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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MADAME BOVARY
MADAME BOVARY

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Terceira Parte

I

Léon, ao mesmo tempo que estivera fazendo os seus estudos de Direito, frequentara razoavelmente a Choupana, onde obteve até um êxito relativamente grande entre as operariazinhas, que Lhe achavam um ar distinto. Era o estudante mais bem comportado: não usava o cabelo demasiado comprido nem demasiado curto, não gastava logo no primeiro dia do mês todo o dinheiro do trimestre e mantinha boas relações com os professores. A respeito de excessos, sempre se abstivera, tanto por pusilanimidade como por delicadeza.

Frequentemente, quando ficava no quarto a ler, ou então se ia sentar, à tarde, debaixo das tílias do Luxemburgo, deixava cair o Código no chão e vinham-lhe as recordações de Emma.

Mas, a pouco e pouco, este sentimento fora enfraquecendo e outros desejos se Lhe foram sobrepondo, se bem que, apesar de tudo, aquele persistisse através destes, pois Léon não perdera toda a esperança, havia para ele uma espécie de promessa incerta que se projectava no futuro, como um fruto de ouro suspenso nalguma fantástica folhagem.

Depois, ao tornar a vê-la após três anos de ausência, reacendeu-se-lhe a paixão. Era preciso, pensou ele, resolver-se finalmente a querer possuí-la. Além disso, a sua timidez gastara-se ao contacto com as companhias de estroinice e ele voltava à província desprezando tudo o que não fosse sapato de verniz pisando o asfalto da capital. Se tivesse de enfrentar uma parisiense coberta de rendas, na sala de algum doutor ilustre, personagem condecorada, possuidora de carruagem, o pobre escriturário certamente tremeria como uma criança, mas aqui, em Ruão, no porto, diante da mulher daquele medicozinho, sentia-se à vontade, antecipadamente certo de que deslumbraria. O aprumo depende do meio onde se está: não se fala na sobreloja como no quarto andar e a mulher rica parece ter em torno de si, para lhe proteger a virtude, todas as suas notas de banco, como uma couraça, no forro do espartilho.

Depois de, na véspera à noite, se ter despedido do casal Bovary, Léon seguira-os de longe pela rua, e logo, vendo-os parar na Cruz Vermelha, voltara para trás e passara toda a noite a meditar num plano.

Então, no dia seguinte, pelas cinco horas, entrou na cozinha da estalagem com a garganta apertada, a face pálida e aquela determinação dos cobardes que nada consegue deter.

- O senhor não está - respondeu um criado.

Isto pareceu-lhe de bom augúrio. Subiu.

Ela não se mostrou perturbada com a sua presença, pelo contrário, apresentou desculpas por se ter esquecido de lhe dizer onde estavam hospedados.

- Oh!, eu adivinhei - retorquiu Léon.

- Como?

Ele pretendeu ter sido guiado para ela, ao acaso, por instinto. Emma sorriu e, para remediar a tolice, Léon contou que passara toda a manhã a procurá-la, sucessivamente em todas as estalagens da cidade.

- Decidiu-se então a ficar? - acrescentou ele.

- Sim, mas fiz mal. Não nos podemos acostumar a prazeres impraticáveis quando à nossa volta se apresentam mil e uma exigências...

- Pois é! Imagino...

- Isso é que não, porque você não é mulher.

Mas os homens tinham também os seus desgostos, e a conversa encaminhou-se para algumas reflexões filosóficas. Emma alargou-se muito acerca da miséria das afeições terrenas e do eterno isolamento em que o coração se conserva encerrado.

Para se fazer valer, ou por uma ingénua imitação daquela melancolia que provocava a sua, o rapaz afirmou ter vivido extraordinariamente aborrecido durante todo o tempo dos estudos. As questões jurídicas irritavam-no, sentia-se atraído por outras vocações e a mãe não deixava de o atormentar em todas as cartas que lhe escrevia. Cada um explicitava cada vez mais os motivos da sua dor, à medida que ia falando, entusiasmando-se um pouco naquela confidência progressiva.

Detinham-se, porém, algumas vezes diante da exposição completa da sua ideia e procuravam então imaginar uma frase que a pudesse resumir. Ela não confessou a sua paixão por outro, ele não disse que a esquecera.

Talvez Léon se não lembrasse já daquelas ceias depois do baile, com aventureiras, e, naturalmente, Emma não se recordava dos seus encontros anteriores, quando corria de manhã pelo meio das ervas, em direcção ao castelo do amante.

Os ruídos da cidade mal lhes chegavam aos ouvidos, e o quarto parecia pequeno, mesmo apropriado para acentuar mais a solidão de ambos. Emma, vestida com um penteador de bombazina, apoiava o carrapicho nas costas da poltrona velha, o papel amarelo da parede fazia uma espécie de fundo dourado atrás dela, a cabeça descoberta reflectia-se no espelho com o risco claro ao centro e as pontas das orelhas mostrando-se por baixo dos bandós.

- Mas desculpe - disse ela -, eu não devia falar desta maneira! Estou a maçá-lo com as minhas eternas lamúrias!

- Não, nunca, de modo nenhum!

- Se soubesse - prosseguiu ela, erguendo para o tecto os seus belos olhos, onde bailava uma lágrima -, tudo quanto eu tinha sonhado!

- E eu então! Quanto sofri! Muitas vezes saía, desaparecia, arrastava-me pelos cais, atordoava-me com o barulho da multidão, sem poder ver-me livre da obsessão que me perseguia.

Na avenida principal, numa loja de estampas, há uma gravura italiana que representa uma Musa. Tem uma túnica vestida e contempla a Lua, com miosótis sobre a cabeleira solta.

Qualquer coisa me atraía constantemente para ali, passei lá horas inteiras.

Depois, com uma voz trémula:

- Parecia-se um pouco consigo.

A senhora Bovary voltou a cara, para que ele não lhe visse nos lábios o irresistível sorriso que não podia conter.

- Muitas vezes - continuou ele - escrevia-vos cartas, que depois rasgava.

Emma não respondia. O rapaz continuou:

- Imaginava às vezes que o acaso a pudesse trazer.

Parecia-me reconhecê-la às esquinas das ruas, e corria atrás de todas as tipóias a cuja portinhola via flutuar um xaile, um véu parecido com o seu...

Ela parecia determinada a deixá-lo falar sem o interromper.

De braços cruzados e rosto inclinado para baixo, fixava as rosetas das suas chinelas, dentro das quais ia fazendo pequenos movimentos intermitentes com os dedos dos pés.

Entretanto suspirou:

- O que há de mais lamentável do que arrastar, como eu, uma existência inútil? Se os nossos sofrimentos pudessem servir a alguém, a ideia do sacrifício consolar-nos-ia!

Ele começou a elogiar a virtude, o dever e as imolações silenciosas, dizendo sentir ele próprio uma incrível necessidade de dedicação que não podia saciar.

- Eu gostaria imenso de ser irmã da caridade - disse ela.

- Infelizmente - replicou ele -, não há para os homens missões santas como essas e não conheço nenhuma profissão..., a não ser talvez a de médico...

Com um leve encolher de ombros, Emma interrompeu-o para se queixar da doença de que estivera quase a morrer, que pena não ter morrido! Agora não estaria a sofrer. Léon invejou imediatamente a calma da sepultura, e até, uma noite, escrevera o seu testamento, recomendando que o amortalhassem naquela bonita manta orlada de veludo que fora oferta dela, pois era assim que desejariam ter ficado, um e outro procurando o ideal sobre que ajustar no presente a sua vida passada. Além disso, a palavra é um laminador que alonga sempre os sentimentos.

Porém, ante aquela invenção da manta, ela perguntou:

- Então porquê?

- Porquê?

Léon hesitava.

- Porque a amei muito!

E, felicitando-se por haver ultrapassado a dificuldade, espiava-lhe o rosto pelo canto da vista.

Parecia o céu quando um pé de vento faz desaparecer todas as nuvens. Pareceu retirar-se daqueles olhos azuis toda a carga de pensamentos tristes que os ensombrava, todo o rosto resplandecia.

Ele ficou à espera. Por fim ela respondeu:

- Sempre me tinha querido parecer...

Então relembraram os pequenos acontecimentos daquela existência longínqua, cujos prazeres e melancolias acabavam de ser resumidos numa só palavra. Ele recordava o berço de clematite, os vestidos que ela usara, os móveis do seu quarto, tudo na casa dela.

- E os nossos pobres cactos, onde estão?

- O frio matou-os este Inverno.

- Sabe que pensei muitas vezes neles? Imaginava-os como antes, quando, nas manhãs de Verão, o sol batia nas gelosias... e eu avistava os seus dois braços nus passando pelo meio das flores.

- Pobre amigo! - disse ela, estendendo-lhe a mão.

Léon logo lhe encostou rapidamente os lábios. Depois, no fim de muitos suspiros, disse:

- A senhora era para mim, naquele tempo, não sei que espécie de força irresistível que me cativava a vida. Uma vez, por exemplo, fui a sua casa, mas não se lembra disso, com certeza.

- Lembro, sim. Continue.

- Estava em baixo, na antecâmara, pronta para sair, já no último degrau, tinha até um chapéu com florezinhas azuis, e sem nenhum convite seu, involuntariamente, acompanhei-a.

Entretanto, de minuto a minuto, tomava cada vez maior consciência da tolice e continuava a caminhar ao seu lado, não ousando completamente segui-la, e não querendo deixá-la.

Quando entrava numa loja, eu ficava na rua e, através da vitrina, via-a tirar as luvas e contar o dinheiro em cima do balcão. Depois bateu à porta da senhora Tuvache, abriram-lha e eu fiquei como um idiota diante da porta grande e pesada que se fechara atrás de si.

Emma, escutando-o, admirava-se de ser tão velha, todas aquelas coisas que ressurgiam pareciam dilatar-lhe a existência, eram como que imensidades sentimentais a que ela se reportava, e dizia de vez em quando, em voz baixa e com as pálpebras semicerradas:

- Sim, é verdade!... É verdade! É verdade...

Ouviram bater as oito horas nos diferentes relógios do bairro Beauvoisine, onde abundam colégios, igrejas e grandes palácios abandonados. Tinham deixado de falar, mas, olhando um para o outro, ouviam uma espécie de zumbido na cabeça, como se qualquer coisa sonora emanasse reciprocamente das pupilas fixas. Tinham acabado de entrelaçar as mãos, o passado, o futuro, as reminiscências e os sonhos, tudo se achava confundido na doçura daquele êxtase. A noite adensava-se sobre as paredes, onde ainda brilhavam, meio perdidas na sombra, as cores fortes de quatro estampas que representavam cenas de A Torre de Nesle, com legendas por baixo, em espanhol e em francês. Pela janela corrediça via-se uma porção de céu escuro entre telhados pontiagudos.

Ela levantou-se para acender duas velas sobre a cómoda e depois voltou a sentar-se.

- Pois bem... - disse Léon.

- Pois bem? - retorquiu ela.

E ele procurava a maneira de reatar o diálogo interrompido, quando ela lhe disse:

- Porque será que, até hoje, ainda ninguém me tinha declarado sentimentos semelhantes?

O escriturário argumentou que as naturezas ideais eram difíceis de compreender. Ele, desde a primeira vista, sentira amor por ela, e desesperava-se a pensar na felicidade que poderiam ter tido se, por mercê do acaso, se houvessem encontrado mais cedo e se tivessem prendido um ao outro de maneira indissolúvel.

- Várias vezes pensei nisso - respondeu ela.

- Que sonho! - murmurou Léon.

E, tocando-lhe delicadamente na orla azul do cinto branco, acrescentou:

- E quem nos impede de recomeçar?...

- Não, meu bom amigo - respondeu ela. - Já estou muito velha..., você é jovem de mais..., esqueça-se de mim! Outras o amarão... e amá-las-á também.

- Nunca como a si! - exclamou ele.

- Como está a ser criança! Vamos, tenha juízo! Sou eu que quero!

Emma mostrou-Lhe as impossibilidades daquele amor e que deviam contentar-se, como antes, com os simples termos de uma amizade fraternal.

Estaria falando seriamente? Naturalmente nem ela própria o sabia, obcecada como estava pelo encanto da sedução e pela necessidade de se defender dela, e, contemplando o rapaz com um olhar terno, repelia suavemente as tímidas carícias que ele com mãos trémulas procurava fazer-lhe.

- Ah!, perdão - disse ele recuando.

E Emma sentiu-se tomada de um vago terror diante daquela timidez, mais perigosa para ela do que o arrojo de Rodolphe, quando se lhe atirava de braços abertos. Nunca homem algum lhe parecera tão belo. Uma delicada candura ressaltava dos seus modos. Ele baixava as pestanas finas e longas, recurvadas.

Ruborescia-se-lhe a macia epiderme do rosto - pensava ela - pelo desejo da sua pessoa, e Emma sentia um invencível desejo de o beijar. Então, inclinando-se para o relógio, como que para ver as horas:

- Meu Deus, como já é tarde! - disse ela. - Isto é que é tagarelar!

Léon compreendeu a alusão e procurou o chapéu.

- Até me esqueci do espectáculo! E o pobre Bovary que me deixou cá de propósito! O senhor Lormeaux, da Rue Grand-Pont, devia levar-me lá na companhia da mulher.

E a ocasião estava perdida, pois ela partiria no dia seguinte.

- É verdade? - perguntou Léon.

- Sim.

- No entanto preciso de a ver ainda mais uma vez - continuou ele. - Tenho que lhe dizer...

- O quê?

- Uma coisa. Grave e séria. Não, além disso, não pode ir-se embora, é impossível! Se soubesse... Escute-me... Mas então não me compreendeu? Ainda não descobriu?...

- No entanto, o senhor explica-se bem - respondeu Emma.

- Ora, gracejos! Basta, chega! Por caridade, arranje maneira de nos voltarmos a ver..., uma vez, só uma.

- Está bem...

Emma interrompeu-se, depois, como se reconsiderasse, continuou:

- Mas aqui não!

- Onde desejar.

- Olhe...

Ela pareceu reflectir e, logo num tom breve, prosseguiu:

- Amanhã, às onze horas, na catedral.

- Estarei lá! - exclamou ele, agarrando-lhe nas mãos, que ela desprendeu.

E, como ambos se encontravam de pé, ele colocado atrás dela e Emma de cabeça baixa, Léon inclinou-se-lhe sobre o pescoço e beijou-a demoradamente na nuca.

- Mas você está doido! O que é isso? Está doido! - dizia ela com risadinhas sonoras, enquanto os beijos se multiplicavam.

Então, adiantando a cabeça por cima do ombro dela, ele pareceu procurar-lhe nos olhos o consentimento. Estes pousaram nele com uma majestade glacial.

Léon deu três passos para trás para sair. Parou ainda no limiar. Depois murmurou com voz trémula:

- Até amanhã.

Ela respondeu com um gesto da cabeça e desapareceu como uma ave no quarto contíguo.

À noite, Emma escreveu ao escriturário uma interminável carta a desligar-se do compromisso da entrevista: tudo estava agora terminado e, para a felicidade de ambos, não deviam voltar a encontrar-se. Porém, uma vez a carta fechada, como não sabia o endereço de Léon, ficou grandemente embaraçada.

“Entregar-lha-ei eu mesma, pensou ela, ele virá.”

No dia seguinte, Léon, com a janela aberta e cantarolando na varanda, engraxou ele mesmo os sapatos, aplicando-lhes várias camadas de pomada. Vestiu calças brancas, meias finas, um casaco verde, espalhou no lenço toda a espécie de perfumes que tinha, depois mandou frisar o cabelo, mas desfrisou-o novamente para lhe dar uma elegância mais natural.

“Ainda é demasiado cedo!”, pensou, olhando para o relógio de cuco do cabeleireiro, que dava as nove horas.

Leu uma velha revista de modas, saiu, fumou um charuto, percorreu três ruas, pensou então que já estava na hora e dirigiu-se apressadamente para o adro de Nossa Senhora.

Estava uma bela manhã de Verão. As pratas reluziam nas vitrinas dos ourives e a luz que incidia obliquamente sobre a catedral fazia brilhar a cantaria cinzenta, um bando de pássaros voltejava no céu azul, em torno dos campanários em trifólio, a praça, rumorejante de gritos, cheirava às flores que Lhe rodeavam o pavimento: rosas, jasmins, cravos, narcisos e tuberosas, intervaladas irregularmente por verduras húmidas, erva-de-gato e morugem para os pássaros, a fonte, ao centro, marulhava e, debaixo de enormes guardasóis, entre pirâmides de melões, as vendedeiras, em cabelo, envolviam em papel raminhos de violetas.

O rapaz pediu um. Era a primeira vez que comprava flores para uma mulher, quando as cheirou, inchou-se-Lhe o peito de orgulho, como se aquela homenagem, destinada a ela, recaísse afinal sobre ele.

Entretanto tinha receio de ser notado e entrou resolutamente na igreja.

O suíço estava nessa altura à entrada, no meio da porta da esquerda, por baixo da Mariana Dançando, de pluma na cabeça, espadalhão à cinta, bastão em punho, mais majestoso do que um cardeal e reluzente como um cibório sagrado.

Avançou para Léon e, com aquele sorriso de bajuladora bondade que assumem os clérigos quando interrogam as crianças, disse:

- O senhor, naturalmente, não é daqui? Deseja ver as curiosidades da igreja?

- Não - respondeu o outro.

E começou por dar a volta às naves laterais. Depois voltou a olhar a praça. Emma não aparecia. Subiu ao coro.

A nave mirava-se nas pias cheias de água benta, com o começo das ogivas e algumas porções dos vitrais. Mas o reflexo das cores, quebrando-se na borda do mármore, continuava mais longe, sobre as lajes, como um tapete variegado. A luz exterior penetrava na igreja com três feixes enormes, pelas três portas abertas. De vez em quando, ao fundo, passava um sacristão e fazia diante do altar a oblíqua genuflexão dos devotos apressados. Os lustres de cristal pendiam imóveis. No coro ardia uma lamparina de prata, e das capelas laterais, das partes sombrias da igreja, escapava-se às vezes uma espécie de exalação de suspiros, com o som de uma grade que se fechava, repercutindo o seu eco nas altas abóbadas.

Léon, com passos reverentes, caminhava rente às paredes.

Nunca a vida lhe parecera tão agradável. Ela chegaria dentro de momentos, encantadora, agitada, espreitando para trás os olhares que a seguiam - e com o seu vestido de folhos, a luneta com cabo de ouro, as botinas finas, com todas as elegâncias que ele nunca saboreara, na inefável sedução da virtude que sucumbe. A igreja, como um gigantesco toucador, dispunha-se em torno dela, as abóbadas inclinavam-se para recolher na sombra a confissão do seu amor, os vitrais resplandeciam para iluminar-lhe o rosto e os turibulos acendiam-se para que ela aparecesse como um anjo, envolta pelo fumo dos incensos.

Entretanto, ela não vinha. Léon sentou-se numa cadeira e deparou-se-lhe uma vidraça azul onde se viam barqueiros transportando cestos. Fixou-a demoradamente, com atenção, e contou as escamas dos peixes e os botões dos gibãos, enquanto o espírito vagueava à procura de Emma.

O suíço, de longe, indignava-se interiormente contra aquele indivíduo que se atrevia a contemplar sozinho a catedral.

Parecia-lhe que ele se comportava de maneira monstruosa, que de algum modo o espoliava e quase cometia um sacrilégio.

Subitamente, um roçagar de seda sobre as lajes, a aba de um chapéu, uma camalha preta... Era ela! Léon ergueu-se e correu ao seu encontro.

Emma estava pálida. Caminhava rapidamente.

- Leia! - disse ela, estendendo-Lhe um papel... - Oh, não!

E retirou a mão bruscamente, para entrar na capela da Virgem, onde, ajoelhando-se encostada à cadeira, se pôs a rezar.

O rapaz ficou irritado com aquela fantasia beata, depois sentiu, apesar disso, um certo encanto de a ver, no meio do encontro, assim perdida nas suas orações, como uma marquesa andaluza, por fim acabou por se aborrecer, porque ela não terminava com aquilo.

Emma rezava, ou, melhor, esforçava-se por rezar, esperando que Lhe descesse do Céu alguma solução súbita, e, para atrair o socorro divino, enchia os olhos com o esplendor do sacrário, aspirava o perfume das açucenas brancas que desabrochavam em grandes vasos e atendia ao silêncio da igreja, que apenas lhe fazia crescer o tumulto do coração.

Ela levantava-se e iam os dois partir, quando o suíço se aproximou rapidamente, dizendo:

- A senhora, naturalmente, não é daqui? A senhora deseja ver as curiosidades da igreja?

- Não, não! - exclamou o escriturário.

- E porque não? - retorquiu ela.

Pois agarrava-se, com a sua vacilante virtude, à Virgem, às esculturas, aos túmulos, a todas as oportunidades.

Então, para proceder por ordem, o suíço levou-os primeiro à entrada próxima da praça, onde, mostrando-lhes com o bastão um grande círculo de pedras pretas no chão, sem inscrições nem burilamentos:

- Aqui têm - disse majestosamente - a circunferência do belo sino de Amboise. Pesava quarenta mil libras. Não havia em toda a Europa outro igual. O artífice que o fundiu morreu de alegria...

- Vamos embora - disse Léon.

O homem continuou a caminhar, depois, novamente na capela da Virgem, estendeu os braços num gesto sintético de demonstração e, mais orgulhoso que um proprietário rural que mostra as suas latadas, prosseguiu:

- Esta pedra simples cobre Pierre de Brézé, senhor da Varenne e de Brissac, grande marechal de Poitou e governador da Normandia, morto na batalha de Montlhéry, a 16 de Julho de 1465.

Léon, mordendo os lábios, sapateava nervosamente.

- E, à direita, aquele fidalgo todo coberto de ferro, sobre um cavalo empinado, é o seu neto Louis de Brézé, senhor de Breval e de Montchauvet, conde de Maulevrier, barão de Maun-, camarista do rei, cavaleiro da Ordem e igualmente governador da Normandia, falecido a 23 de Julho de 1531, num domingo, como diz a inscrição, e, por baixo, aquele homem pronto para descer à sepultura representa exactamente a mesma pessoa. Não se pode representar de uma maneira mais perfeita o nada, não é verdade?

A senhora Bovary pegou na sua luneta. Léon, imóvel, olhava para ela, nem tentando já dizer uma palavra, fazer um único gesto, tão desanimado se sentia perante aquela dupla determinação de tagarelice e indiferença.

O eterno guia continuava:

- Junto dele, aquela mulher ajoelhada a chorar é a sua esposa Diane de Poitiers, condessa de Brézé, duquesa de Valentinois, nascida em 1499 e falecida em 1566, e, à esquerda, a que tem uma criança nos braços, representa a Virgem Maria. Agora voltem-se para este lado: aqui estão os túmulos dos Amboise. Foram ambos cardeais e arcebispos de Ruão. Aquele foi ministro do rei Luís XII. Foi grande benemérito da catedral. Encontrou-se no seu testamento trinta mil escudos de ouro para os pobres.

E, sem se deter, enquanto ia falando, empurrou-os para uma capela atulhada por balaustradas, arredou algumas e descobriu uma espécie de tronco, que bem poderia ter sido uma estátua mal feita.

- Decorava antigamente - disse ele com um longo gemido -, o túmulo de Ricardo-Coração-de-Leão, rei da Inglaterra e duque da Normandia. Foram os calvinistas, senhor, que a reduziram a este estado. Tinham-na enterrado, por maldade, debaixo da cadeira episcopal de monsenhor. Reparem aqui na porta por onde monsenhor se dirige aos seus aposentos. Passemos agora a ver os vitrais da gárgula.

Mas léon tirou rapidamente uma moeda branca do bolso e agarrou no braço de Emma. O suíço ficou estupefacto, não percebendo aquela intempestiva manifestação, quando ficavam ainda tantas coisas por mostrar aos estranhos. Por isso o chamou:

- Olhe, senhor! O zimbório!, o zimbório!...

- Obrigado - respondeu-Lhe Léon.

- É uma pena não subir. Tem quatrocentos e quarenta pés de altura, menos nove do que a grande pirâmide do Egipto. É todo fundido, é...

Léon fugia, porque tinha a impressão de que o seu amor, que já por quase duas horas estivera imobilizado na igreja como as pedras, se iria agora evaporar, como fumo, por aquela espécie de tubo truncado, de gaiola oblonga, de chaminé rendilhada que se ergue grotescamente sobre a catedral como extravagante experiência de algum caldeireiro fantasista.

- Onde vamos agora? - perguntava ela.

Sem responder, Léon continuava a andar rapidamente, e já a senhora Bovary mergulhava o dedo na água benta quando ouviram pelas costas uma respiração ofegante, entrecortada regularmente pelo bater de uma bengala. Léon voltou-se.

- Senhor!

- O que é?

Reconheceu o suíço, que trazia debaixo do braço, mas agora já em equilíbrio sobre a barriga, cerca de vinte grandes livros brochados. Eram as obras que tratavam da catedral.

- Imbecil! - resmungou Léon, correndo para fora da igreja.

Um garoto traquinava no adro.

- Vai-me buscar um fiacre!

O miúdo partiu como uma bala pela Rue des Quatre-Vents, ficaram então sós durante alguns minutos, face a face, um pouco embaraçados.

- Oh, Léon!... Verdadeiramente..., não sei... se deva...! - Fazia trejeitos. Depois, com um ar grave, continuou:

- É que não é decente, sabe?

- Porquê? - replicou o escriturário. - É coisa corrente em Paris!

E esta palavra, como argumento irresistível, decidiu-a.

Entretanto, o fiacre não chegava. Léon tinha receio de que ela voltasse a entrar na igreja. Finalmente apareceu a carruagem.

- Pelo menos saiam pela porta do norte! - gritou-lhes o suíço, que ficara no limiar, para verem a Ressurreição, o Juízo Final, o Paraíso, o Rei David e os Condenados nas chamas do Inferno!

- Para onde vai o senhor? - perguntou o cocheiro.

- Para onde você quiser! - respondeu Léon, empurrando Emma para dentro do carro.

A pesada máquina pôs-se em andamento.

Desceu a Rue Grand-Pont, atravessou a Place des Arts, o cais Napoléon, a Pont Neuf, e estacou diante da estátua de Pierre Corneille.

- Siga! - disse uma voz vinda do interior.

O carro arrancou novamente e, depois da encruzilhada La Fayette, deixou-se embalar pela descida e entrou a galope pela estação do caminho-de-ferro.

- Não, siga em frente! - gritou a mesma voz.

O fiacre saiu do gradeamento e, pouco depois, entrando na Marginal, foi trotando suavemente, no meio dos grandes ulmeiros. O cocheiro limpou a testa, entalou o chapéu de cabedal entre os joelhos e desviou a carruagem para a alameda exterior, à beira da água, rente ao relvado.

Foi seguindo a margem do rio, pelo caminho de sirgagem, coberto de pedras soltas, e, por muito tempo, do lado de Oyssel, para lá das ilhas.

Subitamente, porém, lançou-se de um pulo através de Quatremares, Sotteville, a Grande-Chaussée, a Rue d’Elbeuf, e parou pela terceira vez diante do Jardim das Plantas.

- Pode seguir! - gritou a voz mais furiosamente.

E logo continuou a corrida, passando por Saint-Sever, pelo cais dos Curtidores, pelo cais das Mós, mais uma vez pela ponte, pelo largo do Campo de Marte e por trás dos jardins do hospital, onde os velhos de casaca preta passeavam ao sol, ao longo de um aterro todo verdejante de heras. Subiu o Boulevard Bouvreuil, percorreu o Boulevard Cauchoise e depois todo o monte Riboudet até à encosta de Deville.

Regressou, e então, sem direcção nem destino, ao acaso, foi vagabundeando. Foi vista em Saint-Pol, em Lescure, no monte Gargan, no Rouge-Mare e na Place du Gaillard-Bois, nas Rues Maladrerie e Dinanderie, em frente de Saint-Romain, Saint-Vivien, Saint-Maclou, Saint-Nicaise - em frente de Alfândega -, na atarracada Torre Velha, nos Três Cachimbos e no Cemitério Monumental. De vez em quando, o cocheiro lançava do seu lugar olhares desesperados às tabernas. Não compreendia que fúria de locomoção obrigava aqueles indivíduos a não querer parar. Tentou por diversas vezes, mas logo ouvia atrás de si exclamações iradas. Fustigava então o mais que podia as duas pilecas cobertas de suor, sem se importar com os solavancos, esbarrando ora num lado ora noutro, sem se preocupar, desmoralizado e quase a chorar de sede, de fadiga e de tristeza. E no cais, no meio de carroções e de barricas, e pelas ruas, sobre os bancos de pedra, os burgueses arregalavam os olhos perante aquela coisa extraordinária na província: uma carruagem com os estores descidos aparecendo assim constantemente, mais fechada que um túmulo e sacudida como um navio.

Em dado momento, a meio do dia, em pleno campo, quando o Sol dardejava com mais intensidade sobre as velhas lanternas prateadas, uma mão sem luva atravessou as pequenas cortinas de tecido amarelo e lançou fora pedaços de papel rasgado que se dispersaram ao vento e foram cair mais longe, como borboletas brancas, sobre um campo de trevo vermelho florido.

Depois, pelas seis horas, a carruagem parou numa ruela do bairro Beauvoisine e apeou-se uma mulher que seguiu com o véu descido, sem voltar a cabeça.


