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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÃE DE ALUGUEL / Kay Thorp
MÃE DE ALUGUEL / Kay Thorp

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Passeando entre os olivais, Jan pensava em como seria sua vida dali em diante. Assinara, sem ler, um contrato de trabalho e descobriu que se comprometera a gerar um filho para dom Felipe de Rimados, um solteirão convicto. Desesperada, queria anular o contrato e esquecer o pesadelo que estava vivendo. Mas bastou um toque daquele estranho para jogar por terra todas as suas convicções.

Ficaria! E daria a Felipe não apenas um herdeiro. Daria seu amor de mulher e a paixão que a devorava. Então ele descobriria o poder do amor verdadeiro!

 

 

                             

 

 

Puxa, esse estúdio merecia um nome especial, refletiu Jan, olhando ao redor da grande sala de teto alto com estantes com­pletamente ocupadas. Havia abajures de ferro forjado além do grande candelabro central, todos apagados, é claro, àquela hora da tarde. Dois grandes sofás de couro ficavam frente a frente dian­te da lareira, enquanto a mesa ao lado da qual se encontrava era quase monolítica em sua solidez.

Dom Felipe chegaria dali a pouco, dissera o empregado e a le­vara ali. Esperava que a interpretação do que significava "pou­co" para o espanhol fosse a mesma que a sua. Queria que a entrevista inicial terminasse logo.

Não que pudesse ocorrer algum problema. Raine já o infor­mara da substituição. Um trabalho em um milhão, fora o que dissera. Até ali, Jan não vira nada que pudesse contestar tal afir­mação. Quando vira pela primeira vez a hacienda, ficara sem fa­la. Tratava-se de um local maravilhoso e imponente.

Trabalhar num lugar como aquele sem dúvida seria bom, prin­cipalmente se comparado ao escritório apinhado onde passava todos os dias até uma semana antes. Gary não queria deixá-la partir, mas a verdade é que ele não tivera outra opção.

Como se permitira um envolvimento com um homem que era não só seu patrão, mas também casado, era um assunto que Jan não gostava de pensar. Felizmente caíra em si antes de a relação chegar naquele ponto de onde não há mais volta. Mesmo que Rai­ne não tivesse aparecido com tal oportunidade, teria de deixar o emprego. E dali em diante só se envolveria com alguém que pudesse corresponder ao que sentia.

Voltando-se para olhar pela janela grande e decorada, viu um homem cruzando o jardim interno. Maior do que a média dos espanhóis, usava calças de cavalgar e camisa branca, que dali pa­recia ser de seda, pelo modo como contornava o torso forte. Ca­belos negros e ondulados completavam o rosto de feições fortes e másculas. Pouco mais de trinta e cinco anos, fora o que Raine dissera. Se aquele era dom Felipe, então o trabalho não seria na­da fácil. Parecia ser o tipo de homem que comandava e esperava que fizessem o que ordenava no mesmo instante.

— Pare de imaginar problemas — murmurou para si mesma. — Estou em outro país, aqui tudo é diferente. Ser a secretária pessoal de dom Felipe de Rimados... isso não seria motivo sufi­ciente para aceitar alguns ajustes? Raine devia estar mesmo mui­to apaixonada pelo homem que a pedira em casamento, para deixar aquele emprego.

Notando um espelho na parede, observou-se nele. Era uma mu­lher de altura normal, num vestido elegante que começara o dia bem passado, mas que agora já tinha vários amassados. Não ha­via o que fazer quanto a isso. E dom Felipe sabia que ela viera de muito longe. Sem dúvida não seria muito exigente.

Os cabelos, na altura dos ombros, sobreviveram ao trajeto. O cabeleireiro quisera clarear o tom castanho-escuro natural, mas ela não permitira. Trabalho e corte de cabelo novos já eram o suficiente. Ali no espelho seu rosto lhe parecia bastante diferen­te, com os olhos azuis brilhando de ansiedade.

A porta se abriu atrás dela. Preparando-se, Jan se voltou para enfrentar os olhos fortes do homem parado diante da porta. As sobrancelhas bastas se encurvaram enquanto ele a estudava.

— Seja quem for — disse ele em tom frio —, você não é a srta. Presley! O que exatamente está fazendo aqui?

O inglês dele era excelente, notou a moça, decidindo que era a sua vez de encurvar as sobrancelhas.

— Eu não compreendo. Raine o avisou de que eu ficaria no lugar dela. Era...

— Não recebi aviso algum — declarou ele, e havia um tom metálico, de aço, na voz que saía pelos lábios bem desenhados. — Você está dizendo que ela não voltará?

— Temo que não — disse Jan, sentindo que seu coração não poderia se acelerar mais. Raine mentira, só podia ser essa explicação — lamento, deve ter acontecido algum problema. Eu entendi que o senhor fora informado, pelo que minha irmã disse.

— Sua irmã? Vocês não são parecidas.

— A mãe dela casou-se com meu pai. Ele adotou Raine legalmente. É por isso que temos o mesmo sobrenome. Estou tão sur­presa quando você, señor. Pensei que tudo estivesse acertado.

— Não tive nenhum contato com sua irmã desde que ela partiu para a Inglaterra faz duas semanas. Ela teria só mais dois dias antes que eu tomasse alguma medida legal.

— Para recuperar o adiantamento de salário que deu a ela? Raine me falou sobre isso. Sem dúvida o dinheiro lhe será devol­vido se decidir que não sirvo para o cargo.

Os olhos de dom Felipe percorreram seu rosto, depois desce­ram, examinando o resto de seu corpo. Jan forçou-se a ficar cal­ma diante disso.

— Você está plenamente ciente das condições do contrato?

— Claro — respondeu ela, sem ter muita certeza do que ele talava. Não sabia por que Raine agira daquele modo, mas pre­tendia conservar o emprego. — Possuo todas as qualificações para a posição. Incluindo um bom conhecimento de seu idioma.

— Isso nós veremos — disse ele, pela primeira vez revelando alguma raiva. — E por que sua irmã resolveu desistir do trabalho?

— Ela vai se casar — explicou Jan, fazendo força para não se deixar intimidar por aquele homem.

— Casar? Com quem?

Um homem, eram as palavras que estavam na ponta de sua língua.

— Alguém que ela conhece há algum tempo, mas que nunca esperava que a pedisse em casamento.

— Uma paixão repentina?

— Isso é assim tão estranho, señor? As pessoas se apaixonam em todas as partes do mundo.

— E também depressa demais, na maioria das vezes.

— Esse é um ponto de vista um tanto cínico — declarou ela, sem conseguir se conter. — É fácil perceber que nunca esteve apai­xonado!

— Que percepção! Mas não são minhas emoções e hábitos que estamos discutindo. Sua irmã assinou um contrato comigo, e te­nho o direito de exigir satisfações.

— Ela fez o possível para conseguir uma substituta. Farei tu­do o que pedir. Apenas me dê a chance.

Dom Felipe fechou a porta, os olhos sempre fixos na mulher. Jan começava a considerar que estava tudo perdido quando ele falou.

— Preciso pensar no assunto. Enquanto isso, farei com que lhe mostrem seu quarto.

A moça ficou onde estava, enquanto o dono da casa ia até o puxador da campainha junto à lareira. Pelo menos ele não a es­tava mandando embora de cara. Seu olhar deteve-se nos ombros fortes e na cintura fina quando ele ergueu o braço. Não era um homem bonito pelos padrões habituais, mas sem dúvida muito masculino. Um falcão, foi a idéia que lhe surgiu na mente assim que o viu. E, visto de perfil, o nariz aquilino e o queixo forte não destruíam a imagem. E aquela boca podia ser cruel, não ha­via dúvida, considerou ela, sentindo um arrepio percorrer a espinha.

— O jantar será servido às nove horas — informou ele. — Você me dará o prazer de sua companhia.

— Já terá decidido até lá?

— Talvez. Há muito a ser levado em conta.

Jan não sabia o que deveria ser levado em conta. Mas não gas­tara nada do dinheiro que Raine lhe entregara, por isso poderia devolver tudo, se ele assim decidisse. Tudo que queria era uma chance de mostrar sua competência.

O empregado que atendeu ao chamado foi o mesmo que abri­ra a porta para ela. Com rosto impassível, ele ouviu as instru­ções do patrão, então com um gesto indicou a Jan que devia segui-lo. A moça sentiu o olhar penetrante em suas costas ao sair da sala e, mantendo os ombros retos, decidiu que, qualquer que fosse o veredicto, o aceitaria com dignidade. Na verdade, era tu­do que possuía no momento.

Jan ficou sem ar ao ver o quarto. Era incrivelmente luxuoso. Apesar do calor de agosto do lado de fora, dentro das largas pa­redes da casa estava muito agradável. O chão fora acarpetado, num tom azul escuro, combinando com a colcha de seda azul-escuro, combinado com a colcha na cama larga. As cortinas também azuis eram sustentadas por cordas, formando curvas que emolduravam a maravilhosa vista do local.

De um lado ficava o quarto de vestir, com várias portas de guarda roupas, e ao lado de um maravilhoso banheiro, com uma grande banheira no alto de dois degraus. Se aquele era o mesmo quarto que Raine vinha usando, então parecia que dom Felipe não privava seus empregados de nenhum conforto.

A ansiedade inicial de Jan em manter o emprego estava começando a dar lugar à dúvida. Dom Felipe era um tipo de homem que não conhecia. Estaria mesmo disposta a trabalhar com um sujeito mandão como aquele? Obedecer ordens era uma coisa, lei completamente controlada por alguém, era outra bem diferente.

Por outro lado, ainda não tinha emprego algum. E o fato de ele não saber da substituição... O que Raine teria tramado? Ela dissera que tinha contatado o patrão e arranjado tudo. Muito cla­ramente. Parecia idiota que ela mentisse sob tais circunstâncias. Mas, pensando bem, quem poderia dizer o que se passava pela cabeça de Raine? Nunca tinham sido chegadas. Talvez tivesse ban­cado a tola por confiar na irmã adotiva. Não seria a primeira vez que ela a colocava em apuros.

Mal se recordando da mãe que morrera quando estava com três anos, aos dez fizera o máximo para aceitar a madrasta, mas não fora fácil. A mulher não fora de modo algum cruel. Apenas de­sinteressada. Era Raine quem recebia abraços e beijos e os cum­primentos quando ia bem na escola. Jan sempre pensara que talvez tudo tivesse sido diferente se ela e Raine não tivessem a mesma idade, mas agora, aos vinte e três anos, começava a duvidar disso. Seu pai não lhe dedicara muito tempo. Só pensava no traba­lho. Sua morte com um ataque cardíaco quando Jan tinha dezoi­to anos, no entanto, a deixara entorpecida e muito triste. A revelação de que ele estava à beira da falência foi outro choque. A casa foi tudo que restou, e a madrasta tratou de vendê-la rapidamente, comprando outra menor e assim providenciando uma boa quantia de dinheiro por mês para si mesma. Assim que encontrou um bom emprego, Jan ficou feliz por ir morar num apar­tamento só seu.

Raramente estando contente por alguma coisa por mais que al­guns meses, Raine desenvolvera o gosto por viagens, e Jan se acos­tumara a receber cartões-postais de todos os cantos da Europa, além de encontrar a irmã vez por outra em sua casa, sempre com muitas histórias para contar. O que ela fazia para conseguir di­nheiro Jan não imaginava. Mas Raine nunca demonstrara nenhu­ma falta dele.

Sua última visita e a oferta desse trabalho há menos de uma semana lhe parecera no momento um presente dos deuses. Jan não parara para pensar, apenas agarrou a oportunidade com as duas mãos. É verdade que o adiantamento de seis meses de salá­rio lhe parecera um tanto estranho, mas uma pessoa não recusa cinco mil libras. Fora bastante fácil mudar a inicial do nome na passagem de avião, e ali estava ela.

E ali teria de ficar, considerou a moça, se fosse possível, já que destruíra todas as pontes ao passar por elas.

Era tentadora a idéia de desfazer a mala, que já fora colocada na sala de vestir. Mas tiraria só o necessário, esperando a decisão.

A bandeja com chá e bolinhos que lhe foi levada às quatro e meia foi uma agradável surpresa. Tentou conversar com a jovem criada, mas ela era ou muito tímida ou fora avisada para não con­versar, porque respondeu apenas com sim ou não.

Com várias horas até o jantar e cansada da viagem, decidiu tirar uma soneca depois do chá. Apesar de a cama com dossel ser muito antiga, o colchão era moderno e muito confortável. De­pois de dobrar com cuidado a colcha azul de seda, Jan deitou-se por cima das cobertas, sentindo que lentamente as tensões do dia se esvaíam. Só uma hora de sono, prometeu-se ela, bocejando. Descansada seria mais capaz de lidar com a situação.

Parecia que apenas alguns minutos tinham passado quando abriu novamente os olhos. Quando levantou, se espreguiçando, foi que notou que a escuridão ao seu redor se devia ao fato de já ser noite. Um olhar para o relógio fez sair uma exclamação dos seus lábios. Já eram oito horas!

Foi pura sorte eu ter acordado a tempo, pensou ela. Chegar atrasada no primeiro jantar não seria um bom começo. Não que sua aparência ou qualquer outra coisa que fizesse pudesse ser capaz de mudar a decisão de dom Felipe, depois que ele a tomasse. Tudo que podia fazer era torcer para ele decidir em seu favor. Além da banheira, havia também um cubículo com um chuveiro. Jan podia se ver por todos os lados ali dentro, refletida nos espelhos das paredes. Isso aqui foi projetado ou usado por alguém muito narcisista, considerou ela, sentindo-se estranhamente consciente de si mesma pela repetição de sua imagem nua por todos os lados. E os espelhos deviam ser especiais, pois não em­baçavam.

Às oito e meia Jan estava pronta para o jantar, numa túnica de seda amarela, os cabelos soltos e apenas um mínimo de ma­quiagem. Um fio simples de pérolas que pertencera a sua mãe e o relógio de ouro que fora o presente de dezoito anos de seu pai eram todas as jóias que usava. Com um último olhar no es­pelho, considerou se preto não seria uma cor mais adequada pa­ra a circunstância, mas era tarde demais para ter dúvidas. Se dom Felipe era o homem que parecia ser, não seria incomodado por tal detalhe.

Do segundo andar onde ficava seu quarto a grande escadaria descia numa curva graciosa até o vasto saguão. Chegando até o corrimão, Jan ficou parada um instante, olhando ao redor, ima­ginando qual porta deveria tentar. Sentiu-se aliviada quando sur­giu a mesma criada que lhe levara o chá, dizendo para segui-la.

Decorada com o nível de conforto e opulência que Jan estava se acostumando a ver na casa, o salão para o qual foi levada pos­suía até grades de ferro enfeitando as janelas. Examinava o Corot sobre a lareira quando dom Felipe entrou. Vestido agora com calças pretas e camisa de seda preta com uma abertura no pesco­ço, onde se divisava o brilho dourado de um cordão, ele continuava com o mesmo ar de chefe.

— Você pelo menos é pontual — comentou ele. — Coisa rara numa mulher.

— Seria muito pouco recomendável não o ser sob essas cir­cunstâncias, señor.

— É verdade — disse dom Felipe, e um fugidio ar alegre passou por seus olhos. — Gostaria de beber alguma coisa?

A ponto de recusar, Jan de súbito mudou de idéia. Precisava de algo que lhe desse alguma coragem.

— Um cálice de sherry seria ótimo. Espanhol, é claro.

— Seco ou doce? Ou talvez eu possa sugerir um Oloroso?

— Por favor — concordou ela, lamentando o comentário so­bre a bebida. Os sherries da casa Rimados eram conhecidos em todo o mundo. Dom Felipe merecia alguns pontos por aceitar a piada em vez de repreendê-la.

Jan ficou observando o homem enquanto ele ia até o bar, ad­mirando seus movimentos controlados. Seu corpo era perfeito, sem um só grama de gordura em excesso, notou a moça, perce­bendo também o frio que sentia na boca do estômago. Manteve-se firme quando ele voltou, entregando um cálice de cristal com o sherry.

— A sua saúde! — brindou dom Felipe, erguendo seu cálice.

Encorpado e suave, o sherry a esquentou por dentro. Dom Fe­lipe continuava bem perto; perto demais, pensou ela, reprimin­do o súbito pânico. O homem a perturbava com toda sua masculinidade. Não estava acostumada com vibrações como aquelas.

— Continua querendo ocupar o lugar de sua irmã? — pergun­tou ele, com os olhos fixos no rosto da moça.

— Isso significa que está me oferecendo o emprego?

— Significa que estou disposto a permitir que prove suas qua­lidades do mesmo modo que sua irmã fez.

— E qual é esse modo?

— Você passará por um exame médico completo. Preciso, é claro, saber se é completamente sadia.

— É claro — concordou ela, tentando fingir que tal idéia fos­se normal, algo que acontecesse todos os dias. Era apenas uma secretária, por Deus, não uma executiva de uma grande empre­sa! Por outro lado, sabia que sua saúde era perfeita. Para conse­guir o emprego, por que não ter tal fato confirmado? — Quando devo fazer o exame?

— Amanhã cedo. Se tudo estiver em ordem, o contrato estará pronto, esperando por sua assinatura. E dessa vez será cumprido!

— Mas claro. Sempre cumpro o que falo.

— Ótimo... — disse dom Felipe, dando a impressão de que iria acrescentar algo, mas mudando de idéia. — Deixe seu cálice ali — comandou ele, ignorando o fato de que a moça não tomara nem metade da bebida.

A sala de jantar ficava do outro lado do saguão. Grande o suficiente para acomodar vinte pessoas, a mesa de madeira com gra­vações intrincadas estava posta para apenas duas. Jan viu-se sentada ao lado de dom Felipe, diante das peças de prata, porce­lana e cristal suficientes para um banquete. Vinho foi servido. Teve início um jantar com tantos pratos diferentes que Jan per­deu a conta.

— Você está comendo pouco — comentou o dono da casa. — A comida não a agrada?

— A comida é demais. Não estou acostumada com mais que três pratos, e mesmo assim só em ocasiões especiais — explicou ela, optando por contar a verdade e arriscando um sorriso rápido.

— Talvez seja por isso que é esguia. Alguns quilos a mais não lhe fariam mal.

— Ser magra está na moda. E também é mais saudável!

— Sei — murmurou ele, chamando o mordomo, Juan, e di­zendo para ele em espanhol que podia levar os pratos, e que que­riam apenas o café. — Você disse que sabe falar meu idioma — prosseguiu o homem, ainda em espanhol. — Onde aprendeu?

— Na escola noturna. Havia uma possibilidade de transferên­cia para o escritório em Madri da empresa em que trabalhava. Infelizmente outra pessoa chegou na frente.

— Uma pena. Mas você fala bem.

— Não tão bem quanto você fala inglês.

— Completei minha educação em Oxford — contou ele, sor­rindo. — E, depois de adquirida, não há como esquecer a pro­núncia. Você vem de Buckinghamshire, eu presumo?

— Exatamente — concordou ela, olhando para cima para agra­decer a Juan pelo café, conseguindo com isso um olhar um tanto surpreso do homem. — E minha família também — prosseguiu Jan, voltando a atenção para a cabeceira da mesa.

— Soube por sua meia-irmã que o pai dela tinha morrido. Ela falava do pai dela ou do seu?

— Ambos, eu calculo. O meu pai morreu faz cinco anos, quan­do Raine e eu tínhamos dezoito.

— Vocês duas têm a mesma idade? Eu achava que você era mais nova.

Será que ele está dizendo que pareço ou que ajo como alguém mais jovem?, pensou a moça, sem saber qual das idéias preferia.

— Por que você não se casou, Jan?

— Porque penso que existem coisas mais importantes que romance.

— Para um homem talvez, mas não para uma mulher. Acho que sofreu uma desilusão recentemente.

— Nada que possa atrapalhar meu trabalho, señor.

— Isso é uma questão de opinião. Você teve relações íntimas com esse homem?

Dois círculos vermelhos surgiram de cada lado do rosto dela. Jan fez força para manter o tom da voz.

— Eu duvido que isso seja da sua conta, señor.

— Toda e qualquer coisa relacionada com aqueles que empre­go é da minha conta. Devo presumir que a resposta é sim?

— Não! — gritou ela, perdendo o controle por causa da fria presunção daquele homem. — Não, não é!

Sem querer ela falara em inglês, acentuando a ênfase. E foi nessa língua que prosseguiu.

— Esse emprego que está oferecendo pode ser bom, mas mi­nha vida é meu problema. Se não pode aceitar isso, señor, então acho melhor terminar tudo por aqui mesmo!

— Você não pode falar comigo desse modo!

Jan estacou, detendo-se. Estava em outro país, outra cultura. Devia haver um modo melhor de lidar com a situação.

— Eu peço desculpas — declarou ela. — Não devia ter perdi­do a paciência desse modo. É que de onde eu venho as pessoas não fazem perguntas desse modo.

— As desculpas estão aceitas — disse ele, inclinando a cabeça.

— Você não se daria melhor com uma espanhola? — pergun­tou Jan de súbito, vendo a boca do homem se abrir.

— O principal não é a nacionalidade. Se terminou seu café, sugiro dormir cedo para estar disposta pela manhã. O dr. Valdés chegara ás oito.

— Antes do café da manhã?

— Mas claro. Alguns testes têm resultados melhores se feitos de estômago vazio. Poderá tomar o café da manhã assim que ele terminar o exame. Devo ter os resultados pelo meio-dia.

Creio que os considerará bastante satisfatórios. Até onde sei, não há absolutamente nada de errado comigo — disse a mo­ça, levantando-se. Achava melhor não dizer mais nada. — Boa noite, señor.

Boa noite — respondeu o espanhol, levantando-se junto com ela.

Então ele estudou em Oxford?, pensou Jan.

Só quando se viu em segurança sozinha no quarto, permitiu-se dar vazão ao que pensava. O sujeito era um déspota! Queria real­mente trabalhar para alguém assim? Por outro lado, um ano não era assim tanto tempo, e com mais cinco mil libras somadas ao que já possuía, poderia se permitir algum tempo antes de conse­guir outro emprego. O estranho era dom Felipe não ter lhe pedido provas de suas qualificações, percebeu de súbito. Mas sem dúvida ele o faria no dia seguinte, antes que assinasse qualquer contrato. Enquanto isso o melhor era fazer o que ele recomenda­ra e ir dormir.

De manhã as dúvidas retornaram, mas aos poucos se esvaíram diante da paisagem da janela. Os vinhedos pelos quais passara quando viera para ali perdiam-se a distância. A torre branca de uma igreja e uma série de telhados vermelhos mostravam que ha­via uma pequena vila ali perto.

Jan estava pronta quando o médico chegou, exatamente às oi­to. Era um homem com seus cinqüenta anos, com modos gentis mas impessoais, que fez os exames mais completos pelos quais ela jamais passara. Pelo menos, pensou Jan, se os resultados fo­rem bons, posso ter certeza de que viverei mais alguns anos.

Logo depois a jovem criada levou o café da manhã ao seu quar­to. O nome dela era Yola, a filha de Juan, o mordomo. Não ti­nha mais que dezoito anos, e era pouco feminina. Pensando no assunto, Jan decidiu fazer alguma coisa quanto a isso assim que tivesse uma chance.

Quando por fim ela desceu, às dez, não viu sinal de dom Feli­pe. Juan lhe informou que ele retornaria às duas para o almoço. Até lá estava livre para fazer o que quisesse.

Passou a hora seguinte andando de sala em sala, e chegou a se perder dentro da imensa casa. Tudo aquilo para um só homem era ridículo, pensou ela, assombrada. Havia até um salão de dan­ça, belíssimo, se bem que sem dúvida muito pouco usado.

Por fim, Jan acabou saindo da casa, para o calor forte do sol brilhante. Os jardins eram belíssimos. Passando por um arco de pedra, viu-se diante de uma piscina projetada para descer um pe­queno lago natural, com plantas e árvores ao redor. Tinha leva­do o maiô, na esperança de poder ir à praia, mas aquilo seria demais!

"Pare com isso", pensou ela. "Você nem mesmo sabe se tem um emprego ainda!"

A água azul era uma tentação. Calculando que dom Felipe não objetaria que nadasse um pouco, voltou para a casa e vestiu o maiô listado de preto e branco, pôs o robe por cima e calçou chinelos.

Exceto um homem cuidando das flores perto da casa e outro aparando arbustos, não havia ninguém que pudesse ter visto quan­do passou pelo pátio de trás e entrou na piscina. A água estava maravilhosa.

O desejo de Jan era ficar ali. Quem não gostaria de viver e tra­balhar num lugar assim? Dom Felipe podia ser um tanto man­dão, mas sem dúvida podia suportá-lo por um ano. Tudo que precisaria era de um pouco de diplomacia. É verdade que esse não era seu ponto forte, mas podia começar a praticar, conside­rando o que iria ganhar, ponderou ela, enquanto nadava.

Como mantinha os olhos um pouco fechados por causa do sol, Jan demorou algum tempo para perceber que aquela sombra es­cura não era uma outra árvore. Dom Felipe estava com as mãos nos bolsos.

— A água está boa?

— Muito... eu pensei que talvez tivesse de pedir permissão, mas...

A piscina está aqui para ser usada. Não precisa pedir per­missão a ninguém. No entanto, está na hora de concluirmos nos­so acordo.

Certo — concordou ela, indo para a beirada da piscina, sentindo o coração acelerar quando o espanhol lhe estendeu a mão.

— Você vai se molhar.

— Então ficarei molhado. Venha.

Jan sentiu a força dos dedos dele ao se fecharem ao redor dos seus quando ele a tirou da piscina, aparentemente sem nenhum esforço. Por um breve momento seus olhos ficaram na altura dos dele, e sentiu o corpo inteiro tremer devido a uma emoção que não queria examinar muito de perto.

Obrigada — agradeceu ela, apressando-se a vestir o robe, e só então se sentindo segura. — Quando falou "concluir", que­ria dizer que tenho de ir embora?

Não. Falei com o dr. Valdés, e ele disse que sua saúde é excelente.

Então eu vou ficar com o emprego?

Sim, eu diria que sim. Se quiser ir se vestir, haverá tempo para concluirmos as formalidades antes do almoço.

Sim, claro.

Dom Felipe a deixou no saguão, informando que a esperaria no estúdio. Indo para seu quarto, Jan tomou um banho rápido e vestiu saia e blusa de algodão que combinavam com seus olhos. Agora estava determinada. Ia ficar com o emprego, apesar de não saber direito o que teria de fazer.

O espanhol estava à janela quando Jan entrou no estúdio. Voltando-se, ele examinou o rosto da moça, com uma expressão indeterminada.

— O contrato está ali na mesa. Quer verificar os termos antes de assinar?

A moça fez que não.

— Já sei o que preciso saber — afirmou ela, pegando a caneta e assinando no local adequado. — Aí está!

Ele aproximou-se, pegou o papel e o examinou.

O que quer dizer o J?

Janine, mas todos me chamam de Jan.

Ele não fez nenhum comentário, colocando o contrato numa gaveta, que trancou.

— Agora vamos almoçar — decidiu dom Felipe.

Jan ficou feliz ao constatar que o almoço era uma refeição mui­to mais leve que o jantar. Estava com fome, e dessa vez comeu tudo que lhe foi servido, acompanhado com um vinho branco delicioso.

— Creio que deveríamos decidir exatamente o que eu devo fa­zer — comentou ela, quando já tomara metade do segundo co­po. — Naturalmente, estou pronta para começar agora mesmo.

— É o que espero. Essa noite será o melhor momento.

— Essa noite? — repetiu Jan, sem entender.

— Claro. A não ser que você prefira de dia.

— Não sei se compreendo.

Ele a estudou por um instante, o rosto impassível sofrendo uma leve alteração. Quando falou, foi num tom que ela considerou enervante.

— Exatamente o quê você acha que é o assunto do contrato que assinou?

— Ora... trabalho como secretária. Raine me disse que você precisava de uma secretária particular.

— Foi mesmo? Parece-me que sua irmã adotiva não tem mui­to apreço pela verdade.

— Por quê? Se o trabalho não é de secretária, do que é, exa­tamente?

— Eu quero um filho.

 

Quanto Jan passou ali apenas olhando para ele era impossível dizer. Sua mente girava, os sentidos estavam entorpecidos.

