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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MADISON 1300 / Iran Levin
MADISON 1300 / Iran Levin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Kay Norris, 39 anos, divorciada, competente profissional de uma editora de livros, muda-se para um apartamento alugado na zona nobre de Manhattan - o edifício 1300 da Madison Avenue - em companhia de sua gata. Ninguém sabe mas a vida de todos os moradores do prédio é vigiada por um misterioso personagem através de um sofisticado equipamento de câmeras de vídeo e escuta telefônica. Durante a primeira semana de Kay no prédio, morre um dos moradores - um escritor que ela havia conhecido poucos dias antes; é a quinta morte nos três anos de existência daquele edifício. Kay decide investigar e, por estranhos caminhos, acaba chegando ao voyeur com quem inicia um namoro.
Ele lhe revela seu segredo: o equipamento que proporciona ampla visão de todos os quartos, salas e banheiros. Apesar da indignação inicial, Kay acaba por compartilhar do "passatempo".
Certo dia, sozinha, descobre o que não devia - e a partir daí tudo se torna simples questão de sobrevivência.
Uma trama sinistra ameaça a vida de Kay, e sua gata terá participação decisiva no arrepiante final da história.

 

 

 

 

 

 

PRIMEIRA PARTE


1

A manhã de segunda-feira começara bem: os Hoffman mais uma vez se engalfinhando, o dr. Palme ao telefone com um ex- paciente suicida, a empregada dos Cole se esbaldando com um dos vibradores dos patrões, Lesley e Phil encontrando-se na lavanderia do prédio. E ficou melhor ainda. MacEvoy entrou no saguão acompanhada de uma mulher parecida com Thea Marshall, o mesmo rosto oval, os mesmos cabelos escuros. Obviamente viera ver o 20B, que fora repintado uma semana atrás.

Ele as observou enquanto subiam no elevador numero 2. Era uma mulher bem-feita de corpo, alta e de seios volumosos, trajando um bonito tailleur escuro. Olhou-o de relance, e então, com a mão apoiada na alça da bolsa a tiracolo, concentrou sua atenção em MacEvoy, que descrevia as maravilhas do ar condicionado central e da cozinha modulada. Uns trinta e cinco, trinta e seis anos. Uma grande semelhança.

Colocando a imagem da sala e do quarto do 20B nos monitores masters, viu-a entrar no vestíbulo e atravessar a sala vazia, os saltos estalando no parquete. Também de costas tinha bela aparência, parada diante da janela, contemplando os prédios mais baixos do outro lado da Madison Avenue.

- A vista é mesmo espetacular - comentou, e sua voz melodiosa lembrou a de Thea Marshall.

Não dava para ver se ela usava aliança, mas provavelmente era casada ou vivia com alguém. Iria aprová-la de qualquer maneira, bastando, é claro, que se decidisse a ficar com o apartamento. Cruzou os dedos.

Ela virou-se de costas para a janela, olhou a sua volta, sorriu. Levantou o rosto. Aproximando-se, olhou diretamente para ele - Thea Marshall olhou diretamente para ele - deixando-o sem fôlego.

- Que LUSTRE bonito - disse ela. O lustre de vidro era esculpido em curvas no estilo art dêco, e na peça cromada do centro viu sua imagem em miniatura refletida de ponta-ca- beça.

- Lindo, não é mesmo? - comentou a sra. MacEvoy, parando a seu lado. - O prédio inteiro foi decorado com este tipo de lustre. Aqui não se economizou em nada. A ideia original era construir tudo e depois vender as unidades. Considerando isso tudo, o aluguel é uma pechincha.

O aluguel era alto, porém não absurdo. A mulher voltou ao vestíbulo, contemplou a sala - recém-pintada de branco, seis por seis e meio, janela grande, assoalho parquetado, um balcão dando para a cozinha... Se o resto do apartamento estivesse nas mesmas condições, teria de tomar uma decisão imediata, logo no primeiro anúncio que pegara nos classificados. Será que queria mesmo sair da Bank Street? Passar por todas as atribulações envolvidas numa mudança?

Atravessou o vestíbulo.

A cozinha era bonita, móveis em laminado castanho e aço inox, luz fluorescente sob os armários, aparelhos eletrodomésticos em perfeito estado e com formas quadrangulares, uma bancada espaçosa.

O banheiro era estranho, se bem que interessante. Paredes de vidro preto, peças pretas, metais cromados; uma banheira de bom tamanho, um boxe com chuveiro. Lâmpadas fluorescentes em torno do armário da pia; mais um lustre art déco em forma de prato com miolo cromado sob o teto de vidro preto, embora menor que o da sala.

O quarto, no fundo do corredor, era quase do tamanho da sala, também recém-pintada de branco, a parede da esquerda toda de armários embutidos com portas sanfonadas. Mais uma janela ampla na parede do fundo, mais uma vista sensacional - uma nesga do parque começando a se tingir com as cores do outono e parte do reservatório de água, o telhado de uma mansão gótica na Quinta Avenida. Espaço de sobra para a escrivaninha na parede da direita, junto à janela, com a cama na parede oposta. Suspirou, olhando seu reflexo invertido no lustre do teto e em seguida para a sra. MacEvoy, parada junto à porta.

- Este é o primeiro apartamento que visito - disse ela.

A sra. MacEvoy sorriu:

- E uma joia. Eu não o deixaria escapar de jeito nenhum.

Voltaram ao vestíbulo. A sra. MacEvoy abriu o roupeiro.

Ela olhou mais uma vez ao seu redor, pensando em seu lindo apartamento na Bank Street com pé-direito alto e lareira funcional. E com seu clube de rock na esquina, suas baratas, seus dois anos de Jeff e seis anos de Alex.

- Ficarei com ele - disse a mulher.

A sra. MacEvoy sorriu, de novo, propondo:

- Vamos ao meu escritório. Assim você já preenche o formulário e eu dou andamento à papelada.

FICOU ANSIOSO à espera do telefonema de Edgar, que só chegou no fim da tarde de quarta-feira.

- Olá, Edgar - disse ele, desligando os dois masters. - Como vai você?

- Toleravelmente bem. E você?

- Tudo bem.

- O relatório de setembro já está a caminho; considerando-se a situação do mercado, acho que ficará satisfeito. Quanto ao problema do piso, mandei Mills falar com Dimitri.

- Diga-lhe para tentar em russo. Aquele pedaço de mármore está lá até agora. Isto é, os dois pedaços.

- Tenho quase certeza de que o mármore novo já foi encomendado. Vou verificar isso e mais tarde lhe telefono para confirmar. E a sra. MacEvoy tem uma cliente em vista para o 2ÒB. Eu já lhe contei que ele estava vago?

- Sim, contou.

- Kay Norris. Trinta e nove anos, divorciada. Trabalha como editora sênior na Diadem, portanto deve ser uma boa inquilina, calma e tranquila. Referências comerciais e bancárias excelentes. A senhora MacEvoy disse que ela é bonita. Possui um gato.

- Kay é nome ou abreviatura?

- Nome.

- Kay Norris.

- Isso mesmo.

Anotando-o na prancheta, disse:

- Ela me parece ideal. Diga a Mills para providenciar que ela tenha um atendimento especial.

- Pode deixar que eu digo. Acho que é só, no momento...

- Então não vou prendê-lo por mais tempo. - E desligou.

Sublinhou o nome anotado no bloco: KAY NORRIS.

Mais velha do que pensava: trinta e nove anos.

Thea Marshall morrera aos quarenta; respirou fundo, suspirou.

Ligou os masters e colocou a sala dela no 1 e o quarto no 2, como fizera segunda-feira pela manhã. O quarto estava inundado de luz, o sol entrando pela janela sem cortina. Diminuiu o brilho da imagem do quarto. Aumentou um pouco o da sala.

- Com as mãos no console, contemplou os dois cômodos vazios nos masters. Os monitores menores, distribuídos em fileiras, mostravam movimentos em vários lugares diferentes.

LIGOU PARA Alex na quinta-feira à noite, pedindo-lhe que viesse buscar seus livros.

- Puxa vida, Kay, sei que vivo dizendo isso, mas esta é mesmo a pior época para mim com o semestre começando. Terá de guardá-los por mais alguns meses.

- Sinto muito, Alex, mas não posso. Vou me mudar dentro de uma semana. Ou você vem buscá-los, ou então vou pô-los fora. Perdi o interesse por arquitetura medieval. Deus sabe por quê.

Ele não sabia do rompimento dela com Jeff, e mostrou-se sinceramente compadecido.

- E bom você se mudar, é uma ótima ideia. Começar de novo. E que tal é o apartamento?

Ela o descreveu.

- E fica no penúltimo andar. Dá para ver um trecho do East River pela janela da sala, e uma parte do Central Park do quarto. Superensolarado. O bairro é muito bom, com muitos prédios antigos bem conservados, prédios baixos, e a um quarteirão de distância do Museu Cooper-Hewitt.

- Mil e trezentos... Treze, zero, zero... Madison - falou no tom brincalhão que sempre usava antes de lhe desferir um golpe. - Um edifício estreito? Bem estreito?

Ela respirou fundo antes de responder.

- Sim...

- Kay, é o prédio onde um homem foi decapitado pelas engrenagens do elevador no último inverno. Lembra? O zelador. Já houve três ou quatro mortes lá, e o prédio tem poucos anos de construção. Lembro que achei uma pena ele ter o número treze, zero, zero, pois isso reforça a superstição existente em torno do treze. Foi justamente o que falaram no noticiário da televisão, "O 13-0-0 é um número azarado na Madison Avenue", ou coisa assim. É claro que você...

- Alex, eu já sabia disso. Você me acha supersticiosa? Por que razão eu iria tocar no assunto?

- Eu ia dizer: é claro que você não é supersticiosa, mas achei que gostaria de saber, caso ainda não soubesse.

- Os livros, Alex.

Ficou combinado que ele viría empacotá-los no domingo à tarde e mandaria buscá-los no meio da semana. Despediram-se, e ela recolocou o fone no gancho.

Homem confiável. Negativo, negativo, negativo.

Foi horrível o que acontecera com o zelador, mas o apartamento era excelente. Não deixaria que Alex e um apresentador sensacionalista de televisão a desanimassem. Três ou quatro mortes em três anos não era nada demais; dois apartamentos por andar significavam quarenta ao todo, mais o de cobertura, provavelmente com casais na maioria deles - sessenta ou setenta pessoas no total. Sem contar a rotatividade. E os empregados.

Felice esfregou-se em seu tornozelo. Kay pegou-a no colo, aninhou-a no ombro, e passou o rosto em sua pelagem malhada, dizendo:

- Oh, Felice, será uma surpresa para você! Um mundo inteiramente novo. Não terá mais baratas para brincar, coitadinha. Pelo menos, espero que não. Nunca se sabe.


2

Um homem de suéter azul-claro passou a sua frente, empurrou a porta de vidro e segurou-a aberta para lhe dar passagem. Ela estava carregando duas caixas de papelão cheias de objetos frágeis, uma sobre a outra, e como o porteiro fora levar as malas para alguém que pegara o mesmo táxi em que ela veio, sentiu-se grata. Sorriu e agradeceu ao homem ao passar por ele. Era jovem e tinha olhos azuis, um rapaz bonito.

Um pedreiro ajoelhado no chão talhava o piso de mármore junto à entrada da sala de correspondência. Acima da porta dos elevadores estavam acesos em vermelho o S e o 15.

O jovem atravessou o saguão atrás dela e parou a alguns metros de distância, a sua direita. Ela olhou-o de relance enquanto ele observava os dois indicadores, segurando na mão uma sacola com a inscrição Eu (coração) Nova York. Tênis, jeans, o suéter azul-claro. Boa aparência, a mesma estatura que ela, cabelo castanho-acobreado. Vinte e cinco, vinte e seis anos.

- Posso carregar uma dessas caixas para você... - disse ele, voltando-se.

- Não está pesado. Mas, obrigada de qualquer maneira.

Ele sorriu - um sorriso sedutor, largo, emoldurado por covinhas, os olhos azuis radiantes.

Ela também sorriu e olhou os indicadores: S e 15.

- Alguém está segurando o elevador - falou o rapaz, indo até o lugar onde ficavam os monitores de segurança, embutidos em um bloco de mármore marrom-claro, cercado de plantas, as telas na posição horizontal.

Terry, o porteiro, chegou afobado em seu uniforme cinzento, o rosto afogueado. A última vez em que lã estivera, dera-lhe um aperto de mão com uma nota de dez dólares.

- Desculpe por não abrir a porta para a senhora - disse ele, mostrando-se consternado.

- Não tem problema.

- O sujeito do 15 está segurando o elevador de novo - comentou o rapaz.

Terry balançou a cabeça, encaminhando-se para os monitores.

- Esses Hoffman... - Inclinou-se para examinar as imagens e apertou um botão. Pressionou-o por mais algum tempo, voltando-se para Kay. - Dimitri já está forrando o outro elevador.

- Vai demorar algum tempo para a mudança chegar - avisou ela. - Eles ainda iam parar para almoçar,

O porteiro afastou-se, dirigindo-se para a porta de entrada.

- Eu chamo pelo interfone quando eles chegarem.

- São da transportadora Mother Truckers! - gritou, por sobre as caixas.

Um carro da polícia com a sirene ligada e luzes vermelhas e brancas piscando passou a toda velocidade na avenida enquanto Terry abria a porta para um homem de abrigo com capuz, que certamente estivera praticando corrida.

- Já vem vindo - disse o rapaz. - Você está se mudando para cá?

- Sim. Para o 20B.

- Eu moro no 13A, Pete Henderson.

- Muito prazer - disse ela sorrindo. - Kay Norris.

O recém-chegado a observava a poucos metros de distância, marcando passo; quando ela o olhou de relance, ele disfarçou e olhou para o pedreiro que trabalhava no mármore. Rosto ossudo e bigode ruivo, quarentão.

- De onde está se mudando? - perguntou Pete Henderson.

- Bank Street. No Village.

A porta se abriu e um cachorro Schnauzer irrompeu de dentro do elevador, as unhas estalando contra o piso de mármore, seguro pela correia por uma mulher de terninho de jeans, óculos escuros e lenço branco no pescoço. O homem que estava atrás dela usava óculos escuros e boné de beisebol, jaqueta em estilo militar e calças cáqui. Ele a alcançou e os dois se deram as mãos enquanto seguiam o cão em direção à porta.

Carregando suas caixas, Kay entrou no elevador revestido de couro e virou-se. Pete Henderson tocou nos botões 20 e 13, iluminando-os, e olhou-a de relance. Ela sorriu. Com um aceno de cabeça ele cumprimentou o homem de abrigo, que retribuiu da mesma forma, tocou no 9, e ficou de frente para a porta que se fechava. As costas do blusão estavam marcadas por manchas escuras de suor.

Ela olhou para os números que se acendiam à medida que o elevador subia, localizados acima da porta, e em seguida para a câmera de vídeo presa em um dos cantos. Fez uma expressão de desagrado. Essas câmeras de vigilância eram úteis, é claro, já que aumentavam a segurança - e no entanto deixavam-na perturbada, com aquela sensação de estar exposta a um observador invisível.

A porta abriu. O hall do nono andar era igual ao do vigésimo e dos outros que já vira: um console e um espelho com moldura dourada, colocados contra uma parede quadriculada em preto-e-branco, e carpete marrom. O homem de abrigo virou à direita, na direção do apartamento A, enquanto a porta do elevador se fechava.

- Eu conheço muito bem o bairro - disse Pete Henderson. - De modo que, se precisar de alguma informação sobre o comércio daqui...

- Que tal o supermercado do outro lado da rua?

- É bom. Estas compras são de lá. Mas o Sloan’s da Lexing- ton é mais barateiro.

A porta deslizou.

- É bom saber - falou ela, enquanto Pete saía no hall do décimo terceiro andar: parede quadriculada em preto-e-branco, carpete marrom.

Voltando-se, ele apoiou a mão na borda da porta e lançou-lhe um sorriso sedutor.

- Bem-vinda ao prédio. Espero que goste daqui.

- Obrigada - respondeu com afabilidade.

Ele continuou sorrindo, com a mão apoiada na porta.

- Estas caixas estão começando a pesar... - disse ela.

- Ah, me desculpe! - Tirou a mão, e a porta começou a fechar. - Até logo!

- Até logo.

A porta fechou.

Ela sorriu.

Um ‘‘gato", esse Pete Henderson.

Vinte e sete anos, sensacional!

DEPOIS que OS HOMENS da mudança foram embora e ela jogou o lixo pelo conduto da lixeira do seu andar, Kay lavou-se, pegou um refrigerante dietético na geladeira, e examinou seu novo lar com objetividade. A luz suave do entardecer, sua mistura de móveis contemporâneos e vitorianos parecia bem menos confusa do que esperava. Substituindo as piores peças - talvez por algo art déco, combinando com os lustres - e tirando as caixas de papelão, arrumando os livros na estante, pendurando as cortinas e os quadros, com aquela iluminação e aquela beleza de vista, o banheiro e a cozinha modulada, e o abençoado silêncio, o apartamento realmente ficaria muito melhor que o anterior, sob todos os aspectos. E livre das lembranças do passado! A única coisa de que teria saudade era a lareira. Felice também sentiría falta dela, pois sempre vinha correndo ao ouvir o barulho da corren- tinha da tela de proteção...

Telefonou a Roxie e propôs-se a ir buscar Feliôfe naquela mesma noite, mas a amiga disse que estava trabalhando e preferia deixar as coisas da maneira como haviam combinado: ela lhe levaria a gata no dia seguinte, à tarde, e ajudaria na arrumação da mudança. Poderíam jantar juntas, já que Fletcher estava viajando. Felice estava ótima.

Tornou a ligar para Sara e recebeu os recados, não muitos e nenhum que não pudesse esperar até segunda-feira para ser resolvido. Com a previsão de um fim de semana excelente naquele veranico, o dia estava txanquilo demais até mesmo para uma sexta- feira. Disse a Sara que podia ir para casa.

Decidiu fazer as compras de supermercado antes de começar a desencaixotar; tirou apenas a secretária eletrônica e ligou-a ao telefone, testou-a e deixou-a ligada. Vestiu o suéter amarelo, afo- fou o cabelo, passou um batom nos lábios e um pouco de blush, enfiou a carteira e as chaves no bolso do jeans.

Um homem alto e meio calvo, de temo, entrou no elevador no décimo sétimo andar. Cumprimentaram-se com um aceno de cabeça, e ele levou a mão ao T, que já estava aceso, deteve-se e deu um passo atrás. No oitavo entrou uma mulher de verde-escuro - robusta, queixo largo, cabelo preto liso com franjinha. Olhou para Kay com os olhos carregados de rfinel e sombra azul-prateada, virou-se e ficou de frente para a porta. Sua bolsa e sapatos eram de pele de cobra, e o tailleur também parecia caro. O ar ficou impregnado de perfume - Giorgio, em dose mais que excessiva.

No saguão viu Dimitri parado à direita, cabisbaixo, as mãos fechadas apoiadas nos quadris. Foi até ele, seguindo no rastro do Gior- gio da mulher de verde, que entrou na sala de correspondência.

Dimitri levantou a cabeça, e ela lhe agradeceu pela ajuda na mudança. Alguns dias atrás dera-lhe uma gorjeta no dobro do valor da que dera ao porteiro.

- Eu ficar satisfeito - disse ele sorrindo, com as faces coradas. - Espero que tudo estar como senhora gosta.

- Está, sim, Dimitri. - Olhou o chão,'vendo o mármore novo. - Parece que desta vez ficou bom.

Ele meneou a cabeça.

- Não. Administrador vai achar muito claro. Vê? Em volta não muito claro, aqui muito claro. Vai dizer que não bom. - Exalou um suspiro.

- Mas é quase a mesma coisa.

- Senhora acha? - Fitou-a com seus olhos escuros.

- Para mim está ótimo. Bem, obrigada mais uma vez.

- Foi um prazer, senhorita Norris. Qualquer problema, só chamar.

Kay abriu a porta de entrada do edifício. O homem alto do elevador aguardava embaixo do toldo enquanto o porteiro, um que ela ainda não conhecia, soprava um apito e acenava para os táxis que passavam na avenida.

Segurou a porta aberta para um homem grisalho de blusão com estampa de Beethoven, que vinha atrás dela; ele segurou a borda da porta e olhou para Kay. Sorrindo para ele, virou-se e seguiu até a esquina, cruzamento da Rua 92 com a Madison.

Ao se juntar ao grupo de pessoas que esperavam para atravessar, o Pare mudou para Siga. Atravessou a Madison, seguiu caminhando pelo outro lado da avenida - passou por um restaurante, o Sarabeth’s; a entrada de um hotel, o Wales; outro restaurante, o Island, cuja porta estava aberta, aproveitando o bom tempo. Entrou no supermercado Patrick Murphy’s.

Nas prateleiras dos corredores estreitos, estocadas quase até o teto, pegou ração e granulado para gatos, iogurte, suco e produtos de limpeza. Os preços eram mais altos que os do Village, mas já esperava por isso. Sua década dos quarenta, resolvera, seria dedicada a curtir as boas coisas da vida. Voltou ao compartimento dos sorvetes e pegou uma lata de sorvete de flocos.

Ao encostar seu carrinho na fila mais curta de um dos dois caixas, o homem com blusão de Beethoven postou-se atrás dela com um cesto na mão. Devia ter pouco mais de sessenta anos, e mantinha despenteada a farta cabeleira cinzenta. A imagem de Beethoven também era cinzenta, tanto no cabelo como no rosto estampados sobre o moletom arroxeado. Trazia no cesto uma caixa de sabão em pò e algumas latas de sardinha.

- Olá - disse ele, o comprador que parecia lerdo. Ou talvez tivesse se abastecido em outro lugar, antes.

- Olá - respondeu Kay. - Pode passar na frente.

- Obrigado. - Tomou a frente dela, que puxou o carrinho um pouco para trás. Virou-se então para Kay, fitando-a com olhos brilhantes contornados por círculos escuros. - Você se mudou hoje, não foi? - Sua voz tinha um toque áspero.

Ela confirmou com um aceno de cabeça.

- Sou Sam Yale. Bem-vinda ao 1300. Foi um ano realmente infeliz.

Ela sorriu.

- Kay Norris - apresentou-se, tentando lembrar de onde conhecia o nome de Sam Yale.

- Outro dia você trouxe um quadro. - Avançou de costas, entrando no espaço do caixa. - Seria, por acaso, um Hopper?

Quem me dera! - Kay empurrou seu carrinho. - É de um pintor chamado Zwick, simples admirador de Hopper.

- Pareceu-me muito bom. Pelo menos, visto do terceiro andar. Eu moro no 3B.

- Você também é pintor?

- Quem me dera... - disse ele, virando-se e colocando o cesto sobre o balcão do caixa.

Ela posicionou seu carrinho junto ao balcão e foi descarregando as compras enquanto Sam Yale - onde vira ou ouvira aquele nome? - pagava o sabão e as sardinhas.

Ele ficou esperando na porta com sua sacola Eu (coração) Nova York, observando-a, enquanto a caixa registrava suas compras, fazia o troco e colocava as mercadorias em sacolas, duas ao todo.

As luzes da rua já estavam acesas sob um céu violeta quando eles saíram. Trânsito congestionado, buzinas tocando, calçadas cheias de gente.

- Imagino que uma mulher que contrata a Mother Truckers para fazer sua mudança - disse ele - fez questão de carregar suas próprias compras, estou certo?

Ela respondeu sorrindo:

- No momento, sim.

- Por mim, tudo bem...

Caminhando em direção à esquina, ela olhou o 1300, do outro lado da rua. O céu violeta refletia-se nas duas fileiras de janelas distribuídas sobre a fechada estreita. Localizou a janela do seu apartamento lá no alto, a penúltima do lado direito.

- E um espigão horroroso, não é mesmo? - comentou Sam Yale com voz áspera.

- Os vizinhos devem ter ficado revoltados.

- Eles passaram anos lutando contra a construção.

Kay olhou-o de perfil - tinha o nariz amassado, as faces marcadas por velhas cicatrizes. Estavam parados na esquina, esperando o sinal abrir.

- Conheço seu nome de algum lugar, mas não sei de onde

- disse ela.

- Mas que demora! - exclamou Sam, olhando para o sinal.

- Deve ter sido há muito tempo. Eu era diretor de televisão. Na "idade de ouro", Quando a televisão era em preto-e-branco, e transmitida ao vivo de Nova York. - Olhou-a de relance. - Você provavelmente assistiu do berço.

- Eu era proibida de ver televisão, até os dezesseis anos. Meu pai e minha mãe eram professores de inglês.

- Não perdeu grande coisa. Kukla, Fran e Ollie; o resto foi sobrestimado. O que não quer dizer que não fosse melhor do que a besteirada de hoje em dia.

O sinal abriu. Começaram a atravessar a avenida.

- Agora eu me lembro - disse ela, sorrindo. - Você dirigiu uma peça em que Thea Marshall trabalhou.

Ele parou, olhando-a com seriedade.

Ela também parou.

- Eu vi um cinescópio no Museu de Rádio e Televisão, no ano passado. Já me disseram várias vezes que eu me pareço com ela. - As pessoas passavam apressadamente por eles. - Se ficarmos parados aqui, acabaremos atropelados.

Chegaram ao outro lado da avenida.

- A semelhança é muito grande - disse ele, - Inclusive no timbre de voz.

- Eu não acho. Bem, talvez um pouco... - Parou na calçada, olhando-o de frente. - Foi por isso que me seguiu?

Ele concordou com um aceno de cabeça, os cabelos esvoaçan- do ao vento.

- Não se preocupe, não vou incomodá-la. Só queria vê-la mais de perto. Ela não foi o grande amor da minha vida nem nada, parecido, apenas alguém com quem eu trabalhei algumas vezes.

Encaminharam-se para a entrada coberta pelo toldo.

- Como ela morreu?

- Quebrou o pescoço. Caiu de uma escada.

Kay suspirou e meneou a cabeça.

O porteiro apressou-se em abrir a porta para eles - um tipo alto e magro, de óculos, meia-idade.

- Olá, Walt - disse Sam.

Walt pegou as sacolas de Kay enquanto ela se apresentava.

- Preciso ir comprar uma coisa no Feldman - disse Sam. - Que peça você viu?

- Passava-se numa casa de praia. Paul Newman fazia parte do elenco; devia ter uns vinte e dois anos.

- The Chambered Nautilus.

- Isso mesmo.

- Sim. The Steel Hour, de Tad Mosel. Ela não estava mal no papel.

- Estava excelente. Iodos estavam. Era uma peça comovente, muito bem-feita.

- Obrigado. - Sorriu para ela. - Até qualquer hora. - Virou-se e foi saindo.

- Até.

Viu-o seguir na direção da loja de utilidades domésticas, andando com rapidez - tênis pretos, jeans, o blusão roxo desbotado. Virou-se. Walt permanecia parado no saguão com seu uniforme cinzento, as costas contra a porta aberta, olhando para ela, segurando suas duas sacolas em uma das mãos.

- Desculpe - disse ela.

Entrou no saguão e encaminhou-se para o elevador, abrindo a carteira enquanto andava.

O porteiro trouxe as sacolas e depositou-as no chão, junto à porta do elevador.

- Obrigada. - Sorrindo, Kay estendeu-lhe a mão.

Ele aprumou o corpo, o rosto sulcado, os olhos ocultos pelo reflexo de luz na armação metálica. Tomou a mão dela.

- Obrigado, senhorita Norris - falou num tom de barítono surpreedentemente profundo e ressonante para um físico tão franzino. - É um prazer tê-la aqui no prédio. - Retirou a mão e deu um passo atrás.

- Obrigado, Walt, estou contente por estar aqui. - E tocou no botão do vigésimo andar.

A porta deslizou, fechando-se.

Kay fixou os olhos nos números que mudavam, acima da porta.

Sam Yale... Interessante. E divertido.

Sessenta e cinco, no mínimo.

TELEFONOU AOS pais e a Bob e Cass para comunicar que havia se mudado e dizer que o novo apartamento era ótimo. Tomou um iogurte de morango contemplando os arranha-céus iluminados nas proximidades do rio, o trânsito de carrinhos-miniatura na avenida lá embaixo. Abrira uma fresta dos dois lados da janela; o ruído do tráfego era um agradável rumor urbano comparado ao intenso barulho que entrava pelas janelas do segundo andar no seu antigo apartamento.

Lavou-se, colocou no toca-fitas portátil o primeiro cassete de John Gielgud lendo Dombey and SOK, e - sentindo-se inquieta, sem saber ao certo por quê - começou a abrir as caixas deixadas no quarto.

APESAR de TODOS os dotes físicos que Kay Norris exibia - os olhos cor de mel, muito mais bonitos que os verdes que ele esperava, a pele clara e os cabelos negros, os seios fartos forçando a camisa e as nádegas firmes delineadas pela calça jeans - observá-la pendurando roupas e guardando objetos nas gavetas, tomava-se entediante depois de algum tempo. E John Gielgud lendo Dombey and Son não ajudava em nada.

Manteve-a no 2, passou o som para o 1, e voltou sua atenção aos monitores, girando na cadeira, bebericando seu gim-tônica.

Metade dos moradores estava ausente, alguns tendo saído apenas por algumas horas e outros para passar o maldito fim de semana fora. Metade dos que ficaram estavam ou na cozinha, ou assistindo a televisão, ou lendo.

Viu os Gruen discutindo por causa dos sinais no jogo de brid- ge, Daisy não querendo usá-los, Glenn insistindo. Frank e a noiva chegando para jogar.

Viu Ruby tirando fotos Polaroid de Ginger.

Mark chegando com um buquê de flores - um gesto certeiro, porém com uma noite de atraso.

Viu o "homem da semana" da Companhia Yoshiwara arrumando a mesa baixa para dois. Kay arrumava sapatos no chão do armário embutido. Ambos agachados, apesar de suas diferentes culturas. Interessante.

Ouviu a conversa entre Stefan e um bombeiro de Cincinnati que respondia ao anúncio. Liz contando à mãe os podres da semana na Price Waterhouse.

Ora essa! O dr. Palme entrava no saguão e cumprimentava John com um aceno de cabeça enquanto se dirigia para os elevadores. Numa noite de sexta-feira? Num fim de semana de veranico? Alguém devia estar em crise. Nina? Hugh? Michelle? Ou estaria o bom médico psiquiatra aprontando alguma coisa?

Kay continuava na arrumação dos sapatos. Ele colocou o consultório do dr. Palme no 1, aumentou o volume, levantou da cadeira. Espreguiçou-se - soltou um gemido, sentindo um mau jeito nas costas -, levou o copo vazio para a cozinha e foi até o banheiro.

Ficou parado, pensando nela...

Fechou o zíper. Acionou a descarga.

Voltou à cozinha e preparou outro gim-tônica, desta vez mais fraco, ouvindo os rangidos da cadeira de couro do dr. Palme, o ruído da fita nova sendo colocada no gravador. Mexendo o drinque com o cabo de um garfo, olhou pelo vão do balcão. Ela estava parada junto à mesinha-de-cabeceira, segurando o telefone junto ao rosto. Ele jogou o garfo sobre os pratos amontoados na pia e voltou correndo, passando o som para o 2 e ligando a escuta telefônica enquanto se sentava na cadeira. "...POR CAUSA DA LUA, DROGA", uma voz de homem esbravejou, e ele baixou um pouco o volume, "apenas alguns minutos num lugar qualquer, para uma conversa cara a cara! Será que isso é pedir demais?"

O RELÓGIO MARCAVA 9:53 quando ela desligou. Deitou-se de costas, respirou fundo e soltou o ar lentamente, piscou várias vezes seguidas. Ficou deitada com o braço sobre a testa, olhando seu reflexo em miniatura no lustre do quarto.

Foi melhor assim, Pequenina.

Tudo acabado. Finalmente. Para sempre.

Continuou deitada por mais algum tempo, e então pegou um lenço de papel na mesinha-de-cabeceira. Levantou-se e foi ao banheiro, assoando o nariz. Jogou o lenço no vaso sanitário preto e acionou a descarga; foi até a pia, passou água fria no rosto e nos olhos. Pegou o sabonete e lavou o rosto.

Olhou sua imagem no espelho enquanto se enxugava.

Foi melhor para você também.

E chega de trabalho por hoje.

Ligou para Roxie, mas só encontrou a secretária eletrônica.

- Deixe pra lá -- disse ela. - Amanhã eu lhe conto. Agora vou me deitar.

Substituiu Dickens e Gieldug pelo violão de Segovia. Arrumou a cama com um jogo limpo de lençóis, estampado com flores amarelas.

Foi à cozinha e provou o sorvete de flocos. Uma delícia. Pegou a esponja e o produto de limpeza embaixo da pia e foi ao banheiro.

Lavou a grande banheira preta de ponta a ponta, esfregando-a em todas as direções, deixando-a recoberta de espuma. Esfregou a torneira cromada, enfiando o dedo no bico para lavá-la por dentro; enxaguou as paredes curvas da banheira, empurrando as espuma pelo ralo abaixo.

Abriu a água quente, testou-a no pulso e começou a encher a banheira. Esguichou um pouco de Vitabath na água, vendo a espuma crescer e se espalhar. Diminuiu a intensidade da luz - bonitos, aqueles lustres - deixando-a reduzida a um brilho suave refletido no negrume do vidro e das peças de louça.

Despiu-se no quarto, com a luz apagada e as persianas abertas. A ilha de luz ao longe era o Central Park West. Luzes cinti- lavam em meio à escuridão do parque, exceto na parte do reservatório.

Abriu a janela do lado esquerdo; forçou com as duas mãos a esquadria de bronze da vidraça, conseguindo fazê-la deslizar sobre o trilho, que ficava na altura do joelho. Uma brisa morna acariciou-lhe a pele nua; incrível, mas a previsão do tempo estava certa daquela vez.

A sua frente, mas bem abaixo - catorze andares, pelos seus cálculos - estavam as torres do telhado gótico do Museu Judaico, iluminadas pelas janelas do prédio de apartamento vizinho.

Sorriu, olhando a mansão que parecia uma casa de bonecas.

Não tinha medo de altura. Sua sala na Diadem ficava no 48? andar, com uma parede de vidro, do teto ao chão.

MAIS UMA VEZ, e mais do que nunca, tinha vontade de dar um chute em si mesmo por não ter mudado a cor dos banheiros para branco. Ou cinza, o que seria melhor. Ele pensara em fazê- lo quando comprou o edifício, mas os acessórios pretos já tinham sido encomendados, e o coronel garantira que a Tàkai Z/3, que acabara de ser lançada no mercado, permitia ler o texto de um jornal à luz de um fósforo. E teria sido difícil explicar a Edgar e companhia, que já achava que ele não regulava bem da cabeça, por que gastar vinte mil dólares para mudar a cor dos banheiros? Assim sendo, ficara com o preto mesmo, a ideia que Barry Beck fazia de um design de alta classe.

Em meio a todo aquele negrume, à luz esmaecida e à maldita espuma, era o mesmo que estar vendo Dinastia.

Bem a propósito...

A regulagem do brilho foi mantida no máximo, tanto que quase não havia contraste - tudo na imagem era cinzento, pior que num filme antigo. Mas ela estava linda, deitada com a cabeça apoiada no canto da banheira junto à parede* os olhos fechados, os pés surgindo vez ou outra por entre a espuma no canto oposto. Às vezes apenas os dedos. Pelo movimento da espuma podia-se ver que ela se acariciava dentro da água - nada demais, apenas relaxando após um longo dia de mudança e de besteiras que Jeff descarregara sobre ela.

Olhara para ele - para seu próprio reflexo no lustre, é claro

- duas vezes. Na primeira vez sorrindo e acenando com a mão. Ele quase caiu da cadeira. Acenara de volta dizendo: "Oi, Kay"

- terceiro gim-tônica. Na segunda vez girara a cabeça lentamente de um lado para outro, mirando-se fixamente.

Ele a mantinha nos dois masters e pusera em gravação o dr. Palme e Hugh, pois seria confuso demais assistir a tudo simultaneamente. Rocky estava em Chicago, no casamento do sobrinho, e só voltaria no dia seguinte, de modo que podia se concentrar em Kay por completo.

Não, não por completo. Mais tarde teria de dar uma olhada no apartamento de Rocky. Nem um pingo de bebida, depois daquele drinque. Falando sério. Era uma oportunidade de ouro; talvez conseguisse encontrar alguma anotação marcando um compromisso e esclarecer se estava ou não sendo paranóico.

Ela tirou a mão da água e levou-a à nuca, massageando o pes- • coço. A água em movimento produzia um rumor cristalino. Ao fundo, o zumbido do ventilador, os acordes do violão. Segovia?

Ela franziu o cenho. Provavelmente ainda pensando no idiota do Jeff. Como podia ter vivido com ele dois anos? Não dava para entender, apesar de Babette e Lauren e as outras mulheres que vira envolvidas com exatamente o mesmo tipo de cafajeste. Que que é isso, Kay...

Recostou-se na cadeira, girou, tateou com o pé embaixo do console e puxou a banqueta de couro; cruzou os pés sobre ele, moveu os dedos dos pés. Tomou mais alguns goles, observando-a. Apoiou o copo no colo, a base úmida pressionando seus pêlos.

Despira-se ao mesmo tempo que Kay.

Chupando um pedaço de gelo, continuou a observá-la. Duas imagens dela, lado a lado nos masters.

Linda...

... o dedilhar do violão, o aroma de pinho, a espuma sussurrante... a água quente e gostosa a envolvê-la...

Mas alguma coisa a perturbava...

A sensação de ter deixado de captar um sinal. De estranhas vibrações que passaram por ela aquele dia, antes de Jeff, vibrações que ela não tivera tempo de analisar...

Viriam de Sam Yale? Quando ele parou no meio da avenida e olhou-a com aqueles olhos insones? Teria ele mentido ao falar de seu relacionamento estritamente profissional com Thea Marshall? Numa história de terror ou de suspense ele faria o papel de...

O mais estranho a seu respeito era o fato de ele morar ali, no 1300 da Madison Avenue. Velhos diretores que andavam de jeans e blusão de moletom moravam em apartamentos baratos no West Side, ou no Village, ou no SoHo, entre atores, artistas plásticos e escritores. O que fazia ele num edifício moderno no "Yupper" East Side? Se já tinha parado de trabalhar? Por quê?

Qual seria a ocupação de Pete Henderson, fazendo compras de supermercado numa sexta-feira de manhã?

Trabalhava à noite, trabalhava em casa, estava de férias, ganhara na loteria? Fosse o que fosse, que gatão - o sorriso arrasador, aqueles olhos azuis, o cabelo acobreado. Nada de estranho com as vibrações dele era jovem e animado, como costumam ser os editores assistentes. Se fosse quinze anos mais velho... Ou dez...

O homem de abrigo, saltitando no mesmo lugar, observando-a - seria ele a causa de sua perturbação? De relance, pareceu-lhe um homem atraente, o rosto ossudo, o bigode claro. Terra de Marl- boro. Casado ou bicha, com certeza.

Viriam de Walt, quando lhe deu a gorjeta? Seus olhos encobertos pela luz refletida nos óculos...

O louro da empresa de mudança? Mas neste caso os sinais tinham sido da parte dela,,.

Movimentou-se sob a espuma.

Talvez o que realmente a perturbasse fosse o fato de estar só... Sem Felice, sem ninguém, na primeira noite em seu novo apartamento. Estranhos em cima e estranhos embaixo, um estranho no apartamento ao lado. (V. Travisano, dizia a plaquinha da campainha do 20A. Victor? Victoria?)

Sentou-se na banheira e apoiou os braços ao longo da borda, cotovelos dobrados. Olhou para o lustre, o halo luminoso em tomo do centro escuro, a figura pequenina ali sentada de ponta-cabeça.

Soprou a espuma que lhe cobria os seios - esquerdo, direito, os mamilos enrijecendo com o ar frio. Contemplou mais uma vez sua miniatura refletida no lustre...

Tirou a perna da água, os olhos fixos no lustre, a espuma escorrendo de seu calcanhar... Arqueou o pé... sempre olhando o reflexo no lustre.

Encostou a ponta do pé na torneira art déco...

Afundou na água, rompendo as ilhas de espuma...

Talvez o que realmente precisasse,.. quem sabe?... fosse de um meio de aliviar a tensão...

ELE SE CONTROLOU tão bem que ambos atingiram o orgasmo ao mesmo tempo.

Foi muito bom.

Considerando-se as circunstâncias...

Escarrapachado, com um pé sobre a banqueta e outro no chão, recuperou o fôlego, a mão cheia de lenços de papel e do que era seu.

Ficou algum tempo sem se mexer, apenas respirando, vendo-a fazer o mesmo na água coberta de espuma. As duas imagens dela viraram-se para a parede, mostrando seus perfis de Thea Marshall, os olhos fechados. Duplamente linda...

Nunca mais deveria se colocar no caminho dela.

Sabia disso. Não pretendia...

Se acontecesse, tudo bem, mas era algo a ser evitado.

Sabia disso.

Lembre-se de Naomi.

Lembrou-se. A recordação ainda o deixava perturbado.

