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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LUZES APAGADAS / Holly Black
LUZES APAGADAS / Holly Black

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O espaço é tão escuro que olhar lá para fora confunde o cérebro. Quanto mais se olha para sua vastidão, para as estrelas suspensas e as galáxias torvelinhantes, mais se percebe quão imprecisas são as palavras como “escuro”, “preto” e “infinito”. Há tantos gradientes de sombra, todos eles apavorantes para mim.
É por isso que mantenho as luzes acesas.
Sei que é bobagem. Já se passaram muitos anos desde os espaços restritos da minha infância na creche da Colônia de Pesquisa Collabria. Mas no escuro é sempre possível haver coisas por perto: seres de máscara à espreita, com mãos frias e agulhas afiadas. Coisas terríveis que eu não consigo ver. Ultimamente, até mesmo os meus sonhos estão repletos de monstros.
É por isso que gosto de viajar sozinho. Aqui, em minha nave, acompanho assinaturas de calor para me certificar de que sou o único a bordo. Posso manter tudo bem claro do jeito que eu gosto. Posso ver meu compartimento de carga – atualmente vazio e à espera de uma nova remessa de grãos de café recém-torrados da Estação Intergaláctica da Torra da Café (ou EITC) – bem daqui do console da sala de controle. Mas, independentemente de todas essas precauções, continuo olhando toda hora para trás. Meu coração martela no peito, minha pele fica úmida e toda arrepiada. Que bom que raramente tenho de deixar minha nave.
Depois de sair de Collabria, morei em vários lugares, vivendo com dificuldade. Até mesmo assinei um contrato com a Empresa Mineradora Galatron. Sempre fui grande para a minha idade, então eles não questionaram nada, mesmo eu não tendo certeza de que era estritamente legal. Trabalhei três anos para eles, peneirando areia vermelha e respirando veneno, mas no fim economizei o suficiente para comprar uma nave de segunda mão.
Foi perto do fim do período em que trabalhei nas minas que o medo começou. Houve um desmoronamento e fiquei preso bem no fundo da terra. Sem ar. Um calor terrível. O pavor cresceu dentro de mim na escuridão.

 


 


No início, temi que estar a bordo de uma nave fosse me dar a mesma sensação de ficar preso embaixo da terra ou em um daqueles berços da creche que mais pareciam gaiolas, mas, em vez disso, me senti muito mais perto da liberdade. Eu mesmo restaurei a nave, aprendendo sozinho com a ajuda de um grande livro antigo. Agora ela funciona bem o suficiente para eu ter um trabalho fixo – meu primeiro – transportando café.

Minha rota entre a EITC e o Planeta dos Cafés é longa e difícil. Passo meu tempo assistindo a holovids, me pulverizando névoa de mentira, trocando mensagens com 78342 e 78346 da creche (ultimamente, 78342 passa horas reclamando porque as antenas secundárias dela finalmente nasceram e, desde então, os garotos vêm lhe dando mais atenção) e evitando dormir. Deveria ser maçante navegar pelo mesmo velho mar de estrelas na mesma velha nave, mas não me sinto assim mesmo. Sinto-me caçado, como se eu não quisesse diminuir o ritmo por medo de algo desconhecido e sufocante que está sempre bem nos meus calcanhares.

É difícil deixar o passado para trás. É preciso ir mais rápido do que minha nave decadente é capaz.

Mexendo nos controles, vejo o reflexo do meu rosto na superfície de vidro polido – minha pele cinza manchada e a língua bifurcada que sente o ar à minha volta sem que eu sequer perceba que estou fazendo isso a metade do tempo. Meus olhos estão cheios de veias vermelhas, e minha cara é a de quem deveria dormir mais.

Mas o que realmente preciso é de mais café.

A Estação Intergaláctica da Torra de Café orbita o planeta Chloris, que tem o clima ideal para o cultivo dos grãos supercafeinados que o tornaram famoso. As pessoas dizem que a EITC é o lugar com mais cafeína do universo. Dizem que o ar de lá até acorda os que acabaram de morrer, faz crescer cabelo em seus olhos e recarrega baterias gastas.

Eu gosto de lá. Por estranho que pareça, me sinto menos nervoso quando estou na estação, embora eu possa ser o único. A cafeína me acalma. Me preocupo de estar ficando viciado, mas talvez seja o risco de um trabalho como o meu.

Quando aporto, meu cronômetro me diz que estou um pouco adiantado. Vou lá fora e deixo minhas impressões digitais em um monte de formulários oficiais para um vinvocci espinhento, enquanto robôs carregam meu compartimento de carga com sacos de café que brilham como mogno, pegajosos de óleo. Vou sentir o cheiro deles na viagem de volta mesmo dentro da câmara de vácuo. Isso é sempre um bônus.

O vinvocci me diz algo e, quando viro para responder, ele dá um passo para trás. Acho que sou um pouco intimidador quando não se sabe como sou jovem: grande, um pouco curvado e tímido demais para sorrir quando eu deveria. Em razão da infância que tive, não sei como falar com as pessoas ou deixá-las à vontade. Assino seu datapad, volto para a nave, abro um pacote com o jantar, como e me preparo para dormir. Enquanto olho para o teto por cima da cama, me lembro com alegria que amanhã, antes de eu sair, vou tomar uma xícara de café – café de verdade, escaldante e preparado na estação por baristas que sabem o que estão fazendo, e não feito no bule velho e manchado de ferrugem da minha nave.

Minha boca se enche de água só de pensar.

Não gosto de dormir porque, por mais claro que o quarto esteja, quando fecho os olhos, fico no escuro.

Também não gosto dos meus sonhos. Deitado ali, me pego pensando em dar uma fugida para tomar um café rápido, mas a loja está fechada. Será que consigo encontrar alguns grãos soltos? Não, digo para mim mesmo, procurando me concentrar em como 78342 vai ficar impressionada quando eu tiver economizado o suficiente para conseguir um lugar só nosso em um dos sistemas estelares mais bonitos. E 78346 também. Vamos viver todos juntos e não vou precisar ficar mais nervoso por nada, porque eles vão estar sempre olhando por cima do meu ombro para mim.

