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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÁ COMPANHIA / Jack Higgins
MÁ COMPANHIA / Jack Higgins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na manhã de 26 de abril de 1945, dois Junkers 52, carregados com munição para tanque, conseguiram aterrissar numa pista improvisada, construída a partir de uma rua, no centro de uma Berlim sitiada. A artilharia russa bombardeava pesadamente a cidade e, em alguns dias, o Terceiro Reich chegaria ao fim e Hitler teria se matado com as próprias mãos.
Os Junkers não foram os únicos aviões a aterrissar daquele jeito. Naquele mesmo dia, o general da Luftwaffe Ritter Von Greim voou para Berlim a bordo de um Fieseler Storch, acompanhado do ás da aviação Hannah Reitsch. Entretanto, Von Greim foi gravemente ferido e coube a Reitsch assumir o controle e conduzir o avião até aterrissá-lo na avenida Leste-Oeste, próximo ao Portão de Brandemburgo. Von Greim, promovido a marechal de campo, partiu no dia seguinte a bordo de um Arado, pilotado por Reitsch.
Existem relatos sobre muitas outras pequenas aeronaves deixando Berlim naquela época usando as ruas como pista de decolagem. Reza a lenda que Martin Bormann, o homem mais poderoso do Reich depois de Hitler, escapou dessa forma para a Noruega, onde embarcou num submarino com destino à América do Sul.
Existe uma outra lenda ainda mais extraordinária: a história do barão Max von Berger, major da SS, que escapou num Fieseler Storch decolando da avenida Leste-Oeste logo após o casamento do Führer com Eva Braun, carregando com ele o legado mais duradouro de Hitler...

 


 


DAUNCEY VILLAGE - WEST SUSSEX
LONDRES - 2002

 

1

Estava chovendo quando enterraram Kate Rashid, condessa de Loch Dhu, uma chuva que se precipitava sobre Dauncey Village como uma pesada cortina, apressando as pessoas a buscarem abrigo no interior da igreja. Estavam todos presentes, os melhores e os poderosos, para dar o último adeus. Seus carros bloqueavam a High Street.

O Daimler do general Charles Ferguson tinha acabado de chegar. Ele estava sentado no banco traseiro com Sean Dillon, que tirou um cantil de prata do bolso interno, tomou um gole de uísque Bushmills e acendeu um cigarro.

— Vamos entrar?

— Não — disse Ferguson.

— Por que estamos aqui, então?

— Por uma questão de civilidade, Dillon. Afinal, trata-se de uma grande história. A mulher mais rica do mundo choca-se com o mar, junto à costa inglesa, pilotando seu próprio avião. O misterioso desaparecimento do primo dela, Rupert. — Ele se recostou no banco. — Você não faria melhor, se fosse a trama de um filme para a TV.

Dillon tomou outro gole do cantil.

— Já disse isso antes, general, você é um filho da mãe de sangue frio.

— É mesmo? Pensei que você é que fosse, Dillon.

— Tudo bem. Mas repito: se não vamos entrar, o que estamos fazendo aqui?

— Tenha paciência, Dillon. Estou esperando uma pessoa.

— E quem poderia ser?

— Bem, para começar, um grande amigo seu. — Um Mercedes surgiu de repente, freando atrás deles. — E ele acaba de chegar.

Blake Johnson saiu do carro, correu pela chuva e entrou apressadamente no banco traseiro do Daimler.

— É um grande prazer encontrá-lo, general. — Ele apertou a mão de Dillon. — E você também, meu grande amigo irlandês.

— De onde diabos você está vindo? — interpelou Dillon.

— Da Casa Branca, naturalmente.

Blake era um ex-fuzileiro naval que tinha pouco mais de cinquenta anos, mas seus cabelos ainda estavam pretos. Também era diretor do Departamento de Assuntos Gerais da Casa Branca, embora todas as pessoas que conheciam o departamento — e eram poucas — chamassem-no simplesmente de Porão. Na verdade, era o esquadrão particular de matadores do presidente, totalmente separado da CIA, do FBI, do Serviço Secreto ou de qualquer outra agência governamental.

Dillon estava intrigado.

— Mas por que você está aqui?

Ferguson o ignorou.

— É verdade? Sobre o barão?

— É. Acaba de ser anunciado. O presidente mandou que eu o procurasse imediatamente, general, por isso estou aqui.

— E quem é esse barão na vida real?

— Você logo vai descobrir — disse Ferguson.


Um Rolls-Royce parou diante do portão da igreja. Um chofer uniformizado desceu, carregando um guarda-chuva, e abriu a porta traseira. Um homem jovem, com pouco mais de trinta anos, capa de chuva nos ombros, saiu do carro e rapidamente deu a volta até a outra porta, onde aguardou.

O homem que saiu do carro era bem velho e trajava sobretudo de couro preto e chapéu mole, além de se apoiar numa bengala com castão de prata. O homem jovem, que segurava o guarda-chuva por cima dele, ofereceu o braço, e eles seguiram pelo caminho que levava à igreja.

— Ali vai ele — disse Blake.

Dillon franziu o cenho.

— Quem é?

— O barão Max von Berger — disse Ferguson. — Um homem extremamente rico. E, como Blake acaba de confirmar, ninguém menos do que o sócio oculto de Kate Rashid.

— Rashid? — perguntou Dillon. — Espere um instante. Você está dizendo que é o Berger da Berger Internacional?

— Correto.

— Eles têm bilhões.

— Exatamente.

— E agora eles controlam a Rashid Investimentos?

— Infelizmente, sim.

— Bem — disse Dillon, fazendo uma pausa —, isso pode ser um problema.

A chuva martelava o teto do carro enquanto o volume da música vinda do órgão da igreja aumentava.

Blake perguntou: — Por que sempre chove nos enterros?

— É como fazem em Hollywood — respondeu Dillon. — A vida imitando a arte. Quem era aquele sujeito durão?

— O que estava acompanhando o barão? — Blake inclinou a cabeça. — Interessante você se referir a ele dessa forma.

— É o nariz quebrado, Blake. Detestaria ver o que restou do homem que lhe fez aquilo.

Ferguson entrou na conversa.

— O nome é Marco Rossi. Ele estudou economia e administração em Yale, depois engajou-se na força aérea italiana e pilotou um Tornado na Bósnia. Você e ele têm muito em comum, Dillon. Ele foi abatido, mas mostrou-se muito ativo por trás das linhas sérvias. Os sérvios são um povo bem irracional, mas você sabe muito bem disso. A mãe dele trabalhou um tempo para o barão. Ela nasceu em Palermo e o tio dela, um certo Tino Rossi, era bem ligado à Máfia.

Dillon perguntou:

— Então, o que é que o jovem Marco está aprontando agora?

Foi Blake quem respondeu: — Entre outras coisas, está assumindo globalmente todas as operações de segurança da Rashid Investimentos. Não se engane, Sean. Esse cara é realmente bom. Não é aconselhável se meter com ele, nem de brincadeira na rua. — Ele deu de ombros. — Cheguei até mesmo a encontrá-lo no circuito social de Washington. Ele é charmoso e civilizado e as mulheres o adoram.

— É só não provocá-lo da forma errada — disse Ferguson. — Quando estava atrás das linhas sérvias na Bósnia matou ao menos quatro homens, pelo que sabemos. Ele mantém uma Nossa Senhora de marfim no bolso. Quando aperta o botão, a lâmina salta e corta bem abaixo do queixo. — Ferguson sorriu levemente. — É seu tipo de homem, Dillon.

— Bem, se está assumindo todas as operações de segurança da Rashid Investimentos, isso quer dizer que ele pode acessar tudo que os Rashid tinham sobre nós em seus computadores.

— Exatamente — disse Ferguson. — Incluindo o modo como você matou os três irmãos de Kate Rashid e interferiu, de uma forma um tanto áspera, nos negócios petrolíferos deles em Hazar. E acho que vai descobrir que foi mais do que uma extraordinária coincidência o fato de Kate Rashid posteriormente ter ido parar no mar pilotando seu próprio Black Eagle, e que o querido primo dela, Rupert, tenha desaparecido da face da Terra.

— Então eles estão vindo atrás de nós.

— Sem dúvida, Dillon. Eu pensaria exatamente dessa forma.

Ele pegou sua pasta e retirou um envelope grande.

— Você vai querer ler todo o material. Especialmente a parte que trata do que von Berger fez na Segunda Guerra Mundial. Algo especialmente esclarecedor.

Recostou-se no banco.

— Realmente, Dillon. Acho que vamos ter uma experiência interessante, muito interessante.


O BUNKER DO FÜHRER

BERLIM

30 DE ABRIL DE 1945

 

2

Se houvesse um inferno na Terra, Berlim seguramente era este lugar. Parecia um verdadeiro sepulcro em chamas, com fumaça negra espalhando-se por todos os lugares.

A cidade estava condenada, todos sabiam disso, e os russos já tinham o controle da metade leste.

As pessoas iam e vinham, refugiados em sua própria cidade, carregando o que podiam, uns poucos pertences deploráveis, na esperança desesperada de conseguir chegar, de alguma forma, ao lado oeste e alcançar o avanço do exército americano.

Grupos da SS detinham qualquer pessoa que trajasse uniforme. Aqueles que não tinham autorização ou alguma espécie de salvo-conduto eram sumariamente executados.

Bombas disparadas aleatoriamente pela artilharia russa caíam em todos os lugares. As pessoas gritavam em pânico e se dispersavam.

O Sturmbannführer1 barão Max von Berger sentou-se no banco dianteiro de um Kubelwagen, o equivalente alemão de um jipe. Havia um cabo da SS ao volante e no banco traseiro um sargento com uma metralhadora MP40 Schmeisser. Enquanto seguiam pela Wilhelmstrasse, nas proximidades da Chancelaria, viram três soldados da SS diante de dois homens ajoelhados, trajando roupas civis, que estavam prestes a serem executados.

Von Berger mandou o motorista parar.

— Parem! — gritou ele. — Que autoridade têm para fazer isso?

Os homens interromperam o que faziam. O líder deles, um sargento, tinha um rosto grosseiro e mal barbeado. Olhou para o jovem rosto de von Berger e para o capote de couro preto dele, mas não conseguiu ver a Cruz de Cavaleiro com Folhas de Carvalho e Espadas sob a gola do casaco.

— E quem diabos é você, filho?

— Sturmbannführer von Berger.

O cheiro de aguardente era forte.

— Na sua idade? Você parece ter dezenove anos. Aposto que roubaram os uniformes, você e seus amigos aí. — Ele engatilhou a Schmeisser. — Vamos ver sua autoridade.

— Bem, posso mostrá-la.

Max von Berger sacou uma Luger do bolso direito do pesado capote e acertou-o entre os olhos. O sargento na traseira do Kubelwagen disparou quando os outros dois se viravam para correr.

Os dois homens que tinham se deparado com a morte se levantaram atordoados, e von Berger gesticulou para que desaparecessem.

— Sumam da minha frente. — Ele se virou para o motorista: — Prossiga.

O Kubelwagen saiu da Wilhelmstrasse e entrou na Vosstrasse, aproximando-se da Chancelaria do Reich, que, como tudo mais, estava desfigurada e desmoronando sob os bombardeios. Há muito deixara de funcionar como uma espécie de quartel-general, mas embaixo de trinta metros de concreto ficava o último posto de comando de Adolf Hitler, o bunker do Führer. Era um mundo subterrâneo autossuficiente, com eletricidade, água corrente e amplas cozinhas. Ainda se mantinha em contato com o mundo externo por rádio e telefone, e estava repleto de gente, como Bormann e Ribbentrop, além de vários generais, todos tentando esquecer a dura realidade de que, trinta metros acima de suas cabeças, o Terceiro Reich chegava a um desastroso final.

A rampa para veículos estava destruída, mas havia espaço para estacionar o Kubelwagen num dos lados. O sargento da SS saiu do carro e abriu a porta para von Berger.

— Pensamento rápido, Herr barão.

— Um reflexo, Karl. Foi uma guerra longa. Você também não se saiu nada mal. — Ele desceu do carro, esticou o braço para pegar sua pasta e andou em direção aos dois SS de sentinela na entrada do bunker.

Eles imediatamente ficaram em posição de sentido. — Sturmbannführer!

— Um de vocês dois, entregue isso ao ajudante do general de divisão Mohnke. É o relatório que o general precisa sobre a prontidão da Brigada Número Dois para o assalto final. — Um dos homens pegou o relatório e seguiu para o subterrâneo. Von Berger se virou para o outro e deu um tapinha no ombro dele. — Arrume algo para eu beber. Levei um tiro no quadril esquerdo no ano passado, e sinto dores terríveis em algumas manhãs. Vou estar no jardim.

O rapaz saiu rapidamente, e von Berger disse:

— Venha para cá, Karl — e contornou o jardim, um lugar outrora encantador, que se encontrava agora arrasado, com algumas árvores tombadas e crateras causadas por bombas. Havia uma certa tristeza naquele lugar, gerada pela lembrança do que tinha sido antes e, por um momento, a artilharia parecia apenas o som de um distante trovão no horizonte.

Ele tirou uma cigarreira do bolso, escolheu um cigarro e acendeu-o com o fogo oferecido por Karl Hoffer. Um jovem de vinte e cinco anos, firme e persistente, Hoffer era guarda-florestal da imensa propriedade do barão, localizada na floresta de Holstein Heath, o Schwarze Platz, o lugar escuro. Eles tinham servido juntos por quatro anos.

— Bem, meu amigo, estamos numa bela situação, não é?

— Estivemos em Stalingrado também e conseguimos escapar, barão.

— Não desta vez, Karl. Receio que esta se torne nossa residência permanente. Gostaria de saber o que está acontecendo em casa.

Ele estava pensando no Schloss Adler, que ficava acima da cidade de Neustadt. O castelo era morada de sua família por setecentos anos, cercado por uma floresta escura e misteriosa, de grande extensão, pontilhada de vilarejos cujos habitantes eram membros da vasta família por ele chefiada.

— Não teve notícias da baronesa? — perguntou Hoffer.

— Recebi aquela carta há quatro meses, e desde então nada. E você?

— Apenas aquela que recebi da minha Lotte em fevereiro. Naturalmente, ela mencionou a baronesa. — Lotte trabalhava como governanta dela no Schloss.

O pai de von Berger, general de divisão, havia morrido na campanha polonesa, em 1939, elevando Max subitamente ao título de barão. Sua mãe tinha morrido no nascimento dele. A única mulher da vida dele era sua amada Elsa, com quem tinha se casado cedo por causa da guerra. Assim como von Berger, ela tinha vinte e três anos, e o garoto, o pequeno Otto, estava com três.

O jovem guarda da SS apareceu com uma garrafa e dois copos.

— Desculpe, Herr barão, receio que seja vodca.

Max von Berger soltou uma risada.

— Diria que não há nada mais adequado para a ocasião, mas você trouxe apenas dois copos.

O garoto enrubesceu.

— Bem, tem um no meu bolso, Sturmbannführer.

O barão se virou para Hoffer.

— Está vendo como os treinamos bem? — Pegou a garrafa, tirou a rolha, serviu uma dose generosa e virou-a num gole. Engasgou. — Meu Deus, caiu muito bem. — Os russos destilaram essa no quintal. — Ele serviu outra dose, que seguiu o mesmo caminho. — Excelente. Segure isso por um instante, Karl.

— Barão.

Von Berger tirou o capote de couro e entregou-o a Hoffer.

— Meu quadril repentinamente ficou melhor. — Serviu uma terceira dose de vodca e devolveu a garrafa ao rapaz. — Agora é a vez de vocês.

Ele retirou um cigarro da cigarreira usando apenas uma mão, enquanto segurava o copo com a outra. Hoffer ofereceu-lhe fogo e, em seguida, o barão se afastou, saboreando seu tabaco e bebericando a vodca.

Hoffer e o rapaz viraram uma dose e se serviram de outra.

O rapaz estava fascinado com von Berger.

— Meu Deus, o uniforme dele. Nunca vi nada parecido com isso.

Hoffer estava usando um sobretudo camuflado de combate. Ele deu de ombros.

— Estou usando um igual por baixo do casaco. Exceto pelas medalhas. — Ele sorriu. — Mas as medalhas são todas dele.

Naquele momento, o general Mohnke surgiu na entrada do bunker que dava para o jardim. Ele se dirigiu a von Berger, ignorando os outros dois.

— Barão, o Führer quer vê-lo.

Max von Berger se virou, com uma expressão de perplexidade no rosto.

— O Führer?

— Sim, imediatamente.

Von Berger parou ao lado de Karl e estendeu o copo. Karl encheu-o e von Berger propôs um brinde: — À nossa, meu amigo, e para os trezentos e sessenta e cinco mil homens do batalhão que morreram pelo que quer que seja. — Ele virou a bebida e jogou o copo longe.

— Então, general — disse ele para Mohnke —, não vamos fazer o Führer esperar.

Apesar de sua juventude, o barão Max von Berger tinha visto muito combate. Primeiro na Polônia, na França e na Holanda, junto às Waffen SS. Depois, transferido para o 21° Batalhão de Paraquedistas da SS, acabou ferido em Malame, em Creta. Em seguida, foi enviado para o Afrika Korps, sob o comando de Rommel, e daí à Guerra de Inverno na Rússia. Ele usava uma insígnia dourada, o que significava que tinha sido ferido cinco vezes.

Apesar do Emblema da Caveira no quepe de serviço, das runas e dos distintivos na gola, ele era um Fallschirmjäger completo, em sua camisa de aviador e a calça enfiada nas botas ao estilo da Luftwaffe — um paraquedista do exército alemão. A águia dourada e prateada dos paraquedistas ficava presa no lado esquerdo do peito, acima da Cruz de Ferro. A Cruz de Cavaleiro com Folhas de Carvalho e Espadas pendia do pescoço.

Karl Hoffer disse:

— O barão é uma pessoa especial. Passamos o diabo por quatro anos e ainda estamos aqui.

— Talvez não por muito tempo — disse o rapaz.

— Quem sabe? Em Stalingrado, achamos que nossa hora tinha chegado, mas bem perto do fim nós dois fomos feridos e nos puseram num dos últimos aviões que conseguiram sair de lá. Trezentos e cinquenta mil homens foram para o buraco, mas conseguimos escapar.


Ele seguiu o general por uma escadaria cercada de paredes molhadas devido à umidade. Muitos soldados, principalmente da SS, espremiam-se por todos os recantos de corredores e passagens que pareciam infinitos. Havia um ar generalizado de desespero, ou melhor, de resignação. Quando as pessoas falavam era em tom contido, tendo como fundo o zumbido dos ventiladores elétricos que controlavam o sistema de ventilação. Os soldados só paravam de falar quando viam a surpreendente imagem de Max von Berger, em seu imaculado uniforme sob medida e suas reluzentes medalhas.

Cruzaram os andares mais baixos que abrigavam a maior parte do estado-maior do Führer, de Goebbels e família, Martin Bormann, além de vários generais. Mohnke ainda seguia na dianteira, mas von Berger sabia exatamente para onde estava indo, pois já estivera ali antes.

No jardim do bunker ficava o gabinete do Führer, assim como um quarto de dormir, duas salas de estar, banheiros e, nas proximidades, uma sala de mapas, bem conveniente para as constantes reuniões. Mohnke bateu na porta e entrou. Von Berger aguardou. Houve um murmúrio de vozes, em seguida Mohnke voltou.

— O Führer vai recebê-lo agora. — Ele apertou a mão do jovem oficial. — Seus camaradas da SS têm orgulho de você. Sua vitória será a nossa.

Um slogan criado por Goebbels num de seus momentos de inspiração, mas que era alvo de muita irreverência nas fileiras da SS. Em todo caso, von Berger não conseguia imaginar o que podia ter feito para ser adulado dessa forma.

— Você é muito gentil, general.

— De forma alguma! — Mohnke estava suando e parecia levemente atordoado. Ele recuou enquanto von Berger entrava no gabinete.


O Führer estava sentado a sua mesa, curvado sobre um mapa. Ele parecia ter encolhido, pois o paletó de seu uniforme estava largo demais. O rosto afigurava-se exausto, seus olhos pareciam dois buracos negros nos quais não havia o menor sinal de vida, suas bochechas estavam encovadas, um homem que tinha chegado ao fim. A mulher jovem ao lado dele era uma auxiliar da SS, trajando uniforme. Ela segurava um maço de documentos que eram passados, um de cada vez, para que Hitler, com a mão trêmula, os assinasse. O nome dela era Sara Hesser. Tinha vinte e dois anos e fora trazida pessoalmente pelo Führer para atuar como secretária substituta.

Ele olhou para ela.

— Entregue estes. Vou receber o barão na sala de estar. Pode me trazer o arquivo especial. Está atualizado?

— Até ontem à noite, meu Führer.

— Ótimo. — Ele se levantou. — Siga-me, barão.

Ele caminhou na frente arrastando os pés, abriu a porta e entrou na primeira sala de estar. Sentou-se numa poltrona diante de uma mesa de centro.

— Barão Max von Berger, Sturmbannführer da SS, você fez um juramento sagrado de proteger seu Führer. Quero que o repita neste momento.

Von Berger bateu os calcanhares, unindo-os.

— Juro obediência incondicional ao Führer do Reich alemão e do seu Povo, Adolf Hitler, Comandante Supremo das Forças Armadas, e estarei preparado, como um bravo soldado, para arriscar minha vida em qualquer momento por este juramento.

Hitler assentiu com a cabeça em sinal de satisfação.

— Você tem um histórico admirável para alguém tão jovem, e no entanto nunca se tornou membro do Partido Nazista. Por quê?

— Não me parecia adequado, meu Führer.

— A típica resposta vinda do chefe de uma grande família. Um aristocrata empedernido... Contudo, serviu-me com empenho. Por que fez isso?

— Por uma questão de honra, meu Führer. Fiz o juramento.

— Exatamente o que eu imaginava que fosse responder. É um jovem notável. Percebi isso quando o condecorei com as Espadas. Esse foi o motivo pelo qual transformei você em um ajudante de ordens. Queria salvá-lo. Você não me seria de nenhuma utilidade morto e isso aconteceria se fosse mandado de volta para a linha de frente.

Max von Berger respirou fundo.

— O que gostaria que eu fizesse, meu Führer?

— A tarefa mais importante deixada para qualquer um que se encontre neste bunker. Os russos estão chegando. Eles querem me enjaular e eu não aguentaria isso. Minha esposa e eu vamos cometer suicídio. Não, não, por favor não me olhe assim, von Berger. O mais importante é que minha obra deve continuar e você terá um papel nisso, o papel mais importante.

Quanto à esposa, ele provavelmente estava se referindo à amante, Eva Braun, com quem tinha se casado por volta da meia-noite do dia 28.

— Temos de cuidar para que o nacional-socialismo sobreviva, isso é essencial. Temos imensas somas de dinheiro, não somente na Suíça, mas em países da América do Sul que simpatizam com nossa causa. Muitos dos meus emissários já estão na Argentina e no Brasil. Temos que manter a Kameradenwerk, a Ação dos Camaradas.

Houve uma batida na porta e Sara Hesser entrou, carregando uma pasta. Hitler acenou para que viesse para o lado dele.

— Não há segredos entre mim e Sara, como você vai ver.

— Bem, onde me encaixo nisso, meu Führer?

Hitler ergueu uma mão.

— As Diretivas do Führer.

Sara Hesser abriu a pasta, retirou uma folha de papel e repassou-a a von Berger, que a leu com um certo espanto.

Era explícito:

 

Bunker do Führer, 30 de abril de 1945.

O portador deste salvo-conduto, um ajudante de ordens do meu Estado-Maior, o Sturmbannführer barão Max von Berger, encontra-se numa tarefa de caráter pessoal por mim designada. Todo o corpo de funcionários, civil e militar, deve prestar-lhe toda a assistência.

Adolf Hitler

 


— Isso pode ajudá-lo — disse Hitler.

Para Max von Berger, as implicações eram surpreendentes. — Mas de que forma, meu Führer?

— Para sobrepujar tudo o que aconteça a você nos próximos dias. Para ajudá-lo a chegar em casa, para a sua sobrevivência e para que você possa se preparar para sua inevitável captura pelos americanos ou pelos britânicos.

Von Berger estava perplexo.

— Mas não há americanos aqui, meu Führer, somente russos.

— Você não está entendendo. Ouça, nos últimos dias muitas aeronaves vieram de Gatow e Rechlin e usaram as ruas como pista de pouso, como a avenida Leste-Oeste, perto do Portão de Brandemburgo. O marechal von Greim chegou aqui outro dia num Fieseler Storch.

Max von Berger esforçava-se para manter o controle. O único motivo pelo qual von Greim teria vindo para Berlim seria uma promoção para chefiar a Luftwaffe. O Führer obviamente poderia tê-lo comunicado por telefone. Em vez disso, von Greim voou de Munique escoltado por cinquenta caças, dos quais quarenta foram abatidos.

Ele disse cautelosamente: — E como isso me afeta?

— Falei com o comandante da base da Luftwaffe em Rechlin. Um piloto se apresentou como voluntário para levá-lo num Storch. Ele já chegou aqui e está aguardando ordens naquela imensa garagem da casa de Goebbels. A chuva forte e a fumaça dos incêndios proporcionarão a oportunidade ideal para a partida.

— Mas para fazer o que, meu Führer?

Hitler fez um gesto com a mão trêmula e Sara Hesser colocou a pasta na mesa.

— Quando a guerra terminar, a indústria entrará em colapso, assim como a empresa de sua família, a Siderúrgica Berger. Daqui a um tempo, no entanto, as coisas vão começar a melhorar, especialmente para você. Nesta pasta você vai encontrar os detalhes dos depósitos na Suíça, os códigos e as senhas que lhe darão acesso a milhões. Você transformará a Berger numa potência novamente.

Von Berger estava atônito.

— Isso não é tudo. — Hitler abriu a pasta e tirou um livro encadernado de azul-marinho. — Mantive um diário nos últimos seis meses, um período no qual todos me traíram. Goering, Himmler... — Ele balançou a cabeça.

— E eu, mais do que ninguém, tentei ser sensato. Cheguei mesmo a mandar Walter Schellenberg à Suécia para encontrar um representante de Roosevelt, você estava a par disso? Não, claro que não. Propus uma paz negociada para combater a ameaça comunista. Eu é que sou o inimigo? Não. É aquele cão, o Stalin. Juntos, a Alemanha e os Estados Unidos, poderíamos esmagá-lo, mas minha proposta foi rejeitada. Creia em mim, os americanos vão colher uma tempestade. Os russos não vão reconhecer o que eles fizeram. Os danos que vão causar a Berlim serão inimagináveis. Entretanto, Roosevelt e Eisenhower decidiram conter o avanço depois da travessia do Elba. Patton e seus tanques poderiam estar aqui em vinte e quatro horas, mas receberam ordens para permanecer no lugar em que se encontram, respeitando a vontade de Stalin e permitindo que os comunistas tomem Berlim.

— Meu Deus — disse von Berger.

— Creia em mim, nos anos vindouros, os americanos e os britânicos vão se arrepender disso, e considerarão a maior loucura que já fizeram. E está tudo no meu diário. Venho ditando isso diariamente para a Srta. Hesser. Deve ter reparado no tremor das minhas mãos. É uma doença lamentável que vem me atormentando há algum tempo. Mas assinei todos os apontamentos.

— O que devo então fazer com o diário, meu Führer?

— Haverá um momento em que ele poderá ser útil para o progresso da nossa causa. Não sei exatamente quando, barão, mas vai acontecer. Você será seu guardião. É um livro sagrado. Não quero que sejam feitas cópias, você pode prestar um juramento quanto a isso? Proteja-o o tempo todo. Você pode lê-lo, caso queira. Vai achar o relato das minhas negociações com Roosevelt especialmente interessantes. — Ele balançou a cabeça. — Acredito plenamente que você conseguirá fazer isso por mim.

E o barão Max von Berger, um grande soldado e bravo homem, mas que sempre desprezara o Partido Nazista, por algum motivo se sentiu incrivelmente emocionado. A jovem secretária colocou o diário e os documentos de volta na pasta e a entregou.

Hitler disse: — Bem, você deve partir dentro de uma hora por causa do mau tempo.

— Posso levar meu sargento comigo? — perguntou von Berger.

— Naturalmente. Pode levar a Srta. Hesser também. — Ele olhou para ela.

Ela disse: — Não, meu Führer, meu lugar e meu dever são aqui.

— Então, que seja assim. — Hitler levantou-se e estendeu uma mão trêmula para von Berger. — Estranho. Você nem mesmo é membro do partido, no entanto foi o escolhido.

Von Berger apertou a mão dele com força. — Aceito a tarefa. É uma questão de honra.

— Siga em frente. Não devemos nos encontrar novamente.

Sara Hesser adiantou-se e abriu a porta. Max von Berger, com a pasta na mão, parou e se virou. E a imagem de Hitler, curvado sobre a mesa, o assombraria para o resto da vida.

— Meu Führer. — Ele prestou continência.

Hitler deu um leve sorriso.

— Mesmo agora você não consegue me prestar a saudação do partido. Tocou o quepe como se fosse um oficial da guarda britânica.

— Desculpe, meu Führer.

— Ah, deixa para lá. Apenas siga em frente. — Hitler acenou com a mão e Sara Hesser fechou a porta diante do barão.

Ele achou o caminho de volta pelos corredores apinhados de gente e pelo jardim do bunker, onde encontrou Hoffer e o jovem soldado da SS bebendo o resto da vodca, sentados sob um toldo de concreto, enquanto chovia torrencialmente.

Hoffer se levantou.

— Barão?

— Estamos partindo, Karl. Acredite se quiser, vamos conseguir escapar.

— Mas como, senhor?

Von Berger levou-o para um canto.

— Fui designado para uma missão especial pelo Führer. Há uma pequena aeronave aguardando. Não vou dizer mais nada, mas estamos indo para casa, vamos para Holstein.

— Não consigo acreditar nisso.

— Bem, mas é a verdade. Dê-me meu capote e pegue algumas armas.

Ele se virou e o rapaz disse:

— Está indo embora, Sturmbannführer?

Von Berger sorriu e deu um tapinha no ombro dele.

— Qual é seu nome, meu jovem?

— Paul Schneider.

— Bem, vou lhe dizer uma coisa, Paul Schneider. Em vez de ficar esperando para enfrentar a morte nas mãos dos russos, você pode vir conosco, voar para o oeste e se render aos americanos.

— Não consigo acreditar nisso — disse o rapaz ofegante. — O sargento Hoffer acaba de dizer a mesma coisa. — Ele se virou na direção de Hoffer. — Apresse-se.


Quarenta minutos mais tarde, von Berger, Hoffer e o jovem Schneider deixaram o bunker, saindo pela Hermann Goering Strasse. Estavam bem armados, levando mochilas militares com munição extra e granadas. Cada um deles carregava uma metralhadora Schmeisser pendurada no peito.

Agora havia hordas de pessoas tomadas por um pânico terrível entrando no Tiergarten, e o nevoeiro, que ficava pior ao se misturar com a fumaça, envolvia a cidade de tal forma que nem mesmo a chuva forte era capaz de dissipá-lo. O ruído surdo da artilharia era constante e mulheres e crianças gritavam aterrorizadas.

Os três homens seguiram pelo Tiergarten contornando a multidão, cortando caminho pelo Portão de Brandemburgo, para chegar à mansão de Goebbels. Esta, obviamente, apresentava sinais dos danos causados pelos estilhaços das bombas, mas a imensa garagem estava intacta. Hoffer abriu com facilidade o portão principal.

— Parados — avisou uma voz enquanto uma luz era acesa. Um pequeno avião de reconhecimento, um Fieseler Storch, apareceu. De pé ao lado dele havia um jovem capitão da Luftwaffe uniformizado, com jaqueta de aviador.

Ele segurava uma Schmeisser pronta para disparar.

Von Berger tomou a frente de Hoffer.

— Sou o Sturmbannführer von Berger. Quem é você?

— Meu nome é Ritter, Hans Ritter, e graças a Deus você chegou. É a quarta vez que faço esse percurso e não foi nada agradável. Posso perguntar para onde vamos?

— Para oeste, para Holstein Heath, no Schwarze Platz. Há um castelo lá, o Schloss Adler, acima de Neustadt. Será que vamos conseguir?

— Sim. É um voo de quatrocentos e oitenta quilômetros e vamos ter de reabastecer em algum lugar, mas vou lhe dizer uma coisa, Sturmbannführer, prefiro ir para lá do que ficar aqui, então vamos cair fora o mais rápido possível. Peça para seus amigos abrirem os portões.

— Boa ideia.

Hoffer e Schneider abriram o portão de correr enquanto Ritter pulava para dentro do Storch e dava a partida no motor. Os três homens subiram a bordo e Hoffer fechou a porta.

Lá fora, os refugiados em fuga viraram-se perplexos e depois se afastaram para os lados, à medida que o Storch avançava aos solavancos pelo meio do entulho e dos fragmentos de vidro, em direção à Coluna da Vitória. Chovia torrencialmente.

Ritter aumentou a rotação do motor e seguiu pela avenida em direção ao monumento. As pessoas se dispersaram quando o Storch decolou, no exato momento em que a artilharia russa abria fogo, lançando bombas que explodiam ao lado do avião. A aeronave manobrou para estibordo e por pouco não se chocou com a Coluna da Vitória, erguendo-se em meio ao nevoeiro.

A dois mil metros de altitude, Ritter nivelou a aeronave. — Vamos permanecer em baixa altitude até que estejamos bem longe.

Quando um deles olhou para baixo, só conseguiu ver os incêndios e as explosões causadas pela artilharia, além de fumaça e nevoeiro, que eram carregados pelo vento.

Hoffer disse: — Parece o inferno na Terra. Não consigo acreditar que conseguimos escapar.

Von Berger pegou dois cigarros na cigarreira de prata, acendeu-os e passou um para Hoffer.

— Bem, afinal você estava certo, Karl. Exatamente como em Stalingrado.


Falando com o barulho do motor ao fundo, Ritter gritou:

— Como disse antes, são quatrocentos e oitenta quilômetros até Holstein Heath, e estou com muito pouco combustível. Vou seguir para a base da Luftwaffe em Rechlin.

— Tudo bem por mim — disse-lhe von Berger —, se você acha prudente.

— Acho. Não temos ideia do que nos espera ao longo da jornada. Tudo vai depender do tempo em Rechlin. Veremos.


Algum tempo mais tarde, ele desceu através da chuva torrencial e do nevoeiro. E chamou pelo rádio: — Torre de Rechlin. Aqui fala o capitão Ritter, proveniente de Berlim. Tenho que aterrissar para reabastecer.

Houve um ruído de estática e uma voz disse:

— Sugiro que você tente em outro lugar, capitão. O nevoeiro está péssimo aqui. O teto está abaixo de quatrocentos metros.

— Estou num nível perigoso de combustível.

— A visibilidade está piorando cada vez mais, acredite em mim.

Ritter se virou para von Berger com uma expressão interrogativa. O barão escolheu outro cigarro e Hoffer acendeu-o para ele. Von Berger soltou a fumaça e disse a Ritter:

— Nós conseguimos escapar de Stalingrado e de Berlim. Tudo o que vier é lucro. Vamos fazer isso.

— Às ordens, Sturmbannführer.

O Storch desceu rapidamente para o impenetrável mundo cinza que os cercava, onde só havia nevoeiro e chuva forte. Von Berger não sentia medo, muita coisa já tinha acontecido. Algum estranho destino seguramente estava se consumando. Mesmo a quatrocentos metros, não havia nada visível.

Com o barulho do motor ao fundo, ele gritou para Ritter: — Vá em frente. O que temos a perder?

Ritter assentiu com a cabeça e, com um estranho sorriso fixo no rosto, manteve o Storch em descendência. Repentinamente, na marca fatal dos trezentos metros, a base da Luftwaffe em Rechlin tornou-se visível: os edifícios, os hangares e as duas pistas. Havia sinais de bombardeio e duas aeronaves pegavam fogo ao lado de uma pista, um velho Dornier e um caça noturno modelo Ju-885.

Uma equipe de bombeiros estava apagando as chamas.

Ritter fez uma aterrissagem perfeita e taxiou pela pista, passando por uma atônita equipe de bombeiros rumo aos hangares, onde desligou o motor.

— Bem, essa foi por pouco.

— Você é um gênio, Ritter.

— Não, senhor. É que às vezes se consegue o melhor desempenho, normalmente quando é necessário.

Enquanto saíam da aeronave, um carro de campanha surgiu com um coronel da Luftwaffe ao volante. Ele desceu do veículo.

— Meu bom Deus, é você, Ritter. Vindo direto de Berlim? Não consigo acreditar que tenha conseguido sair de lá. Como estão as coisas?

— Nem queira saber. Este é o Sturmbannführer barão Max von Berger e seus rapazes. — Ele se virou para von Berger. — O coronel Strasser é um velho amigo.

— Posso perguntar o que pretende fazer, barão? — indagou Strasser.

Von Berger abriu a pasta e retirou a Diretiva do Führer, que foi passada adiante. Strasser a leu, observando a assinatura.

— Suas credenciais são impecáveis, barão. Como posso ajudá-lo?

— Precisamos reabastecer para seguir voo para Holstein Heath.

— Tudo bem, posso cuidar disso. Ainda temos muito combustível e vocês são muito bem-vindos para desfrutar de nossa hospitalidade, mas não há a menor possibilidade de irem a qualquer lugar por algum tempo. Deem uma olhada. — Ele fez um gesto na direção da pista, totalmente encoberta pelo nevoeiro.

— Vou cuidar para que a aeronave seja reabastecida e revisada, mas não há garantia de partida. Você pode usar a sala dos oficiais e, nessas circunstâncias atípicas, seus homens também podem acompanhá-lo. Vou levá-los de carro até lá.

— Vou ficar junto ao avião enquanto isso — disse Ritter. — Vou me certificar-me de que está tudo bem.

Strasser foi para trás do volante do carro de campanha. Von Berger e seus dois homens entraram, e eles partiram.


A sala dos oficiais tinha um estranho ar de desolação. Enquanto um ordenança atendia no bar, outro servia de garçom. Ele levou um cozido, acompanhado de pão e cerveja, para Hoffer e Schneider, que se sentaram junto à janela e comeram.

Schneider disse:

— Não consigo acreditar que saí de Berlim. Parece um pesadelo.

— De onde você vem? — perguntou Hoffer.

— De Hamburgo.

— Que não tem andado nada bem nesses dias. Você está bem melhor com a gente.

Atrás deles, num canto junto ao bar, o garçom servia sanduíches de presunto, preparados com pão crocante, acompanhados de salada. Strasser voltou de sua sala para juntar-se a ele.

— Champanhe — disse ele ao garçom, antes de se virar para von Berger, com um sorriso no rosto. — Estamos com sorte. Ainda temos ótimas bebidas e comida decente. Acho que isso não vai perdurar.

— Bem, pelo menos são os ianques e os ingleses que estão vindo, e não os russos.

— Sem dúvida alguma. — Eles provaram o champanhe e começaram a comer os sanduíches. Ritter logo se juntou a eles.

— Está tudo sendo providenciado, mas não vejo modo de partirmos antes de algumas horas. O que vai acontecer com você, Strasser?

O coronel serviu uma taça de champanhe a ele.

— Cavalheiros, não sei qual é a missão de vocês para o Führer e nem quero saber. Pessoalmente, aguardo ansiosamente a chegada dos americanos com cada fibra do meu ser. — Ele propôs um brinde. — A vocês, meus amigos. Tem sido uma guerra difícil.

Havia muitos quartos no alojamento e todos arranjaram camas. Von Berger estava cochilando quando foi acordado por Strasser, às duas e meia da manhã.

— Hora de partir.

Von Berger se sentou. — Como está o tempo?

— O nevoeiro clareou um pouco, mas ainda está chovendo forte. Estão dizendo que os russos cercaram Berlim completamente. Eles podem se tornar uma séria ameaça para nós aqui. Espero que os ianques consigam chegar primeiro.

— Bem, então estamos partindo.

Ritter e o Storch, com Hoffer e Schneider em seu interior, aguardavam na pista número um. Strasser desceu do carro de campanha e entregou uma bolsa a von Berger.

— Sanduíches, salsichas e algumas garrafas de bebida. Boa sorte, meu amigo. — Ele apertou a mão de von Berger com vigor e, de repente o abraçou. — Que diabos estávamos querendo fazer? Como nos enfiamos numa confusão dessas?

Von Berger estava espantosamente emocionado.

— Mantenha a fé, as coisas vão mudar. Nossa hora vai chegar. Vou procurá-lo.

Strasser ficou surpreso.

— Você está falando sério, barão?

— Sem dúvida. Vou achá-lo, acredite em mim. Tenho que retribuir sua ajuda esta noite.

Ele subiu na aeronave depois de Ritter e fechou tudo. Lá fora, Strasser juntou os calcanhares e fez uma saudação militar. Von Berger a retribuiu da janela. O avião correu pela pista e se ergueu rumo à escuridão.

Ritter tinha dado fones de ouvido e um microfone a von Berger.

Ele disse: — Vou ser bem cauteloso. Em baixa velocidade e com este tempo, a viagem para Holstein Heath pode durar três horas e meia, talvez quatro. Na maior parte do tempo vou voar a dois ou três mil metros, talvez mais alto se o tempo continuar ruim.

— Tudo bem.


O voo foi dificultado pela chuva e o nevoeiro, que em determinados trechos clareava e, em outros, surgia de forma implacável. Passada uma, duas horas, a viagem tornou-se monótona. Von Berger repassou a bolsa de comida a Hoffer, que a abriu e distribuiu os sanduíches e as salsichas. O vinho era vagabundo, e foi servido em copos de papel. Até mesmo Ritter bebeu um pouco, chegando a estender o copo para uma segunda dose.

— Vamos, não vai me fazer nenhum mal. Preciso de toda ajuda que conseguir para aguentar este tempo.

Von Berger acabou de comer, bebeu seu vinho e acendeu um cigarro. A chuva batia nas janelas. Era uma sensação estranha se sentir chacoalhado através do mau tempo da madrugada. “O que estou fazendo aqui?”, pensou ele. “É um sonho? Eu devia estar em Berlim.” Ele balançou a cabeça. “Eu ainda devia estar em Berlim.

Em seguida, pensou: “Mas não estou. Estou a caminho de casa para ver Elsa e o pequeno Otto, e Karl vai encontrar sua Lotte e as duas meninas. É um milagre e o Führer foi o responsável. Deve haver um significado nisso.”

Ritter disse:

— Continua bem ruim, mas acho que vamos ficar bem. Vou subir para quatro mil metros.

— Ótimo.

Eles seguiram em meio ao nevoeiro intermitente. Lá em cima, o céu estava limpo até o horizonte; podiam ver uma lua cheia tocando os limites das nuvens do amanhecer.

Subitamente houve um estrondo e o Storch foi jogado de lado por uma forte turbulência, enquanto um avião se desviava para estibordo. Eles puderam ver o piloto na cabine e uma estrela vermelha na fuselagem.

— O que temos aqui? — indagou Ritter. — Parece um caça Yak, o modelo novo, com canhão. Isso pode nos causar estragos.

— O que fazemos então?

— Bem, estou realmente muito devagar para ele, mas isso também pode ser uma vantagem. Aviões muito velozes erram os disparos às vezes. Vou descer e torcer para que ele faça alguma coisa estúpida.

Ele inclinou um pouco o avião e caiu rapidamente para três mil metros de altitude, em seguida inclinou ainda mais para bombordo e chegou a dois mil. O Yak começou a disparar o canhão cedo demais para sua velocidade excessiva e acabou errando os tiros.

Investiu novamente e, desta vez, abriu dois buracos na asa direita e estilhaçou a janela. Ritter gritou e inclinou-se para trás, com sangue no rosto. Ritter disse:

— Estou bem, foram só os estilhaços. Vou ficar com uma bela cicatriz. Estou ficando cansado disso tudo, vou descer mais e mostrar a esse bastardo como se pilota.

Desceu direto e a toda velocidade, nivelando na altura dos quinhentos metros. O Yak investiu novamente vindo pela cauda e Ritter soltou os flapes. O Storch pareceu parar em pleno ar e o Yak teve que se inclinar muito para evitar uma colisão, o que levou o piloto a perder o controle da aeronave e a se chocar no pasto de uma fazenda. Houve um cogumelo de chamas abaixo deles, enquanto prosseguiam voando.

— Eu disse que você era um gênio — comentou von Berger.

— Só em determinadas ocasiões.

Von Berger se virou para Hoffer:

— Abra a bolsa de combate. Pegue gaze para o rosto dele. Dê-lhe também uma ampola de morfina.

