que sua mente estava trabalhando. Estava fazendo contas, conferindo datas. Aquilo me lem-
brou que eu precisava montar uma cronologia do caso. Estava ficando muito complicado.
- Qual a principal teoria no caso Gessler? Morta ou viva? Lindell baixou os olhos para a pasta sobre a mesa e sacudiu a
cabeça.
- Não posso responder isso, Harry. Você não é um tira, agora é um civil. E só um cara que não consegue largar o distintivo e a arma e está correndo solto por aí
como um carrão desgovernado. Não posso envolver você nisso.
- Está bem. Me responda só a uma pergunta. Ela não vai revelar nada.
Ele deu de ombros. A resposta ia depender da pergunta.
- A minha ligação de hoje foi a primeira conexão entre o dinheiro do filme e Gessler?
Lindell deu de ombros outra vez e pareceu surpreso com a pergunta. Foi como se ele estivesse esperando algo um pouco mais forte.
- Não estou nem dizendo que há uma conexão, está bem? respondeu ele. - Mas sim, esta foi a primeira vez em que isso aconteceu. E é exatamente por isso que quero
que você se afaste e nos deixe investigar. Deixe isso com a gente, Harry.
- E, já ouvi isso antes. Acho que foi o FBI que disse, também. Lindell balançou a cabeça.
- A gente não deve bater de frente. Você vai acabar se arrependendo.
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ele se levantou. Tirou um maço de cigarros e um isqueiro do bolso.
- vou descer para fumar - disse ele. - Isso vai dar a você alguns minutos para pensar sobre as coisas e se lembrar de qualquer outro detalhe que tenha se esquecido
de me contar.
Estava para disparar outro tiro verbal nele quando percebi que tinha se virado e saído sem a pasta de arquivo. Ela estava ali na mesa e, instintivamente, soube que
a deixara ali de propósito. Queria que eu visse o inquérito.
Então me dei conta de que estávamos sendo gravados. O que ele me dissera tinha sido para algum tipo de registro, talvez
94
houvesse um supervisor escutando. O que ele, agora, estava me deixando
fazer era algo diferente.
- Não se apresse - falei. - E muita coisa para pensar.
- A merda desse edifício federal. Tenho que descer até lá embaixo.
Quando abriu a porta, virou-se, olhou para mim e deu uma piscadela. No instante em que a porta bateu, puxei a pasta sobre a mesa e a abri.
Capítulo 12
A pasta estava identificada com o nome de Martha Gessler. Peguei meu caderno e anotei aquilo no alto de uma página nova antes de abrir a pasta de três centímetros
de espessura e ver o que Lindell tinha deixado para mim. Calculei que devia ter uns quinze minutos para olhar o material.
No alto da pilha de documentos dentro da pasta havia uma folha de papel apenas com um número de telefone. Achei que tinha sido deixada ali especificamente para
mim, por isso a dobrei e guardei no bolso. O resto do arquivo era uma coleção de relatórios de investigação, a maioria com o nome e a assinatura de Lindell. Eu
o listei como trabalhando para o GRP, Gabinete de Responsabilidade Profissional, a versão FBI da Assuntos Internos.
A pasta continha relatórios que detalhavam a investigação do desaparecimento da agente especial Martha Gessler, sem deixar Pistas, em 19 de março de 2000. A data
imediatamente teve significado para mim porque eu sabia que Angella Benton fora assassinada na noite de 16 de maio de 1999. Gessler havia desaparecido uns dez meses
mais tarde. Mais ou menos na mesma época em que Cross me disse que a agente tinha ligado para Dorsey para falar sobre o número de série.
Segundo o inquérito, Gessler estava trabalhando como analista criminal, não uma agente de campanha, na época em que
96
desapareceu. Havia muito fora transferida da unidade de roubo a bancos, onde tinha conhecido minha mulher, para uma unidade cibernética. Trabalhava investigando
crimes na
internet e estava desenvolvendo programas de computador para rastrear padrões criminais. Presumi que o programa do qual Cross tinha me falado era um dos resultados
daquela tarefa.
Na noite de 19 de março de 2000, Gessler deixou o trabalho em Westwood depois de um dia longo. Outros agentes lembravam de vê-la no escritório pelo menos até as
20h30. Mas, aparentemente, ela nunca chegou em casa, em Sherman Oaks. Era separada. O desaparecimento só foi descoberto no dia seguinte, quando ela não foi trabalhar
nem respondeu os telefonemas e mensagens do pager. Um agente que trabalhava com ela foi a sua casa conferir e viu que tinha desaparecido. Ele encontrou a casa parcialmente
destruída. Mais tarde, porém, determinou que os dois cães, enlouquecidos de fome e falta de atenção, tinham passado a noite destruindo o lugar. Percebi no relatório
sobre o incidente que o colega que fez a descoberta era Roy Lindell. Não tinha certeza se aquilo significava alguma coisa. Talvez, como um agente do GPR, ele tivesse
sido mandado para investigar o bem-estar de um colega. Ainda assim, anotei o nome dele em meu caderno.
O carro particular de Gessler, um Ford Taurus 1998, não foi encontrado na casa. Oito dias mais tarde foi localizado em um estacionamento para longos períodos do
aeroporto de Los Angeles. A chave foi deixada em cima de um dos pneus traseiros. O párachoque traseiro mostrava um arranhão superficial de aproximadamente cinqüenta
centímetros e uma lanterna quebrada, que conhecidos da agente disseram ser novos. Mais uma vez Lindell estava listado como um dos conhecidos.
A mala do carro estava vazia e seu interior não oferecia pistas imediatas sobre onde estaria Gessler ou o que teria acontecido a ela. A maleta com o laptop, com
a qual deixara o escritório, também havia desaparecido.
Uma perícia completa do carro não encontrou indícios de crime. Nenhum registro de Gessler pegando um avião no aeroporto de Los Angeles foi encontrado. Agentes checaram
vôos nos aeroportos
97
de Burbank, Long Beach, Ontario e Orange County, e tampouco encontraram seu nome na lista de passageiros de algum vôo.
Todos sabiam que Gessler sempre levava o cartão do banco, dois cartões de crédito de combustível, um American Express e um Visa. Na noite do seu desaparecimento,
usou o cartão da Chevron para comprar gasolina e uma Coca diet num posto no Sepulveda Boulevard, perto do museu Getty. O recibo mostrava que ela tinha comprado
45 litros de gasolina sem chumbo, de qualidade intermediária, às 20h53.0 tanque do carro comportava um máximo de 60 litros.
A compra era importante porque colocava Gessler no Sepulveda Pass - seu caminho normal de Westwood para Sherman Oaks - em uma hora que batia com sua saída dos escritórios
do FBI em Westwood. O caixa do turno da noite no posto Chevron também identificou Gessler em um arquivo fotográfico como uma cliente habitual que tinha abastecido
na noite de 19 de março. Gessler era uma mulher atraente. Ele a conhecia e se lembrava dela. Dissera a ela que não precisava tomar Coca diet e ela pareceu ficar
satisfeita com o elogio.
Essa confirmação visual era importante por várias razões. Se Gessler estivesse indo de Westwood para o aeroporto de Los Angeles, onde o carro foi encontrado mais
tarde, era improvável que tivesse viajado para o norte, até o Sepulveda Pass, para abastecer. O aeroporto ficava a sudoeste do prédio do FBI. O posto de gasolina,
bem ao norte.
O fato importante seguinte foi o cartão da Chevron ter sido usado pela segunda vez, na mesma noite, em um posto Chevron às margens da auto-estrada 114, bem ao norte.
O cartão foi usado naquele ponto de venda para comprar 110 litros de gasolina, mais do que o carro de Gessler e da maioria podia comportar. A 114 era a principal
rota para as áreas desérticas dos condados do noroeste. Também uma importante rota de caminhoneiros.
Por último, mas não menos importante, o fato de nenhum dos cartões de crédito de Gessler terem sido encontrados ou utilizados
outra vez.
Não havia resumos ou conclusões nos relatórios que examinei. Isso seria algo que o investigador - Lindell - faria e guardaria
98
99
para si. Você não escreve um relatório concluindo que seu colega está morto. Não diz o óbvio e sempre fala sobre o agente desaparecido no presente. Mas
o que li deixou claro para mim qual deveria ser a conclusão.
Em algum momento depois de abastecer seu carro no Sepulveda Pass, ela foi parada e seqüestrada, e não parece que iria voltar. Provavelmente teve a traseira
abalroada. Então encostou para ver o estrago e, talvez, trocar informações sobre seguro com o outro motorista.
O que aconteceu depois era desconhecido. Mas provavelmente ela tinha sido raptada e o carro foi abandonado no estacionamento do aeroporto de Los Angeles, um movimento
que garantiria que não seria localizado por vários dias, dando tempo para a pistas esfriarem e as memórias das testemunhas em potencial desvanecerem.
A segunda compra de gasolina era a curiosidade. Foi um erro, um indício que apontava o rumo seguido pelos seqüestradores da agente? Ou apenas uma pista plantada
por eles para levar a investigação para o lado errado? E a quantidade de gasolina comprada levantava uma questão inteiramente diferente. Por que tipo de veículo
eles estavam procurando? Um reboque? Uma picape? Uma van?
Agentes do FBI foram até o posto de gasolina, mas não havia câmeras de vídeo ou testemunhas confiáveis do uso do cartão de crédito porque tinha sido uma compra paga
na bomba pelo próprio cliente. Aquele foi o último sinal na tela do radar, mas nada além disso.
Ainda assim, uma agente ainda estava desaparecida. Não havia escolha. A pasta continha os resumos curtos dos três dias de buscas aéreas sobre o deserto a nordeste.
Era uma operação agulhano-palheiro, mas tinha de ser feita. E provou-se infrutífera.
Agentes também passaram vários dias sobre as rotas prováveis que Gessler teria tomado através do Sepulveda Pass em seu cami' nho para casa. O Sepulveda Pass cortava
as montanhas Santa Monica. Enquanto a face sul apresentava poucas opções além da auto-estrada 405 e o Sepulveda Boulevard, a face norte tinha uma rede de atalhos
aberta por mais de cinqüenta anos de hora do rushAgentes viajaram por todas essas estradas à procura de
testemunhas de um acidente envolvendo o Ford Taurus azul. Uma cena de acidente que poderia ter parecido rotina, mas, na verdade, era o seqüestro de uma agente federal.
Não conseguiram coisa alguma.
O Sepulveda Pass tinha sido o lugar de crimes parecidos no passado. O filho de Bill Cosby, apresentador de TV, fora assaltado e morto no lado escuro da estrada uma
noite apenas alguns anos antes. E, ao longo da última década, várias mulheres foram raptadas e estupradas, uma delas morta a facadas, após parar o carro no acostamento
quando seus veículos eram batidos por trás ou enguiçavam. As pessoas não consideravam esses incidentes como obra de uma única pessoa. Mas achavam que o Pass, com
suas encostas, estradas sinuosas escuras e anonimato, era um lugar que atraía predadores. Como leões à espreita em um olho d'água, os predadores humanos não precisavam
esperar muito no Sepulveda Pass. A passagem através das montanhas era um dos corredores de tráfego mais movimentados do mundo.
Era possível que Gessler houvesse sido vítima de um crime de oportunidade, aquilo que ela procurava categorizar e dar algum sentido em seu trabalho. Ela podia ter
atraído um predador no posto de gasolina, talvez tivesse aberto a bolsa demais ao pegar o cartão de crédito. Talvez estivesse sendo seguida por alguma outra razão
desconhecida. Era uma mulher atraente. Se um frentista tinha percebido isso e reagido a ela de uma maneira sutil, um predador também poderia ter visto nela tudo
de que precisava.
Ainda assim, os agentes originalmente incumbidos do caso tinham dúvidas de que ela tivesse caído no perfil de vítimas anteriores no Pass. O carro de Gessler não
anunciava grande riqueza Pessoal. E ela teria sido uma adversária difícil. Afinal, era uma agente federal muito treinada. Também era alta, quase l,80m, e pesava
mais de sessenta quilos. Malhava sempre numa academia no Sepulveda e tivera aulas de Tai-Bo por muitos anos. Suas fichas na academia diziam que tinha apenas 4% de
gordura no corpo. Era quase toda feita de músculos, e sabia como usá-los.
Todos também sabiam que Gessler, mesmo nos horários de folga, sempre levava a arma de serviço. Na noite em que desapareceu,
100
101
estava usando calças e blazer pretos com camisa branca. Sua pistola, uma Smith & Wesson 9mm, estava no coldre em seu quadril direito. O frentista se lembrou de
ver a arma porque Gessler não estava de blazer quando abasteceu na bomba de atendimento self-service.
O blazer foi encontrado depois em um cabide pendurado sobre a janela lateral traseira no lado do motorista do Taurus.
Tudo isso significava que, quando Gessler foi abalroada por trás em algum ponto do Pass naquela noite, ela saiu do carro com uma arma à mostra no quadril. Saiu
do carro como uma mulher competente e confiante em suas habilidades físicas. Uma combinação que deveria ter evitado um ataque, que provavelmente teria convencido
qualquer predador a procurar outra vítima.
Como por nenhum momento o FBI considerou a possibilidade de Gessler ter sido uma vítima de crime escolhida ao acaso, Lindell tocou uma investigação paralela sobre
a possibilidade de que Gessler ter sido um alvo escolhido especificamente por conta de seu trabalho no bureau.
Os relatórios dessa parte da investigação eram mais da metade dos documentos contidos na pasta à minha frente. Apesar de eu saber que não tinha o inquérito completo,
estava claro que os agentes no caso não deixaram de lado qualquer possibilidade na busca de um elo que levasse ao desaparecimento de Gessler. Casos que remontavam
aos primeiros anos de Gessler no escritório de campanha de Los Angeles foram reexaminados em busca de possíveis ligações com a investigação. Parceiros e colegas
de todos os seus anos no FBI foram interrogados sobre inimigos em potencial e ameaças que ela pudesse ter recebido. Entre esses relatórios estava o resumo de uma
entrevista com a ex-agente Eleanor Wish, minha ex-mulher, feita em Las Vegas. Ela não falava com Gessler havia dez anos, na época do desaparecimento. Não se lembrava
de qual' quer ameaça ou outra coisa que pudesse ajudar na investigação.
Todo criminoso que Gessler prendeu ou contra quem testemu' nhou foi localizado e investigado. A maioria tinha álibis. Nenhum surgiu como suspeito importante.
Segundo os relatórios, Gessler tinha se tornado, no escritório de campanha de L.A, a gente a quem todos recorriam para qual-
quer dúvida sobre buscas e investigações relacionadas a computadores. Era o que se esperava em uma burocracia gigantesca como o FBI- A maioria dos requerimentos
de especialistas em computadores era enviada aos escritórios do bureau em Washington e em Quantico, às vezes levando dias para ser aprovadas e, depois, semanas até
que algum resultado fosse mandado de volta. Mas Gessler fazia parte de uma crescente linhagem de agentes que tinham grande habilidade com computadores, que gostavam
de fazer as coisas por conta própria. O agente especial responsável pelo escritório de L.A. tomou conhecimento disso e, em conseqüência, Gessler foi tirada das ruas,
onde tinha trabalhado por muitos anos na unidade de assalto a bancos. Ela foi colocada em uma unidade de informática recém-criada, onde cuidava dos pedidos dos agentes
das ruas enquanto desenvolvia seus próprios programas de computador.
Isso significava que havia o dedo de Gessler em muitas investigações na época em que desapareceu. Conferi meu relógio e, rapidamente, dei uma olhada em dúzias de
relatórios que detalhavam o trabalho feito por ela em casos diferentes no mês anterior ao seu desaparecimento. Lindell e outros agentes que trabalhavam para ele
remexeram esses casos à procura de qualquer coisa que desse uma pista sobre os motivos do desaparecimento de Gessler. Aparentemente, o mais próximo que eles chegaram
de encontrar algo foi quando resgataram o trabalho de Gessler na investigação de um serviço de acompanhantes que anunciava mulheres em um website. O trabalho de
Gessler era parte de uma investigação da unidade de crime sobre as ligações de organizações fora-da-lei da costa leste com a prostituição em Los Angeles.
Segundo o que eu li, Gessler tinha sido capaz de encontrar na internet conexões entre sites que anunciavam mulheres em mais de uma dúzia de cidades. As mulheres
estavam sendo transportadas Para várias cidades e clientes. O dinheiro gerado pelos serviços de acompanhante seguia para a Flórida e, então, para Nova York. Sete
semanas antes de Gessler desaparecer, nove homens haviam sido indiciados perante o júri, com base na lei de combate ao crime organizado. Uma semana exata antes
de seu desaparecimento, Gessler testemunhara sobre seu papel na investigação durante uma
102
audiência preliminar do caso. Seu testemunho foi descrito como eficiente e todos presumiam que ela testemunharia quando o caso fosse a julgamento. Ela não era, entretanto,
uma pessoa-chave. Seu testemunho parecia ser parte da ligação entre os sites e os réus. A testemunha-chave era um dos membros da rede que tinha feito um acordo com
os promotores para livrar-se de uma sentença mais dura. A possibilidade de que Gessler tivesse virado um alvo por ser testemunha era remota, mas parecia a melhor
de todas. Lindell trabalhou duro sobre ela, a julgar pelo número de relatórios e os detalhes neles contidos. Mas, aparentemente, nada tinha conseguido ali. O último
relatório na pasta pertencente ao caso de crime organizado descrevia aquela ramificação da investigação como "aberta e ativa, mas sem pistas importantes no momento".
Eu identifiquei aquilo como jargão do departamento, significando que aquela linha de investigação tinha chegado a um beco sem saída.
Fechei a pasta e conferi meu relógio outra vez. Lindell saíra havia 17 minutos. Nada havia no arquivo sobre Gessler ter escrito um relatório, ou notificado um superior
ou um colega sobre uma conferência dos números de série no relatório que Cross e Dorsey divulgaram. Nada que dissesse que ela havia descoberto algo e ligado para
o DPLA, contando que um dos números da lista de notas tinha problemas.
Depois de guardar meu caderno, levantei, estiquei as costas e caminhei um pouco pela salinha. Conferi a porta e vi que não estava trancada. Não estavam me tratando
como um suspeito. Pelo menos, ainda não. Depois de mais alguns minutos, fiquei cansado de esperar e saí para o corredor. Olhei para os dois lados e não vi uma pessoa
sequer, nem mesmo Nunez. Voltei para a sala, peguei a pasta e saí andando por onde eu tinha entrado. Fui até a sala de espera na frente sem que qualquer pessoa me
parasse ou perguntasse aonde eu estava indo. Cumprimentei a recepcionista do outro lado do vidro com a cabeça e peguei o elevador para descer.

Capítulo 13
Roy Lindell estava sentado no mesmo banco que eu utilizara antes de entrar no prédio. Havia três cigarros esmagados no chão diante dele. Um quarto estava entre seus
dedos.
- Você demorou pra caralho - reclamou. Sentei-me ao seu lado e botei a pasta entre nós.
- Botar você na GRP... Não é a mesma coisa que botar a raposa pra tomar conta do galinheiro?
Estava pensando no caso em que eu o conheci, seis anos antes. Eu não tinha idéia de que pudesse ser um agente da lei. Principalmente porque ele estava cuidando de
uma boate de striptease em Las Vegas, e transava com duas, três dançarinas ao mesmo tempo. Sua falsa identidade era tão convincente que, mesmo depois de descobrir
que ele era um agente disfarçado, acreditava que ele tinha passado dos limites. Só mais tarde eu me convenci, definitivamente, do contrário.
- Uma vez engraçadinho, sempre engraçadinho, hein, Bosch?
- Pode ser. Então, quem estava escutando aquele nosso papo?
- Mandaram que gravasse tudo. E que depois enviasse a fita.
- Para quem?
Ele não respondeu. Como se ainda estivesse decidindo alguma coisa.
104
- Vamos lá, Roy, você quer me dar uma pista sobre o que está acontecendo? Eu vi a pasta. E bem fina, nada que me ajudasse.
- Ali só está o mais importante... cópias que eu guardava por segurança. O inquérito enchia uma gaveta inteira.
- Enchia?
Lindell olhou ao redor como se pela primeira vez se desse conta de que estava sentado do lado de fora de um prédio que abrigava mais agentes e espiões que qualquer
outro lugar a oeste de Chicago. Ele baixou os olhos até a pasta que estava entre nós para que o mundo a pudesse ver.
- Não gosto de ficar sentado aqui fora. Onde está o seu carro? Vamos dar uma volta.
Andamos em silêncio até o estacionamento. Mas ver Lindell agindo daquele jeito me deixava nervoso e me fazia pensar novamente em Kiz Rider me alertando sobre algum
tipo de autoridade superior estar envolvida no caso. Quando entramos no Benz, botei a pasta no banco traseiro e dei a partida. Perguntei a ele aonde queria ir.
- Tanto faz, só dirija.
Peguei a Wilshire, pensando em cortar para San Vicente e rodar por Brentwood. Seria um passeio agradável em uma rua cheia de árvores e pessoas correndo, mesmo que
o papo não fosse legal.
- Você estava falando a verdade na fita? - perguntou Lindell. - E verdade essa história de não estar trabalhando nisso para ninguém?
- É, essa história é verdade.
- Então é melhor tomar cuidado, Podjo. Há forças poderosas envolvidas nisso. Pessoas que não...
- Estão de brincadeira. E, eu sei. Já me disseram isso, mas ninguém quer me dizer quem é essa autoridade superior e por que ela tem ligação com Gessler, ou por
que, quatro anos depois, tem alguma implicação no caso do roubo do dinheiro do filme.
- Bem, eu não posso dizer a você porque não sei. Só sei que depois que você ligou, hoje, eu dei alguns telefonemas e quando percebi parecia que o mundo estava desabando
em cima de mim. E com força.
- Lá de Washington?
105
- Não, daqui mesmo.
- Quem, Roy? Não tem sentido ficarmos dirigindo por aí conversando se você não vai falar. Quem está envolvido? O crime organizado? Li o relatório de Gessler sobre
o caso. Parecia ser a única coisa que você tinha.
Lindell riu como se eu tivesse sugerido algo absurdo.
- Crime organizado. Merda, eu bem queria que fosse apenas uma história de crime organizado.
Parei no San Vicente. Estávamos a apenas alguns quarteirões do lugar onde Marlyn Monroe tinha tomado uma overdose, um dos últimos escândalos e mistérios da cidade.
- Então o quê, Roy? Estou cansado de ficar falando sozinho. Lindell concordou com a cabeça e então olhou para mim.
- Segurança nacional, meu querido.
- O que você quer dizer com isso? Alguém acha que existe uma conexão terrorista nisso tudo?
- Não sei o que eles acham. Não fui informado. Só sei que me mandaram grampear você, gravar tudo e mandar para o nono andar.
- O nono andar...
Falei aquilo só para dizer alguma coisa. Estava tentando pensar.
Minha mente repassou rapidamente as imagens do caso: Angella Benton no chão, os pistoleiros sacando as armas e atirando, o impacto de um dos meus tiros acertando
o corpo de um deles e o derrubando - pelo menos eu acho que era um homem - de costas na van. Nada parecia se encaixar com o que Lindell estava me contando.
- O nono é onde eles mantém o comando REACT - contou Lindell, me tirando de meus devaneios. - Eles pegam pesado, Bosch. Não vão parar se você atravessar a rua na
frente deles. Não vão nem pisar no freio.
- O que é REACT?
Sabia que era outra sigla federal. Todas as agências de seguranÇa são boas em criar siglas. Mas os federais são os melhores.
- Resposta... não, é Reação alguma coisa Contra o Terrorismo, esqueci... Ah, lembrei. É Reação Efetiva e Aguda contra o Terrorismo, é isso.
106
- Essa deve ter vindo direto do gabinete do diretor lá em Washington. E muito complexa.
- Engraçadinho. Na verdade, é basicamente um trabalho conjunto de vários órgãos. Nós, o Serviço Secreto, a DEA, todo mundo.
Achei que aquele último "todo mundo" era um eufemismo para as agências que não gostavam de ver suas siglas circulando por aí. NSA, CIA, DIA por aí afora, por todo
o alfabeto federal.
Um ciclista passou pelo Benz e deu uma tapa no retrovisor, fazendo com que Lindell desse um pulo. O motociclista seguiu em frente, a mão enluvada erguida para mostrar
o dedo médio. Percebi que tinha entrado na ciclovia e levei o Benz de volta para a rua.
- Essas porras desses ciclistas acham que são os donos da rua
- chiou Lindell. - Encoste aí que vou ensinar uma coisa pra ele.
Ignorei o pedido. Passei pelo ciclista dando a ele um bom espaço.
- Não estou entendendo, Roy. O que o nono andar tem a ver com o meu caso?
- Em primeiro lugar, não é mais seu caso. Em segundo, eu não sei. Eles fizeram as perguntas. Não perguntei nada.
- Quando eles começaram a perguntar?
- Hoje. Você ligou e perguntou sobre Marty Gessler e disse ao Nunez que tinha a ver com o caso do dinheiro do filme. Ele veio falar comigo e eu disse a ele pra
chamar você aqui. Enquanto isso, comecei a fazer umas pesquisas. Descobri que tinham os números do dinheiro do filme listados no nosso computador. com a marca do
REACT. Então liguei para o nono e disse: "E aí, meus amigos, o que está rolando?" e dois segundos depois eu levei a maior prensa.
- Disseram a você para descobrir o que eu sei e então calar minha boca e me mandar passear. Ah, e gravar tudo para que eles pudessem escutar e terem a certeza de
que você é um bom agente e fez o que mandaram.
-, mais ou menos isso.
- Então por que você me deixou ler a pasta? E ficar com ela? Por que estamos andando por aí conversando?
Lindell fez uma pausa antes de responder. Tínhamos virado no Ocean Boulevard, em Santa Monica. Encostei outra vez perto dos
107
penhascos que se projetavam sobre a praia e o Pacífico. O horizonte estava esbranquiçado
pela névoa marinha. A roda-gigante do cais do Pacific Park erguia-se imóvel,
sem o brilho dos seus néons.
- Fiz porque Marty Gessler era minha amiga.
- Sei, meio que percebi quando li a pasta. Amigos íntimos? O significado da pergunta era óbvio.
- íntimos - respondeu ele.
- Não era um conflito você estar à frente do caso?
- Vamos dizer apenas que meu relacionamento com ela não era conhecido até a investigação estar bem adiantada. Então joguei todas as minhas fichas para continuar
no caso. Não que tenha adiantado grande coisa. Estamos aqui, mais de três anos depois, e ainda não tenho a menor idéia do que aconteceu a ela. Aí você telefona e
me conta um negócio que é totalmente novo pra mim.
- Então você estava falando a verdade. Não havia registro da conversa dela com Dorsey sobre o número da nota?
- Não achamos nada. Mas ela guardava muita coisa no computador dela, e isso já era, cara. Devia haver coisas das quais ela não mantinha back up no trabalho. Você
sabe, a regra é salvar tudo toda noite antes de ir pra casa, mas ninguém faz isso. Ninguém tem tempo.
Concordei com a cabeça e pensei sobre algumas coisas. Estava juntando muita informação, mas tinha pouco tempo para processála. Tentei pensar em o que mais precisava
perguntar a Lindell enquanto estava com ele.
- Ainda não estou entendendo uma coisa - falei depois de um tempo. - Por que foi de um jeito lá em cima na sala de interrogatório e de outro aqui? Por que você está
falando comigo, Roy? Por que me deixou ver a pasta?
- O REACT é um comando NIM, Bosch. Não Importam os Meios. Não há regras com esses caras. As regras foram jogadas pela Janela em 11 de setembro de 2001. O mundo
mudou, e o FBI também. O país ficou parado e deixou que isso acontecesse. Estavam assistindo à guerra lá no Afeganistão enquanto eles mudavam todas as regras por
aqui. A segurança interna é tudo o que interessa
108
agora, e a porra do resto fica em segundo plano. Até mesmo Marty Gessler. Você acha que o nono andar assumiu este caso porque uma agente desapareceu? Eles não
podiam se importar menos. Há alguma coisa a mais aí e não interessa se descobrirem ou não o que aconteceu com ela. Pelo menos para eles. Não é assim comigo. Lindell
mantinha um olhar distante enquanto falava. Agora eu começava a entender melhor o que estava acontecendo. O FBI disse a ele que deixasse aquilo de lado e desistisse.
Isso podia mantê-lo sob controle, mas eu era um agente independente. Lindell iria me ajudar, se e quando pudesse.
- Então você não faz idéia de qual é o interesse deles no caso?
- A mínima.
- Mas quer que eu vá em frente.
- Se você disser isso alguma vez, vou negar. Mas a resposta é sim. Quero ser seu cliente, Podjo.
Liguei o Benz e voltei para a pista. Fiz a volta na direção de Westwood.
- Não posso pagar, é claro - continuou Lindell. - E provavelmente também não vou poder entrar em contato com você depois de hoje.
- Vamos combinar uma coisa. Você pára de me chamar de Podjo e estamos quites.
Lindell balançou a cabeça, como se eu estivesse falando sério e ele concordasse com a proposta. Ficamos em silêncio por todo o caminho de volta. Descemos a Califórnia
Incline até a estrada da costa e, então subimos por ela até o Santa Monica Canyon, e depois de volta ao San Vicente.
- Então o que achou do que leu lá em cima? - perguntou, enfim, Lindell.
- Achei que você fez as coisas certas. E o cara do posto de gasolina que viu a Martha naquela noite? Foi checado?
- Foi. Fomos em cima dele seis vezes até o domingo. Estava limpo. O lugar estava cheio e ele ficou lá até a meia-noite. Tínhamos imagens dele gravadas no vídeo de
segurança. E ele não saiu
109
do caixa depois que ela chegou e foi embora. Seu álibi para depois da meia-noite também foi confirmado.
Mais alguma coisa no vídeo? Não vi nada na pasta.
Não, o vídeo era inútil. A não ser pelo fato de mostrar
Víartha e por ter sido a última vez em que ela foi vista.
Ele olhou pela janela. Três anos depois e Lindell ainda estava muito ligado ao caso. Tinha de me lembrar disso. Tinha de filtrar por esse prisma tudo o que ele dizia.
- Quais são as minhas chances de poder ver o arquivo completo da investigação?
- Eu diria algo entre zero e nenhuma.
- O nono andar?
Ele confirmou com a cabeça.
- Eles chegaram, tiraram a gaveta e a levaram. Nunca mais vou ver aquilo. Provavelmente não vão nem devolver a gaveta.
- Por que eles estão me tirando da jogada? Por que você?
- Porque eu conhecia você. Mas, principalmente, porque você não devia nem saber da existência deles.
Assenti com um aceno de cabeça quando virei na Wilshire, o edifício federal logo à frente.
- Olha, Roy, não sei se as duas coisas têm conexão, está entendendo? Estou falando de Martha Gessler e do caso de Hollywood. Angella Benton. Martha deu um telefonema
ligado a isso, mas não significa que haja uma conexão. Estou atrás de algumas outras coisas. Esta é só uma delas. Está bem?
Ele olhou pela janela outra vez e resmungou algo que não consegui ouvir.
- O quê?
- Falei que ninguém a chamava de Martha até que ela desapareceu. Então saiu assim nos jornais e na TV. Ela odiava o nome, Martha.
Eu só balancei a cabeça, porque não havia nada mais a fazer. Entrei no estacionamento do prédio e dirigi até a praça para deixá-lo.
- Aquele número de telefone na pasta, posso ligar para você?
110
- A hora que você quiser. Só tenha certeza de que os seus telefones não estejam grampeados antes de fazer isso.
Pensei sobre aquilo até encostar o Benz no meio-fio em frente à praça. Lindell olhou pela janela e estudou o local como se estivesse avaliando se era seguro sair.
- Você volta muito a Vegas? - perguntei.
Ele respondeu sem olhar de volta para mim. Manteve os olhos na praça e nas janelas do edifício que assomavam acima.
- Sempre que tenho uma oportunidade. Preciso ir disfarçado. Tem muita gente lá que não gosta de mim.
- Posso imaginar.
Seu trabalho sob disfarce aliado à investigação da minha equipe da Homicídios tinha derrubado um figurão importante do submundo e a maioria de seus capangas.
- Vi sua mulher lá há mais ou menos um mês - acrescentou ele. - Jogando cartas. Acho que foi no Bellagio. Tinha uma bela pilha de fichas em frente a ela.
Ele conhecia Eleanor Wish daquele primeiro caso em Vegas. Foi quando eu me casara.
- Ex-mulher - corrigi. - Mas não foi por isso que perguntei.
- Claro, eu sei.
Parecendo satisfeito com a paisagem, ele abriu a porta e saiu. Olhou para mim e esperou que eu dissesse algo. Acenei com a cabeça.
- vou aceitar o seu caso, Roy. Ele acenou de volta.
- Então me ligue a qualquer hora. E se cuida direito aí fora, Podjo.
Ele deu aquele sorriso cafajeste de "te-peguei" e fechou a porta antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
Capítulo 14

Nas salas dos esquadrões cheias de detetives nos inúmeros distritos do DPLA, o estado de Idaho é chamado de Céu Azul. É a linha do gol, o destino final de um bom
número de detetives que resistem até o último round, completam seus 25 anos e então se aposentam com grana no bolso. Ouvi dizer que há vizinhanças inteiras por
lá cheias de ex-tiras de Los Angeles, vivendo lado a lado. Corretores imobiliários de Cour d'Alene e Sandpoint publicam anúncios do tamanho de cartões pessoais no
jornal do sindicato dos policiais. Em todas as edições.
Claro que alguns tiras deixam o distintivo e vão para Nevada tomar sol e arrumar um emprego de meio-expediente nos cassinos. Alguns somem no norte da Califórnia
- tem mais tiras aposentados nas matas do condado de Humboldt do que plantadores de maconha, só que esses plantadores não sabem disso. E outros vão para o sul, ao
México, onde ainda há lugares em que uma casa grande com vista para o mar e ar-condicionado está dentro da realidade de uma aposentadoria do DPLA.
O fato é que poucos ficam por aqui. Passam toda a sua vida adulta tentando fazer algum sentido deste lugar, tentando dar a ele algüma ordem, e então não agüentam
ficar quando seu trabalho termina. O trabalho faz isso com você. Rouba a sua capacidade de Desfrutar de suas conquistas. Não há recompensa por ir até o fim.
112
Um dos poucos homens que conhecia que deixaram o distintivo mas não a cidade se chamava Burnett Biggar. Ele deu seus 25 anos à cidade - a segunda metade deles na
Divisão de Homicídios Sul - e então se aposentou para abrir um pequeno negócio com o filho perto do aeroporto. A Biggar & Biggar Segurança Profissional ficava no
Sepulveda, perto de La Tijera. O prédio era indefinível, os escritórios despretensiosos. O negócio de Biggar era dirigido principalmente para vigilância e sistemas
de segurança para as empresas de armazenagem e logística em torno do aeroporto. Na última vez em que conversamos - fazia provavelmente uns dois anos - ele me disse
que tinha mais de cinqüenta empregados e que os negócios estavam indo bem.
Mas ele também me confidenciou que sentia falta do que chamava trabalho de verdade. O trabalho vital, aquele que fazia a diferença. Proteger um armazém cheio de
jeans feitos em Taiwan podia ser lucrativo. Mas não se parecia em nada com o que se sentia quando jogava um assassino irrecuperável no chão e fechava as algemas
em seus pulsos. Não chegava nem perto, e era disso que Biggar sentia falta. Por isso achei que podia pedir ajuda a ele para o que eu queria fazer por Lawton Cross.
Havia uma pequena sala de espera com uma cafeteira, mas não fiquei ali por muito tempo. Burnett Biggar surgiu em um corredor e me chamou a seu escritório. Era um
sujeito grandalhão, fazia juz ao nome. Tive de ir atrás dele pelo corredor, pois não cabia ao seu lado. Ele tinha raspado a cabeça, o que, pelo que eu sabia, era
um novo visual.
- Então, Big, estou vendo que mudou do penteado joãozinho para o estilo Michael Jordan, hein?
Ele esfregou a mão no escalpo lustroso.
- Tive que fazer isso, Harry. É a moda. E estou ficando grisalho.
- Estamos todos.
Ele me conduziu ao seu escritório. Não era pequeno nem grande. Era básico, com paredes forradas de madeira e diplomas, recortes
*Biggar pronuncia-se como bigger, maior (N. do T.)
113
de jornal e fotos dos seus tempos de departamento emoldurados. Provavelmente causava uma ótima impressão junto aos clientes.
Biggar deu a volta em uma escrivaninha desarrumada e me indicou uma cadeira em frente a ela. Quando me sentei, notei um slogan em um quadro na parede às costas dele.
Dizia: "Biggar &. Biggar is getting Better & Better."*
Biggar inclinou-se para a frente e cruzou os braços sobre a escrivaninha.
- Então, Harry Bosch, eu achava que nunca mais ia ver você de novo. Engraçado estar aqui, nessa cadeira.
- E engraçado ver você também. Acho que não imaginava
isso.
- Você veio aqui para arranjar um emprego? Soube que largou no ano passado. Você era o último cara que eu esperava que deixasse o serviço.
- Ninguém pode agüentar tanto, Big. E agradeço a oferta, mas já tenho um emprego. Estou é precisando de uma ajudinha.
Biggar deu um sorriso, a pele se apertando em torno de seus olhos. Estava intrigado. Sabia que eu nunca faria o tipo segurança empresarial ou industrial.
- Nunca soube de você pedir ajuda em coisa nenhuma. Está precisando de quê?
- De um equipamento. Vigilância eletrônica. Um aposento, ninguém pode saber da existência da câmera.
- Qual o tamanho do lugar?
-- Um quarto. Talvez cinco por cinco.
- Ah, Harry, não vá por esse caminho, cara. Você começa a bisbilhotar desse jeito e acaba se perdendo. Venha trabalhar para num. Posso conseguir...
- Não, não é nada disso. Na verdade, tem relação com um homicídio no qual estou trabalhando. O cara está numa cadeira de rodas. Fica sentado e assiste à TV o dia
inteiro. Só quero ter certeza
"Biggar &. Biggar cada vez Melhor &. Melhor. (N. do T.)
114
115
de que ele está bem, sabe? Tem alguma coisa acontecendo com a mulher. Pelo menos eu acho que tem.
- Você fala, tipo, abuso?
- Talvez. Não sei. Alguma coisa.
- O cara sabe que a gente vai fazer isso?
- Não.
- Mas você tem acesso ao quarto?
- Tenho. Acha que pode me ajudar?
- Bem, nós temos câmeras. Mas você precisa entender que a maior parte do nosso trabalho tem aplicação industrial. Coisa pesada. Para mim, parece que tudo o que você
precisa é de uma microcâmera, que pode encontrar em qualquer loja de equipamentos eletrônicos.
Sacudi a cabeça.
- Não quero ser óbvio. O cara era um tira.
Big balançou a cabeça, digeriu aquilo rapidamente e se levantou.
- Bem, vamos lá na sala de equipamentos para dar uma olhada no que temos aqui. O André está lá e pode arranjar as coisas para você.
Ele me conduziu outra vez pelo corredor, na direção dos fundos do prédio. Entramos na sala de equipamentos, que tinha mais ou menos o tamanho de duas garagens e
estava cheia de bancadas de trabalho e prateleiras com todo o tipo de equipamento eletrônico. Havia três homens reunidos em torno de uma das bancadas. Estavam olhando
para a tela de uma TV pequena. Ela mostrava as imagens granuladas e em preto-e-branco de uma fita de vigilância. Reconheci um dos homens, o maior deles, como André
Biggar, o filho de Burnett. Nunca o havia visto antes, mas sabia que era ele pelo tamanho e a semelhança com Burnett. Até a cabeça raspada.
As apresentações foram feitas e André explicou que estava revendo a fita que mostrava o roubo no depósito de um cliente. O pai explicou o que eu estava procurando
e o filho me levou até outra bancada, onde pôde mostrar e explicar o equipamento. Havia câmeras escondidas em um vaso, em um abajur, em uma moldura e finalmente
em um relógio. Ao me lembrar de como Lawton Cross
reclamara de não poder ver a hora em sua televisão, interrompi André ali mesmo.
- Isso vai servir. Como funciona?
Era um relógio redondo de uns 30 centímetros de diâmetro.
- É um relógio de sala de aula. Você quer botar isso na parede de um quarto? Vai chamar tanta atenção como peitos em...
- André - censurou-o o pai.
- Não está sendo usado como um quarto de dormir - falei.
- É como uma sala de TV. E a pessoa me disse que não consegue ver a hora no canto da tela na CNN. Então vai fazer sentido quando eu levar isso para ele.
André concordou com um balançar de cabeça.
- Está bem. Você quer som? Cores?
- Som, sim. Cor seria bom, mas não é necessário.
- Tudo bem. Você vai transmitir ou gravar?
Olhei para ele sem expressão e ele viu que eu não tinha entendido.
- Eu faço essas coisas de dois jeitos. No primeiro você tem a câmera no relógio e transmite som e imagem para um receptor que grava tudo em vídeo. Você ia precisar
encontrar um lugar seguro para o gravador a menos de 30 metros para garantir. Você vai ficar fora da casa em uma van, ou algo assim?
- Eu não estava pensando em fazer isso.
- Certo. A segunda opção é digital. Você põe tudo dentro da câmera e grava internamente em uma fita digital ou um chip de memória. O problema é a capacidade. com
uma fita digital, você consegue umas duas horas e então precisa substituí-la. com um chip, menos ainda.
- Isso não vai servir. Estava pensando em checar isso só de vez em quando.
Comecei a pensar em como eu seria capaz de esconder o receptor dentro da casa. Talvez na garagem. Podia fingir que estava indo na garagem para jogar alguma coisa
fora e esconder o receptor ali em algum lugar onde Danny Cross não o visse.
- Bem, nós podemos gravar mais devagar, se for preciso.
- Como?
116
- De várias maneiras. Primeiro conectamos a câmera a um relógio. Para desligar, digamos, de meia-noite às oito. Também podemos reduzir o FPS e estender...
- FPS?
- Os frames ou quadros gravado por segundo. Mas isso deixa a imagem com alguns pulos.
- E o som, ele pula, também?
- Não, o som é separado. Você grava todo o som. Concordei, mas não estava bem certo de que queria perder
qualquer imagem.
- Também podemos usar um sensor de movimento. Esse cara que você falou está numa cadeira de rodas. Ele circula muito?
- Não, não consegue. Está tetraplégico. Acho que, na maior parte do tempo, ele fica só ali, sentado em frente à TV.
- Algum bicho de estimação?
- Acho que não.
- Então a única hora em que tem movimento de verdade no quarto é quando a pessoa que cuida dele entra, e é isso o que você quer ver. Estou certo?
- Está.
- Então não tem problema. Isso vai funcionar. Vamos botar um sensor de movimento e dois gigas de memória. Assim, você provavelmente vai conseguir que dure uns dois
dias.
- Isso vai servir.
Balancei a cabeça e olhei para Bumett. Eu estava impressionado com o filho dele. André tinha físico para ser um jogador de futebol americano profissional. Mas havia
encontrado sua especialidade na vida: lidar com circuitos e microprocessadores. Eu podia notar o orgulho nos olhos de Burnett.
- Me dê quinze minutos para montar isso e eu mostro a você como instalar e retirar o chip.
- Por mim está bem.
Eu sentei com Burnett no escritório dele e conversamos sobre o departamento e alguns casos em que tínhamos trabalhado juntos. Um deles envolvia um assassino de
aluguel que tinha matado o seu
117
alvo em South L.A., e também o homem que o contratara quando este não pagou a segunda metade do combinado. Trabalhamos juntos nesse por um mês, minha equipe com
Biggar e seu parceiro, que se chamava Miles Manley. Chegamos à solução quando Big e fyíanley, como a dupla era chamada, encontraram uma testemunha da vizinhança
da vítima-alvo que se lembrava de ter visto um homem branco no dia do crime e tinha uma descrição do carro dele, um Corvette preto com estofamento de couro vermelho.
O carro era o mesmo usado pelo vizinho de porta da segunda vítima. Ele confessou depois de um longo interrogatório, conduzido alternadamente por mim e Biggar.
- E sempre um detalhe pequeno desses - comentou Big, enquanto se recostava por trás de sua escrivaninha. - Era disso que eu mais gostava, não saber de onde essa
coisa viria.
- Sei o que você quer dizer.
- E você, também sente falta?
- Também. Mas vou conseguir de novo. Estou começando, agora.
- Você está falando da sensação, não do trabalho.
- E. E você, ainda sente falta?
- Estou ganhando aqui mais dinheiro do que eu posso gastar, mas, é, sinto falta. O trabalho me dava isso, o que não consigo administrando seguranças de aluguel e
instalando câmeras. Cuidado com o que você vai fazer, Harry. Você pode acabar tão bemsucedido quanto eu e então vai ficar sentado recordando os velhos tempos, achando
que eles eram muito melhores do que realmente eram.
- vou tomar cuidado, Big.
Biggar balançou a cabeça, satisfeito por ter dispensado sua dose diária de conselhos.
- Você não precisa me contar se não quiser, Harry, mas estou achando que esse cara na cadeira é o Lawton Cross, não é?
Hesitei, mas achei que não tinha importância.
- É, é ele. Estou trabalhando em outra coisa que acabou cruzando o caminho dele. Fiz uma visita a ele que me contou umas coisas. Eu só queria ter certeza. Você sabe.
118
- Boa sorte. Eu me lembro da esposa dele. Encontrei com ela algumas vezes. Era uma boa mulher.
Concordei com a cabeça. Sabia o que ele estava dizendo, que esperava que Cross não estivesse sendo vítima da esposa.
- As pessoas podem mudar - observei. - Eu vou descobrir.
André Biggar chegou alguns minutos depois trazendo uma caixa de ferramentas, um laptop e o relógio com a câmera em uma caixa. Ele me deu uma aula de vigilância
eletrônica. O relógio estava montado e todo pronto. Tudo o que eu precisava fazer era pendurá-lo numa parede e ligá-lo. Quando eu fosse acertar a hora, apertaria
o mostrador para ligar o sistema. Para recuperar o chip, tinha de remover a parte de trás do relógio e retirá-lo da câmera. Fácil.
- Está bem. Então, depois de tirar o cartão, como faço para ver o que eu gravei?
André balançou a cabeça e me mostrou como encaixar o chip no lado do laptop. Então explicou quais os comandos que eu teria de digitar no teclado para transferir
as gravações do sistema de vigilância para a tela do computador.
- E fácil. Só tenha cuidado com o equipamento e traga de volta depois de usar. Tem muita grana investida nisso aí.
Eu não queria dizer a ele que não era fácil o suficiente para mim. Agarrei-me ao lado financeiro da equação para evitar revelar minhas deficiências técnicas.
- Vamos fazer uma coisa - falei. - Acho que vou deixar o laptop aqui e volto com o chip quando quiser dar uma olhada nele. Não quero arriscar o equipamento de vocês.
E nem gosto de circular por aí carregado de coisas.
- Como for melhor para você. Mas a beleza desse equipamento é a rapidez. Você pode tirar o cartão e assistir a ele imediatamente no seu carro, em frente da casa
do cara, se quiser. Por que ter de vir tão longe para isso?
- Não acho que haja essa urgência toda. vou deixar o laptop e trago o chip aqui depois, está bem?
- Como você quiser.
André guardou o relógio de volta em sua caixa acolchoada. então apertou minha mão e saiu do escritório, levando o laptop
119
com ele, mas deixando a caixa de ferramentas com o relógio. Olhei para Burnett. Estava na hora de ir embora.
- Parece que ele faz bem mais do que ajudar você.
- André é o coração desse lugar.
Ele gesticulou na direção das recordações emolduradas.
- Eu trago os clientes, impressiono as pessoas e assino o contrato. O André avalia as necessidades e faz o trabalho.
Concordei com a cabeça e me levantei.
- Isso vai me custar alguma coisa? - perguntei segurando a caixa com o relógio.
Biggar deu um sorriso.
- Não se você trouxer de volta. Então seu rosto ficou sério.
- Isso é o mínimo que eu posso fazer pelo Lawton Cross.
- E - falei, reconhecendo o sentimento.
Apertamos as mãos e eu fui embora, levando o relógio e a caixa de ferramentas, torcendo para que a câmera escondida fosse o equipamento que iria me mostrar que o
mundo não era tão ruim quanto eu achava que podia ser.
Capítulo 15
Da Biggar "Si Biggar dirigi de volta para o Vale, pegando a Sepulveda Pass e encarando a primeira leva brutal da hora do rush. Levei quase uma hora só para chegar
na Mulholland Drive. Ali, saí da auto-estrada e me dirigi para o Oeste, seguindo a crista das montanhas. Vi o sol descer atrás de Malibu, deixando em seu rastro
um céu em chamas. Nos ângulos mais baixos, o sol muitas vezes se refletia no smog preso ao fundo do Vale, e dava a ele matizes brilhantes de laranja, rosa e roxo.
Era uma espécie de recompensa por aceitarmos ter de respirar ar envenenado todos os dias. Naquela noite, havia principalmente uma suave tonalidade alaranjada com
alguns fios de branco misturados. Era o que a minha ex-mulher costumava chamar de céu de picolé quando assistia aos crepúsculos no deque dos fundos da casa. Tinha
um rótulo para descrever cada um deles, e aquilo sempre me fazia sorrir.
A lembrança dela no deque parecia ser muito antiga e uma Parte completamente diferente da minha vida. Pensei no que Roy Lindell dissera sobre vê-la em Las Vegas.
Ele sabia que eu havia Perguntado por ela mesmo tendo dito a ele o contrário. Se não era todo dia, não passava nem uma semana sem que eu pensasse em ir até lá, encontrá-la
e pedir outra chance. Uma chance de uma nova tentativa, nas condições dela. Eu não tinha mais um emprego que me prendesse em L.A. Podia ir aonde quisesse. Dessa
vez podia ir
122
ao encontro dela e poderíamos viver juntos lá na cidade do pecado. Ela ainda poderia ser livre para encontrar aquilo de que precisava no feltro azul das mesas de
pôquer dos cassinos da cidade. E ao fim de cada dia podia voltar para casa, para mim. Eu poderia fazer o que aparecesse. Sempre haveria algo em Vegas para uma pessoa
com as minhas habilidades.
Uma vez cheguei a botar minhas coisas numa caixa, joguei-a na traseira do meu Benz e fui até Riverside, quando os medos familiares começaram a subir pelo meu peito
e eu dei uma parada. Comi um hambúrguer num In And Out e então voltei para casa. Não me preocupei em tirar as coisas da caixa quando cheguei. Deixei-a no chão do
quarto e, nas duas semanas seguintes, fui tirando as roupas de lá à medida que precisava delas. A caixa vazia ainda estava lá no chão, pronta para a próxima vez
que eu resolvesse enchê-la e fazer aquela viagem.
O medo. Sempre estava lá. Medo de rejeição, medo de esperança e de amor não correspondido, medo de sentimentos que, em mim, ainda estavam à flor da pele. Estava
tudo misturado num liqüidificador, e derramava-se em meu copo suavemente como um milk shake até que eu ficasse cheio até a boca. Tão cheio que, se eu tivesse de
me mexer, mesmo um passo, transbordaria pelos lados. Por isso eu não podia me mexer. Ficava paralisado. Ficava em casa e vivia pensando em uma caixa.
Eu acredito na teoria da única bala. Você pode se apaixonar e fazer amor muitas vezes, mas existe apenas uma bala com seu nome gravado. E se você tiver sorte o
suficiente para levar um tiro com essa bala, então a ferida nunca se cura.
Talvez Roy Lindell tivesse o nome de Martha Gessler em uma bala. Não sei. O que sei é que Eleanor Wish tinha sido a minha baIa. Ela me perfurou várias vezes. Houve
outras mulheres antes e outras depois, mas a ferida deixada por ela estava sempre lá. Nunca iria curar direito. Eu ainda estava sangrando e sabia que sempre sangraria
por ela. Era assim que tinha de ser. Não há fim para o que está no coração.
Capítulo 16