Levantou-se, protegendo-se com os lenços de papel. Kay também voltara à atividade, as duas Kays, sentando-se dentro da banheira, ensaboando as axilas.

Ele entrou no banheiro. Jogou o papel no vaso sanitário, acionou a descarga. Meneou a cabeça, suspirando.

Não ia ser fácil contentar-se em apenas observá-la...

Agora que a vira ao vivo e em cores...


3

Com as paredes revestidas de madeira escura e cortinas de correntes penduradas em camadas e descendo de uma altura de três andares, o Grill Room do Four Seasons era o local onde os editores, aqueles que não se mudaram para o centro da cidade, almoçavam com os colegas e com os escritores preferidos, deles próprios ou de outros. Ao meio-dia, naquele amplo palco (suspenso por uma infinidade de barras de bronze), homens de terno escuro e mulheres de roupas multicores ocupavam em grupos de dois ou quatro as mesas boas e as menos boas, nos níveis bons e menos bons, como os pássaros de Hitchcock se reunindo nos aparelhos do playgrounã. As conversas giravam em torno de quem estava com quem, quem estava mudando para onde e quem estava comprando o quê. Garçons atenciosos traziam-lhes os pratos solicitados, arrumados com arte, em por

ções bem maiores do que para pássaros.

Sentada numa banqueta no nível bom, numa mesa menos boa, Kay avistou no nível mais elevado, menos bom, um rosto ossudo e um bigode arruivado. O homem sentado de perfil parecia-se com o inquilino do 9A, o mesmo que vira de abrigo chegando de uma corrida, mas era difícil saber se se tratava da mesma pessoa, pois só o vira de relance, quase uma semana atrás, e agora estavam a dez metros de distância um do outro. Ele estava em companhia de um homem de cabelos brancos, um editor cujo nome não recordava, assim como a editora para a qual trabalhava no momento.

Seu convidado barbudo, Jack Mulligan, escrevera sob pseudônimo dezesseis romances de suspense; Kay editara os quatro últimos, todos best-sellers. Tinha um estilo excessivamente floreado - um emaranhado de prosa rebuscada e confusa - e Kay cortava caminho por entre as metáforas, podava trepadeiras de adjuntos adverbiais, transformando profusões de plantas emaranhadas em uma massa de folhas verdes. Ele a acompanhara nas mudanças de editora: da Random para a Putnam e posteriormente para a Diadem. O mundo da edição é um verdadeiro jogo de xadrez.

Ultimamente Mulligan tornara-se uma celebridade da mídia; pessoas paravam â mesa para cumprimentá-lo.

- Você acertou na mosca, Jack - diziam, apertando-lhe a mão. - Já era tempo de alguém chegar lá!

- Imagine... Nem tanto... - respondia ele, radiante.

Há mais ou menos um mês, ele assumira e depois negara sua responsabilidade no caso de um vírus de computador, impossível de detectar, que causara sérios prejuízos a uma famosa revista especializada, apagando dos seus bancos de dados todos os nomes e palavras contendo as letras F e Y. Ao publicar a crítica do seu Vanessa’s Lover, a revista inadvertidamente revelara uma das surpresas do livro. Mulligan descarregou sua ira em quatro páginas de fax dirigidas ao editor da revista, mas na seção de cartas só foi publicada a costumeira reclamação lacônica de um leitor.

Quando a revista botou a boca no mundo, urrando de dor, os amigos de Mulligan acreditaram em seus telefonemas do tipo "jura que não conta a ninguém". Ele tinha três filhos trabalhando com computadores, pioneiros em infiltração em sistemas e trabalhando em projetos de inteligência artificial e sistemas de segurança; ademais, quase na mesma época em que a revista perdeu suas palavras com F e Y, o autor da famigerada crítica desapareceu da memória de mais da metade dos computadores comerciais, que até então o conheciam e nele confiavam. Entretanto, em seus depoimento ao promotor distrital e ao FBI, Mulligan declarou - apoiado por Paul, Weiss, Rifkind e outros - que não, absolutamente, falara por brincadeira, jamais faria uma coisa daquelas, pois deplorava atos de vandalismo, e assim por diante. Seus olhos marotos apareceram logo depois em Live at Fives A Current Af- fair e num debate do programa Nightline sobre insegurança gerada por computadores.

O desfecho da questão, enquanto a revista e o crítico lutavam para reordenar suas vidas, foi exatamente como se esperava: um , estouro nas vendas do Vanessa’s Lover e a exigência do agente de Mulligan de um adiantamento fabuloso por um esboço de dois parágrafos do Marguerite’s Stepfathen E era com a tênue esperança de reduzir o montante deste adiantamento que Kay, com pleno endosso do seu chefe, almoçava com Mulligan no Seasons.

- Você conhece aquele homem de cabelos brancos lá no me- zanino? - perguntou ela quando finalmente ficaram a sós. - Ele trabalhou na Essanders; não consigo lembrar o nome dele, nem o da editora onde agora trabalha.

Jack coçou a orelha, virou-se; passou os olhos pelas paredes e pelo teto, e voltou-se novamente para Kay.

- E a mesa onde Bill Eisenbud teve o enfarte - disse ele. - Era um bom sujeito, não é mesmo? Foi uma pena. Ficamos numa casa vizinha à dele no Vineyard, no verão de 73. Não, 74. Uma casa muito boa, com uma varanda protegida por tela. Parecia um castelinho, toda recoberta de hera.

- Você o conhece?

- Não, foi em 73. Em 74 foi na América do Sul. - Meneou a cabeça. - Não. Será que Sheer está escrevendo outro livro? Ele disse que não. E um homem esquisito no que se refere a dinheiro. Na volta, tomamos o mesmo táxi e quando eu lhe dei uma nota de cinco dólares ao descer... o taxímetro marcava quase sete dólares... ele fez questão de calcular meu troco exato, até o ultimo centavo.

O garçom se aproximou, perguntou o que iam beber e afastou-se.

- Sheer? Você conhece o homem que está com ele?

Jack olhou-a com estranheza.

- Pensei que você tivesse assistido Nigktline.

- E assisti.

- Onde? Naquela antiguidade portátil? Não me diga que ainda é o tínico aparelho que você possui?

- Ele participou do programa?

- O agourento. O que escreveu um livro sobre como os computadores nos tornam vulneráveis a todos os tipos de desastres. Como receber o troco por estragar uma história, por exemplo.

- Hubert Sheer... Claro, agora me lembro. Ele foi hostil com você.

Jack riu.

- Foi mesmo, não é? Mas uma simpatia no táxi. Desculpou-se sinceramente por aquele arroubo de "mentalidade juvenil". Foi convidado de última hora para o programa, no lugar de alguém que havia desistido. Diz que não gosta de falar na televisão, mas Koppel passou por maus bocados tentando interrompê-lo depois que ele começou. O livro foi escrito há vários anos.

- Acho que ele mora no mesmo prédio que eu.

- Ah, é? Sim, pode ser, pois ele entrou na Madison...

Pegaram os cardápios para escolher os pratos.

Kay levantou os olhos e viu que Hubert Sheer a observava. Sorridente, o rosto afogueado, os cabelos um tanto ralos arruiva- dos como o bigode.

Ela lhe dirigiu um sorriso contido e um aceno de cabeça.

Ele retribuiu o acèno, ficando mais vermelho.

O garçom trouxe sua água mineral e o Glenlivet de Jack.

Fizeram seus pedidos: escalopes de vitela e salmão defumado.

Jack propôs um brinde:

- A Marguerite’s Stepfather.

Kay ergueu sua taça e tocou na dele.

- À solvência da Diadem.

- Desmancha-prazeres.

Conversaram sobre um novo best-seller - bom, porém nem tanto - o escândalo de Washington, a pouco promissora temporada da Broadway.

O homem de cabelos brancos aproximou-se da mesa com um largo sorriso; alguns passos atrás vinha Hubert Sheer, mancando, apoiado numa bengala.

- Kay! - exclamou o homem. - Martin Sugarman. Como vai você?

- Martin! Que bom revê-lo!

Ele a beijou na face.

- Você está maravilhosa!

- Você também! Jack Mulligan, Martin Sugarman.

- Muito prazer! - Sugarman falou com entusiasmo, segurando a mão de Jack com as duas mãos. - Já era tempo de alguém chegar lá.

- Imagine... Nem tanto - respondeu Jack, sorrindo de orelha av orelha.

Hubert Sheer chegou mancando, o rosto vermelho, terno de tweed marrom-claro, camisa marrom, gravata ferrugem. Seus olhos acinzentados brilhavam com entusiasmo reprimido. Sorriu para Kay, apoiado na bengala.

- Kay, este é Hubert Sheer, que acaba de fechar um contrato para fazer um livro conosco. Kay Norris.

- Meus parabéns - disse ela com afabilidade, estendendo- lhe a mão.

Ele a cumprimentou com a mão esquerda, quente e úmida.

- Obrigado. Sabia que somos vizinhos?

- Sim, eu sei.

Os olhos dele se abriram mais um pouco; soltou a mão de Kay, pegou a de Jack:

- Olá.

- Olá - respondeu Jack. - Como foi isso?

- Fraturei o tornozelo, anteontem. - Sorriu para Kay. - Minha bicicleta arrebentou quando estava indo fazer as cópias do meu esboço. Acha que Deus está tentando me dizer alguma coisa?

- Talvez "Quebre uma perna" - disse ela.

Sheer sorriu. Sugarman riu com gosto.

- Pensei que você tivesse desistido de escrever - disse Jack.

- Eu também, mas Marty me telefonou no dia seguinte ao Nightline com uma ideia que me interessou muito. - Seus olhos cintilantes voltaram a se fixar em Kay, penetrantes. - Televisão. Uma análise completa do seu impacto sobre a sociedade até os dias de hoje e do impacto que causará nos anos vindouros. Em todos os seus aspectos, de novelas a câmeras de vigilância e o efeito das filmadoras portáteis nas questões mundiais. Pretendo inclusive...

- Rocky interveio Sugarman.

Sheer olhou para ele, depois para Kay. Ficou mais vermelho, sorriu.

- Não se preocupe, serei um túmulo - disse Kay.

- Por favor, não comentem nada com ninguém - pediu Sugarman. - Ainda estamos numa fase muito inicial.

- Parece fascinante - comentou Jack. - E segue a mesma linha do seu outro livro.

- Sim, estou mesmo empolgado com a ideia. Estou fazendo um curso intensivo de japonês. Semana que vem irei ao Japão para visitar fábricas e conversar com fabricantes e especialistas na área.

- Foi o destino - disse Sugarman. - A ideia me veio pela manhã, e naquela mesma noite lá estava ele no Nightline, o escritor ideal para desenvolvê-la. Oh, veja, lá está Joni. - Tocou no ombro de Sheer. - Vá na frente, Rocky, eu o alcanço lá embaixo.

Sheer dirigiu-se a Kay:

- Sabe andar de bicicleta?

- Sim. Mas não tenho uma...

- Nem eu - disse ele, sorrindo. - Um ônibus acabou com ela. Mas no parque hã bicicletas para alugar, junto à casa de barcos. Posso ligar para você quando voltar?

- Será um prazer. Espero que a viagem seja produtiva.

- Obrigado.

Despediu-se de Jack, e saiu mancando.

Sugarman inclinou-se, falando com Kay em tom confidencial:

- Extremamente sagaz. Faz as conexões mais surpreendentes que se pode imaginar. Você jã leu The Worm in tke Apple?

- Não. Gostaria de ler.

- Eu lhe mandarei um exemplar hoje mesmo. A propósito, foi ele quem pediu para ser apresentado, se lhe interessa saber. Tfcm quarenta e três anos, é divorciado, e é um ótimo sujeito. Bem, eu teria vindo falar com você de qualquer maneira. Foi ótimo revê-la, e conhecer você3 Jack. Parabéns. Em todos os departamentos. - Virou-se e rumou na direção das mesas melhores.

Com um sorriso nos lábios, Kay acenou para Joni, que acenava para ela.

- Rocky? - perguntou Jack, cortando sua vitela.

- Melhor que Hubert.

Virou-se e olhou por sobre o ombro, através do vidro filetado de dourado, vendo Sheer descer vagarosamente a larga escadaria, apoiando-se no corrimão do lado esquerdo.

Sumindo aos poucos do seu ângulo de visão, fatia por fatia.

LEVOU as medidas das janelas ao departamento de cortinas da Bloomingdale’s e encomendou uma cortina de seda branca para a sala p uma de chintz listado de verde e branco para o quarto. A caminho da seção de móveis contemporâneos deparou com um belo afiador de unhas para gatos - uma pilha de roscas de cortiça encaixadas em uma coluna cromada. Só a Bloomingdale’s...

Exercitou-se no Vertical Club, suando no aparelho para braços, na prensa para pernas, na prancha abdominal, e passou um bom tempo pedalando na bicicleta.

Ao sair do elevador, ouviu os miados de Felice e encontrou o hall repleto de malas de couro cor-de-rosa, uma pilha delas, bloqueando sua entrada. A porta do 20A estava entreaberta e uma loura de casaco branco falava ao telefone na cozinha.

- Não! Foi isso mesmo que eu quis dizer!

Ao ver Kay, a loura fez um gesto com a mão espalmada, anéis em todos os dedos. Fez um trejeito como se estivesse gemendo, olhou para o alto, depois para Kay, encolheu os ombros. Parecia uma modelo de revista, vinte e pouco anos, esguia, cabelos louros e muito lisos. O casaco era o mesmo que saíra na Elle.

- Vão à merda vocês dois! - falou com voz aveludada, e bateu o telefone. - Já vou tirar essas malas daí - disse a Kay, vindo em direção à porta. Abriu-a de todo, calçando-a com uma mala. Desculpe, estou deixando seu gato maluco. Acho que ele nunca sentiu cheiro da índia. - Começou a recolher as malas uma a uma, colocando-as do lado de dentro da porta. - Quando se mudou para cá?

- Há uma semana... - Kay saiu do caminho, postando-se junto à porta da escada.

- Deixe-o sair, coitadinho. Faça-lhe a vontade. Eu também gosto de gatos.

- É uma gata. - Colocando a bolsa e a sacola da Blooming- dale’s no chão, afastou uma mala e abriu a porta.

Felice saiu correndo, fazendo uma rápida inspeção em torno das malas, farejando, farejando, farejando.

- Oh, ela é linda. Adoro gatas malhadas. Como se chama?

- Felice.

- Bonito nome. Felice... O meu é Vida Travisano.

- Bonito também,

- Obrigada - disse ela, rindo, - Eu mesma o inventei.

- O meu é Kay Norris.

- Gostei.

- Inventado por meus pais. - Pegou Felice no colo, tentando acalmá-la.

Vida Travisano pegou a última mala.

- É bem melhor ter você por vizinha do que os pobres Kas- tenbaum. - Sorriu, parada no meio da porta, a mão apoiada no batente, as botas cruzadas na altura do tornozelo. - Ouviu falar nos Kastenbaum?

- Felice! Pare com isso! Não, nunca ouvi.

- Eram um casal interessante. Ele era americano e ela coreana. Muito bonita, parecia uma modelo. Eles nunca comentavam o que faziam. Recebiam muitas visitas. Então ele desenvolveu es- clerose múltipla, e simplesmente começou a derreter, E ela, coitada, levando-o para cima e para baixo naquela cadeira de rodas. .. Acredite, era de cortar o coração, mas era tão deprimente,,. Aí, eles mudaram para um lugar na Califórnia onde se fazem pesquisas avançadas sobre essa doença. A princípio parecia que não iam conseguir, e ele vivia chorando pelos cantos; o tratamento custa uma fortuna, e o seguro deles não cobria. Mas, graças a Deus, acabaram arranjando o dinheiro de algum jeito. Quando quiser bater um papinho, basta tocar a campainha. Ficarei por aqui até nove de novembro, e então vou...

O telefone tocou.

- Merda! E então vou para Portugal, onde há um sol maravilhoso. Até mais. - Entrando de costas, acenou para Felice. - Tchau, Felice! - E fechou a porta.

Felice pulou no chão, farejando as marcas das malas no carpete, frenética.

Dimitri veio instalar os suportes da estante da sala e perfurar a parede da cozinha nos pontos demarcados com um X. Kay montou o afiador de unhas e mostrou a Felice como usá-lo, esfregando suas patas dianteiras nas roscas de cortiça. Boa sorte.

Pendurou o falcão de Roxie no vestíbulo; tanto ele quanto o quadro de Zwick ficavam melhor separados. Arrumou os livros na estante ao som da voz de Claire Bloom lendo To tke Lighthou se. Apresentou-se na livraria Corner, na Rua 93 - nunca é demais arranjar espaço na vitrine.

Telefonou aos pais para agradecer pela terrina em estilo art dé- co, que ficaria ótima na mesinha de centro, quando chegasse. Como sempre, discutiu com o pai quando este lhe pediu para dizer a Bob que telefonasse.

Leu a edição em brochura do The Worm in the Apple, de Hu- bert Sheer, os quatro primeiros capítulos. Ligou para Roxie.

- O liVro está ótimo. Ele é um escritor muito bom.

- Conte-me essa história direito.

- Não há nada para contar. - Deitada na cama, brincava com a orelha branca de Felice. - Ficou mais ou menos combinado de irmos andar de bicicleta quando ele voltar de viagem. Ele viaja esta semana para o Japão, não sei que dia, e não sei quanto tempo ficará por lá.

- Parece-me um tanto vago.

- E é mesmo. - Contemplava a imagem de Pequenina e sua minúscula gata no lustre do teto. - Ê como eu disse, não há nada entre nós. Mas ele é um homem muito atraente e o livro é ótimo. E quanto a você e Fletcher?

Provou alguns vestidos de inverno segurando-os na frente do corpo diante do espelho do quarto. Não se sentia inspirada.

Arrumou os livros da última prateleira da estante, trepada numa escada.

Felice, na cozinha, montava guarda junto ao pé do armário da pia.

QUEM PODERÍA imaginar que, com tantos restaurantes na cidade, milhares deles, ela e o editor de Rocky (como era mesmo o nome dele?) acabariam indo almoçar no mesmo lugar? Incrível. .. A menos que o Four Seasons tivesse se transformado numa espécie de ponto de encontro de escritores e editores... Mas ainda era um lugar de classe: foi lã que os Stein levaram os pais de Lesley para comemorar as bodas de prata, e Vida e Lauren o sugeriam aos seus clientes. Não, era apenas mais uma das curiosas coincidências da vida...

Era um lástima que gostasse de Rocky. Formariam um bom par, considerando-se tudo que tinham em comum...

Mas para ele - pensou diante do painel - isso não fazia diferença.

Não quando Rocky tinha um compromisso às oito da manhã, horário de Osaka, na terça-feira da outra semana no show-room da Companhia Takai, e eles provavelmente fizeram um ou dois modelos extras para fins de exposição, ou pelo menos tinham algumas fotos vinte por vinte e cinco no álbum. Não era o que qualquer fabricante faria, principalmente em se tratando de um ambicioso grupo japonês?

Calma. Pense. Não entre em pânico. É noite de domingo, não madrugada de segunda-feira; o voo de Rocky sai às onze da ma-, nhã de sexta-feira do Aeroporto Kennedy.

Pense.

Talvez a bicicleta não tenha sido de todo um desastre... Olhe o lado positivo. Foi ela que deixou Rocky com o pé engessado, andando de bengala no 9A...

KAY COSTUMAVA trabalhar em casa um dia por semana - terça ou quarta-feira, dependendo dos seus compromissos e das reuniões programadas - e o rendimento do seu trabalho, com um mínimo de telefonemas de Sara, geralmente equivalia ao de dois dias no escritório. Trabalhava também à noite, e três ou quatro horas nos fins de semana, e lia originais datilografados na cama das seis às oito todas as manhãs.

Naquela semana seu dia de ficar em casa foi terça-feira, 24 de outubro, um dia considerado pelos meteorologistas de todos os canais como sendo o mais glorioso daquela gloriosa estação, opiniões estas endossadas por um céu de brigadeiro, árvores flamejantes e rostos voltados para o alto - o dia ideal para um passeio no Central Park.

Passar uma manhã gloriosa como aquela vendo um pedacinho do parque e do reservatório por sobre o ombro esquerdo enquanto editava um livro, mesmo sendo um livro no qual estava gostando de trabalhar, não deixava de ser trabalho, principalmente para uma moça vinda do interior...

Virou-se, erguendo os óculos; viu um bando de gansos voando em direção ao reservatório; espichou o pescoço para vê-los se misturarem a um bando que vinha alçando voo, espirrando água em todas as direções.

Baixou os óculos e retomou a leitura.

Fez anotações.

Suspirou ao ver os papéis se agitando junto à janela, aberta apenas alguns centímetros...

Aguentou firme até o fim da parte em que vinha trabalhando.

Calçou tênis, vestiu jeans, camiseta, seu suéter irlandês. Feli- ce, deitada no meio da cama, observava seus movimentos.

Quando já tinha percorrido metade da pista de terra que contornava o reservatório cercado de alambrado, andando a passos largos e contemplando através dos óculos escuros o céu azul- turquesa, as árvores flamejantes, as pessoas em movimento, os esquilos audaciosos (devia ter trazido amendoins) e aves em revoada, sentindo-se melhor do que se sentira nos dois últimos anos, ou talvez sete ou oito, contornou uma curva à esquerda e viu Sam Yale vindo na direção oposta. Parecia tão radiante quanto ela naquela manhã esplendorosa, balançando os braços, o cabelo es- voaçando ao vento, os olhos voltados para o reservatório a sua direita. Ela diminuiu o passo e chamou-o:

- Sam!

Ele parou e olhou-a com espanto; um rapaz que vinha correndo deu uma guinada para passar por ele. Kay parou à margem da pista, levantando os óculos.

- Kay - disse ela. - Norris.

Ele sorriu.

- Oi! - Continuou sorrindo, enquanto três homens passavam por ele em marcha acelerada: passos firmes, de pernas de fora, cotovelos acompanhando o ritmo dos passos.

Kay tirou os óculos enquanto ele atravessava a pista e parava ao seu lado, de jeans e tênis pretos, um capote cinza sobre a camisa de flanela vermelha.

- Que dia, hein? - comentou Sam, esfregando as mãos.

- Sensacional, não é?

- E como!

- Não quero parar agora. Venha comigo, vamos fazer a caminhada seguindo as setas, não lhe fará mal.

- Setas? Que setas? - perguntou, acompanhando-a na pista.

- Na base da cerca. - Pôs novamente os óculos. - A determinados intervalos.

- Ei, ande mais devagar. - Caminhava atrás dela, mais à esquerda. - Vim aqui por prazer.

Kay diminuiu o passo, sorrindo ao ver que ele a alcançava e caminhava ao seu lado. Seu rosto maltratado não estava mal para seus sessenta e seis anos. Na pequena foto que aparecia no Idade de Ouro da Televisão, era uma comovente criança prodígio de cabelos escuros ondulados, os olhos contornados por círculos escuros mesmo naquela época.

- O que houve, por acaso hoje foi decretado feriado no mundo dos livros? - perguntou Sam, sorrindo.

- De vez em quando eu trabalho em casa.

- Isso é bom.

- Escolhi o dia errado. Ou melhor, o certo. Como sabe que trabalho com livros?

Sam diminuiu o passo e ficou atrás dela para dar caminho a um carrinho de bebê empurrado por uma adolescente de casaco de pele de carneiro e fones nos ouvidos. Em seguida, voltou para o lado de Kay.

- Vi quando chegou sua mudança. Tinha muitas caixas com o logotipo da Diadem.

- Ah...

- Sua escrivaninha de tampo é uma beleza. Quantos anos ela tem?

- Uns oitenta, oitenta e cinco anos.

- O que você faz?

- Sou editora de livros. Veja, lá está uma seta.

- Nossa senhora, ela foi pintada quando McKinley era presidente. Está praticamente invisível. Não se pode pretender que a gente siga setas nesse estado.

- O que quer dizer? - Corredores passavam por eles. - Elas estão todas aí, Quem disse que não são para serem seguidas?

- Maneira de Mar. - E mais uma vez ficou para trás para dar passagem a duas freiras.

Um cavalo passou a meio galope na trilha ao lado, reservada a passeios a cavalo, seguindo na direção de uma arcada vistosa. Era uma égua castanha, montada por um homem de paletó quadriculado, botas pretas e culote.

- Que dia lindo - comentou Sam, voltando a seu lado.

- Decretado feriado para diretores?

- Todo dia é feriado para diretores aposentados. Dê uma olhada daquele lado, na silhueta dos edifícios contra o céu.

Kay contemplou o aglomerado de torres brancas e cor de aço ao sul do parque, o edifício chanfrado do Citicorp, a ponta do Empire State contra o azul-turquesa do céu.

- Fantástico.

- Você não está mais no Kansas, Dorothy.

Kay lançou-lhe um olhar de lado, sem parar de andar.

- O que o Kansas tem a ver com isso?

Ele sorriu.

- Nada. É seu jeito de falar.

- Eu não tenho sotaque - protestou Kay, empertigando-se. - Foi duro me livrar dele.

- Desculpe. É neurose minha.

Desviaram-se de um cinegrafista da televisão que apontava uma minicâmera para as árvores flamejantes.

- Você esquece - disse ele, quando voltaram à pista - que fui diretor. O ouvido fica sintonizado. - Tocou o ouvido com a ponta do dedo. - Para um leigo, não, você não tem sotaque. Exceto em palavras como "olá" e "como vai".

- Não tenho.

- Muito pouco - disse ele, sorrindo. - Um sotaque muito leve. Só um profissional altamente capacitado consegue captar. - Deu passagem a um homem de uniforme marrom empurrando um carrinho de mão cheio de cinzas.

- Outro dia li a seu respeito em um livro que publicamos há alguns anos, Idade de Ouro da Televisão.

- Que título, hein? Quem foi que escolheu? Espero que não tenha sido você.

- Acontece que o título é muito bom, se quer saber. Diz do que o livro trata, numa linguagem clara e inteligível.

- Então foi mesmo você.

- Não, não fui eu.

Seguiram na direção dos portões, na extremidade sul do lago. Corredores continuavam passando por eles.

- E então, ficou impressionada com o que leu?

- Muito. Perplexa também.

- Por que tudo terminou? E fácil. Sou um alcoólatra em fase de recuperação.

- Sinto muito. Mas fico contente que esteja se recuperando. Contudo, não era a isso que me referia, embora... Desculpe, não devia ter tocado no assunto. Sei que não quer falar a esse respeito.

- Iniciais T. M.?

Ela suspirou, assentindo.

- Tom Mix. O eterno favorito.

Kay sorriu.

- Você cruzou as informações dos nossos verbetes - continuou ele.

- Sim. Ela atuou em quase vinte peças que você dirigiu.

- Gostaram muito da interpretação dela em Steel e Kraft.

- Você recebeu dois prêmios da Associação dos Diretores e um Emmy, e sua carreira foi interrompida bruscamente no mesmo ano em que ela morreu.

- Que tipo de livros você edita? Beijos ardentes com castelos ao fundo?

- Já editei.

- Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Nós já não nos víamos há dois ou três anos quando ela morreu. Nossos caminhos estavam separados, em todos os sentidos. Eu vivia na costa fazendo seriados, e ela aqui, atuando em novelas.

Atravessaram o terraço diante do portão e seguiram em frente, passando em meio às pessoas junto às fontes, outras fazendo exercícios de alongamento com os pés apoiados no encosto dos bancos, um grupo de adolescentes de abrigo vermelho, um homem de vermelho gritando instruções e marcando o ritmo com palmas.

- Se quer saber a verdade - disse Sam -, ela não era uma atriz muito boa.

- Eu percebi.

- Tampouco uma pessoa muito boa. Era futil e ambiciosa. Tbtalmente egocêntrica. Intolerante. Mesquinha. Sem consideração. Eu era louco por ela.

- Mas por quê?

- Eu disse "louco". Quem pode explicar a loucura? - Olhou a sua frente, o olhar perdido no vazio, e suspirou. - Não dá para explicar por quê. Foi numa manhã encantada. No meio de um estúdio de televisão cheio de gente...

Jovens de abrigo vermelho passavam correndo por eles enquanto contornavam a curva a leste do reservatório.

- Você abandonou definitivamente seu trabalho?

- Agora dou aulas. De interpretação, direção...

- Há quanto tempo mora no edifício?

- Desde que ficou pronto. Há três anos.

Continuaram caminhando pela pista.

Corredores passavam por eles.

Um jovem de abrigo vermelho.

- Se está curiosa em saber o que estou fazendo neste bairro chique, saiba que se trata de um caso de caridade.

- Eu nem estava pensando nisso, não seja tolo. Hoje em dia todo mundo mora onde bem entende, é ótimo, é uma das melhores coisas desta cidade.

- Fundação de Apoio Cultural Carnegie Hill. Preciso explicar qual é o objetivo? Eles acham que podem atingi-lo distribuindo pelo bairro gente ligada as artes. Eles pagam o aluguel do apartamento e ainda me dão uma ajuda de custo. E o local é ideal para mim. - Sorriu com simpatia. - O Smithers é ali do lado, na Rua 93. Centro de Tratamento Smithers. Fiquei internado lá por algum tempo, enquanto o prédio estava em construção. - Deu passagem a dois corredores, um homem e um menino, com os dizeres CEGO e GUIA escritos nos respectivos blusões.

Chegaram à esplanada na altura da Rua 90, desceram a escadaria de pedregulhos. Um cinegrafista da televisão, parado na trilha de cavalos, apontava uma minicâmera para os transeuntes que . contemplavam o arvoredo.

- Veja só - disse Kay -, apareceremos no noticiário das seis. Terei de aguentar a gozação amanhã no escritório.

- Será que estou tão horrível assim?

- Você sabe do que estou falando.

- Não entre em pânico. Sempre existe uma solução.

Passaram diante da minicâmera com o dedo médio apontado para o alto.

Atravessaram a alameda do parque e a Quinta Avenida. Caminharam ao longo da Rua 90, passando junto às grades do jardim do Museu Cooper-Hewitt.

- Essa foi a residência de Andrew Carnegie depois que ele se aposentou.

- Não sabia - disse Kay, contemplando a mansão em estilo paladiano, em tijolos e pedra.

- É por isso que este lugar se chama Carnegie Hill. Quando ele comprou esta área, aqui era uma fazenda. A usina de aço que ele possuía transformou-se mais tarde na U.S. Steel; fiz tantas Steel Hours que me sinto em casa. Aquela é a casa onde morava Robert Chambers.

- Já ouvi esse nome...

- O filhinho de papai que estrangulou uma moça no parque.

- Ah...

- Aqui se encontra de tudo.

Dobraram a esquina e subiram a Madison.

- Naqueles tempos a televisão deve ter sido muito diferente.

- Completamente. Tudo ao vivo, sem videoteipe, sem regra- vações. Todo show era uma noite de estreia: ajuda do ponto, objetos faltando em cena, os atores sempre "duros’’, mas tudo ao vivo, eletrizante. O cenário era pintado em diferentes tons de cinza, a cor não importava.

- Por que não escreve suas memórias? Ou as grava num gravador. Podería ser interessante.

- Minhas memórias?

- Sim. Pense no assunto. Conhece Hubert Sheer? Ele mora no nosso prédio, no 9A.

Sam meneou a cabeça.

- Ele é escritor - continuou Kay -, e dos bons. Está escrevendo um livro sobre televisão e provavelmente gostará de conversar com você a esse respeito. Terei de apresentá-los. Mas estude a ideia de escrever um livro sozinho, sem ajuda de ninguém. Acredite, poderá ter boa vendagem. Se quiser fazê-lo no plano pessoal, num depoimento mais sério, ótimo. Ou então, se preferir, pode fazê-lo leve e divertido, o que tenho certeza que será fácil para você. Faça o que achar melhor.

- Pensarei no assunto. - Cumprimentou Jackson Hole ao passar por ele. - Quer tomar um café?

- Fica para outro dia. Preciso ir ao banco e voltar ao trabalho.

Atravessaram a Rua 91. Kay tirou os óculos escuros.

- Fiquei contente de tê-lo encontrado - disse ela, estendendo- lhe a mão,

- Eu também. - Apertou sua mão, sorrindo.

- Pense no assunto. Não falei só para agradá-lo.

- Está bem, pensarei.

Virou-se e saiu andando, mas voltou em seguida.

- Olhe, aquela história de sotaque era brincadeira. Vi o endereço do remetente num pacote seu na sala de correspondência. Da família Norris, em Wichita.

- Obrigada por me dizer.

- Não quero que pense que perdeu seu tempo. Não tem o mínimo sotaque. Nada. - Foi embora sorridente.

Kay virou-se e colocou os óculos, esperando o sinal abrir. Sentia-se feliz da vida, sorrindo para o céu azul-turquesa.

APRESENTOU TRÊS livros na reunião preparatória de vendas da quarta-feira; o pessoal do marketing gostou de dois e criticou o terceiro menos do que ela e o resto do seu departamento esperavam. Passou uma hora no Saks comprando um vestido de seda e algumas peças íntimas.

À noite, teve longas conversas com Bob e com Meg Hunter, que telefonou do Aeroporto Kennedy durante sua escala para Londres; passaram mais de um hora recordando Siracusa. Depilou as pernas ao som de Claire Bloom lendo a última parte do To the Lighthouse, enquanto Felice, no tapete do banheiro, tomava seu banho de gato, lambendo a pata e esfregando-se.

Passou a maior parte da quinta-feira trabalhando com uma autora de Newark cujo primeiro romance, uma obra de ficção científica espirituosa, tinha cerca de duzentas páginas em excesso. Foi à festa da Warner pelo lançamento da biografia de Catarina, a Grande, realizada no Salão de Chá - todo mundo estava lá, servindo-se de champanhe, blinis e caviar.

Ao abrir a porta do táxi, deparou com uma luz branca e uma mulher com expressão grave, segurando um microfone, que lhe perguntou:

- É moradora do prédio?

E então uma voz de homem:

- Conhecia Hubert Sheer?

- Sabe que este prédio é chamado de "Edifício do Terror"?

Walt tratou de afastá-los, acompanhando Kay até a porta.

- Ele me deu um chute! Você viu como ele me chutou? Ei, você! Porteiro! Você se meteu numa encrenca, seu idiota!

Walt olhou através da porta de vidro, depois de fechã-la.

- A escória da terra - falou com sua voz de barítono. - No início, pareciam lobos famintos. A senhora teve sorte de chegar mais tarde.

- Hubert Sheer? - perguntou Kay.

Walt voltou-se, olhou-a através dos óculos e assentiu. Recuou para abrir a porta para algumas pessoas que saíam, e voltou a fechá-la.

- O que aconteceu? - perguntou Kay.

Ele respirou fundo e tirou os óculos. Seu rosto estava pálido.

- Caiu no chuveiro. Estava com o pé engessado, protegido por um saco plástico para não molhá-lo; escorregou e bateu a cabeça.

- Ele morreu?

O porteiro confirmou com um aceno de cabeça e abriu a porta para um homem que entrou murmurando:

- Meu Deus...

Walt fechou a porta, e perguntou:

- Conhecia o senhor Sheer, senhorita Norris?

Ela assentiu.

- Não quer se sentar um pouco?

Estava indecisa, sem saber se queria ou não.

Ele a conduziu a um banco ao lado dos monitores de vigilância, segurando sua pasta enquanto ela se sentava. Tornou a colocar os óculos e, segurando a pasta com as duas mãos, inclinou-se ligeiramente:

- Alguém do escritório do agente dele veio até aqui - disse ele. - O senhor Sheer não atendia os telefonemas e tinha faltado a um compromisso marcado.

- Quando aconteceu? - perguntou Kay, levantando os olhos para ele.

Walt respirou fundo e desviou o olhar. Meneou a cabeça, suspirando.

- Ainda não se sabe ao certo. - Olhou para ela, pestanejou. - Ele estava caído no chão, embaixo do chuveiro. Como a água estava muito quente, não se pode saber exatamente quando aconteceu. A última vez que alguém falou com ele foi na segunda- feira à noite.

- Oh, Deus...


4

Como era de esperar, Edgar telefonou.

- Santo Deus, que falta de sorte!

- Eu nem acredito - disse ele, tirando o som da televisão, instalada ao pé da cama, - Falei com ele no elevador algumas vezes. Parecia um bom sujeito. - Largou o controle remoto na mesinha de cabeceira e pegou a caneca com a inscrição Eu (coração) Nova York; segurou o telefone com o ombro, levantou os travesseiros às suas costas.

- E tinha de ser logo num dia sem notícias.

- Isso passa logo - disse ele, acomodando-se nos travesseiros. - Do mesmo jeito que passou quando aconteceu com Rafael. - Tomou um golé de café.

- Lamento, mas não concordo. Este é o quinto caso, não o quarto, e a vítima é um escritor de certo renome, não um zelador. O prédio vai ficar malvisto. Detesto dizer isso, mas bem que o avisei para não alugar os apartamentos. Se os tivesse vendido, estaria livre de preocupações. Pelo menos, relativamente.

- Tem razão. - Via um comercial mudo de detergente. - Lamento não ter seguido seu conselho. - Tomou mais um gole de café.

- Presumo que já tenha lido os jornais.

- Ainda não. Ainda estou na cama; fui dormir muito tarde. - Colocou a caneca na mesinha e pegou o controle remoto.

- A manchete do Post traz EDIFICIO DO TERROR em letras garrafais, junto com uma foto do prédio tirada de baixo para cima. O News optou por TERROR NO EDIFÍCIO, com uma foto semelhante. O Times colocou a notícia na página 3 B, mas não podería ser pior: ESCRITOR É A QUINTA VÍTIMA A MORRER NO EDIFÍCIO DO UPPER EAST SIDE. Connahay está trabalhando para Merill Lynch, e creio que amanhã isso será reparado.

- Passará logo - disse ele, mudando repetidamente de canal. - Desta vez levará mais alguns dias, mas passará.

- Os telefones não param de tocar. "Quem é o proprietário do prédio? Como ele se sente a respeito do sucedido?"

- Péssimo, como podería se sentir?

- Sugiro e insisto, e todos aqui concordam comigo, que o caso seja colocado imediatamente nas mãos de um especialista em relações publicas.

- Para fazer o quê? - Continuava mudando os canais de televisão. - Uma entrevista coletiva? Só serviría para manter o caso aceso.

- Não, não, não. Para esfriar o caso. Um especialista que... induz a mídia a dirigir sua atenção para outro assunto o mais rápido possível.

Sentou-se ereto na cama, e perguntou;

- Conhece alguém que pode fazer isso?

- Indicaram-me duas pessoas. Ficará caro e provavelmente não poderá ser deduzido do imposto de renda, mas talvez possamos apresentar um argumento persuasivo à Receita Federal.

- Que se dane a Receita Federal, tome logo todas as providências. É uma ótima ideia, Edgar. Meu Deus, em que mundo vivemos!

- Fico contente que o senhor esteja de acordo.

- Claro que estou. Conto com você, Edgar.

Desligou o telefone e ficou sentado por um momento, sorrindo. Mudou os canais de televisão. Jogou o cobertor de lado, levantou-se.

Foi até a janela e abriu a vidraça do lado direito, empurrando- a até o fim. Inspirou pelo nariz, o máximo que pôde, ficando na ponta dos pés...

Exalou o ar, batendo no peito nu com os punhos cerrados.

COMO ERA de esperar, Alex telefonou.

- Fiquei preocupado quando soube da notícia. Você o co-. nhecia?

- Não - respondeu Kay.

- É uma lista e tanto: um suicídio, uma overdose de cocai...

- Alex, estou trabalhando.

- Oh, desculpe. Só queria dar um alô e saber como está passando.

- Estou bem. Réstias dé alho nas janelas, crucifixos à mão.

- O que quer dizer?

- Deixa pra lá.

Roxie telefonou.

- Santo Deus, que coisa horrível. - Deixou-a animada. - Ao que parece, ele só gostava das coisas erradas.

Vida Travisano tocou a campainha: a tintura do cabelo impecável, perfumada, as unhas pintadas de cor-de-rosa, vestindo uma túnica de cetim corde marfim, toda rebordada, apenas parcialmente abotoada nas costas. Depois de abotoá-la até uma certa altura, suas unhas começaram a se despregar.

Kay levou-a até a cozinha, onde a iluminação era melhor e, abaixando-se, começou a abotoar os pequeninos botões nas suas respectivas alças de cetim. Vida apertava as pontas dos dedos, testando as unhas. Felice, depois de cheirar os pés de Vida e receber um leve afago, debruçou-se sobre seu prato de frutos do mar.

- Bonito bordado... É da índia?

- Da China. Você tem cola de unhas?

- Não, sinto muito. -- Fechou um botão. - Aonde vai?

- Um jantar no Plaza. Um discurso atrás do outro... O governador estará lá. Horrível o que aconteceu com Sheer, não? E eu conversei com ele! No elevador, há alguns meses! Estava carregando uma planta grande, que tinha comprado na feira da Terceira Avenida... - Suspirou fundo. - E pensar que ele ficou lá caído, todo aquele tempo, sendo escaldado... Foi isso que o repórter do Canal Cinco falou: escaldado, - Virou a cabeça para trás. - Por acaso ele era amigo seu, ou coisa assim? Espero que não...