Quando acordo, as luzes estão apagadas e meu coração, disparado. Por um longo instante, penso que ainda estou no mesmo velho pesadelo, mergulhado na escuridão, a pele coçando. Procuro a tela do computador na parede. Aos poucos, o quarto se ilumina. Pisco rapidamente. Devo ter batido no interruptor de luz no meio da noite.

Ainda grogue, vou cambaleando até o chuveiro, coloco no mais quente possível e deixo o calor limpar a sujeira e o suor de nervoso da minha pele.

Existe uma lenda que diz que se você beber bastante café na Estação Intergaláctica pode ficar acordado por pelos menos uma semana. Naquele instante, isso me parece uma boa ideia.

Então me visto e caminho pelos corredores até a cafeteria. É pequena, suja e só fica aberta por algumas horas porque não querem que o pessoal do transporte – como eu – consuma muito do que têm de bom. Também está cheia de trabalhadores da estação, além de alguns viajantes que pararam porque sentiram falta de um café forte o suficiente para levantar um sistema estelar. Atrás do bar, junto às máquinas borbulhantes e fumegantes, vejo uma barista de pele roxa e seis braços. Ela prepara expressos e leite com espuma mais rápido do que consigo acompanhar.

Olhando ao redor da sala, vejo um pequeno graske pedindo dinheiro a um terileptil de capa. Acho que já os vi na estação antes. Um blowfish com um tapa-olho se senta em um canto escuro nos fundos, examinando a loja com um olhar sinistro no rosto. Em uma das mesas, um grupo de trabalhadores de macacão relaxa, rindo juntos. Em outra, uma soldada olha melancolicamente para o fundo da xícara.

A fila é curta e estou no final; no balcão, vejo uma mulher usando uniforme militar. Entre nós está um homem magro como um whippet com um casaco azul-marinho de forro vermelho. Ele se vira para olhar para mim com olhos cinzentos fundos e penetrantes, e franze as impressionantes sobrancelhas prateadas.

– Estou comprando um café – diz ele. – Para uma garota.

– Ah – digo, me perguntando se as antenas secundárias dela apareceram. É o que parece. – Que ótimo.

– Ela acha que estou comprando um café terráqueo do século XXI – continua ele, balançando-se nos calcanhares. – Ela não vai ficar surpresa? Acho que sou mesmo do tipo encantador. Quer dizer, o café daqui não é tão bom quanto aquele incrível feito por Elisabeth Pepsis, é claro, ou aquela coisa impressionante que Benton costumava fazer... qual era mesmo o primeiro nome dele? Ah, sim, Sargento. Sargento Benton. Tinha algo a ver com a temperatura da água, ele disse. Mas esse é bom mesmo assim. Clara está um pouco irritada comigo, mas, quando provar isso, seu humor vai melhorar muito. Ou talvez não, mas pelo menos ela vai tomar café.

– Clara? – repito. Ele disse um monte de nomes, mas esse parece ser o mais importante.

Ele faz que sim.

– Ela é impossível.

– Você parece tão familiar – digo, antes de pensar melhor a respeito.

O homem que ele me lembra era muito diferente, mas falava com a mesma pressa alegre e vertiginosa. Eu entendia menos da metade do que aquele homem dizia, mas ele salvou minha vida, então eu estava determinado a dar atenção a qualquer um que fosse mesmo que ligeiramente parecido com ele.

O homem franze ainda mais a testa. Suas sobrancelhas fazem coisas que eu nem desconfiava de que fossem capazes.

– Não ouço muito isso.

– Ele se chamava Doutor e me salvou...

– Ahhhhh, certo – diz ele, interrompendo-me. – Fiz você se lembrar de mim. Ah, bem, isso faz muito mais sentido.

– O quê?

Naquele momento, um humano sem nenhuma característica marcante e vestido de cinza entra na fila atrás de mim. Ele usa uma máscara hospitalar sobre a metade inferior do rosto – do tipo branco, de papel, que os cientistas sempre usavam na creche. Mesmo que eu só possa ver seus olhos, ele parece terrível e desconfortavelmente familiar. Poderia ser realmente um dos cientistas?

– Eu sou o Doutor – diz o homem das sobrancelhas peculiares, parecendo bastante orgulhoso disso. – Aposto que vivemos bons momentos, não é?

Não sei como responder a isso porque não faz nenhum sentido. Se ele realmente é o Doutor, então deve se lembrar de ter ido a Collabria e notar a semelhança da figura mascarada atrás de mim com os cientistas de lá. Abro a boca para perguntar quando os moedores de café estremecem até parar, as lâminas triturando-se metalicamente umas contra as outras na ausência repentina dos grãos.

Palavras atônitas escapam da boca da barista. Ela até parece surpresa por dizê-las:

– Não tem mais café!

Os grãos tinham parado automaticamente de alimentar as máquinas, vindos de uma calha no teto. Na Estação Intergaláctica da Torra de Café, essa era a pior coisa que poderia acontecer.

Em seguida, as luzes se apagam.

Para mim, isso é ainda pior.

Todos ao meu redor gritam. Sinto aquele terror familiar, tão intenso que não consigo pensar em mais nada. Quero correr, mas sinto frio e calor ao mesmo tempo e não consigo controlar os pés. Quando penso que eu seria capaz de me mover novamente, as luzes voltam a se acender. Eu busco o ar.

O homem com a máscara hospitalar desapareceu, mas caído no chão de metal vejo o corpo da soldada que estava à frente do Doutor na fila. Ela ainda está com uma xícara na mão, derramando seu precioso conteúdo no piso acinzentado. A fumaça do café que acabou de sair não parece trazê-la de volta à vida, como diz a lenda.

Ela está morta.

Não é o primeiro corpo que vejo, mas é o primeiro desde as minas. E eu esperava nunca mais ver outro.


2

Fico lá parado, sem saber o que fazer. Estou assustado – todos estão –, mas pelo menos, pela primeira vez em meses, não sou o único com medo.