No caminho para Woodland Hills dei uma paradinha na loja de bebidas Vendome e então fui para a casa na Melba Avenue. Não telefonei antes. com Lawton Cross, sabia
que as chances de ele estar em casa eram sempre grandes.
Danielle Cross atendeu à porta depois de três batidas, e seu rosto sempre tenso se fechou ainda mais quando viu que era eu.
- Ele está dormindo - desculpou-se ela, mantendo o corpo apertado na abertura da porta. - Ainda está se recuperando de ontem.
- Então é melhor acordá-lo, Danny, porque preciso falar com ele.
- Olha, você não pode entrar aqui à força. Você não é mais um tira. Não tem direito.
- Você tem o direito de decidir quem ele quer ver ou não? Aquilo pareceu confundir um pouco seu ponto de vista. Ela
olhou para a caixa de ferramentas e para a caixa que eu carregava sob o braço.
- O que é isso tudo?
- Trouxe um presente para ele. Olhe, Danny, eu preciso falar com ele. As pessoas vão começar a vir aqui. Preciso deixá-lo preparado.
124
Ela cedeu. Sem dizer uma palavra, deu um passo para trás e abriu a porta. com o braço estendido, fez um sinal para que eu entrasse e atravessei o portal. Fui sozinho
até o quarto.
Lawton Cross dormia em sua cadeira, a boca aberta e um dreno de saliva com aparência medicinal curvava-se em torno de sua face. Não queria olhar para ele. Era uma
imagem muito forte do que poderia ter acontecido. Botei a caixa de ferramentas e a do relógio sobre a cama. Fui até a porta e a fechei, tendo o cuidado que fizesse
um barulho alto ao bater, torcendo que fosse suficiente para acordar Cross. Não queria tocar nele para despertá-lo.
Quando voltei-me outra vez para a cadeira, percebi seus olhos piscarem e se entreabrirem.
- Oi, Law! Sou eu, Harry Bosch.
Percebi a luz verde na babá eletrônica sobre a escrivaninha e dei a volta na cadeira para desligá-la.
- Harry? - disse ele. - Cadê você?
Fiz a volta na cadeira e olhei para ele com um sorriso forçado no rosto.
- Bem aqui, cara. Você está acordado, agora?
- Estou... mmm.
- bom. Tem uma coisa que preciso falar com você. E também trouxe um presente.
Fui até a cama e comecei a tirar o relógio da caixa que André Bigger tinha preparado para mim.
- Black Bush?
Sua voz, agora, estava alerta. Novamente me arrependi da escolha de palavras. Voltei ao seu campo de visão com o relógio nas mãos.
- Trouxe esse relógio de parede para você. Agora não tem mais problema para saber a hora.
- Ela vai tirá-lo daqui.
- vou dizer a ela para não fazer isso. Não se preocupe.
Abri a caixa de ferramentas, tirei de lá um martelo e peguei um prego em uma
cartela plástica. Avaliei a parede à esquerda da televisão e escolhi um ponto no meio.
Havia uma tomada elétrica bem embaixo. Segurei o prego bem alto na parede e ele entrou até a
125
metade com uma martelada. Estava pendurando o relógio quando a porta se abriu e Danny olhou para dentro.
- O que você está fazendo? Ele não quer um relógio aqui. Terminei de pendurar o relógio, baixei as mãos e olhei para ela.
- Ele me falou que queria um relógio.
Nós dois olhamos para Law para resolver aquilo. Os olhos dele piscavam da mulher para mim, então de volta para mim.
- Vamos experimentar ter um relógio por um tempo - pediu ele. - Eu queria saber a hora dos meus programas de TV.
- Está bem - concordou ela, com um tom seco. - Como você quiser.
Ela saiu do quarto e fechou a porta. Inclinei-me e liguei o fio do relógio na tomada. Então conferi o meu e fui acertar as horas para ligar a câmera. Quando terminei,
guardei o martelo na caixa de ferramentas e fechei o trinco.
- Harry?
- O quê? - perguntei, apesar de já saber o que ele queria.
- Você trouxe um pouco?
- Um pouco.
Abri a caixa de ferramentas outra vez e peguei a garrafinha de bolso que tinha enchido no estacionamento da Vendome.
- Danny disse que você está de ressaca. Tem certeza de que quer?
- Claro que tenho. Me dê um gole, Harry. Estou precisando. Fiz a mesma rotina do dia anterior e então esperei para ver se
ele perceberia que eu tinha posto um pouco de água no uísque.
- Esse é bom, mesmo, Harry. Me dê mais, por favor.
Dei e então fechei a garrafinha, me sentindo um pouco culpado por dar àquele homem alquebrado a única alegria que ele parecia ter na vida.
-- Escute, Law, estou aqui para dar um aviso a você. Acho que Mexi num formigueiro com esse negócio.
-- O que aconteceu?
- Tentei falar com aquela agente que você disse que tinha hgado para o Dorsey para conversar sobre os números de série das
notas. Lembra, sobre o problema?
126
127
- Lembro. Você conseguiu falar com ela?
- Não, Law, não consegui. A agente era Martha Gessler. Isso não diz alguma coisa?
Os olhos dele se moveram pelo teto como se fosse ali que guardasse seu banco de memória.
- Não, devia dizer?
- Não sei. Ela está desaparecida há três anos, desde a época em que deu aquele telefonema para Jack.
- Cacete, Harry!
- E. Então eu meio que esbarrei com isso quando liguei para tentar localizar quem tinha feito aquela ligação.
- Eles vêm falar comigo?
- Não sei. Mas esse é o aviso. Acho que eles podem fazer isso. Não sei como, mas eles estão trabalhando essa coisa toda sob o ângulo do terrorismo. E uma dessas
equipes pós 11 de setembro que estão andando por aí. E ouvi dizer que eles gostam de bater primeiro e se preocupar com as regras depois.
- Não quero que eles venham aqui, Harry. O que você começou?
- Desculpe por isso, Law. Se eles vierem, deixe que façam as perguntas e responda a elas da melhor maneira que puder. Pegue o nome deles e peça à Danny para me ligar
quando eles forem embora.
- vou tentar. Eu só quero ficar quieto no meu canto.
- Eu sei, Law.
Aproximei-me da cadeira dele e levei a garrafinha até seu campo de visão.
- Quer mais?
- Será que o macaco quer banana?
Derramei um bom gole em sua boca, então outro para ajudar a descer. Esperei que subisse de volta até chegar em seus olhos. Eles pareciam ficar vidrados.
- Tudo bem?
- Tudo.
Eu tenho que fazer mais umas perguntas a você. Elas vieram à minha cabeça depois que eu falei com o FBI.
--Tipo o quê?
Tipo o telefonema que o Jack recebeu. O FBI diz que não
havia registro do telefonema de Gessler por causa da lista de números de série.
Isso é simples. Talvez não tenha sido ela. Como eu falei, o
Jack não me falou nenhum nome. Ou se falou, esqueci. Não me lembro.
- Tenho quase certeza de que foi ela. Tudo o que você descreveu se encaixa. Tinha um programa no laptop igual ao que você descreveu. Que sumiu junto com ela.
- Olha aí. Talvez houvesse um registro do telefonema dela. Que também desapareceu com ela.
- Acho que sim. E em relação à hora da ligação? Você se lembra de alguma coisa mais sobre isso, quando ela foi feita?
- Ah, meu Deus, não sei, Harry. Foi só uma coisa a mais. Só um telefonema. Tenho certeza de que Jack botou ele na cronologia.
Estava falando sobre o registro da cronologia do caso. Tudo sempre era registrado. Ou deveria ser.
- E, eu sei - continuei.- Mas eu não tenho acesso a isso. Estou de fora, esqueceu?
- É.
- Você me contou que já fazia uns dez meses que estavam no caso, lembra? Disse que, na época, já estavam trabalhando em outros casos e então o Jack encontrou uma
pista sobre Angella Benton. O assassinato dela foi em 16 de maio de 1999. Martha Geller desapareceu em 19 de março do ano seguinte. Quase dez meses exatos depois.
- Então, eu me lembro disso. O que mais você quer de mim?
- E só que...
Não terminei. Estava tentando encontrar o que perguntar e como fazê-lo. Havia algo errado com a cronologia.
- E só o quê?
- Não sei. Eu acho que, se o Jack tivesse falado recentemente com esse agente, ele teria dito algo sobre isso quando ela desapareCeu. Foi um caso grande, sabia?
Nos jornais e toda noite na TV. Será que esse telefonema não pode ter ocorrido antes? Mais perto
128
do início do caso? Assim Jack poderia ter se esquecido dele e da agente na época em que ela virou notícia.
Cross permaneceu em silêncio enquanto pensava sobre aquilo. Eu considerava outras possibilidades, também, mas acreditava que havia limites lógicos.
- Me dê outra dose desse troço, por favor, Harry.
Ele deu um gole grande demais e a bebida voltou queimando sua garganta. Quando falou de novo, a voz estava mais rouca do que o normal.
- Acho que não. Acho que foram mesmo dez meses.
- Feche os olhos um instante, Law.
- Não estou entendendo.
- Só feche os olhos e se concentre nessa memória. O que quer que você ainda se lembre, o que desperta essa recordação, concentre-se nisso.
- Você está tentando me hipnotizar, Harry?
- Só estou tentando focalizar seus pensamentos, ajudar você a se lembrar do que Jack disse.
- Não vai dar certo.
- Não se você não deixar. Relaxe, Law. Relaxe e tente se esquecer de tudo. Como se sua mente fosse um quadro-negro que você estivesse apagando. Pense no que Jack
disse sobre a ligação.
Os olhos dele se moveram por baixo das pálpebras finas e pálidas, mas após alguns instantes ficaram mais lentos e pararam. Fiquei olhando para o rosto dele e esperei.
Fazia anos desde a última vez em que eu tentara alguma técnica de hipnose, e isso tinha sido feito para extrair descrições de eventos e suspeitos. O que eu queria
de Cross, agora, era uma memória de um tempo e um lugar, e do diálogo que ocorrera então.
- Está vendo o quadro-negro, Law?
- Estou vendo, sim.
- Certo, então vá até o quadro e escreva nele o nome do Jack. Escreva no alto para deixar espaço embaixo dele.
- Harry, isso é idiotice. Eu...
- Só faça o que estou pedindo, Law. Escreva O nome do Jack no alto do quadro.
129
- Está bem.
-- OK, Law, muito bom. Agora olhe para o quadro e embaixo do nome do Jack escreva a palavra "telefonema", está bem?
- Certo, já fiz.
- bom. Agora olhe para essas duas palavras e se concentre nelas. Jack. Telefonema. Jack. Telefonema.
O silêncio que veio depois das minhas palavras estava pontuado pelo tique-taque quase imperceptível do relógio novo.
- Agora, Law, quero que você se concentre no preto em torno dessas palavras. Em torno das letras. Entre nas letras, Law, entre no preto. Atravesse as letras.
Esperei e olhei para suas pálpebras. Vi o movimento da retina começar outra vez.
- Jack está falando com você, Law. Ele está contando sobre a agente. Diz que tem uma nova informação sobre o assalto do set de filmagem.
Esperei um bom tempo, me perguntando se devia ter mencionado o nome de Gessler, então achei que foi melhor não ter feito isso.
- O que ele estava falando para você, Law?
- Tem alguma coisa errada com os números. Eles não batem.
- Ela ligou para ele?
- Ela ligou.
- Onde vocês estão quando ele conta isso para você, Law?
- Estamos no carro. Estamos indo para o fórum
- Um julgamento?
- É.
- Julgamento de quem?
- Aquele garoto mexicano. O membro de gangue que matou
o joalheiro coreano no Western. Alejandro Penjeda. E o dia da sentença.
- Penjeda é o acusado? - Isso.
- E o Jack recebeu a ligação da agente antes de vocês chegarem ao fórum para ouvir a sentença?
- Isso aí.
130
131
- Está bem, Law.
Eu tinha conseguido o que queria. Pensei no que mais poderia perguntar a ele.
- Law? Jack disse qual era o nome da agente?
- Não, ele não disse.
- Ele falou se iria checar a informação que ela deu?
- Ele falou que ia checar, mas que o telefonema era uma besteira. Disse achar que não significava nada.
- Você acreditou nele?
- Acreditei.
- Está bem, Law. vou dizer para você abrir os olhos em um instante. E, quando você abrir os olhos, vai sentir como se tivesse acabado de acordar, mas quero que você
se lembre do que conversamos. Certo?
- Certo, sim.
- E a outra coisa é que quero que você se sinta melhor. Quero que você fique... bem com as coisas em sua vida. Quero que seja o mais feliz, possível, Law, certo?
- Certo.
- Então vamos lá, Law, abra os olhos agora.
As pálpebras tremeram um pouco e então se abriram. Eles alvejaram o teto e então se dirigiram a mim. Os olhos pareciam mais brilhantes que antes.
- Harry...
- Como você está se sentindo, Law?
- Bem.
- Você se lembra do que estávamos conversando?
- Lembro, sobre aquele mexicanozinho, Penjeda. Chamávamos ele de Punheta. Ele não aceitou o acordo proposto pela
promotoria. Prisão perpétua, com direito a condicional.
Arriscou ir a julgamento e se deu mal. Perpétua sem condicional.
- As condições não eram boas.
Algo que soou como se pudesse ser uma risada gorgolejou do fundo de sua garganta.
- É, gostei dessa - comentou ele. - Eu lembro quando estávamos chegando no tribunal aquele dia e o Jack me contou sobre a ligação de Westwood.
Você se lembra quando saiu a sentença de Penjeda?
Fim de fevereiro, início de março. Meu último julgamento,
Harry. Um mês depois, levei o tiro na merda do bar e acabou tudo pra mim. Eu lembro da cara do Punheta quando ele ouviu a sentença e viu que tinha pego uma perpétua
sem direito a condicional. O filho-da-puta teve o que merecia.
Deu outra daquelas risadas e então vi a luz se apagar em seus
olhos.
- O que foi, Law?
- Ele está lá em Corcoran, jogando bola no pátio ou tendo o seu rabo alugado por hora pela máfia mexicana. E eu estou aqui. Acho que também peguei perpétua sem condicional.
Os olhos dele olharam dentro dos meus. Balancei a cabeça porque era a única coisa que achei que podia fazer.
- Não é justo, Harry. A vida não é justa.

Capítulo 17
A biblioteca do Centro ficava na esquina da Flower com a Figueroa. Era um dos prédios mais antigos de toda a cidade. Por isso acabava diminuído pelas estruturas
modernas de vidro e aço que o cercavam. Por dentro era uma beleza, centrado em torno de uma rotunda em domo, com 360 graus de mosaicos representando a fundação
da cidade pelos padres. O lugar tinha sido vítima de dois incêndios criminosos e permaneceu fechado por anos, então foi restaurado em sua beleza original. Fui lá
depois de terminada a restauração, a primeira vez que voltava desde que era criança. E voltei várias vezes. Aquilo me aproximava da Los Angeles da qual eu me lembrava.
Um lugar onde eu me sentia à vontade. Levava meu almoço para as salas de leitura, ou para os terraços do último andar, e ficava lendo pastas de casos e tomando notas.
Conheci os seguranças e alguns dos bibliotecários. Tinha um cartão de sócio, apesar de raramente pegar um livro emprestado.
Fui para a biblioteca depois que deixei Lawton Cross porque não podia mais ligar pedindo a ajuda de Keisha Russel para pesquisar jornais antigos. O telefonema dela
para Sacramento para perguntar sobre mim quando pedi a ela uma pesquisa simples sobre Martha Gessler foi o aviso. Sua curiosidade jornalística a levaria além do
meu pedido. A lugares aonde eu não queria que ela fosse.
134
A pesquisa ficava no segundo andar. Reconheci a mulher atrás do balcão, apesar de nunca ter falado com ela antes. Percebi que ela me reconheceu também. Usei a carteira
da biblioteca no lugar do distintivo da polícia. Ela leu e reconheceu o nome.
- Você sabia que tem o mesmo nome de um pintor famoso?-- perguntou ela.
- Sabia, sim.
Ela enrubesceu. Tinha trinta e poucos anos e um penteado nada atraente. Usava um crachá que dizia Srta. Molloy.
- E claro - comentou ela. - E evidente que sabia. Em que posso ajudar?
- Preciso pesquisar um assunto que foi matéria do Times há uns três anos.
- Quer fazer a pesquisa a partir de uma palavra-chave?
- Acho que sim. O que é isso? Ela deu um sorriso.
- Temos todas as edições do Los Angeles Times, desde 1987, dentro do computador. Se o que você estiver procurando tiver sido publicado depois disso, tudo o que precisa
fazer é entrar em um dos nossos terminais, digitar uma palavra ou frase-chave, como um nome, por exemplo, que você acha que esteja na reportagem, e ele faz a busca
para você. Há uma taxa de cinco dólares por hora para acessar o banco de dados de periódicos.
- Certo, é isso o que eu quero fazer.
Ela sorriu e me deu um aparelho de plástico de uns trinta centímetros que pegou embaixo do balcão. Não se parecia com nenhum computador que eu já tivesse visto.
- Como eu uso isso? Ela quase deu uma gargalhada.
- Isso é um pager. Todos os nossos terminais estão ocupados agora. Assim que um deles vagar, eu aviso.
- Ah.
- Este pager não funciona fora do prédio. Também não emite sinal sonoro. Ele vibra. Por isso guarde-o perto de você.
Certo. Faz idéia de quanto tempo pode demorar?
135
- Estabelecemos o limite de uma hora de uso, o que significa que deve demorar uma meia hora. Mas às vezes as pessoas usam por menos de uma hora.
- Certo, obrigado. vou ficar por perto.
Encontrei uma mesa vazia em uma das salas de leitura e resolvi trabalhar na cronologia do caso. Peguei meu caderno e em uma página nova escrevi as três datas e eventos-chaves
que eu conhecia.
Angella Benton - assassinada -16 de maio de 1999 Assalto no set de filmagem - 19 de maio de 1999 Martha Gessler- desaparecida - 19 de março de 2000
Então comecei a anotar aquilo que estava faltando.
Gessler/Dorsey - telefonema-?????
E depois de um tempo pensei em outra coisa que talvez ajudasse a explicar algo que me incomodava.
Dorsey/ Cross - assassinato/ tiroteio - ?????
Olhei ao redor para ver se havia alguém usando um telefone celular. Eu queria dar um telefonema mas não tinha certeza se isso era permitido em uma biblioteca. Ao
me virar e olhar para trás, vi um homem de pé ao lado da estante das revistas virar-se rapidamente e pegar uma delas da prateleira sem parecer ter visto qual era.
Estava de jeans e uma camisa de flanela azul. Nada nele indicava FBI, mas parecia que estava olhando diretamente para mim até que eu olhei para ele. A reação dele
fora rápida demais, quase furtiva. Não houve contato visual, nada que sugerisse algum tipo de abertura. Era evidente que o homem não queria que eu soubesse que estava
me vigiando.
Guardei o caderno, levantei-me da mesa e dirigi-me para a estante de revistas. Passei pelo homem e vi que a revista que tinha Pego se chamava Parenting Today. Outro
ponto contra ele. Ele não
136
137
me parecia o tipo familiar. Eu tinha quase certeza de que estava sendo vigiado.
Voltei à recepção da pesquisa, pousei as mãos sobre o balcão e inclinei-me para a frente para
sussurrar algo para a Srta. Molloy.
- Posso lhe fazer uma pergunta? É permitido o uso de celular na biblioteca?
- Não, não é. Alguém está incomodando o senhor com um celular?
- Não, só estava querendo saber o regulamento. Obrigado. Antes que eu pudesse me virar, ela disse que estava indo me
passar uma mensagem pois agora havia um terminal liberado. Devolvi o pager a ela, que me conduziu a uma baia onde me aguardava a tela brilhante de um computador.
- Boa sorte - disse ela ao se virar para voltar à recepção.
- Por favor - falei e acenei às suas costas. - Hum, eu não sei como acessar o Times aqui.
- Tem um ícone da pasta.
Procurei por uma pasta sobre a mesa. Não havia nada ali além do computador, do teclado e do mouse. A bibliotecária começou a rir pelas minhas costas, mas então cobriu
a boca com a mão.
- Desculpa - fez ela -, mas acho que você não tem a menor idéia de como fazer isso, tem?
-Nem a menor nem a maior. Você podia me ajudar a começar?
- Espere um pouco. Deixe eu dar uma conferida na recepção para ver se não tem ninguém esperando por mim.
- Certo. Obrigado.
Ela demorou uns trinta segundos e então voltou. Inclinou-se por cima de mim para pegar o mouse e clicar através de várias telas até entrar nos arquivos do Times,
e no que chamou de tela de busca.
- Então agora é só digitar a palavra-chave da reportagem que o senhor está procurando.
Fiz um gesto com a cabeça de que tinha compreendido e digitei o nome "Alejandro Penjeda". A Srta. Molloy digitou a tecla ENTER e deu início à busca. Em cerca de
cinco
segundos eu tinha os resultados na tela. Havia cinco itens. Os dois primeiros de 1991
e 1994, e os três últimos de 2000! Descartei os dois primeiros por não terem relacionamento com o Penjeda no qual eu estava interessado. Os três seguintes eram
todos de março de 2000. Levei o mouse até o primeiro - 1a de março de 2000 - e cliquei em LEITURA- A reportagem encheu a metade superior da tela. Era um texto curto
sobre o início do julgamento de Alejandro Penjeda, acusado do assassinato de um joalheiro coreano chamado Kyungwon Park.
A segunda reportagem, também era curta, e era a que eu estava procurando. Era a matéria sobre a sentença do caso Penjeda. Estava datada de
11 de março e falava sobre eventos do dia anterior. Tirei o caderno do bolso e completei aquela parte da cronologia, acrescentando a informação na lacuna certa.
Angella Benton- assassinada -16 de maio de 1999 Assalto no set de filmagem - 19 de maio de 1999 Gessler/ Dorsey - telefonema - 13 de março de 2000 Martha Gessler-
desaparecida - 19 de março de 2000
Olhei para o que eu tinha. Martha Gessler havia desaparecido, e provavelmente sido morta, seis dias depois de falar com Dorsey sobre o problema na lista dos números
de série das notas.
- Se não precisa de mais nada, vou voltar lá para a frente. Tinha esquecido que a Srta. Molloy ainda estava de pé às
minhas costas. Eu me levantei e fiz um sinal para que ela se sentasse.
- Na verdade, acho que seria mais rápido se você fizesse isso
- pedi. - Tenho de fazer mais umas buscas.
- Nós não devíamos fazer a pesquisa. Você deveria saber mexer em computadores para poder usar um dos terminais.
- Eu compreendo. vou aprender, mas ainda não sei fazer isso e essa pesquisa é muito importante.
Ela parecia estar refletindo se iria ou não me ajudar. Desejei ter nas mãos a cópia reduzida da minha licença de investigador particular que conseguira com o estado.
Talvez aquilo a tivesse impressionado. Ela virou-se e olhou para as baias e a recepção, para ver se havia alguém esperando por sua ajuda. O sujeito da Parenting
Today
138
139
estava circulando por ali, tentando agir como se estivesse espera do por alguém ou ajuda.
- Volto depois de perguntar àquele senhor se ele precisa de ajuda - resolveu a Srta. Molloy.
Ela se afastou sem esperar que eu respondesse. Observei-a perguntar ao Parenting Today se ele precisava de algo. Ele fez que não com a cabeça e olhou de volta para
mim antes de ir embora. A Srta. Molloy então retornou pelo corredor. Ela sentou-se em frente ao computador.
- Qual é a próxima busca?
Ela mexia o mouse com suavidade e sem fazer barulho, e logo estava de volta à tela onde deveria digitar a palavra-chave.
- Tente "John Dorsey" - falei -, e para reduzir a busca, você pode acrescentar "Nat's"?
Ela digitou a informação e começou a busca. Surgiram treze itens e eu pedi a ela que abrisse o primeiro. Estava com a data de 7 de abril de 2000 e mencionava eventos
do dia anterior.
UM POLICIAL MORTO, OUTRO FERIDO EM TIROTEIO NUM BAR DE HOLLYWOOD
Por Keisha Russell , Repórter do Times
Dois detetives da polícia de Los Angeles, em horário de almoço, e um balconista foram baleados em um bar de Holly' wood, ontem, quando um homem armado tentou assaltar
o local.
O tiroteio, que ocorreu às 13h no Nat's, na Cherokee Avenue, matou com vários ferimentos a bala o detetive John H. Dorsey, 49 anos, e deixou seu parceiro, Lawton
Cross Jr., 38 anos, em estado crítico, com ferimentos na cabeça e no pescoço. Donald Rice, que servia no bar, também foi atingido
várias vezes e morreu no local. O suspeito, que vestia um capuz de esqui preto, fugiu com uma quantia desconhecida em dinheiro, retirada da
caixa registradora, segundo o tenente James Macy, da Unidade de Crimes contra Policiais. Em entrevista coletiva, organizada em frente ao bar onde ocorreu o tiroteio,
o
tenente Macy explicou que parecia haver ali, no máximo, algumas centenas de dólares. "Não vimos qualquer razão para esse sujeito ter começado a atirar", concluiu,
acrescentando ainda que não estava claro se Dorsey e Cross tinham tentado impedir o assalto. Observou que os dois detetives foram atingidos quando estavam sentados
num reservado, em uma área pouco iluminada do bar, e nenhum deles sacou a arma.
Os detetives tinham acabado de tomar testemunhos em uma empresa perto do Nat's quando resolveram parar para almoçar no bar, segundo Macy. Não havia indícios de que
qualquer deles estivesse consumindo álcool. "Eles foram até lá por conveniência", comentou o tenente. "Foi a decisão mais azarada que podiam ter tomado."
Não havia outros empregados ou algum proprietário do bar na hora do incidente. Uma pessoa que não estava lá dentro viu o pistoleiro fugir depois do tiroteio e conseguiu
dar à polícia uma descrição limitada do suspeito. Por medida de segurança, a identidade da testemunha não foi revelada.
Parei de ler para perguntar à bibliotecária se eu podia imprimir a página.
- Custa cinqüenta centavos por página - informou ela. Em dinheiro.
- Tudo bem, pode imprimir.
Ela apertou o comando IMPRIMIR e então recostou-se na cadeira para tentar ver a recepção no final do corredor. De pé, eu tinha
uma visão melhor.
- Você ainda está livre. Podia fazer mais uma busca para mim?
- Se for rápido. O que é?
Passei correndo pelos meus bancos de memória na tentativa de encontrar um nome que funcionasse para o que eu queria fazer em
Seguida.
- Que tal a palavra "terrorismo"?
140
141
- Está brincando? Sabe em quantas reportagens essa palavra foi usada nos últimos dois anos?
- Claro, claro, o que eu estava pensando? Vamos reduzir. As palavras da busca não precisam estar conectadas, como numa frase, certo?
- Não. Olha, eu preciso voltar para o meu...
- Está bem, está bem, e as palavras "FBI" e "Suspeitos de terrorismo"? Além de "Al Qaeda" e "célula". Dá para tentar isso?
- Isso provavelmente também vai estourar a banca.
Ela digitou a informação e esperou. Então o computador indicou 467 entradas, todas, com a exceção de seis delas, de depois de
11 de setembro de 2001. Sob esse número, o computador trazia o título de todas as reportagens. A tela exibia a primeira de 42 páginas com listas de títulos.
- Você vai ter que procurar aí sozinho - disse a Srta. Molloy.
- Preciso voltar agora para o meu posto.
Tinha tentado a última pesquisa quase como uma piada. Eu achava que o Parenting Today ia fazer perguntas para a Srta. Malloy, ou mandar outro agente enquanto ele
continuava na minha cola. Queria acrescentar o ângulo do terrorismo à minha busca para dar a eles novos motivos para quebrar a cabeça. Mas ali percebi que podia
descobrir algo sobre o que o FBI estava fazendo.
- Certo - respondi. - Tudo bem. Obrigado pela sua ajuda.
- Não esqueça que esta noite a biblioteca fecha às nove. Isso dá a você uns 25 minutos extras.
- Está bem, obrigado. Ah, onde pego mesmo aquela impressão?
- No balcão lá na frente. Tudo o que você imprimir sai láVocê me procura, paga, e eu entrego a você.
- Um esquema muito bom.
Ela não respondeu. Saiu andando e me deixou sozinho com o computador. Olhei em volta e não vi o Parenting Today em lugar algum. Então voltei à baia e comecei a
pesquisar a lista de reportagens. cliquei em algumas e comecei a lê-las, mas parava sempre que percebia que não tinha sequer uma ligação remota com Los Angeles.
Percebi que devia ter incluído Los Angeles nas palavras-
chaves. Ergui-me para ver se a Srta. Molloy estava na recepção, mas não estava. A recepção estava abandonada.
Voltei para o computador e na terceira página da lista de reportagens um título chamou minha atenção.
TESOUREIRO DE TERRORISTAS PRESO AO CRUZAR A FRONTEIRA
Cliquei no ícone de leitura e abri a história completa. A janela acima do corpo da reportagem dizia que ela tinha sido publicada na página A 13 do jornal. Vinha
acompanhada da foto de registro policial de um homem com a pele muito bronzeada e cabelos louros e ondulados.
PorJoshMeyer Repórter do Times
O Departamento de Justiça informou que um suspeito de transportar dinheiro para grupos de apoio ao terrorismo internacional foi preso ontem ao tentar cruzar a fronteira
mexicana em Calexico com uma sacola de dinheiro.
Mousouwa Aziz, 39, que há quatro anos está na lista do FBI de terroristas sob vigilância, foi detido por agentes da polícia de fronteira quando tentava entrar no
México pela fronteira com os Estados Unidos.
Aziz, que, segundo o FBI, teria ligações com uma célula filipina da Al Qaeda, levava uma grande quantidade de dólares americanos em uma sacola encontrada embaixo
do assento do automóvel com o qual tentava cruzar a fronteira. Aziz, que estava sozinho no carro, não ofereceu resistência à prisão. Ele estava sendo mantido em
local desconhecido e sob custódia federal como um combatente inimigo.
Agentes disseram que Aziz, para se disfarçar, tinha pintado os cabelos de louro e raspado a barba que sempre usava. "E uma prisão importante", afirnou Abraham Klein,
promotor público assistente no comando de contra-terrorismo de Los Angeles.
142
"Temos feito esforços em todo o mundo para eliminar o financiamento ao terrorismo. Acreditamos que esse suspeito é
uma pessoa intimamente ligada ao financiamento de atividades terroristas aqui e no exterior."
Klein e outras fontes declararam que Aziz pode ser uma figura-chave nos esforços para acabar com o movimento de dinheiro - combustível vital para sustentar a atividade
terrorista a longo prazo - daqueles que têm como alvo interesses americanos. "Não apenas apreendemos uma grande quantia com essa prisão, mas talvez, ainda mais
importante, tenhamos capturado e retirado de circulação uma pessoa que estava no negócio de entregar dinheiro para terroristas", comentou uma fonte do Departamento
de Justiça.
Segundo o Departamento, Aziz é um jordaniano que fez o curso secundário em Cleveland, Ohio, e fala inglês fluentemente. Ele tinha passaporte e carteira de motorista
do Alabama que o identificavam como Frank Aiello.
O nome de Aziz foi posto numa lista de vigilância do FBI há quatro anos, quando descobriram informações que o ligavam a remessas de dinheiro feitas para terroristas
envolvidos com a explosão de embaixadas americanas na África. Aziz foi apelidado de mouse* pelos agentes federais por sua baixa estatura, a habilidade em permanecer
escondido das autoridades nos últimos meses e a dificuldade que os agentes encontravam para pronunciar seu primeiro nome.
Depois dos ataques terroristas em 11 de setembro de 2001, um sinal de alerta mais alto foi enviado em relação a Aziz, apesar de algumas fontes afirmarem que não
havia qualquer prova que ligasse diretamente Aziz aos 19 terroristas que cometeram aqueles ataques suicidas. "Esse sujeito é o homem do dinheiro', observou a fonte
do departamento. "O trabalho dele é levar dinheiro do ponto A ao ponto B. O dinheiro, então, é usado para comprar material para a produção de bombas e armas para
"Camundongo. (N. do T.)
143
manter os terroristas enquanto eles planejam e executam suas operações."
Não ficou claro o motivo pelo qual Aziz estava tentando levar dólares americanos para fora do país. Segundo Klein, "Os dólares americanos valem em todo lugar. Na
verdade, o dólar é mais forte que a moeda da maioria dos países onde há células terroristas. Vai muito mais longe. Esse suspeito poderia estar levando o dinheiro
para as Filipinas simplesmente para financiar uma operação."
Klein também sugeriu que o dinheiro poderia ser destinado a terroristas que planejam se infiltrar nos Estados Unidos.
Klein recusou-se a dizer quanto Aziz estava carregando ou qual a origem do dinheiro. Nos últimos me"ses, investigadores federais sugeriram que uma grande fonte de
financiamento de terroristas vinha de atividades ilegais dentro dos Estados Unidos. Uma operação com drogas no Arizona, por exemplo, já foi ligada a uma rede de
financiamento de terroristas.
Fontes federais já haviam declarado ao Times, no ano passado, acreditar que áreas isoladas do México podiam ser a localização de campos de treinamento de terroristas
ligados à Al Qaeda. Klein recusou-se a fazer qualquer comentário sobre a possibilidade de Aziz estar se dirigindo a um campo como esses.
Fiquei ali olhando fixamente para a tela por um bom tempo, me perguntando se tinha esbarrado com algo mais importante do que uma maneira de sacanear os federais.
Eu me perguntei se o que eu tinha acabado de ler podia estar de alguma forma ligado à minha investigação. Será que os agentes do nono andar de Westwood podiam ter
feito uma conexão entre o dinheiro do filme e esse terrorista?
Meus pensamentos foram interrompidos por um alto-falante anunciando que a biblioteca iria fechar em quinze minutos. Cliquei no comando IMPRIMIR e voltei à
lista de reportagens, à procura de suítes sobre o desenrolar dos acontecimentos após a prisão de Aziz. Só encontrei uma, publicada dois dias depois da primeira Bateria.
Abri-a e vi que era um artigo curto. Dizia que o processo
144
contra Aziz tinha sido adiado indefinidamente enquanto ele continuava sendo interrogado pelos agentes federais. O
tom do texto indicava que Aziz estava cooperando
com os investigadores, apesar de não especificar ou dizer aquilo claramente. A reportagem dizia que mudanças nas leis federais depois do 11 de Setembro tinham dado
às autoridades federais grande liberdade de movimentos para manter suspeitos de terrorismo como combatentes inimigos. O resto da matéria era repetição da informação
publicada antes, na primeira reportagem.
Retornei à lista e continuei a pesquisar os títulos das matérias. Levei quase dez minutos, mas não encontrei outra sobre Mousouwa Aziz.
O alto-falante anunciou que a biblioteca estava fechando. Olhei ao redor e vi a Srta. Molloy de volta à recepção. Estava guardando umas coisa nas gavetas, se aprontando
para sair. Resolvi que, agora, não queria que o Parenting Today soubesse o que eu tinha pesquisado no computador. Pelo menos, não tão rápido. Então permaneci na
baia até o anúncio seguinte de fechamento da biblioteca. Fiquei até que a Srta. Molloy fosse até lá para me dizer que eu tinha de sair. Ela estava com as minhas
folhas impressas. Eu paguei a ela, dobrei os papéis e os guardei no bolso do meu paletó, junto com o caderno. Agradeci e deixei a sala de pesquisa.
Na saída, fingi que estava estudando os mosaicos e a arquitetura do edifício, girando várias vezes em círculos completos na rotunda, enquanto procurava o homem que
me seguia. Não o vi e comecei a me perguntar se eu estava começando a ficar excessivamente paranóico.
Parecia que eu era o último a sair pela porta reservada ao público. Pensei em procurar a saída dos funcionários e esperar pela Srta. Malloy para perguntar a ela
tinha sido interrogada sobre mim e meus pedidos de pesquisa. Mas achei que isso talvez fosse
apenas assustá-la e deixei para lá.
Enquanto andava sozinho pelo terceiro andar da garagem até o meu carro, senti um frio de medo percorrer minha espinha. Estivesse sendo seguido ou não, eu tinha ficado
assustado. Apertei o passo e estava quase correndo quando cheguei à porta do carro.
Capítulo 18

