Biblio VT
Na cozinha da pequena casa coberta de colmo, a mãe estava sentada num banquinho de bambu baixo, junto do fogão de barro, e alimentava com destreza o lume, que ardia por baixo da panela de ferro. A chama era mantida à justa, ela movia um graveto aqui, uma mão-cheia de folhas ali, ora empurrava um punhado de ervas secas que cortara na encosta do monte no Outono anterior. No canto da cozinha, tão próxima do fogo quanto se conseguira arrastar, estava sentada uma mulher muito velha e mirrada, embrulhada num vestido almofadado grosso, de algodão vermelho brilhante, cuja bainha aparecia sob o casaco azul remendado que trazia por cima. Era meia cega, vitimada por uma doença nos olhos que quase Lhe fechara por completo as pálpebras. Mas, através das pequenas fendas que mantinha abertas, ainda conseguia ver muitas coisas, e observava, agora, o clarão das chamas à medida que estas subiam e desciam sob a acção das mãos fortes e hábeis da mãe. Ela disse, e as suas palavras sibilavam atenuadas através das gengivas fundas e desdentadas:
- Cuidado, vê lá como alimentas o lume... só há essa carrada... ou são duas?... a Primavera ainda agora chegou e ainda falta muito para que a erva esteja em condições de cortar; e eu, no estado em que estou, duvido que alguma vez possa voltar a apanhar alguma coisa... sou uma velha inútil, que devia morrer.
A velha dizia estas últimas palavras muitas vezes ao dia e, de cada vez que as dizia, esperava ouvir a nora dizer, como agora:
- Não diga isso, mãe! Que faríamos nós se não a tivéssemos a si para olhar pela casa, enquanto andamos no campo, e tomar conta das crianças, cuidando que não caiam no lago?
A velha tossiu ruidosamente e arquejou no meio da tosse:
- É verdade... eu faço isso... a casa tem que ser vigiada nestes tempos maus, com ladrões e malfeitores por todo o lado. Se eles vierem, a gritaria que eu hei-de fazer, filha! Ainda me lembro que não era assim quando eu era nova... Não, nessa altura deixávamos uma enxada fora de casa durante a noite e ela lá estava de manhã, e no Verão prendíamos o animal ao gancho da porta e ele lá continuava no dia seguinte e...
Mas a nora, embora risse delicadamente e dissesse, É verdade, fazia isso, mãe? não a ouvia, pois a velha falava sem parar durante todo o dia. Enquanto a voz de cana rachada divagava, a mãe pensava no combustível; se duraria até as plantações da Primavera estarem terminadas, quando ela teria tempo para ir cortar pequenos ramos de árvores e apanhar um ou outro graveto. É verdade que, mesmo ao pé da porta da cozinha, à beira da eira, que era também pátio, havia duas medas de palha de arroz, cuidadosamente arredondadas e cobertas com argila endurecida para as proteger da humidade da chuva e da neve. Mas a palha de arroz era boa demais para queimar. Só a gente da cidade queimava palha de arroz, e ela ou o marido levá-la-iam à cidade em grandes molhos, numa vara, e ganhariam bom dinheiro com ela. Não, a palha de arroz não podia ser queimada senão nas casas da cidade.
Alimentava o fogão com a erva, pouco a pouco, absorvida pela tarefa, a luz do fogo batendo-Lhe na face, uma face larga, forte, de lábios cheios e corada, de um moreno escuro e vermelho do vento e do sol. Os olhos eram negros, brilhando à luz, muito límpidos. Não era uma face bonita, mas apaixonada e boa. Quem a visse diria: Eis aqui uma mulher de temperamento, e uma esposa e uma mãe calorosa e boa para a velha sogra.
A velha tagarelava. Aparte as crianças pequenas, estava só todo o dia, visto que o filho e a nora tinham que trabalhar na terra, e agora parecia que ela tinha muitas coisas para dizer à nora, que amava. A sua voz sibilante surgiu, parando para tossir de vez em quando, por causa do fumo que saía do fogão:
- Eu sempre disse que, quando um homem tem fome, e especialmente um homem novo e forte como o meu filho, um ovo desfeito na massa... - A voz da velha ouvia-se um pouco mais alta que a rabugice das duas crianças que se agarravam aos ombros da mãe quando ela se inclinava para alimentar o lume.
Mas a mãe continuava firmemente com o seu trabalho, a face calma e em repouso. Sim, ela estava calma, como se não ouvisse o barulho das crianças e como se não escutasse a tagarelice interminável da velha. Estava a pensar que, na verdade, estava um pouco atrasada naquela noite. Havia muito trabalho para fazer na terra, na Primavera, e ela tinha-se demorado a deitar a última carreira de feijões. Aqueles dias quentes e aquelas noites suaves e húmidas, cheias de orvalho... era preciso aproveitá-los o melhor possível e, por isso, ela tinha coberto a última carreira. Naquela mesma noite, a vida começaria a despertar nos feijões secos. Este pensamento deu-Lhe satisfação. Sim, naquela noite, todo aquele campo começaria a agitar-se com vida, secretamente, na terra húmida e quente. O homem ainda estava a trabalhar lá, calcando bem a terra sobre as carreiras, com os pés descalços. Ela tinha-o deixado lá pois ouvira as vozes das crianças chamando pelo seu nome e tinha-se apressado a voltar para casa.
Quando chegou, as crianças, de pé à porta da cozinha, estavam com fome e chorosas, o rapaz mansa e continuamente, sem lágrimas, e a pequena choramingando e a chuchar no dedo. A velha estava sentada, ouvindo-os serenamente. Tinha tentado acalmá-los durante algum tempo, mas já não dava resultado e, portanto, deixou-os. A mãe, sem Lhes dizer nada, dirigiu-se rapidamente ao fogão, curvando-se para apanhar um pouco de erva seca ao passar. Todavia, isto foi suficiente. O rapaz parou de gemer e correu atrás dela, com toda a rapidez dos seus cinco anos, e a pequena veio atrás, conforme põde, pois tinha menos três anos e pouco.
A comida fervia na panela e, por baixo da tampa de madeira, começavam a sair nuvens de vapor aromático, que se iam espalhando. A avó respirou fundo, parecendo mastigar com as gengivas desdentadas. Por baixo da panela, as chamas levantavam-se contra o fundo de ferro e, não encontrando vento, dispersavam-se em fumo denso que se espalhava pela pequena divisão. A mãe recuou e puxou a pequena para trás. Mas o fumo acre tinha já atingido a criança, que pestanejava e esfregava os olhos com os punhos negros de fuligem, começando a chorar. Então, a mãe correu para ela, no seu passo firme, pegóu na criança e colocou-a do lado de fora da porta da cozinha, dizendo:
- Deixa-te estar aí, pequenina! O fumo faz-te mal aos olhos, e tu voltás sempre a meter a cabeça nele.
A velha ouviu, como sempre fazia quando a nora falava, e achou que era um novo tema para discorrer. E começou:
- Sim, eu sempre disse que se não tivesse tido que tratar do lume durante tantos anos, não seria agora meia cega. Foi o lume que me fez ficar tão cega como sou e o fumo...
Mas a mãe não ouvia a voz dela. Ouvia a rapariguinha, sentada na terra, chorando e esfregando os olhos e tentando abri-los. Os olhos da criança estavam sempre vermelhos e inflamados. Porém, se alguém Lhe perguntasse: Não há algum problema com os olhos da sua filha? a mãe respondia: isto foi só porque ela meteu a cabeça no fumo quando eu estava a queimar erva no fogão.
Mas este choro já não a preocupava como antes. Agora, estava muito ocupada, e as crianças vinham umas atrás das outras. Quando nasceu o primeiro filho, não podia ouvi-lo chorar. Achava que quando uma criança chora a mãe deve aquietá-la de qualquer modo. E, assim, quando a criança chorava, ela parava tudo o que estava a fazer e dava-Lhe o peito. Então, o marido zangava-se, porque ela deixava muitas vezes de fazer a sua parte do trabalho, e bradava: O quê!... Tu fazes isso e deixas o trabalho todo para mim? Ainda agora começaste a ter filhos, durante os próximos vinte anos vais ficar a dar de mamar a um e outro, e eu é que fico com a carga toda? Tu não és mulher de um homem rico, que não precisa de fazer mais nada senão parir e dar de mamar, e que pode pagar a quem faça o trabalho!
Ela voltava-se para ele, porque eram ambos novos e cheios de gênio e paixão, e gritava-Lhe: E eu não tenho direito a alguma coisa pelas minhas dores? És tu que andas carregado muitos meses no teu trabalho, como eu tenho que fazer, e tens as dores do parto? Não, quando vens para casa descansas, mas eu, quando venho para casa, há a comida para fazer e uma criança para tratar e uma sogra para cuidar, e mais isto e mais aquilo... Discutiam vivamente durante um bocado, sem haver vencido nem vencedor, pois eles acertavam bem um com o outro. A discussão não durava muito.
Os peitos dela secavam depressa, pois a mãe engravidava tão facilmente quanto um animal saudável. De novo o leite tinha secado. Tinha perdido uma criança no Verão anterior, ao cair e ter-se magoado na ponta do arado. Bem, agora as crianças têm que se arranjar o melhor que puderem e, se chorarem, deixá-las chorar, pois a mãe não pode ir a correr dar-Lhes o peito, e têm que esperar e aguardar a sua vez. Ela assim pensava, mas a verdade era que o seu coração era mais mole do que o seu discurso e continuava a acorrer se os filhos a chamavam.
Quando a panela ferveu um bocado e o fumo se misturou com o cheiro do arroz, ela foi buscar uma tigela e encheu-a primeiro para a velha senhora. Pô-la em cima da mesa, na divisão maior onde todos viviam, e depois conduziu a sogra para lá, mal dando atenção à sua tagarelice:
e se juntares umas ervilhas ao arroz dá-Lhe um gosto tão bom... A velha
sentou-se, agarrou na tigela com as duas mãos frias e calou-se subitamente, com a água a crescer-Lhe na boca enrugada.
- Onde está a colher? Não encontro a minha colher...
A mãe pôs-Lhe a colher de loiça na mão desajeitada, foi buscar duas tigelas pequenas e encheu-as; depois foi buscar dois pares de pauzinhos de bambu pequenos. Deu primeiro uma tigela à pequena, que estava ainda a chorar e a esfregar os olhos. A criança sentou-se no chão da eira, sobre o pó; por causa das lágrimas e dos punhos sujos; a sua face estava coberta por uma pasta de lama e lágrimas. A mãe pô-la de pé e limpou-Lhe um pouco a face com a palma da mão, áspera e escura; depois, com a borda do vestido remendado da criança, limpou-Lhe os olhos. Com cuidado, porque estavam vermelhos e inflamados e tinha as pálpebras feridas. Quando a criança voltou a cabeça, estremecendo e choramingando, a mãe sentiu pena por causa da sua dor. Pôs a tigela em cima de uma mesa tosca e por pintar, que estava do lado de fora da porta, e disse à criança, com a sua voz forte e carinhosa:
- Vá... come.
A pequena avançou com passo vacilante e sentou-se agarrada à mesa, os olhos vermelhos, meio fechados, para a luz doirada e penetrante do sol da tarde, depois estendeu as mãos para a tigela. A mãe gritou:
- Tem cuidado, está quente!
A pequena hesitou e começou a soprar a comida com o seu fraco sopro, para a arrefecer. A mãe continuava a olhar para ela, ainda perturbada, e murmurando para consigo: Quando ele levar o próximo carregamento de palha de arroz para a cidade, hei-de pedir-Lhe que vá a uma botica e compre um bálsamo para os olhos inflamados.
Agora o rapaz estava a queixar-se de a mãe ainda não ter posto na mesa a sua tigela, então ela foi buscá-la e pô-la na mesa. Durante algum tempo houve silêncio.
A mãe sentia-se muito cansada, mesmo para comer. Deu um grande suspiro, foi buscar o banquinho de bambu, pô-lo junto da porta e sentou-se a descansar. Inspirou profundamente e, com as duas mãos, alisou o cabelo áspero e queimado pelo sol e olhou em volta. Os montes baixos que rodeavam o vale onde ficava a terra deles escureciam lentamente, em contraste com um céu amarelo pálido e, no coração deste vale, na pequena aldeia, acendiam-se fogos para a refeição da noite e o fumo começava a subir languidamente no ar tranquilo. A mãe observava e encheu-se de satisfação. Das seis ou sete casas que constituíam a aldeola não havia uma, pensou ela subi tamente, na qual a mãe tratasse melhor dos filhos do que ela tratava dos seus. Havia algumas mais ricas; a mulher do estalajadeiro, sem dúvida, tinha algum dinheiro, pois usava duas pulseiras de prata nas mãos e brincos nas orelhas, como a jovem mãe tinha desejado arden temente ter na sua adolescência e nunca tivera. Mesmo assim, preferia ver as suas próprias economias irem para a boa carne que as crianças tinham sobre os seus ossos. Os mexericos diziam que o estalajadeiro dava aos filhos apenas os restos das refeições que os hóspedes deixavam nas tigelas. Mas a mãe dava aos seus filhos bom arroz que cultivavam na sua terra e, se os olhos da pequena estivessem bem, não haveria absolutamente nada de mal com eles; eram saudáveis e bem alimentados, e ao rapaz, bastante crescido, podiam dar-se-Lhe sete ou oito anos. Sim, ela tivera sempre filhos saudáveis e, se não fosse um que tinha vindo demasiado cedo, e que tinha morrido à nascença, seria agora também ele um belo rapaz, que estaria já a começar a andar.
Suspirou novamente. Bem, aí estava mais um a chegar dentro de um mês ou dois e era preciso pensar nisso. Mas estava contente. Sim, estava contente e muito satisfeita por estar inchada pela criança e por estar cheia de vida...
Alguém saiu duma porta do outro lado da rua e, através do fumo que encobria a porta, ela viu a mulher do primo do seu marido e chamou-a:
- Ah, tu também estás a cozinhar! Eu acabei agora mesmo!
- Sim... sim. - Respondeu a outra, despreocupadamente. - E eu ia jurar que tu já tinhas acabado, vais tão adiantada no teu trabalho.
Mas a mãe respondeu em voz alta e cortesmente:
- Não, não; é que os meus filhos tiveram fome cedo!
- Na verdade, és uma mulher desembaraçada! - exclamou novamente a mulher do primo, e voltou para dentro carregando a erva que tinha ido buscar.
A mãe sentou-se durante um bocado no crepúsculo da tarde, com um meio sorriso. Era bem verdade que podia estar orgulhosa, ter orgulho na sua força, orgulho nos seus filhos, orgulho no seu homem. Mas, mesmo assim, o sossego não durou muito. De repente, o rapaz empurrou a tigela:
- Mãe, mais!
Então, ela levantou-se para Lhe encher novamente a tigela e, quando saiu à porta, o Sol baixava por entre os montes, à beira do campo onde ela tinha estado a trabalhar durante o dia. Parou ali, parecendo ficar preso por um instante entre os montes, suspenso e imóvel, enorme e dourado, e depois avançou lentamente até deixar de se ver. No crepúsculo que se seguiu, ela viu o homem, que vinha, por um carreiro, com a enxada ao ombro, segura com o braço, enquanto abotoava o casaco. Caminhava leve e ágil como um gato jovem e subitamente começou a cantar. gostava de cantar e cantava com voz alta e forte e clara, e conhecia muitas canções; por isso, nos dias festivos, pediam-Lhe muitas vezes que cantasse para todos, na casa de chá, e assim passavam o tempo. Baixou a voz ao aproximar-se de casa e, quando por fim atingiu a soleira da porta, cantava em voz mais baixa, mas em tom alto e vibrante, as palavras num ritmo rápido. Encostou a enxada à parede; a velha, que estava a dormitar depois de ter comido, acordou e começou a falar como se não tivesse havido interrupção:
- Como eu dizia, o meu filho gosta dumas ervilhas no arroz e isso dá um sabor tão bom...
O homem riu-se e entrou, dizendo na sua voz agradável:
- Sim, mãe, é verdade!
Lá fora, a pequena, com a tigela vazia, estava sentada quieta e com a barriga cheia. O sol já tinha desaparecido, de modo que ela abriu um pouco os olhos e olhou em volta mais à-vontade e sem se queixar. A mãe voltou à cozinha e trouxe uma tigela de arroz fumegante para o homem. Era uma grande tigela de loiça vulgar azul e branca, cheia até à borda. Dentro dela, a mãe tinha deitado um ovo que tinha poupado das poucas galinhas que tinham e a clara começou a endurecer. Quando um homem trabalha arduamente, deve comer um pouco de carne ou um ovo. Embora eles pudessem discutir, ela sentia prazer em vê-lo alimentar-se bem e todas as suas discussões, pensava consigo mesma, eram da boca para fora. Gostava de o ver comer, mesmo que às vezes o censurasse por alguma coisa. Falou então para a sogra:
- Pus um ovo fresco no arroz do seu filho! E também tem hortaliça. A velha ouviu aquilo e imediatamente começou:
- Oh sim, um ovo fresco! Eu disse sempre um ovo fresco. É a melhor coisa para um homem novo. Dá mais força...
Mas ninguém a ouvia. O homem comeu rapidamente, pois estava com muito apetite, e logo a seguir chamou outra vez a mulher para encher novamente a tigela vazia, batendo com esta na mesa, para apressá-la. Depois de encher a tigela, foi buscar outra para si própria. Mas não se sentou ao lado dele. Sentou-se no seu banquinho, no pátio, e comeu o seu arroz com prazer, pois gostava da sua comida, tal como um animal saudável. De vez em quando, levantava-se para ir buscar um bocadinho de hortaliça à tigela do homem; enquanto comia, olhava para o céu vermelho escuro entre os dois montes. As crianças vieram encostar-se a ela e levantaram as bocas a pedir comida; pôs-Lhes muitas vezes um pouco da sua comida entre os lábios, com os seus pauzinhos. Apesar de já estarem satisfeitas e sem fome, e embora fosse o mesmo que já tinham comido, pelo facto de ser a comida da mãe, achavam-na mais saborosa do que a sua própria comida. Até o cão amarelo se aproximou confiante. Tinha estado sentado debaixo da mesa, na esperança de apanhar alguma coisa, mas o homem dera-Lhe um pontapé e o animal fugira, para ir apanhar habil mente os bagos de arroz que a mãe Lhe atirara uma ou duas vezes.
Por três vezes a mulher se levantou para encher a tigela do marido; este comeu até ficar cheio e deu um grunhido de satisfação; depois, na tigela vazia, ela deitou água a ferver que foi sorvida ruidosamente, em pequenos golos, com o homem agora de pé, do lado de fora da porta. Quando acabou, ela veio tirar-Lhe a tigela das mãos e ele ficou ali um bocado, olhando para o campo que a noite ia cobrindo. No céu havia lua nova, muito pequena e pálida entre as estrelas. O homem fitou-a e começou a cantar uma canção de embalar.
Das outras poucas casas do lugarejo começaram a surgir homens. Alguns gritavam uns para os outros por causa de um jogo que tinham começado na estalagem; outros ficavam de pé à porta de casa, bocejando. O jovem marido deixou subitamente de cantar e olhou fixamente para o outro lado da rua. Só havia ali uma casa, onde um homem continuava a trabalhar enquanto os outros descansavam. Era o seu primo. Aquele tipo! Até de noite trabalhava. Ali estava ele, sentado à porta de casa, com a cabeça inclinada para ver a trama de um cesto que tinha feito com vergas de salgueiro. Bem, alguns homens eram assim, mas quanto a ele... um joguito... voltou a cabeça para a mulher e encontrou o seu olhar entendido e reprovador e, ao encontrá-lo, rogou-Lhe uma praga silenciosa. Se tinha trabalhado todo o dia não podia ao menos ter um joguito à noite? A sua vida era só trabalhar e trabalhar? Mas não era capaz de enfrentar aquele olhar firme e zangado que a mulher Lhe lançava. Sacudiu a cabeça com irritação, como uma criança, e disse:
- Depois de um dia de trabalho como este... Bem, então vou dormir! Hoje também estou muito cansado parajogar!
Foi para dentro e atirou-se para cima da cama, estendeu-se e bocejou. A velha mãe, cega na penumbra do quarto sem iluminação, perguntou:
- O meu filho foi-se deitar?
- Sim, mãe! - respondeu ele zangado. - E que é que há para fazer num lugarejo como este? Trabalhar e dormir... trabalhar e dormir...
- Sim, sim, trabalhar e dormir - respondeu a velha carinhosamente, sem ouvir a cólera na voz dele.
Levantou-se e procurou o caminho para o canto onde, por trás de uma cortina de algodão azul, estava a sua enxerga. Mas o homem já estava a dormir.
Quando ouviu o som da respiração dele, a mãe levantou-se; as crianças
seguiram-na, agarradas ao seu vestido. Ela lavou as tigelas com um pouco de água fria do cãntaro que estava à porta da cozinha e colocou-as num vão da parede de barro. Depois, foi às traseiras da casa e, à luz difusa do luar mergulhou um balde. de madeira no poço pouco profundo, encheu-o e levou-o até ao cântaro, que encheu. Saiu mais uma vez, agora para soltar o búfalo-selvagem-de-água que estava preso a um dos salgueiros, que cresciam ao acaso próximo da eira, e deu-Lhe palha e alguma ração. Quando o animal acabou de comer levou-o para dentro de casa e prendeu-o a uma perna da cama onde o homem dormia. As galinhas já estavam recolhidas debaixo da cama e cacarejaram sonolentas à sua chegada; depois fez-se novamente silêncio.
Voltou ainda a sair e chamou; um porco grunhiu no escuro. Tinha-Lhe dado comida ao meio-dia e não Lhe dera agora, mas, empurrando-o e picando-o ao de leve, obrigou-o a entrar na casa. Só deixou o cão amarelo, que devia ficar na soleira da porta.
Durante todo este tempo as duas crianças tinham-na seguido o melhor que podiam, embora ela se deslocasse sem esperar pelos pequenos. Agora estavam agarrados às calças da mãe, lamuriando e chorando. Ela parou e levantou a mais nova nos braços e, levando a outra pela mão, conduziu-as para dentro de casa, trancando rapidamente a porta. Depois, dirigiu-se à cama e deitou a menina aos pés do homem. Suavemente, despiu as crianças; depois despiu-se e, movendo-se lentamente entre o homem e os filhos, estendeu-se e deitou a coberta por cima de todos. Ali ficou estendida e quieta, o corpo forte cheio de uma fadiga saudável. Deitada assim, no escuro, encheu-se de ternura. Embora pudesse impacientar-se durante o dia, embora sentisse pequenas zangas, à noite ela era toda ternura - ternura apaixonada pelo homem quando ele sentia necessidade de se voltar para ela, ternura pelos filhos que dormiam indefesos, ternura pela velha se ela tossia durante a noite, o que a levava a levantar-se para ir buscar um pouco de água, ternura até para com os animais se eles se agitavam e se assustavam uns aos outros com a sua própria inquietação; então falava-Lhes: Estejam quietos. Durmam, o dia ainda vem muito longe. E ouvindo a sua voz áspera e amiga também eles se aquietavam e voltavam a dormir.
Agora, no escuro, o rapaz encostava o nariz a ela, procurando-Lhe o seio. Ela deixou-o chupar, estendida numa sonolência morna. O seu peito estava seco, mas era macio e reconfortava a criança. Em breve voltaria a estar cheio. Além do rapaz, estava deitada a menina, os olhos fechados com força e esfregando-os por causa da comichão incessante, mesmo a dormir. Mesmo a dormir, ela revirava os olhos sem saber o que fazia.
Mas em breve dormiam todos. Dormiam todos pesada e profundamente; e se o cão ladrava na noite, todos eles continuavam a dormir, excepto a mãe, porque para eles eram os sons da noite. Apenas a mãe acordava e prestava atenção e, se não era preciso levantar-se, voltava a adormecer.
Capítulo 2
Haverá um dia diferente de outro para uma mãe? De manhã, a mãe acordou e levantou-se antes da alvorada e, enquanto os outros ainda dormiam, abriu a porta e deixou sair as galinhas e o porco, levou o búfalo para o pátio e varreu a imundície que eles tinham feito durante a noite, juntando-a ao monte que estava ao canto do pátio. Enquanto os outros ainda estavam deitados, foi à cozinha, acendeu o lume, aqueceu água para o homem e a sogra beberem quando acordassem, e deitou alguma numa vasilha de madeira, a fim de arrefecer um pouco, para poder lavar os olhos da menina.
Todas as manhãs os olhos da pequena tinham as pálpebras coladas e a criança não conseguia ver enquanto não fossem lavados. A princípio, a menina ficara assustada, assim como a mãe, mas a velha avó dizia, com a sua voz esganiçada: Eu também era assim quando era criança e não morri por isso!
Agora elas estavam habituadas e sabiam que aquilo não queria dizer nada, se não que a criança podia estar assim e não morrer daquilo. Mal a mãe tinha deitado a água, chegaram as crianças, o rapaz trazendo a menina pela mão. Tinham-se arrastado silenciosamente, sem acordar o homem, receando a sua ira, porque, embora pudesse estar muito bem- disposto, podia zangar-se e esbofeteá-los furiosamente se o acordassem antes de acabar o seu sono. Estavam os dois de pé junto à porta, silenciosos, e o rapaz piscava os olhos com sono, olhava para a mãe e bocejava; mas a menina estava de pé, esperando pacientemente, com os olhos fechados com força.
A mãe levantou-se rapidamente e, pegando na toalha cinzenta que estava pendurada num prego de madeira espetado na parede, mergulhou a ponta na bacia e, lentamente, lavou os olhos da pequena. A criança choramingou em silêncio e a mãe pensou para consigo, como pensava todas as manhãs: Bem, tenho que procurar o bálsamo para os olhos desta criança. Um dia destes tenho que tratar disso. Se não me esquecer, quando se vender o próximo fardo de palha de arroz, hei-de dizer-Lhe que vá a uma botica... há umajunto ao portão, à direita, ao fim daquela rua...
Enquanto assim pensava, o homem chegou à porta, com a roupa enrolada à volta do corpo, bocejando alto e a coçar a cabeça. Ela disse, exprimindo os seus pensamentos em voz alta:
- Quando levares aquele fardo de palha de arroz para vender, vai àquela botica que há junto à Porta da Água e pede um bálsamo ou qualquer coisa para estes olhos doentes.
Mas o homem, que ainda estava azedo com o sono, respondeu de mau humor:
- E por que havemos nós de gastar o nosso pouco dinheiro por causa de uns olhos inflamados, quando ela não há-de morrer por isso? Eu tive os olhos inflamados quando era criança e o meu pai nunca gastou dinheiro comigo, embora eu fosse o seu único filho vivo.
A mãe, percebendo que era má altura para falar, nada mais disse e foi deitar a água para ele. Mas também ela estava algo zangada e não Lha deu; pô-la em cima da mesa, onde ele teve que ir buscá-la. Nessa altura, não disse mais e deixou o assunto de lado. Era verdade que muitas crianças tinham os olhos inflamados e desenvolviam-se bem depois da infância passada, como tinha acontecido com o homem, de modo que, embora os seus olhos tivessem algumas cicatrizes nas pálpebras, como se podia ver olhando bem para a sua face, ele via bem, desde que não se tratasse de coisas muito miúdas. Não era estudante e não tinha que olhar para um livro para viver.
Subitamente, a velha agitou-se e chamou debilmente; a mãe foi buscar uma tigela de água quente e levou-Lha para ela beber antes de se levantar. A sogra sorveu-a ruidosamente e arrotou, expelindo os gases do estômago vazio, resmungando um pouco contra a idade que a tornava fraca de manhã.
A mãe voltou à cozinha e preparou a refeição da manhã; as criança sentaram-se no chão, junto uma da outra, à espera, apertando-se uma contra a outra na manhã fria. Por fim, o rapaz levantou-se e foi para perto da mãe, que atiçava o lume, mas a menina ficou sentada sozi nha. De repente, o sol irrompeu sobre o monte do lado nascente e a luz jorrou, brilhando sobre a terra, atingindo os olhos da criança E obrigando-a a fechá-los rapidamente. Em tempos, teria gritado, mas agora apenas continha a respiração, como faria uma pessoa crescida, sentou-se quieta, com as pálpebras vermelhas apertadas, sem se mexer, até sentir a mãe pôr-Lhe nas mãos uma tigela com comida.
Sim, é verdade que todos os dias eram iguais para a mãe, mas ela nunca os achava monótonos e estava muito satisfeita com a sua passagem. Se alguém Lhe falasse nisso, ela abriria muito os olhos negros e brilhantes e diria: Mas a terra muda desde as sementeiras até às colheitas, e há a ceifa da nossa seara e o pagamento do grão ao senhorio da terra que trazemos de renda, e há os dias de festa e do ano novo, e mesmo as crianças mudam e crescem e eu estou grávida e, para mim, tudo é mudança e mudança que me faz trabalhar desde a alvorada até à noite, juro.
Se tivesse algum tempo, havia outras mulheres na pequena aldeia com quem se dava; a que estava grávida ou a que tinha perdido um filho, ou uma que tinha um modelo novo de flor para pôr num sapato, ou uma nova maneira de cortar um vestido. E havia dias em que ia à cidade com algum grão ou hortaliça para vender, ela com o homem, e havia na cidade lugares novos para visitar e sobre os quais pensar, se alguma vez houvesse tempo para isso. Mas a verdade era que esta era uma mulher que podia viver satisfeita com o homem e as crianças e não pensar em absolutamente mais nada. Para ela - conhecer em toda a sua plenitude a paixão frequente do homem, conceber dele e saber que a vida nascia dentro do seu próprio corpo, sentir esta nova carne tomar forma e crescer, dar à luz e sentir os lábios de uma criança beber no seu peito - isso era suficiente. Levantar-se com a alvorada e dar de comer à família e tratar dos animais, e semear a terra e colher os seus frutos, tirar água do poço para beber, passar dias nos montes a apanhar erva e sentir o sol e o vento sobre si, isto era suficiente. Tinha prazer na sua vida: dar à luz, o trabalho da terra, comer e beber e dormir, limpar e arrumar a sua casa, e ouvir as mulheres da aldeia elogiá-la pela sua perícia no trabalho e na costura; até as discussões com o homem eram boas e estimulavam um pouco a sua paixão um pelo outro. Por isso, ela aguardava cada dia com entusiasmo.
Nesse dia, depois de o homem ter comido e suspirado, e pegado na enxada e partido para o campo como fazia todos os dias, com pouca vontade, ela lavou as tigelas, sentou a sogra cá fora ao calor do sol e mandou as crianças brincar para perto do lago, mas não demasiado perto. Depois, pegou na sua própria enxada e começou a andar, parando uma vez ou duas para olhar para trás. A brisa
trouxe-Lhe, levemente, a voz fina da velha e a mãe sorriu e continuou o caminho. Olhar pela porta era a única coisa que a velha podia fazer, e fazia-o com orgulho. Velha e meia cega como era, mesmo assim ela podia ver se alguém se aproximava da casa indevidamente e podia soltar um grito.
Era uma velha maçadora, muitas vezes insuportável e pior do que qualquer criança, porque se tornara obstinada e não podia ser castigada como uma criança. Porém, um dia, quando a mulher do primo dissera, Sem dúvida, será muito bom para ti quando aquela coisa velha morrer, tão velha e cega e cheia de males e dores e rabugenta, a mãe replicara, com a maneira delicada que tinha quando se sentia intimamente enternecida: Sim, mas ela ainda é muito útil, também, para olhar pela porta e espero que viva até a rapariga estar mais crescida.
Sim, a mãe nunca tinha sido de coração duro para aquela velha. Tinha ouvido mulheres que se gabavam da maneira como tinham feito uma guerra contra as sogras e que nunca suportariam o mau gênio das mulheres mais velhas. Mas, para esta jovem mãe, a sogra era apenas como mais uma criança da família, infantil e querendo isto e aquilo, de modo que, por vezes, era fatigante andar para cá e para lá nos montes, na Primavera, procurando alguma erva por que aquela alma ansiava. Uma vez, quando veio o Verão e houve uma terrível inundação na aldeia, tendo morrido dois homens robustos, algumas mulheres e muitas crianças pequenas, a velha estivera à morte, ou assim parecera, de tal modo que eles chegaram a comprar o melhor caixão que puderam. A jovem mãe ficou verdadeiramente alegre quando a velha se agarrou à vida para durar mais algum tempo. Mesmo quando a velha gastou dois vestidos que eram para a mortalha, a mãe ficou contente por ela estar viva. Na aldeia fazia-se graça do modo como a velha se agarrava à vida. Por baixo de um casaco azul, ela usava o vestido vermelho que a nora tinha feito para a sua mortalha, como era de uso naqueles lugares, até que ele ficou roto e a velha ficou aflita e doente até que a mãe Lhe fez um outro, que ela usava alegremente. E se alguém dizia: Ainda aí anda, velhota? ela respondia alegremente: Sim, aqui estou eu com a mortalha para o meu funeral! Estou a gastar esta e não sei quantas mais posso gastar ainda!
E ria por entre dentes, pensando como era engraçado viver e viver e não poder morrer.
Agora, olhando para trás, a mãe sorria e ouvia a voz da sogra:
- Tranquiliza o teu coração, boa filha, eu estou aqui para vigiar a porta!
Sim, teria saudades daquela velha alma quando ela morresse. Mas de que servia ter saudades? A vida vai e vem na hora marcada, e contra essa data nada se pode fazer.
Assim, a mãe seguia o seu caminho tranquilamente.
Capítulo 3
Quando os feijoeiros que ela semeara no campo floriram e os ventos se encheram do seu perfume, e quando o vale ficou todo amarelo da colza, a partir da qual se produzia o óleo, a mãe deu à luz o seu quarto filho. Na pequena aldeia não havia parteira a quem pagar, como acontecia nas cidades e vilas ou até nas aldeias mais importantes. Contudo, quando chegava a hora, as mulheres ajudavam-se umas às outras; havia ainda as mulheres mais idosas, que davam conselhos quando algo corria mal, ou se a criança vinha em má posição, ou se alguns pormenores do parto surpreendiam uma mulher mais nova. Mas a mãe era uma mulher bem feita, nem muito pequena nem muito franzina, e bem constituída, e tinha os músculos das coxas elásticos, e nunca nada tinha corrido mal. Mesmo daquela vez, quando caíra e o filho nascera antes do tempo, tudo correra com a maior facilidade, e o acontecimento teria quase passado despercebido, não fora o desgosto de ter perdido a criança, para além do trabalho que tivera em vão.
Na altura de Lhe nascer um filho, mandava sempre chamar a prima e esta fazia o mesmo quando a sua hora chegava. Assim, naquele dia de Primavera, fresco e suave, a mãe sentiu aproximar-se o momento, atravessou o campo em direcção a casa, encostou a enxada à parede e chamou por ajuda da casa da frente; a prima apressou-se a acudir, enxugando as mãos no avental, pois estava a lavar a roupa no tanque. Era uma mulher boa e simpática, de rosto redondo e moreno, narinas escuras que se erguiam acima da boca vermelha e grande. Era uma criatura ruidosa, sempre ocupada, que tagarelava sem parar ao lado do marido silencioso; agora vinha toda agitada, rindo e gritando à medida que se aproximava:
- Ó prima, ouve o que te digo! Que bom que é a nossa hora não chegar na mesma altura! Olhava para ti e perguntava-me qual de nós seria a primeira: tu ou eu. Mas estou mais atrasada do que pensava. A tua criança está prestes a nascer e o meu tempo ainda vem longe!
Ao dizer isto, a sua voz forte ouvia-se em todo o lugarejo, pois era assim a sua maneira de falar; e as mulheres, ouvindo chamar das outras casas, exclamavam alegremente:
- A sua hora chegou, vizinha? Que seja uma hora curta! E que seja um rapaz!
Uma delas, viúva, disse-Lhe em tom queixoso:
- Aproveita o melhor que puderes o teu marido enquanto o tens! Olha para mim! Eu que fui feita para ter filhos... e para aqui estou, já sem homem!
A mãe não respondia. Sorria levemente, pálida sob a poeira e o suor que Lhe cobriam o rosto, e entrou em casa. A velha seguiu-Lhe os passos. Tagarelava e ria, feliz por ter chegado a hora:
- Eu sempre disse, quando chegava a minha hora, e tu sabes, filha, que dei à luz nove filhos no meu tempo, e todos crianças fortes e saudáveis até morrerem, eu sempre disse...
Mas a mãe não a ouvia. Pegou num banquito, sentou-se sem proferir palavra e afastou o cabelo áspero da cara com ambas as mãos, encharcadas de um suor que não era o do trabalho dos campos, mas sim das dores do parto. Limpou a cara com a bainha do vestido, soltou os cabelos espessos e compridos, entrançando-os de novo com firmeza. Logo a seguir, uma dor violenta apossou-se dela; vergou-se em silêncio e esperou.
A seu lado, a velha não parava de tagarelar e a prima gracejava. Mas ao ver a mãe dobrar-se com dores, correu a fechar a porta, e ficou ali, à espera. Subitamente, alguém bateu; era o pequeno. Ao ver a porta fechada em pleno dia, e a mãe dentro de casa, teve medo, começou num pranto para que Lha abrissem. De início, a mãe disse:
- Não o deixem entrar, para que eu possa estar em paz nesta hora. E a prima aproximou-se da porta e gritou através do postigo:
- Fica aí, menino, que a tua mãe está ocupada!
E a velha, fazendo eco:
- Meu menino, deixa-te estar aí, que eu depois dou-te uma moeda para comprares amendoins, se te portares bem. Daqui a pouco, verás que coisa linda a mãe tem para ti!
Mas o garoto continuava cheio de medo, ao ver que a porta se mantinha fechada à luz do dia, e teimava em entrar; e a irmã começou a choramingar, como era seu costume, para imitar o irmão. Aproximara-se às apalpadelas, e também ela batia à porta com as mãozitas fechadas; por fim, a mãe zangou-se e, a meio das suas dores, cada vez mais fortes, ergueu-se, veio cá fora e bateu no garoto, gritando:
- Dás-me cabo da vida... nunca fazes o que te mando... e sou capaz de jurar que a criança que vem a caminho vai ser igual a ti!
Mas depois de ter dado vazão à sua ira batendo no filho, logo o seu coração se condoeu, dizendo com ternura:
- Vá lá, entra, mas também não há nada que ver.
E virou-se para a prima:
- Deixa a porta entreaberta; eles sentem-se longe de mim e não estão acostumados.
Depois, tornou a sentar-se, com a cabeça entre as mãos, e entregou-se às dores do parto, em silêncio. O rapaz acabou por entrar; mas ao não ver nada de novo, a não ser o olhar zangado da prima do pai, que o fixava como se tivesse feito algum mal, resolveu sair. Mas a rapariguita entrou, vindo sentar-se no chão de terra, junto da mãe, protegendo os olhos doentes com as mãos.
E assim esperaram, a mãe cheia de dores e em siléncio, as outras duas falavam disto e daquilo que se passava no lugarejo; e falavam do homem que morava à saída da aldeola, que hoje tinha ido jogar, desprezando as terras, e diziam que nessa mesma manhã a mulher e ele tinham discutido, porque o homem levara de casa o pouco dinheiro que restava. E a mulher fora quem ficara pior, pobre criatura, e, depois do marido ter saído, tinha vindo sentar-se à ombreira da porta, á lamentar-se em voz alta para que todos ouvissem as suas desgraças. E a prima da mãe disse:
- Se ele, ao menos, ganhasse uma vez por outra e trouxesse alguma coisa para casa... Mas não, perde e torna a perder, perde sempre... é isso que a amargura tanto.
A velha suspirou, cuspiu para o chão e lamentou-se:
- Ai! É uma fatalidade quando um homem tem o destino de perder sem nunca ganhar... porque os há, que eu bem o sei, mas não na minha casa, graças aos deuses, pois o meu filho tem sorte ao jogo.
Mas antes que acabasse de falar, a mãe deu um grito e voltou-se para o lado oposto onde se encontrava a filha; libertando-se da faixa, inclinou-se toda para a frente. A prima correu e com agilidade apanhou com as mãos a criança por quem haviam esperado. Era um menino!
A mãe deitou-se na cama, descansando do esforço; e aquele descanso foi reparador e dormiu muito tempo com um sono pesado. Enquanto repousava, a prima lavou-Lhe o filho, enfaixou-o e deitou-o junto da mãe, que nem tão pouco acordou quando a criança começou a chorar. Depois, a prima regressou a casa, à sua lida doméstica; antes, recomendou à velha que mandasse o rapaz chamá-la mal a mãe acordasse.
E foi então que o menino chegou a gritar:
- sabe que tenho um irmão?
A prima foi rapidamente. Levava uma tigela de sopa na mão e, rindo, pôs-se a brincar com o petiz:
- Então, se fui eu quem o trouxe a este mundo, não havia de saber?
O garoto fitou-a, pensativamente, e perguntou por fim:
- Então não podemos ficar com ele?
As mulheres riram, a mais velha mais alto do que as outras, admirando a esperteza do petiz. A mãe bebeu o caldo e depois, cheia de gratidão, murmurou para a prima:
- Tu tens um bom coração, prima.
Esta retorquiu:
- Quando a minha hora chegar, tu não vais fazer o mesmo por mim?
E as duas mulheres sentiam a sua amizade a ficar mais forte, por causa desta hora comum a ambas e que tantas vezes teria que se repetir.
Capítulo 4
Mas havia o homem. Para ele tudo permaneceria imutável, sem esperança de qualquer coisa nova, dia após dia. Nem tão pouco o nascimento dos filhos, que a sua mulher tanto amava, era para ele uma novidade; a seu ver, todos nasciam da mesma maneira, pareciam todos iguais e tinham de ser vestidos e alimentados; depois, já crescidos, casariam e também eles teriam filhos. Tudo sempre igual. Cada dia idêntico ao anterior sem que pudesse ter esperança de algo de novo.
Ele próprio nascera naquele lugarejo e, à excepção de algumas idas à pequena cidade, atrás da curva do monte, à beira do rio, nunca vira nada de novo em toda a sua vida. Ao levantar-se pela manhã, via o mesmo círculo de montes baixos à volta do céu inalterado, e lá ia trabalhar nos campos até o Sol se põr. Ao regressar, à noite, lá estavam os mesmos montes à volta do mesmo céu. Entrava na casa onde nascera, deitava-se na mesma cama onde dormira com os seus pais, até que, já crescido, Lhe tinham dado a sua própria enxerga.
Sim, e agora dormia com a mulher e os filhos na antiga cama, e a sua velha mãe deitava-se na enxerga que outrora fora sua. A mesma cama, a mesma casa, com quase tudo como dantes, excepto algumas pequenas coisas compradas na altura do seu casamento: uma chaleira nova, a manta azul que cobria a cama com forra nova, os castiçais novos e a imagem de um deus na parede; era o deus da fortuna. Devia ter sido uma boa pessoa, com as suas vestes vermelhas, azuis e amarelas, só que nunca trouxera fortuna àquela casa. Não. O homem mirava-o repetidamente e amaldiçoava este deus que o olhava risonho do alto da parede de barro, enquanto aquela sala permanecia pobre como sempre, e assim se manteria.
Uma vez por outra, em dia festivo, o homem ia até à cidade; se o tempo era de chuva, deslocava-se à pequena estalagem onde jogava com os outros homens que não tinham que fazer. Quando regressava a casa, para aquela mulher que só Lhe dava filhos que tinha de sustentar, caía sobre ele um terror ao pensar que, enquanto vivesse, só Lhe restava levantar-se todas as manhãs, ir trabalhar para a terra, da qual apenas possuía uma pequena porção, pois grande parte era arrendada a um senhor que vivia a bom viver numa cidade afastada; e naquelas terras, que não eram suas, gastava todo o longo dia, tal como o pai já fizera antes dele; retornava a casa para comer a comida reles de sempre, sem nunca provar o que de melhor a terra dava (pois o melhor era sempre para vender àqueles que o pudessem pagar); ir dormir, levantar-se outra vez e recomeçar um dia igual a todos os dias. Nem tão pouco as colheitas eram só suas; tinha de dar parte ao proprietário das terras e ainda outro quinhão ao agente deste, que vivia na cidade. Como Lhe custava pensar neste agente; era o homem da cidade que ele sempre sonhara ser, vestido de seda macia, de pele branca e limpa, sempre bem alimentado e de falinhas mansas, características do homem da cidade que se ocupa de profissões sem esforço.
Nestes dias em que estes pensamentos o oprimiam, mostrava-se deveras azedo, e só falava à mulher para praguejar sobre qualquer demora. E quando o forte temperamento dela se virava ao marido, este sentia um prazer estranho e malicioso em envolver-se em calorosas discussões com ela. A zanga aliviava-o em parte; mas a mulher levava quase sempre a sua avante, pois era mais teimosa que ele, excepto nas zangas com os filhos. Ele não era tão persistente na sua cólera e cansava-se depressa da desavença, largando a fazer outra coisa. Mas a ira da mulher tornava-se mais violenta quando ele batia numa das crianças ou quando Lhes gritava por estarem a chorar. Era superior às forças dela e, não conseguindo suportar tal comportamento, fazia-Lhe frente para proteger a cria, a quem dava sempre razão, mesmo que não a tivesse. Nestes momentos, a fúria do homem crescia desmesurada, ao ver como a mulher punha os filhos em primeiro lugar, ou pelo menos ele assim o julgava.
Sim, em dias como estes não dava importância a coisa alguma, nem às poucas folgas que tinha, como os dias de festa e os longos dias de Inverno, em que dormia ou jogava. Era um homem com sorte ao jogo e trazia sempre mais para casa do que levava; se fosse por ele, bem podia viver só daquela vida. O risco do jogo excitava-o e ele gostava de sentir os outros homens a juntarem-se à sua volta a vê-lo ganhar. Mas a sorte vinha-Lhe dos seus dedos ágeis, que nem a charrua nem a enxada tinham ainda entorpecido, por ser ainda jovem, com vinte e oito anos de idade, e nunca trabalhava mais do que o necessário.
A mãe não sabia o que o coração do pai dos seus filhos sentia. Sabia que ele gostava de jogar, mas que mal tinha se nunca perdia? No íntimo, envaidecia-se quando ouvia as outras lastimarem-se por os maridos perderem o parco dinheiro que tinham ganho a trabalhar a terra, nas jogatinas na estalagem; pelo menos não precisava de se queixar e sorria complacentemente quando uma delas se lamuriavaSe ao menos o desgraçado do meu marido tivesse a sorte do seu, que com aqueles dedos mágicos, arrecada todo o dinheiro da mesa de jogo! A vizinha é uma mulher de sorte! -, ela sorria, complacente, e não o recriminava demais pelo vício, a não ser que servisse de desculpa para uma ou outra zanga.
Também não o censurava por não trabalhar tão afincadamente nos campos como era costume dela; tinha consciéncia, mesmo quando ralhava zangada, de que os homens não conseguem trabalhar tanto como as mulheres e nunca deixam de ser crianças. se acostumara a continuar a labuta enquanto o marido deixava a enxada e se deitava a dormir uma ou duas horas na erva do caminho que separava os dois campos. Mas quando Lhe dizia algo no seu modo desabridoque era, afinal de contas, o modo a que a sua língua se habituara a falar -, embora, no fundo, o amasse de verdade, ele respondia: Parece-me que tenho o direito de dormir! Por hoje, já trabalhei o suficiente para o meu sustento.
A isto, ela poderia retorquir: E por acaso não temos filhos? E não é nosso dever fazermos o melhor por eles? " Mas não o fazia. Na verdade, as crianças pareciam ser dela e unicamente dela, o marido nunca se ocupava dos filhos; além disso, não era tão rápida quanto ele a encontrar uma resposta.
Por vezes a sua raiva soltava-se, não se limitando às rezingas vulgares. Uma ou duas vezes por estação a briga incendiava-se e da sua boca saíam palavras mais amargas do que o costume. Se, por acaso, o marido comprava qualquer ninharia no mercado com o dinheiro da venda das couves, ou se se embriagava em dia de semana, ela enraivecia-se de tal modo que quase esquecia o quanto o amava. E a sua ira era tão profunda e intensa que a sentia a remoer dentro de si, vindo a explodir algumas horas depois, quando o marido já quase esquecera o que fizera, pois facilmente olvidava o que não gostava de recordar. Nestas alturas era impotente para dominar os ataques de fúria que a invadiam.
Num dia de Outono, ele entrou em casa com um anel no dedo, que afirmava ser de ouro; mal o viu, ela ficou fora de si e gritou com a voz alterada:
- Tu... tu não queres partilhar o quinhão de amargura da nossa vida! Não, o que tu queres é gastar as migalhas que temos em coisas como esse estúpido anel que trazes no dedo! E quem já ouviu falar de um homem bom, pobre e honrado, usar um anel no dedo? Um rico pode bem dar-se a esse luxo sem que ninguém tenha algo a dizer! Agora um pobre, achas que parece bem? Ouro! Onde é que já se ouviu alguém comprar um anel de ouro com moedas de cobre?
Revoltado como uma criança, os lábios vermelhos de aborrecimento, o marido gritou-Lhe:
- É ouro! Já te disse que é ouro! Foi roubado numa casa de rico, disse-me o homem que mo vendeu. Quando eu ia a passar na rua deixou-me ver o anel que trazia escondido no casaco.
Mas ela fez troça dele:
- Ai sim? O que ele viu foi um camponês idiota, fácil de enganar! E mesmo que seja de ouro? E se um destes dias fores à cidade e alguém to vir no dedo? Acabam por te prender e levar para a prisão por te tomarem como ladrão! E como queres tu que te ajudemos então? Ou como vamos fazer para te alimentar enquanto estiveres preso? Dá cá o anel e deixa-me ver se é mesmo de ouro!
Mas o homem recusou-se. Sacudiu-se, aborrecido como uma criança e, subitamente, a mulher não conseguiu conter-se, atirou-se a ele, arranhou-Lhe a cara graciosa e delicada, batendo-Lhe com tal força que o deixou pasmado. Ele arrancou o anel do dedo com desdém, e ao mesmo tempo amedrontado, e gritou:
- Toma lá o anel! Sei bem que estás zangada por o ter comprado para mim e não para ti!
Esta resposta teve o condão de a deixar ainda mais enraivecida, pois
apercebeu-se, com assombro, que ele dizia a verdade; sentia uma mágoa profunda por nunca receber as pequenas bijuterias para enfeitar as orelhas ou os dedos, como as que alguns maridos dão às suas mulheres. E foi este sentimento de mágoa que a invadiu ao ver o anel. Olhou-o fixamente, e ele, com a voz fraquejando, com pena de si mesmo e da dura vida que levava, acrescentou ainda:
- Enfureces-te comigo com o mais pequeno prazer que eu tenha. Pois tudo o que possuímos tem de ser para esses diabos que tu deitas ao mundo!
E começou a chorar lágrimas verdadeiras e atirou-se para cima da cama, não parando de chorar para que ela o ouvisse. A velha mãe, que ouvira a discussão, chegou-se ao filho, acarinhou-o, receosa que ele adoecesse e, ao mesmo tempo, deitando uns olhares de ódio à nora, a quem normalmente não queria mal. As crianças choravam ao ver o pai chorar e sentiam como a mãe era dura e cruel.
Mas a mãe ainda não se acalmara. Apanhou o anel do pó do chão para onde o marido o atirara e mordeu-o com os dentes, para se certificar de que era de ouro como ele afirmava. Se fosse verdade, sempre poderiam vendê-lo e fazer um bom negócio. Era certo que alguns objectos roubados eram vendidos a preços muito baixos, pensava ela, mas por tão pouco também não, a não ser que o marido Lhe tivesse mentido, com medo. Mas quando ela mordeu o anel, o metal resistiu aos seus dentes fortes e brancos, ao contrário do que aconteceria se fosse ouro puro; e, furiosa, ela gritou de novo:
- Se fosse ouro não resistia aos meus dentes. É apenas latão, e duro! Mordeu-o mais um pouco e depois cuspiu um pedacito do metal amarelo.