Ritter disse: — É melhor não. Mas vou lhe dizer o que gostaria que você fizesse: abra aquela garrafa, pouco importa o conteúdo dela.

— Achei que fosse vinho, mas é vodca — disse Hoffer.

— Ótimo. Sempre piloto melhor com álcool.


Deviam ser cinco, cinco e meia da manhã quando eles se aproximaram de Holstein Heath, sobrevoando, a seiscentos metros de altitude, a misteriosa floresta escura, o Schwarze Platz, os vilarejos que se espalhavam aqui e ali e, em seguida, Neustadt e o Schloss Adler no alto da colina.

Von Berger se sentia incrivelmente emocionado à medida que o avião voava cada vez mais baixo, enquanto Ritter procurava um lugar adequado para pousar.

— Ali — resmungou von Berger. — No prado junto ao castelo.

— Estou vendo. — Ritter virou a aeronave, reduziu a velocidade e fez uma aterrissagem perfeita, deslizando até parar.

No silêncio que se seguiu, foi Schneider quem disse:

— Ainda não consigo acreditar nisso. Estávamos em Berlim, agora estamos aqui.

Atrás deles, algumas pessoas se aproximaram, hesitantes, vindas do vilarejo, enquanto eles desciam do avião. Von Berger permaneceu parado, segurando a pasta de Hitler, esperando que uns doze homens e algumas mulheres se aproximassem.

O líder deles, um idoso de cabelos brancos, quase recuou.

— Meu Deus, é você, barão?

— Uma surpresa, Hartmann — disse von Berger. — Como você está?

— O que posso lhe dizer, barão? — Hartmann tirou o gorro, segurou a mão de von Berger e a beijou. — São tempos terríveis. — Ele se virou para Hoffer. — E você, Karl?

Von Berger disse:

— Aqui estamos, salvos por um milagre, vindos de Berlim. Explico mais tarde, mas antes quero ver a baronesa, e Karl, sua Lotte e as meninas.

Hartmann começou a chorar.

— Que Deus me ajude, barão, as notícias são ruins. Elas estão na capela do castelo.

Von Berger congelou.

— O que você está querendo dizer?

— Sua mulher e seu filho, barão. Lotte e as filhas dela, e mais quinze pessoas estão na igreja aguardando para serem enterradas. — Ele se virou para Hoffer. — Sinto muito.

Hoffer estava atordoado, o horror tomando seu rosto. Von Berger perguntou:

— Quem fez isso?

— A SS.

— Não posso acreditar nisso.

— Einsatzgruppen.

Einsatzgruppen não eram os Waffen SS, mas esquadrões de extermínio recrutados nas prisões alemães, sendo muitos de seus membros ucranianos. Von Berger tinha ouvido histórias de que nas últimas semanas eles tinham perdido todas as restrições e começado a saquear e a matar por conta própria, mas achara muito difícil de acreditar.

Ele estava se movimentando em câmera lenta. O pesadelo era tão ruim que parecia inacreditável. Disse a Hoffer:

— Vá ver sua família enquanto vou cuidar da minha. — Virou-se para Ritter. — É melhor você partir. Agradeço profundamente.

— Não — disse Ritter. — Vou ficar com você. Vou acompanhá-lo, caso me permita.

— É muito gentil da sua parte, meu amigo.


Von Berger e Ritter, acompanhados pelo velho Hartmann, seguiram pelo íngreme caminho que levava até o Schloss e chegaram à antiga capela. Von Berger empurrou a porta, que se abriu por inteira com um rangido e, sentindo o cheiro característico da igreja, pôde ver os memoriais a seus antepassados e o mausoléu principal da família, que estava com as portas abertas. Havia um caixão com a tampa levantada, dentro do qual estavam sua esposa e seu filhinho, aninhado junto ao braço esquerdo dela. Ele olhou para a expressão de tranquilidade no rosto dela, reparando nos machucados.

— O que aconteceu com ela?

— O que posso dizer, barão? — perguntou Hartmann.

— Conte-me tudo — disse von Berger. — Ela foi violentada?

— Todas as mulheres no vilarejo foram, barão. Depois, os ucranianos se embebedaram e começaram a atirar. Foi assim que ocorreram as mortes.

— Quantos desses bastardos estiveram aqui?

— Vinte, vinte e um. Eles foram para Plosen. Dezesseis quilômetros adiante, seguindo pela floresta.

— Então sabemos onde estão. — Von Berger se virou para Ritter. — Você ainda pode ir embora. Estou mais agradecido pelo que fez do que possa imaginar. Como disse a Strasser, as coisas vão mudar para todos nós, e vou procurá-los.

O rosto de Ritter, com uma gaze na bochecha, estava pálido. — Não tenho a menor intenção de partir.

Ritter e Hartmann deixaram o recinto. Von Berger permaneceu no mausoléu algum tempo, em seguida foi até o fundo onde ficavam duas estátuas de santos. Passou a mão por dentro de uma delas, que se abriu com um rangido. Ele enfiou a pasta do Führer em seu interior e fechou a portinhola secreta. Depois, inclinou-se sobre o caixão, beijou a esposa e o filho e saiu.


No vilarejo, os arrendatários aguardavam enquanto ele passava com a mão estendida para ser beijada, mas sem nenhum sinal de arrogância. Era uma tradição que tinha reinado em Holstein Heath por centenas de anos. Era o seu povo, e as mulheres que choravam desesperadas o procuravam em busca de liderança.

Hoffer veio até ele com o rosto soturno.

— Quais são as ordens, barão?

— Vamos pegar esses porcos. Está pronto para partir, Hoffer?

Antes que ele pudesse responder, o jovem Schneider disse: — Também estou, barão.

— Excelente.

— Podem contar comigo — disse Ritter. — Posso manejar uma Schmeisser com facilidade.

Por um acaso do destino, foi nesse instante que os americanos chegaram.


Não que eles fossem uma grande força. Era um único jipe e o jovem capitão que estava no banco do carona usava capacete de aço e uniforme de combate. A divisa em seu ombro indicava que ele era oficial da aeronáutica. Um sargento estava ao volante. O veículo diminuiu a velocidade e parou, mas eles permaneceram sentados, observando.

— Alguém aqui fala inglês? — perguntou o capitão.

— Naturalmente — disse o barão.

— Ótimo. Vou aceitar sua rendição. Minha unidade está a uns quinze quilômetros daqui. Sou o capitão James Kelly, em missão de reconhecimento avançado. Este é o sargento Hanson.

— E o que vieram fazer aqui?

— Ei, meu chapa. — O motorista pegou uma submetralhadora. — Cuidado com o que fala.

Ritter, Hoffer e o jovem Schneider ergueram suas Schmeisser de forma ameaçadora, e Kelly disse a Hanson: — Guarde isso. — Depois ele falou com von Berger. — Temos informações de que o castelo pode servir como um possível quartel-general. Quem é você, afinal?

— Sou o Sturmbannführer barão Max von Berger, senhor do Schloss Adler e de Holstein Heath.

Kelly balançou a cabeça.

— Espere um momento. Recebi um comunicado relatando que von Berger encontra-se no bunker com Hitler. Ele é um de seus ajudantes de ordem ou algo do tipo.

— Era verdade até ontem — retrucou von Berger. — Se olhar para o prado atrás de você, vai reparar no Storch com o qual o capitão Hans Ritter retirou-me de Berlim, junto com meus dois homens.


Kelly assentiu com a cabeça.

— Certo, vamos discutir isso mais tarde. Vocês todos devem entregar as armas neste momento.

— Vai ser um grande golpe para você, capitão, mas vamos fazer isso mais tarde, caso não se importe. Antes, temos que resolver um problema urgente.

— E o que pode ser esse problema?

Max von Berger contou-lhe.

Kelly balançou a cabeça.

— É uma coisa terrível, mas vocês quatro vão dar conta de vinte e um canalhas? Vocês podem acabar mortos e não posso permitir que isso aconteça.

— Compreendo. Sou muito valioso para ser perdido? — Von Berger balançou a cabeça. — Foi uma longa guerra, capitão. De El Alamein a Stalingrado, eu vi o inferno na Terra e, para mim, essa guerra acabou. Não quero matá-lo, mas tenho que matar esses homens. Não poderei viver em paz de outra forma. Portanto, vamos partir no velho caminhão dos lenhadores, percorrer os dezesseis quilômetros até Plosen e, chegando lá, encontrar os ucranianos e resolver o negócio. — Ele se virou para Hoffer. — Você dirige.

Kelly começou a dizer alguma coisa, mas parou logo. — Ah, diabos, barão, presumo que eu faria a mesma coisa. Mas depois...

— Pelo que posso ver, você é um otimista. Tudo bem, vamos partir.


A estrada serpenteava pela floresta escura e sombria por todo o trajeto até Plosen. Quando estavam próximos, depararam-se com um grupo de velhos e mulheres andando pelas margens da estrada. Hoffer parou o caminhão ao reconhecer o prefeito.

— Ei, Frankel, o que está acontecendo?

— Meu Deus, é você, Karl. Aqueles ucranianos... soubemos o que eles fizeram em Neustadt. O jovem Meyer escapou na motocicleta dele e veio nos avisar. Partimos depressa para nos esconder na floresta. Ouvi dizer que fizeram coisas terríveis.

Von Berger desceu do caminhão e estendeu a mão.

— Frankel.

O velho escancarou os olhos.

— Barão, isso é inacreditável. — Ele beijou a mão estendida. — Meyer contou sobre a baronesa e seu filho. — Ele se virou para Hoffer. — E sua Lotte?

Kelly e Hanson, que os seguiam, desceram do jipe; Ritter e Schneider se juntaram a eles. Kelly perguntou: — O que está acontecendo?

— O prefeito de Plosen está nos contando... — disse von Berger em inglês, mas logo passou para o alemão. — Onde estão eles, Frankel?

— Permaneci nas imediações para observá-los. Vieram em dois caminhões e num Kubelwagen. Assaltaram violentamente a cidade e acharam duas jovens. Depois, foram para a estalagem, o White Stag. Pude ouvir gritos e barulho de vidro quebrado. Estavam todos embriagados.

— Havia guardas? — perguntou Hoffer.

— Não que eu pudesse ver.

Von Berger deu um tapinha no ombro dele.

— Cuide de seu pessoal e eu vou cuidar desses animais.

— Mas, barão, eles são vinte e quatro.

— É mesmo? Achei que fossem vinte e um. — Ele se virou para Ritter, Schneider e Hoffer. — Bem, são seis para cada um. Podemos dar conta disso?

— Não demos conta sempre, barão? — Hoffer abriu uma mochila de combate, retirou dois pentes de munição, fixou-os com uma fita e entregou-os a Ritter e Schneider.

Von Berger abriu o capote de couro preto, pegou sua Luger no coldre, verificou-a e depois a colocou no bolso direito do casaco.

— Você tem alguma outra arma sobrando, Karl?

Hoffer retirou uma Mauser da mochila de combate e a entregou. Von Berger guardou-a no bolso esquerdo do capote.

— Vinte e quatro desses bastardos e quatro de vocês. A proporção é de seis para um — disse Kelly.

Von Berger deu um sorriso impiedoso.

— Somos Waffen SS. Estamos acostumados. — Ele deu um tapinha no ombro de Schneider. — Ele é apenas um garoto, mas sabe como fazer o serviço dele. Seis para um? Qual o problema? Tire seu casaco camuflado, Karl.

Hoffer atendeu e Kelly pôde ver as medalhas, as divisas de paraquedista e uma Cruz de Cavaleiro na altura da garganta.

— Você também deve ter observado que o capitão Ritter tem a Cruz de Cavaleiro. Foi uma guerra longa que teve um péssimo final, mas você tem de entender uma coisa. Queremos matar esses ucranianos, todos os vinte e quatro. Matá-los. — Ele se virou para seus homens. — Não é mesmo?

Até mesmo Ritter bateu os calcanhares quando deram a resposta: Jawohl, Sturmbannführer.

Ele agora ignorava Kelly totalmente.

— Vamos. — Eles subiram no caminhão e partiram.

Enquanto o jipe os seguia, Hanson disse: — Aquele cara é maluco, todos são.

Kelly concordou.

— Sem dúvida. — Ele tirou a Colt do coldre e começou a recarregá-la à medida que seguiam o caminhão.


Eles pararam entre as árvores e observaram o White Stag. Era bem grande e muito antigo, e atrás dele se localizavam a igreja do vilarejo e um cemitério. De binóculos, Kelly espiou os dois caminhões e o Kubelwagen. Não havia sinal de guardas, mas o barulho de gargalhadas embriagadas era bem audível. Ele passou os binóculos a von Berger, que deu uma olhada. Em seguida, devolveu-os.

— Vou pela porta da frente, o que deve desestabilizá-los. Afinal, supostamente estão sob o comando da SS. Sugiro que o restante de vocês vá pelo cemitério. — Virando-se, ele disse a Ritter: — Karl conhece bem o lugar. O bar é bem grande. Há duas portas nos fundos que dão para a cozinha e há janelas laterais. — Virou-se para Kelly. — Peço-lhe um favor. Vou pegar o jipe para dirigir até a porta. Vocês dois podem permanecer aqui enquanto meus amigos se aproximam a pé.

Kelly balançou a cabeça.

— Não, não vou emprestar o jipe. Vou dirigi-lo. — Virou-se para Hanson. — Dê-me aquela Thompson. Vejo você mais tarde... talvez.

— Vá para o inferno — disse Hanson. — Com todo o respeito, sir. Estou lutando desde o Dia D. Um passeio pelo cemitério acompanhado da SS parece-me bem agradável.


Kelly e von Berger aguardaram um pouco para que os outros tivessem tempo de contornar a floresta, passar por trás da igreja e chegar ao cemitério. Von Berger observava a movimentação através dos binóculos.

— Agora — disse ele, e Kelly guiou o carro velozmente morro abaixo, estacionando o jipe junto aos outros veículos.

Von Berger abriu caminho, subindo os degraus ao mesmo tempo em que colocava suas luvas de couro. Kelly o seguia segurando uma Thompson cruzada na altura do peito.

Von Berger abriu a porta com facilidade e entrou, Kelly atrás.

Os ucranianos estavam espalhados pelo salão, alguns sentados, outros em pé no bar e dois deles atrás do balcão serviam bebidas. O líder era um homem brutal, o rosto sujo e mal barbeado, um Hauptsturmführer2 num uniforme esfarrapado. Ele mantinha uma jovem em cada joelho. As roupas delas estavam rasgadas, os rostos machucados e os olhos inchados de tanto chorar. Um de cada vez, os homens repararam na presença de von Berger e pararam de falar.

Houve silêncio total. Von Berger permaneceu parado no mesmo lugar, as pernas afastadas, as mãos nos bolsos do capote de couro preto, aberto, deixando aparecer o magnífico uniforme e suas medalhas.

— Como se chama?

— Gorsky — disse o Hauptsturmführer, numa espécie de reflexo.

— Ah. Ucraniano.

O ucraniano não gostou do modo como von Berger disse isso. — E quem diabos é você?

— Seu oficial superior, Sturmbannführer barão Max von Berger. Você massacrou minha esposa, a baronesa von Berger, e meu filho, além de mais quinze pessoas, no castelo Adler e em Neustadt.

Os homens já estavam tentando alcançar as armas. Kelly ergueu sua Thompson. De repente, Gorsky puxou as garotas para a frente dele de forma a deixar somente o rosto visível.

— E o que vão fazer a respeito disso? Peguem-nos, rapazes — gritou ele.

Von Berger tirou a mão do bolso direito e, com a Luger, acertou dois tiros no lado esquerdo do crânio de Gorsky, por pouco não acertando as garotas, que caíram no chão enquanto o ucraniano tombava com a cadeira para trás.

A carnificina havia começado e Kelly disparava na direção do bar. Uma janela lateral foi quebrada e Ritter e Hanson atiraram por ela. Alguns ucranianos correram em disparada para a cozinha, onde encontraram Hoffer e Schneider. Houve uma troca de tiros que não durou muito. Havia mortos em todos os lugares, alguns ainda se moviam. Hanson recebeu um tiro no ombro e Schneider foi ferido no braço esquerdo.

Von Berger tirou a Mauser do outro bolso e jogou-a para Hoffer.

— Karl, acabe com eles.

— Pelo amor de Deus — disse Kelly.

— É um direito dele.

Hoffer encontrou cinco homens ainda vivos e atirou na cabeça de cada um deles. As garotas tinham saído correndo, aos berros. Ritter abriu uma mochila de combate e colocou uma gaze em Hanson, enquanto Schneider aguardava.

Kelly examinou os corpos. — Bem, isso é tudo?

— Não. Agora vamos para casa enterrar nossos mortos. Depois disso, estaremos à disposição de vocês. — Von Berger botou a mão no ombro de Kelly. — Tenho uma dívida eterna com você. Vou ressarci-lo.

— Ressarcir-me? — Kelly ficou espantado.

— Questão de honra.


Como era de se esperar ele foi pessoalmente interrogado por oficiais de alto escalão do serviço de inteligência britânico e americano, visto que tinha sido um dos ajudantes de ordem de Hitler nos últimos meses no bunker. Seu relato dos eventos era fascinante e foi documentado nos mínimos detalhes, mas, para a inteligência aliada, havia um problema com Max von Berger. Por um lado, ele sem dúvida era da SS, um comandante. Por outro lado, era um bravo e galante soldado, que parecia jamais ter se envolvido pessoalmente nos aspectos mais desagradáveis do regime nazista. Nunca se envolveu em qualquer coisa remotamente ligada aos massacres de judeus. De fato, logo se constatou que ele sempre guardara um perigoso segredo: uma de suas bisavós maternas era judia.

Ele também nunca tinha sido membro do Partido Nazista, embora também fosse verdade que a maioria da população alemã não se filiara ao partido.

Isso fazia com que o voo no qual escapara de Berlim fosse a única pergunta restante. Obviamente, von Berger não mencionou nenhum detalhe sobre sua reunião com o Führer. Na verdade, ele e Ritter inventaram uma história aceitável enquanto permaneceram juntos.

A história era a seguinte: Ritter tinha recebido ordens para voar para Berlim levando o Storch para servir de avião reserva no caso de surgir algum problema com o Arado designado para levar o novo comandante da Luftwaffe, Von Greim. Entretanto, não houve problemas. Von Berger, como um dos ajudantes de ordem de Hitler, ficou sabendo que o avião estava parado na garagem de Goebbels. Ciente de que o fim chegaria em questão de horas, agarrou essa oportunidade para fugir e levou com ele dois de seus homens.

Era uma explicação simples e perfeita. Não havia motivo para que não fosse aceita e Ritter a sustentou inteiramente. No fim, a história acabou aceita.

Os prisioneiros de guerra foram aproveitados das mais variadas formas. Muitos foram enviados para a Inglaterra no intuito de trabalhar em fazendas. Entre eles encontrava-se Max von Berger, mandado para um campo em Hampshire. Os regulamentos eram mínimos, e diariamente ele e muitos outros prisioneiros eram designados para uma propriedade rural e sua casa senhorial. Oficiais de alto escalão, até mesmo com a patente de general, viram-se trabalhando dessa forma.

A verdade era que os outros prisioneiros o tratavam com deferência, chamando-o respeitosamente de “Herr Barão”, e o dono de uma das propriedades, um lorde idoso, logo percebeu que tinha alguém especial. E não somente isso, mas um homem do campo por natureza.

Em pouco tempo, ele já estava comandando algumas atividades. A guerra tinha acabado, os habitantes do vilarejo de Hawkley eram pessoas decentes e, aos poucos, os alemães acabaram sendo aceitos, até mesmo para uma caneca de cerveja no pub. Mais tarde, no fim de 1947, os prisioneiros alemães começaram a ser mandados de volta para casa e entre eles estava Max von Berger.


Nevava quando ele desembarcou de um ônibus em Neustadt. Ele seguiu a pé, carregando uma maleta de mão, e entrou na estalagem local, a Eagle. Alguns moradores tomavam cerveja, alguns comiam, e ele viu o velho Hartmann junto ao bar, Hoffer e o jovem Schneider comendo cozido numa mesa próxima. Alguém se virou e o viu.

— Meu Deus, o barão.

Todos se viraram e o salão ficou totalmente paralisado.

Hoffer foi o primeiro a se mexer, dando um salto e correndo para cumprimentá-lo e, num excesso de emoção, abraçou-o.

— Barão, nós nos perguntávamos por onde você andava. Voltei há seis meses e trouxe Schneider comigo. Toda a família dele morreu num dos bombardeios de Hamburgo.

Von Berger botou o braço em torno de Schneider, que estava chorando.

— Vamos, meu jovem, nós escapamos de Berlim, não foi? Não há nenhuma razão para chorar.

Ele gritou para o senhorio.

— A despesa é por minha conta, meu amigo, deixe a cerveja correr solta.

Virou-se para Hoffer.

— Fico muito feliz em vê-lo. Vamos nos sentar.

Num canto reservado, eles conversaram, enquanto o jovem Schneider escutava.

— Estamos nos virando — disse Hoffer. — Na maior parte é produção de subsistência, mas estamos bem empenhados nisso. E cuidando de todos.

— E você?

— Bem, estou servindo como intendente. Ocupa o meu tempo.

— Você não...

— Achei alguém? Não, barão.

— Como está o castelo?

— Os americanos ficaram lá dois anos, portanto está em boas condições. Do que você não está sabendo é a... situação em Holstein Heath.

— E qual poderia ser?

— Quando a fronteira entre os setores Leste e Oeste foi traçada pelos Aliados, nós deveríamos ter ficado no setor oriental, com os comunistas.

— Achei que estivéssemos no setor ocidental.

— Bem, também não. Não ficamos nele também. A propriedade toda não está em nenhuma das zonas. Alguém cometeu um erro ao traçar o mapa.

Max von Berger estava surpreso.

— Você está querendo dizer que somos uma espécie de Estado independente? — Ele riu alto. — Como Mônaco?

Hoffer, que era um homem inteligente, disse:

— Bem, não exatamente. A polícia tecnicamente é alemã ocidental. Entretanto, foi formada com rapazes da região e a maior parte deles pertencia ao exército ou à SS e, sendo assim, veem as coisas com nossa ótica.

— Excelente. — Von Berger esvaziou sua cerveja e levantou-se. — Mostre-me o castelo.

Hoffer assim o fez e ele tinha razão. O castelo estava deteriorado, mas pelo menos os americanos não o tinham deixado em pedaços. Por último, eles se aproximaram da capela. Estava escura, pois era início da noite de um dia de inverno, mas havia velas bruxuleando junto ao mausoléu. Von Berger se aproximou, parou para dar uma olhada e reparou nas rosas de inverno.

— Quem as enviou?

— As mulheres do vilarejo. Elas gostam de manter as coisas arrumadas. Fazem o mesmo na igreja para as outras, para minha mulher e as meninas.

Von Berger disse:

— Naquele dia, Karl, as últimas execuções. Não que eu quisesse deixar isso a seu encargo. Achei que você tivesse todo o direito.

— Sei disso, barão.

— Você alguma vez lamentou o que fizemos?

— Nunca.

— Ótimo. Agora preste atenção. Éramos camaradas naquela época e permanecemos sendo agora, portanto vou compartilhar meu grande segredo com você.

Ele foi atrás do mausoléu e abriu o compartimento secreto. A estátua emitiu um ruído e se abriu. Von Berger enfiou a mão no interior e tirou a pasta.

— Este é o verdadeiro motivo pelo qual saímos de Berlim. — Ele abriu a pasta e retirou o livro azul. — Este é o diário de Hitler, Karl.

— Deus do Céu — engasgou Hoffer. — É original?

— É. Mais tarde conto sobre o conteúdo dele, mas, por enquanto, vou guardá-lo de volta.

Ele fechou o compartimento secreto e a estátua voltou a seu lugar. Fechou a pasta e a segurou.

— E dentro desta pasta também está a solução para nossos problemas financeiros. Vou explicar mais tarde. A primeira coisa que temos de fazer é visitar a Siderúrgica Berger. Vamos precisar de ternos decentes e de alguma espécie de veículo.

— Ainda tenho um Kubelwagen da época da guerra, barão.

— Excelente. Vamos para Stuttgart, mas antes daremos um pulo a Genebra. É lá que o dinheiro está.


Em Genebra, as coisas correram com uma facilidade surpreendente. No banco, as senhas e os códigos que constavam do material cedido pelo Führer inspiraram obediência imediata. O banqueiro, um homem com o aspecto mais normal possível, comunicou-o sobre os imensos fundos à disposição dele, e transferiu dez milhões para uma conta corrente particular, estabelecendo, assim, seu nome e status. Com efeito, o banco foi muito atencioso.

Seu movimento seguinte foi contatar os advogados da Siderúrgica Berger em Munique, marcando uma reunião na própria fábrica, em Stuttgart. Eles visitaram as instalações com o gerente geral, Heinz. A unidade estava em funcionamento, mas em ritmo lento, fabricando um pouco de aço, mas nada muito além disso.

— Como vocês ainda podem ver, sofremos danos causados por bombas, mas no geral tivemos sorte e temos uma excelente força de trabalho — informou-lhes Heinz.

O advogado, Henry Label, disse:

— Fluxo de caixa e capital de investimento são nossos maiores problemas. Não temos nenhum dos dois.

— Não mais. — Von Berger se virou para Heinz. — Vou transferir cinco milhões para a conta da empresa amanhã.

— Meu Deus, barão — disse Heinz. — Com essa quantidade de dinheiro, posso garantir-lhe resultados.

E isso foi comprovado. Ao longo dos anos, a empresa contribuiu muito para o milagre que se tornou a Alemanha Ocidental. Enquanto ela se transformava numa das siderúrgicas mais importantes, von Berger diversificou seus negócios, investindo em construção civil, hotéis e na próspera indústria do lazer que surgiu no pós-guerra.

Logo seus tentáculos se moveram para o oeste, para os Estados Unidos, com participação cada vez maior no ramo hoteleiro, onde um ex-oficial da aeronáutica, que tinha virado advogado em Nova York, James Kelly, provou ser mais do que útil, tornando-se, mais tarde, o responsável pela área jurídica da filial americana da Berger Internacional.

Num estágio inicial, ele procurou o coronel Strasser, como prometera, e ele se tornou o executivo que mais tarde veio a supervisionar toda a área de recursos humanos da Berger. Com Ritter foi um caso diferente. Como aconteceu com muitos pilotos que lutaram na guerra, ele não conseguia viver sem um fluxo de adrenalina.

Ainda que Berger o tivesse mantido como piloto particular, isso nunca foi o suficiente para ele e, num determinado dia, em 1960, pilotando um ME 109 num show aéreo, Ritter estolou pela última vez, chocando-se contra o solo. O barão, Schneider, Hoffer, Strasser e Kelly, que viera especialmente dos Estados Unidos, compareceram ao funeral.

— Trinta e oito anos de idade, e depois de tudo que fez — disse Strasser —, eu diria que morreu jovem. Francamente, isso me deixa inquieto.

Schneider, para eles sempre o “jovem Schneider”, disse: — Aquele voo no qual fugimos de Berlim foi incrível. Não devíamos nem mesmo estar aqui.

— Bem, nós estamos, e o trabalho continua — disse o barão.


Enquanto a Guerra Fria perdurou, a posição da grande propriedade de Holstein Heath tornou-se cada vez mais ambígua, mas o papel de von Berger como um dos capitães da indústria alemã ocidental forneceu-lhe os contatos internacionais necessários para bloquear qualquer medida que o regime alemão oriental pudesse tomar.

A propriedade entrou num ciclo de prosperidade inacreditável, com Karl Hoffer na função de gerente geral e o jovem Schneider como seu assistente. Von Berger investiu dinheiro e reformou totalmente o castelo, usando os fundos, aparentemente inesgotáveis, depositados em Genebra. Chegou até mesmo a construir uma pista de pouso no prado, grande o suficiente para que pequenas aeronaves pudessem pousar.

Nenhum apoio aberto aos ideais nazistas fazia parte da agenda dele. De todo modo, teria sido contraproducente, mas aos poucos, ao longo dos anos, ocorriam silenciosas reuniões com pessoas cujos nomes constavam das listas pasta de Hitler. Não se tratava da Kameradenwerk, a Ação dos Camaradas que Hitler mencionara, mas uma espécie de irmandade secreta, muito parecida com a maçonaria, que tinha Max von Berger no papel de patrono. Qualquer um que tivesse os conhecimentos adequados, as ideias corretas, podia procurá-lo e marcar reunião para receber dinheiro ou conseguir ajuda. Sempre discreto, sempre sensato, uma lenda para os antigos soldados do exército alemão. Não havia nada do que as autoridades pudessem reclamar.

A verdade é que as brutais mortes da mulher e do filho mataram algo, num único e devastador momento, em seu interior. Tinha consumado sua própria vingança, mas ela se provou não ter sido vingança alguma. Como leu num poema, transformou seu coração em pedra, algo que curiosamente o tornou desprovido de sentimentos.

Os anos se passaram e, em 1970, aquele coração emocionalmente gelado fraquejou quando, aos quarenta e oito anos, começou um relacionamento com uma jovem italiana chamada Maria Rossi. Encantadora e inteligente, formada em contabilidade, ela se tornou assistente particular, viajando pelo mundo com von Berger. Logo, o inevitável aconteceu.

Von Berger lutou contra seus sentimentos, que lhe pareciam traição a sua esposa, mas antes que conseguisse tomar uma decisão final a situação se resolveu sozinha. Maria o abandonou de forma quase repentina, deixando para trás uma carta de desculpas na qual dizia que negócios familiares a chamavam a Palermo.

Ele nunca mais teve notícias dela.

O tempo passou e as pessoas ao redor dele começaram a morrer. O primeiro foi Schneider, num acidente estúpido na propriedade, quando o trator que conduzia tombou, esmagando-o. Strasser foi o seguinte, morrendo de câncer no pulmão, dez anos depois.

Von Berger foi ao funeral com Hoffer. Era o ano de 1982 e ele estava com sessenta anos.

— O anjo da morte anda abrindo lacunas, Karl, você reparou nisso?

— Esse pensamento já me ocorreu, barão.

Hoffer tinha se casado novamente na meia-idade com uma prima viúva que morava no vilarejo. Ela morrera de ataque cardíaco apenas no ano anterior. Ele era dois anos mais velho que von Berger.

— O que devemos fazer?

— Prepararmo-nos para a ação. Tenho pensado em entrar no mercado de armas. Também há sempre o petróleo, especialmente com o processo de abertura na Rússia.

— Posso perguntar por que precisa disso, barão? — indagou Hoffer, num tom paciente. — Já possui uma enorme riqueza.

— Meu caro Karl, maior do que você mesmo pode imaginar. Mas falta um objetivo na minha vida, Karl. Há um vazio que não consigo preencher. Maria Rossi me animou por algum tempo, depois partiu. Esse vazio que sinto deve ser preenchido. O trabalho e os negócios são a única saída. — Ele deu um tapinha no ombro de Hoffer. — Não se preocupe comigo, Karl. Vou cuidar disso.

No dia seguinte, de volta ao castelo, ele visitou a capela, abriu o esconderijo secreto e folheou o diário de Hitler. Ele já tinha lido o volume tantas vezes que sabia seu conteúdo quase de cor. Nunca havia surgido uma ocasião para que pudesse usá-lo e, enquanto o colocava de volta no lugar, refletia se haveria alguma.

Ficou sentado algum tempo no mausoléu, pensando na esposa e no filho, depois respirou fundo e levantou. Bem, campos petrolíferos russos e armamentos. Que seja assim.

E saiu logo em seguida.


Em 1992, quando estava com setenta anos, seu controle sobre o petróleo russo aumentou por causa da perda temporária dos campos petrolíferos do Kuwait na Guerra do Golfo e dos embargos impostos ao petróleo iraquiano. O dinheiro simplesmente entrava aos borbotões, ao mesmo tempo em que as contínuas ameaças geradas pelo Oriente Médio, pela Índia e pelo Paquistão tornavam os negócios cada vez mais lucrativos no mercado de armas.

Tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos seus diversos negócios eram vistos com grande desconforto, mas ele não se importava. Estava agora na chefia de um consórcio tão extraordinariamente rico que seu poder era imenso.

Em 1997, James Kelly morreu em Nova York, mas naquele mesmo ano, pouco mais tarde, o barão sofreu seu maior golpe: Karl Hoffer morreu vítima de ataque cardíaco.

O caixão aberto foi exposto na capela. Sentado ao lado dele, sozinho, com as mãos apoiadas no castão de prata da bengala, que se tornara necessária para se deslocar naqueles dias, von Berger pensou nos anos em que passaram juntos durante a guerra e naquele último voo no qual fugiram de Berlim.

— Bem, parece que sou o último, meu velho amigo. Meu quadril me incomoda muito nesses dias. Você lembra do nosso velho lema dos tempos de guerra, nada é impossível para os homens da SS. — Ele soluçou, em seguida se recompôs. De volta ao trabalho.

Saiu mancando, e a porta da capela se fechou com um estrondo atrás dele. Estava tudo silencioso e as únicas luzes no ambiente vinham das velas quase extintas.

Ele não tinha a menor ideia de que uma série de eventos em breve mudaria sua vida, da mesma forma que aquele último voo de Berlim.

 

________________

1 Sturmbannführer: posto de oficial da SS alemã equivalente a major. (N. do T.)

2 Hauptsturmführer: posto de oficial da SS alemã equivalente a capitão. (N. do T.)


LONDRES

O QUADRANTE VAZIO

IRAQUE

 

3

No ano seguinte, ele encontrou Paul Rashid, conde de Loch Dhu, pela primeira vez. Figura lendária por trás da Rashid Investimentos, o conde tivera uma inglesa como mãe e um general omani como pai, e havia servido no SAS durante a Guerra do Golfo. A riqueza dos Rashid era bem conhecida, assim como o Controle que mantinham dos campos petrolíferos em Hazar e também em Dhofar, pois Paul Rashid era de origem beduína e controlava os vastos desertos do Quadrante Vazio.

A Berger Internacional tinha buscado concessões para explorar petróleo em Dhofar, mas até mesmo os americanos não conseguiram quebrar o controle ferrenho dos Rashid na região.

O barão tentou uma abordagem diferente. Acertou uma venda de armas para o Iêmen e pediu que a Rashid Internacional intermediasse o negócio, reportando-se diretamente a ele. Dessa maneira, estava certo de que viria a conhecer Paul Rashid. Com efeito, um dia ele recebeu um recado dizendo que o presidente o encontraria no piano-bar do hotel Dorchester.

Ele chegou no início da noite, como estipulado, e pediu um uísque irlandês. Sempre dava preferência ao malte desta origem. Sentou-se e manteve as mãos no castão da bengala, até que reparou numa mulher extremamente bonita, parada junto à entrada. Ela usava terninho preto e seus cabelos negros caíam nos ombros, adornando um rosto que poderia ter pertencido à rainha de Sabá. Em seguida, ela desceu os degraus, aproximando-se dele.

— Barão von Berger?

— Como... sim. — Ele começou a se levantar.

— Não, não se levante. — Ela empurrou uma cadeira. — Sou Kate Rashid.

Ele estava totalmente desconcertado.

— Minha encantadora jovem senhora, eu aguardava lorde Loch Dhu.

— Solicitou um encontro com o presidente da Rashid Investimentos, e aqui estou eu. Digamos que meu irmão prefira ficar nas sombras. — Ela deu uma risada. — Não fique tão surpreso. Eu me formei em Oxford. Agora, vamos tomar uma taça de champanhe e você explica como podemos ajudar o grande barão Max von Berger a realizar uma coisa que não está conseguindo sozinho.

Ela chamou Giuliano, o gerente do bar, e pediu o champanhe da casa.

— Não se preocupe, é o melhor do lugar, mas tudo aqui é o que há de melhor. Então, barão...

— Bem, como você deve saber, a Berger Internacional está envolvida, de forma amadora, no comércio de armas.

— Não usaria o adjetivo amadora, barão.

— Não está em igualdade de condições com sua participação no ramo. — Ele sorriu. — O governo do Iêmen solicitou-me uma entrega de armamentos diversos. No valor de dez milhões de libras. Não é nenhum grande negócio, mas o carregamento sairá da Rússia, portanto esperava poder levá-lo para Aden pelo mar Negro, a bordo de um cargueiro grego.

— Deixe-me adivinhar. De repente surgiram dificuldades com as autoridades portuárias em Aden, mãos gananciosas estão levantando barreiras.

— É uma jovem lady muito perceptiva.

— Realista, barão.

— Quem entende a mentalidade árabe?

— Não me considero árabe, barão, e não somente porque sou meio inglesa.

— Estou bem a par disso. Na Inglaterra, sua família é tão importante quanto a minha na Alemanha. Não quis menosprezá-la.

— Sem dúvida que não, mas, como disse, não estava me referindo a isso. Minha outra metade é beduína, e isso é diferente de ser árabe. Não curvamos nossa cabeça para ninguém. Os beduínos detêm o real poder em Hazar e Dhofar, mas dominam especialmente no Quadrante Vazio. Os beduínos controlam o Rub'al Khali, ou Quadrante Vazio, e os Rashid controlam os beduínos. Meu irmão é um líder inconteste.

— Um homem extraordinário, o conde, e igualmente extraordinária foi a ascensão da Rashid Investimentos. No entanto, não tem mais sido visto na sociedade com a frequência de outrora.

— Como lhe disse, ele prefere permanecer nas sombras. Tenho dois irmãos, George e Michael, que são diretores executivos. E quanto a mim, como sabe, sou a presidente do conselho.

— E Paul?

— Ele prefere ficar em Hazar, com os beduínos. Para eles, Paul é um grande guerreiro. Ele percorre o deserto a camelo, vive no velho estilo beduíno, queimado de sol, protegido por homens que morreriam por ele. Alimenta-se de tâmaras e carne-seca. Comeria tâmaras e carne-seca, barão?

Giuliano surgiu com um garçom e tirou a rolha de uma garrafa de champanhe Dorchester.

Max von Berger gargalhou alto.

— Para ser franco, prefiro os prazeres do piano-bar.

— Então prove o champanhe por mim.

— Somente se você me permitir um privilégio.

— E qual seria ele?

— Poder chamá-la de Kate. É um nome adorável, que combina muito com você.

Ela sorriu.

— Será um prazer, Max.

Ele riu novamente e acenou com a cabeça para Giuliano, que serviu a bebida.

— Então, como ficamos, Kate?

— Em relação ao seu carregamento de armas? Não é um problema, mas podemos conseguir algo melhor do que um cargueiro grego. Vou arrumar um navio da Rashid com tripulação árabe. Vou resolver o problema em Aden e providenciar segurança para a carga, incluindo sua entrega no interior do país.

— E quanto devo pagar por essa generosidade?

— Vinte e cinco por cento.

Houve um instante de silêncio, em seguida von Berger sorriu.

— É extraordinária, Kate. Obviamente aceito sua oferta.

— Sem contrato, sem aperto de mão?

— Minha palavra. — Ele ergueu a taça. — A você, minha querida, e ao futuro.

Eles tilintaram as taças e beberam. Ela fez um sinal com a cabeça para Giuliano, que se adiantou para reabastecer as taças. Depois, recostou-se na cadeira e ficou calmamente observando o barão. Sabia tudo sobre ele, ou pelo menos achava que sim. Tudo relacionado com ele a intrigava, e ela o encantava. Não de uma forma tola ou superficial como um homem de setenta e seis anos se apaixonando por uma linda jovem. Só que tudo nela era extraordinário.

— Você disse ao futuro? — Ela sorriu. — Então vamos a ele agora. Sua participação nos campos petrolíferos russos não é o bastante. Você busca concessões para explorar petróleo em Dhofar.

Foi uma afirmação. Ele disse:

— Ah, mas em vão. Os russos e os americanos tentaram, até mesmo um consórcio britânico tentou.

— Bem, e agora, por pura coincidência, temos Max von Berger, da Berger Internacional, vindo até a Rashid para conhecer meu irmão, esperando que ele seja intermediário de uma venda de armas, uma bobagem de dez milhões.

Von Berger não se divertia tanto há anos e gargalhou novamente.

— Eu me rendo totalmente. Achei que se conhecesse seu irmão isso pudesse fazer diferença.

— Então por que não disse isso antes? Você está interessado em Dhofar, em expandir. Nós também estamos. Quer discutir isso com Paul? Vou providenciar. Viajaremos num Gulfstream da empresa até Hazar. Digamos, às dez da manhã de amanhã? Seguiremos de helicóptero para o interior, até o oásis Shabwa, no Quadrante Vazio, e meu irmão vai recebê-lo lá. Isso parece aceitável?

— Se eu tivesse quarenta anos a menos, estaria a seus pés.

— Ah, é muito gentil, especialmente vindo da elite da SS. Então nosso encontro está marcado. Agora que os negócios por aqui foram concluídos, que tal me levar a algum lugar agradável para jantar? O Ivy seria aceitável. Todas aquelas celebridades tornam o lugar bem interessante.

E Max von Berger se ergueu todo excitado e bateu os calcanhares.

— Lady Kate Rashid, o prazer é todo meu.


No dia seguinte, o Gulfstream da Rashid aterrissou na base militar de Hazar, uma relíquia do imperialismo inglês. Um helicóptero Hawk os aguardava, e Kate andou em direção ao aparelho com von Berger de escolta. Há anos ele não se sentia tão animado. A maior parte do tempo do voo, que tinha saído de Northolt, foi de conversas que englobaram todos os assuntos possíveis e imagináveis. Ele estava totalmente fascinado por ela.

O voo de helicóptero era barulhento e desconfortável, abrindo caminho através do intenso calor e sacolejando por causa do vento que varria a vastidão e a desolação do Quadrante Vazio. Von Berger adorava absolutamente tudo que via: o anoitecer e as imensas dunas de areia que se estendiam em direção ao infinito. A idade parecia ter escapulido de seu corpo.

E mais tarde, a distância surgiram fogueiras na escuridão e o Hawk enfim avançou em direção ao vasto oásis Shabwa, sobrevoando-o. Era uma grande piscina cercada por palmeiras, cáfilas de camelos, rebanhos de bodes e um enorme acampamento. Mulheres, crianças e homens, todos beduínos, deslocavam-se ao redor.

O helicóptero pousou e o motor foi desligado. O piloto abriu a porta e permaneceu ao lado dela.

— Aqui estamos, barão. — Kate sorriu. — Se você fizer a gentileza de me seguir...

Ela estava usando camisa de safári cáqui e calça comprida. Depois de colocar um véu na cabeça, ela desceu do aparelho. A multidão se afastou enquanto guerreiros Rashid, portando rifles, avançaram formando um cordão. O silêncio era quase absoluto, exceto pelo blaterar de um camelo e pelos balidos queixosos dos bodes. Em seguida, vindo pela estrada, Paul Rashid surgiu, uma figura teatral de turbante e túnica preta.

Ele estendeu os braços.

— Irmãzinha. — Kate correu para o abraço dele. A multidão explodiu num ruído ensurdecedor. Paul Rashid se virou para von Berger e estendeu a mão.

— Você deve perdoar o entusiasmo deles, barão. Minha irmã tem um lugar especial em seus corações.

— Acho perfeitamente compreensível.

Rashid aumentou a intensidade do aperto de mão, em seguida inclinou-se e beijou von Berger nas duas bochechas.

— Desculpe a intimidade, mas, testemunhado pelo meu povo, isso também o torna especial. Inviolável, pode-se dizer. Os comentários se espalham facilmente no Quadrante Vazio, mais rápido que numa rede de computadores. Você sempre estará seguro aqui.

Para von Berger, isso era muito familiar. Era como em Holstein Heath, o Lugar Escuro, onde tinha um relacionamento especial com seu povo. Ele ficou muito emocionado.

— Você me deixa orgulhoso, meu lorde.

Rashid se virou para a multidão.

— Este é o barão von Berger, e ele é meu amigo.

As vozes na multidão começaram a levantar-se enquanto os camelos chiavam; tudo estava em movimento. Kate disse a von Berger: — Apenas acompanhe o fluxo, a partir de agora você é convidado de todos os beduínos do Quadrante Vazio.

— Bem, um pouco de hospitalidade cairia bem — disse Paul Rashid. — Primeiro, você deve se refrescar, depois vamos comer alguma coisa.

— E mais tarde falaremos de negócios — disse Kate.

— Basta por agora. — E Paul Rashid abriu caminho pela multidão.


O barão foi levado para uma tenda ricamente decorada, com quadros e tapetes. Um banho foi providenciado e dois rapazes, que falavam inglês, foram postos à disposição do barão para atender às suas necessidades.

Mais tarde, ele foi levado para uma tenda maior, cheia de pessoas que comiam da maneira tradicional, sentadas em almofadas. Da tenda que servia de cozinha, mulheres traziam as mais variadas comidas: ensopados, carneiro assado — um verdadeiro banquete. Von Berger sentou-se entre Rashid e Kate.