A barista roxa está com três das seis mãos sobre a boca, olhando chocada para o corpo.

– A última xícara de café! – grita o graske, jogando-se ao chão para sorver a poça que se espalhava.

O café provoca coisas diferentes nas diferentes criaturas. Para a maioria de nós, serve para despertar, nos deixa mais alertas, ajuda a nos concentrarmos. Para alguns, porém, é um sedativo, fazendo com que adormeçam suavemente. Para outros, é um alucinógeno. E, para alguns, como o pequeno graske que agora cambaleia para fora dali com um sorriso idiota no rosto, o café parece realmente induzir uma onda de pura felicidade.

O Doutor olha para baixo e parece surpreso de encontrar o corpo ainda lá.

– Olá? Alguém precisa fazer alguma coisa.

– Chamem um doutor! – diz a barista.

Ele suspira.

– Ah, bem, então sou eu. O Doutor, a seu serviço. Suponho que ela não tenha morrido de causas naturais. – De repente, parece-lhe ocorrer uma coisa. – A menos que você a tenha envenenado. Você a envenenou?

A barista parece tão desconcertada quanto eu.

Acima, um alto-falante ganha vida:

“ATENÇÃO. UMA FORMA DE VIDA NÃO ESTÁ SENDO LOCALIZADA. ERRO NO CENTRO DE CONTROLE DETECTADO. A ESTAÇÃO ESPACIAL ESTÁ FECHADA ATÉ MAIS INFORMAÇÕES SEREM COLETADAS. NENHUMA NAVE DEVE PARTIR OU ATERRISSAR SEM PERMISSÃO. O ACESSO À ÁREA DE PROCESSAMENTO DE CAFÉ ESTÁ RESTRITO.”

Os outros clientes do café parecem sair subitamente do estado de choque e entrar em pânico. Alguns estão tentando entrar em contato com suas naves. Vários saem depressa, mas acabam voltando alguns instantes depois para informar que os corredores foram bloqueados. As pessoas sacam vários dispositivos de comunicação. O terileptil tira uma concha debaixo da capa e grita nela, parecendo irritado.

– Ninguém vem investigar? – pergunta um homem com nariz de porco.

A barista está falando em um comunicador. Ela se vira para ele, claramente frustrada.

– Não há muitas pessoas na estação. A maioria é robô. Estão mandando alguém do planeta, mas vai levar horas.

– Isso é ridículo – diz uma mulher siluriana de macacão de operária.

– Envenenamento não é uma causa natural – ressalto ao doutor, porque alguém deveria fazer isso.

O Doutor olha surpreso.

– Gosto de alguma coisa em você. Além disso, você me conheceu antes, o que com certeza diz muito a respeito das companhias com quem anda. Então tem que ser meu companheiro até resolvermos este mistério.

– Serei seu o quê?

– Sim, é bem simples. Só me ajude, me lembre como sou brilhante, note coisas que eu já percebi, me faça perguntas cujas respostas sejam tão incrivelmente óbvias que nunca me ocorreria explicar. Está interessado?

– Hã – digo. No alto, as luzes piscam. – Você é mesmo o Doutor? O mesmo que esteve na Colônia de Pesquisa em Collabria? Na creche? Porque parece um pouco diferente...

Ele me olha com seus olhos claros e brilhantes emoldurados por aquelas sobrancelhas perturbadoramente rebeldes.

– Tenho certeza absoluta de que sou o Doutor. Você tem certeza de que é... qualquer que seja o seu nome?

– Então você se lembra de mim? – pergunto esperançoso. – 78351?

Ele me olha com ar examinador.

– Receio que não. Você mudou o cabelo?

Toco minha cabeça careca com uma das mãos e fecho a cara.

– Não importa. – Ele gira em direção ao corpo, tirando um dispositivo do bolso interno do casaco.

Cambaleio para trás, mas então percebo que não é uma arma. O Doutor move o aparelho sobre o corpo até emitir um som estranho.

– Humm – diz ele, resmungando para si mesmo. – A maioria dos humanos, mesmo os que acabaram de morrer, emite uma luz fraca. Algo a ver com os radicais livres. Mas este corpo não. – Ele passa o treco brilhante sobre o corpo. – Nenhuma luz. Nenhum calor. Você sabia que, mesmo no ano cem trilhões, as pessoas ainda tomam café?

Ele pensa um pouco e depois continua:

– Foram as sombras que fizeram isso? Não, não os vashta nerada; eles acabariam com tudo. Pode ser um plasmavore; há muitos canudinhos por aqui. Mas o corpo não perdeu sangue, só adrenalina... cortisol. Suas glândulas suprarrenais foram completamente esvaziadas. Não, não, isso deve ser alguma outra coisa, algo novo.

– O que isso tudo significa? – pergunto.

– Certo – diz ele. – Está assumindo seu novo papel. Ótimo. Alguma coisa tirou toda a deliciosa e recém-cafeinada energia dela.

– Era você que estava mais perto dela – diz o blowfish com o tapa-olho. – Talvez tenha sido você que a matou.

As pessoas se aproximam, algumas delas tremendo um pouco, segurando xícaras com apenas borra de café. Todos querem um bode expiatório, e o Doutor – até eu noto – está se comportando de maneira um pouco estranha.

Ele não ajuda em nada sua situação andando por ali com aquele treco na mão, escaneando todo mundo.

– Uma chave de fenda sônica – diz ele, quando as pessoas tentam se afastar. – Só checando.

– Checando o quê? – pergunta um tivoliano com minúsculos óculos de bronze. Ele parece irritado com o assassinato e preparado para ficar ainda mais irritado com a investigação.

– Havia um cientista aqui... – começo, mas não sei como explicar o homem com a máscara hospitalar.

Além disso, não tenho nenhuma evidência de que ele teve algo a ver com o assassinato. Eu não poderia nem provar que ele estava no café. Deve até ser melhor ninguém me dar atenção.

As luzes no alto piscam novamente e um coro de gritos abafados escapa de uma dezena de bocas.