- Olha! Mal teve um banho de ouro!
Não podia suportar que o homem se tivesse deixado enganar tão facilmente, e fugiu dele para ir trabalhar no campo. Tinha o coração demasiado éndurecido para se condoer com o choro das crianças e com a voz trêmula e ansiosa da sogra, que dizia:
- Quando eu era nova, deixava o meu marido fazer o que Lhe apetecia. Uma mulher deve deixar que o seu marido sinta prazer com pequenas coisas...
Mas não, a mãe não conseguia ouvir nada que acalmasse a sua raiva.
Depois de ter trabalhado um pouco na terra, a brisa suave de Outono amaciou-Lhe o coração enfurecido, acalmou-Lho, sem mesmo ela dar conta. As folhas esvoaçantes, as encostas acastanhadas, despojadas da frescura verde do Verão, o céu pardacento e o grito longínquo dos patos bravos voando rumo ao Sul, a terra silenciosa, e toda a melancolia serena do fim do ano, invadiram-Lhe o coração, sem que o notasse, acalmando-a de novo. E enquanto a mão espalhava o trigo de Inverno na terra fofa e bem tratada, o coração serenou, e recordou-se de como amava aquele homem cujo rosto sorridente Lhe aparecia e a perturbava. Cheia de remorsos, disse para consigo: Vou preparar-Lhe um prato bem apetitoso para o jantar. Apesar de tudo, zanguei-me demais por uma coisa tão pequena...
Apressou-se, ansiosa por chegar a casa, fazer o jantar e mostrar ao marido como tinha mudado. Contudo, ao entrar, o homem ainda estava deitado na cama, zangado, com a cara virada para a parede, e assim permaneceu, sem proferir palavra. Preparou-Lhe o seu prato predilecto, tendo ido apanhar camarões ao lago, e depois chamou por ele. O marido não se quis levantar, nem tão pouco comer. Respondeu numa voz fraca de enfermo:
- Sou incapaz de comer seja o que for... Destroçaste-me a alma.
Ela nada mais disse, pousou a tigela e voltou silenciosa ao trabaLho, de lábios cerrados; nem ajudou a sogra a convencer o filho a comer. A mãe não era capaz de implorar, pois a raiva ainda Lhe estava muito fresca na memória. Saiu de casa; o cão acercou-se dela, esfaimado. Voltou à cozinha e olhou para a malga cheia de comida; estendeu o braço e murmurou entre dentes:
- Bem, então vou dá-la ao cão!
Mas não foi capaz. Era comida demasiado boa para ser desperdiçada assim, com animais; e guardou a tigela no nicho da parede, acabando por dar ao cão um pouco de arroz frio e rançoso. O seu coração estava ainda enraivecido.
À noite, já deitada ao lado do marido, com os filhos enroscados de um lado e do outro, encostada ao homem, na escuridão, a raiva des vaneceu-se por completo. Sentiu que também ele não era mais que uma criança, dependendo dela tal como todo o resto naquela casa. De manhã, levantou-se gentil e tranquila. Deu de comer a todos depois acercou-se do marido, animando-o para que se levantasse E comesse. Ao vê-la assim, o homem ergueu-se vagarosamente do leito, como um convalescente, e comeu um pouco da comida que a mulher tinha preparado na véspera. Acabou por comê-la toda, pois era o seu prato favorito. Enquanto comia, a velha mãe olhava-c embevecida e tagarelava sem parar.
Nesse dia não foi trabalhar. Quando a mãe se aprontou para sair, o marido
sentou-se num banco ao sol, no umbral da porta, abanou debilmente a cabeça e disse:
- Hoje sinto-me muito fraco, e tenho aqui uma dor que me oprime o coração, por isso, tenho que descansar.
A mãe estava com remorsos por Lhe ter ralhado a ponto de o deixar naquele estado e acabou por Lhe dizer:
- Então, descansa!
E foi à sua vida.
Depois de a mulher ter abalado, começou a impacientar-se pelo constante palrar da velha mãe. Esta alegrava-se só de pensar que o filho ficaria todo o dia em casa, podendo falar com ele, mas este achava deveras maçador ficar assim a
ouvi-la e a ver os filhos brincar. Levantou-se e resmungou que se sentiria mais bem-disposto se bebesse um pouco de chá quente. Seguiu pela ruazita abaixo, em direcção à estalagem do primo em quinto grau. Já lá se encontravam outros homens a beber chá e a conversar. As mesas estavam postas debaixo do toldo, na rua, onde os viajantes passavam e, possivelmente, se deteriam. Quando tal acontecia, podiam ouvir-se relatos extraordinários, ou até mesmo, quem sabe, aparecesse um contador de histórias que viesse narrar os seus contos. A estalagem era um local alegre e animado.
Pelo caminho encontrou o primo, que vinha dos campos, com um ar grave, para tomar a refeição da manhã, tendo já trabalhado bastante desde a madrugada. Este chamou-o:
- Onde vais tu, em vez de ires trabalhar?
Ao que ele respondeu, com voz fraca e queixosa:
- A minha mulher amaldiçoou-me por causa de uma coisa sem importância, já nem me recordo de quê. Não sei como Lhe agradar. A sua maldição foi tal que, esta noite, fiquei doente. Ao ver-me neste estado, ela própria se afligiu e me rogou que hoje descansasse. Vou beber um pouco de chá quente para me reconfortar por dentro.
O primo cuspiu para o chão e continuou o seu caminho sem dizer palavra, pois era de temperamento silencioso, só falava se fosse obrigado, e guardava para si os poucos pensamentos que tinha.
E, assim, o homem sentia-se impaciente com a vida que levava, julgando ser impossível suportar eternamente a falta de coisas novas, este rodar de dias, ano após ano, até que envelhecesse e morresse. Tudo Lhe parecia mais difícil de suportar, quando ouvia os poucos viajantes que passavam pela estalagem à beira da estrada, que contavam coisas maravilhosas que se passavam para lá dos montes, perto da foz do rio que corria para além deles. Aí, o rio encontrava o mar, diziam, e havia uma cidade enorme, com todo o tipo de gente, onde era fácil ganhar muito dinheiro sem muito esforço; a cidade estava cheia de casas de jogo, e em qualquer delas se podiam encontrar belas cantoras, raparigas que os homens da aldeia nunca sequer conseguiriam imaginar, e que nunca veriam durante toda a sua vida. Nessa cidade encontravam-se coisas bem estranhas: ruas plana como eiras, carroças de todos os modelos, casas altas como montanhas e lojas com montras repletas de mercadorias, vindas dos quatro cantos do mundo, trazidas por navios. Um homem podia passar a vida inteira a olhar para aquelas montras sem nunca se cansar. A comida era boa e com fartura, havia peixe e marisco; e depois bem comido podia ir a uma grande casa de espectáculos, onde havia toda a espécie de peças de teatro e cinema: umas cómicas, de rebentar de tanto rir, outras estranhas e cruéis, ou brincalhonas e mordazes. Mas o mais estranho de tudo na grande cidade era que mesmo, durante a noite se via tão bem como de dia - usavam uma espécie de candeeiro que não era aceso à mão, nem alimentado a óleo, mas que dava uma luz tão pura como se a tivessem roubado ao céu.
Ocasionalmente, o homem jogava com um destes viajantes, que se admiravam ao encontrar um jogador tão hábil por aquelas paragens, num lugarejo tão pequeno, e que Lhe diziam: Meu caro amigo Tens a sorte de um homem da cidade. juro-te que és capaz de jogar em qualquer casa de jogo da cidade! Ao ouvir isto, o homem sorria e perguntava com ar sério: Acha mesmo que eu sou capaz?
E, falando com os seus botões, murmurava em tom de desdém e ansiedade: Na verdade, já ninguém se atreve a desafiar-me ao jogo na aldeia, e na cidade eu jogaria com quem quer que fosse. "
Quando assim pensava, desejava mais do que nunca abandonar aquela vida que levava e o trabalho no campo que desprezava; quantas vezes não rezingava ao deixar cair a enxada sobre os torrões da terra, contrafeito: E cá estou eu, para aqui... Rapaz novo e bem parecido, com a sorte a brincar-me nos dedos... e aqui estou eu... preso como um peixe num poço. E tudo o que consigo ver é este céu redondo sobre a cabeça, o mesmo céu quer faça chuva ou faça sol em casa, sempre a mesma mulher e um filho atrás do outro, todos chorar e a berrar e a pedir de comer... Por que hei-de deixar que consumam até aos ossos para Lhes dar alimento, sem que, durant toda a minha vida, possa gozar da menor alegria?
Certo era que, quando a mãe concebera e pusera no mundo o último filho, o homem mostrara-se mal-humorado e aborrecido, pois parecia-Lhe que ela gerava filhos facilmente e demasiado depressa, um após o outro; sabia, contudo, que isto era motivo de júbilo e não de recriminação para uma esposa, e que só teria razões para se lamentar se ela fosse estéril, e nunca se ela desse à luz todos os anos na altura devida, e sobretudo rapazes.
Mas, nestes dias, a justiça não era com ele. Ainda era um rapazote em muitas coisas, dois anos a menos que a mulher, como era costume por aquelas bandas, onde se achava apropriado o homem ser sempre mais novo. Sentia uma grande revolta dentro dele, esquecendo-se que era pai de filhos; só queria levar uma vida de prazer e de entretenimento, de alegrias ociosas que podia encontrar em qualquer cidade distante.
Verdade era que parecia ter sido esculpido pelo céu para a vida de prazer. Bem constituído e não demasiado alto, mas possante e bem feito, com ar delicado e gracioso, compleição fina e esbelta. O rosto era também agradável à vista: olhos negros, brilhantes e sorridentes, se nada houvesse que os toldasse de contrariedade. Em boa companhia, descobria sempre uma canção nova e tinha resposta pronta e com espírito na ponta da língua; o seu modo de contar histórias, que aparentava inocência, possuía um duplo sentido, sendo cómicas e grosseiras, tal como é do gosto dos homens do campo. Tinha o dom de fazer rir uma multidão com as suas cantigas e piadas mordazes, e tanto homens como mulheres gostavam de o ouvir. Ao vê-los, assim, alegres, sentia o coração inchar de vaidade pela força que tinha e, ao regressar a casa, ao olhar a mulher com ar macambúzio e corpo robusto, parecia-Lhe que só ela não reconhecia o homem extraordinário que ele era, pois nunca Lhe rendia o mais pequeno elogio. Em abono da verdade, em casa, nunca galhofava e poucas eram as vezes em que se mostrava animado, mesmo com os filhos. Parecia reservar o bom humor e a maneira de ser alegre e prazenteira só para os desconhecidos e estranhos à sua casa.
A mulher era conhecedora disto, e ficava simultaneamente contrafeita e apoquentada ao ouvir dizer às outras mulheres: Aquele seu homem! Pode estar certa que as histórias que conta não ficam atrás das comédias. E que feitio bem-disposto e alegre tem! Ao que ela responderia, calmamente: Sim, sem dúvida que é muito alegre. E para esconder a sua mágoa, mudava o rumo à conversa, pois, no fundo, amava-o, mas sabia que, perto dela, ele nunca se mostraria alegre.
No início do Verão, depois do nascimento do quarto filho, rebentou a mais terrível das discussões que jamais ocorrera entre marido e mulher. Era um dia do sexto mês, um daqueles dias do princípio do Verão que põe qualquer um a sonhar com uma alegria renovada, pela a qual este homem há muito ansiava. O ar lãnguido, suave e morno, as folhas e a relva renascidas no seu verde, o céu com um azul profundo e brilhante, e a ele mal Lhe apetecia trabalhar. Nem tão pouco Lhe apetecia dormir, pois o dia estava palpitante de vida, e também não tinham ainda chegado os grandes calores. Até as aves cantavam e chilreavam sem cessar; uma brisa doce trazia dos montes a fragrância dos lírios amarelos acabados de florir e das glicínias bravas que deixavam pender os cachos de um púrpura pálido. O vento soprava, fazendo deslocar enormes nuvens que nele flutuavam, brancas de neve, naquela imensidão cheia de luz, conferindo aos montes e vales uma luminosidade esplendorosa, fazendo realçar as cores e as sombras como raramente se consegue observar. A paisagem, agora clara, depois toldada, mudando a cada momento. Um dia alegre demais e capaz de agitar o coração de qualquer homem, impedindo-o de trabalhar.
A manhã desse dia esplêndido estava no fim. Um vendedor ambulante apareceu no lugarejo, trazendo ao ombro fazendas de todas as cores e texturas, dos mais diversos padrões, e à medida que caminhava gritava:
- Fazendas! Belas fazendas para vender!
Ao passar em frente da casa onde o homem, a mulher, a velha e as crianças estavam sentados a almoçar, à sombra do salgueiro, estacou e perguntou:
- Posso mostrar-Lhes as fazendas que trago?
A mãe retorquiu:
- Não temos dinheiro para comprar nada, a não ser um pedaço do pano mais barato para o meu filho mais novo. Somos agricultores pobres, arrendamos a terra e não temos posses para comprar roupas novas ou fazendas, a não ser o indispensável para não andarmos nus!
A velha, que gostava sempre de dar a sua sentença, acrescentou numa voz aguda e trêmula:
- Sim, a minha nora está a dizer a verdade; nos dias de hoje, os tecidos não prestam para nada; lavamo-los uma ou duas vezes e transformam-se em farrapos... Lembro-me de quando era nova usar o vestido da minha avó até me casar e de só nessa altura comprar algo novo, não que precisasse, mas por pura vaidade; e cá estou eu, vestindo a minha segunda mortalha e preparada para a terceira. Mas agora os tecidos são tão reles e não duram nada...
O vendedor aproximou-se, pressentindo negócio, cheio de mesuras e todo cortês, como é costume desta gente, fez um gracejo à mãe, não esquecendo também de dar uma palavra amável à velha, e dirigiu-se-Lhe:
- Velha senhora, aqui tenho um pedaço de tecido de tão boa qualidade quanto os do seu tempo, é tão bom que até o seu novo neto o pode usar... Boa mãe, olhe que é a sobra de uma fazenda comprada por uma senhora rica de uma terra grande por onde hoje passei, e olhe que ela comprou-a para o seu único filho. A ela fiz-Lhe o preço justo por ter de cortar a peça de fazenda, mas a si, como só me resta este pedaço, ofereço-Lho em honra desse filho mais novo que traz ao peito.
Enquanto proferia estas palavras aduladoramente, quase de um só fôlego, o vendedor puxara do fardo um pedaço de pano lindo, tal como dissera, todo florido com peónias vermelhas sobre um fundo verde.
A velha deu um grito de alegria, por conseguir ver as cores vivas e precisas, apesar de os seus olhos fraquejarem já, e até a mãe, ao vê-lo, se agradou dele. Baixou os olhos para o filho a quem dava de mamar, quase nu, só com um velho trapo em volta do ventre. Na verdade, era um menino rechonchudo, lindo, o mais bonito dos três, parecido com o pai, e ficaria deslumbrante vestido com aquele pano florido. Assim pensava a mãe e sentia-se a fraquejar e, contra vontade, acabou por perguntar:
- Então, diga lá quanto custa esse bocado? Mas olhe que não o posso comprar, pois mal temos que chegue para dar de comer às crianças e a esta pobre velha, e para pagar ao senhorio. Não podemos ter luxos, como as mulheres ricas que compram essas coisas para os filhos únicos.
Ao ouvir isto, a velha pareceu ficar muito contristada; a neta escapuliu-se do sítio onde estava e chegou-se para ver o belo tecido, aproximando-o dos olhos quase cegos. Só o rapaz mais velho continuou a comer, sem se importar com o resto; e o homem, sentado pachorrentamente, cantarolava em voz baixa, sem dar atenção ao pedaço de pano que só servia a uma criança.
O vendedor baixou a voz e, tentando a mãe, aproximou o tecido do petiz - com cuidado para que não se manchasse, caso não o vendesse agora e tivesse que o voltar a mostrar -, e murmurou:
- Um tecido assim, tão resistente, com cores tão vivas... passam-me muitos tecidos pelas mãos, mas como este nunca vi igual. Se tivesse um filho,
guardava-Lhe este pedaço. Mas, por infelicidade, a minha mulher é estéril, incapaz de me dar um filho, por isso não merece que eu gaste estas coisas com ela.
A velha escutava a narrativa e ao ouvir falar da mulher estéril riu a bom rir, e disse:
- Mas que pena, um homem tão bom... Por que não arranja outra mulherzinha e tenta mais uma vez? Olhe que sempre ouvi dizer que o homem tem de tentar com três mulheres diferentes, até saber se a culpa é sua ou não.
A mãe não ouvia. Permanecia sentada e reflectia, insegura. O seu coração parecia fraquejar ao olhar a criança no colo. Como ele era lindo! E aquele tecido novo e fino ao pé da sua pele dourada e das faces vermelhas... Acabou por ceder e perguntou:
- Qual é o último preço, pois de outro modo não o posso comprar. O vendedor disse uma quantia; afinal não era tão caro como receava e secretamente o coração saltitou-Lhe de alegria, mas acenou que não com a cabeça, com um olhar grave, e ofereceu-Lhe metade, como era hábito por aqueles lados. Mas era tão pouco que o vendedor pegou rapidamente no tecido, voltando a colocá-lo no seu lugar, e fez menção de abalar. A mãe pensou no seu menino e ofereceu-Lhe uma quantia maior; e assim discutiram os dois e, depois de ter fingido que se ia embora várias vezes, o vendedor acabou por puxar do fardo e tirar o pedaço do tecido, anuindo em baixar o preço. A mãe levantou-se para ir buscar o dinheiro à fresta da parede onde o guardava.
Durante todo este tempo o marido não participara na disputa e permanecera sentado, preguiçosamente, continuando a cantar baixinho, parando uma vez por outra para beber um golo de água quente, como era seu costume após cada refeição. O vendedor, homem assaz esperto, que gostava de tirar partido de todas as situações, colocou displicentemente uma peça de tecido no chão; era um linho bravo, muito fresco, da cor azul do céu, adequado para usar nos dias quentes de Verão. Olhou de relance para o homem, observando se este tinha reparado no seu gesto e, meio a brincar, disse:
- Este Verão já comprou alguma roupa? Se não, tenho o que preci sa. Afianço-Lhe que é mais em conta do que se comprar numa loja na cidade.
Mas o homem abanava a cabeça e um ar sombrio entristeceu-Lhe o rosto indolente e belo, e disse com amargura:
- Nesta casa não há nada com que eu possa comprar coisa alguma. Aqui só há trabalho. Quanto mais trabalho, mais bocas tenho que alimentar.
O vendedor ambulante já passara por muitas cidades e muitas zonas rurais, e como o seu negócio o obrigava a conhecer as caras, logo se apercebeu que o homem que tinha à frente apreciava o prazer e era como uma criança ainda não preparada para a vida que levava. Com uma aparente bondade e compaixão, disse-Lhe:
- Bem vejo que leva uma vida de árdua labuta e que pouco proveito dela tira. Para uma pessoa tão fina, deve ser uma vida demasiado dura. Mas olhe, se comprar um fato novo, vai ver que é como tomar um remédio... vai-Lhe curar o coração. Não há nada como um fato novo no Verão para alegrar a alma de um homem. Com esse anel a brilhar no dedo, um pouco de óleo no cabelo e este fato novo, pode estar certo de que não encontra homem mais bonito na cidade.
O homem ouviu isto com agrado, e riu alto, um riso um pouco tolo; depois, pensando em si, respondeu:
- E por que não hei-de eu dar-me ao luxo de comprar um fato novo? A única coisa que vejo é o nascimento de um filho atrás do outro. Será que terei de usar sempre os mesmos farrapos?
E experimentou o toque do tecido entre os dedos. Enquanto o exa minava, a velha mãe gritou com entusiasmo:
- É uma bela peça de linho, meu filho, e se tens de comprar roupa, este é o tecido azul mais bonito que vi em toda a minha vida. O teu pai teve um fato assim, em tempos... Terá sido na altura do casamento? Não, nós casámos no Inverno. Sim, no Inverno, espirrei tanto durante a cerimónia que todos se riram por ver uma noiva a espirrar daquela maneira...
O homem perguntou, então, com modos bruscos e rudes:
- Quanto custaria o tecido para um fato?
O vendedor ia dizer o preço quando a mãe assomou, trazendo na mão a quantia exacta para o pedaço de pano. Alarmada, gritou:
- Mas nós não podemos gastar mais!
Ao grito da mulher, o homem sentiu crescer nele o desejo de fazer a compra e respondeu obstinadamente:
- Mas eu quero um fato deste tecido! Gosto muito dele e desta vez vou comprar! Temos aquelas três moedas de prata, tenho a certeza!
Ora, essas três moedas eram um bem que tinham, mas tinha sido a mulher a
trazê-las na altura do casamento e, assim sendo, eram só dela. Tinham-Lhe sido dadas pela mãe quando saíra de casa. Eram o seu bem mais precioso e ela nunca tinha achado razão suficientemente forte para delas se separar. Mesmo quando a sogra tinha estado às portas da morte e tinham tido que comprar o caixão, não Lhes tinha tocado, preferindo pedir dinheiro emprestado. Muitas vezes pensara naquelas três moedas de prata como sendo a fortuna guardada para usar em tempos difíceis, ou em caso de guerra, ou de algum infortúnio inesperado que os privasse dos alimentos que a terra Lhes dava. Ao guardar aquele dinheiro na parede, pelo menos não morreriam logo de fome. Por isso, gritou:
- Não podemos tocar nas moedas de prata!
Mas o homem ergueu-se e, lesto que nem uma andorinha, passando por ela enfurecido, procurou o buraco da parede e pegou nas moedas. A mulher
perseguiu-o, agarrou-o e, querendo prendê-lo, pendurou-se nele enquanto este corria. Mas não conseguiu ser tão ligeira quanto o homem. Este atirou com ela, que caiu por terra, ainda com o filho nos braços, e correu para fora de casa, gritando:
- Corte-me três metros e meio de tecido e mais o meio metro de graça, como é o costume!
O vendedor apressou-se a satisfazer o pedido e aceitou as moedas de prata, embora a paga fosse um pouco inferior ao preço que dissera. Mas estava desejoso por vender as fazendas e partir.
Quando a mãe saiu de casa, já o vendedor tinha desaparecido e o marido estava de pé na sombra verde da árvore, segurando entre as mãos o tecido azul, novo e brilhante. O dinheiro desaparecera. A velha, receosa, continuava sentada. Ao ver chegar a nora, começou a falar muito alto, sem parar, com voz fina:
- Que lindo azul, meu filho... e não se pode dizer que fosse caro. E há quantos Verões tu não usavas roupa feita de um tecido assim.
O homem olhava a mulher com ar sombrio, rosto escarlate, e berrou-Lhe irado, no auge da sua raiva:
- Fazes-me tu o fato, ou tenho de pedir a alguma costureira, a quem vou ter de pagar, e dizer que a minha mulher se recusa a fazê-lo?
A mãe nada disse. Sentou-se no banquito, de novo em silêncio, pálida e abalada com a queda. Ainda no colo, o menino continuava a chorar com medo. Sem Lhe prestar atenção, pô-lo no chão, deixando-o gritar enquanto arranjava a trança desfeita. Durante algum tempo, a sua respiração manteve-se ofegante e engoliu em seco uma ou duas vezes, até que acabou por dizer, sem encarar o marido:
- Dá-me o tecido! Eu faço-te o fato.
Sentia-se humilhada ao pensar que outra mulher fizesse o trabalho. Isso iria revelar ainda mais a zanga entre ambos, zanga essa, aliás, que os vizinhos já tinham podido presenciar das suas casas.
Desse dia em diante, a mulher guardou rancor ao marido. Cortou e coseu o fato, sem mostrar qualquer contentamento, embora o fizesse bem e o melhor que sabia, pois o tecido era de boa qualidade e merecia todos os cuidados. Enquanto o trabalho durou, não dirigiu a mais pequena palavra ao homem. Não abriu a boca para falar das coisas triviais, nem do que se passava na rua, nem algum comentário sobre a vida doméstica, coisa que as mulheres tanto gostam de fazer. Ao notar-Lhe este modo duro, o homem tornou-se intratável. Deixou de cantar e, mal acabava de comer, escapava-se para a estalagem e punha-se a beber chá e a jogar noite fora com os outros homens, o que o obrigava a dormir mais no dia seguinte. Noutra altura, a mulher tê-lo-ia recriminado, não o deixando sossegar enquanto não fizesse o que ela queria. Mas agora deixava-o dormir e partia sozinha para os campos, muda e seca, fizesse ele o que fizesse. Contudo, tudo aquilo era aparéncia, pois, no seu íntimo, ainda gostava do marido.
Mesmo depois do fato pronto - e tinha demorado bastante a fazê-lo, pois de permeio teve de plantar o arroz - foi incapaz de dizer ao homem se este lhe ficava bem. Entregou-Lho e ele vestiu-o, puxou lustro ao anel de pequenas pedras, alisou o cabelo com óleo tirado da garrafa da cozinha e seguiu pela rua abaixo com ar arrogante.
Quando este e aquele Lhe atiraram um galanteio, dizendo-Lhe como estava elegante com aquele fato, não retirou todo o prazer que podia destes elogios. A mulher nada Lhe dissera. Não, quando ele se deteve por instantes à porta, ela prosseguiu com os seus afazeres. Sem levantar os olhos, continuou a varrer a casa, curvada sobre a vassoura pequena. Nem tão pouco se questionava se o fato tinha ficado bem cortado ou se Lhe assentava bem, como era seu costume quando Lhe costurava algo novo, nem mesmo que se tratasse apenas de um par de sapatos.
Por fim, timidamente, o marido atreveu-se a dizer-Lhe:
- Tenho a impressão de que te esmeraste mais a fazer este fato do que os outros que tens feito. Assenta-me bem, pareço mesmo um daqueles homens elegantes da cidade.
Ainda assim, a mulher continuava sem erguer os olhos. Encostou a vassoura no canto, foi buscar um novelo de algodão e começou a fiá-lo, pois gastara toda a linha de coser na roupa nova do marido. Então, acabou por responder, em tom amargo:
- Pelo preço que me custou, deve parecer-se com a roupa de um imperador.
Mas não o encarava, não, nem mesmo quando ele se precipitou para a rua. Nem sequer olhou, quando o podia ter feito sem que ele notasse, quando este virou as costas, tão magoada estava com marido, embora o seu coração soubesse que aquele fato azul Lhe assentava como uma luva.
Capítulo 5
Durante todo o dia a mãe aguardou o regresso do homem a casa. Era um dia em que os campos podiam ser deixados sem preocupações, pois o arroz estava plantado e, na água baixa e com o calor do sol, as plantas verdes ondulavam ao vento, com as espigas novas em formação. Nesse dia não havia necessidade de ir tratar da terra.
Assim, sentou-se debaixo de um salgueiro a fiar e a velha veio sentar-se ao seu lado, contente por ter alguém para ouvir o que ela dizia e, enquanto falava, desapertava o casaco e estendia os braços delgados e murchos ao sol, sentindo o calor bom nos seus ossos. As crianças, nuas, corriam também ao sol. Mas a mãe estava silenciosa, rodando o fuso com um movimento seguro entre o polegar e o indicador que molhava na língua, e o fio saía torcido e branco; quando já tinha um bocado de fio, enrolou-o em volta de um pedacito de bámbu polido e liso, para fazer um novelo. Fiava da mesma maneira como fazia tudo o resto: firme e bem, e o fio era forte e resistente.
Lentamente, o sol subia a caminho do meio-dia. Poisou o fuso e levantou-se.
- Ele deve estar a chegar a casa, todo inchado com o fato azuldisse ela, secamente.
A sogra, cacarejando e com o seu riso pronto e fraco, respondeu:
- Oh, sim, o que está por fora da barriga de um homem não é o mesmo que está dentro dela...
A mãe, com uma cabaça, tirou arroz do cesto onde o guardavam, passou a outra mão pela superfície, nivelando-o, de modo a não se perder um grão, deitou-o num cesto feito de tiras finas de bambu e foi pelo carreiro até à borda do lago, olhando ao longo da rua enquanto caminhava. Mas não viu vestígios do fato azul novo.
Desceu cuidadosamente o talude e começou a lavar o arroz, mergulhando o cesto na água e mexendo o grão com as mãos fortes E morenas, mergulhando-o uma e outra vez, até o arroz brilhar, limpo branco como pérolas húmidas. Na volta, baixou-se para apanhar uma couve da horta e deitou uma mão-cheia de erva ao búfalo, preso debaixo de uma árvore. Em seguida, voltou a casa. Nesta altura, o rapaz mais velho chegava vindo da rua, com a irmã mais nova pela mão, e a mãe perguntou-Lhe calmamente:
- Viste o teu pai na rua, ou na estalagem, ou à porta de alguém?
- Ele esteve esta manhã na estalagem, a beber chá - respondeu o rapaz, admirado. - Eu vi o fato azul novo dele, era bonito, e o nosso primo, quando soube quanto tinha custado, disse que tinha sido muito caro. -
Sim, custou-Lhe caro, juro! - disse a mãe com voz dura. E a pequena
esganiçou-se, fazendo eco do irmão: - Sim, o fato era azul... eu vi que era azul.
Mas a mãe não disse mais. O bebê, que dormia numa joeira começou a chorar e ela foi e pegou-Lhe, desapertou o vestido, acon chegou-o ao peito e deu-Lhe de mamar enquanto ia cozinhando refeição. Mas, primeiro, disse para a sogra:
- Mãe, deixe-se estar sentada onde está e volte-se para ver se vê fato azul e avise-me, para eu pôr a comida na mesa.
- Está bem, filha - retorquiu a velha, carinhosamente. Mas quando o arroz ficou cozido e solto, branco e seco como o homem gostava, ele ainda não tinha vindo. Quando a couve ficou cozida - e a mulher até fez um pouco de molho agridoce para pôr grelo da couve, como ele gostava - o homem ainda não tinha chegado. Elas esperaram um bocado. Entretanto, o cheiro da comida naS narinas fazia aumentar a fome e a fraqueza da velha, que gritou, un bocadinho zangada:
- Não esperes mais pelo meu filho! Está-me a correr água da boca, a minha barriga está vazia como um tambor, e ele ainda não veio!
Então, a mãe deu à velha a sua tigela e deu também comida àS crianças. Até as deixou comer da hortaliça, só guardando a parte grelo para ele. Depois, também ela comeu, mas frugalmente, poiS parecia achar menos prazer na comida nesse dia, e, assim, aindA ficou muito arroz e uma boa porção de hortaliça. Pôs cuidadosamente o resto da comida num sítio onde apanhasse vento, para se manter fresca. Estaria tão boa à noite como agora, se a aquecesse outra vez.
A seguir, deu de mamar ao bebê, que tomou a sua dose e adormeceu. Um bebê roliço, gordo, robusto, dormindo sob o sol forte, moreno e vermelho do calor. As duas crianças estendidas a dormir à sombra do salgueiro; a velhota cabeceava no seu banco. Sobre a pequena aldeia caiu a paz do sono e o siléncio do calor do meio-dia, que punha os animais de cabeça baixa e sonolentos.
Só a mãe não dormia. Pegou na roca e sentou-se à sombra do salgueiro, do lado poente da eira, e torceu e enrolou o fio. Mas, pouco depois, não podia mais trabalhar. Ao longo da manhã, tinha trabalhado firme e regularmente, torcendo, enrolando e fiando, mas agora não conseguia estar tranquila. Era como se uma estranha ansiedade se apoderasse do seu corpo. O homem nunca tinha deixado de vir a casa para comer. Murmurou para si própria: O que deve ter acontecido é que ele foi à cidade parajogar ou qualquer coisa assim.
Não tinha pensado nisso antes, mas quanto mais pensava agora, mais Lhe parecia verdade que assim fosse. Após algum tempo, o primo, seu vizinho, saiu para ir para os campos e, pouco depois, a mulher dele acordou da sesta debaixo de uma árvore e chamou-a:
- O teu homem demora-se todo o dia lá para onde foi? A mãe respondeu simplesmente:
- Sim, foi à cidade tratar de qualquer assunto dele.
E o primo, procurando vagarosamente o que queria entre as enxadas e as pás, disse na sua voz fina:
- Sim, eu vi-o alegre no seu fato azul novo, a caminho da cidade!
- Sim - confirmou a mulher.
O coração dela tranquilizou-se um pouco e voltou a fiar com mais afinco, pois o primo tinha visto o seu homem a caminho da cidade. Tinha ido para um dia de divertimento, sem dúvida, demorando-se um dia ou dois para se vingar dela. Era o que ele ia fazer, com o seu fato novo e aquele anel de latão e o cabelo escovado, brilhante e untado. Ela tentou alimentar um pouco a cólera no seu espírito. Mas a cólera estava morta e não conseguiu fazê-la reviver, porque estava ainda misturada com uma estranha ansiedade, por causa das palavras do primo.
A tarde arrastou-se, longa e quente. A velha acordou e gritou que tinha a boca seca como casca de árvore e a mãe levantou-se e foi-Lhe buscar chá para ela beber; as crianças acordaram e rolaram no pó durante algum tempo; por fim, levantaram-se para brincar e o bebê acordou e quedou-se alegre no seu cesto, feliz pelo sono dormido.
Contudo, a mãe não conseguia sossegar. Se tivesse sido capaz de dormir, teria sossegado e, num dia normal, poderia facilmente ter caído no sono, mesmo que estivesse a trabalhar, pois era tão saudável e robusta que adormecia com facilidade, sem sequer dar por isso. Mas hoje, havia qualquer coisa a roer-Lhe o coração que a mantinha desperta, como se estivesse à espera de algum som que haveria de vir.
Por fim, levantou-se, impaciente com a espera. Estava cansada de olhar para a rua vazia, e não vinha quem ela aguardava há tanto tempo. Pegou no bebê ao colo, agarrou na enxada e foi para o campo, dizendo à sogra:
- Vou à encosta sul sachar o milho.
Pelo caminho, pensava que seria mais fácil se não estivesse em casa e que as horas passariam mais depressa se obrigasse o corpo a algum trabalho duro.
Assim, ao longo da tarde, trabalhou no campo de milho, a face abrigada do calor do sol por um lenço azul, deslocando incessantemente a enxada para baixo e para cima entre o milho verde. Era apenas um campo pequeno, irregular, pois em todas as terras onde era possível plantá-lo eles tinham semeado arroz, fazendo mesmo socalcos nas encostas para onde a água podia ser levada, porque o arroz é um alimento melhor e mais saboroso que o milho, e vende-se por um preço mais alto.
O sol caía sobre o monte sem sombras e batia nela, e logo a sua roupa ficou húmida e escura do suor. Mas ela não parava, excepto para dar de mamar ao bebê, quando este chorava. Então, sentava-se no chão e saciava-Lhe a fome, limpava a face quente e contemplava a terra brilhante do sol, sem conseguir ver. Quando a criança estava satisfeita, pousava-a de novo para voltar às suas tarefas. Trabalhou até o corpo Lhe doer e o espírito ficar entorpecido, sem pensar em nada, excepto naquelas sementes que caíam sob o bico da enxada e ficavam a murchar, secando com o calor. Por fim, o sol parou na borda do campo e o vale caiu numa sombra repentina. Então, endireitou-se, limpou a face húmida ao vestido e murmurou:
- Com certeza que ele está em casa, à espera. Tenho que ir fazer-Lhe a comida.
E, levantando a criança do leito de erva macia onde tinha estado, voltou para casa.
Mas ele não estava lá. Quando contornou a esquina da casa, ele não estava lá. A sogra perscrutava ansiosamente na direcção do campo e as duas crianças estavam sentadas no degrau da porta, à espera e cansadas, e gritaram quando a viram. Ela disse, desorientada:
- O vosso pai... ainda não veio?
- Ele não veio e nós temos fome - gritou o rapaz. E a rapariga fez eco na sua voz hesitante e infantil:
- Não veio e nós temos fome! - E sentou-se com os olhos fechados para se defender dos últimos e incómodos raios doirados do sol.
A velha levantou-se e coxeou até à beira da eira exclamando, com voz aguda, para o primo que voltava para casa:
- Viste o meu filho nalgum lado?
Mas a mãe gritou-Lhe, num assomo de impaciência:
- Deixe lá, mãe! Não diga a toda a gente que ele não veio!
- Está bem, mas ele não veio - insistiu a velha, olhando, inquieta. Mas a mãe nada mais disse. Foi buscar arroz frio para as crianças, aqueceu um pouco de água e deitou-a sobre o arroz para a sogra, procurou um resto de comida antiga para o cão e, enquanto eles comiam, foi pela rua abaixo, com o bebê nos braços, até à estalagem que ficava à beira da estrada. Agora era altura de poucos fregueses, apenas um ou dois que estavam de passagem para suas casas numa aldeia próxima, pois, terminado o trabalho, esta era a hora de os homens estarem em casa. Se ele lá estivesse, pensou, estaria sentado a uma mesa mais próxima da rua, onde pudesse ver e ouvir melhor o que se passava, ou a uma mesa com um freguês. Porque ele não ficaria sozinho se pudesse, ou se estivessem a jogar ele também entraria no jogo. Mas, embora olhasse, não viu sinais de um fato azul novo nem barulho de jogo numa mesa. Então, avançou e olhou pela porta, mas ele não estava lá. Encontrou apenas o estalajadeiro, a descansar depois da refeição da noite, encostado à parede junto ao fogão, a face negra do fumo e gordurosa de muitos dias, pois ele achava que num negócio tão escuro quanto o seu, de pouco serviria lavar-se, pois dentro em pouco estaria outra vez negro.
- Viu o pai dos meus filhos? - perguntou a mãe.
O estalajadeiro, que estava a limpar os dentes com uma unha suja que chupava a seguir, respondeu desprendidamente:
- Ele esteve aqui sentado um bocado, esta manhã, com o seu fato azul novo. Depois foi passar o dia à cidade.
E cheirando-Lhe a qualquer bisbilhotice nova:
- O que... aconteceu alguma coisa?
- Nada, nada - replicou a mãe apressadamente. - Ele teve que tratar de umas coisas na cidade e demorou-se, com certeza, pode ser que tenha que lá passar a noite e volte amanhã.
- E que coisas? - perguntou o estalajadeiro, subitamente curioso.
- Como hei-de eu saber, se sou apenas uma mulher? - respondeu ela, e foi-se embora.
Mas, no caminho para casa, enquanto os lábios respondiam a quem Lhe falava quando ela passava, lembrou-se de qualquer coisa. Quando chegou, foi direita àquele vão e apalpou. Estava vazio. Ela sabia que tinha estado ali guardado um pequeno tesouro de moedas de cobre e um bocadinho de prata, também, pois ele tinha vendido a palha de arroz por bom preço, há um ou dois dias - ele era esperto nessas coisas - e tinha voltado com uma boa parte do dinheiro. Ela tinha-Lho tirado, contado e guardado naquele vão, e devia lá estar. Mas não estava.
Então, teve a certeza de que ele se tinha ido embora de verdade. Sentou-se ali, no chão de terra, e, conservando o bebê nos braços, baloiçou-se para trás e para diante, lentamente e em silêncio. Bem, ele tinha-se ido embora! Aqui estava ela com as três crianças e a velha e ele tinha-se ido!
O bebê começou de repente a agitar-se e ela, sem ter consciência do que fazia, deu-Lhe o peito. As duas crianças entraram, a menina choramingando e a esfregar os olhos, e a sogra veio apoiada ao seu pau, dizendo interminavelmente:
- Onde é que estará o meu filho? Filha, o meu filho disse onde ia? Aconteceu alguma coisa muito estranha ao meu filho.
Então, a mãe levantou-se e disse:
- Ele estará de volta amanhã, com certeza, mãe. Agora deite-se e durma. Ele volta amanhã.
A velha mãe ouviu e repetiu, tranquilizada:
- Sim, ele amanhã, sem dúvida, volta. - E foi para a sua enxerga, caminhando às apalpadelas pelo quarto mal iluminado.
Depois a mãe levou as duas crianças para o pátio e lavou-as como era seu costume, nas noites de Verão, antes de irem dormir, despejando uma cabaça cheia de água sobre cada uma delas, esfregando com a palma da mão aquelas peles morenas, à medida que despejava a água, até ficarem limpas. Mas não ouvia o que elas diziam, nem prestou atenção aos lamentos da pequena por causa dos olhos. Quando foram para a cama, o rapaz exclamou, admirado por o pai não ter vindo:
- Onde vai dormir o meu pai?
Só então a mãe respondeu, na sua desorientação:
- Certamente, na cidade. Ele volta para casa amanhã, ou daqui a um dia ou assim.
E acrescentou com uma cólera súbita:
- Com certeza, quando o dinheiro se Lhe acabar, vem outra vez para casa.
E acrescentou ainda, mais amargamente:
- E aquele fato azul novo estará sujo e terei que lavá-lo, com certeza!
Estava algo contente por poder zangar-se com ele; e manteve a sua cólera, agarrando-se a ela, porque isso fazia com que ele parecesse estar mais perto, e continuou agarrada a ela enquanto guiava os animais e trancava a porta. E murmurava:
- juro que hei-de estar a dormir quando ele vier dar murros na porta, ainda esta noite!
Contudo, na noite escura, na noite calma e quente, no silêncio do quarto fechado, a sua cólera esvaiu-se e ela sentiu medo. Se ele não viesse, que faria ela, uma mulher só e jovem? A cama, vazia, era enorme. Esta noite não precisava de ter cuidado, podia estender os braços e as pernas à-vontade. Ele tinha-se ido embora. Subitamente, caiu sobre ela o desejo mais ardente do seu homem. Durante seis anos ela deitara-se ao seu lado. Podia estar zangada com ele durante o dia, mas à noite estava novamente junto dele e esquecia os seus modos indolentes e as suas criancices. Lembrava-se agora como era bom e agradável olhar para ele; não era grosseiro nem ordinário quando se zangava, como a maior parte dos homens, mas um homem novo, de aspecto simpático, e os dentes eram tão brancos como o arroz. E ali ficou, esperando por ele, e toda a sua cólera desapareceu e só ficou o desejo.
Quando a manhã chegou, levantou-se, cansada, e novamente se sentiu endurecer. Quando se levantou e ele não veio, levou os animais para fora e deu de comer às crianças e à velha, e endureceu outra vez, murmurando sem cessar:
- Ele voltará quando o dinheiro se Lhe acabar... está bem, eu sei que ele então virá!
Quando o rapaz olhou para a cama vazia e perguntou admirado:
- Onde está o meu pai?
Ela respondeu rispidamente e em voz subitamente alta:
- Eu disse que ele ia estar fora um ou dois dias, e se alguém na rua te perguntar, tu só tens que dizer que ele está fora por um dia ou assim.
Contudo, nesse dia, quando as crianças saíram para brincar, ela não foi para os campos. Não, deixou-se ficar sentada no banquinho, de modo a poder ver ao longo da única rua da aldeia se alguém por lá viria e, enquanto respondia qualquer coisa à tagarelice da velha, pensava para si própria que o fato novo era de um azul tão nítido que poderia vê-lo ao longe. Sentou-se a fiar e a cada torcidela que dava ao fuso olhava disfarçadamente para a estrada. No seu espírito, recontava o dinheiro que ele tinha tirado e quantos dias este podia durar e pareceu-Lhe que não podia durar mais de seis ou sete dias; a não ser que, com aqueles dedos ágeis e afortunados que ele tinha para o jogo, pudesse ganhar mais algum e demorar-se mais algum tempo, antes de ter que voltar para casa. Havia ocasiões, durante a manhã, em que pensava que já não era capaz de suportar a voz da sogra, na sua tagarelice, mas continuava a suportá-la na esperança de ver o homem voltar para casa.
Ao meio-dia as crianças vagueavam pela casa, com fome. O rapaz espiava a tigela da hortaliça posta de lado para o pai e pediu para comer dali, mas a mãe não Lhe dava. Se ele tornava a pedir, dava-Lhe uma bofetada e respondia em voz alta:
- Não, isto é para o teu pai. Se ele vier à noite, vem com fome e vai queré-la toda para ele.
A longa e calma tarde de Verão passou e ele não veio, e o sol pôs-se como sempre, pesado e cheio de luz doirada, e o vale ficou cheio de luz por um momento, e veio a noite, que era profunda e escura, e desta vez ela já não recusou. Pôs a tigela defronte da criança e disse
- Comam quanto quiserem, isso estraga-se se ficar mais outro dia e, quem sabe...
E deitou-Lhe um pouco do molho agridoce e deu-o à sogra, dizendo
- Coma esta, que eu faço outra fresca, se ele vier amanhã...
- Então, ele vem amanhã? - perguntou a velha.
- Sim, talvez amanhã - respondeu a mãe sombriamente. Nessa noite, deitou-se mais desanimada e receosa, e pensou que ninguém sabia se ele alguma vez voltaria.
No entanto, havia a esperança dos sete dias até o dinheiro ter desaparecido. Um por um, os sete dias vieram e cada um Lhe parecia que havia de ser o dia do regresso. Ela nunca fora mulher de andar pela pequena aldeia ou de ficar a tagarelar com as outras mulheres. Mas agora, uma após outra destas cerca de vinte pessoas vieram vê-la e perguntar-Lhe onde estava o homem:
- Nesta aldeia, somos todos uma família, mais ou menos ligados e parentes dele.
Por fim, no seu orgulho, a mãe inventou uma história e respondeu ousadamente, verbalizando um pensamento súbito que Lhe tinha vindo à cabeça:
- Ele tem um amigo numa cidade afastada, que Lhe disse que havia um sítio onde ele podia trabalhar por um bom salário, sem precisarmos de nos cansar na terra. Se o trabalho não for bom, voltará depressa para casa, mas se for um trabalho de que goste, não volta até o patrão Lhe dar férias.
Dizia isto tão calmamente como sempre falava quando dizia a verdade, de tal forma que a sogra ficou admirada e exclamou:
- E por que não me deste tu uma notícia tão boa, sabendo que eu sou a mãe dele?
E a mãe inventou outra história e respondeu:
- Ele recomendou-me que não dissesse nada, mãe, porque a sua língua é muito comprida e toda a rua ficaria a saber mais do que ele e se ele não gostar do trabalho, eles não têm que saber.
- Então ele disse isso! - cacarejou a velha, apoiando-se para diante no seu pau, para olhar para a cara da nora, com a boca de maxilas vazias aberta, meio ofendida. - É verdade que eu sempre fui faladora, filha, mas não tenho a língua assim tão comprida!
Uma e outra vez a mãe contou a história e de cada vez acrescentava-Lhe algo, para a fazer parecer mais verdadeira.
Havia uma mulher que passava muitas vezes por ali, uma viúva que vivia com um irmão mais velho e que não tinha muito que fazer, sendo viúva e sem filhos, que passava os dias sentada fazendo florzinhas de seda nuns sapatos que tinha feito para si própria, e que tinha muito tempo para meditar sobre qualquer coisa curiosa que ouvisse. Pensou nesta coisa estranha de um homem que se tinha ido embora e, um dia, lembrou-se de qualquer coisa e correu rua abaixo o mais depressa que podia com os seus pezinhos pequeninos e, sagazmente, disse à mãe:
- Mas há muito tempo que não chega uma carta a esta aldeia e eu não ouvi falar em nenhuma carta para o teu homem!
E foi em segredo ter com o único homem da aldeia que sabia ler e que escrevia algumas cartas a quem Lhe pedisse, e que lia qualquer carta que chegasse, o que o ajudava a melhorar um pouco a sua vida. A viúva perguntou-Lhe em segredo:
- Veio alguma carta para o Li Primeiro, que era filho do Li Terceiro da última geração?
E quando o homem disse que não, a alcoviteira exclamou:
- Mas houve uma carta, pelo menos a mulher assim diz, e apenas há uns dias!
O homem ficou despeitado, com receio que tivessem levado a carta para outra pessoa da aldeia que soubesse escrever, e negou repetidamente, dizendo:
- Muito bem! Eu sei que não houve nenhuma carta, nem nenhuma carta de resposta, nem veio ninguém ter comigo para a ler, nem para comprar um selo para pôr em nenhuma carta, e eu sou a única pessoa da aldeia que tem selos. E não vem nenhum carteiro a esta aldeia há vinte dias ou mais.
Então, a viúva farejou alguma coisa estranha e disse em toda a parte, segredando, que a mulher do Li Primeiro estava a mentir e não tinha havido nenhuma carta e, sem dúvida, o marido tinha-se ido embora e deixado a mulher. Não tinha havido uma grande discussão por causa do fato novo, a tal ponto que toda a aldeia os tinha ouvido praguejar um contra o outro, e o homem não a tinha atirado ao chão e não Lhe tinha mesmo batido? Pelo menos as crianças assim diziam.
Mas quando esta conversa chegou aos ouvidos da mãe, esta respondeu corajosamente que o que dissera era verdade, e que tinha feito o fato azul novo de propósito para o homem ir à cidade distante e que a discussão fora por outra razão. Quanto à carta, não havia carta nenhuma; pois a notícia tinha vindo por boca, por intermédio de um vendedor ambulante vindo do litoral.
Assim a mãe mentia firmemente e a velha acreditou na história de todo o coração; e falava muitas vezes, em voz bem alta, do filho e como ele havia de ficar rico. E a mãe mantinha a face calma e tranqui la e não chorava como fazem as mulheres quando os seus homens se vão embora, envergonhando-as. Por fim, todos acharam que a história era verdadeira e até a alcoviteira ficou mais calada e só murmurava sombriamente para as suas flores de seda:
- Veremos, com o tempo veremos se ele manda dinheiro ou se escreve alguma carta ou se alguma vez volta.
Assim, a agitação na aldeia acalmou e o espírito das pessoas voltou-se para outras coisas, e esqueceram a mãe e a sua história.
Então, a mãe dedicou-se corajosamente à sua vida. Os sete dias
demoraram muito a passar e o homem não vinha. E o arroz foi amadurecendo ao longo dos dias, e pendia, pesado e amarelo, pronto para a
colheita, e o homem não vinha. Assim, a mulher ceifou-o sozinha excepto quando o primo veio, dois dias, e a ajudou, quando o arroz dele já estava cortado e atado em molhos. Ela ficou contente com a sua ajuda. Contudo, teve um certo receio também, porque se tratava de um homem de poucas palavras e as suas perguntas eram simples e difíceis de responder sem dizer a verdade. Mas ele trabalhava em
silêncio e não Lhe perguntou nada, proferiu apenas as poucas palavras necessárias. Antes de se ir embora, disse-Lhe:
- Se o teu marido não tiver vindo quando for altura de dividir o arroz com o senhorio, eu venho ajudar-te, porque o novo agente é um homem manhoso e esperto e não é conveniente uma mulher fazer isto sozinha.
Ela agradeceu-Lhe calmamente, contente com a sua ajuda, pois conhecia mal o agente, que era novo por aqueles lados e um homem da cidade que punha uma cordialidade falsa em tudo o que dizia e fazia.
Os dias transformaram-se em meses e, dia após dia, a mulher levantava-se antes da alvorada, largando as crianças e a sogra a dormir, deixava-Lhes a comida feita para comerem quando acordassem, e, com o bebê num dos braços e a foice para a colheita na outra mão, partia para os campos. O bebê já estava grande e era capaz de se sentar sozinho. Ela punha-o no chão e deixava-o brincar à-vontade.