Rashid disse:

— Creio que você pode compreender. Meu povo espera isso. Eles têm as tradições deles, barão.

— Max — disse-lhe von Berger. — Por favor, chame-me de Max. — Ele estendeu o braço para pegar um prato com um tipo de costeleta de carneiro que uma mulher oferecia.

Pegou uma com a mão e provou-a. — Deliciosa. — Virou-se para Paul Rashid. — De um velho soldado para outro: estive na Guerra de Inverno, na Rússia, e isso é bem melhor.

Paul Rashid sorriu.

— Então aproveite, meu amigo.


Mais tarde, os três se sentaram em torno de uma fogueira, enquanto os guardas permaneciam sentados nas proximidades tomando café, mantendo seus fuzis AK 47 encostados nos joelhos.

Rashid disse:

— Bem, em relação a esse negócio da venda de armas para o Iêmen, naturalmente vamos fazer a corretagem. Não é nada demais. Mas vamos falar francamente. O que minha irmã lhe disse é a pura verdade. Esse negócio com o Iêmen não representa nada para você, sabemos disso. O que lhe interessa são concessões para explorar petróleo, talvez no Quadrante Vazio, mas seguramente em Dhofar.

— Sem dúvida. Sei que os russos, os americanos e os ingleses estão atrás delas, mas sua influência com os beduínos confunde a todos.

— É verdade.

Houve silêncio. O barão disse:

— Por acaso, teria um cigarro?

— É claro. Vou fumar um com você. — Ele gritou em árabe e um jovem saiu rapidamente, os cigarros foram providenciados, assim como um isqueiro.

— Essas coisas, elas me pegaram na Guerra de Inverno — disse o barão.

— E a mim na Guerra do Golfo — replicou Rashid. — Temos muito em comum.

Von Berger se virou para Kate.

— Ouça o que vou dizer. Respeito muito sua opinião.

— Naturalmente.

— Certo. Se eu tentar obter concessões em Dhofar, as grandes potências criariam todas as dificuldades possíveis. Mesmo agora, o governo russo não está feliz com meus ativos no país. Qualquer aumento de meu poder os desagradaria.

— Isso parece óbvio — disse ela.

— E os americanos sempre desconfiaram de mim. O assunto Hitler nunca foi esquecido. — Virou-se para Rashid. — Em relação a você, por outro lado, eles estão com as mãos atadas. Isso me intriga. Por que nunca usou essas concessões em Dhofar?

Rashid bebeu seu café.

— Conte a ele — Rashid pediu a Kate.

— Fluxo de caixa — disse ela. — A Rashid Investimentos vale bilhões, mas está tudo imobilizado. Principalmente o capital de investimentos. Não preciso dizer que explorar petróleo é um negócio dispendioso.

— Então, se tivessem os recursos, poderiam tocar os negócios em Dhofar. Os Estados Unidos e a Rússia nada poderiam fazer.

Ela o olhou calmamente.

— Precisamos de muito dinheiro. E eu não gostaria de ficar endividada com bancos.

— O que ela está querendo dizer é que precisamos de algo em torno de um bilhão em dinheiro vivo, livre e desembaraçado em nossa conta, para começar — explicou Paul Rashid.

Von Berger concordou com a cabeça.

— Dois bilhões seria melhor.

Ambos olharam para ele.

— Dois bilhões? — perguntou Kate.

— Sim. Vamos ver, hoje é terça-feira, podem recebê-los na sexta. — Ele sorriu. — E então seriam vocês que estariam explorando petróleo em Dhofar, não eu. A Casa Branca, o Kremlin e Downing Street não saberiam de absolutamente nada.

Foi Kate quem respondeu.

— Meu Deus, isso seria lindo.

O irmão dela levantou a mão.

— Isso não pode ser uma brincadeira. Você não é o tipo de homem que faria algo desse tipo.

— Não, quando se trata de negócios meu senso de humor não é dos mais renomados.

— Mas as manipulações necessárias para levantar uma soma de tal vulto nos meios financeiros internacionais seriam muito óbvias. Não há possibilidade de se fazer isso sem que os americanos, os russos e os ingleses fiquem sabendo.

— Não, neste ponto você está errada. Não haveria necessidade de fazer com que algo fora do comum acontecesse. Tenho acesso a fundos ilimitados, em espécie.

Kate estava atordoada.

— Esse montante? Mas de onde?

— Ah, de bancos suíços. Sou o que se chama de rico à vista. Não haverá nenhuma operação astuciosa no mercado de ações, nenhuma barganha de empréstimos ou investimentos nos mercados financeiros. Apenas injeções sadias de dinheiro vivo na Rashid Investimentos, caso queiram.

Eles se entreolharam. Kate estava entusiasmada e agarrou o braço do irmão.

— Paul, nunca mais teremos uma oportunidade dessas novamente. Podemos confundir todos eles.

— Eu sei, irmãzinha. — Rashid se virou para von Berger.

— Em troca do quê?

— Em troca, gostaria de me tornar sócio oculto da Rashid Investimentos.

— Em que termos?

— Nada oneroso, nada irracional. Podemos resolver isso juntos, aqui mesmo, e depois volto para casa. De fato, não devemos nos encontrar nem mesmo socialmente, nunca mais. — Ele se virou para Kate. — O que vai ser uma grande privação.

Paul Rashid permaneceu refletindo. Pouco depois, ele disse:

— Aqueles carteis internacionais do petróleo adorariam perfurar onde bem entendessem em Dhofar, e passariam por cima dos beduínos durante o processo. Estuprariam o deserto.

— E você faria diferente?

— Pode ser feito de maneira diferente, Max, ninguém sabe disso melhor do que você. Por falar nisso, você tem razão. Não podemos ser vistos juntos no futuro.

— Então, fechamos negócio?

— Sim, mas sujeito a um acordo no que se refere à sociedade. Vou providenciar toda a documentação necessária e você providencia os fundos.

— Até sexta-feira.

— Temos um antigo costume beduíno que vale mais do que qualquer contrato. — Rashid tirou uma pequena lâmina afiada do cinto. — Seu polegar, barão, o da mão esquerda. — Von Berger estendeu a mão, Rashid tocou a extremidade do polegar e tirou um pouco de sangue. Ele fez o mesmo com seu próprio polegar, em seguida tocou no dedo de von Berger, misturando o sangue deles.

Kate estendeu a mão esquerda dela.

— Eu também. É um direito meu. Eu o trouxe.

Ele sorriu.

— E fez bem, irmãzinha. — Ele espetou o dedo dela também e ela tocou no dedo dele e, depois, no de von Berger. Paul Rashid inclinou-se para a frente e botou os braços em volta deles. — Este vínculo durará por toda a vida.

— Juro pela minha honra — disse von Berger.

Kate sorriu e algo brilhou nos olhos dela.

— É uma pena, Max, não podermos mais nos encontrar, mas Paul está certo.

— É o fim do piano-bar. — Ele estendeu as mãos. — Estou desolado.

Não havia como saber então, mas cerca de dois anos depois ele a encontraria em circunstâncias mais do que dramáticas.


Para ser preciso, em janeiro de 2000, von Berger foi sondado por fontes do governo iraquiano por meio de seu escritório em Berlim. Queriam estabelecer conversas preliminares sobre fornecimento de armas. Von Berger não ficou surpreso. Negociantes de armas em todo o mundo haviam sido abordados. Em vista da proximidade das relações do Mossad israelense com a inteligência americana e inglesa, não havia muitas possibilidades de se manter sigilo a respeito disso.

Ele não sabia exatamente os motivos que o levaram ao Iraque. Não aprovava Saddam Hussein ou seu regime. O estímulo que Kate Rashid lhe dera tinha sido apenas temporário.

Desde o encontro em Hazar, ele não mantinha nenhum contato direto com os Rashid. Os elevados investimentos que fizera em Dhofar renderam muito. A verdade era que, aos setenta e oito anos, as únicas pessoas com as quais ele tinha se importado estavam mortas e desaparecidas. Ele tinha realizado muitas coisas e não restava mais nada que valesse a pena ser feito. Também por estar entediado, resolveu ir a Bagdá.


A cidade parecia imensa, antiga e ainda assim moderna, quente e empoeirada, repleta de bondade humana. Ele desembarcou de um Gulfstream no aeroporto e foi recebido com extrema cortesia por um jovem major do serviço de inteligência chamado Aroun, que trajava imaculado uniforme cáqui que parecia ter sido feito sob medida na Savile Row, em Londres. Envergando medalhas e divisas aladas de paraquedista, ele era bonito, inteligente e falava bem inglês. Recebeu von Berger com as formalidades de praxe, acompanhou-o até a limusine, um Lincoln, e também se sentou no banco traseiro.

— Fuma, barão? — Ele ofereceu a cigarreira.

— Sem dúvida. Obrigado. — Von Berger aceitou o cigarro e se recostou, olhando para as ruas lotadas. — Fascinante.

— Realmente, bem, acho que vai chover mais tarde.

— Isso é bom?

— Nesta cidade, sim. O mau cheiro pode ficar fortíssimo; além do mais, Bagdá não foi criada para se adequar à invenção do automóvel. Eu o estou levando para o Al Bustan, barão, um moderno hotel cinco estrelas.

— E minha reunião?

— Ele não poderá vê-lo hoje. Vou mantê-lo informado.

— Certamente.

Von Berger já começava a pensar se deveria ter vindo.


Mais tarde naquela noite, ele permaneceu na varanda de sua suíte fumando cigarros e bebendo uísque irlandês, algo que lhe pareceu estranho de encontrar na suíte.

Tentava imaginar quem o conhecia suficientemente bem para ter providenciado a garrafa. Houve o clarão de um raio acompanhado, logo em seguida, pelo estrondo de um trovão, e pouco depois começou a chover. Olhou para as ruas lotadas e para a lentidão do tráfego, mas o ar já estava mais fresco. Foi como se um peso tivesse sido levantado. Terminava seu uísque quando seu celular, um modelo internacional, tocou no bolso da camisa.

— Quem é? — perguntou ele.

— Que tal um drinque no piano-bar? — disse uma voz feminina. — Ah, desculpe, não vai ser possível. Você está no Al Bustan, no centro de Bagdá.

Ele estava surpreso.

— Kate, é você? Onde você está?

— Não se incomode.

— E como você sabe que estou aqui?

— Ah, sei de muitas coisas. Que você está acertando uma espécie de venda de armas com Saddam, por exemplo. Quando vai vê-lo, se é que vai?

— Supostamente seria hoje, mas foi adiado.

— Quem disse isso?

— O rapaz que me recebeu no aeroporto. O major Aroun.

— Um major? Eles deviam tratá-lo melhor. Tudo isso me cheira um pouco mal.

— Bem, ditadores podem agir dessa forma. Lembre-se de que fui criado nos tempos de Hitler.

— Tudo bem, mas escute, tome cuidado. Vou ligar novamente para ver como andam as coisas. Vai ficar satisfeito em saber que estamos fazendo uma fortuna, sócio. — A linha ficou silenciosa e ele desligou o aparelho.


Ele esperou por três dias e tinha se decidido a voltar para casa quando o telefone do hotel finalmente tocou. Era Aroun.

— Ele vai vê-lo esta noite, às nove e meia. Vou pegá-lo às nove e levá-lo para o palácio presidencial.

— Quanta gentileza — disse von Berger. — Eu estava prestes a ir embora.

— Por favor, barão, o senso de humor dele é limitado. De qualquer forma, não conseguiria chegar ao aeroporto. Sugiro que esteja pronto na hora marcada.

Max von Berger riu.

— Meu caro, eu não perderia isso por nada deste mundo.


Quando von Berger desceu até o saguão do hotel, atendendo ao chamado de Aroun, encontrou o major ao lado de um Mercedes sedã. Assim como o motorista, não estava uniformizado e vestia jaqueta de aviador de couro preto e calça jeans. Von Berger trajava terno preto com camisa branca e gravata escura.

— Estou me sentindo arrumado demais.

— Recebi ordens para agir da maneira mais discreta possível. Entre.

Foi o que o barão fez, sentando-se no banco traseiro. Aroun sentou-se na frente, ao lado do motorista. Enquanto seguiam no carro, trovejou de novo e começou a chover torrencialmente, criando um cenário caótico: buzinas disparadas na lentidão do tráfego e calçadas apinhadas de pessoas que pareciam alheias à chuva.

— Esta é a principal rua que cruza a cidade velha. Chama-se Al Rashid. Não fica muito longe do palácio.

Rua Al Rashid. Von Berger pensou em Kate. Ela não tinha ligado novamente. O carro freou atrás de um caminhão junto ao meio-fio; alguns rapazes, fumando cigarro e conversando, protegiam-se da chuva debaixo do toldo de um café. Quando o Mercedes parou, repararam no veículo e começaram a observá-lo, logo percebendo as roupas ocidentais de von Berger. Começaram a falar com entusiasmo em árabe. Eram jovens predispostos à revolta, de um tipo que pode ser encontrado em qualquer grande cidade do mundo. De repente, se aproximaram do carro e um deles puxou com violência a porta traseira do Mercedes, abrindo-a.

— Americano, é? Não gostamos de americanos.

— Não. Sou alemão.

— Você mente. Americano. — Várias mãos foram estendidas para agarrá-lo.

Aroun saiu pelo outro lado e sacou uma pistola, mas três homens, que vieram por trás, saltaram em cima dele e o derrubaram no chão, onde começou a ser chutado.

O motorista foi arrancado para fora do carro e recebeu o mesmo tratamento. Enquanto várias mãos o agarravam e o arrastavam para o meio da multidão, von Berger pensou que sua hora final tinha chegado. Um homem jovem, alto e barbado, que incoerentemente usava boné de beisebol e camiseta, parecia ser o líder. Ele brandiu a pistola de Aroun e gritou para a multidão, em seguida avançou na direção de von Berger, que estava dominado.

— Americanos, nós matamos — disse o homem.

Neste exato instante escutaram o guincho de freios, ao mesmo tempo em que dois Land Rover derrapavam até parar. Ouviu-se o som de um tiro dado para o alto seguido de gritos femininos em árabe. Os homens se viraram, puxando von Berger junto, e ele pôde ver Kate Rashid ao lado de um dos Land Rover, usando véu, camisa cáqui e calça comprida. Ela segurava uma Browning Hi-Power e os seis guardas beduínos que a acompanhavam estavam com suas AK-47 preparadas.

— Soltem-no — disse ela em inglês ao homem de boné de beisebol.

— Ele é americano e nós matamos americanos — gritou ele. — E quem é você, mulher, para nos dizer o que devemos fazer?

Ele agarrou von Berger pelo cabelo e cravou o cano da pistola no crânio do barão.

— Eu disse que ele morre.

Ela moveu a mão para cima e disparou, acertando-o através da boca. A bala perfurou o crânio e o fragmentou, espalhando sangue e ossos pela multidão. Ele soltou a pistola e caiu, enquanto a multidão se dispersava correndo. O barão tinha caído no chão e dois beduínos o levantaram.

— Kate — disse ele estarrecido.

Ela sorriu e se virou para Aroun, que tinha se levantado e estava encostado no Mercedes.

— Major Aroun, acho que você sabe quem sou.

— Sim, lady Kate.

— Não sei o que está acontecendo aqui. Sem uniformes, sem escolta militar?

— Ele disse para sermos discretos.

— É mesmo? Bem, é melhor você cuidar desse lixo que está jogado na calçada e depois ir se limpar, eu mesma vou levar o barão ao palácio presidencial. — Ela se virou para von Berger.

— Venha, entre no carro e se arrume. Seu cabelo está fora do lugar.


Sentado no banco traseiro de um Land Rover, enquanto seguiam viagem, ele perguntou:

— De onde você apareceu?

— Ah, eu estava na região e ouvi um boato sobre seu encontro com o grande homem. Por muitas razões, não fiquei feliz. Saddam é capaz de coisas estranhas. Um homem de incertezas. Manda um oficial do baixo escalão recebê-lo e dá um chá de cadeira de três dias num homem tão importante quanto você? Isso significa que ele está novamente em uma de suas fases maníacas.

— Como sabe disso?

— Porque o conheço bem. Ele é um bom amigo meu. Não, isso não está totalmente correto. Ele acha que é um bom amigo meu.

— E você?

— Bem, acho que é um maluco que estaria melhor morto. Entretanto, realizar isso seria difícil.

Eles pararam diante dos portões do palácio presidencial e foram liberados assim que os guardas viram Kate. O carro seguiu adiante, parando aos pés da grande escadaria que levava à entrada.

Kate se virou e disse calmamente:

— Bem, aqui estamos, Max. Isso deve ser interessante.


Um coronel do exército, que provavelmente estava esperando para receber o barão, adiantou-se rapidamente para beijar a mão de Kate e falou com ela em inglês.

— Lady Kate, soube do acontecido. Estamos todos envergonhados. Vocês estão bem?

Era muito estranho o modo precisamente britânico com que os militares iraquianos falavam, pensou o barão. Este deve ter sido outro que frequentou a Academia Militar de Sandhurst.

— Coronel, o único problema foi o homem que tive que deixar na calçada.

— Era um cão que merecia morrer por tê-la insultado. Calçadas, lady Kate, são facilmente limpas.

— Ele soube do ocorrido?

— Teve um acesso de raiva terrível. Imediatamente deu ordens para que a polícia fizesse represálias na rua Al Rashid. Por favor, acompanhe-me.

Uma sirene subitamente começou a soar e todas as luzes se apagaram de uma vez. O coronel acenou e um guarda correu trazendo uma grande lanterna.

— É só um treinamento de ataque aéreo — disse o coronel. — Nossos amigos americanos não estão nos trazendo muitos problemas ultimamente. Por aqui.

Eles o seguiram por esplendorosos corredores de mármore. Tudo gerava uma estranha sensação: a escuridão dominante, as estátuas ao redor que pareciam flutuar nas sombras, o clarão da lanterna, o eco de seus pés no mármore.

— Você está bem? — sussurrou Kate.

Von Berger respondeu:

— Acho que se pode dizer que esta é uma das experiências mais marcantes que já tive. E levando em consideração que sou o único homem que você conhece que esteve no bunker do Führer... esta é uma declaração de impacto.

Ela riu.

— Ah, como gosto de você, Max. Se ao menos...

— ...eu tivesse cinquenta anos a menos — cortou ele. — Mas não tenho, portanto, comporte-se.

Eles pararam diante de uma porta ornamentada, com sentinelas em ambos os lados. O coronel a abriu e entrou. Enquanto esperavam, ouviram uma voz troar. O coronel voltou num instante.

— Ele vai recebê-los agora.


De uniforme, Saddam Hussein estava sentado sozinho diante de uma grande mesa, na qual havia um abajur, única fonte de luz do ambiente. Estava assinando documentos, mas olhou para a frente e largou a caneta. Levantou-se, contornou a mesa e foi abraçar e beijar Kate em ambas as faces.

Ela disse em inglês:

— O barão von Berger não fala árabe.

Saddam nunca alardeou o fato de falar inglês bem, mas disse: — Barão, considero um ultraje a forma como foi tratado.

— Foi um lamentável mal-entendido. Acharam que eu fosse americano. Presumo que estou usando as roupas erradas.

Saddam explodiu numa risada.

— Gostei dessa. É bem compreensível. — A volatilidade dele era estranha, pois no mesmo instante franziu o cenho e olhou para Kate. — Mas o insulto que você sofreu, esse é imperdoável. Dei ordens para que fossem feitas represálias. A polícia militar vai ensinar uma lição à ralé da rua Al Rashid.

— Mas dei-lhes uma lição — replicou Kate. — Atirei no líder da turba.

— Excelente. Foi sua lição, agora vou dar a minha. Vamos, sente-se.

E foi o que ela fez, inclinando a cabeça para von Berger, que se sentou na cadeira ao lado. Saddam caminhou até uma janela e abriu as venezianas, que davam para um terraço. Um alarme de Tudo Tranquilo soava, e ele olhou a cidade. As luzes começavam a voltar.

— Na Guerra do Golfo, tivemos os americanos e os ingleses interferindo, metendo o nariz em assuntos árabes. Voavam pelas chamadas zonas de exclusão e bombardeavam nossas instalações. Talvez venha uma outra guerra. — Ele se virou. — Este é o motivo pelo qual você está aqui, barão.

Max von Berger olhou para Kate, e o rosto dela dizia tudo. Ele respirou fundo.

— De que maneira posso ajudá-lo?

Kate interveio.

— O barão von Berger tem acesso à maioria dos armamentos. O que você está procurando? Mísseis Stinger?

Ele retornou para o salão.

— Esse tipo de coisa posso conseguir de muitas fontes. Do que realmente preciso é de plutônio. — Ele disse a von Berger. — Meu programa nuclear está bem avançado, mas necessitamos de plutônio. Pode fornecer?

Kate balançou a cabeça levemente. Von Berger respondeu:

— Conheço algumas fontes.

— Excelente. — Saddam se sentou atrás da mesa novamente. — Se os americanos vierem, preciso ter uma arma derradeira, uma arma especial para detê-los, capaz de matá los em seu avanço. As pessoas falam em armas biológicas, mas não bastam. Somente um artefato nuclear será suficiente.

Max von Berger poderia ter apontado os catastróficos resultados de uma retaliação americana, ter citado o destino do Japão no final da Segunda Guerra Mundial, mas não o fez. Não fazia sentido. Ele agora percebia, em primeira mão, que Saddam Hussein era louco.

— Então, o que quer de mim? — perguntou ele.

— Já lhe disse. Plutônio, barão, plutônio. — Saddam se levantou e sua cabeça tremia. — Não desperdice meu tempo. Vá embora e consiga plutônio para mim.

Von Berger percebeu a mão de Kate em seu braço e se levantou.

— Vou ver o que posso fazer.

Saddam pegou a caneta e começou a assinar mais documentos. Kate puxou von Berger, que teve o bom senso de acompanhá-la.


No Land Rover, ele disse:

— Ele é um lunático delirante.

— Sem dúvida, mas não é isso o que importa no momento. Mandei o outro Land Rover pegar seus pertences no Al Bustan. Também arranjei um horário para que seu avião decole. Você deve partir enquanto pode. Os humores maníacos dele são terríveis. Nunca se sabe o que vai fazer.

— Vou seguir seu conselho.

— Você vai tentar achar plutônio?

E Max von Berger, major da SS, outrora ajudante de ordens de Hitler, respondeu: — Nem em mil anos.

— Ótimo — disse ela. — Você é um homem adorável, Max.

Vamos levá-lo para o aeroporto e tirá-lo deste lugar.


ALEMANHA

 

4

Foi no ano seguinte, quando von Berger estava no Brasil a negócios, que ele soube da consternadora tragédia que se abatera sobre a família Rashid, as mortes dos irmãos George, Michael e Paul. As notícias chegaram tarde demais para que ele pegasse um avião de volta para os funerais, e de que adiantaria?

Devido à natureza peculiar do título de nobreza, Kate Rashid pôde herdá-lo e agora era a condessa de Loch Dhu. Mas a regra continuava valendo: não havia conexão pública entre o barão e o império Rashid.

Naquela época, von Berger nada sabia sobre a causa das mortes, nem da hostilidade que envolvia os Rashid e os interesses ocidentais, ou seus motivos. Oportunamente, ele ouviria falar da tentativa fracassada de assassinar o presidente Jake Cazalet, na residência de veraneio dele, em Nantucket, por mercenários irlandeses instigados por Paul Rashid. Depois houve o bem-sucedido assassinato do próprio sultão de Hazar, seguido da fracassada tentativa contra a vida de todos os membros do Conselho de Anciãos, em Hazar, novamente por mercenários irlandeses.

Foi somente mais tarde que von Berger percebeu o quão importante nisso tudo tinha sido o papel de Blake Johnson, o homem que comandava o Porão da Casa Branca. E havia também o general Charles Ferguson, que fazia o mesmo para o primeiro-ministro inglês, ajudado por seu braço direito, Sean Dillon. Dillon, que matara pessoalmente Paul Rashid e seus dois irmãos.

Mas todo esse conhecimento só viria no futuro. No presente, Max von Berger tinha de se contentar em acompanhar as atividades de Kate Rashid a distância. Soube também da chegada à vida dela de Rupert Dauncey, um certo primo americano que tinha sido major dos fuzileiros navais, algo que o deixou enciumado. Mas a vida prosseguia e, como sempre, ocupava-se dos negócios, até que uma noite, quando passava alguns dias no Schloss, resolveu jantar na estalagem local, a Eagle, por puro capricho.


O lugar estava lotado. Era uma noite de sexta-feira e nevava, o inverno estava começando. Quando entrou, recebeu as boas-vindas habituais e o senhorio, Meyer, apressou-se a ir falar com ele.

— Barão, vai jantar conosco esta noite?

— Acho que sim. Vou querer seu cozido especial com batatas. O que pode ser melhor?

— É uma honra.

Ele seguiu até uma mesa num canto reservado e saudou com a cabeça os dois homens sentados nas proximidades. Eles se levantaram de um pulo e baixaram as cabeças.

— Obrigado, meus amigos. — O barão tirou o chapéu enquanto Meyer o ajudava com o pesado casaco e a se sentar.

— É uma noite desagradável, portanto, vou querer champanhe. Isso vai animar as coisas um pouquinho.

Meyer se retirou e o barão acendeu um cigarro, ciente do homem que tomava cerveja em pé no bar e lhe lançava olhares. Era Hans Klein, fazendeiro da região conhecido pelas imensas grosserias e bebedeiras. Estava com os aluguéis bem atrasados. Na audiência judicial do mês anterior, o barão tinha dado três meses até o despejo.

Quando Meyer levava o champanhe num balde e uma taça, Klein disse alto: — A vida continua boa para a porra dos ricos e poderosos. — Virou-se para a garçonete e deu um tapa no balcão do bar. — Schnapps, e traga rápido, ou temos de formar fila atrás dele?

As conversas foram interrompidas e Meyer, tirando a rolha da garrafa, parecia agitado.

— Desculpe, barão.

— Apenas sirva.

Neste momento a porta foi aberta, trazendo neve para dentro do ambiente, e um estranho apareceu.


Usando jaqueta de caçador com gola de pele e um boné de tweed coberto de neve, que tirou da cabeça e bateu na coxa. Não era habitual ver estranhos em Neustadt, e ele imediatamente atraiu a atenção. Tinha longos cabelos pretos, que não chegavam aos ombros, e um belo rosto, e o nariz quebrado lhe dava um ar de guerreiro medieval. Ele desabotoou a jaqueta.

— Boa noite — disse ele. — Que noite terrível!

O alemão dele era quase perfeito, mas von Berger reconheceu um vestígio de sotaque italiano.

Meyer disse:

— Bem-vindo, mein Herr, vem de longe?

— Pode-se dizer que sim. Direto da Sicília.

Klein se virou para as pessoas próximas.

— Italiano. — Havia um tom de desprezo na voz dele. O estranho o ignorou e disse a Meyer: — Preciso de algo para aquecer. Você parece ter todas as bebidas do mundo por aqui. Teria grappa?

— De fato eu tenho. — Meyer pegou uma garrafa na prateleira e ofereceu-a.

O estranho leu o rótulo em voz alta.

— Grappa di Brunella de Montalcino. Jesus, essa aguardente é das boas. Sirva-me uma dose. — Ele bebeu num único gole e tossiu. — Maravilhosa, vou continuar nela.

Virou-se e viu uma pequena mesa desocupada, ao mesmo tempo em que reparou no barão, sentado na mesa dele, entretido com a cena. O estranho parou de sorrir e quase deu um passo atrás, como se tivesse uma reação física. Hesitou por um instante, em seguida foi para a mesa desocupada, sentou-se, abriu a garrafa e serviu-se de outra dose. Olhou para o barão novamente, mas logo baixou os olhos.

O barão franziu o cenho, sentindo-se estranhamente desconfortável. Havia algo de familiar. Era como se ele o conhecesse, mas como isso seria possível? Não que importasse, pois foi naquele momento que Klein, mais bêbado do que nunca, explodiu. Esticou o braço sobre o balcão, agarrou a garrafa de Schnapps, arrancou a rolha com os dentes e bebeu o líquido intensamente. Depois, bateu ruidosamente com a garrafa no balcão e se virou.

— Você acha que é Deus Todo-poderoso, barão, mas vou dizer o que é realmente. Você é um bastardo. — Ele estava tão bêbado que não sabia o que dizia. — E sei como tratar bastardos da sua laia. Tente vir até minha fazenda, vou recebê-lo com a minha espingarda.

O ambiente ficou completamente em silêncio. O barão permaneceu sentado e bem calmo, com as mãos apoiadas na bengala.

— Vá para casa, Klein, você está fora de si.

Klein avançou cambaleando até a mesa do barão e pegou a garrafa de champanhe que estava na mesa.

— Seu porco velho. Vou lhe mostrar.

— Você não vai mostrar nada — disse o estranho, servindo-se de outra dose de grappa. — E sugiro que peça desculpas a esse grande homem por tê-lo insultado desta maneira.

O barão olhou para ele e franziu levemente o cenho, enquanto Klein cambaleava pelo salão para finalmente se inclinar sobre a mesa dele.

— Italiano bonitinho, hein? Vou quebrar seus dois braços.

— É mesmo? — O estranho segurou a garrafa ao contrário e enfiou-a diretamente num dos lados do crânio de Klein. O grandalhão caiu sobre um dos joelhos, e o estranho se levantou, pegou a cadeira e a despedaçou nos ombros de Klein.

Ele recuou um pouco enquanto Klein se apoiava na mesa e se levantava lentamente. Tinha sangue no rosto, e o estranho disse: — Você é um animal, amigo. Alguém devia ter ensinado isso a você há muito tempo.

Klein rugiu de raiva e avançou trôpego, as grandes mãos preparadas para destruir qualquer coisa que segurassem.

O estranho desviou-se habilmente para o lado e passou-lhe uma rasteira, emendando em seguida um chute na cabeça. Klein caiu rolando e desmaiou.

Houve um murmúrio de entusiasmo e Meyer veio correndo de trás do balcão.

— Barão, tudo isso foi terrível. O que posso dizer?

— Muito pouco. Apenas leve-o para a delegacia. Podem mantê-lo numa cela durante a noite.

Meia dúzia de homens levaram Klein para fora, enquanto os presentes discutiam os eventos animadamente, virando-se para olhar o estranho. Este, por sua vez, observava a garçonete trazer uma vassoura para limpar a bagunça. Ele se serviu de outra dose de grappa e bebeu de um único gole. A garota se afastou.

O barão disse:

— Você sabe se cuidar bem. Violento e eficaz.

— Fui criado em Palermo.

— Você fala um excelente alemão.

— Minha mãe me educou para isso.

— Entendo. Você olhou para mim como se me conhecesse.

— Sim, conhecia sua fotografia. Ia procurá-lo amanhã, no Schloss. Este encontro aconteceu por acaso.

— E com que propósito? Podemos começar com seu nome.

— Rossi, Marco Rossi. Minha mãe era Maria Rossi. Ela trabalhou para você há muito tempo.

Max von Berger sentia um leve tremor, uma certa fraqueza.

— Sente-se aqui e me dê um pouco dessa aguardente. — Rossi encheu o copo e o entregou, sentando-se em seguida. — Por que veio até aqui?

— Ela morreu após uma longa luta contra o câncer. Eu era capitão da força aérea italiana até seis meses atrás. Pilotava um Tornado. Pedi baixa para que pudesse ficar perto dela. Vivíamos com meu tio em Palermo, mas ele morreu há um ano, de modo que minha mãe estava sozinha.

— Mas não compreendo. Como você pode se chamar Rossi?

— Porque minha mãe nunca se casou. Ela me fez jurar que eu traria as cinzas dela para você, por isso estou aqui. — Ele tirou do bolso um maço de cigarros e o barão disse:

— Vou querer um. — A mão dele tremia enquanto aceitava o isqueiro. — Assim é melhor. — Ele se recompôs. — Por que ela me deixou? Você sabe por quê?

— Ah, sei. Ela o amava profundamente, mas percebeu o quanto a lembrança de sua esposa permanecia com você, e eu conheço a terrível história dela. Quando descobriu que estava grávida, ela não queria que você se sentisse preso ou obrigado a qualquer coisa, portanto resolveu voltar para Palermo e ficar sob a proteção de meu tio, Tino Rossi. Ele era uma figura importante na Máfia.

— Percebi algo de familiar em você assim que entrou aqui. Foi como se eu o conhecesse — disse o barão. — Agora sei o porquê, mas ainda não consigo dar conta de tudo isso. Não é todo dia que um homem descobre que tem um filho. Presumo que você sinta o mesmo.

— Não exatamente. Sei que você é meu pai nos últimos vinte anos. — Rossi se levantou. — Vou arrumar um quarto para passar a noite aqui e levo as cinzas dela amanhã de manhã, depois volto para casa e vou ver se a força aérea me aceita de volta.

— Não. Há apenas um lugar para você passar a noite: o Schloss Adler. Temos muito o que conversar — disse o barão, antes de se levantar para sair.


Fazia um frio invernal na capela do castelo e, como sempre, havia velas ardendo e cheiro de incenso. O barão tinha carregado pessoalmente a urna com as cinzas de Maria Rossi e agora a colocava diante do mausoléu da família.

— Vou sepultá-la junto da minha primeira esposa e... — ele não se segurou e soluçou profundamente — ...de seu irmão.

E Marco Rossi, um homem durão, mais duro do que Max von Berger pudesse imaginar naquela época, ficou profundamente emocionado e pôs um braço em torno dele, aproximando-o.

— Está tudo bem, pai, está tudo bem. Não se preocupe. Estou aqui. Estou aqui para este momento. Lamentamos juntos. Ela o amou muito, acredite em mim. Fez um enorme sacrifício por esse amor.

Von Berger disse:

— Por minha causa, por causa das minhas atitudes, do meu orgulho, dos setecentos anos de orgulho estúpido dos von Berger.

— Ei — disse Marco —, isso também se aplica a mim, não é?

Von Berger enxugou uma lágrima no olho e sorriu.

— É bem verdade. Mas agora vamos embora, talvez jantar ou beber algo, mas principalmente conversar.


Mais tarde, no Grande Salão em frente a uma lareira acesa, o mordomo serviu conhaque e café.

— Tudo bem, Otto —, von Berger disse a ele. — Deixe que cuidamos de tudo agora. Fez os preparativos para Herr Rossi?

— Sim, barão, a Suíte Imperial.

— Ótimo. Tenha uma boa noite.

O mordomo desapareceu na escuridão do salão, seus passos ecoando.

Rossi disse: — Antes que algo mais seja dito, tenho de lhe contar uma coisa.

— O quê?

— Como disse antes, meu tio, Tino Rossi, era mafioso, mas tem mais coisa nessa história. Ele era um capo importante. Sabe o que isso significa?

— Naturalmente.

— Quando morreu, ele deixou minha mãe imensamente rica e, com a morte dela, tudo veio para mim. Não preciso de nada de você. Não estou aqui por isso. Estou aqui pela minha mãe e pelo respeito que tenho por meu pai. Sei tudo a seu respeito. Você foi um grande soldado e um grande homem.

Von Berger fez um gesto de indiferença. — Conte-me sobre você.

— Obviamente, passei meus primeiros anos em Palermo. Nem minha mãe nem meu tio queriam que entrasse para a máfia, algo que não era fácil, visto que todo prolongamento da minha família, meus primos, pertenciam à organização.

— Julgando pelo modo como você demoliu um bruto como Klein, eles fracassaram no intento.

— Passei boa parte do meu tempo de garoto nas ruas de Palermo. Lá se aprende rápido. Tive uma ótima educação, a melhor possível, mas suponho que de alguma forma a máfia estivesse no meu sangue. Uma espécie de arrogância. — A mão dele saiu do bolso segurando uma Nossa Senhora de marfim. Ele apertou um botão e uma lâmina saltou.

— E isso... está sempre comigo. Meu tio me deu quando fiz dez anos. — Ele a dobrou.

Von Berger perguntou:

— E o que veio com a maturidade?

— Fui mandado para a Universidade de Yale aos dezessete anos. Estudei economia e administração. Saí-me realmente bem, tinha jeito para computadores. Depois, voltei para casa, ingressei na força aérea italiana e acabei abatido na Bósnia, tendo que me esconder atrás das linhas sérvias.

— Deve ter sido difícil.

— Pode-se dizer que sim.

— E você quer voltar para o serviço?

— Por que não? Depois de três meses de treinamento, eu estava na Guerra do Golfo, atacando Basra. Alguns anos mais tarde, Bósnia e Kosovo. A vida no limite tem um sabor especial. Não tenho nenhuma namorada atualmente. Um pouco de ação e paixão não cairiam mal.

— Posso compreender isso. Sirva-me um outro conhaque.

Marco o atendeu, depois acendeu um cigarro e disse calmamente: — Como disse, não vim até aqui em busca de qualquer favor seu. Na sua posição, entretanto, eu pediria um teste de DNA.

— Uma boa ideia — replicou o barão. — Mas apenas por um motivo: para assegurar a linhagem, para legitimá-lo. Você obviamente é meu filho. Não questiono isso. Na verdade, recebo com alegria. Somente questiono essa sua tolice de voltar para a força aérea. Você já passou muito tempo servindo. Já deu tudo o que tinha para dar.

— Então, o que devo fazer?

— Você tem uma excelente formação em negócios, é um herói de guerra e parece ser um jovem implacável quando alguém cruza seu caminho. Um lutador de rua.

— O que meu pai fez com os ucranianos que massacraram a esposa dele e meu meio-irmão? Descendo de uma longa linhagem de guerreiros.

— Exatamente, e este é o motivo pelo qual quero que você permaneça comigo. Torne-se o meu braço direito. — O barão balançou a cabeça. — Droga, farei oitenta anos no ano que vem, e ter um filho a meu lado seria uma bênção. Sei que você é rico e...

Marco Rossi, tomado por uma emoção que só sentira com a mãe, disse: — Não, por favor. — Ele se apoiou num joelho, segurou a mão do barão e a beijou. — Você não tem ideia do que isso significa. Ser filho de um homem como você.

— Sei perfeitamente. — Von Berger botou a mão na cabeça de Marco. — Porque sou o pai de um homem como você.


E Marco se ajustou perfeitamente à nova posição. A partir de então, onde quer que o barão fosse, ele também ia. Tornou-se de conhecimento público que ele realmente era filho de von Berger.

Nos momentos íntimos, o barão contava tudo a ele. Sobre o bunker do Führer, o último encontro com Hitler e a fonte de sua fortuna. Falou até mesmo do diário de Hitler e mostrou onde o mantinha, no compartimento secreto nos fundos do mausoléu, junto à pira com a chama eterna. No entanto, nunca permitiu que ele o lesse.

Somente von Berger conhecia o segredo das propostas que Hitler fizera a Roosevelt para o término da Segunda Guerra Mundial. Explicou a natureza especial do relacionamento secreto com a Rashid Investimentos, como Kate Rashid salvara a vida dele e de seu vínculo de sangue com ela.

Marco aceitou e compreendeu isso tudo. Veio então aquela terrível manhã em que o barão estava sentado para tomar café da manhã, na suíte do Grande Hotel, em Berlim, quando Marco lhe entregou-lhe a edição matutina do Times.

— Acho melhor você ler isso.

Reportagem de primeira página relatava o trágico voo final de Kate Rashid, que partira de Dauncey Place. Max von Berger poucas vezes tinha sentido a angústia que o acometeu. Ele deu um violento tapa na mesa.

— Pelo amor de Deus, mas o que pode ter saído errado? Ela pilotava muito bem.

— Ninguém sabe. Uma pane do motor, provavelmente. Participei pela Otan de alguns treinamentos com a RAF naquela região. Conheço a região. Sussex, com aqueles pântanos e lodaçais, e mais aquela droga de clima inglês. Segundo a reportagem, foi um voo ao amanhecer, com nevoeiro e chuva. De acordo com o controle de tráfego aéreo, o avião dela ficou na tela um tempo, em seguida desapareceu. Como pôde ver, as buscas na costa já começaram. — Marco foi ao bar, serviu um conhaque e levou-o para o barão. — Beba isto.

O barão obedeceu.

— Devo muito a ela. Minha própria vida.

Marco se sentia estranhamente excluído, de um modo que quase o enciumava. Acendeu dois cigarros e passou um ao pai.

— Ela deve ter caído perto do litoral. Isso possivelmente significa que foi em águas rasas. Devem encontrá-la, assim como esse tal primo dela sobre o qual você falou, Rupert Dauncey.

— Sim, presumo que sim. — Ele estendeu o copo. — Acho melhor tomar outro.

Marco foi até o bar e serviu outro.

— O que acontece agora?

Von Berger ainda não tinha pensado nisso. — Os acordos jurídicos com Paul Rashid passaram para Kate, e agora, com a morte dela, passam obrigatoriamente para mim. Vou assumir o controle do império Rashid. — Ele respirou fundo, atordoado. Na verdade, nunca tinha considerado isso, não com os quatro Rashid tão vivos e saudáveis. — Temos que alertar nosso pessoal em Genebra, em Londres e aqui em Berlim. Temos que colocar tudo em movimento.

— Eles ainda precisam achar o corpo. Isso levará algum tempo. Depois haverá necessidade do relatório de um patologista e da investigação de um legista.

Estranhamente sereno, o velho homem disse:

— Sim, claro, mas devemos começar imediatamente. Não haverá mais necessidade de sigilo. Vou falar com os principais executivos da Rashid em Nova York e em Londres, para que saibam o que esperar. Vão ter que se submeter. Não terão outra opção.

— E quanto a mim? O que você quer que eu faça?

— Ah, tenho uma tarefa especial para você. Vai assumir todas as operações de segurança da Rashid, no mundo todo. Muitas coisas aconteceram nessa área, principalmente na Arábia e em Hazar, e quero saber de tudo. Como foi que os três irmãos Rashid vieram a morrer, e por que, e agora Kate? É uma coincidência incomum.

— Farei o que me pedir.

— Você é um gênio da computação, Marco, portanto vai ser capaz de acessar tudo que eles mantêm. Terá autoridade para isso.

— Primeiro em Londres?

— Suponho que sim. Vou falar com o pessoal da Rashid lá, depois em Nova York. A essa altura, já vão tê-la achado ou a terão declarado morta.

— Posso fazer alguma coisa por você?

— Providencie a partida do Gulfstream para o aeroporto de Northolt, em Londres.

— Vou fazer isso.

Ele saiu, e Max von Berger permaneceu sentado. A vida, pensou, era sempre inesperada, uma viagem diferente após a outra, e esta, refletiu com um peso no coração, acabaria num único lugar. No cemitério da igreja de Dauncey.


LONDRES

NO PRESENTE

 

5

A porta da igreja foi aberta e o cortejo surgiu, o barão e Marco atrás, bem próximos. A procissão começou a atravessar o cemitério em direção ao mausoléu da família.

— Vamos — disse Ferguson —, quero ver isso.


O caixão estava num tablado central e as pessoas o contornavam lentamente, prestando as últimas despedidas. A tampa estava aberta pela metade, expondo o corpo embalsamado de Kate Rashid. Ao se aproximar, o barão parou, tirou algo do bolso, inclinou-se e colocou um objeto sobre o peito dela. Seguiu em frente e deu uma nova parada para encarar Ferguson, depois prosseguiu.

Dillon sussurrou:

— Que diabos foi isso?

Chegou a vez de eles contornarem o caixão e verem o rosto sereno de Kate Rashid, surpreendentemente vívido devido à arte do embalsamador. Dillon não sentiu nenhuma emoção, ou pelo menos acreditou não ter sentido. O objeto que o barão deixara era uma medalha, a Cruz Alemã, preta e vermelha. Eles seguiram adiante.

— Muito interessante — disse Ferguson. — Ele a condecorou com sua Cruz de Cavaleiro com Folhas de Carvalho e Espadas. Há muito mais coisa nisso do que estamos sabendo.

Todos começaram a voltar pela chuva. Dillon perguntou:

— Para onde estão indo, Charles?

— Para o Dauncey Arms, Dillon. Pelo que entendi, vai haver uma recepção com champanhe lá.

— E o barão von Berger? — perguntou Blake.

— Bem, vamos até lá conferir — respondeu Ferguson, seguindo na frente.


À medida que as pessoas entravam, o Dauncey Arms ia enchendo. Como tudo mais no vilarejo, era uma construção antiga: vigas pretas no teto e fogo queimando na velha lareira de granito. Havia mesas em reservados de carvalho. Blake conseguiu agarrar um deles e acomodou-se com Ferguson. Dillon encaminhou-se para o bar, onde Betty Moody, a dona da estalagem, presidia os trabalhos.