II

Ao chegar à estalagem, a senhora Bovary ficou surpreendida de não ver a diligência. Hivert, que havia esperado por ela cinquenta e três minutos, acabara por ir-se embora.

Nada havia, naturalmente, que a obrigasse a partir, mas dera a sua palavra de que regressaria naquela mesma tarde. Além disso, Charles estava à sua espera, e já ela sentia no íntimo essa cobarde submissão que, para muitas mulheres, é como que o castigo e, simultaneamente, a expiação do adultério.

Fez rapidamente a mala, pagou a conta, alugou no pátio um cabriolé e, insistindo com o boleeiro, animando-o, informando-se minuto a minuto do tempo e dos quilómetros percorridos, conseguiu alcançar a Andorinha quase às primeiras casas de Quincampois.

Mal se instalou no seu canto, fechou os olhos e só voltou a abri-los ao fundo da descida, onde reconheceu, de longe, Félicité, de sentinela à porta do ferrador. Hivert deteve os cavalos e a cozinheira, esticando-se até ao postigo, disse misteriosamente:

- Minha senhora, é preciso que vá imediatamente a casa do senhor Homais. É por uma coisa urgente.

A vila estava silenciosa como de costume. Às esquinas das ruas viam-se uns montículos rosados fumegando ao ar livre, pois era a altura de fazer as compotas, e toda a gente em Yonville fazia a sua provisão no mesmo dia. Era, porém, de admirar, em frente da loja do farmacêutico, um monte muito maior, que ultrapassava todos os outros com a superioridade que um laboratório deve ter sobre os fogões particulares, uma necessidade colectiva sobre as fantasias individuais.

Emma entrou. A grande poltrona estava tombada e até le Fanal de Rouen jazia por terra, estendido entre os dois almofarizes.

Empurrou a porta do corredor, e, no meio da cozinha, entre os potes escuros cheios de groselhas desengaçadas, açúcar em pó, açúcar aos bocados, balanças em cima da mesa, tachos ao lume, encontrou todos os Homais, grandes e pequenos, com aventais que chegavam até ao queixo e garfos na mão. Justin, de pé, mantinha a cabeça baixa enquanto o farmacêutico gritava:

- Quem te mandou ir buscá-lo ao cafarnaum?

- Então o que foi? Que há?

- O que foi? - respondeu o boticário. - Estamos a fazer compotas: elas estão a cozer, mas iam transbordar por causa da fervura demasiado forte, mando-o buscar outro tacho, Então ele, por indolência, por preguiça, vai ao meu laboratório e tira do prego onde está pendurada a chave do cafarnaum!

Era o nome que u boticário dava a um gabinete que tinha no sótão, cheio de utensílios e mercadorias da sua profissão.

Muitas vezes ali ficava sozinho longas horas, a colar rótulos, a transvasar, a atar embrulhos, e considerava-o não um simples armazém, mas um autêntico santuário, donde surgiam depois, elaboradas pelas suas mãos, todas as espécies de pílulas, pomadas, tisanas, loções e poções, que espalhariam a sua fama pelos arredores. Ninguém ali podia pôr os pés, e tinha-Lhe tanto respeito que era ele próprio quem o varria. Enfim, se a farmácia, aberta a toda a gente, era o sítio onde exibia o seu orgulho, o cafarnaum era o refúgio onde, concentrando-se egoisticamente, Homais se deleitava no exercício das suas predilecções, por isso o despropósito de Justin lhe parecia uma monstruosidade de irreverência, e, mais rubicundo do que as groselhas, continuava a repetir:

- Pois, do cafarnaum! A chave que tranca os ácidos e os alcalis cáusticos! Ir buscar um tacho de reserva! Um tacho com tampa! Um tacho de que talvez nunca venha a servir-me! Tudo tem a sua importância nas delicadas operações da nossa arte!

Mas, que diabo!, há que fazer distinção e não utilizar para usos quase domésticos o que se destina aos farmacêuticos! É como se fôssemos trinchar uma galinha com um escalpelo, como se um magistrado...

- Mas tem calma! — dizia a senhora Homais.

E Athalie, puxando-Lhe pela labita, disse:

- Papá! Papá!

- Não, deixem-me! - continuava o boticário. - Deixem-me!, caramba! Mais valia montar uma mercearia, palavra de honra!

Anda lá então! Não respeites nada! Toca a partir!, a estragar!

Solta as sanguessugas! Queima a alteia! Põe pepinos de conserva dentro dos frascos! Rasga as ligaduras!

- Entretanto o senhor tinha..- - disse Emma.

- Um momento! Sabes a que te arriscaste?... Não viste nada no canto à esquerda, na terceira prateleira? Fala, responde, diz qualquer coisa!

- Eu... não sei... - balbuciou o rapazito.

- Ah, não sabes! Pois bem, eu é que sei! Viste uma garrafa de vidro azul, lacrada com lacre amarelo, que tem dentro um pó branco e na qual eu próprio escrevi: Perigoso! E sabes o que lá estava dentro? Arsénico! E tu vais tocar naquilo!, pegar num tacho que está mesmo ao lado!

- Ao lado! - exclamou a senhora Homais, juntando as mãos. - Arsénico? Podias envenenar-nos a todos!

E as crianças puseram-se a dar gritos, como se estivessem já a sentir dores atrozes nas entranhas. .

- Ou mesmo envenenar um doente! - continuava o boticário. - Querias então que eu me fosse sentar no banco dos réus, no tribunal? Ver-me arrastado ao cadafalso? Ignoras o extremo cuidado que eu tenho com as manipulações, apesar de já estar habituadíssimo a elas? Muitas vezes eu próprio me assusto, quando penso na minha responsabilidade! Porque o governo persegue-nos e a legislação absurda que nos rege é uma verdadeira espada de Dâmocles suspensa sobre as nossas cabeças!

Emma já nem pensava em perguntar o que lhe queriam e o farmacêutico continuava com as suas frases esbaforidas:

- Aí está como tu reconheces aquilo que se te faz! É assim que retribuis os cuidados paternos que te prodigalizo! Porque , sem mim, onde estarias tu? Que estarias tu a fazer? Quem te dá a comida, a educação, a roupa e todas as possibilidades de poderes um dia figurar com honra na sociedade? Mas para isso é preciso suar muito ao remo e ganhar, como se costuma dizer, calos nas mãos. Fabricando fit faber, age guod agis.

Estava tão exasperado que até citava latim. Teria mesmo citado chinês e gronelandês se conhecesse essas duas línguas, porque se encontrava numa dessas crises em que toda a alma mostra indistintamente tudo quanto tem dentro, tal como o oceano que, nas tempestades, se abre desde os sargaços das praias até à areia dos abismos.

E prosseguiu:

- Começo a arrepender-me profundamente de te ter tomado a meu cargo! Teria, com certeza, feito melhor deixando-te ficar naquela altura a chafurdar na miséria e na imundície onde nasceste! Só poderás vir a ter jeito para guardador de gado!

Não tens nenhuma inclinação para as ciências! Quando muito, mal consegues colar um rótulo! E vives na minha casa como um abade, repimpado como um galo na capoeira!

Emma, porém, voltando-se para a senhora Homais, disse:

- Tinham-me mandado cá vir...

— Oh!, santo Deus! - interrompeu com ar triste a boa senhora, não sei como lhe hei-de dizer isto... É uma desgraça!

Não terminou. O boticário vociferava:

- Despeja-o! Esfrega-o e vai lá pô-lo onde estava! E despacha-te!

E, sacudíndo Justin pela gola do blusão, fez-Lhe cair um livro do bolso.

O rapaz baixou-se. Homais foi mais lesto e, apanhando o volume, observava-o, de olhos arregalados e boca aberta.

- O Amor... Conjugal! - disse ele, separando lentamente as palavras. - Ah!, muito bem! Muito bem! Muito lindo! E com gravuras!... Isto é de mais!

A senhora Homais aproximou-se.

- Não! Não toques nisso!

As crianças queriam ver as gravuras.

- Saiam daqui! — disse imperiosamente.

Elas saíram.

Primeiramente pôs-se a dar grandes passadas de um lado para o outro, com o livro aberto na mão, revirando os olhos, sufocado, inchado, apopléctico. Depois foi direito ao aprendiz e, postando-se-lhe na frente, com os braços cruzados:

- Mas tu tens então os vícios todos, meu infeliz?... Toma cuidado, que estás à beira de um abismo!... Nem sequer reflectiste que este livro infame podia ir parar às mãos dos meus filhos, acender-Lhes uma faísca no cérebro, manchar a pureza de Athalie, corromper Napoléon! Ele já tem atitudes de homem. Tens ao menos a certeza de que não o leu? Podes-me garantir...?

- Mas, afinal, senhor Homais - disse Emma -, tinha uma coisa para me dizer...?

- É verdade, senhora... O seu sogro morreu!

Efectivamente, o pai do doutor Bovary falecera na antevéspera, repentinamente, com um ataque de apoplexia, ao levantar-se da mesa, e, por excesso de precaução para com a sensibilidade de Emma, Charles pedira a Homais que fosse ele a dar-lhe, suavemente, a horrível notícia.

Homais meditara na frase, arredondara-a, polira-a, ritmara-a, era uma obra-prima de prudência e de transições, de finura e delicadeza, mas a cólera suplantara a retórica.

Emma, renunciando a obter qualquer pormenor, deixou então a farmácia, pois o senhor Homais recomeçara a sua série de impropérios. Acalmava-se entretanto e, por fim, apenas resmungava em tom paternal, abanando-se ao mesmo tempo com o barrete grego.

- Não é que eu desaprove inteiramente o livro! O autor era médico. Contém certos aspectos científicos que não fica mal a um homem conhecer, e sou até da opinião de que os deve conhecer. Mas mais tarde, mais tarde! Espera, pelo menos, que tu próprio sejas já homem e que a tua constituição física esteja formada.

À primeira pancada de Emma na aldraba, Charles, que a esperava, avançou para ela de braços abertos, dizendo-lhe com lágrimas na voz:

- Oh, minha querida amiguinha...

E inclinou-se suavemente para a beijar. Porém, ao contacto dos seus lábios, apoderou-se dela a recordação do outro e passou a mão pelo rosto, sentindo um estremecimento.

No entanto respondeu:

- Sim, já sei..., já sei...

Ele mostrou-Lhe a carta em que a mãe lhe narrava o acontecimento sem nenhuma hipocrisia sentimental. Lastimava apenas que o marido não tivesse recebido o socorro da religião, tendo morrido em Doudeville, na rua, à porta de um café, depois de um almoço de comemoração patriótica, com antigos oficiais.

Emma devolveu a carta, depois, ao jantar, por consideração, fingiu não ter vontade de comer. Mas com a insistência dele, comeu mesmo resolutamente, enquanto Charles, na sua frente, se mantinha imóvel, numa atitude acabrunhada.

De vez em quando, levantando a cabeça, ele dirigia-lhe um demorado olhar, cheio de tristeza. Uma vez suspirou:

- Gostaria de o ter visto mais uma vez!

Ela calou-se. Depois, compreendendo que devia falar:

- Que idade tinha o teu pai?

- Cinquenta e oito anos!

- Ah!

E nada mais.

Um quarto de hora depois, ele acrescentou:

- A minha pobre mãe... o que vai ser dela agora?

Emma esboçou um gesto de ignorância.

Vendo-a tão taciturna, Charles supôs que ela se afligisse e constrangeu-se a não dizer nada, para não avivar aquela dor que a abatia. Entretanto, sacudindo a sua própria dor, perguntou:

- Divertiste-te ontem bastante?

- Sim.

Quando retiraram a toalha da mesa, Bovary não se levantou e tão-pouco Emma, e, à medida que ela o encarava, a monotonia daquele espectáculo bania-Lhe pouco a pouco do coração toda a espécie de enternecimento. Charles parecia-lhe acanhado, fraco, nulo, enfim, um pobre homem sob todos os aspectos. Como haveria de descartar-se dele? Que serão interminável aquele!

Sentia um entorpecimento que parecia provocado por uma espécie de vapor de ópio.

Ouviram no vestíbulo o ruído seco de um pau batendo no soalho. Era Hippolyte, que trazia as bagagens da senhora. Para as pousar no chão, teve de descrever penosamente um quarto de círculo com a sua perna postiça.

“Já nem pensa naquilo!”, dizia Emma para consigo, olhando o pobre diabo, cujo áspero cabelo ruivo escorria suor.

Bovary procurava uma moedazita no fundo da sua bolsa, e, sem parecer compreender toda a humilhação que para ele representava a simples presença ali daquele homem, como a acusação personificada da sua incurável inépcia, disse:

- Oh! tens um lindo ramalhete! - disse, vendo em cima do fogão as violetas de Léon.

- É - disse ela com indiferença. - Foi um ramalhete que comprei há pouco... a uma mendiga.

Charles pegou nas violetas e, refrescando com elas os olhos vermelhos das lágrimas, cheirou-as delicadamente. Emma retirou-lhas logo da mão e foi colocá-las num copo com água.

No dia seguinte chegou a viúva Bovary. Choraram muito, ela e o filho. .Emma desapareceu, a pretexto de ter de dar ordens.

No outro dia foi preciso tratar em conjunto dos assuntos do luto. Foram sentar-se à beira da água, debaixo do caramanchão, com as suas caixas de costura.

Charles pensava no pai e admirava-se de sentir tanta afeição por aquele homem a quem, até então, lhe parecia ter amado apenas muito mediocremente. A mãe pensava no marido. Os piores dias passados na companhia dele pareciam-lhe agora invejáveis.

Tudo se esvaía sob a instintiva saudade de um hábito tão prolongado, e, de vez em quando, ao mesmo tempo que fazia trabalhar a agulha, descia-lhe uma grande lágrima ao longo do nariz e aí ficava um momento suspensa. Emma pensava que, menos de quarenta e oito horas antes, estavam os dois juntos, longe do mundo, em completa embriaguez, não tendo olhos bastantes para se contemplarem um ao outro. Procurava relembrar os mais imperceptíveis pormenores daquele dia que desaparecera. Mas a presença da sogra e do marido incomodava-a. Desejaria não ver nem ouvir nada, para não perturbar o recolhimento do seu amor que se ia perdendo, por mais que ela fizesse, pela acção das sensações exteriores.

Descosia o forro de um vestido, cujos retalhos se espalhavam em torno, a mãe Bovary, sem erguer os olhos, fazia ranger a sua tesoura, e Charles, com os chinelos de ourelo e a velha sobrecasaca castanha que lhe servia de roupão, mantinha-se de mãos nos bolsos e também não falava, perto deles, Berthe, com um aventalzinho branco, rapava com a sua pazinha a areia dos passeios.

Subitamente viram Lheureux, o mercador de tecidos, entrar pela cancela.

Vinha oferecer os seus serviços, com o seu respeito pela fatal circunstância. Emma respondeu que pensava poder dispensar os seus préstimos. O negociante não se deu por vencido.

- Peço mil desculpas - disse ele. - Eu desejava ter uma palavrinha em particular.

Depois, em voz baixa:

- É a respeito daquele assunto..., sabe?

Charles ficou rubro até às orelhas.

- Ah!, sim..., com certeza.

E, na sua atrapalhação, voltando-se para a mulher, disse:

- Não poderias tu..., querida...?

Ela pareceu compreendê-lo, pois levantou-se, e Charles disse à mãe:

- Não é nada! É certamente qualquer coisa da casa, sem importância.

Não queria que ela soubesse da história da letra, temendo-lhe as observações.

Logo que ficaram sós, o senhor Lheureux pôs-se abertamente a felicitar Emma pela herança, depois passou a falar de coisas indiferentes, de latadas, da colheita e da sua própria saúde, que ia sempre assim, assim, quando mal, nunca pior. Com efeito, ele tinha um trabalho de seiscentos diabos, apesar de, contrariamente ao que as pessoas comentavam, apenas ganhar para a manteiga com que barrava o pão.

Emma deixava-o falar. Havia dois dias que andava terrivelmente entediada!

- Então já está completamente restabelecida? - continuava ele. Olhe que eu sempre vi o seu pobre marido bastante atrapalhado! É um excelente rapaz, embora tenha havido entre nós dois certas dificuldades.

Emma perguntou quais, pois Charles ocultara-lhe a contestação dos fornecimentos.

- Mas a senhora bem sabe! - disse Lheureux. - Foi por causa das suas pequenas fantasias, as malas de viagem.

Lheureux puxara o chapéu para os olhos e, com as duas mãos atrás das costas, sorrindo e assobiando, fixava-a de frente, de um modo insuportável. Desconfiaria ele de alguma coisa?

Emma sentiu-se perdida no meio de toda a espécie de apreensões. Por fim, ele prosseguiu:

- Mas acabámos por nos entender e eu vinha ainda propor-lhe um arranjo.

Era reformar a letra assinada por Bovary. O doutor, aliás, agiria como Lhe fosse mais cómodo, não precisava de se atormentar, sobretudo agora que iria ter uma série de embaraços.

- Até seria melhor para ele descarregar a responsabilidade sobre outra pessoa, sobre si, por exemplo, com uma procuração, seria simples, e então poderíamos fazer uns negociozinhos...

Emma não entendia. Ele calou-se. Em seguida, passando ao seu comércio, Lheureux declarou que a senhora não poderia deixar de lhe comprar qualquer coisa. Mandar-Lhe-ia um barege preto, doze metros, o suficiente para um vestido.

- Esse que a senhora tem é bom para trazer por casa. Precisa de outro para as suas visitas. Foi uma coisa que eu logo vi quando entrei. Tenho olho para essas coisas.

Não mandou nenhum tecido, foi ele próprio levá- lo. Depois voltou para o medir, voltou ainda a outros pretextos, procurando, todas as vezes, tornar-se simpático, ser prestável, enfeudar-se, como diria Homais, e sempre insinuando a Emma alguns conselhos sobre a procuração. Nunca falava da letra. Ela não pensava nisso, Charles bem lhe dissera qualquer coisa no início da convalescença, mas tantas agitações lhe tinham assaltado o espírito, que nunca mais se lembrara do assunto. Além disso, procurava evitar que se abrisse qualquer discussão importante, a mãe de Bovary admirava-se disso e atribuía a sua transformação aos sentimentos religiosos adquiridos durante a doença.

Mas, logo que a sogra partiu, Emma não tardou a deslumbrar o marido com o seu senso prático. Seria necessário obter informações, verificar as hipotecas, ver se haveria base para alguma licitação ou liquidação. Citava termos técnicos ao acaso, pronunciando palavras importantes como ordem, futuro, previdência, exagerando continuamente os embaraços da herança, até que um dia lhe apareceu com o modelo de uma autorização geral para gerir e administrar os seus interesses, contrair todos os empréstimos, assinar e endossar letras, pagar todas as importâncias, etc.. Aproveitara bem as lições de Lheureux.

Charles perguntou-lhe, ingenuamente, onde arranjara aquele papel.

- Foi no Guillaumin.

E, com o maior sangue-frio deste mundo, acrescentou:

- Não me fio muito nele. Os notários têm tão má reputação!

Seria bom talvez consultar... Não conhecemos ninguém a não ser... Oh!, ninguém.

- A não ser que Léon... - replicou Charles, que reflectia.

Mas seria difícil de tratar o assunto por correspondência.

Então ela ofereceu-se para fazer a viagem. Charles recusou a oferta. Ela insistiu. Foi uma disputa de amabilidades. Por fim, Emma exclamou em tom de falsa insubordinação:

- Não, por favor, quem vai sou eu.

- Como és boa! - disse Charles, beijando-a na testa.

Logo no dia seguinte, ela embarcou na Andorinha para Ruão, a fim de consultar o senhor Léon, e por lá ficou durante três dias.


III

Foram três dias plenos, deliciosos, esplêndidos, uma autêntica lua-de-mel.

Instalaram-se no Hotel de Bolonha, que ficava no cais. E ali viveram, de persianas fechadas, portas trancadas, rodeados de flores e de xaropes gelados, que lhes levavam logo de manhã.

À tarde metiam-se num barco coberto e iam jantar a uma ilha.

Era a hora a que se ouvia, perto dos estaleiros, bater o maço dos calafates contra os cascos dus navios. O fumo do alcatrão erguia-se por entre as árvores e viam-se no rio grandes manchas oleosas ondulando irregularmente sob a cor púrpura do Sol, como placas de bronze florentino que flutuassem.

Desciam por entre os barcos amarrados, cujos longos cabos oblíquos roçavam a amurada da embarcação.

Os ruídos da cidade iam-se insensivelmente afastando, o rodar das carroças, o tumulto das vozes, o ladrar dos cães sobre as pontes dos navios. Ela desatava o chapéu e chegavam à sua ilha.

Entravam na sala baixa de um restaurante que tinha redes de pesca penduradas à porta. Comiam salmão frito, creme e cerejas. Deitavam-se na relva, iam beijar-se para debaixo dos álamos, e, como dois Robinsons, desejariam viver perpetuamente naquele lugar, que lhes parecia, na sua ventura, o sítio mais magnífico da Terra. Não era a primeira vez que viam árvores, céu azul, relva, que ouviam a água correr e a brisa soprar na folhagem, mas nunca tinham, sem dúvida, admirado tudo aquilo, como se a Natureza não existisse antes, ou tivesse começado a ser bela só depois da satisfação dos seus desejos.

À noitinha regressavam. O barco seguia a borda das ilhas.

Eles sentavam-se no fundo, ambos escondidos na sombra, sem falar. Os remos quadrados faziam barulho nos toletes de ferro, e isso, no silêncio, fazia o efeito da marcação de um metrónomo, enquanto à ré, a balsa, a reboque, produzia na água um marulhar doce e contínuo.

Uma vez apareceu a Lua, então não deixaram de dizer algumas frases a propósito, achando o astro melancólico e cheio de poesia, até Emma se pôs a cantar:

 

Lembras-te daquela noite?

Vogando os dois, etc.

 

A sua voz harmoniosa e fraca perdia-se sobre as ondas, e o vento levava os garganteios que Léon ouvia passar, como um bater de asas, em torno dele.

Ela ia de pé, do outro lado, encostada à parede da chalupa, onde o luar entrava por um dos postigos abertos. O vestido negro, cuja saia se alargava em leque, tornava-a mais esguia e mais alta. Tinha a cabeça erguida, as mãos unidas e os olhos voltados para o céu. Às vezes, a sombra dos salgueiros escondia-a por completo, para voltar subitamente a aparecer, como uma visão, contra a luz da Lua.

Léon encontrou no chão, perto dela, uma fita de seda cor de papoila.

O barqueiro examinou-a e acabou por dizer:

- Ah!, deve ser de um grupo que levei a passear no outro dia. Vieram uma quantidade de folgazões, homens e mulheres, com bolos, champanhe, cornetas, uma data de coisas! Havia sobretudo um homem alto, bem apresentado, de bigodinho, que era bastante divertido! E diziam-lhe assim: “Anda lá, conta-nos qualquer coisa..., Adolphe..., Dodolphe... creio eu.”

Emma estremeceu.

- Sentes-te mal? - perguntou Léon, aproximando-se dela.

- Não, não é nada! Naturalmente é da frescura da noite.

- Também a ele não devia faltar mulheres - acrescentou em voz baixa o velho marinheiro, julgando dirigir assim ao estranho uma amabilidade.

Depois, cuspindo nas mãos, voltou a pegar nos remos.

Tiveram, no entanto, de se separar! As despedidas foram tristes. Era para casa da tia Rolet que ele devia escrever, Emma fez-lhe recomendações tão precisas sobre a maneira de utilizar um duplo sobrescrito, que ele ficou muito admirado com a sua astúcia amorosa.

- Então garantes-me que está tudo em ordem? - perguntou ela, num último beijo.

- Sim, decerto!

“Mas porque terá ela um empenho tão grande na procuração?”, pensou ele depois, enquanto seguia sozinho pelas ruas.


IV

Léon começou a tomar diante dos colegas um ar de superioridade, evitando-lhes a companhia, e a negligenciar completamente os processos.

Esperava as cartas dela, relia-as. Escrevia-lhe. Evocava-a com toda a força do desejo e das recordações. Em vez de diminuir com a ausência, aquele desejo de a voltar a ver aumentava, até que, num sábado de manhã, ele se escapou do cartório.

Quando, do alto da encosta, avistou no vale o campanário da igreja com a sua bandeira de lata girando ao vento, sentiu daquele prazer misturado com vaidade triunfante e comoção egoísta que devem sentir os milionários quando voltam a visitar a sua aldeia.

Foi rondar-Lhe a casa. Brilhava uma luz na cozinha. Procurou espreitar-Lhe a sombra atrás das cortinas. Não viu nada.

A tia Lefrançois, vendo-o, soltou grandes exclamações e achou-o crescido e magro, enquanto Artémise, pelo contrário, o achou forte e moreno,.

Jantou na sala pequena, como dantes fazia, mas sozinho, sem o tesoureiro, porque Binet, cansado de esperar pela Andorinha, havia passado definitivamente a tomar a refeição uma hora mais cedo, e jantava agora às cinco em ponto, continuando entretanto a achar que o velho calhambeque quase sempre se atrasava.

Léon, afinal, decidiu-se, foi bater à porta do médico. A senhora estava no quarto, de onde só veio a descer um quarto de hora depois. O doutor pareceu encantado de o ver de novo, ele, entretanto, não arredou pé durante todo o serão, nem durante todo o dia seguinte.

Encontrou-se sozinho com ela, à noite, bastante tarde, no beco, atrás do jardim - no beco, como com o outro! Fazia trovoada e conversaram os dois debaixo de um guarda-chuva, à luz dos relâmpagos.

A separação tornava-se-Lhes insuportável.

- Antes queria morrer! - dizia Emma.

Torcia-se sobre o braço dele, banhada em pranto.

- Adeus!... Adeus!... Quando voltarei a ver-te?

Voltaram atrás para se beijar mais uma vez, e foi nessa altura que ela lhe prometeu arranjar em breve, por qualquer meio, um processo de se verem livremente, com regularidade, pelo menos uma vez por semana. Emma não tinha dúvidas.

Estava, além disso, cheia de esperanças. Contava receber dinheiro.

Por isso comprou para o quarto um par de cortinas amarelas, de riscas largas, que Lheureux lhe gabara como sendo a um bom preço, sonhou com um tapete, e Lheureux, afirmando que não era nenhum bicho-de-sete-cabeças, encarregou-se delicadamente de Lho fornecer. Emma já não podia dispensar-lhe os serviços.

Mandava-o chamar vinte vezes por dia e ele largava logo o negócio, sem soltar um único queixume. Também não se compreendia por que razão a tia Rolet almoçava todos os dias em casa dela e até lhe fazia visitas em segredo.

Foi por essa altura, ou seja, no começo do Inverno, que Emma pareceu tomada de um grande ardor musical.

Uma noite em que Charles a escutava, ela recomeçou quatro vezes o mesmo trecho, enganando-se sempre, enquanto aquele, sem notar nenhuma diferença, exclamava:

- Bravo!..., muito bem!... Não deves parar! Continua!

- Oh, não! É horrível! Tenho os dedos enferrujados.

No dia seguinte, Bovary pediu-lhe que tocasse mais qualquer coisa para ele ouvir.

- Vá lá, então, para te fazer a vontade!

E Charles concordou que estava um pouco esquecida.

Enganava-se nas pautas, atrapalhava-se, depois, parando de repente, exclamou:

- Acabou-se! Teria de tomar algumas lições, mas...

Mordeu os lábios e acrescentou:

- Vinte francos de cada vez é demasiado caro!

- Sim, com efeito..., é um pouco caro... - disse Charles, galhofando ingenuamente. - Mas parece-me que se poderia fazer a coisa por menos, porque há artistas sem fama que às vezes valem mais do que as celebridades.

- Procura-os - replicou Emma.

No dia seguinte, ao voltar para casa, fitou-a com um ar manhoso e acabou por não se conter, atirando-lhe a seguinte frase:

- Que teimosia que tu às vezes tens! Estive hoje em Barfeuchères. Pois bem, a senhora Liégeard garantiu-me que as suas três filhas, que estão na Misericórdia, recebiam lições a cinquenta soldos cada uma, e ainda por cima de uma mestra famosa!

Ela encolheu os ombros e não voltou a abrir o seu instrumento.

Mas, quando passava perto dele (se Bovary estivesse presente), suspirava:

- Ah!, meu pobre piano!

E, quando alguém a visitava, nunca deixava de dizer que tinha abandonado a música e que não podia agora voltar a ela, por razões de força maior. Então as pessoas lastimavam-na. Era uma pena! Ela que tinha tanto talento! Chegaram a falar nisso a Bovary, envergonhando-o, sobretudo o farmacêutico.

- É mal feito! Nunca se devem deixar por cultivar as faculdades naturais. Além disso, o meu bom amigo deve pensar que, animando a sua esposa a estudar, economizará mais tarde na educação da sua filha! Eu sou da opinião de que as mães devem educar os seus próprios filhos. É uma ideia de Rousseau, talvez ainda um pouco nova, mas que acabará por triunfar, tenho disso a certeza, tal como o aleitamento materno e as vacinas.

Charles voltou então de novo a essa questão do piano. Emma respondeu com azedume que valia mais vendê-lo. Aquele pianozinho, que lhe proporcionara tantas satisfações vaidosas, vê-lo ir-se embora representava para Bovary uma espécie de suicídio indefinível de uma parte da própria mulher!

- Se tu quisesses... - dizia ele - de tempos a tempos uma lição, isso não seria, afinal de contas, uma coisa extremamente ruinosa.

- Mas as lições - replicava ela - só aproveitam se forem seguidas.