Ele enchia as mãos com terra e punha-a na boca para a comer; depois cuspia-a com desagrado e a seguir esquecia-se e tornava a comê-la, até ficar coberto com vómito de lama. Mas o que quer que ele fizesse, a mãe não podia prestar-Lhe atenção. Tinha que trabalhar por dois, e trabalhava. Se a criança chorasse, tinha que chorar até a hora que a mãe se pudesse sentar para descansar; então, podia chegar-Lhe o peito à boca enlameada e deixá-lo beber, e estava cansada demais para se preocupar com as manchas que ele Lhe deixava.
Punhado a punhado, ceifou o grão amarelo e rijo, curvando-se a cada molho, e dispô-lo em feixes. Quando os respigadores vieram para o campo, para rebuscar os grãos que tinham caído, como fazem os pedintes e os respigadores na altura das colheitas, virou-se para eles, a face negra de suor e terra, e, contraída e praguejando, gritou-Lhes:
- Vocês querem respigar o trabalho de uma mulher só, que não tem um homem para a ajudar? Eu sou mais pobre que vocês, pedintes, malditos ladrões!
E praguejou contra eles tão fortemente, amaldiçoando as mães que os tinham gerado e os filhos que eles próprios tinham, que, por fim, eles se foram embora, pois tinham medo de maldições tão poderosas.
Depois, molho a molho, transportou o arroz para a eira e aí debuLhou-o, jungindo o búfalo ao tosco rolo de pedra que tinham, e fez andar o animal durante os dias quentes do Outono, e ela também andou. Com o grão debulhado, juntou a palha, amontoou-a e joeirou o grão ao vento que soprava.
Agora já levava o rapaz para o trabalho e se ele se atrasava ou se demorava a brincar, dava-Lhe bofetadas, porque sentia as suas forças esgotadas. Mas não era capaz de fazer as medas. Não conseguia amontoar os molhos nas medas, pois sempre fora o homem que o fizera, por ser um trabalho que ele detestava menos que outros, e fazia-o sempre bem, e cobria o topo das medas com lama, que alisava, para proteger a palha. Por isso, pediu ao primo que a ensinasse a fazê-lo nesse ano; depois, já podia fazer aquilo com o rapaz, se o homem estivesse fora mais do que um ano. O primo veio e mostrou-Lhe como se fazia. Ela dobrava-se para apanhar a palha e depois esticava-se para a atirar para ele, que estava sentado no topo da meda e a ia distribuindo; e assim a colheita do arroz ficou feita.
Estava pele e osso, pelo o trabalho e fadiga excessiva; tinha perdido toda a carne e a pele estava queimada, com uma cor muito morena, excepto o vermelho das faces e lábios. Só o leite permanecia nos seus seios, rico e abundante. Havia algumas mulheres em que o alimento se transformava todo na sua própria gordura e nada para a criança, mas esta mulher era feita para ter filhos e a sua maternidade roubaria o seu corpo impiedosamente, se tal fosse necessário para a criança.
Depois veio o dia marcado para medir a parte da colheita que seria para o senhorio. Este proprietário da aldeia e dos campos nunca vinha, ele próprio, receber a sua renda. Rico e ocioso, vivia nalguma cidade afastada; tinha recebido a terra dos seus antepassados e mandava em seu lugar um agente; este ano, o agente era novo, pois o anterior tinha deixado os seus serviços no ano passado. era sufi cientemente rico, ao cabo de vinte anos, para deixar de trabalhar. Este novo agente chegava agora para visitar todos os agricultores da aldeia. A mãe estava à porta, o grão amontoado na eira, à espera, até que ele veio.
Era um homem da cidade, da cabeça aos pés: alto, polido, fato de seda cinzento e sapatos de couro, e tinha uma mão grande e macia que levava muitas vezes ao lábio, e quando se movia vinha dele um perfume qualquer. A mãe hesitou quando ele chegou e a questionou:
- Onde está o lavrador?
A mulher aguardou e deixou a velha mãe responder:
- O meu filho agora trabalha na cidade e somos nós que tratamos da terra.
A mulher mandou o garoto chamar o primo e esperou em siléncio; ofereceu chá ao homem, expressando apenas os cumprimentos comuns, sentindo, contudo, o olhar quente do agente sobre os seus pés nus e as suas faces. A mãe permaneceu de pé enquanto o primo media o grão que era para ela e a parte que era para o agente; estava satisfeita por não ter que dizer nada, nem sequer se aproximou para ver a pesagem, pois o primo era um homem honesto. Mas via o grão dividido e isso também era difícil, como era difícil para todos os agricultores, dar a este homem calmo da cidade a parte que era para ele e que Lhes tinha custado tanto trabalho. Mas davam-na carrancudos, como ela, sabendo que se o não fizessem iriam sofrer e, além da parte do senhorio, davam ao agente uma ou duas galinhas gordas, ou uma medida de arroz, ou uns ovos, ou mesmo prata, como honorários pessoais.
Além disto, quando todo o grão estivesse medido, a aldeia devia fazer uma festa ao agente e cada casa devia oferecer um prato. Mesmo neste ano em que tinha estado só, a mãe foi buscar uma galinha, matou-a e cozinhou-a para a festa, cozendo-a ao vapor durante muito tempo, até ela estar no ponto, sem se desmanchar e com a pele inteira, com a carne tão tenra que, quando o primeiro pauzinho Lhe tocasse, ela se abriria. O aroma da galinha, depois de ter cozido durante tantas horas, era demais para as crianças, que rondavam a cozinha; e o rapaz exclamou:
- Quem dera que fosse para nós... quem dera que pudéssemos comer uma galinha!
Mas a mãe, amarga e cansada, respondeu:
- Quem pode comer comida desta senão um rico?
No entanto, quando a festa acabou, foi à mesa em desordem a que os homens tinha estado sentados e tirou um osso que tinha ficado da sua galinha com um bocadinho de pele agarrada e um pedacinho de carne e levou-o para o garoto chupar, dizendo-Lhe:
- Cresce depressa, meu filho, para também poderes comer à mesa com eles.
Então, o rapaz perguntou, ingenuamente:
- Acha que o meu pai me vai deixar?
A mãe respondeu, amarga:
- Se ele não estiver cá, tu comerás em seu lugar, isso te juro.
E o ano assim passou até aos fins do Outono. As crianças quase tinham esquecido que alguma vez tinha havido mais alguém na cama além delas e da mãe, e até a velha raramente pensava em perguntar pelo filho, porque os ventos frios Lhe faziam doer os velhos ossos e ela tinha muito trabalho para encontrar um lugar quente, abrigado do vento e ao sol, e queixava-se incessantemente por o vento mudar, e porque, a cada ano, o sol parecia mais frio que no anterior.
O rapaz já trabalhava diariamente em pequenas coisas que considerava tarefas suas. Todos os dias, quando não havia outro trabalho, levava o búfalo para as terras do monte e deixava-o pastar na relva, enquanto ele se deitava no dorso do animal, ou procurava grilos na erva e entretecia pequenas gaiolas para eles, com hastes de ervas. Quando voltava para casa, à noite, pendurava as gaiolas na porta e os grilos cantavam. O bebê e a irmã gostavam de ouvir aquele som.
Mas depressa a erva dos montes escureceu com a aproximação do Inverno e os caminhos alegravam-se com os ásteres púrpura e com pequenos crisãntemos bravos amarelos, que eram as flores do Outono. Era altura de cortar a erva para o combustível do Inverno. Então, o rapaz foi com a mãe. Todo o dia ela cortava a erva seca com a sua foice de cabo curto e o rapaz fazia torcidas, e atava o que ela cortava em molhos. Por todo o monte havia manchas de azul, que eram pessoas como eles a cortar e a atar a erva castanha em molhos. À noite, quando o sol se punha e o ar descia frio do cimo dos montes, todos tomavam o rumo de casa, ao longo dos caminhos da montanha, tortuosos e estreitos, cada um carregando dois grandes molhos numa vara posta ao ombro, e assim fazia também a mãe; o rapaz levava dois molhos pequenos.
Quando chegavam a casa, a primeira coisa que ela fazia era pegar no bebê e aliviar os seios do leite, que a criança bebia, faminta, depois de ter passado o dia sem comer outra coisa que não papa de arroz. A velha, naquelas noites frias que vinham tão cedo, ia para a cama logo que o sol se punha, para se aquecer, e a menina vinha às apalpadelas para a luz do fim do dia, estremecendo ligeiramente mesmo com aquela luz pálida, e sentava-se a sorrir na soleira da porta, regozijando-se com a chegada do irmão, pois sentia a sua falta, agora que ele tinha que trabalhar.
Assim passou o Outono. Agora havia que lavrar o terreno para a sementeira do trigo e semeá-lo. A mãe ensinou o garoto a espalhá-lo, aproveitando a ajuda do vento, e como havia de observar o vento e não deixar o grão cair muito junto nem muito ralo. Depois veio o Inverno, quando o trigo estava a começar a rebentar e os campos encolheram e endureceram com a vinda do frio. Então a mãe tirou a roupa de Inverno de debaixo da cama, onde a guardava, e pô-la ao sol e
aprontou-a para ser vestida. Mas o rude trabalho do Verão e do Outono tinha castigado as suas mãos de tal modo que até a roupa de algodão grosseira se prendia nas gretas da pele. Os seus dedos estavam rígidos e duros, embora os ossos não estivessem deformados.
Contudo, continuou o trabalho, sentada à porta para apanhar o sol e abrigada do vento cortante. Primeiro, tratou da roupa para a velha, que sofria tanto com o frio. Mandou-a ficar na cama um dia ou dois e tirou a mortalha vermelha que ela usava e, entre o pano e o forro, voltou a pôr o enchimento de algodão que tinha tirado quando veio o Verão. A velha, deitada e abrigada do frio, tagarelava feliz.
- Achas que eu ainda gasto esta mortalha, minha nora? No Verão, eu pensava que sim mas, quando vem o Inverno, não tenho a certeza, porque a comida não me aquece como antigamente.
E a mãe respondia, ausente:
- Oh, a mãe vai durar, tenho a certeza, nunca vi ninguém tão velho durar tanto.
A velha casquinou, e voltou a casquinar, cheia de prazer, rindo e tossindo:
- Sim, não há dúvida de que tenho muita sorte!
E ficou contente, à espera da sua mortalha, para a aquecer de novo.
A mãe remendou então a roupa das crianças, mas a da menina deu-a ao bebê e a do rapaz à menina, pois todos eles tinham crescido durante o ano. Depois surgiu o problema da roupa para o rapaz, para o manter quente. Havia o casaco acolchoado do pai e as calças que ele tinha usado durante os três Invernos passados, e ele tinha-os rasgado, de modo que ela os remendara, no punho e no pescoço, e à frente havia um grande rasgão, feito por um chifre do búfalo quando uma vez o homem, zangado, tinha dado um puxão na corda que passava pelas narinas do animal, de modo que este, com a dor, tinha sacudido a cabeça.
Mas ela não ousava cortá-las mais pequenas, ao tamanho do garoto. Voltava a roupa nas mãos, pensativa e dorida, e acabou por murmurar:
- E se ele vem... não, não corto ainda.
Mas o rapaz ali estava, sem roupa para o Inverno, e esperava, tremendo no frio da manhã e da noite, até que ela apertou os lábios e cortou a roupa à medida do rapaz; e, para se consolar, dizia para consigo: Se ele vier, podemos vender algum arroz e comprar roupas novas. Se vier pelo ano novo, gostará de ter roupa nova.
O Inverno foi passando e a mulher pensava que o homem com certeza havia de vir pelo ano novo, altura em que todos os homens vão para as suas casas, excepto se tivessem morrido ou se fossem pedintes. Assim, quando alguém Lhe perguntava, ela começava a dizer: Ele há-de vir a casa para a festa de ano novo. E a velha mãe dizia muitas vezes durante o dia: Quando o meu filho vier no ano novo... E as crianças também esperavam por esse dia. De vez em quando, a alcoviteira, que estava a fazer outro par de sapatos novos para o dia da festa, sorria e dizia com malícia: É estranho não vir nenhuma carta do seu homem, e eu sei que não veio nenhuma por que o homem que as escreve mo disse. Ao que a mãe respondia, com uma calma aparente: Mas eu tive notícias várias vezes, por pessoas que passavam por aqui; o meu homem e eu nunca fomos muito para cartas e elas custam bom dinheiro. E quem as escreve esquece-se de dizer coisas, e toda a rua fica a saber se alguma vez vier uma para mim. Ainda bem que ele não manda cartas.
Assim calava a alcoviteira e tantas vezes disse que ele havia de vir no ano novo que até ela acabou por acreditar. O dia aproximava-se e toda a gente da aldeia andava ocupada com a festa. Ela também tinha com que se ocupar, não só por causa das crianças, para Lhes fazer sapatos novos e lavar e limpar a roupa delas, e fazer um gorro novo para o bebê, mas tinha que se ocupar do homem também. Encheu dois grandes cestos com arroz, todo o que se atreveu a põr de lado, e levou-os à cidade; vendeu-os por um preço um pouco inferior ao que o homem conseguiria, mas foi bastante bom, visto que era uma mulher a negociar sozinha com homens. Com o dinheiro, comprou duas velas vermelhas e incenso para queimar diante do deus, e letras vermelhas da sorte para pôr nas ferramentas, no arado e nos apetrechos de lavoura que usava. Comprou também um pouco de banha e açúcar para fazer doces para esse dia. Depois, com o que sobrou, foi a uma loja de fazendas e comprou pano de bom algodão azul e, noutra loja, comprou algodão cardado para o enchimento. Tinha tanto a certeza de que agora ele viria que até meteu a tesoura ao tecido e o cortou lenta e dolorosamente e, com cuidado, fez um casaco e umas calças de bom pano, distribuiu o enchimento por igual e acolchoou-os, acabando o fato até ao último botão; os botões eram feitos com pedacitos de tecido torcidos com força e cosidos. Depois, pendurou o fato e a todos parecia que as roupas iam trazer o homem de volta.
Mas o dia nasceu e o homem não veio. Durante todo o dia, ficaram sentados nas suas roupas lavadas, as crianças limpas e receosas de se sujarem, e a velha com cuidado para não deitar salpicos de comida para o regaço, e a mãe obrigou-se a sorrir com segurança durante todo o dia; e dizia a todos: Ainda é dia e ele ainda pode vir. Vieram até à porta uns homens que tinham sido companheiros do marido e que vinham dar-Lhe as boas-vindas se ele tivesse chegado. Ela ofereceu-Lhes chá e bolinhos e, quando perguntaram pelo marido, respondeu-Lhes:
- É verdade que ele pode vir hoje, mas talvez o patrão não possa dispensá-lo os dias suficientes para vir de tão longe; disseram-me que o patrão gosta muito dele e está muito ligado a ele.
No dia seguinte, quando vieram as mulheres, ela respondeu o mesmo e sorriu, dizendo despreocupadamente:
- Como ele não veio, virá em breve, tenho a certeza, e vai dizer-me porquê. - E continuou a falar de outras coisas.
Os dias passaram e ela falava despreocupadamente; as crianças e a velha acreditavam no que ela dizia, confiando nela para tudo.
Mas no escuro das noites, ela chorava silenciosa e muito amargamente. Por um lado, chorava porque ele se tinha ido embora, mas às vezes chorava, também, porque isso era uma vergonha para ela, e outras, ainda, chorava porque era uma mulher só e a vida parecia-Lhe demasiado pesada, com estas quatro pessoas dependentes dela.
Um dia, quando estava sentada a chorar e a pensar em si, veio-Lhe à ideia que, pelo menos, podia evitar a vergonha. Quando se lembrou do dinheiro que tinha gasto nas roupas novas e ele não viera, e dos bolos que tinha feito e do incenso queimado a rezar por ele e ele sem vir, e quando se lembrou dos olhares manhosos da alcoviteira e de todas as insinuações segredadas, e dos olhares admirados e cheios de dúvidas, mesmo do bom primo, quando o tempo passou e o homem continuava sem aparecer, então ela pensou que tinha que se poupar a passar pela vergonha.
Enxugou as lágrimas e planeou o que havia de fazer. Pegou em todo o arroz que põde pôr de lado e em toda a palha que põde dispensar e levou-os para a cidade, para vender. Quando teve na mão o dinheiro, trocou-o por um pedaço de papel que valia tanto como o dinheiro e foi ter com um escriba, um homem daquela cidade que não conhecia, que estava sentado na sua pequena barraca, ao lado do templo de Confúcio. Sentou-se no banquinho que ali estava e disse:
- Preciso de escrever uma carta por um irmão que está a trabalhar e não pode ir a casa. Vou dizer-Lhe o que ele quer. Ele está doente, de cama, e eu vou mandar a carta por ele.
O ancião tirou os óculos, deixou de olhar para os transeuntes e pegou numa folha de papel em branco. Depois, molhou o pincel na tinta, olhou para ela e disse:
- Então diga, mas primeiro diga-me o nome da mulher do seu irmão e onde ela mora, e diga-me também o seu nome.
Então, a mãe respondeu:
- Trata-se do meu cunhado, que me disse que escrevesse uma carta para a mulher. Ele vive numa cidade de onde eu vim há pouco, e o meu nome não interessa.
E deu-Lhe o nome do marido como sendo o irmão e o nome de uma cidade distante perto da casa onde tinha passado a sua infância e cujo nome tinha ouvido uma vez; e depois, para nome da mulher do irmão, deu o seu próprio nome e onde ficava a sua aldeia.
- Aqui vai o que ele quer dizer à mulher. Diga-Lhe: Estou a trabalhar duramente e tenho um bom lugar, como aquilo de que gosto e tenho um bom patrão e tudo o que tenho que fazer é ir buscar o seu cachimbo e servir-Lhe o chá, e levar os seu recados aos amigos. Além disso, tenho a minha comida e três moedas de prata por mês. Do meu salário, poupei dez moedas que troquei por um papel que hoje em dia é tão bom como dinheiro. Casta-o com a minha mãe e contigo e as crianças.
Depois sentou-se e esperou. O ancião escreveu lentamente e durante um grande bocado; por fim, disse-Lhe:
- É tudo?
Ela respondeu:
- Não, tenho mais isto para dizer. Escreva: Não pude ir no ano novo porque o meu patrão gosta de mim e não pôde dispensar-me, mas se puder irei noutro ano e se mesmo assim não for possível, mando-te aquilo que puder do meu salário, todos os anos.
O ancião tornou a escrever e ela continuou, depois de pensar um pouco:
- É preciso dizer mais uma coisa. Escreva: Diz à minha mãe que, quando for Lhe levarei tecido vermelho para a sua terceira mortalha, do melhor pano que puder comprar
Assim, a carta ficou completa e o ancião assinou-a e lacrou-a, pôs-Lhe o endereço, cuspiu num selo e colou-o na carta, e disse que iria enviá-la, no sítio que conhecia. Ela pagou-Lhe os honorários e foi para casa. Isto era o que ela tinha planeado quando limpou as lágrimas.
Capítulo 6
Apenas sete dias depois, passou por ali um carteiro, com um saco ao ombro, o que era novidade naqueles dias, pois antigamente não havia estes homens, e para o povo desta aldeia era como um milagre que pudessem vir assim cartas, no entanto, elas assim vinham. O homem tirou uma carta do saco, olhou para a mãe e disse:
- É você a mulher de um homem chamado Li?
Então ela soube que a carta tinha chegado.
- Sou eu.
- Então isto é para si e vem do seu homem, onde quer que ele esteja, porque o nome dele está aqui escrito. - E entregou-Lhe a carta.
Ela deu um grito e, fingindo uma falsa alegria, exclamou para a velha:
- Está aqui uma carta do seu filho!
E disse às crianças:
- Chegou uma carta do vosso pai!
Eles mal puderam esperar até a carta ser lida; a mãe lavou-se, vestiu um vestido limpo, penteou o cabelo cuidadosamente e, enquanto o fazia, ouviu a sogra gritar para a mulher do primo:
- Chegou carta do meu filho!
E quando o disse riu-se e começou a tossir e a rir. Até a mulher do primo, que morava do outro lado da rua, se assustou com tanta agitação no velho corpo e veio a correr, esfregou-Lhe as costas e disse-Lhe com o seu modo bondoso:
- Boa mãe, não deixe isso matá-la, peço-Lhe!
E quando a mãe saiu, arranjada e a sorrir, disse com o mesmo modo:
- Aqui está esta velha aflita por causa de uma carta que chegou!
E a mãe fez um grande sorriso e disse:
- É verdade e aqui está ela. - E estendeu a carta para a outra ver.
Quando seguia pela rua adiante, toda a aldeia veio, apinhando-se à sua volta, enquanto o garoto seguia rindo e dizendo a todos que Lhe perguntavam que tinha vindo carta do pai, e a pequenita vinha atrás, agarrada à roupa dele. E como ainda era Inverno e havia pouco que fazer, os homens e as mulheres desocupados iam também, e foram todos para a casa do escriba, que ficou admirado com uma enchente tão repentina. Quando soube do que se tratava, pegou na carta e estudou-a durante algum tempo, voltando-a de um lado e do outro e olhando para ela, e disse, por fim, gravemente, a primeira coisa que havia a dizer:
- É do seu marido.
- Era o que eu calculava - respondeu a mãe.
E a alcoviteira, que estava no meio daquela gente toda, exclamou
- E de que outro seria, bom homem?
E toda a gente soltou uma gargalhada.
Depois, o escriba começou a ler-Lhe a carta lentamente; fez-se siléncio e a mãe escutava, assim como toda a gente, e, a cada palavra, ele fazia uma pausa para explicar todo o significado, porque a palavra escrita não é o mesmo que a palavra falada, mas também para mostrar como era instruído. A mãe escutava como se nunca tivesse ouvido antes o que dizia a carta e acenava a cada palavra, e quando ele chegou ao ponto em que dizia que enviava dinheiro, o homem levantou a voz, muito alta e clara para uma coisa tão séria, e todos abriram a boca e exclamaram:
- Mas havia dinheiro lá dentro?
Então, a mulher acenou com a cabeça e abriu a mão, mostrando o bocado de papel pelo qual tinha trocado o seu próprio dinheiro e entregou-o ao escriba para ver; este disse calma e solenemente:
- É verdade, eu vejo um dez, deve valer dez moedas de prata. Toda a gente quis ver; no papel havia um retrato, que era de um general gordo, com suíças. Quando a alcoviteira o viu, exclamou espantada:
- Como o seu homem está mudado, mulher!
Ela supôs que era o retrato do homem, e ninguém tinha a certeza de que não fosse excepto a mulher, que disse:
- Não é o meu homem, eu sei.
E o escriba pensou e continuou:
- Com certeza é o patrão dele.
Todos olharam outra vez para o retrato e acharam que parecia muito rico e farto. Ficaram em silêncio, com admiração e inveja, observando, enquanto a mãe dobrava o precioso pedaço de papel e o guardava na mão fechada.
Assim foi a carta lida e quando o ancião acabou e a dobrou e meteu novamente no sobrescrito, disse gravemente:
- Você é uma esposa com muita sorte; não é qualquer mulher que tem um homem que possa ir para uma grande cidade e encontrar um emprego tão bom ou, se o arranjar, que possa mandar o seu salário, pois, segundo ouvi dizer, nas cidades há muitos lugares onde gastar o dinheiro.
Então, todos recuaram, em manifestação de respeito para com ela, e ela caminhou orgulhosamente para casa, com as crianças a segui-la e partilhando a glória da mãe. Quando chegou, contou tudo à sogra, que riu, sentindo um prazer especial ao ouvir o que o filho dizia da terceira mortalha; e exclamava, na sua voz trémula, batendo com as mãos nos joelhos escanzelados:
- Este meu filho! Tenho a certeza de que nunca houve nenhum como ele! E sem dúvida que o pano da cidade é um pano muito fino e resistente.
Depois acrescentou, com ar preocupado:
- Sim, filha, se é tão bom como ele diz, duvido de que possa gastá-lo antes de morrer. Talvez seja a minha última mortalha.
O garoto olhou com ar grave, quando viu a avó ficar assim e exclamou afectuosamente:
- Não, avó, não é assim, porque já gastou duas e esta não pode ser tão resistente quanto duas!
Então a velha alma ficou outra vez bem disposta e riu por ter um neto tão esperto, dizendo para a mãe:
- Muito bem, tu lembras-te de tudo o que ele disse, filha, é quase como se estivesses tu a ler.
- Sim - respondeu a mãe calmamente. - Lembro-me de cada palavra. E foi sozinha para dentro de casa. Ficou atrás da porta e chorou silenciosamente; a carta e até o pedaço de papel que era o mesmo que dinhiro eram apenas cinzas para todo o seu orgulho. Não tinham valor para ela, agora que estava só; deixavam de fazer sentido.
No entanto, o plano da mãe deu bom resultado e daí em diante não houve na aldeia quem troçasse dela ou insinuasse que era uma mulher abandonada pelo marido. Pelo contrário, agora tinha que endurecer o seu coração para com eles, porque desde que souberam que ela tinha o dinheiro de papel e que, no ano seguinte, viria mais como aquele, alguns vieram, em segredo, pedir-Lhe dinheiro emprestado. Um deles foi o velho escriba e, além dele, um ou dois homens ociosos mandaram as mulheres pedir-Lhe; ela teve dificuldade em recusar, pois na aldeia eram todos mais ou menos aparentados e todos tinham o apelido Li, mas ela disse isto e aquilo, e que tinha que pagar uma dívida e que já tinha gasto algum. Alguns vociferavam contra ela quando, ociosos, falavam uns com os outros; e a alcoviteira disse diante dela, intencionalmente, quanto custava um pedaço de pano, até uma agulha ou duas era caro, e uns fios de seda para bordar uma flor para dar cor a um sapato; todos eles se choravam se ela estava presente.
- Você é que tem sorte, não tem necessidade de pensar duas vezes para gastar um tostão, pois o seu homem está a ganhar dinheiro e manda-Lho, e isso além do que você tira da terra!
E, às vezes, havia um homem que dizia:
- Duvido de que seja uma boa coisa ter uma mulher tão rica na nossa aldeia, pode chamar os ladrões. Sim, os ladrões vão para onde há ricos como as moscas para o mel!
Parecia-Lhe que a cada dia que passava este bocado de papel Lhe trazia mais problemas, não só por causa do que dizia a alcoviteira, e porque este homem ou aquele Lhe pediam para o ver de perto, mas também porque ela própria não estava habituada a dinheiro de papel, e a sua preocupação ia aumentando, com medo de que um sopro de vento o levasse, ou que os ratos o roessem ou que as crianças o encontrassem e, sem pensar, o rasgassem na brincadeira. Todos os dias tinha que olhar para ele para ver se estava seguro no cesto do arroz onde o tinha escondido, porque tinha medo que ele criasse bolor na parede de barro e apodrecesse. Por fim, a preocupação aumentou tanto que, um dia, quando o primo se dirigia para a cidade, ela correu para ele e disse-Lhe em segredo:
- Por favor, troca-me este pedaço de papel por moedas de prata, para eu poder senti-lo na minha mão, porque isto não me parece nada de valor quando Lhe pego.
O primo pegou nele e, como era um homem recto e honesto, trocou-o por moedas de prata, peças boas e sólidas, e quando voltou à porta dela, bateu com as moedas umas nas outras, para Lhe mostrar como eram boas. A mãe agradeceu-Lhe e disse, embora um pouco contrafeita, porque não queria que ele ficasse mal-impressionado:
- Toma uma moeda pelo teu trabalho, primo, e pela tua ajuda na colheita, porque eu bem sei que precisas dele e a tua mulher está à espera de outro filho.
Mas, embora ele olhasse muito para o dinheiro e sustivesse a res piração sem dar por isso, e pestanejasse uma ou duas vezes, tentado, não pegou na moeda e disse depressa, antes que a sua ânsia aumentasse demais, porque, na verdade, era um homem bom e honesto:
- Não, mulher do meu primo, tu és uma mulher sozinha e eu ainda posso trabalhar.
- Bem, então se precisares de um empréstimo disse ela, e escondeu rapidamente o dinheiro, pois sabia bem que nenhum homem pode olhar muito tempo para o dinheiro, por muito bom que seja, sem ceder à tentação.
Nessa noite, quando as crianças e a velha dormiam, a mãe levantou-se, acendeu a vela e, com a enxada, cavou um buraco no chão de terra dura, e ali escondeu as dez moedas de prata, mas primeiro embrulhou-as num pedaço de pano, para as proteger da terra. O búfalo voltou a cabeça e olhou com os seus grandes olhos parados, e as galinhas, debaixo da cama, acordaram, olharam para ela e cacarejaram fracamente, admiradas por aquele estranho acontecimento nocturno. Mas a mulher tapou o buraco e calcou-o, para o deixar apertado e liso como o resto. Depois deitou-se novamente, às escuras.
Era estranho, mas ali estendida, acordada e, no entanto, meio a sonhar, quase esqueceu que era o seu próprio dinheiro que tinha enterrado, dinheiro que tinha ganho com a colheita, que fora ceifada por ela própria, dobrando as costas cansadas a cada punhado de grão. Porém, esquecia-se disso e quase Lhe parecia que o homem Lho tinha na verdade mandado, e que isso era algo que estava para além dela, e murmurava intimamente: Está no lugar das moedas de prata que ele levou e gastou naquele fato, e ainda bem, porque é mais. E perdoou-Lhe por aquilo que ele tinha feito, e caiu no sono.
Daí em diante, quando alguém Lhe pedia para ver o pedaço de papel, ela respondia tranquilamente: Troquei-o por dinheiro vulgar e gastei-o.
E quando a alcoviteira ouviu aquilo, exclamou, boquiaberta:
- Mas gastou-o todo?
A mãe respondeu despreocupadamente e sorrindo:
- Sim, gastei-o todo nisto e naquilo, um cãntaro novo ou dois, e roupa e mais isto e mais aquilo, e por que não, quando há-de vir mais?
E foi dentro de casa buscar a roupa nova que tinha feito para o homem se ele viesse e disse:
- Aqui está alguma da roupa que comprei com ele.
E todos eles olhavam e apalpavam o tecido e exclamavam que era pano muito bom e forte, e a alcoviteira disse, contrafeita:
- Você é uma mulher muito boa, posso jurar, para gastar o dinheiro, mesmo que seja só uma parte, em roupa para ele, e não o ter gasto todo consigo ou com as crianças.
Então, a mãe respondeu com firmeza:
- Mas nós estamos muito bem um com o outro, o meu homem e eu, e eu gastei algum comigo, porque dei algum a um ourives e encomendei-Lhe uns brincos e um anel para mim, porque o meu homem tinha- me dito que queria que eu os tivesse quando pudéssemos economizar algum dinheiro.
A sogra, que tinha escutado isto, exclamou:
- Juro que o meu filho é um homem como ela diz e vai comprar-me a minha terceira mortalha, do melhor pano que haja na cidade. Um filho muito bom, vizinhos, e eu desejo o mesmo para todos vós, especialmente para ti, prima, porque vejo a tua barriga inchada como um melão maduro!
As mulheres riram-se e foram-se embora, uma a uma, pois a noite estava a chegar. Já sozinha, a mãe lamentou-se para consigo por causa da história tão comprida que tinha contado e censurou-se, dizendo para si própria: Que necessidade tinha eu de contar uma história tão complicada, e por que não me contentei com o que já tinha sido dito? Onde é que vou arranjar dinheiro para estas jóias? Tenho que fazer alguma coisa para evitar que se saiba a verdade.
E suspirou, a pensar no fardo que tinha posto às costas.
Capítulo 7
A Primavera chegou uma vez mais e a mãe teve que se atirar com energia ao trabalho dos campos. Levou consigo o filho e ensinou-o a conduzir o animal. Por ser muito franzino e pequeno, o rapaz não conseguia empurrar o arado; limitava-se a correr atrás do bicho e a bater-Lhe na pele grossa, cor de xisto. O couro era tão espesso que nem mesmo esforçando-se ao máximo, o rapaz o conseguia apressar. Assim, a mãe prendeu uma ponta aguçada numa cana de bambu e disse ao rapaz que picasse o búfalo, para o fazer sair daquela indoléncia.
Acostumou a filha, ainda criança, a fazer tarefas simples, pois a velha, cada vez mais preguiçosa pela idade, ia-se esquecendo de tudo e lembrava-se unicamente de que tinha fome e sede. Só se mexia quando o petiz pedia alguma coisa, com o seu acostumado à-vontade, porque adorava aquele neto mais novo. Ensinou a filha a lavar o arroz do almoço no lago, mas só a deixava fazer isso antes de ir para os campos, pois a rapariga arriscava-se a cair na água e a afogar-se, por ver tão mal; ensinou-a ainda a cozinhar o arroz, para que o tivesse pronto quando chegassem, embora fosse tão pequena que mal chegava à tampa da panela; ensinou-a a acender o lume e a conservá-lo aceso, o que ela executava na perfeição. Mesmo quando o fumo Lhe chegava aos olhos, a pequena não se impacientava, suportando o ardor nas pálpebras. Nunca se queixava fosse do que fosse, porque sem o pai em casa, a mãe tinha que tratar de tudo. Mas logo que acabava as lides domésticas, ia para casa, refugiava-se num canto que, mesmo ao meio-dia, estava escuro e, aí sentada, limpava os olhos lacrimejantes com um pedaço de pano que guardava para o efeito e tentava aguentar a dor o melhor que podia. O bebê começou a andar com a chegada dos lindos dias de Primavera. No Inverno, as roúpas enchumaçadas tolhiam-Lhe de tal modo os movimentos que, se caísse, tinha de aguardar que alguém se aproximasse e o ajudasse a erguer-se. Comia o que queria e medrava a bom medrar. A mãe deixava-o ainda mamar, pois sentia algum prazer nisso, embora o seu peito estivesse praticamente seco. Quando o menino se aproximava aos gritos, já à noitinha, quando ela chegava do trabalho, e se aconchegava ao seu peito para mamar, sentia-se invadida por um doce conforto.
A Primavera morna ia já a meio e a mãe trabalhava todo o dia arduamente, com o filho a seu lado. Os campos lá iam sendo lavrados; os regos não eram tão direitos nem tão fundos como nas outras Primaveras em que o homem fazia o trabalho e a mulher lançava a semente. Apesar de tudo, semeou os feijões e plantou as couves e os rabanetes para vender no mercado. Os botões de colza cobriram-se de flores amarelas e douradas. E a mãe trabalhava tão arduamente que, ao chegar à noite, não se lembrava do homem, de tão cansada que estava, e todos os dias ao deitar-se caía num sono pesado. De madrugada, cheia de sono, custava-Lhe a levantar.
Mas um dia ele veio-Lhe à memória.
A mulher do primo estava prestes a dar à luz. Quando a hora chegou, mandou uma das crianças chamar a mãe, que era simultaneamente sua amiga e a vizinha mais próxima. Ela estava a trabalhar nos campos quando a criança a foi buscar. A brisa doce da Primavera soprava na blusa larga e secava-Lhe o suor mal este brotava. A criança, uma menina, gritou-lhe:
- Tia! A hora da minha mãe chegou! Ela pede-Lhe que se apresse, pois sabe como ela é rápida... Já está sentada à espera que a tia Lhe ampare o bebê.
A mãe endireitou o corpo curvado e respondeu:
- Está bem, diz-Lhe que vou já.
E voltou-se para o filho:
- Pega no meu sacho e sacha os feijões o melhor que puderes, enquanto eu vou lá. Não me devo demorar mais do que uma hora, se ela for tão rápida como costuma ser.
Ao dizer isto, meteu-se pelos campos, seguindo a rapariga que corria à sua frente. À medida que caminhava sentia-se invadida pela doçura do dia. Por ter de trabalhar todos os dias tão arduamente e por viver sempre naquele vale, nem pensava em erguer a cabeça e observar o mundo que a rodeava. Só pensava nos campos e na casa. Mas agora, ao caminhar com a cabeça levantada, via os salgueiros cobertos de folhas tenras e de um verde brilhante, as flores brancas que tinham desabrochado nas pereiras e que o vento soprava; aqui e ali o vermelho vivo de uma romãzeira flamejava por entre as folhas novas. Até o vento era muito quente, chegando às lufadas, e partindo do mesmo modo; a mulher perguntava-se o que seria mais doce: se o silêncio morno, quando o vento amainava, deixando vir o cheiro da terra dos campos arados, ou a brisa cheia de aromas. Ao caminhar assim por entre o siléncio e as brisas, o seu corpo forte e cheio de vida fremente sentiu de novo um imenso desejo do seu homem.
Desde que casara, tinha dado à luz em quase todas as Primaveras. Mas nesta tal não se passara. Parecia-Lhe natural estar grávida, um acontecimento que pensava repetir-se uma vez após outra. Agora notava que isso era uma alegria que não tinha sabido avaliar até ao momento; e a solidão esmagou-a dolorosamente. Os seios doeram-Lhe ao pensar que, a menos que o marido regressasse, nunca mais teria filhos na Primavera. Subitamente, o desejo percorreu-Lhe o corpo como um grito: Por favor, regressa! Vem para casa!
Sim, parecia-Lhe ouvir a sua voz gritar estas palavras e estacou, receosa de as ter pronunciado em voz alta diante da rapariguita. Mas não, não tinha gritado, era apenas o barulho do vento e o cantar vivo de um melro numa romãzeira.
Quando entrou no quarto sombrio e viu a cara redonda da prima, coberta de suor, onde a expressão alegre de sempre fora tomada pelo sofrimento, a mãe sentiu o seu próprio corpo cheio e pesado como se fosse ela que estivesse a dar à luz e não a outra mulher. Nascida a criança, embrulhou-a num pano; quando já estava liberta para poder regressar ao campo, sentiu que era incapaz. Não, regressou a casa, apática.
A velha exclamou:
- Já são horas de comer? Mas ainda não sinto fome!
A filha saiu de casa a correr, protegendo os olhos doentes com as mãos, e perguntou:
- Mãe, já são horas de acender o lume?
Ela respondeu com indiferença:
- Não, ainda é muito cedo. Mas hoje sinto um estranho cansaço e vou repousar um pouco. - E deitou-se na cama.
Mas não conseguiu descansar, e depressa se levantou e pegou no pequenito; apertando-o fortemente contra o peito, destapou o seio e quis que a criança mamasse. O menino estava admirado com esta violência a que não estava acostumado; não queria comer mas sim brincar, por isso lutou e afastou o peito da mãe. Uma súbita cólera invadiu-a, bateu-Lhe e colocou-o com brusquidão no chão. Ele chorava e a mãe murmurava:
- Queres mamar quando eu não estou disposta a isso e agora que tanta vontade tenho que o faças, não queres.
E ao vê-lo deitado no chão, a chorar, a mãe sentiu uma espécie de prazer e de dor. Ao ouvi-lo gritar, a avó chamou-o e a menina veio a correr levantar o irmão. A mãe sentia que a calma voltava a si; não deixou a filha pegar no bebê, acabando por ser ela a levantá-lo; sacu diu-Lhe o pó e com a mão limpou-Lhe a cara lavada em lágrimas. Culpou-se intimamente por ter feito sofrer o filho por uma dor que era sua.
A partir daquele momento a criança nunca mais Lhe pegou no seio e, assim, até essa pequena consolação Lhe faltou.
Capítulo 8
Tanto em jovem como em mulher, fora sempre uma criatura profundamente ardente. Não era, como certas mulheres, capaz de olhar para qualquer rapaz que por ela passasse. Não, era uma mulher de coração tão profundo, que nem ela própria conhecia o seu verdadeiro íntimo. Até casar, quando se encontrava só com os seus pensamentos, não pensava nos homens pelo interesse que neles tinha, e quando sentia despertar nela estranhos desejos, vindos do mais íntimo do seu ser, nunca Lhes prestava atenção, não querendo saber o que eram nem de onde vinham. Continuava o seu trabalho e aguentava pacientemente os seus desejos, esperando em silêncio. Só depois de casada e de ter conhecido homem, é que começou a perceber melhor aquele desejo profundo e silencioso; mesmo quando o marido e ela estavam zangados, sentia que não podia viver sem ele. Aquele desejo forte e impaciente condensava-se, por vezes, em nuvens pesadas de tormenta, que a levavam a ter discussões infundadas com o marido, que amava; e a contenda resolvia-se quando se entregavam um ao outro, sentindo-se então satisfeita e acabando por encontrar a paz. Mas o acto de amor com o marido nunca a satisfazia completamente. Tinha de conceber e sentir um ser a crescer no seu ventre. Só então a sua satisfação era plena. E ao notar nas entranhas a criança a mexer e a crescer sentia-se verdadeiramente feliz e realizada. Podia perder a paciência com os filhos, quando estes se vinham pôr a seus pés, chorando e com birras, tal como as demais crianças; mas quando se sentia de novo grávida experimentava sempre um contentamento doce por todo o corpo, como se estivesse bem alimentada e repousada de um sono bem dormido, e o seu corpo feliz não precisasse de mais nada.
Sempre tinha gostado de bebês. Enquanto menina, em casa do pai; numa aldeia pouco maior do que aquele lugarejo encravado entre montes, sempre tinha gostado de crianças. A casa paterna estava cheia de crianças e ela era a mais velha; por isso fazia o papel de mãe. Mesmo quando regressava cansada, ao fim de cada dia de labuta, e elas corriam por entre os seus pés, não a deixando caminhar, tendo de gritar-Lhes para poder passar, sentia um verdadeiro amor por elas. Havia sempre algo naquela pequenez que Lhe enternecia o coração; muitas vezes pegava numa delas, quer em sua casa quer na das vizinhas, e cingia-a contra o peito, cheirava-a e embalava-a. Sentia nisso um prazer apaixonado, embora não o soubesse explicar. Tudo o que era pequenino e que mostrasse precisar do seu apoio Lhe enter necia o coração. Na Primavera, amava os pintainhos e os patitos mal saídos da casca; se alguma galinha abandonava o ninho por qualquer razão, deixando os ovos por chocar, ela própria tomava conta destes, fazia-Lhes um ninho numa sacola, aconchegava-os ao calor do seu corpo, transportando-os assim com o maior cuidado até que as avezinhas nascessem. Com todos os cuidados, alimentava os bichos-da-seda e sentia a maior das alegrias ao ver nascer as larvas minúsculas como fios, que cresciam, construíam os casulos delicados e os rompiam, acabando por sair abrindo as asas e, por fim, acasalavam. Vivia e sentia toda a alegria enternecedora no seu próprio ser.
Uma vez, quando já todos os filhos da casa do pai tinham crescido e saído de casa, e ela própria estava prestes a casar, aconteceu-Lhe algo que acordou os seus sentidos mais do que qualquer homem o poderia ter feito. Numa casa vizinha havia um menino ainda muito pequeno para andar, gordo e redondo, que uma irmã mais velha carregava às costas durante todo o Verão, nu, preso por um pano. Acontecia por vezes que ela, então nova e às vésperas de casar, desatava o pano e tomava conta da criança, enquanto a irmãzita corria toda contente a brincar, liberta momentaneamente do seu fardo.
E isto acabou por se tornar uma prática diária. Todos os dias tomava conta do petiz, aquele bebê de cara de lua cheia; ele era a sua maior alegria, e tomou-o como preferido entre todas as outras crianças da aldeia. Aconchegava-o ao peito, cheirava-Lhe as palmas das mãos gordas, tocava-Lhe as faces e a boquinha cor-de-rosa, e carregava-o escarranchado na anca forte, e quando a sua mãe Lhe dizia: Então não há crianças que te cheguem nesta casa? Ainda agora me nasceu um bebê e tu vais buscar ainda mais outro? ela respondia, rindo: Acho que nunca me cansarei de crianças!
Sem tão pouco dar por isso, esta criança despertou nela um desejo ardente que nunca antes sentira. Como todas as mulheres, também ela desejava ter um filho, e como elas sentia-se no direito de os ter um dia mais tarde. Mas aquele menino robusto, de olhos claros e calmos, fez mais do que acordar esse desejo e, o que no início fora uma mera brincadeira, bem depressa se tornou em algo mais, numa paixão profunda e secreta por alguma coisa que ela desconhecia.
Arranjava desculpas, procurando afastar-se sozinha e levando o bebê nos braços, enquanto os outros estavam ocupados com isto ou aquilo, nos campos ou na cozinha. A irmã da criança alegrava-se por se sentir liberta, e a mãe ficava sentada, apertando o lindo menino contra si. Murmurava-Lhe ao ouvido palavras cheias de ternura, embalava-o nos seus braços, sentindo o seu corpo pequenino, gordo, redondo e indefeso contra o seu peito. Como mal tinha dentes, ela mastigava alguns baguitos de arroz ou um pedacinho de bolo e deixava escorrer a comida dos seus lábios para a sua boquinha; ao sorver aquela papa, o menino ficava surpreso por sentir aquilo nos lábios, o que a fazia rir sem saber porquê, porque não era alegria, era quase doloroso aquele desejo violento e profundo que não sabia como acalmar.
Um dia, pouco antes do casamento, estava só com a criança, aproximava-se o meio-dia e a irmã não tinha vindo ainda buscá-lo, como era seu costume, para que a mãe Lhe desse de mamar. Ele chorava e agitava-se, irrequieto. A rapariga, ao ver a sua fome, e levada por um ímpeto de paixão obscura que não entendia,
dirigiu-se ao quarto, fechou á porta por dentro e, com mãos trémulas, desapertou a blusa e deu o seio jovem e virgem ao menino, que o sugou com força e prazer. Ao olhar a carita do bebê, sentiu um tal tumulto no sangue, que a perturbou no mais íntimo do seu ser, como nunca julgara que pudesse acontecer; as lágrimas brotaram-Lhe dos olhos e sons entrecortados que não chegavam a ser palavras afloraram-Lhe aos lábios, continuando sempre a apertar o menino contra si, sem saber a causa de tal alvoroço interior, um sentimento maior que aquela criança que tinha nos braços, maior que ela própria, na sua misteriosa paixão.
Mas durou apenas um momento. O seu seio estava vazio e a criança, desapontada, gemia, enquanto ela apertava o vestido; um pouco envergonhada com o que fizera, saiu depressa do quarto. A rapariguita chegou e numa corrida levou o irmãozito de volta à mãe.
Para a jovem, aquele momento foi um despertar, quase maior que o próprio casamento. A partir de então, o homem com quem casou veio a ocupar um lugar especial na sua vida, pois ele era parte da maternidade, e ela amava-o não apenas por ele.
Assim fora a sua juventude inexperiente. Agora, na plena maturidade do seu corpo, consciente de si e da sua vida de mulher, sentia-se só, quase abandonada. Os filhos cresciam e, à medida que se distanciavam da infância, pareciam-Lhe cada vez menos seus.
O rapaz mais velho era alto, delgado e silencioso. Era pouco falador, mas mostrava ser rijo no trabalho. Quando, ao fim do dia, a mãe queria trazer para casa a tosca charrua de madeira, o filho agarrava nela e colocava-a sobre os ombros magros, como um jugo, e transportava-a assim, tropeçando por entre os torrões de terra. Por vezes, ela sentia-se tão cansada que assentia. Agora era ele quem tirava a água do poço, dava de comer ao búfalo e se esforçava por fazer o trabalho de ambos no campo, como se fosse o próprio pai. Apesar de tudo isto, afastava-se estranhamente da mãe e se, por um lado, partiLhava com ela laboriosamente e de livre vontade os trabalhos do campo, por outro, afastava-se dela de um modo que a mãe não conseguia compreender. Não gostava de estar perto dela, como se dela emanasse um odor que Lhe era impossível suportar. Quantas vezes não se zangavam por coisas que eram nada, como por exemplo: a mãe
dizia-Lhe como devia segurar na enxada e ele pegava-Lhe como achava melhor, mesmo que isso Lhe acarretasse mais esforço e Lhe fosse menos cómodo.
Zangavam-se a propósito destas e de outras pequenas coisas. Mas ambos sabiam que a razão das suas discussões era outra, algo de mais profundo que nem um nem outro podiam perrceber.
A rapariga, com os pobres olhos meio cegos, tão pouco Lhe proporcionava grande alegria. Fazia tudo o melhor que podia, em silêncio, e agora já sem se queixar como dantes acontecia. O rapazito mais novo andava e corria, brincava na rua com os da sua idade. Por vezes, a menina ia ter com a mãe e o rapaz enquanto estes trabalhavam no campo, mas acabava por causar mais cuidados do que servia de ajuda, especialmente quando se tratava de um campo com plantas ainda pequeninas. Via tão mal que acabava por confundi-las com ervas daninhas, arrancando-as, o que fazia o irmão gritar, zangado:
- Ó rapariga, vai mas é para casa, que não nos estás a ajudar. Vai sentar-te ao pé da avó!
E quando ela se erguia, ouvindo isto, meio a sorrir, mas também profundamente ferida, o rapaz tornava a gritar:
- Vê onde pões os pés, minha desajeitada, estás a pisar as plantas! A pequena apressava-se a sair do campo, demasiado orgulhosa para ficar. E a mãe, entre o filho e a filha meia cega, sabia o que sentia cada um dos corações: o rapaz, cansado de um trabalho demasiado pesado para a sua idade; a rapariga, cheia de paciéncia, sofredora. E à medida que ela se afastava, dizia-Lhe suspirando:
- Pobre pequena, a verdade é que não serves para grande coisa, nem tão pouco podes coser, com os olhos que tens. Vai para casa, varre o chão, acende o lume e prepara a comida, essas coisas sabes tu fazer muito bem. Toma conta do pequenito, vé se ele não cai ao lago, pois é de todos o mais atrevido e o mais traquina. Não te esqueças de dar, de vez em quando, um pouco de chá à avó. Isto são as tuas tarefas, ao fazê-las estás a ajudar-me muito. Assim que tiver tempo, hei-de comprar-te um remédio para pores nos olhos.
Tentava consolá-la dizendo isto, mas a verdade é que a rapariga não Lhe dava grande alegria. Passava horas seguidas sentada, a limpar as lágrimas que Lhe corriam das pálpebras doridas, com o seu sorriso parado e paciente. Às vezes, ao olhá-la, e ao ouvir as zangas do rapaz, e ao ver o desejo do mais novo pela brincadeira, questionava-se, com amargura, como era possível que em pequenos tanto prazer Lhe proporcionassem e agora nenhum conforto Lhe davam.
Noutras alturas, à noitinha, olhava para o outro lado do caminho, para a casa do primo, invejando-a. Ali estava um bom marido, honesto e terra-a-terra, não tão bonito nem tão cuidado como o seu homem era, mas, contudo, simpático. Todos os dias ia trabalhar e só regressava para comer e dormir, tal como é obrigação dos homens; tinha filhos regularmente e eram bonitos. A mulher lá estava, sentada, alegre, des preocupada, contente, com o bebê nos joelhos. Era uma alma feliz, superficial, sempre a falar, mas cuja tagarelice não fazia mal a ninguém e, além de mais, era uma boa vizinha. Muitas vezes vinha a correr a dividir com a mãe um pedaço de carne ou a dar-Lhe uma mão-cheia de fruta, ou uma flor de papel à rapariga para pôr nos cabelos. Era uma casa onde nada faltava, repleta de bondade e contentamento, e a mãe invejava-á, enquanto ia crescendo nela um desejo profundo, sombrio e insatisfeito.