A paranóia nem sempre é ruim. Ela pode ajudar você a ficar alerta e às vezes isso faz toda a diferença. Da biblioteca fui na direção da Broadway e, de lá, rumo ao
centro administrativo. Podia parecer bem normal, um ex-tira se dirigir ao departamento de polícia. Nada incomum nisso. Mas, quando cheguei ao complexo do Los Angeles
Times, virei bruscamente para a esquerda sem usar os freios ou a seta e fechei o tráfego que se dirigia ao túnel da Rua Três. Pisei no acelerador e o Mercedes respondeu,
a frente se erguendo como uma lancha à medida que ganhava velocidade e roncava pelo túnel de três quarteirões.
Sempre que podia eu conferia o retrovisor para ver se havia alguém me seguindo. Os azulejos nas paredes arredondadas do túnel refletiam os faróis como uma auréola.
Diretores de cinema sempre o alugavam por esse motivo. Qualquer carro que tentasse me acompanhar ia chamar muita atenção, a menos que suas luzes estivessem apagadas,
e isso também seria óbvio no retrovisor.
Eu estava sorrindo. Não tenho certeza do porquê. Estar possivelmente com um agente do FBI na sua cola não é algo que geralmente deixe alguém feliz. E o FBI também
não costuma achar isso engraçado. Mas eu senti imediatamente que tinha feito o movimento certo com o Mercedes. O carro estava voando. E eu estava n° alto, mais
alto que em qualquer carro da polícia em que já
146
entrei, por isso tinha uma boa visão pelo espelho. Era como se eu tivesse planejado isso e estivesse funcionando, o que me fez sorrir.
Quando saí do túnel, pisei no freio e virei bruscamente à direita. Os pneus largos agarraram o asfalto e, assim que saí da boca do túnel, parei o carro. Esperei
com os olhos no retrovisor. Nenhum dos veículos que saiu do túnel entrou à direita atrás de mim ou sequer deu uma reduzida no cruzamento. Se alguém estivesse me
seguindo, ou tinha sido despistado, ou era bom o suficiente naquilo para não se incomodar em perder o alvo e evitar, assim, uma exposição óbvia.
Esta última possibilidade não se encaixava com a atitude óbvia do Parenting Today na biblioteca.
Uma terceira possibilidade que, agora, eu devia considerar era o rastreamento eletrônico. O FBI podia ter grampeado meu carro em qualquer momento daquele dia com
facilidade. No estacionamento da biblioteca, um técnico podia ter entrado embaixo dele para instalar um aparelho. O mesmo técnico também podia ter esperado que eu
aparecesse no edifício federal. Isso, é claro, significaria que eles já sabiam de meu passeio pela cidade com Roy Lindell. Eu fiquei tentado a ligar para o agente
e avisá-lo, mas achei que não devia usar o meu celular para entrar em contato com ele.
Sacudi a cabeça. Talvez a paranóia não fosse uma coisa tão boa, no fim das contas. Ela pode ajudar você a ficar alerta, mas também pode paralisá-lo. Voltei para
o trânsito e me dirigi para a autoestrada de Hollywood. Mantinha os olhos no retrovisor o máximo possível.
A auto-estrada eleva-se quando atravessa Hollywood e entra na Cahuenga Pass. Ela oferece uma boa vista do lugar onde eu
passei a parte mais importante do meu tempo
de tira. Apenas com olhadas rápidas eu identificava alguns dos prédios nos quais eu tinha investigado casos. O prédio da Capitol Records, projetado para parecer
uma pilha de discos. O Hotel Usher agora estava sendo reformado e transformado em apartamentos de luxo como parte do projeto de revitalização e desenvolvimento
do centro de Hollywood. Eu via as casas iluminadas que subiam as encostas
em Beechwood Canyon e Whitley Hights. Via a imagem de dez andares
147
de altura de uma lenda do basquete na lateral de um prédio que, sem ele, nada tinha de marcante. Menor em estatura, mas também cobrindo toda a lateral de um
prédio, havia o homem do Marlboro com um cigarro pendurado na boca, o ar rústico e durão substituído por um símbolo de impotência.
Hollywood sempre ficava mais bonita à noite. Só podia manter sua mística na escuridão. À luz do sol, a cortina se ergue e a intriga desaparece, substituída por uma
sensação de perigo escondido. Era um lugar de vigaristas e viciados, de sonhos e calçadas destruídos. Você constrói uma cidade no deserto, rega-a com esperanças
e ídolos falsos, e isso é o que acaba acontecendo. O deserto a reclama de volta, torna-a árida, estéril. Arbustos humanos ressecados são soprados sem rumo pelas
ruas, os predadores escondidos atrás das pedras.
Peguei a saída da Mulholland, segui pela auto-estrada e, então, no cruzamento, peguei a Woodrow Wilson para subir a montanha. Minha casa estava escura. A única luz
que vi quando entrei pela porta que dava na garagem foi o brilho vermelho da secretária eletrônica sobre a bancada da cozinha. Apertei o interruptor e então o botão
para ouvir as mensagens.
Havia dois recados. O primeiro de Kiz Rider, e ela já tinha me contado sobre ele. O segundo era de Lawton Cross. Ele havia omitido mais uma coisa. Disse que tinha
algo para mim, a voz rouca no fone como estática. Visualizei sua mulher segurando o telefone junto da boca dele.
A mensagem fora deixada duas horas antes. Estava tarde, mas liguei de volta. O homem vivia em uma cadeira. O que seria tarde para ele? Eu não fazia idéia.
Danny Cross atendeu. Ela devia ter um identificador de chamadas porque o alô dela foi curto e parecia carregar um quê de mau humor. Ou eu estava imaginando coisas
demais?
- Danny, é o Harry. Estou retornando a ligação do seu marido.
- Ele está dormindo.
- Você pode acordá-lo, por favor? Parecia importante.
- Eu posso contar o que ele ia dizer a você.
- Tudo bem.
148
- Ele queria dizer que, quando trabalhava, costumava manter cópias dos casos em aberto. Guardava tudo no escritório aqui
em casa.
Não me lembrei de qualquer escritório na casa.
- Cópias completas?
- Não sei. Ele tinha um arquivo cheio de pastas.
-Tinha?
- Hoje ele está onde ficava o escritório. Tirei tudo de lá e guardei na garagem.
Percebi que precisava interromper o fluxo de informação dela. Já haviam sido ditas coisas demais ao telefone. A paranóia estava mostrando novamente sua cara feia.
- Passo aí ainda esta noite - resolvi.
- Não, já é tarde. vou dormir daqui a pouco.
- Chego em meia hora, Danny. Espere por mim. Desliguei o telefone antes que ela pudesse continuar a discutir
minhas intenções. Sem sequer ter passado da cozinha, virei-me e saí de casa, dessa vez deixando a luz acesa.
Uma chuva fraca tinha começado a cair no Vale. A pista ficou escorregadia e fez todo mundo ir mais devagar. Usei toda a meia hora e um pouco mais para chegar na
casa da Melba e, assim que parei diante da entrada de carros, a porta da garagem começou a se levantar. Danny Cross estava à minha espera. Desci do Mercedes e entrei
na garagem.
Era para dois carros e estava uma bagunça de caixas e móveis empilhados. Havia um velho Chevy Malibu com o capo entreaberto como se alguém estivesse trabalhando
no motor e o tivesse baixado sem travar enquanto fazia uma pausa. Acho que me lembrei de algo sobre Lawton Cross ter um carrão esportivo dos anos 60. Mas havia uma
grossa camada de poeira sobre o automóvel e caixas empilhadas em seu teto. Uma coisa certa era que nunca mais iria com ele para o trabalho, ou sequer dirigi-lo
outra vez.
Uma porta que se ligava à casa se abriu e Danny ficou ali de pé vestindo um roupão comprido com uma faixa bem apertada em torno de sua cintura magra. Tinha a mesma
expressão de desaprOvação de sempre no rosto, à qual eu já estava bem acostumado. Uma pena. Ela era uma mulher bonita. Ou, pelo menos, tinha sido.
149
Danny - falei com um aceno de cabeça. - Não vou
demorar. Se você me mostrar...
- Está tudo ali perto da máquina de lavar. Os arquivos.
Ela indicou um ponto em frente ao Malibu onde havia uma lavanderia. Dei a volta no carro e encontrei dois arquivos de duas gavetas ao lado da lavadora e da secadora
cheias. Eram arquivos com trancas, mas as fechaduras tinham sido arrancadas. Provavelmente Lawton os havia comprado de segunda mão.
Não havia identificação exterior nas quatro gavetas que pudessem ajudar em minha busca, então eu me abaixei e abri a primeira gaveta da esquerda. Ela não tinha pastas.
Em lugar disso, guardava o que pareciam ser os objetos que ficavam em cima de uma mesa de trabalho. Havia uma agenda Rolodex com os cartões dos telefones amarelados,
um porta-retratos com uma foto de Danny e Lawton Cross em algum momento mais feliz, e bandejas duplas de entrada e saída de documentos. A única coisa na bandeja
marcada como ENTRADA era um mapa dobrado do Griffith Park.
A gaveta seguinte guardava os arquivos de Lawton. Procurei por nomes nas etiquetas das pastas na esperança de alguma conexão com o que eu estava trabalhando. Nada.
Fui para a gaveta superior do segundo arquivo e achei mais pastas. Finalmente encontrei uma delas com a etiqueta "Eidolon Pictures". Peguei-a e a pousei sobre o
arquivo. Voltei a procurar nas pastas, sabendo que, muitas vezes, um caso se expandia por várias delas.
Encontrei uma pasta identificada como "Antônio Markwell" e me lembrei do caso porque ele tivera grande cobertura de imprensa uns cinco ou seis anos antes. Markwell
era um garoto de nove anos que tinha desaparecido do quintal dos fundos de sua casa em Chatsworth. A Roubos e Homicídios trabalhou no caso com o FBI. Ele durou
uma semana, até que encontraram um suspeito - um Pedófilo que tinha um trailer. Ele levou Lawton Cross e seu
parceiro Jack Dorsey, até o corpo do menino no Griffith Park. Tinha sido enterrado perto das cavernas em Bronson Canyon. Eles jamais o haveriam encontrado se não
tivessem apanhado o assassino. Havia lugares demais para
se esconder um corpo naquelas colinas.
150
151
Tinha sido um caso importante, do tipo que fazia o seu nome no departamento. Eu imaginei que, depois daquilo, Cross e Dorsev acharam que eram feitos de ouro. Não
tinham idéia do que o futuro reservara para eles.
Fechei a gaveta. Não havia outras pastas que parecessem ter alguma conexão com minha investigação. A gaveta de baixo, a última, estava vazia. Levei a pasta que
tinha pego até o Malibu, botei-a sobre o capo e a abri. Devia ter simplesmente posto a pasta embaixo do braço e levado-a comigo. Mas estava empolgado. Estava antecipando
algo. Talvez uma pista nova, uma brecha. Queria ver o que Lawton Cross tinha arquivado.
Assim que abri a pasta vi que estava incompleta. Cross tinha copiado alguns documentos de trabalho do caso para usar em casa ou na estrada. Estavam faltando os relatórios
básicos do inquérito. Não havia relatórios especificamente ligados à investigação do assassinato de Angella Benton. A maior parte do material eram relatórios ligados
ao roubo e ao tiroteio no set de filmagens. Havia depoimentos de testemunhas - incluindo o meu próprio - e relatórios da perícia. Havia uma comparação de DNA entre
o sangue encontrado na van que participou do assalto e o sêmen no corpo de Angella Benton. Não batiam. Havia resumos de interrogatórios e uma planilha de tempo e
locações - um documento no qual as posições-chave de várias pessoas são marcadas em diversas horas importantes para o caso. Esses relatórios de T&L também eram conhecidos
como folhas de álibis. Era uma maneira de examinar várias pessoas ligadas a um caso e, possivelmente, encontrar um suspeito.
Passei a vista nas páginas daquele relatório e vi que Cross e Dorsey tinham registrado onze pessoas diferentes. E eu não estava familiarizado com todos os nomes.
O relatório de T&L era um bom achado. Separei o documento porque iria guardá-lo no topo da pilha quando tivesse terminado de examinar a pasta.
Segui em frente e tinha acabado de pegar uma cópia do relatório com números de série, quando ouvi a voz de Danny atrás de mim. Ela tinha ficado na porta da casa
me observando e eu não percebi.
- Encontrou o que estava procurando?
Virei-me e olhei para ela. A primeira coisa que percebi foi que a faixa do roupão estava desamarrada e ele estava aberto, revelando por baixo uma camisola azul-clara.
- Ah, achei, sim. Estava só dando uma olhada rápida. Se você quiser, posso ir embora agora.
- Qual é a pressa? Lawton ainda está dormindo. Não vai acordar até de manhã.
Ela olhou fixamente nos meus olhos ao dizer a última frase. Tentei entender o que tinha sido dito e o que isso significava. Antes que eu pudesse responder, o momento
foi quebrado pelo som e as luzes de um automóvel que vinha correndo e parou na entrada da garagem.
Virei-me e vi um carro padrão usado pelo governo - um Crown Victoria - entrando na luz da garagem aberta. Havia dois homens no carro e reconheci o que estava no
banco do carona. com o mínimo de movimento que consegui fazer, baixei o relatório das notas até o de T&L. Então peguei os dois documentos e enfiei-os no espaço
entre o capo e o pára-lama do Malibu. Ouvi as páginas caírem pela fenda no compartimento do motor. Então afastei-me do carro, deixando aberto o resto do arquivo
sobre ele, e dei a volta até a porta aberta da garagem.
Um segundo Crown Victoria parou na entrada. Os dois homens do primeiro já tinham saltado e estavam entrando na garagem.
- FBI - anunciou o homem que reconheci como o Parenting Today.
Ele exibia na mão uma carteira de identificação presa a um distintivo. Fechou aquilo rapidamente e guardou.
- Como estão as crianças? - perguntei.
Ele pareceu confuso por um momento e aquilo fez com que Parasse de andar por um instante, mas logo retomou o passo e assumiu uma posição à minha frente, enquanto
seu parceiro, que não tinha mostrado um distintivo, ficou um ou dois metros à minha direita.
- Sr. Bosch, vamos precisar que o senhor nos acompanhe Pediu o Parenting Today.
152
153
- Bem, estou um pouco ocupado, agora, tentando dar um. jeito nessa garagem.
O agente olhou por cima do meu ombro para Danny Cross.
- A senhora podia, por favor, voltar lá para dentro e fechar a porta? Nós já vamos embora.
- Esta é minha garagem, minha casa - respondeu Danny. Sabia que o protesto dela seria infrutífero, mas, ainda assim,
gostei de ela ter feito aquilo.
- Senhora, isso aqui é assunto do FBI. Não é da sua conta. Por favor, entre.
- Se é na minha garagem, é da minha conta.
- Senhora, eu não vou pedir de novo.
Houve uma pausa. Mantive meus olhos no agente. Ouvi a porta fechar-se às minhas costas e sabia que minha testemunha tinha ido embora. Na mesma hora o agente à minha
direita fez um movimento. Ergueu as duas mãos e me atacou, me empurrando contra a lateral do Malibu. Meu ombro deslizou pelo teto e acertou uma caixa, arremessando-a
do outro lado do carro e fazendo com que se espatifasse no chão. Fez um barulho como se estivesse cheia de vidro.
O agente tinha muita prática e eu não ofereci resistência. Sabia que seria um erro. Era o que ele queria. Ele pressionou meu peito com força contra o carro e puxou
os braços para trás. Senti as algemas se fecharem apertadas em torno dos pulsos, então as mãos dele me apalparam em busca de armas e invadiram meus bolsos em uma
revista de rotina.
- O que você está fazendo? O que está acontecendo? Era Danny. Tinha ouvido o barulho.
- Senhora - insistiu consternado o Parenting Today - volte lá para dentro e feche a porta.
O outro agente arrancou-me com força de perto do carro e me empurrou para fora da garagem na direção do segundo automóvel. Olhei de volta para Danny Cross no momento
em que ela fechava a porta. O olhar de desaprovação ao qual eu estava tão acostumado não estava lá. Agora havia uma expressão de preocupação no
rosto dela. Também vi que a faixa do roupão tinha sido novamente amarrada.
O agente silencioso abriu a porta traseira do segundo carro e começou a me empurrar para dentro.
- Cuidado com a cabeça - disse quando botou a mão no meu pescoço e empurrou minha cabeça com força para o carro. Caí estatelado no banco traseiro. Ele bateu a
porta, errando por pouco meu tornozelo. Quase pude ouvir um resmungo de desapontamento através do vidro.
Ele bateu com o punho no teto e o motorista engatou a marcha ré e acelerou forte. O carro deu um arranco para trás e o movimento repentino me derrubou do banco
para o chão. Não consegui impedir a queda e meu rosto bateu com força no chão pegajoso. com as mãos para trás, me esforcei para voltar para o assento. Mas fiz
aquilo rapidamente, minha luta alimentada por minha raiva e vergonha. Sentei-me no momento em que o carro arrancou e fui jogado para trás. O carro acelerou e se
afastou da casa. Pelo vidro traseiro eu podia ver o Parenting Today de pé na garagem olhando para mim. Ele estava com as pastas de Lawton Cross.
Respirei fundo e vi o agente ir diminuindo na janela. Ainda podia sentir a sensação de aspereza do carpete do carro no rosto e nada podia fazer em relação a isso.
Meu rosto queimava. Não de dor e não mais de raiva e vergonha. Era apenas a impotência que me queimava agora.
Capítulo 19
A meio caminho de Westwood parei de falar com eles. Era inútil. E eu sabia, mas tinha passado vinte minutos martelando-os com perguntas, depois ameaças veladas.
Mas não importava o que eu dizia, não havia resposta. Quando finalmente chegamos ao edifício federal, o carro do FBI entrou em uma garagem subterrânea e eu fui arrancado
dele e enfiado em um elevador identificado como "Somente Transporte de Segurança". Um dos agentes enfiou um cartão em uma abertura no painel de controle e apertou
o botão do nono. Enquanto o cubo de aço inoxidável subia, pensei sobre o quanto havia caído sem o distintivo. Não tinha influência com aqueles homens. Eles eram
agentes, e eu, nada. Eles podiam fazer o que quisessem comigo e nós todos sabíamos disso.
- Não consigo sentir os meus dedos. As algemas estão apertadas demais.
- Ótimo - respondeu um dos agentes, as primeiras palavras que dirigia a mim naquela noite.
As portas se abriram e cada um pegou um dos meus braços e me arrastou para o corredor. Chegamos a uma porta que um deles abriu
com um cartão magnético e então seguimos um corredor até outra Porta, esta com uma fechadura de segredo.
- Vire-se - falou um dos agentes.
- O quê?
156
157
- Vire-se de costas para a porta.
Segui as instruções e fui virado de costas enquanto o outro agente girava a combinação. Então entramos em um corredor pouco iluminado com muitas portas de janelinhas
quadradas na altura do rosto. Primeiro pensei que fossem salas de interrogatório, mas então percebi que havia muitas. Eram celas. Virei a cabeça para ver através
de algumas janelas pelas quais passávamos e em duas delas vi homens olhando de volta para mim. Tinham pele escura e eram originários do Oriente Médio. Tinham barbas
despenteadas. Por uma terceira vi um homem pequeno olhando para fora, os olhos mal alcançando a parte de baixo da janelinha. Tinha cabelo pintado de louro com um
centímetro de negro nas raízes. Eu o reconheci das fotos que tinha visto no computador da biblioteca. Mousouwa Aziz.
Paramos em frente à porta número 29, e uma mão invisível abriu-a eletronicamente. Um dos agentes deu um passo para trás de mim e eu o escutei enfiar a chave nas
algemas. Já não conseguia mais sentir o movimento. Logo meus pulsos estavam livres e levei as mãos à frente do corpo para esfregá-las e fazer a circulação voltar.
Elas estavam brancas como sabão, e havia uma marca vermelha profunda em torno dos pulsos. Sempre achei que algemar um suspeito apertado demais era coisa de babaca.
Assim como bater a cabeça de um preso na porta do carro. Fácil de fazer sem arranjar problemas. Mas é sempre uma babaquice. Atitude de gente metida a valente. Típico
de quem gostava de provocar os garotos mais novos na escola.
Quando um formigamento foi chegando às minhas mãos, uma sensação de raiva começou a queimar por trás de meus olhos, nublando minha visão com um negror aveludado.
Naquela escuridão havia uma voz que exigia que eu reagisse. Consegui ignorá-la. Tudo era uma questão de poder, e de quando usá-lo. Aqueles caras ainda não sabiam
disso.
Fui empurrado para dentro da cela e, involuntariamente, me segurei à porta. Não queria entrar ali. Então um chute forte me acertou na parte de trás do joelho esquerdo.
Minha perna dobrou e rui arremessado para a frente, pelo empurrão de um braço forte às
costas. Atravessei a pequena cela até a parede oposta e me apoiei nela com as mãos para interromper meu movimento à frente. Sinta-se em casa, babaca - exclamou um
agente às minhas costas.
A porta foi batida antes que eu pudesse voltar até ela. Fiquei ali olhando para o vidro quadrado e percebi que os outros prisioneiros que eu tinha visto no corredor
estavam olhando para si mesmos. O vidro era espelhado.
Meu instinto me dizia que o agente que tinha me chutado e empurrado estava do outro lado olhando para mim. Balancei a cabeça para ele, enviando a mensagem que não
iria esquecê-lo. Provavelmente ele estava rindo de mim.
A luz na cela ficou acesa. Acabei me afastando da porta e olhei ao redor. Havia um colchão de dois centímetros de espessura em cima de uma espécie de prateleira
que se projetava da parede. Em frente havia um conjunto de pia e vaso sanitário. Não havia nada mais além de uma caixa de metal em um dos cantos do teto com uma
janelinha de cinco centímetros, atrás da qual eu podia ver as lentes de uma câmera. Eu estava sendo vigiado. Mesmo quando usasse a privada estaria sendo observado.
Tentei ver as horas, mas agora estava sem relógio. Em algum momento eles conseguiram tirá-lo de mim, provavelmente quando soltaram as algemas e meus pulsos estavam
tão dormentes que não senti o roubo.
Passei o que achei ser a primeira hora do meu encarceramento andando pelo espaço reduzido e tentando manter minha raiva evidente, mas sob controle. Andava sem qualquer
padrão definido além de usar todo o espaço, e quando chegava ao canto onde estaVa a câmera, erguia o dedo médio da mão esquerda para a lente. Todas as vezes.
Na segunda hora eu me sentei no colchão, determinado a não
1me exaurir de tanto andar e tentando manter o controle do tempo. As vezes ainda mostrava o dedo para a câmera, geralmente sem Sequer me incomodar em olhar para
ela ao fazer o gesto. Comecei a lembrar de histórias em salas de interrogatório para passar o
tempo- Lembrei de um cara que tínhamos detido como suspeito em um
158
159
caso de tráfico de drogas. Nosso plano era deixar o sujeito mofando um pouco antes de entrarmos na sala para tentar dobrá-lo. Mas logo depois de ser posto lá dentro
ele tirou as calças, amarrou as pernas delas em torno do pescoço e tentou se enforcar pendurado na luminária do teto. Eles chegaram a tempo e o homem foi salvo.
Protestou dizendo que preferia se matar do que passar outra hora naquela sala. Ele só tinha ficado ali vinte minutos.
Comecei a rir sozinho e então me lembrei de outra história, e essa não era tão engraçada. Um homem, testemunha secundária de um grande roubo a mão armada, foi levado
para a sala e interrogado sobre o que tinha visto. Era uma tarde de sexta-feira. Ele era um imigrante ilegal e estava se borrando de medo, mas não era suspeito,
e para mandá-lo de volta para o México ia ser preciso dar muitos telefonemas e passar por muita burocracia. Tudo o que o detetive queria era a informação. Mas antes
de consegui-la, o detetive foi chamado. Ele disse ao homem para esperá-lo sentado ali e saiu da sala. Só que nunca voltou. Novidades importantes no caso o levaram
novamente para o campo e ele acabou se esquecendo da testemunha. Na manhã de domingo, outro detetive que tinha ido lá para fazer trabalhos atrasados ouviu o barulho
de uma batida. Abriu a sala de interrogatório e encontrou a testemunha ainda ali. Ele havia pego copos de plástico vazios no lixo e os enchera de urina, mas, como
tinha sido instruído, não deixara a sala, que estava destrancada.
A recordação dessa história me deixou mal-humorado. Depois de um tempo, tirei o paletó e deitei outra vez no colchão. Botei o paletó sobre os olhos para tentar bloquear
a luz. Tentei dar a impressão de que estava dormindo, que não ligava para o que estavam fazendo comigo. Mas não estava dormindo e, provavelmente, eles sabiam disso.
Eu já havia visto aquilo antes, quando ficava do outro lado do vidro.
Finalmente, tentei me concentrar no caso. Repassei todos os últimos acontecimentos pela minha cabeça e procurei ver
como eles se encaixavam. Por que o FBI tinha entrado? Por eu ter uma cópia do arquivo de Lawton Cross? Não parecia provável.
Achei que tinha tocado em algum ponto sensível na biblioteca, quando
pesquisei reportagens sobre Mousouwa Aziz. Eles tinham falado com a bibliotecária ou checado o computador - novas leis permitiam que o fizessem. Foi isso o que
chamou a atenção deles. Era sobre isso que estavam querendo saber.
Depois do que calculei ser umas quatro horas dentro da sala de interrogatório, a fechadura eletrônica destrancou-se e a porta se abriu. Tirei o paletó do rosto e
sentei-me no momento em que um agente que eu não tinha visto antes entrou. Ele carregava uma pasta e uma xícara de café. O agente que eu chamava de Parenting Today
estava atrás dele, de pé, com uma cadeira de aço.
- Não se levante - instruiu o primeiro agente. Eu me levantei assim mesmo.
- Que diabos é...
- Eu disse para não levantar. Senta de novo ou eu vou embora e a gente tenta de novo amanhã.
Hesitei por um momento, mantendo minha pose de homem com raiva, e então sentei no colchão. O Parenting Today botou a cadeira no chão perto da entrada, saiu da cela
e fechou a porta. O agente que ficou sentou e pousou o café fumegante no chão.
- Sou o agente federal especial John Peoples, do FBI.
- bom para você. O que eu estou fazendo aqui?
- Você está aqui porque não escuta.
Ele olhou nos meus olhos para ter certeza de que eu estava fazendo o que tinha acabado de dizer que não faço. Era da minha idade, talvez um pouco mais velho. Tinha
muito cabelo, um pouco comprido demais para o FBI. Achei que não fazia isso por moda. era apenas ocupado demais para cortá-lo de maneira adequada.
Os olhos dele eram impressionantes. Todo rosto tem um detalhe magnético que atrai você. Um nariz, uma cicatriz, uma covinha no queixo. com Peoples, tudo levava
aos seus olhos. Eram profundos e escuros. Preocupados. Carregavam um fardo misterioso.
- Disseram para você ficar no seu lugar, Sr. Bosch - continuou ele. - Falaram de forma bem explícita que deixasse as coisas
em paz e mesmo assim nós estamos aqui.
- Pode responder a uma pergunta?
- Posso tentar. Se não for informação confidencial.
160
- O meu relógio é confidencial? Onde está meu relógio? Eu ganhei quando me aposentei e quero ele de volta.
- Sr. Bosch, esqueça o relógio por enquanto. Estou tentando botar uma coisa nessa sua cabeça dura, mas você não quer entender, não é?
Ele pegou o café e tomou um gole. Fez uma careta quando queimou a boca. Botou o copo outra vez no chão.
- Há coisas mais importantes em andamento aqui do que sua investigação particular e seu relógio de aposentadoria de cem dólares.
Fiz uma expressão de surpresa.
- Você acha mesmo que só gastaram isso depois desses anos todos?
Peoples franziu a testa e sacudiu a cabeça.
- Você não está se ajudando em nada assim, Sr. Bosch. Está comprometendo uma investigação vital para este país e tudo o que faz é tentar mostrar como é esperto.
- Isso é aquele negócio de segurança nacional, certo? É isso, não é? Bem, agente federal especial Peoples, é melhor deixar esse papo para uma próxima. Não acho que
uma investigação de assassinato não seja importante. Não dá para ser tolerante quando se trata de assassinato.
Peoples se levantou e andou em minha direção até olhar de cima, direto para mim. Ele inclinou-se sobre a cama e apoiou a mão direita conta a parede.
- Hieronymus Bosch - gritou, pronunciando corretamente o nome. - Você está passando dos limites! Está dirigindo na contramão em uma rua de mão única! Está entendendo?
Ele então virou-se e voltou para sua cadeira. Quase ri do teatro e por um instante achei que ele não tinha se dado conta de que eu havia passado 25 anos da minha
vida trabalhando em salas como aquela.
- Será que estou conseguindo fazer você entender? - continuou Peoples, a voz dele novamente calma. - Você não é um tira. Não tem mais um distintivo. Você não tem
um cargo, não tem um caso. Você não tem autoridade.
161
- Este costumava ser um país livre. Isso era autoridade suficiente.
- Este não é mais o país que costumava ser. As coisas mudaram. Ele estendeu a pasta que tinha nas mãos em minha direção.
- O assassinato dessa mulher é importante, claro que é. Mas há outras coisas em jogo aqui. Assuntos mais importantes. Você tem que sair fora, Sr. Bosch. Este é o
último aviso. Caia fora. Ou nós vamos tirar você. E não vai gostar nada disso.
- Aposto que vou acabar aqui outra vez, certo? com Mouse e os outros? Os outros combatentes inimigos? Não é assim que vocês os chamam? Será que alguém sabe da existência
deste lugar aqui, agente Peoples? Alguém de fora de seu esquadrãozinho NIM?
Por um momento ele pareceu surpreso por eu conhecer e usar aquele termo.
- Quando vocês me trouxeram para cá, reconheci Mouse. Eu observei as janelinhas.
- E por isso você acha que sabe o que está acontecendo aqui?
- Vocês estão trabalhando no cara. Isso é óbvio e está bem. Mas e se ele for o mesmo sujeito que matou Angella Benton? E se matou o segurança do banco? E se também
matou uma agente do FBI? Você não liga para o que aconteceu com Martha Gessler? Ela era uma das suas. O mundo mudou tanto assim? Um agente especial não é mais especial
sob essas novas regras de vocês? Ou os limites variam de acordo com a conveniência? Eu sou um combatente inimigo, agente Peoples?
Percebi que tinha acertado. Minhas palavras abriram uma velha ferida, se não um velho debate. Mas então uma decisão tomou conta de seu rosto. Ele abriu a pasta que
tinha em mãos e tirou a impressão que eu fizera na biblioteca. Eu podia ver a foto de arquivo de Aziz.
- Como você soube disso? Como fez esta conexão?
- Por vocês.
- De que você está falando? Ninguém aqui jamais iria contar ttada a você...
- Não precisaram. Vi o seu homem me seguindo na biblioteCa - Anote isso... ele não é tão bom. Diga a ele para tentar uma
162
revista de esportes da próxima vez. Soube que havia algo ali, então fiz uma busca nos arquivos de jornais e descobri isso. Imprimi porque sabia que podia fazer com
que vocês mostrassem a cara. E fez. Pessoas como vocês são muito previsíveis.
- Enfim, então, vi o Mouse quando vocês estavam me levando pelo corredor e meio que juntei as coisas. O dinheiro do assalto estava embaixo do banco do carro dele
quando vocês o prenderam. Mas vocês não se importam com os dois ou talvez três assassinatos ligados a ele. Só querem saber para onde estava indo o dinheiro. E não
querem que uma coisinha como a justiça pelos mortos atrapalhe.
Peoples guardou devagar a folha impressa dentro da pasta. Pude notar a mudança em sua expressão, que estava ficando mais sombria em torno dos olhos. Minhas palavras
tinham atingido um nervo.
- Você não tem idéia de como é o mundo lá fora ou o que estamos fazendo aqui em relação a isso - respondeu ele. - Você pode ficar sentado tirando onda com essas
suas idéias de justiça, mas não tem a mínima idéia do que está acontecendo lá fora.
Minha resposta àquilo foi um sorriso. Minhas palavras saíram imediatamente.
- Guarde esse discurso para os políticos que mudam as leis para vocês até que um dia não haja mais leis. Até que uma coisa como a justiça por uma vítima de assassinato
e uma mulher violada não façam a menor diferença. E isso o que está acontecendo aqui.
Peoples se inclinou para a frente. Estava prestes a perder o controle e queria ter certeza absoluta de que eu tinha entendido.
- Você sabe aonde Aziz estava indo com o dinheiro? Nós não sabemos, mas posso dizer a você aonde eu acho que ele estava indoPara um campo de treinamento. Um campo
de treinamento de terroristas. E eu não estou falando no Afeganistão. Estou falando de algumas centenas de quilômetros de nossa fronteira. Um lugar onde treinam
pessoas para nos matar. Em nossos prédios, nossos aviões. Em nosso sono. Para atravessar aquela fronteira e nos matar com um desrespeito cego por quem somos e as
coisas em que
163
acreditamos. Você vai me dizer que estou errado, que não devíamos fazer todo o possível para encontrar um lugar como esse se ele existir? Que não devíamos tomar
todas as medidas necessárias com aquele homem para extrair dele a informação de que precisamos?
Eu me recostei atravessado sobre o colchão até que minhas costas se apoiaram contra a parede. Se eu tivesse uma xícara de café, não a teria ignorado como ele estava
ignorando a dele.
- Não estou falando nada demais - rebati. - Todo mundo tem que cumprir o seu dever.
- Maravilha - falou com sarcasmo. - Palavras sábias. vou pendurar uma placa com elas na parede do meu escritório.
- Sabe, uma vez estava em um julgamento e a advogada do outro lado disse uma coisa que tento nunca esquecer. Ela citou um filósofo cujo nome não me lembro agora...
Tenho anotado em algum lugar em casa. Mas esse cara disse que, quem quer que esteja lá fora combatendo os monstros da nossa sociedade, tem de tomar muito cuidado
para não se transformar em monstro. Sabe, porque aí tudo estaria perdido. Então não teríamos mais uma sociedade. Sempre achei que essa era uma boa frase.
- Nietzsche. E você falou a frase quase certa.
- Dizer as palavras certas não é o mais importante. Importante é lembrar o que elas significam.
Peoples enfiou a mão no bolso do paletó. Tirou meu relógio. Jogou-o para mim e eu comecei a botá-lo no pulso. Olhei para o rnostrador. Os ponteiros do relógio estavam
sobre um distintivo dourado de detetive com o símbolo da cidade. Vi a hora e notei que tinha ficado ali no cubículo por mais tempo do que pensara. Estava Quase
amanhecendo.
- Vá embora, Bosch - disse ele. - Se cruzar nosso caminho outra vez nesse negócio, você vai voltar para cá mais rápido do que Pode imaginar. E ninguém vai saber
que você está aqui.
A ameaça era óbvia.
- vou me tornar mais um desaparecido, hein? -- Você pode chamar isso como quiser.
164
Peoples ergueu a mão acima da cabeça para que a câmera a visse. Girou um dedo no ar e a fechadura elétrica da porta fez um claque e se abriu alguns centímetros.
Eu me levantei.
- Vá - repetiu Peoples. - Alguém vai conduzi-lo até lá fora. Eu estou dando uma chance a você, Bosch. Lembre-se disso.
Eu me dirigi para a porta mas hesitei quando passei por ele. Baixei os olhos até ele e a pasta que ainda estava segurando.
- Imagino que você deve ter me limpado. Pegou meus arquivos e os de Lawton Cross também.
- Você não vai ver isso de novo.
- Certo, entendi. Segurança nacional. Eu só ia dizer para você dar uma olhada nas fotos. Encontre uma das fotos de Angella no chão. Veja as mãos dela, cara.
Fui na direção da porta aberta.
- E sobre as outras mãos? - perguntou às minhas costas.
- Só olhe para as mãos dela. Foi como a encontramos. Você vai saber, então, do que estou falando.
Parenting Today estava me esperando no corredor.
- Por aqui - indicou, lacônico, e percebi que ele estava desapontado por eu ter sido liberado.
Na metade do corredor, procurei por Mousouwa Aziz em uma das janelinhas quadradas, mas não o vi. Eu me perguntei se por acaso não tinha olhado no rosto do assassino
que estava procurando e se aquela seria a única olhada que daria, pois nunca mais chegaria perto. Sabia que, enquanto ele estivesse ali, eu não iria pegá-lo, literal
ou legalmente. Ele estava perdido para mim. Estava entre os desaparecidos. O beco sem saída definitivo.
Saímos por duas portas eletrônicas e então cheguei num hall onde havia um elevador sem botão para apertar. O Parenting Today ergueu os olhos para uma câmera no canto
do teto e girou um dedo estendido no ar. Ouvi o elevador chegar.
Quando as portas se abriram, ele continuou me acompanhando. Descemos até o subsolo, mas não até um carro. Ele gritou
165
ao garagista para abrir o portão e andou comigo pela rampa. Quando a porta se levantou, fui atingido pela luz solar e cerrei os olhos.
- Acho que você não vai me dar uma carona para casa no seu carro.
- Você pode achar o que quiser. Tenha um bom dia.
Ele me deixou ali no alto da rampa e voltou pelo portão antes que se fechasse outra vez. Olhei para ele enquanto descia sob a cortina de aço que baixava. Tentei
pensar em uma frase inteligente que pudesse gritar para ele, mas estava cansado demais e dei de ombros.

Capítulo 20
O FBI tinha passado na minha casa. Aquilo era esperado. Mas os agentes foram sutis. O lugar não havia sido completamente bagunçado para que eu o arrumasse de volta.
Passara por uma revista metódica, mas a maioria das coisas estava exatamente no mesmo lugar. A mesa da sala de jantar, onde eu deixara as pastas relacionadas ao
assassinato de Angella Benton, tinha sido limpa. Pareciam até ter lustrado a superfície vazia quando terminaram, para compensar. Não me deixaram qualquer coisa.
Minhas anotações, pastas e relatórios tinham sumido e parecia que ia ficar por isso mesmo. Eu não permaneceria remoendo aquilo. Olhei para meu reflexo embaçado na
superfície polida da mesa por alguns instantes e então decidi que precisava dormir antes de fazer o movimento seguinte.
Peguei uma garrafa d'água na geladeira e fui até o deque dos fundos pela porta de correr, para ver o sol se erguer acima das colinas. A almofada da espreguiçadeira
estava coberta de sereno, então eu a virei e me sentei. Botei as pernas para cima e deitei-me sobre o conforto macio. O ar estava fresco, mas eu ainda usava paletó.
Botei a garrafa d'água sobre o braço da espreguiçadeira e enfiei as mãos nos bolsos do paletó. Era bom estar em casa depois de uma noite em cana.
O sol estava começando a realçar o contorno das serras do outro lado da Cahuenga Pass. O céu estava cheio de uma luz difusa
168
169
enquanto seus raios refletiam bilhões de partículas microscópicas que flutuavam no ar. Logo, eu ia precisar de óculos escuros, mas estava muito ocupado para me levantar
e pegá-los. Em vez disso, fechei os olhos e dormi. Sonhei com Angella Benton, com suas mãos, com uma mulher que nunca conheci, mas que vivia em meus sonhos e
tentava se comunicar comigo.
Levantei algumas horas mais tarde com o sol queimando através de minhas pálpebras. Logo percebi que a batida que achei que estava em minha cabeça na verdade vinha
da porta da frente. Levantei, derrubando do braço da espreguiçadeira a garrafa d'água vazia ainda fechada. Tentei agarrá-la, mas não consegui. Ela rolou pelo deque
e caiu nas moitas embaixo. Fui até o parapeito e olhei para lá. Colunas de aço mantinham minha casa projetada sobre o desfiladeiro. Não consegui ver a garrafa.
Quem quer que estivesse do lado de fora bateu outra vez e então ouvi uma versão abafada de meu nome. Saí do deque e entrei em casa, cruzei a sala de estar e fui
até o hall de entrada. Ele estava batendo na porta outra vez quando eu finalmente a abri. Era Roy Lindell, e não estava sorrindo.
- Sai da frente, Bosch.
Tentou me afastar para entrar na casa, mas botei minha mão no peito dele e o empurrei para trás. Sacudi a cabeça e ele captou a mensagem. Apontou para dentro e botou
um ponto de interrogação nos olhos. Assenti com a cabeça e saí pela porta, fechando-a atrás de mim.
- Vamos pegar meu carro - disse ele em uma voz baixa.
- bom. Porque o meu está em Woodland Hills.
O carro oficial dele estava estacionado em local proibido no meio-fio em frente. Entramos e subimos a Woodrow Wilson até a curva que faz a volta na direção da Mulholland.
Não achei que ele estava me levando a lugar algum. Estávamos apenas rodando.
- O que aconteceu com você? - perguntou. - Ouvi uma história de que você foi pego ontem à noite.
- E isso mesmo. Pelo seu esquadrão NIM. Poderia realmente dizer que eles não se importaram com os meios.
mdell olhou para mim e então de volta para a pista.
- Você não parece muito mal. Está até com o rosto um pouco corado.
-- Obrigado por notar, Roy. Agora, o que você quer?
- Você acha que eles grampearam a sua casa?
- Provavelmente. Ainda não tive tempo para checar. O que você quer? Aonde estamos indo?
Eu achava, porém, que sabia. A Mulholland serpenteia em torno do morro até um mirante de onde se pode avistar, dependendo do nível de poluição, da baía de Santa
Monica até as torres do centro da cidade.
Como eu esperava, Lindell entrou no pequeno estacionamento e parou ao lado de uma Kombi fora de moda há três décadas. O smog estava forte. A vista não ia muito além
do edifício da Capitol Records.
- Vá direto ao ponto, é isso? - começou Lindell, girando no assento em minha direção. - Está bem, vou direto. O que está acontecendo com a investigação?
Olhei para ele por um bom tempo, tentando adivinhar se tinha aparecido por causa de Marty Gessler ou como um prosseguimento do trabalho do agente especial Peoples.
Como um teste para determinar se eu estava mesmo fora do caso. Claro que Lindell e Peoples eram animais diferentes de andares diferentes do prédio federal. Mas os
dois carregavam o mesmo distintivo. E não dava para dizer que tipo de pressão tinham feito em cima de Lindell.
- O que está acontecendo é que não há mais investigação.
- O quê? Você está de sacanagem comigo?
- Não, não estou de sacanagem com você. Pode-se dizer que eu vi a luz. Fizeram com que eu a visse.
- Então o que você vai fazer, vai deixar pra lá?
- Isso mesmo. vou pegar o meu carro e sair de férias. Acho que para Vegas. Já comecei a me bronzear hoje de manhã. Posso até Perder meu dinheiro, também.
Lindell sorriu como se fosse inteligente. - Vá se foder - rebateu. - Sei o que você está fazendo. Acha que eu fui mandado para testar você, não é? Bem, vá se foder.
170
- Que bom, Roy. Agora você pode me levar de volta? Tenho de fazer as malas.
- Não até você me contar o que realmente está acontecendo. Abri a porta.
- Está bem, eu posso ir andando. Preciso fazer exercício. Desci do carro e então comecei a caminhar na direção da
Mulholland. Lindell abriu a porta do lado dele com força e acertou a lateral da Kombi velha. Ele veio correndo atrás de mim.
- Bosch, me escute.
Ele me alcançou e se deteve na minha frente, bem perto, me forçando a parar. Fechou as duas mãos e as levou para a frente do peito como se estivesse tentando arrebentar
uma corrente que o prendesse.
- Harry, estou aqui por conta própria. Não fui mandado por ninguém, está bem? Não deixe esse caso. Esses caras lá provavelmente estão apenas tentando assustar você,
é só isso.
- Diga isso para as pessoas que eles estão segurando lá. Eu não estou muito a fim de desaparecer, Roy. Está entendendo?
- Não fode. Você nunca foi o tipo de cara que iria...
- Ei! Babaca!
Virei-me com o som da voz e vi dois homens descerem pela porta deslizante lateral da Kombi. Eram cabeludos e barbudos, e pareciam mais apropriados para uma Harley,
não uma van de hippies.
- Você amassou a porra da porta - gritou o segundo homem.
- Como você pode ter certeza? - devolveu Lindell.
Lá vamos nós, pensei. Olhei além dos dois grandalhões que se aproximavam e vi um amassado de uns dez centímetros na porta do carona da Kombi. A porta de Lindell
ainda estava aberta e tocava o local, uma prova evidente de culpa.
- Você acha que é uma piada? - rebateu o primeiro margi' nal. - Que tal se a gente fizer um amassado na sua cara?
Lindell levou a mão às costas e com um movimento rápido ela ressurgiu de baixo de seu paletó com uma pistola. com a outra ele agarrou o primeiro sujeito pela
camisa e o puxou para a frente, arrancando um punhado de barba no processo. A pistola foi levantada e o cano foi apertado contra a garganta do homem mais alto-
171
Que tal se você e o David Crosby aí voltarem para aquela
merda de vocês e caírem fora como dois hippies bonzinhos?
- Roy - intervim -, calma.
- O cheiro de maconha agora tinha chegado da van até nós. Fez-se uma longa pausa enquanto Lindell mantinha os olhos no primeiro elemento. O segundo ficou perto,
observando, mas incapaz de fazer um movimento por causa da arma.
- Está bem, cara - concordou, enfim, o primeiro sujeito. Tudo bem. Vamos cair fora daqui.
Lindell o empurrou para longe e baixou a arma.
- É, isso mesmo. Caiam fora. Vão fumar o cachimbo da paz em outro lugar.
Ficamos olhando em silêncio enquanto eles voltavam para a Kombi, o segundo homem batendo com força a porta de Lindell para conseguir entrar no banco do carona.
Ligaram o motor e o carro foi embora, pegando a Mulholland. Os gestos de praxe foram feitos tanto pelo motorista quanto pelo passageiro, e então eles sumiram. Pensei
sobre mim mesmo apenas algumas horas antes fazendo a mesma saudação para a câmera na cela. Sabia como os dois homens na Kombi se sentiam impotentes.
Lindell voltou sua atenção para mim.
- Essa foi boa, Roy - falei para ele. - com habilidades como essa, é uma surpresa que não tenham requisitado você para um show no nono andar.
- Fodam-se esses caras.
- É assim que eu estava me sentindo há algumas horas.
- Então, como vai ser, Bosch?
Ele tinha acabado de sacar a arma para dois estranhos em uma quase colisão violenta de níveis altos de testosterona, mas já estava outra vez sob controle. A superfície,
calma. O incidente tinha saído de sua tela de radar depois de uma única varredura. Era uma característica que, no passado, eu tinha visto mais vezes em psicoPatas.
Eu queria dar a Lindell o benefício da dúvida, por isso atribuí aquilo à arrogância federal que eu também já tinha visto como Uln traço genético característico dos
homens do FBI.
- Você fica, ou vai correr?
172
Aquilo me deixou com raiva, mas tentei não demonstrar. Dei um leve sorriso.
- Nenhum dos dois - respondi. - vou andar.
Virei-me e deixei-o ali. Comecei a subir a Mulholland na direção da Woodrow Wilson e de casa. Ele me xingou muito pelas costas, mas aquilo não fez com que eu diminuísse
o passo.
Capítulo 21
A porta da garagem da casa de Lawton Cross estava aberta e parecia ter ficado assim a noite inteira. Pedi ao táxi que me deixasse na rua ao lado do Mercedes. Não
parecia que tinham mexido no carro, apesar de eu acreditar que tivessem feito isso. Eu o deixara destrancado e ainda estava assim. Botei a bolsa que tinha arrumado
e trazido comigo no banco de trás. Então entrei atrás do volante, liguei o carro e fui até a entrada aberta da garagem.
Depois saí, andei até a porta da casa e apertei um botão que, ou iria tocar uma campainha, ou fechar a porta da garagem. Ele fechou-a. Fui até o Chevy, enfiei minhas
mãos por baixo do capo e senti a trava que o prendia. As molas de aço gemeram alto quando o levantei. Olhei para o motor empoeirado mas limpo, com um filtro de
ar cromado e uma ventoinha que valorizava um bloco de motor pintado de vermelho. Obviamente, Lawton tinha cuidado muito desse carro, e apreciava a beleza de seu
interior tanto quanto a do exterior.
Os documentos da pasta de investigação que eu jogara por baixo do capo na noite anterior tinham sobrevivido à revista do FBI. Caíram e se aninharam por entre os
cabos da ignição à esquerda do bloco do motor. Enquanto eu os recolhia, notei que a bateria do
carro estava desconectada e me perguntei quando aquilo fora feito.
Era algo inteligente a fazer com um carro que não vai ser usado por
174
algum tempo. Lawton provavelmente teria pensado nisso, mas não teria sido capaz de fazer. Talvez Danny o tivesse feito seguindo
suas instruções.
- O que está acontecendo? O que está fazendo, Harry? Virei-me. Danny Cross estava na porta que dava para a casa.
- Oi, Danny. Só voltei para pegar umas coisas que tinha esquecido. Também preciso usar umas ferramentas do Law. Acho que tem um problema no meu carro.
Fiz um gesto para a bancada de trabalho e os suportes de ferramentas paralelos à parede ao lado do Malibu. Havia grande variedade delas e equipamento automotivo
em exibição. Ela sacudiu a cabeça, como se eu tivesse me esquecido de explicar o óbvio.
- E ontem à noite? Eles levaram você. Eu vi as algemas. Os agentes que ficaram disseram que você não ia voltar.
- E uma técnica para assustar, Dan. Só isso. Como você pode ver, estou de volta.
Baixei o capo com uma das mãos, deixando-o entreaberto como o encontrara. Andei até o Mercedes e pela janela joguei os documentos lá dentro no banco do carona.
Então pensei melhor sobre aquilo e abri a porta, levantei o tapete do piso e os guardei ali embaixo. Não era um grande esconderijo, mas por enquanto ia servir. Fechei
a porta e olhei para Danny. - Como está Law?
- Nada bem.
- O que houve?
- Estiveram com ele lá dentro ontem à noite. Não me deixaram entrar e desligaram a babá eletrônica para que eu não pudesse ouvir nada. Mas eles o assustaram. E
a mim também. Quero que você vá embora, Harry. Que vá embora e não volte.
- Como assim, assustaram vocês? O que eles disseram? Ela hesitou e eu sabia que aquilo era parte do medo.
- Disseram para você não falar sobre isso, certo? Não falar para mim.
- Isso mesmo.
- Tudo bem, Danny, não quero causar problemas para vocêMas e Law? Posso falar com ele?
1 175
- Ele disse que não quer mais ver você. Que isso já causou problema demais.
Concordei com um aceno de cabeça e olhei para a bancada de trabalho.
Então me deixe pegar o meu carro para ir embora.
- Eles machucaram você, Harry?
Olhei para ela. Acho que estava realmente preocupada com a resposta.
- Não, eu estou bem.
- Que bom.
- Ah, Danny, preciso pegar uma coisa no quarto do Law. Posso ir lá ou você pega para mim? O que é melhor?
- O que é?
- O relógio.
- O relógio? Mas você deu para ele.
- Eu sei. Mas preciso de volta.
Um olhar de contrariedade surgiu em seu rosto. Achei que o relógio podia ter sido motivo de discussão entre eles e, agora, eu o estava levando de volta.
- Eu pego, mas vou dizer a ele que foi você que o tirou da parede.
Balancei a cabeça. Ela entrou na casa e eu dei uma volta em torno do Malibu e encontrei um carrinho apoiado na bancada. Peguei dois alicates e uma chave de fenda
no suporte de ferramentas e voltei para o Mercedes.
Depois de jogar meu paletó dentro do carro eu deitei no carrinho e deslizei para baixo do Mercedes. Precisei de menos de um minuto para encontrar a caixa-preta.
Um rastreador por satélite do tamanho de um livro de capa dura estava preso ao tanque de gasolina por duas tiras de ímãs. Havia um detalhe no esquema que não tinha
visto antes. Um arame estendido da caixa ao cano de descarga, onde se conectava a um sensor de calor. Quando o cano esquentava, o sensor acionava o rastreador, economizando
a bateria quando o veículo estava parado. Os rapazes do nono andar tinham do bom e do melhor.
176
Resolvi deixar a caixa no lugar e saí de baixo do carro. Danny estava ali, com o relógio nas mãos. Ela tinha tirado o fundo, expondo a câmera.
- Achei que estava pesado demais para um relógio de parede.
- Olha, Danny...
- Você estava nos espionando. Você não acreditou em mim, acreditou?
- Danny, não é por isso que eu quero o relógio. Aqueles homens que vieram aqui depois...
- Mas foi por isso que você o botou na parede. Onde está a fita?
- O quê?
- A fita. Onde você viu isso?
- Não vi. É digital. Está bem aí no relógio.
Aquilo foi um erro. Quando tentei pegar o relógio ela o ergueu acima da cabeça e o atirou no chão de concreto. O vidro espatifouse e a câmera soltou-se da caixa
do relógio e rolou para baixo do Mercedes.
- Droga, Danny. Não é minha.
- Não me importa de quem seja. Você não tinha o direito de fazer isso.
- Olhe, Law me disse que você não estava tratando dele direito. O que eu devia fazer? Aceitar a sua palavra por isso?
Abaixei-me e olhei embaixo do carro. A câmera estava ao meu alcance e eu a peguei. O invólucro estava muito arranhado, mas eu não tinha a mínima condição de avaliar
como estariam seus mecanismos internos. Tirei o chip de memória como Andrew Biggar me ensinara e ele pareceu estar inteiro. Levantei-me e exibi-o para que Danny
o visse.
- Isso aqui talvez seja a única coisa que pode impedir que aqueles homens voltem. E melhor torcer para não estar quebrado.
- Dane-se. E espero que você se divirta com o que assistir aí. Espero que fique muito orgulhoso de você mesmo quando assistir.
Eu não tinha resposta para aquilo.
- Nunca mais volte aqui.
177
Ela fez a volta e entrou na casa, a mão dando um tapa no botão na parede, que levantou a porta da garagem atrás de mim. Ela fechou a porta da casa sem me olhar.
Esperei
um momento para ver se iria voltar e lançar outro ataque verbal contra mim, mas não voltou. Enfiei o chip no bolso e então me abaixei para catar as peças do relógio
quebrado.
Capítulo 22
No aeroporto de Burbank parei o carro no estacionamento de períodos longos, peguei minha bolsa e o transporte até o terminal. No balcão da Southwest, usei um cartão
de crédito para comprar uma passagem de ida e volta para Las Vegas em um vôo que sairia em menos de uma hora. Deixei a volta em aberto. Então fui para a fila do
controle de segurança como todo mundo. Botei minha bolsa na esteira e joguei o relógio, as chaves do carro e o chip de memória da câmera em uma bacia de plástico
para que não acionassem o detector de metais. Percebi que deixara o celular na Mercedes e então pensei que tinha sido melhor assim, pois eles podiam utilizá-lo para
triangular minha posição.
Perto do portão de embarque, parei e comprei um cartão telefônico de 10 dólares e fui com ele até um grupo de telefones públicos. Li as instruções do cartão duas
vezes. Não porque fossem complicadas, mas porque eu estava hesitante. Finalmente peguei o fone e fiz um interurbano. Era um número que eu sabia de cor, mas para
o qual não ligava havia quase um ano.
Ela atendeu após dois toques, mas percebi que a havia acordado. Quase desliguei, sabendo que mesmo se tivesse um bina não seria capaz de descobrir que tinha sido
eu. Mas, depois que falou alô pela segunda vez, eu finalmente respondi.
- Eleanor, sou eu, Harry. Acordei você?
180
181
- Não tem importância. Você está bem?
- Estou bem, sim. Você jogou até tarde?
- Até quase cinco e então fomos tomar café-da-manhã. Estou me sentindo como se tivesse acabado de me deitar. Que horas são?
Disse a ela que passava das dez e ela resmungou. Comecei a perder a confiança no meu plano. Também fiquei preocupado, me perguntando quem seria o "nós" a quem ela
tinha se referido, mas não perguntei. Eu já devia ter passado dessa fase há muito tempo.
- Harry, o que foi? - disse ela, rompendo o silêncio. - Você tem certeza de que está bem?
- Estou bem, sim. Só fui deitar mais ou menos à mesma hora que você.
- Foi por isso que você ligou? Para me falar da hora em que você tem dormido?
- Não, uh, eu... bem, estou meio que precisando de ajuda. Aí, em Vegas.
- Ajuda? O que quer dizer com isso? Está falando de ajuda como em um caso? Você me contou que tinha se aposentado.
- Eu me aposentei. Mas estou trabalhando em uma coisa... Enfim, eu estava me perguntando se você podia me encontrar no aeroporto em cerca de uma hora. Estou chegando
de avião.
Ela registrou o pedido e tudo o mais que ele podia significar em meio ao silêncio. Enquanto esperava, senti um peso e um aperto no peito. Estava pensando sobre a
teoria da única bala quando ela finalmente falou:
- Posso estar lá, sim. Onde vai querer que eu leve você?
Eu percebi que estava prendendo a respiração. Expirei. Bem no fundo, sabia que aquela seria a resposta dela, mas ouvi-la dizer em voz alta encheu-me, no ato, com
minha própria confirmação dos sentimentos que ainda carregava comigo. Tentei imaginá-la do outro lado da linha. Estava na cama, o telefone na mesinha-de' cabeceira,
o cabelo despenteado de um jeito que sempre achei excitante, que me fazia querer ficar na cama com ela. Então me lembrei que aquele era um número de celular. Ela
não tinha uma linha fixa, pelo menos com um número que eu conhecesse. Então
aquela coisa do "nós" voltou, se intrometendo como um vendedor de telemarketing. Ela estaria na cama de quem?
- Harry, você ainda está aí?
- Estou aqui, sim. Ah, só até um lugar de aluguel de carros. A Avis, acho. Deve ser uma das melhores.
- Harry, eles têm ônibus que passam no aeroporto a cada cinco minutos. Por que você precisa de mim? O que está acontecendo?
- Olha, explico quando chegar aí. Estão chamando o meu vôo. Você pode ir até lá, Eleanor?
- Já falei que vou - confirmou ela com um tom que me era familiar, como se estivesse cedendo e relutando ao mesmo tempo.
Eu não me alonguei. Tinha conseguido o que precisava e parei por ali.
- Obrigado. Que tal bem em frente ao desembarque da Southwest? Você ainda tem o mesmo Taurus?
- Não, Harry. Agora é um Lexus prata. Quatro portas. E vou ficar com as luzes acesas. Pisco se vir você primeiro.
- Está bem, vejo você daqui a pouco. Obrigado, Eleanor. Desliguei e fui para o portão de embarque. Um Lexus, pensei
enquanto caminhava. Tinha visto o preço deles antes de comprar o Mercedes usado. Não eram um absurdo, mas também não eram baratos. As coisas deviam estar mudando
para ela. E eu tinha quase certeza de estar feliz com isso.
Quando entrei no avião, não havia espaço nos compartimentos de bagagem para a minha bolsa e só os assentos do meio estavam vagos. Eu me espremi entre um homem de
camisa havaiana e Um grosso cordão de ouro no pescoço e uma mulher tão branca que achei que iria queimar como um fósforo no instante em que fosse atingida pelo
sol de Nevada. Acomodei-me em meu espaço, mantive os cotovelos junto ao corpo, apesar de o cara de camisa havaiana não ter feito o mesmo, e consegui fechar os olhos
e quase dormir Durante a maior parte daquele vôo curto. Sabia que havia muito
em que pensar e o chip de memória estava quase queimando um buraco no meu bolso enquanto
eu tentava adivinhar seu conteúdo.
Mas também sabia, por instinto, que precisava descansar um pouco
182
183
enquanto podia. Não esperava ter muito tempo para isso quando voltasse a Los Angeles.
Menos de uma hora após a decolagem eu saí pelas portas automáticas do terminal na
MeCarran e fui atingido pelo calor seco de forno que indicava a chegada em Las
Vegas. Aquilo não me incomodou. Meus olhos procuraram atentamente por entre os veículos que se amontoavam nas pistas de desembarque até que se fixaram em um carro
prateado com as luzes acesas. O teto solar estava aberto e a mão da motorista acenava através dele. Também estava piscando o farol para mim. Era Eleanor. Acenei
e fui depressa até seu carro. Abri a porta, joguei minha bolsa no assento traseiro por cima do encosto do banco e entrei.
- Oi - exclamei. - Obrigado.
Depois de um instante de hesitação, nós dois nos inclinamos até o meio e trocamos um beijo. Foi rápido, mas bom. Eu não a via fazia algum tempo e fiquei subitamente
chocado com a consciência de como o tempo podia passar rápido entre duas pessoas. Apesar de sempre nos falarmos nos aniversários e no Natal, eu não a via, tocava
ou mesmo a encontrava fazia quase três anos. E de imediato aquilo me intoxicou e deprimiu ao mesmo tempo. Porque eu tinha de partir. Aquilo seria mais rápido do
que os telefonemas de aniversário que trocávamos todos os anos.
- Seu cabelo está diferente - observei. - Está bonito. Nunca o vira tão curto, cortado certinho na altura do pescoço.
Mas não era um elogio falso. Ela estava bonita, mas, de qualquer forma, para mim, ela estaria bonita com o cabelo até os tornozelos ou mais curto que o meu.
Virou o rosto para conferir o trânsito por sobre seu ombro esquerdo. Eu pude ver sua nuca. Ela acelerou e fomos embora. Enquanto dirigia, levantou a mão e pressionou
o dedo contra o botão que fechava o teto solar.
- Obrigada, Harry. Você não está assim tão diferente. Mas ainda está bem.
Agradeci e tentei não sorrir demais enquanto sacava minha carteira.
Então - quis saber ela -, qual o grande mistério que você
não pode me contar por telefone?
- Mistério nenhum. Só queria que algumas pessoas achassem
que estou em Las Vegas.
- Você está em Las Vegas.
- Mas não por muito tempo. Assim que pegar o carro, vou
voltar.
Eleanor concordou com a cabeça como se tivesse entendido. Tirei meus cartões eletrônicos e American Express da carteira. Guardei o Visa para o aluguel do carro
e qualquer outra coisa que
pudesse aparecer.
- Quero que pegue esses cartões e os use nos próximos dias. A senha do banco é 13-0-6. Deve ser bem fácil de lembrar.
Era o dia do nosso casamento.
- Engraçado - observou ela. - Sabe, este ano cai numa sexta-feira. Eu chequei. É sinal de azar, Harry.
Sexta-feira 13, de alguma forma, parecia apropriado. Por um instante me perguntei o que significava ela estar checando quando cairiam os futuros aniversários de
um casamento terminado. Deixei pra lá e voltei para o presente.
- Então, use os cartões nos próximos dias. Você sabe, vá jantar, alguma coisa assim. Se eu estivesse aqui provavelmente compraria um presente para você por me deixar
ficar na sua casa. Então vá ao caixa eletrônico, pegue algum dinheiro e compre uma coisa de que goste. O American Express ainda tem o meu nome completo. Você não
vai ter problema.
A maioria das pessoas não sabe qual é o gênero do meu primeiro nome, Hyeronimus. Quando éramos casados, Eleanor costumava usar meus cartões de crédito sem qualquer
problema. A única dificuldade que podia surgir agora seria se pedissem uma identidade na hora da compra. Isso raramente acontece em restaurantes de qualquer lugar,
e especialmente nunca em Las Vegas, onde pegam seu dinheiro primeiro e fazem perguntas depois.
Entreguei os cartões a ela, que não os pegou.
- Harry, o que é isso? O que está acontecendo?
184
185
- Já contei a você. Quero que umas pessoas achem que estou aqui em Vegas.
- E essas são pessoas que podem monitorar compras de cartão de crédito?
- Se quiserem. Não sei se vão fazer isso. E só pré...
- Então você está falando de tiras ou do FBI. Qual deles? Eu dei um sorriso.
- Bem, podem ser os dois. Mas pelo que sei até agora, quem está mais interessado é o FBI.
- - Oh, Harry...
Ela falou aquilo com um tom de lá-vamos-nós-de-novo na voz. Pensei em dizer a ela que aquilo tinha a ver com Marty Gessler, mas achei que não devia envolvê-la
mais do que já tinha feito.
- Olhe, não é nada demais. Só estou trabalhando em um dos meus velhos casos e isso atrapalhou os planos de um agente. Quero que ele ache que me assustou e desisti.
Só por uns dias. Tudo bem, Eleanor? Você pode fazer isso, por favor?
Estendi os cartões outra vez. Depois de uma pausa longa, ela os pegou sem dizer palavra. Estávamos em uma rua do aeroporto onde se enfileiravam as locadoras de automóveis.
Queria dizer algo mais. Algo sobre nós e sobre como eu queria voltar quando toda aquela sujeira tivesse terminado. Se ela também me quisesse. Mas ela entrou no estacionamento
da Avis e baixou o vidro da janela para dizer a um segurança que só ia me deixar ali.
A interrupção arruinou o fluxo da conversa, se é que aquilo chegou a ser uma conversa. Perdi o momento e deixei de lado todas as idéias de falar qualquer coisa a
mais sobre nós dois.
Ela parou em frente ao escritório da Avis. Estava na minha hora de saltar. Mas não saltei. Fiquei ali olhando para ela até que finalmente se virou para mim.
- Obrigado por fazer isso, Eleanor.
- Sem problema. Você vai receber a conta. Sorri.
- Você costuma voltar a Los Angeles? Sabe, fará os salões de carteado, algo assim?
Ela sacudiu a cabeça.
Não há muito tempo. Não gosto mais de viajar.
Concordei com a cabeça. Não parecia haver mais nada a dizer, inclinei-me para a frente e a beijei, dessa vez só no rosto.
- Eu telefono amanhã ou depois de amanhã, está bem?
- Está bem, Harry. Tome cuidado. Até logo.
- vou tomar. Até logo, Eleanor.
Saltei e observei-a ir embora. Desejei poder ficar mais tempo ao lado dela, mas não sabia se ela deixaria que eu fizesse isso, se tivesse tido tempo. Então afastei
esses pensamentos e entrei. Mostrei minha carteira de motorista e o cartão de crédito e peguei a chave do carro que estava alugando. Era um Ford Taurus e eu tinha
de me acostumar a ficar embaixo, perto do chão outra vez. Na saída do estacionamento da locadora vi uma seta que indicava Paradise Road, a estrada do paraíso. Achei
que todo mundo precisava de uma placa como aquela. Eu queria que fosse assim fácil.