E foi este o modo como Emma se arranjou para conseguir do marido permissão para ir à cidade, uma vez por semana, ver o amante. Notou-se inclusivamente, ao cabo de um mês, que ela fizera consideráveis progressos.


V

Era quinta-feira. Ela levantava-se e vestia-se silenciosamente, para não acordar Charles, que lhe teria feito notar o facto de que se levantava demasiado cedo. Depois caminhava para trás e para diante, chegava-se à janela e ficava a olhar para a praça. A claridade do amanhecer circulava entre as colunas do mercado e na casa do farmacêutico, com as persianas ainda cerradas, começavam a perceber-se as maiúsculas do letreiro.

Quando o relógio marcava as sete horas e um quarto, dirigia-se para o Leão de Ouro, onde Artémise, bocejando, lhe vinha abrir a porta. A rapariga revolvia, para a senhora, as brasas enterradas nas cinzas. Emma ficava só na cozinha. De vez em quando saía. Hivert aparelhava a diligência sem se apressar, prestando, além disso, atenção à tia Lefrançois, que, passando pelo postigo a cabeça com o barrete de dormir, o encarregava de uma data de coisas e lhe dava explicações que chegariam para atrapalhar qualquer outro homem. Emma batia com a sola das botinas nas lajes do pátio.

Finalmente, depois de ter comido a sua sopa, envergado o sobretudo, acendido o cachimbo e empunhado o chicote, Hivert instalava-se vagarosamente na boleia.

A Andorinha partia a trote curto e, no trajecto de quase uma légua, parava de lugar em lugar para tomar passageiros que a esperavam de pé, à beira do caminho, diante das cancelas dos pátios. Os que tinham avisado na véspera faziam-se esperar, alguns estavam mesmo ainda em casa, na cama, Hivert chamava, gritava, praguejava, depois descia do assento e ia dar grandes pancadas às portas. O vento assobiava nos postigos quebrados.

Entretanto, os quatro bancos iam-se enchendo, a carruagem rodava, as macieiras iam-se sucedendo em fila, e a estrada, entre as duas compridas valetas cheias de água barrenta, ia-se continuamente estreitando para o horizonte. Emma conhecia-a de um extremo ao outro, sabia que depois de um pasto havia um marco, depois um álamo, um palheiro ou uma casota de cantoneiro, às vezes até, para se surpreender a si mesma, fechava os olhos, mas nunca perdia a noção do sítio onde se encontrava e da distância a percorrer.

Por fim aproximavam-se as casas de tijolo, o chão ecoava debaixo das rodas, a Andorinha deslizava por entre jardins onde se viam, por uma abertura, estátuas, um miradouro em caracol, arbustos recortados e um baloiço. Depois, num relance, aparecia a cidade.

Descendo toda em anfiteatro e mergulhada em nevoeiro, alargava-se confusamente para além das pontes. A campina tornava depois a subir monotonamente até tocar, ao longe, a base indecisa do céu pálido. Assim vista de cima, toda a paisagem tinha o aspecto imóvel de uma pintura, os navios ancorados amontoavam-se num canto, o rio fazia uma curva redonda na falda das colinas verdes, e as ilhas, de forma alongada, pareciam enormes peixes escuros imóveis à superfície da água.

As chaminés das fábricas lançavam imensos rolos de fumo negro, que se desfaziam pela extremidade. Ouvia-se o fragor das fundições, juntamente com o claro repique das igrejas que se perfilavam na bruma. As árvores das avenidas, despidas de folhas, formavam emaranhados violáceos no meio das casas, e os telhados, reluzentes com a chuva, brilhavam em socalcos, segundo a altura dos bairros. Às vezes, uma rajada de vento arrastava as nuvens para a encosta de Santa Catarina, como vagas aéreas que se quebrassem em silêncio contra uma falésia.

Para Emma, desprendia-se qualquer coisa de vertiginoso daquelas existências amontoadas, inundando-lhe abundantemente o coração, como se as cento e vinte mil almas que ali palpitavam lhe enviassem, todas ao mesmo tempo, o vapor das paixões que ela lhes atribuía. O amor avolumava-se-lhe diante do espaço e enchia-se de tumulto com rumores vagos que subiam.

Extravasava sobre as praças, os passeios, as ruas, e a velha cidade normanda pareçia aos seus olhos uma imensa capital, como uma Babilónia onde estivesse penetrando. Apoiava-se com ambas as mãos e debruçava-se do postigo para aspirar a brisa, os três cavalos galopavam, as pedras rangiam na lama, a diligência baloiçava e Hivert, de longe, gritava às carripanas que passavam na estrada, enquanto os burgueses que tinham passado a noite no Bois Guillaume desciam tranquilamente a encosta no seu carrinho de família.

Parava-se na barreira, Emma desafivelava os tamanquinhos, calçava outras luvas, compunha o xaile e, vinte passos mais adiante, descia da Andorinha.

A cidade despertava então. Os caixeiros, de boné, lavavam as fachadas das lojas e as mulheres que carregavam cestos apoiados nas ancas soltavam de quando em quando um sonoro pregão às esquinas das ruas. Emma caminhava de olhos no chão, rente às paredes, sorrindo de prazer por baixo do seu véu preto.

Por receio de ser vista, não seguia normalmente o caminho mais curto. Embrenhava-se em ruelas escuras e chegava coberta de suor à entrada da Rue Nationale, perto da fonte que ali existe. É o bairro do teatro, dos botequins e das meretrizes.

Muitas vezes passava perto dela uma carroça transportando qualquer decoração oscilante. Moços de avental espalhavam areia sobre o lajedo, entre arbustos verdes. Sentia-se o cheiro a absinto, a charuto e a ostras.

Voltava uma esquina, reconhecia-o logo pelos cabelos frisados que lhe saíam do chapéu.

Léon continuava a caminhar sobre o passeio. Ela seguia-o até ao hotel, ele subia, abria a porta e entrava... Que abraço!

Depois dos beijos precipitavam-se as palavras. Contavam um ao outro os dissabores da semana, os pressentimentos, as inquietações por causa das cartas, mas naquela altura esquecia-se tudo e fitavam-se face a face, com risadas voluptuosas e palavrinhas de ternura.

A cama era um enorme leito de mogno, em forma de barquinha.

As cortinas de levantina vermelha, que desciam do tecto, eram apanhadas muito em baixo, do lado da cabeceira côncava - e não havia no mundo nada tão belo como a sua cabeça escura e a pele branca destacando-se sobre aquela cor purpúrea, quando, por um gesto de pudor, ela fechava os braços nus, escondendo o rosto nas mãos.

O aconchegado aposento, com o seu tapete discreto, os ornamentos alegres e a iluminação suave, parecia ser o mais próprio para as intimidades da paixão. Os varões metálicos terminados em flecha, as pateras de cobre e as grandes esferas do fogão reluziam repentinamente quando lhes batia o sol.

Havia sobre a chaminé, entre os castiçais, duas enormes conchas cor-de-rosa, por onde se ouvia o barulho do mar aquando encostadas ao ouvido.

Como gostavam daquele belo quarto cheio de alegria, apesar do seu esplendor um tanto murcho! Achavam sempre os móveis no seu lugar e, às vezes, os ganchos de cabelo que ela esquecera, na quinta-feira anterior, debaixo do pedestal do relógio.

Almoçavam ao pé do fogão, sobre uma mesinha com embutidos de palissandro. Emma cortava a carne e punha-lhe os bocadinhos no prato, fazendo-lhe toda a espécie de pieguices, e ria-se com um riso sonoro e libertino quando a espuma do champanhe transbordava da taça para os anéis que lhe enfeitavam os dedos. Estavam ambos tão completamente perdidos na posse um do outro, que se julgavam já na sua casa particular, onde deveriam viver até à morte, como dois noivos em constante lua-de-mel. Diziam o nosso quarto, o nosso tapete, as nossas poltronas, ela dizia também as minhas chinelas, um presente de Léon, uma fantasia que ela tivera. Eram chinelas de cetim cor-de-rosa, bordadas. Quando se sentava sobre os joelhos dele, as pernas, bastante mais curtas, ficavam-lhe suspensas, e as minúsculas chinelas seguravam-se apenas pelos dedos dOS pés nUS.

Léon saboreava pela primeira vez a inexprimível delicadeza das elegâncias femininas. Nunca encontrara aquela graça de linguagem, aquela reserva do vestuário, aquelas atitudes de pomba adormecida. Admirava-Lhe a exaltação da alma e as rendas do vestido. Além disso, não era uma mulher da sociedade, e uma mulher casada, enfim, uma verdadeira amante?

Pelas oscilações do humor, ora mística ora alegre, tagarela, taciturna, arrebatada, indolente, ia despertando nele mil desejos, evocando instintos ou reminiscências. Era a apaixonada de todos os romances, a heroína de todos os dramas, a vaga ela de todos os livros de poesia. Achava-lhe nos ombros a cor ambarina da odalisca no banho, tinha o busto alto das castelãs feudais, parecia-se também com a mulher pálida de Barcelona, mas era, sobretudo, Anjo!

Muitas vezes, contemplando-a, parecia-Lhe que a alma, escapando-se-lhe para ela, se espraiava como uma onda sobre o contorno da sua cabeça e descia arrastada pela alvura do seu peito.

Sentava-se no chão, diante de Emma, e, com os cotovelos apoiados nos joelhos, fitava-a com um sorriso, sem despegar os olhos dela.

Esta inclinava-se para ele e murmurava, como que sufocada de embriaguez:

- Oh! Não te mexas! Não digas nada! Olha para mim! Sai dos teus olhos qualquer coisa tão doce, que me faz tanto bem!

Chamava-lhe menino:

- Meu menino, amas-me?

E nem Lhe esperava a resposta, na precipitação com que os seus lábios Lhe procuravam a boca.

Havia em cima do relógio um pequeno Cupido de bronze que, num requebro, arqueava os braços sob uma grinalda dourada.

Muitas vezes se riram dele, mas, quando tinham de se separar, tudo lhes parecia sério.

Imóveis diante um do outro, repetiam:

- Até quinta-feira!... Até quinta-feira!

Subitamente, ela agarrava-lhe a cabeça com as duas mãos, dava-lhe um rápido beijo na testa, exclamando: “Adeus!”, e corria pela escada.

Ia à Rue de la Comédie, a um cabeleireiro, arranjar o penteado. A noite caía e acendiam o gás no salão.

Ouvia a sineta do teatro chamando os actores para a representação e via passar, em frente, homens de cara rapada e mulheres com vestidos desbotados, que entravam pela porta dos bastidores.

Fazia calor no pequeno aposento atarracado, onde o fogareiro sussurrava no meio de perucas e pomadas. O cheiro dos ferros e aquelas mãos engorduradas que lhe arranjavam a cabeça não tardavam a atordoá-la e dormitava um pouco no penteador.

Muitas vezes o cabeleireiro, enquanto a penteava, oferecia-lhe bilhetes para o baile de máscaras.

Depois ela ia-se embora! Voltando a subir as mesmas ruas, chegava à Cruz Vermelha, punha novamente os tamancos, que escondera de manhã debaixo de um banco, e tomava o seu lugar no meio dos passageiros impacientes. Alguns apeavam-se ao pé da encosta. Às vezes ficava sozinha na diligência.

A cada curva, cada vez se ia vendo melhor toda a iluminação da cidade, que formava um denso vapor luminoso por cima das casas aglomeradas. Emma punha-se de joelhos sobre os bancos almofadados e deixava divagar os olhos por aquele deslumbramento. Soluçava, chamava por Léon e dirigia-lhe palavras de ternura e beijos que se perdiam no vento.

Vivia no monte um pobre diabo vagabundeando com o seu cajado e metendo-se à frente das diligências. Cobria os ombros com uma confusão de farrapos e um velho chapéu de castor, todo amolgado, com a aba descaída, escondia-lhe o rosto, mas, quando o retirava descobria, no sítio das pálpebras, duas órbitas esbugalhadas, cheias de sangue. A carne desfazia-se em pedaços vermelhos, donde escorria um líquido que coalhava em crostas esverdeadas até ao nariz, cujas ventas escuras fungavam convulsivamente. Para falar, inclinava a cabeça para trás com um riso idiota, então, as pupilas azuladas, revolvendo-se num movimento contínuo, passavam, junto das fontes, pelo bordo da chaga viva.

Punha-se a cantar uma cançoneta atrás das carruagens:

 

Quantas vezes um belo dia de calor Faz sonhar as meninas com o amor!

 

E tudo o resto falava só de passarinhos, do Sol e da folhagem.

Às vezes aparecia repentinamente atrás de Emma, com a cabeça descoberta. Ela retirava-se com um grito. Hivert galhofava com ele. Sugeria-lhe que alugasse uma barraca na feira de Saint-Romain, ou então, a rir, perguntava-lhe pela namorada.

Frequentemente, com a carruagem em andamento, o seu chapéu entrava com um gesto brusco pelo postigo, enquanto com o outro braço ele se segurava sobre o estribo, entre os salpicos das rodas. A voz, a princípio débil e gemida, tornava-se depois aguda. Arrastava-se no meio da noite, como o indistinto lamento de uma angústia vaga, e, através do som dos guizos, do murmúrio das árvores e do estardalhaço da carripana vazia, tinha qualquer coisa de longínquo que perturbava Emma.

Descia-lhe até ao fundo da alma como um turbilhão num abismo e arrebatava-a por entre os espaços de uma melancolia sem limites. Mas Hivert, notando o contrapeso, atirava às cegas fortes chicotadas naquela direcção. A ponta do chicote fustigava as chagas do desgraçado e este caía na lama soltando um uivo.

Depois, os passageiros da Andorinha acabavam por adormecer, uns com a boca aberta, outros de queixo caído, encostados ao ombro do vizinho, ou então com o braço enfiado na correia, oscilando regularmente com o baloiçar do carro, e o reflexo da lanterna que oscilava lá fora por cima da garupa dos cavalos, penetrando no interior através das cortinas de chita cor de chocolate, produzia sombras sanguinolentas sobre todos aqueles indivíduos imóveis. Emma, atordoada de tristeza, tiritava dentro do seu vestido, e sentia cada vez mais frio nos pés e a morte na alma.

Charles esperava-a em casa, a Andorinha atrasava-se sempre à quinta-feira. Lá chegava por fim a senhora! Mal beijava a petiza. O jantar não estava pronto. Não tinha importância! Ela desculpava a cozinheira. Tudo agora parecia permitido à rapariga.

Frequentemente, o marido, notando-lhe a palidez, lhe perguntava se ela não estaria doente.

- Não - respondia Emma.

- Mas - replicava ele - acho-te esta noite tão estranha!

- Oh, não é nada! Não é nada!

Havia até dias em que, mal acabava de entrar, subia logo ao quarto, e Justin, que ali estava, andava na ponta dos pés, servindo-a com mais habilidade que uma excelente camareira.

Punha em ordem os fósforos, o castiçal, um livro, estendia-lhe a camisola, abria-lhe a cama.

- Óptimo - dizia ela -, está bem, vai-te embora!

Porque ele se deixava ficar ali de pé, de braços caídos e olhos arregalados, como que enlaçado por inumeráveis fios de um súbito devaneio.

O dia seguinte era terrível e os outros depois desse mais intoleráveis ainda, pela impaciência que Emma tinha de reaver a felicidade - um ávido desejo, inflamado de imagens conhecidas, que, no sétimo dia, se expandia livremente nas carícias de Léon. Os ardores deste manifestavam-se em expansões de espanto e reconhecimento. Emma saboreava aquele amor de um modo discreto e absorto, encorajava-o por todos os artifícios da sua ternura, receando um pouco vir a perdê-lo mais tarde.

Muitas vezes lhe dizia, com suavidades de voz melancólica:

- Oh!, tu ainda me deixas!... Acabarás por te casar!...

Hás-de ser como os outros.

Ele perguntava:

- Que outros?

- Ora, os outros homens - respondia ela.

Depois acrescentava, repelindo-o com um gesto lânguido:

- Vocês são todos infames!

Um dia em que conversavam filosoficamente acerca das desilusões terrenas, ela chegou a dizer (para Lhe experimentar o ciúme ou talvez cedendo a uma necessidade demasiado forte de desabafar) que noutros tempos, antes dele, tinha amado alguém, “não como a ti!”, acrescentou rapidamente, jurando pela saúde da sua filha que não se tinha passado nada.

O rapaz acreditou-a mas, mesmo assim, quis saber o que esse outro fazia.

- Era capitão de um navio.

Não seria isto prevenir qualquer investigação e colocar-se ao mesmo tempo num nível bastante alto, por aquela pretensa fascinação exercida sobre um homem que deveria ser de natureza belicosa e acostumado a homenagens?

O escriturário sentiu então a infimidade da sua posição, invejava dragonas, cruzes, títulos. Tudo isso devia agradar a ela: era de calcular, pelos seus hábitos esbanjadores.

No entanto, Emma encobria grande parte das suas extravagâncias, como o desejo de ter, para se transportar a Ruão, um tílburi azul, puxado por um cavalo inglês e conduzido por um cocheiro de botas de canhão. Fora Justin que lhe inspirara esse capricho, suplicando-Lhe que o empregasse como seu criado de quarto, e, se aquela privação não atenuava, em cada entrevista, o prazer da chegada, aumentava certamente a amargura do regresso.

Muitas vezes, quando conversavam sobre Paris, ela acabava por murmurar:

- Ah!, que bom lugar que seria para vivermos!

- Então não somos felizes? - insistia brandamente o rapaz, passando-lhe a mão sobre o cabelo.

- Sim, é verdade - dizia ela -, sou maluca, dá-me um beijo!

Para o marido mostrava-se agora mais encantadora que nunca, preparava-lhe cremes com pistacho e tocava valsas depois do jantar. Ele sentia-se portanto o homem mais feliz do mundo e Emma vivia sem preocupações quando, numa certa noite, inesperadamente, ele perguntou:

- Não é a senhora Lempereur que te dá as lições?

- É.

- Calha bem - replicou Charles -, estive com ela esta tarde, em casa da senhora Liégeard. Falei-lhe de ti, não te conhece.

Foi como se tivesse caído um raio. No entanto, Emma respondeu com um ar natural:

- Oh! Terá, com certeza, esquecido o meu nome!

- Mas - continuou o médico -, quem sabe se não haverá em Ruão várias senhoras Lempereur que dêem lições de piano?

- Quem sabe?

Depois, vivamente:

- Tenho até os recibos dela, olha! Vou-tos mostrar.

Foi à secretária, revolveu todas as gavetas, misturou os papéis e acabou por ficar tão desorientada que Charles instou com ela para não se afligir tanto com os miseráveis recibos.

- Oh! Hei-de achá-los - disse ela.

Com efeito, logo na sexta-feira seguinte, Charles, calçando uma bota no quarto escuro onde lhe guardavam os fatos, sentiu uma folha de papel entre a sola e a meia, agarrou-a e leu:

Recebi, por três meses de lições, mais diversos fornecimentos, a soma de sessenta e cinco francos. Félicité Lempereur, professora de Música.

- Como diabo veio isto parar dentro das minhas botas?

- Naturalmente - respondeu ela - caiu da pasta velha de facturas que está na borda da prateleira.

A partir daquele momento, a sua vida não foi mais que uma colecção de mentiras, em que envolvia o seu amor como que em véus, para o esconder.

Era uma necessidade, uma mania, um prazer, de tal maneira que, se ela dissesse que passara no dia anterior pelo lado direito de uma rua, tinha de se entender que passara pelo lado esquerdo.

Uma manhã em que acabara de sair, segundo o seu costume, com uma roupa bastante leve, começou repentinamente a nevar, e, como Charles estivesse à janela a observar o tempo, viu o padre Bournisien na carruagem do senhor Tuvache, que o ia levar a Ruão. Saiu então a confiar ao eclesiástico um grande xaile para que ele o entregasse a Emma quando chegasse à Cruz Vermelha. Logo que chegou à estalagem, Bournisien perguntou onde estava a mulher do médico de Yonville. A estalajadeira respondeu que ela frequentava muito pouco o seu estabelecimento. Por isso, à tarde, reconhecendo a senhora Bovary na Andorinha, o padre contou-lhe da atrapalhação, sem no entanto lhe atribuir muita importância, porque começou a fazer o elogio de um pregador que por essa altura estava fazendo maravilhas na catedral e que todas as senhoras corriam a ouvir.

Apesar de aquele não ter pedido explicações, outros mais tarde poderiam mostrar-se menos discretos. Por isso julgou conveniente apear-se todas as vezes na Cruz Vermelha, de sorte que as boas pessoas da sua terra que a vissem na escada não pudessem desconfiar de nada.

No entanto, um dia, o senhor Lheureux encontrou-a à saída do Hotel de Bolonha pelo braço de Léon e ela ficou apavorada, imaginando que ele fosse dar à língua. Não era assim tão parvo.

Mas, três dias depois, entrou no quarto dela, fechou a porta e disse:

- Eu precisava de dinheiro.

Ela disse que não lho podia dar. Lheureux desfez-se em lamentações e recordou todas as condescendências que tivera.

Efectivamente, das duas letras assinadas por Charles, Emma, até ao momento, só havia pago uma. Quanto à segunda, o mercador, a seu pedido, havia consentido em a substituir por duas outras, que até tinham sido renovadas por um prazo bastante longo. Depois tirou do bolso uma lista de fornecimentos por liquidar, a saber: as cortinas, o tapete, o tecido para as poltronas, vários vestidos e diversos artigos de toilette, cujo valor se elevava à soma de cerca de dois mil francos.

Emma baixou a cabeça: ele continuou:

- Mas, se não tem dinheiro, a senhora possui bens.

E indicou-Lhe um pardieiro situado em Barneville, perto de Aumale, que não rendia quase nada. Dependera antes de uma pequena quinta vendida pelo pai do Bovary. Lheureux sabia tudo, até o número de hectares e o nome dos vizinhos.

- Eu cá, no seu lugar - dizia ele -, libertava-me e ficava ainda com algum dinheiro.

Ela objectou com a dificuldade de encontrar comprador, ele deu-lhe esperanças de poder arranjar-lhe um, mas ela perguntou como teria de agir para fazer a venda.

- Então não tem a procuração? - respondeu ele.

Esta palavra surgiu como uma lufada de ar fresco.

- Deixe-me ficar a conta - disse Emma.

- Oh!, não vale a pena! - respondeu Lheureux.

Voltou na semana seguinte e gabou-se de, após uma série de voltas, ter conseguido descobrir um certo Langlois que, há muito tempo, andava a cobiçar a propriedade, sem falar em preço.

- O preço não tem importância! - exclamou ela.

Havia que esperar, era melhor apalpar aquele espertalhão.

Valia a pena fazer uma viagem e, como ela não poderia fazer essa viagem, Lheureux ofereceu-se para ir até lá e chegar à fala com o Langlois. Depois de voltar, anunciou que o comprador propunha quatro mil francos.

Emma ficou radiante com a notícia.

- Francamente - acrescentou ele -, é bem pago.

Ela recebeu metade da importância imediatamente e, quando foi para saldar a conta, disselhe o negociante:

- Palavra de honra que me faz pena vê-la largar de uma vez só uma soma tão volumosa como essa.

Então, ela olhou para o maço de notas e, pensando no ilimitado número de encontros que aqueles dois mil francos representavam, balbuciou:

- Como? Como?

- Oh! - prosseguiu ele, rindo com um ar bonacheirão -, nas facturas pode-se pôr tudo o que se quiser. Então eu não sei como se faz noutras casas?

E olhava-a fixamente, segurando na mão dois grandes papéis que fazia deslizar entre os dedos. Por fim, abrindo a carteira, estendeu em cima da mesa quatro letras à ordem, de mil francos cada uma.

- Assine-me isto - disse ele -, e guarde tudo.

Ela protestou, escandalizada.

- Mas se eu lhe dou a diferença - respondeu descaradamente Lheureux -, não lhe estou a fazer um favor?

E, pegando numa pena, escreveu por baixo da conta: Recebi da senhora Bovary quatro mil francos.

— Porque é que se inquieta, uma vez que recebe o resto da barraca daqui a seis meses e eu marquei o prazo da última letra para depois do pagamento?

Emma atrapalhava-se um pouco com os seus cálculos e os ouvidos zuniam-Lhe como se uma quantidade de moedas de ouro, rompendo os sacos, caíssem a tilintar no chão em redor dela.

Finalmente, Lheureux explicou que tinha um amigo chamado Vinçart, banqueiro em Ruão, que lhe ia descontar as quatro letras. Depois, ele próprio entregaria à senhora a diferença da dívida real.

Mas, em lugar de dois mil francos, trouxe-lhe apenas mil e oitocentos, porque o amigo Vinçart (como era justo) havia ficado com duzentos, para despesas de comissão e desconto.

Depois pediu-Lhe um recibo, com toda a naturalidade.

- Compreende..., no comércio..., às vezes... E com a data, se faz favor, ponha a data.

Abriu-se então diante de Emma um horizonte de fantasias realizáveis. Teve prudência suficiente para pôr de reserva mil escudos, com os quais foram pagas, nos respectivos prazos, as três primeiras letras, mas a quarta, por acaso, apareceu-Lhe em casa numa quinta-feira, e Charles atrapalhado, esperou pacientemente o regresso da mulher para lhe pedir explicações.

Se ela não Lhe falara daquela letra, fora para o poupar a preocupações domésticas, ela sentou-se-lhe sobre os joelhos, acariciou-o, elogiou-o e fez-lhe uma longa enumeração de todas as coisas indispensáveis compradas a crédito.

- Enfim, tens de concordar que, considerando a qualidade, não foi muito caro.

Charles, esgotado de ideias, logo recorreu ao eterno Lhereux, que jurou arranjar as coisas se o doutor lhe assinasse duas letras, sendo uma de setecentos francos, pagável dali a três meses. Para satisfazer a proposta, escreveu à mãe uma carta patética. Em vez de mandar a resposta, veio ela mesmo em pessoa, e, quando Emma quis saber se o marido conseguíra alguma coisa, respondeu:

- Sim. Mas ela quer ver a factura.

No dia seguinte, ao romper do dia, Emma correu a casa do senhor lheureux para lhe pedir que fizesse outra factura que não fosse além de mil francos, porque, para mostrar aquela dos quatro mil, teria de dizer que pagara já dois terços e, consequentemente, confessar a venda do prédio, negócio bem conduzido pelo mercador e que efectivamente só mais tarde veio a ser conhecido.

Apesar do preço bastante baixo de cada artigo, a viúva Bovary não deixou de achar a despesa exagerada.

- Não podiam passar sem um tapete? E porque é que foi necessário substituir o tecido das poltronas? No meu tempo, em cada casa só havia uma poltrona, para as pessoas idosas, pelo menos era assim em casa da minha mãe, que era senhora de respeito, essa vos garanto. Nem todos podem ser ricos! Nenhuma fortuna resiste ao esbanjamento! Eu tinha vergonha de me rodear de todas as comodidades como vocês fazem! E, no entanto, já sou uma pessoa de idade, preciso de conforto...

Aqui está, aqui está! Enfeites, ostentações! Que é isto? Seda para forro, a dois francos!..., quando há musselinas a dez soldos e até a oito que fazem o mesmo efeito.

Emma, recostada no sofá, replicava o mais calmamente possível:

- Está bem, senhora! Basta, basta!...

A outra continuava o seu sermão, predizendo que iriam acabar os dois num asilo. Aliás, a culpa era de Bovary. Felizmente, ele prometera anular aquela procuração...

- Como?

- Pois! Jurou-me - respondeu a sogra.

Emma abriu a janela, chamou Charles, e o pobre homem foi constrangido a confessar a promessa arrancada à força pela mãe.

Emma desapareceu e voltou imediatamente, estendendo-lhe majestosamente uma grande folha de papel.

- Muito obrigada - disse a velha.

E atirou para o fogo a procuração.

Emma pôs-se a rir com um riso estridente, explosivo, contínuo: tinha um ataque de nervos.

- Valha-me Deus! — exclamou Charles. - E tu também não devias proceder desse modo! Vieste fazer-Lhe cenas!...

A mãe, porém, encolhendo os ombros, achava que tudo aquilo era fingido.

Mas Charles, revoltando-se pela primeira vez, tomou a defesa da mulher, de tal maneira que a viúva decidiu ir-se embora.

Partiu logo no dia seguinte e, já à porta, como o filho procurasse retê-la, replicou-lhe:

- Não, não Gostas mais dela do que de mim, e tens razão, está certo assim. Além disso, deixa lá! Ainda hás-de ver!...

Adeus, boa saúde... O que eu não torno é, como tu dizes, a vir para cá fazer cenas.

Nem por isso Charles se sentiu menos envergonhado na presença de Emma, não escondendo esta o rancor com que lhe ficara por ele lhe haver retirado a confiança, foram precisos muitos rogos antes que ela se decidisse a aceitar novamente a procuração e até a acompanhou a casa do Guillaumin para lhe fazer outra igual à primeira.

- Compreendo perfeitamente - disse o notário. - Um homem de ciência não pode embaraçar-se com pormenores da vida prática.

Charles sentiu-se aliviado por aquela reflexão aduladora, que conferia à sua fraqueza as lisonjeiras aparências de uma preocupação superior.

Que expansão de alegria, na quinta-feira seguinte, no hotel, com Léon, no quarto! Ela riu, chorou, cantou, dançou, mandou trazer sorvetes, quis fumar cigarros, pareceu-lhe extravagante, mas adorável, soberba.