Kay sorriu, introduzindo mais um botão na alça.

- Não, não era.

- Pobre sujeito...

Felice foi para o vestíbulo, sentou-se e começou a se limpar.

- Eu conheci Naomi Singer - disse Vida, apertando uma unha.

Kay continuou atenta aos botões.

- Nós fizemos um curso de defesa pessoal contra tentativa de estupro - continuou Vida. - Voltamos para casa juntas algumas vezes. Já esteve lá? No Lex?

- Fui a alguns concertos.

- Eles dão tudo que é curso lá. Trata-se de uma instituição judaica, mas qualquer um pode frequentar.

- Ela deve ter sido uma mulher muito infeliz...

- Não parecia, mas acho que nem sempre essas pessoas demonstram o que sentem... Parecia uma mulher ativa, cheia de vida. Era parecida com você, cabelos escuros, rosto oval. Não tão bonita. Mais baixa. De "Baaaston". De onde você é?

- Whichita.

- Eu sou de todos os lugares do país. Meu pai é general de divisão da Força Aérea.

Mais um botão fechado.

- O Times não disse o que estava escrito no bilhete que ela deixou... - comentou Kay.

- O Post transcreveu alguma coisa. Ela estava deprimida. Com tudo. Meio ambiente, racismo, armas nucleares, essas coisas. Falava também de um rapaz de Boston, com quem tinha rompido. - Suspirou. - Uma coisa eu garanto: ela quase matou Dimitri de susto.

- Como assim?

- Quase caiu em cima dele. Ele estava polindo as... aquelas barras que sustentam o toldo. Na época, ele era porteiro, e Rafael, o zelador. Ela caiu bem ao lado dele. Ele ficou todo sujo de sangue. A administração do prédio deu-lhe uma semana de férias na Disneylândia, ele, a mulher e os filhos, com todas as despesas pagas.

- Nada mau - comentou Kay, fechando mais um botão.

- Oh, eles não são unhas-de-fome. E é melhor que não sejam, com tanta gente esticando as canelas. Quem vai querer renovar o contrato? - Meneou a cabeça, suspirando. - "Edifício do Terror"... Credo! Sinto-me como se estivesse num filme de Jamie Lee Curtis,

Kay fechou o último botão, sorrindo.

- Pronto, Jamie Lee - disse ela, dando um passo atrás -, pode ir ao encontro do governador. Você está sensacional.

UM PACOTE EMBRULHADO em papel xadrez estava a sua espera no balcão da sala de correspondência: sobrescritado à mão, fora remetido por uma loja chamada Victoriana, da Rua 89 Leste. Tinha o tamanho de uma caixa de sapatos, bastante pesado, e trazia impresso um belo rótulo art nouveau. Curiosa em saber o que e quem podería tê-lo mandado, subiu no elevador junto com o homem de cavanhaque do 12 e um casal de japoneses do 16.

"Quem" era Norman e June, a caligrafia gratida e arredondada de Norman no cartão creme com o logotipo da Diadem: Céu azul, estrelas cintilantes, boa sorte. Nós te cmamos. Norman e June.

O "que", embalado em plástico de proteção e papel azulão, era um magnífico telescópio de bronze, composto de duas partes que se abriam atingindo cerca de 50 centímetros, trazendo estampado junto ao visor o Sino da Liberdade, o nome Sinclair e o ano de 1893.

Com o entusiasmo de uma criança, focalizou um rebocador empurrando uma barcaça rio acima, um iate branco descendo a correnteza. Carros passando na ponte Triboro. Janelas de edifícios, algumas delas com telescópios equipados com tripé. Sentiu algo roçando em seu joelho - Felice andando no peitoril da janela, ronronando.

Foi com Roxie e Fletcher ao mercado das pulgas na Rua 26, comprou um par de castiçais de estanho; foi a uma reapresenta- ção de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan, a um restaurante chinês.

Leu um bom original. Foi cortar o cabelo. Almoçou com Flo- rence Leary Winthrop no Seasons. Um outro homem estava sentado no lugar que Sheer ocupara. Participou de uma reunião de produção.

Seu dia de ficar em casa aquela semana, quarta-feira, estava horrível, uma garoa fina cobrindo o parque marrom e o reservatório cor de chumbo, o telhado do Museu Judaico, os jardins marrons que apareciam em torno dos telhados negros dos casarões antigos. Um ótimo dia, entretanto, para se ficar em casa - mesmo tendo de decifrar as páginas datilografadas entremeadas de setas e a caligrafia quase ilegível de Florence.

No trecho em que Susan tentava tirar as manchas de sangue do paletó de Derek, ocorreu-lhe que aquele era também um ótimo dia para lavar roupa, pois não havería fila nas máquinas. O relógio marcava 3:25. Deixou Susanah lavando e se preocupando, tirou o cesto de roupa suja do roupeiro - Felice veio ao ves- tíbulo para ver o que Kay estava fazendo -, pegou as toalhas do banheiro e da cozinha, o sabão em pó debaixo da pia e moedas de vinte e cinco cents da caneca Mickey Mouse.

Ao entrar na lavanderia do prédio com o cesto superlotado de roupas e caixa de sabão por cima, seu vizinho Pete qualquer-coisa, que estava diante de uma secadora na direção da porta, voltou-se e olhou para ela, deixando cair dentro do cesto uma peça amarela que tinha na mão.

- Oi - disse ela, dirigindo-se para a lateral da sala e depositando seu cesto de roupa sobre a primeira máquina da fila.

Mais adiante havia tuna máquina em funcionamento, as luzes vermelhas acesas, um cesto vazio sobre o tampo.

- Oi - respondeu o rapaz, a voz ecoando nas paredes de azulejos brancos. - Como vai?

- Tudo bem. - Pena que não tivesse se arrumado um pouco, mesmo ele tendo apenas vinte e sete anos. - E você?

- Bem - disse Pete Henderson. - Já colocou a mudança em ordem?

- Mais ou menos. - Retribuiu seu sorriso (além do sorriso arrasador, estava lindo de camiseta verde e jeans) e virou-se, abrindo o tampo de duas máquinas. Tirando os filtros, comentou: - Que equipamento, hein? Tudo aqui é de primeira.

- É que a ideia inicial era vender os apartamentos.

- Sorte minha que não venderam.

- Minha também.

Tirou a caixa de sabão e começou a colocar a roupa em duas máquinas: as peças brancas em uma e as de cor em outra.

- Por que será que eles mudaram de ideia?

- Creio que a demanda mudou.

- Mesmo assim, uma vez feito o investimento... Quem é o proprietário do edifício, você sabe?

- Não, não sei. Só sei que os cheques do aluguel vão para a MacEvoy-Cortez. - Exalou um suspiro ressonante. - Mas que recepção de boas-vindas você teve...

- Nem me fale.

- Esses repórteres são insuportáveis, não? Acho que a princípio são pessoas decentes, mas depois, Deus do céu, tornam-se umas piranhas! Como no filme de James Bond. Comem tudo que aparece pela frente.

- Ele ia escrever um livro sobre televisão - disse Kay, colocando um jeans na máquina de roupa de cor -, do seu efeito sobre nossas vidas. Não sei se ele ia falar disso, sobre como ela transforma repórteres em piranhas.

- Você o conhecia? - Virou-se ao perguntar.

Kay tentava soltar um lenço enroscado no botão de uma camisa.

- Só por alto. Fomos apresentados hã pouco tempo.

- Parece-me um bom tema. Eu via televisão o tempo todo quando era criança; agora só alugo filmes de vídeo de vez em quando. Ele ia incluir no livro a influência do videocassete na mudança dos hábitos?

- Creio que sim. Não entrou em detalhes. Só conversamos por um ou dois minutos.

- Mas o fato de tê-lo conhecido deve tê-la deixado mais impressionada ainda.

- Oh, sim. Sem dúvida. - Colocou a camisa em uma das máquinas e o lenço na outra.

- Conversei com ele algumas vezes no elevador. Mas, você sabe como é, aquela conversa sobre o tempo. E li o livro que ele escreveu sobre computadores.

- Também li - disse Kay, voltando-se. - O que achou?

Pete ficou em silêncio por um momento, o cenho franzido.

- O livro é correto. Achei que foi bem escrito, mas... não gostei. - Olhou para ela. - Eu entendo de computadores. Não vejo nenhuma razão para ficar paranóico por causa deles; afinal de contas, não passam de máquinas, máquinas que processam informações com extrema rapidez.

- Mas ele não estava sendo paranóico. Existem perigos reais inerentes a eles.

- Ele exagerou, multiplicando por dez esses perigos.

Kay colocou na máquina os lençóis estampados de amarelo.

- O que você faz?

- Sou um programador free lance. Dou consultoria para diversas empresas, principalmente financeiras, e criei alguns jogos eletrônicos que foram comercializados. - Fechou a porta da secadora. - E você?

- Sou editora. Trabalho na Diadem.

- Quer um sanduíche? Ou um doce? - perguntou Pete, por sobre o ombro, encaminhando-se para as máquinas de venda automática, localizadas na outra extremidade do salão.

- Não, obrigada - respondeu com um sorriso, colocando as últimas toalhas na máquina.

Moedas tilintaram ao cair pela fenda.

- Aqui também tem comida para gato, sabia?

- Não sabia. - Abriu o bico da caixa de sabão Tide.

- Para cães também. Por que será que não tem ração para periquitos? - A máquina zumbiu; alguma coisa caiu.

Despejando o sabão em círculo sobre as peças de cor, Kay parou abruptamente, levantou a caixa e virou-se. Pete vinha atravessando o salão, rasgando uma embalagem plástica. Sorriu para ela.

- Vi você comprando granulado para gatos no Murphy’s - disse ele -, sábado de manhã.

- Ah,..

- Estava acompanhado, por isso não fui falar com você.

Ela sorriu e voltou a despejar o sabão.

Pete recostou-se na máquina que estava funcionando, e perguntou:

- Macho ou fêmea?

- Fêmea. Malhada, de três cores.

Ele acabou de abrir o saco de batata frita.

- De onde você é? - perguntou Kay, despejando o sabão em círculo sobre a roupa branca.

- De Pittsburgh. Já moro aqui há cinco anos. Quero dizer, em Nova York. Três anos neste prédio. - Estendeu o braço, oferecendo-lhe o saco de batatas, oíhando-a com interesse.

- Não, obrigada - recusou com um sorriso, fechando o bico da caixa de sabão e colocando-a no cesto vazio. - Sou de Wichi- ta. Já estou aqui há... puxa vida, dezoito anos.

- Sabia que você era do Meio-Oeste. Pela sua maneira de falar. Acho legal. - Tirou uma fatia de batata do saco.

- Obrigada. - Recolocou os filtros nas máquinas e fechou os tampos.

- Pegue sua máscara contra gases - Pete falou em voz baixa, olhando por sobre o ombro dela.

Ao virar-se, Kay sentiu no ar o aroma de Giorgio.

A mulher de franjinha do S parou na porta, embaixo da câmera de vídeo, de óculos escuros, colar de âmbar, vestido preto de mangas longas. Mais ao fundo, um homem entrava no elevador levando uma bicicleta.

- Oi - disse ele, com um aceno de cabeça.

Ela apenas acenou com a cabeça e encaminhou-se para as máquinas de venda, os saltos altos estalando no piso de vinil. Giorgio desafiando Tide e Clorox.

Pete cheirou o ar e sorriu com malícia. Kay também sorriu, colocando as moedas nas respectivas bandejas. Pete desencostou da máquina - as luzes vermelhas haviam se apagado - e foi até as secadoras. Ouviu-se o tilintar das moedas caindo na máquina do outro lado do salão; um zumbido, alguma coisa caindo.

Kay encaixou as bandejas, e as luzes do painel se acenderam; estudou os programas de lavagem.

Uma mulher entrou no salão e, cheirando o ar e franzindo o cenho, dirigiu-se à máquina em que Pete estivera encostado; era morena, gorda, de blusa vermelha e saia roxa, chinelos marrons. Tirou o cesto de cima da máquina e abriu o tampo.

- Sua cronometragem foi perfeita. A máquina desligou nesse instante.

A mulher voltou-se para Kay:

- Hein?

- Parou agora mesmo. - Fez um gesto com as mãos, cortando o ar. - Acabou. - Apontou para a máquina.

- Ah, sí - disse a mulher, sorrindo. Foi tirando a roupa torcida e colocando-a no cesto. •- Sí, veintecinco minutos. Exactamente veintecinco minutos.

- Vinte e cinco.

- Sí.

- Obrigada.

Pressionou os botões; as máquinas entraram em funcionamento. Tirou a caixa de sabão de dentro do cesto.

- Vamos esperar um pouco - disse Pete, segurando seu cesto de roupa limpa e olhando na direção do hall.

Kay virou-se, procurando ver do que se tratava, até que Gior- gio, vencedor da batalha contra o Tide e o Clorox, entrou no elevador, e a porta se fechou.

- Ela deve se abastecer de uma tubulação diretamente da fábrica - disse Pete, enquanto entravam no hall.

- É Giorgio. Por melhor que seja, o exagero nunca é boip. - Apertou o botão entre as portas. O indicador 2 passou para T, e o 4 para 5.

A porta da escada se abriu, e Terry entrou no hall, vestindo uma capa de chuva preta. Cumprimentou-os com um sorriso e entrou na lavanderia. Um homem de poncho amarelo saiu da garagem de bicicletas, carregando um capacete na mão. Fechou a porta de tela e sorriu para os dois.

Kay e Pete acenaram com a cabeça.

O homem passou a mão pelo cabelo molhado e a sacudiu no ar.

- Chovendo muito? - perguntou Pete.

- Cada vez pior. - Era louro, um tanto gordo, trinta e poucos anos.

O elevador da esquerda chegou.

- Poderia apertar o meu, por favor? - pediu Pete, entrando atrás de Kay e carregando seu cesto de roupa. - É o treze.

Ela apertou o 20 e o 13. O homem de poncho apertou o 16.

O elevador parou no térreo, e entrou uma senhora idosa, de capa e chapéu azul-marinho; cumprimentou a todos com um aceno de cabeça e apertou o 10.

Subiram em silêncio. A mulher desceu no décimo andar.

- Prazer em vê-la - disse Pete, ao descer no décimo terceiro. - O prazer foi meu.

O homem de poncho desceu no décimo sexto.

Ray continuou parada, segurando sua caixa de Tide.

Olhou de relance a câmera de vídeo instalada no canto. Tirou as chaves do bolso quando o marcador passou de 19 para 20.

Kay RECEBEU UM GRUPO de amigos na sexta-feira à noite - o pessoal da Diadem, Roxie e Fletcher. Todos elogiaram o apartamento, Felice e o falcão de Roxie; olharam através do telescópio, tomaram vodca, refrigerante, vinho branco; falaram sobre os boatos de uma possível fusão, da crise no Oriente Médio, da lista de primavera.

- Que lustre bonito - disse June, enquanto comiam. - E seu?

Todos olharam para o lustre - os dez ou doze que lá estavaiii e ela também, sentados na sala de estar com seus pratos de salada com frango e taças de vinho.

- É do prédio - disse Kay, sentada numa almofada junto à mesinha de centro. - Tudo aqui é da melhor qualidade. Os apartamentos foram projetados para serem vendidos, mas o proprietário mudou de ideia e decidiu alugá-los. Ninguém sabe quem é esse misterioso proprietário que se esconde atrás de um escritório de advocacia. Dizem que é um chato, mas para mim é o próprio Papai Noel.

- O frango está uma delícia - comentou Norman.

- É do Petak’s.

- Alguém deve saber quem ele é - disse Gary.

Kay tomou um gole de vinho.

- Os corretores que alugam os apartamentos não sabem - disse ela. - Eles tratam de tudo com os advogados.

- Ora, não é de se estranhar - retrucou Tamiko. - Pensando bem, a fama do prédio não é das melhores.

- Mas isso é desde a época em que ele comprou o imóvel.

- Comprou de Barry Beck - explicou June. - Jamais pensei que um dia estaria sentada aqui. Não é mesmo, Norman? Nós lutamos tanto contra a construção deste edifício...

- Somos integrantes da Civitas - esclareceu Norman. - É uma organização que procura preservar a área e impedir que se construam prédios em excesso. Havia duas lindas mansões antigas neste local. Perdemos a batalha, mas vencemos a guerra, pelo menos contra esses prédios espremidos feito linguiça. A legislação proibindo sua construção entrou em vigor um mês depois que as fundações deste prédio foram concretadas.

- A construção é sem dúvida de primeira - disse Stuart. - Não ouvi um ruído sequer vindo do apartamento ao lado, e lá também estava chegando gente. Meu prédio é novo, mas ppsso ouvir os vizinhos apertando as teclas do telefone.

- Se ele foi construído nos padrões de um condomínio que seria colocado à venda - disse Tamiko -, por que se transformou num prédio de apartamentos de aluguel?

- Isso é o que eu gostaria de saber - disse Kay, servindo mais uma rodada de vinho. - Não consigo entender. Falei com Jo Har- ding, do departamento de contadoria (ela investe em imóveis), e ela disse que o mercado para aluguel aqui neste bairro é mais fraco que o de venda há muitos anos. Então liguei para a corretora que me mostrou o apartamento e lhe fiz algumas perguntas. Ela é quem disse que o proprietário é um chato, e que só sabe que é um homem porque os advogados o chamam de filho da puta. Felice! Desça já daí! Eu disse já! Ele os atormenta com problemas de manutenção, recusa-se a alugar para certos inquilinos em perspectiva sem uma razão lógica... Fletcher? Mais um pedacinho? Ele age como se morasse aqui, mas por que moraria num apartamento de três cômodos? O que ele tem aqui deve valer no mínimo cinquenta milhões de dólares, Wendy?

- Ele podería manter um apartamento aqui para uso esporádico - disse Stuart - e morar em seis outros lugares.

- Também acho. - Serviu mais vinho a Wendy. - Mas pelo que a corretora falou, ele não dá um minuto de sossego.

- Barry Beck deve saber quem ele é - retrucou June,

- Ou o empreiteiro, um tal de Michelangelo - interveio Norman. - Beck vendeu o prédio antes de terminar a construção.

- Minha curiosidade não chega a tanto - disse Kay, completando a taça de Gary. - Prefiro pensar que ele é maluco e tem direito à privacidade; sou grata a ele. Pessoal, por favor, comam mais um pouco de frango.

CONTINUOU SENTADO, os olhos fixos na tela. Balançou a cabeça, boquiaberto.

Tentou rir.

Precisava manter seu senso de humor, certo?

O fato de ela ser a primeira, depois de todo aquele tempo, a olhar os dentes do cavalo dado e fazer perguntas, de seus colegas a aconselharem prontamente a procurar Michelangelo... Era o caso de rir para não chorar.

"Chato" e "filho da puta".

Muito engraçado.

Viu-a trazendo a musse de morango, colocando-a na mesa de jantar. Imaginou se um dia podería ser apanhado.

Claro que podería. Como não pensara antes nessa possibilidade? Um sósia de Columbo a sua porta: "Desculpe incomodá-lo, mas podería me ceder dois minutinhos do seu tempo? Tenho algumas perguntas a lhe fazer sobre as mortes ocorridas neste prédio..."

Relaxe. Fique frio. Ela não pretendia investigar, sua curiosidade não chegava a tanto. Não foi o que ela disse?

E Michelangelo estava em Bimini, pescando e trepando com sua nova mulher, e negaria qualquer coisa relacionada ao prédio mesmo que fosse interrogado pelo Papa. Então, nada de paranoia.

Levantou-se e foi buscar mais um pouco de ginger ale. Encontrou um resto de frango xadrez.

Sentou-se para comer, vendo-os saborearem a musse e tomarem café, achando tudo delicioso. Bom para ela.

Deu uma olhada na festinha de Vida, e dos Stangerson.

Chris dando a notícia a Sally.

Stefan discutindo com Hank.

Kay acompanhando Norman e June até a porta.

Mantenha a calma. Não há por que se preocupar.

Ela não disse que ele tinha direito à privacidade?

- EU PEDIR DESCULPA porque não veio antes da festa - disse Dimitri.

- Não faz mal - respondeu Kay, levando-o até o quarto. - Pra fora, Felice. Vamos, pra fora.

- Inundação na sala da caldeira, ontem. - Dimitri sacudia uma lata de spray na altura do ombro.

- Não diga!

- Agora tudo arrumado. Logo seco. Humm! Dia lindo!

Colocou a lata de spray no peitoril da janela, junto à escrivaninha, e puxou o painel da direita com as duas mãos, abrindo-o em cerca de um palmo. Fez o mesmo com o painel do lado esquerdo.

- Não tem problema - disse ele.

Encolhendo os braços junto ao corpo e esfregando-os devido ao vento frio que entrava pela janela aberta, Kay ficou observando o trabalho de Dimitri que, depois de agitar bem a lata, retirou a tampa. Será que, ao consertar aquelas janelas emperradas, lembrava de Naomi Singer mergulhando lá do alto e caindo quase era cima dele? Mulher idiota... Já que queria se atirar, por que não se atirou da janela do quarto?

Ele parecia tranquilo, abaixando-se, esguichando o spray ao longo do trilho interno, passando para o outro lado, onde ela se encontrava. Kay recuou, chegando mais perto do armário.

- O que é isso que você está usando?

- Silicone - respondeu Dimitri, esguichando na direção oposta.

Felice subiu no peitoril e debruçou-se para fora, o traseiro empinado, balançando a ponta preta do seu rabo branco. Dimitri colocou a lata no chão e segurou o painel da janela.

Dando um passo à frente, Kay acariciou as costas da gata.

- Não...

Segurando-a com as duas mãos, virou-a para si, suspendeu-a no ar, as patas dianteiras arreganhadas, o focinho quase tocando seu rosto.

- Não - disse ela, fitando aqueles olhos verdes de pupilas estreitas. - N, A, O, til. Aqui não se pode debruçar na janela. Nem com suas sete vidas, ouviu? Pffft. Não-não. Entendeu?

Felice olhou para ela; ela olhou para Dimitri.

Ele continuava trabalhando despreocupadamente, puxando o painel na direção dela, Kay afastou-se da janela, colocando Felice no ombro, beijando e acariciando a gata.

- Ouvi dizer que o proprietário do edifício é um chato.

Felice ronronou.

Dimitri lubrificou mais um pedaço do trilho.

- Millis eu conheço. Proprietário não.

- Millis?

- Senhor Millis, o administrador. Senhora conhece senhor Millis. - Seus olhos escuros fitaram-na de relance.

- Ah, o senhor Mills. Ele me mandou uma carta. E então, ele gostou do mármore novo?

- Dal Surpresa. Achou mármore bom. - Largou a lata, puxou o painel, deslizou-o até o outro lado. - Viu? Não tem problema. - Sem o menor esforço, deslizou o painel para um lado e para outro.

- Que maravilha. - Felice ronronava a todo vapor. Alisando-a, Kay viu Dimitri fazer a mesma operação no trilho externo. - Dimitri... Por acaso... Alguma vez o senhor Mills lhe disse para... tratar algum inquilino de maneira especial, fazer tudo que ele lhe pedisse?

- Da - confirmou com um aceno de cabeça. - Uma inquilina.

- Uma mulher?

- A senhora.

- Eu?

- Da. - Colocou a lata de spray no chão. - Quando a senhora assinou contrato. - Puxou o painel externo.

- Quando eu assinei o contrato?

Empurrou o painel. Olhou-a com curiosidade, os olhos escuros brilhando acima das faces coradas.

- Não conhece senhor Millis?

- Não.

Dimitri encolheu os ombros.

- Ele dizer; "Trate muito bem ela". "Atenção especial para ela." - Pegou a lata e agitou-a.

Kay tirou Felice do ombro, colocou-a no chão e olhou para Dimitri.

- Tem certeza de que ele se referiu a mim?

- Senhorita Norris. - Lubrificou o trilho externo. - "Vai mudar para o 20B. Trate muito bem ela. Atenção especial para ela,"

- E ele não diz isso sempre que um novo...

Dimitri balançou a cabeça.

- Não. Nunca. Só a senhora.

- Mas não entendo uma coisa dessas...

Dimitri deslizou os dois painéis de um lado ao outro da janela.

Arrumou também a janela da sala.

Recuou quando ela lhe estendeu uma gorjeta, erguendo as duas mãos.

- Não, não. Por favor. Obrigado. Não.

Kay não insistiu.

Voltou â faxina.

Wendy telefonou para agradecer. Falaram de como June estava mais bonita, e do que estava acontecendo entre Tamiko e Gary.

Tamiko telefonou. Falaram de Stuart, de Wendy.

June. Depois de baterem um papo, Kay disse:

- June, quero que descubra quem é o proprietário deste prédio; podería me arranjar o telefone do construtor, ou do empreiteiro, ou ambos?

- Sim, tenho certeza de que a Civitas tem os números.

- Ligarei ao administrador na segunda-feira, mas como ele trabalha no mesmo escritório que a corretora com quem falei, deve saber tanto quanto ela. Além do mais, não é fácil arrancar alguma coisa de um advogado. Segunda-feira eu lhe conto como foi. Até lá, não faça nada.

- O que a fez mudar de ideia?

Kay explicou.

- Adorei! É igualzinho ao Lady’s Landlord.

- Olivia’s Landlord - corrigiu Kay. - Lydia’s Doctor.

- E isso aí. Quer vir jogar mexe-mexe amanhã à tarde? Dizem que vai chover. Paul estará aqui.

O convite ficou em aberto.

OBRIGADO, DIMITRI.

Não, devia agradecer a si mesmo, por ter recomendado a Edgar que desse a ela um tratamento especial. Como se, caso não fizesse tal recomendação, ela pudesse vir a ser insultada ou empurrada escada abaixo.

Não tinha dúvida sobre o que teria de fazer, quisesse ou não. E antes de segunda-feira.

Depois que Edgar negasse ter qualquer conhecimento, e Barry Beck não sabia mesmo de nada, ela telefonaria imediatamente par a Dominic Michelangelo. Talvez ele se fizesse de desentendido, mas também podería se sentir inspirado a tentar seduzi-la com sua conversa de machão conquistador. "Já apareceu na televisão? Pela voz, parece uma mulher encantadora..." Principalmente se o pegasse de copo na mão, o que não seria difícil nas atuais circunstâncias. "Tem certeza de que jamais apareceu na televisão?"

E ela acharia estranho que ele, com pouco mais de quarenta anos, estivesse aposentado e vivendo em Bimini...

Teria de ser naquele dia mesmo, pois no dia seguinte ela sairía para jogar mexe-mexe e talvez ficasse para jantar na casa dos amigos.

Parte dele queria fazer o que tinha em mente, sabia disso. Como sabia também qual era essa parte. Não se observava o trabalho de um psiquiatra do calibre do dr. Palme por três anos sem com isso tirar conclusões sobre algumas questões de ordem pessoal.

Mas ela não lhe deixara escolha. No momento em que descobrisse as câmeras, poria a boca no mundo; não havería como subornar uma pessoa "caxias" como ela. Seria o fim dele. Seria acusado até do ataque cardíaco de Brendan - não que uma acusação a mais ou a menos fizesse alguma diferença.

Era uma questão de prudência, não paranoia.

Procurou manter a calma. Observou as imagens de outros monitores enquanto ela terminava a faxina e saía para fazer compras. O famoso pai de Daisy, vindo diretamente de Washington, contava a Daisy e Glenn as últimas notícias internas da crise do Oriente Médio. Sem interesse pela questão, não se deu ao trabalho de gravar a conversa.

Decidiu a melhor maneira de agir, planejou os detalhes. Procurou manter a calma.

Saiu para fazer compras, caminhando apressadamente pela Ma- dison, torcendo para não encontrar inesperadamente com ela.

Ao voltar, verificou que Kay já havia chegado.

Estava sentada à escrivaninha, preparando-se para trabalhar no mesmo original em que vinha trabalhando a semana toda.

Ele colocou a garrafa no refrigerador.

Observava-a e esperava.

Telefonou-lhe às cinco e oito, quando ela terminou um capítulo. Felice cochilava no meio da cama. Manteve a imagem no master 1, nada no 2.

Estava voltada para o telefone, ao lado da janela, quando ele disse quem era; não conseguiu ver seu rosto, não lhe deu tempo de falar.

- Desculpe incomodã-la - disse ele -, mas preciso falar com você sobre um assunto. E um tanto delicado para falar pelo telefone. Tem a ver com o prédio. Posso ir aí, por favor, só por um minuto?

- Você diz agora? - Girou na cadeira, prendendo os óculos no alto da cabeça, olhando para Felice, que acabara de acordar e arqueava as costas, parada no meio da cama.

- Se não for incômodo para você.

- Não, não é...

- Então, posso subir?

Puxou a cadeira para mais perto da cama, enquanto Felice caminhava vagarosamente em sua direção, uma pata de cada vez.

- Dentro de dez minutos. - Felice pulou no seu colo. Opa. - Recuou com a cadeira. - Um felino acaba de saltar em cima de mim.

Ele respondeu sorrindo:

- Aí fora é uma selva. Ou melhor, aí em cima. Obrigado. Até já.

- Até.

Kay colocou o telefone no gancho.

Ele respirou fundo. Soltou o ar dos pulmões, vendo-a girar na cadeira, colocar os óculos na mesa, afagar Felice.

- Humm - disse ela. - Interessante...

- Foi você quem falou - disse ele.

Kay desligou a luminária, fechou o tampo da escrivaninha.

Levantou-se, largando Felice no tapete. Abriu o armário, desabotoou a camisa.

Trocando de roupa para recebê-lo. Que gentileza... Examinou seu jeans manchado.

Seria melhor trocar de roupa também.


5

Kay vestiu seu jeans preto, a blusa de gola olímpica bege, os sapatos pretos.

Escovou o cabelo e passou batom e um pouquinho de blush, tentando imaginar de que podería se tratar, um assunto delicado demais para se falar pelo telefone e relacionado com o prédio. Seria algo relacionado com as mortes? Esperava que não, não gostava nem de lembrar... Cantarolando Strike Up the Band, apagou a luz do banheiro, passou pelo vestíbulo acendendo a luz e entrou na sala; acendeu os abajures das mesinhas laterais.

O ar continuava impregnado com o cheiro do spray de Dimi- tri. Foi até a janela e abriu o painel da direita, segurando-o a meio caminho para que não se abrisse de todo - bom trabalho, Dimitri - e puxou-o de volta, deixando apenas uma fresta. O céu estava escuro, O tráfego de carrinhos em miniatura, menos intenso do que em dias de semana, fluía e parava de acordo com as luzes dos semáforos.

Atenta ao barulho da porta do elevador, voltou ao quarto e abriu metade da janela. Sentiu a corrente de ar fresco passando por ela ao atravessar o vestíbulo. Felice olhou-a da cozinha, parada sobre as patas traseiras afiando as unhas na cortiça.

- Que beleza, isso sim é que é uma gata boa - disse Kay, entrando na cozinha.

Pegou a caixa de biscoitos para gatos no armário e deu um a Felice. Guardou a caixa e pegou um petisco para si mesma na geladeira, um minitomate na embalagem da salada. Mastigando, lavou as mãos na pia e enxugou-as no pano de prato.

Voltou para a sala. Desarrumou os livros que estavam empilhados na mesinha de centro e tirou a terrina de lugar. Levantou de todo a veneziana e prendeu-a.

Ficou olhando um veículo comprido, um caminhão de mudança, que manobrava para entrar na Rua 92, o número da placa pintado em preto sobre o teto rosa e dourado. Sendo grande demais, manobrava para a frente e para trás, congestionando o tráfego na avenida. Buzinas tocavam insistentemente. Felice começou a miar.

Ficou miando junto à porta de entrada, os olhos fixos na fresta sob a porta.

A campainha soou enquanto Kay se dirigia para a porta. Espiou pelo olho mágico e então abriu-a.

- Olá. - Sorrindo, estendeu a mão.

- Olá - disse Pete, apertando sua mão e entrando.

Vestia um suéter amarelo-canário sobre uma camisa branca, calça cáqui impecavelmente vincadas e tênis brancos com aparência de novos. Felice cheirou seus pés e ele se abaixou, passando a mão pela sua cabeça e coçando-lhe as orelhas.

- E aqui está o famoso felino que gosta de atacar as pessoas - disse ele, acariciando-lhe o pescoço. - Ela é mesmo muito bonita... - Felice levantou a cabeça, cerrando os olhos enquanto ele passava o dedo sob seu queixo. O cabelo molhado de Pete tinha marcas de dentes de pente. - Que idade ela tem?

- Vai fazer quatro. - Kay fechou a porta.

- Como ela se chama?

- Felice.

Pete ergueu os olhos azuis.

- Como Félix?

- Sim - disse ela, sorrindo. - Você é a segunda pessoa a notar isso em menos de vinte e quatro horas, o que é surpreendente. Quase ninguém faz a relação.

- É mesmo? - Sorriu para Felice, que esfregava a cabeça ala- ranjada e branca em sua mão.

- Tive visitas ontem ã noite, e uma delas notou a relação. E é uma pessoa que conhece Felice há mais de um ano.

- É um ótimo nome para uma gata.

- Em espanhol significa feliz, mas nem pensei nisso quando lhe dei esse nome.

- Ah, claro, feliz. - Pôs-se de pé. - Veja só, que quadro bonito. E sensacional...

- Pintado pela minha melhor amiga.

- Verdade? Mas este não é trabalho de amador.

- Não, ela já expôs aqui e em Toronto. Roxanne Arvold.

Pete semicerrou os olhos.

- É sensacional a maneira como ela captou a... graciosidade do falcão, e a delicadeza da plumagem, sem nos deixar esquecer que é uma ave de rapina.

- Era justamente o que ela pretendia transmitir...

Ele se virou na direção da sala.

- Ficou bonita, a sala. Você a decorou com muito gosto. Bonitas cores...

- Faltam algumas coisas que ainda não chegaram - disse Kay, seguindo atrás dele e de Felice.

Ele parou diante do quadro de Zwick.

- Este também é muito bom. Tem alguma coisa de Hopper. Também de um amigo?

- Não. Da exposição de arte da Washington Square.

Ele deu uma volta pela sala.

- Muito bonita... - Olhou para o sofá. - Como você chamaria essa cor?

Kay olhou o sofá, inclinando a cabeça de lado.

- Damasco.

- Damasco... - Contemplou-o por um momento. - Bonita cor...

- O sofá também era bonito, antes de Felice atacá-lo. Mandarei trocar o estofàmento assim que ela aprender a usar o afia- dor de unhas que lhe comprei. Tenho a impressão de que, no momento em que eu entro no elevador, ela volta a afiar as unhas no braço do sofá.

Acho que você tem razão - disse ele, sorrindo, debruçando-se para acariciar a gata, que se esfregava em sua perna. - Os gatos sendo como são... - Olhou para trás e levantou-se, exclamando: - Puxa vida, que diferença entre o 13 e o 20! - Foi até a janela e olhou pelo painel da direita. - Que vista fantástica. Eu só vejo o telhado do Wales e os fimdos daquele prédio.

- Cuidado - disse ela, aproximando-se da janela. - Ela abre com facilidade. Dimitri lubrificou os trilhos hoje pela manhã.

- Ali é Queens ou Brooklyn?

- Queens - respondeu Kay, olhando através do painel da esquerda.

Pete soltou um assovio.

- Isso é que é vista. - Acariciou o rabo de Felice, que andava pelo peitoril,

Ficaram olhando os edifícios iluminados, as luzes azuis e douradas da ponte refletidas na água, campos de luz distantes. Estrelas brilhavam no céu, algumas delas em movimento, vermelhas e azuis.

- O Aeroporto Kennedy fica naquela direção - disse ele.

- O que você queria falar comigo?

Pete virou-se de frente para ela, respirou fundo, o olhar perturbado.

- Sinto-me culpado. Outro dia, na lavanderia, você me perguntou se eu sabia quem era o proprietário do prédio, e eu disse que não. Acho que você continua cismada com isso, pelos comentários que fez a respeito da mudança de planos depois de feito o investimento. Tenho a impressão de que você é o tipo de pessoa que... não desiste enquanto não desvenda um mistério. - Deu de ombros. - E não me agrada a ideia de ver seu trabalho prejudicado sem uma boa razão.

- Você sabe quem é o proprietário?

- Sei.

- Quem?

Pete bateu com a ponta do dedo no peito.

- Eu. Eu sou o proprietário.

Kay olhou-o com espanto.

- Eu me criei neste bairro, por assim dizer. Nós morávamos em Pittsburgh, mas tínhamos um apartamento na Park. E também a casa de Palm Beach... - Suspirou, sorrindo. - Herdei uma verdadeira fortuna quando completei vinte e um anos. Aqui foi o lugar onde mais gostei de morar, e por isso mudei para o Wales enquanto procurava meu rumo. Isso foi há cinco anos. Ouça, Kay... Posso chamá-la de Kay?

- Claro...

- Importa-se se eu fechar a janela? Está entrando um vento frio.

- Oh, claro, pode fechar. E, por favor, sente-se.

Ele fechou a janela.

Kay sentou-se no canto do sofá, dobrando uma perna sob o corpo.

Pete sentou-se numa poltrona, cruzou as pernas, puxou o joelho da calça pelo vinco.

Felice deitou-se numa almofada embaixo da janela, junto à entrada de ar quente, observando os dois.

- Como ia dizendo - continuou Pete, apoiando um cotovelo no braço da poltrona, as mãos entrelaçadas -, lá estava eu no Wales. Sexto andar, apartamento de frente, vendo-os demolirem as mansões que ficavam neste local, duas delas, e fazerem as escavações, e concretarem os alicerces... E ocorreu-me que seria muito bom ter um prédio de apartamentos e morar nele, já que eu gostava tanto de morar no 1185. Era onde morávamos, aquele prédio grande com uma área na frente, sabe qual é?

Kay assentiu.

- E imóveis são um bom investimento, não são? Foi como Donald Trump começou. Assim sendo, comprei o prédio por intermédio de meus advogados. Decidi alugar os apartamentos porque, se os vendesse e algum condômino se revelasse um vizinho desagradável, dando festas barulhentas todas as noites ou coisas do gênero, eu não podería fazer nada. Ao passo que, alugando- os, tenho mais flexibilidade. E não quero que ninguém saiba que sou o proprietário, nem mesmo o pessoal da MacEvoy-Cortez, acredite ou não, pois não quero ser incomodado com coisas sem importância e pessoas fazendo reclamações, e os funcionários me puxando o saco, se me permite a expressão.

- Você mora aqui durante o ano todo?

- Sim. Sou maníaco por computadores. Não tenho a menor atração por iates ou mansões. E verdade que, no futuro, pretendo morar num lugar mais amplo, com um salão de jogos e uma piscina, mas por enquanto um apartamento pequeno é o ideal para mim. Posso mantê-lo sozinho, sem ter ninguém xeretando nas minhas coisas e nos meus papéis.

- E por que não ficou com a cobertura? É o que eu teria feito.

Pete sorriu.

- Eu já lhe disse, sou vidrado em computadores. Passo o dia inteiro com os olhos fixos em meu monitor, e grande parte da noite também; seria um desperdício da vista que se tem da cobertura. Por isso fiquei com o 13. É o andar mais difícil de alugar. Você não imagina como as pessoas são supersticiosas.

- Ainda mais agora.

- Exatamente. Ainda mais agora. - Suspirou.

- Deve ter sido um golpe duro para você. O prédio se desvalorizou?

Ele deu de ombros.

- Um pouco, talvez. Mas isso se recupera.

Kay sorriu.

- Você tinha razão. Eu ainda estava cismada. Cheguei até a fazer perguntas à senhorita MacEvoy, no dia seguinte ao que conversamos.

- Verdade?

- Agora sinto-me envergonhada.

- Não seja boba. É bom você ser uma pessoa persistente. Jã tinha notado isso em você.

Ambos sorriram.

- Gostaria de tomar alguma coisa? - perguntou Kay.

- Claro, por que não? Obrigado. Um gim-tônica?

- Pode ser vodca?

- Ótimo. - Olhou do outro lado da sala. - Que quantidade de livros você tem! Quantos deles você editou?

Kay parou atras do sofá, voltando-se.

- Pete, Dimitri disse que recebeu ordens para me tratar com atenção especial. Na época em que assinei o contrato. Por quê? - Continuou parada, olhando para ele.

Pete respirou fundo. Descruzou as pernas, inclinou-se para a frente, apoiando os braços nos joelhos.

- Obrigado, Dimitri. - Virou-se para Kay e acenou com a cabeça. - No dia em que você veio ver o apartamento, eu estava na sala de correspondência e a vi de passagem.

- De passagem? - Kay sorriu.

- Já ouviu falar de uma atriz de televisão chamada Thea Marshall?

Kay não respondeu, continuando a fitá-lo.

Pete aprumou-se na poltrona, lançando-lhe um olhar desatinado.

- Oh, meu Deus! Só agora entendo. Claro que você já ouviu falar dela, muita gente já deve ter lhe dito que você se parece com ela. Mas só agora é que isso me ocorreu. Deus do céu... - Meneando a cabeça, sorriu e levantou-se. - Já, não é mesmo? Aproximou-se dela. - Já lhe falaram, não? Mas nem tanto ultimamente, suponho.