Capítulo 23
Depois de dirigir pelo deserto por quatro horas sem parar, cheguei ao laboratório técnico da Biggar & Biggar. Peguei o chip de memória do meu bolso e o entreguei
ao André. Ele o ergueu e olhou para a peça e então para mim, como se eu tivesse acabado de botar um chiclete usado na mão dele.
- Onde está a caixa?
- Caixa? Quer dizer o relógio? Ainda está na parede. Ainda não tinha descoberto um jeito de contar a ele que o
relógio estava quebrado e provavelmente a câmera também.
- Não, a caixa de plástico do cartão. Você botou o cartão extra que dei a você no relógio quando tirou este, não?
Assenti com a cabeça.
- Certo.
- Bem, você devia ter guardado este na caixa vazia. E um instrumento delicado. Ficar carregando ele por aí junto com as moedas e fiapos do seu bolso não é a maneira
correta de...
- André - interrompeu Burnett Biggar. - Vamos só ver se está funcionando. Foi meu erro não ter explicado ao Harry os detalhes de cuidado e manutenção. Esqueci que
ele era tão antiquado.
André sacudiu a cabeça e foi até a bancada onde havia um computador. Eu olhei para Burnett e fiz um aceno com a cabeça para agradecer pelo resgate. Ele piscou
para mim e seguimos André.
188
189
O filho usou uma pistola de ar que parecia saída de um consultório de dentista para tirar a poeira e a sujeira do chip que eu
tinha maltratado, e então o enfiou em um aparelho conectado ao com putador. Digitou alguns comandos e logo as imagens do quarto
de Lawton Cross surgiram na tela do monitor.
- Lembre-se - disse André -, estamos usando o sensor de movimentos, então vai ficar truncado. Olhe para o relógio no canto para não se perder.
A primeira imagem na tela foi a do meu próprio rosto. Estava olhando direto para a câmera enquanto ajustava a hora do relógio. Então me afastei e isso revelou Lawton
Cross na cadeira atrás de
mim.
- Meu Deus - balbuciou Burnett ao ver a condição do excolega. - Não sei se quero ver isso.
- Fica pior - falei, confiando no que achava que viria mais à frente.
A voz de Cross coachou das caixas de som do computador.
- Harry?
- O quê? - eu me ouvi dizer.
- Você trouxe um pouco?
- Um pouco.
Na tela eu abri a caixa de ferramentas para pegar a garrafinha. No laboratório, pedi:
- Você pode adiantar isso?
André concordou com um aceno de cabeça e usou o mouse do computador para apertar um comando de avanço rápido na tela. O monitor ficou escuro por um instante, indicando
que a câmera tinha sido desligada por falta de movimento. André voltou à velocidade normal. Conferi a hora e vi que tinham se passado apenas alguns minutos desde
que eu deixara o aposento. Danny estava lá com os braços cruzados encarando o marido inválido como se ele fosse uma criança mal comportada. Começou a falar e era
difícil escutar por causa do barulho da televisão.
- Um erro de principiante - comentou André. - Por que você botou isso perto da TV?
Ele tinha razão. Eu não pensara nisso. O microfone da câmera negando as vozes da TV melhor do que as das pessoas no
quarto.
- André - pediu Burnett, silenciando a reclamação do filho
só tente ver se consegue limpar isso um pouco. André usou outra vez o mouse para manipular o som. Ele
voltou a imagem e então passou-a de novo. O barulho da TV ainda
estava alto, mas pelo menos a conversa no quarto tinha ficado
audível.
Danny Cross falou com um tom duro na voz:
- Não quero que ele volte aqui. Ele não faz bem a você.
- Faz sim. Ele se preocupa.
- Está só usando você. Derrama birita em você para tirar a informação de que precisa.
- E o que há de errado nisso? Acho que é uma boa troca.
- Até a manhã seguinte, quando vem a dor.
- Danny, se um amigo meu vier aqui, você deixa entrar.
- O que você contou a ele dessa vez, que estou deixando você sem comida? Que abandono você à noite? Qual a mentira dessa vez?
- Não quero falar agora.
- Está bem, não fale.
- Quero sonhar.
- Por favor, à vontade. Pelo menos um de nós consegue.
Ela virou-se e saiu do quarto. A imagem ficou no corpo imóvel de Lawton. Logo os olhos dele se fecharam.
-- Tem sessenta segundos de imagem, ainda - explicou André. - A câmera fica ligada por mais um minuto depois que o movimento pára.
- Adiante - pedi.
Passamos os dez minutos seguintes acelerando a imagem e Parando para ver cenas mundanas, ainda que muito tristes, de Lawton sendo alimentado e limpo por Danny. No
fim da primeira noite, foi levado dali pela mulher e a câmera apagou-se por quase
oito horas antes que ele voltasse em sua cadeira para o quarto. Começou uma nova
rodada de alimentação e limpeza.
190
Era horrível de se ver, ainda mais porque o relógio estava posicionado logo à esquerda da televisão. Lawton Cross passava o
tempo olhando para a TV, mas o ângulo
era tão próximo que parecia estar encarando a câmera, olhando direto para nós.
- Isso é patético - exclamou finalmente André. - E não há nada aqui. Ela o trata bem. Melhor do que eu faria.
- Você quer ver tudo, Harry? - perguntou Burnett. Acenei que sim com a cabeça.
- Acho que você está certo. Ela está limpa. Mas há outra coisa na frente. Ele recebeu visitas ontem à noite. Quero ver isso. Você pode adiantar se quiser. Foi perto
da meia noite.
André adiantou a imagem e não deu outra. À 00hl0 no relógio da câmera, dois homens entraram no quarto. Reconheci o Parenting Today e seu parceiro. A primeira coisa
que o Parenting Today fez foi caminhar até atrás de Lawton para desligar a babá eletrônica na escrivaninha. Os olhos de Lawton estavam abertos e alertas. Estava
acordado antes que entrassem no quarto e a câmera fosse ativada. Os olhos se mexeram nas órbitas fundas como se ele tentasse ver os movimentos do agente às suas
costas.
- Sr. Cross, precisamos ter uma conversa - começou o Parenting Today.
Ele passou pela cadeira de Cross, andou até a TV e desligou-a.
- Graças a Deus ele fez isso - comentou André.
- Quem são vocês? - rosnou Cross da tela. O Parenting Today virou-se e olhou para ele.
- Nós somos o FBI, senhor Cross. E você, quem é, porra?
- O que vocês querem dizer? Eu não...
- Quero saber quem você pensa que é para comprometer a nossa investigação?
- Eu não... o que é isso?
- O que você contou para o Bosch que deixou ele com fogo no rabo?
- Não sei do que vocês estão falando. Ele veio aqui, eu não procurei por ele.
- Não parece mesmo que você pode ir a lugar nenhum, não é?
191
Fez-se uma pausa e eu pude ver os olhos de Lawton trabalhando. O homem não podia mover sequer um membro, mas os olhos mostravam toda a linguagem corporal necessária.
- Vocês não são do FBI - arriscou com bravura. - Deixem-me ver os distintivos.
O Parenting Today deu dois passos na direção de Cross, as costas bloqueando a visão que tínhamos do homem na cadeira.
- Distintivos? - falou com seu melhor sotaque mexicano. Não precisamos da puera de ningun distintivo.
- Saiam daqui - exclamou Cross, com a voz clara e forte como eu não ouvia desde a primeira vez que o visitei. - Quando eu contar ao Harry Bosch sobre isso, é melhor
vocês tomarem cuidado.
Parenting Today virou de perfil e sorriu para o parceiro.
- Harry Bosch? Não se preocupe com Harry Bosch. Já estamos cuidando dele. Melhor se preocupar com você mesmo, Sr. Cross.
Ele inclinou-se e aproximou o rosto de Cross. Agora podíamos ver os olhos de Lawton enquanto encaravam os do agente.
- Você está atrapalhando. Está entrando em um caso federal. Federal com F maiúsculo, entendeu?
- Vá se foder. E se foder com F maiúsculo, entendeu?
Tive de sorrir. Lawton estava fazendo o melhor possível para enfrentá-lo. A bala levara seu corpo, mas não a fibra nem os colhões.
Na tela, Parenting Today afastou-se da cadeira para a esquerda. A câmera captou o rosto dele e vi raiva em seus olhos. Ele apoiouse na escrivaninha, fora do campo
de visão de Cross.
- Seu herói, Harry Bosch, não está aqui e pode nem voltar ameaçou ele. - A questão é se você quer ir para o mesmo lugar onde ele está. Um cara como você, na sua
condição, eu não sei. Sabe o que fazem com caras como você atrás das grades? Eles empurram a cadeira do sujeito até um canto e fazem ele pagar boquetes para todo
mundo o dia inteiro. Não há nada que possam fazer a não ser aceitar. Você ia gostar disso, Cross? É o que você quer?
Cross fechou os olhos por um momento, mas voltou com toda a força.
192
- E melhor usar outra tática, que essa já era.
- Ah é?
Parenting Today afastou-se da escrivaninha e aproximou-se de Cross pelas costas. Inclinou-se por cima do ombro direito dele como se fosse sussurrar em seu ouvido.
Mas não o fez.
- E se eu usasse essa aqui, hein? Como ia ficar?
O agente levou as duas mãos na altura do rosto de Cross. Segurou os tubos plásticos de respiração que ficavam presos às narinas dele. com os dedos, apertou bem
os tubos, cortando o suprimento de ar.
- Ei, Milton - inquietou-se o outro agente.
- Cala a boca, Carney. Esse cara acha que é muito esperto. Acha que não precisa cooperar com o Governo Federal.
Os olhos de Cross se arregalaram e ele abriu a boca em busca de ar. Não estava respirando.
- Filho-da-puta - exclamou Bumett Biggar. - Quem é esse cara?
Fiquei quieto. Observei em silêncio, sentindo a raiva crescer dentro de mim. Mas Biggar estava certo. No dicionário dos tiras, "filho-da-puta" era um grande xingamento,
reservado para o maior dos infratores, o pior inimigo. Senti vontade de dizer o mesmo, mas minha voz não saía. Estava consumido demais pelo que via na tela. O que
tinham feito comigo não era nada em comparação com a humilhação e o pavor que estavam impondo a Lawton Cross.
Na tela, Cross tentava falar, mas não conseguia dizer as palavras sem ar nos pulmões. Havia um sorriso de escárnio no rosto do agente que, agora, eu sabia se chamar
Milton.
- O quê? - perguntou. - O que foi, quer falar comigo? Cross tentou falar outra vez, mas não conseguiu.
- Balance a cabeça se quiser me contar alguma coisa. Ah, certo, você consegue balançar a cabeça, não consegue?
Ele finalmente soltou os tubos e Cross começou a sugar ar como um homem que emerge da água de uma profundidade de vinte metros. Seu peito arquejava e as narinas
se dilataram eiv quanto tentava se recuperar.
193
Milton fez a volta até a frente da cadeira. Olhou para sua vítima e assentiu com a cabeça.
- Está vendo? É fácil assim. Você quer cooperar agora?
- O que você quer?
- O que você contou ao Bosch?
Os olhos de Cross piscaram na direção da câmera por um instante e então se voltaram para Milton. Naquele momento não acreditei que ele pudesse estar vendo as horas.
De repente achei que talvez Lawton soubesse da câmera. Ele tinha sido um bom tira. Talvez soubesse todo o tempo o que eu estava fazendo.
- Contei a ele sobre o caso. Só isso. Ele veio aqui e contei o que sabia. Eu fui ferido e minha memória não é muito boa. As coisas estão só começando a voltar. Eu...
- Por que ele veio aqui hoje?
- Porque esqueci que tinha uns arquivos. Minha mulher fez a ligação para mim e deixei uma mensagem para ele. Ele veio por causa dos arquivos.
- O que mais?
- Mais nada. O que você quer?
- O que você sabe sobre o dinheiro que foi roubado?
- Nada. Nunca chegamos muito longe.
Tvlilton estendeu as mãos e segurou os tubos de respiração outra vez. Dessa vez, ele não os apertou. A ameaça foi suficiente.
- Estou dizendo a verdade - protestou Cross.
- E melhor que esteja. O agente largou os tubos.
- Você já falou tudo o que tinha para dizer ao Bosch, entendeu?
-Sim.
-Sim o quê?
- Sim, já falei tudo o que tinha para dizer ao Bosch.
- Obrigado por sua colaboração.
Quando Milton afastou-se da cadeira, pude ver que os olhos de Cross estavam abatidos. Enquanto os agentes saíam, um deles, Provavelmente Milton, desligou o interruptor
e o quarto caiu na escuridão.
194
Ficamos ali olhando fixamente para a tela e no minuto em que a câmera permaneceu ligada, não pudemos ver, apenas ouvíamos Lawton Cross chorando. Eram os soluços
profundos de um animal ferido e indefeso. Não olhei para os dois homens que estavam comigo e eles não olharam para mim. Apenas olhamos para a tela escura e escutamos.
A câmera finalmente - e felizmente - desligou-se ao fim do minuto, mas então a tela iluminou-se outra vez no momento em que as luzes do quarto se acenderam, quando
Danny entrou. Conferi a hora na tela e vi que haviam se passado apenas três minutos desde que os agentes tinham deixado o quarto. O rosto do marido dela estava coberto
de lágrimas. Lágrimas que ele nada podia fazer para esconder.
Ela atravessou o quarto e foi até ele. Sem dizer uma palavra, subiu na cadeira de frente para ele, os joelhos paralelos às coxas magras dele. Baixou os quadris até
o colo dele. Abriu o roupão e puxou o rosto dele até os seus seios. Segurou-o ali e ele chorou outra vez. A princípio, não se falou palavra. com carinho e em silêncio,
ela o acalmou. E então começou a cantar para ele.
Eu conhecia a canção e ela a cantava bem. A voz suave como uma brisa, quando a voz original daquela música carregava a aspereza de toda a angústia do mundo. Nunca
achei que alguém podia chegar perto de Louis Armstrong, mas Danny Cross certamente conseguiu.
see skies ofblue ' :,
Anddouds ofwhite
The bright blessed day • - ,
The dark sacred night
And I think to myself
What a wonderful world
E aquela foi a parte da gravação mais difícil de assistir. A parte que mais me fez sentir como um intruso, como se tivesse ultrapassado meu limite interno de decência.
- Desligue isso agora - pedi, finalmente.
Capítulo 24
O meu momento determinante enquanto policial não aconteceu na rua, ou enquanto trabalhava em um caso. Aconteceu em 5 de março de 1991. Foi à tarde, e eu estava na
sala do esquadrão na Divisão de Hollywood fazendo trabalho burocrático. Mas, como o resto das pessoas ali, estava esperando. Quando todos começaram a deixar suas
mesas para se reunir junto às televisões, eu também me levantei. Havia uma TV no escritório do tenente e outra presa no alto da parede perto da mesa de roubo a residências.
Na época, eu não me dava bem com o tenente então fui até a baia da roubo a residências para assistir. Já tínhamos escutado sobre aquilo, mas poucos de nós já havíamos
realmente visto a fita. E lá estava. Preto-e-branco granulado, mas ainda assim claro o suficiente para ver e saber que as coisas iriam mudar. Quatro tiras uniformizados
em torno de um homem encolhido no chão. Rodney King, expresidiário que acabava de ser detido por dirigir em alta velocidade. Dois dos tiras estavam batendo nele
com cassetetes. Um terceiro o chutava enquanto o quarto controlava o apetite pela pistola elétrica. Havia um segundo círculo uniformizado ao redor, assistindo.
Um monte de gente ficou de boca aberta na sala do esquadrão enquanto olhávamos para a tela. Muitos desanimaram, perderam a motivação. De alguma maneira, nós nos
sentimos traídos. Todos,
196
197
sem exceção, sabíamos que o departamento não ia resistir às falhas. Ele ia mudar. O trabalho policial em Los Angeles ia mudar.
Claro que não sabíamos como, nem se seria para melhor ou pior. Não sabíamos, então, que motivos políticos e emoções racial iriam varrer o departamento como uma onda
gigantesca, que mais tarde haveria um tumulto mortal e a destruição completa do tecido social da cidade. Mas enquanto assistíamos ao vídeo cheio de chuviscos, sabíamos
que alguma coisa estava para acontecer. Tudo por causa daquele momento de raiva e frustração encenado sob um poste de luz de San Fernando Valley.
Enquanto estava sentado na sala de espera de um escritório de advocacia no centro da cidade, pensei sobre aquele momento. Lembrei da raiva que senti e percebi que
tinha voltado até mim através do tempo. A fita que eu tinha do abuso em Lawton Cross não era uma fita de Rodney King. Não iria atrapalhar a aplicação da lei e décadas
de relações comunitárias. Não iria mudar a maneira como as pessoas viam a polícia e decidiam se a apoiavam ou cooperavam com ela. Mas tinha um parentesco em seu
retrato puro e nojento do abuso de poder. Não tinha a força para mudar uma cidade, mas podia mudar uma burocracia como o FBI. Se eu quisesse.
Mas eu não queria. Queria algo mais e ia usar a gravação para conseguir. A curto prazo, pelo menos. Eu ainda não estava pensando sobre o que poderia acontecer com
ela ou comigo pelo caminho à frente.
A biblioteca jurídica na qual eu estava sentado uma hora depois de deixar a Biggar & Biggar era forrada com painéis de cerejeira e estantes repletas de volumes
de livros jurídicos encadernados em couro. Nos poucos espaços vazios nas paredes, havia quadros a óleo iluminados que retratavam os sócios do escritório. Parei em
pé diante de um dos quadros e estudei as pinceladas finas. Mostrava um homem elegante, alto, com cabelos castanhos e olhos verdes penetrantes realçados por um bronzeado
forte. A placa de ouro no alto da moldura de mogno dizia que o nome dele era James roreman. Parecia tudo o que um homem de sucesso deveria ser.
- SnBosch?
Vrei-me. A matrona que me escoltara até a biblioteca agora olhava para mim da porta. Fui até ela, que me conduziu por um
corredor forrado de grosso carpete verde que
sussurrava dinheiro a cada passo que eu dava. Ela me levou até um escritório onde a
uma mulher que não reconheci esperava atrás de uma mesa. Ela se levantou e estendeu a mão.
-Olá, Sr. Bosch. Sou Roxanne, a assistente da dra. Langwiser. Gostaria de água mineral ou café?
- Hum, não, obrigado.
Pode entrar, então. Ela está esperando.
Indicou-me uma porta fechada ao lado da sua mesa e fui até lá. Bati uma vez e entrei. Eu levava uma pasta que tinha pego emprestada com Burnett Biggar.
Janis Langwiser estava sentada atrás de uma mesa que me lembrava uma garagem para dois carros. A sala tinha um pé-direito de quase quatro metros e também era coberta
por painéis de cerejeira e estantes. Ela não era uma mulher pequena. Era, na verdade, alta e magra. Mas o escritório fazia com que parecesse diminuta. Ela sorriu
quando me viu e fiz o mesmo.
- Nunca me perguntavam se eu queria água mineral ou café quando ia falar com você no escritório do promotor.
Eu sei, Harry. Sem dúvida os tempos são outros.
Ela se levantou e estendeu a mão por sobre a mesa. Tinha de se inclinar para a frente a fim de conseguir. Apertamos as mãos. Eu a conheci quando ela era uma iniciante
nos tribunais criminais do centro da cidade. Eu a vi crescer e cuidar de alguns dos casos mais importantes e complicados. Era uma boa promotora. Agora estava tentando
ser uma boa advogada criminalista. Raros eram os que passavam toda a carreira como promotores. O dinheiro do outro lado era bom demais. A julgar pelo escritório
onde eu me encontrava, Janis Langwiser estava muito bem, naquela outra mesa.
- Sente-se - disse ela. - Sabe, eu estava mesmo pensando em localizar e telefonar para você. Aparecer aqui, assim, hoje, foi ótimo.
Fiquei confuso.
198
- Me localizar por quê? Você não está representando alguém que eu botei em cana, está?
- Não, nada disso. Queria falar com você sobre um trabalho. Ergui as sobrancelhas. Ela sorriu como se estivesse me oferecendo as chaves da cidade.
- Não sei o que você sabe de nós, Harry.
- Sei que você foi difícil de encontrar. Seu número não está na lista. Tive de ligar para um amigo meu no escritório da
promotoria e ele me conseguiu o telefone.
Ela balançou a cabeça.
- Isso. Não estamos na lista. Não precisamos. Temos poucos clientes e lidamos com todos os detalhes legais que surgem nas vidas deles.
- E você lida com os detalhes criminais.
Ela hesitou. Estava tentando avaliar de onde eu estava chegando.
- Isso. Sou a especialista da firma em direito penal. Por isso estava pensando em ligar para você. Quando ouvi dizer que se aposentou, achei que seria perfeito.
Não em tempo integral, mas às vezes, dependendo do caso, quando as coisas esquentam. Podíamos mesmo usar alguém com suas habilidades, Harry.
Levei um momento para compor minha resposta. Não queria ofendê-la. Eu queria contratá-la. Então achei melhor não dizer que
o que ela estava sugerindo era impossível. Que eu nunca poderia ir para o outro lado, não importava quanto dinheiro houvesse ali. Aposentado ou não, tinha uma missão
na vida. E trabalhar para um advogado de defesa não fazia parte dela.
- Janis - comecei -, não estou procurando emprego. Meio que já tenho um. O motivo de eu estar aqui é que quero contratar você.
Ela riu.
- Está brincando - respondeu ela. - Você está com problemas?
- Provavelmente. Mas não é por isso que quero contratar você-
Preciso de um advogado em quem possa confiar para guardar uma coisa para mim, e tomar as medidas apropriadas se for necessário.
199
Ela inclinou-se para a frente sobre a mesa. Ainda estava a pelo menos dois metros de mim.
-- Harry, isso está ficando misterioso. O que está acontecendo?
- Antes de mais nada, quais seus honorários? Vamos primeiro resolver esse negócio de cliente.
- Harry, nosso mínimo é de 25 mil dólares. Então esqueça isso. Devo a você por todos aqueles casos impecáveis que você levou para mim. Considere-se um cliente. Tirei
a expressão de surpresa do rosto.
- Sério? Vinte e cinco mil só para abrir uma pasta?
- Isso mesmo.
- Bem, eles têm a pessoa certa para isso.
- Obrigada, Harry. Agora diga o que você quer que eu faça. Abri a pasta que Burnett Biggar tinha me dado para carregar o
segundo equipamento, que peguei emprestado com ele junto com o chip de memória e três CDs com cópias das imagens de vigilância feitas pelo relógio de parede.
André tinha feito as cópias. Botei o chip e os CDs na mesa dela.
- Isso é de uma vigilância que fiz. Quero que guarde o original, o chip de memória, em um lugar seguro. Quero que fique com um envelope com um dos CDs e uma carta
escrita por mim. Quero o telefone direto de seu escritório. vou ligar para ele todas as noites por volta da meia-noite e dizer a você que estou bem. Na manhã seguinte,
quando você chegar aqui, se ouvir a mensagem, então está tudo bem. Se chegar e não houver mensagem minha, então mande o envelope para um repórter no Times chamado
Josh Meyer.
- Josh Meyer. O nome é familiar. Ele cobre os tribunais?
- Ele fazia reportagens policiais locais. Agora escreve sobre terrorismo. Acho que está trabalhando lá em Washington.
- Terrorismo, Harry?
- É uma história comprida.
Ela olhou para o relógio em seu pulso.
- Eu tenho tempo. E também um computador.
Perdi quinze minutos para contar a ela sobre minha investigação particular e tudo o que tinha acontecido, desde que Lawton
200
Cross me chamou inesperadamente e eu retirei a caixa dos casos antigos da prateleira do armário. Então deixei que ela botasse o CD no computador e assistisse ao
vídeo de vigilância. Ela não reconheceu Lawton Cross até eu contar a ela quem era. Ela reagiu com a afronta apropriada quando viu a parte com os agentes Milton
e Carney. Fiz com que ela desligasse antes que Danny Cross entrasse no quarto para confortar o marido.
- Primeira pergunta: eles são agentes de verdade? - perguntou ela depois que o computador expeliu o disco.
- São. Fazem parte do comando antiterrorismo que trabalha em Westwood.
Ela sacudiu a cabeça enojada.
- Se isso chegar ao Times e então à TV...
- Não quero que chegue a esse ponto. Nesse momento, seria o pior que poderia acontecer.
- Por que não, Harry? Esses agentes são nocivos. Pelo menos esse Milton é. E o outro é culpado do mesmo jeito por ficar ali e deixar que ele fizesse aquilo.
Ela fez um gesto na direção do computador, onde o vídeo de vigilância tinha sido substituído pelo protetor de tela que mostrava uma cena bucólica: uma casa num penhasco
acima do oceano, as ondas rolando sem parar até a margem.
- Você acha que era isso que o Procurador Geral e o Congresso dos Estados Unidos queriam quando aprovaram a lei que mudava as regras de funcionamento e as ferramentas
do FBI depois do 11 de setembro?
- Acho que não - respondi. - Mas eles deviam saber o que poderia acontecer. Como é o ditado? O poder absoluto corrompe? Algo assim. Enfim, era esperado que alguma
coisa como essa acabasse acontecendo. Eles deviam saber. A diferença aqui é que não é um vilão do Oriente Médio. É um cidadão americano. Um extira tetraplégico porque
levou um tiro no cumprimento do dever.
Langwiser sacudiu a cabeça com tristeza.
- É exatamente por isso que você devia divulgar a fita. Ela precisa ser vista...
201
Janis, você está trabalhando para mim, ou eu tenho de
pegar tudo isso e procurar outra pessoa?
Ela ergueu os braços em sinal de rendição.
- É, estou trabalhando para você, Harry. Só estou dizendo que isso não pode passar em branco.
- Não estou falando em deixar passar em branco. Só não quero que seja visto agora. Primeiro, preciso usar isso para equilibrar as coisas. Antes, preciso conseguir,
com esse vídeo, o que estou querendo.
- E o que é isso?
- Estava chegando lá, mas você começou a dar uma de Ralph Nader.
- Certo, desculpa. Agora estou calma. Pode me contar seu plano, Harry.
E eu contei.
Capítulo 25
O Kate Mantilini's no Wilshire Boulevard tinha uma fileira de reservados de paredes altas que dava a seus habitantes mais privacidade em seu interior do que os cubículos
individuais de qualquer clube de striptease da cidade. Por isso escolhi o restaurante para o encontro. Era muito particular e, assim mesmo, muito público. Cheguei
lá quinze minutos antes da hora marcada, peguei um reservado com uma janela que dava para a Wilshire e esperei. O agente especial Peoples também chegou lá um pouco
cedo. Teve de percorrer toda a fileira de reservados e olhar para dentro de todos eles para me achar. Então deslizou em silêncio e de mau humor para o lugar à minha
frente.
- Agente Peoples, que bom que você veio.
- Não achei que tinha muita escolha.
- Acho que não tinha nenhuma.
Ele abriu um dos cardápios que estavam na mesa.
- Nunca vim aqui. A comida é boa?
- Nada mal. Tem um bom empadão de frango às quintas' feiras.
- Hoje não é quinta-feira.
- E você não está aqui para comer.
Ele levantou os olhos do menu e me lançou seu melhor olhaf assassino, mas dessa vez não tinha a mesma força. Nós dois
204
205
sabíamosmos que, agora, era eu que tinha a carta mais alta na mão.
- Você está com seu pessoal lá fora, agente Peoples? Eles estão esperando por mim?
- Vim sozinho, como instruiu sua advogada.
- Bem, então está limpo. Se seu pessoal me prender de novo ou tomar qualquer medida contra minha advogada, você sabe qual a conseqüência. A gravação de vigilância
que você recebeu por email vai chegar aos meios de comunicação e será espalhada pela internet. Algumas pessoas vão saber, se eu desaparecer. E aí vão divulgar tudo,
sem hesitação.
Peoples sacudiu a cabeça.
- Você continua dizendo isso. "Desaparecer." Isso aqui não é a América do Sul, Bosch. E nós não somos nazistas.
Balancei a cabeça em concordância.
- Aqui sentados neste restaurante, parece mesmo que não. Mas quando eu estava sentado naquele cubículo no nono andar e ninguém sabia que eu estava lá, era outra
história. Mouse Aziz e aqueles outros caras que vocês têm lá provavelmente também não sabem a diferença entre a Califórnia e o Chile, agora.
- E agora você está defendendo essas pessoas, é isso? Os homens que gostariam de ver esse país queimar até virar cinzas.
- Não estou de...
Parei quando a garçonete chegou ao reservado. Ela disse que se chamava Kate e perguntou se estávamos prontos para fazer os pedidos. Peoples pediu café, e eu, café
e um sundae de creme sem chantilly. Depois que Kate foi embora, Peoples olhou para
mim achando graça.
- Estou aposentado. Posso tomar um sundae.
- Que aposentadoria.
- Eles fazem bons sundaes aqui e ficam abertos até tarde. E uma boa combinação.
- vou me lembrar disso.
- Você já viu o filme Fogo contra fogo? Este é o lugar onde o tira Al Pacino encontra o ladrão De Niro. É onde eles dizem que não hesitariam em matar um ao outro
se fosse necessário.
peoples balançou a cabeça e nossos olhares se cruzaram por um momento. Mensagem enviada. Resolvi ir direto aos negócios
que tínhamos ido ali para resolver.
Então o que achou da minha câmera no relógio?
A fachada desmoronou e de repente Peoples pareceu atingido. Como se tivesse sido jogado aos leões. Ele sabia o que o futuro lhe reservava se aquela gravação fosse
divulgada. Milton trabalhava para ele, então ele iria cair junto. A fita de Rodney King tinha feito um estrago de cima a baixo no DPL_A que atingiu até a cúpula.
Peoples era inteligente o suficiente para saber que ele iria ser pisoteado se não conseguisse conter esse problema.
- Fiquei enojado com o que vi. Antes de mais nada, peço desculpas a você e minha intenção é fazer uma visita àquele homem, Lawton Cross, para pedir desculpas também.
- Isso é legal de sua parte.
- Não pense nem por um instante que é assim que operamos. Que esse é o status quo. Que eu concordo com isso. O agente Milton já era. Está fora. Soube disso no momento
em que vi a gravação. Não prometo a você que ele vai ser processado, mas não vai carregar um distintivo por muito tempo. Não um distintivo do FBI. Eu vou cuidar
disso.
Balancei a cabeça.
- Certo, você vai cuidar disso.
Falei com alta dose de sarcasmo e notei que aquilo fez com que seu rosto ganhasse uma cor. A cor da raiva.
- Você pediu esse encontro, Bosch. O que quer? Pronto. Ali estava a pergunta pela qual eu esperava.
- Você sabe o que quero. Quero que seu pessoal largue do meu Pé- Quero minhas pastas e minhas anotações de volta. Quero os arquivos de Lawton Cross de volta. Quero
uma cópia do inquérito do DPLA, que sei que vocês devem ter, e quero acesso a Aziz e ao que vocês tiverem sobre ele.
- O que temos sobre ele é confidencial. Um assunto de segurança nacional. Não podemos...
- Então vai deixar de ser confidencial. Quero saber se a ligaÇão com o roubo do cinema é forte ou não. Quero saber o que vocês
206
sabem sobre o paradeiro dele em duas noites. Toda essa inteligência federal deve servir para alguma coisa e eu quero isso. E então vou querer falar com ele.
- com quem? Aziz? Isso não vai dar. Inclinei-me para frente sobre a mesa.
- Vai sim. Porque a alternativa é que todos que tenham TV ou internet vejam o que o seu garoto Milton fez com um homem indefeso em uma cadeira de rodas. E esse
homem é um tira aposentado, altamente condecorado, que perdeu o uso dos membros e a porra da vida normal no cumprimento do dever. Você acha que a fita do Rodney
King afetou o DPLA? Espere para ver o que acontece com esta aqui. Eu garanto que Milton, você e todo o esquadrão NIM do nono andar vão ser degolados pelo bureau,
pelo Procurador Geral e por todo mundo, mais rápido do que você possa dizer violação dos direitos civis. Entendeu, agente especial Peoples?
Dei a ele um momento para responder, mas não o fez. Seus olhos estavam fixos na Wilshire do outro lado da janela.
- E se você achar por um minuto que eu não vou levar isso adiante, é porque não fez seu trabalho de casa sobre mim.
Dessa vez esperei. Até que seus olhos acabaram voltando da janela para mim. A garçonete chegou, serviu nossos cafés e disse que meu sundae estava quase pronto. Nem
eu nem Peoples dissemos obrigado.
- Pode acreditar em mim - confirmou Peoples. - Sei que você vai levar isso adiante. Você é esse tipo de cara, Bosch. Conheço seu tipo. Coloca a si mesmo e aos seus
interesses acima de um bem maior.
- Não venha com essa merda de bem maior. Não tem nada a ver com isso. Você me dá o que quero, se livra do Milton e então continua em frente, como se nada tivesse
acontecido. A gravação nunca vai ser vista. Que tal isso como um bem maior?
Peoples inclinou-se para a frente para tomar um gole de caféComo tinha feito no cubículo do nono andar, queimou a boca e fez uma careta. Afastou a xícara e o pires
e deslizou para a ponta do reservado antes de voltar a olhar para mim.
207
- Eu vou manter contato.
- Vinte e quatro horas. Ou tenho notícias suas até essa hora amanhã à noite ou o trato está desfeito. Eu levo tudo a público.
Ele levantou e permaneceu perto do reservado olhando para mim e ainda segurando um guardanapo. Ele fez com a cabeça um sinal positivo.
- Deixe-me perguntar uma coisa. Se você está aqui, quem usou seu cartão de crédito para pagar um jantar no Commander's Palace, em Las Vegas?
- Um amigo. É um bom lugar, o Commander's Palace? Ele balançou outra vez a cabeça.
- Um dos melhores. Já fui lá. O gumbo de camarão é macio como marshmallouí.
- Isso é ótimo, eu acho.
- E caro, também. Seu amigo gastou mais de cem paus no seu AmEx. Pareceu um jantar para dois.
Ele jogou o guardanapo em cima da mesa.
- Eu mantenho contato.
Um instante depois de ele partir, a garçonete trouxe meu sundae. Pedi a conta e ela disse que iria
trazê-la imediatamente.
Enfiei uma colher na cobertura e no sorvete, mas não o provei. Fiquei ali sentado pensando sobre o que Peoples acabara de dizer. Não tinha certeza de que havia uma
ameaça velada no fato de ele me contar que sabia que alguém estava usando meu cartão de crédito. Talvez soubesse até quem era. Mas, na verdade, o que mais me incomodava
era ele ter dito que tinha sido um jantar para dois no Commander's Palace. Aquela coisa de "nós" outra vez. Assim como com Eleanor, eu não podia esquecer.
Capítulo 26
Como o estratagema de Las Vegas já não valia mais, dirigi até o aeroporto de Burbank, devolvi o carro alugado e peguei o transporte até o estacionamento de períodos
longos para apanhar meu carro. Tinha pego o carrinho da oficina de Lawton Cross emprestado e ele estava na traseira da Mercedes. Antes de partir, peguei-o e o posicionei
embaixo do carro. Soltei o rastreador por satélite e o sensor de calor e deslizei para baixo da picape estacionada ao lado. Prendi o equipamento no peito de aço
da picape e então entrei na Mercedes. Quando estava saindo vi que a picape tinha uma placa do Arizona. Percebi que se Peoples não mandasse logo alguém coletar o
equipamento do bureau, então teriam de ir atrás dele em outro estado. Aquilo me fez rir comigo mesmo quando cheguei na cabine para pagar o estacionamento.
- Seu vôo deve ter sido ótimo - comentou a mulher que pegou meu tíquete.
- É, achei que você diria isso. Eu consegui voltar vivo.
Fui para casa e liguei para o celular de Janis Langwiser assim que passei pela porta. Ela havia mudado um pouco meus planos. Não queria que eu deixasse um recado
no telefone do escritório toda noite. Insistiu para que eu telefonasse para o celular.
- Como foi?
210
- Bem, foi. Agora só preciso esperar. Dei a ele até a noite de amanhã. Acho que, então, vamos descobrir.
- E como ele recebeu isso?
- Mais ou menos como esperávamos. Nada bem. Mas ach que, no final, ele entendeu. Acho que vai ligar amanhã.
- Espero que ligue.
- E da sua parte, tudo arranjado?
- Acho que sim. O chip de memória está no cofre do escritório e eu aguardo notícias suas. Se não der notícias, sei o que fazer.
- bom, Janis. Obrigado.
- Boa noite, Harry.
Desliguei e pensei nas coisas. Tudo parecia em ordem. Era Peoples quem tinha de fazer o próximo movimento. Peguei o fone outra vez e liguei para Eleanor. Ela atendeu
imediatamente, sem sinal de sono na voz.
- Desculpe, é Harry. Está jogando?
- Sim e não. Estou jogando, mas não estou indo bem, então dei uma parada. Estou vendo as fontes do lado de fora do Bellagio.
Balancei a cabeça. Podia vê-la ali no parapeito, as fontes dançantes acesas diante dela. Podia escutar a música e o barulho da água pelo telefone.
- Como foi no Commander's Palace?
- Como você sabe disso?
- Recebi uma visita do FBI esta noite.
- Foi rápido.
- Foi. Ouvi dizer que é um bom restaurante. Camarões macios como marshmallow. Você gostou?
- E legal. Mas gosto mais do de Nova Orleans. A comida é a mesma, mas o original é sempre o original, não é?
- E. Além disso, comer sozinho normalmente nunca é tão bom.
Eu quase me xinguei alto. Como eu estava fraco e transparente-
- Não estava sozinha. Levei uma amiga com quem costumo jogar. Uma das garotas. Você não me disse que havia um limite de despesas, Harry. -
Não, eu sei. Não havia.
211
Precisava mudar de assunto. Nós dois sabíamos o que eu estava perguntando e estava ficando embaraçoso, especialmente se considerássemos que podia haver outras pessoas
ouvindo.
Não percebeu ninguém seguindo você, percebeu?
Houve uma pausa.
- Não. E espero que você não tenha me metido em qualquer problema, Harry.
- Não, pode ficar sossegada. Só estou ligando para contar que o esquema terminou. O FBI sabe que ainda estou aqui.
- Droga. Não deu tempo de comprar aquele presente que você prometeu.
Sorri. Ela estava brincando e eu sabia.
- Tudo bem, você ainda pode fazer isso.
- Está tudo bem, Harry?
- Está, sim.
- Quer conversar sobre isso?
Não nessa linha, pensei, mas não disse.
- Talvez na próxima vez que a gente se encontrar. Agora estou muito cansado.
- Está bem. vou deixar você dormir. O que eu faço com seus cartões? E você sabe que deixou uma bolsa no meu banco traseiro.
Ela falou como se soubesse que eu tinha feito aquilo de propósito.
- Hum, por que não guarda isso por enquanto e, quando as coisas em que estou trabalhando tiverem passado, volto para pegar tudo com você?
Ela demorou um bom tempo para responder.
- Só me avise com mais antecedência do que fez hoje - disse finalmente. - Para não me pegar de surpresa.
- vou fazer isso, sem problema.
- Certo, Harry. Eu vou entrar de novo. Talvez conversar com você tenha mudado minha sorte.
- Espero que sim, Eleanor. Obrigado por fazer isso por mim.
- Sem problema. Boa noite.
- Boa noite. Ela desligou.
212
- E boa sorte - falei para uma linha muda.
Botei o telefone outra vez no gancho e tentei pensar sobre a conversa e o que ela tinha significado. Só me avise com mais antecedência do que fez hoje. Para não
me pegar de surpresa. Era como se quisesse um aviso antes de eu sair. Para poder fazer o quê? Para o que ela tinha de se preparar?
Percebi que eu podia ficar louco se ficasse pensando e me preocupando com aquilo. Botei Eleanor e todo o resto de lado, peguei uma cerveja na geladeira e levei-a
para o deque dos fundos. Era uma noite fresca e limpa, e as luzes da auto-estrada lá embaixo pareciam brilhar como um colar de diamantes. Eu podia ouvir o riso de
uma mulher subindo pela montanha de algum lugar lá embaixo Comecei a pensar em Danny Cross e na música que ela havia cantado com tanta doçura para o marido. No
amor e na perda, a noite sempre é sagrada. O mundo só é maravilhoso se você o faz assim. Não há placas indicando a estrada do paraíso.
Decidi que, quando tudo aquilo acabasse, eu iria a Vegas e não olharia para trás. Iria lançar os dados. Ia ver Eleanor e tentar minha sorte.
Capítulo 27
Na manhã seguinte, espalhei na mesa os documentos que tinha resgatado no motor do carrão de Lawton Cross. Fui até a cozinha preparar um café, mas vi que estava sem
pó. Podia descer o morro para ir à loja, mas não queria me afastar do telefone. Estava esperando que Janis Langwiser ligasse cedo. Então, sentei-me à mesa com uma
garrafa d'água e comecei a ler os relatórios que Cross tinha copiado e levado para casa há quase quatro anos.
O que eu tinha era uma cópia do relatório dos registros de número de série das notas, preparado pelo banco que havia emprestado o dinheiro para a produtora de cinema.
E também as planilhas de tempo e locação em que Lawton Cross e Jack Dorsey estavam trabalhando antes que seus horários fossem tomados por outros casos.
O relatório com os números de série era de quatro páginas datilografadas com números de notas de cem dólares escolhidas aleatoriamente entre a remessa feita para
o set de filmagem. O relatório tinha sido preparado por duas pessoas identificadas como Linus Simonson e Jocelyn Jones. E então fora assinado por um vicepresidente
do banco chamado Gordon Scaggs.
Reconheci o nome de Simonson. Era um dos empregados do Wco no set de filmagem no dia do roubo. Acabou ferido na troca de tiros. Agora, eu sabia porque ele estava
lá. Tinha ajudado a préparar
214
a remessa dos milhões e havia ido lá no dia da filmagem tomar conta do dinheiro, como uma babá zelosa.
Scaggs também era um nome familiar. Estava entre os nome dados a mim por Alexander Taylor quando perguntei ao
produtor quem exatamente sabia sobre a remessa de dinheiro
para o set de filmagem. Eu não tinha mais a lista de nove nomes que apanhara com Taylor. O FBI a havia tomado durante a busca em minha casa Mas eu me lembrava do
nome Scaggs.
Determinado a estudar tudo relativo ao caso em que eu pudesse pôr as mãos, percorri a lista de números de série, achando que algo poderia surgir dali. Mas nada chamou
minha atenção. Os números eram como um código indecifrável que escondiam o segredo do caso. Eram apenas quatro páginas de números sem qualquer seqüência em particular.
Terminei com o relatório dos números de série e peguei as folhas de álibi. Primeiro, conferi os nomes Scaggs, Simonson e Jones. Vi que Dorsey e Cross tinham mesmo
feito conferências de tempo e locação com todos os três empregados do banco. Cross tinha ficado com Scaggs e Jones. Dorsey conferira Simonson. As localizações
deles foram checadas em relação a horários-chave do assassinato de Angella Benton e do assalto ao set de filmagem subseqüente.
Os três foram liberados por álibis que diziam não terem qualquer envolvimento físico com os crimes. Simonson, é claro, estava na cena do assalto, mas como representante
do banco. O fato de ter levado um tiro dos ladrões também tendia a reforçar seu nãoenvolvimento. Claro que isso não garantia que tivessem algumQualquer um deles
poderia ser a mente criminosa por trás do roubo, e ter ficado de longe enquanto o plano era executado. Ou, pelo menos, qualquer um deles podia simplesmente ser a
fonte de informação sobre a remessa de dinheiro para o set de filmagem.
O mesmo acontecia com os outros oito nomes na planilha de T &. L. Todos tinham álibis que diziam não terem envolvimento ativo com os crimes. Mas eu não possuía
outros arquivos ou relatorios que indicassem o que fora feito para determinar se eles tinham outra conexão com o crime.
215
Percebi que estava me esforçando em vão. Estava tentando jogar paciência sem um baralho completo. Não tinha os ases e não havia maneira de vencer. Eu precisava de
todas as cartas. Tomei um gole d'água e desejei que fosse café. Comecei a pensar sobre como a jogada com o Peoples era importante. Se não funcionasse, eu estava
perdido. As mãos estendidas de Angella Benton poderiam me assombrar para o resto da vida, mas não haveria mais nada que eu pudesse fazer.
Naquele exato instante, o telefone tocou. Fui até a cozinha e o atendi. Percebi que era Janis Langwiser, antes que se identificasse.
- Sou eu - falou. - Precisamos conversar.
- Certo, mas agora estou um pouco ocupado. Já ligo de volta para você.
- Está bem.
Ela desligou sem um protesto. Tomei aquilo como um sinal de que agora acreditava no que eu dissera a ela sobre minha casa e meu telefone estarem grampeados. E também
como um sinal de que Peoples estava agindo do jeito que eu esperava que agisse. Peguei minhas chaves na prateleira e saí.
Desci a ladeira de carro. No ponto em que a Mulholland faz a volta no outro lado da colina e encontra a Woodrow Wilson na altura da Cahuenga, vi um Corvette amarelo
antigo esperando o sinal abrir à minha frente. Eu conhecia o motorista. De certa forma. De vez em quando eu o via passar correndo ou ao volante do Corvette pela
minha casa. E eu já havia visto e falado com ele uma vez na delegacia. Era um detetive particular que vivia do outro lado da colina. Levei minha mão à janela e
fiz uma saudação. Ele respondeu da mesma maneira. Tranqüilidade, meu irmão. Eu ia precisar disso. O sinal abriu. Ele seguiu para o Sul pela Cahuenga e eu, para o
Norte.
Comprei uma xícara de café em uma loja de conveniência e usei um telefone público perto de Poquito. Mas para ligar de volta para o celular de Langwiser. Ela atendeu
imediatamente.
- Eles vieram ontem à noite - contou. - Como você tinha Previsto.
- Você conseguiu gravar?
216
- Gravei! Ficou perfeito. Claro como o dia. Era o mesmo cara da primeira vez. Milton.
Asenti com a cabeça para mim mesmo. A ligação para minha casa na noite da véspera, quando Janis disse que tinha guardado o chip de memória no cofre do escritório,
tinha sido a isca, e Milton a mordera. Antes de deixar o escritório, armei outra das câmeras da Biggars &. Biggars - o rádio - na mesa dela e a apontei para a estante
de livros que escondia o cofre.
- Ele demorou, mas acabou encontrando. Levou o cofre inteiro da parede. Não está mais lá.
Ela havia esvaziado o cofre na noite anterior. Eu deixei lá dentro uma folha dobrada de papel que dizia: "Vá se foder com F maiúsculo!" Imaginei Milton abrindo
e lendo a mensagem - se ele conseguisse abrir o cofre.
- Mais alguma coisa roubada nos escritórios?
- Algumas gavetas abertas aqui e ali. A jarra na sala de café. Tudo para despistar, para fingir que tinha sido uma tentativa comum de roubo.
- Alguém ligou para a polícia para fazer a denúncia?
- Ligou, mas ainda não apareceu ninguém. Típico.
- Deixe a vigilância de fora. Pelo menos por enquanto.
- Eu sei. Já tínhamos falado sobre isso. Mas o que devo fazer agora?
- Você ainda tem o e-maií do Peoples?
- Claro.
Na noite anterior, ela havia conseguido o e-mail, com certa facilidade, de um ex-colega que trabalhava no escritório do promotor público.
- Está bem, mande outro e-mail para ele. Anexe a última gravação e diga a ele que o prazo mudou para hoje ao meio-dia. Ou ele dá notícias, ou pode começar a assistir
à CNN para ver o resultado. Envie o mais rápido possível.
- Eu estou conectada agora.
- bom.
Dei um gole no café enquanto a ouvia digitar. André Biggar tinha incluído no material que me emprestara o equipamento de
217
computador de que Langwiser precisava para ver o memory cará tirado da câmera do rádio. Agora ela podia anexar um arquivo com a gravação da vigilância no e-mail.
- Já mandei - disse ela finalmente. - Boa sorte, Harry.
- Provavelmente vou precisar.
- Lembre-se de me ligar hoje até a meia-noite ou vou seguir as instruções.
- Isso.
Desliguei e voltei à loja de conveniência para pegar outra xícara de café. Eu já estava ligado com o relatório de Langwiser, mas achei que poderia precisar de uma
cafeína extra antes do fim do dia.
Quando cheguei em casa, o telefone estava tocando. Destranquei a porta e entrei bem a tempo de atender o aparelho na pia da cozinha.
- Sim?
- Sr. Bosch? Aqui é John Peoples.
- Bom-dia.
- Não muito bom. Quando você pode vir aqui?
- Estou a caminho.
Capítulo 28
O agente especial Peoples estava esperando por mim no saguão do primeiro andar do edifício federal, em Westwood. Estava em pé quando cheguei lá. Talvez estivesse
assim desde o telefonema.
- Venha comigo - pediu ele. - Vamos fazer isso rápido.
- Que seja.
Depois de acenar com a cabeça para um guarda uniformizado, ele me conduziu por uma porta de segurança que abriu usando como chave um cartão magnético. Então usou-o
de novo para entrar no elevador que eu já conhecia.
- Vocês têm seu próprio elevador e tudo o mais - falei. -
Bem legal.
Peoples não ficou impressionado. Virou-se e olhou direto para
num.
- Estou fazendo isso porque não tenho escolha. Resolvi concordar com esta extorsão porque acredito que o que estou tentando alcançar aqui trará um bem maior.
- Foi por isso que você mandou o Milton até o escritório da minha advogada ontem à noite? Isso era parte do bem maior do qual você está falando?
Ele não respondeu.
- Você pode me odiar, tudo bem. A escolha é sua. Mas não vamos ficar de babaquice um com o outro. Não se esconda por trás
220
disso, por que nós dois sabemos o que está acontecendo aqui. Seu homem passou dos limites e foi pego. Agora é a hora de pagar o preço. E disso que estamos falando.
E simples assim.
- E enquanto isso, a investigação fica comprometida e vidas são postas em risco.
- Vamos pensar nisso depois, está bem?
O elevador se abriu no nono andar. Ele me conduziu para fora sem responder. O cartão sempre prático nos levou através de outra porta até uma sala do esquadrão onde
vários agentes trabalhavam em suas mesas. Quando passamos, a maioria deles parou o que estava fazendo para olhar para mim. Imaginei que eles tinham sido informados
de quem eu era e o que estava fazendo, ou apenas que a presença de um não-agente no santuário interno valia uma olhadela.
Quando estava a meio caminho do salão, notei Milton sentado a uma escrivaninha perto do fundo. Estava recostado em sua cadeira e fazia tudo para mostrar como estava
tranqüilo. Mas eu podia sentir a raiva pulsando por baixo da fachada. Pisquei para ele e voltei minha atenção para outro lado.
Peoples levou-me para uma sala pequena com uma escrivaninha e duas cadeiras. Havia uma caixa de papelão sobre a escrivaninha. Olhei dentro dela e reconheci meu
próprio caderno e a pasta que eu mantinha sobre Angella Benton. A pasta da garagem de Lawton também estava lá, e um fichário preto com uma pilha de cinco centímetros
de documentos. Presumi que fosse a cópia do inquérito do DPLA. Fiquei animado só de olhar para aquilo. Era o baralho completo pelo qual eu estava procurando.
- Onde está o resto? - perguntei.
Peoples deu a volta na escrivaninha e abriu a gaveta do meio. Tirou uma pasta e largou-a sobre a escrivaninha.
- Aqui você vai encontrar os informes de localização de suspeitos que cobrem as duas datas que você pediu. Não acho que vão ajudar, mas é o que você queria. Pode
consultar esse material, mas não pode levá-lo daqui. Isso não sai desta sala. Entendeu?
Balancei a cabeça, decidido a não forçar a barra.
- Esobre Aziz?
221
- Quando estiver pronto, ponho você numa sala com ele. Mas ele não vai falar com você. Vai ser perda de tempo.
- Bem, o tempo é meu, eu posso perdê-lo.
- Então, antes de sair daqui, você vai ligar para sua advogada e instruí-la a me entregar o original e todas as cópias das gravações de vigilância que você tem da
noite passada e da anterior.
Sacudi a cabeça.
- Desculpe, esse não é o acordo.
- E, sim.
- Não. Eu nunca disse que iria devolver as gravações. O que eu disse era que não as tornaria públicas. Há uma diferença. Não vou entregar a única vantagem que tenho.
Não sou burro, John.
- Tínhamos um acordo - insistiu ele, o rosto começando a tremer de raiva.
- E eu estou respeitando o acordo. Exatamente como ele foi
proposto.
Peguei uma fita cassete no bolso e a entreguei a ele.
- Se não acredita em mim, pode escutar você mesmo. Eu gravei tudo ontem no reservado.
Vi os olhos dele registrarem que agora eu o havia amarrado.
- Pegue, John. Como um gesto de boa vontade. É o original. Não fiz cópias.
com gestos lentos ele pegou a fita. Eu dei a volta na escrivaninha.
- Por que eu não dou uma olhada no que tem nos arquivos enquanto você faz o que precisa ser feito para aprontar o Aziz?
Peoples enfiou a fita no bolso e concordou com a cabeça.
- Volto em dez minutos - concordou ele. - Se alguém entrar e perguntar o que você está fazendo, feche as pastas e diga para falar comigo.
- Uma última coisa. E o dinheiro?
- O que tem?
- Quanto do dinheiro do roubo do filme o Aziz estava levando embaixo do banco do carro?
Achei que tinha visto um sorrisinho começar a surgir no rosto de Peoples, mas então ele desapareceu.
222
- Ele tinha cem dólares. Uma nota ligada ao roubo.
Ele ficou por tempo suficiente para ver o desapontamento no meu rosto, então virou-se para a porta.
Depois que deixou a sala, sentei-me à escrivaninha e abri o fichário. Havia duas páginas com selos de segurança e palavras no meio dos parágrafos, além de parágrafos
inteiros cobertos com tinta preta. Peoples, estava claro, não ia me deixar ver qualquer coisa além do que eu havia negociado ou, como ele disse, extorquido.
As páginas tinham sido tiradas do que eu acreditava ser um arquivo maior. Havia um código em letras miúdas no canto esquerdo superior. Peguei minha pasta dentro
da caixa de papelão e a abri. Peguei uma das folhas soltas de papel de rascunho e anotei o número de código de cada página. Então li o que Peoples tinha deixado
que eu lesse.
A primeira página tinha dois parágafos com datas.
11 -5-99 - SUSPEITO confirmado em Hamburgo às ••• na
SUSPEITO visto em restaurante em ••••• aproximadamente das Z0h00 às 23h30. Sem mais detalhes.
1-7-99 - SUSPEITO teve passaporte examinado em Heathrow às 14h40. Continuação: determinação de chegada no vôo 968 da Lufthansa de Frankfurt. Sem mais detalhes
Os parágrafos antes e depois desses dois tinham sido completamente cobertos de preto. Eu estava olhando para o diário no qual os passos de Aziz ao longo dos anos
foram registrados pelos federais. Ele estava na lista de vigilância. E aquilo era o resultado. Observações de informantes e agentes e conferência de passaporte nos
aeroportos.
O assassinato de Angella Benton e o assalto ao set de filmagem tinham ocorrido entre as duas datas naquela página. De jeito nenhum elas isentavam Aziz de envolvimento,
ativo ou não, nos crimes. Mas, se eu acreditasse no documento diante de mim, ele estava na Europa antes e depois da ocorrência dos crimes que eu estava investigando.
Mas aquilo não era um álibi. Aziz era
223
conhecido, segundo a reportagem no Times, por viajar com identidades falsas. Era possível que ele tivesse entrado no país para cometer os crimes e então tivesse
saído
outra vez.
Fui para a página seguinte. Essa tinha apenas um parágrafo que não estava coberto de preto. Mas a data acertava em cheio.
19-3-00 - SUSPEITO teve passaporte examinado no aeroporto LAX - Califórnia. Chegada no Vôo 88 da Quantas procedente de Manilla às
18h11. Passou pela segurança e
foi
re de Los Angeles. Ver transcrição nsOO-4969. Liberado às21h!5.
Aziz tinha o que parecia ser um álibi perfeito para a noite do desaparecimento da agente Martha Gessler. Foi interrogado por um agente do FBI no Aeroporto Internacional
de Los Angeles até às 21h15. Estava sob custódia federal na mesma hora em que Gessler desapareceu no caminho do trabalho para casa.
Devolvi as duas folhas para a pasta e a guardei na gaveta. Não tomei mais notas - nada havia a escrever - na página do meu fichário. Guardei-a na pasta e peguei
o inquérito. Estava prestes a começar com ele quando a porta da sala se abriu e Milton apareceu. Eu fiquei em silêncio. Esperei que fizesse o primeiro movimento.
Ele entrou e olhou ao redor da sala como se fosse do tamanho de um galpão. Finalmente, falou sem olhar para mim.
- Você tem mesmo colhões, Bosch. Fazer o que está fazendo e achar que vai conseguir escapar dessa. Escapar de mim.
- Acho que eu podia dizer a mesma coisa de você.
- Se fosse eu, teria pagado para ver seu blefe.
- E iria perder.
Ele se inclinou em minha direção, apoiou as duas mãos na mesa e olhou direto para mim.
- Você já era, Bosch. O mundo te deixou para trás, mas olha você aí, se agarrando a qualquer coisa, fodendo com as pessoas que estão tentando proteger o futuro.
224
Eu não estava impressionado e esperava que isso ficasse claro. Recostei-me na cadeira e olhei para ele.
- Por que você não relaxa, cara? Pelo que sei, você não tem nada com que se preocupar. Seu chefe está mais interessado em encobrir as coisas do que em jogar limpo.
Você vai sair bem dessa, Milton. Acho que ele está com raiva porque você foi pego, não pelo que fez.
Ele apontou um dedo para mim.
- Não vem com essa merda. O dia em que eu precisar de conselhos seus sobre minha carreira, entrego meu distintivo.
- Está bem. Então o que você quer?
- Quero te dar um aviso. Cuidado comigo, Bosch, porque eu vou pegar você.
- Então eu vou estar pronto.
Ele deu a volta e saiu, deixando a porta aberta. Alguns segundos depois, Peoples voltou.
- Está pronto?
- Estou.
- Onde está a pasta que eu dei a você?
- De volta na gaveta.
Ele se inclinou sobre a mesa e abriu a gaveta para ter certeza de que eu não estava armando alguma.
- Está bem, vamos. Traga a sua caixa.
Eu o segui por algumas portas de segurança e entrei outra vez no corredor das celas. Mas, antes que nos aproximássemos das portas com janelas espelhadas, ele usou
seu cartão magnético para abrir uma porta e me conduziu até uma sala de interrogatórios. Havia uma mesa com duas cadeiras. Mousouwa Aziz já se encontrava sentado
em uma delas. Um agente que eu não tinha visto antes estava encostado no canto da parede à esquerda da porta. Peoples foi para o outro canto.
- Sente-se - pediu ele. - Você tem quinze minutos.
Eu pus a caixa no chão, puxei a cadeira vazia e sentei à mesa, de frente para Aziz. Ele parecia fraco e magro. Uma linha preta surgia perto da raiz dos cabelos pintados
de louro. Seus olhos profundos estavam injetados e eu me perguntei se eles acendiam a luz na
225
cela dele. As coisas tinham mesmo mudado nesse mundo. Dois anos antes, sua chegada e identificação no aeroporto fizeram com que ficasse algumas horas sob custódia
enquanto um agente tentava interrogá-lo. Agora uma parada na fronteira fizera com que ficasse preso por período indeterminado no santuário mais secreto do FBI.
Eu não estava esperando muito do encontro, mas senti que precisava do olho-no-olho antes de ir em frente ou de eliminar Aziz como suspeito. Depois de ver os informes
da inteligência poucos minutos antes, estava mais inclinado para o segundo. A única ligação entre aquele pequeno terrorista e Angella Benton era o dinheiro. No momento
de sua prisão, ele tinha em sua posse uma das notas de cem dólares saídas do assalto ao set de filmagem. Só uma. Provavelmente, havia muitas explicações para isso
e eu estava começando a achar que seu envolvimento, tanto no assassinato como no assalto, não era uma delas.
Abaixei-me e tirei a minha pasta sobre Angella Benton da caixa de papelão. Botei-a no colo, onde Aziz não podia vê-la. Peguei a foto de Angella Benton fornecida
pela família. Era um retrato feito em estúdio, tirado na época de sua formatura pela Ohio State, menos de dois anos antes de sua morte. Ergui os olhos até Aziz.
- Meu nome é Harry Bosch. Estou investigando a morte de Angella Benton há quatro anos. Ela parece familiar?
Deslizei a foto até o outro lado da mesa e estudei o rosto e os olhos dele em busca de algum movimento, algo que o entregasse. Seus olhos se dirigiram para a fotografia,
mas não vi qualquer coisa parecida com uma reação. Ele ficou calado.
- Você a conhecia? Ele não respondeu.
- Ela trabalhava para uma produtora de cinema que foi roubada. Parte do dinheiro acabou com você. Como?
Nada.
- De onde veio o dinheiro?
Ele levantou os olhos da foto e me encarou. Não falou nada.
- Esses agentes disseram para você não falar comigo. Nada.
226
- Disseram? Olha, se você não a conhecia, então me diga. Aziz baixou outra vez seus olhos tristes para a mesa. Parecia
estar olhando de novo para a foto, mas eu sabia que não estava. Estava olhando para algo distante. Eu sabia que era inútil, como provavelmente já sabia antes mesmo
de me sentar. Levantei e virei-me para Peoples.
- Pode ficar com o resto dos quinze minutos.
Ele virou-se para a parede e olhou para a câmera no alto. Fez o pequeno movimento giratório com o dedo e as travas eletrônicas da porta se abriram. Sem pensar fui
até a porta e a empurrei para sair. Quase imediatamente ouvi um aterrorizante grito de guerra por trás de mim. Aziz estava de pé em cima da mesa e me acertou no
alto das costas com todo o seu peso - no máximo uns 70 quilos - eu atravessei a porta e fui parar no meio do corredor.
Aziz ainda estava em cima de mim e quando comecei a cair senti seus braços e suas pernas tentando manter o equilíbrio. Então ele se soltou num pulo e disparou pelo
corredor. Peoples e o outro agente foram logo atrás dele. Enquanto me levantava, vi encurralarem Aziz num beco sem saída. Peoples esperou enquanto o outro agente
foi para cima e jogou o homem menor no chão sem muita resistência.
Quando Aziz estava sob controle, Peoples virou-para mim.
- Bosch, você está bem?
- Estou.
Eu me levantei e fiz uma cena para ajeitar minhas roupas. Estava envergonhado. Tinha sido pego de surpresa por Aziz e sabia que, provavelmente, eu seria o assunto
na sala do esquadrão no outro lado do corredor.
- Não estava pronto para aquilo. Acho que estou longe dessa vida há tanto tempo que enferrujei.
- É, você nunca pode dar as costas para eles.
- Minha caixa. Eu esqueci.
Voltei para a sala de interrogatório e peguei a foto na mesa e a caixa. Quando saía outra vez, Aziz estava sendo escoltado, as mãos algemadas às costas.
Observei-o afastar-se e então eu e Peoples seguimos a uma diS' tância segura.
Então - começou Peoples -, tudo isso para nada.
227
- Provavelmente.
- E tudo isso poderia ter sido evitado se... Ele não terminou, então eu completei.
- Seu agente não tivesse cometido aqueles crimes diante de uma câmera. E.
Peoples parou no meio do corredor e eu fiz o mesmo. Esperou que Aziz e o outro agente passassem pela porta.
- Não me sinto à vontade com esse arranjo - falou. - Não tenho garantias. Você pode sair daqui e ser atropelado por um caminhão. Isso significaria que as gravações
iam parar no noticiário?
Pensei por um instante e então balancei a cabeça.
- Iam sim. É melhor torcer para o caminhão não me acertar.
- Não quero viver e trabalhar com esse peso.
- Não culpo você. O que vai fazer sobre Milton?
- O que eu disse a você. Ele está fora. Só não sabe disso, ainda.
- Bem, quando isso acontecer, me avise. Aí a gente pode conversar outra vez sobe o peso.
Pareceu que ele ia falar mais alguma coisa, mas então pensou melhor e eu comecei a andar outra vez. Ele me acompanhou pelas portas de segurança até o elevador. Usou
seu cartão magnético para chamá-lo e então para apertar o botão do saguão. Segurou a porta
com a mão.
- Não vou descer com você - resolveu. - Acho que já conversamos demais.
Concordei com a cabeça e ele deu um passo para trás e saiu do elevador. Ficou ali de pé olhando, talvez para ter certeza de que eu não ia fugir do elevador e tentar
soltar os terroristas presos.
Assim que a porta começou a fechar-se, eu acertei-a com o lado do meu sapato e ela tornou a abrir-se devagar.
- Não esqueça, agente Peoples, que minha advogada tomou providências para garantir a própria segurança e a das fitas. Se algo acontecer a ela, é o mesmo que acontecer
comigo.
- Não se preocupe, Sr. Bosch. Não vou tomar qualquer medida contra ela ou você.
- Não é com você que eu estou preocupado. Continuamos a nos encarar enquanto a porta se fechava.
- Entendi. - Eu o ouvi falar através da porta.
Capítulo 29
Minha brincadeira com os federales não tinha sido totalmente infrutífera como fiz Peoples acreditar. Sim, minha caçada ao terroristazinho pode ter sido uma pista
falsa, mas em todos os casos sempre há pistas falsas. Faz parte da missão. No final das contas, eu tinha o inquérito completo e estava satisfeito com aquilo. Agora
estava jogando com um baralho completo e isso me permitia anotar na cabeça tudo o que tinha ocorrido nos dois dias que me levaram até
' v*
o ponto onde eu estava, incluindo minhas horas em cana. Porque eu sabia que, se fosse encontrar o assassino de Angella Benton, a resposta, ou pelo menos a chave
que poderia provocar uma reviravolta no caso, provavelmente estaria sentada esperando em algum lugar daquele fichário de plástico preto.
Do edifício federal fui para casa. Cheguei lá como o cara que acha que pode ter ganhado na loteria, mas precisa conferir os números no jornal para ter certeza. Fui
direto para a mesa da sala de jantar com minha caixa de papelão e espalhei tudo o que havia dentro dela. Em primeiro plano e bem no centro, o inquérito. O Santo
Graal. Sentei-me e comecei a ler da página 1. Não me levantei para pegar café, água ou cerveja. Não liguei música. Concentrei-me totalmente nas folhas que estava
virando. Às vezes, tomava notas no meu bloco. Mas, na maior parte do tempo,
230
apenas li e absorvi. Entrei no carro com Lawton Cross e Jack, Dorsey e refiz a investigação deles.
Quatro horas depois, virei a última página do fichário. Tinha lido e estudado cada documento com cuidado. Nada me bateu como a chave, a trilha óbvia a seguir, mas
não fiquei desanimado Ainda acreditava que estava lá. Sempre estava. Eu só precisava ver tudo de outro ângulo.
O que me chamou a atenção após aquela imersão intensiva nas partes documentadas do caso foi a diferença de personalidades de Cross e Dorsey. Dorsey era uns bons
dez anos mais velho que Cross e era o mentor naquele relacionamento. Mas, na maneira como escreviam e lidavam com os relatórios, percebi muitas diferenças. Os relatórios
de Cross eram mais descritivos e interpretativos. Os de Dorsey, o oposto. Se três palavras eram suficientes para resumir um interrogatório ou um relatório da perícia,
para ele, isso bastava. Cross iria escrever essas três palavras e então acrescentava umas dez frases interpretando o relatório da perícia ou o significado do comportamento
da testemunha. Eu preferia o método de Cross. Sempre foi minha filosofia anotar tudo. Porque, às vezes, os casos levam meses, mesmo anos, e as nuances podem se perder
com o tempo se não forem registradas.
Aquilo também me levou à conclusão de que talvez os dois parceiros não fossem muito próximos. Agora, estavam muito ligados, conectados para sempre na mitologia do
departamento como os maiores azarados. Mas, talvez, as coisas tivessem sido diferentes se os dois estivessem próximos naquele momento no bar.
Estava pensando no que poderia ter feito com que eu me lembrasse de Danny Cross cantando para o marido. Acabei me levantando e fui até o CD-player e botei uma
coletânea de Louis Armstrong, lançada junto com o documentário sobre jazz de Ken Burns. A maioria das faixas, gravações muito antigas, mas eu sabia que terminava
com "What a Wonderful World", o último sucesso dele.
De volta à mesa, olhei para meu bloco de anotações. Tinha escrito apenas três coisas durante a primeira leitura.
231
US$100 mil
Sandor Szatmari
O dinheiro, idiota
A companhia que tinha feito o seguro do dinheiro no set de filmagem, a Global Underwriters, oferecera uma recompensa de cem mil dólares por informação que levasse
a prisão e condenação no caso. Eu não sabia da recompensa e me surpreendi por Lawton Cross não ter me contado aquilo. Acho que foi só outro detalhe que fugiu de
sua mente por causa do trauma e da passagem do tempo.
Para mim, a existência de uma recompensa tinha pouca importância. Presumi que, como eu era um ex-tira que durante uma época esteve envolvido no caso, mesmo antes
do assalto que deu origem à recompensa, eu não teria direito a ela se meu esforço levasse a uma prisão e a uma condenação. Também sabia que letras pequenas no anúncio
da recompensa diriam que era necessário recuperar os dois milhões para receber os cem mil, a quantia reduzindo-se proporcionalmente de acordo com a soma recuperada.
E, quatro anos depois do crime, havia poucas chances de que ainda houvesse sobrado alguma coisa. Mesmo assim, era bom saber da recompensa. Isso podia ser útil como
instrumento de influência ou pressão. Eu podia não ter direito, mas talvez conseguisse encontrar alguém que tivesse. Fiquei satisfeito com a descoberta.
Em seguida, havia no bloco o nome de Sandor Szatmari. Ele ou ela - não dava para saber - estava listado como o investigador do caso para a Global Underwriters. Era
alguém com quem eu precisava conversar. Abri o inquérito na primeira página, onde os investigadores costumam anotar os telefones mais úteis. O nome de Szatmari
não estava lá, mas havia o da Global. Fui até a cozinha para pegar o telefone, desliguei o Louis Armstrong no CD-Player e fiz a ligação. Fui transferido duas vezes
antes, até que finalmente cheguei a uma mulher que atendeu dizendo: "Investigação.
Tive problemas com o nome Szatmari e ela me corrigiu e pediu que eu aguardasse. Em menos de um minuto Szatmari atendeu. Era homem. Expliquei minha situação e perguntei
se podíamos nos encontrar. Ele pareceu cético, mas podia ser apenas por ter um
232
sotaque da Europa Oriental, o que tornava difícil interpretá-lo. Ele se recusou a discutir o caso pelo telefone com um estranho, mas acabou concordando em me encontrar
às dez horas da manhã seguinte em seu escritório em Santa Monica. Disse que estaria lá. Desliguei.
Olhei para a última linha que escrevera no bloco. Era apenas um lembrete de um velho ditado que servia em quase toda investigação. Siga o dinheiro, idiota. Ele sempre
leva à verdade. Nesse caso, o dinheiro tinha sumido e seus rastros - que não passavam do registro em Phoenix e do envolvimento de Mousouwa Aziz descoberto por Martha
Gessler - tinham esfriado. Sabia que aquilo só me deixava uma alternativa. Voltar um pouco. Rastrear o dinheiro desde o início.
Para fazer aquilo, eu precisava começar no banco. Dei outra olhada na página dos telefones do inquérito e liguei para Gordon Scaggs, o vice-presidente do BankLA
que tinha arranjado aquele empréstimo de dois milhões, por um dia, para a produtora de cinema de Alexander Taylor.
Scaggs era um homem ocupado, e me disse que gostaria de adiar o encontro comigo até a semana seguinte, mas insisti e consegui que ele me recebesse por 15 minutos,
na tarde seguinte, às três. Ele me pediu por um número para o qual sua secretária pudesse ligar na manhã seguinte para confirmar. Inventei um número e passei a ele.
Eu não ia dar a oportunidade de sua secretária me ligar para dizer que a reunião tinha sido cancelada.
Desliguei e avaliei minhas opções. A tarde chegava ao fim e naquele momento eu estava livre até as dez da manhã seguinte. Queria dar mais uma olhada no inquérito,
mas sabia que não precisava ficar sentado em casa para fazer aquilo. Podia muito bem fazer num avião.
Telefonei para a Southwest Airlines e reservei um vôo de Bourbank para Las Vegas, chegando às
19h15, e um vôo de volta que partia de manhã cedo e chegava de volta
a Burbank às 08h30.
Eleanor atendeu o celular no segundo toque e pareceu estar sussurrando.
E o Harry. Algum problema?
233
- Não.
- Por que você está sussurrando? Ela falou mais alto.
- Desculpe, não tinha percebido. O que está acontecendo?
- Estava pensando em ir até aí esta noite para pegar minha bolsa e meus cartões de crédito.
Quando ela não respondeu de imediato, perguntei:
- Você vai estar por aí?
- Bem, eu ia jogar mais tarde esta noite. Mais tarde.
- Meu avião chega às 19h15. Posso passar aí às oito. Talvez pudéssemos jantar antes de você ir jogar.
Esperei e mais uma vez parecia que ela estava demorando demais para responder.
- Jantar seria ótimo. Você vai dormir na cidade?
- vou. Meu vôo sai amanhã cedo. Tenho coisas a fazer aqui de manhã.
- Onde você vai ficar?
Havia um sinal claro como qualquer outro.
- Não sei. Ainda não fiz reserva.
- Harry, não acho que seria bom para nós você dormir aqui.
- Certo.
A linha ficou tão silenciosa quanto os quinhentos quilômetros de deserto entre nós.
- Olha, eu posso botar você de graça no Bellagio. Eles podem fazer isso por mim.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Obrigado, Eleanor. Você quer que eu vá até sua casa quando chegar?
- Não, eu apanho você. Vai despachar alguma bagagem?
- Não, a minha bolsa já está com você.
- Então às 19hl5 estarei estacionada em frente ao terminal. Vejo você lá.
Percebi que ela estava novamente sussurrando, mas dessa vez não falei nada.
- Obrigado, Elanor.
234
- Tudo bem, Harry. Mas tenho que arranjar umas coisas para ficar livre esta noite. Por isso tenho que ir. Vejo você no aeroporto às 19H15. Tchau!
Eu disse até logo, mas ela já tinha desligado. Parecia haver outra voz ao fundo quando ela encerrou a ligação.
Enquanto eu pensava nisso, Louis Armstrong começou a cantar "What a Wonderful World" e eu aumentei o som.