Ela franziu o cenho.

— Não sabia que viria, Sr. Dillon. Não é bem-vindo aqui.

— Não sou bem-vindo em lugar algum, Betty. — Ele pegou uma taça de champanhe no balcão, virou-a numa talagada e pegou mais três, antes de voltar para o reservado. Aqui está. — Ele entregou uma taça a Blake e uma a Ferguson e fez um brinde.

Blake disse:

— Nem mesmo você sabe disso, general, mas há menos de vinte e quatro horas, o barão requisitou uma audiência e foi recebido pelo presidente para uma reunião no Salão Oval. Eu estava presente. Ele comunicou que agora está no controle da Rashid Investimentos e, mais importante ainda, da Petróleo Rashid. Um terço de toda a produção de petróleo do Oriente Médio. Ele queria concessões e o presidente enfatizou que não se sentia à vontade quanto a isso.

— Por quê? — perguntou Dillon.

— Porque Berger tem negociado armas com o Iraque. Não podemos interromper a produção de petróleo, os mercados mundiais necessitam disso, mas o presidente deixou claro que ele não era bem-vindo.

— Que pena — disse Ferguson. — Ele vai encontrar o primeiro-ministro amanhã de manhã.

— E o que vai acontecer lá? — perguntou Dillon.

— Vai receber a mesma resposta, espero.

— O primeiro-ministro falou com você?

— Rapidamente, pelo telefone. Pediu-me para comparecer à reunião. — Ele deu de ombros. — É uma decisão previamente tomada.

Foi nesse instante que o barão e Marco Rossi entraram no bar. Von Berger olhou ao redor, viu-os e foi na direção deles. A voz dele era grave, agradável, praticamente sem sotaque alemão.

— Ah, Sr. Johnson. É um prazer vê-lo novamente.

Blake não se levantou.

— Barão.

— General Ferguson. — Berger cumprimentou-o com a cabeça. — Não fomos apresentados.

— Seremos amanhã, em Downing Street.

— É mesmo? — von Berger sorriu. — Espero ansiosamente por isso. Sua reputação o precede.

— Geralmente acontece.

O barão se virou para Dillon.

— E você deve ser o grande Sean Dillon, um homem notável.

— Meu Deus, barão — disse Dillon —, e você estaria atrás do quê?

— Da sua cabeça, naturalmente. Kate Rashid era uma amiga querida. Em determinada ocasião, ela até mesmo salvou minha vida. Portanto, vou me contentar com sua cabeça.

Dillon respondeu em alemão:

— Você sempre pode tentar.

Houve um momento de mal-estar e Ferguson disse:

— Se eu fosse você, barão, realmente não me preocuparia em ir a Downing Street amanhã.

— Sempre mantenho a esperança, general. Tenham um bom dia, cavalheiros.

Rossi encarou atentamente Dillon, com um olhar duro. — Vamos, filho, nosso dia vai chegar.

Rossi sorriu como se estivesse satisfeito, virou-se e acompanhou o barão.

Ferguson perguntou:

— Então, o que você acha?

— Kate Rashid era uma amiga querida dele, chegou mesmo a salvar sua vida, e tudo o que ele quer é a minha cabeça? — Dillon deu de ombros. — Temos um problema aqui, Charles, um problemão.

— Receio que tenha razão. — Ele falou com Blake: — E quanto a você?

— O presidente pediu que o primeiro-ministro permitisse minha participação na reunião de vocês. Depois disso, vou voltar para Washington.

— Ótimo. Também temos que voltar a Londres. — Ferguson falou com Dillon: — Você vai ter sua última reunião esta noite.

— Reunião é o cacete — disse Dillon, e sorriu para Blake. — Depois do meu último pega para capar com meu amigo Rashid, ele me mandou para uma psicanalista. Obviamente, ela me classificou como um psicótico de algum tipo.

Havia uma certa irritação na voz dele, que Blake percebeu. — Rotina, Sean, rotina. Você passou por muitas coisas, teve de matar mais de uma vez.

— É mesmo? — perguntou Dillon. — Achei que eu tivesse matado todo mundo. Ainda assim, de volta a Londres e à Madre Superiora.

Ele foi para a porta. Blake indagou: — Madre Superiora?

— Uma das péssimas piadas do Dillon. A especialista que ele está vendo é uma amiga minha chamada Haden-Taylor. Ela não somente é psiquiatra, como também é professora e sacerdote ordenada da Igreja da Inglaterra. Atende na rua Harley, mas se a pessoa não puder pagar, pode vê-la na igreja de St. Paul, dobrando o quarteirão.

— Entendo. Ela faz bem o tipo, não é?

— Muito.

— Bem — disse Blake enquanto o seguia em direção à saída —, presumo que ela veja de tudo.


No banco traseiro do Rolls-Royce, o barão disse a Rossi:

— É bom confrontar Ferguson e Dillon. Impressões digitais em computadores não têm nenhum charme.

— Durão, aquele irlandês — disse Rossi. — Pelo que já pude ver no computador da Rashid, não me pareceu nada bom. Não resta dúvida de que ele matou todos os três irmãos Rashid.

— Sim, mas minha impressão é de que eles pediram por isso. — O barão balançou a cabeça. — Aquele atentado a Cazalet, em Nantucket, foi mal planejado. Você só faz uma coisa dessas se tiver certeza de que vai ter sucesso. Um fracasso implica necessariamente desastre.

— Os mercenários irlandeses foram bem recomendados — disse Rossi.

— E Dillon e companhia deram conta deles muito bem. — Max von Berger balançou a cabeça. — Mas ainda não temos certeza absoluta de que eles foram os responsáveis pela morte de Kate. Quero que você continue a vasculhar aqueles arquivos de segurança da Rashid Investimentos atrás de qualquer espécie de pista. Deve haver alguma coisa lá.

— Não se preocupe, vou continuar. Para falar a verdade, encontrei uma coisa. Os nomes de dois sujeitos que trabalhavam diretamente para a Rashid Segurança, sob as ordens de Rupert Dauncey. Eles pertenceram ao SAS, chamam-se Newton e Cook. Estavam seguramente envolvidos na vigilância de Dillon.

— Sabe onde estão agora?

— Trabalhando para uma firma de segurança de terceira categoria. Vou encontrá-los, ainda na tarde de hoje.

O barão franziu o cenho.

— Tome cuidado, Marco. Talvez você deva levar alguns seguranças.

— Não para lidar com esses dois. — Rossi sorriu friamente. — Cuido da minha segurança.

O velho homem fez uma pausa.

— Você significa muito para mim.

— Sei disso.

— E esse Dillon não é flor que se cheire. Você reparou nos olhos dele? Mais duros que uma pedra. Sem nenhuma expressão.

— Não é nada surpreendente, dado o currículo dele. Todos aqueles anos no IRA, todos os assassinatos, e os ingleses nunca conseguiram botar as mãos nele. — Marco sorriu. — Até que Ferguson o vendeu aos sérvios, por assim dizer, para logo em seguida comprá-lo de volta e chantageá-lo para que trabalhasse para ele.

O velho barão disse:

— E quanto a esse boato de que ele tentou explodir o primeiro-ministro e o Gabinete de Guerra, em 1991, acha que é verdade?

— Ah, sim, e isso o tornou rico. Os iraquianos pagaram uma fortuna. Dinheiro não significa nada para ele.

— Um guerreiro e um soldado, exatamente como você, Marco.

— E você, barão.

— Há muito tempo. — O velho homem sorriu. — Agora, dê-me um cigarro e não me diga que eu deveria parar de fumar.


O Grenadier era um pub de primeira classe, muito frequentado por oficiais da Guarda. Um opulento ambiente vitoriano, bar de mogno impressionante e reservados, a tradicional culinária inglesa para ser apreciada. Estava calmo naquela hora da tarde, quando Marco entrou no local. Com a capa de chuva úmida e uma pasta na mão, deu uma parada e observou ao redor, logo reconhecendo Newton e Cook pelas fotos que vira no computador. Caminhou na direção deles.

— Sou Rossi.

Eram exatamente como Rossi esperava, homens grandes de quarenta e poucos anos, outrora em forma e agora em declínio, vestindo ternos mal cortados.

Eles olharam cuidadosamente para ele, sem demonstrar expressão.

— O que podemos fazer por você? Quer uma bebida? — perguntou Cook.

Rossi tirou o casaco e acenou para o bar.

— Um martíni com vodca e dois uísques grandes. — Ele se sentou e não sorriu quando disse: — Acreditem em mim. Vocês vão precisar deles.

Newton disse: — O que quer dizer com isso?

— Cale-se. Você trabalhava para Rupert Dauncey na Rashid e agora trabalha para uma empresa de merda, nem mesmo consigo me lembrar do nome dela, portanto sou eu quem faço as perguntas.

Cook pareceu irritado, mas não disse nada.

— Dauncey deu-lhes ordens para seguir um sujeito chamado Sean Dillon. Gostaria de saber quais eram as ordens.

— Dillon está envolvido nisso? — perguntou Newton.

— Qual a importância disso?

Cook respondeu:

— Ele mata pessoas, aquele bastardo.

— E isso o incomoda?

— Incomodaria qualquer um de bom senso.

Marco concordou com a cabeça.

— Tudo bem, que tal isso para o bom senso? — Ele empurrou a pasta. — Há cinco milhas aí dentro. Vocês passaram a seguir Dillon logo que ele voltou para Londres, vindo de Hazar. Se quiserem o conteúdo desta pasta, comecem a falar.

Newton disse:

— Ouvimos alguns boatos. Iam explodir uma ponte ferroviária em Hazar, os Rashid. Dillon ferrou com eles, agiu com um amigo.

— E quem seria esse amigo?

— Billy Salter, um conhecido gângster. O tio dele, Harry, foi um dos mais importantes chefões do East End anos a fio. Supostamente, regenerou-se e está dentro da lei agora. Ele é um grande incorporador imobiliário na região do Tâmisa. Os dois são muito próximos de Dillon.

— Pelo menos parece.

— O negócio é que os Rashid puseram as mãos em Billy no fim daquela operação em Hazar. Kate Rashid teve um acesso de loucura, atirou em Salter várias vezes. Nas costas, se é que você me entende.

— E Dillon não ficou nada satisfeito?

— Não, e nem a condessa. Dauncey disse que devíamos pegar Dillon em Londres, jogá-lo na traseira de um furgão e levá-lo para Dauncey Place, onde ele receberia o tratamento adequado.

— E quando foi isso?

— Na noite que antecedeu o voo dela naquele avião.

Marco concordou com a cabeça.

— Deixe-me adivinhar. Dillon reagiu ao ataque de vocês?

— Correto — respondeu Cook.

— Na verdade nos insultou — contou Newton. — Disse-nos para avisar a Dauncey que ele o encontraria em breve.

— E você o avisou?

— Sim, avisei, e não porque me importasse muito com Dauncey. Fiz isso porque gostei de imaginar que Dauncey fosse capaz de se livrar de Dillon, caso ele aparecesse.

— Então Dillon provavelmente apareceu nas primeiras horas da manhã, quando ela decolou.

— Eu diria que sim.

— Não lhes ocorreu comunicar à polícia tudo isso depois que leram nos jornais sobre o acidente?

— Você deve estar brincando — disse Newton. — O que quer que tenha acontecido lá não é o tipo de coisa com que a gente queira se envolver.

— Certo. Algo mais?

— Isso é tudo.

Marco empurrou a pasta um pouco mais para perto deles.

— Bem, isso é de vocês. — Ele se levantou e pegou sua capa de chuva. — Às nove da manhã de segunda, reportem-se à divisão de segurança da Rashid. Perguntem por Taylor. Vou avisá-lo para que espere vocês.

Newton olhou para Cook, inseguro.

— Não sei ao certo. Quer dizer, Dillon...

— Deixe Dillon comigo. Por outro lado, se preferem trabalhar como leão de chácara numa boate de terceira categoria, sintam-se à vontade.

Newton se levantou e disse apressadamente:

— Não, estamos com você, Sr. Rossi.

A situação se ajustava perfeitamente aos planos dele.

— Na verdade, vocês podem tirar folga o resto do dia e me fazer um favor. Dillon tem um chalé num lugar chamado Stable Mews.

Newton olhou para Cook.

— Sim, sabemos disso.

— Deem uma olhada por lá e vejam para onde ele vai. Sigam-no. — Ele tirou um cartão. — O número do meu celular está neste cartão. Se houver algo interessante, deem uma ligada.


Quinze minutos depois de chegarem a Stable Mews, Newton e Cook viram Dillon saindo da garagem dirigindo um Mini Cooper e o seguiram. Vinte minutos mais tarde, chegaram à rua Harley e viram Dillon estacionar o carro e subir os degraus que davam numa porta com uma placa dourada ao lado, pela qual ele entrou.

— Vou dar uma olhada — disse Newton.

Ele verificou a placa, franziu o cenho, voltou para o carro. Em seguida, ligou para o celular de Rossi.

— Está escrito: Professora e Reverenda Susan Haden-Taylor, Psiquiatra Clínica.

— E ele ainda está lá?

— Está.

— Vou direto para aí.

Instantes depois, Dillon reapareceu, mas não voltou para o carro dele. Em vez disso, desceu a rua, dobrou a esquina e cruzou a pista para uma igreja. Newton o viu entrando, e também cruzou a pista. Ele telefonou para Rossi, que estava no carro.

— Ele dobrou o quarteirão e foi para uma igreja chamada St. Paul. E veja só, o nome do padre na tabuleta é o mesmo da psiquiatra.

— Estarei aí em alguns minutos — disse Rossi, antes de desligar.

Que diabos Dillon estava aprontando dessa vez?


A igreja era em estilo vitoriano e cheirava a umidade, incenso e velas queimando, um lugar escuro e reservado, no qual somente o altar, onde repousava uma estátua da Virgem com o Menino Jesus, estava iluminado por velas. Era uma igreja anglicana antiquada que sempre fazia com que Dillon se lembrasse de sua formação católica romana e dos jesuítas que tinham dado uma mão na educação dele.

— Lembre-se, pequeno Sean: uma corrupção é a corrupção total. Pelas pequenas coisas a reconhecerá. — E quantas vezes isso não o ajudou com o passar dos anos. Naturalmente, esse conselho significava que, no fim das contas, não se deve confiar em ninguém.

A porta da sacristia estava fechada. Ele ouviu o murmúrio de vozes, suspirou e sentou-se em um dos bancos, pensando em Kate Rashid.

Duas igrejas em um dia, meu chapa. Isso pode se tornar um hábito.

Atrás dele, Marco Rossi esgueirou-se cautelosamente pela porta aberta, viu-o e desapareceu na escuridão dos fundos da igreja. Afundou numa cadeira com assento de palhinha, localizada atrás de um pilar, num dos cantos. Pouco depois, a porta da sacristia foi aberta e uma jovem surgiu, chorando um pouco. A professora Susan Haden-Taylor, mulher calma e gentil, usando colarinho e vestes sacerdotais, acompanhava-a. Ela colocou o braço em torno da garota, que carregava uma bolsa.

— Pode ir, Mary. Eles estão esperando você. Sanatório St. Paul, na rua Sloan. Fique o tempo que desejar. Vamos resolver isso juntas. Deus a abençoe.

— E Deus a abençoe, reverenda.

A garota foi embora. A professora Haden-Taylor, que não reparara em Dillon sentado na escuridão do outro lado da nave, pegou uma vassoura e começou a varrer o piso do altar.

— Com você, quando não é uma coisa, é outra — disse Dillon. — Confortando os fracos e depois varrendo a droga do chão.

Ela parou de varrer, virou-se e o viu.

— Dezessete anos, Sean, é isso, e ninguém para ajudá-la. E ela não é fraca. Mas acabou de receber um diagnóstico de câncer de mama.

— Mas que droga — explodiu ele. — Eu e minha boca.

— É sua natureza — disse ela, calmamente.

— Meu Deus, sinto-me mal. Posso ajudá-la? Posso dar um cheque?

— Tranquilamente, Sean. Afinal, você é um homem rico. Todo aquele dinheiro em troca de um ato cruel. Tentando eliminar o primeiro-ministro... — Ela sorriu de forma angelical. — Mas vou aceitar o cheque. O sanatório precisa reformar o aquecimento central e trocar o encanamento da cozinha.

— Você é uma mulher durona, mas negócio feito.

— Ótimo. — Ela sentou-se num banco duas fileiras adiante, de frente para ele. — Não que isso vá fazer algum bem a sua alma imortal, veja você. Pode fumar um cigarro, caso queira. Deus não vai se importar.

— Ele é um velho compreensivo. — Dillon acendeu um cigarro. — E agora? Uma última reunião, disse Ferguson. Achei que já tivesse abordado tudo.

— Quero que você aborde novamente.

— Por quê?

— Chama-se catarse, Sean. Uma espécie de extravasamento mental que pode fazer-lhe bem. Uma forma de revelar coisas das quais você tem fugido.

— Tipo todos aqueles anos no IRA? Todos os assassinatos? Você deve estar brincando.

— Certo. Seu conflito com os Rashid. Você matou todos os três irmãos.

— Que estavam tentando me matar.

— Você arruinou os planos de Kate Rashid e ela tentou matar Billy Salter. Você retornou a Londres e ela tentou fazer com que você fosse sequestrado.

— Você já ouviu tudo isso.

— E quero ouvir novamente. Conte-me tudo.

— Tudo bem. Falei com os caras para avisarem a Rupert Dauncey que eu apareceria em Dauncey Place nas primeiras horas da manhã.

— Como você se sentia?

— Bem, armei-me até os dentes e fui dirigindo de Londres para lá. Ferguson não tinha dado ordens para que eu fizesse isso. Era uma coisa minha. — Ele acendeu outro cigarro e foi tragado pelo passado. — Eu gostava de Kate Rashid, sempre gostei, mas ela estava totalmente louca, havia sido responsável pelo derramamento de muito sangue, e Billy tinha sido a gota d'água. — Pensando em retrospectiva, de um certo modo ele a ignorava. — Sempre acreditei que o IRA e todos aqueles assassinatos tivessem sido uma consequência de meu pai ter morrido no fogo cruzado entre os Provos1 e os paraquedistas ingleses, em Belfast. Mas dirigindo-me para lá naquela manhã, na escuridão chuvosa, lembrei-me de um meus filósofos prediletos, Heidegger. Para se viver autenticamente, dizia ele, é necessário um confronto obstinado com a morte. Então, e daí se para mim tudo tem sido um jogo insensato, buscando constantemente a morte? Qualquer psiquiatra que valesse alguma coisa chegaria a esta conclusão.

— Você acredita nisso?

Ele sorriu.

— Na verdade, não. Somente como motivação.

— Então, o que aconteceu na casa?

— Já lhe contei. Deixei que Rupert levasse vantagem. Por quê? Porque acho que eu também estava um pouco louco naquela manhã. Uma vontade de morrer. Eu estava no limite e ela já o havia ultrapassado. O Black Eagle estava na pista particular dela. Rupert amarrou minhas mãos, subimos a bordo e decolamos. Ela deixou bem claro que me jogaria do avião a mil metros de altitude. Eu tinha uma faca na minha bota, cortei a corda e me soltei.

— E depois?

— Rupert liberou a porta da aeronave, uma Airstairs. Eu tinha um pequeno Colt numa cartucheira de tornozelo. Acertei um tiro na cabeça dele e o atirei para fora.

— E ela?

— Embicou o avião para o mar. Disse que íamos juntos para o inferno. O Black Eagle tem uma chave de ignição. Ela desligou os motores e jogou a chave fora. Assumi o controle e fiz uma aquaplanagem com os motores desligados. Infelizmente, ela tinha uma arma na bolsa e tentou me acertar. Consegui pular com o bote inflável e ela afundou com a aeronave. — Ele deu de ombros. — Mas você já sabe disso tudo.

— Você está se sentindo diferente agora?

— De modo algum.

— Qual foi o pior momento, na sua opinião?

Ele franziu o cenho.

— Presumo que foram dois. Ter entrado com o bote no mar e deslizar em altíssima velocidade pela maré da costa de Sussex, e encontrar depois o corpo de Rupert Dauncey ao meu lado, bem dentro do estuário que dá no pântano. Encalhamos na altura de um velho píer abandonado, em Marsham.

— Foi quando você chamou Ferguson?

— Estava com meu celular. Ele ficou a par de tudo.

— E ele fez o quê?

— Veio de Londres com a equipe de remoção. Fiquei esperando sentado embaixo do píer, na chuva, durante três horas.

— A equipe de remoção?

— A do crematório que usamos, no norte de Londres. Rupert Dauncey rapidamente se transformou em três quilos e meio de cinzas.

— Isso o incomodou?

— Na verdade, não. Foi responsável por muitas coisas, embora a morte da filhinha de um amigo dele tenha sido um evento que o desgraçou de forma especial.

— E Kate Rashid?

— Consultei o GPS enquanto caíamos no mar, portanto sabia onde ela estava. Ferguson entregou o trabalho ao Esquadrão Especial de Embarcações da Marinha Real. Fomos até o local num velho barco pesqueiro.

— Você quis ir até lá?

— Exatamente. Encontramos a trinta metros de profundidade.

— Você a viu?

— Eu a retirei da fuselagem. Subi puxando o corpo dela por um cabo. Você tem de fazer isso lentamente a trinta metros.

— Deve ter sido uma experiência marcante.

— Creio que sim. — Ele acendeu outro cigarro. — Passar novamente por tudo isso, será que ajuda? Não me sinto especialmente catártico. Isso me torna o quê? Psicótico?

Ela disse calmamente:

— Há um provérbio que diz o seguinte: há homens extremamente decididos que estão dispostos a lidar com situações para as quais as pessoas normais não estão preparadas. Eles são chamados de soldados.

— Conheço esse provérbio, e você não poderia ter me prestado uma homenagem maior. Caso isso seja tudo, vou embora. Obrigado, meu amor.

— Cuide-se bem, Dillon.

Ele se virou para sair, fez uma pausa e voltou.

— Veja, às vezes tenho o seguinte sonho. Estou descendo até o avião, quando chego e olho para dentro dele, ela não está lá. Isso tem alguma espécie de significado?

— Perfeitamente. — Ela balançou a cabeça. — Meu pobre Dillon, um homem bom apesar de tudo, e no entanto é o que é.

— Você me reconforta muito.

— Cuide de sua retaguarda, meu amigo, não é o que dizem em Belfast?

Ele foi embora e ela foi até o altar e se ajoelhou para rezar. Por trás dela, Marco se esgueirou silenciosamente para fora da igreja.


O barão estava usando a casa dos Rashid na South Audley Street, não muito longe de Park Lane. Ele estava sentado diante da lareira na sala de estar, e escutava com atenção. Quando Marco terminou, o velho homem respirou fundo.

— Sirva-me um conhaque, Marco. Sempre desconfiamos disso, mesmo assim foi um choque.

Marco pegou a bebida, entregou-a e ofereceu um cigarro de sua cigarreira de prata.

— Então, o que quer que eu faça?

— Por enquanto nada. Vamos ver o que o primeiro-ministro vai nos dizer amanhã.

— E depois?

— Marco, você não conheceu Kate Rashid. Isso aconteceu antes de você surgir na minha vida. Nossos negócios, pela própria natureza deles, tinham de ser feitos em sigilo. Mas uma coisa é fato. Só estou sentado aqui agora por causa dela. Só posso retribuir de uma forma. Vou realizar o que ela não conseguiu.

Marco parecia surpreso.

— O quê? Você não está falando em... Cazalet?

— Ah, tenho algo em mente para o presidente, sem dúvida, mas não temos pressa quanto a isso. Ferguson e Dillon vêm antes. Sim, antes vamos dar conta deles. Tenho certeza de que você vai estar disposto a isso, Marco, não é mesmo?


Na manhã seguinte, em Downing Street, o barão e Marco Rossi encontraram Ferguson e Blake Johnson aguardando, ambos em pé, um de cada lado do primeiro-ministro, sentado em sua habitual cadeira no centro do gabinete.

— Barão — disse ele —, sente-se, por favor. Isso não vai demorar muito.

O barão se sentou e Rossi permaneceu em pé, atrás dele.

— Estimo sua franqueza. Qual é o problema, primeiro-ministro?

— A Berger Internacional já estava nos causando problemas. Seus negócios com o Iraque, por exemplo, são inaceitáveis.

— É um mercado livre.

— Não quando se trata do comércio de armas. Agora ficamos sabendo da conexão com Rashid e de seu controle sobre o mercado de petróleo. Não vamos permitir essa situação, não no atual contexto do terrorismo, do Oriente Médio e do sul da Arábia. Para ser franco, meu governo vai levantar todos os obstáculos possíveis a seus negócios.

— Excelente. — O barão se levantou. — Agora sabemos em que pé as coisas estão. Tenha um bom dia, primeiro-ministro. — E ele saiu, seguido por Rossi.

O primeiro-ministro se virou para Ferguson.

— Mantenha o olho nele, general. Não confio nem um pouco nesse homem.


No lado de fora do n° 10 da Downing Street, o barão ainda se sentava no Rolls-Royce, com Rossi ao lado da porta aberta, quando Ferguson se aproximou.

— Algo a acrescentar, barão?

— Não precisa se preocupar com sua equipe de remoção, general, não sou Rupert Dauncey.

— Ah, meu caro, receio não estar entendendo do que está falando — disse Ferguson.

— Estou sabendo de tudo.

— O que isso significa?

— Significa que estou declarando uma guerra santa contra vocês, em memória da minha querida amiga Kate Rashid. Diga isso a Dillon e ao resto de seus amigos.

Rossi entrou no carro, fechou a porta e eles partiram.

— Bem, para citar nosso amigo hostil, pelo menos agora sabemos em que pé as coisas estão, Charles. — Blake apertou a mão dele. — Falo com você em breve.

Ferguson foi em direção ao Daimler. Seu chofer estava ao lado do carro. Dillon esperava no banco traseiro e Ferguson se sentou ao lado dele. O general digitou um número no celular, A ligação foi atendida imediatamente.

— Quem é?

— Roper, é Ferguson. Vá até o Dark Man e leve o dossiê que você preparou sobre von Berger. Temos problemas.

— Sean vai estar com você?

— Vai.

— Estou indo.

Enquanto seguiam no carro, Dillon disse:

— Bem?

— Ah, o primeiro-ministro fechou a porta asperamente. Nenhuma cooperação governamental. Eles vão levantar todos os obstáculos possíveis para o barão.

— Como ele reagiu?

— Ele simplesmente declarou uma guerra santa contra nós todos em homenagem à memória de Kate Rashid. E disse que não era candidato a nossa equipe de remoção.

— Muito interessante.

— Ele está sabendo, Dillon, só Deus sabe como. Sendo assim, acho que este é o momento para um conselho de guerra.

— Bem, faz sentido. — Dillon acendeu um cigarro. — Exatamente como nos velhos tempos.


Enquanto progrediam pelo habitual engarrafamento de Londres, Dillon pensou em Berger e seus propósitos. O Daimler entrou numa rua estreita, cercada de armazéns, que dava num cais ao lado do Tâmisa. Estacionaram perto do Dark Man, o pub de Salter, cuja tabuleta pintada mostrava um indivíduo sinistro vestindo capa escura.

O bar principal era bem vitoriano: espelhos, barras compridas de mogno e canecas de cerveja de porcelana. Dora, a balconista, estava sentada num tamborete, lendo o Evening Standard.

O movimento da tarde estava fraco, havia somente quatro homens num dos reservados, e um quinto nas proximidades.

Harry Salter, seu sobrinho, Billy, os seguranças Joe Baxter e Sam Hall, além do major Roper em sua cadeira de rodas.

Foi Harry Salter quem viu Dillon primeiro.

— Seu bastardo irlandês. E você, general, o que está acontecendo?

— Ah, muitas coisas, Harry — replicou Ferguson. — Temos problemas que afetam a nós todos. Como vai, Roper?

O homem, sentado numa cadeira de rodas de última geração, sorriu. Vestia japona de guarda-marinha e tinha os cabelos na altura dos ombros. Seu rosto era uma massa retesada de cicatrizes e queimaduras. Especialista em explosivos da Divisão Real de Engenheiros, condecorado com a Cruz George, sua carreira extraordinária tinha terminado por causa de uma “bombinha estúpida” — como a chamou — num carro de passeio em Belfast.

Ele conseguiu sobreviver e descobriu uma carreira inteiramente nova na computação. Se quisesse qualquer coisa no ciberespaço, era Roper que se chamava.

— Estou bem, general.

— E trouxe o dossiê?

— Trouxe.

— Ótimo, muito bem.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou Harry Salter.

Ferguson respondeu:

— Cuide das bebidas, Dillon, enquanto conto tudo.


Pouco depois, Harry Salter disse:

— Então voltamos a Kate Rashid. Ela ia nos matar a todos, e agora essa múmia assume a posição dela.

Billy se reuniu a Dillon, em pé no bar, e perguntou:

— O que você acha, Dillon?

— Acho que é um negócio sério, Billy.

— Bem, já cuidamos de negócios sérios antes.

— Sem dúvida, e você levou uma bala no pescoço, dezoito pontos no rosto e dois tiros na pelve.

— Dillon, já estou recuperado. Malho diariamente com um personal trainer.

— Billy, você saltou de um avião a cento e vinte metros de altura, por duas vezes, só para me ajudar. Esse tipo de coisa está acabado.

— Mas ainda me saio bem nas ruas.

— Veremos, irmãozinho.

Atrás deles, Ferguson tinha acabado sua explanação. Harry Salter disse:

— Um verdadeiro bastardo, esse cara. Tão ruim quanto ela.

— É o que parece. O que você acha, Roper?

— Bem, a fusão da Rashid com a Berger faz deles uma das corporações mais poderosas do mundo. É a apoteose do capitalismo, caso isso não pareça muito marxista.

Ferguson concordou com a cabeça.

— Parece tudo um romance de má qualidade. — Ele se virou para Harry Salter. — Tive uma manhã cansativa, Harry. Posso comer um de seus famosos picadinhos de carne com bolo de batata acompanhado de um tinto despretensioso? Preciso de algum consolo.

 

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1 Guerrilheiros do PIRA, Provisional Irish Republican Army: a facção mais violenta e bem armada do IRA. Os Provisórios ou Provos eram anarquistas, responsáveis pelas grandes campanhas de bombas contra Londres. (N. do T.)


6

Na casa dos Rashid, na South Audley Street, o barão estava sentado no living com Marco.

— Então, qual é nossa tática? — perguntou o pai. — Podemos começar com uma ação contra os peixinhos, aqueles gangsteres, os Salter.

— Vou pensar em alguma coisa. Pedi que Newton e Cook vigiassem a casa de Dillon.

— Por alguma razão em especial?

— Apenas para manter um olho nele, saber aonde vai e os contatos que faz. Dei a Newton os endereços das pessoas regularmente envolvidas com ele, além de fotos digitais.

— Onde você as conseguiu?

— Do computador aqui no escritório. Há um volume enorme de informações sobre ele. Detalhes dos vários esquemas e operações que Kate Rashid colocou em movimento.

— Negócios.

— Mais ou menos.

— Por enquanto vou deixar tudo isso com você, Marco. Já estou ocupado demais com a fusão das duas empresas. Apenas me mantenha informado.

— Naturalmente, pai — disse Marco, antes de sair.


Na manhã seguinte, o “conselho de guerra” se mudou para o apartamento de Roper, na Regency Square. Localizava-se no andar térreo, com rampa de acesso para deficientes físicos. Roper fazia questão de se arranjar sozinho, e mandara adaptar o apartamento, do banheiro à cozinha, para suas necessidades especiais.

A sala de estar tinha sido transformada num laboratório de computadores de última geração, incluindo equipamentos altamente secretos, que estavam lá principalmente porque convinha a Charles Ferguson. Com o passar dos anos, desde o acidente em Belfast, Roper se tornara uma lenda no mundo dos computadores. Tinha violado todos os tipos de sistemas, de Moscou a Washington, provando seu valor a Ferguson e ao primeiro-ministro em mais de uma ocasião.

Naquela manhã, Sean Dillon foi o primeiro a chegar em seu Mini Cooper. Estacionou e tocou a campainha. O interfone fez um ruído dissonante e Roper perguntou: — Quem é?

— Sean, seu idiota. Deixe-me entrar.

A porta foi aberta e ele foi direto para a sala de estar, onde encontrou Roper diante da bancada de computadores. Dillon foi até um aparador, encontrou uma garrafa de uísque irlandês e serviu-se uma dose.

— Paddy? Tudo bem, não é Bushmills, mas está melhorando.

— Estou vivendo de pensão, Sean. Do jeito que o Ministério da Defesa é parcimonioso, tenho de contar até os centavos.

— Você sempre pode vender suas medalhas. A Cruz Militar não se sairia mal, mas a Cruz George renderia uma fortuna.

— Sempre engraçadinho. — Roper tentou sorrir, algo sempre difícil com aquele rosto arrasado pelas queimaduras.

— Não comece com a autopiedade. Ferguson disse que você descobriu uma coisa.

— É verdade, mas vamos esperar os outros. — A campainha tocou e ele apertou o controle remoto. — Aí estão eles.

Instantes depois, Ferguson surgia acompanhado de uma ruiva aparentando quarenta anos, vestindo terninho Armani. Parecia uma executiva de alto escalão, mas era a assistente de Ferguson, a detetive superintendente Hannah Bernstein, que tinha sido cedida a ele pela Divisão Especial. Era mestre em Psicologia por Oxford, mas tivera de matar mais de uma vez no cumprimento do dever.

— Ah, Dillon — disse o general —, podemos começar imediatamente. O que tem para nós, major?

— Pediu que eu desse uma olhada genérica em von Berger, na forma como ele assumiu o controle da Rashid? Bem, descobri uma coisa interessante. Há dois anos, ele injetou dois bilhões na Rashid para que explorassem petróleo em Hazar e no Quadrante Vazio.

Ficaram em silêncio. Hannah perguntou:

— Onde diabos ele conseguiria essa quantidade de dinheiro?

— Em bancos suíços. E para mim isso cheira muito mal.

Dillon disse: — Deixe-me adivinhar. Estamos falando de ouro nazista.

— E não somente disso — retrucou Roper. — Soube dessa história de uma fonte da inteligência israelense. Von Berger estava em Bagdá para encontrar Saddam e tratar de uma venda de armas quando foi atacado por uma multidão na cidade velha. Estava prestes a ser linchado quando Kate Rashid surgiu empunhando uma pistola, acompanhada de alguns beduínos. Ela salvou a vida dele.

— Posso entender tudo melhor agora — disse Dillon.

— Como não estava conseguindo dormir às duas e meia da manhã, como frequentemente acontece — prosseguiu Roper —, decidi me concentrar em von Berger mais profundamente. Vocês conhecem a história da fuga dele de Berlim a bordo de um Storch, que estava lá por acaso para servir de avião reserva de Von Greim? Ele contou aos americanos e britânicos que tudo não passara de puro oportunismo. Soube que o avião estava à disposição na garagem de Goebbels e o requisitou.

— Mas você não acreditou nessa história — interveio Dillon.

— Nem por um instante. Era muito conveniente. Então decidi acessar o bunker do Führer com o meu computador. No Arquivo Nacional, analisei os depoimentos dele nos interrogatórios, em seguida me concentrei no material que a Universidade de Berlim mantém do bunker e de todas as pessoas que estavam lá: as que morreram, as que desapareceram e as que fugiram na noite, na vã tentativa, para a maior parte delas, de escapar dos russos. A fuga de von Berger foi obviamente planejada.

— Aonde isso nos leva? — perguntou Hannah.

— Eles mantiveram os arquivos atualizados. Querem saber quantas pessoas que estavam no bunker do Führer em 1945 que ainda estão entre os vivos neste momento?

Ferguson perguntou:

— Além do octogenário barão Max von Berger?

— Sim. Que tal Sara Hesser, auxiliar da SS que serviu ao Führer como secretária substituta nos últimos seis meses dele no bunker? Em abril de 1945, ela tinha vinte e dois anos. Isso quer dizer que tem setenta e nove anos atualmente.

— Meu Deus — disse Dillon.

Ferguson disse:

— Você está obviamente querendo chegar a algum ponto.

— Sim, você tem razão. Na derrocada final, quando todos fugiram do bunker, ela, por algum milagre, foi uma das pessoas que atravessaram os túneis subterrâneos e finalmente conseguiram chegar ao lado oeste. Caiu nas mãos dos britânicos em Munique, foi interrogada e liberada. Em 1945, conheceu um capitão inglês chamado George Grant, que estava servindo no exército de ocupação. Eles se casaram dois anos mais tarde.

— E o que aconteceu? — perguntou Hannah.

— Ela veio para a Inglaterra. O marido era advogado. Eles não tiveram filhos. De acordo com o relato que fez aos interrogadores, ela foi estuprada por vários soldados russos.

— Meu Deus — disse Hannah. — E agora?

— O marido morreu de câncer há cinco anos. Ela mora na Brickfield Lane, n° 23. Isso fica em Wapping by the Thames. Vocês podem fazer o que quiserem com essas informações.

Ele teclou no computador. — É uma casa avarandada de três andares, que pertence a ela e ao marido há quarenta e cinco anos. Do jeito que o mercado imobiliário anda hoje em dia em Londres, a casa vale novecentas mil libras.

— Acho que isso merece outro drinque. — Dillon foi em direção à garrafa de Paddy.

Ferguson perguntou:

— Está nos dizendo que temos uma mulher que foi secretária de Hitler nos últimos meses da guerra?

— Ah, é isso mesmo. Casada com um oficial inglês e tudo mais, ela apenas desapareceu no anonimato, é o que presumo.

— E deve ter conhecido von Berger, deve tê-lo encontrado...

— Imagino que sim.

Hannah perguntou:

— Mas o que ela teria para contar?

— Só Deus sabe — respondeu Ferguson. — Mas acho que vale uma visita, não é mesmo?


O Daimler partiu primeiro, com Hannah e Ferguson a bordo, e Dillon seguiu no Mini Cooper. Newton ordenou a Cook: — Vamos segui-los.

— Qual deles?

— Resolvemos no caminho.

Ele ligou do celular para Marco Rossi.

— Dillon foi à casa de Roper na Regency Square, em seguida Ferguson apareceu lá com Bernstein. Acabaram de sair novamente, nós os estamos seguindo.

— Ótimo, vá em frente. No instante em que chegarem a algum destino, ligue para mim.


A Brickfield Lane se estendia ao longo do Tâmisa, com uma fileira de casas do século XIX, a maioria reformada. As portas da frente davam para a rua, único local para estacionar. Havia uma igreja, St. Mary, com um pequeno cemitério. Junto ao rio, uma trilha se estendia ao lado de um muro baixo junto a um píer, que dava direto na água, uma relíquia dos velhos tempos em que o tráfego de balsas era regular. No final da rua, havia uma loja chamada Patel's, uma espécie de armazém que prosperou sob a direção de indianos.

Naquela hora do dia, havia muitas vagas disponíveis. Era o caso em frente ao n° 23. O Daimler estacionou e Dillon parou logo atrás. Sean foi o primeiro a sair e caminhou em direção à porta. Havia uma campainha acima de uma placa de metal.

— George e Sara Grant — disse ele, quando Ferguson o alcançou.

Dillon tocou a campainha e ouviu um cão latindo, depois o som de passos se aproximando, uma tranca destravada e a porta foi entreaberta, presa por uma corrente.

— Quieto, Benny — disse uma voz. Uma senhora de rosto marcado e aspecto cansado, os cabelos muito brancos sobre desbotados olhos azuis, apareceu na porta.

Quando falou, foi quase num sussurro. — O que querem?

Hannah conduziu a conversa.

— Sra. Grant?

— Sim.

— Sou a detetive superintendente Bernstein. — Ela estendeu seu cartão de visitas. — Divisão Especial da Scotland Yard. Este é o general Charles Ferguson.

— Gostaríamos de bater um papo com você, querida — disse Ferguson.

Ela ficou nitidamente alarmada.

— A polícia? O que foi que eu fiz?

Dillon se interpôs num alemão excelente.

— Não se preocupe, liebling, não somos da Gestapo. Buscamos algumas informações.

— Mas sobre o quê?

Todos os seus instintos lhe disseram para ser honesto. — Sobre o bunker do Führer naqueles últimos meses e especialmente sobre o que aconteceu com o Sturmbannführer barão Max von Berger no dia trinta de abril de 1945.

— Ai, meu Deus — disse ela em alemão. — Vocês vieram atrás de mim depois de todos esses anos. — Mas ela puxou a corrente e abriu a porta. Havia um pequeno terrier escocês correndo em torno de seus tornozelos, latindo em tom agudo.

Dillon apanhou-o e fez carinho, e o cachorro, que tinha parado de latir, tentou lamber o rosto dele. A velha senhora disse: — Não entendo, ele detesta estranhos.

— Ah, tenho jeito com cachorros desde a infância. Benny, não é? — Ele entregou o cachorro à dona. — Só queremos conversar um pouco. Ninguém está mal-intencionado, dou-lhe minha palavra.

Ela segurou o cachorro, olhou para Dillon e tocou por um instante no rosto dele com a outra mão. Quando falou, foi em inglês: — Qual é seu nome?

— Dillon, minha senhora.

Os olhos dela ficaram distraídos por um momento.

— Sim, eu acredito em você. Apesar de tudo, você é um homem bom, Sr. Dillon.

Dillon quase sufocou e respirou profundamente.

— Confie em mim. Nada de ruim vai acontecer com você, juro.

— Então entrem. — Ela seguiu na frente pelo corredor.


Newton e Cook pararam mais adiante na Brickfield Lane, perto da loja.

— Você permanece aqui enquanto vou dar uma olhada — disse Newton, antes de sair em direção à casa. O chofer de Ferguson estava do outro lado da rua, fumando um cigarro, andando na direção do rio. Newton rapidamente verificou a placa de metal e voltou para o carro. — Sara e George Grant. Vou ver o que descubro na loja.

Um indiano de meia-idade estava encostado no balcão lendo o Evening Standard. Ele deu uma rápida olhada na loja, que estava calma naquela hora.

— Como de costume, parece que estou perdendo meu tempo — disse Newton. — Você poderia me ajudar? Sou cobrador de dívidas. Estou procurando um tal de Anthony Smith, que está devendo as prestações do carro. Vim verificar o endereço que me deram: Brickfield Lane, 23. Mas na porta está escrito Sara e George Grant.

— Você recebeu um endereço falso — disse Patel. — Os Grant sempre moraram ali. O Sr. Grant morreu há cinco anos e a Sra. Grant mora sozinha. É uma velhinha muito simpática. Na verdade, ela é alemã.

— É mesmo?

— E ela não tem carro.

— Verdade? E é alemã?

— Sem dúvida. Disse-me uma vez o nome de solteira dela: Hesser, Sara Hesser. Mora aqui há mais de quarenta anos.

— Outra viagem desperdiçada, mas, de qualquer modo, obrigado.

Newton voltou para o carro, ligou para Marco Rossi pelo celular e contou o que estava acontecendo. Rossi disse: — Permaneça aí. Ficaremos em contato.


Na sala de estar da South Audley Street, o barão conferia alguns papeis quando Marco entrou.

— Quando você me contou sobre sua última audiência com o Führer, você mencionou uma secretária, uma auxiliar da SS, chamada Sara Hesser.

— Isso tem alguma importância?

— Passa a ter caso ela esteja viva e residindo na Brickfield Lane, 23, em Wapping.

— Você tem certeza disso?

— Sem dúvida. — Ele contou ao barão a sequência de eventos. — O fato de terem ido direto à casa dessa mulher fala por si mesmo. Temos de dar graças a Deus por esse comerciante indiano conhecê-la bem, do contrário estaríamos totalmente no escuro. O que devemos fazer?

— Nada — respondeu o barão. — Se ela contar a Ferguson tudo que sabe, ele vai vir me ver.

— O que você está querendo dizer?

O barão olhou para ele.

— Chegou o momento de lhe contar uma coisa, Marco. Você sabe do diário de Hitler, mas somente do que lhe contei. Você nunca o leu.

— É verdade, e sempre me perguntei o porquê.

— Porque há um segredo nele. Em 1945, o Führer entrou em negociações com o presidente Roosevelt, na tentativa de obter uma paz negociada. A ideia era que os alemães e os americanos se voltassem contra os russos, para derrotar o inimigo comum. Roosevelt não comprou a história, mas chegou a discuti-la. Hitler enviou para a Suécia um general da SS, Walter Schellenberg, e Roosevelt mandou um jovem senador multimilionário chamado Jake Cazalet.

Houve um breve silêncio, em seguida Marco disse:

— Mas esse é o nome do presidente dos Estados Unidos.