Léon não compreendia que reacção no interior daquela alma a impelia ainda mais a precipitar-se sobre os prazeres da vida.

Ela tornava-se irritável, gulosa e voluptuosa, passeava com ele pelas ruas, de cabeça erguida, sem medo de se comprometer, como ela dizia. Por vezes, no entanto, estremecia quando lhe ocorria a ideia de poder tornar a encontrar Rodolphe, porque lhe parecia que, embora se tivessem separado para sempre, ainda não se tinha libertado completamente da sua dependência.

Uma noite não regressou a Yonville. Charles estava como doido e a pequenita Berthe, não querendo deitar-se sem a mamã, soluçava convulsivamente. Justin fora andar para a estrada ao acaso. E até Homais deixara a farmácia.

Enfim, às onze horas, não podendo mais conter-se, Charles aparelhou o carro, saltou-Lhe para cima, chicoteou a besta e chegou pelas duas da madrugada à Cruz Vermelha. Ninguém.

Lembrou-se de que talvez o escriturário a tivesse visto, mas onde morava ele? Felizmente, lembrou-se da morada do patrão.

Correu para lá.

O dia começava a alvorecer. Distinguiu uns letreiros por cima de uma porta, bateu. Alguém, sem abrir, lhe gritou a informação pedida, acrescentando uma data de insultos contra os indivíduos que incomodavam as pessoas durante a noite.

A casa onde morava o escriturário não tinha campainha, nem aldraba, nem porteiro. Charles começou a dar grandes murros na porta. Vinha um polícia a passar, então encheu-se de medo e afastou-se.

“Sou palerma”, pensava ele, “naturalmente convidaram-na para jantar em casa do senhor Lormeaux.”

A família Lormeaux já não residia em Ruão.

- Se calhar ficou a cuidar da senhora Dubreuil. Eh!, a senhora Dubreuil já morreu há dez meses!... Onde estará ela então?

Surgiu-lhe uma ideia. Pediu, num café, L’Ánnuaire e procurou rapidamente o nome da senhora Lempereur, que morava na Rue de la Renelle-des-Maroquiniers, n.o 74.

Quando ia a entrar nessa rua, apareceu a própria Emma no outro extremo, atirou-se para ela mais do que a beijou, exclamando:

- Mas quem é que te reteve ontem?

- Estive doente.

- De quê?... Onde?... Como foi?...

Ela passou a mão pela testa e respondeu:

- Em casa da senhora Lempereur.

- Tinha a certeza que lá estavas. Ia lá agora.

- Oh!, não vale a pena, - disse Emma. - Ela saiu mesmo há pouco, mas de futuro mantém a calma. Não me posso sentir livre, compreendes?, se souber que o menor atraso te perturba dessa maneira.

Era uma espécie de autorização que dava a si própria para se sentir à vontade nas suas escapadas. Por isso tratou de se aproveitar dela o mais que pôde. Quando lhe dava na gana ir ver Léon, saía a qualquer pretexto e, como ele não a esperava nesse dia, ia procurá-lo ao cartório.

Nas primeiras vezes foi uma grande alegria, mas, pouco tempo depois, deixou de Lhe esconder a verdade, a qual era que o patrão se queixava extremamente daqueles transtornos.

- Deixa lá isso! Vem daí - dizia ela.

E ele escapava-se.

Emma quis que ele se vestisse todo de preto e deixasse crescer a barba na ponta do queixo, para se parecer com os retratos de Luís XIII.

Teve desejo de Lhe ver o aposento e achou-o medíocre, ele corou com isso, mas ela não notou e depois aconselhou-o a comprar umas cortinas iguais às suas, e, como ele objectou que eram dispendiosas, disselhe a rir:

- Ah!, ah! És então agarrado aos teus escudinhos!

Exigia que Léon, todas as vezes, Lhe relatasse toda a sùa conduta, desde o último encontro. Pedia-lhe versos, versos dedicados a ela, um poema de amor em sua homenagem, ele nunca conseguia encontrar a rima do segundo verso e acabou por copiar um soneto de um álbum de recordações.

Foi mais pelo simples desejo de lhe agradar do que por vaidade. Não discutia as ideias dela, aceitava todos os seus gostos, era ele quem realmente se comportava como se fosse uma amante. Emma dizia palavras ternas acompanhadas de beijos que o arrebatavam. Onde teria ela aprendido aquela depravação, quase imaterial à força de ser profunda e dissimulada?


VI

Nas viagens que fazia para a ver, Léon jantara muitas vezes em casa do farmacêutico e sentira-se constrangido, por delicadeza, a convidá-lo por sua vez.

- Com muito gosto! - respondera o senhor Homais. - Além disso, eu também preciso de me retemperar um pouco, porque senão embruteço aqui. Iremos ao teatro, ao restaurante, faremos umas folias!

- Ah!, meu amiguinho! - murmurou ternamente a senhora Homais, assustada com os vagos perigos que ele se dispunha a correr.

- Ora, que tem isso? Achas que não chega de arruinar a saúde vivendo continuamente no meio das emanações da farmácia? Vejam bem como são as mulheres: têm ciúmes da ciência, depois opõem-se a que nos entreguemos às mais legítimas distracções.

Não interessa, pode contar comigo, um destes dias apareço em Ruão e os dois levamos a banca à glória.

O boticário, noutro tempo, nunca teria empregado semeLhante expressão, mas adoptara recentemente um género galhofeiro e parisiense que achava de muito bom-gosto, e, como a senhora Bovary, sua vizinha, interrogava o escriturário, cheio de curiosidade pelos costumes da capital, chegando até a falar em gíria para deslumbrar... os outros burgueses.

Por conseguinte, numa quinta-feira, Emma ficou surpreendida de encontrar, na cozinha do Leão de Ouro, o senhor Homais em traje de viagem, isto é, com um velho capote que ninguém Lhe conhecia, segurando uma mala numa das mãos e, na outra, o saco de agasalhar os pés que usava no estabelecimento. Não tinha participado a ninguém o seu projecto, com receio de inquietar o público com a sua ausência.

A ideia de rever os lugares onde passara a juventude devia excitá-lo, pois não se calou durante todo o caminho, depois, mal acabou de chegar, saltou logo da carruagem para ir à procura de Léon, e o escriturário, por mais que resistisse, acabou por ser arrastado para o grande Café da Normandia, onde Homais entrou majestosamente sem tirar o chapéu, achando ser demasiado provincial descobrir-se num lugar público.

Emma esperou Léon três quartos de hora. Por fim correu ao cartório e, perdida em toda a espécie de conjecturas, acusando-o de indiferença e acusando-se a si mesma de fraqueza, passou toda a tarde com a testa colada à vidraça.

Às duas horas estavam ainda sentados à mesa, um defronte do outro. A grande sala ia-se esvaziando, o cano do fogão, com a forma de uma palmeira, espalhava no tecto a sua copa dourada, e, perto deles, atrás do envidraçado, em pleno sol, gorgolejava um pequeno repuxo num tanque de mármore, onde, entre espargos e agriões, se estendiam três lagostas entorpecidas junto de uma pilha de codornizes amarradas e deitadas de lado.

Homais todo se deleitava. Apesar de se embriagar ainda mais com o luxo do que com a pinga, o vinho de Pomard, entretanto, excitava-lhe um pouco as faculdades, e, quando apareceu a omeleta de rum, fez uma exposição de teorias imorais acerca de mulheres. O que acima de tudo o seduzia era o chiquismo.

Adorava uma toilette elegante numa casa bem mobilada e, quanto às qualidades físicas, não detestava um bom pedaço.

Léon olhava desesperado para o relógio. O boticário bebia, comia, falava.

- O senhor deve passar uma vida de privações aqui em Ruão - disparou Homais inesperadamente. - Ainda assim, os seus amores não residem muito longe.

E, como o outro corava, continuou:

- Ora seja franco! É capaz de negar que em Yonville...?

O rapaz balbuciou qualquer coisa.

- Em casa da senhora Bovary, fazia a corte...?

- A quem?

- À criada!

Homais não gracejava, mas, como a vaidade lhe suplantava a prudência, Léon, mal-grado seu, não se conteve sem protestar.

Além disso, só gostava de morenas.

- Nisso tem razão - disse o farmacêutico -, são muito mais ardorosas.

E, inclinando-se para o ouvido do amigo, indicou-lhe os sintomas pelos quais se reconhecia que uma mulher era ardorosa. Lançou-se mesmo numa digressão etnográfica: as alemãs eram vaporosas, as francesas libertinas, as italianas apaixonadas.

- E as pretas? - indagou o escriturário.

- Isso é gosto de artista - respondeu Homais. - Rapaz! duas bicas!

- Vamo-nos embora? - disse por fim Léon, impacientando-se.

- Yes.

Mas, antes de se ir embora, quis falar com o dono do estabelecimento e dirigir-lhe alguns cumprimentos.

Então Léon, para se apanhar sozinho, disse que tinha umas coisas a fazer.

- Ah!, eu acompanho-o! - disse Homais.

E, enquanto percorria com ele as ruas, ia falando da mulher, dos filhos, do futuro deles e da sua farmácia, descrevia-lhe a decadência em que esta estivera noutro tempo e o grau de perfeição a que ele a elevara.

Chegando defronte do Hotel de Bolonha, Léon separou-se bruscamente dele, trepou a escada e encontrou a amante em grande desassossego.

Emma zangou-se quando ouviu o nome do farmacêutico. No entanto, Léon tinha suficientes boas razões, não era culpa sua, não conhecia ela o senhor Homais? Imaginaria ela que a companhia do outro lhe agradava mais? Ela, porém, voltava-lhe as costas, ele segurou-a e, caindo de joelhos, envolveu-lhe a cintura com os braços, numa pose langorosa, toda cheia de concupiscência e de súplica.

Emma estava de pé, os seus grandes olhos inflamados olhavam-no com uma expressão séria e quase terrível. Depois, as lágrimas vieram turvá-los, baixaram-se-Lhe as pálpebras, deixou cair as mãos e Léon ia beijá-las quando apareceu um criado, avisando o senhor de que alguém o chamava na recepção.

- Voltas? - disse ela.

- Volto.

- Mas quando?

- É só um momento.

- Foi um truque - disse o farmacêutico quando avistou Léon.

- Quis interromper essa visita que me pareceu contrariá-lo.

Vamos ao Bridoux tomar um cálice de licor.

Léon jurou-lhe que tinha de voltar ao cartório. Então o boticário começou a gracejar sobre as papeladas e os processos.

- Que diabo! Deixe lá agora Cujas e Bártolo descansados por um momento! O que é que o preocupa? Anime-se, homem! Vamos ao Bridoux, vai ver o cachorro dele. É muito curioso!

E, como o escriturário ainda se obstinava, insistiu:

- Também lá vou. Leio um jornal enquanto espero, ou então folheio um Código.

Léon, atordoado com a ira de Emma, a tagarelice do Homais e talvez a má digestão do almoço, ficava indeciso, como que hipnotizado pelo farmacêutico, que repetia:

- Vamos ao Bridoux! Fica aqui a dois passos, na Rue Malpalu.

Então, por cobardia, por estupidez, por esse inqualificável sentimento que nos leva às acções mais antipáticas, deixou-se levar a casa do Bridoux, e foram-no encontrar no seu patiozinho, vigiando três rapazes que se esfalfavam a fazer girar a grande roda de uma máquina de fabricar água de Seltz.

Homais deu-lhes conselhos, abraçou Bridoux, tomaram o licor.

Vinte vezes Léon se quis ir embora, mas o outro segurava-o pelo braço, dizendo-lhe:

- Daqui a pouco! Eu já vou. Temos de ir ao Fanal de Rouen falar com aqueles senhores. Vou apresentá-lo a Thomassin.

Léon, no entanto, conseguiu desprender-se e correu num pulo ao hotel. Emma já lá não estava.

Acabava de sair, exasperada. Agora detestava-o. Aquela falta de palavra ao encontro parecia-lhe uma afronta e procurava ainda outras razões para se desligar dele: Léon era incapaz de ter heroísmo, era fraco, banal, mais mole que uma mulher, além disso, avarento e pusilânime.

Depois, acalmando-se, acabou por descobrir que talvez o estivesse a caluniar. Mas a detracção daqueles a quem amamos sempre nos separa um pouco deles.

Não se deve mexer nos ídolos: o dourado fica-nos agarrado às mãos.

Começaram a falar mais frequentemente de coisas indiferentes ao amor mútuo, e, nas cartas que Emma lhe mandava, o assunto eram flores, versos, a Lua e as estrelas, ingénuos recursos de uma paixão enfraquecida, procurando reavivar-se por meio de todos os recursos exteriores. Ela prometia a si mesma, constantemente, uma profunda felicidade para a próxima viagem, depois verificava que não sentia nada de extraordinário. Essa decepção apagava-se rapidamente com uma nova esperança, e Emma voltava para ele mais inflamada, mais ávida. Despia-se bruscamente, arrancando o fino cordão do espartilho, que Lhe sibilava em volta dos quadris como uma cobra rastejando. Ia mais uma vez descalça, nas pontas dos pés, verificar se a porta estava trancada, depois, com um só gesto, fazia cair todo o vestuário, e, pálida, muda, séria, atirava-se sobre o peito dele, com um longo estremecimento.

Entretanto, havia naquele rosto coberto de gotas frias, naqueles lábios balbuciantes, naquelas pupilas desvairadas, no amplexo daqueles braços, qualquer coisa de excessivo, de vago e de lúgubre, que a Léon parecia meter-se entre ambos, subtilmente, como que para os separar.

Não ousava fazer-lhe perguntas, mas, verificando ser ela tão experiente, pensava ele, devia ter passado por todas as provas do sofrimento e do prazer. O que antes o encantava assustava-o agora um pouco. Além disso, revoltava-se contra a absorção, cada vez maior, da sua personalidade. Não perdoava a Emma aquele triunfo permanente. Até se esforçava por não Lhe querer bem, depois, mal lhe ouvia o ranger das botinas, perdia as forças, como os bêbedos, à vista das bebidas fortes.

É verdade que ela não deixava de lhe prodigalizar toda a espécie de atenções, desde os mimos da mesa até aos requintes da roupa e à languidez do olhar. Levava-lhe de Yonville rosas dentro do seio, que lhe atirava ao rosto, mostrava-se preocupada com a saúde dele, dava-lhe conselhos sobre a maneira de se conduzir, e, para melhor o reter, esperando que o céu talvez desse uma ajuda, pendurou-lhe ao pescoço uma medalha da Virgem. Como uma mãe cuidadosa, pedia-lhe informações sobre os camaradas. Dizia-lhe:

- Não andes com eles, não saias, pensa só em nós, ama-me!

Ela desejaria poder vigiar-lhe os passos e teve a ideia de mandar alguém segui-lo pelas ruas. Havia sempre, ao pé do hotel, uma espécie de vagabundo que se abeirava dos passageiros e que não recusaria... Mas o seu orgulho revoltou-se.

- Oh! Deixá-lo! Que me importa a mim que ele me engane! Que interesse tenho eu?

Um dia em que se tinham despedido muito cedo e em que ela caminhava sozinha pela avenida, avistou os muros do seu convento, sentou-se então num banco, à sombra dos álamos. Que tempo calmo havia sido aquele! Como invejara então os inefáveis sentimentos de amor que, segundo os livros, procurava imaginar!

Os primeiros meses do casamento, os seus passeios a cavalo pelo bosque, o visconde a dançar a valsa e Lagardy a cantar, tudo voltou a passar-lhe diante dos olhos... E Léon pareceu-lhe subitamente tão distanciado como os outros.

“No entanto, eu amo-o!”, pensava ela.

Paciência! Não era feliz, nem nunca o fora. Donde provinha então aquela deficiência da vida, aquela instantânea decomposição de todas as coisas a que se agarrasse?... Mas se existisse em qualquer parte um ser forte e belo, uma natureza valorosa, simultaneamente cheia de exaltação e de requintes, um coração de poeta com a forma de um anjo, lira de cordas metálicas, entoando para o céu epitalâmios elegíacos, porque não haveria ela de, por acaso, encontrá-lo? Oh!, que impossibilidade! Aliás, nada valia a pena ser procurado, tudo era ilusório! Cada sorriso escondia um bocejo de enfado, cada alegria uma maldição, cada prazer o seu fastio, e os melhores beijos apenas deixam nos lábios um irrealizável desejo de mais exaltada volúpia.

Pairou nos ares uma vibração de bronze, ouvindo-se quatro badaladas no sino do convento. Quatro horas! E parecia que ali estava, sentada naquele banco, desde a eternidade. Mas um minuto pode conter uma infinidade de paixões, do mesmo modo que uma multidão pode caber num pequeno espaço.

Emma vivia ocupada com as suas paixões, sem se preocupar com o dinheiro, como se fosse uma arquiduquesa.

Mas, uma vez, apareceu-lhe em casa um homem de aspecto franzino, rubicundo e calvo, dizendo vir da parte do senhor Vinçart, de Ruão. Retirou os alfinetes que fechavam o bolso lateral da sua sobrecasaca verde, espetou-os na manga e desdobrou delicadamente um papel.

Era uma letra de setecentos francos, assinada por ela e que Lheureux, apesar de todos os seus protestos, havia passado à ordem de Vinçart.

Mandou imediatamente a criada a casa de Lheureux. Este não podia vir.

Então o desconhecido, que ficara de pé, lançando em todas as direcções olhares curiosos que as fartas sobrancelhas louras dissimulavam, perguntou com um ar de ingénuo:

- Qual é a resposta que levo ao senhor Vinçart?

- Ora bem - respondeu Emma -, diga-lhe... que não tenho agora. Fica para a próxima semana... Ele que espere..., sim, até à próxima semana.

E o homenzinho lá foi sem dizer palavra.

Mas, no dia seguinte, ao meio-dia, Emma recebeu uma protestação, e à vista do papel timbrado que ostentava repetidas vezes e em grandes caracteres: Doutor Hareng, oficial de diligências em Buchy, apanhou tão grande susto, que correu a toda a pressa a casa do vendedor de tecidos.

Foi encontrá-lo na loja, atando um pacote.

- Um seu criado - disse ele. - Estou às suas ordens.

Lheureux nem por isso interrompeu o seu trabalho, ajudado por uma rapariga de mais ou menos treze anos, um pouco corcunda, que lhe servia tanto de caixeira como de cozinheira.

Depois, batendo com os tamancos sobre o sobrado da loja, subiu na frente da senhora ao primeiro andar e mandou-a entrar para um acanhado gabinete onde, em cima de uma enorme secretária de madeira tosca, havia vários livros de escrituração, protegidos transversalmente por uma barra de ferro presa com um cadeado. Encostado à parede, encoberto por retalhos de cassa, entrevia-se um cofre forte, mas com tais dimensões que devia conter outras coisas além de notas e moedas. O senhor Lheureux, com efeito, emprestava dinheiro sobre penhores, e era ali que havia guardado a corrente de ouro da senhora Bovary, juntamente com os brincos do pobre tio Tellier, que, constrangido, por fim, a vender, havia comprado em Quincampoix um magro negócio de mercearia, onde definhava com o seu catarro, no meio das suas velas, menos pálidas do que a cor do seu rosto.

Lheureux sentou-se na grande cadeira de vime, dizendo:

- O que há de novo?

- Veja.

E mostrou-lhe o papel.

- Muito bem, e que posso eu fazer?

Então ela enfureceu-se, lembrando-lhe a palavra que ele tinha dado de não fazer circular as suas letras, ele concordou:

- Mas fui obrigado a isso, pois estava com a corda na garganta.

- E agora, o que vai acontecer? - continuou ela.

- Oh! É muito simples: um julgamento no tribunal e depois a penhora..., ora bolas!

Emma teve de se conter para não lhe bater. Perguntou-lhe mansamente se não haveria modo de acalmar o senhor Vinçart.

- Era bom que houvesse! Acalmar o Vinçart, bem se vê que não sabe quem é ele, mais feroz do que um árabe.

De qualquer modo, era preciso que o senhor Lheureux interviesse no assunto.

- Escute lá! Parece-me que, até ao presente, tenho sido bastante correcto com a senhora.

E, abrindo um dos seus livros:

- Repare!

Depois, percorrendo a página com o dedo:

- Ora vejamos..., vejamos... A 3 de Agosto, duzentos francos... A 17 de Junho, cento e cinquenta... 23 de Março, quarenta e seis... Em Abril...

E deteve-se, como que receando fazer alguma tolice.

- Sem falar nas letras aceitas pelo seu esposo, uma de setecentos francos e uma outra de trezentos! Quanto aos pequenos adiantamentos e aos juros, é uma tal embrulhada que ninguém entende. Já nem me meto mais nisso!

Ela chorava, ela chamava-lhe até o seu bom senhor Lheureux,.

Ele, porém, desculpava-se continuamente com aquele velhaco do Vinçart. Além disso, estava sem vintém, ninguém Lhe pagava, comiam-lhe as papas na cabeça, um pobre lojista como ele não podia fazer adiantamentos.

Emma calara-se, e o senhor Lheureux, que mordiscava a rama de uma pena, ficou certamente inquieto com aquele silêncio, pois prosseguiu:

- Ao menos, se por algum destes dias eu conseguisse algumas entradas... poderia...

- Que, afinal - disse ela -, com a parte que falta receber de Barneville...

- O quê?

E mostrou-se grandemente surpreendido de que Langlois não tivesse ainda feito o pagamento. Depois, com uma voz melíflua:

- E podemos combinar, diz a senhora...?

- Como o senhor quiser!

Então ele fechou os olhos para reflectir, escreveu alguns números e, dizendo que fazia muito mal, que a coisa era escabrosa e que se estava a sangrar, sacou quatro letras de duzentos e cinquenta francos cada uma, com um mês de intervalo entre os respectivos vencimentos.

- Contanto que Vinçart me queira atender! De resto está entendido: o que prometo cumpro, faço tudo com lisura.

Em seguida mostrou-lhe desinteressadamente várias mercadorias novas, nenhuma das quais, no entanto, na sua opinião, seriam dignas dela.

- Veja aqui pano para vestidos a sete soldos o metro e cor garantida! No entanto, engolem isto! Claro que não se lhes diz o que é, como deve calcular, querendo, com esta confissão de velhacaria para com os outros, convencê-la completamente da sua honestidade.

Voltou ainda a chamá-la para lhe mostrar três metros de renda fina que encontrara recentemente numa arrematação.

- Que linda! - dizia Lheureux. - Usa-se agora muito para guarnecer poltronas, está na moda.

E, mais hábil que um ilusionista, embrulhou a renda em papel azul e meteu-a nas mãos de Emma.

- Mas preciso de saber, pelo menos...?

- Ah!, noutra altura - respondeu ele, voltando-lhe as costas.

Naquela mesma noite, ela instou com o marido para que escrevesse à mãe, pedindo-lhe que enviasse, o mais depressa possível, o restante da herança. A sogra respondeu que não tinha mais nada, a liquidação estava encerrada e restava-lhes, além de Barneville, seiscentas libras de rendimento, de que ela os embolsaria pontualmente.

Expediu então facturas a dois ou três clientes. Emma começou depois a usar e abusar deste processo, que lhe dava resultado.

Tinha sempre o cuidado de acrescentar em postscriptum: “É favor não dizer nada a meu marido, sabe como ele é orgulhoso... Desculpe-me... Sua criada...”

Houve algumas reclamações, conseguiu interceptá-las.

Para realizar dinheiro, pôs-se a vender as suas luvas usadas, os chapéus, ferro-velho, e regateava com sagacidade, com o seu sangue de camponesa a atraí-la para o lucro.

Depois, nas suas idas à cidade, negociava com bugigangas, que o senhor Lheureux, à falta de melhor, certamente lhe comprava.

Comprou plumas de avestruz, porcelana chinesa e baús, pedia dinheiro emprestado a Félicité, à senhora Lefrançois, na estalagem da Cruz Vermelha, a toda a gente, fosse onde fosse.

Com o dinheiro que finalmente recebeu de Barneville, pagou duas letras, os restantes mil e quinhentos francos desfizeram-se, empenhou-se novamente e continuou sempre assim!

Por vezes, é verdade, procurava fazer cálculos, mas descobria contas tão exorbitantes que nem podia acreditar.

Começava de novo, voltava logo a atrapalhar-se, desistia e não pensava mais no assunto.

A casa era agora um espectáculo bem triste! Viam-se sair de lá os fornecedores com caras furiosas. Havia lenços por cima dos fogões, e a pequena Berthe, com grande escândalo da senhora Homais, andava de meias rotas. Se Charles, timidamente, arriscasse uma observação, respondia-Lhe bruscamente que não tinha culpa!

Qual a razão daqueles arrebatamentos? Charles explicava tudo com a antiga doença de nervos, e, reprovando-se por lhe haver tomado os achaques por defeitos, acusava-se de egoísmo e tinha vontade de correr a beijá-la.

“Isso não!”, pensava ele, poderia aborrecê-la!

E deixava-se ficar.

Depois do jantar passeava sozinho pelo jardim, sentava a pequenina Berthe no colo e, abrindo a sua revista de medicina, procurava ensinar-lhe a ler. A criança, que nunca estudava, logo arregalava os olhos tristes e começava a chorar. Então ele consolava-a, ia-lhe buscar água no regador para fazer ribeiros na areia, ou partia ramos de ligustros para fingir que plantava árvores nos canteiros, o que pouco dano causava ao jardim, invadido, como estava, de grandes ervas, deviam-se tantos dias ao Lestiboudois! Depois, a miúda sentia frio e perguntava pela mãe.

- Chama pela criada - dizia Charles. - Sabes bem, minha menina, que a tua mamã não quer que a incomodem.

Começava o Outono e já as primeiras folhas caíam, como dois anos antes, quando ela estava doente! “Quando acabará tudo isto?...” E continuava a caminhar com as mãos atrás das costas.

A senhora estava no seu quarto. Ninguém lá ia.

Ficava ali durante o dia todo, entorpecida, quase nua, e, de vez em quando, queimava pastilhas de serralho que comprara em Ruão, na tenda de um argelino. Para não passar a noite com aquele homem estendido a dormir junto dela, acabou, à força de astúcia, por relegá-lo para o segundo andar, e lia até de manhã livros extravagantes, em que havia quadros orgíacos com cenas sanguinolentas. Às vezes enchia-se de terror, dava um grito e Charles acudia.

- Ah! Vai-te embora - dizia-lhe ela.

Ou então, noutras ocasiões, mais abrasada com aquela chama íntima que o adultério avivava, ofegante, inebriada, ardendo em desejos, abria a janela, aspirava o ar puro, soltava ao vento a farta cabeleira e, fixando as estrelas, ansiava por amores de príncipe. Pensava nele, Léon. Nesses momentos daria tudo por um só daqueles encontros que a saciavam.

Eram os seus dias de gala. Ela queria-os esplêndidos! E, quando ele não podia pagar sozinho a despesa, completava ela liberalmente a importância, o que acontecia mais ou menos todas as vezes. Ele procurou fazer-lhe compreender que estariam tão bem noutro sítio, em qualquer hotel mais modesto, ela, porém, encontrou objecções.

Um dia tirou da sua bolsa seis colherinhas de prata dourada (fora o presente de núpcias do tio Rouault), pedindo-lhe que fosse imediatamente levar aquilo, no nome dela, à casa de penhores, e Léon obedeceu, ainda que a missão lhe desagradasse. Tinha receio de se comprometer.

Depois, reflectindo no caso, achou que a amante estava assumindo atitudes estranhas e que talvez tivessem razão em querer afastá-lo dela.

Efectivamente, alguém enviara à mãe dele uma longa carta anónima, avisando-a de que o filho se estava perdendo com uma mulher casada, e logo a boa senhora, entrevendo o eterno espantalho das famílias, isto é, a vaga criatura perniciosa, a sereia, o monstro, que habita fantasticamente nas profundezas do amor, escreveu ao doutor Dubocage, o patrão, que foi perfeito a tratar do assunto. Reteve-o durante três quartos de hora, querendo desvendar-lhe os olhos, adverti-lo do abismo em que caía. Um enredo daqueles prejudicar-Lhe-ia mais tarde a situação profissional. Suplicou-lhe que rompesse com a ligação e, se não queria sacrificar-se no seu próprio interesse, então que o fizesse ao menos por ele, Dubocage!

Léon havia finalmente jurado que não voltaria a encontrar-se com Emma e reprovava-se a si mesmo por não ter mantido a palavra, considerando tudo o que aquela mulher poderia ainda trazer-Lhe de embaraços e recriminações, sem falar nas piadas dos colegas, que fervilhavam de manhã em volta do fogão. Além disso, estava para ser promovido a primeiro-escriturário: era o momento de se portar com seriedade. Por isso se dispunha a renunciar à flauta encantada, aos sentimentos exaltados, à imaginação, visto que todo o burguês, nos ardores da sua juventude, nem que tenha sido apenas por um dia, um minuto, pensou ser capaz de paixões imensas, de elevadas proezas. O mais medíocre libertino sonhou com amantes, todo o notário encerra em si os destroços de um poeta.

Enfadava-se agora sempre que Emma, subitamente, se punha a soluçar agarrada a ele, e o coração, como as pessoas que apenas suportam uma certa dose de música, deixava-se adormentar com indiferença com o tumulto de um amor cujas delicadezas já não conseguia distinguir.

Conhecia-se já demasiado para ter aquelas surpresas da posse que lhe centuplicam o gozo. Emma estava tão enfastiada de Léon como este cansado dela. Emma encontrava agora no adultério toda a insipidez do casamento.