Capítulo 30
Às 19h15, Eleanor e eu repetimos a mesma cena do aeroporto. Até o beijo quando entrei no carro. Depois, virei-me de um jeito estranho e peguei o pesado inquérito
que estava carregando no banco da frente e o guardei no assento traseiro. Joguei-o no banco ao lado da minha mala, que já estava no carro de Eleanor.
- Isso parece um inquérito, Harry.
- E é. Achei que ia conseguir ler durante o vôo.
- Conseguiu?
- Na poltrona do lado tinha um bebê chorando. Não pude me concentrar. Mas por que alguém traria uma criança para Vegas?
- Na verdade, não é um lugar ruim para criar um filho. Não parece ser.
- Não estou falando em criar. Quer dizer, você leva uma criança de férias para a Cidade do Pecado? Leve para a Disneylândia, ou algo assim.
- Acho que você precisa de uma bebida.
- E de comida. Onde você quer jantar?
- Lembra de quando ainda estávamos... em L.A. e íamos ao Valentino em ocasiões especiais?
- Claro.
Ela riu e só o fato de poder olhar outra vez para ela me empolgou. Eu gostava mesmo do jeito como o cabelo dela valorizava aquele pescoço adorável.
236
- E, eles têm um aqui. Fiz uma reserva.
- Eles devem ter de tudo mesmo em Las Vegas.
- Menos você. Não há como fazer uma cópia de Harry Bosch. O sorriso permaneceu em seu rosto enquanto ela disse aquilo
e eu também gostei disso. Logo caímos em um silêncio provavelmente tão confortável quanto possível entre duas pessoas que já foram casadas. Ela manobrou com habilidade
pelo tráfego que parecia rivalizar fácil com o das ruas e auto-estradas apinhadas de Los Angeles.
Já fazia três anos que eu não passava pela Vegas Strip, mas a cidade era um lugar que ensinava que o tempo era relativo. Em três anos tudo parecia ter mudado outra
vez. Vi novos hotéis e atrações, táxis com letreiros luminosos no teto, monotrilhos ligando os cassinos.
A versão do Valentino em Las Vegas ficava no Venetian, uma das mais novas jóias da coroa dos cassinos de luxo da Strip. Era um lugar que sequer existia na última
vez em que eu estivera lá. Quando Eleanor parou na entrada, antes de dar as chaves para o manobrista, eu disse a ela para abrir a mala para que eu pudesse guardar
minha bagagem e o inquérito.
- Não posso, está cheia.
- Não quero deixar essas coisas à vista, principalmente o inquérito.
- Bem, ponha na bolsa e deixe no chão. Não vai ter problema.
- Você não tem espaço lá atrás nem para o inquérito?
- Não, está tudo apinhado, e se eu abrir as coisas vão começar a cair. Não quero que isso aconteça.
- O que tem lá dentro?
- Só roupas e algumas coisas que eu queria dar para o Exército da Salvação, mas não tive tempo.
Dois manobristas abriram nossas portas simultaneamente e nos deram as boas-vindas ao hotel. Saí, abri a porta traseira, inclineime para dentro, abri a bolsa e guardei
o inquérito dentro dela. Depois de fechar a bolsa, joguei-a no chão atrás do assento de Eleanor.
- Você vem, Harry? - perguntou ela às minhas costas.
237
- Já estou indo.
Quando o manobrista se afastou com o carro, olhei para o porta-malas e para a traseira do carro. Não parecia muito pesada. Olhei para a placa e a li três vezes
para mim mesmo.
O Valentino era o Valentino. Pelo que eu podia reparar, o restaurante de L.A. tinha sido clonado à perfeição. Era como tentar descobrir as diferenças entre dois
McDonald's - em termos culinários.
Não forcei uma conversa enquanto comíamos. Eu estava me sentindo à vontade e feliz só por estar com ela. No início, o diálogo, apesar de escasso, focou-se em mim
e em minha aposentadoria, ou a falta dela. Contei sobre o caso em que estava trabalhando, inclusive a conexão com a velha amiga e colega Marty Gessler. Em outra
vida Eleanor fora agente do FBI e ainda tinha a mente analítica de um investigador. Quando estávamos juntos em L.A., ela foi freqüentemente uma referência para mim,
e em mais de uma ocasião ajudou com uma sugestão ou idéia.
Dessa vez, ela só tinha um conselho a me dar, e era para ficar longe de Peoples e Milton, e mesmo de Lindell. Não que os conhecesse pessoalmente. Mas conhecia a
cultura do FBI e seu pessoal. Claro, o conselho chegou tarde demais para mim.
- Estou me esforçando ao máximo só para conseguir isso contei a ela. - Eu ia achar ótimo se nunca mais visse nenhum dos dois outra vez.
- Mas não é muito provável. De repente, pensei em uma coisa.
- Você está com o celular, não está?
- Estou, mas não acho que eles vão gostar que você use um celular num lugar como este.
- Eu sei. vou lá para fora. Só lembrei que preciso dar um telefonema ou a merda vai acertar o ventilador.
Ela tirou o telefone da bolsa e o deu a mim. Saí do restaurante e fui até um shopping center construído para ficar parecido com um canal veneziano, com gôndolas
e tudo. O céu de concreto era pintado de azul com traços de nuvens brancas. Uma falsificação,
238
mas pelo menos tinha ar-condicionado. Liguei para o celular de Janis Langwiser e disse a ela que a barra estava limpa.
- Estava começando a ficar preocupada sem notícias suas. Já liguei duas vezes para sua casa.
- Está tudo bem. Estou em Vegas e volto amanhã.
- Como vou saber que você não está detido? Sabe, preso e forçado a dizer isso?
- Você tem bina?
- Ah, claro. O prefixo de Las Vegas. Tudo bem, Harry. Não esqueça, telefone para mim amanhã. E não perca dinheiro demais aí.
- Não vou.
Quando voltei para a mesa, Eleanor não estava lá. Sentei e fiquei ansioso com isso, mas em alguns minutos ela voltou do banheiro. Quando a vi caminhando na direção
da mesa, achei que estava diferente, mas não sabia como. Era mais que o cabelo ou o bronzeado. Era como se estivesse com mais confiança do que eu me lembrava. Talvez
tivesse encontrado o que precisava no feltro azul das mesas de pôquer da Strip.
Devolvi o telefone e ela o jogou na bolsa.
- Então, como têm sido as coisas por aqui? - perguntei. -Já falamos do meu caso. Vamos falar um pouco do seu.
- Não tenho um caso.
- Você sabe do que estou falando. Ela deu de ombros.
- Este ano a coisa tem andado bem. Ganhei uma classificatória e vou jogar a grande final.
Eu sabia que ela estava falando sobre vencer um torneio classificatório para o campeonato mundial de pôquer. Na última vez que tínhamos conversado sobre pôquer,
ela me contara que seu objetivo secreto era ser a primeira mulher a ganhar o campeonato. O vencedor de um torneio classificatório pode ficar com o dinheiro ou com
uma vaga para o mundial.
- Vai ser sua primeira vez no campeonato, não é?
Ela balançou a cabeça e deu um sorriso. Percebi que estava orgulhosa e empolgada.
- Vai começar em breve.
239
- Bem, boa sorte. Talvez eu venha para assistir.
- Me traga sorte.
- Mas ainda assim deve ser duro, Eleanor, ganhar a vida nas
cartas.
- Eu sou boa, Harry. Além disso, agora tenho financiadores.
Eu divido o risco.
- O que você quer dizer com isso?
- Hoje em dia funciona assim. Tenho pessoas que me financiam e uso o dinheiro deles para jogar. Eles ficam com 75% do que eu ganhar. Se eu perder, o prejuízo é
deles. Mas eu perco poucas vezes, Harry.
Assenti com a cabeça.
- Quem são essas pessoas? Eles são... você sabe.
- Limpos? São, Harry, muito. São homens de negócios. Gente da Microsoft. De Seattle. Eu os conheci quando estavam aqui jogando. Até agora, fiz dinheiro para eles.
Do jeito que anda a bolsa, eles preferem investir em mim. Estão satisfeitos, e eu também.
- Que bom.
Pensei no dinheiro que Alex Taylor tinha me oferecido. E então na recompensa do caso do assalto. Se eu o resolvesse, recuperasse o dinheiro e, de alguma forma, conseguisse
receber a recompensa, poderia financiá-la. Era uma viagem. Eu me perguntei se ela sequer aceitaria meu dinheiro.
- Em que você está pensando? - perguntou. - Parece tão
preocupado.
- Nada. Só estava pensando no caso por um segundo. Algo que quero perguntar ao investigador da seguradora amanhã.
O garçom trouxe a conta e eu a paguei, depois de pegar meu cartão de crédito de volta com Eleanor. Saímos, entramos no carro e eu conferi para ter certeza de que
a bolsa ainda estava ali. Fomos até o Bellagio, uma distância curta, mas que tomou muito tempo por causa do trânsito. Fiquei nervoso quando nos aproximamos porque
não sabia o que ia acontecer quando chegássemos lá. Olhei para o relógio. Eram quase dez horas.
- A que horas você vai jogar?
- Gosto de começar por volta da meia-noite.
240
- Por que você gosta de jogar noite adentro? Qual o problema com o dia?
- Os verdadeiros jogadores vêm à noite. Os turistas vão para a cama. Tem mais dinheiro na mesa.
Rodamos em silêncio por alguns instantes e ela continuou como se não tivesse havido qualquer pausa.
- Além disso, gosto de sair no fim da noite e ver o sol nascendo. Tem alguma coisa nisso. Como se você estivesse alegre por ter sobrevivido a mais um dia, ou algo
assim.
No interior do Bellagio, fui até o balcão VIP e peguei o cartão magnético que servia de chave, deixado no nome de Eleanor. Era simples assim. Ela me conduziu ao
elevador como se já tivesse entrado nele cem vezes, e fomos até uma suíte no décimo segundo andar. Era o melhor quarto de hotel que eu tinha visto, com uma sala
de estar, uma cama e uma vista para as famosas fontes iluminadas no espelho d'água à frente.
- Isso é legal. Você deve conhecer muita gente.
- Estou ficando famosa. Jogo aqui três ou quatro noites por semana e isso está começando a atrair gente. Gente de grana quer jogar comigo. Eles aqui sabem disso,
e não querem que eu jogue em nenhum outro lugar.
Concordei com a cabeça.
- Acho que as coisas estão mesmo indo bem para você.
- Não tenho do que reclamar.
- Acho...
Não terminei. Ela andou em minha direção e parou à minha frente.
- Você acha o quê?
- Não sei o que ia perguntar. Acho que queria saber o que está faltando. Você está com alguém agora, Eleanor?
Ela se aproximou. Podia sentir sua respiração.
- Quer dizer, se estou apaixonada por alguém? Não, Harry, não estou.
Balancei a cabeça e ela falou outra vez, antes de mim.
Você ainda acredita naquilo que me contou? Na teoria da única bala?
241
Concordei com a cabeça sem hesitar e olhei nos olhos dela. Eleanor se inclinou e encostou a cabeça no meu queixo.
E você? - perguntei. - Ainda acredita no que aquele
poeta disse, que não há fim para o que está no coração?
- Acredito, sim. Sempre.
Levantei seu rosto com uma das mãos e a beijei. Logo nossos braços nos envolviam e a mão dela estava na minha nuca me puxando em sua direção. Sabíamos que íamos
fazer amor. E eu soube por um momento o que significava ser o homem mais sortudo de Las Vegas. Afastei-me de seus lábios e a apertei contra meu
peito.
- Tudo o que eu quero nesse mundo é você - sussurrei.
- Eu sei - ela sussurrou de volta.
Capítulo 31
No vôo de volta para Los Angeles, tentei me concentrar no caso. Mas foi um esforço em vão. Tinha passado boa parte da noite vendo Eleanor ganhar milhares de dólares
de cinco homens em uma mesa do salão de pôquer do Bellagio. Nunca a observara jogar, antes. É justo dizer que ela deixou os outros jogadores envergonhados ao limpá-los
todos, menos um, e mesmo este só ficou com uma pilha de fichas enquanto ela trocou cinco rocies dela por dinheiro. Ela era uma jogadora fria e dura. Era impressionante.
Muito misteriosa e bonita. Passei minha vida aprendendo a ler pessoas. Mas nunca li nada nela enquanto jogava. Pelo que eu podia perceber, ela não dava uma dica
sequer em seu jogo.
Mas quando acabou com aqueles homens, também acabou para mim. Quando saímos do salão de pôquer, ela falou que estava cansada e tinha de ir. Disse que eu não podia
ir com ela. Nem me ofereceu uma carona para o aeroporto. Foi um adeus rápido. Nós nos despedimos com um beijo tão sem paixão quanto nossos momentos na suíte lá
em cima pareceram cheios dela, sem promessas de reencontro ou mesmo de nos telefonarmos outra vez. Apenas dissemos até logo e eu fiquei observando enquanto ela se
afastava pelo cassino.
Fui para o aeroporto sozinho. Mas no avião, não conseguia Pensar em outra coisa. Tentei abrir a pasta do inquérito, mas ele
244
não me ajudou. Fiquei pensando nos mistérios. Não nos momento bons, nos sorrisos, nas recordações e na noite de amor. Pensei em nossa despedida abrupta e em como
ela evitara com habilidade a questão quando eu perguntei se estava com alguém. Disse que não estava apaixonada, mas aquilo, na verdade, não respondia à pergunta.
Pensei em por que ela quis que eu ficasse em um quarto de hotel e por que não abria a mala do carro. Na primeira página do inquérito anotei a placa do carro dela
de memória. Depois de fazer isso, senti que, de alguma forma, a havia traído, e então risquei o número. Mas mesmo ao fazer isso sabia que não podia riscá-lo da minha
memória.
Capítulo 32