— E do pai de Jake Cazalet. Ele pertencia ao círculo íntimo de Roosevelt. Você já pensou no que isso implica? Que Roosevelt, tendo Cazalet como seu agente, envolveu-se nessas negociações com Hitler? É verdade que não deram em nada, mas imagine só o que os principais inimigos dos americanos ao redor do mundo fariam com isso! Cazalet estaria acabado. — Ele sorriu. — Guardei esse segredo durante anos, mas sempre tive certeza de que um dia teria grande importância.

— É inacreditável.

— Então vamos esperar Ferguson. — O barão sorriu novamente. — Mas isso não significa que não possamos tomar um drinque.


A sala de estar estava atulhada, não somente de móveis, mas do bricabraque acumulado durante toda uma longa vida. Um antigo piano de cauda ficava num dos cantos e seu tampo estava repleto de fotografias, algumas colocadas em porta-retratos de prata. A maior delas era a de um rapaz bonito, envergando farda de capitão do exército.

Ferguson apanhou-a.

— Seu marido?

— Sim, este é George. Ele era da polícia militar. Eu era intérprete. Foi como nos conhecemos. — Sentou-se, segurando Benny no colo. — Como vocês sabem, fui interrogada pelo pessoal da inteligência sobre o trabalho no bunker.

Ferguson fez um sinal para Hannah, que disse:

— Conte-nos sobre isso, Sra. Grant.

— Na verdade não há muito a contar. Era uma auxiliar da SS, trabalhava como secretária e datilógrafa. Tinha vinte e dois anos. Fui transferida do quartel-general da SD, em Berlim. SD quer dizer Serviço de Inteligência da SS, mas, como disse, eu era somente uma jovem funcionária.

— Então trabalhou lá durante seis meses? Até abril de 1945, e a catástrofe final? — perguntou Hannah.

— Correto. Como secretária substituta, a mais júnior de todas. Fazia o café e coisas assim.

Dillon sentiu uma enorme compaixão por aquela mulher já envelhecida, e não só isso, envelhecida além de sua própria idade, que tinha vivido num limite obscuro da história, mas uma mulher que também estava mentindo.

— Então você conheceu o Führer? — perguntou Hannah.

— Sem dúvida, mas as outras eram bem mais importantes do que eu, as outras secretárias, quero dizer.

Hannah concordou com a cabeça.

— E o Sturmbannführer barão von Berger? Você o conheceu?

— Ah, sim. — A velha senhora afagou a cabeça de Benny. — Ele esteve no bunker nos três últimos meses. Foi ferido na Rússia e veio para ser condecorado e como o Führer simpatizou com ele, fez dele um ajudante de ordens.

— Entendo. Havia algo de especial em relação a ele?

— Não — respondeu a velha senhora. — Os dois últimos dias foram terríveis, tudo estava confuso. Então o Führer e a esposa cometeram suicídio, e nós todos nos dispersamos durante a fuga. Uma parte seguiu pelos túneis subterrâneos e conseguiu escapar. Cheguei ao lado oeste, e aos americanos, umas duas semanas depois. — Ela balançou a cabeça, como se estivesse vendo um passado que não queria ver. — Mas já faz dezenas de anos que passei por isso com o pessoal da inteligência britânica.

Ferguson interrompeu-a.

— Então você não viu nada relacionado a von Berger no final?

Ela deu de ombros.

— Ele estava lá, depois não estava mais, mas isso ocorreu com várias pessoas.

Hannah interveio.

— No entanto, sabemos que von Berger fugiu de Berlim numa aeronave Storch. Ele passou dois anos como prisioneiro de guerra, depois tornou-se um homem de negócios extremamente bem-sucedido.

— Não sei nada a respeito disso. Acreditem em mim, por favor. Era apenas uma secretária substituta, sem a menor importância. — Ela disse quase que apaticamente: — Eu fazia o café! — E devido à velhice e ao cansaço, que baixaram a guarda dela, ela acrescentou: — O Führer gostava de café preto e não muito forte. A segunda xícara ele gostava com açúcar mascavo. É claro que no final ele estava sofrendo de paralisia. As mãos dele tremiam muito e eu tinha de servi-lo. Ele tinha de levantar a xícara com ambas as mãos. Era bem constrangedor quando ele estava ditando.

No assombroso silêncio que se seguiu, Hannah perguntou: — O Führer ditava textos? Mas você nos disse que era insignificante!

A velha senhora olhou para ela confusa e pôs uma das mãos no rosto. Dillon, num dos atos mais cruéis de sua vida, gritou para ela em alemão: — Srta. Hesser, você não está sendo honesta. Vai ter de falar.

Hannah começou a protestar.

— Pelo amor de Deus, Sean...

Mas ele a empurrou para o lado e pressionou a velha senhora.

— Você anotava os ditados do Führer, não é mesmo?

— Sim. — Ela estava aterrorizada.

— Que espécie de ditados? Explique.

A cabeça dela balançava de um lado para o outro freneticamente.

— Não, não posso fazer isso, fiz um juramento sagrado de que serviria ao Führer.

Já odiando a si mesmo por isso, Dillon levantou a voz e descarregou em cima dela.

— O que era tão especial assim? Você vai me contar.

Ela fraquejou e respondeu em alemão:

— Todos os dias, durante seis meses, ele ditava o diário dele para mim.

Hannah falava alemão excelentemente e Ferguson, o suficiente para compreender.

— Meu Deus do céu, o diário de Hitler — disse ele.

Dillon se abaixou e beijou Sara Hesser na testa.

— Perdoe-me, assustei você. Está tudo bem agora. — Ele a abraçou. — Só mais uma coisa. O que você disse sobre Max von Berger não era verdade, não é mesmo?

Os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Não. Ele esteve no gabinete do Führer no dia trinta. Eu também estava lá. O Führer tinha uma missão para ele. Fugir de Berlim num avião que estava escondido na garagem de Goebbels.

— Para fazer o quê? — perguntou Hannah.

— Para quê? Para salvar o diário. O livro sagrado, era como o Führer o chamava. Ele disse que seu conteúdo jamais poderia ser copiado.

Ferguson perguntou:

— O diário estava totalmente atualizado até aquele momento?

— Ah, sim, incluindo até mesmo aquele dia. Cobria os últimos seis meses da guerra. Todos os traidores e aqueles que o decepcionaram, tudo foi relatado. Suas tentativas de negociar um acordo de paz com o presidente Roosevelt. As reuniões secretas na Suécia.

O silêncio foi emocionante.

— Suas o quê? — sussurrou Charles Ferguson.

— Ah, sim — disse ela. — Anotei cada palavra, general, e, apesar dos anos, recordo-me de tudo. — E foi exatamente isso que ela começou a lhes contar.


Foram embora meia hora mais tarde e pararam junto ao Daimler.

— Meu Deus, você se comportou como um bastardo lá dentro — disse Hannah a Dillon.

— Sem dúvida — disse Ferguson —, mas funcionou.

— Passaram-se todos esses anos, mas o treinamento da SS nunca desaparece — disse Dillon. — A voz de comando era dada aos berros, e a reação vinha por reflexo.

— De qualquer modo, sabemos agora de onde vieram os milhões de Max von Berger — disse Ferguson.

— E não há nada que possamos fazer — disse Hannah.

— Estamos de posse da desagradável informação de que Hitler fez uma proposta a Roosevelt em 1945, e que este a levou a sério o bastante para enviar Jake Cazalet à Suécia no intuito de conversar com o representante de Hitler — disse Ferguson.

— Mas, senhor, se nada resultou disso, será que tem alguma importância? — indagou Hannah.

— Ah, minha cara, é claro que tem. E o envolvimento do pai do presidente torna as coisas ainda piores. A imprensa teria um dia de glória. Roosevelt, Cazalet e Hitler. — Ele balançou a cabeça. — Prejudicaria muito o presidente.

— Na pior das hipóteses, acabaria com ele — disse Dillon.

— É verdade. Venham. Vamos ver von Berger.

— Estou às ordens — disse Dillon, correndo na direção de seu carro.

Quando o Daimler começou a andar, Hannah disse a Ferguson:

— Espero que a velha senhora fique bem, senhor.

— É mesmo, fiquei triste com aquilo, mas tinha de ser feito.

— O que você pretende dizer ao barão?

Ferguson sorriu.

— Não tenho a menor ideia, superintendente.

Newton e Cook deixaram que partissem na frente e passaram a segui-los. Vinte minutos mais tarde, Newton telefonou.

— Acabamos de passar pelo Dorchester. Eles estão virando na South Audley Street.

— Ótimo. Fiquem a postos para o caso de eu precisar de vocês.

Rossi desligou o telefone.

— Parece que eles têm a intenção de nos fazer uma visita.

Max von Berger sorriu.

— Bem, isso deve ser interessante.


Na casa de Rashid, uma empregada de uniforme preto e avental branco abriu a porta. Hannah perguntou: — O barão von Berger está em casa? O general Ferguson gostaria de encontrá-lo.

— Sim, senhorita, vocês eram esperados. Por favor, sigam-me.

Ela os conduziu ao andar de cima e abriu a porta da sala de estar, onde o barão estava sentado ao lado da lareira, com Marco em pé junto à janela.

— General, mas que surpresa. O que posso fazer por você?

Ferguson se virou para Hannah.

— Conte a ele, superintendente.


Pouco depois, o barão balançou a cabeça.

— Uma história surpreendente. Ridícula, sem dúvida, mas o que se pode esperar de uma velha senhora que obviamente passou por momentos traumáticos durante a guerra? Naturalmente, sofre de delírios e fantasia que conheceu o Führer. Passei três meses como ajudante no bunker e seguramente conheci todo o pessoal. Não me lembro de nenhuma Sara Hesser.

— Bem, o que acha disso, meu chapa? — perguntou Dillon.

— Note bem, toda a ideia me deixa intrigado — disse o barão. — Talvez a superintendente possa me dar a visão da Scotland Yard. Se, por exemplo, eu tivesse o controle de depósitos em contas particulares na Suíça, isso seria considerado crime no Reino Unido?

Hannah olhou para Ferguson.

— Não, sir, não seria crime.

— E se alguém lhe entregasse um diário para que você o guardasse, isso seria ilegal?

— É claro que não, mas...

— Pelo amor de Deus, vamos deixar de lado essas tolices e nos ater aos fatos — disse Ferguson. — Agora, sabemos a verdade sobre como você escapou de Berlim e o motivo. Também sabemos qual foi a fonte de seu dinheiro, o dinheiro que usou para se reerguer depois da guerra. Além disso, há o diário: um livro sagrado, de acordo com o que Sara Hesser disse.

— Uma ideia muito fantasiosa.

— Especialmente quando faz referência às reuniões na Suécia entre o mensageiro de Hitler e o pai do presidente Jake Cazalet.

— Como já disse, uma ideia fantasiosa. — O barão sorriu. — Embora isso não fosse ajudar muito o futuro político do presidente Jake Cazalet, não é mesmo? — Ele sorriu novamente. — Mas tudo isso é tolice. Surgiram muitas histórias sobre o diário de Hitler ao longo dos anos. Charlatões e falsários repetidamente tentaram fabricar exemplares. Agora temos a fantasia de uma velha senhora. Não, não vai colar.

— Mesmo que os arquivos ingleses e alemães demonstrem que ela realmente estava no bunker?

— É mesmo? Huuum... bem, então esta é a posição de vocês. Receio não ter mais nada a acrescentar, general. A não ser que se isso tudo fosse verdade, acho que a perspectiva de uma revelação pública seria bem desagradável para o presidente. Você está me entendendo?

— Certamente. — Ferguson fez um sinal para Hannah e Dillon. — Vamos embora — e dirigiu-se para a saída.


Marco serviu um uísque irlandês e levou ao pai.

— Bravo, você merece. Ele nunca vai saber o que o atingiu.

— Ferguson é um homem muito astuto, Marco. Não vai deixar passar. É o tipo de coisa que pode vazar facilmente.

— Mas esse não é seu objetivo? Atingir o presidente.

— Mas ainda não quero que isso aconteça. Quero que isso ocorra sob meus termos e num momento que me seja conveniente. — Ele deu um gole no uísque. — Mas agora o jogo começou. A bola, como dizem os ingleses, está no campo de Ferguson. — Ele suspirou. — Hitler ofereceu a ela um lugar no meu avião. Ela teria conseguido escapar dali, mas se recusou, afirmando que o dever dela era permanecer ao lado dele. — Ele balançou a cabeça. — Ela devia ter morrido com os outros.

Marco acendeu um cigarro e foi até a janela, de onde ficou olhando para a South Audley Street.

— É verdade, quando se pensa a respeito, realmente teria sido melhor.


7

Era um dia típico de março, escurecia cedo e a chuva caía sobre o Tâmisa. Na escuridão do pórtico da igreja, na Brickfield Lane, Marco Rossi, de capa e chapéu de chuva, aguardava.

Rossi não sabia ao certo o que fazer e, sem dúvida, não tinha mencionado ao barão suas intenções, mas experimentava a sensação de inevitabilidade dos fatos. Não ter vindo de carro, preferindo pegar um táxi até a rua Wapping High e seguido a pé o restante do caminho, talvez já significasse alguma coisa.

Já estava observando a casa há uma hora, sem saber ao certo o que esperava, quando uma luz foi acesa acima da porta, que se abriu. Surgiu a velha senhora puxando o terrier escocês por uma correia. Ela usando lenço na cabeça e capa, além de levar um guarda-chuva.

— Bom garoto, Benny — disse ela e começou a descer a calçada na direção da loja da esquina, cujas luzes ainda estavam acesas.

Rossi partiu apressado para o outro lado do pequeno cemitério da igreja e parou junto ao muro em frente à loja, onde o velho píer dava para o rio. Não havia amurada, somente um poste que proporcionava uma luz pálida. A velha senhora seguiu para o píer e foi até a beirada com Benny. Rossi, aproveitando a oportunidade, avançou por trás de Sara, que observava as luzes brilhantes de um barco, colocou as duas mãos nas costas dela e a empurrou para as águas.

Ela tinha soltado a guia e o cachorro correu para a beirada do píer latindo. Rossi olhou para baixo e a viu se debatendo na água, antes de afundar. Ele partiu o mais rápido possível para o abrigo sob o pórtico da igreja e, de lá, fez o caminho de volta para a rua Wapping High.

Cerca de vinte minutos mais tarde, o Sr. Patel, incomodado com os latidos de Benny, foi lá fora e encontrou o cachorrinho, ainda com a guia na coleira, na beirada do píer.

— O que foi Benny? — perguntou Patel enquanto pegava a guia. Em seguida, olhou para baixo e viu o frágil corpo dela boiando na água.


Na manhã seguinte, Charles Ferguson estava tomando café da manhã quando o telefone tocou.

— Senhor, é Bernstein.

— Não é um pouco cedo demais, mesmo para você, superintendente?

— Apenas ouça, senhor. Coloquei a senhora Sara Grant como Prioridade n° 1 da Divisão Especial, só para ficarmos de olho nela.

— E?

— Ela foi achada no Tâmisa na noite passada, bem em frente àquele píer no fim da Brickfield Lane. O cavalheiro indiano, o Sr. Patel, que é o proprietário de uma loja nas proximidades, ouviu o cachorro latindo e foi investigar. Ele o encontrou na beira do píer ainda com a coleira, e ela estava na água.

— Bom Deus — disse Ferguson. — Onde ela está agora?

— No necrotério de Wapping.

— Oh, que idiotas que somos, superintendente. Veja, vamos acelerar a autópsia. Vou telefonar para o professor George Langley e pedir que ele a realize esta manhã.

— Isso é acelerado, senhor.

— Ele me fará esse favor. Use sua autoridade para requisitar o caso junto à polícia de Wapping. De agora em diante, é um Código n° 1. Vou assinar a ordem. Não aceite interferência de ninguém. E avise Dillon.


Dillon estava dando sua corrida matinal em Stable Mews, com o capuz do agasalho de corrida levantado para se proteger da garoa, quando o celular tocou e Hannah disse:

— Sean, sou eu.

— A esta hora da manhã? Meu Deus, garota, você finalmente está ficando a fim de mim?

— Cale a boca, Sean, são más notícias — e ela contou.

Dillon parou sob o vão de uma porta, atordoado.

— Você ainda está aí, Sean?

— Sim, estou.

— O que você acha?

— Isso cheira mal, é o que acho.

Percebia-se raiva na voz dele. Ela disse:

— Sean, não faça nenhuma besteira. Temos que ter certeza. George Langley vai fazer a autópsia ainda de manhã. Ele é o melhor que existe. Colocou mais assassinos atrás das grades do que até você pode imaginar. Se tiver qualquer coisa errada, por menor que seja, vai descobrir.

— É bom mesmo — disse Dillon. — Por Deus, é bom mesmo.

Ela desligou e Dillon permaneceu parado por algum tempo sob o vão.


Ele foi para casa e trocou de roupa, depois foi para o apartamento de Roper, que já estava diante dos computadores. O major disse: — Você veio cedo. Significa alguma coisa.

Dillon contou o acontecido e, em seguida, foi atrás da garrafa de uísque Paddy e serviu-se uma dose.

— É cedo até para os meus padrões, mas estou precisado. — Ele virou o copo. — O que você acha?

— Ela certamente era uma mina de informações.

— Que von Berger imediatamente rechaçou como fantasias de uma velha senhora.

— Que logo depois sofre uma espécie de acidente e acaba no Tâmisa. Um acontecimento muito conveniente — acrescentou Roper.

— É mesmo. Era tudo verdade, tudo o que ela nos contou é verdadeiro. A missão que von Berger recebeu de Hitler, o voo final deixando Berlim, o diário... é tudo verdade.

— E agora a fonte das informações está morta — disse Roper.

O rosto de Dillon estava contraído.

— Disse a ela que confiasse em mim. Jurei que não sofreria nenhum mal. Você sabe o que ela me disse? Apesar de tudo, Sr. Dillon, você é um homem bom.

— Sinto muito, Sean.

— Sei de alguém que vai sentir mais ainda quando eu acabar com eles.

— Espere a autópsia.

— É claro que vou esperar. — Dillon partiu parecendo o próprio demônio.


Já era o meio da tarde quando Ferguson, Hannah e Dillon chegaram ao necrotério de Wapping, atendendo ao chamado do professor Langley. A sala da recepção era um lugar agradável e Hannah foi até o balcão falar com uma garota, que pegou um telefone.

— O professor já está vindo.

Ferguson e Hannah se sentaram. Dillon acendeu um cigarro e permaneceu em pé, olhando pela janela.

Ferguson disse: — Você parece inquieto, Dillon.

— Não, estou irritado.

— Acalme-se, logo teremos os resultados.

— Nós já os temos. O único resultado foi a morte dela e não me diga que pode ter sido uma coincidência. Nem você nem eu acreditamos muito nelas em nosso ramo de negócios.

Antes que Ferguson pudesse responder, um pequeno homem grisalho, enérgico, entrou na recepção.

— Olá, Charles.

Ferguson apertou a mão dele.

— Obrigado por ter apressado esse caso, George. A detetive superintendente Bernstein é a oficial designada para o caso. Este é Sean Dillon, um colega.

— Gostariam de ver o corpo?

Foi Dillon que cortou.

— Sim, muito.

Ferguson assentiu com a cabeça e Langley disse: — Então venham por aqui.

A sala para a qual ele os conduziu tinha azulejos brancos nas paredes. A intensidade da iluminação fluorescente chegava a ser desagradável e havia várias mesas de aço, enfileiradas. Um corpo jazia na primeira delas, coberto com um lençol branco.

— É a Sra. Sara Grant. Você a conheceu pessoalmente, Charles?

— Todos nós.

— Então só vou mostrar o rosto. O resto não é nada agradável. Autópsias dificilmente o são.

Ela parecia surpreendentemente serena, e até mesmo as marcas de expressão em seu rosto pareciam atenuadas. De certo modo, estava em paz.

— Ela não tem nenhuma marca — disse Ferguson.

— Nem em qualquer outro lugar — acrescentou Langley.

— Não houve luta neste caso, nem pancadas ou feridas. A única causa da morte foi afogamento.

Dillon perguntou:

— Tem certeza disso?

— Absoluta. Observei no relatório policial que o comerciante local, o sujeito que a encontrou, relatou que a via frequentemente andando pelo píer à noite. Ela gostava de ficar na beirada para ver os barcos. Fui pessoalmente até o lugar. Não há nenhuma espécie de amurada: são nove metros de queda direta para o rio.

— Você tem certeza de que não há nenhuma espécie de marca, professor? — indagou Hannah. — Nenhum sinal de briga?

— Não há nem mesmo hematomas causados pela queda na água. Obviamente, ela estava vestindo calça comprida e um sobretudo grosso.

— Há algo mais que você queira nos contar?

— Somente que ela tinha câncer de pulmão. De qualquer modo, não teria durado mais do que alguns meses. Morte por afogamento, Charles, é o máximo que consigo para você.

— Droga — disse Dillon. — Tem de haver mais alguma coisa.

— Não, Sr. Dillon, ela caiu da beirada do píer e se afogou. Agora, quanto a alguém tê-la ajudado... sei que é nisso que você está pensando, não tenho nada a comentar. Tudo o que posso dizer é que não há sinais de contusões, o que numa mulher velha e frágil significa que não houve a menor espécie de violência. Ele se virou para Ferguson. — Charles, sei que provavelmente este é um assunto do serviço de inteligência e sem dúvida confidencial. Fico feliz em não ficar sabendo de mais nada.

— Muito obrigado, George. — Ferguson apertou a mão dele.

Dillon disse:

— Então é isso, nada?

— Sinto muito, Sr. Dillon. — Langley foi até a porta com eles. — Ah, esperem um minuto, há mais uma coisa.

— E o que pode ser? — indagou Ferguson.

— Fiz milhares de autópsias ao longo dos anos, mas esta foi a primeira vez que isso aconteceu comigo. O número tatuado na axila esquerda dela. Não no braço, como nos campos de concentração, mas na axila. Significa que ela serviu na SS. Ele sorriu. — Mas você deve saber mais do que eu sobre isso, Charles.


No banco traseiro do Daimler, Dillon levantou o anteparo de vidro, isolando-os do motorista.

— Eles fizeram isso, general, os bastardos a pegaram.

— Mas como? — perguntou Hannah. — Em momento algum mencionamos o endereço dela.

— Ah, vamos, Hannah. A partir do momento em que ficaram sabendo da existência dela, quanto tempo acha que Marco levou para rastreá-la?

— Mas...

— Basta — disse Ferguson. — Esse bate-boca não vai trazê-la de volta. Superintendente, ponha von Berger na linha para mim.


Foi Marco quem atendeu o telefone e passou ao pai.

— General? — disse o barão. — O que foi agora?

— Srta. Sara Hesser foi achada no Tâmisa. É hora de conversarmos, e imediatamente.

— Por quê?

— Você quer que eu consiga uma intimação e torne oficial?

— Não há necessidade de grosserias, general. Vamos fazer as coisas de forma civilizada. Que tal às sete no piano-bar do Dorchester?

— Certo. Leve seu capanga com você.

Ele desligou o telefone.

O barão devolveu o aparelho a Marco.

— Parece que ele não gosta muito de você, Marco... Sara Hesser foi achada hoje no Tâmisa.

— Meu Deus. — Rossi conseguiu soar horrorizado.

— Você sabe alguma coisa a respeito?

— Pai, pela minha vida, posso jurar...

O barão ergueu a mão.

— Bem, Ferguson obviamente acha que estamos envolvidos. Vai ser uma noite interessante. E somente para me assegurar, lembre-se: Newton e Cook não existem e jamais ouvimos falar da Brickfield Lane.


Havia meia dúzia de gatos pingados no piano-bar quando Ferguson chegou com Sean e Hannah. Dillon caminhou direto para o piano, como sempre fazia, e começou a tocar A Foggy Day in London Town. Hannah foi até ele e inclinou-se sobre o piano.

— Nunca entendi isso, Sean, o piano. Você parece ser bom em diversas atividades.

— Você está se referindo a matar pessoas? — ele sorriu. — Não se deixe enganar, Hannah, tocar piano num bar é bom.

— Você está irritado. Isso sempre me preocupa.

— Sim, bom e zangado. Sou um homem mau, Hannah. Passei por cima de muitos cadáveres, mas há alguma coisa na morte de Sara Hesser que está me triturando. Ela merecia um destino melhor.

O garçom estava servindo champanhe quando Max Von Berger e Rossi sugiram no bar.

O barão se sentou de frente para Ferguson e Hannah. Rossi e Dillon ficaram em pé, numa espécie de confronto.

— Então, do que se trata, general?

— Conte a ele, superintendente.

Quando ela terminou, o barão suspirou.

— Então essa pobre senhora caiu do píer e o professor Langley confirmou que ela morreu afogada e que não há circunstâncias suspeitas. Então o que isso tem a ver comigo?

— Só o fato de ela ter morrido já é uma circunstância suspeita — respondeu Dillon.

Marco disse: — Você não tem provas para sustentar isso, Dillon. Este encontro não é somente inútil, é ofensivo.

— Basta — disse Ferguson. — Não estamos tratando de filigranas jurídicas, estamos falando da verdade. Podemos não ter provas para prendê-los, mas vocês sabem, e nós sabemos, o que aconteceu.

— Não sei de nada — refutou o barão. — Realmente, Marco tem razão. É muito ofensivo. — O barão se levantou.

Dillon perguntou a Rossi: — O que você fez, empurrou-a?

Rossi deu um passo na direção dele e Hannah agarrou o braço de Sean.

— Deixe para lá.

O rosto do barão estava sombrio.

— Acho melhor irmos agora — e saiu, seguido pelo filho.

No carro, lá fora, ele perguntou em voz baixa:

— Você não teve nada a ver com isso? Jure para mim.

— Pela minha vida. Era uma mulher velha que sofreu um acidente trágico. Isso é tudo.

— Mas, como Ferguson deixou claro, foi muito conveniente para nós.

Naturalmente ocorreu-lhe que seu filho pudesse estar mentindo, mas ele afastou o pensamento e se recostou no banco.


Em seu carro, Ferguson desligou o telefone e imediatamente discou no seu Codex Quatro a linha direta para o escritório do Porão da Casa Branca. Johnson atendeu imediatamente em sua mesa.

— Sim?

— É Ferguson.

— Charles, como andam as coisas?

— Não muito boas. Acabei de falar com o primeiro-ministro. Ele quer que eu vá agora mesmo a Washington falar pessoalmente com o presidente. Vou levar Dillon comigo.

— Desculpe, Charles, mas o presidente foi para a casa dele em Nantucket, passar o fim de semana. Posso fazer alguma coisa?

— É um problema muito grave que o afeta pessoalmente.

Houve uma pausa.

— Está bem, vá direto para a base aérea de Andrews. De lá vão levá-los de helicóptero e aterrissar na praia. Vou preparar tudo. — Ele hesitou por um instante. — É muito ruim, Charles?

— Muito.

— Então vou também.

— Acho que seria sensato de sua parte, meu velho. Você vai para a guerra novamente, posso assegurar. — E desligou.

Johnson permaneceu sentado na mesa com o cenho franzido, em seguida pegou o telefone e ligou para o presidente usando sua linha direta.


NANTUCKET

 

8

O Daimler chegou a Farley Field, passou pela polícia da RAF e dirigiu-se ao local em que o Citation Ten aguardava, com a porta do Airstairs abaixada. O major-aviador Lacey e o tenente-aviador Parry esperavam. Ambos envergavam a Cruz da Força Aérea em reconhecimento às muitas missões perigosas que tinham realizado para Ferguson. Em mais de uma ocasião, tinham sobrevoado territórios inóspitos levando Sean Dillon para que ele saltasse de paraquedas. Eram peças essenciais no fechado grupo secreto de Ferguson. Os dois trajavam uniformes da RAF.

— Pelo que estou vendo, finalmente se vestiram de maneira apropriada — disse Ferguson.

— Alguns de nossos melhores amigos estão na base aérea de Andrews, sir.

— Você tem razão.

Uma sargento da RAF, uma pequena mulher energética, desceu os degraus.

— June Walters, general. Vou cuidar de vocês durante a viagem. Por favor, sigam-me.

Ela foi em frente e o general obedeceu.

— Olá, rapazes — disse Dillon. — Aqui vamos nós de novo.

Lacey perguntou: — O negócio é sério, Dillon?

— Bem, não marcaria férias extras nas próximas semanas.

— Fantástico — retrucou Parry. — As coisas sempre ficam interessantes quando você aparece.

— Belo avião — comentou Dillon.

— É mesmo. Novinho em folha. Você gosta? É o avião comercial mais veloz depois do Concorde — informou Lacey.

— Isso é impressionante. Vamos em frente, então — e Dillon subiu a bordo.


Decolaram pouco depois, aproveitando-se da prioridade máxima concedida ao voo pelo controle de tráfego aéreo. Subiram progressivamente em direção ao oeste, alcançando quinze mil metros de altitude, quando se aproximaram do Atlântico. A sargento Walters apareceu.

— Temos sopa de minestrone e filé com legumes. — Ela se virou para Dillon. — Soube que gosta de comidas simples, sir. Há um prato chamado bolo de batata irlandês: com carneiro, cebola e batata.

Dillon perguntou:

— Meu Deus, garota, é isso que você chama de comida simples?

Ela sorriu:

— Aparentemente. Aceitam um drinque, cavalheiros?

— Traga-me um uísque Bushmills e abra uma garrafa de champanhe de alguma marca decente, pois vamos dividi-la.

Ela segurou o riso e olhou para Ferguson, que assentiu com a cabeça. Ela desapareceu.

Dillon acendeu um cigarro.

— Então, o que você vai contar ao presidente?

— Toda a verdade, como a conhecemos.

— E ele vai dizer o quê?

— Só Deus sabe. Ele é um homem admirável e muito decente, que já sofreu muitas rasteiras na vida pessoal. A mulher morreu de leucemia. E o pai, o velho Jake Cazalet, que aparece tão proeminentemente no diário, morreu num acidente de carro há alguns anos. Quanto ao sequestro da filha dele, ninguém conhece a história melhor do que você, que a salvou com Blake.

Dillon estendeu a mão, pegou o uísque que a sargento Walters lhe ofereceu e bebeu.

— Mas se essa história do von Berger vazar, a maior parte dos americanos não vai dar a mínima para o que aconteceu com ele antes, não é mesmo?

A sargento Walkers entregou uma taça de champanhe a cada um.

— Você é um cínico, Sean — disse Ferguson.

— Um realista, mas olha aí você me chamando pelo meu primeiro nome novamente.

— E isso significa o quê?

— Que você quer que eu lide com esta situação com rigidez. — Ele levantou o copo. — Saúde, Charles.

— Saúde, Sean. Você é sempre digno de confiança.


Na praia da velha casa da família em Nantucket, o presidente caminhava acompanhado por seus agentes favoritos do serviço secreto: Blake Johnson e um ex-fuzileiro naval negro, chamado Clancy Smith, que era um verdadeiro armário. O cachorro do presidente, Murchison, um retriever de pelo curto, corria para a arrebentação e fugia dela.

O mar estava agitado e o vento cortante. Cazalet chamou Clancy e pediu um cigarro. Ele acendeu um Marlboro colocando o casaco na frente e repassou-o ao presidente.

Blake disse:

— Já disse isso antes, sir, há eleitores que o atacariam por isso.

— Todos temos direito a uma fraqueza, Blake, e passei a gostar de fumar na Guerra do Vietnã. — Murchison saltou ao seu lado e ele aproveitou para acariciar-lhe a cabeça. — Agora, se eu batesse nesse cão maravilhoso, isso me custaria votos aos milhares.

Blake acendeu um cigarro, protegendo-o com o casaco, para ele mesmo fumar.

— Desisto, Sr. presidente.

— Então, Ferguson não deu nenhuma pista do assunto?

— Só que é algo ruim.

— Isso já é ruim o bastante. — Eles ouviram um estrondo a distância e quando se viraram puderam ver o helicóptero aterrissando na praia, ao lado da casa.

— Meu Deus, o barulho dessas coisas. Sempre me transporta de volta para a guerra — disse Cazalet. — Vamos dar boas-vindas aos nossos convidados e ver o que deu errado.


Cazalet sempre apreciava os fins de semana tranquilos em Nantucket. Ele preferia ficar sozinho com a Sra. Boulder, misto de governanta e cozinheira, que organizava tudo e tinha liberdade de escolher quem quisesse para limpar e cuidar do lugar quando ele não estava lá. Portanto, quando se sentaram na grande sala de estar estavam presentes apenas Cazalet, Blake e Smith, além de Ferguson e Dillon, que se sentaram diante deles. Ferguson contou toda a história.

Houve silêncio.

O presidente disse:

— É óbvio que Blake contou os eventos do funeral de Kate Rashid, mas isso... nunca esperei nada desse tipo.

Houve uma nova pausa. Blake disse:

— É mesmo tão ruim assim, Sr. presidente? Seria diferente se algo tivesse realmente acontecido.

Dillon indagou: — Posso falar, sir?

— Naturalmente.

— A posição de seu pai, o senador Jake Cazalet, é muito clara nisso tudo. Ele atuou no papel de enviado do presidente Roosevelt numa situação secreta, cumpria ordens e tinha toda a boa-fé.

— Isso é verdade.

— Estranhamente, o enviado de Hitler, o general da SS Walter Schellenberg, estava numa situação parecida. Ele nunca foi do Partido Nazista. Na verdade, depois da guerra ele foi julgado e condenado por um único crime: pertencer a uma organização ilegal, a SS.

— E daí?

— Eu poderia ser considerado culpado por ter sido do IRA por mais anos do que consigo me lembrar, mas isso não mudaria a forma como Schellenberg deve ter se sentido pessoalmente. Ele era apenas o porta-voz de Hitler, e seu pai era o porta-voz de Roosevelt.

— Dillon, cuidado com o que diz — disse Ferguson.

— Não. — Cazalet ergueu a mão. — Ele tem razão.

Dillon assentiu com a cabeça.

— Mas há que explorar isso de forma mais aprofundada, porque a imprensa certamente vai fazê-lo.

— O que está querendo dizer? — perguntou Blake.

— Bem, muitos especialistas diriam que Roosevelt talvez tenha ficado interessado porque as propostas de Hitler incluíam a ideia de evitar que a ameaça vermelha se infiltrasse na Europa Ocidental. Pode-se dizer então que Roosevelt considerou a ideia, senão por que teria mandado Cazalet, antes de mais nada?

Foi Cazalet quem disse:

— Prossiga.

— Mas ele considerou todos os fatos e mudou de ideia. Seria nessa mudança de ideia que os especialistas e a imprensa iam se deter.

— De que diabos você está falando, Dillon? — perguntou Ferguson.

— Que perto do final da guerra o exército americano cruzou o Elba. Os tanques do general Patton podiam ter avançado pelas autoestradas e alcançado Berlim em vinte e quatro horas. Só que não o fizeram. Receberam ordens de Eisenhower para que permanecessem onde estavam porque Roosevelt tinha decidido, depois de falar com Stalin, que os russos tinham o direito de tomar Berlim. Dessa forma, os quarenta e cinco anos de Guerra Fria tiveram início. Para não falar das cem mil mulheres alemãs violentadas.

Houve um profundo silêncio. Foi Jake Cazalet quem falou: — Você tem razão. Tudo o que você disse está correto.

— Tudo o que eu disse é o que vai interessar ao mundo. E levando-se em conta que o presidente o enviou, seu pai fará parte disso, e porque ele era seu pai, sir, será envolvido nisso. Na minha opinião, foi isso que o barão Max von Berger andou considerando.

Todos ficaram agitados. Foi Blake quem perguntou: — Então, de que modo vamos combatê-lo? Devemos nos antecipar a isso tudo? Espalhar a história primeiro?

Ferguson disse:

— A história é que é o problema.

— Concordo — manifestou-se o presidente. — O problema, cavalheiros, é que no momento estou envolvido em negociações diplomáticas bem delicadas. Debater a questão do Iraque com as Nações Unidas com a ameaça de um escândalo desses pairando no ar seria um desastre. Meus adversários internos fariam picadinho de mim. Nossos inimigos externos se aproveitariam imediatamente.

— Então isso significa... — disse Ferguson, olhando diretamente para o presidente.

Cazalet sorriu, mas não havia a menor alegria no rosto dele.

— Sr. Dillon? — perguntou. — Se obtivéssemos o diário...

Dillon concordou.

— Vou ver o que podemos fazer, sir. — Ele olhou para Johnson. — Está dentro, Blake?

Blake deu um risinho.

— Às ordens, Sean.


LONDRES

ESCÓCIA

IRLANDA

 

9

Enquanto isso, Marco Rossi, pesquisando os arquivos de segurança da Rashid Investimentos, descobriu a dimensão do envolvimento de Kate Rashid não só no sul da Arábia, como também mais perto de casa, na Irlanda. De fato, ela vinha negociando armas ativamente com os dois lados dissidentes, o IRA e o grupos protestantes legalistas.

Kate vinha sendo muito igualitária.

Havia um nome que ele conhecia em especial, o de um homem que tinha sido um dos líderes da Associação de Defesa do Ulster, e que se transferiu, depois de uma divergência pública, para a Mão Vermelha do Ulster, provavelmente a organização legalista mais extremista de todas.

As somas de dinheiro envolvidas eram desconcertantes. Não havia o menor sentido em desperdiçar todo esse dinheiro, pensou ele.

Isso explicava o motivo de ele estar andando numa noite escura por Kilburn, a região mais irlandesa de Londres, vestindo jaqueta de aviador preta e portando uma Walther PPK escondida nas costas, indo encontrar um tal de Patrick Murphy.

O Sr. Murphy era o proprietário de um grande bar chamado Orange George, cuja parede externa era pintada de forma a lembrar as áreas protestantes de Belfast.

Marco ouviu música irlandesa e entrou no estabelecimento. O pub estava cheio e uma banda irlandesa tocava.

Parou num dos cantos do bar e uma mulher bonita, de meia idade, abordou-o.

— Patrick Murphy está me aguardando.

— É mesmo? — Ela deu uma olhada nele e sorriu. — Não vai ficar comigo?

Ele estendeu o braço e fez um afago na bochecha dela.

— Adoraria, talvez mais tarde, mas Pat Murphy está me esperando. Pode me chamar simplesmente de Marco. Como você se chama?

— Janet.

— Bem, quem sabe, Janet?

Ela ficou ruborizada, mais excitada do que nunca.


Murphy estava sentado no escritório dos fundos. Era um homem barrigudo no final da meia-idade, e verificava um livro de contabilidade quando Janet surgiu com Marco.

— Ah, Sr. Rossi. É melhor você se sentar. — Ele fez um sinal para Janet, que desapareceu. Ele pegou uma garrafa de uísque e serviu dois copos.

— Saúde. — Tomou seu uísque e Marco, ignorando o dele, acendeu um cigarro.

— Bem, em que pé estamos?

Murphy disse: — Fiquei surpreso ao receber seu telefonema. Quer dizer, Derry Gibson. Como eu poderia conhecer um personagem tão implacável quanto ele?

Marco viu-o exatamente como ele era, um sujeito menor, um mensageiro, útil ao modo dele, que provavelmente adorava a ideia de se considerar uma espécie de rebelde.

— Você o conhece porque fez negócios com Kate Rashid há um ano, e arranjou para que ela se encontrasse com Derry Gibson, que tinha dinheiro proveniente do tráfico de drogas e queria comprar armas. Dois cargueiros descarregaram no condado de Down no princípio deste ano, e uma terceira entrega tinha sido combinada pouco antes da lamentável morte de Kate Rashid. Um negócio de dois milhões libras, que supostamente ocorreria dentro de uma semana.

— Eu não conheço Derry Gibson.

— Então estou desperdiçando meu tempo aqui. Vou ter que achar outro comprador para aqueles AK-47 e mísseis Stinger. Talvez o IRA. — Marco pegou o copo, virou o uísque e se levantou.

A porta dos fundos foi aberta com um ruído e surgiu um homem louro de uns quarenta anos, forte e de aspecto duro, vestindo paletó de tweed sobre camiseta preta. A voz dele tinha um nítido sotaque do Ulster. De uma maneira estranha, Marco se lembrou de Dillon ao ouvi-la.

— Espere aí. Sou Derry Gibson.

— Ora essa, mas que surpresa — disse Marco. — E eu achando que você estivesse em Drumgoole, na costa de Down.

— Bem, estava até esse idiota me telefonar ontem, portanto pode-se dizer que vim voando para cá na maior pressa. O que está acontecendo?

— É simples. Você costumava negociar com Kate Rashid. Agora que ela está morta, meu pai, o barão Max von Berger, assumiu o controle da firma. Sou Marco Rossi, tenho certeza de que você sabe quem sou, o encarregado de todos os assuntos que envolvem a segurança da Rashid e da Berger.

— É mesmo?

— É, e de outros negócios também. Contudo, para ser franco, com todo aquele dinheiro que tinha, tento imaginar por que Kate se preocupava com pequenos negócios como esse. Dois milhões? Presumo que fosse romântica.

Aconteceu uma coisa estranha: o rosto de Gibson se transformou.

— Dane-se, não fale mal dela, era uma grande dama.

Ele enfiou a mão no bolso do casaco e Marco disse: — Vou lhe dizer uma coisa. Vamos os dois colocar nossas cartas na mesa. E todas as outras coisas. — Ele estendeu o braço na direção das costas, pegou a Walther e colocou-a na mesa, diante dele.

Derry Gibson hesitou um pouco, em seguida tirou sua própria Walther do bolso direito e também a deixou na mesa.

— Você tem bom gosto para armas. Vamos conversar.


— Arrumei uma traineira espanhola de águas profundas, a Mona Lisa, que deve servir — disse Rossi. — Tem registro italiano. A regulamentação pesqueira europeia permite que ela vá até a Irlanda. Ela pode ser descarregada em Drumgoole na noite acertada. Não tem problema. — Marco sorriu. — Não vou pedir o pagamento tão logo atraquemos porque sei que você conhece as regras do jogo. Vai querer fazer outros negócios.

— E você, Sr. Rossi. Tento imaginar por que está fazendo isso. Você também tem dinheiro, pelo que sei.

— Sim, mas isso torna as coisas interessantes. Gosto da ação, Gibson, sempre gostei. Na verdade, quando a Mona Lisa aparecer em Drumgoole, estarei a bordo. Vou sair da ilha de Man num outro barco e juntar-me a ela.

— Certo. Vamos tomar um uísque para comemorar.

Gibson pegou a garrafa.

Marco disse:

— Não, há mais uma coisa. Peço-lhe um favor aqui em Londres. Por acaso você conhece um gângster chamado Harry Salter, e o sobrinho dele, Billy?

Foi Murphy, que estava em pé junto à porta dos fundos, quem explodiu.

— Verdadeiros patifes, aqueles dois. Harry Salter foi um dos maiores chefões do East End, como os Kray. Supostamente, regenerou-se há alguns anos. Veja bem, os boatos dizem que ele está totalmente envolvido no contrabando de cigarros vindos da Holanda. O lucro é enorme.

— Paga melhor do que a heroína — comentou Gibson. — Você deve saber bem disso.

— Eu sei. O que você tem contra Salter?

Marco perguntou:

— Você já ouviu falar de um conterrâneo seu, que teve importância no IRA, chamado Sean Dillon?

Gibson disse:

— Todos do nosso ramo conhecem Dillon, aquele maldito feniano bastardo. Trabalha para os ingleses agora.

— Você sabia?

— É claro. Charles-maldito-Ferguson. Ele tem sido o flagelo do IRA há anos, mas também não fez favor algum para os legalistas, o velho Charles. E ter Sean como seu braço direito torna-o um homem muito difícil de se lidar.

— Você está dando a entender que conhece Dillon pessoalmente.

— Nós já trocamos tiros. Uma vez nos encontramos no mesmo canal de esgoto em Derry, depois de um motim. O exército britânico sempre teve dificuldade em distinguir os membros do IRA dos Provos. Foi Dillon quem me levou até o rio. Ele disse: “Continue correndo, mas nunca mais volte a me encontrar, senão eu te mato!” — Ele serviu outra dose. — Mata qualquer um, é o que dizem dele. — Ele olhou para o copo. — Mas ele me tirou daquele esgoto e eu era o inimigo. Sempre me perguntei por que fez aquilo.

— Não pergunte a mim, não entendo nada de filosofia. O negócio é que Charles Ferguson e a família Rashid tinham uma tremenda inimizade. Você deve ter ouvido falar no modo terrível como os três irmãos acabaram seus dias? Dillon matou todos eles.

— E Kate Rashid?

— Ah, ele também teve algo a ver com isso, assim como Ferguson e os Salter. Vamos colocar as coisas da seguinte maneira: quero causar-lhes muito desgosto.