Mas como poderia libertar-se? Por mais que se sentisse humilhada pela baixeza de tal felicidade, mantinha-se-lhe presa pelo hábito ou pela corrupção, e cada dia mais se agarrava ainda, exaurindo toda a felicidade à força de a querer demasiado grande. Acusava Léon por causa das suas decepções, como se este a tivesse traído, e chegava a desejar qualquer catástrofe que viesse separá-los, visto não ter coragem para se decidir.

Não deixava por isso de continuar a escrever-lhe cartas amorosas, por força da ideia de que uma mulher deve escrever sempre ao seu amante.

Enquanto Lhe escrevia, porém, via outro homem, um fantasma construído das suas mais ardentes recordações, das suas mais belas leituras, dos seus mais fortes desejos, e ele tornava-se-lhe por fim tão verdadeiro e acessível que Emma palpitava maravilhada, sem poder entretanto imaginá-lo com nitidez, de tal modo ele se perdia, como um deus, na abundância dos seus atributos. Habitava a região azulada onde as escadas de seda baloiçam às varandas, ao aroma das flores, ao luar. Sentia-o junto de si, ele ia aparecer-lhe e arrebatá-la toda num beijo. Depois ficava completamente abatida, extenuada, é que aqueles ímpetos de amor vago a cansavam mais do que grandes orgias.

Sentia agora um estado de abatimento constante e geral.

Muitas vezes até recebia citações, papel selado, para o qual mal olhava. Desejaria ter deixado de viver, ou dormir continuamente.

No dia da mi-carême, Emma não voltou para Yonville, foi à noite ao baile de máscaras. Vestiu umas calças de veludo e meias encarnadas, pôs uma peruca de rabicho e um tricórnio à banda. Pulou toda a noite ao som furioso dos trombones, faziam círculo em torno dela, e encontrou-se de madrugada no vestíbulo do teatro, rodeada de cinco ou seis máscaras de estivadoras e marujos, camaradas de Léon, que falavam em ir cear.

Os cafés por ali perto estavam todos cheios. Descobriram perto do cais um restaurante dos mais medíocres, cujo dono lhes abriu, no quarto andar, uma pequena divisão.

Os homens cochicharam a um canto, consultando-se sem dúvida sobre a despesa. Havia um escriturário, dois estudantes de Medicina e um caixeiro: que sociedade para ela! Quanto às mulheres, Emma rapidamente se apercebeu, pelo timbre das vozes, de que deveriam ser, quase todas, da última espécie.

Sentiu então medo, recuou a cadeira e baixou os olhos.

Os outros puseram-se a comer. Ela não comeu, sentia a testa em brasa, picadas nas pálpebras e um frio de gelo na pele.

Sentia ainda na cabeça a pista do baile, estremecendo sob a pulsação rítmica dos milhares de pés a dançar. Depois, o cheiro do ponche, misturado com o fumo dos charutos, atordoou-a. Desmaiou, levaram-na para a janela.

O dia começava a clarear e uma grande mancha cor de púrpura ia-se alargando no céu pálido, do lado de Sainte-Catherine. O lívido rio encrespava-se com o vento, não havia ninguém em cima das pontes, os lampiões apagavam-se.

Emma, entretanto, reanimou-se e começou a pensar em Berthe, que lá estaria a dormir no quarto da criada. Mas passou uma carroça carregada de arcos de ferro, atirando às paredes das casas uma vibração metálica ensurdecedora.

Esquivou-se então subitamente, desembaraçou-se do traje, disse a Léon que tinha de regressar e encontrou-se, finalmente, sozinha no Hotel de Bolonha. Tudo lhe era insuportável, incluindo a sua própria pessoa. Desejaria poder, escapando-se como um pássaro, ir rejuvenescer em qualquer lado, bem longe dali, nos espaços imaculados.

Saiu, atravessou a avenida, a Place Cauchoise e o arrabalde, até chegar a uma rua descoberta, ladeada de jardins. Caminhava depressa, o ar puro acalmava-a e, pouco a pouco, as caras da multidão, as máscaras, as danças, os lustres, a ceia, aquelas mulheres, tudo se desfazia como bruma levada pelo vento.

Depois, chegada à Cruz Vermelha, atirou-se para cima da cama, no pequeno quarto do segundo andar, onde havia as gravuras de A Torre de Nesle. Às quatro horas da tarde, Hivert acordou-a.

Voltou para casa e Félicité mostrou-lhe, atrás do relógio, um papel cinzento. Ela leu:

Em virtude da cópia dos autos, segundo a norma executória de um julgamento...

Que julgamento? Na véspera, efectivamente, tinham trazido outro papel de que ela não tinha conhecimento, por isso ficou estupefacta perante estes termos:

Por ordem do rei, da lei e da justiça, é intimada a senhora dona Emma Bovary...

Saltando várias linhas, leu ainda:

No prazo máximo de vinte e quatro horas.

- O quê? Pagar a soma total de oito mil francos.

E havia ainda mais abaixo:

Será a isso obrigada por todos os meios de direito, nomeadamente por execução de penhora sobre todos os seus móveis e haveres.

O que fazer?... O prazo era de vinte e quatro horas, amanhã!

Pensou que Lheureux estivesse a querer assustá-la mais uma vez, porque viu de repente todas as suas manobras, o objectivo das suas amabilidades. O que a tranquilizava era o próprio exagero da importância.

A verdade é que, à força de comprar, de não pagar, de pedir emprestado, de assinar letras e depois renovar essas letras que engordavam a cada novo vencimento, ela acabara por preparar ao senhor Lheureux um capital que ele impacientemente esperava para as suas especulações.

Emma apresentou-se-lhe em casa com um ar desembaraçado.

- Sabe o que me aconteceu? Naturalmente é uma brincadeira!

- Não é.

- Então como é isso?

Ele voltou-lhe lentamente as costas e disseLhe, cruzando os braços:

- Pensava a damazinha que eu seria, até à consumação dos séculos, seu fornecedor e banqueiro por amor de Deus? Sejamos justos! É bem necessário que eu reembolse o meu dinheiro.

Ela protestou contra tamanha dívida.

- Não me interessa! O tribunal reconheceu-a! Trata-se de julgamento! A senhora foi citada! Além disso, não é comigo, é com o Vinçart.

- Mas o senhor não poderia...?

- Não há nada a fazer!

- Mas..., no entanto..., vejamos.

E argumentou, não tinha sabido de nada... era uma surpresa...

- De quem é a culpa? - disse Lheureux, fazendo-Lhe ironicamente uma cortesia. - Enquanto eu aqui trabalho como um negro, a senhora passa o tempo a divertir-se.

- Ah! Deixe lá a moral!

- É uma coisa que nunca prejudica - replicou ele.

Ela acobardou-se, suplicou, chegou até a pousar a bela mão branca e comprida nos joelhos do comerciante.

- Deixe-me lá! Dá a impressão de que me quer seduzir!

- O senhor é um miserável! - gritou ela.

- Olha, olha!, como ela está! - respondeu ele a rir.

- Vão saber quem o senhor é. Vou dizer ao meu marido...

- Muito bem, eu tenho uma coisa para mostrar ao seu marido!

E Lheureux tirou do cofre o recibo de mil e oitocentos francos que ela lhe dera quando do desconto do Vinçart.

- Acha a senhora - acrescentou - que aquele pobre homem não vai entender o seu pequeno roubo?

Ela deixava-se abater, mais moída do que se tivesse levado uma sova de cacete. Ele passeava da janela para a secretária, repetindo:

- Ah! Mostrar-lhe-ei bem... Hei-de mostrar-lhe...

Depois aproximou-se dela e, com uma voz meiga, continuou:

- Sei que não é agradável, mas afinal não morreu ninguém, e, uma vez que é o único meio que lhe resta de me devolver o dinheiro...

- Mas onde irei eu arranjá-lo? - disse Emma, contorcendo os braços.

- Ora, ora! Quando se têm amizades como a senhora tem!

E fixava-a de um modo tão perspicaz e terrível que Emma sentiu um forte estremecimento interior.

- Eu prometo - disse ela -, assino...

- Estou farto das suas assinaturas!

- Vou ainda vender...

- Ora vamos lá! - volveu ele, encolhendo os ombros. - A senhora já não tem nada para vender.

E gritou pelo postigo que dava para a loja:

- Annette! Não te esqueças dos três retalhos do n.o 14.

A criada apareceu, Emma compreendeu e perguntou que quantia seria precisa para deter todo o processo judicial.

- Agora já é tarde!

- Mas se eu lhe trouxesse vários milhares de francos, uma quarta parte da soma, um terço, quase tudo?

- Não, não! É inútil!

Empurrou-a delicadamente para a escada.

- Suplico-lhe, senhor Lheureux, só alguns dias mais!

Ela soluçava.

- Bom, agora temos lágrimas!

- O senhor faz-me desesperar!

- Não tenho mais que me ralar com isso! - foi a resposta dele, enquanto fechava a porta.


VII

Emma foi estóica, no dia seguinte, quando o doutor Hareng, o oficial de diligências, se lhe apresentou em casa com duas testemunhas, para o auto da penhora.

Começaram pelo consultório de Bovary e não incluíram na relação a cabeça frenológica, que consideraram um instrumento da sua profissão, mas, na cozinha, contaram os pratos, as panelas, as cadeiras, os castiçais e, no quarto de dormir, todas as bugigangas que estavam em cima da prateleira.

Examinaram os vestidos, a roupa interior, a casa de banho, e a sua vida, até aos recantos mais íntimos, foi, como um cadáver a que se faz a autópsia, exposta de par em par aos olhares daqueles três homens.

O doutor Hareng, apertado num casaco preto muito justo, de gravata branca, e com presilhas nas calças muito esticadas, repetia de vez em quando:

- Dá licença? A senhora dá licença? - Exclamava frequentemente:

- Encantador!... Lindíssimo!

Depois voltava a escrever, molhando a pena no tinteiro de chifre que segurava com a mão esquerda.

Quando acabaram de ver os apartamentos, subiram ao sótão.

Ela conservava ali uma escrivaninha onde estavam fechadas as cartas de Rodolphe. Tinha de ser aberta.

- Ah! É correspondência! - disse o doutor Hareng com um sorriso discreto. - Mas desculpe, pois tenho de verificar se a caixa não contém outras coisas.

E inclinou ligeiramente os papéis, como que para fazer cair napoleões. Então Emma indignou-se por ver aquela mão grosseira, com dedos vermelhos e moles como lesmas, tocando naquelas páginas em que lhe palpitara o coração.

Finalmente foram-se embora! Félicité entrou. A patroa mandara-a ficar de sentinela para afastar Bovary, e instalaram rapidamente no sótão o guarda da penhora, que jurou não sair dali.

Charles, durante o serão, pareceu-lhe preocupado. Emma espiava-o com olhar angustiado, julgando descobrir acusações nas rugas do rosto dele. Depois, quando os olhos se lhe voltavam para o fogão de sala guarnecido de telas chinesas, para os grandes cortinados, para as poltronas, para todas aquelas coisas que, enfim, Lhe haviam adoçado a amargura da vida, sentia-se possuída por um remorso, ou, antes, uma pena imensa que lhe irritava a paixão, longe de a anular. Charles atiçava placidamente o fogo, com os pés apoiados no varandim.

Houve um momento em que o guarda, sem dúvida aborrecido de estar no seu esconderijo, fez um pouco de ruído.

- Anda alguém lá em cima? - disse Charles.

- Não! - respondeu ela. - É uma clarabóia que ficou aberta e que mexe com o vento.

Partiu para Ruão no dia seguinte, que era domingo, para visitar todos os banqueiros de que conhecia o nome. Estavam no campo ou em viagem. Não desistiu, e aos que conseguiu encontrar pediu dinheiro, argumentando que precisava dele e que o restituiria. Alguns riram-se-lhe na cara, todos recusaram.

Às duas horas correu a casa de Léon, bateu-lhe à porta.

Ninguém abriu. Por fim apareceu ele.

- Que te traz por cá?

- Incomodo-te?

- Não..., mas...

E confessou que a dona da casa não gostava que lá fossem mulheres.

- Tenho de falar contigo - prosseguiu ela.

Então ele pegou na chave. Ela deteve-o.

- Aqui, não! Lá no nosso quarto.

E foram para o quarto do Hotel de Bolonha.

Ela bebeu, logo que lá chegou, um grande copo de água.

Estava muito pálida. Disselhe:

- Léon, vais-me fazer um favor.

E, sacudindo-o pelas duas mãos, que segurava com força, acrescentou:

- Escuta, preciso de oito mil francos!

- Mas estás doida!

- Ainda não!

E imediatamente lhe contou a história da penhora, lhe expôs o seu infortúnio, porque Charles não sabia de nada, a sogra detestava-a, o tio Rouault nada podia fazer, mas ele, Léon, iria pôr-se em campo para encontrar aquela soma indispensável...

- Como queres tu...?

- Até pareces um cobarde! - exclamou ela.

Então ele disse estupidamente:

- Estás a exagerar a situação. Quem sabe se com um milhar de escudos o homem não se acalma!

Era mais uma razão para se tentar alguma coisa, não seria de todo impossível descobrir três mil francos. Além disso, Léon podia ficar responsável por ela.

- Vai! Experimenta! Tem de ser! Corre!... Tenta!, tenta!

Hei-de amar-te muito.

Ele saiu, voltou ao cabo de uma hora e disse com ar solene:

- Fui a casa de três pessoas... inutilmente!

Depois ficaram sentados um defronte do outro, aos dois cantos do fogão, imóveis, sem dizer nada. Emma encolhia os ombros e batia com o pé. Ele ouviu-a murmurar:

- Se estivesse no teu lugar, garanto-te que encontrava!

- E onde?

- No cartório!

E fitou-o.

As suas pupilas inflamadas irradiavam uma ousadia infernal e semicerrava as pálpebras de um modo lascivo e incitador - de tal modo que o rapaz se sentiu enfraquecer perante a muda vontade daquela mulher que o aconselhava a cometer um crime.

Ele então teve medo e, para evitar esclarecimentos, bateu com a mão na testa, exclamando:

- O Morel deve chegar esta noite! Espero que não me recuse (era um dos seus amigos, filho de um negociante muito rico), e levo-te isso amanhã - acrescentou.

Emma não acolheu aquela esperança com tanta alegria como ele imaginara. Desconfiaria da mentira? Léon prosseguiu, corando:

- Entretanto, se não me vires amanhã às três horas, não esperes mais por mim, querida. Tenho de me ir embora, desculpa. Adeus!

Apertou-lhe a mão, mas sentiu-a completamente inerte. Emma não tinha mais força para qualquer sentimento.

Soaram as quatro horas, e ela levantou-se para voltar a Yonville, obedecendo como um autómato ao impulso dos hábitos.

O tempo estava lindo, era um daqueles dias do mês de Março, claros e secos, em que o Sol brilha num céu todo branco. Os Ruanenses endomingados passeavam com ares de pessoas felizes.

Emma chegou à Place du Parvis. Os fiéis saíam das vésperas, a multidão escoava-se pelas três portas da igreja, como um rio por três arcos de uma ponte, e, ao centro, mais imóvel do que um rochedo, estava o suíço.

Então ela lembrou-se do dia em que, toda ansiosa e cheia de esperanças, penetrara naquela grande nave, que se estendera na sua frente menos profunda do que o amor que tinha no peito, e continuou a andar, chorando por debaixo do véu, aturdida, cambaleante, quase a desfalecer.

- Cuidado! - gritou uma voz saindo de um portão que se abria.

Ela parou para deixar passar um cavalo preto, garbosamente atrelado aos varais de um tílburi conduzido por um cavalheiro de casaco de pele de zibelina. Quem era ele? Emma conhecia-o... O carro partiu e desapareceu.

Mas era o visconde! Ela voltou-se: a rua estava deserta. E sentiu-se tão acabrunhada, tão triste, que se encostou à parede para não cair.

Depois pensou que se tivesse enganado. Afinal não sabia nada acerca dele. Tudo, quer dentro quer fora dela, a abandonava.

Sentia-se perdida, rolando ao acaso por indefiníveis abismos, e foi quase com alegria que avistou, ao chegar à Cruz Vermelha, o bom Homais, que fiscalizava enquanto carregavam na Andorinha uma grande caixa cheia de provisões farmacêuticas.

Tinha na mão um lenço com meia dúzia de cheminots para a mulher.

A senhora Homais apreciava muito aqueles pãezinhos massudos, com o feitio de turbantes, que se comem na Quaresma com manteiga salgada: último vestígio dos alimentos góticos, que remonta talvez ao século das cruzadas e de que os robustos Normandos outrora se enchiam, imaginando ver sobre a mesa, à luz amarela das tochas, entre as canecas de hipocraz e as gigantescas vitualhas, cabeças de sarracenos para devorar. A mulher do boticário trincava-os como eles, heroicamente, apesar da sua péssima dentadura, por isso, todas as vezes que o senhor Homais fazia uma viagem à cidade, não se esquecia de Lhe levar alguns, que comprava sempre ao principal fabricante, na Rue Massacre.

- Estimo muito vê-la! - disse Homais, estendendo a mão a Emma para a ajudar a subir para a Andorinha.

Depois pendurou os bolos nas correias da rede e ficou de cabeça descoberta e com os braços cruzados, numa atitude pensativa e napoleónica.

Mas, quando o cego apareceu, como era hábito, ao pé da encosta, exclamou:

- Não compreendo como as autoridades ainda toleram tão culpáveis indústrias! Deviam fechar estes desgraçados e obrigá-los a fazer qualquer trabalho! Palavra de honra que o progresso me parece andar a passo de caranguejo! Continuamos a patinhar em plena barbárie.

O cego estendia o seu chapéu, que bamboleava na beira da portinhola, como um bolso do forro despregado.

- Aí está - disse o farmacêutico -, uma afecção escrofulosa!

E, apesar de conhecer o pobre diabo, fingiu que o via pela primeira vez, murmurou as palavras córnea, córnea opaca, esclerótica, fácies, depois perguntou-lhe em tom paternal:

- Há muito tempo, amigo, que sofres dessa espantosa doença?

Em vez de te embriagares na taberna, era bem melhor que seguisses uma dieta.

Aconselhou-o a que tomasse bom vinho, boa cerveja, e comesse bons assados. O cego continuava a sua canção, parecia, aliás, quase idiota. Finalmente, Homais abriu a sua bolsa.

- Toma, tens aí um soldo, devolve-me dois liards 3 e não te esqueças das minhas recomendações, que te hás-de dar bem.

Hivert atreveu-se a manifestar em voz alta algumas dúvidas sobre o resultado. Mas o boticário garantiu que ele mesmo o curaria com uma pomada antiflogística que era do seu fabrico e deu o endereço:

- Senhor Homais, ao pé do mercado, suficientemente conhecido.

- Bem, como recompensa - disse Hivert -, vais-nos mostrár a comédia.

O cego deixou-se cair de joelhos e, com a cabeça toda inclinada para trás, arregalando os olhos esverdeados e deitando a língua de fora, esfregava a barriga com ambas as mãos, ao mesmo tempo que soltava um uivo surdo, como um cão esfaimado. Emma, cheia de repugnância, atirou-lhe, por cima do ombro, uma moeda de cinco francos. Era tudo o que tinha.

Pareceu-lhe belo atirá-la daquele modo.

A carruagem pusera-se de novo em andamento, quando, de súbito, o senhor Homais se debruçou do postigo e gritou:

- Nada de farináceos nem de lacticínios! Usar lã sobre a pele e expor as partes doentes ao fumo de bagas de zimbro!

O espectáculo dos objectos conhecidos desfilando-lhe diante dos olhos ia a pouco e pouco fazendo Emma esquecer-se da sua dor presente. Abatia-a um insuportável cansaço e chegou a casa embrutecida, desanimada, quase a dormir.

“Haja o que houver!”, pensava ela para consigo mesma.

E depois, quem sabe? Não poderia, de um momento para o outro, surgir qualquer acontecimento extraordinário? Até o próprio Lheureux poderia morrer.

Às nove horas da manhã foi despertada por um ruído de vozes na praça. Havia um grande ajuntamento em volta do mercado para lerem um grande anúncio colado a uma das colunas, e ela viu Justin trepar a um poial e rasgar o anúncio. Mas, nesse momento, o guarda-florestal deitou-lhe a mão ao colarinho. O senhor Homais largou a farmácia e a tia Lefrançois, no meio da multidão, parecia discursar.

- Senhora!, senhora! - gritou Félicité enquanto entrava -, é uma abominação!

E a pobre rapariga, impressionada, estendeu-lhe o papel amarelo que acabara de arrancar da porta. Emma leu de relance que todo o seu mobiliário estava à venda.

Então olharam-se as duas em silêncio. Não tinham, a criada e a patroa, nenhum segredo uma para a outra. Por fim, Félicité suspirou:

- Eu, no lugar da senhora, ia falar com o senhor Guillaumin.

- Achas?...

E esta interrogação queria dizer:

“Tu, que conheces a casa por intermédio do criado, achas que o patrão falou algumas vezes de mim?”

- Sim, vá! Acho que faz bem.

Emma vestiu-se, enfiou o vestido preto, pôs o chapéu com pedrinhas de azeviche, e, para que não a vissem (havia ainda muita gente na praça), deu a volta por fora da aldeia, pelo caminho à beira do riacho.

Chegou ofegante à frente do portão do notário, o céu estava escuro e caía um pouco de neve.

Ao som da campainha, Théodore, de colete vermelho, apareceu no vestíbulo, veio abrir-Lhe quase familiarmente, como a uma pessoa conhecida, e mandou-a entrar para a sala de jantar.

Um grande fogão de porcelana ronronava por baixo de um cacto que ocupava o nicho, e, em molduras de madeira negra, nas paredes forradas com um papel a imitar carvalho, estavam os quadros: Esmeralda, de Steuben, e Putifar, de Schopin. A mesa posta, dois aquecedores de prata, os puxadores das portas de cristal, o sobrado e os móveis, tudo reluzia com um asseio meticuloso, à inglesa, as janelas eram enfeitadas, aos cantos, com vidros de cor.

“Aqui está uma sala de jantar”, pensava Emma, “como eu gostaria de ter.”

O tabelião entrou, segurando contra o corpo, com o braço esquerdo, o seu roupão de alamares, enquanto com a outra mão tirara e voltava a pôr rapidamente o seu boné de veludo castanho, pretensiosamente inclinado para o lado direito, para onde caíam as pontas de três madeixas louras que, partindo da nuca, lhe contornavam a calva.

Depois de ter oferecido uma cadeira, sentou-se para almoçar, pedindo muitas desculpas pela falta de cortesia.

- Olhe, senhor - disse ela -, eu vinha pedir-lhe...

- O quê, minha senhora? Sou todo ouvidos.

Ela pôs-se a expor-lhe a situação.

O doutor Guillaumin já a conhecia, por estar secretamente ligado ao mercador de tecidos, em casa de quem encontrava sempre capitais para os empréstimos hipotecários que o encarregavam de contratar.

Portanto ele sabia (e melhor do que ela) a longa história daquelas letras, inicialmente pequenas, endossadas por diversas pessoas, espaçadas a longos prazos de vencimento e continuamente renovadas, até ao dia em que, juntando todos os protestos, o negociante encarregara o seu amigo Vinçart de fazer seguir em seu próprio nome o processo necessário, não querendo passar por um tigre entre os seus concidadãos.

Emma entremeou a sua exposição de recriminações contra Lheureux, a que o tabelião respondia de tempos a tempos com uma palavra sem sentido. Comendo a sua costeleta e bebendo chá, enfiava o queixo na gravata azul-celeste, espetada com dois alfinetes de brilhantes unidos por uma cadeiazinha de ouro, e sorria com um sorriso singular, de um modo adocicado e ambíguo. Mas, reparando que ela tinha os pés húmidos:

- Aproxime-se do fogão... mais acima..., contra a porcelana.

Ela tinha receio de a sujar. O notário prosseguiu em tom de galanteio:

- Aquilo que é belo não estraga nada.

Então procurou comovê-lo e, emocionando-se ela mesma, começou a descrever-lhe a parcimónia da sua casa, as dificuldades em que vivia e as aflições por que estava passando. Isso ele compreendia: uma senhora elegante! E, sem interromper a refeição, voltara-se de frente para ela, de modo que lhe tocava com o joelho na botina, cuja sola começava a recurvar-se, fumegando, de encontro ao fogão.

Porém, quando ela lhe pediu mil escudos, apertou os lábios e depois declarou-se muito pesaroso por não ter tido oportunidade de lhe administrar, em tempo, os seus haveres, pois existiam cem processos muito cómodos, mesmo para uma senhora, de fazer valer o seu dinheiro. Ter-se-ia podido, quer nas turfeiras de Grumesnil, quer nos terrenos do Havre, arriscar quase pela certa excelentes especulações, e deixou-a devorar-se de raiva com a ideia das fantásticas somas que teria certamente ganho.

- Mas - prosseguiu ele - porque é que não veio ter comigo há mais tempo?

- Nem eu sei - respondeu ela.

- Porquê, hem?... Inspirava-Lhe assim tanto receio? Eu, pelo contrário, é que me devia queixar! Mal nos conhecíamos! No entanto, sou-lhe devotadíssimo, espero que já não tenha dúvidas, acredita?

Estendeu-lhe a mão, pegou na dela e cobriu-a com um beijo voraz, conservando-a depois sobre o joelho, e brincava-lhe delicadamente com os dedos, dizendo-lhe ao mesmo tempo mil amabilidades.

A voz dele sussurrava, insípida, como um ribeiro a correr, saltava-Lhe das pupilas uma faísca através do brilho dos óculos e as mãos adiantavam-se pela manga de Emma, para lhe apalpar o braço. Ela sentia bater no rosto o hálito de uma respiração ofegante. Aquele homem causava-lhe uma horrível repulsa.

Levantou-se de um pulo e disselhe:

- Senhor, eu fico à espera!

- De quê? - perguntou o notário, tornando-se de súbito extremamente pálido.

- Desse dinheiro.

- Mas...

Depois, cedendo à irrupção de um desejo demasiado forte:

- Está bem, sim...

E arrastava-se de joelhos para ela, sem fazer caso do roupão.

- Por bondade, não se vá embora! Eu amo-a!

E agarrou-a pela cintura.

Uma onda de púrpura subiu rapidamente ao rosto da senhora Bovary, que recuou com um aspecto terrível, exclamando:

- O senhor aproveita-se impunemente da minha aflição! Eu sou para lastimar, mas não para vender!

E saiu.

O tabelião ficou estupefacto, com o olhar fixo nos seus lindos chinelos de estofo. Eram um presente de amor. Esta ideia consolou-o. Além disso, disse para consigo que uma aventura daquelas o arrastaria decerto demasiado longe.

“Que miserável! Que patife!... Que infâmia!”, ia Emma pensando enquanto se escapava com andar nervoso sob os choupos da estrada. A desilusão do mau êxito reforçava-lhe a indignação do pudor ultrajado, parecia-lhe que a Providência se empenhava em persegui-la, e, estimulando-se-Lhe o orgulho com esta ideia, sentiu, mais do que nunca, uma grande estima por si mesma e um profundo desprezo pelos outros. Havia qualquer coisa de belicoso a dominá-la. Sentia vontade de bater nos homens, cuspir-lhes na cara, esmagá-los todos, e continuava a avançar rapidamente, pálida, trémula, enraivecida, perscrutando com os olhos rasos de lágrimas o horizonte vazio, quase sentindo prazer no ódio que a sufocava.

Quando avistou a sua casa, sentiu-se entorpecer. Não conseguia avançar mais, no entanto, era necessário, além disso, para onde haveria de fugir?

Félicité esperava-a à porta. - Então?

- Nada! - respondeu Emma.

E, durante um quarto de hora, as duas mulheres foram fazendo uma lista das várias pessoas de Yonville que poderiam estar dispostas a socorrê-la. Mas, todas as vezes que Félicité mencionava alguém, Emma replicava:

- É lá possível! Eles não vão querer!

- E o patrão que está quase a chegar!

- Bem sei... Deixa-me só.

Tentara tudo. Não havia agora mais nada a fazer, e, quando Charles aparecesse, dir-lhe-ia então:

Retira-te. Esse tapete que pisas já não é nosso. Da tua casa, já não tens um único móvel, nem um alfinete ou uma palha, e fui eu quem te arruinou, pobre homem!

Haveria então um enorme soluço, depois ele choraria copiosamente, e no fim, passada a surpresa, perdoar-Lhe-ia.

“Sim”, murmurava ela rangendo os dentes, “vai-me perdoar, ele que não achava suficiente oferecer-me um milhão para que o desculpasse de me haver conhecido... Nunca! Nunca!”

Esta ideia da superioridade de Bovary sobre ela exasperava-a. Depois, quer ela confessasse quer não, dali a momentos, um pouco mais tarde ou no dia seguinte, ele não deixaria de tomar conhecimento da catástrofe, portanto, tinha de esperar aquela horrível cena e suportar o peso da sua magnanimidade. Teve tentações de voltar outra vez a casa do Lheureux, mas para quê? Pensou escrever ao pai, já era demasiado tarde, e talvez agora se arrependesse de não ter cedido ao outro, quando ouviu o trote de um cavalo no caminho.

Era ele, Charles, que abria a cancela e vinha mais branco que a cal da parede. Atirando-se pelas escadas, Emma escapou-se rapidamente pela praça, e a mulher do administrador, que conversava diante da igreja com Lestiboudois, viu-a entrar em casa do tesoureiro.