Os escritórios dos investigadores da Global Underwriters ficavam em uma caixa preta de seis andares na Colorado, a umas seis quadras do oceano. Quando cheguei lá,
a secretária que guardava a entrada da sala de Sandor Szatmari olhou para mim como se aquele elevador tivesse me trazido da Lua.
- Você recebeu o recado?
- Que recado?
- Consegui seu número no escritório do Sr. Scaggs e deixei um recado para o senhor. O Sr. Szatmari teve de cancelar o compromisso desta manhã.
- O que aconteceu, alguém morreu?
Ela me olhou parecendo insultada pelo meu atrevimento. A voz dela assumiu um
tom de impaciência.
- Não. Quando conferiu a agenda de hoje, viu que não tinha tempo para encaixá-lo.
- Então ele está aqui.
- Ele não pode ver o senhor. Desculpe se não recebeu o recado. Achei que havia algo de errado com o número que eu tinha, mas deixei um recado.
- Por favor, diga a ele que estou aqui. Diga que não recebi o recado porque estava fora da cidade. Peguei um avião só para vir a esse compromisso e continuo querendo
falar com ele.
246
Agora ela parecia aborrecida. Ergueu o fone para fazer a ligação, mas então pensou melhor e desligou. Levantou-se e seguiu por um corredor ao lado da sala de espera
para levar a mensagem pessoalmente. Alguns minutos mais tarde, voltou e sentou. Não teve pressa em me dar a notícia.
- Falei com o Sr. Szatmari - disse ela. - Ele vai tentar recebê-lo assim que possível.
- Obrigado. É muito gentil da parte dele e da sua também. Havia um sofá e uma mesa de centro com várias revistas velhas
espalhadas. Tinha levado o inquérito comigo, mais como um objeto de cena, para impressionar Szatmari com ele e com o acesso que aquilo mostrava que eu tinha. Sentei-me
no sofá e passei o tempo folheando o inquérito e relendo alguns dos relatórios. Nada novo chamou minha atenção, mas eu estava ficando versado nos fatos do caso.
Isso era importante porque eu sabia que iria ajudar não ter que checar o inquérito o tempo todo quando estivesse investigando novas informações.
Cerca de meia hora se passou e então o telefone da secretária tocou e ela recebeu a ordem de me deixar entrar.
Szatmari era um homem de constituição sólida, de cinqüenta e poucos anos. Parecia mais um vendedor que um investigador, mas as paredes de seu escritório estavam
cobertas de louvores e fotos de apertos de mão que testemunhavam seu sucesso profissional. Ele me indicou uma cadeira em frente à sua escrivaninha desorganizada
e falou, enquanto anotava algo em um relatório.
- Estou ocupado, Sr. Bosch. O que posso fazer pelo senhor?
- Bem, como falei ontem ao telefone, estou trabalhando em um de seus casos. Achei que talvez pudéssemos compartilhar alguma informação, ver se algum de nós descobriu
um caminho que o outro ainda não tenha visto.
- Por que eu faria isso pelo senhor?
Havia ago errado. Ele estava predisposto a não gostar de mim antes mesmo que eu botasse os pés em seu escritório. Eu me perguntei se Peoples tinha dado algum jeito
de falar com ele. Talvez Szatmari tivesse ligado para o DPLA ou para o FBI para se informar
247
a meu respeito e recebido um aviso para não cooperar. Talvez por isso houvesse cancelado nosso encontro.
- Não estou entendendo - respondi. - Tem alguma coisa errada? Isso se chama solucionar o caso, é por isso que talvez devêssemos compartilhar informações.
- E o senhor, compartilharia comigo? Quanto da recompensa me daria?
Balancei a cabeça. Agora estava entendendo. A recompensa.
- Sr. Szatmari, o senhor me entendeu mal. O senhor me entendeu mal.
- Claro, pegar a recompensa e cair fora. Vejo gente do seu tipo o tempo todo. Entram aqui, querendo informação, tentando fazer uma grana.
O sotaque dele ficava mais pronunciado à medida que ele ia se empolgando. Abri e folheei o inquérito, e encontrei as fotocópias em preto-e-branco das fotos da cena
do crime. Arranquei a folha com a imagem das mãos de Angella Benton e a joguei na mesa dele.
- É por isso que estou aqui. Não pelo dinheiro. Ela. Eu estava lá nesse dia. Era um tira. Agora estou aposentado, mas fiquei no caso até me tirarem dele. Isso provavelmente
me impede de receber qualquer recompensa, está bem?
Szatmari estudou a cópia granulada da foto. Então olhou para o fichário no meu colo. Finalmente olhou para mim.
- Agora me lembro de você. Seu nome. Foi você que acertou um tiro em um dos ladrões.
Balancei a cabeça.
- Eu estava lá naquele dia, mas, como nunca encontraram os ladrões, não sabemos com certeza quem acertou quem.
- Vamos lá... eram oito seguranças particulares e um veterano do DPLA. Foi você.
- Acho que sim.
- Sabe, eu tentei conversar com você na época. Fazer umas perguntas. Mas o departamento me impediu.
- Como assim?
- Eles fazem qualquer coisa para manter outras investigações e investigadores fora de cena. Eles são assim, lá.
248
- Eu sei. Eu me lembro.
Ele sorriu e recostou-se na cadeira.
- E agora você está aqui, querendo a minha ajuda. Irônico não é?
- Muito.
Eu estendi o fichário pesado para ele por sobre a mesa. Ele o pegou e folheou de trás para frente até as primeiras páginas e começou a olhar os relatórios até chegar
ao primeiro Boletim de Ocorrência. O homicídio. Desceu o dedo pela página até chegar ao meu nome no espaço indicado por D/R, Detetive Responsável. Então fechou o
inquérito, mas não o devolveu.
- Por que agora? Por que está investigando isso?
- Porque acabei de me aposentar e esse é um dos casos que não consigo esquecer.
Ele balançou a cabeça indicando ter compreendido.
- Nossa investigação, você sabe, referia-se ao dinheiro, não à mulher.
- Em minha opinião, é a mesma coisa.
- Nossa investigação não está mais ativa. O dinheiro já desapareceu, agora. Dividido e gasto. Sem possibilidade de recuperação. Há outros casos.
- Vocês podem ter desistido do dinheiro, mas ela não foi esquecida. Não por mim, nem pelas pessoas que a conheciam.
- Você a conhecia?
- Eu a conheci naquele dia.
Ele balançou a cabeça outra vez, parecendo entender o que aquilo significava. Ajeitou uma pilha de fichas em sua mesa.
- Vocês chegaram a algum lugar? - perguntei. - Chegaram perto de alguma coisa?
Ele demorou para responder.
- Na verdade, não. Era um beco sem saída.
- Quando vocês desistiram?
- Não me lembro. Há muito tempo.
- Onde estão seus arquivos?
- Não posso dar meus arquivos a você. É contra a política da empresa.
249
-- Por causa da recompensa, certo? A empresa não permite que você coopere com investigações extra-oficiais se houver uma recompensa.
Pode levar a fraudes - confirmou, com um aceno de
cabeça - Também há o risco legal. Eu não tenho o luxo da proteção
que a polícia tem. Se minhas anotações e resumos do caso se tornassem públicos, eu estaria exposto a possíveis processos.
Tentei pensar por um minuto em como fazer aquele movimento. Szatmari parecia estar escondendo algo e o que quer que fosse devia estar no arquivo. Achei que ele queria
me dar aquilo, mas não tinha certeza.
- Dê outra olhada na cópia - pedi. - Veja as mãos dela. É um homem religioso, Sr. Szatmari?
Szatmari olhou outra vez para a foto das mãos de Angella Benton.
- Às vezes sou religioso - respondeu ele. - O senhor é?
- Não muito. Quero dizer, o que é religião? Não vou à igreja, se é isso que quer dizer. Mas penso em religião e acho que tenho algo parecido dentro de mim. Um código
é como uma religião. Você tem de acreditar. Tem de praticar. Olhe só para as mãos dela, Sr. Szatmari. Eu me lembro quando a vi jogada no chão e vi que as mãos estavam...
Eu tomei isso como uma espécie de sinal.
- Um sinal de quê?
-Não sei. De alguma coisa. Como religião. É por isso que este é um dos casos que nunca consegui esquecer.
- Entendo.
- Então pegue o arquivo e deixe em cima da mesa continuei como se estivesse dando instruções a alguém em transe hipnótico. - E vá tomar um café ou fumar um
cigarro. Pode demorar. Espero por você aqui.
Szatmari olhou para mim por um bom tempo e então abaixouse até o que eu achava que devia ser uma gaveta de arquivo na escrivaninha. Por fim ele acabou tirando os
olhos de mim para poder pegar a pasta certa. Ele a levantou - era uma das grossas e a botou sobre a mesa. Então afastou sua cadeira para trás e se levantou.
250
- vou pegar uma xícara de café - disse ele. - Você quer
alguma coisa?
- Não precisa, mas obrigado.
Ele acenou com a cabeça e saiu, fechando a porta atrás de si No instante em que ela se fechou eu me levantei de minha cadeira e dei a volta na mesa. Sentei-me e
mergulhei na pasta.
A maior parte do arquivo eram documentos que eu já tinha visto antes. Também havia cópias de contratos entre a Global e seu cliente e instruções para o BankLA, que
eram novidade, assim como resumos de depoimentos de vários empregados do banco e da produtora de cinema. Szatmari tinha conduzido as entrevistas com todos os homens
da segurança da empresa que fazia o transporte de valores que estavam na cena no dia do assalto e do tiroteio.
Mas não havia uma entrevista comigo. Como sempre, o DPLA tinha erguido um muro. O pedido de Szatmari para me entrevistar nunca chegou a mim. Não que eu aceitasse
o pedido se o recebesse. Na época, eu tinha uma arrogância que hoje espero ter perdido. Eu olhei as entrevistas e os resumos o mais rápido que podia, prestando atenção
especial nos relatórios pertencentes aos três funcionários do banco com quem eu esperava conversar mais tarde naquele dia: Gordon Scaggs, Linus Simonson e Jocelyn
Jones. Os três não renderam muito a Szatmari. Scaggs foi quem cuidou de tudo e foi muito específico em relação a todos os passos que deu e ao planejamento do empréstimo
de dois milhões em espécie por um dia. As entrevistas com Simonson e Jones os retratavam como abelhas operárias que cumpriam ordens. Tanto podiam estar botando
etiquetas em latas quanto contando vinte mil notas de cem dólares e anotando oitocentos números de série enquanto
faziam aquilo.
O meu medidor de curiosidade deu um pulo quando me deparei com um documento sobre a situação financeira de Jack Dorsey, Lawton Cross e eu. Szatmari tinha levantado
a situação financeira de todos nós. Parece que ligou para nossos bancos e operadoras de cartão de crédito. Escreveu pequenos resumos sobre cada um de nós, a minha
ficha mais limpa que as de Cross e Dorsey. Segundo Szatmari, os dois homens tinham grandes dívidas de cartão de
251
crédito. Dorsey tinha a situação financeira mais difícil, pois era divorciado mas ainda sustentava quatro filhos, dois deles na faculdade. A porta do escritório
se
abriu e a secretária olhou para dentro, pronta para dizer algo a Szatmari, quando viu que era eu quem estava atrás da mesa.
- O que o senhor está fazendo?
- Esperando o Sr. Szatmari. Ele foi pegar um café.
Ela botou as mãos nos quadris largos, o sinal internacional de
indignação.
- Por acaso ele falou ao senhor para ir para trás da mesa dele e começar a ler as pastas?
Cabia a mim não deixar Szatmari em uma situação difícil.
- Ele me disse para esperar. Eu estou esperando.
- Bem, o senhor volte agora para o outro lado da mesa. vou contar para o Sr. Szatmari o que eu vi.
Fechei a pasta, levantei e dei a volta na mesa como instruído.
- Sabe, eu apreciaria se você não fizesse isso - pedi.
- Não me interessa o que o senhor apreciaria. vou contar a
ele.
Ela, então, desapareceu, deixando a porta aberta. Alguns minutos se passaram e Szatmari entrou correndo e fechou a porta bruscamente. Então perdeu a raiva ao voltar-se
para mim. Estava carregando uma caneca de café fumegante.
- Obrigado por fazer o jogo - começou ele. - Só espero que você tenha conseguido o que quer que precisasse, porque agora, para manter a cena que eu fiz lá fora,
vou ter de expulsar você.
- Sem problema - respondi, enquanto me levantava. - Só tenho uma pergunta.
- Vá em frente.
- Investigar a situação financeira dos tiras envolvidos no caso foi só rotina? Eu, Jack Dorsey e Lawton Cross?
Szatmari franziu as sobrancelhas ao tentar recordar o motivo da investigação financeira. Então deu de ombros.
- Eu não me lembro. Acho que pelo valor do dinheiro em questão eu devo ter checado todo mundo. Principalmente você,
252
Bosch, pela coincidência de estar lá no set de filmagem no exato momento.
Concordei com a cabeça. Parecia um movimento importante em uma investigação.
- Você está com raiva por causa disso?
- Eu? Não, com raiva, não. Só curioso em saber o motivo, só isso. ......
- Alguma coisa mais ajudou?
- Talvez. Nunca se sabe.
- Então boa sorte. Se não se importar, me mantenha informado sobre o seu progresso.
- Pode deixar, eu vou.
Apertamos as mãos. Na saída passei pela secretária indignada e disse a ela para ter um bom dia. Ela não respondeu.
Capítulo 33
A entrevista com Gordon Scaggs foi rápida e sem sobressaltos. Ele me encontrou na hora marcada na torre do BankLA, no centro da cidade. Seu escritório no quadragésimo
segundo andar dava para o Leste e tinha uma das melhores vistas da poluição sobre a cidade que eu já vira. O relato do seu envolvimento no malfadado empréstimo de
dois milhões para a Eidolon Productions não se desviou de maneira perceptível de seu depoimento no inquérito. Ele tinha negociado uma taxa de cinqüenta mil dólares
para o banco, incluídos os custos com a segurança. O dinheiro iria sair na manhã do dia da filmagem e voltar antes do fechamento às 18h.
- Eu sabia que havia um risco - contou-me Scaggs. - Mas vi a possibilidade de lucro fácil e rápido para o banco. Acho que posso dizer que isso me deixou cego.
Scaggs passou as questões envolvendo o transporte do dinheiro para Ray Vaughn, chefe da segurança do banco, e voltou sua atenção para as tarefas que envolviam o
seguro daquela operação de um dia com a Global Underwriters e os procedimentos necessários para juntar os dois milhões em dinheiro. Não era comum que uma única
agência - mesmo na sede, no Centro - tivesse tanto dinheiro em espécie disponível de uma vez. Então, nos dias que antecederam o empréstimo, Scaggs teve de providenciar
remessas de várias agências do BankLA para o Centro. No dia do
254
empréstimo, o dinheiro foi carregado em um carro-forte e levado do Centro até o set de filmagens em Holywood. Ray Vaughn foi na frente em um carro de escolta. Estava
em
contato permanente pelo rádio com o motorista do carro-forte e o conduzia por um caminho sinuoso através de Hollywood, em uma tentativa de descobrir se estavam
sendo seguidos.
Quando chegaram na locação foram recebidos por mais seguranças armados e por Linus Simonson, um dos funcionários que tinha ajudado Scaggs a juntar o dinheiro e havia
gerado a lista de números de série exigida pela seguradora.
E, é claro, a entourage do banco também foi recebida pelos ladrões mascarados e fortemente armados.
A única novidade que descobri com Scaggs durante a parte inicial da entrevista foi que a política do banco tinha mudado desde o assalto. O BankLA não estava mais
envolvido com o que chamava boutique de empréstimos em dinheiro para a indústria cinematográfica.
- O que isso quer dizer? - perguntou ele. - Errar uma vez é humano. Duas é burrice. Bem, não tem nenhum burro aqui, Sr. Bosch. Não vamos entrar na conversa daquela
gente outra vez.
Concordei com a cabeça.
- Então o senhor acredita que tudo teve origem "naquela gente"? O roubo se originou lá, e não aqui dentro do banco?
Scaggs me lançou um olhar indignado pelo mero pensamento de algo diferente.
- Eu diria que sim. Olhe para a pobre garota assassinada. Ela trabalhava para eles, não para mim.
- É verdade. Mas o assassinato dela pode ter sido parte do plano. Para lançar suspeitas sobre a produção do filme no lugar do banco.
- Impossível. A polícia passou um pente fino aqui. A mesma coisa com a seguradora. Fomos inocentados por todos os envolvi' dos. Estamos cem por cento limpos nisso.
Balancei outra vez a cabeça.
- Então acho que você não vai se incomodar se eu falar com seus funcionários, também. Eu gostaria de conversar com Linus Simonson e Jocelyn Jones.
255
Scaggs percebeu que tinha sido encurralado. Como podia não me deixar falar com os funcionários depois desse retumbante endosso de honestidade e inocência por parte
do banco?
- A resposta é sim e não - disse ele. - Jocelyn ainda está com a gente. É gerente-adjunta de uma agência em West Hollywod. Não acho que haverá qualquer problema
para falar com ela.
- E Linus Simonson?
- Linus não voltou para o banco depois daquele dia. Acho que você sabe que ele levou um tiro daqueles filhos da mãe. Ele e Ray. Ray não sobreviveu, mas Linus, sim.
Ficou um tempo internado, depois em licença médica. Aí não quis mais voltar de jeito nenhum, e não posso culpá-lo.
- Ele pediu demissão?
- Isso mesmo.
Eu não vi qualquer menção àquilo no inquérito ou mesmo nos registros de Szatmari. Sabia que a investigação fora mais intensa nos primeiros dias e semanas depois
do assalto. Provavelmente, na época Simonson ainda estava se recuperando e era tecnicamente um funcionário do banco. Os registros da investigação gerados na época
não teriam como mencionar o fato de ele ter deixado o
emprego.
- Você sabe para onde ele foi daqui?
- Eu sabia, mas agora não sei mais. vou explicar a você. Linus arranjou um advogado que começou a reivindicar uma indenização por danos morais. Você sabe, alegou
que o banco expôs Linus a uma situação de risco, essa bobagem toda. Mas em lugar nenhum mencionava que ele tinha sido voluntário naquele dia.
- Ele queria estar lá?
- Claro. Ele era jovem. Cresceu aqui e provavelmente em algum momento de sua vida teve aspirações cinematográficas. Todo mundo tem. Ele achou que seria legal passar
o dia no set de flmagem, como o sujeito encarregado do dinheiro. Ele se ofereceu e eu disse tudo bem, pode ir. Eu queria mesmo ter alguém do meu escritório lá. Quero
dizer, além de Ray Vaughn.
- Mas Simonson chegou a processar o banco ou só fez barulho
com seu advogado?
256
- Ele ameaçou. Mas foi o suficiente para conseguir um acordo com o jurídico. Deram a ele um bom dinheiro e ele foi embora. Ouvi dizer que comprou uma boate.
- Quanto ele recebeu?
- Não sei. Uma vez perguntei ao nosso advogado, Jirn Foreman, quanto o garoto tinha recebido, e ele não me disse. Falou que os termos do acordo eram confidenciais.
Mas pelo que eu entendi, o clube que ele comprou era um bom lugar. Do tipo Hollywood.
Pensei no retrato que tinha visto na biblioteca jurídica enquanto esperava para ver Janis Langwiser.
- James Foreman é seu advogado?
- Não meu advogado. Advogado do banco. Um consultor jurídico externo. Eles resolveram não ter um departamento jurídico próprio pois isso poderia gerar conflito.
Concordei com a cabeça.
- Você sabe o nome do clube que ele comprou?
- Não sei não.
Fiquei ali sentado, olhando através de Scaggs para o smog além da janela atrás dele. Estava olhando, mas não via. Tinha penetrado na região onde eu sentia os primeiros
estímulos de instinto e excitação, do estado de graça provocado pela minha religião.
- Sr. Bosch? - chamou Scaggs - O senhor está aí? Tenho uma reunião em cinco minutos.
Voltei a mim e olhei para ele.
- O senhor me desculpe. Eu terminei. Por enquanto. Mas, antes de sua reunião, poderia ligar para Jocelyn Jones e dizer que estou indo falar com ela? Também preciso
saber onde é a agência.
- Isso não vai ser problema.
Capítulo 34
A caminho da agência do BankLA em West Hollywod para ver Jocelyn Jones, tinha algum tempo de sobra, por isso peguei rumo oeste no Hollywood Boulevard. Não tinha
ido muito ali desde minha aposentadoria, e queria sentir a velha pulsação. Segundo os jornais, tudo estava mudando, e queria ver isso.
O asfalto no Boulevard ainda brilhava à luz do sol, mas as fachadas das lojas e dos prédios de escritórios perto da Vine ainda dormiam sob a patina de meio século
de poluição. Ali não havia diferença. Mas logo depois da Cahuenga e entrando em Highland, vi onde a nova Hollywood desabrochava. Novos hotéis - e não estou falando
do tipo com preços por hora - e teatros, praças de alimentação ancoradas por franquias de restaurantes chiques conhecidos. As ruas e calçadas estavam cheias, as
estrelas de metal engastadas no chão, polidas. Estava mais seguro e limpo, mas menos autêntico. Ainda assim, a palavra que saltou em minha mente foi esperança. Havia
uma sensação de esperança e vigor. Havia uma energia clara vindo das ruas, e acho que gostei dela. A idéia, eu sabia, era que a energia se espalhasse a partir deste
núcleo e alcançasse o Boulevard como a onda de um terremoto, deixando uma trilha de renovação e reinvenção. Alguns anos atrás eu teria sido o primeiro a dizer que
o projeto não tinha qualquer chance. Mas talvez eu estivesse errado.
258
Ainda me sentindo com a sorte de Las Vegas, resolvi deixar a energia me levar. Peguei a Fairfax até a Terceira Avenida e parei no Farmers Market para comprar algo
para comer.
O mercado era outro trabalho de reforma do qual eu tinha me mantido longe. Havia uma nova garagem e uma praça de alimentação a céu aberto construídas junto do velho
mercado de madeira, uma combinação aconchegante de comida boa e barata com um toque kitsch. Eu gostava mais quando podia estacionar numa vaga em frente à banca
de jornais, mas tive de reconhecer que tinham feito as coisas direito. Eram o novo e o velho sentados lado a lado e se dando bem. Andei pela seção nova, passei pelas
lojas de departamento, pela maior livraria que já tinha visto, e entrei na parte velha. O Bob's Donuts ainda estava lá, assim como todos os outros lugares de que
me lembrava. Estava cheio. As pessoas felizes. Era tarde demais para um donut, então peguei um sanduíche de bacon, alface e tomate e um dólar em moedas no Kokomo
Café e comi numa das velhas cabines telefônicas que tinham deixado no lugar, perto do Dupar's. Liguei primeiro para Roy Lindell e o achei comendo em sua escrivaninha.
- O que você está comendo?
- Atum com picles no pão integral.
- Que nojo.
- É? E você, o que está comendo?
- Sanduíche duplo de bacon do Kokomo's.
- Bem, nessa eu perdi feio. O que você quer, Bosch? A última vez que nos vimos, você não queria nada comigo. Na verdade, achei que você tinha ido para Vegas.
- Eu fui, mas estou de volta. E as coisas estão melhorando, agora. Parece que cheguei a um acordo com seus colegas no nono andar. Você quer voltar para esse negócio
ou vai ficar de fora batendo palmas?
- Você conseguiu alguma coisa?
- Talvez. No momento é só uma sensação.
- O que você quer de mim?
Tirei a embalagem do sanduíche de cima do inquérito e o abri para pegar a informação de que precisava.
259
- Veja o que você consegue sobre um cara chamado Linus Simonson. Branco, 31 anos, sexo masculino. Ele é dono de um clube na cidade.
- Como é o nome do clube?
- Ainda não sei.
- Isso é ótimo. Você não quer que eu aproveite e pegue sua roupa na lavanderia enquanto vejo isso?
- Só dê uma busca no nome. Ou você vai conseguir algo, ou
não.
Dei a ele a data de nascimento de Simonson e o endereço listado no inquérito, apesar de eu ter a sensação de que não era mais
o mesmo.
- Quem é ele?
Contei sobre o antigo emprego de Simonson no BankLA e sobre ele ter sido ferido durante o assalto ao set de filmagem.
- O cara foi uma vítima. Você acha que ele armou tudo e disse aos caras para darem um tiro na bunda dele?
- Não sei.
- E o que isso tem a ver com Marty Gessler?
- Não sei. Talvez nada. Provavelmente nada, Mas quero dar uma checada nele. Alguma coisa me parece estranha.
- Está bem. Você continua a ter seus pressentimentos e eu faço o trabalho braçal, Bosch. Quer mais alguma coisa?
- Olhe, se não quiser fazer isso, é só me dizer. Arranjo outra
pessoa para...
- Olhe, eu disse que vou fazer. Mais alguma coisa? Hesitei, mas não por muito tempo.
- Tem outra coisa, sim. Você podia checar uma placa para mim?
- Pode dizer.
Dei a ele o número do carro que Eleanor estava dirigindo. Ainda estava na minha memória e achei que ficaria ali até que eu o checasse.
- Nevada? - perguntou Lindell, uma suspeita óbvia em sua voz. - Isso tem a ver com sua viagem a Las Vegas ou com as coisas
aqui?
260
Eu devia ter adivinhado. Lindell podia ser muitas coisas, mas não era burro. Eu já tinha começado, agora tinha de ir em frente.
- Não sei - menti. - Mas você podia me conseguir o registro? Se o carro, como eu suspeitava, estivesse registrado no nome
de outra pessoa que não o de Eleanor, podia inventar uma história sobre achar que estava sendo seguido e Lindell jamais saberia a verdade.
- Está bem - concordou o agente do FBI. - Tenho que ir, agora. Telefone mais tarde.
Desliguei. Estava feito. A culpa me atingia como as ondas que se chocam contra as colunas de um píer. Talvez pudesse enganar Lindell com o pedido, mas não a mim
mesmo. Estava espionando minha ex-mulher. Eu me perguntei se seria capaz de fazer algo mais baixo.
Tentando não me afundar ainda mais, peguei o fone e enfiei mais moedas no aparelho. Liguei para Janis Langwiser e percebi, enquanto esperava, que eu estava prestes
a responder à pergunta que acabara de me fazer.
A secretária de Langwiser falou que ela estava em outra ligação e que retornaria o telefonema. Eu disse que não estava em um lugar onde ela pudesse me ligar, por
isso telefonaria outra vez em 15 minutos. Desliguei e dei uma volta pelo mercado, passando a maior parte do tempo em uma lojinha que vendia apenas molho de pimenta,
centenas de marcas diferentes. Eu não sabia quando iria usar aquilo, pois atualmente era raro cozinhar em casa, mas comprei um vidro de Gator Squeezins porque gostava
do lugar e precisava de mais moedas para retornar a ligação.
A parada seguinte foi na confeitaria. Não para comprar, só para ver. Quando eu era criança, minha mãe costumava me levar ao Farmers Market nas manhãs de sábado.
O que eu mais lembrava era ficar vendo pela vitrine o confeiteiro enfeitar os bolos encomendados para aniversários, festas e casamentos. Ele espremia o glacê através
de um funil e fazia desenhos grandes no alto de todos os bolos, os braços grossos cobertos de farinha e açúcar.
Minha mãe costumava me levantar no colo para que eu pudesse ver a parte de cima dos bolos que estavam sendo decorados. Às
261
vezes ela pensava que eu estava vendo o confeiteiro, mas, na verdade, estava olhando para ela no reflexo da vitrine, tentando descobrir o que estava errado.
Quando se cansava de me carregar, ela pegava uma cadeira na área das mesas dos restaurantes ali perto - o que hoje eles chamam de praça de alimentação - para eu
subir. Ficava olhando para os bolos e imaginava para que festas iriam e quantas pessoas estariam lá. Parecia que aqueles bolos só podiam ir para lugares alegres.
Mas eu percebia que, quando o confeiteiro decorava um bolo de casamento, isso deixava minha mãe triste.
A confeitaria e a vitrine ainda estavam lá. Parei diante dela segurando o saco com molho de pimenta, mas o confeiteiro não estava lá. Sabia que já era muito tarde.
Os bolos eram feitos cedo para estarem prontos para serem retirados ou enviados para festas de aniversário, casamentos, bodas, coisas assim. Na prateleira ao lado
da vitrine, olhei para uma seleção de bicos de aço inoxidável que o confeiteiro podia usar para fazer desenhos e flores de glacê.
- Não adianta esperar. Ele já terminou por hoje.
Não precisei me virar. No reflexo na vitrine, vi uma velha senhora caminhando às minhas costas. Aquilo me fez pensar outra vez em minha mãe.
- É - assenti. - Acho que a senhora está certa.
Na segunda vez em que fui à cabine telefônica e liguei para Langwiser, ela estava livre e atendeu imediatamente.
- Está tudo bem?
- Está, sim.
- Nossa, você me assustou.
- De que você está falando?
- Você disse a Roxanne que não estava em um lugar para onde ela pudesse ligar. Achei que podia estar numa cela, algo assim.
- Desculpe, não pensei nisso. Só que ainda não estou usando o celular.
- Você acha que eles ainda estão na escuta?
- Não sei. Apenas precaução.
- Então esse é o telefonema do dia?
262
- Mais ou menos. Também tenho uma pergunta a fazer.
- Estou ouvindo.
Talvez fosse por não ter contado toda a verdade a Lindell em pelo jeito que eu tinha ficado depois de espionar Eleanor, resolvi não fazer um teatro com Langwiser.
Resolvi jogar com as cartas que tinha na mão.
- Há alguns anos sua firma cuidou de um caso. O advogado era James Foreman e o cliente, o BankLA.
- Sim, o banco é um cliente. Qual foi o caso? Há alguns anos eu não trabalhava aqui.
Fechei a porta da cabine telefônica mesmo sabendo que logo ficaria quente dentro daquele cubículo.
- Não sei como se chamou, mas o nome da outra parte era Linus Simonson. Ele trabalhava no banco como assistente do vicepresidente. Foi baleado durante o tiroteio
no assalto ao set de filmagem.
- Certo. Eu lembrava que alguém tinha sido ferido e outro morto, mas não lembrava dos nomes.
- Ele foi ferido. O que morreu se chamava Ray Vaughn, chefe da segurança do banco. Simonson sobreviveu. Na verdade, só levou um tiro na bunda. Talvez um ricochete,
se eu me lembro direito do trabalho da equipe de balística.
- Então ele processou o banco?
- Não sei se chegou a esse ponto. A questão é que ficou um período de licença médica e então resolveu que não queria voltar. Arranjou um advogado e começou a dizer
que o banco era responsável por colocá-lo em uma situação de risco.
- Parece razoável.
- Mas ele foi voluntário para aquele dia. Tinha ajudado a juntar o dinheiro e então se ofereceu para cuidar dele durante as filmagens.
- Bem, ainda assim, há justificativa para um processo. Ele podia alegar ter se oferecido sob pressão, ou...
- É, eu sei disso. Não estou preocupado se ele tinha razão ou não. Aparentemente, tinha, porque o banco fez um acordo intermediado por James Foreman.
263
- Tudo bem, mas aonde você quer chegar? Qual é sua pergunta? Reabri a porta da cabine para conseguir um pouco de ar fresco.
- Eu quero saber o valor do acordo. Quanto ele recebeu?
- vou ligar agora para Jim Foreman. Você espera na linha?
- Ah, não é tão simples assim. Acho que houve um acordo de
sigilo.
Ela ficou em silêncio e eu acabei sorrindo enquanto esperava. Tinha sido bom falar abertamente sobre o que eu estava querendo.
- Pelo que entendi - disse finalmente Langwiser -, você quer que eu viole isso para descobrir o que precisa.
- Bem, se você colocar as coisas dessa forma...
- E de que outra forma eu posso colocar isso?
- Estou trabalhando nessa história e ele apareceu. Simonson. E me ajudaria muito saber a quantia que o banco pagou a ele. Isso me ajudaria muito, Janis.
Outra vez minhas palavras foram recebidas com um longo
silêncio.
- Não vou ficar bisbilhotando arquivos em minha firma
respondeu, enfim. - Não vou fazer nada que possa dar merda. O melhor que posso fazer é perguntar a Jim e ver o que ele diz.
- Está bem.
Foi melhor do que eu achava que iria conseguir.
- A sua sorte é que o BankLA ainda é um cliente, e se você está dizendo que esse cara, o Simonson, pode ter participado no assalto que deu um prejuízo de dois milhões
ao banco e provocou a morte de seu chefe de segurança, então eles podem ficar tentados a concordar.
- Ei, essa é boa.
Eu já tinha pensado nisso, mas queria que ela chegasse lá sozinha. Comecei a ficar animado. Achei que talvez ela conseguisse com Foreman o que eu estava querendo.
- Não fique empolgado, Harry. Ainda não.
- Tudo bem.
- vou ver o que posso fazer e então ligo para você. E não se preocupe se eu tiver de deixar uma mensagem no seu telefone de casa. Vai estar em código.
264
- Certo, Janis. Obrigado.
Desliguei e saí da cabine. No caminho de volta pelo mercado quando me dirigia ao estacionamento, passei pela vitrine dos bolos e me surpreendi ao ver que o confeiteiro
estava lá. Parei por um minuto e observei. Devia ser uma encomenda de última hora, porque parecia ter sido retirado de um dos mostruários. Já estava coberto de glacê.
O homem atrás da vitrine estava apenas colocando algumas flores e letras.
Esperei que ele escrevesse a mensagem. Era uma letra rosa sobre um fundo de chocolate. Dizia: Feliz aniversário, Callie! Eu esperava que fosso mais um bolo a caminho
de um lugar feliz.
Capítulo 35

Jocelyn Jones trabalhava numa agência do banco na esquina da Santa Monica com a San Vicente. Em um condado que por décadas foi conhecido como a capital mundial
de assaltos a bancos, ela estava no lugar mais seguro possível. Sua agência ficava do outro lado da rua em frente ao departamento do xerife do distrito de West Holywood.
A agência era uma construção art déco de dois pavimentos com uma fachada curva e janelas redondas grandes no segundo andar. Dentro, os guichês dos caixas e as mesas
para abertura de contas ficavam no térreo, e os escritórios da gerência, em cima. Encontrei Jones no alto, em um escritório com uma vigia de onde se podia ver,
além dos prédios do DXLA, o Pacific Design Center, conhecido na área como a Baleia Azul, porque de alguns ângulos sua fachada revestida de azul parecia a cauda de
uma baleia projetando-se do oceano.
Jones sorriu e me convidou a sentar.
- O Sr. Scaggs disse que viria e que estava tudo bem falar com o senhor. Ele disse que o senhor está trabalhando no roubo.
- Isso mesmo.
- Fico feliz que ele não tenha sido esquecido.
- E eu em ouvir isso.
- O que posso fazer pelo senhor?
266
- Não tenho certeza. Estou refazendo vários passos que já foram dados antes. Então isso pode ser repetitivo, mas eu gostaria de ouvi-la falar sobre sua participação
no caso. E vou fazer perguntas, se por acaso surgirem.
- Bem, não há muita coisa que eu possa contar. Quero dizer eu não estava lá como o Linus e o pobre Sr. Vaughn. Eu tive contato com o dinheiro antes de ele ser transportado.
Naquela época, eu era assistente do Sr. Scaggs. Ele tem sido meu mentor na empresa.
Balancei a cabeça e dei um sorriso como se achasse que estava tudo bem. Eu me movia devagar, e o plano era direcioná-la, aos poucos, para o rumo que eu queria tomar.
- Então você trabalhou com o dinheiro. Contou, embalou e preparou. Onde foi isso?
- No prédio do centro da cidade. Nós ficamos em uma caixaforte o tempo inteiro. O dinheiro chegava até a gente das agências e fizemos tudo ali mesmo, sem sair de
lá. Menos, é claro, no final do dia. Levou três, três dias e meio para aprontar tudo. A maior parte do tempo esperando que o dinheiro chegasse das agências.
- Quando você fala nós, quer dizer Linus...
Abri o inquérito no colo como se fosse checar um nome do qual não me lembrava.
- Simonson - completou ela para mim.
- Certo, Linus Simonson. Vocês trabalharam juntos nisso, correto?
- Isso mesmo.
- O Sr. Scaggs também era mentor dele?
Ela sacudiu a cabeça e corou um pouco, eu acho, mas era difícil de dizer porque a pele dela era muito escura.
- Não, o programa de mentores é um programa para minorias. Ou melhor, "era". Ele foi suspenso há um ano. Bem, Linus é branco e cresceu em Beverly Hills. O pai dele
era dono de vários restaurantes e não acho que ele precisasse de um mentor.
Assenti com a cabeça.
- Então a senhora e Linus ficaram lá por três dias juntando todo esse dinheiro. Vocês também tiveram de registrar os números de série das notas, certo?
267
- Sim, também fizemos isso.
- E fizeram como?
Ela não respondeu por um instante enquanto tentava se lembrar. Balançava para frente e para trás, devagar, na cadeira. Vi um helicóptero do departamento do xerife
aterrissar no teto do distrito do outro lado do Santa Monica Boulevard.
- O que me lembro é que devíamos escolher as notas ao acaso - contou ela. - Então simplesmente tirávamos notas dos maços aleatoriamente. Acho que tínhamos de separar
e registrar uns mil números. Isso também levou muito tempo.
Eu folheei o inquérito até encontrar uma cópia do relatório dos números de série que ela e Simonson tinham preparado. Abri os anéis metálicos do fichário e retirei
o documento.
- Segundo isto aqui, vocês registraram 800 notas.
- Ah, certo, então foram 800.
- Este é o relatório?
Entreguei-o, e ela o estudou, olhando todas as folhas e sua assinatura no final da última página.
- Parece que é, mas já faz quatro anos.
- E, eu sei. Foi a última vez que você viu isso, quando assinou?
- Não. Depois do assalto eu vi. Quando fui interrogada pelos detetives. Eles perguntaram se este era o relatório.
- E a senhora disse que era?
- Disse.
- Está bem, vamos voltar a quando a senhora e o Linus fizeram o relatório. Como foi?
Ela deu de ombros.
- Linus e eu nos revezamos para digitar os números no laptop
dele.
- Não há alguma espécie de scanner de computador ou uma copiadora que tivesse registrado os números de série com muito mais facilidade?
- Existe, mas não ia funcionar para o que tínhamos de fazer, que era escolher as notas aleatoriamente de cada maço e registrálas, mas depois tínhamos de devolver
a nota ao pacote original.
268
Assim, se o dinheiro fosse roubado ou dividido, haveria uma chance de rastrear cada maço.
- Tudo bem, então a senhora está no cofre com Linus. Como exatamente foi feito o registro do dinheiro?
- Ah, Linus achou que ia demorar muíto se anotássemos os números e depois ele os digitasse no computador. Então ele levou o laptop dele lá para dentro e fizemos
o registro diretamente. Um de nós lia cada número enquanto o outro digitava.
- Qual de vocês fez o quê?
- Os dois. Fizemos um revezamento. Pode achar que sentar a uma mesa com dois milhões de dólares em dinheiro vivo é muito excitante, mas na verdade era um tédio.
Então nos revezamos. Às vezes eu lia e ele digitava, depois eu digitava enquanto ele lia os números.
Pensei naquilo, tentando ver como podia ter funcionado. Pode parecer que ter dois empregados fazendo a lista juntos garanta um sistema de dupla conferência, mas
isso não aconteceu. Estivesse Simonson lendo os números ou passando-os para o laptop, estava controlando a informação. Podia ter inventado números nas duas posições
e Jones jamais saberia, a menos que olhasse ou para a nota ou para a tela de computador.
- Tudo bem. Então, quando vocês terminaram, imprimiram a lista e assinaram o relatório, certo?
- Isso. Quero dizer, acho que sim. Já faz um bom tempo.
- Essa é a sua assinatura?
Ela foi até a última página do documento, conferiu e assentiu com a cabeça.
- E, sim.
Estendi a mão e ela me devolveu o documento,
- Quem levou o relatório para o Sr. Scaggs?
- Provavelmente Linus. Foi ele quem o imprimiu. Por que esses detalhes são tão importantes?
A primeira suspeita dela de aonde eu queria chegar. Não respondi. Fui até a última página do relatório que ela estivera estudando e olhei eu mesmo as assinaturas.
A dela estava abaixo da de Simonson e acima do jamegão de Scaggs. Tinha sido a ordem em
269
que assinaram. Simonson, então ela e depois o levaram para Scags dar a última assinatura.
Ao erguer o relatório na mão até a luz que vinha da vigia, achei algo que não percebera antes. Era apenas uma fotocópia do
original. nal, ou talvez a cópia de uma cópia,
mas ainda assim, havia nuanças na tinta da assinatura de Jocelyn Jones. Algo que eu já vira antes em outro caso.
- O que foi? - perguntou Jones.
Olhei para ela enquanto guardava o documento de volta no inquérito.
- Perdão?
- O senhor pareceu ter visto algo importante.
- Ah, nada. Só estou tentando examinar tudo com cuidado. Tenho apenas mais umas perguntas.
- bom. Eu preciso descer. Daqui a pouco vamos fechar.
- Então eu vou sair do seu pé. O Sr. Vaughn fez parte desse processo de preparar o dinheiro e registrar os números de série?
Ela negou uma vez com a cabeça.
- Na verdade, não. Ele meio que nos supervisionava. Ele ia sempre lá, especialmente quando o dinheiro chegava das agências ou do Federal Reserve Bank. Acho que ele
estava encarregado disso.
- Ele foi lá quando vocês estavam ditando e digitando os números no computador?
- Não me lembro. Acho que foi. Como eu disse, ele ia sempre lá. Acho que ele gostava de Linus, por isso ia muito lá.
- O que você quer dizer com "ele gostava de Linus"?
- Bem, o senhor sabe.
- Quer dizer que o Sr. Vaughn era gay?. Ela ergueu os ombros.
- Acredito que era, mas não abertamente. Acho que era um segredo. Não era nada demais.
- E em relação a Linus?
- Não, ele não é homossexual. Por isso acho que não gostava dessas visitas do Sr. Vaughn.
- Ele disse isso para a senhora, ou está apenas fazendo uma suposição?
270
- Não, ele disse algo sobre isso um dia. Brincou, disse que ia abrir um processo de assédio sexual se aquilo continuasse. Algo assim.
Assenti com a cabeça. Não sabia se aquilo significava algo para o caso ou não.
- O senhor não respondeu à minha pergunta.
- Que pergunta?
- Por que está tão preocupado com isso? Quero dizer, os números de série. E Linus e o Sr. Vaughn?
- Na verdade, não é nada especial. Parece assim para a senhora pois essa é a parte com a qual está familiarizada. Mas estou tentando ser meticuloso para não deixar
escapar nenhum detalhe. Você tem notícias de Linus?
Ela pareceu surpresa pela pergunta.
- Eu? Não. Fiz uma visita a ele quando estava no hospital, logo depois do tiro. Ele nunca voltou para o trabalho, por isso não o vi mais. Trabalhávamos juntos mas
não éramos realmente amigos. Acho que éramos de mundos muito diferentes. Sempre pensei que foi por isso que o Sr. Scaggs nos escolheu.
- O que quer dizer?
- Bem, não éramos amigos de verdade, e Linus era, bem, Linus. Acho que o Sr. Scaggs escolheu duas pessoas diferentes e que não eram amigas para não termos nenhuma
idéia sobre o dinheiro.
Assenti com a cabeça e fiquei em silêncio. Ela pareceu perdida em um pensamento e então balançou a cabeça de um jeito autodepreciativo.
- O que foi?
- Nada. Só que eu estava pensando em visitá-lo em um dos clubes, mas achei que provavelmente nem me deixariam entrar. E se eu dissesse que o conhecia, talvez fosse
embaraçoso, sabe, se o chamassem e ele agisse como se não se lembrasse, ou algo assim-
- Clubes? Tem mais de um?
Ela apertou os olhos cheia de suspeita.
- O senhor me falou que estava sendo meticuloso. Mas na verdade nem sabe quem ele é, sabe?
271
Eu ergui os ombros.
- Quem é ele, então?
- Ele é Linus. Agora só usa o primeiro nome. Ficou famoso. Ele e os sócios agora são donos dos melhores clubes de Hollywood. Os lugares onde as celebridades vão
para ver e ser vistas. Filas na porta e cordas de veludo.
- Quantos clubes?
- Acho que agora pelo menos quatro ou cinco. Não fico acompanhando. Eles começaram com um e foram comprando outros.
- São quantos sócios?
- Não sei. Saiu uma reportagem em uma revista... espere um instante, acho que eu a guardei.
Abaixou-se e abriu uma gaveta no pé da sua escrivaninha. Escutei enquanto vasculhava seu conteúdo e então ela surgiu com um exemplar da Los Angeles Magazine, uma
revista chique. Começou a virar as páginas. Era uma revista da moda que listava restaurantes no final e normalmente tinha duas ou três matérias grandes sobre viver
e morrer em L.A. Mas, por trás do glamour, sempre havia uma punhalada. Duas vezes, repórteres da revista fizeram matérias sobre casos meus. Sempre achei que eles
foram os que chegaram mais perto, entre todas as reportagens, da verdade de um crime em termos de seus efeitos sobre uma família ou uma vizinhança. O efeito das
ondas.
- Não sei por que guardei isso - continuou Jones, um pouco envergonhada depois de ter dito que não acompanhava a vida de seu ex-colega de trabalho. - Acho que porque
eu o conhecia. E, está aqui.
Ela virou a revista. A reportagem abria em página dupla com um título que dizia: "Os Reis da Noite." Havia uma foto de quatro homens jovens posando lado a lado
atrás de um bar escuro de mogno. No fundo, prateleiras com garrafas coloridas iluminadas por baixo.
- Posso ver isso?
Ela a fechou e a entregou a mim.
272
- Pode ficar com ela. Como eu disse, acho que nunca mais vou ver o Linus. Ele não tem tempo para mim. Fez o que disse que ia fazer e ponto final.
Ergui os olhos da revista para ela.
- O que quer dizer? Que diabos ele disse que ia fazer?
- Quando eu o vi no hospital, ele me disse que o banco devia a ele muito dinheiro por ter levado um tiro no... ah, o senhor sabe. Ele disse que ia pegar a grana,
deixar o trabalho e abrir um bar. Disse que não cometeria os erros de seu pai.
- Seu pai?
- Eu não sabia o que aquilo significava. Não perguntei. Mas por alguma razão, abrir aquele bar era a grande ambição da vida de Linus. Ser o rei da noite, eu acho.
Bem, ele chegou lá.
A voz dela tinha uma mistura de saudade e ciúmes. Não achei que combinava com ela, e eu queria poder dizer o que pensava do seu herói. Mas não disse. Ainda não
tinha tudo o que queria.
Achando que tinha levado aquela entrevista o mais longe possível, levantei-me e peguei a revista.
- Obrigado por seu tempo. Tem certeza de que não se importa se eu levar isto?
Ela fez um aceno com a mão.
- Não, pode levar. Já olhei demais para ela. Uma dessas noites eu devia botar meus jeans pretos e uma camiseta preta e ir lá ver se conseguia ver o Linus por uns
minutos. Para falar dos bons velhos tempos, mas provavelmente ele não vai querer ouvir sobre eles.
- Ninguém quer, Jocelyn. Porque os velhos tempos não eram tão bons assim.
Levantei. Queria oferecer a ela algumas palavras de encorajamento. Queria dizer para não ficar com ciúmes, que o que ela possuía e o que havia conquistado eram
coisas de que devia se orgulhar. Mas o helicóptero do xerife decolou e veio para o outro lado da rua, por cima do banco. O lugar tremeu como em um terremoto e minhas
palavras sumiram. Deixei Jocelyn Jones sentada ali pensando sobre um mundo muito diferente.
Capítulo 36

A revista tinha sido publicada havia sete meses. A reportagem sobre Linus Simonson e seus sócios não era a matéria principal, mas era valorizada na capa com uma
chamada que dizia: "Os empreendedores da noite em Hollywood." O gancho do artigo era a inauguração pelo quarteto de um sexto clube da seleção de casas de alto nível
que funcionavam até alta madrugada. A matéria se referia a Simonson como o rei da noite, o homem que tinha erguido todo o império a partir de um pequeno bar comprado
depois de um acordo jurídico. Ele adquiriu aquele primeiro clube que ficava em um beco perto da esquina de Hollywood com Cahuenga. Reformou, reduziu a iluminação
pela metade e contratou mulheres para servir no bar, valorizadas mais pela aparência e pelas tatuagens que pelas habilidades para preparar drinques e somar as contas.
A música era alta, o ingresso custava vinte dólares e não deixavam ninguém entrar de gravata ou camisa branca. O clube não tinha um letreiro com o nome na porta,
nem estava na lista telefônica. Uma seta azul de néon piscando acima da entrada era a única indicação de um estabelecimento comercial. Mas logo a seta não era mais
necessária e foi retirada, porque sempre havia na porta uma
fila de gente que se estendia pelo beco.
A matéria dizia que Linus - era mencionado pelo primeiro nome na maior parte da reportagem - então se juntou a três
274
amigos dos tempos da Beverly Hills High School e eles começaram abrir novos clubes a um ritmo de um a cada seis meses. No início os empresários seguiram o mesmo
esquema
que tinha funcionado com o primeiro clube. Comprar um lugar aos pedaços, reformar e reabrir, espalhar a novidade e esperar que alcançasse as fileiras dos descolados
de Hollywood. Depois do bar sem nome, os lounges que o grupo abriu tendiam em estilo e nomes a seguir um tema literário ou musical.
O segundo bar que o grupo comprou, fechou e depois reabriu foi o Nat's Days of the Locusts, um cumprimento a Nathanael West e seu romance clássico sobre Hollywood.
O lugar, por décadas, chamou-se simplesmente Nat's, e a maioria dos proprietários provavelmente acreditava que se chamava assim por causa de Nat King Cole. Mas,
de qualquer jeito, o nome era legal e o grupo o manteve.
O Nat's também era o lugar onde Dorsey e Cross tinham sido baleados. A reportagem dizia que o assassinato fizera o preço do lugar baixar. Na verdade, foi uma barganha.
Mas assim que reabriu
- sem mudança de nome - e foi divulgado entre os boêmios, a história do lugar só acrescentou à sua mística. Foi outro grande sucesso imediato para os quatro colegas
de colégio que chamavam sua empresa próspera de Four Kings Incorporated.
Por um longo tempo em minha vida não acreditei em coincidências. Hoje estou mais experiente. Mas há coincidências e coincidências. Kiz Rider chegar na minha casa
com aquele papo high jingo enquanto Art Pepper tocava a música de mesmo nome, isso era coincidência. Mas quando li a reportagem da revista sentado no Mercedes,
não acreditei que Linus Simonson tinha comprado por acaso o bar onde balearam os dois detetives que investigavam o roubo de dois milhões que ele tinha contado e
preparado para remessa. Nem por um instante achei que havia coincidência. Achei que era pura arrogância.
Além do bar sem nome e do Nat's, o quarteto também abriu lugares chamados King's Crossing, Chet's e Cozy's Last Stand, que recebeu esse nome, segundo a reportagem,
em homenagem a um amigo desaparecido. O lugar que tinha motivado a reportagem na
275
revista e estava prestes a abrir ia se chamar Doghouse Reily's, um nome usado pelo detetive particular Philip Marlowe em um romance de Raymond Chandler.
A reportagem não ia fundo no financiamento daquela empresa de quatro homens. Estava mais interessada no brilho do que nos subterrâneos daquela suposta história de
sucesso. A matéria dizia, sem questionar, que os primeiros estabelecimentos sustentavam a expansão do grupo em um ciclo contínuo. Os lucros do primeiro bar financiaram
o segundo, e assim por diante.
Mas o retrato não era totalmente positivo. O jornalista terminava a reportagem com a sugestão de que os quatro reis talvez se tornassem vítimas do próprio sucesso.
A teoria era que a população que se vestia de preto e circulava pela noite de Hollywood era finita, e que abrir e manter funcionando seis bares não expandia a base
de clientes o suficiente. Ela apenas se espalhava. A matéria observava que havia também vários pretendentes ao trono, um monte de bares e clubes inferiores e não
tão descolados abertos nos últi-
mos anos.
O texto terminava contando que numa recente sexta-feira, à meia-noite, não havia fila de freqüentadores esperando para entrar no clube sem nome. com cinismo, sugeria
que talvez fosse a hora de colocar a seta azul de volta.
Joguei a revista no inquérito e fiquei ali sentado pensando. Tinha a sensação de que as coisas estavam começando a se encaixar. Fiquei ansioso porque sabia, instintivamente,
que estava perto. Não tinha todas as respostas, mas a experiência me dizia que iam aparecer. Eu tinha a direção. Quatro anos depois de ver o corpo de Angella Benton,
eu finalmente tinha um suspeito.
Abri o console central e peguei o celular. Achei que não haveria problema em ligar para meu número. Chequei os recados. Havia dois. O primeiro, de Janis Langwiser,
curto e doce.
- Sou eu. Telefone para mim, mas tome todas as precauções. Sabia que aquilo significava um telefone público. A mensagem
seguinte era de Roy Lindell. Ele também seguiu o padrão de brevidade.
- Seu babaca, tenho uma coisa para você. Me liga.
276
Olhei em volta. Estava estacionado em frente a uma agência dos correios na San Vicente. O meu parquímetro estava zerado eu não tinha moedas para ele nem para as
ligações que precisava fazer. Mas achei que devia haver um telefone dentro do correio e uma máquina para trocar dinheiro para a compra de selos de outras máquinas.
Saí do carro e entrei.
O correio principal estava fechado, mas, em uma sala externa que ficava aberta depois do horário, encontrei a máquina e o telefone público que estava procurando.
Liguei primeiro para Langwiser porque achei que já tinha levado a investigação além da informação que pedira a Lindell para conseguir para mim.
Liguei para Langwiser no celular, mas ela ainda estava no escritório.
- O que você conseguiu com o Foreman? - perguntei, indo direto ao assunto.
- Isso tem de ficar absolutamente confidencial, Harry. Eu falei com o Jim e, quando expliquei as circunstâncias a ele, não se importou em conversar comigo sobre
o assunto. Desde que essa informação nunca entre em relatórios e você nunca revele a fonte.
- Não tem problema. Mesmo porque eu não escrevo mais relatórios.
- Não seja tão apressado e ingênuo. Você não é mais um tira e não é advogado. Não tem proteção legal.
- Eu tenho uma licença de detetive particular.
- Como eu disse, não tem proteção. Se um juiz um dia mandar revelar sua fonte, você vai ter que fazer isso ou encarar um processo por falso testemunho. Fazer isso
possivelmente significa ir para a cadeia. Ex-tiras na cadeia não se divertem muito.
- Não diga?
- Já disse.
- Está bem, eu compreendo. Mesmo assim, não tem problema. A verdade era que eu não podia imaginar como isso um dia
poderia chegar a uma corte e a um juiz. Não estava preocupado com a possibilidade de cadeia.
- Bem, estamos entendidos. Jim me disse que Simonson fez um acordo de cinqüenta mil dólares.
277
-- Só isso?
- Só isso. E na verdade, nem é tanto. O advogado ficou com trinta e cinco por cento. Ele também pagou as custas.
Ele foi representado por um advogado que levava trinta e cinco por cento de qualquer acordo em troca de trabalhar o caso sem cobrar por hora. Significava que Simonson
provavelmente tinha ficado com pouco mais de trinta mil limpos. Não era muito quando se tratava de largar o emprego e dar início a
um império de casas noturnas.
A sensação de ansiedade que me atacara engrenou uma marcha mais alta. Suspeitava de que o acordo seria baixo, mas não tão baixo. Eu estava começando a me convencer.
- O Foreman disse mais alguma coisa sobre o caso?
- Só mais uma coisa. Ele disse que foi Simonson quem insistiu em que o sigilo fosse parte do acordo, e que o próprio acordo foi estranho. Além de exigir que não
houvesse uma comunicação pública, também pediu que não houvesse qualquer registro.
- Bem, de qualquer jeito, isso não chegou a uma corte
- Eu sei, mas o BankLA não é uma empresa privada. Então o que o acordo dizia sobe o sigilo era que Simonson. fosse identificado por um pseudônimo em todos o registros
financeiros da indenização. Ele seria identificado, uma nova exigência, como Sr. Kine.
Não respondi enquanto pensava sobre aquilo.
- E então, como me saí, Harry?
- Muito bem, Janis. O que me lembra que você tem trabalhado muito nisso. Tem certeza de que não quer me cobrar?
- Tenho, sim. Ainda devo a você.
- Bem, agora eu é quem vou dever a você. Quero que faça uma última coisa para mim. Resolvi que amanhã vou contar tudo o que descobri para as forças oficiais. Ia
ser bom se você estivesse presente. Sabe, meio que para ter certeza de que não vou ultrapassar nenhum limite.
- Conte comigo. Onde?
- Não quer checar sua agenda, antes?
- Eu já sei que tenho a manhã livre. Quer fazer aqui ou no distrito?
278
- Não, eu tenho conflito de autoridades. Queria fazer no seu escritório. Você tem uma sala onde possa botar seis ou sete pessoas?
- vou reservar a sala de reuniões. A que horas?
- Que tal às nove?
- Certo. vou chegar aqui mais cedo. Se quiser, venha antes para a gente conversar e acertar tudo.
- Isso seria bom. Vejo você por volta das oito e meia.
- vou estar aqui. Você acha que conseguiu?
Sabia o que ela queria dizer. Se eu tinha a história, se não a prova, que levaria o DPLA e o FBI a retomarem o caso.
- Estou quase lá. Talvez possa fazer mais uma coisa e então vou ter de passar para alguém que possa conseguir mandados para derrubar algumas portas.
- Entendi. Vejo você amanhã. E estou feliz que você tenha conseguido. Estou mesmo.
- E, eu também. Obrigado, Janis.
Depois de desligar, lembrei que tinha esquecido do parquímetro. Saí para alimentá-lo mas era tarde demais. Um fiscal de estacionamento de West Hollywood tinha chegado
antes. Deixei a multa no pára-brisa e voltei para dentro. Encontrei Lindell no escritório pouco antes de ele ir embora.
- O que você tem?
- Herpes. E você?
- Pára com isso, cara.
- Você é um babaca, Bosch. Me pedir para lavar sua roupa suja. ,
Percebi por que ele estava com raiva.
- A placa?
- E, a placa. Como se você não soubesse. É da sua ex-mulher, cara, e eu não gostei nada de ser envolvido nessa merda. Quero dizer, ou você mata ela ou supera, entendeu?
Concordei que sabia o que ele queria dizer, mas não o que tinha sugerido. Sabia que o havia enrolado com a checagem da placa.
- Roy, só posso dizer que não sabia. Desculpa. Você está certo. Eu não devia envolver você e estou arrependido de ter envolvido.
Fez-se silêncio e achei que o havia apaziguado.
279
- Roy?
- O quê?
- Você anotou o endereço do registro?
- Você é mesmo um babaca.
Ele reclamou por mais um minuto mas acabou, resmungando, me dando o endereço no qual estava registrado o carro de Eleanor. Não havia um número de apartamento. Parecia
que ela havia subido de nível e não apenas em quatro rodas. Agora, ela estava morando em uma casa.
- Obrigado, Roy, é a última vez. Prometo. Mas você conseguiu alguma coisa no outro assunto sobre o qual perguntei?
- Nada de bom, nada de útil. A ficha do sujeito é bem limpa. Tem alguma coisa na adolescência, que é informação protegida por lei. Não fui mais fundo nisso.
- Tudo bem.
Eu me perguntei se a coisa da adolescência envolvia seus excolegas de turma da Beverly Hills High e atuais sócios. - A única outra coisa é que ele é um júnior.
Há outro Linus Simonson no computador. Pela idade, parece o papai.
- Por que ele está lá?
- Ele foi pego pelo imposto de renda e faliu. Coisa velha.
- Quando?
- O imposto de renda veio antes, como costuma acontecer. Isso foi em
1994. O velho faliu dois anos depois. Quem é esse cara, o Linus, e por que você me pediu para
ver se ele tinha ficha?
Não respondi e me vi olhando para uma foto de PROCURADO na parede do correio. Um estuprador em série. Mas na verdade não estava olhando para ele. Estava olhando
para Linus. Estava com os circuitos internos em funcionamento quando outra peça se encaixou. Linus disse que não ia cometer os mesmos erros de seu pai, que tinha
se endividado e quebrado, uma corda da receita federal em volta do pescoço. A pergunta que surgia era: como um cara sem emprego e sem ajuda do papai investe os trinta
mil que tem no bolso para comprar e fazer uma grande reforma em um bar? Então surgia outra, e mais outra.
280
Talvez com empréstimos, se ele preenchesse os requisitos necessários. Ou com um saque de dois milhões do banco.
- Bosch, você está aí? Eu voltei à realidade.
- Estou, sim.
- Eu fiz uma pergunta. Quem é esse cara? Ele está no esquema do filme?
- Está parecendo, Roy. O que você vai fazer amanhã?
- O que eu faço sempre. Por quê?
- Se quiser saber um pouco disso, esteja no escritório da minha advogada às nove. E não se atrase.
- Esse cara tem ligação com a Marty? Se ele é o cara, não quero um pouco. Quero tudo.
- Ainda não sei. Mas ele vai nos levar mais perto, isso é certo. Lindell queria me fazer mais perguntas, mas não deixei. Tinha
de fazer outras ligações. Dei o nome e o endereço de Langwiser e ele acabou dizendo que estaria no escritório de advocacia às nove. Desliguei e então telefonei para
Sandor Szatmari e deixei uma mensagem convidando-o para a mesma reunião.
Por fim, liguei para Kiz Rider no escritório da administração do Parker Center e estendi o convite. Ela foi de zero a cem no velocímetro da raiva em uns cinco segundos.
- Harry, eu avisei a você sobre isso. Você vai se meter em um monte de problemas. Não pode simplesmente trabalhar num caso e então convocar uma reunião quando achar
que podemos ser informados de suas investigações particulares.
- Kiz, eu já fiz isso. Você só tem de decidir se quer ir lá ou não. Vai sobrar uma boa parte disso para alguém do DPLA. Na minha opinião, bem poderia ser você. Mas,
se não está interessada, vou ligar para a DRH.
- Droga, Harry.
- Dentro ou fora? Houve uma longa pausa.
- Estou dentro, Harry, mas não conte comigo para proteger
281
- Quem é seu advogado?
Dei a ela a informação e estava prestes a desligar. Fiquei apreensivo com o dano causado ao nosso relacionamento. Para mim, parecia definitivo.
- Está bem. Vejo você lá - disse eu, finalmente.
- Vê, sim - respondeu com dureza. Eu me lembrei de algo de que precisava.
- Ah, Kiz? Veja se você consegue encontrar o relatório original dos números de série. Ele deve estar no inquérito.
- Que relatório de números de série?
Expliquei e ela disse que ia procurar. Agradeci e desliguei. Fui até meu carro e arranquei a multa do pára-brisa. Entrei e joguei-a no banco de trás por cima do
ombro para dar sorte.
Já eram quase sete no relógio do painel. Sabia que as coisas não começavam na cena
noturna dos clubes de Hollywood antes das dez, ou mais tarde. Mas estava vivendo
a emoção da antecipação do momento, e não queria que ela se dissipasse enquanto eu ia para casa e esperava. Fiquei ali sentado pensando, a mão no volante, tamborilando
o dedos contra o painel. Logo eles estavam fazendo o fraseado que Quentin McKinzie tinha me ensinado, e quando percebi isso descobri como podia passar as próximas
horas. Abri outra vez o celular.
você.
- Eu não estava esperando por isso.
Capítulo 37
Sugar Ray McK estava esperando por mim em sua poltrona no seu quarto no Splendid Age. A única indicação de que ele sabia que ia sair era o chapéu de feltro que estava
usando. Uma vez ele me contou que só o usava quando saía para ouvir música, o que significava que atualmente ele raramente o usava. Sob a aba, seus olhos estavam
mais vivos do que eu via em muito tempo.
- Isso vai ser legal, mano - falou, e eu me perguntei se ele estava assistindo demais à MTV.
- Espero que eles tenham um bom grupo para abrir a noite. Não cheguei a ver.
- Não se preocupe. Vai estar tudo bem. Ele esticou a última palavra.
- Antes de ir, você me emprestaria aquela lente de aumento que usa para ler o guia de TV?
- Claro. Para que você precisa?
Ele pegou a lente em um bolso no braço da poltrona enquanto eu tirava a última página do relatório dos números de série do bolso e a desdobrava. Sugar Ray me deu
a lente. Fui até a cabeceira e liguei o abajur. Segurei a página acima da cúpula e então estudei a assinatura de Jocelyn Jones com a lente de aumento. Confirmei
algo que vira antes no escritório dela.
- O que foi, Harry? - perguntou Sugar Ray.
284
Devolvi a lente a ele e comecei a dobrar de volta o papel.
- Só uma coisa em que eu estou trabalhando. Algo chamado tremor do falsário.
- Hum. Cara, eu tenho tremores em toda parte. Eu sorri para ele.
- Todos temos, de um jeito ou de outro. Vamos. Vamos ouvir um pouco de música.
- Estou indo. Desligue o abajur. Isso custa dinheiro. Saímos e enquanto descíamos o corredor pensei em Melissa
Royal e me perguntei se ela não estaria visitando a mãe. Eu duvidava. Um momento de apreensão me atingiu porque eu sabia que estava chegando o dia em que teria de
me sentar com Melissa e dizer a ela que era o cara errado.
Um porteiro do lar de idosos me ajudou a botar Sugar Ray no carro. A picape Mercedes provavelmente era alta demais para ele subir. Percebi que teria de pensar naquilo
se quisesse levá-lo para passear outras vezes.
Fomos até o Baked Potato, jantamos e vimos o início da apresentação do primeiro grupo, o quarteto da casa que se chamava Four Squared. Eram decentes mas talvez um
pouco cansados. Tocavam muitas coisas de Billy Strayhom. Como eu também gosto, não importava.
Também não importava para Sugar. Seu rosto se iluminou e ele acompanhava o ritmo com os ombros enquanto escutava. Não dizia coisa alguma enquanto eles tocavam e
aplaudia ao fim de cada música. Eu via reverência nos olhos dele. Reverência pelo som e pela forma.
Os músicos não o reconheceram. Agora, que ele está só pele e ossos, poucos o reconheceriam. Mas aquilo não incomodava Sugar Ray. Não diminuiu nossa noite uma nota
sequer.
Depois do primeiro set, pude ver que ele estava começando a ficar cansado. Já passava das nove e era hora de dormir e sonhar. Ele me disse que ainda conseguia tocar
nos sonhos. Achei que todos merecíamos essa sorte.
Estava na hora de eu olhar na cara do homem que tinha tirado Angella Benton deste mundo. Não tinha distintivo ou qualquer autoridade. Mas eu sabia muitas coisas
e acreditava que ainda a
285
rlefendia, falava por ela. De manhã eles podiam tirar tudo de mim, brigar-me a ficar sentado e assistir de fora do campo. Mas até lá ainda era comigo. E sabia que
não ia agora para casa. Ia confrontarme com Linus Simonson e medi-lo. Ia fazer com que soubesse
quem o havia descoberto. E eu ia dar a ele a chance de responder
por Angella Benton.
Quando voltamos para o Splendid Age, deixei Sugar cochilando no banco da frente enquanto fui chamar o porteiro. Tirá-lo sozinho do Mercedes lá no Baked Potato não
tinha sido fácil.
Eu o acordei com uma sacudida leve e então o descemos até a calçada. Seguimos pelo corredor até o seu quarto. Sentado na cama, tentando afastar o sono, ele me perguntou
onde eu estivera.
- Bem aqui com você, Sugar.
- Você tem ensaiado?
- Sempre que posso.
Percebi que ele podia já ter se esquecido da nossa noitada. E podia estar achando que eu estava lá para uma aula. Me senti mal pela memória dele estar sendo roubada
tão cedo.
- Sugar Ray, tenho que ir. Preciso trabalhar.
- Tudo bem, Henry.
- É Harry.
- Foi o que falei.
- Ah, quer que eu ligue a TV, ou você vai dormir?
- Não, ligue a TV para mim, por favor. É melhor.
Liguei a televisão presa na parede. Estava na CNN e Sugar Ray falou para deixar lá. Fui até ele, dei um aperto em seu ombro e então fui para a porta.
- "Lush Life" - disse ele às minhas costas.
Virei-me e olhei para ele. Estava sorrindo. "Lush Life" foi a última música do set que ouvimos. Ele se lembrava.
- Eu adoro essa música - comentou ele.
- É, eu também.
Deixei-o com suas recordações de uma vida exuberante e segui noite adentro para conversar com um rei sobre uma vida roubada. Estava desarmado, mas sem medo. Estava
em estado de graça. Levava comigo a última prece de Angella Benton.