— Você está se referindo a uma modalidade permanente de desgosto?

— Ainda não. Alguns estragos, antes. Ouvi dizer que os Salter têm uma empresa de embarcações, entre outros negócios.

— É verdade, sobem e descem o Tâmisa — confirmou Murphy. — Nos píeres de Westminster e Charing Cross, melhor do que os ônibus.

— Incluindo um barco chamado River Queen?

— Que é o orgulho e a alegria deles. Foi construído originalmente nos anos 1930. Eles gastaram uma fortuna reformando-o — disse Murphy. — Um barco adorável.

— Excelente. — Marco virou-se para Gibson. — Afunde-o para mim. Faça isso e o negócio do carregamento de armas, combinado com Kate Rashid, fica acertado. A entrega vai ser feita em Drumgoole, no dia dez.

Derry parecia atordoado.

— Mas isso é daqui a quatro dias.

— O Mona Lisa já deixou a Espanha. Presumi que você fosse um homem sensato.

Gibson soltou uma gargalhada.

— Ah, é um prazer fazer negócios com você, Sr. Rossi. Quanto a esse negócio com os Salter, isso também vai ser um prazer.


Já passava da meia-noite quando Gibson e Murphy dirigiram-se para Wapping num Land Rover, passando pelo Dark Man e pelo Cable Wharf, onde o River Queen ficava atracado.

Era uma área ainda decadente, sua maior parte composta de armazéns arruinados. Avistavam-se algumas luzes do outro lado do rio, mas estava escuro e não havia tráfego no rio devido ao horário. Ninguém por perto, ou pelo menos era o que parecia.

Lamentavelmente, por uma dessas incertezas da vida, havia movimento numa pilha de caixotes de embalagem, onde um velho alcoólatra, um vagabundo chamado Wally Brown, recolhia-se habitualmente com seus míseros pertences. Incomodado pelo barulho, ele acordou e ficou escutando.

— Meu Deus, Derry, não gosto nada disso.

— Murphy, é tudo muito simples. Desço pela escotilha da casa de máquinas e abro as válvulas do casco. A água entra e o barco afunda. Agora, faça como expliquei e estaremos fora daqui antes do que você imagina. Se você me ferrar, também vai acabar no rio.

— Não há necessidade disso, Derry.

— Certo, mas esta transação de armas com o Rossi significa muito para mim. Com este último carregamento de armas, vou estar preparado para cair em cima do IRA de uma vez. Vai ser exatamente como nos velhos tempos, os bons tempos.

— Estou às ordens, Derry, não vou decepcioná-lo.

— Então vamos fazer isso.

Eles seguiram pela prancha de desembarque até o River Queen, e Wally Brown, tendo ouvido tudo, voltou para dentro de seu caixote.


Murphy permaneceu no convés montando guarda e Gibson deslizou pelo interior da escotilha da casa de máquinas, deixando para acender sua lanterna somente no momento em que desceu a escada de aço. A maquinaria era adorável, tudo era adorável, e, na condição de criança irlandesa criada num porto pesqueiro, ele sentiu um verdadeiro sentimento de tristeza.

— Que beleza — disse ele, baixinho. — Mesmo assim...

Ele sabia que devia haver pelo menos quatro válvulas de casco e começou a procurar as robustas rodas de bronze. A primeira girou suavemente até parar com um clique. Foi rapidamente para a segunda. No momento em que estava trabalhando na quarta, a água já estava correndo pelo piso, na altura do tornozelo.

Ele saiu e se reuniu a Murphy.

— Vá correndo lá para frente que vou dar uma olhada no alinhamento da popa, seja rápido e depois desembarque.

Assim fizeram, depois recolheram a prancha de desembarque e se afastaram da beira do píer, de onde assistiram ao Queen adernar um pouco e se endireitar.

— Uma cena triste — disse Gibson, quando a água alcançou o convés. — Mas já fizemos pior. Tenho um voo agora cedo para Belfast. Se precisar de você, entro em contato.

— Só sei de uma coisa — disse Murphy, quando chegou ao Land Rover. — Harry Salter não vai ficar nada satisfeito.


Ele não ficou. Dillon, durante sua corrida matinal, atendeu o celular e ouviu Harry dizer: — Alguns malditos bastardos afundaram o River Queen no atracadouro.

— Do que você está falando? — perguntou Dillon.

— Bem, a droga do barco não afundou por conta própria! Billy pegou o equipamento de mergulho dele. Vai descer para dar uma olhada.

— Ah, Harry, ele não devia estar fazendo isso, não depois de ser metralhando em Hazar há apenas alguns meses. Vou direto para aí.

Desligou o telefone, refletiu um pouco sobre aquilo e ligou para Ferguson na Cavendish Square.


Na ponta de Cable Wharf, ele encontrou Harry, Joe Baxter e Sam Hall olhando para a parte do River Queen que permaneceu fora da água. O Shogun de Billy estava estacionado nas proximidades e a porta traseira aberta revelava diversos artigos de mergulho e dois reservatórios de oxigênio.

— Onde está Billy? — perguntou Dillon, enquanto saía de seu Mini.

— Está na água há quinze minutos.

— Droga, Harry, ele não devia ter descido. Devia ter deixado isso para os especialistas em resgate.

Foi então que duas coisas aconteceram. Ferguson e Hannah chegaram e Billy emergiu. Ele tirou o reservatório de oxigênio e Dillon o recolheu. Billy nadou para a escada do píer e Baxter e Hall o puxaram. Quando tirou a máscara, seu rosto estava azul por causa do frio.

— Seu maldito idiota — disse Dillon.

— Ora, aprendi com você. Foram as válvulas, todas as quatro estavam escancaradas. Fechei-as. Não foi nada fácil.

Dillon disse: — O pessoal do resgate vai ter que bombear a água. O barco vai flutuar novamente.

— O que nos deixa com o problema de descobrir quem fez isso.

Houve uma pausa, em seguida a voz trêmula de um bêbado habitual disse: — Eu sei, Sr. Salter. Eu vi, eu escutei eles falando.

Foi Joe Baxter quem disse:

— Wally Brown. Ele se abriga nos caixotes de embalagem.

— E você os ouviu? — indagou Harry.

— Sim. Um deles se chamava Murphy, mas o que estava no comando era um tal de Derry. Era assim que o outro o chamava, e eles falavam com um sotaque irlandês engraçado, só que não era bem irlandês. — Ele apontou para Dillon. — Acabei de pensar nisso, eles falavam como ele.

Ferguson disse:

— Derry fala como você, Dillon. Irlanda do Norte.

Hannah perguntou: — Poderia ser Derry Gibson, da Mão Vermelha do Ulster?

— De volta para me assombrar. Mas por quê? — perguntou Dillon.

— O tal do Derry mencionou um cara chamado Rossi... — acrescentou o velho Wally.

O silêncio foi de estarrecer.

— Vou matá-lo — disse Harry. — Vou matar o sanguessuga.

— Não, você não vai fazer isso, pelo menos ainda não — disse Ferguson. — Vamos voltar para o Dark Man. Obrigado, Sr. Brown. Você nos prestou uma grande ajuda. Ouviu mais alguma coisa?


Todos se sentaram num reservado de canto. Dora, a balconista, providenciou chá e café. Harry e Billy Salter, Ferguson, Hannah e Dillon estavam na mesa. Baxter e Sam Hall estavam encostados na parede.

— Eles declararam guerra abertamente — disse Harry.

— É verdade — concordou Dillon. — Mas se você me permite um aparte, Harry, a coisa mais importante é que Rossi fechou um acordo para fornecer armas para Derry Gibson. — Wally Brown devorava um prato de ovos com presunto num dos cantos. — Bem, de acordo com Wally, Murphy não estava nada feliz com a ideia de afundar o barco e Derry o ameaçou. Ele disse que o negócio com Rossi, o último carregamento de armas, era o que poderia ser usado contra o IRA novamente.

— O que você sugere, então? — perguntou Ferguson.

— Eu não incomodaria o barão e Marco novamente. Iria trocar algumas palavras com Pat Murphy diretamente.

— Se você for falar com esse bastardo, vou junto — disse Harry Salter.

Ferguson concordou com a cabeça.

— Tente evitar que ele apareça boiando no Tâmisa, Dillon.

— Não seja bobo, Charles. Se estiver servindo de fachada para Derry Gibson e a Mão Vermelha, ele vai ser muito valioso para ser desperdiçado dessa forma.


Na South Audley Street, Marco se sentou com o pai e contou o que tinha acontecido. O barão achou tudo divertido.

— Ah, o grande Harry Salter não vai ficar nada satisfeito. Mas esse outro negócio, o carregamento de armas no Mona Lisa, isso é sensato?

E Marco disse exatamente a coisa certa.

— Essa foi uma das últimas operações que Kate Rashid organizou, pai. Ela trabalhou com Derry Gibson anteriormente — ele reforçou seu argumento —, que era, e ainda é, um grande admirador dela. Considerava-a uma grande dama, pelo menos foi o que me disse.

— É mesmo? Pelo menos tem bom gosto. Essa traineira espanhola, a Mona Lisa, quantos tripulantes tem?

— O capitão, um homem chamado Juan Martino, e cinco tripulantes, todos infames, naturalmente.

— E qual será seu papel nisso?

— Na viagem para Drumgoole, que fica na costa de Down na Irlanda do Norte, eles vão passar perto da costa oeste da ilha de Man. Falei com nossos contatos lá para arranjarem uma lancha que vai me levar até o barco.

— Isso é estritamente necessário, Marco?

— Não, mas faz com que eu saia do escritório.

O velho homem riu.

— Vá em frente, então, seu moleque, mas volte inteiro. Preciso de você.


O bar Orange George abria às nove porque servia café da manhã irlandês completo. Estava calmo quando Dillon entrou. Janet, a garçonete, lia jornal.

Dillon disse:

— Diga ao Patrick que quero ter uma palavrinha com ele.

Naquele momento, a porta no fundo do bar se abriu e Murphy apareceu. Viu Dillon e uma expressão de horror tomou conta de seu rosto.

Dillon contornou o balcão.

— Patrick, meu velho chapa, sou eu, Sean Dillon. — Ele o empurrou pelo corredor. — Faça o que estou mandando. Vá em frente e destranque a porta dos fundos — o que Murphy, aterrorizado, fez; Billy e Harry entraram. Empurraram Murphy para o escritório e fecharam a porta.

Salter o jogou numa cadeira e deu um tapa no rosto dele.

— Seu grandessíssimo canalha, afundou meu barco.

— Não fui eu, Sr. Salter, eu juro.

Billy afastou o tio.

— Deixe que eu cuido dele. — Mas Dillon interveio.

— Não, deixe isso comigo. — Ele tirou uma Walther do bolso, pegou um silenciador Carswell no outro e o atarraxou no devido lugar. — Assim é muito melhor. Praticamente não faz barulho. Vou começar pelo cotovelo esquerdo, depois vou variando. O joelho direito, talvez. Isso vai deixá-lo de muletas por no mínimo seis meses.

— Meu Deus, não. — Murphy estava realmente aterrorizado. — O que vocês querem?

— Derry Gibson — disse Dillon. — Por ora, vamos esquecer sua participação no naufrágio do River Queen. Conte-me sobre o negócio entre Derry e Rossi, o carregamento de armas.

— Meu Deus, ele vai me matar. Aquele sujeito é um sádico.

— Não, eu é que sou — disse Billy Salter, dando-lhe dois socos no estômago. — Agora diga claramente ao Sr. Dillon o que ele está querendo saber, ou você vai acabar cimentado no prolongamento do Anel Rodoviário do None, que está sendo construído.

E Murphy, ciente de que estava em má companhia, começou a falar.


No apartamento de Ferguson, Dillon, Harry e Billy se sentaram para uma reunião. Hannah ficou em pé, nas proximidades, enquanto lá fora Murphy esperava no carro, com Baxter e Hall.

— Isso pode ser um desastre — disse Ferguson. — Todos sabemos que o processo de paz está arruinado, como as atividades dos grupos dissidentes do IRA comprovam, mas com esse carregamento de armas os legalistas estariam prontos para começar uma guerra.

Hannah sugeriu:

— Devíamos informar a polícia da Irlanda do Norte, sir.

— Não podemos fazer isso. Se eles fizerem qualquer movimento na região de Drumgoole — disse Dillon —, Derry Gibson vai ficar sabendo. Não somente é território dele, como seus partidários têm parentes na polícia.

— Então o que sugere?

— Qualquer estranho naquela região despertaria suspeitas.

— O que devemos fazer, mandar o SAS?

— Nada tão oficial. Da última vez que fizemos algo parecido usamos um cruzador da base de resgates aeronavais que a RAF mantém em Oban. Não vejo motivo para que não façamos novamente. Reserve o barco, dê-me o equipamento de mergulho adequado e uma boa quantidade de Semtex que faço uma incursão noturna e mando o Mona Lisa para o inferno.

— Por conta própria? — perguntou Ferguson.

— Por que não? Uma operação totalmente clandestina.

— Não gosto disso, Dillon — disse Hannah. — É ilegal.

— E quanto a mim, Dillon? — perguntou Billy. — Da última vez que você deu uma festa dessas, fui convidado, e a superintendente também.

— A superintendente não está disponível porque isso ofende a consciência dela, e você não está disponível porque alguns meses atrás levou uma bala no pescoço e dois tiros na pelve. Como os alemães costumavam dizer quando levavam alguém para um campo de prisioneiros: para você a guerra acabou.

— Vá se danar, Dillon.

Dillon se virou para Ferguson.

— Você quer que isso seja feito ou não? Há um benefício adicional, você sabe. Pode ser exatamente o que estávamos procurando para cutucar von Berger, forçá-lo a cometer um erro. Se afundarmos esse barco, quem sabe não acontece alguma coisa que nos dê uma pista sobre aquele maldito diário.

Ferguson disse:

— Você tem razão, nos dois argumentos. Vamos fazer isso. — Ele disse a Hannah: — Trancafie Murphy num presídio de segurança máxima, em St. John Wood. Faça com que telefone para o Orange George e dê uma desculpa razoável para a ausência dele.

— Como quiser, sir.

— Dillon vai lhe entregar uma lista com armamentos e explosivos de que vai precisar. O oficial intendente cuidará disso. Reserve o Gulfstream com o major-aviador Lacey. O que acha, Dillon? Amanhã a uma hora?

— Para mim está ótimo, Charles.

— Excelente. Vejo você lá. Vou acompanhá-lo.

Dillon disse:

— O quê? Você deve estar louco.

— Não tão louco quanto um homem que acha que pode fazer uma viagem de Oban à costa de Down sozinho, num mar sempre agitado. Você nunca ouviu falar em sono? Sou uma espécie de iatista, você sabe. Realmente posso navegar.

— Eu me rendo. — Dillon levantou as mãos.


No dia seguinte, em Farley Field, Dillon se apresentou ao oficial intendente, um sargento-major da Guarda. Ele e Dillon tinham negociado diversas vezes.

— Aqui estão, Sr. Dillon. Três Walther, três metralhadoras Uzi portáteis, granadas defensivas e o Semtex que você queria. Com regulador de tempo programável para dez minutos, para meia hora e para uma hora.

— Excelente. E quanto ao equipamento de mergulho?

— Você vai encontrá-lo no barco em Oban, no Highlander, o mesmo que você usou da outra vez. Duas roupas-padrão e nadadeiras, além dos itens habituais.

— Por que dois?

— É sempre bom ter um reserva, sir.

— Sim, presumo que sim.

Naquele momento, o Daimler chegou e Ferguson saltou do veículo. O chofer apanhou a bagagem e entregou-a a Parry, que a levou até os degraus do Airstairs e repassou à sargento Walters.

Dillon disse:

— Você está muito esportivo, Charles. Calça de veludo cotelê e suéter, que beleza.

— Muito divertido — disse Ferguson.

Então apareceu um Shogun, com Harry Salter na direção e Billy ao lado dele. Eles saltaram. Billy vestia jaqueta preta de aviador e segurava uma mala.

— Ah, mas que diabos é isso agora? — perguntou Dillon.

— Também estou indo nesta viagem, só isso — respondeu Billy. — Vocês dois são mais velhos. Podem precisar de alguma ajuda. — Ele soltou uma risadinha.

Dillon olhou para Ferguson, que deu de ombros.

— Foi muito insistente. Então pensei, por que não? Ele pode ir para o inferno do jeito dele.

Harry disse:

— Apenas traga-o de volta inteiro, Dillon, porque se por acaso você não o fizer...

— Já entendi, Harry. — Dillon se virou para Billy e sacudiu a cabeça dele. — Um cara velho, hein? Tudo bem. Então suba a bordo.

Ele esperou que Ferguson subisse e em seguida embarcou na aeronave.


10

Na base de resgate aeronaval da RAF, em Oban, o oficial comandante foi recepcioná-los pessoalmente por causa da patente do general. Dois sargentos da RAF, Smith e Brian, nm carro descaracterizado, tinham sido designados para cuidar deles.

— Acho que já nos encontramos antes — disse Dillon.

Brian retrucou: — Nenhum registro oficial disso, sir. — Ele soltou uma risadinha ao mesmo tempo em que chegavam ao cais. — Deve estar reconhecendo o Highlander. Está a cento e oitenta metros da costa.

— Não posso dizer que esteja impressionado — disse Ferguson.

— Não era para estar mesmo — replicou Dillon. — Mas é equipado com duas hélices, sonar de profundidade, radar, piloto automático, e alcança vinte e cinco nós.

O sargento Brian disse:

— Requisitamos uma baleeira para levar o equipamento de vocês até lá.

Levaram quarenta minutos para carregá-la e quando acabaram, Brian disse: — Não sei no que estão envolvidos, mas desejo-lhes boa sorte. Há um excelente bote inflável com motor de popa. Deve servir bem. Vamos voltar agora.

— Obrigado — disse Ferguson.

A baleeira zarpou e Dillon se virou para Ferguson.

— Billy já esteve a bordo antes. Deixe que ele lhe mostre tudo. Vou contatar Roper e ver o que descobriu.


Roper estava em sua bancada de computadores, verificando os resultados da última invasão aos computadores da Rashid.

Dillon perguntou:

— Qual é a história do Mona Lisa?

— Ele opera a partir de um pequeno porto pesqueiro do norte da Espanha chamado San Miguel, foco de atividades ilegais, mas esse barco especificamente é uma traineira de águas profundas legalizada junto às autoridades espanholas, com permissão europeia para pescar nas águas da costa da Cornualha, do País de Gales e no mar da Irlanda.

— Qual vai ser a rota?

— De acordo com a carta de navegação entregue à guarda costeira, amanhã a traineira vai passar ao largo da costa ocidental da ilha de Man, em seguida vai pescando no rumo da costa de Down.

— Muito conveniente. Algo mais?

— Nada demais. Em todo caso, tenho certeza de que você não tem o menor interesse num voo internacional da Berger para a ilha de Man levando um tal de Marco Rossi.

Dillon riu.

— Ora veja, imaginem só.

— Se ele estiver planejando uma viagem marítima, vai ser uma jornada dura. Amanhã e depois de amanhã à noite vamos ter tempestades e mar agitado. Vai ver isso pessoalmente!

— Deve ser interessante.

— Você tem alguma tática, Sean?

— Claro, a tática é mandar o Mona Lisa pelos ares e depositar dois milhões de libras em armas no fundo do mar da Irlanda.

— E que tal a tripulação? Tenho um certo capitão Martino listado aqui com mais cinco nomes: Gomez, Fabio, Arturo alguma coisa, um Enrico e um Sancho. Vai matar todos eles, Sean?

— Por que não? São a própria imagem da ralé. Pelo que soube, traficam de tudo, de heroína a seres humanos e, agora, armas. Não deviam ter embarcado se não quisessem correr o risco.

— Por mim, tudo bem. Vou ficar em contato. Falo com você amanhã.

— Ótimo, mas permaneça no caso von Berger. Estou convencido de que Rossi foi o responsável pela morte de Sara Hesser.

— Vou ver o que posso fazer.


A região de Oban estava envolvida em chuva e nevoeiro. Além de Kerrara, as águas pareciam agitadas no Firth of Lorne, e nuvens encobriam o topo das montanhas.

— Já disse isso antes — queixou-se Billy —, mas que droga de lugar horrível. Quero dizer, chove a porra do tempo todo.

— Não, Billy, chove seis dias na semana. — Dillon se virou para Ferguson. — Não estou certo, general?

— Você normalmente está, Dillon.

— Ótimo. Por favor, acompanhem-me até a cabine de comando.

No painel de instrumentos havia uma borda e Dillon apertou um botão, abrindo um compartimento. Em seu interior havia uma caixa de fusíveis e alguns suportes para armas fixados nas laterais. Ele abriu uma das bolsas de armas e tirou uma Browning, com um pente com capacidade para vinte e uma balas projetando-se além do cabo. Encaixou o pente e colocou uma Walther no outro suporte.

— Um trunfo de reserva. — Ele fechou a borda.

— Meu Deus, você está realmente mal-intencionado — atestou Ferguson.

— Sempre estou, Charles. Agora vamos para terra firme comer alguma coisa.

A escuridão prematura do extremo norte já tinha caído, por isso tiveram que acender as luzes do convés antes de partirem no bote inflável em direção a Oban, em frente. Um pub perto oferecia refeições e eles entraram. Havia carne com bolo de batata no cardápio, e esse foi o prato que todos pediram.

— Vou querer um uísque duplo, Dillon. Billy, o que vai querer?

— Billy não bebe — Dillon informou a Ferguson.

— Detesto o gosto de bebida — disse Billy.

— Está tudo na Bíblia: o vinho é escarnecedor, a bebida forte é alvoroçadora — disse Dillon.

— Bem, você ainda bebe.

— É verdade. — Dillon virou seu Bushmills. — Quer saber de uma coisa, vou tomar outro.

— Você me deixa desesperado, Dillon — disse Ferguson. Logo em seguida chegaram os pratos, o que matou a conversa por algum tempo.


Mais tarde, de volta ao Highlander, eles se sentaram no convés da popa sob um toldo de lona, enquanto a chuva continuava a cair com força. Ferguson perguntou: — Então, qual é o plano?

— Roper disse que o Mona Lisa está sendo esperado amanhã na costa da ilha de Man. E adivinhem quem está voando para lá num avião da Berger Internacional? Marco Rossi.

— Você não me contou isso — disse Ferguson.

— Estava guardando para fazer uma surpresa. Acho que isso quer dizer que ele tem sonhado com uma travessia noturna até Drumgoole.

— Possivelmente. O que pretende fazer quando chegarmos lá?

— Exatamente o que disse a Roper: vou mandar o barco pelos ares, e não me pergunte sobre a tripulação. Todos eles são o que os italianos chamam de animali. Se tivermos alguma sorte, Marco pode até estar a bordo.

— Você é mesmo único, Dillon. E quanto a Derry Gibson?

— O que tem ele?

— Pode nos causar muitos problemas. Essa Mão Vermelha do Ulster... onde arrumam esses nomes absurdos?

— É a mentalidade simples deles, Charles. Achei que você pudesse entender isso, visto que sua santa mãe veio de Cork.

— Tudo bem, já entendi seu ponto. Mas e Derry Gibson? Pode levar a uma guerra civil sem precedentes entre católicos e protestantes.

— O que você gostaria que eu fizesse? Matasse Gibson?

— Não seria uma má ideia.

— Ótimo — disse Billy. — Ele vai ser Wyatt Earp, e eu, Doc Holliday. Vocês vão ver Derry Gibson e Rossi em caixões com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos fechados na vitrine da funerária, como em Dodge City.

— Sabe de uma coisa, Billy? Eu não saberia expressar isso de forma melhor. — Ferguson se levantou. — Para mim a noite acabou, vou dormir cedo. Vejo vocês pela manhã. Tenho apenas uma pergunta. Quando chegarmos perto da região de Drumgoole, os moradores locais não vão se perguntar quem somos nós?

— Não se estendermos no convés as redes de pesca, que estão guardadas. Há muitos barcos pesqueiros na costa de Down.

— Ótimo — disse Ferguson, antes de descer.

Billy comentou:

— Ele realmente é um cavalheiro, mas sabe de uma coisa? Acho que é mais durão que Harry, o que não é pouca coisa.

— Ele é, antes de mais nada, o tipo de homem que construiu o Império — declarou Dillon. — Mas ele tem razão quanto a Derry Gibson. Vou pensar no que foi dito.

— Você está querendo dizer que está pensando mesmo em matá-lo?

— Por que não? Já matei por motivos piores. Uma vez salvei a vida dele, você sabe disso. Estávamos num canal de esgoto em Londonderry, caçados por paraquedistas ingleses, ainda que estivéssemos em lados opostos. Disse-lhe para continuar correndo e nunca mais voltasse a me encontrar, senão eu o mataria.

— E agora?

— Parece que ele voltou. Vamos dormir. — E Dillon foi o primeiro a descer.


Na manhã seguinte, ainda chovendo, Ferguson subiu ao convés e encontrou Dillon nadando no mar, divertindo-se com duas focas, e Billy apoiado na amurada assistindo à cena.

— Ele é louco — disse Billy.

— É verdade, sei disso há alguns anos.

— Quero dizer, ele vai congelar as bolas.

Dillon nadou até a escada e se arrastou para cima.

— Você não sabe o apetite que isso dá, Charles. — O rádio soltou um ruído na cabine de comando. — Pegue-o, Charles, pode ser Roper. Vou me vestir.

Era Roper.

— Ah, é você, general. Estou atualizando as notícias. O avião de Rossi aterrissa em Ronaldsway, na ilha de Man, às onze da manhã. O Mona Lisa está a oito quilômetros da costa programado para seguir para Down esta tarde. O tempo não está bom, portanto, arriscaria dizer que não vão chegar {a região de Drumgoole antes da noite. Não sei ao certo. O tempo torna as coisas incertas.

— Certo. Obrigado, Roper.

Ele informou Dillon, quando ele voltou à cabine de comando. Dillon deu uma olhada no mapa.

— Já fiz esse percurso antes, logo, sei o que estou fazendo, mas o tempo está uma droga. Dê uma olhada, Charles. Oban inteira envolta em nevoeiro.

— Está uma verdadeira droga — concordou Billy.

— Tudo bem — assentiu Dillon. — Vamos deixar que ele aterrisse às onze, seja transportado pela ilha e pegue o barco que vai levá-lo por oito quilômetros até o Mona Lisa. Até ele embarcar e o barco zarpar rumo ao Ulster, vai ser no mínimo duas da tarde, mas com esse tempo... — Ele balançou a cabeça. — O que você acha, Charles?

— No mínimo três da tarde.

— Certo. Vamos sair às duas, então. Por ora, vamos voltar à terra firme e tomar um café da manhã escocês completo... e pela aparência, Billy vai ter de incluir remédio contra enjoo no dele.


O voo de Londres para Ronaldsway foi muito ruim. Rossi, ex-piloto de Tornado, sempre gostava de assumir o controle por algum tempo, mas havia turbulência e os ventos cruzados no aeroporto eram traiçoeiros. Mesmo assim foi ele quem fez a aterrissagem. Um funcionário local da Rashid foi pegá-lo de carro e o conduziu pela ilha até o pequeno vilarejo, onde uma lancha o esperava.

A lancha tinha dois tripulantes e partiu imediatamente para o mar, saindo da proteção de um pequeno píer para enfrentar ondas agitadas, sob forte nevoeiro. Levaram uma hora para achar o Mona Lisa. Pararam ao lado da traineira espanhola, que estava com as redes de pesca erguidas na popa. Os barcos colidiram duas vezes, enquanto os homens tentavam manter a proximidade segurando firme as amarras. Rossi pulou para o outro barco. Ele se virou e acenou para a lancha, o capitão acenou de volta e acelerou o motor.

Três ou quatro homens na amurada olharam para Rossi de cima a baixo. Ele os ignorou e foi para a cabine de comando.

A porta foi aberta e surgiu um homem usando japona de guarda-marinha e boné de capitão. Ele não se barbeava há dias e estava com um cigarro apagado no canto da boca.

Levando em conta qualquer estimativa, podia ser definido como uma figura tenebrosa. Ele olhou para Marco com uma espécie de desprezo.

— Sou Martino, o capitão.

— E eu sou Marco Rossi, seu chefe.

Dois dos homens riram alto, e Martino acendeu o cigarro apagado.

— Devo ficar impressionado?

Rossi estendeu o braço e agarrou a orelha dele, enfiando o polegar bem no fundo do ouvido, ao mesmo tempo em que sacava sua Walther e a enfiava com força por baixo do queixo.

— Agora você tem a opção de continuar a trabalhar para a Rashid e ganhar muito dinheiro ou vou estourar seus miolos agora mesmo, metendo uma bala pela sua boca. Ela vai sair pela parte de trás do seu crânio. Vai ser a maior sujeira.

Martino tentou sorrir.

— Ei, señor, há um equívoco aqui.

— Não da minha parte, da sua. Ferre comigo e você está acabado. Estamos nos entendendo?

— Perfeitamente, señor.

— Ótimo. Então vamos em frente.

Ele seguiu na direção da cabine de comando e a tripulação olhou para Martino, que fez um sinal com a cabeça. Eles se dispersaram, retomando suas tarefas.


Por volta do meio da tarde, proveniente de Oban, o Highlander estava singrando o mar turbulento, a mais ou menos três quilômetros da costa da ilha de Man, dirigindo-se para o mar da Irlanda. Dillon estava na leme e Billy na mesa do mapa. Ferguson estava embaixo.

A neblina era tão espessa e a chuva tão intensa que parecia noite, havia uma espécie de escuridão prematura, e mesmo assim Dillon conseguiu enxergar uma das balsas irlandesas, cujas luzes de navegação, verde e vermelha, já estavam visíveis.

Ferguson foi para a cabine de comando trazendo três canecas de chá numa bandeja, que colocou na mesa e olhou para o mapa; depois sintonizou o rádio de bordo numa estação meteorológica e ficou escutando.

— O tempo vai piorar antes de melhorar. É melhor deixar que eu assuma o leme, Dillon.

Dillon nem mesmo tentou argumentar. Ferguson alterou o curso em dois graus, em seguida aumentou a velocidade, fugindo do mau tempo que vinha do leste. As ondas ficaram mais agitadas.

— Meu Deus — disse Billy. — Estou ficando assustado.

— Não há necessidade, Billy, ele sabe o que está fazendo. Vou descer até a cozinha e preparar alguns sanduíches de bacon.

— Eu não vou querer. Posso vomitar agora mesmo.

— Tome outro remédio — disse Dillon, antes de ir para baixo.


Ele voltou meia hora depois com os sanduíches num prato e encontrou Ferguson sozinho.

— O que aconteceu com o menino prodígio?

— Tomou uns comprimidos e foi se deitar. Ora, está cheirando bem.

— Sirva-se.

Ferguson ligou o piloto automático e pegou um sanduíche de bacon. Dillon serviu o uísque em dois copos de plástico e eles comeram juntos, num silêncio amigável.

Estava realmente escurecendo agora, bem mais cedo do que o normal, restando apenas o brilho fraco vindo da fosforescência do mar.

— Você parece estar em casa — disse Dillon.

— Sempre gostei do mar, desde a infância. A costa de West Sussex, perto da ilha de Wight, o Solent. Eu adorava. — Ele bebeu o uísque e pegou outro sanduíche.

— Aquela Browning com o pente de vinte balas que você botou nesta borda. Fez-me recordar do passado.

— É mesmo?

— Sim. Em 1973, tirei uma licença prolongada. Era major da ativa naquela época. Tinha me saído bem para a idade. Fiz uma travessia solitária do Atlântico, de Portsmouth para Long Island. Foi Long Island, porque eu tinha um velho tio morando lá. Ele também era general. O parente americano da minha família.

— Um feito extraordinário — disse Dillon.

— Uma terapia, Dillon, uma terapia. — Ele acabou o último sanduíche e retomou o leme.

— Para quê?

— Bem, eu tinha sido ferido no ombro, mas era mais do que isso. Era algo psicológico. Tinha a ver com tudo o que eu tinha capacidade de fazer.

Dillon serviu mais duas doses.

— E isso era o quê?

— Eu nunca pertenci ao SAS, Dillon. O que você nunca soube é que eu servi no Código Nove da inteligência.

Ele tinha acabado de mencionar a unidade do exército mais infame que já tinha se envolvido na guerra clandestina contra o IRA.

— Meu Deus — surpreendeu-se Dillon.

— Era uma forma terrível de se ganhar a vida em Londonderry, 1973, mas lá estava eu. Com trinta anos, vindo de Oxford, Sandhurst, Malásia, lutando contra os comunistas no Iêmen, Eoka no Chipre... e depois veio a Irlanda. Eu não via a hora de trocar a Guarda Grenadier pela contrainsurgência.

— Você queria sentir o cheiro da pólvora novamente?

— Da guerra, Dillon. Estava noivo de uma garota adorável chamada Mary havia três anos. Ela vinha de uma família de militares, mas nunca conseguiu entender o que isso significava. Ela aguentou firme até a rua Cork.

Ele estava falando como se estivesse sozinho, fazendo uma jornada solitária pelo passado.

— Rua Cork? — perguntou Dillon. — O que foi isso?

— Foi onde ganhei minha Cruz Militar, Dillon, uma daquelas concedidas na Irlanda do Norte por motivos não especificados.

Dillon perguntou num tom delicado:

— E quais seriam eles, Charles?

— Bem, eu era o homem de ligação entre dois aparelhos mantidos pelo SAS. Uma noite, bem tarde, eu estava fazendo o percurso entre as duas casas. Como descobrimos mais tarde, minha verdadeira identidade tinha sido descoberta. Passando pela rua Cork, junto às docas, reparei que estava sendo seguido por um carro quando surgiu outro veículo, vindo de uma transversal, que fechou minha passagem.

— Espere um pouco — disse Dillon. — Julho, 1973, Derry... o massacre da rua Cork, foi como chamaram isso. O SAS eliminou cinco provos. Uma coisa horrível.

— Não, não foram eles que fizeram isso. Eu eliminei cinco provos.

Foi somente então que Dillon percebeu um pequeno ruído. Ele se virou e viu Billy, parado junto à porta entreaberta.

Ferguson olhou para trás e disse:

— Vamos, entre, Billy. Foi isso, Dillon, o segundo carro bloqueou minha passagem e o que vinha atrás estava encostado no meu para-choque. Havia três provos na minha frente e dois atrás. Eles gritaram: “Vá saindo, seu bastardo britânico.” Isso sempre me pareceu irônico, tendo em vista que sou metade irlandês. É o sotaque sofisticado, imagino.

— E você fez o quê?

— Tinha exatamente o que você tem aqui, uma Browning com pente para vinte balas no banco da esquerda. Um sujeito forçou a porta do motorista, abrindo-a, então dei-lhe um tiro entre os olhos. Em seguida, atingi os dois amigos dele pela porta. Eu estava usando balas de fragmentação. Devastadoras.

— E?

— Os dois homens que estavam atrás tentaram fugir. Um deles disparou que nem um louco, mas tive sorte. Atingiu-me no ombro esquerdo. Numa espécie de reflexo, fuzilei o carro, matando ele e o motorista. Depois, fui dirigindo até um dos aparelhos, e o pessoal do SAS cuidou de mim. Tiraram-me de lá na manhã seguinte.

— Meu Deus — disse Billy. — Você matou cinco membros do IRA.

— Todos foram para o paraíso celestial do IRA, Billy. Os médicos me deixaram novamente inteiro e meus mestres me condecoraram com a Cruz Militar. Na verdade, tiveram de fazer isso. A perda de cinco membros da Brigada de Londonderry foi tão traumática que os provos tiveram que considerá-la como mais uma das atrocidades cometidas pelo SAS. E na mitologia do republicanismo irlandês, isso continua assim até hoje.

Foi Dillon quem sentiu mais.

— Então, o que aconteceu depois?

— Ah, recebi um telefonema dizendo que fosse pegar uma medalha com Sua Majestade no palácio de Buckingham, e convidei Mary para ir comigo. Ela tinha me visitado no hospital e obviamente quis saber como eu tinha ido parar lá, então contei.

— E o que aconteceu?

— Ele me enviou o anel de noivado de volta, junto com uma carta na qual dizia não se sentir em condições de se casar com um homem que tinha matado cinco pessoas.

— Bem, ela que se dane — disse Billy.

— É um ponto de vista. Então fui ao palácio sozinho. O tempo naquele dia também estava uma droga. O regimento teve orgulho de mim. Deram-me uma licença.

— Que você usou para navegar até Long Island. Você achou que uma viagem marítima arriscada fosse renová-lo espiritualmente? — indagou Dillon.

— Algo assim.

— Mas, no fim, você ainda era o sujeito que tinha matado cinco homens, não é?

— Exatamente.

— General, eles pediram, e foi o que receberam — disse Billy.

— É verdade, Billy, cumpri meu dever e isso me custou Mary. — Ele disse a Dillon: — Só Deus sabe por que me dei ao trabalho de contar essa história depois de todos esses anos. Acho que vou me tornando sentimental agora que estou ficando velho. Pegue o leme, vou dar uma descansada. — E ele saiu.


Billy disse: — Meu Deus, eu disse que ele era mais durão que Harry, mas nunca sonhei que fosse capaz de fazer algo assim.

— Ah, provavelmente já matara antes, em todas aquelas guerras clandestinas. A rua Cork foi o espetáculo dele. — Dillon acendeu um cigarro. — Lembra-se do que lhe disse uma vez, sobre gente que lida com as situações ruins para as quais as pessoas normais não estão preparadas? Os soldados? Sou um soldado, independentemente de pessoas aprovarem ou não, e você também é um soldado. E chegamos assim a Charles Ferguson, um homem honrado que poderia ter sido banqueiro ou advogado. Em vez disso, passou a vida salvando o próprio país.

Atrás deles, Ferguson disse já do corredor:

— É muito gentil da sua parte, Dillon, mas não vamos exagerar. E no que diz respeito ao leme, proponho que você corrija o rumo em dois graus para oeste.


Em Drumgoole, no escritório dos fundos do pub, Derry Gibson comia ovos com bacon servidos pelo proprietário, um certo Keith Adair, seu braço direito no pequeno porto.

— Mais alguma coisa? — perguntou Adair.

— Não, isso está ótimo. É do tempo que não estou gostando. Está bem ruim lá fora e ficando pior. Espero que o Mona Lisa consiga chegar ao píer da velha pedreira. Se piorar, o comandante vai ter que lançar âncora na baía.

— Isso dificulta muito para descarregar, Derry. Vários pescadores locais se apresentaram para ajudar.

— Bem, eles têm a participação deles, não é mesmo? E os policiais locais?

— Fecharam a delegacia, Derry. Houve algum problema em Castleton e eles foram até lá auxiliar.

— Excelente. Eles sabem perfeitamente quem lhes dá boa vida.

Naquele instante, o telefone tocou e Adair lhe passou o aparelho.


— Sr. Gibson, é Janet, do Orange George.

— Sei quem você é Janet. Qual foi o problema?

— Bem, estive pensando se você sabe por onde anda o Patrick... Faz dois dias. Ele telefonou uma vez e disse que o tio Arthur tinha morrido inesperadamente e pediu que eu cuidasse do pub, só que a ligação caiu. Como estão chegando contas e não posso assinar os cheques, pensei em falar com você, que é o verdadeiro dono do bar.

— Espere um instante — disse Derry. — Ele não tem nenhum tio Arthur.

— Bem, foi isso o que ele disse.

Muitos anos vivendo mal tinham feito com que Derry desenvolvesse uma postura bem ereta. Ele fez um sinal para Adair e voltou para o fone.

— Quando foi a última vez que você o viu, Janet?

— Naquela mesma manhã que você foi para Belfast. Eu estava preparando o café. Apareceu um sujeito baixo, com jaqueta preta de aviador, jeans e um cabelo louro engraçado, quase branco. Ele perguntou pelo Patrick, exatamente na hora em que ele estava entrando pela porta dos fundos.

— E o que aconteceu?

— Bem, o sujeitinho disse: “Patrick, meu velho amigo, sou eu, Sean Dillon.” Ele tinha um desses sotaques engraçados de Belfast parecido com o seu, Sr. Gibson.

Derry ficou gelado. — E o que aconteceu?

— Foi isso. Nada até eu receber o telefonema. Então, encontrei hoje aquele velho que vende jornais na rua, o Kelly, e ele me disse que tinha ficado surpreso em ver Patrick entrando num Shogun com três caras, porque ele conhecia bem dois deles, Harry Salter e o sobrinho dele, Billy. Ambos gangsteres.

Era o suficiente. Derry Gibson disse:

— Há muitas coisas ocorrendo que você não sabe, Janet. Apenas mantenha tudo funcionando. Se procurar na gaveta de cima da escrivaninha de Patrick, à direita, você vai encontrar um cartão de crédito da firma. Use-o para pagar as contas. Vou manter contato.

Ele desligou e se virou para Adair.

— Sean Dillon e aqueles Salter. Isso significa Ferguson.

— Meu Deus, devem ter espremido o Murphy até o bagaço — disse Adair. — Estamos em maus lençóis.

— Não, Ferguson e Dillon não trabalham desse modo. — O rosto de Gibson estava contraído. — Todos os trabalhos deles são operações clandestinas. Nada de polícia, nada de SAS, apenas Dillon e quem calhar de estar com ele. Esse sempre foi o jeito dele de jogar o jogo.

— O que isso significa?

Gibson riu como se estivesse gostando de tudo. — Ele já deve estar no mar, indo para o Mona Lisa.

— Então, o que vamos fazer?

— Dar-lhe as boas-vindas, a última dele neste mundo. Vou telefonar para o Rossi e avisá-lo sobre o que deve esperar.


Na ponte do Mona Lisa, Martino estava ao leme, com Rossi ao lado, enquanto o barco balançava em meio ao péssimo tempo e a escuridão aumentava. O rádio de bordo soou e Martino respondeu. Ele se virou para Rossi.

— É para você.

Rossi pegou o fone e ouviu o que Gibson tinha a dizer.

— Nas mãos de Sean Dillon, Murphy vai espalhar as entranhas. — Rossi se sentiu estranhamente sereno, nem um pouco irritado. — Dillon é realmente uma figura.

— O que faremos então?

— Bem, neste tempo quem resolve é o capitão. Se conseguir atracar no píer, tudo bem — respondeu Gibson. — Se estiver muito ruim, ancoramos na baía. Vou preparar uma boa retaguarda aqui em Drumgoole, mas é melhor vocês pegarem as armas e ficarem atentos à aproximação de qualquer embarcação.

— Acha que Dillon está mesmo no mar?

— Não ficaria surpreso. Ele e Ferguson vão encarar o Mona Lisa como seu alvo principal, e vão resolver isso à maneira deles. Toda aquela besteira sobre a Irlanda do Norte e as iniciativas de paz... É tudo bobagem, porque o IRA e o Sinn Fein abusaram do processo, e o governo inglês deixou que o fizessem. Sou um bom Orange e sei bem disso, porque gente como Ferguson me acha igual ao IRA.

— Do que você está falando?

— Estou dizendo que Ferguson joga sujo, porque sabe que o sistema judicial não funciona. É por isso que mantém Sean Dillon ao lado dele. Ele vai vir com toda a força.

Ele desligou.

Rossi ficou pensando. — Pegue as armas e avise a todos que fiquem em alerta. Seja cauteloso ao se aproximar de qualquer outro barco.

— Por que isso?

Rossi sorriu de forma soturna.

— Estamos prestes a ter companhia, capitão.


11

Dillon falou com Roper, enquanto o Highlander singrava os mares turbulentos em direção à costa da Irlanda do Norte.

— Está ruim — disse Dillon —, e ficando pior.

— Se o Mona Lisa estiver ao largo de Drumgoole, tente entrar na baía junto ao píer da velha pedreira. Há uma depressão. Cento e vinte metros de profundidade.

— Obrigado, vai ser útil.

— E faça o favor de tomar cuidado. A situação não está nada boa por lá. Pelo amor de Deus, não leve em consideração apenas o grande Sean Dillon e sua missão de salvar o mundo.

A voz desapareceu junto com a estática do rádio de bordo e Dillon disse, ao lado de Ferguson e Billy, que estavam escutando: — Mensagem recebida e compreendida, Roper. Aqueles que vão morrer o saúdam, só que por ora não pretendo morrer. Esse tempo pode acabar nos favorecendo. Câmbio e desligo.

Dillon pegou uma garrafa de rum Navy's Lamb na prateleira dos sinalizadores luminosos, tirou a rolha e tomou um longo gole. Ele passou a garrafa para Ferguson.

— Você vai precisar disso, Charles.

Ferguson não hesitou, tomou um gole, limpou o gargalo e ofereceu a Billy, que disse: — Não, eu me viro sozinho. Estou tão assustado que nem me sinto mais enjoado.