— Isto é alguma espécie de brincadeira?

— Eu não brinco com um assunto como esse. Sua irmã sabia exatamente do que se tratava.

— Eu não acredito! Ela não podia saber!

— Ela já havia mentido para você antes. Por que não o faria de novo?

— Porque ninguém que não fosse louco iria sequer pensar no que você está sugerindo. E eu, menos ainda!

— Você já assinou o contrato. Quis ficar no lugar de sua ir­mã, e é isso que fará.

— De jeito nenhum! — gritou ela, saltando de pé. — Vou em­bora agora mesmo!

— Não, não vai — disse dom Felipe em tom frio, também se erguendo. — Temos um contrato, e você vai cumpri-lo.

— Você não pode me obrigar! Não há corte no planeta que aceite aquele documento que assinei.

— Talvez não na Inglaterra. Mas estamos na Espanha. O meu país.

— Mesmo assim...

— Não importa — interrompeu ele. — Eu disse que você vai fazer o que está no contrato. Eu a avisei que dessa vez não have­ria volta.

— Eu não sabia! Você tem de acreditar em mim!

— E acredito. Seu problema é com sua irmã, e mais ninguém. E você teve a chance de ler o contrato antes de assinar. Porém optou por não fazê-lo.

— Isso me torna uma idiota! E, se você quer um filho, por que não tentar do modo normal, com uma esposa?

— Eu não quero me casar. Tudo que quero é a criança. Sem um filho, meu título e as propriedades passarão para meus pri­mos, que não têm o nome Rimados.

— Suas razões não me interessam. Qualquer coisa que você possa oferecer não me interessa! Vou voltar para casa, e você não vai me deter!

— Acha que não? E como pretende sair daqui?

— Do mesmo modo que vim.

— De carro? Dirigido por quem, se posso perguntar? Meu pes­soal é leal a mim. Não fariam nada contra minha vontade.

— Então vou andar até a vila e consigo transporte de lá.

— Todos na vila são meus empregados. Você não encontrará ajuda lá. E Jerez fica a mais de vinte quilômetros. Acha que po­deria andar até lá?

— Vou fazer tudo que precisar para sair daqui!

— Chega! — bradou ele, perdendo a calma. — Você vai se sentar e terminar o almoço, depois discutiremos o problema!

Jan ficou olhando para o homem, sem dizer uma palavra. Aqui­lo tudo era inacreditável! Gerar o filho daquele sujeito, como parte de um contrato!

— Ele seria ilegítimo! — lembrou ela. — Um bastardo, não é essa a palavra?

Os olhos dele adquiriram a dureza do aço.

— É claro que tomarei as medidas para adotar a criança. De­pois do nascimento, você receberá o restante das dez mil libras e uma passagem para a Inglaterra.

— Dez mil?

— Foi o combinado. Vinte mil libras esterlinas, metade adiantado.

Então Raine não só mentira sobre o trabalho com também fi­cara com cinco mil libras, percebeu Jan, sentindo-se enjoada. O dinheiro não importava, mas como a irmã pudera ter feito isso com ela?

A verdade era que, no entender de Raine, os fins justificavam os meios Sempre fora assim, apesar de ela nunca ter ido tão longe.

Dom Felipe a fitava com as pálpebras estreitadas, sem dúvida notando a mudança sutil no rosto dela.

— Então parece que sua irmã a enganou também nisso. Não é uma grande surpresa.

— Você está errado. Estava pensando que mais dez mil parecem desprezíveis para o que está pedindo.

— Sua lealdade é um ponto a seu favor — comentou ele, percebendo que a negativa era falsa e ignorando o insulto. — No entanto, essa questão é entre você e sua irmã. Vai se sentar como eu pedi ou terei de forçá-la?

Isso ele poderia fazer, era bastante evidente. Jan, preferindo manter a dignidade, sentou-se considerando que devia haver um modo de se safar daquela situação. Não tinha nenhuma culpa na­quela história.

O que teria acontecido se Raine não me mandasse no lugar dela? Quero dizer, você não poderia forçá-la a cumprir o contra­to, não sob as leis inglesas.

A lei não teria nada a ver com isso. Ela teria sido trazida de volta.

À força?

Se fosse o único modo...

Mesmo que ela devolvesse o dinheiro?

O dinheiro não é a questão. Ao contrário de você, ela acei­tou a proposta sabendo exatamente do que se tratava. Se não ti­vesse conseguido uma substituta, ela se veria numa situação muito ruim.

E você acha mesmo que o desaparecimento dela não iria provocar comentários?

Pelo que sei do estilo de vida da sua irmã, a resposta é sim. No aspecto físico ela preenchia todos os requisitos, mas não era perfeita nos outros. Ficando com você, sei que não houve nenhum outro homem antes de mim. Esse fato isolado talvez valha ou­tras cinco mil libras.

Seu maldito! — bradou a moça, sentindo o rosto em cha­mas. — Você não tem o direito de...

Tenho todos os direitos. Você me deu o direito. Quanto mais cedo se acostumar à idéia, melhor. Agora coma.

Mesmo se estivesse morrendo de fome Jan não teria consegui­do comer qualquer coisa. Que tipo de homem poderia conceber tal arranjo? E, mais importante, como fazer para fugir dali?

Nesse momento a porta se abriu e Juan entrou com uma ban­deja. Dom Felipe disse que os pratos poderiam ser retirados en­quanto servia ele mesmo mais vinho para Jan. O mordomo, alheio a tudo que acontecia, trocava os pratos, servindo um maravilho­so omelete espanhol. Ela pensou em pedir ajuda a ele, mas um simples olhar na direção do empregado a fez mudar de idéia. Se Juan sabia ou não dos planos do patrão não tinha idéia, mas nun­ca se voltaria contra o chefe. E isso provavelmente se aplicaria a todos ali. O que significava que estava sozinha.

— E se a criança fosse uma menina? Isso não o ajudaria em nada.

— Apenas homens nascem na família dos Rimados há mais de duzentos anos. Não creio que vá ser diferente agora. No en­tanto, se isso acontecer, o contrato será estendido até a obtenção de uma segunda criança, sob as mesmas condições.

— Então, tudo que tenho de fazer é seguir tendo filhas.

— Felizmente, o fator que decide o sexo da criança vem do pai e não da mãe. Talvez algumas lições de biologia não lhe fa­çam mal.

— Essa história toda é ridícula! Não vou...

— Está querendo dizer que terei de usar a força?

— Sim, estou. Eu não pensei que isso fosse necessário. Mas, se for...

— Você é um depravado! Sabia disso?

— Pode acreditar nisso, se lhe faz bem. Prefiro encarar tudo como uma experiência. E você pode me dar o que quero.

— Suponha que eu seja estéril.

— Pouco provável. O dr. Valdés disse que não há motivo pa­ra que você não tenha uma dúzia de crianças saudáveis. E eu quero apenas uma.

— Que modéstia da sua parte. E mesmo que vá em frente com isso, você acha que eu simplesmente iria embora depois? A criança também seria minha.

O contrato também fala nisso. Você abre mão de qualquer direito em troca do dinheiro.

Discutir tal ponto era pura perda de tempo. A questão era hi­potética, pois Jan não tinha a menor intenção de ir em frente com aquilo.

Seu dinheiro será devolvido. E isso, no que me concerne, invalida o contrato.

Todo o dinheiro? Diga-me, qual foi o total que ela lhe entregou?

Não importa. Mas por que escolheu Raine? Sem dúvida, se está fazendo tudo isso, seria melhor manter o sangue puro.

Eu mesmo tenho sangue inglês. Do lado de minha mãe. E não me preocupo com mais um pouco de mistura. É o meio que produz o caráter. Meu filho será espanhol, não importando sua cor. E, fora isso, encontrar uma mulher adequada e ao mesmo tempo disposta seria muito difícil.

Mas eu não estou disposta a continuar com isso. Isso não faz nenhuma diferença para você?

Sua irmã estava. Ou pelo menos parecia estar. Mas esta­mos andando em círculos. Devo continuar me repetindo?

E eu? — contra-atacou ela, animada pelo vinho que remo­vera sua natural inibição. — Prefiro me matar a permitir que vo­cê me toque!

A vida é tão doce. Acho que pode mudar de idéia. Essa noi­te, e todas as noites em que você puder engravidar, eu a visitarei. Se quiser que eu seja gentil com você, então é melhor agir de acor­do. Senão...

Jan ficou imóvel. Sua garganta estava seca. Podia perceber que ele falava a sério. Como Raine podia ter feito aquilo?

Eu gostaria de ficar sozinha. Tem algo contra eu ir para meu quarto?

Vá onde quiser, desde que não tente deixar a propriedade. Se quiser qualquer coisa, basta pedir a um dos empregados. Eles estão instruídos para obedecê-la.

Exceto para me ajudar a sair daqui, pensou ela. Levantando-se, Jan saiu da sala, passando por Juan, que trazia a sobremesa, com a cabeça erguida. Tinha de pensar na situação. Tinha de ha­ver um modo de escapar daquilo!

Apesar do tamanho, a cama lhe pareceu claustrofóbica. Com a grande porta de carvalho trancada, ela estaria totalmente pre­sa. E que dom Felipe a manteria trancada se fosse preciso não havia dúvida. Ele seria capaz de qualquer coisa.

Qualquer outro tipo de apelo à simpatia dele seria inútil. Do ponto de vista do espanhol, Jan fora paga e agora iria prestar o serviço. Qualquer atração que pudesse ter sentido por ele tinha desaparecido. Ele era frio, brutal e sem nenhuma honra. Pensar no que aconteceria se não fugisse dali provocava a contração in­voluntária de cada músculo de seu corpo.

— Pense! — disse ela a si mesma.

Ao chegar com o chá, às quatro e meia, Yola encontrou-a ain­da na cama. A garota falou pouco, mas havia algo no olhar dela que fez Jan imaginar que devia saber de seu destino. Pensou na possibilidade de pedir ajuda a ela, mas as chances de sucesso eram pequenas demais para valer o risco. Sua única possibilidade era conseguir mais tempo, e não tinha idéia de como fazer isso.

Ao cair da noite ela estava pronta a fazer qualquer coisa. Ves­tida com um vestido de linho branco, Jan desceu para o salão. Seu captor já estava ali, com uma bebida na mão. Ele se levan­tou quando ela entrou, e Jan notou que o terno claro que vestia era o complemento perfeito para sua roupa. E havia até um brilho que parecia de humor nos olhos escuros.

— Uma correlação muito rara — comentou ele. — Quer be­ber alguma coisa?

— Gim — disse ela depressa. — Com gelo, por favor.

Dom Felipe serviu a bebida sem fazer comentário, entregando-lhe o copo. Depois de pegar sua própria bebida, foi se sentar, ao lado dela.

— Acho que está na hora de nos entendermos — disse o es­panhol.

Jan forçou-se a ficar imóvel, reprimindo a vontade de se afas­tar dele.

— O único tipo de entendimento que quero é que você me deixe ir.

— Isso me fará retornar ao princípio de tudo. O arranjo deve ser mantido, mas talvez eu tenha sido um tanto precipitado. Vou lhe dar algum tempo para se acostumar com a idéia.

Quanto tempo?

Alguns dias.

Que generosidade!

Estou mesmo tentando ser generoso. Mas, se preferir, po­demos voltar ao plano original.

Não, não tenho pressa alguma.

Mas me conte, são só as minhas atenções que não deseja, ou as de nenhum outro homem?

A questão é que considero amor fundamental para fazer sexo.

Eu não. Me contento com atração. Se não a considerasse atraente, não teria concordado com a troca.

Então sem dúvida também considerava Raine atraente. Co­mo foi que se conheceram?

Ela bateu no meu carro quase aqui na frente do portão. O que mais que eu podia fazer além de trazê-la para dentro até que se recuperasse? Além de tudo, levou uma semana para o carro dela ficar pronto.

E durante esse tempo você a convenceu a aceitar sua proposta?

Não precisei me esforçar muito. Quando ela partiu, disse que iria acertar seus negócios na Inglaterra. Não falou nada so­bre a existência de um homem que estivesse a sua espera.

A proposta de Alan foi totalmente inesperada. E você não pode culpá-la por preferir se casar ao que você propunha. Você teria mesmo ido atrás dela?

— Do mesmo modo que farei com você, se conseguir fugir.

Jan decidira que, se conseguisse fugir, nada a faria voltar. E o primeiro lugar em que iria seria a polícia.

De repente a mão forte tocou seu queixo, fazendo com que olhasse para cima. Seus joelhos ficaram moles com a força da­queles olhos escuros.

Não tente fugir. Eu nunca deixo de cumprir o que falo.

E o que você faria? Ia mandar que batessem em mim?

Sim, você apanharia. Mas eu mesmo cuidaria disso.

E sem dúvida ia gostar muito disso!

— Não do modo que está pensando. Você tem orgulho, e eu odiaria ter de dobrá-la. Me obedeça, e isso não acontecerá.

Jan impediu-se de pronunciar as palavras pesadas que lhe vie­ram aos lábios. Não havia sentido em desafiar um homem que parecia considerar as mulheres subservientes.

— Parece que estou encurralada, señor.

— Felipe — corrigiu ele. — Passe a me chamar de Felipe a par­tir de agora.

Ainda segurando o queixo da moça, o espanhol se curvou, to­cando os lábios dela com os seus. Sem querer, ela se contraiu, enfiando as unhas na palma das mãos.

— Não creio que seja preciso usar de força com você, mi que­rida, quando a hora chegar.

Diante das sensações incontroláveis que ele lhe provocava com um único beijo, Jan começava a pensar que talvez ele estivesse certo. Ao contrário do que acreditava, estava constatando que mente e corpo não estão sempre do mesmo lado. "Mais uma ra­zão para eu fugir daqui", pensou ela.

Durante o jantar, Jan fez todos os esforços para demonstrar que abandonara qualquer intenção de fugir. E o espanhol era óti­mo para conversar. Por várias vezes a moça teve de relembrar a si mesma por que estava ali.

Ele também parecia relaxado. Sem a dureza que tinha no ros­to ao conhecê-la, o rosto estava mais jovem. Em outras circuns­tâncias, ela calculava que o consideraria devastador. Sem dúvida não era nem um pouco parecido com nenhum dos homens que conhecera.

— Eu sempre pensei que famílias latinas preferissem viver jun­tas — comentou ela, curiosa, na hora do café. — Esse lugar me parece grande demais para apenas uma pessoa.

— Minha mãe morreu quando nasci. Meu pai não se casou no­vamente. Ele morreu num desastre aéreo há alguns anos. E meus tios e tias e primos têm suas próprias casas.

— Mas nenhum deles é próximo o suficiente para ser nomea­do seu sucessor?

— Nenhum deles tem o meu nome. Já lhe disse isso. Os dois irmãos do meu pai morreram numa epidemia quando eram muito jovens.

Sua família viveu muitas tragédias — declarou ela, com simpatia genuína.

Todos nós vamos morrer mais cedo ou mais tarde.

Mas é preferível que seja mais tarde. E você, nunca se ca­sou por não gostar de mulheres?

Você desconfia de que tenho certas tendências? — perguntou ele, com um sorriso muito sutil.

"Isso", pensou ela, "é a única coisa que sei com certeza em relação a esse homem!"

Não. Nem por um instante.

Estou aliviado. Minhas razões para não querer me casar são pessoais, mas não incluem desagrado pelas mulheres. Pelo con­trário, prezo muito a companhia feminina.

Suponho que esteja falando em sua cama?

Você se dá muitas liberdades, não é? — disse ele, come­çando a ficar bravo.

Não mais que você.

Com a diferença de que eu posso.

Do seu ponto de vista. O dinheiro pode comprar o corpo, señor, mas não o espírito!

Ora, então gosta de tiradas! E de poesia? Creio que nossa relação poderá ser muito proveitosa em mais que um sentido!

Jan ficou horrorizada quando sentiu que gostava daquela idéia. Uma sensação de nojo a tomou. Como podia pensar tal coisa? Aquele homem não a respeitava como pessoa. Não passava de um meio para determinado fim. Ele e Raine fariam um belo par, ambos totalmente egoístas!

A noite está ótima — comentou ele. — Talvez você queira tomar um brandy no pátio?

Creio que não, obrigada. Não sou fã de brandy.

Então escolha outra coisa. Ou prefere que eu não lhe deixe opção? — disse ele, então parando por um momento. — Creio que um pouco de ar fará bem a nós dois.

Se você acha — concordou ela, suspirando. — Só não que­ro beber nada.

Chamando Juan com a campainha, Felipe ordenou que o brandy fosse servido no pátio, então se levantou.

— Vamos.

Era possível chegar ao pátio passando por qualquer das salas do fundo da casa. Meio coberto por uma planta trepadeira, o lu­gar era decorado com cadeiras confortáveis ao redor de uma me­sa central baixa. Juan levou o decantador de cristal e dois copos numa bandeja e logo se retirou, deixando apenas os grilos e ci­garras para quebrar o silêncio da noite. O cheiro das flores vinha dos canteiros ao redor. Sem o calor sufocante do dia, a noite es­tava muito agradável.

— Esse lugar é tão bonito! — exclamou ela num impulso. — Temos tão poucas chances de nos sentarmos fora das casas lá na Inglaterra.

— Aqui também existem problemas, mas parece que os mos­quitos resolveram não sair hoje. Tem certeza de que não quer uma dose de brandy? É uma mistura muito especial.

— Está bem. Mas uma dose bem pequena.

Ele serviu os dois copos, depois se recostou, girando o copo nas mãos durante algum tempo antes de beber. Jan tomou o pri­meiro gole, sentindo o líquido se espalhar pela boca, e um leve alívio da tensão. Não existe situação sem modo de ser resolvida, pensou ela. Tudo de que preciso é tempo, e isso eu tenho.

Pensar nele como "Felipe" era difícil. Com um olhar para o perfil duro, ficou imaginando como seria tê-lo como amigo em vez de inimigo. Se bem que essa palavra não fosse exata. Pela maneira de pensar, ele estava se comportando de modo honra­do. E tentar fazer com que visse seu ponto de vista seria inútil. Mas a geração de um bebê não era assunto para ser definido co­mo um negócio qualquer, e não havia pessoa no mundo capaz de fazer com que Jan mudasse de idéia.

— Já lhe disse que não precisa temer nada de mim essa noite — declarou ele num tom levemente irônico. — Por isso pode pa­rar de ficar me olhando desse modo.

— Na verdade eu estava imaginando se você seria mesmo ca­paz de tomar uma mulher à força.

— É mesmo? E a que conclusão chegou?

— Nenhuma.

— Então vou deixar que decida sozinha. A escolha será ape­nas sua.

Quer dizer, se eu me machucar, a culpa será só minha?

Claro. A primeira vez não precisa ser a experiência dolorosa que se imagina. Todo homem devia ser capaz de deflorar uma virgem com gentileza e carinho. Só os insensíveis são apressados.

As veias nas têmporas de Jan começaram a latejar. Falar sobre aquele assunto com um homem era uma experiência nova para ela. Isso a excitava. Queria que ele continuasse, e retirar a si mes­ma da zona de perigo exigiu muito esforço.

— A sensibilidade não parece estar muito em cima na sua lis­ta de prioridades.

Deixando o copo na mesa, Jan se levantou e se afastou alguns passos, observando a paisagem iluminada pela lua enquanto ten­tava se acalmar. Não era direito que ele a afetasse daquele mo­do, quando violava seu código moral. Queria correr, não importava para onde, contanto que fosse para longe dali!

A mulher não o ouviu se mover, porém ele se colocou atrás dela, apoiando as mãos em seus ombros, fazendo com que sen­tisse o calor de seu corpo. Então os lábios do homem tocaram sua têmpora, abrindo a passagem com delicadeza pelo rosto até alcançar sua orelha, afastando o cabelo para explorar as regiões sensíveis do pescoço. Jan não se moveu. Não conseguia fazer na­da a não ser permanecer imóvel, tentando não sentir. Sabia que, caso se movesse, seria na direção dele.

Está vendo? Não será difícil. Talvez, depois de tudo...

Não, por favor! Você me prometeu tempo!

Sim, é verdade — concordou ele, afastando-se da moça e retornando ao modo duro habitual de falar. — Uma semana, e depois disso resolveremos a questão, quer você esteja pronta, quer não.

"Daqui a uma semana eu não estarei mais aqui", pensou ela. Era melhor não estar. Pois sabia que sua força de vontade dimi­nuía a cada momento que passava.

 

Nos dias seguintes, Jan conheceu a área ao redor da casa. Com perseverança, foi aos poucos conseguindo tirar Yola de sua con­cha, mas a menina não conversava mais que alguns minutos an­tes de dizer que tinha algo para fazer, Jan não sabia dizer se ela tinha conhecimento de sua situação e não queria correr o risco de perguntar diretamente. Quanto aos outros era evidente que sabiam o motivo pelo qual estava ali. Onde quer que fosse, sempre havia pelo menos um criado à vista.

Felipe não fizera nenhuma tentativa de se aproximar dela de­pois da noite em que ficaram conversando no terraço, mas às ve­zes a moça o pegava com um olhar lânguido em sua direção, Era comum ele sair pela manhã, voltando para o almoço e siesta, sain­do novamente depois, retornando só para o jantar. O que ele fa­zia ou onde ia Jan não tinha idéia.

Na metade da semana que recebera de prazo o desespero de Jan começou a crescer. Sua única chance seria fugir à noite. Ha­via cavalos no estábulo perto da casa. Seria mais fácil colocar a sela num deles do que tentar conseguir as chaves de um dos car­ros. Ela mal sabia cavalgar, porém acreditava que conseguiria che­gar a Jerez, onde arrumaria transporte para Sevilha, e dali um avião para casa.

Felizmente tinha cheques-viagem suficientes para tudo isso. A bagagem, no entanto, teria de ficar, o que era um preço pequeno por sua liberdade. E, assim que chegasse em casa, iria direto à polícia. Eles se encarregariam de encontrar Raine, e assim pode­ria devolver todo o dinheiro do espanhol. Só então poderia res­pirar novamente.

O desaparecimento de seu passaporte foi algo que não anteci­para. Yola negara com veemência ter pego o documento, mas evitava os olhos de Jan.

Felipe fora para o estúdio depois do almoço, e ergueu os olhos, surpreendidos, quando ela abriu a porta.

— Não ouvi você bater — disse ele.

— Talvez tenha sido porque eu não bati. Você pegou o meu passaporte!

— É verdade. Uma garantia, devo dizer, de que você não fugirá.

— Eu não planejava fugir. Como poderia, quando sou vigiada todo o tempo?

— Nesse caso você não precisará do passaporte. Quer dizer mais alguma coisa?

— Nada que você queira ouvir.

— Nesse caso, tenho mais o que fazer. Mais tarde, depois que as coisas estiverem melhores entre nós, podemos ir a Jerez assistir a uma apresentação de dança flamenca. Você gostaria de ir?

— Uma recompensa por bom comportamento? Não conte com isso!

— Você tem mais três dias. Ou eu deveria dizer noites? E é melhor não me provocar, se pretende esperar mais esses três dias.

— Maldito! — exclamou Jan, fechando a porta antes que ele respondesse.

Não, ele não impediria sua fuga. Não daquele modo! Deveria haver um consulado inglês em Sevilha. Eles a ajudariam.

Na escola de cavalgar que freqüentara os professores insistiam em que os alunos fizessem tudo sozinhos, e graças a isso ela sa­bia selar um cavalo. Sua única preocupação era saber se havia um guarda junto aos estábulos. Os animais eram uma mistura de cavalos árabes, espanhóis e ingleses, fora o que Felipe disse­ra, e muito valiosos. Ele oferecera um dos animais para ela pas­sear, mas Jan dissera que não sabia cavalgar. Com um pouco de sorte estaria a meio caminho de Sevilha quando dessem pela fal­ta do cavalo.

Houve momentos difíceis, sempre que Felipe decidia ser char­moso, o que fazia muito bem. Mas naquela noite ela não se per­mitiria relaxar. O jantar se passou em quase absoluto silêncio.

— Você pode me obrigar a ficar aqui, mas não pode me fazer gostar disso — declarou ela por fim, quando sua paciência se es­gotou. — Não sou um dos seus escravos, sou uma cidadã ingle­sa, e agirei de acordo!

— Você é uma briguenta, e eu gostaria de fazer você engolir essa língua afiada.

— Eu não lutaria com você, se é o que quer. Nessa questão de força física, sem dúvida não sou páreo para você. Ao contrá­rio de sua opinião, esse é o único aspecto em que os homens são superiores às mulheres!

— Não contesto sua inteligência, apenas o uso que faz dela. É lógico ficar me contestando assim quando é óbvio que contro­lo a situação?

— E seria lógico para uma estrangeira aceitar suas imposições? É lógico acreditar que você pode me encarcerar aqui sem nenhu­ma repercussão? Ou supor que eu possa fazer o que quer? O que me impediria de ir às autoridades depois que você me libertasse, e reclamasse a posse da criança?

— Nada, além de sua assinatura naquele contrato. Nenhuma corte nesse país daria crédito a uma mãe que concordou em alu­gar seu ventre.

— Concordou é a palavra-chave. Isso é um engano terrível, e você sabe disso.

— Sua palavra contra a minha. E você não conseguirá que nin­guém do meu pessoal testemunhe contra mim.

— Você é desprezível!

— Em vários aspectos. Nesse momento, estou tentado a lidar com você do modo como meus antepassados teriam feito com qualquer mulher que ousasse falar desse modo.

— Eu lamento — desculpou-se Jan, consciente de que ele po­deria mesmo cumprir a ameaça. — Me deixei levar. Não posso ser como as mulheres daqui, e você sabe disso.

— Eu lhe dei mais oportunidades do que você é capaz de apre­ciar. Mas agora chega. Essa noite você começará a cumprir seu dever.

— Não! Você me prometeu uma semana!

— Que diferença mais três dias poderiam fazer?

— Talvez muita. Preciso lidar com meus sentimentos. E três podem significar o tempo para isso.

— Esta tentando me dizer que minhas atenções podem, afinal de contas, não ser repugnantes como faz parecer?

— É assim tão difícil de acreditar? Você sabe como aquele beijo da outra noite me afetou. Eu... nunca conheci um homem como você antes.

— Você nunca conheceu um homem. Apenas garotos que não lhe ensinaram nada. Assim, mostre-me o que está sentindo. Venha aqui e retribua meu beijo.

Se recusasse, Jan considerou, estaria perdida. Por isso, com coração acelerado, ela se levantou e cruzou a distância até onde ele estava, curvando-se para beijá-lo. Por um instante o espa­nhol permaneceu imóvel, então duas mãos poderosas seguraram seus braços, puxando-a para baixo.

— Isso é um beijo, querida.

A boca de Felipe parecia em chamas, afastando a vontade da moça e virando seu mundo de cabeça para baixo. Seus lábios se abriram, correspondendo ao beijo. Pela primeira vez Jan se per­mitiu usar a língua em um beijo. Gostou muito daquilo, e pas­sou os braços ao redor do pescoço dele.

Sentir a mão em seu seio não foi surpresa, pois era ali que ela queria ser acariciada, ali e no corpo todo. Desejava sentir a pele dele de encontro a sua, queria que aqueles dedos sensíveis a ex­plorassem por completo.

Ela estava completamente derretida quando Felipe se afastou um pouco, fixando nos seus aqueles olhos enigmáticos. Ele tam­bém respirava um pouco mais depressa, porém se mantinha sob controle.

Ou você aprende muito depressa — comentou ele —, ou eu me enganei no julgamento. Quantas vezes permitiu que um homem a acariciasse desse modo?

Nunca.

Acho difícil de acreditar nisso. Você está ansiando por mais. Se eu quisesse, poderia tê-la tomado agora mesmo sem nenhum protesto de sua parte. Você negaria isso?

Não... É como lhe disse antes. Você me faz sentir de um modo que nenhum homem jamais fez. Houve vezes em que cheguei a pensar que era frígida.

— Mesmo com o homem que amava?

— Eu nunca o amei — declarou ela, notando que isso era mes­mo verdade. Os beijos de Gary nunca provocaram um décimo do que sentira há pouco. — Ele foi um engano.

— Se é assim, por que está adiando o momento decisivo?

Para aquela pergunta ela não tinha resposta lógica. Era essen­cial que fugisse naquela noite.