– Precisamos manter as luzes acesas – digo baixinho, mas o Doutor continua me ignorando. Ele está escaneando o tivoliano com os óculos de bronze.

– Eu posso ser um suspeito – o Doutor finalmente informa à multidão. – Mas somos todos suspeitos. A questão é: qual de nós tinha um motivo?

– Bem, ela estava segurando a última xícara de café – diz um dos espectadores.

As sobrancelhas do Doutor se contraem. Não acho que ele considere isso um motivo, embora pareça bem convincente para mim.

– Quais de vocês a conheciam? – pergunta o blowfish com o tapa-olho. – Ela não estava aqui sozinha.

Vários dos seres na cafeteria se entreolham. Depois de alguns instantes, fica claro que a maioria está olhando para uma soldada com uniforme militar parecido com o que a falecida está vestindo.

– Eu a conhecia – diz a soldada, limpando a garganta. Ela está nervosa, o que a faz parecer culpada. Lembro-me de vê-la olhar melancolicamente para sua bebida. – Estávamos na mesma nave. Ela tinha vindo buscar uma segunda rodada de mocas.

– Ouvi as duas discutindo – diz uma mulher-gato, a garra apontando acusadoramente.

– Não era nada importante. Estávamos falando sobre as mudanças de turno. Ela sempre pegava as melhores horas... é só isso. Ela ia me pagar uma dose extra de expresso para compensar.

Agora todo mundo está prestando atenção à soldada. Todo aquele aglomerado de seres inquietos e com excesso de cafeína. Todos... menos o Doutor. Ele agita sua coisa que parece uma chave de fenda no ar e, em seguida, olha para um tipo de visor. Continua falando para si mesmo, em voz baixa.

– O que o café faz? Aumenta a frequência cardíaca. Alarga os vasos sanguíneos. Aumenta a atividade cerebral. Excitação neural... sim, isso resultaria em uma grande quantidade de energia. – Então, depois de alguns instantes, ele se vira para a barista e levanta a voz. – Quando as luzes voltaram, o que exatamente você viu? Seja precisa.

– Eu não sei – diz ela. – Acho que parecia que ela estava segurando o peito... na altura do coração. Ou talvez mais para cima, perto do pescoço.

Quero perguntar à barista se ela viu o cientista com a máscara hospitalar, mas acho que não devo interromper.

– Interessante – diz o Doutor, puxando um pouco o colarinho da vítima para dar uma olhada na pele. – Sim, estou vendo. Ou alguém a esfaqueou com duas minúsculas espadas ou algo a mordeu. O que muda um pouco a pergunta. OK, quem tem um motivo e também duas minúsculas espadas? Todos virem seus bolsos para fora.

– Doutor – digo.

Ele me olha serenamente.

– Sim?

Nesse momento, as luzes se apagam novamente.


3

Na escuridão, tudo é diferente. O ar parece pesado. Minha pele coça. Fecho os olhos, mas isso só me faz mergulhar ainda mais fundo no nada. É como estar no espaço, à deriva, sem sequer o conforto das estrelas. É como ser enterrado na terra, enterrado em meu passado, enterrado e procurando cavar uma saída.

Quando as luzes voltam, o blowfish está deitado no chão não muito longe de onde me encontro. Seu tapa-olho caiu, revelando uma pedra preciosa na órbita vazia onde o olho deveria estar. Todos estão gritando. Acho que posso estar gritando junto.

– Cinquenta e um – diz o Doutor, apoiando a mão com tanta força em meu ombro que me calo e viro em direção a ele. Meu corpo todo treme.

Então percebo que o Doutor está me chamando de “Cinquenta e um”. Ele me deu um apelido. Nunca tive um apelido antes.

– M-Me desculpe – gaguejo. – A escuridão. Ela me i-incomoda.

– Será que é porque, sempre que as luzes se apagam, alguém morre? – pergunta o Doutor, contraindo as sobrancelhas impetuosas. Seus olhos parecem um pouco fundos, sinistros. – Porque isso também me incomoda. Mas boa ideia!

– Que ideia?

– Eu tive uma e foi excelente, e ela me ocorreu por sua causa. – Ele olha para mim como se esperasse que eu parecesse satisfeito. Então caminha rapidamente para a saída.

Eu o sigo. Olho para trás e vejo que muitos dos clientes estão chorando. Alguém está comendo pó de café direto da máquina e duas pessoas estão gritando uma com a outra.

– Aonde vamos? – pergunto.

– Fazer o que você disse. Vamos manter as luzes acesas – diz o Doutor, apontando a chave de fenda para a porta, que se abre. Ele continua a seguir pelo corredor. – Tudo o que precisamos fazer é encontrar o centro de controle principal, descobrir o que está quebrado e consertar.

Sou tomado pelo alívio.

– Sim, as luzes. Eu posso ajudar. Sou bom em descobrir como as coisas funcionam.

Enquanto caminhamos, as lâmpadas no alto piscam e eu estremeço, mesmo estando só nós dois no corredor.

– Quando estávamos na fila, Doutor, você viu um cientista?

– Um cientista? – repete o Doutor, claramente distraído. Ele segura a chave de fenda sônica, monitorando o ar.

– Usando uma máscara hospitalar – digo, pensando nas marcas que o Doutor falou que poderiam ter vindo de duas minúsculas espadas. Marcas de agulha podem ser assim também. – Ele tinha desaparecido quando as luzes voltaram, mas estava lá na fila com a gente antes. Logo atrás de mim.

– Interessante – diz ele, franzindo a testa, concentrado.

Não tenho certeza se ele está realmente prestando atenção no que eu digo.

Depois que o laboratório em Collabria foi destruído, não sei para onde todos os cientistas foram. Eu me pergunto se começaram de novo em algum lugar, em algum outro planeta.