- Algumas vezes...

- Sua voz também é igual à dela. - Inclinou-se na direção dela por sobre o encosto do sofá, lançando-lhe seu sorriso arrasador. - Um momento foi o suficiente para me sentir atraído por você, como imagino que você já tenha percebido. O dr. Palme diz que isso é universal, sem exceções. O complexo de Édi- po, quero dizer. Ela era minha mãe. Thea Marshall. - Piscou repetidamente e então sorriu. - Uma vez eu o ouvi falar isso no elevador. Refiro-me ao dr. Palme do 2A. Ele é psiquiatra, e dos bons. Pertence ao corpo clínico do Monte Sinai.

Kay ergueu dois dedos, dizendo:

- Duas vodcas com tônica...

Foi até a cozinha.

Respirou fundo.

Pegou copos no armário.

Pete aproximou-se do balcão pelo lado da sala e apoiou os braços cruzados, observando-a enquanto ela colocava gelo nos copos.

- Ela era uma atriz espetacular - disse ele. - Representava com uma naturalidade que você nem acreditaria. Participou de todos os programas famosos da idade de ouro: U. S. Steel Hour,; Kraft Tkeatre, Philco Playhouse, Studio One.,. Existem cinescó- pios de três peças dela no Museu de Rádio e Televisão. Paul Newman atuou em duas delas, em papéis secundários. Oi, Felice.

Felice miou e foi beber água.

Kay despejou vodca nos copos com gelo.

- Ela trabalhou no Search for Tomorrow durante boa parte da minha infância e juventude. Como a produção de peças havia se deslocado para a Costa Oeste e meu pai não permitiu que ela fosse, ela teve de se contentar em fazer novelas, primeiro The Gui~ ding Light e depois Search for Tomorrow, E que trabalho estafante. Ensaio pela manhã, gravação, marcação do capítulo do dia seguinte, voltar para casa e decorar o texto; ensaio, gravação, marcação, voltar para casa e decorar o texto... um trabalho incessante. Eu praticamente só a via na televisão! Mas era uma atriz fantástica! Tao natural, Um ano na The Guiãing Light e seis no Search for Tomorrow...

Kay completou os copos com tônica.

- O que seu pai fazia?

- Era presidènte da U.S. Steel.

Ela lançou-lhe um olhar rápido, e ele sorriu, dizendo:

- Sei o que está pensando: que ele deve ter usado de sua influência para lhe arranjar papéis nas novelas. Mas não usou, nem na Steel Hour nem no Kraft Theatre (era dono de uma boa parte da Kraft também). Ele sempre fez questão de não se intrometer na carreira dela, os dois preferiam assim. Ela nunca precisou de ajuda para conseguir bons papéis, era uma atriz realmente espetacular.

Enquanto fatiava limão-doce, Kay perguntou:

- Você tem irmãos?

- Não. E você?

- Só um irmão, mais novo que eu. - Felice cravou as unhas nas roscas de cortiça, olhando para sua dona. - Assim é que eu gosto, gatinha - disse Kay, fazendo menção de abrir o armário.

- Não lhe dê recompensa à-toa - disse Pete. - Obrigue-a a se empenhar mais. Ela a está enganando.

Segurando a porta do armário aberta, Kay olhou para ele e depois para Felice, parada nas patas traseiras, as dianteiras agarradas na coluna do afiador, olhando-a com expectativa e dando uma arranhada na cortiça para avisar que estava pronta para receber sua recompensa.

- Tem razão - falou Kay, fechando a porta.

- Sinto muito, Felice - disse Pete.

Felice olhou para ele. Para Kay. Novamente para ele.

Ambos riram.

Felice soltou-se da coluna e foi para o vestíbulo, balançando a cauda.

- Acho que fiz uma inimiga - comentou Pete.

- Ela esquece logo. Você tem razão, sou mesmo uma tola. Ela é tão esperta... - Entregou-lhe o copo por sobre o balcão.

- Obrigado. - Pete ergueu o copo, brindando: - Tintim.

- Tintim - respondeu Kay, encostando seu copo no dele.

Sorrindo um para o outro, tomaram um gole.

Kay virou-se e, saindo da cozinha, afirmou:

- Não pode ser uma simples coincidência que Sam Yale esteja morando neste prédio.

Um copo se espatifou no chão, espalhando líquido pelo assoalho. Kay estacou.

- Droga, como sou desajeitado...

- Não foi nada. - Deixou seu copo na bancada e pegou toalhas de papel. - É mais uma coisa que você é a segunda pessoa a fazer em menos de vinte e quatro horas.

A borda do tapete estava molhada, e também a barra das calças de Pete. Abaixando-se, começaram a enxugar o chão com as toalhas de papel, catando os cacos de vidro no meio da poça. Fe- lice veio ver o que estava acontecendo.

- Sinto muito pelo copo.

- Não tem importância. Depois eu desconto do aluguel.

Sorriram e continuaram a enxugar o chão.

- Não - disse Pete -, não é por coincidência que Sam Yale mora aqui. Vocês são amigos?

- Conhecidos. Ele estava atrás de mim na fila do Murphy’s no dia em que me mudei.

- Imaginei que vocês se encontrariam mais cedo ou mais tarde.

- Não podería ter sido mais cedo. Foi por acaso que você estava por perto para me dar as boas-vindas?

Pete sorriu.

- Sem comentários. - Recolheu um caco de vidro e colocou-o na toalha de papel. - Não me julgo no direito de comentar os fatores envolvidos na permanência dele aqui.

- Ele me contou que é um alcoólatra em fase de recuperação, e também me falou da Fundação.

Pete olhou-a, sem nada dizer.

- A Fundação que o sustenta. Carnegie Hill qualquer coisa. Você deve conhecer.

- Vocês só se viram no Murphy’s?

- E um dia no parque.

- Ah...

Continuavam enxugando o chão.

- Bem, nesse caso, não vejo por que não lhe contar a história toda.

Levaram as toalhas molhadas e os cacos embrulhados para a cozinha. Enquanto Pete jogava o lixo na lixeira do hall, Kay preparou outro drinque.

Foram para a sala.

Sentaram-se nas duas extremidades do sofá, um de frente para o outro, ambos com a perna dobrada sobre a almofada. Fizeram outro brinde, tilintando os copos, sorrindo.

Depois de tomar um gole, Pete fixou os olhos no copo.

- Acho que eles foram amantes, mas não tenho nada contra ele. Se a fez feliz, ótimo. A culpa foi do meu pai. Ele não prestava, e vivia tendo casos com outras mulheres.

Respirou fundo, bebeu mais um trago e continuou:

- Depois que ela morreu, Sam sumiu de circulação, por quase dez anos. Pelo menos, não se veem créditos dele em nenhum lugar. A primeira vez que tive notícias dele foi alguns meses depois que comprei o prédio; estava fazendo uma palestra na New School: "direção na Idade de Ouro da Televisão". Fui lá assistir, é claro. Foi muito constrangedor. Ele estava meio embriagado, perambulando pelo salão, esquecia a pergunta que estava respondendo. ..

Kay suspirou, meneando a cabeça.

- Fiz algumas investigações - prosseguiu Pete. - Ele estava morando numa espelunca na Bleecker Street, dando aulas de interpretação. Tinha sido despedido de uma escola nas imediações. Sabendo que não aceitaria nenhuma ajuda se soubesse que o dinheiro era do meu pai, mandei meus advogados criarem a tal Fundação. Não foi complicado. E contrataram uma pessoa para entrar em contato com ele e interná-lo no Centro de Tratamento Smithers, logo ali, dobrando a esquina. Quando o prédio ficou pronto, a Fundação alugou um apartamento para ele.

- É uma atitude incrivelmente generosa de sua parte, que demonstra grande sensibilidade.

Ele deu de ombros.

- Sam Yale dirigiu Thea Marshall em alguns dos seus melhores papéis. Eu sabia que ela gostaria que ele fosse ajudado, mesmo que não tenham sido amantes. E como já disse, não tenho nada contra se o foram.

- É evidente que não tem.

Trocaram um sorriso, beberam mais um pouco.

- Bem, nós saímos por algumas tangentes, mas era isso que eu queria lhe dizer, que sou o proprietário e que não precisa mais se preocupar com o mistério. Falei outra mentira, lá na lavanderia. Sabia que você tinha um gato pelo formulário que você preencheu, eu não fui ao Murphy’s no sábado de manhã. Apenas calculei que você devia ter feito compras no sábado, e que comprou granulado para gatos.

- Você calcula bem. Suas mentiras estão perdoadas. Sem ressentimentos.

Enquanto bebiam, Felice subiu no sofá, entre os dois. Andando por sobre o veludo cor de damasco, aproximou-se de Péte e cheirou sua mão. Ele acariciou-lhe a cabeça.

- Hoje todos estão me perdoando.

- Não tem receio que eu conte aos outros inquilinos?

- Não. Sei que não contará. Protegerá minha... privacidade.

- Como sabe?

Ele deu de ombros.

- Apenas sei, e pronto. - Lançou-lhe um olhar vivido. - Você é assim. Estou errado?

- Não, não está.

Felice deitou-se junto ao seu joelho. Pete afagou-lhe a orelha, depois a cabeça.

- Que gata bonita...

- Está com fome? - perguntou Kay. - Tem um monte de frango com estragão e salada na geladeira, e uma musse de morango deliciosa...

- É uma boa ideia. E eu tmho uma garrafa de champanhe Dom Pérignon de uma ótima safra, do tipo que James Bond costumava beber. Posso ir lá embaixo buscá-la?

Kay respondeu sorrindo:

- Por que não?

- Alex É DEZESSEIS anos mais velho que eu. É professor de história da arquitetura na Universidade de Nova York. Ele lecionava em Siracusa quando começamos a namorar. Eu estava no segundo ano da faculdade.

- Mais quente?

- Sim, mais um pouco.

Soltando o braço com que a envolvia, tateou até encontrar o registro do chuveiro e regulou a água para mais quente.

- Nós nos casamos quando eu já tinha vinte e nove anos. Humm, está uma delícia. E Jeff é doze anos mais velho; você não é o único com complexo de Édipo. Beijou-lhe o pescoço, e ele lambeu a água que escorria pela sua sobrancelha.

- Pelo menos, você agora já está superando o seu.

Beijaram-se, rindo.

Beijaram-se novamente.

- Oh, Deus... - O beijo continuou. - Vamos entrar para o Livro Guinness... Chega pra lá... Espere um pou...

Kay tateou a parede até encontrar o registro, e abriu mais ainda a água quente.


SEGUNDA PARTE


6

Kay entrou no escritório andando sobre nuvens. Sorriu e cumprimentou os colegas - Gary, Carlos, Jean, Sara - tentando não demonstrar que havia passado a noite de sábado e domingo inteiro fazendo amor desenfreadamente com um jovem de vinte e seis anos, o qual se revelara o homem mais perspicaz, sensível e intuitivo que ela já conhecera.

Contar a Roxie era uma coisa, mas não pretendia espalhar a notícia pelo mundo todo.

Foi à sala de June à dez e meia, perguntou-lhe como tinha sido o jogo de mexe-mexe e disse que não precisava mais daqueles telefones que lhe pedira; falara com o administrador, e tudo não passara de um mal-entendido. Ele recomendara ao zelador, cujo inglês não era muito bom, que fosse mais atencioso com todos os inquilinos; assim sendo, voltava a sua posição de respeitar a privacidade do proprietário, fosse ele quem fosse. Enfim, a vida não imitara Olivia’s Landlord como June pensara. Mesmo assim, agradecia.

Não lhe agradava mentir para June, nem mesmo uma mentirinha inofensiva, mas tinha receio de que, se começasse a contar como havia descoberto quem era o proprietário, acabaria contando tudo.

Já contara tudo a Roxie na noite anterior, pelo telefone.

- Ele tem uns olhos azuis muito vivos, e juro por Deus que ele consegue me ver por dentro! E não é só comigo, Roxie; ele deu uma olhada no falcão (e, por sinal, adorou), e viu imediatamente o que você pretendia transmitir, expressando-se quase que exatamente com as suas palavrasl Fez até uma análise psicológica do comportamento de Felice! Não imagina como ele é perspicaz! E divertido, meigo, e louco por mim...!

Contou quem era a mãe dele, e o pai, e como ele não ligava para sua riqueza, lavando sua própria roupa, morando num apartamento decorado com móveis contemporâneos simples, em meio à bagunça...

Sabia que não seria um relacionamento duradouro, não com uma diferença de idade tão grande, treze anos - e nem queria que fosse, pois ele ainda precisava ter filhos. Mas pelo menos por algum tempo, para ambos, era sem dúvida a melhor coisa que podería ter acontecido.

Roxie, feliz pela amiga, concordara.

Será que o dr. Palme também concordaria? Esperava que sim - e que Pete não tardasse a se sentir seguro o suficiente no seu relacionamento a ponto de lhe contar que fazia terapia. Como podería não ter ficado marcado, coitadinho, vendo a mãe quase que unicamente pela televisão?

Contudo, era possível, ainda que fosse uma possibilidade muito remota, que tivesse realmente ouvido o médico falando no elevador a respeito do complexo de Édipo - entre o térreo e o segundo andar. Talvez uma possibilidade em um milhão?

Sentada em seu escritório, contemplando os prédios de paredes de vidro da vizinhança, ansiava por telefonar para ele - apenas um alô rápido, sd para confirmar a realidade dele lá em Camegie Hill.

Não. Não pretendia atrapalhã-lo; certamente estaria ocupado com seu computador naquela sala bagunçada, trabalhando no programa que estava fazendo para a Price Waterhouse,

Tratou de trabalhar também; ligou para Sara e pediu que viesse até sua sala com o bloco de anotações.

OBSERVAVA OS MOVIMENTOS de Sam, que batia com dois dedos na velha máquina portátil que trouxera de Tucson. Provavelmente de Abe. Colocara-a na mesa da sala, ao lado de um chumaço de papel e um dicionário; sentado diante da máquina, de óculos, com seu blusão do Beethoven, batia, parava e coçava a orelha, batia, consultava o dicionário. Impossível de se ver.

Desistindo novamente? E escrevendo o quê?

Velho safado... Atrás dela na fila do supermercado, logo no primeiro dia da chegada dela. Tentando repetir a história...

E no parque! Quando? Como? Que mais ele lhe dissera, o que ela dissera a ele? Obviamente fora mais que uma simples conversa casual.

Teria sido na manhã seguinte ao episódio de Rocky? Quando dormira até quase meio-dia e lã estava ela, no telefone, dizendo a Sara como fora maravilhoso seu passeio no parque? É alucinante não saber...

Sorriu para si mesmo - estava mal acostumado, sempre sabendo demais. Fazia alguma diferença não saber o que eles tinham conversado, quando e como se encontraram? Nem um pouco. Absolutamente nenhuma diferença.

Mas você não pode ganhar todas, Sammy. Dê-se por satisfeito por estar vivo. Não sabe a sorte que tem por Abe não ter precisado ir ao seu funeral...

Viu Beth revistando as gavetas da penteadeira de Alison. Nem morno...

Dr. Palme e Michelle - o de sempre. Lisa fazendo aeróbica.

Os dois de novo na cama dela, ela por cima, ambos próximos do orgasmo.

Fantástica, ela era espetacular. Em comparação com ela, Naomi era frígida.

Avançou a fita em rotação rápida, pulando a parte em que conversavam na cama, saíam do quarto e voltavam.

Viu-os começando tudo de novo, se beijando, se acariciando.

Pensou em telefonar para ela, porém não pretendia incomodá-la.

Mas ela também devia estar sentindo o mesmo. Ainda mais que ele. E a situação era diferente, pois ela não estava ensaiando ou gravando...

Tirou o som. Ligou para Informações pedindo o número da Diadem. Sara atendeu.

- Alô, meu nome é Pete Henderson. Gostaria de falar com a senhorita Norris, caso ela não esteja ocupada. É assunto pessoal.

- Um momento, por favor.

Viu-os recurvados na cama, em posição de 69.

- Oi...

- Oi... - disse ele, sorrindo, os olhos fixos no monitor. - Desculpe incomodá-la, mas só queria me certificar de que você realmente existe...

FOI SÓ ALGUNS DIAS mais tarde - quando ao sair do apartamento pela manhã, encontrou Vida trajando um quimono florido e carregando suas malas cor-de-rosa de partida para Portugal, e parecendo descontente com o fato - que Kay percebeu (descendo no elevador com o casal louro do 14, o homem de cavanhaque do 12 e o casal branco e preto do 7) que Pete sabia a ocupação, a renda, a idade e o estado civil de todos os residentes do prédio, além de outras informações constantes de seus cadastros.

Por falar em diversão...

Kay tocou no assunto naquela noite, enquanto comiam hambúrguer com batata frita no Jackson Hole, por volta das dez.

Pete continuou mastigando, fitando-a do outro lado da mesa quadrada.

Engoliu. Tomou um gole de cerveja enquanto Kay dava mais uma mordida em seu hambúrguer.

Ele enxugou os lábios com o guardanapo.

- Eu não chamaria de diversão, mas realmente dá uma certa satisfação conhecer os fetos básicos da vida das pessoas. Todos nós temos curiosidade pelos nossos vizinhos; trata-se de um instinto defensivo proveniente de uma parte mais primitiva do nosso cérebro. Como quando Felice fica farejando. - Pegou uma batata frita da travessa que estava no centro da mesa.

- É bem mais fácil satisfazer esse instinto na suburbana Wi- chita, posso lhe garantir - retrucou Kay. - Cresci conhecendo todo mundo que morava na minha rua, e a história completa de suas famílias. - Pegou uma batata.

Pete mastigou e engoliu.

- Se tem alguma pergunta a me fazer, terei o maior prazer em responder.

- Pensei que nunca se oferecería. Diga-me uma coisa: o que Vida Travisano faz na vida? Minha vizinha de andar.

Ele sorriu.

- Oficialmente, ela é modelo. Meu advogado acha que ela é uma prostituta de luxo. Qual é a sua opinião?

- Uma das duas coisas, ou ambas. Esperava que você desfizesse minha dúvida. Como foi que a aceitou como inquilina? Não tenho nada contra, ela é um doce de pessoa, mas se seu advogado achou que ela era isso...

Ele tomou um gole de cerveja.

- Agrada-me a ideia de ter pessoas dos mais variados tipos morando no prédio. A maior variedade dentro do possível, limitada pelo padrão do bairro e pela feixa de aluguel. Não quero viver totalmente cercado de autômatos yuppies, nem mesmo no elevador.

- Parece razoável..

- Ah, mas você não é advogada. Tampouco trabalha com administração de imóveis. Tenho certeza de que eles me acham maluco e chato.

Kay sorriu e encolheu os ombros,

- Se acham, é problema deles.

Continuaram a comer seus hambúrgueres. Flertaram um pouco,

- Como são os Johnson? - perguntou Kay.

- Os Johnson? Ah, o casal do 13B. Como eles nunca estão em casa, até me esqueço deles. Aparecem raramente, apenas algumas semanas por ano. São ingleses, cinquentões. Ele é advogado, ou melhor, causídico, e ela... esqueci o que ela faz. Nada. Compras. Chega carregada de pacotes.

A mulher do perfume Giorgio passou do lado de fora da janela com um pastor alemão; ficou parada esperando enquanto o cão cheirava o poste da esquina.

- O que ela faz na vida? - perguntou Kay.

- Possui uma agência de viagens, ali na Lexington. E solteira. - Pegou uma batata.

Kay olhou pela janela, apertando os olhos.

- Parece um homem vestido de mulher.

Pete sorriu, molhando a ponta de uma batata no ketchup.

- Tem razão, parece.

Colocou na boca a batata manchada de vermelho, virando-se à procura da garçonete.

Kay FOI ao ALMOÇO do Grupo Feminino de Mídia no Har- vard Club, onde todas suas colegas comentaram que nunca estivera tão bem. O mesmo aconteceu na academia de ginástica.

Levou Felice para tomar vacina na clínica do dr. Monsen, na Bank Street; parou no supermercado e na livraria. Todos comentaram que estava com ótima aparência, nunca a viram tão bem.

Andaram de bicicleta no parque. Prepararam espaguete com frutos do mar.

Foram com Roxie e Fletcher a um lugar chamado Cajun, no SoHo. Demonstrando conhecimento do assunto, Pete conversou com Roxie sobre o processo artístico e com Fletcher sobre a política federal na alocação de fundos para pesquisa médica. Contou uma piada que os fçz rolar de rir. Provaram do prato um do outro, trocaram olhares melosos.

- Eu não lhe disse? - comentou Kay, no toalete.

- Escute - disse Roxie, na ponta dos pés junto à pia, pintando os olhos diante do espelho -, se além disso tudo, ele ainda é rico e tão sensacional na cama, pelo amor de Deus, agarre-o

- Roxie...

Steffi é quinze anos mais velha que Mike, e eles são felizes como dois pombinhos. Agarre esse homem!

Uma noite, quando já se preparavam para dormir, Kay comentou que um agente ia levá-la no dia seguinte para almoçar no Four Seasons.

- Thea Marshall levou-me a esse restaurante no meu décimo aniversário - disse ele, deitado de lado, o corpo encaixado no dela como se fosse uma concha, as mãos em seus seios, o rosto em seus cabelos. - Puxa vida, para um menino da minha idade o lugar era impressionante... Ficamos ao lado da piscina. Os garçons nos bajulando, todo mundo olhando... Como se fôssemos Maria e Jesus... Como é agora? Virou ponto de encontro do pessoal do mundo editorial?

- Só na hora do almoço. O Grill Room.

- Creio que já ouvi isso em algum lugar...

Felice aconchegou-se aos pés deles, protegidos pelo cobertor.

Kay passou os dedos pelas mãos dele.

- Você sempre se refere a ela como "Thea Marshall", nunca como "minha mãe".

Pete fez um movimento de ombros.

- E como penso nela. Como sempre pensei. E como ela queria ser vista: uma atriz, não a mãe de alguém. Ela só me teve porque meu pai a obrigou. E o mais irônico é que ela passou a imagem de mãe sensacional, que sempre age certo. Em Search for Tomorrotx). E absolutamente convincente. Dia após dia, um desempenho realmente fantástico. Eu voltava da escola de táxi só para chegar a tempo de ver a novela; ainda não existia videocassete.

Kay puxou-lhe as mãos, aconchegando-o mais, e beijou-as.

- Querido, você sabe que não há nada que não possa me contar, não sabe...?

- Que quer dizer?

Ela virou-se na cama e abraçou-o. Ele a olhava de maneira penetrante na penumbra do quarto. Ela beijou-o na ponta do nariz.

- Você não tem uma coisa para me contar, querido?

Pete continuou a fitá-la em silêncio.

- Não há nenhuma vergonha nisso, se é do que precisa. Sou totalmente a favor.

- De que está falando?

- Do doutor Palme...

- Doutor Palme?

- Sim.

- Você... pensa que eu... faço terapia com ele?

- E não faz?

Pete meneou a cabeça.

- Não. Não faço e nunca fiz. Nem com ele nem com ninguém. De onde tirou isso? Foi quando eu disse que escutei ele falando...?

Kay assentiu.

- Parece-me tão... improvável. Que ele estivesse falando do complexo de Édipo no elevador, e que logo você, entre tantas outras pessoas, ouvisse a conversa,

Ele sorriu. Soltou o ar dos pulmões.

- Mas foi o que aconteceu. Uma dessas estranhas coincidências da vida.

Ela o abraçou, enterrando o rosto em seu ombro, rindo.

- Oh, querido, me desculpe. Acredite, era só isso. Oh, Deus.

Isso é para eu aprender. Eu estava tão certa de que...

Beijaram-se com ardor. Felice saltou da cama.

Pete riu, abraçando-a com força. Respirou fundo, expirou por sobre o ombro dela.

- Puxa vida, eu não conseguia entender o que você estava falando!

Fizeram um cruzeiro pela Circle Line em torno de Manhattan.

Ela cortou o cabelo dele.

Ele lhe deu um presente da Tiffany, embrulhado em papel azul no mesmo tom dos olhos dele: o delicado coração vazado de ouro, pendurado numa corrente, o modelo maior.

Ela lhe deu dois quilos de jujuba - em cores deliciosas.

SAM TELEFONOU.

- Como vai?

- Tudo bem. E você?

- Tudo certo. Passei alguns dias no Arizona. Meu irmão faleceu.

- Oh, lamento muito...

- Pois é, que se vai fazer... Horrível o que aconteceu com seu amigo Sheer. Começo a achar que este lugar é mesmo azarado.

- Não creio...

- Ouça, andei pensando no que você me falou. O livro de memórias, lembra? Decidi tentar. Divertido e sério ao mesmo tempo, contando tudo que sei.

- Ora, mas é uma ótima notícia, Sam. Fico muito contente em ouvir isso. Tenho certeza de que se sairá bem.

- Obrigado, é o que espero. Já escrevi... o que se podería chamar de primeiro capítulo. Gostaria de dar uma olhada?

Kay respirou fundo.

- Não creio que eu seja a pessoa mais indicada. Trabalho muito pouco com não-ficção; mas sim, mande-o para mim, basta deixá-lo na sala de correspondência; eu o encaminharei a um editor mais apropriado e que lhe dará um parecer objetivo.

- Tudo bem... Farei isso. Obrigado pela ajuda. Não repare na datilografia, não é das melhores...

- Contanto que esteja legível e com espaço duplo, tudo bem.

Contou o fato a Pete quando ele subiu ao seu apartamento - chegara tarde, pois encontrara um defeito no programa em que estava trabalhando.

- Será interessante - disse ele, sentando-se na beira da cama depois que Kay voltara a se deitar. - Talvez eu finalmente descubra o que realmente houve entre ele e Thea Marshall.

Desamarrou o tênis, provocando Felice com o cordão.

- Tenho a impressão - comentou Kay -, de que houve mesmo alguma coisa entre eles, um relacionamento envolvendo muito amor e ódio. E provável que ele diga coisas desagradáveis a respeito dela.

Pete deu de ombros.

- E por isso que você vai passar o manuscrito para outro editor?

- Não. Você sabe que eu quase não trabalho com não-ficção.

Ele tirou um tênis.

- A ideia foi sua. Pensei que quisesse trabalhar no livro.

Kay colocou na pasta o original que estivera lendo.

- Ah, eu adoraria, se o material for bom. Mas não me sentiría à vontade trabalhando com ele agora, sabendo de você e da Fundação enquanto ele não sabe de nada, ficando numa posição vantajosa em relação a ele. Deveriamos ter um relacionamento aberto e honesto, principalmente em se tratando de um escritor que provavelmente deverá ser orientado capítulo por capítulo. Não daria certo se eu tivesse de tomar cuidado com o que digo. - Fechou a pasta. - E sim, seria um problema se ele dissesse coisas que poderíam magoar você... - Colocou a pasta sobre as outras, embaixo da mesinha-de-cabeceira.

Ao se esticar, viu que ele continuava sentado, olhando para ela. Sorrindo, acariciou-lhe a face.

- Não tem importância, querido. Não mesmo. Eu nem sabería que ele existe se você não me tivesse trazido para cá, não é mesmo?

Ele concordou.

- Então pare de fazer hora e tire a roupa.

Sorrindo, Pete abaixou-se para tirar o outro pé de tênis.

Sam deixou um envelope na sala de correspondência - uma dúzia de páginas dobradas. Mal datigrafadas, porém de bom conteúdo: Nova York no início da década de 30, Sam com oito anos e Abe com doze - sobrenome Yellen, não Yale - sendo encorajados por tio Maurice a saírem do Bronx e lançados no palco na produção do Group Theatre de Waiting for Lefty.

Lembrando um pouco E.L. Doctorow...

Entregou-o a Stuart.

A ÚNICA COISA QUE Pete não esperava era se apaixonar por ela.

Estranho não ter pensado nisso antes, considerando-se as qualidades que ela possuía: era carinhosa, inteligente, honesta, divertida, sensual - e parecida com Thea Marshall. Tudo isso ele sabia praticamente desde o dia em que ela chegara - mas não tão bem como sabia agora, claro - todavia, jamais lhe passara pela cabeça que pudesse se apaixonar por ela.

E, no entanto, foi o que aconteceu. Estragando tudo.

Observou-a sentada no sofá, de óculos, lendo um original que lhe fora entregue por um agente entusiasmado. Conflitos sexuais contemporâneos.

Gostaria de poder lhe contar sobre Phil e Lesley e Mark, Vida, os Fisher, os Hoffman - contar tudo que se passava no prédio, não só os conflitos sexuais. Kay estava certa: não é bom quando se tem de tomar cuidado com o que se diz, guardar segredos que não podem ser revelados. Não é bom? É horrível.

E se Naomi, que não tinha metade da sagacidade de Kay, tinha descoberto tudo, não era provável que, mais cedo ou mais tarde, ela também viesse a descobrir, por mais cauteloso que ele fosse? Não estava ele sujeito ao risco de, um dia, deixar escapar alguma coisa que não poderia explicar? E aí, pelo amor de Deus!

Ela virou-se, olhando-o por sobre os óculos.

- Que foi?

- Nada. Só estava olhando você. Descansando meus olhos.

Kay sorriu.

- Querido, se não gosta, não precisa ler. Não ficarei magoada.

- Não, está muito bom - disse ele, erguendo o livro aberto. - Esta parte que se passa no barco é sensacional.

Kay riu, indicando a porta com um gesto de cabeça.

- Vá lá para baixo. Trabalhe no seu programa. E bom eu ficar um pouco sozinha também.

Ele marcou a página com a orelha do livro.

- Vou levá-lo comigo. - Inclinou-se na direção dela enquanto ela tirava os óculos. Beijou-a, - Eu te amo.

Olhando-o nos olhos, Kay acariciou-lhe o rosto.

Mais um beijo e ele se levantou, dando a volta no sofá e dirigindo-se ao vestíbulo.

- Boa noite, Felice - gritou -, onde quer que esteja!

- Ei, espere um momento... - exclamou Kay, largando os originais de lado e pondo-se de pé.

Ele esperou junto à porta.

Kay aproximou-se e olhou-o de frente.

- Uma das nossas editoras, Wendy Wechsler, acho que já lhe falei dela...

Ele confirmou com um aceno.

- Ela costuma fazer uma ceia de Ação de Graças para o pessoal ‘ ‘transplantado’ * que não pode viajar para casa. Gostaria de ir comigo?

Ele desviou o olhar, respirou fundo. Colocou o livro embaixo do braço e segurou-a pelos ombros.

- Eu adoraria, Kay, e agradeço o convite. Sinceramente, Mas tenho primos em Pittsburgh, e prometí que passaria o dia de Ação de Graças com eles. Há anos que eles me convidam e eu venho adiando e, agora que fínalmente me comprometí a ir, não posso mais voltar atrás.

- Eu compreendo.

- Sinto muito.

- Tudo bem. Eu não deveria ter esperado tanto tempo para falar.

Beijaram-se. Abraçaram-se.

- Humm...? Que tal nós...? - perguntou Pete.

- Não, agora vá. Nós dois precisamos de um pouco de espaço. Vá. Amanhã conversaremos.

Beijaram-se.

Ele abriu a porta e saiu, encaminhando-se para a saída da escada.

Kay ficou olhando enquanto ele abria a porta da escada e lhe acenava através do painel de vidro com tela.

Fechou a porta do apartamento e girou a trava. Suspirou. Abaixou-se e pegou Felice no colo. Segurou-a a sua frente, olhos nos olhos, e perguntou:

- Primos?

- Foi ALGUMA COISA que eu disse?

- Não.

- Ou que fiz?

- Não - respondeu ele. - Sou eu mesmo, não é nada com você. Sinceramente. - Fechou os olhos.

Ela o beijou nos lábios, alisou seu cabelo para trás com as duas mãos.

- Alguma coisa relacionada com seu trabalho?

- Não. Sim. Não.

- Pode falar. Você sabe que não sou completamente analfabeta em matéria de computadores...

- Querida, por favor, não vamos mais falar, está bem? Pssiu. Zap, tirei o som.

Ela beijou-o na boca, nas pálpebras. Fechou os olhos.

Ele a penetrou, tenso.

ELA CONTRATOU um escritor, comprou um tauleur.

Ele não telefonou. Ela decidiu que desta vez ficaria esperando.

Fez ginástica na academia. Saiu-se bem numa reunião editorial. Foi a uma festa. Voltou para casa e verificou a secretária eletrônica. Ele não telefonara.

Assou duas tortas de abóbora, Felice observando.

Telefonou aos pais na manhã do dia de Ação de Graças. Bob e Cass estavam lá, tio Ted também, todos alegres exceto o bebê chorando na copa. Um bom telefonema - sem discussões, sem perguntas sobre homens. Aguardavam-na para o Natal; ela esperava ir.

O peru estava seco, mas os acompanhamentos estavam ótimos, a mesa maior do que no ano anterior - rostos conhecidos, outros novos. Imaginou-o sentado a uma mesa fria numa mansão em Pittsburgh, ou então, de preferência, sozinho diante do seu computador com uma ceia congelada; pro inferno com ele. O suave ortopedista de Wendy tentou passar-lhe uma cantada, mas ela já estava farta daquelas velhas fórmulas de conquista. As tortas foram um sucesso. Voltou para casa e verificou a secretária eletrônica. Ele não telefonara.

Na sexta-feira o tempo amanheceu feio - surpresa. Céu carregado de nuvens, flocos de neve. Pagou algumas contas, arrumou um pouco o apartamento, trocou a roupa de cama. Pegou o telescópio; viu gaivotas no reservatório, gente correndo na pista - duas mulheres discutindo à margem do caminho, uma com as mãos espalmadas, a outra de dedo em riste, ambas de abrigo azul.

Pena que não soubesse leitura labial. Felice, ,no peitoril da janela, roçava em seu joelho.

Tentou adiantar seu trabalho - reduzir uma biografia exage- radamente longa de Dorothy Parker. Não conseguiu fazer nada. O que estaria ele fazendo?

Encolheu-se no sofá e viu duas novelas: One Life to Live e General Hospital. Esperava que as atrizes, algumas delas bastante boas, proporcionassem à garotada uma diversão de boa qualidade. Roxie ligou; desta vez Kay manteve a boca fechada e só escutou. Disse que tudo estava bem, na mesma. Tinha muito que fazer.

Assistiu A Estranha Passageira com Felice dormindo em seu colo.

Bebeu um iogurte, tomou um banho.

No sábado voltou à atividade: recolocou o aparelho de televisão no seu canto, terminou a arrumação, fez compras, sentou-se à escrivaninha. Fazia três semanas que tudo começara. Lustrou o coração de ouro com o polegar e mergulhou no trabalho. Desenvolveu velocidade e seguiu em frente. Cópia limpa, graças a Deus.

O telefone tocou quando ela terminava de corrigir a última página de um capítulo - o relógio marcava 4:54. Olhou para o telefone. Mais um toque. Atendeu-o.

- Alô?

- Oi.

Tirou os óculos.

- Oi - respondeu.

- Como foi seu dia de Ação de Graças?

- Calórico. Divertido. E o seu?

- Não fui a lugar algum. Menti para você, temia aprofundar demais nosso relacionamento. Agora lamento.

Kay virou-se na cadeira.

- Eu também.

- Te amo, Kay.

- Oh, Pete - fechou os olhos, respirou fundo -, eu também te amo, muito...

- Ah querida... Senti tanta saudade. Precisamos conversar, mas o assunto é delicado demais para se falar pelo telefone. Você já ouviu isso antes?

Kay respondeu sorrindo:

- Duas vodcas com tônica; pode subir.

- Não. Desta vez é no meu apartamento. Importa-se de descer?

- Profundamente. Agora?

- Assim que puder.

- Dentro de quinze minutos.

- Não reconhecerá o apartamento. Eu o arrumei em sua homenagem.


7

Qualquer que fosse o problema poderiam resolvê-lo, agora que ele estava disposto a falar no assunto. A maldita diferença de idade, provavelmente.

Kay tomou um banho e se arrumou com esmero, ficando com uma aparência de trinta e cinco anos no máximo. Vestiu calças brancas, um suéter cor de pêssego, o coração de ouro pendurado no pescoço. Florence Leary Winthrop telefonou, afobada como sempre, querendo a todo custo que ela lhe desse algumas ideias; levou cinco minutos para conseguir um adiamento até segunda- feira, no primeiro horário da manhã. Ligou a secretária eletrônica, pegou as chaves. Colocou comida e água fresca para Felice, e disse-lhe até já.

Os elevadores estavam no 15 e no 6, ambos descendo; decidiu descer pela escada. Percorreu os lances em ziguezague iluminados por lâmpadas fluorescentes nos patamares, o ruído dos passos ecoando nas paredes de concreto do fosso. Esperava que fosse mesmo a diferença de idade, não esclerose múltipla ou câncer ou coisa que o valha, ali naquele prédio azarado.

Saiu no décimo terceiro.

Ele estava ocupado na cozinha, de camisa xadrez e jeans, a porta do apartamento escancarada, os Beatles cantando Heyjude. Virou-se, lançando-lhe seu sorriso arrasador.

- Duas vodcas com tônica - falou, enxugando as mãos na toalha. - Sinto muito, mocinha, mas terá de apresentar sua carteira de identidade.

Beijaram-se durante o final de Hey Jude, a fala do disc-jóquei e parte de Eleanor Rigby.

Kay entrou na sala penteando o cabelo com os dedos. A veneziana estava fechada; spots presos em trilhos cromados iluminavam o teto, as luzes refletidas no lustre central. A sala acarpeta- da de marrom parecia um tanto estéril, exceto pelas roupas amontoadas e outros objetos. Mas era agradável, o sofá de couro quase no centro, de frente para a televisão e o aparelho de som à esquerda; a escrivaninha e o computador encostados na parede da direita, a mesa com cadeiras junto ao balcão que dava para a cozinha - tudo em marrom, branco e cromado, exceto algumas almofadas amarelas e alaranjadas, as luzes vermelhas do aparelho de som, a televisão preta.

- Ficou ótimo - disse ela. - Você tinha razão, nem reconheço o apartamento.

- Tirei uma tonelada de coisas. - Dirigiu-se para o sofá levando os dois copos, o gelo tilintando. - Até voltei a ter copos.

Kay examinou a estante baixa ao lado da escrivaninha - livros e textos técnicos, alguns com sobrecapas Carnegie-Mellon. The Worm in the Apple estava entre eles.

A música dos Beatles parou, e ele desligou o aparelho de som.

Sentaram-se no sofá, joelhos encostados, mãos dadas. Fizeram um brinde.

Beberam, trocando sorrisos. Colocaram os copos sobre os blocos de acrílico.

Ele segurou as duas mãos de Kay com um gesto carinhoso.

- A primeira coisa que eu queria dizer é que te amo. - Beijou- a nos lábios. - É por isso que estou lhe contando, Não se esqueça disso, por favor. Você vai ficar zangada, muito zangada. Então lembre-se: estou lhe revelando um segredo porque a amo. Uma vez você me disse que eu podia lhe contar qualquer coisa; confio na sua palavra.

- Se me disser que tem mulher e filhos, acabo com você. Fora de brincadeira.

- Não, não. - Meneou a cabeça. - Não... - Respirou fundo, abaixou a cabeça.

Kay não despregou os olhos dele.

- A segunda coisa... é que eu lhe contei um monte de mentiras. - Levantou a cabeça, olhou para ela. - Praticamente nada além de mentiras.

- Tais como...

- Não sou programador de computadores. Sei escrever programas, escrevi jogos na época em que estava no colégio, mas aquela história de ser free lance, trabalhar para a Price Waterhouse e ABC era tudo mentira.

- Você não é o proprietário do prédio.

- Sou, sim. Nisso eu não menti, como também não menti sobre minha família, meu dinheiro... - Seus olhos cintilaram, apertou com força as mãos dela. - Suponha que eu lhe dissesse que traficava com drogas. Não é o que eu faço. Mas suponha que era isso que eu queria lhe contar. O que você diria? Seja sincera.

Kay não respondeu.

- O que você diria? E só uma hipótese.

- Diria "Largue agora mesmo. É errado, é criminoso, é loucura. Agradeça aos céus por ainda não ter sido apanhado’’.

- Então suponha que eu largasse. E aí?

- Que quer dizer com "e aí"?

- O que faria se eu largasse?

Kay suspirou.

- Tentaria ajudá-lo a encontrar uma ocupação legal. Tentaria entender, e ajudá-lo a entender também, por que se meteu num negócio tão perigoso e idiota. E ajudá-lo a não voltar ao mau caminho.

- Você me denunciaria?

- Claro que não. Não seja bobo, Eu também te amo, lembra?

Ele assentiu. Inclinou-se e beijou-a na boca.

Ela recuou, soltando as mãos.

- Pete, meu querido, por favor, vá direto ao assunto; eu já não sei o que esperar.

- Pois bem.

Pegou um controle remoto e apertou um botão, acendendo uma luz vermelha no aparelho de televisão e no videocassete.

- Explicação com demonstração?