Ferguson estava ao leme, que surpreendentemente tinha passado a responder melhor.

— O que faremos agora? — indagou ele.

Dillon inclinou-se sobre a mesa do mapa.

— Não sei. Se o Mona Lisa atracar na amurada, ótimo. Se baixarem âncora na baía, vou por baixo d'água levando o Semtex e os reguladores de tempo. Um serviço de ida e volta. Explodo o fundo do casco e eles afundam.

— Não vai ser muito profundo se eles estiverem junto ao píer.

— Vamos ver. Na baía seria melhor. Aquilo lá vai virar um inferno. Que Deus proteja as embarcações do pequeno porto, os barcos pesqueiros.

— Então vai ser dessa forma? — perguntou Ferguson.

— Exatamente assim, Charles. — Dillon sorriu. — Estamos inteiramente nas mãos do tempo. Vou descer para vestir a roupa de mergulho.

— Eu também — disse Billy.

— Nem daqui a um milhão de anos. Você pode conduzir o bote inflável e me levar até perto, mas só isso. Prepare as armas, Billy, não vou demorar — e desceu.


No porto de Drumgoole, o cenário era de desordem completa, o vento soprava em rajadas com força de tempestade, vindo do mar da Irlanda. As embarcações menores já estavam sendo arrancadas de seus atracadouros e jogadas contra as muralhas do porto. Outras se soltavam e eram tragadas para a baía, para o outro lado do píer. No meio disso tudo apareceu o Mona Lisa, com as luzes de convés acesas e sua estrutura elevada, como uma espécie de antigo navio fantasma. Martino e Rossi estavam na ponte.

A voz de Derry Gibson surgiu no rádio.

— Não entrem, ou vão se chocar contra o velho píer. Soltem a âncora e se tiverem sorte vão alcançar dezoito, vinte metros, mas há uma depressão de cento e vinte metros, não posso ajudá-los mais do que isso.

Rossi perguntou:

— Nenhuma notícia dos nossos amigos?

— Meu Deus, Marco, se estiverem aí fora, vão estar com o mesmo tipo de problema. Vou até aí. Temos um bote inflável modelo RNLI aqui com a gente. Eles são capazes de fazer muitas coisas. Até breve.


Ao largo da baía, o Highlander balançava, e Ferguson soltou a âncora. Dillon, em traje de mergulho, observava o Mona Lisa com binóculos de visão noturna. Billy estava usando um outro par.

— Dillon, há outros barcos flutuando para fora do porto e batendo no casco do Mona Lisa como se fossem bolas de borracha.

— Estão se desfazendo, Billy. Já contei pelo menos três prestes a afundar, mas o Mona Lisa baixou a âncora.

Dillon colocou a bolsa de armas sobre a mesa do mapa e retirou outra Browning de vinte balas, igual à que tinha escondido, encaixando-a numa cartucheira. Cruzou as alças da bolsa de armas no peito, tirou três blocos de Semtex e fixou neles os reguladores de dez minutos. Também colocou um cinturão inflável na cintura.

— Nada à prova de bala? — perguntou Ferguson.

— Há um colete de titânio por baixo da minha roupa, Charles. É o máximo que posso me permitir.

— O que você quer que eu faça?

— Passe pela popa deles. Vamos nos deixar ser levados como os outros barcos. Vou até lá e subo pelo cabo da âncora.

— Contando com a sorte?

— Ah, todos precisamos dela, Charles.

— E quanto a mim? — perguntou Billy.

— Caso eu sobreviva tempo o bastante para saltar pela amurada, você vai ter de ir com o bote inflável me resgatar. Acelere fundo que o motor chega a quarenta nós. Vou lançar um sinalizador.

— Não com este tempo — disse Ferguson.

Uma forte rajada cruzada fez o barco adernar pela metade, e todos se desequilibraram e se agarraram ao que estava mais perto. Billy disse: — Não vai ser possível, Dillon, é loucura.

Dillon passou um braço em torno dele.

— Você é um grande sujeito, Billy, mas não dou a mínima. Estou indo explodir aquele barco e todos que estiverem a bordo, seja Gibson, Rossi... ou mesmo eu — e disse isso com uma grande determinação.


O Mona Lisa sofria fortes solavancos à medida que as embarcações batiam uma atrás da outra contra seu casco. A confusão reinava no convés; a tripulação, que anteriormente estivera a postos com seus AK-47, estava agora em pânico.

O Highlander foi em frente e Sean Dillon deslizou para fora do barco quando passaram pela popa do Mona Lisa. As ondas o engoliram, jogando-o de um lado para o outro, até que ele agarrou a corrente da âncora. Pendurou-se nela, com a firmeza necessária proporcionada pelas luvas de borracha, enquanto o Highlander passava com rapidez.

Começou a se arrastar para cima até que chegou ao topo pela popa e deslizou para dentro. Havia dois homens da tripulação ali, Fabio e Gomez, agarrados a seus AK-47, inteiramente desnorteados pelas ondas que quebravam por cima da amurada.

Viram Dillon ficar de joelhos e sacar a Browning, momentos antes de acertá-los na cabeça. Bem no alto, na ponte, foi Derry Gibson quem reconheceu a natureza do barulho que escutou.

— Ele está aqui, o bastardo está aqui.

— Quem? — perguntou Martino.

— Dillon, seu idiota.

Gibson olhou para baixo e viu Fabio e Gomez rolando no chão.

— Ali estão eles.

Martino, ao lado dele, ficou horrorizado.

— Não posso acreditar nisso.

Naquele instante, a bombordo, Arturo e Enrico vinham da parte central do barco, tentando manter o equilíbrio segurando-se na amurada, e Dillon, agachado na popa, acertou os dois. Avançou por bombordo, fortes ondas quebrando em cima dele, chegou à proa, abriu a escotilha que dava para a sala de máquinas, tirou os três blocos de Semtex com os reguladores de tempo ajustados e os depositou lá dentro.

Balas rasgaram a divisória ao lado dele. Virou-se e viu um homem disparando um AK-47. Era Sancho. No alto, na amurada junto à cabine de comando, estavam Martino, Rossi e Gibson. Quando parecia que encontraria morte certa, uma rajada de balas cruzou o convés. Martino foi jogado para trás e Sancho tombou.

Gibson se abaixou, escapando. Dillon olhou para o lado e viu Billy ao leme do bote inflável, enquanto Ferguson, em pé, descarregava as pistolas na direção do Mona Lisa, as mesmas que ficavam na cabine de comando.

Dillon correu e se jogou da amurada, ao mesmo tempo em que o bote disparava. Ele agarrou um cabo e foi arrastado.


— Para fora, para fora — gritou Gibson para Rossi.

Desceu a escada lateral que dava para o bote inflável, que não parava de balançar, e aumentou a rotação do motor, esperando Rossi. No instante seguinte, disparavam pelo mar agitado. Pouco depois, surgiu da escuridão o bote inflável do Highlander, com Ferguson em pé e Dillon arrastado atrás.

Ferguson não teve oportunidade de atirar. E escaparam.

Rossi disse:

— Ferguson, o jovem Salter...

— E Dillon — disse Gibson.

Atrás deles, os três blocos de Semtex, que Dillon tinha soltado na sala de máquinas, explodiram, um após o outro. O Mona Lisa simplesmente explodiu em pedaços. Partes de sua estrutura voaram pelos ares e precipitaram-se para o mar junto com a tempestade que caía. O que restou do barco adernou, a popa levantou-se e o Mona Lisa rolou pela parede da depressão, indo direto para o fundo. Houve outra explosão abafada, que formou uma enorme convulsão na superfície já agitada, jogando para os lados os barcos em volta. Seguiu-se então uma estranha calmaria. O vento parou de soprar e somente a chuva continuou caindo, implacável. O bote alcançou o Highlander e parou ao lado dele.

Dillon começou a subir a escada rapidamente, fez uma pausa e se virou: — Você deve ter sido extraordinário quando jovem, Charles, pois você ainda é fora de série.

— Não se esqueça do Billy e não tente me lisonjear, Dillon. Apenas suba a bordo e vamos voltar. Já fizemos o que tínhamos de fazer.

— Só que Marco Rossi e Derry Gibson conseguiram escapar.

— Vamos pegá-los num outro dia.


Rossi telefonou para o pai.

— Vou estar de volta amanhã. Quero sair deste maldito país.

— Por quê? O que aconteceu?

Rossi contou, e seu pai, na verdade, achou graça.

— Ferguson, na idade dele. Você tem que admitir, Marco, é realmente admirável.

— Bem, tive um barco com dois milhões de libras em armamentos mandado para o fundo do mar pelo seu admirável Ferguson.

— Venha para casa e conversaremos sobre isso.

O barão se sentou, fumando um cigarro e sorvendo uma generosa dose de conhaque. De fato, ele estava até mesmo sorrindo.


O Highlander seguia viagem, com Ferguson ao leme. Billy apareceu com sanduíches de bacon.

— Vou lhe dizer uma coisa, seu velho bastardo, você foi realmente fantástico. Harry não vai acreditar quando eu contar.

— Você também não se saiu mal, Billy.

Dillon surgiu de roupa trocada, vestindo jeans e camisa.

Ferguson disse:

— Agora posso falar. Você estava completamente louco. Francamente, Dillon, você está com desejo de morrer.

— Tem razão, general, mas pelo menos completei o serviço.

— Acho que você devia visitar a professora Susan Haden-Taylor novamente.

— Não, ela lavou as mãos em relação a mim, assim como Deus. Por ora, conseguimos realizar o que pretendíamos. Menos armas para o conflito na Irlanda do Norte. E no que se refere a Marco Rossi e von Berger, aposto que mexemos num vespeiro. Agora aguardamos para ver aonde isso vai nos levar... com sorte, ao diário. Falando nisso, telefonei para Harry e contei que o sobrinho dele continua no mundo dos vivos.

— Muito obrigado — disse Billy.

— Tudo bem, Billy, ele se preocupa com você. Agora, será que haveria algum problema se eu comesse um sanduíche de bacon?


12

Em Drumgoole a situação estava um tanto caótica, mas a Irlanda do Norte já está habituada ao caos há quase trinta e cinco anos. Mesmo assim, Derry Gibson estava se preparando para um deslocamento.

— Vai ter tira por toda parte por algum tempo — disse ele a Rossi no pub, depois que o Mona Lisa afundou. Vou ficar na encolha. — Ele estava tomando um uísque e balançou a cabeça, enquanto bebia. — Sean Dillon... que grande bastardo, e Ferguson.

— Nunca se deve subestimar o adversário. Vou sair deste buraco assim que amanhecer. No que me diz respeito, a Irlanda do Norte pode ser devolvida aos selvagens.

— Acho que você está sendo um pouco grosseiro.

— Posso ser bem mais grosseiro ainda. Poderia assinalar, por exemplo, que você não teve que pagar nada do contrato do Mona Lisa. O barco afundou e a Rashid não recebeu um centavo.

— O que aconteceu, aconteceu, Rossi. Você se ferrou e eu me ferrei. Graças a Dillon e Ferguson.

— É verdade, estive pensando nisso. Chegou o momento de fazermos alguma coisa quanto a Dillon e Ferguson.

— Posso ajudar?

— Bem, seria uma forma de pagar sua dívida. — Ele pensou por um momento. — Onde acha que Murphy está?

— Ferguson colocou-o em alguma prisão de segurança máxima — respondeu Gibson. — A única razão pela qual aqueles malditos estiveram aqui foi que Murphy abriu o bico.

— É. Vou dizer uma coisa, Gibson. Não volte para o Orange George. Ligue para aquela mulher, Janet, e diga para ela tomar conta das coisas mais algum tempo.

— E onde vou ficar?

— Num dos nossos apartamentos funcionais, na South Audley Street.

— Até quando?

— Até que eu tenha resolvido de que modo vamos lidar com a situação.

— Lidar com qual situação? Algo a ver com Dillon?

— No futuro, mas não agora. Antes, acho que vai ser Ferguson, ele mesmo, o grande homem.

Gibson pareceu se divertir.

— Que diabos você pretende fazer?

— Você vai ter que esperar, Derry. Vou contar no devido tempo.

Ele acendeu um cigarro. Derry disse:

— Você está se divertindo com tudo isso. Devia estar arrasado com a perda do Mona Lisa. Em vez disso, não dá a mínima. Dois milhões...

— É só dinheiro, Derry, e dinheiro é só um meio de troca. Não, o que vale é o jogo.

— Isso soa parecido com Shakespeare.

— Próximo. Mas é disso que gente como você e eu gostamos, assim como Dillon, Ferguson, até mesmo os Salter. É o jogo que faz com que você se sinta vivo. Ele vale qualquer coisa.


Assim que chegou de volta a Londres, Ferguson solicitou uma reunião com o primeiro-ministro. Uma audiência reservada, mais ninguém presente, nem mesmo o pessoal da Scotland Yard. Quando foi conduzido à sala do primeiro-ministro, encontrou-o assinando documentos para o titular do Foreign Office, que nunca gostara de Ferguson.

— Ouvi um boato de que você esteve envolvido novamente em alguma espécie de disparate, general — disse ele.

— Eu, chanceler? Não consigo imaginar o quê. Nos últimos dias, andei atolado no Ministério da Defesa.

— É mesmo? — indagou o ministro asperamente.

O primeiro-ministro passou-lhe o maço de documentos.

— Aqui estão. Nada de brigas, vocês dois. Ambos são muito importantes.

— Pax — disse Ferguson. O ministro sorriu com relutância e foi embora.

O primeiro-ministro disse: — Certo, general, é melhor você sentar e me contar o pior.

Após o relato, ele falou:

— Esta é a operação clandestina mais grave de que ouvi falar. Não é de estranhar que não quisesse ninguém presente. Naturalmente, já há rumores. Que Deus nos ajude, se isso algum dia chegar aos ouvidos do público.

— É muito fantástico. Ninguém acreditaria.

O primeiro-ministro concordou com a cabeça.

— Quando ganhei as eleições, fui informado da existência do seu departamento. Um segredo que é passado de um primeiro-ministro para outro. Você se reporta somente ao primeiro-ministro. Na época, senti um certo mal-estar e, no entanto, em diversas ocasiões, você, Dillon e companhia salvaram a pátria. O processo de paz na Irlanda do Norte está em frangalhos, mas ainda estamos tentando. Se a Mão Vermelha do Ulster tivesse recolhido as armas do Mona Lisa, haveria uma guerra civil.

— Exato, sir.

— Bem, então foi um trabalho bem feito. Há somente uma coisa que me incomoda. Dillon e o jovem Salter eu até posso entender, mas você, Charles? Trocando tiros na sua idade? Não somente é indigno, mas perigoso. Ganhou suas medalhas, Charles. Nada mais de aventuras perigosas por aí, certo?

— Prometo, primeiro-ministro.

— Certo, mas acho que vou me certificar. Conhece o programa Omega, não?

— Sim, sir, um chip de computador implantado numa pessoa, permitindo que o paradeiro dela seja rastreado.

— Exatamente. Recebi um, assim como os membros do gabinete. E resolvi que você também deve ter um.

— Eu devo, primeiro-ministro?

— Sim, Charles, você é muito valioso para ser perdido.

Ele pegou um cartão e passou adiante. — Procure o professor Henry Merriman, na rua Harley. Esteja lá amanhã às nove. Só leva cerca de meia hora. Não dói nada.

— Dillon seria um candidato?

— Não. É somente para políticos já mais velhos e, francamente, Charles, acho que não tenho vontade de saber onde Dillon está o tempo todo.

— Dois presidentes americanos devem as vidas a ele.

— Sei perfeitamente disso.

— E, no entanto, Dillon não recebeu nenhuma medalha.

— É mesmo, general, a vida pode ser dura.

Ferguson ficou em silêncio. Depois disse:

— Sim, bem, naturalmente vou me apresentar na clínica da rua Harley, como deseja, primeiro-ministro.

Dirigiu-se à porta, e o primeiro-ministro disse:

— E von Berger, Charles, não se esqueça de von Berger.

Ferguson se virou:

— Sir?

— Não podemos permitir que ele ameace o presidente e a mim. Simplesmente não vou permitir. Acabe com ele, Charles, de qualquer maneira.

— Naturalmente, sir. — Ferguson passou rapidamente por um assessor, foi para o andar de baixo e, lá fora, entrou no Daimler, onde Dillon e Hannah aguardavam.

Dillon pulou para um dos assentos retráteis e levantou o anteparo de vidro.

— Como foi?

Ferguson contou, e Hannah disse:

— Acho o Omega uma boa ideia e você é muito importante. Muito mais importante que a maioria dos ministros meia bomba que atualmente compõem o gabinete — disse Dillon.

— Ora, obrigado, Dillon.

— É um fato da natureza. Não vou fazê-lo recordar há quantos anos você está envolvido no jogo da inteligência, mas não consigo pensar, no mundo ocidental, em ninguém que tenha a sua experiência.

— Você devia ser meu assessor de imprensa.

— Seria um prazer. Então, e von Berger... o assunto apareceu?

— O primeiro-ministro foi explícito. Acabe com ele.

— Mais fácil falar do que fazer. A menos que queira que eu atire nele para você...

Hannah se manifestou:

— Pelo amor de Deus, Dillon.

Ele abriu a janela lateral e acendeu um cigarro.

— Como disse antes, o todo-poderoso pouco se importa comigo. Seria animador eliminar Rossi. Seria correto?

— Você está sendo estúpido.

Ferguson disse:

— Parem vocês dois. O que descobriu dos movimentos de Rossi, superintendente?

— Ele deixou Belfast esta manhã.

Ferguson se virou para Dillon.

— Ligue para Roper. Veja se descobriu alguma coisa.


Obviamente, Roper havia descoberto.

— Pousaram em Gatwick, um piloto e dois passageiros. Segundo a lei, são necessários dois pilotos para um voo desses.

— Sem dúvida, mas Marco Rossi tem todas as credenciais: ele era o outro piloto.

— Quem era o passageiro?

— Um tal de Charles Mackenzie, passaporte do Reino Unido expedido na Irlanda do Norte. Aparentemente é contador.

— Aparentemente?

— Verifiquei o novo sistema de identificação visual que eles mantêm agora no check-in e dei uma olhada. É Derry Gibson.

— Eu devia ter imaginado.

— Você não sabe de nada, Sean. O que ele está fazendo aqui, por exemplo? Nenhum dos dois tem motivo para estar feliz com você.

— Então, eu deveria tomar cuidado...

— Ele é a Mão Vermelha do Ulster, meu filho.

— Estou morrendo de medo, Roper — disse Dillon. — Adeus.

— Do que estavam falando? — perguntou Ferguson.

Dillon contou.

— Humm — resmungou Ferguson. — Sabe, andei pensando. Explodir aquele barco foi bom, mas por que devemos esperar que façam o próximo movimento? Por que não permanecemos na ofensiva? Devíamos descobrir mais coisas sobre o esquema de von Berger na Alemanha. O Schloss Adler, Neustadt, o Lugar Escuro, como quer que chamem aquela droga. — Virou-se para Hannah. — Fale com Roper e peça a ele para fazer uma rápida análise da região pelo computador. Veja se consegue descobrir alguma fonte para informação na região. Diga a ele para nos encontrar naquele restaurante dos Salter, o Harry's. Vamos jantar e ouvir o que ele tem a dizer. Passaremos no Dark Place antes.

Dois carros atrás, Newton e Cook os seguiam.


Era o início da noite e o Dark Man estava calmo quando Ferguson e os outros entraram.

Como sempre, Harry e Billy estavam no reservado de canto, enquanto Joe Baxter e Sam Hall rondavam o bar.

Harry disse: — Que surpresa agradável, general. Sentem-se, todos vocês. — Ele se dirigiu a Dillon. — E você me escutou direitinho, trouxe Billy de volta inteiro.

— Depois de cobri-lo de glória.

— Não, esse foi o general — disse Billy.

Harry falou com Dillon.

— E você, naturalmente, fez o de sempre.

— Mais ou menos.

— Então, a que se deve?

— Rossi deixou Belfast esta manhã acompanhado de um passageiro chamado Charles Mackenzie, pelo menos este era o nome no passaporte.

— Mas, na verdade, segundo Roper, é Derry Gibson — acrescentou Hannah.

Harry perguntou:

— E o que esse bastardo teria vindo fazer aqui?

— Este é exatamente o ponto — respondeu Ferguson.

— Bem, eu diria que é óbvio demais — disse Billy. — Ele veio atrás de você, Dillon.

Dillon acendeu um cigarro.

— Pode ter vindo atrás de qualquer um de nós.

— Bem, vamos deixar que tente — disse Harry. — Ele afundou meu barco. Vai me pagar por isso.

— O importante é descobrir qual será o próximo passo do barão e de Rossi — disse Ferguson. — Pedi a Roper uma daquelas pesquisas sobre a localidade em que o barão vive, na Alemanha. Sugeri que ele nos encontre no seu restaurante, Harry, caso você não se oponha.

— É claro.


Newton telefonou novamente para Rossi.

— Nós os seguimos até esse restaurante em Wapping, o Harry's. Eles entraram e Roper chegou na cadeira de rodas.

— Permaneça onde está. — Rossi contou ao barão.

— Muito interessante — disse von Berger, e acrescentou: — Vou dizer uma coisa, Marco, vamos até lá encontrá-los. Ah, e vá pegar o Sr. Gibson. Vamos todos juntos. Vamos mexer o caldeirão. Não vai ser divertido?

— Imensamente — concordou Marco.


O Harry's era outro dos armazéns readaptados que os Salter mantinham em Hangman's Wharf. Todo o ambiente havia sido revitalizado: além do acabamento em tijolos ter sido reformado, foram colocadas janelas novas de mogno. Havia sempre fila na porta, em geral formada por gente jovem que queria ir para o bar, que se tornara um lugar elegante onde as pessoas queriam ser vistas. Degraus tinham sido acrescentados para tornar a entrada mais imponente, e havia uma rampa ao lado deles, que Roper usou quando desembarcou de seu táxi preto.

Joe Baxter e Sam Hall estavam de terno na entrada, controlando a fila. Desceram para ajudar Roper a sair do táxi.

— É um prazer revê-lo, major — disse Joe, empurrando-o pela rampa.

No início da fila, um jovem punk vestindo jaqueta de aviador de seda, com duas garotas a tiracolo, disse:

— É preciso ser um maldito aleijado para conseguir um lugar nessa droga.

Sam Hall bateu, quase que casualmente, com o dorso da mão no rosto do rapaz e, em seguida, agarrou-o pela gola.

— Aquele homem provavelmente é o maior herói no qual você já botou os olhos, queridinho. Portanto, vá para o fim da fila. Ou então caia fora.

O rapaz levantou as mãos.

— Tudo bem. — Puxou as garotas e foi embora.

Joe Baxter disse:

— Desculpe por isso, major.

— Ossos do ofício, Joe, não dou a mínima. Tenho sorte de estar aqui.

Eles entraram e o maître, um português moreno e energético chamado Fernando, veio recebê-los.

— Major Roper, é um prazer. Vou conduzi-lo até a mesa.

Com Baxter na retaguarda, eles seguiram Fernando pelo restaurante, que era todo projetado num belíssimo ambiente art déco. Havia uma pequena pista de dança, um conjunto musical com quatro integrantes e um bar saído direto dos anos trinta. Os garçons usavam paletós de cruzeiro. Os Salter, Ferguson e o pessoal dele estavam no maior reservado. Harry se levantou e alisou a cabeleira de Roper, que se estendia até os ombros.

— Você ainda anda por aí como se fosse um maldito hippie.

— Apenas expresso a minha individualidade, Harry.

Salter olhou para o rosto arrasado pelas queimaduras e deu-lhe um abraço.

— Você é realmente uma figura, Roper.

— Não sinta pena de mim, Harry. Se espalharem isso pelo East End, vai ser o seu fim. — Ele se virou para Ferguson. — Certo. A maioria de vocês já sabe disso, mas alguns não. Obviamente, a coisa mais importante sobre Holstein Heath é que, devido a um equívoco, esse território não pertenceu a nenhuma das duas Alemanhas. Na verdade, era uma região neonazista, embora von Berger nunca tenha pertencido ao partido. Ele manteve a chama acesa. Durante muitos anos depois da guerra, a polícia de lá era toda formada por antigos SS e gente desse tipo.

Ele tomou um gole do uísque.

— Von Berger visita o Schloss Adler com frequência, geralmente com Rossi. Vão de helicóptero e pousam numa área próxima ao castelo. Trata-se, na verdade, de um extenso prado, onde até um avião pode aterrissar.

— Temos alguma espécie de contato por lá? — perguntou Ferguson.

— É uma comunidade extremamente fechada. Por sinal, também é interessante assinalar que a cerca de sessenta quilômetros de Neustadt, perto de Schwarze Platz, há um vilarejo chamado Arnheim. Há um punhado de casas lá, mas existe também uma velha base da Luftwaffe, bem dilapidada, mas com uma pista de pouso capaz de receber qualquer aeronave, e ela é usada por um sujeito chamado Max Kubel. — Virou-se para Ferguson. — Consta da sua lista há vários anos. Faz contrabando das mais variadas mercadorias, incluindo pessoas que fugiam para o Ocidente. Usa um velho Storch para trabalhos especiais. O pai dele integrou a Luftwaffe durante a guerra. Conhece Neustadt como a palma da mão. Conversei com ele.

— Tudo bem, conhecer o lugar é uma coisa, mas ter acesso a ele é outra — disse Dillon.

— Ele faz muito contrabando de cigarros, usa pessoas. Em Neustadt, conhece um sujeito chamado Hans Klein, que foi expulso de sua fazenda pelo barão e naturalmente o odeia. Pode ser uma fonte útil de informações.

Naquele instante, Fernando apareceu e disse a Salter:

— Desculpe-me. Um tal de barão von Berger e um signor Rossi estão na porta e querem vê-lo.

Salter olhou para Ferguson, que assentiu com a cabeça.

Fernando foi embora e Ferguson disse:

— Isso vale para todos: vamos apenas escutar.

O barão desceu os degraus para o reservado, seguido de Rossi e Derry Gibson.

— Ora, mas que surpresa, general — disse ele ao general.

— Duvido que seja — retrucou Ferguson.

Dillon soltou uma risadinha na direção de Derry Gibson.

— Derry, você teve sorte em não se molhar.

Gibson sorriu com relutância.

— Vá se danar, Sean.

— Oh, isso já foi providenciado.

Salter perguntou:

— Gostaria de uma mesa, barão? Acho que podemos conseguir uma.

— Obrigado, mas nunca apreciei art déco. Queria apenas dar um alô — sorriu ele —, e dizer que tenho pensado em todos vocês. — Virou-se para Rossi e Gibson. — Podemos ir.

Olhou de novo para Ferguson e Dillon. — Tomem cuidado agora. Não gostaria que nada acontecesse a vocês.

Foram embora. Harry disse:

— Não entendi nada do que aconteceu aqui. — Ele balançou a cabeça na direção de Dillon. — Deixe o velho maldito mostrar seu pior lado.

— É exatamente isso, Harry. Ele está nos provocando para que lhe mostremos o nosso pior lado.


Lá fora, os três partiram no carro e Rossi isolou o compartimento traseiro.

O barão disse:

— Então você tomou uma decisão.

— Sim. Ferguson vai primeiro. Vou sequestrá-lo.

— Adoro a ideia — disse Gibson.

— Qual o sentido em fazer isso? — perguntou o barão a Marco.

— Vou levá-lo para o Schloss Adler e... prospectar o mercado, digamos assim. Com toda a experiência que Ferguson adquiriu, tenho certeza de que todos adorariam ter um pedaço dele. Os russos, os árabes, basta dizer um nome.

— Vamos, Marco, não me faça de bobo. O único motivo pelo qual você quer botar as mãos em Ferguson desse jeito seria para atrair Dillon: porque você sabe perfeitamente que ele iria resgatá-lo.

Marco sorriu alegre.

— Vamos deixar que tente.

— Acho que você está subestimando Dillon, Marco. Você o subestimou desde o início. Jamais brinque com um tigre. Devia acabar logo com o bicho, antes que se vire contra você. Mas o jogo é seu. Se quer mesmo fazer isso, não vou lhe dar a minha bênção, mas não vou tentar impedi-lo.

— Obrigado, pai.

— Dê-me um cigarro. — Rossi fez o que lhe foi pedido e o barão recostou-se para fumá-lo, pensando no filho, seu extraordinário filho, formado em Yale, herói de guerra condecorado com medalhas e, apesar de tudo, tão estúpido.


ALEMANHA

LONDRES

ALEMANHA

 

13

Max Kubel estava sentado na mesa de um bar em Berlim, o Tabu, quando recebeu a ligação de Roper no celular. Nascido em 1957, era filho único de um dos maiores ases da Luftwaffe na Segunda Guerra Mundial, um piloto de caça especializado em voos noturnos, condecorado com a Cruz de Cavaleiro, também chamado Max Kubel. Mais um exemplo de homem que não conseguiu se adaptar ao pós-guerra, sobreviveu aos voos em que entrava e saía da Alemanha Oriental na época da Guerra Fria, até ser abatido por um MiG soviético, numa noite de 1973.

Por causa do histórico de seu pai, Max tinha recebido uma bolsa, patrocinada pelo governo, para treinar na Luftwaffe. Isso teve um lado bom e um ruim. Ele tinha jeito para a coisa, assim como o pai, mas seu temperamento inquieto não se adaptava à disciplina militar. Os anos se passaram de forma tediosa e a relutância do governo alemão em se envolver em situações de combate deixava pouca oportunidade para que surgisse a espécie de guerra na qual seu pai lutara. E Max venerava os feitos do pai, a vida que ele levou. No caso dele, não havia combate, apenas voos de carga para África ou Oriente Médio, levando ajuda humanitária em nome da ONU. Ele odiava isso.

Até que, voando pela fronteira da Arábia Saudita com o Iraque, levando três oficiais de paz das Nações Unidas, deu de cara com um MiG iraquiano, que abriu fogo.

Ele usou um velho truque do pai e mergulhou numa trajetória descendente, soltando completamente os flapes no último momento, fazendo com que o MiG, ao tentar evitar uma colisão, fosse direto para o chão do deserto. Os três oficiais da ONU ficaram felizes por terem permanecido no mundo dos vivos. Um deles, uma irlandesa, disse que ele merecia uma medalha pelo que fizera. Em vez disso, a Luftwaffe o mandou para a reserva compulsória por violar as regras de não envolvimento em combates.

Desde então, tinha descoberto as maravilhas lucrativas das várias espécies de contrabando, usando um velho Storch da Segunda Guerra Mundial, com o qual fazia voos noturnos, indo, às vezes, a lugares tão distantes quanto a Polônia.

Louro de olhos azuis insolentes, sempre usava a velha jaqueta de couro preto da Luftwaffe que pertencera ao pai, seu talismã da sorte. Após o telefonema, permaneceu sentado pensando no que ouvira. Roper tinha dado boa impressão, até mesmo pelo alemão fluente. Ter mencionado Ferguson foi o bastante. Roper dissera que tudo o que queria eram informações sobre os movimentos do barão em Neustadt, mas tinha que haver algo mais nisso tudo. Na verdade, era bem empolgante. Conhecia a história do barão e tinha ouvido rumores sobre quem era Rossi, chegando a desenvolver respeito profissional pelo histórico dele de piloto. Sem dúvida, toda a perspectiva o intrigava, e ficou de falar com aquele beberrão estúpido, Hans Klein, que de vez em quando o ajudava no transporte de cigarro. Uma garçonete se aproximou e ele fez um sinal para que se afastasse, em seguida ligou para Hans. Depois de algum tempo, houve uma resposta.

As palavras eram pronunciadas de forma ininteligível. Ele tinha bebido.

— Quem é?

— Max Kubel. Onde você está morando agora?

— Num lugar não muito melhor do que um chiqueiro. Na cabana atrás da igreja. Você está sabendo que o barão roubou minha fazenda, e aquele filho dele...

— Deu-lhe uma senhora surra.

— Vai ter volta. O que você quer? Vai fazer outra entrega?

— Em breve, Hans, mas preciso saber o que está acontecendo em Neustadt. Os movimentos do barão e de Rossi. Se estão aí ou não.

— Por quê?

— Porque vou pagar bem, seu bastardo estúpido, e porque você odeia os dois. Você tem o número do meu celular, então vá em frente.

Desligou o telefone, sentindo-se repentinamente animado. A garçonete veio até ele e passou a mão em seu cabelo. — Um drinque, Max?

Ele passou a mão em uma perna dela.

— Sem dúvida. Uísque, liebling, malte escocês. Vamos os dois tomar uma dose.

— E depois? Posso voltar?

— Vamos ver, Elsa, vamos ver.


No Harry's, o grupo acabou de jantar e foi embora. Na calçada, enquanto seguiam para seus carros, Dillon disse:

— Vou ficar com Roper e dividir o táxi.

— Como queira — disse Ferguson.

O táxi chegou e o motorista saltou do carro para baixar a rampa, e Dillon empurrou Roper para dentro.

— Stable Mews — disse ele ao taxista e comentou para Roper: — Fica no seu caminho.

— O que você está pretendendo?

— Eu? Nada. Só estou inquieto, é tudo.

— É nessas horas que me preocupo com você.

— Não há necessidade.

— Não acredito nisso nem por um instante.

— Ele matou Sara Hesser. — Dillon acendeu um cigarro. — Nunca estive tão certo de uma coisa na vida. Deveria matá-lo, mas Ferguson não deixa, ainda que já tenhamos eliminado gente tão ruim quanto Rossi em outras ocasiões.

— Talvez Ferguson pretenda lidar com isso de outra maneira.

— E talvez Marco Rossi tenha suas próprias ideias sobre como lidar com a situação. Talvez ele seja muito parecido comigo. — O táxi chegou a Stable Mews e Dillon saltou.

Roper falou:

— Sean, o que quer que seja, não...

— Você é um cara legal, Roper, uma das poucas pessoas neste mundo podre que realmente admiro, mas, como dizem em Belfast, tenha uma boa noite.

Ele entrou no chalé, foi para o andar de cima, vestiu jeans e jaqueta de aviador. Embaixo, abriu a gaveta secreta sob a escada, escolheu uma Walther e enfiou na parte de trás do jeans. Instantes depois, saiu dirigindo seu Mini Cooper.


Depois do encontro no Harry's, Rossi telefonou para Newton e Cook e disse que se apresentassem na rua South Audley Street.

— Vocês ficam com Ferguson. Quero ser informado de todos os lugares em que ele for amanhã, desde bem cedo.

— Mas por quê? — perguntou Newton. — Qual é o propósito disso?

— O propósito, seu imbecil, é que vamos sequestrá-lo, no momento certo.

Houve uma expressão de consternação em ambos os rostos.

— Olha — disse Cook —, não vamos tomar parte nisso.

Marco Rossi disse:

— Vão tomar parte em tudo o que eu disser, ou tomo providências para que nunca mais arranjem trabalho. Façam o que estou mandando e não venham me ferrar.

Houve um instante de hesitação. Newton disse: — Como quiser, Sr. Rossi.

— Tudo bem, façam. E não usem seu carro. Arrumem um furgão branco, algo que não chame atenção, certo?

Eles saíram e Gibson, que assistira a tudo na sala, disse: — Eles eram do SAS? Não é de espantar que os provos tenham se saído tão bem. O que vai acontecer agora?

— Há uma velha base aérea em Fotley. A pista de pouso está meio abandonada, mas é utilizável. Vou deixar um dos meus aviões lá. Quando pegarmos Ferguson, eu mesmo vou pilotar.

— Para onde?

— Schloss Adler. O jogo vai começar lá. O mesmo jogo que vai acabar em Sean Dillon.

— Bem, para mim isso é ótimo.


Na South Audley Street, Dillon estacionou o Mini e caminhou, sob chuva fraca, até a esquina onde ficava a casa dos Rashid. Permaneceu nas sombras, observando. A porta se abriu de repente e surgiram Newton e Cook. Reconheceu-os imediatamente e recuou ainda mais para as sombras. Andaram na direção de um carro e entraram nele. Foi somente neste instante que Dillon atravessou a rua correndo, abriu a porta do carro e botou o cano da Walther na têmpora de Newton.

— Olá, rapazes, sou ou não sou o pior pesadelo de vocês?

Newton perguntou:

— Meu Deus, é você, Dillon?

— Como sempre. O que estava rolando com Rossi?

— Pelo amor de Deus, só assuntos sobre a segurança da Rashid. Ele é o nosso novo chefe. Só isso, juro.

Ele estava realmente assustado e Dillon percebeu.

— Tudo bem, caiam fora, mas se vierem me pegar vou matá-los, os dois.

Eles foram embora. Quando Dillon se virou para voltar para o carro, a porta foi aberta e surgiu Rossi vestindo agasalho de corrida azul e toalha nos ombros.

Ele começou a correr.

Dillon gritou:

— Ei, seu bastardo.

Rossi parou, virou-se e o viu.

— Dillon, é você? O que vai fazer, atirar em mim?

— Adoraria, mas no momento não tenho autorização para isso. — Dillon tirou um cigarro e acendeu-o. — Matar uma velhinha... um grande herói de guerra como você. Não deve ter sido muito divertido.

— Vá se foder, Dillon — disse Rossi.

— Você entendeu errado. Na hora certa e no lugar certo, sou eu que vou matá-lo, Marco. Ela era uma velhinha adorável. Você não devia ter feito aquilo.

Foi embora. Marco Rossi respirou fundo e voltou a correr. Atrás dele, a porta da frente da casa foi cuidadosamente fechada. O barão tinha ido atrás dele para dizer alguma coisa, mas em vez disso ouviu tudo. Subiu a escada angustiado.


Na manhã seguinte, o Daimler pegou Ferguson na Cavendish Square, perto de onde Newton e Cook estavam estacionados num furgão da British Telecom. Vestiam blusões amarelos como se fossem funcionários da empresa. Seguiram o veículo a distância segura, até a rua Harley, onde viram o Daimler parar e ficar aguardando. Cook abriu a porta traseira do furgão, tirou uma caixa de ferramentas grande e fingiu estar ocupado.

Newton caminhou pela rua, observando a placa de metal fixada na porta. Depois voltou para perto de Cook.

Ele encostou no furgão e acendeu um cigarro.

— Alguma espécie de cirurgião, chamado Merriman.


O professor Henry Merriman era um homem grande e bonachão, que recebeu Ferguson afetuosamente. Havia uma jovem enfermeira em pé ao lado de uma mesa de ambulatório, com vários produtos médicos dispostos ao lado dela.

— É um prazer, general. Vamos direto ao assunto. É um procedimento bem rápido. Tire a roupa apenas da cintura para cima e a Emily aqui vai cuidar das suas coisas. — Ele foi para a mesa.

Ferguson tirou o paletó, a gravata e a camisa.

— Espero que não seja doloroso — disse animado.

— Nada que uma pequena anestesia local não dê conta. — Ele segurava uma pequena ampola de plástico na mão. — Sente-se, por favor, e levante o braço esquerdo. É só um instante.

Uma leve picada e sua pele ficou entorpecida.

— Excelente — disse Ferguson.

Emily passou a Merriman o que parecia ser uma pequena pistola de alumínio.

— Chamo de minha arma de abate, mas é uma piada. — Ele encostou a extremidade do cano na axila de Ferguson e apertou o gatilho. Houve um levíssimo clique.

Ele sorriu. — Pode se vestir.

Entregou a arma à garota. Ferguson pegou a camisa. — É só isso? O que acontece agora?

— Nada. Seu implante já foi previamente decodificado no computador do Projeto Omega. Em qualquer lugar que vá, ele vai... abrange o mundo inteiro.

Ferguson acabou de se vestir. O comentário fez com que se sentisse desanimado.

— E quanto ao banheiro? Vai me localizar lá?

A jovem enfermeira achou engraçado e começou a rir.

Merriman sorriu.

— Trata-se de uma possibilidade.

Ferguson disse:

— Passe uma boa manhã, professor. Foi um divertimento.


Dillon apareceu na casa de Roper e o encontrou, como sempre, na bancada dos computadores. Interrompeu o que estava fazendo.

— Fez alguma estupidez?

— Acho que sim. — Dillon contou o que tinha acontecido.

— Vá se danar, Sean, pelas suas idiotices. Você está provocando... querendo entornar o caldo.

— É Rossi. Quero vê-lo...

— Sei disso... diabos. Você contou a Ferguson?

— Não. Ele não ficaria satisfeito. De qualquer modo, hoje ele seria submetido àquele Projeto Omega. Você tem como acessar isso?

— Posso acessar qualquer coisa, Dillon. Já obtive o número de código dele.

— Mas ele fez isso de manhã.

— O microchip é decodificado com antecedência, portanto, entra no sistema a partir do momento em que é instalado. Veja só. — Os dedos dele dançaram pelo teclado. Surgiu um mapa da Inglaterra. — Aqui está ele, este ponto amarelo brilhante. Vou aproximar, veja, em Londres.

Mais perto. Passando por Pall Mall. Conhecendo Ferguson, arriscaria dizer que ele vai almoçar no Clube Reform.

— Obrigado pela informação, mas vou manter distância dele. — E Dillon foi embora.


Rossi aterrissou em Fotley, na velha base da RAF que escolhera, e encontrou Gibson esperando. Rossi taxiou até o fim da pista e saiu para um recuo lateral, desligando o motor pouco depois. Gibson dirigiu-se até lá para pegá-lo.

— Achou o caminho, então? — indagou Rossi.

— Devo ter achado... estou aqui, não estou? Um lugar bem esquisito. Tudo parece estar em ruínas.

— E está, a guerra foi há muito tempo, mas a pista continua inteira e isso é tudo o que importa.

— Trinta e dois quilômetros, foi o que marquei.

— Foi o que imaginei. Vamos voltar para a cidade.

— Para fazer o quê? — perguntou Derry, enquanto entrava numa estrada rural.

— Você vai ver.


O que encontrou na volta o surpreendeu, porque não era o que esperava. O Rolls-Royce tinha sido estacionado em frente à casa dos Rashid e o chofer estava colocando a bagagem na mala do carro. O barão surgiu na porta, vestindo sobretudo de couro preto e usando chapéu. Ele se apoiava numa bengala.

Rossi disse a Gibson:

— Pare o carro e deixa que eu resolvo isso. — Ele se aproximou de von Berger. — Pai, o que está fazendo?

— Decidi ir embora, Marco. Para o castelo Adler.

— Mas por quê?

— Preciso de um tempo para refletir. Ouvi você e Sean Dillon ontem à noite, meu filho. Você mentiu para mim. Não devia ter feito aquilo. Não foi honroso.

— Mas, pai...

O barão nada mais disse. Entrou no Rolls, o chofer foi para trás do volante e partiram.

Gibson perguntou: — Que diabos foi aquilo?

— Dillon — disse Rossi. — Que se dane. Ele tem sido uma pedra no meu sapato há muito tempo. Vou pegá-lo.

Naquele exato instante, o celular tocou e, quando atendeu, Newton disse: — Estamos nas proximidades do Clube Reform, em Pall Mall. Ferguson acaba de entrar.

— Provavelmente para almoçar — completou Rossi. — Tudo bem, podem ir embora. Sigam para a Cavendish Square e fiquem lá. Vou mandar Gibson até vocês. Vamos agir hoje.

— Olhe — disse Newton —, não estou muito certo quanto a isso.

— Eu estou. Ouça bem, Newton. Posso acabar com você. Ou posso dar-lhe uma recompensa gorda. O que vai ser? Dentro ou fora?

Ganância e medo, naturalmente, ganharam a parada.

— Dentro.


Dillon apareceu no Ministério da Defesa e encontrou Hannah diante do computador, na antessala do escritório principal. Ela interrompeu o trabalho e se inclinou para vê-lo melhor.

— O que você quer?

— Por que deveria querer alguma coisa?

— Conheço você, Sean.

— Oh, presumo que fiz uma estupidez ontem à noite.

— Conte-me.

E foi o que ele fez, olhando na direção da janela, depois de ter acendido um cigarro.

Quando acabou o relato, ela disse: — Seu idiota.

— Sei disso. É Rossi e o que ele fez. Não consigo tirar Sara Hesser da cabeça.

— Sean, tenho um diploma em psicologia, então segue aqui uma leitura livre: Rossi cometeu o assassinato, mas você se sente culpado por ter feito uma promessa à senhora. Como foi? Nada de ruim vai acontecer com a senhora, juro.

Dillon, emocionado como jamais estivera em toda a vida, disse: — E você se lembra do que aconteceu? Ela tocou no meu rosto e disse: Acredito em você. Apesar de tudo você é um homem bom. — Hannah nunca o tinha visto tão pálido e tenso. — Eu, o grande Sean Dillon, e você sabemos o que aconteceu e que ele foi o responsável. Vou mandar Rossi para o inferno por causa disso.