Quando eu era criança, vivia em um berço que parecia uma gaiola. Todos nós vivíamos assim na creche... bem, todos os que eram como eu, pelo menos. Não os cientistas. Não sei onde eles moravam, mas imagino que fosse em algum lugar grande, aberto e limpo. Mas nós, que vivíamos nos berços-gaiola, contávamos o tempo pelas flutuações da fraca luz âmbar, pelos bipes dos monitores e pelo gotejamento de fluidos. 78346 ficava na gaiola ao lado e passava um tentáculo para dentro da minha quando eu estava muito assustado, e eu lhe passava comida quando não lhe davam o suficiente. Nós sussurrávamos um para o outro até os cientistas nos fazerem parar. 78342 ficava em uma gaiola acima da minha. Ela deitava de bruços e nos espiava com seus olhos amarelo-brilhantes. 78342 não podia falar até que lhe enxertaram uma boca e, quando fizeram isso, lhe deram duas, ambas um pouco grande demais para seu rosto. Ela diz que é por isso que não para de falar agora.

Havia outros, todos diferentes uns dos outros, mas nós três éramos os únicos ainda vivos quando o Doutor chegou. Ele nos levou dali na caixa azul. Falou com a gente como se fôssemos crianças normais. Nós gostamos dele.

Quero dizer isso a ele, dizer como ficamos gratos; como seremos sempre gratos. Quero lhe agradecer por me escolher para ser seu assistente, por me dar a oportunidade de observar sua grande mente trabalhando de perto, mas alguma coisa no seu jeito de ser me diz que ele não gostaria de ouvir isso.

– Parece ser aqui – diz o Doutor, apontando para uma porta com uma representação gráfica de interruptores. – O centro de controle da estação.

Nessa hora, as luzes piscantes se apagam completamente. Mergulhamos na escuridão.

Fico apavorado.

Sinto como se houvesse algo conosco, algo enorme e terrível, algo quase em cima de mim, respirando em meu pescoço. De alguma forma, sei que deve ser o cientista. Ele veio me procurar. E agora vai me pegar. Eu me preparo para a picada de uma agulha.

Mas as luzes voltam e está tudo bem – eu ainda estou vivo, assim como o Doutor. Ele olha para mim, estreitando os olhos impetuosos, e eu olho de volta para ele, meu alívio se esvaindo. Nesse momento, ele me assusta quase tanto quanto o escuro.


4

A porta da sala de controle abre quando eu a empurro, o que não parece certo. Uma sala como aquela deveria estar trancada. Quando olho para baixo, vejo que provavelmente já esteve trancada, mas há marcas de queimado em volta do mecanismo da fechadura, como se alguém o tivesse destruído. No entanto, quando toco, vejo que já está fria.

Dentro da sala, mal consigo enxergar. A luz que vem do corredor reflete no painel de controle central e, por um momento, acho que estou vendo um rosto mascarado refletido no metal brilhante. Eu me viro, mas não há ninguém atrás de mim, ninguém mais na sala.

Exceto os dois corpos caídos no chão.

Estão esparramados como se estivessem dormindo. Mas sei que não estão. Sei que estão mortos.

Dou um passo mais para perto e tateio o painel de luz. No alto, as lâmpadas piscam e acendem, iluminando os rostos pálidos dos técnicos. Todo o sangue dos dois coagulou embaixo deles, arroxeando a parte de trás de seus pescoços. Os olhos estão turvos e pálidos, os corpos, rígidos.

O Doutor me seguiu. Ele infla uma única narina do modo como outra pessoa poderia arquear uma sobrancelha.

– Acho que podemos concordar que esta sala foi violada.

Por trás dos corpos, um painel de controle do tamanho da parede pisca com luzes vermelhas e amarelas. Há um buraco no meio, entre as etiquetas que indicam DISPENSER DE CAFÉ e SISTEMA DE ILUMINAÇÃO. Vários fios saem dali em espirais desordenadas e fragmentos de metal retorcido se projetam do buraco como dentes afiados. A coisa toda está tão quente que o ar ondula à sua volta. Acima daquela bagunça há um temporizador, e os números indicam 00:00. Uma bomba, preparada para explodir quando estávamos no café.

O cientista, penso. O cientista fez isso.

Estendo a mão e puxo um pedaço de estilhaço de metal. Posso senti-lo quente nas mãos. Minha pele foi projetada para ser resistente ao calor, mas, quando eu o solto, o metal deixa uma marca de queimado no chão.

O Doutor passa a chave de fenda sônica sobre os corpos.

– Eles estão mortos há cerca de 14 horas. O que significa que isso teve início antes de começar.

– O quê?

– Quero dizer que tudo teve início antes do começo. Quando aquela garota caiu na fila, ela não foi a primeira vítima. Então, a nova pergunta é: quem foi o primeiro? – E ele bate um único longo dedo na pequena depressão sobre o lábio.

– Você sabe? – pergunto. Estou honrado por ele ter me escolhido como companheiro. Acredito que ele pode resolver isso. Acredito que vai virar e me dizer o que fazer sobre o cientista.

– Você tem uma nave aqui, certo? – diz ele, apontando para uma placa que indica a direção do hangar. – Leve-me até lá.

Ele começa a caminhar pelo corredor. Corro para alcançá-lo, intrigado.

– Não podemos ir lá embaixo.

– Claro que podemos – afirma ele. – Não temos permissão, mas isso só torna as coisas um pouco mais emocionantes, não é?

– Não tenho certeza se consigo lidar com mais nenhuma emoção – digo, tentando acompanhá-lo. O casaco ondula à sua volta como se ele fosse um morcego alto, anguloso e sinistro.

Estamos nos aproximando do hangar agora e ele vai até as grandes portas duplas e passa a chave de fenda sônica sobre o painel de entrada. O equipamento chia um pouco e as luzes diminuem.

– Doutor! – grito.

– Só um segundo. Estou quase conseguindo.

E, com isso, as portas começam a se abrir. Na sala seguinte, vemos robôs e alguns técnicos. Eles olham para nós.

– Identifiquem-se – exige um com a voz metálica.

– Estamos só de passagem – diz o Doutor para todos na sala, depois vira para mim. – Qual dessas é a sua?

– Humm, aquela. – Aponto para a porta do hangar onde está minha pequena nave.

Ele me empurra em direção a ela.

– Vai! Vai!

Um dos técnicos se coloca na minha frente.