Correu a informar a senhora Caron. Estas duas mulheres subiram ao sótão e, escondidas atrás de roupa a secar no estendal, instalaram-se comodamente para espreitar o interior da casa de Binet.

Este estava só, na sua água-furtada, procurando imitar, com madeira, uma daquelas indescritíveis obras de marfim, compostas de crescentes e de esferas escavadas umas dentro das outras, tudo direito como um obelisco e não servindo para nada, ensaiava já a última peça e estava quase no fim! Na meia sombra da oficina, a poeira loura voava da ferramenta como um rasto de fagulhas sob as ferraduras de um cavalo a galope, as duas rodas giravam e rangiam, Binet sorria, com a cabeça pendida, as narinas dilatadas, e parecia, enfim, perdido numa dessas felicidades completas, que sem dúvida só se conseguem nas ocupações medíocres, que divertem a inteligência com dificuldades fáceis, saciando-a com uma realização para além da qual nada há a sonhar.

- Olha! Lá está ela! - disse a senhora Tuvache.

Mas era quase impossível, por causa do torno, ouvir o que Emma dizia.

Por fim pareceu-lhes distinguir a palavra francos e a tia Tuvache segredou:

- Está-lhe a pedir que lhe consiga um adiamento no pagamento das contribuições.

- É o que parece - retorquiu a outra.

Viram-na andar de um lado para o outro, examinando nas paredes as argolas de guardanapos, os candelabros, as esferas de corrimão, enquanto Binet acariciava a barba todo deleitado.

- Teria ela ido encomendar-lhe alguma coisa? - disse a senhora Tuvache.

- Mas ele não vende nada! - objectou a vizinha.

O tesoureiro dava a impressão de escutar, arregalando os olhos, como se não estivesse a compreender. Ela prosseguia de um modo terno, suplicante. Aproximou-se dele, o seio arquejava-lhe, tinham parado de falar.

- Está-lhe a fazer alguma proposta? - disse a Tuvache.

Binet ficara rubro até às orelhas. Ela pegou-lhe nas mãos.

- Apre, que é de mais!

E com certeza que ela lhe propunha uma abominação, pois o tesoureiro - que era homem valente e combatera em Bautzen e em Lutzen e fizera a campanha de França, e até fora indigitado para uma condecoração -, de súbito, como que à vista de uma serpente, recuou bem para longe, exclamando:

- Senhora! E pensou nisso?...

- Deviam dar com um chicote nessas mulheres! - disse a senhora Tuvache.

- E onde se meteu ela? - retorquiu a senhora Caron.

Porque Emma desaparecera durante aquelas palavras, depois, avistando-a a esgueirar-se pela Grande-Rue e a voltar à direita, como que para ir ao cemitério, perderam-se em conjecturas.

- Tia Rolet - disse ela chegando a casa da ama -, sinto-me sufocar!... Desaperte-me.

Caiu sobre a cama, a soluçar. A tia Rolet cobriu-a com uma saia e deixou-se ficar de pé, junto dela. Depois, como Emma lhe não respondesse, a boa mulher afastou-se, pegou na roca e continuou a fiar o linho.

- Oh! Pare com isso! - murmurou Emma, julgando estar a ouvir o torno de Binet.

“O que será que a inquieta?”, perguntou a ama a si mesma.

“Porque terá ela cá vindo?”

Emma correra para lá empurrada por uma espécie de pavor, que a expulsava de casa.

Deitada de costas, imóvel e de olhos fixos, discernia muito vagamente os objectos, embora concentrasse neles toda a atenção, numa persistência idiota Contemplava as esfoladelas da parede, dois tições ardendo topo a topo e uma grande aranha andando bem por cima da cabeça dela, na fenda de uma trave.

Por fim reuniu as ideias. E recordava... Um dia, com Léon. Oh!

como ia longe esse tempo... O Sol brilhava sobre o riacho e as clematites embalsamavam o ar... Então, levada pelas suas recordações como no turbilhão de uma torrente, depressa chegou à lembrança da véspera.

- Que horas são? - perguntou ela.

A tia Rolet saiu, ergueu dois dedos da mão direita para o lado onde o céu estava mais claro e voltou a entrar vagarosamente, dizendo:

- Daqui a pouco devem ser três horas.

- Ah! Obrigada! Obrigada!

Porque ele não tardaria. Tinha a certeza disso! Teria encontrado dinheiro. Mas iria naturalmente lá a casa, sem imaginar que ela aqui estivesse, e mandou a ama chamá-lo.

- Vá depressa!

- Mas, minha rica senhora, lá vou, lá vou!

Agora admirava-se de não ter pensado nele em primeiro lugar, ontem dera a sua palavra, não faltaria, e imaginava-se já em casa do Lheureux, estendendo sobre a secretária as três notas de banco. Depois teria de inventar uma história para explicar tudo ao Bovary. E qual?

Entretanto, a ama estava-se demorando bastante para voltar.

Mas como não havia relógio na choupana, Emma receava que estivesse exagerando a duração do tempo. Pôs-se a dar pequenos passeios pelo quintal, passo a passo, foi caminhando ao longo do valado e voltou para trás rapidamente, esperando que a boa mulher tivesse chegado por outro caminho. Finalmente, cansada de esperar, assaltada de dúvidas que procurava repelir, sem saber se ali estava já há um século ou há apenas um minuto, sentou-se num canto, fechou os olhos e tapou os ouvidos. A cancela rangeu: ela deu um pulo, antes que tivesse tempo de falar, já a tia Rolet dissera:

- Não está ninguém na sua casa!

- O quê?

- Ninguém! E o patrão está a chorar. Chama pelo seu nome.

Andam à sua procura.

Emma não respondeu nada. Estava ofegante, relanceando os olhos em torno, enquanto a camponesa, assustada com a fisionomia dela, recuava instintivamente, pensando que estivesse louca. Subitamente levou a mão à testa e soltou um grito, pois lhe passara pela mente a recordação de Rodolphe, como um grande relâmpago numa noite escura. Era tão bom, tão delicado, tão generoso E, além disso, se ele hesitasse em fazer-lhe este favor, ela bem o saberia constranger relembrando-lhe, num momento apenas, todo o seu amor perdido.

Pôs-se então a caminho da Huchette, sem reparar que corria a entregar-se ao que pouco antes tanto a exasperava, sem sentir a mínima suspeita daquela prostituição.


VIII

Emma perguntava a si mesma, enquanto caminhava: “O que lhe irei dizer? Por onde hei-de começar?”

E, à medida que avançava, reconhecia os arbustos, as árvores, os juncos sobre a colina, o castelo lá adiante.

Voltava a encontrar as sensações da sua primeira ternura e o pobre coração oprimido dilatava-se nelas amorosamente.

Soprava-lhe no rosto uma aragem tépida, a neve, derretendo-se, caía gota a gota dos rebentos sobre a erva.

Entrou, como dantes, pela pequena porta do parque, chegando depois ao pátio nobre, orlado por uma dupla fileira de tílias frondosas, que baloiçavam, assobiando, os seus longos ramos.

Os cães no canil ladraram todos, e todo aquele ladrar ecoou sem que ninguém aparecesse.

Subiu o grande lance de escadas, com balaústres de madeira, que conduzia ao corredor com lajes empoeiradas, para onde dava uma fila de quartos, como nos mosteiros ou nas estalagens. O dele ficava no extremo, ao fundo, do lado esquerdo. Quando pôs os dedos no fecho da porta, sentiu subitamente que todas as forças a abandonavam. Tinha medo de que ele lá não estivesse, mas quase desejava que assim fosse, apesar de ser a sua única esperança, a última hipótese de salvação. Concentrou-se um minuto e, retemperando a coragem no sentimento da necessidade presente, entrou.

Ele estava em frente do fogo, com os dois pés sobre o anteparo, a fumar uma cachimbada.

- Oh!, é a senhora... - exclamou, levantando-se repentinamente.

- Sim, sou eu!... Queria, Rodolphe, pedir-lhe um conselho.

E, apesar de todos os esforços, não conseguia descerrar os lábios.

- Não mudou nada, continua encantadora como sempre!

- Oh! - retorquiu ela amargamente -, são tristes encantos, meu amigo, visto que os desdenhou.

Então Rodolphe começou uma explicação da sua conduta, desculpando-se em termos vagos, por não poder inventar coisa melhor.

Ela deixou-se prender pelas suas palavras, e mais ainda pela voz e pela presença dele, de modo que deu a impressão de acreditar, ou talvez tenha acreditado no pretexto da ruptura, era um segredo de que dependia a honra e até a vida de uma terceira pessoa.

- Paciência! - disse ela, olhando-o tristemente -, tenho sofrido bastante!

E ele respondeu em tom filosófico:

- A vida é assim!

- Terá pelo menos sido boa para si, depois da nossa separação? - continuou ela.

- Oh! Nem boa... nem má.

- Talvez valesse mais nunca nos termos deixado.

- Sim..., talvez!

- Achas? - disse Emma, aproximando-se dele.

E suspirou.

- Oh!, Rodolphe!, se soubesses!... Amava-te muito!

Foi nesse momento que ela lhe pegou na mão e ficaram algum tempo assim, com os dedos entrelaçados - como no primeiro dia, nos comícios! Num gesto de orgulho, ele debatia-se com a comoção. Ela, porém, caindo-lhe nos braços, disselhe:

- Como querias tu que eu vivesse sem ti? A gente não se desabitua da felicidade! Estava desesperada! Pensava que morria! Depois te contarei tudo isso, verás. E tu... tu fugiste-me!...

Havia três anos que Rodolphe a evitava cuidadosamente, por essa cobardia natural que caracteriza o sexo forte, e Emma continuava a fazer gestos mimalhos com a cabeça, mais meiga que uma gatinha apaixonada:

- Tu amas outras, confessa. Oh, eu compreendo-as, deixa.

Desculpo-as, naturalmente seduziste-as como me seduziras a mim. És um homem, tu! Tens tudo o que é preciso para te fazeres amar. Mas vamos recomeçar, não é verdade? Vamo-nos amar muito. Vês? Estou a rir, sinto-me feliz! Que dizes?

Estava encantadora, com aquele olhar onde tremia uma lágrima, como a água de uma tempestade num cálice azul.

Rodolphe puxou-a para os joelhos e com as costas da mão acariciava-lhe os lisos bandós, onde, à claridade do crepúsculo, rebrilhava como flecha de ouro um último raio de sol. Emma curvava a fronte, e ele acabou por beijá-la sobre as pálpebras, carinhosamente, com a ponta dos lábios:

- Mas tu choraste! - disse ele. - Porquê?

Ela rompeu em soluços. Rodolphe pensou que fosse a explosão do seu amor, uma vez que se calara, interpretou o silêncio como a última resistência do pudor e então exclamou:

- Ah! Perdoa-me! Tu és a única de quem eu gosto. Fui imbecil e mau. Mas amo-te e hei-de amar-te sempre!... O que tens?

Diz-me lá!

E ajoelhava-se diante dela.

- Pois bem!... Estou arruinada, Rodolphe! Vais-me emprestar três mil francos!

- Mas..., mas... - dizia ele, erguendo-a a pouco e pouco, enquanto o semblante lhe assumia uma expressão grave.

- Sabes - continuava ela precipitadamente -, que o meu marido tinha depositado toda a sua fortuna à guarda de um notário, ele fugiu. Pedimos dinheiro emprestado, os clientes não pagavam. Aliás ainda não liquidaram tudo, vamos receber mais tarde. Mas hoje, por falta de três mil francos, fazem-nos uma penhora, agora, neste mesmo instante, e, como contava com a tua amizade, vim procurar-te.

“Ah!”, pensou Rodolphe, empalidecendo repentinamente, “foi por isto que ela cá veio!”

Por fim disse calmamente:

- Não os tenho, minha querida senhora.

Não mentia. Se os tivesse, dar-lhos-ia certamente, ainda que, em geral, seja desagradável cometer tão belas acções:

porque um pedido pecuniário é a mais fria e devastadora de todas as tempestades que podem desabar sobre o amor.

Ela ficou primeiramente alguns minutos a observá-lo.

- Não os tens!

Repetiu várias vezes:

- Não os tens!... Eu deveria ter-me poupado a esta última vergonha. Nunca me amaste! Não vales mais do que os outros!

Traía-se, era a sua perdição.

Rodolphe interrompeu-a afirmando que ele próprio se encontrava em embaraços.

- Tenho muita pena de ti! - disse Emma. - Sim, uma pena enorme!...

E, detendo o olhar numa carabina marchetada que brilhava na panóplia:

- Mas, quando se é tão pobre, não se guarnece de prata a coronha da espingarda! Não se compra um relógio com incrustações de madrepérola! - continuava Emma, indicando o relógio de Boule. - Nem assobios de prata dourada para os chicotes - e tocava-lhes -, nem berloques para o relógio de bolso! Oh! Não lhe falta nada, nem mesmo uma licoreira no quarto!, porque tratas-te bem, vives bem, tens um castelo, quintas, matas, fazes caçadas a cavalo, viajas por Paris...

Eh!, ainda que não fosse senão com isto - exclamava ela, apanhando em cima da chaminé os seus botões de punho -, com a mínima destas futilidades, poder-se-ia fazer dinheiro!... Oh!

Mas não os quero! Guarda-os!

E atirou para longe os dois botões, cuja corrente de ouro se partiu ao bater contra a parede.

- Mas eu teria dado, teria vendido tudo, teria ido trabalhar com as minhas mãos, teria mendigado pelas ruas, por um sorriso, por um olhar, para te ouvir dizer: Obrigado! E tu deixas-te ficar aí comodamente na tua poltrona, como se ainda não me tivesses feito sofrer bastante? Se não fosses tu, bem o sabes, eu poderia ter vivido feliz! Qual era o motivo que te obrigava? Alguma aposta? No entanto dizias que me amavas... E ainda há momentos... Ah! Mais valia teres-me escorraçado!

Ainda tenho as mãos quentes dos teus beijos, e aqui está o lugar, no tapete, onde me juravas uma eternidade de amor.

Fizeste-me acreditar nisso: durante dois anos, arrastaste-me no sonho mais magnífico e delicioso!... Hem! Lembras-te dos nossos projectos de viagem? Ah!, a carta, a tua carta!

Despedaçou-me o coração!... E agora, quando me volto para ele, para ele, que é rico, feliz, livre!, para lhe implorar uma ajuda que qualquer pessoa daria, suplicando e trazendo-lhe toda a minha ternura, repele-me, porque lhe custaria três mil francos!

- Não os tenho! - respondeu Rodolphe com a perfeita calma de que se revestem, como de um escudo, as iras resignadas.

Emma saiu. As paredes tremiam, o tecto esmagava-a, e voltou a passar pela extensa alameda, tropeçando nos montes de folhas secas que o vento dispersava. Chegou finalmente ao valado diante da cancela, quebrou as unhas de encontro à fechadura, tal a pressa com que a queria abrir. Depois, cem passos adiante, sem fôlego, quase a deixar-se cair, deteve-se. Então, voltando-se, contemplou mais uma vez o impassível castelo, com o parque, os jardins, os três pátios e todas as janelas da fachada.

Ali ficou perdida de pasmo, tendo consciência de que existia apenas pelo pulsar das artérias, as quais Lhe pareciam escapar-se como uma música ensurdecedora que enchesse os campos. O chão debaixo dos seus pés era mais movediço que uma onda, e os sulcos do terreno pareceram-lhe imensas vagas escuras que rebentavam. Tudo quanto tinha na cabeça de reminiscências, de ideias, se lhe escapava ao mesmo tempo, de uma vez, como as mil peças de um fogo-de-artifício. Viu o seu pai, o gabinete de Lheureux, o quarto do hotel, outra paisagem. A loucura apossava-se dela, teve medo, conseguiu voltar a dominar-se, de uma maneira confusa, é certo, porque não se lembrava da causa do seu horrível estado, ou seja, a questão do dinheiro. Sofria apenas por causa do amor e sentia que a alma a abandonava a essa recordação, como os feridos, agonizando, sentem a vida esvair-se pelos ferimentos a sangrar.

Caía a noite, voavam gralhas.

Pareceu-lhe, repentinamente, que rebentavam no céu glóbulos cor de fogo, com balas fulminantes, achatando-se, rodopiando, rodopiando, para depois se fundirem na neve, entre os ramos das árvores. No meio de cada um deles, aparecia-Lhe a figura de Rodolphe. Multiplicavam-se, aproximavam-se, penetravam nela, depois tudo desapareceu. Reconheceu então as luzes das casas que resplandeciam, de longe, no nevoeiro.

Nesse momento, a sua situação deparou-se-lhe como um abismo.

O peito arfava-lhe como se fosse despedaçar-se. Depois, num arrojo de heroísmo em que quase se sentiu alegre, desceu a encosta a correr, atravessou a prancha das vacas, o caminho, a alameda, o mercado, e chegou à loja do farmacêutico.

Não havia lá ninguém. Ia entrar, mas, com o barulho da campainha, alguém podia aparecer, e, esgueirando-se pela cancela, retendo a respiração, apalpando as paredes, avançou até à porta da cozinha, onde ardia uma vela em cima do fogão.

Justin, em mangas de camisa, levava na mão um prato.

- Ah!, estão a jantar. Esperemos então.

Ele voltou. Ela bateu nos vidros. Ele saiu.

- A chave!, aquela lá de cima, onde estão os...

- Como?

E olhava-a muito admirado da palidez do rosto dela, que contrastava em alvura com o fundo negro da noite. Pareceu-Lhe extraordinariamente bela e majestosa como um fantasma, sem compreender o que Emma queria, pressentiu qualquer coisa de terrível.

Ela, porém, repetiu insistentemente, em voz baixa, num tom meigo, subornador:

- Quero-a! Dá-ma.

Como o tabique era delgado, ouviam-se os garfos a tilintar nos pratos na casa de jantar.

Ela dizia que precisava de matar ratos que não a deixavam dormir.

- Mas tenho de prevenir o patrão.

- Não! Espera!

Depois, com um ar de indiferença:

- Eh!, não vale a pena, que eu depois lhe digo. Vamos, alumia-me!

Entrou no corredor para onde dava a porta do laboratório. Na parede estava pendurada uma chave com a etiqueta: cafarnaum.

- Justin! - chamou o boticário, que já se impacientava.

- Vamos subir!

Ele seguiu-a.

A chave girou na fechadura e ela foi direita à terceira prateleira, tal a exactidão com que a memória a guiava, agarrou no frasco azul, arrancou-lhe a tampa, meteu-Lhe a mão e, retirando-a cheia de um pó branco, pôs-se a comê-lo directamente.

- Pare! - exclamou o rapaz, agarrando-se a ela.

- Cala-te! Pode vir alguém...

Justin desesperava-se, queria gritar.

- Não contes nada, senão recairia tudo sobre o teu patrão!

Depois voltou, subitamente calma, e quase com a serenidade de ter cumprido um dever.

Quando Charles, transtornado pela notícia da penhora, regressara a casa, Emma acabava de sair. Gritou, chorou, desmaiou, mas ela não apareceu. Onde poderia estar? Mandou Félicité a casa do Homais, a casa do Tuvache, ao Lheureux, ao Leão de Ouro, a toda a parte, e, nas intermitências da sua angústia, via a reputação arrasada, a fortuna perdida, o futuro de Berthe destruído! Por que razão?... Nem uma palavra!

Esperou até às seis horas da tarde. Finalmente, não podendo conter-se mais, e imaginando que ela tivesse partido para Ruão, foi até à estrada principal, andou meia légua, não encontrou ninguém, esperou ainda um bocado e depois voltou.

Emma já tinha regressado.

O que é que havia?... Porquê?... Explica-me!...

Ela sentou-se à sua escrivaninha e escreveu uma carta que fechou com todo o vagar, acrescentando-lhe a data do dia e a hora. Depois disse em tom solene:

- Vais lê-la só amanhã, daqui até lá peço-te que não me faças uma única pergunta!... Nem uma sequer!

- Mas...

- Deixa-me!

E deitou-se bem estendida na cama.

Despertou-a um sabor amargo que lhe veio à boca. Entreviu Charles e fechou de novo os olhos.

Analisava-se com curiosidade, para descobrir se tinha alguma dor. Mas não! Ainda nada. Ouvia o tiquetaque do relógio, o crepitar do lume e a respiração de Charles, de pé, ali junto da cama.

“Oh! A morte é uma coisa insignificante!”, pensava ela, “vou adormecer e estará tudo acabado!”

Bebeu um gole de água e voltou-se para a parede.

Aquele horrível gosto a tinta persistia.

- Tenho sede!... Tenho muita sede! - suspirou ela.

- Mas afinal o que é que tu tens? - disse Charles, estendendo-lhe um copo.

- Não é nada!... Abre a janela..., falta-me o ar!

Veio-lhe um vómito tão repentino, que mal teve tempo para agarrar o lenço debaixo do travesseiro.

- Leva-o! - disse precipitadamente. - Deita-o fora!

Charles interrogou-a, ela não respondeu. Mantinha-se imóvel, com medo de que a menor emoção a fizesse vomitar. Entretanto, sentia um frio de gelo subir-Lhe dos pés ao coração.

- Ah!, lá está agora a começar! - murmurou ela.

- O que é que estás a dizer?

Emma rebolava a cabeça num gesto lento, cheio de angústia, abrindo continuamente os maxilares, como se tivesse qualquer coisa muito pesada sobre a língua. Às oito horas reapareceram os vómitos.

Charles observou que havia no fundo da bacia uma espécie de areia branca, agarrada à porcelana.

- É extraordinário! É singular! - repetia ele.

Mas ela disse com voz forte:

- Não, enganas-te!

Então ele, delicadamente e quase acariciando-a, passou-lhe a mão sobre o estômago. Emma soltou um grito agudo. Charles recuou, aterrado.

Depois ela pôs-se a gemer, a princípio muito levemente. Um grande arrepio sacudiu-lhe os ombros e começou a ficar mais pálida que o lençol onde se lhe afundavam os dedos crispados.

O pulso irregular era agora quase imperceptível.

Surgiram-lhe gotas de suor espalhadas pelo rosto azulado que, entorpecido, parecia exalar um vapor metálico. Batia os dentes, com os olhos dilatados olhava vagamente em torno, e só respondia a todas as perguntas abanando a cabeça, chegou a sorrir duas ou três vezes. Pouco a pouco, os gemidos foram-se tornando mais fortes. Deixou escapar um uivo surdo, disse que estava melhor e que dali a pouco se levantaria. Mas entrou em convulsões e exclamou:

- Ah! É atroz, meu Deus!

Charles atirou-se de joelhos ao pé da cama.

- Fala! O que foi que comeste? Responde, pelo amor de Deus!

E fixava-a com um olhar tão cheio de ternura como ela nunca antes vira.

- Está bem, ali..., ali - disse Emma, com voz enfraquecida.

Ele deu um pulo até à escrivaninha, rasgou o envelope e leu em voz alta:

“Não acusem ninguém...” Deteve-se, passou a mão pelos olhos e tornou a ler.

- O quê!... Socorro! Acudam!

E só conseguia repetir a palavra: “Envenenada! Envenenada!”

Félicité correu a casa de Homais, que gritou a notícia na praça, a senhora Lefrançois ouviu-a no Leão de Ouro, houve pessoas que se levantaram para avisar os vizinhos e toda a noite a vila ficou em alvoroço.

Desvairado, cambaleante, quase a cair, Charles voltou para o quarto. Tropeçava nos móveis, arrancava os cabelos, nunca o farmacêutico pensara que pudesse existir espectáculo tão pavoroso.

Voltou a casa para escrever ao doutor Canivet e ao professor Larivière. Perdeu a cabeça, fez mais de quinze rascunhos.

Hippolyte largou para Neufchâtel e Justin esporeou tão violentamente o cavalo de Bovary, que o deixou na subida do Bois Guillaume, esfalfado e mais morto que vivo.

Charles quis folhear o seu dicionário de medicina, não conseguia ler nada, as linhas dançavam-lhe na frente dos olhos.

- Calma - disse o boticário. - Trata-se somente de lhe aplicar um antídoto poderoso qualquer. Qual é o veneno?

Charles mostrou a carta. Era arsénico.

- Bem, então - continuou o boticário -, é preciso fazer-lhe uma análise.

Porque ele sabia que, em todos os casos, era preciso fazer uma análise, e o outro, que não compreendia nada, respondeu:

- Ah! Faça! Faça! Salve-a...

Depois, voltando para junto dela, deixou-se cair sobre o tapete e ficou a soluçar, com a cabeça encostada à beira da cama.

- Não chores! - disse ela. - Em breve deixarei de te atormentar!

- Porquê? Que te levou a fazer isto?

Emma replicou:

- Tinha de ser.

- Não eras feliz? Foi por culpa minha? No entanto fiz tudo o que pude!

- Sim..., é verdade..., tu és bom!

E passava-lhe a mão no cabelo, lentamente. A suavidade daquela sensação sobrecarregava a tristeza de Charles, ele sentia-se afundar no desespero com a ideia de que a tivesse de perder quando, precisamente, ela lhe manifestava mais amor que nunca, não se lembrava de nada, não sabia, não tinha a coragem, completamente desorientado pela urgência de uma resolução imediata.

Entretanto Emma reflectia que tinham acabado todas as traições, as baixezas e as inumeráveis concupiscências que a torturavam. Agora não tinha ódio a ninguém, uma confusão crepuscular abatia-se-lhe sobre o pensamento, e, de todos os ruídos da Terra, apenas ouvia já o lamento intermitente daquele pobre coração, vago e indistinto, como o último eco de uma sinfonia que se afasta.

- Tragam-me a pequena - disse ela, soerguendo-se sobre o cotovelo.

- Não estás pior, pois não? - perguntou Charles.

- Não!, não!

A criança veio nos braços da criada, com a longa camisa de dormir, donde lhe saíam os pezitos descalços, muito séria e ainda quase a sonhar. Olhava com espanto o quarto todo em desordem e piscava os olhos, ofuscada pelos castiçais que brilhavam em cima dos móveis. Lembravam-lhe sem dúvida o dia de Ano Novo ou o da mi-carême, quando, acordada assim muito cedo à luz das velas, vinha até à cama da mãe para receber as prendas, porque se pôs a dizer:

- Então onde está, mamã?

E, como todos se calassem:

- Mas não vejo o meu sapatinho!

Félicité inclinava-a na direcção da cama, enquanto ela continuava a olhar para o lado da chaminé.

- Foi a minha ama que o levou? - perguntou a criança.

E a este nome, que a remetia de novo à lembrança dos seus adultérios e desgraças, a senhora Bovary voltou a cara, como que sentindo a repugnância doutro veneno mais forte subindo-lhe à boca. Berthe, entretanto, deixara-se ficar em cima da cama.

- Oh!, como tens os olhos grandes, mamã! Estás tão pálida! E a suar tanto!...

A mãe olhava para ela.

- Tenho medo! - disse a pequena, recuando.

Emma pegou-lhe na mão para a beijar, mas ela resistiu.

- Basta! Levem-na daqui! - exclamou Charles, que soluçava na alcova.

Depois os sintomas interromperam-se por uns momentos, Emma parecia menos agitada, e, a cada palavra, por mais insignificante, a cada respiração que lhe saía do peito, um pouco mais calma, ele recobrava as esperanças. Finalmente, quando chegou o doutor Canivet, atirou-se-lhe nos braços a chorar.

- Ah!, é o senhor! Obrigado! Que bondade a sua! Mas parece-me que já está melhor. Olhe, veja-a..

O colega não foi de modo nenhum da mesma opinião e, não se pondo com meias medidas, como ele mesmo dizia, receitou logo um vomitório, para desembaraçar completamente o estômago.

Ela não tardou a vomitar, sangue. Os lábios cerraram-se-lhe mais. Tinha os membros contraídos, o corpo coberto de manchas escuras e o pulso sentia-se debaixo dos dedos como um fio esticado, como uma corda de harpa quase a partir-se.

Depois começou a gritar horrivelmente. Amaldiçoava o veneno, invectivava-o, suplicava-lhe que se apressasse e repelia com os braços inteiriçados tudo o que Charles, mais agonizante do que ela, se esforçava por fazê-la beber. Ele estava de pé, com o lenço na boca, arquejante, a chorar, sufocado pelos soluços que o faziam estremecer até aos calcanhares, Félicité corria de um lado para o outro do quarto, Homais, imóvel, soltava profundos suspiros, e o doutor Canivet, mantendo sempre o seu aprumo, começava apesar de tudo a sentir-se perturbado.

- Oh!, diabo!... No entanto... ela já está purgada, e, desde que a causa cesse...

- Deve cessar o efeito - atalhou Homais. - É evidente.

- Mas salvem-na! - exclamava Bovary.

Por isso, sem escutar o farmacêutico, que arriscava ainda a hipótese de ser talvez um paroxismo salutar, Canivet preparava-se para lhe administrar teriaga, quando se ouviu o estalar de um chicote, logo a seguir todas as vidraças estremeciam e uma carruagem de posta, puxada a toda a força por três cavalos enlameados até às orelhas, surdiu repentinamente da esquina do mercado. Era o professor Larivière.

A aparição de um deus não teria causado tanta emoção. Bovary levantou as mãos, Canivet largou logo tudo e Homais tirou o boné da cabeça muito antes de o doutor entrar.