- É isso aí.

A tela da televisão iluminou-se - uma bola de golfe rolando pelo gramado. Entrou no buraco, provocando aplausos. A tela ficou escura, outra luz vermelha piscou no aparelho de vídeo.

Kay pegou seu copo, dizendo:

-- Preferia que você... - Surgiu na tela a imagem em preto e branco de uma sala de estar, vista do alto, um homem recolhendo papéis e pratos, imagens sonorizadas.

Kay recolocou o copo no bloco, os olhos fixos na televisão.

Era ele.

Naquela mesma sala. Recolhendo copos vazios dos blocos de acrílico. Ergueu o rosto, sorriu para ela, dizendo: "Oi, Kay". Mandou-lhe um beijo.

Ela virou-se para ele, os olhos azuis a observando.

- Oi, Kay - disse ele, mandando-lhe um beijo.

Kay olhou para o lustre art déco, voltando-se em seguida para Pete.

- Ainda não entendi.

- Existe uma câmera entre um andar e outro. - Apertou o controle remoto, desligando a televisão. - E um cabo de fibra ótica descendo pelo condutor do lustre.

Ela franziu a testa e apertou os olhos.

- Mas por quê? Você trabalha para a CIA? Ou para o FBI?

- Não, mas é o mesmo tipo de equipamento que eles usam. Takai, japonês, o melhor do mundo. Um ex-coronel da CIA ajudou-me a instalar o sistema, encomendou tudo...

- O "sistema"?

- Exatamente, Kay. Um sistema completo. Todos os lustres do prédio estão ligados a câmeras, inclusive os seus.

Kay o encarava, sem nada dizer.

- Tenho vigiado você desde o dia em que se mudou para cá. Vejo e ouço tudo. Suas conversas telefônicas também. Nas duas extremidades. Ê por isso que sou tão intuitivo e perceptivo.

Ela o encarava.

- Eu disse que você ia ficar zangada. Violei sua privacidade e, num certo sentido, é como se eu a tivesse violentado. Mas, se não tivesse feito isso, acha que estaríamos aqui agora? Tecíamos tido os momentos maravilhosos que tivemos juntos? E, de qualquer maneira, não a conheço agora profundamente, melhor do que qualquer outra pessoa do mundo? Mesmo que tenha pirateado as informações?

Ela o encarava.

- Eu ia deixar nosso relacionamento acabar aos poucos, mas não posso. É muito importante para mim, te amo demais. Mas ter que viver mentindo estraga tudo, não poder compartilhar as coisas com você... - Deu de ombros, sorrindo. - Assim sendo. .. agora estou nas suas mãos, pois você pode botar a boca no mundo e me meter numa enrascada muito séria.

Ela o encarava.

Desviou o olhar. Olhou para o copo. Pegou-o com a mão trêmula.

Tomou um trago, o gelo tilintando no copo.

Pete a observava. Deixou o controle remoto de lado.

Ela engoliu a bebida. Largou o copo. Olhou para ele.

- Você vigia todos os moradores?

Ele assentiu.

- Guiado pela luz? Como no Search for Tomorrow?

Ele assentiu, corando.

- Puxa vida, você é mesmo esperta. Demorei anos para ver isso. É verdade, foi como tudo começou, mas agora é bem diferente, é muito mais que isso.

Kay meneou a cabeça.

- Eu não entendo... - Olhou a televisão desligada. - Como? Como você... - Fez um gesto abrindo as mãos.

Pete levantou-se.

- Venha cá, vou lhe mostrar. É no apartamento ao lado. - Pegou o copo e bebeu.

- No apartamento ao lado?

Largou o copo, enxugou a boca com as costas da mão.

- O 13B é meu também. Os Johnson são outra mentira. - Começou a andar, parou para esperá-la.

Kay levantou-se, apoiando-se no encosto do sofá. Acompanhou-o para fora do apartamento.

Atravessaram o hall.

Pete destrancou e escancarou a porta do 13B,

- Se você achava que aquele estava bagunçado, precisava ter visto este aqui.

A COZINHA ERA cozinha mesmo, parcialmente iluminada pela luz do hall e pela luz esverdeada que passava pela abertura do balcão.

O vestíbulo era verde pálido. Na sala, um lustre verde pendia diante de um colossal monstro marinho que ia de uma parede a outra, coberto de escamas cinza-esverdeadas, apoiado sobre uma base curva marrom.

Monitores de televisão, uma parede inteira deles, com dois monitores gigantescos no centro. Mais de uma centena de monitores escuros, cada um com um brilho esverdeado movimentando-se lateralmente à medida que ela se aproximava, a luz tornando-se mais forte.

Ele aumentava a intensidade da luz através do controle do interruptor.

Fileiras de botões e alavancas no console curvo acompanhando a linha da parede com os monitores, uma poltrona preta re- clinável diante dele.

Kay parou a pouco mais de um metro de distância, passando os olhos pelas seis fileiras de telas, dígitos luminosos marcando no alto: 4A, 5A, 6A... e no meio: 6B, 7B, 8B...

Pete dirigiu-se à extremidade esquerda do console e virou-se, a mão apoiada na borda arredondada.

- Três para cada apartamento - explicou -, exceto para este, As câmeras de segurança também: do saguão dos elevadores etc. Cento e trinta ao todo. Posso passar a imagem de qualquer um deles para os dois masters. As distorções são corrigidas eletronicamente; o pouco que resta nem se nota. Os olhos se ajustam rapidamente.

Kay virou-se e encarou-o.

- Três}

- Sim. Eu lhe disse: todos os lustres.

Kay continuou a encará-lo.

- Sei que é um tanto grosseiro. A ideia me veio quando eu tinha dez ou onze anos, apenas uma fantasia que eu gostava de alimentar. Mais tarde, quando começou a construção deste prédio e vi que podia executar minha ideia, nem pensei em não incluir os banheiros. - Sorriu. - A meu ver, eles eram fundamentais. É lã que muitas conversas interessantes acontecem.

Kay respirou fundo,.

- Você precisa entender que esta é a mais monstruosa, a mais sórdida invasão de privacidade que podería ser perpetrada! Não só contra mim - bateu com as mãos no peito -, apesar de que,

Deus do céu, você diz que me ama e no entanto fica o tempo todo... meu Deus, eu nem posso...

- Mas eu te amo. - Aproximou-se dela.

- Contra todo mundo! Como pode fazer uma coisa dessas com as pessoas? É tenebroso! - Virou-se para os monitores. - Meu Deus...

- Eles não sabem. Ninguém sabe.

- Isso não faz diferença!

- Faz, sim. Você se sentiu agredida enquanto eu a vigiava?

- Mas me sinto agora!

- Porque agora você sabe! Ouça - segurou-a pelos ombros -, não vamos brigar por isso, eu jâ sabia que você teria essa reação. Vou desativar toda essa aparelhagem. Se tenho de escolher entre meu passatempo e você, fico com você. Estou largando tudo. Acabou. Nunca mais.

Entreolharam-se por um momento.

- É o melhor que tem a fazer. Você deve estar infringindo mais de uma dezena de leis, E se os outros inquilinos descobrirem, será processado até o último tostão, por mais dinheiro que você tenha.

- Foi a isso que me referi quando falei da enrascada em que você poderia me meter. - Suspirou. - Lamento tê-la magoado. Nunca a vi fazer nada que não fosse digno, ou dizer algo grosseiro.

- Você viu a queda de Hubert Sheer?

- Não, não vi. E tampouco o vi depois. Não dá para ver dentro do boxe, fica fora de ângulo. A porta reflete a luz, e o preto do vidro atrapalha mais ainda. Veja. - Soltou-a, virou-se e debruçou-se por sobre a poltrona.

- Não, Pete, por favor.

Com a mão no console, olhou para ela, a cabeça roçando na cúpula verde.

- O meu banheiro, não o dele.

- Confiarei na sua palavra.

Voltando-se, olhou-a de frente.

- Eu raramente o observava - disse ele, o brilho verde movendo-se nas telas. - Ele vivia lendo. Até pensei que já tivesse viajado para o Japão e esquecido as luzes acesas. Isso acontece. - Suspirou. - A única morte que vi foi a de Billy Webber, quando morreu de overdose. Havia duas moças com ele, razão pela qual eu os estava observando, e elas chamaram uma ambulância assim que ele entrou em convulsão. Eu não estava em casa quando Brendan Connahay e Naomi Singer morreram, e não há câmeras no lugar em que Rafael, o zelador anterior a Dimitri, sofreu o acidente.

- Vigia Sam também?

- Sim. Ele não sabe. Veja bem, o caso é que eu ajudo muita gente aqui, não só a ele. Financeiramente e de outras maneiras também, às vezes através da Fundação, outras vezes enviando dinheiro pelo correio. Ajudo também parentes de pessoas que moram aqui. A sobrinha de Maggie Hoffman precisava de um transplante de fígado, em Shreveport. A mãe é uma mulher maravilhosa, corajosa, solteira, sem dinheiro; mandei-lhe o dinheiro. Semana retrasada. Os Kastenbaum, que moravam no seu apartamento; ajudei-os também.

Kay meneou a cabeça.

- Mas é errado. - Olhou-o nos olhos. - É errado.

- E por isso que vou desativar o equipamento. - Segurou-a com as duas mãos pela cintura e sorriu. - Mamãe não quer, e eu sou um bom menino, certo? - Beijou-a na face. - Não posso me livrar dele porque seria um tanto difícil explicar de onde veio isso tudo, mas tenho outra solução: chamaremos um chaveiro para trocar a fechadura, e você ficará com as chaves. Existe uma outra porta de acesso, uma porta secreta, no fundo do armário embutido. Isso é para você ver que estou agindo de boa- fé, pois você jamais saberia da existência dessa porta. Pode mandar instalar um cadeado com segredo nela. E é só. Voltarei a me ocupar com programação, ou talvez termine meu curso universitário.

Kay olhava-o, sem nada dizer.

- Isso é pior que traficar com drogas? - perguntou Pete.

- Estava falando sério?

- Das fechaduras? Sim. Já lhe disse, prefiro ficar com você.

Depois de se entreolharem por um momento, eles se abraçaram e se beijaram.

Ela o abraçou com força; suspirou e meneou a cabeça, olhando os monitores por sobre o ombro dele.

- O dr. Palme também?

- Sim. Entende por que eu disse que tinha que mentir o tempo todo?

- Meu Deus... É o fim da picada, espionar pessoas em terapia...

- Eles não sabem.

Kay recuou e olhou-o com desconfiança.

- E é isso que você vem fazendo há três anos?

- É a coisa mais fascinante que você jamais viu, Kay. Dramático, engraçado, comovente, sensual, enervante, educacional...

Ela tocou-lhe a face, meneando a cabeça.

- Novelas ao vivo.

- Não, é a própria vida. Fatos reais, a novela assistida por Deus. Pelo menos, um pedacinho dela. Sem atrizes, sem atores, sem diretores. Sem escritores ou editores. Sem comerciais. E tudo verdadeiro, não a versão de alguém, como nos livros que você lê.

Ela se desvencilhou dele.

- Seu filho da puta, você está tentando me atrair para que eu veja também...

- Só por uma hora. - Tentou abraçá-la, mas ela o repeliu, dirigindo-se ao vestíbulo.

- Amanhã chamaremos o chaveiro.

- Amanhã? - perguntou Pete, seguindo atrás dela.

- Amanhã. - Abriu a porta. - Eles trabalham aos domingos. - Saiu no hall. - Jesus...

Chegou mais perto do espelho, ajeitou o cabelo.

Ele saiu, trancando a porta.

- Você é demais - disse Kay. - Vem com essa história de falar abertamente, de estar nas minhas mãos, e tentando me empurrar sua máquina de espionar. Quando penso nas conversas que você escutou, além de ver o que se passa nos banheiros

- Eu já me desculpei, O que quer que eu faça, que rasteje? Tenho uma coisa sensacional para lhe mostrar.

- Já mostrou. - Beliscou o decote do suéter. - Deus do céu, quanto você gastou para instalar isso tudo?

- Incluindo os subornos, não incluindo o prédio, pouco mais de seis milhões.

Ela olhou-o no espelho.

- É um verdadeiro pecado.

- O prédio se valorizou em dez milhões. Ainda estpu levando vantagem no negócio.

- Pior ainda. Mas me deixa mais tranquila por desativá-lo. - Aproximou-se dos elevadores, apertou o botão e olhou para Pete. - Não quero que me vigie esta noite.

- Prometo - respondeu ele erguendo a mão.

- Ninguém mais.

- Ah, não faça isso. A última noite? E logo uma noite de sábado?

Trocaram um olhar.

- Pensando bem, talvez seja melhor eu vigiar você. Vá apagar as luzes. Passará a noite comigo.

Sorrindo, ele se dirigiu ao 13A.

- Não seja tão presunçoso. Eu estou realmente chateada com você.

- NO ASPECTO LEGAL ainda é uma área obscura. - Estava deitado por trás dela, em concha, as mãos sobre seus seios, o rosto em seus cabelos. - Principalmente quando a câmara está fora do imóvel alugado, o que é o caso. Estou muito bem informado no que se refere a questões de privacidade; o casal do 10B faz parte da ACLU, aquela entidade de direitos civis.

- Santo Deus - disse Kay -, você espiona a ACLU?

- Foi por isso que os aprovei. Sabería que me manteriam informado. Na verdade, para advogados, eles até que são competentes,

- Boa noite, Pete.

- Boa noite, Kay. - Beijou-lhe a nuca, apertou-lhe os seios.

Aconchegaram-se mais, ficaram em silêncio.

Felice ajeitou-se aos seus pés.

- Sabe que este é o terceiro prédio de apartamentos que o coronel equipou? E um hotel também.

Ficaram em silêncio.

- Aqui em Nova York? - perguntou Kay.

- Ele não quis dizer.

- Que maravilha, fico contente que ele seja tão ético.

- Só disse que o sistema do hotel era computadorizado; sò mostra os quartos em que há movimento. Pode até discriminar entre uma pessoa e duas. O que eu tenho aqui é café pequeno.

- Pequeno e imoral.

Ficaram em silêncio.

- Vamos lá... - disse ele. - Só meia horinha e então chamaremos o chaveiro. Sem os banheiros. Sem o apartamento de Sam, se é este o problema.

- Boa noite, Peter.

Ficaram em silêncio.

- Não é só ficar olhando - disse ele. - E colocar uma imagem ao lado da outra, ou o audio de um apartamento na imagem de outro. A gente consegue todos os tipos de... contrastes e harmonias. Às vezes é como se a gente estivesse tocando órgão. Um órgão humano.

- Quer fazer o favor de se calar e dormir?

- Boa noite. - Beijou-lhe a nuca.

Ficaram em silêncio.

Um ruído forte fez estremecer o teto.

- Santo Deus - disse Kay -, que será que eles estão fazendo aí em cima?

- Não é da sua conta*

- Ah, vá à merda.

Pete beijou-lhe a nuca.


8

- Meia hora - disse Key. Ele abriu a porta do 13B e acendeu a luz do vestíbulo.

- Espero que haja algo de bom - disse ele, segurando a porta aberta para ela entrar. - É provável que hoje só estejam em casa alguns fãs de futebol.

- Entendí você dizer que era uma fascinação sem fim - retrucou Kay, entrando.

- Belas tardes de domingo não são o melhor horário. E não se esqueça que é fim de semana de Ação de Graças. Muita gente viajou.

Ela parou na entrada da sala escura, estendendo a mão na direção do interruptor. Apertou-o, acendendo o lustre de cúpula verde, iluminando o console marrom e os monitores cinzentos.

- Vou buscar uma cadeira...

Ela ficou parada contemplando a parede curva coberta de monitores, seis fileiras do console ao teto, uma única fileira acima e outra abaixo dos masters centrais; dígitos luminosos no alto e na linha do meio - de 2 a 11 à esquerda, de 12 a 21 à direita. "A" na parte do alto, "B" na parte de baixo.

Aproximou-se do console, enfiando as mãos nos bolsos do jeans.

Ficou parada atrás da poltrona, olhando as pequenas alavancas e botões do console, marcados com os respectivos números dos monitores. No centro, um conjunto de botões e alavancas maiores; mais ao fundo, embutidos em fórmica marrom, dois aparelhos de videocassete.

Um relógio embutido na posição horizontal - dígitos azuis marcando 12:55 - um telefone, um bloco preso numa prancheta. Uma tigela de jujuba. Cores deliciosas.

A porta fechou-se às suas costas.

Viu o reflexo dele no 1 e 2, as grandes telas centrais, trazendo uma cadeira branca de encosto alto, colocando-a à sua esquerda.

- Você me gravou? - perguntou Kay, virando-se.

Ele colocou a cadeira no chão - era uma das cadeiras de couro branco da sua sala de jantar - e segurou o encosto.

- Sim. Na noite em que você se mudou para cá, na banheira, mas a gravação está tão escura que mal dá para ver alguma coisa. E nós dois, naquela primeira noite de sábado.

Ela virou o rosto.

- Não acredito.

- Liguei o vídeo quando desci para buscar o champanhe. - Sorriu. - Só por precaução. Não se pode perder um evento dessa magnitude. Não me obrigue a apagar a fita; está muito bem guardada, e imagine como será divertida quando formos velhos. Provavelmente seremos o único casal do mundo que tem uma fita gravada da primeira relação que tiveram juntos.

Kay suspirou.

- Não duvido. - Virou-se e sentou.

Ele ajeitou a cadeira de frente para os monitores, inclinou-se e beijou-lhe a cabeça.

Reduziu a intensidade da luz, deixando-a bem fraca.

- Tem refrigerante e comida aqui. Quer alguma coisa?

Ela meneou a cabeça, o olhar baixo, esfregando as costas da mão.

Pete veio sentar-se na poltrona, deslizando-a para junto do console. Ligou uma luz vermelha, provocando um zumbido nos fundos do apartamento,

Kay estava aprumada na sua cadeira, pernas e braços cruzados.

- Só um segundo - disse ele. - Estou desligando os banheiros e o apartamento de Sam.

Em meio à penumbra, viu-o acionando as alavanças do lado dela.

- O que é esse zumbido?

- E o transformador. - Acionou outra fileira de alavancas.

- A voltagem precisa ser reduzida e convertida de corrente alternada para corrente contínua. Havería muito calor e barulho aqui dentro com um transformador separado para cada monitor. Então mandei instalar um grande nos fundos, ligado diretamente â linha central. - Acionou as alavancas da direita. - Se ^ incomoda, posso fechar a porta.

- Não, pode deixar. - Olhou para ele, que estava virado para o outro lado. - Seria formidável se você dedicasse o mesmo esforço e empenho a uma atividade digna.

- Dê-me tempo. Tenho outros projetos em mente. Pronto...

- Virou-se de frente para os monitores, acionou mais algumas alavancas -, bem-vinda à Idade de Ouro da Televisão verídica...

As telas se iluminaram em azul e branco, mostrando imagens de salas e quartos. A terceira fileira de cima para baixo continuou apagada, assim como a última, exceto as telas localizadas sob os masters - a entrada do prédio, o saguão, a sala de correspondência, os dois elevadores.

-- Vamos ver o que Felice está fazendo - disse ele, pressionando os botões. As telas centrais se iluminaram com imagens de todos os ângulos da sala e do quarto de Kay.

- Meu Deus...

Ele acionou algumas alavancas no console.

Kay viu seus móveis, seus tapetes estampados, seus Times espalhados pelo quarto, seus livros, suas plantas, seus enfeites.

- Logo se acostumará com a perspectiva. Aqui está ela. Oi, Felice.

Felice passava diante da cama na tela da direita, o jornal farfa- lhando sob suas patas. Foi até a janela, na tela do alto, saltou no peitoril. Deitou-se ao sol, levantou a pata traseira, lambeu-se.

Kay sorriu, iluminada pela luz azulada.

- Que merda, eu tinha esquecido - disse ele -, devíamos ter esperado até às três. Ruby fará uma sessão e seria interessante ver. Ruby Clupeida, a do perfume. - Pressionou um botão à frente dela, outro a sua frente. - Está envolvida com espiritismo. - Na tela da esquerda, a mulher do perfume Giorgio, trajando uma cafetã escuro, trouxe uma cadeira para junto de uma mesa redonda. - Há vários meses vem sendo explorada por um médium; eu o vi consultando anotações no banheiro. Ela finalmente ficou desconfiada e chamou um entendido. Ele vai fingir que é sócio do pai dela. O pai morreu e vem se comunicando através do médium.

- Bonitos móveis - disse ela. - Estilo Jaime I.

- Herança de família. A mãe a está processando por causa desses móveis. Afirma que Ruby pegou-os sem permissão.

- Acho que ela não é um travesti.

- Não. - Sorriu, passando os olhos pelos monitores. - Foi engraçado quando você disse que ela parecia um travesti, porque foi logo depois de me perguntar sobre Vida, que é.

- O quê?

- Vida é um transexual em fase pré-operatória. Fez o tratamento com hormônios, mas quando chegou a hora de fazer a cirurgia, perdeu a coragem. Briga com o namorado por causa disso há quase um ano. E você nem imagina... Ah, que bom, Jay e Lisa estão aqui. - Apertou botões. - Os Fisher, do 4A. Ela está tendo um caso com o patrão, e a irmã deu com a língua nos dentes na semana passada. Ela nega tudo. - Numa sala high-tech, na tela da direita, uma morena atraente que Kay havia visto no elevador estava de pijama, olhando pela janela. Um homem de pijama estava agachado diante da televisão, ajustando a imagem.

- O dia está tão bonito - disse Lisa.

- Vá dar um passeio - retrucou Jay. - Chame o Ben, eu não me importo.

- Ah, meu Deus, vai começar tudo de novo...

Na tela da esquerda, o homem de cavanhaque do 12, sentado junto à escrivaninha numa sala semimobiliada, pegou no telefone.

- David Hoenemkamp - explicou Pete, enquanto os Fisher continuavam discutindo. - Um ex-padre, atualmente trabalhando em publicidade. Tem sua própria agência, pequena porém bem-sucedida. Separou-se da mulher porque abandonou a igreja.

Ouviram David Hoenemkamp explicar a um cliente por que estava largando sua conta.

E os Fisher continuavam discutindo.

- Clareza fantástica, não é mesmo? - comentou Pete, oferecendo-lhe o pote de jujuba.

Ela assentiu, pegando dois confeitos.

- Takai. Equipamento japonês, o melhor do mundo. - Colocou o pote sobre o relógio, que marcava 1:07, e pegou alguns confeitos.

Ficaram vendo os Sweringen no master 1, os Fisher no 2. Ele aumentava e abaixava o volume.

ASSEGURO-LHE QUE NÃO é uma questão de dinheiro - disse Stefan, no 1, entrando na cozinha -, é o tempo que se perde, Você não tem noção de quanto tempo demora para se encontrar as peças?

- Ei, que horas são? - perguntou Kay.

Ele afastou o pote de balas: 3:02.

- Puxa vida - exclamou Pete.

- Que barbaridade!

Ele tirou o som. Girou na poltrona.

Olharam um para o outro.

- E isso não foi nada, Kay. Quase ninguém no prédio. Nem o dr. Palme. Nenhuma cena de sexo.

- Eu não esperava que fosse entediante,

- Devia ver daqui a algumas horas, quando todo mundo estiver chegando em casa.

Ela se remexeu na cadeira, inclinou-se na direção dele, segurou- lhe as mãos.

- Pete, é errado, por mais interessante e... emocionante que seja. E você sabe que terá um sério problema se alguém descobrir. Pode arruinar sua vida. Nossa vida...

Entreolharam-se por um momento.

- Você precisa largar isso. Não só por nós, mas pelo seu próprio bem.

Ele suspirou, acenou com a cabeça.

- Acho que...

Kay soltou as mãos dele.

Ele girou na poltrona, abriu a gaveta, pegou as Páginas Amarelas. Abriu a lista no colo, virou-se para Kay, suspirando.

Ela o observava.

Folheou a lista até encontrar a seção de chaveiros.

- Puxa vida, veja quantos! - exclamou folheando as páginas.

- Como vai fazer? Acha que Terry deixará o chaveiro subir sem os Johnson estarem aqui?

Ele a olhou, sem responder.

- E se o chamar para o 13A, será que ele trocará a fechadura do 13B?

- Não tinha pensado nisso.

- Seu grande mentiroso...

Ele ergueu a mão direita.

- Kay, juro que não pensei. Eu estava tão ansioso que você visse... Mas veja, na verdade isso não faz diferença. Tudo que temos a fazer é trancar esta porta para que não possa ser aberta por fora, pregá-la com uma tábua ou coisa que o valha, e na porta dos fundos você coloca um cadeado. O efeito será o mesmo. - Sorriu. - Podemos até fazer um jogo, no qual eu tentarei fazer com que você me revele a combinação. Se eu vencer, você muda o segredo.

Kay olhou-o por um momento e meneou a cabeça.

- Não. Mudei de ideia. Não vou ficar vigiando você o tempo todo, não é o tipo de relacionamento que eu quero. Você é adulto, Pete. Tem de ser responsável pelos seus atos. Sabe o que penso a esse respeito. Se quer mesmo que nossa relação seja boa, terá de tratar do fechamento sozinho.

Ele suspirou.

- Uma questão de honra?

- Sim.

Ele assentiu, fechou a lista e, girando na poltrona, colocou-a no console.

- Você tem razão. - Virou-se, sorrindo. - Você vai mesmo me pôr na linha... - Segurou-lhe as mãos e beijou-as, Ficou olhando para ela, os olhos de um azul mais intenso na luz azulada do ambiente. - Farei o que você diz. E darei início aos meus projetos. Na verdade, já comecei um deles. Mas há algumas coisas ocorrendo aqui com as quais estou muito envolvido: dois pacientes do doutor Palme, as duas mulheres do 11B, e os Ostrow, que moram acima de você, de modo que não posso largar tudo de repente, mas prometo resolver as coisas o mais rápido possível.

- Assim espero. Espero mesmo.

Beijaram-se.

- E não vou mais espionar você, nunca mais - disse ele, soltando uma das mãos e acionando algumas alavancas. Os monitores do 20B se apagaram, os penúltimos das fileiras mais baixas, à direita. Sorriu. - Você e Sam. Simétricos.

Kay olhou os monitores escuros das últimas fileiras à esquerda. Ao virar-se, notou um movimento no 8B.

- Ê o médium - explicou Pete. Apertou alguns botões.

De mãos dadas, fixaram os olhos nos masters. Ruby e outra mulher recebiam um homem corpulento, de terno escuro, na sala de estar. Jay vestiu um sobretudo, gritando com Lisa, que falava ao telefone com o dedo no ouvido.

- Ligue o som - pediu Kay. - Só por um minuto.

A PRIMEIRA COISA que fez na segunda-feira foi ligar para o departamento jurídico. Wayne atendeu. Perguntou como ia Sandy e as crianças. Estavam todos bem.

- Preciso de algumas informações sobre as leis relacionadas à invasão de privacidade. Especificamente uma situação em que alguém instala clandestinamente uma câmera de vídeo num apartamento e depois o aluga, aqui em Nova York.

- E o inquilino não sabe da existência da câmera?

- Exatamente. O telefone também é grampeado. Tenho um manuscrito baseado nessa situação e, de acordo com o autor, esta e uma área obscura da legislação. Quero saber se ele está certo, e, se ele estiver, obscura até que ponto exatamente.

- Eu não sabería lhe dizer isso agora, de pronto, não é do meu departamento, mas posso me informar. O que posso lhe adiantar é que o grampeamento do telefone, se não for autorizado, é considerado crime federal.

- Foi o que pensei.

- Provavelmente estadual também. Mais tarde eu lhe telefono a respeito da câmera de vídeo. Não deve demorar.

- Ela está instalada fora do apartamento. Ele diz que este é um fator importante. As imagens são conduzidas através de um cabo de fibras óticas que sai do lustre.

- A espionagem é relacionada com negócios?

- Não, apenas voyeurismo.

- Aha. E a heroína se muda para o tal apartamento.

- Como adivinhou?

Kay pediu a Sara que fizesse uma ligação para Florence Leary Winthrop e suspendesse todas as chamadas, exceto a de Wayne.

Meia hora depois interrompeu a conversa com Florence, pedindo que aguardasse na linha.

- Wayne?

- Sim. Seu escritor tem razão. Ainda não existe uma lei federal ou estadual contra vigilância eletrônica propriamente dita. O locador pode sofrer um processo civil se o inquilino descobrir, mas a única acusação que ele pode enfrentar, além do grampeamento não autorizado do telefone... que, por sinal, é sujeito a uma pena de cinco anos... seria a de infringir a lei estadual que não permite espiar as pessoas, uma infração sem gravidade. E até isso seria passível de discussão.

- Estou surpresa.

- Eu também. Talvez haja alguma legislação pendente. Provavelmente quem poderia lhe dar uma informação mais concreta é a ACLU.

Kay agradeceu-lhe; desculpou-se com Florence.

- Eu lhe disse - comentou Pete aquela noite. - Eles conhecem a legislação a fundo e não param de tagarelar. Ambos, são advogados.

- A pena por grampear telefones sem autorização é de cinco anos.

- Sei disso.

Estavam no Table d’Hôte, um pequeno restaurante na Rua 92. Sete das oito mesas estavam ocupadas, algumas por casais, outras por grupos de quatro pessoas; o nível de barulho dentro do restaurante era alto. Estavam numa mesa redonda, no canto do salão, joelhos encostados, tomando vinho branco, passando manteiga em pedaços de pão.

- Não posso retirar o sistema agora - disse ele -, não sem quebrar o teto do subsolo. Mas ninguém descobrirá. E eu estou abandonando tudo. Hoje não vi nada, não que as segundas-feiras sejam grande coisa. Isto é, durante o dia. Mas as noites são fantásticas, com todos em casa.

- O que fez hoje?

- Trabalhei no computador, adiantando o projeto. E já vou avisando: é algo que prefiro não comentar até acertar alguns detalhes. Sei que você entende.

- Claro. Eu não estava bisbilhotando. Só estava curiosa em saber como tinha passado seu dia. Deve ter sido difícil não olhar. Não consigo parar de pensar como é hipnótico.

- Porque é real. É como a diferença entre ver carros batendo em um filme e um acidente real na rua.

- E nunca saber o que virá a seguir.

- Pois é, isso é que é fascinante. O imprevisível, e a variedade.

Kay suspirou, bebeu um gole de vinho.

- Quisera eu que não fosse tão errado.

- É considerado errado, mas não faz mal a ninguém, e aposto que não há quem não gostaria de dar uma espiada.

- Chega. Nunca mais.

- Eu sei. Já lhe disse, não olhei nem uma vez hoje, e uma das pacientes mais interessantes do dr. Palme tem consulta às segundas-feiras.

O garçom trouxe-lhes os pratos pedidos - peixe espada grelhado e salmão escaldado - servidos em belas travessas vitorianas.

Uma delícia. Um provou do prato do outro.

Pete falou-lhe de alguns pacientes do dr. Palme.

O casal do 17 entrou no restaurante; o garçom saudou-os, conduzindo-os à mesa vaga, distante duas mesas da deles.

- Os Cole, do 17A - murmurou Pete. - O casal mais depravado do prédio.

- Não somos nós?

- Nós? De jeito nenhum. Estamos em quinto ou sexto lugar.

- E subindo.

A caminho de casa pararam na mercearia coreana da esquina, onde compraram suco de laranja e maçãs para ela, e leite, uvas e café para ele. Pete colocou o troco no copo de papel do mendigo que estava junto à porta.

Atravessaram a Rua 92, esperaram o sinal abrir. Olharam o prédio iluminado com luz rosada, as duas fileiras de janelas brilhando até o topo escuro.

- É uma sensação estranha - disse Kay, de braço dado com ele, olhando para o alto -, conhecer as pessoas que estão por trás das janelas...

- Pensei que na sua cidade fosse assim.

- Ah, sim, exatamente a mesma coisa...

Trocaram um sorriso. Beijaram-se.

Atravessaram a avenida.

Walt, em seu uniforme de inverno, abriu a porta ao vê-los se aproximarem.

- Oi, Walt.

- Senhorita Norris, senhor Henderson...

Enquanto cruzavam o saguão, Pete cochichou no ouvido dela:

- Ele está tendo um caso com Denise Smith do 5B.

- Não diga!

- Faz sucesso com as mulheres. - Apertou o botão de subida; viram Walt do lado de fora, abrindo a porta de um táxi. - Ele as conquista pela voz. Costumava cantar no City Opera, no coro. Teve um caso com Ruby no ano passado, mas terminou .com ela. Ela o fazia levar Ginger para passear a toda hora.

O casal branco e preto entrou carregando sacolas de compras de Natal da Lord & Taylor. Cumprimentaram-se em sorrisos e acenos de cabeça.

- Tempo de compras... - comentou Pete.

- Pois é... - respondeu o homem, sorrindo.

O elevador número 1 chegou.

Subiram em silêncio.

Depois que a porta se fechou no sétimo .andar, Pete falou:

- Bill e Carol Wagnall. Muito interessantes.

- Tenho certeza.

Desceram no 13 para deixar as compras dele.

- Só um pouquinho?

- Pete, você sabe o que acontecerá,

Entreolharam-se,

- Não nego que gostaria de...

- Ninguém sabe! - retrucou Pete.

- Meu Deus - disse Kay, meneando a cabeça.

- Vamos lá. Marcaremos um tempo razoável e não passaremos da hora. Eu disse que não podería largar assim de uma hora para outra, não disse? Uma hora só. Nem um minuto a mais. Vamos armar o despertador.

Kay suspirou.

- Está bem. Mas só uma hora.

Ajustaram o despertador.

FIZERAM GINÁSTICA na academia, exercitando-se ladó a lado nos aparelhos para braços. Nadaram na piscina.

Foram com Roxie e Fletcher ver um sucesso off Broadway. Não acharam grande coisa, embora Roxie e Fletcher tivessem gostado. Roxie convidou-os para um drinque em seu apartamento; deixaram para outra vez.

Uma criança de cinco anos podería manejá-lo. Bastava apertar o botão 10A no alto, e em seguida o 1 no painel central - pronto: lá estava a sala do 10A no 1. Anne Stangerson tapando os ouvidos, recusando-se a ouvir o que uma senhora idosa lia numa folha de papel - a mãe lendo seu testamento em vida.

Assistiram à cena por alguns minutos, enquanto no 2, os Gruen do 14B, nus na cama com um livro e uma calculadora, calculavam a melhor hora para Daisy engravidar.

Ela assumiu os controles dos monitores da esquerda e do 1, e ele dos monitores da direita e do 2. Procuraram contrastes e harmonias.

Tocaram duetos no órgão humano.

Kay debruçou-se na janela de seu escritório, de braços cruzados, olhando a serpente luminosa formada pelos veículos fustigados pela chuva. Suspirando, olhou para a frente. Uma mulher na janela do outro lado da rua desviou o olhar.

- Kay - perguntou Sara -, aconteceu alguma coisa?

Kay virou-se, sorrindo.

- O mesmo de sempre: saudade de casa, crimes relacionados com drogas, a dívida interna...

No dia em que ficou trabalhando em casa, desceu para dar uma espiada no dr. Palme. Havia duas poltronas pretas giratórias diante do console.

- Não há nada de estranho - observou Pete. - Ela simplesmente se dividiu.

Viram o dr. Palme e Nina.

E Dick.

E Joana.

A DlADEM TINHA uma mesa reservada no jantar dançante das Voluntárias da Alfabetização da América, no Fórum Celeste Bartos da Biblioteca da Rua 42. No táxi, percorrendo a Quinta Avenida, vestida de veludo cor de vinho e pele sintética, Kay falou:

- Prepare-se para olhares de reprovação e talvez algumas críticas. Já vi isso antes. Os homens mais velhos ficam indóceis, principalmente quando a mulher não é de se jogar fora. É um instinto animal, machos batendo chifres.

- Quer parar de se preocupar? Mulheres mais velhas com homens mais jovens estão por toda parte. Veja Babette e Allan.

- Tenha paciência, são só cinco anos de diferença!

- Relaxe. Todos nos tratarão com simpatia. Aposto uma massagem.

Ela virou o rosto para a janela.

- Está apostado.

O trânsito se arrastava em frente ao Rockeffeler Center.

Porém o mais deslumbrante, enquanto passavam vagarosamente por ela, era o conjunto de luzes do fundo da praça, as fileiras de diáfanos anjos erguendo suas trombetas douradas...

Na entrada do fórum, Kay segurou-o pela mão. - "Lá vamos nós" - e levou-o até um casal de cabelos grisalhos, no fim de uma das filas da chapelaria.

- Olá. Este é Peter Henderson! Pete, June dei Vecchio, Norman dei Vecchio,

- Olá! - disse June, cumprimentando-o com um aperto de mão e um sorriso.

- Olá! - Norman fez o mesmo.

- É um prazer conhecê-los, Kay me disse que vocês são membros da Civitas. Meu pai também era; não sei se o conheciam. John Henderson?

- Da U.S. Steel? - perguntou Norman.

- Sim.

- Conhecemos, sim.

- Ele era tão charmoso! - comentou June. - Você tem os olhos dele, e o sorriso também.

- E que grande negociador ele era! - completou Norman. - Arranjou-nos dinheiro junto aos construtores a quem combatíamos!

- Se Peter saiu ao pai, é melhor tomar cuidado com ele, Kay!

- Obrigada pelo aviso - disse Kay, sorrindo.

- Em que ramo você trabalha, Peter?

- Tenho trabalhado com programação de computadores, mas no momento estou à deriva, digamos assim.

- Talvez pudesse dar uma olhada no sistema da nossa contabilidade; Deus sabe o quanto ele está precisando de uma revisão. Oh, Jim, venha conhecer Peter Henderson, filho de um velho amigo nosso...

Primeiramente foram servidos coquetéis no Astor Hall. Todos se mostraram simpáticos.

Stuart agradeceu a Kay por ter lhe enviado o material de Sam.

- É o tipo de texto que me agrada - disse ele. - Semana que vem ele virá conversar comigo. Se acertarmos tudo, pretendo oferecer-lhe um pequeno adiantamento.

- Ah, que bom. Fico contente.

- Isso é ótimo - comentou Pete.

- Você também o conhece, Pete? - perguntou Stuart.

- Só de nos cumprimentarmos no elevador. Moramos todos no mesmo prédio.

Wendy perguntou, sorrindo:

- Seria você, por acaso, o misterioso proprietário?

- Não - respondeu, sorrindo para Kay -, ainda não conseguimos descobrir quem é ele. Os candidatos mais votados são dois advogados.

O domo de vidro do fórum - com armação de aço, ornado com fileiras de lâmpadas, uma espaçonave saída da obra de H.G. Wells - era iluminado do alto com luz rosada passando para violeta. As mesas colocadas sob a cúpula eram roxa e violeta, com louça branca e dourada, arranjos florais em rosa e violeta e velas cor-de-rosa. Uma banda de quatro elementos tocava música de Sondheim e Porter.

A conversa na mesa da Diadem girava em torno do tráfego e da infraestrutura decadente da cidade, da estratégia de investimento dos japoneses, alimentação saudável, testamentos em vida.

Depois da galinha à moda da Cornualha, Norman tirou Kay para dançar. Sorrindo para Pete, ela acompanhou Norman à pista de dança. Cumprimentaram alguns conhecidos; dançaram ao som de Let’s Do It mantendo espaço entre si.

- Ele é de uma perspicácia fora do comum - disse Norman. - E muito bem informado também.

- É mesmo, não é?

- Espero que seja emocionalmente mais estável que o pai. Foi casado quatro vezes, se não me engano. Sempre com atrizes. Não sei se...

A pista cheia de gente, casais dançando a sua volta.

- O quê?

- Uma delas morreu em consequência de uma queda. Rolou a escada do duplex onde moravam. Não sei se era a mãe de Peter.

- Era, sim. Thea Marshall.

- Uma escada de mármore, em curva, segundo os comentários.

- Os comentários? - sorriu para Pete, que piscou para ela por sobre os cachos grisalhos de June, a alguns passos deles.

- Olá, tudo bem? - Norman cumprimentou alguém. - Ah, houve muitos comentários na época, uns dez, onze anos atrás. Eles estavam dando uma festa quando o acidente aconteceu. Ela estava carregando algumas malas, foi por isso que falseou o pé na escada. Tinha pressa de pegar o avião; ia passar o Natal com a família, na sua cidade de origem, uma decisão repentina. Pelo menos, foi o que Henderson declarou. Ela era do Canadá. Dizem que uma das malas se abriu quando chegou ao fim da escada, e que estava cheia de maiôs e roupas de verão.

- Que tal fazermos uma troca? - perguntou Pete, dançando com June ao lado deles.

- Ah, claro - disse Norman, soltando Kay e pegando June nos braços. Uma troca perfeitamente justa.

- Como estamos galantes esta noite! - comentou June, rodopiando com Norman pelo salão.

Sorrindo, Pete enlaçou Kay pela cintura.

- Estavam falando de maiôs e roupas de verão? - perguntou puxando-a para junto de si, segurando-lhe a mão, girando no ritmo da música. Ela apenas o olhou: bonito em seu traje a rigor, os olhos azuis sorridentes. - Parece que foi isso que ouvi.