– Vocês não deviam estar aqui. Houve um assassinato na cafeteria e vai haver uma investiga...

– Já foi feita. O assassino foi encontrado! – grita o Doutor, me agarrando e saindo correndo. – Temos que ir!

O técnico começa a gritar para os robôs nos deterem. Eles se movem ruidosamente em nossa direção, mas é tarde demais. Já estou digitando meu código na nave.

Entramos aos tropeços e eu fecho a porta. Os robôs batem do outro lado.

– Abram! – grita o técnico. – Vocês estão quebrando o bloqueio.

– E agora? – pergunto, meio sem fôlego.

– Nós decolamos – diz o Doutor, como se fosse óbvio.

Ele está no meu console de controle, apertando teclas e movendo interruptores. Não gosto disso. Ele está me assustando, além de estar tomando todas as decisões e mexendo nas minhas coisas. Mas estou com muito medo para lhe dizer para parar.

– E deixar todas essas pessoas? Mas você é o Doutor. Você ajuda as pessoas! Não as abandona.

– Não desta vez – diz ele, parecendo definitivamente feliz. – Não podemos fazer nada. Temos que ir. Agora!

– Espere! – digo, surpreendendo-me, porque não há nada que eu queira mais do que fugir.

Estou sempre fugindo. Até mesmo este trabalho – o transporte de café – tem sido uma espécie de fuga.

– Se você sabe quem é o assassino, então devemos pelo menos...

– AGORA! – grita ele, e há uma força em sua voz que faz com que eu me mova sem sequer pensar melhor a respeito.

Seus olhos claros estão em chamas. Sinto como se estivesse olhando para uma criatura saída do tempo. Um deus olha fixamente para mim por trás da fenda em sua máscara.

Desbloqueio o sistema de ancoragem e ligo os motores. Os técnicos se afastam assim que ouvem a nave ganhar vida. Eles provavelmente vão me denunciar, o que significa que entrarei para a lista negra da Estação Intergaláctica da Torra de Café e terei de encontrar outra maneira de pagar a manutenção da minha nave. Sinto-me culpado até mesmo só de me preocupar com isso quando abandonamos todas aquelas pessoas na cafeteria e me sinto ainda pior por termos deixado todos eles para trás. Penso em tudo isso enquanto decolamos em direção ao mar infinito do espaço.

Então me deixo desabar na área de estar acolchoada – aquela que pode se desdobrar em cama quando eu quero dormir. Está remendada com fita de fibra e meio coberta pelos manuais que venho estudando. De um lado, há uma colagem de fotos, dispostas ao redor do computador embutido na parede – imagens de lugares claros e quentes em que acho que 78342 e 78346 gostariam de morar.

– Eu me lembro de você agora – diz o Doutor, virando para olhar para mim. – O tempo às vezes é meio difícil para mim. Na maioria das vezes é ridiculamente fácil, mas pode me fazer perder as coisas. Coisas importantes. Você está bem crescido, não é, mas não tem toda a idade que parece?

– Acho que sim – respondo, porque não sei direito quantos anos eu tenho.

Uma infância infeliz devia fazer você crescer rápido, mas ainda me sinto como uma criança muitas vezes. Mas ultimamente tem sido estranho. Estávamos todos sempre crescendo, mas não em tantas direções ao mesmo tempo.

– Bem, você já é adulto o bastante para ouvir isso. Foi você que matou aquelas pessoas, Cinquenta e um. Foi você que drenou a energia deles.

Fico olhando para ele. É impossível. Eu estava lá quando aconteceu. Eu estava no escuro, com medo. Queria fugir. Não queria machucar ninguém. Começo a tremer dos pés à cabeça.

– E o cientista? – pergunto. – Aquele da máscara? Eu o vi antes do primeiro ataque no café. E então pensei tê-lo visto de novo refletido no painel do centro de controle.

– Como é que você chama aquilo mesmo? O lugar onde eu o encontrei? A creche. Mas não era exatamente isso, você sabia? Era um laboratório, onde faziam experiências com vocês, crianças, desde que nasciam. Não sei se você já entendeu, se algum dia eles explicaram, mas vocês foram montados, juntando pedaços de uma coisa e de outra... para serem monstros. Eles queriam criar monstros a partir de crianças. Queriam usá-los contra os inimigos e colonizar todas as galáxias. Você acha que está vendo um dos cientistas, mas essa é a forma de sua mente explicar aquilo que não quer aceitar... que uma parte diferente de você, uma parte faminta, está emergindo na escuridão para se alimentar. Às vezes, precisamos nos contar algo importante, tão importante que não dizemos de uma forma direta. Às vezes, só conseguimos fazer isso com um novo rosto. Às vezes, até mesmo um rosto de que não gostamos. Os cientistas fizeram coisas terríveis, mas não fizeram isso.

Eu me encolho. Penso em meu reflexo pálido, nos meus sonhos e em como minha pele parece retesada enquanto ele fala. Penso que sou quase tão alto quanto o Doutor e que tenho certeza de que ainda vou crescer.

Penso se poderia ou não machucá-lo.

Balanço a cabeça para afastar a imagem em que me vejo agarrando-o com minhas mãos enormes e esticando-o até fazê-lo em pedaços como caramelo.

– Entendo como você se sente mais do que possa imaginar – continua ele, acenando seus longos dedos em um gesto que parece indicar muitas coisas. – A monstruosidade pode pegar você de surpresa. Um dia você está andando à toa pelo universo e no outro percebe que é responsável pelo assassinato de sete pessoas. Eu deixei você sair. Sou responsável pela morte de sete pessoas também.

– Sete? – Fico sem ar e me sinto mal.

– Três pessoas morreram na EITC, com vários meses de intervalo. Aposto que, se eu checasse seu diário de bordo, descobriria que esteve na estação em cada uma dessas vezes. Ouvi falar sobre as mortes; foi isso que me deixou interessado. Afinal, quem vai atrás do terceiro melhor café do universo?