— É porque está sendo difícil para mim aceitar meu lugar no seu esquema das coisas. Ter uma criança e partir... que tipo de pessoa eu seria se aceitasse isso com facilidade?

— Mas isso foi negociado.

— Por Raine, não por mim.

— Não importa. Sua irmã não está aqui, você está. Deixe-me agora. Quero ficar sozinho.

Jan deixou a sala sem olhar para trás, sentindo-se confusa. Ir embora era a única opção razoável, apesar de outra parte dela querer, desesperadamente, ficar. Sentia que em algum lugar em­baixo daquele exterior duro, havia um homem de quem poderia aprender a gostar, se tivesse a chance. Só que isso não acontece­ria. Felipe só a desejava como qualquer mulher. Depois que des­se o que queria, estaria tudo acabado.

Jan vestiu seu jeans, uma blusa e se deitou, esperando pelo mo­mento de ir, tomando a precaução de colocar o despertador do relógio de pulso para a uma hora da manhã. A casa estaria vazia àquela hora, e teria sete horas de liberdade antes que Yolanda aparecesse às oito com o café. Os estábulos poderiam ser verifi­cados antes disso, mas precisava arriscar. Afinal de contas, vinte quilômetros não era tanto assim. E quando chegasse a Jerez, po­deria pegar um táxi para levá-la até Sevilha.

Isso se conseguisse encontrar um táxi no meio da noite, pen­sou ela. Mas se não houvesse um táxi arrumaria outro meio de transporte! Assim que saísse daquele lugar, não voltaria de mo­do algum!

O bip do relógio a fez despertar de um sono agitado. Sem se arriscar a acender qualquer luz, lavou o rosto, escovou os dentes e penteou o cabelo. Nenhum som chegou até ela quando abriu a porta. Tudo estava às escuras. Cuidando de fechar a porta do quarto, foi lentamente até a escada. As solas de borracha de seus sapatos fizeram muito pouco ruído nas lajotas do saguão. Passando o estúdio, cruzou o corredor que levava às salas do fundo e a porta de serviço que notara antes. Rezando para que estivesse aberta, testou a maçaneta. Trancada. Mas a chave estava na fechadura. Passando pela porta, ela a trancou novamente, deixando a chave do lado de fora.

Levou apenas alguns minutos para chegar aos estábulos. Os animais ficavam em divisões individuais. No dia anterior Jan passara um bom tempo conversando com o rapaz do estábulo, que dormia num quarto ali no fundo, fazendo-o contar sobre qualidades e defeitos de cada animal, a fim de descobrir qual seria mais adequado. Sua escolha foi uma égua de nome Santina, que era calma e forte. Apenas a sorte poderia garantir que Jan conseguiria selar o cavalo e sair sem acordar Carlos.

Cada uma das selas e arreios tinha o nome do cavalo a que pertencia. Encontrar o material de Santina foi fácil, mas carregar tudo foi um tanto mais complicado. A égua não se moveu quan­do abriu sua baia, nem ao ser selada.

Ofegante, Jan parou por um momento antes de colocar os arreios. Depois disso, só faltava colocar os panos ao redor dos cascos do animal para abafar o som.

Olhando para o relógio, constatou que levara muito mais tem­po do que o planejado. Já eram quinze para as duas, e ainda não deixara o estábulo! A menos que fizesse o cavalo cavalgar até a Cidade, o que seria praticamente impossível à noite e sem conhe­cer o trajeto, já estaria claro ao chegar lá. Seria muito difícil que alcançasse Sevilha antes de seu sumiço ser descoberto.

Felipe sem dúvida imaginaria que caminho seguira. Então que tal se seguisse para Cádiz, na costa? Sem o passaporte não pode­ria deixar o país, mas com um barco talvez pudesse alcançar Bar­celona, e ali sem dúvida encontraria ajuda.

Levou Santina pela rédea até se afastar da casa antes de mon­tar. Logo notou que era fácil controlar o animal. Pouco depois alcançou os portões da entrada e conseguiu abrir um deles sem desmontar. Então começou a cavalgar. À luz da lua, todo o lugar parecia diferente, com os vinhedos dos dois lados. Percorreu pelo menos um quilômetro antes de parar para retirar os panos dos cascos da égua.

Montando novamente, partiu em trote, pelo canto da estrada, onde a terra era mais macia. Tudo fora relativamente fácil, ha­via até uma espécie de sensação de anticlímax.

Mas ainda tinha muito chão a percorrer. E seus músculos já começavam a reclamar. Logo descobriu também que jeans não era proteção adequada contra o raspar da sela. Fazer o animal andar mais devagar ajudou um pouco, mas também iria au­mentar o tempo da viagem. Só podia torcer para que Felipe calculasse que seguira para Sevilha. Quando ele chegasse lá e desco­brisse que estava errado, já estaria num barco, longe de seu alcance.

Àquela hora até as cigarras estavam dormindo, o silêncio era quebrado apenas pelo ocasional piado de algum animal notur­no. E o som de um motor a distância era inconfundível.

Com o coração acelerado, Jan fez Santina correr, ignorando as dores. Que o carro que se aproximava era guiado por Felipe era quase uma certeza. Não havia lugar para onde ir para se es­conder. E também não poderia vencer um carro em velocidade, mas saber disso não a faria parar.

A queda foi inevitável. Sentiu a égua tropeçar, e se viu arre­messada por cima do pescoço dela, batendo com toda a força no chão. Talvez tenha desmaiado por um instante, pois a próxima coisa que notou foi a umidade e calor da respiração do animal em sua nuca. Estava toda dolorida, mas podia mover todos os membros.

Tentou se sentar e gemeu com a dor que sentiu na cabeça. De­via ter batido a testa na queda, mas não havia sangue.

O som do motor estava mais alto. Enquanto tentava se levan­tar, o carro parou a seu lado e Felipe desceu.

— Fique imóvel — ordenou ele. — Você pode ter sofrido al­guma fratura.

— Não quebrei nada. Pelo menos nada que possa interessar a você.

— Eu decidirei isso — disse Felipe, abaixando-se, examinando a cabeça de Jan com seus dedos fortes e delicados.

— Essa batida precisa de cuidados.

— Cuide da égua antes. Ela vale mais que eu.

As mãos de Felipe fizeram com que o rosto da moça se voltasse para ele.

— Controle sua língua! A que distância você esperava chegar, sua tolinha?

— O suficiente para me livrar de você. Detestei cada momento que fui forçada a passar com você! Não compreende isso?

— Não foi a impressão que me passou nessa noite.

— Então é porque eu sou uma boa atriz. Seu egoísmo o torna fácil de ser enganado!

O desejo dela era tirar aquele sorrisinho do rosto de Felipe, e arranhar o rosto de pele cor de oliva até que o sangue jorrasse. Ergueu uma das mãos sem querer, apenas para vê-la ser segurada pelo punho forte do homem.

— Minha sensibilidade é razoável, moça. Ontem à noite você foi completamente minha. Seu corpo inteiro clamava pelos meus carinhos.

Aquilo machucava mais porque era a verdade. Mas Jan não podia permitir que ele soubesse.

— Se eu tremi foi de nojo, e não de prazer. Eu queria vomitar.

— Então vomite agora!

Dizendo isso ele enfiou a mão pela blusa dela, arrancando o sutiã como se fosse de papel. Então aproximou a boca de seu seio, que estava dolorido por causa da queda. Jan teve vontade de gritar. Ele não estava sendo gentil, machucando-a e excitando-a ao mesmo tempo.

Os lábios de Felipe deixaram seu seio e subiram para o pesco­ço, depois seguiram até a boca. Se havia mesmo alguma sensa­ção de rejeição nela contra o homem, naquele instante não conseguiria descobrir. Desejava estar com ele, ser parte dele, sentir aquele corpo poderoso entre suas pernas.

Aos poucos sua boca passou a corresponder aos beijos devas­tadores, sentindo o tecido da camisa contra seus seios. Então ele abriu a própria camisa, e Jan sentiu como um choque passando pelo corpo ao contato da pele dele contra seus mamilos. Escutou uma voz murmurando o nome dele, e notou sem surpresa que era a sua mesma. O pânico e medo tinham desaparecido. Nada existia naquele momento a não ser aquele homem e o desejo de ser possuída por ele.

Foi Felipe quem se deteve. Sua respiração estava pesada, os músculos do maxilar contraídos quando se afastou dela.

— Não vamos fazer isso aqui na estrada, como camponeses! — declarou ele. — Cubra-se, vamos voltar para a hacienda.

Com mãos insensíveis, Jan fez o melhor que pôde para co­brir seus seios com a blusa rasgada. Felipe colocara sua camisa para dentro da calça e estava parado ao lado do carro. Pare­cia distante, não tinha nada da paixão que demonstrara havia pouco.

Como ela permitira ser degradada daquele modo? Ele fizera aquilo deliberadamente, apenas para mostrar a ela quem man­dava. E conseguira, não? Agora não poderia mais fingir que ele não a atraía. Sua única opção seria fazer o que aquele homem queria. Mas, se isso acontecesse, se tivesse um filho, a criança iria com ela quando fosse embora!

O dia nascia quando chegaram na hacienda. Felipe tirara a se­la da égua e a deixara para voltar sozinha para casa. Jan calcu­lou que naquela parte do mundo não se roubavam cavalos.

Deixando o carro diante da escadaria da frente, ele a levou di­reto para o quarto, dizendo para que se sentasse no banheiro en­quanto ele providenciava algodão e algum anti-séptico.

O remédio doeu muito quando aplicado no machucado da tes­ta, trazendo lágrimas aos olhos. Ela tentou controlá-las, não gos­tando da idéia de que ele visse sua fraqueza.

— Se estiver se sentindo mal — disse ele, com ironia —, posso pedir para que alguém lhe prepare uma sopa.

— Estou bem — avaliou ela, pensando se ele iria mesmo acor­dar os criados para lhe fazerem a sopa. Mas, por que não? Eles estavam ali para servi-lo, não é mesmo?

— Mais tarde vou pedir ao dr. Valdés que venha examinar você.

— Não é necessário. De verdade, eu...

— Eu decido o que é necessário. Agora vá para sua cama, e reponha o sono que perdeu. Pode ficar à vontade. Eu também tenho que dormir.

— Como foi que você descobriu tão depressa que eu tinha...

— Isso você terá de descobrir sozinha. E sabe que agora não me sinto preso a nenhum acordo que tenhamos feito, não é?

— S... sim.

— Bem, pelo menos isso já é alguma coisa.

Jan esperou que ele saísse antes de fazer qualquer movimento. Não ficaria surpresa se constatasse que estava trancada ali dentro, pensando bem, ele devia ter calculado que estava tão desmoralizada que não tentaria nada.

E estava certo. Jan chegara ao fundo do poço. Mas tinha que manter o respeito próprio. Precisava impedir que conseguisse o que queria. Mas ele a dominava... Pela primeira vez Jan lamentou não tomar anticoncepcionais.

O sol já surgira no céu quando dormiu. Ao abrir novamente os olhos, o dr. Valdés estava ao lado da cama.

— Lamento ter acordado você — disse o médico. — Dom Felipe estava preocupado porque você dormiu muito.

— Que horas são? — perguntou ela, confusa, apoiando-se num cotovelo. Então as dores a fizeram lembrar.

— Agora são duas horas. Como está se sentindo?

— Minha cabeça está doendo. Eu caí.

— Foi o que me disseram — comentou o doutor, sentando-se na beirada da cama e afastando o cabelo de Jan para examinar a batida. — Parece não haver nenhum dano sério. Você teve sorte, señorita. Às vezes o sonambulismo leva a resultados trá­gicos.

Jan olhou surpresa para ele. Mas a expressão do médico era completamente profissional. Assim, Felipe devia ter inventado a mentira. E só poderia haver uma razão para aquilo: o doutor sabia por que estava ali, mas saberia que era mantida prisio­neira?

Jan notou um movimento com o canto dos olhos, e viu Felipe se aproximar.

— Devemos ter mais cuidado no futuro — disse ele. — Eu o levo até seu carro, doutor.

Apesar de estar sendo posto para fora, o médico não consi­derou aquilo estranho. Jan afastou as cobertas assim que os dois saíram e mancou até o banheiro, calculando que o dr. Valdés provavelmente não a teria ajudado se lhe contasse o que ocorria.

Estava relaxando os músculos doloridos na banheira quando Felipe entrou. Puxando a toalha, lançou um olhar frio para ele assim que surgiu à porta.

— O que você acha que isso é? Um teatro?

— Não há detalhe em seu corpo que será desconhecido para mim dentro em pouco. Ontem à noite tive em minhas mãos esses seios que agora você faz tanta questão de esconder. Acha que eu estava com os olhos fechados naquela hora?

— Isso não lhe dá o direito de entrar assim! — protestou ela, ficando vermelha.

— Estou cansado de lhe dizer que tenho o direito de fazer o que quiser — declarou ele, pegando outra toalha da prateleira ao lado e subindo os dois degraus da banheira, abrindo-a. — Va­mos, saia daí.

— Eu posso cuidar disso. Me deixe sozinha!

— Mas eu não quero deixá-la sozinha — disse ele em tom mais suave, curvando-se para beijá-la no alto da cabeça. — Eu lhe disse que não haveria mais adiamento. Deixe-me colocar desse modo: eu quero ver você.

Ele poderia fazê-lo à força, calculou a moça. E seria melhor preservar sua dignidade.

Largando a toalha, Jan se levantou, ficando ali imóvel. Os olhos dele passearam por seu corpo. A vergonha aos poucos foi sendo substituída por um calor que aos poucos a tomou in­teira.

— Você é muito bonita — sussurrou ele. — Eu não imagina­va o quanto.

Felipe passou o dedo entre os seios dela, recolhendo a água que se acumulara ali, levando o dedo aos lábios, sem tirar os olhos dos de Jan. O sorriso foi lento, sensual, atingindo-a profunda­mente. O calor forte fez com que contraísse os músculos inter­nos das coxas. Sua boca ficou seca.

Erguendo a mão dela lentamente, ele a colocou por dentro da sua camisa, obrigando-a a olhar para ali. Enquanto soltava os botões, Jan permaneceu imóvel. Então Felipe tirou a camisa, pe­gou as mãos dela e as encostou em seu peito.

— Toque-me — pediu ele. — Deixe seus dedos me explora­rem, do modo como os meus vão explorar você. Não pode haver segredos entre nós.

— Não posso. Eu preciso de amor para poder fazer sexo.

— E você só sente ódio por mim, se devo acreditar no que diz. Mas ainda assim me deseja — disse, levando o dedo aos lá­bios dela para impedir que ela falasse. — Não tente negar isso. Agora mesmo seu coração está acelerado porque a estou tocan­do. Vou lhe ensinar como me excitar, querida, mas só depois que explorar e conhecer meu corpo. Temos toda a tarde à dis­posição.

Jan engoliu em seco. Seria tão fácil se deixar levar por aquela voz, saciar a sede que tomava seu corpo: Não seria uma mulher de verdade enquanto não tivesse conhecido um homem, era o que ele dizia. E provavelmente estava certo, mas Jan estaria pron­ta para pagar o preço cobrado pela iniciação? Uma vez que se submetesse, nem seu corpo nem sua mente poderiam se livrar dele.

— Se a criança é tudo que você quer de mim, isso tudo não é necessário. Por que apenas não termina logo com isso?

A mão que tocava seus lábios de súbito agarrou com força seus cabelos, puxando sua cabeça de modo que os olhos ficaram na direção dos dele.

— Eu não sou um animal! — bradou ele. — Por que você in­siste em me deixar bravo?

— Porque não estou pronta para me tornar sua escrava. Seja na cama ou fora dela! Seja o que for que quiser de mim, você terá de tomar!

Por um longo momento ela acreditou realmente que seria atirada no chão e possuída à força. Mas Felipe conseguiu se controlar. Quando voltou a falar, foi num tom incrivelmente suave.

— Você não vai me tirar o prazer de vê-la engolir essas pala­vras. Antes que o dia acabe, estará implorando para que eu a tome.

 

Felipe a pegou nos braços e a levou até a cama. Colocou-a nela começou a soltar o cinto, sem nunca tirar os olhos dos de Jan. Ela virou a cabeça quando o homem baixou o zíper, com o corpo todo tremendo de forma incontrolável.

— Olhe para mim — comandou o espanhol. — Não há nada de vergonhoso no corpo humano, seja de homem ou de mulher — declarou ele, sentando-se na cama e forçando-a a olhá-lo.

Jan o fez porque não pôde evitar, sentindo o calor crescer. Deitando-se, Felipe pegou a mão dela e a guiou até ele, enquanto a abraçava, seus dedos contornando com suavidade cada detalhe no corpo escultural.

Com a boca seca e a respiração ofegante, Jan não tinha controle sobre seus membros. Felipe não deixava parte de seu corpo sem ser explorada. Sem saber o que fazia, ela ergueu os braços e puxou o rosto dele para seus seios, ansiando pelo alívio do delicioso tormento que ele lhe provocava.

— Isso é só o começo — prometeu Felipe com suavidade. Então ele colocou seu corpo sobre o dela, suportando o peso nos braços, fixando os olhos nos da mulher. Quando a beijou, Jan respondeu por instinto, abrindo os lábios. O corpo dele mal locava o seu, apenas o peito raspava em seus seios, fazendo-a ansiar por um contato mais íntimo. Ela cravou as unhas nas costas daquele homem atraente e sedutor.

— Ainda não, pequena. Não antes que você diga as palavras que quero ouvir. Diga "eu imploro, Felipe". Vamos, diga essas palavras, mi querida.

— Eu odeio você!

— Mas também me quer, não é?

— Não! Tudo que quero é escapar da sua sordidez!

— Não há nada de sórdido em duas pessoas fazendo amor. Diga que me quer, e eu vou satisfazer seu desejo.

— Vá para o inferno!

A risada dele foi alegre.

— Que fibra, minha tigresa! Porém não tenho a intenção de ir a lugar algum sem você.

O joelho dele entrou entre os dela, separando suas pernas. Ela contraiu os músculos, prendeu a respiração, esperando por aqui­lo que ao mesmo tempo temia e ansiava. A princípio ele se mo­veu lentamente, distribuindo beijos suaves por todo o rosto dela. Aquilo era tão diferente de tudo que já experimentara, tão ma­ravilhosamente diferente!

Houve dor no final, mas muito rápida, desvanecendo junto com o que sobrou da reserva de Jan, e logo ele a acompanhava no clímax, levando-a a alturas jamais imaginadas.

O homem não saiu de dentro dela de imediato. Envolta pelos braços fortes, Jan sentia-se em completa paz, uma sensação tão poderosa que teve vontade de chorar.

— Descanse — sugeriu Felipe. — Nós temos todo o tempo do mundo.

Ela acabou dormindo, e quando acordou viu que estava co­berta pelo lençol de seda. Seu coração ficou pesado ao constatar que estava novamente sozinha.

Mas por que ele ficaria ali a seu lado? Do ponto de vista dele, aquilo não passara do primeiro estágio de seu plano. Jan consi­derou que devia se dar por contente por ele ter tido o cuidado de tratá-la bem. Parecia que afinal de contas Felipe de Rimados não era um animal.

Mas tinha se sentido tão próxima dele naqueles momentos, não só no sentido físico, mas em todos os sentidos! "Porém, não devo permitir qualquer envolvimento", pensou ela, enterrando o rosto no travesseiro.

Só então Jan percebeu o barulho de água. Olhando ao redor, viu as roupas de Felipe caídas no chão. Então ele ainda estava ali! Ela se sentiu aliviada. Tal fato não mudava a situação geral, porém era bom saber que ele não a tratava como um mero objeto.

Pouco depois ele voltou para o quarto, com uma toalha ao redor da cintura.

— Você ainda fica corada ao me ver? — perguntou ele. — Parece que tenho muito a lhe ensinar... Mas antes deve tomar um banho quente, por causa dos machucados.

— Mas eu não... — começou a contestar ela, detendo-se quan­do tentou esticar as pernas. — Oh! Eu tinha me esquecido do tombo...

— Considero isso um cumprimento. Sem dúvida os machuca­dos não restringiram seus movimentos agora há pouco. Quer que eu a carregue para a banheira?

Se a alternativa era atravessar o quarto nua, a resposta era sim, considerou ela. Que ele falasse em ensiná-la a ver a nudez como ele via era uma coisa; fazê-lo, outra completamente diferente. Para Jan, era impossível remover o lençol.

— Vamos — disse ele, em tom gentil, puxando o lençol. — Você é linda. Bela demais para se esconder. E conheço cada curva de seu corpo, não há por que ser tímida.

— Eu... eu não estou acostumada a agir assim com qualquer homem.

— Eu não sou qualquer homem!

— Não quis dizer isso.

— Sei... Confesso que não compreendo todas as nuances de lua língua. E a água está esfriando.

Não foi fácil, mas Jan conseguiu sair da cama. Pior que as do­res era a sensação de vulnerabilidade. Ao caminhar para o ba­nheiro, calculou que ele iria junto.

— Dessa vez não vou interromper seu banho — declarou ele, como que lendo seus pensamentos. — Estarei aqui quando voltar.

Os músculos do estômago de Jan se contraíram. Ele ainda não terminara. "Vou lhe ensinar a me dar prazer", tinham sido as palavras do espanhol. E Jan fazia uma idéia muito vaga do que isso poderia significar.

Antes de entrar na água, ela se olhou nos espelhos. Igual. Na­da mudara. A transformação fora apenas interna. Agora era uma mulher de verdade. "Deflorada", como Felipe dissera. E perce­beu que o queria de novo. E quanto mais rápido tomasse o ba­nho, mais rápido estaria novamente com ele.

A água não estava muito quente, e cheirava bem. Felipe devia ter acrescentado mais sais de banho dos jarros ao lado. Fechan­do os olhos, deixou a mente solta, e passou a pensar nele. Felipe de Rimados, o único homem que...

Então se deteve. Ele não sentia nada por ela. Tudo que queria era um filho. A dor que sentiu foi poderosa. Como podia alimen­tar qualquer sentimento em relação a um homem assim? E devia lembrar que ele só a deixaria em paz depois que engravidasse.

Jan ficou deitada na água por um bom tempo, depois se enro­lou numa toalha e voltou para o quarto. Ficou confusa ao encontrá-lo vestido.

— Eu tenho de sair — declarou Felipe. — Um problema nu­ma das bodegas — comentou ele, e seus olhos se estreitaram ao vê-la. — Você quer me dizer alguma coisa?

Jan endureceu os músculos e ficou firme quando ele se aproxi­mou e a beijou. E havia um olhar estranho nele quando se afastou.

— Essa noite, vamos para a minha cama. Ah, sim, a Yola vai lhe trazer o chá logo mais.

Ele saiu sem esperar nenhum comentário. Não que Jan tivesse qualquer coisa a dizer. Parecia evidente que todos os criados sabiam o que estava se passando. Como poderia voltar a olhar para qualquer um deles?

Com um choque, Jan notou que ainda não eram quatro e meia, Parecia-lhe que uma vida inteira se passara desde que acordara com o dr. Valdés a seu lado. E dali a poucas horas Felipe a tomaria novamente. "Quer esteja grávida quer não, tenho de dai um jeito de escapar", pensou ela.

Yola veio trazer o chá, e quando a menina fez menção de sair Jan procurou detê-la.

— Espere! Quero falar com você.

— Tenho trabalho a fazer, señorita.

— Mas sem dúvida pode ficar um instante. Você sabe por que estou aqui, Yola?

— Você será a mãe do filho de dom Felipe.

— Mas não porque quero. Estou sendo mantida aqui contra a minha vontade. Você acha que isso é certo?

— Eu não sei dizer, señorita. Só sei o que me dizem.

— Mas é verdade! Sou uma prisioneira. Tentei fugir ontem à noite, mas fui trazida de volta.

— Você roubou a Santina. Carlos vai perder o emprego porque deixou que isso acontecesse. Ninguém na Andaluzia vai dar trabalho para ele depois de saber que dom Felipe não confia mais nele.

— Mas isso não é justo. Ele não teve culpa. Eu tomei todo o cuidado para que ele não ouvisse nada.

O gesto da menina encerrou a questão. A decisão do patrão não podia ser contestada. "Bem, mas eu posso contestá-lo", pensou Jan. Felipe tinha de perceber a injustiça que estava cometen­do. Carlos não devia sofrer pelo que ela fizera.

— Vou falar com dom Felipe sobre isso. E diga ao Carlos que ele não vai perder o emprego. Eu prometo.

— Eu direi — concordou Yola, com ar de que não acreditava naquilo.

Jan percebeu que não poderia fazer a menina mudar de idéia. Felipe tinha a palavra final e Yola devia se considerar com sorte por ele ter decidido que não a iniciaria no sexo, como estava acontecendo com ela.

Apesar do sol brilhante do lado de fora, ela passou o restante do dia no quarto, preparando-se tanto mental quando fisicamente para a noite. Às oito e meia, usando o vestido negro clássico de seda que era o orgulho de seu guarda-roupa, desceu para o salão. Juan informou que dom Felipe não viria jantar. Comendo so­zinha na mesa imensa, Jan sentia como se tivesse levado um tapa no rosto. "Mas o que eu devia esperar?", pensou ela. Felipe não iria deixar seus negócios por minha causa.

Talvez pudesse dormir sozinha naquela noite, considerou, ten­tando ignorar a sensação de vazio que a idéia lhe provocava. E talvez dormisse sozinha nas noites seguintes também. Em pouco mais de duas semanas saberia se estava grávida ou não. Seria a espera mais longa de toda sua vida.

Às dez horas, depois do jantar, Jan não suportava mais ficar fechada dentro da casa. Resolveu sair, e logo estava junto à pis­cina. Então percebeu música a distância. Vinha além do cintu­rão de árvores que marcavam o final do jardim. Talvez fossem ciganos. Afinal de contas, a Andaluzia era uma das poucas re­giões onde eles ainda existiam. E, se estavam ali, é porque tinham permissão.

A vontade de ir até lá cresceu a cada instante. Fora um bom livro ou a tevê, não havia mais nada para se fazer ali. Seguindo o impulso, Jan começou a andar por uma das passagens do jar­dim, e quando esta terminou continuou pela grama. Depois de dois passos constatou que as sandálias que calçava não eram ade­quadas para isso. Sem pensar duas vezes, retirou-as dos pés.

A música ficava mais alta à medida que se aproximava das ár­vores. Era possível ver o brilho de fogo entre os troncos. Até on­de sabia, ninguém a seguira, um lapso pelo qual alguém sem dúvida pagaria se usasse a oportunidade para tentar fugir mais uma vez. "Se eu conseguir convencer os ciganos a me esconder numa das carroças", pensou ela.

Mas a idéia era tola. O acampamento cigano seria sem dúvida o primeiro lugar onde procurariam se desaparecesse.

Ocupando uma clareira grande, o acampamento era compos­to por meia dúzia de carroças coloridas. Os cavalos estavam pre­sos junto ao ponto onde Jan se encontrava, ao abrigo das árvores. Tomou todo o cuidado para não perturbar o grupo.

A luz da fogueira iluminava os rostos cor de oliva, e toda a cena era exatamente como Jan imaginara. Um homem tocava vio­lão, e o som parecia desafinado para seus ouvidos não acostu­mados. Ao lado do fogo, uma menina com não mais que doze ou treze anos realizava os movimentos estilizados que mesmo Jan era capaz de reconhecer como sendo o flamenco, estimulada pe­los sorrisos e palmas dos outros.

Mudando de posição, Jan pisou num galho seco, o que fez um dos cavalos se agitar, e todos os outros moveram-se também, co­mo que pressentindo sua presença.

— Quem é você? — perguntou uma voz a suas costas, e ela se voltou, vendo-se diante de um homem que não percebera se aproximar.

— Eu ouvi a música lá da casa. Desculpe-me por estar es­piando.

A suspeita nos olhos do homem deu lugar a outra expressão mais difícil de definir.

— Você é a convidada de dom Felipe?

— Sim.

— Então ficaremos honrados se se juntar a nós — declarou ele, curvando-se.

— Eu preciso voltar — declarou ela, temendo que a recusa fos­se considerada como insulto.

— Antes precisa experimentar nossa hospitalidade.

Todos se calaram quando os dois deixaram as sombras. Ainda com as sandálias na mão, Jan sentia-se pequena e desprotegida. O homem indicou um local para ela se sentar.