Larivière pertencia à grande escola cirúrgica saída de Bichat, a essa geração, já desaparecida, de médicos filósofos que, dedicando à sua arte um amor fanático, a exerciam com exaltação e sagacidade! No seu hospital, tudo tremia quando ele se irava e os alunos tinham-lhe tal veneração que, logo que se estabeleciam, se esforçavam por imitá-lo o mais possível, de modo que se podia ver neles, pelas vilas dos arredores, a sua longa capa de merino e o amplo fato preto, que, desabotoado, lhe encobria um pouco as mãos carnudas, umas mãos belas que nunca calçavam luvas, como para estarem mais prontas a mergulhar nos mistérios. Desdenhando as condecorações, os títulos e as academias, hospitaleiro, liberal, paternal com os pobres, praticando a virtude sem crer nela, teria quase passado por um santo, se a agudeza do seu espírito o não tornasse temido como um demónio. O seu olhar, mais cortante do que os bisturis, penetrava directamente na alma e desarticulava todas as mentiras, atravessando alegações e pudores. E assim avançava, cheio da bondosa majestade que a consciência de um grande talento, a sorte e quarenta anos de uma existência laboriosa e irrepreensível conferem.

Logo da porta franziu o sobrolho, avistando o rosto cadavérico de Emma, estendida de costas, com a boca aberta.

Depois, dando a impressão de escutar Canivet, passava o indicador pelo bigode e repetia:

- Está bem, está bem.

Mas fez um gesto lento com os ombros. Bovary olhou para ele, fixaram-se um ao outro, e aquele homem, apesar de tão habituado ao aspecto da dor, não pôde conter uma lágrima que lhe caiu sobre o peitilho.

Quis levar Canivet para o quarto contíguo. Charles acompanhou-o.

- Está muito mal, não é? Se Lhe aplicássemos sinapismos? Eu nem sei! Veja o senhor professor se descobre qualquer coisa, já tem conseguido salvar tanta gente!

Charles cingia-lhe o corpo com os dois braços e fitava-o com ar desvairado, suplicante, meio desfalecido, apoiando-se-lhe no peito.

- Então, meu pobre rapaz, é preciso coragem! Não há nada a fazer.

E o doutor Larivière voltou-se.

- Vai-se embora?

- Já venho.

Saiu, como que para dar uma ordem ao postilhão, juntamente com Canivet, que também não estava interessado em ver Emma morrer-lhe nas mãos.

O farmacêutico reuniu-se-lhes na praça. Não podia, por temperamento, separar-se das pessoas célebres. Por isso suplicou ao doutor Larivière que lhe concedesse a elevada honra de aceitar o convite para o almoço.

Mandaram logo à pressa buscar borrachos ao Leão de Ouro, tudo o que restava de costeletas no talho, natas a casa do Tuvache, ovos a casa do Lestiboudois e o próprio boticário ajudava nos preparativos, enquanto a senhora Homais dizia, apertando os cordões do corpete:

- O senhor doutor desculpará, porque nesta triste terra, quando não estamos prevenidos de véspera...

- Os cálices de pé!!! - segredou Homais.

- Se ao menos morássemos na cidade, teríamos o recurso dos pezinhos recheados.

- Cala-te!... Para a mesa, senhor doutor!

Após as primeiras garfadas, achou que era bom dar alguns pormenores sobre a catástrofe:

- Começou por uma sensação de secura na faringe, depois dores intoleráveis no epigastro, superpurgação, coma.

- Como é que ela então se envenenou?

- Ignoro-o, senhor doutor, e nem sei mesmo onde terá podido encontrar aquele ácido arsenioso.

Justin, que transportava uma pilha de pratos, foi acometido de uma tremura.

- O que tens? - perguntou o farmacêutico.

O rapaz, ouvindo a pergunta, deixou cair tudo no chão, com grande estardalhaço.

- Estúpido! - gritou Homais -, desastrado! Molengão! Grande burro!

Dominando-se, porém, subitamente:

- Eu quis, senhor doutor, tentar uma análise e, primo, introduzi delicadamente um tubo...

- Teria sido muito melhor - disse o cirurgião -, introduzir-Lhe os dedos na garganta.

O colega mantinha-se calado, havendo pouco antes recebido uma forte admoestação a propósito do seu vomitório, de modo que o bom do Canivet, tão arrogante e verboso por ocasião do pé boto, estava hoje muito modesto, não fazia outra coisa senão sorrir, à maneira de aprovação.

Homais irradiava o seu orgulho de anfitrião e a aflitiva lembrança de Bovary contribuía vagamente para o seu prazer, por um reflexo egoísta que provocava em si próprio. Depois sentia-se enlevado pela presença do professor. Ostentava a sua erudição, citava confusamente as cantáridas, o upas, a mancenilheira, a víbora.

- E até já soube de várias pessoas que ficaram intoxicadas, doutor, e como que fulminadas por chouriços que tinham sofrido uma fumigação demasiado veemente! Pelo menos, foi o que li num magnífico relatório da autoria de uma das nossas sumidades farmacêuticas, um dos nossos mestres, o ilustre Cadet de Gassicourt!

A senhora Homais reapareceu com uma dessas máquinas oscilantes que se aquecem com álcool, porque Homais não dispensava o seu café feito ali mesmo na mesa e que, aliás, ele próprio torrara, pulverizara e misturara.

- Saccharum, doutor - disse ele, oferecendo o açúcar.

Depois mandou chamar os filhos todos, curioso de saber a opinião do professor a respeito da constituição deles.

Finalmente, já o doutor Larivière se ia embora quando a senhora Homais lhe pediu uma consulta para o seu marido. Ele ficava com o sangue espesso, deixando-se adormecer todas as noites depois do jantar.

Larivière fez um trocadilho a propósito do sangue e, sorrindo, abriu a porta. A farmácia, porém, regurgitava de gente, e ele teve uma dificuldade enorme em se descartar do Tuvache, o qual receava que a mulher tivesse uma pneumonia, porque tinha o hábito de cuspir nas cinzas, depois foi o Binet, que de vez em quando sentia um apetite exagerado, e a senhora Caron, que tinha formigueiros, ainda Lheureux, que sentia vertigens, Lestiboudois, que tinha reumatismo, a senhora Lefrançois, que se queixava de azia. Por fim, os três cavalos lá largaram e, de um modo geral, todos acharam que o médico não fora nada complacente.

A atenção pública foi distraída pelo aparecimento do padre Bournisien, que atravessava o mercado com os óleos sagrados.

Homais, para não fugir aos seus princípios, comparou logo os padres a corvos atraídos pelo cheiro dos mortos.

A vista do eclesiástico era-lhe pessoalmente desagradável, porque a sotaina lhe fazia lembrar uma mortalha, e detestava uma pelo receio que lhe inspirava a outra.

No entanto, não se furtando ao que chamava a sua missão, voltou a casa de Bovary, na companhia do doutor Canivet, que o Prof. Larivière, antes de partir, admoestara a estar presente, e até, se não fossem as objecções da mulher, teria levado consigo os dois filhos, para os habituar às circunstâncias difíceis, para que fosse uma lição, um exemplo, um quadro solene que lhes ficasse, mais tarde, na memória.

Quando entraram, o quarto estava cheio de uma solenidade lügubre. Em cima da mesa de costura, coberta com uma toalha branca, havia cinco ou seis bolinhas de algodão numa bandeja de prata, junto de um grande crucifixo, entre dois castiçais acesos. Emma, com o queixo encostado ao peito, abria desmesuradamente os olhos, e as suas pobres mãos moviam-se sobre o lençol com aquele gesto horrendo e lento dos agonizantes, que parecem querer cobrir-se já com o sudário.

Pálido como uma estátua, com os olhos vermelhos como brasas, Charles, sem chorar, mantinha-se na frente dela, aos pés do leito, enquanto o padre, apoiado num joelho, murmurava palavras em surdina.

Ela voltou a cabeça lentamente e pareceu possuída de alegria ao ver subitamente a estola roxa, reencontrando sem dúvida, no meio de uma calma extraordinária, o deleite perdido desde os seus primeiros impulsos místicos, com visões de uma bem-aventurança eterna que se aproximava.

O padre levantou-se para pegar no crucifixo, então ela estendeu o pescoço como alguém que tem sede e, encostando os lábios ao corpo do Homem-Deus, depôs nele com toda a sua força agonizante o maior beijo de amor que jamais dera.

Seguidamente, ele recitou o Misereatur e o Indulgentiam, molhou o polegar direito no azeite e começou a unção: primeiro nos olhos, que tanto haviam cobiçado todas as sumptuosidades terrestres, depois nas narinas, ávidas de brisas cálidas e perfumes amorosos, depois na boca, que se abria para a mentira, que gemera de orgulho e gritara de luxúria, depois nas mãos, que se deleitavam com suaves contactos, e, finalmente, nas plantas dos pés, tão rápidos outrora quando corria a saciar os seus desejos e que não voltariam a caminhar.

O padre limpou os dedos, deitou ao fogo os pedaços de algodão molhados de azeite e foi sentar-se ao pé da moribunda para Lhe dizer que devia agora unir os seus sofrimentos aos de Jesus Cristo e entregar-se à misericórdia divina.

Quando terminou as suas exortações, tentou meter-lhe na mão um círio benzido, símbolo das glórias celestes de que em breve estaria rodeada. Emma, demasiado enfraquecida, não pôde fechar os dedos e o círio, sem o padre Bournisien a segurá-lo, teria caído no chão.

Entretanto ela ficou menos pálida e o seu rosto tinha uma expressão de serenidade, como se o sacramento a tivesse curado.

O padre não deixou de fazer referência ao facto, explicou até ao Bovary que o Senhor, algumas vezes, prolongava a vida das pessoas quando julgava conveniente para a sua salvação, e Charles lembrou-se do dia em que, assim quase a morrer, ela recebera a comunhão.

“Talvez não valha a pena desesperar”, pensou ele.

Com efeito, ela olhou à sua volta, lentamente, como alguém que despertasse de um sonho, depois, falando distintamente, pediu o seu espelho, e ficou algum tempo a olhar-se, até ao momento em que grandes lágrimas se lhe desprenderam dos olhos.

Então atirou a cabeça para trás e, soltando um suspiro, deixou-se cair sobre a almofada.

O peito pôs-se-lhe logo a arquejar aceleradamente. A língua saiu-lhe toda da boca, os olhos, revirando-se, desmaiaram como dois globos de lâmpadas que se extinguissem, fazendo crer que já estivesse morta, se não fosse o pavoroso ritmo das costelas, sacudidas por uma respiração furiosa, como se a alma estivesse dando pulos para se libertar. Félicité ajoelhou-se diante do crucifixo, e até o próprio farmacêutico flectiu um pouco os joelhos, enquanto o doutor Canivet olhava vagamente na direcção da praça. Bournisien estava novamente entregue à oração, com o rosto inclinado para a beira da alcova, a sua longa sotaina negra arrastando atrás pelo chão. Charles ajoelhara do outro lado, com os braços estendidos para Emma.

Tinha-lhe agarrado as mãos e segurava-as, estremecendo a cada batida do coração, como que em reflexo do desabar de uma ruína. À medida que o estertor se tornava mais forte, o clérigo precipitava as suas orações, misturavam-se com os soluços abafados de Bovary, e às vezes tudo parecia confundir-se no surdo murmúrio das sílabas do latim, que soavam como dobre de sinos.

Subitamente ouviu-se no passeio um ruído de grossos tamancos, juntamente com o arrastar de um cajado, e uma voz rouca que começou a cantar:

 

Quantas vezes um belo dia de calor

Faz sonhar as meninas com amor.

 

Emma ergueu-se como um cadáver galvanizado, com os cabelos soltos, o olhar fixo, a boca aberta.

 

Para apanhar as espigas

Que os moços foram ceifar,

Na noite com as raparigas

Andou no campo a cantar.

 

- O cego! - exclamou ela.

E pôs-se a rir, com um riso atroz, frenético, desesperado, julgando ver o rosto horrendo do miserável, que se erguia nas trevas eternas como um espantalho.

 

Mas tanto o vento soprou

Que a saia lhe levantou!

 

Uma convulsão fê-la cair de novo sobre a cama. Todos se aproximaram. Deixara de existir.


IX

Depois da morte de alguém fica sempre uma espécie de assombro, por ser tão difícil de compreender esse aparecimento do nada e de aceitar a sua presença. Mas, quando Charles se apercebeu da sua imobilidade, lançou-se sobre ela, gritando:

- Adeus! Adeus!

Homais e Canivet arrastaram-no para fora do quarto.

- Tenha calma!

- Está bem - dizia ele debatendo-se. - Serei razoável, não vou fazer mal nenhum. Mas deixem-me! Quero vê-la! É minha mulher!

E chorava.

- Chore - disse o farmacêutico -, dê largas à natureza, ficará aliviado!

Mais enfraquecido que uma criança, Charles deixou-se levar para baixo, para a sala, e, dali a pouco, Homais voltou para casa.

Foi abordado na praça pelo cego, que, tendo-se arrastado até Yonville, na esperança da pomada antiflogística, perguntava a todas as pessoas que passavam onde morava o boticário.

- Que maçada! Como se eu não tivesse mais nada que fazer!

Olha, paciência, volta noutra altura!

E entrou precipitadamente na farmácia.

Tinha de escrever duas cartas, de preparar um calmante para Bovary, de arranjar uma mentira para encobrir o envenenamento e de redigir um artigo para Le Fanal, sem falar nas pessoas que o esperavam para obter informações, e, depois de os moradores de Yonville terem ouvido a sua história do arsénico que ela tomara por açúcar, com o qual fizera um creme de baunilha, Homais voltou ainda uma vez a casa do Bovary.

Encontrou-o sozinho (o doutor Canivet acabara de sair), sentado na sua poltrona, ao pé da janela, contemplando com olhar idiota o pavimento da sala.

- Agora - disse o farmacêutico -, tem de ser o doutor a fixar a hora da cerimónia.

- Porquê? Que cerimónia?

Depois acrescentou com voz balbuciante e assustada:

- Oh! Não, ora essa! Não, quero ficar com ela.

Homais, por presença de espírito, pegou num jarro de cima do aparador para regar os gerânios.

- Ah! Obrigado - disse Charles, como o senhor é bondoso!...

E não terminou, sufocado por uma abundância de recordações que aquele gesto do farmacêutico lhe evocava.

Então, para o distrair, Homais achou conveniente falar um pouco de horticultura, as plantas precisavam de humidade.

Charles baixou a cabeça em sinal de aprovação.

- Além disso, vão agora regressar os dias bonitos.

- Sim! - disse Bovary.

O boticário, tendo esgotado todas as ideias, pôs-se a afastar lentamente as pequenas cortinas da janela.

- Olhe, ali vai o senhor Tuvache a passar.

Charles repetiu maquinalmente:

- O senhor Tuvache a passar.

Homais não teve coragem de voltar a falar-Lhe de disposições fúnebres, foi o eclesiástico que conseguiu decidi-lo:

Bovary fechou-se no seu gabinete, pegou numa pena e, depois de ter soluçado durante algum tempo, escreveu:

 

Quero que a enterrem com o seu vestido de noiva, com sapatos brancos e uma grinalda. Os cabelos devem ir soltos sobre os ombros, três caixões, um de carvalho, outro de mogno e outro de chumbo. Não me digam nada, que eu terei coragem.

Estendam-lhe por cima uma grande peça de veludo verde. Quero que seja assim. Façam isto.

 

As pessoas ficaram muito admiradas com as ideias românticas de Bovary e o farmacêutico tratou logo de lhe dizer:

- O veludo parece-me uma superfluidade. A despesa, por outro lado...

- Tem alguma coisa com isso? - exclamou Charles. - Deixe-me!

O senhor não gostava dela! Vá-se embora!

O padre pôs-lhe o braço por cima para dar um passeio com ele pelo jardim. Ia discorrendo sobre a vaidade das coisas terrenas. Deus era muito grande, muito bom, devíamos submeter-nos sem murmurar aos seus desígnios e até agradecer-lhe.

Charles desatou a blasfemar:

- Abomino esse vosso Deus!

- O espírito de revolta ainda está consigo - suspirou o eclesiástico.

Bovary já estava longe. Dava grandes passadas ao longo do muro, junto da latada, e rangia os dentes, dirigia ao Céu olhares rancorosos, mas com tudo aquilo nem uma agulha boliu.

Caía uma chuva miúda. Charles, que tinha o peito descoberto, acabou por tiritar, voltou a ir sentar-se na cozinha.

Às seis horas ouviu-se um barulho de ferragens na praça: era a Andorinha que chegava, e ele ficou com a testa encostada à janela, a ver descer os passageiros, uns atrás dos outros.

Félicité estendeu um colchão para ele na sala, Charles atirou-se-lhe para cima e adormeceu.

Apesar de filósofo, o senhor Homais respeitava os mortos.

Por isso, sem guardar rancor ao pobre Charles, voltou à noite para velar o cadáver, trazendo consigo três livros e uma pasta, para tomar apontamentos.

Lá estava o padre Bournisien e dois grandes círios ardiam à cabeceira do leito, que havia sido tirado para fora da alcova.

O boticário, a quem o silêncio pesava, não tardou a formular algumas lamentações sobre esta infortunada senhora,, e o padre respondeu que agora só restava rezar por ela.

- No entanto - retorquiu Homais -, de duas coisas uma: ou ela morreu em estado de graça (como se exprime a igreja), e nesse caso não tem nenhuma necessidade das nossas orações, ou então morreu impenitente (creio que é a expressão eclesiástica), e...

Bournisien interrompeu-o, replicando, mal-humorado, que não era menos necessário rezar por isso.

- Mas - objectou o farmacêutico -, visto que Deus conhece todas as necessidades, para que poderá servir a oração?

- Como? - exclamou o eclesiástico -, a oração? Mas então o senhor não é cristão?

- Perdão! - disse Homais. - Admiro o cristianismo. Em primeiro lugar porque aboliu a escravatura, introduziu no mundo uma moral...

- Não se trata disso! Todos os textos...

- Oh!, oh!, quanto aos textos, é só abrir a história, sabe-se que foram falsificados pelos Jesuítas.

Charles entrou e, aproximando-se do leito, afastou lentamente as cortinas.

Emma tinha a cabeça inclinada sobre o ombro direito. O canto da boca, que ficara parcialmente aberta, formava um buraco escuro na parte inferior do rosto, os dois polegares continuavam recurvados para as palmas das mãos, tinha uma espécie de poeira branca espalhada pelas pestanas e os olhos começavam a desaparecer numa palidez viscosa que se assemelhava a um tecido muito fino que houvesse sido trabalhado por aranhas. O lençol fazia uma grande cova desde os seios até aos joelhos, elevando-se depois nas pontas dos dedos dos pés, e parecia a Charles que massas infinitas, um peso enorme pesava sobre ela.

O relógio da igreja badalou doze horas. Ouvia-se o cavo murmúrio do rio que corria no meio das trevas, perto do terraço. O padre Bournisien, de vez em quando, assoava-se ruidosamente e Homais fazia arranhar a pena sobre o papel.

- Vamos lá, amigo - disse ele -, é melhor retirar-se, este espectáculo aflige-o!

Assim que Charles saiu, recomeçaram as discussões entre o farmacêutico e o cura.

- Leia Voltaire! - dizia um. - Leia Holbach, leia a Enciclopédia!

- Leia as Cartas de Alguns Judeus Portugueses! - dizia o outro. - Leia a Razão do Cristianismo, de Nicolau, antigo magistrado!

Ambos se excitavam, ficavam rubros, falavam ao mesmo tempo sem se escutar um ao outro, Bournisien estava escandalizado com tamanho atrevimento, Homais admirava-se de tamanha estupidez, e não faltava muito para começarem a ofender-se mutuamente, quando Charles, de súbito, reapareceu. Um certo fascínio o atraía. Subia constantemente a escada.

Punha-se na frente dela para a ver melhor e perdia-se naquela contemplação, que, à força de ser profunda, deixara de ser dolorosa.

Lembrava-se das histórias de catalepsia, dos milagres do magnetismo, e dizia para si mesmo que, desejando-o de uma maneira extrema, talvez conseguisse ressuscitá-la. Uma vez até se inclinou para ela e disse em voz baixa: “Emma! Emma!” E o seu hálito, expelido com força, fez estremecer a chama dos círios junto à parede.

Ao amanhecer chegou a senhora Bovary sogra, Charles, quando a beijou, teve um novo acesso de choro. Ela procurou, como tentara o farmacêutico, fazer-lhe algumas observações sobre as despesas do enterro. Ficou de tal maneira exaltado que ela se calou, e foi até encarregada por ele de se dirigir imediatamente à cidade para comprar o que fosse necessário.

Charles ficou sozinho durante toda a tarde: tinham levado Berthe para casa da senhora Homais, Félicité conservou-se em cima, no quarto, com a tia Lefrançois.

À noite teve visitas. Levantava-se, apertava as mãos sem poder falar, depois iam-se sentando uns ao lado dos outros, formando um grande semicírculo em volta da chaminé. De cabeça baixa e perna traçada, abanavam o pé, soltando de quando em quando um fundo suspiro, todos se sentiam tremendamente enfadados, mas ninguém se dispunha a abandonar o seu posto.

Homais, quando apareceu novamente às nove horas (há dois dias que não se via mais ninguém na praça senão ele), vinha carregado com uma provisão de cânfora, benjoim e ervas aromáticas. Trazia também um frasco cheio de cloro, para banir os miasmas. Na altura, a criada, a senhora Lefrançois e a mãe Bovary giravam em volta de Emma, acabando de a vestir, e estenderam o comprido véu retesado que a cobriu toda até aos sapatos de cetim.

Félicité soluçava:

- Ai, minha pobre patroa! Minha pobre patroa!

- Olhem para ela - dizia, suspirando, a estalajadeira -, como ainda está linda! Dá mesmo a impressão de que se vai levantar.

Depois debruçaram-se para lhe pôr a grinalda.

Foi preciso soerguer um pouco a cabeça, e então saiu-Lhe da boca uma golfada de líquido negro, uma espécie de vómito.

- Ah!, meu Deus! O vestido, cuidado! - exclamou a senhora Lefrançois. Ajude-nos então! - dizia ela ao farmacêutico.Está com medo, se calhar?...

- Medo, eu? - replicou ele, sacudindo os ombros. Ah!, sim, quem sabe! Vi muito pior do que isto no hospital da cidade, quando estudava Farmácia! Fazíamos ponche no anfiteatro das dissecações! O nada não assusta um filósofo, e até muitas vezes digo que tenho a intenção de legar o meu corpo aos hospitais, para servir mais tarde à ciência.

Quando o padre chegou, perguntou como estava o doutor a reagir, e, à resposta do boticário, replicou:

- Compreende que o golpe é muito recente ainda!

Então Homais felicitou-o por não estar exposto, como toda a gente, a perder uma companheira querida, do que resultou uma discussão sobre o celibato dos padres.

- Porque - dizia o farmacêutico - não é natural um homem passar sem mulheres! Têm-se visto crimes...

- Mas, caramba! - exclamou o eclesiástico -, como quer o senhor que um indivíduo ligado ao casamento possa manter, por exemplo, o sigilo da confissão.

Homais atacou a confissão. Bournisien defendeu-a, alargou-se em exemplos de restituições que ela levava a fazer. Citou diferentes histórias de ladrões que subitamente se tornavam honestos. Militares, tendo-se aproximado do tribunal da penitência, sentiram abrir-se-Lhe os olhos. Havia em Friburgo um ministro...

O companheiro adormecera. Depois, como se sentia um pouco sufocar na atmosfera abafada do quarto, abriu a janela, o que despertou o farmacêutico.

- Vá lá uma pitada! - disse ele. - Aceite, ajuda a distrair.

Ao longe, em qualquer parte, ouviam-se latidos contínuos.

- Está a ouvir um cão a uivar? - disse o farmacêutico.

- Dizem que percebem que há mortos - respondeu o eclesiástico. - É como as abelhas: abandonam o cortiço quando alguém morre.

Homais não denunciou os preconceitos, porque voltara a adormecer.

Bournisien, mais resistente, continuou por algum tempo a mover os lábios, quase imperceptivelmente, depois, entrando na inconsciência, deixou cair a cabeça, largou o grande livro negro e começou a ressonar.

Estavam um na frente do outro, de barriga espetada, bochechas caídas, ar carrancudo, depois de tanto desacordo, encontrando-se, afinal, na mesma fraqueza humana, não se mexiam mais do que o cadáver que tinham ao lado e que parecia dormir.

Charles, entrando, não os acordou. Era a última vez. Vinha dizer-lhe adeus.

As ervas aromáticas ainda fumegavam e turbilhões de fumo azulado confundiam-se junto da janela com o nevoeiro que entrava. Havia algumas estrelas e a noite estava amena.

A cera caía em grossas lágrimas sobre os lençóis. Charles via arder os círios, cansando a vista contra o brilho da chama amarela.

Tremulavam reflexos sobre o vestido de cetim, branco como o luar. Emma desaparecia por baixo dele, e Charles tinha a sensação de que ela se difundia confusamente no ambiente, no silêncio, na noite, no vento que passava, nos odores húmidos que se exalavam.

Depois via-se subitamente no jardim de Tostes, sentada no banco, encostada à sebe de espinheiros, ou então em Ruão, pelas ruas, à porta de casa, no pátio dos Bertaux. Ouvia ainda o riso alegre dos rapazes pendurados nas macieiras, o quarto cheirava ao perfume dos seus cabelos, e o vestido roçava-lhe nos braços com um ruído faiscante. Aquela que ali estava era a mesma!

Ficou assim muito tempo a recordar todas as felicidades perdidas, as suas atitudes, os gestos, o timbre da voz. Após um desespero, surgia logo outro, e assim por diante, inesgotavelmente, como as ondas de um lago que transborda.

Sentiu uma terrível curiosidade: lentamente, com a ponta dos dedos, palpitando, levantou o véu. Mas soltou um grito de horror que acordou os outros dois. Arrastaram-no para a sala, em baixo.

Depois Félicité veio dizer que ele pedia cabelos.

- Corte! - respondeu o farmacêutico.

E, como ela não sentisse coragem, ele mesmo avançou com a tesoura na mão. Tremia tanto que picou a pele das fontes, em vários sítios. Por fim, retesando-se contra a emoção, deu duas ou três grandes tesouradas ao acaso, deixando marcas brancas naquela linda cabeleira preta.

O cura e o farmacêutico voltaram a entregar-se às suas actividades, não sem dormir um pouco de vez em quando, do que se acusavam reciprocamente sempre que tornavam a despertar.

Bournisien aspergia então o quarto com água benta e Homais espalhava no chão um pouco de cloro.

Félicité tivera o cuidado de pôr em cima da cómoda uma garrafa de aguardente, um queijo e um bolo grande. O boticário, que já não aguentava mais, suspirou pelas quatro horas da manhã:

- Palavra que me apetecia comer qualquer coisa!

O eclesiástico não se fez rogar, saiu para ir dizer a sua missa e voltou, depois comeram e beberam à saúde um do outro, fazendo um pouco de chacota, sem saberem porquê, excitados por aquela vaga alegria que se apodera das pessoas depois de cenas de tristeza, e, ao último calicezinho, o padre disse para o farmacêutico, com uma pancadinha no ombro:

- Acabaremos por nos entender!

Encontraram em baixo, no vestíbulo, os operários que vinham a chegar. Então Charles, durante duas horas, teve de sofrer o suplício do estrondo que faziam martelando nas tábuas. Depois desceram-na no caixão de carvalho, que encaixaram dentro dos outros dois, mas, como o esquife era demasiado grande, foi necessário encher-lhe os interstícios com a lã de um colchão.

Por fim, aplainadas, pregadas e soldadas as três tampas, expuseram-no diante da porta, abriu-se a casa toda e a gente de Yonville começou a afluir.

Chegou o tio Róuault. Desmaiou no meio da praça quando viu o pano preto.


X

Só recebera a carta do farmacêutico trinta e seis horas depois do acontecimento, e, por consideração para com a sua sensibilidade, Homais redigira-a de tal modo que era impossível saber com o que contar.

Primeiro, o pobre homem caiu como se Lhe tivesse dado um ataque de apoplexia. Depois compreendeu que ela não estaria morta. Mas podia afinal estar... Por fim enfiara uma camisola, pusera o chapéu, afivelara uma espora no sapato e partira a toda a brida, durante todo o trajecto, o tio Rouault, ofegante, consumia-se de angústias. Uma vez mesmo foi obrigado a parar. Já não via nada, ouvia vozes à sua volta, sentia-se enlouquecer.

Nasceu o dia. Avistou três galinhas pretas a dormir numa árvore, estremeceu, aterrado por aquele presságio. Então ofereceu à Virgem três casulas para a igreja e fez a promessa de ir descalço desde o cemitério dos Bertaux até à capela de Vassonville.

Entrou em Maromme bradando pela gente da estalagem, arrombou a porta com os ombros, correu ao saco de aveia, esvaziou na manjedoura uma garrafa de sidra doce e voltou a montar o potro, fazendo-o ferir lume com as quatro ferraduras.

Ia pensando que talvez a conseguissem salvar, os médicos encontrariam com certeza um remédio. Lembrava-se de todas as curas milagrosas que lhe tinham contado.

Depois via-a já morta. Ali, diante dele, estendida de costas, no meio da estrada. Puxava as rédeas e a alucinação desaparecia.

Em Quincampoix, para cobrar ânimo, bebeu três cafés, um atrás do outro.

Pensou se não se teriam enganado a escrever o nome. Procurou a carta no bolso, achou-a mas não teve coragem de a abrir.