Isso mesmo. Ele me dissera que tinha ido à EITC para comprar um café para uma garota. Clara. Mas acho que o motivo principal de ter ido até lá foi para procurar o assassino. Eu me lembrava das outras mortes na estação. A EITC estava alvoroçada com as conversas a respeito disso quando saí com meu último carregamento. Não dei muita atenção na época. As pessoas morrem. Já vi muitas pessoas – crianças – morrerem sem razão nenhuma. Experiências fracassadas.

– Humanos e alguns humanoides – diz o Doutor – produzem cortisol e adrenalina. Você precisa dos dois, não é? Pessoas com café em seus sistemas produzem mais adrenalina. A estação deve ser uma fonte de energia irresistível. Os cientistas fizeram você da melhor forma possível para o propósito deles, mas lhe deram um enorme apetite.

Nem balanço a cabeça. Estou muito assustado agora.

– Concluí isso a partir de seus níveis de adrenalina. – O olhar do Doutor é impiedoso. – No café, as leituras na minha chave de fenda foram extraordinariamente altas. No começo, achei que você era uma pessoa muito nervosa. Você é um pouco inquieto, tem de admitir isso. E, como uma fonte de energia tão rica, você seria a próxima vítima. Quando puxei você para o corredor para encontrar o centro de controle, achei que o assassino viria atrás de nós. Mas, quando a escuridão foi embora, nenhum de nós estava morto e seus níveis de adrenalina estavam mais baixos em vez de nas alturas como deveriam estar em um momento de tamanho perigo. Então, percebi que você estava usando a adrenalina na escuridão. Para se transformar. E você está armazenando energia para mais algum outro tipo de transformação, não é?

– Não! Isso não é possível. Se eu fosse o assassino, por que não ataquei você? – Procuro qualquer coisa que possa contestar o que ele está dizendo. Preciso que ele esteja errado. Meu coração bate no peito com um medo de mim mesmo que é pior do que qualquer medo do escuro.

– Não sou humano o suficiente, eu imagino. – O Doutor olha para mim com algo parecido com pena. – Entendo não querer se lembrar de todas as coisas terríveis que você fez. Entendo que queira bloquear todas essas lembranças, mas às vezes é fundamental lembrar.

Ele está falando de si mesmo, mas é impossível acreditar que entende o que eu sinto. Um peso horrível se instala em meus ombros e afundo com ele, porque já não posso mais discutir.

– Se estou fazendo isso, você tem que me deter! Não quero machucar ninguém.

– Eu acredito – diz o Doutor.

– Os outros não são como eu. Somos todos diferentes. Eles não são monstros.

– Acredito nisso também – diz ele. – Agora, Cinquenta e um, vamos conversar. Vamos nos conhecer melhor.

Ele estende a mão, aperta uma tecla no console e mergulhamos na escuridão.


5

Abro os olhos esperando estar cego, mas tudo está brilhando com uma luz suave. Os instintos de predador tomam conta de mim – impulsos de fome e violência. As lembranças também invadem minha mente: todas as coisas que meu eu mais fraco não quer recordar, a dor e a fúria de agulhas e bisturis, o cheiro forte de água sanitária e putrefação. Eu me curvo para a frente; meu corpo cresceu ainda mais, minhas costas se abriram para revelar espinhos de cima abaixo. A bifurcação da minha língua tornou-se pontiaguda e afiada como agulha, perfeita para perfurar a pele. Tenho um segundo par de olhos também, que acabo de abrir. É com esses olhos que estou vendo no escuro. É com esses olhos que vejo o Doutor.

Um instinto me pressiona para que eu deixe minha consciência – a parte de mim que está no controle – se afastar. Luto contra isso. Se eu não me mantiver concentrado, vou tentar machucá-lo. E ele vai me machucar.

Agora me lembro de me esgueirar pela EITC nas primeiras horas desta manhã e entrar na sala de controle. É com alguma satisfação que penso nos rostos apavorados dos engenheiros quando os encontrei, pouco antes de eu...

Antes de eu matá-los. Antes de me alimentar da sua energia.

Ouvi os cientistas falarem sobre isso uma vez, sobre a partir do que eu tinha sido feito, antes que soubessem que eu podia entendê-los. Antes que eu percebesse o que as palavras significavam: um pouco de axon, um pouco de ogron, um pouco de pyrovile.

– Todos temos coisas dentro de nós que não podemos matar – digo, sem saber direito que parte de mim seria melhor que morresse: o eu monstro ou o normal, que não queria nada além de um lugarzinho em um pequeno planeta para morar com os amigos, aquele que teria de viver com o fato de ser um assassino.

– Sim – diz ele, e posso ouvir em sua voz que, mais uma vez, não está falando apenas de mim. – É por isso que tenho medo de que alguns de nós não possam ser salvos. Que alguns de nós não devam ser salvos.

– Lá na creche nos diziam que as coisas que faziam no escuro não importavam, porque ninguém podia vê-los – conto ao Doutor. Até minha voz soa diferente, mais grave.

– E você acreditou. Uma parte de você deve ter acreditado, porque você se escondeu em si mesmo, se conteve até que explodiu – diz o Doutor. – Pensei em mandá-lo para Boukan. Fica em um sistema planetário que tem três sóis artificiais. Lá está sempre claro e você poderia ter uma vida boa. Mas...

– Mas um dia as estrelas vão morrer e ficarei no escuro outra vez? – pergunto. Tendo pyrovile em minha composição genética, quem sabe quanto tempo eu poderia viver?

– Essa é uma maneira de colocar as coisas – diz o Doutor. – Então eu pensei...

– Você pensou que teria de me matar – termino por ele.

– Você sabia que, quando os meninos humanos entram na puberdade, suas vozes mudam?

A voz do Doutor soa leve de novo, como se não estivéssemos falando de viver e morrer. Como se eu não fosse um assassino. Como se ele não estivesse desejando não ter me salvado lá no início. Como se, em alguns instantes, não fôssemos lutar e um de nós não fosse morrer.

– O que isso tem a ver? – pergunto.

Ele se move pela sala, passando os dedos pelo meu painel de controle. Eu o observo com cautela.