— Tragam comida e bebida para nossa convidada — ordenou ele. — Toque, José. Foi a música que a trouxe aqui.

— Meu nome é Jan Presley — explicou ela. — Não posso fi­car muito tempo. Dom Felipe pode ficar preocupado.

— Você é a mulher que vai ter o filho de dom Felipe — disse uma das mulheres. E não foi uma pergunta.

— Como sabe disso?

— Isso não importa — declarou ela, vindo sentar-se ao lado de Jan e pegando sua mão. — Deixe-me ler suas linhas.

A mulher, com idade indefinida entre os quarenta e sessenta anos, tinha olhos profundos. Ficou algum tempo observando a mão de Jan antes de falar.

— A criança será um menino. Será seguido por outro meni­no, e depois uma menina. Sua vida será longa, assim como a de dom Felipe. Não será fácil no começo, mas depois você vai ser feliz.

Que previsão, pensou a moça. Dom Felipe quer só um filho, não uma família, e muito menos uma esposa!

— Está dizendo que nunca mais voltarei para o meu país?

— Você pode voltar, mas seu coração ficará aqui. E vai se­guir seu coração.

Puxando a mão, Jan se levantou.

— Agradeço pela hospitalidade, mas agora preciso ir. Eu não devia ter vindo.

— Não, não devia mesmo — disse dom Felipe, em inglês, aproximando-se do fogo. — E vai voltar comigo agora!

Perto de desafiá-lo abertamente, Jan percebeu que não tinha opção. Os dedos ao redor de seu braço pareciam de aço. E só quando já estavam longe, nas sombras, ele voltou a falar.

— Calce as sandálias. Você não é uma cigana!

— Só as tirei porque era difícil andar com elas na grama. E, se vamos voltar andando, terei o mesmo problema.

— Não importa. Calce as sandálias.

— Está bem. Mas não se surpreenda se eu levar um tombo!

— Você não vai cair. Se tentasse conseguir alguma ajuda com nossos amigos ali atrás, teria se decepcionado. Eles não iriam me desagradar.

— Quer dizer que eles têm medo de você?

— Não falei em medo. Estão nas minhas terras com minha per­missão. E posso fazer com que saiam quando quiser.

— Eles não estavam aqui ontem à noite.

— Eles vão e vêm. E não importa quando ou por quê. Você não tem nada a fazer aqui.

— Eu ouvi a música. Como não tinha nada para fazer, pensei que poderia vir dar uma olhada. Devo ficar sentada esperando você retornar?

— Sim. É exatamente o que deve fazer.

— Ah, que ótimo!

As mãos dele a seguraram pelos ombros, com força.

— O que foi que você disse?

— Nada. E, se quiser bater em mim, vá em frente. Só lhe as­seguro que isso não me fará deixar de pensar como penso!

Ele a olhou por um longo tempo. Aos poucos sua expressão revelou a admiração que sentia.

— Sua vontade é incrível. E creio que não adiantaria mesmo bater em você. Quero sua palavra de que não tentará visitar o acampamento novamente.

— Bem, está bem.

— Isso não é resposta.

— Certo, certo. Então prometo não ir mais lá — disse ela, con­tinuando num impulso depois de uma pausa. — Você esteve visi­tando uma de suas outras mulheres essa tarde?

— Não verei nenhuma outra mulher enquanto tiver você.

— Você não me tem. Só tem meu corpo.

— Então preciso cuidar dele. Vamos andar devagar para que você não se canse, pois vai precisar da energia nessa noite.

— Como você sabia onde eu estava? — perguntou ela, fingin­do que a declaração não a afetava.

— Juan está cuidando de vigiar você. Ele estava a ponto de mandar Manolo buscar você quando cheguei.

— Se você não tivesse ficado tanto tempo fora, eu não teria por que ficar andando por aí. O problema está resolvido?

— Creio que sim. E no futuro cuidarei para que tenha sempre muito o que fazer quando eu estiver fora.

— Isso quer dizer que vai sair muitas vezes?

— Não mais que o necessário. O trabalho requer pouco de mim, pois meu pessoal está comigo há muito tempo, e merece confiança.

— Sabe, acho que você está sendo injusto por despedir Carlos pelo que fiz ontem. Se ele perder o emprego por causa disso, eu vou me sentir culpada.

— E será mesmo.

— Então por que punir o Carlos?

— Porque o trabalho dele é estar atento a tudo que acontecer nos estábulos.

— E ele não tem permissão para dormir?

— Ele lhe pediu ajuda? — perguntou dom Felipe, parando de andar.

— Não, eu não falei com ele. Foi Yola que me contou. Por favor, Felipe, você não pode reconsiderar a decisão? Ele nunca vai arrumar outro emprego se você o despedir!

— Seu pedido é comovente.

— É porque isso realmente me preocupa. Eu imploro, se isso faz alguma diferença. De joelhos, se for necessário!

O brilho de humor nos olhos dele era encorajador.

— Tais extremos devem ser reservados para situações especiais. Pode chegar o momento em que precisará pedir algo para si mesma.

— O único favor que eu gostaria de pedir você já recusou. Mas, se eu prometer não tentar fugir de novo, você deixa o Carlos ficar no emprego?

— Você faria isso por um homem que mal conhece?

— É uma questão de princípios. Não tenho escolha.

— Certo. Ele pode ficar. Enquanto você mantiver sua promessa.

Os dois voltaram a andar. E Jan começou a considerar o que tinha acabado de fazer. Agora ficaria com ele voluntariamente, o que significava que aceitaria tudo o que ele quisesse. Poderia conviver com isso?

Eram mais de onze horas quando chegaram em casa. Felipe não esperou um instante. Pegando-a pelo braço, levou-a na dire­ção do seu quarto.

— Eu preciso pegar uma camisola.

— Não, não precisa. Nem hoje nem em noite alguma. Quero sentir você perto de mim.

O quarto dele era enorme, a cama com quase dois metros de largura. Ao contrário do restante da casa, a mobília ali era moderna.

— Tudo importado da Dinamarca — explicou ele, interpre­tando corretamente os pensamentos dela. — Prefiro simplicida­de em meu quarto.

Felipe ia tirando a gravata enquanto falava, depois desabotoou os botões de cima da camisa, colocou cuidadosamente o colete do terno na cadeira e se voltou, terminando de desabotoar a camisa.

— O banheiro é ali — disse ele, apontando uma das duas por­tas do lado oposto. — Você quer usá-lo antes?

Ela fez que não, percebendo que aquilo seria difícil. Iriam se comportar como marido e mulher em todos os sentidos, menos no mais importante.

— Eu espero.

— Como quiser.

Jan forçou-se a se mover depois que ele passou pela porta, no­tando que alguém já tirara a colcha e dobrara os lençóis da ca­ma. Se os criados ainda não sabiam que ela dormiria ali, saberiam na manhã seguinte. Mas, pensando bem, que diferença poderia fazer? Todos ali já sabiam para o quê estava na casa.

Apesar de tudo, a moça sentia-se tensa. A primeira vez fora maravilhosa. Como seriam a segunda, terceira e quarta? Se hou­vesse um modo de ignorar o que iria acontecer, se pudesse asse­gurar que não ficaria grávida... Pensando no assunto, percebia que sabia muito pouco sobre o próprio corpo.

Era Felipe quem sabia tudo. Mulheres não eram mistério para ele. Ele as conhecia intimamente. E assim que Jan tivesse servido ao seu propósito, ele a deixaria sem pestanejar.

Sem perceber, ela se colocara diante de um espelho. E viu de­terminação em seu rosto. Quando chegasse o momento, lutaria por seus direitos. Um filho seu não seria abandonado. Nem por todo o dinheiro do mundo!

Felipe vestia um robe ao voltar do banheiro. Tinha também o cabelo molhado.

— Jan, o banheiro é todo seu. E minha paciência vai durar exatos quinze minutos. Se você não tiver voltado eu vou te buscar!

— Ninguém nunca lhe disse que a expectativa é a melhor parte?

Houve um instante em que a surpresa se refletiu nos olhos dele.

— Não, ninguém. Mas a verdade é que nunca conheci antes ninguém capaz de fazer um comentário como esse. Mas devo lhe dizer, querida, que a expectativa é apenas parte de tudo. E vou tratar de provar isso a você.

Fechando-se no banheiro, com a porta entre eles, Jan tentou se controlar. Podia deter suas reações, mas para que isso servi­ria? Ele não seria detido.

E, para ser honesta, queria mesmo fazer amor com ele. E, se isso era inevitável, por que não aproveitar?

Porque havia o perigo de perder muito mais que a auto-estima. Permitir que se envolvesse com tal homem seria não só uma toli­ce, mas também uma futilidade.

Ficou um bom tempo no chuveiro, sem esquecer que Felipe cumpriria o que prometera. Só quando se enxugou foi que notou que não tinha o que vestir. Uma toalha poderia servir, mas era claro que ele ordenaria que a tirasse. Devia era garantir alguma iniciativa para si mesma, impedindo mais essa ordem da parte dele.

Fora o brilho suave do abajur de cabeceira, o quarto estava às escuras quando Jan retornou. Felipe já estava na cama. Os olhos dele a acompanharam enquanto chegava perto da cama. Afastando o lençol, ele fez com que Jan se sentasse a seu lado, aproximando seus lábios dos dela e a beijando com tal paixão que afastou qualquer pensamento racional de sua mente.

Foi uma noite que ela jamais esqueceria pelo resto da vida, a noite em que abandonou definitivamente a garota que fora um dia.

Jan descobriu que fazer amor era uma via de dois sentidos. Ha­via tanto prazer em dar quanto em receber carinhos. Sua timidez inicial, quando Felipe a conduziu, logo deu lugar a uma agradá­vel sensação de poder ao descobrir do que era capaz. Ver o rosto dele se contorcer, a respiração acelerar, sentir as respostas às suas carícias... era puro júbilo. Quando, por fim, dormiu, foi um sono muito suave e feliz.

Felipe continuava a seu lado quando acordou, pouco antes de clarear. Deitado de costas, pensou ela, assim, com esse lençol fi­no estendido sobre o corpo, ele parece uma estátua de um deus!

Estendendo a mão, ela tocou suavemente o ombro dele, pas­sando os dedos pelo braço, sentindo a pele suave e quente sobre os músculos rijos. Agora o conhecia totalmente, do mesmo mo­do que ele a conhecia. Mesmo em seus sonhos mais loucos Jan jamais chegara sequer perto da realidade. Não que isso mudasse qualquer coisa. Mesmo que ele gostasse tanto quanto demons­trava de fazer amor com ela, na opinião do espanhol, Jan não passava de um meio de obter o que desejava.

— Por que você parou? — perguntou ele suavemente, assustando-a porque Jan não percebera que estava acordado. Fe­lipe se virou de lado, puxando-a para junto dele. — Me abrace. Quero sentir suas mãos em mim novamente.

Os lábios dele procuraram os dela, anulando qualquer pensa­mento enquanto a levava mais uma vez para as alturas.

 

Quando abriu novamente os olhos, Jan estava sozinha na imen­sa cama. A luz do sol entrava em pequenos fachos pela janela, brincando com a poeira suspensa no ar.

De acordo com o relógio na cabeceira da cama, eram apenas sete horas. Onde Felipe fora àquela hora ela não tinha idéia. Porém, tudo que lhe importava era saber que ele se fora.

Deitando-se de costas, ficou observando o teto enquanto re­lembrava as últimas horas. Sentia a boca um pouco dolorida e os seios muito sensíveis ao tato. Não que lamentasse qualquer coi­sa. Pelo menos tinha dado satisfação a ele. E mais, acreditava, do que ele esperava. O beijo final antes de adormecerem fora es­pecialmente suave, ou era nisso que Jan queria acreditar.

"Não estou me fazendo bem algum sonhando desse modo", pensou ela. E estava na hora de se levantar. Só então lembrou-se de que não tinha o que vestir. Seria obrigada a usar ou o robe dele ou seu vestido negro que deixara no banheiro.

O chuveiro a fez acordar de vez. Aproveitou a chance para la­var os cabelos, usando um dos vários xampus alinhados numa prateleira. Depois de se secar, precisou só de algumas passadas de escova para fazer o cabelo ficar como antes.

Assegurou-se de não deixar nenhum fio de cabelo louro na es­cova antes de recolocá-la onde a encontrara. Por algum motivo, sempre imaginara que homens espanhóis usavam brilhantina no cabelo, mas Felipe não o fazia. Seus cabelos eram curtos e gros­sos e deliciosos para serem acariciados.

Yola entrou com seu café da manhã momentos depois que saiu do banheiro. Toda a atitude da menina era diferente naquela ma­nhã, além de ter no rosto um sorriso caloroso e espontâneo.

— Carlos vai ficar! Ele está muito grato, señorita, por tudo que fez por ele.

— Considerando que fui eu quem causou o problema todo, ele não tem de ser grato por nada.

— Muita gente não se preocuparia com isso. E, se quiser qual­quer coisa, señorita, basta pedir.

Infelizmente, pensou Jan, agora já não posso mais fugir...

— Dom Felipe saiu?

— Ele foi até Sevilha — confirmou Yola. — Ele disse que vol­taria antes do jantar.

Um dia inteiro antes de voltar a vê-lo, pensou Jan, quando se viu sozinha. Seria esse um exemplo de um dia normal em sua vi­da a partir de então?

Como Raine teria lidado com a situação? Ela conseguiria es­capar quando fosse o momento? O fato de que assinara o con­trato era um indício. Raine nunca se preocupara com o certo e o errado, desde que ficasse por cima. Casar com um homem na posição financeira de Alan Lester tinha de ser um negócio me­lhor que aquele que abandonara, especialmente lembrando que ela embolsara cinco mil libras na transação.

Isso só servia para mostrar como Jan conhecia mal a irmã ado­tiva. Não que isso importasse agora.

O quarto tinha um balcão com uma porta francesa dupla. Ela tomou o café lá fora, observando a paisagem suave e dourada sob o céu azul.

No fundo ficavam as montanhas, e atrás delas a costa freqüen­tada durante todo o verão por milhares de turistas. Ela mesma já estivera em Marbella. Mas aquele era um mundo completa­mente diferente. Bastava ver Felipe, um conservador de primeira linha, pelo menos em relação às mulheres.

Ele contara que tinha sangue inglês, e Jan imaginava em que geração houvera uma mulher inglesa na família. Talvez valesse a pena conhecer a história dos Rimados. Ao menos serviria para passar o tempo.

A manhã transcorreu lentamente. Jan nadou depois do almo­ço, ficando no sol até o calor começar a incomodar. Ao contrá­rio da maioria das pessoas muito brancas, ela raramente ficava vermelha antes de adquirir um tom bronzeado.

Estava agradável sob o guarda-sol que Manolo armara para ela. O espanhol mais velho parecia ser o cão de guarda oficial da casa, porém estava sempre de bom humor. Morava na vila, vindo para o trabalho numa bicicleta muito antiga que era sua alegria e orgulho. Sua esposa e os quatro filhos também traba­lhavam para dom Felipe.

A vila em si fora construída pelos empregados da família, detalhe que ficou sabendo por Juan na hora do almoço. As casas eram mantidas por dom Felipe e ninguém pagava aluguel, e cada família recebia um pedaço de terra para plantar o que quisesse. Mesmo sendo um autocrata, pensou ela, estava claro que tam­bém se preocupava com o bem-estar de seu pessoal.

Embalada pelo calor e silêncio da tarde, Jan acabou dormin­do, sendo acordada por um sonho que desapareceu antes que se­quer abrisse os olhos. Alguém mudara a posição do guarda-sol, de modo que permanecia na sombra. Teria sido Manolo? Só quan­do virou a cabeça foi que viu Felipe sentado bem no limite da sombra, observando-a.

— Eu não ouvi o carro! — exclamou ela, fazendo a espreguiçadeira ficar em posição de sentar. — Faz tempo que chegou?

— Meia hora.

— E ficou sentado aí por trinta minutos?

— Talvez não todo esse tempo — disse ele, com um sorriso. — Mas não precisa se preocupar. Não tomei nenhuma liberdade.

— Não me ocorreu que você pudesse fazer isso — declarou ela, ficando um pouco vermelha.

— Então é a idéia de ser observada enquanto dormia que a incomodou?

— Isso não importa. Você foi a Sevilha?

— Sim. Tinha de cuidar de alguns negócios. Cometi um gran­de erro com você. Não tenho como me desculpar, porque nenhu­ma desculpa seria suficiente. Só há um modo de remediar a situação. O casamento será daqui a três dias.

Jan ficou surpresa demais para conseguir falar qualquer coi­sa. Quando por fim pôde falar, pareceu-lhe que sua voz vinha de muito longe.

— Isso não fará as coisas ficarem difíceis na hora de me pôr para fora?

— Não foi isso que quis dizer. O casamento será permanente.

— O que fez você mudar seus planos? — perguntou ela num sussurro.

Um músculo se contraiu no canto da boca de Felipe.

— Porque descobri que há modos mais honrados de assegu­rar a continuidade dos Rimados.

O coração de Jan foi se acalmando. Aquilo era uma repara­ção, pensou ela, e nada mais. Por um instante de loucura ela che­gou a imaginar que havia uma outra razão. Mas o motivo por que ele sofrera uma crise de consciência Jan não podia imaginar.

— Só um pequeno detalhe que você parece ter esquecido, Fe­lipe. O que o faz pensar que eu estou pronta para um casamento permanente?

— O fato de que há uma boa chance de estar levando nosso bebê no ventre. Sua irmã adotiva era outra questão. Errei só quan­to a você. Como já disse, não há desculpas para o modo como a tratei. Só posso tentar remediar isso. No fundo somos pessoas parecidas.

— E quanto ao amor? — perguntou ela, tendo de fazer muita força para pronunciar as palavras.

— É no máximo uma reação apressada demais.

— Não para mim!

— Como você sabe se no outro dia admitiu que nunca amou ninguém? Você está procurando uma coisa que não existe. Todo mundo fala "eu te amo", quando na verdade querem dizer eu quero você. E eu quero você, Janita, como mãe de meu filho.

A interpretação espanhola de seu nome lhe pareceu doce.

— Poderíamos esperar para ver se estou grávida antes de to­mar uma decisão assim definitiva.

— É tarde demais para isso. Eu já iniciei tudo. O casamento será aqui na nossa igreja de Alagueda.

— Parece que você não me deixa muita escolha.

— Não tenho a intenção de lhe deixar qualquer opção. E, na­turalmente, você vai dormir sozinha até o casamento.

— Isso não é como trancar a porta do estábulo depois que o cavalo fugiu?

— Se isso quer dizer que você vai lamentar essa separação tem­porária tanto quanto eu, então me sinto gratificado. No entanto, é um sacrifício que estou disposto a sofrer. Nosso casamento será uma cerimônia privada, apesar de que meu pessoal aqui sem duvida vai querer celebrar a ocasião. Juan vai cuidar de tudo. Você não terá de se preocupar com nada. E acho que é melhor você entrar agora, para sair do sol.

Jan o acompanhou sem nenhuma palavra. Não sabia o que pen­sar. Sua vida tinha se transformado totalmente em meros dez mi­nutos. Esposa de Felipe. Nem em seus sonhos mais malucos chegara sequer perto disso. E o motivo de tal transformação era evidente: a consciência podia doer em qualquer um.

A cigana, na noite anterior, predissera uma longa vida em co­mum para eles. Seria possível que houvesse algo de real naquelas previsões do futuro? Ou teria sido apenas um chute no escuro? Mas ela dissera também que no começo não seria fácil. E nisso Jan podia acreditar. Já conhecia o corpo de Felipe, porém sua mente continuava sendo um livro fechado. Como um casamento iniciado daquela maneira poderia dar certo?

— Acho melhor eu subir e me trocar — disse ela, assim que entraram na casa, evitando os olhos de Felipe.

— Eu tenho de cuidar de algumas coisas — informou ele. — Essa noite vamos jantar em Jerez e assistir à apresentação da dan­ça flamenca. Você precisa começar a apreciar nossa cultura.

O silêncio de seu quarto não ajudou em nada a clarear a cabe­ça. Sentia-se isolada. Não importava o que sentia ou deixava de sentir em relação a Felipe. Conseguiria passar a vida junto de um homem que não só não a amava, mas também negava a existên­cia dessa emoção? Se estivesse levando o filho dele no ventre, en­tão teria mesmo pouca escolha... mas, e se não fosse esse o caso?

Porém, não adiantava se preocupar com aquilo. Dali a três dias Felipe de Rimados seria seu marido; e esse tempo seria curto de­mais para descobrir seu estado. Além de tentar fugir, coisa que já sabia que seria difícil, só lhe restava uma opção, que era acei­tar os acontecimentos.

Jerez, ou o que foi possível ver da cidade à noite, era agradável e espaçosa. Do lado de fora, o restaurante onde jantaram pa­recia uma residência comum. Não era um local aberto para o tu­rista comum, como Felipe contou quando se sentaram numa das mesas que deixavam um espaço circular no meio da sala.

A maioria das outras mesas estava ocupada. As mulheres encontravam-se todas muito bem vestidas, fazendo Jan consciente de sua falta de sofisticação, usando o vestido amarelo que colo­cara na primeira noite na Andaluzia. E, levando em conta ape­nas as cores, não devia ser a única estrangeira ali. Era possível ver cabelos mais claros que os dela.

— As famílias de mercadores andaluzes e ingleses têm se mis­turado ao longo dos séculos — contou Felipe, quando Jan co­mentou o fato. — O nome de solteira da minha avó por parte de mãe era Sandeman. Tenho características de ambas as nacio­nalidades nos meus genes, por isso a chance de nosso filho ter cor clara são dobradas.

— E você não se importaria com isso?

— Se me importasse, não teria aceito uma inglesa para ser mãe de meu filho.

— Mas nem Raine nem eu somos o que você chamaria de bem relacionadas.

— O que você chama de bem relacionada, talvez não mesmo. Mas os fatores que levo em consideração têm muito pouco que ver com status. Uma boa mente num bom corpo, são esses os cri­térios. No entanto, creio que errei ao avaliar sua irmã. O que ela fez, mandando você para cá sem saber do que se tratava foi qua­se tão ruim quanto a minha reação a isso. Espero que nosso filho herde mais características da mãe que do pai.

— Não podemos nem mesmo ter certeza de que ele existe.

— Se ainda não existe, isso logo acontecerá.

— Você disse que não queria uma esposa.

— Todos nós devemos repensar nossas atitudes. Tudo que você me disse era verdade. Eu estava pensando só em mim. Uma crian­ça precisa da mãe.

Jan ficou contente por ser considerada a razão de tal transfor­mação. Talvez fosse mesmo possível que fizessem alguma coisa daquele casamento. Podiam ao menos tentar.

Jan descobriu-se com muita fome quando viu a comida, e fez justiça ao excelente gazpacho. Os suaves pedaços de aspargo foram substituídos por um prato de merlúcio assado em um molho muito saboroso, servido com feijão francês e salada. Como sobremesa, comeram salada de frutas com queijo, depois tomaram café e licor.

Já um tanto alta por causa do vinho, Jan tomou um cálice de tia Maria. Sua consciência foi diminuindo à medida que a noite avançava. Conseguiu até aceitar os olhares das outras mesas. Era evidente que todos conheciam Felipe. E era claro que deviam estar se perguntando quem seria sua companheira. Não havia dú­vida de que o casamento deles seria fonte de muitas fofocas por vários dias.

— Você nunca vai a reuniões sociais? — ela perguntou, quan­do Felipe fumava o cachimbo que saboreava apenas após o jantar.

— Não habitualmente. Você gostaria?

— Não realmente. Acho que a parte social dessas festas de­vem ser bastante chatas.

— Isso depende dos convites que se faz e que se recebe. Há muita gente que gostaria que voltassem os dias em que a hacienda de Rimados era ativa nesse sentido. Desde que meu pai mor­reu houve poucas festas. E só tenho dois amigos que considero realmente próximos.

Felipe estava a ponto de falar alguma outra coisa, mas desviou o olhar e se levantou. Jan percebeu a presença de alguém junto à mesa.

— Felipe! Não é comum ver você aqui.

— Os hábitos foram feitos para serem quebrados — respon­deu ele, mudando então para o inglês. — Janita, apresento-lhe Sabatine Valverde.

Não mais que dois ou três anos mais velha que Jan, aquela era uma das mulheres mais belas que já vira. O cabelo negro estava separado no meio, penteado de um modo que só feições perfei­tas podiam suportar, com olhos verdes bem separados. O olhar que dirigiu a Jan foi intenso e estranho.

— Está de férias aqui, señorita?

— Não — respondeu Jan, olhando para Felipe, pois não sabia o que dizer.

— Janita é minha novia — explicou ele.

Nem se anunciasse sua morte iminente Felipe teria conseguido tanto impacto. Os olhos de Sabatine refletiram um fogo interno e seu corpo se empertigou.

— Vocês vão se casar?

— Essa é a progressão natural, eu creio. Vai nos desejar boa sorte?

Com evidente esforço, a mulher olhou mais uma vez na dire­ção de Jan, com um sorriso rígido.

— Você precisa perdoar minha surpresa. Não esperava por is­so. Quando será o casamento?

— Logo. E será uma cerimônia particular.

O homem atrás de Sabatine, que ela não apresentara, mani­festou seu desagrado.

— Vamos para nossa mesa — pediu ele.

Por um instante a espanhola não fez nada. Sua atenção estava concentrada em Felipe, e só nele. Quando falou, foi em sua lín­gua natal, porém baixo demais para que Jan compreendesse. E logo depois se afastava.

O silêncio reinou por um bom tempo depois disso. Foi Jan quem falou primeiro, procurando parecer casual.

— Ela parecia um tanto brava.

— Mas não tinha motivo para estar. O flamenco está para co­meçar. Conversamos depois.

Obediente, a moça voltou-se, tentando assumir um ar de inte­resse enquanto observava o homem de negro que iniciava a dan­ça. Que aquela tal de Sabatine Valverde era bem mais que uma conhecida estava muito claro. Sua reação à notícia fora muito forte. O que Felipe significava para ela? E, mais importante, o que ela significava para Felipe? Ele dissera que a espanhola não tinha motivo para reagir daquele modo. Essa simples declaração bastava para gerar muita especulação.

Uma mulher juntou-se ao homem no tablado, e seus movimen­tos, formais a princípio, evoluíram junto com a música a ponto de fazer o sangue ferver. Jan aplaudiu com gosto no final do es­petáculo, conseguindo um sorriso de Felipe.

— Maravilhoso! — exultou ela.

— Sim, foi bom, mas já vi melhores. Camila não dança antes da meia-noite. Você quer ficar?

— Duvido que eu consiga apreciar as sutilezas.

— Você aprenderá com o tempo. O verdadeiro flamenco é cantado cante jondo, do fundo da alma. Pode ser estranho para vo­cê no início, mas vocês ingleses são adaptáveis, não são? Vamos, vamos sair antes de recomeçarem.

Iniciaram o trajeto de volta para casa num silêncio que Jan po­deria considerar como amigável. Queria saber sobre Sabatine Val­verde, mas não tinha coragem para perguntar. Qualquer que tivesse sido a relação entre eles, não poderia interferir no presente. O melhor era esquecer aquela estranha. Já tinha muito com o que se preocupar, não precisava juntar também o passado de Felipe.

— O que vou vestir no casamento? — perguntou ela por fim. — Não tenho nada adequado.

— Vai encontrar o que quiser em Jerez.

— Sozinha?

— Telefonei para os Fuentes. Eles estarão aqui conosco ama­nhã à noite. Leda vai acompanhar você nas compras.

— Eles devem ter ficado surpresos.

— Mas também contentes por eu ter arrumado uma noiva. Aqueles que encontram a felicidade no casamento sempre que­rem que os amigos façam o mesmo. E você vai gostar de Leda. Ela é só um pouco mais velha que você. E os dois também não têm família, como eu.

— E quanto aos seus primos? Não os conta?

— Eu estava falando em família direta.

— Mas eles serão convidados para o casamento?

— Temos pouco contato.

O tom da voz dele desencorajou que prosseguisse no assunto. Jan entendeu isso claramente. Questões familiares estavam além de sua compreensão. E, na sua opinião, quanto menos gente, me­lhor. Conhecer os amigos de Felipe já seria o bastante.

Era bem depois da meia-noite quando chegaram em casa. Ne­nhum criado estava à vista, porém havia luzes acesas.

Felipe parou quando chegaram ao alto da escada.

— Devemos nos separar aqui. Boa noite, Janita.

Seria péssimo se questionasse tal decisão novamente, conside­rou ela, apesar de desejar muito passar a noite com ele. E Felipe parecia que não iria nem mesmo beijá-la.

— Boa noite, Felipe.

Ele se afastou sem olhar para trás. Jan considerou que afinal de contas três noites não eram tanto tempo assim. Depois seriam marido e mulher. O difícil mesmo era se convencer de que não estava vivendo um conto de fadas!

 

Leda e Gaspar Fuentes falavam inglês quase tão bem quanto Felipe, para alívio de Jan. Apesar de estar melhorando, seu es­panhol ainda não era bom o bastante para manter conversações mais longas.

Atraente e sempre pronta a sorrir, Leda tratava Felipe com uma familiaridade que Jan invejou. Gaspar era o mais quieto dos dois. Mais ou menos da idade de Felipe, ele plantava olivas mais ao norte, exportando para todo o mundo. E também, como Felipe, podia deixar seus negócios nas mãos dos empregados por algum tempo.

Fazer compras com Leda foi bastante agradável. Jan escolheu um vestido de noiva simples, de seda, aberto nas costas, com um pequeno chapéu e sandálias creme.

Foi só na hora de pagar que se lembrou do dinheiro que Raine lhe entregara. Era evidente que agora devia devolver tudo a Feli­pe, porém só possuía metade. Confessar isso seria admitir a de­sonestidade de sua irmã adotiva, mas também não via modo algum de conseguir outras cinco mil libras.

— Você parece preocupada — comentou Leda. — Esquece­mos alguma coisa?

— Não, nada, é só algo que tenho de resolver com o Felipe. Leda... exatamente o que ele lhe disse?

— Bem, nós sabíamos das intenções dele, e eu também tentei dissuadi-lo. Mas ele não escutou. Foi uma felicidade que você te­nha tomado o lugar de sua irmã. E o choque deve ter sido terrí­vel quando você descobriu para o que Felipe a desejava.

— Sim, isso é verdade.

— Foi um choque para Gaspar e para mim também, quando ele ligou para contar que iria se casar. Mas estamos muito felizes por vocês terem se encontrado.

Aquilo não era toda a verdade, mas Jan considerou que seria melhor que os Fuentes pensassem assim.

— Acho que foi tudo muito rápido.

— Para alguns um olhar basta. No momento em que vi Gas­par, eu soube que ele seria o homem da minha vida.

— Vocês ainda não têm nenhum filho?

— Ainda não... mas os médicos dizem que não há nada de er­rado com nós dois.

— Ora, vai acontecer mais cedo ou mais tarde.

— É o que vivemos nos repetindo. Mas creio que você e Feli­pe terão uma criança antes de nós.

Aquilo era mesmo bem provável, pensou Jan. A idéia de que poderia ter um ser vivo crescendo dentro dela lhe provocava uma sensação estranha. Apenas uma semana antes não conhecia Feli­pe. Se não fosse por Raine, nunca o conheceria. E provavelmen­te não saberia o que era fazer amor de verdade. Ansiava por seu corpo. E na mesma hora do dia seguinte já estaria casada. Dona Janita de Rimados. Aquele nome não lhe parecia combinar com seu jeito, com sua pessoa.

— Você sabe que serão os únicos convidados para o casamen­to? Parece que há algum problema entre Felipe e os primos.

— É verdade — concordou Leda. — Os Lobon não vão gos­tar de saber do casamento de Felipe. As chances de eles se torna­rem herdeiros ficarão mais remotas.

— Me surpreende que Felipe tenha esperado tanto para come­çar a pensar em assegurar o nome dos Rimados, já que pensa tanto nisso.

— A verdade é que muitas mulheres gostariam de estar no seu lugar. Mas ele nunca as desejou — disse Leda, com uma risada.

— Incluindo Sabatine Valverde?

— Você conheceu Sabatine?

— Faz duas noites. Ela é muito bonita.

— E sabe disso. Se Felipe quisesse, agora estariam casados.

Isso só podia significar que tinha havido algo entre eles, consi­derou Jan.

— Você não tem nada que temer da parte de Sabatine Valverde. Foi você quem Felipe escolheu como esposa.

Jan sorriu. Ela e Felipe eram os dois únicos a saber da situa­ção real. E era assim que as coisas deviam ficar. Que Leda man­tivesse suas ilusões.

 

O almoço foi servido no pátio central, com a fonte como fun­do sonoro. Felipe parecia relaxado e expansivo. Ele e Gaspar ti­nham passado toda a manhã cavalgando.

— Você gosta de andar a cavalo? — perguntou Leda para Jan.

— Não de verdade — respondeu ela, com um olhar rápido para Felipe. — Eu costumo cair.

— O que você precisa é de prática — comentou ele. — Vai se dar bem com a Santina, só não pode tentar cavalgar muito de­pressa.

— Não vou me esquecer — garantiu ela, feliz por ver o brilho alegre nos olhos dele.

A tarde foi longa e calma. Ali sentada, ouvindo a conversa a seu redor e às vezes fazendo comentários, Jan sentiu alguma con­fiança pela primeira vez. Na noite seguinte iria dormir com Feli­pe sendo sua esposa. E esse fato sozinho lhe dava segurança. Talvez ele não a amasse como desejava, mas a queria e precisava dela, e isso era o bastante. Chegava quase ao ponto de desejar estar levando a criança no ventre, porque isso faria com que se aproximassem mais.

Quando o dono da casa foi para o estúdio às quatro, Jan o seguiu, determinada a resolver a questão do dinheiro que ele en­tregara a Raine.

— Eu não posso devolver todo o dinheiro — declarou ela, de­pois de explicar a situação. — Mas não toquei nos cinco mil que Raine me deu.

Felipe ficou imóvel apenas ouvindo. Depois de fitá-la longa­mente, falou.

— Não quero o dinheiro de volta.

— Mas o que devo fazer com ele?

— O que quiser. Mande de volta para sua irmã, se quiser. Parece-me que ela não tem escrúpulos.

— O dinheiro não é meu, e não o quero, nem parte dele.

— É seu, sim. Está no banco em seu nome, e pronto! Assunto encerrado.

Não havia dúvida de que ele não queria mais falar naquilo, e insistir serviria apenas para deixá-lo nervoso. E isso ela não de­sejava.

— Aqui na Espanha se acredita que dá azar os noivos passa­rem a véspera do casamento juntos? — perguntou ela com deli­berado descompromisso, admirando o sorriso que surgiu nos lábios de Felipe.

— Se isso for verdade, eu pessoalmente sou contra. Essa noi­te nós todos vamos passar juntos. Amanhã, depois do casamen­to, Leda e Gaspar vão voltar para casa. Então você e eu iremos para Sevilha.

— Sevilha? Você tem negócios a tratar lá?

— Nós não temos direito a uma lua-de-mel?

— Puxa, eu não tinha nem pensado nisso! Mas você não pre­cisa seguir essa tradição. Eu estarei perfeitamente feliz ficando aqui mesmo.

— Nós vamos para Sevilha. As lojas de roupas lá são muito melhores que as de Jerez.

— Oh, entendo. Eu me visto mal para uma esposa de um Rimados?

— Mas... o desejo de toda mulher não é comprar um guarda-roupa novo?

"Não eu", ela pensou, mas forçou um sorriso.

— Bem, talvez seja um deles. Creio que posso sair para fazer compras com Leda.

— Eu vou acompanhar você. Caso contrário, tenho a sensa­ção de que você só comprará o mínimo indispensável. Se deve­mos ir a festas quando voltarmos, precisaremos de vestidos adequados para isso.

— Eu pensei que você não se interessasse pela vida social.

— A velocidade e segredo aparente de nosso casamento será o objeto de muitas especulações. Manter você só para mim iria servir apenas para piorar a situação.

— Ainda há tempo para voltar atrás.

— Não, já é tarde demais. Agora vá e me deixe trabalhar.

Jan saiu, sentindo-se confusa. Agora sabia que não haveria mu­danças de última hora nos planos.

 

Apesar de não haver uma lista de convidados, a pequena igre­ja branca estava repleta de convidados. Parada no altar, enquanto o padre conduzia a cerimônia, Jan sentia que não estava no pró­prio corpo, como se não fosse com ela que aquilo estivesse ocorrendo.

Só quando saíram novamente para a luz do sol, e Felipe aper­tou sua mão na dele, foi que ela se deu conta do que acontecia. Era uma Rimados, e tudo aquilo que pertencia a ele agora era seu também. Se Felipe a amasse, nada daquilo importaria. Mas ele não acreditava em amor. Teria de aprender a viver com isso.

Os habitantes da vila tinham colocado inúmeras mesas ao re­dor da praça. Colocados nos lugares de honra, os recém-casados foram flanqueados por Leda e Gaspar. Havia comida e vinho em abundância. Jan comeu pouco mas bebeu muito, ansiando por tirar o corpete que a apertava. Percebeu que estava contente por irem para Sevilha, feliz por ter tempo para se adaptar à nova situação. Um dia iria relembrar aquilo e daria boas risadas. Um dia...

O pessoal continuava celebrando quando eles dois partiram, no final da tarde. Leda e Gaspar foram até a casa se despedir, e a mulher abraçou Jan com força, emocionada.

— Vocês precisam ir nos visitar logo — pediu ela. — Cuide bem dessa moça, Felipe.

— É o que pretendo fazer.

Com os criados também na festa, a casa estava vazia e silen­ciosa. Jan sentiu um arrepio quando Felipe se aproximou por trás, começando a abrir os botões de seu vestido, sentindo a respira­ção dele em seu ombro, a suavidade de seus lábios no pescoço.

— Você é tão bela... muito mais do que eu mereço.

— Quanto tempo vai levar para chegarmos a Sevilha?

— Duas horas. Chegaremos a tempo para o jantar.

E depois iriam para a cama. Ela tremeu ao pensar naquilo. Tal­vez, quando estivesse nos braços de Felipe, conseguisse se con­vencer de que tudo o que estava acontecendo não era um sonho.

Jan colocou um vestido simples de linho azul para a viagem. Felipe usava calça bege e camisa marrom, bastante informais. As malas já estavam no Mercedes cinza-metálico estacionado na por­ta. Jan olhou para trás quando passaram pelos portões, vendo o volume grandioso da casa em outra perspectiva. Sua casa, dali em diante e para sempre. Mas seria feliz ali?

Foram até Jerez para pegar a estrada que ligava Cádiz a Sevilha, andando depressa na via pouco movimentada. A região pró­xima a Sevilha era feia e cinzenta, com muitas fábricas ao lado da estrada. Então de súbito a estrada se abria, com parques, pra­ças e prédios graciosos de um lado e o rio Guadalquivir do ou­tro, com suas pontes em arco.

O hotel ficava na parte velha da cidade, pequeno mas luxuo­so, onde os empregados cumprimentaram Felipe com a deferência que Jan já começava a considerar inevitável. A suíte em que ficaram era recoberta com painéis de mogno, a cama uma imen­sa construção de cobre, com grandes travesseiros e uma colcha toda bordada. A gigantesca banheira daria para acomodar confortavelmente três pessoas, constatou Jan, impressionada.

Ela considerou que a vista da janela era mais africana que eu­ropéia, com minaretes, arcos e muitas árvores de tamarindos. O sol que se punha dava tons dourados às pedras brancas, contor­nando a torre de Giralda contra um céu violeta.

— Você quer sair para jantar? — perguntou Felipe. — Ou pre­fere comer aqui?

— Aqui, se você também quiser.

— Muito educada. Mas estou sob suas ordens, mi pequena.

Esse, pensou a moça enquanto ele ia até o telefone, será o gran­de dia!

O jantar foi levado para a suíte, servido por dois garçons com trajes impecáveis. Jan descobriu-se faminta, e não tomou vinho. Pensar no que aconteceria depois já era estímulo suficiente. To­do seu corpo tremia à lembrança do que significava estar nos bra­ços de Felipe. Marido e mulher... Isso ainda não lhe parecia real.

Seguindo a sugestão dela, foram se sentar um pouco na varan­da, saboreando cheiros e sons de Sevilha. O ar era suave, a brisa leve. No dia seguinte Felipe a levaria para conhecer a cidade. De­pois disso iriam às butiques.

Querendo ver mais, ela se levantou e apoiou as mãos na balaustrada.

— É tão bonito! Não posso acreditar que estou mesmo aqui!

— Nós dois estamos — comentou ele, parado atrás dela, surpreendendo-a com uma aproximação silenciosa. As mãos de Felipe se ergueram, acariciando os seios de Jan. — Os últimos três dias me pareceram uma eternidade. Senti falta de você, Janita.

Não era bem aquilo que ela gostaria de ouvir, mas no momen­to bastava. Jan encostou seu corpo ao dele, abandonando-se aos carinhos. Seu marido, o homem com quem passaria todas as noi­tes dali por diante...

Ele a fez se voltar, fixando seus olhos em chamas nos dela. Sem mais nenhuma palavra, Felipe a pegou pela mão e a levou para dentro.

Nas duas ocasiões em que estivera na cama com ele, Jan se des­pira antes. Dessa vez foi Felipe quem a despiu, lentamente, com uma sensualidade que a deixou em chamas.

Deitando-a na cama, ele começou com carícias suaves com a ponta dos dedos, começando pelo tornozelo e subindo lentamente. Jan não conseguia pensar, só sentia desejo. Os lábios dele deram beijos rápidos nos seios dela, na barriga, descendo até alcançar o centro de seu ser, fazendo com que gemesse, em êxtase, dese­jando que aquilo não terminasse nunca.

Quando por fim ele se colocou sobre ela, Jan estava muito além de qualquer possibilidade de um pensamento racional. Tudo que queria era sentir o peso dele, seu calor, seu corpo.

 

Os primeiros dias passaram como que num sonho. Como ma­rido, Felipe era tudo que qualquer mulher poderia desejar. Se não havia declarações de amor, era apenas isso que faltava. Em to­dos os outros sentidos ele realizava seus desejos mais profundos.

Visitar as lojas de roupas ficou bem longe da provação que ela imaginava que seria. Bastava mencionar o nome Rimados para conseguir atenção imediata e total. Se tivesse de escolher sozinha, Jan se veria envolta em dúvidas, porém Felipe era decidido. E tinha bom gosto. Quando todas aquelas roupas estariam custan­do, Jan não tinha idéia, pois nunca se mencionavam preços. Não na sua frente.

As touradas foram a única coisa que ela não quis ver. Disse que em hipótese alguma iria assistir a um pobre animal ser tortu­rado sistematicamente até a morte. Felipe não a pressionou, nem pareceu particularmente preocupado com a posição da esposa. Em vez da tourada passaram uma tarde na Casa Lonja, exami­nando alguns dos milhares de mapas, manuscritos e outros do­cumentos que contavam o que os exploradores espanhóis tinham encontrado nos novos mundos da India e América.

Mas o que Jan realmente gostava era das noites. Fazer amor com Felipe era uma experiência que, tinha certeza, nunca a can­saria. Ele era apaixonado, vigoroso, mas com momentos de sua­vidade que criavam no coração dela a esperança de que um dia as emoções entre eles se aprofundassem. Mesmo sem as declara­ções de amor que desejava, Jan era mais feliz naqueles dias do que jamais fora na vida.

Quando voltaram para casa, Jan viu-se com problemas para convencer Yola de que desejava desfazer as malas sozinha.

As roupas novas lotaram o armário. Havia trajes para cada tipo de ocasião possível, com todos os acessórios. A única coisa que a preocupava era encontrar as pessoas que habitavam seu no­vo mundo. Não desejava enfrentar a curiosidade de todos. A pri­meira e inevitável questão seria como tinham se conhecido.

— Você veio para cá de férias — improvisou Felipe, quando ela lhe colocou a questão. — Eu quase atropelei você, então a convidei para jantar, e o resto, como eles dizem, é história. Eu nunca fui tradicionalista em meus hábitos.

— Mas o pessoal daqui sabe qual é a verdade. E se um deles falar?

— Eles dão muito valor à posição que têm aqui para correr o risco. E, além disso, você os conquistou quando protegeu Car­los de minha ira.

— Ao custo da minha liberdade.

— Que era no máximo uma liberdade espúria — comentou ele, com um ar irônico nos olhos. — Você se tornou minha proprie­dade no momento em que colocou sua assinatura naquele primeiro contrato, sem falar no segundo.

— Ninguém pode ser dono de uma pessoa. Isso seria es­cravidão!

— Você pertence a mim. Assim como será com nossas crian­ças. E não se esqueça disso!

Discutir aquilo seria sem dúvida inútil, considerou Jan. Já sa­bia como suas idéias eram diferentes em vários aspectos. Mas cal­culava que o tempo e paciência serviriam para preencher os espaços que os separavam. O casamento daria certo.

A sugestão de Felipe de fazerem uma primeira reunião social foi recebida com apreensão. Ele sugeriu apenas um pequeno jan­tar. Haveria tempo para festas mais elaboradas depois da colheita.

O "pequeno" jantar significou convidar não menos de uma dúzia de casais. Jan notou o nome de Sabatine Valverde na lista que Felipe redigira.

E, como antes, Jan percebeu a raiva nos olhos da espanhola. O homem que a acompanhava era o mesmo daquela vez no res­taurante. Seu nome era Luís Fernandez. Pouco mais jovem que Felipe, era sem dúvida alguém com posses. Um bom partido, pen­sou Jan.

Sua capacidade em falar espanhol foi testada pelo homem, que sentou-se a seu lado na mesa, e que mal sabia falar inglês. Oca­sionalmente seus olhos se encontravam com os de Felipe na ca­beceira da mesa, e ele lhe sorria. "Com algum tempo serei capaz de lidar com situações como essa", pensou ela. "Mas agora não é fácil. Sou a estranha aqui, e isso é evidente."

Seguindo as tradições espanholas, o jantar em si não foi servi­do antes das dez horas. Às onze e meia Jan sentia-se cansada, mas sabia que os convidados não começariam a partir antes da uma da manhã. Como faria para manter-se acordada, e, além disso, conversando, não tinha idéia.

O café servido no salão ajudou um pouco. Jan se forçou a an­dar de grupo em grupo, conversando um pouco, desempenhan­do o papel de anfitriã. Quando foi até o banheiro retocar a maquiagem, não ficou muito surpresa ao ver que Sabatine a se­guira. Vestida de roxo, a outra mulher parecia mais linda do que nunca. Produziu um sorriso, torcendo para não estar revelando seus pensamentos mais profundos.

— Fica tão quente aqui com toda essa gente, você não acha? — disse Jan, procurando ser gentil.

— Felipe devia estar desesperado para pedir em casamento al­guém tão obviamente inadequada ao nosso modo de vida — de­clarou a outra mulher, mostrando-se rude. — Você nunca será o tipo de esposa que um homem na posição dele precisa. Espero que perceba isso.

Levou um instante para Jan se recobrar e pensar numa respos­ta. Quando falou, foi com muita calma.

— Seu comentário seria resultado de ciúme por ele não ter se casado com você?

Os lábios cheios pintados de vermelho curvaram-se num sorri­so de escárnio.

— Eu poderia ter sido esposa dele, e teria lhe dado o filho que tanto deseja. Felipe seria capaz de tudo para assegurar a conti­nuidade da família, mesmo que precisasse negar seus sentimentos.

— Então por que você não concordou?

— Eu não quero ter filhos.

— Muito nobre da sua parte ser honesta quanto a isso.

— E você não se engane. Está aqui para cumprir certa tarefa, e assim que o fizer ele vai deixá-la de lado.

— Isso nós veremos. E, se me desculpa, preciso voltar para o salão.

— Eles todos estão impressionados com você. Tão lamenta­velmente inadequada...

— Não por muito tempo. Eu aprendo depressa.

Saindo do banheiro, Jan parou para recuperar o fôlego. Deixar-se contagiar pelo evidente ciúme de Sabatine seria uma tolice. Po­rém as palavras a atingiram. A outra mulher teria preenchido sem esforço a posição que estava lutando para ocupar. E sem dúvida Felipe poderia endossar as palavras dela. O que estava na frente era a continuidade do nome Rimados. Aquilo era obsessão para ele.

Sem querer, Jan descobriu-se olhando para ele durante o res­tante da noite, registrando a freqüência com que ele e Sabatine aproximavam-se um do outro. Em mais de uma ocasião trocou olhares com Luís Fernández, percebendo alguma simpatia no sor­riso dele. Se estava apaixonado por Sabatine, tinha pena dele. Apaixonar-se por alguém incapaz de retribuir a emoção era triste.

Pensando no assunto, concluiu que Sabatine e Felipe eram pes­soas do mesmo tipo. E mais cedo ou mais tarde ele compararia as duas mulheres. Jan sabia que sairia perdendo. Tudo que po­deria dar a ele era um filho. E talvez nem mesmo isso. Que tipo de futuro poderiam esperar se não tivessem um filho?

O último dos convidados saiu por volta das duas. Jan sentiu pena dos criados que teriam de limpar os restos da festa, apesar de eles parecerem aceitar aquilo com naturalidade.

Felipe tinha pouco que dizer quando se preparavam para dor­mir. Jan imaginou que devia estar pensando na espanhola. Não sabia se devia se sentir feliz ou triste quando ele apenas lhe deu um beijo antes de fechar os olhos. Dali em diante nunca saberia se era ela ou Sabatine quem seu marido via nos sonhos.

Ao acordar ela continuava deprimida, mas sentiu-se melhor quando Felipe a convidou para ir à vinícula, dizendo que estava na hora de ela começar a ter alguma idéia de qual era o empreen­dimento que dava fama à casa Rimados.

Saíram às dez, cobrindo os vinte quilômetros até Jerez em me­nos de meia hora. Em toda a cidade, o cheiro de sherry se espa­lhava pelo ar.

Um grande portão de ferro com o brasão da família se abriu como que automaticamente, e entraram numa área rodeada por um belo jardim. No interior do prédio, o ar estava agradavelmente fresco. Felipe levou-a através da recepção luxuosamente decora­da, entrando numa sala não muito diferente de seu estúdio na hacienda.

No momento em que Jan sentou-se no sofá de couro, um ho­mem mais velho entrou trazendo uma bandeja com garrafas, co­pos e pequenos pratos do que pareciam ser canapês, colocando-os num aparador.

— Antes que eu lhe mostre as bodegas — anunciou Felipe, depois que o homem partiu —, vou introduzir você no nosso costu­me local de beber sherry — declarou, enquanto servia a bebida. — Primeiro o creme, depois o amontillado, por fim o fino.

— Não sei se eu posso agüentar três doses.

— Nem precisa. Alguns goles de cada um serão o suficiente para você conhecer o gosto. No almoço continuaremos a tomar do fino.

Ele entregou o primeiro cálice, junto com um dos pratinhos. Seus olhos se estreitaram ao observá-la.

— Você não me parece muito bem. A noite de ontem foi can­sativa?

— Não estou acostumada a dormir tarde.

— Sim, mas agora você vive aqui, e vai se acostumar com nos­sos hábitos. Fomos convidados para ir à casa dos Murillo nesse fim de semana. Domingo cria touros para touradas. Espero que guarde para si seus sentimentos pelos animais.

— Farei o possível. Mas não posso deixar de sentir pena dos animais.

— Vocês ingleses às vezes levam longe demais essa idolatria pelos animais!

— Não se preocupe, não vou fazer uma cena. De qualquer mo­do, duvido que eles se importem muito com a minha opinião.

— Sendo minha esposa, sua opinião é muito importante. Nun­ca se esqueça disso. Está pronta para experimentar o amontilla­do agora?

Jan tomara todo o primeiro cálice sem ter percebido.

— Por que não? Esse é um costume espanhol contra o qual nada tenho.

Felipe pegou novos cálices, servindo a bebida para os dois. Jan tomou metade da dose de uma vez, avaliando a diferença de sa­bor e doçura.

— Você precisa comer alguma coisa, senão vai ficar bêbada.

"Já estou ficando", pensou ela. Queria que Felipe se sentasse.

De pé daquele modo, ele parecia ameaçador. Seu marido, mas ainda assim um estranho em quase todos os sentidos. "O que es­tou fazendo aqui, nesse país?", pensou ela. "Não pertenço a es­se lugar, nem nunca pertencerei. Quase tudo é estranho para mim."

O terceiro cálice. Ao fino pálido e delicado, ela tomou com mais moderação.

— Se você vai me mostrar a bodega, é melhor irmos já, en­quanto eu ainda consigo caminhar em linha reta. Não seria ade­quado a esposa do chefe cair de cara no chão diante de hoi polloil.

— Eu estarei a seu lado para impedir que isso ocorra. Como você disse, temos uma imagem a preservar.

Com a aproximação do meio-dia, o calor do lado de fora tornava-se insuportável. Foi um alívio entrar no grande espaço de teto muito alto, com fileiras e mais fileiras de barris, com pas­sagens entre eles.

O sherry não tinha safra como os vinhos. A idéia era conse­guir uma bebida uniforme, reconhecível por sua qualidade e sa­bor, e não só pelo nome. Havia outros barris colocados em pilhas, e o de baixo possuía a bebida pronta para a venda. A quantidade retirada era preenchida pelo líquido do barril imediatamente aci­ma, que possuía vinho um ano mais jovem, e assim por diante, até se alcançar o quinto ano e a bebida mais nova.

Havia muitos outros detalhes, mas a maioria ela esqueceu. Sua cabeça zumbia por causa do que bebera, e continuava deprimi­da. Para o que serviria aprender aquilo, de qualquer modo? Aque­la deveria ser provavelmente a única vez em que iria ao local de trabalho do marido.

Como que percebendo sua falta de concentração, ele diminuiu o trajeto depois da segunda bodega. Tudo isso não passa de um simples gesto da parte dele, pensou Jan. Ele nem esperava nem precisava que ela apreciasse o negócio da família. Seu papel era claro: gerar um filho. E sem esquecer que o filho devia se inte­ressar pelas mesmas coisas que o pai, é claro. Mas com seu san­gue inglês nas veias, era bem possível que a criança tivesse outras idéias. Esse era outro assunto que merecia consideração, por mais distante que estivesse.

Estavam de volta na hacienda à uma e meia. O almoço foi ser­vido no pátio às duas. Jan forçou-se a comer um pouco de cada prato que lhe foi servido, bebendo o fino que Felipe lhe serviu. Observando as feições do marido enquanto servia a bebida, ela se sentiu distante dali. O suficiente para não ficar agitada com a pergunta que saiu de seus lábios?

— É verdade que você pediu Sabatine Valverde em casamento?

Por um instante ele ficou imóvel. Quando ergueu, lentamente, a cabeça, não havia nenhum sinal de irritação em seu rosto.

— Sim.

— Para você um filho importa mais que seus sentimentos por ela?

— Eu não sinto desse modo. Já lhe disse isso.

— Talvez não em relação a mim — comentou ela, com o ros­to também inexpressivo. — Apesar de a culpa também ser um tipo de emoção, eu creio. Sabatine teria sido uma esposa muito melhor para você do que eu.

— Você provavelmente está certa. Ela conhece bem os com­portamentos sociais que você ainda está aprendendo.

— E também é muito bela.

— Eu notei. E como você só pode ter sabido disso tudo atra­vés da própria Sabatine, calculo que ela também lhe contou suas razões para me recusar?

— Se você fez a oferta impondo condições, não me surpreen­de que ela tenha recusado. Muitas mulheres o fariam. Eu não ti­ve escolha, não é?

— Não. E eu, no final das contas, também não deixei nenhu­ma escolha para mim mesmo. Justiça poética, você não acha?

— Não há nada de poético num casamento sem amor. Somos duas pessoas pegas na mesma armadilha. E isso é tudo.

— Mas com compensações.

— Exceto pelo fato de eu ainda não ter conseguido a sua. E talvez nunca o faça.

— Se isso acontecer, não será por falta de esforço. É tarde de­mais para lamentações.

De ambos os lados, pensou ela. Só podemos fazer o possível com o que temos.

Se apenas pudesse se convencer de que Sabatine Valverde não possuía mais lugar algum nos planos de vida de Felipe...

 

Situado na planície costeira na direção de Tarifa, o rancho dos Murillo ficava a duas horas de distância. Deixando a estrada prin­cipal, passaram por pastos fechados por cercas, com ocasionais touros solitários nas sombras das árvores. Enormes, com chifres grandes, os animais pareciam calmos e quietos, e era difícil imaginá-los numa arena.

— Reprodutores — explicou Felipe, quando Jan expressou seus pensamentos. — Os mais corajosos e agressivos são transforma­dos em reprodutores. Eles raramente atacam no calor do dia. Só o fazem se provocados. Mas são sempre perigosos. Mais, talvez, que qualquer outra criatura da Terra. Sabe-se que um touro já chegou a matar um elefante! Domingo fará alguns treinamentos esse fim de semana, para testar as novas crias. É uma oportunidade para aqueles que quiserem tomar parte na próxima corrida.

— Você está falando em você mesmo?

— Já participei no passado.

— Para que correr tal risco?

— O desafio. Ver-se diante de um animal tão forte e podero­so e sair sem danos traz uma satisfação difícil de igualar.

— Vai tomar parte nesse fim de semana?

— Talvez. Você é contra?

— Não tenho nenhum direito de decidir sobre o que você faz.

— Nem se preocupa o suficiente para tentar, pelo jeito. Se eu morresse, você se sentiria livre de uma obrigação, não é?

— Nunca pensei isso! Não quero que morra.

— Então talvez só castrado? Desse modo você não terá de lu­tar contra seus instintos.

— Eu não sei o que você está querendo dizer.

— Você acha que sou estúpido a ponto de não perceber a diferença entre participação involuntária e participação com dese­jo? Seu corpo fala sem palavras. E o fato de eu ter uma vez pedi­do outra mulher em casamento não tem nada que ver conosco.

— Isso só deixa evidente o quanto você é rude. Qualquer crian­ça que tivermos será tanto minha quanto sua. Espero que não se esqueça disso.

— Duvido que eu tenha a chance de esquecer.

— Sempre lembrando que a criança é só uma hipótese. Pelo menos por enquanto.

— Então devo redobrar meus esforços.

Jan se conteve, odiando-se por ter chegado a tal ponto. Para Felipe, ela não passava de um animal para reprodução. O casa­mento seria permanente, ele dissera, mas Jan duvidava que pu­desse sobreviver à eventualidade de ela não ficar grávida. A questão era: quanto tempo teria antes de ele explodir?

A casa era um tradicional rancho espanhol, disposta ao redor de um pátio central. Com passagem para o balcão que contorna­va toda a construção no primeiro andar, o quarto que ocupariam por duas noites tinha seu próprio banheiro. Felipe resolveu to­mar um banho enquanto Jan arrumava suas coisas, e logo ele vol­tou com uma toalha na cintura.

— Vista algo informal — disse ele, quando ela lhe pediu sua opinião. — Haverá tempo de se trocar antes do jantar.

— Parece ter muita gente por aqui — comentou Jan, tentan­do permanecer indiferente quando ele tirou a toalha para se ves­tir. — Fomos os últimos a chegar, não?

— Duvido. Sabatine ainda não chegou, para mencionar al­guém. Ela é prima de Carlotta. Você não notou a semelhança?

— Não pensei em procurar qualquer semelhança entre elas. Ela vai trazer o Luís?

— Talvez. Parece que ele é sua companhia constante atualmente.

Um fato que não o preocupa, pensou Jan, lendo nas entreli­nhas. E quanto à própria Sabatine? Estaria pensando em casar com o outro homem ou seu desejo era apenas provocar ciúme em Felipe? Afinal de contas, ele colocara a questão de ter um fi­lho acima de tudo, mas isso não queria dizer que deixara de sentir. Poucos homens poderiam manter-se impassíveis diante de uma mulher tão bela quanto Sabatine.

Jan vestiu um macacão muito simples apesar do preço, e ficou aliviada ao constatar que as outras mulheres também estavam ves­tidas de modo informal. Na meia hora seguinte encontrou muita gente, apesar de decorar poucos nomes. Muitos a cumprimenta­ram em espanhol, o que a satisfez. Estava por fim começando a falar a língua corretamente.

Sabatine chegou no fim do dia, acompanhada por Luís. De on­de estava, na beirada da fonte central, Jan a viu cumprimentar Felipe, olhando-o nos olhos como se não houvesse mais ninguém por perto. Luís cumprimentava os outros, e por fim chegou on­de Jan estava.

— Que bom ver você novamente. Quer outra bebida?

— Obrigada, já bebi o suficiente — agradeceu ela, notando que Luís não pretendia se afastar. — Você vai participar do teste amanhã?

— Só os mais corajosos entre nós o fazem.

— Ou os mais tolos.

— Parece-me que você desaprova nosso esporte nacional.

— Sendo franca, sim. Mas também existem esportes ingleses que envolvem animais e que eu desaprovo do mesmo modo. Mas mudando de assunto, faz muito tempo que você conhece Sa­batine?

— Várias semanas — contou ele, e seus olhos dirigiram-se pa­ra o ponto onde Sabatine continuava junto de Felipe, se bem que com outras pessoas ao redor. — Ela e seu marido são velhos ami­gos, pelo jeito.

— Sim, mas já são quase oito horas. Está na hora de eu ir me vestir para o jantar. Ainda não me acostumei com seus horários. Lá em casa nós estávamos indo para a cama quando vocês ainda não se sentaram para jantar!

— Você ainda pensa na Inglaterra como sua casa? Uma espo­sa não devia adotar a nacionalidade do marido?

— Isso leva algum tempo. Você me dá licença, Luís?

Várias outras mulheres também se retiravam, provavelmente com a mesma intenção. O vestido que Jan escolheu para o jantar era azul, sem mangas, justo no torso. Sapatos com meio salto e uma bolsa eram os acessórios ideais.

Abrindo a caixa de jóias, olhou por um instante para os dia­mantes e safiras do colar e bracelete que Felipe lhe dera. Em ter­mos materiais, seu casamento lhe provinha com toda e qualquer coisa que uma mulher poderia desejar. Mas o dinheiro não lhe daria o que mais desejava.

Estava tentando fechar a presilha do colar quando Felipe en­trou. Ele veio ajudá-la, e seu rosto refletido no espelho revelava pouco do que pensava.

— Você parece tensa — comentou ele, ajeitando o colar em seu colo. — Não precisa se preocupar quanto às minhas inten­ções nesse momento.

— Não me ocorreu que eu devesse me preocupar — disse ela, não conseguindo manter o tom calmo que pretendia. — Afinal de contas, você não iria destruir um vestido pelo qual pagou tão caro!

— O preço não me interessa.

— Então o aspecto. Eu trouxe só um vestido para cada noite, e não posso usar o mesmo duas vezes, não com esse pessoal, certo?

As mãos dele a seguraram pelos ombros, com muita força.

— Se quer me fazer ficar bravo, está quase conseguindo! É o que deseja?

— Não desejo nada de você, a não ser que me deixe ir.

— Temos um contrato a cumprir. E espere por mim.

Dizendo isso, ele se virou e foi para o banheiro. Jan só se mo­veu depois que a porta fechou. Houvera momentos em Sevilha em que ela achara que seria possível construírem uma relação, mas estava claro agora que isso fora um sonho tolo.

O jantar contou com sete pratos. Sentada entre Luís e outro homem que se chamava Carlos ou coisa assim, Jan usou a con­versa como desculpa para só comer um pouquinho de cada pra­to. Felipe recebera uma cadeira ao lado de Sabatine. Jan decidiu que não podia se permitir qualquer preocupação, nem mesmo pen­sar se os dois tinham sido colocados juntos de propósito. Se es­tava presa a esse casamento, o melhor a fazer era cumprir logo sua parte. Depois que tivesse o filho, Felipe a deixaria em paz.

Um pensamento que trazia pouco conforto.

Se Luís pensava o mesmo que ela, não expressou. Jan desco­briu que ele era de Madri, e que viera para Jerez a princípio para ficar na casa de parentes.

— O primo da minha mãe quer reunir nossas famílias, fazen­do com que eu me case com a filha dele — contou ele com toda a franqueza. — Se não tivesse encontrado Sabatine, eu talvez o tivesse feito. Elena estava disposta.

— Então você não está mais com eles?

— Me pareceu prudente ir para outro lugar. Depois de conhe­cer Sabatine, eu não consegui nem mesmo pensar na idéia de me casar com outra mulher.

— Você vai se casar com ela?

— Eu a pedi em casamento, mas ela ainda não deu a resposta. E eu não posso adiar meu retorno a Madri por muito mais tempo.

— Talvez ela não queira deixar Jerez. Você poderia vir viver aqui?

— Meu lugar é Madri. Em Jerez meu nome não é nada, pois não trabalho com vinho. Se Sabatine não tivesse me convidado para vir aqui nesse fim de semana, eu não teria recebido tal honra.

Uma verdadeira panelinha social, pensou Jan. Ele estava nu­ma situação bem parecida com a sua, o que lhe fazia sentir sim­patia pelo homem.

— Você vai resolver a situação. De um jeito ou de outro.

Jan constatou que havia uma boa dose de interesse pessoal em suas palavras, enquanto a atenção de Luís era atraída pela mu­lher sentada do seu outro lado. Se ele conseguisse levar Sabatine para Madri, poderia colaborar para melhorar sua vida.

A meia-noite chegou e passou sem que aparentemente ninguém além de Jan notasse. Sentia as pálpebras pesadas, o cérebro en­torpecido pelo interminável burburinho na mesa. Por volta da uma hora todos foram para o salão, o que a aliviou um pouco. Mas pouco depois ela sentia-se novamente desesperada, e saiu para tomar um pouco de ar.

Ninguém daria por sua falta por poucos minutos, calculou ela, apoiando-se na balaustrada de pedra, ouvindo o som da fonte. E, mesmo que dessem, isso não seria importante. Era bom estar sozinha um pouco. E imaginava que nunca, nem em um milhão de anos, conseguiria se sentir parte daquela sociedade. E na ver­dade não o desejava. Aquelas pessoas eram completos estranhos. O barulho cresceu quando a porta abriu-se novamente.

— Eu vi você sair — disse Luís. — E me pareceu uma excelen­te idéia. Desde que não sejamos atacados pelos mosquitos.

— Parece que eles não saíram hoje — comentou ela, tentando não demonstrar que preferia ficar sozinha. — De qualquer mo­do, vale a pena levar algumas picadas para ficar sozinha por um momento. É que me sentia... sufocada lá dentro.

— Eu também. Nós dois estamos do lado de fora em mais de um sentido. Você tem algo contra eu fumar um charuto?

— Oh, não. Vai até ajudar a manter qualquer mosquito a dis­tância.

— Como foi que você se casou com um homem tão frio quan­to Felipe, Janita? — perguntou ele, acendendo o charuto.

— Essa sua pergunta não está baseada numa observação um tanto apressada? — retorquiu ela com um sorriso.

— Talvez. Mas continuo querendo saber a resposta. Me pare­ce que você não o ama.

— Ele é o que lá em casa chamamos de "bom partido". Isso não seria motivo suficiente?

— Para muita gente. Mas para você eu diria que o amor tem certa importância.

— Você não me conhece. Como pode supor o que é impor­tante para mim?

— Você está certa, é claro. Estou falando baseado no que per­cebo, e isso não é de modo algum definitivo. Sei que Sabatine é a única mulher que desejo, mas as emoções dela também não são claras para mim. E eu gostaria que fossem.

— Mas ela não lhe disse um não. Precisa continuar esperan­do. Você tem muito a oferecer, Luís.

— Mas temo que não seja o bastante.

Jan concordava com aquilo. Comparado a Felipe, Luís não era nada. E, se tivesse tempo, era provável que Sabatine acabasse ce­dendo ao desejo de Felipe de ter um filho. Era uma mulher arro­gante. De qualquer modo, ela não parecia disposta a desistir daquilo que considerava seu. Isso estava muito claro.

— Acho que é melhor eu entrar. Você acha que a festa ainda vai durar muito?

— A noite mal começou. Acho que ainda vai levar uma hora para as pessoas começarem a sair.

— Não sei se posso agüentar tanto tempo! Foi bom conversar com você, Luís. E lamento não poder lhe dar algum conforto.

— Ouvir meus problemas já foi bastante bom. Não há mais ninguém aqui com quem eu poderia falar.

Jan preferia não ser transformada em confidente, não dele. Agora sabia que Sabatine só o estava usando.

Luís ficou para terminar o charuto, enquanto ela entrava. As­sim que passou pela porta notou os olhos de Felipe fixados nela, do outro lado do salão. Pela primeira vez Sabatine não fazia parte do grupo em que ele estava. Fora um leve erguer de sobrancelha, ele não demonstrou nenhuma reação. Mas, pensando bem, por que o faria? Não havia nada de errado em sair para tomar ar por alguns minutos.

Alguém a chamava. Produzindo um sorriso, Jan passou a con­versar, prometendo a si mesma que usaria a siesta do dia seguin­te para recuperar o sono perdido. Só assim conseguiria atravessar a noite seguinte. E ficaria muito contente quando o fim de sema­na acabasse.

A chegada de Felipe a seu lado a surpreendeu. Ele estava ma­ravilhoso naquele dinner-jacket, a largura dos ombros marcada pelo corte perfeito do paletó creme. Fitando-o nos olhos, Jan se encolheu levemente ante a dureza de aço do olhar dele. Luís o rotulara como um "homem frio". Naquele momento tal descri­ção era perfeita.

— Acho que está na hora de nos retirarmos — disse ele. — Vamos nos despedir de Carlotta.

A dona da casa não protestou pela retirada do casal, o que pa­recia indicar que ela também estava bastante cansada. Enquanto subiam, outros casais iniciavam a retirada. Felipe não tentou tocá-la antes de chegarem ao quarto, apesar de Jan conseguir sentir a tensão nele, como uma mola pronta a saltar. Uma mola que fora comprimida por Sabatine!

As cortinas do quarto já estavam fechadas, a cama preparada para dormirem. Apenas um abajur se encontrava aceso, criando uma atmosfera de intimidade, apesar do tamanho do quarto.

— Vou me preparar para dormir primeiro essa noite, se você não se importar — disse ela.

Felipe virou-se lentamente, ficando de frente para ela e jogan­do o paletó numa cadeira. Olhando-o, Jan percebeu que seu de­sejo por ele chegava ao ponto de doer.

— Antes de mais nada, quero que me diga exatamente quanto tempo ficou lá fora com Luís Fernández.

Jan ergueu os olhos, surpresa demais para responder.

— Se estava me vigiando, deve saber quanto tempo.

— Eu só vi você voltar. E depois de instantes ele também en­trou. E não fui o único a perceber o fato.

— Ora, nós só estávamos conversando.

— Vocês poderiam ter feito isso sem ter de sair.

— Não fizemos. Quer dizer, não saímos juntos. Eu já estava lá quando Luís saiu.

— Está me dizendo que foi pura coincidência vocês dois saí­rem ao mesmo tempo para tomar ar?

— Não, não foi bem isso. Ele sabia que eu estava lá. Ele... isso é ridículo! Não há nada entre ele e eu.

— Ficou evidente na outra noite que vocês sentem atração um pelo outro. Todas as vezes que olhei para você estava sorrindo para ele. E hoje foi a mesma coisa.

— Isso não é verdade.

— Quer que eu duvide do que vi?

— Preferia que não distorcesse as coisas como está fazendo. Com quem você está mais preocupado, Felipe, com você mesmo ou com Sabatine?

— Quero sua palavra de que não vai mais procurá-lo enquan­to estivermos aqui.

— Primeiro, eu não o procurei. E não vou me afastar se me vir perto dele. Talvez fosse melhor se a Sabatine desse um pouco mais de atenção a ele. Afinal, foi ela quem o convidou!

— O que Sabatine faz ou deixa de fazer não é da sua conta. E você vai fazer o que estou dizendo!

— Não, se o que quer for completamente irracional. Eu sou uma pessoa, Felipe, um indivíduo. Tenho o direito de lhe dizer não quando e se eu quiser!

— Como minha esposa, você não tem nenhum direito além da­queles que eu lhe der. Quando vai aprender isso?

— Quando o inferno congelar!

— Nunca usei de força com você — declarou ele, a voz agora muito baixa, e tremendamente mais ameaçadora. — E esse foi meu erro. Eu deveria ter lhe ensinado quem manda desde o princípio.

Jan recuou um passo involuntariamente quando ele avançou, mas isso não impediu que os dedos fortes agarrassem a frente de seu vestido. O tecido rasgou, e o vestido caiu no chão.

Por causa do calor, Jan não estava vestindo nada por baixo além da calcinha de seda. Felipe a arrancou do mesmo modo, jogando-a longe, antes de tomar Jan nos braços e lhe dar beijos selvagens.

Ela ficou assombrada demais para reagir. Duvidava, de qual­quer modo, que conseguisse resistir à força dele. Felipe a machu­cava de vários modos, movendo as mãos de forma rude, sua raiva afastando qualquer consideração.

Quando ele a jogou na cama, Jan ficou ali imóvel. Olhando para a expressão rude quando ele se aproximou, relembrou a pri­meira vez em que ele a possuíra, a paciência e carinho que de­monstrara. Dessa vez não dava a mínima para o que ela sentia.

— Não — murmurou ela —, assim não!

A expressão dele não se alterou. De súbito, Jan conseguiu se mover, fechando as mãos e batendo nos ombros fortes, contorcendo-se sob ele, tentando se libertar. Felipe nem mesmo ergueu a cabeça, apenas segurou seus pulsos e os manteve de en­contro ao travesseiro.

Tudo acabou depressa. Ele logo deitou-se ao lado dela, sem dizer uma palavra. Jan ficou onde estava. Sabatine era a respon­sável por aquilo. Felipe a usara para aliviar o desejo que a outra mulher provocara. Tudo o mais não passava de desculpas.

— Eu o odeio! Você é detestável!

— Eu sou seu marido. E você não pode me desafiar.

— E você acha que agindo assim vai me fazer respeitar você? Você tem muito o que aprender sobre mulheres inglesas!

Passou um instante antes que ele respondesse. Quando falou, foi num tom controlado.

— Parece que nós dois temos muito a aprender. E vamos, pois a situação não vai mudar.

"Ele pode mudar de idéia se eu não cumprir minha parte no contrato", pensou Jan, com amargura. Não havia mais nada a ligá-los. Não àquela altura dos acontecimentos.

 

A arena dos touros era menor do que Jan esperava. Muros de pedra branca fechavam a área, com ocasionais burladeros de ma­deira para servir de proteção.

Diante de homens em cavalos reforçados, os jovens touros eram testados quanto a sua resposta aos desafios. Só aqueles que de­monstravam o espírito adequado eram conservados, os outros de­volvidos para serem transformados em gado de corte. De qualquer modo, pensou Jan, o destino deles no fim era o mesmo.

— Por que os testes são feitos com homens a cavalo? — per­guntou ela a Domingo, que acompanhava o espetáculo junto com os convidados.

— Porque os touros que participam das corridas não podem ter visto um homem a pé antes desse momento. É por isso que eles atacam a capa do toureiro. A capa é o que está se movendo. Felipe ainda não a levou a uma corrida?

Jan deteve o comentário que queria sair de seus lábios. Do­mingo era seu anfitrião, e seria falta de educação, no mínimo, expressar seu ponto de vista sobre o assunto.

— Ainda não tivemos tempo.

— Sei... e você está aprendendo a se adaptar aos nossos costumes?

— Estou tentando.

— Nunca é fácil para duas pessoas de culturas diferentes con­seguirem um entendimento de verdade. Você precisa aprender a ser tolerante.

Talvez tenha sido uma sorte ele não ter lhe dado chance de res­ponder, voltando-se para responder a uma pergunta de outra pes­soa. Jan olhou para a arena, onde o último dos jovens touros era retirado. Não havia nada de errado em falar sobre tolerância, mas a noite anterior fora demais. Felipe fora friamente edu­cado pela manhã, como se fosse ela e não ele quem fizera algo errado. Mesmo naquele momento ele a evitava, mantendo-se com dois outros homens. Pelo menos Sabatine não estava agarrada a ele!

Houve uma agitação assim que a arena foi esvaziada. Um ar de antecipação dominou a audiência quando a porta dos animais foi aberta novamente. Apesar de pequeno pelos padrões das cor­ridas, o touro que saiu dali era muito ameaçador. Parando de repente, ele procurou se orientar, olhando ao redor, sentindo os cheiros dali.

Felipe desaparecera. Vê-lo surgir na arena, do outro lado, com a muleta pronta na mão, fez o coração de Jan bater descompassadamente. Apesar do que dissera, ela não esperava que o mari­do fosse mesmo entrar na arena. Felipe estava muito bem vestido de calça e camisa pretas, com o vermelho da capa ondulando ao vento.

Domingo tinha explicado que touros e vacas não enxergam co­res, portanto não importava que lado da capa fosse mostrado para eles. Até ali o touro não se movera.

Com total falta de cuidado, ou foi isso que pareceu para Jan, o pretenso matador avançou, sacudindo a capa. Bufando, o ani­mal arrastou areia com a pata da frente, então explodiu em mo­vimento súbito e terrível, cruzando a arena com toda a velocidade, baixando a cabeça e apontando os chifres longos e pontiagudos.

Para Jan, o modo gracioso com que Felipe enganou o touro era algo muito próximo de um milagre. A ponta do chifre tinha passado a milímetros dele! Em seguida ele executou várias ou­tras passagens, sempre arrancando aplausos de encorajamento da platéia. Sabatine estava exultante. Dava para pensar que os aplau­sos eram para ela, e não para Felipe. E entre todos ali ela prova­velmente era a única pessoa que sentia medo de que ele cometesse um erro.

Seu alívio quando Felipe por fim procurou a proteção do burladero foi imenso. Pela primeira vez em minutos Jan conseguiu respirar direito. Vendo-se sem adversário, o touro começou a con­tornar a arena.

— Quem é o próximo? — gritou alguém, sendo acompanha­do por risadas, mas ninguém se levantou.

O reaparecimento de Felipe trouxe mais aplausos. Jan forçou-se a não reagir quando Sabatine passou o braço pelo dele, sor­rindo, olhando-o nos olhos.

— Valeroso! — exclamou ela, acrescentando algo mais baixo que o fez comprimir os lábios.

Todos os olhos voltaram-se para Jan, que continuava imóvel no seu lugar. O rosto de Felipe estava inexpressivo. Parecia um pedaço de rocha.

— Foi uma bela performance — cumprimentou ela.

— E eu sobrevivi para outra luta.

— Vamos voltar para casa. O almoço já deve estar pronto — disse Carlotta, aproveitando o silêncio que se fez.

Voltando-se para acompanhar os outros, Jan sentiu seu cora­ção saltar quando a mão de Felipe pousou em seu ombro. Con­seguia sentir a raiva dele.

— A noite passada não lhe ensinou nada de diplomacia?

— O que eu deveria ter aprendido? — respondeu ela, manten­do os olhos baixos.

— Você me obrigou a agir daquela maneira!

— Porque me recusei a aceitar que decidisse o que posso ou não fazer? De onde venho, o respeito tem de ser conquistado, não imposto. Entrar naquela arena com aquele touro não aumenta sua masculinidade. Pelo menos não para mim. Tenho mais res­peito por aqueles que não foram... como Luís, por exemplo. Ele sem dúvida não sente a necessidade de se afirmar ou se mostrar.

Os outros já tinham alcançado os carros que os levara até ali. O aperto da mão de Felipe ficou muito forte por um momento, mas logo relaxou.

— Eu ainda não comecei a me mostrar — disse ele, empurrando-a para a frente. — E você está avisada.

 

O almoço foi uma refeição leve. Durante a tarde, algumas das pessoas se retiraram para a siesta, enquanto os outros deixavam o tempo passar conversando. Jan optou por ir para o quarto, dis­posta a ficar sozinha.

Deitada na cama, no quarto que não estava muito quente, considerou o futuro como algo instável. A ameaça de Felipe não se­ria em vão. Não ficaria satisfeito enquanto não a tivesse sob com­pleto controle. Em outras circunstâncias ela teria concordado em aceitar as imposições do marido, até um certo limite, mas o que sentia por ele não era profundo o suficiente para valer tal esfor­ço. Iria lutar, sempre, para preservar alguma individualidade.

Ou poderia deixá-lo. Agora, enquanto ainda havia tempo.

Mas haveria mesmo? A concepção da criança poderia ter ocor­rido na noite anterior. E mesmo que não tivesse, Felipe nunca permitiria que fosse embora. Não enquanto ele não conseguisse dela o que desejava.

Lá pelas quatro horas Jan não agüentava mais ficar no quar­to. Por outro lado, não tinha nenhuma vontade de se juntar aos outros. Foi até o balcão, ficando contente por ver que não havia ninguém ali.

O calor começava a diminuir. Respirando fundo, percebeu o cheiro dos gerânios no ar. Uma cadeira foi arrastada. Um copo colocado numa das mesas de mármore. Quem quer que estivesse sentado ali embaixo estava protegido de sua visão. Mas a voz era plenamente audível.

— Não há sentido em lamentar — disse Felipe, em espanhol.

— Mas ainda não é tarde demais — retorquiu Sabatine, fa­lando muito baixo. — Se você se livrar dela, eu mesma lhe darei um filho.

Houve uma pausa. Quando falou novamente, Felipe conser­vava o mesmo tom desprovido de emoção.

— Você não deseja ter uma criança.

— Acho que me precipitei na decisão. Seria apenas um des­conforto de alguns meses. Fomos feitos um para o outro, Felipe. Você sabe disso. Ela nunca será a esposa que você precisa.

Jan não ficou para ouvir mais. Movendo-se em silêncio, vol­tou para o quarto. Suspeitar o que Felipe sentia por Sabatine era uma coisa, ouvir tudo confirmado outra bem diferente. Se ele ti­vesse tido alguma paciência, agora teria tudo que desejava. Mes­mo parecendo não ter nada de maternal, quem poderia dizer que Sabatine permaneceria impassível diante do próprio filho? E, se isso acontecesse, ele se importaria?

Mas essa era só uma pergunta hipotética, para a qual não ha­via resposta, pensou ela. Felipe se casara com ela, Jan. Isso era um fato. Mesmo que ele aceitasse o pedido de Sabatine e se li­vrasse dela, isso não faria o casamento em si terminar. Sem co­nhecer nada da lei espanhola sobre divórcio, ela não podia ter idéia de quanto tempo levaria, mas sem dúvida não seria um pro­cesso rápido.

Já tinha tirado a calça e blusa que vestira pela manhã e vestido um vestido simples de linho quando Felipe por fim apareceu, às cinco horas.

— Você dormiu? — perguntou ele. — Não me parece des­cansada.

— Sonhei com minha casa. Minha casa, não a sua.

— Aquela é a sua casa, agora. Você tem de esquecer a outra.

— Você não pode controlar meus pensamentos! Nem minhas emoções! Eu o desprezo, Felipe! Você não tem honra!

Os músculos ao redor da boca de Felipe se contraíram. Por um momento pareceu que ele iria bater nela, mas acabou se con­trolando.

— Talvez eu mereça ouvir isso, por isso vou deixar passar.

Ele já estava no banheiro, com a porta fechada entre eles, quan­do Jan conseguiu se mover. Pensara em confrontá-lo com o que ouvira da conversa entre ele e Sabatine, mas não conseguira. De qualquer modo, que diferença poderia fazer? Nunca tivera grandes ilusões sobre seu papel na vida do marido.

Deixaram o rancho às quatro horas da tarde seguinte. Jan fi­cou feliz por sair dali. Pelo menos estaria longe dos olhares cu­riosos.

Felipe não fizera nenhuma tentativa de se aproximar dela na noite anterior. Estava novamente distante, fechado em seus pen­samentos. O adeus de Sabatine fora dado em particular, ou ao menos era o que Jan supunha. Não houvera sinal da mulher quan­do partiram, apesar de Luís estar por ali. Se Felipe tinha ou não falado com ele a moça não sabia, mas a verdade era que o ho­mem não se aproximara mais dela.

Como antes, os touros estavam parados nas sombras das árvores. Assim que viu um grupo de pessoas fazendo um piquenique, Felipe pisou com força no freio.

Ele saiu do carro antes de Jan conseguir se mover, saltando a cerca e perguntando algo que Jan não conseguiu ouvir. Erguen­do a mão com uma garrafa de cerveja, um dos homens acenou.

— No compreendo — respondeu ele.

— Eu perguntei — repetiu Felipe, dessa vez em inglês — se vocês deram uma olhada ali embaixo das árvores antes de saltar essa cerca!

— Oh, você está falando daquele touro tirando a siesta? Nós não o incomodamos.

— Por enquanto não. Mas quando começarem a empacotar suas coisas a situação pode ser outra. Aconselho que larguem tu­do aí e saiam enquanto há tempo.

— Ora, que é isso! Você só está tentando nos assustar, não é? O animal não se moveu por meia hora!

— Mas eu acho que devíamos ir — disse sua companheira, com um olhar nervoso para o touro. — De qualquer modo, acho que estamos invadindo propriedade.

— Pode retirar o "acho". Se o touro atacar a culpa será intei­ramente de vocês.

A outra garota riu.

— Ele não tem energia suficiente para atacar qualquer coisa! Isso é evidente!

Levantando-se, a moça pegou uma toalha e fingiu ser um toureiro.

— Olé, touro!

Já fora do carro, Jan viu o corpanzil do touro se erguer. Num instante ele estava ali, no seguinte avançava pelo descampado com os chifres rebrilhando ao sol. Felipe correu, arrancando a toalha das mãos da mulher.

— Dêem o fora daqui! — gritou ele. — Já!

Nenhum dos quatro parou para pegar nada. Levando a mão à boca, Jan ficou olhando enquanto seu marido agitava a toalha azul e branca. Ele pretendia atrair o animal, para dar tempo aos outros de escaparem. Mas, depois, como ele faria para sair dali? No pasto não havia burladero para se esconder.

A primeira passagem foi tão próxima que pareceu que o touro o atingira. Aquele animal tinha pelo menos o dobro do tamanho do outro que Felipe enfrentara no dia anterior, e também era duas vezes mais perigoso que o outro, a julgar pela velocidade com que se deteve e deu a volta. Jan conteve a respiração quando a grande cabeça moveu-se para a direita, mas Felipe conseguiu evitar o chifre, largou a toalha e correu para a cerca antes que o touro se virasse para atacar novamente.

Ele conseguiu por uma margem mínima, saltando por cima da cerca e caindo na terra da estrada.

Bufando, o touro colidiu com a cerca, mas só por desabafo. Os invasores tinham ido embora, seu território pertencia somen­te a ele. Mas continuava ali, passando o casco no solo, desafian­do as pessoas a tentarem novamente.

Os quatro turistas pareciam tudo, menos à vontade.

— Obrigado — agradeceu o segundo dos dois jovens homens. — Nós não sabíamos que havia perigo.

— Você foi maravilhoso! — exclamou uma das moças, segurando-se no braço de Felipe e olhando-o com admiração. — Você é toureiro?

Ainda respirando depressa, ele ignorou a pergunta.

— Nunca, mas nunca mesmo, se considerem em segurança per­to de um animal desses. Eles têm suas próprias regras de conduta.

— E quanto às nossas coisas? Aquela cesta nem mesmo era nossa.

— Se você quiser — disse o namorado da moça que fez a per­gunta —, pode ir lá buscar. Só vamos ter de comprar outra, e pronto. Ainda bem que deixamos as outras coisas no carro.

Felipe se aproximou de Jan, o rosto inexpressivo ao vê-la. Ela entrou no carro, ainda chocada com a velocidade com que tudo acontecera para dizer qualquer coisa. Quando partiram, os qua­tro turistas entravam no carro.

— Acho que vai haver alguma preocupação quando encontra­rem as coisas deles no pasto — comentou ela por fim.

— Seria bem pior se houvessem quatro corpos juntos com as coisas. Vão considerar que alguém conseguiu escapar na última hora, e só. Não é a primeira vez que turistas confundem sonolência com docilidade. Como fica muito perto da costa, é muito comum turistas virem até a fazenda dos Murillo.

— Mas há tantos lugares que não têm cercas! Por que eles vi­riam exatamente para cá?

— Qualquer tipo de barreira vira um desafio para certo tipo de pessoas. Talvez esses aí pensem duas vezes antes de tentar de novo.

Felipe calou-se depois de dizer isso, e Jan notou certa rigidez em seu rosto. Seria assim entre eles dali por diante? Seria possí­vel que ele desejasse tanto a mulher que deixara para trás que não conseguia nem mesmo fingir um pouco?

— Você foi muito corajoso — comentou ela, desejando rom­per a atmosfera tensa. — Aquele touro era bem pior que o outro que você enfrentou na arena.

— Era mais velho. E, por isso, mais experiente. Mas era pre­ciso fazer alguma coisa. Não havia tempo para ter medo.

— Eu não creio que você saiba o que é medo...

— Porque eu testo a mim mesmo de modos que você não com­preende? Você prefere ver isso como eu estar "me mostrando", não é?

— Se quer mesmo saber, então sim, creio que é isso mesmo. Você poderia ter sido morto!

— E daí? Sua dúvida é como ficaria depois disso?

— Não! Eu não dou a mínima para o que me aconteceria co­mo sua viúva! Não quero nada de suas posses!

— Uma atitude tola, mas é isso mesmo que eu esperava de vo­cê. Seu orgulho está mal posicionado, querida.

— Meu orgulho... — começou ela, notando uma rápida ex­pressão de dor no rosto dele. — Felipe? Você está machucado?

— Não foi nada. Só um arranhão.

Baixando os olhos, Jan notou a calça rasgada do lado esquer­do dele, e a mancha escura que crescia na coxa.

— Isso é bem mais que um arranhão! Por que não falou?

— Para quê? Vou pedir para o dr. Valdés dar uma olhada quando chegarmos em casa.

— Do modo como você está sangrando, não vai conseguir es­perar tanto tempo! — protestou ela, tirando a jaqueta branca que vestia, embolando-a e a colocando sobre o ferimento. — Chiclana fica mais perto. Lá deve haver um médico.

— Você está exagerando.

— Talvez esteja, mas faça o que estou pedindo pelo menos uma vez!

— Tá bem, se você insiste...

— Insisto. E acho que seria melhor se eu dirigisse.

A jaqueta já estava quase totalmente vermelha. Felipe mudou de posição, o rosto se contorcendo por um breve instante.

— Eu não tinha imaginado que você soubesse guiar.

— Possuo talentos que nem mesmo eu descobri ainda — co­mentou ela, sem acrescentar que tirara a carta de motorista pou­cos dias antes de deixar a Inglaterra. Mas quanto mais ele usasse a perna, mais sangue perderia. E ela guiava o suficiente para man­ter o carro na estrada.

Trocaram de assentos, e antes de partir novamente Jan pegou a saída de banho que colocara na sacola quando soubera da exis­tência de uma piscina na casa dos Murillo. Felipe não protestou quando ela lhe entregou a vestimenta.

— Acho que sua jaqueta está inutilizada — comentou ele.

— Você pode comprar outra depois...

Rezando em silêncio, Jan girou a chave no contato. O motor pegou. Ela agradeceu aos céus por o carro ser hidramático.

O primeiro meio quilômetro foi o mais difícil. Ela estava co­meçando a se acostumar com o veículo quando chegaram à es­trada costeira. Ficou assustada ao ver o tráfego que seguia na direção de Cádiz. Pelo menos já estava do lado certo da estrada.

Acelerando para igualar a velocidade dos carros na estrada, ela entrou no fluxo. Chiclana ficava a poucos quilômetros dali. De­viam estar lá em quinze minutos. Felipe mantinha sua cabeça no encosto, e estava com os olhos fechados. Gotas de transpiração surgiam em seu lábio superior. Por favor, não morra, pensou ela.

Cercada por olivais e vinhedos, a cidade tinha uma imensa igreja do século dezoito. Foi numa das ruas estreitas por trás dela que, seguindo instruções que conseguiu, encontrou por fim o que pro­curava. Naquela hora, num domingo à tarde, não haveria con­sultório funcionando, mas o médico morava na casa ao lado. Só quando constatou que ele estava em casa e se dispôs a tratar Feli­pe foi que Jan se permitiu relaxar um pouco.

Pelos padrões ingleses, o consultório era mal equipado, mas parecia suficientemente limpo. Felipe deitou-se na maca com al­guma relutância.

Molhada de sangue da cintura ao tornozelo, a calça dele não servia para mais nada. O dr. Mendoza pegou uma tesoura e a cortou sem demora.

Parada ao lado, Jan não pôde evitar uma exclamação quando viu o ferimento. O corte tinha bons dez centímetros de compri­mento, começando quase na virilha e passando pela frente da co­xa. O sangue saía com intensidade.

— Aperte aqui com a palma da sua mão — pediu o médico, mostrando um local na parte interna da coxa. Preciso pegar os instrumentos.

O rosto de Felipe estava lívido, mas ele conseguiu sorrir leve­mente quando sentiu o contato da mão dela.

— Você não precisa temer nada de mim nesse momento — brincou ele. — Eu estou, como pode ver, indisposto.

— Fique quieto! — pediu ela, com medo de que o médico en­tendesse inglês.

O doutor retornou com seu equipamento. Aplicou um torniquete, permitindo que Jan se afastasse. Ela ficou observando en­quanto o ferimento era limpo e costurado.

— Onde estava o touro que fez isso? — perguntou o médico.

— Como sabe que foi um touro? — perguntou Jan, quando viu que Felipe permanecia em silêncio.

— Já vi muitos ferimentos como esse antes. Seu marido teve sorte de não sofrer nada mais sério.

— Eu não sou um profissional — disse Felipe. — Foi um acidente.

Ele baixou novamente a cabeça, como se dizer tais palavras o tivesse cansado muito. Jan explicou o que acontecera.

— Eles deviam ter sido deixados para sofrer as conseqüências da tolice que cometeram — comentou o médico, depois que ela terminou o relato, enquanto acabava o último ponto. — Pronto, isso é o melhor que posso fazer. É bom tomar cuidado para não reabrir o corte.

Felipe tentou se sentar, e a cor que restava em seu rosto desa­pareceu. O médico balançou a cabeça.

— Você perdeu muito sangue. Vai ter de tomar uma transfusão.

— O senhor pode fazer isso aqui?

— Tenho o equipamento, mas não o sangue. Você terá de ir ao hospital. Rapaz, sabe qual é seu tipo de sangue?

— A negativo.

— Não é um tipo comum. Creio que só conseguiremos esse sangue em Sevilha.

— Eu também sou A negativo! — disse Jan.

Os dois homens olharam para ela.

— Tem certeza? — perguntou o médico.

— Oh, sim. Fui doadora por um bom tempo. Eles me deram um cartão. E os exames de sangue que fiz recentemente prova­ram que está tudo em ordem comigo. Que tal uma transfusão direta?

— Isso não será problema. Só retiraremos a quantidade nor­mal numa doação.

Felipe olhava para a esposa com uma expressão difícil de definir.

— Você não precisa fazer isso.

— Mas é necessário.

Como não havia uma segunda maca, Jan ficou sentada numa cadeira ao lado do marido. O dr. Mendoza instalou o equipa­mento. Observando o tubo transparente, Jan viu seu próprio san­gue começar a subir, subir, até passar por baixo do esparadrapo que prendia a agulha ao braço de Felipe. Aquilo lhe provocou uma sensação estranha, como se parte de sua força vital estivesse sendo drenada de seu corpo.

— Eu lhe devo muito, Janita. Se não fosse sua insistência em vir até aqui, eu poderia ter sofrido conseqüências bem mais sé­rias. Sem falar nessa transfusão.

Gratidão era a última coisa que Jan desejava dele. Mas pelo jeito era tudo que iria conseguir.

— Isso não é mais do que eu faria por qualquer pessoa. Ainda bem que temos o mesmo tipo de sangue.

— Uma chance em um milhão, foi o que Valdés me disse.

— Você sabia?

— Claro. Recebi os resultados dos testes que você fez — de­clarou ele, com os olhos na face da mulher, dois pequenos espe­lhos onde ela via sua própria imagem. — Os ciganos diriam que isso é obra do destino.

Os ciganos, pensou ela, não sabem o que dizem. Pelo menos uma delas não sabe. Uma longa vida juntos com a felicidade no fim. Como alguém poderia se enganar tanto? Ela poderia even­tualmente se tornar a mãe do filho dele, mas isso era tudo que seria para aquele homem. Poderia ela enfrentar tal futuro?

 

O médico insistiu para que Jan descansasse pelo menos vinte minutos depois que a transfusão terminou. E seria melhor para os dois, ele avisou, se passassem a noite em Chiclana, continuan­do a viagem só depois de uma boa noite de sono.

— Eu preferia dormir na minha própria cama — disse Felipe. — Se o senhor me permitir usar o telefone, cuidarei de arrumar transporte.

— Eu posso guiar até em casa — protestou Jan. — Afinal, vim até aqui!

— Com muito mais sorte que habilidade — respondeu ele. — Juan e Carlos virão nos buscar.

Jan não contestou a decisão. Logo estaria escuro, e nunca ti­nha dirigido à noite. Usando a calça limpa que os empregados trouxeram, Felipe parecia quase normal novamente. Apenas um ocasional juntar de sobrancelhas quando se movia aparecia co­mo evidência do ferimento.

O médico os levou para sua casa e a esposa preparou café en­quanto esperavam, e o sobrenome de Felipe no cheque com que pagou a conta trouxe a deferência habitual. O doutor insistiu em ser chamado quando necessário, dizendo que a distância não de­via ser considerada um entrave.

Quando Juan e Carlos chegaram, Felipe fez questão de ir até o carro sozinho. Falou pouco no caminho de volta à hacienda, mas a dor era evidente em trechos mais acidentados da estrada. Ele devia era estar num hospital, pensou Jan. O ferimento fora profundo, e quem poderia dizer se o tratamento do dr. Mendoza fora o necessário?

Ele foi forçado a engolir o orgulho e aceitar ajuda para entrar em casa. Mas assim que chegou ao alto da escada, dispensou os criados e foi sozinho para a cama, com Jan seguindo-o resignada.

— Quem foi que me disse não faz muito tempo que o meu or­gulho estava fora de lugar? Ninguém vai pensar mal de você se demonstrar um pouco de fraqueza, coisa muito humana, por sinal.

— Eu não sou um inválido. Em um dia ou dois vou provar isso a você.

— Creio que eu devia ficar contente por você se permitir tan­to tempo para sua recuperação. E creio que o dr. Valdés possa ter outras idéias.

— Ele é um conselheiro, não meu mentor. Eu conheço minhas limitações.

— Conhece mesmo? Não estou bem certa disso. Pelo menos descanse essa perna agora. Podemos jantar aqui em cima. Você está com fome?

— Quanta preocupação! Sem dúvida você faria isso para qual­quer um. Mas, sim, eu quero comer. Tenho de preservar minhas forças, nem que seja para cumprir minhas obrigações matri­moniais.

Não há jeito, pensou Jan. Ele ia agir como queria, não impor­tava o que os outros dissessem. "Cabeça-dura" era o termo. Ele estivera perto de perder a masculinidade que tanto prezava e Jan fora testemunha disso. Só por isso ele não se permitira demons­trar qualquer fraqueza diante dela.

Os dois jantaram em silêncio, e logo após Felipe entrou no ba­nheiro, voltando logo com um robe e a calça de um pijama. O cabelo molhado demonstrava que tomara um banho. Ele parecia abatido, mas Jan preferiu não fazer nenhum comentário.

O vidro de analgésicos que o dr. Mendoza lhe dera continuava na prateleira onde Jan o deixara. "Se ele não ligar para o dr. Val­dés, eu mesma o faço", decidiu ela.

Mesmo sem os analgésicos, Felipe já estava dormindo quando Jan se deitou. Ficou por um bom tempo olhando as feições ago­ra tranqüilas do marido. Uma mecha de cabelo caíra sobre a tes­ta. Sem pensar, Jan estendeu a mão para recolocá-la no lugar. Nos braços daquele homem experimentara as mais variadas emo­ções, e agora não sabia dizer exatamente o que sentia. Sabia apenas que ele a fazia ferver por dentro.

Felipe se moveu, murmurando algo que ela não compreendeu. Jan afastou a mão rapidamente. Fosse o que fosse que ele esti­vesse sonhando, não era com ela.

No dia seguinte, fora uma leve rigidez ao caminhar, ele não dava nenhum sinal de dor. Jan sentia-se cansada, mas sabia que aquilo era mais psicológico que físico.

Quando Felipe anunciou durante o café da manhã que iria até a vinícola, ela não se assustou.

— Juan vai levá-lo no carro?

— Não, eu posso guiar.

Jan teve vontade de protestar, mas se conteve.

— Você vai voltar para o almoço?

— Duvido. A colheita começou com o nascer do sol. Você não quer ficar sozinha?

— Posso arrumar alguma coisa para me ocupar.

— Sem dúvida — concordou ele, terminando o café e se le­vantando, a ironia pouco perceptível em seu olhar. — Há muitos livros bons na biblioteca.

Jan conteve-se mais uma vez para não responder. Ele saiu, e ela considerou que tinha o dia todo pela frente, longo, quente e sem nenhum atrativo. Sua vida não tinha motivação, pelo me­nos não agora. Tentou imaginar como seria se tivesse um bebê para cuidar, mas não conseguiu criar imagem alguma. Uma coi­sa estava certa: caso se tornasse mãe, não haveria avós para ajudá-la.

Jan foi até a piscina, mas o exercício fez pouco pela sua de­pressão. O telefonema de Leda por volta das dez e meia foi bem-vindo. Aparentemente ela telefonara na noite anterior e ficara sa­bendo do acidente de Felipe. Queria saber sobre ele.

— Ele é um louco! — declarou a mulher quando Jan lhe disse onde o marido estava. — Por que os homens sempre têm de se mostrar desse modo? Você precisa insistir para ele ver o médico, Janita. Não há como ser cuidadoso demais com algo assim.

— E desde quando um Rimados escuta um conselho de uma mera mulher? — retorquiu ela com uma risada.

— Sim, creio que nunca. E quanto a você, está bem?

— Sim, estou. Só me ressentindo um pouco do calor.

— Mais um mês e começará a esfriar.

Um mês? Ela não conseguia enxergar assim longe. Depois que desligou, ficou pensando, e lembrou dos dois carros que estavam na garagem. Se conseguira dirigir sob a pressão do dia anterior, sem dúvida devia conseguir chegar a Jerez sem problemas. Havia uma coisa ou duas que poderia comprar, e conheceria me­lhor a cidade. Poderia até almoçar fora, talvez em algum lugar pequeno e obscuro onde não soubessem quem era. Qualquer coisa era melhor que ficar ali sentada esperando pelo retorno de Felipe.

Escolheu um vestido simples de algodão e prendeu o cabelo, usando só um pouco de batom. Uma típica veranista, pensou ela, observando-se no espelho antes de sair. Por um dia iria esquecer seus problemas e bancaria a turista.

O primeiro problema foi quando lembrou que não tinha as chaves de nenhum dos carros. Juan pareceu um tanto perturbado quando ela perguntou se sabia delas.

— Dom Felipe não deixou instruções.

— Duvido que ele considerasse necessário. Acho que vou levar o Mercedes.

O mordomo entregou as chaves com alguma relutância. Sem dúvida contaria ao patrão sobre sua excursão, mas a essa altura seria tarde demais. Tinha de sair, nem que fosse por algumas ho­ras. Queria estar sozinha para reencontrar seu equilíbrio e sua paz.

A colheita era realizada a toda velocidade, mesmo debaixo do sol abrasador. Só depois que as uvas eram colocadas no caminhão para transporte é que o sistema se tornava mecanizado. E considerando a quantidade de frutas em cada cacho, aquela poderia ser uma colheita recorde, e Jan imaginou se estaria ali para ver a colheita do ano seguinte, mas logo afastou a idéia. Era melhor se concentrar em um dia por vez.

A cidade estava cheia de gente. Deixou o carro estacionado numa rua lateral, e seguiu a pé para a principal área comercial. Havia ainda quase duas horas antes do horário da siesta. O que era tempo suficiente para pensar no que fazer para almoçar. Foi um pouco depois do meio-dia que se encontrou com Luís.

Como ela, o espanhol estava vestido de modo informal. E, tam­bém como ela, parecia não ter para onde ir.

— Sabatine tinha outras coisas para fazer — contou ele. — E quanto a Felipe?

— Está na vinícola. Hoje começou a colheita.

— Então haverá muito trabalho. Você me permitiria que lhe pagasse um café, Janita? Preciso de um conselho seu.

"Eu sou a última pessoa a quem devia pedir conselho", pen­sou ela. Mas percebeu que fazia que sim. Que mal haveria em apenas escutar?

Foram até um pequeno café mais vazio, e logo arrumaram uma mesa.

— Eu estou desesperado — declarou Luís, sem preâmbulos. — Pedi Sabatine em casamento por três vezes, e ela se nega a res­ponder.

— Lamento por isso, Luís, mas não sei como poderia ajudar.

— Você é mulher, pensei que pudesse ter alguma idéia.

— Nós duas somos de tipos diferentes. Mas, e se você fizesse um ultimato?

— Já fiz isso.

— Mas pelo jeito não foi firme o suficiente. Você deve deter­minar um limite de tempo e cumpri-lo.

— Mas aí ela pode dizer não só porque não lhe dei o tempo necessário para decidir.

— Ou pode dizer sim para não correr o risco de perder você. Mas o que sua família está pensando disso?

— Eu não contei nada, já que não há o que contar.

— Eles iriam aprovar sua escolha, já que há tanto interesse em estreitar os laços familiares?

— Oh, tenho certeza de que quando a virem vão me entender. Elena sempre me pareceu muito imatura.

E Sabatine é madura demais, pensou Jan. Era cruel da parte da espanhola deixá-lo em tal indecisão.

Jan partiu depois de quase meia hora de conversa, constatan­do que o que Luís realmente queria era alguém que o ouvisse. Não havia conselho que pudesse dar a ele, além de que terminas­se com aquilo e voltasse para casa. Mas duvidava que ele estivesse pronto para fazer isso.Porém ele tinha idade suficiente para cuidar da própria vida.

Era quase uma hora, e estava quente demais para ficar andan­do pelas ruas. Poderia voltar para casa, já que a idéia de almoçar sozinha não lhe parecia muito boa.

O tráfego diminuíra consideravelmente. Era o suficiente para que ela tivesse mais segurança do que na vinda. Consultando o mapa da cidade que comprara, descobriu que seria uma espécie de atalho se passasse pela vinícola a caminho de casa. Não pre­tendia visitar Felipe, é claro. Ele dificilmente poderia apreciar o gesto.

Era em Felipe que estava pensando quando fez uma curva para a direita, imaginando se ele falara com o dr. Valdés. O súbito aparecimento de outro carro vindo direto em sua direção a imobilizou por um instante. Foi apenas o instinto que a fez pisar no freio e girar a direção. Sentiu a batida e ouviu o barulho de metal amassado e vidros quebrados quando o outro veiculo atingiu a metade de trás do Mercedes.

Nos segundos imediatos não conseguiu se mover. O homem que dirigia o outro carro correu até ela, batendo no vidro do seu carro e gritando furioso, insultando mulheres em geral que se atrevem a guiar. Jan preparou-se o quanto pode e baixou o vidro tentando se desculpar, mas o sujeito não pretendia ouvi-la. Voltando-se para a pequena multidão que se formara, ele pediu que alguém chamasse a policia enquanto ele vigiava aquela turista imbecil que confundia um lado da rua com o outro.

Devia haver um guarda por perto, pois um chegou logo mais. Jan saiu do carro a convite dele, mantendo-se apoiada na porta. Suas pernas estavam moles. Ainda tomado pela fúria, o outro motorista contou o que ocorrera, o que foi confirmado por testemunhas. Percebendo que seu Mercedes estava mesmo no lado esquerdo e não no direito da rua, Jan não tinha o que dizer alem de voltar a historia de turista, torcendo pelo melhor.

Sua carteira de motorista inglesa não serviu para nada foi informada de que devia esta com uma carteira internacional para poder guiar na Espanha. O guarda comunicou que ela devia segui-lo. O colega dele levaria o Mercedes.

Os minutos seguintes foram os mais longos da vida de Jan. A única coisa boa foi que o motorista irado logo foi dispensado.

Como o nome que estava nos documentos era o de solteira, ela declarou quem era na verdade, o que produziu uma mudança de atitude quase miraculosa. Disseram que avisariam dom Felipe sobre onde ela estava. Enquanto isso ela devia beber alguma coisa para se recobrar.

Estava tomando um café numa sala dos fundos da delegacia quando Felipe entrou. Parecia controlado, mas Jan sabia que isso era só aparência.

Você não se machucou? — perguntou ele em inglês, quando ela se levantou.

Não. Só fiquei um pouco trêmula, mas agora estou bem. Lamento pelo carro.

— Vamos, eu a levo para casa.

Espero não ter atrapalhado nada sério na vinícola.

Não, eles não devem causar problema algum se deixados sozinhos.

Ao contrario de mim, ao que parece. O acidente foi mesmo minha culpa, mas isso podia ter acontecido com qualquer um que não tenha se acostumado a dirigir do lado errado da rua.

— Mas não aconteceu com qualquer um. Aconteceu com você. Você não deveria ter pegado o carro.

— Eu não sabia que precisava a sua permissão. Você não fez nenhuma objeção a eu guiar ontem!

— Ontem eu não tinha opção. E se soubesse que você quase não tinha experiência com carros, teria pensado melhor.

— E sangraria ate a morte enquanto isso.

— Talvez. Enquanto hoje você poderia ter se matado.

— E nesse caso você só precisaria começar de novo com outra candidata a mãe!

— Você acha que é só com isso que me preocupo?

— E não é? Mas claro, você poderia voltar para Sabatine!

— Você ainda não me disse porque precisava vir a Jerez.

— Compras.

— Não vejo nenhum pacote.

— Só andei. Não encontrei nada que me interessasse.

— Acha a cidade assim limitada? Vou fazer os arranjos para levá-la a Sevilha novamente.

Apesar do vento produzido pelo carro, Jan sofria com o calor do sol. Felipe também parecia incomodado pelo sol, com o cabe­lo molhado grudado na testa. De perfil, seu rosto tinha aquela aparência de falcão que ela notara na primeira vez que o vira. Fazia só três semanas que o encontrara no estúdio? Parecia uma vida inteira! Se Raine estivesse ali em seu lugar, onde estaria agora? Talvez lá fora em algum lugar houvesse um homem que pu­desse realmente amar, mas agora nunca saberia, não é? Não, a menos que escapasse dessa imitação de um casamento.

Ignorando a siesta, os trabalhadores continuavam a colheita. Quando o trabalho terminasse haveria uma grande celebração na vila, fora o que Yola contara pela manhã. E nesse ano os traba­lhadores estariam esperando ter um duplo motivo para comemo­rar. Assim que se confirmasse sua gravidez, seu futuro estaria assegurado. Se pretendia dar o fora dali, tinha de ser logo, enquanto Felipe estava incapacitado.

A idéia de que talvez já estivesse grávida ela afastou para o fun­do da mente.

Apesar de os criados terem sido avisados de que nenhum dos dois iria almoçar, a comida foi servida quinze minutos depois de chegarem. Jan se forçou a comer. Felipe também parecia estar sem apetite. O desejo dela era perguntar se o marido estava com dores, mas sabia que ele nunca admitiria se fosse verdade. Se ele nem mesmo falara com o dr. Valdés, ela não podia fazer mais nada.

Felipe foi para o estúdio assim que terminaram a refeição. So­zinha novamente, Jan se trocou e voltou para a piscina. Pelo me­nos a água refrescava o corpo.

Depois ela se deitou numa das espreguiçadeiras, sob um guarda-sol, e tentou definir suas prioridades. Sua vida estava ficando in­tolerável. Não acreditava que pudesse agüentar muito mais. Dei­xar Felipe era a única opção, apesar de isso significar usar o dinheiro que jurara não tocar. E conseguir que Raine devolvesse o restante não seria fácil. Já devia ter sido gasto, e mesmo encarar a irmã não seria fácil, dadas as circunstâncias.

Então vá para algum lugar, pensou ela. Ignorar o passado e começar de novo. Com cinco mil libras no bolso era possível escolher. Talvez a Escócia. Felipe não devia pensar em procurá-la lá.

O pensamento de nunca mais vê-lo produziu um nó em sua garganta. Se tivesse um incentivo, qualquer um, poderia ter feito algo daquele casamento. Mas isso era impossível com Sabatine sempre por perto. Então que ela arrumasse um herdeiro para Felipe.

Mesmo com os olhos fechados por causa da luz forte ao re­dor, Jan percebeu a presença de alguém. Era Felipe. Seu rosto estava duro, os olhos negros muito frios.

— Você mentiu para mim! Você foi a Jerez para se encontrar com Luís Fernández!

— Quem lhe contou? Não foi nada disso!

— O que exatamente você está negando?

— Que o encontro tenha sido arranjado. Eu não tinha a me­nor idéia de que ele estaria lá.

— Você foi vista almoçando com ele.

— Tomando café. Nos encontramos por acaso e ele me convi­dou para tomar um café.

— Com que propósito?

— Foi só uma cortesia. Sem dúvida não há nada de errado em tomar café à luz do dia, não é? Só passamos meia hora juntos, se tanto.

— E falaram no quê?

— Nada que possa ser do seu interesse.

— Eu quero decidir isso.

— Não, não vai! Ele me disse coisas que devem ser mantidas em segredo!

Felipe se curvou e a obrigou a se levantar.

— Você vai me dizer o que há entre vocês dois!

A ira dele era assustadora, mas Jan não pretendia ceder.

— Não há nada entre nós! Luís é um amigo. Eu posso ter ami­gos, não posso?

— Amigo? Acha que vou acreditar que é uma relação puramente platônica?

— Não me importa o que você acredita! Estou cansada de seu jeito, Felipe! Cansada de você! Não suporto você perto de mim!

Surgiu um ar de crueldade nos lábios dele.

— Isso é uma pena!

Felipe a beijou, e Jan se sentiu violada por aquela língua que penetrou em sua boca, sufocando-a. Lutou para se libertar, mas as mãos dele encontraram a tira da parte de cima de seu biquíni e puxou-a.

— Os criados!

Houve um momento em que ele pareceu não dar a mínima pa­ra isso, então se controlou.

— Concordo que esse não é o local adequado. Por isso vamos entrar.

A mão que a segurou pelo antebraço era um verdadeiro torniquete. Jan sentiu que seus dedos começavam a adormecer por falta de sangue. Felipe mancava um pouco, mas não ia permitir que seu ferimento o detivesse.

— Isso não vai resolver nada! — protestou ela. — Não me fa­ça odiar você mais do que já odeio, Felipe!

A risada dele foi baixa e crua.

— Isso não faz diferença para mim. Você está aqui para reali­zar certa coisa... ou será que esqueceu?

A mudança do sol do lado de fora para a penumbra da casa foi um pequeno alívio, enquanto a visão de Leda Fuentes foi ou­tro bem maior. O motivo dela estar ali parecia secundário no mo­mento. O que importava era que estava ali. Felipe parou, soltando Jan.

— Aconteceu alguma coisa com o Gaspar? — perguntou ele, subitamente muito preocupado.

Leda fez que não, sua expressão incerta enquanto olhava dele para Jan e de volta para Felipe.

— Não, ele está bem. Estamos preocupados com você, Feli­pe. Gaspar concordou que eu devia vir dar uma olhada em como você estava.

— Eu estou, como você pode ver, muito bem, mas aprecio o gesto. Mas creio que terei de voltar para a vinícola. Janita sem duvida vai apreciar sua companhia. Você vai, é claro, passar a noite aqui?

— Era essa minha intenção — respondeu a mulher com um ar mais controlado, escondendo seus pensamentos. — Então o verei à noite?

— No jantar — prometeu ele, saindo sem olhar na direção de Jan.

 

Foi Jan quem falou primeiro, mas evitando fitar a outra mu­lher nos olhos.

— Vou levar só uns minutos para me vestir. Yola normalmente me traz o chá da tarde a essa hora. Você também quer, Leda, ou talvez prefira alguma outra coisa?

— Não, chá será ótimo. Vou esperar por você no pátio.

Subindo, Jan tomou um banho rápido e colocou o primeiro vestido que encontrou. Penteou-se observando que o rosto pare­cia abatido, os olhos sem brilho. Estava tudo acabado. Depois daquilo, tinha de estar acabado!

Leda a olhou com intensidade quando deixou a casa, mas não fez nenhum comentário de imediato. O chá foi trazido e servido. Só então a espanhola mencionou o assunto.

— Janita, o que houve entre você e Felipe? Eu nunca o tinha visto daquele modo antes.

Decidindo que estava na hora de falar, Jan contou toda a his­tória. Leda ouviu em silêncio, parecendo impressionada demais para dizer qualquer coisa.

— Eu sabia, como lhe disse, do plano inicial dele em relação a sua irmã adotiva, mas tinha pensado que sua presença havia modificado tudo. Como ele pôde fazer tal coisa?

— Para ser totalmente justa, talvez eu não tenha lutado como devia. Ele é um homem... muito persuasivo.

— Mas você não o ama?

— Não — respondeu ela, não permitindo que suas emoções interferissem.

— Felipe não é o homem que eu pensava que fosse, mas ainda continua sendo nosso amigo. Vou pedir ao Gaspar para falar com ele. Ele tem de ver como está errado agindo assim.

— Acho que ele acredita que tem motivo para ter ficado bravo hoje. Ele pensa que estou tendo um caso com outro homem.

— E você está?

— Não, mas Felipe não quer acreditar nisso. Leda, acho melhor você não contar isso ao Gaspar. Pelo menos não ainda. Este problema eu... nós temos de resolver sozinhos.

A outra relutou em concordar.

— Se é o que deseja... nós estávamos tão felizes por você e Felipe... tão convencidos de que estavam se dando bem...

— Talvez eu não devesse ter lhe contado.

— E me deixar imaginando o que poderia ter acontecido num espaço de tempo tão curto para provocar a raiva que vi há pouco? Eu só queria poder ajudar, mas você está certa, vocês dois é que têm de resolver isso. Será difícil, mas diante de Felipe vou fingir que não sei de nada.

Felipe só voltou pouco antes das nove. Jan ordenara que o jantar só fosse servido quando ele chegasse. Quando desceu, Felipe vestia a mesma camisa de seda negra que usava no dia em que se conheceram. Sua pele parecia acinzentada, as marcas profun­da ao redor da boca. Ele está cansado, pensou Jan, evitando en­contrar os olhos dele. Só mais alguns dias enquanto preparo tudo, e depois adeus.

Por causa de Leda ela se esforçou por conversar durante o jantar. Felipe contribuiu, mas era óbvio que não estava prestando atenção no que dizia. Ele pediu a Juan uma dose dupla de brandy junto com o café, e tomou metade da bebida de um gole.

— A noite hoje está úmida — comentou ele, enxugando o lá­bio superior com o guardanapo. — Vamos torcer para não haver tempestade.

Se chover agora a colheita será arruinada, pensou Jan. Ela não sentia o ar pesado, mas o lábio do marido já tinha novas gotículas de suor. Que o ferimento o incomodava era evidente, mas a moça não tocou no assunto. Que ele sofresse! Seria merecido.

Leda ouviu uma resposta torta quando perguntou a ele se ti­nha falado com o dr. Valdés. Felipe disse apenas que o médico tiraria os pontos quando estivesse na hora.

— Você vai ter de voltar amanhã? — perguntou Jan para a outra mulher, não querendo perder sua única confidente. — Gas­par objetaria a que você ficasse mais um dia?

— Oh, tenho certeza de que não.

— Você é mais que bem-vinda, Leda — assegurou Felipe. — Mas isso você já sabe.

Logo subiram para o quarto, e Jan considerou que não dese­java dormir com o marido, não o queria perto de si. Mas ele nunca permitiria que fosse para outro quarto.

Felipe permanecia imóvel junto ao pé da cama. Jan sentia os olhos dele em suas costas enquanto preparava a cama, esperan­do o momento em que seria agarrada pelo braço. A voz dele, mui­to controlada e suave, a surpreendeu.

— Janita, olhe para mim.

— Por quê? Já dissemos tudo que havia para dizer. Estou aqui só por um motivo, não é isso?

— Pode ter sido antes. Agora não é mais isso. Quero que re­comecemos.

Ela parou o que fazia, voltando-se lentamente para olhar para o marido.

— Recomeçar o quê?

— Nossa relação, toda ela. Sei que lhe dei poucos motivos pa­ra confiar em mim, mas eu preciso de você, querida.

— A desconfiança é mútua. Algumas horas atrás você tinha certeza de que eu estava vendo outro homem.

— Eu estava com ciúme. Pensar em você com Luís Fernández me deixou doente. Arranjei nosso casamento porque queria acer­tar o erro que cometera com você, é verdade, mas isso foi só par­te da verdade. Eu nunca conheci outra mulher que me fizesse sentir algo tão profundo quanto você. Eu já tinha desistido de procurar.

— Você queria se casar com Sabatine — lembrou ela, sentin­do as pernas moles e trêmulas, e por isso sentou-se na beirada da cama. Sua cabeça rodava.

— Um dia percebi que se queria ter um filho e herdeiro a tem­po de vê-lo alcançar a maturidade, devia conseguir uma esposa. Sabatine parecia a melhor escolha. Quando soube que ela não queria ter filhos, retirei o pedido.

— Ela me disse que foi ela quem recusou você. E você confirmou isso

— Eu devia isso a ela.

— Então você teve a idéia de contratar uma mãe...

— Não, foi sua irmã adotiva quem teve a idéia. Se pretendia ser candidata desde o princípio eu não sei. Mas aceitou logo quando fiz a proposta. Então você apareceu e... basta dizer que... estava obcecado pela idéia. Amor era uma emoção que eu não levava em conta.

Uma pequena área de calor dentro dela começou a irradiar.

— Por que você não me contou isso antes?

— Orgulho, o meu calcanhar-de-aquiles. Foi só quando a deixei hoje à tarde que percebi o que meu orgulho estava me custando. Sei que posso fazer você responder a mim fisicamente, mas quero mais que isso. Você acha que pode perdoar meu comportamento?

Jan tentou engolir, mas a garganta estava seca.

— Vai levar algum tempo até eu ajustar minhas idéias, Feli­pe. Você está mesmo me dizendo que... me ama?

— É assim difícil de acreditar?

— Sim, é sim. Para ser honesta, não creio que você saiba o que seja amor.

— E você sabe? Talvez nós dois tenhamos muito a aprender nessa questão de compartilhar emoções. Você me odeia muito?

— Não sei o que sinto por você... — declarou ela, baixando os olhos para suas mãos, que estavam trêmulas.

— Então talvez isso possa ajudar.

Com tais palavras Felipe se aproximou, erguendo-a, suas mãos dessa vez muito gentis. O beijo foi de uma doçura que ela jamais esqueceria. Jan descobriu-se correspondendo por instinto, encostando seu corpo ao dele. Ele a amava. Fora isso que dissera. E ela queria tanto acreditar em tais palavras!

Mas logo Felipe a afastou.

— Isso só está confundindo as coisas. Você tem de decidir o que sente sem ser induzida por mim. Essa noite vamos dormir separados. Isso vai lhe dar tempo para pensar — decidiu ele, com um sorriso rápido. — Esperarei ansioso.

Jan ficou imóvel enquanto ele se afastava. Desejava fazer amor com ele. Mas Felipe devia estar certo. Nos braços dele não con­seguiria pensar direito. Ele queria mais dela que apenas contato físico, fora o que dissera. O que tinha de decidir era se poderia dar-lhe mais que isso.

Demorou muito para que Jan conseguisse dormir. Deitada na cama, no escuro, tentou desesperadamente definir o que sentia. Que desejava Felipe era evidente, mas desejar estava muito lon­ge de amar. Na verdade não sabia dizer no que consistia o amor.

Tudo o que importa, no final das contas, pensou ela, é a con­fiança. Ele engolira seu orgulho para lhe dizer como se sentia. Esse fato seria o bastante para provar que era sincero? "Não há sentido em lamentar", dissera ele uma vez. Em outras palavras, é preciso aprender a conviver com os próprios erros. Era um con­selho que servia para ela também. Fosse o que fosse que significassem um para o outro àquela altura, aquilo podia mudar e crescer com o tempo. Tudo que precisavam era de uma oportu­nidade.

 

Yola a acordou às oito, com o café da manhã, dizendo que o patrão já saíra para a vinícola. Se a menina sabia que tinham dor­mido sozinhos era difícil de dizer. Não que isso importasse, pen­sou Jan.

Sozinha novamente, ela se sentou e pegou a xícara do café, mas a baixou rapidamente ao sentir uma onda de náuseas. Mal teve tempo de correr até o banheiro e se ajoelhar diante da privada.

Um enjôo matinal não podia ser considerado como prova fi­nal, mas isso, combinado com outros fatos aos quais ela não de­ra atenção antes, era definitivo. Os músculos de seu estômago se contorceram ante a idéia do que acontecia dentro de seu cor­po. Um bebê. A criança de Felipe. Se havia qualquer chance de escolha antes, isso a anulava. Assim, sua decisão estava tomada.

Ao descer, Jan encontrou Leda no pátio.

— Pensei que você aproveitaria a oportunidade para dormir mais um pouco. Felipe saiu mais cedo?

— Antes de eu acordar — concordou Jan, evasiva, sentando-se à mesa e observando a cafeteira, imaginando se devia tentar beber café novamente. A náusea diminuíra, mas isso não queria dizer que não voltaria. E Leda era esperta demais para não perceber a causa caso isso ocorresse.

— Acho que vou tomar um suco de laranja hoje — disse ela num tom casual, servindo-se. — Você dormiu bem?

— Não muito. Passei um bom tempo pensando no que você me contou.

— Leda, não se preocupe com isso. Tudo vai dar certo.

Jan notou que aquelas palavras serviam para ela própria também. Felipe a amava. O que mais poderia importar?

— Então vocês se entenderam? — exclamou Leda, aliviada. — Felipe precisa de você, Janita. Muito mais do que você pode ter percebido. Liguei para o Gaspar, dizendo que vou ficar mais uma noite. Então, o que vamos fazer hoje?

— Podemos ir até a cidade. Mas no seu carro. Eu ainda não tenho licença para guiar aqui.

— Claro. Felipe precisa cuidar disso para você.

Ele já o fez, pensou Jan, sentindo novamente um calor dentro de si. Mal podia esperar para contar a ele a novidade. Naquela noite ficariam juntos novamente, e dessa vez para o resto da vi­da. Tal idéia não a assustava mais.

Deixaram a hacienda às dez e meia. Alegre, Jan resolveu ace­nar para os trabalhadores da plantação, e ficou contente quando vários deles responderam.

— Eles todos parecem tão felizes, apesar de trabalharem neste sol forte!

— Isso porque têm boas casas e comida, e sabem que seu futuro está assegurado, agora que dom Felipe tem uma esposa. O nome Rimados significa muito para essa gente. Poucos teriam recebido bem os Lobon, se acontecesse deles herdarem as terras.

Jan sentiu vontade de contar a novidade à amiga, mas se conteve. Felipe devia ser o primeiro a saber. Merecia isso.

Jerez estava cheia de carros e pedestres. Recostando-se enquan­to Leda seguia pelas ruas, Jan sentia-se agradecida por não estar guiando. Mas com prática logo aprenderia a dirigir direito.

Os cafés ainda estavam vazios, mas Jan sentiu seus músculos enrijecerem ao ver um certo casal numa das mesas da calçada. Felipe mantinha a cabeça baixa, ouvindo o que Sabatine dizia, mas mesmo do carro era possível sentir a tensão que emanava dele. Ficou enjoada novamente. Qualquer que fosse o motivo da declaração dele na noite anterior, na verdade aquilo não valera nada, se continuava vendo aquela mulher. E Jan não estava dis­posta a dividi-lo com Sabatine Valverde!

— Eu quero voltar. Por favor, vamos voltar para casa, Leda. Eu não estou me sentindo bem.

— Eu também os vi — contou Leda ao deixarem a cidade. — Mas tenho certeza de que você está errada no que está pensando.

— Eu duvido. Se ele não consegue ficar longe daquela mulher, então, é melhor que fiquem juntos de uma vez!

— O que você vai fazer, Janita?

— O que devia ter feito há muito tempo. Vou voltar para ca­sa. Só preciso pegar meu passaporte e algumas coisas.

— Você não pode fazer isso! Precisa dar uma chance de ele se explicar!

— Não há o que explicar. Eles estavam juntos, se encontran­do em segredo.

— Eu não diria que estar numa calçada da rua seja estar se encontrando em segredo.

— O que só prova como ele não se importa. Não adianta, Le­da. Não vou ser feita de boba novamente. Vou embora, e você não vai me deter!

A amiga não disse nada, soltando um suspiro e dando de om­bros. Só voltou a falar quando estavam chegando na casa.

— Como pretende partir?

— De avião, se conseguir chegar a Sevilha. Sei que é pedir mui­to, mas você me levaria até lá?

— Não posso fazer isso.

— Então vou ter de levar o carro. Felipe pode ir buscá-lo depois.

— Mas você não tem carteira de motorista!

— Vou correr o risco.

Saltando do carro, Jan correu para dentro de casa. Felipe não lhe devolvera o passaporte, mas o documento sem dúvida estava na casa. Entrando no estúdio, começou a revistar as gavetas. A de cima, à direita, estava trancada. Usando um abridor de car­tas, conseguiu abri-la. Seu passaporte estava ali, sobre o contrato que assinara naquela manhã fatídica. Sem se preocupar em ler o documento, rasgou-o em pedacinhos, que deixou no alto da mesa. Leda a observava da porta.

— O que você está fazendo?

— Só terminando algo que comecei — declarou Jan, pegando o passaporte e indo para a porta, resistindo ao olhar de súplica da outra mulher. — Lamento, Leda, mas não posso mais agüentar isso.

— E se você estiver grávida, Janita? Já pensou nisso?

— Sim, pensei.

— Ele não vai deixar você escapar assim fácil.

— Assim que eu estiver na Inglaterra, ele não poderá fazer na­da. E se você está pensando em ir avisá-lo, garanto que terá pro­blemas. Ele sem dúvida ainda está com Sabatine.

As malas eram guardadas num armário no final do corredor.

Levou apenas uns minutos para Jan encontrar a sua e colocar algumas roupas dentro dela. Iria usar o dinheiro porque não ti­nha opção, porém tudo o mais que ganhara de Felipe ele poderia manter. Não desejava nada que a fizesse recordar aqueles dias.

No entanto havia algo que nunca permitiria que esquecesse. Mas não deixaria que o bebê a detivesse agora. Felipe nunca ficaria sabendo.

— Jan, eu disse ao Juan que não devia lhe dar a chave do carro. Lamento, mas não posso permitir que se vá desse modo.

— Então vou chamar um táxi.

De imediato ela pegou o fone e chamou a telefonista pedindo que ligasse para uma companhia de táxis. Então pediu que um carro fosse até lá para levar uma pessoa ao aeroporto de Sevilha. Felipe não estará de volta até então, pensou ela, já que está preo­cupado com outras coisas. E aposto que esteve com ela ontem à tarde também!

— Pelo menos descanse um pouco enquanto espera — pediu Leda. — Venha se sentar.

— Não, eu vou esperar lá fora. Quero ver quando o táxi chegar.

Passava alguns minutos da uma. Jan sentou-se na varanda em um ponto de onde pudesse ver os portões, a mala ao lado. Leda não a acompanhou. E não havia o que a espanhola pudesse fazer para mudar sua decisão. Ia embora, e nada poderia fazê-la ficar. Ouviu o telefone tocar, mas não se moveu. De qualquer modo dificilmente a ligação seria para ela. Quando Leda se aproximou, pouco depois, Jan não se moveu.

— Era da vinícola — informou ela. — Felipe foi levado para o hospital.

— Eu não acredito nisso.

— Mas é verdade! Eu nunca mentiria num assunto desses. Pa­rece que ele está mal. Ele está com uma infecção generalizada, foi o que disseram. Janita, ele pode morrer!

— Não tão depressa — retorquiu ela, mas com um começo de dúvida. Envenenamento do sangue era coisa séria. Mas a ques­tão era: estaria preocupada com isso?

A resposta era evidente. É claro que sim! Era verdade que não poderia aceitar Sabatine, mas pelo menos Felipe tinha o direito de saber que seria pai. Como podia ter decidido contra isso an­tes? Levantando-se, ela olhou para Leda.

— Você sabe chegar ao hospital?

— Claro. É uma clínica particular. Podemos chegar lá em vinte minutos. Juan pode cuidar do táxi.

Jan pôde se lembrar muito pouco do trajeto até o hospital, que era uma construção impecavelmente branca nos arredores da ci­dade. Lá dentro a recepcionista informou que o señor Rimados fora levado direto para a Unidade de Terapia Intensiva. No ele­vador, Jan tentou afastar o medo. Fazia apenas dois dias desde que ele fora ferido. Será que aquele tempo era o suficiente para a infecção se espalhar pelo organismo? Felipe era forte. Os anti­bióticos o ajudariam. É claro que daria tudo certo!

Havia uma pequena sala de espera no segundo andar. A enfer­meira por detrás da mesa as convidou a se sentarem e perguntou se queriam café, informando que os médicos ainda estavam com o señor Rimados. O tempo parecia infinito. Jan não se arriscou a tomar o café. Sentia um frio terrível por dentro. E se fosse tar­de demais? Se não tivesse a chance de contar a Felipe que estava grávida? Sabatine não importava. Se ele sobrevivesse, cuidaria para que não desejasse qualquer outra mulher. Ele tem de viver!, pensou ela, desesperada. A vida sem ele não valeria nada.

Por fim o dr. Valdés apareceu, parecendo muito cansado. Informou que o paciente entrara em choque por causa de uma in­flamação virulenta. Estava estabilizado no momento, mas ainda corria perigo de vida. Em tais casos, se a pressão sangüínea não fosse baixada a níveis normais em algum tempo, havia riscos de danos nos rins e mesmo no cérebro.

— Você pode vê-lo por cinco minutos, nem um segundo a mais — disse Valdés. — Ele está semiconsciente, por isso não fique perturbada se não a reconhecer.

Apesar de todo preparo, ver o rosto pálido e imóvel no travesseiro foi um choque brutal. Havia um aparelho ligado a ele que media sem parar a pressão do sangue, além da máquina de eletro-cardiograma e um tubo que injetava sangue por um braço. Seus olhos estavam fechados, os lábios relaxados. Vulnerável. O desejo de Jan foi encostar seus lábios nos do marido e soprar calor e cor dentro dele.

A enfermeira saiu, deixando-os sozinhos. Jan estendeu a mão, tocando o rosto branco, sentindo a leve contração dos músculos sob seus dedos. Felipe abriu os olhos, que pareciam fora de fo­co, e levou dois ou três segundos para conseguir perceber quem estava ali. Um sorriso apareceu e sumiu rapidamente em seus lábios.

— Eu devia ter escutado você, querida. O orgulho está me custando mais isso.

— Você não deve falar. Precisa conservar suas forças.

— Eu já estou me sentindo mais forte, agora que você está aqui. Você vai ficar?

— Claro. Claro que ficarei.

Felipe dormia quando a enfermeira veio dizer que o tempo aca­bara. Jan se levantou, considerando que a cor dele já estava um pouco melhor. Leda a recebeu com ar preocupado.

— Como ele está?

— Vai ficar bom — declarou ela com convicção, deixando-se cair no sofá. — Que dia!

— Felipe não precisa saber sobre o que você fez. Ninguém pre­cisa saber. Eu farei Juan jurar que não vai contar.

— Não vou permitir que as coisas cheguem a esse ponto. Mas agora preciso informar os outros de como ele está.

— Eu farei isso. Há quartos na clínica para parentes que quei­ram ficar. Por que você não descansa um pouco? Parece exaus­ta. Vou pedir à enfermeira que cuide disso.

O quarto para onde Jan foi levada não deixava nada a dever a um hotel cinco estrelas. Toda a clínica era de alta classe. Havia até um banheiro com chuveiro além da banheira, separados. Le­da voltou para o quarto depois de inspecionar o banheiro.

— Eu liguei para o Gaspar — informou ela. — Ele queria vir para cá, mas o dissuadi. E acho melhor se eu for pegar algumas roupas para você. Carlos pode trazer.

— Obrigada. Você está sendo muito prestativa.

Jan tomou um banho assim que Leda saiu, vestindo o robe de tecido absorvente que havia no banheiro. O quanto devia custar ser tratado num lugar como aquele ela não queria nem pensar, mas sem dúvida Felipe podia pagar por aquilo. E seu filho pro­vavelmente nasceria ali também. "Mas como você tem tanta cer­teza de que será um menino?", pensou ela, deitando-se na cama. Não se importava com o sexo da criança. Mas Felipe, sim. Ela o amava. Pelo menos para isso servira o dia. Descobrira que o amava. E acreditava que ele também sentia algo por ela, mas o homem era atraído por Sabatine. Teriam de conversar sobre is­so, resolver o assunto. Ele precisava perceber que não poderia ter as duas. E além disso ela queria ter vários filhos.

Suas roupas limpas chegaram às cinco. Depois de se vestir, Jan sentiu-se um pouco melhor. Quando vieram lhe dizer que Felipe acordara e chamava por ela, foi até a UTI com passos hesitantes.

Ele continuava ligado às máquinas, mas dessa vez a cama es­tava mais erguida, e sua cor voltara quase ao normal.

— Eles me disseram que você está num quarto aqui — comen­tou ele. — Isso é bom. Quero que você esteja sempre por perto.

Jan sentou-se na cadeira ao lado da cabeceira, pegando a mão que ele estendeu.

— Como está se sentindo?

— Fraco. Mas melhorando. Como descobriu que tinham me trazido para cá?

— Telefonaram da vinícola. Então você tinha voltado para lá quando se sentiu mal?

— Voltado?

— Oh, eu ainda não domino a língua...

— Não creio nisso. Você e Leda foram a Jerez essa manhã?

— Sim, mas isso não importa. Não agora.

— Você me viu com Sabatine, não foi?

— Sim — concordou ela, baixando os olhos.

— E pensou no quê?

— O que eu poderia ter pensado?

— Bem, essa é a mesma pergunta que me fiz quanto fiquei sabendo que você tinha se encontrado com Luís Fernández. Mas disse que não era o que parecia. Lhe digo a mesma coisa e espero que você tenha mais confiança em mim do que eu demonstrei ter por você naquele dia.

— Você está dizendo que não foi um encontro combinado?

Foi combinado, sim, mas por motivos bem diferentes da­queles que está imaginando. Sabatine me pediu para se encon­trar comigo porque tinha algo importante para me dizer. Eu fui para dizer a ela que não havia sentido em tentar se colocar entre nós dois. Fui dizer que eu nunca concordaria com sua partida.

— Mesmo se eu não lhe desse aquilo que você mais quer no mundo?

— Se isso acontecer, então faremos o que eu faria se tudo o mais falhasse, adotaremos uma criança. Mas você vai continuar sendo minha esposa. Isso é tudo que eu desejo. — A emoção que Felipe sentia estava clara em seu rosto e olhos. — Diga, Janita, eu quero ouvir as palavras.

— Eu amo você. Só percebi isso de verdade quando pensei que poderia morrer. Felipe, eu...

Ele estendeu a mão, segurando-a pelo pescoço, e a puxou para baixo com uma força surpreendente naquelas condições. O beijo a deixou completamente trêmula.

— Nós não devíamos estar fazendo isso — sussurrou ela. — Nao deve fazer bem para você.

— É o melhor remédio no mundo — declarou ele com a voz macia. — Você mudou minha vida, pequena. Sem você, eu não sou ninguém!

Ela sorriu.

— Mas você ainda não me contou o que Sabatine queria.

— Você ainda duvida da minha palavra?

— Nem por um instante. Só estou... curiosa.

— Ela queria saber minha opinião sobre se casar com Luís Fernández.

— E o que você disse?

— Eu estava me sentindo muito mal naquela hora para pen­sar direito. E na verdade não me importa com quem ela se case. Meu próprio casamento é o único que me interessa. Temos mui­ta vida pela frente, querida.

— E essa nossa vida juntos será longa e feliz — completou Jan com suavidade, agradecendo em silêncio à cigana que fizera tal previsão.

 

 

                                                                  Kay Thorpe

 

 

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