Chegou a imaginar que poderia ser uma partida, uma vingança de alguém, uma fantasia de algum brincalhão, além disso, se ela tivesse morrido, não se saberia já? Mas não! O campo não tinha nada de extraordinário: o céu estava azul, as árvores oscilavam, passava um rebanho de ovelhas. Avistou a vila, viram-no chegar todo debruçado sobre o cavalo, que estimulava com grandes fustigadelas e cuja cilha gotejava sangue.

Quando recuperou a consciência, caiu a chorar nos braços de Bovary:

- A minha filha! Emma!, minha filha! Explique-me...!

E o outro respondia entre soluços:

- Não sei, não sei! Foi uma maldição!

O boticário separou-os.

- Esses horríveis pormenores são inúteis. Depois informarei o amigo. Está a chegar gente. Dignidade, senhores! Filosofia!

O pobre Bovary queria mostrar-se forte e repetia várias vezes:

- Sim... coragem!

- Pois bem - exclamou o velhote -, por mim hei-de tê-la!

Coragem de um raio! Vou acompanhá-la até ao fim.

O sino dobrava. Tudo estava pronto. Tiveram de se pôr a caminho.

E, sentados num banco do coro, um ao lado do outro, viram passar e repassar continuamente por diante deles os três chantres que salmodiavam. O serpentão soprava a plenos pulmões. O padre Bournisien, em grande cerimonial, cantava com voz aguda, fazia vénias diante do sacrário, levantava as mãos, estendia os braços. Lestiboudois circulava pela igreja com a sua régua de barba de baleia, próximo da estante do coro, o caixão repousava entre quatro fileiras de círios. Charles sentia-se tentado a levantar-se para os ir apagar.

Procurava, no entanto, exercitar-se na devoção, entregar-se à esperança de uma vida futura em que a tornaria a encontrar.

Imaginava que ela partira para uma viagem, para muito longe, desde há muito tempo. Mas, quando pensava que ela se encontrava ali debaixo e que tudo acabara, que a levariam a enterrar, sentia uma raiva feroz, negra, desesperada. Às vezes julgava já nada sentir e saboreava essa suavização da sua dor, enquanto estava ainda mais próximo de ser um miserável.

Ouviu-se o ruído seco de um pau ferrado batendo compassadamente o chão de lajes. O ruído vinha do fundo e deteve-se repentinamente numa das naves laterais da igreja. Um homem de grossa jaqueta escura ajoelhou-se com muita dificuldade. Era Hippolyte, o moço do Leão de Ouro. Pusera a sua perna nova.

Um dos chantres veio dar a volta à igreja para fazer a colecta, e as grandes moedas começaram a tinir, umas atrás das outras, na salva de prata.

- Despachem-se lá com isso! Estou farto de sofrer! - exclamou Bovary, atirando-lhe furioso uma moeda de cinco francos para a bandeja.

O homem da igreja agradeceu-lhe com uma grande vénia.

Cantavam, ajoelhavam-se, tornavam a levantar-se, e aquilo nunca mais acabava! Lembrou-se de que uma vez, nos primeiros tempos, tinham assistido juntos a uma missa e se haviam colocado do lado oposto, à direita, encostados à parede.

O sino recomeçou a dobrar. Houve um grande movimentar de cadeiras. Os cangalheiros passaram os seus três paus por baixo do caixão e as pessoas saíram da igreja.

Justin apareceu então à porta da farmácia, mas voltou logo depressa para dentro, pálido, a cambalear.

Havia gente às janelas para ver passar o cortejo. Chàrles, à frente, seguia curvado. Mostrava-se corajoso e cumprimentava com um gesto aqueles que, saindo das ruelas ou das portas, se juntavam à multidão.

Os seis homens, três de cada lado, caminhavam a passos curtos, um tanto ofegantes. Os padres, os chantres e os dois meninos do coro recitavam o De profundis, as suas vozes espalhavam-se no campo, subindo e descendo com ondulações. Por vezes desapareciam nas curvas do caminho. Mas a grande cruz de prata via-se sempre erguida por entre as árvores.

Seguiam-se as mulheres de capas pretas e capuzes na cabeça, levavam na mão uma grande tocha acesa, e Charles sentia-se desfalecer com aquela contínua repetição de orações e de luzes, com os insípidos cheiros da cera e das batinas.

Soprava uma brisa fresca, verdejavam os centeios e as couves-nabiças, tremiam gotinhas de orvalho à beira do caminho, sobre as sebes de espinheiros. Toda a espécie de ruídos alegres enchiam o horizonte: o bater de uma carroça rodando ao longe sobre os trilhos, o eco do cantar de um galo ou o galope de um potro que corria a esconder-se debaixo das macieiras. O céu puro tinha ainda algumas manchas cor-de-rosa, sobre as choupanas cobertas de íris pairavam alguns clarões azulados. Charles, ao passar, reconhecia os pátios.

Lembrava-se das manhãs, como esta, em que, depois de visitar algum doente, saía dali e voltava para ela.

O pano preto, enfeitado de lágrimas brancas, levantava-se de vez em quando, descobrindo o esquife. Os cangalheiros, cansados, afrouxavam o passo, e o caixão avançava aos constantes safanões, como uma chalupa baloiçando a cada vaga.

Chegaram.

Os homens continuaram até mais abaixo, a um lugar relvado onde a cova fora aberta.

As pessoas agruparam-se em volta e, enquanto o padre falava, a terra vermelha, amontoada sobre as bordas, ia correndo pelos cantos, continuamente, sem ruído.

Depois, quando já tinham posto as quatro cordas em posição, arrastaram o caixão para cima delas. Charles viu-a descer. Ia descendo sempre.

Ouviu-se por fim um embate, as cordas, rangendo, foram puxadas para cima. Então Bournisien pegou na pá que Lestiboudois lhe estendia, com a mão esquerda, enquanto aspergia com a direita, empurrou vigorosamente uma grande pazada, e a madeira do caixão, atingida pelas pedras, fez aquele formidável ruído que nos parece ser o retumbar da eternidade.

O eclesiástico passou o hissope ao vizinho. Era o senhor Homais. Este sacudiu-o com circunspecção, depois estendeu-o a Charles, que caiu de joelhos no chão e aspergia freneticamente, ao mesmo tempo que gritava: “Adeus!”, E atirava-lhe beijos, arrastava-se para a beira da cova para se despenhar juntamente com ela.

Levaram-no dali, não tardou a acalmar, sentindo provavelmente, como os outros, a vaga satisfação de tudo ter acabado.

De volta, o tio Rouault pôs-se calmamente a fumar o seu cachimbo, o que Homais, no seu foro íntimo, julgou pouco apropriado. Notou igualmente que o senhor Binet se abstivera de comparecer, que Tuvache se safara” depois da missa e que Théodore, o criado do tabelião, levava um fato azul, como se não fosse possível encontrar um fato preto, já que o costume era esse, que diabo!” E, para comunicar as suas observações, passava de um grupo para outro. Todos deploravam a morte de Emma, e principalmente Lheureux, que não faltara ao enterro.

- Pobre senhora! Que dor para o marido!

O farmacêutico prosseguia:

- Fiquem sabendo que, se não fosse eu, ele teria certamente cometido algum atentado funesto contra si mesmo!

- Uma pessoa tão boa! Só em pensar que a vira ainda no sábado passado na minha loja!

- Não tive vagar - disse Homais - para preparar algumas palavras que teria gostado de proferir junto à sepultura.

Chegado a casa, Charles despiu-se e o tio Rouault voltou a enfiar a sua camisola azul. Era nova e, como, pelo caminho, muitas vezes limpara os olhos com as mangas, largara-lhe tinta na cara, e os vestígios das lágrimas traçavam-lhe linhas na camada de poeira que a sujava.

A senhora Bovary mãe estava com eles. Nenhum dos três tinha nada para dizer. Por fim, o velhote começou, com um suspiro:

- O amigo lembra-se uma vez, quando foi a Tostes, na altura em que acabara de perder a sua primeira defunta? Dessa vez fui capaz de o consolar! Encontrei qualquer coisa para dizer, mas agora...

Depois, com um longo gemido, que Lhe fez erguer todo o peito:

- Ah! É que para mim acabou-se tudo, veja bem! Vi partir a minha mulher..., depois o meu filho..., e hoje a minha filha!

Quis voltar imediatamente para os Bertaux, dizendo que não poderia dormir naquela casa. Recusou até ver a neta.

- Não!, não! Seria sofrimento de mais para mim. A única coisa que lhe peço é que lhe dê muitos beijos por mim!

Adeus!... Você é um bom rapaz! E depois, nunca poderei esquecer isto - disse ele, batendo na coxa -, não tenha dúvidas! Receberá sempre o seu peru.

Quando, porém, já ia no alto da encosta, voltou-se, como se voltara outrora no caminho de Saint-Victor, no dia em que se separara dela. As janelas da aldeia brilhavam todas com o fogo dos raios oblíquos do Sol, que se punha na pradaria. Colocou uma mão na frente dos olhos e avistou no horizonte um cercado de muros onde algumas árvores, aqui e além, faziam sombras escuras entre pedras brancas, depois continuou o caminho, num trote lento, porque o potro coxeava.

Charles e a mãe, naquela noite, apesar da fadiga, ficaram a conversar juntos durante muito tempo. Falaram do passado e do futuro. Ela viria morar para Yonville, tomar-lhe-ia conta da casa, não se separariam mais. Foi muito habilidosa e cariciosa, regozijando-se interiormente de recuperar uma afeição que havia tantos anos lhe escapara. Soou a meia-noite.

A vila, como habitualmente, estava em silêncio, e Charles, desperto, continuava a pensar em Emma.

 

Rodolphe, que, para se distrair, andara todo o dia batendo mato, dormia tranquilamente no seu castelo, e Léon, lá longe, também dormia.

Havia outro que, àquela hora, não estava a dormir.

Sobre a sepultura, entre os abetos, chorava um rapazola ajoelhado, com o peito despedaçado pelos soluços, arquejando na sombra, sob a pressão de uma imensa saudade, mais doce que a Lua e mais insondável que a noite. Subitamente o portão bateu. Era Lestiboudois, vinha buscar a pá que lá deixara ficar.

Reconheceu Justin saltando o muro e ficou então a saber quem era o larápio que lhe roubava as batatas.


XI

Charles, no dia seguinte, mandou regressar a pequenita.

Ela perguntou pela mamã. Responderam-lhe que estava ausente e que Lhe traria brinquedos. Berthe falou nisso várias vezes, depois, com a continuação, deixou de pensar no assunto. A alegria daquela criança afligia Bovary, e ainda tinha de suportar as intoleráveis consolações do farmacêutico.

Em breve recomeçaram os problemas do dinheiro, com Lheureux novamente a incitar o seu amigo Vinçart, e Charles empenhou-se com somas exorbitantes, porque nunca quis consentir em vender o mínimo dos móveis que lhe tinham pertencido. A mãe exasperou-se com isso. Charles exaltou-se mais do que ela.

Mudara completamente. A senhora abandonou a casa.

Então cada um tratou de se aproveitar. A Lempereur reclamou seis meses de lições, embora Emma nunca tivesse tomado uma única (apesar da factura liquidada que mostrara a Bovary): era uma convenção entre as duas, o alugador de livros reclamou três anos de assinatura, a tia Rolet reclamou o porte de uma vintena de cartas, e, quando Charles lhe pediu explicações, teve a delicadeza de responder:

- Ah! Não sei nada! Eram por causa dos seus assuntos.

De cada vez que pagava uma dívida, Charles acreditava que já não houvesse mais. Surgiam outras continuamente.

Exigiu pagamentos que estavam em atraso por visitas a doentes. Mostraram-lhe as cartas que a mulher escrevera. Ainda foi preciso pedir desculpas.

Félicité usava agora os vestidos da patroa, nem todos, porque ele ainda guardara alguns e ia vê-los ao seu gabinete de toilette, onde se fechava para o efeito, ela tinha mais ou menos a mesma estatura que Emma e muitas vezes Charles, ao avistá-la por trás, tinha uma ilusão e exclamava:

- Espera! Fica!

Mas, pelo Pentecostes, ela abalou de Yonville, raptada por Théodore, roubando tudo quanto restava do guarda-roupa.

Foi por essa época que a viúva Dupuis teve a honra de lhe participar o casamento do senhor Léon Dupuis, seu filho, notário em Yvetot, com Dona Leocádia Leboeuf, de Bondeville.

Charles, entre as felicitações que lhe enviou, escreveu a seguinte frase:

“Como a minha pobre mulher se teria sentido feliz!”

Um dia em que, errando pela casa sem qualquer objectivo, subira ao sótão, sentiu, debaixo do chinelo, uma bola de papel amarrotado. Desenrolou-a e leu: “Coragem, Emma! Tenha coragem!

Não quero fazer a infelicidade da sua existência”. Era a carta de Rodolphe, caída no chão no meio de umas caixas, onde ficara até àquele momento, em que o vento da fresta a arrastara na direcção da porta. Charles ficou completamente imóvel e boquiaberto naquele mesmo local onde antes, ainda mais pálida do que ele, Emma, desesperada, havia querido morrer. Descobriu por fim um pequeno R ao fundo da segunda página. O que era aquilo? Lembrou-se das assiduidades de Rodolphe, do seu súbito desaparecimento e do ar constrangido que adoptara quando, depois disso, a tinha encontrado duas ou três vezes. Mas foi iludido pelo tom respeitoso da carta.

“Amaram-se talvez platonicamente”, pensou ele.

Além disso, Charles não era pessoa para ir até ao fundo das coisas: recuava diante das dificuldades, e o seu incerto ciúme perdeu-se na imensidade da sua dor.

“Deve ter sido adorada”, pensava ainda. “Todos os homens, com certeza, a teriam cobiçado”. Pareceu-lhe por isso mais bela, e concebeu um desejo permanente, furioso, que inflamava o seu desespero e não tinha limites, por ser agora irrealizável.

Para lhe agradar, como se ela ainda vivesse, adoptou-lhe as predilecções, as ideias, comprou botas de verniz, começou a usar gravatas brancas, punha cosméticos no bigode, assinava letras à ordem, como ela. Emma continuava a arruiná-lo para além do túmulo.

Foi obrigado a vender as pratas, peça por peça, e depois vendeu os móveis da sala. Todas as divisões da casa se foram desguarnecendo, mas o quarto, o quarto dela, ficara como dantes. Depois do jantar, Charles subia até lá. Empurrava para o pé do fogo a mesa redonda e puxava para junto de si a poltrona dela. Sentava-se defronte. Acendia uma vela num dos castiçais dourados. Berthe, junto dele, coloria gravuras.

O pobre homem sofria de a ver tão mal vestida, com os sapatos sem laços e as cavas das camisolas rasgadas até às ancas, porque a governanta não Lhe ligava nenhuma importância.

Mas a criança era tão meiga, tão gentil e inclinava tão graciosamente a cabecita, deixando cair sobre as faces rosadas a bela cabeleira loura, que ele se sentia invadido por um infinito deleite, um prazer misturado com amargura, como esses vinhos mal feitos que cheiram a resina.

Consertava-lhe os brinquedos, fazia-lhe bonecos de cartão, ou cosia-lhe a barriga rasgada das bonecas. Depois, se lhe acontecia ver a caixa da costura, uma fita no chão, ou um simples alfinete metido numa fresta da mesa, perdia-se a sonhar e ficava com um ar tão triste, que a pequena entristecia também como ele.

Já ninguém vinha visitá-los, porque Justin fugira para Ruão, onde se tornou paquete de um merceeiro, e os filhos do boticário cada vez procuravam menos Berthe para brincar, não estando Homais interessado em que a intimidade se prolongasse, dada a diferença das condições sociais.

O cego, que ele não conseguira curar com a sua pomada, voltara para a encosta do Bois-Guillaume, onde narrava aos viajantes a vã tentativa do farmacêutico, a ponto de Homais, quando ia à cidade, se ter de esconder atrás das cortinas da Andorinha, para evitar encontrar-se com ele. Odiava-o, e, no interesse da sua própria reputação, desejando a toda a força desembaraçar-se do cego, moveu contra ele uma bateria secreta, que revelava a agudeza da sua inteligência e a perfídia da sua vaidade. Durante seis meses consecutivos, puderam ler-se em Le Fanal de Rouen notícias redigidas desta maneira:

Todos aqueles que costumam dirigir-se para as férteis regiões da Picardia terão sem dúvida notado, na encosta do Bois-Guillaume, um miserável atingido por uma horrível chaga facial. Importuno, persegue as pessoas e cobra um verdadeiro imposto a todos os viajantes. Estaremos ainda nesses monstruosos tempos da Idade Média, em que se permitia aos vagabundos ostentar pelas nossas praças públicas a sua lepra e as suas escrófulas que haviam trazido das cruzadas?

Ou então:

Apesar de existirem leis contra a vagabundagem, os acessos das nossas grandes cidades continuam infestados por bandos de pobres. Vêem-se alguns circular isoladamente e que, talvez, não sejam os menos perigosos. Que pensam disto os nossos vereadores?

Depois Homais inventava histórias:

“Ontem, na encosta do Bois-Guillaume, um cavalo espantadiço...” E seguia com a narração de um acidente motivado pela presença do cego.

Fez a coisa tão bem feita que este acabou por ser internado.

Voltaram, porém, a pô-lo em liberdade. Recomeçou, e Homais também recomeçou. Era uma luta a valer. O farmacêutico obteve finalmente a vitória, pois o seu inimigo foi condenado a reclusão perpétua num hospício.

O êxito estimulou-o, e a partir de então não houve por aqueles sítios mais cão atropelado, incêndio importante, ou mulher espancada de que não desse imediato conhecimento ao público, sempre guiado pelo amor ao progresso e pelo ódio aos padres. Estabelecia comparações entre as escolas primárias e os irmãos ignorantis4 , em detrimento destes últimos, recordando a Noite de São Bartolomeu a propósito de um subsídio de cem francos concedido à igreja, denunciava abusos, lançava sátiras. Era a sua estratégia. Homais minava, tornava-se perigoso.

No entanto, sentia-se sufocar dentro dos estreitos limites do jornalismo e em breve teve necessidade de publicar um livro, uma obra! Compilou então uma Estatística Geral do Cantão de Yonville, Seguida de Observações Climatológicas, e a estatística serviu para o levar à filosofia. Preocupou-se com as grandes questões: problema social, moralização das classes pobres, piscicultura, borracha, caminhos-de-ferro, etc. Chegou a corar por ser um simples burguês. Afectava a moda artística, fumava! Comprou duas estatuetas estilo Pompadour para a decoração da sua sala.

Não abandonava de modo nenhum a farmácia, pelo contrário!

Mantinha-se ao corrente das descobertas. Acompanhava o grande movimento dos chocolates. Foi o primeiro a mandar vir do Sena Inferior cocoa e revalenta. Deixou-se entusiasmar pelas cadeias hidreléctricas Pulvermacher, ele próprio usava uma, e, à noite, quando despia o seu colete de flanela, a senhora Homais ficava deslumbrada diante da espiral de ouro que o cobria, e sentia redobrarem-se-lhe os ardores por aquele homem mais ligado que um cita e esplêndido como um mago.

Teve excelentes ideias para o túmulo de Emma. Primeiramente propôs uma coluna truncada, vestida com roupagens, depois uma pirâmide, depois um templo de Vesta, uma espécie de pavilhão circular... ou então um montão de ruínas. E em todos os planos não dispensava a presença de um chorão, que considerava o símbolo obrigatório da tristeza.

Charles e ele fizeram juntos uma viagem a Ruão, para ver túmulos na oficina de um canteiro de sepulturas, acompanhados por um artista pintor, um tal Vaufrylard, amigo de Bridoux, e que, durante todo o tempo, esteve a fazer trocadilhos. Por fim, depois de ter examinado uma centena de desenhos, de ter mandado fazer um orçamento e de ter feito uma segunda viagem a Ruão, Charles decidiu-se por um mausoléu que devia ter, nas duas faces principais, um génio segurando um facho apagado.

Quanto ao epitáfio, Homais não encontrava nada mais belo do que Sta viator, e assim ficava dando tratos à imaginação, repetia constantemente: “Sta viator...” Até que descobriu: “amabilem conjugem calcas!”, que foi adoptado.

Uma coisa estranha é que Bovary, pensando constantemente em Emma, a esquecia, e desesperava por sentir que a imagem dela se lhe escapava da memória no meio dos esforços que fazia para retê-la. Sonhava no entanto com ela todas as noites, era sempre o mesmo sonho: aproximava-se dela, mas quando conseguia abraçá-la, desfazia-se-lhe em podridão nos braços.

Durante uma semana viram-no entrar todas as tardes na igreja. O Padre Bournisien chegou a fazer-Lhe duas ou três visitas, depois abandonou-o. Aliás, o velhote pendia para a intolerância, para o fanatismo, dizia Homais, invectivava contra o espírito do século e não se esquecia de, todas as quinzenas, no sermão, contar a agonia de Voltaire, que morrera devorando os seus próprios excrementos, como todos sabiam.

Apesar do modo modesto como vivia Bovary, estava longe de poder amortizar as suas dívidas antigas. Lheureux recusou renovar qualquer letra. A penhora estava iminente. Recorreu então à mãe, que consentiu em deixar hipotecar os seus bens, mas não perdeu a ocasião de fazer severas recriminações contra Emma, e pedia-lhe, em compensação do sacrifício, um xaile que escapara à pilhagem de Félicité. Charles recusou-lho.

Desentenderam-se.

Foi ela quem deu os primeiros passos para a reconciliação, propondo-lhe levar a pequenita consigo, para a ajudar em casa.

Charles consentiu. Mas, no momento da despedida, faltou-lhe toda a coragem. Deu-se então a rotura completa e definitiva.

À medida que ia perdendo as suas afeições, mais estreitamente se apegava ao amor da filha. Ela causava-lhe entretanto preocupações, porque tossia algumas vezes e tinha rosetas muito vivas nas faces.

Defronte dele ostentava-se, florescente e hilariante, a família do farmacêutico, que tudo na vida contribuía para satisfazer.

Napoléon ajudava-o no laboratório, Athalie bordava-lhe um boné, Irma recortava rodelas de papel para cobrir as compotas e Franklin recitava, de um fôlego só, a tábua de Pitágoras.

Homais era o mais feliz dos pais, o mais afortunado dos homens.

Engano! Andava minado por uma ambição surda: queria ter uma condecoração. Títulos não lhe faltavam:

1. Ter-se evidenciado, por ocasião da cólera, por uma dedicação sem limites,

2. Ter publicado, e a expensas próprias, diferentes obras de utilidade pública, tais como...

(E recordava a sua memória intitulada: Da Sidra, do seu Fabrico e dos Seus Efeitos, além disso as observações sobre o pulgão lanígero, enviados à Academia, o seu volume de estatística, e até a sua tese de Farmácia), sem contar que era membro de várias sociedades científicas (era-o apenas de uma).

- Finalmente - exclamava ele, fazendo uma pirueta -, quanto mais não fosse, por me ter evidenciado nos incêndios!

Então Homais começou a inclinar-se para o poder. Prestou secretamente ao prefeito grandes serviços durante as eleições.

Vendeu-se por fim, deixou-se corromper. Chegou a dirigir ao soberano uma petição em que lhe suplicava que lhe fizesse justiÇa, chamava-Lhe nosso bom rei e comparava-o a Henrique IV.

E todas as manhãs o boticário se lançava sobre o jornal para nele descobrir a sua nomeação, e ela não vinha. Por fim, não aguentando mais, mandou fazer no seu jardim um tabuleiro de relva com o feitio de uma cruz da Legião de Honra, imitando até a fita com dois prolongamentos de erva partindo da haste superior. Punha-se a passear-lhe em volta, de braços cruzados, meditando na inépcia do governo e na ingratidão dos homens.

Por respeito, ou por uma espécie de sensualismo que o fazia imprimir lentidão às suas investigações, Charles não abrira ainda o compartimento secreto de uma escrivaninha de palissandro de que Emma habitualmente se servia. Um dia, finalmente, sentou-se-lhe na frente, deu a volta à chave e abriu-a. Lá estavam todas as cartas de Léon. Desta vez não restavam dúvidas! Devorou-as completamente até à última, rebuscou em todos os cantos, todos os móveis, todas as gavetas, atrás das paredes, soluçando, uivando, desvairado, enlouquecido. Descobriu uma caixa, arrombou-a com um pontapé.

O retrato de Rodolphe quase lhe saltava ao rosto, no meio das cartas de namoro revolvidas.

Admiraram-se do seu desânimo. Deixou de sair, não recebia ninguém, até se recusava a visitar os doentes. Insinuaram então que se fechava para beber.

Entretanto, às vezes algum curioso esticava-se para espreitar por cima da cerca do quintal e observava pasmado aquele homem de barba comprida, coberto de sórdidos farrapos, com aspecto feroz, chorando alto enquanto caminhava.

À tarde, no Verão, pegava na sua filhita e levava-a ao cemitério. Só voltava de lá noite cerrada, quando a única luz acesa sobre a praça era a da água-furtada de Binet.

A voluptuosidade da sua dor era porém incompleta, porque não havia junto de si ninguém que a compartilhasse, fazia visitas à tia Lefrançois para poder falar dela. Mas a estalajadeira pouca atenção lhe dava, pois, como ele, tinha também as suas relações, porque o senhor Lheureux acabara finalmente de inaugurar as Favoritas do Comércio e Hivert, que gozava de grande reputação nas encomendas, exigia aumento de salário e ameaçava passar-se para o lado da concorrência.

Um dia em que fora ao mercado de Argueil para vender o cavalo - seu último recurso - encontrou Rodolphe.

Empalideceram quando se avistaram. Rodolphe, que apenas mandara um cartão, começou por balbuciar algumas desculpas, depois ganhou confiança e levou a ousadia até ao ponto de o convidar a beber uma cerveja no botequim (estava-se no mês de Agosto e fazia muito calor).

Sentado em frente dele, mordia o charuto enquanto conversava, e Charles perdia-se em cogitações diante daquela fisionomia que Emma amara. Parecia-Lhe tornar a ver qualquer coisa dela. Era uma espécie de encantamento. Quisera ele ser aquele homem.

O outro continuava a falar de agricultura, de gado, de adubos, preenchendo com frases banais quaisquer pausas que pudessem dar lugar a alguma alusão. Charles não o estava a escutar, Rodolphe apercebeu-se disso e seguiu, nos movimentos fisionómicos dele, a passagem das recordações. Charles ia ficando gradualmente mais enrubescido, as narinas palpitavam-lhe rapidamente, os lábios tremiam-Lhe, houve mesmo um instante em que ele, possuído de uma fúria tenebrosa, fixou os olhos em Rodolphe, que, sentindo uma espécie de pavor, se interrompeu. Mas logo lhe reapareceu no rosto a mesma prostração fúnebre.

- Não Lhe desejo mal - disse então.

Rodolphe emudecera. E Charles, com a cabeça apoiada nas mãos, repetiu com uma voz sumida e no tom resignado das dores infinitas:

- Não, já não lhe desejo mal!

Acrescentou mesmo uma grande frase, a única que jamais dissera:

- Foi culpa da fatalidade!

Rodolphe, que manobrara aquela fatalidade, achou-a demasiado indulgente, cómica mesmo e um tanto vil na boca de um homem que se encontrava naquela situação.

No dia seguinte, Charles foi sentar-se no banco, debaixo do caramanchão. Alguns raios de sol atravessavam a latada. As folhas de parreira desenhavam a sua sombra na areia, o jasmim embalsamava o ar, o céu estava azul, havia cantáridas zumbindo em torno dos lírios floridos e Charles sentia-se sufocar, como um adolescente, sob os vagos eflúvios amorosos que lhe dilatavam o coração desgostoso.

Às sete horas, a pequenina Berthe, que não o vira durante toda a tarde, foi chamá-lo para jantar.

Tinha a cabeça caída para trás e encostada à parede, os olhos fechados, a boca aberta, e segurava na mão uma longa madeixa de cabelos negros.

- Vem então, papá - disse ela.

E, acreditando que ele estivesse a brincar, empurrou-o levemente. Caiu no chão. Estava morto.

Trinta e seis horas depois, a pedido do boticário, acorreu o doutor Canivet. Fez-lhe uma autópsia e não encontrou nada.

Depois de tudo vendido, restaram doze francos e setenta e cinco cêntimos que serviram para pagar a viagem da menina Bovary para casa da avó. A pobre mulher morreu ainda nesse mesmo ano, como o avô Rouault estava paralítico, foi uma tia que se encarregou de tomar conta dela. Essa tia é pobre e manda a pequena trabalhar numa fábrica de fiação para ganhar a vida.

Desde a morte de Bovary, já três médicos passaram por Yonville, sem ali se poderem manter, de tal modo foram logo atacados pelo senhor Homais. Este tem uma clientela infernal.

As autoridades tratam-no com deferência e a opinião pública protege-o.

Acaba de receber a Legião de Honra.

 

 

 

O diploma de oficial de saúde, para o qual não era exigido o grau de bacharel, autorizava o exercício da medicina limitado a uma determinada circunscrição territorial e obrigava à presença de um médico graduado para intervenções cirúrgicas de certa importância. (N. da T.)
O escudo era uma antiga moeda de prata francesa com o valor de três libras. Como a libra fora substituída pelo franco, mil escudos valeriam três mil francos. (N. da T.)
O liard era uma pequena moeda de cobre que valia um quarto de soldo. Este, por sua vez, valia a vigésima parte de um franco. (N. da T.)
Designação pejorativa dos religiosos que se ocupavam do ensino nas escolas elementares. (N. da T.)

 

 

                                                                  Gustave Flaubert

 

 

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