Capítulo 9
Se ela pudesse esquecer o homem e tudo tivesse acabado com ele, se ele estivesse morto e o tivesse visto enterrado, desaparecido para sempre, se pudesse ser uma viúva e saber que a sua vida com o homem tinha terminado, teria sido mais fácil para ela. Se a aldeia soubesse que ela tinha enviuvado e ela pudesse manter pura e forte uma viuvez verdadeira, e se ouvisse as pessoas dizerem, quando passava: É uma viúva como deve ser, esta mulher do falecido Li. Ele está morto e enterrado e ela continua firme e fiel. Nos velhos tempos, uma mulher como esta seria homenageada com um arco de mármore ou pelo menos um arco de pedra. Se pudesse ter ouvido palavras como estas, isso ter-Lhe-ia dado forças para suportar a opinião das outras pessoas a seu respeito e sentir-se-ia melhor com isso.
Mas ela não era viúva, e muitas vezes tinha que responder àqueles que Lhe perguntavam como estava o seu homem e tinha que mentir sempre, e sempre bem-disposta, e tê-lo sempre presente nas suas mentiras. Diziam-Lhe: Olá, vizinha, recebeu alguma carta ou recado trazido por alguém a dizer como está o seu homem? "
E ela, passando com uma carga ao ombro para o mercado, ou regressando lentamente a casa com os cestos vazios, tinha que responder, muitas vezes disfarçando um cansaço mortal: Sim, tive recado de que ele vai bem, mas só me escreve uma vez por ano.
Mas quando chegava a casa sucumbia às suas mentiras. Por vezes, enchia-se de tristeza e abandono e então lamentava-se: Que mulher infeliz sou, com um marido que tenho que inventar com palavras e mentiras.
Nessas alturas, sentava-se e olhava ao longo da estrada e pensava tristemente: Aquele fato azul via-se bem ao longe, se ele se lembrasse de voltar para casa, era um azul tão vivo e tão bonito! "
Na verdade, sempre que via um vislumbre de azul ao longe, o seu coração dava um pulo, e e um homem, vestindo um fato azul, passava ao longe, ela não podia deixar de se deter e suster a respiração, protegendo os olhos do sol se estava no campo, e deixando cair a enxada da mão, enquanto observava se ele vinha para aquele lado ou se ia a passar, ou se se afastava para longe. E nunca era ele - e o azul é uma cor muito vulgar e qualquer homem pode usar um fato azul.
Mas havia ocasiões em que as suas mentiras a encolerizavam contra ele e dizia para si própria que o homem não merecia isso, e se ele chegasse a casa numa altura dessas, ela descarregaria a sua ira sobre ele e amaldiçoá-lo-ia com todas as forças, apesar de o amar, pois ele fazia-a sofrer assim. Havia ocasiões em que esta ira profunda durava dias e então tornava-se carrancuda e lacónica com as crianças e com a avó, e enxotava o cão asperamente com a enxada, embora torturasse ainda mais o seu coração quando estava assim.
Numa destas ocasiões, era altura de medir o arroz depois da colheita. Mais uma vez ela tinha lutado pela colheita, sozinha, excepto pela ajuda que o garoto podia dar, e um dia ou dois o bom primo, até que chegou o dia da divisão do grão debulhado. Nesse dia, com a ansiedade e a cólera que sentia, o coração dela era como se estivesse em carne viva e tudo o que via a chocava e magoava; coisas em que não reparava nos outros dias, naquele dia faziam-na sofrer.
E enquanto assim se sentia, na eira, ao lado do grão amontoado, o agente do senhorio, um homem alto, vestido com um fato de seda cinzenta, de face quadrada e larga, e bem parecido, permanecia de pé. Tinha as mesmas maneiras de que ela se lembrava, o modo de mostrar cortesia, mas os seus olhos eram grandes, de pálpebras pesadas, que os mantinham meio fechados. Pela forma como ele a olhava através das pálpebras semicerradas, ela sabia que o homem já ouvira a sua história: que o seu marido se tinha ido embora para outro lado e nunca mais voltara. Sim, hoje havia qualquer coisa no seu coração que Lhe dizia que ele sabia e, na verdade, era o tipo de homem que não podia olhar para uma mulher só, sem imaginar intimamente como ela seria, como seria a sua índole e qual seria a forma do seu corpo. Dava a impressão de ser um bom coração, com a sua corpulência, bem constituído, face quadrada, rosto cheio, e uma voz que ele fazia soar tão cordial e franca. Mas apesar da sua cortesia forçada e da conversa espontânea, os rendeiros detestavam-no e receavam-no, porque ele tinha uma maneira de ser muito dura e aquele corpo possante e dois punhos grandes e rápidos, que fechava e encostava com força contra as coxas se alguém contrariasse o que ele dizia. Nessa altura, levantava as pálpebras que Lhe cobriam os olhos, e os olhos eram terríveis, brilhantes, negros e cruéis. Muitas vezes, também, riam com ele, quando Lhe entregavam o pagamento sem discussão e ele dizia uma piada ou duas para amenizar a entrega; não podiam deixar de rir com o que ele dizia, embora contrariados.
Nesse dia, mostrou-se bem disposto quando chegou a casa da mãe, onde sabia que ela vivia sem o marido, e disse jovialmente para o garoto:
- Vejo que a tua mãe não precisa do teu pai, com um homem como tu para cuidar dos campos!
O rapaz empertigou-se, cheio de importância, ao mesmo tempo acanhado e inchado, muito contente:
- Sim, eu faço a minha parte.
E cuspiu como tinha visto os homens fazer, encostando os braços às coxas ossudas, sentindo-se crescido, um homem feito.
Então, o agente riu-se e olhou para a mãe, como se quisesse rir-se para ela por causa do pequeno. A mulher não põde deixar de sorrir e ofereceu-Lhe uma tigela de chá, como era de cortesia para qualquer visita. E estava tão próximo daqueles olhos sorridentes que não põde deixar de olhar para eles; ao mesmo tempo, nos seus próprios olhos, deixava transparecer, sem ter consciência disso, a ãnsia do seu coração faminto. O homem fitou-a e sentiu o seu calor, e mostrou-se caloroso e sério, e quando pegou na tigela, como que distraidamente, tocou nas mãos dela. Mas a mulher sentiu o toque e captou o seu significado no seu sangue, como uma chama ardente.
Nesse instante, voltou-se, envergonhada, não querendo ouvir o que o seu coração Lhe dizia. Ocupou-se com o grão e, ao fazê-lo, sentiu subitamente receio de si própria e disse ao garoto, em voz baixa:
- Vai depressa a casa do nosso primo e pede-Lhe que venha cá aju dar-me.
E dizia ao seu coração, para acalmar o seu tumulto: Se ele estiver aqui, se o nosso bom primo estiver aqui...
Mas o garoto era orgulhoso e teimoso, e repontou:
- Estou cá eu, mãe, e eu ajudo-a. O que é preciso mais? Veja, eu estou aqui!
O agente deu uma gargalhada forte e bateu com a mão na cvxa, e, aproveitando-se do garoto ingénuo, exclamou:
- Claro que tu estás aqui, meu rapaz, e é claro que a tua mãe não precisa de outro homem!
Sentindo-se encorajado, o rapaz tornou-se mais ousado e, quando a mãe disse outra vez, com voz mais fraca:
- Era melhor se o nosso primo estivesse aqui.
O rapaz percebeu a fraqueza e exclamou:
- Não, mãe, eu não o chamo! Eu já sou homem!
E pegou na balança e pavoneou-se a encher a medida com o grão; a mulher teve um riso forçado e deixou-o fazer. E a verdade é que havia qualquer coisa nela, também, que a levava a ceder.
Quando acabaram de medir o grão e ela encheu mais outra medida como oferta para o agente, este afastou-a de si com ar digno, alisou o fino e longo lábio superior e, olhando ardentemente para o rosto da mulher - pois, quem ali estava, para além daquelas crianças e da velhota que cabeceava com sono à porta, debaixo do beirado? -, disse:
- Não, não aceito! Você é uma mulher sozinha, o seu marido foi-se embora e tudo isto é trabalho seu. Eu não vou receber mais nada além da parte que cabe ao proprietário, e censurar-me-ei se assim não for. Não aceito retribuição de si.
A mulher ficou subitamente receosa, no meio do doce calor que crescia nela, ficou confusa e empurrou a medida para ele. Mas ele não Lhe pegou. Afastou-a, as suas mãos sobre as dela quando o fez, e, por fim, quando pegou na medida de arroz, voltou a despejar o grão no cesto onde ela o guardava e não o recebeu.
A mulher não teve forças para Lhe pedir outra vez. Por trás do rosto suave deste homem e dos seus modos sorridentes, por baixo daquele fato caro, havia alguma força secreta e estranha que emanava dele naquele sol de Outono e aderia a ela, e a rodeava como uma língua de fogo. Então, ficou silenciosa e curvou a cabeça como uma rapariga, e quando ele despejou o grão e fez uma vénia e seguiu o seu caminho, rindo e curvando-se e alisando o lábio onde não havia pelos, ela não conseguiu dizer uma palavra. Ficou de pé, em siléncio, com os pés morenos enfiados nuns sapatos rotos, uma mão torcendo a ponta do vestido de algodão remendado. Quando ele se foi embora, ela levantou a cabeça procurando-o com a vista e, nesse mesmo instante, o homem voltou-se e encontrou o seu olhar; fez uma vénia e riu-se outra vez. Depois disso, ela quis mil vezes não ter olhado, como tinha feito, e, no entanto, não tinha podido evitá-lo.
O rapaz gritou alegremente:
- Bom homem, mãe, não quis a sua paga! Nunca ouvi falar de um agente tão bom que não quisesse sua paga!
E quando ela entrou na cozinha, em silêncio, meio a sonhar com o que se tinha passado, ele continuou a gritar para ela.
- Ele é um bom homem, mãe, não é, que não quis nada para ele? E como ela continuava sem Lhe responder, ele gritou impaciente:
- Mãe, mãe!
Então a mãe, como que acordando de repente, respondeu apressada:
- Ah... sim, filho.
O garoto continuou a tagarelar:
- Tão bom homem, mãe. Veja, ele não quis absolutamente nada de si, sabendo que é pobre e que o meu pai não está cá.
A mãe continuava parada, com a tampa da panela na mão. Olhou fixamente para o rapaz, sentindo uma impressão estranha no coração, envergonhada e no entanto cheia daquela doce febre - Ele não queria nada de mim? Porém, ao garoto, não respondeu.
Também o homem não podia esquecer o calor da mulher. Pretextando isto e aquilo, voltava à aldeia, ora para verificar uma conta que julgava que tinha escrito mal, ora para reclamar a quem Lhe tinha dado uma medida a menos, pelo o que o proprietário estava zangado. A maior parte das vezes ia a casa do primo, que morava perto da casa da mulher, para ver isto e aquilo; uma vez trazia uma semente de um novo tipo de algodão que se dava muito bem noutras zonas, ou trazia com ele um homem que transportava uma carga de cal ou outra coisa para tornar os campos mais férteis; e o primo estava espantado com tanta vinda. A princípio, receou que o agente tivesse alguma má intenção a seu respeito e ficou ansioso à espera do que pudesse acontecer; e disse à mulher:
- Ele deve ter qualquer coisa muito má em vista, para andar nisto há tanto tempo.
E observava o homem com ansiedade; ficava sentado a olhar para ele, e impacientava-se porque tinha trabalho para fazer, mas tinha receio de não proceder com cortesia para com alguém que podia fazer-Lhe mal, se quisesse.
Mas nem o primo nem a sua mulher viam como o olhar do homem se dirigia, encoberto pelas pálpebras, para a mulher, do outro lado da rua. Se ela não estivesse à porta, demorava-se muito pouco tempo, mas se ela lá estivesse, ficava sentado, voltado para ela e muitas vezes exclamava em voz alta, com ar falsamente bonacheirão: Não, meu amigo, não tenho outros objectivos. Sou apenas um homem vulgar e não há nada melhor para mim do que sentar-me à porta de um homem honesto a apreciar este sol de Outono. Mas durante todo o tempo olhava para o outro lado da rua, onde a mulher estava sentada a fiar ou a costurar.
Estava-se na estação em que a terra aguarda a chegada do Inverno. O trigo estava plantado na terra seca, à espera da chuva para germinar; a mãe aproveitou um momento de folga e sentou-se à porta de casa a preparar as roupas de Inverno e a fazer sapatos novos, porque a vista da rapariga não era boa para estas tarefas, nem nunca seria. Estava ali sentada, ao calor do sol, mal ouvindo a conversa da velhota e o que as crianças Lhe diziam, e meio a sonhar; os seus lábios eram calmos e a pele era quente e de um castanho dourado do sol; o cabelo preto e brilhante, que ela agora tinha tempo para o pentear todos os dias, o que a fazia parecer mais nova, embora não tivesse feito ainda trinta e cinco anos.
Ela sabia que o homem estava ali sentado, do outro lado da estreita estrada, mas não olhava. Às vezes, quando sentia o olhar dele com muita intensidade, levantava-se, ia para dentro de casa e aí ficava até o ver ir-se embora. Mas sabia o motivo por que ele vinha e sabia que olhava para ela por uma razão, e não conseguia esquecé-lo.
Durante todo aquele Inverno, não conseguiu esquecé-lo. Por fim, estava muito frio para ele vir. Quando chegou a neve e os ventos do noroeste vieram, ásperos e secos, podia tê-lo esquecido. Mas não esqueceu.
Mais uma vez chegou o ano novo e ela foi à cidade, como fazia todos os anos; vendeu algum grão e trocou as moedas de prata por papel e foi procurar outro escriba. Mais uma vez mandou escrever a carta, como se fosse enviada pelo homem, e mais uma vez a aldeia ouviu a notícia e soube que ela tinha recebido dinheiro do marido.
Mas, desta vez, nem a inveja, nem toda a conversa deles, nem os elogios, ajudaram em nada o coração vazio da mulher. Nem mesmo o orgulho a confortou. Ouviu o escriba ler a carta, com a face tranquila e fria, e levou-a para casa. Nessa noite, deitou a carta no fogão quando acendeu o lume. Depois, foi à gaveta da mesa do quarto e, após um momento, abriu-a e tirou as três cartas que lá estavam, correspondentes ao tempo de ausência dele, e deitou-as também no lume. O garoto viu aquilo e exclamou, estupefacto:
- Então, queimou as cartas do meu pai?
- Sim - respondeu a mãe, fria como a morte, com os olhos fixos nas chamas.
- Mas assim... como havemos nós de saber onde ele está? - disse o rapaz, a chorar.
- Eu sei muito bem onde ele está. Pensas que eu me esqueço? respondeu a mulher.
Assim aliviou o seu coração.
Mas como pode qualquer coração viver vazio? Um dia, pouco depois disto, foi à cidade para trocar outra vez o seu pedaço de papel, pois por esta altura já não incomodava o primo, tendo aprendido a desenvencilhar-se sozinha. Com as dez moedas na mão voltou-se para seguir. E ali estava um homem junto a uma porta, sorrindo e alisando o lábio superior: era o agente do senhorio.
Desde o Outono que ele não a via tão de perto, e não havia ninguém próximo que os conhecesse e, assim, fitando-a com ousadia e sorrindo, disse-Lhe:
- Que faz aqui?
- Vim só trocar algum dinheiro... - E não acabou a frase, pois ia a dizer que o meu homem me mandou, mas, fosse como fosse, as palavras ficaram-Lhe presas na garganta e não chegou a pronunciá-las.
- E agora? - perguntou-Lhe ele, erguendo as pálpebras e olhando-a fixamente.
Ela baixou a cabeça e esforçou-se por falar normalmente:
- Estava a pensar ir comprar um gancho de prata, ou de metal pra teado, para segurar o cabelo. O que tinha gastou-se com o uso e ontem partiu-se.
Era verdade que o gancho do cabelo se tinha partido. Ela voltou-se para se ir embora, com vergonha por ser vista a falar com um homem numa rua da cidade, mesmo por pessoas que não a conheciam. Pelo aspecto, ele era um homem de certa importância e, como era mais alto que a maior parte dos homens, com uma face quadrada e pálida, as pessoas já estavam a olhar para ambos com curiosidade quando passavam.
Mas o homem seguiu-a. Ela sabia que ele a seguia, mas continuou calma e modestamente o seu caminho, dirigindo-se para uma pequena loja de artigos de prata que conhecia. Quando lá chegou, dirigiu-se ao balcão do ourives e pediu-Lhe que Lhe mostrasse os ganchos de latão com banho de prata. Enquanto esperava, brincou um momento com uns brincos de prata que ali estavam. De repente, surgiu o agente. Este, fingindo não a reconhecer, disse ao ourives:
- Quanto custam estes brincos?
- Vou pesá-los para ver a quantidade de prata que têm e vendo-Lhos honestamente, por um preçojusto, conforme o peso deles. O ourives deixou os ganchos de lado por um momento, vendo este homem vestido de seda, sem dúvida melhor cliente que aquela camponesa vestida de algodão azul.
A mulher não pôde fazer mais senão ficar à espera, voltando a cabeça para não ver aqueles olhos escondidos debaixo das pálpebras. O homem esperou, indolentemente, enquanto o ourives punha os brincos em cima da pequena balança.
- Duas onças e meia - disse o ourives, numa voz alta. Depois, baixando a voz, acrescentou, com ar bajulador:
- Mas se compra os brincos para a sua boa esposa, então por que não juntar um par de anéis? Aqui estão dois a condizer com os brincos, e será um belo presente, que agradará ao coração de qualquer mulher.
O homem sorriu a isto e disse descuidadamente:
- junte-os, então.
E depois acrescentou, a rir:
- Mas eles não são para a esposa, a minha mulher morreu há seis meses.
O ourives apressou-se a juntar os anéis, satisfeito com tão boa venda, e concluiu:
- Que sejam então para a nova esposa.
Mas o homem não disse mais e ficou à espera, a olhar e a passar os dedos pelo lábio. Nem por uma vez mostrou conhecer a camponesa que ali estava. Pegou nos brincos e nos anéis, já embrulhados, e foi-se embora. Quando já tinha voltado as costas, a mãe suspirou e olhou-o, com uma certa inveja da pessoa a quem se destinavam as jóias, coisas de que ela teria gostado e que, na sua adolescência, tanto tinha desejado. Na realidade, era aquilo que ela tinha dito que o marido Lhe mandava comprar com o dinheiro que Lhe enviava, e a que a alcoviteira se referia muitas vezes: Onde estão aqueles anéis que você disse que tinha?
Deixe-mos ver. E a esta insistência, a mãe respondia: O ourives está a fazê-los, ou: guardei-os algures e agora não me lembro onde. " Desculpas como esta foram ditas muitas e muitas vezes, até que, nesse último ano, a alcoviteira dissera maliciosamente: Você nunca mais usa esses anéis? Ao que a mãe respondera: Não tenho disposição. Hei-de pô-los no dia em que ele voltar para casa. "
Comprou o gancho, enfiou-o no cabelo e voltou, então, para casa, pensando nas delicadas coisas de prata; e suspirou, pois não tinha disposição para pegar no seu dinheiro, ganho tão duramente, e comprar qualquer coisa para si. Afinal de contas, o seu aspecto não importava agora a ninguém; devia ficar como estava. A pensar assim, com alguma tristeza, percorreu o caminho até à porta da cidade, até à estrada estreita que ligava a estrada principal à aldeia. ia pensando na casa e como Lhe ia saber bem a sua comida quando lá chegasse, o único conforto que o seu corpo tinha agora.
Subitamente, saindo do crepúsculo da curta tarde de Inverno, lá estava o homem. Surgiu do crepúsculo, súbito e negro, e pegou-Lhe no pulso com a mão grande e macia. Não havia mais ninguém por perto. Não, era a hora em que os camponeses estão nas suas casas, e estava frio; o ar estava cheio da geada da noite, a uma hora em que ninguém se demora na rua, a não ser por necessidade. Contudo, ele ali estava, e segurava-Lhe no pulso e ela sentia a sua mão. Ficou quieta, sem se poder mexer.
Então, o homem pegou no pequeno embrulho com a prata e, com a outra mão, meteu-o à força na mão dela, que ele segurava, fechou-Lhe os dedos sobre o embrulho e disse-Lhe:
- Não comprei isto para mais ninguém senão para si. Comprei-os só para si. São seus.
E foi-se embora, engolido pela sombra dos muros da cidade; e ali ficou ela sozinha, com as peças de prata na mão. Então, voltou a si e correu atrás dele, gritando:
- Não posso... Mas eu não posso...
Mas ele já se tinha ido. Embora corresse para as portas da cidade e espreitasse através das luzes mortiças que saíam das lojas abertas, não conseguiu vê-lo. Tinha vergonha de correr mais para o interior da cidade e olhar para a face daquele homem. E ali ficou parada, indecisa e envergonhada, até que os soldados que guardavam as portas da cidade Lhe disseram, impacientes:
- Oh boa mulher, se vai sair por esta porta esta noite, então vá, porque temos que fechá-la depressa, por causa dos comunistas, esses novos ladrões que há agora.
Então, ela seguiu o seu caminho e cruzou a colina, descendo até ao vale. Daí a pouco, enfiou os objectos no peito. A lua nascia, enorme, fria e brilhante, e quando ela chegou a casa as crianças estavam deitadas e a avó a dormir. Só o rapaz estava ainda acordado e gritou quando a mãe chegou:
- Estava com receio por si, minha mãe, e devia ter ido à sua procura, mas tive receio de deixar as crianças e a minha avó.
Mas ela não foi sequer capaz de sorrir ao que o rapaz dizia, referindo-se às outras duas crianças como se fosse um homem. E respondeu-Lhe:
- Bem, seja como for, cá estou e muito cansada.
E foi buscar alguma comida, que comeu fria. Durante todo este tempo, os objectos continuavam no seu peito.
Depois de comer, olhou de relance para a cama e, à luz da vela, viu que o rapaz também dormia. Correu a cortina. Depois sentou-se ao lado da mesa, retirou o embrulhito do peito e abriu o papel macio que o envolvia. Lá estavam os anéis, brilhantes e brancos, e os brincos eram lindos. Cada um tinha presas três pequenas correntes e na extremidade de cada uma delas havia um pequeno pingente. Ela pegou-Lhes com os seus dedos ásperos e olhou atentamente: numa corrente havia um peixinho, na segunda um sininho e na terceira uma estrelinha, todos delicada e cuidadosamente feitos, que agradariam a qualquer mulher. Nunca tinha tido coisas tão bonitas na sua mão morena e áspera. Sentou-se e olhou-as durante uns momentos. Suspirou e voltou a embrulhá-las, não sabendo o que fazer com elas nem como devolvê-las ao homem.
Mas quando se encontrou debaixo da coberta com as crianças, não conseguiu dormir. Embora o corpo estivesse frio, por causa da frialdade húmida da noite, as suas faces abrasavam e ela ficou muito tempo sem conseguir adormecer. Por fim caiu num sono leve e sonhou com qualquer coisa estranha e brilhante, com a sensação da mão quente de um homem sobre ela.
Capítulo 10
Durante toda a Primavera não voltou a ver o homem, embora se lembrasse dele. Não o viu até um dia, no princípio do Verão, quando o trigo estava a começar a ficar dourado e ela tinha semeado o arroz em canteiros, e este estava a rebentar em pequenos blocos de jade perto da casa, onde podia ser vigiado pela velha avó e defendido da gula dos pássaros, que gostavam daquelas plantinhas tenras. E durante todo este tempo o seu coração esteve quente e dormente.
Mas chegou um dia, no princípio do Verão, um dia sem vento e com um calor suave. As cigarras chamavam-se amorosamente e, terminado o acasalamento, voltavam lentamente ao silêncio. O sol jorrava o calor sobre o vale, como um vinho morno e claro, e as pedras quentes e lisas da rua solitária da pequena aldeia reflectiam-no, fazendo o ar ondular e dançar acima delas. Por entre estas ondas, crianças nuas corriam e brincavam, com o suor a brilhar na pele lisa.
Não havia a mínima aragem. De pé na soleira da porta, a mãe pensava que nunca tinha sentido um princípio de Verão com o calor a chegar tão cedo e tão de repente. O rapaz mais novo correu para a borda do lago e sentou-se na água, rindo e gritando para os seus companheiros de brincadeira que viessem juntar-se-Lhe. O mais velho tirou o casaco, arregaçou as calças, pôs na cabeça um velho chapéu de bambu que tinha sido do pai e partiu para o campo de trigo recém-germinado. A pequena estava sentada em casa, para ter sombra, e a mãe ouvia-a suspirar. Só a velha gostava daquele calor e estava sentada ao sol; aliviara o seu velho esqueleto do peso do casaco e deixava o sol penetrar-Lhe nos ossos e nos seios, pedaços de pele seca que Lhe pendiam do peito; e disse, com voz esganiçada, quando viu a nora:
- Nunca tive medo de morrer no Verão, filha! O sol faz bem; é como sangue e ossos novos para uma velha seca como eu!
Mas a mãe não suportava o calor que fazia lá fora. Havia calor bastante no seu coração, e o sangue, demasiado quente, parecia-Lhe explodir ao longo das veias. Saiu de casa dizendo:
- Tenho que ir regar o arroz. Este sol de hoje faz secar tudo, mãe. E pegou na enxada, pôs os baldes de água vazios ao ombro e caminhou pelo estreito carreiro até outro pequeno lago, um pouco mais alto que os viveiros de arroz, sentindo algum agrado, pois, embora o ar fosse quente, não estava tão abafado e sem vida.
Não encontrou ninguém pelo caminho, porque era a hora depois do meio-dia em que os homens dormem a sesta. Aqui e ali, se algum homem tivesse ido mais cedo para o seu campo, procurava a sombra, dado que estava calor demais para trabalhar, e punha-se a dormir debaixo de uma árvore, com o chapéu a cobrir-Lhe a cara, para se proteger das moscas, e com o animal ao lado, de cabeça pendente e todo o corpo inerte pelo calor e sonoléncia. Mas a mãe podia suportar este calor, pois ele caía do céu e não estava fechado entre paredes, nem dentro das suas próprias veias.
Trabalhou um bocado nos seus canteiros e, com a enxada, abriu uma pequena entrada no lado mais alto do canteiro e um rego até ao lago; depois foi até à borda do lago e, com os baldes suspensos da vara, mergulhou na água primeiro um, depois o outro, e em seguida esvaziou-os no rego que tinha cavado. Muitas e muitas vezes merguLhou os baldes na água, e via a terra ficar mais negra e húmida, e parecia-Lhe que estava a alimentar qualquer coisa viva e sedenta, e que Lhe dava vida.
Parou por momentos este trabalho, endireitou as costas, pousou os baldes e sentou-se na borda verde do lago, a descansar; e quando se sentou olhou para Norte, onde se situava a aldeia, e viu um homem parado a perguntar qualquer coisa à sogra; depois voltou-se e veio na sua direcção. À medida que ele se aproximava, reconheceu-o. Era o agente do senhorio e, enquanto o homem vinha, ela lembrou-se que ainda tinha os presentes e inclinou a cabeça, sem saber como falar deles sem Lhos devolver; mas não ousava ir agora buscá-los e entregar-Lhos em plena luz do dia, quando qualquer um que passasse podia vê-la fazê-lo; assim como a velha, bem desperta ao sol, tinha habilidade para ver coisas que não devia ver.
O homem aproximou-se e, quando chegou, a mãe levantou-se lentamente, sentindo-se deslocada, uma mulher diante de um homem.
Mas ele falou à-vontade:
-Boa tarde. Eu vim apenas ver como está o trigo este ano e calcular como serão as colheitas.
Mas enquanto falava, os seus olhos percorriam de alto abaixo o corpo dela, defendido do calor apenas por um simples casaco e umas calças de pano azul, moldadas ao corpo. Os olhos do agente fixaram-se nos pés dela, morenos e descalços. Com medo do seu próprio coração, ela murmurou rudemente:
- Os campos são acolá. Olhe e veja!
Ele olhou para os campos sem sair donde estava e disse, na sua voz agradável de homem da cidade:
- Os campos estão muito bonitos, tem havido colheitas piores do que será a deste ano.
E pegou num pequeno caderno dobrado e escreveu qualquer coisa, com uma espécie de pauzinho que ela nunca tinha visto e que não precisava de ser molhado na tinta, como fazia o escriba. Ela observava-o e por um lado sentia curiosidade, por outro estava sensi bilizada e orgulhosa por ver que um homem tão instruído e tão bem parecido tinha olhado para uma mulher como ela, embora não fosse próprio; e achou que não devia falar nos presentes desta vez.
Quando acabou de escrever, sorrindo e afagando o lábio, ele disse-Lhe:
- Se tiver tempo, mostre-me o seu outro campo, o de cevada, pois eu esqueço-me sempre de qual é o seu e qual é o do seu primo.
- O meu é aquele, em volta do monte - disse ela meio contra a vontade, baixando os olhos, e fez menção de pegar outra vez na enxada.
- Em volta do monte? - perguntou o homem, e a sua voz elevou-se, suave, coçou o lábio com a grande mão macia e sorriu e disse: Mas mostre-me, por favor.
Fixou os olhos nela, agora firme e abertamente, e o seu olhar fez com que ela se movesse; deixou cair a enxada e foi com ele, seguindo atrás, como as mulheres devem fazer quando caminham com homens.
O sol caía sobre eles e a terra estava quente, com a erva verde e macia. Subitamente, enquanto caminhava, a mulher sentiu-se invadida por um langor provocado pelo sol. E, sem saber porquê, sentiu algum prazer em olhar para o homem que caminhava à sua frente, o pescoço forte e pálido, brilhante de suor, o corpo movendo-se no longo fato de Verão de seda macia, os pés com peúgas brancas e limpas, e sapatos pretos de lona. Ela seguia silenciosamente, com os pés nus; aproximou-se e sentiu um perfume que emanava dele, um perfume forte, uma mistura de sangue e carne e suor do homem. Quando o sentiu nas suas narinas, agitou-se de desejo. Era um desejo tão forte que se assustou consigo própria e com que podia fazer, e gritou, hesitante, parada sobre o caminho relvado:
- Esqueci-me de uma coisa para a minha mãe!
E, quando ele se voltou e olhou para ela, exclamou novamente, todo o seu corpo subitamente quente e fraco:
- Esqueci-me de uma coisa que tenho que fazer - e voltou-Lhe as costas, caminhando tão depressa quanto podia e deixando-o ali, a olhar para ela.
Foi direita a casa. Entrou sem ninguém dar por ela, pois estavam todos a dormir. O calor do dia aumentara à medida que a tarde ia passando. Do outro lado da rua, a mulher do primo estava sentada a dormir, de boca aberta e com o bebê ao peito. A velha avó dormia também, a cabeça pendente sobre o peito e a roupa caída para a cintura. A rapariga saíra do quarto fechado e dormia encostada a uma pedra fria que Lhe servia de almofada, e o garoto mais novo estava deitado, nu, estendido a todo o comprimento debaixo do salgueiro, e dormia também.
O dia tinha mudado. Tinha escurecido e estava mais calmo, e o calor era mais ardente. Grandes nuvens surgiam, inchando ameaçadoramente, negras e monstruosas por cima dos montes. Mostravam bordos prateados, iluminados por uma estranha luz interior. Até o som de qualquer insecto, a chamada de qualquer ave, eram acalmados pelo silêncio quente do dia. Mas a mãe estava longe de dormir. Entrou suavemente no quarto às escuras e sentou-se na cama, com o sangue a martelar-Lhe nos ouvidos, o sangue do seu corpo forte e faminto. Agora sabia o que estava errado nela. Agora não fingia para si própria, como uma mulher da cidade podia fingir, que tinha alguma doença. Não, era demasiado simples fingir, quando ela sabia o que se passava consigo, e estava mais amedrontada do que alguma vez estivera em toda a sua vida, porque sabia que aquela fome que sentia agora aumentaria furiosamente se não fosse alimentada... Nem mesmo sonhava que podia repeli-lo, agora sabia que a sua própria fome era a mesma que a dele, e gemeu alto, gritando interiormente: Seria melhor se ele não me possuísse... Oh, oxalá que ele não me possua, e que eu possa salvar-me!
Mas mesmo enquanto gemia, levantou-se da cama e deixou a aldeia, seguindo pelo caminho por onde tinha vindo. Acima dela, as nuvens eram grandes e negras, de bordos brilhantes, e em volta estavam os montes, verdes e claros contra a escuridão. Seguiu pelo carreiro, até ao sítio onde este fazia uma curva, a seguir a um pequeno santuário em ruínas. Ali, à porta do santuário, estava o homem, à espera.
Não podia passar e deixá-lo. Não, quando ele entrou e esperou, seguiu até à porta e olhou. Ele ali estava, na penumbra do santuário sem janelas, esperando. Os seus olhos brilhavam como os de um animal. Entrou.
Olharam um para o outro na luz difusa, duas pessoas em sonho, desesperadas, incapazes de resistir, e decididas a fazer o que tinham que fazer.
Porém, a mulher ainda parou uma vez. Desperta do sonho olhou para cima e viu os três deuses do santuário: o principal, um velho grave olhando em frente, tendo ao seu lado outros dois mais pequenos, auxiliares menores, de beira de estrada, para aqueles que paravam na sua jornada para adoração ou para se abrigarem. Ela pegou na roupa que tinha posto de lado e foi colocá-la na cabeça deles, cobrindo-Lhes os olhos fixos.
Capítulo 11
Nessa noite, o vento ergueu-se subitamente, como um rugido de um tigre, vindo dos montes longínquos, espalhando pelo céu asul, nuvens pesadas, carregadas de água. As chuvas repentinas e abundantes lavaram o calor quente desse dia. Por fim, quando a névoa se dissipou, a alvorada, pura e fresca surgiu silenciosa e rompeu no céu cinzento e tranquilo.
Depois da tempestade, o frio veio subitamente dos céus, acabando por trazer a morte da velha sogra. Dormira demasiado e o vento do fim da tarde soprara sobre o seu corpo desnudado. Ao crepúsculo, quando chegou a casa, silenciosa, como se tivesse vindo dos campos
depois da costumada faina, a mãe encontrou a velha na cama, cheia de frio e gemendo com arrepios e dores:
- Um espírito mau apanhou-me, filha! Um vento maligno caiu sobre mim!
Gemia, e estendeu a sua mão mirrada e trémula para a mãe, que a tomou nas suas. Estava a arder em febre.
A mãe quase se sentiu contente pela situação. Estava quase feliz por ter com que ocupar o espírito, sem pensar demasiado no coração
e no pecado que cometera naquele dia. Dizia baixinho:
- O céu estava tão cinzento... estive quase para voltar a casa, com receio de que a mãe ficasse cá fora com aquelas nuvens; mas depois pensei que se tivesse abrigado, ao ver como o céu estava carregado.
- Apesar de tudo, adormeci - gemeu a velha. - Dormi e tornei a dormir, e quando acordei já o sol tinha desaparecido e eu estava gelada que nem a morte.
A mãe apressou-se a aquecer água com gengibre e ervas, e a velha bebeu a infusão. Com o avançar da noite, a febre começou a subir e ela queixava-se de que não conseguia respirar, pois tinha um espírito mau sentado no peito e que Lhe cravara um punhal nos pulmões. Passado algum tempo calou-se, respirando a custo, com o peito oprimido.
E a mãe sentia-se contente por não poder dormir e ter de ficar toda a noite sentada à cabeceira da sogra, dando-Lhe de beber, quando esta, gemendo, Lho pedia, cobrindo-a com a manta quando se destapava, queixando-se de que ardia em febre por entre calafrios. Lá fora, a noite estava que nem breu e a chuva torrencial continuava a cair sobre o telhado de colmo, que cedia aqui e ali, sendo preciso mudar a cama da velha, pois a chuva já caía no canto que habitualmente era o seu lugar. Por cima da cama onde as crianças dormiam, a mãe colocou uma esteira de junco para as abrigar das gotas que caíam. Tudo fazia com alegria, feliz por estar ocupada durante toda a noite.
Com a chegada da manhã a pobre velha piorou. Sim, não havia margem para dúvida. A mãe mandou o rapaz mais velho chamar o primo, que se apressou a vir, bem como a sua mulher e mais vizinhos. Todos olhavam a velha, que mal se apercebia do que se passava em seu redor, devido à muita febre e à dor que sentia ao respirar. Cada um dava sua sentença, dizendo que se devia fazer isto ou aquilo, ou que deviam experimentar um dado remédio, e a mãe, numa lufa-lufa, andava de um lado para o outro tentando tudo. A dada altura a velha voltou a si, e ao ver toda aquela gente à sua volta, respirando com esforço, disse:
- Um espírito mau está sentado sobre o meu peito... Chegou a minha hora... É a minha hora...
A mãe apressou-se na sua direcção e apercebeu-se de que a pobre criatura queria dizer algo, mas não conseguia; com a mão trémula repuxava a mortalha que trazia vestida, agora cheia de remendos. Outrora, quando Lhe cosiam um novo remendo, ria a bom rir, afirmando que duraria mais do que a mortalha. Mas hoje puxava por ela e, quando a mãe inclinou a cabeça, a sogra sussurrou com agonia:
- Esta mortalha... Toda remendada... Meu filho...
Ao ouvir estas palavras, todos se entreolharam com espanto, mas o rapaz mais velho disse logo de seguida:
- Mãe, já sei o que a avó quer. Quer a terceira mortalha nova, para morrer com ela. Aquela que o meu pai disse que Lhe havia de mandar. Sempre disse que havia de sobreviver a esta que traz.
O rosto da idosa iluminou-se então debilmente e todos que a observavam diziam admirados:
- Que genica para uma pessoa da sua idade!
Acrescentando ainda:
- Ora aqui está uma velha cheia de coragem! E vai ter a sua terceira mortalha como sempre disse!
Uma leve alegria, quase imperceptível, apareceu no rosto cavado da moribunda, que murmurou de novo:
- Não morro antes que a terminem e que ma vistam... O primo preparou-se para ir comprar o tecido à pressa e a mãe disse-Lhe:
- Compre o melhor algodão vermelho que encontrar; amanhã Lhe darei o dinheiro, se não se importar de pagar agora com o seu.
Estava resolvida a dar à sogra a melhor mortalha que conseguisse encontrar. Nessa noite, quando toda a casa se quedou em siléncio, cavou a terra, tirou o dinheiro que escondera e retirou a quantia necessária, para que a velha mãe pudesse morrer contente.
Parecia-Lhe que aquela coisa em que não queria pensar agora, a memória daquela hora que enterrava no mais profundo do seu ser, enquanto se atarefava de bom grado, que aquele pensamento oculto a tornava melhor, desejando sacrificar-se pelos seus. O peso daquela hora secreta parecia tornar-se agora mais leve por fazer tudo com o maior dos escrúpulos. Durante duas noites foi incapaz de dormir, sem se preocupar com o cansaço, nem tão pouco se irritava com os filhos. Era o mais gentil e carinhosa que podia com a mulher moribunda. Quando o primo trouxe o tecido, colocou-o junto dos olhos da velha, que a cada hora ficava mais surda e cega, e disse:
- Aguente-se, mãe, até que eu a tenha pronta.
A pobre criatura retorquiu corajosamente:
- Não morrerei!
Mas faltava-Lhe o fôlego para falar e até para respirar, pois a sua respiração era cada vez mais penosa e difícil.
A mãe apressava-se a coser, para acabar a tempo o vestido, feito de um belo tecido brilhante, vermelho como um traje de noiva, enquanto a velha, deitada, a olhava, os olhos fracos postos no pano que sobressaía no colo da mãe. Já não podia comer nem engolir coisa alguma, nem mesmo o leite morno que uma boa vizinha tirava do próprio seio para uma tigela, pois já tinha acontecido um tão bom leite ter salvo um velho ou uma mulher da morte. E a velha mulher esperava, agarrada ainda àquele sopro de vida.
Costurando sem cessar, a mãe continuava a sua obra. As vizinhas traziam a comida, para que não tivesse de interromper o trabalho. O vestido ficou pronto num dia e parte da noite. O primo e a mulher deste e uma ou duas vizinhas ficaram a vê-la trabalhar, fazendo-Lhe companhia. Na realidade, ninguém dormia na aldeia, ficando despertos a conjecturar quem ganharia a corrida: a mãe ou a morte.
Por fim acabou o trabalho. A mortalha vermelha estava pronta; o primo ergueu o corpo da moribunda, enquanto a mãe e a prima enfiavam o vestido novo nos membros escuros e secos, como galhos velhos de uma árvore morta. A pobre criatura apercebeu-se de que o fim estava próximo. Sem falar, arquejando ruidosamente, abriu muito os olhos e entreabriu a boca num sorriso desdentado. Sabia que vivera até à sua terceira mortalha, o seu único desejo. E morreu triunfante.
No dia seguinte ao funeral, a mãe continuou agarrada ao trabalho, embora não houvesse necessidade de qualquer pressa. No campo trabalhava como nunca e quando o filho pegava numa tarefa que ela já começara, dizia-Lhe com tom zangado:
- Deixa-me fazer isso! Sinto muito a falta da avó, faz-me mais falta do que eu supunha. Culpo-me por não ter vindo mais cedo para casa naquele dia, quando a tempestade rompeu, para ver se ela estava bem agasalhada quando o temporal escondeu o sol.
Deixou que na aldeia pensassem que chorava a defunta e que se censurava pelo seu descuido. Muitos elogiavam o modo sofrido como sentia aquela morte.
- Que boa nora, a chorar assim a sua velha sogra!
E confortavam-na:
- Não se apoquente tanto. Ela era muito idosa e viveu uma longa vida. Que adianta estar assim a lamentar-se, pois se antes de sabermos andar e falar já temos a nossa hora marcada? Tem o seu marido e os seus dois filhos. Anime-se, minha amiga.
Era um alívio ter este pretexto para poder esconder o seu medo e a sua melancolia. Tinha razões para se afligir, pois enquanto trabalhava no campo tinha tempo para desenterrar do fundo do coração aquele medo que estava escondido, desde a hora em que a tempestade começara. Todos aqueles dias se tinha alegrado por ter todo o tempo ocupado, e até por a velha ter morrido e, pesarosamente, dizia para consigo: Foi bem melhor a pobre criatura ter morrido e não vir a saber o que se vai passar, se é que algo vai acontecer. "
Um mês passou, e ela teve medo. Dois... Três meses passaram. E a ceifa começou e malhou-se o grão. E o que tanto receara, tornara-se numa certeza. Já não tinha qualquer dúvida. O pior tinha-Lhe acontecido, a ela, mãe de filhos, dona de casa honrada que todos respeitavam na aldeia. Amaldiçoou o dia da tempestade e dos seus calores. Devia ter pensado que naquele momento, sentindo o corpo escaldante de ardor, a querer entregar-se daquela maneira alvoroçada, e com o espírito devorado pelo desejo ardente, só podia dar tais frutos. O homem também tinha um corpo forte e cheio de vigor... Como põde pensar que seria de outro modo?
Que secreta e estranha maternidade esta, que tinha agora de esconder e vigiar com tanto receio durante a solidão da noite, enquanto as crianças dormiam. E embora pudesse estar enjoada, não ousava mostrá-lo. Era estranho que enquanto grávida dos filhos do marido, nunca padecera de nenhum mal e agora toda a comida se Lhe revolvia no estômago, por menor que fosse a porção. Parecia que aquela semente crescia no seu ser com toda a força de uma erva daninha, apoderando-se perniciosamente do seu corpo. E ela não podia deixar transparecer qualquer suspeita que fosse.
Noite após noite, permanecia sentada na cama, demasiado enjoada para se deitar, e lamentava-se: Quem me dera não ter dentro de mim esta coisa... Quem me dera sentir-me sozinha de novo... Como me sentiria feliz... Muitas vezes Lhe veio ao espírito a ideia de se enforcar. Mas não o podia fazer. Tinha os filhos. E olhava-os, adormecidos, os seus filhos adorados; não podia suportar a ideia de os vizinhos observarem o seu cadáver, à procura da causa da morte. Só Lhe restava viver.
Apesar de todo este sofrimento, ainda desejava o homem da cidade, embora muitas vezes o odiasse por entre as suas ânsias. Ele parecia continuar a exercer a sua forte atracção sobre ela. Pelo contrário, sentia que ele a dominava mais e mais, pelo segredo daquele laço que crescia dentro de si. Arrependia-se de se ter entregado e, no entanto, muitas vezes o desejava com ardor, dia e noite. Apesar da sua sentida vergonha e do seu pesar por não ter sabido resistir-Lhe, ainda ansiava pela sua presença. Mas sentia pudor em procurá-lo e receava que a vissem. Só Lhe restava esperar que voltasse, porque, a seu ver, procurá-lo era próprio de uma mulher perdida, pronta a entregar-se a qualquer homem.
Mas, coisa curiosa, o homem parecia tê-la esquecido. Passou-se o Verão e ele sem aparecer. Chegou finalmente na altura da colheita, 93
chamado pelas suas obrigações. Voltou duro e irascível como era seu costume, reclamando para si a medida cheia de arroz, de tal maneira que o rapaz bradou surpreendido:
- Ó mãe, mas que mal Lhe fizemos nós, do ano passado para cá? No último ano que cá esteve era tão amável!
Taciturnamente, a mãe respondeu-Lhe:
- Como posso eu saber?
Mas sabia. Quando o homem se negou a encará-la, ela soube. Nem mesmo no dia da festa das colheitas ele se dignou olhá-la, apesar de ela se ter lavado, penteado, alisado e untado o cabelo, e de ter vestido um casaco e calças lavados, e calçado o único par de meias e sapatos, que ela própria fizera por altura da morte da velha. Vestida assim e com as faces coradas, de esperança e de vergonha, e os olhos febris pelos seus terríveis e secretos medos, dirigiu-se à festa e afadigou-se para que o homem a visse, falando a uns e outros, forçando-se a mostrar-se animada e contente. As mulheres olhavam admiradas as suas faces vermelhas, os olhos brilhantes, a voz e o riso altos, habituadas que estavam à sua postura calma diante dos homens.
Mas ele nunca Lhe prestou atenção. Bebeu vinho novo de arroz e, enquanto o provava, disse em voz alta aos lavradores:
- Eu aceitava uma ou duas bilhas desse vinho, se mo pudessem dispensar, bem vedadas com barro, para conservar o sabor doce que tem.
Mas nunca olhou para ela, nem mesmo quando ela passava à sua frente - fazia de conta que não a via ou olhava-a como se fosse uma aldeã de quem nem tão pouco soubesse o nome.
A mulher não suportava tal. Embora soubesse o contentamento que sentiria se ele não mais a quisesse, não suportava tal. Foi para casa a meio da festa e, com as mãos trémulas, tirou da gaveta as jóias que ele Lhe dera. Pôs os brincos nas orelhas, tirando os arames que já há anos trazia postos para manter os orifícios abertos, pôs os anéis nos dedos rudes e fortes e regressou à festa. Tentando de novo chamar a atenção do homem, manteve-se de pé, perto da mesa, onde as mulheres serviam os comensais. As mulheres davam à língua. A alcoviteira estava muito alegre nesse dia, mostrando os pés com sapatos novos e, ao ver a mãe, disse bem alto:
- Então, vizinha, também veio? Afinal sempre acabou por comprar as jóias, embora o seu marido ainda continue ausente!
Falou tão alto que todas as mulheres se voltaram e começaram a rir, e até os homens fizeram o mesmo, ao ver como elas se divertiam. Quando o agente ouviu os risos e as frases de troça dirigidas à mãe, ergueu a cabeça com desdém por cima da tigela, os maxilares movimentando-se para cima e para baixo e a boca cheia de comida, e perguntou desinteressadamente, com voz suficientemente alta para que ela o ouvisse:
- Quem é esta mulher?
Os olhos dele caíram sobre a cara escarlate da mãe, depois desviou-os como se nunca a tivesse visto, e continuou a comer. Ela sentiu-se empalidecer subitamente e saiu dali, fugiu a correr, enquanto as mulheres se divertiam ao vê-la assim, envergonhada pela galhofa.
A partir desse dia a mãe viveu à parte, sozinha com os filhos, escondendo o ser selvagem que Lhe crescia no ventre. Dia e noite se interrogava sobre o que devia fazer. Aparentemente trabalhava como sempre, armazenava o arroz e preparava tudo para o Inverno. A meados do Outono, com a aldeia em festa, cada casa tinha o seu festejo, e a pequena rua tomou um ar festivo, sem faltar comida em nenhum lar, a mãe preparou igualmente alguns bolitos em forma de lua, apesar de toda a sua tristeza. Na noite da festa, quando a lua despontou, viram-na subir no céu brilhante como um sol, enquanto comiam os doces, sentados sob os salgueiros da eira. Mas comiam com ar grave, como se, quer as crianças quer a mãe, se sentissem tristes. O mais velho acabou por dizer em tom solene:
- Às vezes, chego a pensar que o pai deve estar morto, porque nunca mais volta.
A mãe inquietou-se e respondeu rapidamente:
- Mau filho que falas assim da morte do teu pai!
Mas veio-Lhe à mente uma ideia.
E o rapaz insistiu
- As vezes, penso partir e ir à sua procura. Talvez vá este ano, depois da sementeira do trigo, se me der algum dinheiro, mãe. Posso levar a minha roupa de Inverno numa trouxa às costas, para o caso de me demorar a encontrá-lo.
A mãe teve medo e, para o distrair daquela ideia, disse:
- Ó filho, come outro bolo, espera mais um ou dois anos. Que seria de mim se abalasses e também não voltasses? Espera que o teu irmão mais novo possa ocupar o teu lugar.
Mas o filho mais novo gritava, caprichoso, como era hábito sempre que pretendia satisfazer algum desejo.
- Se o meu irmão for, eu vou também.
E a boquita vermelha expressava um amuo, enquanto fitava a mãe com os olhos furiosos.
A mãe ralhou ao mais velho:
- Estás a ver o que acontece quando falas assim e Lhe excitas a imaginação?
E não quis ouvir mais nada.
Aquela ideia ficou a ecoar-Lhe na cabeça, e ficou a pensar nela. Já estava só ia para cinco anos. Cinco anos. Em cinco anos, se o marido estivesse vivo, já não teria voltado? Morrera certamente. Há muito que devia ser viúva, sem o saber. O agente do proprietário não se casara de novo. E ela era viúva. Recordava-se de o ter ouvido dizer que a mulher morrera no ano anterior, embora na altura não tivesse dado importãncia às suas palavras, porque então isso não significava nada para ela, por ainda não ser viúva. Mas agora era imperioso que o fosse. Nessa noite pôs-se a observar a lua enorme no céu distante. As crianças dormiam, toda a aldeia dormia, aqui e ali um cão ladrava à lua enorme. Quanto mais pensava, mais se convencia de que devia ser viúva. E se tal fosse verdade... e se ela casasse, se ele também o quisesse, será que iria ainda a tempo?
E do modo como as coisas estavam mal encaminhadas, era preciso agir depressa. O filho mais velho não esquecia o seu plano e trabalhava febrilmente, lavrando e semeando os campos. Depois de terminar o trabalho, quis, nesse mesmo dia, partir em busca do pai. Estava tão alto como o pai e delgado e rijo como uma cana de bambu. Deixara de ser criança para que o contrariassem, com uma personalidade calma, mas tenaz. Quando matutava numa ideia nunca abdicava dela. Assim, disse à mãe:
- Deixe-me ir agora à procura do meu pai. Diga-me o nome da cidade onde ele mora e a morada da casa onde trabalha!
- Queimei as cartas dele e agora temos que esperar pela próxima, no ano novo - respondeu-Lhe a mãe, desesperada, para o fazer esquecer aquela ideia.
O rapaz gritou:
- Mas a mãe disse que sabia!
Ao que ela se apressou a responder:
Pensava que sabia, mas com tudo o que aconteceu e com a morte da avó, esqueci-me. Quando ela estava às portas da morte, se me lembrasse da morada, tinha escrito ao teu pai, mas não o pude fazer.