Capitulo 38
Pouco depois das dez horas, cheguei à entrada do Nat's ra Cherokee, meia quadra ao sul do Hollywood Boulevard. Ainda
era cedo, mas não havia fila para entrar.
Não havia corda de veludo. Não havia um porteiro selecionando quem entrava ou não.
Não havia uma pessoa para cobrar o ingresso. Quando entrei, também quase não havia
gente.
Eu tinha ido inúmeras vezes no Nat's em sua encarnação anterior como uma espelunca povoada por uma clientela tão devotada ao álcool quanto a qualquer outro aspecto
da vida. Não era umm lugar de paquera - a menos que você contasse as prostitutas que descansavam as pernas no bar. Não era um lugar para se ver celebridades. Era
um lugar para se beber. Isso era a totalidade de seus objetivos, e por isso tinha uma personalidade honesta. Quando entrei e vi uma parede de latão polido e madeiras
caras, percebi que agora havia glamour, e aquilo não era a mesma coisa, nem tão dura,
pior, que ter personalidade. Não importava quantas pessoas estiveram na fila
na noite da inauguração. Aquele lugar não ia longe. Soube disso em quinze segundos. O lugar estava condenado
antes do primeiro citron martini ser servido batido,
e não mexido, em seu copo gelado sobre um guardanapo preto.
Fui direto até o bar onde havia três fregueses que pareciam turistas recém-chegados da Flórida em busca de uma dose do tão
288
necessário ar blasé californiano. A balconista era alta e magra usava jeans pretos elegantes e uma camiseta justa que permitia que seus mamílos se apresentassem
aos clientes. Ela tinha uma cobra negra tatuada em torno do bíceps, a língua vermelha bifurcada lambendo a curva do seu ombro, onde as cicatrizes de agulhas eram
evidentes. O cabelo era mais curto que o meu e na nuca havia a tatuagem de um código de barras. O que me fez pensar em como eu tinha gostado de descobrir o lindo
pescoço de Eleanor na noite anterior.
- Tem uma entrada de dez dólares - anunciou a moça. - O que vai querer?
Lembrei-me de que, na reportagem da revista, costumava custar vinte.
- Isso dá direito a quê? Esse lugar está morto.
- A ficar aqui. São dez dólares.
Não fiz qualquer gesto para dar o dinheiro a ela. Inclinei-me sobre o bar e falei baixinho:
- Onde está o Linus?
- Hoje ele não está aqui.
- Então onde está? Preciso falar com ele.
- Provavelmente no Chet's. O escritório é lá. Ele não começa a circular pelos lugares antes da meia-noite. Você vai pagar os dez?
- Acho que não. Estou de saída. Ela fechou a cara.
- Você é um tira, não é? Sorri orgulhoso.
- Há quase 28 anos.
Deixei de fora a parte sobre serem quase 28 anos antes de minha aposentadoria. Achei que ela ia pegar o telefone e avisar que um tira estava a caminho. Isso talvez
me ajudasse. Puxei uma nota de dez do bolso. Joguei-a sobre o bar.
- Isso não é a entrada. É para você. Vá cortar esse cabelo. Ela deu um sorriso exagerado que exibiu covinhas lindas em
seu rosto. Ela pegou os dez. "-Obrigada, tio.
289
Sorri enquanto ia embora.
Levei quinze minutos para chegar no Chet's, em Santa Monica, perto de La Brea. Conseguira o endereço graças à Los Angeks Magazine, que tinha convenientemente colocado
uma lista de todos os estabelecimentos dos quatro reis em um box na última página da matéria.
Novamente, poucos fregueses e nenhuma fila. Estava começando a achar que quando os guias de turismo e as revistas dizem que você é descolado, então está acabado.
O Chet's era quase uma cópia carbono do Nat's, até a bartender mal-humorada com as tatuagens e os mamilos protuberantes. Uma coisa de que eu gostei no lugar foi
a música. "Cool Burning", de Chet Baker, estava tocando quando entrei. Achei que, no fim das contas, até que os reis talvez tivessem bom gosto.
A moça do bar era déjà vu - alta, magra e de preto, mas no bíceps tinha um rosto de Marilyn Monroe da época do "Happy Birthday, Mr. President".
- Você é o cana? - perguntou antes que eu dissesse uma palavra.
- Parece que você falou com sua irmã. Acho que ela disse a você que eu não pago a entrada.
- Ela disse alguma coisa assim.
- Onde está o Linus?
- No escritório dele. Disse que você estava vindo.
- Foi muito gentil de sua parte.
Eu me afastei do bar, mas apontei para a tatuagem dela.
- Sua mãe?
- Vem aqui e dá uma olhada.
Eu me inclinei sobre o bar. Ela dobrou o cotovelo e flexionou várias vezes os músculos. As bochechas de Marilyn inchavam e encolhiam com as contrações e distensões
do músculo por baixo.
- Parece que ela está pagando um boquete, não parece?
- Que gracinha - falei. - Aposto que você mostra isso para todos os meninos.
- Vale dez dólares?
290
Quase disse a ela que eu conhecia lugares onde dava para conseguir a coisa de verdade por dez paus, mas deixei para lá. Deixei-a ali e encontrei a entrada de um
corredor atrás do bar. Havia portas para os banheiros e em uma delas estava escrito "Somente a gerência". Não bati. Entrei e ela levava apenas a uma continuação
do corredor e a mais portas. A terceira dizia "Linus". Também abri aquela sem bater.
Linus Simonson estava sentado atrás de uma mesa bagunçada. Eu o reconheci pela foto da revista. Ele tinha uma garrafa de uísque e copos sobre a mesa. No escritório
havia um sofá de couro preto e nele um homem que também reconheci pela revista como outro dos sócios. O nome dele era James Oliphant. Estava com os pés sobre uma
mesinha de centro e não parecia nem um pouco preocupado com a visita de um homem que disseram a ele ser um tira.
- Ei, você é o tira - disse Simonson ao me fazer um aceno para que eu entrasse. - Feche a porta.
Entrei e me apresentei. Não disse que era um tira.
- Bem, eu sou Linus e esse é o Jim. O que aconteceu? O que podemos fazer por você?
Estendi as mãos como se nada tivesse a esconder.
- Não tenho certeza sobre o que vocês podem fazer por mim. Só queria dar um pulo aqui meio que para me apresentar. Estou trabalhando no caso Angella Benton e, é
claro, isso inclui o caso do BankLA. Então... aqui estou eu!
- Ah, cara, o BankLA. Essa é uma história muito antiga. Ele olhou para o sócio e riu.
- Isso foi em uma outra vida. Não quero voltar para lá, cara. Não é uma lembrança boa.
- E, bem, não foi tão ruim para você quanto para Angella Benton.
Simonson de repente ficou sério e inclinou-se para a frente sobre a mesa.
- Cara, não estou entendendo. O que você está fazendo aqui? Você não é um tira. Tiras sempre andam em duplas. Se você é um ti' ra, então não é direito. O que você
quer? Me mostre um distintivo.
291
- Eu não disse a ninguém que tinha um distintivo. Eu era um tira, mas não sou mais. Na verdade, achei que você ia me reconhecer dessa outra vida da qual estava falando.
Simonson olhou para Oliphant e deu um sorriso afetado.
- Reconhecer de onde?
- Eu estava lá no dia em quem você levou uma no rabo. Estou falando de uma bala. Mas, bem, você estava rolando pelo chão e gritando tanto que provavelmente não teve
tempo de olhar para mim.
Os olhos de Simonson se arregalaram em sinal de reconhecimento. Talvez não um reconhecimento físico, mas de quem eu era e o que tinha feito.
- Merda, você é o sujeito. Você é o cana que estava lá. Foi você que acertou o...
Ele parou antes de dizer um nome. Olhou para Oliphant.
- Foi ele quem acertou um dos ladrões.
Olhei para Oliphant e percebi reconhecimento - reconhecimento físico - e talvez algo como ódio ou raiva em seus olhos.
- Ninguém tem certeza porque nunca pegamos o ladrão. Mas é, acho que acertei, sim. Fui eu.
Eu falei com um sorriso de orgulho que mantive no rosto ao me virar para Simonson.
- Para quem você está trabalhando? - perguntou Simonson.
- Eu? Estou trabalhando para alguém que não vai parar, que não vai desistir. Nem por um minuto. Ele vai descobrir quem deixou Angella Benton estirada no chão e não
vai parar até morrer ou descobrir.
Simonson deu outro sorriso afetado e arrogante.
- Bem, boa sorte para você e para ele, Sr. Bosch. Acho que deve ir embora, agora. Estamos ocupados.
Acenei para ele com a cabeça e então olhei para Oliphant, com o melhor olhar assassino de meu repertório.
- Então acho que vejo vocês por aí, rapazes.
Atravessei a porta e desci o corredor de volta para o bar. Agora Chet Baker estava cantando "My Funny Valentine". Ao me dirigir
292
para a porta principal, percebi a balconista flexionando o bíceps para dois homens sentados no bar onde eu estava. Eles estavam rindo. Eu os reconheci pela foto
da revista como os dois reis que faltavam.
Eles pararam de rir quando me viram e eu senti seus olhos em mim por todo o caminho até a porta.
Capítulo 39
No caminho de casa parei no Ralph's 24h, da Sunset, e comprei um pacote de café. Não esperava conseguir dormir muito entre a noite e a reunião com vários órgãos
de segurança na manhã seguinte. A subida da colina até minha casa tem curvas demais, é impossível usar o retrovisor para ver se há alguém na sua cola. Mas há uma
grande curva a meio caminho que permite olhar à direita pela janela do carona e ver, do outro lado do abismo, o ponto da estrada onde você acabou de passar. Sempre
tive o hábito de reduzir nesse lugar para ver se havia alguém me seguindo.
Naquela noite, reduzi ainda mais que de costume e observei durante um pouco mais de tempo. Não esperava que considerassem minha visita ao Chet's como outra coisa
que não uma ameaça, e não estava enganado. Ao olhar para o outro lado do desfiladeiro, vi um carro com as luzes apagadas circundando o morro e entrando na curva.
Pisei no acelerador e ganhei velocidade. Depois da curva seguinte, acelerei e botei um pouco mais de distância entre nós. Entrei na garagem ao lado da minha casa
e saltei depressa com o saco da loja. Fui para o canto mais escuro e esperei. Ouvi o carro que me seguia antes de vê-lo. Então o vi passar. Um Jaguar comprido.
Alguém estava acendendo um cigarro no banco de trás e à luz da chama vi que o carro estava cheio. Os quatro reis tinham vindo
me pegar.
294
Depois que o jaguar passou, vi um brilho avermelhado nas moitas do outro lado da rua e soube que eles tinham parado logo depois da minha casa. Fui até a porta da
cozinha e entrei, certificando-me de trancá-la atrás de mim.
Esse era o momento em que pessoas sem distintivo ligavam para a polícia pedindo ajuda. Quando sussurram desesperadas: "Depressa, por favor, eles estão chegando!
Eles estão chegando!" Mas com ou sem distintivo, eu sabia que, agora, aquela não era uma de minhas opções. Essa era a minha jogada e não me preocupei naquele momento
sobre que autoridade eu tinha ou não.
Não andava armado desde a noite em que deixei meu distintivo e minha pistola de trabalho numa gaveta da divisão de Hollywood e fui embora. Mas eu tinha uma arma.
Tinha comprado uma Glock P7 para proteção pessoal. Estava embrulhada em estopa com óleo e guardada em uma caixa na prateleira do closet do quarto. Botei o saco
do Ralph's na bancada e segui até lá pelo corredor sem acender a luz.
Quando abri a porta do closet, fui empurrado com muita força para trás por um homem que estava ali me esperando. Bati de costas na parede e caí no chão. Ele imediatamente
sentou-se sobre meu peito e enfiou o cano da pistola por baixo do meu queixo. Consegui olhar para cima e, na luz fraca que entrava pelas portas envidraçadas que
davam para o deque, vi quem era.
- Milton. O que...
- Cala a boca, babaca. Surpreso em me ver? Achou que eu fosse deixar que eles ferrassem comigo sem tomar alguma providência?
- Não sei do que você está falando. Olha, tem umas pessoas...
- Eu disse para calar a porra da boca. Eu quero os discos, está entendendo? Eu quero o chip original.
- Escuta! Tem umas pessoas prestes a entrar aqui atrás de mim. Eles querem...
Ele enfiou o cano tão fundo sob meu queixo que tive de parar de falar. A dor jogou estilhaços de vidro vermelho em minha visão. Milton ficou com a arma ali e se
abaixou, o hálito em meu rosto
295
- Estou com seu revólver aqui, Bosch. E vou transformar você em mais uma estatística de suicídio se não...
Houve um barulho de algo se quebrando no corredor e eu soube que era a porta da frente sendo arrancada de suas dobradiças. Então passos. Milton pulou de cima de
mim e saiu pelo quarto para o corredor. Quase imediatamente ouvi o trovão do tiro de uma escopeta e Milton foi arremessado para trás contra a parede, os olhos arregalados
pelo terror de saber que estava morrendo. Então escorregou pela parede, os calcanhares empurrando o tapete do corredor e revelando o alçapão que dava para baixo
da casa.
Eu sabia que eles o haviam confundido comigo. Era um intervalo de alguns segundos no máximo. Rolei e fui depressa até a porta de vidro. Quando ia abri-la, ouvi a
voz de alguém em pânico gritar do corredor.
- Não é ele!
A porta rangeu ao se abrir, as dobradiças protestando contra a falta de uso. Cruzei rapidamente o deque e pulei por cima do parapeito como um caubói montando um
cavalo roubado. Fiquei pendurado no deque, cinco metros acima da encosta abrupta abaixo. A luz pálida da lua, procurei uma das colunas de sustentação que mantinham
o deque e a casa presos no morro. Estava bem familiarizado com o projeto da casa por ter supervisionado sua reconstrução do chão depois do terremoto de 1994.
Tive de me mover dois metros pela borda do deque para alcançar e segurar uma das colunas. Envolvi-a com meus braços e pernas e escorreguei até o chão. Enquanto
descia, ouvi os passos deles no deque acima de mim.
- Ele desceu por ali! Ele desceu por ali!
- Onde? Não estou vendo.
- Ele desceu por ali! Vocês dois, vão lá para baixo. Nós vamos pela rua.
Eu estava no chão embaixo da proteção do deque. Sabia que se saísse dali e tentasse descer a encosta íngreme para chegar a uma das ruas ou casas no desfiladeiro
abaixo, ficaria exposto aos meus perseguidores armados. Em vez disso, voltei e comecei a subir o morro embaixo da casa, cada vez mais protegido pela estrutura.
296
Sabia que havia um canal escavado no chão lá em cima, onde a tubulação principal de esgoto teve de ser trocada depois do terremoto. O alçapão que levava ao corredor
também ficava acima de mim. Mas eu o havia projetado, durante a reconstrução da casa como uma rota de fuga, não uma entrada. Ficava trancado por dentro e no momento
de nada servia para mim.
Subi o morro, encontrei o canal e rolei para dentro dele. Movi as mãos às cegas pelo fundo, à procura de uma arma. Tudo o que encontrei foram restos da velha manilha
de esgoto. Encontrei um pedaço que era triangular e poderia servir como arma. Teria de servir.
Dois homens se moviam como sombras descendo pelas colunas de sustentação até o solo abaixo do deque. A luz da lua se refletia no aço das pistolas. Os reflexos também
me mostraram que um deles usava óculos e eu me lembrei dele da reportagem e da foto da revista. Seu nome era Bernard Banks, conhecido na noite como B.B. King. Ele
estava no bar do Chet's quando eu saí.
As duas sombras trocaram sussurros e então se separaram, um descendo o morro para a esquerda, o outro - Banks - mantendo a posição. Era uma espécie de tática que
talvez fizesse com que eu fugisse de uma pistola em direção à outra. Ele estava a cinco metros de mim, mas eu nada tinha que pudesse usar como arma, além de uma
pedaço de cano de ferro. Mas era suficiente. Eu tinha sobrevivido a mais missões nos túneis do Vietnã do que conseguia me lembrar. Uma vez passei a noite inteira
em um capinzal com o inimigo se movendo à minha volta. E eu tinha sobrevivido e trabalhado com um distintivo por mais de 25 anos nas ruas dessa cidade. Aquele
garoto não era páreo para mim. Eu sabia que nenhum deles era.
Quando Banks se virou para olhar para baixo pela encosta do desfiladeiro, eu me ergui na minha trincheira e joguei o pedaço de cano na moita à direita dele. Soou
como o movimento de um animal pelo capim alto. Quando ele se virou, apertou e ergueu a arma, eu deslizei pelo alto da vala e comecei a descer a encosta na direção
dele, sempre deixando uma das colunas entre nós como um escudo visual e sonoro.
297
Cheguei à coluna e ele ainda estava olhando na direção do som nas moitas. Banks estava finalmente percebendo ter sido um alarme falso e se virando quando o alcancei.
Meu punho esquerdo o acertou bem no meio dos olhos enquanto o direito alcançou a arma e eu botei um dedo atrás do gatilho. Na verdade eu tinha tentado acertar sua
boca, mas o soco quebrou os óculos dele ao meio, deixando-o atordoado do mesmo jeito. Girei, agarrei-o e o arremessei de cabeça contra um dos pilares de sustentação.
Seu crânio fez o barulho de uma melancia se quebrando e a coluna de aço ressoou como um diapasão. Ele caiu no chão como uma trouxa de roupa suja.
Botei a arma dele na cintura e então o virei. O sangue em seu rosto parecia negro ao luar. Logo apoiei suas costas contra a coluna, ergui seus joelhos e dobrei os
braços por cima deles. Pousei seu rosto sobre os braços.
Logo ouvi o outro chamá-lo mais abaixo na encosta.
- B.B., você o pegou?
Eu me afastei de Banks e me agachei nas moitas a três metros de distância. Saquei a arma das calças. A luz da lua, eu não podia ver a marca. Era uma pistola de aço
preto sem trava de segurança. Provavelmente uma Glock. Então percebi que talvez fosse a minha arma. A que Milton tinha enfiado no meu pescoço. Banks a tomara do
seu corpo.
Ouvi o outro se aproximar da moita. Ele vinha da minha esquerda e iria passar a um metro e meio de mim quando se aproximasse de Banks. Esperei até ouvi-lo e soube
que estava perto.
- Banks, o que você está fazendo? Seu viadinho, levanta e... Ele se calou quando sentiu o cano da pistola contra o pescoço.
- Largue a arma ou vai morrer aqui mesmo.
Eu a ouvi atingir o chão. com minha mão livre, agarrei a parte de trás de seu colarinho e o puxei em minha direção e de volta ao abrigo do deque, onde não podíamos
ser vistos de cima. Nós dois estávamos de frente para as luzes do desfiladeiro e da auto-estrada lá em baixo. Ele era o quarto rei, o que, na foto da revista, tinha
um pano de prato de bar sobre o ombro. Não me lembrava de seu nome
298
no meio de toda aquela confusão. Ele estava sentado no bar do Chet's com Banks.
- Qual o seu nome, babaca?
- Jimmy Fazio. Olha, eu...
- Cala a boca.
Ele ficou quieto. Eu me inclinei para a frente e murmurei em seu ouvido:
- Olhe para as luzes. Você vai morrer aqui, Jimmy Fazio. Essas luzes são a última coisa que vai ver.
- Por favor...
- Por favor? Foi isso que Angella Benton disse? Ela implorou a você?
- Não, por favor, não, quero dizer, eu nem estava lá.
- Convença-me. Ele ficou quieto.
- Ou morra.
- Está bem, não fui eu. Por favor, acredite em mim. Foram Linus e Vaughn. Foi idéia deles e fizeram isso sem nem dizer ao resto de nós. Não pudemos impedir porque
não sabíamos.
- É? E o que mais? Você só está vivo porque está falando.
- Foi por isso que matamos Vaughn. Linus disse que tínhamos de fazer isso porque ele ia ficar com todo o dinheiro e botar a culpa da morte da garota em cima do
Linus.
- E o tiro que o Linus levou? Ele sacudiu a cabeça.
- Não era para ter acontecido, mas descobrimos um meio de usar isso a nosso favor. Como uma fachada para a gente comprar os clubes.
- É, funcionou direitinho. E em relação a Marty Gessler e Jack Dorsey?
- Quem?
- Fazio, seu cagão filho-da-puta!
A voz veio do alto. Olhei para cima e vi a parte superior do corpo de um homem pendurado na borda do deque. Seus braços estavam esticados, duas mãos em uma arma.
Deixei meu prisioneiro para lá e mergulhei para a esquerda no momento em que a arma
299
explodiu. O atirador era Oliphant. Ele gritava enquanto atirava. Gritava cegamente. Toda a área protegida embaixo da casa se iluminou com os clarões dos tiros.
As balas ricocheteavam nas colunas de aço. Protegido por uma delas, atirei nele três vezes em uma rajada rápida. O grito interrompeu-se e eu soube que o tinha acertado.
Eu o vi largar a arma, perder o equilíbrio e cair os seis metros, fazendo o som de um baque pesado nas moitas.
Olhei ao redor à procura de Fazio e o encontrei no chão, perto de Banks. Ele tinha sido atingido no peito, mas ainda estava vivo. Estava escuro demais para ver seus
olhos, mas sabia que estavam abertos e em pânico, olhando para mim em busca de ajuda. Pegueio pelo queixo e virei seu rosto para mim.
- Você pode falar?
- Ah... está doendo.
- É, está, não é mesmo? Fale sobre a agente do FBI. Onde ela está? O que aconteceu com ela?
- Ah...
- Quem matou o tira? Também foi Linus?
- Linus...
- Isso é um sim? Foi Linus?
Ele não respondeu. Eu o estava perdendo. Dei uns tapinhas de leve em suas bochechas e então o sacudi pelo colarinho.
- Vamos lá, cara, fique comigo. Isso foi um sim? Fazio, Linus Simonson matou o tira?
Nada. Ele estava morto. Então ouvi uma voz atrás de mim.
- Acho que isso significa um sim.
Virei-me. Era Simonson. Ele tinha encontrado o alçapão e descido. Saiu da casa atrás de mim. Estava segurando uma espingarda de cano serrado. Eu me levantei devagar,
deixando minha pistola no chão ao lado do corpo de Fazio e levantando as mãos. Dei um passo para trás, descendo um pouco o morro para me afastar de
Simonson.
- Tiras corruptos são mesmo um porre - desdenhou ele. -
Tive que acabar com eles logo.
Recuei mais um pouco, mas, para cada passo que dava, Simonson fazia o mesmo. A escopeta estava a apenas um metro de
300
distância. Eu sabia que não seria capaz de escapar de seu raio de ação se tentasse algo. Só podia tentar conseguir mais tempo. Alguém na vizinhança devia ter ouvido
os tiros e dado um telefonema. Simonson apontou a arma para meu coração.
- Eu vou gostar disso. Esta é para Cozy.
- Cozy? - perguntei, apesar de ter adivinhado quem era. Que porra de Cozy?
-Você o acertou naquele dia. com suas balas. E ele não resistiu.
- O que aconteceu com ele?
- O que você acha que aconteceu? Morreu na van.
- Você o enterrou? Onde?
- Eu não. Estava meio que ocupado naquele dia, lembra? Eles o enterraram. Cozy gostava de barcos. Pode-se dizer que deram a ele um funeral no mar.
Dei outro passo para trás. Simonson me seguiu. Eu estava saindo de baixo do deque. Se os tiras por acaso aparecessem, poderiam acertar
um tiro nele lá de cima.
- E sobre a agente do FBI? O que aconteceu com Marty Gessler?
- Veja, o problema foi esse. Quando Dorsey me falou sobre ela e qual era o plano, soube que ele também tinha de sumir. Quero dizer, ele estava...
De repente, a escopeta apontou para cima quando Simonson deu mais um passo e seu pé de apoio escorregou. Ele levou um tombo clássico, caindo de costas. Eu pulei
em cima dele como um selvagem. Rolamos e lutamos pelo controle da escopeta. Ele era mais jovem e mais forte, e logo conseguiu ficar por cima. Mas era um lutador
inexperiente. Seu objetivo era controlar a luta mais que superar o adversário.
Minha mão esquerda segurava o cano enquanto a outra agarrava o gatilho. Consegui enfiar meu polegar sobre o dedo dele. Fechei os olhos e uma imagem veio à minha
mente. As mãos de Angella Benton. A imagem das memórias e dos sonhos. Canalizei toda a minha força no braço esquerdo e empurrei. A posição da arma mudou. Fechei
os olhos e apertei o gatilho com o polegar. O som mais alto que ouvi em toda a minha vida ribombou em minha
301
cabeça com o disparo da escopeta. Meu rosto parecia estar pegando fogo. Abri os olhos e olhei para Simonson. Vi que ele não tinha mais rosto.
Ele rolou de cima de mim e um som inumano gorgolejou da pasta que tinha sido seu rosto. Esperneava como se estivesse em uma bicicleta invisível. Rolou para um lado
e para o outro e suas mãos fecharam-se em punhos duros como pedras, então ele parou e ficou imóvel.
Eu me sentei devagar e registrei o que tinha acontecido. Toquei meu rosto e vi que estava intacto. Tinha queimaduras da descarga de gases, mas além disso eu estava
bem. Meus ouvidos apitavam e pela primeira vez não consegui ouvir o som sempre presente da auto-estrada lá embaixo.
Vi um brilho na moita e peguei o objeto. Era uma garrafa de água. Estava cheia e fechada. Percebi que Simonson tinha escorregado ao pisar na garrafa que eu derrubara
do deque alguns dias antes. Era o que tinha salvo minha vida. Desenrosquei a tampa da garrafa e joguei água no rosto, para lavar o sangue e a dor aguda da queimadura.
- Parado!
Olhei para baixo de onde estava e vi um homem projetando-se do parapeito do deque e apontando outra arma para mim. A lua refletia-se no distintivo de seu uniforme.
Os tiras finalmente tinham chegado. Larguei a garrafa e abri bem os braços.
- Não se preocupe - respondi. - vou ficar parado. Recostei-me, braços ainda abertos. Minha cabeça pousou no
chão e inspirei grande quantidade de ar nos pulmões. Meus ouvidos ainda zumbiam, mas agora eu também conseguia ouvir meu coração retomar o ritmo da vida normal.
Olhei para cima, para a noite escura e sagrada, para o lugar onde aqueles que não foram salvos na Terra esperam pelo resto de nós. Ainda não, pensei. Não, ainda
não.