– Suas vozes mudam, mas não de uma vez. A mudança vai e volta... grave em um momento e aguda no outro. É embaraçoso. Tentar paquerar uma garota e de repente sua voz ficar toda esganiçada, os novos hormônios dando as caras e humilhando você. Mas isso não é tudo o que a puberdade faz. Ela o deixa agressivo e temperamental. Todo esse ódio pelas coisas que aconteceram com você... todo o medo.

Penso em 78342 e sua conversa sobre os meninos. Temos mais ou menos a mesma idade; talvez nós dois estejamos mudando porque esta é a época em que isso acontece. Mas, nesse caso, a puberdade não me parece muito justa – ela tem antenas e eu tenho isso.

– Não estou com medo – digo. – É o outro eu. Ele é que está com medo.

O Doutor levanta as mãos, os dedos pressionando os dois lados da cabeça.

– É incrível como nos escondemos disso, não é? Quanto da violência do universo vem da relutância em dizer essas três pequenas palavras: “Estou com medo.” Todo mundo fica com medo. Todos nós mesmo. Mas você já admitiu isso, já disse em voz alta? Vá em frente. Diga: “Estou com medo.”

– Estou com medo – digo através dos dentes cerrados.

– Ótimo – diz o Doutor. – Você devia estar. Esse é o primeiro passo. Você está passando por um surto de crescimento, Cinquenta e um, uma transformação. E isso não se estabilizou ainda. A questão é: o que você vai fazer para deixar de matar as pessoas até que isso se estabilize?

– Você quer dizer que, quando eu tiver completado essa transformação, serei capaz de me controlar? – pergunto.

O Doutor dá de ombros.

– Depende de que tipo de adulto você vai se tornar.

As luzes por toda a cabine se acendem, fazendo-me cambalear para trás e cobrir o rosto, porque as luzes brilhantes irritam meu segundo par de olhos. O Doutor deve tê-las acendido enquanto conversávamos. Lembro-me de vê-lo tocar o painel de controle, mas eu não estava prestando muita atenção.

Quando consigo descobrir como fechar os olhos noturnos e abrir os normais, ele está parado bem perto de mim.

– Hora de decidir.

Pisco os olhos tentando vê-lo melhor, depois olho para mim mesmo. Minhas mãos são enormes garras malhadas de cinza. Vou até o painel de controle e me vejo, meu eu quase adulto – se o Doutor estiver certo –, pela primeira vez, refletido no vidro.

Sou enorme, o corpo curvado sobre duas pernas sólidas, cristas ósseas e espinhos descendo pelas costas, dentes afiados combinando com as pontas afiadas da língua.

– Quando isso vai estabilizar? – pergunto.

– Você acabou de matar quatro pessoas em pouco tempo e sugou a energia delas. Deve ter o suficiente para completar a transformação agora. Seu corpo ainda está processando o que ingeriu – diz o Doutor.

Insiro algumas coordenadas no computador.

– Vá até a cápsula de fuga – digo. – Ela vai levá-lo de volta para a EITC. Sei o que tenho que fazer. Sei onde posso obter a energia de que preciso.

Ele olha para a escuridão do espaço e depois para as minhas coordenadas.

– Mas isso é um sol.

– O calor não me machuca – digo a ele. – Tenho um compartimento de carga cheio de café. Isso pode me fornecer um último suprimento de energia... e talvez me estabilize o suficiente para assumir o controle.

– E se isso não acontecer? Você vai ser reduzido a cinzas e espalhado pelos ventos solares. Torrado como um grão de café.

– Então, pelo menos, as pessoas estarão a salvo. Isso é o que você faria, não é? Manteria as pessoas seguras, mesmo que significasse ser torrado pelo sol. Você entrou em uma nave espacial com um monstro, não foi?

– Se foi isso o que lhe ensinei, então foi uma lição terrível. – A expressão no rosto do Doutor é uma que eu nunca tinha visto nele antes. Parece muito sério e muito triste.

– Você faria uma coisa por mim? – pergunto.

– Se eu puder – ele me diz.

– Eu tenho uma... amiga. Da creche. Você deve se lembrar dela de quando era pequena. Ela tem duas bocas e fala muito.

– A pequenina – diz o Doutor, parecendo um pouco nervoso. Às vezes, 78342 causa esse efeito nas pessoas. – Quem poderia esquecê-la?

Eu sorrio.

– Ela é linda, não é? E eu nunca cheguei a lhe dizer isso. Você disse que estava comprando café para uma garota. Compre um para a minha garota também. Diga a ela que eu pensei... não, diga apenas que eu a acho bonita.

Ele balança a cabeça solenemente, e acredito que vai atender ao meu pedido. Eu o vejo seguir até a cápsula de fuga. Ele me lança um último olhar, como se esperasse que eu fosse voltar atrás, perder a coragem. Mas eu não desisto e, alguns instantes depois, ele está voltando para a Estação Intergaláctica da Torra de Café e para sua caixa azul.

Então está na hora de eu seguir em minha própria jornada.

Travo todas as telas para não ter chance de mudar de ideia.

Vou até a cama e puxo minhas fotos, observando todos os pequenos lugares que imaginava comprar. Morarmos todos juntos de novo parece um sonho de criança, mas não um sonho ruim. Quando eu estiver permanentemente mudado, espero me lembrar de sonhos como esse. Espero ser o tipo de adulto que não perde a parte boa de ser criança, mesmo sendo um monstro adulto.

Espero conseguir ser um pouco como o Doutor.

À medida que sigo rapidamente em direção ao sol, tudo é destruído pelo calor. A cama arde, a fita de fibra pega fogo. As fotos escurecem na minha mão. Uma energia fundida e quente me preenche, tocando minha pele, queimando os grãos de café no compartimento de carga e transformando-os em uma nuvem de energia. Sou a criatura que sempre fui destinado a ser. Asas se libertam das minhas costas. Um grito brota da minha garganta.

Ao meu redor, tudo é claro e brilhante. E, pela primeira vez que eu me lembre, nenhuma parte de mim está com medo.

 

 

                                                                  Holly Black

 

 

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