Quando o rapaz a olhou, com ar de censura, não estando convencido do que a mãe Lhe contava, ela continuou, zangada:
- Como querias tu que eu soubesse que pretendias abalar, deixando todo o trabalho a meu cargo, precisamente na altura em que me podias ser de maior préstimo? Nunca pensei que me deixarias. E tenho a certeza de que vou receber uma carta na altura do ano novo, como acontece todos os anos.
Então, o rapaz teve de abandonar o projecto e, contrafeito, teve de esperar e refrear o enorme desejo de ver novamente o pai. Mal se lembrava dele, mas conservava a recordação vaga de um homem com bom aspecto e alegre. Estava desejoso de o reencontrar, tanto mais que, naquela altura, não gostava muito da mãe, que por tudo e por nada se irritava com ele, não compreendendo palavra do que ele Lhe dizia. Como desejava estar com o pai outra vez.
A mãe já não sabia mais o que fazer, a não ser que tinha de agir sem mais delongas, porque, mesmo que a carta chegasse no ano novo, o rapaz, mais cedo ou mais tarde, havia de a atormentar e ela teria de contar toda a verdade. Como conseguiria fazê-lo ver que a pequena mentira inicial, inventada para preservar o seu orgulho de mulher, se tornara em algo tão grande, ganhando raízes ao longo dos anos, difícil de emendar?
Tentou consolar-se, mais uma vez, com a ideia de que o marido devia estar morto. E quem ouvira falar de algum homem que, estando ainda vivo, não vinha de vez em quando à terra para ver os filhos e a velha casa? Estava morto. Tinha a certeza de que estava morto. E disse-o tão repetidamente, que o coração acabou por se apossar de tal certeza, acabou por acreditar. Bastava-Lhe anunciar exteriormente essa morte, para convencer o rapaz e a gente da aldeia.
Mais uma vez se dirigiu à cidade. Como já era seu hábito, procurou um escriba que a não conhecesse e pediu, a suspirar:
- Escreva à mulher do meu irmão e diga-Lhe que o marido morreu. E qual a causa da morte? Foi apanhado por um incêndio na casa onde vivia; um servo derrubou um candeeiro e ele morreu queimado durante o sono. Nem tão pouco encontram as suas cinzas nem resta corpo para enviar para casa.
O escriba colocou o nome da mãe em lugar do da cunhada e deu um nome falso ao homem que supostamente enviava as notícias, e datou a carta de uma outra cidade, embora isso fosse mais dispen dioso. O homem pressentiu algo de obscuro, mas não era nada com ele e já tinha o dinheiro que Lhe comprara o siléncio.
Sentiu-se salva. Mas sentia-se ansiosa por assegurar a sua salvação. Fosse de que maneira fosse, tinha de prevenir o agente do proprietário. Andou de um lado para o outro, a perguntar onde morava o proprietário, embora sabendo que ele já não habitava lá, mas o seu agente seria, com certeza, bem conhecido naquelas bandas. Era a ansiedade por se sentir salva que a fazia mover-se. Naquele dia, os deuses estavam do seu lado, porque foi encontrá-lo sozinho, junto ao portão da casa, quando estava prestes a entrar. Soltando um grito, colocou-Lhe a mão no braço. Ele olhou-a, baixou os olhos na direcção daquela mão sobre o seu braço e disse:
- O que se passa, mulher?
E ela murmurou:
- Senhor, estou viúva... Só hoje o soube. Estou viúva!
Ele sacudiu-Lhe a mão, dizendo em voz alta:
- E que tenho eu a ver com isso?
Quando ela o olhou com ar sofrido, o homem acrescentou com rudeza:
- Paguei-Lhe... Paguei-Lhe até muito bem!
Nisto, alguém seu conhecido que passava, dirigiu-se-Lhe, rindo:
- Então, amigo? Isso é que é! Uma mulher tão bonita e descarada que se agarra assim a um homem!
O agente virou-se, ergueu levemente as pálpebras pesadas e respondeu friamente:
- Se gosta das mulheres ordinárias e escuras, eu cá não! E continuou o seu caminho.
Ela ficou ali parada, pasmada e cheia de vergonha, sem compreender coisa alguma. Mas de que modo ele Lhe pagara? Subitamente recordou-se das prendas que o homem Lhe oferecera. Então essa era a paga! Com aquelas coisas sem valor o homem sentia-se livre de qualquer responsabilidade para com ela.
O que deveria fazer, agora que tudo sabia? Com o passo firme, pôs-se a caminho de casa; parecia-Lhe que o coração estava morto, e à medida que andava repetia vezes sem conta: Ainda não chegou o momento para chorar... ainda não chegou a hora. " E conseguiu reter as lágrimas. Estas acumulavam-se dentro de si e toda ela tremia para conseguir dominar-se, mas não chorou. Manteve-se dura e obrigou-s ao silêncio por um ou dois dias, até que a carta chegasse com a notícia. A carta que ela mandara escrever. Levou-a ao escriba do lugar e, sem hesitar, disse-Lhe:
- Muito receio que não traga nada de bom, tiozinho... pois vem fora da data normal.
O velho pegou na carta, leu-a e exclamou:
- São más novas, mulher... Tenha coragem!
- Está doente? - perguntou no mesmo tom firme.
O velho pousou a carta, tirou os óculos e respondeu com voz solene, olhando-a:
- Morreu!
Então a mãe tapou a cabeça com o avental e chorou. Sim, agor podia chorar. Chorou à-vontade, e chorou como se o homem, na realidade, tivesse morrido. Chorou os seus anos de solidão, a sua vida de sacrifício e de abandono, o seu destino triste, a partida do marido; chorou por não se atrever a mostrar a todos o filho que trazia no ventre; chorou por ter sido desprezada. Chorava agora todas as lágrimas que sustivera, receosa de que os filhos ou os vizinhos a pudessem ouvir. Agora podia chorar e ninguém tinha de saber as mágoas que a faziam chorar assim.
As mulheres da aldeia correram a confortá-la mal souberam a notícia; diziam-Lhe que não se deixasse abater pelo desgosto, pois tinha os filhos, dois bons filhos, que acorreram a trazer para junto dela, para Lhe servirem de conforto. Os dois rapazes ficaram na sua frente. O mais velho calado e pálido, como se tivesse sido acometido de doença súbita; o mais novo soluçava alto, ao ver a mãe chorar.
Repentinamente, por entre a confusão, ergueu-se bem alto um queixume e um choro ruidoso, abafando o da mãe. Era a alcoviteira.
Vendo todo aquele desalento em seu redor, ela mesma irrompera num vale de lágrimas:
- Olha para mim, pobre criatura... Estou em bem pior situação do que tu, pois não tenho filho algum... Nem um! Sou merecedora de piedade, mulher... Mais infeliz do que qualquer outra mulher!
E as velhas mágoas irromperam tão renovadas como se fossem recentes. Todas as mulheres se assombraram ao vê-la tão aflita, e apressaram-se a confortá-la. Por entre o rebuliço, a mãe escapou-se, seguida dos dois filhos, chorando em siléncio e buscando refúgio em casa. Era incapaz de parar aquele choro. Sentada no umbral da porta, soluçava que metia dó; também o filho mais velho chorava baixinho, limpando as lágrimas dos olhos com as costas das mãos. O rapaz mais novo chorava sem compreender o que significava a morte do pai, visto não se recordar de quem ele era. E a rapariguita chorava, com os dedos sobre os olhos, e gemia mansamente:
- Tenho de chorar porque o meu pai morreu... mas as lágrimas ardem-me tanto... Mas tenho de chorar porque o meu pai morreu!
A mãe não podia apenas estar ali a chorar, sabia bem que não. Primeiro tinha que fazer o que devia ser feito. Parou o pranto e confortou os filhos com o seu silêncio, enquanto matutava em como agir.
Só a morte Lhe parecia o caminho possível. Mas talvez houvesse ainda uma possibilidade... Arrancar do seu corpo esta vida que sentia crescer dentro de si. Mas sozinha não o podia fazer. Precisava da ajuda de alguém, e a única mulher que podia ajudá-la era a mulher do seu primo. Como gostaria de não precisar de ninguém, de não revelar a quem quer que fosse o seu segredo mais sofrido. Mas a prima era boa pessoa, conhecedora das coisas e dos homens, e sabia bem os desejos carnais de uma mulher fértil com anseios de conceber mais. Mas como havia de Lhe dizer?
Contudo, a oportunidade de Lhe falar surgiu com facilidade, pois um dia ou dois após estes seus pensamentos, as duas mulheres encontraram-se casualmente e, caminhando sós, a mulher do primo dirigiu-se-Lhe na sua voz alta e prazenteira:
- Prima, tens de comer e deitar as tristezas ao largo, pois te asseguro que andas amarela, como se tivesses lombrigas dentro de ti.
A mãe sentiu o pensamento vir-Lhe de novo à ideia e respondeu baixinho e em tom amargo:
- Sim, trago no corpo um bicho que me consome a vida. E quando a mulher do primo a olhou boquiaberta, a mãe posou a mão sobre a barriga e proferiu vacilante:
- Prima, sinto algo crescer dentro de mim, mas não sei o que seja. Quem sabe se não é um vento mau...
A prima disse então:
- Deixa-me ver.
A mãe desabotoou o vestido. A prima apalpou-Lhe o ventre inchado e disse assombrada:
- Digo-te, prima, que se parece com um filho. Se tivesses marido eu diria que estavas grávida!
A mãe nada Lhe respondeu, mas baixou a cabeça envergonhada, incapaz de erguer os olhos. A prima observou-Lhe um movimento no ventre e gritou, aterrorizada:
- Era capaz de jurar que é um filho! Mas como pode ser? Só se tiveres concebido de um espírito, pois o teu marido já há muitos anos que te deixou. Também ouvi dizer que, em tempos antigos, santas mulheres houve que conceberam sem pecado, depois de um deus ter descido dos céus e as ter visitado. Tu, porém, não és nenhuma santa; uma mulher boa, sim, isso é verdade, e respeitada por todos, embora te zangues facilmente e sejas de temperamento inflamado. Não sentiste, em qualquer altura, a presença de um deus? Como gostaria de contar mais outra mentira e dizer que tal sucedera, um dia, enquanto se abrigava do temporal, no santuário perto da estrada. Mas quando abriu a boca para preparar a mentira, as palavras ficaram-Lhe contidas. Tinha medo, por um lado por proferir injúrias contra o velho deus respeitável, cuja face tapara; por outro sentia-se já demasiado desgastada para poder continuar a mentir. Ergueu a cabeça e encarou a prima com um olhar de desgraça, e o sangue aflorou-Lhe às faces pálidas, cobrindo-as de manchas vermeILhas. Como daria metade da sua vida se pudesse contar-Lhe outra mentira. Mas não podia. E a boa mulher que a fitava tudo compreendeu; nada mais perguntou, limitando-se a dizer: - Tapa-te, irmã, olha que ainda apanhas frio.
Juntas continuaram o caminho. Por fim, a mãe disse com amargurada paixão:
- Não importa quem o fez, ninguém o saberá jamais. Se me quiseres ajudar nesta aflição, minha prima e irmã, olharei por ti enquanto houver em mim um sopro de vida.
A mulher do primo respondeu-Lhe baixinho:
- Não vivi tantos anos sem saber como uma mulher pode livrar-se daquilo que não quer.
E, pela primeira vez, a mãe viu surgir uma esperança diante de si e perguntou, sussurrando:
- Mas como... Como...
E a outra mulher respondeu-Lhe:
- Podem comprar-se umas ervas que, para quem as puder pagar, de tão fortes que são, podem matar às vezes a criança e a mãe.
Provocam sempre mais sofrimento do que as dores do nascimento, mas, se se tomar só a dose certa, tudo resulta em bem.
A mãe retorquiu:
- Mesmo que dé cabo de mim, quero é dar cabo disto, para que nem meus filhos nem os outros venham a saber.
A mulher do primo encarou-a, estacou e disse, fixando o olhar nela:
- Sim, prima, mas agora com o teu homem morto, não cairás de novo em tentação?
A mãe jurou e gritou em agonia:
- Não, prefiro atirar-me ao lago e morrer afogada, a deixar-me invadir por tal fogo, como me aconteceu no passado Verão.
Naquela noite, escavou o local onde guardava o dinheiro, tirou metade e, assim que teve oportunidade, deu-o à prima para Lhe comprar as ervas.
Alguns dias depois das ervas compradas, e pronta a infusão, a mulher do primo veio, durante a noite, e murmurou à mãe, que a aguardava:
- Queres beber isto? Mas não o podes fazer dentro de casa, por causa da sangria que provoca.
A mãe lembrou-se do pequeno templo à beira do caminho, onde raramente passava alguém durante o dia e que de noite estava sempre deserto. As duas mulheres dirigiram-se para lá. A mãe engoliu a beberagem, deitou-se no chão e ficou à espera. Não muito tempo depois, por entre as profundezas da noite, a infusão apoderou-se dela, provocando-Lhe dores tão violentas, que nunca sonhou poderem existir, e resignou-se a morrer. À medida que a agonia aumentava, a mãe tudo esquecia, a não ser a dor que a tomava. Mas por entre o tormento lembrava-se de não gritar em busca de alívio; nem tão pouco se atreviam a acender uma luz ou a fazer uma pequena fogueira, pois caso passasse alguém por ali, podia notar uma claridade anormal naquele lugar sagrado.
Não, tinha que aguentar o sofrimento como pudesse. O suor escorria-Lhe pelo corpo, como se fosse chuva e ela tivesse morrido para tudo o resto excepto para aquelas dores inimagináveis, como se fossem as garras de uma fera a querer arrancar-Lhe os órgãos vitais do seu pobre corpo. Por fim, em dado momento, pareceu-Lhe que algo se rasgava dentro dela e deu um grito.
A prima aproximou-se, trazendo consigo uma esteira em que embrulhou o que tinha de ser embrulhado e, depois de ter apalpado, murmurou com tristeza:
- Teria sido outro menino. Que mãe afortunada és, a teres assim tantos rapazes.
Mas a mãe lamentava-se:
- Pois agora não haverá mais nenhum.
Depois deitou-se novamente sobre a terra, descansando por momentos. Quando reuniu forças, puseram-se a caminho de casa, a mãe apoiada no braço da prima e contendo os queixumes. Ao passarem por uma lagoa, a prima atirou o embrulho à água.
Depois deste episódio, passaram-se dias e dias e a mãe continuava enferma e fraca, sempre de cama. A boa prima ajudava-a em tudo o que podia, mas todo o Inverno a mãe assim permaneceu, doente. Era uma tortura erguer e carregar qualquer peso para o mercado, embora tivesse de fazê-lo uma vez por outra. Por fim, quando o tempo melhorou, sentia-se já um pouco mais aliviada e levantava-se com menos dificuldade, deixando-se ficar sentada a descansar ao sol. Com a chegada da Primavera as melhoras acentuaram-se, mas já não era a mesma. Muitas vezes, quando a prima Lhe trazia um prato saboroso, para Lhe abrir o apetite, a mãe pousava a mão sobre o seio e dizia:
- Parece que não consigo engolir. O coração pesa-me entre os seios, como um fardo, e não me deixa engolir. Carrega penas demais, e nem as minhas lágrimas as conseguem lavar. Se chorasse tudo o que tenho para chorar, de novo ficaria boa.
Isso era o que ela pensava, mas não conseguia chorar, nem traba Lhar como era seu hábito. O filho mais velho esforçava-se por fazer todo o trabalho que era necessário; o primo ajudava mais do que podia. E ela não podia nem chorar nem trabalhar.
E assim foi, até ao dia em que a cevada começou a espigar e ela se sentou ao sol, débil, desgrenhada, demasiado cansada para tratar dos cabelos naquela manhã. Repentinamente ouviu-se o barulho de passos e, quando ergueu os olhos, viu diante de si o agente do proprietário. Vendo-o, o filho mais velho acercou-se dele, dizendo:
- Senhor, meu pai morreu e agora eu faço as vezes dele, porque a minha mãe há meses que está doente. Se vem para ver a colheita eu terei de ir consigo, pois ela não está em condições.
Então o homem, este homem da cidade, com os cabelos muito bem penteados e barba primorosamente feita, olhou indiferente para a mãe, sabendo bem o que sucedera, e ela soube que ele sabia, e baixou a cabeça em silêncio. E o homem disse despreocupadamente:
- Então vamos a isso, rapaz.
E ambos saíram, deixando-a só.
Sabia agora que nada mais podia esperar daquele homem. Por seu lado, deixara também de o desejar, pois o seu corpo já há muito que andava fraco. Mas este último olhar fora para ela o golpe de miseri córdia. Sentia o peso daquilo a que ela chamava o seu coração; sentia-o como que a desfazer-se, e as lágrimas subiram-Lhe aos olhos. Ergueu-se e seguiu por uma passagem pouco frequentada através dos campos, dirigindo-se a um túmulo grosseiro e abandonado; um túmulo de um homem ou de uma mulher desconhecidos, que de tão antigo ninguém se recordava a quem pertencera. E aí se sentou sobre um monte de terra coberto de ervas e esperou. E, finalmente, chorou.
De início, as lágrimas vieram devagar e amargas, depois correram mais depressa, e então apoiou a cabeça no túmulo e chorou, como choram as mulheres quando os seus corações estão tão cheios do desgosto das suas vidas, e a amargura brota e transborda de tal modo, que em nada mais pensam, senão em aliviar a dor que Lhes esmaga a existéncia. O carpir daquele pranto, levado pela brisa da Primavera, chegou à aldeia e, ao ouvi-lo, as mães e as esposas entreoLhavam-se e diziam baixinho: Deixem-na chorar, pobre alma, e aliviar o seu pesar. Durante estes meses de viuvez ela não o tem feito. Digam aos filhos que a deixem aliviar-se.
E deixaram-na chorar.
Depois de um longo choro, a mãe ouviu um barulho, um breve sussurro perto de si. Ao erguer os olhos no crepúsculo, porque chorara até ao Sol se pôr, viu aproximar-se a filha, apalpando às cegas o caminho no chão áspero, e gritando à medida que caminhava:
- Ó mãe, a prima disse que a deixasse chorar para aliviar a sua dor. Mas não chorou já o suficiente?
Então a mãe levantou-se. Olhou a criança, endireitou-se e suspirou. Compôs o cabelo desgrenhado e limpou os olhos inchados, erguendo-se por fim. A rapariguita, de mão no ar, procurava a da mãe e fechava os olhos, protegendo-os da luminosidade rosada do fim do dia, do Sol que se punha, e dizia num queixume:
- Quem me dera nunca ter que chorar, as lágrimas ardem tanto!
Estas poucas palavras fizeram a mãe voltar a si e purificaram-na repentinamente. Sim, aquelas poucas palavras, ditas ao final daquele dia, aquela mãozinha em busca da sua arrancaram-na do desespero em que vivia há meses. Sentiu-se mãe de novo e olhou a filha. Saindo por fim do seu torpor, perguntou-Lhe:
- Os teus olhos pioraram, minha filha?
A rapariguinha respondeu:
- Penso que estão na mesma. Só a luz é que me arde mais e já não vejo tão bem as caras como dantes. E desde que o meu irmão cresceu, já não o consigo distinguir de si, a não ser pela voz.
Então a mãe, guiando a filha com todo o carinho, lastimava-se para consigo: Este tempo todo, por onde tenho eu andado? Minha filha, amanhã de manhã, vou
comprar-te o remédio para te curar, tal como te prometi!
Nessa noite, todos tiveram a impressão de tornar a encontrar a mãe de outrora, como se esta tivesse regressado de algum lugar longínquo. Pôs as tigelas cheias de arroz na mesa; tinha a cara pálida e cansada, mas tranquila, mostrando uma paz doentia. Olhava os filhos como se não os visse há já um ano ou dois. Mirando o mais novo disse-Lhe:
- Meu filho, amanhã lavo-te a roupa. Não tinha notado ainda como estava tão negra e tão rota. És um rapaz demasiado bonito para andares com o fato todo sujo, tu que és meu filho.
Virando-se então para o mais velho disse-Lhe:
- No outro dia, disseste-me que te tinhas cortado no dedo e que a ferida te doía. Deixa-me ver.
Depois de Lhe ter lavado a mão e ter untado a ferida, perguntou-Lhe:
- Como fizeste tu isto, filho?
O rapaz abriu muito os olhos, de surpreendido que estava, e retorquiu
- Mas eu já Lhe contei, mãe! Feri-me ao afiar a foice numa pedra. Estava a prepará-la para quando for ceifar a cevada.
A mãe apressou-se a responder:
- Ah! Sim, já me lembro de mo teres contado.
Sem o saberem explicar, os filhos sentiram-se subitamente envoltos num calor que parecia provir da mãe. A alegria apossou-se deles, pondo-se a tagarelar e a contar-Lhe coisas umas atrás das outras. O mais novo falou então:
- Hoje ganhei uma moeda a jogar na rua. ganho sempre! Tenho cá uma sorte!
A mãe olhava-o embevecida, achando-o bonito e forte, admirada por não o ter notado antes. Respondeu-Lhe, tomada por um carinho inflamado:
- Meu filho, guarda o teu dinheiro em vez de o gastares em doces e o desperdiçares!
Estas palavras deixaram o rapaz pensativo, acabando por responder, com ar sério:
- Mas então só hoje, mãe. Pois estou a pensar comprá-los amanhã. Aliás, de que vale estar a poupar se posso ganhar o mesmo dinheiro todos os dias?
Ficou à espera de ouvir uma repreensão, mas a mãe respondeu-Lhe com ternura:
- Bem, filho, compra lá as guloseimas, pois o dinheiro é teu. O mais velho, quase sempre silencioso, aproximou-se e disse:
- Minha mãe, tenho uma coisa curiosa para Lhe contar. Hoje, quando o agente e eu percorríamos os campos, ele disse-me que esta era a última vez que vinha à aldeia. Vai à procura de fortuna noutros lugares, pois isto de andar a calcorrear as terras o fatiga. Disse-me já estar farto de rendeiros vulgares e das suas mulheres, e que o trabaLho é sempre igual, estação após estação. Vai para uma cidade longe daqui.
A mãe ouviu-o e parou para meditar sobre o que ouvia. Sentada, imóvel, fitava o rapaz por entre a débil luz da candeia que acendera nessa noite e colocara sobre a mesa. Após o filho ter terminado a narrativa, esperou. Aguardou uns instantes até que as palavras Lhe pudessem entrar no coração, tal como a chuva amolece um terreno ressequido e sedento. De seguida, perguntou-Lhe em voz baixa e quente:
- Ele disse-te isso, meu filho?
E como se o assunto não Lhe interessasse deveras, acrescentou rapidamente:
- Vamos dormir e descansar, porque logo de manhãzinha tenho de ir à cidade procurar o remédio para os olhos da vossa irmã, para que depressa fique curada.
Agora a sua voz era de novo forte e serena. Quando o cão se aproximou mendigando alimento, ela deu-Lhe comida em abundância. O bicho, alegre e surpreso, devorou tudo num ápice, rosnando de satisfação depois de se sentir farto.
Nessa noite a mãe dormiu. Os filhos dormiram. Um sono profundo e repousante tomou-os a todos.
Capítulo 12
O dia seguinte despontou cinzento e tranquilo, com uma chuva de Verão interminável. O céu baixo, carregado de tanta chuva, pesava sobre o vale e encobria os montes. A mãe levantou-se cedo e preparou tudo para levar a rapariga consigo à cidade. Não queria deixar passar um dia mais que fosse, sem que tentasse aliviar aquela sua filha. Tinha deixado passar tantos dias, dias que se converteram em anos. Nesta maternidade renovada, depurada pelas lágrimas, não se sentiria nunca suficientemente terna e diligente para satisfazer o seu coração.
Quanto à menina, essa tremia de excitação, penteando os longos cabelos que entrançava de novo com uma fita cor-de-rosa. Pôs um vestido lavado, azul com flores brancas. Nunca em toda a sua vida havia saído do lugarejo e, à medida que se aprontava, dizia a todos em voz melancólica:
- Hoje é que eu queria ver bem, para observar todas as coisas da cidade.
O irmão mais novo, ao ouvi-la falar assim, respondeu com espírito e perspicácia:
- Ai sim? Pois se não tivesses os olhos doentes, também não tinhas motivo algum para lá ir.
A irmã recebeu de tão bom grado esta resposta que sorriu, o que aliás costumava fazer a qualquer dos gracejos do irmão, mas nada respondeu, pois era uma menina sem vivacidade de espírito, lenta e doce em tudo o que fazia. Após alguma reflexão, acabou por dizer:
- Penso que preferia ver bem e não ter de ir à cidade. Mas como demorou a responder, ele já esquecera o que tinha dito. Rapaz impaciente, estava sempre pronto a mudar de um jogo para outro, ou a mudar de trabalho nas pequenas tarefas que fazia. Dos três filhos era, sem dúvida, o que mais se parecia com o pai.
A mãe nada ouvia do que diziam, ocupada que estava em arranjar-se e em preparar tudo. Parou hesitante defronte de uma gaveta, que acabou por abrir. Tirou um embrulhito, olhou-o e desfez o papel fino que o envolvia. Eram as jóias. E perguntou-se, enquanto as olhava: Devo guardá-las ou trocá-las por dinheiro? Hesitou um pouco e de novo pensou com os seus botões: Têm-me como viúva. Nunca mais as poderei usar, a não ser que as guarde para o casamento da minha filha. E meditava, olhando as jóias na palma da mão. Subitamente vieram-Lhe à memória recordações que Lhe provocaram uma grande aflição; o seu desejo era livrar-se dos objectos e das lembranças que estes Lhe provocavam. Resoluta, disse para consigo: Não as vou guardar. O meu marido pode voltar... O meu marido pode voltar e se me vé com estas estranhas jóias, nunca acreditará que as comprei. Então, aconchegou o embrulhinho no seio e chamou a filha, para que se pusessem a caminho.
Seguiram pela estrada, atravessando a aldeia, ainda adormecida àquela hora da manhã. A mãe caminhava a passos largos, forte, livre, de cabeça erguida por entre o nevoeiro, levando a filha pela mão. A rapariga esforçava-se por acompanhá-la, mas só agora se apercebia até que ponto via mal. Em casa, nos sítios que Lhe eram familiares, movia-se com facilidade e segurança, sem pensar que se guiava mais pelo tacto e pelo olfacto do que pelos olhos. Aqui, nesta estrada desconhecida, com altos e baixos, conforme as pedras se enterravam mais ou menos, quantas vezes não teria caído se não fosse pela mão da mãe.
Ao aperceber-se disto, a mãe assustou-se e o coração adiantou-se para enfrentar esta nova provação, e gritou amedrontada:
- Receio bem que vamos demasiado tarde, minha pobre filha. Mas tu nunca me disseste que não conseguias ver. Sempre pensei que era a água que tinhas nos olhos que não te deixava ver.
A rapariga respondeu, meio a soluçar:
- Também eu pensava que via bem, minha mãe, e penso que vejo. É só esta estrada que sobe e desce, e a mãe vai mais depressa do que eu costumo andar.
A mãe abrandou o passo. Continuaram o caminho em silêncio. Ao aproximarem-se da botica, e sem dar por isso, a mãe apressou-se novamente na sua impaciência. Era ainda muito cedo e eram as primeiras freguesas. O boticário retirava ainda os taipais da montra com todo o vagar. Interrompia várias vezes o trabalho para soltar um bocejo ou para pentear os cabelos compridos e desrenhados com os dedos. Quando ergueu os olhos e viu aquela mulher do campo em companhia da filha, diante do balcão, perguntou com espanto:
- O que desejam, assim tão cedo? A mãe apontou para a filha e disse:
- Tem algum remédio para estes olhos?
O homem olhou fixamente a rapariguita, observando aqueles olhos mortiços, com pálpebras avermelhadas que mal podiam abrir-se, e questionou:
- Como é que isto aconteceu?
A mãe respondeu:
- No início pensámos que era devido ao fumo. O meu marido morreu, e vi-me obrigada a fazer os trabalhos do homem nos campos. Por esta razão, a minha filha tinha de acender muitas vezes o lume, se acaso eu chegava tarde. Mas nestes últimos anos devia haver outra razão, pois poupei-a a essa tarefa. Parece existir um fogo nela que Lhe consome os olhos. De que fogo se trata, não sei, sendo ela uma rapariga tão doce como é, e nunca se impacienta.
O homem abanou a cabeça, bocejou repetidamente, e disse, des preocupado:
- Há muita gente que tem os olhos como os dela, por causa de um fogo. Os fogos podem ter várias origens. Mas não há cura para tal mal. É uma doença que tende só a piorar. E não tem remédio.
Estas palavras caíram como pedras naqueles dois corações e a mãe disse depressa, num tom de voz baixo:
- Mas deve haver... Tem de haver por aí algum médico. Conhece algum bom e que não seja muito caro, porque somos pobres?
Mas o homem sacudiu a cabeça emaranhada languidamente. Foi buscar uma droga que guardava numa caixinha de madeira e respondeu:
- Não há nenhuma arte que Lhe restitua a visão, disso estou certo. Já vi muitas enfermidades semelhantes. Todos os dias me aparecem pessoas com os olhos nesse estado, queixando-se de uma febre interior. Parece que até os médicos estrangeiros desconhecem um tratamento eficaz, por mais que cortem e reabram os olhos e esfreguem o seu interior com pedras mágicas, murmurando encantamentos e rezas. Mesmo assim, o fogo interior reaparece e de novo consome os olhos. Ninguém consegue apagar essa ardéncia, pois ela surge de dentro, do âmago da vida. Apesar disso, leve este pó, que refresca durante algum tempo, mas não cura.
E pegou num pó, desfeito em pequenos grãos, parecidos com trigo escuro, vertendo-o numa pena de ganso, tapada de um dos lados com sebo. Repetiu mais uma vez:
- Sim, ela está cega.
E apercebendo-se da expressão amedrontada da rapariguita ao ouvir estas notícias, tal como uma criança atordoada que acaba de apanhar uma pancada de surpresa, acrescentou com alguma bondade:
- E de que Lhe adianta apoquentar-se? É o destino. Noutra vida deve ter praticado uma má acção ou olhado para algo proibido, e por isso recebeu esta maldição. Ou então foi o pai que pecou, ou até mesmo vossemecê... E quem é que conhece os corações? Mas qualquer que seja a maldição, esta recaiu sobre ela e ninguém poderá alterar os desígnios dos céus.
Bocejou mais uma vez, depois de ter terminado este breve discurso misericordioso. Pegou no dinheiro que a mãe Lhe estendia e desapareceu numa das divisões interiores.
Mas a mãe retorquiu enraivecida:
- Ela não está cega! Quem é que ouviu falar em doenças de olhos que põem uma pessoa cega? A mãe do meu homem tinha os olhos doentes desde a infância, mas não foi por isso que morreu cega!
E dizendo isto apressou-se a sair, para não dar tempo ao homem de Lhe responder. Pegou na mão da filha com firmeza, para a impedir de tremer, enquanto se dirigiam a uma ourivesaria onde era desconhecida e ali entregou o embrulho, que retirou do seio, a um homem barbudo. Disse-Lhe em voz baixa:
Troque-me isto por dinheiro, porque o meu marido morreu e já não posso usá-las.
Enquanto o homem pesava as jóias para avaliar o seu peso em dinheiro, ela aguardava. A rapariguinha pôs-se a soluçar docemente, e dizia por entre os soluços:
- Não acredito que esteja totalmente cega, minha mãe, porque me parece ver qualquer coisa a brilhar na balança. Se estivesse realmente cega, não conseguia ver, não é verdade? O que é que brilha?
Então a mãe compreendeu que a filha estava cega deveras, ou praticamente cega, pois as jóias brilhavam bem perto da cara dela e ela não as via. Lastimando-se interiormente, respondeu-Lhe:
- Tens razão, minha filha, é um anel de prata. Como já não o posso usar, estou a trocá-lo por dinheiro, que nos será útil.
Esta nova mágoa impediu a mãe de prestar qualquer atenção às jóias que desapareciam e ao significado que estas tinham para ela. Apesar do seu brilho, a filha não as conseguira ver. E só isto era realmente importante. O velho pegou nelas e meteu-as num pequeno cofre onde guardava braceletes, anéis, colares de crianças e toda a espécie de adornos. A mãe esqueceu tudo o que elas tinham significado para si. Agora, aos seus olhos, não passavam de objectos briLhantes que a filha, cega, já não conseguia ver.
Faltava ainda fazer uma compra, e a mãe sabia que era obrigada a fazê-la, tendo a filha assim, cega. Pegando de novo na mão da menina para a proteger daqueles que passavam, porque agora as ruas enchiam-se de gente que vendia e comprava coisas; com os agricultores e os hortelões a disporem os cabazes de legumes frescos e verdes ao longo das ruas e os peixeiros as suas celhas cheias de peixe. Mas a mãe prosseguiu o seu caminho até chegar a uma dada loja. Deixou a filha diante desta e entrou sozinha. Quando o empregado Lhe perguntou o que pretendia, ela apontou com o dedo um objecto, dizendo Aquilo. Era um pequeno gongo de latão com um martelito de pau. Os cegos usam-no quando caminham, para avisar as outras pessoas de que vai ali um cego. O vendedor fez soar o gongo uma ou duas vezes antes de o embrulhar, para mostrar que o objecto era de boa qualidade. Ao ouvir o som a rapariguinha ergueu subitamente a cabeça e chamou a mãe:
- Mãe; há por aqui um cego. Ouvi o som de um gongo tão claro como um sino.
O homem riu a bom rir, pois bem via que a pequena era cega, e começou a dizer:
- Aqui cego, só se...
Mas a mãe impediu-o de acabar a frase, deitando-Lhe um olhar irado, e as palavras ficaram assim suspensas; ele acabou por Lhe entregar o gongo e viu-as partir, com um ar néscio, sem compreender o que se passara.
De seguida regressaram a casa. A jovem estava contente por voltarem ao lar, pois à medida que o tempo ia passando, a cidade tornava-se cada vez mais barulhenta e animada, cheia de ruídos, de agitação e de sons que a assustavam e que Lhe eram estranhos; eram vozes altas que berravam por entre as negociações, eram as pessoas que não conseguia ver e que a maltratavam ao passar, e a menina continuava a andar com a sua usual delicadeza, pondo os pequenos pés aqui e ali, sorrindo inconscientemente por entre a sua dor. Mas a mãe afligia-se amargamente, em segredo. Na mão livre, segurava com firmeza o objecto que acabara de comprar, que era o símbolo dos cegos.
Apesar de ter o pequeno gongo, não conseguia dá-lo à filha. Não queria aceitar que os olhos da menina estivessem completamente cegos. Deixou passar todo o Verão; de novo se colheu o grão, que foi medido com o novo agente enviado pelo proprietário. Desta vez tratava-se de um velho, primo afastado ou algum parente pobre do proprietário. E chegou o Outono, mas nem então a mãe se decidia a dar o gongo à filha. Não, antes tinha de fazer uma coisa, tinha de rezar aos deuses. Ao olhar todos os dias para a filha cega, vinham-Lhe à memória as palavras do boticário: Um pecado talvez cometido pelos pais... Quem conhece os corações?
Tomou a decisão de ir a um templo que conhecia. Não o santuário à beira da estrada, pois jamais rezaria aos deuses cuja face tapara. Tratava-se de um templo distante, a mais de quinze quilómetros dali, onde ouvira dizer que morava uma deusa poderosa e boa, que escutava as mulheres quando Lhe imploravam e Lhe rezavam desgostosas. A mãe explicou a razão da sua viagem aos rapazes, que tomaram um ar sério e compenetrado face à desgraça que caíra sobre a irmã. O mais velho comentou no seu ar grave:
- á há muito que receava algo de anormal.
Mas o mais novo falou admirado:
- Quanto a mim, nunca pensei que houvesse algo de errado com os olhos dela. Estou tão acostumado a vê-la como é!
Contou à filha o seu intento:
- Minha filha, vou ao templo do Sul, onde mora uma deusa viva, a que deu um filho à mulher de Li Sexto, que durante toda a sua vida foi estéril e que estava a passar já a idade de conceber. O marido estava de tal modo impaciente e tão furioso com a sua esterilidade, que quis tomar uma concubina. Foi então que ela foi rezar à deusa, e esta deu-Lhe o lindo filho que hoje tem.
A menina respondeu:
- Bem me lembro, minha mãe, e ela fez um par de sapatos de seda que deu à deusa quando o filho nasceu. Sim, mãe, vá depressa, porque é na verdade uma boa deusa.
A mãe partiu sozinha. Todo o dia lutou contra o vento, que nesse mês soprava sem parar, trazendo consigo o frio dos desertos do Norte, de tal modo que as folhas se encarquilhavam nas árvores e a erva à beira do caminho se tornava quebradiça e murcha, fazendo com que todas as coisas perdessem a cor e morressem. Mas mais pesado que o vento, mais amargo, era o medo da mãe. Era o medo de ver o seu próprio pecado cair sobre a filha. Quando por fim chegou ao templo, nem tão pouco pensou em admirar-lhe a grandeza ou a beleza, nem os muros pintados de um vermelho rosado, ou os deuses dourados, diante dos quais uma multidão de pessoas que entravam e saíam se vinha prostrar. Não, entrou com rapidez, à procura da deusa que conhecia. Tinha comprado um pouco de incenso à porta e perguntou ao primeiro sacerdote grisalho que encontrou:
- Onde posso encontrar a deusa viva?
Pelo aspecto vulgar da mulher, o sacerdote pensou estar a falar com uma das muitas mulheres que diariamente ali vinham para ter filhos. Apontou para um canto sombrio, ao fundo do qual se encontrava uma velha deusa, pequena e sombria, sentada entre duas figuras mais pequenas, suas assistentes. A mãe encaminhou-se naquela direcção e aguardou que uma velha toda curvada terminasse as suas rezas. Pedia à deusa pelo filho que estava imóvel numa cama há já muitos anos, que nem tão pouco podia fazer um filho, e rezava dizendo:
- Se há pecado na nossa família que não tenhamos redimido ainda, então dizei-me, senhora deusa, se é essa a razão da doença dele e eu expiarei... eu expiarei!
Em seguida ergueu-se, tossindo e suspirando, afastou-se e seguiu o seu caminho. Por seu turno, a mãe ajoelhou-se e também ela expressou os seus mais íntimos desejos. Mas não podia esquecer as palavras da velha. Pareceu à mãe que a deusa tomava um ar duro e que, na face doirada e lisa, o olhar fixo não se deixaria tocar pela alma pecadora que rezava e pedia, antes de ter expiado o seu pecado.
Levantou-se por fim, suspirando pesadamente, sem saber o valor da sua súplica. Mas queimou o incenso e partiu. Depois de ter andado os mais de quinze quilómetros e de se encontrar de novo junto à porta de casa, enregelada e exausta, deixou-se cair num banco, respondendo com tristeza aos filhos, que Lhe perguntavam como a deusa tinha ouvido a sua súplica:
- Como posso eu saber qual a vontade dos céus? Rezei simplesmente, e será feito de acordo com os desígnios dos deuses. Só podemos esperar e ver se eles acedem às nossas preces.
De todo o seu coração desejava não ter pecado. E quanto mais o desejava, mais se questionava por que tinha agido assim. Sentia um nojo imenso por aquele homem de cara lisa; odiava-o por aquele pecado que nunca mais poderia apagar. Naquela hora de mágoa profunda curou-se dos seus ardores e dos desejos da juventude, que para sempre a deixaram. Para ela já não existia nenhum homem no mundo, mas apenas aquelas três crianças, os seus filhos. E uma delas
cega
Capítulo 13
Agora, a mãe já não era nova. Estava nos seus quarenta e três anos e quando, às vezes, de noite, contava pelos dedos há quantos anos o pai das crianças se tinha ido embora, contava os dedos das duas mãos e mais dois; e até os anos que ela tinha deixado a aldeia pensar que o homem tinha morrido eram mais do que todos os dedos de uma mão.
Mas continuava a caminhar direita e ágil como sempre e não estava mais pesada. Outras podiam começar a criar rugas ou a engordar, como acontecia com a mulher do primo, de ano para ano, e a velha alcoviteira, mas aquela mulher continuava magra e forte como fora em nova. Mas os seus seios eram pequenos e secos e, à luz forte do sol, quando se Lhe podia ver bem a face, havia linhas em volta dos olhos, do trabalho à luz dura do sol, e a pele era escura, das queimaduras de muitos anos nos campos. Também se movia um pouco mais lentamente do que dantes, sem a antiga ligeireza, pois não voltara a ser como era, antes de arrancar dela aquela vida selvagem. Quando era chamada para ajudar ao nascimento de crianças na aldeia, como acontecia agora muitas vezes, por já ser viúva e se contar entre as que já não eram novas, tinha dificuldade em se deslocar tão rapidamente como por vezes precisava e, uma ou duas vezes, chegou depois de as mães darem à luz; numa destas ocasiões, uma jovem deixou cair o recém-nascido no chão de tijolo, e este magoara-se na cabeça. Era um rapaz, mas felizmente não houve consequências e o garoto cresceu robusto e sem problemas.
À medida que as crianças cresciam, a mãe parecia-Lhes velha. O mais velho estava sempre a insistir com ela para que descansasse e não se esforçasse tanto naqueles torrões grandes, quando a terra era lavrada, que o deixasse a ele fazer isso, porque já era capaz de fazê-lo sem dificuldade, agora que era um homem novo e forte, e esforçava-se para que ela fizesse trabalhos mais leves. Nada Lhe agradava mais do que vê-la sentada tranquilamente no seu banquinho à sombra, num dia de Verão, a costurar e deixá-lo a ele ir sozinho para a terra.
Porém, a verdade era que, apesar de tudo, ela não era tão velha como o filho a queria fazer. Sempre gostara do trabalho do campo mais do que de qualquer outro. gostava de trabalhar na terra e de vir para casa depois, com o corpo húmido de suor e o vento a arrefecer aquela humidade, e a carne sentindo um doce cansaço. Os olhos estavam habituados aos campos e aos montes e a coisas grandes, e não se adaptavam com facilidade a coisas pequenas como agulhas.
Na verdade, naquela casa, eles sentiam fortemente a falta de uma mulher nova e com olhos sãos, porque todos sabiam agora que os olhos da pequena eram cegos. Ela também o sabia, pobre rapariga. Desde aquele dia, quando tinha ido à cidade com a mãe, sabia-o secretamente, tal como a mãe, e de qualquer modo também não tinha grande esperança na deusa; a mãe, por receio daquele seu velho pecado, e a rapariga porque a cegueira Lhe parecia ser a força do destino.
Um dia, a mãe perguntou-Lhe:
- á gastaste aquele remédio todo que estava na pena de pato? E a rapariga respondeu calmamente do degrau da porta - pois agora tinha algo de bom: a luz já não a incomodava, pois não podia vê-la -, onde estava sentada:
- Já o acabei há muito tempo.
E a mãe disse outra vez:
- Tenho que te comprar mais. Por que não disseste mais cedo? Mas a rapariga abanou a cabeça e o coração da mãe parou ao ver o seu olhar; e então aqueles lábios suaves pronunciaram estas palavras duras:
- Ó mãe, eu sou cega... sei muito bem que sou cega! Não consigo ver a sua cara e se quiser ir do nosso pátio para a eira, não consigo ver o caminho. Não vê que eu já não vou para longe de casa, nem sequer para o campo?
E começou a chorar, estremecendo e mordendo os lábios, porque era ainda muito doloroso para ela chorar e não chorava, a não ser que não pudesse evitá-lo.
A mãe não respondeu. Que podia ela dizer à sua filha cega? Mas daí a pouco levantou-se, foi ao quarto e da gaveta onde em tempos tinham estado as jóias, tirou o pequeno gongo que comprara e disse para a pequena:
- Filha, comprei esta coisa para o dia em que... - não acabou a frase e empurrou o objecto para a mão da rapariga.
Esta pegou-Lhe, sentindo rapidamente o que era e, segurando-o com força, disse no seu tom choroso, outra vez calma:
- Sim, mãe, eu preciso disto.
Quando o filho mais velho chegou a casa, nessa noite, a mãe pediu-lhe que cortasse um pau duma árvore rija e que o preparasse para a irmã Lhe poder pegar, de modo a que, com o gongozinho numa das mãos e o pau na outra, ela pudesse deslocar-se mais livremente e com um pouco menos de receio, como fazem os cegos. Assim, se Lhe acontecesse algum mal, se alguém a empurrasse descuidadamente ou a fizesse cair, a mãe não podia ser acusada, pois tinha munido a rapariga com o aviso que os cegos devem ter, para todos verem.
Desde então, a pequena transportava com ela, sempre que saía a porta de casa, estas duas coisas: o pau e o pequeno gongo, e aprendeu a fazer soar o gongo suave e claramente. Deslocava-se de maneira calma e segura, uma rapariga bastante bonita, de face pequena e dolorida, e aquele olhar calmo que a cegueira põe num rosto.
Todavia, esta rapariga cega também era admiravelmente hábil em tudo o que se referia à casa. Ali, não precisava do pau e sabia lavar o arroz e cozê-lo; a mãe não a deixava acender o lume, mas era capaz de varrer o quarto e a eira, e era capaz de trazer água do lago e de procurar os ovos das galinhas, pô-los no lugar habitual e sabia, pelo cheiro e pelo som, onde estavam os animais e como dar-Lhes comida; podia fazer quase tudo, excepto coser e trabalhar nos campos. Para o trabalho do campo ela não era suficientemente robusta, porque o seu sofrimento desde a infância parecia ter impedido o seu desenvolvimento e retardado o seu crescimento.
Vendo a jovem deslocar-se assim pela casa, o coração da mãe enternecia-se e ela sofria, pensando no que o destino podia trazer a esta jovem quando chegasse a altura de casar. Porque ela tinha que casar pois, quando a mãe morresse, não haveria quem cuidasse dela nem alguém a quem ela pertencesse verdadeiramente, visto que uma mulher pertence antes de mais à casa do marido e não à casa onde nasceu.
Muitas e muitas vezes a mãe pensava nisto e imaginava quem quereria uma rapariga cega e, se ninguém a quisesse, o que acabaria por Lhe acontecer. Se ela alguma vez falava neste assunto, o filho mais velho respondia: Eu olho por ela, mãe, desde que ela faça a sua parte. " E isto dava algum conforto à mãe, embora soubesse que um homem não pode conhecer-se completamente enquanto não se souber o que vale a sua mulher; e pensava para consigo: Tenho que procurar-Lhe uma mulher que tenha cuidado com a minha filha cega e seja meiga para ela. Quando procurar uma esposa para o meu filho, tenho que encontrar uma que tome conta de dois: do marido e da irmã dele.
Já era tempo, também, de a mãe arranjar esposa para o filho mais velho. O rapaz já tinha dezanove anos e ela quase não tinha dado por isso. Mas nunca Lhe tinha pedido uma esposa, nem mostrado necessi dade de uma. Tinha sido sempre o melhor e mais delicado filho que uma mãe podia ter, trabalhando duramente sem nunca pedir nada. Se alguma vez ia a uma casa de chá da cidade, isso era só quando tinha algum assunto a tratar, ou num dia de festa, raramente. Nunca tomava parte em estroinices, nem mesmo num jogo de azar; ficava a ver de longe e mantinha-se silencioso na presença dos mais velhos.
Um filho tão bom, que tinha apenas um defeito, passadas as pequenas faltas da infãncia: não era capaz de poupar o irmão mais novo. Era estranho, este seu filho mais velho, tão correcto e amável para toda a gente, até com os animais, tão calado que até tinha dificuldade em dizer de que cor queria o fato novo que a mãe Lhe ia comprar, com o irmão era duro e encarniçava-se contra ele, se fosse descuidado no trabalho e fosse brincar. Encarregava-o de toda a espécie de trabalhos na terra. Em casa, havia discussão permanente: o mais novo barulhento e sempre irritado, e o mais velho mantendo-se em silêncio até que não podia suportar mais e então caía sobre o irmão com o que quer que apanhasse à mão, ou até com as mãos nuas, e batia no rapaz até ele fugir, a chorar e a esquivar-se por entre as árvores, procurando refúgio em casa do primo. As coisas chegaram a tal ponto que toda a aldeia censurava o mais velho pela sua dureza e corria a acudir ao garoto mais novo. Assim encorajado, o rapaz tornou-se atrevido e fugia do trabalho, vivendo principalmente em casa do primo, onde se perdia entre os muitos garotos e garotas que ali viviam à-vontade, e apenas ia a casa quando via que o irmão tinha ido trabalhar.
Mas, às vezes, o mais velho estava tão irritado que voltava a casa fora da hora habitual e encontrava o mais novo. Então, prendia a cabeça do mais novo debaixo do braço e dava-Lhe bofetadas até que a mãe vinha a correr e gritava:
- Acaba com isso... Deixa-te isso... Que vergonha, filho, bateres assim no teu irmão pequeno e assustares a tua irmã!
Mas ojovem respondia, amargamente:
- Não hei-de castigá-lo, sendo o irmão mais velho, visto que o pai dele já cá não está? É um preguiçoso, já passa todo o tempo que pode ajogar; a mãe bem sabe, mas sempre gostou mais dele!
Era verdade. A mãe amava mais este filho mais novo; ele enternecia-a mais do que qualquer dos outros. O mais velho crescera muito cedo, parecia-Lhe. Era calado e nunca tinha nada para dizer, e ela não percebia que o filho estava cansado; achava-o azedo, quando, afinal, era apenas excesso de fadiga. Quanto à rapariga, a mãe amava-a muito, mas de uma forma sofrida, porque os seus olhos cegos eram uma censura. Jamais podia esquecer que a deusa não tinha escutado a sua prece e não tinha coragem para voltar a pedir, pois receava que aquilo fosse consequência do seu pecado, recaindo sobre a pequena, o que era insuportável. Assim, o seu coração sentia sempre pena, e a filha nunca era para ela fonte de alegria. Mesmo quando a pequena vinha para o pé dela, sorrindo com afecto, e se sentava a ouvir a voz da mãe, esta levantava-se com um pretexto qualquer e ocupava-se de qualquer outra coisa, pois não podia suportar a vista daqueles olhos fechados e vazios.
Só este filho mais novo era tão saudável e alegre, e muitas vezes fazia-Lhe lembrar o pai. E a mãe amava-o cada vez mais. Todo o amor que tivera pelo marido virava-se agora para este filho. Muitas vezes punha-se entre ele e o mais velho, de modo que, quando este agarrava o rapaz, ela corria a intervir e apanhava as pancadas, obrigando o filho a parar, com receio de magoar a mãe, e assim o garoto se escapava.
Após algum tempo, começou a escapulir-se para mais longe, não só para casa do primo, e ia passear por aqui e por ali, mesmo até à cidade, onde às vezes se demorava um dia ou dois: Depois voltava para casa do primo e, quando voltava a aparecer em casa, fingia que tinha estado todo o tempo lá, sempre a ver como estava o humor do irmão nesse dia. E se não viesse, a mãe esperava até o mais velho sair e ia a casa do primo, persuadindo o garoto a vir para casa, com alguma guloseima que tivesse feito. Mas ela também temia o filho mais velho. Às vezes, ia com ele para o campo e deixava-o mais cedo; vinha para casa, para dar de comer ao rapaz antes de vir o irmão. Ele tirava o melhor de cada prato e ela deixava-o fazê-lo porque o amava muito. Amava-o pela sua conversa e pelos seus modos alegres, pela sua face redonda e pelo mesmo corpo ágil e flexível que tinha o pai. O mais velho já vinha curvado com o seu trabalho, a mão dura e lenta, mas este rapaz era rápido e moreno, de pele macia em todo o corpo; tinha o pé ligeiro como um gato novo e a mãe amava-o.
O mais velho sentia este amor da mãe pelo seu irmão e cismava nisso. Todos os dias de trabalho que tinha cumprido e todo o trabalho que Lhe tinha poupado lembrava-o agora e parecia-Lhe que a mãe era a pessoa mais cruel que existia e que nunca tinha dado importância a nada do que ele tinha sacrificado da sua juventude por ela. A amargura crescia lenta e profundamente no seu coração e ele odiava o irmão.
Capítulo 14
Todo este ódio se acumulava no filho mais velho sem que a mãe se apercebesse, até que um dia rebentou como rebenta o dique de um rio, dando saída a torrentes que ninguém imaginava.
Foi na altura da colheita do arroz, no fim do Verão, quando é preciso que todos trabalhem duramente na terra desde a alvorada até ao escurecer, se não são suficientemente ricos para pagar a quem Lhes faça o trabalho. Nesse dia, o rapaz mais novo também tinha trabalhado, embora habitualmente se lembrasse de qualquer coisa que tivesse que fazer noutro sítio. Mas desta vez a mãe tinha-o persuadido, dizendo-Lhe em segredo e afagando a mão do rapaz enquanto Lhe falava:
- Trabalha bem durante estes dias, que são poucos, meu filho, é só enquanto dura a colheita, e mostra ao teu irmão que és capaz de trabalhar bem; se trabalhares bem, eu compro-te uma coisa bonita quando o trabalho acabar, uma coisa que tu queiras muito.
O rapaz assim prometeu, embora de má vontade, e trabalhou bastante bem, embora não demasiado bem, apenas o suficiente para salvar a pele quando os olhos do irmão caíam sobre ele.
Mas nesse dia, quando a chuva parecia que ia cair antes dos feixes estarem guardados, todos eles trabalharam para além da hora habitual. A mãe trabalhou até estar esgotada, porque nunca mais fora infatigável como era antes de tomar aquelas ervas amargas para salvar a sua honra. Esgotada, suspirou e disse:
- Filho, eu vou para casa, para ter a comida aquecida quando tu chegares, porque estou esgotada e com dores.
- Então, vá para casa - disse o mais velho, um pouco rudemente, embora não fosse intencional, porque ele nunca insistia com a mãe para ela fazer mais do que podia.
Assim, ela foi-se embora e deixou os irmãos sozinhos, porque já era nuito tarde, mesmo para os respigadores que os tinham seguido durante o dia.
Mal tinha posto a comida a ferver quando a rapariga gritou da eira, onde estava sentada, que ouvia o irmão a chorar. Quando a mãe acorreu, vinda da cozinha, viu o que se passava e correu para o campo da seara; e ali, sobre o grão ceifado, o filho mais velho estava a bater no mais novo sem piedade, com o cabo da gadanha, e o mais novo a gritar e a reagir com os dois punhos, lutando por libertar o pescoço do forte aperto do irmão. Mas o mais velho segurava-o com força e
batia-lhe com a ponta do cabo. Então a mãe correu com toda a sua força e agarrou-se ao filho encolerizado, pedindo-Lhe:
- Ó meu filho, ele ainda é só um rapazinho. Ó filho! Ó filho! Entretanto, o mais novo escapou-se da mão do irmão e correu, rápido como uma lebre, através do campo, desaparecendo no escuro. Ficaram os dois, a mãe e o seu amargo filho mais velho. Então, ela balbuciou:
- Ele é ainda tão criança, filho, só tem catorze anos e ainda só pensa em brincar.
Mas o jovem respondeu:
- Eu era criança aos catorze anos? Eu brincava no tempo das colheitas, quando tinha catorze anos, e precisava que me subornasse com um anel e um fato novo e isto e aquilo que não fosse ganho por mim?
Então ela soube que o garoto, tolo, se tinha gabado do que iria receber e ficou sem fala, apanhada na sua falta, fitando em siléncio o filho, que continuava a gritar, dando vazão à sua amargura:
- Sim, a mãe guarda o dinheiro e eu dou-Lhe todo o que ganho. Nunca tirei um tostão para mim, nem mesmo para fumar um cachimbo fosse do que fosse, nem para beber uma taça de vinho ou para comprar qualquer coisa que um rapaz pode ter. Ainda assim, a mãe tem de Lhe prometer tudo que eu nunca tive! E para quê? Para fazer o trabalho que ele tem obrigação de fazer de graça, para pagar o que come e usa!
- Eu não Lhe prometi anéis nem fatos - disse ela, em voz baixa e perturbada, meio receosa desta cólera do filho, que era tão sério e calmo nos outros dias que ela não o reconhecia agora.
- Prometeu - disse ele arrebatadamente. - Ou se não foi isso, então pior, porque ele disse que ia receber aquilo que quisesse, quando o dinheiro da colheita fosse recebido e os impostos pagos. Ele disse que a mãe prometeu!
- Eu pensei em qualquer brinquedito ou outra coisa assim, que custasse apenas uma moeda ou duas - respondeu ela, envergonhada perante este bom filho.
E então, enchendo-se de coragem - pois não era ele também seu filho? - acrescentou:
- E se eu prometi um brinquedito, foi para o poupar à zanga que tu tens sempre contra ele, seja o que for que ele faça, pois estás sempre a reprimi-lo com os teus olhares e palavras cruéis, e agora com pancada!
Mas ele não disse mais nada. Atirou-se outra vez aos molhos e trabalhou como se tivesse um demônio no corpo, tão duramente e depressa trabalhava. A mãe ficou a olhar para ele, sem saber o que fazer, sentindo que ele era duro com o irmão, e sabendo que, de alguma forma, ela tinha errado. Então, enquanto olhava, viu que o jovem estava quase a chorar, que apertava os maxilares com força para reprimir um soluço. Quando viu aquela manifestação de sentimento, como nunca tinha visto nele, que sempre parecera tão normal e satisfeito e sem qualquer desejo, o seu coração enterneceu-se, como sempre acontecia quando magoava alguma das suas crianças, embora o filho não o soubesse, e, enternecida como nunca antes, exclamou rapidamente:
-Filho, eu agi mal, eu sei que errei. Não tenho procedido bem contigo ultimamente. Não vi como cresceste e te fizeste um homem. Mas és um homem,
vejo-o agora, e vais tomar o lugar do homem na nossa casa, e guardarás o dinheiro e terás o lugar principal, tanto de nome como pelo trabalho que tens feito. Sim, vejo que já és um homem e vou tratar imediatamente do que já adiei tempo demais. Vou procurar-te uma esposa e agora será a tua vez e a dela. Eu não tinha reparado, mas agora vejo-o bem.
O filho murmurou qualquer coisa que ela não conseguiu ouvir e voltou as costas, sem dizer mais nada, continuando a trabalhar. Mas sentia-se mais tranquila e repetiu, exclamando vivamente:
- Bem, e todo o arroz será queimado, juro. - Disse-o procurando disfarçar os sentimentos do momento e torná-los normais.
Quando chegou a casa, atarefou-se com isto e com aquilo, esquecendo toda a sua fadiga, e quando a filha perguntou:
- Mãe, que foi que aconteceu?
Ela respondeu rapidamente:
- Nada de importância, filha, excepto que o teu irmão mais novo não queria fazer a sua parte do trabalho, ou pelo menos o mais velho assim o diz. Mas os irmãos tém sempre que discutir, acho eu.
E foi a correr apanhar rabanetes para fazer outro prato, cortou-os às rodelas, deitou-Lhes vinagre e óleo de sésamo e molho de soja, pois sabia que o filho gostava. Enquanto trabalhava, pensava nas alterações que queria fazer e
parecia-Lhe certo que o seu filho se casasse. Censurava-se por se ter apoiado nele como num homem e, no entanto, ele não tinha a compensação que um homem tem; e dispôs-se a fazer tudo o que tinha dito que faria.
O filho mais velho veio por fim, mais tarde do que de costume, pois já era completamente de noite, e ela só Lhe conseguiu ver o rosto quando ele chegou ao alcance da luz da candeia e se sentou à mesa. Olhou para ele atentamente, sem ser notada, e viu que era outra vez ele, que tinha ficado satisfeito com o que a mãe Lhe tinha dito e que toda a sua ira tinha passado. E vendo essa paz no filho mais velho, chamou o mais novo, que estava parado à porta, não ousando entrar enquanto não soubesse qual era a disposição do irmão, embora também estivesse com fome:
- Entra, meu filho!
Ele entrou, com o olhar fixo no irmão. Mas o mais velho não Lhe prestou atenção, já liberto da sua cólera. A mãe estava muito satisfeita, pois sabia que a sua decisão estava certa e estava determinada a levar a sua promessa até ao fim.
E como fazia com qualquer pequeno problema, a mãe foi ter com o primo e com a mulher, pois ela própria não conhecia qualquer rapariga. Na aldeia não podia escolher nenhuma, pois eram todos parentes pelo sangue ou pelo casamento e tinham o mesmo apelido. Também não conhecia uma rapariga da cidade, pois ali só tinha contactos com algumas lojas pequenas, onde fazia as suas compras ou vendas. Era noite. O tempo ainda estava quente, embora o princípio do Outono estivesse próximo. Sentaram-se a conversar, enquanto a mulher do primo dava de mamar ao seu último bebê. Por fim, a mãe disse o que queria:
- Minha irmã, conheces alguma rapariga naquela aldeia onde viveste antes de casar? Eu gostaria muito de uma rapariga como tu, com bom feitio, que engravide depressa e que seja bastante boa no trabalho. Da casa posso eu cuidar ainda por muitos anos; se ela não for muito boa na casa, eu aguento.
A boa mulher do primo riu-se, olhou para o homem e exclamou:
- Não sei se ele diria que o teu filho acharia uma bênção ou uma maldição ter uma mulher como eu.
O homem olhou para cima, com o seu modo vagaroso, com um grão de arroz que tinha estado a mastigar enquanto ouvia a sair-Lhe da boca, e respondeu pensativamente:
- Oh, sim... bastante boa.
E a mulher riu outra vez ao ver a sua indiferença e disse:
- Bem, eu posso ir lá e ver, irmã. Há duzentas famílias, pouco mais ou menos, naquela aldeia, há um mercado e sem dúvida haverá entre tantas uma rapariga pronta para casar.
Conversaram sobre o assunto e a mãe disse francamente que não tinha muito dinheiro para gastar e acrescentou:
- Eu sei muito bem que não posso esperar uma das melhores em todos os aspectos, visto que sou pobre e que o meu filho não tem grandes terras, e temos de renda mais do que aquilo que é nosso.
O homem falou então:
- Bem, mas vocês têm alguma terra e isso hoje em dia é alguma coisa; eu casaria de melhor vontade uma filha minha com um homem que tivesse alguma terra e pouco dinheiro, do que com um que tivesse muito dinheiro mas não tivesse terra nenhuma. Um bom homem e boa terra... estaria bem para uma rapariga, se fosse minha.
E quando a mulher disse:
- Bem, então, pai dos meus filhos, se me deixares, eu posso ir à aldeia por um dia ou dois e dar uma vista de olhos.
Ele respondeu, com o seu modo lacônico:
- Ah, sim, está bem... as pequenas já têm idade suficiente para te aliviarem de vez em quando.
Pouco tempo depois, a mulher do primo vestiu-se de lavado, pegou no bebê e em duas ou três das crianças mais pequenas, para mostrar à família do marido, e duas das mais velhas para a ajudarem a tomar conta dos mais pequenos, alugou um carrinho para as levar a todas e pegou no burro cinzento, de que o marido não precisava porque as colheitas estavam terminadas e ele podia põr o boi a pisar o grão. Puseram-se a caminho e demoraram mais de três dias. Quando voltou, vinha entusiasmada com todas as raparigas que tinha visto e disse para a mãe, que acorreu quando soube que ela tinha voltado:
- Há muitas raparigas naquela aldeia, porque ali nunca as matam, como fazem em algumas cidades quando nascem raparigas, e deixam-nas crescer; muitas mães têm filhas e a aldeia está cheia delas. Eu vi uma dúzia que conheço, irmã, todas elas mulheres feitas e fortes e coradas, e qualquer delas seria boa para um filho meu. Mas só era precisa uma e por isso eu olhei com cuidado, para esta e para aquela e escolhi três; depois, olhei novamente e uma tinha tosse e borbulhas no nariz, outra tinha os olhos doentes e a terceira era a melhor. É uma rapariga viva e esperta, juro, dá muita atenção a tudo o que diz e faz, e dizem que é a costureira mais rápida da cidade. Faz as suas próprias roupas e as roupas para toda a casa do pai, e até para outras pessoas, e ainda ganha algum dinheiro. Talvez seja um pouco velha para o teu rapaz, porque já esteve prometida, mas o homem morreu, senão estaria agora casada. Mas não está doente e o pai está desejoso de casá-la seja como for e não pedirá muito por ela. Talvez não seja tão bonita quanto as outras... a face é um pouco amarela por cozer muito, mas os olhos são bons.
E a mãe respondeu muito depressa:
- Nós já temos olhos doentes que cheguem lá em casa, e os meus olhos já não são o que eram; além disso, precisamos de alguém que cosa e que tenha gosto nisso. Combina então as coisas com essa, minha irmã, e se ela não for mais velha que o meu filho mais de cinco anos, está bem assim.
Assim se fez; e os dias dos meses e os anos de nascimento dos dois, e as horas a que nasceram foram comparados sobre a mesa de um geomante da cidade e foram todos favoráveis. O rapaz tinha nascido sob o signo do cavalo e a rapariga sob o signo do gato, que não se devoram um ao outro e isso prognosticava harmonia no casamento. E assim, estando tudo certo pelo destino, os presentes que deviam ser dados foram dados.
A mãe foi buscar as moedas de prata e de cobre onde as tinha guardado e comprou pano de algodão bom e fez ela própria dois vestidos para a rapariga. E, como era de uso, pediu a uma mulher feliz, cuja vida fosse completa com o marido e os filhos, que cortasse os vestidos. Que mulher haveria mais feliz na aldeia do que a mulher do primo? A mãe levou-Lhe o bom pano e disse-Lhe:
- Faz isto com a tua mão, minha irmã, para que a tua felicidade possa cair sobre a mulher do meu filho.
E assim fez a mulher do primo; cortou os vestidos largos e com bastante folga na barriga para que, quando a rapariga engravidasse, pudesse usá-los facilmente e não os tivesse que pôr de lado.
A mãe foi buscar mais dinheiro e alugou a cadeira vermelha de casamento e a coroa e os brincos de pérolas falsas, e tudo o que era necessário para aquele dia, especialmente as calças vermelhas que todas as noivas devem usar. O dia do casamento foi marcado e chegou por fim, um dia claro e frio no Inverno desse ano.
Era um dia estranho para esta mãe, em que ela devia dar as boas- vindas a uma mulher mais nova, tendo sido durante tanto tempo a dona da casa. Vestida com a sua melhor roupa, esperando de pé à porta de casa, quando viu a cadeira vermelha de noivado aproximar-se com a noiva sentada nela, pareceu-Lhe subitamente que tinha sido há pouco tempo que ela própria tinha vindo naquela mesma cadeira, e que a velha falecida estava onde ela se encontrava hoje e o seu próprio homem onde estava o filho. Raramente pensava naqueles dias com o marido, que na verdade parecia morto para ela, e sentiu-se invadida por uma estranha saudade dele, enquanto esperava. Não era o desejo da carne; não, isso agora estava morto. Era um outro anseio, o anseio por alguma coisa que Lhe faltava, porque se sentia só.
Olhou mais uma vez para o filho. Agora já não era apenas o seu filho, mas o marido de outra, e ali estava ele, de pé, muito calmo, a cabeça inclinada, rígido no fato preto novo que ela Lhe fizera, e sapatos nos pés, que a maior parte das vezes andavam descalços. Parecia imóvel, ou ela assim pensou até ver as mãos dele pendentes, tremendo contra o fato preto. Então ela suspirou e lembrou-se outra vez do seu próprio homem e de como o tinha espreitado por detrás das cortinas da cadeira, e de como o seu coração batera ao ver como ele era belo e como parecia bom, em todos os aspectos. Sim, era muito mais bonito do que o seu filho estava hoje, e ela pensou para si que era o homem mais bonito que tinha visto em toda a sua vida.
Mas antes que tivesse tempo para mergulhar nestas recordações, começou a chegar o cortejo: os pequenos frutos de noivado, o galo que ela tinha mandado para casa da noiva e que, segundo o uso, a família desta devolvia juntamente com uma galinha com que o tinham acasalado. Depois disto, a cadeira foi trazida e colocada em frente da porta. Então, a mulher do primo, a alcoviteira e as outras mulheres mais velhas da aldeia pegaram na mão da noiva e tentaram puxá-la para a frente. Mas ela era digna e relutante; lá acabou por vir, contrariada, e quando o fez baixou os olhos e não olhou uma única vez para cima. Então a mãe retirou-se para casa do primo, como era costume naqueles sítios, onde a mulher de um filho não deve ver muito facilmente a mãe do marido, a fim de não a recear. Todo esse dia a mãe ficou em casa do primo.
Mas deixou-se ficar perto da porta, para ouvir o que as pessoas diziam desta nova esposa, e ouviu algumas exclamações:
- Uma rapariga muito boa e com aspecto sério.
E outras afirmavam:
- Dizem que é boa costureira. Se na verdade foi ela que fez os sapatos que traz calçados, juro que tem dez bons dedos!
Algumas mulheres foram apalpar o vestido vermelho de noivado e levantaram o casaco para verem a parte de dentro, e tudo estava bem, muito bem feito, com os botões rijos e com o pano muito bem torcido, e correram a dizer à mãe:
- Uma rapariga decente, capaz e de aspecto digno, vizinha. Mas entre os homens, alguns falavam grosseiramente e um disse:
- Acho-a muito magra e amarela para o meu gosto!
E outro exclamou:
- Sim, mas alguns meses corrigem a magreza, irmão... Nada como um homem para fazer uma mulher inchar!
No meio desta conversa alegre e irreverente, a rapariga dirigiu-se gravemente para a sua nova casa. E, assim, estava casada.
Agora a mãe devia deixar a cama onde tinha dormido todos estes anos e, nessa noite, quando a nora veio fazer a cama para a mãe, pois assim se fazia naqueles sítios, pôs a enxerga, onde a velha sogra outrora tinha dormido e depois dela o filho mais velho, por detrás das cortinas; e a rapariga cega tinha uma enxerga ao lado; e o garoto mais novo dormia na cozinha, se dormisse em casa. Na cama dormiam agora o filho mais velho com a sua esposa.
Não foi fácil para a mãe ceder a este novo casal o lugar que tinha sido dela e do seu homem, e à noite sentia-se velha ao deitar-se na enxerga da sogra. Durante o dia podia proceder como habitualmente, ocupar-se de tudo, comandar tudo, a língua rápida a corrigir e comandar, mas à noite era velha. Muitas vezes acordava e parecia-lhe que não podia ser ela que estava ali deitada e o casal na cama, e pensava consigo própria, espantada: Suponho que a velha alma que era a mãe quando eu cheguei a esta casa, sentiu o mesmo que eu sinto agora, quando eu aqui cheguei como noiva e a empurrei para fora da sua cama, onde fiquei com o filho dela, como me toca a mim agora. Hoje, é outra que dorme com o meu filho.
Parecia tão estranho, tão interminável, este girar de uma roda escondida, como que apanhada por uma corrente sem fim, que ela ficou confundida a pensar, embora não costumasse pensar muito no significado de tudo o que via; ela apenas via as coisas pelo que eram. Mas a partir daquele dia, sentiu-se diminuída aos seus próprios olhos. Mesmo que fosse a mais velha, a primeira e dona da casa para todos, não era a primeira aos seus próprios olhos.
E observava a mulher do filho. Era atenciosa, dia após dia fazia a sua vénia ao marido e à mãe, até esta se cansar e Lhe gritar basta! " Mas não Lhe encontrava nenhum defeito. Esta própria perfeição era um defeito e a mãe murmurava: Sem dúvida, ela tem algum defeito secreto escondido que eu não vi ainda.
Pois a mulher do filho não mostrava, como algumas raparigas fazem, tudo o que era de uma só vez. Era diligente e suave e rápida no trabalho, e quando o trabalho estava feito sentava-se e costurava qualquer coisa do marido, mas em tudo o que fazia empregava o seu modo cuidadoso.
Mas não há duas mulheres neste mundo que façam o mesmo trabalho da mesma maneira; a mãe não sabia isso, pensando que tudo se devia fazer como ela fazia. Mas não, a mulher do filho tinha a sua própria maneira de fazer tudo. Quando cozia o arroz, punha muita água, ou assim a mãe pensava, e o arroz ficava mais mole do que a mãe costumava ou gostava de fazer. E disse-o à nora. Mas esta apertou os lábios pálidos e respondeu-Lhe:
- Mas eu fiz sempre assim.
E não mudou.
Era assim com tudo. Alterava tudo na casa, de acordo com o seu próprio gosto, não rapidamente nem num momento de mau humor, mas a pouco e pouco, com cuidado, gradualmente, de modo que não dava à mãe oportunidade de manifestar a sua zanga. Havia outra coisa: a jovem esposa não gostava do cheiro dos animais, à noite, e queixou-se, não à mulher mais velha, mas ao marido, até que ele deitou mãos à obra, nesse mesmo Inverno, para acrescentar um quarto à casa, para onde pudessem mudar a cama e dormir sozinhos. E a mulher mais velha olhou, admirada, para esta novidade.
Primeiro, disse à rapariga cega que não se ia zangar com a mulher do filho. E na verdade não era fácil zangar-se, porque a jovem esposa procedia bem e trabalhava cuidadosamente, de modo que era difícil dizer isto está mal" ou não fizeste isto bem. Mas, de qualquer modo, havia coisas que a mãe detestava, embora o que ela mais detestasse fosse o arroz mole, o que a fazia lamuriar-se muitas vezes e, por fim, queixar-se em voz alta: Nunca me sinto satisfeita com este arroz mole. Isto não é nada para os meus dentes, esta coisa aguada, passa-me pela barriga como o vento e não fica lá como comida boa, sólida. E quando viu que a nora não ligava importância ao que ela dizia, foi um dia falar com o filho em segredo, quando ele estava a trabalhar no campo, e disse-Lhe:
- Filho, por que não Lhe pedes que faça o arroz mais seco e rijo? Pensava que tu gostavas dele assim.
O filho parou o que estava a fazer, apoiou-se um momento na enxada e disse com a sua voz calma:
- Eu gosto como ela o faz, fá-lo muito bem.
Então, a mãe sentiu a sua cólera aumentar e disse-Lhe:
- Tu não gostavas dele assim; isso significa que tu te juntaste a ela em vez de a mim. É uma vergonha que tu gostes dela dessa maneira e que estejas contra a tua mãe.
As faces dele tornaram-se vermelhas e disse simplesmente:
- Sim, gosto bastante dela.
E voltou-se outra vez para a enxada. Nesse dia, a mãe percebeu que eram duas as donas da casa. O filho mais velho não era menos delicado do que de costume. Fazia o seu trabalho bem e guardava o dinheiro. Era verdade que não o gastava, nem a mulher, porque ambos eram poupados, mas eram marido e mulher e esta era a sua casa e a sua terra, e para eles a mãe era apenas a mulher velha da casa. Era verdade que ela falava do campo ou da sementeira e de todo o trabalho, que conhecia tão bem porque tinha sido o seu trabalho; eles deixavam-na falar, mas, no entanto, quando ela acabava era como se não tivesse dito nada, e faziam os seus planos e faziam tudo como gostavam. Parecia que a mãe já não era nada, a sua sabedoria menos que nada, na casa que tinha sido sua.
Isto era muito difícil de suportar para qualquer pessoa e quando o quarto novo ficou pronto e o casal se mudou para lá, a mãe murmurou para a filha cega que dormia ao seu lado:
- Nunca vi tanta esquisitice como esta, como se o cheiro dos animais fosse veneno! Tenho a certeza de que eles fizeram aquele quarto para estarem longe de nós e falarem dos seus planos sem nós podermos ouvir. Nunca me dizem nada. Não são os animais... É uma vergonha como o teu irmão gosta dela. Sim, eles não querem saber de ti nem do teu irmão mais novo, nem mesmo de mim, eu sei.
E como a rapariga não respondia, insistiu:
- Tu não achas, minha filha? Não tenho razão? A rapariga hesitou e disse, após um momento:
- Mãe, é verdade, eu tenho uma coisa para dizer. Ainda não disse, com receio de a magoar.
Então, a mãe encorajou-a:
- Diz, filha. Eu acho que estou habituada a desgostos. E a pequena perguntou, em voz baixa:
- Mãe, o que vai fazer de mim, cega como eu sou?
A mãe tinha sempre pensado que a pequena viveria ali com ela, e respondeu, surpreendida:
- O que queres dizer, minha filha?
E ela respondeu:
- Não digo que a mulher do meu irmão não seja bondosa... ela não é cruel, mãe. Mas não imagina que a mãe não tem planos para me casar em breve. Eu ouvi-a perguntar ao meu irmão mais novo a quem eu estava prometida, e quando ele disse que eu não estava, ela respondeu com surpresa: Uma rapariga crescida ainda sem uma sogra! "
- Mas tu és cega, filha - argumentou a mãe. - E não é fácil casar uma rapariga cega.
- Eu sei - disse a pequena, devagar.
E pouco depois voltou a falar, e desta vez como se a boca estivesse seca, como se a sua respiração viesse quente.
- Mas sabe que há muitas coisas que eu posso fazer, mãe, e pode haver algum homem muito pobre, talvez um viúvo, alguém tão pobre que ficaria satisfeito com o pouco que eu Lhe pudesse fazer, se ele não tivesse que pagar nada por mim, e então eu estaria na minha própria casa e haveria alguém, se a mãe desaparecesse, de quem eu podia cuidar. Mãe, eu acho que a minha irmã não me quer.
Mas a mãe respondeu violentamente:
- Filha, eu não quero que tu vás pôr remendos na casa de um tal homem! Nós somos pobres, bem sei, mas tu tens de comer. Os viúvos são muitas vezes os maridos mais duros e mais difíceis. Portanto, dorme e não penses mais nisso. Eu ainda sou forte e ainda devo viver muito tempo, e o teu irmão nunca foi cruel para ti, mesmo em criança.
- Nessa altura, ele não era casado, mãe - disse a rapariga, suspirando. Então, ficou silenciosa e pareceu dormir.
Mas a mãe não conseguia dormir, embora normalmente dormisse profundamente. Ali ficou deitada a pensar, recordando os dias passados, um a um, para ver se o que a rapariga tinha dito era verdade e, embora não conseguisse pensar numa única coisa, parecia-Lhe que a mulher do filho não era bondosa. Não, não era muito bondosa para o garoto mais novo e, pelo menos, não era bondosa para esta irmã cega em casa do marido. Isso foi mais um desgosto para a mãe.
Capítulo 15
Todos os dias a mãe ficava atenta, para confirmar se o que a filha Lhe contara era verdade e, na realidade, assim era. A jovem esposa não era malcriada e a sua maneira de falar era suave, parecendo sempre cheia de cortesia. Mas atormentava a menina cega com mil e uma pequenas coisas. Enchia-Lhe mal a tigela da comida, ou pelo menos assim parecia aos olhos da mãe, e se houvesse algum prato melhor, não o servia à cunhada, que por não ver, não sabia tão pouco que estava na mesa. Só a mãe, com seus olhos argutos, reparava no sucedido, pois ninguém o teria notado por estarem absorvidos no seu próprio apetite. Contudo, a mãe observou:
- Ó filha, não gostas destes bofes de porco cozidos na sopa? Surpreendida, ajovem respondeu com suavidade:
- Não sabia que havia bofes, mãe. gosto até muito disso. A mãe, com a sua colher, tirou a carne e a sopa que deitou na tigela da menina. Ao fazer isto,
assegurou-se de que a nora via. Esta disse com suavidade e cortesmente, mal movendo os lábios grossos, embora pálidos como o seu rosto:
- Ó irmã, peço-te desculpa... Não reparei que não te tinha servido. Mas a mãe sabia que a nora mentia.
Outras vezes, quando a nora cosia sapatos para a rapariga - era seu dever calçar toda a família - fazia-o a correr, colocava-Lhes uma sola demasiado fina e poupava-se ao trabalho de Lhes bordar uma flor à frente. Ao notar o que se passava, a mãe disse-Lhe:
- O quê... então não bordas uma flor nos sapatos da minha filha, quando todos os outros a têm?
A nora abriu os olhitos escuros e sem brilho e retorquiu:
- Se a mãe quiser, posso bordá-la. Só que pensei que, como ela é cega e não distingue as cores... e tenho tantos sapatos para coser...
Além do mais, o pequeno gasta um par ou dois em cada mês, com as idas à cidade para se divertir.
Sentada no umbral da porta a apanhar sol, a rapariga cega ouvia a conversa e as queixas da cunhada contra o irmão mais novo. Com veemência, interrompeu:
- Mãe, eu não preciso da flor bordada, a minha irmã está certa. O que são flores para uma cega?
Estas situações passavam-se sem ar de discussão, não se assemeLhavam em nada a zangas. Até que um dia, quando a mãe dobrava a esquina da casa, dirigindo-se à pocilga para dar de comer ao porco, o filho aproximou-se e disse-Lhe:
- Mãe, quero dizer-Lhe uma coisa. Não tenho pressa de ver a minha irmã fora de casa, nem a censuro pelo que come. Mas um homem tem de pensar nos seus e ela é nova, mãe, com a vida toda pela frente. Será que terei de alimentá-la toda a vida? Não tenho conhecimento de casa alguma, a não ser em casa de gente abastada, onde a comida nunca falta, em que um homem tenha tal encargo para sempre. O dever do homem é alimentar os pais, a mulher e os filhos. A minha irmã é nova, é quase certo que não morrerá antes de mim. Não será nada bom se ficar solteira. O melhor para qualquer mulher é casar-se.
A mãe fitou o filho. De feições endurecidas pela ira, disse em tom acusador:
- Meu filho, aquela tua mulher é que te enche a cabeça com esses pensamentos. Como dormes só com ela no quarto e só falam um com o outro, durante a noite ela enche-te de veneno com tudo o que diz, pondo-te contra os do teu sangue. E tu... Tu és igual a todos os homens... Mole como a lama, quando te deitas com uma mulher.
E virou-Lhe as costas, amargurada. Deu de comer ao porco, viu-o comer com avidez, ou melhor, nem prestou atenção ao que o animal fazia, apesar da satisfação que geralmente Lhe dava observar a voracidade dos bichos. E com tristeza, continuou:
- Que género de homem poderá querer a tua irmã? Quem podemos nós esperar que a queira, a não ser um homem pobre demais para ser bondoso, ou um viúvo demasiado pobre para arranjar de novo uma mulher sã?
Com prontidão, o filho respondeu-Lhe:
- É nela que também penso. Acho que o melhor seria arranjar-Lhe um marido, embora reconheça que não vai conseguir encontrar um tão bom como se fosse uma rapariga normal.
- Isso é o que diz a tua mulher, meu filho - respondeu a mãe ainda com maior tristeza.
Mas o filho retorquiu-Lhe no seu jeito teimoso:
- Temos ambos a mesma opinião sobre o assunto.
E quando a mãe Lhe disse:
- Receio bem que nisto e em tudo o resto.
Ele nada mais acrescentou, partindo em silêncio para o trabalho, firme na sua ideia.
Apesar de tudo, durante muito tempo, a mãe não empreendeu quaisquer esforços para casar a filha. Dizia para consigo, à filha cega, ao filho mais novo, à prima e a quem a quisesse ouvir que ainda não se sentia suficientemente velha para abdicar do lugar que tinha naquela casa e, tal como uma criança, ser obrigada a fazer o que Lhe mandam. Assim, fazia frente ao filho mais velho e à nora, protegendo a filha, assegurando-se de que ninguém Lhe fizesse mal algum ou a privasse do que os outros tinham.
À medida que se ambientava, a nora tornava-se mais e mais afoita na maneira de falar, queixando-se mais amiúde, abandonando o seu modo cortês. Muitas vezes, chegava a lamentar-se nestes termos, quando se juntava às mulheres que trabalhavam com ela à porta de uma das casas, cosendo ao sol, ou quando apenas se juntavam para falar, como as mulheres tanto gostam de fazer: Que vai ser de mim quando tiver filhos, se tenho de coser para todos nesta casa? A minha sogra está cada vez mais velha, e eu bem sei que tenho de servi-la, é pôr à sua disposição os meus olhos, as minhas mãos e os meus pés, enfim, tudo o que ela necessitar. Assim me ensinaram e é assim que eu procedo. Espero conseguir cumprir fielmente o meu dever. Mas há o rapaz mais novo, sempre com fome e sem fazer coisa alguma; mas ainda pior do que ele, pois esse há-de casar-se um dia e ter mulher que o sustente e o vista, é a cega, ainda solteira. Não me admiraria que tivesse de ocupar-me dela toda a vida, porque a mãe não a quer ver casada.
Ao dizer estas palavras ou outras semelhantes, fazia com que as mulheres em redor, que a ouviam, se pusessem a olhar para a cega, se acaso esta estivesse presente. Faziam-no de tal forma, que a rapariga Lhes sentia o olhar reprovador e acabava por baixar a cabeça, com vergonha de ser um peso para os outros. Por vezes, uma ou outra dizia: Pois há muitos cegos, e nalgumas famílias ensinam-Lhes a ler a sina, ou outras coisas, para conseguirem ganhar algum dinheiro de vez em quando. Sim, porque os cegos têm muitas vezes um olho interior e conseguem ver coisas que nós não conseguimos. A sua cegueira torna-se numa força, fazendo com que os outros os receiem. Podiam ensinar a pequena a adivinhar o futuro ou coisa assim. Outras diziam ainda: Mas há também casas pobres com um filho e sem dinheiro para o casar. Ficariam felizes por receber uma idiota, uma cega ou uma muda. Seria bem melhor para o rapaz, isto desde que não tivessem que gastar dinheiro. "
A mulher do filho continuava então, com ar descontente: Quem me dera a mim conhecer alguém nessas condições. Se as vizinhas souberem, ficarei muito agradecida se me vierem contar.
E, sendo gente de bem, prometiam à rapariga ajudá-la, pois todas estavam de acordo que, em tempos tão duros, o dinheiro era pouco e era difícil sustentar uma boca a mais. Era justo que se casasse e fosse viver noutro lugar.
Um dia, a alcoviteira da aldeia veio ter com a mãe e falou-Lhe nestes termos:
- Olhe, se pretende casar a sua filha cega, conheço uma família que vive na serra, lá para Norte. Têm um filho de dezassete anos, mais ano menos ano. No tempo da fome, vieram de uma província do Norte e estabeleceram-se num terreno baldio e selvagem, no sopé da montanha que fica por cima da minha aldeia. O irmão veio depois e agora vivem lá todos. A terra é pobre, eles são pobres, tal como vós, boa mulher, e a sua filha é cega. Se quiser pagar a viagem, posso ir em seu lugar e ver como são as coisas. Em abono da verdade, já há muito que tenho vontade de ver a casa dos meus pais, mas não me atrevo a pedir o dinheiro necessário ao meu cunhado. Custa muito ser viúva em casa alheia.
A princípio, a mãe não Lhe quis dar ouvidos, mas acabou por Lhe responder:
- Eu sou capaz de sustentar a minha filha cega!
Mas depois, quando contou a conversa aos primos, o primo acabou por Lhe dizer com ar grave:
- Isso era bom se vivesses para sempre, irmã. Mas quando desapareceres e quando nós morrermos, ou ficarmos velhos demais para mandar na casa dos filhos? Quem poderá tomar conta da rapariga? E se vierem anos maus e tu já cá não estiveres? Primeiro que tudo, os pais devem pensar nos seus filhos.
A mãe quedou-se em silêncio.
Bem depressa se apercebeu da verdade, de que não podia viver para sempre. A sua vida podia terminar a qualquer momento, e talvez mais cedo do que poderia esperar. Desde aquela noite fatídica, nunca mais recuperara o seu antigo vigor.
No Verão desse ano, a disenteria apossou-se dela, sabe-se lá vinda de onde. Até então sempre comera o que Lhe apetecia e quanto queria do que havia. Mas aquele Verão chegou mais quente do que nunca e as moscas eram tantas que o vento as fazia tombar sobre a comida, quer o desejassem ou não. A mãe acabou por dizer que não valia a pena matá-las, era uma perda de tempo. Sendo Verão, era também o tempo das grandes melancias. Abertas, mostravam o interior vermelho ou amarelo claro, consoante a sua qualidade. Nunca tinha havido um ano como aquele, com tantas melancias. A mãe adorava esta fruta e comia com prazer as que não eram vendidas ou as que amadureciam depressa de mais ao sol. Comia e tornava a comer, até estar satisfeita. Voltava a comê-las para que nada fosse desperdiçado. Fosse pelos muitos frutos comidos, ou por algum vento ruim, ou por algum mau olhado, embora ela não conhecesse ninguém que realmente Lhe quisesse mal, a não ser aquela pequena deusa que Lhe adivinhara o pecado, de qualquer modo, não sabendo como, adoeceu com disenteria. Esteve de cama dias e dias, sem conseguir conservar no estômago o golo de chá que tomava para se aguentar.
Durante a doença, quando se sentia torturada e fraca, bem pôde observar todo o auxílio que a nora Lhe prestava, pondo todo o seu saber nos cuidados que Lhe dispensava e sem Lhe faltar fosse com o que fosse. A rapariga cega fazia também tudo o que podia, dentro das suas fracas possibilidades, para ajudar a mãe, mas como era lenta, não se apercebia a tempo do que era preciso fazer. A cunhada afastava-a amiúde, dizendo-lhe:
- Senta-te, minha boa irmã, acredita que essa é a melhor maneira de me ajudares!
Mesmo contrariada, a mãe chegava a apoiar-se naquela rapariga sempre pronta e cuidadosa. Sentia-se demasiado cansada para defender a filha cega. O filho mais novo vinha, por vezes, saber notícias suas, desaparecendo de seguida, pois via que a mãe não tinha as forças necessárias para o defender do irmão mais velho. Naquela fraqueza, a presença ágil e cuidadosa da nora à sua cabeceira, transmitia-Lhe coragem. Por fim, quando a disenteria a deixou, indo apossar-se de outra pessoa já com o destino marcado, a mãe levantou-se e continuou a apoiar-se, com toda a força, na sua nora. Embora não gostasse da rapariga, era-Lhe necessária.
Levou muito tempo a melhorar, e nunca mais recuperou o antigo vigor. Não podia comer as couves que tanto apreciava, nem as melancias, nem o amendoim cru, apanhado do chão, de que tanto gostava. A partir de então, tinha de ter cuidado com o que comia, ingerindo apenas o que não Lhe fazia mal aos intestinos. Se acaso se impacientava com todos estes cuidados, dizendo que ia comer o que bem Lhe desse na gana, e a barriga que se aguentasse, logo voltava a doença. O mesmo sucedia se trabalhava um pouco mais ou se sentava em algum lugar onde apanhasse uma corrente de ar, pois a malvada doença logo a atacava, deixando-a outra vez inutilizada por algum tempo.
Na sua incapacidade, percebia bem que tinha de casar a filha numa casa em que esta se sentisse tão bem como na sua, pois a verdade era que a cega já deixara de ser desejada naquela casa. Quando a mãe não ousava defendê-la, por se sentir assim tão fraca, bem via o mal-estar da jovem, que se sentia a mais. Certo dia, em que a mãe ficara só, a rapariga aproximou-se e disse-Lhe:
- Mãe, não posso continuar aqui, em casa do meu irmão. Ó mãe, preferia casar em qualquer casa onde me quisessem!
A mãe não protestou mais. Confortou a filha com algumas palavras e, num dia de Inverno desse mesmo ano, quando se sentiu mais forte - sentia-se melhor com frio do que com tempo quente -, saiu, indo ter com a alcoviteira. A velha encontrava-se sentada à porta de casa, entretida a bordar flores num pedaço de pano, embora a linha fosse grossa e as extremidades das pétalas fossem algo que fazia rir, pois a viúva já não via como outrora, embora não o admitisse.
Contou-Lhe ao que vinha e confessou-Lhe:
- Pois o que me disse, sempre era verdade. Vejo agora que a minha filha estaria melhor se se casasse, ainda que fosse com o rapaz de que há tempos me falou. Sinto-me demasiado cansada para procurar aqui e ali. Agora sinto-me sempre fatigada; fiquei assim desde que apanhei aquela disenteria.
A velha alcoviteira, toda contente por poder fazer uma coisa nova, sem gastar dinheiro algum, alugou um carrinho e assim percorreu os quilómetros que a separavam do vale onde era a casa do pai. Daí partiu para a aldeia, onde permaneceu dois ou três dias. Na noite em que regressou, foi a casa da mãe, chamou-a à esquina e sussurrou-Lhe:
- Tudo correu bem e dentro de um mês a coisa pode ser arranjada. Agora, sinto-me também muito cansada. Mas parece-me que Lhe fui muito útil e que a partir de agora vamos ser boas amigas.
A mãe tirou então do seio uma moeda de prata que guardara para esta ocasião e pediu-Lhe que a aceitasse. A viúva afastou a mão, jurando que não a queria e que, entre amigas, tais coisas não eram necessárias e mais isto e mais aquilo, mas lá acabou por aceitar.
Quando já tudo estava combinado, e pensando a mãe que tudo estava bem, informou a nora das suas diligéncias. Esta ficou contente e manifestou a sua satisfação, mas tendo o cuidado de acrescentar:
- Ó mãe, não era preciso apressar tanto as coisas. Não quero mal algum à minha cunhada. Se fosse só por mim, ela podia ficar mais um ou dois anos, até mesmo toda a vida. Se não fôssemos tão pobres, não teríamos que contar as bocas que temos de sustentar.
A partir dessa data mostrou-se muito mais amável, oferecendo-se para fazer o enxoval à cunhada: ao todo três vestidos, um casaco e umas calças azuis escuras, e umas vermelhas, que nem à mais pobre das raparigas poderiam faltar no dia do seu casamento, e ainda um ou dois pares de sapatos com uma florzinha bordada e umas folhas vermelhas. Mas o dia do casamento não seria celebrado nem com grande festa nem grande cerimónia, porque a mãe dava a filha sem dote e o noivo não oferecia quaisquer presentes, pois não fazia grande negócio ao desposá-la.
Quanto à jovem, esta não proferiu uma palavra que fosse acerca desse dia. Ouvia o que a mãe tinha a dizer-Lhe, sem nada responder. A não ser numa noite em que estendeu a mão para sentir o rosto da mãe que estavajunto ao seu, e sussurrou bruscamente:
- Mãe, não ficarei demasiado longe de si, para que possa ir ver-me? E lá, como faço? Sou cega e não posso fazer uma longa viagem, por um caminho que desconheço, por montes e vales.
Então, a mãe estendeu também a mão e, ao sentir a filha tremer, chorou em segredo, limpando as lágrimas na noite à manta da cama e repetindo inúmeras vezes:
- Decerto irei, minha filha, podes estar certa de que irei ver-te, e tu me contarás tudo. E se não te tratarem como deve ser, tratarei de ti. Não vou deixar que te maltratem.
Em seguida disse-Lhe com grande doçura:
- Mas tu tens estado acordada toda a noite, minha filha? Ao que ajovem respondeu:
- Sim, bem como nas outras noites.
- Não tenhas medo, minha pequenina - respondeu a mãe com ternura. - És a cega mais rápida e melhor que conheço. E eles sabem que és cega, não podem acusar-te disso nem de Lho escondermos.
Só mais tarde é que a jovem passou pelo sono. A mãe, ainda acordada, acusava-se, cheia de remorsos, sentindo, de algum modo, que a falta que cometera caía agora como um castigo sobre a filha, embora não soubesse como. Recriminava-se por não ter tentado encontrar um sítio mais perto para casar a filha, uma aldeia onde pudesse ir quase todos os meses, ou então por não ter descoberto um homem pobre que, a troco de algum dinheiro que Lhe dessem, estivesse disposto a vir viver no lugarejo. Ao pensar nisto, o seu coração sofria, duvidando que o filho e a nora fossem capazes de privar-se da mais pequena quantia, sendo eles agora os detentores do dinheiro. E, verdadeiramente pesarosa, dizia para consigo: Não posso esperar que não Lhe batam. Há muito poucas casas como a nossa, onde nem o marido nem a sogra maltratam a recém-chegada. Ficaria com o coração despedaçado se visse bater na minha filha cega, ou se estivessem demasiado perto para que eu o ouvisse, ou que ela pudesse vir a correr contar-mo... E eu sem poder fazer nada, visto ela estar casada. Não poderia tolerá-lo. É melhor ir para longe, para onde não a possa ver, nem saber de nada, e poupar-me-ei a mais esta dor. Sem nada saber, ao menos posso ter esperança. "
Depois de ter ficado mais algum tempo deitada, como se o peso da vida a oprimisse, lembrou-se de uma coisa que poderia fazer: era dar à filha algumas moedas de prata, tal como a sua mãe fizera consigo ao deixar o lar materno. Ainda durante a noite, antes da madrugada, levantou-se e, sem assustar o gado e as galinhas, dirigiu-se com todos os cuidados ao buraco e, afastando delicadamente a terra, desenterrou o farrapo em que embrulhara os seus parcos haveres. Desapertou-o e escolheu cinco moedas de prata que guardou no seio, tapando novamente o buraco. Sentia-se mais confortada com aquele dinheiro contra o seio e pensou com os seus botões: Não são todas as raparigas que, ao sair de uma casa pobre, levam esta ajuda. A minha filha pelo menos terá isto!
E apegada a esta fraca consolação, acabou finalmente por adormecer.
E os dias passaram assim, sem qualquer alegria. Não, a mãe nem tão pouco se alegrava com as visitas do filho mais novo, pouco se importando com as suas vindas ou idas. Notava, contudo, que ele estava bem, a sorrir, ocupado por algum trabalho que ela desconhecia. Chegou por fim a altura da partida da filha e a mãe aguardava, com o coração pesado, a chegada daquele que a vinha buscar. No seu íntimo, procurava adivinhar o tipo de homem a quem ia confiar a filha.
Ele chegou um dia, no princípio da Primavera, ainda o Verão estava longe e o renovar da natureza se podia somente observar nalgumas ervas que as crianças do lugar arrancavam para comer, no matiz esverdeado dos caules dos salgueiros e nos botões castanhos e ainda pouco inchados dos pessegueiros. Todas as terras mantinham ainda o aspecto estéril do Inverno. O trigo mal nascera e, por entre os torrões do campo, e por entre os ventos frios, viam-se despontar algumas ervinhas verdes.
Nesse dia, chegou um velho montado num burro cinzento sem albarda. Vinha sentado sobre um casaco em farrapos e imundo, colocado sobre o dorso do animal. Aproximou-se da casa da mãe e disse o seu nome. O coração dela parou-Lhe no peito, pois em nada Lhe agradava a expressão do velho. O homem esboçou um sorriso, esforçando-se por parecer simpático, mas não havia qualquer bondade naquela cara de focinho aguçado de velha raposa, de olhos penetrantes, cavados, entre rugas profundas, com alguns pelos brancos à volta de uma boca sem lábios, já há demasiado tempo curvados, para nesse dia conseguirem espelhar uma expressão de sinceridade. A roupa que trazia vestida estava em farrapos, nem remendada nem limpa. Quando desceu do jumento, nos seus gestos não havia qualquer sinal da cortesia que qualquer homem tem, seja instruído ou ignorante. Atravessou a eira coxeando, com uma perna mais curta que a outra, as velhas vestes presas à volta da cintura, e falou num tom rude:
- Venho buscar uma rapariga cega. Onde está ela?
A mãe perguntou, detestando subitamente o homem:
- Que prova tenho eu, de que seja você o homem que a há-de levar?
De novo o homem forçou um sorriso e retorquiu:
- Conheço a mulher gorda que nos veio dizer como poderíamos ficar com a rapariga, sem darmos nada em troca. É para o filho do meu irmão.
Então a mulher respondeu:
- Espere, eu vou chamá-la.
E mandou o filho mais novo que nesse dia andava ali pela casa. A velha alcoviteira veio o mais depressa que as suas velhas pernas o permitiam e olhou fixamente o homem, rindo e gritando:
- Sim, é o tio do rapaz com quem ela vai casar. Como está? Já comeu hoje?
- Comi - respondeu o velho, fazendo um esgar à laia de sorriso, que deixou ver as gengivas completamente desdentadas. - Mas não muito bem, juro-Lhe.
Durante todo este tempo a mãe olhava-o bem de frente, acabando por dizer num tom áspero à alcoviteira:
- Não me agrada o aspecto que isto está a tomar! Esperava bem melhor do que isto para a minha filha!
Logo a outra Lhe respondeu alto e a rir:
- Ó vizinha, não é ele o noivo... E o sobrinho é o rapaz mais carinhoso que jamais se viu.
A prima tinha entretanto chegado. O filho mais velho, a mulher, o primo e vários habitantes do lugar vieram de seguida. Todos se conservavam de pé e olhavam para o velho. Verdade é que ninguém gostava nem do seu aspecto, nem das suas maneiras. Mas a promessa tinha sido feita, e alguns comentaram:
- Não se esqueça de que a rapariga é cega.
A nora rematou ainda:
- O caso já está tratado e foi feita a promessa, mãe. Agora é difícil recusar, isso só traria aborrecimentos a todos, se o fizesse.
O marido manteve-se em siléncio, ao ouvi-la falar assim. A mãe, então, virou-se para o primo, de olhos suplicantes, mas este desviou o olhar, coçando a cabeça, sem saber o que dizer. Era um homem simples e bom. O velho também não Lhe inspirava confiança. Por vezes é difícil dizer se a pobreza e a maldade são a mesma coisa, e era possível que aquela vestimenta esfarrapada Lhe conferisse aquele ar tão desagradável. E era difícil dizer não" quando tudo já estava assente. E por não saber o que dizer, o primo calou-se e, voltando a cabeça para o lado, apanhou uma palhinha que começou a mastigar.
A alcoviteira, vendo a sua honra em jogo, repetia vezes sem conta:
- Ó vizinha, este não é o noivo.
Por fim, insistiu com o homem, pois um recuo naquela hora iria cobri-la de vergonha:
- Ora diga lá! O seu sobrinho não é meigo como um bebê? O velho fez uma careta, aquiesceu com a cabeça e riu, com um riso que fazia sibilar as palavras:
- Sim, sim. Meigo como uma criança!
E, impaciente, acrescentou:
- Tenho de partir e levá-la, se quero chegar hoje à noite a casa.
Não sabendo mais o que fazer, a mãe acabou por mandar a jovem sentar-se no burro. A rapariga vestira as roupas novas. A mãe meteu-Lhe entre as mãos o embrulhinho contendo as moedas de prata, e murmurou-Lhe apressadamente ao ouvido:
- Isto é só para ti, minha querida filha. Não deixes que ninguém to roube.
Quando o velho deu um pontapé nas pernas do burro para o fazer andar, a mãe gritou, tomada por uma súbita angústia:
- Vou visitar-te sem que passem muitos meses e verei como te tratam. Guarda tudo no teu coração e depois mo contarás. Não recearei trazer-te de novo para casa, se algo correr mal.
A rapariga respondeu por entre os lábios secos e trémulos:
- Sim, mãe, isso dá-me grande alegria.
Mas a mãe não podia apartar-se ainda da filha. Procurava desesperadamente encontrar uma razão, uma frase que a conseguisse reter um pouco mais e, ainda agarrada à filha, gritou ao velho:
- Ó homem, a minha filha não pode acender o lume... não pode acender o lume, isso faz-Lhe mal aos olhos... o fumo...
O velho virou-se para a mãe, encarando-a. Quando compreendeu fez um esgar e disse em ar de gozo:
- Ah! Sim. Bem, vamos ver... Eu digo-Lhes...
De novo pontapeou o animal, caminhando a seu lado. A jovem lá partiu, por fim, segurando nas mãos o símbolo da sua cegueira e o pequeno embrulho das roupas preso atrás, sobre o dorso do burro. De pé, a mãe viu-a partir, sofrendo no seu coração uma dor inimaginável. As lágrimas brotaram-Lhe dos olhos. E estava sem saber como poderia ter agido de outro modo. Permaneceu imóvel até que a montanha se ergueu e Lhe escondeu a filha dos olhos. E a mãe nunca mais a viu.
Capítulo 16
Agora a mãe tinha de preencher os dias para aliviar os seus medos e o vazio deixado pela ausência da filha. A casa parecia silenciosa, o mesmo se passando com a rua, onde já não se ouvia ecoar o som lastimoso e claro do pequeno gongo que a filha tocava sempre que saía. A mãe não conseguia tolerar aquilo. Regressou de novo aos campos, contra a vontade do filho. Este, quando a viu pegar na enxada, protestou.
- Mãe, não precisa de trabalhar. Envergonha-me que outros a vejam a labutar nos campos, com a sua idade.
Mas ela respondeu-Lhe com a antiga fúria:
- Não sou assim tão velha... Deixa-me trabalhar, para aliviar a minha dor. Não vês que preciso disso?
Então, o filho disse-Lhe no seu modo teimoso:
Na minha opinião, lamenta-se sem motivos, minha mãe. Não vale a pena queixar-se de desgraças que ainda não se passaram e que podem nunca vir a ocorrer.
E a mãe retorquiu com uma espécie de indiferença que nunca mais a abandonara:
- Filho, tu não compreendes. Tu és ainda muito novo... Não consegues compreender nada de nada.
O jovem olhou-a atrapalhado, sem perceber o que ela queria dizer. A mãe, sem dizer mais, pegou numa enxada e caminhou, penosamente e em silêncio, na direcção dos campos.
Verdade era que já não conseguia trabalhar como dantes, pois, quando o fazia, ficava encharcada em suor e, quando o vento soprava sobre o seu corpo, mesmo que fosse um vento quente, arrefecia-a e ficava doente, com novos acessos de disenteria. Depois de restabelecida, tinha que se resignar a não fazer mais nada e a ficar sentada à soleira da porta, ociosa, sem ter ocupação. Em casa, não precisava de levantar um dedo fosse para o que fosse, visto a nora de tudo se encarregar, com desvelo e cuidado.
A nora tratava bem de tudo, pensava a mãe, contra a sua vontade, excepto numa coisa: não tinha filhos. A mãe olhava, vazia e desassossegada, aquele limiar da porta onde antes os filhos se enrolavam nas suas brincadeiras. Durante todo o dia, ficava sentada a recordar-se dos dias passados e de como outrora também estivera no mesmo local, jovem ainda, cheia de vida e animação, com o marido, os filhos, sendo ela a nora e a outra a sogra. Depois o marido abandonara-a, sem nunca mais dar notícias... Estremeceu. Desviou o pensamento dessa lembrança. Como Lhe parecia vazia a casa agora. O filho mais velho passava todo o dia nos campos, a cultivar a terra, ou a discutir as colheitas com o agente do proprietário, que agora era outro, uma figura sem importância e primo do proprietário... era o que diziam, pois a mãe nunca o vira. E a filha cega tinha partido, e o filho mais novo longe, sempre na cidade, raramente aparecendo em casa.
Bem, mas havia o filho mais novo. Era nele que pensava cada vez mais, pois de todos os filhos ele continuava a ser o seu preferido. Naquela vida vazia que levava, as suas raras aparições traziam-Lhe alegria. Ao vê-lo, erguia-se, abandonando o torpor, e sorria ao ver o rosto do filho lindo. Era o mais bonito de todos, parecendo-se com o pai, tal como um galito que herdou o garbo do pai galo. Actualmente notava-se que já se sentia à-vontade, não receando, como outrora, o irmão mais velho, porque arranjara trabalho na cidade, donde Lhe vinha um salário.
Certo era que nunca explicara com clareza o que era esse trabalho. Umas vezes surgia sem dinheiro, outras parecia rico, a julgar pelas belas roupas que trazia vestidas, mas sem alguma vez dizer ao irmão mais velho quanto ganhava. Às vezes via-se que se sentia liberto, como se tivesse sido tomado pela excitação, indo então meter na mão da mãe, em segredo, uma moedita de prata, dizendo-Lhe: uarde, mãe, compre o que Lhe agradar.
Ela aceitava e louvava este filho. Como o amava. O mais velho nunca pensava em dar-Lhe algum dinheiro, mesmo que fosse pouco. Desde que se tornara o dono da casa, guardava para si todo o dinheiro. Há que dizer que a mãe andava sempre muito bem alimentada, comia gulosamente o que podia, pois tinha o gosto de comer. Sentia-se melhor agora do que alguma vez antes, e tudo graças à nora que a vestia e Lhe fazia tudo o que necessitava. Até já Lhe preparara a mortalha, embora a mãe pensasse faltar ainda muito tempo para a sua morte. Davam-Lhe tudo o que pedia, quer se tratasse de um cachimbo com tabaco bom e desfiado, ou de um golo de vinho branco quente, para que se sentisse reconfortada. Mas nunca Lhes ocorria a ideia de Lhe darem uma moedita de prata e de dizerem: Compre o que Lhe agradar. Ela sabia que, se a pedisse, o filho e a nora se haviam de entreolhar, e um deles questionaria: Mas o que pode querer comprar mais? Não Lhe damos tudo o que necessita? Assim, quando o mais novo Lhe fazia aquele agrado, mostrava-Lhe uma maior ternura do que aos outros dois, que Lhe davam tudo o mais. Metia-a no peito e, pela calada da noite, levantava-se e ia escondê-la num buraco no chão.
Mas eram raras as visitas do filho mais novo. E, assim, as duas mulheres, a mãe e a mulher do filho, passavam o dia sentadas na eira deserta. Como a casa parecia vazia à mãe. Suspirava, fumava o cachimbo, não Lhe restando senão recordar-se da vida passada ou, pelo menos, quase toda a sua vida, porque, por sua vontade, preferia esquecer a razão pela qual a filha ficara cega. Pois nunca poderia ter a certeza se ambos - a cegueira e o seu pecado - andavam juntos por vontade dos deuses. Por vezes, procurava num templo alguma consolação, não sabendo se seria tarde demais para conseguir o perdão para o velho pecado e, não podendo fazer nada, suspirava, falando por vezes com tristeza dá filhita cega.
Quando tal acontecia, a nora sempre Lhe respondia com rudeza:
- Passa bem, com certeza... E que sorte para todos nós, ter encontrado quem a quisesse para o filho.
- Olha que ela é uma rapariga bem inteligente - dizia a mãe com veemência. - Nunca acreditaste nas suas capacidades, sei-o bem. Antes da tua vinda muito ela ajudava, coisa que a impediste de fazer, não a deixando continuar a trabalhar no que podia. Ficaste sempre sem saber como ela podia ser útil.
- É possível que assim fosse - respondia a nora, olhando de mais perto o tecido que cosia, observando se estava direito. - Mas estou acostumáda a fazer o meu trabalho e a acabar o que começo. E uma rapariga cega atrapalha muito.
De novo a mãe suspirava, desviando o olhar para a soleira da porta, vazia.
- Queria que tivesses um bebê, filha. Um lar deve ter sempre duas ou três crianças. Não estou acostumada a ver a casa vazia. ostaria bem que o meu filho mais novo se casasse, se tu não fores capaz de me dar um neto. Só que essa não é a sua vontade, e pergunto-me porquê.
Este era um ponto doloroso para a nora. A rapariga lamentava-se porque, após cinco anos de casada, ainda não tinha filhos e não via meios de engravidar .Já fora rezar, em segredo, a um templo e fizera tudo o possível para conceber, mas o seu corpo teimava em manter-se assim, estéril. Mas sendo orgulhosa como era, e sem querer deixar transparecer a sua mágoa, retorquiu calmamente:
- A seu tempo hei-de ter filhos, sem dúvida.
- Sim, mas já é mais do que tempo - respondia a mãe, despeitada.
- Nunca ouvi falar de mulher, aqui no lugar, que tendo marido não tivesse filhos. Os nossos homens são pais mal casam. E as mulheres são sempre férteis. Boa semente, boa terra. Deves ter uma doença oculta, que te deixa estéril e te põe contra a natureza. Deixei-te as roupas bem largas quando as fiz, mas para quê?
A mãe queixava-se à prima e, curvando-se, segredava-Lhe ao ouvido:
- Sei muito bem qual é o mal... A minha nora não tem qualquer calor no corpo. É uma coisa pálida e amarela. Um dia é sempre igual ao outro. Nunca Lhe vem um calor do seu íntimo. E toda a sorte que tu Lhe deste, quando Lhe fizeste as vestes de noiva, não foi suficiente contra a frieza dela.
A prima aquiescia com a cabeça e respondia rindo:
- É verdade que as mulheres pálidas e sem sangue, como ela, tém dificuldade em conceber.
De seguida, os seus olhitos sorridentes tomaram uma expressão significativa e, tornando a rir, disse:
- Mas nem todas as mulheres tém os mesmos calores que tu tinhas, no teu tempo. E sabes bem que isso nem sempre é coisa boa numa mulher!
Então, a mãe respondeu apressadamente:
- Sim, sei muito bem...
E, por momentos, permaneceu em siléncio, respondendo depois, contrafeita:
- É bem verdade que a minha nora é cuidadosa e asseada. Talvez até demais, porque de tantas vezes esfregar a panela, a bilha do azeite e tudo o mais, garanto-te, que acaba por estragar comida com tantas lavagens. Ela própria se lava amiúde. Talvez seja isso que a deixa estéril. Demasiadas lavagens nem sempre fazem bem.
A mãe nunca mais falou dos temperamentos ardentes, pois temia que a mulher do primo voltasse a falar na velha doença já passada, embora fosse uma excelente alma, com quem sempre se dera bem e, se alguma vez contara alguma coisa ao marido, a mãe nunca disso se apercebera. Se não fossem estas duas mágoas que trazia consigo - a da filha cega e a de o filho mais velho não ter filhos - já poderia ter esquecido, pois já iam longe os dias dos seus desejos carnais. Sim, tudo faria agora parte do passado, se não fosse o medo de aquilo ter sido pecado e os dois desgostos o castigo.
E assim era a sua vida: a filha cega, agora longe, e a casa vazia e sem crianças. Os únicos seres vivos que por ali andavam eram os animais, mas nem mesmo a esses se atrevia a dar de comer.
Pelo menos uma coisa boa havia, pensava a mãe. Agora, as contendas entre os dois filhos tinham diminuído. O mais velho sentia-se satisfeito por ser o senhor da casa; e o mais novo arranjara modo de vida algures. Quando vinha, logo pronto a abalar, o irmão mais velho apenas comentava com ar de desdém:
- Pergunto-me onde arranja o meu irmão a boa roupa que traz e qual será o seu trabalho. Eu não consigo andar vestido como ele e, não obstante, trabalho arduamente. Seja como for, parece que tem dinheiro. Espero bem que não faça parte de alguma quadrilha de gatunos da cidade, ou algo parecido, porque nos meteria em sarilhos se se deixasse apanhar.
Destemida, a mãe veio em defesa do filho, como sempre fazia:
- O teu irmão é um bom rapaz, meu filho. Devias antes felicitá-lo e alegrar-te por ter partido e ter encontrado um modo de vida, em vez de ficar aqui a partilhar as terras contigo!
O outro retorquiu zombeteiramente:
- Pois sim, desde que não tenha de trabalhar nos campos, qualquer coisa Lhe serve.
Mas a mulher do filho nada dizia. Estava contente por agora ter a casa inteira só para si e era-Lhe indiferente a ocupação do cunhado. Também não se lastimava por ele comprar as roupas algures; assim sendo, não tinha ela de as fazer.
O tempo ia passando e a Primavera chegou e foi-se de novo, e o Verão chegou mais cedo, e a mãe sem conseguir nunca esquecer a filha cega. Um dia pôs-se a contar pelos dedos os dias passados desde que a montanha Lhe roubara a sua menina da vista. Contou doze vezes todos os dedos das mãos, não, mais... Perdeu-Lhes a conta... E com tristeza pensou: Tenho de ir vê-la. Deixei que esta enorme preguiça caísse sobre mim, mas já há muito que devia ter partido. Se ela fosse uma rapariga normal como as outras, certamente que já teria vindo visitar-me, como é costume as esposas visitarem os velhos lares. E eu ter-Lhe-ia perguntado como estava, e sentia-Lhe as mãos, os braços, as faces, e via-Lhe a cor do rosto.
Sentada, a mãe olhava aqueles montes em volta e apercebeu-se de que o Verão chegara. Cada encosta estava coberta de verde, as searas já iam altas nos campos e a mãe forçava o corpo cansado, incapaz de vencer a preguiça que a invadia todos os dias. E, pensando para si, decidiu-se: Tenho de ir ver a minha filha. Partirei imediatamente, visto já não ser precisa nos campos e estar só para aqui sentada sem nada fazer. Vou antes dos grandes calores, não vá eu ser outra vez apanhada pela disenteria. Sim... Amanhã mesmo ponho-me ao caminho, pois neste céu límpido não se vislumbra a mais pequena nuvem... Este céu azul. Pôs-se a olhar para o alto, observando o belo céu azul, e veio-Lhe à memória, como de costume, uma passagem da sua vida: a recordação do fato azul que o marido comprara certo dia e com o qual abalara. Suspirou e, assolada pela angústia antiga, pensou: Foi num dia igual a este que ele o comprou e que discutimos... Num dia glorioso como o de hoje. Recordo-me de, nessa manhã, o pano ter a cor do céu. Suspirou outra vez e ergueu-se para afastar aquela lembrança. Quando o filho mais velho chegou, disse-Lhe, num estado de agitação:
- Estou a pensar ir ver a tua irmã amanhã e saber o que se passa na casa em que ela vive desde que casou, visto a minha menina não poder vir ter comigo.
Com ar ansioso, o filho respondeu:
- Mãe, não me é possível acompanhá-la. Tenho trabalho a fazer amanhã. Aguarde até ao fim das colheitas, depois de o grão ser debulhado e medido. Nessa altura, terei algum tempo lívre e poderei ir consigo.
Subitamente, a mãe sentiu que não podia esperar. Quando queria agir de acordo com uma decisão que tomara, tinha energia de sobra. Estava enfadada daquela sua preguiça e daquela vida de ócio. Obsti nada, afirmou:
- Não! Vou amanhã!
O filho, contrariado, como era seu costume sempre que um facto imprevisto surgia sem Lhe dar tempo para reflectir, voltou a insistir:
- Mãe, mas como pode partir?
Ela retorquiu:
- No burro do nosso primo, se ele mo quiser emprestar. E tu pede a um dos pequenos que vá chamar o teu irmão, para ir comigo e levar o animal. Indo assim os dois, nada de mal nos acontecerá. Ultimamente não tenho ouvido falar de salteadores por estas paragens, a não ser daqueles novos da cidade, a quem chamam comunistas, mas dizem que esses não fazem mal aos pobres.
Por fim, o filho consentiu, embora convencê-lo não tivesse sido uma tarefa fácil, pois só acabou por anuir após a mulher afirmar com calma:
- Na verdade, não vejo perigo algum, desde que o teu irmão mais novo a acompanhe.
Deixaram, então, a mãe agir à sua vontade e mandaram um dos filhos do primo à cidade procurar o irmão mais novo. O rapazito regressou de olhos esbugalhados e disse à mãe:
- O meu primo, e seu filho mais novo, diz que vem aí, minha tia. Quedou-se um pouco a meditar, torceu o botão do casaco e de novo acrescentou:
- Olhe que ele mora num sítio muito estranho, escondido, e difícil de encontrar, por cima de um armazém, numa sala enorme cheia de camas, talvez umas vinte camas, cobertas de livros e de papéis. E não trabalha no armazém, que eu perguntei-Lhe. Não sabia que o meu primo sabia ler, tia. Mas se lê todos aqueles livros, deve ser muito instruído.
- Ele não sabe ler... - respondeu a mãe muito admirada. - Nunca me disse que ganhava a vida com livros. Isso parece-me muito estranho. Ora essa! Vou ter de Lhe pedir que me explique.
No dia seguinte, já depois de se ter acomodado no burro, quando ia com o filho ao longo do vale, a mãe aproveitou a ocasião para Lhe perguntar:
- Que livros e papéis são esses que o pequeno da prima diz ter visto na sala em que todos vivem? Nunca me disseste que aprendeste a ler, nem que ganhavas a vida com livros, meu filho.
O rapaz interrompeu a cantiga que ia entoando à medida que caminhava. Possuía uma bela voz e gostava de fazer uso dela. E respondeu:
- Sim, aprendi alguma coisa.
E como a mãe insistia, acabou por dizer, evasivo:
- Mãe, não me pergunte mais nada agora. Um dia há-de saber tudo, quando a hora chegar. Será um grande dia, mãe. Há pouco cantava a canção que juntos entoamos no trabalho. Um dia, todos seremos livres. Não haverá nem ricos nem pobres, todos teremos o mesmo!
Estas eram as palavras mais estranhas que a mãe jamais ouvira pronunciar, pois bem sabia que é o céu que dita quem será rico e quem será pobre, e que aos homens só cabe o papel de aceitar o seu destino e suportá-lo. Receosa, perguntou ao filho:
- Só espero que não andes em más companhias, filho, com ladrões ou gente desse gênero! A falar assim pareces um salteador, meu filho! O único meio de um pobre enriquecer é roubando, e ser rico dessa forma é perigoso; arriscamos a vida, se formos apanhados!
O rapaz insurgiu-se ao ouvir estas palavras e retorquiu:
- A mãe não consegue compreender nada disto! Por enquanto, jurei que guardava segredo. Depois se verá. Não a esquecerei. Mas só a si! Não dividirei coisa alguma com aqueles que nada partilharam comigo.
Pôs tal ênfase nestas últimas palavras que a mãe compreendeu o ressentimento que o filho mais novo nutria contra o irmão e, por isso, evitou responder de seguida, receando aumentar ainda mais a sua cólera Mas não conseguia deixar de pensar naquilo. Sentada no animal, agarrada ao couro peludo do burro, como era costume, pensava no filho, observando-o às escondidas. Este caminhava à sua frente, segurando a corda, e cantando uma cantiga cheia de ardor, que Lhe era totalmente desconhecida. Pensava que devia esforçar-se para conhecer mais profundamente a vida que o filho mais novo levava, buscando um meio de o ligar mais à casa e à família. Tinha de casá-lo e, assim, conseguiria mantê-lo em casa, graças à mulher. Procuraria uma jovem bonita, doce, que ele pudesse amar. A mulher do filho mais velho era boa para o trabalho, mas a segunda nora seria diferente. Ao pensar assim, sentiu-se mais consolada e a ideia pareceu-Lhe tão boa que não resistiu a dizer:
- Filho, já tens mais de vinte anos, perto dos vinte e um, e penso casar-te em breve. Que me dizes a esta bela ideia?
Mas quem é capaz de sondar o coração de um jovem? Em vez de sorrir em siléncio, meio feliz e meio envergonhado, o rapaz estacou, voltou-se e afirmou num tom renitente:
- Já esperava que me dissesses algo semelhante. Estou em crer que as mães só pensam nisso! Os meus camaradas afirmam que os pais Lhes repetem amiúde:
Casem-se... Casem-se... Casem-se! Pois bem, mãe, eu recuso-me! E se o fizer contra a minha vontade, nunca mais verá o meu rosto! Nunca mais voltarei a casa!
E voltou-se de novo para a frente, retomou a marcha e estugou o passo. A mãe não se atreveu a dizer mais, surpresa e assustada que estava com aquela fúria intempestiva e aquele siléncio, pois o filho deixara de cantarolar.
Mas o que estava para vir fê-la esquecer tudo o resto. O caminho que seguiam desde o alvorecer, começou a estreitar pelo meio-dia. Os montes, que até então se mostravam prazenteiros, de cumes recortados, numa linha suave, sobre o azul e os flancos verdes da relva dos campos e dos bambus, tornavam-se agora cada vez mais altos, erguidos em linhas cada vez mais aguçadas. Ao meio-dia, quando o sol já caía a pique sobre a paisagem, os montes suaves tinham-se desvanecido completamente. Em seu lugar, uma cadeia de montanhas rochosas e vazias erguia contra o firmamento os cumes nus e agrestes, que surgiam ainda mais temíveis por entre a nitidez e o brilho do céu, de cor azul metálica, acima dos montes cor de areia. O caminho serpenteava por entre as paredes rochosas, desmaiadas. A pedra não era nem sombria nem negra, mas possuía uma luz estranha; nada crescia naquele sítio, pois não se via água em vale algum. O caminho tornava-se cada vez mais abrupto. Por volta da uma oú duas da tarde, mãe e filho foram dar a um vale circular e profundo, cavado entre os cumes das montanhas. Devia haver por ali uma fonte, porque entre as paredes da rocha se encontrava uma aldeia em forma de quadrado, rodeada por alguns campos verdes. Mas quando ambos pararam à entrada, para saberem onde ficava a casa que procuravam, alguém Lhes apontou um cume ainda longe, ainda mais alto, afirmando:
- Acolá, onde o verde termina, na borda de baixo. Vão encontrar duas casas. É o último bordo verde, acima deste não há vegetação, apenas rochas e céu.
Durante todo este tempo, a mãe olhava perplexa as montanhas de formas estranhas e selvagens, sem cor e áridas. Tinha passado a sua vida entre vales e agora, à medida que subia por entre os caminhos serpenteantes, e que ainda trepavam em ziguezague a partir daquela aldeola, olhava à sua volta, petrificada, ao ver quão pobre era o solo e como faltavam culturas, agora que a colheita estava tão próxima, e disse em voz alta ao filho:
- Não me agrada nada o aspecto deste sítio, meu filho! Tenho medo que a vida aqui seja demasiado dura para a tua irmã. Se for demasiado para ela, voltará connosco para casa. Irá sentada no burro e eu posso bem ir a pé. Podem dizer o que quiserem. Não pagaram nada por ela, e só pedirei que volte comigo.
O rapaz não respondeu. Sentia-se cansado e com fome. Apenas tinham comido algo frio que traziam e ele estava ansioso por chegar a casa da irmã, onde tencionavam pernoitar. Começou a puxar o burro pela brida com tal força, que a mãe já mal conseguia aguentar. E estava prestes a ralhar ao filho, sem se importar com a sua ira, quando subitamente viram surgir a tal casa. Sim, lá estavam as duas casas na plataforma da rocha, como se fizessem parte integrante desta. A mãe reconheceu a casa da filha, ao ver o velhote mal- encarado à porta de um dos dois casinhotos. Quando a vislumbrou, o velho pareceu não acreditar no que os seus próprios olhos viam. Apressou-se a entrar em casa e outras pessoas apareceram. Um homem magro e moreno, com ar selvagem, duas mulheres e um rapaz desajeitado. Mas a sua menina cega não aparecia.
A mãe desceu do jumento e acercou-se. Todos a observavam em siléncio. Ela devolveu-Lhes o olhar e teve medo. Jamais vira seres semelhantes àqueles. Mulheres com os cabelos desgrenhados, cheios de nós, rostos gastos e tisnados pelo sol, os fatos sem nunca terem sido lavados. Todos tinham a mesma aparência. untaram-se e do segundo casebre saíram duas crianças, de ar doentio, amareladas, com os lábios secos e gretados por qualquer febre, e o corpo coberto de imundície. Olhavam em silêncio, sem dar uma palavra de boas-vindas, um olhar selvagem e irracional como o dos animais. A mãe sentiu bruscamente o coração a quebrar-se de horror, e correndo para a frente gritou:
- Onde está a minha menina? Onde esconderam a minha menina? Corria entre eles, enquanto o filho, hesitante, permanecia junto do animal. Então, uma mulher começou a falar com voz agreste. Era difí cil entender o rude falar do Norte, com os sons presos por entre os espaços dos dentes partidos, sem que se percebesse com clareza o que dizia:
- Chegou na altura certa. Ela morreu hoje.
- Morreu! - murmurou a mãe, sem mais nada acrescentar. O coração deixara de bater, não conseguia respirar, morreu-Lhe a voz. Caminhou na direcção do casinhoto mais próximo. Ali, deitada sobre uma enxerga de bambu, no chão, jazia a filha cega. Sim, repousava calma, morta, vestida com a roupa que levara ao abandonar o seu lar. Só que, agora, essa roupa estava suja e gasta. Não se viam quaisquer vestígios de alguma coisa nova. Para além de um monte de esteiras e de um ou dois bancos toscos, a sala estava vazia.
A mãe correu, ajoelhou-se ao pé da filha, fixou o olhar no rosto imóvel, olhos enterrados, a boquinha sofredora, toda aquela cara que Lhe era tão querida.
De repente a mãe desatou num pranto, lançou-se sobre a filha, pegou-Lhe nas mãos, ergueu-Lhe as mangas esfarrapadas, examinando-Lhe os braços frágeis. De seguida arregaçou-Lhe as calças, procurando vestígios de nódoas negras ou de outro tipo de violéncia.
Mas não havia nada. Não, a pele da jovem permanecia intacta, os ossos delicados não estavam partidos. Estava tão pálida e tão magra que merecia dó, mas sempre fora frágil e a morte é pálida. Depois a mãe inclinou-se sobre os lábios da jovem, com medo de encontrar o cheiro de algum veneno. Mas nada encontrou, excepto o hálito fraco e triste da morte.
Apesar de tudo, a mãe não conseguiu convencer-se de que se tratava de uma morte natural. Voltou-se para aqueles que da porta a observavam em silêncio, viu-Lhes as caras rudes, selvagens, sem que nenhuma Lhe fosse familiar e, por entre uma forte crise de lágrimas, gritou-Lhes:
- Vocês mataram-na... Sei que sim... Caso contrário, expliquem-me como é que a minha filha morreu tão depressa, estando de tão boa saúde quando partiu!
Então, o homem velhaco que a mãe logo de princípio detestara, disse, resmungando:
- Cuidado como fala, mulher! É grave dizer que a matámos e... Mas a mulher de ar taciturno e cabelos despenteados, interrompeu-os:
- De que morreu? De uma constipação. Era tão frágil! Ora aí tem!
De novo cuspiu para o chão e gritou:
- Uma rapariga inútil como era, sem saber coisa alguma... sem mesmo ser capaz de aprender a ir buscar água à fonte, sem tropeçar, cair ou perder-se!
A mãe ergueu os olhos e viu um caminho estreito e rochoso, que descia da montanha em direcção a um pequeno lago e, gemendo, gritou:
- Aquele caminho?
Mas ninguém Lhe respondeu. E em crescente agonia, chorou e disse:
- De certeza que Lhe batiam todos os dias... Espancavam-na todos os dias!
Mas a mulher retorquiu rapidamente:
- Procure e veja lá se Lhe encontra alguma nódoa negra. O meu filho apenas Lhe bateu uma vez, por se chegar pouco a ele. Mas mais nada!
A mãe ergueu a cabeça, perguntando com voz fraca:
- Onde está o seu filho?
Empurraram o filho para a frente, que para ali ficou, a balançar-se, de olhar fixo, e a mãe apercebeu-se de que o rapaz pouco mais era que um idiota.
Inclinou-se, apoiou a cabeça no corpo da filha morta, chorando enlouquecida, chorando angustiada, pensando no que a rapariga cega devia ter sofrido às mãos de tal gente. Enquanto chorava, a ira crescia nos que a observavam. Por fim, sentiu que alguém a tocava e, levantando o olhar, reparou no filho que se inclinava na sua direcção e, murmurando com insisténcia, dizia-Lhe:
- Mãe, estamos em perigo, aqui... Tenho medo... Não podemos ficar mais tempo. Mãe, ela morreu, não podemos fazer nada agora. Esta gente tem um ar tão demoníaco, que pergunto a mim próprio o que tencionam fazer-nos. Venha, voltemos depressa à aldeia, onde poderemos comprar de comer, e ainda hoje conseguiremos chegar a nossa casa!
Contrafeita, a mãe levantou-se e viu as pessoas, apertadas umas contra as outras, e entre elas algumas que a fixavam e Lhe metiam medo, tal como ao filho. Sim, tinha de pensar no filho. A ela podiam matá-la, mas tinha de pensar no filho.
Voltou-se para mais uma vez olhar a filha morta. Arranjou-Lhe a roupa,
estendeu-Lhe as mãos ao longo do corpo e depois saiu, para a tarde que ia caindo.
Quando a viram mais calma e a preparar-se para montar o burro, o homem, que até então se tinha mantido em siléncio, e era o pai do filho idiota, disse:
- Se duvida que sejamos gente de bem, veja o caixão que comprámos para a sua filha. Custou-nos dez moedas de prata, que era tudo o que possuíamos. Acha que o teríamos comprado se não a tivéssemos em grande estima?
De facto, a mãe viu um caixão perto da porta, mas também sabia que não valia o valor dito pelo homem. Era um destes caixões toscos de madeira fina como papel, sem pintura, que qualquer pobre pode comprar. Abriu a boca para responder, indignada, com estas palavras: Esse caixão? O dinheiro que dei à minha filha era mais do que suficiente para o comprar! Mas absteve-se de as dizer. Uma sensação de perigo iminente invadiu-a, tal como uma nuvem pesada ensombra a luz do dia.
Sim, aqueles dois homens, aquelas mulheres selvagens... E outra vez o filho a puxava pela manga, apressando-a. Com firmeza, exclamou.
- Vou calar-me agora. A minha filha morreu, e no mundo não há iras nem palavras que Lhe possam restituir a vida.
Calou-se e olhando as criaturas uma após outra, acrescentou ainda:
- O céu e os deuses observam-vos. Que sejam eles a julgar-vos pelo que possam ter feito!
Encarou-os um após outro, mas ninguém disse coisa alguma. Em seguida afastou-se, montou o burro e o filho apressou-se a conduzir o animal ao longo do caminho rochoso. Uma vez por outra o rapaz virava-se, amedrontado, receoso que os perseguissem, e dizia:
- Só descansarei quando nos encontrarmos de novo perto da aldeia e onde haja muita gente. Tenho tanto medo.
Mas a mãe nada respondeu. Que necessidade havia de responder? A sua menina estava morta.
Capítulo 17
A mãe estava perdida de cansaço quando desceu do hesitante burro cinzento à porta de casa, nessa noite. Tinha chorado todo o caminho, umas vezes alto, outras vezes baixinho, e o filho tinha-se abeirado dela vezes sem conta, por causa do choro. Por fim, gritara-Lhe:
- Acabe com a choraminguice, mãe, que eu já não posso mais! Mas quando ela se acalmou um pouco, por ele, faltou-lhe outra vez o ânimo e, por fim, o filho rangeu os dentes e murmurou, irado:
- Se tivesse já chegado a hora, se nós não fôssemos uns pobres miseráveis, se dessem aos pobres a sua parte e eles pudessem defender-se, nós podíamos pedir justiça a um tribunal pela vida da minha irmã! Mas de que serve, se somos tão pobres e não há justiça na terra?
E a mãe, entre soluços, disse-Lhe:
- É verdade que não se ganha nada em ir ao tribunal, pois nós não temos dinheiro para pagar àjustiça.
E depois chorou outra vez e exclamou:
- Mas todo o dinheiro e justiça da terra não me devolvem a minha filha cega.
Por fim, o rapaz chorou também, não tanto por causa da irmã, nem mesmo por causa da mãe, mas porque tinha os pés tão doridos e estava tão cansado e o seu mundo era tão injusto.
Chegaram finalmente à porta de casa e, quando desceu do burro, a mãe chamou o filho mais velho com voz lancinante e tão aguda que ele veio a correr.
- Filho, a tua irmã morreu!
Enquanto ele a olhava sem perceber o que se passava, ela desfiou a história. Ao som da sua voz, vieram rapidamente outras pessoas para ouvir o relato até que, no escuro da noite, quase toda a aldeia estava a ouvi-la. O filho mais novo estava ali de pé, meio desmaiado, encostado ao burro e, enquanto a mãe falava, escorregou e caiu no chão e ali ficou, desorientado com o que tinha acontecido nesse dia, ali ficou silencioso, enquanto a mãe chorava e gritava, olhando com os seus olhos chorosos para um e outro rosto.
- Ali ficou a minha menina, morta, e eu odeio-me por a ter deixado ir; e não teria deixado se não fosse o coração frio da mulher do meu filho, que regateava à pequena um bocadinho de carne e uma florzinha no sapato. Tinha medo do que aconteceria à pequena se eu morresse, e ela também... Pobre criança, que nunca me teria deixado de livre vontade! Que se importava ela com o casamento, um coração de criança, presa à sua casa e a mim? Oh, filho, foi a tua mulher que me fez isto... maldito o dia em que ela veio; não admira que não tenha filhos, com um coração tão duro!
E continuava a chorar. A princípio, todos escutavam em silêncio ou fazendo alguma exclamação quando iam reunindo a história do que ela dizia por entre o choro. Então, tentavam confortá-la, mas ela não se deixava confortar. O filho mais velho não dizia palavra. Estava de pé, com a cabeça inclinada, até que ela amaldiçoou a sua mulher e falou da sua incapacidade para gerar. Aí, ele disse em voz calma e moderada:
- Não, mãe, ela não a mandou levar a minha irmã para esse lugar. A mãe é que decidiu mandá-la tão depressa, sem dizer uma palavra a ninguém. Nós pensávamos que não tinha mandado e íamos ver se tínhamos algumas informações para Lhe dar.
E voltou-se para o primo do seu pai, perguntando:
- Não pensa assim, primo? Lembra-se do que eu disse, de termos ficado surpreendidos por a minha mãe ter andado tão depressa?
O primo desviou os olhos e murmurou, com relutãncia, mascando uma palha:
- Oh, sim, um pouco depressa.
E a mulher dele, que estava com um neto nos braços, disse pesarosamente à mãe:
- Sim, é verdade irmã, tu és sempre uma mulher muito apressada e nunca pedes opinião sobre aquilo que pensas fazer. Não, nenhum de nós sabe antes o que tu pensas fazer, até estar feito, e tu só queres que nós te digamos que fizeste bem. É a tua natureza, toda a vida foste assim.
Mas a mãe, naquela noite, não podia suportar censuras e gritou encolerizada para a mulher do primo:
- Tu... tu estás habituada ao teu homem vagaroso, e se nós tivéssemos que ser julgados por outros como ele...
Por um momento, parecia que estas duas mulheres, que toda a vida tinham sido amigas, iriam cair em recriminações. Mas o primo, que era um homem de boa índole e pacífico, quando viu o rosto da mulher a põr-se vermelho e reparou que ela estava a apertar os punhos para dar uma resposta áspera, disse:
- Deixa, mãe dos meus filhos! Ela esta noite está desgostosa e fora de si.
E depois de ter mastigado um pouco a sua palhinha, acrescentou calmamente:
- É verdade que eu sou um homem muito lento, e já ouvi isso muitas vezes desde que nasci, e tu também já mo disseste, mãe dos meus filhos. Sim, eu sou lento.
E olhou em volta, para os seus vizinhos, um dos quais disse, seriamente:
- Sim, homem, tu és muito vagaroso, sem dúvida, e lento de raciocínio e lento a falar!
- Sim - aceitou o primo com um pequeno suspiro; e, cuspindo a palhinha que estava a mastigar, tirou outra fresca do monte de palha de arroz que estava ao pé.
Assim se evitou a discussão. Mas a mãe não estava tranquila, e subitaménte o seu olhar caiu sobre a velha alcoviteira, que se encontrava no meio daquela gente, com a boca aberta e de olhos esbugaLhados, a ver e ouvir tudo o que se passava. Vendo-a, a cólera e a dor
da mãe renovaram-se e tudo veio ao de cima, misturado com a sua agonia. Correu para a mulher e caiu sobre ela, agarrando-Lhe na face larga e nos cabelos, a gritar:
- Sim, e você sabia quem era aquela gente e sabia que o filho era anormal e nunca disse nada, só disse que eles eram pessoas do campo como nós. E nunca disse que a minha filha tinha que ir por aquele carreiro, a subir e descer a rocha, para ir buscar água para eles todos; é tudo culpa sua e eu juro que não descansarei enquanto não a fizer pagar isto, seja como for.
Zurzia a alcoviteira que não era adversária à altura da enlouquecid mãe, mesmo nos melhores tempos. Não se sabe como acabaria aquilo, se o filho mais velho não corresse e se o filho mais novo não se tivesse levantado também e, com o irmão, segurado a mãe, de modo que a velha alcoviteira pudesse apressar-se a fugir. Em todo o caso, quando achou que já se tinha afastado o suficiente, e havia várias pessoas entre elas, quis parar para salvar a sua honra e gritou:
- Sim. Mas a sua filha era cega, e que melhor marido podia ela arranjar? Eu fiz-Lhe um grande favor, mulher, e aqui estão os agradecimentos que recebo.
E batia no peito e apontava para os arranhões na cara, começando a chorar e excitando-se progressivamente para outra discussão.
Mas as pessoas afastaram-na e os filhos lá conseguiram levar a mãe para dentro de casa, ainda a chorar. Por fim, já estava esgotada e deixou-se levar para o quarto. Quando já lá estava e os filhos a tinham conseguido sentar, a mulher do filho foi buscar uma tigela de água muito quente, que tinha estado a preparar enquanto a discussão se dava. Mergulhou uma toalha na água e lavou a face e as mãos da mãe, serviu-Lhe chá quente e deu-Lhe comida.
Depois, pouco a pouco, a mãe foi-se acalmando, ficando mais silenciosa e a suspirar. Bebeu um pouco de chá, comeu e, no fim, olhou em volta e disse:
- Onde está o meu filho mais novo?
O jovem avançou então e ela viu como ele estava mortalmente pálido e cansado e o seu aspecto alegre tinha desaparecido. Fê-lo sentar-se ao seu lado, à mesa, segurou-Lhe na mão e insistiu com ele para que comesse e descansasse, e disse-Lhe:
- Dorme aqui ao meu lado esta noite, meu filho, na enxerga onde costumava dormir a tua irmã. Não posso vê-la vazia esta noite, filho.
O rapaz assim fez, adormecendo pesadamente logo que se deitou. Mas mesmo quando a casa ficou silenciosa, a mãe não conseguiu dormir por muito tempo. Estava esgotada no seu íntimo, o corpo consumido pela longa viagem e por toda a fadiga do seu coração. A única coisa que a confortava era ouvir a respiração profunda do rapaz, que dormia ali ao lado. E pensava nele com renovado amor: Tenho que fazer mais por ele. É o último que tenho. Tenho que casá-lo e havemos de fazer um quarto novo na casa. Ele há-de ter um quarto para ele e para a mulher, e depois hão-de vir os filhos... Sim, tenho que Lhe arranjar uma mulher boa e forte, de modo a que tenhamos crianças em casa.
E este pensamento de crianças pequenas, que ainda haviam de vir, foi a única coisa que Lhe deu consolo para o futuro.
Mas mesmo este consolo não pôde durar muito, porque a sua antiga disenteria voltou e abalou-a, deixando-a fraca demais para se lastimar. Ficou de cama durante muitos dias, purificando o corpo e o coração, e todo o seu desgosto e consolo ficaram em suspenso, porque ela não tinha forças para lamentações nem para esperança. Vinham muitas pessoas visitá-la para a animar, os vizinhos e a mulher do primo, e diziam-Lhe: Amiga, afinal de contas a criança era cega. E tentavam consolá-la: Vizinha, o que o céu nos faz, não podemos nós mudá-lo, é inútil lamentar seja o que for nesta vida. E ainda: Lembre-se dos bons filhos que tem. "
E um dia, quando a mulher do primo disse esta frase, ela respondeu debilmente:
- Sim, mas a mulher do meu mais velho não engravida e o mais novo não quer casar.
E a mulher do primo replicou afectuosamente:
- Dá à mulher do teu filho mais velho um ano ou dois, prima, porque às vezes, depois de ter sido sete anos estéril, uma mulher encontra a sua verdadeira natureza e tem umas poucas crianças sãs. Eu já vi isso. E quando dizes que o rapaz não se casa, então é porque ele está apaixonado por alguém; temos que descobrir quem ela é e se está bem para casar com ele ou não. Sim, com certeza tem uma namorada, porque todos os jovens tém, hoje em dia, mas eu juro que nunca vi um homem que não se casasse!
Mas a mãe segredou-Lhe:
- Baixá a cabeça, irmã, e encosta o teu ouvido aos meus lábios. E quando a prima assim fez, a mãe murmurou:
- Desde que o desgosto me persegue e tudo me corre mal, às vezes receio que seja aquele meu velho pecado que os deuses conhecem... talvez o céu não me dê netos!
Ao pensar nisto, fechou os olhos e duas grandes lágrimas escorreram por baixo das pálpebras cerradas. Pensou em todos os seus pecados, não apenas o que a prima conhecia, mas nas muitas vezes que tinha dito que era viúva, nas cartas que tinha escrito e em todas as mentiras. Não que ela considerasse as mentiras um verdadeiro pecado, pois toda a gente tem que mentir um pouco, de vez em quando, para proteger o bom nome. Mas aqui o pecado era que ela tinha mentido e dito que o homem tinha morrido. Quando pensava nisso agora, era quase como se o tivesse morto com as suas próprias mãos. E tinha usado esta mentira da morte na esperança de encontrar outro homem. E todos estes pecados, tão antigos que ela podia esquecê-los quando estava bem, surgiam agora de novo, quando estava fraca e triste, mais pesados porque não podia contá-los e tinha que
Os transportar consigo, e porque era uma mulher que tinha boa reputação entre os que a rodeavam.
Estava tão desgostosa que nada a animava senão ter o filho mai novo ao pé de si. Embora a mulher do mais velho a tratasse com muito carinho e Lhe trouxesse a comida bem feita e quente quando devia ser, e até caminhasse dois ou três quilómetros até outra aldeia para Lhe trazer uma espécie de coalhada de feijão que ali faziam, embora a mãe se valesse dela para toda a espécie de coisas e a chamasse se quisesse voltar-se na cama, mesmo assim, a mulher do filho não representava conforto para ela. Muitas vezes, quando a nora se esforçava o melhor que podia, cuidadosamente, a mãe ralhava-Lhe dizendo que tinha as mãos frias ou a face muito amarela e o lhava para ela de um modo meio hostil, meio infantil. Mas nunca mais a censurou por não ter filhos. Não, não falava mais nisso, acreditando, um tanto vagamente, que os seus próprios pecados podiam estar na origem de tal.
Por fim, lá se levantou da cama e, passado o Outono, que Lhe levara aquela dor mais aguda, estava triste durante todo o dia, mas não agitada, e podia pensar na sua menina, mas o auge da dor tinha passado.
Então, até disse para consigo: Sim, talvez o que eles dizem até seja verdade, talvez seja melhor que a minha menina tenha morrido. Há tantas coisas piores que a morte.
E agarrou-se depressa a este pensamento.
Toda a aldeia a ajudou. Ninguém tornou a falar da rapariga diante dela, nem em parte nenhuma, visto que não havia nada a recordar de uma rapariga cega e há muitas como ela em toda a parte. Primeiro, não falavam dela quando a mãe estava, para Lhe poupar a dor, e depois não falavam porque não havia nada de novo a dizer, pois a vida da rapariga tinha chegado ao fim e outras notícias vieram de outras coisas e pessoas.
Durante algum tempo, a alcoviteira teve o cuidado de não estar sozinha com a mãe quando a visitava; mas ao ver o seu estado de fraqueza quando se levantou da cama, foi carinhosa com ela e felicitou-a como sempre tinha feito.
E a mãe resolveu calar o passado, só o recordando por vezes no seu coração.
Capítulo 18
Parecia que o coração da mãe tinha achado algum consolo, pois na Primavera desse ano o filho mais novo veio a casa:
- Vim para ficar algum tempo, mãe. Quanto, não sei, pelo menos até me dizerem para me ir embora.
Mas quando ela se regozijou, ele pouco disse e nem parecia o mesmo. Estava muito calado, nunca cantava nem dava pulos, nem falava irreflectidamente como costumava, o que fazia com que a mãe julgasse que ele estava doente ou preocupado, guardando algum segredo. Quando falou nisto à mulher do primo, esta disse-Lhe, calmamente:
- Bem, pode ser que ele tenha deixado de ser uma criança. Quantos anos tem ele? Eu noto o mesmo no meu quinto filho, e ele já tem vinte anos, quase vinte e um e está casado há quatro. Sim, com vinte e um já deixou a infãncia e os homens com essa idade já não dão pulos como faziam antes, embora me lembre que o teu homem deu pulos até ao último dia em que o vi.
- Sim - disse a mãe, suspirando.
Agora, a recordação do homem já estava muito esbatida e, às vezes, quando o lembrava, não conseguia recordar-se bem do rosto dele, pois, em seu lugar, Lhe vinha à ideia o rosto do filho mais novo.
Mas ao fim de nove dias o filho mais novo foi-se embora, tão rapi damente como tinha vindo e quase em segredo, embora ninguém soubesse como ele tinha sido avisado de que tinha que ir. Pôs a pouca roupa que trazia numa pequena mala de couro. A mãe, triste por ver o filho ir-se embora, exclamou:
- Eu pensava que tu tinhas vindo para ficar, meu filho.
Mas ele replicou:
- Eu volto depressa, mãe.
E parecia intimamente contente e ansioso por se ir embora.
Depois disto, andava sempre alegre. Vinha e ia sem avisar. Podia vir num dia, com o embrulho da roupa debaixo do braço, e ali ficava.
Durante um dia ou dois andava sem fazer nada pela pequena aldeia, ficava sentado na casa de chá e conversava muito sobre como os tempos estavam maus, como a justiça era desigual e como viria um dia em que tudo seria melhor, e os homens ouviam, olhando uns para
os outros, sem saberem o que fazer, e o estalajadeiro coçava a cabeça gordurosa e exclamava: A mim, isto parece-me conversa de ladrões, vizinhos!
Mas, para tranquilidade da mãe e do irmão mais velho, não se importavam, pensando que se tratava de criancices da parte dele e que se tornaria mais sensato quando casasse e tivesse as responsabilidades de um homem.
Quando o filho mais novo vinha a casa, sentava-se ocioso; outras vezes oferecia ajuda ao irmão em qualquer trabalho leve; mas quando isso acontecia, o irmão respondia, com desdém: Obrigado, irmão, mas eu estou habituado a fazer o trabalho sem a tua ajuda.
Então, o jovem olhava para ele com o seu ar insolente, pois tinha- se tornado muito insolente nos últimos tempos, e não discutia, mas ria com ar atrevido e dizia, cuspindo para o chão enquanto falava:
Como queiras, meu irmão mais velho.
E era tão insolente que o mais velho quase explodia de cólera e de boa vontade Lhe diria para desaparecer para sempre. Mas um homem não pode dizer isto ao seu irmão e continuar a ser considerado recto aos olhos dos vizinhos.
Mas a mãe não via qualquer defeito nele. Mesmo quando veio com as suas grandes conversas e falou contra o irmão mais velho:
- Estes proprietariozitos que precisam de arrendar terras para poderem viver, estes homenzinhos, tão pequeninos e orgulhosos, merecem o que Lhes há-de acontecer um dia, quando a terra for de todos e ninguém a possa ter só para si!
A mãe não compreendeu uma palavra do que ele disse, excepto as primeiras, e retorquiu, em ar de queixa:
- Sim, também acho que o teu irmão às vezes é orgulhoso demais e, além disso, a mulher dele é estéril.
Porque tudo o que este filho mais novo dizia parecia sábio à mãe, ela estava sempre do seu lado. Para ela, quando ele vinha a casa, era uma festa e teria considerado cada dia que ele ali passava um dia de descanso. Se pudesse, teria morto uma galinha para ele e cozinhado um prato melhor que habitual. Mas não podia fazer isso. As galinhas, agora, eram do filho mais velho e ela não podia fazer mais do que roubar um ovo ou dois de algum ninho que encontrava e guardá-los para o mais novo e, quando ele viesse, cozê-los em segredo para a sua ceia e juntar ao prato um pouco de açúcar que tinha arranjado maneira de guardar.
Sempre que recebia alguma pequena guloseima ou se ia a casa de alguma vizinha da aldeia - pois agora, com a sua idade, estava ociosa porque não tinha nada que fazer - e alguém Lhe dava, por amabilidade, um pêssego ou um diospiro seco ou um bolinho, ou qualquer coisa assim, guardava-o para o filho mais novo. Ocupava muito tempo a olhar por estas pequenas coisas, para que não criassem mofo, e guardava-as o mais tempo que podia; e quando ele adiava a vinda a casa e ela era forçada a comê-las para não se estragarem, não sentia prazer e dificilmente era capaz de apreciar a guloseima, embora também apreciasse a comida. Muitas vezes, abrindo a gaveta onde os guardava, revolvia-a com os dedos, pensando consigo: Ele não vem. Ele não está aqui. Se eu tivesse um netinho, podia dar-Lho quando o meu filho não vem. Não tenho ninguém, se o meu filho não vem.
Todos os dias passava muitas horas sentada a olhar para a estrada, à procura de um vislumbre dele e se via o contorno de um fato de homem, corria o mais que podia; e se era o filho que vinha a casa, pegava-Lhe na mão macia e quente com a sua mão velha e seca e puxava-o para o quarto dela. Servia-Lhe o chá que a mulher do filho ali tinha posto para ela e depois, com prazer, tirava da gaveta o que Lhe tinha guardado. E sentava-se a observá-lo amorosamente, enquanto ele escolhia entre as guloseimas e tirava as melhores. Às vezes, virava o nariz para o lado e dizia: Este bolo tem bolor, mãe. " Ou: Nunca gostei de bolos de farinha de arroz tão secos. "
Então ela respondia, pesarosamente: Está muito seco, meu filho? Pensava que talvez ainda te soubesse bem. E se ele não o comia comia-o ela para não se desperdiçar, lamentando que não fosse suficientemente bom para o seu menino.
Depois de ele ter comido o que queria, a mãe sentava-se para o ouvir. Ele nunca respondia de boa vontade às perguntas que ela Lhe fazia e, quando insistia muito, parecia encolerizar-se e ia-se embora. Quando se apercebeu disto, a mãe aprendeu a não Lhe fazer perguntas e ele aprendeu também a evitá-las. À medida que envelhecia, a mãe esquecia-se das coisas com mais frequência e era mais fácil mudar de conversa. Para Lhe desviar a atenção, ele falava-Lhe de alguma maraviLha que tinha visto: um malabarista que deixava uma cobra escorregar pela garganta abaixo e depois a puxava outra vez pela cauda, ou uma mulher que tinha dado à luz uma criança com duas cabeças, que ela mostrava a troco de uma moeda a quem quisesse vê-la, ou alguma coisa estranha que tivesse visto em qualquer cidade.
A velha mãe divertia-se com a sua conversa e chorava quando ele se ia embora. Não podia deixar de falar nestas maravilhas ao filho mais velho e à nora. Uma vez, quando falava nisto, o filho mais velho, que estava curvado sobre a bacia de barro a lavar a cara depois do trabalho nos campos, olhou para cima, com a cara molhada, e disse amargamente: Sim, ele não Lhe dá comida nem nada mais senão uma moedazita de vez em quando, como a um pedinte. Vem aqui, come e nunca põe a mão numa enxada, nem no arado, e conta-Lhe essas histórias, e é mais para si do que... E inclinou outra vez a cara e, com o barulho que fazia a lavar-se, não ouviu o que a mãe tinha a dizer.