- Não sei. Não estava escutando.

Ele a apertou nos braços, encostou o rosto no dela.

- Quem deve uma massagem a quem? - perguntou.

Ficaram dançando em meio aos outros casais, ao som de Easy to Love, sob a cúpula de vidro e aço iluminada por uma luz que mudava do violeta para o roxo.


9

Ela imaginara que o acidente ocorrera em algum obscuro local de trabalho; terrível que tivesse acontecido no apartamento onde residiam, numa época em que era mais que provável que estivesse em casa e presenciasse a tragédia - antes do Natal, no meio de uma festa.

Pensou no assunto novamente enquanto via Lisa arrumando a mala no master 1 e Maggie, coitadinha da Maggie, desfazendo a mala no 2. Ele estava no 13A, esperando para pagar o homem da Jolly Chan’s, que subia no elevador número 1 junto com Phil e os McAuliff.

Os maios e roupas de verão, se eram mesmo reais e não um engano da parte de alguém, sugeriam a Califórnia.

O que sugeria Sam.

O que, por sua vez, sugeria um empurrão na escada da parte de John Henderson.

Não podia esquecer que editara dezenas de livros de terror e suspense. Quedas fetais na vida real eram acidentais, na maioria das vezes. Inclusive em escadas curvas de mármore.

Eles possuíam uma casa em Palm Beach; talvez Thea Marshall estivesse viajando para lã, e John dissera que ela ia visitar a família só porque parecería uma explicação mais plausível para se afastar do marido na época do Natal.

Todavia, certamente Thea tinha maios e roupas de verão em Palm Beach...

A porta abriu; Kay girou na poltrona. Viu Pete entrar no ves- tíbulo trazendo um saco de compras. Ele sorriu - o sorriso de John Henderson. Filho de John.

- O que vai querer primeiro? - perguntou, fechando a porta.

- Qualquer coisa, querido.

Ele lançou um olhar para os monitores.

- Muito bem. O Conto das Duas Malas. Não falei que ela voltaria? - Entrou na cozinha. A abertura do balcão iluminou-se.

Kay girou na poltrona. Viu Lisa tentando fechar a mala, Mag- gie guardando a sua no armário.

Levantou-se e foi até a cozinha. Pete, que esvaziava o saco sobre o balcão, voltou-se.

- Pode deixar que eu faço isso, querida.

- Preciso me movimentar um pouco - disse ela. Pegou dois pratos no escorredor e colocou-os sobre o balcão. - Hmm, que cheirinho bom.

- Não sei por que eles não marcam essas coisas... - Tentava soltar a tampa metálica de um recipiente circular.

Ela pegou garfos e colheres na gaveta, colocando as colheres juntos aos recipientes.

- Falando em malas, Norman me contou da queda de sua mãe.

Pete virou-se e olhou para ela.

- Ele estava lá?

- Não, alguém lhe contou. Eu sabia como ela havia morrido, mas não sabia que tinha sido em casa. - Tocou-lhe o braço, fítando-o atentamente. - Você estava lá?

Ele assentiu.

- Ela tinha acabado de se despedir de mim. Fazia dois minutos.

Com uma expressão de dor, Kay apertou-lhe o braço.

- Eu não vi acontecer. Estava no meu quarto. - Sorriu. - Assistindo Charlie’s Angels. - O sorriso desapareceu. - De repente tudo ficou em silêncio lá embaixo. Havia muita gente lá, trinta ou quarenta pessoas, e todos ficaram em silêncio... - Suspirou e olhou para o recipiente, soltando a tampa com os polegares. - Acho que este é o camarão ao curry.

Ela continuou parada ao lado dele, segurando seu braço, observando suas mãos.

- Aonde ela ia?

- À casa dos meus avós. Em Nova Scotia. Já esteve lá?

- Não.

- Nem eu. Ela dizia que era uma cidade lúgubre. Eles vinham nos visitar de vez em quando, mas nós nunca fomos lá.

Ela beijou-lhe a orelha, soltou seu braço e pegou um maço de guardanapos enquanto ele servia arroz e camarão nos pratos.

- O que quer beber? - perguntou Kay.

Ele franziu os lábios, pensativo.

- Cerveja.

- Boa ideia. - Colocou os guardanapos e os garfos na bandeja. Abriu o refrigerador. - De que seu pai morreu?

- Câncer na medula óssea. Quando foi que Norman lhe contou? Na noite da festa?

Ela pegou duas latas de cerveja, fechando a porta do refrigerador com o cotovelo.

- Não. Foi ontem, no escritório. Ele ficou muito impressionado com você, sabia?

- Ora, ele ficou impressionado com o meu dinheiro.

- As duas coisas.

Ela pegou os copos e levou a bandeja para a sala, enquanto ele levava os pratos.

Era noite de sábado. Ficaram vendo as imagens até depois das duas.

- Uma noite e tanto - disse Kay, virando-se no colo dele e abraçando-o. Ele girou a poltrona enquanto se beijavam, realizando dois giros completos.

- Um sábado normal - disse ele.

Kay pôs-se de pé e espreguiçou-se, bocejando. Ele acariciou- lhe as costas, virou-se e abriu uma gaveta.

- Vou colocar uma fita para gravar os Stein, para o caso de Springsteen aparecer.

- Ele não vai aparecer - disse Kay, abotoando a camisa. - Mark é um papo-furado, você não vê?

- Vladimir Horowitz esteve lá uma vez. - Rasgou a embalagem plástica de uma fita de vídeo. - Eu gravei. Lesley falou o tempo todo.

- Fez muitas gravações? - Começou a recolher os pratos e guardanapos do console.

- Não. - Amassou o plástico e tirou a fita da caixa, - Gravei muito no primeiro ano (aquelas duas gavetas estão cheias), mas havia sempre tanta coisa acontecendo que não me sobrava tempo para ver as gravações. - Introduziu a fita no videocassete da direita. - Agora só gravo quando é um evento importante. - Apertou as teclas.

- Como nós. - Fazendo um chumaço com um guardanapo, puxou grãos de arroz e migalhas de bolo de chocolate do console para os pratos.

- Exatamente. E talvez Springsteen.

Desligou tudo exceto o videocassete e o canal de entrada da sala dos Stein.

Arrumaram a cozinha. Ele levou o lixo quando saíram.

ELA APENAS LERA POR ALTO dois dos originais que seriam discutidos na quarta-feira, mas saiu-se perfeitamente bem na reunião. Na verdade fora mais convincente em seus comentários por ter visto a floresta e não as árvores, disse a si mesma enquanto descia para o 40? andar.

Encontrou Sam lendo na recepção, um casaco na poltrona ao lado. Olhou-a por sobre os óculos de meia armação, sorriu e levantou-se; trajava calças de veludo cotelê marrom, camisa xadrez, gravata preta, o cabelo grisalho recém-cortado.

- Olá! - exclamou, tirando os óculos e deixando de lado o exemplar da revista para editores Publishers Weekly.

- Oi, Sam! - Kay foi ao seu encontro. - Stuart me disse que você viria.

- Pode me dar os parabéns. - Apertou-lhe a mão, sorrindo - Pois agora sou um escritor da Diadem.

- Oh, mas isso é ótimo! Meus parabéns mesmol - Abraçou- o. - Parabéns para nós dois.

Sam exibia um sorriso radiante. Cicatrizes claras marcavam sua face afogueada e o nariz torto.

- Ele está redigindo um contrato. Receberei um adiantamento agora, e outro quando chegar à metade.

- Eu sabia que ele ia gostar.

- Queria lhe agradecer.

Ela levou-o a sua sala e pediu a Sara que lhes trouxesse café. Sentaram-se junto à janela, em poltronas colocadas em posição oblíqua.

Ele passou os olhos pela parede envidraçada do prédio do outro lado da rua, dizendo:

- O paraíso dos voyeurs.

Kay sorriu, mexendo seu café.

Sam bebia o seu aos poucos.

- Stuart não podia ter sido mais simpático. Ele cresceu no mundo do cinema.

- Foi por isso que passei seu livro para ele. Ou melhor, não só por isso. A outra razão é que ele é um bom editor e tem uma mira certeira.

- Eu lhe agradeço muito mesmo. Foi muito importante para mim. Creio que, afinal de contas, foi um erro ter aceitado a bolsa. Você sabe, a bolsa que a Fundação me ofereceu. - Levou à boca a xícara branca com o logotipo da coroa. - Pode-se ficar terrivelmente preguiçoso e comodista quando o dinheiro para pagar a mercearia chega pontualmente, sem falha. Agora, além de estar escrevendo o livro, e sentindo que já escrevo melhor que no começo, estou também dando mais aulas que antes. - Sorriu. - Começo a ter visões de participar de debates na televisão e de voltar a dirigir.

- Isso é ótimo. Espero que se concretize.

Tomaram mais um gole de café.

- Planejamos lançar o livro na primavera. Já escreví oitenta páginas.

- Posso pedir uma coisa em troca?

- O que quiser.

- Uma resposta a uma pergunta pessoal.

- Por que não? Venho sendo assustadoramente franco no livro. Pode perguntar.

- Quando Thea Marshall morreu, ela estava indo ao seu encontro?

Ele recuou, olhando-a com desconfiança.

- De onde tirou essa ideia?

- Ou trabalhar lá onde você estava?

- Não. Definitivamente, não. Eu lhe fiz um convite algumas semanas antes, e ela encerrou a conversa batendo com o telefone na minha cara. - Suspirou, os olhos fixos na xícara. - Nós ficamos brigando e reatando por mais de vinte anos. Durante a maior parte desse tempo ela esteve casada com um homem extremamente rico de quem ela se recusava a abrir mão. Pelo menos nesse aspecto ela sempre foi sincera. Cresceu pobre e tinha pavor de morrer na pobreza. Sabia que comigo correría esse risco, pois eu já bebia demais, ao passo que o marido dela era o presidente da U.S. Steel e quase não bebia. E também era vantajoso para sua carreira. - Aprumou-se na poltrona, meneou a cabeça. - Não, ela não era mulher de arriscar. Estava indo para a casa dos pais, foi isso que os jornais noticiaram. Era de uma cidade chamada Nova Scotia, e provinha de uma família de pescadores. - Tomou mais um gole de café.

- Na época correu um boato de que ela havia arrumado as malas com roupas de verão.

Ele a fitou, sem responder.

- Uma das malas abriu ao cair.

- Quem lhe disse isso?

- Uma pessoa do círculo deles, ou próxima disso.

Sam baixou a xícara, segurando-a com as duas mãos. Colocou-a na mesa.

Manteve a cabeça virada para a frente.

- Filho da mãe... - Coçou a orelha. Olhou para Kay. - Sabe que isso faz sentido? Ele contratou alguém para me tirar de circulação. Pensei que tivesse descoberto algumas das minhas cartas, ou que ela tivesse lhe contado a nosso respeito.

- Tirá-lo de circulação?

- Sim. Um conhecido meu, ligado ao submundo, me avisou. Não acreditei. Foi aí que eu arranjei estas cicatrizes. - Apontou o nariz e a face. - Achei que era uma boa ocasião para viajar. Foi por isso que eu encerrei minha carreira. Em grande parte por isso. - Ficou com o olhar esgazeado. - Filho da mãe. Pensei que ele tivesse exagerado, mas se ela o estava deixando para ficar comigo...

Kay permaneceu em silêncio.

Ele a olhou e sorriu.

- Acredito piamente que o boato era verdadeiro. Por favor, se ouvir algo em contrário, não me conte.

Kay sorriu.

- Ficarei de bico calado.

- Mala com roupas de verão...

- Maios e vestidos leves.

- Agora eu lhe devo dois favores.

Ela lhe perguntou para onde ele viajou naquela ocasião; enquanto terminava o café, Sam falou-lhe de uma comunidade no Novo México onde morou durante quatro anos; pensava, inclusive, em escrever um capítulo sobre essa experiência. Ainda não encontrara um título para seu livro.

- Ouça - disse ele, quando se levantaram -, darei uma fes- tinha na sexta-feira, dia 22, e gostaria que você viesse. Stuart estará lã.

- Viajo para a casa dos meus pais no dia 23 de manhã, mas posso dar uma passada por lá; só não posso me demorar.

- Então está combinado. - Dirigiram-se para a porta. - É às oito horas. Traga seu amigo, se quiser. Pensa que não vi vocês agarradinhos na esquina? Dê-me uma janela no terceiro andar e eu me transformo no próprio abelhudo.

- Todo mundo é assim.

- Diga a ele que admiro o bom gosto que ele tem. Que pena aquilo que aconteceu com Naomi... como era mesmo o sobrenome dela? Singer?

Kay parou junto à porta, olhando para ele.

- A garota que pulou da janela. Ou melhor, a mulher.

Kay olhava-o.

- Epa. Será que falei alguma coisa que não devia? Só os vi juntos uma vez. Comendo, não agarradinhos. No Jackson Hole.

Pegou seu sobretudo do cabide, despediu-se de Sara. Voltou-se para Kay.

- Até dia 22. - Apertou-lhe a mão. - Uma reunião informal. Atores desempregados.

- Tenho certeza de que será divertida.

KAY OLHOU A CÂMERA de vídeo. Virou a cabeça e olhou o cabelo castanho claro de Diane, preto na raiz, e os números que iam mudando acima da porta. Subiu até o vigésimo.

O telefone tocou enquanto guardava o casaco. Pegou Felice e colocou-a no ombro, beijando-a e afagando-a; acendeu a luz da cozinha, pegou o fone antes que o terceiro toque acionasse a secretária eletrônica.

- Alô.

- Oi, meu bem. Aconteceu alguma coisa?

- Você é que pode me dizer. A respeito de Naomi Singer, por exemplo. - Felice pôs-se a ronronar; Kay acariciou-a, beijando- lhe o pêlo macio.

- Não sei de que está falando...

- Naomi Singer. Não pode tê-la esquecido. Devia ter por volta de trinta anos. Trabalhava no Canal Treze.

- Kay, que história é essa?

- Sam esteve na editora hoje. Pediu que lhe dissesse que aprecia seu bom gosto em matéria de mulheres. - Agachou-se, fez um movimento com o ombro e Felice saltou no chão às suas costas. - Ele viu você com ela. - Pôs-se de pé. - No Jackson Ho- le. -- Mudou o fone para o ouvido esquerdo.

- Ah, sim, pode ser. Eu fui lá com ela uma vez... Tínhamos ido a um daqueles concertos de jazz que a Igreja do Repouso Celestial promove nas tardes de domingo e paramos lá na volta. Pensa que foi um grande romance que eu vinha escondendo de você? Não foi, querida. Só saí com ela duas vezes, essa e uma antes. Nossa química não combinou.

- Então por que nunca me contou?

- Não havia nada para contar. Você contou de todos os homens com quem já foi comer hambúrguer? Fisicamente ela era meu tipo ideal, só perdendo para você, e trabalhava na televisão, então falei com ela na sala de correspondência e convidei-a para tomar um drinque no Hanratty’s. Mas nossa química não combinou. Ela era uma pessoa muito deprimida e fechada.

- Vida disse que ela era muito animada. - Viu Felice parada nas patas traseiras, arranhando a cortiça.

- Talvez fosse animada com Vida, mas comigo era deprimida e fechada. Algumas semanas mais tarde ela me ligou, num domingo, convidando-me para o concerto, e eu não vi por que recusar; o dia estava bonito, e achei que seria bom sair um pouco de casa. Ela continuava deprimida e fechada. Esta é a história toda. Algumas semanas mais tarde...

- Devia ter me contado. Não posso entender por que nunca mencionou o assunto.

- Eu não escondi nada, você é que nunca perguntou. Na verdade, Kay, não gosto muito de falar nesse assunto. Sinto que devia ter dado mais atenção a ela, notado alguns sinais, tentado ajudá-la de alguma maneira.

Kay suspirou.

- Você não pode se culpar pelo que aconteceu...

- Eu sei, mas é o que sinto. E por isso que não me agrada remexer nesse assunto. Se Sam quer falar sobre quem fez o que com quem, posso lhe contar de umas aulas de interpretação cujas cenas...

- Não faça isso, Pete. Não quero ouvir. - Com um gesto rápido, pegou a vasilha de água antes que Felice começasse a beber, levou-a até a pia e despejou-a.

- Só estou irritado com ele por tentar criar atrito entre nós.

Kay abriu a torneira.

- Garanto que ele não teve essa intenção. - Lavou a vasilha sob o jato de água.

- Está me parecendo aquilo que você falou: um velho ciumento e hostil.

- Ele nos convidou para uma festa. - Encheu a vasilha de água. - Ele nos viu "agarradinhos" na esquina. Stuart o contratou.

- Contou a ele quem eu sou?

- Não, claro que não. - Colocou a vasilha no chão. - Mas provavelmente vai descobrir. Assim que ele entregar alguma coisa relacionada com sua mãe, Stuart ou Norman ou alguém mais lhe dirá que estou namorando com o filho dela. Por que você mesmo não conta? Acho difícil que ele estabeleça uma relação entre você e a Fundação. - Acariciou a cabeça de Felice enquanto esta bebia água. - E se fizer... bem, talvez fosse bom ele ficar sabendo desse detalhe também.

- Venha até aqui, vamos conversar. Vida já voltou, fez a cirurgia, e Liz está se preparando para receber seu grupo de bate-papo.

- Ah, que pena. - Levantou-se e fechou a torneira. - Esta noite não poderei assistir. Preciso pôr minha leitura em dia.

- Não está zangada comigo, está?

- Não, não. - Tirou os sapatos. - Não posso mesmo, querido. Estou tão atrasada que não dá para acreditar. Foi difícil falar na reunião de hoje, e não gostei nem um pouco. Suba aqui mais tarde, está bem?

- Tudo bem. Te amo.

- Também te amo. Tem alguma coisa para comer aí?

- Muita. Até mais tarde.

Trocaram beijos e desligaram.

ENQUANTO OLHAVA as PALAVRAS no papel, sua mente estava longe, tentando descobrir se não seria mais uma mentira dele. Já estava mais do que provado que Pete sabia mentir como ninguém, com fluência, convicção...

E se a tal química combinara bem, se ele teve mesmo um caso com Naomi Singer? Teria ele a levado ao 13B? Teria ela também ficado viciada em espionar a vida alheia pelo vídeo? Sim, viciada era a palavra certa, viciada... naquele veículo através do qual se via a vida com os olhos de Deus, uma pequena fatia da vida.

Estaria ele a observando agora, sentada à escrivaninha, olhando as palavras sem lê-las? Para ver se ela estava lendo ou dando tratos à bola? Teria ele ligado as alavancas, apertado os botões, colocado sua imagem no 1 ou no 2?

Virou a página...

Estava ficando paranóica.

Exceto que, graças ao avanço tecnológio da Takai, ou Sakai, ou Banzai, ele podería estar realmente a observando, praticamente lendo por sobre seu ombro. Não era à-toa que Hubert Sheer planejara ir ao Japão para fazer sua pesquisa...

Tentou concentrar-se nas palavras. Tao atrasada que era difícil acreditar...

Mais um policial de série. Tenham dó, rapazes, nos poupem...

Leu uma dúzia de páginas datilografadas. Preencheu com tinta azul o formulário da agência: Não serve para nós. Colocou-o de lado.

Sentiu vontade de olhar para o lustre, mas apenas coçou a nuca enquanto pegava outro original.

Conflitos domésticos. Não tão cabeludos quanto os dos Hoffman e dos McAuliff, porém verossímeis, bem escritos, bastante interessantes. O telefone tocou.

Atendeu no segundo toque.

- Alô?

- Quer dizer que não é a secretária eletrônica? Meu Deus, nem acredito.

- Oi, Roxie, Desculpe, mas ando ocupada demais.

- Faço ideia. Como vai ele, o jovem de olhos azuis?

- Ótimo - Estaria ele escutando?

- Adivinhe quem vai fazer uma exposição na Greene Street Gallery em abril!

- Oh, Roxie, é fantástico! Meus parabéns! Conte-me tudo!

Roxie contou, e também falou no acidente sofrido pela mãe de Fletcher, dos seus planos para o Natal e de um filme que tinha visto.

- Você está bem, Kay?

- Sim, claro. Só estou atrasada um ano-luz na minha leitura.

- Por que não conta alguma coisa? Então, tchauzinho. Domingo vamos patinar no gelo, quer vir conosco?

- Vou falar com Pete e depois lhe telefono. Um beijo no Fletcher. - Desligou.

Continuou lendo.

Coçou a nuca.

Tomou um banho de chuveiro.

Viu movimento por trás do vidro embaçado. A porta se abriu e ele entrou nu, sorrindo.

- Surpresa! - exclamou, abraçando-a sob o jato de água, contraindo-se ao sentir a quentura, esfregando-se nela. - Ai, que delícia...

Kay recuperou o fôlego.

- Eu podería passar muito bem essa cena do Psicose.

- Desculpe. - Abraçou-a com mais força, beijando-lhe a face. - Dei uma espiada em você e, quando a vi entrando no chuveiro, pensei: "Ora essa, eu podia subir e tomar banho com ela". Não pude resistir.

- Sabia que você estava me olhando.

- Eu sabia que você sabia. - Sorriu. - Foi isso que me excitou. - Ela virou o rosto; segurando-a pelo queixo, Pete virou- a de frente para ele. - Eu não menti, querida. É verdade. Saí com ela duas vezes, e foi só. Se fosse uma coisa importante, teria lhe contado. Não a culpo por ficar desconfiada, pois já menti muito para você. Mas agora é verdade. Juro. - Beijou-a, envolvendo-a nos braços.

Ela retribuiu o beijo debaixo do jato de água.

Não sabia que ele tinha uma chave mestra, embora devesse ter imaginado. Mesmo os apartamentos em que os inquilinos trocaram as fechaduras, devia haver duplicatas na sala de Dimitri, às quais ele podia ter acesso.

A PRIMEIRA COISA no dia seguinte foi ligar para o departamento de publicidade. Tamiko atendeu.

- Oi, Tamiko, preciso de um favor seu. Podería me arranjar recortes de jornal sobre aquelas mortes ocorridas no meu prédio? Eu gostaria de me informar melhor sobre o assunto. A última foi em outubro, Hubert Sheer, com dois es.

- Um dos bancos de dados que assinamos deve ter tudo isso. Já verificou?

- Nem pensei nisso. Nunca penso.

- É o 1300 da Madison Avenue, certo?

- Sim.

- Vou verificar. Se não encontrar nada, falarei com alguém do Times. Não me custa nada.

- Muito obrigada, você é um amor.

- Ouvi dizer que você está namorando um "gatão" charmoso...

- Somos apenas bons amigos.

Assim que seu visitante das dez e meia saiu da sala, Sara entrou trazendo um grande envelope pardo do departamento de publicidade.

Um maço de papel de computador, dobrado em sanfona, com mais de um centímetro de espessura.

Viu por alto as reclamações da comunidade contra os planos apresentados por Barry Beck para a construção de um prédio de vinte e um andares no 1300 da Madison Avenue; relatos dos movimentos da Civitas e da Associação de Moradores de Carnegie Hill, comícios na Brick Churck, uma batalha de três anos perdida na justiça - metade do maço de papel do computador.

Leu sobre a morte, aparentemente relacionada a consumo de drogas, de William G. Webber, analista financeiro, 27 anos, residente no 1300 da Madison Avenue.

De acordo com as investigações, a morte de William G. Webber era realmente relacionada com o uso de drogas, uma overdose de cocaína, Além de usuário, ele era também traficante; aparentemente confundira a mercadoria pura com a misturada. Felizmente suas duas companheiras ingeriram menos que ele.

Kay saiu às pressas para uma reunião marcada para as onze horas - uma troca de elogios, já que tinha quatro livros na lista de domingo, dois de ficção e dois de não-ficção. June convidou- a para um jantar, "e Peter também, ou qualquer outro que você queira levar", no dia 6 de janeiro, um sábado. Kay agradeceu o convite, dizendo que era mais provável que levasse Pete.

Almoçou com um agente britânico no Perigord East.

Deu ordens a Sara para suspender todas as chamadas.

Leu sobre o mergulho suicida de Naomi Singer do apartamento do 15? andar do prédio de número 1300 da Madison Avenue. O artigo mencionava o ataque cardíaco fatal sofrido por outro morador do prédio um ano antes, Brendan Connahay, 54 anos, e a morte por overdose de cocaína de um terceiro morador, Wil- liam G. Webber, de 27.

Naomi Singer tinha 31 anos e era assistente de produção da WNET-TV. Na quinta-feira de manhã telefonara para a emissora avisando que não ia trabalhar porque estava doente, e se atirara da janela da sala logo depois do meio-dia. Nascida em Boston e formada pela Wellesley, mudara-se para Nova York fazia três meses. Deixou uma carta de uma página escrita à mão, "expressando sua depressão ante os problemas que afligiam o mundo e seus problemas pessoais, e pedindo perdão à família e aos amigos". Não tinha antecedentes de doença mental ou uso de drogas.

Os amigos e colegas de Naomi Singer, 31 anos, que se atirou de uma janela do edifício no 1300 da Madison Avenue, ficaram chocados. O artigo trazia as declarações de uma certa Barbara Ann Avakian: "Embora Naomi estivesse profundamente envolvida com questões ambientais e de direitos humanos, ela era basicamente uma pessoa positiva. Fez muitas amizades no pouco tempo em que morou aqui 1300, e estava entusiasmada com o projeto em que estava trabalhando, um documentário sobre os sem-teto. É difícil entender o que a levou a cometer um ato tão trágico".

Leu sobre a morte de Rafael Ortiz, 30 anos, zelador do edifício de número 1300 da Madison Avenue, cuja cabeça e braço esquerdo foram parcialmente decepados pelas engrenagens do motor do elevador enquanto fazia a manutenção de rotina, na terça-feira de manhã. Acidentes deste tipo eram raros e quase sempre relacionados com uso de drogas ou álcool, segundo as declarações de um representante do fabricante dos elevadores. A morte do sr. Ortiz era a quarta ocorrida no prédio em pouco mais de dois anos. Ele deixou mulher grávida de dois filhos.

A autópsia de Rafael Ortiz, 30 anos, parcialmente decapitado pelas engrenagens do elevador do edifício de número 1300 da Ma- dison Avenue, não revelou sinais de uso recente de drogas ou álcool.

Edgar P. Voorhees, o advogado representante da 1300 Madison Avenue Corporation, recusou-se a comentar o rápido acordo feito fora da justiça com a viúva de Rafael Ortiz, que abrira um processo de 10 milhões de dólares contra os proprietários do malfadado prédio do Upper East Side...

Leu sobre a morte de Hubert Sheer, 43 anos, encontrado morto no box do banheiro do seu apartamento, no 1300 da Madison Avenue. Autor de The Worm in the Apple, artigo para revistas, professor na Columbia e na Universidade de Chicago, lutou na Guerra do Vietnã. Deixava pais e irmãos.

Leu as declarações de Martin Sugarman: "Ele estava trabalhando no que certamente viria a ser um magnum opus, uma visão geral e uma análise do passado, presente e futuro da televisão. A morte dele é uma perda não só para aqueles que o conheciam, como para toda a sociedade, que sem dúvida se beneficiaria com suas ideias".

A autópsia de Hubert Sheer, 43 anos, revelou que ele morrera afogado no chão do box enquanto estava inconsciente em conse- quência da pancada sofrida na cabeça durante a queda. Amarrara um saco plástico no pé direito, que estava engessado em decorrência de um acidente de bicicleta que sofrerá na semana anterior. A morte ocorreu na noite de 23 para 24 de outubro, e foi a quinta em três anos no edifício 1300 da Madison Avenue, conhecido como "Edifício do Terror".

Fechou o maço de papéis e apoiou as mãos espalmadas sobre ele, uma ao lado da outra. Tamborilou com os dedos num ritmo lento.

Já editara dezenas de livros de suspense e terror, não podia se esquecer disso.

Quedas fatais na vida real eram quase sempre acidentais, principalmente no chuveiro.

A longa carta manuscrita de Naomi Singer não podia de maneira alguma ser forjada.

Ou podia?

Ficou olhando as mãos que tamborilavam sobre o maço de papel.

Ligou para Sara e pediu uma ligação para Martin Sugarman.

Passou o polegar pelas dobras de papel.

Livros de terror e suspense em demasia...

- Olá, Kay!

- Olá, Martin. Como vai?

- Bem, obrigado. Meus parabéns, vocês devem estar andando sobre nuvens!

- Obrigada. Não vejo ninguém por aqui reclamando. Martin, acabei de reler alguns artigos falando da morte de Hubert Sheer...

- Sim?

- Você sabe, por acaso, se ele ia visitar uma fábrica japonesa chamada Takai ou Sakai? De câmeras de vigilância. Dizem que são as melhores que existem.

- Tenho uma lista dos compromissos que ele havia marcado. Guardei todos os papéis dele relacionados com o livro, vou arranjar um outro autor para escrevê-lo. Por que pergunta?

Kay respirou fundo.

- Estou pesquisando as cinco mortes ocorridas no prédio. Isso pode dar um livro. Podería, por favor, dar uma olhada nessa lista para mim? Eu lhe agradecería muito.

- Claro, sem dúvida. Aguarde na linha.

Kay recostou-se na poltrona, olhou pela janela. Viu luzes acendendo no prédio envidraçado do outro lado da rua.

Livros de suspense em demasia...

- Minha secretária já foi pegar a lista. Kay, quando me lembro de alguns dos livros que você já editou, não ficaria surpreso se você achasse que essas mortes podem ser de fundo criminoso.

Mas posso lhe dizer, desde já, que está perdendo seu tempo, pelo menos no que se refere à morte de Rocky.

- Por que diz isso?

- Acontece que, quando ele escorregou no boxe, bateu com a cabeça no registro do chuveiro com tanta força que perdeu a consciência; caiu de bruços, com os joelhos dobrados, o rosto virado para baixo, e respirou água para dentro dos pulmões, morrendo afogado. Não há a menor dúvida que foi isso que aconteceu; o ferimento na cabeça corresponde exatamente ao registro do chuveiro. É um registro de desenho diferente, você deve saber, pois deve ser igual ao do seu banheiro, e não existe a menor possibilidade de que alguém o tivesse dominado e batido com sua cabeça contra o registro a ponto de deixá-lo inconsciente; ele era um homem forte, saudável, apesar do tornozelo machucado. E não havia ninguém lá com ele, ele não teve visitas naquela noite e a porta não foi forçada. - Ouviu-se um farfalhar de papéis. - A lista já está na minha mão. Como é mesmo o nome que você falou?

- Takai ou Sakai. Ou algo parecido.

- Takai ou Sakai... Sim, aqui está: a Companhia Takai... T, A, K, A, I... em Osaka. A visita estava marcada para 31 de outubro, terça-feira, às oito horas da manhã. Oito da manhã! Não admira que eles consigam realizar tanta coisa. Ele fez uma anotação aqui: "Camsalta res"; deve ser câmeras de alta resolução. E tem mais: "Inst res sob ene".

- Instalações residenciais sob encomenda...

- Sim, deve ser isso. Por que está perguntando especificamente sobre esta empresa?

Ela não respondeu.

- Kay?

- É muito complicado para explicar. Obrigada, Martin.

- Você ouviu o que eu disse? Foi um trágico acidente, nada mais que isso.

- Ouvi.

- Cumprimente Norman e June por mim, sim?

- Pode deixar. E obrigada mais uma vez, Martin. Até logo.

Desligou.

Certamente o deixara com sérias dúvidas quanto a sua saúde mental.

Ela própria já estava duvidando da sua sanidade.

Pensar que alguém podia tirar o registro cromado de um dos chuveiros do 1300 da Madison Avenue, provavelmente com auxílio de uma chave de fenda, e... amarrá-lo ou prendê-lo de alguma maneira a uma barra, ou um bastão de beisebol, ou coisa que o valha...

Pete? Petey? Seu neném? Seu amado?

Não, nunca, ele não seria capaz.

Ele podia mentir, sim - o que não era nada demais, sendo filho de uma atriz e de um alto executivo empresarial. Mas mentir era muito, muito diferente de matar. Matar era...

Matar era um evento muito importante...


10

Ficaram vendo os Wagnall e os Baker. Os Ostrow e o homem da semana da Companhia Yoshiwara com seus convidados.

Kay observou-o enquanto ele olhava as imagens.

Pete olhou-a de relance.

Ela sorriu, dizendo:

- Sabe que eu não me importaria de dar uma olhada?

- Em quê?

- Nós dois.

Ele abriu um largo sorriso.

- Pensei que nunca fosse pedir. - Beijaram-se. - Não saia daqui.

Girou na poltrona, levantou-se, encaminhou-se para o vestíbulo.

Ela também girou e deslizou a poltrona de lado, batendo na dele; viu-o atravessar o vestíbulo e entrar no quarto. A luz se acendeu enquanto ele passava por entre as caixas de papelão e tudo o mais; então ele virou à esquerda e saiu da sua linha de visão.

Kay voltou-se para os controles; tomou o botão 13A na fileira do meio e a tecla 2.

A imagem de Pete surgiu na tela do 2, movendo-se na penumbra, no canto inferior da tela, Ele acendeu a luz do seu quarto bagunçado, fechou a porta. Virando-se para a parede, abaixou-se entre a porta do quarto e a primeira porta do armário e fez um movimento como se levantasse alguma coisa.

Sua cabeça e ombros não permitiam ver o que estava fazendo.

Levantou-se e virou de frente, segurando uma fita de vídeo na mão.

Kay apertou outro botão e a tecla 2, a mão trêmula. Ajudou com a mão esquerda. Viu os Gruen jogando bridge com dois homens.

Passou os olhos pelos monitores. Viu Denise discutindo com Kim na sala de estar do 15B, colocou-os no master 1.

- ... meu emprego, não vou me arriscar a perdê-lo por uns míseros quinhentos dólares! - disse Denise, jogando o guardanapo na mesa, levantando-se e indo até a janela. - Pensa que sou idiota?

- Agora é que você vai ver um filme bom - disse Pete, entrando na sala. Kay fez um gesto com a mão, pedindo-lhe para esperar.

- Por que não usa a cabeça, Denise, só para variar? - disse Kim, colocando creme no seu café.

Pete sentou-se e tirou a fita de dentro da capa preta.

- Você podería ganhar uns quatro ou cinco mil - disse Kim. - Até mais. E sem imposto. Dá licença de eu fumar um cigarro?

Ficaram vendo Denise e Kim.

Os Baker, os Cole.

Pete apertou um botão no videocassete da direita, introduziu a fita, apertou outros botões e acionou uma alavanca no painel central.

A imagem de ambos surgiu no 2.

- Meu Deus, como estou gorda - exclamou Kay.

- Não, não está. Você está gostosa...

- Ah, querido, isso é tão bom - dizia ela, deitando-se na cama, a mão dele acariciando-lhe o seio direito, uma cabeça sobre a outra.

Ele segurou o braço dela; ela levantou-se, sem tirar os olhos da tela; sentou-se no colo dele.

Ficaram vendo Pete e Kay,

ELA DECIDIU PASSAR O dia seguinte, uma sexta-feira, trabalhando em casa. Não era o que planejara, mas sentia-se cansada demais para levantar cedo.

- Hoje à tarde preciso sair - disse Pete, apoiando o cotovelo no balcão, observando o pãozinho que esquentava no microondas e Felice parada sobre as patas traseiras, cheirando os armários.

- Ainda bem - respondeu Kay, servindo o café. - Eu preciso mesmo trabalhar. Aonde vai?

- Ah,.. ao centro. - Sorriu. - Compras de Natal. Ninguém que você conheça.

Ajudou-a a arrumar a cozinha. Beijaram-se à porta.

- Ligue para mim antes de sair - pediu Kay.

- Tem amo.

- Também te amo, Pete. - Olhou-o no fundo dos olhos.

Beijaram-se mais uma vez.

Kay ligou para Sara, pedindo-lhe que cancelasse seus compromissos e os transferisse para outro dia.

- Você está bem?

- Sim, claro. Só estou atrasada com meu trabalho, mais atrasada do que imaginava.

Sem mencionar que estava ficando paranóica.

E sem ter feito uma compra sequer de Natal.

Ficou sentada à escrivaninha, lendo. Felice dormia na cama.

Ele ligou à uma e trinta e sete.

- Como vai seu trabalho?

- Bem. Já dei uma boa adiantada.

- Más notícias. Aliam foi despedido.

- Droga. Aqueles desgraçados...

- Demitiram praticamente o departamento inteiro.

- Como ele reagiu?

- Ele está bem; Babette ficou histérica. Estou saindo. Devo voltar lá pelas cinco.

- Eu estava pensando em descer para ver um pouco de vídeo enquanto tomo um iogurte...

- Então venha. Deixarei a chave para você atrás do espelho.

- Acho que vou.

- Você sabe ligar a aparelhagem, não sabe?

- Sei.

- Até mais. Um beijo.

Ela retribuiu o beijo.

- Te amo - disse Kay.

- Também te amo, - Outro beijo. Mais curto.

Ela desligou.

Ficou olhando a página a sua frente.

Tentou mais uma vez pensar num presente para ele. Quem sabe, alguma coisa para pendurar naquelas paredes nuas.

Leu por alguns minutos, apagou a luminária, ligou a secretária eletrônica. Foi ao banheiro e lavou-se. Pegou as chaves.

Disse a Felice que voltaria logo.

Desceu pela escada até o décimo terceiro.

Olhando-se no espelho do hall, achou que sua aparência até que não era das piores, levando-se em conta as circunstâncias. Afastou da parede a parte inferior da moldura dourada. A chave caiu fora da sua mão em concha e bateu no console, deixando uma marca na superfície laqueada. Ela molhou o dedo na ponta da língua e esfregou a superfície, mas a marca não saiu.

Abriu o 13B e entrou.

Acendeu a luz do vestíbulo enquanto trancava a porta; guardou a chave no bolso.

Olhou as telas dos monitores, cinzentas e reluzentes, a cozinha, as portas entreabertas do banheiro e do quarto.

Foi até o quarto e escancarou a porta. As frestas das venezianas deixavam passar a luz do sol, iluminando a bancada de trabalho com suas ferramentas e monitores desmontados, o revestimento metálico do transformador no canto ao lado da janela, o aparelho de remo, caixas de papelão, retalhos de madeira...

Foi até o armário e abriu as portas sanfonadas centrais. Enfiou a mão e abriu a porta secreta de comunicação. Entrou no armário e, passando por entre roupas penduradas e outra porta sanfonada, saiu no quarto azul e marrom de Pete. A veneziana estava aberta quase até o alto, e os painéis da janela tinham uma fresta aberta de cada lado.

Correu os olhos pelo quarto com roupas espalhadas por todos os lados.

- Pete? - chamou.

Foi até a porta, de onde viu o vestíbulo e parte da sala - a lateral do sofá de couro, o céu azul por sobre o parque.

Fechou a porta. Virou-se para a parede e agachou-se.

Apalpou o assoalho. Os tacos estavam firmes. Empurrou, pressionou; nada deslizou ou cedeu.

Tentou o rodapé - de cerca de dez centímetros de altura e pouco mais de meio metro de comprimento - segurou-o com firmeza e puxou. Ele continuou firme, mas uma fina fresta separou-o da parede branca. Pressionou um lado do rodapé, depois o outro.

Então lembrou-se do movimento que Pete fizera. Puxou-o para cima.

A ripa se soltou e saiu, deslizando por linguetas de metal fixadas na moldura do armário e do batente da porta.

Colocando a ripa no chão, puxou uma alça de metal que viu dentro da abertura, tirando uma grande gaveta de metal acinzentado. Dentro dela havia cédulas de cem e quinhentos dólares, cinco maços ao todo - três de cem, dois de quinhentos. Uma caixa de couro marrom do tamanho de uma caixa de charutos, envelopes pardos. Fitas de vídeo.

Três fitas em capas pretas, dispostas uma ao lado da outra, sobre uma outra camada de fitas.

Pegou uma delas; viu um K escrito à mão na etiqueta da lombada.

A outra fita, marcada com um K2, era a mesma que eles haviam visto na noite anterior; pegou-a também. A terceira fita estava marcada com um R. Rocky?

Na camada inferior havia quatro fitas: N, N2, N3 e B.

Ficou confusa, até lembrar que William G. Webber, de 27 anos, era Billy Webber.

Permaneceu ali agachada, olhando as fitas que tinha nas mãos.

Temendo que sua paranoia não tivesse nada de paranoia.

ELE DEVERIA ter saído mais cedo, com mais de vinte minutos de antecedência, pois era sexta-feira e faltava pouco mais de uma semana para o Natal; estavam passando pela rua 72 e o relógio já marcava 1:55.

Mas também, pudera, aquele era um táxi "xadrez", uma peça de antiguidade com espaço à vontade e um assento dobrável para apoiar os pés. Ia tranquilo, ouvindo rádio. Chegaria atrasado, e daí? Eles que esperassem...

Estava a caminho da Pace Gallery, onde deveria fazer uma escolha entre dois Hoppers. Em seguida, à Tiffany.

Sorriu, os pés apoiados no banco, as mãos cruzadas no colo.