Capítulo 40
Enquanto o policial no deque lá em cima mantinha seu revólver apontado para mim, seu parceiro saiu pelo alçapão e desceu pela encosta até onde eu estava. Levava
uma lanterna em uma das mãos e na outra um revólver, e tinha os olhos selvagens de um homem que não tem idéia de onde se meteu.
- Vire de bruços e ponha as mãos nas costas - ordenou, a adrenalina deixando sua voz tensa e aguda.
Fiz como instruído e ele botou a lanterna no chão enquanto algemava meus pulsos, felizmente não no estilo do FBI. Tentei falar com ele calmamente.
- Só para você saber, eu...
- Não quero saber nada de você.
- Sou aposentado do DPLA. De Hollywood. Larguei no ano passado, depois de mais de 25 anos.
- Quem bom para você. Por que não guarda isso para os homens de preto?
Minha casa ficava na jurisdição da Divisão de North Hollywood. Sabia que não havia razão para me conhecerem ou para se importarem.
- Ei - falou o que estava lá em cima. - Qual o nome dele? Ilumine a cara dele.
304
O homem no chão botou a lanterna a 30 centímetros do meu rosto. Ela me cegou.
- Qual o seu nome?
- Harry Bosch. Trabalhava na Homicídios.
- Har...
- Eu sei quem ele é, Swanny. Ele é do bem. Tire a luz da cara dele.
Swanny afastou a luz.
- Está bem. Mas as algemas ficam. Os homens de preto podem resolver tudo... ai, meu Deus!
Ele tinha iluminado o corpo sem rosto na moita à minha esquerda. Linus Simonson, ou o que restara dele.
- Não vomite, Swanny - disse a voz lá de cima. - Isto é uma cena de crime.
- Vá se foder, Hurwitz, não vou vomitar.
Eu o ouvi andar por ali. Tentei erguer a cabeça para observá-lo, mas a moita era alta demais. Só podia ouvir. Parecia que ele estava indo de um corpo a outro. Eu
estava certo.
- Ei, tem um vivo, aqui! Peça ajuda.
Eu achei que devia ser Banks. Fiquei feliz em ouvir isso. Tinha a sensação de que ia precisar de um sobrevivente para confirmar minha história. Imaginei que, diante
da possibilidade de responder por tudo sozinho, Banks ia fazer um acordo para tirar o seu da reta e contaria a história toda.
Rolei e consegui me sentar. O tira estava ajoelhado ao lado de Banks sobre o chão de terra embaixo do deque. Ele olhou para mim.
- Não mandei você se mexer.
- Não estava conseguindo respirar com a cara na terra.
- Porra, não se mexe mais.
- Ei, Swanny - chamou Hurwitz lá de cima. - Sabe o corpo na casa? Ele tem um distintivo do FBI.
- Puta merda!
- É, puta merda.
E eles estavam certos. Era mesmo uma puta merda de caso. Em menos de uma hora o local estava apinhado. Pelo DPLA e pelos
305
bombeiros. Pelo FBI e pela imprensa. Pelas minhas contas, seis helicópteros passaram a noite inteira voando em círculos, a cacofonia tão alta que eu comecei a achar
melhor o zumbido em meus ouvidos provocado pelo tiro da escopeta.
Os bombeiros usaram um helicóptero para tirar Banks do desfiladeiro em uma padiola. Quando terminaram com ele, chamei os paramédicos e eles botaram um gel de aloé
nas queimaduras de gás em meu rosto. Deram-me uma aspirina e disseram que eram ferimentos leves e que não ficariam cicatrizes. Eu sentia como se minha pele tivesse
sofrido um peeling a laser feito por um cirurgião cego.
Tiraram minhas algemas por tempo suficiente para subir a encosta e entrar pelo alçapão. Em casa, me algemaram outra vez e me puseram sentado num sofá na sala. De
lá, eu podia ver as pernas de Milton estendidas para fora do corredor, enquanto a equipe da perícia trabalhava em torno dele.
Quando os homens de preto começaram a aparecer, a coisa ficou mais séria. A maioria deles seguia o mesmo padrão. Entravam, estudavam sombriamente o corpo de Milton,
então saíam pela sala sem olhar para mim e iam até o deque, de onde olhavam para os outros três corpos lá em baixo. Então voltavam, olhavam para mim sem dizer palavra
e iam para a cozinha, onde alguém já tinha se incumbido de abrir meu pacote novo de café e ligar a cafeteira.
Isso durou pelo menos duas horas. No início, não reconheci qualquer um deles porque eram detetives de North Hollywood. Mas então o comando decidiu transferir a investigação
- a parte do DPLA - para a Divisão de Roubos e Homicídios. Quando os detetives da DRH começaram a chegar, aquilo ficou parecendo uma volta ao lar. Conhecia muitos
deles e tinha mesmo trabalhado ao lado de vários. Só quando Kiz Rider chegou, vinda do gabinete do chefe, alguém lembrou de tirar as algemas dos meus pulsos. Ela
exigiu com raiva que eu fosse solto e, quando ninguém se mexeu, ela mesma fez aquilo.
- Tudo bem, Harry?
- Acho que agora sim.
- Seu rosto está vermelho e um pouco empolado. Quer que eu
chame iim médico?
306
- Já me examinaram. Queimaduras leves provocadas por ficar perto demais do lado errado de uma escopeta.
- Como você quer fazer isso? Você sabe como funciona. Quer um advogado, ou podemos conversar?
- Eu converso com você, Kiz. Conto a história toda. Se não for assim, quero um advogado.
- Não estou mais na DRH, Harry. Você sabe disso.
- Mas devia estar, e você sabe disso.
- Mas não estou.
- Bem, esse é o acordo, Kiz. E pegar ou largar. Eu tenho uma boa advogada.
Ela refletiu por alguns instantes.
- Está bem. Espere aqui um minuto que eu já volto.
Ela saiu pela porta da frente para consultar seus superiores sobre minha oferta. Estava esperando sozinho quando vi o agente especial John Peoples entrar e se agachar
ao lado do corpo de Milton. Então ele olhou para mim e me encarou. Se estava tentando enviar alguma mensagem, não tive certeza de qual era. Mas eu sabia que ele
tinha algo em jogo ali. Seu futuro.
Rider voltou e foi até mim.
- O acordo é o seguinte. Isso está virando uma bagunça. O FBI está por todo lado. Parece que o sujeito no chão é de um comando antiterror e isso muda tudo. Eles
não vão nos deixar trabalhar sozinhos.
- Está bem, então o negócio é o seguinte. Falo com você e com um agente. Quero que seja Roy Lindell. Acorde-o e traga-o aqui e eu conto tudo para todo mundo. Tem
de ser você e Roy ou chamo um advogado e vocês vão ter de descobrir o que aconteceu sozinhos.
Ela balançou a cabeça, virou-se e saiu de novo. Percebi que Peoples não estava mais no corredor, mas não o vi sair.
Dessa vez Rider demorou meia hora. Mas, quando voltou, tinha um ar de quem estava no controle. Sabia antes que me dissesse qualquer coisa que o trato estava feito.
O caso era dela, pelo menos no lado do DPLA.
307
- Está bem. Vamos descer até a Divisão de North Hollywood. Vamos usar uma sala lá, e eles vão gravar para nós. Lindell já está a caminho. Assim todo mundo fica feliz
e com uma fatia do bolo.
Sempre era assim. Você tinha de se equilibrar, fazer a política do departamento e entre os órgãos de segurança para conseguir que o trabalho fosse feito. Fiquei
satisfeito em não fazer mais parte
daquilo.
- Pode se levantar agora, Harry - disse Rider. - Eu vou dirigindo.
Eu fiquei de pé.
- Primeiro quero ir no deque para dar uma olhada lá embaixo. Ela deixou que eu fosse até lá. Atravessei o deque e olhei para
baixo por cima do parapeito. Embaixo, grandes luzes de cena de crime tinham sido montadas. A encosta parecia um formigueiro com peritos trabalhando por toda parte.
Equipes de legistas circulavam entre os corpos. Acima de tudo, os helicópteros se moviam em vários níveis em uma coreografia barulhenta. Sabia que qualquer relacionamento
que antes eu tivesse com meus vizinhos estava acabado.
- Sabe de uma coisa, Kiz?
- O quê, Harry?
- Acho uma boa hora para vender este lugar.
- É. Boa sorte com isso, Harry.
Ela me pegou pelo braço e me afastou do parapeito.
Capítulo 41
O distrito de North Hollywood era o mais novo da cidade. Tinha sido construído depois do terremoto e dos tumultos do caso Rodney King. Por fora, era uma fortaleza
de tijolos projetada para resistir a movimentos tectônicos e sociais. Dentro, o mais moderno em termos de conforto e tecnologia. Eu estava sentado no assento central
da mesa, em uma sala de interrogatório grande. Não via os microfones ou a câmera, mas sabia que estavam lá. Também sabia que precisava tomar cuidado. Eu tinha feito
um acordo ruim. Se um quarto de século na polícia havia me ensinado alguma coisa, foi a nunca falar com um tira sem a presença de um advogado. E eu estava ali para
fazer justamente isso. Estava prestes a abrir o jogo para duas pessoas predispostas a acreditar em mim e a querer me ajudar. Mas isso não importava. O que importava
era a fita. Tinha de tomar cuidado para ter certeza de não dizer coisa alguma que pudesse se voltar contra mim quando a fita fosse revista pelos que não eram meus
amigos.
Kizmin Rider começou os trabalhos registrando nossos três nomes, a data, a hora e o local, e então leu meu direito garantido pela constituição a ter um advogado
ou a ficar com a boca fechada se quisesse. Em seguida pediu que eu declarasse e escrevesse que compreendia esse direito e que abria mão dele por vontade própria.
Declarei. Eu a havia ensinado bem.
310
Então ela foi direto ao ponto.
- Tudo bem, Harry, na sua casa há quatro pessoas mortas, entre elas um agente federal, sem mencionar um quinto homem em coma. Você quer nos contar sobre isso?
- Eu matei dois deles... em legítima defesa. E o sujeito em coma, fui eu também.
- Certo. Conte para a gente o que aconteceu.
Comecei a história no Baked Potato e segui dali. Citei Sugar Ray, o quarteto, o porteiro, as balconistas e suas tatuagens. Cheguei mesmo a descrever o caixa com
quem comprara café no Ralph's. Usei o máximo de detalhes que podia me lembrar porque sabia que os detalhes os convenceriam quando fossem checados. Sabia por experiência
que era impossível provar se um diálogo era verdadeiro ou falso. Então se você fosse contar uma história sobre o que as pessoas disseram e como elas disseram - especialmente
pessoas que não estavam mais vivas -, era melhor temperá-la com coisas que podiam ser checadas e comprovadas. Os detalhes. A segurança e a salvação estavam nos
detalhes.
Por isso registrei na fita tudo o que eu podia me lembrar, até a tatuagem de Marilyn Monroe. Essa fez Roy Lindell rir, mas Rider não viu graça naquilo.
Conduzi-os pela história, descrevendo as coisas à medida que iam acontecendo. Não entrei nos acontecimentos anteriores que levaram a ela pois sabia que a hora para
isso chegaria no interrogatório que viria depois. Queria que eles tivessem um relato momento a momento, detalhe a detalhe, do que acontecera. Não menti no que disse
a eles, mas não contei tudo. Ainda não tinha certeza de como entrar na parte do Milton. Eu ia esperar por um sinal de Lindell em relação a isso. Tinha certeza de
que ele recebera suas ordens antes de chegar ao distrito.
Guardei os detalhes do Milton para Lindell. O detalhe que guardei para mim foi o que vi quando fechei os olhos antes de apertar o gatilho da escopeta. Guardei comigo
a imagem das mãos de Angella Benton.
- E foi isso - encerrei. - Então os policiais apareceram, e cá estamos nós.
311
Rider tinha tomado algumas notas em um bloco grande. Ela abaixou o bloco e olhou para mim. Parecia atordoada pela história. Provavelmente achava que eu tivera muita
sorte em sobreviver.
- Obrigada, Harry. Dessa vez, você escapou por pouco.
- Escapei por pouco cinco vezes.
- Hum, vamos fazer uma pausa de cinco minutos. O agente Lindell e eu vamos lá fora conversar sobre isso e então tenho certeza que voltaremos com algumas perguntas.
Eu dei um sorriso.
- Tenho certeza de que vão.
- Você quer alguma coisa?
- Um café seria bom. Passei a noite inteira acordado é lá em casa ninguém me serviu da minha própria cafeteira.
- O café está saindo.
Ela e Lindell se levantaram e deixaram a sala. Alguns minutos mais tarde, um detetive de North Hollywood que eu não conhecia entrou com uma xícara de café. Ele
me disse para esperar ali e saiu.
Quando Rider e Lindell voltaram, percebi que havia mais anotações no bloco dela. Ela continuou conduzindo e foi a primeira a falar outra vez.
- Precisamos esclarecer algumas coisas primeiro - começou.
- Tudo bem.
- Você contou que, quando chegou, o agente Milton já estava
na sua casa.
- Isso mesmo.
Olhei para Lindell e depois de volta para Rider.
- Você falou que estava dizendo a ele que acreditava ter sido seguido até em casa quando a porta da frente foi arrombada pelos intrusos.
- Correto.
- Ele foi até o corredor investigar e foi imediatamente atingido por um tiro de escopeta, provavelmente disparado por Linus Simonson.
- Novamente correto.
- Antes de mais nada, o que o agente Milton estava fazendo em sua casa se você não estava lá?
312
313
Antes que eu pudesse falar, Lindell lançou uma pergunta.
- Ele tinha permissão para estar lá, não tinha?
- Ei, uma pergunta de cada vez - falei.
Olhei outra vez para Lindell e ele baixou os olhos para a mesa. Não conseguia me encarar. Pela sua pergunta, na verdade, mais uma afirmação disfarçada em interrogação,
julguei que Lindell estava revelando o que queria que eu dissesse. Naquele ponto, eu acreditava que estava me fazendo uma oferta de troca. Ele muito provavelmente
estava encrencado com o bureau pela ajuda em minha investigação. Por isso, agora tinha suas ordens: manter o FBI fora daquilo, ou haveria conseqüências para ele
e, possivelmente, para mim. Então, o que Lindell estava me dizendo era que, se eu contasse a história de uma maneira que o ajudasse a atingir seu objetivo - sem
me comprometer -, seria melhor para nós dois.
Na verdade, não me importava mais com o que aconteceria com a imagem póstuma de Milton, Eu achava que ele tinha recebido mais do que merecia. Ferrar com ele agora
seria um ato vingativo, e não queria me vingar de um morto. Tinha outras coisas a fazer e queria preservar minha capacidade de fazê-las.
Havia o agente especial Peoples e seu comando NIM, mas a relação entre as ações deles e as de Milton não eram evidentes. Eu tinha gravado Milton, não Peoples. Usar
um para tentar pegar o outro era um caminho difícil. Naquele momento, decidi deixar o morto descansar e viver para encarar mais um dia.
- O que o agente Milton estava fazendo na sua casa se você não estava lá? - repetiu Rider.
Olhei outra vez para ela.
- Ele estava esperando por mim.
- Para fazer o quê?
- Eu tinha dito a ele para me encontrar lá, mas me atrasei porque parei para comprar café no caminho de casa.
- Por que ele ia encontrar você tão tarde da noite?
- Porque eu tinha uma informação que ia esclarecer algumas coisas para ele.
Que informação era essa?
- Sobre como um terrorista envolvido em um caso dele tinha posto as mãos em uma nota de cem dólares que deveria estar entre o dinheiro do assalto ao set de filmagem
que eu estava investigando, uma investigação que me recomendaram abandonar. Contei a ele que tinha juntado as peças e descoberto que, na verdade, os casos não estavam
relacionados. Eu o convidei para ir ao escritório da minha advogada na mesma manhã que vocês iriam. Lá eu explicaria tudo para todo mundo. Mas ele não queria esperar,
por isso disse a ele que me encontrasse em casa.
- E então, você deixou uma chave para ele?
- Não deixei, não. Mas devo ter deixado a porta destrancada porque ele estava lá dentro quando cheguei. Acho que você poderia dizer que ele tinha permissão porque
eu o convidei para ir lá em casa, mas não disse exatamente que era para ele entrar. Ele meio que fez aquilo por conta própria quando viu que havia chegado antes
de mim.
- O agente Milton tinha vários aparelhos de escuta em miniatura nos bolsos do paletó. Você sabe algo sobre eles ou sobre por que Milton os levava?
Eu achava que ele devia ter pego aquilo na minha casa, mas não disse isso.
- Não tenho a mínima - falei. - Acho que só perguntando a ele.
- E sobre o carro dele? Foi encontrado estacionado a uma quadra ao norte da sua casa, na Woodrow Wilson. Na verdade, estava mais longe da sua casa que o carro usado
pelos quatro agressores. Sabe por que Milton teria estacionado tão longe da sua casa se tivesse sido convidado para ir lá?
- Na verdade, não. Como eu disse, acho que só ele sabia isso.
- Claro.
Percebi que ela estava ficando com raiva, seus olhos argutos. Parecia estar tentando ler nos olhares que eu dava para Lindell. Sabia que havia alguma jogada, mas
era inteligente o suficiente para não mencionar isso diante da câmera. Eu a havia ensinado bem.
- Está bem, vou dizer uma coisa, Harry. Você contoutodos os detalhes sobre o que aconteceu na noite passada, mas não como
314
eles se encaixam em qualquer coisa. Antes que a merda acertasse o ventilador, você convocou essa reunião gigante para hoje de manhã para explicar tudo para a gente.
Então, agora, vá em frente. Conte o que sabe.
- Quer dizer, desde o começo?
- Desde o começo. Balancei a cabeça.
- Certo, bem, acho que podemos dizer que tudo começou quando Ray Vaughn e Linus Simonson decidiram roubar o carregamento de dinheiro para o set de filmagem. Havia
alguma conexão entre eles. Uma antiga colega deles no banco disse que achava que Vaughn era homossexual e que Simonson tinha dito a ela que estava dando em cima
dele. Se foi Simonson que atraiu Vaughn para o esquema, ou o contrário, não sei, mas eles resolveram roubar o dinheiro. Planejaram tudo e então Simonson recrutou
seus quatro amigos para o trabalho pesado. Começou assim.
- E sobre a Angella Benton? - perguntou Rider.
- Já vou chegar lá. Sem contar aos outros, Vaughn e Linus resolveram que precisavam de um artifício para fazer com que a polícia achasse que o crime tinha origens
dentro da produtora de cinema, não do banco. Então eles a escolheram. Ela havia ido ao banco uma vez para levar documentos referentes ao empréstimo, por isso eles
sabiam que a investigação descobriria que ela tinha conhecimento do dinheiro. Eles a escolheram e provavelmente a vigiaram por alguns dias e então descobriram quando
estaria mais vulnerável e qual seria o momento apropriado. Ela foi morta e um deles jogou sêmen sobre o corpo para que, num primeiro momento, parecesse um crime
sexual e isso não alterasse os planos da produtora de filmar as cenas com dinheiro de verdade. Isso só viria à tona depois. Depois do assalto.
- Então você está dizendo que ela foi só um esquema? indagou Rider, abatida. - Tiraram a vida dela só porque isso se encaixava no plano?
Balancei a cabeça desanimado.
- Que mundo lindo, hein?
Está bem, continue. Os dois fizeram isso?
315
- Não sei, talvez. Simonson tinha um álibi para aquela noite mas ele foi confirmado por Jack Dorsey, e vamos chegar a ele em um minuto. Meu palpite é que eles fizeram
isso juntos. Seriam necessários dois para dominá-la totalmente sem luta.
- O sêmen - pensou Rider. - Podemos ver se combina com algum deles.
Sacudi a cabeça.
- Tenho a sensação de que não vai combinar com nenhum deles.
- Então de quem veio?
- Talvez a gente nunca saiba. Lembra da prova do borrifo? Concluímos que o sêmen foi levado para a cena e jogado sobre o corpo. Quem sabe onde eles conseguiram.
Talvez de algum deles, mas, se fossem inteligentes, não teriam usado o próprio. Por que deixar uma ligação direta com o crime?
- Então eles simplesmente chegaram para um estranho e pediram a ele para gozar num copinho? - perguntou Lindell, incrédulo.
-- Não seria muito difícil de conseguir - expicou Rider. Entre em qualquer beco de Hollywood e você encontra uma camisinha cheia. E se Vaughan era homossexual,
pode ter vindo de algum de seus parceiros, que sequer saberia disso.
Balancei a cabeça. Eu estava pensando a mesma coisa.
- Exatamente. E provavelmente foi por isso que acabou morto. Foi traído por Simonson, que mandou que os comparsas acabassem com ele durante o assalto. Isso significaria
mais dinheiro para eles e eliminaria a ligação com o caso Benton.
- Meu deus, que filhos da puta de sangue frio - não se conteve Lindell.
Eu sabia que ele estava pensando em Marty Gessler e seu destino desconhecido.
- Além disso, Simonson fez com que o golpe e o uso futuro do dinheiro ficassem mais seguros trocando o relatório de números de série que ele tinha feito com outra
funcionária do BankLA. Acredito que ele tenha desmarcado as notas.
- Como? - perguntou Rider.
316
- Primeiro, pensei que talvez tivesse simplesmente trocado os números no relatório que ele e a outra funcionária fizeram na caixa-forte. Mas acho que isso teria
sido muito arriscado, porque ela não estava na jogada e poderia resolver fazer mais uma conferência dos números. Então acho que o que ele fez foi criar um outro
relatório, falso, no seu computador. Ele o imprimiu, falsificou a assinatura da colega e entregou ao vice-presidente para assinar. De lá, seguiu para a seguradora
e depois para a polícia, após o assalto, e acabou nas mãos do FBI.
- Você me pediu que levasse o original para a reunião que deveríamos ter de manhã - quis saber Rider. - Por quê?
- Você sabe o que é tremor do falsário? Algo que pode ser percebido em uma assinatura falsificada por sobreposição. Ele copiou a assinatura original da colega no
relatório verdadeiro. Na fotocópia que ele entregou, notei marcas de hesitação. A assinatura dela deveria ser um rabisco suave e ininterrupto. Mas parece que quem
quer que tenha assinado aquela folha não tirou a caneta do papel. Parava e recomeçava praticamente depois de cada letra. A cópia já denuncia, e acho que o original
vai mostrar isso sem sombra de dúvida.
- Como deixaram de ver isso? Eu dei de ombros.
- Talvez não tenham deixado.
- Dorsey e Cross?
- Acho que Dorsey. Não sei sobre Cross. Cross me ajudou. Na verdade, ele me telefonou e foi isso que deu início a tudo.
Lindell inclinou-se para a frente. Estávamos chegando na parte sobre Marty Gessler e ele queria entender tudo direitinho.
- Então Simonson entrega um relatório com números inventados. Depois seus amigos vão lá, roubam o dinheiro e matam Vaughn. De propósito.
- Isso mesmo.
- E o Simonson? Ele também levou um tiro. Eles estavam tentando se livrar dele, também?
- Não, isso não devia ter acontecido. Não segundo Fazio. l elo menos era o que ele estava me dizendo na noite passada antes de ser morto. Parece que o fato de Simonson
ter sido baleado foi
317
apenas um golpe de sorte. O ricochete. Se Banks acordar com o cérebro intacto, talvez possa contar a vocês sobre isso. Tenho uma sensação de que ele vai querer
falar. Vai querer dividir a culpa.
- Não se preocupe. Se ele acordar, vamos estar lá. Mas, segundo informações do hospital, é uma grande incógnita.
- O importante sobre aquele ricochete é que, na verdade, ele ajudou. Deu a Simonson uma boa desculpa para deixar o banco. Sem suspeitas. Então ele escondeu a compra
e a reforma dos bares por trás de um acordo com o banco. A verdade é que ele não ganhou o suficiente no acordo nem para comprar uma geladeira.
- Como você sabe disso?
- Eu sei, só isso.
- Está bem, vamos voltar por um minuto ao assalto - propôs Lindell. - Então, além de Simonson levar chumbo no rabo, o assalto corre como o planejado. Todos os tiras...
- Não exatamente - corrigiu Rider. - Harry estava lá. Ele acertou um dos ladrões.
Eu concordei com a cabeça.
- E parece que ele morreu na van durante a fuga. Simonson me contou que os outros o levaram em um barco, ou algo assim, e fizeram seu funeral no mar. O nome dele
era Cozy. Eles deram o nome de um dos bares em homenagem a ele.
- Tudo bem - impacientou-se Lindell. - Mas quando a poeira disso tudo assenta, o que a polícia tem é a morte de Angella Benton e uma lista falsa de números de série
que ninguém sabe ser falsa. Então se passam nove meses e um dos números de série é identificado quando Marty Gessler o põe no computador.
Balancei a cabeça. Lindell sabia onde isso ia chegar.
- Espere um instante - disse Rider. - Não estou entendendo essa parte.
Lindell e eu passamos cinco minutos explicando a ela o programa de computador de Marty Gessler que rastreava números de série, e o que aquela descoberta significava.
- Entendi - concluiu Rider. - Ela foi a primeira a perceber que havia algo errado. Ela descobriu um número que não
318
funcionava porque a nota de cem dólares em questão já estava trancada e guardada como prova. Não podia ter sido roubada no assalto ao set de filmagem.
- Isso mesmo - confirmei. - Um dos números que o Simonson inventou calhou de ser o de uma nota que já tinha sido registrada. A mesma coisa aconteceu mais tarde quando
prenderam Mousouwa Aziz na fronteira. Uma das notas de cem que ele levava batia com a lista falsa de Simonson. Isso fez com que Milton e os gorilas da Segurança
Nacional entrassem no caso e desse essa merda toda. A verdade era que não havia qualquer ligação entre os dois casos.
O que significava que eu tinha passado a noite trancado pelos federais por nada, e Milton tinha sido morto enquanto perseguia uma coisa que não valia nada. Uma busca
à-toa. Tentei não pensar sobre isso e segui com a história.
- Quando Marty Gessler viu o problema, ligou para Jack Dorsey porque o nome dele estava no relatório quando ele circulou por outros órgãos de segurança. A coisa
começou aí.
- Você está dizendo que o Dorsey, então, somou dois mais dois e chegou ao Simonson? - quis saber Lindell. - Talvez ele soubesse sobre a falsificação ou sobre mais
alguma coisa. Mas sabia tudo do que precisava. Ele procurou o Simonson para entrar na jogada.
Percebi que todos estavam balançando a cabeça. A história batia.
- Dorsey estava endividado - acrescentei. - O investigador da seguradora fez pesquisas de rotina sobre a situação financeira de todos os tiras envolvidos. Dorsey
estava com dívidas até o pescoço, tinha dois filhos na faculdade e dois que ainda iriam entrar.
- Todo mundo tem problemas financeiros - desabafou Rider com raiva. - Isso não é desculpa.
Isso fez com que todos ficássemos em silêncio por um bom temPO, e então eu recomecei a história.
- Naquele momento, havia apenas um problema.
A agente Gessler - completou Rider. - Ela sabia demais. Tinha que sumir.
319
Rider nada sabia sobre o relacionamento de Lindell com Gessler, e Lindell pouco fez para revelar isso. Só ficou sentado quieto, o olhar baixo. Eu prossegui com
a história.
- Meu palpite é que Simonson e seus cúmplices foram enrolando Dorsey enquanto cuidavam do problema de Gessler. Dorsey sabia o que eles tinham feito, mas o que podia
fazer ou falar sobre isso? Ele estava envolvido demais. Então Simonson cuidou dele no Nat's. Cross e o bartender foram só fachada.
Rider apertou os olhos e sacudiu a cabeça.
- O que foi? - perguntou Lindell.
- Para mim, não bate - respondeu ela. - Há algo que não funciona aí. com Gessler. Ela desaparece sem deixar uma pista. Um trabalho muito limpo. Já se passaram três
anos e quem sabe onde está o corpo?
Eu estava agindo de modo servil por causa de Lindell, mas tentava não demonstrar.
- Mas com Dorsey, é um tiroteio de filme de faroeste. Dorsey, Cross, o bartender. Dois estilos completamente diferentes. Um limpo como água, o outro um banho de
sangue.
- Bem - comecei -, com Dorsey, eles quiseram que se parecesse com um assalto que tinha dado errado. Se ele simplesmente desaparecesse, então obviamente iriam rever
seus casos antigos. Simonson não queria isso. Então orquestrou aquela chacina para que a investigação achasse que tinha sido um assalto.
- Ainda não me convenceu. Acho que são diferentes. Olha, não me lembro de todos os detalhes, mas Marty Gessler não desapareceu quando estava dirigindo de volta para
casa pelo Sepulveda Pass?
- Isso mesmo. Alguém bateu em sua traseira e ela encostou o carro.
- Espere aí. Ela era uma agente treinada e estava armada. Você quer me dizer que Simonson e esses sujeitos fizeram com que parasse com uma batida na traseira do
carro e então acabaram com ela? Não, gente. De jeito nenhum. Não sem lutar. Não sem que
320
alguém visse alguma coisa. Acho que ela parou porque estava se sentindo segura. Ela parou para um policial.
Ela apontou para mim e balançou a cabeça quando disse a última frase. Lindell deu um soco forte na mesa. Rider o havia convencido. Eu tinha defendido minha teoria,
mas agora via falhas nela. Comecei a achar que Rider podia estar certa.
Percebi que Rider olhava para Lindell. Estava finalmente percebendo a energia.
- Você a conhecia, não conhecia? - perguntou ela. Lindell apenas balançou a cabeça em resposta. Então ergueu os
olhos para me encarar.
- E você estragou tudo, Bosch - rosnou ele.
- Eu estraguei? Do que você está falando?
- com aquela sua proeza da noite passada. Entrando lá como se fosse a porra do Steve McQueen. O que você estava pensando, que eles iam ficar tão assustados que
iriam marchando direto para o Parker Center para se entregar?
- Roy - quis interromper Rider -, acho que a gente devia...
- Você queria provocá-los, não queria? Queria que eles fossem atrás de você.
- Isso é loucura - falei com calma. - Quatro contra um? A única razão para eu ainda estar vivo e conversando com você é porque vi que eles estavam me seguindo,
e porque Milton os distraiu por tempo suficiente para que eu conseguisse sair da casa.
- E, é isso mesmo. Viu que estavam seguindo você porque procurou por isso, e você procurou por isso porque queria que acontecesse. Você estragou tudo, Bosch. Se
aquele cara no hospital não acordar com um cérebro em condições, então nunca vamos saber o que aconteceu com Marty ou onde...
Ele parou antes que sua voz se embargasse. Parou de falar, mas não de me encarar.
- Gente - interveio Rider com tranqüilidade -, vamos dar um tempo aqui. Vamos parar de questionar os motivos e com as acusações. Todos aqui queremos a mesma coisa.
Lindell, enfático, sacudiu a cabeça devagar.
321
- Não, não Harry Bosch - respondeu ele devagar, os olhos ainda nos meus. - É sempre só o que ele quer. Ele sempre foi um investigador particular, mesmo quando tinha
um distintivo.
Olhei de Lindell para Rider. Ela nada falou, mas baixou seu olhar dos meus olhos, e o movimento a denunciou. Vi que ela concordava.
Capítulo 42
Já era de manhã quando cheguei em casa. O lugar ainda era um enxame de atividade policial e da imprensa, e a polícia não me deixou entrar. A casa e o desfiladeiro
formavam uma cena de crime importante e por isso sua custódia fora requisitada. Disseram que eu tentasse outra vez em um ou dois dias. Não me deixaram nem entrar
para pegar roupas ou qualquer outra coisa. Eu era estritamente persona non grata. Pediram que me afastasse. A única concessão que obtive foi o carro. Dois tiras
uniformizados - Hurwitz e Swanny, que tinham pego a tarefa preciosa e trabalhosa - abriram espaço para mim por entre os veículos de imprensa e da polícia. Eu saí
de ré com a Mercedes da garagem e fui embora.
A descarga de adrenalina que acompanhou a experiência de quase-morte da noite anterior tinha se dissipado há muito tempo. Estava exausto, mas não tinha para onde
ir. Dirigi sem rumo pela Mulholland até chegar ao Laurel Canyon Boulevard, onde virei à direita e entrei no Vale.
Comecei a perceber aonde estava indo, mas sabia que era cedo demais. Quando cheguei ao Ventura, entrei outra vez à direita e parei no estacionamento na Dupar's.
Decidi que precisava de algo de alta octanagem, e café com panquecas seria perfeito. Antes de sair do carro, liguei o telefone. Disquei para os números que tinha
de Janis Langwiser e Sandor Szatmari. Eles não atenderam e deixei
324
recados dizendo que a reunião da manhã tinha sido cancelada por circunstâncias além do meu controle.
A tela do telefone mostrava que havia mensagens esperando por mim. Liguei para ouvir os quatro recados deixados ao longo da noite por Keisha Russell, a repórter
do Times. Ela começou tranqüila e preocupada com meu bem-estar, queria falar comigo quando eu pudesse para saber se eu estava bem. Na altura da terceira mensagem,
a voz dela tinha assumido um tom mais agudo de urgência, e na quarta ela exigia que eu cumprisse minha parte no acordo no qual eu prometera falar com ela se acontecesse
algo no caso em que eu estava trabalhando.
- É óbvio que agora aconteceu alguma coisa, Harry. Você apagou quatro na Woodrow Wilson. Ligue para mim como você prometeu que faria.
- Claro, querida - falei enquanto apagava a mensagem.
O último recado era de Alexander Taylor, o campeão de bilheteria. Sua voz tinha um
tom senhorial. Ele queria que eu soubesse que aquela história era dele.
- Sr. Bosch, vi que o senhor está em todos os noticiários. Imagino que aquela sujeira nas colinas na noite passada está ligada ao meu assalto. Havia quatro ladrões
e as notícias dizem que há quatro homens mortos em sua propriedade. Quero que saiba que a minha oferta ainda está valendo. Mas vou dobrá-la. Cem mil pela história.
O teto está aberto a negociações e podemos conversar sobre isso quando você aparecer. vou deixar o número particular de meu assistente. Ligue de volta. Estou esperando.
Ele deixou um número, mas não me preocupei em anotar. Pensei no dinheiro por cinco segundos inteiros e então apaguei a mensagem e fechei o telefone.
Quando entrei no restaurante, pensei no que eram as circunstâncias além do meu controle e no que Lindell dissera ao fim do interrogatório em North Hollywood. Pensei
sobre combater dragões e no que fora dito sobre mim no passado, e no que eu dissera a
Poples naquele reservado de restaurante apenas algumas noites antes. Eu me
perguntei se uma queda suave no abismo era diferente
325
de alguma maneira, daquela espécie de mergulho de cisne dado por Milton.
Sabia que teria de pensar sobre isso e sobre os motivos por trás de minhas ações nas últimas dez horas. Mas logo decidi que isso teria de esperar. Ainda havia um
mistério a resolver e, assim que eu me reabastecesse, iria atrás dele.
Sentei ao balcão e pedi o especial número dois sem sequer olhar para o cardápio. A garçonete com os quadris largos serviu meu café e estava prestes a passar o pedido
pela janelinha que dava para a cozinha quando alguém ocupou o banco ao lado do meu e disse:
- Também vou querer café.
Reconheci a voz, virei-me e vi Keisha Russell sorrindo para mim enquanto botava a bolsa no chão, entre nós dois. Ela havia me seguido desde as colinas.
- Eu devia ter adivinhado.
- Harry, se você não quer ser seguido, tudo o que precisa fazer é retornar suas ligações.
- Recebi seus recados há cinco minutos, Keisha.
- Bem, agora você não precisa me ligar de volta.
- Não vou falar com você. Ainda não.
- Harry, sua casa está parecendo um campo de batalha. Corpos por todos os lados. Você está bem?
- Estou sentado aqui, não estou? Estou bem. Mas ainda não posso falar com você. Não sei como isso tudo vai se desenrolar e não vou dizer nada que saia nos jornais
e possa ir contra a linha oficial. Isso é suicídio.
- Quer dizer que você não quer me contar a verdade pois eles podem revelar algo diferente.
- Keisha, você me conhece. vou falar quando puder. Por que não me deixa tomar meu café e comer em paz, agora?
- Só responda uma pergunta. Não é nem mesmo uma pergunta. Apenas confirme para mim que o que quer que tenha acontecido lá em cima tem alguma relação com o que você
queria saber quando me ligou na primeira vez. Sobre Martha Gessler.
Sacudi a cabeça em sinal de frustração. Sabia que não conseguiria livrar-me dela sem lhe dar alguma coisa.
326
- Na verdade, não posso confirmar, e é verdade. Mas se eu der a você algo que ajude, você me deixa em paz até a hora em que eu puder falar sobre isso?
Antes que ela respondesse, a garçonete jogou um prato na minha frente. Olhei para a pilha de panquecas com manteiga, um ovo frito e duas fatias de bacon formando
um X por cima. Então ela botou um pequeno vidro de xarope de bordo na minha frente. Eu o peguei e comecei a derramar xarope por cima de tudo.
- Meu Deus - exclamou Russell. - Se você comer isso, não tenho certeza de que vá sobreviver para falar comigo. Você está se matando, Harry.
Olhei para a garçonete que estava ali de pé fazendo minha conta. Dei a ela um sorriso o-que-se-há-de-fazer e ergui os ombros.
- Você vai pagar o café dela? - perguntou.
- Claro.
Ela botou a conta em cima do balcão e se afastou. Olhei para Russell.
- Por que você não diz isso mais alto da próxima vez?
- Desculpe, Harry, mas não quero que você fique gordo, velho e feio. Você é meu amigo. Quero que viva muito tempo.
Eu vi através de tudo aquilo. Ela escondia os motivos do mesmo jeito que as balconistas que eu vira na noite anterior escondiam seus mamilos.
- Então temos um trato? Eu conto uma coisa e você vai embora e me deixa sozinho?
Ela deu um gole no café e sorriu.
- Fechado.
- Vá ver os recortes sobre o caso Angella Benton. Ela apertou os olhos. Não se lembrava dele.
- Você não se importou muito com o caso no início, então ele ficou grande quando descobriram uma ligação com o assalto ao set de filmagens lá em Selma. Eidolon
Productions. Isso diz alguma coisa?
Ela quase caiu do banco.
- Porra, você deve estar brincando - respondeu, um pouco alto demais. - Os quatro mortos são os caras?
327
- Não exatamente. Três deles são os caras. Mais um que levaram para o hospital.
- Então quem é o quarto?
- Já dei o que tinha para dar, Keisha. Agora eu vou comer. Voltei-me para meu prato e comecei a fatiar minha comida.
- Legal! - exultou ela. - Isso vai ser grande.
Como se os quatro corpos na Cahuenga Pass já não fossem algo grande. Comi o primeiro pedaço e o xarope me acertou como uma bala de açúcar.
- Ótimo - falei.
Ela abaixou-se para pegar a bolsa e começou a se levantar.
- Tenho de ir, Harry. Obrigada pelo café.
- Só mais uma coisa.
Dei outra mordida, virei-me para ela e comecei a falar com a
boca cheia.
- Dê uma olhada na Los Angeles Magazine de sete meses atrás. Eles fizeram uma reportagem sobre esses quatro sujeitos donos de todos os bares quentes de Hollywood.
Eles são chamados de reis da noite. Dê uma olhada.
Os olhos dela se arregalaram.
- Você está brincando.
- Não, dê só uma olhada.
Ela inclinou-se e me deu um beijo no rosto. Nunca fizera aquilo quando eu tinha um distintivo.
- Obrigada, Harry. Eu ligo para você.
- Tenho certeza que sim.
Observei-a deslizar veloz pelo restaurante até sair. Voltei-me para meu prato. O ovo estava muito mole e, quando o cortei, ficou a maior mistura. Mas naquele momento
tinha o gosto da melhor coisa que eu já comera.
Finalmente, sozinho, considerei a questão que Kiz Rider levantara durante o interrogatório sobre como o estilo do desaparecimento de Marty Gessler era tão diferente
do massacre no Nat's. Eu agora tinha certeza de que Rider estava com a razão. Os crimes tinham sido planejados, se não levados a cabo, por pessoas diferentes.
- Dorsey - falei em voz alta.
328
Talvez alta demais. Um homem a três bancos de distância virou-se e olhou para mim até que eu o encarasse e, assim, o fizesse voltar para sua xícara de café.
A maioria dos meus registros e anotações estavam na casa e não-acessíveis. Tinha o inquérito no Mercedes mas ele nada continha do caso Gessler. De memória trabalhei
nos detalhes do desaparecimento da agente do FBI. O carro saiu do aeroporto. A utilização do cartão de crédito perto do deserto para comprar mais gasolina do que
o carro dela podia comportar. Tentei unir esses fatos sob o novo ângulo de Dorsey. Era difícil juntar as coisas. Dorsey tinha trabalhado com crimes, do lado da
lei, por quase trinta anos. Era esperto demais, tinha muita experiência para deixar uma pista como aquela.
Mas, quando terminei meu prato, achei que tinha algo. Algo que batia. Olhei em volta para me assegurar que nem o homem a três bancos nem qualquer outra pessoa estivessem
olhando para mim. Derramei um pouco mais de xarope no meu prato e então enfiei meu garfo nele e comi. Estava prestes a dar outra garfada quando os quadris largos
da garçonete surgiram diante de mim.
- Terminou?
- Hum, já, sim, claro. Obrigado.
- Mais café?
- Você tem copo para viagem?
- Claro.
Ela levou o prato e o xarope. Pensei nos meus próximos movimentos até que ela voltasse com o café e refizesse minha conta. Deixei dois dólares sobre o balcão e
levei a conta até o caixa, onde notei que havia expostos para a venda vidros do xarope do restaurante. O caixa percebeu meu olhar.
- Quer um xarope para levar?
Fiquei tentado, mas resolvi ficar só com o café.
- Não. Acho que já tive açúcar suficiente por hoje. Obrigado.
- O senhor precisa de açúcar. O mundo lá fora é muito amargo. Concordei com ela, paguei minha conta e fui embora com meu
copo de café sem açúcar. De volta ao carro, abri o telefone liguei para o celular de Roy Lindell.
329
- Roy falando.
- Aqui é o Bosch. Você ainda conversa comigo?
- O que você quer, desculpas? Vá se foder, não vou me desculpar.
- Não, eu posso viver sem suas desculpas, Roy. Então vá se foder, também. Quero saber se você ainda quer encontrá-la.
Não houve necessidade de usar um nome.
- O que acha, Bosch?
- Então, está bem.
Pensei por um instante sobre como fazer aquilo.
- Bosch, ainda está me ouvindo?
- Claro. Olhe, tenho de ver alguém agora. Você pode me encontrar em duas horas?
- Duas horas. Onde?
- Você sabe onde fica Bronson Canyon?
- Acima de Hollywood, certo?
- Isso, Griffith Park. Me encontre no fim do Bronson Canyon. Duas horas. Se não estiver lá, não vou esperar.
- O que tem lá em cima? O que você conseguiu?
- Por enquanto, só um palpite. Você vai me encontrar? Fez-se uma pausa.
- Eu vou estar lá, Bosch. O que preciso levar? Boa pergunta. Tentei pensar no que iríamos precisar.
- Traga lanternas e um alicate de pressão. Acho que deve trazer uma pá, também, Roy.
Isso provocou outra pausa antes que ele respondesse.
- O que você vai levar?
- Por enquanto, só meu palpite.
- O que vamos fazer lá em cima?
- Eu digo quando nos encontrarmos. vou mostrar a você. Então, desliguei o telefone.

Capítulo 43
A porta da garagem da casa de Lawton Cross estava fechada. A van estava estacionada na entrada de carros, mas não havia outros veículos. Kiz Rider ainda não tinha
chegado lá. Ninguém tinha. Parei atrás da van, saí e bati na porta da frente. Não demorou para Danny Cross atender.
- Harry - exclamou ela. - Estávamos vendo tudo na TV. Você está bem?
- Como nunca.
- Foram eles? Os que fizeram isso com Law?
Seus olhos tinham uma aparência suplicante. Balancei a cabeça.
- Foram eles. O que estava no bar no dia, o que atirou em Law... arranquei o rosto dele fora com sua própria escopeta. Isso deixa você feliz, Danny?
Ela apertou os lábios em um esforço para segurar as lágrimas.
- A vingança é doce, não? Como xarope para panquecas. Estendi a mão e a pousei sobre seu ombro, mas não para
confortá-la. Empurrei-a com suavidade para o lado e entrei pela porta. Em vez de dirigir-me à esquerda, para o quarto de Lawton Cross, fui para a direita. Entrei
na cozinha e achei a porta da garagem. Fui até os aquivos em frente ao Malibu e tirei a pasta do caso Antônio Markwell, o seqüestro e assassinato que levaram Cross
e Dorsey para o departamento.
332
Voltei para a casa e entrei no quarto. Não sabia aonde Danny tinha ido, mas seu marido estava esperando por mim.
- Harry, você está em todos os canais da TV - comentou ele. Olhei para a tela da televisão. Havia uma vista da minha casa
feita de um helicóptero. Podia ver todos os carros oficiais e da imprensa na rua em frente. Via os plásticos negros que cobriam os corpos nos fundos. Bati no botão
de ligar e desligar com o lado do meu punho e a tela apagou-se. Virei-me para Cross e joguei a pasta sobre Markwell no seu colo. Ele não podia se mover. Tudo o que
pôde fazer foi baixar os olhos até ela e tentar ler a etiqueta.
- Qual a sensação? Você fica de pau duro quando vê o que fez? No seu caso, um pau duro imaginário?
- Harry, eu...
- Onde está ela, Law?
- Onde está quem? Harry, não sei do que você...
- Claro que sabe. Sabe exatamente do que estou falando. Ficou aqui sentado como um boneco mas o tempo todo estava puxando os cordões. Meus cordões.
- Harry, por favor.
- Não venha com essa de "Harry, por favor". Você queria se vingar deles e me usou para isso. Bem, parceiro, você conseguiu. Cuidei de todos eles, como você planejou.
Como você esperava. Você jogou comigo direitinho.
Ele ficou em silêncio. Os olhos estavam baixos, afastados dos meus.
- Agora tem uma coisa que eu quero de você. Quero saber onde você e Jack esconderam Marty Gessler. Quero levá-la para casa.
Ele permaneceu em silêncio, os olhos longe dos meus. Eu me abaixei e peguei a pasta de seu colo. Eu a abri na escrivaninha e comecei a folhear os documentos.
- Sabe, não tinha visto isso até que alguém a quem eu ensinei o trabalho notou - falei enquanto examinava a pasta. - Foi ela quem disse que tinha de ter sido um
tira. Era a única explicação para Gessler ter sido pega com tanta facilidade. E ela estava certa.
Aqueles quatro delinqüentes não eram duros o suficiente.
333
Fiz um gesto na direção da tela vazia da TV.
- Quero dizer, olhe o que aconteceu quando eles foram atrás de mim.
Encontrei na pasta o que eu estava procurando. Um mapa do Griffith Park. Comecei a desdobrá-lo. Seus vincos se racharam e rasgaram. Tinha ficado dobrado na pasta
talvez por cinco anos. O local onde o corpo de Antônio Markwell fora encontrado em Bronson Canyon estava marcado.
- Quando comecei a seguir nessa direção, comecei a ver. A gasolina sempre foi um problema. Alguém usou o cartão dela para comprar mais gasolina do que cabia no carro
dela. Isso foi um erro, Law. Um grande erro. Não comprar gasolina. Isso era parte do plano para despistar. Mas comprar aquela quantidade. O FBI achou que talvez
tivesse sido um caminhão, que estavam procurando por um caminhoneiro. Mas agora estou pensando no Crown Victoria. O modelo de interceptação policial que fazem para
todos os departamentos. Carros com tanques de gasolina com capacidade extra para que você não seja pego em pane seca durante uma perseguição.
Tinha aberto o mapa com delicadeza. Ele mostrava as muitas estradas cheias de curvas e trilhas do grande parque na montanha. Mostrava a estrada pública que subia
pelo Bronson Canyon e então a estrada de uso exclusivo dos bombeiros que seguia mais para cima entrando no terreno rochoso. Mostrava a área de cavernas e túneis
deixada para trás quando o cânion deixou de ser uma pedreira, sua massa de rocha esmigalhada e usada em estradas de ferro por todo o Oeste. Botei o mapa no colo
de Cross, por cima de seus braços mortos.
- Do jeito que imagino, vocês a seguiram desde Westwood. Então, você a fez parar em um ponto isolado. Botou a luz azul no teto do seu Crown Victoria e ela pensou:
Sem problemas, são tiras. Mas então você a botou dentro da mala daquele carrão com o tanque de gasolina grande. Um de vocês levou o carro dela até o aeroporto e
o outro seguiu para pegá-lo lá. Provavelmente, vocês deram ré no carro dela contra outro carro ou uma pilastra ou qualquer coisa em algum lugar. Um belo toque para
ajudar a despistar. Então vocês vão para o deserto e usam o cartão de crédito. Outra vez, uma
334
tentativa de despistar. Aí vocês voltam e a levam para o verdadeiro local da desova. Quem de vocês fez isso, Law? Qual dos dois tirou dela tudo o que tinha ou viria
a ter?
Não esperava uma resposta e não obtive. Apontei para o mapa.
- Essa é a minha aposta. Vocês foram para um lugar com o qual estavam familiarizados, um local onde ninguém estaria procurando por Marty Gessler porque todos estariam
procurando no deserto. Vocês a queriam escondida, mas queriam ter acesso a ela, certo? Iriam usá-la para chegar a eles. Marty e seu computador. A conexão estava
naquela caixa. Se encontrassem o corpo e a caixa, iriam fazer a ligação e acabariam batendo na porta de Linus Simonson.
Fiz uma pausa para dar a ele uma chance de protestar, para me mandar embora ou me chamar de mentiroso. Mas não fez aquilo. Não disse uma palavra.
- Tudo parecia funcionar - falei. - E então naquele dia no Nat's vocês iam repartir a bolada. Certo? Apertar mãos e dividir a riqueza? Só que Linus Simonson tinha
outros planos. Parece que ele não queria dividir nada e iria correr os riscos com o computador de Gessler. Isso deve ter chocado vocês. Lá estavam os dois, esperando,
provavelmente já contando a grana. Então ele chega e abre fogo contra vocês... Acho que você devia ter percebido o que ia contecer, Law.
Inclinei-me para a frente e bati no mapa com um dedo.
- Bronson Canyon. Todos aqueles túneis e cavernas. Onde você encontrou o corpo.
Meus olhos ergueram-se do mapa.
- Esse é meu palpite. As estradas que sobem foram interditadas, mas vocês dois tinham as chaves, não tinham? Do caso do garoto? Vocês guardaram aquela chave e então
ela serviu para alguma coisa. Onde está Marty Gessler?
Cross finalmente ergueu o olhar até mim e falou:
Olhe o que fizeram comigo. Eles mereceram o que aconteceu.
Eu concordei com um aceno de cabeça. E você também mereceu. Onde ela está?
335
Os olhos dele se dirigiram para a televisão vazia. Ficou em silêncio. A raiva aflorava dentro de mim. Pensei em Milton apertando os tubos de ar. Eu me
transformara em um monstro, tornando-me a coisa que eu caçava. Dei um passo na direção da sua cadeira e olhei para ele com olhos cheios de uma raiva sombria. Aos
poucos ergui
minhas mãos na direção de seu rosto.
- Conte a ele.
Virei-me e Danny Cross estava na porta. Não sabia há quanto tempo ela estava ali ou o quanto ela ouvira. Não sabia se era ou não uma história nova para ela. Tudo
o que sabia era que ela havia me trazido de volta da beira do abismo. Virei-me e olhei novamente para Lawton Cross. Os olhos dele estavam na esposa e o rosto gelado,
de alguma forma, assumiu uma expressão de tristeza e aflição.
- Conte a ele, Lawton - insistiu ela. - Ou não fico mais do seu lado.
Um olhar de medo tomou conta de seu rosto imediatamente. Então houve súplica em seus olhos.
- Você promete ficar comigo?
- Prometo.
Os olhos dele caíram até o mapa aberto sobre a cadeira
- Você não precisa disso - disse ele. - Só vá até lá. Entre na caverna grande e então pegue o túnel à direita. Ele leva a um local aberto. Alguém contou para a gente
que chamam aquilo de Caldeirão do Diabo. Enfim, foi lá que o encontramos. Ela está lá, agora.
Ele não podia mais me encarar e afastou o olhar, de volta para
o mapa.
- Onde eu procuro, Lawton?
- Onde estava o garoto. A família marcou o local. Você vai saber quando chegar lá.
Balancei a cabeça. Eu tinha entendido. Tirei o mapa dele devagar e dobrei-o outra vez. Olhei para ele enquanto fazia isso. Ele parecia acalmado, o rosto inexpressivo.
Tinha visto aquele olhar mil vezes antes nos olhos e rostos daqueles que confessavam. Dos que tiravam um peso das costas.
336
Nada mais havia a dizer. Guardei o mapa de volta na pasta e levei-o comigo quando saí da sala. Danny Cross ficou bem ao lado da porta, olhando para o marido lá dentro.
Eu parei quando passei por ela.
- Ele é um buraco negro. Vai sugar você e arrastá-la com ele.
Salve-se, Danny - recomendei.
- Como?
- Você sabe como.
Eu a deixei ali e saí. Entrei no meu carro e parti rumo ao sul, na direção de Hollywood e do segredo que as colinas tinham escondido por tanto tempo.
Capítulo 44

Ainda não tinha começado a chover, mas o céu estava tomado pelo ribombar baixo de trovões quando cheguei em Hollywood. Da auto-estrada, peguei a Franklin até Bronson
e então subi as colinas. Bronson Canyon tinha aparecido em mais filmes que eu provavelmente vira em toda a minha vida. Seu terreno acidentado e seus afloramentos
de rochas tinham sido o cenário de inúmeros westems e várias explorações espaciais de baixo orçamento. Tinha ido lá quando criança e durante alguns casos. Sabia
que, se você não tomasse cuidado, podia se perder nas trilhas e pedreiras abandonadas. As paredes de pedra começariam a assombrá-lo e logo em seguida todas pareciam
iguais. Você podia perder o rumo. O perigo estava naquela semelhança.
Peguei a estrada do parque até onde ela chegava na estrada dos bombeiros. A entrada para aquela extensão de terra e cascalho estava bloqueada por um portão de aço
com um cadeado. A chave daquela fechadura ficava com os bombeiros e com o departamento de cinema da cidade, mas graças a Lawton Cross eu sabia que havia outras
pessoas com ela.
Cheguei lá antes de Lindell e fiquei tentado a não esperar. Seria uma caminhada longa até as cavernas, mas minha raiva tinha se transformado em decisão e motivação.
Ficar sentado diante do portão trancado não era jeito de avivar aquelas chamas. Eu queria
338
subir as colinas e resolver tudo. Peguei o celular e liguei para ele para saber onde estava.
- Bem atrás de você.
Olhei pelo espelho. Ele estava saindo da última curva em um Crown Victoria dos federais. Aquilo me fez pensar em como ele iria reagir quando descobrisse que a última
pista que eu descobrira sempre estivera tão perto.
- Já estava na hora.
Desliguei e saí do Mercedes. Quando Lindell parou inclineime na janela dele.
- Trouxe o alicate de pressão?
Lindell olhou pelo pára-brisas para o portão.
- Para isso? Não vou cortar isso. Eles vêm para cima de mim se eu arrebentar o cadeado deles.
- Roy, achei que você era um agente federal poderoso. Me dê
o alicate, eu faço isso.
- E você pode resolver tudo depois? E só dizer a eles que tinha
um palpite.
Eu dei para ele um olhar na esperança de comunicar que agora eu estava trabalhando com mais que um palpite. Ele puxou a alavanca que abria a mala e eu fui lá atrás
e peguei o alicate de pressão provavelmente apanhado no almoxarifado do FBI. Ele ficou no carro enquanto eu fui até lá, cortei o cadeado e abri a porta. Passei pela
janela dele no caminho de volta até a mala.
- Não importam os meios, Roy - falei enquanto passava. Acho que estou começando a entender por que você não foi recrutado para esse esquadrão.
joguei a ferramenta na mala, fechei-a com uma batida e disse a
ele que me seguisse morro acima.
Dirigimos pela estrada sinuosa. O barulho que o cascalho fazia sob nossas rodas parecia a chuva que ainda chegaria. A subida fez uma curva de 180
graus e terminou diante da entrada do túnel principal. Uma abertura de cinco metros de altura cortada no depósito de granito do tamanho de um prédio de escritórios.
Estacionei ao lado de Lindell e o encontrei ao lado do porta-malas. Ele tinha trazido
339
duas pás e duas lanternas. Quando fui pegar a minha, ele botou a
mão em meu braço.
- Certo, Bosch, o que estamos fazendo?
- Ela está aqui. Vamos entrar e encontrá-la.
- Confirmado?
Olhei para ele e balancei a cabeça. Em minha vida eu disse a muita gente - um número muito grande para contar - sobre pessoas amadas que eles não veriam vivas outra
vez. Sabia que Lindell há muito tempo tinha perdido as esperanças em relação a Marty Gessler, mas a confirmação nunca é fácil de receber. Ou de dar.
- É, confirmado. Lawton Cross me contou.
Lindell balançou a cabeça e virou-se para longe do portamalas. Olhou para cima, para a crista da montanha de granito. Ocupei-me em pegar as ferramentas na mala e
conferir se meu celular estava com sinal. Por sobre o meu ombro, ouvi-o dizer:
- Vai chover.
- É - respondi. - Vamos.
Entreguei a ele uma lanterna e uma pá e nos aproximamos da
boca do túnel.
- Ele vai pagar por isso - garantiu Lindell.
Balancei a cabeça. Não me dei ao trabalho de contar a ele que Lawton Cross já estava pagando por aquilo todos os dias de sua
vida.
O túnel era grande. Shaquille O'Neal podia andar por ele com Wilt Chamberlain nos ombros. Não se parecia em nada
com os sistemas claustrofóbicos e insalubres por
onde eu tinha rastejado 35 anos antes. O ar lá dentro era fresco. Tinha um cheiro limpo. Penetramos uns três metros e acendemos as lanternas. Quinze metros depois,
o canal fazia uma curva e saímos do ângulo de visão da entrada. Lembrei-me das instruções de Cross e mantive a direita, movendo-me devagar.
Paramos quando chegamos a uma caverna central de onde saíam três túneis. Apontei minha lanterna para a terceira abertura e sabia que era o caminho. Então desliguei
a lanterna e disse a Lindell que fizesse o mesmo.
- Por quê? O que está acontecendo?
340
- Nada. Desligue só por um instante.
Ele a apagou e eu esperei um momento para que meus olhos se ajustassem à escuridão. Minha visão e o foco voltaram e pude identificar a silhueta das paredes de pedra
e as superfícies ásperas. Pude ver uma luz que nos seguiu quando entramos.
- O que foi? - perguntou Lindell.
- Eu queria ver a luz perdida.
- O quê?
- Você sempre pode encontrá-la. Mesmo no escuro, mesmo
sob a terra.
Liguei outra vez minha lanterna, com cuidado para não acertar o facho de luz no rosto de Lindell, e me dirigi para o terceiro túnel
de acesso.
Dessa vez precisamos nos agachar. Seguimos um atrás do outro à medida que o túnel ficava mais baixo e mais estreito. Fizemos uma curva para a direita e logo vimos
luz adiante. Uma abertura. Passamos por ela e saímos em um espaço aberto, um estádio de granito cinzelado décadas atrás. O Caldeirão do Diabo.
com o passar do tempo, o fundo do Caldeirão tinha se enchido com uma camada de restos de granito e poeira, espessa o suficiente para que arbustos criassem raízes
e um corpo fosse enterrado. Dorsey e Cross foram levados até lá, até o corpo de Antônio Markwell, e para lá voltariam com Marty Gessler. Eu percebi que estava me
perguntando por quanto tempo ela permanecera viva naquela noite, três anos antes. Fora empurrada pelo túnel sob a mira de um revólver, ou arrastada, já morta, para
o local de seu repouso final?
Nenhuma das resposta trazia qualquer conforto. Olhei para trás, para Lindell, quando ele saiu do túnel. Seu rosto estava de um branco fantasmagórico e achei que
ele devia estar se perguntando a mesma coisa.
- Onde? - perguntou.
Virei-me e examinei o fundo do Caldeirão. Então eu vi. Uma cruz branca pequena erguia-se entre os arbustos marrons e amarelos no meio do granito.
- Lá.
341
Lindell tomou a dianteira e andou rápido até a cruz. Ele a arrancou sem pensar duas
vezes e a jogou para o lado. Já estava enfiando a pá no chão quando eu cheguei
lá. Olhei para a cruz. Tinha sido feita com ripas de um caixote de madeira velho. No centro, havia a foto de um
menino numa foto de escola emoldurada com palitos de picolé. Antonio Markwell há muito já partira dessa vida e daquele lugar,
mas Sua família marcara o local como solo sagrado. Dorsey e Cross então o usaram porque
sabiam que o chão, ali, nunca seria mexido por invasores.
Abaixei-me e peguei a cruzinha. Apoiei-a contra a parede de granito e então comecei a trilhar com minha pá emprestada.
Não estávamos exatamente cavando com as pás. Apenas raspávamos a superfície, os
dois instintivamente relutantes em enfiar a ponta da lâmina fundo dedais.
Em menos de cinco minutOs nós a encontramos. Uma última raspada com a pá de Lindell revelOu um plástico grosso. Deixamos as ferramentas de lado e
nos abaixamos para olhar. O plástico era opaco, como uma cortina de banheiro. Mas através dele havia um contorno definido de mão.
Mão pequena e esbranquiçada. Mão de
mulher. - Certo, Roy, nós a encontramos. Talvez devêssemos sair fora
daqui, agora. Dar os telefonemas.
- Não, quero fazer isto...
Ele não terminou. BotOu a mão no meu peito e me empurrou para trás com gentileza.
EntãO agachou-se sobre o local e começou a cavar com as mãos,
os braços mOvendo-se depressa, como se achasse que estava em uma corrida contra o tempo, como se estivesse tentando salvá-la
antes que ela sufocasse.
- Eu sinto muito, Roy - disse às suas costas, mas não acho que ele me ouviu.
Em poucos minutos ele tinha descoberto quase todo o plástico.
Do rosto aos quadris dela. O plástico parecia ter retardado, mas não
impedido a decomposição. O ar no Caldeirão ganhou um cheiro
ançoso. Aproximei-me Outra vez e Olhei por sobre o ombro de
UndelL Vi que a agente Martha Gessler tinha sido
enterrada completamente vestida, Os braços cruzados a frente.
342
Apenas metade de seu rosto era vagamente visível através do plástico. O resto estava escondido no negrume de sangue nas dobras do plástico. Achei que eles deviam
tê-la matado com um tiro na cabeça.
- O computador dela está aqui - notou Lindell.
Dei um passo à frente para ver. Percebi o contorno de um laptop. Estava embrulhado no seu próprio plástico e fora deixado sobre o peito dela.
- Ele tem a conexão com Simonson - expliquei, apesar de, naquele momento, aquilo ser óbvio. - Era o trunfo deles. Queriam o corpo e o laptop em algum lugar onde
ficariam acessíveis. Eles achavam que aquilo iria manter Simonson e os outros na linha. Mas estavam errados.
Vi os ombros de Lindell começarem a tremer, mas ele não estava mais cavando.
- Me dê um minuto, Harry - pediu, a voz embargada.
- Claro, Roy. vou voltar até os carros e ligar para algumas pessoas. Esqueci o celular.
Soubesse ou não que eu tinha mentido, não fez objeções. Peguei uma das lanternas e comecei a voltar. Enquanto andava, ouvia o homem grande chorando às minhas costas.
O som de alguma maneira aumentou e se intensificou quando entrei no túnel. Era como se estivesse bem perto de mim. Como se estivesse dentro da minha cabeça. Andei
mais rápido. Cheguei à passagem principal e estava quase correndo ao chegar à entrada. Quando, finalmente, saí à luz, estava chovendo.
Capítulo 45
Na tarde seguinte peguei outro jato da Southwest de Burbank para Las Vegas. Ainda não podia voltar para minha casa. De qualquer maneira, não tinha certeza se algum
dia ia querer voltar. Eu ainda era peça-chave da investigação, mas ninguém me dissera especificamente para não deixar a cidade. Mas, na verdade, eles só dizem esse
tipo de coisas nos filmes.
Como sempre, o vôo estava cheio. As pessoas indo para as catedrais da ganância. Levando suas reservas de dinheiro e esperança. Aquilo me fez pensar em Simonson,
Dorsey, Cross e Angella Benton, e no papel que a ganância e a sorte tinham representado em suas vidas. Acima de tudo, pensei em Marty Gessler e no azar que ela tivera.
Deixada por mais de três anos naquele lugar para apodrecer. Ela havia apenas dado um telefonema para um tira, e aquilo trouxera sua destruição. Boas intenções. Confiança.
Que maneira de partir. Que mundo maravilhoso.
Dessa vez aluguei um carro na McCarran e lutei para passar pelo trânsito. O endereço que Lindell conseguira para mim a partir do número da placa que eu lhe dera
ficava no lado noroeste da cidade. Era longe, na periferia da cidade. Pelo menos por enquanto. Pertencia a uma casa grande e recém-construída. Tinha um estilo francês
provençal. Pelo menos, achei que tinha. Não sou muito bom nesse tipo de coisa.
344
A garagem para dois carros estava fechada, mas parado na entrada de carros circular estava um automóvel que não era o mesmo em que eu andara com Eleanor. Era um
Toyota, talvez com uns cinco anos de idade e muitos quilômetros rodados. Eu pude avaliar. Sou bom nesse tipo de coisa.
Estacionei o carro alugado na extremidade do círculo e desci devagar. Não sabia por quê, talvez achasse que, se demorasse, alguém abriria a porta e me convidaria
para entrar e todas as minhas apreensões seriam aliviadas.
Mas aquilo não aconteceu. Cheguei à porta e tive de tocar a campainha. Sabia que provavelmente teria de fazer alguma pressão para conseguir entrar. Num sentido figurado.
Ouvi o som da campainha lá dentro e esperei. Antes que eu precisasse tocar outra vez, a porta foi atendida por uma mulher, uma hispânica que parecia estar na casa
dos sessenta. Era pequena e tinha um rosto bom, mas desgastado. Parecia sentir muito pelas queimaduras da escopeta em meu rosto. Não usava uniforme, mas achei que
fosse a empregada. Eleanor com uma empregada. Não foi fácil imaginar aquilo.
- Eleanor Wish está?
- A quem devo anunciar, por favor?
O inglês dela era bom e tinha apenas um sotaque bem suave.
- Diga que é o marido dela.
Vi o alarme acender-se nos olhos dela e percebi que eu tinha sido estúpido.
- Ex-marido - consertei rápido. - Só diga a ela que é o Harry.
- Um momento, por favor.
Balancei a cabeça e ela fechou a porta. Ouvi-a trancá-la. Enquanto esperava, senti os efeitos do calor dentro das roupas, penetrando meu escalpo. A minha volta,
o sol brilhava forte. Passaram-se quase cinco minutos até que a porta se abrisse outra vez e Eleanor aparecesse.
- Harry, você está bem?
- Estou bem.
- Vi tudo na TV. Na CNN. Apenas assenti com a cabeça.
345
- É tão triste isso de Marty Gessler.
E então nada, por um bom tempo, antes que ela finalmente falasse.
- O que você está fazendo aqui, Harry?
- Não sei. Só queria ver você.
- Como descobriu esse lugar? Dei de ombros.
- Sou um detetive. Pelo menos, era.
- Você devia ter telefonado antes.
- Eu sei. Devia ter feito um monte de coisas, mas não fiz, Eleanor. Desculpe, está bem? Desculpe por tudo. Você vai me deixar entrar ou eu tenho de ficar aqui derretendo
ao sol?
- Antes de entrar, tenho de dizer que esse não é o jeito que eu queria fazer isso.
Senti um aperto descendo no meu peito quando ela deu um passo para trás e abriu a porta. Ela ergueu a mão em um gesto de boas-vindas e entrei em um hall com portas
em arco que levavam em três direções diferentes.
- Não é o jeito como você queria fazer o quê?
- Vamos até a sala de estar - pediu ela.
Pegamos o arco do meio e entramos em uma sala grande, elegante e bem mobiliada. Em um canto havia um piano que chamou minha atenção. Eleanor não tocava, a menos
que tivesse começado depois de me deixar.
- Você quer beber alguma coisa, Harry?
- Ah, água está bem. Lá fora está muito quente.
- Normalmente é assim. Espere aqui que já volto. Balancei a cabeça e ela me deixou lá. Olhei em torno da sala.
Não reconheci qualquer móvel do apartamento onde uma vez eu a visitara. Era tudo diferente, tudo novo. A parede dos fundos da sala era formada de portas corrediças
de vidro que davam para a área de uma piscina coberta. Percebi que havia uma rede protetora de plástico branco em torno da piscina, do tipo que pessoas que têm filhos
usam como precaução.
346
347
Algo começou a se encaixar em relação a todos os mistérios de Eleanor. As respostas evasivas, a mala que não podia ser aberta. As pessoas levam carrinhos de bebê
dobráveis nas malas. Pessoas com filhos.
- Harry?
Virei-me. Eleanor estava lá. E ao seu lado havia uma garotinha com cabelos e olhos escuros. Elas estavam de mãos dadas. Meu olhar foi de Eleanor para a menina e
ficou indo de uma para a outra. A menina tinha os traços de Eleanor. O mesmo cabelo ondulado, os mesmos lábios cheios e o nariz pequeno. Havia algo sobre seu porte
que também era igual. O jeito com que olhava para mim.
Mas os olhos não eram os de Eleanor. Eram os olhos que eu via quando me olhava no espelho. Eles vinham de mim.
Um fluxo repentino de sentimentos brotou dentro de mim, não todos eles bons. Mas agora eu não conseguia tirar os olhos da
menina.
- Eleanor...?
- Essa é Maddie.
- Maddie?
- Apelido de Madeline.
- Madeline. Quantos anos?
- Agora está com quase quatro.
Minha mente retrocedeu. Lembrei da última vez que ficamos juntos antes que Eleanor partisse para sempre. Na casa da colina. Poderia ter acontecido ali. Eleanor pareceu
ler meus pensamentos.
- Foi como deveria ter sido. Como se algo tivesse de se assegurar que nós nunca...
Ela não terminou.
- Por que não me contou?
- Queria que fosse no momento certo.
- Quando seria isso?
- Acho que agora. Você é um detetive. Acho que eu queria que você descobrisse tudo. i
- Isso não é certo.
O que teria sido certo?
Foguetes gêmeos foram disparados dentro de mim. Um deixava um rastro vermelho, o outro, verde. Eles iam em direções diferentes. Um raiva, outro ternura. Um rumo
aos abismos escuros do coração, um Caldeirão do Diabo cheio de recriminações e vingança no qual eu podia mergulhar fundo. O outro ia para longe de tudo isso. Para
a Estrada do Paraíso. Para dias claros e abençoados e noites escuras e sagradas. Levava ao lugar de onde emanava a luz perdida. A minha luz perdida.
Eu sabia que podia escolher um dos caminhos, mas não os dois. Olhei da garota para Eleanor. Tinha lágrimas em seus olhos e, ainda assim, um sorriso. Eu soube, então,
que caminho escolher e que não há fim para o que está no coração. Dei um passo em direção à menina e me agachei em sua frente. Sabia, por lidar com testemunhas
jovens, que é melhor se aproximar no mesmo nível delas.
- Oi, Maddie - falei para minha filha.
Ela virou o rosto e o apertou contra a perna da mãe.
- Sou muito tímida - disse ela.
- Tudo bem, Maddie. Eu também sou muito tímido. Posso só segurar a sua mão?
- Ela largou a mão da mãe e estendeu a sua para mim. Eu a peguei e ela envolveu os dedinhos ao redor de meu indicador. Inclinei-me para a frente até meus
joelhos tocarem o chão e eu ficar sentado sobre os calcanhares. Ela olhou para mim. Não parecia assustada. Apenas cautelosa. Ergui minha outra mão e ela também me
deu a sua, os dedos enrolados da mesma maneira em torno
do meu.
Inclinei-me e levei seus dedinhos até meus olhos fechados. Naquele momento eu soube que todos os mistérios tinham sido resolvidos. Que eu estava em casa. Que estava salvo..

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades