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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÃE / Máximo Gorki
MÃE / Máximo Gorki

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

M Ã E

 

Todas as manhãs, por entre o fumo e o cheiro a óleo do bairro operário, apitava, trémula, a sirene da fábrica.

Dos casebres escuros saiam apressadas, como baratas assustadas, pessoas de semblante carrancudo, com os músculos ainda cansados. No ar frio do amanhecer, seguiam pelas ruelas de terra batida em direcção à enorme jaula de pedra que, serena e indiferente, os esperava com os seus inúmeros olhos, quadrados e viscosos. Ouvia-se o chapinhar dos passos na lama. Entrecruzavam-se exclamações roucas de vozes ensonadas e elevavam-se no ar injúrias soezas. Também havia outros sons: o ruído surdo das máquinas, o silvo do vapor. Sombrias e austeras, perfilavam-se as altas chaminés negras, grossas colunas dominando o bairro.

 

A tardinha, quando o Sol se punha e os vidros das janelas das casas reflectiam os seus raios avermelhados, a fábrica vomitava das suas entranhas de pedra a escória humana. Os operários, de rostos enegrecidos pelo fumo onde sobressaiam os dentes brancos de esfomeados, espalhavam-se novamente pelas ruas, deixando no ar exalações húmidas do óleo das máquinas. Agora, as vozes eram animadas e até mesmo alegres. O trabalho de forçados tinha terminado por aquele dia e em casa esperava-os o jantar e o descanso.

 

A fábrica tinha devorado o trabalho dos homens. As máquinas tinham sugado aos seus músculos toda a força de que necessitavam. O dia tinha passado sem deixar vestígios, cada homem tinha dado mais um passo em direcção ao túmulo, mas a doçura do repouso aproximava-se, bem como o prazer da taberna cheia de fumo, e os homens sentiam-se contentes.

 

Nos dias de festa dormia-se até às dez horas. Depois, as pessoas sérias e casadas vestiam as suas melhores roupas e iam à missa, reprovando nos jovens a sua indiferença pela religião. No regresso da igreja, comiam e deitavam-se novamente até ao anoitecer.

 

A fadiga, acumulada durante anos, tira o apetite e, para comer, bebiam, excitando o estômago com a queimadura aguda do álcool.

 

À tarde, passeavam preguiçosamente pelas ruas. Os que tinham botas de borracha, calçavam-nas mesmo que não chovesse, e os que possuiam um guarda-chuva levavam-no ainda que o Sol brilhasse.

 

Quando se encontravam, falavam da fábrica, das máquinas, ou desfaziam-se em invectivas contra os capatazes. As palavras e pensamentos não iam além dos assuntos referentes ao trabalho. Raramente uma ideia, pobre e mal formulada, chispava solitária na monotonia cinzenta dos dias. De volta a casa, os homens altercavam com as mulheres e frequentemente lhes batiam, sem poupar as pancadas. Os jovens deixavam-se ficar no café ou organizavam pequenas reuniões em casa de algum deles, tocavam acordeão, cantavam canções ignóbeis, dançavam, diziam obscenidades e bebiam. Extenuados pelo trabalho, os homens embriagavam-se facilmente. A bebida provocava uma irritação infundada, mórbida, que precisava de um escape. Então, para se libertarem, arranjavam um qualquer pretexto fútil, e atiravam-se uns contra os outros num acesso de fúria bestial. Produziamse rixas sangrentas, das quais alguns saiam feridos. Chegava por vezes a haver mortos...

 

No relacionamento entre eles predominava um sentimento de animosidade sempre latente, que a todos dominava é que parecia tão normal como a fadiga nos músculos. Tinham nascido com esta enfermidade na alma, herdada dos pais, que, como uma sombra negra, os acompanhava até ao túmulo e os levava a cometer actos odiosos, de uma crueldade inútil.

 

Nos dias de festa, os jovens voltavam de noite, muito tarde, com os fatos rotos, cobertos de lama e de poeira, os rostos feridos. Gabavam-se, com voz maldosa, das pancadas infligidas aos seus companheiros, ou, então, regressavam furiosos ou chorando devido aos insultos recebidos, ébrios, lamentáveis, infelizes e repugnantes. Às vezes eram os pais que traziam o filho para casa. Tinham-no encontrado embriagado, perdido à beira do caminho, ou na taberna. As injúrias e as pancadas choviam sobre o corpo inerte do rapaz; depois deitavam-no com mais ou menos precauções, para o acordarem bem cedo, na manhã seguinte, e o enviarem para o trabalho quando a sirene, qual sombria torrente, soltasse o seu grito irritado.

 

Os insultos e as pancadas abatiam-se duramente sobre os rapazes, mas as suas bebedeiras e lutas pareciam perfeitamente legítimas aos velhos; também eles, na sua juventude, se tinham embriagado e lutado; também eles tinham sido espancados pelos pais. Era a vida. Tal como uma água turva, que desliza lenta e sempre igual, assim um ano se seguia ao outro. Cada dia era igual ao precedente, feito dos mesmos hábitos de pensar e de agir, antigos e tenazes. E ninguém sentia o desejo de mudar coisa alguma.

 

Por vezes apareciam estranhos no bairro, vindos não se sabia de onde. De início atraíam as atenções, apenas porque eram desconhecidos. Suscitavam logo a curiosidade, quando falavam dos lugares onde tinham trabalhado. Depois, o interesse pela novidade desaparecia, as pessoas acostumavam-se à presença deles e voltavam a passar despercebidos. As suas histórias confirmavam uma evidência: a vida do operário é igual em todos os lugares. Assim sendo, para quê falar dela?

 

Mas, por vezes, acontecia que contavam coisas inéditas no bairro. Ninguém discutia com eles, mas escutavam, sem acreditar, as suas estranhas frases que provocavam, nalguns uma irritação surda, noutros inquietação. Não faltava quem se sentisse assaltado por uma vaga esperança e então bebia, ainda mais, para apagar aquele sentimento inútil e incómodo.

 

Se um estranho apresentasse algo fora do comum, os habitantes do bairro olhavam-no de soslaio e tratavam-no com instintiva repulsa, como se temessem vê-lo trazer para as suas vidas algo que pudesse perturbar o seu quotidiano sombrio e penoso, mas tranquilo. Habituados a serem esmagados por uma força constante, não esperavam que algo pudesse melhorar e consideravam que qualquer mudança iria apenas servir para lhes tornar o jugo mais pesado ainda.

 

As gentes do bairro ouviam em silêncio os que falavam de coisas novas. Depois desapareciam, retomavam a estrada, ou, se ficavam na fábrica, viviam à margem, sem conseguirem fundir-se com a massa uniforme dos operários...

 

O homem vivia assim durante cerca de cinquenta anos e depois morria...

 

Tal era a vida do serralheiro Mikhail Vlassov, um ser sombrio, peludo, de olhinhos desconfiados sob espessas sobrancelhas e sorriso maldoso. O melhor serralheiro da fábrica e o hércules do bairro. Ganhava pouco porque era grosseiro com os chefes. Todos os domingos deixava alguém sem sentidos; toda a gente o detestava e o temia. Tinham tentado dar-lhe uma tareia, mas não tinham conseguido. Quando Vlassov via que ia ser atacado, apanhava uma pedra, uma tábua, um pedaço de ferro, fincando-se sobre as pernas afastadas, e em silêncio esperava o inimigo. O rosto, coberto por espessa barba negra desde os olhos até à garganta, e as mãos peludas suscitavam o pânico geral. Assustavam, acima de tudo, os seus olhos, pequenos e agudos, que pareciam trespassar as pessoas como se fossem uma ponta de aço; quando se cruzava aquele olhar sentia-se como se se estivesse em presença de uma força selvagem, inacessível ao medo, pronta a ferir sem piedade.

 

- Fora daqui, bandalhos! - dizia surdamente. Os dentes amarelos reluziam no meio da espessa barba do seu rosto. Os adversários enchiam-no de insultos, mas retrocediam intimidados.

 

- Bandalhos! - continuava a gritar-lhes, e o seu olhar brilhava, maldoso, agudo como uma sovela. Depois, erguia a cabeça em ar de desafio e perseguia-os, provocando-os:

 

- Então, quem é que quer morrer? Ninguém queria...

 

Falava pouco e a sua expressão favorita era -bandalhos". Chamava assim os capatazes da fábrica e a polícia; empregava o mesmo epíteto quando se dirigia à mulher:

 

- Não vês, bandalha, que tenho as calças rotas?

 

Quando o filho, Pavel, já tinha catorze anos, Vlassov tentou un dia arrastá-lo pelos cabelos. Mas Pavel apoderou-se de um pesado martelo e disse-lhe secamente:

 

- Não me toque.

 

- O quê? - perguntou o pai, avançando sobre o rapaz alto e esbelto, como uma nuvem sobre uma bétula jovem.

 

- Basta - disse Pavel -, não deixarei que me volte a bater... - E brandiu o martelo. - O pai olhou para ele, Com as mãos peludas cruzadas atrás das costas e disse zombando:

 

- Ah, sim?

 

E acrescentou, com um suspiro profundo:

 

- Raio de bandalho... Pouco depois disse à mulher:

 

- Não me peças mais dinheiro. De hoje em diante será Pavel que irá sustentar-te. Ela ousou perguntar:

 

- Vais gastar o dinheiro todo na bebida?

 

- Não é assunto da tua conta, bandalha. Arranjarei uma amiguinha...

 

Não arranjou nenhuma amante, mas desde aquele momento e até à sua morte, durante quase dois anos, não voltou a olhar para o filho, nem lhe dirigiu a palavra.

 

Tinha um cão tão grande e peludo como ele. Todos os dias o animal o acompanhava à fábrica e, à tarde, esperava por ele, à saída. Ao domingo, Vlassov percorria os cafés. Caminhava sem dizer palavra, parecia procurar alguém, olhando insolentemente as pessoas, enquanto passava. O cão seguia-o o dia inteiro, a cauda caída, grossa e peluda. Quando Vlassov, embriagado, regressava a casa, sentava-se à mesa e do seu próprio prato dava de comer ao cão. Nunca lhe batia, nem lhe ralhava, mas também não o acariciava. Depois de comer, se a mulher não levantava depressa a mesa, atirava os pratos ao chão, colocava à sua frente uma garrafa de aguardente e, de costas apoiadas à parede, berrava uma canção numa voz surda que causava arrepios, com a boca aberta e os olhos fechados. As palavras da canção, melancólicas e vulgares, pareciam enrolar-se-lhe no bigode, de onde caiam migalhas de pão; o serralheiro cofiava a barba com os dedos e cantava. As palavras eram incompreensíveis, arrastadas; a melodia lembrava o uivo dos lobos no Inverno. Cantava enquanto houvesse aguardente na garrafa; depois, deitava-se de lado sobre o banco, ou pousava a cabeça sobre a mesa, e dormia assim até se ouvir o silvo da sirene. O cão deitava-se ao seu lado.

 

Morreu de uma hérnia. Agitou-se na cama durante cinco dias, a tez sombria, as pálpebras cerradas, rangendo os dentes.

 

 

Às vezes dizia à mulher:

 

- Dá-me veneno para os ratos, envenena-me...

 

O médico receitou cataplasmas, mas acrescentou que era indispensável operá-lo e que era necessário levar o doente imediatamente para o hospital.

 

- Vá para o diabo... morrerei sozinho! Bandalho! - gritou

Vlassov.

 

Quando o médico se foi embora, a mulher, chorando, quis convencê-lo a submeter-se à operação; ele disse-lhe, ameaçando-a com o punho:

 

- Se me curar vai ser pior para ti!

 

Morreu numa manhã, no momento em que a sirene chamava para o trabalho.

 

No caixão, tinha a boca aberta e as sobrancelhas franzidas e irritadas. Acompanharam o enterro a mulher, o filho, o cão, e Danilo Vessovchikov, velho ladrão bêbado expulso da fábrica, para além de alguns miseráveis do bairro. A mulher choramingava. Pavel não verteu uma lágrima. Os transeuntes que se cruzavam com o enterro paravam e persignavam-se, comentando com os vizinhos:

 

- A Pelágia deve estar contente que ele tenha morrido!

 

E rectificavam:

 

- Que tenha rebentado!

 

Depois de ter sido sepultado, todos abandonaram o local, menos o cão, que ficou estendido na terra remexida e, sem ladrar, farejou o túmulo durante muito tempo. Mataram-no uns dias mais tarde; ninguém soube quem...

 

 

Um domingo, quinze dias após a morte do pai, Pavel Vlassov regressou a casa embriagado. Cambaleante, entrou na sala batendo com o punho na mesa e gritando como fazia o pai:

 

 

- O jantar!

 

A mãe aproximou-se, sentou-se ao seu lado e abraçando-o aproximou a cabeça do filho do seu peito. Ele, apoiando a mão no ombro dela, empurrou-a, gritando:

 

- Vá, mãe, despache-se!

 

- Coitadinho! - disse ela numa voz triste e acariciante, ignorando a resistência de Pavel.

 

- E vou fumar! Dê-me o cachimbo do pai - grunhiu o rapaz; a língua rebelde articulava com dificuldade.

 

Era a primeira vez que se embriagava. O álcool tinha-lhe debilitado o corpo, mas não lhe tinha apagado a consciência e na sua cabeça formulava insistentemente uma pergunta:

 

- Estou bêbado...? Estou bêbado...?

 

Os afagos da mãe confundiam-no e a tristeza que via nos seus olhos deixava-o comovido. Apetecia-lhe chorar e, para vencer este desejo, fingiu estar mais embriagado do que na

realidade estava.

A mãe acariciava-lhe os cabelos, desgrenhados e empapados em suor, falando-lhe docemente:

 

- Não devias...

 

As náuseas invadiram-no. Depois de uma série de vómitos violentos, a mãe meteu-o na cama e cobriu-lhe a fronte lívida com uma toalha humedecida. Recompôs-se um pouco, mas via tudo a girar à sua volta, as pálpebras pesavam-lhe, tinha na boca um gosto desagradável e amargo. Olhava o rosto da mãe através das pestanas e pensava:

 

"Ainda é muito cedo para mim. Os outros bebem e não lhes acontece nada, mas a mim faz-me vomitar..."

 

Ouvia a voz doce da mãe como se viesse de muito longe:

 

- Como é que me vais sustentar, se começares a beber... Ele fechou os olhos e disse:

 

- Todos bebem...

 

Pelágia suspirou. Tinha razão. Ela bem sabia que não havia outro local, além da taberna, onde ir buscar um pouco de alegria. Apesar disso, respondeu:

 

- Mas tu não bebas! O teu pai já bebeu o bastante por vocês os dois. E muito me fez sofrer... Podias ter pena da tua mãe.

 

Pavel escutava estas palavras tristes e ternas. Recordava a existência silenciosa e apagada da mãe, vivendo na expectativa angustiada das pancadas do marido. Nos últimos tempos, Pavel raramente tinha estado em casa, a fim de evitar encontrar-se com o pai. Tinha abandonado um pouco a mãe. E agora, recuperando devagar os sentidos, olhava-a fixamente.

 

Era alta e ligeiramente encurvada. O corpo, desgastado por um trabalho incessante e pelos maus tratos do marido, movia-se em silêncio, de esguelha, como se receasse tropeçar nalguma coisa. O rosto largo, sulcado de rugas, um pouco inchado, era iluminado por dois olhos escuros, tristes e inquietos, como os da maioria das mulheres do bairro. Uma cicatriz profunda elevava levemente a sobrancelha direita e também parecia que a orelha desse lado estava colocada mais acima do que a outra; dava o ar de estar sempre de ouvido à escuta. As cãs contrastavam com o farto cabelo negro. Toda ela era doçura, tristeza, resignação...

 

As lágrimas corriam-lhe lentamente pela face.

 

- Não chores mais! - disse docemente o filho. - Dá-me de beber.

 

- Vou buscar-te água com gelo.

 

Mas quando Pelágia regressou, ele tinha adormecido. Ela cleixou-se ficar um instante imóvel junto dele. O jarro tremia na sua mão e o gelo tilintava suavemente no bordo. Pousou a vasilha sobre uma mesa e ajoelhou-se em silêncio diante dos ícones. As vidraças das janelas vibravam com os gritos dos bêbados. Na obscuridade e na névoa daquela noite de Outono, gemia um acordeão. Alguém cantava em voz alta. Alguém praguejava, gritando palavrões. Ouviam-se vozes de mulheres inquietas, irritadas, cansadas...

 

Na pequena casa dos Vlassov a vida continuou, mais tranquila, com mais paz do que outrora e de um modo um pouco diferente do das outras casas. O prédio ficava ao fundo da rua principal, junto de uma ladeira íngreme que terminava num pântano. Um terço da casa era ocupado pela cozinha, que um tabique separava de um quarto pequeno onde a mãe dormia. O resto era um quarto quadrado com duas janelas. Num canto estava a cama de Pavel, no outro uma mesa e dois bancos. Algumas cadeiras, uma cómoda para a roupa encimada por um pequeno espelho, um baú, um relógio de parede e dois ícones noutro canto. Era tudo.

 

Pavel fez tudo o que era habitual num rapaz. Comprou um acordeão, uma camisa com peitilho engomado, uma gravata berrante, botas de borracha, uma bengala, tornando-se assim mais um, no meio dos jovens da sua idade. Foi a festas, aprendeu a dançar a quadrilha e a polca, ao domingo regressava a casa depois de ter bebido muito e continuava a suportar mal o vodka. No dia seguinte tinha dores de cabeça, ardia-lhe o estômago, estava lívido e abatido.

 

Um dia, a mãe perguntou-lhe:

 

- Então, divertiste-te muito ontem?

 

Ele respondeu, carrancudo e irritado:

 

- Aborrecí-me de morte! Será melhor passar a ir pescar; ou então compro uma espingarda.

 

Trabalhava com zelo, sem ausências nem reprimendas. Era taciturno, e os seus olhos azuis, grandes como os da mãe, expressavam um permanente descontentamento. Não comprou a espingarda, nem foi à pesca, mas afastou-se cada vez mais do modo de vida que levavam os outros jovens. Passou a frequentar as festas cada vez menos e, onde quer que fosse aos domingos, regressava a casa sem ter bebido. A mãe, que o observava atentamente, via vincarem-se as feições no rosto moreno do filho. A sua expressão tinha-se tornado mais grave, e os lábios tinham adquirido um vinco de estranha severidade.

 

Parecia cheio de uma cólera surda, ou minado por alguma enfermidade. Outrora, os companheiros vinham visitá-lo, mas agora, como nunca o encontravam em casa, tinham deixado de aparecer. A mãe via com prazer que Pavel já não imitava os rapazes da fábrica, mas quando se apercebeu da sua obstinação em escapar à corrente sombria da vida comum, o seu coração pressentiu um perigo obscuro.

 

- Não te sentes bem, Pavel? - perguntava-lhe às vezes.

 

- Sim, estou bem - respondia.

 

- Estás tão magro! - suspirava ela.

 

Começou a trazer livros e a lê-los às escondidas. A seguir fechava-os em qualquer sítio. Às vezes, copiava uma passagem num pedaço de papel, que também escondia.

 

Falavam pouco um com o outro. De manhã ele tomava o chá sem falar e saía para o trabalho. Mal se viam. Ao meio-dia ia almoçar a casa. Trocavam algumas palavras insignificantes e desaparecia novamente até à noite. Terminado o dia de trabalho lavava-se cuidadosamente, comia a sopa e depois ficava durante muito tempo a ler os seus livros. Ao domingo, saía de manhã e só regressava caída a noite. Pelágia sabia que ele ia à cidade, que frequentava o teatro, mas não vinha ninguém da cidade visitá-lo. Parecia-lhe que quanto mais o tempo passava, menos comunicativo o filho ia ficando, notando ao mesmo tempo que, em certas ocasiões, ele usava palavras novas que ela não compreendia, enquanto as expressões brutais e grosseiras tinham desaparecido da sua linguagem. No seu comportamento havia muitos pormenores que chamavam a atenção de Pelágia. Deixou de aperãltar-se, mas passou a ser mais cuidadoso com a limpeza do corpo e das roupas. A sua forma de andar tornou-se mais livre e solta e a sua aparência mais simples e doce. A mãe preocupava-se. Na sua atitude em relação a ela havia também algo de novo. Às vezes varria o quarto, aos domingos ele mesmo fazia a sua cama, e esforçava-se por aliviá-la do trabalho. Mais ninguém procedia assim no bairro...

 

Um dia pendurou na parede um quadro que representava três pessoas que caminhavam com ligeireza e conversavam.

 

- É Cristo ressuscitado a caminho de Emaús - explicou Pavel.

 

Pelágia gostou do quadro, mas pensou: "Veneras Cristo mas não vais à igreja..."

 

A quantidade de livros aumentava de dia para dia sobre a bela prateleira que um carpinteiro, amigo de Pavel, tinha fabricado. A casa começava a tomar um aspecto agradável.

 

Ele tratava-a por "senhora" e chamava-lhe "mãe", dirigindo-lhe às vezes palavras afectuosas:

 

- Eu hoje volto tarde, mãe, não fique preocupada.

 

Sob estas palavras, ela pressentia que existia alguma coisa forte e séria que lhe agradava.

 

Mas a sua inquietação aumentava, e o tempo não passava de maneira a deixá-la mais tranquila. O pressentimento de alguma coisa extraordinária rondava o seu coração. Por vezes, ficava aborrecida com o filho e pensava:

 

"Os homens devem viver como homens, mas este porta-se como se fosse um monge... É demasiado sério... Não parece um rapaz da idade dele..."

 

E questionava-se:

 

"Terá, talvez, uma namorada..."

 

Mas para ter uma amiguinha era necessário dinheiro, e ele entregava-lhe o seu salário quase por completo.

 

Assim se passaram semanas, meses, dois anos de uma vida estranha, silenciosa, cheia de pensamentos obscuros e de medos cada vez mais terríveis.

 

Uma noite, depois do jantar, Pavel, fechando as cortinas das janelas, sentou-se num canto e pôs-se a ler sob o candeeiro de petróleo pendurado na parede acima da sua cabeça. A mãe, tendo acabado de lavar a loiça, saiu da cozinha e aproximou-se no seu passo hesitante. Ele levantou a cabeça e olhou-a com ar interrogativo:

 

- Não... não ê nada, Pavel, sou eu - disse ela, e afastou-se rapidamente, a testa enrugada e um ar confuso. Por um momento deixou-se ficar imóvel, no meio da cozinha, pensativa, preocupada. Lavou as mãos vagarosamente e voltou para junto do filho.

 

- Queria perguntar-te - disse em voz muito baixa - o que é que estás sempre a ler.

 

Ele largou o livro.

 

- Sente-se, mãe.

 

Sentou-se pesadamente ao lado dele, e endireitou-se, esperando que algo de grave acontecesse. Sem a olhar, a meia-voz e, sem saber porquê, num tom brusco, Pavel começou a falar.

 

- Leio livros proibidos. É proibido lê-los porque dizem a verdade sobre a nossa vida de operários... São impressos em segredo e se os encontrarem aqui, metem-me na cadeia... na prisão, porque quero saber a verdade. Compreende?

 

Ela sentiu subitamente dificuldade em respirar e fixou no filho os olhos espantados. Ele pareceu-lhe diferente, estranho. Tinha uma voz diferente, mais baixa, mais cheia, mais sonora. Com os dedos afilados, retorcia o bigode ainda ralo de adolescente e o olhar vago, sob as sobrancelhas, perdia-se no vazio. Sentiu-se invadida por um sentimento de medo e de piedade pelo filho.

 

- Porque fazes isso, Pavel? - perguntou.

 

Ele levantou a cabeça, olhou-a de relance e, sem levantar a voz, respondeu tranquilamente:

 

- Quero saber a verdade.

 

A voz de Pavel era baixa mas firme e os olhos dele brilhavam de obstinação. No seu coração, ela compreendeu que o filho se tinha dedicado para sempre a qualquer coisa terrível e misteriosa. Ao longo da vida sempre tudo lhe tinha parecido inevitável. Estava acostumada a submeter-se sem reflectir e apenas foi capaz de chorar, de mansinho, sem encontrar palavras, o coração apertado de angústia.

 

- Não chore! - disse Pavel. Mas à mãe parecia que a sua voz suave encerrava uma despedida.

 

- Raciocine. Que vida é a nossa? A mãe tem quarenta anos. Pode, por acaso, dizer que viveu verdadeiramente? O pai batia-lhe... agora compreendo que ele se vingava em si da sua própria miséria, da miséria da vida que o sufocava sem que ele compreendesse porquê. Trabalhou trinta anos. Começou quando a fábrica era apenas dois edifícios e agora já são sete!

 

Ela escutava num misto de terror e avidez. Os olhos do filho brilhavam, belos e claros. Apoiando o peito sobre a mesa, tinha-se aproximado da mãe e, quase tocando o seu rosto banhado em lágrimas, contava-lhe pela primeira vez tudo o que tinha aprendido. Com toda a fé da juventude e o ardor do discípulo, orgulhoso dos seus conhecimentos em cuja verdade acreditava religiosamente, ele falava de tudo o que para ele era evidente. Falava no entanto menos para a mãe do que para se certificar das suas próprias convicções. Detinha-se, aqui e acolá, quando lhe faltavam as palavras e, então, via o rosto aflito onde brilhavam uns olhos bondosos, cheios de lágrimas, de terror e de perplexidade. Teve pena da mãe, mas continuou a falar, só que agora era dela e da sua vida que ele falava.

 

- Que alegrias teve a mãe? Diga-me, que houve de bom em toda a sua vida?

 

Ela escutava e abanava tristemente a cabeça. Experimentava uma sensação nova que não conhecia, de alegria e de dor, que afagava deliciosamente o seu coração sofrido. Era a primeira vez que ouvia falar dela mesma e cia sua vida naqueles termos, e aquelas palavras despertavam nela pensamentos vagos, adormecidos havia muito tempo. Reavivavam devagarinho o sentimento extinto de uma insatisfação obscura em relação à existência, reanimavam as ideias e impressões de uma longínqua juventude. Falou da sua infância, das suas amigas, falou longamente de tudo, mas, tal como elas, apenas sabia lamentar-se. Jamais ninguém lhe explicara porque é que a vida era tão penosa e difícil. E agora o seu filho aii estava, sentado junto dela, e tudo o que os seus olhos diziam, o seu rosto, as suas palavras, tudo chegava ao seu coração enchendo-a de orgulho perante o filho que com-

preendia tão bem a vida da sua mãe, que lhe falava dos seus sofrimentos e a lamentava.

 

As mães, ninguém as lamenta.

 

Ela sabia-o. Tudo o que Pavel dizia sobre a vida das mulheres era verdade, a amarga verdade. No seu peito palpitava uma infinidade de doces sensações, cuja ternura desconhecida confortava o seu coração.

 

- E então, que pensas fazer?

 

- Aprender, e em seguida ensinar os outros. Nós, os operários, devemos estudar. Devemos saber, devemos compreender onde está a origem da dureza das nossas vidas.

 

Era agradável para a mãe ver os olhos azuis do filho, sempre sérios e severos, brilharem agora com tanta ternura e afecto. Nos lábios de Pelágia surgiu um leve sorriso de alegria, enquanto algumas lágrimas tremiam ainda nas rugas da sua face. Sentia-se interiormente dividida. Estava orgulhosa do filho, que tão bem compreendia as razões da miséria da vida, mas não podia esquecer a juventude dele, que ele não falava como os seus companheiros e que tinha tomado a decisão de lutar sozinho contra a vida rotineira que os outros levavam, e ela também. Quis dizer-lhe: "Mas, meu filho... que podes tu fazer?"

 

Pavel viu o sorriso nos lábios da mãe, a atenção no seu rosto, o amor nos seus olhos; acreditou ter-lhe feito compreender a sua verdade, e o orgulho juvenil na força de persuasão da sua palavra exaltou a sua fé em si mesmo. Falava, excitado, ora sarcástico ora franzindo as sobrancelhas. Por vezes o ódio ressoava na sua voz, e quando a mãe ouvia aquele tom de voz cruel, abanava a cabeça, espantada, e perguntava em voz baixa:

 

- Isso é verdade, Pavel?

 

- É, sim! - respondia ele com voz firme.

 

Falava-lhe, então, dos que queriam a felicidade do povo, que semeavam a verdade, e por causa disso eram perseguidos pelos inimigos da vida como se fossem animais selvagens, encarcerados, condenados a trabalhos forçados.

 

- Conheço essas pessoas - exclamou com ardor. - São as melhores do mundo!

 

Mas a mãe continuava assustada, e perguntou ao filho:

 

- Pacha, isso é verdade?

 

Sentia-se insegura. Sem forças, escutava o que Pavel contava sobre aquelas pessoas, para ela difíceis de compreender, que tinham ensinado ao seu filho um modo de falar e de pensar tão perigoso para ele.

 

- É quase manhã, devias ir deitar-te - disse ela.

 

- Vou já - e inclinando-se para ela, perguntou:

 

- Compreendeu o que lhe disse?

 

- Compreendi! - murmurou a mãe. Estava de novo a chorar, e acrescentou num soluço:

 

- Tu vais perder-te!

 

Ele levantou-se e deu alguns passos na sala.

 

- Bem, agora já sabe o que faço e para onde vou. Contei-lhe tudo... Suplico-lhe, mãe, se me tem amor, que não tente impedir-me...

 

- Meu filho! - exclamou ela. - Talvez tivesse sido melhor que não me tivesses dito nada...

 

Ele pegou-lhe numa mão e apertou-a com força entre as suas.

 

Ela comoveu-se com a palavra "mãe", que ele tinha pronunciado com tanto calor, e com aquele apertar de mãos, novo e estranho.

 

- Nada farei para te contrariar - disse com a voz trémula. - Apenas quero que tenhas cuidado, que tenhas muito cuidado!

 

Sem saber com que é que ele devia ter cuidado, acrescentou tristemente:

 

- Estás cada vez mais magro...

 

E, envolvendo o corpo robusto e bem proporcionado do filho num olhar quente e terno, disse-lhe rapidamente e em voz baixa:

 

- Que Deus te proteja! Faz o que entenderes, que eu não te impedirei. Só te peço uma coisa: que sejas prudente quando falares com os outros. É preciso desconfiar. Eles odeiam-se uns aos outros. São ávidos e invejosos... Gostam de fazer mal. Se começas a dizer-lhes as tuas verdades, a julgá-los, vão detestar-te e tudo farão para causar a tua perda.

 

De pé, junto da porta, Pavel escutava, sorrindo, estas palavras amargas.

 

- As pessoas são más, é verdade. Mas quando aprendi que havia uma verdade sobre a Terra, elas tornaram-se um pouco melhores.

 

Sorriu de novo.

 

- Eu mesmo não compreendo como é que isto aconteceu. Desde criança que sempre tive medo de toda a gente. Quando cresci, dei por mim a odiar uns pela sua cobardia, outros não sei por quê, por nada... e agora vejo-os com outros olhos, tenho pena deles, acho eu... não sei como foi, mas o meu coração enterneceu-se quando compreendi que nem todos são responsáveis pela sua baixeza...

 

Calou-se por um instante, parecendo escutar algo dentro de si mesmo e depois continuou, pensativo:

 

- Foi assim que se me revelou a verdade! Ela levantou os olhos até ele e murmurou:

 

- Como estás mudado, e como eu receio essa tua mudança, oh, meu Deus!

 

Quando o filho se deitou e adormeceu, a mãe levantou-se sem fazer barulho e aproximou-se devagarinho da cama dele. Pavel dormia deitado de costas, e o seu rosto moreno, obstinado e severo, desenhava-se na brancura da almofada. De mãos cruzadas sobre o peito, descalça e em camisa, a mãe ficou junto da cama do seu filho. Ia movendo os lábios em silêncio e dos seus olhos, uma após outra, lentamente, corriam grossas lágrimas de angústia.

 

E a vida deles prosseguia, silenciosa. De novo se sentiam simultaneamente afastados e próximos um do outro.

 

Num dia de festa, a meio da semana, Pavel, prestes a sair, disse à mãe:

 

- No próximo sábado virão convidados da cidade.

 

- Da cidade? - repetiu a mãe, e repentinamente começou a soluçar.

 

- Então, mãe, porque é que está a chorar? - perguntou Pavel aborrecido.

 

Ela suspirou, enxugando o rosto com o avental.

 

- Não sei... por nada.

 

- Tem medo?

 

- Tenho - confessou.

 

Inclinando-se para ela, ele disse-lhe em voz irritada como a de uma criança:

 

- Todos rebentamos de medo! E os que mandam em nós aproveitam-se desse medo para nos assustarem ainda mais.

 

A mãe gemeu:

 

- Não te zangues! Como podia eu não ter medo? Toda a minha vida tive medo!

 

Ele respondeu a meia-voz, mais calmo:

 

- Desculpe. Não sei reagir de outra maneira. Depois saiu.

 

Ela tremeu durante três dias. O coração parava de bater sempre que se lembrava que "aquelas pessoas" viriam a sua casa. Estranhos que deviam ser temíveis... Tinham sido eles que tinham mostrado ao seu filho o caminho que ele agora seguia...

 

No sábado à tarde, Pavel voltou da fábrica, lavou-se, mudou de roupa e saiu de novo, dizendo sem olhar para a mãe:

 

- Se eles chegarem, diga-lhes que não demoro. E, por favor, não tenha medo...

 

Ela deixou-se cair sem forças sobre o banco. Pavel franziu as sobrancelhas e sugeriu-lhe:

 

- Talvez... a mãe prefira sair?

 

Ela sentiu-se vexada. Abanou negativamente a cabeça.

 

- Não! Porque havia de sair?

 

Estava-se em fins de Novembro. Durante o dia tinha caído, sobre o solo gelado, uma neve fina como poeira, que ela ouvia agora ranger sob os passos de Pavel, que se afastava. Nas vidraças das janelas acumulavam-se as trevas espessas, inamovíveis, hostis, vigilantes. A mãe, com as mãos apoiadas sobre o banco, permanecia sentada e esperava, com os olhos postos na porta.

 

Parecia-lhe que, no escuro, seres malvados envergando estranhas vestimentas convergiam de todos os lados em direcção à casa. Avançavam a passo de lobo, encurvados e olhando em redor. Havia mesmo alguém que rondava a casa, tacteando a parede com as mãos...

 

Ouviu-se um assobio. No silêncio, soou como um silvo breve, triste e melodioso, como se vagueasse meditando no vazio das trevas. Ia-se aproximando como se procurasse qualquer coisa. Subitamente, desapareceu sob a janela, como se tivesse penetrado na madeira do tabique.

 

Ouviram-se passos arrastados na entrada. A mãe estremeceu e, com os olhos dilatados, pôs-se em pé.

 

A porta abriu-se. Primeiro apareceu uma cabeça coberta por um enorme gorro de peles, depois um corpo alto, encurvado, deslizou lentamente, endireitou-se, ergueu sem pressa o braço direito e, suspirando ruidosamente, com uma voz vinda do mais fundo do peito, disse:

 

- Boa noite!

 

A mãe inclinou-se sem pronunciar uma palavra.

 

- O Pavel não está?

 

O homem despiu lentamente o casaco forrado, levantou um pé, sacudiu com o gorro a neve da bota. Repetiu o mesmo gesto com a outra bota, atirou o gorro para um canto e, balançando-se sobre as pernas altas, entrou na sala. Aproximou-se de uma cadeira, examinou-a como para se certificar da sua solidez, finalmente sentou-se e, levando a mão à boca, bocejou. Tinha a cabeça redonda e o cabelo rapado, as faces barbeadas e compridos bigodes de pontas pendentes. Inspeccionou o aposento com os seus grandes olhos cinzentos, salientes, cruzou as pernas e perguntou, baloiçando-se na cadeira:

 

- A cabana é vossa, ou é alugada?

 

Pelágia, sentada à sua frente, respondeu:

 

- Alugada.

 

- Não é grande coisa - observou ele.

 

- O Pavel deve estar a chegar. Por favor, aguarde - disse ela num fio de voz.

 

- É isso mesmo que estou a fazer - respondeu tranquilamente o homenzarrão.

 

A sua calma, a voz doce e a simplicidade daquele rosto encorajaram a mãe. O homem olhava-a de frente, com um ar bondoso. Uma luzinha de alegria bailava no fundo daqueles olhos transparentes e em toda a sua angulosa pessoa, encurvada, de pernas altas, havia algo de divertido que predispunha a seu favor. Vestia uma camisa azul e calças pretas metidas nas botas. A mãe teve vontade de lhe perguntar quem era, donde vinha, se já conhecia o seu filho há muito tempo, mas subitamente o desconhecido balançou o corpo e perguntou-lhe:

 

- Quem é que lhe fez essa cicatriz na testa, mãezinha?

 

O tom era familiar e nos olhos brilhava um sorriso. Mas a pergunta irritou Pelágia. Apertou os lábios e, depois de um momento de silêncio, respondeu com fria cortesia:

 

- Que é que isso lhe interessa, meu caro senhor? Ele voltou para ela o corpo alto.

 

- Vá lá, não se aborreça! Fiz-lhe essa pergunta porque a minha mãe adoptiva também tinha um buraco na testa, como o seu. Foi o marido dela, um sapateiro, que lho fez com uma sovela. Ela era lavadeira e ele sapateiro. Depois de me ter adoptado encontrou aquele bêbado não sei onde, e foi a desgraça dela. Ele espancava-a e não vale a pena dizer mais nada. Eu tinha um medo dele...

 

A mãe ficou desarmada com a franqueza dele, e pensou que por certo Pavel ficaria irritado por ela ter manifestado mau humor em relação àquele ser original. Sorriu, pouco à vontade:

 

- Não estou aborrecida, mas você fez-me a pergunta assim... tão de repente... Foi o meu marido quem me ofereceu esta prenda. Deus tenha piedade da sua alma! Você é tártaro, não é?

 

As pernas altas sobressaltaram-se, e o rosto iluminou-se num largo sorriso em que até as orelhas se alongaram para a nuca. Depois, disse muito sério:

 

- Não, ainda não sou.

 

- Mas fala de uma maneira que não parece a de um russo!

- explicou ela, sorrindo e compreendendo o gracejo.

 

- É melhor que a de um russo - gritou alegremente o visitante, abanando a cabeça. - Sou Ucraniano, mais propriamente Pequeno Russo, da cidade de Kaniev.

 

- Há muito tempo que veio para cá?

 

- Vivo na cidade há quase um ano, e há um mês que estou na fábrica. Encontrei lá gente boa, o seu filho e outros... Quero ficar por cá! - disse retorcendo o bigode.

 

Ele agradava-lhe e, grata pela boa opinião que tinha do seu filho, deu livre curso à vontade de lho demonstrar:

 

- Quer tomar um pouco de chá?

 

- Quero, mas não vou tomá-lo sozinho! - respondeu, encolhendo os ombros. - Dar-nos-á essa honra quando todos tiverem chegado...

 

O medo regressou.

 

"Se todos forem como ele...", desejou esperançada.

 

Novamente se ouviram passos no vestíbulo, a porta abriu-se rapidamente e a mãe levantou-se. Mas, para seu grande espanto, entrou uma jovem, pequena, com um rosto simples de camponesa e uma espessa trança de cabelos louros.

 

- Estou atrasada?

 

- De modo algum! - respondeu o Ucraniano, que não tinha saído da sala. - Vieste a pé?

 

- Claro! A senhora é a mãe de Pavel? Boa noite, chamo-me Natacha.

 

- E qual é o seu patronímico?

 

- Vassilievna. E o da senhora?

 

- Pelágia Nilovna.

 

- Bom, agora já nos conhecemos.

 

- Sim - disse a mãe com um leve suspiro. Sorrindo, examinou a jovem.

 

O Ucraniano ajudou-a a tirar o sobretudo.

 

- Está frio?

 

- Sim, lá fora está muito frio. O vento sopra...

 

Tinha uma voz sonora e clara, a boca era pequena e carnuda, toda ela era roliça e fresca. Depois de tirar o sobretudo, esfregou vigorosamente as faces rosadas com as pequenas mãos, roxas do frio, e entrou rapidamente no quarto fazendo soar os tacões das botinas sobre o soalho.

 

"Não tem galochas" -, pensou a mãe.

 

- Estou completamente gelada... - disse a rapariga, arrastando as palavras e tremendo.

 

- Vou preparar-lhe um chá! - disse a mãe, com vivacidade, dirigindo-se para a cozinha. - Ele irá aquecê-la.

 

Parecia-lhe conhecer a jovem havia já muito tempo, e que já gostava dela com o afecto de uma mãe bondosa e compreensiva. Sorrindo, ia prestando atenção à conversa que se desenrolava na sala.

 

- Não estás com um ar alegre, Nakhodka.

 

- Assim, assim... - respondeu o Ucraniano a meia-voz. Esta viúva tem olhos doces, e estava a pensar que os da minha mãe talvez sejam parecidos. Penso muitas vezes na minha mãe, e acredito que esteja viva.

 

- Não disseste que ela tinha morrido?

 

- Não, essa era a minha mãe adoptiva. Refiro-me à minha verdadeira mãe. Imagino que pede esmola em qualquer lugar, em Kiev. E que bebe vodka... E que, quando está bêbada, os "chuis" a desancam.

 

"Pobre homem!" -, pensou a mãe, suspirando.

 

Natacha pôs-se a falar depressa, acaloradamente, mas em voz baixa. Depois, ressoou novamente a voz sonora do Ucraniano:

 

- És muito jovem, camarada, e ainda não viveste bastante. Pôr um filho no mundo é difícil, mas educá-lo convenientemente é ainda mais duro.

 

"Ora vejam!", pensou a mãe. Tinha vontade de dizer uma palavra amável ao Ucraniano. Mas a porta abriu-se devagar e entrou o filho do velho ladrão Danilo Vessovchikov. Todo o bairro considerava Nikolai Vessovchikov um urso, conservava-se afastado dos demais, era insociável, e toda a gente troçava dessa sua maneira de ser.

 

Admirada, Pelágia perguntou-lhe:

 

- Que queres, Nikolai?

 

Ele enxugou o rosto gelado, de maçãs salientes, com a grande palma da mão, e sem dar as boas-noites, perguntou numa voz surda:

 

- O Pavel não está? -Não.

 

Deitou uma olhadela à sala e entrou.

 

- Boa noite, camaradas. "Também ele?", pensou a mãe com hostilidade, e ficou muito surpreendida por ver Natacha estender-lhe a mão com um ar alegre e afectuoso.

 

Depois, chegaram dois rapazes muito jovens, quase crianças. Pelágia conhecia um deles, Theo, sobrinho de um velho operário na fábrica chamado Sizov. Tinha feições angulosas, a testa alta e os cabelos ondulados. Não conhecia o outro, de cabelo liso e aspecto modesto, mas também este não tinha um aspecto de meter medo. Finalmente, chegou Pavel, acompanhado de dois amigos que ela conhecia, operários na fábrica. O filho disse-lhe com amabilidade:

 

- Fizeste chá? Obrigado.

 

- É preciso ir comprar vodka? - perguntou ela, sem saber como lhe manifestar o sentimento de gratidão que experimentava insconscientemente.

 

- Não, não é preciso - respondeu Pavel, sorrindo-lhe com doçura.

 

Subitamente, ocorreu-lhe que o filho tivesse propositadamente exagerado o perigo daquela reunião, para troçar dela.

 

- São estas as pessoas perigosas? - perguntou em voz baixa.

 

- Pode ter a certeza! - disse Pavel, entrando na saleta.

 

- Se é assim! - respondeu ela divertida, mas pensando com os seus botões:

 

"Continua a ser uma criança!"

 

A água fervia no samovar, e ela trouxe-o para o quarto. Os convidados apertaram-se à volta da mesa, e Natacha, com um livro na mão, tinha-se sentado a um canto, sob o candeeiro.

 

- Para compreender por que razão as pessoas vivem tão mal... - disse Natacha.

 

- E porque é que essas mesmas pessoas são tão maldosas... - interveio o Ucraniano.

 

- É necessário ver como começaram a viver...

 

- Olhem, meus filhos, olhem! - murmurou a mãe, enquanto preparava o chá.

 

Calaram-se todos.

 

- Que diz, mãezinha? - perguntou Pavel, de sobrancelhas franzidas.

 

- Eu? - vendo todos os olhos fixos nela, a mãe justificou-se atabalhoadamente. - Não estava a dizer nada... bem... não era nada.

 

Natacha desatou a rir, e Pavel sorriu, enquanto o Ucraniano dizia:

 

- Obrigado pelo chá, mãezinha.

 

- Ainda não o beberam e já estão a agradecer! – replicou ela. Em seguida, olhando para o filho, acrescentou: - Estou a incomodá-los?

 

Foi Natacha quem respondeu:

 

- Como poderia a dona da casa incomodar as visitas? E pediu num tom infantil e queixoso:

 

- Dê-me já o chá, minha boa Pelágia! Estou a tiritar... Tenho os pés gelados.

 

- É para já, é para já - disse a mãe com vivacidade.

 

Natacha bebeu o seu chá, suspirou profundamente, afastou a trança por cima do ombro e começou a ler um livro ilustrado, de capa amarela. A mãe esforçava-se por não fazer ruído com as chávenas, servia o chá e escutava atentamente a voz harmoniosa e clara da rapariga, acompanhada pela doce canção do samovar. Numa sequência magnífica, desenrolava-se a história dos homens primitivos e selvagens, que viviam em cavernas e derrubavam os animais ferozes à pedrada. Era como um conto maravilhoso, e Pelágia dirigiu várias vezes um olhar ao filho, desejosa de lhe perguntar o que é que havia naquela história que fosse proibido.

 

Mas em breve se cansou de seguir o fio à narrativa e pôs-se a observar os convidados.

 

Pavel estava sentado ao lado de Natacha e era o mais belo de todos. A jovem, inclinada sobre o livro, puxava continuamente para trás os cabelos que lhe caíam sobre a testa. Sacudia a cabeça e, baixando a voz, abandonava o livro para fazer alguns comentários da sua lavra, enquanto o olhar deslizava com doçura sobre os rostos dos seus ouvintes. O Ucraniano apoiava o peito largo no canto da mesa, entortanto os olhos num esforço para ver as pontas rebeldes dos bigodes. Vessovchikov estava sentado numa cadeira, rígido como um manequim, as mãos pousadas sobre os joelhos, o rosto impávido, desprovido de sobrancelhas, os lábios delgados, imóvel como uma máscara. Os olhos semicerrados, olhavam obstinadamente a cintilação do brilho do cobre do samovar, parecendo não respirar. O pequeno Theo escutava a leitura, movendo silenciosamente os lábios, como se repetisse as palavras do livro, enquanto o seu camarada, inclinado, apoiando os cotovelos nos joelhos, as faces encostadas às palmas das mãos, sorria pensativo. Um dos rapazes que chegaram com Pavel era ruivo, de cabelo encaracolado, e estava ansioso por falar, agitando-se com impaciência. O outro, de cabelo louro muito curto, passava a mão pela cabeça, inclinava a testa quase até ao chão, não se lhe via a cara. Estava-se bem na sala. A mãe sentia um bem-estar especial, desconhecido até então, e enquanto Natacha prosseguia a leitura, ela recordava as festas ruidosas da sua juventude, as palavras grosseiras dos jovens, que exalavam um hálito a álcool, e as suas brincadeiras estúpidas.

 

Estas recordações provocavam-lhe um sentimento de piedade por si mesma que lhe roía surdamente o coração.

 

A sua imaginação reconstituiu o pedido de casamento feito pelo seu defunto marido. Durante uma reunião tinha-a abraçado na obscuridade da entrada, apertando-a com todo o seu corpo contra a parede, e com voz surda e irritada tinha-lhe perguntado:

 

- Queres casar comigo?

 

Ela sentiu-se ofendida. Ele magoava-a oprimindo-lhe o peito. A respiração ofegante dele lançava-lhe no rosto um bafo quente e húmido. Tentou libertar-se, fugir.

 

- Onde vais? - rugiu ele. - Aceitas ou não? Sufocando com a vergonha e profundamente ferida, ela calou-se. Alguém abriu a porta do vestíbulo, ele soltou-a sem pressa, e disse:

 

- No domingo mando-te a casamenteira... Tinha cumprido.

 

Pelágia fechou os olhos e soltou um profundo suspiro...- Subitamente, ouviu-se a voz irritada de Vessovchikov.

 

- Não preciso de saber como é que os homens viviam antigamente. O que me interessa saber é como devem viver agora!

 

- É isso mesmo! - disse o ruivo, levantando-se.

 

- Não concordo! - gritou Theo.

 

Estalou a discussão. As exclamações brotavam como línguas de fogo numa fogueira. A mãe não compreendia porque é que gritavam. Todos os rostos estavam vermelhos com a excitação, mas ninguém se injuriava nem pronunciava as palavras grosseiras a que ela estava habituada.

 

"Estão embaraçados com a presença da jovem", pensou.

 

Agradava-lhe observar o rosto sério de Natacha, que os olhava com atenção, como uma mãe olha os seus filhos.

 

- Esperem, camaradas - disse subitamente a jovem. Calaram-se todos, olhando para ela.

 

- Os que dizem que devemos saber tudo, dizem a verdade. A luz da razão deve iluminar-nos. Se queremos esclarecer os que estão nas trevas, devemos estar preparados para sermos capazes de responder a todas as perguntas, de uma forma honesta e verdadeira. Devemos conhecer toda a verdade e toda a mentira...

 

O Ucraniano escutava, inclinando a cabeça ao ritmo das frases. Vessovchikov, o ruivo e o operário que tinha chegado com Pavel formavam um grupo à parte, e a atitude deles desagradava à mãe sem que ela soubesse porquê.

 

Quando Natacha terminou, Pavel levantou-se e perguntou tranquilamente:

 

- Será que tudo o que esperamos da vida é comer e beber até nos fartarmos? Não! - respondeu ele à sua própria pergunta, olhando os três homens com firmeza. - Devemos mostrar aos que nos têm amarrados pelos colarinhos e nos tapam os olhos que vemos tudo, que não somos nem idiotas nem brutos, e que o que queremos é não apenas comer mas viver uma vida digna de ser vivida. Devemos mostrar aos nossos inimigos que a vida de forçados que nos impõem não nos impede de nos medirmos com eles em inteligência, e mesmo de nos elevarmos muito mais alto do que eles!

 

A mãe escutava e estremecia de orgulho de o ouvir falar tão bem.

 

- Há muitos velhacos, mas pouca gente honrada - disse o Ucraniano. - Através do pântano que é a nossa vida podre, devemos constuir uma ponte que nos conduza a um mundo novo onde reine a fraternidade. É esta a nossa tarefa, camaradas.

 

- Quando chega o momento de lutar não há tempo para limpar as armas - respondeu Vessovchikov.

 

Passava da meia-noite quando se separaram. Os primeiros a sair foram Vessovchikov e o ruivo, o que desagradou à mãe.

 

"Estão cheios de pressa!", pensou, hostil, respondendo à -boa noite- deles.

 

- Acompanha-me, Nakhodka? - perguntou Natacha.

 

- Decerto - respondeu o Ucraniano.

 

Enquanto Natacha vestia o sobretudo na cozinha, a mãe disse-lhe:

 

- Essas meias são muito finas para o frio que faz. Se quiser posso fazer-lhe umas de lã.

 

- Obrigada, Pelágia, mas as meias de lã picam! - respondeu Natacha rindo.

 

- Far-lhe-ei umas que não piquem.

 

Natacha olhou para ela piscando um pouco os olhos e aquele olhar fixo perturbou a mãe, que acrescentou em voz baixa:

 

- Desculpe a minha tolice... era com todo o coração...

 

- Que boa que é! - respondeu docemente Natacha, apertando-lhe a mão.

 

- Boa noite, mãezinha! - disse o Ucraniano olhando-a de frente. Em seguida inclinou-se e saiu atrás de Natacha.

 

A mãe olhou o filho que sorria, de pé na ombreira.

 

- De que estás a rir? - perguntou desconcertada.

 

- De nada... estou contente!

 

- Claro que estou velha e sou ignorante, mas sei compreender o que é bom - observou ela, um tanto ofendida.

 

- Tem razão - respondeu ele. - Vamos deitar-nos, já é tarde.

 

- Vou agora mesmo.

 

Apressou-se a levantar a mesa, satisfeita, transpirando um pouco, grata pela emoção que sentia. Estava feliz por tudo se ter passado tão bem e sem incidentes.

 

- Tiveste uma boa ideia, Pavel. O Ucraniano é muito simpático. E a menina... Ela, sim, é uma rapariga inteligente! Quem é ela?

 

- Uma professora primária - respondeu Pavel, enquanto dava largas passadas pela sala.

 

- É muito pobre! E estava tão mal vestida... Com tão pouca roupa... Deve ter muito frio. Onde estão os pais dela?

 

- Em Moscovo. - Detendo-se em frente dela, Pavel acrescentou num tom grave:

 

- Escute, mãe. O pai dela é rico, vende ferro, tem muitas casas. Expulsou-a por ela ter escolhido esta forma de vida. Teve uma boa educação, foi mimada por toda a gente, e, como vê, agora tem de caminhar mais de sete verstás, de noite, sozinha...

 

Estes pormenores comoveram Pelágia. De pé, no meio do quarto, olhava para o filho sem dizer uma palavra, com as sobrancelhas arqueadas de espanto. Perguntou-lhe:

 

- Ela vai para a cidade?

 

- Sim.

 

- Ah!... Ela não tem medo?

 

- Não, não tem medo - disse Pavel sorrindo.

 

- Mas, porquê? Ela podia ter passado a noite aqui, dormia na minha cama...

 

- Isso não é assim tão fácil. Podiam vê-la sair amanhã de manhã, e isso não seria nada conveniente.

 

A mãe olhou para a janela com ar pensativo, e disse com doçura:

 

- Não compreendo, Pavel, o que é que possa haver de perigoso, de proibido... Não há nada de mal em tudo isto, pois não?

 

Não estava segura, e esperava que o filho a tranquilizasse. Ele olhou-a nos olhos, serenamente.

 

- Não, não fizemos nada de mal. Mas mesmo assim, é a prisão que nos espera a todos, é preciso que a mãe o saiba.

 

As mãos da mãe tremiam. Com voz insegura, disse:

 

- Mas, talvez... Se Deus quiser, isso não irá acontecer.

 

- Não! - disse ternamente o rapaz. - Não quero enganada. Nós não escaparemos.

 

Sorriu.

 

- Vá para a cama, que deve estar cansada. Boa noite. Quando ficou só, aproximou-se da janela e pôs-se a olhar

 

a rua. Lá fora estava frio e escuro. O vento varria a neve sobre os telhados das casitas adormecidas, batia nas paredes, sibilante, abatia-se sobre a terra e espalhava ao longo das ruas nuvens brancas de flocos de neve fina como poeira...

 

- Jesus, tem piedade de nós - murmurou docemente a mãe.

 

Sentia uma enorme vontade de chorar, e esta desgraça inevitável, de que o seu filho tinha falado com tanta serenidade, tanta certeza, agitava-se dentro dela como uma borboleta nocturna, cega e desamparada. Diante dos seus olhos apareceu uma planície nua, coberta de neve, onde, sibilante, o vento frio sopra e rodopia em turbilhão, branco, inflexível. No meio da planície caminha, solitária e vacilante, uma pequena silhueta escura. O vento enrosca-se-lhe nas pernas, levanta-lhe as saias, fustiga-lhe a cara com pequenos e cortantes cristais de neve. Tem dificuldade em avançar, os pés afundam-se na camada espessa. Tem frio e medo. A rapariga, curvada, é como um filamento de erva na imensa planura, amedrontada, apanhada no meio do louco revoltear do vento de Outono. À direita, ergue-se sobre o pântano o muro sombrio formado pelo bosque de pinheiros e bétulas geladas e despidas. Algures, longínquo, diante dela, o clarão débil das luzes da cidade.

 

- Senhor, tende piedade de nós! - murmurou a mãe, tremendo de pavor.

 

Os dias sucediam-se, um após outro, como as contas de um ábaco, formando as semanas e os meses. Os camaradas de Pavel todos os sábados se reuniam em casa deste. Cada reunião era como um degrau numa escadaria de suave lançado que conduzia algures, longe, e que lentamente ia elevando aqueles que a iam subindo.

 

Iam aparecendo caras novas. A pequena sala dos Vlassov ia-se tornando demasiado apertada, asfixiante. Natacha chegava enregelada, cansada, mas nunca deixando de trazer consigo inesgotáveis reservas de alegria e entusiasmo.

 

A mãe tinha-lhe feito umas meias, e ela mesma lhas calçou. Natacha riu-se, mas logo o seu rosto se tornou pensativo, e murmurou:

 

- A ama que tive também era assim, cheia de bondade. É espantoso que o povo que leva uma vida tão dura, tão cheia de humilhações, tem um coração maior, melhor que o dos outros.

 

E fez um gesto com a mão, como se indicasse um lugar desconhecido, longe, muito longe...

 

- A menina também é muito boa - disse a mãe. - Deixou os seus pais, deixou tudo...

 

Não chegou a terminar o seu pensamento. Suspirou e ficou em silêncio a olhar para Natacha; estava-lhe grata e não sabia porquê. Deixou-se ficar acocorada no chão, na frente dela, e a rapariga, inclinando a cabeça, sorria, sonhadora.

 

- Deixei os meus pais? - repetiu ela. - Isso não foi nada. O meu pai é tão grosseiro, o meu irmão também... e bebe. A minha irmã mais velha é uma infeliz. Casou com um homem muito mais velho do que ela, muito rico, maçador, avarento. Da minha mãe é que eu tenho pena. É uma pessoa simples, como a senhora. É pequena, como um ratinho, sempre a correr de um lado para outro, sempre com medo de toda a gente. Às vezes desejaria tanto voltar a vê-la!

 

- Pobrezinha! - disse a mãe, movendo tristemente a cabeça.

 

A jovem ergueu-se rapidamente e estendeu a mão, como para rejeitar alguma coisa.

 

- Oh, não! Também tenho vivido momentos de tanta alegria, tanta felicidade!

 

O seu rosto empalideceu, e os seus olhos brilharam. Pousou a mão no ombro da mãe e disse com uma voz profunda e intensa:

 

- Se a senhora soubesse... se pudesse compreender a grandeza daquilo que nós estamos a fazer!

 

Um sentimento próximo da inveja tocou o coração de Pelágia. Levantou-se e disse tristemente.

 

-Já sou muito velha para isso... e muito ignorante.

 

Pavel tomava a palavra cada vez com mais frequência, as suas discussões eram cada vez mais calorosas, e emagrecia. A mãe julgava notar que quando Pavel falava com Natacha, ou olhava para ela, o seu olhar geralmente severo se tornava mais doce, a sua voz se enternecia, todo ele parecia mais natural.

 

-Queira Deus!", pensava ela. E sorria.

 

Quando, no decorrer das reuniões, as discussões ganhavam um tom mais caloroso, ou mesmo violento, o Ucraniano levantava-se e, balançando como o badalo de um sino, falava com a sua voz sonora e cadenciada. A simplicidade e a bondade das suas palavras conseguiam acalmar os ânimos. Vessovchikov, sempre descontente, provocava uma atmosfera de tensão geral. Era ele e o ruivo Samoilov que iniciavam todas as disputas. Ivan Bukhine, o rapaz da cabeça redonda e sobrancelhas louras que parecia ter sido lavado com lixívia, apoiava-os. lakov Somov, sempre lavado e bem penteado, falava pouco, com voz serena e grave. Ele e Theo Mazine, o jovem de testa alta, eram sempre da mesma opinião que Pavel e o Ucraniano.

 

Por vezes, no lugar de Natacha, era Nicolai Ivanovitch quem vinha da cidade. Usava óculos e uma barbinha clara. Era natural de uma qualquer província longínqua, e conservava a pronúncia da sua terra. Tinha um ar distante. Falava

de coisas simples; da vida familiar, das crianças, do comércio, da polícia, do preço do pão e da carne, de tudo o que dizia respeito à vida quotidiana. Em tudo descobria a hipocrisia, a desordem, qualquer coisa de estúpido, por vezes ridículo, mas sempre nocivo para o povo. Parecia a Pelágia que ele vinha de muito longe, de outro reino, onde todos levavam uma vida honesta e fácil, enquanto a vida que viviam era para ele uma vida muito estranha que não conseguia aceitar. Era uma vida que lhe desagradava e suscitava nele um desejo calmo, mas obstinado, de reconstruir completamente a sociedade de acordo com as suas ideias. Era macilento, tinha finas rugas em torno dos olhos, a sua voz era suave e as mãos eram cálidas. Quando cumprimentava a mãe, envolvia-lhe toda a mão com os seus dedos vigorosos. Com esse gesto acalmava e tranquilizava o coração de Pelágia.

 

Entre as pessoas que também vinham da cidade, uma das mais assíduas era uma rapariga alta e bem feita, com uns olhos imensos que contrastavam no seu rosto magro e pálido. Chamava-se Sachenka. No seu andar e nos seus gestos havia algo de masculino. Franzia as negras sobrancelhas com ar irritado, o seu nariz era direito e quando falava as suas delicadas narinas tremiam.

 

Foi Sachenka a primeira a dizer, na sua voz brusca e sonora:

 

- Nós somos socialistas...

 

Quando a mãe ouviu esta palavra olhou para a rapariga, silenciosa e assustada. Ela tinha ouvido contar que os socialistas tinham morto o Czar. Tinha sido nos tempos da sua juventude. Dizia-se então que os latifundiários, quando o Czar libertara os servos da terra, para se vingarem, tinham jurado não cortar o cabelo enquanto o não matassem. Por isso lhes chamavam socialistas. A mãe agora não conseguia compreender por que motivo o filho e os seus camaradas eram socialistas.

 

Quando todos saíram, dirigiu-se a Pavel:

 

- É verdade que és socialista, Pavlucha?

 

- Sim - respondeu ele, franco e firme como sempre. Porquê?

 

Ela suspirou profundamente, e continuou, baixando os olhos.

 

- Como é que pode ser, Facha? Eles estão contra o Czar, até já mataram um!

 

Pavel deu alguns passos pelo quarto, passando a mão pelo rosto, sorriu e respondeu:

 

- Talvez nós não precisemos de fazer isso.

 

Por um longo momento Pavel falou com a mãe, com uma voz macia e tranquila. Ela olhava-o nos olhos, e pensava:

 

"Ele não fará mal a ninguém. Não seria capaz."

 

Depois desse dia a terrível palavra passou a repetir-se com frequência, aos poucos foi perdendo a sua virulência, e acabou por se tornar tão familiar para os seus ouvidos como tantas outras palavras que não compreendia. Mas continuava a não gostar de Sachenka, e quando esta aparecia a mãe sentia-se inquieta, pouco tranquila.

 

Uma noite disse ao Ucraniano, com um trejeito de desaprovação:

 

- É muito autoritária, esta Sachenka! Está sempre a dar ordens: "você deve fazer isto, você deve fazer aquilo..."

 

O Ucraniano riu com gosto.

 

- Bem observado! A mãezinha tem razão. Ouviste, Pavel? E piscando o olho à mãe, disse com um ar maroto:

 

- É assim, a nobreza! Pavel respondeu secamente:

 

- É uma boa rapariga.

 

- Pois sim, confirmou o Ucraniano. Só parece não compreender que enquanto ela deve, nós queremos e podemos.

 

Puseram-se então a discutir sobre outras coisas incompreensíveis para a mãe.

 

A mãe observou também que Sachenka era particularmente dura com Pavel, por vezes até violenta. Pavel sorria, calava-se e olhava para a rapariga com o mesmo doce olhar que antes havia tido para Natacha. Nada disto agradava a Pelágia.

 

Às vezes a mãe surpreendia-se perante o júbilo ruidoso e comunicativo a que os mais jovens subitamente davam largas. Isto acontecia geralmente nas noites em que liam nos jornais alguma notícia sobre os movimentos operários no estrangeiro. Então, todos os olhos brilhavam de alegria, todos ficavam, estranha coisa, felizes como crianças, voltavam a ler a notícia com risos claros e satisfeitos, e davam palmadas amigáveis nas costas uns dos outros.

 

- Bravos camaradas alemães! - gritava um deles, embriagado de alegria.

 

- Vivam os operários de Itália! - gritavam de outra vez. Enviavam estas aclamações para longe, para amigos que

 

os não conheciam nem compreendiam a sua língua, e pareciam seguros de que esses desconhecidos os ouviriam e entenderiam o seu entusiasmo.

 

O Ucraniano, de olhos brilhantes, cheio de um amor que abraçava todos os seres, declarava:

 

- Seria bom se lhes escrevêssemos, hem? Para eles saberem que têm na Rússia amigos que professam a mesma fé que eles, que vivem com os mesmos objectivos e se alegram com as suas vitórias!

 

E todos, com um olhar sonhador e um sorriso nos lábios, falavam longamente dos franceses, dos ingleses, dos suecos, como se fossem amigos chegados, tão próximos, tão estimados que com eles partilhavam alegrias e tristezas.

 

Nascia naquela pequena sala um sentimento de parentesco espiritual que unia os trabalhadores do mundo inteiro. Este sentimento, que a todos fazia vibrar num mesmo coração, era partilhado pela mãe, e embora o não compreendesse muito claramente bebia a alegria e a juventude deles e deixava-se embriagar com a sua força e a sua esperança.

 

- Como vocês são... todos iguais - disse um dia ao Ucraniano. - Para vocês todos são camaradas... os arménios, os judeus, os austríacos... Vocês alegram-se e entristecem-se por todos eles.

 

- Por todos, sim, mãezinha, por todos! - exclamou ele. - Para nós não existem nações nem raças, existem apenas camaradas e inimigos. Todos os proletários são nossos camaradas, todos os ricos, todos os que governam, nossos inimigos. Quando olhamos o mundo com o coração e vemos como somos numerosos, nós, os operários, e a força que temos, sentimos uma alegria tão grande que é uma festa para as nossas almas. E o mesmo se passa, mãezinha, com um francês ou um alemão que compreenda a vida, e um italiano alegra-se da mesma maneira. Somos todos filhos de uma só mãe, de um mesmo pensamento invencível: o da fraternidade entre os trabalhadores de todos os países. Este sentimento de fraternidade é para nós um conforto, é um sol a brilhar no céu da justiça, e este céu está no coração do operário; que lhe chame cada um como quiser, o socialista é nosso irmão em espírito, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos.

 

Esta fé infantil, mas inquebrantável, manifestava-se dentro do pequeno grupo cada vez com mais frequência, como uma força crescente. E a mãe, à medida que via este transbordar de esperança, sentia instintivamente que, na verdade, alguma coisa grande e resplandecente havia nascido no mundo, como um um sol, parecido com aquele que via no firmamento.

 

Muitas vezes cantavam. Cantavam canções familiares com alegria e entusiasmo. Outras vezes entoavam canções novas, de uma singular beleza, mas com algo de estranhamente triste na melodia. Então, baixavam a voz, gravemente, como se estivessem cantando um hino religioso. Uns rostos empalideciam, outros inflamavam-se, e daquelas estranhas palavras emanava uma força imensa.

 

Uma destas novas canções, sobretudo, inquietava e torturava Pelágia. Não exprimia as tristes meditações de uma alma ferida, errando solitária pelos caminhos sombrios de dolorosas incertezas, nem exprimia o desalento de uma alma abatida pela miséria, aterrorizada, informe e sem cor. Também não ressoavam nela os suspiros angustiados de um coração

 

forte, obscuramente ávido de espaço, nem os gritos de desafio do audaz provocador, pronto a esmagar indistintamente o mal e o bem. Também não era o ressentimento cego do ofendido, capaz, por uma vingança, de arrasar tudo, mas impotente para criar o que quer que fosse. Não havia nessa canção nenhum eco do velho mundo, do mundo dos escravos.

 

As palavras duras e a melodia austera da canção não agradavam à mãe, mas havia neste cântico uma força maior do que as palavras e os sons, que ia para além deles, e fazia despertar no coração o pressentimento de alguma coisa maior que o próprio pensamento. Isto era o que ela conseguia ler nos rostos, nos olhos dos jovens, o que sentia no peito deles e, vencida por uma misteriosa força de atracção, escutava sempre aquela canção com uma atenção especial, com uma inquietação maior do que a habitual.

 

Cantavam-na tão suavemente como cantavam as outras, mas soava com mais força e era como o ar de um dia de Março, do primeiro dia de Primavera.

 

- É tempo de começarmos a cantá-la pelas ruas - dizia, carrancudo, Vessovchikov.

 

Quando o pai dele, mais uma vez, foi preso por roubo, declarou tranquilamente:

 

- Agora já nos podemos reunir em minha casa.

 

Quase todas as tardes, depois do trabalho, algum deles vinha a casa de Pavel. Liam juntos, copiavam passagens dos livros, andavam preocupados e não tinham tempo nem para se lavar. Jantavam e bebiam chá sem largar os panfletos, e as suas palavras eram cada vez mais incompreensíveis para a mãe.

 

- Precisamos de um jornal! - dizia Pavel muitas vezes.

 

A vida tornava-se cada vez mais agitada e febril. Passavam cada vez mais rapidamente de um livro a outro, como abelhas de uma flor para outra flor.

 

- Começam a falar de nós - disse um dia Vessovchikov. Certamente não tardarão muito em prender-nos.

 

- O destino da codorniz é cair no laço - disse o Ucraniano.

 

Este agradava cada vez mais a Pelágia. Quando a tratava por "mãezinha", parecia-lhe que a suavidade de uma mão de criança lhe acariciava o rosto. Ao domingo, se Pavel estava ocupado, era ele quem rachava a lenha. Um dia chegou com uma tábua de madeira ao ombro, pegou no machado, e habilmente substituiu uma tábua que estava podre junto à soleira da porta. De outra vez reparou a cerca, que estava a cair aos pedaços. Enquanto trabalhava, assobiava belas canções melancólicas.

 

Um dia, Pelágia disse ao filho:

 

- E se tomássemos o Ucraniano como pensionista? Para vocês seria melhor do que passarem a vida a correr de uma casa para a outra.

 

- Porque há-de a mãe sobrecarregar-se de mais trabalho?

- perguntou Pavel, encolhendo os ombros.

 

- Que ideia! Trabalho tenho eu tido toda a vida sem saber porquê, bem posso tê-lo por um bom rapaz.

 

- A mãe faça como quiser - replicou Pavel -, se ele aceitar, eu ficarei contente.

 

E o Ucraniano foi viver com eles.

 

A pequena casa, no extremo do bairro, despertava as atenções. As suas paredes exteriores eram observadas por muitos olhares desconfiados. Sobre ela pairavam suspeitas, sobre ela se murmurava isto e aquilo. As pessoas tentavam descobrir o mistério que encerrava. De noite, espreitavam pela janela. Outras vezes alguém batia no vidro e em seguida fugia cobardemente, sem se mostrar.

 

Um dia o estalajadeiro Beguntsov abordou Pelágia na rua. Era um velhinho de boa presença, que usava sempre um

lenço de seda preta à volta do pescoço vermelho e flácido e um colete lilás. Usava uns óculos de aros de tartaruga encavalitados sobre o nariz pontiagudo e luzidio, o que lhe valera a alcunha de "olhos de osso." Dirigiu-se-lhe com uma avalancha de palavras secas e crepitantes como lenha a arder, de um só fôlego e sem esperar resposta.

 

- Como vai, Pelágia Nilovna? E o seu rapaz? Não pensa casá-lo tão cedo? Olhe que ele já está em muito boa idade. O casamento dos filhos é a tranquilidade dos pais. É no seio da família que um homem se conserva melhor, de corpo e de espírito. É como o cogumelo em vinagre. Eu, no seu lugar, casava-o. Hoje em dia o comportamento das pessoas deve ser vigiado. Cada um vive como muito bem lhe parece, andam por aí ideias esquisitas, e fazem-se coisas abomináveis. Os jovens deixaram de frequentar a casa de Deus, evitam os lugares públicos, reúnem-se pelos cantos, às escondidas, a cochichar. Que andarão eles a cochichar, não me dirá? Porque fogem da sociedade? Aquilo que um homem tem para dizer di-lo na taberna, diante de todos. Quando não o faz é porque esconde qualquer mistério. Mas o lugar dos mistérios é a nossa Santa Igreja Apostólica. Outros mistérios que existam por aí pelos cantos só podem ser o resultado de espíritos perturbados. Desejo-lhe boa saúde.

 

Dobrando o braço com afectação levantou o boné, agitou-o no ar e foi-se embora perante a perplexidade da mãe.

 

De outra vez foi Maria Korsunova, uma vizinha dos Vlassov, que era viúva de um ferreiro e vendia comida à porta da fábrica. Encontrou a mãe no mercado e disse-lhe:

 

- Vigia o teu filho, Pelágia.

 

- Porquê?

 

- Correm por aí uns boatos... - disse-lhe Maria com um ar misterioso. - E não são nada bons, minha amiga. Dizem que está a organizar uma espécie de associação religiosa. Chamam-lhes seitas. Açoitam-se uns aos outros com vergastas, como os flagelantes.

 

- Não digas tolices, Maria!

 

- Há que censurar a quem as faz, e não a quem as diz respondeu a vendedeira

 

A mãe repetiu todas estas palavras ao filho, que encolheu os ombros e não respondeu. O Ucraniano por seu lado riu às gargalhadas.

 

- Também as raparigas andam aborrecidas convosco - disse ela. - Vocês são noivos que qualquer uma delas desejaria ter, são bons trabalhadores, não bebem, mas nem olham para elas. Diz-se que há mulheres de má vida que vêm da cidade visitar-vos...

 

- Claro! - disse Pavel com uma careta de desaprovação.

 

- Num pântano não há nada que não cheire a podridão

- disse o Ucraniano suspirando. - E a senhora, mãezinha, devia ter explicado a essas tontas o que é o casamento, para que não tenham tanta pressa em começar a levar pancada.

 

- Meu filho, elas sabem e compreendem tudo isso muito bem, mas não sabem o que hão-de fazer das suas vidas.

 

- Não compreendem nada. Se compreendessem encontrariam outro caminho - observou Pavel. A mãe olhou o seu rosto sério.

 

- Podiam ensinar-lhes vocês. Começavam por convidar as menos tontas...

 

- Não pode ser - replicou secamente Pavel.

 

- E se experimentássemos? - perguntou o Ucraniano. Pavel permaneceu silencioso por um instante.

 

- Começariam por se juntar aos pares, dariam passeios, alguns acabariam por casar, e pronto.

 

A mãe voltou a mergulhar nos seus pensamentos. A austeridade monástica de Pavel perturbava-a. Via que os seus conselhos eram seguidos até pelos camaradas mais velhos, como o Ucraniano, mas parecia-lhe que todos o receavam um pouco, que não o amavam bastante, por causa desta sua severidade.

 

Uma noite, estava já deitada enquanto Pavel e o Ucraniano liam ainda. Através do delgado tabique, conseguiu ouvir a conversa deles, em voz baixa.

 

- Gosto da Natacha, sabes? - disse subitamente o Ucraniano.

 

-Sei.

 

Pavel havia demorado um pouco a resposta.

 

Em seguida, a mãe ouviu o Ucraniano levantar-se e começar a andar pelo quarto. Arrastava os pés nus pelo chão, e assobiava uma melodia triste. Depois disse:

 

- Ela já terá percebido?

 

Pavel continuava sem dizer nada.

 

- E tu, o que é que achas? - perguntou o Ucraniano baixando a voz.

 

- Percebeu, e foi por isso que abandonou o nosso grupo de trabalho.

 

De novo se ouviram os passos arrastados do Ucraniano, de novo se ouviu o seu triste assobiar. Depois perguntou:

 

- E se eu lhe dissesse?

 

- Se lhe dissesses o quê?

 

- Se lhe dissesse... isso. Que eu... - tentou explicar timidamente.

 

- Dizer-lhe para quê?

 

O Ucraniano parou, e a mãe compreendeu que sorria.

 

- Bom, parece-me que quando gostamos de uma rapariga... bem, temos de lho dizer, senão de que é que adianta?

 

Pavel fechou o livro bruscamente.

 

- E que esperas tu obter daí?

 

Por um momento calaram-se ambos.

 

- Não percebo - disse o Ucraniano.

 

- Uma pessoa tem de saber claramente aquilo que quer, Andrei - explicou calmamente Pavel. - Suponhamos que ela também te ama. Não o creio, mas vamos supor que sim. Vocês casam-se. Um casamento interessante: uma intelectual e um operário. Vêm os filhos, e vais ter de ser tu sozinho a trabalhar... e muito. A vossa vida está condenada a ser uma luta contínua contra a fome. Os filhos, a casa... acabariam, um e outro, por se perder para a nossa causa.

 

Fez-se um silêncio. Em seguida, Pavel continuou com uma voz mais suave:

 

- É melhor esqueceres tudo isso, Andrei. E não a desencaminhes.

 

De novo se fez silêncio. O relógio cadenciava o tiquetaque dos segundos.

 

O Ucraniano disse:

 

- Metade do coração ama, a outra odeia. Será isto um coração?

 

Ouvia-se o ruído do voltar das páginas. Pavel havia retomado a sua leitura. A mãe deixou-se ficar deitada, de olhos fechados, sem ousar fazer um movimento sequer. Sentia-se comovida até às lágrimas pelo Ucraniano. Sentia-se mais comovida ainda pelo seu filho. E pensava: "Meu querido!"

 

Subitamente, Andrei perguntou:

 

- Devo então calar-me?

 

- É melhor - disse Pavel docemente.

 

- Bem, farei como dizes - disse o Ucraniano. Um instante depois acrescentou tristemente.

 

- Também para ti será duro, Pacha, quando chegar a tua vez.

 

- Para mim já é duro.

 

Uma rajada de vento varreu as paredes da casa. O relógio continuava a marcar a passagem do tempo.

 

- Estas coisas não são brincadeiras - disse lentamente o Ucraniano.

 

A mãe afundou a cabeça na almofada e chorou em silêncio.

 

Na manhã seguinte Andrei pareceu-lhe mais frágil e mais amável. O seu filho estava igual a sempre. Magro, direito e taciturno. Até aí ela havia sempre tratado o Ucraniano por Andrei Onissimovitch, mas nesse dia, sem mesmo dar por isso, disse-lhe:

 

- Tem de mandar arranjar as suas botas, Andriucha. Assim vai andar com os pés enregelados.

 

- Quando receber o salário, compro umas novas! - respondeu ele rindo. Em seguida, colocando a sua larga mão sobre o ombro dela, perguntou:

 

- Quem sabe se é a senhora a minha verdadeira mãe? Só não quer reconhecê-lo diante de toda a gente, talvez não me ache bonito o bastante...

 

Ela deu-lhe uma palmadinha na mão. Teria querido dizer-lhe muitas palavras afectuosas, mas o seu coração sentia-se afogado em piedade, e a língua recusava-se a obedecer-lhe.

 

O bairro inteiro murmurava dos socialistas, que por todo o lado espalhavam folhetos impressos a azul. Esses folhetos denunciavam energicamente aquilo que se passava na fábrica, relatavam as greves dos operários em Petersburgo, e apelavam para que os operários se unissem em defesa dos seus interesses.

 

Os mais velhos, que ganhavam um salário melhor na fábrica, exclamavam:

 

- Agitadores! Estão a pedir poucas!...

 

E iam entregar os panfletos à direcção. Os jovens, esses, liam-nos com entusiasmo.

 

- É a verdade!

 

A maioria, esgotados pelo trabalho, e indiferentes a tudo, diziam sem esperança:

 

- Isto não serve para nada! O que é que nós podemos fazer?

 

Mas os folhetos suscitavam interesse, e se por acaso alguma semana eles não surgiam, diziam uns para os outros:

 

- Devem ter desistido.

 

Mas na segunda-feira reapareciam as folhas, e as pessoas voltavam a comentá-las em surdina.

 

Pela fábrica e pela taberna começaram a circular pessoas que ninguém conhecia. Faziam perguntas, observavam, farejavam, e chamavam a atenção de todos, nuns casos por uma prudência suspeita noutros por uma amabilidade excessiva.

 

A mãe compreendia que toda esta agitação era obra do seu filho. Via que as pessoas o rodeavam, e o seu receio pelo futuro misturava-se com um grande orgulho. Era o seu filho!

 

Certa tarde, Maria Korsunova chamou-a à janela, e quando a mãe lha abriu disse-lhe baixo e precipitadamente:

 

- Tem cuidado, Pelágia. A brincadeira dos teus cordeirinhos acabou. Esta noite hão-de vir passar uma busca na tua casa, na de Mazine, na de Vessovchikov...

 

Os grossos lábios de Maria fecharam-se num esgar, o seu nariz carnudo fungou ruidosamente, os olhos piscaram e olharam de soslaio para um lado e para o outro, a ver se haveria alguém na rua.

 

- Mas olha que eu não sei de nada, não te disse nada, e nem sequer te vi hoje, percebes?

 

Desapareceu.

 

A mãe fechou a janela, e deixou-se cair numa cadeira. Mas a consciência do perigo que ameaçava o filho fê-la levantar-se rapidamente. A seguir vestiu-se, cobriu a cabeça com um xaile, e correu a casa de Theo Mazine, que estava doente e não tinha ido trabalhar. Quando ela chegou, Theo estava sentado junto à janela, lendo um livro, segurando a mão direita com a esquerda, para manter o polegar afastado. Quando ouviu a notícia levantou-se de um salto e o seu rosto empalideceu.

 

- Agora é que vai ser... - murmurou.

 

- O que é que é preciso fazer? - perguntou Pelágia, enxugando o suor da testa com a mão trémula

 

- Esperar, e não ter medo! - respondeu Theo, e passou a mão válida pelos cabelos ondulados.

 

- Mas você também tem medo! - exclamou ela.

 

- EU?

 

As suas faces coraram bruscamente, e sorriu embaraçado.

 

- Sim, que diabo! É preciso avisar Pavel. Vou mandar-lhe um recado imediatamente. A senhora vá para casa. Não vai acontecer nada. A si ninguém lhe irá fazer mal.

 

Mal chegou a casa, a mãe começou a empilhar os livros, estreitou-os contra o peito, e assim percorreu toda a casa espreitando dentro do forno, debaixo da estufa, e até dentro da barrica da água. Pensava que Pavel largaria o trabalho e viria a correr para casa, mas tal não aconteceu. Por fim, fatigada, sentou-se num banco da cozinha, arrumou os livros no colo, sobre a saia, e assim, nesta posição, sem ousar mover-se, permaneceu até à chegada de Pavel e do Ucraniano.

 

- Vocês já sabem? - perguntou sem se levantar.

 

- Sim - disse Pavel sorrindo. - A mãe está com medo?

 

- Oh, sim, tenho medo! Tenho medo!

 

- Não vale a pena - disse Andrei - não resolve nada.

 

- Nem sequer preparou o samovar! - observou Pavel

 

- A mãe levantou-se, mostrou os livros e disse perturbada:

 

- Foi por causa disto...

 

O seu filho e o Ucraniano começaram a rir, o que lhe restituiu um pouco a coragem. Pavel pegou nalguns volumes, e foi escondê-los lá fora, enquanto Andrei acendia o samovar.

 

- Não precisa de estar assustada, mãezinha. A única coisa vergonhosa é que haja pessoas que se ocupam de coisas como estas. Vão aparecer aí uns pobres diabos, de sabre à cintura e esporas nas botas, e vão pôr-se a remexer por toda a parte. Vão espreitar debaixo da cama, debaixo da estufa. Quando há uma cave descem até lá, quando há um sótão também lá vão, as teias de aranha caem-lhes no focinho, e grunhem. Não lhes agrada nada fazer o trabalho que fazem, sentem-se humilhados, por isso fazem aquelas caras de maus e de zangados. É um trabalho sujo, e eles bem o sabem. Uma vez vieram a minha casa, remexeram em tudo e depois foram-se embora. De outra vez levaram-me com eles, meteram-me na prisão, e lá estive quatro meses. Foi só uma temporadazita! Levam-nos com eles, escoltados, pela rua, e fazem-nos uma quantidade de perguntas. Não são maus, são só estúpidos. Levam-nos para a prisão, tratam assim as pessoas, mas é para justificar o ordenado que ganham. Depois acabam por nos libertar, e pronto.

 

- Você fala sempre de uma maneira, Andrei!... - gemeu Pelágia.

 

Ajoelhado em frente ao samovar, o Ucraniano soprava com força para atear as brasas. Levantou a cara, vermelho do esforço, e perguntou alisando o bigode:

 

- E como é que eu falo?

 

- Como se nunca ninguém o tivesse ofendido...

 

Ele levantou-se e disse, sorrindo e movendo a cabeça:

 

- Existe neste mundo alguém que nunca tenha sido ofendido? Ofenderam-me tanto que já não me irrito com isso. O que é que se há-de fazer? As humilhações impedem o homem de trabalhar, e ficarmos a pensar nelas é uma perda de tempo. É a vida! Dantes costumava zangar-me com as pessoas, mas depois de reflectir melhor no assunto achei que não valia a pena. As pessoas vivem receosas de serem agredidas pelo seu vizinho, e por isso se apressam em ser as primeiras a agredir. É assim a vida, mãezinha.

 

As suas palavras fluíam tranquila e suavemente, e apaziguavam a ansiedade provocada pela espera dos que viriam fazer a busca. Os seus olhos salientes sorriam, claros, e todo o seu corpo se balançava e parecia estranhamente flexível.

 

A mãe suspirou e disse ternamente:

 

- Meu querido Andriucha, que Deus o faça feliz!

 

O Ucraniano deu uma larga passada, voltou a pôr-se de cócoras na frente do samovar, e disse:

 

- Se a felicidade me for oferecida, certamente não a recusarei, mas pedi-la... também não. É algo que não farei nunca.

 

Pavel regressou do pátio.

 

- Não vão encontrar coisa alguma - disse ele num tom seguro, e começou a lavar-se.

 

Depois, enquanto secava as mãos cuidadosamente:

 

- A mãe não pode mostrar-se amedrontada. Se o fizer, dir-se-ão: "Se ela treme de medo é porque alguma coisa há nesta casa." Mãe, compreenda que não queremos o mal, a verdade está do nosso lado, e por ela vamos trabalhar a nossa vida toda. Não estamos a cometer nenhum crime. Porque havemos nós de tremer?

 

- Eu vou ter coragem, Pacha - prometeu a mãe. Em seguida, cheia de angústia, deixou escapar:

 

- Se ao menos viessem depressa!

 

Mas não veio ninguém naquela noite. De manhã, prevendo que iriam rir-se dos seus receios, foi ela a primeira a troçar de si própria:

 

- Tinha medo... de ter medo!

 

Apareceram cerca de um mês depois daquela noite de susto. Nikolai Vessovchikov estava com eles, e os três estavam conversando sobre o jornal. Era tarde, quase meia-noite. A mãe já se tinha deitado, estava quase a adormecer, e ouvia o rumor indistinto das vozes, baixas e preocupadas. Andrei levantou-se subitamente e atravessou a cozinha nos bicos dos pés, fechando silenciosamente a porta atrás de si. Ouviu-se no pátio um ruído metálico, de repente a porta abriu-se de par em par, o Ucraniano avançou pela cozinha e disse, em voz baixa mas clara:

 

- Ouve-se um ruído de esporas!

 

A mãe saltou da cama, e pegou na roupa com as mãos a tremer, mas Pavel apareceu à porta e disse-lhe serenamente:

 

- A mãe deixe-se estar deitada... Está doente.

 

Do pátio vinha um sussurro de vozes. Pavel aproximou-se da porta, empurrou-a com a mão e perguntou:

 

- Quem está aí?

 

Com a rapidez de um relâmpago, uma silhueta alta e cinzenta surgiu no umbral, seguida de uma outra. Os dois polícias ladearam Pavel. Então, ouviu-se uma voz aguda,e trocista.

 

- Não somos quem vocês esperavam, hem?

 

Quem falava, era um oficial alto e magro, com um bigode negro e ralo. Junto ao leito da mãe surgiu Fediakine, o polícia do bairro. Levou a mão à pala do boné, e enquanto com a outra apontava para Pelágia disse com um olhar ameaçador:

 

- Esta é a mãe dele, Excelência.

 

Depois, agitando os braços na direcção de Pavel, acrescentou:

 

- E este é ele!

 

- Pavel Vlassov? - perguntou o oficial, semicerrando os olhos. Pavel disse que sim com a cabeça. O oficial continuou, cofiando o bigode:

 

- Tenho de fazer uma busca à tua casa. Levanta-te, velha! Quem é que está aí?

 

Lançou um olhar ao quarto, e em grandes passadas dirigiu-se para lá.

 

- Os vossos nomes?

 

Entraram então dois homens, chamados para servir de testemunhas. Eram o fundidor Tvariakov e o seu inquilino, o fogueiro Rybine, de cabelo e barba escura, um homem sério que disse com uma voz cheia e sonora:

 

- Boa noite, Nilovna!

 

Pelágia vestia-se, e enquanto isso, para ganhar coragem, ia murmurando:

 

- Que maneiras! Virem assim de noite... está uma pessoa deitada, e eles entram por aí...

 

Estavam todos apertados dentro do quarto, e havia no ar um forte cheiro a graxa. Dois polícias e Ryskine, o comissário de polícia do bairro, batiam ruidosamente com as botas no chão, tiravam os livros da estante e amontoavam-nos sobre a mesa, na frente do oficial. Outros dois batiam nas paredes com os punhos fechados, olhavam debaixo das

 

cadeiras, um deles, não sem dificuldade, subiu para cima do fogão. O Ucraniano e Vessovchikov estavam num canto apertados um contra o outro. O rosto bexigoso de Nikolai tinha-se coberto de manchas vermelhas, e os seus pequenos olhos não conseguiam deixar de fitar a cara do oficial. Andrei retorcia o bigode e quando a mãe entrou no quarto sorriu-lhe e dirigiu-lhe com a cabeça um aceno tranquilizador.

 

Esforçando-se por dominar o medo que a invadia, a mãe entrou, não de lado, como era seu costume, mas avançando com o peito, o que lhe dava um ar de importância cómico e afectado. Caminhava com passos ruidosos e as suas pestanas tremiam.

 

O oficial ia pegando rapidamente nos livros entre os dedos afilados das suas mãos brancas. Folheava-os, sacudia-os e, num gesto hábil, ia-os pondo de lado. Por vezes algum volume caía pesadamente no chão. Estavam todos em silêncio. Ouvia-se o resfolegar dos guardas, o tilintar das esporas, e de quando em quando uma pergunta:

 

- Já viram aqui?

 

Pelágia colocou-se ao lado de Pavel, junto do tabique, cruzou os braços como ele, e pôs-se também a olhar para o oficial. Sentia os joelhos a tremer, e uma névoa que lhe velava os olhos.

 

De repente, a voz de Vessovchikov ressoou, cortante:

 

- É preciso atirar com os livros para o chão?

 

A mãe estremeceu. Tvariakov fez um movimento com a cabeça, como se lhe tivessem dado uma pancada na nuca. Rybine tossiu e olhou atentamente para Nikolai.

 

O oficial franziu as sobrancelhas, e por um momento cravou o olhar no rosto frágil e imóvel. Os seus dedos continuaram a voltar as páginas ainda mais depressa. Abria por vezes de tal maneira os seus olhos cinzentos que parecia que se estava a sentir terrivelmente mal, e que ia lançar um grito de fúria, incapaz de lutar contra a sua dor.

 

- Soldado! - voltou a dizer Vessovchikov. - Apanha esses livros.

 

Os polícias foram até junto dele, depois olharam para o oficial, que levantou a cabeça, envolveu a silhueta maciça de Nikolai num olhar perscrutador e disse numa voz arrastada e nasal:

 

- Bem... apanhem-nos.

 

Um dos polícias baixou-se e, olhando Vessovchikov pelo canto do olho, começou a recolher os livros de folhas amarrotadas.

 

- Nikolai devia ficar calado! - sussurrou Pelágia ao filho. Pavel encolheu os ombros. O Ucraniano baixou a cabeça.

 

- Quem é que a lê a Bíblia?

 

- Eu - disse Pavel.

 

- A quem pertencem estes livros todos?

 

- A mim - respondeu de novo.

 

- Bem! - disse o oficial reclinando-se sobre as costas da cadeira. Entrelaçou os dedos das suas finas mãos, estendeu as pernas por cima da mesa, compôs o bigode e interpelou Vessovchikov.

 

- O Andrei Nakhodka és tu?

 

- Sim - respondeu Nikolai, avançando. O Ucraniano estendeu a mão, segurou-o pelo ombro e fê-lo retroceder.

 

- Ele está enganado. O Andrei sou eu.

 

O oficial ergueu a mão, e disse a Vessovchikov, ameaçando-o com o dedo indicador:

 

- Tem cuidado, tu!

 

Começou a remexer nos seus papéis. Lá fora, os olhos indiferentes da clara noite de luar olhavam pela janela. Alguém passava diante da casa. A neve caía.

 

- Tu, Nakhodka, já foste investigado por delitos políticos?

- perguntou o oficial.

 

- Sim, em Rostov e em Saratov... Mas os polícias de lá não me tratavam por tu.

 

- O oficial piscou o olho direito, esfregou-o, e disse, mostrando os dentes pequenos:

 

- E não conhecerá o senhor, Nakhodka, precisamente o senhor, os canalhas que andam na fábrica a distribuir folhetos criminosos?

 

O Ucraniano balançou-se sobre as pernas e, com um largo sorriso nos lábios, ia para dizer qualquer coisa quando de novo soou a voz irritada de Nikolai.

 

- É esta a primeira vez que vemos canalhas.

 

Fez-se silêncio, e por um momento ninguém se moveu.

 

A cicatriz da mãe tornou-se mais clara, e a sua sobrancelha direita ergueu-se bruscamente. A barba negra de Rybine começou a tremer de uma forma estranha. Penteou-a com os dedos, lentamente, de cabeça baixa.

 

- Ponham lá fora este animal! - disse o oficial.

 

Dois polícias agarraram-no por baixo dos braços, e arrastaram-no sem cerimónias até à cozinha. Aí, fincando os pés com força no chão, deteve-se e gritou:

 

- Parem! Tenho de vestir-me! Entrou o Comissário da Polícia.

 

- Não há nada. Procurámos por todo o lado.

 

- Claro! - exclamou o oficial com um sorriso. - Não estamos em presença de um novato.

 

A mãe escutava aquela voz fluida e cortante, olhava aterrorizada aquele rosto amarelado, e sentia neste homem um inimigo sem piedade, um coração cheio do mesmo desprezo que o aristocrata sente pelo povo. Tinha visto na sua vida muito poucos destes indivíduos, e quase tinha esquecido que existiam.

 

"São estes os que se sentem ameaçados por nós", pensou.

 

- Senhor Andrei Onissimovitch Nakhodka, filho de pai desconhecido, está detido.

 

- Por que motivo? - perguntou tranquilamente o Ucraniano.

 

- Isso dir-lho-ei mais tarde - respondeu o oficial com cinismo. Voltou-se para Pelágia:

 

- Sabes ler?

 

- Não - respondeu Pavel.

 

- Não é a ti que estou a perguntar - disse severamente, e insistiu:

 

- Responde, velha!

 

A mãe, tomada por um sentimento de ódio instintivo contra este homem, ergueu-se bruscamente, tremendo como se tivesse caído dentro de água gelada. A sua cicatriz tornou-se púrpura e a sua sobrancelha voltou a descer.

 

- Não grite! - disse ela esticando um braço na direcção do oficial. - Você ainda é muito novo, não sabe o que é a desgraça...

 

- Acalme-se, mãe! - deteve-a Pavel.

 

- Espera, Pavel! - gritou ela debruçando-se sobre a mesa. - Porque é que eles vêm aqui prender-nos?

 

- Isso não é da tua conta. Cala-te! - exclamou o oficial levantando-se. - Tragam-me o Vessovchikov.

 

Pegou num papel, levantou-o até à altura da cara, e pôs-se a ler.

 

Trouxeram Nikolai.

 

- Tira o gorro! - gritou o oficial interrompendo a leitura. Rybine aproximou-se de Pelágia, tocou-lhe com o ombro e disse-lhe em voz baixa:

 

- Não te exaltes, mãezinha!

 

- Como posso tirar o gorro se tenho as mãos presas? - perguntou Nikolai interrompendo a leitura do processo verbal.

 

- O oficial atirou com o papel para cima da mesa.

 

- Assinem!

 

A mãe observou-os enquanto assinavam o processo verbal. A sua exaltação tinha desaparecido, e o seu coração sentia-se desfalecer. Tinha nos olhos lágrimas de humilhação e de raiva. Havia chorado lágrimas semelhantes durante os vinte anos que durara o seu casamento, mas nos últimos tempos quase esquecera o seu sabor amargo.

 

- É muito cedo para a senhora chorar. Guarde as suas lágrimas para mais tarde, que vai precisar delas.

 

Ela respondeu-lhe, de novo encolerizada:

 

- As mães têm lágrimas que chegam para tudo... para tudo. Se você tem mãe, ela também deve saber isso.

 

O oficial guardou rapidamente os seus papéis numa carteira nova com o fecho a brilhar, e ordenou:

 

- Em frente, marchem!

 

- Até à vista, Andrei. Até à vista, Nikolai - disse Pavel em voz baixa mas calorosa, apertando a mão dos seus camaradas.

 

- Sim, claro, até à vista! - repetiu, irónico, o oficial. Vessovchikov fungava ruidosamente. O seu largo pescoço

 

estava congestionado, e os seus olhos cintilavam de raiva. O Ucraniano todo ele sorria, inclinou a cabeça e segredou algumas palavras à mãe, que o abençoou com o sinal da cruz, e disse:

 

- Deus olha pelos justos...

 

Por fim o pelotão de homens de capote cinzento aproximou-se da porta, tilintou as esporas e desapareceu. O último a sair foi Rybine. Envolveu Pavel com um olhar perscrutador dos seus olhos negros, e disse com um ar pensativo:

 

- Bem... adeus.

 

E saiu sem pressa, tossindo por detrás da barba.

 

Com as mãos atrás das costas, Pavel percorreu lentamente o quarto de um lado ao outro, caminhando por entre os livros e a roupa que estava espalhada pelo chão. O seu rosto estava sombrio.

 

- A mãe está a ver como é?

 

Olhando indecisa o quarto em desordem, a mãe murmurou angustiada:

 

- Para que é que Nikolai foi grosseiro com ele?

 

- Com certeza estava com medo - disse Pavel docemente. -Vieram, prenderam-nos, levaram-nos... murmurou Pelágia com impaciência.

 

Restava-lhe o filho. O seu coração acalmou-se um pouco, enquanto o seu pensamento tentava compreender aquilo que acabava de se passar.

 

- Ele riu-se de nós, ameaçou-nos...

 

- Basta, mãe! - disse Pavel súbita e resolutamente. - Ajuda-me a arrumar isto tudo.

 

Chamava-lhe mãe e tratava-a por tu, como só fazia quando se sentia muito próximo dela. A mãe fez um gesto na sua direcção, olhou-o nos olhos e perguntou muito baixo:

 

- Para ti, foi uma humilhação?

 

- Sim! É duro... preferia que me tivessem levado também. Pareceu à mãe ver lágrimas nos olhos de Pavel, e para o consolar, sentindo confusamente o sofrimento dele, disse com um suspiro:

 

- Deixa estar. Hão-de vir prender-te também.

 

- Sim.

 

Depois de uma pequena pausa, disse ainda com tristeza:

- Como és rude, meu Pavlucha. Podias ao menos consolar-me, mas não. Eu digo coisas horríveis, e tu respondes coisas mais horríveis ainda.

 

Ele olhou-a, aproximou-se dela, e disse com doçura:

 

- Não sou capaz, mãe. Tens de te acostumar a isso.

 

Ela suspirou e ficou em silêncio. Em seguida, contendo um estremecimento de terror, disse:

 

- Será que eles torturam as pessoas? Que lhes rasgam a carne, que lhes quebram os ossos? Quando penso nisso, Pacha, meu querido, é horrível!

 

- Eles torturam a alma, e isso ainda é pior, com as suas mãos sujas...

 

No dia seguinte souberam que tinham sido detidos Bukhine, Samoilov, Somov e mais cinco. À tardinha chegou Theo Mazine a correr. Tinham feito uma busca também em sua casa. Estava contente, sentia-se um herói.

 

- Tiveste medo, Thep? - perguntou a mãe.

 

- Tive medo que o oficial me batesse. Era gordo, de barba preta e patilhas, e sobre o nariz trazia, uns óculos de lentes escuras, parecia que não tinha olhos. Gritava, batia com os pés no chão, "hãs-de apodrecer na prisão", dizia-me. A mim nunca me bateram, nem o meu pai nem a minha mãe, sou filho único, eles gostavam de mim.

 

Por um momento fechou os olhos, apertou os lábios, puxou o cabelo com um gesto rápido das mãos e, olhando para Pavel com os olhos vermelhos, disse:

 

- Se alguma vez me baterem, cravo-me neles como uma faca, e desfaço-os com os dentes. Será melhor que me matem logo.

 

- És tão fraco, tão frágil! - exclamou Pelágia. - Como poderias lutar contra eles?

 

- Luto, sim! - respondeu Theo entre dentes. Quando saiu, a mãe disse a Pavel:

 

- Este vai ser o primeiro a fraquejar. Pavel ficou em silêncio.

 

Momentos depois a porta da cozinha abriu-se devagar, e entrou Rybine.

 

- Boa noite - disse ele sorrindo. - Bom, aqui estou eu outra vez. Ontem fui forçado a vir, mas hoje venho de minha livre vontade. - Apertou vigorosamente a mão de Pavel, e pousou uma mão no ombro da mãe. - Não me ofereces um pouco de chá?

 

Pavel examinou em silêncio o seu rosto largo e bronzeado, de barba espessa e olhos sombrios. Os seus olhos tranquilos pareciam querer dizer alguma coisa importante.

 

Pelágia foi até à cozinha preparar o samovar. Rybine sentou-se, pousou os cotovelos sobre a mesa, e envolveu Pavel com o seu olhar negro.

 

- Pois é isso mesmo... - disse ele como se estivesse retomando uma conversa interrompida. - Tenho de falar-te com franqueza. Há muito tempo que tenho vindo a observar-te. Somos quase vizinhos. Tenho reparado que recebes muita gente, mas ninguém se embebeda, nem fazem escândalos. Isto é a primeira coisa. Quando as pessoas não fazem barulho, os vizinhos estranham, não é verdade? Bom, as pessoas também falam de mim, porque vivo sozinho.

 

Falava gravemente, mas com desenvoltura. Com a sua mão morena ia cofiando a barba, e os seus olhos olhavam fixamente os de Pavel.

 

- Falam muito de ti. Os meus patrões chamam-te herege, porque não frequentas a igreja. Eu também não vou lá. Além disso há essa história dos panfletos que apareceram por aí. És tu que estás por detrás disso?

 

- Sim.

 

- Mas tu... - exclamou a mãe alarmada, vinda da cozinha. - Não és tu sozinho!

 

Pavel sorriu, e Rybine também.

 

- Bom - disse este último.

 

A mãe, um pouco aborrecida por não darem importância às suas palavras, fungou ruidosamente e voltou para a cozinha.

 

- Os folhetos foram uma boa ideia, espevitam as pessoas. Escreveram dezanove?

 

- Sim.

 

- Li-os todos. Bem, houve uma ou outra coisa que não compreendi, mas isso não tem importância, porque quando um homem fala demasiado há palavras que não servem para nada.

 

Rybine sorriu, os seus dentes eram brancos e fortes.

 

- Houve depois a busca. Foi o que me predispôs a vosso favor. Tu, o Ucraniano e Nikolai comportaram-se...

 

- Mostraram uma grande firmeza. Como se tivessem dito: "Excelência, faça o seu trabalho, que nós faremos o nosso." O Ucraniano é um bom rapaz. Ouvi muitas vezes a forma como fala dentro da fábrica, e tenho pensado:' "A este, não vão conseguir vergá-lo; só a morte poderá vencê-lo. Tem peito." Acreditas, Pavel?

 

- Sim - disse o jovem acenando com a cabeça.

 

- Bom... Olha, tenho quarenta anos, o dobro da tua idade, e desta vida conheço vinte vezes mais cio que tu. Fui soldado durante mais de três anos, fui casado duas vezes, a minha primeira mulher morreu, a segunda abandonei-a. Estive no Cáucaso, conheço os "doukhobors..". julgam-se os senhores da vida, meu filho, mas não o são...

 

A mãe escutava com avidez aquelas palavras firmes. Estava satisfeita por ver que um homem maduro vinha junto do seu filho e lhe falava com tanta sinceridade, e parecia-lhe que o filho o estava tratando com alguma frieza. Por isso, para disfarçar esta impressão, perguntou a Rybine:

 

- Queres comer alguma coisa, Mikhail?

 

- Obrigado, mãezinha, já jantei... Então, Pavel, tu achas que a vida não é o que deveria ser?

 

Pavel levantou-se e começou a passear pelo quarto com as mãos atrás das costas.

 

- Não, a vida é boa. Veja, foi ela quem o trouxe a minha casa de coração aberto. Aos poucos, vai-nos unindo. Trabalhamos a vida inteira, e virá um tempo em que nos unirá a todos. É injusta, dura para nós, mas também é ela que nos abre os olhos, nos mostra o seu sentido amargo, e nos mostra como apressar a marcha dos acontecimentos.

 

- É verdade! - interrompeu Rybine. - É preciso renovar o homem. Se tem sarna, leva-se aos banhos, lava-se, veste-se-Lhe roupa limpa, e ele cúra-se. Não é verdade? Mas como se pode lavar um homem por dentro? Esse é o problema.

 

Pavel começou a falar, com calor e energia, das autoridades, da fábrica, da forma como os operários defendiam os seus direitos noutros países. Por vezes, Rybine batia na mesa com os nós dos dedos em sinal de assentimento, mas nem uma só vez gritou "é isso mesmo".

A certa altura riu um pouco e disse com suavidade:

 

- Tu és jovem, não conheces a humanidade.

 

- Não falemos de velhice nem de juventude. Vejamos antes quais são as ideias mais justas.

 

- Pensas então que também acerca de Deus fomos enganados? É isso, eu também creio que a religião que nos ensinaram não é a verdadeira.

 

Neste momento a mãe interveio. Quando o seu filho falava de Deus e de tudo aquilo que, estando ligado à sua fé, era para ela querido e sagrado, procurava sempre o olhar de Pavel, para, sem uma palavra, lhe pedir que não ferisse o seu coração com manifestações brutais de incredulidade. Atrás do cepticismo do filho, ela julgava detectar alguma fé, e isso tranquilizava-a. "Como seria possível que não compreendesse o pensamento do seu próprio filho?", perguntava-se. Imaginava que seria desagradável e ofensivo para Rybine, um homem de idade madura, escutar os discursos de Pavel, mas quando Rybine lhe dirigiu aquela pergunta não pôde conter-se, e disse, breve mas firmemente:

 

- Com respeito ao Senhor, vocês deviam ter mais cuidado. Vocês façam como entenderem...

 

Tomou alento e recomeçou ainda com mais veemência:

 

- Uma velha como eu, se lhe tiram o seu Deus, onde irá ela buscar forças para suportar os seus desgostos?

 

Os seus olhos encheram-se de lágrimas. As suas mãos tremiam-lhe enquanto lavava a loiça.

 

- Não compreendeste, mãe - disse Pavel docemente.

 

- Perdoa-me, mãezinha - acrescentou Rybine com voz lenta e expressiva. Olhou para Pavel, depois sorriu e disse:

- Tinha esquecido que já és muito velha para te tirarem as verrugas...

 

- Eu não me referia - prosseguiu Pavel - ao Deus bom e misericordioso em que tu acreditas mas a um outro Deus de que os popes se servem para nos ameaçarem como se fosse um cacete. Um Deus em nome do qual nos querem submeter a todos à vontade cruel de uns poucos.

 

- Sim, é isso, isso mesmo - gritou Rybine batendo na mesa. - falsificaram-nos o nosso Deus. Tudo, aliás, o que tomam nas suas mãos, é para ser utilizado contra nós. Lembras-te, mãezinha? Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, por isso Deus se parece com o homem, e o homem se parece com Deus. Mas nós não nos parecemos com Deus, parecemo-nos mais com animais. Aquilo que nos mostram na igreja não passa de um espantalho. Temos de renovar Deus, mãezinha, purificá-lo! Vestiram-no de mentiras e de calúnias e desfiguraram-lhe o rosto para nos matarem a alma...

 

Falava baixo, mas cada palavra que pronunciava caía sobre a cabeça da mãe como uma pancada violenta que a deixava aturdida. E aquele rosto largo assustava-a, rodeado por aquela barba negra. Era-lhe impossível suportar o brilho sombrio daqueles olhos, que fazia despertar uma dolorosa angústia no seu coração.

 

- Não, prefiro ir-me embora! - disse ela abanando a cabeça. - Ouvir'essas coisas... é superior às minhas forças!

 

E fugiu para a cozinha, enquanto Rybine exclamava:

 

- Estás a ver, Pavel?! Não é a cabeça mas o coração que dita os actos do ser humano. O coração é o lugar do homem onde nunca ninguém poderá penetrar jamais.

 

- Somente a razão poderá libertar o homem - sentenciou Pavel.

 

- A razão não incute coragem - exclamou Rybine numa voz confiante. - É o coração que nos incute coragem, e não a razão. É isso.

 

A mãe despiu-se e deitou-se sem fazer as suas orações. Tinha frio, sentia-se desconfortável. E Rybine, que a princípio lhe tinha parecido tão sereno, tão sensato, despertava agora a sua hostilidade.

 

"Herege! Agitador,..", pensava, enquanto ouvia a sua voz.

 

"Tinha de vir mais este!"

 

E ele ia falando, seguro e tranquilo:

 

- Um lugar santo não deve permanecer vazio. A nossa alma é um ponto sensível. É a morada de Deus. Se Ele a abandona, formar-se-á uma ferida. É preciso criar uma nova fé, Pavel, uma fé num Deus que seja amigo dos homens.

 

- Aquilo que Cristo foi - exclamou Pavel,

 

- Cristo não tinha uma vontade firme. "Afasta de mim este cálice", disse. Reconhecia César. Deus, que é todo poder, não pode aceitar o poder de um homem sobre os outros. Dentro da sua alma não faz divisões, não diz: "Isto é divino, isto é humano." Mas Cristo admitia o comércio, admitia o matrimónio. E amaldiçoou a figueira, foi injusto. Que culpa tinha ela de ser estéril? Se a alma não dá bons frutos, não é culpa dela. Fui eu que semeei o mal que existe em mim? Ora aí está!

 

As vozes dos dois homens não deixavam de se fazer ouvir no quarto, entrelaçando-se e combatendo como num jogo animado. Pavel andava de cá para lá, o chão cedia sob os seus passos. Quando falava, todos os outros sons se fundiam no da sua voz, e quando Rybine replicava no seu tom grave e tranquilo, ouvia-se o tiquetaque do relógio e os estalidos secos do gelo que, com as suas garras afiadas, arranhava as paredes da pequena casa.

 

- Eu sou fogueiro, e vou explicar-te isto à minha maneira: Deus é como o fogo. É isso mesmo. Vive no coração. Foi Ele próprio quem o disse. Deus é o Verbo... e o Verbo é o espírito.

 

- A razão! - repetiu Pavel, obstinadamente.

 

- É isso mesmo, o que significa que Deus está no coração e na razão, mas não na igreja. A igreja é o túmulo de Deus...

 

A mãe adormeceu e não ouviu Rybine sair.

 

Começou a aparecer com frequência, e se lá estava algum dos camaradas de Pavel, o fogueiro sentava-se num canto e guardava silêncio dizendo apenas de quando em vez:

 

- Aí está! É isso mesmo!

 

Uma vez lançou o seu olhar sombrio sobre a assistência, e disse com ar carrancudo:

 

- Falemos do presente. O futuro não sabemos como vai ser. É assim mesmo. Quando o povo for livre, ele mesmo verá o que é melhor para ele. Já lhe meteram na cabeça muitas coisas que não lhe interessavam. Já chega. Que veja por si mesmo como são as coisas. Poderá até não aceitar nada, a vida, as ciências, poderá acabar por concluir que todas as coisas foram dirigidas contra ele, até o Deus da igreja. A única coisa que se pode fazer é colocar-lhe todos os livros nas mãos, e ele será o único responsável pelos seus actos. Nem mais.

 

Mas quando encontrava apenas Pavel, imediatamente se lançavam em intermináveis, embora amigáveis, discussões. Quanto à mãe, escutava-os inquieta e seguia-os com o olhar, tantando compreender aquilo que diziam. Parecia-lhe, por vezes, que tanto o mujik de ombros largos e barba negra como o seu filho, forte e esbelto, se deixavam levar por uma espécie de cegueira. Lançavam-se de um lado para o outro, procurando uma solução, agarravam os objectos, agitavam-nos nas suas mãos vigorosas e rudes, mudavam-nos de um sítio para outro e deixavam-nos cair no chão para depois os pisarem. Esbarravam nas coisas, tacteavam-nas, afastavam-nas, e tudo isto sem perderem a fé e a esperança.

 

Tinham-na acostumado a ouvir uma quantidade de palavras, terríveis pela sua franqueza e pela sua audácia. Estas palavras já não a feriam com a violência da primeira vez, e contra elas tinha já construído as suas próprias defesas. Algumas vezes, por detrás das frases com que negavam Deus, Pelágia sentia que existia uma sólida fé. Sorria então, com doçura e indulgência. Quanto a Rybine, se continuava a não simpatizar com ele, também já não o detestava verdadeiramente.

 

Uma vez por semana ia à prisão levar roupa lavada e alguns livros ao Ucraniano. De uma das vezes conseguiu autorização para o ver. Quando voltou, comentou enternecida:

 

- Continua o mesmo que era aqui em casa. Amável com toda a gente. Todos brincam com ele. Tuclo aquilo é duro e penoso, mas ele não se queixa.

 

- Tem de ser assim - disse Rybine -, vivemos na dor como vivemos na nossa pele, respiramo-la, é como a roupa que vestimos. Nem vale a pena uma pessoa lamentar-se. Algumas pessoas têm os olhos fechados, mas há outras que os fecham voluntariamente, isso é que é a verdade. Quando as pessoas são estúpidas, o que é que se pode fazer?

 

A pequena casa cinzenta dos Vlassov atraía cada vez mais a atenção do bairro. À sua volta havia todo um interesse no qual existia muita desconfiança, prudência e inconsciente hostilidade, mas aos poucos e poucos ia nascendo também um sentimento de curiosidade confiante. Por vezes aparecia um desconhecido. Olhava em volta com ar circunspecto, e dizia a Pavel:

 

- Bem, meu rapaz, tu que lês tantos livros, deves conhecer as leis, por isso vê lá como é, explica-me...

 

E relatava a Pavel alguma injustiça cometida pela polícia ou pela administração da fábrica. Nos casos mais complicados Pavel escrevia um bilhete e remetia-os para o homem da cidade, um advogado seu conhecido. Quando o caso era mais simples tentava ele próprio resolver-lhes o problema.

 

A pouco e pouco ia crescendo um sentimento de respeito em redor deste rapaz sério que de tudo falava com simplicidade e audácia, tudo observava e escutava atentamente, encarava como seus os problemas que lhe expunham, e conseguia ver o fio interminável que a todos unia por milhares de nós apertados.

 

O prestígio de Pavel cresceu mais ainda depois da questão do "kopek do pântano."

 

Por detrás da fábrica estendia-se um vasto pântano plantado de abetos e bétulas, rodeando-a quase por completo, como um anel de podridão. No Verão soltava espessos vapores amarelados e nuvens de mosquitos que se espalhavam pelo subúrbio, semeando febres. O pântano era propriedade da fábrica, e o novo director, querendo tirar partido disso, concebeu o projecto de o drenar, aproveitando para extrair a turfa. Esta operação, segundo explicou aos operários, tornaria mais salubre o lugar e melhoraria as condições de vida de todos. Deu então ordens para que, em cada rublo dos seus salários, fosse descontado um kopek para a dita obra.

 

Os operários indignaram-se. Irritava-os sobretudo que os empregados de nível mais elevado tivessem ficado isentos deste novo imposto.

 

No sábado em que a decisão do director foi dada a conhecer, Pavel estava doente. Não tinha ido trabalhar e não estava ao corrente de nada. No dia seguinte, cerca do meio-

 

-dia, o fundidor Sizov, um velho que todos respeitavam, e o serralheiro Makhotine, um homem alto e irascível, vieram contar-lhe o sucedido.

 

- Nós, os mais velhos, reunimo-nos - disse tranquilamente Sizov -, discutimos o assunto, e os camaradas mandaram-nos perguntar-te, já que és um homem instruído, se existe alguma lei que permita ao director acabar com os mosquitos à custa dos nossos kopeks.

 

- Não sei se te lembras - disse Makhotine, fazendo girar os olhos oblíquos -, vai para quatro anos, os desavergonhados recolheram dinheiro para fazer umas instalações sanitárias. Juntaram três mil e oitocentos rublos... que é feito deles? E quanto às casas de banho, nem uma!

 

- Pavel explicou que este desconto era injusto, e referiu os lucros enormes que dele adviriam para a fábrica. Depois saíram os dois. de semblante carregado. A mãe acompanhou-os à porta, e em seguida disse com um sorriso:

 

- Vês, Pavel? Até os velhos vêm aconselhar-se contigo. Sem responder, o jovem, preocupado, sentou-se à mesa e

 

pôs-se a escrever. Alguns minutos mais tarde, disse-lhe:

 

- Faça-me um favor, mãe. Vá até à cidade e entregue este papel...

 

- É perigoso?

 

- Sim. É preciso ir ao local onde imprimem o nosso jornal. É indispensável que esta história do kopek apareça já no próximo número.

 

- Está bem, está bem! - disse ela. - Vou já.

 

- Era a primeira missão que o filho lhe confiava. Estava feliz por ele lhe revelar do que se tratava.

 

-Já compreendi, Pavel - disse ela enquanto se vestia. - É um roubo, nem mais nem menos. Como se chama o homem que imprime o jornal? Igor Ivanovitch?

 

Regressou já tarde, de noite, cansada mas contente.

 

- Encontrei Sachenka - disse ela a Pavel. - Manda-te cumprimentos. E esse Igor Ivanovitch é muito simpático, está sempre a brincar.

 

- Ainda bem que gostas deles - disse Pavel com doçura.

 

- Que gente tão simples, meu filho! Quando as pessoas são naturais, é tudo muito melhor. E todos eles gostam de ti.

 

Na segunda-feira Pavel também não foi trabalhar. Tinha uma enxaqueca. À hora do almoço veio Theo Mazine numa corrida, agitado e feliz. Quando recuperou o fôlego, disse:

 

- Vem, está toda a fábrica em pé de guerra. Mandaram-me buscar-te. Sizov e Makhotine dizem que tu és capaz de expor o problema melhor que ninguém. Se visses o que está a acontecer!

 

Pavel vestiu-se sem dizer uma palavra.

 

- As mulheres também lá estão, isto vai dar um sarilho!

 

- Eu também vou - disse a mãe. - O que é que está a acontecer? Também vou!

 

- Vem - disse Pavel.

 

Caminharam em silêncio, rapidamente. A mãe desfalecia de emoção, e sentia que algo de grave se ia passar. À porta da fábrica, um grupo de mulheres gritava e protestava. No momento em que os três conseguiram entrar no pátio viram-se rodeados por uma multidão compacta, negra, que vociferava excitada. A mãe viu que todas as cabeças estavam viradas para o mesmo lado, na direcção do muro da oficina das forjas. Aí, em cima de um monte de ferros, e destacando-se do fundo de ladrilho vermelho, gesticulando, estavam Sizov, Makhotine, Vialov e outros cinco ou seis operários respeitados, de idade madura.

 

- Vem aí Vlassov! - ouviu-se alguém gritar.

 

- Vlassov? Que venha para aqui...

 

- Silêncio! - gritaram ao mesmo tempo vozes dispersas. Algures, não muito distante, soou a voz monótona de

 

Rybine:

 

- Não é por causa de um kopek que devemos ir à luta, é pela justiça. O que importa não é o nosso kopek, que não é maior que os outros, mas é mais pesado. Contém mais sangue humano que um rublo de um director. E não é o kopek que nos importa, mas sim o sangue e a verdade. É isso mesmo!

 

- Certo! Bravo, Rybine!

 

- O fogueiro tem razão.

 

- Aqui está Vlassov!

 

Abafando o barulho surdo das máquinas, os suspiros profundos do vapor e o gorgolejar das canalizações, as vozes juntavam-se num torvelinho de sons tumultuosos. De todos os lados chegavam pessoas que agitavam os braços e se excitavam umas às outras com palavras febris e violentas. A revolta que sempre dorme nos peitos cansados, despertava agora procurando uma forma de se libertar. A cólera voava, triunfante, estendendo cada vez mais as suas asas sombrias, apoderando-se das pessoas com uma força crescente, levantando-os e fazendo-os embater uns contra os outros, animando-os de ardor e raiva. Sobre a multidão pairava uma nuvem de fuligem e pó, os rostos congestionados estavam cobertos de um suor que escorria sobre as faces como lágrimas negras, os olhos cintilavam, os dentes reluziam.

 

Pavel colocou-se ao lado de Sizov e Makhotine, e ouviu-se a sua voz:

 

- Camaradas!

 

A mãe observou que o rosto do seu filho estava pálido e que os seus lábios tremiam. Sem pensar, ia abrindo caminho por entre a multidão, e assim se ia aproximando. Diziam-lhe asperamente: "Onde é que te queres meter?" Mas isso não a detinha. Com os ombros e os cotovelos ia afastando as pessoas, até conseguir aquilo que desejava, que era colocar-se junto dele.

 

Quando Pavel soltou aquela palavra, na qual punha um significado tão profundo e grave, sentiu na sua garganta o espasmo da alegria do combate. Estava invadido pelo desejo de lançar à multidão o seu coração, que ardia num sonho abrasador de verdade e justiça.

 

- Camaradas! - repetiu, pondo nesta palavra toda a sua alegria e entusiasmo. - Somos nós que construímos as igrejas e as fábricas, que forjamos as correntes e fundimos as moedas. Somos nós a força vital que a todos dá o pão e a alegria, do berço ao túmulo...

 

- É verdade! - gritou Rybine.

 

- Sempre, e em todo o lado, somos os primeiros quando se trata de trabalhar, e os últimos quando se trata de gozar a vida. Quem se preocupa connosco? Quem procura o nosso bem? Quem nos olha como seres humanos? Ninguém!

 

- Ninguém! - respondeu uma voz como se fosse um eco. De novo senhor de si, Pavel começou a falar com mais

 

simplicidade e mais calma. Lentamente, a multidão ia-se aproximando dele, aglomerando-se como um corpo indistinto de múltiplas cabeças. Olhavam-no com centenas de olhos atentos, sorviam as suas palavras.

 

- Não conseguiremos melhorar a nossa sorte enquanto não nos sentirmos camaradas, enquanto não formarmos uma família, unidos pela amizade e pelo mesmo forte desejo: o desejo de lutarmos pelos nossos direitos.

 

- Vamos ao que interessa! - gritaram perto da mãe algumas vozes rudes.

 

- Não interrompam! - disseram alguns.

 

Os rostos, negros e carregados, pareciam desconfiar. Apenas um ou outro olhar pensativo se fixava em Pavel.

 

- Ele é socialista, mas não é parvo! - disse alguém.

 

- E não tem medo! - replicou um mocetão vesgo, empurrando a mãe pelos ombros.

 

- É hora, camaradas, de compreendermos que ninguém nos ajudará se não formos nós próprios. Um por todos e todos por um, tem de ser essa a nossa lei, se quisermos vencer o inimigo.

 

- Ele tem razão, rapazes! - gritou Makhotine.

 

E com um gesto largo sacudiu no ar a sua mão fechada.

 

- Tragam aqui o director - prosseguiu Pavel.

 

Parecia que um furacão se tinha abatido sobre a multidão. Balançavam e gritavam em coro:

 

- O director! O director!

 

- Vamos mandar-lhe uma delegação.

 

Pelágia estava na primeira fila, e cheia de orgulho olhava para cima, para o seu filho. Ali estava Pavel, entre os operários mais velhos e mais respeitados. Todos o escutavam e apoiavam. Ao contrário de alguns outros, Pavel não perdia as estribeiras nem praguejava, e isso também a enchia de satisfação.

 

As exclamações entrecortadas, as imprecações e as invectivas choviam como granizo sobre um telhado de zinco. Pavel olhava para baixo para a multidão, e parecia procurar alguma coisa.

 

- Delegados!

 

- Sizov!

 

- Vlassov!

 

- Rybine! É duro de roer.

 

De repente, ouviram-se algumas exclamações menos sonoras:

 

- Vem aí!

 

- O director...!

 

A multidão abriu-se, deixando passar um homem alto com uma barbinha pontiaguda na cara larga.

 

- Com licença - dizia, afastando os operários do seu caminho fazendo um gesto com as mãos, mas sem lhes tocar.

 

- Olhava para todos os lados, e com o olhar perscrutador de um experiente dominador de homens, estudava as fisionomias dos trabalhadores. Passava, alguns descobriam-se, inclinavam-se, enquanto ele continuava a andar sem responder a estas manifestações de respeito, semeando à sua passagem silêncio e emoção. Sentia-se já no ar, debaixo dos sorrisos embaraçados dos operários e do tom surdo das exclamações, um arrependimento de crianças conscientes de terem feito travessuras.

 

Passou na frente da mãe,-deitando-lhe um olhar severo, e deteve-se perante o monte de pedaços de ferro. Estenderam-lhe de cima uma mão, mas ele recusou-a. Subiu com um impulso vigoroso e flexível, e colocou-se entre Pavel e Sizov.

 

- Que significa esta reunião? Por que motivo abandonaram o vosso trabalho?

 

Por alguns segundos fez-se silêncio. As cabeças ondulavam como uma seara. Sizov agitou o boné no ar, encolheu os ombros e baixou a cabeça.

 

- Respondam! - disse o director.

 

- Pavel colocou-se junto dele, e designando Sizov e Rybine, disse com voz forte:

 

- Nós os três fomos escolhidos pelos nossos camaradas para falar consigo em nome de todos, e queremos que volte atrás com a decisão de reter um kopek...

 

- Porquê?

 

- Consideramos injusto o imposto - disse Pavel com voz sonora.

 

- Quer dizer que no meu projecto de secar o pântano, vocês só vêm o desejo de vos explorar, e não a vontade de melhorar as vossas condições de vida? É isso?

 

- Sim - respondeu Pavel

 

- Você também? - perguntou o director a Rybine.

 

- Somos todos da mesma opinião - respondeu este.

 

- E você, amigo? - perguntou o director dirigindo-se a Sizov.

 

- Eu também lhe peço que nos deixe o nosso kopek. Baixando de novo a cabeça, Sizov fez um sorriso de atrapalhação.

 

O director percorreu a multidão lentamente com o olhar, e encolheu os ombros. Em seguida, olhou Pavel com olhar penetrante, e disse-lhe:

 

- Você parece um homem instruído. Não compreende a utilidade da medida que tomei?

 

- Se a fábrica secar o pântano à sua própria custa estaremos todos de acordo.

 

- A fábrica não faz filantropia - disse secamente o director. Em seguida ordenou: - Vão todos trabalhar imediatamente!

 

E começou a descer do monte de ferro, tacteanclo cada passo com a ponta do sapato, e sem olhar para ninguém. Um rumor de descontentamento percorreu a multidão.

 

- O quê? - disse o director, detendo-se.

 

Calaram-se todos. Apenas, do meio dos trabalhadores, se ouviu ao longe uma voz:

 

- Vai tu!

 

- Se dentro de um quarto de hora não estiver cada um no seu posto de trabalho, faço aplicar multas a todos - respondeu o director, fazendo ressoar as palavras como pancadas de um martelo.

 

Retomou o seu caminho através da multidão, mas atrás dele surgiu um murmúrio surdo, e à medida que se afastava o rumor das vozes crescia.

 

- Valeu a pena falar com ele!

 

- É esta a importância que dão aos nossos direitos!... Estamos bem arranjados! Gritavam a Pavel:

 

- Então, advogado, o que é que fazemos agora?

 

- Lá falar, falaste tu muito bem, mas ele esteve cá e não se resolveu coisa alguma.

 

- E agora, Vlassov, o que é que havemos de fazer?

 

Os apelos tornavam-se mais insistentes. Pavel declarou:

 

- Camaradas, proponho que abandonemos o trabalho até que desistam de nos descontar o kopek.

 

A excitação subiu então de tom:

 

- Tomas-nos por idiotas?

 

- A greve? -;

 

- Por um kopek?

 

- Claro, declaramos a greve!

 

- Punham-nos a todos na rua!

 

- E quem viria fazer o nosso trabalho?

 

- Não faltará quem!

 

- Sim, os judas!

 

Pavel desceu e colocou-se ao lado da mãe. À sua volta o rumor tinha recomeçado. Discutiam uns com os outros, agitados, aos gritos.

 

- Não conseguirás declarar a greve - disse Rybine aproximando-se de Pavel. - O povo quer os seus direitos, mas tem muito medo. Talvez não conseguisses nem trezentos que se pusessem ao teu lado. Não se pode levantar um monte de estrume tão grande com uma forquilha só.

 

Pavel não dizia nada. Olhava o rosto enorme e negro da multidão que se agitava e o olhava, à espera que ele fizesse alguma coisa. Parecia-lhe que as suas palavras se haviam desvanecido sem deixar vestígios naqueles homens, como um ligeiro chuvisco caindo sobre uma terra extenuada por uma longa seca.

 

Voltou para casa triste e cansado. A mãe e Sizov vinham atrás dele. A seu lado caminhava Rybine, e a voz dele zumbia-lhe ao ouvido.

 

- Falas bem, mas não vais direito ao coração, é isso. E é o fundo dos corações que é preciso incendiar. Não conseguirás conquistá-los através da razão. A razão é um sapato demasiado fino, demasiado estreito para os pés desta gente.

 

Sizov dizia a Pelágia:

 

- É tempo de nós, os velhos, irmos para o cemitério. É um novo povo, aquele que agora se levanta. Como é que nós vivíamos? Arrastávamo-nos, de joelhos, saudávamo-los até tocar a terra com o rosto. Mas hoje... eu não sei se os jovens ganharam consciência ou se estão a errar mais ainda do que nós, mas não são os mesmos, isso é fácil de ver. Falam com o director como com um igual, sim... Até à vista, Pavel Mikhailovitch. Fazes bem, rapaz, em tomar a defesa dos teus. Com a ajuda de Deus, pode ser que encontres maneira de resolver tudo isto. Oxalá! E foi-se embora.

 

- Pois então vai lá para o teu cemitério! - resmungou Rybine. - Vocês, nesta altura, já nem são homens, são betume que só serve para tapar frestas. Viste, Pavel, aqueles que gritavam que te nomeassem delegado? Eram os mesmos que diziam que eras um socialista e um desordeiro. Os mesmos.

 

- Acabará por ser despedido da fábrica! - dizem. - Pois que o despeçam, é o que ele merece.

 

- Têm razão, do seu ponto de vista.

 

- Os lobos também têm razão quando se devoram entre si.

 

O rosto de Rybine estava sombrio, e a sua voz tremia de forma desusada.

 

- As pessoas não crêem em palavras nuas. Há que impregná-las de sangue e sofrimento...

 

Durante todo o dia Pavel esteve triste, abatido, cheio de uma estranha inquietude. Os seus olhos brilhantes pareciam procurar alguma coisa. A mãe observava-o e perguntou alarmada:

 

- Que tens, Pavel?

 

- Dói-me a cabeça - disse ele pensativo.

 

- Deita-te. Vou chamar o médico. Ele olhou-a, e apressou-se a responder:

 

- Não, não é preciso. E logo, em voz baixa:

 

- Sou jovem, falta-me segurança, é apenas isso. Não confiaram em mim, não me seguiram, e isso aconteceu porque eu não soube falar-lhes com realismo. É duro... e é humilhante para mim.

 

A mãe olhou o seu rosto sombrio, e para o consolar disse-lhe com doçura:

 

- Tens de aprender a esperar. Não te compreenderam hoje, hão-de compreender-te amanhã.

 

- Deviam ter-me compreendido hoje!

 

- Claro, já se sabe, se até eu fui capaz de entender a tua verdade!

 

Pavel aproximou-se dela:

 

- Mas a mãe é uma mulher maravilhosa!

 

E voltou-se. Ela estremeceu como se estas palavras a tivessem queimado, levou a mão ao coração e afastou-se levando consigo, como algo precioso, as palavras meigas do seu filho.

 

Nessa noite, quando ela já dormia e Pavel, deitado, lia, voltaram os polícias. Começaram de novo a sua busca, furiosamente, por toda a parte, no pátio, no sótão. O oficial de cara amarelada comportou-se como da primeira vez. Desagradável, trocista, comprazendo-se em escarnecer e tentando feri-los no coração. A mãe mantinha-se silenciosa, sentada num canto, sem desviar os olhos do filho. Este tentava dominar o seu nervosismo, mas o riso do oficial fazia-o contrair os dedos de uma forma estranha, e ela compreendia que lhe era difícil conter-se, não responder, que lhe era penoso suportar aquela humilhação. Pelágia estava menos assustada do que da primeira vez. Sentia um imenso ódio contra estes homens vestidos de cinzento e com esporas nas botas, e este ódio absorvia o seu medo.

 

Pavel conseguiu segredar-lhe:

 

- Vão levar-me...

 

Ela, baixando a cabeça, respondeu muito baixo:

 

- Compreendo...

 

Compreendia, sim. Iam levá-lo para a prisão porque naquele dia tinha falado aos operários. Mas todos concordavam com aquilo que ele havia dito, e tomariam a sua defesa. Não demorariam a soltá-lo.

 

Teria querido estreitá-lo nos braços e chorar, mas a seu lado o oficial olhava-a com atenção. Os seus lábios estremeciam, o seu bigode agitava-se. Pelágia sentiu que aquele homem esperava lágrimas, lamentos, súplicas. Reunindo todas as suas forças, esforçando-se por não dizer uma palavra, segurou a mão do filho. Depois, retendo a respiração, murmurou lentamente e em voz muito baixa:

 

- Até breve, Pavel... Tens tudo o que necessitas? - Sim, não te preocupes.

 

- Deus te acompanhe.

 

Quando o levaram, ela sentou-se num banco, fechou os olhos e soluçou mansamente. Com as costas encostadas à parede, como noutro tempo fazia o seu marido, contraída pela angústia e pela humilhante consciência da sua impotência, com a cabeça baixa-, por longo tempo soluçou, vertendo no seu gemido monocórdico toda a dor do seu coração ferido. Na sua frente, como uma mancha imóvel, via o rosto macilento de bigodes ralos e olhos franzidos que expressavam satisfação. Sentia como se tivesse uma bola negra a apertar-lhe o peito, sentia uma cólera exasperada contra aquelas pessoas que tiravam um filho a uma mãe apenas porque procurava a verdade.

 

Estava frio. A chuva batia com força nos vidros das janelas. Parecia-lhe ver, na noite, silhuetas cinzentas de braços compridos e rostos largos, vermelhos, sem olhos, que rondavam a casa, fazendo tilintar levemente as esporas.

 

"Se ao menos me tivessem levado também a mim...", pensava.

 

A sirene tocou imperiosamente chamando ao trabalho. O seu uivo era surdo, inseguro. A porta abriu-se perante Rybine. Enxugando com a mão as gotas de chuva da barba, perguntou:

 

- Levaram-no?

 

- Sim, malditos!

 

- É assim - disse Rybine com um sorriso irónico. - Em minha casa remexeram tudo, gritaram, procuraram por todo o lado, mas não acharam nada. De qualquer forma ofenderam-me. Quer dizer então que levaram Pavel! O director aponta, o polícia concorda, põem-se de acordo, e lá se vai mais um homem. Eles lá se entendem. Enquanto um vai explorando o povo o outro fá-lo calar com pancada.

 

- Vocês têm de fazer qualquer coisa pelo Pavel - disse a mãe erguendo-se. - Ele, aquilo que fez, fê-lo por vocês.

 

- E quem é que deve fazer alguma coisa por ele?

 

- Todos!

 

- Que ideia a sua! Nem pense nisso.

 

E foi-se embora com os seus passos pesados. As suas palavras, duras e despidas de esperança, aumentaram a angústia da mãe.

 

- E se lhe batem? Se o torturam?

 

Imaginou o corpo do seu filho desfeito com pancada, ferido, ensanguentado, e o terror veio pousar sobre o seu peito como uma laje fria, esmagando-o. Doíam-lhe os olhos. Não acendeu o lume, não preparou nada para comer, nem sequer o seu chá. Só à noite comeu um pedaço de pão. Quando se foi deitar pensou que nunca, em toda a sua vida, se havia sentido tão só. tão indefesa. Ao longo dos últimos anos tinha-se habituado a viver na esperança de alguma coisa importante que estaria para acontecer. À sua volta os jovens agitavam-se, barulhentos, cheios de entusiasmo, e perante os seus olhos tinha sempre o rosto sério do filho, o criador dessa vida inquieta, mas boa. Agora ele não estava, nada mais lhe restava.

 

O dia passou-se lentamente, seguiu-se-lhe uma noite de insónia, e outro dia ainda mais longo. Ela esperava que alguém viesse, mas isso não aconteceu. Caiu a tarde, veio a noite. Uma chuva glacial suspirava e retumbava ao longo das paredes, o vento soprava na chaminé. Alguma coisa se agitava no chão. A água gotejava do telhado, e a sua canção melancólica acompanhava estranhamente o tiquetaque do relógio. Parecia que a casa inteira vacilava, indiferente a tudo, mergulhada em angústia.

 

Bateram no vidro. Uma vez, duas...

 

Estava habituada a este sinal, que já não a assustava, mas desta vez teve um sobressalto de prazer. Um vago sentimento de esperança fê-la saltar da cama. Pôs um xaile pelos ombros e foi abrir a porta.

 

Entrou Samoilov, seguido de uma personagem com o rosto oculto pela gola levantada do casaco, e um gorro enterrado até aos olhos.

 

- Acordámo-la? - perguntou Samoilov, sem a cumprimentar. Ao contrário do que era seu hábito, tinha um ar sombrio e preocupado.

 

- Não estava a dormir - disse ela e, silenciosa, cravou nos visitantes uns olhos cheios de ansiedade.

 

O companheiro de Samoilov, com um pesado suspiro, rouco, tirou o gorro, estendeu à mãe uma larga mão de dedos curtos e disse-lhe cordialmente, como a uma velha amiga:

 

- Boa noite, mãezinha, não me reconhece?

 

- Você? - gritou Pelágia com uma súbita explosão de alegria. - Igor Ivanovitch!

 

- Em carne e osso - disse ele, inclinando a sua cabeça grande com os cabelos compridos como os de um pope.

 

Um sorriso franco iluminava-lhe o rosto redondo. Os seus pequenos olhos cinzentos envolviam a mãe com um olhar afectuoso e claro. Fazia lembrar um samovar, com o seu pescoço largo e os seus braços curtos. O seu rosto reluzia, ele respirava ruidosamente e qualquer coisa rouquejava no seu peito.

 

- Entrem, eu vou já vestir-me - disse a mãe.

 

- Precisamos de falar consigo - Samoilov parecia preocupado e olhava-a de soslaio.

 

Igor Ivanovitch entrou no quarto e disse:

 

- Esta manhã, Nikolai Ivanovitch, que a senhora conhece, saiu da prisão.

 

- Esteve preso?

 

- Dois meses e onze dias. Esteve com o Ucraniano e com Pavel, que lhe mandam saudades. O seu filho pede-lhe que não se inquiete, e que compreenda que, no caminho que escolheu, as nossas benévolas autoridades, às vezes, mandam-nos passar uns tempos de repouso na prisão. Agora, vamos ao que importa. Sabe quantas pessoas prenderam eles ontem?

 

- Não, há outros, para além de Pavel?

 

- Contando com ele, foram quarenta e nove - interrompeu tranquilamente Igor. E calculamos que acabarão por prender ainda mais uma dúzia. Este amigo aqui, por exemplo.

 

- Sim, a mim também - disse Samoilov com um ar sombrio.

 

Pelágia sentiu que respirava melhor. "Não está sói", pensou ela nura relâmpago. Quando acabou de se vestir, entrou no quarto e dirigiu às suas visitas um sorriso corajoso.

 

- Certamente não os terão presos muito tempo, se são tantos...

 

- É isso - disse Igor Ivanovitch. - E se conseguirmos confundi-los um pouco será ainda melhor. Trata-se do seguinte: Se deixamos neste momento de distribuir os nossos folhetos na fábrica, os malditos polícias tirarão do facto lamentáveis conclusões, e não deixarão de as utilizar contra Pavel e contra os seus camaradas na prisão.

 

- Como? - perguntou a mãe sobressaltada.

 

- É muito simples - disse Igor com suavidade. - Os polícias, às vezes, também são capazes de raciocinar. Pense: quando Pavel está presente, há folhetos e letreiros; quando Pavel não está presente, não há folhetos nem letreiros. O que significa isso? Que era Pavel quem os distribuía, não é? Então os polícias começarão a actuar. Eles gostam muito de ferrar os dentes numa pessoa até a reduzir a pó.

 

- Compreendo, compreendo, meu Deus, que podemos nós fazer?

 

Samoilov elevou o tom da voz.

 

- Os grandes porcos prenderam-nos a todos, ou quase, mas nós precisamos de continuar o nosso trabalho como antes, não só pela causa mas também para salvar os companheiros.

 

- Mas não temos ninguém que faça o trabalho - acrescentou Igor com um sorriso. - Temos óptima literatura, eu próprio a escrevi. O problema é como introduzi-la na fábrica.

 

- Agora revistam toda a gente à entrada - disse Samoilov.

 

A mãe compreendeu que alguma coisa era esperada dela, e apressou-se a perguntar:

 

- Então, o que é que eu tenho de fazer, e como? Samoilov deteve-se à porta, e perguntou:

 

- Pelágia Nilovna, conhece a vendedeira Maria Korsunova?

 

- Sim, e então?

 

- Fale com ela, ela pode passar a propaganda. A mãe fez com a mão um gesto negativo.

 

- Oh, não! É uma tagarela! Saber-se-ia que fui eu... que isto vem de minha casa, não, não...

 

Em seguida, iluminada por uma súbita ideia, disse baixo:

 

- Dêem-mos a mim. A mim! Eu cá me hei-de arranjar, encontrarei uma maneira... Pedirei à Korsunova que me tome como ajudante, porque preciso de trabalhar para comer. Olhem, irei também levar comida aos operários. Cá me hei-de arranjar.

 

Com as mãos sobre o peito apressou-se a prometer que faria tudo bem, sem se fazer notar, e concluiu triunfante:

 

- Eles verão que, embora Pavel não esteja com eles, a sua mão consegue, da prisão, chegar até eles. Eles vão ver!

 

Sentiram-se os três mais animados. Igor sorria e esfregava as mãos vigorosamente.

 

- Maravilhoso, mãe! Se soubesse o que isto significa... É simplesmente formidável!

 

- Se isto resultar, sentir-me-ei na prisão tão bem como se estivesse confortavelmente numa poltrona - disse Samoilov.

 

- É maravilhosa, mãezinha! - acrescentou Igor com a sua voz rouca.

 

A mãe sorriu. Tinha compreendido. Se as folhas continuassem a aparecer na fábrica, a direcção seria forçada a admitir que não era o seu filho quem as levava. Achando-se capaz de cumprir a tarefa, sentia-se estremecer de alegria.

 

- Quando for para junto de Pavel - disse Igor a Samoilov -, tem de lhe dizer que tem uma mãe extraordinária.

 

- Vê-lo-ei em breve - prometeu Samoilov esboçando um sorriso.

 

- Diga-lhe que farei o que for preciso. Quero que ele saiba disso.

 

- E se não o prenderem? - disse Igor, apontando para Samoilov.

 

- O que é que se há-de fazer? Paciência!

 

Os dois homens começaram a rir. Ela compreendeu a sua tolice, e riu-se também com uma gargalhada contida e embaraçada, um pouco maliciosa.

 

- Uma pessoa já tem os seus problemas, como é que vai pensar nos dos outros? - disse baixando a voz.

 

- É natural - exclamou Igor. - E voltando a Pavel, a senhora não se inquiete, nem esteja triste. Vai sair da prisão melhor do que estava quando para lá entrou. Lá uma pessoa pode descansar, ler... Quando uma pessoa está em liberdade não tem tempo para essas coisas. Eu, por exemplo, estive preso três vezes, e não me foi muito agradável, claro, mas para o coração e para o espírito foi-me muito útil.

 

- Você respira com dificuldade - disse ela olhando com simpatia aquele rosto ingénuo.

 

- Há razões para isso - explicou ele, levantando um dedo no ar. - Portanto, màezinha, estamos entendidos? Amanhã trazemos-lhe o material, e a máquina que vai aniquilar as trevas de há tantos séculos poderá de novo pôr-se em movimento. Viva a liberdade de palavra e o coração das mães! Entretanto, até à vista!

 

- Até à vista - disse Samoilov, apertando-lhe com força a mão. - Eu não tenho a mesma sorte, não posso contar à minha mãe uma palavra sequer de tudo isto.

 

- Um dia, todos compreenderão - disse Pelágia para o consolar.

 

Quando saíram, fechou a porta, ajoelhou-se no meio do quarto e começou a rezar, enquanto lá fora a chuva caía. Rezava sem palavras, unindo num só pensamento todos aqueles que, através de Pavel, tinham entrado na sua vida. Via-os passar entre ela e as santas imagens dos ícones, e eram todos tão simples, tão estranhamente próximos uns dos outros, e tão sós!

 

No dia seguinte, muito cedo, foi visitar Maria Korsunova. A vendedeira, sempre suja de gordura, e sempre barulhenta, acolheu-a com simpatia.

 

- Estás preocupada? - perguntou dando com a sua mão engordurada uma pancadinha no ombro de Pelágia. - Não te inquietes. Levaram-no... ora, não há mal nenhum nisso. Antigamente prendiam as pessoas quando roubavam, agora prendem-nas quando dizem a verdade. Talvez Pavel tenha dito alguma coisa que não devia, mas foi em defesa de todos, e todos compreendem isso, não te preocupes. Nem todos se atrevem a falar nisso, mas as pessoas honradas sabem-no muito bem. Queria ter ido a tua casa, mas sabes como é, não tenho tempo. Trabalho, faço o meu negócio, e hei-de morrer tão pobre como sempre fui. Os homens a quem dou o meu amor comem-me tudo. Devoram como baratas em migalhas de pão. Mal consigo juntar dez rublos, vem um qualquer desses hereges e num minuto mós suga. É uma desgraça ser mulher. Que nojo de vida! Viver sozinha já é duro... a dois é pior ainda.

 

- Vim pedir-te que me tomes como ajudante - disse Pelágia, interrompendo aquela catadupa de palavras.

 

- Como? - perguntou Maria. Em seguida, quando a sua amiga acabou de falar, baixou a cabeça em sinal de assentimento.

 

- Está bem, pode ser. Lembras-te de todas as vezes que me protegeste do meu marido? Pois bem, agora serei eu a proteger-te, a ti, da necessidade. Deviam ajudar-te todos, porque o teu filho está a sofrer por uma causa que diz respeito a todos. É um bom rapaz, todos são dessa opinião e se compadecem da sua sorte. Eu não creio que estas prisões vão trazer nada de bom à fábrica, não vês o que se está a passar? Há muito descontentamento, minha amiga. Os da direcção dizem: "mordemos o homem no calcanhar, não poderá caminhar muito mais." Mas o resultado é que, por cada dez que conseguiram calar, há centenas que estão encolerizados.

 

As duas mulheres puseram-se de acordo. No dia seguinte, à hora do almoço, Pelágia estava na fábrica com dois tachos de comida feita por Maria, enquanto esta, por sua vez, foi vender para o mercado.

 

Os operários imediatamente se aperceberam da presença da nova vendedeira de comida. Alguns aproximavam-se dela para a animar:

 

- Arranjaste trabalho, Pelágia Nilovna?

 

E consolavam-na, dizendo-lhe que Pavel em breve seria libertado. Outros dirigiam-se-lhe num tom pesaroso que alarmava o seu coração ferido. Outros ainda não poupavam as críticas à direcção e à polícia, e esta cólera encontrava na mãe um profundo eco. Também não faltavam aqueles que a olhavam com uma satisfação maldosa. O anotador Isaías Gorbov chegou mesmo a dizer-lhe entre dentes:

 

- Se eu fosse Governador, fazia enforcar o teu filho. Para ele aprender a não andar a desencaminhar o povo.

 

Esta ameaça odiosa deixou-a completamente gelada. Não respondeu a Isaías, limitou-se a olhar o seu rosto magro e coberto de sardas, suspirou e baixou os olhos.

 

O ambiente na fábrica era de agitação. Os operários reuniam-se em pequenos grupos, discutiam entre si a meia-voz, os capatazes, preocupados, rondavam por todo o lado, e a cada momento havia quem praguejasse e soltasse palavrões irritados.

 

Pelágia viu passar junto dela Samoilov no meio de dois polícias. Levava uma mão no bolso e passava a outra pelos cabelos loiros acobreados. Acompanhava-o talvez uma centena de operários, que troçavam dos polícias com dichotes e insultos.

 

- Vais dar um passeio, Gricha? - gritou alguém.

 

- Que honra para os operários! - disse outro. - Já têm direito a escolta...

 

E praguejou violentamente.

 

- Está-se mesmo a ver que dá menos lucro prender os ladrões - gritou encolerizado um operário alto e estrábico. Agora prendem as pessoas honradas.

 

- Se ao menos fosse de noite! Mas não têm vergonha, mesmo em pleno dia, os sacanas!...

 

Os polícias caminhavam rapidamente e de cara fechada. Esforçavam-se por não ver nada e pareciam não ouvir as exclamações dos que os rodeavam. Três operários avançaram para eles, segurando uma grossa barra de ferro, com a qual os ameaçavam, gritando:

 

- Vocês gostam de pescar, mas tenham cuidado!

 

Ao passar por Pelágia Vlassova, Samoilov sorriu-lhe, fez-lhe um sinal com a cabeça e disse:

 

- Prenderam-me!

 

Silenciosa, Pelágia respondeu com uma saudação amiga, comovida com o espectáculo daqueles jovens valorosos e sóbrios que iam para a prisão com um sorriso nos lábios. Começava a sentir por eles um compassivo amor de mãe. No regresso da fábrica, passou toda a tarde em casa de Maria, ajudando-a no trabalho e ouvindo a sua tagarelice. Era já de noite quando voltou à sua casa, que estava vazia, fria e desconfortável. Largo tempo caminhou para cá e para lá, incapaz de se sentar, sem saber o que fazer. Estava inquieta por ver chegar a noite sem que Igor aparecesse com os folhetos, como lhe tinha prometido.

 

Por detrás da janela caíam os pesados flocos cinzentos da neve de Outono. Pegavam-se aos vidros, deslizavam e derretiam, deixando um rasto de humidade. Pensava em Pavel.

 

Bateram à porta de mansinho. Pelágia correu a abrir o ferrolho, e Sachenka entrou. Fazia tempo que a mãe a não via, e a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que lhe pareceu que ela tinha engordado de uma forma desmedida.

 

-Boas noites - disse, feliz por ter companhia e não ir passar sozinha aquele bocado do serão. - Há muito que não nos víamos. Esteve de viagem?

 

- Não, estive na prisão - disse a jovem, sorrindo - com Nikolai Ivanovitch, lembra-se dele?

 

- Como poderia esquecê-lo? - exclamou a mãe. - Igor disse-me ontem que o tinham libertado, mas a seu respeito não me disse nada... Ninguém me disse que estava...

 

- Ora, falar nisso para quê? Vou mudar de roupa enquanto esperamos por Igor - disse a rapariga, olhando à sua volta.

 

- Está encharcada...

 

- Trouxe as folhas e os folhetos.

 

- Dê-mos! - Disse a mãe com entusiasmo.

 

A jovem desabotoou rapidamente o casaco, sacudiu-se, e do seu corpo, como se fossem folhas de árvore, desprenderam-se maços de papéis. A mãe recolheu-os rindo.

 

- Disse a mim própria ao vê-la tão gorda: "Deve ter casado, estará grávida, certamente." Que quantidade trouxe! E veio a pé?

 

- Sim - disse Sachenka, que estava esbelta e elegante como dantes.

 

A mãe observou o seu rosto cavado. Os olhos, rodeados de olheiras fundas, pareciam imensos.

 

- Acabam de pô-la em liberdade... devia descansar - disse a mãe com um movimento da cabeça. - E em vez disso...

 

- Tinha de ser feito... Diga-me, como está Pavel Mikhailovitch? Não está muito deprimido?

 

Falava sem olhar Pelágia. Inclinando a cabeça, ajeitava os cabelos com as suas mãos trémulas.

 

- Não, ele aguenta bem.

 

- Ele não tem problemas de saúde, pois não? - perguntou a rapariga muito baixo.

 

- Nunca esteve doente. Mas como você treme! Vou preparar-lhe um chá com compota de framboesa.

 

- Isso seria óptimo! Mas... porque há-de ter esse trabalho? É tarde, dê-me o necessário, e eu própria o farei.

 

- Cansada como está? - replicou a mãe em tom de censura, e começou a preparar o samovar. Sachenka seguiu-a até à cozinha, sentou-se no banco com as mãos atrás da nuca, e disse:

 

- De qualquer forma, a prisão é esgotante. Maldita inacção! Não há nada mais penoso. Sabendo tudo o que há para fazer, estar ali, enjaulada, como uma fera...

 

- Quem irá recompensar-vos por tudo isso?

 

E suspirando, a mãe respondeu à sua própria pergunta:

 

- Ninguém senão o bom Deus. A Sachenka com certeza também não é crente?

 

- Não - disse a jovem secamente, abanando a cabeça.

 

- Pois olhe, eu acho que não está a dizer a verdade declarou a mãe com uma súbita animação.

 

Limpou as mãos ao avental, que estavam sujas de carvão, e continuou com ardente convicção:

 

- Você não conhece a sua própria fé. Como é possível viver uma vida como a sua sem crer em Deus?

 

Arrastaram-se na entrada passos ruidosos, e ouviu-se uma voz. A mãe foi tomada por um estremecimento. A jovem ergueu-se rapidamente e segredou:

 

- Não abra! Se for a polícia, diga que não me conhece. Enganei-me na casa, entrei aqui por acaso, desmaiei, a senhora desapertou-me o vestido e encontrou os folhetos, compreende?

 

- Minha querida filha! Mas para quê? - perguntou a mãe enternecida.

 

- Espere! - Sachenka estava à escuta. - Parece-me que é o Igor.

 

Era ele, encharcado, morto de cansaço.

 

- Ah! Ah! Um bom samovar é a melhor coisa que existe no mundo, mãezinha! Já chegaste, Sachenka?

 

Enchendo a estreita cozinha com a sua voz rouca, ia tirando lentamente o casacão, sem parar de falar.

 

- Sabe, mãezinha, temos aqui uma jovem que se conseguiu tornar num grande incómodo para as autoridades! Como um guarda da prisão a insultou, declarou que se deixaria morrer de fome se não lhe fossem apresentadas desculpas, e durante oito dias não comeu. Esteve perto de não sair de lá com vida. Que tal, hem? E da minha barriguinha, o que é que vocês me dizem?

 

Conversando, e com os seus curtos braços segurando o ventre que pendia, pesado, entrou no quarto e fechou a porta atrás de si.

 

- É possível que tenha passado oito dias sem comer? perguntou a mãe assombrada.

 

- Eles tinham de me pedir desculpa - respondeu a rapariga, sacudindo os ombros energicamente.

 

A sua calma e a sua austera obstinação suscitaram na alma da mãe um vago sentimento de censura.

 

"Eles são assim...-, pensou ela, e perguntou novamente:

 

- E se tivesse morrido?

 

- Paciência! - respondeu Sachenka em voz baixa. - De qualquer forma ele pediu-me desculpa. Não se deve perdoar uma ofensa.

 

- Sim... sim... mas a nós, mulheres, a vida não pára de nos ofender.

 

- Descarreguei a minha encomenda - disse Igor abrindo a porta. - O samovar está pronto? Dêem-me licença, eu vou buscá-lo.

 

Trouxe o samovar, e acrescentou:

 

- O meu digno pai não bebia menos de vinte copos de chá por dia, e por isso viveu neste triste mundo setenta e três anos, tranquilo e sem doenças. Pesava oito pudes, e era sacristão na aldeia de Voskressenski...

 

- Você é filho do tio Ivan? - gritou Pelágia.

 

- Sim, mas como sabe?

 

- Porque eu também sou de Voskressenski.

 

- Da minha terra? De que família?

 

- Dos seus vizinhos. Os Sereguine.

 

- A filha do Nil coxo? Conheci-o bem, algumas vezes me puxou as orelhas.

 

Estavam um na frente do outro, e riam, sob o que parecia ser um fogo cruzado de perguntas e respostas. Sachenka ia preparando o chá, e olhava-os sorrindo. O tilintar dos copos chamou a mãe à realidade.

 

- Oh, perdão, não paro de falar, mas é tão agradável encontrarmos alguém da nossa terra!

 

- Sou eu que devo pedir-lhe perdão pela sem-cerimónia, mas já são onze horas, e tenho muito caminho pela frente.

 

- Onde vai? À cidade? - admirou-se a mãe.

 

- Sim.

 

- Como? É tão tarde, está a chover, e você está exausta. Fique a dormir aqui em casa. Igor dormirá na cozinha, e nós as duas aqui.

 

- Não, tenho de ir-me embora - disse a rapariga com simplicidade.

 

- Sim, patrícia, esta jovem tem de se ir embora. Há aqui pessoas que a conhecem, e seria grave se amanhã fosse vista por estes lados - declarou Igor.

 

- Então e ela... vai sozinha?

 

- Sim - disse Igor, esboçando um sorriso.

 

A rapariga serviu-se de um copo de chá, pegou num pedaço de pão de centeio, e começou a comer, olhando pensativamente para a mãe.

 

- Como é que pode? E Natacha fazia o mesmo. Eu não iria, teria medo...

 

- Ela também tem medo - não é verdade, Sachenka?

 

- Claro!

 

A mãe olhou sucessivamente para um e para outro, e murmurou:

 

- Como vocês são duros!

 

Quando acabou de beber o seu chá, Sachenka apertou em silêncio a mão de Igor e, seguida pela mãe, dirigiu-se para a cozinha.

 

- Se estiver com Pavel, dê-lhe saudades minhas, peço-lhe. Tinha já a mão no fecho da porta quando se voltou bruscamente e perguntou a meia-voz:

 

- Posso abraçá-la?

 

Sem responder, a mãe abraçou-a e beijou-a calorosamente.

 

- Obrigada! - disse a jovem, e saiu, despedindo-se com um movimento da cabeça.

 

De novo no quarto, a mãe lançou um olhar angustiado pela janela. Das trevas, flocos de neve semifundidos caíam lentos e pesados.

 

- Lembra-se dos Prozorov? - perguntou Igor. Tinha-se sentado com as pernas muito abertas, bebendo

 

ruidosamente o seu chá. O seu rosto estava corado, coberto de suor e de satisfação.

 

- Sim, lembro-me - disse ela absorta, aproximando-se dele com o seu andar oblíquo. Sentou-se, deitou a Igor um olhar triste, e disse em tom compadecido:

 

- Ai, em que estado irá Sachenka chegar a casa?

 

- Muito cansada! A prisão não lhe fez bem algum. Dantes era uma rapariga forte, mas não foi habituada à nossa vida dura. Desconfio mesmo que já tem qualquer coisa nos pulmões...

 

- De que família vem? - perguntou a mãe muito baixo.

 

- É filha de um latifundiário. O pai é um crápula, como ela própria diz. Sabe, mãezinha, que eles estão a pensar em casar?

 

- Quem?

 

- Ela e Pavel. Mas não conseguem. Quando ele está em liberdade, está ela presa, ou o contrário.

 

- Não sabia! - disse a mãe após uma pausa. - Pavel nunca fala de si próprio.

 

Sentiu mais pena ainda da rapariga, e com um olhar de antipatia involuntária contra o seu hóspede, acrescentou:

 

- Você devia tê-la acompanhado.

 

- Impossível - respondeu ele tranquilamente. - Tenho muitas coisas para fazer aqui, e vou ter de andar, andar o dia todo... O que não é nada bom para a minha asma.

 

- É uma boa rapariga - disse a mãe num tom indefinido.

 

Pensava no que Igor lhe tinha dito, e sentia-se ofendida por ter sido um estranho, e não o seu próprio filho, a dar-lhe a notícia. Apertou os lábios e franziu as sobrancelhas.

 

- Muito boa! - Igor inclinou a cabeça. - Mas vejo que lhe faz pena. Porquê? Se for a compadecer-se de todos os revolucionários, não haverá piedade que lhe chegue! A vida é dura para todos, essa é a verdade. Olhe, um dos meus camaradas regressou há pouco do desterro. Quando chegou a Nijni-Novgorod, a mulher e o filho esperavam-no em Smolensk, e quando chegou a Smolensk já eles estavam presos em Moscovo. Agora é a mulher dele que está na Sibéria. Eu também tive. mulher, uma esposa excelente, mas cinco anos desta vida atiraram com ela... para o cemitério.

 

Bebeu de um trago o seu copo de chá, e continuou a falar. Enumerou os anos, os meses de prisão e de desterro, contou desgraças várias, a pancada que apanhara nas prisões, a fome que sofrera na Sibéria. A mãe olhava para ele e escutava-o, admirando-se da tranquila simplicidade com que descrevia aquela vida cheia de sofrimentos, perseguições, humilhações...

 

- Mas vamos ao nosso assunto.

 

A sua voz modificou-se, o seu semblante tornou-se mais grave. Perguntou-lhe primeiro como pensava introduzir os folhetos na fábrica, e Pelágia estava assombrada com os conhecimentos precisos e detalhados que ele possuía.

 

Quando terminaram, voltaram a evocar a sua aldeia natal. Enquanto Igor ia gracejando, Pelágia viajava no tempo. Os anos pareciam-lhe estranhamente semelhantes a um pântano coberto de pequenos montes de turfa, todos iguais, plantado com arbustos semelhantes a estremecimentos de medo, com pequenos abetos e bétulas brancas perdidas por entre os outeiros. As bétulas cresciam lentamente, permaneciam cinco ou seis anos naquele terreno movediço e pútrido, e depois caíam, para por sua vez apodrecerem também. A mãe imaginou este quadro, tomada de uma dolorosa piedade. Na sua frente, via um vulto de rapariga, de rosto duro e obstinado. Caminhava sob os flocos de neve, sozinha, cansada. E o seu filho estava na prisão! Talvez não estivesse ainda a dormir, talvez estivesse meditando. Mas não estaria pensando nela. Havia agora outra mulher que lhe estava mais próxima ainda. Como nuvens de reflexos multicoloridos e de formas instáveis, pensamentos sombrios assediavam-na e oprimiam terrivelmente o seu coração.

 

- Está cansada, mãezinha. Vámo-nos deitar - disse Igor com um sorriso.

 

Ela deu-lhe as boas noites e, andando de lado, silenciosa, entrou na cozinha levando no coração aquela dolorosa amargura.

 

De manhã, enquanto tomavam o chá, Igor perguntou-lhe:

 

- E se a apanham, e lhe perguntam onde arranjou esses folhetos proibidos, o que é que lhes vai dizer?

 

- Digo-lhes que não é da conta deles.

 

- Sim, mas eles não pensam assim - replicou Igor. - Estão plenamente convencidos de que o assunto é da conta deles, sim. E vão interrogá-la com insistência, e durante muito tempo.

 

- Mas eu não digo.

 

- Eles levam-na presa.

 

- Ah, sim? Graças a Deus que pelo menos ainda sirvo para alguma coisa - disse ela com um suspiro. - Quem é que ainda precisa de mim? Ninguém! Além disso, dizem que não torturam...

 

- Hummm! - clisse Igor depois de a olhar atentamente. Torturar, não... Mas uma mulher de valor como a senhora deve ter cuidado.

 

- Não é você a pessoa mais indicada para me vir dar lições - disse a mãe com um sorriso amargo.

 

Por um instante Igor guardou silêncio. Deu depois alguns passos pelo quarto e aproximou-se dela.

 

- É duro, patrícia! Sei até que ponto é duro para si!

 

- É duro para todos - respondeu ela fazendo um gesto com a mão. - Talvez seja mais fácil para os que compreendem... mas, aos poucos, também eu vou compreendendo o que querem as pessoas de bem...

 

- Se compreende isso, mãezinha, todos nós precisamos de si - disse Igor numa voz grave.

 

Ela olhou-o e sorriu silenciosa.

 

Ao meio-dia, tranquila e prática, cobriu o peito de folhetos, com tal habilidade que Igor deu um estalo com a língua, satisfeito, e disse:

 

- Sehr gut!, como diz todo o bom alemão depois de beber uma caneca de cerveja. Os folhetos não se vêem, mãezinha, continua a ser uma excelente mulher de meia-idade, alta e forte. Que todos os deuses a abençoem nesta empresa!

 

Meia hora mais tarde, curvada sob o peso da sua carga, serena, calma, chegou à porta da fábrica. Dois guardas, irritados com as troças dos operários, apalpavam sem delicadezas todos aqueles que entravam no pátio, dirigindo-lhes insultos. Junto deles estavam um polícia e um indivíduo de pernas bambas, corado e de olhar fugidio.

 

Mudando o tabuleiro de um ombro para o outro, a mãe seguia-lhe os movimentos pelo canto do olho. Era um bufo.

 

Um rapaz alto, de cabelos encaracolados e o chapéu atirado para a nuca, dizia aos guardas que o revistavam:

 

- Vocês têm de procurar é nas cabeças, não é nos bolsos! Um dos guardas respondeu:

 

- Na cabeça não há nada para além de piolhos.

 

- Então catem-nos, é tudo o que vocês sabem fazer! O bufo envolveu-o num olhar rápido, e cuspiu.

 

- Querem deixar-me passar? - pediu a mãe. - Não vêem como venho carregada? Tenho as costas partidas!

 

- Anda, anda - gritou-lhe, furioso, o guarda. - Não fales tanto.

 

Chegada ao seu lugar, a mãe pousou os sacos no chão e deitou uma olhada em redor, enxugando o suor do rosto.

 

Imediatamente os serralheiros, os irmãos Goussev, se aproximaram dela, e Vassili, o rnais velho, perguntou alto, franzindo as sobrancelhas:

 

- Trazes pastéis?

 

- Amanhã trago - respondeu ela.

 

Era uma contra-senha. Os rostos dos dois homens iluminaram-se. Não podendo conter-se, o mais novo disse:

 

- Ah, mãezinhha, és uma boa mulher!

 

Vassili pôs-se de cócoras, olhou para dentro de um dos sacos, enquanto um maço de folhetos ia deslizando para debaixo do seu casaco.

 

- Ivan - disse em voz alta -, não vamos a casa, comeremos daquilo que traz. - Escondeu rapidamente os folhetos no cano das suas botas. - É preciso ajudar a nova vendedeira.

 

- Claro! - aprovou Ivan, sem poder conter o riso.

 

A mãe olhava atentamente à sua volta, e de quando em quando gritava:

 

- Sopa, macarrão quentinho...

 

E pegando disfarçadamente nos maços de folhetos, fazia-os deslizar até às mãos dos operários amigos. Por cada pacote que entregava, parecia-lhe ver diante dos olhos, como uma mancha amarela, semelhante à chama de um fósforo num quarto escuro, o rosto do oficial da polícia. Então, dizia mentalmente para si própria, cheia de uma perversa alegria:

 

- Toma, é por ti, meu filho!

 

Ao entregar o pacote seguinte, acrescentava satisfeita:

 

- Toma, aí vai outro!

 

À medida que os operários se aproximavam dela com o prato na mão, Ivan Goussev ria-se ruidosamente, e Pelágia, interrompendo a distribuição, servia sopa de couves e macarrão enquanto os Goussev iam dizendo graças:

 

- Tem jeito, a Nilovna!

 

- A necessidade ensina a caçar ratos - disse um fogueiro com ar sombrio. - Levaram-te o teu sustento... Canalhas! Dá-me três kopeks de macarrão. Não te preocupes, mãezinha, as coisas hão-de melhorar.

 

- Obrigada pelas tuas palavras. - E Pelágia sorriu.

 

- Uma boa palavra não custa nada! Pelágia voltou a apregoar:

 

- Sopa quente! Macarrão! Sopa de couves!

 

E pensava que teria, depois, de contar ao filho aquele episódio. O rosto amarelo do oficial, estúpido e malvado, estava permanentemente perante os seus olhos. Os seus bigodes negros agitavam-se, denunciando a sua irritação, e sob o lábio superior, contraído e colérico, brilhava o marfim dos seus dentes cerrados. A alegria cantava como um pássaro no coração da mãe, os seus olhos piscavam de malícia, e enquanto distribuía habilmente a sua mercadoria, dizia para consigo mesma:

 

- Toma... mais outro... e outro ainda...

 

Nessa noite, enquanto tomava o seu chá, ouviu pela janela o ruído dos cascos de um cavalo sobre a lama, e em seguida ouviu uma voz familiar. Precipitou-se da cozinha até à porta. Alguém atravessava o pátio a grandes passadas. A vista turvou-se-lhe e, encostando-se à ombreira, empurrou a porta com o pé.

 

- Boas noites, mãezinha! - disse uma voz que ela bem conhecia, enquanto umas mãos secas e largas pousavam nos seus ombros.

 

Sentiu-se dividida entre a amargura da decepção e a alegria de voltar a ver Andrei. Os dois sentimentos brotaram em simultâneo, misturando-se num só, profundo e escaldante, que lhe encheu o coração, a ergueu e a lançou contra o peito de Andrei. Ele estreitou-a num abraço trémulo. A mãe chorava mansamente, sem dizer uma palavra. Andrei acariciou-lhe os cabelos, e disse-lhe suavemente:

 

- Não chore, mãezinha, não esgote o seu coração. Dou-lhe a minha palavra que em breve o soltarão. Não têm nenhuma prova contra ele, e os rapazes têm-se aguentado, mudos como peixes.

 

Com o seu braço em volta dos ombros de Pelágia, Andrei conduziu-a até ao quarto. Agarrada a ele, Pelágia enxugou as lágrimas do rosto, num gesto rápido de esquilo, e todo o seu ser, ávido de ouvir o que Andrei tinha para lhe contar, pareceu ficar suspenso dos seus lábios.

 

- Pavel manda-lhe saudades. Está bem de saúde, e tão feliz quanto possível. Está-se muito apertado na prisão. Entre os que prenderam aqui e os que prenderam na cidade, foram mais de cem, metem aos três e aos quatro em cada cela. Mas dos directores da prisão não temos nada a dizer. Não são maus, andam é muito cansados. Os demónios dos polícias dão-lhes tanto trabalho! Mesmo assim os directores não são muito severos, passam o dia a dizer: "Vamos lá, rapazes, calma, não nos compliquem as coisas." De forma que acaba por se tornar suportável. Conversa-se, trocam-se livros, partilha-se a comida... É uma boa prisão. É muito velha e suja, mas pelo menos há sossego, não nos faz alterar a bílis. Os presos de delito comum também são bons rapazes, e ajudam-nos muito. A mim já me soltaram, e a Bukhine, e a outros quatro. Pavel em breve também irá ser posto em liberdade, estou certo disso. Já Vessovchikov não devem soltá-lo tão depressa. Estão furiosos com ele. Provoca-os constantemente. Os polícias não podem nem vê-lo. Talvez o levem a tribunal, ou então um dia destes dão-lhe uma boa surra. Pavel faz o possível para acalmá-lo: "Deixa-os lá, Nikolai, não é por os insultares que se vão tornar melhores." Mas ele continua a resmungar: "Hei-de rebentar com eles, que nem coelhos.- Pavel está óptimo, firme e sereno com toda a gente. Volto a dizer-lhe que muito em breve o soltarão.

 

- Muito em breve! - disse a mãe, tranquilizada e sorridente. - Sim, em breve, eu sei.

 

- Bem, então se sabe, ainda bem. Dê-me um pouco de chá e conte-me como vão as coisas.

 

Olhava-a sorrindo, próximo dela, e nos seus olhos redondos e cheios de bondade cintilava uma chama afectuosa e triste.

 

- Gosto muito de si, Andrei - disse a mãe com um profundo suspiro, enquanto olhava aquele rosto magro e cómico, semeado de pequenos tufos de pêlos negros.

 

- Se gostar um bocadinho, já fico contente. E eu sei que gosta. A mâezinha é capaz de gostar de toda a gente. Tem um grande coração - disse o Ucraniano, balançando-se na cadeira.

 

- Não, de si gosto de uma maneira especial - insistiu ela.

- Se o Andrei tivesse mãe, as pessoas haviam de a invejar por ter um filho assim.

 

- Eu tenho uma mãe... em algum lugar - disse ele muito baixo.

 

- Sabe o que fiz hoje? - exclamou ela e, vibrando de satisfação, contou-lhe com entusiasmo, adornando um pouco a sua história, como havia conseguido introduzir os folhetos na fábrica.

 

O Ucraniano começou por abrir os olhos de assombro. Em seguida, rebentou numa gargalhada, agitando as pernas, batendo na cabeça com a mão, e gritou cheio de alegria:

 

- Oh, oh...! Mas isso não foi brincadeira nenhuma, foi um trabalho muito bem feito! Como Pavel vai ficar contente! Isso foi muito bom, para Pavel e para todos.

 

Estalava os dedos com entusiasmo, assobiava e balançava-se na cadeira. O seu contentamento despertava nela um eco muito forte.

 

- Meu querido Andrei... - disse ela como se o seu coração se abrisse e dele brotassem, semelhantes aos sons melodiosos de uma nascente, palavras que exprimiam a serena alegria de que transbordava. - Pensei na minha vida... Jesus Cristo! Para que vivi eu? As pancadas... o trabalho... não vivi para outra coisa que não fosse o meu marido, não conheci outra coisa que não fosse o medo. Nem sequer pude dar a atenção que queria ao crescimento de Pavel. Tê-lo-ei amado enquanto o meu marido era vivo? Nem eu própria o sei. Todos os meus cuidados, todos os meus pensamentos, eram para uma só coisa: alimentar aquele animal para que estivesse satisfeito e de barriga cheia, servi-lo a tempo, para que não se encolerizasse e não me batesse... para que me respeitasse, pelo menos algumas vezes. Mas não me lembro que me tenha respeitado nunca. Batia-me... talvez não porque me quisesse bater a mim, mas sim a todos aqueles a quem odiava. Vinte anos vivi desta maneira, e já nem me lembro de como era antes de me casar. Igor Ivanovitch, que é da minha terra, esteve aqui, e conversámos sobre isto e aquilo. Eu lembro-me das casas, das pessoas... mas como se vivia, o que se dizia, os acontecimentos, tudo isso são coisas que já não consigo recordar. Lembro-me dos incêndios, de dois incêndios... Tudo o resto me fugiu, tenho a alma fechada como uma casa em ruínas, cega, surda...

 

A mãe tomou fôlego, inspirou o ar sofregamente, como um peixe fora de água, inclinou-se e continuou, baixando mais o tom de voz:

 

- Quando o meu marido morreu, agarrei-me ao meu filho, mas ele começou a dedicar-se a... estas coisas. Nessa altura não me parecia bem, e sentia pena dele... Como viverei, sozinha, se ele morrer? Passei tantas angústias, tantas inquietações, o meu coração despedaçava-se quando pensava no que poderia acontecer-lhe.

 

Calou-se, movendo um pouco a cabeça, e prosseguiu gravemente:

 

- O amor das mulheres não é um amor puro. Amamos aquilo que temos necessidade de amar. E olhe, quando penso que você sonha com a sua mãe... Que falta lhe faz ela? E os outros todos que sofrem pelo povo, que são mandados para a prisão ou para a Sibéria, que morrem... Essas raparigas que partem sozinhas na noite, por entre a lama e a neve, debaixo de chuva, andando sete verstás para chegarem até aqui, o que é que as move, o que é que as faz andar? O amor! Isso é o amor puro! Crêem, têm fé, Andrei. Mas eu não sei amar assim, amo aquilo que é meu, aquilo que me toca.

 

- É possível - disse o Ucraniano que, sem a olhar, coçou a cabeça e esfregou as faces e os olhos energicamente com as duas mãos, como era seu hábito. - Toda a gente ama aqueles que lhe estão próximos, mas para um grande coração todos estão próximos. A senhora pode amar muito. O seu grande coração de mãe...

 

- Se Deus quiser! - disse ela em voz baixa. - Claro, eu compreendo-o, é bom viver assim. Olhe, talvez eu o ame a si mais do que a Pavel. Ele fecha-se... Sabe, quer casar-se com Sachenka, e não mo disse, a mim, que sou mãe dele...

 

- Não é verdade. Eu sei que não é verdade. Eles amam-se, sim, mas casar, não... Ela queria, mas Pavel não quer.

 

- Como é possível? - disse a mãe pensativa, de novo olhando tristemente para Andrei. - Então é assim? As pessoas renunciam a si próprias...

 

- Pavel é um ser de excepção - murmurou Andrei. - Tem uma vontade de ferro.

 

- E agora está na prisão - continuou Pelágia no mesmo tom. - Tudo isto é medonho, assustador, mas de um modo diferente. A vida já não é o que era, e o medo também não. Eu vivo assustada por todos vocês. Também o meu coração é outro, a minha alma abriu os seus olhos, olha, sente pena mas sente também alegria. Compreendo mal as coisas, mas é para mim tão duro, tão amargo, que vocês não acreditem em Deus... Enfim, é assim, e não há nada a fazer. Mas vocês são bons. E deram-se a uma vida difícil, pelo povo. A uma vida dura, pela verdade. A vossa verdade, eu também a compreendo. Enquanto existirem ricos, o povo não terá nada, nem justiça, nem alegria, nada! Repare, eu vivo no meio de vocês, e as vezes, de noite, recordo a minha vida passada, a minha força espezinhada, o meu jovem coração esmagado... compadeço-me de mim mesma, e é amargo... Mas, de qualquer maneira, a vida é agora melhor para mim, conheço-me melhor...

 

O Ucraniano levantou-se, começou a caminhar de um lado para o outro, alto, magro, esforçando-se por não arrastar os pés...

 

- Disse muito bem, muito bem... Havia em Kertch um judeu muito jovem que fazia versos, e um dia escreveu:

 

- E aos inocentes executados ressuscitá-los-á a força da verdade.

 

Foi morto pela polícia, em Kertch, mas isso não importa. Ele conhecia a verdade, e semeou-a entre os homens. E a senhora é também uma inocente condenada à morte...

 

- Estou para aqui a falar - continuou a mãe. - Falo, oiço-me, mas não creio naquilo que os meus ouvidos ouvem. Em toda a minha vida, não pensei senão numa coisa: ficar de lado, à margem, despercebida, tentando só não ser maltratada. E agora penso no mundo inteiro. Pode ser que eu não compreenda bem todas as coisas de que vocês falam, mas pelo menos agora todos os seres humanos me estão próximos; tenho piedade de todos, afecto por todos. Principalmente por si, Andrei.

 

Ele aproximou-se e disse:

 

- Obrigado!

 

Tomou-lhe uma das mãos entre as suas, estreitou-lha muito, sacudiu-a, e afastou-se rapidamente. Fatigada pela emoção, a mãe lavou a louça devagar. Estava agora silenciosa, e sentia uma coragem que lhe confortava docemente o coração.

 

O Ucraniano disse-lhe:

 

- Olhe, mãezinha, devia ir um dia animar um pouco o Vessovchikov. O pai dele também lá está na prisão. É um velho nojento. Quando Nikolai o vê pela janela dirige-lhe insultos. Isso não está bem. Nikolai é bom, gosta dos cães, dos ratos, de todas as criaturas. Só não gosta das pessoas. Um homem pode chegar a isto!

 

- A mãe dele abandonou-o, o pai é um ladrão e um bêbado... - disse Pelágia pensativa.

 

Quando Andrei se foi deitar, Pelágia deu-lhe a sua bênção sem que ele se apercebesse. Estava deitado talvez há uma meia hora, quando ela lhe perguntou docemente:

 

- Não está a dormir, Andrei?

 

- Não, porquê?

 

- Boa noite!

 

- Obrigado, mãezinha, obrigado - respondeu ele com ternura.

 

No dia seguinte, quando Pelágia chegou à porta da fábrica com o seu carrego, os guardas detiveram-na violentamente, mandaram-lhe que pousasse as panelas no chão e examinaram-na com minúcia.

 

- Vão fazer que a comida arrefeça - disse ela tranquilamente, enquanto, descarados, lhe revistavam as roupas.

 

- Cala-te! - Replicou um guarda com voz áspera.

 

O outro, empurrando-a ligeiramente pelo ombro, exclamou com convicção:

 

- Digo-te que os atiram por cima da cerca.

 

O primeiro que se aproximou dela foi o velho Sizov. Olhou cautelosamente em torno de si, e disse em voz baixa:

 

- Já ouviu o que dizem por aí, mãezinha?

 

- O que é?

 

- Aconteceu que voltaram a aparecer os folhetos. Há-os por todo o lado. Estão espalhados como o sal sobre o pão. As prisões e as buscas que fizeram não lhes serviram para nada. Meteram o meu sobrinho Mazine na prisão. Bom! E agora? Prenderam o teu filho, mas agora ficou provado que não foram eles.

 

Agarrou a barba com a mão, olhou para Pelágia e disse, enquanto se afastava:

 

- Aparece lá por casa. Deve ser aborrecido estar sozinha. Ela agradeceu e, apregoando a sua mercadoria, observava

 

com olhar atento a agitação pouco usual que reinava na fábrica. Todos os operários pareciam excitados, formando grupos que em seguida se dispersavam, correndo de uma oficina para outra. Pelo ar, carregado de fuligem, havia como um sopro de coragem, de audácia. Aqui e ali ouviam-se exclamações de aprovação, um ou outro gracejo. Os operários mais velhos sorriam apenas. Os encarregados iam e vinham, preocupados. Os polícias corriam. Os operários, ao vê-los, separavam-se lentamente ou, deixando-se estar onde estavam, interrompiam as suas conversas e olhavam em silêncio aqueles rostos zangados, furiosos.

 

Os operários pareciam todos ter acabado de se lavar. Por todo o lado se via a alta silhueta do mais velho dos Goussev. O irmão seguia-o sempre, rindo à gargalhada.

 

Junto da mãe, em passo lento, passaram Vavilov, o chefe da carpintaria, e o apontador Isaías. O apontador, baixo, franzino, com a cabeça levantada e o pescoço voltado para a esquerda de forma a olhar para o rosto inchado e impassível do carpinteiro, falava depressa, enquanto a sua barbicha se agitava:

 

- Veja, Ivan Ivanovitch. Eles divertem-se e riem, embora isto seja a destruição do Estado, como disse o senhor Director. Aqui, Ivan Ivanovitch, o que é preciso não é mondar o campo mas ará-lo...

 

Vavilov caminhava com as mãos atrás das costas, e viam-se-lhe os dedos crispados.

 

- Imprime o que quiseres, filho da puta - disse ele em voz alta -, mas não te atrevas a falar de mim!

 

Vassili Goussev aproximou-se da mãe:

 

- Vou comer outra vez daquilo que trazes. É boa, a tua comida.

 

Depois, baixando a voz, acrescentou com uma piscadela de olho:

 

- Acertou no alvo, mãezinha. Muito bem!

 

Pelágia acenou-lhe amigavelmente com a cabeça. Estava contente por ver aquele rapaz, o mais brincalhão do bairro, tratá-la com secreto respeito. Sentia-se feliz com a excitação geral, e pensava:

 

"Se não fosse eu..."

 

Perto dela pararam três operários, e um deles lamentou-se a meia-voz:

 

- Já não consegui encontrar nenhum.

 

- Vão ter de ser lidos em voz alta. Eu não sei ler, mas é fácil de perceber que isto para eles foi como uma paulada nas costas.

 

- Vamos até às caldeiras.

 

- Isto está a fazer o seu efeito - sussurrou Goussev com outra piscadela de olho.

 

Pelágia regressou a casa muito contente.

 

- Têm pena de não saber ler - disse ela a Andrei. - Eu, quando era nova, sabia mas agora já me esqueci.

 

- Tem de voltar a aprender.

 

- Na minha idade? Para todos se rirem de mim?

 

Mas Andrei tirou um livro da estante, e mostrou-lhe uma letra da capa, apontando-a com a ponta da sua navalha:

 

- Que letra é esta?

 

- R! - Respondeu ela rindo.

 

- E esta?

 

Sentia-se incomodada e humilhada. Por um momento julgou ver o riso e a troça nos olhos de Andrei, e desviou o olhar. Mas a voz dele soou doce e tranquila, e o seu rosto estava sério.

 

- Será possível, Andrei, que queira realmente ensinar-me? - perguntou ela, forçando um sorriso.

 

- E porque não? Se já sabia, será mais fácil recordar. Olhe o provérbio que diz "se não vier um milagre, paciência; se vier, tanto melhor".

 

- Também se diz que "burro velho não aprende línguas".

 

- Ah, sim - disse o Ucraniano movendo a cabeça. - Não faltam para aí provérbios: -Quanto menos se sabe melhor se dorme." Será verdadeiro, esse? Nos provérbios é o estômago que pensa, e é como se a alma ficasse prisioneira dentro dele. E esta letra?

 

Com o olhar tenso, as sobrancelhas franzidas, ela ia-se esforçando por recordar as letras esquecidas e, completamente absorta, alheava-se do mundo à sua volta. Mas a sua vista rapidamente se fatigou. Vieram-lhe aos olhos primeiro lágrimas de cansaço e em seguida, mais prementes, lágrimas de tristeza.

 

- Aprender as letras! - disse, rebentando em soluços. Aprender a ler aos quarenta anos!

 

- Não há razão para chorar! - disse o Ucraniano em voz baixa e suave. - A sua vida não podia ter sido outra, e no entanto compreende agora que as pessoas vivem mal. Há milhares de pessoas que podiam viver melhor do que nós, e no entanto vivem como animais, e ainda por cima se gabam! Que há de bom nas suas existências? Hoje trabalham e comem, amanhã a mesma coisa, e assim todos os dias da sua vida, trabalhar e comer. Entretanto vão pondo filhos no mundo, e se primeiro se alegram com isso, quando as crianças começam, por sua vez, a comer com apetite, os pais irritam-se e maltratam-nas. "Depressa, cresçam mais depressa, comilões, é preciso trabalhar!" Gostariam que os filhos fossem como animais domésticos, mas eles começam por sua vez a trabalhar para a sua própria barriga, e acabam também eles por arrastar uma vida miserável, como condenados arrastando as suas correntes. Os únicos homens verdadeiros são aqueles que conseguem quebrar as amarras da razão humana. Agora, também a mãezinha, na medida das suas forças, se uniu a esta tarefa.

 

- Não pense nisso - suspirou ela. - Que posso eu fazer?

 

- Porque é que não há-de poder? Isto é como a chuva, cada gota dá de beber a uma semente. E quando souber ler...

 

Começou a rir, levantou-se e passeou-se um pouco pelo quarto.

 

- É claro que vai aprender! E quando Pavel voltar, hem?

 

- Ah, Andrei - disse ela. - Quando uma pessoa é jovem, é tudo muito fácil. Mas à medida que os anos passam, vamo-nos carregando de sofrimentos, vamos ficando mais fracos, e na cabeça também já não há nada...

 

Nessa noite, o Ucraniano saiu. Pelágia acendeu o candeeiro e sentou-se a fazer meia, mas em seguida levantou-se, deu alguns passos indecisos, foi até à cozinha, trancou a porta e com uma ruga de preocupação na testa voltou para o quarto. Correu as cortinas, depois pegou num livro da estante, sentou-se outra vez à mesa, olhou à sua volta e debruçou-se por cima das páginas movendo os lábios. Quando da rua lhe chegava algum ruído fechava o livro com receio e escutava com atenção. De novo, com os olhos ora fechados ora abertos, murmurava:

 

- Nossa te-rra... te-rra...

 

Bateram à porta. Levantou-se rapidamente, atirou com o livro para a estante e perguntou ansiosa:

 

- Quem é? -Eu...

 

Entrou Rybine. Alisou gravemente a barba e disse:

 

- Antigamente deixavas entrar as pessoas sem perguntar quem era... estás sozinha? Pensei que o Ucraniano cá estivesse. Vi-o hoje. A prisão não faz bem nenhum a um homem.

 

Sentou-se.

 

- Bom, conversemos um pouco...

 

Tinha um ar grave e misterioso que causou à mãe uma vaga impressão.

 

- Tudo custa dinheiro - começou com a sua voz forte. Nada se faz de graça, nem sequer nascer ou morrer. Os folhetos e as folhas também custam dinheiro. Sabes de onde vem o dinheiro, quem as paga?

 

- Não sei - disse docemente Pelágia. pressentindo um Perigo.

 

- Justamente. Eu também não sei nada. Já agora, sabes quem as escreve?

 

- Pessoas que sabem...

 

- Senhores! É isso mesmo! - proferiu Rybine, e o seu rosto barbudo ruborizou-se, tenso. São, portanto, senhores os que escrevem e distribuem os panfletos. Panfletos escritos contra eles. Agora diz-me: que proveito podem eles tirar do dinheiro que gastam a levantar o povo contra si próprios?

 

As pálpebras da mãe tremeram, e ela exclamou assombrada:

 

- O que é que tu estás a pensar?...

 

- Hum!... - murmurou Rybine movendo-se pesadamente na cadeira, como um urso. - Pois é! Eu também senti um calafrio quando comecei a pensar nisto.

 

- Ouviste por aí alguma coisa, foi?

 

- Mentira! Isto tresanda a mentira. Eu não sei de nada, mas tenho a certeza que estamos a ser enganados. E eu quero a verdade, e encontrei-a. Não me vou pôr do lado dos senhores. Quando precisam de nós empurram-nos à frente deles para que os nossos ossos lhes sirvam de ponte para alcançarem aquilo que desejam.

 

As suas palavras sombrias afligiam o coração da mãe.

 

- Senhor! - exclamou transida de angústia. - Será possível que Pavel não compreenda? E os outros todos que...

 

Os rostos sérios e honrados de Igor, Nikolai Ivanovitch e Sachenka pareciam estar ali, na sua frente, e o seu coração enterneceu-se.

 

- Não, não! - disse, movendo a cabeça negativamente. Não posso acreditar. Eles agem de acordo com as suas consciências.

 

- De quem é que estás a falar?

 

- De todos, de todos os que conheço, sem excepção.

 

- Não é aí que temos de procurar, mãezinha, é mais longe

- disse Rybine, baixando a cabeça. - Os que vêm cá, os que conhecemos de perto, também não devem saber de nada. Eles crêem que estão a agir da maneira certa. Mas pode ser que por detrás deles existam outros que só procuram tirar vantagens. Um homem não age assim contra o seu próprio interesse...

 

E com a sua convicção obstinada de aldeão, acrescentou:

 

- Nunca se pode esperar nada de bom dos senhores.

 

- E o que é que decidiste fazer? - perguntou a mãe, novamente dominada pela dúvida.

 

- Eu? - Rybine olhou-a, calou-se por um momento e repetiu: - Não nos podemos pôr do lado dos senhores. É só isso!

 

Ficou novamente em silêncio, sombrio.

 

- Queria unir-me aos teus rapazes para trabalhar com eles. Sou bom para isso, sei o que é preciso dizer às pessoas. Mas agora vou-me embora. Já não tenho confiança, e por isso vou-me embora.

 

Baixando a cabeça, reflectiu:

 

- Irei sozinho, pelas aldeias, pelas cabanas... Levantarei o povo. É preciso que seja o próprio povo a actuar. Quando tiver compreendido, há-de encontrar o seu caminho. Eu tratarei de o fazer compreender. Não tem esperança senão em si mesmo, e não ouve outras razões que não a sua própria. É assim!

 

A mãe sentiu pena e receio por ele. Nunca lhe tinha sido muito simpático, mas agora, de repente, sentia-o muito próximo. Disse-lhe com ternura:

 

- Vão apanhar-te...

 

Ele olhou-a, e respondeu serenamente:

 

- Vão apanhar-me... e depois hão-de soltar-me. E eu recomeçarei.

 

- Os próprios camponeses te atarão as mãos e te conduzirão ao cárcere.

 

- Se me prenderem, sairei. E voltarei a fazer o mesmo. E quanto aos camponeses, atar-me-ão as mãos uma vez, duas, e depois compreenderão que o que é preciso fazer não é entregarem-me mas escutarem-me. Dir-lhes-ei: "Não precisam de acreditar em mim, só quero que oiçam o que tenho para vos dizer." Se me ouvirem, acreditarão em mim.

 

Falava lentamente, como se pesasse cada palavra antes de a pronunciar.

 

- Aqui, nestes últimos tempos, tenho engolido e compreendido muitas coisas...

 

- Podes morrer, Mikhail Ivanovitch! - disse Pelágia, abanando melancolicamente a cabeça.

 

Fixou nela os seus olhos escuros e profundos, que pareciam esperar por uma resposta. Inclinou para a frente o corpo robusto e o seu rosto moreno empalideceu, emoldurado pelas barbas negras.

 

- Sabes o que Cristo disse sobre o grão de trigo? Que ele "deve morrer para ressuscitar numa nova espiga." Não morrerei tão cedo! Sou muito manhoso!

 

Agitou-se na cadeira e levantou-se devagar.

 

- Vou até à taberna, ficarei por lá um bocado, a conversar. Parece que o Ucraniano não vem. Já estás a trabalhar?

 

- Estou - respondeu a mãe, sorrindo.

 

- Isso é que é preciso. Repete-lhe o que eu te disse. Saíram lentamente para a cozinha e trocaram algumas palavras sem se olharem.

 

- Bem, então adeus!

 

- Adeus! Quando te despedes do trabalho?

 

- Já o fiz.

 

- E quando é que partes?

 

- Amanhã de manhãzinha. Adeus!

 

Rybine curvou-se e saiu para o vestíbulo, desajeitadamente, como se não tivesse vontade de o fazer. A mãe permaneceu no umbral, durante alguns momentos, prestando atenção a quem passava e às dúvidas que sentia no seu coração. Depois, entrou silenciosamente em casa, levantou uma ponta da cortina e olhou pela janela. Para lá da vidraça, a escuridão era impenetrável.

 

- Vivo de noite - murmurou.

 

Tinha pena daquele camponês, de temperamento pensativo, tão alto e tão forte...

 

Chegou Andrei, animado e alegre.

 

Quando ela lhe contou a visita de Rybine, ele exclamou:

 

- Muito bem, pois, que vá pelas aldeias, que proclame a verdade e desperte o povo. Não se sentia bem connosco. As suas ideias de camponês começaram a germinar na sua cabeça, e não havia lá lugar para as nossas...

 

- Esteve a falar dos senhores e há qualquer coisa de certo no que ele disse - observou ela prudentemente. - Desde que não nos enganem...

 

- Está preocupada com isso? - exclamou, rindo, o Ucraniano. -Ah, mãezinha, se tivéssemos dinheiro! Vivemos com o dinheiro que nos dão. Olhe, o Nikolai Ivanovitch ganha setenta e cinco rublos por mês e entrega-nos cinquenta. E como ele todos os outros. Há estudantes que passam fome e que, mesmo assim, nos mandam algum dinheiro quando podem, poupado kopek a kopek. Há senhores de todos os géneros, uns enganam outros deixam-se levar, mas os melhores estão connosco.

 

Esfregou as mãos e prosseguiu com veemência:

 

- A nossa vitória não será para breve, mas enquanto esperamos, vamos organizar o nosso Primeiro de Maio! Vai ser modesto, mas animado!

 

O entusiasmo dele afastou a inquietação deixada por Rybine. O Ucraniano andava pela sala passando a mão pela cabeça, e dizia, olhando para o chão:

 

- Sabe, às vezes sinto no meu coração uma vitalidade extraordinária. Onde quer que eu vá, sempre encontro camaradas ardendo no mesmo fogo, alegres, bons, simpáticos... Compreendemo-nos uns aos outros sem precisarmos de falar. Vivemos em boa harmonia, e em cada peito ressoa uma canção. Estas canções são como riachos que correm a juntar-se a um único rio, que por sua vez alastra e corre livremente para o mar, o mar das claras alegrias de uma vida nova!

 

Pelágia não se movia para não o perturbar nem o interromper. Ouvia-o sempre com mais atenção do que aos outros porque ele falava com mais simplicidade e as suas palavras apelavam mais fortemente ao coração. Pavel nunca dizia como seria o futuro, enquanto para Andrei esse porvir fazia parte do seu próprio ser. Quando falava, a mãe julgava estar a ouvir um belo conto, sobre a grande festa que chegaria e traria a alegria à humanidade inteira. Esta ilusão dava, aos seus olhos, um sentido à vida e ao trabalho que estava a ser realizado pelo seu filho e pelos camaradas dele.

 

- Mas quando volto à realidade - disse o Ucraniano, abanando a cabeça - e olho à minha volta, apenas vejo o frio e a sujidade, as pessoas cansadas e irritadas...

 

Prosseguiu com profunda tristeza:

 

- É humilhante, mas não podemos confiar no homem, devemos receá-lo... odiá-lo, até. O homem é complexo. Desejaríamos que fosse possível amá-lo, simplesmente, mas como é isso possível? Como perdoar a alguém que se lança sobre nós como um animal selvagem, que não reconhece a existência da nossa alma viva e que fere o nosso rosto com uma carga de murros? É impossível perdoar. Não o digo por mim, porque suportaria todos os ultrajes se fosse eu o único, mas não quero ceder perante os que usam a força, não quero que as minhas costas sirvam para eles aprenderem a agredir os outros.

 

Tinha um brilho frio nos olhos. Inclinou a cabeça, com um ar obstinado, e prosseguiu com mais firmeza:

 

- Não devo perdoar nenhuma má acção, mesmo que não me atinja pessoalmente. Não estou sozinho sobre a Terra. Suponhamos que permito que hoje me ultrajem, que chego mesmo a rir-me disso, que não me ofendo... Mas, amanhã, o ofensor que experimentou a sua força comigo, experimentá-la-á na pele de outro. Por isso é necessário distinguir as pessoas, é preciso ter firmeza e dizer: estes são meus irmãos, aqueles não... É justo, mas também é doloroso.

 

A mãe, sem saber porquê, pensou no oficial e em Sachenka. Suspirando, disse:

 

- Como é que se pode fazer pão com trigo que não foi semeado...

 

- Essa é que é a desgraça - disse Andrei.

 

- Sim! - respondeu ela.

 

Subitamente, veio-lhe à memória a imagem do marido, tosca e pesada, como um pedregulho coberto de musgo. Imaginou o Ucraniano casado com Natacha e o seu filho casado com Sachenka.

 

- E porquê? - perguntou Andrei, entusiasmando-se. - É tão óbvio que chega a ser cómico. É porque, simplesmente, nem todos são iguais. Pois bem, ponham-se todos num mesmo plano. Partilhe-se equitativamente tudo o que foi produzido pela razão, tudo o que foi fabricado com as mãos. Libertar-nos-emos da escravidão do medo e da inveja, das cadeias da ambição e da estupidez!

 

O Ucraniano e a mãe conversavam assim, frequentemente.

 

Andrei, que tinha sido readmitido na fábrica, entregava todo o seu salário a Pelágia, que aceitava este dinheiro com a mesma naturalidade com que aceitava o de Pavel.

 

Algumas vezes, Andrei, com olhos risonhos, propunha:

 

- Vamos ler um pouco, mãezinha?

 

Ela recusava-se, gracejando, mas obstinada. O sorriso de Andrei confundia-a e, um pouco irritada, pensava: "Para quê, se te ris?"

 

Mas perguntava-lhe, cada vez com maior frequência, o significado desta ou daquela palavra, mais culta, e que ela desconhecia. Perguntava, sem olhar para ele, num tom de voz que se esforçava para que soasse indiferente. Ele compreendeu que ela estudava sozinha, às escondidas. Apercebeu-se da vergonha que ela sentia e deixou de lhe propor que lessem juntos. Passado pouco tempo, a mãe confessou-lhe:

 

- Cada vez vejo pior, Andrei. Preciso de uns óculos.

 

- Isso é muito simples. No domingo vamos à cidade, ao médico, e logo terá uns óculos.

 

Já por três vezes tinha ido pedir autorização para visitar Pavel, e de cada vez lhe tinha sido amavelmente recusada pelo chefe da polícia, um velhote grisalho, de faces avermelhadas e nariz grande.

 

- Daqui por uma semana, mãezinha, não antes. Daqui por uma semana logo se verá, mas agora é impossível.

 

Era rubicundo e gorducho, lembrando uma ameixa demasiado madura, coberta por uma penugem de bolor. Palitava continuamente os dentes, brancos e pequenos. Os olhinhos redondos e esverdeados sorriam afectuosamente e a sua voz tinha uma entoação amável, amistosa.

 

- É muito educado - disse a mãe ao Ucraniano. - Sorri sempre.

 

- Oh! Pois sim! Eles são muito educados e sorridentes. Se lhes disserem: "Têm aqui um homem inteligente e honrado, mas é perigoso. Enforquem-no." Eles sorriem, enforcam-no e voltam a sorrir.

 

- O que veio aqui a casa fazer a busca era menos dissimulado. Percebia-se logo que era um canalha.

 

- Não são homens, são como martelos para bater nas pessoas e ensurdecê-las. São instrumentos. Servem para manipular o povo, para que este funcione melhor. Eles mesmos estão afeiçoados à mão que os dirige, podem executar qualquer tarefa que lhes seja ordenada, sem reflectirem, sem perguntarem porquê.

 

A autorização foi finalmente concedida a Pelágia. No domingo sentou-se timidamente num canto da sala de espera da prisão. No compartimento sujo e pequeno, de tecto baixo, estavam outras pessoas que também esperavam pela hora da visita. Sem dúvida que não era a primeira vez que vinham, pois já se conheciam. Entre elas estabeleceu-se um diálogo em voz baixa e arrastada, entretecido de queixas e coscuvilhices, pegajoso como uma teia de aranha.

 

- Sabem uma coisa? - perguntava uma mulher gorda de rosto flácido, com um saco sobre os joelhos. - Esta manhã, durante a primeira missa, o mestre de capela quase arrancou uma orelha a um dos meninos do coro.

 

Um homem de idade, usando um uniforme de militar reformado, tossiu ruidosamente e retorquiu:

 

- Os meninos de coro são uns diabinhos!

 

Um homenzinho calvo, de pernas curtas e braços compridos, maxilar saliente, passeava pelo compartimento com ar preocupado. Sem se deter, disse com voz trémula:

 

- A vida está cada vez mais cara, por isso é que as pessoas vivem cada vez pior. A carne de segunda está a catorze kopeks a libra, o pão está a dois kopeks e meio...

 

Às vezes entravam presos de uniforme cinzento e com pesados tamancos de couro. Pestanejavam ao entrarem no compartimento mal iluminado. Um deles tinha correntes nos pés.

 

De tudo se desprendia uma estranha calma e uma desagradável simplicidade. Dir-se-ía que toda aquela gente estava acostumada àquela atmosfera, e que esta lhes era familiar. Uns estavam tranquilamente sentados, outros montavam guarda, preguiçosamente, outros, resignados e pontuais, vinham apenas visitar os presos. O coração da mãe palpitava impaciente. Olhava perplexa tudo quanto a rodeava, admirada com aquela simplicidade asfixiante.

 

Ao seu lado, tinha-se sentado uma velhota de rosto enrugado, mas de olhar ainda jovem. Esticando o pescoço delgado, prestava ouvidos à conversa e olhava toda a gente com um ar estranhamente provocante.

 

- Quem é que tem aqui? - perguntou docemente Pelágia.

 

- O meu filho. É estudante - respondeu rapidamente a velha em voz alta. - E você?

 

- O meu filho também. É operário.

 

- Como é que ele se chama?

 

- Vlassov.

 

- Não o conheço. Há muito tempo que ele cá está?

 

- Há mais de seis semanas...

 

- E o meu há mais de dez meses!

 

Pelágia julgou perceber na sua voz um sentimento indefinível, próximo do orgulho.

 

- Sim, sim - dizia nervosamente o velho calvo. - A paciência esgota-se, toda a gente se irrita, grita, os preços estão sempre a subir... Como consequência, as pessoas valem menos. Já não se ouvem vozes conciliadoras.

 

- Absolutamente certo - disse o militar. - Está tudo numa enorme desordem! É preciso uma voz forte capaz de finalmente ordenar "Silêncio!." É isso precisamente que faz falta. Uma voz forte.

 

A conversa generalizava-se, animava-se. Cada um ia dando as suas opiniões sobre a vida, mas todos falavam a meia-voz, e em todos a mãe adivinhava algo que lhe era estranho. Em sua casa falava-se de outra maneira, uma linguagem mais compreensível, mais pura, mais exacta.

 

Um vigilante gordo, de barba ruiva quadrada, gritou o nome dela, olhou-a da cabeça aos pés e afastou-se coxeando, depois de lhe ter dito:

 

- Segue-me.

 

Ela seguiu-o, com vontade de lhe empurrar as costas, para que andasse mais depressa. Numa sala pequena, Pavel, de pé, sorria e estendia-lhe a mão. A mãe agarrou-a, pôs-se a rir, piscando muitas vezes os olhos e sem encontrar palavras. Por fim disse docemente.

 

- Bom dia... Bom dia...

 

- Acalme-se, mãe. - Apertou-lhe a mão com força.

 

- Não é nada!

 

- Tu aí, a mãe - disse o vigilante, suspirando. - Afasta-te. Tem de haver uma distância entre vocês os dois.

 

E bocejou ruidosamente. Pavel perguntou-lhe como estava a saúde dela, perguntou pela casa... Ela esperava outras perguntas, procurou-as nos olhos do filho, mas não as encontrou. Estava tranquilo, como sempre, mais pálido, isso sim, e os olhos pareciam maiores.

 

- A Sachenka manda-te saudades.

 

As pálpebras de Pavel tremeram, a expressão suavizou-se e sorriu. Uma aguda amargura apertou o coração da mãe.

 

- Vão soltar-te em breve - disse ela, humilhada e irritada. - Por que é que te prenderam? De qualquer modo os papéis voltaram a aparecer.

 

Os olhos de Pavel cintilaram de alegria.

 

- Outra vez? - perguntou.

 

- É proibido falar desses assuntos - avisou o vigilante num tom negligente. - Apenas de assuntos de família.

 

- Então estes não são assuntos de família? - replicou ela.

 

- Disso não sei. A única coisa que sei é que é proibido respondeu indiferente o carcereiro.

 

- Mãe, fale-me da família - pediu Pavel.

 

Ela sentiu nascer dentro de si um sentimento de audácia juvenil.

 

- Levo tudo para a fábrica... Deteve-se e depois continuou, sorrindo:

 

- Sopa, massa, tudo o que a Maria cozinha e ainda outros alimentos...

 

Pavel compreendeu. Mordeu os lábios para conter o riso. Puxou os cabelos para trás e disse, como uma voz carinhosa, que a mãe não lhe conhecia:

 

- É bom que tenha uma ocupação, assim não se aborrece.

 

- E quando os papéis voltaram a aparecer, vieram revistar-me também - declarou Pelágia, com uma ponta de fanfarronice.

 

- Outra vez! - disse o vigilante, irritado. - Já lhes disse que é proibido. Prende-se um homem para que não saiba o que se passa lá fora, e tu continuas a insistir. Têm de compreender que é proibido.

 

- Bem, mãe não falemos mais desse assunto - disse Pavel. - Matvei Ivanovitch é um bom homem e não vale a pena aborrecê-lo. Damo-nos bem os dois. Hoje por acaso é ele que está aqui, mas habitualmente é o director que está presente.

 

- Terminou a visita - avisou o carcereiro, olhando para o relógio.

 

O filho abraçou-a com força e beijou-a. Comovida e feliz, ela começou a chorar.

 

- Separem-se! - disse Matvei. Enquanto acompanhava a mãe. murmurou-lhe:

 

- Não chores... vão soltá-lo. Soltam todos... Aqui já não há mais espaço.

 

De regresso a casa, animada e sorridente, disse ao Ucraniano:

 

- Disse-lhe tão habilmente que ele compreendeu. E suspirou.

 

- Compreendeu! Se não tivesse compreendido não me tinha beijado. Nunca o tinha feito antes.

 

- Ai, a senhora - disse Andrei rindo. - Toda a gente procura qualquer coisa, mas uma mãe... procura sempre carícias.

 

- Oh, Andrei... as pessoas que vão lá - exclamou ela com súbito assombro - já estão acostumadas! Retiraram-lhes os filhos, meteram-nos na prisão, e elas não se preocupam. Chegam, sentam-se, esperam, conversam... Se até as pessoas instruídas se habituam, que dizer do povo trabalhador?

 

- É muito natural - disse Andrei com um sorriso -, para eles a lei é sempre mais branda do que para nós, e eles precisam mais dela do que nós. De tal maneira que, quando a lei lhes cai em cima, só faz uma pequena mossa, mais nada. Dói muito menos quando apanhamos com o nosso próprio bastão.

 

Uma noite em que a mãe estava sentada, fazendo meia, e o Ucraniano lia em voz alta a história da sublevação dos escravos romanos, alguém bateu à porta com força. Quando Andrei abriu, entrou Vessovchikov, carregando um embrulho debaixo do braço, o gorro de peles descaído para a nuca, coberto de lama até aos joelhos.

 

- Ia a passar e vi luz na janela. Entrei para vos cumprimentar. Acabo de sair da prisão - explicou excitado, e agarrando a mão de Pelágia apertou-a vigorosamente. - O Pavel manda-lhe saudades.

 

Depois, vacilante, deixou-se cair sobre uma cadeira, percorrendo a sala com um olhar desconfiado e sombrio.

 

A mãe não gostava dele. A cabeça angulosa e rapada e os olhos pequeninos tinham qualquer coisa que sempre a tinha assustado, mas agora estava contente e, sorridente e amável, disse com vivacidade:

 

- Estás mais magro! Andrei, vamos fazer-lhe um chá...

 

- Vou preparar o samovar - respondeu ele, indo para a cozinha.

 

- E como está Pavel? Soltaram outros ou foste o único? Nikolai baixou a cabeça e respondeu:

 

- Pavel ainda ficou lá. Paciência. Só me soltaram a mim. Levantou a cabeça, olhou a mãe e prosseguiu, devagar, entre dentes:

 

- Disse-lhes: "Já estive aqui demasiado tempo, soltem-me. Se não o fizerem ainda mato alguém e a seguir mato-me a mim..." E eles libertaram-me.

 

- Estou a ver... - disse Pelágia, afastando-se dele. Os olhos pestanejaram involuntariamente quando se cruzaram com os de Nikolai, pequenos e estreitos.

 

- E Theo Mazine? - gritou o Ucraniano da cozinha. - Escreve versos?

 

- Escreve. Não o compreendo! - disse Nikolai abanando a cabeça. - Ele é algum canário? Metem-no na jaula e põe-se a cantar. Só sei uma coisa, é que não tenho vontade nenhuma de ir para casa.

 

- Claro, o que é que vais encontrar quando lá chegares?

- disse Pelágia pensativa. - Está vazia, o fogão apagado, um frio de rachar...

 

Ele manteve-se calado, por um momento, franzindo os olhos. Tirou um maço de cigarros do bolso e pôs-se a fumar lentamente. Seguia com o olhar a coluna de fumo cinzento que se dissipava na sua frente, e desatou a rir, um riso sombrio que lembrava o latido de um cão.

 

- Sim... gelada, é como a casa deve estar. Deve haver baratas geladas pelo chão. Até os ratos devem ter rebentado com o frio. Deixa-me passar aqui a noite? - perguntou numa voz surda, sem olhar para a mãe.

 

- Claro que sim! - disse ela.

 

A presença dele incomodava-a.

 

- Hoje em dia os filhos envergonham-se dos pais...

 

- O quê? - perguntou a mãe, estremecendo.

 

Ele olhou-a de relance, fechou os olhos e o rosto picado das bexigas pareceu subitamente o de um cego.

 

- Os filhos começam a envergonhar-se dos pais que têm. É como lhe digo! - repetiu, com um suspiro. - Não é o seu caso... Pavel nunca se envergonhará de si. Mas eu tenho vergonha do meu pai. Jamais voltarei a entrar na casa dele. Já não tenho pai... nem casa. Estou em liberdade condicional, se não fosse isso, partiria para a Sibéria. Uma vez lá ajudaria a libertar os deportados, organizaria a sua fuga...

 

A mãe compreendeu que o jovem sofria, mas a dor dele não lhe inspirava compaixão.

 

- Claro. Se as coisas são como dizes, é melhor que partas

 

- disse ela para não o ofender com o seu silêncio.

 

Andrei regressou da cozinha, rindo: - '

 

- Que estavas para aí a dizer? A mãe levantou-se:

 

- Vou preparar qualquer coisa para comer. Vessovchikov olhou fixamente o Ucraniano e disse, subitamente:

 

- Penso que há pessoas que é preciso eliminar.

 

- Oh! oh!... E porquê?

 

- Para que desapareçam.

 

O Ucraniano, alto e seco, de pé no meio do quarto, balançava sobre as pernas e olhava Nikolai do alto da sua elevada estatura, com as mãos nos bolsos. Vessovchikov estava firmemente sentado na cadeira, envolto numa nuvem de fumo, enquanto manchas vermelhas se destacavam na sua fisionomia cinzenta.

 

- Hei-de arrancar a língua ao Isaías Gorbov, vais ver.

 

- Porquê?

 

- Para que não ande a espiar e a denunciar. Foi por causa dele que o meu pai se tornou no que é, e agora quer fazer dele bufo - disse Vessovchikov, olhando Andrei com sombria hostilidade.

 

- Pois sim! - exclamou o Ucraniano. - Mas quem é que te pode culpar a ti? Só os imbecis!

 

- Imbecis e inteligentes, é tudo a mesma coisa - replicou o outro com firmeza. - Repara: tu és um tipo inteligente, e Pavel também. Será que para vocês eu sou igual a Theo Mazine, ou a Samoilov, ou igual ao que vocês são um para o outro? Não mintas! De qualquer modo eu não te acreditaria... todos vocês me deixam de lado, me põem de parte.

 

- Estás doente, pobre Nikolai - disse o Ucraniano com suavidade e ternura, sentando-se junto dele.

 

- Doente... vocês estão tão doentes como eu... só que as vossas feridas parecem-vos mais nobres que as minhas. Todos nós somos uns patifes uns para os outros. O que é que me respondes a isto?

 

Cravou em Andrei o seu olhar agudo e ficou à espera, mostrando os dentes numa careta trocista. O seu rosto picado das bexigas estava impassível, mas os seus grossos lábios tremiam como que abrasados por um líquido ardente.

 

- Não respondo nada - disse o Ucraniano, e o olhar triste e acolhedor dos seus olhos azuis acariciava o olhar turvo de Vessovchikov. - Sei muito bem que não vale a pena tentar discutir com um homem que tem o coração a sangrar, só iria irritá-lo mais ainda. Sei isso muito bem, meu irmão.

 

- Comigo não se pode discutir, eu não sei discutir - murmurou Vessovchikov baixando a cabeça.

 

- Penso que todos nós já caminhámos descalços sobre estilhaços de vidro - prosseguiu Andrei.

 

- Cada um de nós, nas suas horas negras, já ardeu no mesmo fogo em que tu estás a arder neste momento...

 

- Não há nada que me possas dizer - disse lentamente Vessovchikov. - A minha alma uiva como um lobo dentro de mim!

 

- Não pretendo dizer-te nada, mas sei que isso vai passar. Talvez leve algum tempo, mas vai passar.

 

Riu-se e deu uma palmada amigável no ombro de Nikolai.

 

- Isso, meu velho amigo, é uma doença infantil, como o sarampo. Passamos todos por ela. Os fortes sofrem um pouco menos, os fracos um pouco mais. Ataca as pessoas como nós, quando encontraram aquilo que procuravam, mas não compreendem ainda a vida nem sabem qual é o lugar que ela lhes reserva. Julgamos ser únicos na nossa espécie, como um belo fruto ou um bom pepino que todos querem morder. Depois, ao fim de algum tempo, compreendes que o melhor que há em ti se encontra também nos outros, que afinal não são tão maus assim... e ficas contente. Ficas então um pouco envergonhado por teres subido ao campanário para tocar a sineta, tão pequena que nem se ouve quando toca o sino grande dos dias de festa. Compreendes então que a tua sineta se ouve no coro, mas que, sozinha, o seu toque se afoga no dos sinos grandes, como mosca em gordura. Compreendes o que quero dizer?

 

- Posso compreender! - Nikolai baixou a cabeça. - Mas não acredito.

 

O Ucraniano riu-se, levantou-se de um salto, e começou a caminhar ruidosamente.

 

- Bem, eu também não acreditava. És como um pedaço tosco de madeira.

 

- Porquê? - Perguntou Nikolai forçando um sorriso.

 

- Porque sim, é o que tu pareces.

 

Vessovchikov escancarou a boca numa gargalhada sonora.

 

- O que é que te deu agora? - perguntou o Ucraniano surpreendido, detendo-se na frente dele.

 

- Bom, estava a pensar que aquele que alguma vez te insultar é um idiota.

 

- Insultar-me, como?

 

- Não sei - disse Vessovchikov sorrindo com ar bonacheirão. - O que quero dizer é que se um qualquer te insultasse, havia de sentir logo a consciência bem pesada.

 

- Ah,.é ai que queres chegar!... - disse Andrei a rir.

 

- Andrei! - chamou da cozinha a voz da mãe. Este saiu.

 

No momento em que ficou sozinho, Vessovchikov lançou um olhar à sua volta, estendeu a sua perna com uma pesada bota calçada, examinou-a, inclinou-se, apalpou a sua grossa barriga da perna, depois levou a mão à altura do rosto, olhando atentamente a palma e em seguida as costas. Era uma mão robusta, de dedos curtos e coberta de pêlos de cor clara. Agitou-a no ar e levantou-se.

 

Quando Andrei voltou com o samovar, Vessovchikov estava diante do espelho.

 

- Há muito tempo que não olhava para o meu focinho. Sorriu ironicamente e acrescentou:

 

- É feio que se farta!

 

- E porque é que te hás-de importar agora com isso? disse Andrei, olhando-o com curiosidade.

 

- Sachenka diz que a cara é o espelho da alma! - murmurou lentamente Nikolai.

 

- Pois não é verdade. Ela tem o nariz aquilino, as maçãs do rosto como tesouras, e a alma como uma estrela.

 

Vessovchikov olhou para ele e sorriu.

 

Sentaram-se para o chá.

 

Vessovchikov serviu-se de uma batata grande, salgou abundantemente um pedaço de pão, e pôs-se a mastigar tranquilamente como um boi.

 

- E como vão as coisas por aqui? - perguntou com a boca cheia.

 

Quando Andrei, satisfeito, lhe contou como estavam a introduzir a propaganda na fábrica, ficou de novo sombrio e disse com voz surda:

 

- É muito lento, tudo isso, muito lento. Temos de ir mais depressa.

 

A mãe olhou-o e voltou a experimentar um sentimento de animosidade contra ele.

 

- A vida não é um cavalo que se possa fazer andar mais depressa à força de chicotadas - disse Andrei.

 

Mas Vessovchikov sacudia teimosamente a cabeça.

 

- É demasiado lento, eu não tenho paciência, o que é que hei-de fazer?

 

Abriu os braços num gesto de impaciência, olhou para o Ucraniano e calou-se, aguardando uma resposta.

 

- Temos todos de aprender, e ensinar aos outros, é essa a nossa tarefa - disse Andrei devagar.

 

- E o combate, quando será?

 

- Sei bem que vamos levar muita pancada - disse o Ucraniano com um sorriso. - Mas quando será o momento da batalha, isso não posso sabê-lo. Olha, primeiro temos de armar as nossas cabeças, e só depois as mãos, acho eu.

 

Nikolai continuava a comer. A mãe ia observando furtivamente o seu rosto largo, tentando encontrar algo que a reconciliasse com ele, com aquele tipo maciço talhado a golpes de escalpelo. Quando encontrava o olhar penetrante dos seus pequenos olhos, as pálpebras da mãe batiam assustadas. Andrei estava agitado. Falava, ria, e subitamente calava-se e punha-se a assobiar.

 

A mãe julgava compreender a sua perturbação, mas Nikolai permanecia sentado e em silêncio, e quando o Ucraniano lhe perguntava alguma coisa ele respondia lacónico e visivelmente contrariado.

 

A mãe e Andrei sentiam-se incomodados e apertados no pequeno quarto, e lançavam olhares furtivos ao visitante.

 

Por fim, este levantou-se:

 

- Vou-me deitar... Tanto tempo preso, agora de repente soltaram-me, caminhei... Estou exausto.

 

Foi para a cozinha, ainda se mexeu, agitado, durante um bocado, e depois ficou imóvel como um morto. A mãe, que estava à escuta, murmurou para Andrei:

 

- Pensa coisas terríveis...

 

- É um rapaz difícil - concordou o Ucraniano movendo a cabeça. - Mas isto passa-lhe. Eu também já fui assim. Quando no coração não arde uma boa chama, forma-se fuligem. Vá deitar-se, mãezinha, eu ainda fico um bocadinho a ler.

 

Ela foi até ao canto onde estava a sua cama, separado por uma cortina de chita, e Andrei, sentado à mesa, ainda ouviu durante muito tempo o murmúrio débil das suas orações e dos seus suspiros. Voltando rapidamente as páginas do livro enxugava a testa febril, cofiava o bigode com os seus dedos grandes, agitava os pés. O pêndulo do relógio batia, o vento gemia na janela.

 

A voz baixa da mãe ouviu-se:

 

- Meu Deus, tanta gente que há no mundo, e cada um se queixa à sua maneira. Será que há pessoas felizes?

 

- Há sim, e em breve serão muitos, muitos! - respondeu o Ucraniano como um eco.

 

O tempo ia passando rapidamente, com os seus dias de fisionomias variadas, claros ou sombrios. Aquilo que cada um deles ia trazendo de novo já não afligia a mãe. Cada vez com mais frequência, vinham desconhecidos a meio da noite, falavam com Andrei em voz baixa, parecendo preocupados, e só saíam muito tarde, de gola levantada e o gorro enterrado até aos olhos. Desapareciam na noite, sem ruído para não levantar suspeitas. Sentia-se que todos eles ocultavam a sua excitação, que todos teriam desejado cantar e rir, mas que, sempre apressados, não tinham tempo. Uns, irónicos e graves, outros, cheios de uma força que transbordava de juventude, outros ainda, pensativos e serenos, todos tinham, aos olhos da mãe, o mesmo ar obstinado e confiante, e embora tivessem cada um os seus traços particulares, era para a mãe como se se fundissem num só rosto delgado, animado por uma tranquilidade resoluta, uma fisionomia clara e uns olhos graves de olhar profundo, acariciador e sério, o olhar de Cristo a caminho de Emaús.

 

A mãe ia-os contando e imaginava-os como uma multidão que rodeava Pavel. No meio deles, o seu filho poderia passar mais despercebido aos olhos dos seus inimigos.

 

Uma noite, chegou da cidade uma rapariga de cabelos frisados. Trouxe um pacote para Andrei, e ao partir despediu-se de Pelágia com um olhar alegre e brilhante:

 

- Até à vista, camarada!

 

- Até à vista! - respondeu a mãe contendo um sorriso. Depois de acompanhar a jovem à porta, aproximou-se dajanela para, sorrindo, olhar a sua "camarada" que se afastava pela rua caminhando alegre com o seu passo miúdo, fresca como uma flor da Primavera, ligeira como uma borboleta.

 

"Camarada", pensou a mãe quando a visitante se perdeu' de vista. "Ah, minha querida! Que Deus te dê um bom camarada para toda a vida!"

 

Notava muitas vezes nestes visitantes da cidade algo de infantil, e sorria com indulgência, mas o que mais a emocionava e lhe causava uma agradável surpresa era a sua fé, de cuja profundidade se apercebia cada vez melhor. Estes jovens sonhavam com o triunfo da justiça, e isso era para ela comovente e reconfortante. Ao escutá-los, suspirava sem querer, tomada de uma vaga tristeza. Mas aquilo que mais a sensibilizava era a naturalidade deles, o seu belo e generoso esquecimento de si próprios.

 

Compreendia já grande parte das suas discussões sobre a vida. Pressentia que eles tinham descoberto a verdadeira causa da infelicidade dos homens, e concordava já espontaneamente com as suas opiniões. Mas no fundo não acreditava que conseguissem modificar a vida à sua maneira, nem que tivessem forças bastantes para insuflar a sua chama a toda a classe trabalhadora. Cada um quer ser saciado imediatamente, ninguém quer adiar o seu almoço para amanhã, se puder comê-lo hoje. Poucos seriam os capazes de seguir aquele caminho longo e difícil. Nem todos os olhos seriam capazes de ver que esse caminho conduzia ao reino maravilhoso da fraternidade universal. Era por isso que os visitantes, apesar das suas barbas e dos seus rostos, alguns deles fatigados, lhe pareciam crianças.

 

"Meus queridos filhos!", pensava ela, abanando a cabeça.

 

Mas todos eles viviam uma vida recta, séria e inteligente, falavam bem e, desejosos de transmitir os seus conhecimentos a outros, faziam-no incansavelmente. Pelágia compreendia que eles pudessem amar este modo de vida, apesar dos perigos e, suspirando, recordava o seu próprio passado, que lhe vinha ao pensamento como uma estrada interminável, sombria, estreita, limitada. Sem que desse por isso, foi-se formando nela uma tranquila consciência da utilidade que poderia dar agora à sua vida. Nunca antes tinha sentido que a sua vida fosse útil a ninguém, e agora via claramente que eram muitos os que dela necessitavam. Era para ela uma sensação nova e feliz, que a fazia erguer a cabeça...

 

Continuava pontualmente a levar as folhas para a fábrica, com a sensação de estar a cumprir um dever. Já era apenas mais uma, a quem os polícias não prestavam atenção. Muitas vezes a tinham revistado, mas sempre no dia seguinte àquele em que tinha aparecido a propaganda. Quando não trazia nada com ela, sabia atrair as suspeitas dos bufos e dos guardas. Então detínham-na, revistavam-na toda, ela fingia zangar-se, pegava-se com eles, e depois de os ter enganado ia-se embora orgulhosa da sua esperteza. Era um jogo que começava a agradar-lhe.

 

Vessovchikov não tinha sido readmitido na fábrica. Empregou-se como moço de recados numa serração, e andava pelo bairro a entregar carregamentos de vigas, tábuas e lenha. A mãe quase todos os- dias o via passar. Fincando no chão as patas, que estremeciam com o peso da carga, seguiam os dois cavalos pretos, velhos, escanzelados, balançando as cabeças cansadas e tristes, os olhos inflamados piscando de cansaço. Atrás deles estendia-se uma viga que oscilava, comprida e molhada, ou uma pilha de tábuas que chocavam ruidosamente umas contra as outras. Ao lado, deixando as rédeas lassas, seguia Nikolai, andrajoso, coberto de farrapos, calçando umas botifarras e de chapéu caído para a nuca, rígido e desajeitado como uma raiz saída da terra. Também ele balançava a cabeça, de olhos fixos no solo. Os cavalos chocavam contra as carroças e contra as pessoas que vinham em sentido contrário. À sua volta voavam insultos furiosos como moscardos, e gritos zangados que rasgavam o ar. Ele, sem levantar a cabeça, sem responder, lançava assobios estridentes e ia resmungando com os cavalos:

 

- Andem! Tomem lá!

 

Sempre que os camaradas de Andrei se reuniam em sua casa para ler os folhetos ou o último número de um jornal impresso no estrangeiro, Nikolai chegava, sentava-se num canto, e escutava em silêncio durante uma hora ou duas. Terminada a leitura os jovens discutiam longamente, mas Vessovchikov jamais tomava parte na conversa. Ficava até um pouco mais tarde, e de uma vez, estava sozinho com Andrei, perguntou-lhe com o seu ar tosco:

 

- E quem foi o grande culpado disto tudo?

 

- O primeiro que disse: "Isto é meu." Olha, foi alguém que já morreu há milhares de anos, e já não vale a pena zangarmo-nos com ele - disse Andrei em tom de brincadeira, mas com uma expressão inquieta.

 

- Mas... os ricos? E todos aqueles que os protegem?

 

O Ucraniano inclinava-se, com a cabeça entre as mãos, retorcia o bigode e falava longamente e com simplicidade sobre a vida e sobre os homens. Mas das suas palavras depreendia-se sempre que ninguém era perfeito, e isso não agradava a Nikolai. Apertava os seus grossos lábios, abanava negativamente a cabeça, num tom desconfiado declarava que não era assim, e saía, descontente e sombrio.

 

Uma vez, gritou:

 

- Não, tem de haver responsáveis, andam por aí, sou eu que te digo... Há que passar o arado a fundo, por todo o lado, como num campo cheio de ervas daninhas, sem piedade!

 

- Isso foi o que o apontador Isaías disse um dia de ti! observou a mãe.

 

- Isaías? - perguntou Vessovchikov após uma pausa.

 

- Sim, o malvado, espia toda a gente, faz perguntas, passa a vida na nossa rua, espreita pelas janelas...

 

- Espreita? - repetiu Nikolai.

 

A mãe estava já deitada e não lhe via a cara, mas achou que tinha falado demais, porque o Ucraniano replicou vivamente em tom conciliador:

 

- Ora! Deixa-o andar, e espreitar, se não tem mais nada que fazer...

 

- Não, espera! - disse Nikolai em surdina. - É ele o culpado.

 

- De quê? De ser parvo? Vessovchikov não respondeu e saiu.

 

O Ucraniano deu alguns passos pelo quarto, lentamente, cansado, arrastando as suas pernas secas e compridas como as patas de uma aranha. Tinha tirado as botas, como de costume, para não incomodar Pelágia, mas esta não dormia.

 

- Estou assustada! - disse ela inquieta, depois de Nikolai ter saído.

 

- Sim - disse o Ucraniano, arrastando as palavras. - Ele é muito irritável. Não lhe fale de Isaías, mãezinha. Isaías é um bufo e anda realmente a espiar-nos.

 

- Não é de admirar, tem um compadre que é polícia.

 

- Pode ser que Nikolai lhe dê uma tareia - continuou Andrei alarmado. - São esses os sentimentos que os senhores oficiais da nossa sociedade fazem nascer nos simples soldados. Quando as pessoas como o Nikolai tomarem consciência das humilhações que sofreram, e se lhes acabar a paciência, o que é que vai acontecer? O sangue vai espirrar até às nuvens, e a terra vai-se cobrir de espuma vermelha como sabão a derreter-se.

 

- É terrível, Andrei! - disse a mãe com doçura.

 

- Se as moscas não os picassem, já eles não escoiceavam

- disse Andrei após um silêncio. - E no entanto, cada gota de sangue já terá sido lavada por torrentes de lágrimas do povo.

 

Riu levemente e acrescentou:

 

- Será justo, mas não me consola.

 

Um domingo, quando a mãe, ao regressar das compras, abriu a porta e chegou ao patamar, sentiu-se subitamente inundada de uma alegria que era como a chuva cálida de um dia de Verão. Acabava de ouvir, no quarto, a voz de Pavel.

 

- Chegou! - gritou o Ucraniano.

 

Ela notou a rapidez com que o seu filho se voltou, e como os olhos dele se iluminavam com uma emoção prometedora de grandes alegrias.

 

- Voltaste... para casa - murmurou. A surpresa fê-la vacilar, e sentou-se.

 

Ele inclinou-se por cima da mãe. Estava pálido, e duas lágrimas pequenas e claras brilhavam nos seus olhos. Tremiam-lhe os lábios.

 

O Ucraniano passou por eles a assobiar e saiu.

 

- Obrigado, mãezinha! - disse Pavel numa voz profunda e baixa, segurando a mão dela entre os seus dedos trémulos. Obrigado, querida mãe.

 

Estremecendo de alegria ao ver o rosto do filho e ao ouvir o tom da sua voz, acariciou-lhe a cabeça e, reprimindo as batidas do seu coração, disse:

 

- Louvado seja Deus! Porque me agradeces?

 

- Pela tua ajuda na nossa grande causa. Quando um homem pode dizer que sua mãe lhe é querida também pela comunhão de espírito, isso é uma felicidade rara.

 

Em silêncio, de coração a transbordar, a mãe aspirava avidamente estas palavras e contemplava-o cheia de amor. Estava ali, na frente dela, tão aberto, tão próximo...

 

- Mãezinha, eu via que a nossa vida era desagradável e dura para ti, pensava que nunca chegarias a sentir-te bem connosco, nem a adoptar a nossa forma de pensar, que irias suportando em silêncio, como suportaste sempre tudo. Custava-me muito...

 

- Andrei fez-me compreender muitas coisas.

 

- Sim, ele já me contou - disse Pavel rindo.

 

- Igor também. Somos da mesma aldeia. Andrei até me quis ensinar a ler.

 

- E a mãe teve vergonha, e pôs-se a aprender sozinha, às escondidas.

 

- Ah! Ele andou a espreitar-me - disse ela envergonhada, e, agitada e feliz, propôs a Pavel:

 

- Vamos chamá-lo, saiu lá para fora para não nos incomodar. Ele... como não tem mãe...

 

- Andrei! - gritou Pavel abrindo a porta da rua. - Onde estás?

 

- Aqui. Vou rachar lenha.

 

- Chega cá!

 

Andrei não veio imediatamente, mas ao entrar na cozinha disse, falando como se fosse o dono da casa:

 

- É preciso dizer a Nikolai que traga lenha, já não há muita. Já viu, mãezinha, como está o nosso Pavel? Em vez de castigar os revoltosos, as autoridades engordam-nos.

 

A mãe riu-se. Tinha o coração a transbordar de uma doce euforia, estava ébria de alegria, mas já um sentimento de avara prudência lhe fazia desejar ver o seu filho tranquilo, como dantes. Era uma felicidade grande demais para ela, e aquela alegria, a primeira grande alegria da sua vida, queria fechá-la para sempre dentro da sua alma, para que aí permanecesse, viva e forte, tal como havia entrado. Receosa de que aquela felicidade lhe fugisse, apressava-se a escondê-la rapidamente, como um passarinheiro que por sorte tivesse conseguido apanhar um pássaro raro.

 

- Vamos para a mesa, Pavel. Não deves ter comido nada disse ela solícita.

 

- Não, o carcereiro disse-me ontem que tinham decidido soltar-me hoje, por isso esta manhã não consegui comer nem beber.

 

- O primeiro que encontrei quando cheguei - contava Pavel. - foi o velho Sizov. Quando me viu atravessou a rua para me cumprimentar. Disse-lhe: -Agora é preciso cuidado comigo, sou um homem perigoso, e estou debaixo da vigilância da polícia." Respondeu-me que não fazia mal. E sabem o que me perguntou com respeito ao sobrinho? -E Theo, tem-se portado bem na prisão?" "O que é que quer dizer com portar-se bem?" "Bom... se não se lhe escapou alguma palavra que comprometesse os camaradas..." Quando lhe disse que Theo é um rapaz inteligente e leal, cofiou a barba e disse-me com orgulho: "Na nossa família, dos Sizov, não há gente má."

 

- Não é tolo, o velhote - disse Andrei inclinando a cabeça. - Conversamos muito os dois, é um bom homem. E Theo? Irão soltá-lo em breve?

 

- Eu penso que irão soltá-los a todos. Não têm provas contra eles, para além das denúncias de Isaías, mas o que é que o Isaías pode dizer?

 

A mãe ia e vinha, contemplando o seu filho. De pé, junto à janela, com as mãos atrás das costas, Andrei escutava o relato de Pavel, que passeava pelo quarto. A sua barba tinha crescido, e formava pequenos caracóis negros que suavizavam o seu rosto moreno.

 

- Para a mesa! - chamou a mãe servindo o almoço. Enquanto almoçavam, Andrei fez recair a conversa sobre

 

Rybine. Quando acabou de contar o que se passara, Pavel disse com pena:

 

- Se eu cá tivesse estado, não o teria deixado partir. Que levou ele consigo? Um grande sentimento de revolta, e um punhado de ideias confusas.

 

- Sim, mas quando um homem tem quarenta anos, e há muito que se bate contra os seus próprios fantasmas, é difícil transformá-lo.

 

Entabularam então uma discussão utilizando muitas palavras que, como de costume, eram incompreensíveis para a mãe. Tinham acabado de almoçar e continuavam a metralhar-se encarniçadamente com um dilúvio de palavras difíceis. Uma ou outra vez exprimiam-se de forma mais simples.

 

- Devemos seguir o nosso caminho sem nos desviarmos um centímetro - declarou Pavel com firmeza.

 

- E nesse caminho chocaremos com dezenas de milhões de homens que nos tratarão como inimigos.

 

A mãe escutava. Compreendia que Pavel não gostava dos camponeses, enquanto Andrei tomava a sua defesa e tentava demonstrar que também a eles era preciso ensinar o caminho certo. Ela compreendia melhor Andrei, e parecia-lhe que era ele quem tinha razão, mas de cada vez que ele dizia alguma coisa a Pavel, apurava o ouvido e sustinha a respiração, esperando com impaciência a resposta dele, ansiosa por saber se o Ucraniano o teria ofendido. Mas, embora discutissem com ardor, nenhum deles se irritava com o outro.

 

De vez em quando, Pelágia perguntava ao filho:

 

- Isso é verdade, Pacha?

 

E ele respondia sorridente:

 

- Claro que sim!

 

- O senhor - dizia Andrei com amável sarcasmo - comeu bem, mas não mastigou bem a comida, e tem um pedaço atravessado na garganta. Devia gargarejar.

 

- Não sejas parvo - respondia Pavel.

 

- Estou tão sério como num enterro.

 

A mãe abanava a cabeça e ria baixinho.

 

Aproximava-se a Primavera, e a neve começava a derreter, deixando a descoberto a lama e a fuligem que estavam dissimuladas sob a sua brancura. De dia para dia a lama tornava-se presente de uma forma cada vez mais agressiva, e o bairro inteiro parecia vestido de farrapos sujos. Durante o dia os telhados gotejavam, as paredes cinzentas das casas pareciam suar e fumegar cansaços, até que, ao crepúsculo, de novo por toda a parte se formavam estalactites de gelo de um branco duvidoso. O sol começava a mostrar-se cada vez.

 

Com maior frequência e começava a ouvir-se o murmúrio dos regatos que corriam para o pântano.

 

Preparava-se a festa do Primeiro de Maio.

 

Na fábrica e no bairro circulavam as folhas, a explicar o significado desta festa, e até os jovens que ainda não lhes tinham prestado muita atenção diziam ao lê-las: - É preciso organizar isto!

 

Vessovchikov, sempre rabujento, exclamava:

 

- Vai sendo tempo, já basta de jogarmos às escondidas. Theo Mazine regozijava-se. Tinha emagrecido muito, e onervosismo dos seus gestos e das suas frases fazia lembrar uma cotovia numa gaiola. Ia sempre acompanhado por lakov Somov, um rapaz taciturno, mais sério do que o normal para a sua idade, que trabalhava agora na cidade. Samoilov, que parecia ainda mais ruivo desde que tinha saído da prisão, Vassili Goussev, Bukhine, Dragunov, e alguns outros, consideravam necessário arranjarem algumas armas, mas Pavel, o Ucraniano, Somov e outros não estavam de acordo.

 

Chegou Igor, cansado, suado, a arfar, como sempre. Gracejava:

 

- A derrocada do poder estabelecido é uma grande obra, camaradas, mas para que se processe com maior rapidez, tenho de comprar umas botas novas. - E mostrava as suas, rotas e molhadas. - As minhas galochas padecem da mesma enfermidade incurável, e ando o dia todo com os pés encharcados. Não quero partir deste mundo antes de termos abjurado o velho, publica e claramente. Por isso declino a proposta do camarada Samoilov sobre uma demonstração armada, e proponho que me armem a mim com um par de sólidas botas, o que, estou plenamente convencido, será muito mais útil ao triunfo do socialismo do que a melhor cena de pancadaria.

 

No mesmo tom irónico contou como o povo tentava, em vários países, melhorar as suas condições de vida. A mãe gostava de ouvir estes discursos, que provocavam nela uma estranha impressão. Os mais astutos inimigos do povo, os que mais cruelmente o enganam, eram uns homenzinhos barrigudos e vermelhuscos, sem escrúpulos, ávidos, falsos e sem piedade. Quando o poder dos czares lhes dificultava a vida, excitavam a arraia miúda contra ele, e quando esta se sublevava e arrancava o poder das mãos do czar, estes homenzinhos conseguiam habilmente apoderar-se dele e devolviam ao povo a sua triste condição de oprimidos. Quando o proletariado discutia com eles, faziam-no chacinar às centenas e aos milhares.

 

Um dia, encheu-se de coragem, contou-lhes qual era a visão que ela própria tinha das coisas, e no fim perguntou, sorrindo um pouco receosa:

 

- É assim, Igor Ivanovitch?

 

Este começou a rir, rolando os olhos, respirou fundo, e esfregou o peito com as mãos.

 

- É de facto assim. A mãezinha conseguiu agarrar o touro da História pelos cornos. Enfeitou um pouco as coisas à sua maneira, mas são detalhes que não modificam em nada aquilo que é importante. São justamente esses homenzinhos balofos os maiores pecadores e os insectos mais venenosos que picam o povo. Os franceses chamam-lhes placidamente "burgueses.. Lembra-te, mãezinha, "bur-gue-ses...". Devoram-nos, chupam-nos o sangue.

 

- Os ricos? - perguntou a mãe.

 

- Exactamente. Repare, se aos poucos se for deitando cobre na comida de uma criança, isso impedirá o desenvolvimento do esqueleto, e ela torna-se anã. Da mesma forma, se se intoxica um homem com ouro, a sua alma torna-se pequena, lívida e cinzenta, como uma bola de borracha de cinco kopeks.

 

Pavel disse uma vez referindo-se a Igor:

 

- Sabes, Andrei, aqueles que mais brincam são os que mais sofrem...

 

O Ucraniano ficou silencioso por um momento e depois respondeu:

 

- Se isso fosse verdade, a Rússia inteira morreria de tanto rir.

 

Natacha reapareceu. Também ela tinha estado presa, noutra cidade, mas isso não a modificara em nada. A mãe reparou que na presença dela o Ucraniano era mais alegre, gracejava, metia-se com todos sem malícia nem maldade, e fazia-a rir, mas quando ela se ia embora punha-se a assobiar tristemente as suas intermináveis canções, e punha-se a andar no quarto para lá e para cá, arrastando os pés.

 

Sachenka vinha muitas vezes, sempre sombria, sempre apressada, e tornava-se cada vez mais cortante e mais brusca.

 

De uma vez Pavel acompanhou-a até à saída, e não fecharam a porta, e a mãe ouviu a sua rápida conversa:

 

- Será você a levar a bandeira, Vlassov?

 

- Sim, tenho esse direito.

 

- Será de novo a prisão.

 

Pavel não respondeu.

 

- Você não pode... - deteve-se ela.

 

- O quê?

 

- Deixar para outro...

 

- Não - disse ele em voz alta.

 

- Pense bem. Você aqui tem muita influência, gostam de si, você e Nakhodka são os dois mais activos, há tantas coisas que vocês poderão fazer, se estiverem em liberdade... Pense bem, vão desterrá-lo para longe, por muito tempo.

 

A mãe julgou encontrar na voz de Sachenka dois sentimentos que ela bem conhecia: a angústia e o medo. As palavras da rapariga caíram sobre o seu coração de mãe como grossas gotas de água gelada.

 

- Não, estou decidido - disse Pavel. - Nada me fará renunciar.

 

- Nem sequer se eu lhe suplicar?

 

Pavel respondeu imediatamente com uma voz áspera.

 

- Não deve falar assim. O que é que pensa? Não deve...

 

- Sou um ser humano - disse ela mansamente.

 

- Sim, uma boa rapariga - respondeu Pavel com doçura, mas num tom estranho, como se lhe faltasse a respiração. -

 

Um ser que me é muito querido. E precisamente por isso... não deve falar assim.

 

- Adeus - disse a jovem.

 

Pelo barulho dos tacões dos seus sapatos, a mãe percebeu que se afastava rapidamente, quase correndo. Pavel saiu atrás dela.

 

Pelágia sentia o peito esmagado por um terror doloroso e asfixiante. Não tinha compreendido bem a conversa, mas pressentia uma desgraça.

 

"O que irá ele fazer?"

 

Pavel regressava com Andrei, que dizia abanando a cabeça:

 

- Que havemos de fazer com esse maldito Isaías?

 

- Aconselhá-lo a abandonar a sua actividade de delator disse, sombrio, Pavel.

 

- Filho, que vais fazer? - perguntou a mãe de cabeça baixa.

 

- Quando?... Agora?

 

- No... no Primeiro de Maio.

 

- Ah! - exclamou Pavel num tom mais baixo. - Vou levar a bandeira. Vou colocar-me com ela à frente de todos... e por isso é provável que me metam outra vez na prisão.

 

Os olhos da mãe luziram, secou-se-lhe a boca. Pavel tomou-lhe a mão e acariciou-lha.

 

- Tenta compreender. É uma coisa que eu tenho de fazer.

 

- Eu não digo nada - murmurou ela erguendo a cabeça. Mas ao cruzar o olhar brilhante e obstinado de Pavel, cur-vou-a novamente.

 

Ele largou-lhe a mão, suspirou e disse em tom de censura:

 

- Não devias entristecer-te, mas alegrar-te. Quando haverá mães capazes de enviar corajosamente os seus filhos... até para a morte?...

 

- Oh, oh! - resmungou o Ucraniano. - Lá vai o grande senhor a galope!

 

- Eu disse alguma coisa? - repetiu a mãe. - Eu não te impeço, e se me sinto triste, isso são coisas do meu coração de mãe.

 

Ele afastou-se, e Pelágia ouviu estas palavras duras, cortantes.

 

- Há afectos que matam... ou que não deixam viver.

 

A mãe estremeceu com medo que ele dissesse alguma coisa que pudesse feri-la, e gritou energicamente:

 

- Não fales assim, Pacha! Eu compreendo que não podes fazer outra coisa... pelos camaradas...

 

- Não. Por mim próprio.

 

Andrei deteve-se um momento no umbral. Era da altura da porta e parecia estar numa moldura. Dobrava pitorescamente os joelhos, apoiava um ombro na ombreira, e projectava o pescoço, a cabeça e o outro ombro para a frente.

 

- O senhor fazia melhor em ficar calado - disse com ar sombrio, olhando Pavel com os seus olhos salientes.

 

Parecia um lagarto na fenda de uma pedra. A mãe sentiu vontade de chorar, mas não quis que o filho se apercebesse, e murmurou apressadamente:

 

- Meu Deus, tinha-me esquecido...

 

Entrou no vestíbulo e aí, com a cabeça apoiada na esquina da parede, deu livre curso às suas lágrimas. Chorava docemente, sem gemidos, sentindo-se desfalecer como se, juntamente com as lágrimas, lhe jorrasse o sangue do coração.

 

- Parece que te divertes a atormentá-la! - dizia o Ucraniano.

 

- Não tens o direito de dizer isso - respondeu Pavel.

 

- Não seria um bom camarada se me calasse perante as tuas parvoíces. Sabes, ao menos, porque razão lhe disseste aquilo?

 

- Há que saber dizer com firmeza sim e não.

 

- À tua mãe?

 

- A todos. Não quero amor nem amizade que me retenham, me cortem as pernas.

 

- Ora o herói! Vai-te assoar! E vai dizer tudo isso a Sachenka, que é quem deve ouvir essas coisas.

 

-Já lhe disse.

 

- Desta maneira? Mentira! Com Sachenka falaste ternamente, com doçura. Não te ouvi, mas sei. Na frente da tuamãe tiveste de armar em herói. Compreende, animal, que esse teu heroísmo não vale um kopek.

 

Pelágia enxugou rapidamente as lágrimas do rosto. Temia que o Ucraniano ofendesse Pavel. Apressou-se a abrir a porta e, entrando na cozinha a tremer de frio e de medo, disse:

 

- Que frio! E estamos na Primavera...

 

Remexendo à toa nos utensílios de cozinha, levantou o tom de voz numa tentativa de dominar a voz dos rapazes, mais grave, e disse:

 

- As coisas mudam. As pessoas andam acaloradas, o tempo arrefece. Antigamente, nesta altura, já fazia calor, o céu estava claro e o sol brilhava.

 

Fez-se um silêncio no quarto. Ela deixou-se ficar na cozinha, esperando não sabia o quê.

 

- Ouviste? - perguntou em voz baixa o Ucraniano. - É preciso compreender, que diabo! Ela tem mais coração do que tu...

 

- Querem chá? - perguntou a mãe com voz insegura. E sem esperar resposta, para ocultar o seu tremor, gritou:

 

- Não sei o que tenho, que estou gelada.

 

Pavel aproximou-se dela lentamente. Deitou-lhe um olhar furtivo e os lábios agitaram-se-lhe num sorriso culpado.

 

- Perdoa-me, mãe - disse ele a meia-voz. - Continuo a ser um garoto, e um tolo...

 

- Não me fales assim - disse ela tristemente, apoiando a cabeça de Pavel contra o seu peito. - Não me digas nada! Faz o que quiseres, é a tua vida... Mas não me digas palavras duras. Poderá uma mãe não sentir piedade? Não, eu sinto pena por todos vocês. Tenho-vos amor, a todos! E vocês bem o merecem. Quem, se não for eu, se compadecerá de vocês? Tu vais, atrás de ti outros partirão, deixarão tudo... Pavlucha!

 

Sentia no seu coração um pensamento grande e cheio de um ardor que lhe dava asas e a inspirava. Era alegria misturada com angústia e sofrimento. Mas não encontrava palavras e, angustiada por não saber exprimir-se, agitava a mão e deitava a Pavel um olhar abrasado por uma intensa dor.

 

- É verdade, màezinha. Perdoa-me, eu compreendo murmurou Pavel baixando a cabeça e dirigindo-lhe um olhar rápido e sorridente. Logo acrescentou, afastando-se confuso mas alegre:

 

- Não hei-de esquecer-me disto. Palavra de honra.

 

Ela recuou também. Com o olhar procurou Andrei que estava no quarto, e disse-lhe com uma voz suplicante e afectuosa:

 

- Andrei... não se zangue com ele. Claro que você é mais velho...

 

O Ucraniano, que estava de costas, não se voltou, mas rugiu com uma voz estranhamente cómica:

 

- Ai zango! E se for preciso até lhe dou uma surra. A mãe foi devagar até ele com a mão estendida.

 

- Meu bom, meu querido Andrei...

 

- O Ucraniano afastou-se, baixou a cabeça como um touro, e com as mãos atrás das costas passou junto dela e foi até à cozinha, de onde a sua voz ressoou num tom de amarga ironia:

 

- Sai daqui, Pavel, se não queres que te arranque a cabeça. Estava a brincar, mãezinha, não acredite. Vou preparar o samovar. Ah, que porcaria de carvão este! Está todo húmido! Que porcaria!

 

Calou-se. Quando a mãe entrou na cozinha estava de cócoras preparando o samovar. Murmurou sem olhar para ela:

 

- Não tenha medo, eu não lhe toco, sou mais manso que um cordeirinho. E tu, herói, não ouças isto. Gosto muito dele. Só não gosto do seu colete. Estreou um colete novo, imagine, e está radiante. Anda por aí de peito para fora, a empurrar toda a gente, "vejam o meu belo colete!-. É claro que o colete é bonito, mas vale a pena andar a empurrar as pessoas? Já estamos aqui bastante apertados.

 

Pavel sorriu.

 

- Ainda vais ficar muito tempo para aí a resmungar? Uma boa resposta não te chega?

 

O Ucraniano, que continuava de cócoras, observava o

 

samovar que tinha colocado entre as pernas. A mãe, de pé junto à porta, fixava os seus olhos afectuosos e tristes na nuca redonda e no pescoço largo e curvado de Andrei. Este inclinou-se para trás, apoiou as mãos no chão, olhou a mãe e o filho, piscou os olhos congestionados, e disse:

 

- Vocês são boa gente. Essa é que é a verdade. Pavel aproximou-se e puxou-o por um braço.

 

- Não puxes, vais fazer-me cair.

 

- Porque é que vocês estão aborrecidos? - disse tristemente a mãe. - Podiam dar um bom abraço...

 

- Queres? - perguntou Pavel.

 

- Porque não? - respondeu Andrei levantando-se.

 

Abraçaram-se. Imóveis por um instante, os seus dois corpos não eram mais do que uma só alma que ardia numa amizade eterna.

 

Lágrimas caíam pelo rosto da mãe, mas desta vez não eram lágrimas amargas. Enxugou-as, confusa:

 

- Nós, mulheres, gostamos de chorar. Choramos de tristeza como choramos de alegria.

 

O Ucraniano afastou Pavel com um gesto brando, secando também os olhos.

 

- Basta, chega de brincadeira.

 

- Porcaria de carvão! De tanto soprar as brasas, já tenho os olhos a arder.

 

Pavel sentou-se junto à janela e olhava para o chão.

 

- Estas não são lágrimas que envergonhem ninguém... disse ele suavemente.

 

A mãe veio sentar-se junto dele. Uma sensação de coragem suave e leve enchia o seu coração. Sentia-se triste, mas também feliz e serena.

 

- Eu ponho a mesa, deixe-se estar sossegada e sentada, mãezinha - disse o Ucraniano dirigindo-se para o quarto. Descanse agora, já foi hoje bastante massacrada.

 

Quando ele deixou de se ver, a sua voz clara tornou-se mais sonora.

 

- E bom viver assim, como seres humanos.

 

- Sim - disse Pavel lançando um olhar à mãe.

 

- Tudo mudou - disse esta. - A dor é outra e a alegria também.

 

- Tinha de ser assim - replicou o Ucraniano. - Há um coração novo que cresce, mãezinha, e é por isso que a vida cresce também. Chega um homem iluminado com o fogo da razão, que grita, que chama: "Eh, povos de todas as nações, unidos numa só família!" E à sua chamada todos os corações, juntando aquilo que têm de melhor, se unem num só coração imenso, forte, sonoro como um sino de prata...

 

A mãe apertou os lábios com força para os impedir de tremer, e fechou oS olhos para reter as lágrimas.

 

Pavel levantou a mão, ia a dizer qualquer coisa, mas a mãe baixou-lha, murmurando:

 

- Deixa-o falar!

 

- Sabem? A humanidade tem ainda muito que sofrer. Ser-lhe-á sugado ainda muito sangue, mas tudo isto, a minha dor e o meu sangue, são um resgate pequeno para aquilo que tenho já no meu peito e na minha cabeça... Sou rico, cintilo como uma estrela... Suportarei tudo, aguentarei tudo, porque nasceu em mim uma alegria que nada nem ninguém podem destruir. É nesta alegria que está a minha força.

 

Beberam o seu chá, e sentados à mesa até à meia-noite conversaram amigavelmente sobre a vida, a humanidade, o futuro.

 

Quando compreendia uma ideia, Pelágia suspirava, escolhia uma recordação do seu passado, difícil sempre e sempre rude, e servia-se dela como pedra de toque para melhor compreender esse pensamento.

 

O seu temor tinha-se fundido na cálida torrente da conversa, e sentia-se agora como no dia em que o pai lhe tinha dito com dureza:

 

"Não te faças esquisita! Apareceu um imbecil que quer casar contigo, agarra-o. Todas as raparigas se casam, todas as mulheres têm filhos, todos os filhos são uma carga para os pais. Tu não és um ser humano?"

 

Viu então o inevitável caminho que na sua frente se estendia, sem horizonte, em torno de um lugar deserto e sombrio. E a necessidade fatal de tomar esse caminho tinha enchido o seu coração de uma calma resignada e cega. Sentia agora a mesma coisa-. Mas pressentindo a chegada de uma nova desgraça, dizia no seu íntimo sem saber a quem:

 

- Toma, aguenta!

 

Assim aliviava a secreta dor que, vibrando, ressoava dentro de si como uma corda esticada.

 

No fundo da sua alma, que a ansiedade da espera perturbava, ardia a chama de uma esperança, débil, mas viva. A esperança de que não o prendessem, não o levassem todo. Alguma coisa dele teria de ficar.

 

De manhã, quando Pavel e Andrei tinham acabado de sair, Maria Korsunova bateu ansiosamente na janela, e gritou agitada:

 

- Mataram o Isaías! Vamos lá vê-lo!

 

A mãe tremeu. O nome do assassino atravessou a sua mente como um relâmpago.

 

- Quem foi? - perguntou rapidamente pondo um xaile pelos ombros.

 

- Quem quer que fosse, não se deixou lá ficar a olhar para ele, que diabo! Matou-o e fugiu! - respondeu Maria.

 

Pelo caminho continuou:

 

- Agora vão começar a investigar, a procurar o culpado. Ainda bem que os teus rapazes estavam em casa esta noite, eu posso testemunhá-lo. Passei diante da vossa casa perto da meia-noite, olhei pela janela, estavam todos sentados à mesa.

 

- Que dizes, Maria? Como poderiam acusá-los? - exclamou a mãe aterrada.

 

- Quem o teria morto? Certamente foram os vossos - disse Maria com convicção. - Toda a gente sabe que ele andava a espiar-vos.

 

A mãe deteve-se sem fôlego, e pôs a mão sobre o peito.

 

- Que tens tu? Não tenhas medo! Aquele que o matou não o fez para roubar. Vamos depressa, antes que o levem...

 

A pesada lembrança de Vessovchikov fez titubear Pelágia.

 

"Afinal sempre o matou!", pensava ela aturdida.

 

Não muito longe dos muros da fábrica, junto à porta de uma casa que tinha ardido há pouco tempo, uma multidão de gente reunida zumbia como um enxame de abelhas pisando os restos calcinados e a cinza que esvoaçava. Estavam lá muitas mulheres e uma multidão de garotos, lojistas, moços da taberna, vários polícias, entre os quais Petline, um velho de barba prateada e medalhas ao peito.

 

Isaías estava meio recostado no chão. Tinha as costas apoiadas numa viga enegrecida pelo fogo, e a sua cabeça descoberta pendia sobre o ombro direito. Tinha a mão direita no bolso das calças e os dedos da esquerda cravados na terra mole.

 

A mãe observou-lhe o rosto. Os olhos vítreos pareciam estar fixos no gorro, colocado entre as suas pernas, molemente estendidas. Tinha a boca entreaberta numa expressão de assombro, e a barba ruiva estava eriçada de um lado. O corpo magro, com a cabeça ponteaguda e o rosto ossudo e coberto de manchas, parecia mais pequeno, como se a morte o tivesse encolhido. A mãe persignou-se, suspirando. Vivo, causava-lhe repugnância, mas agora inspirava-lhe uma certa piedade.

 

- Não há sangue - observou alguém a meia-voz. - Deve ter sido a murro.

 

Uma voz atrevida disse muito alto:

 

- Calaram o bico a um bufo!

 

O polícia teve um sobressalto e, separando com as mãos o grupo das mulheres, perguntou ameaçadoramente:

 

- Quem é que disse isso, hem?

 

As pessoas separaram-se instintivamente. Alguns fugiram rapidamente. Ouviu-se uma risada maliciosa.

 

A mãe voltou para casa.

 

"Ninguém o chora", pensava ela.

 

A silhueta maciça de Nikolai erguia-se na frente dela como uma sombra. Nos seus olhos pequenos havia um olhar frio e cruel, e balançava a mão direita como se lhe doesse...

 

Assim que Pavel e Andrei chegaram para o almoço, perguntou-lhes:

 

- Então? Não prenderam ninguém, por causa do Isaías?

 

- Não ouvimos dizer nada - respondeu o Ucraniano. Viu que estavam ambos acabrunhados.

 

- Não dizem nada do Nikolai? - inquiriu em voz baixa. O olhar severo do filho pousou sobre ela, e respondeu

 

realçando bem as palavras:

 

- Não. Nem sequer pensam nele. Não está cá. Ontem ao meio-dia foi para o rio, e ainda não voltou. Tive notícias dele...

 

- Bom... graças a Deus! - disse a mãe, com um suspiro de alívio. - Graças a Deus!

 

O Ucraniano deitou-lhe um olhar e baixou a cabeça.

 

- Está estendido... - continuou a mãe, pensativa. - Tem uma cara... de assombro. E ninguém o chora, ninguém tem uma palavra de compaixão. Está tão pequeno que quase não se vê. Parece um bocado de uma coisa qualquer que se partiu e ficou ali caída no chão.

 

Durante o almoço, Pavel afastou bruscamente a colher e exclamou:

 

- Não compreendo!

 

- O quê? - perguntou o Ucraniano.

 

- Matar um animal, só porque precisamos de comer, já é repugnante. Matar um animal selvagem, uma ave de rapina, é compreensível. Eu próprio seria capaz de matar um homem que fosse como uma besta selvagem para os seus semelhantes. Mas matar um ser tão miserável... como se pode levantar a mão para fazer uma coisa assim?

 

Andrei encolheu os ombros e disse:

 

- Não era menos daninho que um animal feroz. Matamos o mosquito que nos chupa uma gota do nosso sangue...

 

- Claro, não queria dizer isso. Só digo que me repugna.

 

- O que é que se pode fazer? - replicou Andrei encolhendo de novo os ombros.

 

Fez-se um longo silêncio.

 

- Serias capaz de matar assim alguém? - pergntou Pavel pensativo.

 

O Ucraniano olhou-o com os seus olhos redondos. Em seguida lançou à mãe um rápido olhar e respondeu tristemente mas com firmeza:

 

- Pelos camaradas... pela nossa causa, seria capaz de tudo. Mataria até o meu próprio filho.

 

- Oh Andrei!... - exclamou a mãe debilmente. Este sorriu:

 

- Não se pode fazer de outra maneira. É a vida!

 

- Sim... - repetiu lentamente Pavel. - A vida...

 

De repente, tomado por uma súbita excitação, obedecendo a um impulso interior, Andrei levantou-se, agitando os braços.

 

- Que podemos nós fazer? Somos obrigados a odiar a humanidade, para que venha mais depressa o momento em que poderemos admirá-la sem reservas. É preciso destruir aquele que constitui um obstáculo à marcha da vida, ao que vende o seu próximo por dinheiro, por interesse ou por honras. Se no caminho dos justos há um Judas que os espera para os atraiçoar, eu seria um outro Judas se o não destruísse. Acham que não tenho esse direito? E os nossos patrões? Têm o direito de dispor de soldados e de carrascos, de casas de prostituição, de prisões, de colónias penais e de tudo o que é infame, para protegerem a sua segurança e o seu bem-estar? E se um dia eu lhes puder tirar o cacete das mãos? Que faço? Não vou recusá-lo, mas sim empunhá-lo. Matamnos os nossos às dezenas e às centenas... Isso dá-me o direito de levantar o meu braço e abatê-lo sobre a cabeça doinimigo, daquele que avança para mim para destruir a obra de toda a minha vida... A vida é assim. Luto contra a minha própria vontade. Sei que o sangue do inimigo não cria nada, não é fecundo! A verdade cresce quando o nosso sangue rega a terra como uma espessa chuva, mas o deles é sangue podre, desaparece sem deixar rastro. Sei de tudo isso. Pois então tomarei esse crime sobre as minhas costas. Matarei se necessário for. Falo apenas em meu nome, e esse é um crime que morrerá comigo, não manchará o futuro nem com a mais leve partícula, não sujará ninguém... ninguém, senão a mim. Ia e vinha pelo quarto agitando a mão direita, como se cortasse alguma coisa no ar, à sua frente, e a arremessasse para longe. Cheia de aflição e tristeza, a mãe olhava-o. Compreendia que alguma coisa se havia quebrado dentro dele, e que sofria. Os seus pensamentos sombrios e temerosos em relação ao assassinato tinham-na abandonado. "Se Vessovchikov não era o assassino, então nenhum dos outros camaradas de Pavel poderia sê-lo", pensava ela. Pavel, de cabeça baixa, escutava o Ucraniano que continuava com energia e determinação.

 

- Enquanto avançamos, temos de lutar às vezes até contra nós próprios. Temos de ser capazes de tudo sacrificar, até o coração. Consagrar a vida a uma causa, morrer por ela, não é difícil. Sacrifica mais, sacrifica também aquilo que te é mais querido que a própria vida; crescerá então com pujança o teu maior tesouro: a tua verdade.

 

Parou no meio do quarto, pálido, com os olhos semicerrados. Prosseguiu, levantando a mão como para fazer um juramento solene:

 

- Sei que virá o tempo em que os homens se admirarão mutuamente, em que cada um será como uma estrela aos olhos dos outros. A Terra será um lugar onde só viverão homens livres, engrandecidos pela liberdade. Cada um caminhará de coração descoberto, puro de todo o ódio, e nenhum homem conhecerá a maldade. Então, a vida será um culto rendido ao homem, a sua imagem elevar-se-á muito alta. Os seres livres podem atingir as alturas... Então a humanidade viverá num mundo de verdade, liberdade e beleza, e os melhores serão aqueles que melhor souberem albergar o mundo no seu coração, e que mais profundamente o amarem. Esses serão de todos os mais livres, e os mais belos. Serão verdadeiramente grandes, os seres humanos que viverem essa vida.

 

Fez um breve silêncio, endireitou-se e disse com uma voz saída do mais profundo do seu ser:

 

- E por essa vida, eu estou disposto a tudo...

 

O seu rosto contraiu-se. Uma após outra, pesadas lágrimas caíram dos seus olhos.

 

Pavel levantou a cabeça e olhou-o. Também ele estava pálido e tinha os olhos inchados. A mãe endireitou-se na cadeira. Sentia uma estranha angústia a crescer à sua volta.

 

- Que tens, Andrei? - perguntou Pavel em voz baixa.

 

O Ucraniano fez um movimento brusco com a cabeça, o seu corpo ficou tenso como uma corda, e disse, olhando Pelágia:

 

- Eu vi... eu sei.

 

Ela levantou-se, aproximou-se dele rapidamente, tomou-Lhe as mãos... ele tentou desprender a mão direita, mas a mãe segurava-lha com força e firmeza e murmurou com emoção:

 

- Meu filho, acalma-te... querido!

 

- Esperem! - disse ele em surdina. - Eu conto-vos como foi...

 

- Não - murmurou ela, olhando-o com lágrimas nos olhos.

- Não é preciso, Andrei...

 

Pavel aproximou-se lentamente, com os olhos húmidos. Estava pálido e sorria:

 

- A mãe tem medo que tenhas sido tu...

 

- Não tenho medo! Não acredito! Ainda que o tivesse visto, não acreditaria!

 

- Esperem - disse o Ucraniano sem olhar para eles, baixando a cabeça e tentando libertar a mão. - Não fui eu... mas podia tê-lo impedido.

 

- Cala-te, Andrei! - disse Pavel.

 

Estreitando a mão do Ucraniano na sua, pousou-lhe a outra no ombro como para fazer parar a tremura daquele corpo enorme. Andrei inclinou-se sobre ele e continuou com voz baixa e entrecortada:

 

- Eu não queria, tu bem sabes, Pavel. Aconteceu assim: tu ias à frente, e eu fiquei à esquina da rua com Dragunov... quando, pela outra rua, se aproximou Isaías. Parou a alguma distância de nós. Olhava-nos com cara de troça. Dragunov disse-me: "Estás a ver? Anda todas as noites a espiar-nos. Ainda dou cabo dele.." E foi-se embora, pensei que fosse para casa. Foi então que Isaías veio junto de mim.

 

Suspirou profundamente.

 

- Nunca ninguém me humilhou tanto como aquele cão. Em silêncio, a mãe puxou-O pelo braço até junto da mesa,

 

até que conseguiu fazê-lo sentar. Em seguida sentou-se ao seu lado. Pavel estava de pé em frente dos dois, e puxava pela barba com ar preocupado.

 

- Disse-me que nos conhecia a todos, que a polícia nos tinha debaixo de olho, e que nos prenderiam a todos antes do Primeiro de Maio. Não lhe respondi, ri-me, mas cá por dentro comecei a ferver. Depois disse-me que eu era um rapaz inteligente, que não devia seguir este caminho, mas sim um outro caminho melhor que ele conhecia...

 

Parou para enxugar o rosto. Os seus olhos tinham um brilho frio.

 

- Compreendo - disse Pavel.

 

- ...melhor... entrar ao serviço da Lei... Estendeu o braço e sacudiu o punho fechado.

 

- Ao serviço da Lei... maldita seja a sua alma! - disse entre dentes. - Seria melhor que me tivesse dado uma bofetada... teria sido menos penoso para mim... e quem sabe para ele. Mas quando me lançou no coração a sua saliva infecta, perdi a paciência.

 

Febrilmente, largou a sua mão da de Pavel, e enojado, com voz surda, acrescentou:

 

- Dei-lhe um murro no meio da cara e fui-me embora. Atrás de mim ouvi Dragunov dizer suavemente: "Deste-lhe bem?!" Tinha ficado à esquina...

 

Depois de um momento de silêncio, continuou:

 

- Eu não me voltei, mas ouvi... ouvi que lhe batiam. Segui tranquilamente como se tivesse afastado um sapo com o pé. Estava no trabalho quando gritaram: "Mataram o Isaías!" Não acreditei. Mas tinha a mão magoada... não a mexia bem. Não me doía propriamente, era como se tivesse encolhido...

 

Olhou de soslaio para a mão:

 

- Acho que nem em toda a minha vida vou conseguir lavar esta nódoa nojenta.

 

- Desde que o teu coração seja puro, meu filho! - disse a mãe docemente.

 

- Eu não me acuso, não - disse o Ucraniano. - Mas repugna-me. Eu não precisava...

 

- Não compreendo bem - disse Pavel encolhendo os ombros. - Não foste tu quem o matou, mas mesmo assim...

 

- Saber que se está a cometer um assassínio, e não fazer nada para impedi-lo...

 

- Não compreendo realmente - disse Pavel com firmeza, e acrescentou após uma breve reflexão:

 

- Quer dizer, posso compreender, mas sentir... não.

 

A sirene apitou. O Ucraniano inclinou a cabeça sobre o ombro para ouvir melhor o seu grito imperioso, e disse com um estremecimento:

 

- Não vou trabalhar.

 

- Eu também não - replicou Pavel.

 

- Vou até aos banhos - disse Andrei com um sorriso. Preparou-se rapidamente, sem dizer uma palavra, e saiu sombrio.

 

- Diz o que quiseres, Pavel. Eu sei... eu sei que é pecado matar um homem, mas parece-me que ninguém aqui é culpado. Senti pena de Isaías, quando o vi... pequeno como uma pulga... quando olhei para ele, lembrei-me que ameaçou fazer que te enforcassem, e já não sentia ódio contra ele, nem alegria por vê-lo morto. A única coisa que sentia era piedade. Mas agora já nem piedade sinto.

 

Calou-se, pensou por um instante e observou com um sorriso estranho:

 

- Senhor Jesus... Pavel, ouves o que te digo?

 

Era evidente que ele não a escutava. De cabeça baixa, pensativo e sombrio, passeava lentamente pelo quarto.

 

- É assim a vida - disse o jovem. - Vês como os homens se põem uns contra os outros? De boa ou de má vontade, temos de bater. E bater em quem? Num homem que privam dos seus direitos como nos fazem a nós, talvez mais desgraçado do que nós, porque ainda por cima é estúpido.

 

A polícia, os agentes, os denunciantes, são nossos inimigos, e no entanto são de carne e osso como nós. Também eles dão o seu suor e o seu sangue, e também eles são considerados pouco mais do que bichos. É sempre a mesma coisa. Desta forma conseguem dividir os homens, cegá-los com a estupidez e o medo, atá-los de pés e mãos, fazê-los suar, esmagá-los e fazer que se firam uns aos outros. Transformam-nos em espingardas, em cacetes, em ferro, e dizem: "É o Estado!"

 

Aproximou-se dela.

 

- É um crime, mãe. Um atroz assassínio de milhões de seres humanos, o assassínio das almas... Compreende, é a alma que eles matam. Tu vês a diferença que há entre eles e nós. Quando um de nós dá um murro num homem, sente vergonha, repugna-lhe, sofre, o seu coração estremece. Já eles... matam gente aos milhares, tranquilamente, sem piedade, sem uma hesitação. Matam por prazer! Estrangulam apenas para conservar o dinheiro, o ouro, os desprezíveis pedaços de papel, todas as porcarias miseráveis que, através do poder, conseguem obter dos outros homens. Pensa bem... não é para se protegerem a si próprios, nem para se defenderem, que chacinam o povo e mutilam as almas, não o fazem por uma questão de sobrevivência, mas por amor aos bens materiais que possuem. Não é por dentro que se protegem, mas por fora.

 

Pegando nas mãos da mãe, inclinou-se acariciando-lhas:

 

- Se pudesses sentir todo este nojo, esta podridão infame, compreenderias a nossa verdade, e até que ponto é grande e bela!

 

A mãe levantou-se, emocionada, invadida pelo desejo de unir o seu coração e o do seu filho numa única chama ardente.

 

- Espera, Pavel, espera! - murmurou radiante. - Estou a começar a compreender, espera!

 

Ouviu-se ruído na entrada. Estremeceram ambos, entreolhando-se.

 

A porta abriu-se lentamente, e entrou Rybine com o seu andar pesado.

 

- Bom! - disse, levantando a cabeça e sorrindo. - Sou eu, cumprimentem-me e façam-me as honras da casa.

 

Vestia um casaco curto de pele de borrego manchado de alcatrão, e calçava alpercatas de casca de bétula entrançada. Trazia umas luvas penduradas no cinturão, e na cabeça um gorro de peles.

 

- Como vai a saúde? Já te soltaram, Pavel? Bom! E tu, Pelágia Nilovna, como vais?

 

Todo ele sorria, mostrando os dentes brancos. A sua voz tinha um timbre mais suave, e o rosto quase desaparecia por detrás da barba cerrada.

 

Feliz por voltar a vê-lo, a mãe aproximou-se dele, apertou-lhe a mão grande e escura, e disse, aspirando o cheiro forte e saudável do alcatrão que dele emanava:

 

- És tu? Como estou contente por te ver! Pavel examinou Rybine e disse com um sorriso:

 

- Está um perfeito mujik!

 

Rybine despiu lentamente o casaco.

 

- Sim, voltei a ser mujik. Vocês tornaram-se um bocadinho mais senhores, eu voltei um pouco para trás, é isso.

 

Alisou a camisa de cotim, entrou no quarto e olhou à volta.

 

- Vejo que os móveis não aumentaram, mas os livros sim. Bem, como vão as coisas?

 

Sentou-se com as pernas bem abertas e as palmas das mãos apoiadas nos joelhos. Fixando em Pavel os seus olhos negros, sorriu bondoso e esperou a resposta.

 

- As coisas não vão mal de todo - disse Pavel.

 

- Lavramos e semeamos, não nos gabamos, e depois da colheita fazemos um bom vass, não é verdade? - brincou Rybine.

 

- E você, Mikhail Ivanovitch, como vai a sua vida? - perguntou Pavel sentando-se defronte do seu visitante.

 

- Também não vai mal de todo. Deixei-me ficar em Enguildievo, conheces? É uma aldeia bonita. Duas feiras por ano, mais de dois mil habitantes, triste gente. Não há terras. Alugam-nas, mas não valem nada. Coloquei-me como moço de recados em casa de uma dessas sanguessugas... São mais do que moscas em cima de um cadáver, por aqueles lados. Extrai-se alcatrão, fabrica-se carvão... ganho quatro vezes menos do que aqui, e fico com as costas duas vezes mais partidas, isso é que é a verdade. Somos sete a trabalhar para este explorador. São todos rapazes do lugar, menos eu, e todos sabem ler. Há um, chama-se Efime, que é um apaixonado, Santo Deus...

 

- E conversa com eles? - perguntou animadamente Pavel.

 

- Não me calo. Levei comigo todas as folhas que vocês fizeram aqui, trinta e quatro, mas prefiro servir-me da minha Bíblia, está lá tudo o que é preciso. Um livro grosso, autorizado e impresso pela Igreja, todos o aceitam.

 

Piscou um olho a Pavel e sorriu:

 

- Mas é pouco, e por isso vim a tua casa buscar mais alguns. Viemos dois, Efime e eu, trazer alcatrão. Fizemos um desvio e viemos visitar-te. Dá-me alguns folhetos antes que Efime chegue, ele também não precisa de saber demasiado. A mãe olhava para Rybine e parecia-lhe que ele não tirara apenas o casaco, havia tirado alguma coisa mais. Já não tinha a gravidade de antes, e o seu olhar tornara-se mais astuto e menos sincero.

 

- Mãezinha - disse Pavel -, vai buscar-nos alguns livros. Eles sabem o que te hão-de dar, diz-lhes que é para as aldeias.

 

- Está bem - disse a mãe. - O samovar está quase a ferver, vou a seguir.

 

- Também tu, Pelãgia Nilovna, estás metida nisto? - perguntou Rybine rindo. - Muito bem. Há muita gente a gostar de livros, lá na aldeia. O professor, por exemplo. Parece-me um bom rapaz, apesar de ter sido educado num seminário. Há também uma professora primária, a sete ou oito verstás. Mas não querem nada com livros proibidos. São empregados do governo e têm medo. Preciso de um desses livros clandestinos, um desses bem subversivos, para fazer circular. Se a polícia ou o pope virem que é um livro proibido, pensarão que foram os professores que lhos deram. A mim, por enquanto, não me conhecem, não tenho nada a ver com o assunto.

 

Satisfeito com a sua esperteza, riu, mostrando os dentes. "Ora vejam!" Pensou a mãe. "Parece um urso, mas é uma raposa!..."

 

- Você acha então - perguntou Pavel - que se suspeitarem que os professores andam a distribuir livros proibidos os vão meter na prisão por causa disso?

 

- Claro! E então?

 

- Mas terá sido você a distribuir os livros, e não eles. Era você quem devia ir para a prisão!

 

- Espertalhão! - exclamou Rybine rindo e dando palmadas nos joelhos. - Quem é que vai pensar que eu, um simples mujik, possa estar metido nisso? Nunca se viu uma coisa assim. Os livros são coisa de senhores, e são eles que devem responder por isso...

 

A mãe sentia que Pavel não compreendia Rybine. Via o filho franzir as sobrancelhas, o que era nele um sinal de aborrecimento. Por isso resolveu intervir, dizendo cautelosamente:

 

- Mikhail Ivanovitch quer fazer todas essas coisas, mas irão ser castigados outros no seu lugar...

 

- É isso! - afirmou Rybine cofiando a barba. - Para já...

 

- Mãezinha - replicou secamente Pavel -, se um dos nossos, o Andrei, por exemplo, fizesse alguma coisa em meu nome, e me viessem prender a mim, que pensarias tu?

 

A mãe estremeceu, olhou para o filho desconcertada, e respondeu abanando a cabeça negativamente:

 

- Como se pode fazer uma coisa dessas a um camarada?

 

- Ah! - disse Rybine arrastando as sílabas. - Agora compreendo-te, Pavel!

 

Com uma piscadela de olhos maliciosa, dirigiu-se a Pelágia:

 

- Isto, mãezinha, é um assunto delicado. Voltou-se para Pavel adoptando um tom sentencioso:

 

- Tu ainda és um inocente, rapaz. Aquilo que pretendemos fazer é ilegal, não nos podemos preocupar com questões de honra. Pensa um pouco: em primeiro lugar vão meter na cadeia as pessoas que forem encontradas com os livros, e não os professores. Segundo, nos livros autorizados de que os professores se servem vêm as mesmas coisas que vêm nos proibidos, embora não com as mesmas palavras, e com menos verdade. Isto significa que eles anseiam por alcançar o mesmo objectivo que eu, só que eles tomam um caminho muito complicado, enquanto eu vou direito às questões. Para a polícia somos todos igualmente culpados, não é verdade? E terceiro, filho, eu não tenho nada a ver com eles. O peão não é bom companheiro para o cavaleiro. Talvez eu não agisse desta maneira contra um aldeão. Mas trata-se do filho de um pope, e a rapariga é filha de um grande latifundiário, por isso não entendo que motivo podem ter para querer sublevar o povo. Eu, mujik, não posso penetrar nos seus pensamentos de seres instruídos. Sei da minha vida, não sei da deles, nem quero saber. Há mil anos que os grandes muito bem têm vindo a desempenhar o seu ofício de senhores. Esfolaram o camponês, e agora de repente acordaram, e decidiram abrir-lhe os olhos. Eu não acredito em contos de fadas, rapaz, e, como podes ver, é o que esta história parece. Seja como for, esses senhores estão demasiado distantes de mim. Se vou no Inverno pelo campo, e vejo que alguma coisa se agita na minha frente, o que poderá ser? Um lobo, uma raposa, ou apenas um cão, não posso sabê-lo, está demasiado longe.

 

A mãe deitou um olhar a Pavel. Parecia desgostoso.

 

Os olhos de Rybine brilhavam com um fulgor sombrio, e passava, febril, os dedos pela barba.

 

- Não tenho tempo para delicadezas. A vida não se compadece de ninguém. No canil não é como no curral, cada matilha ladra à sua maneira.

 

- Há senhores que se sacrificam pelo povo, que sofrem a vida inteira nas prisões... - disse a mãe, recordando alguns rostos familiares.

 

- Com eles é diferente. Quando o mujik enriquece, transforma-se num senhor, e quando o senhor empobrece, transforma-se em mujik. A alma tem por força de purificar-se, porque a bolsa está vazia. Lembra-te, Pavel. Foste tu que me explicaste que as pessoas pensam de acordo com a sua maneira de viver, e que quando o operário diz que "sim", o patrão deve dizer que "não", e quando o operário diz que "não", o patrão, até pela sua própria condição de patrão, tem de gritar que "sim". Bem, pois o mujik e o senhor também não têm a mesma natureza. Quando o mujik sacia a fome, o senhor não dorme de noite. É claro que todas as classes têm os seus desavergonhados, eu não pretendo defender todos os mujiks...

 

Endireitou-se, escuro, impressionante. O seu rosto tinha-se tornado sombrio, a barba tremia-lhe como se batesse os dentes. Continuou, baixando a voz:

 

- Anelei por aí, de fábrica em fábrica, durante cinco anos, e já estava desacostumado do campo, é isso. Regressei, vi o que se passa por lá, e disse para mim mesmo: "Eu não posso viver assim!" Compreendes? Não posso! Vocês aqui não podem nem imaginar o que são as humilhações que as pessoas sofrem por lá. A fome persegue o ser humano como uma sombra, e as pessoas já nem esperam conseguir o pão necessário. A fome vai devorando as almas, vai criando espectros que já nem fisionomia de homens têm, e apodrecem numa miséria inacreditável. Enquanto isso, à volta deles, as autoridades montam guarda, vigiam-nos como corvos, a ver se terás um pedaço a mais. Se vêem que tens alguma coisa roubam-ta, e ainda por cima te dão pancada...

 

Rybine olhou à sua volta e inclinou-se para Pavel apoiando as mãos sobre a mesa:

 

- Quando voltei a conhecer esta vida de perto, senti vontade de vomitar. Pensei que já não seria capaz de suportá-la. Mas dominei-me. "Não faças disparates", disse para mim mesmo. "Ficarei aqui. Não tenho pão para lhes dar, mas vou semear a desordem." E é Q que farei. Sinto um grande rancor contra aqueles gatunos. A humilhação está-me cravada no coração como se fosse um punhal.

 

Tinha a fronte coberta de suor. Aproximou-se lentamente de Pavel e pousou-lhe no ombro uma mão que tremia.

 

- Ajuda-me! Dá-me livros que não mais deixem descansar aqueles que os lerem. Quero pôr-lhes um ouriço debaixo da cabeça, um ouriço que pique bem. Diz a essa gente da cidade que escreve para vocês que deve escrever também para os camponeses. Que nos preparem um molho com tantas especiarias que vire as aldeias de pernas para o ar, para que os nossos mujiks combatam até à morte.

 

Levantou o braço e acrescentou com voz surda, deixando cair cada palavra:

 

- Curar a morte com a morte, aí está! Isso quer dizer que é preciso morrer para que o mundo ressuscite. E que morrerão milhares, para que milhões vivam sobre a terra. É isso. É fácil morrer. Se os homens ressuscitassem, se se levantassem!...

 

A mãe trouxe o samovar olhando dissimuladamente para Rybine, cujas palavras brutais e violentas a feriam. Havia alguma coisa naquele homem que lhe lembrava o marido. Lembrava-se de ver nele a mesma expressão, o mesmo gesto das mãos quando arregaçava as mangas, a mesma raiva impotente, embora muda. Rybine falava, e parecia agora menos terrível.

 

- Sim, temos de fazer isso. Dêem-nos factos concretos, e nós imprimiremos um jornal.

 

A mãe olhou para Pavel com um sorriso, a seguir vestiu-se em silêncio e saiu.

 

- Imprime-o! Nós arranjamos-te o que for preciso. Mas não escrevas coisas complicadas, tem de ser tão simples que até os carneiros o entendam - exclamou Rybine.

 

A porta do vestíbulo abriu-se, e entrou alguém.

 

- É o Efime - disse Rybine, espreitando para a cozinha. Entra, Efime. Este é o Pavel, o rapaz de quem te falei.

 

Um mocetão robusto, de rosto largo, cabelos acastanhados e olhos cinzentos estava diante de Pavel e olhava-o de cima abaixo. Vestia um casaco curto de pele de carneiro e trazia na mão um gorro de peles.

 

- Como está? - disse com voz rouca. Apertou a mão de Pavel e alisou os cabelos ásperos. Percorreu o quarto com o olhar e em seguida dirigiu-se caminhando lentamente, quase furtivo, até à estante cheia de livros.

 

-Já os viu! - disse Rybine piscando o olho a Pavel. Efime virou-se, olhou-o, e começou a examinar os livros, dizendo:

 

- Tem aqui muito para ler! Não deve ter é muito tempo para isso. Nós no campo temos mais tempo.

 

- E menos vontade? - perguntou Pavel.

 

- Porquê? Pelo contrário! - respondeu o rapaz coçando a barbicha. - As pessoas começam a usar a cabeça. Geologia, o que é?

 

Pavel explicou-lhe.

 

- Não precisamos disso - disse Efime voltando a colocar o livro no seu lugar. - O mujik não está interessado em saber de onde surgiu a terra, mas sim de que maneira foi distribuída, de que maneira os poderosos a roubaram ao povo. Que a terra gire ou que não se mova, isso não nos importa. Por mim até podem pendurá-la numa corda, contanto que dê de comer, que alimente os seus.

 

- História da escravidão - continuou Efime a ler, e perguntou de novo:

 

- Fala de nós?

 

- Aqui há um sobre a servidão - disse Pavel estendendo-lhe outro livro.

 

O camponês pegou-lhe, revirou-o nas mãos, em seguida pousou-o e disse tranquilamente:

 

- Isso são coisas do passado.

 

- Você tem terras arrendadas?

 

- Nós? Sim, temos. Somos três irmãos, temos quatro hectares. Areia boa para limpar cobre, mas para o trigo não presta...

 

Depois de um silêncio, continuou:

 

- Libertei-me da servidão da terra. Para que serve a terra? Não nos dá o sustento e ata-nos as mãos. Há quatro anos que trabalho como assalariado rural. No Outono vou para a tropa. Aqui o paizinho Mikhail diz-me "não vás!". Diz que agora mandam/a tropa bater no povo, mas eu penso ir. Também no tempo de Pougatchev e de Stenka Razine a tropa combateu contra o povo. Temos de acabar com isso. O que é que você acha? - disse ele olhando fixamente Pavel.

 

- Sim, é altura - respondeu o jovem com um sorriso. - Só que não é fácil. Temos de saber o que havemos de dizer aos soldados, como havemos de falar-lhes...

 

- Aprende-se, há-de conseguir-se! - disse Efime.

 

- Se o apanham, podem fuzilá-lo - ctisse Pavel olhando o camponês com curiosidade.

 

- Eles não perdoam, isso é certo! - concordou tranquilamente o rapaz, e de novo se pôs a examinar os livros.

 

- Bebe o teu chá, Efime. Temos de ir andando! - disse Rybine.

 

-Já vamos... Revolução, significa revolta?

 

Chegou Andrei, vermelho, suado e taciturno. Apertou em silêncio a mão de Efime, sentou-se junto de Rybine e depois de o olhar atentamente começou a rir.

 

- Pois não pareces muito contente... - comentou o Ucraniano.

 

- Também é operário? - perguntou Efime designando Andrei com um movimento de cabeça.

 

- Sim - disse Andrei. - Porquê?

 

- É a primeira vez que vê operários fabris - explicou Rybine. - Ele acha que são pessoas diferentes.

 

- Porquê? - perguntou Pavel.

 

Efime observou Andrei atentamente, e disse:

 

- Têm os ossos mais ponteagudos. O mujik tem-nos mais arredondados.

 

- O mujik aguenta-se nas pernas com mais firmeza - acrescentou Rybine. - Sente a terra debaixo dos pés. Mesmo não sendo sua, é a terra. O operário da cidade é como um pássaro. Não tem morada certa. Hoje está aqui, amanhã está ali. Nem sequer uma mulher é para ele uma amarra.. À primeira discussão com ela... adeus querida... passa bem. E vai procurar coisa melhor noutro sítio, já d mujik prefere ficar onde está, não gosta de mudar de poiso. Ah, chegou a mãe!

 

Efime aproximou-se de Pavel e perguntou:

 

- Quer emprestar-me um livro?

 

- Com muito prazer - respondeu Pavel.

 

Os olhos do rapaz brilharam de avidez, e acrescentou com vivacidade:

 

- Eu devolvo-lho. Os companheiros trazem alcatrão para perto de aqui, e eu mando-lho por eles.

 

Rybine tinha voltado a vestir o casaco, cingindo bem o cinturão:

 

- Vamos, já é tempo.

 

- Agora, já tenho que ler - exclamou Efime, mostrando os dentes num sorriso rasgado.

 

Quando partiram, Pavel disse para Andrei:

 

- Viste-me estes diabos?

 

- Sim... - disse lentamente o Ucraniano. - Parecia que vinham das nuvens.

 

- Vocês estão a falar de Rybine? - interrompeu a mãe. - É como se nunca tivesse estado a trabalhar na fábrica. Voltou a ser um perfeito mujik! E é terrível!...

 

- Foi pena que não estivesses aqui - disse Pavel a Andrei que, sentado à mesa, contemplava sombrio o seu copo de chá. - Tu, que falas tanto do coração, terias podido observar o que vai pelo coração de Rybine. Expressou aqui ideias tão absurdas que me deixaram transtornado, sem fôlego... nem sequer consegui responder-lhe. Como ele desconfia da humanidade, e como a detesta! A mãe é que tem razão, este homem alberga dentro de si uma força terrível...

 

- Eu bem o vi - disse Andrei, sempre carrancudo. - Envenenaram os homens. QUando se erguerem vão derrubar todos os obstáculos, um por um. Precisam da terra nua à sua frente, vão arrancar tudo aquilo que a cobre.

 

Falava devagar, e percebia-se que o seu pensamento estava noutro lugar. A mãe disse-lhe com ternura:

 

- Esquece um pouco, Andrei.

 

- Espere, mãezinha, espere - replicou ele doce e afectuosamente.

 

E, reagindo subitamente, disse, batendo com o punho na mesa.-

 

- Sim, Pavel, se os camponeses se sublevarem, vão destruir tudo à sua passagem! Como depois de uma peste, vão arrasar tudo para fazer desaparecer nas cinzas os vestígios de todas as humilhações sofridas.

 

- E a seguir vão atravessar-se no nosso caminho - observou suavemente Pavel.

 

- A nossa missão é não permitir que isso aconteça. Temos de os conter, Somos quem está mais perto deles, hão-de acreditar-nos. Hão-de seguir-nos.

 

- Sabes, Rybine propôs que editássemos um jornal para ser distribuído pelas aldeias.

 

- Temos de fazê-lo!

 

- Sinto-me envergonhado - disse Pavel rindo - por não ter trocado mais algumas ideias com ele.

 

O Ucraniano observou calmamente:

 

- Haverá outra ocasião. Toca a tua flauta, e aqueles que não tiverem os pés enterrados na terra hão-de dançar ao som da tua música. O que Rybine diz é verdade; não sentimos a terra debaixo dos pés. E ainda bem, uma vez que somos nós que vamos ter de a pôr em movimento. Hão-de seguir-nos quando a sacudirmos uma primeira vez, depois outra vez havemos de a sacudir, e de novo nos hão-de seguir.

 

A mãe sorriu:

 

- Andrei, para ti tudo é simples.

 

- É verdade - replicou ele. - Simples. Como a própria vida.

 

Uns instantes depois, disse:

 

- Vou dar uma volta pelo campo.

 

- Depois do banho! Está um vento capaz de trespassar uma pessoa... - disse a mãe.

 

- É disso justamente que eu preciso.

 

- Tem cuidado, vais constipar-te - disse Pavel solícito. Fazias melhor se te fosses deitar.

 

- Não, vou sair.

 

Vestiu-se e saiu sem uma palavra.

 

- Anda desgostoso - observou a mãe com um suspiro.

 

- Sabes - disse Pavel -, depois do que se passou... fazes bem em tratá-lo por tu.

 

Ela olhou-o admirada:

 

- Mas eu nem dou por isso! É uma coisa minha... não sei como hei-de explicar-te.

 

- Tens bom coração, mãe - disse Pavel em voz baixa.

 

- Se pudesse ajudar-te, por pouco que fosse... e aos outros... se soubesse!

 

- Não te preocupes, tu vais saber ajudar-nos. Ela pôs-se a rir docemente:

 

- Bem, há uma coisa que não sei: não ter medo!

 

- Não falemos mais, mãe. Mas quero que saibas que te estou muito grato.

 

A mãe foi para a cozinha, para não o perturbar com as suas lágrimas.

 

O Ucraniano regressou de noite, já tarde, cansado, e deitou-se imediatamente dizendo:

 

- Devo ter andado pelo menos dez verstás.

 

- E fez-te bem?

 

- Vou dormir, não me maces!

 

Calou-se e ficou a dormir como uma árvore.

 

Pouco depois chegou Vessovchikov, esfarrapado, sujo e mal humorado como sempre.

 

- Não ouviste dizer quem matou o bandido do Isaias? perguntou, passeando desajeitadamente pelo quarto.

 

- Não - disse Pavel secamente.

 

- Bem, algum tipo que não teve nojo. E eu que tanto queria estrangulá-lo... era uma coisa que estava talhada mesmo para mim.

 

- Não digas uma coisa dessas, Nikolai! - disse-lhe Pavel em tom amigável.

 

- É verdade! - interveio afectuosamente a mãe. - Você tem bom coração, e no entanto não pára de fazer ameaças. Porquê?

 

Naquele momento, comprazia-se em olhar para Nikolai. Parecia-lhe ver mesmo alguma beleza no seu rosto marcado pelas bexigas.

 

- Sou um inútil que só diz tolices - disse ele com um encolher de ombros. - Penso, penso, e onde é o meu lugar? Não vejo nenhum. É preciso falar às pessoas, e eu não sei fazê-lo. Vejo todas as vilanias que fazem aos homens, sinto-as, mas não consigo exprimi-las. A minha alma não sabe falar.

 

Aproximou-se de Pavel e, de cabeça baixa, arranhando a mesa com o dedo, disse com uma voz de queixume, como a de um garoto, uma voz que não era a sua voz habitual:

 

- Dêem-me um trabalho duro, não importa qual seja. Não consigo viver assim, sem fazer nada. Vocês todos estão em actividade. Eu vejo que as coisas avançam, mas eu estou à margem. Carrego vigas, tábuas... não se pocle viver só para isso. Dêem-me um trabalho duro!

 

Pavel pegou-lhe por uma mão, puxando-o para si:

 

- Vamos dar-to.

 

Mas do outro lado do tabique, ouviu-se a voz do Ucraniano:

 

- Nikolai, eu ensino-te os caracteres de imprensa e tu passas a ser um dos nossos tipógrafos, queres?

 

Vessovchikov aproximou-se do tabique:

 

- Se me ensinares, ofereço-te um canivete...

 

- Vai para o diabo com o teu canivete! - exclamou o Ucraniano, desatando a rir.

 

- Um bom canivete! - insistiu Nikolai.

 

Pavel ria também. Nesse momento, Vessovchikov deteve-se e perguntou:

 

- Vocês estão a rir-se de mim?

 

- Naturalmente! - respondeu Andrei saltando da cama. Vem, vamos passear pelo campo, está um luar lindíssimo. Vamos?

 

- Está bem - disse Pavel.

 

- Eu também vou - declarou Nikolai. - Gosto de te ouvir rir, Nakhodka.

 

- E eu gosto de te ouvir... prometer presentes. Enquanto se vestia na cozinha, a mãe disse-lhe em tom

rabujento:

 

- Agasalha-te melhor!

 

E quando os três saíram, foi olhá-los pela janela. Em seguida deitou um olhar aos ícones, e disse:

 

-Senhor... ajuda-os!

 

Os dias sucediam-se com uma tal rapidez que a mãe não conseguia nem sequer ter tempo para pensar no Primeiro de Maio. Só à noite, quando, fatigada da ruidosa agitação e das emoções do dia, se deitava na sua cama, sentia o coração oprimir-se-lhe de melancolia:

 

-Já falta pouco...

 

Ao amanhecer a sirene da fábrica uivava. Pavel e Andrei bebiam apressadamente o seu chá, comiam qualquer coisa e saíam, deixando a mãe entregue a um sem número de afazeres. E ela passava o dia inteiro às voltas como um pássaro numa gaiola. Fazia a comida, preparava uma espécie de gelatina de cor violeta para se imprimirem os cartazes e também a cola para os afixarem, recebia desconhecidos que lhe entregavam bilhetes para Pavel e logo desapareciam, contagiando-a com a sua excitação.

 

Esses cartazes, que convidavam os operários a festejar o Primeiro de Maio, apareciam quase todas as noites nas vedações, e até na porta da esquadra da polícia. Todos os dias surgiam na fábrica. De manhã os polícias calcorreavam o bairro. Arrancavam as folhas violetas, raspavam, praguejavam. À hora do almoço já eles voavam de novo pelas ruas, caíam aos pés dos transeuntes. Chegaram da cidade agentes da polícia secreta. Encostados às esquinas, observavam atentamente os operários que iam almoçar, ruidosos e animados, ou que regressavam ao trabalho. Toda a gente se divertia com a impotência da polícia, e até os operários mais idosos diziam com um sorriso nos lábios:

- O que é que eles podem fazer?

 

Por todo o lado se formavam pequenos grupos que discutiam acaloradamente aquele apelo perturbador. A vida fervilhava nessa Primavera, e era uma vida que a todos parecia mais interessante, a cada um trazia algo de novo. A uns, uma razão mais para se sentirem irritados contra os sediciosos e os cobrirem de insultos: a outros, uma vaga inquietação e uma esperança; a um punhado deles, uma alegria pungente e a consciência de serem eles a força que estava despertando todos os outros.

 

Pavel e Andrei quase não dormiam. Chegavam a casa um momento antes da chamada da sirene, cansados, roucos, pálidos. A mãe sabia que se organizavam reuniões pelos bosques e no pântano. Não ignorava que os delatores vigiavam, os destacamentos da polícia montada rondavam toda a noite pelo subúrbio, detendo e revistando os operários que seguiam sozinhos, dispersando grupos, prendendo às vezes este ou aquele. Ela bem sabia que uma noite também Pavel e Andrei podiam ser presos, e quase o desejava, parecendo-lhe que seria melhor para eles.

 

Sobre o assassínio de Isaías tinha-se feito um estranho silêncio. Durante dois dias a polícia local tinha interrogado uma dezena de pessoas sobre o assunto. Em seguida, parecia ter-se desinteressado do caso.

 

Maria Korsunova, em conversa com a mãe, contou-lhe o que se comentava na polícia, com quem estava de excelentes relações, como estava aliás com toda a gente.

 

- Como é que eles vão descobrir o culpado? Naquela manhã Isaías foi visto por mais de cem pessoas, das quais pelo menos umas noventa com muito prazer lhe teriam dado uma boa sova. Há sete anos que não parava de incomodar toda a gente.

 

O Ucraniano modificava-se a olhos vistos. O seu rosto estava mais magro, e as pesadas pálpebras caiam-lhe sobre os olhos salientes, semicerrando-lhos. Das asas do nariz desciam-lhe agora duas finas rugas até às comissuras dos lábios. Falava menos das coisas do quotidiano, mas inflamava-se cada vez mais, tomado de um entusiasmo que contagiava aqueles que o ouviam, exaltando o futuro, a festa luminosa e magnífica do triunfo da liberdade e da razão.

 

Quando a morte de Isaías parecia esquecida, disse um dia num tom desdenhoso, sorrindo tristemente:

 

- Se não amam o povo, os nossos inimigos também não estimam aqueles que lhes servem de cães de fila. Não lamentam o seu fiel Judas, mas sim as suas moedas de prata.

 

- Não fales mais nisso, Andrei - disse Pavel com firmeza. A mãe acrescentou a meia-voz:

 

- Um tronco apodrecido levou uma pancada, e desfez-se em pó.

 

- É justo, mas não me consola! - replicou Andrei taciturno.

 

Repetia muitas vezes estas palavras que, na sua boca, se revestiam de um significado particular, mais abrangente, amargo e corrosivo.

 

E chegou por fim o tão esperado Primeiro de Maio.

 

A sirene chamou como de costume, imperiosa e dominadora. A mãe, que não tinha pregado olho toda a noite, saltou da cama e acendeu o samovar que tinha ficado preparado de véspera. Ia, como todos os dias, bater à porta de Pavel e Andrei, mas deteve-se, deixou cair o braço e sentou-se junto à janela, apoiando o rosto sobre a mão, como se lhe doessem os dentes.

 

Pelo céu azul pálido, um rebanho de nuvens leves, brancas e rosa, deslizava ligeiro. Dir-se-ia um bando de pássaros que fugiam voando, assustados com o rugido surdo do vapor. A mãe fitava as nuvens e ouvia as batidas do seu coração. Sentia a cabeça pesada e os seus olhos, congestionados pela insónia, estavam secos. Reinava uma estranha calma no seu peito, as batidas do seu coração eram regulares, e ela pensava em coisas sem importância.

 

- Acendi o samovar cedo demais, vai evaporar-se. Deixá-los dormir mais um bocadinho, andam os dois tão cansados!

 

Um raiozinho de sol, alegre e familiar, entrou pela janela. Pelágia estendeu a mão, e quando ele pousou, luminoso, sobre os seus dedos, acariciou-o docemente com a outra mão, sorridente e pensativa. Em seguida levantou-se, retirou o tubo do samovar e, esforçando-se por não fazer ruído, lavou-se e pôs-se a rezar, persignando-se com fervor e movendo os lábios silenciosamente. O seu rosto ia-se iluminando, enquanto, abaixo da cicatriz, a sua sobrancelha direita se elevava lentamente para logo voltar a descer.

 

Soou a segunda chamada da sirene, menos forte, menos segura, com um som trémulo, denso, concentrado. Pareceu também à mãe mais longo que o habitual.

 

Ouviu-se a voz clara do Ucraniano:

 

- Pavel, estás a ouvir?

 

Enquanto um, descalço, arrastava os pés pelo chão, o outro bocejava bem disposto.

 

- O samovar está pronto - disse a mãe.

 

- Já nos levantamos - respondeu alegremente Pavel.

 

- Já nasceu o sol - disse Andrei. - E há nuvens a passar. As nuvens hoje estão a mais.

 

Entrou na cozinha despenteado, com olhos de sono, mas alegre.

 

- Bons dias, mãezinha. Dormiu bem?

 

Ela aproximou-se e disse-lhe em voz baixa:

 

- Andrei, vais estar ao lado dele, não é verdade?

 

- Claro - sussurrou o Ucraniano. - Vamos juntos, e juntos seguiremos seja para onde for, pode ter a certeza.

 

- Que estão vocês a conspirar? - perguntou Pavel.

 

- Nada!

 

- Está a dizer-me para me lavar bem. As raparigas vão olhar para nós - disse Andrei saindo para o pequeno vestíbulo para se lavar.

 

- De pé, ó vítimas da fome.,. - cantarolou Pavel.

 

O dia ia clareando, e as nuvens desapareciam varridas pelo vento. A mãe olhou para a mesa, moveu a cabeça sem compreender. Os dois amigos gracejando, sorrindo, naquela manhã... em que ninguém podia saber o que os esperava ao meio-dia.

 

Ela própria se sentia tranquila, quase alegre.

 

Deixaram-se ficar sentados à mesa um longo momento, esforçando-se por abreviar o tempo de espera. Pavel, como sempre, remexia lenta e minuciosamente com a colher para desfazer o açúcar no fundo do copo, e salgava cuidadosamente um pedaço de côdea, a parte do pão de que mais gostava. O Ucraniano agitava os pés debaixo da mesa. Nunca conseguia colocá-los comodamente quando se sentava, e olhando um raio de sol que se estendia ao longo do tecto e da parede, contou:

 

- Quando eu era um rapazito aí dos meus dez anos, um dia quis agarrar o sol. Peguei num copo, aproximei-me da parede em bicos de pés, e... zás! Fiz um golpe na mão, e ainda por cima me bateram. A seguir vim para o pátio, vi o sol a brilhar num charco, fui lá pisá-lo, salpiquei-me de lama de alto a baixo. Bateram-me outra vez. Então pus-me a gritar para o sol: "Não me dói, diabo encarnado, não me dói!- Deitava-lhe a língua de fora, e ficava contente.

 

- Porque é que ele te parecia vermelho? - perguntou Pavel sorrindo.

 

- Porque defronte da nossa casa morava um ferreiro de cara rubicunda e barba avermelhada. Era um mujik alegre e bondoso, e eu achava que o sol se parecia com ele.

 

Não podendo mais, a mãe disse:

 

- Vocês deviam era falar do que vai acontecer!

 

- Falar daquilo que já está decidido só serve para atrapalhar as coisas - disse Andrei docemente. - Se acontecer que eles nos prendam, mãezinha, o Nikolai Ivanovitch vem cá dizer-lhe o que há-de fazer.

 

- Está bem! - suspirou a mãe.

 

- Devíamos estar na rua - disse Pavel pensativo.

 

- Não, é melhor ficares em casa, à espera - aconselhou Andrei. - Não te interessa seres visto pela polícia. Já te conhecem à légua!

 

Theo Mazine chegou a correr, radiante, com as faces coradas. A emoção e o júbilo de que transbordava dissiparam a tensão do tempo de espera.

 

-Já começou! As pessoas já começaram a movimentar-se, yão pela rua abaixo com umas caras... que parecem machados! O Vessovchikov, o Vassili Goussev e o Samoilov estão desde manhãzinha à porta da fábrica a falar às pessoas. Muitos voltaram para casa. Vamos, chegou o momento, já são dez horas.

 

- Vou então - disse Pavel em tom resoluto.

 

- Vocês vão ver - afirmou Theo -, a esta hora já deve estar tudo em pé de guerra! - e saiu a correr.

 

- Arde como um círio ao vento - disse a mãe com doçura. Em seguida, levantou-se e foi-se vestir.

 

- Onde vai, mãezinha?

 

- Vou com vocês!

 

Andrei olhou para Pavel retorcendo o bigode. Com um gesto vivo, Pavel alisou o cabelo para trás e seguiu-a até à cozinha.

 

- Mãezinha, eu não te direi nada... e tu também não me dirás nada. Entendido?

 

- Sim, sim... e que Deus vos acompanhe! - murmurou ela.

 

Quando, ao sair para a rua, ouviu o rumor das vozes, um rumor inquieto, estremecido da angústia da espera, e quando viu por todo o lado, nas portas e nas janelas, grupos que seguiam Pavel e Andrei com um olhar curioso, apareceu na frente dos seus olhos uma mancha brumosa que ondulava, mudando de cor, ora de um verde transparente, ora de um cinzento turvo:

 

As pessoas cumprimentavam os dois jovens, e aqueles cumprimentos tinham alguma coisa de especial. O ouvido da mãe ia apreendendo fragmentos de comentários feitos em voz baixa.

 

- Lá vão os cabecilhas.

 

- Não sabemos quem são os cabecilhas! *.

 

- Bom, eu também não disse nada de mal. Mais longe, uma voz irritada:

 

- Se a polícia os apanha, estão perdidos.

 

- Isso já se sabe.

 

Um grito exasperado de mulher saiu, aterrado, por uma janela, e chegou à rua:

 

- Perdeste a cabeça? Pensas que ainda és um rapaz novo, ou quê?

 

Quando passaram diante da casa de um tal Zossimov, que tinha perdido ambas as pernas num acidente de trabalho, e por causa disso recebia uma pensão, este assomou a cabeça à janela, e exclamou:

 

- Pavel! Ainda te hão-de torcer o pescoço por causa dessas tuas histórias, imbecil! Podes ter a certeza!

 

A mãe deteve-se, estremecendo. Aquele grito havia despertado nela uma cólera aguda. Olhou fixamente para a cara redonda, inchada, do inválido, que se retirou para dentro a blasfemar. Ela apressou o passo para se juntar a Pavel, e caminhou atrás dele tentando não se atrasar.

 

Pavel e Andrei pareciam não ver nada, não ouvir as exclamações que os acompanhavam. Caminhavam tranquilamente, sem se apressarem. Foram detidos por Mironov, um homem maduro e modesto, respeitado por todos pela sua vida limpa e sóbria.

 

- Também não está a trabalhar, Danilo Ivanovitch? - perguntou Pavel.

 

- A minha mulher está quase a dar à luz. E além disso há hoje muita agitação pelo ar - explicou Mironov. Depois, olhando fixamente os dois camaradas, perguntou: - E vocês, rapazes? Diz-se por aí que querem fazer um escândalo ao director, partir os vidros...

 

- Por acaso estaremos bêbados? - replicou Pavel.

 

- Iremos apenas pela rua, com bandeiras, e cantaremos canções - disse Andrei. - Escute-as, elas proclamam a nossa fé!

 

-Já conheço a vossa fé - respondeu Mironov pensativo. Li os vossos folhetos... Então, Pelágia Nilovna? Também vais com os revoltosos? - perguntou ele, com um sorriso nos seus olhos inteligentes.

 

- É preciso estar do lado da verdade, mesmo quando estamos com os pés para a cova!

 

- Ora vejam... Parece que têm razão aqueles que dizem que és tu que levas os folhetos proibidos para a fábrica.

 

- Quem é que disse isso? - perguntou Pavel.

 

- Diz-se... por aí! Bem, então até logo, e não façam nenhuma tolice...

 

A mãe pôs-se a rir de mansinho. Sentia-se lisonjeada por falarem dela daquela maneira. Pavel sorriu e disse:

 

- Ainda acabas na prisão, mãezinha.

 

O Sol erguia-se no horizonte e misturava o seu calor à estimulante frescura do dia primaveril. As nuvens deslizavam mais lentamente, e a sua sombra tornava-se mais fina, mais transparente. Estas sombras que se moviam preguiçosas pela rua e sobre os telhados envolviam as pessoas. Pareciam purificar o bairro, ocultando o lodo e o pó das paredes e dos telhados e o tédio dos rostos. A alegria era contagiante e as vozes tinham-se tornado mais sonoras, abafando o eco longínquo do ruído das máquinas.

 

Novamente das janelas, dos pátios, de todo o lado, as palavras se escapavam e voavam até aos ouvidos da mãe, inquietas ou maliciosas, resolutas ou alegres. Pelágia teria querido agora replicar, agradecer, explicar, misturar-se na vida excepcionalmente colorida daquele dia.

 

Numa esquina da rua principal, numa ruela estreita, tinha-se reunido uma centena de pessoas. Ouvia-se troar o vozeirão de Vessovchikov:

 

- Espremem-vos o sangue como das groselhas se espreme o sumo.

 

As suas palavras desajeitadas abatiam-se sobre a cabeça dos seus ouvintes.

 

- É verdade! - responderam ao mesmo tempo várias vozes que se misturaram num rumor confuso.

 

- O rapaz está a dar o seu melhor! - disse o Ucraniano. Vamos ajudá-lo.

 

Curvou-se, e antes que Pavel pudesse detê-lo, com o seu corpanzil abriu caminho por entre a multidão, como se fosse um saca-rolhas. A sua voz bem timbrada logo se fez ouvir.

 

- Camaradas, dizem que há muitos povos sobre a Terra, judeus e alemães, ingleses e tártaros. Eu creio que isso não é verdade. Existem apenas dois povos, duas raças irreconciliáveis: os ricos e os pobres. Os homens podem vestir-se de modo diferente, falar de modo diferente, mas quando vemos a forma como os franceses ricos, ou ingleses, ou alemães que sejam, tratam os trabalhadores, apercebemo-nos de que todos eles são verdugos autênticos para os operários. São uma espinha cravada na nossa garganta.

 

Alguém riu por entre a multidão.

 

- E se olharmos as coisas pelo outro lado, vemos que o operário francês, como o tártaro e o turco, leva uma vida de cão igual à que levamos nós, os proletários russos.

 

A multidão não parava de aumentar à sua volta. Um após outro, os operários iam deslizando com dificuldade pela ruelazita estreita, iam-se aproximando silenciosos, esticavam o pescoço, erguiam-se nos bicos dos pés.

 

Andrei levantou a voz:

 

- No estrangeiro, os trabalhadores compreenderam esta verdade tão simples, e hoje, nesta jornada luminosa do Primeiro de Maio...

 

- A polícia! - gritou alguém.

 

Quatro polícias a cavalo dobravam a esquina da rua em direcção ao grupo, e agitando as chibatas gritavam:

 

- Vamos a dispersar!

 

Os rostos tornavam-se sombrios. Diante dos cavalos, a multidão afastava-se de dentes arreganhados. Alguns subiram para as vedações.

 

Uma voz sonora e provocadora gritou:

 

- Puseram os porcos em cima dos cavalos, e eles agora começaram a grunhir que são uns grandes chefes!

 

O Ucraniano ficou sozinho no meio da rua. Dois dos cavalos avançavam para ele movendo as cabeças. Afastou-se enquanto a mãe lhe pegava por um braço, o levava com ela e o censurava entre dentes:

 

- Prometeste ficar junto de Pavel, e agora expões-te a ti próprio a levar pancada!

 

- Desculpe-me! - disse ele sorrindo.

 

Um cansaço, misturado com angústia e abatimento, apoderou-se de Pelágia. Sentia-o crescer pondo-lhe a cabeça a andar à roda, e a tristeza e a alegria apoderavam-se alternadamente do seu coração. Queria ouvir quanto antes a sirene do meio-dia.

 

Chegaram ao largo, junto à igreja. Lá estavam, apertados, sentados ou de pé, uns quinhentos jovens e rapazes cheios de ardor e alegria. A multidão ondulava. As pessoas levantavam a cabeça e olhavam ao longe, para um e outro lado, numa atitude de espera impaciente. Havia no ar uma espécie de efervescência. Uns pareciam desorientados, outros afectavam indiferença. Ouviam-se de quando em quando débeis vozes femininas, que logo eram abafadas pelas dos homens. Estes afastavam-se com desprezo, praguejando e soltando palavrões a meia-voz. Um surdo rumor de palavras ásperas envolvia a multidão.

 

- Mitenka! - tremia uma voz de mulher. - Tem cuidado!

 

- Deixa-me em paz!

 

Ouviu-se a voz de Sizov, grave, persuasiva:

 

- Não, não podemos deixar os jovens sozinhos! A audácia deles é mais sensata que a nossa prudência. Quem foi que fez tudo na história do kopek do pântano? Eles! Não devemos esquecer isso. Todos nós beneficiámos, mas só eles é que foram parar à prisão.

 

O sombrio rugido da sirene abafou o barulho das conversas. Um estremecimento percorreu a multidão. Os que estavam sentados levantaram-se, num instante todos se imobilizaram, tensos, esperando, e muitos rostos empalideceram.

 

- Camaradas!

 

Era a voz de Pavel, sonora e firme. Uma névoa seca velou os olhos da mãe que, recuperando com um só movimento todas as energias do seu corpo, se colocou ao lado do filho. Todos se voltaram para Pavel, rodeando-o como limalha de ferro atraída por um íman. A mãe olhava para ele e apenas via os seus olhos, orgulhosos, audazes, ardentes...

 

- Camaradas! Nós, que decidimos declarar abertamente quem somos, levantamos hoje a nossa bandeira, a bandeira da razão, da verdade, da liberdade.

 

Uma haste comprida e branca surgiu no ar, inclinou-se, desapareceu entre a multidão para se reerguer um instante depois, desfraldando, como um pássaro escarlate, a enorme bandeira do povo trabalhador.

 

Pavel levantou o braço. A haste vacilou. Dezenas de mãos seguraram a madeira lisa e branca, e entre estas mãos estava a da mãe.

 

- Viva o povo trabalhador! - gritou.

 

Centenas de vozes lhe responderam, fazendo um eco fortíssimo.

 

- Viva o Partido Operário da Democracia Social! O nosso Partido, camaradas! A nossa pátria espiritual!

 

A multidão estava efervescente. Aqueles que conheciam o significado do estandarte abriram caminho até ele. Mazine, Samoilov, os dois Goussev, vieram colocar-se junto de Pavel. Nikolai Vessovchikov, de cabeça baixa, fazia de barreira à multidão. Outros que a mãe não conhecia, jovens de olhar inflamado, detinham-na, empurravam-na.

 

- Vivam os operários de todos os países! - gritou Pavel. Com um entusiasmo e uma alegria crescentes, mil vozes

 

lhe responderam num tom sonoro que fazia estremecer a alma. A mãe segurou a mão de Nikolai e a de outro qualquer, sentia-se afogada em lágrimas que não conseguia chorar, e tremiam-lhe as pernas. Balbuciou:

 

- Meus filhos...

 

Um sorriso enorme rasgou-se no rosto bexigoso de Nikolai que fitava a bandeira, estendia o braço para ela e gritava qualquer coisa. De repente baixou a mão, segurou Pelágia pelo pescoço, beijou-a e desatou a rir.

 

- Camaradas! - começou o Ucraniano. Sobrepondo a sua voz doce e bem timbrada ao ruído da multidão. - A nossa procissão vai caminhar em nome de um novo Deus, o Deus da luz e da liberdade. O nosso objectivo está ainda muito longe, e a coroa de espinhos muito próxima. Os que não crêem na força da verdade, os que não tàm a coragem de a defender até à morte, os que nãotêm confiança em si mesmos e temem o sofrimento, devem ir-se embora. Apelamos àqueles que crêem na vitória. Aqueles que não tiverem fé no nosso objectivo, não nos sigam. Só vos espera a desgraça. Formar fileiras, camaradas! Viva a festa dos homens livres, viva o Primeiro de Maio!

 

A multidão tornou-se mais compacta. Pavel agitou a bandeira que se desfraldou, flutuando, brilhando sob o sol como um enorme sorriso vermelho.

 

- De pé, ó vítimas da fome... - entoou Theo Mazine com voz forte.

 

Dezenas de vozes continuaram, numa onda suave e poderosa:

 

- ... De pé, famélicos da Terra...

 

Com um sorriso ardente nos lábios, a mãe caminhava atrás de Mazine, e por cima das cabeças via o seu filho e a bandeira. À sua volta dançavam caras alegres, olhos de todas as cores... Pavel e Andrei iam à frente, ouvia as suas vozes. A de Andrei, doce e velada, misturava-se harmoniosamente com a de Pavel, cheia e mais baixa:

 

- ... Bem unidos, façamos / Desta luta final...

 

E toda gente corria ao encontro do estandarte vermelho, se misturava com os outros e seguia com a multidão, e os seus gritos eram abafados pela canção, aquela canção que em casa cantavam mais baixo que as outras, e que na rua fluía como um rio cheio de força. Parecia a voz da própria audácia, que se por um lado convidava os homens a seguir o longo caminho do futuro por outro lado também os alertava lealmente para as dificuldades que os aguardavam ao longo desse mesmo caminho. Na sua enorme chama serena fun-

diam-se as misérias do passado, a dura cadeia dos sentimentos rotineiros e o maldito temor do futuro que ficavam assim reduzidos a cinzas.

 

Ao pé da mãe, uma figura desconhecida, ao mesmo tempo assustada e alegre, ia-se balançando ao som da canção, e uma voz, trémula de soluços, chamava-o:

 

- Mitri, onde vais?

 

Pelágia respondeu-lhe sem se deter:

 

- Deixe-o ir, não se inquiete. Eu também levo o meu medo na primeira fila. O que leva a bandeira é o meu filho!

 

- Bandidos! Onde vão vocês? A tropa está lá em baixo! Agarrando subitamente o braço de Pelágia com a sua mão ossuda, a mulher, alta e magra, exclamou:

 

- Como eles cantam! E Mitri a cantar também!

 

- Não se inquiete - murmurou a mãe. - Esta é uma causa santa! Pense que não existiria Cristo se por amor dele não tivessem morrido tantos!

 

Este pensamento tinha subitamente nascido no seu espírito e tinha-a surpreendido pela verdade clara e simples que encerrava. Olhou o rosto da mulher que lhe apertava o braço, e repetiu com um sorriso de espanto.

 

- Não haveria Cristo se não tivesse morrido tanta gente por ele, por Nosso Senhor.

 

Sizov apareceu ao lado dela. Tirou o gorro e agitou-o no ar ao ritmo do canto.

 

- Estão cheios de coragem, hem, mãe? Inventaram um hino... e que hino, mãezinha! Não têm medo de nada... mas o meu filho está na sepultura...

 

O coração da mãe bateu mais forte e parou um instante. Empurraram-na para um laclo e ficou encostada a uma vedação, enquanto a espessa onda humana passava na sua frente. Viu então como era imensa a multidão, e sentiu-se feliz.

 

- De pé, ó vítimas da fome...

 

Dir-se-ia que um clarim gigantesco tocava no ar, reanimando os homens, despertando nuns a combatividade, noutros uma confusa satisfação, o pressentimento de alguma coisa nova e grandiosa, uma curiosidade ardente. Aqui fazia nascer uma esperança inquieta, ali soltava a áspera torrente de uma ira acumulada ao longo dos anos.

 

Todos os olhares se dirigiam para a frente, para o local onde balançava e flutuava a bandeira vermelha.

 

- Já lá vão! Bravo, rapazes!

 

E o homem, experimentando certamente um sentimento tão grande que se não podia expressar por palavras simples, começou a praguejar energicamente. Mas também o ódio, o ódio sombrio e cego dos escravos, silvava como uma serpente, retorcia-se em palavras de raiva, alarmado com a luz que o denunciava.

 

- Hereges! - gritou alguém com voz entrecortada, agitando de uma janela o seu punho ameaçador. E um murmúrio penetrante e obsessivo feriu os ouvidos da mãe.

 

- Contra o Imperador? Contra Sua Majestade o Czar? Uma revolução?

 

Figuras desorientadas passavam na sua frente, homens e mulheres saltavam, corriam. A multidão assemelhava-se a uma lava escura arrastada por aquele canto, cuja poderosa melodia parecia tudo derrubar e tudo transformar à sua passagem. A mãe olhava de longe a bandeira vermelha, não via o seu filho mas imaginava o seu rosto bronzeado e o seu olhar a arder nas chamas devoradoras da fé.

 

Encontrava-se agora nas últimas filas, no meio de pessoas que caminhavam sem pressa, que olhavam em frente com indiferença, com a fria curiosidade de espectadores que assistissem a uma peça conhecendo já o seu desenlace final. Caminhavam comentando a meia-voz, com segurança:

 

- Está uma companhia junto à escola, e outra na fábrica.

 

- Veio o governador...

 

- A sério?

 

- Vi-o eu com os meus próprios olhos. Alguém praguejou de forma pitoresca, e disse:

 

- De qualquer maneira, começam a ter medo de nós. Se vieram as tropas, e o governador...

 

"Meus queridos filhos-, pareciam dizer as batidas do coração da mãe.

 

Mas os que agora a rodeavam eram pessoas frias e sem entusiasmo. Apressou o passo para se afastar destes que o acaso havia feito seus companheiros de marcha, e não lhe foi difícil ultrapassar o seu passo lento e preguiçoso.

 

De repente, a frente do cortejo pareceu tropeçar num obstáculo. O longo corpo da multidão não se deteve mas vacilou, e foi percorrido por um rumor inquieto. O canto estremeceu também um pouco, mas recomeçou com mais força e mais vivacidade. De novo a densa onda de sons esmoreceu, recuou. Uma após outra as vozes foram-se calando. Ouviram-se ainda, aqui e além, vozes que tentavam entusiasmar o coro, refazê-lo na sua plenitude, incentivá-lo.

 

- De pé, ó vítimas da fome...

 

- ... De pé, famélicos da Terra...

 

Mas já não havia neste apelo a mesma unidade cheia de segurança viril, e sentia-se a ansiedade a crescer.

 

A mãe não via nada, não sabia o que se estava a passar na primeira linha. Furando pelo meio da multidão, abria caminho rapidamente. As pessoas chocavam com ela, baixavam a cabeça, as sobrancelhas franziam-se, alguns sorriam embaraçados, outros assobiavam em ar de troça. Ela, angustiada, ia examinando os rostos, os seus olhos perguntavam, suplicavam, chamavam...

 

A voz de Pavel ressoou:

 

- Camaradas! Os soldados são pessoas como nós. Não vão atacar-nos. Porque haviam de fazê-lo? Porque nós trazemos a verdade, necessária a todos? Também eles precisam desta verdade! Não a compreendem ainda, mas aproxima-se o momento em que hão-de levantar-se também ao nosso lado, para marchar, já não sob a bandeira da pilhagem e do assassínio mas sob a nossa bandeira, a bandeira da liberdade. E para que eles mais depressa compreendam a nossa verdade, devemos seguir em frente. Em frente, camaradas, sempre em frente!

 

A voz de Pavel era firme, e as suas palavras soavam no ar nítidas e claras, mas a multidão começou a dispersar-se. Uns após outros foram-se afastando, uns para a direita outros para a esquerda, em direcção às suas casas, deslizando ao longo das paredes. O cortejo tinha agora a forma de uma cunha, da qual Pavel era a ponta, e sobre a sua cabeça flamejava, vermelha, a bandeira do povo trabalhador. A multidão parecia um enorme pássaro negro de asas abertas, vigilante, pronto a levantar voo, e Pavel era o seu bico.

 

Ao fundo da rua. fechando o acesso à praça, a mãe viu uma parede cinzenta de homens sem rosto, todos iguais. Ao ombro de cada um deles, brilhava friamente a fina folha de aço de uma baioneta. Desta parede imóvel e silenciosa parecia soprar sobre os operários um vento gelado que trespassava o coração da mãe.

 

Infiltrou-se na multidão tentando ficar mais próxima daqueles que conhecia. Estavam mais adiante, junto à bandeira, misturados com desconhecidos como que apoiando-se neles. Sentiu-se apertada contra um homenzarrão sem barba. Era zarolho, e voltou bruscamente a cabeça para a ver.

 

- Que estás aqui a fazer? Quem és tu?

 

- Sou a mãe de Pavel Vlassov - disse ela.

 

Sentia tremerem-lhe as pernas e sem querer deixou descair o lábio inferior.

 

- Ah! - disse o zarolho.

 

- Camaradas! - recomeçou a voz de Pavel. - A vida inteira está na nossa frente... não temos outro caminho.

 

Seguiu-se um silêncio cheio de expectativa. A bandeira ergueu-se, balançou, flutuou calmamente sobre as cabeças e chegou sem atropelos até à muralha de soldados. A mãe estremeceu, fechou os olhos e soltou um gemido. Pavel, Andrei, Samoilov e Mazine destacaram-se da multidão. A voz clara de Theo Mazine vibrou lentamente:

 

- Bem unidos, façamos... - entoou.

 

- ... Desta luta final... - responderam como um eco duas vozes baixas, surdas, como dois pesados suspiros. A multidão retomou a marcha, batendo cadenciadamente com os pés no chão, e de novo o canto se elevou, arrebatador e resoluto.

 

- ... Uma terra sem amos... - modulou a voz forte e límpida de Theo.

 

- ... A Internacional! - concluíram em coro os camaradas.

 

- Ah, ah! - gritou alguém maldosamente. -Já começam a cantar o ofício dos mortos, filhos da puta!

 

- Matem-no! - ressoou outra voz numa exclamação de raiva.

 

A mãe apertou as mãos contra o peito. Olhou em volta e viu que a multidão que enchia a rua, e que ainda há pouco era uma massa compacta, permanecia agora quieta e indecisa. Destacava-se dela o grupo dos que estavam com a bandeira. Somente algumas dezenas de pessoas os tinham seguido. A cada passo havia algum que saltava para um lado, como se o chão estivesse incandescente e o queimasse.

 

- E a injustiça cairá... - profetizaram cantando, os lábios de Theo.

 

- ... E o povo se levantará... - respondeu-lhe um coro de vozes fortes, seguras e ameaçadoras.

 

Mas através da harmonia do hino ressoaram palavras frias:

 

- Preparar!

 

E um grito brutal:

 

- Baionetas, apontar!

 

As baionetas descreveram unta curva no ar, desceram, apontaram na direcção da bandeira, zombeteiras, brutais.

 

- Em frente, marche!

 

- Vêm aí! - disse o zarolho e, enfiando as mãos nos bolsos, afastou-se a grandes passadas.

 

A mãe observava tudo atentamente.

 

A onda cinzenta dos soldados levantou-se e, estendendo-se a toda a largura da rua, avançou com movimentos regulares de autómatos, projectando à sua frente uma espécie de ancinho de dentes de aço a cintilar. A passos largos, a mãe aproximou-se do filho. Viu Andrei dar também um passo colocando-se à sua frente para o proteger com o seu corpo enorme.

 

- Ao meu lado, camarada! - gritou Pavel em tom rude. Andrei cantava, com as mãos atrás das costas e a cabeça erguida. Pavel empurrou-o com o ombro e exclamou de novo:

 

- Ao meu lado! Não tens o direito! A bandeira deve ir à frente!

 

- Dispersar! - gritou um oficial magrizela com uma voz aguda, agitando o sabre desembainhado.

 

Caminhava levantando muito os pés, sem dobrar os joelhos, batendo ameaçador com os pés no chão. As suas botas engraxadas luziram aos olhos da mãe.

 

A seu lado, um pouco mais atrás, caminhava pesadamente um homem bem barbeado, de estatura elevada e espesso bigode cinzento. Vestia um casaco largo cinzento forrado a vermelho, e calças ornamentadas com faixas amarelas. Como o Ucraniano, também ele tinha as mãos cruzadas atrás das costas e, levantando as espessas sobrancelhas grisalhas, fitava Pavel.

 

A mãe olhava mais do que os seus olhos podiam abarcar. No seu peito estava cravado um grito, pronto a rebentar, pronto a soltar-se a cada suspiro. Sentia-se sufocada por este grito, mas tentava contê-lo comprimindo o peito com as duas mãos. Empurrada por todos os lados ia vacilando, mas continuava caminhando sem pensar, quase inconscientemente. Apercebia-se que atrás dela o número de pessoas diminuía sem cessar. Aquela onda glacial avançava ao seu encontro e dispersava-as.

 

Os jovens da bandeira vermelha e a espessa cadeia de homens cinzentos avizinhavam-se rapidamente. Distinguia-se agora claramente o rosto dos soldados, que pareciam estender-se a toda a largura da rua, unidos numa estreita faixa de um amarelo sujo. Olhos, de cores variadas, olhavam de modo desigual, e as pontas afiadas das baionetas brilhavam cruelmente. Apontadas ao peito das pessoas, ainda sem lhes tocarem, conseguiam que, um a um, todos se afastassem.

 

A mãe ouvia atrás de si as passadas dos que fugiam. Vozes inquietas, abafadas, gritaram:

 

- Fujam, rapazes!

 

- Foge, Vlassov!

 

- Vem para trás, Pavel!

 

- Dá-me a bandeira, Pavel - disse Vessovchikov com ar sombrio. - Dá-ma, que eu escondo-a.

 

Com uma mão pegou na haste. A bandeira oscilou para trás.

 

- Larga! - gritou Pavel.

 

Nikolai retirou a mão como se se tivesse queimado. O canto extinguia-se. Os jovens detiveram-se rodeando Pavel dentro de um círculo compacto, mas ele conseguiu abrir caminho à sua frente. De repente fez-se um silêncio, como se uma nuvem invisível e transparente tivesse descido e envolvesse os manifestantes.

 

Debaixo da bandeira já não se mantinham mais de uma vintena de jovens, mas esses resistiam ainda. A mãe tremeu por eles e sentiu o vago desejo de lhes dizer qualquer coisa.

 

- Pegue... nessa coisa, tenente - ordenou a voz monótona do velho de grande estatura.

 

Estendendo a mão, designou a bandeira. O pequeno oficial correu até junto de Pavel, agarrou na haste e gritou com voz esganiçada:

- Larga!

 

- Tira as mãos! - disse Pavel com voz forte.

 

A bandeira oscilou, vermelha, no ar, inclinando-se para a direita e para a esquerda, até se erguer de novo. O pequeno oficial saltou para trás e caiu no chão. Vessovchikov passou na frente da mãe com uma rapidez que ela não lhe conhecia. Tinha um braço estendido e o punho fechado.

 

- Prendam-nos! - rugiu o velho batendo com o pé no chão.

 

Adiantaram-se alguns soldados. Um deles brandiu a coronha. A bandeira estremeceu, inclinou-se e desapareceu no meio da massa cinzenta dos soldados.

 

- Ai! - suspirou tristemente alguém.

 

A mãe soltou um grito, um uivo animal. Mas a voz forte de Pavel respondeu-lhe do meio dos soldados:

 

- Até à vista, mãezinha! Adeus, querida mãe!

 

"Está vivo! Lembrou-se de mim!" Estes dois pensamentos brotaram no coração da mãe.

 

Ergueu-se na ponta dos pés, agitando os braços, tentando erguê-los. Por cima das cabeças dos soldados descobriu o rosto redondo de Andrei, que lhe sorria e lhe acenava.

 

- Meus filhos!... Andrei... Pavel... - exclamou.

 

- Até à vista, camaradas!

 

Respondeu-lhes um eco multiplicado, desgarrado. vinha das janelas, dos telhados.

 

Sentiu uma pancada no peito. Através da névoa que lhe toldava os olhos, viu na sua frente o pequeno oficial que tinha o rosto vermelho e congestionado e lhe gritava:

 

- Sai daqui, velha!

 

Pelágia olhou-o de cima a baixo. A seus pés viu a haste de madeira partida em dois pedaços. Um deles tinha ainda agarrado um farrapo de tecido vermelho. Ela baixou-se e apanhou-o. O oficial arrancou-lho das mãos, atirou-o para o lado e gritou, batendo com o pé no chão:

 

- Desaparece, já te disse!

 

Do meio do pelotão dos soldados brotou um canto a querer ganhar força:

 

- De pé, ó vítimas da fome...

 

De repente, tudo pareceu girar, vacilar, estremecer. Havia no ar um silvo como o dos fios do telégrafo. O oficial deu um salto e grunhiu furioso:

 

- Faça-os calar, ajudante Krainov!

 

Titubeando, a mãe aproximou-se do pedaço da bandeira que o tenente tinha deitado fora, e voltou a apanhá-lo.

 

- Quero-os de bico calado!

 

O canto tornou-se confuso, entrecortado, desgarrado, e finalmente extinguiu-se. Alguém segurou a mãe pelos ombros, fê-la dar meia volta e empurrou-a para fora dali...

 

- Vai-te embora, vai...

 

- Limpem a rua! - gritou o oficial.

 

A uns dez passos, a mãe viu que de novo se juntara uma multidão compacta. As pessoas rugiam, resmungavam, assobiavam e, retrocedendo lentamente até ao fundo da rua, espalhavam-se pelos pátios vizinhos.

 

- Vai-te embora, demónio! - gritou-lhe ao ouvido um soldado de grandes bigodes que se tinha aproximado dela, empurrando-a para o passeio.

 

Pelágia começou a caminhar, apoiada no pedaço da haste da bandeira. Mal se aguentava nas pernas. Para não cair ia-se agarrando com a outra mão às paredes e às vedações. As pessoas iam recuando à sua frente, enquanto atrás dela e ao seu lado os soldados iam avançando, gritando:

 

- Vamos, vamos embora...

 

Foi ficando para trás, e parou olhando à sua volta. Atrás dela, ao fundo cia rua, formando um cordão menos compacto, os soldados barravam a passagem para a praça, que estava deserta. Na sua frente os vultos cinzentos avançavam lentamente, gritando, levando a multidão adiante deles.

 

Quis voltar para trás, mas continuou a avançar sem mesmo dar por isso. Ao chegar a uma ruela estreita e vazia, meteu por ela.

 

Parou outra vez. Suspirou e tentou escutar alguma coisa. Ao longe ouviam-se vozes indistintas.

 

Apoiando-se sempre no pedaço do pau da bandeira, retomou a caminhada movendo as sobrancelhas. Subitamente, a testa humedeceu-se-lhe. Os seus lábios tiveram um movimento, a mão esboçou um gesto. No seu coração brotou uma torrente de palavras que se foram comprimindo dentro dele e acenderam nela um desejo ardente e imperioso de as gritar.

 

A ruela virava bruscamente para a esquerda. A mãe viu então um grupo de pessoas, denso e bastante numeroso, de onde se elevava uma voz enérgica:

 

- Por um momento de irreflexão, rapazes, não se enfrentam as baionetas!

 

- Vocês viram? Os soldados a carregarem sobre eles, e eles nem se mexiam. São rijos, os nossos rapazes.

 

- O Pavel Vlassov é um tipo e tanto!

 

- E o Ucraniano...

 

- Que colosso! As mãos atrás das costas, um sorriso...

 

- Amigos! Gente boa! - gritou a mãe abrindo caminho por entre eles.

 

Deram-lhe passagem com respeito. Alguém começou a rir.

 

- Vejam, traz a bandeira! Tem-na na mão!

 

- Cala-te! - disse alguém com severidade. A mãe abriu os braços.

 

- Ouçam, pelo amor de Deus! Todos vocês são dos nossos... São gente com coração... Abram os olhos, não tenham medo de olhar... Que foi que aconteceu? Os nossos filhos, do nosso sangue, levantam-se, procuram a verdade, e fazem-no por todos nós! Foi por vocês e pelos vossos filhos que se condenaram ao caminho do Calvário! Anseiam por dias de luz... Querem outra vida, com verdade, com justiça. Querem o bem de todos.

 

O seu coração dilacerava-se, sentia um peso no peito, a garganta seca e febril. Era do mais profundo de si que brotavam estas palavras, palavras de um amor imenso que abrangia todas as coisas e todos os seres, palavras que lhe queimavam a boca e lhe saiam numa torrente, cada vez mais fortes e fluidas.

 

Viu que a escutavam, que permaneciam em silêncio. Compreendeu que à sua volta as pessoas reflectiam, e sentiu crescer um desejo do qual tinha agora plena consciência: o de os conduzir para diante, ao encontro do seu filho, de Andrei, de todos os que estavam agora nas mãos dos soldados, dos que eles próprios haviam abandonado.

 

Percorrendo o olhar pelos rostos sombrios e atentos, continuou com doçura e firmeza:

 

- Os nossos filhos vão pelo mundo em busca da alegria, e fazem-no por amor de todos nós, por amor da verdade de Jesus Cristo. Marcham contra todas as coisas com as quais os malvados, mentirosos, ladrões, nos têm aprisionado, acorrentado, esmagado! Amigos, é a nossa juventude que se levanta em nome de todo o povo, é o nosso sangue que se levanta em nome do mundo inteiro, em nome dos seus operários! Não os abandonem, não os reneguem, não deixem que os vossos filhos sigam este caminho sozinhos! Tenham piedade de vocês mesmos! Tenham fé nos corações dos vossos filhos, que fizeram nascer a verdade, e morrem por ela! Tenham fé nos vossos filhos!

 

A sua voz entrecortou-se, vacilou, no limite das suas forças, e alguém a segurou pelos braços.

 

- É a voz de Deus que fala! - exclamou uma voz velada pela emoção. - A voz de Deus, boa gente, ouçam-na!

 

Um outro apiedava-se dela:

 

- Ela está a matar-se, coitada!

 

- Não, ela não se mata, está é a dar-nos uma bofetada a todos, imbecis que nós somos, compreende isso!

 

Uma voz aguda, trémula, elevou-se acima da multidão.

 

- Filhos de Deus! O meu Mitri, uma alma pura, que foi que ele fez? Seguiu os seus camaradas, os seus amigos...

 

- Falou a verdade. Porque havemos de abandonar os nossos filhos? Que mal nos fizeram eles?

 

- Volta para casa, Nilovna! Vai, mãe! Estás esgotada - disse Sizov.

 

Estava pálido, a sua barba eriçada agitava-se. Subitamente franziu as sobrancelhas, lançou um olhar severo sobre o grupo, levantou-se e disse com voz clara:

 

- O meu filho Matvei morreu num acidente na fábrica, todos vocês o sabem. Mas se fosse vivo, eu mesmo teria feito que se alistasse nas fileiras deles, com eles... Ter-lhe-ia dito: "Vai, Matvei! É uma causa justa; vai e cumpre o teu dever."

 

Interrompeu-se. Todos se calaram, taciturnos, dominados por um sentimento grande e novo que já os não assustava. Sizov levantou o braço, agitou-o e continuou:

 

- É um velho que vos fala. Todos vocês me conhecem bem. Há trinta e nove anos que trabalho aqui, há cinquenta e três que vivo neste mundo. O meu sobrinho, um rapaz saudável, inteligente, voltou a ser preso hoje. Ia à frente, ao lado de Vlassov, junto à bandeira...

 

Agitou o braço, dobrou-se sobre si mesmo e pegou na mão de Pelágia.

 

- Esta mulher disse a verdade. Os nossos filhos querem viver honradamente, dentro da razão, e nós abandonámo-los, fugimos... Vai. Pelágia Nilovna.

 

- Meus amigos! - disse ela olhando-os com os olhos cheios de lágrimas. - A vida foi feita para os nossos filhos, a Terra.foi feita para eles!...

 

- Vai, Nilovna. Toma, leva-o - disse Sizov entregando-lhe o pedaço da haste da bandeira.

 

Olhavam-na com tristeza, com respeito. Acompanhava-a um rumor de simpatia. Sizov foi-lhe abrindo caminho em silêncio, as pessoas afastavam-se também sem dizer palavra e, como se obedecessem a uma força misteriosa, seguiam-na lentamente, trocando algumas frases a meia-voz.

 

Perto da porta de casa ela voltou-se e, apoiando-se na haste, acenou-lhes e disse docemente, com a voz embargada pela gratidão:

 

- Obrigada a todos...

 

E, recordando novamente o pensamento que sentia que lhe tinha nascido no coração, disse:

 

- Nosso Senhor Jesus Cristo não existiria se não tivessem morrido tantos pela sua glória...

 

A multidão olhou-a em silêncio.

 

Ela inclinou-se de novo e entrou em casa, seguida por Sizov, dobrado na sua alta estatura.

 

As pessoas permaneceram ali uns momentos, trocando ainda algumas reflexões.

 

Depois, dispersaram lentamente.

 

O resto do dia foi deslizando numa névoa colorida de recordações e numa pesada lassidão que oprimia o corpo e a alma. A mãe via na sua imaginação a mancha cinzenta do pequeno oficial que saltava, o rosto de Pavel que se iluminava, os olhos risonhos de Andrei...

 

Andava pelo quarto de um lado para o outro, sentava-se junto à janela, olhava para a rua, caminhava mais um pouco franzindo as sobrancelhas e tremendo. Lançava um olhar à sua volta, com a cabeça vazia, procurava qualquer coisa sem saber o quê. A água que bebia não acalmava a sua sede, não conseguia apagar dentro do peito o braseiro ardente de angústia e de humilhação que a consumia. O dia tinha-se dividido em duas partes; a primeira teve um sentido, um conteúdo, mas na segunda parecia que tudo se tinha desmoronado. Em frente da mãe abria-se um vazio desolador, e torturava-a a pergunta que fazia a si própria, e para a qual não encontrava resposta:

 

- Que vou eu fazer agora?

 

Chegou Maria Korsunova. Gesticulou muito, gritou, chorou, exaltou-se, bateu com os pés no chão, alvitrou e prometeu coisas confusas, proferiu ameaças, nem sabia contra quem. A mãe manteve-se indiferente.

 

- Ah, ah! - dizia a voz aguda de Maria. - Isto espicaçou as pessoas, viste? Toda a fábrica se sublevou!

 

- Sim, sim - respondia docemente Pelágia, inclinando a cabeça, e o seu olhar fixo via de novo aquilo que pertencia já ao passado, aquele bocado dela que Andrei e Pavel haviam levado consigo. Não conseguia chorar, não restavam lágrimas no seu coração oprimido, os seus lábios estavam secos e na sua boca também não havia saliva. Tremiam-lhe as mãos e breves arrepios de frio gelavam-lhe as costas.

 

A polícia veio de noite. Recebeu-os sem estranheza e sem temor. Entraram ruidosamente. Pareciam alegres e satisfeitos. O oficial amarelento disse-lhe em ar de troça:

 

- Muito bem... como tem passado? É a terceira vez que nos encontramos, hem?

 

Ela mantinha-se em silêncio, passando a língua seca pelos lábios. O oficial não se calou, pedante, e ela apercebeu-se do prazer que ele sentia em ouvir-se a si próprio. Mas as palavras dele não lhe tocavam, não a afectavam. Só re,agiu quando o ouviu dizer:

 

- Tu, mãe, também és culpada por não teres sabido incutir no teu filho o respeito a Deus e ao Czar.

 

De pé, junto à porta, ela respondeu em surdina e sem olhar para ele:

 

- Sim, os nossos filhos são os nossos juizes, e é com toda a justiça que nos vão condenar por os termos abandonado na sua luta.

 

- O quê? - gritou o oficial. - Fala mais alto!

 

- Digo que os nossos juizes são os nossos filhos - repetiu ela suspirando.

 

Ele pôs-se então a perorar rapidamente e num tom irritado, mas a torrente das suas palavras não a tocava sequer.

 

Maria Korsunova tinha sido convocada como testemunha. Mantinha-se ao lado da mãe, mas não olhava para ela, e quando o oficial lhe fazia uma pergunta, ela inclinava-se profundamente e respondia em voz monótona:

 

- Não sei, Excelência. Sou uma mulher sem instrução, trato da minha venda, sou uma tola, não sei de mais nada...

 

- Então cala-te - ordenou o oficial, retorcendo o bigode. Ela curvou-se, fez-lhe uma figa pelas costas e sussurrou a

 

Pelágia:

 

- Toma!

 

Mandaram-na revistar a mãe. Os seus olhos pestanejaram e fixaram-se no oficial. Disse em tom de queixume:

 

- Não sei como se faz, Excelência.

 

Ele bateu com os pés no chão com impaciência e começou a gritar. Maria baixou os olhos e disse suavemante à mãe:

 

- Bem, desabotoa-te, Pelágia Nilovna!

 

Olhou e apalpou as roupas dela. A certa altura subiu-lhe o sangue à cabeça, e murmurou:

 

- Cães!...

 

- Que estás tu para aí a rezingar? - perguntou o oficial com severidade, olhando para o canto onde Maria fazia a sua busca.

 

- Coisas de mulheres, Excelência! - respondeu ela amedrontada.

 

Quando o oficial ordenou à mãe que assinasse o processo verbal, ela com mão desajeitada traçou no papel, em letra de imprensa, com caracteres brilhantes e nítidos: "Pelágia Vlassova, viúva de um operário."

 

- Que escreveste tu aí? Porque é que puseste isso? - Exclamou o oficial com uma careta de desdém. Em seguida, irónico, acrescentou:

 

- Selvagens!

 

Saíram. A mãe colocou-se em frente à janela, com os braÇos cruzados sobre o peito, e os olhos fixos na sua frente, sem ver nada, permanecendo assim por muito tempo. Levantava as sobrancelhas, apertava os lábios e fechava os maxilares com tanta força que não tardaram a doer-lhe os dentes. O petróleo acabou-se no candeeiro, e a luz apagou-se, de mansinho. Ela soprou a mecha, e ficou às escuras. Uma indiferença angustiada encheu-lhe o peito como uma nuvem sombria que impedia o seu coração de bater. Assim permaneceu por longo tempo, sentindo o cansaço das suas pernas e dos seus olhos. Ouviu Maria deter-se sob a sua janela e exclamar com uma voz que parecia embriagada:

 

- Estás a dormir, Pelágia? Pobre mártir...

 

Deitou-se na cama sem se despir e, rapidamente, como se rodasse num remoinho, caiu num sono profundo.

 

Sonhou com o monte de areia amarela que havia do outro lado do pântano, a caminho da cidade. No alto do declive que dava para o sítio onde iam buscar a areia, estava Pavel cantando docemente com a voz de Andrei:

 

- De pé, ó vítimas da fome...

 

Ela passava na frente do monte de areia, punha a mão na testa e olhava o filho. A silhueta do jovem destacava-se, nítida, no fundo azul do céu. Ela sentia vergonha de se aproximar dele, porque estava grávida. Levava outra criança nos braços. Continuou o seu caminho. Pelos campos havia crianças a jogar à bola. Eram muitos, e a bola era vermelha. O bebé que levava estendeu os braços para eles e pôs-se a chorar ruidosamente, Ela deu-lhe o peito e voltou para trás. O pequeno monte estava agora ocupado por soldados que apontavam as baionetas para ela. Correu rapidamente até uma igreja que se erguia no meio do campo, etérea, que parecia feita de nuvens, e de uma altura desmedida. Havia um enterro. O caixão era grande, negro, e tinha a tampa pregada. Mas o padre e o sacristão iam pela igreja vestidos de branco, e cantavam:

 

- Cristo ressuscitou dos mortos...

 

O sacristão agitou o turíbulo e saudou-a, sorridente. Tinha os cabelos de um vermelho resplandecente, e um rosto alegre como o de Samoilov. Do alto da cúpula desciam raio de sol, largos como toalhas de altar. Alguns meninos de coro cantavam suavemente:

 

- Cristo ressuscitou dos mortos...

 

- Prendam-nos! - gritou subitamente o padre, parando no meio da igreja. A alva que trazia vestida desapareceu, e no seu rosto apareceu um severo bigode cinzento. Desataram todos a correr, e o sacristão também, que atirou com o turíbulo para um canto, segurando a cabeça com as mãos, como fazia o Ucraniano. A mãe deixou cair a criança aos pés dos fiéis. Estes, correndo, evitavam pisá-la e olhavam temerosos o pequenino corpo nu, enquanto ela, de joelhos, lhes gritava:

 

- Não abandonem o menino! Levem-no...

 

- Cristo ressuscitou dos mortos... - cantava o Ucraniano sorrindo, com as mãos atrás das costas.

 

Ela inclinou-se, recolheu a criança e colocou-a sobre uma carreta de pranchas de madeira, ao lado da qual caminhava lentamente Nikolai que dizia, rindo:

 

- Deram-me um trabalho duro...

 

A rua estava enlameada. As pessoas vinham à janela e assobiavam, gritavam, gesticulavam. O dia estava claro, o Sol brilhava, ardente, e não havia uma sombra.

 

- Canta, mãezinha! - dizia o Ucraniano. - É a vida!

 

Ele cantava, e a sua voz abafava todos os outros ruídos. A mãe seguia atrás dele. De repente tropeçou e mergulhou num abismo sem fundo que uivava à medida que ela ia caindo.

 

Acordou a tremer. Dir-se-ia que uma mão pesada e áspera agarrava o seu coração e o apertava devagar numa brincadeira cruel. A sirene da fábrica tocava obstinadamente, e ela percebeu que era já a segunda chamada. No quarto em desordem, os livros estavam misturados, remexidos, estava tudo de pernas para o ar, e no chão viam-se as marcas de sujidade feitas pelos pés dos polícias.

 

Levantou-se e começou a arrumar tudo à sua volta, antes mesmo de se lavar ou de fazer as suas orações. Na cozinha encontrou o pedaço do mastro da bandeira, ainda com o farrapo de algodão vermelho agarrado. Pegou-lhe contrariada e quis deitá-lo para o forno, mas dando um suspiro retirou o pedaço de tecido, dobrou-o cuidadosamente e ocultou-o no bolso, partindo no joelho o resto do pau e atirando os dois pedaços para o caixote da lenha. Em seguida lavou os vidros, esfregou o chão, preparou o samovar, vestiu-se, sentou-se na cozinha junto à janela e de novo se pôs a pensar, como na véspera:

 

"E agora, o que é que eu faço?"

 

Lembrando-se de que ainda não tinha rezado, permaneceu de pé alguns instantes diante dos ícones, e voltou a sentar-se. Sentia o coração vazio.

 

Reinava uma estranha calma. Parecia-lhe que as pessoas que na véspera tanto tinham gritado nas ruas, se escondiam hoje nas suas casas para em silêncio reflectirem sobre aquele dia extraordinário.

 

De repente, recordou uma cena a que tinha um dia assistido, na sua juventude. No velho parque da família Zaoussailov havia um tanque muito grande todo coberto de nenúfares. Num dia cinzento de Outono, ela havia passado por ali e tinha visto um bote no meio do tanque. O tanque estava sombrio, tranquilo, e o barco parecia literalmente colado à água negra e ao seu melancólico adorno de folhas amareladas. Uma tristeza profunda, uma dor misteriosa desprendia-se daquela barca sem remador e sem remos, imóvel sobre a água opaca, entre as folhas mortas. Pelágia tinha permanecido ali durante muito tempo, perguntando-se quem teria podido empurrar o bote para tão longe, e por que motivo. Naquela noite soube-se que a mulher do intendente do castelo se tinha afogado no tanque. Era uma mulher pequena, de andar rápido e cabelos negros, sempre despenteados.

 

A mãe passou a mão pelos olhos, e no seu pensamento deslizou a recordação dos acontecimentos da véspera. Foi invadida por eles, e ficou um grande bocado imóvel na cadeira, com os olhos fixos no copo de chá, que entretanto arrefecera. Sentiu vontade de ver alguma pessoa simples e inteligente, e de lhe fazer um monte de perguntas.

 

Como se tivesse ouvido o seu pedido, Nikolai Ivanovitch apareceu nessa mesma tarde. Ao vê-lo sentiu-se tomada de uma grande inquietação, e sem responder ao seu cumprimento, disse-lhe em voz baixa:

 

- Ah, meu filho, não devia ter vindo aqui. É uma imprudência, e se o vêem de certeza que o levam preso...

 

Ele apertou-lhe vigorosamente a mão e endireitou os óculos. A seguir, inclinando o rosto até junto do da mãe, explicou-lhe em poucas palavras:

 

- Pavel, Andrei e eu combinámos que se eles fossem presos eu viria buscá-la no dia seguinte, para a levar para a cidade. - Falava de um modo afectuoso e preocupado. Vieram passar busca?

 

- Sim, procuraram por todo o lado, revistaram-me a mim... Essa gente não tem vergonha nem consciência.

 

- Como é que haviam de ter? - disse Nikolai encolhendo os ombros. E continuou, explicando-lhe as razões pelas quais devia ir viver para a cidade.

 

Ela escutava com simpatia a voz cheia de solicitude daquele rapaz que a olhava, sorrindo palidamente, e, se não compreendia tudo o que ele lhe explicava, sentia-se tranquilizada pela terna confiança que ele lhe inspirava.

 

- Se é a vontade de Pavel, e se não vou incomodá-lo...

 

- Não se preocupe com isso. Vivo sozinho, só a minha irmã é que lá aparece de vez em quando.

 

- Quero ganhar o meu pão - objectou ela.

 

- Se faz gosto nisso... alguma coisa se há-de arranjar. Para ela, a ideia de trabalho estava já associada a uma

 

actividade semelhante à de Pavel, Andrei e dos seus camaradas. Aproximou-se de Nikolai, e perguntou-lhe olhando-o nos olhos:

 

- Arranjar-me-ào que fazer?

 

- A minha casa é pequena, é a casa de um homem solteiro.

 

- Não me refiro a esse tipo de trabalho - disse ela docemente.

 

Suspirou, um pouco magoada que ele não a tivesse compreendido, mas Nikolai, sorrindo com os seus olhos míopes, disse-lhe em tom sonhador:

 

- Quando vir Pavel, se lhe pudesse pedir a direcção dos tais camponeses que pediram um jornal...

 

- Eu conheço-os! - disse ela alegremente. - Saberei encontrá-los e farei tudo o que o Nikolai me disser. Quem é que vai pensar que eu possa levar papéis proibidos? Sabe Deus a quantidade deles que levei para a fábrica!

 

Subitamente, sentiu-se invadida pelo desejo de ir sem destino, pelas estradas, pelos bosques, pelas aldeias, de mochila ao ombro, bastão na mão.

 

- Encarregue-me desse trabalho, peço-lhe! - disse. - Irei onde quer que me mandem, em todas as províncias saberei encontrar o caminho. Irei de Verão e de Inverno... até ao túmulo, como um peregrino. Não é um destino invejável para mim?

 

Sentiu no entanto angústia quando em pensamento se viu sem casa, errante, pedindo debaixo da janela das isbás uma esmola por amor de Deus.

 

Nikolai pegou-lhe ternamente na mão e acariciou-lha com os seus dedos quentes. Depois, olhando o relógio, disse:

 

- Falaremos disso mais tarde.

 

- Meu amigo! - exclamou ela. - Os nossos filhos, que têm o lugar mais querido no nosso coração, sacrificam a sua liberdade, a sua vida, sem se lamentarem. O que não farei eu, uma mãe?

 

Nikolai empalideceu e disse, muito quieto, olhando-a com uma atenção que era quase uma carícia:

 

- Sabe que é a primeira vez que ouço semelhantes palavras?

 

- Que posso eu dizer? - perguntou Pelágia inclinando tristemente a cabeça e deixando cair os braços num gesto de impotência. - Se encontrasse palavras para dizer tudo o que sinto no meu coração de mãe...

 

Levantou-se, levada pelo impulso de uma força que crescia no seu peito e a inebriava numa torrente de palavras indignadas:

 

- Muitos chorariam... até os malvados, os sem consciên-cia.

 

Nikolai levantou-se também e mais uma vez olhou as horas.

 

- Então, fica decidido. Vem viver comigo?

 

Ela concordou em silêncio.

 

- Quando? Tem de ser o mais rápido possível. E acrescentou com doçura:

 

- Fico preocupado consigo.

 

Ela olhou-o admirada. Que interesse poderia ela inspirar-lhe? Ele permanecia na frente da mãe, de cabeça baixa, com um sorriso embaraçado nos lábios, míope, vestido com um modesto casaco preto. Toda a roupa que trazia vestida parecia ter sido emprestada.

 

- Tem dinheiro? - perguntou ele timidamente.

 

- Não.

 

Ele tirou rapidamente a carteira do bolso. Abriu-a e estendeu-lha:

 

- Tome, por favor, tire o que precisar. A mãe sorriu sem querer, e observou:

 

- Tudo se modificou. O dinheiro não tem valor para vocês. As pessoas perdem a alma por ele, e a vocês não vos importa. Parece que só o querem para poderem socorrer os outros...

 

- O dinheiro é uma coisa muito incómoda e muito desagradável. Tanto é desagradável recebê-lo como dá-lo.

 

Pegou-lhe na mão, apertou-lha com força e repetiu:

 

- Virá quanto antes, não é verdade?

 

E foi-se embora, tranquilo como sempre. Quando regressou, depois de o acompanhar, Pelágia pensou:

 

"Como é bondoso! Mas não sentiu piedade de nós!"

E não percebeu se isto a magoava, ou apenas a surpreendia.

 

No quarto dia depois da visita de Nikolai Ivanovitch, pôs-se a caminho. Quando a carroça que a conduzia, a ela e às suas duas maletas, saiu do bairro para se enfiar pelo campo, virou-se para trás e sentiu subitamente que partia para sempre daqueles lugares onde tinha vivido o período mais sombrio e penoso da sua vida, e onde havia iniciado uma nova era, cheia de novas tristezas e alegrias diferentes, uma era em que os dias passavam rapidamente, como se fossem devorados.

 

Semelhante a uma imensa aranha vermelha escura, a fábrica estendia-se sobre o solo negro de fuligem, erguendo as suas chaminés até ao céu. À sua volta apertavam-se as pequenas casas dos operários, de um único piso. Cinzentas, achatadas, estreitavam-se, compactas, ao longo do pântano, olhando-se lastimosamente umas às outras com as suas pequenas janelas sem cor. Mais adiante erguia-se a igreja, de um vermelho sombrio, como a fábrica. O campanário da igreja, esse, era mais baixo que as chaminés da fábrica.

 

A mãe suspirou e desabotoou a gola da blusa, que lhe apertava a garganta.

 

- Anda! - rabujava o cocheiro agitando as rédeas sobre o lombo do cavalo. Era um homem de idade difícil de precisar, de cabelo descorado e olhos de cor indefinida. Caminhava ao lado do carro coxeando de uma perna, e via-se que o objectivo da viagem lhe era completamente indiferente.

 

- Anda! - dizia com voz branda, esticando comicamente as pernas arqueadas. Calçava umas botifarras cobertas de lama seca. A mãe lançou um olhar à sua volta. Os campos estavam desertos, vazios, como a sua alma.

 

O cavalo balançava tristemente a cabeça, enterrando pesadamente as ferraduras na areia solta que rangia, aquecida pelo sol. A carreta, mal oleada e desengonçada, rangia também, e todos esses ruídos, juntamente com a poeira, eram coisas que a viajante ia deixando para trás.

 

Nikolai Ivanovitch morava nos confins da cidade, numa rua deserta, num pequeno pavilhão verde pegado a uma casa triste de dois pisos, carcomida pela velhice. Na frente havia um pequeno jardim pouco tratado. Os ramos dos liláses e das acácias e as folhas prateadas das jovens bétulas espreitavam ternamente pelas janelas dos três compartimentos da casa. Estes quartos estavam limpos e silenciosos. A sombra da vegetação recortava-se no chão, as paredes estavam cobertas de estantes carregadas de livros sob os retratos de algumas personagens de rosto severo.

 

- Sentir-se-á bem aqui? - perguntou Nikolai, conduzindo a mãe a um dos quartos cujas janelas davam uma para o jardim e outra para o pátio, oncle crescia uma erva espessa. Também naquele quarto as paredes estavam cobertas de armários e estantes repletas de livros.

 

- Gosto mais da cozinha - disse ela. - É clara e limpa...

 

Pareceu-lhe que Nikolai receava alguma coisa. Mas quando, confuso e embaraçado, tentou dissuadi-la e conseguiu que renunciasse à cozinha, recuperou instantaneamente toda a sua alegria.

 

Eram três divisões, e nelas reinava uma atmosfera particular. Respirava-se um ar leve e agradável, mas falavam baixo mesmo sem querer; era como se não quisessem falar alto, nem perturbar a silenciosa meditação daquelas personagens que, do alto das paredes, os observavam com ar pensativo.

 

- É preciso regar as flores - disse a mãe, depois de apalpar a terra dos pequenos vasos das janelas.

 

- Sim, sim - respondeu o dono da casa, com um ar culpado. - Eu gosto de flores, sabe, mas não tenho tempo para me ocupar delas...

 

Pelágia reparou que, mesmo no conforto do seu lar, Nikolai se movia com precaução, distante, como se fosse um estranho no meio das coisas que o rodeavam. Aproximava a cara dos objectos que observava, ajustando os óculos com os dedos finos da mão direita, franzia os olhos e dirigia o olhar numa interrogação muda sobre o que lhe interessava. Às vezes, pegava no objecto, aproximava-o do rosto e apalpava-o suavemente. Dir-se-ía que acabava de chegar com Pelágia, e que tudo dentro de casa lhe era tão desconhecido como o era para ela. Vendo-o tão distraído, a mãe sentiu-se como se estivesse na sua própria casa. Seguia Nikolai fixando o lugar de cada objecto e fazia-lhe perguntas sobre a sua maneira de viver. Ele respondia como se estivesse a desculpar-se por não fazer as coisas como devia, mas também como alguém que não soubesse agir de outro modo.

 

Ela regou as flores, agrupou, numa resma ordenada, os cadernos de música espalhados sobre o piano e reparou no samovar.

 

- É preciso limpá-lo - disse.

 

Ele passou o dedo sobre o metal baço, aproximando-o em seguida do nariz enquanto o examinava compenetradamente. A mãe sorriu, indulgente.

 

Quando se deitou e fez o balanço dos acontecimentos do dia, ergueu a cabeça da almofada, espantada, e olhou à sua volta. Pela primeira vez na vida estava sob o tecto de um desconhecido e não se sentia incomodada com isso. Teve pena de Nikolai e sentiu vontade de fazer tudo o que lhe fosse possível para o ajudar, para trazer à sua vida um pouco de calor e de afecto. Comovia-a que o seu hóspede fosse tão desajeitado e tímido, totalmente desprovido de conhecimentos de ordem prática, e comovia-a a expressão simultaneamente prudente e infantil dos seus olhos claros. Depois, voltou a pensar no filho, relembrou aquele Primeiro de Maio cheio de ressonâncias novas, animado de um novo sentido. E a dor que sentia quando recordava aquele dia era tão única quanto o era o dia em si mesmo. Não obrigava a baixar a cabeça até ao chão como acontece quando se fica atordoado com um murro, antes feria o coração como mil punhaladas, provocava uma cólera tranquila que fazia erguer as costas encurvadas.

 

- Os filhos partem por esse mundo fora... - pensava, escutando os ruídos desconhecidos da vida nocturna da cidade, que entravam pela janela aberta, agitando a folhagem do jardim, longínquos, esbatidos, que se esvaíam, abafados, dentro de casa.

 

No dia seguinte, bem cedo, limpou o samovar, acendeu-o e arrumou silenciosamente a loiça. A seguir, deixou-se ficar sentada na cozinha, à espera que Nikolai acordasse. Ouviu-o tossir. Ele apareceu trazendo os óculos numa mão e protegendo a garganta com a outra. Depois de responder ao cumprimento dele, Pelágia levou o samovar para a sala, enquanto ele se lavava, salpicando o chão, deixando cair o sabão e a escova dos dentes e resmungando contra si próprio.

 

Durante o pequeno-almoço Nikolai desabafou:

 

- Tenho um emprego muito triste na administração provincial. Observo a ruína dos nossos camponeses...

 

Sorriu com um ar culpado.

 

- Estas pobres gentes, debilitadas por uma fome de séculos, morrem antes de tempo. As crianças já nascem raquíticas e morrem como moscas no Outono. Nós bem o sabemos, conhecemos as causas desta calamidade, e depois de as termos devidamente anotado, recebemos o nosso salário. A bem dizer, é tudo o que fazemos.

 

- Você é estudante? - perguntou ela.

 

- Não. Sou professor primário. O meu pai é director de uma fábrica em Viatka e eu decidi ser professor. Mas comecei a fazer circular livros entre as pessoas da aldeia e meteram-me na prisão. Depois estive empregado numa livraria, mas não fui prudente, apanharam-me novamente e mandaram-me para Arkhangel... Também aí tive problemas com o governador e então enviaram-me para as margens do Mar Branco, onde vivi numa cabana durante cinco anos.

 

A voz ressoava monocórdica e tranquila no quarto inundado de sol. A mãe já tinha ouvido muitas histórias semelhantes e nunca havia conseguido compreender porque é que os amigos de Pavel as contavam com tanta calma, como se falassem do inevitável.

 

- A minha irmã chega hoje - anunciou.

 

- Ela é casada?

 

- É viúva. O marido foi desterrado para a Sibéria, mas conseguiu fugir e acabou por morrer tuberculoso no estrangeiro, há dois anos.

 

- Ela é mais nova do que você?

 

- Tem mais seis anos. Devo-lhe muito. Logo vai ouvi-la tocar! Esse piano é dela, assim como muitas das coisas que estão aqui em casa, mas os livros são meus.

 

- Onde é que ela vive?

 

- Em qualquer lugar - respondeu ele, sorrindo. - Ela está onde quer que seja necessária a presença de uma pessoa corajosa.

 

- Ela também trabalha... para a causa?

 

- Há muito tempo!

 

Partiu para o escritório, enquanto a mãe ficava a pensar "na causa" que alguns homens defendiam, dia após dia, com obstinação e serenidade. Perante eles, ela sentia-se como se estivesse frente a uma montanha em plena noite.

 

Por volta do meio-día chegou uma senhora alta e elegante, vestida de preto. Quando a mãe abriu a porta, a visitante pousou no chão uma mala amarela e apertou vivamente a mão de Pelágia.

 

- É a mãe de Pavel, não é?

 

- Sou, sim - respondeu ela, intimidada com a elegância das roupas da outra.

 

- Você é exactamente como eu a imaginava. O meu irmão escreveu-me a contar que você vinha viver em casa dele disse a senhora, tirando o chapéu na frente do espelho. Pavel e eu somos amigos há muito tempo. Ele falou-me de si muitas vezes.

 

A voz era baixa. Falava devagar, mas os movimentos eram vivos e enérgicos. Os seus grandes olhos cinzentos sorriam, cheios de juventude e franqueza. Sobre as sobrancelhas percebiam-se já algumas pequenas rugas muito finas e madeixas de cabelos grisalhos brilhavam como prata por cima das pequenas orelhas.

 

- Tenho fome - disse. - Apetece-me um pouco de café.

 

- Vou já prepará-lo - respondeu a mãe. E tirando uma cafeteira do armário, perguntou em voz muito baixa:

 

- É verdade que Pavel fala da mim?

 

- Fala, muitas vezes...

 

Pegou num pequeno estojo de couro, de dentro do qual tirou um cigarro que acendeu e, andando de um lado para o outro na sala, perguntou:

 

- Está muito preocupada com ele?

 

Olhando a chama azul da lamparina de álcool, que tremia sob a cafeteira, a mãe sorria. A perturbação causada pela senhora desaparecera, face a uma alegria tão profunda.

 

"Sempre é verdade que ele fala de mim...", pensou, e disse pausadamente:

 

- É muito duro o que está a acontecer, mas dantes ainda era pior. Agora, pelo menos, sei que ele não está só...

 

Fixando o olhar no rosto da visitante, inquiriu:

 

- Como é que a senhora se chama?

 

- Sofia.

 

A mãe observava-a com atenção. Ela tinha qualquer coisa de imoderado, de audácia excessiva, de precipitado... Sofia falava num tom seguro:

 

- O principal é que não estejam muito tempo na prisão, que sejam julgados depressa. E quando Pavel for desterrado ajudá-lo-emos a fugir. Não podemos ficar aqui muito tempo sem ele.

 

Incrédula, a mãe olhou para Sofia, enquanto esta, com os olhos, procurava um sítio para apagar o cigarro. Espetou-o na terra de um vaso.

 

- Vai dar cabo das flores! - observou maquinalmente a mãe.

 

- Desculpe - disse Sofia. - Nikolai está sempre a dizer-me isso. - Retirando a beata da terra, atirou-a pela janela.

 

A mãe ficou atrapalhada, olhou-a nos olhos, e disse com um ar culpado:

 

- Desculpe! Falei sem pensar. Quem sou eu para lhe estar a fazer reparos.

 

- Porque não, se eu fui descuidada? - respondeu Sofia, encolhendo os ombros. - O café está pronto? Obrigada! Porque é que só arranjou uma chávena, você não toma?

 

Subitamente agarrou a mãe pelos ombros, atraiu-a para si e, olhando-a nos olhos, perguntou-lhe, admirada:

 

- Sente-se pouco à vontade comigo? Pelágia disse, sorrindo:

 

- Acabo de lhe fazer uma chamada de atenção, e pergunta-me se me intimida!

 

E, sem ocultar a sua própria admiração, prosseguiu como se estivesse a interrogar-se:

 

- Cheguei ontem a esta casa, e sinto-me aqui como se estivesse na minha, não receio nada, digo o que me apetece...

 

- É assim que deve ser - respondeu Sofia.

 

- Não sei onde tenho a minha cabeça, já não me reconheço - acrescentou a mãe. - Antigamente, girava muito tempo à volta das pessoas antes de ser capaz de lhes dizer fosse o que fosse com franqueza, e agora... o meu coração abre-se logo e digo sem rodeios coisas em que, noutros tempos, nem sequer ousava pensar...

 

Sofia acendeu outro cigarro. Os seus olhos cinzentos pousaram sobre a mãe, claros e afectuosos.

 

- Disse que organizaria a evasão de Pavel. Muito bem, mas como é que ele irá depois viver? - A mãe tinha finalmente formulado a pergunta que a atormentava.

 

- Vai ser uma brincadeira - respondeu Sofia, servindo-se de mais café. - Viverá da mesma maneira que vivem dezenas de outros evadidos... Olhe, acabo de instalar um deles, um homem igualmente imprescindível que foi desterrado por cinco anos e apenas lá ficou... três meses e meio. A mãe olhou-a fixamente, sorriu e disse em voz baixa, abanando a cabeça:

 

- Foi a jornada do Primeiro de Maio que me transtornou. Sinto-me insegura, como se caminhasse ao mesmo tempo por dois caminhos diferentes. Tão depressa me parece que compreendo tudo, como logo a seguir me sinto perdida no nevoeiro. Agora mesmo, estou a olhar para si... que é uma senhora e, apesar disso, luta pela causa. Conhece Pavel e gosta dele, e eu estou-lhe muito grata...

 

- Vamos lá a ver, é a si que é preciso agradecer - disse Sofia, rindo.

 

- Porquê a mim? Não fui eu quem lhe ensinou tudo o que ele sabe... - respondeu a mãe, com um suspiro.

 

Sofia pousou o cigarro sobre um pratinho, sacudiu a cabeça fazendo que os seus cabelos dourados lhe caíssem em espessa cascata sobre os ombros, e saiu da sala, dizendo:

 

- Chegou o momento de mudar de roupa e de pôr de lado toda esta elegância...

 

Nikolai regressou ao meio-dia. Enquanto almoçavam, Sofia contou, rindo, como tinha encontrado e escondido o fugitivo. Ela receava muito os delatores, e via-os por todos os lados. O camarada evadido era muito pitoresco. O tom da voz dela fazia lembrar à mãe a vaidade de um operário que tivesse executado bem um trabalho difícil e que estivesse satisfeito com isso.

 

Sofia vestia agora uma roupa leve e larga, de cor cinzenta. Parecia, assim, mais alta, os olhos eram mais escuros e os gestos mais serenos.

 

- Sofia - disse Nikolai, quando acabaram a refeição temos outro trabalho para ti. Avançámos com a tarefa de fazer um jornal para os camponeses, mas após as últimas prisões perdemos todos os contactos. Só a Pelágia é que nos pode ajudar a encontrar o homem que se encarregará de fazer a sua distribuição. Discute este assunto com ela, é urgente.

 

- Muito bem - disse Sofia, fumando um cigarro. - Vamos, Pelágia?

 

- Claro! Vamos!

 

- Fica longe?

 

- Umas oitenta verstás.

 

- Óptimo. Agora vou tocar piano. Gosta de música, Pelágia?

 

- Não me pergunte... Faça como se eu não estivesse aqui

- disse a mãe, sentando-se na beira do sofá. Percebia que os dois irmãos, sem parecerem estar a dar-lhe atenção, agiam sempre de maneira a que ela não ficasse fora da conversa.

 

- Bem, então ouve. Nikolai. É Grieg. Trouxe-o hoje... Fecha as janelas.

 

Abriu a partitura e deslizou levemente a mão direita pelo teclado. As cordas vibraram, brandas e densas. Primeiro, um profundo suspiro, logo seguido de outra nota, um som cheio que se uniu aos primeiros acordes. Sob os dedos daquela mão libertavam-se estranhos gritos transparentes que rodopiavam inquietos, sons cristalinos que revolteavam, batiam asas como pássaros assustados sobre o fundo sombrio das notas baixas.

 

De início, aquela música não teve qualquer efeito sobre a mãe. Na sequência de sons mais não via que uma cacofonia. O seu ouvido não conseguia captar a melodia na vibração confusa e torrencial das notas. Meio adormecida, observava Nikolai sentado, com as pernas cruzadas, na beira oposta do largo divã. Observava o perfil severo de Sofia e a sua cabeça coberta pelos espessos cabelos louros. Um raio de sol iluminou-lhe a cabeça e um ombro, tombou sobre o teclado, flutuou sobre os dedos da pianista, envolvendo-os. A música enchia cada vez mais a sala, e o coração da mãe despertava para a melodia, sem que ela própria se apercebesse disso.

 

Subitamente, das profundezas obscuras do seu passado, emergiu a recordação de uma humilhação, esquecida havia muito tempo e que ressuscitava agora com cruel nitidez.

 

Uma noite, o marido tinha regressado a casa muito tarde, completamente embriagado. Pegando-lhe por um braço, arrastara-a para fora da cama, aos pontapés, e gritara-lhe:

 

- Fora daqui, bandalho, estou farto de ti!

 

Para escapar às pancadas, ela tinha pegado no filho, com dois anos, e, de joelhos, protegia-se com o pequeno corpo como se fosse um escudo.

 

Pavel chorava e debatia-se, aterrado, o pequeno corpo nu e quente.

 

- Daqui para fora, vocês os dois! - berrava Mikhail.

 

Ela deu um salto e correu para a cozinha, lançou alguma roupa sobre si, envolveu a criança num xaile e, sem gritos nem medo, descalça e em camisa de noite, saiu para a rua. Era o mês de Maio e a noite estava fresca, o pó frio agarrava-se-lhe aos pés, acumulando-se entre os dedos. O menino chorava e esperneava. Pelágia descobriu o seio, aconchegou a criaturinha contra o seu corpo e, agora realmente assustada, caminhava acariciando-o e cantarolando em voz muito baixa.

 

Despontava já o dia. Receou, envergonhada, que pudessem encontrá-la assim, quase despida. Desceu até à margem do pântano e sentou-se no chão térreo debaixo de umas pequenas árvores. Deixou-se ficar assim por muito tempo, envolta na obscuridade, com os olhos dilatados, fixos nas trevas, e cantando assustada para adormecer o filho e também o seu coração humilhado.

 

Subitamente, um pássaro negro, silencioso, agitou-se sobre a sua cabeça, tomou balanço e voou para longe. Ela sentiu um calafrio e levantou-se. A tremer de frio voltou para casa, ao encontro do terror habitual, das pancadas e dos sempre renovados insultos...

 

Um último acorde, sonoro, frio e indiferente, ficou no ar como um suspiro.

 

Sofia voltou-se e a meia-voz perguntou ao irmão:

 

- Gostaste?

 

- Muito - disse ele num sobressalto, como se acabasse de acordar bruscamente. - Muito...

 

No peito da mãe cantava e tremia o eco das recordações. Pensou:

 

-Estas pessoas são gente que vive tranquilamente, em boa harmonia. Não dizem palavrões, não bebem vodka, não se zangam por uma insignificância... como faz o povinho."

 

Sofia fumava um cigarro. Fumava muito, quase continuamente.

 

- Era o trecho preferido do pobre Kostia - disse ela inspirando o fumo energicamente, e repetiu um acorde ligeiro e triste. - Gostava de tocá-lo para ele... era delicado, sensível, aberto a tudo...

 

"Deve estar a pensar no marido", pensou a mãe com um sorriso.

 

- Deu-me tanta felicidade... - continuou Sofia em voz baixa, acompanhando os seus pensamentos com notas tocadas ao de leve. - Sabia viver...

 

- Sim - disse Nikolai cofiando a barba. - A alma dele cantava.

 

Sofia deitou fora o cigarro que tinha começado a fumar, e voltou-se para a mãe:

 

- O ruído não a incomoda?

 

- Não me pergunte, eu não compreendo nada - disse Pelãgia com um leve despeito que não conseguia ocultar por completo. - Eu estou aqui a ouvir, ocupada com os meus pensamentos...

 

- Sim, é claro que compreende! - replicou Sofia. - Uma mulher não pode deixar de compreender a música, sobretudo quando sofre...

 

Premiu as teclas com força, e ouviu-se um grito sonoro, o grito de alguém que acabou de ouvir alguma coisa terrível, que lhe feriu o coração e lhe arrancou um gemido pungente. Vozes de jovens palpitaram assustadas, e em seguida fugiram numa debandada rápida. De novo se ouviu uma voz forte e áspera que abafou tudo o resto... Sem dúvida tinha acontecido uma desgraça, mas que provocava a cólera e não os queixumes. Em seguida surgiu uma outra voz, terna e forte, que se pôs a cantar uma canção bonita e simples, persuasiva e arrebatadora.

 

O coração da mãe inundou-se de desejo de exprimir o seu afecto pelos dois irmãos. Sorria, como embriagada pela música, cheia de vontade de se tornar útil.

 

Procurou com os olhos alguma coisa para fazer, e devagarinho foi até à cozinha preparar o samovar.

 

Mas o seu desejo de se tornar útil não estava satisfeito. Falava, enquanto servia o chá, sorrindo perturbada, como se quisesse aliviar o seu coração com palavras de cálida ternura que dirigia a si própria, mas também aos seus novos amigos.

 

- Nós, a gente do povo, sentimos as coisas mas não sabemos exprimir-nos. Envergonhamo-nos da nossa inabilidade para expressarmos as nossas ideias, e por isso muitas vezes nos enchemos de raiva contra nós próprios. A vida dá-nos pancadas e safanões por todos os lados, gostaríamos de ter um pouco de paz, mas a nossa cabeça não consegue sossegar.

 

Nikolai escutava, limpando os óculos. Sofia olhava para ela com os olhos muito abertos, esquecendo o cigarro, que se tinha apagado. Sentada ao piano, e voltada de lado para o instrumento, roçava de quando em quando o teclado com os dedos finos da sua mão direita. O acorde misturava-se harmoniosamente com a voz da mãe, que se esforçava por revestir os seus sentimentos com palavras simples e sinceras.

 

- E agora já começo a conseguir falar, por pouco que seja, de mim, dos outros... porque comecei a compreender, e agora posso comparar. Dantes não tinha maneira de comparar nada. As pessoas como nós vivem todos da mesma maneira. Mas agora vejo como vivem os outros, lembro-me de como foi que eu vivi, e é amargo, é duro.

 

Baixou a voz.

 

- Talvez esteja a dizer coisas que não devia, e não vale a pena, porque vocês já sabem tudo isto...

 

Tremiam-lhe lágrimas na voz. Olhou-os com um sorriso de ternura nos olhos.

 

- Mas queria abrir-vos o meu coração, para vos dizer que que gosto muito de vocês.

 

- Nós sabemos - disse carinhosamente Nikolai. Pelágia não conseguia acalmar o seu desejo, e mais uma vez lhes falou de tudo aquilo que para ela era novo, e lhe parecia de uma importância imensa. Contou-lhes a sua vida de humilhações e de sofrimento resignado. Contava sem ódio, com um sorriso de comiseração nos lábios. Desenrolava o novelo cinzento dos seus dias tristes, enumerava as pancadas recebidas do marido, assombrada ela própria com a futilidade dos motivos pelos quais ele lhe batia, sem compreender a sua própria incapacidade para o evitar.

 

Sofia e Nikolai escutavam-na em silêncio, oprimidos perante o profundo significado daquela história de um ser humano que havia sido tratado como um animal, e que durante muito tempo, sem se queixar, se tinha considerado isso mesmo. Era como se pela sua boca falassem milhares de vidas. A sua existência era feita de coisas simples e banais, mas esta simplicidade, esta banalidade, eram o fardo de milhares de seres sobre a Terra, e a história da mãe adquiria o valor de um símbolo. Nikolai, com os cotovelos apoiados sobre a mesa, sustinha a cabeça entre as mãos e olhava para a mãe através dos óculos, os olhos a pestanejar de atenção. Sofia, encostada para trás nas costas da cadeira, de quando em quando estremecia e abanava negativamente a cabeça. O seu rosto parecia agora mais estreito e mais pálido. Não fumava. Disse em voz baixa:

 

- Houve uma ocasião em que me senti desgraçada. Parecia-me que a minha vida era como uma febre. Foi durante o desterro, numa terra paupérrima de província, onde não tinha nada que fazer, nada em que pensar senão em mim própria. Ociosa, pus-me a somar todas as minhas desgraças e a passar-lhes revista. Tinha-me zangado com o meu pai, de quem gostava tanto, tinham-me expulso do Liceu, em seguida a prisão, a traição de um camarada em quem confiava, a prisão do meu marido, de novo a prisão, a deportação, a morte do meu marido. Pensava, então, ser a criatura mais infeliz da Terra. Mas todas as minhas desgraças, mesmo multiplicadas por dez, não chegam a um mês da sua vida, Pelágia. Essa tortura diária durante anos... Onde vão as pessoas buscar forças para sofrer tanto?

 

- A gente habitua-se! - disse a mãe, suspirando.

 

- Eu julgava conhecer a vida - disse Nikolai pensativo. Mas quando não é num livro que a encontro, nem nas minhas impressões difusas, quando é ela própria... então é terrível! E o pior são os detalhes, as coisas insignificantes, os minutos que formam os anos.

 

A conversa voava, animava-se, descobrindo todos os aspectos daquela existência ingrata. A mãe, mergulhada nas suas recordações, ia buscar às trevas do seu passado os ultrajes quotidianos que compunham o quadro sombrio do mudo horror em que a sua juventude havia naufragado. Por fim, disse:

 

- Oh, já os massacrei bastante com o meu falatório, e são horas de dormir. Não se pode contar tudo...

 

Irmão e irmã levantaram-se sem dizer uma palavra. Pelágia teve a impressão que Nikolai se inclinava na sua frente mais profundamente que de costume e lhe apertava a mão com mais força. Sofia acompanhou-a até ao quarto e junto ao umbral da porta disse-lhe docemente:

 

- Durma bem... Boa noite!

 

A sua voz era terna. O seu olhar cinzento acariciava o rosto da mãe. Esta tomou a mão de Sofia e, apertando-a entre as suas, respondeu:

 

- Obrigada!...

 

Alguns dias depois, Nikolai viu aparecer na sua frente a mãe e Sofia pobremente vestidas, com roupas velhas de algodão, um saco ao ombro e um cajado na mão. Aquela roupa fazia Sofia parecer mais baixa, e tornava o seu pálido rosto ainda mais severo.

 

Ao despedir-se da irmã, Nikolai apertou-lhe calorosamente a mão, e a mãe observou mais uma vez como era pouco expansivo o afecto que os unia. Não trocavam beijos nem palavras carinhosas, e no entanto eram sinceros e cheios de ternura um com o outro. Onde ela tinha vivido, as pessoas abraçavam-se muito e diziam-se muitas vezes coisas afectuosas, o que não as impedia de se morderem entre si como cães raivosos.

 

As duas mulheres atravessaram a cidade em silêncio, chegaram ao campo e tomaram uma estrada larga de terra batida, entre duas filas de velhas bétulas.

 

- Não irá cansar-se?

 

- Pensa que não estou habituada a caminhar? Sei bem o que isso é.

 

Alegremente, como se relatasse travessuras da sua infância, Sofia começou a contar à mãe as suas actividades revolucionárias. Tinha de viver com um nome fictício, com um documento de identificação falsificado, disfarçar-se para escapar aos delatores, transportar dezenas de livros proibidos para diferentes cidades, organizar a evasão de camaradas deportados, ajudá-los a passar a fronteira. Tinha tido instalada em casa uma tipografia clandestina. Quando a polícia soube e os agentes vieram fazer uma busca, só teve tempo de se disfarçar de criada, uns segundos antes de eles chegarem. Tinha-se cruzado com eles à saída. Levava um casaco, um lenço na cabeça e um bidão de petróleo na mão. Tinha atravessado a cidade de um lado ao outro sob aquele frio rigoroso de Inverno. Doutra vez tinha chegado a um sítio que não conhecia, para ir a casa de uns amigos. Ia já a subir a escada quando se deu conta da presença da polícia. Era demasiado tarde para voltar atrás. Encheu-se então de coragem, bateu à porta do andar de baixo e, entrando com a sua maleta em casa de pessoas desconhecidas, explicou-lhes francamente a sua situação.

 

- Podem entregar-me se quiserem, mas eu acredito que não o farão - dissera-lhes com firmeza.

 

Aquela gente ficou aterrada, não dormiram toda a noite, esperando a cada momento que lhes batessem à porta, mas não se decidiram a entregá-la. Quando amanheceu riram com ela daquela aventura. Doutra vez, vestida de freira, tinha viajado na mesma carruagem e no mesmo banco que um inspector que andava à procura dela e se gabava da sua habilidade e da facilidade com que ia dar com ela. Tinha a certeza que ela ia naquele comboio, em segunda classe. Descia em cada apeadeiro, e dizia ao regressar:

 

- Não a vejo... deve ir a dormir. Eles também se cansam, levam uma vida dura, parecida com a nossa!

 

A mãe ria-se ao ouvir estas histórias, e olhava-a com afecto. Alta, magra, Sofia caminhava com o passo firme e ligeiro das suas pernas esbeltas. No seu modo de andar, nas suas palavras, no próprio tom da sua voz, levemente velada mas resoluta, em toda a sua silhueta elegante, havia uma bela saúde moral, uma alegre ousadia. Em todas as coisas pousava o seu olhar jovem, e por todo o lado encontrava detalhes que excitavam o seu entusiasmo...

 

- Veja, que abeto tão bonito! - exclamou, mostrando à mãe uma árvore. A mãe parou a olhar. Não era mais alto nem mais frondoso que os outros.

 

- Uma cotovia!

 

Os olhos cinzentos de Sofia brilharam num clarão de ternura, e o corpo pareceu que se elevava no céu luminoso, ao encontro do canto do pásaro invisível. Às vezes, com um movimento ágil, baixava-se para colher uma flor silvestre, e com os seus dedos delgados e nervosos acariciava carinhosamente as pétalas trémulas. Entretanto, ia cantando canções bonitas.

 

Tudo isto aproximava a mãe daquela rapariga de olhos claros. Tentava não se distanciar dela, esforçando-se por acompanhar o seu passo. Por vezes as frases de Sofia tinham qualquer coisa de demasiado vivo que parecia supérfluo e suscitava em Pelágia um pensamento inquieto:

 

"Não vai agradar a Mikhail."

 

No momento seguinte Sofia falava de novo, simplesmente, cordialmente, e a mãe, sorrindo, olhava-a com ternura.

 

- Como você é jovem!

 

- Oh, já tenho trinta e dois anos! - disse Sofia. Pelágia sorriu:

 

- Não queria dizer isso... pelo seu aspecto até poderia pensar que tem mais. Mas quando a olho nos seus olhos, e a ouço... é assombroso, parece uma rapariguinha! Tem levado uma vida agitada, difícil e perigosa. No entanto o seu coração está sempre a sorrir.

 

- Não creio que a minha vida tenha sido difícil, e não consigo imaginar outra melhor, nem mais interessante... Vou passar a chamá-la pelo seu patronímico, Nilovna. Pelágia não lhe fica bem.

 

- Como queira, se prefere assim... - disse a mãe pensativa. - Olho para si, escuto-a, e ponho-me a pensar. Gosto de ver como conhece bem o caminho que leva ao coração das pessoas. Todos se lhe abrem sem hesitações, sem medo. A alma de cada um solta-se sozinha e vai ao seu encontro. Penso em todos vocês, e digo: hão-de acabar por vencer o mal, tenho a certeza disso!

 

- Havemos de vencer porque estamos do lado dos trabalhadores - disse Sofia com energia e segurança. - O povo é quem deve decidir. Com ele tudo é realizável. Há apenas que despertar a sua consciência, que não teve ainda condições para amadurecer livremente.

 

Estas palavras despertaram na mãe um sentimento complexo. Sentia pena de Sofia, nem sabia porquê; era uma piedade misturada com ternura, que não ofendia, mas gostaria de a ouvir dizer palavras mais simples.

 

- Quem irá recompensar-vos de tantos trabalhos? - perguntou com doçura e tristeza.

 

- Já fomos recompensados - respondeu Sofia, num tom que pareceu à mãe cheio de orgulho. - Encontrámos uma vida que nos satisfaz, e na qual podemos empregar todas as energias do nosso coração. Existe coisa melhor?

 

A mãe lançou-lhe um olhar e baixou a cabeça, mas pensou novamente:

 

"Não vai agradar a Mikhail!"

 

Respirando o ar leve a plenos pulmões, não caminhavam apressadas, mas num passo cadenciado, e a mãe tinha a sensação de ir numa peregrinação. Recordava a sua meninice, e a alegria que experimentava quando, por altura de alguma festa, saía da sua aldeia para visitar um ícone milagroso nalgum longínquo mosteiro.

 

Às vezes Sofia cantava, com uma voz não muito forte mas muito bonita, canções variadas que falavam do céu, do amor, ou então punha-se a declamar versos sobre a beleza dos campos, do Volga, e a mãe sorria, ia ouvindo e, sem dar por isso, deliciada, ia balançando a cabeça ao ritmo da poesia.

 

O seu coração mergulhava no bem-estar, na calma e no ambiente de sonho de um jardim antigo numa tarde de Verão.

 

Ao terceiro dia de caminhada chegaram a uma aldeia. A mãe perguntou a um mujik que trabalhava no campo onde era a fábrica de alcatrão. Desceram por um caminho escarpado, através do bosque, onde as raízes das árvores formavam como degraus, até uma clareira redonda, cheia de carvão de madeira e bocados de lenha, com charcos de alcatrão.

 

- Chegámos - disse a mãe, inquieta, observando o lugar.

 

Junto de uma cabana construída com tábuas e ramos, à volta de uma mesa feita com três pranchas por aplainar, apoiadas sobre estacas fincadas no chão, estavam sentados, comendo, Rybine, todo negro, com a camisa aberta no peito, Efime e outros dois jovens. Rybine foi o primeiro a ver as duas mulheres e, colocando a mão em pala sobre os olhos, esperou em silêncio que elas se aproximassem.

 

- Bom dia, Mikhail! - gritou a mãe de longe.

 

Ele levantou-se e veio lentamente ao seu encontro. Sorriu ao reconhecer Pelágia, e deteve-se a acariciar a barba com a mão enegrecida.

 

- Vamos em peregrinação - disse a mãe, aproximando-se. - E então eu disse cá comigo: "Olha, de caminho vamos visitá-lo. Esta é a minha amiga Anna."

 

Orgulhando-se da sua astúcia, olhou de soslaio para Sofia, que permanecia com um ar grave e sereno.

 

- Bom dia! - respondeu Rybine, sorrindo sombrio. Apertou-lhe a mão, cumprimentou Sofia e disse: - É inútil mentires aqui. Não estamos na cidade, não é preciso dissimular. Estamos em família.

 

Efime, sentado à mesa, examinava atentamente as viajantes e murmurava qualquer coisa aos companheiros. Quando as duas mulheres se aproximaram, ele levantou-se e saudou-as em silêncio. Os outros dois ficaram imóveis, como se não tivessem visto as visitantes.

 

- Vivemos aqui como monges - disse Rybine, dando uma palmadinha no ombro da mãe. - Ninguém nos vem visitar, o patrão não está na aldeia, a patroa está no hospital e eu sou uma espécie de encarregado. Senta-te. Chá? Querem comer? Efime, traz leite!

 

Efime dirigiu-se lentamente para a cabana. As viajantes tiraram os sacos dos ombros. Um dos jovens, alto e seco, levantou-se para ajudá-las. O outro, atarracado e hirsuto, estava abancado e olhava-as, pensativo, coçando a cabeça e cantarolando.

 

O cheiro forte do alcatrão misturava-se com o odor adocicado das folhas apodrecidas e fazia a cabeça andar à roda.

 

- Este é o lakov - disse Rybine, apontando para o mais alto dos dois rapazes - e este é o Ignat. O que é feito do teu filho?

 

- Está na prisão - suspirou a mãe.

 

- Outra vez? - exclamou Rybine. - Até parece que gosta... Ignat parou de cantar. lakov tirou o bordão das mãos da

mãe e disse:

 

- Sente-se.

 

- E você, sente-se também - disse Rybine a Sofia, que, sem responder, se sentou num tronco de árvore examinando atentamente o seu interlocutor.

 

- Quando é que o prenderam? - perguntou ele, sentando-se em frente da mãe. Abanando a cabeça, disse: - Não tens sorte, Pelágia.

 

- Paciência!

 

- Vais-te acostumando?

 

- Não, mas compreendi que não pode ser doutra maneira.

 

- Lá isso é verdade! - disse Rybine. - Bom, mas conta lá... Efime trouxe um púcaro com leite, pegou numa chávena que estava em cima da mesa, passou-a por água e pô-la diante de Sofia, escutando com atenção o relato da mãe. Movia-se sem fazer ruído, com precaução. Quando a mãe terminou, ficaram todos silenciosos, sem se olharem. Ignat fazia desenhos com a unha no tampo da mesa. Efime, de pé, atras de Rybine, apoiava-se sobre o seu ombro. lakov estava encostado ao tronco de uma árvore, os braços cruzados sobre o peito e a cabeça baixa. Sofia observava-os pelo canto do olho.

 

- Sim! - disse Rybine, numa voz arrastada e lúgubre. - É assim que eles actuam, abertamente.

 

- Se tivéssemos organizado aqui um desfile como esse

- disse Efime sorrindo, sombrio. - Os mujiks de cá matavam-nos à paulada.

 

- Davam cabo de nós - afirmou Ignat, com um movimento de cabeça. - Não, eu vou para a fábrica, que é melhor.

 

- Dizes que vão julgar o Pavel? - perguntou Rybine. Não te disseram qual é a pena a que ele está sujeito?

 

- Trabalhos forçados ou deportação para a Sibéria - disse ela em voz baixa.

 

Os três rapazes levantaram os olhos para ela. Rybine prosseguiu, baixando a cabeça:

 

- Quando ele se meteu nisto, já sabia o que é que o esperava?

 

- Sim, já sabia! - respondeu Sofia energicamente. Calaram-se todos, imóveis, como gelados por um mesmo pensamento.

 

- É isso! - continuou Rybine, severo e grave. - Também acho que ele sabia. Não teria saltado o fosso sem ter medido primeiro a distância. É um homem sério. Estão a ver, rapazes? Ele sabia que podiam cravar-lhe uma baioneta ou condená-lo a trabalhos forçados, mas foi avante. Teria passado sobre o corpo da própria mãe... Achas que ele teria passado sobre ti, Pelágia?

 

- Tenho a certeza! - disse ela, estremecendo. Olhou-os um a um e suspirou. Sofia acariciou-lhe a mão, em silêncio, e franzindo as sobrancelhas, olhou Rybine, olhos nos olhos:

 

- Pavel é um homem! - disse ele em voz baixa.

 

Os seus olhos escuros fixaram-se nos companheiros. Quedaram-se todos novamente em silêncio. Finos raios de sol estavam suspensos no ar como fitas de ouro. Um corvo crocitava algures. A mãe olhou à sua volta. Transtornavam-na a lembrança do Primeiro de Maio e as saudades do seu filho e de Andrei. Na pequena clareira jaziam bidãos de alcatrão vazios e amontoavam-se troncos escorchados. Estava rodeada de carvalhos e de bétulas que, imperceptíveis, avançavam sobre ela e que, unidos pelo silêncio, projectavam sombras escuras e frouxas sobre o chão.

 

Subitamente, lakov afastou-se da árvore a que estava apoiado, deu um passo para o lado e, detendo-se, perguntou com voz seca e forte, inclinando a cabeça:

 

- E é contra gente como ele que nos vão dar ordem de avançar, a Efime e a mim?

 

- Contra quem julgavas tu que era? - respondeu, astuto, Rybine. - Enforcam-nos com as nossas próprias mãos, neste jogo do gato e do rato.

 

- Bem, de qualquer maneira, eu vou ser soldado! - declarou Efime obstinadamente.

 

- Quem te impede? - exclamou Ignat. - Vai!

 

E, olhando Efime no fundo dos olhos, disse-lhe rindo:

 

- Apenas te peço que, quando tiveres de disparar contra mim, apontes à cabeça. Não me deixes mutilado, mata-me

logo ali.

 

- Já me tinhas dito isso! - gritou bruscamente Efime.

 

- Calma, rapazes! - disse Rybine, olhando-os e levantando o braço num gesto pausado. - Olhem esta mulher (e apontou para a mãe). O filho dela já está certamente perdido...

 

- Porque dizes isso? - perguntou a mãe, num tom de voz baixo e angustiado.

 

- Porque tem de ser dito. É preciso que os teus cabelos não tenham embranquecido em vão. Do mesmo modo, quando matam alguém, é preciso que a sua morte não seja inglória. Pelágia, trouxeste livros?

 

A mãe fitou-o por momentos, e respondeu, depois de um silêncio:

 

- Sim, trouxe...

 

- Ora, ainda bem! - disse Rybine, batendo com a palma da mão sobre a mesa. - Percebi que trazias, assim que te vi. Porque virias aqui se não fosse para isso? Estão a ver? Retiraram o filho das fileiras e a mãe ocupou o lugar dele!

 

Agitou o punho ameaçadoramente, enquanto proferia palavrões.

 

A mãe estava assustada. Olhou para Rybine e viu que o seu rosto tinha mudado muito. Estava mais magro, a barba era desigual, deixando adivinhar as maçãs do rosto. Os seus olhos azuis estavam raiados de vermelho, como se há muito não dormisse. O nariz era ossudo e adunco como o bico de uma ave de rapina. O colarinho desabotoado da camisa coberta de alcatrão deixava entrever as clavículas descarnadas e os pêlos negros do peito. Todo ele era agora ainda mais sombrio, mais fúnebre. O brilho dos seus olhos inflamados iluminava-lhe o rosto com o fogo obscuro da ira. Sofia, mais pálida, estava calada sem despegar os olhos dos mujiks. Ignat inclinava a cabeça, franzindo as sobrancelhas, enquanto lakov, de pé junto da cabana, arrancava raivosamente pedaços de casca de árvore. Efime passeava lentamente por detrás da mãe.

 

- Há dias - prosseguiu Rybine - o chefe do distrito chamou-me e disse-me: "Que foste dizer ao pope, meu canalha?" "Porque é que eu sou um canalha? Trabalho para ganhar o meu pão, e nunca fiz mal a ninguém. Essa é que é a verdade!" Pôs-se a grunhir, deu-me um murro na cara... e encarcerou-me durante três dias. "Ah! É assim que falas com o povo? Assim, hem? Não esperes perdão, demónio! Se não for eu, outro vingará a ofensa que me fizeste, e se não for sobre ti, será sobre os teus filhos, não te esqueças do que te digo! Lavraram o ventre do povo com as vossas garras de ferro para aí semearem o ódio. Não esperem misericórdia, malditos!"

 

Fervia de raiva e a sua voz ecoava de uma maneira que aterrorizava a mãe.

 

- E que tinha eu dito ao pope? - prosseguiu, agora mais tranquilo. - À saída de uma reunião, estava ele na rua com alguns mujiks, e dizia-lhes que as pessoas são como um rebanho e que por isso é necessário haver um pastor. E eu gracejei: "Se nomearem a raposa chefe do bosque", disse eu, "haverá muitas penas, mas nenhum pássaro." Olhou-me de soslaio e continuou a falar, dizendo que o povo devia ter paciência, resignar-se e pedir a Deus que lhe desse forças para sofrer. E eu disse-lhe que o povo já rezava muito, mas que sem dúvida Deus não tinha tempo, porque não o ouvia. Aí está! Virou-se para mim e perguntou-me que orações é que eu rezava. Respondi-lhe: "Em toda a minha vida apenas aprendi uma, a mesma que todo o povo reza: "Senhor, ensina-me a acartar tijolos para o castelo, a comer pedras, a cuspir troncos."" Não me deixou acabar. Você é uma senhora da nobreza? - perguntou bruscamente a Sofia, interrompendo a sua narrativa.

 

- Porque é que julga que sou? - disse ela, com um sobressalto de surpresa.

 

- Porque... - disse Rybine, rindo - é o seu destino, já nasceu assim. Acredita que pode ocultar o pecado da nobreza, cobrindo a cabeça com um lenço de algodão? O hábito não faz o monge. Você pôs o cotovelo em cima da mesa molhada e retirou-o logo de seguida, fazendo uma careta. Além disso tem as costas demasiado direitas para ser uma operária...

 

Receando que ele ofendesse Sofia com a sua voz áspera, a sua ironia e as suas palavras, a mãe interveio serenamente:

 

- É minha amiga, Mikhail, e é uma pessoa muito boa. Os cabelos dela embranqueceram a trabalhar pela nossa causa. Não deves...

 

- Eu disse, por acaso, alguma coisa que a ofendesse? Sofia olhou-o e perguntou secamente:

 

- Há alguma coisa que você me queira dizer?

 

- Eu? Sim! Olhe, não há ainda muito tempo veio aqui um rapaz novo, um primo de lakov. Ele está doente, tuberculoso. Posso chamá-lo?

 

- Claro, chame-o.

 

Rybine olhou-a franzindo os olhos. Baixando a voz disse:

 

- Efime, vai ter com ele e diz-lhe que venha cá hoje à tarde.

 

Efime enfiou o gorro sem dizer uma palavra nem olhar para ninguém e embrenhou-se lentamente no bosque. Rybine apontou-o com a cabeça, e disse:

 

- Ele sofre. Tem que ir para a tropa e lakov também, lakov diz: "Não posso." E o outro também não pode, mas quer ir... Julga que vai fazer propaganda entre os soldados. Eu não creio que se possa derrubar um muro com a testa... Assim que chegam, põem-lhes uma baioneta nas mãos e fazem-nos avançar... Efime sofre. E Ignat aviva-lhe a ferida, o que não serve para nada.

 

- Serve, sim, claro que serve - disse Ignat sombriamente e sem olhar para Rybine. - No regimento dão-lhe a volta à cabeça, e acabará por disparar contra os operários tão bem como os outros.

 

- Não acredito - respondeu Rybine pensativo. - Mas será melhor se conseguir evitar-se. A Rússia é muito grande... como é que vão encontrá-lo? Só tem de arranjar um documento de identificação, e ir por essas aldeias.

 

- É o que eu penso fazer - declarou Ignat batendo nas pernas com uma apara de madeira. - A partir do momento em que a gente decide que não há-de ser soldado, o melhor é não hesitar mais.

 

A conversa esmoreceu. As abelhas e as vespas voavam afadigadas, e o seu zumbido perturbava o silêncio. Os pássaros cantavam. Algures, ao longe, uma canção pairava sobre o campo. Passado um momento, Rybine disse:

 

- Bem, temos de trabalhar. Vocês deixem-se ficar a descansar. Há uns enxergões na cabana. E tu, lakov, vai-me apanhar folhas secas. Mãezinha, traz os livros para aqui.

 

A mãe e Sofia abriram os sacos. Rybine espreitou e disse satisfeito:

 

- Ora bem, trouxeram uma boa quantidade! Há muito tempo que vocês fazem isto? Como é o seu nome?

 

- Anna Ivanovna... Faço isto há doze anos, porquê?

 

- Bem... E talvez tenha estado na prisão?

 

- Estive.

 

- Vês? - disse docemente a mãe em tom de censura. - E tu és grosseiro com ela...

 

Ele calou-se um instante, pegou num monte de livros, pô-los debaixo do braço, e disse mostrando os dentes:

 

- Não fique zangada comigo. O mujik e o senhor são como a resina e a água, repelem-se...

 

- Não sou uma "senhora-, sou uma "pessoa" - replicou Sofia com um leve sorriso.

 

- Pode ser... dizem que o cão começou por ser lobo... Vou esconder isto.

 

Ignat e lakov aproximaram-se.

 

- Dá-nos alguns - disse Ignat.

 

- Os livros são todos iguais? - perguntou Rybine a Sofia.

 

- Não. E há também um jornal. - Ah!

 

Os três entraram apressadamente na cabana.

 

- Os mujiks irritam-se facilmente - disse muito baixo a mãe, seguindo-os com um olhar pensativo.

 

- Sim - murmurou Sofia. - Nunca tinha visto uma cara como a dele... parece um mártir. Vamos lá também, quero vê-lo melhor!

 

- Não se aborreça com ele... é muito rude - cochichou a mãe.

 

Sofia sorriu:

 

- Como você é boa, Nilovna!

 

Ao ver as duas mulheres na entrada da cabana, Ignat levantou a cabeça e logo, enfiando os dedos pelos cabelos encaracolados, de novo se inclinou sobre o jornal que tinha sobre os joelhos. Rybine, de pé, havia colocado a folha debaixo de um raio de sol que entrava na cabana através de uma fenda no tecto e, movendo o jornal de forma a iluminá-lo sob o raio de sol, lia, movendo os lábios. lakov, ajoelhado, apoiava o peito na borda da cama de tábuas, e lia também.

 

A mãe foi sentar-se a um canto, enquanto Sofia, passando-lhe o braço por cima dos ombros, os observava em silêncio.

 

- Paizinho Mikhail, aqui insultam os mujiks - disse lakov a meia-voz e sem se virar.

 

Rybine olhou-o e respondeu:

 

- Deve ser por gostarem de nós. Ignat fungou e ergueu a cabeça.

 

- Escreveram aqui: "O mujik já não é um homem." Pois não.

 

Sobre o seu rosto franco e aberto surgiu uma sombra de humilhação:

 

- Vem cá ver como é, sabichão das dúzias, mete-te na nossa pele, tenta viver dentro dela, e veremos se serás melhor do que nós!

 

- Vou deitar-me um bocadinho - disse a mãe muito baixo para Sofia. - Estou um pouco cansada, e este cheiro enjoa-me. E você?

 

- Eu não tenho sono.

 

Deitou-se na cama de tábuas, e adormeceu imediatamente. Sofia sentou-se à sua cabeceira. Continuava a observar os leitores, e quando um moscardo ou uma vespa voava sobre a cabeça da mãe, apressava-se a espantá-lo. Pelágia observava-a com os olhos semicerrados e estes cuidados que a rapariga tinha com ela enterneciam-na.

 

Rybine aproximou-se e disse com voz grossa:

 

- Está a dormir?

 

- Sim.

 

Calou-se um instante, olhou fixamente para a mãe, suspirou e disse brandamente:

 

- Deve ser a primeira a seguir um filho neste caminho... a primeira!

 

- Não faça barulho, vamos lá para fora - propôs Sofia.

 

- Sim, temos de ir trabalhar. Gostava muito de conversar consigo, mas fica para logo à noite. Vamos, rapazes!

 

Saíram os três, deixando Sofia junto à cabana. A mãe pensou:

 

- Vai correr tudo bem, graças a Deus. Parece que toda a gente se entende...

 

E dormiu satisfeita, respirando o cheiro intenso do bosque e do alcatrão.

 

Os homens regressaram, satisfeitos por terem terminado o seu dia de trabalho. Despertada pelo barulho das suas vozes, a mãe saiu da cabana, bocejando e sorrindo.

 

- Vocês foram trabalhar, e eu para aqui a dormir que nem uma dama... - disse ela, olhando-os com ternura.

 

- Estás desculpada - respondeu Rybine.

 

Estava mais tranquilo, como se o cansaço tivesse acalmado a sua agitação.

 

- Ignat - disse -, despacha-te com o jantar. Nós aqui fazemos o trabalho da casa por turnos, e hoje é a vez de Ignat.

 

- Não me importava de ceder a minha vez - disse este que, enquanto tentava prestar ouvidos à conversa, ia recolhendo aparas de madeira e pequenos ramos para acender o

lume.

 

- As visitas interessam a todos - disse Efime, sentando-se ao lado de Sofia.

 

- Eu ajudo-te, Ignat - disse lakov.

 

Foi até à cabana e trouxe de lá um pão grande, começou a parti-lo às fatias, e a dispô-las sobre a mesa.

 

- Pssiu - disse Efime brandamente -, parece que ouvi

tossir.

 

Rybine pôs-se à escuta:

 

- Sim, é ele.

 

E dirigindo-se a Sofia, explicou:

 

- Vai assistir a um testemunho. Gostaria de poder levá-lo pelas cidades, mostrá-lo nas praças públicas, para que as pessoas o ouvissem. Diz sempre a mesma coisa, mas seria necessário que todos o escutassem.

 

O silêncio e a obscuridade faziam-se agora mais profundos, e as vozes mais doces. Sofia e Pelágia observavam os camponeses, todos eles se moviam lenta e pesadamente, com uma espécie de prudência pitoresca. Também eles observavam os gestos das duas mulheres.

 

Um homem alto e curvado saiu do bosque. Caminhava lentamente, apoiando-se no seu bastão, e ouvia-se a sua respiraçâo arquejante.

 

- Aqui estou - disse, e começou a tossir.

 

Vestia um velho sobretudo que lhe chegava aos calcanhares. Debaixo do seu chapéu preto amarrotado saiam-lhe algumas madeixas lisas de cabelo amarelado. Uma barba clara cobria-lhe o rosto macilento e ossudo. Tinha a boca entreaberta, e os seus olhos encovados brilhavam, febris, como se estivessem no fundo de cavernas sombrias.

 

Quando Rybine o apresentou a Sofia, o recém-chegado perguntou:

 

- Parece que veio trazer livros?

 

- Sim.

 

- Obrigado. Em nome do povo. Ainda não conseguem compreender sozinhos a verdade, mas eu, que já a compreendi, agradeço-lhe em nome deles.

 

Respirava com dificuldade, sorvendo o ar rápida e avidamente. A sua voz era entrecortada, e os dedos descarnados das suas mãos sem força deslizavam sobre o peito, tentando abotoar o sobretudo.

 

- Não é bom para si andar a esta hora pelo bosque. A vegetação está húmida, e isso faz mal à garganta - observou Sofia.

 

- A mim já nada me pode fazer bem - respondeu ele arquejando. - Só a morte.

 

Fazia pena ouvi-lo, e toda a sua pessoa provocava aquela piedade inútil, que reconhece a sua impotência e provoca um despeito resignado. Sentou-se sobre um barril, dobrando os joelhos com precaução, como se receasse partir as pernas, e enxugou a fronte suada. Os seus cabelos estavam secos, sem vida.

 

Acendeu-se o fogo. Tudo pareceu sobressaltar-se, mover-se. As sombras, empurradas pelas chamas, fugiram assustadas pelo bosque. Por cima do fogo surgiu por um instante o rosto redondo de Ignat que soprava. O fogo extinguiu-se. Sentiu-se um cheiro a fumo. De novo, o calor e a obscuridade cercaram a pequena clareira, como se quisessem também escutar as palavras do doente.

 

- Mas ainda posso ter utilidade para o povo, como testemunha de um crime. Olhe, olhe para mim... tenho vinte e oito anos e estou a morrer. Há dez anos atrás conseguia levantar e levar às costas, sem nenhum esforço, até duzentos quilos. Com esta saúde, pensava eu, viverei sem dificuldade até aos setenta anos. Mas decorreram apenas dez, e não vou viver muito mais. Os patrões fizeram de mim um inválido, roubaram-me quarenta anos de vida. Quarenta anos!

 

- Esta é a sua cantilena - sussurrou Rybine.

 

De novo as chamas pegaram, agora mais fortes, mais claras. As sombras correram de novo para a floresta, e de novo voltaram, trémulas, a dançar à volta da fogueira, numa dança silenciosa e hostil. A folhagem das árvores murmurava e gemia, agitada por uma baforada de ar quente. Alegres e vivas, as línguas de fogo brincavam e abraçavam-se, dançando no lume, vermelhas e amarelas, elevando-se no ar em pequenas labaredas. Uma folha queimada esvoaçou, e no céu as estrelas pareciam sorrir para as fagulhas, atraindo-as para si...

 

- Não é a minha cantilena. Há milhares de seres que a cantam, sem saber que a sua triste vida poderia servir de salutar ensinamento para o povo. Quantos homens, esgotados ou mutilados pelo trabalho, andam para aí a morrer de fome?...

 

Desatou a tossir, dobrando-se em dois, tiritando... lakov pousou sobre a mesa uma garrafa de vodka e, colocando-lhe ao lado uma réstea de cebolas brancas, disse:

 

- Vem, Saveli, trouxe-te leite.

 

O outro abanou a cabeça numa negativa, mas lakov pegou-lhe pelo braço e trouxe-o até à mesa.

 

- Ouça -, disse Sofia a Rybine em voz baixa e em tom de censura - para que é que o fez vir até aqui? Pode morrer de um momento para o outro...

 

- É possível - concordou Rybine. - Entretanto, é preciso deixá-lo falar. Arruinou a saúde para nada, pode agora sofrer um pouco pela humanidade. É justo, não é?

 

- Você parece que sente prazer... nem sei em quê! - exclamou Sofia.

 

Rybine lançou-lhe um olhar e respondeu aborrecido:

 

- São os senhores que sentem prazer quando vêem Cristo a sofrer na cruz, mas nós aprendemos uma boa lição com este homem, e queremos que vocês a aprendam também.

 

Assustada, a mãe disse-lhe:

 

- Vamos, já chega!

 

O doente, sentado à mesa, tinha recomeçado a falar:

 

- Destrói-se um homem com trabalho. Para quê? Rouba-se-lhe a saúde. Para quê? É o que eu pergunto. O nosso patrão (foi na fábrica Nefedov que dei cabo de mim) quis oferecer à sua amante uma bacia de ouro para o seu toucador, e um penico de ouro também. Nesse ouro consumi a minha força e a minha vida. E assim se foram. Um homem matou-me a trabalhar para satisfazer a sua amante. Com o meu sangue ofereceu-lhe um penico de ouro!

 

- O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus - disse Efime sorrindo -, e estamos a ver para quê.

 

- Mas tens de proclamá-lo bem alto! - gritou Rybine batendo com o punho na mesa.

 

- Não o excites - acrescentou lakov em voz baixa. Ignat sorriu.

 

A mãe apercebeu-se que os três homens o escutavam com uma atenção insaciável de almas esfomeadas, e que de cada vez que Rybine falava o observavam atentamente.

 

As palavras de Saveli tinham provocado nos seus rostos um estranho e amargo sorriso. Era um sorriso onde não parecia haver compaixão pelo doente.

 

A mãe inclinou-se para Sofia, e perguntou-lhe ao ouvido:

 

- É verdade o que ele diz?

 

- Sim, os jornais falaram dessa prenda. Foi em Moscovo.

 

- E não foi castigado - disse Rybine. - Devia ter sido castigado, levado a uma praça pública, esquartejado, e os pedaços da sua carne infecta atirados aos cães. Os grandes castigos será o povo a executá-los, quando se revoltar. Há-de derramar muito sangue para lavar as suas humilhações. Esse sangue é sangue do povo, que lhe beberam das veias, pertence-lhe.

 

- Está frio - disse o doente.

 

lakov ajudou-o a levantar-se e a aproximar-se do fogo.

 

A fogueira ardia num clarão, e à sua volta tremiam sombras informes como se observassem, admiradas, a dança alegre das chamas. Saveli sentou-se sobre um tronco e estendeu as mãos, secas e transparentes, em direcção ao calor. Rybine apontou-o a Sofia com um movimento de cabeça.

 

- Isto tem mais força do que o que vem nos livros. Quando uma máquina arranca um braço a um operário ou o mata, arranja-se uma explicação. Foi ele que não foi cuidadoso. Mas quando sugam o sangue a um homem e depois o atiram para o lado como a uma carcaça, isso já não se pode explicar. Posso compreender qualquer assassínio, mas que se torture por prazer, isso não compreendo. Para que é que martirizam o povo, para que é que nos torturam? Para brincarem, para se divertirem, para se entreterem neste mundo, para com o nosso sangue comprarem tudo: cavalos, uma cantora, talheres de prata, baixelas de ouro, brinquedos caros para os filhos. E tu, trabalha, trabalha mais, para eu poder acumular o lucro do teu trabalho, e oferecer à minha amante um penico de ouro.

 

A mãe olhava, escutava, e viu, uma vez mais, a brilhar nas trevas, a estender-se como uma faixa luminosa, o caminho escolhido por Pavel e por todos os seus camaradas.

 

Terminado o jantar, reuniram-se em torno da fogueira. O fogo ardia devorando rapidamente a lenha seca. Por detrás deles, as trevas cerradas envolviam o bosque e o céu. O doente, com os olhos muito abertos, olhava para as chamas, tossia sem parar e estremecia, agitado. Dir-se-ia que a pouca vida que lhe restava se arrancava do seu peito com impaciência, com pressa de abandonar aquele corpo esgotado pela doença. Os reflexos das chamas dançavam sobre o seu rosto, sem no entanto conseguirem restituir-lhe um pouco de vida. Apenas os seus olhos brilhavam com ardor inextinguível.

 

- Queres ir para dentro da cabana, Saveli? - perguntou lakov, debruçando-se sobre ele.

 

- Porquê? - perguntou com dificuldade. - Prefiro ficar aqui. Não me resta já muito tempo para estar entre os homens.

 

Relanceou um olhar sobre os seus camaradas, permaneceu um instante em silêncio, e continuou com um sorriso pálido:

 

- Sinto-me bem convosco. Olho para vocês e digo-me que talvez vocês ainda um dia consigam vingar todos aqueles que foram roubados, todos os que foram assassinados por cobiça.

 

Ninguém lhe respondeu. Dormitava com a cabeça caída sobre o peito. Rybine olhou-o e disse muito baixo:

 

- Vem ter connosco, senta-se e conta sempre a mesma coisa, a mesma história de um homem escarnecido, pondo nela toda a sua alma, como se a suja farsa que viveu o tivesse deixado cego para qualquer outra coisa.

 

- O que é que se lhe pode dizer? - perguntou a mãe pensativa. - Se milhares de homens se matam a trabalhar dia após dia para que o patrão possa esbanjar dinheiro em coisas assim, o que é que se lhe pode dizer?

 

- É aborrecido ouvi-lo - disse Ignat também em voz baixa. - A história dele não se consegue esquecer, ainda que se tenha ouvido apenas uma vez, mas ele repete-a, sempre igual.

 

- É que essa história contém toda a vida dele, é preciso compreender isso - observou Rybine mal humorado. Já o ouvi contá-la pelo menos dez vezes; pois bem, de qualquer maneira há sempre momentos em que duvidamos. Momentos bons da vida em que não temos vontade de acreditar na torpeza do homem, na sua loucura... em que sentimos pena de todos, dos ricos como dos pobres. Também os ricos se podem enganar no caminho. A uns cega-os a fome, a outros o ouro. Ah, os homens, os meus irmãos, como tu dizes! Reflictam um pouco! Não tenham medo de pensar!

 

O doente teve um sobressalto, abriu os olhos e estendeu-se no chão. lakov levantou-se sem ruído, entrou na cabana e trouxe uma pele com a qual cobriu Saveli. Em seguida voltou a sentar-se junto de Sofia.

 

A fogueira de rosto vermelho e sorriso provocador iluminava as silhuetas negras à sua volta, e as vozes dos amigos misturavam-se pensativas com o doce crepitar e o bruxulear das chamas.

 

Sofia começou a falar. Falou da luta dos povos do mundo pelo direito à vida, das velhas lutas dos camponeses alemães, das desgraças dos irlandeses, das grandes façanhas dos operários franceses nas suas batalhas contínuas pela liberdade.

 

No bosque, no aveludado da noite, na pequena clareira entre as árvores, debaixo do tecto escuro do firmamento, em frente ao rosto risonho da fogueira, no círculo de sombras surpreendidas e hostis, iam ressuscitando os acontecimentos que tinham feito estremecer o mundo dos ávidos e dos ambiciosos, iam desfilando os povos da Terra, ensanguentados, esgotados pelos combates, iam sendo evocados os nomes dos soldados da verdade e da liberdade.

 

A voz um pouco rouca de Sofia soava docemente. Era uma voz que parecia vir do passado, que despertava esperanças e inspirava confiança, e o auditório escutava em silêncio a história dos seus irmãos em espírito. Olhavam o rosto pálido e magro daquela mulher, e parecia-lhes que uma luz mais viva iluminava a causa sagrada de todos os povos do mundo, a eterna luta pela liberdade. Cada um deles voltava a encontrar as suas aspirações, os seus pensamentos, num passado remoto que um véu sombrio e ensanguentado cobria. Sentia-se semelhante à gente de outros povos, para ele desconhecidos, unia-se a eles pelo coração e pelo pensamento, reconhecendo instintivamente, naquele universo, amigos que como eles há muito haviam decidido, unânimes e fortes, instaurar a justiça sobre a Terra, santificando a sua resolução com sofrimentos incalculáveis, vertendo rios do seu sangue por uma vida nova, clara e alegre. Elevava-se e crescia um sentimento de parentesco espiritual com todos eles, nascia sobre a Terra um novo coração, cheio de uma ânsia ardente de tudo compreender e de tudo juntar dentro de si.

 

- Virá um dia em que todos os trabalhadores do mundo levantarão a cabeça e dirão firmemente: "Basta! Não queremos continuar a viver assim." - disse Sofia cheia de certeza na voz. - Então, afundar-se-á o poder ilusório daqueles que outra força não têm para além da sua avareza. A terra cederá debaixo dos seus pés, e não terão onde se apoiar...

 

- É o que vai acontecer! - disse Rybine inclinando a cabeça. - Haja coragem, e tudo se há-de conseguir!

 

A mãe escutava, levantando as sobrancelhas, nos lábios um sorriso de surpresa e prazer. Via que tudo o que Sofia lhe parecera ter de brusco, de petulante, desaparecia agora, fundindo-se na torrente cálida das suas palavras. Encantavam-na o silêncio da noite, a dança das labaredas, o rosto de Sofia, e sobretudo a extrema atenção dos mujiks. Permaneciam imóveis, tentando não perturbar o curso tranquilo da narrativa, receando partir o frágil fio que os unia ao mundo. De quando em quando, um deles acrescentava cuidadosamente um tronco à fogueira, e quando se levantavam nuvens de fumo e de fagulhas, agitava a mão para as desviar das duas mulheres.

 

A dado momento, lakov levantou-se e disse muito baixo:

 

- Esperem um bocadinho...

 

Correu à cabana e trouxe roupas com as quais ele e Ignat cobriram as duas mulheres. Sofia voltou a falar; descrevia o dia da vitória, contagiava os outros com a fé que tinha nas suas próprias forças, despertava neles a consciência de unia comunidade, de uma união com todos aqueles que sacrificavam as suas vidas num trabalho que podia parecer estúpido comparado com os divertimentos vazios dos saciados. As palavras de Sofia não perturbavam a mãe, mas o sentimento de que o discurso de Sofia fazia nascer algo de muito grande que em todos penetrava, inundava-lhe a alma com um pensamento de piedade e de gratidão para com aqueles que, através do perigo, iam ao encontro dos que estavam acorrentados a um trabalho rude, e lhes levavam como presente as suas ideias, a sua honestidade, o seu amor à verdade.

 

"Ajuda-os, Senhor!-, pensou ela fechando os olhos.

 

Ao amanhecer, Sofia, fatigada, calou-se e olhou sorridente os rostos pensativos e reconfortados dos que a rodeavam.

 

- São horas de irmos andando - disse a mãe.

 

- Sim, já é tempo - respondeu Sofia transparecendo cansaço.

 

Um dos jovens suspirou ruidosamente.

 

- É pena que se vão já embora - declarou Rybine com uma doçura que nele era rara. - Você fala bem, e é uma grande coisa, aproximar as pessoas entre si. Quando sabemos que há milhares que querem o mesmo que nós, o coração fica mais leve. E a bondade é uma grande força.

 

- Tu falas-lhes de bondade, e eles respondem-te com a forquilha - gracejou Efime em voz baixa, levantando-se agilmente. - É melhor que vão andando, antes que alguém as veja. Quando distribuirmos os folhetos, as autoridades hão-de investigar: "E isto, de onde veio?". Pode haver alguém que se lembre: -Bem, passaram por aqui duas mulheres..."

 

Rybine interrompeu-o:

 

- Bem, mãezinha, então... obrigado pelo teu trabalho. Quando olho para ti penso sempre em Pavel... Seguiste o caminho certo.

 

Quando estava manso, tinha um sorriso grande e bondoso. Estava frio e ele estava só com a camisa, de colarinho aberto, o peito ao ar. A mãe observou a sua figura maciça e aconselhou-o amigavelmente:

 

- Devias vestir qualquer coisa, está frio.

 

- O calor, tenho-o cá dentro - respondeu ele.

 

Os três jovens, de pé junto à fogueira, falavam em voz baixa, enquanto a seus pés, enrolado em peles, o doente dormia. O céu empalidecia, as sombras desvaneciam-se e as folhas estremeciam esperando pelo sol.

 

- Bem, adeus - disse Rybine apertando a mão de Sofia. Como posso encontrá-la na cidade?

 

- Só tens de vir ter comigo - disse a mãe. Lentamente, os três rapazes, aproximaram-se de Sofia todos juntos e estenderam-lhe a mão sem dizer nada, desajeitados e afectuosos. Via-se que estavam cheios de gratidão e amizade, e este sentimento perturbava-os, sem dúvida pela sua novidade. Com um sorriso nos olhos vermelhos devido à noite de insónia, olhavam Sofia em silêncio, apoiando-se alternadamente num e noutro pé.

 

- Não querem tomar um pouco de leite antes de se irem embora? - perguntou lakov.

 

- Temos leite? - perguntou Efime.

 

Ignat passou a mão pelos cabelos e disse atrapalhado:

 

- Não temos... entornou-se... E riram os três.

 

Falavam do leite, mas a mãe bem compreendia que pensavam noutra coisa, que era todo o bem que, sem saberem exprimi-lo por palavras, desejavam a Sofia e a ela. Isto comoveu Sofia visivelmente, provocando uma perturbação, uma espécie de modéstia cheia de pudor que não lhe permitiu dizer outra coisa que não fosse "obrigada, camaradas".

 

Olharam uns para os outros como se estas palavras os tivessem feito cambalear ligeiramente.

 

Ouviu-se a tosse rouca do doente. Na fogueira apagavam-se as últimas brasas.

 

- Adeus - disseram os mujiks a meia-voz, e esta palavra melancólica acompanhou as duas mulheres durante muito tempo.

 

Sem se apressarem, tomaram um caminho pelo meio da floresta. Raiava a primeira luz da manhã, e a mãe, caminhando atrás de Sofia, dizia:

 

- Correu tudo tão bem como num sonho, não podia ter sido melhor. As pessoas querem saber a verdade, minha querida, querem mesmo!

 

Alguma coisa lhe fazia lembrar uma igreja antes da missa da manhã em dia de festa solene. O padre ainda não chegou, está escuro, está tudo tão sossegado que mete medo. Começam a entrar pessoas, há um que acende uma vela na frente de um ícone, o seguinte escolhe uma outra das santas imagens, e aos poucos vão-se diluindo as trevas, vai-se iluminando a casa de Deus.

 

- É verdade! - respondeu Sofia alegremente. - Só que agora a casa de Deus é a terra inteira!

 

- A terra inteira - repetiu a mãe movendo pensativamente a cabeça. - Isso é tão bom que até custa a crer! E você falou muito bem, minha querida Sofia, muito bem. E eu que receava que eles não gostassem de si...

 

A resposta de Sofia tardou um pouco. Depois, disse em voz baixa e sem alegria:

 

- Ao lado deles a gente torna-se mais simples. Enquanto caminhavam falaram de Rybine, do doente, dos

rapazes que escutavam com tanta atenção, e que tinham demonstrado a sua amizade e a sua gratidão através de cuidados e atenções, tão desajeitados quanto eloquentes.

 

Chegaram a campo aberto. O Sol levantava-se na frente delas. Invisível ainda, desdobrava no céu um leque transparente de raios cor-de-rosa, e as gotas de orvalho sobre a erva cintilavam com raios coloridos de audaz alegria primaveril. Os pássaros despertavam, dando vida àquela manhã com os seus jubilosos cantos. Voavam corvos apressados, crucitando, agitando pesadamente as suas asas. Um verdilhão assobiava, inquieto, algures. O horizonte ia-se descobrindo, desnudando os cumes das sombras da noite ao encontro do sol!

 

- Há alturas em que uma pessoa fala, fala, e não conseguimos compreendê-la até ao momento em que diz alguma coisa, pronuncia uma palavra, a mais simples, e de repente essa palavra ilumina tudo o resto - disse sonhadora a mãe. ~ E como esse doente... Muitas vezes ouvi contar, e sei por mim própria, como os operários são explorados nas fábricas e por todo o lado. Uma pessoa habitua-se desde criança, e acaba por já nem fazer muita diferença. E de repente ele contou uma coisa tão humilhante, tão repugnante... Senhor! Será possível que os homens passem toda a sua vida a trabalhar, para que os patrões possam permitir-se semelhantes disparates? Isto não faz sentido.

 

O pensamento da mãe deteve-se na história contada pelo doente, cuja estupidez e insolência lhe fizeram lembrar muitas extravagâncias que noutros tempos ela tinha ouvido contar, e entretanto havia esquecido.

 

- Bem se vê que estão de tal forma saciados de tudo que o coração se lhes fechou. Houve um chefe de distrito que obrigava os mujiks a saudarem o seu cavalo, quando mandava um soldado passear o animal pela cidade, e o mujik que o não o saudasse metia-o na prisão. Ora que necessidade tinha ele de agir dessa maneira? Não se compreende, não!

 

Sofia começou a trautear uma canção alegre e triunfante como aquela manhã.

 

A vida de Pelágia decorria numa estranha calma, cuja tranquilidade não deixava de a surpreender. O filho estava preso, ela sabia que o esperava uma dura condenação, mas cada vez que pensava nisso, a sua memória, involuntariamente, ia buscar as imagens de Andrei, Theo e tantos outros. Resumindo, todos aqueles que partilhavam a sorte do seu filho faziam que a seus olhos a figura de Pavel se agigantasse, e ao mesmo tempo este pensamento suscitava nela um estado contemplativo que, por sua vez, a impedia de concentrar os seus pensamentos em Pavel, dispersando-os em todas as direcções.

 

Estes pensamentos fraccionavam-se, por vezes, em pequenos raios desiguais que tudo devastavam, tudo queriam iluminar, tudo queriam reunir numa única imagem, impedindo-a de se deter em detalhes isolados, distraindo-a da sua dor e do medo que lhe inspirava o destino do seu filho.

 

Sofia partiu logo em seguida de viagem, reaparecendo cinco ou seis dias depois, alegre e contente, para voltar a desaparecer umas horas mais tarde, não regressando senão passados quinze dias. Dir-se-ia que vivia a vida em grandes círculos, fazendo de quando em quando uma breve paragem para encher a casa do irmão com a sua vivacidade e a sua música.

 

Esta música agradava agora à mãe. Ouvia-a e sentia ternas ondas que lhe inundavam o peito, penetrando no seu coração que batia agora a um ritmo mais compassado. Como um grão de trigo nascido em terra bem cultivada e generosamente regada, brotavam dela agora pensamentos vivos e audazes e fluíam palavras leves e belas, despertadas pela força daqueles sons.

 

A mãe tinha dificuldade em se resignar com a desarrumação de Sofia, que por todo o lado deixava os seus objectos pessoais, cinza e pontas de cigarro, mas aceitava com mais dificuldade ainda a sua ousada maneira de falar. Contrastava de uma forma demasiado viva com a doce e inalterável gravidade de Nikolai e a tranquila serenidade das suas palavras. Sofia fazia-lhe lembrar uma adolescente que tivesse pressa de parecer uma pessoa adulta, e que encarasse os outros como se fossem brinquedos. Falava muito da santidade do trabalho, mas sobrecarregava inutilmente as tarefas da mãe com o seu desleixo. Falava muito de liberdade, mas a mãe via que ela própria incomodava toda a gente com a sua impaciência cortante, as suas incessantes discussões. Havia em Sofia muitas contradições, e a mãe mantinha para com ela uma terna prudência e uma atenção vigilante, mas não o afecto caloroso que dedicava a Nikolai.

 

Sempre preocupado, este levava, dia após dia, a mesma existência regrada e sempre igual. Às oito horas tomava o pequeno almoço, lia o jornal e ia relatando as notícias à mãe. Ao ouvi-lo, ela compreendia clara e cruamente a forma como a pesada máquina da vida não parava de aniquilar os homens para os converter em dinheiro. Encontrava em Nikolai semelhanças com Andrei. Como este, falava da humanidade sem ódio, estimava todos os homens, a todos considerava responsáveis pela má organização social do mundo em que viviam, mas a sua fé numa nova vida não era tão ardente nem tão luminosa como em Andrei. Falava sempre com suavidade, como um juiz íntegro e severo, e até quando contava coisas terríveis tinha um sorriso compassivo e doce, embora nos seus olhos brilhasse uma luz fria e dura. Vendo este olhar, a mãe compreendia que aquele homem não perdoaria nada nem a ninguém, não podia perdoar. Mas sabia que esta dureza lhe era penosa, e compadecia-se dele. Nikolai era-lhe cada dia mais querido.

 

Às nove saía para o escritório. Ela tratava da casa, preparava a comida, lavava-se, punha um vestido limpo e, sentada na pequena sala, entretinha-se a ver as gravuras dos livros.

 

Agora já lia bem, mas a leitura exigia-lhe uma atenção que a cansava rapidamente e a fazia confundir o sentido das palavras. As imagens, pelo contrário, distraíam-na como a uma criança, mostravam-lhe um mundo para ela compreensível, quase real, e sempre novo e maravilhoso. Via surgirem cidades imensas, edifícios magníficos, máquinas, navios, monumentos, as incalculáveis riquezas criadas pelo homem e as obras da natureza cuja diversidade a deixava emocionada. A vida estendia-se até ao infinito, revelando-lhe cada dia coisas enormes, inauditas, mágicas, e sentia despertar na sua alma uma grande fome de tudo compreender. Gostava, sobretudo, de folhear um livro de estampas de zoologia, e embora estivesse escrito numa língua estrangeira, era o que para ela melhor representava a beleza, a riqueza, a imensidão da Terra.

 

- Como o mundo é grande! - dizia para Nikolai.

 

Aquilo que mais a enternecia eram os insectos, as borboletas sobretudo. Olhava com surpresa os desenhos que as representavam, e comentava:

 

- Que beleza, Nikolai Ivanovitch, hem? Por todo o lado existem coisas bonitas, mas parece que se escondem de nós, passam tão depressa diante dos nossos olhos, que nem as vemos. As pessoas vivem a correr, acabam por não chegar a saber coisa nenhuma, a ver coisa nenhuma, não têm tempo nem vontade de admirar coisa nenhuma. Como seriam mais felizes se soubessem como a Terra é rica, e quantas coisas admiráveis existem nela. E cada uma dessas maravilhas é de todos, e todos lhes pertencemos também, não é assim?

 

- É realmente assim - dizia Nikolai sorrindo, e trazia-lhe mais livros com gravuras.

 

Muitas vezes, à noite, apareciam visitas. Entre outros, Alexei Vassilievitch, um belo homem, grave e taciturno, de fisionomia pálida e barba negra. Roman Petrovitch, de cabeça redonda e a cara cheia de borbulhas, que estalava os lábios constantemente numa careta de compaixão. Ivan Danilovitch, pequeno e franzino, com uma barba ponteaguda e uma vozinha aguda, estridente, cortante como uma faca afiada. Igor, sempre a gracejar, consigo próprio, com os camaradas e até com a sua doença que se agravava cada vez mais. E vinham outros, de mais longe, com os quais Nikolai conversava longamente, sempre sobre o mesmo tema, os operários de todos os países. Discutiam, exaltavam-se, gesticulavam muito e bebiam grandes quantidades de chá. No meio do ruído das conversas, Nikolai redigia apelos que lia em seguida aos seus camaradas e estes imediatamente copiavam em caracteres de imprensa. A mãe recolhia cuidadosamente os pedaços de rascunho e queimava-os.

 

Enquanto lhes servia o chá, surpreendia-se com o ardor com que falavam da vida e da sorte dos trabalhadores, do meio mais rápido de se semear a verdade no meio deles, de lhes elevar o moral. Muitas vezes as suas opiniões divergiam, aborreciam-se, acusavam-se mutuamente, alguns irritavam-se, mas logo retomavam a discussão.

 

A mãe sentia que conhecia melhor, ela, a vida dos operários, e que via com maior clareza a enormidade da tarefa que pretendiam levar a cabo. Por isso tratava-os com a condescendência um pouco melancólica de uma pessoa mais velha perante crianças que brincassem aos casamentos, sem compreenderem o drama dessas relações. Mesmo sem querer, acabava por comparar os discursos deles com os de Andrei e de Pavel, e apercebia-se de diferenças que inicialmente lhe escapavam. Tinha por vezes a impressão que se gritava nesta casa mais do que na sua, e explicava isso para si mesma: "Sabem mais, por isso gritam mais."

 

Mas com muita frequência notava que eles pareciam excitar-se propositadamente, de uma forma um pouco artificial. Dir-se-ia que cada um deles estava empenhado em demonstrar aos outros estar mais próximo da verdade, amá-la mais do que eles. Os outros ofendiam-se com isso, faziam por provar até que ponto eles próprios conheciam essa mesma verdade, e a discussão recomeçava com renovada rudeza. Cada um deles parecia querer elevar-se acima dos outros, e a mãe sentia uma inquieta tristeza. Levantava as sobrancelhas olhando-os com ar suplicante, e pensava:

 

"Já esqueceram o meu Pacha e os outros camaradas..."

 

Ouvia, tensa, disputas que não entendia, tentando compreender os sentimentos que se escondiam por detrás das palavras. Quando em sua casa falavam do "bem", a palavra era entendida no seu todo, por inteiro, enquanto aqui tudo era dividido em partes, e portanto diminuído. As coisas lá pareciam ser sentidas com maior intensidade, enquanto aqui existiam pensamentos subtis que tudo destruíam. Falavam aqui mais da destruição da antiga ordem, enquanto lá, sonhavam com a nova. Por tudo isso as frases do seu filho e de Andrei lhe eram mais acessíveis, de mais fácil compreensão.

 

Reparava que quando vinha algum operário, Nikolai parecia mais natural. O seu rosto ganhava uma expressão doce, e as suas palavras não eram grosseiras, mas eram mais simples.

 

"Faz o que pode para se tornar acessível", pensava Pelágia. Mas isso não a consolava. Via que o visitante não estava à vontade, que se retraía interiormente e que não falava com tanta facilidade como com ela, que era uma mulher do povo. Um dia em que Nikolai tinha saído, observou a um dos operários:

 

- Porque é que te envergonhas? Não és nenhum garoto num exame.

 

O rapaz teve um sorriso franco:

 

- Até os caranguejos ficam vermelhos, quando estão fora do seu ambiente. Apesar de tudo, ele não é igual a nós.

 

Às vezes aparecia Sachenka. Nunca ficava muito tempo. Falava com o seu ar apressado, nunca se ria, e ao partir perguntava sempre à mãe:

 

- E Pavel Mikhailovitch, como está de saúde?

 

- Está bem, graças a Deus, e bem disposto.

 

- Dê-lhe cumprimentos meus! - pedia a rapariga, e desaparecia.

 

A mãe lamentava-se. Não entendia que Pavel estivesse preso há tanto tempo, sem lhe marcarem a data do julgamento. Sachenka ficava ainda mais sombria e calava-se, retorcendo os dedos com nervosismo.

 

Pelágia sentia uma grande vontade de lhe dizer: "Minha querida, eu bem sei como gostas dele..." Mas não se atrevia. O ar grave da jovem, a forma como apertava com força os lábios, e o tom da sua voz, preocupado e seco, pareciam recusar de antemão qualquer carícia. Com um suspiro a mãe apertava-lhe a mão em silêncio, e pensava:

 

"Minha querida filha, como te sentes infeliz!" Um dia veio Natacha. Alegrou-se muito por encontrar a mãe. Beijou-a e disse-lhe em voz baixa:

 

- A minha mãe morreu. Morreu, coitada! Sacudiu a cabeça e enxugou rapidamente os olhos:

 

- Estou tão triste! Não tinha ainda cinquenta anos, podia ter vivido ainda muito tempo. Mas por outro lado, pode dizer-se que a morte para ela vai ser mais leve que a vida. Estava sempre só, era uma estranha para todos, ninguém precisava dela, sempre com medo dos gritos do meu pai...

 

Será que isto era viver? Só se vive quando se espera algo de bom, mas ela, da vida, só esperava humilhações.

 

- Isso é uma grande verdade, Natacha - disse a mãe após um momento de reflexão. - Podemos dizer que vivemos quando esperamos alguma coisa de bom; quando não esperamos nada, isso já não é viver.

 

Acariciando afectuosamente a mão da jovem, perguntou-lhe ainda:

 

- E agora, ficou sozinha?

 

- Sim - respondeu suavemente Natacha.

 

A mãe calou-se um momento, para em seguida lhe dizer com um sorriso:

 

- Não se preocupe. As pessoas boas nunca estão sós, e há muita gente que gosta de si.

 

Natacha foi nomeada professora numa escola próxima de uma fábrica de tecidos, e Pelágia começou a entregar-lhe livros proibidos, folhetos, jornais. Esta passou a ser a sua tarefa. Várias vezes por mês, vestida de freira, de vendedeira de rendas e retrosarias, de respeitável burguesa ou de peregrina, percorria a província a pé, de comboio ou de carroça, de saco ao ombro ou de maleta na mão.

 

Pelas carruagens e pelos barcos, pelos hotéis e pelas pousadas, comportava-se de forma simples e tranquila. Dirigia a palavra a qualquer pessoa desconhecida, e com as suas palavras amáveis, sociáveis, e a segurança que dela emanava, de mulher que já viveu muito e viu muitas coisas neste mundo, atraía as atenções e inspirava confiança.

 

Gostava de falar com as pessoas, de ouvi-las contar as suas vidas, as suas queixas, os seus problemas. O seu coração enchia-se de alegria de cada vez que descobria no seu interlocutor aquele vivo descontamento que, enquanto se queixa das desgraças da vida, procura intensamente respostas para as perguntas que o seu espírito formula.

 

Perante ela ia-se desenrolando, cada vez mais amplo e colorido, o quadro da vida das pessoas com as suas inquietações, a sua preocupação com o pão de cada dia. Por todo o lado encontrava, na sua cínica nudez, o desejo de enganar o próximo, de o despojar, de obter dele sempre um pouco mais de proveito, de lhe chupar o sangue. Via que a terra produzia de tudo em abundância, mas que o povo estava despido e esfomeado ao lado de riquezas incalculáveis. Nas cidades erguiam-se templos cheios de ouro e de prata que Deus não queria para nada, à porta dos quais tiritavam os mendigos sempre à espera que alguma pequena moeda caísse na sua mão. Tudo isso eram coisas que ela se lembrava de ter visto noutros tempos. As igrejas ricas e as casulas dos popes bordadas a ouro, a contrastarem com as barracas dos indigentes vestidos de farrapos infames. Mas nessa altura tudo isso lhe parecia natural, enquanto agora considerava inadmissível esse estado de coisas, e o considerava um ultraje aos pobres para quem, ela bem o sabia, a igreja não é mais necessária do que para os ricos.

 

Através das imagens que representavam Cristo, e através de tudo o que tinha ouvido, sabia que Ele, o amigo dos pobres, vestia pobremente, enquanto nas igrejas os miseráveis vinham em busca de conforto e o viam acorrentado a um ouro insolente, prisioneiro de sedas que brilhavam desdenhosamente perante os seus olhos de mendigos. Voltavam-lhe à memória as palavras de Rybine:

 

- Até de Deus se servem para nos enganar.

 

Rezava agora menos, sem mesmo dar por isso, mas pensava mais em Cristo e naqueles que, sem mencionarem o Seu nome, fingindo até ignorá-Lo, viviam, julgava ela, segundo os Seus preceitos, tentando em tudo imitá-Lo e como Ele consideravam a Terra como o reino dos pobres, e desejavam repartir fraternalmente todas as riquezas deste mundo. Pensava muito em tudo isso. Esse pensamento crescia na sua alma, aprofundava-o e associava-o a tudo aquilo que via, e ele tomava a luminosidade de uma prece que com a sua luz inundava todo o obscuro mundo, toda a natureza, todos os seres. Parecia-lhe que o próprio Cristo, que ela sempre amara com um amor confuso, um estranho sentimento em que o medo e a esperança se misturavam, esse Cristo estava agora mais próximo dela, e era já diferente, mais alto e mais visível para ela, com uma face mais alegre e mais clara. Era como se Ele tivesse finalmente ressuscitado, vivificado pelo sangue ardente que generosamente vertem por Ele, o amigo da humanidade, aqueles que têm o pudor de não pronunciar o Seu nome. Pelágia voltava sempre destas viagens alegre e comovida com tudo aquilo que tinha visto e ouvido pelo caminho, animada e satisfeita por ter conseguido cumprir a sua missão.

 

- É bom viajar tanto e ver tantas coisas - dizia à noite a Nikolai. - Compreende-se o que é a vida. O povo é mantido à margem, atirado para o lado, atolado em humilhação, revolta-se e pergunta: "Porque motivo me rejeitam? Porque é que vivo faminto, se há por aí abundância de tudo? E porque motivo estou condenado à estupidez e à ignorância, se há tanta inteligência por aí? Onde está o Deus misericordioso para quem não há ricos nem pobres, de quem todos somos os filhos bem amados?" Aos poucos o povo vai-se revoltando contra a existência em que se arrasta, compreende que será sufocado pela injustiça se ele próprio não tomar medidas.

 

Experimentava cada vez mais um enorme desejo de falar às pessoas na sua linguagem, de lhes fazer ver as injustiças da vida. Às vezes custava-lhe reprimir esses impulsos.

 

Quando Nikolai a encontrava a ver um livro de gravuras, sorria e surpreendia-a sempre com alguma coisa nova e maravilhosa que lhe ensinava.

 

Admirada com as realizações audaciosas da humanidade, perguntava-lhe incrédula:

 

- Mas isso é possível?

 

E ele, pacientemente, com uma inquebrantável confiança na verdade das suas profecias, falava-lhe do futuro como de um conto de fadas, olhando-a através das lentes com os seus olhos bondosos.

 

Os desejos do homem não têm limites, e a sua força é inesgotável. No entanto, o enriquecimento espiritual do mundo é muito lento porque cada um, desejando ser independente, procura acumular dinheiro e não conhecimentos. Mas quando os homens tiverem conseguido matar a avareza em si mesmos, quando se libertarem da escravatura do trabalho forçado...

 

Pelágia tinha muitas vezes dificuldade em compreender as palavras de Nikolai, mas o sentimento da serena fé que as animava tornava-se para ela cada vez mais claro.

 

- Existem muito poucos homens livres sobre a Terra, é essa a grande desgraça - dizia ele.

 

Ela entendia isto, conhecia pessoas que se tinham libertado da rapacidade e da maldade, e compreendia que se o número destas pessoas fosse cada vez maior, o triste e sombrio rosto da existência se tornaria mais simples e mais acolhedor, mais claro e melhor.

 

- O homem vê-se obrigado a ser cruel contra a sua própria vontade! - dizia Nikolai com tristeza.

 

Ela concordava com um movimento de cabeça, recordando as palavras do Ucraniano.

 

Um dia Nikolai, sempre tão pontual, regressou a casa muito mais tarde. Em vez de despir o casaco, disse, excitado, esfregando as mãos de nervosismo:

 

- Sabe, Nilovna? Um dos nossos camaradas fugiu hoje da prisão. Mas qual deles terá sido? Não consegui saber.

 

A mãe cambaleou um pouco, sentou-se e perguntou num sussurro:

 

- Pode ter sido Pavel?

 

- Pode... - respondeu Nikolai, encolhendo os ombros. Mas como poderemos ajudá-lo a esconder-se? Como havemos de o encontrar? Estive até agora a passear pelas ruas, a ver se o vejo. É uma estupidez, mas alguma coisa tem de se fazer. Vou voltar a sair.

 

- Eu também - disse a mãe.

 

- Vá até casa de Igor, a ver se ele sabe de alguma coisa propôs Nikolai, e desapareceu rapidamente.

 

Ela pôs um xaile sobre a cabeça e, cheia de esperança, saiu logo a seguir.

 

Turvava-se-lhe a vista, o seu coração batia acelerado e quase a obrigava a correr. De cabeça baixa, sem ver nada à sua volta, caminhava ao encontro de uma esperança.

 

- Vou lá chegar, e ele vai lá estar... - Esta possibilidade dava-lhe alento.

 

Estava calor, e ela arfava, cansada. Ao chegar perto da escada da casa de Igor parou, sem forças para continuar. Voltou-se e soltou um pequeno grito de espanto, fechando os olhos por um instante. Junto à porta, tinha-lhe parecido ver Nikolai Vessovchikov, de mãos nos bolsos. Mas quando os voltou a abrir, já não viu ninguém.

 

- Sonhei - pensou ela, e subiu a escada apurando o ouvido. Em baixo, no pátio, ouviu-se um ruído surdo de passos. Parou no patamar, inclinou-se, olhou, e lá estava outra vez um rosto magro que lhe sorria.

 

- Nikolai, Nikolai - disse ela, descendo ao seu encontro, enquanto sentia o coração oprimido pelo desengano.

 

- Não, suba, suba - disse ele a meia-voz, fazendo um gesto com a mão.

 

Ela subiu a escada rapidamente e entrou em casa de Igor, que estava estendido num sofá. Murmurou ofegante:

 

- Nikolai fugiu... da prisão...

 

- Qual deles? - perguntou Igor numa voz sibilante, levantando a cabeça do alrnofadão. - Há dois Nikolai.

 

- O Vessovchikov... vem para aqui.

 

- Óptimo!

 

Vessovchikov já vinha a entrar. Fechou a porta por dentro, tirou o gorro e começou a rir suavemente, enquanto alisava o cabelo. Igor ergueu-se um pouco apoiando-se no cotovelo e tossiu, movendo a cabeça:

 

- Benvindo...

 

Com um sorriso aberto, Vessovchikov aproximou-se da mãe e tomou-lhe a mão.

 

- Se não a tivesse visto, não tinha tido outro remédio que não fosse voltar para a prisão. Não conhecia ninguém na cidade, e se voltase para o bairro apanhavam-me logo. Ia andando e pensando: "Imbecil, porque é que fugiste?" De repente vi-a a correr... segui-a.

 

- Como foi que conseguiu fugir? - perguntou a mãe.

 

Ele sentou-se desajeitadamente na borda do divã e disse, encolhendo os ombros, parecendo um pouco confuso.

 

- Foi uma oportunidade... Ia a passear pelo pátio quando os presos de delito comum se lembraram de dar uma tareia num dos vigilantes. É um antigo polícia expulso por roubo, e anda sempre a expiar e a denunciar, faz a vida negra a toda a gente. Atiraram-se a ele, gerou-se um reboliço tremendo, os outros guardas entraram em pânico, desataram a correr, a apitar... Vi o portão aberto, uma praça, a cidade... E saí sem me despedir. Como num sonho... Afastei-me um pouco e só então é que me lembrei que não tinha para onde ir. Voltei para trás e vi que as portas da prisão já estavam fechadas.

 

- Bem... - disse Igor. - O senhor só tinha de bater à porta delicadamente, e pedir que o deixassem entrar. "Perdão, sou um pouco distraído..."

 

- Sim - disse Vessovchikov sorrindo. - É uma tolice... De qualquer modo agi mal com os camaradas, não lhes disse nada. Vi depois um enterro, uma criança... Segui-o também, de cabeça baixa, sem olhar para ninguém. Deixei-me ficar mais um bocado no cemitério, a apanhar ar, e tive uma ideia.

 

- Só uma? - perguntou Igor com um suspiro. - Não lhe deve ter faltado espaço...

 

Vessovchikov desatou a rir, sem se ofender.

 

- Oh, já não tenho a cabeça tão vazia como dantes. E tu, Igor, não estás melhor?

 

- Vai-se fazendo o que se pode - respondeu Igor com uma tosse cavernosa e contínua.

 

- Dali fui até ao Museu. Andei por ali um bocado, a olhar para tudo, e sempre a pensar: "Para onde é que eu hei-de ir agora?" Estava irritado até comigo mesmo. Tinha uma fome terrível. Saí, andei um bocado... sentia-me inseguro, via os polícias a olharem para todos os lados. "Bom,..", pensei eu, "com o aspecto que tenho, não tardam a deitar-me a unha outra vez.- E nisto vejo a Pelágia a correr à minha frente, escondi-me, depois segui-a, e aqui estou.

 

- E eu que nem sequer o tinha visto! - disse a mãe com ar contrito.

 

Olhava para Vessovchikov, e parecia-lhe que este se tornara um pouco menos grosseiro.

 

- É verdade, os camaradas devem estar preocupados... disse Nikolai coçando a cabeça.

 

- E dos polícias, não tens pena? Com certeza também devem estar preocupados - observou Igor. Abriu a boca e começou a mexer os lábios, como se mastigasse o ar. - Bem, chega de brincadeira. Temos de te esconder, e isso pode ser muito engraçado, mas não é nada fácil. Se eu me pudesse levantar...

 

Faltou-lhe o ar, levou as mãos ao peito e começou a friccioná-lo.

 

- Estás muito doente, Igor Ivanovitch - disse Nikolai baixando a cabeça.

 

A mãe suspirou e passou um olhar inquieto à volta do pequeno quarto.

 

- Isso é problema meu - respondeu Igor. - Pergunte-lhe por Pavel, mãezinha. Não se faça de tonta.

 

Vessovchikov fez um sorriso de orelha a orelha.

 

- O Pavel está bem. Está de boa saúde. É uma espécie de chefe de todos nós. Discute com a direcção, e em geral é ele quem manda. Respeitam-no.

 

Pelágia bebia as palavras do rapaz enquanto ia deitando olhadelas furtivas ao rosto inchado e azulado de Igor. Fixo como uma máscara, inexpressivo, parecia estranhamente parado e só os olhos brilhavam, vivos e alegres.

 

- Se me desses de comer... Tenho uma fome terrível! exclamou subitamente Nikolai.

 

- Mãezinha, há pão naquela prateleira... depois saia para o corredor e bata na segunda porta à esquerda. Há-de abrir uma mulher, diga-lhe que venha e que traga toda a comida que lá tiver.

 

- Toda? Credo! - perguntou Nikolai.

 

- Não te preocupes, não será muita coisa.

 

A mãe saiu, bateu à porta indicada e apurou o ouvido, pensando tristemente: "Está a morrer!"

 

- Quem é? - perguntaram.

 

- É da parte do Igor - respondeu a mãe a meia-voz. Pede-lhe que venha ao quarto dele.

 

- Vou já - responderam sem abrir.

 

Esperou um instante e voltou a bater. A porta abriu-se então bruscamente e no umbral apareceu uma mulher alta, de óculos, a alisar energicamente as mangas amarrotadas da blusa, que perguntou secamente:

 

- Que deseja?

 

- Venho da parte do Igor Ivanovitch...

 

- Ah... Vamos. Oh, mas eu conheço-a! - exclamou a mulher. - Boa tarde... Está escuro, aqui.

 

Pelágia olhou para ela e lembrou-se de a ter visto em casa de Nikolai.

 

"Há sempre algum dos nossos", pensou.

 

A mulher conduzia Pelágia à sua frente, e perguntou:

 

- Está pior?

 

- Sim, está deitado... pede-lhe que lhe leve comida.

 

- É inútil!

 

Quando entraram no quarto de Igor, foram recebidas pelo som rouco da sua voz.

 

- Vou ao encontro dos meus antepassados, querida amiga. Ludmila Vassilievna, este rapaz teve o atrevimento de sair da prisão sem licença das autoridades. Antes de mais peço-lhe que lhe dê de comer, e depois é preciso escondê-lo num sítio qualquer.

 

Ludmila disse que sim com a cabeça. Examinando atentamente o rosto do doente, disse com severidade:

 

- Igor Ivanovitch, você devia ter mandado buscar-me logo que eles chegaram. E vejo que pela segunda vez não tomou o seu remédio. Que significa este descuido? Camarada, venha comigo. Daqui a nada vêm buscar o Igor para o levarem para o hospital.

 

- Sempre me vão levar? - perguntou Igor.

 

- Sim, e eu irei consigo.

 

. - Também está doente? Meu Deus!

 

- Não diga tolices.

 

- Enquanto falava, a mulher tinha ajeitado a manta sobre o peito de Nikolai, e medido com um olhar o remédio que restava dentro do frasco. Falava com uma voz baixa e monocórdica, e os gestos eram brandos. Sobre o seu rosto pálido, as negras sobrancelhas quase se uniam acima do nariz. A mãe não gostou do seu aspecto. Pareceu-lhe orgulhosa. Os seus olhos não sorriam nem brilhavam, e falava como se estivesse dando ordens.

 

- Vamos. Eu já volto. Dê a Igor uma colher de sopa deste remédio, e não o deixe falar.

 

E saiu, levando Vessovchikov com ela.

 

- Uma mulher maravilhosa - disse Igor com um suspiro. Uma criatura admirável. Devia ter vindo viver com ela, mãezinha. Ela é muito activa.

 

- Não fales. Toma, bebe isto... - disse a mãe com doçura. Engoliu o remédio e continuou piscando um olho:

 

- Por muito que me deixe ficar calado, morro da mesma maneira...

 

Com o outro olho olhava para a mãe, e os seus lábios esboçaram um sorriso. A mãe inclinou a cabeça. Um forte sentimento de piedade trazia-lhe lágrimas aos olhos.

 

- Não faz mal... isto é natural. Temos o prazer de viver, mas depois somos obrigados a morrer...

 

A mãe pousou-lhe uma mão sobre a cabeça, e repetiu em voz baixa:

 

- Cala-te, sim?

 

Ele fechou os dois olhos, como para melhor escutar o estertor do seu peito, e continuou teimosamente:

 

- É uma estupidez eu ficar calado. Que ganharia com o silêncio? Alguns segundos mais de agonia, em troca do prazer de conversar com uma boa mulher. Eu não creio que no outro mundo haja gente tão boa como neste.

 

A mãe interrompeu-o inquieta:

 

- Aquela senhora vai voltar, e vai ralhar comigo porque você não pára de falar.

 

- Não é uma "senhora", mas sim uma revolucionária, uma camarada, uma alma admirável. E quanto a ralhar consigo, pode ter a certeza que sim. Ralha sempre com toda a gente...

 

E lentamente, movendo os lábios com dificuldade, Igor começou a contar a vida da sua vizinha. Os olhos dele sorriam. A mãe compreendia que ele a provocava por brincadeira. Olhava aquele rosto coberto de uma humidade azulada, e pensava angustiada:

 

"Vai morrer..."

 

Ludmila voltou. Eechou cuidadosamente a porta atrás de si, e dirigiu-se a Pelágia:

 

- O seu amigo tem de mudar de roupa e sair daqui rapidamente. Arranje-lhe um fato e traga-lho cá o mais depressa possível. É pena que a Sofia não esteja, ela é especialista em esconder pessoas.

 

- Chega amanhã - disse a mãe, pondo um xaile pelos ombros.

 

De cada vez que a encarregavam de uma missão, era acometida de um desejo imperioso de a realizar depressa e bem, e não conseguia pensar noutra coisa que não fosse o desempenho da sua tarefa. Franzindo as sobrancelhas, preocupada, e perguntou com um ar inquieto:

 

- Como é que está a pensar disfarçá-lo?

 

- Não tem importância, ele vai sair daqui de noite.

 

- É pior que de dia. Há menos gente na rua, podem segui-lo mais facilmente, e ele não tem experiência.

 

Igor teve um riso rouco. A mãe perguntou:

 

- Poderemos ir ver-te ao hospital?

 

Ele, tossindo, fez que sim com a cabeça. Ludmila fixou na mãe os seus olhos negros, e propôs:

 

- Quer que façamos turnos para o velar? Sim? Bem, então agora despache-se.

 

E pegando no braço da mãe, com um gesto afectuoso mas autoritário, conduziu-a até à porta e aí disse-lhe em voz muito baixa:

 

- Não se ofenda que eu lhe peça para sair, mas faz-lhe mal falar, e eu ainda tenho esperança...

 

Torceu as mãos, estalando os dedos. As suas pesadas pálpebras fecharam-se sobre os olhos.

 

Esta explicação perturbou a mãe, que murmurou:

 

- Que está a dizer...

 

- Veja se não há por aí algum secreta à espreita - pediu Ludmila.

 

Levou as mãos ao rosto e esfregou as têmporas. Os lábios tremeram-lhe e a expressão tornou-se mais doce.

 

- Bem sei - respondeu a mãe, com uma ponta de orgulho.

 

Tinha já saído a porta da rua, deteve-se um instante, ajeitou o lenço e lançou à sua volta um olhar furtivo, mas vigilante. Sabia já, com certeza quase absoluta, distinguir um delator no meio da multidão. Conhecia bem o andar fingidamente descuidado, a afectada desenvoltura dos gestos, a expressão de fadiga e aborrecimento pintada no rosto, o nervosismo mal dissimulado das pálpebras, o medo e a confusão nos olhos inquietos e desagradavelmente penetrantes.

 

Daquela vez não avistou nada de parecido, e foi anelando sem pressa pela rua. Em seguida apanhou um carro e deu ordem ao cocheiro de a conduzir ao mercado. Comprou roupa para Nikolai, regateando exaustivamente, enquanto cobria de injúrias o bêbado do marido, a quem tinha de vestir de novo quase todos os meses. Esta farsa não impressionou nem um pouco os vendedores, mas divertiu-a a ela. Pelo caminho ia a pensar que a polícia não deixaria de imaginar que Nikolai teria de se disfarçar, e enviaria espiões para o mercado. Depois de tomar todas estas precauções, voltou a casa de Igor. Teve depois de acompanhar Nikolai ao outro extremo da cidade. Iam lado a lado, mas cada um em seu passeio, e a mãe olhava Vessovchikov que caminhava pesadamente, de cabeça baixa, atrapalhado com as longas abas do sobretudo acastanhado, e levantava o chapéu que lhe caía até ao nariz. Numa rua deserta Sachenka veio ao encontro deles, e a mãe voltou para casa depois de se despedir de Vessovchikov com um aceno de cabeça.

 

"E Pavel está lá... E Andrei também...", pensava com tristeza.

 

Nikolai Ivanovitch acolheu-a com uma exclamação de inquietação:

 

- Sabe, Igor está muito mal, muito mal. Levaram-no para o hospital. Ludmila esteve cá, pede-lhe que vá até lá.

 

- Ao hospital?

 

Nikolai ajeitou os óculos com um gesto nervoso e ajudou Pelágia a vestir um casaco. Em seguida apertou-lhe a mão entre os seus dedos secos e quentes, e disse-lhe com voz trémula:

 

- Sim, leve-lhe este embrulho. Esconderam Vessovchikov?

 

- Sim, não houve problema.

 

- Eu também irei visitar Igor.

 

A mãe estava tão cansada que sentia a cabeça a andar à roda, e a inquietação de Nikolai fazia-lhe pressentir uma desgraça.

 

"Está a morrer..." Este pensamento sombrio parecia martelar-lhe a cabeça. Mas quando chegou ao pequeno quarto limpo e claro do hospital e viu Igor, com o seu riso rouco, sentado no meio de um monte de almofadas brancas, tranquilizou-se imediatamente. Sorridente, manteve-se no umbral, e ouviu o doente que dizia para o médico:

 

- Um tratamento é uma reforma.

 

- Não te faças de engraçado, Igor - disse o médico com voz aguda e inquieta.

 

- E eu, como revolucionário que sou, detesto as reformas. O médico pegou na mão de Igor com cuidado e colocou-

 

-a sobre o joelho, em seguida levantou-se e, puxando pela barba com um ar pensativo, com um dedo da outra mão, tocou as saliências do rosto do enfermo.

 

A mãe conhecia bem o médico, era um dos melhores camaradas de Nikolai, chamado Ivan Danilovitch. Aproxímou-se de Igor, que lhe deitou a língua de fora. O médico virou-se:

 

- Ah, Nilovna... Bons-dias. O que é que traz na mão?

 

- Livros, claro.

 

- Ele não pode ler - observou o médico.

 

- Quer fazer de mim um imbecil - lamentou-se Igor.

 

Do peito do doente escapavam-se leves e penosos suspiros, acompanhados de um brando e rouco estertor. O seu rosto estava banhado em finas gotas de suor, e enxugava a testa levantando lentamente as suas mãos pesadas e desobedientes. A estranha imobilidade das suas faces inchadas deformava a sua larga e bondosa fisionomia. Todos os seus traços tinham desaparecido debaixo de uma máscara de morte, e só os olhos, enterrados fundo no meio de todo aquele inchaço, tinham um brilho luminoso e sorriam com indulgência.

 

- Olha lá, ó cientista... estou cansado, posso deitar-me para baixo? - perguntou.

 

- Impossível - respondeu concisamente o médico.

 

- Pois hei-de deitar-me assim que tu te vás embora.

 

- Não o deixe. Levante-lhe as almofadas, e por favor não fale com ele. Vai fazer-lhe mal.

 

A mãe concordou fazendo um gesto com a cabeça, O médico foi-se embora a passos largos. Igor deitou a cabeça para trás, fechou os olhos e não se mexeu. Apenas os seus dedos se agitavam suavemente. As paredes brancas do pequeno quarto desprendiam um frio seco, uma obscura tristeza. As copas exuberantes das tílias espreitavam pela ampla janela. Na folhagem poeirenta e sombria brilhavam claras manchas amarelas, frios indícios do Outono incipiente.

 

- A morte aproxima-se de mim lentamente, com dificuldade... - disse igor sem se mexer e sem abrir os olhos. - Vê-se que tem pena de mim, que sou um bom rapaz...

 

- Não devias falar, Igor - suplicou a mãe, acariciando-lhe docemente a mão.

 

- Espere... eu já me calo...

 

Arquejante, continuou a articular as palavras com dificuldade, entrecortando-as de longas pausas.

 

- É óptimo que esteja connosco, é tão agradável olhar o seu rosto... O que será o seu futuro? É o que me pergunto, quando a vejo. É triste pensar que a espera a prisão e toda a espécie de vilanias... a si como a todos os outros. Não tem medo da prisão?

 

- Não - respondeu ela com simplicidade.

 

- Claro. E no entanto, a prisão é uma coisa horrível. Foi o que me destruiu. Para falar com franqueza, eu não tinha vontade nenhuma de morrer.

 

"E talvez não morras ainda...", tentou a mãe ainda dizer-lhe, mas após olhar de novo aquele rosto, deixou-se ficar em silêncio.

 

- Queria continuar a trabalhar... mas se já não posso, para Que hei-de viver? É estúpido.

 

"É justo, mas não me consola..." As palavras de Andrei vieram-lhe involuntariamente à memória e suspirou tristemente. Aquele dia tínha-a cansado terrivelmente, e estava com fome. O rouco e brando estertor do doente enchia o quarto e deslizava impotente sobre as paredes nuas. A silhueta das tílias por detrás da janela fazia lembrar nuvens baixas e desconcertava a vista com a sua lividez. Tudo parecia ficar estranhamente fixo numa tenebrosa imobilidade, na desoladora espera da noite.

 

- Sinto-me tão mal! - disse Igor. Fechou os olhos e calou-se.

 

- Dorme - aconselhou a mãe -, talvez te sintas melhor. Em seguida prestou atenção à sua respiração, deitou um

 

olhar à sua volta, permaneceu alguns minutos sem se mover, tomada de uma sombria tristeza, e adormeceu.

 

Um ruído abafado na porta fê-la sobressaltar-se. Viu que Igor tinha os olhos abertos.

 

- Perdoa-me, deixei-me dormir - disse em voz baixa.

 

- Perdoa-me tu também - respondeu muito docemente. A tarde caía pela janela. Um frio tremendo fazia doer os olhos. Tudo parecia estranhamente turvo. Também o rosto do doente estava agora mais sombrio.

 

Ouviu-se um leve ruído, e em seguida a voz de Ludmila:

 

- Que estão vocês para aí a cochichar sentados às escuras? Onde é o interruptor?

 

Subitamente, o quarto foi inundado por uma luz branca e desagradável. Ali estava Ludmila, alta, direita, toda vestida de negro.

 

Igor teve um estremecimento e levou a mão ao peito.

 

- Que foi? - gritou Ludmila correndo para ele.

 

O doente olhava fixamente para a mãe. Os seus olhos pareciam imensamente grandes e brilhantes. Com a boca muito aberta, levantou a cabeça e estendeu a mão para a frente. A mãe pegou-lha com doçura e olhou-o contendo a respiração. Com um movimento convulsivo do pescoço deitou a cabeça para trás e disse em voz alta:

 

- Não posso mais... é o fim!

 

O seu corpo teve uma ligeira contracção e a cabeça caiu inerte sobre o ombro. Sob a luz acesa à cabeceira da cama, os seus olhos muito abertos reflectiam um brilho baço de morte.

 

- Meu pequeno Igor! Meu querido... - murmurou a mãe.

 

Ludmila afastou-se lentamente do leito, deteve-se defronte da janela e, com o olhar perdido no vazio, disse com uma voz muito forte, que Pelágia não lhe conhecia:

 

- Está morto...

 

Curvou-se, apoiou os cotovelos no parapeito da janela e, de repente, como se tivesse recebido uma forte pancada na cabeça, caiu de joelhos, sem forças, cobriu o rosto com as mãos e exalou um gemido surdo.

 

A mãe cruzou os braços de Igor sobre o peito e acomodou na almofada aquela cabeça que parecia agora de chumbo. Em seguida, enxugando as lágrimas, aproximou-se de Ludmila, inclinou-se sobre ela e acariciou docemente a sua espessa cabeleira. Lentamente, a jovem volveu para a mãe os seus olhos sem brilho e doentiamente dilatados. Levantou-se e os seus lábios trémulos murmuraram:

 

- Estivemos juntos no desterro, vivemos juntos, estivemos nas mesmas prisões... Por vezes era insuportável, horrível, repugnante, havia muitos que fraquejavam.

 

Um soluço seco apertou-lhe a garganta. Fez um esforço para se dominar e, aproximando da mãe o seu rosto que uma expressão de ternura e dor suavizava e rejuvenescia, continuou com um sussurro rápido, entre soluços sem pranto.

 

- Ele era incansavelmente alegre. Brincava, ria, ocultava valorosamente o seu sofrimento, esforçava-se por dar coragem aos mais fracos. Era tão bom, tão sensível... Na Sibéria, a inacção perverte as pessoas, inspira-lhes sentimentos baixos... Como ele lutou contra isso! Se visse o camarada que ele era! A sua vida privada era dura, penosa, mas nunca ninguém lhe ouviu uma queixa... nunca, ninguém! Eu era para ele uma amiga íntima, devo muíto' ao seu grande coração, abriu-me a sua alma sem restrições, e solitário, cansado, nunca me pediu em troca nem carinhos nem atenções.

 

Aproximou-se de Igor, debruçou-se sobre ele e, beijando-lhe a mão, disse-lhe tristemente em voz baixa:

 

- Camarada, meu amado camarada, agradeço-te de todo o coração, adeus! Trabalharei como tu, sem nunca duvidar, sem nunca me cansar, toda á minha vida. Adeus!

 

Sufocada pelos soluços que a sacudiam, pousou a cabeça sobre o leito, aos pés de Jgor. A mãe chorava em silêncio lágrimas abundantes que tentava conter, nem sabia porquê. Quereria ser carinhosa com Ludmila, demonstrar-lhe um afecto especial e profundo, falar-lhe de Igor com boas palavras de carinho e dor. Através das lágrimas via o rosto inchado do morto, os seus olhos que pareciam dormir sob as pálpebras descidas, os seus lábios lívidos, fixos num leve sorriso. Tudo era silêncio, sob a fria claridade da lâmpada.

 

O médico entrou com passos curtos e rápidos, como sempre. Deteve-se bruscamente a meio do quarto. Com um gesto rápido enfiou as mãos nos bolsos e perguntou com voz nervosa e forte:

 

- Foi há muito tempo?

 

Não lhe responderam. Vacilou um pouco sobre as pernas e aproximou-se de Igor enxugando a testa. Apertou-lhe a mão e afastou-se.

 

- Não é de estranhar... com o coração que tinha... isto já era para ter acontecido há seis meses, pelo menos.

 

A sua voz aguda e sonora, que parecia deslocada, quebrou-se repentinamente. Encostado à parede, retorcia a barba com os seus dedos nervosos e, pestanejando sem cessar, olhava as duas mulheres junto ao leito.

 

- Mais um! - disse docemente.

 

Ludmila aproximou-se da janela e abriu-a. No instante seguinte estavam todos juntos à janela, olhando o rosto escuro da noite de Outono. As estrelas cintilavam sobre as copas negras das árvores, mergulhando no infinito, na lonjura do céu.

 

Ludmila segurou-se ao braço da mãe e, sem dizer palavra, aconchegou-se contra o seu ombro. Ivan Danilovitch, de cabeça baixa, limpava os óculos com o lenço. Naquele silêncio ouviam-se os sussurros nocturnos da cidade, o ar fresco soprava nos rostos, agitava os cabelos. Ludmila tinha estremecimentos, uma lágrima caía pelo seu rosto. No corredor do hospital pairavam sons indistintos, assustados; um ruído de passos, gemidos, um murmúrio triste. Os três companheiros, imóveis junto à janela, olhavam as trevas em silêncio.

 

A mãe sentiu que estava ali a mais, e depois de libertar suavemente o seu braço, dirigiu-se para a porta debruçando-se sobre Igor uma vez mais.

 

- Vai-se embora? - perguntou o médico em voz baixa, sem olhar para ela.

 

-Vou...

 

Já na rua, pensou em Ludmila e nas suas poucas lágrimas.

 

-Nem sequer sabe chorar..."

 

Suspirou ao pensar nas últimas palavras de Igor. Caminhava devagar e recordava os seus olhos viVos, as suas brincadeiras, as suas histórias.,.

 

- Para um homem bom a vida é uma provação e a morte uma libertação. Como será a minha morte?

 

Imaginou Ludmila e Danilovitch de pé junto à janela do quarto branco, demasiado branco, e atrás deles os olhos mortos de Igor. Tomada de um imensa piedade, deixou escapar um suspiro profundo e apressou o passo, movida por Um sentimento indefinível e obscuro.

 

"Tenho de me apressar", pensou, obedecendo a uma força interior que era um misto de tristeza e de coragem.

 

Todo o dia seguinte a mãe andou atarefada com os preparativos para o enterro de Igor. De tarde, enquanto tomava café com Nikolai e Sofia, apareceu Sachenka, mais animada e alegre que de costume. As faces coradas, os olhos brilhantes, pareceu à mãe cheia de uma feliz esperança. A sua boa disposição interrompeu brusca e tumultuosamente a atmosfera de tristeza cheia de recordações do desaparecido. Longe de se deixar contagiar por ela, perturbava-a como uma labareda que subitamente tivesse brotado das trevas. Nikolai, tamborilando pensativo na mesa, disse:

 

- Está hoje muito diferente, Sachenka.

 

- A sério? Pode ser! Respondeu ela com uma alegre gargalhada.

 

A mãe lançou-lhe um olhar carregado de censura. Sofia observou significativamente:

 

- Estávamos a falar de Igor.

 

- Que homem admirável, não é verdade? - exclamou Sachenka. - Nunca o vi que não tivesse um sorriso e uma graça nos lábios. E como trabalhava! Era um artista da revolução. Dominava a teoria revolucionária como um mestre. Com que força e simplicidade sabia pintar o quadro da mentira, da opressão, da injustiça...

 

Falava a meia-voz, nos lábios um sorriso sonhador que não apagava a jubilosa chama que todos viam, mas ninguém compreendia. Mergulhados no luto que os afligia, recusavam entregar-se à alegria de Sachenka, defendendo inconscientemente o amargo direito de alimentar a sua dor, e, sem querer, quase obrigavam a rapariga a partilhar do seu triste estado de espírito.

 

- E agora está morto - insistiu Sofia, olhando Sachenka atentamente.

 

Esta deitou um olhar interrogador aos seus camaradas. As suas sobrancelhas franziram-se e baixou a cabeça, silenciosa, atirando os cabelos para trás com um gesto brando.

 

- Está morto! - repetiu em voz alta, um instante mais tarde, e de novo o seu olhar provocador percorreu os presentes. - Que significa "está morto"? O que é que está morto? A minha estima por Igor, o meu afecto por ele, pelo meu camarada, a recordação da sua obra de pensador? Essa mesma obra? Extinguiram-se os sentimentos que me inspirou? Desvaneceu-se a imagem que guardo dele, de homem corajoso e honrado? Será que tudo isso está morto? Eu sei que estas são coisas que para mim não hão-de morrer nunca. Parece que temos às vezes pressa de dizer de um homem: "está morto". Os seus lábios morrem, mas as suas palavras vivem e hão-de viver eternamente no coração dos vivos.

 

Voltou a sentar-se muito emocionada, apoiou os cotovelos sobre a mesa, mais tranquila, mais pensativa, continuou a sorrir, e pousando nos outros um olhar velado, acrescentou:

 

- Talvez eu esteja a dizer tolices... mas, camaradas, eu creio na imortalidade das pessoas de bem, daqueles que me ensinaram a viver a minha vida maravilhosa, esta vida que me traz alegria, que me deslumbra pela sua admirável complexidade, pela diversidade das suas manifestações e pelo progresso das ideias que amo. Talvez sejamos demasiado avaros dos nossos sentimentos, vivamos demasiado para o pensamento, e isto deforma-nos um pouco, fazendo que só sejamos capazes de pensar e não de sentir.

 

- Alguma coisa boa lhe aconteceu - exclamou Sofia rindo.

 

- Sim, uma coisa muito boa, acho eu. Estive toda a noite a falar com Vessovchikov. Antigamente não gostava dele, parecia-me grosseiro, brutal. E era-o, sem dúvida. Havia nele uma constante e sombria irritação contra toda a gente, tinha a mania exasperante de se colocar sempre no centro de tudo e dizer com azedume "eu, eu, eu...". Um sentimento irritante de pequeno-burguês.

 

Sorriu e voltou a passear à sua volta um olhar radiante.

 

- Agora fala dos "seus camaradas". E queria que ouvissem a forma como o diz, com uma espécie de emoção, de afectuosa doçura que não há palavras para expressar. Tornou-se admiravelmente simples e sincero, e cheio de vontade de realizar um bom trabalho. Encontrou-se a si próprio, conhece a sua força e também aquilo que lhe falta. Acima de tudo, nasceu dentro dele o verdadeiro sentido de camaradagem.

 

Pelágia escutava Sachenka, satisfeita de ver aquela rapariga sempre tão séria, agora alegre e contente. Mas ao mesmo tempo um sentimento de ciúme nascia nas profundezas da sua alma: "E Pavel? O que é que tudo isto tem a ver com ele?"

 

- A sua única preocupação são os camaradas - continuou Sachenka. - E sabem o que foi que ele me persuadiu a fazer? Organizar a fuga deles. Diz que é simplicíssimo e fácil.

 

Sofia levantou a cabeça e disse animadamente:

 

- E a Sachenka o que é que acha? Temos de reflectir.

 

O copo de chá começou a tremer nas mãos da mãe. Sachenka pareceu tornar-se sombria, dominando o seu entusiasmo. Calou-se por um instante e com voz séria, mas com um sorriso de alegria, disse um pouco embaraçada:

 

- Se é realmente como ele diz... devemos tentar, é a nossa obrigação.

 

Corou e ficou em silêncio.

 

"Querida, querida...", pensou a mãe com um sorriso.

 

Sofia sorriu também. Nikolai deu uma risadinha e olhou docemente para a rapariga. Esta então levantou a cabeça, olhou-os com severidade e, pálida, com os olhos a brilhar, disse com ar ofendido:

 

- Vocês estão a rir-se... já percebi. Acham que eu tenho um interesse pessoal.

 

- Porquê, Sacha? - perguntou Sofia maliciosamente, levantando-se e aproximando-se dela. A mãe julgou a pergunta despropositada e humilhante para Sachenka. Suspirou e olhou para Sofia com ar de censura.

 

- Mas... eu recuso-me! - gritou Sachenka. - Recuso-me a tomar parte na discussão deste projecto, se vocês o encaram...

 

- Vamos, calma, Sachenka - disse tranquilamente Nikolai.

 

A mãe aproximou-se por sua vez, e acariciou-lhe suavemente os cabelos. Sachenka pegou-lhe na mão e, erguendo o rosto ruborizado, olhou-a confusa. Pelágia sorriu-lhe e, não sabendo o que dizer, suspirou melancolicamente. Sofia sentou-se ao lado de Sachenka, passou-lhe o braço pelo ombro e disse, com um sorriso de curiosidade:

 

- Como você é estranha...

 

- Sim, acho que estou a dizer tolices.

 

- Como é que pôde pensar... - continuou Sofia. Mas Nikolai interrompeu-a, dizendo em tom grave e prático:

 

- Se a evasão é possível, temos de organizá-la, quanto a isso não há a menor dúvida. Em primeiro lugar, precisamos de saber se os camaradas presos estão de acordo.

 

Sachenka baixou a cabeça. Sofia, que acendia um cigarro, olhou para o irmão e atirou o fósforo para um canto.

 

- Como é que não vão estar de acordo? - suspirou a mãe.

- Eu só não creio é que seja possível.

 

Calaram-se todos, enquanto Pelágia desejava que uma vez mais lhe confirmassem a possibilidade da evasão.

 

- Terei de falar com Vessovchikov - disse Sofia.

 

- Amanhã lhe direi onde e quando poderá vê-lo - respondeu Sachenka.

 

- Que vai ele agora fazer? - perguntou Sofia, passeando-se pelo quarto.

 

- Decidimos colocá-lo como compositor na nova tipografia. Entretanto, está escondido em casa do inspector florestal.

 

O rosto de Sachenka entristeceu e recuperou a sua expressão severa de sempre, a voz voltou à sua secura habitual. Nikolai aproximou-se da mãe, que lavava os copos:

 

- Depois de amanhã vai à prisão, e vai entrgar um bilhete a Pavel. Compreende, precisamos de saber...

 

- Compreendo, compreendo! - replicou a mãe com vivacidade. - Eu entrego-lhe o bilhete.

 

- Vou-me embora - declarou Sachenka, e depois de rápida e silenciosamente apertar a mão a todos saiu, direita e austera, com passo regular e firme.

 

Sofia colocou uma mão sobre o ombro da mãe, e perguntou-lhe com un sorriso:

 

- Gostaria de ter uma filha assim?

 

- Oh, Senhor! Se pudesse tê-los todos juntos, nem que fosse apenas por um dia! - exclamou Pelágia, quase a chorar.

 

- Sim, um pouco de felicidade é bom para todos - disse Nikolai. - Mas ninguém quer só um pouco de felicidade. E ela quando é muito grande... não dura muito.

 

Sofia sentou-se ao piano e começou a tocar uma ária melancólica.

 

Na manhã seguinte algumas dezenas de homens e mulheres estavam à porta do hospital à espera que saísse o caixão do seu camarada. De volta deles rondavam, cautelosos, alguns polícias à paisana, de ouvido à escuta, prontos a detectar qualquer exclamação, cravando os olhos nos rostos, captando gestos e palavras, enquanto do outro lado da rua eram observados por um grupo de agentes de revólver à cintura. O descaramento dos secretas e os sorrisos irónicos dos polícias, prontos a exibir a sua força, irritavam a multidão. Alguns gracejavam, ocultando a sua ira; outros olhavam para o chão com ar carrancudo, para não ver o vergonhoso espectáculo; outros ainda, dando livre curso ao seu furor, troçavam das autoridades, que tinham medo de gente que não possuía outras armas para além das suas palavras. Um céu azul pálido de Outono iluminava a rua, pavimentada com seixos cinzentos e coberta de folhas mortas que o vento varria e arremessava contra os pés das pessoas.

 

A mãe estava entre a multidão, e olhando os rostos conhecidos pensava "vocês não são muitos, não, e operários quase nenhuns...".

 

As portas abriram-se e a tampa do caixão, adornada de coroas com fitas vermelhas, apareceu na rua. Os homens tiraram os gorros, todos ao mesmo tempo. Dir-se-ia um bando de pássaros negros que levantasse voo por cima das cabeças. Um oficial da polícia, alto e com um espesso bigode escuro que traçava uma linha sobre o seu rosto escarlate, atravessou energicamente a multidão. Atrás dele, atropelando as pessoas sem cerimónia,caminhavam os polícias, fazendo ressoar o pavimento sob as suas pesadas botas. O oficial disse com voz rouca e autoritária:

 

- Façam o favor de retirar as fitas!

 

Foi rodeado por um círculo compacto de homens e mulheres que falavam todos ao mesmo tempo, agitando os braços, excitados, querendo passar cada qual à frente dos outros. Perante os olhos inquietos da mãe dançaram pálidos rostos, de lábios trémulos. Lágrimas de humilhação rolavam pelas faces de uma mulher.

 

- Abaixo a violência! - gritou uma voz jovem que, sozinha, se perdeu no barulho da discussão.

 

A mãe também sentia amargura no coração. Dirigiu-se a um rapaz pobremente vestido que estava ao seu lado:

 

- Nem sequer deixam que se enterre um homem como querem os seus camaradas! Que desgraça!

 

A hostilidade era crescente. A tampa do caixão balançava sobre as cabeças. O vento brincava com as fitas, batia nos rostos, e ouvia-se o seco e enervante roçagar da seda.

 

A mãe, dominada pelo terror de um possível motim, dizia aos que lhe estavam mais próximos, falando baixo e apressadamente:

 

- Tanto pior. É melhor tirar as fitas, se tem de ser... é melhor ceder, que remédio!

 

Uma voz sonora e dura dominou o tumulto:

 

- Exigimos que nos deixem em paz, para acompanharmos à última morada um camarada que vocês torturaram...

 

Alguém entoou numa voz aguda e áspera:

 

- Entraremos no combate...

 

- Peço o favor de retirarem as fitas. lakovlev, corte-as! Ouviu-se o ruído de um sabre a ser desembainhado. A mãe fechou os olhos esperando ouvir um grito. Mas o barulho esmoreceu. A multidão rosnava. Mostravam os dentes como lobos esfomeados. Depois, em silêncio, de cabeça baixa, puseram-se em marcha, enchendo a rua com o som dos seus passos.

 

A frente, o caixão parecia navegar, despojado, com as coroas de flores murchas, e os polícias seguiam balançando ao passo dos cavalos. A mãe ia pelo passeio, não conseguia ver o caixão no meio da multidão compacta que o rodeava, e que aumentava, aumentava imperceptivelmente e ocupava a rua em toda a sua largura. Atrás da multidão erguiam-se as silhuetas cinzentas da polícia montada. De um e de outro lado iam polícias a pé com a mão no punho do sabre, e por todos os lados dançavam os olhos penetrantes dos bufos, que a mãe reconhecia e que perscrutavam atentamente as fisionomias.

 

- Adeus, camarada, adeus - cantaram tristemente duas belas vozes.

 

- Não é o momento de cantar! - gritou alguém. - Calemo-nos, amigos!

 

Havia neste grito alguma coisa de grave e severo. O cântico fúnebre interrompeu-se, o rumor das vozes perdeu intensidade, e só o firme bater dos passos enchia a rua com um ruído surdo e regular que se elevava sobre as cabeças, voava até ao céu transparente, rompia o ar como o eco do primeiro trovão de uma tempestade ainda longínqua. O vento frio e hostil, cuja violência aumentava, arremessava poeira e lixo à cara das pessoas, enfolava as roupas e revolvia os cabelos, cegava os olhos, feria os peitos, enroscava-se nas pernas...

 

Este funeral silencioso, sem sacerdote, sem cânticos pungentes, de rostos fechados e sobrancelhas franzidas, provocava na mãe um sentimento lúgubre, e os seus pensamentos giravam lentamente, veladas que estavam as suas impressões por reflexões melancólicas.

 

"Não são muitos, vocês, os que lutam pela verdade..."

 

Avançava de cabeça baixa, parecendo-lhe que não era Igor que enterravam mas sim qualquer coisa que lhe era familiar, próxima e indispensável. Estava triste, inquieta. O seu coração estava cheio de um sentimento áspero que a preocupava, não estava de acordo com os que acompanhavam Igor.

 

"Claro que Igor não acreditava em Deus, e estes que aqui estão também não..."

 

Mas não quis terminar o seu pensamento, e suspirou para aliviar o fardo que lhe pesava na alma.

 

"Oh, Senhor, Senhor Jesus! Será possível que também a mim, deste modo..."

 

Chegaram ao cemitério. Deram muitas voltas por caminhos estreitos entre as sepulturas, até chegarem a um espaço aberto, semeado de cruzes brancas enterradas fundo. Reuniram-se à volta de uma cova e não se ouvia um ruído. Aquele silêncio austero dos vivos por entre as sepulturas parecia pressagiar algo de terrível, e o coração da mãe sobressaltou-se e ficou como parado, na expectativa. O vento silvava e uivava por entre as cruzes. As flores murchas estremeciam tristemente sobre o caixão.

 

Os agentes da polícia, alerta, olhavam para o seu chefe. Junto ao túmulo ergueu-se um jovem muito alto, pálido, de cabeça descoberta, cabelos compridos e sobrancelhas negras.

 

Nó mesmo instante ressoou a voz rouca do oficial:

 

- Senhores...

 

- Camaradas! - começou o jovem numa voz sonora.

 

- Um momento! - gritou o oficial. - Aviso-os de que não posso permitir discursos.

 

- Direi apenas algumas palavras - disse o rapaz tranquilamente. - Camaradas! Sobre o túmulo do nosso mestre e amigo, façamos o juramento de não esquecer nunca os seus ensinamentos. Juremos que cada um de nós, incansável, trabalhará toda a sua vida para acabar com a força maléfica que nos oprime, a autocracia.

 

- Prendam-no! - gritou o oficial.

 

Mas a sua voz perdeu-se numa violenta explosão de gritos:

 

- Abaixo a autocracia!

 

Afastando a multidão, os polícias precipitaram-se sobre o orador, mas este, estreitamente rodeado por todos os lados, clamava agitando o braço:

 

- Viva a liberdade!

 

A mãe foi atirada para um lado. Aterrorizada, encostou-se a uma cruz e fechou os olhos à espera de um golpe de sabre. Um turbilhão confuso de sons discordantes ensurdecia-a. A terra tremeu debaixo dos seus pés. O vento e o medo impediam-na de respirar. As apitadelas dos agentes da polícia rasgavam o ar, uma voz grosseira de comando ressoou, as mulheres lançavam gritos histéricos, a madeira das vedações estalava e o ruído pesado dos pés ressoava surdamente no solo seco. Aquilo durou um grande bocado. A mãe já não conseguia manter os olhos fechados, o terror tornava-se impossível de suportar.

 

Abriu os olhos, lançou um grito e avançou estendendo os braços. Não muito longe dela, num estreito caminho entre as sepulturas, os agentes, rodeando o rapaz de cabelos compridos, defendiam-se da multidão que os atacava por todos os lados. Os sabres desembainhados cintilavam no ar com um brilho branco e frio, erguiam-se acima das cabeças e desciam rapidamente. Voavam bengalas e pedaços de madeira. Era um torvelinho, uma dança desenfreada de gritos, e acima da multidão ameaçadora erguia-se o pálido rosto do jovem, cuja potente voz troava mais alto que a tempestade de cólera desencadeada.

 

- Camaradas! Não desperdicemos as nossas forças! Obedeceram-lhe. Um após outro, os homens deitaram fora os paus com que se tinham armado e abandonaram o combate. A mãe, arrastada por uma força sobre-humana, abria caminho à sua frente. Viu Nikolai, de chapéu atirado para a nuca, afastar os manifestantes embriagados de ira, e ouviu a sua voz carregada de censura:

 

- Vocês estão doidos? Tenham calma! Pareceu-lhe que uma das suas mãos estava vermelha.

 

- Nikolai Ivanovitch, fuja! - gritou avançando para ele.

 

- Para onde vai a correr? Vão enchê-la de pancada...

 

Agarraram-na pelo ombro. Era Sofia, de cabeça descoberta, cabelos soltos, que segurava um rapaz, quase uma criança. Limpava com a mão o rosto inchado, ensanguentado. E murmurava com os lábios a tremer:

 

- Deixe-me... isto não é nada.

 

- Trate dele, leve-o para casa. Tome um lenço, amarre-lhe a cara - disse rapidamente Sofia, colocando a mão do rapaz na mão da mãe, e desapareceu dizendo:

 

- Vão-se já embora, estão a prender pessoas!

 

A multidão dispersava-se em todas as direcções. Atrás deles os agentes da polícia moviam-se pesadamente por entre as sepulturas, tropeçando desajeitadamente nos seus capotes compridos, praguejando e brandindo os sabres. O rapaz olhou-os com o olhar de um lobo.

 

- Vamos mais depressa! - disse a mãe num fio de voz, enxugando-lhe o rosto.

 

Ele murmurou, a cuspir sangue:

 

- Não se preocupe... eu estou bem. Foi com o punho do sabre... Mas eu também lhe dei uma boa cacetada... Até gritava!

 

E sacudindo o punho ensanguentado, disse com voz entrecortada:

 

- Esperem... isto não acabou! Havemos de os esmagar sem dificuldade, quando os trabalhadores se levantarem!

 

- Vamos! - apressou-se a dizer a mãe, caminhando rapidamente até uma pequena porta no muro do cemitério. Parecia-lhe que do outro lado do muro os polícias os esperavam, escondidos no campo, e que quando saíssem se atirariam a eles para os matar com pancada. Mas quando, depois de abrir com cuidado a pequena porta, deitou uma olhadela ao campo revestido do véu cinzento do crepúsculo outonal, reinavam um silêncio e uma solidão que a tranquilizaram imediatamente.

 

- Espere, vou vendar-lhe a cara - disse.

 

- Não é preciso, não tenho vergonha. Foi justo, eu recebi a minha conta, e ele a dele. Estamos quites.

 

A mãe ligou-lhe apressadamente a ferida. A vista do sangue enchia-a de compaixão, e quando sentiu nos dedos a morna viscosidade teve um calafrio de terror. Em silêncio, conduziu o ferido levando-o pelo braço através do campo.

 

Ele afastou o lenço da boca e disse com uma pequena gargalhada:

 

- Onde me leva, camarada? Eu consigo andar sozinho! Mas a mãe percebeu que ele cambaleava, que o seu passo não era firme e que o seu braço tremia. Com uma voz cada vez mais fraca, o rapaz falava, e fazia perguntas sem esperar a resposta:

 

- Chamo-me Ivan, sou funileiro, e você? Éramos três funileiros no grupo de Igor... ao todo éramos onze. Gostávamos muito dele. Deus tenha a sua alma, apesar de eu não acreditar em Deus...

 

Na rua, a mãe fez parar um carro, e fez subir Ivan sussurrando-lhe:

 

- Agora cala-te. - E por precaução voltou a cobrir-lhe a boca com o lenço. Ele levou a mão à cara, mas já não conseguiu descobrir os lábios. A mão caiu-lhe sem forças sobre o joelho. Apesar disso, continuou a falar através do lenço:

 

- Estas pancadas ficam na vossa conta, rapazes... Antes de Igor, era um estudante chamado Titovitch que nos ensinava economia política... Depois prenderam-no.

 

A mãe colocou o seu braço à volta do corpo de Ivan e apoiou a cabeça do jovem contra o seu peito. Imediatamente a cabeça se fez pesada e ele se calou. Gelada de medo, a mãe olhava temerosamente para todos os lados. Parecia-lhe que de cada esquina iriam surgir polícias que veriam a cabeça ligada de Ivan e o matariam.

 

- Bebeu? - perguntou o cocheiro voltando-se no assento e sorrindo complacente.

 

- Demais... e perdeu os sentidos - suspirou Pelágia.

 

- É seu filho?

 

- Sim, é sapateiro. Eu sou cozinheira...

 

- Ofício duro, arre!...

 

Deu uma chibatada no cavalo, virou-se outra vez e continuou mais baixo:

 

- Parece que houve pancadaria no cemitério, há bocadinho. Era o enterro de um desses que fazem política, que estão contra as autoridades e têm problemas com elas. Os que foram ao enterro eram como ele, amigos do morto, claro. Gritaram: "Abaixo as autoridades, que arruinam o povo", era o que diziam. A polícia entrou a bater forte e feio. Dizem que há mortos. E a policia também levou a sua conta.

 

Calou-se e moveu a cabeça com um ar desolado. A seguir continuou com uma voz esquisita:

 

- Incomodam os mortos e despertam os defuntos!

 

A carroça saltava ruidosamente sobre o pavimento. A cabeça de Ivan deslizava suavemente sobre o peito da mãe. O cocheiro, sentado de lado na boleia, murmurava pensativo:

 

- Há por aí muita agitação... a desordem nasce da terra, sim. Esta noite a polícia veio a casa dos meus vizinhos, e não sei o que estiveram a fazer até de manhã. Depois prenderam um que é ferreiro, e levaram-no. Dizem que uma noite destas o levam até à margem do rio e o afogam em segredo. Mas o ferreiro era um bom homem.

 

- Como se chama? - perguntou a mãe.

 

- Quem, o ferreiro? Sável. Sável Evtchenko. É novo ainda, mas já sabe muitas coisas. Mas parece que é proibido saber. Às vezes vinha a minha casa: "Que vida levam vocês, os cocheiros?", perguntava. E era verdade o que ele dizia, vivemos pior do que cães.

 

- Pare - disse a mãe.

 

A brusca paragem despertou Ivan, que se pôs a gemer baixinho.

 

- Não aguenta, o rapaz - disse o cocheiro. - Olha lá, ó bebedor de vodka!...

 

A cambalear, movendo com dificuldade um pé, depois o outro, Ivan atravessava o pátio dizendo:

 

- Isto não é nada... posso andar.

 

Sofia estava já de volta. Atarefada, agitada, recebeu a mãe com um cigarro na boca. Estendeu o ferido sobre o divã com destreza, e sem parar de dar ordens desatou a venda que lhe envolvia a cabeça. O fumo do cigarro fazia o rapaz piscar os olhos.

 

- Doutor, já chegaram! Está cansada, Nilovna? Teve medo, hem? Ben, descanse um bocadinho. Dá-lhe um cálice de Porto, Nikolai.

 

Aturdida por aquela aventura, a mãe respirava com dificuldade e tinha uma pontada nas costas.

 

- Não se preocupem comigo - murmurou.

 

E todo o seu ser tenso implorava uma atenção, uma carícia apaziguadora.

 

Nikolai saiu do quarto ao lado com a mão ligada, seguido pelo médico. Este tinha os cabelos revoltos como um ouriço, aproximou-se rapidamente de Ivan e debruçou-se sobre ele.

 

- Água, muita água, ligaduras limpas e algodão.

 

A mãe dirigiu-se à cozinha, mas Nikolai pegou-lhe pelo braço e disse-lhe carinhosamente, enquanto a conduzia à casa de jantar:

 

- Não foi a si que ele pediu, mas a Sofia. Já hoje teve bastantes emoções, não é verdade, minha amiga?

 

A mãe encontrou o seu olhar atento e compassivo, e com um soluço que não pôde conter, disse:

 

- Ah, Nikolai, foi horrível! Agrediam as pessoas com os sabres, com os sabres...

 

- Eu vi - disse Nikolai, movendo a cabeça enquanto lhe servia o vinho. - Deixaram-se aquecer um bocado demais, de ambos os lados. Mas sossegue, eles bateram com os sabres de chapa, e parece que só há um ferido grave. Eu vi-o receber as pancadas, e consegui tirá-lo da refrega.

 

O rosto e a voz de Nikolai, o calor e a luz da sala acalmaram Pelágia. Com um olhar agradecido, perguntou-lhe:

 

- Você também recebeu alguma pancada?

 

- Isto fui eu que fiz, enterrei qualquer coisa sem dar por isso, e arranquei um bocadinho de pele. Beba o seu chá. Faz frio, e está muito desagasalhada.

 

Ela estendeu a mão para o copo e viu que os seus dedos estavam cobertos de sangue coagulado. Com um gesto involuntário deixou cair essa mão sobre os joelhos. Tinha a saia molhada de sangue. Com os olhos muito abertos, as sobrancelhas levantadas, olhava furtivamente para os dedos. Sentia a cabeça a andar à roda e o seu cérebro martelava um pensamento:

 

"Farão o mesmo com Pavel, podem fazê-lo!" O médico entrou em mangas de camisa, com os punhos arregaçados. À pergunta muda de Nikolai, respondeu com a sua voz aguda:

 

- A ferida na cara é superficial, mas tem fractura do crâneo, embora também não seja muito grave. O rapaz é resistente. De qualquer modo perdeu muito sangue. Levamo-lo para o hospital?

 

- Porquê? Pode ficar aqui - disse Nikolai.

 

- Por hoje pode ser, amanhã também, mas depois não será muito fácil para mim. Não tenho tempo para fazer visitas. Vais escrever um panfleto sobre os incidentes do cemitério?

 

- Claro! - respondeu Nikolai.

 

A mãe levantou-se sem fazer barulho e foi até à cozinha.

 

- Onde vai, Nilovna? - perguntou Nikolai inquieto, fazendo-a parar. - Sofia tratará de tudo sozinha.

 

Pelágia olhou para ele e, trémula, respondeu com um sorriso estranho:

 

- Estou cheia de sangue.

 

Mudou de roupa no seu quarto, pensando mais uma vez na serenidade daquela gente, na capacidade que tinham de superar rapidamente o horror de uma situação. Esta reflexão fê-la voltar a si, expulsou-lhe o medo do coração. Quando voltou ao quarto onde estava o ferido, Sofia, debruçada sobre ele, dizia:

 

- Estás a dizer tolices, camarada.

 

- Mas vou incomodar-vos - replicou ele num fio de voz.

 

- Cala-te, que é melhor.

 

A mãe parou atrás de Sofia e pousou-lhe uma mão sobre o ombro. Olhou sorrindo o pálido rosto do ferido e começou a contar como ele tinha delirado no carro e como as suas palavras imprudentes a tinham assustado. Ivan escutava, com os olhos a brilhar de febre, batia os dentes e dizia, confuso:

 

- Como sou idiota!

 

- Bom, vamos deixar-te - declarou Sofia, depois de lhe ajeitar bem a coberta. - Descansa.

 

Passaram ambas para a casa de jantar, onde conversaram um longo momento com Nikolai e com o médico sobre os acontecimentos do dia. Falavam já sobre aquele episódio dramático como se se tratasse de um acontecimento remoto, olhavam o futuro com serenidade e discutiam o trabalho do dia seguinte. Se os rostos acusavam fadiga, os pensamentos irradiavam felicidade, e ao referir-se ao seu próprio trabalho, cada um deles parecia descontente. O médico agitava-se nervosamente na cadeira, e dizia, esforçando-se por tornar mais grave a sua voz aguda e estridente.

 

- A propaganda! A propaganda! Não é suficiente. A juventude operária tem razão. Temos de traçar um plano de agitação maior, sim, eles têm razão.

 

Nikolai disse num tom amargo:

 

- Todos se queixam de que faltam livros, mas não podemos montar uma boa tipografia. A Ludmila está esgotada, e se não arranjarmos alguém para a ajudar, vai acabar por adoecer.

 

- E Vessovchikov? - perguntou Sofia.

 

Não pode ficar na cidade. Só irá trabalhar quando tivermos a nova tipografia, mas para isso precisamos de mais uma pessoa.

 

- Não podia ser eu? - perguntou a mãe docemente. Olharam-se os três em silêncio durante uns segundos.

 

- Boa ideia! - exclamou Sofia.

 

- Não, é demasiado duro para Nilovna - disse Nikolai secamente. - Teria de viver fora da cidade, não poderia ver Pavel, e além disso...

 

Ela disse com um suspiro:

 

- Para Pavel não é uma grande privação, e a mim as visitas despedaçam-me o coração. Não se pode falar de nada, pareço uma tonta na frente do meu filho, eles até para a boca nos olham, para ver se não vamos a dizer alguma coisa proibida...

 

Os acontecimentos dos últimos dias tinham-na extenuado, e agora que se lhe apresentava uma ocasião de ir viver para longe dos dramas citadinos, aproveitava-a com entusiasmo.

 

Mas Nikolai mudou o rumo à conversa.

 

- Em que pensas? - perguntou ao médico.

 

Este levantou a cabeça e respondeu com amargura:

 

- Somos poucos, é isso que penso. Temos de trabalhar com mais energia... e convencer Pavel e Andrei a fugirem. Um e outro são demasiado valiosos para permanecerem inactivos.

 

Nikolai franziu as sobrancelhas e sacudiu a cabeça exprimindo dúvida, lançando à mãe um rápido olhar. Ela compreendeu que a sua presença os deixava pouco à vontade para falarem de Pavel, e foi para o seu quarto levando no coração um ligeiro ressentimento contra os seus amigos, que tão pouco caso tinham feito do seu desejo.

 

Deitou-se, e com os olhos abertos, embalada pelo murmúrio das vozes, entregou-se aos seus pensamentos. O dia triste que acabava de decorrer tinha sido para ela difícil de compreender e cheio de presságios sinistros, e era-lhe doloroso relembrá-lo. Afastando os pensamentos mórbidos, pôs-se a pensar em Pavel. Quereria vê-lo em liberdade, e ao mesmo tempo esta ideia assustava-a. Sentia uma grande tensão dentro de si, e a iminência de duros conflitos. A silenciosa resignação das pessoas ia desaparecendo, para dar lugar a uma tensa expectativa. Ouviam-se palavras ásperas, por todo o lado soprava um vento de renovada excitação... Cada folheto provocava uma animada discussão no mercado, nas lojas, entre os criados e os artesãos. Cada prisão que era feita na cidade provocava um eco de temor e perplexidade, mas algumas vezes cheio de inconsciente simpatia pelas explicações que os revolucionários iam dando sobre as causas de tudo aquilo. Pelágia ouvia cada vez com maior frequência como as pessoas simples pronunciavam palavras que antigamente a deixavam aterrada: revolução, socialistas, política. Proferiam-nas com ironia, mas uma ironia que não chegava a dissimular o desejo que tinham de saber um pouco mais. Proferiam-nas com ira, mas sob esta ira escondia-se o medo. Proferiam-nas pensativamente, mas com uma tonalidade de esperança e ameaça. Lentamente, mas em círculos largos, no meio do quotidiano de estagnação e tristeza, a agitação ia alastrando, o pensamento adormecido despertava, e a atitude rotineira, tranquila, perante os acontecimentos do dia a dia, perdia consistência. Pelágia apercebia-se de tudo isto melhor que os seus amigos porque conhecia melhor do que eles o rosto desolado da vida, e agora que via formarem-se nele as rugas da reflexão e da irritação, sentia-se simultaneamente alegre e assustada. Alegrava-se porque considerava que era obra do seu filho. Assustava-se porque sabia que, no momento em que saísse da prisão, ele não deixaria de se colocar à frente de todos os seus camaradas, na posição mais perigosa. E morreria.

 

Por vezes a imagem do filho adquiria aos seus olhos as proporções de um herói lendário. Faziam parte dele todas as palavras leais e audazes que tinha ouvido, todos os seres que tinha amado, tudo o que era coragem e claridade. Então, admirava-o, enternecida, orgulhosa, entusiasmada, e pensava cheia de esperança:

 

-Tudo vai correr bem, tudo!"

 

O seu amor de mãe inflamava-se, oprimia-lhe o coração até quase a fazer gritar. Em seguida o seu amor pela humanidade parava de crescer, consumia-se, e em vez deste sentimento grandioso, um pensamento de desolação palpitava timidamente nas cinzas da inquietação: "Ele vai morrer! Vai-se perder!"

Ao meio-dia estava no locutório da prisão, na frente de Pavel. Com olhos velados examinava o rosto barbudo do filho, espreitando o momento de lhe passar o bilhetinho que escondia apertado entre os dedos.

 

- Estou bem de saúde, e os camaradas também - disse ele a meia-voz. - E tu, como estás?

 

- Vou indo... morreu o Igor Ivanovitch - respondeu maquinalmente.

 

- Ah, sim? - exclamou Pavel, e baixou a cabeça.

 

- No enterro houve luta com a polícia, e prenderam uns quantos - continuou ela com naturalidade.

 

O subdirector da prisão, aborrecido, estalou os seus lábios finos, saltou da cadeira e resmungou:

 

- É proibido, e vocês têm de compreender, Cristo! Não podem falar de política.

 

A mãe levantou-se e disse confusa, como se não compreendesse:

 

- Eu não falei de política, falei da briga que houve. É verdade que se pegaram todos à pancada, e até houve um com a cabeça partida.

 

- E a mesma coisa, peço-lhe que se cale. Não pode falar senão do que lhe diz respeito a si pessoalmente, à sua família, à sua casa.

 

Percebendo que estava a ficar baralhado, sentou-se à mesa e acrescentou em tom baixo e melancólico, arrumando os seus papéis:

 

- O responsável sou eu...

 

A mãe lançou-lhe um olhar, deslizou rapidamente o bilhete para a mão de Pavel e suspirou de alívio:

 

- Não se percebe de que é que se pode falar... Pavel sorriu:

 

- Eu também não compreendo.

 

- Então não venham visitá-los - observou o funcionário, mal humorado. - Não têm nada para dizer, e vêm incomodar toda a gente...

 

- O julgamento estará para breve? - perguntou a mãe depois de uma breve pausa.

 

- O procurador esteve cá há pouco tempo, e disse que sim...

 

Trocaram mais algumas palavras insignificantes, inúteis para ambos.

 

A mãe via o olhar de Pavel pousar-se sobre ela com ternura.

 

Não tinha mudado. Era o mesmo, sempre tranquilo. Apenas a sua barba tinha crescido muito, parecia envelhecê-lo, e as suas mãos estavam mais brancas. Pelágia queria consolá-lo, falar-lhe de Vessovchikov, e com a mesma voz, no mesmo tom em que lhe dizia coisas sem importância, continuou:

 

- Vi o teu afilhado.

 

Pavel olhou-a com ar interrogador. Para lhe recordar o rosto de Vessovchikov, picado das bexigas, a mãe bateu com os dedos na sua própria cara.

 

- Está bom, é um rapaz forte e saudável, em breve estará a trabalhar.

 

Pavel tinha compreendido. Com um gesto cúmplice e um sorriso alegre nos olhos, respondeu:

 

- Isso alegra-me muito!

 

- Também a mim - disse ela satisfeita. Estava contente consigo própria e comovida com a alegria do filho.

 

Quando se foi embora, ele apertou-lhe calorosamente a mão:

 

- Obrigada, mãezínha!

 

Sentia a alegria subir-lhe à cabeça como uma embriagues. Era uma felicidade sentir o coração -do seu filho tão próximo do seu. Não teve forças para lhe responder por palavras, mas somente por uma pressão silenciosa da mão.

 

No regresso, encontrou Sachenka. A jovem costumava vir nos dias em que a mãe tinha ido à prisão. Nunca lhe perguntava por Pavel, e se a mãe não falava dele, contentava-se em ler nos seus olhos. Desta vez, porém, acolheu-a com uma pergunta ansiosa:

 

- Então? Como é que ele está?

 

- Está bem.

 

- Conseguiu entregar-lhe o bilhete?

 

- Claro! Entreguei-lho com tanta habilidade que...

 

- Ele leu-o?

 

- Como é que podia lê-lo?

 

- É verdade, já me esquecia... - disse lentamente a rapariga. - Teremos de esperar uma semana. Acha que ele estará de acordo?

 

A sua testa franziu-se, e o seu olhar estava fixo no da mãe, que reflectia.

 

- Não sei, porque não, se não há perigo? Sachenka moveu a cabeça e perguntou secamente:

 

- Sabe o que é que se pode dar ao doente? Está a pedir de comer.

 

- Pode comer de tudo. Já vou. '- Entrou na cozinha. Sachenka seguiu-a devagar.

 

- Posso ajudá-la?

 

- Obrigada, mas não é preciso.

 

A mãe tinha-se inclinado sobre o forno para pegar numa caçarola.

 

- Espere... - disse a rapariga em voz baixa.

 

O seu rosto tinha empalidecido, os seus olhos muito abertos expressavam tristeza, e os lábios trémulos murmuravam com esforço, mas não sem calor:

 

- Queria pedir-lhe... Eu sei que ele não vai aceitai. Convença-o! Diga-lhe que é necessário para a causa, que não podemos prescindir dele, que receio que ele adoeça... A data do julgamento ainda nem está marcada...

 

Via-se que lhe custava falar. Estava rígida por causa do esforço, não olhava de frente, e a sua voz era entrecortada. De olhos baixos, mordia os lábios e fazia estalar os nós dos dedos.

 

A mãe comoveu-se perante este impulso emocional. Compreendia. Perturbada e triste abraçou a rapariga e respondeu-lhe:

 

- Querida, minha filha... Ele não ouve ninguém a não ser a si mesmo.

 

Calaram-se as duas, fortemente abraçadas. Mas logo Sachenka se desprendeu com suavidade e disse estremecendo:

 

- Tem razão. É uma tolice, estes nervos... Acalmou-se subitamente, e disse apenas:

 

- Vamos dar de comer ao nosso ferido.

 

Sentou-se à cabeceira de Ivan. Reencontrara a sua solicitude e perguntava afectuosamente:

 

- Dói-lhe muito a cabeça?

 

- Não, não muito. Mas sinto-me tonto, e fraco... - respondeu Ivan puxando a colcha até ao queixo e piscando os olhos como se a luz o cegasse. Percebendo que não se decidia a comer na frente dela, Sachenka levantou-se e saiu.

 

Ivan sentou-se na cama, seguiu-a com o olhar, e disse com um ar maroto:

 

- Bonita rapariga!

 

Os seus olhos eram claros e alegres, os dentes pequenos e unidos, e estava ainda na mudança da voz.

 

- Quantos anos tens? - perguntou a mãe pensativa.

 

- Dezassete.

- Onde estão os teus pais?

 

- Na aldeia. Vivo aqui há sete anos. Quando acabei a escola fiquei por cá. E você, camarada, como se chama?

 

A mãe sentia-se comovida e divertida quando lhe dirigiam este tratamento. Sorria quando lhe perguntou:

 

- Para que queres saber?

 

Após um instante de silêncio, o rapaz, confuso, explicou:

 

- É que havia um estudante na nossa céla, quer dizer, um que lia connosco, que nos falou da mãe de Pavel Vlassov, o operário... sabe? O da manifestação do Primeiro de Maio.

 

Ela sacudiu a cabeça e prestou atenção.

 

- Foi o primeiro a desfraldar abertamente a bandeira do nosso partido - disse o jovem com um orgulho que encontrou eco no coração da mãe. - Eu não estive lá, porque pensávamos fazer também uma manifestação, mas não conseguimos. Ainda não éramos muitos, nessa altura. Mas este ano fazemo-la, vai ver!

 

Sufocava de emoção, saboreando de antemão os acontecimentos futuros. Depois continuou, agitando a colher:

 

- Bem, pois estava a dizer que a mãe de Vlassov... logo a seguir entrou para o Partido. Dizem que é uma mulher extraordinária.

 

A mãe fez um sorriso rasgado. Era-lhe agradável ouvir os elogios entusiastas do rapazote, que a envaideciam e constrangiam. Ia a dizer: "Sou eu, a mãe!" Mas conteve-se e disse para si mesma, com uma tristeza misturada de ironia:

 

"Sou uma velha tonta."

 

- Vamos, come mais um bocadinho. Tens de te curar depressa, pela nossa boa causa - disse ela emocionada, debruçando-se por cima dele.

 

A porta abriu-se e entrou uma rabanada de frio húmido de Outono logo seguida de Sofia, que entrou alegre e de faces coradas.

 

- Os bufos perseguem-me. Parecem pretendentes à volta de uma herdeira rica, palavra de honra. Tenho de sair daqui... E então, Ivan, como é que vai isso? E novidades de Pavel, Nilovna? A Sachenka está cá?

 

Acendia um cigarro, perguntava sem esperar pelas respostas, e o seu olhar cinzento acariciava a mãe e o rapaz.

 

Pelágia por sua vez olhava-a também, e sorria interiormente, pensando:

 

"Agora até eu já sou uma pessoa importante!"

 

E debruçando-se de novo sobre Ivan, disse:

 

- Trata-te, miúdo!

 

Saiu para o corredor, onde Sofia estava contando a Sachenka:

 

- Tem já trezentos exemplares prontos. Este trabalho vai dar cabo dela! É verdadeiro heroísmo. Acredite, Sachenka, que é uma grande felicidade viver entre pessoas assim, ser sua camarada, trabalhar com eles.

 

- Sim - respondeu a jovem num sussurro. Nessa noite, Sofia disse à mãe:

 

- Nilovna, é preciso ir outra vez pelas aldeias.

 

- Está bem. Quando?

 

- Dentro de dois ou três dias, pode ser?

 

- Claro!

 

- Não vá a pé - aconselhou Nikolai. - Alugue uma carruagem da malaposta. E vá por outro caminho, peço-lhe, pela província de Nikolskoie.

 

Calou-se, com um ar sombrio que não ficava bem no seu rosto, cuja expressão tranquila se tornou subitamente estranha e agreste.

 

- É uma grande volta - disse a mãe - e o aluguer é muito caro.

 

- Olhe - disse por fim Nikolai -. eu não estou de acordo com esta viagem. As coisas andam agitadas para aqueles lados, prenderam gente, um professor, devemos ser prudentes. Era melhor se esperássemos um pouco.

 

Sofia observou, batendo com os dedos na mesa:

 

- Não convém que a distribuição de literatura seja interrompida. Não tem medo de ir, Nilovna? - perguntou em seguida.

 

A mãe sentiu-se ofendida.

 

- Quando foi que eu tive medo? Nem sequer da primeira vez... e agora, de repente.,.

 

Sem acabar a frase, baixou a cabeça. De cada vez que lhe perguntavam se tinha medo, se tal coisa lhe parecia conveniente, ou se poderia fazer isto ou aquilo, sentia como se a pusessem à margem, ou a tratassem de modo diferente daquele que usavam entre si.

 

- É inútil perguntarem-me se tenho medo - prosseguiu com um suspiro. - Vocês também não perguntam uns aos outros se têm medo.

 

Nikolai tirou rapidamente os óculos, voltou a pô-los e olhou fixamente para a irmã. Em seguida fez-se um silêncio embaraçoso que agitou Pelágia, que se levantou com ar pesaroso. Quis dizer alguma coisa, mas Sofia acariciou-lhe a mão e disse-lhe mansamente:

 

- Perdoe-me! Não voltará a acontecer!

 

Isto fez rir a mãe. Instantes depois, com ar atarefado, já os três discutiam amigavelmente os detalhes da viagem à prosseguir.

 

Ao amanhecer já a mãe rodava aos solavancos na caleche que percorria a estrada enlameada pela chuva de Outono. Soprava um vento húmido, a lama salpicava, enquanto o postilhão, sentado na boleia e meio voltado para Pelágia, se queixava numa voz nasalada e dolente:

 

- Foi o que disse ao meu irmão: "Bom, vamos então fazer as partilhas." E começámos a fazê-las...

 

Deu uma súbita chicotada no cavalo da esquerda, e gritou zangado:

 

- Vamos! Toca a andar, filho da puta!

 

Os grandes corvos do Outono, com o seu ar filosófico, sobrevoavam as sementeiras, o vento frio arremessava-se contra eles a assobiar, eles viravam as costas às rajadas que lhes eriçavam as penas e os faziam vacilar. Então, cedendo àquela força, agitavam as suas asas preguiçosas e iam descansar um pouco mais longe.

 

- E então ele enganou-me, vi logo que não havia nada a fazer - dizia o cocheiro.

 

A mãe ouvia as suas palavras como se estivesse a sonhar, e na sua memória iam desfilando todos os acontecimentos que tinha vivido nos últimos anos. Antigamente, a vida parecia-lhe uma coisa distante, longínqua, criada não se sabia por quem nem para quê, e agora as coisas aconteciam na sua frente, e com a sua ajuda. Isto despertava nela um sentimento confuso no qual se misturavam a incredulidade e o orgulho em si mesma, a perplexidade e uma tranquila tristeza...

 

À sua volta, tudo oscilava num lento movimento. No céu, as nuvens cinzentas pairavam perseguindo-se pesadamente. As árvores molhadas corriam para trás de um lado e de outro do caminho agitando as suas copas, os campos rodopiavam, as colinas surgiam e desapareciam.

 

A voz roufenha do cocheiro, o tilintar dos guizos dos cavalos, o assobio húmido e o bramido do vento fundiam-se num riacho sinuoso e palpitante que corria pelo campo com uma força regular e monótona.

 

- Para o rico, até o paraíso é pequeno. É isso mesmo. Começou a pressionar-me, dá-se bem com as autoridades prosseguia o cocheiro, arrastando as palavras e balançando-se no assento.

 

À chegada à malaposta, desatrelou os cavalos e disse à mãe numa voz sem esperança:

 

- Se me desse uma moedita para beber um copo...

 

Ela deu-lhe cinco kopeks. Fazendo tilintar as moedas na mão, disse no mesmo tom:

 

- Três para vodka, dois para pão...

 

De tarde, Pelágia, moída, enregelada, chegou à vila de Nikolskoie, entrou na estalagem de muda, pediu chá e sentou-se ao pé da janela, pousando a pesada maleta sobre o banco. Através da janela via-se uma pequena praça coberta por um tapete de erva amarela, pisada, e o edifício sombrio da administração da província com o seu telhado inclinado. Sentado à entrada, estava um mujik calvo, de longas barbas, vestindo sobre as calças apenas uma camisa, fumando o seu cachimbo. Sobre a erva focinhava um porco. Agitava as orelhas com ar descontente e chafurdava na terra balançando a cabeça.

 

As nuvens passavam em maciços sombrios, rodando umas sobre as outras. Tudo parecia escuro, triste, tranquilo. Dir-se-ia que a vida se tinha escondido, sustendo a respiração.

 

De repente, chegou um sargento dos cossacos a galope, deteve o seu cavalo à porta do edifício, e agitando o chicote gritou qualquer coisa para o mujik. Os seus gritos fizeram trepidar o vidro da janela, mas a mãe não compreendeu o que dizia. O mujik levantou-se e apontou o horizonte com o braço estendido. O sargento desmontou, cambaleou um instante sobre as pernas, atirou as rédeas ao homem e a seguir, apoiando-se no corrimão, subiu desajeitadamente as escadas e entrou no edifício.

 

De novo se fez silêncio. O cavalo bateu por duas vezes com os cascos na terra mole. Na sala onde estava a mãe entrou uma rapariguinha com uma pequena trança loura sobre a nuca e dois olhos acariciadores no rosto redondo. Vinha a morder os lábios e nos braços estendidos trazia uma bandeja grande com as bordas amolgadas carregada de loiça. Cumprimentou repetidamente com a cabeça.

 

- Bons dias, menina! - disse a mãe amistosamente.

 

- Bons dias.

 

A rapariga dispôs os pires e as chávenas sobre a mesa, e a seguir disse com vivacidade:

 

- Apanharam um bandido, e vão trazê-lo!

 

- Que bandido?

 

- Não sei.

 

- E o que é que ele fez?

 

- Não sei - repetiu a rapariga. - Só ouvi dizer que o apanharam. O chefe da administração foi buscar o comissário.

 

A mãe olhou pela janela e viu alguns mujiks que se aproximavam. Alguns caminhavam lentamente, com gravidade, outros vinham a abotoar à pressa os seus casacões de pele de carneiro. Pararam à porta do edifício e dirigiram o olhar para o lado esquerdo.

 

A rapariguinha olhou também para a rua, e saiu precipitadamente batendo com a porta. A mãe teve um sobressalto, dissimulou o melhor que pôde a maleta debaixo do banco e, pondo o xaile à cabeça, dirigiu-se rapidamente até à porta, reprimindo Um súbito e incompreensível desejo de correr...

 

Quando saiu para o pátio da estalagem sentiu um frio agudo nos olhos e no peito, sentiu que sufocava e as suas pernas recusaram obedecer-lhe. Pelo centro da praça viu avançar Rybine, de mãos atadas atrás das costas, escoltado por dois guardas que batiam compassadamente com os bastões no chão. Em frente ao edifício da administração, uma multidão esperava em silêncio.

 

Aturdida, não desviava os olhos de Rybine. Ele falava, mas embora ela ouvisse a sua voz, as palavras voavam sem ressoar no vazio trémulo e escuro do seu coração.

 

Voltou a si e recuperou o alento. Um mujik com uma barba comprida e clara, de pé junto à escada, olhava-a fixamente com os seus olhos azuis. Ela tossiu, levou à garganta as suas mãos enfraquecidas pelo terror, e perguntou com dificuldade:

 

- O que foi?

 

- Isto, veja - respondeu o homem, e afastou-se. Ao seu lado colocou-se um outro.

 

Os guardas detiveram-se em frente da multidão que ia crescendo, mas continuava silenciosa. De repente elevou-se a voz forte de Rybine:

 

- Cristãos! Vocês ouviram falar desses papéis onde está escrita a verdade acerca da nossa vida de camponeses? Pois é por causa desses papéis que me perseguem... fui eu quem os distribuí pelo povo.

 

As pessoas apertaram o círculo à volta de Rybine. A sua voz ressoava tranquila e comedida, e isso serenou um pouco a mãe.

 

- Estás a ouvir? - perguntou um aldeão em voz baixa, dando uma cotovelada ao homem dos olhos azuis.

 

Sem responder, o outro levantou a cabeça e voltou a olhar para a mãe. O segundo mujik fez a mesma coisa. Mais jovem que o primeiro, tinha um rosto magro com uma barba negra e rala e manchas avermelhadas na pele. Depois afastaram-se os dois da escadaria.

 

"Têm medo", pensou a mãe.

 

Prestou mais atenção. Do alto dos degraus via claramente o rosto escuro e inchado de Rybine, distinguia o seu olhar ardente. Quereria ser vista também por ele, e ergueu-se nos bicos dos pés, estendendo a cabeça.

 

As pessoas olhavam-no Sombrias, desconfiadas, sem dizer uma palavra. Somente nas últimas filas se ouvia um ruído sufocado de vozes.

 

- Camponeses! - disse Rybine com voz cheia e firme. Tenham confiança nesses papéis... Vão talvez matar-me por causa deles. Bateram-me, torturaram-me, quiseram obrigar-me a dizer onde os tinha arranjado, e hão-de bater-me outra vez. Suportarei tudo, porque nesses papéis está escrita a verdade, e a verdade deve ser-nos mais querida que o pão. É isso mesmo!

 

- O que é que ele quer dizer com isso? - perguntou em voz baixa um dos dois mujiks.

 

O dos olhos azuis respondeu pausadamente:

 

- Agora já não tem importância; não se morre senão uma vez, mas uma vez todos nós temos de morrer...

 

A multidão permanecia ali, olhando de soslaio, taciturna. Pareciam amachucados por um fardo terrível, invisível mas esmagador.

 

O sargento apareceu na escada. A cambalear, uivou com voz avinhada:

 

- Quem é que falou?

 

Desceu as escadas aos tropeções, agarrou Rybine pelos cabelos, puxou-lhe a cabeça para trás e depois soltou-a a gritar:

 

- És tu que está a falar, filho da puta? És tu?

 

A multidão oscilou como se fossem ondas do mar. Na sua angústia impotente, a mãe inclinou a cabeça. De novo se ouviu a voz de Rybine:

 

- Vejam, boa gente...

 

- Cala-te!

 

O sargento deu-lhe um soco no ouvido. Ryhine cambaleou e encolheu os ombros.

 

- Atam-nos as mãos e torturam-nos, vêem?...

 

- Guardas, levem-no! E vocês, dispersem...

 

Saltando para a frente de Rybine como um cão preso em frente a um bocado de carne, o sargento bateu-lhe, com os punhos fechados, na cara, no peito, no ventre...

 

- Não lhe bata! - gritou alguém por entre a multidão.

 

- Porque é que lhe está a bater? - apoiou outra voz.

 

- Vamos - disse o mujik dos olhos azuis com um movimento de cabeça.

 

Sem se apressarem, aproximaram-se da administração, enquanto a mãe os seguia com um olhar de simpatia. Deu um suspiro de alívio. De novo o sargento subiu a escada a cambalear e brandindo a espada, uivou freneticamente:

 

- Tragam-no aqui, já disse!

 

- Não! - replicou uma voz do meio da multidão. A mãe percebeu que era a voz do camponês dos olhos azuis. - Não podemos permitir, rapazes. Se o levarem vão espancá-lo até à morte, e depois vão dizer que fomos nós que o matámos. Não consintam nisso!

 

- Camponeses! - gritou Rybine. - Vocês não vêem como é a vossa vida? Não compreendem que vos roubam, que vos enganam, que bebem o vosso sangue? Tudo nesta vida depende de vocês, que são a força mais importante sobre a Terra. E que direitos vos dão? Rebentar de fome, é esse o vosso único direito!

 

Subitamente, os camponeses começaram a gritar, interrompendo-se uns aos outros.

 

- É verdade!

 

- Chamem o comissário! Onde está o comissário? - O sargento foi buscá-lo...

 

_. - Mas está bêbado!

 

- Não é a nós que compete ir chamar as autoridades...

 

O barulho aumentava, elevava-se cada vez mais.

 

- Fala! Não deixaremos que te batam.

 

- Desatem-lhe as mãos!

 

- Cuidado, não vamos arranjar algum sarilho!...

 

- Tenho as mãos magoadas - disse Rybine, dominando o tumulto com a sua voz sonora e comedida. - Eu não fujo, rapazes! Não tenho porque esconder a minha verdade, ela vive dentro de mim...

 

Alguns homens afastaram-se lentamente da multidão, e distanciaram-se um pouco falando a meia-voz e movendo a cabeça. Mas outros, excitados, pobremente vestidos, chegavam correndo, cada vez mais numerosos. Fervilhavam em torno de Rybine como uma espuma sombria, enquanto este, como Cristo na montanha, levantava os braços acima-da cabeça e gritava:

 

- Obrigado, boa gente, obrigado! Devemos todos libertar as mãos dos nossos próximos, como vocês fizeram comigo. Se não formos nós, quem mais o fará?

 

Enxugou a sua barba, e de novo levantou uma mão ensanguentada:

 

- Vejam o meu sangue, derramado pela verdade?"-

 

A mãe desceu a escadaria, mas do chão não conseguia ver Rybine, rodeado pela multidão, e voltou a subir os degraus. Sentia no seu peito um novo calor, e uma espécie de alegre palpitação.

 

- Camponeses, procurem esses papéis, leiam-nos. Quando as autoridades e os popes vos disserem que os que trazem a verdade são ímpios e rebeldes, não acreditem neles. A verdade caminha em segredo pelo mundo, escontíe-se no seio do povo. Mas para as autoridades ela é como uma faca, ou como o fogo, e eles não querem aceitá-la porque ela os degolará, os queimará. A verdade é a vossa melhor amiga. Para as autoridades é uma inimiga de morte. Por isso tem de se esconder.

 

De novo se ouviram exclamações no meio da multidão:

 

- Cristãos, escutem!...

 

- Vais-te perder, irmão!

 

- Quem foi que te denunciou?

 

- Foi o pope - disse um dos guardas.

 

Os dois mujiks praguejavam vigorosamente.

 

- Atenção, rapazes! - avisou alguém.

 

Aproximava-se o comissário da polícia rural. Era um homem alto, robusto, de cara redonda. Trazia o boné caído sobre a orelha, tinha uma ponta do bigode virada para cima e outra para baixo. O seu rosto parecia contraído, deformado por um sorriso vazio, estúpido. Empunhava o sabre na mão esquerda, e agitava a direita. Ouviam-se os seus passos, fortes e seguros. A multidão abriu-lhe passagem. Sobre os rostos apareceu uma expressão triste de desalento. O rumor acalmou-se, e foi descendo como se se afundasse na terra. A mãe sentiu que tudo se turvava na sua frente, e que os seus olhos eram invadidos por uma vaga de calor. Foi de novo tomada pelo desejo de se misturar com a multidão. Inclinou-se para a frente e imobilizou-se numa espera angustiada.

 

- O que é que está a acontecer aqui? - perguntou o comissário detendo-se na frente de Rybine e examinando-o. Porque é que não tens as mãos atadas? Guardas, atem-no!

 

A sua voz era sonora, mas sem inflexões.

 

- Estavam atadas... O povo soltou-lhas - respondeu um dos guardas.

 

- O quê? O povo?... Qual povo?

 

O comissário olhou em semicírculo para os que o rodeavam, e com a mesma voz branda, monocórdica, sem subir nem baixar o tom. continuou:

 

- Quem é o povo?

 

Com o punho do sabre bateu no peito do camponês dos olhos azuis:

 

- O povo és tu, Tchumakov? E quem mais? Tu, Michine? E com a mão direita deu um puxão à barba de um outro aldeão.

 

- Dispersem, canalhas... Senão... vão saber quem eu sou! Na sua voz, no seu rosto, não havia cólera nem ameaça.

 

Falava tranquilamente, batia nas pessoas com gestos iguais das suas mãos grandes e fortes. À medida que se aproximava os homens retrocediam, inclinavam a cabeça e viravam a cara.

 

- Bom, de que é que estão à espera? Atem-no! - disse

para os guardas.

 

Depois de uma saraivada de injúrias cínicas, olhou de novo para Rybine e gritou:

 

- As mãos atrás das costas!

 

- Não quero que me atem as mãos - disse Rybine. - Não vou fugir, nem defender-me, para que hão-de atar-mas?

 

- O quê? Perguntou o comissário, dando um passo na direcção dele.

 

- Vocês já torturaram bastante o povo, bestas selvagens!

- disse Rybine levantando a voz. - O dia vermelho vai chegar em breve também para vocês.

 

O comissário, imóvel, olhava-o. Agitavam-se-lhe os bigodes. Depois, recuou um passo e guinchou com uma voz cheia de assombro:

 

- Ah! Filho de uma cadela! Que... O que é que queres dizer com isso?

 

Em seguida deu a Rybine um rápido e vigoroso murro na cara.

 

- Não podes matar a verdade a murro! - disse Rybine, avançando para ele. - E não tens o direito de me bater, cachorro ascoroso!

 

- Não tenho? Eu? - uivou o comissário, arrastando as palavras.

 

E de novo levantou o braço para agredir Rybine na cabeça. Este baixou-se, e o murro foi dado no ar. O comissário, levado pelo impulso, quase caiu. Entre a multidão estalou uma ruidosa gargalhada, e a voz furiosa de Rybine de novo se fez ouvir:

 

- Não te atrevas a bater-me, demónio!

 

O comissário olhou à sua volta. Sombrios e silenciosos, os mujiks tinham-se aproximado, formando um círculo cerrado e ameaçador.

 

- Nikita! - chamou o comissário, procurando alguém com os olhos. - Eh, Nikita!

 

Um aldeão pequeno e atarracado destacou-se da multidão. Vestia um casaco curto de pele de carneiro. Baixou a sua cabeça grande e despenteada, e olhou para o chão.

 

- Nikita! - disse o comissário lentamente, cofiando o bigode. - Dá-lhe um bom soco no ouvido.

 

O camponês deu um passo atrás, deteve-se na frente de Rybine e levantou a cabeça.

 

Rybine fulminou-o com frases cheias de verdade:

 

- Vejam, boa gente, como estes brutos querem aniquilar-vos pelas vossas próprias mãos. Vejam, pensem!...

 

O mujik levantou devagar o braço e bateu molemente na cabeça de Rybine.

 

- Assim não, idiota! - berrou o comissário.

 

- Eh, Nikita! - disse alguém de dentro da multidão. - Lembra-te que Deus está a olhar para ti!

 

- Bate-lhe, sou eu que te mando! - gritou o comissário, empurrando o mujik pelo pescoço.

 

O camponês deu um passo para o lado, baixando a cabeça com ar confuso, disse:

 

- Não posso fazer isso...

 

- O quê?

 

O rosto do comissário crispou-se, o seu corpo estremeceu e lançou-se sobre Rybine gritando palavrões. Ressoou uma pancada surda. Rybine cambaleou, agitando os braços. Com uma segunda pancada fê-lo cair ao chão, e saltando sobre ele, rugindo, encheu-o de pontapés no peito, nas costas, na cabeça.

 

Do meio da multidão elevou-se um rumor hostil. Era uma multidão que oscilava e avançava em direcção ao comissário que, apercebendo-se, saltou para o lado e desembainhou o sabre.

 

- Ah, então é isso? É uma sublevação? É isso? - A sua voz tremeu, subiu de tom, e de repente enrouqueceu como se se tivesse quebrado. Ao perder a voz pareceu perder subitamente toda a sua força. Encolheu a cabeça entre os ombros, dobrou as costas e, olhando para todos os lados com olhos vazios, retrocedeu, tacteando com o pé o chão atrás de si, com precaução. Na sua retirada, guinchou com voz rouca e inquieta:

 

- Bom! Levem-no! Eu vou-me embora. Canalha maldita! Vocês sabem que este é um criminoso, um político, um que está contra o nosso Czar, que incita à revolta? Sabem disso? E vocês continuam a defendê-lo? Também estão revoltados, vocês? Ah!...

 

Imóvel, de olhos fixos, sem forças, sem conseguir pensar, a mãe, como num pesadelo, sucumbia sob o peso do terror e da piedade. Na sua cabeça, zumbindo como moscardos, os clamores indignados, sombrios e maldosos das pessoas, a voz trémula do comissário, os sussurros desconexos...

 

- Se ele fez alguma coisa, julguem-no!...

 

- Perdoem-no...

 

- Vocês agem como se não existissem leis!

 

- Como é que pode ser? Se começam a bater assim nas pessoas, onde é que vamos parar?

 

Os camponeses tinham-se dividido em dois grupos. Uns rodeavam o comissário, tentando convencê-lo, outros, menos numerosos, permaneciam à roda do ferido e ouvia-se o rumor surdo das suas vozes. Alguns homens levantaram-no, os guardas tentaram de novo atar-lhe as mãos.

 

- Esperem, demónios! - gritaram-lhes.

 

Mikhail limpou a lama e o sangue do rosto e olhou silencioso à sua volta. O seu olhar pousou sobre a mãe, que estremeceu, ia a aproximar-se dele, mas de repente conteve-se. Instantes depois, os seus olhos detiveram-se de novo sobre Pelágia. Pareceu à mãe que ele se erguia, que levantava a cabeça, que as suas faces ensanguentadas tremiam...

 

"Reconheceu-me! Como é possível?" E fez um sinal com a cabeça, agitada por uma alegria misturada com uma pungente tristeza. Mas reparou subitamente que o camponês dos olhos azuis, de pé ao lado dele, a olhava também, e isso fez despertar nela a consciência do perigo.

 

"O que é que eu estou a fazer? Daqui a nada apanham-me a mim também!"

 

O mujik dirigiu a Rybine algumas palavras. Este moveu a cabeça e pôs-se a falar, com voz entrecortada, mas audível e corajosa:

 

- Não importa! Não sou o único sobre a Terra! Não podem prender a verdade! Por onde eu passei, hão-de recordar-me. O ninho foi destruído, os amigos e os camaradas já lá não estão...

 

"Agora é para mim que ele está a falar", pensou a mãe.

 

- Mas chegará o dia em que as águias hão-de voar livremente, e o povo se há-de libertar!

 

Uma mulher trouxe um balde de água e pôs-se a lavar o rosto de Rybine, gemendo e lamentando-se de indignação. A sua voz, aguda e desgostosa, misturava-se com as palavras de Mikhail e impedia a mãe de as ouvir. Aproximaram-se alguns mujiks precedidos do comissário, e alguém gritou:

 

- Quem é que vai trazer uma carroça para se transportar o preso? Quem é que pode emprestar uma carroça?

 

Depois ouviu-se a voz do comissário, alterada, como ofendida:

 

- Eu posso bater-te, mas tu não podes, não tens esse direito, imbecil!

 

- Sim? E tu, quem és? És Deus?

 

Uma explosão de exclamações discordantes abafou-lhe a voz.

 

- Não discutas, amigo. É a autoridade!

 

- Não se zangue, Excelência, ele não está em si...

 

- Cala-te, chifrudo!

 

- Agora vão levar-te para a cidade...

 

- Na cidade a lei é mais respeitada.

 

Os gritos da multidão soavam suplicantes, conciliadores. Misturavam-se numa agitação confusa, lamurienta, sem uma nota de esperança. Os guardas pegaram Rybine pelos sovacos, subiram as escadas e desapareceram com ele dentro de casa. Aos poucos os camponeses foram-se dispersando. A mãe viu o homem de olhos azuis aproximar-se dela, olhando-a furtivamente. As suas pernas começaram a tremer. Um sentimento de abandono oprimiu-lhe o coração, provocando-lhe náuseas.

 

"Não devo sair daqui agora, não devo", pensou ela.

 

Segurou com força o corrimão, e esperou.

 

De pé, no terraço da casa, o comissário falava, gesticulando. A sua voz, carregada de censura, soava de novo branca e sem alma:

 

- Vocês são todos uns idiotas, filhos de uma cadela. Não percebem nada de nada e metem-se num assunto destes, um assunto de Estado! Vocês bem me podem agradecer, curvar-se até ao chão, pela minha bondade. Se eu quisesse, vocês iam todos para a prisão...

 

Escutava-o uma vintena de mujiks, de cabeça descoberta. Caía a tarde e as nuvens estavam mais baixas. O camponês dos olhos azuis aproximou-se da mãe e disse com um sorriso:

 

- Assim vão as coisas por aqui...

 

- Sim - disse ela docemente.

 

Ele olhou-a de frente, e perguntou:

 

- Em que é que se ocupa?

 

- Compro rendas às camponesas, e tecidos também...

 

O homem alisou devagar a barba. Depois, com ar aborrecido, olhou a casa em frente:

 

- Por aqui não há dessas coisas.

 

A mãe olhou-o e esperou o momento propício para voltar a entrar na pousada. O aldeão tinha um belo rosto pensativo e olhos melancólicos. Alto e de ombros largos, vestia um camisão de mujik muito remendado, uma camisa limpa de algodão, umas calças de estopa avermelhada, e nos pés sem meias uns sapatos miseráveis.

 

A mãe suspirou, aliviada nem sabia de quê. E de repente, abandonando-se a uma intuição que transcendia o seu confuso pensamento, fez-lhe uma pergunta que a surpreendeu a ela própria:

 

- Posso passar a noite em sua casa? Imediatamente os seus músculos, os seus ossos, todo o

seu corpo se contraiu violentamente. Ergueu-se e fixou os olhos no camponês. Pensamentos lancinantes dançavam na sua cabeça:

 

-Vou causar a perda de Nikolai... vou estar muito tempo sem ver Pavel... vão-me bater..."

 

Olhando o chão, sem pressa, o mujik respondeu fechando o camisão sobre o peito:

 

- Passar a noite? Pode ser, porque não? Só que a minha casa não tem muito conforto...

 

- Não estou habituada a conforto - disse a mãe maquinalmente.

 

- Pode ser... - repetiu ele, fixando-a, perscrutador. Havia escurecido, e os olhos do camponês tinham um brilho frio, o seu rosto parecia mais pálido. Com a sensação de rolar por um precipício, Pelágia disse a meia-voz:

 

- Bom, então já vou. Você leva a minha mala.

 

- De acordo.

 

- Um estremecimento percorreu-lhe os ombros. O mujik voltou a cruzar o camisão sobre o peito e disse em voz baixa:

 

- Vem aí a carroça...

 

Rybine apareceu no terraço da administração com as mãos outra vez atadas, a cabeça e a cara enroladas num trapo cinzento...

 

- Adeus, gente boa! - gritou no frio crepúsculo. - Procurem a verdade, conservem-na, acreditem em quem vos traz boas palavras e não poupem forças para a defender.

 

- Cala-te, cão! - gritou o comissário. - Guarda, toca os cavalos, imbecil!

 

- Não têm nada a perder... Que vida é a vossa?

 

A carroça começou a andar. Sentado entre dois guardas, Rybine continuava:

 

- Porque é que vocês se deixam morrer de fome? Trabalhem pela liberdade, ela vos dará a verdade e o pão... Adeus, amigos!

 

O ruído apressado das rodas, o bater dos cascos dos cavalos, a voz do comissário, envolveram a sua voz, embrulharam-na, abafaram-na.

 

- Acabou-se - disse o mujik movendo a cabeça. - Deixe-se ficar aqui um momento, eu volto já.

 

Ela entrou, sentou-se à mesa, perto do samovar, pegou num pedaço de pão, olhou-o e voltou a colocá-lo sobre o prato. Não tinha fome. Experimentava de novo um mal-estar na boca do estômago, um calor desesperante que a esgotava, lhe chupava o sangue e lhe dava vertigens. Na sua frente via o camponês dos olhos azuis, com aquele rosto estranho, que parecia inacabado e não inspirava confiança. Não queria admiti-lo francamente, mas pensava: "Ele vai-me denunciar!" Este pensamento imediatamente se lhe alojou como um peso terrível no coração.

 

"Ele olhou para mim", pensava ela, sem forças para reagir "Viu-me, percebeu tudo!"

 

O seu pensamento não ia mais além, afogando-se num penoso abatimento, numa sensação viscosa de náusea.

 

Um silêncio tímido, escondido atrás da janela, tinha-se sucedido ao tumulto. Revelava uma espécie de medo, de esgotamento, presentes na aldeia. Aguçava na mãe o sentimento de solidão, enchia-lhe a alma de uma penumbra cinzenta e mole como cinza.

 

A rapariga entrou e deteve-se junto à porta.

 

- Quer que lhe traga uma omelete?

 

- Não, não tenho fome, esses gritos assustaram-me!

 

A rapariga aproximou-se e pôs-se a relatar animadamente, mas a meia-voz:

 

- Como lhe bateu o comissário! Eu estava muito perto e vi tudo... Partiu-lhe os dentes todos, e ele cuspia sangue grosso e negro! Já nem se lhe viam os olhos! Trabalhava no alcatrão. O sargento está em nossa casa, e nem se pode levantar, de bêbado que está, e ainda pede mais vinho! Dizem que era um bando, e que este era o mais velho, ou o chefe, ou não sei o quê... Apanharam outros três, mas houve um que conseguiu fugir. Apanharam também um professor que estava com eles. Não acreditam em Deus, e dizen às pessoas que é preciso roubar as igrejas, veja como eles são! Os mujiks, uns tinham pena dele, outros diziam que era preciso matá-lo. Alguns dos mujiks daqui são muito maus...

 

A mãe prestava toda a atenção àquela narrativa rápida e incoerente. Esforçava-se por reprimir a sua inquietação e enganar a angústia da espera. A rapariga, certamente feliz por ter auditório, continuava a conversar com mais entusiasmo, comendo as palavras e baixando a voz:

 

- O meu pai diz que é porque a colheita foi má. Já não aguentam! Por isso é que agora há mujiks assim, é uma desgraça... Vão para as assembleias gritar, e pegam-se todos. Noutro dia, quando venderam os bens do Vassiukov, que não tinha pago os impostos, ele deu um murro na cara do administrador, e disse-lhe: -Toma, aqui estão os meus impostos atrasados!"

 

Atrás da porta ouviram-se passos pesados. A mãe teve de se apoiar na mesa para se conseguir levantar.

 

O camponês dos olhos azuis entrou e perguntou sem tirar o gorro:

 

- Onde está a sua bagagem?

 

Levantou sem esforço a maleta e tornou-lhe o peso:

 

- Está vazia! Maria, leva a viajante para a minha casa. E saiu sem olhar para elas.

 

- Vai passar a noite aqui na aldeia? - perguntou a rapariga.

 

- Sim, ando à procura de rendas para comprar.

 

Aqui não se fazem. Em Tinkov e em Dorino fazem rendas, mas aqui não.

 

- Amanhã vou.

 

Pagou o chá e deu três kopeks à rapariga, que ficou muito satisfeita.

 

Já na rua, arrastando os pés descalços pela terra húmida, ofereceu:

 

- Quer que amanhã dê um salto a Dorino, e que diga às mulheres que lhe tragam cá as rendas? Assim não precisa de ir. São pelo menos doze verstás.

 

- Não vale a pena, minha querida - respondeu Pelágia caminhando a seu lado.

 

O ar frio reanimava-a. Lentamente, ia-se formando uma resolução no seu espírito, confusa ainda, mas prometedora. Era uma ideia que ia crescendo dentro dela, e para apressar a sua decisão, a mãe perguntava-se com insistência:

 

"Que hei-de fazer? E se eu actuasse com sinceridade, em consciência?"

 

Estava escuro, húmido e frio. Nas janelas brilhavam pequenas luzes, vermelhas, imóveis. No silêncio da noite ouvia-se o gado que mugia tristemente, e ouviam-se breves exclamações. Uma tristeza esmagadora envolvia a aldeia.

 

- Por aqui! - disse a rapariguita. - Escolheu fraco alojamento. Este mujik é muito pobre.

 

Procurou a porta às apalpadelas, abriu-a e gritou com vivacidade:

 

- Mãe Tatiana!

 

Partiu em seguida. A sua voz chegou da escuridão:

 

- Adeus!...

 

A mãe deteve-se no umbral da porta e examinou a casa protegendo os olhos com a mão. Era muito pequena mas limpa, o que Pelágia notou imediatamente. Uma mulher jovem assomou a cabeça por detrás do fogão, cumprimentou silenciosamente e desapareceu. A um canto, sobre uma mesa, ardia uma lamparina.

 

Do outro lado dessa mesa estava sentado o dono da casa.

 

Tambolirava com os dedos no tampo da mesa e olhava fixamente a mãe.

 

- Entre - disse ele ao cabo de um instante. - Tatiana, vai chamar o Piotr, depressa.

 

A mulher saiu apressadamente, sem olhar a visitante. Esta sentou-se no banco em frente ao camponês e com os olhos procurou a sua maleta, sem a encontrar. Um silêncio pesado enchia a cabana. Só se ouvia o crepitar da chama do candeeiro. O rosto fechado e preocupado do aldeão parecia vacilar aos olhos da mãe, inspirando-lhe um arrependimento desesperado.

 

- Onde está a minha maleta? - perguntou subitamente Pelágia com uma voz forte que a surpreendeu a si própria.

 

O mujik encolheu os ombros e respondeu pensativamente:

 

- Não está perdida.

 

Continuou em voz mais baixa, com ar sombrio:

 

- Há bocadinho, na frente da moça, eu disse que a mala estava vazia. Mas não está... ela pesa até demais...

 

- Demais? Bom...

 

Ele levantou-se, aproximou-se dela, inclinou-se e disse a meia-voz:

 

- Você conhecia aquele homem?

 

A mãe sobressaltou-se, mas respondeu com firmeza:

 

- Sim.

 

Pareceu-lhe que aquela palavra tão breve fez nascer dentro dela uma luz que tudo iluminava em seu redor. Soltou um suspiro de alívio, inclinou-se para a frente e firmou-se no assento.

 

O aldeão rasgou-se num sorriso.

 

- Reparei no sinal que lhe fez, e ele a si. Perguntei-lhe ao ouvido: "Conheces por acaso a mulher que está ali em frente, no terraço?"

 

- E que foi que ele respondeu? - perguntou a mãe com vivacidade.

 

- Ele? Disse: "Somos muitos. Sim, somos muitos!" Foi o que ele disse.

 

Dirigiu-lhe um olhar interrogativo e continuou, sorrindo de novo:

 

- É um homem de uma grande força, aquele... Corajoso! Diz simplesmente "Sou eu". Batem-lhe, e ele não cede...

 

A sua voz, fraca e insegura, a sua fisionomia robusta, os seus olhos claros, iam tranquilizando a mãe um pouco mais. A inquietação e o abatimento dentro dela, a pouco e pouco iam deixando lugar a uma piedade, aguda e lancinante, por Rybine. Com uma cólera repentina e amarga que não pôde conter, exclamou asperamente:

 

- Bandidos! Monstros! E começou a chorar.

 

O camponês afastou-se dela, movendo a cabeça com embaraço.

 

- As autoridades têm muitos amiguinhos... sim...

 

E subitamente, aproximando-se de novo da mãe, disse-lhe em voz baixa:

 

- Bom, acontece que estou desconfiado que o jornal vem na sua maleta. Não é verdade?

 

- Sim - respondeu Pelágia simplesmente, enxugando as lágrimas. -Vinha trazê-lo...

 

O homem franziu as sobrancelhas, cofiou a barba, e permaneceu em silêncio, de olhar perdido.

 

- O jornal aparecia às vezes por cá, e também uns livrinhos... Nós conhecíamos esse homem. Víamo-lo de vez em quando.

 

Calou-se, reflectindo, e em seguida perguntou:

 

- E agora, que vai você fazer com a maleta?

 

A mãe olhou-o e disse-lhe energicamente, como a lançar-lhe um desafio:

 

- Deixar-lha a si.

 

Ele não se surpreendeu, não protestou, e limitou-se a responder:

 

- A nós...

 

Inclinou afirmativamente a cabeça, abriu a mão com que segurava a barba, penteou-a com os dedos e sentou-se.

 

A mãe voltava a ver, com uma insistência implacável e obsessiva, a cena em que Rybine tinha sido torturado, e esta imagem apagava todos os seus pensamentos. O sofrimento e a humilhação que sentia por ele anulavam nela qualquer outro sentimento, inipedindo-a de pensar na maleta, ou em qualquer outra coisa. As lágrimas corriam pelo seu rosto sem que as retivesse, mas esse rosto estava tristemente sereno e a sua voz não tremeu quando disse:

 

- Roubam, esmagam, espezinham o homem na lama, os malditos!

 

- São fortes! - replicou o camponês com doçura. - São muito fortes.

 

- E de onde lhes vem essa força? - exclamou a mãe com raiva. - É força que eles nos roubam a nós, ao povo.

 

Aquele camponês de rosto claro, mas impenetrável, irritava-a.

 

- Sim - disse ele, com voz arrastada. - Oiço uma roda... Apurou o ouvido, esticando a cabeça em direcção à porta. Em seguida, disse baixinho:

 

- Estão a chegar.

 

- Quem?

 

- Os nossos, espero.

 

Entrou a mulher dele. Atrás dela, um camponês entrou na cabana, atirou o gorro para um canto, aproximou-se rapidamente do dono da casa, e perguntou:

 

- Então?

 

O outro fez com a cabeça um sinal afirmativo.

 

- Stepan - disse a mulher, de pé, junto do fogão -, talvez a. viajante queira comer.

 

- Não, obrigada, é muito amável... - respondeu a mãe. O recém-chegado aproximou-se dela e pôs-se a falar com

voz rápida e estridente:

 

- Bom, permita que me apresente. Chamo-me Piotr Igorovitch Rabinine, também conhecido por "Sovela". Estou até certo ponto dentro dos seus assuntos. Sei ler e escrever, e, embora me fique mal dizê-lo, não sou nenhum tolo.

 

Tomou a mão que Pelágia lhe estendia, sacudiu-a e voltou-se para Stepan:

 

- Olha, Stepan, Varvara Nikolaievna é uma boa senhora, é verdade. Bom, ela diz que tudo isto são histórias e tolices, e que a rapaziada e os estudantes querem transformar o mundo, só por estupidez. E no entanto eu vi que prenderam um camponês sério e como deve ser, e agora uma mulher que já não é uma garota, e que também não parece nenhuma dama... não se ofenda, de que família é?

 

Falava depressa, claramente, sem tomar o fôlego. A sua pequena barba tremia com nervosismo, e enrugava os olhos perscrutando o rosto e o aspecto geral de Pelágia. Esfarrapado, desgrenhado, parecia saído de uma briga em que tivesse vencido o seu adversário, e estar cheio da alegre excitação da vitória. Agradou a Pelágia pela sua vivacidade e porque desde o início havia falado sem rodeios e com simplicidade. Ela respondeu à sua pergunta com um olhar afectuoso. Ele apertou-lhe a mão outra vez e de novo se pôs a rir suavemente, com um riso seco e entrecortado.

 

- É um assunto sério, Stepan, não vês? Uma boa causa. Eu bem te disse que o povo estava a começar a mexer-se sozinho. E a mulher do nosso amo nunca te dirá a verdade porque isso iria prejudicá-la. Eu respeito-a, e não tenho nada a dizer dela. É uma pessoa que nos quer bem... digamos que algum bem, e desde que isso não vá contra os seus interesses. O povo quer andar para a frente, mas tem medo, não sabe para onde se virar, e à sua volta todos lhe gritam que pare.

 

- Bem vejo - disse Stepan movendo a cabeça e acrescentando em seguida:

 

- Não está descansada, por causa da bagagem.

 

Piotr dirigiu a Pelágia uma piscadela de olho cúmplice e continuou, tranquilizando-a com um movimento da mão:

 

- Não se preocupe! Está tudo bem. A sua maleta está em minha casa. Quando ele há pouco me falou de si, e que certamente estava metida neste assunto e conhecia aquele homem, disse-lhe: "Cuidado, Stepan, isto não é coisa para se abrir o bico, é um assunto muito grave." Bom, mãezinha, parece que também nos farejou, quando estávamos ao pé de si. As pessoas boas conhecem-se logo pelo focinho, porque não as há por aí aos pontapés, como se costuma dizer. Sou eu que tenho a sua maleta...

 

Sentou-se ao lado dela, e com uma súplica no olhar prosseguiu:

 

- Se quisesse esvaziá-la, nós ajudávamo-la de boa vontade. Precisamos de livros...

 

- Ela quer deixar-nos tudo o que traz - disse Stepan.

 

- Óptimo! Saberemos colocar tudo em boas mãos. Saltou sobre os pés e começou a rir. Em seguida, andando

 

para lá e para cá em grandes passadas, disse satisfeito:

 

- Pode dizer-se que isto é extraordinário. E é tudo tão simples, afinal! Manda-se isto para aqui, aquilo para ali... Nada mau! E é um bom jornal, produz o seu efeito, abre os olhos às pessoas. Os senhores é que não gostam. Eu trabalho para uma senhora, a sete ou oito verstás daqui, na carpintaria. Devo dizer que é uma boa mulher, dá-nos livros sobre muitas coisas, lemo-los, aclaram-se-nos as ideias. No geral até lhe estamos agradecidos. Mas mostrei-lhe um número do jornal, e ela não ficou muito contente. -Deita isso fora, Piotr", disse-me ela. "Isso são coisas feitas por garotos sem juízo", foi o que ela me disse. "Só te vai trazer mais desgraças, a prisão... a Sibéria..."

 

Calou-se repentinamente e reflectiu:

 

- Diga-me, esse homem é algum parente seu?

 

- Não - respondeu a mãe -, não somos parentes.

 

Piotr começou a rir silenciosamente, contente, nem sabia porquê, e moveu a cabeça. Pelágia teve a impressão de ter sido injusta com Rybine, e sentiu-se envergonhada. - Não é da minha família, mas há muitos anos" que o conheço, e respeito-o como se fosse o meu irmão mais velho. Aborrecida por não encontrar as palavras necessárias, não pôde reter mais um soluço. Um silêncio de expectativa en-

 

chia a cabana. Piotr estava de pé, com a cabeça inclinada sobre o ombro e parecia escutar alguma coisa. Stepan, apoiado sobre a mesa, não parava de tamborilar com os dedos. A mulher mantinha-se na sombra, junto ao fogão. A mãe sentia que ela não desviava de si o olhar, e de vez em quando olhava também o seu rosto moreno, de nariz direito e queixo afilado. Os seus olhos esverdeados brilhavam atentos e penetrantes.

 

- É então um amigo... - disse Piotr docemente. - E tem carácter, lá isso... E tem-se a si próprio em boa estima, como deve ser. Aquilo é um homem a valer, não é verdade, Tatiana? O que é que dizes?

 

- É casado? - interrompeu a mulher, e os finos lábios da sua boca pequena apertaram-se com força.

 

- É viúvo - respondeu a mãe tristemente.

 

- Por isso se atreve a tanto - disse Tatiana com voz profunda. - Um homem casado não faria o que ele faz, teria medo.

 

- E eu? Eu sou casado, e apesar disso... - exclamou Piotr.

 

- Ora, compadre! - disse ela sem olhar para ele, e fazendo uma careta. - Isso não é nada! Falar por aí, ler um ou outro livrito... Para que serve andares por aí com o Stepan a cochichar pelos cantos?

 

- Há muitos que me ouvem, minha amiga! - replicou, ofendido, o camponês. - Eu sou aqui como uma espécie de fermento, digas tu o que quiseres.

 

Stepan olhou para a mulher sem dizer palavra, e de novo baixou a cabeça.

 

- E para que é que os homens se casam? - perguntou Tatiana. - Precisam de alguém que trabalhe, dizem eles. Trabalhar em quê?

 

- Até parece que tens pouco que fazer... - disse Stepan em surdina.

 

- E para que é que a gente trabalha? De qualquer maneira, nunca comemos o que temos na vontade. Vêm os filhos ao mundo, não temos tempo para tratar deles, porque temos de continuar a trabalhar, e no fim não chega nem para o pão.

 

Aproximou-se da mãe, sentando-se ao lado dela, e continuou com obstinação, mas sem queixume nem tristeza.

 

- Eu tive dois. Um morreu aos dois anos queimado com água a ferver. O outro nasceu morto, antes do tempo, por causa do maldito trabalho. Onde estão as minhas alegrias? Eu cá o que digo é que os nossos homens fazem mal em se casar. Perdem tempo, ficam com as mãos atadas, e nada mais. Se fossem livres tratariam de conseguir aquilo que é necessário, caminhariam abertamente ao encontro da verdade, como faz esse homem. Não é assim?

 

- É - disse Pelágia. - É verdade, minha querida Tatiana... se não fosse assim, não seríamos subjugados da maneira que somos.

 

- E você, tem marido?

 

- Morreu. Tenho um filho.

 

- Onde está? Vive consigo?

- Está na prisão.

 

Sentiu que um sereno orgulho se misturava agora à tristeza que estas palavras sempre traziam ao seu coração.

 

- É a segunda vez que o prendem, porque compreendeu a verdade de Deus e a semeou abertamente... É jovem, bonito, inteligente. A ideia do jornal foi dele que partiu, e foi ele que pôs Rybine no caminho da verdade, apesar de Mikhail ter o dobro da idade dele. Por isso o meu filho vai agora ser julgado, e vão condená-lo... mas ele vai conseguir fugir da Sibéria, e vai voltar, para retomar o seu trabalho.

 

Falava, possuída de um sentimento de orgulho que crescia, apertando-lhe a garganta, exigindo dela as palavras adequadas à criação da imagem de um herói. Experimentava uma necessidade imperiosa de pintar um quadro que retratasse a razão e a luz, para contrabalançar a triste cena que tinha testemunhado nesse dia, e que a oprimira pelo seu horror insensato, pela sua descarada crueldade. Obedecendo inconscientemente a essa exigência da sua natureza bondosa, reunia tudo o que conhecia de sincero e de luminoso numa única chama que a cegava com a pureza da sua luz.

 

- Já nasceram muitas pessoas assim, outras mais nascerão, e todos, até à morte, hão-de lutar pela verdade e pela liberdade...

 

Esquecendo toda a prudência, mas sem citar qualquer nome, contou tudo o que sabia sobre o trabalho clandestino que estava a ser feito para se conseguir libertar o povo das amarras da exploração. Traçando essas imagens, tão queridas ao seu coração, punha nas suas palavras toda a força de que era capaz, todo o amor que, embora tardiamente, as angústias e as pancadas da vida tinham feito despertar dentro dela. Cheia de ardente alegria, manifestava a sua admiração pelos homens que se iam erguendo na sua memória, iluminados e embelezados pelo sentimento que a possuía.

 

- É uma obra comum à Terra inteira, a todas as cidades. As pessoas boas são já uma força que ninguém pode medir ou contar, que cresce em cada momento, e há-de crescer sempre mais, até ao dia da nossa vitória.

 

A sua voz ia fluindo regularmente, encontrava as palavras sem dificuldade e, como missangas de vidro, multicoloridas, ia-as enfiando com segurança no sólido fio que era o seu desejo de purificar o coração do sangue e da lama daquele dia. Via que os camponeses pareciam ter criado raízes no sítio onde a sua narrativa os tinha encontrado, que não se mexiam, que a olhavam gravemente. Ouvia a respiração entrecortada da mulher sentada ao seu lado, e tudo isso fortalecia a sua fé naquilo que estava a dizer e a prometer.

 

- Todos aqueles que arrastam uma existência penosa, aqueles que vivem esmagados pela miséria, aqueles que são privados de todos os direitos, aqueles que vivem subjugados pelos ricos e pelos seus lacaios, todos aqueles que são o POVO devem ir ao encontro dos homens que sofrem por eles nas prisões, que são torturados e mortos. São eles que nos mostram desinteressadamente onde está o caminho da felicidade para todos. Avisam logo que o caminho é duro, que não levarão ninguém pela força, mas quando uma pessoa se alista nas suas fileiras já não os abandona, porque vê que têm razão, que o seu caminho é verdadeiro, que não existe outro. A mãe sentia uma grande felicidade por ver que o seu desejo se realizava finalmente. EEra ela agora quem trazia ao povo a palavra da verdade. Com amigos destes, o povo pode avançar. Eles não se contentarão com pouco, não desistirão até terem vencido todos os mentirosos, malvados, avarentos, não terão descanso enquanto o povo todo não se tiver unido num a só alma e desser a uma só voz sou o senhor e farei leis iguais para todos. Calou-se, fatigada e olhou para os seus companheiros, tinha a tranquila certeza que as suas palavras não se desvaneceriam sem deixar rasto. Os camponeses olhavam-na fixamente e pareciam estar à espera que ela continuasse. Piotr tinha cruzado os braços, pestanejava e sobre as suas faces sardentas tremia um sorriso. Stepan, com o cotovelo sobre a mesa, inclinava o corpo todo para a frente. Uma sombra sobre o seu rosto serenava-lhe a expressão. Tatiana, sentada ao pé da mãe, com os cotovelos nos joelhos, fitava a ponta dos pés.

-sim, é exactaamente assim, -murmurava Piotr e sentou-se no banco, movendo a cabeça. S  tepen levantou-se lentamenste, olhou para a mulher e abriu os braços, como seneles quisesse estreitar alguma coisa.

-se vamos deitar mãos a uma obra destas, -começou com voz baixa e pensativa- temos de entregar-nos de todo o coração.

 

Tatiana levantou-se, olhou à volta e voltou a sentar-se. Os seus olhos verdes brilhavam friamente e lançava aos homens olhares de descontentamento e desprezo.

-bê-se que já sofreu muitos desgostos. -disse ela à mãe, subitamente.

-sim, passei o meu bocado.

-você fala bem e as suas palavras convencem.a pessoa fica a pensar:senhor, se pudéssemos ver, nem que fosse só por uma fresta,pessoas assim, uma vida assim, que vida é a nossa.... Uma vida de animais. Olhe, eu sei ler e escrever, já li alguma coisa, penso muito, e de noite, às vezes, tenho ideias que não me deixam descansare para quê? Quando não penso, fico cheia de raiva, que não me serve para nada e quando penso,também fico cheia de raiva, que também não me serve para nada.

- Havia sarcasmo no seu olhar. DE REPENTE calava-se, cortando subitamente o fio das suas frases, como se cortasse uma linha entre os dentes. Os camponeses mantinham-se silenciosos. O vento acariciava os vidros da janela, sussurrava no telhado de colmo, assobiava surdamente na chaminé. De quando em quando, umas gotas de chuva batiam oblíquas nos vidros. A cchama do candeeiro tremeluziu, empalideceu, para logo voltar a brilhar, viva e regular.

-ouvi o que você dizia, que os homens devem ter uma finalidade na vida e achei graça, porque erauma coisa que eu já sabia, só que era algo que eu nunca tinha ouvidoantes e nunca tive pensamentos desses.

-temos de jantar, Tatiana, e a seguir apagar o candeeiro.

-disse Stepan, com uma voz lenta e nonótona. As pessoas vão reparar que a luz ficou acesa até muito tarde em casa dos Chumakov. Para nós não tem importância,mas para a viajante não será muito bom.

Tatiana levantou-se e começou a sua lida ao pé do fogão.

 

- Sim - disse Piotr em voz baixa e sorrindo. - Agora, compadre, temos de ter cuidado. Quando o jornal voltar a aparecer...

- Não é por mim que estou a falar. Se me prenderem nem sequer é uma grande desgraça. A mulher aproximou-se.

- Afasta-te.

 

Ele levantou-se, pôs-se de um lado, observava-a enquanto ela ia pondo a mesa, e disse com um sorriso:

 

- Cinco kopeks, é quanto valemos... e havemos de ser aos molhos de cem!

 

De repente a mãe sentiu pena dele, e cada vez simpatizava mais com ele. Sentia-se melhor depois de ter falado, aliviada do peso da ignomínia daquele dia. Estava contente consigo própria, e queria ser boa para todos.

 

- Isso não está certo - disse ela. - Um homem não é obrigado a aceitar o valor que lhe é atribuído por aqueles que outra coisa não querem senão sugar-lhe o sangue. Deves saber o que vales, não para os teus inimigos mas para os teus amigos.

 

- Que amigos? - disse o camponês. - Os amigos duram até ao momento em que têm de lutar pelo mesmo osso.

 

- Mas, apesar disso, o povo tem amigos.

 

- Sim, mas não aqui - replicou Stepan, pensativo.

 

- Bom, então é preciso arranjá-los também por aqui. Stepan meditava.

 

- Sim... é o que faz falta.

 

- Sentem-se à mesa - convidou Tatiana.

 

Durante o jantar, Piotr, a quem as frases da mãe pareciam ter deprimido e desconcertado, recomeçou a falar com vivacidade:

 

- Para não se fazer notada, como se costuma dizer, será melhor que saia daqui bem cedinho. Tome um carro da malaposta, mas é melhor não seguir para a cidade.

 

- Para quê? Eu levo-a!

 

- Nem pensar. Se acontecer alguma coisa, virão perguntar-te: "Dormiu em tua casa?" "Sim." "E para onde foi?" "Levei-a eu." "Com que então foste tu que a levaste? Toca a andar para a prisão!" Estás a ver? Tens muita pressa de ir para a prisão? Para quê? "O dia virá em que o czar morrerá", como diz o ditado. Mas se disseres apenas: "Dormiu aqui, alugou um carro e foi-se embora", já não te acontece nada. Há muita gente que passa a noite em casa deste ou daquele. É uma aldeia onde passa muita gente.

 

- Onde foi que aprendeste a ter medo, Piotr? - perguntou

 

Tatiana com ironia.

 

- Temos de saber de tudo, comadre - disse ele, batendo no joelho. - Saber ter medo e saber ter coragem. Lembras-te da maneira como o chefe do zemstvo maltratou Vaganov, por causa do tal jornal? Agora o Vaganov não pega num livro nem por todo o dinheiro do mundo. Eu sou ladino, toda a gente sabe, estou sempre a inventar brincadeiras. Hei-de distribuir os livros e os folhetos da melhor maneira. As pessoas daqui, claro, são pouco instruídas e têm medo, mas de qualquer maneira, como as coisas estão, vivem todos tão mal que ninguém pode deixar de abrir bem os olhos e de se interrogar sobre o significado de tudo isto. É então que o livro lhes vai respondendo com simplicidade: "Toma, olha o que tudo isto significa. Pensa e compreende." Há momentos em que o analfabeto tem mais entendimento que o homem culto, sobretudo quando o homem culto está de barriga cheia. Conheço bem a região, vejo muitas coisas, sei o que estou a dizer. Conseguimos ir fazendo as coisas, mas precisamos de ter cabeça e habilidade para não nos deixarmos apanhar. As autoridades farejam as novidades à distância. Os aldeões andam frios, sorriem pouco e de maneira pouco amigável. Não querem saber das autoridades. Noutro dia em Smoliakov, que é uma aldeiazita perto daqui, vieram cobrar os impostos, mas os mujiks fizeram-lhes frente e pegaram nas forquilhas. O comissário gritou-lhes: "Ah, filhos de uma cadela, resolveram agora voltar-se contra o Czar..." Estava lá um mujik chamado Spivakine que lhe respondeu: "À merda, vocês e mais o vosso Czar! Que espécie de Czar é esse que nos arranca a última camisa do corpo?" E assim vão as coisas, mãezinha! Spiviakine, claro, pegaram nele e prenderam-no, mas as palavras que disse, essas, ficaram! Até os miúdos pequenos as repetem, são palavras que gritam, estão vivas!

 

Não comia, falava só, num rápido sussurro. Os seus olhos negros e astutos brilhavam cheios de vivacidade, e ia fazendo perante a mãe inúmeras e exuberantes observações sobre a vida do campo, como se estivesse a despejar um saco de moedas.

 

Por duas vezes Stepan lhe disse:

 

- Come!

 

Pegava num pedaço de pão, numa colher, e recomeçava o seu fluxo de palavras como um pintassilgo novo a cantar. No fim, terminado o jantar, saltou sobre os pés e disse:

 

- Bom, são horas de ir andando.

 

De pé na frente da mãe, apertou-lhe a mão:

 

- Adeus, pode ser que não nos voltemos a ver. Quero dizer-lhe que tudo isto foi muito bom para mim. Gostei muito de a ter conhecido e de a ter ouvido. Há mais alguma coisa na sua maleta, para além dos livros e dos jornais? Um lenço de lã? Perfeitamente, um lenço de lã. Não te esqueças, Stepan. Daqui a nada já cá tem a sua mala. Vamos, Stepan. Adeus! Felicidades!

 

Quando eles saíram, ouvia-se o arranhar das baratas, o sopro do vento no telhado e o seu rouquejar na chaminé. A chuva miudinha e monótona batia na janela. Tatiana preparou uma cama para Pelágia estendendo algumas roupas sobre um banco.

 

- É um rapaz esperto! - observou a mãe.

 

- É um sino pequeno que tilinta, mas não se ouve muito longe. *

 

- E o seu marido?

 

- E um bom homem, não bebe, damo-nos bem... Mas não tem muita força interior.

 

Levantou-se, e depois de um breve silêncio disse:

 

- O que é que devemos fazer agora? Sublevar o povo! Claro! É o que todos pensam... só que cada um o pensa no seu canto, e estas são coisas que têm de ser ditas bem alto, e alguém tem de se decidir a ser o primeiro a dizê-las.

 

Sentou-se no banco, e perguntou de chofre:

 

- Diz você que até já há raparigas que também estão metidas nisso, que vão ler para os operários... e elas não se importam? Não têm medo?

 

E após ter ouvido atentamente a resposta da mãe, suspirou profundamente e baixou a cabeça:

 

- Uma vez, num livro, li estas palavras: "A vida não tem sentido." Compreendi estas palavras imediatamente! Eu sei o que é a vida. Pensamos nas coisas, mas sem as unirmos umas às outras são como ovelhas sem pastor, sem ninguém que as saiba reunir... Então, esta vida não tem sentido. Se eu pudesse fugir dela sem olhar para trás... É muito triste quando se começa a compreender alguma coisa.

 

A mãe via esta tristeza reflectida na luz fria dos olhos verdes do seu rosto magro, sentia-lha na voz. Quis consolá-la, dar-lhe algum afecto...

 

- Mas você, minha querida, compreende o que tem de ser feito...

 

Tatiana interrompeu-a com doçura:

 

- É preciso saber... Deite-se, tem a cama pronta.

 

Foi até junto do fogão e permaneceu aí, silenciosa, direita, com ar severo e pensativo. A mãe deitou-se sem se despir. Sentia nos ossos um doloroso cansaço, e gemeu baixinho. Tatiana soprou a chama da lamparina, e quando a cabana ficou mergulhada numa densa obscuridade, ouviu-se de novo a sua voz baixa e monótona, como se quisesse apagar alguma coisa do manto liso das trevas esmagadoras:

 

- Você não reza. Eu também não creio em Deus... nem em milagres.

 

A mãe virou-se inquieta no seu catre. A escuridão insondável parecia olhá-la pela janela, e um roçagar insistente, um ruído quase imperceptível, arranhava o silêncio. Com temor, quase num murmúrio, disse:

 

- Quanto a Deus, não sei, mas em Cristo creio, sim... e creio nas suas palavras: "Ama o teu próximo como a ti mesmo."

 

Tatiana não dizia nada. Na penumbra, a mãe percebeu o vago contorno da sua silhueta cinzenta, erguida sobre o fundo negro do fogão. Pelágia, angustiada, fechou os olhos.

 

De repente soou uma voz gelada:

 

- Não posso perdoar a morte dos meus filhos. Nem a Deus, nem aos homens, nunca!

 

Pelágia levantou-se, comovida. Compreendia como era profunda a dor que ditava aquelas palavras.

 

- Você é jovem, pode ter outros filhos - disse-lhe afectuosamente.

 

- Não! Estou esgotada, e o médico diz que não voltarei a conceber nunca mais...

 

Uma ratazana correu pelo chão. Um estalido seco e sonoro rompeu o silêncio imóvel como um relâmpago invisível.

 

De novo se ouviu o roçagar do vento e a chuva que caía sobre o telhado de colmo, que parecia estar a ser remexido por dedos pequenos e tímidos. Sobre o solo as gotas de água caiam melancolicamente, ritomando o lento decorrer da noite de Outono.

 

Numa pesada sonolência, a mãe ouviu passos abafados na rua, e depois no pátio. Abriram a porta com precaução, e uma voz abafada chamou:

 

- Tatiana, estás deitada?

 

- Não.

 

- Ela está a dormir?

 

- Creio que sim.

 

Apareceu uma chama vacilante que se perdeu na escuridão. O camponês aproximou-se do leito da mãe e aconchegou-lhe a pele de carneiro que lhe cobria as pernas. Este cuidado enterneceu Pelágia, que sorriu com os olhos fechados, Stepan despiu-se em silêncio e subiu para o sótão. Cessaram todos os ruídos.

 

Prestando toda a sua atenção às oscilações preguiçosas do silêncio sonolento, a mãe permaneceu imóvel. Na sua frente, na escuridão, desenhava-se o rosto ensanguentado de Rybine.

 

Do sótão chegou um murmúrio:

 

- Estás a ver, repara nas pessoas que estão metidas nisto... Pessoas mais velhas, que já passaram por mil desgraças, que trabalharam a vida toda e já podiam estar a descansar, e olha para eles... E tu, Stepan, que és jovem, sensato...

 

- A voz grossa do camponês respondeu:

 

- Uma pessoa não se deve meter numa coisa dessas, sem antes ter pensado muito bem.

 

-Já ouvi isso.

 

Os sons cessaram, para logo de novo se fazerem ouvir. Stepan murmurou:

 

- O que há a fazer é o seguinte: começar por falar com cada um deles, em separado... Olha, o Aliocha Makov é um rapaz desembaraçado, instruído, e não gosta das autoridades. O Serguei Chorine também é um homem sensato. O Kaníazer é honrado e corajoso. Depois logo se vê. Temos de conhecer um pouco as pessoas de quem ela fala. Eu vou pegar no machado e vou até à cidade, como se fosse rachar lenha para ganhar uns trocos. Temos de tomar cuidado. O que ela diz é verdade. O valor de um homem é uma coisa que só a ele diz respeito. Pensa nesse mujik, Rybine. Não vai ceder nem perante o próprio Deus. Aguentou a pancada ali a pé firme. E o Nikita? Teve vergonha... foi formidável.

 

- Espancam um homem à vossa frente, e vocês deixam-se ficar de bico calado...

 

- Espera lá! Diz antes: graças a Deus, ele só apanhou do comissário, nós não lhe batemos! Assim é que deves dizer!

 

E falou ainda durante um grande bocado, tão depressa o fazia tão baixo que a mãe não conseguia ouvir as suas palavras, como de repente se entusiasmava e começava a falar tão alto que a mulher tinha de o fazer calar:

 

- Mais baixo! Vais acordá-la.

 

A mãe dormiu um sono pesado que caiu sobre ela como uma nuvem asfixiante, que a envolvia e a transportava.

 

Tatiana acordou-a quando uma aurora cinzenta, ainda sem luz, espreitava pela janela do casebre, enquanto na cidade, o som de cobre do sino da igreja balançava adormecido e morria no silêncio frio.

 

- Fiz chá. Beba, senão irá ter frio na viagem... a esta hora... Penteando a barba emaranhada, Stepan perguntou à mãe

 

como poderia encontrá-la na cidade. A ela pareceu-lhe que o rosto do mujik tinha amadurecido, que estava mais simpático do que na véspera. Enquanto bebiam o chá, ele disse rindo:

 

- Que extraordinário que tudo isto foi!

 

- O quê? - perguntou Tatiana.

 

- Bem, termo-nos conhecido... de uma forma tão simples.

 

- Estas coisas acabam por se passar sempre de uma forma incrivelmente simples - disse a mãe em tom pensativo, mas convicto.

 

Despediram-se dela sem efusão, parcos em palavras mas pródigos em mil pequenas atenções e recomendações para a viagem.

 

No carro, Pelágia pensava naquele mujik que se ia pôr ao trabalho com prudência, sem ruído e sem descanso, como uma toupeira. E pensava que a voz sofrida da mulher não deixaria de vibrar no seu ouvido. Recordaria para sempre o olhar ardente dos seus olhos verdes. Enquanto aquela mulher vivesse, aquela dor vingativa viveria dentro dela, a dor de loba de uma mãe a chorar os seus filhos mortos.

 

Recordou Rybine. O seu sangue, o seu rosto, os olhos ardentes, as suas palavras. O sentimento amargo da sua impotência perante as feras oprimiu-lhe o coração. A silhueta robusta de Mikhail, a sua barba negra, a camisa rasgada, as mãos atadas atrás das costas, os cabelos revoltos, o rosto iluminado pela cólera e pela fé na sua verdade permaneceram na sua frente, sobre o fundo baço do ctia cinzento, ao longo daquela jornada. Pensava nas inúmeras aldeias medrosamente enterradas na terra, naquelas gentes que em silêncio esperavam a chegada de dias mais justos, e nos milhares de seres que trabalhavam toda a sua vida, sem esperança e em silêncio, sem ilusões de qualquer espécie.

 

A vida parecia-lhe uma planície monótona e selvagem à espera dos lavradores, muda, contraída, parecendo prometer às mãos livres e honradas:

 

- Fecundem-me com as sementes da razão e da verdade, e eu as devolverei centuplicadas!

 

Lembrou-se do êxito obtido na sua viagem, e no fundo do seu coração sentiu uma doce palpitação de alegria que reprimiu envergonhada.

 

Nikolai abriu-lhe a porta, despenteado, com um livro na mão.

 

- Já? - gritou alegremente. - Despachou-se depressa!

 

Os seus olhos vivos piscavam afectuosamente por detrás dos óculos. Ajudou-a a despir o casaco e disse-lhe, olhando-a com um sorriso carinhoso:

 

- Sabe que esta noite vieram passar busca? Pergunto-me porquê. Receei que lhe tivesse acontecido, a si, alguma coisa. Mas não me prenderam. Com certeza que se a tivessem apanhado a si não me deixavam ficar a mim...

 

Conduziu-a à sala de jantar e continuou animadamente:

 

- De qualquer maneira, despediram-me. Mas eu não me importo. Estava já cansado de fazer listas de camponeses que não possuem cavalos.

 

Pelo aspecto da sala, dir-se-ia que um gigante, num estúpido acesso de maldade, tinha sacudido as paredes da casa até virar todo o seu conteúdo de pernas para o ar. Os retratos estavam no chão, as cortinas tinham sido arrancadas e caíam em farrapos, uma tábua do soalho tinha sido levantada, o peitoril da janela tinha sido arrancado, as cinzas tinham sido espalhadas à volta do fogão. A mãe moveu a cabeça melancolicamente, ao ver naquele estado aquela sala que lhe era familiar, e olhou para Nikolai sentindo que alguma coisa de novo havia nascido dentro dele.

 

Em cima da mesa, junto ao samovar apagado, havia loiça suja, salpicão e queijo sobre um papel a fazer de prato, pedaços e migalhas de pão espalhados por todo o lado, pelo meio dos livros e dos carvões apagados do samovar. A mãe sorriu, e Nikolai, confusamente, sorriu também.

 

- Fui eu que completei este quadro de desolação, mas não importa, Nilovna, não importa. Penso que eles irão voltar, por isso deixei ficar tudo assim. Bom, e a viagem?

 

Sentiu a pergunta como uma pancada no coração. Viu de novo na sua frente a imagem de Rybine, e sentiu um sentimento de culpa por ainda não ter falado nele. Aproximou-se de Nikolai e começou a contar-lhe tudo, esforçando-se por conservar a calma e receando esquecer algum detalhe.

 

- Prenderam-no... Nikolai estremeceu:

 

- Como foi?

 

A mãe deteve a pergunta fazendo um gesto com a mão; e'' continuou como se estivesse em frente a um tribunal e pedisse justiça pelo suplício infligido a um homem. Nikolai reclinou-se nas costas da cadeira, pálido, e escutava. Em seguida, tirou rapidamente os óculos, deixou-os sobre a mesa e passou a mão pela cara, como se quisesse limpá-la de uma teia de aranha invisível. Os seus traços marcaram-se, as maçãs do rosto pareceram tornar-se mais salientes, tremeram-Lhe as asas do nariz. Era a primeira vez que Pelágia o via assim, e fez-lhe um pouco de medo.

 

Quando ela terminou a sua narrativa, Nikolai levantou-se e, silencioso, deu alguns passos com as mãos fechadas com força dentro dos bolsos. Em seguida, murmurou entre dentes:

 

- É um homem corajoso. Mas vai sofrer na prisão. É um sítio que não foi feito para homens como ele.

 

Mergulhou mais ainda as mãos nos bolsos, esforçando-se por reprimir uma emoção que a mãe adivinhava e pela qual já se sentia contagiada. As suas pupilas contraídas eram pontas de facas. Ia caminhando pela sala e dizia com fria cólera:

 

- Veja bem, que coisa horrorosa. Meia dúzia de imbecis que batem, sufocam, esmagam o povo, para conseguir manter o seu funesto poder sobre ele. A selvajaria aumenta, e a crueldade passou a ser a lei da vida. Pense bem! Uns, seguros da impunidade, batem e agridem como feras, possuídos de uma voluptuosa sede de torturar. E a doença repugnante dos escravos a quem se permitiu que manifestassem os seus instintos servis e os seus hábitos animalescos em toda a sua extensão. Outros estão envenenados pela necessidade de vingança. Outros, ainda, embrutecidos pelos maus tratos, parecem cegos e mudos. Estão todos completamente pervertidos!

 

Deteve-se e calou-se, cerrando os dentes:

 

- Sem dar por isso, todos, nesta luta feroz, se tornaram ferozes também - disse ele, em seguida, docemente.

 

Mas dominou a sua exaltação, recuperando a calma quase por completo. Os seus olhos brilhavam serenamente e olharam a mãe. Pelo rosto dela corriam lágrimas silenciosas.

 

- Não temos tempo a perder, Nilovna. Vamos, querida camarada, vamos acalmar-nos.

 

Aproximou-se dela com um sorriso triste, pegou-lhe na mão e perguntou:

 

- Onde está a sua maleta?

 

- Na cozinha.

 

- A casa está rodeada de bufos. Não íamos conseguir tirar daqui uma quantidade tão grande de papéis sem eles darem por isso. Não sei onde hei-de escondê-los, e creio que vão voltar esta noite. Por isso, por mais que nos custe, vamos queimar tudo.

 

- Tudo, o quê?

 

- O conteúdo da mala.

 

Ela compreendeu e embora a sua tristeza fosse muito grande o orgulho de ter cumprido bem a sua missão fez brotar um sorriso nos seus lábios.

 

- Na maleta não há nada, nem uma folhinha - disse, e animando-se um pouco, começou a contar-lhe o seu encontro com Tchumakov.

 

De início, Nikolai escutou-a franzindo as sobrancelhas com inquietação, em seguida com assombro, e por fim exclamou, interrompendo a narrativa:

 

- Mas isso é maravilhoso! Que sorte espantosa!

 

Estreitou-lhe as mãos entre as suas e disse-lhe com doçura.-

 

- Não imagina como a sua fé no povo me comove... Tenho por si uma afeição... como se fosse a minha própria mãe.

 

Sorrindo, ela foi-o seguindo com um olhar curioso, tentando compreender de onde vinham aquela claridade e aquela animação inusitadas.

 

- É realmente magnífico! - disse ele esfregando as mãos, e com um risinho satisfeito, acrescentou:

- Estes dias, passei-os de uma forma muito especial. Estive o tempo todo com os operários, li-lhes coisas, falei com eles, observei-os. E recebi deles qualquer coisa de bom e de puro. Que pessoas admiráveis, Nilovna! Estou a falar da juventude operária. São fortes e sensíveis, e estão cheios de uma grande vontade de tudo compreender. Quando estou com eles, penso que a Rússia ainda há-de ser a democracia mais deslumbrante da Terra.

 

Levantou o braço em sinal afirmativo, como se prestasse um juramento, e após um breve silêncio continuou:

 

- Eu vivia fechado, escrevia, e de uma certa forma azedei, ganhei bolor no meio das papeladas e dos números. Um ano quase inteiro a viver assim, é uma monstruosidade. Porque eu estava habituado a viver no meio dos operários, e quando me afasto já não estou à minha vontade, sabe? Para viver de outra maneira, tenho de fazer um esforço. Agora poderei viver de novo livremente, poderei estar com eles e ajudá-los, compreende? Estarei junto do berço do novo pensamento, ao lado da juventude, da energia criadora. É espantosamente simples, belo e excitante. A gente volta a ser jovem e forte, enriquece-se como ser humano!

 

Desatou a rir alegremente, um pouco confuso, comunicava a sua alegria à mãe, e ela compreendia-a.

 

- E além disso, você é uma mulher extraordinária! Consegue descrever as pessoas de uma forma tão clara... sabe compreendê-las tão bem!...

 

Sentou-se ao lado dela, virando o rosto e passando a mão pelo cabelo para disfarçar o seu embaraço, mas em seguida voltou a olhar para a mãe, e ouviu avidamente o resto da sua narrativa que fluía, simples e clara.

 

- Que intuição admirável! Havia nove probabilidades em dez de a prenderem, e de repente... Sim, percebe-se que os camponeses estão a despertar... o que é natural, por outro lado. Essa mulher, a Tatiana, consigo imaginá-la com toda a nitidez. Precisamos de gente na província só a trabalhar para nós. Gente! Não temos bastante gente... E esta nossa vida exige centenas de braços.

 

- Se Pavel conseguisse recuperar a liberdade... E Andrei!

- disse a mãe brandamente.

 

- Escute, Nilovna, sei que lhe vou dar um desgosto, mas de qualquer forma tenho de lhe dizer isto: conheço bem o Pavel, ele não vai fugir da prisão. Quer ser julgado e mostrar-se em toda a sua força. Não renunciará a isso. Nem deve fazê-lo! Fugirá mais tarde da Sibéria.

 

A mãe suspirou e respondeu com doçura:

 

- Tanto pior para mim... Ele sabe o que é melhor.

 

- Hum! - disse Nikolai, um instante depois, através dos seus óculos. - Se esse seu mujik aparecesse por aí!... Olhe, nós agora temos é de escrever uma folha sobre o Rybine, para ser distribuída pelas aldeias. A ele, que se tem comportado de uma forma tão corajosa, não pode prejudicá-lo. Vou escrevê-la hoje ainda, e a seguir a Ludinila imprime-a. A dificuldade é fazê-la chegar às mãos dos camponeses.

 

_ Eu levo-a.

 

_Não, obrigado! - replicou Nikolai com vivacidade. - Mas talvez Vessovchikov fosse capaz, não?

 

_ É preciso ir falar com ele?

 

_ Sim, experimente, e explique-lhe o que deve fazer.

 

_ E eu, o que é que posso fazer?

 

_ Oh, não se preocupe!

 

Sentou-se e começou a escrever. A mãe levantava a mesa eolhava-o. Via que a pena tremia na sua mão, enquanto cobria o papel com linhas e mais linhas de palavras. Por vezes un estremecimento percorria-lhe a nuca, levantava a cabeÇa fechava os olhos, tremia-lhe o queixo. Pelágia sentia-se emocionada.

 

_ pronto, já está - disse ele levantando-se. - Guarde você o papel mas lembre-se, se os polícias vierem hão-de revistá-la também a si.

 

_ Que vão para o diabo! - disse ela tranquilamente.

esta noite veio Ivan Danilovitch, o médico.

 

_ Porque é que a polícia de repente ficou tão inquieta? perguntou e'e passeando nervoso pela sala. - Sete buscas esta noite... Onde está o nosso doente?

 

_ foi-se embora ontem - respondeu Nikolai. - Hoje é sábado e ele não queria faltar à sessão de leitura.

 

_ foi uma estupidez, com a cabeça partida.

 

_ EU disse-lhe, mas não valeu de nada.

 

_ jstava desejoso de fazer figura na frente dos camaradas

- observou a mãe. - De lhes dizer: "Vejam, eu já verti o meu

sangue---"

 

O médico olhou para ela, fez uma cara feroz, e disse cerrando os dentes:

 

_ oh! Você é sanguinária...

 

_ pronto, meu velho, não tens mais nada para fazer aqui, e nós estamos à espera de visitas, por isso é melhor ires andando. Nilovna, dê-lhe o papel.

 

_ outro papel?

 

_ Toma. Pega e leva-o para ser impresso.

 

- Eu levo. É só isso?

 

- Sim... está um informador ao pé da porta.

 

-Já o tinha visto. Também lá tenho um, ao pé da minha. Pronto, até à vista, mulher feroz. Já agora, amigos, fiquem a saber que a briga no cemitério acabou por ser uma boa coisa. Toda a cidade comenta o que se passou. O teu artigo estava muito bom e chegou no momento oportuno. Eu sempre disse que é preferível uma boa briga a uma paz podre.

 

- Está bem, agora põe-te a andar.

 

- Não és muito amável... A sua mão, Nilovna... O miúdo fez asneira... sabes onde vive?

 

Nikolai deu-lhe a direcção.

 

- Amanhã passo por lá a vê-lo. É melhor. Bom rapazito, não é?

 

- Muito bom.

 

- Temos de cuidar bem dele, não é tolo nenhum - disse o médico, já à saída. - São justamente estes rapazes que hão-de formar a classe proletária instruída, e nos hão-de substituir quando partirmos para o lugar onde não há, espero eu, luta de classes.

 

- Andas muito palrador!

 

- É porque estou de bom humor. Esperas então ir parar à prisão? Desejo-te um bom descanso por lá.

 

- Obrigado, mas não estou cansado.

 

A mãe ouvia-os, contente por ver que se preocupavam tanto com o jovem operário. Quando Danilovitch saiu, Nikolai e Pelágia sentaram-se à mesa, à espera dos seus visitantes nocturnos.

 

Nikolai falou longamente dos camaradas que estavam deportados, dos que tinham fugido e continuavam o seu trabalho sob uma identidade falsa. As paredes nuas devolviam o som abafado da sua voz, como se estranhassem e não acreditassem naquelas histórias de heróis modestos e desinteressados que sacrificavam as suas forças à vasta obra da renovação do mundo.

 

Sombras doces e amigas rodeavam a mãe, e o seu coração enchia-se de ternura por aqueles desconhecidos que, na sua imaginação, se reuniam num único ser gigantesco dotado de uma coragem e de uma força inesgotáveis. Lenta, mas infatigavelmente, aquele ser percorria a Terra, e com as mãos cheias de amor pela sua missão, arrancava a podridão secular da mentira e mostrava aos homens a verdade simples e luminosa da vida.

 

Esta grande verdade que renascia chamava a si amistosamente todos os seres, sem distinção, prometendo que a todos por igual libertaria da inveja, do ódio e da falsidade, esses três monstros que escravizavam e aterrorizavam a Terra com o seu cínico poder...

 

Esta imagem provocava na alma da mãe um sentimento semelhante ao que noutros tempos experimentava quando se ajoelhava na frente dos ícones para, numa prece de júbilo e gratidão, terminar um dia que lhe havia parecido menos penoso que os outros.

 

Agora já tinha esquecido esses dias, e os sentimentos que a inspiravam tinham amadurecido, eram mais claros e alegres, tinham nela raízes mais profundas, eram mais inflamados e mais cheios de vida.

 

- a polícia não vem - disse Nikolai, interrompendo-se bruscamente.

 

A mãe olhou-o e disse desdenhosamente:

 

- Cá por mim eles podem ir é para o diabo que os carregue!

 

- Claro. Mas são horas de se ir deitar, Nilovna. Deve estar terrivelmente cansada. Há que reconhecer que tem uma resistência incrível. As emoções e as inquietações que aguenta sem dificuldade! Só o cabelo é que lhe está a embranquecer rapidamente. Vá descansar, vá.

 

Soaram algumas pancadas fortes na porta da cozinha. A mãe despertou. Batiam sem parar, com paciente obstinação. Tudo estava ainda escuro e silencioso, e aquela maneira de bater tornava-se aflitiva. A mãe vestiu-se apressadamente, correu à cozinha e perguntou sem abrir:

 

- Quem é?

 

- Eu! - respondeu uma voz desconhecida.

 

- Quem?

 

- Abra - pediram baixo, numa súplica.

 

A mãe levantou o ferrolho e abriu a porta com o pé. Entrou Ignat.

 

- Não me enganei! - disse ele aliviado.

 

Estava coberto de lama até à cintura, o seu rosto estava cinzento, tinha olheiras profundas, e os cabelos encaracolados espreitavam-lhe desordenadamente debaixo do gorro.

 

- Aconteceu uma desgraça - murmurou, fechando a porta.

 

-Já sei.

 

Ele olhou-a espantado.

 

- Como foi que soube?

 

Ela fez uma breve narrativa daquilo que havia presenciado.

 

- E apanharam os outros dois? Os teus camaradas?

 

- Não estavam lã. Tinham ido à inspecção militar. Prenderam cinco, contando com o paizinho Mikhail.

 

Respirou fundo, e disse com um sorriso:

 

- Eu escapei. Devem andar à minha procura.

 

- Mas como é que escapaste?

 

A porta entreabriu-se suavemente.

 

- Eu? - disse Ignat, sentando-se num banco e olhando à sua volta. - Um minuto antes da polícia, veio o guarda florestal, que chegou a correr e bateu à janela: "Cuidado rapazes, vêm aí para vos prender..."

 

Começou a rir docemente, e enxugou o rosto ao camisão.

 

- Bem, pois o paizinho Mikhail não perdeu a calma, e disse-me imediatamente: "Ignat, vai à cidade, rápido! Lembras-te daquela senhora mais velha?" E dizendo isto rabiscou um bilhete. "Toma, vai!" Fugi de gatas pelo meio do matagal, e ouvi-os chegar. Uns poucos deles. Vinham de todos os lados, os malditos. Puseram uma rede à volta da oficina. Deitei-me no chão, eles passaram ao pé de mim, mas não me viram. Depois levantei-me e comecei a andar. Andei duas noites e um dia sem parar.

 

Via-se que estava satisfeito consigo mesmo. Um sorriso iluminava-lhe os olhos escuros, e os seus lábios vermelhos tremiam.

 

- Vou fazer-te um chá - disse a mãe com vivacidade aproximando-se do samovar.

 

- Eu já lhe dou o bilhete.

 

Levantou uma perna com dificuldade, cambaleando e soltando um queixume, e pousou o pé em cima do banco. No umbral da porta apareceu Nikolai:

 

- Bons dias, camarada - disse ele pestanejando. - Dê-me licença que o ajude.

 

E curvando-se pôs-se a desenrolar os trapos enlameados das suas pernas.

 

- Bom... - disse o rapaz suavemente, segurando a perna. Admirado, olhava para a mãe.

 

Ela não se apercebeu desse olhar.

 

Temos de lhe friccionar os pés com vodka.

 

- Claro - respondeu Nikolai. Ignat fungava, atrapalhado.

 

Nikolai pegou no bilhete, alisou-o, e aproximando o papel cinzento e amarrotado dos olhos leu:

 

"Não abandones a nossa causa. Diz à senhora alta que não a abandone também, e por favor continuem a escrever sobre nós. Adeus. Rybine."

 

Lentamente, Nikolai deixou cair a mão que segurava o bilhete, e disse a meia-voz:

 

- É magnífico...

 

Ignat observava-os, mexendo os dedos sujos do seu pé descalço. A mãe, escondendo o rosto molhado de lágrimas, aproximou-se dele com uma bacia de água, sentou-se no chão e estendeu a mão para aquela perna, mas ele, assustado, escondeu-a rapidamente debaixo do banco.

 

- O que é que vai fazer?

 

- Dá-me o teu pé.

 

- Vou buscar a garrafa de vodka - disse Nikolai.

 

O jovem escondeu ainda mais o pé debaixo do assento, e murmurou:

 

- Bem, não estamos no hospital, que diabo...

 

Então, a mãe começou a desenrolar as tiras de pano que enrolavam a outra perna.

 

Ignat voltou a fungar ruidosamente, e com um movimento desajeitado do pescoço, baixou os olhos na direcção dela esticando os lábios de uma maneira cómica.

 

- Sabes que bateram em Rybine? - disse Pelágia com um tremor na voz.

 

- Não! - replicou ele aterrado.

 

- Sim. Já o tinham moído de pancada quando o levaram para Nikolskoie, e lá o sargento e o comissário bateram-lhe outra vez, na cara, e aos pontapés... estava coberto de sangue.

 

- Sim, isso sabem eles fazer muito bem - disse o rapaz, franzindo as sobrancelhas e estremecendo os ombros. - Tenho um medo deles como do diabo. E os mujiks, não lhe bateram?

 

- Só um, porque o comissário lhe mandou. Mas os outros não, e até se quiseram opor. -Não lhe batam!", diziam eles.

 

- Sim, os aldeões começam a compreender onde estão aqueles que os defendem, e porquê.

 

- Alguns deles são pessoas sensatas.

 

- E onde é que não há pessoas sensatas? Elas existem, claro... por todo o lado, o difícil é encontrá-las.

 

Nikolai trouxe uma garrafa de vodka, colocou carvão no samovar e saiu. Ignat seguiu-o com um olhar curioso e perguntou baixinho à mãe:

 

- Esse senhor, é médico?

 

- Em nossa casa não há senhores, só há camaradas.

 

- Não posso acreditar - disse ele com um sorriso perplexo, incrédulo.

 

- Em quê?

 

- Bem, pois... em tudo isto. Num sítio batem-nos, e noutro lavam-nos os pés. E no meio, o que será que existe?

 

Abriu-se a porta e Nikolai apareceu no umbral:

 

- No meio há os que lambem as mãos dos que batem, e chupam o sangue dos que são espancados. É isso que existe no meio.

 

Ignat olhou-o com respeito e disse, após uma breve pausa:

 

- É verdade.

 

Levantou-se, apoiou-se com força num pé e depois no outro, e disse:

 

- Estão outra vez como novos. Obrigado.

 

Foram beber o chá na sala de jantar, e Ignat, muito sério, contou:

 

- Era eu que distribuía o jornal, sou muito bom andarilho.

 

- Há muita gente que o lê?

 

- Todos os que sabem ler, e até os ricos. Claro que a esses não somos nós que o damos. Mas já sabem que os camponeses hão-de lavar com o seu sangue a terra dos nobres e dos poderosos, e isso quer dizer que hâo-de reparti-la, para que não haja mais patrões e trabalhadores, claro. Não vale a pena lutar, se não for para isso.

 

Parecia aborrecido, e olhava para Nikolai desconfiado e interrogativo. Este sorria silencioso.

 

- E se hoje combatemos no mundo inteiro, e vencemos, preciso de saber se amanhã não irá recomeçar tudo outra vez. Uns ricos e outros pobres... não, obrigado! A riqueza é como a areia, nunca fica no mesmo sítio, há-de escorregar de novo por todos os lados. Para que serviria isso?

 

- Não te irrites - disse a mãe brincando com ele. Nikolai disse pensativo:

 

- Como havemos de fazer para distribuir rapidamente o folheto sobre a prisão de Rybine?

 

Ignat arrebitou as orelhas.

 

- Há um folheto?

 

- Sim.

 

- Dêem-mo. Eu levo-o - propôs Ignat, esfregando as mãos. A mãe riu suavemente, sem olhar para ele:

 

- Não disseste que estás cansado, e que tens medo? Ignat passou a sua mão grande pelos cabelos encaracolados, e respondeu num tom grave e tranquilo:

 

- Uma coisa é o medo, outra coisa é a nossa causa. De que é que se está a rir? Tem muita graça!...

 

- Meu filho! - exclamou ela sem querer, deixando-se contagiar pela alegria que a dominava. Ele sorriu envergonhado:

 

- Então agora sou um miúdo!

 

Nikolai, que o examinava pestanejando com os seus olhos benevolentes, disse:

 

- Não, você não pode lá voltar.

 

- Então para onde é que vou? - perguntou Ignat inquieto.

 

- Irá outro no seu lugar. Você vai ter de lhe explicar muito bem o que deve fazer, está bem?

 

- Bem... - respondeu o jovem, após um instante de hesitação.

 

- Para si vamos arranjar um documento de identificação e um lugar de guarda florestal.

 

Ele levantou bruscamente a cabeça, preocupado.

 

- E se os mujiks vierem apanhar lenha, ou outra coisa qualquer, o que é que eu faço? Prendo-os? Não me peçam uma coisa dessas!

 

A mãe começou a rir, e Nikolai também, o que de novo irritou e perturbou o jovem.

 

- Você ferve em pouca água! - disse Nikolai. - Tranquilize-se, garanto-lhe que não vai ter de prender nenhum mujik.

 

- Assim já é diferente - disse Ignat, e sorriu, contente e mais calmo. - Eu gostava era de ir trabalhar numa fábrica, parece que é boa rapaziada.

 

A mãe levantou-se da mesa e olhou pela janela.

 

- Como é a vida! - disse ela pensativamente. - Rimos cinco vezes por dia e choramos outras tantas. Bom, já acabaste, Ignat? Vai dormir.

 

- Não quero.

 

- Vai, anda!

 

- Que mandona! Bem, eu vou... obrigado pelo chá e pelos cuidados...

 

Deitou-se na cama da mãe e murmurou, coçando a cabeça:

 

- A cama vai ficar com um cheiro a alcatrão... Enfim, estou para aqui... Não tenho sono... Que bem que ele falou... sobre essa história dos que estão no meio... O tipo é danado!

 

E de repente adormeceu, ressonando alto, com as sobrancelhas levantadas e a boca entreaberta.

 

Nessa mesma tarde, já Ignat estava no pequeno quarto de um sótão, sentado na frente de Vessovchikov, e lhe dizia, baixando a voz e franzindo as sobrancelhas:

 

- Quatro vezes, na janela do meio.

 

- Quatro? - repetia atentamante Vessovchikov.

 

- Primeiro três, assim...

 

E dobrando um dedo bateu com ele na mesa, contando:

 

- Um, dois, três... e depois mais uma pancada.

 

- Está bem.

 

- Um tipo ruivo há-de vir abrir a porta, e há-de perguntar: "É por causa da parteira?" E você responde: "Sim, da parte do patrão." Não é preciso mais nada. Com isso já ele percebe.

 

Inclinavam a cabeça um para o outro, serenos, firmes, e falavam a meia-voz. A mãe observava-os de pé junto à mesa, de braços cruzados. Aquelas pancadinhas misteriosas, as senhas e contra-senhas, faziam-na sorrir interiormente:

 

"Ainda são umas crianças...", pensava.

 

Na parede estava um candeeiro aceso, que alumiava as manchas escuras da humidade e as ilustrações recortadas de revistas. Pelo chão havia baldes ameigados e pedaços de folha de flandres. Um cheiro a ferrugem, a tinta de óleo e a bolor enchia o quarto.

 

Ignat trazia um casacão felpudo de que gostava muito. A mãe via-o contemplar as mangas deliciado, e mover com dificuldade o seu grosso pescoço grosso para se admirar. Sentia uma quente ternura subir-lhe ao coração.

 

"Meus queridos filhos!..."

 

- Pronto - disse Ignat, levantando-se. - Lembre-se, primeiro a casa dos Muratov, pergunte pelo avô...

 

- Eu lembro-me - disse Vessovchikov.

 

Mas Ignat não estava muito convencido, e mais uma vez lhe repetiu os sinais e as senhas. Por fim estendeu-lhe a mão.

 

- Dê-lhes cumprimentos meus. É gente boa, vai ver. Olhou-se com ar satisfeito, acariciou o casacão e perguntou à mãe:

 

- Posso ir-me embora?

 

- Achas que vais encontrar o caminho?

 

- Claro! Até à vista, camaradas!

 

Saiu de costas erguidas, o peito dilatado, com o chapéu novo a cair para a orelha e as mãos solidamente enfiadas nos bolsos. Os anéis do seu cabelo claro bailavam-lhe alegremente sobre as fontes.

 

- Bom, parece que tenho trabalho outra vez... - disse Vessovchikov aproximando-se da mãe. -Já andava aborrecido. Para que é que fugi da prisão? Para andar escondido? Ao menos na prisão aprendia alguma coisa. O Pavel ia-nos metendo coisas dentro da cabeça que era um gosto... Bom, e o que é que decidiram sobre a evasão?

 

- Não sei - respondeu ela, suspirando sem querer.

 

Ele pousou-lhe uma mão sobre o ombro e aproximou o seu rosto do de Pelágia.

 

- Diz-lhes tu, eles a ti ouvem-te. É muito fácil, tu mesma podes verificá-lo. Ao lado da prisão há um lampião. Defronte há um terreno baldio, à esquerda está o cemitério, à direita fica a rua, a cidade. O homem que acende as luzes vem limpar o lampião, em pleno dia. Encosta a escada ao muro, trepa, prende lá em cima os ganchos para uma escada de corda, atira-a para o pátio da prisão, e pronto. Nesse momento os camaradas já sabem a que hora tudo isto irá ser feito, pedem aos de delito comum que armem zaragata, ou armam-na eles mesmos, e entretanto os que devem fugir sobem a escada, e em três tempos, um instante, já está.

 

Agitava a mão debaixo do nariz da mãe, explicando-lhe o plano. Para ele tudo tinha de ser feito às claras, com limpeza e manha. Ela recordava o antigo Vessovchikov, lento e desajeitado. Antigamente os seus olhos eram desconfiados, tinham uma expressão sombria e colérica. Agora pareciam outros. Brilhavam com uma limpidez serena e terna que convencia a mãe e a perturbava.

 

- Repara, tem de ser de dia. De dia. Quem é que pensa que um preso se vai atrever a fugir em pleno dia, aos olhos de toda a gente?

 

- E se disparam sobre eles? - disse a mãe, com um calafrio.

 

- Quem? Não há lá soldados, os carcereiros servem-se dos revólveres para pregar pregos...

 

- Tudo isso me parece demasiado fácil.

 

- Pois é a verdade, vais ver. Fala com eles, eu tenho tudo preparado, a escada de corda, os ganchos... e o camarada que me recebeu em sua casa será o homem dos lampiões.

 

Alguém se aproximou do outro lado da porta e tossiu. Ouviu-se um ruído metálico.

 

- Aí o tens - disse Vessovchikov.

 

À entrada da porta apareceu uma banheira de zinco. Uma voz rouca resmungou:

 

- Passas ou não, diaba?

 

Em seguida apareceu uma cabeça redonda e grisalha sem gorro, uns olhos salientes e um bigode cruzando uma face bondosa.

 

- Nikolai Vessovchikov ajudou a meter a banheira dentrO de casa, e o homem entrou. Era alto, curvado, tossiu soprando as faces barbeadas, e disse com a mesma voz rouca:

 

- Boas tardes!

 

- Aqui o tens. Pergunta-lhe - disse Nikolai.

 

- A mim? O quê?

 

- Sobre a fuga...

 

- Ah, ah! - disse ele limpando o bigode às mãos escuras.

 

- Olha, lakov, ela pensa que não é assim tão fácil.

 

- Ah, não acredita? Porque não quer. Mas queremos nós, e por isso acreditamos - disse ele tranquilamente, e de repente dobrou-se e teve um forte ataque de tosse. De pé, a meio do quarto, esfregou o peito, a arfar, e olhou para a mãe com os olhos dilatados.

 

- Pavel e os seus camaradas é que têm de decidir - disse Pelágia.

 

Vessovchikov inclinou a cabeça, pensativo.

 

- Quem é Pavel? - perguntou o outro homem, sentando-se.

 

- É o meu filho.

 

- Qual é o apelido?

 

- Vlassov.

 

O homem moveu a cabeça, puxou da tabaqueira e do cachimbo, encheu-o e disse com voz entrecortada:

 

-Já ouvi esse nome. O meu sobrinho conhece-o. Ele também está na prisão. Chama-se Evchenko, conhece-o? Eu chamo-me Gobune. Daqui a pouco todos os rapazes novos vão estar na prisão, e então é que a vida vai ser boa para nós, os velhos. O polícia até prometeu que o mandava para a Sibéria. E é bem capaz de fazer isso, o grande porco.

 

Começou a fumar, cuspindo muitas vezes para o chão.

 

- Então ela não quer? - continuou dirigindo-se a Vessovchikov. - É lá com ela, cada um é livre. Estás cansado de estar sentado? Anda! Não queres andar? Deixa-te estar sentado! Foste roubado? Deixa-te ficar calado! Bateram-te? Resigna-te! Mataram-te? Deixa-te estar! Eu sei tudo isso muito bem... mas o meu sobrinho, esse, hei-de arrancá-lo de lá. Ah, sim, hei-de arrancá-lo de lá.

 

As suas frases, breves, entrecortadas, como uivos, deixaram a mãe perplexa. As suas últimas palavras encheram-na de inveja.

 

Pela ruela, caminhando contra a chuva batida pelo vento frio, pensou em Vessovchikov:

 

"Só de pensar no que ele se transformou!"

 

Lembrou-se então de Gobune:

 

"Pelos vistos não sou a única a viver uma vida nova!", pensou ela quase piedosamente.

 

Depois, a imagem do filho ergueu-se no seu coração: "Se ele concordasse!..."

 

No domingo, ao despedir-se de Pavel no locutório da prisão, sentiu que ele lhe colocava na mão uma pequena bola de papel. Estremeceu como se esta lhe queimasse a pele, e lançou ao filho um olhar interrogador e suplicante que não obteve resposta. Os seus olhos azuis tinham o sorriso tranquilo e firme que ela tão bem conhecia.

 

- Adeus! - disse a mãe com um suspiro.

 

Ele estendeu-lhe de novo a mão, enquanto uma onda de ternura passava trémula sobre o seu rosto.

 

- Adeus, mãe!

 

Ela esperou, retendo-lhe a mão.

 

- Não te inquietes, tenta compreender... - disse ele. Estas palavras e a ruga obstinada na sua testa deram à mãe a resposta esperada.

 

- Porque dizes isso? - murmurou ela, baixando a cabeça.

- Que queres tu?

 

Saiu precipitadamente, sem olhar para ele, para que as lágrimas e a tremura dos seus lábios não traíssem a sua emoção. Pelo caminho, parecia-lhe que lhe doíam as articulações da mão em que, apertada, levítva a resposta do filho, e que todo o braço lhe pesava como se tivesse recebido uma pancada no ombro. Ao entrar, entregou o bilhete a Nikolai, e ao vê-lo desenrolar o papel amarrotado, de novo palpitou nela uma esperança. Mas Nikolai leu:

 

- Era de esperar. Olhe o que ele diz: "Não nos evadiremos, camaradas. Não podemos fazê-lo. Nenhum de nós. Perderíamos o respeito por nós próprios. Ocupem-se do mujik que foi preso recentemente. Ele merece que façam isso por ele, é digno do vosso esforço. Aqui sofre muito. Todos os dias tem problemas com a direcção. Já passou vinte e quatro horas no segredo. Tratam-no muito mal. Intercedemos todos por ele. Consolem a minha mãe, sejam carinhosos com ela. Expliquem-lhe a situação, ela vai compreender..

 

A mãe levantou a cabeça e disse docemente, com voz trémula:

 

- Explicar-me o quê? Eu compreendo!

 

Nikolai voltou-se, tirou o lenço e assoou-se ruidosamente, murmurando:

 

-Já estou resfriado...

 

Passou as mãos pelos olhos, para ajeitar os óculos, e continuou, enquanto passeava pelo quarto:

 

- Bom, de qualquer maneira não íamos conseguir...

 

- Não faz mal. Que o julguem! - disse a mãe, enrugando a testa, enquanto o seu peito se enchia de uma negra angústia.

 

- Recebi carta de um camarada de Petersburgo.

 

- Ele pode fugir da Sibéria, não é verdade? É possível?

 

- Claro. Este camarada diz o seguinte: "A causa será julgada brevemente, e o veredicto já é conhecido: deportação para todos." Está a ver? A sentença foi dada em Petersburgo, ainda antes do julgamento...

 

- Deixe isso, Nikolai, não vale a pena consolar-me, nem explicar-me. Pavel age sempre pelo melhor. Não se atormentaria, nem atormentaria os outros, se não tivesse um motivo muito forte para o fazer. E tem-me um grande amor, pensa em mim... "Expliquem-lhe, consolem-na...", escreveu ele, não foi? O seu coração batia precipitadamente, e sentia-se agoniada de tanta emoção.

 

- O seu filho é um homem admirável - exclamou Nikolai, com uma energia que nele era pouco habitual. - Eu tenho por ele uma grande admiração.

 

- Temos de pensar no que poderemos fazer por Rybine lembrou ela.

 

Quereria actuar imediatamente, ir a algum lado, caminhar até ao fim das suas forças.

 

- Sim, é verdade - disse Nikolai, enquanto caminhava pelo quarto. - Precisávamos que a Sachenka...

 

- Ela vem aí. Vem sempre, quando sabe que fui visitar Pavel.

 

Baixando pensativamente a cabeça, Nikolai sentou-se no divã ao pé da mãe. Mordia os lábios e puxava a sua pequena barba.

 

- É pena que a minha irmã não esteja cá...

 

Se conseguíssemos organizar tudo enquanto Pavel ainda cá está... seria uma grande alegria para ele.

 

Fizeram um breve silêncio, e de repente a mãe disse em voz baixa e lenta:

 

- Não compreendo... porque é que ele não quer? Nikolai levantou-se bruscamente, mas nesse momento tocou a campainha.

 

Entreolharam-se os dois.

 

- É a Sachenka... - disse Nikolai muito baixo.

 

- Como é que lhe vamos dizer? - perguntou a mãe no mesmo tom.

 

- É difícil...

 

- Faz-me pena...

 

Voltou a ouvir-se a campainha, menos forte, como se a pessoa que estava à porta hesitasse também. Nikolai e a mãe foram juntos ao seu encontro mas, já perto da porta, Nikolai retrocedeu:

 

- É melhor não ser eu a abrir.

 

- Não aceitou? - perguntou com firmeza a rapariga, quando a mãe abriu.

 

- Não.

 

- Eu sabia - disse Sachenka com simplicidade. O seu rosto empalideceu. Desabotoou o casaco, abotoou de novo dois botões, tentou despi-lo e não conseguiu. Então disse:

 

- Chove, está vento... que tempo! Ele está bem?

 

- Está.

 

- Contente e de boa saúde - disse ela a meia-voz, com os olhos fixos nas mãos.

 

- Mandou um bilhete, quer que ajudemos Rybine a fugir anunciou a mãe sem olhar para ela.

 

- Sim? Acho que podíamos utilizar o mesmo plano... disse a rapariga lentamente.

 

- Eu também sou dessa opinião - disse Nikolai aparecendo à porta. - Bom dia, Sachenka.

 

- A jovem estendeu-lhe a mão:

 

- Então qual é o problema? Todos concordaram que era um bom plano.

 

- E quem é que o irá pôr em prática? Estão todos ocupados.

 

- Deixem isso por minha conta - disse ela com entusiasmo. - Eu tenho tempo.

 

- Está bem, mas são precisas mais pessoas.

 

- Eu arranjarei quem me ajude. Agora vou andando. e E com um gesto seguro voltou a abotoar o casaco.

 

- Devia descansar - sugeriu a mãe.

 

Ela sorriu debilmente e respondeu com doçura:

 

- Não se preocupe, não estou cansada.

 

Apertou-lhe a mão em silêncio e saiu, de novo fria e séria.

 

A mãe e Nikolai aproximaram-se da janela e viram-na atravessar o pátio e desaparecer pelo portão. Nikolai pôs-se a assobiar, e em seguida sentou-se à mesa e começou a escrever.

 

- Vai fazer-lhe bem ocupar-se desta tarefa - disse a mãe pensativa.

 

- É claro - replicou Nikolai, e voltou-se para ela com um sorriso no seu rosto bondoso:

 

- Este cálice, a si, foi-lhe poupado... não suspirou nunca pelo homem amado?

 

- Que ideia! - exclamou ela fazendo um gesto com a mão.

- Suspirar, eu? Eu tinha era medo que me obrigassem a casar com este ou aquele.

 

- Não havia nenhum que lhe agradasse? Ela reflectiu um pouco e respondeu:

 

- Não me lembro, meu amigo. Claro que sim... Com certeza que devo ter gostado de algum, mas já não consigo lembrar-me.

 

Olhou-o e concluiu simplesmente, com uma tristeza serena:

 

- O meu marido batia-me muito, e tudo o que existiu antes dele como que se me varreu da memória.

 

Nikolai lançou um olhar ao papel. A mãe saiu por um instante, e em seguida voltou. Ele olhou-a com ternura e disse em voz baixa, como se acariciasse afectuosamente as suas próprias recordações:

 

- Sabe, também eu, como a Sachenka, vivi o meu romance. Amava uma rapariga, uma criatura ideal, maravilhosa. Isso aconteceu, já lá vão vinte anos, e se quer que lhe seja sincero ainda a amo. E hei-de amá-la sempre da mesma maneira, com toda a minha alma, com toda a minha gratidão... para sempre.

 

De pé, ao seu lado, a mãe viu que se lhe iluminavam os olhos com uma chama ardente e clara. Apoiava a cabeça nas mãos, pousadas nas costas da cadeira, e olhava ao longe. Todo o seu corpo, delgado e esbelto, embora robusto, parecia estender-se para a frente como o caule de uma planta se vira para a luz do Sol.

 

- Pois então, casem-se! - aconselhou a mãe.

 

- Há já cinco anos que ela está casada.

 

- E porque não se casou com ela antes disso? Ele meditou uns momentos:

 

- Não tivemos muita sorte. Quando eu estava na prisão, ela estava em liberdade, e quando eu estava livre, estava ela na prisão, ou no degredo. Uma situação parecida com a de Sachenka. Por fim mandaram-na dez anos para a Sibéria. Tão longe! Eu queria ter ido com ela, mas tivemos vergonha, um e outro. Conheceu por lá outro homem, um camarada e amigo meu, uni rapaz estupendo. Fugiram juntos e agora vivem os dois no estrangeiro.

 

Interrompeu-se, tirou os óculos, olhou as lentes à contraluz e voltou a limpá-las.

 

- Meu amigo - disse a mãe afectuosamente, movendo a cabeça... Sentia por ele compaixão, e ao mesmo tempo algo que provocava nela um terno sorriso maternal. Ele mudou de posição, pegou de novo na pena e continuou, agitando-a ao ritmo das suas palavras:

 

- A vida familiar diminui forçosamente a energia do revolucionário. Os filhos, a falta de recursos, a necessidade de trabalhar muito para ganhar o pão... e um revolucionário precisa de espalhar a sua energia em todos os sentidos. Isso exige-lhe todo o tempo. Temos de estar sempre na primeira linha, porque somos os artífices que a força da história encarregou de destruir o velho mundo e criar a nova vida. Se ficamos para trás, se sucumbimos ao cansaço ou ao atractivo da felicidade imediata de uma pequena conquista, agimos mal, é quase uma traição. Não existe ninguém ao lado de quem possamos caminhar, acompanhando-lhe o passo, sem alterarmos a nossa fé, e não devemos nunca esquecer que a nossa missão não é conseguir pequenas conquistas, mas sim a vitória completa.

 

A sua voz era de novo firme, o rosto tinha empalidecido, mas nos seus olhos brilhava a sua força de sempre, regular e contida.

 

De novo a campainha tocou com força, interrompendo-lhe o discurso. Era Ludmila. Tinha as faces vermelhas do frio, e vestia um casaco leve, impróprio para a estação. Tirando as galochas rotas, disse com voz irritada:

 

- Fixaram a data do julgamento. Dentro de oito dias.

 

- É verdade? - perguntou da sala Nikolai.

 

A mãe precipitou-se para ele sem saber se era o medo ou a alegria que a perturbavam. Ludmila seguiu-a, e continuou baixo e com ironia:

 

- Sim. E no tribunal dizem abertamente que a sentença já está decidida. Mas o que significa isto? O governo tem medo que os seus funcionários lhe tratem os inimigos com brandura? Depois de ter pervertido os seus servidores durante tanto tempo e com tanta aplicação, não têm a certeza de ter feito deles verdadeiros canalhas.

 

Sentou-se no diva, esfregando as faces magras. Os seus olhos escuros iluminaram-se de desprezo, e a voz tornava-se cada vez mais colérica.

 

- Gaste as suas energias com algo que valha a pena, Ludmila - disse Nikolai, tentando tranquilizá-la. - Eles não estão a ouvir.

 

A mãe escutava a rapariga com toda a atenção, mas sem a compreender. Repetia maquinalmente as mesmas palavras: "Vão julgá-los... Daqui a oito dias será o julgamento." Subitamente, sentiu que se aproximava algo de desapiedado, de um rigor desumano.

 

Viveu dois longos dias na insuportável angústia da espera, numa névoa de perplexidade e abatimento. Ao terceiro dia apareceu Sachenka, e disse a Nikolai:

 

- Está tudo pronto. Vai ser hoje, à uma hora. -Já? - perguntou ele, admirado.

 

- Porque não? A única coisa que eu tinha de fazer era arranjar um esconderijo e roupa para Rybine. Gobune tratou do resto. Rybine só terá de percorrer umas centenas de metros. Vessovchikov, disfarçado, claro, vai ao encontro dele,

 

entrega-lhe um sobretudo e um gorro e indica-lhe o caminho. Eu estarei à espera dele mais adiante, para lhe levar uma muda de roupa e o conduzir. Ajudo-o a mudar de roupa e levo-o para o esconderijo.

 

- Não está mal pensado. E quem é Gobune? - perguntou Nikolai.

 

- Você conhece-o. É o dono da casa onde costuma ir falar aos serralheiros.

 

- Ah, sim, já me recordo. Um velhote bastante pitoresco.

 

- É um antigo soldado, agora faz telhas. É um homem um pouco lento, com um ódio desmedido contra toda a espécie de violência. Um tanto filósofo... - disse Sachenka, olhando pensativa pela janela.

 

A mãe escutava-a em silêncio, e um pensamento ainda vago ia amadurecendo dentro dela.

 

- Gobune quer evadir o sobrinho, Evchenko, aquele rapaz com quem você simpatizava muito, sempre muito limpo, todo aperaltado, lembra-se dele?

 

Nikolai inclinou a cabeça afirmativamente.

 

- Ele organizou tudo muito bem - continuou Sachenka - mas começo a duvidar do êxito. Os presos têm o recreio em conjunto. Quando virem a escada, haverá muitos que quererão fugir.

 

Calou-se um instante, fechando os olhos. A mãe aproximou-se dela.

 

- E, claro, vão atrapalhar-se uns aos outros.

 

Estavam os três de pé junto à janela. A mãe estava atrás de Nikolai e de Sachenka. Aquela conversa rápida tinha-a deixado um pouco confusa.

 

- Eu também vou - disse ela subitamente.

 

- Porquê? - perguntou Sachenka.

 

- Não vá, minha amiga. Ainda lhe acontece alguma coisa. Não precisa de ir... - aconselhou Nikolai.

 

Ela olhou-os e repetiu em voz baixa, mas insistente:

 

- Vou.

 

Os outros dois trocaram um olhar. Sachenka encolheu os ombros:

 

- Eu compreendo...

 

Virou-se para a mãe, passou-lhe o braço pela cintura e disse-lhe simples e cordialmente:

 

- Mas nós já a avisámos, não vale a pena ter esperança...

 

- Minha querida! - disse a mãe, estreitando-a contra si com os braços a tremer. - Leve-me, eu não vou estorvá-la... Tenho de ver... Não acredito que consigam evadir-se.

 

- Ela vem comigo - disse a rapariga a Nikolai.

 

- Isso é consigo - respondeu ele, baixando a cabeça.

 

- Mas não poderemos ir juntas. Vai ter de atravessar os campos, até aos jardins. De lá vê-se o muro da prisão. Mas, e se lhe perguntarem o que está ali a fazer?

 

- Eu encontro uma resposta!

 

- Lembre-se que os carcereiros a conhecem, se a vêem...

 

- Não me verão!

 

A esperança que inconscientemente tinha alimentado dentro de si ao longo daqueles dias havia inflamado subitamente, e dava-lhe um ânimo novo.

 

"Talvez ele também...", pensava ela, enquanto se vestia apressadamente.

 

Uma hora mais tarde estava no campo atrás da prisão. Soprava um vento áspero que lhe enfunava as saias, varria o chão gelado, sacudia a cerca partida de um jardim ao lado do qual ela passava, batia violentamente no muro não muito alto da prisão, em seguida espalhava-se pelo pátio varrendo as vozes, dispersando-as, levando-as até ao céu. As nuvens deslizavam rapidamente, descobrindo pequenas clareiras de um azul intenso.

 

Por detrás da mãe havia um jardim. Na frente dela, o cemitério. À direita, a uns vinte metros, a prisão. Junto ao cemitério, um soldado passeava um cavalo conduzindo-o pelas rédeas. Outro soldado batia com os pés no chão, gritava, assobiava e ria-se. Não se via mais ninguém nas proximidades.

 

A mãe passou por eles, devagar, dirigindo-se ao muro do cemitério, lançando olhares furtivos para um lado e para o

outro. De repente, sentiu fraquejarem-lhe as pernas. Pesavam-lhe como se o gelo lhas colasse ao chão. Um homem curvado, com uma escada ao ombro, acabava de aparecer na esquina da prisão, caminhando num passo ligeiro parecendo um acendedor de lampiões. A piscar os olhos de terror, a mãe olhou para os soldados. Continuavam no mesmo sítio, enquanto o cavalo trotava à volta deles. Viu depois o homem da escada apoiá-la contra a parede e trepar sem pressa. Acenou para o pátio, desceu ligeiro e dobrou a esquina do muro da prisão. O coração da mãe batia com força. Os segundos passavam lentamente. A escada mal se via, encostada à parede escura, com manchas de lama e pedaços de gesso arrancados a deixarem ver os tijolos. De repente, no alto do muro, surgiu uma cabeça negra, em seguida um corpo que se balançou e deslizou pelo muro abaixo. Surgiu então uma segunda cabeça com um gorro de peles, uma bola negra saltou para o chão e desapareceu na esquina. Rybine levantou-se, olhou à sua volta e sacudiu a cabeça.

 

- Foge, foge!... - murmurava a mãe, batendo no chão com o pé.

 

Zumbiam-lhe os ouvidos, ouvia gritar... do outro lado do muro apareceu uma terceira cabeça. Crispando as mãos sobre o peito, a mãe olhava, petrificada. A cabeça loira e imberbe deu um esticào no ar, como se quisesse separar-se do corpo, para logo desaparecer atrás do muro. Os gritos eram agora mais fortes, mais violentos, e o vento levava-os pelo ar misturados com o assobio estridente dos apitos. Rybine seguia ao longo do muro, ia já mais adiante, atravessava um espaço livre entre a prisão e as casas da cidade. Parecia à mãe que ele caminhava muito devagar e que ia com a cabeça tão levantada que todos os que o vissem recordariam o seu rosto. Murmurava:

 

- Depressa, mais depressa...

 

Alguma coisa estalou secamente no pátio da prisão, e ouviu-se o barulho de vidros partidos. Com os pés cravados no chão, o soldado puxava o cavalo para si. O outro, fazendo uma pala com a mão, gritava qualquer coisa na direcção da prisão, e em seguida virava a cabeça, esticando o ouvido.

 

Crispada, a mãe olhava para todos os lados, e não acreditava no que os seus olhos viam. Aquilo que havia julgado terrível e complicado tinha sido feito com demasiada rapidez e facilidade, e esta rapidez deixara-a atordoada, tirara-Lhe a lucidez. Na rua já não se via Rybine. Passava um homem alto com um sobretudo comprido, uma garotinha corria...

 

À esquina da prisão apareceram três carcereiros a correr, a empurrarem-se uns aos outros, com o braço direito estendido. Um dos soldados precipitou-se ao encontro deles, o outro afadigava-se à volta do cavalo, tentando montar o animal, que resistia e escoiceava. Pelágia via tudo a girar à sua volta. Os apitos rasgavam incessantemente o ar, em seguida calavam-se. Os seus apelos inquietos, perdidos, fizeram despertar em Pelágia a consciência do perigo. Estremeceu e começou a caminhar ao longo da vedação do cemitério, seguindo os guardas com o olhar, mas estes e os soldados dobraram a outra esquina da prisão e desapareceram. Ao seu encontro corria o subdirector, que ela tão bem conhecia, com o uniforme desabotoado. Como por encanto surgiram mais alguns agentes, e começaram a juntar-se outras pessoas.

 

O vento rodopiava como se estivesse louco de alegria, trazendo até aos ouvidos da mãe farrapos de gritos confusos e (de apitadelas. Sentia-se feliz com toda aquela confusão, e apressou o passo, pensando:

 

"Quer dizer que talvez também ele tenha podido..."

 

Subitamente, virando a esquina do cemitério, esbarrou com dois polícias.

 

- Pára! - gritou-lhe um deles, afogueado. - Não viste um homem de barba?...

 

Ela apontou os jardins com a mão, e respondeu tranquilamente:

 

- Sim, foi por ali, porquê?

 

- Igorovitch! Apita!

 

Regressou a casa. Uma pena obscura fazia nascer a amargura e o despeito no seu coração. Quando chegou à cidade, atravessou-se-lhe um carro na frente. Levantou a cabeça e viu que dentro seguia um homem novo, de bigode loiro e rosto pálido e cansado. Ele olhou-a também. Ia sentado de lado, o que fazia que o seu ombro direito parecesse mais alto que o esquerdo.

 

Nikolai acolheu-a alegremente.

 

- Então? Como é que correu?

 

- Pareceu-me que correu bem.

 

Pôs-se a contar-lhe a fuga, tentando lembrar-se de todos os detalhes, falando como se estivesse a repetir uma narrativa de outra pessoa, e não tivesse ela própria testemunhado tudo pessoalmente.

 

- Tivemos sorte - disse Nikolai, esfregando as mãos. Mas só Deus sabe o receio que tive por si. Escute, Nilovna, vou dar-lhe um conselho de amigo: não tenha medo do julgamento. Quanto mais depressa for, mais depressa Pavel estará em liberdade, creia-me. Pode até evadir-se durante a viagem para a Sibéria. E quanto ao julgamento, vou explicar-Lhe mais ou menos como vai ser...

 

Começou a pintar-lhe o quadro da sessão. Enquanto o escutava, ela compreendeu que Nikolai tinha medo e queria tranquizá-la.

 

- Está com receio que eu diga alguma coisa aos juizes, que lhes dirija algum pedido? - perguntou ela subitamente.

 

Ele sobressaltou-se, levantou as mãos e exclamou em tom ofendido:

 

- O que é que está a dizer?

 

Ela calou-se, passeando os olhos pela sala.

 

- As vezes penso que irão humilhá-lo, troçar dele... que lhe dirão: "Raça de mujik, filho de um mujik, quem é que tu pensavas que eras?" E Pavel, orgulhoso como é, vai responder-lhes com violência. Ou então o Andrei é capaz de começar a troçar deles... Os dois fervem em pouca água! Se isso acontecer, tenho muito medo que os juizes percam a paciência, e lhes dêem uma pena tal que nunca mais os veremos...

 

Nikolai mantinha-se tristemente em silêncio e puxava a pequena barba.

 

- Não consigo tirar estas ideias - disse a mãe, muito baixo. - Quando se puserem a examinar e a medir... É terrível! E o terrível nem é o castigo, mas sim o julgamento. Um julgamento é uma coisa terrível! Não sei como hei-de explicar...

 

Tinha a sensação de não estar a ser compreendida por Nikolai, e isso atrapalhava-a mais ainda, no desejo que tinha de lhe falar daquele seu terror...

 

Este terror foi crescendo dentro dela como um musgo húmido e pesado a dificultar-lhe a respiração, e quando chegou o dia da audiência, a mãe levou consigo para o tribunal um sombrio e pesado fardo que lhe vergava a cabeça e as costas.

 

À medida que caminhava pela rua foi reconhecendo alguns vizinhos do bairro, foi-se inclinando numa resposta silenciosa aos seus cumprimentos, e foi abrindo caminho através da multidão sem rosto. Nos corredores e na sala esbarrou com familiares dos outros detidos. Falavam baixo, e as palavras que conseguia perceber pareciam-lhe inúteis e sem sentido. As pessoas assemelhavam-se todas, tomadas do mesmo sentimento de desolação que se transmitia à mãe, oprimindo-a mais ainda.

 

- Senta-te - disse-lhe Sizov, dando-lhe um pouco de espaço no banco, ao lado dele. Ela obedeceu, compôs o vestido e olhou à sua volta. Perante os seus olhos dançava uma mistura de riscas verdes e escarlates e brilhavam finos fios amarelos.

 

- Foi o teu filho quem perdeu o nosso Gricha! - disse em voz baixa uma mulher que estava sentada a seu lado.

 

- Cala-te, Natacha! - disse Sizov, em tom de censura.

 

Pelágia olhou para a mulher. Era a Samoilova. Um pouco mais adiante estava o pai, um homem calvo de traços agradáveis com uma barbita ruiva em forma de leque. Os seus olhos, encovados no rosto ossudo, olhavam em frente fixamente, e a sua barba tremia.

 

Das altas janelas da sala caía uma luz parada e mortiça, e os flocos de neve deslizavam pelos vidros. Entre duas janelas estava pendurado um retrato grande do czar, numa ampla moldura dourada que brilhava, e cujos lados ficavam ocultos sob as grossas pregas dos reposteiros cor de framboesa que caíam com solenidade. Na frente do retrato, uma mesa coberta de pano verde estendia-se a quase toda a largura da sala. À direita, atrás de uma grade, dois bancos de madeira. À esquerda, duas filas de cadeirões estofados a carmim. Contínuos de gola verde e botões dourados sobre o peito e o ventre iam e vinham sem fazer barulho. Naquela atmosfera nublada, um murmúrio de vozes abafadas pairava timidamente, e sentia-se um leve cheiro a farmácia. Todas aquelas cores e reflexos, os sons e os cheiros, pesavam sobre o peito à medida que se respirava, e enchiam o coração vazio com um medo que era uma mistura de confusão e abatimento.

 

De repente, alguém pronunciou algumas palavras em voz alta. A mãe estremeceu, e toda a gente, e ela também, se pôs de pé. Apoiou-se no braço de Sizov.

 

No canto do lado esquerdo abriu-se uma porta, dando passagem a um velhote de óculos, a cambalear nas pernas. No seu pequeno rosto cinzento tremiam umas patilhas brancas e ralas e o lábio superior, bem barbeado, mergulhava dentro da sua boca. O rosto e o queixo apoiavam-se na alta gola do seu uniforme. Parecia não ter pescoço. Apoiava-se num jovem alto, de rosto de porcelana, redondo e vermelho. Em seguida avançaram lentamente outras três personagens, de uniforme bordado a ouro, e três civis.

 

Demoraram um grande bocado do outro lado da mesa, depois sentaram-se nos cadeirões, e quando já estavam sentados, um deles, com o uniforme desapertado e um rosto comprido e indolente, começou a falar ao velhinho, agitando os seus grossos lábios pesada e silenciosamente. O velho escutava, curiosamente rígido e imóvel. Por detrás das lentes dos seus óculos, a mãe via duas pequenas manchas incolores.

 

Na extremidade da mesa, de pé em frente a uma secretária, estava um homem alto e calvo que tossia e folheava alguns papéis.

 

O ancião inclinou-se para a frente e começou a falar. Pronunciou claramente a primeira palavra, mas as outras pareciam evaporar-se sobre os seus lábios finos e macilentos.

 

- Declaro... Que entrem...

 

- Olha! - sussurrou Sizov, dando um leve empurrão a Pelágia. Levantaram-se.

 

Por trás da grade abriu-se uma porta e apareceu um soldado levando ao ombro o sabre desembainhado. Atrás dele entraram Pavel, Andrei, Theo Mazine, os dois Goussev, Bukhine, Samoilov, Somov e outros cinco rapazes que Pelágia não sabia como se chamavam. Pavel sorria, bem disposto, e Andrei também sorria, mostrando os dentes, e fazia sinais com'a cabeça. Os seus sorrisos, os seus rostos e os seus gestos animados pareceram trazer consigo um pouco de claridade e de paz, naquele silêncio tenso e hostil. O brilho intenso do ouro dos uniformes suavizou-se e tornou-se menos agressivo. Uma corrente de firmeza e coragem, um sopro de força e de vida chegaram ao coração da mãe e arrancaram-na ao seu entorpecimento. Atrás dela, nos bancos onde até então uma multidão desanimada se tinha limitado a esperar, correu um rumor, uma resposta à saudação dos detidos.

 

- Não têm medo! - dizia Sizov, enquanto à sua direita a mãe de Samoilov estalava em soluços.

 

- Silêncio! - gritou uma voz severa.

 

- Ficam avisados... - disse o velhinho.

 

Pavel e Andrei estavam sentados lado a lado, e com eles, no primeiro banco, Mazine, Samoilov e os dois Goussev. Andrei havia feito a barba e os seus bigodes tinham crescido, caiam-lhe as pontas, o que fazia a sua cabeça redonda parecer-se com a de um gato. Tinha no rosto uma nova expressão, havia qualquer coisa de agudo e de cáustico nas rugas da boca, e os seus olhos eram agora mais sombrios. Sobre o lábio superior de Mazine havia agora uma leve sombra escura. O seu rosto estava um pouco mais cheio. O cabelo de Samoilov parecia agora mais encaracolado do que era. Ivan Goussev conservava o sorriso rasgado de sempre.

 

- Ah, Theo, Theo! - murmurava Sizov, curvando a cabeça.

 

A mãe escutava as perguntas indistintas que o velho dirigia aos acusados sem sequer os olhar, a cabeça imóvel sobre a gola do seu uniforme, e ouvia as respostas tranquilas e breves do seu filho. Parecia-lhe que nem o presidente nem os seus colegas podiam ser pessoas malvadas nem cruéis. Examinava atentamente as caras dos juizes, tentando adivinhar alguma coisa, e uma nova esperança brotava no seu coração.

 

O homem da máscara de porcelana lia um documento com indiferença. A sua voz átona enchia a sala de um tédio que oprimia as pessoas. Quatro advogados conversavam baixo mas animadamente, fazendo gestos rápidos e vigorosos. Pareciam enormes pássaros negros.

 

De um lado do velho, um juiz alto e gordo com dois olhitos enterrados em gordura transbordava para fora do cadeirão. Do outro lado estava sentado um homem curvado com uns bigodes ruivos a dividir o seu rosto pálido. Apoiava, com ar fatigado, a cabeça nas costas da sua cadeira, e reflectia com as pálpebras descidas. O procurador também parecia cansado e aborrecido. Por detrás dos juizes estava o administrador da cidade, um homem cheio e robusto, que, pensativo, acariciava a face. Estava também o representante cda nobreza, um oficial superior do exército, aristocrata grisalho, de rosto vermelho e grandes olhos azuis, e estava ainda o síndico distrital, a quem o enorme ventre parecia incomodar, e se esforçava por escondê-lo sob o casaco, que não conseguia manter fechado.

 

- Aqui não há criminosos nem juizes - proclamou a voz firme de Pavel. - Há apenas prisioneiros e vencedores...

 

Fez-se silêncio. Por alguns segundos a mãe ouviu apenas o arranhar precipitado da pena sobre o papel, e as batidas do seu coração.

 

O presidente do tribunal parecia também escutar alguma coisa. Esperava.

 

Os seus colegas agitaram-se. Então ele disse:

 

- Sim, sim... Andrei Nakhodka, reconhece que...? Andrei levantou-se lentamente e, retorcendo o bigode, olhou de lado para o velho:

 

- De que posso eu reconhecer-me culpado? - disse o Ucraniano com voz límpida e tranquila, encolhendo os ombros. - Não matei, nem roubei, apenas me levanto contra uma ordem que obriga os homens a roubarem-se e a matarem-se uns aos outros.

 

- Responda mais concisamente! - disse o ancião com clareza, apesar de alguma dificuldade.

 

A mãe sentiu que se levantava um burburinho nas bancadas atrás de si. As pessoas falavam ao ouvido umas das outras e agitavam-se como se quisessem desembaraçar-se da teia de aranha que as palavras cinzentas do homem do rosto de porcelana pareciam haver tecido.

 

- Estás a ouvir como eles respondem? - murmurou Sizov.

 

- Theo Mazine, responda...

 

- Não respondo - negou-se Theo redondamente, saltando com energia. O seu rosto estava vermelho de emoção, tinha os olhos a cintilar e, por qualquer motivo, ocultava as mãos atrás das costas.

 

Sizov proferiu um -Ah!" abafado. A mãe arregalava os olhos de assombro.

 

- Recusei a defesa, e recuso-me a falar porque considero ilegal o vosso tribunal. Quem são vocês? O povo deu-vos o direito de nos julgarem? Não, não deu! Eu não vos conheço!

 

Sentou-se e escondeu o rosto inflamado no ombro de Andrei.

 

O juiz gordo inclinou a cabeça para o presidente e murmurou qualquer coisa. O juiz da cara pálida levantou as pálpebras, lançou um olhar oblíquo aos acusados, estendeu a mão e escreveu a lápis sobre um papel que tinha na sua frente. O síndico do distrito moveu a cabeça, levantou os pés com cuidado, pousou o ventre sobre os joelhos e passou a mão por ele. Sem mexer a cabeça, o velhinho virou o corpo na direcção do juiz arruivado, e mexeu os lábios. O outro escutava com a cabeça inclinada. O representante da nobreza falava muito baixo com o procurador, e o administrador da província escutava-os, esfregando o rosto. De novo se ouviu a voz mortiça do presidente.

 

Sizov, assombrado, murmurou ao ouvido da mãe:

 

- Chegou bem para eles! Melhor ainda que os outros, essa é que é a verdade!

 

Pelágia sorriu sem compreender. Tudo o que estava a acontecer, desde o início que lhe havia parecido um prefácio inútil e fastidioso para alguma coisa terrível que, quando surgisse, com uma só pancada esmagaria toda a assistência sob um frio terror.

 

Mas as respostas tranquilas de Pavel e Andrei tinham soado com tanta intrepidez e firmeza que pareciam ter sido pronunciadas na casita do subúrbio, e não na frente dos juizes. As palavras fogosas de Theo reanimaram-na. Pairava na sala uma espécie de audácia, e pelos movimentos das pessoas sentadas atrás dela, a mãe dava-se conta de que não era a única a senti-lo.

 

- A vossa opinião? - perguntou o velho.

 

O procurador levantou-se e, apoiando-se com uma mão à sua secretária, falou rapidamente, citando cifras. Não havia na sua voz nada de sinistro, mas ao mesmo tempo uma alfinetada no coração da mãe reavivou a sua inquietação. Era uma vaga sensação de hostilidade, de uma hostilidade sem ameaças, sem gritos, mas que ia crescendo, invisível, inapreensível. Flutuava, indolente e cega, à volta dos juizes, parecia envolvê-los numa nuvem impenetrável através da qual não podiam ser tocados por nada que viesse do exterior.

 

A mãe olhava para os juizes, e não conseguia compreendê-los. Ao contrário do que ela esperava, não se irritavam contra Pavel nem contra Theo, não diziam palavras contundentes. Parecia antes que as perguntas que faziam não tinham para eles a menor importância, que as faziam enfastiados e tinham de se esforçar por escutar as respostas, que sabiam já tudo de antemão, e nada os interessava.

 

Agora estava um polícia na frente deles, e dizia com voz de baixo:

 

- Todos designam Pavel Vlassov como sendo o principal instigador.

 

- E Nakhodka? - perguntou desinteressado o juiz gordo.

- Também.

 

Um dos advogados levantou-se:

 

- Posso?...

 

O velho perguntou para o lado:

 

- Não há objecções?

 

Todos os juizes pareciam à mãe pessoas doentes. Das suas atitudes e das suas vozes desprendia-se um cansaço doentio e um aborrecimento mortal que se liam também sobre os seus rostos. Era evidente que para eles tudo aquilo era incómodo e desagradável. Os seus uniformes, os polícias, a sala, os advogados, a obrigação de permanecerem nos seus cadeirões, interrogando e ouvindo.

 

Era agora a vez do oficial macilento que ela tão bem conhecia. Dando-se ares, arrastando as palavras, falava de Pavel e Andrei com a sua voz sonora. Ao ouvi-lo, a mãe pensava inconscientemente:

 

"Tu não sabes nada!"

 

Já não receava nem sentia compaixão pelos que estavam atrás da grade. Inspiravam-lhe apenas admiração e um amor que inundava docemente o seu coração. A sua admiração era calma, o seu amor alegre e sereno. Jovens, fortes, estavam sentados à parte, junto à parede, e quase não participavam das conversas monótonas entre as testemunhas e os juizes, nas discussões dos advogados e do procurador. Por vezes, um deles sorria com desprezo e dizia algumas palavras aos seus camaradas que, por sua vez, sorriam também ironicamente. Andrei e Pavel falavam quase ininterruptamente, em voz baixa, com um dos defensores, que na véspera havia estado em casa de Nikolai. Mazine, mais vivo e menos impassível que os outros, prestava atenção à conversa. Por vezes Samoilov dizia qualquer coisa a Ivan Goussev, e a rnãe via Ivan dar uma cotovelada ao seu camarada, com dificuldade em conter o riso. Punha-se muito vermelho, enchia as bochechas de ar e baixava o rosto para disfarçar. Por duas ou três vezes rompeu a rir, e em seguida ficava uns minutos muito sério, esforçando-se por manter o ar grave. Fervilhava em cada um deles uma juventude que era mais forte que os esforços de cada um deles para reprimir a sua efervescência.

 

Sizov tocou na mãe ao de leve com o cotovelo. Ela voltou-se para ele que, com ar satisfeito, apesar da preocupação, lhe sussurrou:

 

- Repara como eles se sentem seguros! Parecem uns senhores, hem?

 

Dentro da sala, as testemunhas iam prestando os seus depoimentos. As suas vozes eram incolores e precipitadas. Os juizes iam interrogando sem entusiasmo, indiferentes. O juiz gordo bocejava, tapando a boca com uma mão inchada. O do bigode ruivo tinha empalidecido mais ainda, por vezes levantava o braço, premia com força um dedo nas fontes, e olhava no vazio, na direcção do tecto, com uns olhos lastimosamente dilatados.

 

De quando em quando, o procurador escrevia a lápis sobre um papel, em seguida continuava a sua conversa com o representante da nobreza que, sem parar de alisar a sua barba grisalha e girando as pupilas, sorria, inclinando o pescoço com ar importante. O governador civil tinha cruzado as pernas e tamborilava sem ruído sobre os joelhos, observando atentamente o movimento dos seus dedos. Apoiando cuidadosamente o ventre sobre os joelhos, e fincando-se firmemente nas duas mãos, o síndico baixava a cabeça e parecia ser o único a prestar atenção ao monótono zumbido das vozes e ao velhinho que, encafuado no seu cadeirão, de onde sobressaía, se mantinha imóvel como um catavento num dia sem vento. Tudo aquilo era muito demorado, e de novo o torpor e o aborrecimento dominaram a assistência.

 

- Declaro... - disse o velhote, os seus lábios finos murmuraram mais algumas palavras abafadas, e em seguida levantou-se.

 

Um rumor, suspiros, exclamações contidas, tosse e barulho de pés encheram a sala. Os acusados foram levados, sorriram, e alguns fizeram sinais com a cabeça aos parentes e amigos. Ivan Goussev, dirigindo-se a um qualquer dos presentes, disse com doçura:

 

- Coragem, Igor!

 

A mãe e Sizov saíram para o corredor.

 

- Queres vir tomar um chá? - perguntou solícito o velho operário. - Temos uma hora e meia de espera.

 

- Não.

 

- Bom, então eu também não vou. Reparaste bem nos rapazes? Pareciam os únicos homens de verdade na sala. E o Theo, viste-o?

 

O pai de Samoilov aproximou-se deles com o gorro na mão. Sorriu com ar confuso.

 

- E o meu Grigori? Recusou o advogado de defesa, e não quer falar. Foi o primeiro a fazer isso. O teu, Pelágia, era a favor dos advogados, mas o meu disse que não os queria. Então houve mais quatro que concordaram com ele...

 

A mulher de Samoilov estava junto dele. Piscava muito os olhos e limpava o nariz a um lenço. Pegando na barba e olhando para o chão, o pai disse:

 

- Maldito processo, merda! A gente assiste à condenação destes miúdos, e pensa que é tudo inútil, que se perderam para nada. De repente pomo-nos a pensar que têm razão... Que na fábrica vão sendo cada vez mais, que quantos mais

são apanhados, mais aparecem, como os peixes no rio... E a gente pensa, será que eles estão com a razão?... Talvez...

 

- Estas coisas, Stepan Petrovitch, para nós são muito difíceis de compreender - disse Sizov.

 

- Sim, é difícil - concordou Samoilov.

 

A mulher dele fungou bruscamente, e disse:

 

- Eles são muito fortes, os bandidos...

 

E com um sorriso no seu rosto largo e já sem viço, acrescentou:

 

- Não estejas zangada, Nilovna, por eu há bocadinho ter dito que era tudo culpa do teu filho. Para dizer a verdade, quem diabo pode dizer de quem é a culpa? Ouviste o que os polícias e os bufos disseram do nosso Grigori. Aquele diabrete ruivo também fez das dele...

 

Sem dar talvez por isso, estava muito orgulhosa do seu filho, mas a mãe conhecia bem esse sentimento, e respondeu-lhe com um sorriso bondoso:

 

- Os corações jovens estão sempre mais próximos da verdade.

 

As pessoas passeavam pelos corredores, formavam grupos e falavam em surdina, pensativos ou animados. Ninguém ficava à margem, e em todos os rostos se lia claramente o desejo de falar, de perguntar, de ouvir. Na estreita passagem entre as paredes, pintadas de branco, as pessoas agitavam-se como debaixo de fortes rajadas de vento, e parecia que tentavam agarrar-se a qualquer coisa firme e segura.

 

O irmão mais velho de Bukhine, um jovem alto e descorado, gesticulava voltando-se rapidamente para um lado e para o outro, e dizia:

 

- O síndico Klepanov não tinha nada que estar aqui.

 

- Cala-te, Konstantin - disse-lhe o pai, um velhote que lançava olhares temerosos à sua volta.

 

- Não, eu hei-de dizer isto! Dizem que no ano passado matou o secretário, por causa da mulher dele, e ela agora vive com ele, como é que isto se admite? E acima de tudo, toda a gente sabe que é um ladrão.

 

- Meu Deus, Konstantin!

 

- É verdade - disse Samoilov -, é verdade. Não devia estar aqui como juiz.

 

Bukhine, que o tinha ouvido, aproximou-se rapidamente, arrastando outros consigo. Vermelho de excitação, pôs-se a gritar, gesticulando:

 

- Para um roubo, para um crime, há um júri para julgar, pessoas simples, camponeses, artesãos... E os inimigos do Governo, é o próprio Governo quem os julga. Isto não pode ser assim! Se tu me insultas, e eu te dou uma bofetada, e a seguir fores tu a julgar-me por isso, serei considerado culpado, não há dúvida, mas quem foi que começou? Tu!

 

Um guarda já de idade, de nariz curvo e com o peito coberto de medalhas, abriu caminho por entre a multidão, e disse a Bukhine, ameaçando-o com o dedo:

 

- Olha lá, não grites! Não estás na taberna.

 

- Dê-me licença, cavalheiro... eu compreendo. Escute, se eu lhe bater, e a seguir for eu a julgá-lo, o que é que pensaria disso?...

 

-Já vais ver. Vou pôr-te daqui para fora - disse, zangado, o guarda.

 

- Para onde, e porquê?

 

- Para a rua. Para te ensinar a estares calado. Bukhine olhou à sua volta e disse a meia-voz:

 

- Para eles, o principal é que nós estejamos calados...

 

- Ainda não sabias isso? - disse o velho asperamente. Bukhine abriu os braços e continuou, ainda mais baixo:

 

- E além disso, porque é que não deixam entrar toda a gente, e só as famílias? Quando se faz um julgamento justo, pode-se actuar na frente de todos, não há nada a temer.

 

Samoilov repetiu mais alto:

 

- Isso é verdade, o tribunal não tem a consciência limpa... A mãe queria repetir aquilo que tinha ouvido da boca de

 

Nikolai, sobre a ilegalidade do julgamento, mas não tinha compreendido tudo, e tinha esquecido metade das palavras. Numa tentativa de as recordar, separou-se do grupo e viu

 

um homem novo, de bigode claro, que a observava. Tinha a mão direita enfiada na algibeira das calças, o que fazia que o seu ombro esquerdo parecesse mais baixo que o outro, e esta particularidade pareceu-lhe familiar. Mas ele virou-lhe as costas e, preocupada com as suas recordações, esqueceu-o imediatamente.

 

Mas um momento depois, o seu ouvido captou uma pergunta feita a meia-voz:

 

- Aquela?

 

A resposta soou cheia de vivacidade:

 

-Sim!

 

Ela olhou. O jovem do ombro aleijado tinha-se voltado para ela e falava a um outro que estava a seu lado, um rapaz de barba escura que trazia um casaco curto e umas grandes botas.

 

De novo uma recordação inquietante se agitou dentro dela, mas não pôde precisá-la ao certo. Estava tomada de um imperioso desejo de falar às pessoas sobre os ideais do seu filho. Queria ouvir as objecções que lhe pudessem fazer, e adivinhar, de acordo com as palavras que ouvisse, qual seria a decisão do tribunal.

 

- É assim que os julgam? - começou a mãe com prudência, a meia-voz e dirigindo-se a Sizov. - Querem saber o que fez cada um deles, mas não perguntam os motivos porque o fizeram. E são todos muito velhos. Os jovens devem ser julgados por jovens...

 

- Sim... - disse Sizov. - Para nós tudo isto é muito difícil de compreender... muito difícil - e, pensativo, moveu a cabeça.

 

O guarda tinha aberto a porta da sala e gritou:

 

- Os familiares... mostrem os bilhetes. Uma voz aborrecida disse lentamente:

 

- Os bilhetes... como no circo!

 

Em todos se percebia uma surda irritação, Uma audácia confusa. Mostravam menos timidez, faziam: mais barulho, discutiam com os guardas.

 

Sizov sentou-se no banco, a barafustar.

 

- O que é que te aconteceu? - perguntou-lhe a mãe.

 

- Nada... as pessoas são estúpidas!

 

Tocou uma campainha. Uma voz indiferente anunciou:

 

- O tribunal!

 

Levantaram-se todos, como da primeira vez. Os juizes voltaram a entrar pela mesma ordem e sentaram-se. Fizeram entrar os acusados.

 

- Atenção! - disse Sizov. - Vai falar o procurador.

 

A mãe, esticando o pescoço, inclinou o corpo todo para a frente e deixou-se ficar imóvel. De novo esperava qualquer coisa de terrível.

 

De pé, com a cabeça virada na direcção dos juizes, o cotovelo apoiado na secretária, o procurador lançou um profundo suspiro e começou a falar. Agitava no ar a mão direita, com gestos sacudidos. A mãe não compreendeu as primeiras frases. A sua voz era firme e cheia, mas o ritmo era desigual, tão depressa lento como rápido. As palavres sucediam-se longamente, monótonas, como uma costura uniforme, e de repente voavam, empurravam-se, giravam como um bando de moscas negras sobre um pedaço de açúcar. Mas Pelágia não encontrava nelas nada de sinistro ou de ameaçador. Frias como a neve, pardacentas como a cinza, dispersavam-se, voltavam a concentrar-se, enchendo a sala de um árido fastio, como uma areia fina e seca. Este discurso, avaro de sentimentos, abundante em palavras, certamente não atingia Pavel e os seus camaradas, que não pareciam preocupar-se com ele nem um pouco, e mantinham a mesma serenidade, conversando em voz baixa, umas vezes sorrindo abertamente, outras vezes ocultando o seu sorriso debaixo de uma expressão carrancuda.

 

- Ele está a mentir - murmurou Sizov.

 

Ela não diria tanto. Ouvia as palavras

do procurador e compreendia que os acusava a todos sem distinção. AO citar Pavel pôs-se a falar também de Theo, a quem colocou no mesmo plano, e logo com insistência lhes juntou Bukhine. Parecia meter os acusados todos no mesmo saco e fechá-los lá dentro, apertados uns contra os outros. Mas o aparente significado das suas frases não satisfazia a mãe, não a assustava nem a comovia, e no entanto ela continuava à espera que acontecesse a tal coisa terrível, que ia procurando obstinadamente nas palavras, no rosto, nos olhos, na voz do procurador, naquela mão branca que se movia lentamente no ar. Sim, estava ali e era terrível. Era qualquer coisa que a mãe sentia, mas não conseguia definir, inacessível, que de novo lhe estrangulava o coração com um fio áspero e rugoso.

 

Olhava os jovens, a quem o discurso aborrecia visivelmente. Os rostos amarelos e cinzentos, sem vida, não expressavam coisa alguma. As palavras do procurador espalhavam pelo ar uma névoa invisível que se tornava mais espessa à volta dos jovens, envolvendo-os numa nuvem mais densa ainda de indiferença e de cansaço resignado.

 

O presidente não se movia, rígido como uma múmia. As pequenas manchas acinzentadas por trás das lentes dos seus óculos desapareciam por momentos, fundindo-se com o próprio rosto. E perante esta passividade cadavérica, esta fria indiferença, a mãe, perplexa, perguntava-se:

 

"É isto um julgamento?"

 

Esta dúvida oprimia-lhe o coração, aos poucos ia expulsando para fora dele o medo da tal "coisa horrível" que esperava, e uma aguda sensação de humilhação subia-lhe à garganta.

 

O procurador interrompeu subitamente o seu discurso, acrescentou rapidamente mais qualquer coisa, inclinou-se perante os juizes e sentou-se esfregando as mãos. O comandante militar revirou os olhos num gesto de assentimento, o administrador estendeu-lhe a mão, o síndico contemplou o ventre e sorriu.

 

O discurso não pareceu, no entanto, ter agradado muito aos juizes, que não fizeram o mais leve movimento.

 

- Tem a palavra... - disse o velhote, levantando um papel à altura do rosto - o defensor de Fedosseiev, Markov e Zaragov.

 

Levantou-se o advogado que a mãe conhecia de casa de Nikolai. No seu rosto largo e bondoso, os seus olhitos sorriam brilhantes, e parecia que debaixo das suas sobrancelhas ruivas duas facas afiadas se preparavam para cortar qualquer coisa no ar. Começou a falar calmamente, com uma voz sonora e clara, mas a mãe não conseguia ouvir o que dizia. Sizov disse-lhe ao ouvido:

 

- Compreendes o que ele está a dizer? Compreendes? Que são desequilibrados, extravagantes... O Theo é alguma coisa dessas?

 

Ela não respondeu, esmagada por uma penosa decepção. Sentia-se cada vez mais humilhada, com a alma mais oprimida. Vlassova compreendia agora o motivo pelo qual havia esperado justiça. Tinha pensado que iria assistir a uma discussão séria e leal entre o seu filho, com a sua verdade, e os juizes com a deles. Tinha imaginado que os juizes iriam interrogar Pavel longamente e com atenção, sobre a forma de sentir do seu coração, que examinariam com olhar lúcido os seus pensamentos, as suas acções, tudo aquilo em que se haviam ocupado. E quando conhecessem a sua rectidão, diriam alto e com toda a justiça:

 

"Este homem tem razão!"

 

Mas nada disto acontecia. Os acusados estavam a cem léguas dos juizes, que pareciam não ter para eles a menor importância. Fatigada, a mãe perdeu o interesse pelos debates, deixou de os ouvir. Sentia-se ofendida, e pensava:

 

"Então isto é que é um julgamento?"

 

- Isto é bom para eles - murmurou Sizov, aprovando com a cabeça.

 

Falava agora outro advogado, um homenzinho de rosto afilado, pálido e trocista. Os juizes interrompiam-no.

 

O procurador, sobressaltado e falando rápida e nervosamente, pronunciou as palavras "processo verbal". Em seguida falou o velhinho, dizendo-lhe que se acalmasse. O advogado ouviu-os, inclinando a cabeça respeitosamente, e logo retomou a palavra.

 

- Dá-lhes! - disse Sizov. - Dá-lhes com força!

 

Na sala reinava de novo a agitação. Apoderava-se do público um sentimento belicoso. O advogado açoitava com palavras cáusticas a pele velha dos juizes que se apertavam mais, uns contra os outros, e inchavam para resistir às palavras mordazes que lhes eram dirigidas.

 

Foi neste momento que Pavel se levantou, e fez-se repentinamente um inesperado silêncio. A mãe inclinou-se, toda ela, para a frente. Pavel começou a falar tranquilamente:

 

- Pertenço a um partido, não reconheço outro tribunal que não seja o do meu partido, e não falarei para me defender mas sim para satisfazer a vontade dos meus camaradas, que recusaram defensor. Assim, tentarei explicar-vos aquilo que vocês não entenderam. O procurador qualificou a manifestação que fizemos, sob a bandeira da democracia socialista, como um acto de rebelião contra o poder supremo, e não parou de se referir a nós como amotinados contra o czar. Devo declarar que, para nós, a autocracia não é a única corrente que oprime o país com os seus ferros. Ela é apenas a primeira, a mais visível, corrente de que devemos libertar o povo...

 

Ao som desta voz firme, que parecia derrubar os muros da sala, o silêncio tornava-se mais profundo, como se Pavel tivesse recuado para muito longe do auditório, parecendo ao mesmo tempo ganhar maior relevo.

 

Os juizes agitaram-se inquietos. O representante da nobreza murmurou algumas palavras ao juiz de rosto apático. Este moveu a cabeça e dirigiu-se ao velhinho, a quem o juiz de aspecto doentio falava já no outro ouvido. O velho, oscilando da direita para a esquerda no seu cadeirão, disse qualquer coisa a Pavel, mas a sua voz foi abafada pelo curso largo e uniforme da exposição deste.

 

- Somos socialistas. Isso significa que somos inimigos da propriedade privada que semeia a desunião entre os homens, os arma uns contra os outros, cria uma irreconciliável incompatibilidade de interesses, se apoia em mentiras para tentar ocultar ou justificar este antagonismo, e perverte os homens com a mentira, a hipocrisia e o ódio. Nós dizemos, uma sociedade que considera o homem como um instrumento para enriquecer é desumana e é nossa inimiga. Não podemos aceitar a sua moral hipócrita e mentirosa. Repugnam-nos o seu cinismo e a sua crueldade para com o ser humano. Queremos lutar, lutaremos contra todas as formas de servidão física e moral do homem em semelhante sociedade, e contra todos os procedimentos usados para esmagar em proveito da ambição. Nós, trabalhadores, nós cujo trabalho tudo criou, desde as máquinas gigantescas até aos brinquedos das crianças, nós que fomos privados do direito de lutar pela nossa dignidade de homens, já que cada um se arroga o direito de fazer de nós instrumentos para alcançar os seus objectivos, queremos agora uma liberdade que, com o tempo, nos permita conquistar o poder. As nossas palavras de ordem são simples: "Abaixo a propriedade privada! Ao povo todos os meios de produção! Ao povo todo o poder! Trabalho obrigatório para todos!" Como vêem, não somos amotinados.

 

- Faça o favor de se cingir aos factos - disse o presidente, com uma voz forte e clara.

 

Tinha-se voltado para Pavel e olhava-o. Pareceu à mãe que os seus olhos mortiços brilhavam, ávidos e maus. Todos os juizes olhavam para o jovem com olhos que pareciam colar-se ao seu rosto, agarrar-se ao seu corpo para lhe chupar o sangue, rejuvenescendo assim os seus corpos velhos e caducos. Ele, de pé em toda a sua altura, permanecia firme e seguro, estendia um braço para eles e com a sua voz clara, sem gritar, dizia:

 

- Somos revolucionários, e sê-lo-emos enquanto existirem os que trabalham e os que mandam trabalhar. Lutaremos contra a sociedade que vos mandou que defendessem

os seus interesses, e somos inimigos irredutíveis dela e vossos. A reconciliação não será possível enquanto não tivermos vencido, e nós, trabalhadores, venceremos! Os vossos mandatários estão muito longe de ser tão fortes como julgam. Os bens que eles acumulam e defendem, sacrificando os milhões de seres que escravizaram, essa mesma força que lhes dá poder sobre nós, provoca também entre eles brigas e antagonismos que os arruinam física e moralmente. A propriedade só pode ser mantida à custa de um grande esforço, e, na realidade, vocês, que mandam em nós, são mais escravos do que nós, que o somos apenas fisicamente, enquanto vocês o são espiritualmente. Vocês não se podem libertar do jugo das convenções e dos costumes que vos matam moralmente. A nós nada nos impede de sermos livres interiormente, e os venenos com que vocês nos intoxicam são mais fracos que os contravenenos que vocês, sem querer, vertem também na nossa consciência. Esta consciência não pára de crescer e de se desenvolver, de se inflamar, e arrasta consigo tudo aquilo que há de melhor e moralmente mais são, inclusive dentro da própria classe... Vocês já não têm ninguém que possa lutar ideologicamente em nome do vosso poder. Já esgotaram todos os argumentos capazes de vos proteger contra o julgamento da história. Não conseguem criar nada de novo no domínio das ideias, são intelectualmente estéreis. As nossas ideias progridem e têm cada vez mais luz, apoderam-se das massas populares e organizam-nas na luta pela liberdade. A consciência da grande missão da classe operária une todos os trabalhadores numa só alma, e vocês não podem deter o processo de renovação da vida, a não ser por meio da crueldade e do cinismo. Mas o cinismo está à vista de todos, e a crueldade gera a ódio. As mãos que hoje nos estrangulam, muito em breve hão-cie apertar as nossas num cumprimento fraternal. A vossa energia é a energia mecânica que só sabe acumular ouro, e une-vos em grupos condenados a devorarem-se mutuamente. A nossa energia é a força viva da consciência sempre crescente, da solidariedade entre todos os trabalhadores. Com o nosso esforço havemos de libertar o mundo dos fantasmas e dos monstros que a vossa mentira, o vosso ódio e a vossa avareza inventaram para aterrorizar o povo. Vocês arrancaram o homem à vida e esmagaram-no. O socialismo há-de conseguir unir o mundo todo que vocês destruíram em um ser apenas, grandioso, e triunfará.

 

Pavel deteve-se um instante, e repetiu mais suavemente, mas com maior firmeza:

- E triunfará!

 

Os juizes murmuravam entre si fazendo estranhas caretas, sem afastar de Pavel os seus olhos inquietos, e parecia à mãe que eles conspurcavam com aqueles olhares o corpo sólido e flexível do seu filho, invejando-lhe a saúde, a força, a juventude. Os acusados escutavam atentamente as palavras do seu camarada, com as faces pálidas e os olhos brilhantes de alegria. A mãe sorvia-lhe as palavras. Longas frases ficavam gravadas na sua memória. Por várias vezes o velhote deteve Pavel para lhe explicar alguma coisa. De uma das vezes chegou inclusivamente a sorrir com tristeza. Pavel ouvia-o em silêncio e em seguida continuava, sério e tranquilo, dominando a atenção dos juizes, cuja vontade submetia à sua.

 

Por fim, o velhinho começou a gritar, estendendo a mão na direcção de Pavel. Como resposta, este disse num tom levemente irónico:

 

-Vou terminar. Não quero ofender-vos pessoalmente, antes pelo contrário. Sou obrigado a assistir a esta farsa a que vocês chamam julgamento, mas quase sinto pena de vocês. Apesar de tudo são seres humanos, e é sempre triste ver uma pessoa, por muito hostil que seja ao nosso objectivo, descer de forma tão vil ao serviço da repressão, perder até este ponto a consciência da sua dignidade de homem.

 

Sentou-se sem olhar para os juizes. A mãe, sustendo a respiração, observava e esperava.

 

Andrei, radiante, apertou a mão de Pavel. Samoilov, Mazine e todos os outros se curvavam para ele. Pavel sorria, um pouco confuso no meio do entusiasmo dos seus camaradas. Olhou para o banco onde a sua mãe estava sentada e dirigiu-lhe um gesto com a cabeça, como a perguntar: "Andei bem?"

 

Inundada por uma onda de ternura ardente, ela respondeu-lhe com um profundo suspiro de alegria.

 

- Agora sim, agora é que o julgamento começou! - murmurou Sizov. - Ele chegou-lhes bem, hem?

 

Ela inclinou silenciosamente a cabeça, feliz que o seu filho tivesse falado com tanta audácia, talvez ainda mais feliz que já tivesse terminado.

 

Uma pergunta martelava na sua cabeça:

 

"E agora, o que é que vai ser de vocês?"

 

Para ela, que conhecia as ideias de Pavel, aquilo que ele acabava de dizer não constituía nenhuma novidade, mas era ali, perante o tribunal, que sentia pela primeira vez a estranha e arrebatadora força da sua fé. A calma de Pavel tinha-a comovido, e o discurso do filho condensava-se no seu peito como um feixe resplandecente de certezas luminosas que mais uma vez lhe confirmavam a justeza da causa e a sua vitória. Pensava agora que os juizes iriam discutir com ele encarniçadamente, responder-lhe encolerizados, contrapor-lhe a sua verdade. Foi neste momento que Andrei se levantou, balançando-se. Olhou à sua volta e começou:

 

- Senhores defensores...

 

- É o tribunal que está na sua frente, e não a defesa! gritou o juiz de rosto enfermiço, com voz forte e irritada.

 

Pela expressão da cara de Andrei, a mãe percebeu que ele se preparava para troçar do tribunal. O seu bigode tremia, e nos seus olhos brilhava uma espécie de carícia astuta e felina que ela bem conhecia. Ele esfregou vigorosamente a cabeça com toda a largura da sua mão, e lançou um suspiro:

 

- É possível? Eu não pensava que fossem juizes, mas sim defensores...

 

- Faça o favor de ir directamente ao assunto - disse secamente o velhote.

 

- Ir ao assunto? Bom! Quero crer que estou de facto na presença de juizes, homens independentes e honrados...

 

- O tribunal dispensa as suas apreciações.

 

- Dispensa? Está bem... de qualquer maneira, vou continuar. Os senhores são homens livres para quem não há amigos nem inimigos. Assim, estão na vossa frente dois adversários, um que se queixa: "Roubaram-me e agrediram-me", e outro que responde: "Tenho o direito de roubar e de agredir, porque tenho uma espingarda..."

 

- Tem alguma coisa a dizer sobre o seu processo? - perguntou o velho, levantando a voz.

 

A sua mão tremia, e a mãe estava contente por ver como estava contrariado, mas o discurso de Andrei não lhe estava a agradar. Não estava ao nível do discurso de Pavel. Pelágia teria preferido uma discussão séria e convincente.

 

O Ucraniano olhou para o velho em silêncio, e em seguida disse gravemente, coçando a cabeça:

 

- Sobre o processo? E porque hei-de eu falar sobre isso? Aquilo que vocês devem saber, já o meu camarada o disse. O que falta ser dito outros o dirão quando chegar o momento.

 

- Retiro-lhe a palavra. Grigori Samoilov!

 

Apertando os lábios com indiferença, Andrei deixou-se cair sobre o banco. Junto dele estava Samoilov, que se levantou, agitando os seus cabelos encaracolados:

 

- O procurador chamou-nos selvagens, inimigos da cultura...

 

- Você aqui só tem de falar daquilo que lhe diz directamente respeito.

 

- É o que estou a fazer. Não há nada que não diga respeito às pessoas honestas. E peço o favor de não me interromper. Eu pergunto-lhe: que cultura é a sua?

 

- Não estamos aqui para um colóquio. Vamos ao assunto - disse o velho com uma careta.

 

A atitude de Andrei tinha manifestamente alterado o humor dos juizes. Era como se alguma coisa se tivesse apagado neles. Tinham aparecido manchas sobre os seus rostos cinzentos, e nos seus olhos brilhava uma luz amarelada. O discurso de Pavel tinha-os irritado, mas o rapaz havia mostrado uma tal força que eles se tinham sentido obrigados a conter a sua cólera. O Ucraniano havia libertado essa sujeição, e com toda a facilidade tinha revelado aquilo que estava dissimulado. Os juizes murmuravam entre si, os seus rostos crispavam-se em esgares estranhos e os seus gestos pareciam demasiado precipitados para a dignidade de juizes.

 

- Vocês têm delatores, prostituem as mulheres e as raparigas, transformam os homens em ladrões e assassinos, envenenam-nos com vodka... Os massacres no mundo inteiro, a mentira universal, a libertinagem e o embrutecimento de todo um povo, essa é a vossa cultura! Sim, nós somos inimigos dessa cultura!

 

- Peço-lhe... - gritou o velho, com o queixo a tremer. Mas Samoilov, vermelho, com os olhos a brilhar, gritava ao mesmo tempo:

 

- Mas amamos e respeitamos a nossa cultura, essa cujos criadores vocês deixaram apodrecer nas prisões, até à loucura.

 

- Retiro-lhe a palavra. Theodor Mazine!

 

O pequeno Mazine surgiu como um rato a sair de um buraco, e disse energicamente:

 

- Eu... Eu juro, sei que vocês já me condenaram!... Parecia sufocar, empalideceu. No seu rosto não se viam

 

senão os olhos. Estendeu um braço, e gritou:

 

- Dou-vos a minha palavra de honra. Mandem-me para onde quiserem, eu hei-de fugir, e hei-de voltar, para continuar a trabalhar, como até aqui... até ao fim da minha vida! Palavra de honra!

 

Sizov tossiu ruidosamente e mexeu-se no assento. Todo o

 

público, levantado por uma onda crescente de excitação, emitia ruídos estranhos. Uma mulher chorava, alguém tossia, sufocando. Os polícias olhavam para os acusados com um estúpido assombro, e para o público com rancor. Os juizes moviam-se para a direita e para a esquerda. O velho gritou com uma voz aguda:

 

- Ivan Goussev!

 

- Recuso-me a falar.

 

- Vassili Goussev!

 

- Recuso-me a falar.

 

- Theodor Bukhine!

 

O rapaz do cabelo muito louro, quase branco, levantou-se pesadamente e disse com energia:

 

- Vocês deviam ter vergonha! Eu sou um homem sem instrução, e no entanto sei o que é a justiça.

 

Tinha levantado o braço acima da cabeça e não prosseguiu, mas fixou a vista, como se prestasse atenção a alguma coisa que estivesse a ver ao longe.

 

- O que é que está a dizer? - guinchou o velhote com um misto de assombro e cólera, reclinando-se nas costas do seu cadeirão.

 

- Bom, eu...

 

E deixou-se cair sobre o banco, com o rosto sombrio. Havia nas suas palavras algo de grande e grave, e ao mesmo tempo uma censura triste e ingénua. Toda a gente o compreendeu. Os próprios juizes pareciam estar à espera de um eco mais claro do que as próprias palavras. Nos bancos da assistência tudo ficou calado. Não se ouvia mais do que uni ténue rumor de pranto. Em seguida o procurador encolheu os ombros com um sorriso irónico, o representante da nobreza tossiu ruidosamente, de novo se elevaram os murmúrios e aos poucos a animação foi dominando toda a sala.

 

A mãe inclinou-se para Sizov, e perguntou-lhe:

 

- Vão agora falar os juizes?

 

- Não, já acabou. Só falta a leitura da sentença.

 

- Mais nada?

 

- Mais nada.

 

Ela não podia acreditar. A mãe de Samoilov agitava-se inquieta no assento, empurrando Pelágia com o ombro e o cotovelo. Perguntou ao marido em voz baixa:

 

- Mas... isto é possível?

 

- Não estás a ver que sim?

 

- Então... e o nosso Grigori?

 

- Deixa-me em paz.

 

Era como se em todos eles alguma coisa se tivesse quebrado, aniquilado, modificado. Os olhos perplexos pestanejavam como se estivessem cegos por uma luz viva, de contornos indecisos e incompreensíveis, mas geradora de força. E surpreendidas com aquela coisa demasiado grande que bruscamente se revelava na sua frente, as pessoas apressavam-se a manifestar-se através de breves expressões, mais concretas e de mais fácil compreensão.

 

O irmão de Bukhine dizia, alto e sem acanhamento:

 

- Digam-me... porque é que não os deixam falar? O procurador pode dizer tudo o que quer, pode falar o tempo todo que lhe apetece.

 

Perto do banco, um dos guardas dizia:

 

- Calma, calma!

 

O pai de Samoilov chegou-se para trás e resmungou nas costas da mulher:

 

- É claro que eles são culpados, é preciso ver isso. Mas que os deixem explicar-se! Eles revoltaram-se contra quem? Eu também quero compreender, a min também me interessa...

 

- Silêncio! - exclamou o guarda, ameaçando-o com o dedo. Sizov moveu a cabeça tristemente.

 

A mãe não tirava os olhos dos juizes. Apercebia-se da sua crescente irritação, dos seus conciliábulos em palavras precisas. O som das suas vozes, pérfido e frio, roçava-lhe o rosto, e este contacto fazia-lhe tremer as faces e deixava-lhe na boca um gosto desagradável. Parecia-lhe que todos eles falavam do corpo do seu filho e dos seus camaradas, daqueles músculos e daqueles membros cheios de juventude e de sangue ardente, de força vital. Aqueles corpos acendiam neles a malvada inveja do mendigo, a viscosa avidez do esgotado e do doente. Estalavam os lábios e invejavam aqueles músculos capazes de trabalhar e enriquecer, de gozar e criar. Agora, os corpos daqueles anciãos estavam já prestes a abandonar a circulação activa da vida, em breve renunciariam a ela, deixariam de ter qualquer possibilidade de a dominar, de a desfrutar, de a devorar. Por isso, toda aquela juventude suscitava nos velhos juizes a animosidade vingativa e desolada da fera sem dentes que deseja a carne fresca, mas que já não tem forças para se apoderar dela, não pode revitalizar-se com a força dos outros, ruge de dor e uiva desesperadamente ao ver fugir-lhe aquilo que poderia saciá-la.

 

Quanto mais a mãe olhava para os juizes, mais claramente entendia esta ideia estranha e grosseira. Parecia-lhe que eles nem tentavam sequer disfarçar esta capacidade febril, esta raiva impotente de esfomeados já quase sem forças para mastigar. Ela, a mulher, a mãe, para quem o corpo do seu filho tinha sido sempre, apesar de tudo, mais querido ainda do que aquilo a que chamam a alma, sentia-se aterrada por ver aqueles olhos mortiços passarem sobre o rosto dele, tocarem o seu peito, os seus ombros, as suas mãos, roçarem a sua pele quente tentando assim inflamar-se, aquecer o sangue das suas veias endurecidas, dos seus músculos gastos de seres meios mortos, agora um pouco reanimados pelos beliscões da sua inveja daquela vida jovem que tinham de condenar para se salvarem a si próprios. Pelágia tinha a impressão de que o filho sentia aquele roçar húmido e desagradável, e que a olhava com um estremecimento.

 

Pavel fixava na mãe uns olhos levemente cansados, tranquilos e afectuosos. Por vezes dirigia-lhe um pequeno aceno com a cabeça e sorria-lhe.

 

"Em breve estarei livre", dizia aquele sorriso que era como uma carícia para o coração de Pelágia.

 

De repente, os juizes levantaram-se todos ao mesmo tempo. A mãe seguiu-os instintivamente com o olhar.

 

- Vão sair - disse Sizov.

 

- Para a sentença?

 

- Sim.

 

A sua tensão dissipou-se rapidamente. Um cansaço esmagador abateu-se sobre o seu corpo, as suas sobrancelhas começaram a tremer, e a fronte encheu-se-lhe de gotas de suor. Um sentimento asfixiante de desencanto e de humilhação brotou no seu coração, para em seguida se tranformar num desprezo quase insuportável pelos juizes e pela sua sentença. Doía-lhe a cabeça, esfregou-a vigorosamente com as mãos e olhou à sua volta. Os pais dos acusados tinham-se aproximado da grade, a sala estava cheia do barulho das vozes. Ela aproximou-se também de Pavel, e pegou-lhe na mão, rebentando em lágrimas de humilhação e alegria, perdida num caos de sentimentos contraditórios. Pavel disse-lhe palavras carinhosas, e o Ucraniano gracejava e ria.

 

Todas as mulheres choravam, mais por hábito do que de dor. Não era a dor esmagadora que se sente com uma pancada recebida na cabeça, estúpida, brutal e inesperada; era a triste certeza de que iriam separar-se dos seus filhos, mas até esta certeza ficava submersa no meio das emoções que aquele dia tinha provocado. Os pais olhavam os filhos com um sentimento confuso no qual se misturavam a desconfiança que a sua juventude lhes inspirava, o hábito de se sentirem superiores, e algo de muito parecido com respeito. Perguntavam-se tristemente como iriam viver agora, e este pensamento desagradável chocava-se com a curiosidade que neles depenavam aqueles jovens que, audaciosos, sem temor, falavam de uma outra vida possível, uma vida melhor. Desajeitados para expressar os seus sentimentos, desfaziam-se em catadupas de palavras, mas não falavam senão de coisas correntes, a roupa, a necessidade de conservar a saúde...

 

O Bukhine mais velho gesticulava muito e dizia ao irmão:

 

- É isto, a justiça, e nada mais. O mais novo respondia-lhe:

 

- Cuida do nosso estorninho...

 

- Não te preocupes.

 

Sizov agarrava a mão do sobrinho, e dizia-lhe:

 

- Quer dizer, Theo, que te vais embora...

 

Theo inclinou-se e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido, sorrindo maliciosamente. O soldado que o escoltava sorriu também, mas logo em seguida recuperou o seu ar severo e pigarreou.

 

Como toda a gente, também a mãe falava a Pavel dessas mesmas coisas; a roupa, a saúde, enquanto no seu coração se engalfinhavam perguntas sobre Sachenka, sobre ele, sobre ela própria. Mas por detrás das palavras, lentamente, crescia o seu imenso sentimento de amor pelo filho, o desejo imenso de lhe agradar, de estar mais próxima ainda do seu coração. A espera da tal "coisa terrível" tinha desaparecido, não deixando atrás de si senão um desagradável estremecimento perante a imagem sombria, sempre patente, dos juizes. Sentia nascer dentro dela uma alegria grande e luminosa que não compreendia, e que a deixava perturbada. Viu que o Ucraniano falava com toda a gente, e compreendendo que, mais do que Pavel, ele precisava de uma palavra de carinho, disse-lhe:

 

- Não gostei nada deste julgamento!

 

- E porquê, mãezinha? - disse-lhe ele, sorrindo com gratidão. - É um moinho velho, mas ainda mói.

 

- Nem foi medonho, nem se chegou a perceber onde é que está a justiça - disse ela hesitante.

 

- Oh! Era isso que queria? Julgava que aqui se procurava a verdade?

 

Ela suspirou, mas respondeu com um sorriso:

 

- Eu pensava... que ia ser terrível.

 

- O tribunal!

 

Todos se precipitaram para os seus lugares.

 

Apoiando uma mão sobre a mesa, o presidente ocultou o seu rosto atrás de um papel, e pôs-se a ler com uma voz débil e trémula.

 

- É o veredicto - disse Sizov, prestando atenção. Reinava o silêncio. Estava toda a gente de pé, com os olhos fixos no velho. Baixo, seco, empertigado, parecia um pau sustido por uma mão invisível. Os juizes também estavam de pé. O síndico, com a cabeça tombada sobre o ombro, olhava para o tecto. O governador civil estava de braços cruzados. O representante da nobreza cofiava a barba. O juiz com cara de doente, o seu colega mais gordo e o procurador observavam os acusados. Atrás dos juizes, por cima das suas cabeças, o czar, de uniforme vermelho, olhava com um rosto branco e indiferente sobre o qual trepava um insecto.

 

- A deportação! - disse Sizov, com um sorriso de alívio. Acabou-se, graças a Deus!... Ainda bem, se fossem trabalhos forçados era pior. Bom, Nilovna, isto não é nada!

 

- Eu já sabia - disse Pelágia, com voz cansada.

 

- De qualquer maneira... agora temos a certeza. Nunca se sabe...

 

Sizov voltou-se para os condenados, e disse em voz alta:

 

- Até à vista, Theo! Até à vista, a todos! Que Deus vos ajude!

 

Em silêncio, com a cabeça, a mãe acenou a Pavel e aos seus camaradas. Teria querido chorar, mas envergonhou-se das suas lágrimas.

 

Quando saiu do tribunal admirou-se por ver que a noite tinha caído sobre a cidade, que os candeeiros estavam acesos e as estrelas brilhavam no céu. Junto ao Palácio da Justiça, as pessoas tinham-se reunido em pequenos grupos. No meio daquele frio a neve crepitava debaixo dos pés das pessoas, e ouviam-se vozes de jovens interrompendo-se uns aos outros. Um homem com um carapuço cinzento aproximou -se de Sizov e perguntou-lhe apressadamente:

 

- Qual foi a sentença?

 

- A deportação.

 

- Todos?

 

- Todos.

 

- Obrigado.

 

O homem afastou-se.

 

- Vês? - disse Sizov. - As pessoas interessam-se.

 

Subitamente, uma dezena de rapazes e raparigas rodearam-no, e começaram a chover exclamações, atraindo outras pessoas. A mãe e Sizov detiveram-se. Toda a gente queria saber qual tinha sido o veredicto, a atitude dos condenados, quem tinha falado e sobre que tema, e em todas estas perguntas ressoava uma idêntica nota de curiosidade, ávida, sincera e ardente, que dava vontade de satisfazer.

 

- Amigos! Esta é a mãe de Pavel Vlassov - disse alguém, e quase todos se calaram.

 

- Deixe-me apertar-lhe a mão.

 

Uma mão vigorosa apertou a da mãe, e uma voz, cheia de emoção, disse:

 

- O seu filho foi um exemplo de coragem para todos nós. Estalou um grito sonoro:

 

- Viva o operário russo!

 

As explicações multiplicavam-se, cruzavam-se, brotavam daqui e dacolá. As pessoas surgiam de todos os lados, apinhando-se em torno de Sizov e da mãe. Os polícias fendiam o ar com as suas apitadelas, sem conseguirem abafar os gritos. O velho Sizov ria-se. Quanto à mãe, tudo aquilo lhe parecia um belo sonho. Distribuía sorrisos, apertos de mão, cumprimentos. Sentia a garganta apertada por lágrimas de felicidade. Os joelhos tremiam-lhe de cansaço, mas o seu coração, cheio de uma alegria que tudo absorvia, espelhava as impressões como a superfície clara de um lago. Muito perto dela, uma voz bem timbrada disse, nervosamente:

 

- Camaradas! O monstro que devora o povo russo satisfez hoje o seu apetite insaciável, ávido...

 

- Vamo-nos embora, mãezinha - disse-lhe Sizov. Naquele momento, apareceu Sachenka. Pegou na mãe

 

pelo braço, e conduziu-a rapidamente para o outro passeio.

 

- Venha, a polícia vai começar a bater e a prender pessoas. A deportação? A Sibéria?

 

- Sim, sim...

 

- E como é que ele falou? Bom, já sei. Foi mais forte e mais simples que os outros... e também mais sério. Ele é terno e sensível, mas envergonha-se de mostrar os seus sentimentos.

 

O calor das palavras que a rapariga dizia em voz baixa, as palavras do seu amor, acalmaram as emoções da mãe e reanimaram as forças que já lhe faltavam.

 

- Quando é que pensa ir reunir-se a ele? - perguntou a mãe com ternura, apertando a mão de Sachenka.

 

Olhando em frente com segurança, a jovem respondeu:

 

- Quando encontrar alguém que faça o meu trabalho. Aliás eles vão condenar-me a mim também. Decerto me enviarão também para a Sibéria. Pedirei para ser desterrada para o sítio onde ele estiver...

 

Por detrás das duas mulheres, ouviu-se a voz de Sizov:

 

- Então, dê-lhe cumprimentos meus. O meu nome é Sizov, ele conhece-me. Sou o tio de Theo Mazine.

 

Sachenka parou e virou-se para ele, estendendo-lhe a mão:

 

- Eu conheço Theo. Chamo-me Alexandra.

 

- E o patronímico?

 

Ela olhou para ele e respondeu:

 

- Eu não tenho pai.

 

- Morreu?

 

- Não, está vivo! - disse ela com vivacidade. Na sua voz e na sua expressão surgiu qualquer coisa de obstinado e de tenaz. - É latifundiário e agora é também governador civil, rouba os camponeses.

 

- Oh, lamento muito! - disse Sizov amavelmente.

 

Em seguida, após um silêncio, olhando dissimuladamente para a jovem, acrescentou:

 

- Bom, adeus, mãezinha. Eu vou por ali, para a esquerda. Até à vista, menina. É muito dura para com o seu pai. Enfim, é lá consigo.

 

- E se o seu filho fosse um malvado, que fizesse mal às pessoas, e você sentisse horror por ele, você não seria capaz de o dizer? - perguntou Sachenka com veemência.

 

- Sim, claro que diria - respondeu ele, após uma breve hesitação.

 

- Ou seja, que a verdade lhe seria mais querida que o seu próprio filho, como para mim o é mais que o meu próprio pai.

 

Sizov sorriu, inclinou a cabeça, e em seguida, suspirando, disse:

 

- Ah, você sabe responder! É melhor a gente não se meter em discussões consigo, você sabe calar a boca aos velhos, é uma pessoa com muita força... Adeus e muita sorte. E um pouco mais de indulgência para com as pessoas. Saúde, Nilovna! Se vires Pavel, diz-lhe que o escutei. Não compreendi tudo o que disse, certas coisas até me assustaram, mas... diz-lhe que está com a razão.

 

Levantou o gorro e desapareceu sem pressa na esquina da rua.

 

- Deve ser um bom homem! - disse Sachenka, seguindo-o com um olhar risonho.

 

Pareceu à mãe que o rosto da rapariga tinha uma expressão mais doce que de costume.

 

De volta a casa, sentaram-se no divã, abraçadas, e a desfrutar de um momento de paz. Pelágia continuou a falar do projecto de Sachenka. Levantando as espessas sobrancelhas, a jovem fixava os seus grandes olhos sonhadores num ponto distante, e o seu rosto reflectia uma serenidade contemplativa.

 

- E depois, quando tiverem filhos, eu irei também, para cuidar deles. A vida lá não deve ser pior do que aqui. Pavel há-de encontrar trabalho, ele tem umas mãos de ouro.

 

Sachenka olhou a mãe interrogativamente:

 

- Não gostava de ir já com ele?

 

Pelágia suspirou:

 

- Para que é que eu lhe ia servir? Ia ser um estorvo, se ele quiser fugir. E ele era capaz de não aceitar.

 

Sachenka moveu a cabeça.

 

- Ele não ia aceitar.

 

- Além disso tenho aqui que fazer - acrescentou Pelágia, com uma ponta de orgulho.

 

- Sim - replicou pensativa a rapariga. - E muito... Sobresaltou-se, como se se livrasse de uma carga. A seguir, a meia-voz, disse simplesmente:

 

- Ele não vai lá ficar. Há-de fugir, tenho a certeza...

 

- Mas nesse caso, que vai ser de si? E da criança, se houver alguma?

 

- Logo se vê. Eu não devo ser para ele nem uma preocupação nem um estorvo. Custa-me muito separar-me dele, mas cá me hei-de arranjar, é claro. Não, não hei-de estorvá-lo.

 

A mãe compreendeu que Sachenka seria capaz de fazer exactamente aquilo que dizia, e sentiu compaixão por ela. Abraçou-a:

 

- Minha querida!... Vai ser tão duro!...

 

Sachenka sorriu docemente e aconchegou-se mais contra a mãe.

 

Chegou Nikolai, cansado, e enquanto despia o casaco, disse precipitadamente:

 

- Vamos, Sachenka, fuja enquanto é tempo. Desde manhã que andam dois secretas atrás de mim, tão abertamente que me cheira a prisão. Tenho o pressentimento. Deve ter havido algum azar em qualquer parte. A propósito, tome o discurso de Pavel, decidimos imprimi-lo. Leve-o à Ludmila e peça-lhe que se encarregue disso o mais depressa possível. O Pavel falou muito bem, Nilovna. Cuidado com os agentes, Sachenka.

 

Enquanto falava, esfregava vigorosamente as mãos geladas. Em seguida aproximou-se da mesa e abriu apressadamente as gavetas de onde tirou alguns papéis, rasgando uns, pondo outros de parte, agitado e inquieto:

 

- Ainda há pouco tempo fiz aqui uma limpeza, e vejam a quantidade que já se voltou a acumular... diabos... Nilovna, parece que acho melhor que não durma aqui esta noite. Assistir a esta farsa já é desagradável, e são capazes de a levar a si também. Aliás terá de distribuir o discurso de Pavel por vários sítios.

 

- Ora essa, porque é que haviam de me prender? Nikolai respondeu muito seguro, agitando a mão em frente do rosto:

 

- É um pressentimento... e, além disso, podia ajudar a Ludmila. Vá-se embora, antes que caia na boca do lobo.

 

Feliz com a ideia de ajudar a divulgar o discurso de Pavel, a mãe respondeu:

 

- Se é assim, eu vou.

 

E, perante a sua própria surpresa, acrescentou, segura, mas em voz baixa:

 

- Agora, graças a Deus, já não tenho medo de nada.

 

- Óptimo! - exclamou Nikolai sem a olhar. - Ah, diga-me onde está a minha roupa interior e a minha mala. Tem vindo a tomar conta de tudo com as suas mãos rapaces, e eu agora já nem posso dispor livremente dos meus objectos pessoais.

 

Sachenka, sem dizer uma palavra, queimava no fogão alguns papéis rasgados. Quando acabou, misturou as cinzas cuidadosamente com as do carvão.

 

- Vá-se embora, Sachenka - disse Nikolai estendendo-lhe a mão. - Até à vista. Não se esqueça de me enviar livros, se aparecer alguma coisa interessante. Bem, então adeus, querida camarada, e seja prudente.

 

- Pensa que irá lá ficar muito tempo? - perguntou Sachenka.

 

- Só o diabo sabe. Bastante, acho eu. Têm várias coisas contra mim. Nilovna, saiam juntas. É mais difícil seguir duas pessoas. De acordo?

 

- Vou-me vestir.

 

A mãe observava Nikolai atentamente, mas para além da preocupação que velava o seu rosto e a sua habitual expressão de bondade e doçura, não notava mais nada. Não via neste homem, que lhe era mais querido que os demais, nenhum nervosismo supérfluo, nenhum sinal de emoção. Igualmente atencioso para com todos, afectuoso e comedido, sempré tranquilo e solitário, era para eles o mesmo de sempre, vivendo uma misteriosa vida interior e como que avançada em relação aos demais. Mas ela percebera que ele tinha sabido compreendê-la melhor que ninguém, e amava-o com uma prudente ternura que parecia duvidar de si mesma. Sentia agora por ele uma indizível piedade, mas dominava-se, sabendo que, se a mostrasse, Nikolai se perturbaria, perderia a calma, tornar-se-ia, como de costume, um pouco ridículo, e ela não queria vê-lo assim.

 

Voltou para a sala. Ele apertava a mão de Sachenka:

 

- Parece-me uma coisa esplêndida, e estou certo de que será bom para ele e para si. Um pouco de felicidade pessoal não faz mal a ninguém... Pronta, Nilovna?

 

Aproximou-se dela, sorrindo e ajeitando os óculos:

 

- Bom, até à vista... dentro de três ou quatro... ou seis meses, digamos que sejam seis meses. Enfim... E tenha cuidado, peço-lhe! Sim? Vá... dê-me um abraço...

 

Alto e magro, deitou os seus robustos braços à volta do pescoço de Pelágia, olhou-a nos olhos, riu e disse:

 

- Dir-se-ia que me apaixonei por si... Abraço-a tantas vezes!

 

Sem dizer nada, ela beijou-lhe a testa e as faces. Tremiam-Lhe as mãos. Deixou-as cair para que ele não notasse.

 

- Tenha cuidado. Amanhã de manhã mande um rapaz... há um muito esperto em casa da Ludmila... ele que passe por cá a ver. Agora é que é, até à vista, camaradas. Que tudo corra bem.

 

Já na rua, Sachenka disse com doçura:

 

- Iria para a morte com a mesma simplicidade, se fosse preciso, um pouco apressado, como agora. E quando a morte vier ter com ele, há-de ajustar os óculos, dirá "magnífico!..." e morrerá.

 

- Gosto muito dele - murmurou a mãe.

 

- Eu respeito-o, mas gosto dele com reservas. Tenho uma grande admiração por ele. É um pouco seco, embora seja bom, e até afectuoso, mas por vezes não me parece muito humano. Acho que estamos a ser seguidas. Vamo-nos separar. E se achar que está a ser vigiada, não vá a casa de Ludmila.

 

- Bem sei - disse a mãe. Mas Sachenka insistiu de novo:

 

- Não vá lá. Venha antes a minha casa. Até já. Voltou-se rapidamente e começou a caminhar em sentido contrário.

 

Passados alguns minutos, já Pelágia se aquecia ao pé do fogão, na pequena sala de Ludmila. Com um vestido preto cingido por um cinturão de couro, esta ia e vinha pela sala que enchia com o roçagar da sua saia e a sua voz autoritária. No fogão, o lume crepitava e assobiava aspirando o ar. Ludmila dizia com a sua voz monocórdica:

 

- As pessoas são muito mais estúpidas do que más. Só conseguem ver aquilo que está muito próximo delas, ao seu alcance imediato. E no entanto aquilo que está perto de nós é geralmente insignificante, aquilo que tem valor está por vezes muito longe de nós. Toda a gente ficava a ganhar, claro, e seria muito mais agradável se a vida fosse diferente, mais cómoda, e se as pessoas fossem mais sensatas. Mas para conseguirmos isso temos de renunciar temporariamente à nossa tranquilidade.

 

De repente, parou em frente da mãe e disse-lhe, baixando o tom de voz, como se se desculpasse:

 

- Vejo muito poucas pessoas, por isso quando vem alguém, ponho-me a conversar, não é ridículo?

 

- Porquê? - replicou Pelágia, que tentava adivinhar onde seria que imprimiam os folhetos, e não via nada de extraordinário à sua volta. Na sala, com três janelas a darem para a rua, havia um sofá e uma estante, uma mesa, cadeiras, uma cama junto à parede; ao lado, num canto, um lavatório; no outro canto um fogão; fotografias nas paredes. Tudo era novo, sólido, limpo, e a figura monástica da dona da casa projectava uma sombra fria sobre tudo aquilo. Sentia-se qualquer coisa escondida, misteriosa, que não se percebia onde estava. A mãe olhou as portas. Tinha entrado por uma que dava para um minúsculo vestíbulo. A outra, alta e estreita, estava junto do fogão.

 

- Vim tratar de um assunto... - disse ela embaraçada, sentindo-se observada por Ludmila.

 

- Eu sei. Nunca vem ninguém a minha casa que não seja para tratar de um assunto.

 

A mãe notou qualquer coisa de estranho na sua voz, e olhou-a. No canto dos seus lábios finos aparecia um sorriso, e por detrás das lentes os seus olhos brilhavam. Pelágia desviou a vista e estendeu-lhe o discurso de Pavel.

 

- Pedem-lhe que imprima isto quanto antes.

 

E começou a contar os preparativos de Nikolai, prevendo que seria preso.

 

Em silêncio, Ludmila guardou o papel no seu cinturão e sentou-se numa cadeira. O reflexo vermelho do fogo brilhou nas lentes dos seus óculos, e um sorriso ardente iluminou o seu rosto impassível.

 

- Quando vierem buscar-me, dispararei sobre eles - disse com voz baixa e resoluta, após escutar o relato da mãe. Tenho o direito de me defender contra a violência, e devo lutar contra ela, uma vez que incito outros a fazê-lo.

 

Os reflexos das chamas desapareceram do seu rosto, que voltou a ser severo e um pouco altivo.

 

"Não levas uma vida muito alegre", pensou subitamente a mãe, com ternura.

 

Ludmila pôs-se a ler o discurso de Pavel, primeiro com indiferença, em seguida, inclinando-se um pouco mais sobre o papel, à medida que lia as folhas ia-as pondo rapidamente de lado. Quando terminou levantou-se, aproximou-se da mãe e disse-lhe:

 

- Está muito bem!

 

Inclinou a cabeça um instante, em meditação.

 

- Não queria falar-lhe do seu filho, nunca o vi e não gosto de conversas tristes. Sei o que significa assistir à partida de um dos nossos para o desterro. Mas queria perguntar-lhe: É bom ter um filho assim?

 

- Sim, é muito bom.

 

- E também é terrível, não é verdade?

 

Pelágia sorriu tranquilamente:

 

- Não... agora já não.

 

Com a mão morena, Ludmila ajeitou o seu penteado simples e voltou-se para a janela. Uma leve sombra, talvez de um sorriso reprimido, palpitava nas suas faces.

 

- Vou pôr-me ao trabalho agora mesmo. Você deite-se. Teve um dia muito duro e está cansada. Deite-se aqui, na cama. Eu vou ficar a pé toda a noite, e talvez a chame para me dar uma ajuda. Antes de dormir apague o candeeiro.

 

Deitou duas achas no lume, endireitou-se e saiu pela porta estreita junto ao fogão, fechando-a cuidadosamente atrás de si. Pelágia seguiu-a com o olhar e começou a despir-se pensando na sua anfitriã.

 

"É uma pessoa infeliz..."

 

A cabeça andava-lhe às voltas de cansaço, mas sentia na alma uma tranquilidade surpreendente. Aos seus olhos tudo se ia iluminando com uma luz suave, doce e acariciadora que lhe enchia o coração. Conhecia já esta quietude que costumava seguir-se às grandes emoções. Antigamente costumava ficar um pouco alarmada, mas agora parecia encher-Lhe a alma, reforçá-la com um sentimento grande e forte. Apagou o candeeiro, deitou-se no leito frio, aconchegou-se debaixo da manta e caiu imediatamente num sono profundo.

 

Quando abriu os olhos, a sala estava cheia do reflexo branco e gelado de um claro dia de Inverno. Estendida no sofá, com um livro na mão, Ludmila olhava-a com um sorriso diferente.

 

- Meu Deus! - exclamou Pelágia atrapalhada. - Quer dizer... Há quanto tempo estou eu a dormir?

 

- Bom dia - disse Ludmila. - São quase dez horas. Levante-se e vamos tomar o chá.

 

- Porque não me acordou?

 

- Pensei em fazê-lo... Mas estava a dormir com um sorriso tão satisfeito!

 

Com um movimento de todo o seu corpo flexível levantou-se, aproximou-se da cama e inclinou-se sobre o rosto da mãe, que viu nos seus olhos algo de familiar, próximo e compreensível.

 

- Tive pena de a acordar... talvez estivesse a ter um belo sonho.

 

- Não sonhei com nada.

 

- Bom, não importa. Mas gosto do seu sorriso... tão sereno, tão bondoso... tão grande...

 

Ludmila desatou a rir um riso surdo, velado.

 

- Tenho estado a pensar em si. É dura, a sua vida?

 

A mãe, com as sobrancelhas erguidas, não dizia nada, pensava.

 

- Deve ser, claro! - disse Ludmila.

 

- Já não sei - respondeu a mãe, hesitando. - àS vezes parece-me que sim. Acontecem tantas coisas, tão sérias, tão espantosas, e sucedem-se umas às outras tão depressa, tão depressa...

 

A vaga de comoção, que tão bem conhecia, subia-lhe ao coração e enchia-o de imagens e pensamentos. Sentou-se na cama e deixou que estas ideias rapidamente fossem tomando forma.

 

As coisas melhoram, pioram, e o resultado é sempre o mesmo. Existem tantas coisas terríveis... As pessoas sofrem, apanham pancada, agridem-nas cruelmente. Muitas alegrias lhes estão proibidas... É muito duro para elas!

 

Ludmila ergueu a cabeça com vivacidade e envolveu a mãe num olhar profundo.

 

- Não está a falar de si.

 

A mãe olhou-a, levantou-se e começou a vestir-se.

 

- Como é que podemos ficar à margem quando amamos alguém, queremos bem a outro, e sentimos medo e piedade por todos? Tudo isso se choca no nosso coração. Como é que podemos ficar à margem?

 

Deixou-se uns instantes pensativa, meio-vestida, de pé no meio da sala. Não se reconhecia. Aquela que tanto se tinha afligido e alarmado pelo seu filho, que tinha vivido com a única preocupação de o conservar são e salvo, aquela Pelágia já não existia. Tinha partido para longe, sabia-se lá para onde; talvez se tivesse consumido no fogo das suas próprias emoções, e a sua alma estava aliviada, purificada. Uma nova força regenerava o seu coração. Escutava-se a si própria, desejosa de descobrir o que se tinha passado, e receosa de despertar dentro de si as velhas angústias.

 

- Em que pensa? - perguntou afectuosamente Ludmila, aproximando-se dela.

 

- Não sei...

 

Calaram-se ambas. Olhavam-se e sorriam. Em seguida, Ludmila saiu, dizendo:

 

- Que se passa com o meu samovar?

 

A mãe olhou pela janela. Lá fora um dia frio e luminoso resplandecia. Também no seu coração havia luz, mas era uma luz quente. Tinha vontade de falar de tudo, longamente, alegremente, com um vago sentimento de gratidão para com algo de desconhecido, por tudo aquilo que tinha descido à sua alma, iluminando-a com a luz púrpura que precede o ocaso. Estava tomada de um desejo de rezar como há muito tempo não sentia. Recordou um rosto jovem, e uma voz sonora gritou na sua memória: "É a mãe de Pavel Vlassov!" Os olhos de Sachenka brilharam de ternura e alegria. Ergueu-se o vulto escuro de Rybine, o rosto firme e bronzeado de Pavel sorriu, Nikolai piscou os olhos com ar embaraçado. E de repente, todas estas imagens dançaram num suspiro profundo e ligeiro, se misturaram e confundiram numa nuvem transparente e multicolorida, que inundava todos estes pensamentos numa aura de paz.

 

- Nikolai tinha razão - disse Ludmila regressando. - Prenderam-no. Eu mandei lá o rapaz, conforme me disse. A polícia ainda não se tinha ido embora. Estava um escondido na porta. E os bufos também andavam por ali a rondar, o rapaz conhece-os.

 

- Ah! - disse a mãe, movendo a cabeça. - Coitado... Suspirou, mas não sentia pena, o que não deixou de a surpreender.

 

- Ultimamente tinha feito muitas reuniões com os operários da cidade, e aliás estava na altura de desaparecer - disse Ludmila, com ar sombrio e tranquilo. - Os camaradas bem lhe disseram que se escondesse por uns tempos, mas ele não fez caso. Parece-me que nestes casos é preciso obrigar, não basta aconselhar...

 

Um rapaz de faces rosadas e cabelos negros, com belos olhos azuis e nariz aquilino apareceu no umbral da porta.

 

- Trago o samovar? - perguntou com voz sonora.

 

- Sim, por favor, Serguei... É o meu protegido.

 

Naquela manhã, parecia à mãe que Ludmila estava diferente, mais simples e menos distante. Nos movimentos flexíveis do seu corpo harmonioso havia uma força e uma beleza que atenuavam um pouco a severidade daquela pálida fisionomia. As suas olheiras tinham-se cavado mais durante a noite. Sentia-se nela uma tensão contínua, era como se a sua alma fosse uma corda esticada até quase rebentar.

 

O rapaz trouxe o s-amovar.

 

- Serguei, esta é Pelágia Nilovna, a mãe do operário que ontem foi condenado.

 

O rapaz inclinou-se sem dizer uma palavra, apertou a mão da mãe, saiu, regressou com alguns pãezinhos e sentou-se à mesa. Enquanto servia o chá, Ludmila aconselhou a mãe a não regressar a casa de Nikolai enquanto não descobrissem de quem é que a polícia lá estava à espera.

 

- Talvez seja a si. Devem querer interrogá-la.

 

- Pois que o façam! - disse a mãe. - E mesmo que me prendam, não é uma grande desgraça. Apenas, primeiro, temos de distribuir o discurso de Pavel.

 

- Já está composto. Amanhã teremos exemplares que cheguem para a cidade e os arredores. Conhece a Natacha?

 

- Claro!

 

- Leve-lhos.

 

O rapaz lia um jornal e parecia não ouvir nada à sua volta, mas de quando em quando levantava os olhos para a mãe, que lhe sorria, contente por encontrar aquele olhar cheio de vivacidade. Ludmila voltou a falar de Nikolai, sem se compadecer da sua prisão, o que pareceu à mãe perfeitamente natural. O tempo parecia passar mais depressa do que nos outros dias, e era já quase meio-dia quando acabaram de tomar o pequeno-almoço.

 

- Diabos! - disse Ludmila.

 

Nesse instante bateram apressadamente à porta. O rapaz levantou-se e, franzindo as sobrancelhas, deitou um olhar interrogador à dona da casa.

 

- Abre, Serguei. Quem poderá ser?

 

Com um gesto tranquilo meteu a mão na algibeira da saia, e disse à mãe:

 

- Se for a polícia, deixe-se ficar neste canto. E tu, Serguei...

 

- Já sei - disse ele baixo, e desapareceu. A mãe sorria. Aqueles preparativos não a deixavam emocionada, não pressentia desgraças.

 

Entrou o médico. Disse precipitadamente:

 

- Em primeiro lugar, prenderam Nikolai... Ah, você está aqui, Nilovna? Não estava lá quando o prenderam?

 

- Ele mandou-me para aqui.

 

- Ah! Não creio que isso lhe vá servir de muito. Segundo: esta noite um grupo de rapazes tiraram, com gelatina, umas quinhentas cópias do discurso. Eu vi-as, não ficaram mal, estão legíveis... Querem distribui-las esta noite pela cidade. Eu não estou muito de acordo, para a cidade é preferível serem folhas impressas. As outras podem mandar-se depois para as aldeias.

 

- Está bem, eu irei levá-las a Natacha. Dêem-mas - exclamou a mãe com vivacidade.

 

Sentia uma ânsia terrível de distribuir rapidamente o discurso de Pavel, de inundar a terra com as palavras do seu filho, e olhava para o médico com olhos atentos, quase suplicantes.

 

- Diabos! Não sei se será boa ideia entregar-lhe a si esta tarefa - disse ele indeciso, olhando o relógio. - São onze e quarenta e três, o comboio sai às duas e cinco, estará lá às cinco e um quarto... já será de noite, mas não tão tarde... Não se trata disso.

 

- Não, não se trata disso - repetiu Ludmila, enrugando a testa.

 

- Trata-se então de quê? - perguntou a mãe, aproximando-se deles. - Trata-se apenas de fazer as coisas bem feitas.

 

Ludmila olhou-a fixamente, e enxugando a testa, observou:

 

- É perigoso para si.

 

- Porquê? - perguntou a mãe com ardente insistência.

 

- Já vai ver porquê - disse o médico, rápida e nervosamente. - Você desapareceu de casa uma hora antes da prisão de Nikolai. Vai à fábrica onde é conhecida como tia da professora. Depois da sua visita irão surgir folhas proibidas. Tudo isto irá apertar-se à volta do seu pescoço como um nó corredio...

 

- Não serei vista - afirmou a mãe com veemência. - E quando voltar, se me prenderem e me perguntarem onde estive...

 

Interrompeu-se por um segundo, e riu:

 

- Já sei o que hei-de dizer. De lá irei até ao nosso bairro, onde tenho um amigo, Sizov, e direi o seguinte: que quando o julgamento acabou fui para casa dele, porque um e outro estávamos muito tristes; o sobrinho dele também foi condenado com Pavel. Ele dirá a mesma coisa. Estão a ver?

 

Sentindo que estavam quase a ceder, tentava que por fim se convencessem e falava com crescente insistência. Acabaram por lhe fazer a vontade.

 

- O que é que lhe havemos de fazer? Pois seja! - concordou o médico contrariado.

 

Ludmila não dizia nada. Pensativa, andava no quarto para cá e para lá. O rosto tinha-se-lhe tornado sombrio, e as faces tinham-se-lhe cavado. Via-se a tensão dos músculos do seu pescoço, como se a sua cabeça se tivesse de repente tornado muito pesada, e ela a deixasse cair involuntariamente sobre o peito. A mãe observou-a.

 

- Vocês poupam-me muito - disse ela, sorrindo -, não se poupam tanto a vocês mesmos...

 

- Não é verdade - disse o médico. - Nós poupamo-nos, devemos fazê-lo. E repreendemos aqueles que gastam inutilmente as suas forças, sim senhora... Bom, então... o discurso ser-lhe-á entregue na estação.

 

Explicou-lhe o que tinha de fazer, em seguida olhou-a no rosto e disse:

 

- Bem, boa sorte!

 

E foi-se embora, um tanto descontente consigo próprio. Quando a porta se fechou atrás dele, Ludmila aproximou-se da mãe com um riso silencioso:

 

- Eu compreendo-a.

 

Pegou-lhe pelo braço e caminhou um pouco pela sala.

 

- Eu também tenho um filho. Tem agora treze anos e vive com o pai. O meu marido é procurador substituto, e o rapaz vive com ele. "Que espécie de pessoa virá ele a ser, quando crescer?" Penso eu muitas vezes.

 

A sua voz tremeu, mas continuou num tom baixo e pensativo:

 

- Aquele que o educa é um inimigo consciente daqueles que eu considero as melhores pessoas sobre a Terra. O meu filho, quando crescer, pode vir a ser meu inimigo. Não posso tê-lo comigo, vivo sob um nome falso. Há oito anos que não o vejo... Oito anos é tanto tempo!

 

Deteve-se junto à janela e olhou o céu pálido e vazio.

 

- Se estivesse comigo sentir-me-ia mais forte, não teria esta ferida no coração, que tanto me dói. Mesmo se ele morresse, para mim seria menos doloroso...

 

- Minha querida filha! - disse a mãe, a transbordar de compaixão.

 

- Você é uma mulher feliz - prosseguiu Ludmila, com um sorriso. - É maravilhoso uma mãe e um filho poderem caminhar juntos... e é tão raro!

 

- Sim, é bom - respondeu Pelágia, surpreendida com a sua própria excitação. E baixando a voz, como para confiar um segredo: - Todos, você, Nikolai Ivanovitch, todos os que trabalham pela verdade, caminham igualmente uns ao lado dos outros. De repente, cada um se transforma para os outros num parente próximo e querido. Eu compreendo tudo isso. Nem sempre compreendo as palavras, mas o resto compreendo.

 

- É isso - disse Ludmila. - E isso mesmo...

 

A mãe pousou-lhe uma mão sobre o ombro, apertou-lho suavemente, e continuou num murmúrio, como se estivesse a tentar ouvir os seus próprios pensamentos:

 

- Os nossos filhos já se puseram em marcha pelo mundo, isto é o que eu compreendo. Percorrem o mundo, a Terra inteira, por toda a parte, com um único objectivo. Os melhores corações, os espíritos honrados, avançam resolutos contra o mal, debaixo do seu passo decidido esmagam toda a mentira. Os jovens, as pessoas sãs, colocam todas as suas forças invencíveis ao serviço de uma só coisa: a justiça. Marcham para a vitória sobre o sofrimento humano, pegaram em armas para suprimir a desgraça no mundo, lutam contra toda a vilania, e triunfarão! "Acenderemos um novo Sol", disse-me um deles, e hão-de acendê-lo! "Reuniremos num só todos os corações dispersos", e hão-de fazê-lo.

 

Voltavam-lhe à memória palavras de orações já esquecidas, inflamando a sua nova fé, como chispas brotando do seu coração:

 

- Os rapazes que vão pelos caminhos da justiça e da razão dirigem o seu amor a todas as coisas, iluminam tudo com um fogo que não pode ser apagado, que nasce da alma. Uma nova vida se cria nesse amor ardente dos nossos filhos, pelo mundo inteiro. Quem poderá apagar esse amor? Quem? Existe alguma força maior, capaz de o vencer? Foi a Terra que o engendrou, toda a Terra reclama a sua vitória, a vida toda.

 

Fatigada de emoção afastou-se de Ludmila e sentou-se ofegante. Ludmila sentou-se também, sem ruído, com cuidado, como se temesse quebrar alguma coisa. Depois, com o seu passo flexível atravessou a sala e olhou ao longe com o olhar profundo dos seus olhos sem brilho. Parecia ainda mais alta, mais direita, mais magra. O seu rosto enxuto e anguloso estava concentrado, e apertava os lábios com nervosismo. Reinava um silêncio que rapidamente tranquilizou a mãe; observando a expressão da jovem, perguntou a meia-voz em tom receoso:

 

- Talvez eu tenha dito alguma coisa que não devia? Ludmila voltou-se rapidamente, olhou-a assustada e disse

 

pressurosa, estendendo-lhe a mão como se pretendesse deter alguma coisa:

 

- Não, tudo o que disse é verdade, mas não falemos mais. Deixemos as coisas assim... - E em seguida, mais serena:

- Tem de partir sem demora, ainda é longe.

 

- Sim, vou andando... Como estou feliz! Se soubesse... Vou levar a palavra do meu filho, a palavra do meu sangue, é como se levasse a minha própria alma!

 

Sorria, mas o seu sorriso só encontrava no rosto de Ludmila um pálido reflexo. A mãe sentia que ela, com o seu silêncio, lhe esfriava um pouco a alegria e, de repente, sentiu um desejo muito forte de comunicar àquela alma sombria um pouco do seu fogo, de a incendiar, para que ela pudesse vibrar em uníssono com o seu coração repleto de felicidade. Pegou nas mãos de Ludmila, apertou-lhas com força e disse-lhe:

 

- Minha querida! É maravilhoso saber que já existe neste mundo uma luz capaz de alumiar todos os homens, e que um dia todos eles a verão e a abraçarão com toda a sua alma!

 

O seu rosto largo e bondoso tremia, os seus olhos reluziam, e as pestanas pareciam dar asas ao brilho das pupilas. Sentia-se inebriada por pensamentos elevados, nos quais

 

punha todo o ardor do seu coração, tudo o que tinha já vivido, condensando-o em palavras de luz que nasciam com vigor crescente e floresciam cada vez com mais brilho no Outono da sua vida, iluminado pela força fecunda de um sol de Primavera.

 

- É como se tivesse nascido um novo Deus! Tudo para todos, todos para tudo. É assim que eu vejo as coisas. Todos vocês são na realidade camaradas, pertencem todos a uma mesma família, são todos filhos de uma mesma mãe, a verdade!

 

De novo, inundada por uma onda de emoção, parou para respirar fundo e, estendendo os braços num gesto que parecia tudo querer abraçar, continuou:

 

- E quando digo esta palavra, "camaradas", o meu coração responde: "Estão em marcha!"

 

Triunfava. O rosto de Ludmila ardia com uma estranha chama, os seus lábios tremiam, dos seus olhos caíam grandes lágrimas claras.

 

A mãe abraçou-a sorrindo silenciosamente, com o coração cheio do doce orgulho da sua vitória.

 

Quando se afastaram, Ludmila olhou-a nos olhos e disse em voz baixa:

 

- Sabe que é muito bom estar consigo?

 

Na rua, o ar seco e gelado envolveu-a por completo, agarrando-se-lhe à garganta, picando-lhe o nariz, e por um momento susteve a respiração. Parou e olhou à sua volta. Perto dela, à esquina, estava um cocheiro com um gorro de felpo. Um pouco mais adiante seguia um homem todo curvado, com a cabeça enterrada nos ombros. À frente dele, um soldado corria, saltava e esfregava as orelhas.

 

"Devem ter mandado o soldado fazer algum recado", pensou ela, e seguiu o seu caminho, escutando com prazer o alegre ruído da neve a estalar debaixo dos seus pés.

 

Era cedo quando chegou à estação. O comboio ainda nem estava formado, mas na sala de espera da terceira classe, suja e fumarenta, havia já muita gente, pois o frio tinha obrigado os trabalhadores da via férea a abrigarem-se ali. Cocheiros e pessoas mal vestidas e sem lar também tinham vindo procurar ali um pouco de calor. Havia também viajantes, alguns camponeses, um comerciante gordo com uma pelica, um pope com uma garotinha de aspecto frágil, cinco ou seis soldados, pequenos-burgueses atarefados. As pessoas fumavam, conversavam, bebiam chá ou vodka. Junto ao bar ouvia-se rir estrepidosamente, e sobre as cabeças iam-se formando nuvens de fumo. A porta guinchava ao abrir-se, e de cada vez que se fechava os vidros tremiam e vibravam. O cheiro do tabaco e do peixe salgado entranhava-se-lhe pelo nariz.

 

A mãe sentou-se perto da porta, bem à vista, e esperou.

 

De cada vez que entrava alguém chegava-lhe uma rabanada de ar fresco, e ela, satisfeita, respirava-o a plenos pulmões. Chegavam pessoas com embrulhos na mão e roupas pesadas. Agarravam-se desajeitadamente à porta, praguejavam, deixavam os seus pertences no chão ou em cima de um banco, sacudiam a neve da gola dos casacos e enxugavam com a manga as barbas e os bigodes, resmungando.

 

Entrou um rapaz novo com uma maleta amarela, olhou rapidamente à sua volta e foi direito à mãe.

 

- Vai para Moscovo? - perguntou a meia-voz.

 

- Sim, para casa de Tânia.

 

- Aqui tem.

 

Pousou a mala sobre o banco, ao lado de Pelágia, puxou de um cigarro, acendeu-o, levantou ligeiramente o gorro e saiu por outra porta, sem dizer nada. A mãe acariciou com a mão o frio couro da mala, apoiou-se nela e, satisfeita, pôs-se a olhar para os transeuntes. Um instante depois levantou-se e foi sentar-se noutro banco, mais próximo da saída e da plataforma de embarque. Transportava sem dificuldade a mala, que não era muito grande e, erguendo a cabeça, observava as pessoas que passavam na sua frente.

 

Um jovem de casaco curto com a gola levantada esbarrou nela e afastou-se sem dizer nada levando a mão ao gorro. Pareceu a Pelágia vagamente familiar, e voltou-se. O olhar claro do homem estava fixo nela, por detrás da sua gola levantada. Aquele olhar vivo trespassou-a, a mão que levava a mala tremeu, e de repente sentiu-lhe o peso. "Já o vi nalgum lugar", pensou, reprimindo uma sensação desagradável e perturbadora que lhe subia pelo peito. Não queria definir com outras palavras o sentimento que, suave mas imperiosamente, lhe oprimia o coração. E esta sensação não parava de crescer, de aumentar. A garganta e a boca encheram-se-lhe de uma amarga secura. Sentia uma vontade irresistível de voltar a olhar. O homem continuava no mesmo sítio, circunspecto, apoiando o seu peso ora sobre um pé ora sobre o outro. Tinha a mão direita enfiada no meio dos botões do casaco, e a esquerda no bolso, o que fazia o seu ombro direito parecer mais alto que o outro.

 

Sem se apressar, ela aproximou-se do banco e sentou-se com precaução, lentamente, como se temesse que alguma coisa dentro dela se fosse quebrar. A sua memória, avivada pelo agudo pressentimento de uma desgraça, mostrou-lhe aquele homem em duas situações diferentes. A primeira no descampado, não longe da prisão, aquando da fuga de Rybine. A segunda, no tribunal. Tinha-o visto lá, ao lado do agente a quem mentira ao indicar o caminho seguido por Rybine. Conheciam-na, vigiavam-na, isso era evidente.

 

"Ter-me-ão descoberto?", perguntou-se por um segundo, para depois pensar, estremecendo:

 

"Talvez ainda não."

 

E imediatamente, fazendo um esforço, concluiu:

 

"Apanharam-me!"

 

Olhou à sua volta e não viu nada. As ideias brotavam como chispas, uma após outra, e em seguida apagavam-se no seu cérebro.

 

"Deixar a mala? Fugir?"

 

Mas uma outra chispa brilhou com mais força:

 

"A palavra do meu filho?... Deixá-la em semelhantes mãos?"

 

Agarrou a mala com mais força. "Fugir com ela? Dar uma corrida?"

 

Estes pareciam-lhe os pensamentos de outra pessoa, que à força tivessem metido na sua cabeça. Abrasavam-na, e a sua queimadura penetrava-lhe dolorosamente na cabeça, torturando-lhe o coração como fios incandescentes. Sentia-se humilhada, alheada de si própria, de Pavel e de tudo aquilo que fazia já parte do seu coração. Sentia uma força hostil que a oprimia, que lhe esmagava os ombros e o peito, que a rebaixava mergulhando-a num terror mortal. As veias das suas fontes começaram a latejar, e o calor subiu-lhe até à raiz do cabelo.

 

Então, enquanto o seu coração fazia um esforço brusco e vigoroso que a sacudiu por inteiro, abafou dentro de si aquelas centelhas malignas, mesquinhas e débeis, e dominou-se:

 

-Devias ter vergonha!"

 

Imediatamente se sentiu aliviada. A sua resolução tornou-se mais forte.

 

"Não desonres o teu filho... Ninguém tem medo..."

 

Os seus olhos tinham uma expressão desolada e tímida. Em seguida, a figura de Rybine apareceu-lhe como um relâmpago. Foi como se aqueles segundos de hesitação lhe tivessem dado forças, afinal. O seu coração recomeçou a bater mais sereno.

 

"Que irá acontecer agora?", pensou ela, olhando o secreta. Este tinha feito sinal a um guarda, e dizia-lhe qualquer coisa ao ouvido, apontando-a com o olhar. Aproximou-se outro guarda, prestando atenção. Franziu as sobrancelhas. Era um velho de estatura imponente, de cabelos e barba grisalhos. Com a cabeça fez um sinal ao secreta, e avançou até ao banco onde a mãe estava sentada, enquanto o delator desaparecia.

 

O velho caminhava sem pressa, observando atentamente o rosto da mãe. Esta recuou até à ponta do banco.

 

"Desde que não me batam..."

 

Parou ao pé dela, e logo perguntou em voz baixa e rude:

 

- O que é que estás a olhar?

 

- Nada.

 

- Está bem, ladra! Uma velha como tu, a roubar!

 

Estas palavras magoaram-na como um par de bofetadas em pleno rosto. Malvadas, sibilantes, feriam-na como se lhe rasgassem as faces e lhe arrancassem os olhos.

 

- Eu? Eu, uma ladra? Mentiroso! - gritou com todas as suas forças, enquanto tudo parecia girar no torvelinho da sua indignação. Com o coração a transbordar de uma amarga indignação, puxou pela mala, que se abriu:

 

- Vejam! Vejam todos! - exclamou, levantando-se, e agarrando num molho de panfletos brandiu-os acima da cabeça. Através do zumbido dos seus ouvidos, ouviu as exclamações das pessoas, que se aproximavam de todos os lados.

 

- O que foi?

 

- É um inspector da secreta...

 

- Mas o que é que aconteceu?

 

- Estão a dizer que é uma ladra...

 

- Tem um aspecto bem respeitável... e bem desgraçado!

 

- Não sou uma ladra! - repetiu a mãe a plenos pulmões. Ao ver toda aquela multidão compacta que a rodeava, acalmou-se um pouco. - Ontem foram julgados os presos políticos, e o meu filho é um deles... Vlassov! Ele pronunciou um discurso que levo aqui. Hei-de espalhá-lo por todo o lado, para que o leiam, para que pensem na verdade.

 

Alguém retirou discretamente algumas folhas da sua mão. Ela agitou as outras no ar e atirou-as à multidão.

 

- Não te vão dar nenhum prémio por isto... - disse uma voz atemorizada.

 

A mãe via que apanhavam os papéis, que os escondiam nos casacos, nos bolsos, e de novo se sentia mais firme sobre as pernas. Mais tranquila e mais forte, tensa, consciente do orgulho que crescia dentro dela e da alegria nascente que a inflamava, ia falando e ia retirando da mala maços de folhas que lançava à direita e à esquerda, para mãos ágeis e ávidas.

 

- Sabem porque foi que julgaram o meu filho e todos os que estavam com ele? Eu digo-vos. Acreditem no coração e nos cabelos brancos de uma mãe. Condenaram ontem um grupo de rapazes porque queriam trazer-nos a todos a verdade. Ontem compreendi que esta verdade... ninguém poderá pô-la em dúvida, ninguém!

 

A multidão, que estava agora silenciosa, era cada vez mais numerosa e compacta, e rodeava a mãe como um anel vivo.

 

- A pobreza, a fome, a doença, é o que as pessoas recebem em troca do seu trabalho. Temos tudo contra nós, dia após dia, ao longo de toda a nossa vida. Rebentamos a trabalhar e não conhecemos senão a lama e a mentira, enquanto outros se divertem à custa da nossa dor, e nos mantêm como cães acorrentados, na ignorância, porque não sabemos nada, e no terror, porque temos medo de tudo. A nossa vida é uma noite, uma noite sombria!

 

- É verdade - responderam surdamente algumas vozes.

 

- Calem-lhe o bico!

 

Através da multidão a mãe viu o seu delator, acompanhado por dois polícias, e apressou-se a distribuir os últimos maços de folhetos, mas ao mergulhar a mão na mala, encontrou outra mão.

 

- Peguem, peguem!

 

- Circulem! - gritaram os polícias afastando as pessoas que, contrariadas, cediam aos seus empurrões, os oprimiam no meio deles, os aprisionavam, involuntariamente, talvez. Aquela mulher de cabelos grisalhos e de olhar franco num rosto cheio de bondade atraía-os com uma força tremenda. Separados pela vida, afastados uns dos outros, uniam-se agora num todo, confortados pelo fogo daquelas palavras que talvez alguns há muito esperassem, e das quais os seus corações, humilhados pelas injustiças da vida, tinham uma sede ardente. Os mais próximos da mãe estavam silenciosos. Ela via os seus olhos atentos e ávidos, e sentia que lhe sopravam mornamente sobre o rosto:

 

- Foge daqui, velhota!

 

- Vão-te apanhar!

 

- Lá coragem tens tu!

 

- Fora, circulem! - gritavam os polícias, à medida que se aproximavam.

 

Aos atropelos, a multidão vacilava, agarrando-se uns aos outros.

 

Parecia à mãe que todas aquelas pessoas estavam prontas a compreendê-la e a acreditá-la, e queria dizer-lhes rapidamente tudo o que sabia, todos os pensamentos cuja força sentia. Subiam-lhe sem esforço do mais fundo do coração, e vinham-lhe aos lábios como um cântico, mas ela, desesperada, dava-se conta de que lhe faltava a voz, que lhe saía desgarrada e rouca.

 

- A palavra do meu filho é a palavra pura de um filho da classe operária, de uma alma incorruptível. Os homens íntegros reconhecem-se pela audácia!

 

Olhos de jovens fitavam-na com medo e entusiasmo.

 

Recebeu uma pancada no peito, cambaleou e sentou-se no banco. Por cima das suas cabeças agitavam-se as mãos dos polícias, que pegavam nas pessoas pelo pescoço ou pelos ombros, empurrando-as para os lados, arrancando-lhes os gorros e arremessando-lhos para longe. Tudo na frente da mãe pareceu vacilar, afundar-se em trevas, mas controlou-se e gritou com o fio de voz que lhe restava:

 

- Que o povo una as suas forças numa força única!

 

A enorme mão vermelha de um polícia abateu-se sobre o seu pescoço, sacudindo-a:

 

- Cala-te!

 

A sua nuca embateu na parede, e por um instante o seu coração foi envolvido pelo fumo acre de terror, mas de novo se inflamou, dissipando-o.

 

- Vamos - disse o polícia

 

- Não tenham medo de nada! Não há pior tormento que aquele que vocês respiram ao longo de toda a vossa vida...

 

- Já te mandei calar!

 

O polícia agarrou-a por um braço e puxou brutalmente por ela. Um segundo polícia agarrou-a pelo outro braço, e levaram-na os dois a grandes passadas.

 

- ... que todos os dias vos vai secando o peito e roendo o coração...

 

O secreta precipitou-se na frente dela e brandiu na frente do seu rosto um punho ameaçador, rugindo:

 

- Cala-te, miserável!

 

Os olhos de Pelágia abriram-se, cintilantes, o seu queixo tremeu. Firmando-se sobre as lajes escorregadias, exclamou:

 

- Não se pode matar uma alma ressuscitada.

 

- Cadela!

 

Num impulso rápido, o secreta bateu-lhe na cara.

 

- É o que merece este bandalho velho! - disse uma voz malvada.

 

Qualquer coisa negra e vermelha cegou a mãe por um momento, e a boca encheu-se-lhe de um gosto salgado de sangue.

 

Foi reanimada por uma explosão de gritos diversos:

 

- Não lhe batam!

 

- Rapazes!

 

- Canalhas!

 

- Cheguem nesse tipo!

 

- A razão não pode ser afogada com sangue! Empurravam-na pelo pescoço, pelas costas, batiam-lhe nos ombros, na cabeça. À sua volta tudo girava num torvelinho de gritos, de uivos, de toques de apito. Uma sensação espessa e ensurdecedora penetrou-lhe nos ouvidos, encheu-Lhe a garganta, sufocou-a. O chão fugia-lhe debaixo dos pés, afundava-se. Os joelhos vacilaram-lhe e o seu corpo, estremecido por queimaduras de dor, cambaleou sem forças. Mas os seus olhos brilhavam ainda, viam uma multidão de outros olhos, que ardiam com um fogo vivo e ousado que ela bem conhecia, um fogo muito querido ao seu coração.

 

Empurraram-na até à porta. Arrancou uma mão à mão que a prendia, e agarrou-se à ombreira.

 

- Não poderão abafar a verdade nem debaixo de mares de sangue...

 

Bateram-lhe na mão.

 

- Vocês são loucos! Não conseguem senão acumular mais ódio! E há-de cair-vos em cima!

 

Um polícia agarrou-a pela garganta, apertou... Um estertor:

 

- Os pobres deste mundo... Responderam-lhe com um soluço.

 

                                                                                            Máximo Gorki  

 

                      

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