Ele viu a porta de Ferguson aberta e o general parado, sob o vão.

— Então você também vai seguir pelo mesmo caminho que leva direto para o inferno, Dillon. Que diabos acha que está fazendo? Confrontando-o, fazendo ameaças diretas? Essa não é a forma de lidar com as coisas no momento. Você está total mente desequilibrado.

— Normalmente estou.

— Certo, você está suspenso. Deixe esse escritório imediatamente. Vou falar novamente com você no momento em que eu considerar adequado. Vai ter que entregar todas as suas armas.

Dillon conseguiu dar um sorriso suave.

— Ah, Charles, sempre achei que este dia chegaria, mas você sempre se comportou de forma decente e, apesar de ter me vendido aos sérvios naquela época, sempre me tratou bem.

— Oh, Sean — disse Hannah.

— Tudo bem. Sei que sempre encaro as coisas pelo lado mais duro e que isso não condiz com sua moral judaica, mas a vingança não é um sentimento ignorado pelo Velho Testamento. Vou seguir meu rumo, Deus abençoe todos vocês.

Ele desapareceu e Ferguson disse:

— Dane-se. Por que ele tinha que fazer isso? Misturar as coisas de forma errada.

— É simples, sir. Ele pode ser mais emotivo do que imagina. No passado, ele já se colocou na linha de fogo por minha causa e por sua causa. Tudo em que está conseguindo pensar é numa velhinha que confiou nele e acabou morta no rio. Caso esteja procurando um psicopata nessa história, não é o Dillon, apesar de tudo que ele tenha feito, mas Marco Rossi.

— Para o inferno com isso tudo, vou para casa. Providencie o Daimler.

— Não está disponível, general. Está na oficina em manutenção, não se lembra?

— Então me arrume um maldito táxi. — E voltou fulo para sua sala.


Dillon ficou sentado em seu Mini Cooper, pensando no que se passara.

— Bem, tudo tem um fim, a vida é assim. Mas muita água ainda vai passar por baixo da ponte.

Pegou um cigarro, acendeu-o e viu Ferguson andando para um táxi preto que o aguardava. O táxi saiu e Dillon deu a partida no Mini Cooper e começou a segui-lo. Não havia nenhum motivo racional para fazer isso, apenas seu instinto, uma característica bem irlandesa, e foi atrás do táxi, de qualquer forma.


Na Cavendish Square, Newton e Cook levantaram a tampa de um bueiro para justificar sua presença. Derry Gibson, também vestindo blusão amarelo da companhia telefônica, estava sentado no furgão, lendo um jornal.

Newton se aproximou da janela do passageiro.

— Como é que é, estamos aqui há quase quatro horas. Isso vai dar em alguma coisa?

Naquele exato momento, um táxi preto parou. Derry disse:

— Acho que vai dar. — Ferguson saltou do veículo e pagou ao motorista, que foi embora.

— Agora — disse Gibson, abrindo uma bolsinha de couro que estava no banco ao lado e pegando uma pequena ampola de plástico. — Pegue-o.

Ele foi pegá-lo. No momento em que Ferguson se virava, eles o agarraram pelos dois braços e Gibson surgiu.

— É um grande prazer, general. — Ele atingiu o pescoço de Ferguson. O efeito foi quase instantâneo. Ferguson bambeou e o levaram para a traseira do furgão.

Gibson abriu a porta e eles empurraram Ferguson para dentro, e o próprio Gibson entrou atrás. — Vamos embora — disse ele.

Dillon, chegando à Cavendish Square, assistiu a tudo e meteu o pé na tábua. Um furgão de entregas cruzou na frente dele, obrigando Dillon a frear, derrapando.

O furgão da telefônica passou diante dele, entrando no tráfego de Londres. Ele ficou bem atrás. O pesado tráfego de Londres tornava as coisas difíceis, mas conseguiu manter-se concentrado no furgão da telefônica.

Pegou seu Codex Quatro e entrou em contato com Hannah, que respondeu imediatamente.

— Segui Ferguson até a casa dele. Ele foi atacado por Gibson, Newton e Cook e jogado num furgão falso da British Telecom. Estou seguindo o veículo.

— Pelo amor de Deus, onde você está?

— Na região norte de Londres. Não sei exatamente onde. No caminho de Essex. Entre em contato com Roper. Ele pode acessar aquela coisa, o Omega. Isso deve indicar para onde estamos indo. Peça para me manter informado.


Derry ligou para Marco Rossi.

— Pegamos o passarinho.

— Estou a caminho. Vejo vocês em Fotley.

— Bem, espero que você chegue lá antes de nós. Sequestro dá no mínimo dez anos de prisão neste país.


Roper cortou Dillon.

— Já ouvi a história e entrei no caso. O Omega está funcionando bem. Vou fazer o rastreamento e mantê-lo informado. Não há motivo para se preocupar, caso os perca de vista. Posso colocá-lo novamente no encalço deles.

Dillon teve uma ideia.

— Esses três marginais estão trabalhando para Marco Rossi. Então, para onde estão indo?

— Talvez a pergunta seja: para onde vão voar? Vou verificar.

Assim que saíram de Londres, o tráfego diminuiu um pouco, não muito, mas o suficiente para manter Dillon bem para trás. Roper ligou.

— O barão acaba de decolar de Northolt com destino a Munique. Fiz uma verificação por lá. Ele reservou um helicóptero para Neustadt.

— É mesmo?

— Uma informação ainda mais interessante: esta manhã, Rossi enviou um avião para um lugar chamado Fotley, em Essex. É uma velha base aérea da RAF, agora em desuso, que tem uma pista longa. Acho que vocês estão indo para lá. Espero que consiga pegá-los, Sean. Você está armado?

— É claro que estou. Mas e se eu fracassar? Para onde eles vão?

— Bem, Omega vai confirmar, mas acho que nós dois sabemos. Para o Schloss Adler.

— Certo, então sugiro que você entre em contato com aquele tal de Max Kubel. Ele pode avisar ao Klein em Neustadt. Diga para Kubel colocar em andamento algum plano para que possamos montar uma operação de resgate. Vai ser o dia de sorte dele. Vou acelerar e tentar pegá-los em Fotley.

No final das contas, ele fracassou por culpa de um trator, que bloqueou a passagem numa estrada rural estreita. Só conseguiu chegar à velha base a tempo de ver o furgão abandonado e o Gulfstream já em movimento.

Quando a aeronave decolou, passando por Dillon num estrondo, Newton olhou para fora.

— Meu Deus — disse ele. — Aquele é o Mini Cooper de Dillon.

— É mesmo? — riu Derry Gibson. Ferguson, inconsciente, estava amarrado em um dos assentos. Derry deu um tapinha na bochecha dele. — Vou lá contar a Rossi. Ele vai ficar satisfeito.


Em Arnheim, Max Kubel estava preparando o Storch para uma incursão à Polônia. Ele sempre se lembrava de um adágio da Segunda Guerra Mundial: “Metade dos pilotos que morrem não é abatida pelo inimigo; morre de falha mecânica.” Era por isso que sempre tomava cuidado com a manutenção de sua aeronave. Fechou o capô do motor e deu um tapinha na fuselagem, que recentemente recebera uma nova demão de tinta preta fosca.

— Bom menino — disse ele, e seu celular começou a tocar. Ele ouviu Roper durante longos cinco minutos e logo ficou interessado. Depois ficou animado.

— Vou falar com Klein.

— Aquele prado próximo ao castelo pode receber o avião de Rossi? Ainda por cima à noite?

— É extenso e o castelo é bem iluminado. Há muita luz.

— O que podemos fazer, então? Você pode deixar Dillon lá e pegar depois?

— Desista. No minuto em que eu tentasse pousar lá, ficariam sabendo.

— Então como chegar a Neustadt? O que podemos usar? Paraquedas? Dillon já fez isso antes.

— Não no castelo. Ameias, pátios, telhados... não seria um pouso agradável.

— Então quando tem vontade de fazer uma incursão mal intencionada a Holstein Heath, como é que você faz? Sei que o maldito lugar é bem misterioso. Os moradores locais desconfiam de todos os estranhos.

— É verdade, mas se eu reunir um grupo para um trabalho rápido, não vai parecer estranho. A polícia de Holstein Heath parece muito com os VoPos1 da antiga Alemanha Oriental. Acredite se quiser, mas ainda usam motocicletas e carros de campanha Cossack, tudo russo.

— Do que você está falando?

— No passado, sempre entrei lá com meu pessoal usando aqueles veículos e uniformes. Será que Dillon compraria a ideia?

— Bem, o alemão dele é fluente.

— Ele não conseguiria fazer isso sozinho.

— E quanto a você?

— Não há a menor chance. Meu trabalho seria a retirada. Dillon, auxiliado por quem quer que seja e ajudado pelas informações de Klein, resgata Ferguson e todo o inferno vai desabar em cima dele. Portanto a coisa mais inteligente que posso fazer é voar direto de Arnheim. É um voo curto, posso pousar no Schloss e pegá-los.

— E você se sente confiante para fazer isso?

— Para o grande Kubel, tudo é possível. Além disso, esta é a única forma de evitar problemas com moradores hostis. É tudo gente do barão.

— Você está insinuando que todo o território é hostil?

Exatamente. Mais uma coisa: no Storch, posso acomodar Ferguson e mais dois. Isso quer dizer que só podemos mandar dois homens para resolver a situação no castelo. Pelo que pude entender esse Dillon é maluco, mas ele consegue arranjar outro para acompanhá-lo?

— Ah, sim — respondeu Roper. — Acho que sim. A propósito, há um bom pagamento para você nisso tudo.

— Você sabe onde enfiar o pagamento. Vinha andando meio enferrujado até você surgir na minha vida, Roper. Você é o que os judeus chamam de mensch. Sou um grande admirador.

— Elogios são sempre bem-vindos.

— Vou falar com Klein e colocar as coisas em movimento.


Em Neustadt, na cabana atrás da igreja, Klein atendeu o telefonema de Kubel e ouviu o que ele tinha a dizer.

— O que você quer que eu faça, então?

— Avise-me assim que o barão aparecer de helicóptero. E depois quando Rossi chegar de avião. Você tem como se aproximar do castelo?

— É óbvio que tenho. Conheço-o como a palma da mão desde criança.

— Apesar da segurança?

— A segurança é uma droga. Posso passar por tudo.

— Faça isso direito, Hans. Há muito dinheiro para você nisso.

— E no que diz respeito ao barão, vai ser um prazer. Vou lá fora ver como andam as coisas.

Kubel desligou. Klein vestiu jaqueta de caçador e enfiou uma escopeta de cano serrado por dentro de um bolso e dois punhados de munição em outro. E saiu.


Na reta final da volta a Londres, Dillon ouviu tudo o que Roper tinha a dizer.

— Ótimo — disse ele. — Avise a Hannah. Diga a ela para marcar com Lacey e Parry. Avise ao oficial intendente. O destino é Arnheim.

— Há mais uma coisa, Sean — disse Roper. — Você não pode fazer isso sozinho. Não venha me dizer que você vai pilotar uma Cossack por Schwarze Platz e dar uma de Dirty Harry. Você vai precisar de um companheiro.

— Já tenho um companheiro.

— Tem certeza?

— Confie em mim. Vou convidá-lo e, para esse tipo de coisa, ele vai aceitar.


Dillon apareceu em Hangman's Wharf, estacionou o carro e entrou no Dark Man. Havia somente dois clientes, Dora, no bar, e Harry e Billy em seu habitual reservado de canto.

Harry viu-o e franziu o cenho.

— Você parece estressado.

— Pode-se dizer que sim. — Dillon se sentou. — Apenas escutem.

Quando terminou o relato, Harry falou:

— Sempre soube que Rossi não era flor que se cheirasse.

O telefone de Dillon tocou e Roper disse:

— Não há dúvida, Sean, estão indo para Neustadt. Está tudo bem com você? O homem extra?

— Tenho certeza disso. — Ele desligou o telefone.

Dillon disse:

— Billy, você escutou a história. Vou me fantasiar de VoPo e pilotar uma Cossack. Ainda bem que falo alemão.

— Eu não falo, mas você vai precisar de cobertura, também posso usar um desses uniforme da VoPo, como você. — Billy tinha um sorriso frio no rosto.

Foi Harry quem interveio.

— É melhor você resolver isso, Dillon. Não podemos deixar Ferguson nas mãos daqueles malditos. Afinal, gosto daquele velho patife. Você e Billy têm de fazer isso. Billy mudou um pouco depois que você passou a cuidar dele, não é mesmo, Billy? Passou a gostar de fazer as coisas corretamente.

— Pode-se dizer que sim. — Billy se levantou. — Vou arrumar as malas. — Ele sorriu para Dillon. — Já estou ficando acostumado.


Em Farley Field, Dillon encontrou surpresas. A primeira de todas foi a presença de Hannah Bernstein. Ele perguntou: — Que diabos você está fazendo aqui?

— Falo alemão, Sean, e é meu chefe, afinal. Achei que devia estar presente.

Em seguida surgiu o Rolls dos Salter, de onde saíram Billy e Harry, ambos com bagagem de mão.

Dillon indagou:

— O que é isso?

— É essa história de polícia alemã. Vou com vocês. Posso ficar na retaguarda, na base, com a superintendente, se você quiser. Sei que sempre gostou de resolver as coisas do seu jeito, mas desta vez não vai ser possível. É muito importante.

Dillon disse: — Ótimo, apenas não fiquem no meu caminho. — Ele andou para o Citation, de onde Lacey saiu de macacão de voo descaracterizado. — Já sabem o que está acontecendo?

— A superintendente contou. Deve ter reparado que nos livramos das divisas da RAF. Não queremos que ninguém nos identifique.

— Vocês sabem para onde estamos indo?

— Roper nos disse. Sean, esta situação é diferente. É o general.

— Não se preocupem, vou trazê-lo de volta. Eu juro. Não quero gente demais, apenas você e Parry. Subam a bordo e eu falo com o oficial intendente.

O oficial intendente aguardava segurando uma lista.

— Todas carregadas, Sr. Dillon. Pistolas Walther com silenciadores Carswell e três metralhadoras MP40.

— Isso é um pouco antigo.

— Fiz uma pesquisa, Sr. Dillon. A polícia em Holstein Heath está meio ultrapassada. Mas posso garantir que a Schmeisser ainda é uma arma extremamente eficiente. Há também algumas granadas e bombas de fumaça. Deve ser o suficiente nas circunstâncias.

— E você sabe quais serão as circunstâncias?

— Sr. Dillon — disse o intendente —, vinte e cinco anos atrás eu estava lotado na Guarda Grenadier tentando caçá-lo em South Armagh. Fico feliz por ter fracassado, porque agora está aqui para salvar o general, que é um dos melhores homens que tive oportunidade de conhecer. Agora vou embarcar esses itens, sir, e vai me devolver tudo assim que voltar.

Dillon seguiu com Billy, que disse:

— Bem, ele realmente confia em você.

— Muitas pessoas confiam, mas isso pode ser um fardo, Billy. Vamos, vamos partir. Desta vez não estamos salvando o mundo, estamos salvando Charles Ferguson.

Ele subiu na aeronave com Billy e se reuniram a Harry e Hannah.

Parry fechou a porta. Instantes depois, os motores do Citation foram ligados e, em seguida, a aeronave partiu rumo aos céus.

 

________________

1 Deutsche Volkspolizei (DVP, alemão para "Polícia Popular Alemã"), comumente conhecida como a Volkspolizei ou VoPo, era a força policial nacional da República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) de 1945 a 1990.


14

Charles Ferguson voltou ao mundo real para se encontrar deitado na cama de um quarto escuro. A porta estava trancada, e quando foi até a janela, viu um abismo de pelo menos cento e vinte metros. Ficou imediatamente óbvio que não havia para onde ir. Ele estava em pé junto à janela, olhando para fora, quando a porta foi aberta. Derry Gibson entrou.

— Ah, então está de volta, general. Você parece bem.

— Bem, já me senti melhor antes. Onde está Rossi?

— Está ocupado em outro lugar. Você tem que se recompor, afinal é um grande homem. Vou lhe arranjar algo para comer.

A porta foi fechada, e Ferguson voltou a olhar pela janela, sentindo-se repentinamente sozinho, como nunca antes.

— Mas que droga — pensou ele. — Você estava certo, Dillon.


Naquela mesma hora, Rossi encontrou o pai no grande salão. O barão estava sentado junto ao fogo, com um drinque na mão.

Marco disse: — Pai, acho que devemos conversar.

— Também acho. Teve sucesso em seu esforço?

— Se está se referindo ao sequestro de Ferguson, a resposta é afirmativa. Ele está aqui no castelo.

— E pretende dar continuidade a isso?

— Não vejo por que não.

— E Dillon?

— Está vindo com tudo.

— E é isso o que você quer? Um confronto cara a cara?

— Na hora em que ele quiser.

O barão concordou com a cabeça.

— Pensei muito nisso tudo. Só não sei se concordo com seu plano.

— Ele está em funcionamento, pai. Vou cuidar de tudo.

— Vai? A menos que esteja equivocado, este ainda é o Schloss Adler. Ainda sou o barão. Deixe-me pensar sobre isso, Marco. Eu, seu pai. — E, naquele momento, o jovem Sturmbannführer estava no comando novamente. — Vou dizer o que quero que faça. O que eu quero, não o que você quer. Agora, por favor, deixe-me sozinho por um instante.


Hans Klein foi até a parte mais baixa do castelo e encontrou o que chamava de entrada para a câmara, uma enorme grade encoberta por arbustos. Era um legado da divisão de engenharia do exército alemão, da época em que o castelo foi usado como quartel de comando e todo o sistema de drenagem passou por um processo de modernização.

Klein levantou a grade, retirou-a e só então acendeu sua lanterna. O túnel de concreto estava seco, com exceção de uma pequena corrente estável de água, que corria por um canal central. Klein seguiu por um dos lados até alcançar uma escada de aço. Subiu até o alto e abriu uma tampa acima dela. Emergiu numa área do porão que conhecia bem, repleta de quartos para depósito e áreas usadas pela cozinha, que subia gradualmente para o grande salão e suas glórias. Quando o barão e Rossi estavam fora, ele com frequência ia até aquele ponto. Isso sempre lhe proporcionara uma sensação de poder.

Num determinado momento, enquanto rondava pelo porão, reconheceu vozes e rapidamente recuou até a escada, descendo-a. Quando surgiu na área da floresta novamente, recolocou a grade no lugar, afastou-se um pouco e, agachado sob uma árvore, ligou para Kubel.

Mais tarde, Kubel falou com Roper.

— O esquema está em funcionamento. A passagem secreta para o Schloss, que ele conhece, está desobstruída. Quando o Gulfstream aterrissou, ele viu Rossi e mais quatro homens, um deles sendo apoiado por dois outros.

— O general. Provavelmente Newton e Cook segurando-o, além de Derry Gibson.

— Isso faz sentido.

— Você vai arranjar tudo para a gente, Max? O equipamento adequado?

— Está tudo aqui, portanto, não vou precisar de ajuda, o que significa que a segurança não será afetada. Estaremos prontos, Roper, assim que seus amigos estiverem.


Duas horas mais tarde, uma chave fez ruído na porta.

Ferguson se virou e viu Rossi entrar, acompanhado de Derry Gibson.

— Quis me certificar de que você está bem acomodado.

— Quanta gentileza. Quando vou ver o barão?

— Quando ele quiser vê-lo.

Ele se virou para ir embora e Ferguson disse:

— Acho que você vai ter um monte de problemas. Pensei que a esta altura já teria me enfiado uma bala na cabeça.

Rossi sorriu.

— Não em você, general. Você é muito valioso.

— O que vai acontecer comigo, então?

— Provavelmente vou vendê-lo aos árabes — respondeu Rossi, antes de fechar a porta.


Naquele exato instante, em Arnheim, todos estavam agrupados ao redor da mesa do escritório de Max Kubel, examinando um mapa.

— É isso — disse Kubel. — Neustadt. — Ele disse a Dillon. — A Cossack é uma motocicleta antiquada.

— Não se preocupe, posso manejá-la — garantiu Dillon. E para Billy: — Você fica no sidecar.

Kubel disse:

— Graças aos celulares que vocês trouxeram, podemos manter contato constante. Devem chegar lá em uma hora, no máximo. No momento em que o tirarem de lá, posso estar no prado em vinte minutos. Espero na cabine, pronto para partir.

— Isso parece racional — opinou Dillon. — E para você, Billy?

— Sou sempre racional.

— Assim que partirem, vou ligar para Klein. Ele está esperando. Mora na única cabana que fica atrás da igreja. Não tem como errar. — Olhou ao redor da mesa. — O que lhes parece?

Lacey e Parry pareciam em dúvida. Foi Hannah quem disse: — Todo o plano parece depender de uma sincronização extremamente perfeita.

— Sem dúvida, mas é exequível. As distâncias envolvidas não são grandes.

— Bem, nessas circunstâncias — disse Harry Salter —, eles já podem partir. Isso está me dando nos nervos.

— É mesmo — disse Billy. — Sinceramente, estou louco para me vestir de policial. Os velhos companheiros de cela em Wandsworth jamais vão acreditar nisso.

— Então, venham por aqui — disse Kubel.


No hangar, o Storch preto aguardava, como se fosse uma coisa de outra época. A velha motocicleta Cossack também estava lá. Todos esperavam envoltos num ar de incerteza.

Kubel estava com Lacey e Parry observando a chuva, que tinha começado a se precipitar.

— Não parece nada bom — disse Lacey.

— O tempo nunca fica bom quando é necessário, meu caro major-aviador. Nunca reparou nisso?

Houve um barulho na porta e todos se viraram para ver Dillon e Billy surgirem como estranhas e ameaçadoras figuras do passado, capacetes de aço, uniformes da VoPo e jaquetas de chuva dos batedores motorizados. Cada um portava uma metralhadora Schmeisser cruzada na altura do peito.

Dillon estava apertando a correia do capacete.

— Pegaram tudo? — perguntou Kubel.

— Certamente. Os bolsos são grandes. Uma Walther para cada um, com pentes de reserva, granadas de fragmentação nas botas. Exatamente como nos velhos tempos.

— Meu Deus, parece que vocês vão participar de um filme sobre o Dia D — disse Salter.

— Quem sabe? — Dillon olhou para fora. — Uma noite excelente para isso. — Ele se virou para Billy. — Está pronto?

— Vamos embora, pelo amor de Deus. Vamos acabar encharcados.

Ele se ajeitou no sidecar enquanto Dillon montava na Cossack e dava a partida chutando o pedal. Hannah correu até ele e segurou sua manga.

— Sean? — O rosto dela tinha uma expressão desesperada.

— Vou trazê-lo de volta. — Ele sorriu. — Você se preocupa demais. — E partiu debaixo da forte chuva.


A estrada para Schwarze Platz era bem pavimentada, mas estreita e muito perto da floresta, e o brilho do final de tarde já estava se transformando na escuridão da noite.

A chuva era implacável e tanto Dillon quanto Billy estavam usando visores. A Cossack reagia bem e havia pouco tráfego. Por duas vezes, passaram por caminhões de fazendeiros que seguiam em sentido contrário, e também por um sedã.

Dillon gritou para Billy:

— Chegaremos lá antes do que Kubel imaginou. — E aumentou a velocidade da Cossack para noventa quilômetros por hora, apesar do tempo.


No castelo, o barão estava sentado junto à lareira quando Rossi entrou com Ferguson. Newton e Cook permaneciam na plataforma do topo da escadaria, cada um com uma AK-47. Derry Gibson estava perto do fogo.

— Ah, aí está você, general. Junte-se a mim. Talvez queira um drinque.

— Quanta gentileza. Um uísque grande seria ótimo.

— Marco.

Era uma ordem e Rossi dirigiu-se a um aparador e serviu o uísque, que Ferguson saboreou.

— Seus amigos parecem estar esperando problemas.

— Não, na verdade estamos esperando Sean Dillon — corrigiu-o Rossi.

— Como ele pode saber onde estou? — Ferguson estava sendo cauteloso. Será que eles sabiam do Omega?

— Porque ele o viu sendo sequestrado e nos perseguiu até a pista de Fotley. Só que chegou um pouco atrasado.

— Que desagradável.

— Para você certamente foi bem desagradável.

O barão disse: — Basta, Marco. Vamos ser gentis com nosso convidado. — Ele se levantou, apoiado na bengala. — Venha comigo, general, vou mostrar uma das vistas mais espetaculares de todo o Schloss. — Abriu caminho até uma porta ao lado da escada. Fez um sinal para Marco, que a abriu. — Um túnel construído no século XV; levando até a capela, que, por sinal, é muito bonita. Vamos dar uma olhada. — E seguiu adiante.


Naquele momento, Dillon estava socando a porta de Klein. Depois de um tempo, ela foi aberta e Klein recuou instintivamente ao ver os uniformes. Eles o empurraram para dentro.

— Não se preocupe, trabalhamos com Kubel — disse Dillon em alemão. — Está pronto para nos levar até lá?

— Sim — respondeu Klein, ansioso. Ele fedia a bebida, mas virou-se para pegar o casaco e guardou a escopeta num bolso.

Dillon ligou para Kubel de seu Codex Quatro. Foi atendido instantaneamente.

— Já estamos aqui e fizemos contato com Klein, portanto, vamos seguir direto. Que se dane qualquer espera. Você disse que levaria vinte minutos. Saia daqui a quinze.

— Estou às ordens — disse Kubel. — Boa sorte.

Dillon disse a Billy: — Certo, vamos em frente. — Virou-se para Klein e disse: — Meu amigo não fala alemão. Apenas nos leve até lá e pode deixar que resolvemos tudo.


Com o barão na frente, entraram na capela, onde as velas ardiam e a grande pira com a chama eterna brilhava. Dos dois lados do telhado, estandartes heráldicos pendiam na escuridão.

— Setecentos anos de história da minha família, general.

— Muito impressionante — comentou Ferguson. — Nenhum sinal do Terceiro Reich. Não vejo nenhum estandarte nazista.

— Mas nunca fui nazista.

— Entretanto, destacou-se servindo a SS.

— Waffen SS, os melhores soldados que este mundo já viu.

— Não deixa de ser um ponto de vista. E você foi ajudante de ordens de Hitler.

— É verdade, mas ele tinha muitos. Eu era um office boy, se quer mesmo saber.

— Ora vamos, a quem foi confiada a missão mais sagrada de todas?

— Foi um mero capricho de um homem desequilibrado em seus últimos dias. Espere aí.

Ele caminhou até o fundo do mausoléu, abriu o compartimento secreto, tirou o diário e levantou-o.

— Você acha que tudo está relacionado a isto, ao diário do Führer, um “livro sagrado”?

— Foi o que Sara Hesser contou.

— Errado. O lema da minha família é: “Uma questão de honra”. A missão do Führer me tirou de Berlim, deu-me dinheiro para um recomeço. Por causa disso, tornou-se uma questão de honra guardá-lo. Ah, algumas informações, especialmente as que afetam o presidente americano, poderiam ser úteis, mas esse nunca foi o motivo da minha hostilidade em relação a você.

Ele recolocou o diário no lugar. Ferguson ouviu um ruído quando o compartimento se fechou.

— Então qual foi o motivo?

— Kate Rashid salvou minha vida em Bagdá. Dillon matou os irmãos dela e foi responsável por sua morte... e por seu intermédio.

— Então vai ser meu sangue que vai pagar esse preço?

— Dillon também vai pagar, se, como meu filho espera, vier atrás de você.

— Então, qual será meu preço?

— Vamos voltar ao salão para discutir isso.


Apesar de toda a luz proveniente do castelo, a área de floresta nas encostas era escura e sombria. Klein conduziu-os em meios aos arbustos até a entrada da câmara e removeu a grade. Desceu os degraus, acendeu uma lanterna grande e iluminou o interior do túnel de concreto.

— Chegamos. Leva diretamente ao coração do castelo. — Ele tirou meia garrafa de Schnapps do bolso e tomou um gole.

— Perfeito — disse Dillon. — Mas deixe isso de lado, precisamos de você sóbrio.


Naquele momento, em Arnheim, Max Kubel aumentou a rotação do motor e liberou o Storch. O motor Argus respondeu perfeitamente. Decolou sob a chuva.

Os outros permaneceram observando.

Hannah disse: — Agora tudo depende de Dillon.

— Bem, em geral é assim — disse Harry Salter.


Quando emergiram na área do porão, Klein conduziu-os ao longo de uma série de corredores e cozinhas desertos.

— Não há empregados? — perguntou Dillon.

— Verifiquei isso no vilarejo. Ele têm poucos. Todos de folga.

Chegaram a uma escadaria e Klein abriu a porta cuidadosamente.

— O vestíbulo do salão — sussurrou ele.

Estava escuro.

Vozes podiam ser ouvidas nas proximidades. — Devem estar no grande salão — acrescentou Klein. — Sigam-me. Se formos por aquela escada, há um lugar de onde podem ver tudo de cima.

Ele tomou mais um gole do Schnapps enquanto Dillon acertava detalhes com Billy, depois seguiram adiante, as armas preparadas.


15

Novamente sentado junto à lareira, Ferguson disse:

— Então vamos ouvir o pior.

— É simples — disse Rossi. — Seu histórico no campo da inteligência internacional o torna uma mercadoria muito valiosa. É óbvio que eu simplesmente poderia atirar em você, mas seria um desperdício. O que reservo para você vai, de certa forma, compensar-me pela catástrofe financeira do Mona Lisa.

— Só há um problema em relação a isso — disse Ferguson, animado. — Meu valor depende do que eu falar, e não sou dos mais comunicativos.

— Ah, podemos dar um jeito nisso. Há uma pequena droga chamada Succinylcholine. Ela é usada como relaxante muscular em certas operações, mas só se o paciente estiver inconsciente. Caso não esteja, a droga o deixa totalmente paralisado, incapaz de respirar e muito sensível à dor. O efeito dura dois minutos, mas a simples ideia de contemplar uma nova sessão seria terrível. Negativo, você abriria o bico.

E Ferguson sentiu medo como jamais sentira antes, mas conseguiu dar um sorriso.

— Parece bem horripilante. — Ele disse ao barão: — E você aprova essa prática?

— Tenho certeza de que isso não será necessário. Você, naturalmente, vai ser sensato.


Na metade da grande escada de pedra havia um pequeno posto de observação, um detalhe arquitetônico medieval, que consistia numa abertura frontal através da qual se podia ver tudo o que acontecia no grande salão. Dillon, Billy e Klein, cautelosamente recuados, observavam tudo.

O magnífico lustre, pendurado numa das vigas do teto, iluminava a cena lá embaixo: a mesa de carvalho; os candelabros de prata com velas acesas; Newton e Cook na plataforma do alto da escada de mármore; Gibson junto à lareira; o barão e Ferguson sentados frente a frente, Rossi num dos lados.

Dillon registrou tudo e fez um sinal para que recuassem.

— Esta escada se liga à plataforma da outra? — perguntou a Klein em alemão.

— Sim.

— E a porta lá embaixo é o único acesso ao grande salão?

— Correto.

— Ótimo. Vou mandar meu amigo para a plataforma e passo pela porta.

— E quanto a mim?

— Você fica aqui vigiando.

— Olhe...

Dillon disse:

— Faça o que peço. — Ele encostou sua metralhadora no peito de Klein. — Estou falando sério.

Klein levantou uma mão.

— Tudo bem... tudo bem.

Billy perguntou:

— Ele está sendo inconveniente?

— Só enchendo o saco. Suba aqueles degraus e faça a virada lá em cima, vai chegar à plataforma acima do salão. Acha que consegue dar conta de Newton e Cook?

— Todos os dias, incluindo os de folga. E quanto a você?

— Vou lá para baixo e irromper pela porta do salão. Em cinquenta, Billy, contando de agora. — Eles saíram, Billy para cima e Dillon para baixo. Klein, furioso, pegou a garrafa de Schnapps e tomou um gole, em seguida voltou para o posto de observação, levando a escopeta na mão.

Embaixo, Rossi dizia:

— Acho que um leilão pode ser divertido.

— Você adora torcer a lâmina, meu filho — disse Ferguson. — Como faz com a Nossa Senhora de marfim. Ah, sei tudo sobre isso. Quando estava fugindo atrás das linhas sérvias, matou quatro pessoas, só que duas delas eram mulheres. Transformou isso num hábito. Sara Hesser que o diga.

— Vá se danar, Ferguson — gritou Rossi.

E tirou do bolso a Nossa Senhora com a mão direita.

Naquele instante, do alto, Klein inclinou-se completamente bêbado para fora e gritou:

— Agora peguei você, barão. — Ele arremessou a garrafa vazia de Schnapps e disparou os dois tiros de sua escopeta.

Estranhamente, foi Ferguson quem salvou o barão, ao se jogar para a frente e derrubá-lo da cadeira, mas coube a Derry Gibson, o velho pistoleiro irlandês, neutralizar Klein, ao acertar três disparos de sua Browning na testa dele.

Klein se desequilibrou na amurada e caiu no salão.

Toda a sincronização que tinham planejado foi por água abaixo. Billy, que avançava em direção a Newton e Cook, não teve outra opção senão acertar Newton, enquanto Dillon, embaixo, chutou a porta, se afastou para um lado e abriu fogo.

Ferguson e o barão estavam atrás do sofá, Rossi e Gibson derrubaram a mesa e, de trás dela, começaram a atirar para a porta.

Dillon gritou:

— Você está bem, Billy?

— Peguei o Newton, falta o Cook.

Houve uma nova troca de tiros.

Dillon gritou:

— Veja o que consegue com o lustre. Vou ajudá-lo. Um, dois, três, já.

Eles abriram fogo contra o alvo, que se estilhaçou lançando cacos em todas as direções. O lustre balançou antes de despencar do teto, mergulhando o salão na escuridão, e bater no piso. Espatifou-se em várias partes e muitas delas caíram na mesa.

Na plataforma, Cook entrou em pânico e levantou-se disparando o AK-47. Billy o derrubou com uma rajada curta e, em seguida, começou a descer a escada. Dillon avançou correndo, disparando para o alto, confrontando Rossi e Derry Gibson, à medida que eles se levantavam dos escombros do lustre e da mesa. Billy veio por trás deles.

— Parados. — Ele os revistou, pegando duas pistolas e a Nossa Senhora de marfim de Rossi. Abriu a lâmina. — Muito prático. — Em seguida, fechou a lâmina e guardou-a no bolso.

Ferguson e o barão agora estavam em pé.

Ferguson perguntou:

— Por que demoraram?

Billy disse:

— Pelo que pude ver lá de cima, você salvou esse velho maldito. Por que diabos fez isso?

— Pareceu a coisa civilizada a ser feita, e ele me tratou de forma extremamente civilizada, Dillon. Levou-me até a capela e me deu um emocionante vislumbre do diário. Está escondido no mausoléu.

— É mesmo? Bem, viemos atrás de você, Charles, mas o diário sem dúvida é um bônus.

Rossi não disse uma palavra, ficou apenas observando, nitidamente irritado. Já Gibson estava preparado para aproveitar qualquer oportunidade de fuga que eventualmente surgisse. Dillon estava ciente disso.

— Certo — disse ele a Rossi. — Vá na frente.


Chegando a cento e vinte metros de altitude, Kubel teve uma perfeita visão do castelo, esplendidamente iluminado, e do prado abaixo. A duzentos e cinquenta quilômetros por hora, ele tinha feito uma rápida viagem apesar da chuva, que se transformara em garoa no trecho final. Havia uma pálida lua minguante por trás do castelo iluminado, e ele fez uma aterrissagem perfeita, taxiando até o fim do prado, onde fez a volta. O Codex Quatro tocou e ele atendeu.

— Kubel.

— Aqui é Dillon. Ouvi você chegando. Nós o resgatamos.

— Ótimo. Estou pronto para decolar, quando quiserem.


Eles se reuniram perto do mausoléu, na capela, Billy vigiando Rossi, Gibson e o barão com sua Schmeisser.

Ferguson vagava pelo fundo.

— Está aqui em algum lugar, numa espécie de compartimento secreto.

— Você nunca vai achar — disse o barão, com tranquilidade.

— Não tenho tempo a perder. — Dillon agarrou Rossi pelos cabelos, tirou uma Walther do bolso e enfiou a extremidade do cano na têmpora dele. — Faça-o aparecer, senão mato você.

— Não acho que seja capaz disso.

— Então não me conhece. — Dillon se virou para Gibson. — Avisei a você para nunca mais voltar a me encontrar. — Acertou-lhe um tiro entre os olhos, derrubando-o nos degraus do mausoléu, que ficaram banhados de sangue.

Houve uma comoção geral e, em seguida, ele encostou a Walther no crânio de Rossi.

— Você decide.

— Não — gritou o barão angustiado. — Vou entregar, mas só se você jurar por sua honra que vai poupá-lo.

Foi Ferguson quem interveio.

— Tem a minha palavra.

O velho homem foi até os fundos do mausoléu e houve um pequeno ruído quando ele abriu o compartimento. Voltou com o diário e o entregou a Ferguson.

— Um “livro sagrado”, segundo Sara Hesser. Você jurou que jamais faria um cópia.

— Jamais fiz.

— Ótimo. — Ferguson subiu dois degraus até a pira da chama eterna e jogou o diário dentro. O volume pegou fogo imediatamente.

Rossi gritou: — Seu maldito idiota! Pai, eles vão nos matar de qualquer maneira.

Dillon empurrou-o para trás e levantou sua Walther, mas Ferguson disse:

— Não, está terminado. Dei minha palavra. Vamos embora agora. — E ele saiu.

— Você é um homem de sorte — disse Dillon. — Desisti da honra há muito tempo. Vamos, Billy.

— Eles saíram, seguindo Ferguson de volta pelo túnel. Passaram rapidamente pela carnificina do grande salão e se dirigiram para a porta da frente, que dava num pátio. Havia vários veículos estacionados, incluindo um Land Rover com as chaves na ignição.

— Este vai servir — disse Dillon, antes de sentar atrás do volante. Os outros dois entraram desordenadamente e seguiram pela ponte levadiça.


Rossi surgiu na porta da capela, seu pai logo atrás, e olhou para o prado à frente.

— Meu Deus, é um Storch, estão fugindo numa lata velha. Bem, vou lhes mostrar o que é bom.

Correu pelo caminho que levava ao pátio e o pai foi cambaleando atrás dele.

— Mas o que você vai fazer?

— Meu Gulfstream é três vezes mais veloz do que aquela coisa. Vou mandar aqueles canalhas para o chão.

A raiva o deixava fora de si.

— Você está maluco — disse o barão, enquanto segurava o braço de Rossi. Ele se desvencilhou e começou a correr, o velho atrás dele.

No pátio, Rossi entrou numa van e deu a partida, seguindo para o portão, mas deparou-se com o barão, parado de braços abertos e a familiar bengala na mão. Rossi não teve opção senão parar, e num instante, o barão abriu a porta do passageiro e se arrastou para dentro do veículo.

— Tudo o que fizermos, faremos juntos. Agora vá em frente.


Ferguson, Dillon e Billy se espremeram no Storch. Max Kubel soltou uma risadinha e gritou acima do barulho do motor: — Tudo fica bem quando termina bem. Vamos cair fora daqui.

— Uma ideia sábia. Deixamos quatro homens mortos lá dentro — disse Ferguson.

— Então realmente é melhor ir em frente. — Ele aumentou a rotação do motor e avançou pelo prado até erguer-se no ar.

Dillon deu um olhada para fora a tempo de ver a van se aproximando do Gulfstream, e fez um gesto. Kubel olhou para trás.

— Se vocês não deixaram Rossi morto lá atrás, deve ser ele. Não pode ser mais ninguém. Vamos em frente.


Obviamente, ele não tinha a menor esperança. Não havia escapatória, não com a velocidade do Gulfstream. Não havia perigo de ser abatido, porque o Gulfstream não era um avião de combate, então isso só podia significar uma coisa: tentariam desestabilizá-lo. Ele podia ser forçado a colidir com a floresta e Rossi era um grande piloto.

Estava a trezentos metros de altitude quando sentiu uma grande onda de choque. O Storch balançou com a turbulência. O Gulfstream passou por eles e deu a volta, vindo de bombordo, enquanto Rossi reduzia a velocidade. As luzes da cabine estavam acesas e Dillon pôde ver von Berger à direita do piloto.

— Meu Deus, ele trouxe o barão junto — gritou.

O Gulfstream passou rapidamente por eles e fez a volta, retornando em rota de colisão, só foi evitada porque no último instante Rossi desviou a aeronave e passou por cima do Storch, que balançou com a turbulência.

— Assim não — disse Kubel. — Ele está tentando me forçar a descer para que eu bata nas árvores. Vamos jogar um jogo diferente.

Ele puxou a alavanca para trás e subiu para oitocentos metros de altitude. Na cabine do Gulfstream, Rossi rosnou: — Que diabos esse piloto está fazendo?

— Isso é ridículo — disse o barão. — É loucura. Vamos voltar.

— De jeito nenhum.

Naquele instante, Kubel mergulhou o Storch com o nariz embicado para baixo na manobra mais radical de sua carreira e Rossi partiu rugindo atrás dele. O Storch continuou descendo e Kubel só empurrou a alavanca no último momento, nivelando o avião a cento e cinquenta metros de altura, numa manobra suicida.

O barão pôs a mão na de Rossi.

— Basta — disse ele, e empurrou a alavanca para a frente.

O Gulfstream, voando a seiscentos quilômetros por hora, saiu batendo nas árvores como uma bola de fogo.

Dillon gritou para Kubel:

— Você é um gênio.

— Ele estava mentalmente desequilibrado — retrucou Kubel. — Ninguém em sã consciência pilotaria um avião daquela forma.

— Fez a escolha dele — disse Ferguson. — Não posso dizer que sinto. Ele tinha em mente um terrível destino para mim, e o barão o apoiaria.

— No que me diz respeito, podem torrar no inferno — disse Dillon. — Vamos voltar para casa.


Chegaram a Arnheim pouco depois e aterrissaram junto ao hangar, onde Hannah, Harry, Lacey e Parry esperavam.

— Meu Deus, é ótimo revê-lo, general — disse Harry.

Hannah impulsivamente beijou o general na bochecha.

— Fico muito contente por ter conseguido escapar, sir.

— Bem, tudo isso pode esperar. Todos a bordo. Quero que saiamos daqui o quanto antes. Dillon, é melhor você e Billy se trocarem. E quanto a você, Kubel?

— Ah, vou decolar assim que partirem, acho que é hora de tirar umas férias prolongadas.

— Você foi fantástico lá atrás.

— É verdade... fui, não fui?

Lacey e Parry estavam na cabine do Citation. Hannah e Harry embarcaram, seguidos de Ferguson. Instantes depois, Dillon e Billy vieram correndo do hangar.

Dillon disse a Kubel:

— Achei que eu fosse um bom piloto, mas você é um grande piloto. Ele não é mesmo um grande piloto, Billy?

— É realmente ótimo. Vamos embora.

Subiram pela porta do Airstairs e Parry fechou-a. Instantes depois, rolavam pela pista e decolavam, ganhando altitude rapidamente.

— Certo, o que aconteceu? — indagou Harry.

— Isso pode aguardar, Harry — respondeu Ferguson. — Como sempre, eles saem cobertos de glória. — Ele se virou para Hannah. — Faça a gentileza de ligar para Roper. Missão cumprida, diário de Hitler destruído. Barão Max von Berger, Marco Rossi e Derry Gibson partiram desta vida sabe Deus para onde. Peça que retransmita a informação a Blake Johnson.

— Naturalmente, sir, e quanto ao primeiro-ministro?

— Dele eu cuido pessoalmente.

Ela foi até o fundo da cabine e entrou na cozinha para ter privacidade. Harry abriu o armário do bar.

— Calculo que um drinque vai cair bem, exceto para o Billy aqui.

— Seja como for, vou mesmo tirar uma soneca — retrucou Billy, reclinando sua poltrona e fechando os olhos.

— Bushmills. — Harry estendeu a garrafa. — Você tem amigos influentes, seu bastardo irlandês.

Ele achou três copos e serviu. Houve uma espécie de silêncio amigável. Beberam e Harry serviu-os novamente.

Ferguson brindou com Dillon.

— Foi uma parada dura, Sean, mas você se saiu bem.

— Estão ficando cada vez mais difíceis — comentou Dillon. — Às vezes acho que devia procurar algum trabalho mais tranquilo.

Ferguson balançou a cabeça e disse baixo:

— Não seja tolo. Para onde diabos você iria?

 

 

                                                                  Jack Higgins

 

 

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