Era bom imaginá-la vendo vídeo sozinha. Sua amada divertindo-se com sua outra paixão...

Quem podería imaginar que ele teria uma mulher com quem podería compartilhar aquela paixão, deixá-la em suas mãos com plena confiança? Uma mulher tão perfeita, tão adorável. Fizera bem em se arriscar revelando-lhe seu segredo. Suspirou. Haveria alguém com mais sorte que ele?

E poucos dias atrás, graças a Sam, aquele filho da mãe, sentira-se à beira do abismo. Que sufoco quando ela, sem mais nem menos, lhe perguntara de Naomi. Puta merda!

Graças a Deus conseguira convencê-la de que não estava escondendo nada. Na noite anterior tivera a prova final, quando ela se mostrara tão aberta e participante, querendo ver a fita de ambos na cama, tão concentrada enquanto assistiam...

Duas coisas inéditas para ela: vê-los juntos no vídeo, e agora assistir sozinha...

Tirou bruscamente os pés do banco.

Aprumou-se no assento, um frio no estômago.

Virou-se para a janela. Um doberman olhou-o da janela aberta de uma limusine preta que passava ao lado, as patas apoiadas na borda da porta.

Virou-se para o outro lado. Viu o Museu Frick passando ao lado...

Podería ela tê-lo visto enquanto pegava a fitava de vídeo?

Claro que podia, idiota.

Seria esta a razão de ela ter pedido para ver vídeo sozinha? Te- ria adivinhado a verdade sobre Naomi; toda a verdade? E adivinhado também -- esperta como era - que ele gravara o que aconteceu e guardara a fita junto com a deles dois?

Estava vendo "vídeo ao vivo" sozinha numa sexta-feira em que ficara em casa, outra coisa inédita - e seu compromisso daquela tarde estava anotado no bloco: o endereço, o dia, a hora. Não escrevera Pace Gallery exatamente porque ela podería ver e talvez adivinhar o que ele ia lhe dar de presente.

Merda. No auge dois minutos atrás, e agora aflito, novamente paranóico.

Inclinou-se para a frente, forçando a vista através da divisão de plástico embaçado e do pára-brisa, contemplando as quatro filas de táxis e ônibus que se arrastavam pela Quinta Avenida.

- O trânsito hoje está infernal - comentou.

- Estamos em estado de atenção - respondeu o motorista.

Pete respirou fundo, meneando a cabeça.

- Esta cidade não tem jeito.

Recostou-se no banco.

Apoiou os pés no banco dobrável. Contemplou seu tênis, de um lado e de outro.

Brincou com a franja do cachecol de lã, ficou escutando o rádio. Sentia-se gelado por dentro.

A maneira como ela olhara suas mãos quando ele colocou a fita para rodar...

Estaria ela colocando uma fita naquele exato momento? A N3? Buzinas tocavam. O trânsito congestionado.

- Quer cortar caminho até a Park? - perguntou o motorista.

Kay AVANÇOU A FITA em ritmo acelerado; o banheiro estava deserto, a bengala encostada na porta do boxe. No alto da tela passou um vulto.

Voltou a fita.

Apertou o play.

O banheiro estava deserto, a bengala encostada na porta do boxe, o barulho do chuveiro aberto. Um par de pernas, de jeans e tênis, passaram pelo vestíbulo, da direita para a esquerda.

Voltaram, dobraram-se,

Ela congelou a imagem de Pete.

Agachado diante da porta, usando uma camisa listada de rúg- bi, a mão abaixada à frente, como se fosse jogar cara-ou-cora.

Olhou-o atentamente - e deixou que a fita prosseguisse. Ele arremessou alguma coisa e levantou-se. Virou-se para o lado e sumiu de vista.

Ela observou o banheiro deserto. Não conseguiu identificar o que ele jogara no chão preto do banheiro, a poucos passos da porta, junto do capacho. O que quer que fosse, ele estava no apartamento de Hubert "Rocky" Sheer. Prestes a matã-lo.

Pete. Seu menino, seu amor.

Fechou os olhos.

Abriu-os. Viu a porta do boxe abrir, a mão de Sheer pegar uma toalha.

Acelerou a fita até o ponto em que, com a toalha enrolada na cintura, ele saiu do boxe com o pé engessado envolto em saco plástico, pegou a bengala e passou-a para a mão direita. Deu um passo à frente e parou no capacho, abaixando a cabeça. Apoiando-se na bengala e dobrando a perna esquerda, enquanto a direita elevava-se para trás, estendeu a mão para pegar alguma coisa no chão. Virou subitamente a cabeça na direção da porta quando Pete, com as duas mãos, golpeou-o com uma barra. Kay tirou o som, fechou os olhos, empurrou a poltrona para longe do console.

Apertou as mãos, uma dentro da outra, mordendo a junta do polegar.

Fora ele o autor das outras mortes também, só podia ter sido ele; temera que Sheer, que associava muito bem os fatos... associasse os fatos.

Abriu os olhos e deparou com o brilho azulado dos monitores da esquerda. Chris e Sally, Pam, Jay, Lauren. Um homem desconhecido no sofá do dr. Palme.

Respirou fundo.

Olhou a imagem do master 2. Sheer jazia de bruços no chão e Pete estava debruçado sobre sua cabeça, as pernas abertas por sobre suas costas. Um halo de luz cintilou em torno da cabeça de Sheer - uma bacia de metal sob seu rosto.

Ele o estava afogando...

Kay parou a fita e tirou-a do aparelho de vídeo, deixando-a ao lado da respectiva capa.

Olhou as outras fitas que deixara empilhadas sobre o console, seis ao todo.

O relógio digital marcava 2:06. Tinha tempo de sobra para dar uma olhada na N3 e na B; àquela altura ele mal tivera tempo de chegar ao lugar onde ia, na Rua 57.

Mas não, podería voltar mais cedo e pegá-la com a mão na massa, como acontecia nos livros de suspense, e tudo iria por água abaixo. A polícia que examinasse a N3 e a B mais tarde; agora era hora de sair dali, levando as fitas para fora do apartamento e do prédio. Deixaria um bilhete simples, comum, para que ele não entrasse em pânico e tentasse fugir, ou fazer algo pior.

Ele era louco. Só podia ser. Um sociopata, apesar de seu charme, seu humor, o amor que lhe devotara - e ele a amava de verdade, tinha certeza disso. As mortes deviam ter advindo da necessidade de manter as câmeras em segredo. Proteger seu brinquedo de seis milhões de dólares - seu bebê - do qual ela tão prontamente concordara em compartilhar.

Abaixou a cabeça, massageando as têmporas.

Aprumou-se na poltrona, passou os dedos pelo cabelo, puxando- o para trás, suspirou.

Contemplou as fitas.

Num movimento brusco para a direita, empurrou a poltrona dele para longe; abriu a última gaveta e pegou sete fitas.

Trocou as capas das fitas, pensando apenas no que escrevería no bilhete e onde ficava a delegacia de polícia do distrito, não na prisão dele e no sensacionalismo que o caso geraria nos veículos de comunicação, as manchetes, os microfones, a exposição em público. Conferiu duas vezes as etiquetas das fitas K e K2, pois estas não iriam para a polícia, ficariam guardadas em seu apartamento para serem destruídas mais tarde. Marcou com a caneta as capas em que elas agora estavam.

Pegou a pilha de fitas trocadas e dirigiu-se ao quarto; passou por dentro dos armários e entrou no quarto de Pete.

Abaixando-se, guardou as fitas na gaveta exatamente como as encontrara: as N e a B por baixo, asKeaR por cima, arrumando em seus devidos lugares a caixa de couro, os envelopes, os maços de dinheiro.

Deu uma espiada na caixa de couro - moedas de ouro, dispostas em conjuntos. Fechou a caixa, recolocou a gaveta no lugar. Recolocou também o rodapé, ajustando-o com firmeza rente ao chão.

Levantou-se e abriu a porta, inconformada por constatar até que ponto o dinheiro dele, aquele dinheiro jamais mencionado, suavizara seu julgamento e bom senso, fechara-lhe os olhos a fatos que normalmente teria detectado.

Voltou para o 13B, fechando atrás de si as três portas: a porta sanfonada do armário do quarto dele, a porta de comunicação e a porta sanfonada do outro armário.

Atravessou o vestíbulo, entrou na sala e sentou-se diante do console. Guardou as fitas comprometedoras nas capas trocadas. Pegou o bloco, virou a primeira página, pegou a caneta. Franziu o cenho, pensativa. Uma reunião de última hora, na qual sua presença era indispensável? Ele podería desconfiar...

Olhou para o alto, procurando uma desculpa melhor - viu Pete no elevador número 2, de sobretudo e cachecol listado, e uma mulher. Arregalou os olhos. Passou a imagem para o 2; nada apareceu; acionou outra alavanca.

Ele estava no elevador, parecendo sentir dor, esfregando a nuca, o sobretudo desabotoado. A empregada dos Stangerson deu um passo â frente, pronta para sair. No décimo.

Largou a caneta, abriu a gaveta, pegou as fitas e guardou-as junto com as outras. Fechou a gaveta, arrumou as poltronas, o bloco, colocou o dr. Palme no 1, ligou o som, dirigiu-se ao vestíbulo; voltou para fechar e desligar o aparelho de vídeo, correu para o vestíbulo; abriu a porta quando ele saía do elevador.

- O que aconteceu? - perguntou.

Ele fez uma careta de dor, esfregando a nuca.

- O táxi em que eu viajava teve um acidente. - Sua voz estava trêmula.

- Oh, meu Deus. Você está bem? - Deu um passo à frente.

- Não sei. - Aproximou-se dela enquanto a porta do elevador fechava. - Acho que sim. Fui jogado de um lado para outro e comecei a ver tudo dobrado, mas agora está melhorando. - Piscou repetidamente.

- Machucou o pescoço?

- Sim, um pouco.

Ela virou-o de costas a fim de examiná-lo. Ele tirou o cachecol enquanto ela lhe apalpava o pescoço,

- Suas mãos estão trêmulas, Kay.

- Percebi que havia algo errado quando você ainda estava no elevador. Só pelo feto de você ter voltado tão cedo. Como foi o acidente?

- Um sujeito saiu de uma vaga sem olhar; nós batemos nele. Na Quinta Avenida, perto da Rua 79. Um motorista de Nova Jersey, claro. Como eu estava num táxi "xadrez", fui jogado para todos os lados. - Sacudiu a perna, inspirou por entre os dentes cerrados.

- Que horror... - disse Kay, esfregando-lhe a nuca.

- O carro era um Mercedes novinho em folha.

- Alguém se feriu com gravidade?

- A passageira do carro. A perna dela foi esmagada.

- Você devia ir ao médico e fazer um exame completo. Pete virou-se.

- Se amanhã eu ainda estiver sentindo alguma dor, irei.

- Você tem alguém aqui, em Nova York?

Ele assentiu.

Kay pegou na lapela do sobretudo.

- Coitadinho do meu Pete... - Sorrindo, tomou-o nos braços. Ele a abraçou.

- Eu devia ter parado em algum lugar e descansado um pouco antes de voltar. Foi burrice ter vindo direto para cá.

- Não, você fez bem.

Trocaram um sorriso.

Beijaram-se.

ENTRARAM no 13B. Ele fechou a porta.

-- Já tomou seu iogurte? - perguntou, tirando o sobretudo. Fez uma careta de dor.

- Cuidado... - Ajudou-o por trás. - Não; acabei de descer. Norman telefonou logo depois de você. Preciso ir até lá daqui a pouco.

- Precisa? - Virou-se e pegou o sobretudo das mãos dela.

- Eu ia deixar um bilhete. Ele marcou com Anne Tyler para estar lá às quatro, e quer que eu esteja presente. Parece que ela não está satisfeita com a editora para a qual trabalha.

- Seria bom tê-la trabalhando com vocês. - Esfregou o ombro.

- Seria mesmo. Norman acha que é uma boa oportunidade. Ele e June a conhecem há anos. - Foi até a cozinha.

- Traga um para mim também, querida.

Ela abriu a geladeira.

- Limão ou framboesa?

- Framboesa. O doutor Palme tem um paciente novo.

- Eu sei. - Pegou dois iogurtes, fechou a porta da geladeira com o cotovelo, pegou duas colheres e guardanapos.

Quando voltou para a sala, ele estava sentado na poltrona, segurando o telefone junto ao rosto.

Sorriu quando ela colocou o iogurte, a colher e o guardanapo a sua frente.

- Aqui é Peter Henderson. Eu tinha um horário marcado para as duas horas... Certo.

Kay sentou-se, colocando sua colher e o guardanapo no console, observando as imagens dos masters.

- Acontece que eu sofri um acidente - prosseguiu Pete, prendendo o telefone com o ombro. - A caminho daí, fiquei um tanto abalado. Podemos transferir o encontro para segunda-feira, no mesmo horário?

Abriram os copinhos, os olhos fixos nos masters. Dr. Palme estava falando:

- Se é uma coisa tão inconsequente, por que está aqui?

- Foi ideia de Linda - respondeu o homem deitado no divã.

- Melhor ainda - disse Pete. - Lamento não ter podido ir hoje. Até logo. - Desligou. Fez uma anotação no bloco. - Uma loja que vende pinturas sobre veludo.

Kay soltou um assovio.

Tomaram o iogurte vendo as imagens do dr. Palme, Lauren, Jay, os Hoffman.

- Preciso ir andando - disse Kay, levantando-se. Recolheu os copos, colocando dentro deles as colheres e os guardanapos, pegou as tampas. - Tem certeza de que está bem?

- Estou, sim. - Tirou a mão da nuca.

- Está enxergando bem?

Ele assentiu.

- Devo voltar lá pelas seis, a menos que eles resolvam sair para tomar alguma coisa. - Inclinou-se e beijou-lhe a cabeça. Ele levantou o rosto. Beijaram-se nos lábios.

Ela foi para a cozinha, jogou os copos e os guardanapos no lixo, lavou as colheres e colocou-as no escorredor. Voltou ao vestí- bulo, abriu a porta.

- Ah, a chave.

- Fique com ela, querida - disse Pete, girando na poltrona. - Tenho uma de reserva.

Com a mão no bolso, contemplou o vulto de Pete sentado diante das telas iluminadas, o lustre verde-mar.

- Merci. Me parece justo, já que você tem a chave do meu apartamento.

- Foi o que pensei. - Mandou-lhe um beijo. - Espero que tudo corra bem.

- Obrigada. - Retribuiu o beijo. - Seria bom você tomar um banho de imersão. Um banho bem quente e demorado, senão mais tarde ficará todo dolorido.

- Tem razão. Já vou, mas antes quero ver a reação de Jay.

Trocaram um sorriso. Kay abriu a porta e saiu, fechando-a atrás de si.

Dirigiu-se aos elevadores, apertou o botão de subida. Respirou fundo.

Estaria ele mentindo outra vez? Teria voltado por medo de deixá-la ali sozinha? Mas nesse caso não lhe teria deixado a chave, tampouco a daria a ela agora. É muito fácil para o rei dos mentirosos inventar desculpas...

Mas ele parecia mesmo abalado. E voltar correndo para os braços da mamãe fazia sentido psicologicamente. Graças a Deus não ficara vendo as fitas por mais tempo e guardara a gaveta do rodapé. As fitas estavam bem guardadas no lugar trocado; era pouco provável que ele pegasse uma delas para assistir.

Provavelmente tinha mesmo ido a uma galeria de arte quando ocorreu o acidente; a Rua 57 era cheia de galerias. Com certeza pretendia comprar-lhe um Hopper ou um Magritte. Suspirou, meneando a cabeça.

Sorriu para a câmera no elevador.

O que tinha a fazer era manter a calma e agir como se fosse mesmo se encontrar com Norman e Anne Tyler. Não fazer nada que o deixasse desconfiado caso a estivesse observando. Ligar para 911 estava fora de cogitação - ele podería chegar ao seu apartamento antes que a polícia atendesse. Uma confrontação era a última coisa que desejava.

Felice roçou em seu tornozelo assim que fechou a porta.

- Oi, amor - cumprimentou-a, pegando-a no colo; beijou- lhe o focinho e colocou-a no ombro, acariciando-a enquanto ia para o quarto. A luz vermelha da secretária eletrônica estava piscando - visível nos masters. Caso ele estivesse vigiando.

Colocou Felice na cama e foi até a escrivaninha. Uma única mensagem, registrava o indicador do aparelho. Apertou o botão para ouvir a gravação, rezando que não fosse Sara estragando tudo.

Uma funcionária do Bloomingdale’s informava que a mesinha que ela encomendara só seria entregue dentro de duas semanas; pedia desculpas pelo atraso.

Ligou o rádio, foi até a janela. Contemplou o céu cinzento por sobre o parque. Felice, no peitoril da janela, roçou em seu joelho; afagou a cabeça da gata. O rádio noticiou um tiroteio no metrô. Foi até o armário, desabotoando a camisa. Abriu a porta san- fonada.

Escolheu o vestido de lã azul - apropriado para receber Anne Tyler, apropriado para ir à polícia. Estendeu-o na cama, afastando Felice. Pegou uma meia-calça, uma combinação, um sutiã.

Um banho?

Ficaria ele cismado se ela saísse sem tomar banho? Acharia estranho?

Se estivesse vigiando.

Ficaria desconfiado a ponto de conferir suas fitas? As fitas, não as capas? Provavelmente não. Mas se o fizesse, podería parar o elevador no 13 quando ela estivesse descendo...

Kay despiu-se. O locutor falava da nevasca que se aproximava, vinda do oeste da Pensilvânia, de dez a vinte centímetros de neve. Desligou o rádio.

Entrou no banheiro. Vestiu a touca de banho. Felice remexia em sua caixa de granulado.

Estendeu o braço para dentro do boxe e abriu o registro do chuveiro - um registro cromado, estilo art dêco. Certamente fora um registro igual àquele, retirado do 13A ou 13B, a peça que vira brilhando na ponta daquela barra. A polícia provavelmente encontraria as marcas nele, ranhuras microscópicas.

Experimentou a água, aumentou o fluxo da água quente.

Entrou no boxe, fechou a porta.

Seria um banho rápido. Enquanto se esfregava, não se conformava com a ideia de que o Pete que ela amara - ainda amava, odiava, sentia pena - pudesse ser o mesmo Pete que desferira aquele golpe brutal, afogara Sheer ali no chão do banheiro...

Ele devia ter passado horas colocando tudo em ordem - tudo gravado em videoteipe. Um evento muito importante - na noite anterior àquela gloriosa manhã em que ela fora passear em volta do reservatório e encontrara Sam por acaso; ele, sim, é que ficaria pasmo quando soubesse da história toda. Um movimento do lado de fora da porta embaçada?

Passou a mão pelo vidro e espiou - o banheiro deserto.

Imaginação sua.

Enxaguou o corpo. Calmamente. Preparava-se para um encontro com Norman e Anne Tyler. June também, claro.

Abriu a porta, pegou a toalha.

Enxugou-se, tirou a touca de banho, pendurou-a na maçaneta; saiu do boxe. Nada no chão junto ao capacho.

Terminou de se enxugar junto à pia olhando sua imagem no espelho, não o lustre às suas costas.

Foi para o quarto, sentou-se na cama e vestiu a meia-calça; levantou-se, puxou-a até a cintura, alisou-a nas pernas. Vestiu o sutiã, ajeitou os seios; foi até a janela, abotoando o fecho às suas costas.

Ficou olhando o céu cinzento, arrumando o sutiã. Nevaria dentro em pouco, o locutor estava certo. O reservatório encrespado pelo vento, alguns corredores na pista que o circundava.

Foi até a ponta da janela, puxou o cordão da cortina. As partes de chintz verde e branco juntaram-se no meio, roçando no peitoril ocupado apenas pelo telescópio.

Voltou ao banheiro, passou um mínimo de maquiagem. Devia ter dito que ia ajudar Roxie a mudar os móveis de lugar...

Pensou no caos que teria de enfrentar, o julgamento, a voracidade das piranhas dos veículos de comunicação, mordendo não só Pete mas a ela também, a mulher mais velha enganada por um homem tão mais jovem. Deus do céu, a simpatia hipócrita de homens e mulheres, os risinhos às suas costas. Gostaria tanto de falar com Roxie... ("Tenho um problema, Rox, Pete é um assassino"). Ouviu o som de sirenes se aproximando, subindo a Madison. O barulho ficou mais alto, passando diante do prédio; um som intermitente, composto de dois toques, um grave e outro agudo, motores vibrando.

Voltou para a sala, escovando o cabelo. Aproximou-se da janela e, apoiando a mão no centro da esquadria, encostou a testa na vidraça.

Luzes vermelhas piscavam lá embaixo, do outro lado da avenida, carros do Corpo de Bombeiros parados na frente do Wales, homens correndo para dentro do prédio.

Passou os olhos pela fachada do hotel e pelo telhado - nem fumaça nem fogo.

Provavelmente um alarme falso. Ótimo, serviría para distraí-lo.

Foi até o canto da janela e puxou o cordão da cortina. As partes de seda branca se juntaram no meio, roçando no peitoril.

Cruzou mais uma vez a sala, entrou na cozinha para apertar a torneira, foi ao banheiro.

Enquanto terminava de arrumar o cabelo, veio-lhe à mente que o caso daria um livro - e era uma pena que a Diadem não tivesse um escritor para crimes verídicos. Todavia... quisesse ela ou não, como participante importante da história, estaria em excelente posição de barganha. Se um dos grandes nomes estivesse disposto a negociar um contrato com a Diadem...

Por falar em ver o lado bom das coisas...

Entrou no quarto e pegou a combinação. O telefone tocou. Atendeu no aparelho da mesinha de cabeceira.

- Alô? - Preparou-se para não deixar Sara falar.

- Oi.

- Oi. Aconteceu alguma coisa lá embaixo, você viu?

- Foi alarme falso.

- E aí, alguma novidade?

- Kay... Não posso deixar você sair, nem telefonar para ninguém.

Ela continuou parada ao lado da cama, segurando o telefone.

- De que está falando?

- Ah, querida, por favor... Você sabe do que se trata. As fitas, Escute.

Ela escutou.

Ouviu um ronronar.

ASSUSTADA, OLHOU O peitoril, a porta. Não via Felice desde... antes do banho...

Respirou fundo. Virou-se e sentou na beirada da cama.

- Pete, não a machuque.

- Ela está deitada no meu colo, e eu estou coçando as orelhas dela com um estilete. Sabe o que é, não sabe? Parece uma caneta, mas com uma lâmina aguçada na ponta; usei-o nas etiquetas. Primeiro corto a orelha alaranjada, depois a branca...

- Pete, por favor...

- Não quero usar o estilete nela, mas se você não fizer exatamente o que eu mandar, não terei outra escolha. Preciso de tempo para pensar.

- Está bem. Você tem todo o tempo que quiser. - Virou-se e olhou para o lustre. - Mas, por favor, não lhe faça mal. Sei que não fará, pois você gosta dela. - Contemplou a íris cromada do lustre, sua imgem de ponta-cabeça sentada na cama segurando o minúsculo fone branco.

- Farei, se você me obrigar, Kay, esteja certa disso.

- Use o tempo que quiser.

- Você ia à polícia. Se eu tivesse chegado cinco minutos mais tarde, aquelas sirenes seriam para mim.

- Não, não sei o que ia fazer. Só queria sair daqui e ficar sozinha, pensando, sem ninguém me vigiando.

- Não tente me enganar, Kay. Você ia levar as fitas para a polícia, foi por isso que as trocou de lugar.

- Eu pretendia escondê-las aqui no meu apartamento. Não sabia o que fazer. Queria conversar com você, deixar que você explicasse por que fez o que fez, tentar compreender, mas tive medo. Achei que guardando as fitas teria uma certa segurança. Era por isso que eu queria pegá-las.

- Você fará o que eu mandar, caso contrário Felice se dará mal. Sei que fita você viu e até que ponto, pois você não a rebobinou, e portanto sabe que farei o que estou falando, não sabe?

- Sim - respondeu olhando para o lustre. - Sei.

- Preciso de tempo para pensar. Pode se vestir e trabalhar se quiser, mas na cama, onde posso vê-la melhor. Se o telefone tocar, não atenda, deixe na secretária eletrônica. E só atenda se for eu. Entendeu?

- Sim.

- A secretária eletrônica está com o áudio ligado, de modo que você pode ouvir quem está ligando?

- Sim.

- Falaremos mais tarde. É o que eu quero. Agora vista um jeans, ou qualquer outra roupa.

- Você sofreu mesmo um acidente?

- Não. Pressenti o que você ia fazer. Sabe aonde eu ia? Comprar um Hopper para você. Agora olhe para nós.

- Não ponha a culpa em mim.

- Por que não? Você invadiu minha privacidade, não invadiu? É irônico, não é? Acho que isso nos deixa mais ou menos empatados. Agora vista-se. E lembre-se: só atenda o telefone se for eu. E não se levante sem pedir permissão antes. Não faça nada que... vire o barco. Estarei de olho em você o tempo todo.

Mais ou menos empatados...

Exceto por alguns assassinatos da parte dele, e da ameaça de retalhar Felice com um estilete - se não era mais uma de suas mentiras.

Provavelmente não era, tendo feito o que fizera com Sheer.

Kay estremeceu com um calafrio, esperando que parecesse uma reação ao livro que segurava a sua frente. Calma.

Enquanto ele estivesse disposto a conversar, enquanto ficasse tentando encontrar uma solução para o problema, tudo podería terminar de maneira pacífica, sem ninguém se machucar - nem Felice, nem ela e nem ele tampouco. Ele não podia pretender matá-la e simular que sua morte fora um acidente ou suicídio, não tão logo depois da morte de Sheer. E se surgisse uma suspeita de assassinato, ele, seu namorado, seria certamente o primeiro suspeito. Descobriríam que ele era o proprietário do prédio, e os monitores no 13B, as câmeras de vídeo; todas as mortes seriam reinvestigadas. Sem duvida ele sabia disso, e, se nãó sabia, ela podería lhe abrir os olhos. Sua melhor saída, a única saída, era entregar-se à polícia, contratar um dos melhores advogados do país, alegar insanidade...

Mas e se, sendo doente mental, ele não conseguisse entender isso?

Se ela tentasse fugir ele a interceptaria, na escada ou no elevador. Se ligasse para a polícia ou atirasse uma cadeira pela janela, ele seria o primeiro a chegar ao seu apartamento, com sua chave mestra...

Felice ronronando no colo dele...

Desgraçado. Tinha de haver um meio de ludibriá-lo caso ele se recusasse a agir com sensatez...

Como nos livros de suspense...

Ele A OSERVAVA no MONITOR enquanto ela fingia estar lendo.

Podia apostar que ela estava pensando numa maneira de levá- lo à 19? Delegacia Policial e fazer com que ele se entregasse. Alegando insanidade.

Por que tivera de xeretar onde não devia? Tiveram tudo nas mãos, ou poderíam ter, e de repente zap - nada.

Não havia a menor dúvida sobre o que tinha a fazer agora, quisesse ou não.

Ela não lhe deixara outra opção.

Mas como?

Nem uma chance em um milhão de a polícia engolir outro ‘ ‘acidente" ou "suicídio", não tão logo depois da morte de Rocky. E no momento em que a polícia começasse a passar a pensar na possibilidade de assassinato, ele seria o suspeito número um, o namorado ou marido sempre eram (e com toda razão, não é, pa- pai?). Tudo viría à tona, tudo...

A menos que...

A polícia pensasse que outra pessoa a matara... Tivesse a certeza de que outra pessoa a...

Olhou à esquerda.

Apertou o botão 3B no alto, e em seguida o 1,

Felice remexeu-se em seu colo; ele levantou a mão. Ela saltou no chão e saiu farejando.

Ele pousou o estilete no console. Pegou um punhado de jujuba.

Sam no 1, ela no 2...

Levou pouco mais de um minuto para engendrar o plano. O plano global, não os detalhes.

Duas perguntas importantes: poderia deixá-la sem vigilância por quinze ou vinte minutos aquela noite, enquanto Sam estivesse no teatro assistindo à peça de Candace? E conseguiría mantê- la calada e sob controle até a noite do dia seguinte?

Se conseguisse, seria sua salvação. Um trabalho caprichado - nos dois sentidos: planejado nos mínimos detalhes e sem erros. Dois coelhos com uma sò cajadada...

Observou as duas imagens.

Sam no 1, escrevendo à máquina. Kay no 2, folheando o livro...


TERCEIRA PARTE


11

Kay fechou o livro. Tirou os óculos, olhou para o lustre e falou:

- Gostaria de ir à cozinha para tomar um café. Posso?

Continuou sentada, olhando para o lustre.

Contemplou o livro que tinha nas mãos, de um lado e do outro.

O telefone tocou.

Olhou as horas no relógio de cabeceira: 4:22. O telefone deu o segundo toque.

Colocou os óculos na mesinha de cabeceira, o livro na prateleira de baixo, sentou-se ereta. O telefone tocou pela terceira vez; a secretária eletrônica, ligada ao telefone da escrivaninha, emitiu um estalido. Kay passou as mãos pelo cabelo.

- Alô - ouviu sua voz na gravação -, não posso atender no momento, mas deixe sua mensagem após o bip e ligarei assim que puder. Obrigada.

O aparelho emitiu um bip.

- Sou eu.

Kay pegou o telefone.

- Posso?

- Vamos esperar até a secretária desligar.

Kay suspirou. Passou os olhos pela cortina, a escrivaninha, o lustre. Viu sua imagem minúscula segurando o fone...

- Bip.

- Sim, pode ir tomar seu café. Não desligue, deixe o fone sobre a cama. Não posso vê-la na cozinha, mas ficarei vigiando o saguão. Se pegar o interfone, verei quando Terry o atender; no instante em que ele disser "Pois não, srta. Norris", Felice receberá o primeiro corte, e se ele...

- Esqueça. Tomarei água no banheiro. Presumo que isso seja permitido.

- Se quer tomar café, tome, só não toque no interfone, só isso.

- Não pretendia fazer isso.

- Então vá.

Ela deixou o fone na cama e levantou-se.

Foi até a cozinha, acendeu a luz. Enquanto as lâmpadas fluorescentes piscavam para acender, olhou as tigelinhas com comida e água no canto, o afiador de unhas junto à parede.

O telefone da parede, o interfone...

Colocou água na chaleira, levou-a ao fogão, acendeu o fogo. Colocou uma colherada de café instantâneo na caneca marcada com um K marrom.

Ficou olhando a chaleira que fervia. Passou os olhos pelo conjunto de facas.

Levou a caneca para o quarto. Pegou o fone e sentou-se na beirada da cama.

- Eu também fiz café - disse ele.

- Que ótimo. Vamos ter um kaffeeklatsch. - Levou a caneca à boca.

- Querida, sinto muito, mas preciso de tempo para pensar. Ainda não sei o que fazer...

Kay mudou de posição, colocando a perna dobrada na cama; olhou para o lustre. Meneou a cabeça. Suspirou.

- Santo Deus, Pete... Foi porque você tinha medo que ele descobrisse as câmeras? Sheer?

Continuou com o olhar fixo no lustre.

- Foi por isso, Petey?

Ele suspirou.

- Sim... Ele ia visitar o show-room da Tàkai. Veria os lustres lá expostos, ou em fotografia, e botaria a boca no mundo...

- E então as outras mortes seriam reinvestigadas...

Continuou fitando o lustre, a caneca em uma das mãos, o fone na outra.

- Acho que não devo mais falar sobre isso. E bem possível que você repita tudo no tribunal.

Kay tomou mais um gole de café.

- Pete, você sabe que não pode continuar... fazendo isso. Será apanhado mais cedo ou mais tarde, e quanto mais tarde, pior para você.

- Você quer que eu me entregue...

- Sim, acho que faria sentido. Contaria a seu favor, muito, tenho certeza, e você pode contratar um dos melhores advogados criminalistas do país. Eles vão brigar entre si para representá-lo, afoitos como são por publicidade.

- Ah, sim, havería muita publicidade. Pode imaginar como seria?

Kay suspirou, encolhendo os ombros.

- Ainda acho que é o melhor que você tem a fazer. É sua única opção. - Tomou mais um gole, sempre olhando para o lustre.

- Eu podería me atirar da janela.

- Ah, não diga isso, querido, não. - Inclinou-se para a frente, balançando a cabeça. - Se tudo que você fez foi por causa das câmeras... e foi mesmo, não foi? - Esperou um momento. - Não foi?

- Sim...

- Querido, tenho certeza de que, em vista de quem foi sua mãe e tudo mais, um bom advogado poderá... fazer uma defesa convincente... sob a alegação de insanidade...

- Está dizendo que posso passar o resto da vida num manicômio? Tendo um John Hinckley Jr. por companheiro de quarto?

- Não o resto da vida. Apenas alguns anos, se você se entregar. Você é jovem, tem o futuro pela frente. E ficará vivo, Não fale em se atirar da janela, seria uma idiotice.

- Que merda... Preciso pensar. É uma decisão difícil...

- Claro que é. Não precisa ter pressa. Eu não pretendia sair esta noite. - Sorriu. - Por que não traz Felice aqui? Ela deve estar com fome. - Sorriu para o lustre.

- Não. Ela ficará aqui comigo. Assim você não tomará decisões por mim. Quero tomar minhas próprias decisões.

- Está bem. Eu compreendo.

- Tem comida para ela aqui. Ela está fazendo uma festa, cheirando tudo que encontra pela frente, Coloquei uns jornais no boxe para ela.

- É melhor não deixá-la entrar no quarto, pois pode se machucar.

- Fechei a porta. Ela está bem... contanto que você não me pressione, Kay. Falo sério.

- Tudo bem.

- Não precisa ficar na cama. Basta ficar longe dos telefones, das janelas e da porta. Ligarei mais tarde. Espere até saber que sou eu. - Um estalo. O ruído de discar.

Kay virou-se, colocando o fone no gancho.

Continuou sentada, olhando para a caneca.

COMEÇARA A NEVAR. Pessoas entravam no saguão espanando a neve dos ombros.

Ele viu Sam vestindo seu sobretudo de lã. Kay sentada do lado direito do sofá, abraçando os joelhos, os pés descalços sobre a almofada, mordiscando a haste dos óculos, o original que estivera lendo jogado de lado.

Pete partiu um biscoito da sorte, puxou a tira de papel, segurou- a contra a luz azulada: "A maior parte da inspiração compõe-se de transpiração".

Acertou mais uma vez, Jolly Chan. Amassou o papel e jogou- o no prato.

Enquanto comia o biscoito, viu Sam sair pela porta da escada e atravessar o saguão pela passadeira escura, dizendo alguma coisa a Walt junto à porta da entrada.

Kay colocou os óculos na mesinha de centro. Olhou para o lustre, abraçando os joelhos. Suspirou.

- Ligue para mim. Acho que sabe o número.

Ele pegou o telefone, apertou a tecla de discagem automática e o 1.

Ouviu os bips da discagem e o sinal de ocupado. O telefone de Kay tocou. Ela estendeu a mão para atender, parou, olhou para o lustre.

Pete respirou fundo. Colocou o fone no gancho e acionou o interruptor que interceptava o telefone dela.

Ela recostou-se no sofá, deixando o telefone tocar. Brincou distraidamente com o botão da camisa. Bom ângulo para um tomada... "Alô. Não posso atender no momento, mas deixe sua mensagem..." Boa iluminação também.

Bip.

- Oi, é Roxie. Você está aí?

Kay aprumou-se no sofá, apoiando a mão no encosto, espichando o pescoço na direção do vestíbulo.

- Não vamos mais patinar, pois Fletcher precisa ir a Atlanta. A menos que vocês queiram ir assim mesmo. Ligue para mim. Tchau. - Um beijo. O aparelho desligando.

Kay olhou para o lustre.

- Pete?

Ele pegou o telefone e apertou o botão de discagem automática.

Kay abaixou a cabeça.

O telefone tocou.

Ela recostou-se no braço do sofá. Esticou as pernas, cruzou-as na altura do tornozelo. Ficou mexendo no botão da camisa enquanto o telefone tocava e durante sua mensagem gravada. O jeans modelava seus quadris e coxas, o ventre, as pernas...

Bip.

- Sou eu - Ouviu a voz de Pete.

Pegou o fone, recostando-se no sofá.

Ficaram esperando. Ela brincava com o botão da camisa, esti- rada no sofá com as pernas cruzadas na altura do tornozelo, segurando o fone...

- Bip.

- Oi - disse ela, olhando para o lustre.

- Oi - respondeu Pete, vendo-a no monitor.

Kay suspirou.

- Estava pensando em como será. A publicidade. As piranhas. Durante meses, depois no julgamento, e depois*... Todos zombando de mim pelas costas, todo o pessoal do escritório. Os anos que você vai perder, provavelmente... - Suspirou. - Quanto mais eu penso, pior me parece.

Ele a observava, sem nada dizer.

- Querido, tive uma ideia que me parece uma saída muito melhor.

- E o que é?

- Prepare-se. Você vai se espantar, mas creio que deveriamos pensar seriamente no assunto.

- Estou preparado.

- E se nós nos casássemos?

- Tem razão. Estou espantado.

- Seria uma boa saída para mim porque, entre outras coisas, eu estaria livre da obrigação de denunciá-lo. Como cônjuges não precisam testemunhar um contra o outro, também não precisam denunciar um ao outro, não é mesmo? Seria diferente se você fosse um maníaco assassino, matando pelo simples prazer de matar ou por compulsão, o que não é o caso. Você se sentiu ameaçado, agiu em defesa própria, tinha motivos racionais. Pelo menos é o que eu acho que aconteceu... em todos os casos. Corrija-me se eu estiver errada.

- Continue...

- Naturalmente havería certas condições muito bem definidas, sendo que a primeira seria a desativação imediata do sistema, sem tentar ganhar tempo... de minha parte também. Temos de admitir que sempre havería o risco de alguém descobrir e nos colocar em perigo.

- E a segunda?

- Não sei. Ainda não planejei tudo até o fim. Mas, pense bem, Pete, você acha que poderiamos encontrar outro parceiro tão perfeito como somos um para o outro? Nós nos divertimos tanto juntos, você continua sendo você^ não posso mudar meus sentimentos de repente, como se desligasse um interruptor. Além do mais, fiz um exame de consciência. Não pense que sou totalmente imune a dinheirõ, porque não sou, pode acreditar. A segunda condição provavelmente seria a de nos mudarmos para um grande apartamento na Park, com três empregadas. - Sorriu. - O que acha?

- Gostei da ideia... Mas como posso saber que está sendo sincera? Você pode estar tentando me enganar, e no momento em que pusermos o pé na rua talvez comece a gritar, chamando a polícia.

Kay suspirou, continuando a brincar com o botão.

- Presumo que seja normal você considerar essa possibilidade. Para ser franca, minha primeira reação foi tentar maquinar alguma trama. Mas, Pete, quanto mais eu penso nos noticiários, e no julgamento... Meu Deus, seria o maior dos últimos anos... E nos anos perdidos de sua vida... Para quê? O que está feito está feito. Não pode ser desfeito. Se eu não me sentisse obrigada a contar o que sei... - Suspirou, balançando a cabeça. - Não, eu não estou enganando você, meu querido. Nem todas as mulheres são atrizes. Por favor, pense no assunto. A desvantagem é que provavelmente você terá de se contentar com gatos em vez de filhos...

- Isso é uma vantagem.

Ela descruzou as pernas e dobrou o joelho.

- O que ia comprar? Um desenho?

- Uma tela. Eles têm duas para eu escolher.

Kay suspirou, meneando a cabeça.

- Eu pretendia comprar uma tela para você também - disse ela. - Ou então, uma fotografia espetacular...

- Tem comida suficiente aí?

- Tenho. Estou de regime.

- Felice comeu camarão com molho de lagosta.

- Veja lá, vai deixá-la mal-acostumada...

- Ela está dormindo embaixo do console. Junto à banqueta de couro.

Kay sorriu. Esfregando o pescoço, fez uma expressão de dor.

- Ai... Isso tudo me deixou tão tensa...

- Por que não toma um banho de imersão?

- Boa ideia.

- Falaremos mais tarde.

- Está bem.

Ele contemplou a imagem dela olhando para ele.

Ambos desligaram o telefone.

ELE SE APRONTOU enquanto ela preparava o banho.

Releu o bilhete, substituiu amante por garanhão, dobrou o papel. Levantou-se, enfiando-o no bolso traseiro da calça. Kay estava enchendo a banheira e misturando o xampu de espuma para banho.

Ele abriu a última gaveta da esquerda e pegou a caixa de luvas de plástico; tirou duas do pacote e guardou-as no bolso esquerdo. Verificou as chaves no bolso direito.

Ela colocou um cassete no toca-fitas do quarto. O violão de Segovia emitiu um acorde.

Ficou observando enquanto ela se despia.

Sem olhar para ele. Nem uma vez.

Como se ninguém a pudesse ver, lá na intimidade do seu quarto aconchegante.

Como nos velhos tempos. Só que agora ela sabia...

Um verdadeiro tesão...

Para ela também?

Seria possível que ela não estivesse tentando enganã-lo, ela, com aqueles seios maravilhosos?

A imprensa realmente não a pouparia por causa da diferença de idade... E quem não prefere ser rico a ser pobre?

Ora, não seja idiota.

Abriu a embalagem de uma fita de vídeo, introduziu-a no aparelho, começou a gravar - ela se dirigia para a porta do banheiro, segurando com as duas mãos o decote do curto roupão de cetim. Ficou parada olhando para ele, a mão no interruptor. A luz esmaeceu.

E aumentou um pouco de intensidade enquanto ela continuava ali parada, olhando para ele. Sorrindo? Foi até a banheira cheia de espuma e fechou a água. Aproximou-se da pia e começou a prender o cabelo, deixando que o roupão se abrisse diante do espelho.

Ele verificou os monitores do 3B, e em seguida do 3A. A maluca da Susy estava comendo na sala, com a bandeja no colo, enquanto via televisão.

Passou os olhos pelos outros monitores. Nada de importante.

Viu Ray deixar o roupão deslizar pelas costas até o chão, erguer o pé, entrar na banheira de espuma.

Ficou olhando...

Consultou o relógio de pulso e conferiu com o do console - 7:50. Foi até o vestíbulo e espiou pelo olho mágico. Abriu a porta e saiu, fechando-a atrás de si.

Abriu a porta da escada e passou para a área do patamar, com seu 13 pintado em preto e sua luz fluorescente.

Ficou parado, com a mão no corrimão, olhando os vãos da escada que subia.

Ela estava tentando enganá-lo. Não tinha a menor dúvida. Desceu rapidamente os lances em ziguezague que contornavam o fosso de concreto.

ELE ABRIU as três portas duplas e examinou o conteúdo do armário embutido - poucas roupas penduradas, sapatos e malas no chão, caixas, maletas e pilhas de livros nas prateleiras do alto.

"Eu também tenho uma guardada no meu armário", dissera Sam, dando as cartas na mesa de jogo, algumas semanas depois de se mudar para o prédio. "Certa vez um marido ciumento contratou gente para me liquidar. Verdade, fora de brincadeira. Um viúvo ciumento; ela já tinha morrido. Uma atriz com quem andei me divertindo por muito tempo. Mas continuo achando que elas deviam ser proibidas."

Ainda se lembrava disso.

Encontrou-a na segunda tentativa, numa pequena valise, embrulhada numa toalha branca de motel cheirando a óleo - uma automática de aço azulado, com a inscrição Beretta U. 5. A na lateral, o carregador vazio. Dois pentes de balas na valise: um cheio e um com dois espaços vazios na parte de baixo.

Sopesou a arma na mão protegida pela luva de plástico. De certa maneira, mais uma herança do velho. Enfiou-a na cintura, cobrindo-a com o suéter, e apalpou o volume. Guardou o pente cheio no bolso esquerdo.

Guardou a toalha com o outro pente na valise, fechou-a e colocou-a na prateleira do armário; tornaria a abri-la quando descesse mais tarde para deixar o bilhete ao lado da máquina de escrever.

Fechou as portas sanfonadas, deixando a mais próxima do vestíbulo entreaberta, como a encontrara.

Sentando-se à mesa da sala, consultou o relógio - 7:57 - e examinou a datilografia de Sam, as últimas páginas do grosso maço guardado na pasta. A datilografia, não as palavras, entre as quais constava Thea. Mais tarde levaria aquelas páginas; ninguém daria pela sua feita.

Algumas letras eram mais escuras que outras, batidas com mais força - principalmente as B, N e H. Algumas delas estavam rebatidas com X.

Tirou do bolso o rascunho do bilhete. Colocou uma folha na velha Remington de Sam.

Imitando os toques de Sam, bateu com os dedos enluvados nas teclas pretas.

Na quarta tentativa ficou satisfeito:

A Quem Possa Interessar:

Kay Norris me fez algumas promessas, mas agora decidiu não cumpri-las. Darei a ela mais uma chance para largar seu jovem garanhão. Se você estiver lendo este bilhete, é sinal que ela se recusou. Eu fiz uma promessa a ela, e costumo cumprir o que prometo.

Levou o bilhete até a estante; agachou-se, pegou um dos grandes livros guardados deitados na prateleira de baixo - Clássicos do Cinema Mudo - e guardou o bilhete entre as páginas do livro, sobre uma foto de Paulina ou outra personagem qualquer amarrada aos trilhos; recolocou o livro no lugar.

Espanou o pó das mãos e olhou as horas - 8:06. Dezesseis minutos desde que saíra de casa. Não precisava se afobar. Ela ficaria no mínimo meia hora no banho - Segovia, a espuma...

Dobrou o rascunho e os três bilhetes iniciais escritos na velha Remington e guardou-os no bolso. Baixou a tampa da máquina, guardou o dicionário dentro da pasta, arrumou a luminária e a cadeira do jeito que as encontrara, apagou a luminária.

Ficou parado junto à porta com uma mão no interruptor e a outra sobre a arma enfiada na cintura, dando uma última olhada na sala - os móveis baratos piores ainda ao vivo do que pelo vídeo.

Apagou a luz e espiou pelo olho mágico.

Havia um homem parado diante da porta do 3A.

Esperou até que Susan abriu a porta, contou um dinheiro, disse alguma coisa e tornou a fechá-la.

Ficou esperando enquanto o homem aguardava o elevador.

Desceu a escada correndo, tirando as luvas pelo caminho -

8:11.

Apertou o botão do elevador no subsolo e entrou na lavanderia. Denise e Allan, que estavam junto a uma das máquinas de lavar, voltaram-se. Ele os cumprimentou e foi até as máquinas de venda automática.

- Denise e Allan? Céus, ele estava por fora. Eles se separaram enquanto ele introduzia moedas na máquina. Comprou um pacote de batata frita e ração para gatos; correu para pegar o elevador número 2, que acabava de chegar.

Subiu ao 13.

Abriu a porta.

Ela continuava na banheira sob uma montanha de espuma, a cabeça apoiada na borda, junto à parede, os olhos fechados.

Pete sentou-se calmamente na poltrona, os olhos fixos na tela. Tirou a arma da cintura e colocou-a sobre o console.

Ficou sentado, olhando.

Felice subiu no console. Cheirou a arma. Passou sobre ela, cheirou o estilete. Empurrou-o com a pata, fazendo-o deslizar sobre a superfície.

- Obrigado - disse ele, pegando o estilete.

Deixando o pacote de batata de lado, cortou a embalagem plástica da ração para gatos; tirou um biscoito e ofereceu-o a Felice. Ela espichou-se, cheirando-o. Ele o atirou por sobre o ombro, e ela saltou do console.

Aumentou um pouco o brilho da imagem.

Sem despregar os olhos da tela, guardou o estilete na gaveta.

Recostou-se na poltrona; tateando com o pé sob o console, puxou a banqueta de couro.

- SOU EU - disse ele.

Sentada na cama, de pernas cruzadas, de pijama, Kay pegou o fone e segurou-o com o ombro. Tirou uma colherada de sorvete do recipiente e estendeu-o ao lustre, sorrindo.

Bip.

- Não, obrigado - disse ele. - Estou tomando vodca com tônica. - Balançou o copo, íàzendo o gelo tilintar; tomou um gole.

Ela levou a colherada de sorvete à boca, olhando para o lustre, e perguntou:

- Estamos comemorando alguma coisa?

- Não sei. Preciso de mais tempo para pensar. Eu lhe darei uma resposta pela manhã.

Ela pegou mais uma colherada.

- Me parece bobagem desperdiçar uma boa noite... - Olhava- o, tomando o sorvete.

Ele sorriu.

- Não acho que seja um desperdício. Falaremos de manhã.

- Te amo, querido. Não faça nenhuma besteira.

- Não faça você.

PELA MANHÃ, ele DISSE que precisava de mais tempo.

- Não sei por quê.

- Porque ainda acho que você pode estar me enganando, é por isso.

- Não estou. - Deitada na cama, olhava o lustre, manuseando o fio do telefone entre os seios.

- Então confie em mim. Só até a noite. Levarei Felice de volta para você, sã e salva, prometo. Preciso falar com meu advogado e não consigo encontrá-lo. Ele está em Vail, no Colorado.

- Quero sair para fazer algumas compras.

- Deixe para amanhã. Além do mais, está nevando muito. Ninguém está saindo de casa.

- Quero ligar para Roxie, Wendy...

- Mas tome cuidado com o que disser.

- Não quero que escute minhas conversas!

- Então espere até amanhã!

Ela desligou e sentou-se. Fez uma careta para o lustre, mostrou a língua.

Foi até a janela e puxou o cordão da cortina.

Ficou de braços cruzados, olhando os flocos de neve soprados pelo vento, o parque branco, o telhado com torres brancas, jardins brancos.

O peitoril vazio, ocupado apenas pelo telescópio.

- Alô, SENHOR YALE - disse ele. - Aqui é Peter Henderson. Sou amigo de Kay Norris e vou com ela a sua festa da próxima sexta-feira...

- Ah, sim. - Sam estava no master 1, parado ao lado da mesa da sala, segurando o fone junto à cabeça. - Nós nos conhecemos do elevador.

- Isso mesmo, sou do 13A. Estou ligando pelo seguinte: ontem à noite fiquei sabendo que hoje é o aniversário de Kay.

- É mesmo?

- Eu e uma amiga dela, Roxie, estamos preparando uma festa-surpresa para ela. - Observava a imagem do 2, ela passando aspirador no quarto. - Será às nove horas. No apartamento dela. Quero dizer, de Kay. Uma reuniãozinha íntima, pouca gente, dez ou doze pessoas. Sei que ela ficará contente com sua presença...

- Irei com prazer. Obrigado pelo convite.

- É o apartamento 20B. E, por favor, procure ser pontual. A logística é meio complicada,

- Estarei lá às nove em ponto.

- Obrigado. Até mais tarde.

- Eu é que agradeço. Será bom conversarmos sobre alguma coisa mais interessante que o tempo.

- Tem razão. 20B, às nove.

Desligaram.

Pete respirou fundo.

Acariciou Felice, que dormia em seu colo.

Viu Sam pegar o fone.

O BIP SOOU.

- Oi, Jerry, aqui é Sam. Infelizmente não poderei ir. Espero não estragar o programa; talvez Milt possa me substituir. Ligue para ele. - E desligou.

Foi até a janela.

Vi um trator de neve passando na avenida, limpando a pista e acumulando neve junto dos carros estacionados do outro lado da rua. Uma bela surpresa para os motoristas quando fossem sair com os carros.

Tentou pensar num presente para ela, alguma coisa que, não sendo muito cara ou pessoal, mostrasse criatividade e bom gosto, superando em muito o que o jovem Peter Henderson pudesse ter nesse departamento.

Por que aquele nome o perturbava?

Claro... Henderson era o sobrenome do marido de Thea. O nome do filho dela não era Peter? Sim...

Bastante comum, Peter Henderson...

A idade parecia combinar. A cor do cabelo e dos olhos também - cabelo castanho avermelhado e olhos azuis, como os de John Henderson.

Seria muita coincidência, o filho de Thea... Saindo, naturalmente, com mulheres que se pareciam com ela, Kay muito parecida, Naomi um pouco menos...

Seria possível? E poderia Kay saber? Seria Peter Henderson a pessoa que lhe contara dos maios e roupas de verão na mala?

Perguntaria a ela, assim que a festa acabasse.


12

Parada junto à mesinha de centro, Kay olhou para o lustre.

- Agora já chega - disse ela, vendo-se refletida de pônta- cabeça, de jeans, tênis e malha cor de vinho. - São oito e meia. Não aguento mais ficar aqui presa. Vamos sair para comer um hambúrguer ou qualquer outra coisa. Não precisa telefonar, basta pegar seu...

Virou-se ao ouvir a porta abrir. Pete entrou com Felice miam do em seu braço.

- Oi - disse ele, soltando a gata no chão do vestíbulo. Kay fechou os olhos e respirou aliviada.

Ao abri-los, viu Felice entrando na cozinha.

- Ei, sua boba, espere aí!

Felice parou e virou-se, esperando sua dona. Kay agachou-se, pegou-a no colo e aninhou-a em seu ombro; passou o rosto na pelagem malhada, beijou-a. Felice contorceu-se.

Levou-a para a cozinha e soltou-a no chão.

- Há quanto tempo ela está sem comer? - perguntou, acendendo a luz.

- Tinha comida lá para ela.

- O quê, um pãozinho? - Tirou uma lata do armário. Felice começou a miar. - Calma - disse Kay, pegando o abridor de latas na gaveta. Lançou um rápido olhar para Pete quando ele chegou à porta. - Oi.

- Oi. - Ele sorriu, olhando ao seu redor, as mãos enfiadas nos bolsos do jeans, um casaco de lã grossa abotoado na cintura, uma camisa azul por baixo. - Sua cozinha está parecendo a minha.

Pratos sujos na pia, utensílios e caixas sobre a bancada, um pano de prato jogado sobre o conjunto de facas.

- Acredite se quiser - disse ela, enquanto abria a lata -, mas minha disposição não tem sido das melhores nas últimas trinta horas. Bonito casaco.

- É antigo.

- Falou com seu advogado? - Abaixou-se e, usando uma colher, começou a colocar comida na vasilha enquanto Felice a observava atentamente.

Kay levantou os olhos. Ele meneou a cabeça,

Ela raspou o conteúdo da lata.

- O que decidiu?

- Vamos conversar lá dentro.

Ela colocou a lata no lixo e a colher na pia.

- Que tal irmos comer hambúrguer no Jackson Hole? Não aguento mais ficar aqui dentro.

- Primeiro vamos conversar, está bem?

Ela lavou a vasilha da água, encheu-a e colocou-a no chão.

Aproximou-se dele sorridente, beijou-o nos lábios.

- Quer tomar alguma coisa?

Ele meneou a cabeça. Beijou-a nos lábios.

Entraram na sala de mãos dadas. Separaram-se diante do sofá - ela sentou-se e ele foi até a janela.

Abrindo um vão entre as cortinas, ele espiou para fora.

- Está começando a nevar de novo.

- Mesmo assim gostaria de sair. - Recostada no braço direito do sofá, uma perna dobrada sobre a almofada, a mão no joelho, olhava para ele.

Ele encaminhou-se para a outra extremidade do sofá; parou ao lado da mesinha, olhando para Kay, Suspirou.

- Meu bem, eu daria qualquer coisa para acreditar em você. Sinceramente, Mas não vejo a possibilidade de você esquecer esses assassinatos, principalmente tendo conhecido uma das vítimas, ainda que só por alto.

- Você subestima o quanto você significa para mim e o pavor que sinto quando penso na publicidade que este caso vai gerar. Não estou dizendo que serei a pessoa mais feliz do mundo, que não me sentirei perturbada de vez em quando. - Deu de ombros. - Acontece que é a melhor opção, do meu ponto de vista egoísta e do seu também, creio eu. A menos que você não queira se casar com alguém da minha idade.

- Ah, deixe disso. - Deu um passo atrás e sentou-se na ponta da poltrona, meneando a cabeça. - Não, você temia que eu me atirasse da janela, e queria Felice de volta. - Felice cruzou a sua frente, balançando a cauda. - Boa menina, pegou a deixa direi- tinho. Eu a treinei.

Felice deitou-se na almofada embaixo da janela, lambeu a pata, passando-a no focinho.

- Gostei de ficar com ela, sabe?

Entreolharam-se.

- O que posso fazer para convencê-lo de que estou sendo sincera?

- Nada. - Desabotoou o casaco, cruzou as mãos entre os joelhos e ficou olhando para ela.

- Vai se entregar?

- E passar o resto da minha vida num manicômio? Se tiver sorte?

- Não seria o resto da sua vida.

- Assistindo televisão comercial num salão de estar. - Sorriu. - Discutindo com os outros lunáticos sobre a escolha do canal. Não... - Balançou a cabeça, abaixando-a e passando a mão pelo cabelo.

Kay continuou sentada na mesma posição, a mão sobre o joelho.

- Pete, você sabe que se... acontecesse alguma coisa comigo, mesmo que parecesse acidente ou suicídio, ou mesmo um assalto, qualquer coisa... tão pouco tempo depois da morte de Sheer...

- Eu sei. Eu seria o suspeito número um.

Ela inclinou-se para a frente.

- Querido, escute o que eu digo. Com um bom advogado, estaria livre muito antes do que pensa, e você pode contratar o melhor, não é mesmo? Eles vão levar em consideração todo bem que você fez, ajudando as pessoas, mandando dinheiro. E outra coisa: o fato de você se entregar, isso seria um grande ponto a seu favor, tenho certeza. Pense bem, querido.

Ele levantou a cabeça. Olhou-a sem responder.

- Não será tão terrível como pensa... - Sorriu para ele. - Receberá cartas de mulheres de todas as idades.

- Sam está subindo.

Kay olhou-o com espanto.

Ele enfiou a mão por dentro do casaco.

- Esta arma é dele. Meu pai mandou matá-lo depois que minha mãe morreu. Foi quando ele a comprou. E uma Beretta, nove milímetros,

Ela olhou a arma que ele segurava na mão.

- Será um assassinato seguido de suicídio - continuou Pete. - Ele a vinha incomodando com telefonemas. Nada de grave, creio que você nem chegou a comentar sobre eles com ninguém exceto comigo. - Apoiou o pulso na perna, deixando a arma virada com o cano para baixo. - Ele interpretou mal algumas coisas que você lhe disse no parque algum tempo atrás. Insistia para que você parasse de me ver; sabe como os velhos ficam enciumados. A polícia encontrará um bilhete explicando tudo ao lado da máquina de escrever dele. Eu o escrevi ontem à noite, enquanto você tomava banho. - Sorriu. - Não durante todo o tempo do banho, só os primeiros vinte e cinco minutos.

- Por que ele vem aqui?

- Para uma festa-surpresa. Hoje é o seu aniversário. - Olhou as horas, passou a mão pelo cabo da pistola. - O engraçado disso tudo é que era ele quem eu queria pegar desde o princípio. Foi por isso que eu o trouxe para cá, pensando em vigiá-lo e então liquidá-lo quando surgisse uma boa oportunidade. Thea... minha mãe ia ao encontro dele, para ficar com ele, quando... Ela e meu pai tiveram uma briga antes da festa. Ela não caiu da escada, ele a empurrou, eu vi. - Respirou fundo. - Sam foi tão culpado quanto ele. Mas aí eu... tive de dar um jeito em Billy Webber. E Brendan Connahay morreu logo em seguida. E assim Sam pôde renovar seu prazo de vida. E do apartamento também. - Sorriu. - Acabou sendo interessante observá-lo, com suas aulas de interpretação, as sérias e as outras. Não lhe direi qual era a proporção. - Levantou a pistola, armou-a e apontou-a para Kay, o dedo no gatilho. -- Escondeu uma faca embaixo da almofada?

Ela não respondeu.

- Bom trabalho. Não vi quando fez isso. Agora tire-a daí. Devagar, com dois dedos apenas, sem tentar atirá-la em mim, e coloque-a na mesinha. Agora.

Ela enfiou a mão atrás da almofada e, usando apenas o polegar e o indicador, puxou um enorme facão de cozinha. Passando-o para a outra mão, colocou-o sobre a mesinha de centro.

Aprumou o corpo, cruzou os braços. Continuou sentada, vendo- o apontar a arma para ela.

- É você ou eu, Kay - disse Pete, baixando a pistola. Olhou as horas.

- Que hora é a festa?

- Às nove.

- E se ele não vier?

- Ele virá. Deixou de ir tocar num quarteto de cordas do qual faz parte, e comprou um presente para você. Quando saí, ele estava passando a calça.

- Por que você teve de "dar um jeito" em Billy Webber?

- Ele descobriu que os telefones estavam grampeados. Estava me chantageando.

- Como ele descobriu? - Kay cruzou os braços.

- Ele traficava com drogas, e era alucinado com questões de segurança. Certa noite ele trouxe para casa um detector moderníssimo de escuta telefônica e o aparelho deu um sinal positivo. Eu quase caí da cadeira. Fazia poucas semanas que as pessoas haviam começado a se mudar para cá, e eu ainda estava nervoso e excitado com tudo isso.

- O que você fez?

- Corrí ao apartamento dele; morava no 6A. Disse-lhe que era o proprietário e que recebera um sinal indicando que ele usara um detector. Expliquei que grampeara os telefones por brincadeira, um passatempo. Fizemos um acordo. Dei-lhe dinheiro, acho que foram dois mil dólares na primeira vez. Combinamos que eu não falaria das drogas e ele não falaria dos telefones grampeados. Mas logo depois ele pediu mais dinheiro, e mais, muito mais, exatamente como fazem os chantagistas. Então um dia desci ao apartamento dele e troquei os conteúdos de alguns pacotes. Foi tão fácil... - Suspirou, consultando mais uma vez o relógio. Sorriu. - Com Rafael, o zelador, foi um caso engraçado. Daria uma comédia de costumes. O Estranho Casal. Ele ficou cismado com o 13B e, um dia, por curiosidade, entrou no apartamento quando eu não estava em casa. Ele não sabia que eu estava envolvido, só não queria ser visto entrando lá às escondidas. Quando voltei, lá estava ele diante dos monitores.

- Outra chantagem?

- Um pouco. Duzentos por semana. O problema é que ele ficou viciado, assim como você. Passava de quatro a cinco horas por dia diante dos monitores, e no mínimo duas noites por semana também, controlando tudo sozinho a maior parte do tempo, negligenciando suas obrigações... e não havia nada que eu pudesse fazer para mudar essa situação. Então ele quis trazer a mulher para ver também. Em seguida seriam os filhos... - Suspirou, dando de ombros. - A sra. Ortiz recebeu uma bela bolada no acordo que fez conosco.

- Eu sei. - Kay continuava sentada, as mãos sobre os joelhos.

- Que é isso, você andou investigando?

Ela assentiu.

- Claro - disse ela, acenando com a cabeça.

- Naomi também ficou viciada?

- Não. - Olhou para ela. - Ela não me deixava ligar o equipamento. Era daquelas idealistas, defensora ferrenha dos direitos civis. Não fui eu que contei, ela descobriu por si só. O Canal Treze tinha apresentado um programa sobre vigilância eletrônica, e eu cometi alguns erros grosseiros - olhou as horas -, como, por exemplo, saber onde ela guardava o jogo americano. Sim, nós tivemos um relacionamento, mas só ficávamos juntos uma vez por semana. Ela não queria que ninguém soubesse. - Sorriu. - Por causa da diferença de idade, sete anos. Na época, eu tinha vinte e quatro e ela trinta e um.

- Ela ia denunciar você?

Ele assentiu.

- E você a obrigou a escrever aquela carta...

- Não, eu a escrevi. Fiz uma colagem com frases tiradas de um caderno dela, e depois fiz várias cópias xerox dessa montagem. Treinei bastante, escrevendo por cima das letras cerca de cinquenta vezes, até conseguir escrever o texto com fluência. Eu tinha tempo; doei cem mil dólares ao Greenpeace, e ela me deu um mês para retirar os monitores. - Consultou mais uma vez o relógio.

- Suponho que no início...

Ele a interrompeu, levantando-se com a arma apontada para ela:

- Vamos lã para dentro. Se gritar, estará desperdiçando seu fôlego, pois Vida saiu e Phil também. - Bateu com o pé no chão. - E os Ostrow estão dando uma festa e tanto. Foi por isso que marquei para esta hora.

Ela continuou sentada.

- Por favor, querido...

Ele inclinou-se em sua direção.

- Não há outro jeito. Acredite, passei a noite toda em claro tentando encontrar outra saída. Você é igual a Rocky. Sheer. Mesmo que você jurasse que aceitaria suborno, eu não acreditaria. Agora vamos. - Fez um gesto com a arma na mão para que ela se levantasse.

Kay respirou fundo, virou o corpo e, levantando-se, pegou o facão e arremessou-o contra a cabeça de Pete, avançando contra ele enquanto ele se desviava do facão. Bateram no braço da poltrona, que tombou de lado, jogando-os ao chão; Felice miou e saiu correndo.

Rolaram no chão e Kay ficou por cima dele, segurando-lhe o pulso da mão armada. Com a outra mão, ele a pegou pelo pescoço e a empurrou para trás; ela agarrou-lhe o braço enquanto ele saía debaixo dela. Ele desvencilhou-se e pôs-se de pé, segurando o revólver; ofegante, esperou enquanto ela se punha de joelhos, apoiada na mesa, esfregando o pescoço.

- Posso matá-la aqui mesmo - disse ele. - Sou flexível.

Ela o acertou entre as pernas com o livro Magritte e, enquanto ele se dobrava ao meio, segurou-o pelo pulso com as duas mãos, girou o corpo e puxou-lhe o braço por sobre o ombro, tentando aplicar-lhe um balão. Gemendo de dor, ele lhe deu um soco no ombro; Kay arrancou-lhe o revólver da mão e recuou até a janela, segurando a arma com as duas mãos, apontada para ele, que se agachara segurando o ombro, e agora esfregava o braço, olhando-a fixamente com seus olhos azuis. Felice miou, empo- leirada no balcão da cozinha.

Com respiração ofegante, fitavam-se.

- Eu treinei com uma arma igual a esta em Siracusa - disse Kay. - Encoste naquela parede.

Sem despregar os olhos dela, ele deu um passo para o lado.

- Kay...

- Para trás. - Segurava o revólver com as duas mãos, o dedo no gatilho. - Não diga nada. Não quero mais ouvir uma palavra sua.

Ele parou, imóvel.

- Que tal adeus? - Virou-se e correu.

Ela o acompanhou com a mira, sem disparar, vendo-o fugir - não para o hall, mas através do vestíbulo, direto para o quarto, batendo a porta atrás de si.

Kay abaixou a arma.

Olhou a porta fechada.

Correu até lá.

Parou, sentindo um ar gelado envolvendo seus tornozelos.

Um floco de neve passou por debaixo da porta, transformando-se numa pequenina mancha de água sobre o taco de madeira.

Fechou os olhos, suspirando.

Empurrou a porta contra a força do vento. Abriu-a de todo, encostando-a na parede.

A cortina esvoaçava no quarto iluminado, soprada pelo vento que entrava pela janela aberta, deixando entrar também a neve e a escuridão,

Kay ficou parada, os olhos arregalados. Engoliu em seco.

Encostou-se no batente, fechou os olhos, a mão com a arma pendendo ao lado do corpo.

Respirou fundo.

Expirou. Entrou no quarto, colocou a arma sobre a cama. Abraçou o próprio corpo, os olhos lacrimejando.

Esfregou os cantos dos olhos com os nós dos dedos e aproximou-se da janela. Abrindo caminho por entre os panos da cortina esvoaçante, abriu os braços e segurou com as duas mãos a esquadria de bronze. Debruçou-se na janela, em meio ao vento e os flocos de neve, e olhou para baixo. O vento diminuiu, uma porta sanfonada deslizou. Ela virou-se bruscamente e ele a empurrou pelo meio do corpo; empurrou-a de costas pela janela.


13

Kay sentiu um tecido roçar em sua mão e agarrou-se a ele; segurou com a outra mão, girando o corpo; ficou suspensa no ar, pendurada em meio a uma profusão de chintz e voai. Seu ombro chocou-se contra a parede recoberta de tijolos, o pé escorregou pela vidraça. Olhou para cima e viu Pete olhando para ela. A cortina estremeceu; Kay lançou os olhos para o trilho, preso na parte interna da janela.

O rodízio da ponta da cortina de voai cedeu, o segundo cedeu, e o seguinte, a fileira inteira de rodízios se soltando enquanto ela subia pela cortina e se agarrava ao trilho da janela, primeiro com uma mão e depois com a outra. Tentou suspender o corpo forçando os joelhos contra a parede revestida de tijolos, fazendo o máximo esforço com os braços e as mãos. O vento a empurrava, a cortina esvoaçava na abertura da janela; a porta do quarto bateu.

- Merda - disse Pete, balançando a cabeça e fazendo uma careta. - Merda...

Ela se agarrava ao trilho da janela, olhando-o com expressão assustada.

- Não posso! - gritou Pete. - Preciso pensar em mim). - Afastou-se da janela.

Olhando os tijolos da parede, os joelhos prensados contra uma ponta de argamassa, braços e dedos doendo, moveu os dedos da mão esquerda tentando alcançar a esquadria da vidraça, a poucos centímetros de distância. Se conseguisse se apoiar no ponto em que a esquadria se juntava com o trilho, subir pelos tijolos... E não pensar que estava pendurada a vinte andares de altura, fustigada pelo vento e pela neve, na parte dos fundos de um alto edifício... Sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha e estremeceu. Pendurada pelas mãos, fazia força com as pernas e os joelhos, arrastando os dedos pelo trilho gelado, sem olhar para baixo. Apenas mais um revigorante exercício de ginástica. Como se estivesse na academia do Vertical Club...

- Ainda vai dar certo.

Ele voltara à janela.

Estava sentado de lado no peitoril, apertando os olhos para se proteger dos flocos de neve, as mãos envoltas em luvas de plástico, limpando o revólver.

- Foi com ele que você lutou - disse Pete -, depois ele a perseguiu até aqui, empurrou-a pela janela, e então se matou com um tiro. Ele chegará dentro de quatro minutos, e peço a Deus que não se atrase. - Guardou a arma na parte interna do casaco e franziu o cenho com ar pensativo. - Talvez fosse melhor se ele a jogasse da janela...

Kay alcançou a esquadria com a mão esquerda e fez força com os braços; conseguiu levantar o joelho direito - que já estava ficando dormente, o brim da calça encharcado e gelado - até o tijolo seguinte; fez o mesmo com o joelho esquerdo. Forçando os dois joelhos contra a parede, conseguiu deslocar a mão direita até o trilho interno.

Pete levantou-se e pegou o telescópio, segurando-o com a mão enluvada pela extremidade mais fina. Abaixando-se, encaixou a borda da extremidade mais larga sob os dois dedos médios que se agarravam ao trilho e levantou-os.

- Jamais a esquecerei - gritou ao vento. - Tenho as fitas gravadas. De ontem à noite, e da sua primeira noite no prédio, mesmo que a qualidade da gravação não seja boa, e daquela noite de sábado... Há exatamente seis semanas... - Sorriu, levantando a ponta dos dedos dela com o telescópio, delicadamente, a fim de não deixar marcas. - Nós fizemos uma boa farra, não foi? Ó Deus, quem me dera que isso não tivesse de terminar assim, Ficarei vendo você no vídeo enquanto eu viver. Fora, Felice!

Felice vinha andando pelo peitoril.

- Passa fora!

Felice parou, olhou-o... e continuou a andar, chegando aos dedos que se agarravam ao canto da vidraça. Cheirou-os.

Recuou, chiando, com o pelo arrepiado.

Ele se levantou.

- Saia daí. Mamãe está ocupada caindo da janela.

Felice espichou a cabeça, cheirou mais uma vez os dedos agarrados na esquadria e chiou novamente. Deu um passo à frente, colocou a cabeça para fora, assustando-se com o vento e a neve. Olhou para baixo e deparou com o rosto de Kay.

Recuou, cheirou mais uma vez os dedos.

Virou-se, chiando. Deu alguns passos para trás ao longo do peitoril.

- Quieta, Felice. Sou eu. É o papai.

Felice rosnou para ele, estreitando os olhos; chiando, arre- ganhou os dentes, abriu as garras, esticou a cauda para trás.

- Se manda, Felice. - Ameaçou-a com o telescópio. - Ou será que você prefere...

Chiando, ela saltou do braço para o rosto de Pete, abocanhando- lhe o nariz enquanto cravava as garras em seus olhos. O telescópio voou enquanto ele tentava segurá-la, as mãos enluvadas escorregando no pêlo macio. Com um grito abafado pelo da gata, ele caiu para trás.

NEM UMA ALMA viva no hall do vigésimo andar. Ele olhou as horas no relógio enquanto a porta do elevador se fechava às suas costas: nove em ponto, os ponteiros formando um ângulo de noventa graus perfeito.

Peiguntou-se em que exatamente consistia a complicada logística de Peter Henderson. Olhou-se no espelho - olhos vermelhos, péssima aparência. Arrumou a gola do casaco de modo que a parte puída não aparecesse - pelo menos, na chegada.

Aproximou-se da porta do 20B e escutou atentamente. Nenhum sinal de gente. Tocou a campainha.

Examinou a caixinha da Dollhouse Antiguidades, amarrada com um bonito laço de fita. Esperava não ter exagerado. Bem, agora era tarde demais...

Um grito vindo lá de dentro?

Experimentou a maçaneta; ela girou.

Abriu uma fresta da porta. As luzes estavam acesas.

- Olá - chamou na direção da sala. - Alguém em casa?

Um gemido sufocado vindo do quarto.

Abriu mais a porta. A cozinha estava bagunçada; imaginava que Ray fosse uma pessoa caprichosa. Um pássaro voando, um belo quadro retratando um falcão ou um gavião ou coisa parecida estava pendurado na parede entre a cozinha e o banheiro. A porta do quarto estava fechada.

- Tem alguém aí? - gritou, entrando.

Colocou a caixa sobre o pequeno aparador ao lado da porta, firmando a prateleira de mármore que oscilara ao ser tocada. Saltou para trás ao ver uma faca cair de baixo da prateleira - era um facão de cozinha, de cerca de um palmo de comprimento, de cabo preto.

Pegou-o do chão, examinou-o e colocou-o na prateleira, ao lado da caixa.

Foi até a porta do quarto. Soprava um vento frio pela fresta embaixo dà porta. Bateu na porta.

- Kay? E Sam Yale. Você está bem?

Um gemido.

Abriu a porta contra a força do vento. Um gato malhado sujo de sangue passou correndo por ele, fugindo em direção à sala, a cauda arrepiada.

Abriu mais a porta e ficou chocado com o que viu.

Um homem com o rosto ensanguentado, sentado no chão ao lado da cama, gemendo, estendia em sua direção as mãos em concha, cheias de sangue. Peter Henderson. Com buracos ensanguentados no lugar dos olhos - como um ator maquiado para a cena final de Edipo Rei. Pedaços de cortina rasgada estendiam-se até a janela aberta, onde Jesus! - viu surgir uma cabeça morena, olhando para ele. Sam passou correndo por Henderson, apoiou o joelho no peitoril, o coração disparado. Agarrando Kay pelo cinto, por trás, passou o braço por baixo dela - gelada, tiritan- do, com a roupa encharcada - e ajudou-a a subir no peitoril. Ela suspendeu as pernas e tombou de lado, as feições contraídas de dor. Os joelhos puídos do jeans manchados de sangue.

- Meu Deus - exclamou Sam.

Henderson gemeu.

Sam ajudou-a a sentar-se e a baixar as pernas; fechou a janela às costas dela, levantou-se, e fechou-a de todo. Desabotoou o casaco.

- Chamarei uma ambulância agora mesmo! - gritou.

- Eu posso ouvir - respondeu Henderson.

Kay continuou sentada no peitoril, arrepiada de frio, olhando para Henderson, apertando os braços contra o corpo, as mãos enfiadas nas axilas. Seu cabelo estava molhado e despenteado, os lábios roxos. Voltou-se para Sam enquanto ele a agasalhava colocando o casaco sobre seus ombros, e perguntou:

- E Felice? Minha gata?

- Ela correu para a sala.

Ela descruzou os braços e apoiou-se na esquadria, dizendo:

- O chuveiro.

Ele ajudou-a a se levantar.

- O que foi isso, em nome de Deus?

Conduziu-a por sobre a cortina dilacerada, amparando-a, enquanto ela arfava e tremia de frio. Henderson gemeu. Ela procurava manter-se junto ao armário, olhando só para a frente. Sam segurava-a pela cintura e pelo ombro.

- Ele ia... nos matar... a nós dois.

- Por quê?

- Foi ele quem matou os outros. Vigiava todos os apartamentos. Com câmeras de vídeo.

- O quê?

Chegando à porta, Kay tirou o casaco dos ombros.

- Ele é o proprietário do prédio. O telefone é ali. Tome cuidado, ele está armado. - Devolveu-lhe o casaco. - Ele é filho de Thea Marshall.

- Bem que eu achei que ele podia ser filho dela! Você disse câmeras de vídeo? Vá, vá tomar seu banho. Me desculpe.

Ela entrou no banheiro e acendeu a luz. Trancou a porta.

Tirou os tênis e entrou no chuveiro.

Abriu o registro da água quente.

Despiu-se embaixo da água, examinou os joelhos esfolados, as mãos, os dedos, massageou os braços.

Abriu mais a água quente.

Ficou parada, abraçando o próprio corpo, chorando.

QUANDO SAÍRAM do carro da polícia na frente do "Edifício do Terror", pouco depois das duas pelo relógio de Sam, depararam com lâmpadas halógenas montadas em tripés dos dois lados da passarela de entrada, furgões estacionados em fila dupla, um outro furgão que entrava com velocidade na avenida, vindo da Rua 92. Foram assediados por fotógrafos. Sam tentou afastá-los dos dois lados brandindo a mão com o dedo em riste, enquanto Walt brandia uma pá de limpar neve.

Conseguiram chegar ao saguão, onde cerca de vinte moradores estavam reunidos em volta de rádios e contratos para entrar com processos coletivos.

- É verdade mesmo que todos os apartamentos são vigiados por câmeras? - perguntou Vida.

- Sim - respondeu Kay.

- Ele matou Rafael, e todos os outros? - perguntou Dimitri.

- Menos Brendan Connahay.

- A polícia levou fitas de vídeo - comentou Stefan. - Eram de nós?

Ela assentiu.

- Ele está cego? - alguém perguntou.

- Sim - respondeu Sam. - Pessoal! - Levantou as mãos, parando de costas para os elevadores. - Nós já contamos tudo aos repórteres na delegacia; vocês poderão ler tudo nos jornais de amanhã. Não quero parecer antipático, mas tivemos uma noite muito difícil, principalmente a srta. Norris. Peter Henderson está no Hospital Metropolitan, sob guarda policial. Ele nunca mais verá nada. Se têm perguntas a fazer, procurem o investigador Wright, da 19? Delegacia. Verão que ele é muito simpático e gentil. Obrigado a todos.

Subiram no elevador da direita.

KAY PREPAROU CAFÉ de verdade. Tomaram-no sentados no sofá, com Felice dormindo no colo dela.

- Ela será a gata mais famosa do país - comentou Sam. - Vai namorar Morris, do Sete Vidas.

Ela tomou um gole de café.

- Será bom para os dois.

Sam sorriu com simpatia. Tomou mais um gole, olhou para o lustre.

- É incrível - disse ele. - Loucura gerada pela televisão. Acho que era inevitável que mais cedo ou mais tarde alguém acabasse sofrendo desse mal.

- Ele não é o primeiro caso. Existe um hotel com o mesmo tipo de equipamento, e dois prédios de apartamentos também. Pelo menos, foi o que ele disse. Sam, ouça, quero que saiba que jamais espionei você. Foi uma condição que impus desde o princípio: nem você nem os banheiros.

- Ainda bem que você foi exigente.

- Não faz ideia de como é hipnótico. E impossível parar de ver. Há sempre alguma coisa acontecendo, e até as coisas mais prosaicas se tomam interessantes, porque é a realidade e você nunca sabe o que vai acontecer em seguida.

Parou por um momento para beber seu café, e continuou:

- Eu vou descer ao apartamento dele. Há algumas fitas lá das quais eu quero rae livrar, fitas minhas; e as que a polícia está procurando devem estar lá também; a menos que ele as tenha apagado. Mas acho que não apagou, já que gravou esta noite.

- Você me deixou confuso. Não estou entendendo.

- Não importa. O caso é que eu vou descer ao 13B; quer vir comigo?

Eles se entreolharam.

- Só para ver como é - disse Kay. - Não para ficar vigiando os vizinhos.

- O apartamento não está lacrado?

- Com uma fita adesiva, suponho. Tenho uma chave. Não se preocupe, direi ao investigador Wright exatamente o que fiz e por quê, mesmo que não encontre as outras fitas. Tenho certeza de que ele entenderá. Se não entender, a responsabilidade será minha,

Ele coçou a orelha, indeciso.

- Bem... Acho que eu deveria, ante a possibilidade remota de eu acabar dirigindo a minissérie.

- O que quer dizer com "possibilidade remota"? - Colocou a caneca na mesa. - Incluiremos esta cláusula no contrato. - Pegou Felice nos braços, levantou-se e virou; fez uma careta de dor, levantando o pé. - Ai, meu Deus, meus joelhos.

- Ahhh - Sam fez uma careta e levantou-se do sofá.

Kay colocou Felice no afundado da almofada e beijou-lhe a cabeça.

- Gata linda. Isso é que é gata. - Beijou-lhe o focinho. - De agora em diante, só filé de atum.

Felice agitou-se na almofada de veludo, ronronando, de olhos fechados, Balançou os bigodes.

Ao se encaminharem para a porta, Kay comentou:

- Aposto que todo mundo no prédio ainda está acordado, comentando o caso.

Ele abriu a porta e esperou que ela passasse.

- Sabe que eu não me importaria de dar uma espiada? - disse Sam, saindo atrás dela.

 

 

                                                                  Ira Levin

 

 

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