Isto era tudo o que ela sabia do filho mais novo. Conhecia-Lhe o corpo flexível e bonito e o ouro pálido da pele, da tonalidade de um homem da cidade, diferente do moreno escuro e avermelhado da gente do campo, e sabia como eram compridas as unhas dos seus dedos mínimos, e como os seus dentes eram brancos e o cabelo negro untado e brilhante, que deixava crescer em volta das orelhas, e como sacudia a cabeça para o tirar dos olhos.
Sim, conhecia e amava o seu sorriso pronto, os olhos escuros; amava o seu desinteresse pelo dinheiro e o modo como procurava e Lhe dava o que tinha ou, se não tinha nada, pedia-Lho a ela. E, mais do que receber alguma coisa dele, ela gostava de pegar no que tinha e de Lho põr na mão. Tudo que ele Lhe dava, ela poupava para Lho dar outra vez, quando ele quisesse. Era o melhor uso que conhecia para o seu pequeno esconderijo.
Capítulo 19
Mas um dia ele não veio quando tinha dito que havia de vir. E como tinha ela a certeza de que viria? Porque apenas três dias antes o filho viera em segredo durante noite, caminhando através dos carreiros do campo, em vez de atravessar a aldeia, e batera ao de leve na sua porta; ela teve algum receio em abri-la, pensando que podiam ser ladrões. Quando já estava para chamar alguém, ouviu-o falar em voz baixa; felizmente, as galinhas fizeram barulho debaixo da cama e impediram que a voz dele fosse ouvida pelo filho mais velho e pela mulher.
A mãe levantou-se então o mais depressa que põde, vestindo a roupa à pressa e atrapalhadamente, e procurando a vela às apalpadelas. Quando abriu a porta, devagarinho, porque sabia que ele devia ter um motivo secreto para vir àquela hora e daquela maneira, lá estava ele com mais dois jovens, todos trajados da mesma maneira que ele andava vestido nesses dias, de preto. Traziam um grande fardo não se percebia de quê, embrulhado em papel e atado com uma corda. Quando ela abriu a porta, com a vela na mão, o filho apagou-a com um sopro, parque a luz do luar era suficiente para ver, e quando ela fez uma exclamação, mesmo assim em voz baixa, no prazer de vê-lo, o rapaz disse, num murmúrio:
- Mãe, está aqui uma coisa minha, tenho que pô-la debaixo da sua cama, no meio da roupa de Inverno que lá está. Não diga nada, porque eu não quero que ninguém saiba que isto lá está. Eu hei-de vir buscar isto outra vez.
Ela teve um pressentimento quando ouviu isto e disse sensatamente, mantendo a sua voz tão baixa quanto a dele:
- Filho, não é uma coisa má, espero... espero que não, espero que não tenhas tirado alguma coisa que não fosse tua.
Mas ele apressou-se a esclarecer:
- Não, não, mãe, não é nada roubado, juro. São umas peles de carneiro que eu tive a sorte de comprar baratas, mas o meu irmão vai censurar-me por isso, pois ele censura-me por tudo, e eu não tenho onde pô-las. Comprei-as muito baratas e hei-de dar-Lhe uma no próximo Inverno, mãe, para um casaco... todos nós havemos de usar boas roupas no próximo Inverno!
Então, ficou muito agradada e acreditou quando ele disse que não eram roubadas; sentia alegria em partilhar um pequeno segredo com aquele filho, e disse prontamente:
- Oh, sim, confia em mim, filho! Há muitas coisas neste quarto de que o teu irmão e a mulher dele não sabem.
Então os dois homens trouxeram o fardo para dentro e empurraram-no silenciosamente para debaixo da cama; as galinhas cacarejaram e olharam e o búfalo acordou e começou a ruminar. Mas o filho não ia mesmo ficar e, quando a mãe viu a sua pressa, ficou admirada:
- Está descansado, eu guardo-as, meu filho, mas não precisam de ser arejadas e de apanhar sol, por causa da traça?
Ele respondeu despreocupadamente:
- É só por um dia ou dois, porque nós vamos mudar-nos para um sítio maior e então eu terei um quarto só para mim e muito espaço.
Quando ela ouviu falar em muito espaço, veio-Lhe à mente aquele pensamento que tinha sempre - do casamento - e puxou-o um pouco para longe dos outros dois, olhando para ele com ar suplicante. Uma coisa que não Lhe agradava no filho era que não quisesse que ela o casasse. Sabia o que era o sangue quente e o rapaz dava sinais de ter o mesmo ardor que ela, quando era nova. Sabia que ele precisava de saciá-lo de algum modo, e custava-Lhe tal desperdício. Era melhor que estivesse casado com alguma rapariga desenxovalhada, para ela poder ter os seus netos. E mesmo naquele momento, quando ele estava impaciente para se ir embora e os outros dois esperavam na sombra junto à porta, mesmo então ela pegou na mão do filho e disse em tom adulador, a voz num sussurro:
- Mas, filho, se tens assim tanto espaço, então por que não hei- de procurar uma rapariga? Eu procurarei a melhor e mais bonita rapariga que puder; ou, se conheces alguma, então diz-me e eu peço à mulher do primo para tratar de tudo. Eu não te obrigo, filho; se é dela que tu gostas, eu também hei-de gostar.
Mas o rapaz sacudiu os compridos caracóis dos olhos e olhou através da porta, ao mesmo tempo que tentava retirar a mão. Mas ela segurou-a com força e tentou persuadi-lo novamente:
- Por que hão-de os teus ardores ser gastos em ruim terreno, por aqui e por acolá, sem me darem bons netos? A mulher do teu irmão é tão fria que eu penso que nunca terei crianças nos meus joelhos a não ser que tu as ponhas lá. Sim, tu és como o teu pai, e eu bem sei como ele era. Põe as tuas sementes na tua própria terra, meu filho, e faz a colheita para a tua própria casa!
O filho riu silenciosamente, sacudiu outra vez o cabelo dos olhos e disse meio admirado:
- As mulheres velhas como a mãe não pensam em mais nada senão em casamentos e no nascimento de crianças, mas nós, os jovens de hoje, rejeitámos tudo isso... Até daqui a três dias, mãe!
Dito isto, saiu e foi-se embora, caminhando com os outros dois através dos campos, à tênue luz do luar.
Mas passaram os três dias e ele não veio. E passaram mais três dias, e ainda mais três. A mãe estava cada vez mais receosa e perguntava-se se Lhe teria acontecido alguma coisa má. Agora já não ia com facilidade à cidade e por isso esperava, rabujando com todos os que se aproximavam dela, não ousando falar nos seus medos; nem se arriscava tão pouco deixar o seu quarto, com receio de que a nora, casualmente, puxasse as cortinas para o lado e visse o fardo debaixo da cama.
Umá noite, quando estava deitada, acordada e a pensar, levantou-se, acendeu a candeia e curvou-se para olhar para debaixo da cama, segurando as cortinas afastadas com uma das mãos. Ali estava a coisa, embrulhada em papel grosso, grande e quadrada, e fortemente atada com corda de cânhamo. Ela carregou com a mão e sentiu que havia lá dentro qualquer coisa dura, que não era seguramente pele de carneiro.
Isto tem que ser posto ao sol, se é pele de carneiro, murmurou para si, preocupada com o pensamento do desperdício que seria se as traças entrassem e roessem as boas peles. Mas não se atreveu a abrir o fardo e, assim, deixou-o estar. E o filho continuava a não vir.
Assim se passaram os dias, até que se escoou um mês e ela estava quase fora de si, quase, porque houve algo que veio afastar um pouco os medos do seu espírito. Era a última coisa que ela tinha sonhado: a mulher do seu filho mais velho ficou grávida.
Sim, depois de todos aqueles frios anos, a mulher caiu em si e cumpriu o seu dever. Um dia, o filho mais velho foi ter com a mãe, com ar importante, e disse, com o rosto magro todo enrugado num sorriso:
- Mãe, vai ter um neto.
Ela saiu do profundo alheamento em que ultimamente passava os dias, olhou para ele com olhos já um pouco enevoados e disse, com ar aborrecido:
- Falas como um tolo. A tua mulher é fria e estéril como uma pedra; e eu não sei onde anda o meu filho mais novo, que dispersa a sua boa semente por toda a parte e não a guarda para o casamento.
Então, o filho mais velho tossiu e disse simplesmente:
- A mulher do seu filho está grávida.
A princípio, a mãe não acreditou. Olhou para este filho mais velho e depois bradou, apoiando-se no seu bordão para se levantar:
- Não está, nunca acreditarei nisso!
Mas viu pela cara dele que era verdade. Então, levantou-se e foi o mais depressa que pôde procurar a mulher do filho, que estava na cozinha a cortar alhos. Olhou-a atentamente e gritou:
- Finalmente tens alguma coisa dentro de ti?
A esposa acenou com a cabeça e continuou com o seu trabalho, a face pálida manchada de vermelho, e então a mãe soube que era verdade e disse:
- Há quanto tempo é que tu sabes?
- Há mais de duas luas - disse a jovem esposa.
Então a mãe encolerizou-se ao pensar que não Lhe tinham dito nada e gritou, batendo com o pau no chão:
- Por que não me disseste uma única palavra, a mim que todos estes anos tenho estado ansiosa e definhada, sedenta de tais notícias? Duas luas... só uma alma tão fria como a tua; qualquer outra mulher ter-me-ia dado a notícia logo no primeiro dia em que a soubesse!
A jovem mulher pousou a faca e disse com o seu modo cuidadoso:
- Não o fiz com receio de estar enganada e acabar por entristecê-la mais do que se nunca Lhe tivesse dado esperanças. Mas a mãe não aceitou a resposta,
irritou-se e disse:
- E com todos os filhos que eu tive, não poderia ter-te dito se estavas certa ou errada? Não, tu achas que eu sou uma criança e, com a minha idade, já estou tola. Bem sei que tu pensas assim... sim, mostras isso a cada passo.
Mas a nora não respondeu. Apertou os lábios, aqueles lábios cheios e pálidos, e encheu uma tigela de chá com o bule de barro que estava em cima da mesa; depois levou a mãe para o seu lugar habitual, junto da parede. Mas esta não podia estar sentada e deixar as coisas assim. Não, tinha que ir dizer ao primo e à mulher dele. Eles estavam em casa, porque agora os filhos faziam o trabalho, os três que tinham ficado na terra; os outros tinham ido para fora ganhar o seu pão. O primo ainda fazia o que podia; estava sempre ocupado com uma ou outra pequena tarefa. Mas já não podia trabalhar como antigamente. A mulher, essa, dormia pacatamente todo o dia, excepto quando acordava para cuidar de algum neto que chorava.
A mãe atravessou a rua e foi acordá-la impiedosamente:
- Não serás a única avó, juro! Daqui a uns meses eu também vou se avó!
A mulher do primo veio a si lentamente, sorrindo e lambendo os beiços, que tinham ficado secos enquanto dormia, abriu os seus olhinhos serenos e disse:
- Ah sim, prima, o teu filho mais novo vai casar?
O coração da mãe contraiu-se um pouco e ela disse:
- Não, não é isso.
Nessa altura, o primo olhou do sítio onde estava sentado - era um homenzinho chupado, em cima de um banquinho de bambu baixo, onde estava a torcer cordas de palha para os bichos de seda fazerem nelas os casulos, pois era a estação própria - e disse, no seu modo lacónico:
- Então é a mulher do teu filho, prima?
- Sim - respondeu a mãe calorosamente, outra vez alegre. E sentou-se para contar, mas insatisfeita; por isso disfarçou o seu prazer com queixas, dizendo:
- Também já era tempo. Esperei oito anos. Se fosse rica, ter-Lhe-ia procurado outra mulher, mas pensei que o meu filho mais novo teria oportunidade antes de eu arranjar outra mulher para o mais velho, e um casamento custa tão caro hoje, mesmo para uma segunda esposa, se ela for decente e não vier de algum lugar mau. É uma mulher muito vagarosa, esta esposa do meu filho, e com um gênio... nada parecida comigo. É fria como uma serpente.
- Mas não é má, comadre - disse o primo, com justiça. - Ela tem- se portado sempre bem e tem sido cuidadosa. Tu tens agora patos e patas no lago, que não tinhas, e ela acasalou o teu búfalo velho e agora tens um novo; e as galinhas são o dobro do que eram, e agora deves ter dez ou doze, além das muitas que são vendidas todos os anos
- Não, não é má - retorquiu a mãe, de má vontade -, mas quem me dera que ela tivesse tido outros calores além dos calores dos animais e das galinhas.
A prima, que agora andava sempre cheia de sono, disse carinhosamente, bocejando enquanto falava:
- Sim, ela é diferente de ti, prima, com certeza. Tu foste sempre uma mulher ardente, capaz de fazer muito, e ainda és corajosa. Quando andas por aí, se não estiveres com a disenteria, andas tão depressa... Eu admiro-me, pois o mais que consigo fazer agora é ir do banco para a mesa e da mesa para a cama.
O primo acrescentou, com admiração:
- Sim, e eu não consigo comer metade do que costumava comer, mas vejo-te aí sentada e a pedir que te encham a tigela uma e outra vez.
A mãe respondeu modestamente, mas agradada com todos estes elogios:
- Sim, eu como tão bem como sempre comi. Como três tigelas e muitas vezes quatro, e posso comer qualquer coisa que não seja muito dura, porque já não tenho os dentes da frente, e sou muito saudável, quando não tenho a minha disenteria.
- Uma pessoa muito saudável - murmurou a mulher do primo. Depois passou pelo sono e acordou outra vez e, vendo a mãe ali, sorriu com o seu grande sorriso de sono e disse:
- Um neto, dizes tu? Nós agora temos sete netos rapazes, e não são demais. - E adormeceu outra vez, pachorrentamente.
E Assim, as grandes novas encheram os dias que até então tinham sido vazios por o filho mais novo não aparecer, e esta nova alegria atenuou a espera da mãe, que pensou que ele havia de vir qualquer dia e deixou as coisas como estavam.
Mas a alegria não era completa e, como com todas as alegrias que tinha tido, pensava a mãe, havia sempre alguma coisa que podia correr mal. Ela tinha medo que a criança que nascesse fosse uma rapariga e, quando pensou nisso, murmurou: isso seria o meu pior destino, se fosse uma rapariga.
Na sua ansiedade, teria gostado de ir ter com aquela poderosa deusa pequenina que conhecia e oferecer-Lhe um vestido vermelho novo ou uns sapatos novos ou alguma coisa assim, para conseguir as suas boas graças e fazer com que a criança fosse um rapaz. Mas não ousou, com receio que isso pudesse fazer recordar à deusa o seu velho pecado e que esta não o considerasse já expiado, mesmo com o desgosto que ela tinha sofrido e que, se a deusa a visse e a ouvisse falar em netos, se lembrasse e castigasse o pequeno ser ainda no ventre. E pensou consigo própria, lastimando-se: É melhor que eu não vá e que não me mostre. Se ficar afastada e não Lhe disser que vem aí a criança, como já há muito tempo que não procuro os deuses, ela pode ter-se esquecido de mim e será apenas o nascimento de mais um mortal e não do meu neto; assim, eu talvez tenha a sorte que seja um rapaz.
Depois encheu-se de inquietação e pessimismo e pensava que, se a criança era uma alegria, também era uma nova fonte de preocupações, como são todas as crianças, e que podia nascer morta ou deformada, idiota ou cega, ou uma rapariga, ou qualquer coisa parecida. Odiava os deuses e as deusas que têm esses poderes de fazer mal a um mortal, e murmurava: Não fui já mais do que castigada por qualquer pequeno pecado que tenha cometido? Quem poderia pensar que os deuses saberiam o que eu fiz naquele dia? Com certeza aquele deus velho do santuário cheirou o pecado à sua volta e disse à deusa, apesar de eu Lhe ter tapado os olhos. O melhor é ficar afastada dos deuses, velha pecadora que eu sou, pois não sei o que hei-de fazer para me penitenciar mais do que já fiz. Tenho a certeza que, se eles medissem a alegria e a tristeza que eu tive em toda a minha vida, a tristeza pesaria como pedra no prato da balança e a alegria não seria mais que penugem, tão poucas são as alegrias que tenho tido. Eu não gerei a criança e vi a minha filha cega morrer, cega. O desgosto não é penitência? Sim, eu tive sempre desgostos toda a minha vida, e sempre pobre, com todos os meus desgostos. Mas os deuses não conhecem ajustiça. "
Assim, pensava ela, melancolicamente. Tinha agora duas preocupações a suportar: o receio de que o seu neto não fosse perfeito e saudável ou que fosse uma rapariga, e a espera pelo filho mais novo, que não vinha. Às vezes, pensava que toda a sua vida tinha sido feita de espera. Tinha esperado pelo regresso do homem, que nunca viera, e agora pelo filho e pelos netos. Assim era a sua vida e pouca coisa era, pensava. Porém, tinha que ter esperança e, sempre que alguém ia à cidade, ela perguntava, no regresso: Viu o hoje meu filho mais novo? E ia pela aldeia, de casa em casa, perguntando: Quem foi hoje à cidade? " E quando alguém dizia que tinha ido, perguntava novamente: Hoje viu o meu filho mais novo?
Por toda a aldeia, nestes dias de espera, os homens e as mulheres foram-se habituando a esta pergunta. Quando ela passava, levantavam o olhar e viam-na, apoiada no pau que o filho Lhe tinha cortado de um ramo das suas árvores, e ouviam a sua voz trémula perguntar: Vizinho, viu o meu filho mais novo hoje? Eles respondiam com delicadeza: Não, não, boa mãe, e como poderíamos nós vê-lo na praça do mercado onde vamos, se ele, como você diz, só trata de livros?
Então ela afastava-se, abalada na sua esperança, e a sua voz reduzia-se a um murmúrio: Eu não sei... Bem, acho que, de algum modo, tem a ver com livros. E eles riam e, delicadamente, respondiam: Se algum dia passarmos num lugar onde estejam a vender livros, olhamos para ver se ele estará atrás de algum balcão.
Assim, ela tinha que ir para casa e esperar, pensando se as traças teriam comido as peles de carneiro.
Mas um dia, depois de muitas luas, houve notícias. A mãe estava sentada à porta de casa, como fazia sempre, com o comprido cachimbo nas mãos, pois tinha acabado de tomar a refeição da manhã. Estava sentada, vendo o sol da manhã que subia por cima dos montes arredondados, destacando-se nitidamente, e à espera do seu calor, porque aquelas manhãs de Outono eram frias. A certa altura, apareceu de repente à porta um dos filhos do seu primo, o mais velho, a dirigir-se ao seu filho mais velho, que segurava na correia da sandália que se tinha partido ao calçar; o primo disse-Lhe qualquer coisa em voz baixa.
Ela sentiu curiosidade, até porque nessa manhã, quando se levantara ao alvorecer - tendo-se habituado, toda a sua vida, a levantar-se ao nascer do Sol, se estivesse bem de saúde não conseguia ficar na cama -, tinha visto aquele homem partir para a cidade com uma carga de erva fresca. Estava de volta tão cedo que ela preparava-se para o chamar e perguntar-Lhe se tinha vendido a erva tão depressa, quando viu o seu filho mais velho levantar o olhar da correia e gritar, aterrado:
- O meu irmão?
A mãe ouviu aquilo, com o seu ouvido apurado, pois não era de modo nenhum surda, e exclamou rapidamente:
- O que há com o meu filho mais novo?
Mas os dois homens falavam com ar grave e trocavam olhares ansiosos. Por fim, a mãe não conseguiu suportar mais a espera; levantou-se, coxeou até junto deles e, batendo com o pau no chão, exclamou:
- Digam-me o que há com o meu filho!
Mas o filho do primo foi-se embora sem proferir palavra e o seu filho mais velho disse:
- Mãe, há qualquer coisa que está mal, não sei o que é... mas eu tenho que ir à cidade e depois digo-Lhe.
Mas a mãe não queria deixá-lo ir. Agarrou-se a ele e gritou, desesperada:
- Tu não vais enquanto não me disseres!
Ao som desta voz, a nora veio ouvir o que se passava e disse ao marido:
- Diz-Lhe, de contrário ela vai ficar doente de raiva.
Então, o filho explicou lentamente:
- O meu primo disse... ele disse que viu o meu irmão esta manhã entre muitos outros. Estava de mãos atadas atrás das costas com cordas de cãnhamo e as suas roupas estavam em farrapos; passavam junto à praça do mercado onde o meu primo tinha levado a erva para vender, e havia uma longa fila de uns vinte ou trinta; quando o meu irmão o viu desviou o olhar... mas o meu primo perguntou e os guardas que os acompanhavam disseram que eles eram comunistas enviados para a prisão para serem mortos amanhã.
Os três olharam uns para os outros e, nisto, o queixo da mãe começou a tremer e ela tornou a olhar de um para o outro e disse:
- Eu ouvi essa palavra, mas não sei o que quer dizer.
O filho disse, devagar:
- Ele perguntou ao guarda e o guarda riu-se e disse que era uma nova espécie de ladrão que havia nos dias de hoje.
Então, a mãe pensou naquele fardo, escondido há tanto tempo debaixo da sua cama, e começou a chorar em voz alta; lançando o casaco por cima da cabeça disse, em soluços:
- Eu podia ter sabido naquela noite... Oh, aquele fardo debaixo da minha cama, foi o que ele roubou!
Ao ouvirem isto, o filho e a nora agarraram-na, olharam em volta, e arrastaram-na entre ambos para dentro de casa, dizendo-Lhe:
- O que quer dizer, mãe?
A nora levantou a cortina e olhou para o marido; este veio e a velha mãe apontou para o fardo e soluçou:
- Eu não sei o que está lá dentro... mas ele trouxe-o uma noite, e pediu-me segredo por um dia ou dois... e ainda não veio... nunca mais veio.
Então o homem levantou-se e foi fechar a porta suavemente e trancou-a, e a mulher pendurou roupa em frente da janela; juntos, puxaram o fardo para fora e desataram as cordas.
- Peles de carneiro, disse ele que eram - murmurou a mãe, olhando para ele.
Os dois nada disseram, nem acreditaram em nada do que ela disse. Podia ser qualquer coisa e estavam meio desconfiados de que era ouro, quando Lhe sentiram o peso e viram como era duro.
Mas, quando o abriram, viram que eram apenas livros. Estavam ali muitos, muitos livros, todos pequenos e impressos com tinta preta, e muitas folhas de papel, algumas com figuras contendo estranhos sinais de sangue e morte, e gigantes batendo em homens pequeninos ou cortando- os com facas. Quando viram aqueles livros, olharam uns para os outros, boquiabertos, sem saberem o significado daquilo. Por que é que qualquer homem iria roubar simples bocados de papel marcados com tinta? Mas, por muito que olhassem, não percebiam o significado. Nenhum deles sabia ler uma palavra e não compreendiam o significado das figuras, excepto que eram coisas sangrentas, homens apunhalados e a morrer, e homens cruelmente cortados em pedaços, tudo coisas sangrentas e odiosas e que só acontecem onde há bandidos.
Os três ficaram aterrorizados, a mãe pelo seu filho e os outros dois por si próprios, com receio de que alguém pudesse saber que estavam ali aquelas coisas. O homem disse:
- Vamos atar isto outra vez e deixá-lo ficar aqui até à noite e, nessa altura, levamo-los todos para a cozinha e queimamos tudo.
Mas a mulher foi mais cautelosa:
- Não, não podemos queimá-los todos de uma vez, senão os outros podem ver muito fumo e desconfiar do que estamos a fazer. Eu tenho que queimá-los pouco a pouco, dia a dia, como se queimasse a erva para cozinhar a nossa comida.
Mas a velha mãe não prestou atenção a isto. Ela apenas sabia que o seu filho tinha caído em mãos perversas e disse para o filho mais velho:
- Filho, o que vais fazer pelo teu irmão? Como o encontrarás?
- Eu sei onde ele está - respondeu ele, lentamente e a custo. - O meu primo disse que eles os levaram para uma certa prisão perto da porta sul, onde fica o recinto da execução.
E, vendo o súbito olhar de terror da mãe, gritou pela mulher e, juntos, levaram-na para a cama, onde ela ficou a arquejar, a face cor de argila, aterrorizada pelo seu filho. E murmurou, arquejando:
- Filho, tu não vais... O teu irmão...
Então, o mais velho pôs de lado os seus receios por si próprio e disse, com pena da mãe:
- Sim, mãe, eu vou... Eu vou...
Mudou de roupa e calçou os sapatos. Para a mãe, o tempo passava tão devagar que era insuportável. Quando, por fim, o filho ficou pronto, chamou-o parajunto de si e segredou-Lhe ao ouvido:
- Filho, não poupes dinheiro. Se é verdade que ele está na prisão, é preciso dinheiro para o tirar de lá. Com dinheiro pode-se conseguir isso, filho. Quem já ouviu falar de uma prisão que não deixasse libertar um homem por dinheiro? Filho, eu tenho algum... Aqui, num buraco... Só o guardei para ele... Gasta-o todo... Gasta todo o que temos...
A face do homem não mudou; olhou para a mulher, ela olhou para ele, e ele disse:
- Pouparei tudo o que puder, mãe, por si.
Mas ela gritou:
- Que interessa isso para mim? Eu estou velha e pronta para morrer. É por ele.
Mas o homem tinha-se ido embora. Foi procurar o primo e foram ambos em direcção à cidade.
Que podia a mãe fazer a não ser esperar mais uma vez? Mas esta era a espera mais amarga da sua vida. Não era capaz de estar deitada na cama e, por outro lado, desmaiaria se se levantasse. Por fim, a nora assustóu-se ao ver o aspecto da sogra e como ela olhava e murmurava e batia com as mãos nas magras coxas; foi procurar o velho primo e a mulher, e quando estes vieram, sentaram-se ao lado da prima, fazendo-Lhe companhia.
Isto deu algum conforto à mãe, ter a companhia deles, porque eram aqueles com quem ela podia falar mais à-vontade; chorava e dizia constantemente:
- Se eu pequei, não tive já sofrimento suficiente?
E continuava:
- Se eu pequei, por que não morro eu e acabava-se tudo? Por que há-de ser-me tirado isto e aquilo, e com certeza também o meu neto? Eu nunca hei-de ver o meu neto, eu sei que não hei-de vê-lo e que não serei eu que hei-de morrer.
E então encolerizou-se com a ideia de tanto sofrimento e gritou na sua cólera, chorando ao mesmo tempo:
- Mas onde é que há uma mulher perfeita, que esteja sem pecado, e porque hei-de eu ter todo o sofrimento?
Então a mulher do primo disse apressadamente, com medo de que aquela mulher pudesse falar demais por causa da sua dor:
- Todas nós temos pecados e se tivéssemos que serjulgadas pelos nossos pecados, nenhuma de nós teria filhos. Olha para os meus filhos e netos e, no entanto, eu também sou uma velha pecadora, nunca chego nem cheguei perto de um templo; e quando uma monja vinha ter comigo e me dizia que devia aprender o caminho para o céu, eu não queria saber, porque estava muito ocupada com os meus bebês; e agora que estou velha, quando elas vêm ter comigo e me dizem que devo aprender o caminho antes que seja tarde demais, eu digo que já estou muito velha para aprender o que quer que seja e que terei que ficar sem o céu, se não me quiserem como sou.
Assim confortava ela a enlouquecida mulher. O primo, por sua vez, disse-Lhe:
- Espera, prima, até sabermos quais são as notícias. Pode ser que, afinal, não tenhas que te afligir; pode ser que o teu filho tenha sido solto com o dinheiro que levaram para o libertar, ou pode ser que o meu filho tenha visto mal e não tenha sido o teu filho que eles viram passar amarrado.
A prima teve a preocupação de pedir à jovem esposa que fosse ver isto ou aquilo na sua casa, para que ela ficasse afastada, com receio de que a pobre velha, numa ocasião como aquela, dissesse alguma coisa sem querer; e sentiu compaixão por ela, por se ter mantido em silêncio durante tantos anos.
E ficaram à espera que os dois homens voltassem, pois era mais fácil serem três a esperar do que uma mulher sozinha.
Mas a noite passou antes que a mãe os visse regressar. Tinha-se arrastado para fora da cama e, quando passou o meio-dia, foi sentar-se debaixo do salgueiro. O primo e a prima sentaram-se ao seu lado. E ali ficaram os três velhos, fitando a rua da aldeia, excepto a prima, que de vez em quando dormitava, já que nenhuma tristeza podia impedi-la disso. Por fim, quando o Sol se estava quase a pôr, a mãe viu-os. Levantou-se, apoiou-se no seu pau e, defendendo os olhos do clarão doirado do sol vespertino, gritou:
- São eles! - E foi a coxear rua abaixo.
O seu grito tinha sido tão forte e os seus passos tão apressados que toda a gente saiu de casa. Porque na aldeia todos sabiam do caso, mas não ousavam ir abertamente a casa da mãe, com receio de que houvesse algum julgamento por causa do filho mais novo e eles se vissem envolvidos no caso. Durante o dia, tinham-se ocupado das suas coisas, roídos pela curiosidade, mas também receosos, como as pessoas do campo ficam quando se fala de prisões e de governantes. Agora, apa reciam e andavam por ali, mas à distância, esperando pelo que pudesse acontecer. O primo levantou-se também e foi atrás da mãe; até a prima desejaria ir, mas agora não andava a não ser que fosse obrigada, e pensou para consigo que acabaria por saber um pouco mais tarde. Também acreditava que, no fim de contas, o melhor acaba sempre por acontecer e assim poupou-se e ficou sentada no banco, à espera.
Mas a mãe correu e, agarrando no braço do filho, gritou:
- Então, o meu filho?
Mas ao fazer a pergunta, quando os seus olhos interrogavam as faces dos dois homens, ela soube que eles traziam uma resposta má. Os dois homens olharam um para o outro e, por fim, o filho disse laconicamente:
- Ele está na prisão, mãe.
Os dois homens entreolharam-se outra vez; o filho do primo coçou a cabeça e desviou o olhar. Parecia apatetado, como se não soubesse o que dizer. Então, o filho falou novamente:
- Mãe, duvido que ele possa ser salvo. Ele e mais vinte estão condenados à morte, para serem executados amanhã de manhã.
- Morte? - disse a mãe num grito agudo. - Morte!
E teria caído se eles não a agarrassem.
Então, os dois homens levaram-na para a casa mais próxima e sentaram-na num banco. A mãe começou a chorar e a gritar como uma criança, o queixo a tremer e as lágrimas a cair, batendo no peito seco com as mãos fechadas e gritando acusadoramente para o filho:
- Então tu não ofereceste dinheiro bastante. Eu disse-te que tinha aquela pequena reserva... Não era assim tão pequena, quarenta moedas de prata e as duas moedas que ele me deu depois... que ali estão à espera!
E quando viu o filho, com a cabeça caída e o suor a escorrer-Lhe dos lábios e das sobrancelhas, na sua fúria, esbofeteou-o e disse-Lhe:
- Também não verás nem um tostão dele! Se ele morrer, não será para ti. Não, deitá-lo-ei ao rio.
O filho do primo falou então em defesa dele, tentando conseguir a paz; e disse, com a face crispada, numa hora tão má:
- Não, tia, não o culpe. Ele ofereceu mais do dobro do seu dinheiro. Ele ofereceu cem moedas pelo irmão, aos grandes e aos pequenos daquela prisão, até onde pôde subir ele ofereceu subornos. A este e àquele mostrou prata, mas eles nem sequer o deixaram ver o seu filho.
- Então não ofereceu o bastante - bradou a mãe. - Quem já ouviu falar em guardas de uma prisão que não se deixam subornar? Mas eu vou já procurar esse dinheiro, arranjá-lo-ei, velha como sou, e hei-de encontrar o meu filho e trazê-lo para casa e ele nunca mais me deixará, digam o que disserem.
Novamente os dois homens olharam um para o outro e outra vez o primo falou em defesa do outro:
- Boa tia, eles nem sequer Lhe vão permitir que o veja. Nem sequer nos vão deixar entrar, mesmo que Lhes mostrássemos moedas de prata, porque dizem que o governador está irritado com um crime deste género. É um crime novo, considerado um crime horrível.
- O meu filho nunca cometeu nenhum crime - gritou a mãe orgu Lhosamente, e levantou o pau e sacudiu-o em frente do homem. - Há aqui algures um inimigo que paga mais do que o que nós temos para o manter na prisão. - E olhou em volta para toda a gente que ali estava, de boca aberta, bebendo as notícias que ouvia, de olhos fitos e queixos caídos. - Algum de vocês alguma vez viu que o meu filho tivesse cometido algum crime?
Todos desviaram o olhar sem dizerem uma palavra e a mãe, vendo as suas expressões dúbias, abrandou um pouco. Voltou ao choro e exclamou para eles:
- Vocês detestavam-no porque ele era tão bem parecido... Melhor do que os vossos filhos, de pele bronzeada, que são apenas camponeses... sim, vocês detestam qualquer um que seja melhor do que vós... - E levantou-se. Cambaleando, dirigiu-se para casa a chorar amargamente.
Mas quando lá chegou e ficaram sós, sem mais ninguém por perto senão o primo, a mulher dele e os filhos, a mãe enxugou os olhos e disse para o filho mais velho, mais calmamente, embora ainda febril:
- Mas estamos a deixar passar o tempo. Conta-me tudo, porque nós ainda podemos salvá-lo. Temos a noite. Qual foi verdadeiramente o seu crime? Nós pegaremos em tudo o que temos e ainda o salvamos.
O filho e a nora trocaram um olhar ao ouvir isto, não mal-intencionado, mas como se a paciência estivesse quase a chegar ao fim, e depois o filho começou:
- Eu não sei exactamente qual é o crime, mas eles chamam-Lhe o que eu já disse, um comunista. É uma palavra nova... Eu ouvi-a muitas vezes e quando perguntei o que era pareceu-me que era uma espécie de bando de ladrões. Perguntei ao guarda da prisão, o que está com uma espingarda no braço, e ele respondeu, O que é? É alguém que te tira a tua terra para ele, homem, que conspira contra o Estado e por isso tem que morrer, assim como todos os seus companheiros. Este é o seu crime.
A mãe ouviu isto atentamente, a luz da candeia batendo-Lhe na face que brilhava com as lágrimas secas, e disse, atordoada, com a voz trêmula, que ela se esforçava por tornar firme:
- Eu não acredito nisso. Nunca Lhe ouvi dizer nada desse género, nunca ouvi falar de tal crime. Matar um homem, roubar uma casa, deixar um pai morrer à fome, isso são crimes. Mas como pode roubar-se a terra? Pode ser enrolada como um pano e levada e escondida em qualquer lado?
- Não sei, mãe - respondeu o filho, que estava sentado num banco baixo, com a cabeça e as mãos pendentes entre os joelhos.
Ainda vestia a sua única cabaia, mas tinha enfiado a aba na cintura, porque não estava habituado àquele género de roupa; ajeitou-a melhor e disse, lentamente:
- Não sei o que disseram mais; ouvimos muita coisa na cidade, aqui e ali, porque amanhã vão ser mortos muitos e vão fazer feriado. O que foi que disseram mais, primo?
O filho do primo coçou o queixo, engoliu em seco, olhou para os rostos em volta e disse:
- Aquela gente da cidade disse muita coisa, mas eu não me atrevi a fazer muitas perguntas, pois, quando quis saber mais em pormenor qual era o problema, os guardas da prisão voltaram-se para mim e disseram, Você também é um deles? O que é que Lhe interessa se eles forem mortos? Não tive coragem para dizer que era primo de um dos que ia morrer. Mas encontrámos um chefe dos guardas e demos-Lhe algum dinheiro para falarmos com ele em privado. Ele levou-nos para um canto da prisão, atrás da sua própria casa, e nós dissemos-Lhe que éramos camponeses honestos e que tínhamos um pedacito de terra pobre e mais alguma terra arrendada; e que entre os condenados à morte havia um parente nosso, afastado, e que tínhamos interesse em salvá-lo por uma questão de honra, pois nunca ninguém do nosso nome tinha morrido às mãos do carrasco. Mas só se não fosse muito caro, porque nós éramos pobres. O carcereiro pegou no dinheiro e perguntou como era o homem e nós dissemos-Lhe; então ele respondeu, Acho que sei quem é o rapaz a quem te referes; ele tem estado muito ansioso na prisão e eu penso que diria tudo o que sabe se não estivesse com ele uma rapariga arrojada, nunca vi outra mais arrojada, que Lhe dá coragem. Alguns são duros e corajosos e não se importam se vão morrer nem quando. Mas aquele rapaz tem medo. Duvido que saiba o que fez e por que vai morrer, pois parece um simples rapaz do campo, que eles usaram, fazendo-Lhe grandes promessas. Creio que o seu crime foi ter sido encontrado com certos livros que trazia com ele e que distribuía de graça entre as pessoas, livros esses que diziam coisas más sobre derrubar o Estado e repartir todo o dinheiro e toda a terra igualmente.
A mãe olhou para o filho mais velho e rompeu em lamentações, novamente a chorar:
- Eu sabia que nós devíamos tê-lo deixado ter alguma terra. Podía mos ter arrendado um pouco mais e ter-Lhe dado uma parte... Mas não, este meu filho mais velho e a sua mulher têm que tê-la toda e para ele é tudo de má vontade...
O filho mais velho abriu a boca para falar mas o velho primo impe diu-o, calmamente:
- Não digas nada, meu filho. Deixa a tua mãe acusar-te, ela assim alivia. Todos nós sabemos o que tu és e o que o teu irmão era e como ele detestava qualquer trabalho, fosse na terra ou fosse onde fosse.
Com isto, o filho acalmou-se. O filho do primo, daí a pouco, disse:
- Nós perguntámos ao carcereiro quanto é que seria preciso para conseguir libertar o rapaz, e ele abanou a cabeça e disse que se o rapaz fosse de alta condição social, filho de algum grande, rico e poderoso, então sem dúvida poderia ser libertado com dinheiro. Mas sendo um rapaz do campo e pobre, nenhum homem arriscaria a sua vida nem por tudo o que ele pudesse dar e, assim, tinha que morrer.
A isto, a mãe respondeu gritando:
- Ele deve morrer porque é meu filho e eu sou pobre? Nós temos aquela terra que é nossa; vamos vendê-la e libertá-lo. Sim, vamos vendê-la esta mesma noite... há aqueles na aldeia...
A esta conversa da terra, o filho falou alto, dizendo:
- E como é que nós ficamos a viver? Nós mal conseguimos viver agora; e se arrendarmos mais terra, com as rendas ruinosas que temos hoje, teremos que andar a pedir esmola. Tudo o que temos é este pequeno pedaço de terra e eu não o vendo, mãe. Não! A terra é minha. Eu não a vendo.
Quando ele disse isto, falou a mulher, que tinha estado sem dizer nada até então, sentada a ouvir, com o rosto grave e inexpressivo:
- Agora temos que pensar neste filho que trago dentro de mim. E o homem acrescentou, lentamente:
- Sim, é nele que eu estou a pensar.
Então a velha mãe calou-se. Chorou durante um bocado, calada. E daí em diante, durante toda a noite, quando alguém dizia mais alguma coisa, esta era a única resposta que ela tinha.
Ali ficaram sentados toda a noite. Quando a alvorada se aproximava, a mãe reuniu algumas forças que ainda tinha e disse:
- Eu vou. Quero ir mais uma vez à cidade e quero ver o meu filho, se ele tem que morrer.
Todos Lhe pegaram no braço e Lhe pediram que não fosse, e o filho disse, seriamente:
- Mãe, eu vou procurá-lo... Mais tarde... Porque se vai a mãe e vê com os seus olhos, morre.
Ela respondeu:
- E se eu morrer?
Lavou a cara e penteou o pouco cabelo grisalho que Lhe restava, vestiu um vestido lavado, como fazia sempre que ia à cidade, e disse simplesmente:
- Vou buscar o burro do meu primo. Tu emprestas-mo, primo?
- Está bem - respondeu ele, desalentada e tristemente. O filho e o filho do primo foram buscar o burro e colocaram a mãe sobre o animal; depois caminharam para a cidade ao seu lado, o filho com uma lanterna na mão, pois a luz da aurora ainda não era suficiente para mostrar o caminho.
Agora a mãe estava sem energia e calada, banhada em lágrimas, seguindo quase sem saber o que fazia, apoiada no lombo do burro. Seguia de cabeça pendida e não olhou uma única vez para ver o nascer do dia. Olhava para baixo, para a estrada clara e poeirenta que dificilmente se via ainda na escuridão. Os homens também iam silenciosos, numa ocasião daquelas, ao longo da estrada sinuosa, que seguia em direcção à porta sul. A uma hora tão matutina a porta ainda estava fechada.
Mas havia muita gente à espera, porque tinha corrido pelos campos a notícia de que ia haver esta grande decapitação, e muitos vinham para ver o espectáculo e traziam os filhos. Logo que as portas foram abertas, todos se comprimiram para entrar, a mãe no seu burro, mais os dois homens, e dirigiram-se para o terreno próximo da muralha da cidade, onde havia um espaço aberto. Ali, à luz do dia nascente, já se encontrava uma grande multidão silenciosa, comprimindo-se uns contra os outros, com o pensamento daquele grande espectáculo de morte. Crianças pequenas agarravam-se com força aos seus pais, num terror indizível do que não conheciam, e bebês choravam. A multidão estava silenciosa, as pessoas esperando avidamente, sentindo um estranho prazer e, ao mesmo tempo, detestando o horror que ansiavam ver.
Mas a mãe e os dois homens não ficaram na multidão. Ela disse baixinho:
- Vamos para a porta da prisão e ficamos lá.
No seu pobre coração ainda havia a esperança que, de qualquer modo, quando visse o filho, podia acontecer um milagre, podia surgir alguma maneira de o salvar.
Assim, os homens voltaram a cabeça do burro em direcção à prisão; ali chegados, esperaram ao lado da porta, que se abria na alta muralha de topo, protegida com cacos de vidro. Aí estava um guarda estendido e junto dele uma lanterna com a vela muito gasta e uma grande mancha vermelha como sangue, da cera derramada. Um sopro de vento frio da alvorada apagou subitamente a chama da vela gotejante. Ali, na rua poeirenta, os três esperaram. A mãe desmontou do burro e, dentro em pouco, ouviram o som de passos, depois o som de marcha sobre pedra e em seguida uma ordem:
- Abram as portas!
Surgiram então os guardas, que ficaram de pé ao lado da porta, erectos, as armas rigidamente apoiadas nos ombros, e as portas foram abertas.
A mãe esforçou a vista procurando o filho. Saíram muitas pessoas, jovens atados uns aos outros, dois a dois, de mãos amarradas com cordas de cânhamo, e dois a dois ligados aos da frente. À primeira vista, pareciam todos homens jovens, no entanto havia raparigas, mas era difícil reconhecê-las, porque os seus cabelos compridos tinham sido rapados e usavam roupa como os homens, e nada indicava o seu sexo, até olhar de perto e ver os seus pequenos seios e os pulsos delgados, porque os seus rostos eram tão selvagens e arrojados como os de qualquer homem jovem.
A mãe olhou para as caras, uma após outra e de repente viu o seu próprio filho. Sim, ali ia ele, de cabeça baixa, atado a uma rapariga, com as mãos presas às dela.
A mãe atirou-se para diante e caiu aos pés dele, agarrou-os e deu um grande grito:
- Meu filho!
Olhou para cima, para o rosto dele, muito pálido, os lábios brancos sujos de terra e os olhos baços. Quando viu a mãe, ficou ainda mais pálido e teria caído se não estivesse atado à rapariga. A rapariga puxou por ele, para não o deixar cair nem o deixar para trás e, quando viu a velha de cabelo branco a seus pés, riu-se abertamente, um riso forte e sem alegria, e gritou com voz alta e aguda:
- Camarada, lembra-te de que agora não tens mãe nem pai, nem ninguém que te seja querido, excepto a nossa causa comum! - E empurrou-o para diante.
Então veio um guarda, que agarrou na mãe e a atirou para o outro lado da estrada, onde ela ficou caída, na poeira. E o cortejo prosseguiu para a porta sul. Subitamente, começaram a cantar, seguindo assim a caminho da morte.
Por fim, os dois homens vieram para levantar a mãe, mas ela não os deixou. Ali ficou algum tempo, a gemer e a escutar, confusa, aquela estranha canção, mas sem entender nada, apenas gemendo.
Mas não pôde gemer por muito tempo, porque um guarda veio da porta da prisão e espicaçou-a rudemente com a arma, rugindo-Lhe:
- Fora daqui, bruxa velha!
Os dois homens sentiram medo. Levantaram a mãe e puseram-na em cima do burro, retomando lentamente o caminho de casa. Mas antes de chegarem à porta sul, pararam junto de uma parede e esperaram. Esperaram até ouvir um grande rugido elevar-se; depois olharam um para o outro e para a velha mãe. Mas se ela ouviu ou se percebeu o que era, não deu sinal disso. Deixou-se ficar sentada no animal, a olhar para o pó abaixo dos pés.
Quando ouviram o grito, avançaram e encontraram a multidão que dispersava e gritava isto e aquilo. Os homens nada diziam, a velha mãe parecia não ouvir. Alguém gritou:
- Eles morreram com muita alegria e com muita coragem! Viram aquela rapariga corajosa, como ela esteve a cantar até ao fim e quando a cabeça rolou, juro, ainda cantou durante um segundo, não viste?
E alguém disse:
- Viram aquele rapaz cujo sangue jorrou até tão longe que chegou aos pés do carrasco e o fez praguejar?
Uns riam, com as faces coradas, outros estavam pálidos e, quando os dois homens e a mãe passavam em direcção à porta da cidade, houve um homem novo, cujo rosto estava branco como argila, que se voltou, encostou-se à parede e vomitou.
Mas se ela viu ou ouviu isto, não disse nada. Não, ela sabia que o filho, agora, estava morto. Morto, e o dinheiro ou qualquer outra coisa eram inúteis. Era inútil censurar, mesmo se ela pudesse censurar. Só ansiava por uma coisa: voltar para casa, ir até àquela velha sepultura e chorar ali. Lembrou-se amargamente de que nem sequer tinha uma sepultura dos seus próprios mortos sobre a qual pudesse chorar, como outras mulheres tinham, e tinha que ir chorar sobre alguma sepultura antiga e desconhecida, para aliviar o seu coração. Mas mesmo essa angústia diminuiu, ela apenas ansiava por chorar e buscar alívio.
Quando chegou defronte da porta de casa, desceu do burro e disse ao filho, em tom implorativo:
- Leva-me para trás da aldeia... Eu preciso de chorar um bocado.
A mulher do primo, que ali estava, ouvindo isto, disse bondosa mente, abanando a cabeça e enxugando as lágrimas com as mangas do vestido:
- Sim, deixa a pobre alma chorar um pouco... É a melhor coisa que se pode fazer.
Em silêncio, o filho levou a mãe para junto da sepultura, ajeitou a erva para ela se sentar e juntou-Lhe mais alguma para tornar o lugar mais confortável. Ela sentou-se, apoiou a cabeça sobre a sepultura e, olhando para ele com ar perturbado, disse:
- Vai-te embora, deixa-me só, para eu chorar.
E, como ele hesitava, disse outra vez, arrebatadamente:
- Deixa-me, que se eu não chorar, morro!
Assim, ele foi-se embora, dizendo:
- Eu daqui a pouco venho buscá-la, mãe. - Pois estava relutante em deixá-la sozinha.
Então, a mãe sentou-se e observou a luz cada vez mais intensa daquele dia feriado. Viu o sol doirado elevar-se de novo sobre toda a terra, como se ninguém tivesse morrido naquele dia. Nos campos, as searas tardias estavam maduras, com o grão cheio e amarelo, e o sol jorrava sobre todos os campos. E todo o tempo a mãe ficou sentada à espera que o seu desgosto se transformasse em lágrimas e aliviasse o seu coração destroçado. Pensava em toda a sua vida, em todos os seus mortos, como tinha tido tão poucas coisas boas, e com isso o seu desgosto aumentava. Deixou-o aumentar, já sem cólera nem luta, mas deixando-se invadir toda por ele. Deixou-se cair sobre a terra e sentiu o seu desgosto enchê-la e aceitou-o. E voltando a face para o céu, gritou numa agonia:
- Isto é castigo? Já estou bem castigada?
As lágrimas jorraram, então, e ela apoiou a sua velha cabeça sobre a sepultura, curvou a face sobre as sementes e chorou.
Chorou e voltou a chorar ao longo da manhâ luminosa. Recordou todos os pequenos e grandes desgostos, como o seu homem se tinha zangado e desaparecido, que não havia nenhuma rapariguinha que viesse chamá-la para ir para casa depois de ter chorado, no aspecto do seu rapaz atado àquela rapariga selvagem, e chorou por toda a sua vida.
Nisto, o filho veio a correr. Sim, vinha a correr pela terra coberta de sol e, enquanto corria, acenava com o braço e gritava qualquer coisa que ela não conseguia ouvir, desorientada pelo seu desgosto. Levantou a face, para ouvir melhor, e então ouviu-o dizer:
- Mãe, mãe.
E depois:
- O meu filho nasceu... O seu neto, mãe!
A mãe ouviu aquele grito, o chamado mais nítido que alguma vez ouvira em toda a sua vida. As lágrimas cessaram e, sem ter consciéncia disso, levantou-se, cambaleando, e depois foi para ele gritando:
- Quando, quando?
- Agora mesmo - gritou ele a rir. - Nasceu agora mesmo... Um rapaz. Juro que nunca vi um bebê maior e a berrar tanto, como um rapaz já com um ano ou dois!
Apoiou a mão no braço do filho e riu um pouco, ainda meio a chorar. E, encostada a ele, apressou os seus velhos pés e esqueceu-se de si própria.
Assim, os dois foram para casa e entraram naquele quarto onde a nova mãe estava deitada na cama. O quarto estava cheio de mulheres da aldeia que tinham vindo ouvir as notícias; até lá estava a velha alcoviteira, agora a mulher mais velha da aldeia, muito surda, quase dobrada em duas com os anos. Quando viu a velha mãe, cacarejou:
- É uma mulher com sorte, vizinha... Eu pensava que a sua sorte tinha acabado, mas aqui está ela outra vez, não há dúvida, um filho do filho; eu não tenho nada para as minhas dores senão a minha velha carcaça...
Mas a velha mãe não disse uma palavra, nem olhou para ninguém. Entrou no quarto, dirigiu-se à cama e olhou. Ali estava a criança, um rapaz, e a berrar como tinha dito o pai, com a boca escancarada, o bebê mais perfeito e robusto que ela alguma vez tinha visto. Curvou-se e pegou-Lhe com os seus braços, segurou nele e sentiu-o, quente e forte, de encontro a si, dando-Lhe uma nova vida.
Olhou para ele, da cabeça aos pés, e riu, e voltou a olhar, e por fim olhou à volta do quarto, procurando a mulher do primo. Ali estava ela, com um ou dois netos pendurados, que tinham vindo ver o que se passava. Quando encontrou o rosto que procurava, a velha mãe segurou a criança para a outra mulher ver e, esquecendo toda a gente que enchia o quarto, gritou alto, rindo ao mesmo tempo, com os olhos ainda inchados pelo choro recente:
- Olha, prima! Duvido que estivesse tão cheia de pecado como cheguei a pensar que estava, prima. Olha o meu neto!
Pearl S. Buck
O melhor da literatura para todos os gostos e idades