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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MAGIA EXPLOSIVA / Ilona Andrews
MAGIA EXPLOSIVA / Ilona Andrews

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Eu o vi. Meu coração falhou.
Ele tinha o rosto firme e duro, um nariz forte e a testa quadrada. Seu contorno era áspero: da barba por fazer ao cabelo escuro, curto e desgrenhado. Rude, masculino e incrivelmente sensual. Seus olhos, inteligentes e claros abaixo das sobrancelhas escuras e grossas, avaliavam com calma precisão tudo o que ele via; mas, no fundo daqueles olhos azuis brilhava uma chama fria. O mesmo tipo de fogo letal você veria nos olhos âmbar de um tigre – uma chama predatória e irresistível que atraía o olhar, mesmo você sabendo que, se ele percebesse, aquele fogo gelado acabaria com você. Ele me atraía como um ímã. Todos os meus instintos femininos se incendiaram.
Uau.
Olhei em seus olhos azuis. Não, eu estava errada. Ele não era um tigre. Era um dragão, suntuoso e mortal, e estava se aproximando de mim.
Em 1863, em um mundo muito parecido com o nosso, cientistas europeus descobriram o soro Osíris, uma mistura capaz de despertar talentos mágicos nas pessoas. Esses talentos eram muitos e variados. Algumas pessoas ganhavam a habilidade de comandar animais, algumas aprendiam a sentir as águas a quilômetros de distância e, outras, perceberam repentinamente que poderiam matar seus inimigos gerando uma explosão luminosa a partir de suas mãos. O soro espalhou-se pelo mundo. Foi dado a soldados na esperança de aumentar ainda mais a capacidade letal das forças militares. Foi conseguido por membros da aristocracia decadente, desesperados para se manter no poder. Foi comprado pelos ricos, que desejavam ficar ainda mais ricos.
Com o tempo, o mundo percebeu as consequências de despertar poderes de deuses em pessoas comuns. O soro foi proibido, mas já era tarde demais. Os talentos mágicos passaram de pais para filhos e mudaram para sempre o curso da história da humanidade. O futuro de nações inteiras mudou no espaço de poucas décadas. Aqueles que antes se casavam por dinheiro, status e poder, agora se casavam por magia, porque poderes mágicos poderiam lhes garantir tudo.

 


 

 

Agora, um século e meio depois, famílias com fortes características mágicas hereditárias evoluíram e se tornaram dinastias. Essas famílias, Casas, como se intitulam, são donas de corporações, têm seus territórios nas cidades e influenciam a política. Empregam exércitos particulares, lutam entre si, e suas disputas são mortais. É um mundo onde, quanto mais mágica você tem, mais poderoso, rico e destacado você é. Alguns talentos mágicos são destrutivos. Alguns são sutis. Mas nenhum usuário de magia deve ser subestimado.


– Não posso deixar você fazer isso. Não vou deixar, Kelly. O homem é louco.

Kelly Waller aproximou-se e tocou a mão do marido em busca de segurança. Ele tirou a mão do volante e apertou os dedos dela. Estranho como um toque pode ser íntimo, ela pensou. O toque, alimentado pelo amor de vinte anos, serviu como um porto seguro em meio aos pesadelos das últimas quarenta e oito horas. Sem isso, ela estaria gritando.

– Ele não vai me machucar. Somos da mesma família.

– Você mesma me disse que ele odeia a família.

– Preciso tentar – ela disse. – Vão matar nosso garoto.

Tom olhava para a frente, com os olhos vidrados, guiando o carro na curva para a entrada da garagem. Velhos carvalhos espalhavam suas largas copas acima do gramado pontuado com o amarelo dos dentes-de-leão e dos ranúnculos cor-de-rosa. Connor não estava cuidando bem do jardim. Seu pai já teria tirado as ervas daninhas...

O estômago de Kelly se contorceu. Parte dela queria voltar no tempo e desfazer os eventos dos últimos dois dias. Outra parte queria dar meia-volta com o carro. Era tarde demais, ela disse para si mesma. Tarde demais para arrependimentos e possibilidades. Precisava lidar com a realidade, não importava o quanto fosse assustadora. Kelly precisava agir como uma mãe.

O caminho até a garagem os levou a um alto muro de estuque. Ela revirou suas lembranças. Dezesseis anos era muito tempo, mas ela tinha certeza de que o muro não estava lá antes.

Um portão de ferro fechava a entrada em forma de arco. Era isso, não era mais possível voltar. Se Connor decidisse que a queria morta, sua magia, a pouca que tinha, não seria capaz de impedi-lo.

Connor era o resultado de três gerações de casamentos cuidadosamente planejados para aumentar as conexões e as capacidades mágicas da família. Teoricamente, ele deveria ter sido um valioso sucessor da fortuna da Casa Rogan. Assim como Kelly, ele não tinha seguido exatamente os passos que os pais esperavam.

Tom estacionou o carro.

– Você não precisa fazer isso.

– Sim, eu preciso. – O medo que pairava sobre ela era esmagador e fez disparar uma onda de ansiedade por seu corpo. Suas mãos tremiam. Kelly engoliu em seco e tentou limpar a garganta. – É o único jeito.

– Ao menos me deixe ir com você.

– Não. Ele me conhece. Pode considerar você uma ameaça. – Kelly engoliu em seco mais uma vez, mas o nó na garganta não desaparecia. Ela nunca soube se Connor podia ler o pensamento das pessoas, mas ele sempre foi capaz de perceber emoções. Kelly não tinha dúvida de que eles estavam sendo observados e alguém ouvia o que diziam. – Tom, não acho que nada de ruim vá acontecer. Se algo acontecer, se eu não voltar, quero que vá embora. Quero que vá para casa ficar com as crianças. Tem uma pasta azul no armário sob a pequena bancada da cozinha. Na segunda prateleira. Nossas apólices de seguro estão lá e vão...

Tom ligou o carro.

– Já chega. Vamos para casa. Vamos cuidar disso nós mesmos.

Kelly abriu a porta do veículo e pulou para fora. Ela correu até o portão, seus saltos fazendo barulho na calçada.

– Kelly! – ele chamou. – Não faça isso!

Ela se forçou a tocar no portão de ferro e disse:

– Aqui é a Kelly. Connor, me deixe entrar.

O portão se abriu. Kelly ergueu a cabeça e entrou. O portão se fechou atrás dela. Ela passou pelo arco e subiu pelo caminho de pedras que serpenteava entre o pitoresco bosque de carvalhos, olaias e louros. Quando o caminho revelou uma curva, ela parou, congelada.

A enorme casa colonial, com paredes brancas e colunas impressionantes, não existia mais. Em seu lugar, um sobrado em estilo mediterrâneo, com paredes creme e telhado vermelho. Será que ela estava na propriedade errada?

– Onde está a casa? – ela sussurrou.

– Eu a demoli.

Kelly se virou. Ele estava perto. Ela se lembrava de um garoto magro com olhos azul-claros marcantes. Dezesseis anos depois, ele era mais alto do que ela. Seu cabelo, castanho-claro quando mais jovem, tinha escurecido; agora era quase preto. O rosto, antes fino, tinha ganho uma mandíbula quadrada e firmes traços masculinos que o tornavam incrivelmente bonito. Aquele rosto, pleno de poder, duro, quase majestoso... era o tipo de rosto que exigia obediência. Poderia dominar o mundo com ele.

Kelly fitou-o nos olhos e, imediatamente, desejou não ter feito aquilo. A vida tinha tornado gelados seus belos olhos azuis. O poder se agitava nas profundezas. Ela podia sentir; era como uma corrente selvagem, feroz. Aquilo fervia, era chocante, assustadoramente poderoso, e prometia a violência e a destruição presas em uma jaula de ferro. Um arrepio percorreu toda a coluna de Kelly, descendo a partir do pescoço.

Ela precisava dizer alguma coisa. Qualquer coisa.

– Por Deus, Connor. Era uma casa de dez milhões de dólares.

Ele deu de ombros.

– Achei catártico. Quer um café?

– Sim, por favor.

Ele a levou pelas portas até o hall e subiram uma escada de madeira ornamentada por um corrimão de ferro. Chegaram a uma varanda coberta. Ela o seguia, um pouco tonta. O entorno não passava de um vago borrão até que ela se sentou em uma cadeira almofadada. Além da proteção da varanda, estendia-se um pomar, com árvores espalhadas em torno de laguinhos e de um riacho pitoresco. Ao longe, no horizonte, as montanhas azuladas, como ondas distantes.

Kelly sentiu o cheiro do café. Connor estava de costas para ela, esperando a cafeteira encher as xícaras.

Estabeleça um ponto comum. Faça com que ele se lembre de quem você é.

– Onde está o balanço? – ela perguntou. Tinha sido o passatempo favorito das crianças Rogan. Era aonde iam quando ele queria lhe pedir um conselho, quando ele tinha doze anos e ela era a descolada prima mais velha Kelly, já com vinte, a que sabia tudo da adolescência.

– Continua lá. Os carvalhos cresceram e não dá para vê-lo daqui. – Connor se virou, entregou a xícara a ela e se sentou.

– Houve um tempo em que você servia o café com as xícaras voando – ela disse.

– Não gosto mais de fazer joguinhos. Ao menos não o tipo de que você se lembra. Por que está aqui?

A xícara de café lhe queimava os dedos. Kelly a apoiou. Na verdade, ela nem tinha se dado conta de que a tinha pegado.

– Você tem visto os jornais?

– Tenho.

– Então sabe sobre o incêndio criminoso no First National.

– Sei.

– Um segurança morreu queimado. A esposa e os dois filhos o estavam visitando. Os três estão hospitalizados. O guarda era um policial fora de serviço. A câmera de segurança identificou dois incendiários: Adam Pierce e Gavin Waller. – Connor esperou que ela prosseguisse. – Gavin Waller é meu filho – ela disse com as palavras ocas. – Meu filho é um assassino.

– Eu sei.

– Eu amo meu filho. Amo Gavin de todo o coração. Se fosse para escolher entre minha vida e a dele, eu morreria sem nem pensar. Ele não é má pessoa. É um menino, tem dezesseis anos. Estava tentando se encontrar, mas, em vez disso, encontrou Adam Pierce. Você tem de entender, os garotos idealizam Pierce. Ele é seu anti-herói, o homem que saiu de casa, abandonou a família e começou uma gangue de motoqueiros. O carismático bad boy rebelde. – Sua voz ficou amarga e irritada, ela não podia evitar. – Ele usou Gavin para cometer essa atrocidade e, agora, um policial está morto. A esposa e os dois filhos estão em estado grave por conta das queimaduras. Vão matar Gavin, Connor. Mesmo se meu filho sair rendido, os policiais vão matá-lo. Ele matou um policial.

Connor tomou o café. Seu rosto estava perfeitamente tranquilo. Ela não conseguia saber no que ele pensava.

– Você não me deve nada. Não nos falamos há vinte anos, desde que a família me renegou.

Kelly engoliu em seco mais uma vez. Ela havia recusado seguir as ordens de se casar com um estranho com a combinação correta de genes. Havia dito que queria ter o controle sobre a própria vida. Então, colocaram-na para fora, como se fosse um saco de lixo... Não pense nisso, pense em Gavin.

– Se houvesse algum outro jeito, eu não viria incomodá-lo. Mas Tom não tem contatos. Não temos poder nem dinheiro, ou grandes habilidades mágicas. Ninguém se importa com o que acontecer conosco. Tudo o que tenho agora são nossas lembranças da infância. Sempre estive ao seu lado quando você precisou. Por favor, me ajude!

– E o que você espera que eu faça? Quer evitar a prisão?

Kelly notou um tom de reprovação na voz dele.

– Não, quero que meu filho seja preso. Quero um julgamento. Quero que seja televisionado, porque depois que Gavin ficar dez minutos no tribunal, todos vão perceber exatamente quem ele é: uma criança boba e confusa. Seus irmãos merecem saber que ele não é um monstro. Conheço meu filho. Sei que o que ele fez está acabando com ele. Não quero que ele morra, alvejado como um animal, sem nunca ter a chance de dizer à família das pessoas que matou como está arrependido. – Lágrimas molhavam seu rosto. Kelly não se importava. – Por favor, Connor. Estou te implorando pela vida do meu filho.

Connor tomou mais um gole de café.

– O nome é Louco Rogan. Também me chamam de Açougueiro ou de Praga, mas “Louco” é o apelido mais frequente.

– Conheço você...

– Não, não conhece. Você me conheceu antes da guerra, quando eu era uma criança. Diga, o que sou agora?

O peso do olhar dele fazia os lábios de Kelly tremerem e ela disse a primeira coisa que lhe veio à mente:

– Você é um assassino em massa.

Ele sorriu, o rosto gelado. Sem humor, sem calor, apenas um predador cruel mostrando os dentes.

– Já se passaram quarenta e oito horas do incêndio e você só veio aqui agora. Deve estar realmente desesperada. Foi a algum lugar antes? Sou sua última tentativa?

– Sim – ela respondeu.

Os olhos dele brilharam com um elétrico brilho azul. Kelly encarou-os e, por uma fração de segundo, vislumbrou o real poder que havia dentro dele. Era como encarar uma avalanche antes de ser consumida por ela. Naquele momento, ela soube que todas as histórias eram verdadeiras. Ele era um assassino, um louco.

– Não me importo se você é o diabo em pessoa – ela sussurrou. – Por favor, traga Gavin de volta para mim.

– Está bem – ele disse.

Cinco minutos depois, ela voltava pelo caminho, tropeçando. Os olhos molhados. Kelly tentava parar de chorar, mas não conseguia. Tinha conseguido fazer o que viera fazer. O alívio era enorme.

– Kelly, querida! – Tom a chamou.

– Ele vai fazer – ela sussurrou, em estado de choque. – Ele prometeu que vai encontrar Gavin.


Todos os homens são mentirosos. Todas as mulheres são mentirosas também. Aprendi isso quando tinha dois anos de idade e minha avó me disse que se eu fosse uma boa garota e ficasse quietinha, a vacina que o médico me daria não iria doer. Foi a primeira vez que meu jovem cérebro se conectou à desconfortável sensação do meu talento mágico: detectar mentira nas ações das outras pessoas.

As pessoas mentem por diversos motivos: para se salvar, para se livrar de problemas, para evitar ferir os sentimentos do outro. Manipuladores mentem para conseguir o que querem. Narcisistas mentem para parecerem superiores aos outros. Dependentes de álcool em recuperação mentem para proteger sua já esfarrapada reputação. E aqueles que amamos mentem para nós, principalmente, porque a vida é uma montanha-russa e eles querem que passemos por ela da forma mais tranquila possível.

John Rutger mentiu porque era um canalha.

Nada em sua aparência demonstrava que ele era um ser humano desprezível. Ao sair do elevador, parecia um homem perfeitamente agradável. Alto e em forma, com cabelos castanhos levemente ondulados e apenas alguns fios grisalhos nas laterais, fazendo com que ficasse ainda mais distinto. Seu rosto era o tipo que você esperaria ver em um homem bem-sucedido e atlético, na casa dos quarenta anos: másculo, barba bem-feita, confiante. John era aquele pai bonito e elegante que vai aos jogos de futebol infantil e fica gritando palavras de incentivo para o filho. O confiável corretor de ações que nunca orientaria mal seus clientes. Inteligente, bem-sucedido, sólido como uma rocha. E a bela ruiva de mãos dadas com ele não era sua esposa.

A esposa de John se chamava Liz e, dois dias antes, ela havia me contratado para descobrir se ele a estava traindo. Liz já havia pego John pulando a cerca dez meses antes e o tinha alertado de que não haveria uma segunda chance.

John e a mulher ruiva passaram pelo saguão do hotel.

Eu estava sentada na recepção, parcialmente escondida atrás de uma planta, e fingia estar entretida com o celular enquanto a pequena câmera digital na minha bolsa preta de crochê filmava os pombinhos. O acessório havia sido escolhido precisamente por causa dos vãos decorativos.

Rutger e a acompanhante pararam a alguns passos de onde eu estava. Furiosamente, arremessei pássaros nos porcos verdes malvados na minha tela. Podem ir andando, não há nada para ver aqui além de uma jovem loira jogando no celular, atrás de umas plantas.

– Amo você – a ruiva disse.

Verdade. Otária iludida.

Os porcos riam de mim. Eu era muito ruim nesse jogo.

– Também amo você – ele disse, mirando os olhos dela.

Uma irritação já conhecida começou a se formar dentro de mim, como se uma mosca invisível estivesse rodeando minha cabeça. Minha magia estalou. John estava mentindo. Mas que surpresa.

Eu me sentia muito mal por Liz. Eles eram casados havia nove anos, tinham dois filhos – um garoto de oito anos e uma garota de quatro. Ela havia me mostrado as fotos quando me contratou. Agora seu casamento estava prestes a afundar como o Titanic, e eu estava vendo o iceberg se aproximar.

– De verdade? – a ruiva perguntou olhando para ele, completamente encantada.

– Sim. Você sabe que sim.

Mais uma vez a mágica. Mentira.

A maioria das pessoas achava o processo de mentir desgastante. Distorcer a verdade e criar uma versão plausível de realidade exigia boa memória e uma mente ágil. Quando John Rutger mentia, ele fazia isso na cara da pessoa, olhando diretamente nos olhos. E ele parecia mesmo convincente.

– Queria que pudéssemos ficar juntos – ela disse. – Estou cansada de nos escondermos.

– Eu sei. Mas não é um bom momento. Estou cuidando de tudo. Não se preocupe.

Meus primos o tinham investigado. John não tinha relação com nenhuma das famílias mágicas importantes cujas empresas eram donas de Houston. Não tinha ficha criminal, mas, ainda assim, algo em seu jeito me deixava preocupada. Meus instintos diziam que ele era perigoso. E eu acreditava nos meus instintos.

Também verificamos sua situação financeira. John não poderia arcar com o divórcio. Seus ganhos como corretor eram aceitáveis, mas não incríveis. Estava atolado em hipotecas, e todo o dinheiro que tinha estava preso em ações. Dividir tudo sairia muito caro. Ele sabia disso e por isso mesmo se esforçava para esconder as pistas. Ele e a ruiva haviam chegado em carros separados e com uma diferença de vinte minutos. Ele provavelmente a deixaria partir antes e, a julgar pela tensão visível em suas costas, a aberta demonstração de carinho não estava em seus planos.

A ruiva abriu a boca e John curvou-se para beijá-la, como se cumprisse seu dever.

Liz pagaria mil dólares quando recebesse a prova. Era tudo o que ela poderia conseguir sem que John percebesse. Não era muito, mas eles não estavam em posição de recusar trabalho e, diante das circunstâncias, aquela havia sido uma tarefa simples. Assim que fossem embora do hotel, eu sairia pela porta lateral, avisaria Liz e pegaria o pagamento.

As portas se abriram e Liz Rutger entrou no saguão.

Todo o meu nervosismo veio à tona. Por quê? Por que as pessoas nunca me escutam? Havíamos concordado expressamente que ela não deveria investigar por conta própria. Isso nunca dava certo.

Liz viu os dois se beijando e ficou branca como papel. John largou a amante, chocado. A ruiva olhou para Liz, apavorada.

– Não é o que parece – John disse. Mas era exatamente o que parecia.

– Olá! – Liz disse, extremamente alto, com a voz estridente. – Quem é você? Porque eu sou a esposa dele! – A ruiva saiu correndo e desapareceu pelo hotel. Liz se virou para o marido – Você.

– Não vamos fazer isso aqui.

– Agora você está preocupado com as aparências? Agora?

– Elizabeth. – A voz dele tremia.

– Você estragou nossa vida. Estragou tudo.

– Escute...

Ela abriu a boca. As palavras demoraram alguns segundos para sair, como se ela tivesse precisado forçá-las.

– Eu quero o divórcio.

Trabalho no ramo de família desde os dezessete anos e vi o preciso momento em que a adrenalina foi liberada no organismo de John. Alguns caras ficam com o rosto vermelho e começam a gritar. Alguns congelam: esses são os que se roem de medo. Basta pressionar que ficam loucos. John Rutger ficou imóvel. Todas as emoções sumiram de seu rosto. Seus olhos se arregalaram e, por trás disso, uma mente calculista avaliava a situação com fria precisão.

– Ok – John disse tranquilamente. – Vamos conversar a respeito. Não somos só nós, temos também as crianças. Vamos, eu levo você para casa. – Ele pegou no braço dela.

– Não encoste em mim – ela retrucou.

– Liz – ele disse, a voz completamente tranquila, os olhos focados, predadores, como um atirador de elite observando o alvo. – Essa não é uma conversa para termos na recepção de um hotel. Não faça cena. Somos melhores do que isso. Eu dirijo.

Não havia chance de eu deixar Liz entrar naquele carro. Os olhos de John me diziam que se ele conseguisse controlá-la, eu nunca mais a veria.

Rapidamente, me coloquei entre os dois.

– Nevada? – Liz piscou, abalada.

– Vá embora – eu disse a ela.

– Quem é essa? – John perguntou, focando em mim.

Isso mesmo, olhe para mim, não olhe para ela. Sou uma ameaça maior. Bloqueei Liz fisicamente, mantendo-me entre os dois.

– Liz, vá para o seu carro. Não volte para casa. Vá para a casa de algum parente. Agora!

Os músculos da mandíbula de John saltaram quando ele cerrou os dentes.

– O quê?

Liz olhou para mim.

– Você a contratou para me espionar. – John ajeitou os ombros e mexeu o pescoço, como um lutador se preparando para entrar no ringue. – Colocou essa mulher dentro da nossa vida particular.

– Agora! – gritei.

Liz se virou e foi embora.

Ergui as mãos, rendida, e fui caminhando para a saída, garantindo que a câmera da recepção do hotel tivesse plena cobertura da cena. Atrás de mim, ouvi a porta se abrindo enquanto Liz esperava para sair.

– Acabou, senhor Rutger. Não sou uma ameaça.

– Sua vagabunda intrometida. Você e aquela desgraçada estão juntas nisso.

Na recepção, o concierge apertava freneticamente os botões de um telefone.

Se eu estivesse sozinha, já teria ido embora. Algumas pessoas não se movem, independentemente do que aconteça. No meu trabalho, uma temporada no hospital acompanhada por uma conta que você não possa pagar muda essa noção rapidinho. Se pudesse, eu correria como um coelho, mas precisava ganhar tempo para Liz poder chegar até o carro.

John ergueu os braços, dobrou os cotovelos, as palmas para cima, os dedos afastados, como se segurasse duas bolas invisíveis nas mãos. A pose mágica. Merda.

– Senhor Rutger, não faça isso. Adultério não é ilegal. O senhor não cometeu nenhum crime ainda. Por favor, não faça isso. – Ele me olhava, frio e duro. – O senhor ainda pode sair desta situação.

– Você achou que poderia me humilhar. Achou que poderia me envergonhar. – O rosto dele escureceu e sombras mágicas e fantasmagóricas começaram a passar por sua pele. Pequenas faíscas vermelhas se acendiam e se dilatavam nas palmas de suas mãos.

Onde estava a segurança do hotel? Eu não conseguiria vencê-lo antes. Seria um ataque, e não podíamos nos dar ao luxo de ser processados, mas o hotel podia.

– Deixa eu te mostrar o que acontece com quem tenta me humilhar.

Joguei-me para o lado.

Uma trovoada. As portas de vidro do hotel se estilhaçaram. A onda da explosão me arremessou ao chão. Vi a cadeira da recepção passar por mim voando e ergui as mãos para me proteger. A parede caiu no meu ombro direito. A cadeira bateu no meu corpo e no meu rosto. Ai.

Caí ao lado dos cacos de um vaso de cerâmica que, segundos antes, tinha uma planta. Então, levantei-me com dificuldade.

As faíscas vermelhas começaram novamente. Ele estava se preparando para o segundo round.

Dizem que uma mulher de sessenta quilos não tem chances contra um homem de cem. É uma mentira. Você só precisa tomar a decisão de machucá-lo e colocá-la em prática.

Peguei um pedaço pesado de cerâmica e o arremessei contra ele. Bateu em seu peito e o fez perder o equilíbrio. Corri em sua direção, pegando uma arma de choque no meu bolso. Ele se virou para mim e me golpeou. Rápido e firme, bem no meu estômago. Lágrimas emergiram em meus olhos. Saltei para a frente e coloquei a arma no pescoço dele.

O choque percorreu todo o seu corpo. Seus olhos ficaram esbugalhados.

Por favor, faça ele cair. Por favor.

A boca dele se abriu. John ficou duro e caiu como um pedaço de madeira.

Ajoelhei-me sobre seu pescoço e peguei um lacre plástico no bolso para lhe atar as mãos.

John grunhiu.

Sentei ao seu lado, no chão. Meu rosto doía.

Dois homens cruzaram as portas laterais e correram em nossa direção. Seus uniformes diziam: SEGURANÇA. Bom, agora eles aparecem. Graças a Deus pela gentileza.

Ao longe, ouviam-se as sirenes da polícia.


Sargento Munoz, um homem atarracado com o dobro da minha idade, via a gravação das câmeras de segurança. Já tinha visto as imagens duas vezes.

– Eu não podia deixar que ele a colocasse no carro – falei de minha cadeira. Meu ombro doía e as algemas em meus pulsos me impediam de massageá-lo. Ficar tão perto dos policiais me deixava muito ansiosa. Eu queria me mover, estava impaciente, mas isso demonstraria meu nervosismo.

– Você estava certa – Munoz disse e bateu na tela, ao parar a imagem quando John Rutger se aproximava da esposa. – Foi bem aqui que ele se entregou. O homem é pego de calças curtas e não diz “desculpe, estraguei tudo”. Não implora perdão nem se irrita. Torna-se frio e tenta tirar sua esposa da equação.

– Eu não o provoquei. Também não coloquei minhas mãos nele antes de ele tentar me matar.

– Eu vi. – O homem se virou na minha direção. – Aquela era uma arma de choque Taser C2. Você sabe que deve ser usada a uma distância de quatro metros, não sabe?

– Não quis correr riscos. A magia dele me parecia elétrica e achei que ele pudesse bloquear a corrente.

– Não. – Munoz balançou a cabeça. – A magia dele é enercinética. Pura energia mágica. E ele é treinado para usá-la, um brinde do Exército norte-americano. Esse cara é um veterano.

– Ah! – Isso explicava a reação de Rutger. Lidar com adrenalina não era algo novo para ele. O fato de ser enercinético também fazia sentido. Os pirocinéticos manipulavam fogo; aquacinéticos, água, e os enercinéticos manipulavam a energia mágica pura. Ninguém sabia ao certo qual a origem de tal energia, mas era uma magia relativamente comum. Como foi possível Bern não ter descoberto isso ao verificar a ficha do sujeito? Quando eu chegasse em casa, meu primo e eu precisaríamos conversar.

Um policial uniformizado entrou pela porta e devolveu meu documento para Munoz.

– Ela pode ir.

Munoz soltou as algemas e as tirou de meus pulsos. Depois, devolveu minha bolsa e minha câmera e, na sequência, meu celular e minha carteira.

– Temos seu depoimento e ficamos com o cartão de memória. Vamos devolvê-lo depois. Vá para casa e coloque um pouco de gelo no pescoço.

– Vai me mandar não sair da cidade, sargento? – perguntei sorrindo.

– Não. – Ele me olhou sem achar graça. – Você enfrentou um militar graduado sozinha. Se precisa tanto assim de dinheiro, provavelmente não pode pagar o combustível.

Três minutos depois, eu estava entrando em minha minivan Mazda de cinco anos. Os documentos diziam que era “dourada”. Mas todos diziam que “parecia champanhe” ou “um tom de bege”. Junto ao visual de carro de família, era perfeita para fazer vigilância. Ninguém prestava atenção. Uma vez, segui um homem por duas horas com esse carro em uma estrada quase deserta e, quando a empresa de seguros apresentou a gravação demonstrando que o joelho do homem funcionava muito bem enquanto ele trocava as marchas na estrada, ele ficou absolutamente surpreso.

Virei o espelho. Uma grande marca vermelha que se tornaria um hematoma roxo ia do meu pescoço até o ombro direito. Parecia que alguém tinha pegado um monte de mirtilos e esfregado em mim. Uma marca tão vermelha e nítida quanto a outra podia ser vista na mandíbula, do lado esquerdo. Suspirei, voltei o retrovisor para a posição correta e fui para casa.

Que trabalhinho fácil esse acabou sendo. Ao menos não precisei ir para o hospital. Eu ri. O hematoma decidiu que não era bom eu rir. Ai.

A Agência de Investigações Baylor começou como um negócio de família. Ainda era um negócio de família. Tecnicamente, os donos eram outros, mas nos deixavam basicamente sozinhos para cuidar de tudo. Só tínhamos três regras. Regra número 1: somos contratados. Quando um cliente nos contrata, somos fiéis a ele. Regra número 2: não infringimos a lei. Essa era uma boa regra. Assim, mantínhamo-nos longe da prisão e de litígios. E, regra número 3, a mais importante de todas: no fim do dia, ainda devemos ser capazes de nos olhar no espelho. Hoje eu havia cumprido a regra número 3. Talvez estivesse louca e John Rutger fosse levar a esposa para casa e implorar seu perdão de joelhos. Mas, no fim das contas, eu não me arrependia, e não precisava me importar se tinha feito a coisa certa ou se os filhos de Liz veriam a mãe novamente.

Quanto ao pai das crianças, a história era outra, mas ele não era mais problema meu. Ele havia feito aquela bagunça toda por conta própria.

Fugi do trânsito pela I-290 sentido noroeste, depois, virei para o sul. Poucos minutos depois, parava meu carro em frente ao nosso galpão. O velho Civic preto de Bern estava na vaga da garagem bem ao lado do Honda Element azul de minha mãe. Ah, Deus. Todos estavam em casa.

Estacionei, fui até a porta, digitei o código de segurança e ela se abriu. Então, passei e parei por um momento para ouvir o som da porta se trancando atrás de mim.

Quando a gente entrava no galpão por aquela porta, parecia um escritório comum. Fizemos paredes, instalamos painéis de espelho, e colocamos um piso bege para tráfego intenso. Assim, tínhamos três escritórios do lado esquerdo, uma sala de descanso e uma grande sala de reunião do lado direito. O teto baixo completava a ilusão.

Entrei em meu escritório, coloquei a bolsa e a câmera sobre a mesa e me sentei na cadeira. Eu deveria preencher um relatório escrito, mas não estava com vontade. Faria isso mais tarde.

O escritório tinha isolamento acústico. À minha volta, tudo estava em silêncio. Um odor familiar de óleo de toranja no aromatizador chegou até mim. Os óleos eram meu pequeno luxo. Senti a fragrância. Eu estava em casa.

Havia sobrevivido. Se eu tivesse batido a cabeça na parede quando Rutger me arremessou para longe, poderia ter morrido hoje. Nesse exato momento eu poderia estar morta em vez de sentada no meu escritório, a seis metros da minha casa. Minha mãe poderia estar no necrotério, identificando meu corpo. Meu coração deu um salto no peito. Senti-me nauseada, minha garganta travou. Inclinei-me para a frente e me concentrei em respirar. Respirar fundo e tranquilamente. Só precisava fazer isso.

Inspirar e expirar. Inspirar e expirar.

Lentamente a ansiedade foi diminuindo.

Inspirar e expirar.

Agora sim.

Levantei-me e cruzei o escritório, indo até a sala de descanso. Abri a porta dos fundos e entrei no galpão. Um amplo e luxuoso corredor com um piso polido que refletia as luzes suavemente. Acima de mim, quase dez metros até o teto. Depois de precisarmos vender a casa e nos mudar para o galpão, minha mãe e meu pai consideraram fazer o interior parecido com uma casa de verdade. Em vez disso, acabamos construindo uma grande parede separando essa parte do galpão – a parte onde vivíamos – da garagem da minha avó, assim, não precisaríamos aquecer ou resfriar os 6 mil metros quadrados do galpão. O restante das paredes surgiram organicamente, o que é um eufemismo para dizer que fomos levantando as paredes à medida que se fazia necessário e com o material que tínhamos em mãos.

Se minha mãe me visse, eu não me livraria de um exame médico completo. Tudo o que eu queria era tomar um banho e comer alguma coisa. A essa hora, ela costumava estar com minha avó, ajudando-a no trabalho. Se eu fosse bastante silenciosa, poderia chegar até meu quarto. Fui na ponta dos pés pelo corredor. Tenha pensamentos discretos... se faça invisível... Com sorte, não aconteceria nada que pudesse chamar a atenção.

– Eu mato você! – Uma voz conhecida fez-se ouvir, vindo da direita.

Droga, era Arabella, claro. Minha irmã mais nova que, a julgar pelo tom de voz, estava irritada.

– Isso é muito maduro! – Era Catalina, a de dezessete anos. Dois anos mais velha do que Arabella e oito anos mais nova do que eu.

Eu precisava resolver isso antes que minha mãe viesse ver o que estava acontecendo. Acelerei o passo e fui para a sala de entretenimento.

– Pelo menos eu não sou uma idiota sem amigos!

– Pelo menos eu não sou gorda!

– Pelo menos eu não sou feia!

Nenhuma delas era gorda, feia ou promíscua. As duas eram grandes exageradas, e se eu não cuidasse daquilo logo, minha mãe chegaria em segundos.

– Odeio você!

Entrei na sala. Catalina, magra e de cabelos escuros, estava à direita, com os braços cruzados na frente do peito. À esquerda, Bern cuidadosamente segurava Arabella pela cintura, acima do chão. Arabella era muito forte, mas Bern havia praticado lutas na escola e treinava judô duas vezes por semana. Agora, com dezenove anos, ainda em crescimento, ele já passava de um metro e oitenta e pesava cerca de cem quilos, a maior parte em fortes músculos. Segurar Arabela e seus cinquenta quilos não era problema.

– Me solta! – Arabella gritou.

– Pense no que está fazendo – Bern disse, com sua voz profunda e paciente. – Concordamos que não haveria violência.

– O que foi agora? – perguntei.

Catalina apontou o dedo em direção a Arabella.

– Ela nunca coloca a tampa na minha base líquida. E agora ela secou!

Claro. Elas nunca brigavam por nada importante. Nunca roubaram uma da outra, nunca tentaram sabotar o relacionamento uma da outra, e se alguém ousasse olhar torto para uma, a outra seria a primeira a partir em sua defesa. Mas, se uma pegasse a escova de cabelos da outra e não limpasse, tinha início a Terceira Guerra Mundial.

– Não é verdade... – Arabella parou. – Neva, o que aconteceu com seu rosto?

Tudo parou. Então, todos começaram a falar ao mesmo tempo, muito alto.

– Shhh! Acalmem-se, é só um cosmético, só preciso de um banho. Além disso, parem de brigar. Se não pararem, a mamãe vai vir aqui e eu não quero que ela...

– Não quer que eu o quê?

Minha mãe entrou na sala, mancando levemente. A perna a estava incomodando mais uma vez. De altura mediana, ela costumava ser magra e forte, mas o ferimento acabou com ela. Agora era mais flácida, tinha o rosto redondo. Olhos escuros, como os meus, mas tinha os cabelos castanhos.

Na sequência veio minha avó Frida, mais ou menos da minha altura, era magra e com cachos platinados manchados com graxa. O cheiro familiar de óleo de motor, borracha e pólvora se espalhou pela sala. Os olhos azuis da vovó Frida se arregalaram. Ah, não!

– Penelope, por que a bebê está machucada?

A melhor defesa é a ofensiva vigorosa:

– Não sou um bebê. Tenho vinte e cinco anos.

Eu tinha sido a primeira neta de minha avó. Se ela vivesse até eu ter cinquenta anos e ter meus próprios netos, continuaria a me chamar de “bebê”.

– Como isso aconteceu? – minha mãe perguntou.

Droga.

– Uma explosão mágica, uma parede e uma cadeira.

– Explosão mágica? – Bern questionou.

– Caso Rutger.

– Achei que ele não tivesse poderes.

– Magia enercinética. – Balancei a cabeça. – Ele é um veterano.

Bern ficou sem palavras, franziu o cenho e saiu da sala.

– Arabella, pegue o kit de primeiros-socorros – mamãe disse. – Nevada, deite-se. Você pode ter tido uma concussão.

Arabella saiu correndo.

– Não está tão ruim! E não tenho uma concussão.

Minha mãe se virou e olhou para mim. Eu conhecia aquele olhar. Era o olhar da sargento Baylor. Não havia como escapar.

– Os paramédicos examinaram você no local?

– Examinaram.

– E o que disseram?

– Disseram que, por via das dúvidas, eu deveria ir até o hospital. – Não havia motivos para mentir.

– E você foi? – Minha mãe me fuzilou com o olhar.

– Não.

– Deite-se.

Suspirei e me entreguei ao meu destino.


Na manhã seguinte, sentei-me na sala e comi os crepes e as salsichas que minha mãe havia preparado para mim. Meu pescoço ainda doía, mas a lateral do meu corpo doía ainda mais.

Ela estava sentada do outro lado, mexendo no cabelo de Arabella. Aparentemente, a última moda entre adolescentes tinha algo a ver com elaboradas tranças, e Arabella havia, de alguma forma, persuadido nossa mãe a ajudá-la.

No canto esquerdo da tela, a apresentadora do jornal, com seu cabelo impossivelmente perfeito, informava sobre o recente incêndio na First National, enquanto, do lado esquerdo, via-se um tornado engolindo um edifício. As chamas laranja saíam pelas janelas.

– Isso é horrível – mamãe disse.

– Alguém morreu? – perguntei.

– Um segurança. A esposa e os dois filhos tinham ido levar o jantar dele e também se queimaram, mas sobreviveram. Aparentemente Adam Pierce está envolvido.

Todos em Houston conheciam Adam Pierce. Usuários de magia eram divididos em cinco níveis: Baixo, Padrão, Notável, Significativo e Superior. Pierce havia nascido com o talento pirocinético. Ele era mais que Superior. Um pirocinético era considerado Padrão se pudesse derreter um metro cúbico de gelo em um minuto. No mesmo tempo, Adam Pierce podia derreter um metro cúbico de aço inoxidável. Isso o colocava no topo da classificação dos usuários de magia. Todos o queriam: os militares, a defesa nacional e o setor privado.

Uma família rica e bem estabelecida, os Pierce eram proprietários da Firbug, Inc., a principal fornecedora de produtos de fundição industrial. Adam, bonito e espetacularmente poderoso em termos mágicos, era o orgulho e a alegria da Casa Pierce. Ele havia crescido no meio do luxo, ido a todas as melhores escolas, usado as roupas certas, e seu futuro tinha brilhos dourados por todos os lados. Era uma estrela ascendente e o solteiro mais cobiçado. Então, aos vinte e dois anos, mandou todos à merda, foi embora e deu início a uma gangue de motoqueiros.

Desde então, Pierce aparecia de tempos em tempos no jornal por uma coisa ou outra, em geral envolvendo policiais, crimes e declarações perturbadoras. A mídia o adorava, seu nome dava audiência.

Como se fosse uma pista, o rosto de Pierce preenchia o lado direito da tela. Ele usava sua marca registrada: calça jeans preta e uma jaqueta preta de couro aberta sobre o tronco nu e musculoso. Uma tatuagem de um símbolo celta cobria seu peitoral esquerdo, e uma pantera de boca aberta e chifres decorava o lado direito do abdômen definido. Os longos cabelos castanhos caíam pelo rosto, destacando seus ângulos perfeitos com a barba por fazer só para dar uma graça. Se você o deixasse limpo, pareceria um anjo. Mas, na verdade, era uma fachada de anjo mau, as asas artisticamente chamuscadas, e, em mente, o ângulo perfeito para posar para a câmera.

Eu conhecia motoqueiros de gangues. Não os motoqueiros de fim de semana, que eram médicos e advogados na vida real, mas os verdadeiros, aqueles que viviam na estrada. Eles eram duros, não muito bem cuidados, com olhos de chumbo. Pierce era mais como o protagonista bancando o cara mau em um filme de ação. Sorte dele poder fazer o próprio cenário de chamas flamejantes.

– Quente! – Arabella disse.

– Pare com isso – nossa mãe respondeu.

– Ah, esse é o meu garoto – disse a vovó Frida ao entrar na sala.

– Mãe! – minha mãe recriminou.

– O que foi? Não posso evitar. São os olhos do demônio.

Pierce tinha mesmo olhos de demônio. Escuros e profundos, da cor do café, imprevisíveis e cheios de loucura. Era muito bom olhar para ele, mas todas as suas imagens pareciam ensaiadas. Parecia que ele sempre sabia onde a câmera estava. E se eu um dia o visse pessoalmente, correria para o outro lado como se minhas costas estivessem pegando fogo. Se eu hesitasse, provavelmente pegariam.

– Ele matou um homem – mamãe disse.

– Foi armação – vovó Frida retrucou.

– A senhora nem sabe da história.

– Armação. Um homem tão bonito não pode ser assassino. – Minha mãe a encarou. – Penelope, tenho setenta e dois anos. Deixe que eu tenha minhas fantasias.

– Isso aí, vó. – Arabella deu um soco no ar.

– Se insistir em defender sua avó, pode pedir para ela cuidar do seu cabelo.

– Voltaremos a falar da investigação do incêndio depois dos comerciais – a apresentadora anunciou. – E também: conhecido parque no centro da cidade infestado de ratos. – A imagem do Bridge Park apareceu na tela com a estátua de bronze de um caubói em tamanho real em primeiro plano e centralizada. – Os oficiais de Harris County devem adotar medidas drásticas? Mais, depois dos comerciais.

Bern entrou na sala:

– Ei, Nevada. Você pode vir comigo um minuto?

Levantei-me e o acompanhei. Sem dizer uma palavra, seguimos pelo corredor até a cozinha. Era o lugar mais próximo onde nem nossa mãe nem nossa avó poderiam nos ouvir.

– O que foi?

Bern passou a mão pelos cabelos curtos castanho-claros e me entregou uma pasta. Abri-a e a examinei. Era a linhagem de John Rutger, e a verificação de seu passado. Uma linha estava grifada em amarelo: “Dispensa Honrosa, Sigilo.”

– Ahá! – Ergui o dedo.

– Ahá – Bern confirmou.

Em geral, empresários gostavam de contratar ex-militares. São pontuais, disciplinados, educados e capazes de tomar decisões rápidas quando se faz necessário. Mas ex-combatentes costumavam fazer os gerentes de recursos humanos tradicionais fugirem para o outro lado. Ninguém queria um cara estressado no escritório quando ele tinha a capacidade de convocar um monte de sanguessugas. Para resolver isso, o Departamento de Defesa começou a tornar secretos os registros de seus ex-combatentes. Um registro secreto nem sempre significava que o ex-combatente tinha capacidades mágicas, mas teria me dado um bom alerta. Teria me aproximado de Rutger de uma forma completamente diferente.

– Estraguei tudo. – Bern se apoiou no balcão. Seus olhos cinzentos estavam cheios de remorso. – Tinha uma prova de História Moderna. Não é minha melhor matéria, eu precisava ao menos tirar B para manter a bolsa, por isso tive que estudar. Passei pro Leon. Ele viu a linhagem e o histórico, mas esqueceu de logar no banco de dados do Departamento de Defesa.

– Tudo bem.

Leon tinha quinze anos. Conseguir fazer com que ele ficasse sentado por mais de trinta segundos era como tentar dar banho em gatos.

– Não. – Bern pinçou a ponta do nariz. – Não está tudo bem. Você me pediu para fazer isso. Eu deveria ter feito. Você se feriu. Não vai acontecer de novo.

– Não se desgaste – eu disse. – Já deixei passar coisas antes. Acontece. Só não se esqueça mais de verificar o banco de dados do Departamento de Defesa. Você conseguiu a nota?

Ele fez que sim.

– É interessante, na verdade. Você conhece a história da vaca da senhora O’Leary?

Eu costumava gostar de História. Até pensei em me formar nisso, mas a vida real entrou nos meus planos.

– Não foi ela quem quebrou uma lâmpada no celeiro e começou o maior incêndio de Chicago por volta de 1860?

– Em outubro de 1871 – Bern corrigiu. – Meu professor não acha que foi a vaca; ele acha que foi magia.

– Em 1871, o Soro Osíris tinha acabado de ser descoberto.

– É uma teoria bem interessante. Você deveria conversar com ele um dia desses, ele é um cara bem legal.

Sorri. Tinha gasto quatro anos, incluindo os verões, para conseguir um diploma em Justiça Criminal porque eu precisava trabalhar. Bern tinha conseguido uma bolsa porque era mais inteligente do que todos nós juntos e agora ele até gostava de uma das aulas adicionais de seu curso.

– E tem mais – Bern continuou –, Montgomery quer nos ver.

Senti meu estômago revirar. A Casa Montgomery era nossa proprietária. Quando as economias e a venda da casa não foram suficientes para pagar as despesas médicas do papai, vendemos a empresa para os Montgomery. Tecnicamente, era uma hipoteca. Tínhamos um termo de recompra de trinta anos e todos os meses nos espremíamos para pagar o valor mínimo. Os termos de nossa hipoteca basicamente nos tornavam uma subsidiária da Montgomery Investigações Internacionais. E eles tinham tido muito pouco interesse em nós até aquele momento. Éramos muito pequenos para sermos de alguma serventia. E eles não tinham motivos para nos incomodar desde que o cheque tivesse fundos. E o cheque sempre tinha fundos, eu me certificava disso.

– Disseram para ser o mais rápido possível – Bern disse. – Isso parece rotineiro?

– Não. – Droga. – Não diga nada para a mamãe nem para a vovó.

– Elas só vão ficar nervosas – ele concordou.

– Sim. Eu ligo pra você assim que descobrir do que se trata. Espero que a gente tenha apenas esquecido de preencher algum formulário ou algo assim.

Eu já estava na porta quando ele me chamou.

– Nevada? A esposa de John Rutger já transferiu o dinheiro. Mil dólares, como combinado.

– Bom – eu disse e fui embora. Precisava pentear o cabelo, me arrumar e cruzar a cidade até as torres de vidro.

Sério, podia ser pior do que isso?


A torre assimétrica de vidro da Montgomery Investigações Internacionais, ou MII, erguia-se acima dos prédios comerciais da vizinhança como uma barbatana de tubarão de vidro azul. Eram vinte e cinco andares, brilhando com centenas de janelas azul-cobalto. Uma construção feita para impressionar e deixar todos encantados com a magnificência da Casa Montgomery. Tentei encontrar o encanto, mas fui preenchida apenas por ansiedade.

Atravessei a porta e fui até o elevador depois de passar pelo detector de metais. A mensagem enviada dizia para eu ir ao décimo sétimo andar. Então, entrei no elevador quando as portas se abriram, apertei o botão que indicava o décimo sétimo andar e esperei até chegar lá.

O que eles poderiam querer?

As portas se abriram e eu pude ver um amplo espaço com uma mesa de recepção feita com tubos cromados de aço. Ao menos sete metros separavam o piso azul-escuro brilhante do teto branco. Saí antes que as portas do elevador se fechassem. As paredes eram absolutamente brancas, mas as enormes placas de vidro azul-cobalto das janelas atrás da recepcionista deixavam o dia levemente azulado, como se estivéssemos debaixo d’água. Era tudo extremamente moderno, clássico e um pouco sem alma. Até mesmo as orquídeas brancas como neve sobre a mesa da recepção não ajudavam a acrescentar um pouco de calor ao ambiente. A MII poderia ter revestido as paredes com dinheiro e encerrar o assunto.

A recepcionista olhou para mim. Seu rosto era impecável, levemente moreno, com enormes olhos azuis e lábios rosados artisticamente contornados. Seu cabelo ruivo estava preso em um perfeito coque francês. Era possível ver cada fio de seus longos cílios e nenhum deles tinha excesso de rímel. Ela usava um vestido branco que serviria de manga para alguém. Ela piscou ao ver meu rosto ferido.

– Posso ajudar?

– Tenho uma reunião com Augustine Montgomery. Meu nome é Nevada Baylor. – Sorri.

– Me acompanhe. – A recepcionista se levantou.

Eu a segui. Provavelmente tínhamos a mesma altura, mas os saltos dela acrescentavam quase vinte centímetros. Ela foi pelo corredor curvo.

– Quanto tempo demora? – perguntei.

– Desculpe?

– Quanto tempo demora para se arrumar para vir trabalhar?

– Duas horas e meia – ela disse.

– Eles pagam hora extra?

Ela parou na frente de uma parede de vidro jateado. As plumas brancas no padrão do vidro se moviam pela superfície de um jeito hipnótico. Aqui e ali um pequeno ponto de puro ouro brilhava e desvanecia. Uau.

Uma parte da parede deslizou para o lado. A recepcionista me olhou. Passei pelo vão e entrei no amplo escritório. Deveríamos estar no topo da barbatana, pois a parede da esquerda seguia para o alto toda em vidro azul. Uma mesa ultramoderna parecia sair do chão. Atrás dela, estava um homem de terno. Estava de cabeça baixa, pois lia algo em um pequeno tablet. Tudo o que eu podia ver era um cabelo loiro-escuro bonito em um corte certamente muito caro.

Aproximei-me e parei ao lado da cadeira branca na frente da mesa. Bom terno, naquela cor entre o cinza e o preto verdadeiro que as pessoas costumam chamar de chumbo.

O homem olhou para mim. Às vezes, pessoas com talento para ilusionismo minimizavam seus defeitos físicos com mágica. A julgar por seu rosto, Augustine Montgomery era Superior. Sua aparência era perfeita no estilo das estátuas gregas: traços masculinos e duros, mas de forma alguma brutos. Barba bem-feita, um nariz marcado e uma boca firme. Era o tipo de beleza que fazia você ficar olhando. A pele quase brilhava e os olhos verdes focavam em você com uma profunda inteligência por trás de óculos quase invisíveis. Era provável que precisasse de segurança particular ao sair do prédio para afastar todos os escultores que deviam querer imortalizá-lo em mármore.

Os óculos eram um toque de mestre. Sem eles, aquele homem seria um deus sobre uma nuvem, mas a finíssima armação mantinha um de seus pés no chão, junto de nós, meros mortais.

– Senhor Montgomery – eu disse. – Sou Nevada Baylor. O senhor queria me ver?

– Sente-se, por favor. – Ele apontou para a cadeira, elegantemente ignorando os hematomas no meu rosto. Eu me sentei. – Tenho uma tarefa para você.

Nos cinco anos em que pertencíamos a eles, nunca nos deram uma atribuição. Que seja algo simples, por favor...

– Queremos pegar esse homem. – Ele deslizou uma fotografia pela mesa.

Eu me inclinei e vi Adam Pierce olhando para mim com seus olhos de louco.

– É alguma piada?

– Não.

Encarei Montgomery.

– Diante dos eventos recentes, a família Pierce está preocupada com o bem-estar de Adam. Eles gostariam que nós o trouxéssemos para casa. Como vocês são nossos subsidiários, achamos que se encaixariam perfeitamente na missão. O pagamento que receberão será de 50 mil dólares.

Eu não conseguia acreditar.

– Somos uma pequena empresa familiar. Veja nossos registros. Não somos caçadores de recompensas. Investigamos pequenas fraudes contra seguradoras e casos de adultério.

– Chegou a hora de ampliar os horizontes. Vocês apresentam noventa por cento de sucesso em seus casos. Têm nossa total confiança.

Temos noventa por cento de sucesso porque eu não pegava casos com os quais não podíamos lidar.

– Ele é um pirocinético Superior. Não temos essa força de trabalho.

Ele franziu o cenho, como se estivesse se irritando.

– Estou falando de um funcionário de período integral e cinco de meio período. Reúna sua equipe e se concentrem nisso.

– Por acaso o senhor já verificou os dados desses funcionários de meio período? Vou ajudar: três deles têm menos de dezesseis anos e um acabou de fazer dezenove. São minhas irmãs e meus primos. O senhor está pedindo que eu vá atrás de Adam Pierce com crianças.

Montgomery digitou algo em seu teclado.

– Aqui diz que sua mãe é uma veterana condecorada do Exército.

– Minha mãe se feriu gravemente em 1995, durante as operações na Bósnia. Ela foi capturada e ficou presa em um buraco no chão por dois meses junto de outros soldados. Acreditavam que tinha morrido e, por acaso, foi resgatada. Mas ela teve danos permanentes na perna esquerda. Sua velocidade máxima é de oito quilômetros por hora.

Montgomery recostou-se na cadeira. Eu prossegui:

– Sua capacidade mágica está na coordenação da visão com as ações manuais. Ela pode atirar na cabeça de alguém a uma distância muito grande. Mas isso não ajuda em nada, já que querem Pierce vivo. E minha capacidade mágica...

– Sua capacidade mágica? – Ele focou em mim.

Droga. As fichas diziam que eu não tinha capacidade mágica...

– ... não existe. Isso é suicídio. O senhor tem vinte vezes os recursos humanos e tecnológicos que temos. Por que está fazendo isso com a gente? Acha que temos alguma chance?

– Acho.

Minha magia zumbiu. Ele acabava de mentir. Perceber isso fez com que eu sentisse uma parede de tijolos caindo sobre minha cabeça.

– É isso, não é? O senhor sabe que pegar Pierce vai ser caro e difícil. Vai perder pessoal, pessoal treinado e experiente, em quem investiu tempo e dinheiro e, no final das contas, vai sair mais caro do que a quantia que a família está pagando pelo trabalho. Mas, provavelmente, não podem recusar um pedido da Casa Pierce, então, vão passá-lo para nós e, quando isso tudo acabar em tragédia, vão poder mostrar os registros a eles. Vão poder dizer aos Pierce que vocês passaram a missão para uma equipe de seis pessoas com uma taxa de sucesso de mais de noventa por cento. Fizeram tudo o que podiam. O senhor espera que a gente fracasse e que provavelmente morra para preservar sua imagem e segurança.

– Não tem necessidade de ser dramática.

– Não aceito. – Eu não podia. Era impossível.

Montgomery digitou mais alguma coisa e virou o monitor para mim. Um documento com um trecho destacado em amarelo aparecia na tela.

– Este é o seu contrato. O trecho destacado indica que recusar uma atribuição da MII constitui quebra de contrato e que todo o valor devido deve ser pago. – Rangi os dentes. – Vocês têm condições para isso?

Eu queria poder esganá-lo do outro lado da mesa. Ele repetiu, lentamente, como se eu não tivesse ouvido:

– Senhorita Baylor. Vocês podem pagar todo o valor devido?

Minha mandíbula travou.

– Não.

Montgomery esticou os braços.

– Vou ser perfeitamente claro: ou fazem isso ou tomo o negócio de vocês.

– O senhor não está me dando escolha.

– Mas é claro que você tem escolha. Pode aceitar a tarefa ou desocupar suas instalações.

Se fosse assim, perderíamos tudo. O galpão era da empresa, os carros eram da empresa. Ficaríamos sem casa.

– Sempre pagamos em dia. Nunca lhe causamos nenhum tipo de problema. – Tirei a carteira da bolsa e coloquei uma foto de minha família sobre a mesa. Havia sido tirada alguns meses antes e estávamos todos espremidos ali. – Sou tudo o que eles têm. Nosso pai morreu, nossa mãe ficou incapaz. Se algo acontecer comigo, eles não vão ter a quem recorrer.

Ele olhou para a foto. Uma sombra passou por seu rosto, depois, ficou sem expressão novamente.

– Exijo uma resposta, senhorita Baylor.

Talvez eu pudesse aceitar a missão e fazer mais ou menos. Era pouco usual, mas eu precisava fazer o que pudesse para sobreviver.

– E se os policiais o pegarem antes?

– Então seu trabalho está perdido. Você deve trazê-lo para nós, vivo, e antes de as autoridades colocarem as mãos nele.

Droga!

– E o que acontece se eu morrer?

Augustine ergueu a mão, movendo o texto no monitor.

– Vocês são uma firma de investigação licenciada. Quando compramos a empresa, investimos na sua capacidade de dar lucro. Sem isso, não temos interesse no seu negócio. De acordo com os termos do contrato, seus ativos vão ser usados para cobrir o prejuízo. Confiscaremos qualquer dinheiro ou ativos líquidos: ações, instrumentos de mercado monetário etc., que a empresa possui para podermos recuperar o empréstimo.

– E quanto ao nome da agência?

Ele deu de ombros.

– Tenho certeza de que chegaremos a um acordo.

Eu tinha um seguro pessoal de um milhão de dólares. Havia pago por ele com meu próprio salário por ser paranoica com a possibilidade de algo me acontecer e de a família ficar sem nada. A curto prazo, eu valia mais morta do que viva. Com um milhão, Bern poderia continuar na escola, ninguém seria despejado e, se fossem, haveria dinheiro suficiente para manter a família a salvo. Minha mãe poderia comprar o nome e contratar um investigador.

– Sim ou não? – Augustine perguntou.

De um lado da balança, minha família; do outro, possivelmente minha vida.

– Sim – eu disse. – O senhor é uma pessoa terrível.

– Vou ter que lidar com isso.

– Sim, vai mesmo. Escreva um adendo ao contrato dizendo que, no caso da minha morte, minha família pode comprar o nome da agência por um dólar, e eu vou atrás de Pierce.

– Um dólar?

– Se eu morrer, minha família fica com a empresa. É pegar ou largar.

– Muito bem.

Os dedos dele digitaram no teclado. Um pedaço de papel saiu da impressora. Li o conteúdo e assinei. Depois o observei escrever seu nome com uma elegante letra cursiva.

Ele tocou no tablet.

– Enviei os arquivos do histórico de Pierce para você. Mais uma vez: você deve pegar Adam Pierce antes de os policiais conseguirem prendê-lo, ou desfazemos o empréstimo.

Levantei-me e caminhei, deixando a foto de família sobre a mesa. Ele tinha de olhar para ela. Minhas mãos tremiam. Queria dar meia-volta, voltar e socar a cara dele.


Continuei andando até sair do prédio. Do lado de fora, o vento soprava, fazia farfalhar minhas roupas. Peguei o celular do bolso e liguei para Bern.

– Pare o que for que estiver fazendo. Preciso de todas as forças em Adam Pierce.

– Vamos atrás de Adam Pierce? Você está falando sério?

– Olhe seu e-mail.

– Puta merda.

– Preciso do histórico completo, linhagem, ficha criminal, com quem estudou, tudo. Qualquer informação que você puder encontrar. Quanto mais soubermos, melhor.

– Quer que eu fale com a tia Pen?

Ah, mamãe ia adorar isso.

– Não. Eu falo. Ligue para o Mateus.

Quando eu disse que nossos funcionários de meio período eram crianças, não estava brincando. Mas, ocasionalmente, quando precisávamos de força física, contratávamos agentes adicionais freelance. Eu tinha a sensação de que nenhum deles aceitaria um trabalho envolvendo Adam Pierce, mas valia tentar.

– Quanto devo oferecer? – Bern perguntou pelo telefone.

– Dez mil. – Era aproximadamente três vezes o que costumávamos oferecer. Era também todo o dinheiro que tínhamos guardado. Poderíamos pegar um empréstimo se fosse o caso.

– Não podemos pagar isso tudo.

– Podemos se pegarmos Pierce. Diga a ele que o pagamento só será feito se o pegarmos.

Um clique no telefone, Bern me colocou na espera e fui caminhando até o carro. Por onde eu iria começar?

Mais um clique.

– Ele riu.

No lugar dele eu também riria.

– Tente o caubói.

Clique. Clique.

– Não. Palavra dele.

– Asli? Aumente para 15 mil.

Asli era cara demais, mas valia cada centavo, e ela não costumava recuar.

Cheguei ao carro e me apoiei no capô.

– Ela disse que está ocupada com outras coisas.

Argh. Esses eram meus três melhores. Por que me parecia que nossos três colaboradores estavam fugindo de nós como coelhos assustados?

– Está bem. Então comece a verificar o histórico do Pierce, por favor.

Desliguei o telefone. O pânico que incialmente me tomou por dentro no escritório de Augustine agora me dominava.

Se falhássemos, a MII executaria a hipoteca e tomaria tudo o que tínhamos. Literalmente sairíamos da nossa casa sem nada além de um saco preto com as roupas e os objetos de higiene que pudéssemos carregar. Minha avó não teria onde fazer seu negócio. Eu não teria negócio nenhum. Eu poderia recomeçar, mas seria preciso tempo e dinheiro. Eu havia construído tudo em cima do nome e da base que meus pais haviam criado. Referências pessoais davam conta de noventa por cento de nossos trabalhos. Ficaríamos na rua, nós sete. Perderíamos o seguro de saúde. Ainda teríamos outros gastos. Nossas economias poderiam nos garantir um teto e comida por um ou dois meses, mas e depois?

Bern sairia da escola. Não havia outra possibilidade. Ele sairia e arranjaria qualquer emprego que pudesse encontrar, qualquer coisa que nos garantisse mais uma semana em um lugar barato ou mais uma refeição. Eu via o futuro dele indo pelos ares.

E minhas irmãs... Mal tínhamos conseguido voltar aos eixos depois do caos que foi a doença de nosso pai. Havíamos acabado de nos estabilizar. A terapia estava funcionando, estávamos todos retomando o rumo, e as crianças, enfim, tinham alguma rotina. Se isso acontecesse... Parecia que alguém tinha pegado uma faca afiada e enfiado no meu estômago.

Não. Isso não iria acontecer. Não fariam isso com nossa família. Não tomariam tudo que trabalhei tão duro para construir. Não. Simplesmente não.

Respirei fundo, exalando raiva.

Pense. Era uma busca por alguém. Eu já tinha feito isso. Não era minha primeira vez.

Detetives particulares tendiam a se especializar. Alguns desenvolviam perfis financeiros e cuidavam de buscas de bens. Outros pegavam casos de vigilância. Outros faziam verificação de dados. Nós fazíamos um pouco de tudo e eu já tinha feito minha cota de buscas. Era só mais uma. Exceto pelo fato de que se eu o achasse, ele queimaria toda a carne cobrindo meus ossos. Ao menos eles teriam a empresa de volta.

Provavelmente essa não era a linha de raciocínio mais produtiva.

Essa bagunça, como meu pai costumava dizer, ia muito além do meu pagamento. Eu nem sabia ao certo por onde começar. Eu poderia ir ao First National e ver os restos do incêndio. Já tinha cuidado de exatos quatro casos de incêndio antes, todos por conta de seguradoras, e sabia que a cena não me diria muita coisa. Eu não precisava determinar se Pierce tinha cometido o incêndio. Só precisava encontrá-lo.

Pierce tinha matado um policial e ferido sua família. Nesse exato momento, todos os policiais de Houston estavam esperando a chance de colocar uma bala bem no meio de sua linda cabeça. Eu podia apostar que os policiais tinham uma ficha a seu respeito com mais de um quilômetro. Essa ficha seria um ótimo ponto de partida, não fosse o fato de que nunca me deixariam vê-la. Primeiro porque eu era uma civil e, segundo, porque estava competindo com eles. Nos romances policiais, um detetive particular ou é um ex-policial ou um grande amigo de policiais que devem favores a ele e, prontamente, o ajudam com informações que sempre vêm acompanhadas de explicações sobre como aquilo poderia lhes custar seu emprego. Eu não tinha amigos na polícia. Tentava evitá-los o máximo possível. Meu pai tinha alguns, mas trabalhavam na unidade de crimes financeiros, não no setor de homicídios. Além disso, no momento, ninguém além de Augustine Montgomery, eu e Bern sabia que eu estava atrás de Adam Pierce. Se eu entrasse no radar dos policiais, eles começariam a prestar atenção em mim e nos meus passos, o que deixaria a missão ainda mais difícil.

À minha volta, o centro de Houston estava cheio de vida. Erguiam-se ao meu redor os arranha-céus, vidro e aço, e algumas torres monolíticas de pedra. O edifício cobalto da MII estava à esquerda, parecendo-se ainda mais com uma barbatana de tubarão. Eu quase conseguia imaginar o chão rachando, abrindo-se em grandes fendas e um tubarão colossal aparecendo com seus dentes de vidro, afiados como lâminas, vindo me engolir. À minha frente, o tráfego intenso imperava nas ruas. Um Maserati vermelho conversível escapou do congestionamento pelos trilhos do metrô de superfície no sentido do hospital. O motorista, um jovem de camiseta preta, estava passando perfume. Idiota.

Acima dele, uma enorme tela montada sobre a parede de um edifício brilhava com propagandas. Mas elas foram interrompidas por um noticiário, que trazia a imagem de uma mulher executiva. Tinha trinta e tantos anos, era atlética, atraente, exibindo a pele bronzeada e os cabelos escuros e cacheados presos em um coque. Todos em Houston sabiam seu nome, Lenora Jordan, advogada do distrito de Harris County. Quando eu tinha catorze anos, ela foi às ruas enfrentar George Kolter. Lenora havia acabado de sair da faculdade de Direito, e ele era um experiente fulgurcinético Superior. Ele conseguia enviar raios com um alcance de quinze metros de distância e era acusado de abuso infantil, mas decidiu, no último momento, que não iria para a prisão. Lenora Jordan desceu as escadarias do tribunal como uma duelista do Velho Oeste e gerou correntes de ar que derrubaram Geroge Kolter no chão. Toda a cena foi gravada e reproduzida em todos os noticiários. Foi épico. Todas as garotas da minha sala queriam ser como Lenora quando crescessem. Ela era incorruptível, poderosa, inteligente, destemida, não aceitava desaforos de ninguém. Eu não tinha dúvida de que se Pierce fosse pego e levado a julgamento, ela acabaria com ele e garantiria a preservação perfeita de todos os seus direitos constitucionais.

Eu não era Lenora Jordan, mesmo que desejasse muito ser. Se por acaso eu encontrasse Pierce, não poderia prendê-lo de forma dramática. Também não poderia exigir que ele fizesse nada contra a sua vontade. Precisaria, de alguma forma, convencê-lo de que me acompanhar seria bom para ele.

Guardei o telefone e baixei o arquivo com o histórico de Pierce e o abri. A maioria das pessoas acumula números e termos de identificação: data de nascimento, número de documento, último endereço, número da habilitação, local de trabalho, coisas que tornam as pessoas amarradas e relativamente fáceis de serem rastreadas. Cerca de setenta e cinco por cento considera ficar na casa de um parente para se esconder. E cerca de noventa por cento das vezes, não importa o quanto elas neguem, as mães conseguem contato em minutos.

O arquivo sobre Pierce me trazia data e local de nascimento, número de seguro social, nome e endereço dos pais e os dados de seus estudos. Ensino fundamental e médio. Ensino superior na Universidade de Stanford, onde estudou Ciências Esotéricas e Engenharia de Materiais e fez uma especialização em Filosofia. Teve média 3,9. Ele havia sido aceito para mestrado em Engenharia de Materiais, mas desistiu depois de dois meses. Residência atual: desconhecida. Emprego atual: nenhum. Incrível.

Ficha criminal. Rá. Adam Pierce havia sido preso seis vezes nos últimos dezesseis meses. Garoto ocupado. Vejamos... Uso de entorpecentes, vandalismo, resistência à prisão e – olha que surpresa – vadiagem... vadiagem? Isso deve ter sido intriga de algum policial irritado.

Vejamos, Facebook. Passei por meia dúzia de Adam Pierce. Nada parecia real. Tudo bem, provavelmente ele fosse o tipo de cara que curtia redes sociais. Entrei no Twitter e busquei por Adam Pierce. Sua conta estava inativa havia quarenta e oito horas. Decidi segui-lo e cliquei nas fotos. Adam na motocicleta. Adam sem camisa. Adam e um bando de motoqueiros gatos na frente de uma loja de motos. A foto mostrava um pedaço da placa: “...ave customização de motos”. Salvei a foto no meu telefone.

Abri um aplicativo de anotações e comecei a escrever tudo o que eu sabia sobre Adam Pierce.

Vaidoso. Medo profundo de camisetas ou qualquer outra peça de roupa que possa cobrir seus músculos peitorais.

Mortífero. Não hesita em matar. Apontar uma arma para ele poderia resultar em um churrasquinho feito com a minha carne. Eca.

Gosta de queimar as coisas. Um eufemismo. Bom saber, mas não ajuda a encontrá-lo.

Contra o governo. Não cheira nem fede.

Bem, até o momento, meu melhor plano era fazer uma montanha de latas de gasolina e explosivos, colar um adesivo dizendo “propriedade do governo americano” e jogar uma camiseta na cabeça de Pierce quando ele aparecesse para explodir tudo. Sim, isso funcionaria perfeitamente. Só que não.

Gosta de ser preso. Provavelmente isso o fazia se sentir durão. Adam Pierce, o rebelde. No entanto, não gostava da cadeia. Sua primeira prisão aconteceu num domingo e ele passou a noite na cela. As outras cinco prisões sequenciais indicaram que ele foi solto poucas horas depois de ter sido preso.

Famoso. Isso servia tanto a meu favor como contra. Ser famoso tornaria mais difícil de se esconder, mas se ele fosse reconhecido, as sirenes dos policiais se acenderiam e os tiras chegariam até ele antes de eu poder piscar. Mas ser famoso também significava muitas pistas falsas. Especialmente se os policiais oferecessem uma recompensa. As pessoas o veriam aqui, ali e lá também.

Lindo. De brinde, olhos demoníacos.

Rico.

Rico. Adam Pierce nadava em dinheiro. Quando o vi na televisão, de manhã, ele usava uma jaqueta de grife e posava ao lado de uma motocicleta que parecia ter saído de algum filme de ficção científica e que provavelmente custava muito mais do que o meu carro. Ele era um garoto rico e mimado, e garotos ricos e mimados não lidavam bem com falta de dinheiro. Podiam até viver sem luxo por um tempo, mas gostavam do conforto e de seus brinquedos. O conceito-chave de qualquer tipo de negócio, criminal ou civil, era o trabalho. Dados os registros de Adam Pierce, trabalho era algo que ele detestava. Alguém o estava bancando. De onde vinha esse dinheiro?

Passei pelo arquivo. Pierce tinha um fundo de incentivo. Só poderia pegar o dinheiro enquanto estivesse na faculdade, cursando um mestrado ou depois de tê-lo obtido. De acordo com os arquivos, a família havia tirado tudo dele. Uma anotação de AFM – provavelmente Augustine Fulano Montgomery – dizia: Confirmado com a família. Reforçar a importância do fundo de incentivo financeiro para trazê-lo de volta.

Liguei para Bern.

– Puxou as informações sobre Pierce?

– Gelo flutua? – A voz dele tinha um ritmo que costumava indicar que ele estava fazendo outras seis coisas no computador enquanto falava.

– Quem pagou a fiança dele?

– Um dos colegas da faculdade. Cornelius Maddox Harrison.

Que nome. Os pais de alguém tinham muita ambição.

– Estou enviando o endereço dele agora – Bern prosseguiu. – Você pode encontrá-lo lá. De acordo com o imposto de renda, ele é “do lar”.

– Obrigada. Vou passar na casa dele agora.

– Espera – Bern disse com a voz repentinamente diferente.

Uh-oh.

– Você poderia passar em casa antes? Preciso te mostrar uma coisa.

– Isso não está parecendo nada bom.

– E não é bom – ele disse.

Tinha como piorar?


Encontrei Bern na Cabana do Mal, também conhecida como nossa sala de computador. Isolada acusticamente e equipada com seu próprio ar-condicionado, ficava exatamente atrás dos escritórios. Ficava um metro e meio acima do chão, como uma casa de palafita, porque Bern achava mais prático mexer com os cabos por baixo. Costumávamos brincar que, se o galpão alagasse, iríamos todos correr para a Cabana do Mal para nos mantermos secos. Olhando de fora, parecia uma pequena casa independente na parte mais ampla do galpão com uma escada de dez degraus até a entrada. Primeiro começamos chamando de Casa do Mal, mas com o passar dos anos acabou virando Cabana do Mal.

Subi as escadas e bati na porta.

– Pode entrar – Bern respondeu.

Entrei e fechei a porta. O ar ali estava no mínimo cinco graus mais frio. Bern ficava abrigado entre quatro monitores sobre bases giratórias. Três torres de computadores piscavam com luzes vermelhas, brancas e verdes. Do outro lado ficava a estação de Leon, uma mesa menor com três monitores. E estava vazia. Ele e as meninas estavam na escola.

Bern virou para mim, seu belo rosto azulado por conta do brilho do monitor maior. Era sempre engraçado vê-lo, com sua figura tão grande, entre as telas do computador. Os teclados e os monitores pareciam pequenos para ele.

– O que você descobriu? – perguntei.

– Enquanto falava com você, verifiquei os históricos sobre o cara envolvido no incêndio.

– Gavin Waller.

Bern concordou.

– Puxei a linhagem dele.

No nosso mundo, a linhagem era tudo. As famílias mágicas eram donas de corporações e as maiores cidades eram divididas entre os territórios de tais famílias. Algumas delas influenciavam apenas alguns quarteirões, outras controlavam bairros inteiros. O sobrenome e a árvore genealógica das pessoas poderiam abrir portas ou fazê-la morrer. Se a família se destacasse o bastante, era considerada uma Casa. Casa Montgomery. Casa Pierce.

– O pai de Gavin é Thomas Waller. Sua mãe é Kelly Waller. Nenhum dos dois tem importância mágica. – Bern fez uma pausa.

Eu esperei. Ele agrupava as informações de forma lógica. Quando alguém lhe perguntava algo, ele partia do início e passava por todos os dados até a informação importante realmente aparecer. Se a casa estivesse pegando fogo, Bern começaria contando como foi buscar a caixa de fósforos para acender velas e, assim, deu início ao incêndio. Tentar apressar esse processo não só era inútil como era contraproducente. Interrupções faziam Bern demorar ainda mais. Ele precisava voltar à sua linha metódica e não conseguia entender por que a gente estava saltando de um lado pro outro e espumando de frustração enquanto ele dava suas explicações.

– O nome de solteira de Kelly Waller era Lancey.

Humm.

– Seu pai se chamava William Lancey.

Humm.

– Sua mãe era Carolina Rogan.

Humm. Espera, o quê?

– Rogan? De Casa Rogan?

Bern fez que sim.

– O Louco Rogan é primo de Kelly Waller. Isso o torna primo de Gavin de segundo grau.

Minhas pernas decidiram que seria o momento de eu me sentar. Puxei uma cadeira.

Oficialmente, os Estados Unidos não declaravam guerra havia setenta anos. Em vez disso, o país se envolveu em conflitos armados, missões de paz e intervenções militares que, na prática, eram guerras sem o assustador nome de guerra: Europa, Oriente Médio e as agora chamadas Guerras da América Latina, que estouraram depois da descoberta de depósitos de minerais potencialmente mágicos em Belize e desestabilizaram a região. O México, que já tinha potencial mágico, invadiu o pequeno Belize. Honduras, Nicarágua e Brasil formaram uma coalizão contra a invasão. Tanto os Estados Unidos quanto a União de Tribos Nativas se aliaram à coalizão anti-México, mesmo sem que os territórios de Dakota do Sul e Dakota do Norte, Wyoming ou Montana ficassem perto das fronteiras e mesmo que a União de Tribos Nativas, em geral, se opusesse às decisões dos Estados Unidos em quase tudo. Todos parabenizaram os bravos soldados de Belize, mas a verdadeira razão era clara: ninguém queria que o México, o rolo compressor da magia, se tornasse ainda mais poderoso do que já era.

A guerra foi terrível. No fim, o México renunciou seu domínio sobre Belize, mas as consequências se espalharam pela América Latina. Conflitos armados estouraram, matando muitas pessoas. Louco Rogan ficou famoso nesses conflitos. Ele era excepcional, mesmo para um Superior. Ninguém sabia ao certo o que ele podia fazer, mas todos conheciam o nome. Louco Rogan. O Açougueiro de Mérida. Huracán.

As chances de conseguirmos pegar Adam Pierce já eram quase nulas. Se Louco Rogan decidisse intervir, então, estaríamos no negativo.

– E o que sabemos sobre Louco Rogan?

Bern apertou uma tecla em seu teclado. Um vídeo granulado apareceu no monitor. Eu me lembrava de já ter visto isso uma vez, muito tempo atrás, quando ainda estava na escola. Na época, fiquei entediada, porque nada acontecia nos primeiros dois minutos, e depois eu parei de ver.

Um homem jovem, de longos cabelos escuros e olhos azuis, o rosto desfocado pela estática, estava em pé no meio de uma estrada com quatro pistas. Ao fundo, o céu com nuvens cinza.

– ... Carla vai levantar você – disse uma voz feminina comedida. – Não se preocupe, sabemos que está disposto.

– Isso foi gravado em algum lugar no México – Bern comentou. – A maioria das pessoas concorda que deve ser em Chetumal. Dá pra ver um pouco do oceano em uma das cenas.

Busquei na mente algo sobre Chetumal. Uma cidade pobre, na ponta da península de Yucatán, um dos eixos do robusto comércio internacional do México. Economia próspera. Sofreu na guerra.

– Isso foi em seu período de experiência, ele ainda nem era contratado. O vídeo foi o único que caiu na internet. Depois disso ficaram mais rigorosos.

O homem se encolheu. Ele tinha pele clara, era muito jovem, mais jovem do que Bern. Podia ser a péssima qualidade do vídeo, mas ele parecia assustado. A câmera se aproximou de seu rosto. Os olhos azuis eram muito tristes, quase fúnebres, e cheios de poder.

– Quantos anos ele tinha?

– Foi no último ano da faculdade. Ele tinha dezenove. Se formou na escola adiantado e cursou a faculdade em três anos. Ele era brilhante.

– E tinha os melhores tutores que o dinheiro poderia pagar.

A Casa Rogan era muito rica. Eu não sabia exatamente o que eles faziam, mas Louco Rogan era a quarta geração de Superiores.

– Chegou a hora – a voz da mulher disse. – Lembre-se: todo o setor foi evacuado. Os danos serão apenas materiais. Sem dúvidas, Connor. Você está fazendo a coisa certa.

Mas é claro. Alguém devia ter falado com ele na faculdade, alguém do Exército, com muitas condecorações. E ele devia ter dado ouvidos, pois o levaram até Chetumal para ver o que ele podia fazer.

Rogan começou a caminhar pela estrada, uma figura solitária de moletom cinza. Ele andava pela linha que dividia as pistas na direção dos arranha-céus. Trinta metros. Sessenta metros. Rogan continuava andando. Já estava quase nos prédios.

– A que distância ele está, uns oitocentos metros? – uma voz masculina perguntou.

– Ele está nos dando um espaço seguro – a narradora original respondeu.

– E de quanto espaço ele precisa?

– De quanto ele quiser.

Rogan continuava andando.

– Ele continua no perímetro? – a mulher perguntou.

– Posso levitá-lo daqui, senhora – respondeu uma segunda e mais alta voz de mulher. – Mas, se ele se afastar mais, precisaremos diminuir a distância.

Levitar uma pessoa sem causar sérios danos internos era uma habilidade telecinética muito específica. Levitadores eram muito aclamados e quando ficava claro que uma criança tinha esse tipo de magia, era só o que fazia. Um telecinético Padrão podia levantar e arremessar alguém, mas a pessoa estaria morta antes de voltar ao chão.

Rogan parou. Ele estava entre dois prédios. À esquerda, um complexo de pedras escuras subia por oito andares. À direita, uma torre branca seguia espiralada até o céu nublado.

– Finalmente – disse a voz masculina.

Rogan olhou para as torres de pedra e vidro. Ficou imóvel, como se sentisse oprimido pelo tamanho das construções.

O tempo se arrastava, parecia não passar.

– Vamos lá – disse a voz masculina.

Rogan inclinou-se para trás. O vento balançava seus longos e escuros cabelos.

– Deixe vir – a primeira mulher murmurou.

O vídeo embaçou por um momento. Segurei a respiração.

Nada.

– E? – questionou a voz masculina. – Você me disse que ele tinha um tipo de...

A torre branca, à direita, caiu, como uma árvore cortada.

Aquilo não podia estar acontecendo. Ninguém podia cortar um prédio.

A torre ia rachando. À esquerda, uma poeira cinza se desprendia das janelas do conjunto de escritórios. A estrutura se manteve inteira por um longo e torturante segundo. A fachada se desmanchou e caiu: toneladas de tijolos e entulho, como se fosse uma cachoeira. O som de trovão podia ser ouvido com as toneladas de pedras, aço e concreto que caíam no chão.

Meu Deus. Fiquei gelada por dentro. O poder absoluto. Um ser humano não podia ter tanto poder assim.

Da gravação, podia-se ouvir os gritos das pessoas. Não eram palavras, apenas o som cru e primitivo do intenso terror humano.

A torre desabou. Uma fumaça densa, cinza e preta levantava dos edifícios, como um tsunami, no meio da rua, bem acima de Louco Rogan. A quase dois metros dos dois lados, as ondas voltavam, como se tivessem batido em uma parede invisível. O entulho batia em tal barreira e voltava para o chão. Ele permanecia ali, em um tubo de ar tranquilo e limpo.

O vento remexia seus cabelos escuros. Ele virou as palmas das mãos para cima.

A gravação desfocou. Para os dois lados, os edifícios adjacentes, uma torre vermelha e um prédio marrom de apartamentos, se quebraram e caíram. O som era ensurdecedor.

– Faça-o parar! – o homem gritou.

– Ele não pode ser parado – a primeira mulher disse sob o som da demolição. – Ele não pode nos ouvir ou ver! Precisamos esperar acabar!

Os pés de Louco Rogan se levantaram do chão. Ele subiu cerca de sessenta centímetros acima do solo.

– Não sou eu – a levitadora gritou. – Não sou eu. Não consigo alcançá-lo!

A gravação perdeu o foco.

A câmera tremeu. O pesado caminhão estacionado escorregou em sua direção.

– Jesus Cris... – um homem gritou.

A gravação se encerrou com a palavra interrompida.

Bern e eu ficamos olhando para a tela escura. Eu me sentei, em choque, sem saber ao certo o que fazer depois. Já tinha estudado muitos Superiores. Nunca tinha visto alguém que pudesse fazer aquilo. Não era humano.

– Acho que devemos reconsiderar nos envolvermos nisso – Bern alertou.

– Tarde demais – eu o informei. Minha voz estava abafada. – Já aceitei o trabalho. – Continuamos olhando para a tela. – Não podemos contar para minha mãe.

– Ah, não mesmo.

Bern desligou o vídeo e foi apagar o histórico.

– Leon? – arrisquei.

– Sim. Ele gosta de bisbilhotar e acabaria com nosso segredo.

O vídeo sumiu, mas meu pavor, não.

– Que tipo de mágica é essa?

– Costumam dizer que ele é um telecinético inorgânico.

– Telecinéticos movem coisas, não cortam edifícios no meio.

– Mas ele, sim – Bern disse.

– E o que Louco Rogan está fazendo atualmente? – perguntei.

– Ele deixou o serviço militar há quatro anos e oito meses. Desde então, ninguém o viu. Tudo indica que se tornou um recluso. As conversas nos fóruns sobre as tietes das Casas dizem que ele ficou terrivelmente desfigurado depois da guerra.

– Sim, e ele está esperando a mulher certa para amá-lo como ele é.

Bern riu. Superiores, assim como qualquer celebridade, tinham seus admiradores, especialmente os jovens, bonitos, do sexo masculino e solteiros. Havia toda uma subcultura no Instagram, no Tumblr e no Vine. Eles tinham até sua própria rede social: Herald. A maior parte do conteúdo era de fotos de Superiores, arte feita por fãs e histórias fictícias sobre eles, em geral com uma tendência romântica e muitas especulações sobre quem ia se casar com quem e o tipo de poderes que seus filhos poderiam ter. Em geral, os poderes passavam de geração em geração, mas quando duas linhagens mágicas diferentes se misturavam, sempre havia o risco de algum tipo de mutação.

– E ele ama a prima? – perguntei.

– Os Lancey deserdaram Kelly Waller quando ela fez vinte e dois anos.

Uau. Ser expulsa da família era o pior tipo de punição. Perder o dinheiro já era duro o bastante, mas ao ser deserdado perdiam-se também os contatos e as conexões da família. Faziam de você um pária. Você não podia recorrer aos amigos nem aos inimigos da família, pois nenhum confiaria em você. Quase nunca se deserdava o membro de alguma Casa, nem mesmo quando estragavam tudo. Para exemplificar, Adam Pierce provavelmente tinha matado um homem e ferido uma mulher e duas crianças, e sua Casa estava se esforçando para trazê-lo de volta. Os membros de uma Casa eram simplesmente muito valiosos. Os Lancey não eram o principal braço da casa Rogan, mas ainda assim, faziam parte do pacote.

– E por que fizeram isso?

– Não sei – Bern disse. – Mas ela não tem contato com nenhum Lancey ou Rogan. Três anos atrás, sua padaria fechou.

Rogan já tinha saído do Exército dois anos antes.

– E ele não a ajudou?

Bern fez que não e prosseguiu:

– Além disso, ela e seu marido, Thomas, viviam pedindo empréstimos para os estudos de Gavin. Eles estão quebrados há dois anos.

– De quanto ela precisava para manter a padaria aberta?

– De acordo com o termo de falência, seriam necessários 87 mil para pagar todas as dívidas.

Oitenta e sete mil dólares era um troco para Louco Rogan, o cabeça da Casa. Coitada de Kelly Waller. Em minha vida, sempre soube que meus pais me amavam incondicionalmente. Eles me deixaram sofrer as consequências de meus erros, mas sempre me amaram. Eu poderia sair atirando por aí e matando uma dúzia de pessoas. Minha mãe e minha avó ficariam horrorizadas, mas lutariam por mim até o fim. Poderiam ficar desconcertadas, mas continuariam me amando, contratariam o melhor advogado e chorariam quando eu fosse condenada à pena de morte. Se meu pai ainda estivesse vivo, faria o mesmo. A família da senhora Waller a expulsou e não moveu um dedo para ajudá-la, independentemente do quanto ela estivesse desesperada. Era trágico e doloroso para ela, mas nos servia de incentivo.

Elaborei minha pergunta com cuidado. Era preciso que Bern me acompanhasse nas investigações.

– Você viu algum indício de que Louco Rogan tenha interesse no que aconteceu com Gavin?

– Não.

– Nem os Montgomery, ou estaria nos arquivos. Olha, ele não a financiou quando ela foi à falência, quando isso não lhe custaria nada. Esse incêndio está cheirando muito mal, todos estão fugindo do assunto o mais rápido que podem. Ninguém quer ser amigo de Adam Pierce neste exato momento. Quanto mais ajudar Gavin Waller. Acho que vai ficar tudo bem.

– O que acontece se desistirmos? – Bern suspirou.

– A MII vai executar nossa hipoteca. Vão tomar todos os nossos bens profissionais, incluindo o galpão e qualquer equipamento que tenhamos declarado como isento no Imposto de Renda, o que inclui os dois carros, as armas, os equipamentos de escritório e tudo o que está nesta sala.

– Ficaríamos sem casa e sem um centavo – Bern resumiu.

– Exatamente.

Bern franziu o cenho. Seu rosto ficou duro, seus olhos acinzentados ficaram cor de aço e, por um segundo, vislumbrei o tipo de homem que meu primo se tornaria em poucos anos: determinado e implacável, como um daqueles cavaleiros medievais em armaduras.

– Isso é uma merda.

– Sim.

– Você...

– Expliquei nossa situação. Eles não se importam. Não querem ofender a Casa Pierce, e nossos dados nos relatórios são excelentes, então, nos passaram o caso sabendo que não vamos conseguir. Éramos a opção mais barata para eles.

– Vamos fazer isso – Bern disse. – Vamos pegar Pierce e esfregar na cara deles, para eles terem de engolir.

– Obrigada.

– Imagina – Bern riu. – Somos uma família.


Cornelius Maddox Harrison vivia em Royal Oaks, o que era um pouco estranho. Eu esperava que fosse um endereço dentro do Loop.

Houston era definida por três vias, que a circulavam, formando anéis. A primeira, mais perto do centro da cidade, era conhecida como Loop. Dentro do Loop, ficavam os principais bairros de negócios – o centro da cidade – e mais caros bairros residenciais, como River Oaks, University Towne e um pedaço de Bellaire. Se você seguisse uns oito quilômetros do Loop, cruzava Beltway, o segundo anel. E nos quinze quilômetros depois, você poderia encontrar a Grand Parkway, o terceiro anel, que ainda estava em processo de construção. Royal Oaks ficava depois de Beltaway, na parte oeste.

Houston era uma cidade diferente, tinha o hábito de devorar cidades menores e de transformá-las em bairros. Não tínhamos leis de zoneamento, por isso, centros comerciais surgiam organicamente onde se fazia necessário, com áreas residenciais em torno deles. A maior parte da cidade era dividida em territórios dessa ou daquela Casa. Isso não afetava muito a vida das pessoas comuns. Membros de uma casa se interessavam por membros de outra. Éramos a ralé.

A Casa Harrison não era grande ou poderosa o suficiente para ter seus próprios territórios, mas eram bastante ricos. Cornelius Harrison era o segundo filho de Rupert e Martha Harrison. Sua irmã mais velha morava em University Towne e seu irmão vivia perto dos pais, em River Oaks, mas Cornelius havia se mudado para além da Beltway. Não que ele vivesse mal, pensei, enquanto dirigia pela longa avenida. Casas enormes apareciam aqui e ali, com generosos e artísticos projetos paisagísticos perto de um perfeito campo de golfe. O barulho da cidade tinha ficado para trás; poderíamos estar em um resort a quilômetros da cidade. Cada pequena mansão devia custar, pelo menos, 2 milhões de dólares. Era bom ser rico.

O GPS apitou, me avisando que havíamos chegado. Parei em frente a uma ampla mansão. Dois pisos cobertos por telhas de barro, e a casa parecia cenário de filme: as paredes perfeitamente limpas, o caminho de pedras amarelas sem nenhuma sujeira e as plantas contornando o passeio, cortadas com uma precisão geralmente reservada aos bonsais. Estacionei e fui até a porta, peguei meu documento e toquei a campainha.

Poucos segundos depois, a porta se abriu e um homem baixo e atarracado, entre os vinte e os trinta anos me olhou solenemente com seus olhos azuis. Seu cabelo loiro-escuro era curto, a barba estava bem-feita e seu rosto tinha uma leve expressão de ausência, como se estivesse pensando em algo completamente abstrato quando foi interrompido e agora se esforçasse para se lembrar do que era.

Sorri, tentando passar confiança e não parecer uma ameaça.

– Senhor Harrison?

– Sim?

Entreguei meu documento. Apenas o nome não me levaria a lugar nenhum, então, decidi usar a maior arma que tinha:

– Meu nome é Nevada Baylor. Trabalho para a Montgomery Investigações Internacionais. Fui contratada pela Casa Pierce para encontrar Adam Pierce. – Cornelius Harrison fez uma careta e me devolveu a identidade. – Posso lhe fazer algumas perguntas?

– Claro. – Ele deu de ombros. – Entre.

Eu o segui pela grande sala de estar. O piso de mármore em mosaico brilhava. Uma escada curva levava ao piso superior à esquerda, ornada por um corrimão de ferro. Cornelius perguntou:

– Sala, biblioteca ou cozinha?

– Cozinha, por favor. – As pessoas se sentiam confortáveis e relaxadas na cozinha e, quanto mais relaxado Cornelius estivesse, mais informações eu conseguiria tirar dele.

Passamos pela formal sala de jantar e chegamos à cozinha, que tinha armários cor de cereja e bancadas em granito. A cozinha se abria a uma ensolarada copa. Ao lado da janela, giz de cera e folhas de um livro de colorir com galos de belos rabos estavam sobre a mesa de café da manhã. Os galos estavam pintados num arco-íris de cores.

Cornelius pegou as páginas, organizou-as em uma pilha e as colocou de lado.

– Quer beber algo?

– Não, obrigada. – Uma coisa que se aprendia muito rápido era nunca beber ou comer nada na casa de usuários de magia que você não conhecia. Eu não gostava da ideia de ganhar penas ou de virar uma cabra.

Nós nos sentamos à mesa de café da manhã. Coloquei meu gravador digital sobre a mesa, apertei o botão de gravação e comecei:

– Quinta-feira, 24 de outubro, entrevista com Cornelius Harrison.

Ele me olhava. Seus olhos eram inteligentes, calmos e irônicos. Mantive a concentração.

– Apenas para constar, eu não quero responder suas perguntas, mas já briguei com Christina Pierce antes e não desejo repetir a experiência.

Esperei para ver se minha magia informava algo mas ela não se manifestou. Cornelius dizia a verdade. Sem rancores entre ele e a mãe de Adam Pierce. Fiz uma nota mental, caso precisasse disso depois.

– Há quanto tempo conhece Adam?

– Desde que éramos muito pequenos – Cornelius disse. – Tínhamos quatro ou cinco anos.

Verdade.

– Você é amigo dele?

Cornelius riu baixo, um som seco e bem-humorado.

– Você faz parte da Casa Pierce?

– Não – respondi.

– Então foi contratada?

– Fui.

– Foi coagida a aceitar esse trabalho?

– Fui. Como sabe?

Cornelius sorriu.

– Porque ninguém em sã consciência iria atrás de Adam a menos que não tivesse escolha. E também porque é assim que a Casa Pierce funciona. Eles usam a cenoura e a espada ao mesmo tempo. Você foi contratada e presumo que, em algum momento, vá receber pagamento. Eu já fui contratado, mas não recebi pagamento. Pelo contrário. Minha mãe e Christina Pierce estudaram juntas na faculdade. Em determinado ponto, determinou-se que Adam precisava da companhia de outro menino. – Suas palavras traziam um oceano de sarcasmo. – Fui oferecido como voluntário. Ninguém perguntou a mim ou a Adam o que achávamos do combinado.

– E você ficou feliz?

Cornelius se inclinou um pouco para a frente e pronunciou a palavra com precisa exatidão.

– Não.

Verdade.

– E por que não?

– Porque eu deveria cuidar de Adam, apesar de termos a mesma idade. Eu era o amigo feio que faz uma mulher se sentir melhor em uma festa: menos poderoso, menos rico, menos importante. Quando Adam se metia em problemas, eu devia tomar a frente e assumir a responsabilidade pelo que quer que fosse. Mas Adam gostava de esfregar na cara dos outros o que tinha feito. Se ele quebrasse algo, ele mesmo declarava tê-lo feito, como se fosse algo bom. Então, recebi a punição por ter “falhado em ajudá-lo a fazer boas escolhas”. O acordo continuou vigorando até a faculdade, quando, finalmente, ele e eu fomos viver vidas independentes. Ele não está entre meus amigos, é apenas alguém que conheci.

– E ainda assim você pagou a fiança dele seis vezes.

Cornelius suspirou.

– Depois da faculdade, dei alguns passos para poder me afastar de minha família. Eu os amo, mas eles têm tendência a me usar. E não gosto de ser usado. Quando meu avô morreu, me deixou algum dinheiro, que eu usei para comprar esta casa. Para minha irmã, essa seria mais uma casa, uma de muitas. Para mim e minha esposa, é nosso lar. Provavelmente será a única casa que teremos, e pretendemos deixá-la para nossos filhos.

Sua voz indicava que ele tinha orgulho disso. Provavelmente, para ele, aquela era uma casa modesta. Para mim era um palácio. Tudo dependia do referencial.

Então, ele prosseguiu:

– Dei alguns passos para ficar mais independente da minha família. Entretanto, quando Adam foi preso pela primeira vez, sua mãe tinha condições de influenciar o emprego da minha esposa. Recebi o dinheiro e me pediram que pagasse a fiança.

– E por que isso? Por que a própria Casa Pierce não pagou?

– Porque Adam, publicamente, virou as costas para eles. – Cornelius fez uma careta. – Sua imagem de bad boy sofreria um enorme abalo se fosse descoberto que a mamãe e o papai davam o dinheiro para tirá-lo da prisão.

– Mas você, sendo o “amigo”, não traria problemas.

Ele fez que sim.

Estava começando a parecer que aquilo não levaria a lugar nenhum.

Um sinal de movimento na escada me fez virar. Um gato himalaio, de pelagem cor de creme e chocolate, desceu correndo, seguido por um guaxinim e um furão branco.

– Me desculpe. – Os três animais correram para os pés de Cornelius e se sentaram. Ficaram olhando para ele. – Acho que Matilda acordou.

As três cabecinhas fizeram que sim.

Cornelius se levantou, pegou de dentro da geladeira uma caneca de criança com a tampa vermelha e lavou com água corrente da torneira. O guaxinim ficou em duas patas. Cornelius lhe entregou caneca.

– Leve o suco para ela e a mantenha entretida até eu subir.

O guaxinim pegou o suco com as patas escuras e subiu as escadas sobre as patas traseiras. O gato e o furão o seguiram.

– Você age sobre os animais. – Eles eram tão raros que eu só havia conhecido um na vida.

– Sim, mas não sou Superior, então, não se preocupe com a possibilidade de eu reunir um bando de lobos selvagens para devorar você.

– Por que lavou a caneca?

– Porque se não faço, Edwina lava. É instinto, ela não pode evitar. Infelizmente, ela não consegue distinguir entre a água da pia e a da privada, já que as duas, para ela, cheiram a água limpa. Já terminamos?

– Só mais algumas perguntas básicas. Você sabe onde Adam Pierce está?

– Não.

Verdade.

– Tem algum meio de contatá-lo?

– Não.

Verdade.

– Ele tem algum amigo ou conhecido com quem mantenha contato?

– Não de sua vida pregressa. Sou seu único vínculo. Ele não era muito impopular, era muito bonito e muito rico, mas não criou amizades duradouras.

– Você tem alguma informação que possa me ajudar a encontrá-lo?

– Informação direta e concreta, não. Mas posso dizer que Christina nunca deixaria seu garoto de ouro passar por qualquer tipo de necessidade. De um jeito ou de outro ela está oferecendo apoio. Meu conselho é que você deve seguir o dinheiro.

– Fim da entrevista. – Desliguei o gravador e peguei meu cartão. – Muito obrigada, senhor Harrison. Se, por acaso, falar com Adam Pierce, por favor lhe dê meu telefone. Alega-se que ele matou um policial. A família está preocupada com ele, e eu sou a melhor chance de ele sobreviver a essa bagunça.

– Não vai me perguntar se acho que ele fez mesmo isso? – Cornelius perguntou.

– Sinceramente, não me importa. Meu trabalho não é provar a inocência dele. Apenas preciso conseguir trazê-lo de volta inteiro.

– Muito bem. – Ele me acompanhou até a porta e, ao abri-la, hesitou um pouco. – Senhorita Baylor, se falar com a Casa Pierce, vão alegar que Adam era um garoto exemplar até entrar na faculdade, onde, de alguma forma, entrou em contato com essas ideias radicais. Eles convencem quase todos disso. – Ele pigarreou. – Nossa escola primária ficava a menos de cinco quarteirões da minha casa. Quando estávamos na terceira série, ganhamos o direito de voltar a pé, com o segurança nos acompanhando à distância. Parávamos em uma loja no caminho. Das três primeiras vezes, Adam furtou. Nada de valor, um doce, uma bebida. Ele nem disfarçava. Apenas pegava o que queria e saía da loja, como se sentisse orgulho de seu feito. Da quarta vez, um parente do proprietário segurou a mão dele e pegou o doce. Adam o queimou. Queimou com tanta violência que quando os guarda-costas chegaram, a pele do rosto do homem já estava cheia de bolhas. Ainda me lembro do cheiro. Aquele cheiro acre, horrivelmente fedido de carne humana cozida. A Casa Pierce tentou dizer que Adam era uma criança absolutamente assustada e que se rendeu a seus instintos. Mas eu estava lá e vi a expressão no rosto dele. Adam não estava assustado. Ele estava furioso. Estava punindo o homem por impedi-lo de furtar. – Cornelius se inclinou na minha direção, os olhos sérios. – Adam poderia ter matado aquele homem queimado por conta de um doce. Ele consegue o que quer e, se lhe disser “não”, ele vai machucar você. É com esse tipo de pessoa que você está lidando. Não vou desejar boa sorte, mas tome cuidado.


Quando saí do modesto palácio de Cornelius, o sol já estava se pondo no horizonte. Sentei-me no carro por um momento e entrei na internet. Uma busca rápida nas mensagens recebidas me mostrou que não havia novidades, mas uma busca por empresas relacionadas a motocicletas na região de Houston me levou até Gustave Customização de Motos. A imagem parecia muito com o que tinha visto no fundo da foto de Pierce no Twitter. A loja ficava do outro lado da cidade. Eu chegaria lá depois de escurecer.

Vamos ver o que tem por perto. Um bar de um lado e um estúdio de tatuagem do outro. Se os motoqueiros tinham um ponto, devia ser ali. Isso significava que a loja ficaria aberta mesmo depois de escurecer e também devia ter muitos clientes e visitantes que iam lá apenas para o social. Se eu fosse lá naquele momento, estaria cheio. Todos deviam se conhecer e eu ficaria deslocada, pedindo para me darem pistas de alguém que eles consideravam um amigo. Era possível falar com algumas pessoas durante o horário de trabalho, e eles seriam educados e gentis. Mas encontrar todos juntos, tomando cerveja, seria um momento forte de machismo grupal. Eles procurariam encrenca, e se a encrenca surgisse no corpo de uma jovem fazendo perguntas desconfortáveis, considerariam um desafio. No melhor dos cenários, me dariam cantadas e me fariam sair dali. No pior dos cenários, alguém sairia ferido. Isso não era necessário. Eu poderia apenas falar com o dono da loja no dia seguinte pela manhã, logo cedo, quando todos estivessem sóbrios.

Liguei o carro e fui para casa. Adam Pierce tinha conseguido não ser preso nas últimas vinte e quatro horas, teria de se manter assim até de manhã.

O trânsito estava de matar. Diferente do homem da previsão do tempo e das análises de mercado, o congestionamento em Houston era cem por cento confiável, nunca falhava em aparecer e entupir as ruas. Dirigi, centímetro a centímetro, evitando os motoristas que discutiam dentro das aparentemente sólidas muralhas do carro enquanto trocavam de pistas. E pensei em Adam Pierce. Ele não havia aparecido. Nada de novo no Twitter. Bern estava vasculhando a internet atrás de qualquer pista sobre ele ou Gavin Waller. E Bern era muito bom no que fazia. Mas ainda não tinha encontrado nada.

Por que incendiar o banco? Teria sido uma tentativa frustrada de assalto? Essa não era a visão da polícia, ou Adam já teria feito uma declaração bem divulgada contra seus opressores ou algo do tipo. Teria sido uma travessura de bêbados que saiu do controle? Qual o papel de Gavin naquilo tudo? Eu realmente esperava que o garoto saísse dessa vivo, se não por ele, por sua mãe. Os registros financeiros de Kelly Waller mostravam uma vida de sacrifícios pelos filhos. Quaisquer que fossem os pecados de Gavin, Adam Pierce era mais velho do que ele aproximadamente dez anos. Ele era o chefe.

E como eu conseguiria convencer Pierce a vir comigo? John Rutger não chegava nem perto de ser Superior e tinha me arremessado contra a parede. Uma pena eu não poder cuspir fogo. Espere aí, isso não me ajudaria. Pena eu não poder cuspir gelo? Teoricamente, se você cuspisse gelo, não conseguiria cuspir muito, pois o corpo humano tem uma quantidade limite de água. Agora, se eu pudesse invocar correntes e algemas... Pierce provavelmente as iria derreter. Será que o metal fundido o queimaria se ele mesmo o derretesse?

A imagem de Louco Rogan surgiu em minha mente. Havia algo naqueles olhos azuis olhando para a câmera. Não era exatamente tristeza, era um tipo de constrangimento escondido por um leve sorriso. Era como se ele soubesse que era um furacão humano e se sentisse mal por isso, mas não pudesse impedir. É provável que eu estivesse especulando demais. Como o haviam contido no serviço militar? Eu tinha visto em primeira mão os danos que a guerra causava nas pessoas. Se usassem um Superior, centenas de soldados morreriam.

Quarenta e cinco minutos depois, quando finalmente estacionei em frente ao galpão, estava cansada das inúmeras dúvidas e dos pensamentos que giravam em círculos. E estava com muita fome. Assim que pisei no corredor, o cheiro de biscoitos recém-saídos do forno, molho barbecue e carne temperada me envolveu. Canela, alho, cominho... hummm. Tirei os sapatos e deixei o aroma me levar até a cozinha. Um bilhete e dois pratos com carne de porco me esperavam no balcão. O bilhete dizia: “Nevada, fui dormir mais cedo. Por favor, leve um prato para sua avó ou ela vai esquecer de comer novamente”.

Minha mãe costumava ir dormir cedo quando sentia saudades do meu pai e não queria que a víssemos chorar. Já fazia cinco anos, mas eu também sentia saudade dele. Podia fechar os olhos e imaginá-lo resmungando na despensa, reclamando que alguém havia comido o pedaço de carne que ele tinha guardado e agora seria forçado a comer coisas não naturais, como salada e croutons. Minha mãe sempre foi a mais durona. Quando meu pai estava vivo, ela ria muito. Ela ainda ria, mas não mais com tanta frequência.

Devorei meu jantar, limpei o prato, coloquei-o na lava-louças e peguei o segundo prato e um copo de chá gelado para levar até o fundo do galpão. Depois de passar pela parede principal, não havia mais sinal da nossa sala de estar. Ali era o canto dos motores: piso em concreto brilhante, escuro, ferramentas nas paredes, veículos blindados, alguns com pequenas armas, alguns com tanques semelhantes a barris, brilhando na escuridão, e o cheiro da vovó: gasolina, óleo de motor e pólvora.

Um veículo blindado de tamanho médio estava no meio do espaço, banhado pelo brilho dos refletores. As pernas finas da vovó Frida em suas calças jeans apareciam por debaixo do veículo. À direita, Arabella descansava na carcaça de um Humvee coberto por lona verde. Era assim que eu tinha crescido. Quando chegava em casa, depois da escola, minha mãe e meu pai já tinham saído, então, eu pegava um lanche e ia ficar com minha avó na oficina dela. A gente podia falar de qualquer coisa com ela. Ela dizia que os veículos conversavam com ela, se ela deixasse. As crianças também. Ela nunca julgou e, mesmo que a gente confessasse ter feito algo absolutamente estúpido, ela nunca contava aos meus pais. Deixei a maioria de meus medos e preocupações ali. Depois foi a vez de Bern e Catalina e, depois, Arabella e Leon. Agora estávamos todos ocupados, então, a visitávamos pouco. Mas ao menos uma vez por semana pelo menos um de nós acabava ali, falando de coisas pessoais e gesticulando.

– Jantar! – avisei.

Arabella se ajeitou sobre a lona. Ela parecia chateada. Algo de ruim havia acontecido na escola.

Minha avó saiu de baixo do veículo e se sentou.

– Comida. Que bom. Fome.

Entreguei-lhe o prato e apontei para o veículo:

– Qual é o nome dele?

– Thiago. – Minha avó tocou no metal. Seu olhar ficou distante por um segundo, sua magia se conectando com o funcionamento interno do motor de Thiago. – Classe Aranha-Lobo. Para mim parece Thiago.

Mágicos da mecânica, como minha avó, eram raros. Alguns faziam armas, outros trabalhavam na engenharia civil, mas todos tinham uma conexão com objetos de metal e suas partes móveis. Para vovó Frida, eram couraças que se moviam. Não importava se rolavam, en-gatinhavam ou flutuavam. Ela vivia e respirava o som profundo das vozes de seus motores, a fumaça e o cheiro de suas armas. Tanques, veículos de artilharia para combate, automóveis pessoais, ela amava todos. Por sorte, muitas das Casas mantinham segurança particular e ela tinha uma consistente lista de clientes.

– Sua mãe está bem? – minha avó perguntou. – Ela estava assustada mais cedo.

– Ela está bem – respondi. – Só sente falta do papai. Tenho uma pergunta para a senhora.

– Manda!

– No serviço militar, como eles mantêm na linha quem tem poderes mágicos? Se um deles fizer algo, detona toda a unidade, não?

– Choque – ela começou. – Chamam de zumbidos alegres, chacoalhões, tremores de lula.

– Tremores de lula?

– “Lula” é um soldado de infantaria da Marinha – vovó disse. – A Marinha foi a primeira a usar choque, pois rapidamente descobriu que magia e navios nem sempre eram uma boa combinação.

Fazia sentido. Se você colocava fogo em um navio ou reunia um enxame de moscas venenosas, não havia para onde correr.

– É um tipo de dispositivo que implantam no braço deles. Completamente imperceptível por fora, mas permite que se dê choques em qualquer um que tenha capacidades mágicas. Dói demais, mas dói ainda mais em quem quer que você use. Um recurso nojento. As pessoas morriam por conta disso.

– As pessoas que tomavam os choques?

Pensei se Louco Rogan já teria tomado um choque... Ok, precisava deixar de lado minha obsessão por aqueles olhos. Eu estava no primeiro ano do ensino médio quando aquele vídeo foi feito. Ele provavelmente nem tinha mais a mesma aparência. Certamente não era mais aquele menino de dezenove anos. Tinha passado por seis anos de guerra. A guerra consumia as pessoas e cuspia o bagaço. Se eu continuasse indo por esse caminho, terminaria na Herald, devorando a fanfic de Louco Rogan. Fizemos amor enquanto a cidade caía à nossa volta, fazendo chover concreto em pedaços de desespero... Isso mesmo, já chega.

– Quem levava o choque e quem dava também. O choque funciona em via dupla. Primeiro, é preciso controlá-lo com sua própria mágica, e só depois ele chega no outro com quem você está fazendo contato. Desgasta muito. Se for preciso muita magia, seu corpo desiste e apaga. A primeira leva de testes chegou a uma mortalidade de mais de trinta por cento. Quando Penelope se alistou, já estava muito melhor. Você não acreditaria no que eles têm agora. Conheço um cara que pode fazer um implante.

– É ilegal? – Aquilo não me surpreendia.

– Ah, sim. – Minha avó riu. – E você pode morrer por isso. Quer tentar?

– Não, obrigada.

– Tem certeza? – Vovó piscou para Arabella. – Não precisaria mais da arma de choque.

– Não, estou bem assim mesmo. Fora que o plano é evitar situações em que eu precise usar a arma de choque.

– Ha-ha.

– Por exemplo, tive a chance de interrogar o dono de uma loja de motocicletas tarde da noite e decidi, em vez disso, vir para casa.

Vovó Frida apoiou o prato e pegou a barra de um metro e meio de ferro, usada para abrir os veículos. Nas mãos certas, poderia desarmar um tanque, e a vovó Frida era uma especialista.

– Não entendo você, Neva. Tem vinte e cinco anos. Cadê seu espírito aventureiro? Quando eu tinha sua idade, estava do outro lado do mundo. Você é tão... sensata.

Arabella se animou, sentindo o clima de tensão. Eu precisava terminar com aquilo ou a provocação nunca teria fim. Quem mostrasse fragilidade diante de adolescentes seria provocada até a morte. Uma verdade da vida.

– Tenho uma família cheia de pessoas peculiares. Alguém precisava ser sensata para vocês poderem ser absolutamente loucos.

– Você precisa viver um pouco. – Ela colocou a barra na corrente dentada. – Saia com um bad boy. Comece uma briga. Fique bêbada. Qualquer coisa!

Um sentimento de culpa. Infelizmente, para minha avó, eu tinha crescido com quatro irmãos mais novos. Tentar deixar os outros culpados era, às vezes, o único jeito de conseguir que algo fosse limpo em casa.

– Vó, por que a senhora não faz tricô?

– O quê?

– Por que a senhora não faz tricô? Todas as avós fazem.

Minha avó se inclinou na direção da barra. A caixa se abriu e caiu no chão, fazendo um baita barulho. Ela me olhou com seus grandes olhos azuis.

– Você quer que eu tricote?

Arabella riu baixo.

– Se for procurar no dicionário, na definição da palavra “avó” está uma senhorinha com duas agulhas de tricô e um cesto de lãs. – Fingi estar mexendo em um macarrão imaginário com duas varetas. – Às vezes me pego pensando, se ao menos minha avó tivesse feito para mim um cachecol ou um gorro...

– Vivemos em Houston, Texas! – Ela limpou as mãos em um pano. – Você morreria de calor.

– Ou um bichinho de tricô. Com que eu pudesse dormir abraçada à noite. – Suspirei profundamente. – Muito bem. Acho que isso nunca vai acontecer.

Arabella riu. Minha avó apontou a barra para ela.

– Silêncio na plateia.

Abri um doce e amistoso sorriso.

– Bem, agora vou indo. Vocês duas, divirtam-se. Amanhã tenho que trabalhar.


Aloja de Gustave ficava em um edifício retangular, de aço, com paredes de metal ondulado. Tinha sessenta metros de largura e duzentos e quarenta de comprimento, feito pela Olympia Steel Buildings e entregue no local, para montagem, quatro anos e sete meses antes. Bern havia conseguido os alvarás da cidade para mim.

Antes de ir dormir, na noite anterior, passei algumas horas lendo o arquivo com o histórico de Adam Pierce e tudo o que Bern tinha conseguido descobrir durante o dia. Li entrevistas com os pais e professores, artigos de tabloides, fofocas confiáveis na Herald e o pouco que os colegas de faculdade diziam dele. Adam gostava de fazer discursos, especialmente depois que deu as costas para a família. E a mensagem não era tão anarquista quanto parecia. Se puder ter o que desejar, deve fazê-lo e o governo e a lei não deveriam poder impedi-lo, porque eles não têm o direito de existir. Ele jogava ao vento termos como “liberdade negativa” e citava Hobbes.

Eu conhecia Hobbes apenas porque minha graduação havia exigido a disciplina de Ciência Política. Hobbes foi um filósofo inglês do século XVII, que ficou conhecido por acreditar que, sem a comunidade política, a vida do homem seria solitária, pobre, sórdida, bruta e curta. Adam encontrou uma outra vertente em Hobbes: “Um homem livre é aquele que, desde que sua força e inteligência permitam, não é impedido de fazer aquilo que tem vontade”. Ele havia repetido isso em, ao menos, três ocasiões. Adam considerava que a sociedade tolhia sua liberdade ao não o deixar fazer o que ele tinha vontade. Infelizmente para ele, se o que desejava fazer era colocar fogo nas pessoas, não estava com sorte. O restante de nós não aceitaria esse tipo de coisa.

Agora eu sabia mais sobre Adam Pierce do que gostaria. Ele era inteligente, às vezes cruel, e se entediava facilmente. Não confiaria em mim independentemente do que eu fizesse. Criar algum tipo de amizade estava fora de questão. Se eu tentasse ser sincera e cuidadosa, ele riria; se eu tentasse ser racional, ele bocejaria. Minha única chance era ser interessante. Precisava conseguir chamar e manter sua atenção.

A foto dele no Twitter, na frente da loja de motocicletas ainda me perturbava. Um motoqueiro de verdade não deixava qualquer um colocar a mão em sua moto. Não, verdadeiros motoqueiros escolhiam seus mecânicos com cuidado. Havia uma grande questão de confiança envolvida. Por isso, ontem à noite, quando pesquisei sobre a loja de Gustave, algumas bandeiras vermelhas se ergueram e pedi a ajuda de Bern. Ele descobriu muitas coisas interessantes.

Pela manhã, tomei o café da manhã, vesti o jeans e os tênis de corrida – caso precisasse sair correndo para salvar minha vida – e fui até a loja. Adam queria que a vida fosse divertida. E eu estava prestes a lhe dar um tapinha no ombro. Só precisava bater forte o suficiente para ele se virar.

O edifício parecia mais velho do que as duas construções ao lado. As paredes onduladas haviam sofrido alguns desgastes com os anos. Alguém havia pintado a fachada de preto sólido e grafitado uma motocicleta e tanto com spray: enorme, brilhante e emoldurada por chamas e caveiras vermelhas.

No estacionamento estavam duas caminhonetes Dodge: uma branca e uma preta. Não precisaria apresentar minha lição na frente de toda a turma. Parei ao lado da caminhonete branca, peguei minha pasta de trabalho de couro sintético e fui até o escritório. Não havia ninguém no balcão, então, toquei a campainha e aguardei.

A porta se abriu e um homem com pouco mais de trinta anos me indicou para entrar. Alto e magro, parecia fraco, não desnutrido, mas como carne seca ao sol. Ele usava uma camiseta suja de óleo e um velho jeans. Sua pele tinha um tom moreno bonito, um ou dois tons mais escuros do que a minha pele. A cabeça era raspada, mas uma barba curta e bem aparada emoldurava seu rosto. Eu o reconheci da imagem que Bern tinha conseguido na pesquisa: Gustave Peralta, o proprietário.

Ele me viu e piscou. Claramente eu não era bem quem ele esperava.

– Posso ajudar?

– Meu nome é Nevada Baylor e estou procurando por Gustave Peralta.

– Pode me chamar de Gus – ele disse. – Como posso ajudar?

Entreguei-lhe meu cartão de visitas.

– Detetive particular? – Ele franziu o cenho. – Essa é nova.

– Fui contratada pela Casa Pierce para encontrar Adam Pierce.

– Não posso ajudar – ele disse. – Não o vejo já faz seis meses.

Um barulho incômodo. Mentira.

– Ele não visitou a loja na semana passada? – A foto no Twitter havia sido compartilhada na segunda-feira.

– Não.

Mentira.

– Gus...

– Senhor Peralta. Não tenho nada a dizer para você. Pode se retirar.

Ele virou-se para ir embora e eu peguei um papel em minha pasta.

– Aqui estão as cópias dos pagamentos que recebeu. – Gustave parou e deu meia-volta. Coloquei um segundo papel no balcão. – Aqui estão as saídas e, aqui, sua folha de pagamento.

Ele pegou o papel do balcão.

– Onde conseguiu isso?

– Hackeamos seu computador.

– Isso é ilegal!

– Já disse – dei de ombros –, não sou da polícia.

– E se eu ligar para a polícia e reportar isso? – Ele procurou seu telefone.

– Deixe-me terminar. – Sorri. – Aí você vê se ainda quer chamar a polícia. Se quiser, não vou impedi-lo. Se olhar aqui, onde desenhei essa pequena estrela, temos um pagamento no valor de 9.990 dólares identificado como “reparo em motocicleta”.

– E daí? – A ira nos olhos de Gustave já estava um pouco mais branda.

– Esse é um pagamento recorrente vindo da conta pessoal de Christina Pierce.

Dizer que o depósito vinha de Christina Pierce era um grande blefe. O máximo que havíamos determinado era que os pagamentos eram feitos a partir de uma conta de alguém da Casa Pierce. E parecia uma boa aposta escolher a mãe de Adam.

– E? Fiz alguns reparos para Adam naquela época e ele estava sem dinheiro. A família dele faz os pagamentos.

– Não, senhor Peralta. O senhor e eu fazemos pagamentos. Adam Pierce entra e diz “quero uma de cada cor” e joga seu cartão Black. Se olhar aqui, na folha de pagamentos, verá um senhor de nome Reginald Harrison listado como terceirizado. Também verá que Reginald Harrison recebe 9.990 dólares em dinheiro. O número 9.990 é muito interessante, porque a Receita Federal presta atenção apenas a transações acima de 10 mil dólares.

– E daí? Reginald trabalha para mim.

Mentira.

– A conta de Reginald Harrison está na casa dos 20 milhões de dólares, então, duvido muito disso. Ele tem um irmão mais novo chamado Cornelius Harrison, um homem muito gentil, que por coincidência é amigo de infância de Adam Pierce. O senhor está lavando o dinheiro de Adam. A família faz o pagamento, o senhor repassa para Adam em dinheiro, e Reginald declara em seu imposto de renda. O senhor recebe quinhentos dólares como pagamento, dois dias depois que Adam recebe o dinheiro. – Gus cruzou os braços. – O pagamento é feito todo dia 7. Isso significa que, em dois dias, Adam Pierce vem visitá-lo para pegar o dinheiro. Acredito que o senhor não tenha mencionado isso aos gentis detetives que o entrevistaram.

Se eu tivesse a força de trabalho e a confiança suficiente de que a polícia de Houston não encontraria Adam pelos próximos dois dias, teria jogado uma adorável armadilha. Mas Adam podia queimar tudo o que eu jogasse para ele, e a busca já estava muito intensa. Convencer Adam a se render à própria Casa ainda era minha melhor estratégia. Para isso, precisava mostrar que eu não estava mentindo.

– Ele não faz isso – Gus disse. – Adam é um cara ponta firme.

– Não me importa – respondi. – No momento, a maior parte da força policial da cidade está espumando e querendo estourar os miolos dele. O senhor é sensato. Honestamente, quais as chances de sair vivo disso?

– Olha, eu não sei onde ele está.

Verdade.

– Só quero levá-lo em segurança para casa. A mãe dele o ama. Ele é seu bebê. Ela não quer perdê-lo para algum atirador de elite. – Empurrei meu cartão pelo balcão. – Diga a ele que passei aqui. É só o que estou pedindo.


A barbatana de tubarão da Montgomery Investigações Internacionais erguia-se entre as torres do centro de Houston, tão assustadora como sempre. Mostrei a língua, mas ela não se abalou.

Estacionei e fui até o escritório de Augustine Montgomery. A recepcionista perfeita falou algo em seu headset e fez sinal para que eu a seguisse.

– Quanto tempo você demorou para definir que tom de base líquida usar para cobrir seu hematoma? – ela perguntou.

– Mais ou menos meia hora. Funcionou?

– Não.

Touché.

Augustine Montgomery, inacreditavelmente lindo, ergueu os olhos do tablet.

– Não sou uma pessoa terrível.

– Sim, você é. A anotação nos arquivos afirmava que a Casa Pierce tinha cortado o dinheiro de Adam. Eles continuam enviando. Provavelmente, a mãe dele.

Augustine recostou-se na cadeira e fechou as mãos em um único punho cerrado. Se a picotadeira de papel parasse de funcionar, bastava colocar o papel em sua cabeça que seus perfeitos e duros ângulos de mármore fariam o trabalho.

– Me garantiram que não estavam mais dando dinheiro a ele.

Coloquei as cópias das movimentações financeiras da loja de Gustave sobre a mesa de Augustine. Ele avaliou o material por um bom tempo.

– Eu quero saber como você conseguiu isso.

– Não.

Augustine fez um gesto para mim.

– Fique aqui.

Fui até ele e fiquei ao seu lado.

– Não diga nada. Quero que saiba que se essa informação estiver errada, as consequências para você serão muito sérias.

Seus dedos começaram a digitar. O grande monitor acendeu e, nele, apareceu um escritório e um homem magro, de terno, atrás de uma mesa. Peter Pierce, o irmão mais velho de Adam. Os traços bonitos de Adam também estavam presentes ali, nos olhos escuros, no nariz marcante e no formato da boca, mas Peter não tinha o apelo de garoto bonito e rebelde que tornara Adam o queridinho da mídia. Peter era ao menos dez anos mais velho e passava uma imagem respeitável tanto quanto o irmão passava a imagem de inconsequência.

– Augustine – Peter disse. – Já o encontraram?

– Estamos trabalhando no caso.

Nós significava eu, e Peter viu o meu rosto. Agora eu estava oficialmente vinculada à procura por Adam. Augustine recostou-se na cadeira e prosseguiu:

– Tenho motivos para acreditar que a Casa Pierce continua dando dinheiro para ele. Não tenho como deixar mais clara a importância do incentivo financeiro para trazê-lo de volta a salvo. Se vocês continuarem a lhe dar dinheiro para brincar, ele vai continuar em risco.

– Eu sei, eu sei. – Peter movimentou a mão. – Devemos deixar as coisas o mais difíceis possível para ele. Lembro da lição. Garanto que ele não está recebendo dinheiro.

Augustine leu o histórico de transferências para ele.

– Me passe o número da conta – Peter pediu.

Augustine digitou. Um computador ao lado de Peter fez um sinal sonoro. Ele olhou para o outro monitor, à esquerda, e balançou a cabeça, com a expressão irritada. Em seguida, digitou algumas coisas no teclado.

– Mãe?

– Sim? – disse uma voz de mulher mais velha do outro lado da linha.

– A senhora precisa parar de mandar dinheiro para o Adam.

– Ah, por favor, é um valor insignificante.

– Ele não pode ter dinheiro, mãe. Já conversamos sobre isso.

– Mas aí ele ficaria pobre. Isso é ridículo. Você quer que seu irmão seja pobre, Peter? Por que vocês todos têm de fazer tudo ser tão desagradável para ele?

O rosto de Augustine permanecia absolutamente neutro.

Desagradável. Era uma boa palavra, especialmente levando em consideração que, no momento, uma viúva com duas crianças estava se preparando para enterrar o corpo carbonizado do marido.

– Talvez você queira que ele viva como os imigrantes imundos que pedem dinheiro nos faróis.

Encantadora. Se eu nunca viesse a conhecer Christina Pierce, ainda assim seria muito cedo.

– Sim – Peter disse. – Quero que ele fique pobre e desesperado. Tão desesperado que venha nos pedir ajuda.

– Completa e absolutamente...

Peter acenou para nós e digitou algo no teclado, finalizando a conferência. Ambos ficamos olhando para a tela por alguns segundos.

– Então, se eu ganhar menos de 9.990 dólares por mês posso legitimamente pedir dinheiro nos cruzamentos? – não pude me conter.

Augustine tirou os olhos e mexeu no nariz.

– Seus clientes sabem que você contrata imigrantes imundos?

– Pare – Augustine disse. – Christina Pierce é a terceira geração de Superiores. Ela nunca foi pobre um dia sequer na vida. É como ela vê o mundo.

– Se eu localizar Adam Pierce, o senhor vai me fornecer suporte?

– Depende da situação.

Mentira.

– Mantenho minha afirmação anterior. O senhor vai precisar viver consigo mesmo.

Saí do escritório dele. Meu celular tocou enquanto eu estava no meio do saguão. Um número desconhecido. Aceitei a ligação.

– Nevada Baylor.

– Adam Pierce – disse uma voz masculina.

Sua voz era como imaginei que seria, um pouco irônica, o tipo que combinava com um garoto rico e mimado.

Eu precisava morder a isca do jeito certo. Meu coração estava batendo rápido demais. Respirei fundo. Eu podia fazer isso.

– Gustave me disse que você interceptou minha fonte de renda.

– Sim, é verdade. Seu irmão e sua mãe estão conversando sobre isso agora mesmo. Ela tem algo contra trabalhadores imigrantes?

– Ela provavelmente se referiu aos vagabundos. – Ele riu. – Então você quer me encontrar?

– Querer é a palavra errada. Sou forçada a te encontrar. Mas não tenho nenhum desejo em particular de fazer isso.

– E quem está forçando você?

Fisguei.

– Quais as chances de você se entregar para mim?

Ele riu mais uma vez, uma risada bem masculina.

– Venha me encontrar e conversamos sobre isso.

Ponto.

– Claro, onde?

– Mercer Arboretum, Jardim Shade Bog. Em meia hora.

Ele desligou.

Meia hora. Mercer ficava a trinta quilômetros do centro. Trinta quilômetros com o trânsito de Houston bem poderiam ser sessenta. Maldito.

Corri para o carro enquanto escrevia uma mensagem para Bern. Ele ainda estaria na aula. “AP acabou de ligar no meu celular. Vou encontrá-lo em meia hora, Mercer Arboretum.”

Sem resposta.

Bern poderia rastrear meu telefone em qualquer lugar, mas rastreá-lo não me ajudaria em nada se Adam tivesse me transformado em cinzas. Meia hora seria tempo suficiente para chegar lá. Mas não o bastante para conseguir reforços. Além disso, reforços não me ajudariam. Entrei no Mazda e saí do estacionamento como se as rodas estivessem pegando fogo. Seja interessante. Convença-o a se entregar. Não seja morta.


Entrei no Mercer Arboretum exatamente vinte e nove minutos depois da ligação. Um jardim botânico de mais de cem hectares, o local era acolhedor para magos poderosos e populares que buscavam ar puro. Havia algo nos jardins, e especialmente nas flores, que atraía os usuários de magia mesmo se suas habilidades nada tivessem a ver com as plantas. Eu também sentia. À minha volta, flores desabrochando, árvores e suas vastas copas, insetos voando de folha em folha, pássaros cantando... Era como estar presa em um casulo de vida, impregnado com a simples alegria de existir.

Perdi vinte segundos no quiosque de presentes, virei para o norte e segui o caminho com minha compra dobrada na mão. Homens e mulheres passavam por mim. Alguns falando baixo, alguns entretidos em seus pensamentos. Roupas caras, rostos bonitos, alguns tão perfeitos que a magia da ilusão deveria estar envolvida. Havia um ponto em que um ser humano se tornava tão perfeito que perdia qualquer apelo sexual. Tornava-se intocável e quase estéril, como um manequim de plástico em uma vitrine. Muitos Superiores entendiam isso e deixavam algumas imperfeições, como Augustine Montgomery, mas muitos dos de menor calibre, não. Considerando a quantidade de usuários de magia que tinham passado por mim, aquilo iria se tornar uma grande caçada. Adam Pierce era muito conhecido e aquele lugar era muito público.

O caminho tortuoso chegou a uma ponte com proteção de um corrimão de ferro preto. As pontas se arqueavam na direção da natureza, como se linhas retas, feitas por humanos, não tivessem lugar ali. As árvores se amontoavam. O ar tinha cheiro de umidade, aquele inconfundível cheiro de terra molhada, lama e plantas. Um pântano se estendia dos dois lados do caminho e um pouco de água da cor de chá era rodeada por plantas verdes florescendo e brilhantes flores vermelhas. O caminho se desviava um pouco, cruzando o pântano e chegava a um banco. Um muro baixo de pedras protegia o banco dos dois lados. No muro, estava sentado Adam Pierce.

Estava empoleirado, com as pernas cruzadas e esticando o couro preto das calças. Adam vestia uma jaqueta sobre uma camiseta preta. Seu cabelo caía sobre o rosto numa ondulação imprecisa. Um complexo círculo mágico, desenhado em giz preto e branco, marcava o limite do caminho e o muro atrás dele. Três anéis, um dentro do outro, três semicírculos virados para fora, com o centro tocando o anel mais interno. Linhas finas e perfeitas cruzavam os círculos, formando um padrão muito elaborado. Os semicírculos para fora indicavam contenção. Ele estava concentrando seu poder.

Anos atrás, quando se esperava que aristocratas servissem o Exército, eles começaram a treinar o uso de espadas assim que aprendiam a andar. Agora os Superiores praticavam o desenho dos símbolos místicos. Se eu tivesse de copiar o que ele havia desenhado, precisaria de uma imagem de referência, uma régua e um compasso para fazer aqueles círculos. E de algumas horas. Provavelmente ele tinha feito o desenho à mão livre e em alguns minutos. Estava perfeito.

Adam era capaz de incrível precisão e controle. Aliás, o jeito de ele se sentar, suas poses nas entrevistas com o melhor ângulo para a câmera – tudo indicava que ele praticava em frente ao espelho. Talvez a imagem de rebelde sem causa fosse só para impressionar. Talvez tudo o que ele fazia fosse calculado. Não seria apenas a cereja desse bolo de absurdo? Eu precisaria cruzar essas águas turbulentas com muito cuidado.

Adam ergueu o olhar. Seus olhos castanhos me mediram. Ele era exatamente como aparecia em todas aquelas fotografias. Ok. Agora eu precisava não ser frita enquanto tentava convencer aquele homem lindo a se render.

Fui até o banco. Ao passar por ele, um calor me varreu, como se eu tivesse pisado muito perto de uma fogueira. Ele tinha feito o círculo de contenção e o havia preenchido com calor. Eu tinha minha arma de choque na bolsa. Provavelmente poderia atirar nele daquela distância. Mas mesmo se o atingisse e ele caísse, me aproximar mais seria impossível. Aquele calor arrancaria a pele sobre meus ossos. Então o choque me destroçaria e eu acabaria morta.

Eu me sentei.

Adam Pierce sorriu. Seu rosto se iluminou, de repente como o de um garoto charmoso, mas ainda assim um tanto estranho. Era por isso que a mãe lhe dava tudo o que ele queria.

– Nevada. Um nome tão frio para uma garota tão ensolarada.

Mas que fofo. Nevada significava “coberta de neve” em espanhol. E isso era tudo o que eu não era.

Os pais de minha avó Frida imigraram da Alemanha para os Estados Unidos. Tinha cabelos escuros e pele clara. Meu avô Leon era do Québec. Não me lembrava de muito a seu respeito, exceto o fato de que ele era enorme e tinha a pele morena. Isso trouxe algumas complicações para os dois, mas eles se amavam demais para se afastar. Juntos, tiveram minha mãe, com cabelos pretos e pele morena. Não sabíamos muito a respeito da família de meu pai. Uma vez ele havia me dito que sua mãe era uma pessoa horrorosa e que ele não queria nenhum tipo de contato com ela. Para mim, ele parecia uma mistura de caucasiano com índio, de cabelos loiro-escuros, mas nunca perguntei. Todos esses genes se misturaram em uma grande experiência e saí eu, com a pele bronzeada, olhos castanhos e cabelo loiro.

Meu cabelo não era loiro-platinado, era um pouco mais escuro, um loiro mais para mel. Eu quase nunca me queimava sob o sol, apenas ficava mais escura, enquanto meu cabelo ficava mais claro, especialmente se eu usasse a piscina. Uma vez, quando tinha sete anos, uma mulher parou minha avó quando íamos para a escola. Ela tentou convencer minha avó a pintar meu cabelo. Não deu muito certo. Até hoje às vezes as pessoas me perguntam em que salão eu fazia a tintura. Nevada realmente não combinava muito comigo. Não havia nada em mim que remetesse ao inverno, mas eu não me importava com o que ele pensava a esse respeito.

Balancei a mão esquerda, desdobrando um souvenir do parque. Era uma camiseta preta com o logo verde na frente.

– Para você.

– Você comprou uma camiseta para mim? – Ele ergueu a sobrancelha.

Todo o meu corpo tremia de tensão. Imóvel.

– Você vive esquecendo de vestir, então pensei em lhe trazer uma de presente. Afinal, vamos ter uma conversa séria.

Ele se inclinou para a frente, seu lindo rosto emoldurado pelo cabelo macio.

– Você acha meus peitorais uma distração?

– Acho. Sempre que vejo aquela pantera com chifres, começo a rir.

Adam Pierce piscou.

Não esperava por essa, né?

– Só por curiosidade, por que os chifres?

– É Mishepishu, uma pantera submarina dos grandes lagos. É reverenciada por tribos indígenas. Tem os chifres de um cervo, o corpo de um lince e as escamas de uma cobra.

– E por que esse bicho é famoso?

– Ele vive nas partes mais profundas dos lagos, guardando os depósitos de cobre. Aqueles que cruzam suas águas precisam pagar o preço.

– E se não pagam?

Adam sorriu, mostrando um pouco de seus dentes.

– Então Mishepishu mata a pessoa. Em um momento as águas são plácidas e no outro você se depara com a morte.

Então Adam se via como um tipo de Mishepishu. Ele governava e aqueles que cruzassem seu caminho precisavam pagar seu preço. “Cheio de si” nem começava a descrevê-lo.

Adam estava olhando para mim novamente. Devagar, me avaliando.

– Não acredito que minha mãe tenha contratado você.

– E por que não?

– Porque ela contrata pela aparência. Seu jeans custou o quê? Cinquenta dólares?

– Quarenta. Comprei em uma liquidação alguns anos atrás. Escolhi essa calça especialmente para ir visitar Gustave.

– Por quê?

– Porque precisava que ele confiasse em mim e porque queria mostrar que também sou uma trabalhadora, como ele. Não sou “eles”. Não mando. Nem conheço quem mande. Embora ele às vezes pague as minhas contas. Se eu fosse encontrar sua mãe, usaria meu terninho Escada, que custou 1.600 dólares. Sua mãe não ficaria impressionada, mas ao menos não me mandaria embora logo de cara como se eu fosse uma mendiga.

Os olhos de Adam se apertaram.

– Pesquisei você. É ralé, Floco de Neve.

Apelidos? Aff.

– Nossa empresa tem uma excelente reputação.

– Por que você gastaria mais de 1.500 dólares em um terninho? Isso não é metade do seu salário?

Forcei minha voz a sair leve e casual.

– Viu só? É assim que eu sei que você nunca foi pobre. Você está me provocando ou está realmente curioso?

Ele se reclinou para trás.

– Estou curioso. Quando eu começar a provocar, você vai saber.

Deixei a indireta passar, fingindo não ter percebido.

– Quando você é rico, tem o luxo de vestir o que quiser. Você é rico. Se alguém tentar te julgar pelo que está vestindo, você vai achar divertido esfregar na cara da pessoa. Quando se é pobre, a capacidade de ter um emprego ou de se sair bem em alguns eventos sociais costuma depender do que se usa. É preciso ultrapassar a barreira do pedinte para o “um de nós”. É impressionante como as portas começam a se abrir quando nos deixam de olhar como se a gente fosse inferior. Então, a pessoa economiza, compra uma roupa extremamente cara e a usa em toda ocasião especial por anos, como se fosse sua roupa de dia a dia. Eu tenho duas, um Escada e um Armani. Uma vez a cada século, uma grande empresa de seguros ou um membro rico de uma Casa quer nos contratar, então, visto um dos dois para conseguir o trabalho, e minhas outras roupas para conseguir o resultado, porque gosto de receber logo. No resto do tempo, esses dois modelitos ficam embalados no meu closet com duas camadas de plástico, e minha irmã sabe que, se tocar neles, está assinando a sentença para uma morte horrível.

Adam riu. Era um riso rico, autoindulgente, de um homem que não tinha preocupação nenhuma no mundo.

– Gosto de você, Floco de Neve. Você é genuína. Real. Por que pegou esse trabalho?

– Porque minha empresa é subsidiária da Montgomery Investigações Internacionais e se eu não levar você, vão tirar de mim a empresa que trabalhei anos para construir. Minha família vai perder a casa.

Adam riu novamente. Algo a respeito de a minha família perder a casa deve ter sido hilário.

– Quanto você pesa?

– Essa é uma pergunta inusitada. Uns cinquenta e oito quilos.

Ele balançou a cabeça.

– Você não mente nunca, não é?

Quando a ocasião exigia, eu mentia melhor do que ninguém.

– As pessoas mentem muito, porque é mais fácil. Eu não minto, a não ser que seja necessário. Adam, você sabe que não pode fugir dos policiais para sempre. Quando o encontrarem, não vão te mandar colocar as mãos para trás para poderem algemá-lo. Vão dar um tiro na sua cabeça.

– Humm... – Ele apoiou o cotovelo nos joelhos e o queixo nas mãos.

– Se não o encontrarem nos próximos dias, vão passar a oferecer recompensa. Então, qualquer drogado pela rua vai estar indo atrás de você. O único jeito lógico de sair dessa situação é voltar para sua Casa.

– Por quê? Para eu poder passar o resto da minha vida apodrecendo na cadeia?

– Sinceramente, não acredito que a Casa Pierce deixaria você apodrecer na cadeia. É óbvio que sua mãe te adora. Ela vai mover céus e terras para te deixar fora da prisão. Você tem o dinheiro e o poder do seu lado. E qualquer coisa é melhor do que morrer.

– Você acha que fui eu? – Ele focou o olhar em mim.

Eu estava começando a achar que sim. Forcei um dar de ombros.

– Não me importa. Meu trabalho termina quando eu conseguir levar você de volta.

Ele desceu do muro e passou o pé sobre o desenho de giz, borrando as linhas perfeitas. O calor subiu em uma coluna. Meu coração batia muito acelerado. Sentia o gosto de metal na boca. Era a adrenalina. Se ele me ateasse fogo agora, eu não poderia fazer nada a respeito.

Adam tirou a jaqueta de couro. Um cheiro de tecido queimado se desprendeu no ar. A camiseta começou a chamuscar e virou cinzas. Adam tirou-as do corpo. O sol bateu em seu peito esculpido e no abdômen definido, destacando cada curva suave e cada contorno firme de seus músculos, com um brilho dourado. Era bom a vovó Frida não estar ali. Ela certamente teria tido um ataque cardíaco.

Ele esticou a mão e pegou a camiseta do parque da minha mão e a vestiu. Colocou novamente a jaqueta por cima e sorriu para mim.

– Adam...

– Vou pensar a respeito, Floco de Neve. – Ele piscou.

Peguei o celular e tirei uma foto. Ele passou pelo muro e pegou a moto de trás de um arbusto.

Ele tinha entrado de moto no parque. Aquele ambiente calmo e tranquilo onde mesmo as bicicletas só podiam passar por poucas trilhas.

Adam subiu na moto e saiu em alta velocidade.

Bom, aquilo tinha sido melhor do que eu esperava.

Minhas mãos tremiam. Meu corpo ainda não tinha assimilado o perigo pelo qual acabava de passar. Respirei fundo, tentando me acalmar.

À minha frente, o pântano se alastrava, um labirinto verde e marrom de lama e água. De súbito, aquilo pareceu deprimente. Eu queria flores, cor e luz do sol. Levantei e fui rumo ao sul, na direção dos jardins.

Eu havia falhado. Era lógico que eu sabia que não conseguiria convencer Adam Pierce a se entregar logo de primeira, mas ainda tinha esperança. Eu era boa em falar com as pessoas.

Bom, ao menos ele não tinha me incendiado. Isso era bom. Peguei o celular e enviei a foto de Pierce para Augustine. Na sequência, liguei para a MII e pedi para falar com ele.

– Sim? – sua elegante voz disse do outro lado.

– Veja suas mensagens.

Uma pequena pausa.

– Por que ele está usando uma camiseta do Mercer Arboretum?

– Eu comprei pra ele poder esconder a pantera aquática indígena que ele tem no peito. Ele se recusou a voltar. Suas palavras exatas foram: “Por quê? Para passar o resto da minha vida apodrecendo na cadeia?”. Acho que consigo fazê-lo se encontrar comigo de novo, mas preciso de algumas garantias da família. Ele não quer ir para a prisão.

– Vou ver o que posso fazer.

Augustine desligou.

Continuei andando. Adam provavelmente tinha cometido o incêndio. Eu não tinha ideia do que o teria feito incendiar um banco, mas a forma como dançou em torno da situação, flertando com as perguntas, sugeriam que ele tinha algo a ver com o ocorrido. É claro que ele podia apenas ter um complexo de perseguição, deixar ser culpado por algo que não fez, e depois se fazendo de vítima. Qualquer que fosse o caso, tivesse ele cometido o incêndio ou não, eu precisava levá-lo de volta para sua família. Mesmo garotos ricos e mimados tinham o direito de um julgamento justo. Meu trabalho terminava quando eu o deixasse nos braços de sua mãe amorosa. O que a Casa Pierce faria com ele depois não era problema meu.

O caminho me levou até o centro dos jardins, uma praça retangular rodeada por árvores enormes. Uma fonte que fazia uma cortina alta de água se estendia pela parte de trás da praça, uma clara viga de concreto suportada por colunas dóricas de três metros de altura. Quando a gente se aproximava, a água espirrava, formando uma cascata de gotas brilhantes que caíam em três bacias estreitas. Canteiros retangulares e cuidadosamente parados pontuavam a grama verde e vibrante da praça. Muitos bancos ficavam à volta. Eram muito convidativos. Fui até o banco abaixo de um pergolado de madeira e me sentei. Só queria ficar lá por um minuto.

Sentir medo gastava muita energia. Agora eu estava cansada e meio inerte.

As pessoas caminhavam pela praça. À minha direita, duas mulheres conversavam em um banco. A da esquerda tinha longos cabelos loiro-platinados que caíam até o peito, sem nenhuma ondulação. Ela usava um vestido cor de pêssego acinturado que provavelmente tinha custado o mesmo que meus melhores ternos de trabalho. Seu bronzeado era dourado, e a maquiagem era brilhante e impecável. A amiga, de cabelos escuros, usava uma blusa assimétrica perolada com um suave drapeado feminino e uma saia-lápis cinza-clara. As duas calçavam sapatos de salto tão delicados que pareciam que se quebrariam se algum peso realmente se colocasse sobre eles.

Elas me viram. As duas me olharam com uma expressão idêntica: a de mulheres atraentes avaliando uma outra mulher no campo de visão. A julgar pelo levantar da sobrancelha e pelo escárnio abafado, meu jeans batido, minha blusa básica e meus tênis de corrida não conseguiram causar uma boa impressão. Elas continuaram conversando. Provavelmente criticando minha falta de bom gosto e de dinheiro. Elas me ignoravam por eu ser pobre; eu as ignorava por serem superficiais, e viveríamos todas felizes com essa relação.

Um pouco além das mulheres, dois homens estavam parados no meio da praça. Ambos vestindo calças claras e largas, camisas caras e óculos escuros de grife. Ambos preparados para cada coisa de suas vidas, e a perfeição de seus rostos indicava dinheiro e magia.

Os dois observavam as duas discretamente, enquanto elas fingiam não perceber. Era uma dança antiga. Em algum momento, os homens quebrariam o gelo e as mulheres se fingiriam de surpresas e seriam receptivas. Parecia que eles podiam combinar.

Um homem de cabelos escuros veio de uma das trilhas e chegou à praça. Ele usava jeans e uma camiseta preta e carregava algo que parecia ser um rolo de tecido nas mãos. A camiseta estava esticada nos ombros largos. Os músculos desenhavam seus braços; músculos fortes de um lutador, construídos pela prática contra seus oponentes. Ele caminhava suavemente, passos firmes e sem pressa, como um enorme gato-do-mato, um predador olhando seus domínios. Não havia sinal de submissão em nenhum ponto daquele corpo. Ele caminhava como se não soubesse que sua coluna podia se dobrar.

Inclinei-me para a frente, tentando ver seu rosto.

Os dois homens ilusionistas simultaneamente saíram de seu caminho.

Eu o vi. Meu coração falhou.

Ele tinha rosto firme e duro, um nariz forte e a testa quadrada. Seu contorno era áspero: da barba por fazer, ao cabelo escuro, curto e desgrenhado. Rude, masculino e incrivelmente sensual. Seus olhos, inteligentes e claros abaixo das sobrancelhas escuras e grossas, avaliavam com calma precisão tudo o que ele via; mas, no fundo daqueles olhos azuis brilhava uma chama fria. O mesmo tipo de fogo letal que você veria nos olhos âmbar de um tigre – uma chama predatória e irresistível que atraía o olhar, mesmo você sabendo que, se ele percebesse, aquele fogo gelado acabaria com você. Ele me atraía como um ímã. Todos os meus instintos se incendiaram.

Uau.

Ele não apenas andava pela praça. Aqueles olhos indicavam que no momento em que ele pisou ali, o lugar lhe pertencia. Eu sei que deveria ter desviado o olhar, mas não conseguia. Fiquei sentada, em choque, observando.

As duas mulheres o viram e pararam de falar. Ele ignorava plenamente as regras da civilização, da educação, e classes sociais chegando diretamente ao instinto feminino dizendo: “Macho dominante. Perigo. Poder. Sexo”.

Por que eu não podia encontrar alguém assim? Por que ele não podia ser o meu cara? Se ele um dia falasse comigo, eu provavelmente não conseguiria juntar as palavras para formar uma sentença coerente.

O homem estava olhando para mim.

Espera. Havia duas outras mulheres atraentes em seu caminho, ambas lindamente vestidas, com muito mais estilo e se declarando “disponíveis” com todas as suas células corporais. Elas eram rosas e, no meu estado atual, eu era margarida. Ele deveria ter olhado melhor para mim. Eu era bonita, mas não tanto.

Ele me olhava como se soubesse quem eu era.

Meu cérebro demorou um segundo para processar o fato antes de disparar o alarme. Ficar ou correr?

Perdi mais um precioso segundo tentando ouvir meus instintos e minha magia. Meus instintos quase sempre estavam certos.

Ficar ou correr?

Olhei para seus olhos azuis. Não, eu estava errada. Ele não era um tigre. Era um dragão, majestoso e mortal. E estava vindo na minha direção.

Aquilo era ruim. Ruim, ruim, ruim. Eu precisava ir. Agora.

Saltei do banco e cortei caminho até a trilha que levava à saída do parque. Ele fez um leve desvio em seu caminho e veio em minha direção.

Corri pela trilha. As árvores iam ficando para trás. As pessoas me olhavam. O caminho fez uma curva e arrisquei olhar para trás.

Ele corria em alta velocidade na minha direção e estava se aproximando.

Segui em frente, esforçando-me ao máximo. O ar em meus pulmões ficou quente. Meu corpo doía. O caminho fez mais uma curva e eu pude ver a entrada do parque e a loja de presentes. A entrada estava a apenas uns cem metros.

Sentia a mágica atrás de mim. Forte, implacável, furiosa, como um cataclismo.

Olhei para trás.

Ele estava muito perto. Eu não conseguiria chegar até o carro.

Longe demais para a arma de choque e eu não queria que ele chegasse mais perto. Peguei minha calibre 22 e a destravei. Eu praticava com aquela arma com frequência. Eu o acertaria.

– Pare. Eu vou atirar. – Não queria atirar nele. Não sabia quem ele era. Não sabia o que podia fazer. Eu não queria disparar uma arma naquele lugar cheio de gente. Não queria matá-lo.

Ele continuou andando. Eu o sentia se aproximando. Nunca havia sentido tanta mágica em toda a minha vida. Era como tentar me manter em pé no meio de um tornado. O medo me dominou, deixando tudo absolutamente claro e cristalino.

– Socorro! – gritei.

Ninguém se moveu. Uma praça cheia de pessoas e ninguém se moveu.

Droga. Ergui o revólver e apontei para as árvores, disparando um tiro de alerta.

Ele jogou o tecido sobre mim. Vi um brilho azul de seda e de repente meus braços estavam presos ao meu corpo, eu estava sendo segurada por uma força brutal. Minha arma estava encostada na minha perna. O tecido me prendia, como uma camisa de força.

Braços fortes me pegaram. Algo picou meu pescoço. Minhas pernas amoleceram e eu caí. Ele me pegou no colo como se eu não pesasse nada.

O mundo estava nublado. Eu queria gritar com toda a força dos meus pulmões, mas em vez disso, um leve sussurro saiu:

– Socorro...

– Ei! – Um homem com chapéu de caubói veio em nossa direção.

– Não recomendaria – o homem disse, sua voz parecia gelo.

O caubói congelou.

O homem me virou nos braços e vi seus olhos de perto, seus olhos azuis, a chama da magia e do constrangimento.

Meu Deus. Meus lábios estavam muito adormecidos para falar.

– La... lo... Lou...

– Louco Rogan – ele disse.

Alguém apagou o sol e eu adormeci.


Abri os olhos. Um teto claro estava acima de mim. Sentei-me. Pedaços de tecido azul estavam sobre meu corpo, escorregando sobre minha pele.

Eu estava no chão, no meio de uma grande sala retangular. As paredes escuras não tinham janelas. Duas luminárias de chão estavam nos cantos do ambiente e geravam uma suave luz amarela, sem exatamente acabar com a escuridão, mas suavizando-a. O chão era de um liso concreto polido. Havia linhas desenhadas, círculos, triângulos e símbolos místicos desenhados com giz, carvão e um intenso e puro azul que poderia vir apenas de pó de lápis-lazúli. As linhas brilhavam, radiantes, algumas partes dos padrões estavam na superfície de concreto, algumas flutuavam alguns centímetros acima do chão. Segui com o olhar até um círculo cheio de símbolos. Havia alguém sentado no meio dele. Fitei-o.

Louco Rogan me observava com seus olhos azuis. Abertos como janelas para dentro dele, e a magia era refletida para mim. Monstruosa, uma magia chocante, uma obscuridade viva com flashes de intensa luz e poder. Era como se eu tivesse olhado para o núcleo de uma supernova. Esqueci de respirar. Meu coração tentou fugir sem levar o resto de mim com ele. Minhas mãos tremiam.

Tentei me levantar e caí para trás. Algo me segurava ao chão. Tirei o tecido de cima de mim. Duas algemas de aço prendiam meus tornozelos. Argolas de metal seguravam as algemas, presas no concreto. Fiquei tensa. Meus pés não se moviam.

– Você me acorrentou ao chão. – Minha voz tremia e eu odiava isso.

A coisa demoníaca, desumana que era Louco Rogan, fez que sim, e continuou a me observar. Ele estava sentado, pernas cruzadas. Vestia calças pretas largas. Seus pés estavam descalços. Seu tronco também estava nu. Músculos fortes e duros compunham sua imagem. Bíceps esculpidos em seus braços, como se fossem de aço. Seu poderoso tronco diminuía, chegando ao plano e rígido abdômen. Algumas cicatrizes mais claras marcavam a pele bronzeada. Ele era muito forte. Tinha o tipo de corpo feito para o combate: forte, flexível, duro e cheio de energia explosiva. Se Adam Pierce estivesse presente, teria uma crise de inveja.

Forcei meu cérebro a trabalhar. Finas linhas azuis marcavam sua pele, mesclando-se em glifos. Ele tinha símbolos místicos no peito e na barriga. Estava amplificando seu poder, o que era perigoso para a saúde. Por quê? Por que ele precisaria de mais poder se já tinha conseguido expulsar todo o ar daquela sala apenas com sua presença?

– O que dá a você o direito de me pegar na rua e me acorrentar no seu porão sujo?

– Você sabe o que é isso? – A voz combinava com ele, profunda e um pouco rouca. Se existissem dragões e eles pudessem falar, teriam aquela voz.

Forcei o pescoço, tentando ver um padrão no amontoado de símbolos e linhas. Eu estava presa em um círculo com vários círculos concêntricos maiores. Linhas retas cruzavam as circunferências e se uniam em um triângulo. A parte “superior” do triângulo continha um círculo menor, que era onde Louco Rogan estava sentado. Símbolos e escritos rúnicos surgiam no meio do padrão, brilhando por causa da magia. Fiquei gelada por dentro. Acubens Exemplar, cujo nome derivava da “garra” da constelação de Câncer.

Quando meus pais descobriram a natureza da minha magia, tivemos uma longa conversa, e meu pai me explicou que havia apenas uma profissão para alguém com meus talentos: ser interrogadora. Não importava o que mais eu quisesse fazer, assim que meu talento se tornasse conhecido, militares ou autoridades civis me pressionariam para que eu me transformasse num detector de mentiras. E pressionariam até eu me render. Eu presenciaria torturas e veria coisas horríveis em nome do bem maior. Isso destruiria minhas chances de ter uma vida feliz. Ele me disse que quando eu crescesse, poderia escolher virar interrogadora, mas, até lá, minha habilidade precisava ser mantida em segredo. Para se fazer claro, ele me fez assistir a um documentário sobre a inquisição espanhola. Eu tinha apenas sete anos, mas entendi. Aquela vida horrível poderia ser o meu futuro.

Quando fiz doze anos, comecei a me rebelar contra tudo o que meus pais defendiam e estudei técnicas de interrogação e feitiços. Acubens Exemplar era um dos mais potentes. Demorava dias de cuidadoso preparo, e o período para ser usado antes de a magia por ele concentrada se dissipar era muito curto. Mas era quase infalível. Como a garra de um caranguejo, de onde saiu seu nome, o feitiço permitia que um telepata pressionasse a pessoa presa no centro. O feitiço amplificava a pressão até a vítima se render e revelar o segredo que estivesse tentando esconder.

– Para um Acubens Exemplar funcionar, é preciso um telepata – eu disse, gaguejando. – Você é um telecinético.

As linhas em volta de Louco Rogan pulsaram, mais brilhantes. Ok. Então ele também era um telepata. Ou tinha algum tipo de magia relacionada a isso.

– Quero saber tudo sobre Adam Pierce – ele disse. – A localização, os planos, os planos da família dele para ele. Tudo.

– Não. – Cruzei os braços. – Primeiro, fui contratada para encontrar Adam Pierce, e meu cliente espera que eu mantenha a confidencialidade. Segundo, você me atacou e me acorrentou ao chão. – Tentei puxar as algemas para deixar clara minha observação, mas elas permaneceram absolutamente imóveis.

Louco Rogan me olhava com seus fixos olhos azuis. Lá estava de novo, o poder predatório e sem misericórdia. O terror me percorreu. Ele era mesmo um dragão em pele humana. Os músculos das minhas pernas e dos meus braços ficaram tensos; meu peito enrijeceu. Eu queria gritar com todas as minhas forças só para tirar o medo do meu corpo.

– Não quero machucar você – ele disse. – Só quero as informações.

Verdade.

– Forçá-la não me dá prazer.

Verdade.

– Se você não gosta de me forçar, deveria me deixar ir embora.

– Diga o que quero saber e você pode ir embora daqui.

– Não. Seria antiético e antiprofissional.

Ele era um telecinético Superior. Às vezes Superiores tinham talentos secundários, mas nunca eram tão fortes quanto sua magia primária. Telepatia era baseada na vontade. Assim como a minha magia. E, em todo o meu tempo de vida, nunca havia conhecido alguém em quem ela não funcionasse. Agarrei-me a esse pensamento e o usei para me acalmar. Ele podia ser um dragão, mas se tentasse me engolir inteira, eu o faria engasgar. Movimentei-me para a frente, tentando ficar o mais confortável possível com aquelas amarras, e lambi meus lábios secos.

– Está bem, durão. Vamos ver o que você pode fazer.

Louco Rogan curvou os ombros. A magia pulsava em seu corpo, percorrendo as linhas místicas, deixando-as mais brilhantes, como se o fogo corresse por um pavio. A pressão chegou até mim, espremendo minha mente de forma invisível. Rangi os dentes. Ele era forte.

Tentei repelir a força. Os olhos dele se apertaram.

– Adam Pierce. – Ele ficava repetindo o nome e, quanto mais repetia, mais difícil era não pensar a respeito e maior era a força do feitiço contra minhas defesas.

Segurei-me diante de tanta pressão. Ele ia me vencer.

– Vá à merda.

A pressão venceu minha mente, pressionando-a com um peso insuportável. Era como se minha cabeça estivesse presa dentro de uma bola de aço gigante, que ia ficando cada vez mais e mais apertada, comprimindo meu crânio. A agressão implacável da magia havia se transformado em dor terrível e constante. Doía pensar. Doía me mexer. O tempo havia se dissolvido em pura dor na minha mente.

O calor gerado por toda a energia indo e vindo pelo feitiço havia transformado o ambiente em uma sauna. O suor molhava minha pele. Já tinha tirado a camiseta horas atrás. Teria tirado também as calças se pudesse fazer isso mesmo com as algemas.

Na minha frente, Louco Rogan permanecia imóvel no círculo. Um brilho úmido marcava a raiz de seus cabelos e deixava seu peito e seus braços brilhando. Os escritos rúnicos em azul que cobriam seu corpo permaneciam lá, mas alguns símbolos estavam começando a borrar. Ele mal parecia humano, uma criatura feroz e predadora que portava uma magia arcana. Eu amaria o simples fato de poder andar até ele e chutá-lo bem no meio da cara. Mas só podia olhar para ele sempre que a pressão me atingia e uma nova onda de medo me percorria.

A pressão diminuiu levemente. Ele estava cansado.

– Você é rico, certo? – Minha voz saiu muito rouca.

– Sou.

– Não poderia colocar ar-condicionado aqui?

– Não esperava ficar aqui por horas. Mas se estiver com muito calor, fique à vontade para tirar o sutiã.

Mostrei-lhe o dedo do meio.

– O que você é? – ele perguntou.

– Sou a mulher que você acorrentou no porão. Sua prisioneira. Sua... vítima. Sim, essa é a palavra correta. Toda essa educação. E como ninguém nunca explicou para você que não se pode sequestrar as pessoas a seu bel-prazer?

– Você teve um segundo completo para atirar em mim. – Ele fez uma careta.

– Não atiro em estranhos a não ser que minha vida esteja claramente em perigo. Pra mim, você poderia ser um policial do caso Pierce. Se eu atirasse, precisaria estar preparada para a possibilidade de matar meu alvo. Fora isso, disparar uma arma de fogo em local público é uma irresponsabilidade.

– Uma calibre 22 balança as roupas no varal. Por que usar uma dessas?

Reclinei-me. Minha coluna estalou.

– Porque não atiro a não ser que seja para matar. Um calibre maior faria um buraco no alvo e sairia dele, possivelmente ferindo pessoas inocentes. Uma arma calibre 22 entra no corpo e fica ali dentro, transforma o interior num hambúrguer. Armas de menor calibre quando usadas contra o peito ou o crânio quase sempre são fatais. Se eu soubesse que você ia tirar uma linda fita da manga, como um mágico de meia-pataca, me amarrar e se divertir com seu fetiche de tortura mental em seu porão, eu teria atirado. Muitas vezes.

– Mágico de meia-pataca?

– Homens como você gostam de ser elogiados.

Os músculos de seus braços inflaram. A magia me assolou, dura e dolorosa. O medo já familiar me tomou em uma onda lenta. Eu estava realmente cansada.

– Já venci magos importantes com essa armadilha – ele disse, resoluto.

Verdade.

– Eu vou vencer você.

– Pode tentar.

A pressão na minha mente me deixava tonta. O mágico havia se tornado um animal e estava me mastigando. Seus dentes arrancaram um gemido silencioso de mim. Eu olhava para ele, canalizando toda a minha raiva para me defender.

Um pouco de sangue escorreu de sua narina e correu pelo rosto. Ele grunhiu:

– Desista.

– Você primeiro.

Doía. O peso era muito grande. Minhas defesas oscilavam. Minhas mãos tremiam.

Louco Rogan grunhia feito um animal. Também doía nele.

Adam Pierce, Adam Pierce, Adam Pierce... O nome soava em minha mente somo o sino de uma igreja. Queria colocar as mãos sobre os ouvidos, mas não ajudaria. O som e a pressão estavam em todos os lugares. A magia derrubava barreiras em busca de sua presa.

Meus pensamentos começaram a se dissolver, afastando-se de mim. Ele estava quase acabando.

Adam Pierce, Adam Pierce, Adam Pierce...

O porão rodava à minha volta. As paredes se liquefaziam.

Minha mente borbulhava diante de tamanha pressão. Eu precisava desistir. Precisava alimentar a fera para me salvar.

Não podia trair meu cliente. Louco Rogan não podia vencer.

Alimentar a fera. Alimentar com algum segredo, com algo que eu mantinha tão bem guardado na minha alma e que tivesse jurado nunca contar.

Não, não consigo.

A magia quebrava as paredes internas da minha mente.

Não consigo.

Minhas defesas implodiram e, com um último esforço, lancei meu segredo mais profundo na frente da fera. Ele pegou minha culpa em suas presas e a destroçou. As palavras saíam de mim em disparada.

– Quando eu tinha quinze anos, encontrei a carta em que o médico diagnosticava meu pai. Ele viu e me fez prometer não contar para ninguém. Mantive segredo por um ano. Sou culpada por meu pai ter morrido quando morreu. Se eu tivesse contado para minha mãe, poderíamos ter começado o tratamento mais cedo. Sou a responsável. Eu não contei. Não contei a ninguém até hoje porque sou uma covarde.

A magia corria pelo Acubens Exemplar como uma onda de explosões. As linhas brilhantes pulsavam, intensificando o brilho, e se esvaneciam, todo seu poder exaurido em tentar tirar meu segredo de mim.

Caí no chão, o rosto gelado. A falta de pressão era uma verdadeira dádiva. Sentia-me tão leve.

Louco Rogan caminhou até mim lentamente e praguejou.

– Vai se foder também – respondi.

Ele se ajoelhou ao meu lado. Como ele conseguia se mexer depois daquilo? Ouvi o metal rangendo. Ele levantou minha cabeça e colocou algo nos meus lábios.

Mantive os dentes travados.

– É água, sua idiota teimosa – ele rosnou.

Tentei balançar a cabeça, mas ele forçou minha boca a se abrir. A água molhou minha língua. Engoli, lutando contra o nevoeiro.

O cansaço me envolvia, ou talvez fosse um cobertor. Então, estávamos no carro. Estava escuro do lado de fora.

O carro parou. A porta se abriu. Louco Rogan me carregou. Porta do galpão. Chão frio.

Porta abrindo.

Mãe.

Acordei na sala de estar. Alguém havia deixado a luminária da mesa acesa. A luz elétrica brilhava e a sala parecia muito aconchegante com suas paredes escuras em um tom azul-esverdeado e lâmpadas quentes, de luz amarela. Aconcheguei-me na coberta que alguém havia colocado sobre mim. Tinha sido um pesadelo muito feio.

Espreguicei-me e os músculos das minhas pernas e de meus braços doeram. Ai, ai, ai.

Não havia sido um pesadelo. Louco Rogan realmente havia me mantido presa em seu porão.

Sentei-me. Tudo doía. Minhas costas pareciam ter servido de saco de pancadas.

Aquele desgraçado. Eu faria um boletim de ocorrência, mas ninguém acreditaria, e explicar como eu o havia mantido afastado, mesmo dentro do feitiço, deixaria as coisas muito complicadas. Tudo bem. Eu encontraria um jeito de revidar.

Vozes vinham da cozinha. Minha mãe. Ela parecia estar brava. Olhei para o relógio do aparelho de Blu-Ray. Faltavam quinze minutos para a meia-noite. Talvez tivéssemos brigado até eu ficar roxa e desmaiar por conta do esforço, mas era tarde demais para uma briga assim, mesmo na minha família. Forcei-me a levantar e fui cambaleando rumo às vozes.

A de minha mãe cortava a noite.

– ... Pierce? Irresponsável e estúpido. Estúpido, Bernard!

Certo. Tínhamos sido descobertos. Depois daquele imbecil ter me deixado em casa, minha mãe devia ter pressionado Bern para obter explicações. E ele devia ter cedido e contado tudo.

Fui até a cozinha. Bern estava à mesa, com o rosto sombrio. Ao seu lado, Leon empurrava e puxava uma bolinha pela mesa com hashis e se esforçava para parecer não estar dando a mínima para nada. Catalina e Arabella estavam lado a lado. O rosto de Catalina estava fechado, como costumava ficar quando algo realmente estressante acontecia entre os adultos. Arabella parecia querer socar algo. Tanto elas quanto Leon deveriam estar na cama. Vovó Frida tomava café, e seus olhos estavam vermelhos. Senti um pouco de culpa. Havia feito minha avó chorar.

– Não acredito nisso – disparou minha mãe.

– Você pode parar de gritar com ele – falei. – Foi minha culpa.

Minha mãe se virou. Olhamos uma para a outra.

– Amanhã você vai à MII – disse ela, com a voz mais baixa, porém forte como um bastão de aço. – Vai dizer que está fora do caso.

Preparei-me. Sabia que esse momento aconteceria mais cedo ou mais tarde e estava assustada.

– Não.

– Ótimo. – Minha mãe ajeitou a postura. – Então, eu vou.

Minha mãe havia perdido a licença quatro anos antes. E se culpava por isso. Se algo acontecesse comigo, ela também se culparia. Eu não queria fazer isso. Não queria desencadear tanta culpa e preocupação, por isso, tentei manter minha voz o mais calma possível.

– Você não tem autoridade para falar pela empresa. A agência está em meu nome.

A cozinha ficou tão silenciosa que seria possível ouvir um alfinete cair no chão. Os olhos de Catalina se arregalaram, ficando do tamanho de um pires. A expressão de minha mãe ficou fria.

– A decisão é minha – eu disse. – Sou eu quem tem a licença. E nós vamos atrás de Pierce.

– E como vai entrar em contato com ele?

– Não preciso entrar em contato. Já me encontrei com ele e estou tentando convencê-lo.

– E como isso está funcionando para você? – minha mãe perguntou. – Porque você parecia quase morta quando a encontrei na soleira da porta.

– Não foi Adam Pierce. Foi Louco Rogan.

Minha mãe recuou. Leon engasgou.

– Achei que ele não estivesse envolvido – Bern disse.

– Ele está. Aparentemente ele se importa com o primo.

– Você está louca? – A voz de minha mãe soou como um chicote. – Tem a mais vaga ideia de com quem está mexendo?

– Sim, eu tenho.

– É só pelo dinheiro.

– Não é só pelo dinheiro. – Minha voz ficou mais alta. – É pela nossa família. Não vou deixar que nos tirem tudo só porque querem. Não vou deixar que acabem com a gente.

– Nevada!

– Sim, mãe?

– Podemos recomeçar!

– E quanto tempo vai demorar? Sem equipamentos, sem uma casa, sem o banco de dados de nossos clientes? Você sabe que a maior parte dos nossos negócios vem de indicações. E essas recomendações são para a Agência de Investigações Baylor. A MII vai tirar o nosso nome. Quando desligarem nosso telefone e tirarem nosso site do ar, as pessoas vão presumir que deixamos de trabalhar. Demoraria anos para nos reestabelecermos. A resposta é não.

– Não vale a sua vida! – minha mãe bradou. – Se estiver fazendo isso por alguma obrigação equivocada com seu pai...

– Estou fazendo por mim e por nós. Quando assumi, os negócios diminuíram a quase zero. Construí essa agência sobre as bases que você e papai fundaram. Passou a ser meu negócio porque eu trabalho sem parar há seis anos para que continue existindo. Fiz sacrifícios por isso, e adoro meu trabalho. Amo o que faço. Amo nossa vida. Me deixa feliz e sou boa nisso. E ninguém, nem você, nem a vovó, nem a MII, nem o Pierce nem o Louco Rogan vão tirar isso de mim!

Percebi que eu estava gritando e parei de falar.

Minha mãe estava chocada. As crianças, imóveis. Bern ainda piscava.

Vovó Frida apoiou a xícara, fazendo um pequeno barulho.

– Bom, ela é mesmo sua filha.

Minha mãe se virou e saiu da cozinha. Olhei para as crianças.

– Pra cama. Agora.

Eles saíram.

Bern se levantou.

– Também estou indo.

Parei ao lado de vovó Frida. Sentia-me ferida por dentro. Brigar com minha mãe sempre era difícil. Ela costumava me deixar louca, eu gritava e ela rebatia com seus argumentos perfeitos e lógicos. Então eu cresci e vi como ela era insegura.

Minha avó me olhou.

– Você está péssima.

– Louco Rogan me sedou, me sequestrou e me acorrentou em seu porão. Depois, tentou tirar informações de mim com um feitiço.

– E você deu a ele o que ele queria? – Minha avó piscou.

– Não. Quebrei o feitiço dele.

– Sua mãe vai superar. – Ela olhava para a xícara. – Ela sabia que vocês iriam bater de frente mais cedo ou mais tarde. Bom, se não brigassem, eu te levaria para fazer uns exames. Sua mãe sobreviveu em um buraco na terra por dois meses. Ela é mais resiliente do que você acha.

Aquilo não fez com que eu me sentisse nem um pouco melhor.

– Vó...

– Sim?

– Quando a senhora disse que conhecia alguém que podia instalar dispositivos de choque, foi de verdade ou estava só brincando comigo?

– Você não está falando sério. – Minha avó apoiou a xícara de café novamente. – Está?

– Não estaria perguntando se não fosse sério.

– Ruim assim?

Eu já tinha apanhado antes, e já tinha tomado quatro tiros. Mas o que havia acontecido hoje tinha sido pior.

– Quando entro em uma briga, sei que também sou capaz de ferir. Quando tomo um tiro, posso atirar de volta. Mas isso... – Minhas mãos se fecharam e eu lutava para encontrar as palavras certas. – Não tenho chances. A magia dele é muito além da média. Senti quando ele me pegou. Foi como se eu olhasse para o brilho de uma supernova. Aquilo fez eu me sentir absolutamente impotente. Vulnerável. Como se nada que eu pudesse fazer fosse lhe causar um leve arranhão.

Minha avó suspirou.

Ele podia ter me matado. Podia ter cortado minha cabeça fora enquanto eu estava acorrentada e não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Consegui me segurar antes de dizer isso para minha avó.

– Preciso de um jeito de ter chances em uma briga dessas.

– Você pode fugir.

– Ah, não. – Balancei a cabeça. – Não. Talvez antes de ele ter me atacado, mas não agora.

– Você precisa estar muito segura, querida. Quando são colocados, ficam lá para sempre.

– Quais as chances de isso me matar?

– Menos de um por cento dos procedimentos dão errado. E se Makarov fizer a instalação, não terá problemas. Mas esse não é seu maior problema. O problema é viver com eles. Se fizer algo errado, o equipamento mata você.

– Então, eu tenho certeza.

Da próxima vez que Louco Rogan se aproximasse de mim, ia ter uma baita de uma surpresa.

– Vou fazer uma ligação.

Levantei-me e fui procurar minha mãe.

Entrei na sala de estar, na sala de entretenimento, na sala secreta, que antes era um quarto de hóspede e depois virou mais um cômodo social. Fui até o quarto dela e a porta estava trancada. Bater não pareceu trazer resultado algum. Chamar “mãe...” com uma voz triste e conciliadora, também não funcionou. Desisti e fui para o meu quarto.

Quando escolhi o lugar para ser meu quarto, eu queria privacidade. Isso foi em algum momento, cerca de sete anos atrás, quando eu não conseguia me ver livre das minhas irmãs, não importava quanto eu tentasse. Quando nos mudamos para o galpão, meu pai levou isso em conta e me construiu um pequeno apartamento. Meu quarto e meu banheiro ficavam perto do teto do galpão, acima de duas salas de estoque. Meu quarto dava para a rua e meu banheiro, na mesma parede, ficava contra a parede que separava nossa residência da oficina de motores da vovó. Uma escada de madeira levava a um ponto que se ligava ao meu loft por uma forte escada dobrável. Se eu quisesse, podia puxar os degraus e deixar o quarto inacessível.

Subi as escadas e acendi a luz. Em geral, o galpão não tinha janelas, mas quando montamos os quartos, se quiséssemos uma janela, ela podia ser instalada. E eu quis. Duas, na verdade, uma no banheiro, que dava vista para a garagem da vovó e me permitia ver a entrada de trás; e uma no quarto, pegando toda a extensão do cômodo. Se eu deitasse na minha cama, podia olhar para a cidade pela janela. A cidade também podia olhar para mim, então, investi em persianas além das duas camadas de cortinas, uma branca e transparente e outra mais grossa e opaca, também branca. Ergui as persianas e abri a cortina opaca e a noite pôde passar pelo vidro com toda a sua gloriosa escuridão. Se eu ainda tivesse telas mosquiteiras, teria aberto também os vidros para deixar a noite entrar. Mas eu tinha conseguido, acidentalmente, tirá-las enquanto limpava a janela e tentar colocá-las novamente tinha sido bastante frustrante. Se eu abrisse, deixaria a noite entrar e, junto dela, muitos mosquitos.

Vejamos, chantageei um mecânico; chamei meu empregador, que provavelmente era um Superior, de pessoa terrível – mais uma vez; encontrei-me com um pirocinético Superior e fui sequestrada por um telecinético Superior; briguei com minha mãe; e tomei a decisão de ter uma arma que poderia me matar implantada em meus braços. Que dia eu tive. Muitos Superiores por perto.

Eu estava cansada e destruída, como se o dia tivesse aberto buracos em mim. Não queria pensar em nada, muito menos do que eu precisara abrir mão para poder quebrar o feitiço de Rogan. Só queria me entorpecer e dormir. Eu tinha um frasco de comprimidos para dormir, que não precisava de receita, guardado no meu armário de remédios, mas eles me davam pesadelos.

Não acredito que estava obcecada por aqueles olhos. Não acredito que o achei atraente quando estava vindo na minha direção. Eu deveria saber desde o começo que ele era encrenca. Um homem como ele não vai apenas dar um passeio no jardim botânico. Eu vi um tigre de olhos brilhantes e dentes tão grandes quanto meus dedos e, em vez de correr para salvar minha vida, fiquei sentada, observando como ele era bonito, à medida que se aproximava para me dar o bote.

Alguma coisa bateu na minha janela. Pulei para trás. Muito pequeno para ser um morcego. Já estava muito escuro para ser um pássaro. O que poderia...

Destravei a janela e a abri. Uma pequena bola de fogo veio da rua em minha direção. Dei um salto para trás e bati nas prateleiras de livros que estavam a quase dois metros da janela.

A bola de fogo pousou no meu tapete e continuou queimando. Aah! Eu a chutei pelo quarto, levando-a para o banheiro, para o piso frio. Depois fui atrás dela, abri a porta do boxe, peguei o chuveirinho e apaguei as chamas.

Vi uma bola de tênis carbonizada.

Bem, não era uma graça? Peguei uma tesoura na gaveta, enfiei na bola de tênis e marchei de volta para a janela, carregando meu troféu. Adam Pierce estava na rua, bem abaixo de mim.

Soltei a bola do lado de fora da janela. Ela caiu no asfalto.

– Qual é o seu problema? Está tentando me matar?

– Se eu estivesse tentando, você saberia. Venha falar comigo.

– É uma hora da manhã.

– Já são duas, mas quem se importa? – Ele acenou. – Venha. Tenho uma coisa para te mostrar.

Ir ou não ir? Se eu fosse, ele entenderia que eu faria o que ele mandasse. Mas se eu não fosse e ele estivesse pensando em se entregar, me mataria por perder tal oportunidade. Precisava me decidir rapidamente. Se minha mãe o visse, no estado em que ela se encontrava, atiraria bem no olho dele. Deus, isso seria tudo o que eu precisaria. Argh.

– Tem uma árvore ali, atrás do muro. – Apontei para um carvalho atrás de um muro de pedras de um metro de altura. – Pode me esperar lá. Ele colocou um pé à frente e se curvou, em reverência.

– Sim, minha dama.

Desci as escadas, peguei as chaves para o caso de alguém resolver me trancar para fora e fui para o local. Pulei o muro. Ele estava me esperando onde eu havia dito, atrás da árvore, protegido da casa pelo tronco maciço. A moto de Adam estava apoiada no muro. Aproximei-me e me sentei ao seu lado nas folhas que cobriam o chão.

Ele riu.

– Por que aqui? Ficou com medo de a sua mãe me ver?

– Com medo de ela atirar em você. Minha mãe não está muito condescendente com você no momento.

– É assim, então?

– É.

Ele olhava para mim. Pegou um galho e acendeu uma tocha. O galho queimava, com uma brilhante chama laranja.

– O que aconteceu com você? Está com uma cara péssima!

– Tive uma competição e ele não foi gentil.

– Sou popular. O que posso dizer?

A chama se apagou e ele soprou as cinzas da sua mão.

– Isso, vamos deixar tudo girando em torno de você.

Ele se surpreendeu.

– Você veio se entregar? – perguntei.

– Não.

Suspirei.

– O que é preciso para você enxergar a luz?

– Não sei. – Ele encolheu os ombros e riu. – Tente dormir comigo. Pode ser que me convença.

Ele acabou de me dar uma cantada? Sim, foi isso mesmo.

– Não, obrigada.

Ele se inclinou para trás, apoiando-se nos cotovelos, a calça preta de couro esticando-se ao redor das pernas. Sorriu. Era seu famoso sorriso “chega mais”, aquele que a mídia adorava divulgar, o tipo de sorriso que nenhuma mulher que já passou da puberdade poderia não entender. Prometia coisas, coisas selvagens, perversas e quentes. Provavelmente o sorriso nunca havia falhado. Bem, ele estava ali para se surpreender.

– Se quiser muito mesmo, posso apresentar você para minha avó. Ela é sua fã.

Adam piscou.

– Ela não costuma dormir com jovens bonitos, mas abriria uma exceção no seu caso. E você ainda pode aprender um truque ou outro.

– Sua avó? – Ele finalmente recobrou sua capacidade de fala.

Fiz que sim.

Ele riu.

– Bom, ao menos ela morreria feliz.

– Não se ache tanto.

– Não estou me achando. É um fato. – Ele se inclinou na minha direção. – Posso colocar fogo nos seus lençóis.

Disso eu não tinha dúvidas.

– E eu viro batata frita?

– Me beije para descobrir.

Não, obrigada.

– Sua família está preocupada com você.

– Você é engraçada. Gosto disso. Gosto de coisas novas e excitantes. Já disse para você que sua voz é muito sensual, Nevada?

O jeito como ele pronunciou meu nome foi quase indecente. Ele não poderia ter deixado o convite mais claro nem se tirasse a roupa na minha frente.

– Quando você fala, penso em coisas divertidas que poderia fazer com você. Junto de você.

Boa tirada.

– E sua pele parece mel. Queria saber que gosto tem.

De amargor com cansaço.

– Humm.

Adam se aproximou para tocar em meu cabelo. Recuei.

– Você não tem o direito ao toque.

– E como consigo esse direito?

Pare de ser um bebê egocêntrico e mimado.

– Consegue isso se eu me apaixonar por você.

Ele parou.

– Se apaixonar. Você está falando sério?

– Estou. – Isso deveria fazê-lo parar.

– Que isso? Século XVI? Depois devo escrever um soneto?

– Seria um bom soneto?

Ele se deitou na grama e passou o polegar pela tela do celular.

– Olha isso.

A tela ficou branca. O claro plano de fundo se estilhaçou em pequenas peças individuais que se afastaram num complicado padrão. Uma mulher apareceu no visor. Ela era mais velha, provavelmente tinha mais de cinquenta anos, mas era difícil precisar sua idade. Um terninho azul-marinho revestia sua magra figura. A maquiagem era profissional, o cabelo caramelo estava preso de forma artística e precisa em um penteado solto, porém formal. O rosto em formato de coração tinha grandes olhos escuros e um nariz fino que a entregava. Eu estava olhando para Christina Pierce.

– Recebi uma mensagem da minha mãe – Adam disse. – Foi enviada de um local público para meu endereço particular e criptografada com os códigos da família. Muito perigoso.

Ele apertou o play e Christina Pierce ganhou vida.

– Tenho um avião esperando para levá-lo ao Brasil – ela disse. Sua voz tinha um sotaque da Geórgia, mas sem nenhuma delicadeza. – É um país que não extradita. Essa é a casa. – A imagem de uma mansão substituiu o rosto: paredes brancas, jardim tropical, muitas piscinas, silhuetas azul-escuras contra o azul-claro do oceano. Christina reapareceu. – Enquanto você estiver fora, alguém será culpado. Você poderá voltar em menos de um ano com a ficha limpa e ainda vai ter o apoio e a simpatia do público por ter sido acusado injustamente. Um ano no paraíso, Adam, com todas as suas necessidades atendidas. Você tem minha palavra de que não vai passar um só minuto na prisão. Pense nisso.

Eu havia pedido garantias para Augustine. A Casa Pierce as tinha enviado.

– Minha mãe diz que me ama. – Pierce estudava as feições dela. – Amor é controle. As pessoas dizem que amam você quando querem controlar sua vida. Elas tentam fazer você se encaixar em um modelo que é confortável para elas e, quando você tenta escapar, te prendem com a culpa. Minha família descobriu isso anos atrás. As pessoas se casam e têm filhos por interesse há mais de um século. Sem envolver amor.

– Não vejo dessa forma.

– A única razão de você estar sentada aqui, debaixo dessa árvore é porque minha mãe forçou Montgomery e ele forçou você, ameaçando sua família. Se não corresse o risco de perderem a casa, você aceitaria o trabalho?

– Provavelmente não. Mas, no fim, a escolha foi minha.

– Por quê? Você não deve nada a eles. Não pediu para nascer. Trouxeram você ao mundo gritando e esperneando e agora esperam que você se conforme. Bom, eu mando todos se foder.

Você não pediu para nascer... Em alguns aspectos ele ainda tinha quinze anos por dentro e era tão volátil quanto o fogo que produzia.

– Olha, ao menos você tem seus pais – eu disse. – Meu pai morreu. Nada pode trazê-lo de volta.

Ele inclinou a cabeça.

– E como é?

– Dói e continua doendo. Ele fez parte da minha vida por tanto tempo e agora simplesmente não está mais aqui. Minha mãe me ama. Faria qualquer coisa por mim. Mas eu era mais apegada ao meu pai. Ele entendia por que eu fazia as coisas. Tentamos tão desesperadamente mantê-lo vivo e ainda assim ele morreu. E nosso mundo desabou. Eu era a mais velha, mas minhas irmãs eram muito novas e isso as atingiu com muita força.

Adam deu de ombros.

– Eu tenho um progenitor. Nunca tive um pai. Ele é diligente. Se minha mãe explicar para ele que é preciso aparecer em um jogo de futebol ou em um recital de piano, ele vai. Está ali, mas não está presente. Não sei o que ele ama, mas sei que gosta de dinheiro. Meu irmão mais velho trabalha na empresa. Meu outro irmão está no Exército, fazendo as tais conexões vitais para os negócios. Meu pai fala com os dois. Ele começa a se interessar pelos filhos quando eles começam a fazer dinheiro. Até então, somos filhos só da nossa mãe.

– Ao menos ela se importa o suficiente para se preocupar com você. Ela deve te amar.

– Ela é indulgente comigo. Existe uma diferença. A indulgência implica uma tácita desaprovação. A Casa está indo bem. Sua vida profissional também vai bem, ela tem um QI 148 e poderia fazer seu trabalho dormindo. Nossas finanças são robustas e meu pai nunca envolveria a família em um escândalo. Eu sou sua desculpa para ser emotiva. Sempre que faço algo que abala o palácio deles, ela consegue sua parcela de atenção com o drama que faz. Se não fosse por mim, do que ela reclamaria? Me esforço para ser uma decepção sempre que posso.

Uau.

– Alguma vez, acidentalmente você chegou perto de atingir suas expectativas?

– Eu fui pra faculdade. Quando comecei o mestrado, percebi que nunca seria o suficiente. Por toda a minha vida, a Casa esperaria que eu subisse a escada das expectativas deles. Me formar. Ganhar dinheiro. Me casar bem. Produzir filhos inteligentes e bem dotados de magia. Ganhar mais dinheiro. Eles me tiveram por vinte e quatro anos. Já está bom. – Adam se inclinou na minha direção. – Olha, a questão é que a gente se importa com pais e irmãs quando tem cinco anos. Estou dando a você a oportunidade de ser livre. Deixe sua família para trás e venha embora comigo.

Sou um fugitivo da polícia que gosta de atear fogo nas pessoas. Venha embora comigo para podermos fazer muito sexo enquanto a cidade toda tenta me achar e enfiar uma bala na minha cabeça. Se eu ficar entediado, faço churrasco de você pra me divertir. Claro, deixe eu colocar os sapatos.

– Não é uma boa ideia.

– E se eu fingir estar apaixonado? – Adam estalou os dedos e uma pequena chama surgiu sobre sua mão. Ele a levou como uma vela para perto do meu rosto. Seus olhos decorados pelos grossos cílios, eram tão escuros que pareciam duas piscinas sem fundo. – Garanto que ninguém vai nos encontrar. Os policiais podem me procurar por mil anos e, ainda assim, nunca vão me encontrar.

Ele estava mesmo insistindo na história do vamos-fugir-comigo. Eu me fingi de boba.

– Você está só me iludindo?

– Eu? Não.

Mentira. Ele estava mentindo para mim. Por quê?

– Estou realmente com tesão, quer dizer, apaixonado por você.

Bom, a parte do tesão era verdade. Eu precisava continuar no jogo.

– Você tem alguma intenção de me deixar levar você de volta?

– Estou pensando a respeito.

Mentira. Droga.

– Nevada – ele ronronou. – Venha comigo, garota ensolarada. Viva um pouco.

As palavras de Cornelius voltaram à minha mente. Adam consegue o que quer e, se você lhe disser não, ele vai machucar você. Ele queria aceitação. Queria se sentir especial. Se eu o rejeitasse completamente a dor da rejeição poderia virar ódio em um piscar de olhos. Eu precisava levá-lo de volta e não terminar como o tal segurança.

– Esqueça sua família e pule do abismo comigo. Nós vamos voar.

Me inclinei e o beijei no rosto.

– Não esta noite. Talvez um dia, se eu criar asas.

Levantei-me e fui na direção do galpão.

– Eles estão te manipulando e você está deixando – ele disse, atrás de mim.

– Não deixe que te matem, Adam – eu disse, por cima do ombro. – Ainda preciso te levar de volta.


Louco Rogan e eu estávamos na beirada de um abismo. Abaixo de nós, o chão estava tão distante que era como se o planeta em si tivesse terminado aos nossos pés. O vento batia nos meus cabelos. Ele estava usando, outra vez, apenas aquelas calças pretas e nada mais. Músculos firmes cobriam seu torso, repletos de uma força extrema, quase selvagem. Não era a brutalidade sem sentido e padrão dos bandidos ou o poder cruel de um animal, mas sim a força de um ser humano inteligente e teimoso. Estava em todo lugar: em seus ombros largos, no encaixe de sua cabeça no pescoço musculoso, no desenho quadrado de sua mandíbula. Ele se virou para mim, o corpo todo enrijecido, os músculos se contraindo e relaxando, as mãos prontas para agarrar e amassar, os olhos alertas, que nada perdiam, e o brilho elétrico e azulado da magia. Eu podia imaginá-lo, com a mesma cara, pegando a espada e indo sozinho para a ponte levadiça defender seu castelo contra uma horda de invasores.

Ele era assustador e eu queria passar as mãos por aquele peito e sentir as curvas definidas daquele abdômen. Eu devia ser algum tipo especial de idiota.

A magia saía dele, feroz e viva, um monstro com dentes perversos. Ele veio na minha direção, trazendo o monstro junto de si:

– Me fale sobre Adam Pierce.

Aproximei-me e coloquei a mão em seu peito. Sua pele queimava de tão quente. Os músculos se tensionaram sob meu toque. Um feroz arrepio elétrico percorreu meu corpo. Eu queria me apoiar naquele peito e beijar seu rosto, sentir o gosto de seu suor na minha língua. Eu queria que ele gostasse disso.

– O que aconteceu com o garoto? – perguntei. – Aquele que destruiu uma cidade no México. Ele continua aí dentro?

– Nevada! – A voz de minha mãe cortou meu sonho como uma faca.

Sentei-me na cama.

Ok. Ou eu estava muito pior do que imaginava ou Louco Rogan era um forte projetor e podia enviar imagens diretamente para a minha mente. De qualquer maneira, aquilo era ruim. O que aconteceu com o garoto... eu precisava ir ao médico.

– Neva?

– Levantei. – Saí da cama e abri a porta. Minha mãe estava lá embaixo.

– Sua avó trouxe o especialista. Você vai mesmo seguir com isso?

– Vou. – Ergui o queixo.

– Por quê?

– Você iria para a guerra sem armas?

– Agora isso é uma guerra, Nevada?

– Está bem, você tem razão. Tem um pouco a ver com o papai e muito a ver com mantermos um teto sobre a nossa cabeça. Essa é a nossa casa. Vou fazer quase tudo para mantê-la. E também negociei com a MII que, se eu morrer, vocês conseguem o nome da agência de volta por um dólar.

O rosto da minha mãe se contorceu.

– Eu não ligo, Nevada. Querida, eu não ligo. Quero que você fique bem. Nada disso justifica perder você. Achei que fôssemos uma equipe.

– E somos.

– Mas você não me contou. E fez Bern ajudá-la a encobrir tudo.

Sentei-me na escada.

– Eu não contei porque você faria exatamente o que fez na noite passada. Me ordenaria a não aceitar. Somos uma equipe, mas você é minha mãe. Vai fazer tudo para me manter em segurança, mas existe um ponto onde a decisão de me manter segura ou não deve ser minha.

Minha mãe refletiu um pouco.

– Está bem. Boa colocação.

– Ele veio aqui na noite passada – eu disse. – Adam Pierce.

– Aqui?

Fiz que sim.

– E o que ele queria?

– Queria que eu fugisse com ele. Ele está jogando comigo de alguma forma, mas ainda não sei qual é a dele. Precisamos garantir que o alarme esteja ligado todas as noites. Não confio nele. – Esfreguei o rosto. – Estou completamente envolvida nessa bagunça.

– Porque quer – minha mãe apontou.

– E isso importa? Não acho que eu poderia desistir mesmo que quisesse. Isso está me assustando. Mãe, nem posso... Louco Rogan... – Ergui as mãos, tentando encontrar as palavras certas.

– Ele é como um furacão – ela inferiu.

– Sim. Isso mesmo. Eu só queria uma batalha justa. Amo você. Por favor, não fique brava comigo.

– Também amo você. Se acha que precisa de uma batalha justa, vá atrás disso. Você é adulta. É uma decisão sua. Mas é uma decisão que me incomoda. Toda essa situação me incomoda.

Ela foi embora. Ótimo. Ela continuava brava comigo.

Encontrei minha avó e seu “especialista” na garagem do galpão. Makarov era um homem em forma, diferente, com pouco mais de sessenta anos. Ele tinha começado a ficar calvo e seu cabelo grisalho era curto. Sentado em uma cadeira dobrável, ele conversava com minha avó. Ao seu lado, uma caixa de metal com aproximadamente sessenta centímetros de altura por sessenta centímetros de largura estava apoiada ao seu lado e, perto deles, um homem da minha idade, de cabelos claros, que parecia a cópia de Makarov quarenta anos antes.

Minha avó me viu e acenou para que eu me aproximasse.

– Então esta é a candidata. – A voz de Makarov tinha um forte sotaque russo. – Quantos anos você tem?

– Tenho vinte e cinco.

– Altura?

– Um metro e sessenta e oito.

– Peso?

– Cinquenta e oito quilos.

– Problemas cardíacos?

– Não.

– Pressão alta, enxaquecas, algo assim?

– De vez em quando tenho dor de cabeça, mas enxaquecas são muito raras. Talvez uma a cada seis meses, mais ou menos.

Makarov meneou a cabeça, me observando com os olhos verdes inteligentes. Ele bateu na caixa com o pé.

– Esta é murena. Significa “moreia” em russo. Não é um peixe. Alguns dizem que é uma planta, outros dizem que é um animal, um animal muito primitivo. É uma coisa. Chamamos de murena pelo que ela faz. A moreia fica escondida na toca. Você nunca sabe que ela está ali. Ela fica em silêncio, sob as águas, até um peixe passar e, então, pow! – Ele deu um soco no ar. – Ela sai e morde o peixe. Há uma segunda boca na sua garganta, e essa boca salta e pega o peixe com os dentes em forma de gancho. – Ele mexeu no ar com os dedos em forma de garras.

Antes eu não estava nervosa, mas ele estava conseguindo me deixar.

– É assim que você vai ficar. Nada visível por fora. Passa por qualquer detector. E, então, pow!

– Pow parece bom. – Mais ou menos.

– Agora, a parte ruim. Os detalhes. – Makarov inclinou-se para a frente. – Primeiro: ninguém sabe o que é isso. Buscamos na magia, investigamos, e ninguém no planeta sabe dizer o que é isso ou de onde vem. Não sabemos quais podem ser as consequências a longo prazo. Sabemos que o temos implantado em três gerações e, até agora, nada. Tenho um em mim. Não ouço vozes nem sinto um desejo incontrolável de matar pessoas. Mas sempre há essa possibilidade.

– Posso viver com isso.

– Dois: um candidato em cento e doze rejeita murena. Nem sempre dá certo. É por isso que Szenia está aqui. – Ele apontou para o homem loiro. – Ele é um paramédico treinado. Mas se seu coração parar, parou. Fazer o quê... – Ele abriu os braços.

“Fazer o quê” não era a reação que eu estava esperando. Ele continuou:

– Três: a forma como funciona. Murena se alimenta da sua energia. Você vai ter de dar sua magia a ela. Não vai doer. Vai doer muito. Mas quando você tocar na outra pessoa, vai doer ainda mais nela. – Ele sorriu. – Mas se fizer muitas vezes na sequência, vai ver manchas vermelhas flutuando nos seus olhos. Chamam de brilho-verme. É o jeito de seu corpo dizer que você deve parar. Se fizer de novo, as veias na sua cabeça podem explodir e... – Ele emitiu um som estridente, levando os polegares ao pescoço. – ... nem precisa se preocupar em ligar para a emergência. Você morre ali mesmo.

– E como eu dou minha magia para murena?

– É um processo mental. Vou te ensinar assim que estiver implantado.

– O que acontece quando agrido alguém?

Os olhos de Makarov se apertaram.

– Depende de quanto poder você tem e de como deseja ferir a pessoa. Você tem o controle. É certificado como não letal e foi criado para mudanças comportamentais, não exatamente para autodefesa. Qualquer candidato que tenha um grau de Significativo em magia vai estar bastante seguro. Você fere o vilão, ele para o que estiver fazendo, rola no chão e você aproveita para chutar as costelas dele, mas, no fim, os dois vão para casa. Quem tem um bom nível de magia costuma levar os adversários a convulsões.

– E quanto aos Superiores? – minha mãe perguntou.

Quase dei um salto. Não a tinha ouvido entrar.

– Até onde sei, não há nenhum Superior que tenha o sistema implantado. Superiores não precisam disso. Têm sua própria magia e estão ocupados fazendo coisas com ela em vez de cuidar de recrutas em treinamento ou de magos no campo de batalha. – Makarov olhou para minha mãe. – Não a vejo há muito tempo, sargento. Como está sua perna?

– Continua aqui, sargento-mor.

– Isso é bom.

– Se matar minha filha, não vai embora daqui – minha mãe disse.

– Vou levar isso em consideração. – Makarov virou-se para mim. – Então, sim ou não?

– Quanto isso vai nos custar? – perguntei.

– Isso é entre você e sua avó. Eu devo um favor a ela.

Respirei fundo.

– Sim.

Makarov levantou-se e pegou uma caneta no bolso.

– Bom. Você comeu?

– Não.

– Melhor ainda.

Trinta minutos depois, cada centímetro do meu braço estava coberto com símbolos místicos. Szenia tomou meus sinais vitais e trouxe uma grande cadeira, à qual ele e Makarov me amarraram.

– Vai doer?

– Pode apostar.

Ele não era muito gentil.

Pegou uma caixa de papelão com sal kosher da sacola de Szenia e fez um círculo em torno da cadeira.

– Só para prevenir.

– Prevenir o quê?

– Caso murena esteja de mau humor.

Ele colocou a caixa de metal dentro do círculo, enfiou uma chave grande e antiga na fechadura e, com um clique, abriu-a. Um cheiro de canela tomou o ar. A tampa da caixa deslizou para o lado. Makarov disse algo em um idioma que eu não entendi. Seu lado esquerdo tinha ficado azul, como se estivesse coberto de luzes translúcidas e brilhantes. Seus dedos se alongaram, as juntas ficaram grandes e grossas. Garras saíram de baixo de suas unhas. Ele colocou a nova e demoníaca mão na caixa e retirou uma fita fina de uma fraca luz verde. Não tinha pernas, cabeça ou cauda. Apenas uma tira de luz com cerca de vinte centímetros de comprimento e três centímetros de largura. A coisa se enrolou em seu pulso.

Makarov entoou um cântico, aproximando-se.

Talvez não fosse mesmo uma boa ideia.

Makarov jogou a luz no meu antebraço esquerdo exposto, bem entre os glifos na minha pele. Parecia óleo fervente. Gritei. A luz criou raízes na forma de tentáculos e foi entrando na minha pele. A dor me tomou como um corte exposto em contato com ácido. Lutei contra, mas ele cavou seu caminho para dentro da minha pele, da minha carne, entrando cada vez mais. Eu me contorcia na cadeira, tentando tirar aquilo de mim. Se eu estivesse com a mão livre, teria arrancado aquilo.

Minha mãe se virou, seu rosto contorcido.

A dor queimava dentro do meu braço, fazendo com que eu gritasse mais uma vez. A magia apertava meu corpo. Era como se um elefante tivesse entrado no meu peito. Continuei gritando até ele finalmente entrar no meu osso e sossegar lá. Me larguei contra as amarras, exausta.

A dor diminuiu. O suor encharcava minha testa. Makarov ergueu meu queixo com sua mão direita, humana, e me olhou nos olhos:

– Está viva?

– Viva – consegui responder.

– Bom, agora o braço direito.

O tempo pareceu eterno até eles finalmente soltarem as amarras. As marcas na minha pele tinham desaparecido, como se tivessem sido absorvidas pela magia. Meus braços ainda doíam, como se eu tivesse feito muitas flexões ou carregado algo realmente pesado no dia anterior. Mas essa dor não era nada comparada à que senti no momento do implante. Estava tudo bem suportar essa dor.

– Agora vamos fazer uma pequena demonstração. – Makarov acenou para Szenia. O homem loiro aproximou-se de mim.

– Imagine o poder descendo do seu ombro até sua mão direita.

Imaginei uma onda de luz verde descendo por dentro do meu braço até chegar ao punho.

– Espere. A primeira vez sempre demora mais.

Fiquei ali, imaginando um brilho viscoso e me sentindo uma idiota.

Algo se mexeu dentro do meu braço. Nada aconteceu na superfície, mas senti as pontas dos dedos formigando.

– Pronta? – Makarov perguntou.

– Sim.

– Dê um tapa de amor em Szenia.

Toquei o ombro dele. Uma dor louca percorreu meu braço e chegou ao peito. Leves brilhos de luz dançavam em meu braço, por dentro da pele. Os olhos de Szenia se reviraram. A dor era muito intensa e eu me dobrei. A dor reverberava na minha cabeça, meus dentes rangiam. Ai.

Makarov me empurrou de volta e eu soltei Szenia, que caiu no chão. Uma espuma branca e grossa saía de sua boca. Suas pernas batiam no chão. Ah, não.

Makarov ajoelhou-se e deslizou sua mão demoníaca no peito de Szenia. As convulsões diminuíram. Lentamente, Makarov recolheu seus dedos em forma de garra. Szenia abriu os olhos.

– Szivoi to, geroy? – perguntou Makarov.

O homem loiro fez que sim.

Makarov virou-se para mim, encarou-me e se virou para a vó Frida.

– Preciso falar com você.

Eles foram para o outro lado do galpão.

Peguei uma garrafa de água na geladeira de minha avó, abri-a, e a ofereci a Szenia.

– Desculpe.

– Está tudo bem. – Ele pegou a garrafa e tomou longos e ávidos goles. – Isso dói um pouco. Vou ficar deitado aqui por um momento. – Ele se deitou novamente.

Do outro lado, Makarov e minha avó discutiam. Makarov apontava para mim. Fiquei tensa e tentei ouvir. Algo como “você deveria ter me dito”.

Makarov veio na minha direção, com uma mudança total de atitude. Minha avó vinha atrás dele. O russo se aproximou, a mandíbula travada.

– Você me escute, e me escute com atenção: não use isso em ninguém com nível de magia abaixo de Significativo, ouviu? Você pode matar alguém. E eu não quero essas almas na minha consciência.

Ele pegou sua caixa e saiu. Szenia levantou-se e o seguiu.

Minha avó o observou partir, de braços cruzados.

– O que está acontecendo? – minha mãe perguntou.

– Russo maluco. – Minha avó balançou a cabeça. – Não é nada de mais. Apenas tenha cuidado com o choque, Neva.

Meus dentes ainda doíam.

– Não está nos meus planos sair atacando as pessoas nas ruas.

Meu celular tocou sobre a mesa. Eu nunca ia muito longe sem ele, mesmo dentro de casa. Peguei o aparelho. Número sigiloso. Que bom.

– Nevada Baylor.

– Preciso falar com você – Louco Rogan disse do outro lado da linha. – Venha almoçar comigo.

Meu coração acelerou, meu corpo ficou alerta, e meu cérebro parou por um segundo para lidar com o impacto da voz dele. Eu teria me batido, pois minha mãe e minha avó já achavam que eu era louca, mas me ferir certamente me comprometeria.

– Claro, deixa eu ir me arrumar. – Olha só, minha voz ainda funcionava. – Devo levar minhas próprias correntes dessa vez? Ou você tem planos maiores e esse é um tipo de preliminar do meu assassinato? – Por que a palavra “preliminar” saiu da minha boca? – E eu vou terminar cortada em pedacinhos dentro de um freezer? Já posso preparar o tempero e atirar na minha própria cabeça para evitar seu trabalho.

– Terminou? – ele perguntou.

– Nem comecei. – Eu era muito corajosa ao telefone.

– Almoço, senhorita Baylor. Concentre-se. Escolha um lugar.

– Parece que você acha que trabalho para você e que pode me dar ordens. Deixe-me corrigir isso. – Desliguei o telefone.

Minha avó olhou para minha mãe.

– Ela desligou na cara de Louco Rogan?

– Sim, exatamente. Sabia que Adam Pierce apareceu aqui em casa ontem à noite?

– Ele esteve aqui? – Minha avó arregalou os olhos.

– Ela o encontrou do lado de fora.

– Você tirou fotos? – Vovó Frida se aproximou de mim.

Meu telefone tocou. Número sigiloso novamente. Atendi.

– Não sou um homem de paciência infinita – Louco Rogan disse.

Desliguei.

– Fotos ou nunca aconteceu! – minha avó declarou.

Busquei no celular e mostrei a foto de Adam Pierce com a camiseta do parque.

– Aqui.

Vovó Frida pegou o telefone da minha mão. Ele tocou. Ela atendeu.

– Ela vai retornar a ligação. Nevada, posso mandar a foto do Adam para mim por e-mail?

– A senhora precisa desligar a ligação primeiro.

Ela desligou e começou a digitar.

– Arabella vai ficar louca.

Minha mãe suspirou. Minha avó me devolveu o celular.

– Aqui está.

Mais um toque.

– Sim?

A voz dele era tranquila e precisa:

– Se desligar mais uma vez, faço seu carro em pedacinhos e penduro sobre a sua casa como uma decoração de Natal.

– Primeiro: destruir meu patrimônio é crime, assim como ter me sequestrado. Segundo: como exatamente a ameaça de picar meu carro deve me convencer a almoçar com você? Terceiro: se você está perto o suficiente para destruir meu carro, estou perto o suficiente para dar um tiro na sua cabeça. Consegue desviar balas se não souber que estão se aproximando?

– Estou tentando ser razoável – ele disse. – Venha almoçar comigo e podemos trocar informações ou...

– Ou o quê? Minha mãe e minha avó estão aqui comigo. Devo passar o telefone para elas para que você possa fazer ameaças horríveis se eu não aceitar almoçar com você?

– Seria bom?

– Provavelmente não.

– O que faria você se sentir segura? – ele perguntou.

– Um pedido de desculpas poderia ser um bom começo.

– Peço desculpas por ter sequestrado você – ele disse. – Prometo não te sequestrar antes, durante ou depois do nosso almoço. É uma conversa de negócios. Onde você se sentiria confortável em me encontrar?

Confortável? A memória da magia dele ainda queimava meu cérebro. Não havia algo parecido com conforto quando ele estava por perto. Eu poderia encontrá-lo na prefeitura, cercada por policiais e ele poderia explodir todo mundo sem fazer nenhum esforço. Mas eu precisaria conversar com ele.

– Senhorita Baylor?

– Um minuto. Estou tentando pensar em um lugar onde ninguém vá nos reconhecer.

– Se preferir, posso conseguir um veículo sem janelas para ficarmos aconchegados comendo algo bem gorduroso.

Aconchegados?

– Tentador, mas melhor não. Takara, em uma hora...

Ele desligou.

Revirei os olhos.

– Isso é uma boa ideia? – minha mãe perguntou.

– Não sei. Ele mencionou trocar informações, então, deve ter algo para dar em troca. Não acho que fugir dele vá funcionar. Ele não vai aceitar um não como resposta. Posso encontrar com ele do meu jeito ou do jeito dele. Já experimentei o jeito dele e não gostei. Fora isso, Makarov disse que não posso usar o choque em ninguém que não tenha magia. Louco Rogan é Superior. – Movi as mãos como se fossem garras.

– Mãe? – Minha mãe se virou para minha avó.

– O quê?

– Ela vai almoçar com o sequestrador dela!

– Tire uma foto para mim – minha avó pediu.

– Essa família vai me fazer morrer cedo – minha mãe resmungou. – Vou com você. Mãe, tranque as portas e ligue o alarme. Vamos com a van e o Barrett.

– O Barrett vai ser suficiente? – vovó Frida perguntou. – Ele não consegue desviar as balas de seu peito?

– O Barrett atira com calibre 50 duas vezes mais rápido que a velocidade do som. – Minha mãe cruzou os braços. – Gostaria de ver ele desviar essas balas do peito.


Osite do Takara descrevia o local como um bistrô asiático, o que, na verdade, significava que eram especializados em lindos sushis e tinham alguns pratos tradicionais chineses e coreanos no cardápio. Ficava em uma construção grande e moderna, de pedras marrons pesadas e com grandes janelas. Ao entrar pela porta, uma fonte de dois metros e meio, na parede, me recepcionou. A paleta de cores ia do bege-claro aos tons de verde suave e marrom enriquecido, com um toque de bronze metálico aqui e ali. As cores, o som delicado da água e a bela decoração eram tranquilizantes, apesar de a hostess, à minha frente, e os três sushimen atrás do balcão parecerem enlouquecidos.

Passei os olhos pelas mesas marrons e encontrei Louco Rogan usando um terno cinza sobre uma camisa branca de colarinho aberto. Ele estava virado para os fundos, perto dos grandes bambus plantados em um alto vaso preto. Dali era possível ver o lado de fora pela janela, mas os transeuntes não podiam ver com clareza quem estava do lado de dentro. Era a mesa mais discreta do ambiente, mas, no momento, se ficasse bem no meio do salão o efeito seria o mesmo. Louco Rogan era alguém muito difícil de ser ignorado. O restaurante estava vazio, exceto por duas jovens e um casal de meia-idade. E as quatro pessoas fingiam ao máximo não estar olhando para ele.

Minha mãe havia estacionado do outro lado do estacionamento, a cerca de sessenta metros de distância. Seu rifle Barrett de atirador de elite tinha um alcance de mais de um quilômetro e meio. E sua magia garantia que ela não erraria. Meus joelhos ainda tremiam. Essa tinha sido uma ideia idiota.

A hostess, de vestido preto justo, forçou-se a sorrir para mim.

– Senhorita Baylor? Por aqui, por favor.

Eu a segui. Toda aquela adrenalina havia aguçado minha magia e eu podia senti-la quase saindo de mim, como um raivoso enxame de abelhas elétricas pronto para zumbir. Eu usava um jeans antigo, uma blusa cor de carvão e meu melhor tênis de corrida. Se precisasse correr para salvar minha vida de novo, estava preparada.

Louco Rogan se levantou num movimento delicado. Um garçom apareceu como que por magia e puxou uma cadeira para mim.

Louco Rogan não tocou na minha cadeira. Ele deveria tê-la puxado, mas ficou exatamente onde estava. Poderia ter sido por achar que eu não merecia tal cortesia, mas os membros das Casas viviam e respiravam regras de etiqueta.

– Fez alguma coisa com a minha cadeira?

– Não. – Minha magia zumbiu como um chicote. Mentira. Virei na direção da mesa perto da janela. – Eu prefiro aquela mesa ali.

O garçom ficou congelado, petrificado, sem saber o que fazer.

Caminhei na direção da mesa perto da janela, apontei para a cadeira que ficava de frente para o estacionamento e olhei para os dois.

– Eu me sento aqui.

Louco Rogan moveu os dedos de sua mão esquerda. Uma fumaça vermelha se ergueu do carpete, formando um círculo mágico onde, no centro, estava a minha cadeira, e dissipou-se no ar. Ele tinha montado uma armadilha e eu quase caí. Maldito.

Puxei minha nova cadeira. As regras de educação determinavam que ele se sentasse à minha frente, o que faria com que sua nuca ficasse voltada para a janela e minha mãe tivesse ótima visualização do alvo. Louco Rogan aproximou-se da mesa, ela deslizou, afastando-se da janela, enquanto as demais mesas também se afastaram, abrindo espaço para ela. A cadeira escapou da minha mão e também seguiu para o novo local. As outras três cadeiras foram atrás da minha e se posicionaram em torno da mesa. Ele colocou a mão no assento que o permitia ver a entrada e a janela e me convidou com um gesto casual:

– Sua mesa.

Grrrr. Isso não ia dar certo.

Sentei-me. Ele também se sentou.

Olhamos um para o outro.

O garçom estava ao nosso lado, com uma expressão nervosa.

– Bem-vindos ao Takara. O que posso trazer para vocês beberem?

– Chá com limão e sem açúcar – eu disse. – E pode trazer adoçante, por favor?

– Quero o mesmo – disse Louco Rogan. – Mas sem limão.

– Entrada? – o garçom perguntou.

– O que você escolher – Louco Rogan disse, olhando para mim.

– Carpaccio.

– Ótimo, já trago o pedido de vocês. – O garçom se afastou, visivelmente aliviado.

O Carrasco do México e eu voltamos a nos fitar. Os olhos dele pareciam mudar de cor de acordo com a luz. Ontem, quando estava no círculo, estavam mais escuros, quase índigo. Hoje estavam mais claros, azuis como o céu. Minha mente voltou para o penhasco de meu sonho. Me inquietei com o pensamento. Não tinha ideia de que tipo de telepata ele era. A última coisa de que precisava era ele puxar a própria imagem, seminu, de minha mente.

– Você tem algum documento? – perguntei.

– Documento?

– Você disse que era Louco Rogan, mas como posso saber se é quem diz ser?

Ele separou os hashis, esfregou um no outro e segurou um na linha dos olhos, com a ponta mais grossa apontando para o teto. Abriu os dedos. O hashi permaneceu suspenso, acima da mesa. Impressionante. Eu conhecia essa brincadeira. Todos fizemos isso no primário para identificar nossa magia. Se pudesse mover os palitinhos da mesa, era um telecinético. Se pudesse erguê-los e mantê-los firmes, era um telecinético de alta precisão e as pessoas iriam falar com seus pais e oferecer bolsas em troca do compromisso, de, no futuro, trabalhar para elas. Essas pessoas pagariam seus estudos e, em troca, você trabalharia para elas por uma ou duas décadas.

Louco Rogan, casualmente, desdobrou seu guardanapo. Uma lasca fina de madeira, tão fina que era translúcida, desprendeu-se do hashi e apoiou-se na mesa. Puta merda.

Mais uma lasca se soltou. O casal de meia-idade parou de comer. O homem estava de queixo caído. A mulher visivelmente lutava para conseguir engolir. Arrepios percorreram minha coluna. Aquilo não podia estar acontecendo. Mover uma mesa era uma coisa. Era um objeto maciço e pesado e requeria muito poder para movimentá-la. Mas isso era um nível diferente. Nenhum telecinético tinha tanto controle assim.

Louco Rogan colocou o guardanapo no colo. Os hashis voltaram ao seu lugar. As lascas de madeira se desmancharam, formando um círculo perfeito em torno deles, como um anel de pequenas pétalas.

O garçom voltava com nossas bebidas e parou no meio do caminho, congelado.

O primeiro círculo foi preenchido com lasquinhas de madeira e um segundo, maior, formou-se à sua volta. A metade restante do hashi desceu no centro dos dois anéis e, com um forte estalo, quebrou-se em quatro partes.

Lembrei de respirar.

O homem do casal tirou da carteira três notas de vinte dólares, colocou na mesa e pegou a mão da mulher. Saíram a uma velocidade que quase poderia ser chamada de corrida.

Aquilo era a coisa mais assustadora que eu já tinha visto em muito tempo. Como era possível que ele fizesse aquilo? Se estivesse fazendo com um ser humano seria pavoroso.

Louco Rogan olhou para mim.

Eu precisava dizer alguma coisa, fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

Peguei meu celular e tirei uma foto da mesa. Ele ergueu as sobrancelhas.

– É pra minha avó. – Coloquei o telefone sobre a mesa e sorri para o garçom. – Ele quebrou os hashis. Você pode nos trazer outro jogo?

O garçom fez que sim, correu até a mesa, serviu nossas bebidas e o carpaccio e fugiu, sem dizer uma palavra. Louco Rogan pegou a tigelinha branca que costumava ser usada para colocar o molho de soja e puxou os restos da madeira para dentro dela com as mãos, casualmente.

– Eu me referia à carteira de motorista, ou algo assim. – Aquilo realmente não era uma boa ideia. Ele era absurdamente poderoso.

– Uma carteira de motorista pode ser falsificada. Ninguém nos Estados Unidos pode fazer o que acabei de fazer.

E também muito modesto.

A mais baixa das mulheres, de cabelos ruivos, aproximou-se de nossa mesa e colocou um cartão no tampo. Seus dedos tremiam um pouco.

– Meu nome é Amanda. Me liga.

Ela voltou para sua mesa, rebolando agressivamente sobre seus saltos altos.

Peguei um pedaço malpassado do carpaccio com molho picante. Mmmm, delicioso.

– Isso foi ousado. Você expulsou dois clientes, fez as outras duas perderem a cabeça e assustou o garçom. Gostaria de ir lá pra dentro, aterrorizar o pessoal da cozinha também?

– Você começou com a mesa.

– Eu deveria me sentar na sua armadilha?

Sua expressão era completamente séria.

– Deveria. Aquilo teria deixado você mais maleável e sairíamos daqui mais rápido.

– Bom, não me sentei. – Quase bati em mim mesma. Onde isso era uma resposta inteligente? Não era.

O garçom retornou com os hashis.

– Posso anotar o pedido de vocês?

– Bulgogi – Louco Rogan disse.

Pedi um simples sushi de salmão e ambos pegamos saquinhos idênticos de adoçante e colocamos em nossas bebidas.

– Eis o que eu sei – Louco Rogan começou. – Seu nome é Nevada Baylor. Você é a única investigadora licenciada em uma pequena empresa, que, atualmente, é subsidiária da MII. A MII cuida da segurança de diversos empreendimentos da Casa Pierce. A Casa Pierce contratou a MII para trazer seu filho pródigo para casa, e você acabou pegando o palitinho menor.

Peguei mais um pedaço de carne e mastiguei. Estava delicioso e me impedia de falar coisas de que eu poderia me arrepender depois.

– Não estou interessado em Adam Pierce – ele continuou.

Verdade.

– Poderia ter mentido para mim. Agora estou me sentindo insultada. Você me sequestrou e torturou por alguém em quem nem está interessado.

O dragão não achou graça.

– Estou interessado em encontrar Gavin Waller. De preferência, vivo.

Verdade, mas isso eu já tinha descoberto.

– Gavin desapareceu da face do planeta. O Twitter dele está inativo, o Instagram não recebe atualizações, e ninguém o viu desde aquela noite. Ou ele está escondido ou morreu.

– Exato – Louco Rogan concordou.

– Mas Adam gosta de aparecer, então, você achou que seria mais fácil encontrar Adam e fazê-lo dizer onde está Gavin. Entendo isso tudo. Agora, explique a parte do sequestro.

– Isso é irrelevante.

Fiz uma pausa, com uma fatia de carpaccio a caminho da boca.

– Você compreende que me pegou na rua, como se fosse um serial killer? Achei que fosse me machucar seriamente. Fiquei assustada e irritada. Temi por minha vida. Isso é extremamente relevante para mim.

– Está bem. – Louco Rogan suspirou. – Procurei na loja de Gustave e descobri uma série de altos depósitos vindos da Casa Pierce.

– Eu descobri o mesmo.

– Fui para discutir os depósitos quando vi você do lado de dentro da loja. Jovem, bonita e loira. O tipo de Adam.

– Achou que eu fosse uma fã do Adam? – Eu ficaria ofendida, mas seria perda de tempo.

– Sim. Achei que você era quem entregava o dinheiro a ele. Segui você até a MII e, dadas as relações entre as Casas, entregar o dinheiro para Adam, usando a MII, faria sentido. Vi você saindo do prédio ao telefone e te segui até o parque.

Minha magia estava muito alerta. Não era exatamente uma mentira, mas parecia ter algo estranho.

– Como?

– Como o quê?

– Como me seguiu até o parque?

– Seguindo.

Mentira. Minha magia estava instável, como se eu estivesse tonta. Mentira, mentira, mentira. Mesmo se não estivesse assim, saberia que era mentira, pois verifiquei se estava sendo seguida. Era um hábito. Além disso, o trânsito estava muito intenso para ele poder me seguir. Ele tinha me visto entrar na MII e deixar o carro no estacionamento. Ele tinha feito algo no meu carro. Você não é um demônio astuto? Tudo bem, aquele é um jogo que pode ser jogado por dois.

– Estava nos jardins, procurando por você, quando ouvi a moto daquele idiota. – Louco Rogan fez uma leve careta. Adam Pierce não era sua pessoa preferida. Se Adam fizesse um de meus primos ser acusado de assassinato, também não seria uma das minhas pessoas favoritas.

– Então, em vez de falar comigo, pedir minhas credenciais, ou fazer qualquer uma dessas coisas que pessoas normais fazem, você decidiu me acorrentar no seu porão?

Ele encolheu os ombros num movimento lento e deliberado.

– Pareceu o jeito mais rápido de obter informações. E, vamos ser honestos, você não se machucou de verdade. Eu inclusive te levei para casa.

– Me largou na entrada de casa. De acordo com a minha mãe, eu parecia estar morta.

– Sua mãe exagerou. Só estava um pouquinho morta, no máximo.

Olhei para ele. Uau. Apenas isso. Uau.

A comida chegou. Tempo recorde.

– Não faço a menor ideia de onde Adam esteja se escondendo. – Peguei um pedaço de meu sushi de salmão, passei um pouco de wasabi nele e coloquei-o na boca.

– Agora eu sei disso. E também o fato de que você se encontrar com ele sozinha, sem meios de capturá-lo, indica que a Casa Pierce contratou a MII e você para convencê-lo a se render ao seio familiar. – Ele se inclinou para a frente. Seus olhos azuis focaram em mim; seu olhar era direto e difícil de sustentar. – A MII emprega magos treinados em combate. Por que mandaram você? O que você faz? Você tem algum poder. Não é telepático, mas algo além.

Quer mesmo saber? Eu mastigava animadamente. Mmm, mmm, sushi delicioso. Desculpe, não posso falar de boca cheia.

– Qual é a sua com o Adam? – ele perguntou.

Continuei mastigando, ganhando tempo e pensando nas palavras certas a dizer.

– Prometo que não conto para ninguém.

Dei um gole no meu chá.

– Adam é volátil e caótico. Todas as suas emoções são intensas. Ele quer atenção e quer, desesperadamente, passar a imagem de ser bacana, quase como um adolescente. Ele adora um desafio, então, quando alguém não fica a seus pés imediatamente, encantado, ele se esforça para provar que é incrível. Mas, como um adolescente, ele é autocentrado e pode ser cruel. Odeia ser rejeitado, e sua necessidade de impressionar pode se transformar depressa em ódio. Ele é mais inteligente do que demonstra, persistente e perigoso.

– Mas você acha que pode convencê-lo a voltar para a Casa dele?

– É possível. – Tinha conseguido sua atenção, e isso era bom para mim, mas ele estava mentindo, o que não era. – Tirei o dinheiro dele. Junto à caçada, isso deve ajudar a pressioná-lo. Ele está flertando com a ideia. O que você acha de Adam?

– Acho que é um riquinho mimado com muito tempo livre, complexo de papai e uma tendência sádica exagerada.

Ok, então estamos no mesmo barco.

Ele se inclinou para a frente, os olhos focados em mim.

– E se eu dissesse que ele está fazendo você entrar na dele?

– O que faz você achar isso?

Ele pegou um pequeno tablet do bolso interno de seu paletó e passou para mim. Peguei o equipamento com cuidado para não tocar nos dedos dele.

– Uma amostra de boa-fé – ele disse.

Verdade.

Havia um vídeo pausado na tela. Ele começou a passar com um toque do meu dedo. Era uma gravação da rua em frente ao First National Bank, provavelmente de uma câmera de segurança. Será que era o vídeo que os policiais tinham?

– Como conseguiu isso?

– Tenho meus métodos.

Na tela, duas figuras, uma alta e a outra mais baixa e mais magra, entraram no enquadramento e pararam em frente à fachada de vidro e mármore do banco. A figura mais alta, usando sua conhecida jaqueta de couro, colocou uma lata de metal no chão, pegou um pedaço de giz, se abaixou e começou a desenhar no asfalto. Não dava para ver, mas eu apostava que era um círculo mágico.

Trinta segundos depois, o homem se ergueu e levantou os braços, com os cotovelos dobrados e os dedos de uma mão de frente para os da outra, como se segurasse uma bola invisível. A outra figura abriu a lata e começou a colocar, cuidadosamente, um líquido viscoso e grosso na frente do primeiro homem. Uma centelha silenciosa e dourada surgiu na esfera invisível entre as mãos do primeiro homem. O mais baixo continuava espalhando o líquido. O fogo brilhava cada vez mais.

– Napalm B – Louco Rogan disse. – É um espessante que faz a gasolina ficar gelatinosa.

– Eu sei. Benzina, gasolina e poliestireno. – A vovó Frida tinha trabalhado em mais de um veículo com lança-chamas militar. Napalm B também queimava por cerca de dez minutos e gerava temperaturas que superavam até mesmo o fogo de Adam Pierce. Era uma das piores coisas que a humanidade já tinha inventado.

Louco Rogan ergueu as sobrancelhas. Devo tê-lo surpreendido.

A bola de fogo entre as mãos do homem cresceu, aproximando-se do tamanho de uma bola de basquete. Ela se agitava, nervosa, um inferno contido pela magia. A chama brilhava, amarela, depois surgiram partes brancas. O homem mais alto se virou e vi seu rosto, iluminado pela bola de fogo. Adam Pierce.

O homem mais baixo – provavelmente Gavin Waller – ergueu as mãos, com as palmas abertas e empurrou. A bola de fogo se desfez. As janelas do banco se quebraram, e as chamas começaram. O First National explodiu de dentro para fora. O fogo rugiu como um urso feroz.

Isso mesmo, Gavin Waller era um teletransportador de pequena distância. Adam e Gavin começaram as chamas, duas silhuetas negras contra um inferno.

A imagem de Gavin parecia um pouco distorcida. No segundo seguinte, a distorção desapareceu.

Espere aí.

Voltei o vídeo alguns segundos. Dois minutos e trinta e um segundos, trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco. Perdi. Trinta e dois, pausa.

A silhueta de Gavin estava congelada na tela. Ele segurava algo retangular, abaulado do lado esquerdo. Aproximei a imagem. Uma caixa. Ele segurava um tipo de caixa. Quando havia pegado aquilo?

Voltei o vídeo novamente. A caixa apareceu na mão de Gavin um milissegundo antes de a bola de fogo desaparecer.

– O que Gavin Waller está segurando? Ele teletransportou algo para as mãos dele.

– Um cofre.

– E o que tinha dentro?

– Ninguém sabe. – Louco Rogan fez uma careta. – Eles pegaram, tiraram alguma coisa e devolveram para o lugar onde estava. Adam pressurizou o Napalm B e, quando a mágica não o estava mais contendo, ele explodiu. Os funcionários do banco ainda estão procurando entre os destroços. Parte do cofre derreteu.

Então não tinha sido um ato político. Foi um furto, e o incêndio serviu apenas para encobri-lo. Adam havia colocado fogo em um banco, matado um homem e ferido seus familiares apenas para poder roubar algo. E precisou de Gavin Waller para teletransportar a bola de fogo diretamente para o cofre, pois começar pelas portas da frente acionaria todo tipo de alarmes. E, até ele chegar ao cofre, metade da força policial de Houston estaria na frente do edifício.

– Gavin não é um teletransportador muito forte – Louco Rogan disse. – Alguém precisou marcar o cofre exato para ele poder pegar. Alguém foi àquele banco e marcou a caixa para que Gavin pudesse pegá-la com sua magia, colocando a bola de fogo no lugar. Essa pessoa não foi Adam Pierce nem o próprio Gavin. O ponto é que isso foi planejado. Pierce fez o assalto perfeito, encobriu as pistas e não disse uma palavra a respeito. Por quê?

Tudo ficou claro e consegui entender num lampejo.

– Ele não terminou. Adam tem uma necessidade de atenção quase patológica. Se tivesse terminado, já teria assumido. Estaria se gabando, se deixaria prender ou voltaria para casa, fazendo um grande espetáculo. Não se recusaria a dar declarações. Em vez disso, ele está se escondendo. E está me usando para manter a família a distância. Enquanto eu reporto estar fazendo contato com ele e digo que ele está me ouvindo, vão achar que existe uma chance de ele se entregar. Não vão tentar capturá-lo. Vão se concentrar em diminuir a caçada. Estou tornando mais fácil que ele siga com seu plano.

– Você não parece surpresa – ele observou.

– Eu sabia que ele estava me usando. Só ainda não sabia o motivo. Agora eu sei. – Dei-lhe um grande e brilhante sorriso. – Obrigada por me ajudar a solucionar o mistério.

Louco Rogan se recostou, seu corpo musculoso descansando contra a cadeira.

– Você é uma investigadora experiente. Quer Adam Pierce, e ele está aberto a fazer contato com você, mas não pode convencê-lo a se entregar e não tem meios de vencê-lo. Eu quero Gavin Waller. Tenho dinheiro e poder do meu lado, mas não consigo encontrá-lo. Me leve até Adam, e eu ajudo você a entregá-lo à Casa Pierce.

– Você acha que pode conter Adam Pierce?

– Acho. – Seu rosto tinha uma expressão confiante. – Não posso garantir que ele não terá nenhum ferimento quando eu terminar, mas posso garantir que estará vivo.

Dobrei o guardanapo e o coloquei na mesa.

– Obrigada pelo almoço delicioso. A resposta é não. Já tenho um patrão.

– Você foi contratada para encontrar Pierce, não Waller. – Louco Rogan tocou no tablet. Um cheque eletrônico apareceu na tela. – Digite um número.

Eu poderia digitar um número grande o suficiente para pagar minha hipoteca com a MII. Era tentador. Muito, muito tentador. Mas ninguém se jogava numa jaula com um urso selvagem porque ele estava oferecendo um pouco de mel. Naquele exato momento, Pierce e eu estávamos apenas conversando. Se Louco Rogan estivesse envolvido, aquilo se transformaria num conflito declarado. E o tipo de poder que ele e Pierce usariam poderia me machucar. Na verdade, eu me machucaria com certeza. Minha vida não valia nada para nenhum dos dois.

– Não, obrigada.

Ele apertou os olhos.

– Você ainda está brava por causa do porão.

– Estou, mas o fato de eu não gostar de você não tem nada a ver com a minha decisão. Essa é uma escolha puramente profissional. Você quebrou as leis quando me sequestrou e, embora tenha se desculpado, suas desculpas não foram sinceras. Foi o jeito para conseguir o que pretendia. Você mudou a disposição do restaurante, propriedade de outra pessoa, para satisfazer suas necessidades pessoais, mentiu para mim durante essa conversa e tentou me prender em uma armadilha depois de ter me garantido que não ia me fazer mal.

– Eu garanti que não te sequestraria.

– Você é incrivelmente poderoso, e tem uma clara falta de consideração por leis e limites morais. Acho que você não considera errado nada do que faz. Isso te torna muito perigoso e oferece um grande risco na minha linha de trabalho. Você vai violar leis e matar para conseguir o que deseja e, se eu conseguir sobreviver, vou ser deixada de lado. Então, a resposta é não.

– Isso não é sensato, Nevada. Eu cuido bem dos meus funcionários.

O som de meu nome saindo dos lábios dele me desnorteou por meio segundo. Trocar a dívida com a MII pela servidão a Louco Rogan. Não, obrigada. Ao menos com a MII havia regras. Era um contrato legal e o que estavam fazendo com a gente era sujo, mas estava dentro dos limites do contrato. Meu valor, para eles, estava ligado à minha capacidade como investigadora. Meu valor para Rogan estava ligado no fato de eu poder aproximá-lo de Adam Pierce. E Rogan não seguia nenhuma regra. Eu não tinha nada que ir pra cama com ele.

Pra cama.

Com Louco Rogan.

Minha mente o imaginou nu, em lençóis escuros. Fechei a porta daquele pensamento com tanta força que meus dentes estremeceram.

Tirei duas notas de vinte dólares do bolso e as coloquei na mesa.

– Não tenho nenhum motivo para acreditar em uma palavra do que você diz.

Ele se inclinou para a frente. O corpo tenso, os músculos se movimentando por baixo da roupa. Seu rosto assumiu uma expressão predatória. Todo aquele verniz de civilidade se rompeu e lá estava ele: um dragão em sua terrível glória.

– Não me deixe falando sozinho. – Sua voz vibrava com poder. – Você está fora de si. Adam Pierce, a Casa Pierce, a MII estão todos do outro lado. Estou me oferecendo para ser seu aliado. Não me transforme em seu inimigo ou vai se arrepender.

– Esse é exatamente o motivo pelo qual a resposta é não. – Me levantei. – E da próxima vez que escolher se projetar nos meus sonhos, fique vestido.

Ele sorriu. Um sorriso muito masculino e autoconsciente; não só sexual, mas também carnal. O olhar predador em seus olhos se transformou. E sentia a necessidade de segurar um guardanapo na minha frente, como se fosse um escudo.

– Eu posso projetar. Mas precisaria estar ao seu lado para fazer isso.

Ai, droga.

Ele fez uma voz delicada e sensual. Nenhum homem tinha direito de usar aquela voz.

– Me diga, o que eu não estava usando em seus sonhos?

Virei minhas costas para ele e saí andando.

O som de sua risada me acariciou, quase um toque sensual.

Continue andando, continue andando, continue andando. Aquilo tinha sido muito estúpido. Eu precisava ter a palavra final. Será que me mataria manter a boca fechada?

O telefone tocou. Atendi.

– Drawbridge Segurança – informou uma voz feminina e vibrante, do outro lado da linha. – Estamos vendo um alerta de fogo na sua residência.

A vovó devia ter disparado o alarme mais uma vez. Ela sempre estava testando combustível ou usando alguma ferramenta, e o sistema de alarme era acionado de tempos em tempos. Eu tinha passado instruções para que deixassem o telefone tocar por ao menos um minuto antes de chamar os bombeiros. Às vezes ela demorava um pouco para apagar o fogo antes de ir atender o telefone.

– Deixaram o telefone tocar? – Eu já estava quase na porta.

– Deixamos, sim. Registramos dois tipos diferentes de alertas, um na oficina e um na entrada.

Na entrada. Fiquei toda arrepiada.

– Ligue para os bombeiros agora!

Corri para a porta em direção ao estacionamento.

A van já estava ligada. Abri a porta do motorista e saltei para dentro.

– Nossa casa está pegando fogo!

Minha mãe fechou a caixa da arma, sentou-se no banco do passageiro e colocou o cinto. Acelerei e saímos com a van do estacionamento. Minha mãe ligou para casa.

– Alguma coisa?

Fiz a curva muito rápido. A van cambaleou e os pneus cantaram. Ela colocou no viva-voz. Trim... Trim... Trim...

– É na oficina?

– Na porta de entrada!

Viramos numa rua lateral. Um Toyota Prius que vinha devagar bloqueava a pista. A fila de carros no sentido contrário bloqueava a passagem. Merda.

Virei o volante para a direita, e a van subiu no meio-fio com um tranco. Segui pela calçada.

Trim... Trim...

O Prius ficou para trás e eu voltei para a pista. Trim...

Fiz uma curva acentuada para a esquerda, e o galpão apareceu na nossa frente. Parecia intacto.

Soltei um grito quando vi a porta da frente.

Minha mãe rezava. Uma corrente enorme bloqueava a porta. Alguém tinha feito buracos nas paredes e na porta e passado uma corrente muito grossa por eles. Havia um cadeado gigante prendendo-a. O que era aquilo?

Acelerei e dei a volta no galpão, chegando pelo lado da oficina. Uma corrente idêntica bloqueava a porta. Droga. Apertei o botão que deveria abrir o portão da garagem, mas ele nem se moveu. Desligado.

Não tínhamos ferramentas para cortar as correntes. Tudo estava dentro do galpão.

– Fumaça – minha mãe disse.

Uma fumaça preta saía pela ventilação, perto do telhado.

Minha avó estava do lado de dentro. Ela poderia estar sendo carbonizada.

– Vou com o carro?

– Vai! – Minha mãe se preparou.

Dei marcha à ré, acelerando pela rua. O portão da garagem era, provavelmente, o ponto mais fraco. Era um portão industrial, reforçado por dentro, mas ainda assim era mais fraco que as paredes. Eu precisaria bater nele com muita força. Mirei no retângulo fraco na porta e acelerei. A van foi para a frente, ganhando velocidade.

Louco Rogan apareceu entre a van e o portão da garagem.

Pisei com força nos freios, mas não havia tempo suficiente para parar. Eu iria bater nele. Eu o vi com absoluta clareza, seu corpo, de lado para mim, seu rosto admirável e seus olhos azuis. A van derrapou.

Ele ergue a mão.

A van bateu em um colchão de ar como se tivéssemos mergulhado de cabeça em um mel viscoso. Paramos suavemente pouco antes dele.

Louco Rogan estava de frente para o portão da garagem, que fez um forte estalo e caiu no chão. Uma fumaça preta e oleosa saía de dentro do galpão.

Desci da van e corri para dentro. A fumaça entrou e tomou conta do meu nariz e da minha garganta como areia fina. Meus olhos lacrimejavam. O forte cheiro acre me fez engasgar. Tossi e tropecei, tentando enxergar através da cortina escura.

Uma figura humana estava caída no chão. Ah, não.

Saí em disparada e caí de joelhos. Vovó Frida estava de barriga para baixo. Eu a virei, peguei seus braços e a puxei pelo chão. Louco Rogan surgiu do meio da fumaça, pegou minha avó no colo e foi para a saída.

A fumaça entrou na minha boca. Era como se alguém tivesse enchido minha garganta com cacos de vidro, estava me cortando. Minha cabeça girava. Eu cambaleava atrás de Rogan, tentando encontrar a saída. Repentinamente a fumaça acabou e consegui sentir o ar fresco. Meus pulmões pareciam estar pegando fogo. Curvei-me e tossi. Doía muito.

Louco Rogan colocou minha avó no chão. Minha mãe ajoelhou-se ao seu lado. Não podíamos perdê-la. Não ainda.

– Vó – eu disse, sem força.

– Ela tem pulso. Mas está fraco. – Minha mãe abriu a boca de minha avó e começou o procedimento de reanimação cardiopulmonar.

Por favor, vovó, não morra. Por favor, não morra.

Minha mãe começou a massagem cardíaca. Lágrimas escorriam pelo meu rosto. Vovó Frida sempre esteve presente para nós. Ela sempre foi... O que faríamos...

Um caminhão dos bombeiros apareceu na rua.

Minha avó tossiu. Uma palavra, fraca, rangendo como uma porta velha.

– Penelope.

Oh, Deus. Obrigada. O alívio me tomou como um banho frio. Suspirei.

– Mãe? – minha mãe perguntou.

– Saia de cima de mim.

Meu estômago se revirou. Eu me encolhi para tentar me conter. Consegui ver os sapatos de Louco Rogan. Louco Rogan. O homem que disse que eu me arrependeria se o deixasse falando sozinho e que, convenientemente, apareceu para ser o herói. Medo e náusea fervilhavam junto da raiva dentro de mim. Quase perdemos vovó Frida. Alguém entrou em nossa casa. Alguém passou correntes nas portas, mantendo-as fechadas e, então, alguém tentou matá-la. Alguém havia feito isso, e eu faria essa pessoa pagar. A fúria me dominou. Olhei nos olhos de Rogan. Algo se quebrou dentro de mim, como uma corrente que se rompe. Minha mágica disparou, selvagem e irada, como um trovão invisível e ficou sobre Louco Rogan.

Ele ficou tenso, dentes cerrados. Eu o sentia lutando contra mim, mas minha raiva estava fortalecendo muito meus poderes mágicos. Eu tinha perguntas. Ele precisaria respondê-las, droga.

Falei e ouvi minha própria voz, não parecia humana, estava terrível.

– Você mandou alguém ferir a minha avó?

Sua vontade lutava contra a minha, um aço duro e inflexível. Mas eu estava muito irritada. Ele se recusava a se entregar. Então, o prendi no lugar e pressionei.

Ele destravou as mandíbulas. A resposta foi um grunhido:

– Não.

Verdade.

Eu o forcei a responder. Não tinha ideia de como fiz aquilo, mas faria um pouco mais.

– Mandou alguém iniciar esse incêndio?

– Não.

Verdade.

– Você mesmo foi responsável por atear fogo à minha casa?

– Não.

Verdade.

Minhas amarras estavam se soltando. Ele era forte demais. Era como tentar dar um nó em uma ferrovia.

– Sabe quem fez isso?

– Não.

Verdade.

Eu o soltei. Ele se moveu. Seus dedos fortes seguraram meus pulsos, fazendo com que eu sentisse um arrepio elétrico e me assustasse. Seu rosto era assustador. Sua voz continha uma agressão silenciosa.

– Não faça isso de novo.

Eu deveria ter ficado assustada, mas minha avó quase tinha morrido e eu estava muito furiosa e cansada para me importar.

– Não gosta quando você está do outro lado, não é? Me solta!

Ele abriu as mãos.

No momento, só havia duas pessoas na minha vida que poderiam ter provocado aquele incêndio, e eu tinha acabado de eliminar um dos suspeitos. A gente se importa com pais e irmãs quando tem cinco anos. Eles estão te manipulando e você está deixando. Não. Adam não poderia ser tão estúpido assim, poderia? Aquele imbecil teria mesmo tentado matar minha família?

Os paramédicos colocaram minha avó na ambulância. Deve ter sido enquanto eu interrogava Louco Rogan. Os socorristas tentaram manter a máscara de oxigênio no rosto dela, mas vovó não queria. Minha mãe se aproximou de mim.

– A última coisa de que ela se lembra é de pegar uma chave de rodas. Tem sangue na parte de trás de sua cabeça.

– Alguém bateu nela. – E eu ia fazê-lo pagar por isso.

– É o que parece. Vou acompanhá-la até o hospital.

– Eu fico bem aqui – eu disse. – Pode ir.

Ela olhou feio para Louco Rogan e subiu na ambulância.

Um bombeiro saiu da oficina. A fumaça já havia se dissipado quase totalmente. O bombeiro chamou para que entrássemos.

– Parece que alguém deixou um cigarro perto de um tanque de gasolina. É preciso tomar mais cuidado.

– Obrigada, vamos tomar. – Virei as costas para esconder minha expressão. Infelizmente isso me deixou frente a frente com Louco Rogan. Uma pergunta silenciosa ficou no ar enquanto o bombeiro se afastava. – Minha avó não fuma. E toda a gasolina fica em tanques de metal. Todas as munições ficam em outro tanque. Antes de eu sair para almoçar, não havia correntes nas portas do galpão.

Uma SUV parou e dois homens vestindo calças e camisas polo pretas desceram. Um deles estava na casa dos quarenta anos, tinha a pele morena e os cabelos curtos com poucos fios grisalhos. Trazia uma grande mala preta. O outro homem parecia ser latino e tinha aproximadamente dez anos a menos. Eles se moviam como soldados. Eu já tinha convivido com muitos deles para reconhecer aquele andar, sem pressa, mas com a eficiência de quem tem um objetivo definido e precisa chegar até ele. Eles pararam perto de nós.

– Estão comigo – Louco Rogan disse. – São especialistas em incêndios. Se permitir, vão examinar o galpão.

Concordei. Eu ainda não confiava nele, mas não havia relação entre ele e o incêndio.

– Podem entrar – ele disse.

Os dois homens entraram no galpão.

Repentinamente me senti muito cansada. Meus olhos queimavam. Minha garganta ainda doía.

Louco Rogan ergueu a mão. Uma garrafa de água surgiu ali e ele a entregou para mim.

– Lave sua boca e seus olhos. Não engula.

Abri a garrafa, dei um gole, bochechei a água e depois cuspi. A sensação de arranhão diminuiu.

O homem mais jovem reapareceu na porta e nos chamou. Fomos em sua direção.

– Obrigada por ter salvo minha avó – eu disse.

– Você não teria utilidade para mim se tivesse de enterrar parentes em vez de procurar por Pierce. Fiz isso por um motivo completamente egoísta.

Mentira.

Entramos no galpão. O homem mais velho estava ajoelhado ao lado do tanque derretido de gasolina. A fuligem cobria o piso de concreto. A mala estava aberta bem na frente dele. Dentro, pequenos frascos e tubos de ensaio repousavam sobre uma camada protetora de espuma.

Louco Rogan observou o cenário cheio de veículos e ergueu a sobrancelha.

– Aquilo é um tanque?

– Tecnicamente é uma arma sobre rodas. Artilharia móvel de campo. Ali no canto é um tanque. O nome dele é Romeo.

Louco Rogan balançou a cabeça em sinal de descrença.

Chegamos até o homem mais velho, e ele ergueu um tubo de ensaio para que eu pudesse ver e depois pegou uma ferramenta de arame e um pouco de fuligem do chão. Ele colocou a ferramenta dentro do tubo e chacoalhou. Um pedaço pequeno de fuligem caiu no vidro. O homem adicionou algumas gotas de uma solução clara de uma garrafa plástica. A fuligem ficou azul e lentamente mudou de cor até ficar em um tom roxo-claro.

– Usaram um reforçador de explosão – o homem disse. – É um composto militar que queima lentamente e produz fumaça. Misturaram uns quatro galões do produto com gasolina e acenderam. A senhora que está na ambulância, onde ela estava quando a encontraram?

– No chão, de barriga para baixo – falei.

– Ela teve sorte – o mais jovem disse. – O chão era o local mais seguro, e o pé-direito alto também ajudou. Esse produto é feito para acabar com as pessoas de um edifício sem causar danos estruturais. Se ficar muito tempo em contato, você morre.

– Quem quer que tenha feito isso, sabia o que estava fazendo – completou o homem mais velho. – Esse reforçador de explosão é caro e difícil de se conseguir sem autorização oficial. A maior parte dos técnicos civis de incêndios não faz o teste para esse tipo de substância. E ele se dissipa rapidamente. Uma mistura como a que foi feita aqui faz o incidente parecer apenas um incêndio comum ocasionado pela gasolina. E mais um detalhe. Falei com os bombeiros. Disseram que um cigarro foi a origem do fogo. Trabalho com isso há um bom tempo e posso dizer, pode ser que tivesse um cigarro aceso aqui, mas essa não foi a causa inicial do fogo. O recipiente derreteu a partir de cima e de trás. Alguém liberou uma grande quantidade de calor na parte traseira do tanque. Talvez usando um maçarico.

Ou a mão de Adam Pierce.

– Obrigada – eu disse.

Os dois homens se levantaram e saíram.

Louco Rogan olhava para mim, sua expressão neutra, aguardando.

– Obrigada – repeti. – Sou muito grata pela ajuda, mas gostaria que saísse agora.

Ele se virou e saiu.

Fui até o canto da oficina e abri o armário onde havia um antigo computador me aguardando. Bern tinha colocado a casa toda em rede já havia muito tempo. Cliquei na seta. Uma tela de iniciação apareceu e inseri minha senha. A imagem da tela de segurança surgiu. Cliquei na câmera dos fundos da casa e voltei uma hora. Vovó Frida arrumando as coisas na oficina... Passei mais dez minutos. E mais dez...

Uma figura escura e embaçada apareceu no corredor e a imagem ficou preta.

Verifiquei a câmera de fora. Também estava preta, sem nenhuma captura. Voltei para a imagem da silhueta. Podia ser um homem ou uma mulher. Não dava para saber.

Fui até a porta. A câmera de segurança que ficava a uns quatro metros do chão tinha sumido. Em seu lugar, uma massa derretida de metal e plástico. A câmera estava muito alta para as chamas do incêndio e, se o fogo tivesse sido capaz disso, minha avó estaria morta. Não. Aquilo tinha sido feito por um pirocinético preciso. Apenas um pirocinético tinha entrado em contato comigo na semana passada. Adam Pierce havia atacado minha família.

Olhei em volta pelo galpão, para a marca do fogo no chão, para o tanque derretido e imaginei minha avó deitada ali, no concreto, morrendo lentamente em seu local preferido. Qualquer que fosse a força que estava me segurando, ela fraquejou. Me apoiei no veículo mais próximo e comecei a chorar.


Quando Bern foi buscar minha mãe e minha avó no hospital, eu já tinha limpado a garagem, feito o jantar e gasto horas refletindo sobre o fato de que minhas ações quase tinham feito minha avó morrer. Repassei a conversa com Adam mentalmente uma meia dúzia de vezes. A câmera derretida estava longe de ser uma evidência clara, mas meus instintos diziam que tinha sido ele. E meus instintos quase nunca erravam.

Tentei ligar para o número de Adam, mas ele não estava mais funcionando. Ele devia ter usado um telefone pré-pago e o jogado fora depois.

Se eu não tivesse pegado o trabalho... Guardei esse pensamento com cautela e o usei como alimento para a fogueira de raiva que queimava no meu interior. A culpa não ajudaria em nada naquele momento, mas a raiva me dava toda a determinação de que eu precisava. Eu descobriria se ele tivesse feito aquilo, mesmo se significasse virar a cidade de cabeça para baixo. E, se tivesse sido ele, teria muito a pagar. Eu podia não ter magia para um combate, mas conseguir derrotá-lo seria minha missão de vida. Ninguém feria minha família e saía impune.

Às duas da tarde, as crianças chegaram em casa. Duas horas inteiras antes do horário de costume. Uma amiga de Catalina e sua mãe passaram em frente à nossa casa, a caminho de uma consulta médica, e viram o caminhão dos bombeiros. A amiga mandou uma mensagem de texto para Catalina, que viu a mensagem logo depois da aula e escreveu para minha mãe. Ela contou que a vovó estava no hospital mas disse que tudo estava bem. Catalina ligou para Bern, pegou a irmã e o primo, e voltaram para casa o mais rápido que puderam, porque era assim que nossa família funcionava.

Eu lhes servi um almoço tardio e expliquei toda a situação. Foram quinze minutos até se acalmarem e outros quinze até convencê-los de que nada daquilo deveria ser postado no Facebook, no Instagram ou no Herald.

Já estávamos terminando de comer quando vovó Frida passou pela porta, parecendo querer socar alguém. Minha mãe a seguia, mancando. Aquele devia ter sido um dia difícil para sua perna.

– Queriam que ela passasse a noite lá, mas ela não aceitou – minha mãe disse.

– Vovó! – Arabella balançou os braços. – Por que a senhora não ficou no hospital?

– Tenho mais o que fazer – vovó Frida disse, por entre os dentes.

– Como o quê? – Lina a interrompeu.

– Catalina, não me provoque agora. – Suas sobrancelhas se uniram. – Vou precisar de um maçarico e também preciso consertar as paredes. Depois, vou instalar um posto de observação para sua mãe para que ela possa atirar no próximo filho da puta que entrar aqui.

Minha mãe fixou os olhos em mim.

– O que os bombeiros disseram?

– Disseram que a vovó deve ter fumado perto do tanque de gasolina. – Ela se virou para mim. Se um olhar pudesse matar, estaríamos todos mortos. – Mas os especialistas em incêndio chamados por Louco Rogan disseram que alguém misturou um composto militar com a gasolina e aplicou calor no tanque.

– Louco Rogan? – Bern perguntou.

Na mesa, Leon repentinamente voltou à vida e largou seu telefone.

– Louco Rogan?

– Louco Rogan não tem nada a ver com o incêndio – eu disse.

– E como você sabe? – Leon perguntou.

– Eu sei – respondi. – Perguntei para ele e também monitorei os especialistas dele. Ninguém mentiu.

– Louco Rogan esteve aqui? – Leon apontou para a mesa. – Aqui? E ninguém me contou?

– Mil perdões, Vossa Majestade – disse Arabella. – Todos estavam muito ocupados tentando salvar a vovó.

Leon a ignorou.

– Ele fez alguma coisa enquanto esteve aqui?

– Cortou a porta da garagem – respondi.

Leon saltou da cadeira como se tivesse molas debaixo da bunda.

– Sentado – minha mãe ordenou.

Ele voltou para a cadeira. Aparentemente meu primo caçula era um fã de Louco Rogan.

– Você tem certeza de que isso foi feito por Adam Pierce? – perguntou minha mãe.

– Tenho certeza, sim – respondi. – Vou ter certeza absoluta quando puder perguntar a ele pessoalmente.

Minha mãe colocou uma pequena caixa sobre a mesa. Dentro, havia dez pílulas laranja.

– Então encontre-o e pergunte.

– Não tem nada que eu queira mais. – Peguei a caixinha de pílulas da mesa. Tudo indicava que eu iria para a parte perigosa da cidade naquela noite. Acabava de passar das três da tarde, ainda tinha muito tempo antes de escurecer. – Acho que vou precisar de reforços. Do tipo que você não vai gostar.

– Faça o que precisa ser feito – minha mãe disse.

– É melhor você pegar Pierce do que nós – sugeriu a vovó Frida. – Porque se ele aparecer por aqui, não estaremos para brincadeira.

– Quando terminarmos, vamos colocar o que sobrar dele em um saco de supermercado e você vai poder devolvê-lo para a família – minha mãe prometeu.

– E, Nevada? Se você estiver pensando em se punir pelo que aconteceu, pode esquecer.

– Você está fazendo o seu trabalho – minha avó disse. – Não causou nada do que aconteceu. Eles começaram, seja lá quem eles forem. E vão se arrepender, porque vamos acabar com eles.

– Obrigada.

Aquilo não eliminou a culpa que eu sentia, mas, no momento, ela não era tão importante quanto localizar Adam e descobrir se ele era ou não o responsável.

Saí da sala. Precisava pegar minha Ruger. Atrás de mim, minha mãe disse:

– Vamos conversar sobre segurança. Ninguém vai a lugar nenhum sozinho...

Fui até o armário, destranquei-o e peguei minha P90. As pílulas eram para Besouro. Ainda era meio da tarde, mas eu precisaria de reforços para me encontrar com ele mesmo à luz do dia. Besouro morava em Jersey Village, ou, como era mais conhecido, a Cova. Eu poderia chamar um dos nossos colaboradores externos, não fosse o fato de, atualmente, eles fugirem de nós como se estivéssemos pegando fogo. Além disso, me custaria um braço e uma perna. Ir para a Cova era ruim para a saúde.

Separei as pílulas, colocando sete em uma sacola plástica e três em um frasco que levaria comigo. Talvez eu precisasse encontrá-lo mais de uma vez. Três seriam suficientes para a primeira visita.

Havia uma pessoa que poderia me dar todo o reforço necessário e um pouco mais. Passei pelos contatos de meu telefone até chegar ao número de Louco Rogan. Isso era loucura, mas a situação havia mudado. Antes, Adam estava apenas conversando. Agora havia o risco de ele ter se tornado violento. Se tinha tentado matar minha avó queimada, nada o impediria de me incinerar no momento em que eu dissesse algo que o desagradasse. E se eu encontrasse Adam Pierce, eu não teria, de forma alguma, capacidade de contê-lo.

Hesitei com o dedo sobre o número.

Era uma má ideia. Louco Rogan era violento, impiedoso e cruel. Todas as coisas que eu costumava evitar no meu trabalho. Eu sentia que ele não tinha freios, e isso me assustava. Se ele saísse dos trilhos e começasse a matar pessoas, haveria muito pouco que eu poderia fazer. E eu não queria ser responsável por nenhuma morte. Assim como não queria estar ali quando a poeira de toda a sua violência baixasse e os policiais viessem fazer perguntas. Ele tinha advogados caros. Eu não.

A forma como meu corpo ficava alerta quando ele estava por perto também me assustava. Ele me excitava apenas de olhar para mim. Transar com ele seria uma experiência que eu nunca esqueceria, e uma parte insana de mim queria tal experiência. Queria vê-lo nu. Queria ter toda aquela assoladora intensidade masculina focada em mim. Eu nunca tinha tido esse tipo de reação com um homem.

Eu não podia confiar em Louco Rogan. Não apenas por ele ser algo como um sociopata, mas também por ele ser Superior e o cabeça de uma antiga Casa. Para ele, eu era apenas um peão. Se ele precisasse de um escudo contra balas em uma luta, me usaria sem hesitação. Eu tinha sido contratada, era o meio de chegar a um objetivo final, e seria preciso que eu traçasse algumas linhas claras para ele e para mim ou eu sairia dessa história acabada, se saísse. E se eu desse uma pista sequer de ser vulnerável, fosse pelo amor à minha família, pelo orgulho ou por meus desejos irracionais de descobrir como seria o toque de suas mãos em minha pele, ele usaria isso contra mim.

Sem mencionar que eu o tinha prendido e conseguido obter respostas com minha mágica. Considerando que eu continuava viva e sem ferimentos, ele tinha lidado com isso de forma estranhamente positiva. Isso era algo que eu precisaria pesquisar. Minha magia era rara e havia pouca informação a seu respeito, principalmente porque poucas pessoas com tais dons trabalhavam em cargos de destaque. Eu havia me dedicado muito para aprender o máximo possível, mas nunca encontrei nenhuma menção específica a tal dom. Aquilo tinha sido absolutamente surpreendente.

Olhei para o número de Louco Rogan. Havia algum outro jeito de fazer isso?

Se Adam me atacasse, qualquer pessoa que eu levasse comigo, mesmo se fossem dois reforços, também morreria. Eu morreria. Adam achou que poderia me usar; assim como Louco Rogan. A melhor maneira de lidar com eles era também usá-los. Eu precisava colocar os dois Superiores frente a frente e esperar discretamente no canto até a poeira baixar.

Respirei fundo e digitei os números. Ele atendeu no segundo toque.

– Alô?

Ouvir sua voz era como ser acariciada. Correntes, eu lembrava a mim mesma. Porão. Psicopata. Limites. Limites eram bons.

– Pensei na sua oferta.

– Estou morrendo de curiosidade.

Psicopata e gosta de fazer piada comigo. Ainda melhor.

– Não quero seu dinheiro. Não quero ser contratada por você. Mas gostaria de trabalhar em parceria. Quero que fique muito claro: eu não vou estar trabalhando para você. Eu trabalharia com você, em pé de igualdade, com um objetivo comum. E tenho condições.

– Estou ouvindo.

– Um: você não vai matar ninguém a não ser que façam uma tentativa clara de nos matar.

Houve uma longa pausa.

– Vou tentar.

– Dois: você se compromete a capturar e devolver Adam Pierce vivo para a Casa dele.

– Não posso prometer isso. Posso prometer fazer tudo ao meu alcance para mantê-lo vivo, dentro do razoável. Mas se aquele imbecil decidir pular de uma ponte, não vai ter muito o que eu possa fazer para salvá-lo.

Tecnicamente aquilo era verdade. Corpos humanos reagiam de forma estranha à perda de gravidade e à queda livre. Mesmo se Louco Rogan pegasse Adam com sua magia meio segundo depois de ele saltar, Adam morreria mesmo assim de hemorragia interna. Por isso levitadores tinham sua classificação específica e não ficavam no mesmo balaio de outros telecinéticos.

– Está bem. Prometa que vai fazer o que puder para me ajudar a devolvê-lo vivo para a família dele.

– Claro.

Essas promessas, provavelmente, não valiam absolutamente nada.

– Três: quero que proteja minha família enquanto estivermos em nossa missão. Preciso saber que estão protegidos.

– Claro. Essa é a base do nosso acordo. Quer que eu escale uma equipe para fazer a vigilância da sua casa?

– Quero. Eles precisam vir aqui e se apresentar para minha família ou correm o risco de, acidentalmente, serem baleados.

– Combinado. – Sua voz era clara. – Minha vez. Esta é uma parceria profissional, e espero que você a trate dessa maneira. Se tiver notícias de Adam, se ele ligar ou aparecer na sua casa, assim que terminar o encontro ou a conversa, quero ser informado. Não no dia seguinte, não quando for conveniente, mas assim que terminar. Você vai me passar todas as informações a respeito do caso, inclusive as cláusulas do seu contrato, o status de sua relação com Adam e qualquer coisa que venha a saber a respeito de Gavin Waller.

– Beleza.

– Você também não vai partir em nenhuma expedição sem discuti-la comigo. Não quero receber uma mensagem de texto dizendo: “Oi, estou indo atrás de Pierce”, e depois ver os policiais tirando você da baía de Buffalo na manhã seguinte.

– Estou comovida. – Não de verdade.

– Quero começar a investigação do início. Se você morrer, vai ser muito inconveniente. – Revirei os olhos. – Temos um acordo? – ele perguntou.

– Temos. Vou para Jersey Village procurar por Adam Pierce. Você quer me acompanhar?

– Pego você em dez minutos.

Desliguei o telefone. Então era assim que uma pessoa se sentia depois de fazer um pacto com o diabo. Tarde demais para arrependimentos. Suspirei e peguei um cartucho extra.

Uma Range Rover parou no estacionamento em exatos dez minutos. Era um veículo grande, cor de chumbo, lustroso, mas sólido. Ele tinha trocado o terno e os sapatos por jeans velhos, uma camiseta cinza e botas pesadas e escuras. O resultado era incrível. O terno o havia feito parecer menor, suavizando a dureza com um verniz de riqueza e civilização. Agora ele estava todo firme e forte. Parecia que precisava das ruínas de alguma floresta para explorar, ou algumas pessoas ruins em quem bater com uma cadeira. O problema: ele era o cara mau.

Sua magia estava guardada em si, um animal violento, com presas ferozes.

Eu precisaria entrar e me sentar ao seu lado, a apenas alguns centímetros de distância. Precisaria entrar em seu espaço pessoal. Eu não podia fazer isso. Não podia entrar naquele carro.

– Tenho mais uma condição – eu disse.

Ele apenas olhou para mim.

– Não leia meus pensamentos.

Ele não precisava saber o que se passava pela minha cabeça. Simplesmente não precisava.

– Sem problemas. – Ele sorriu.

Entrei e me sentei no banco do passageiro, colocando minha mochila à minha frente. Ok. Eu estava dentro do carro. Só precisava falar o mínimo possível e manter meus pensamentos para mim.

– Não consigo ler pensamentos – Louco Rogan disse. – Mas descobri que, na maioria das vezes, não preciso.

Aquilo não pareceu ameaçador. Não mesmo. Coloquei o cinto de segurança.

A Range Rover saiu pela rua lateral. O vidro da janela era muito grosso e escuro. Não era uma versão barata à prova de balas. Era um vidro à prova de balas de 6 centímetros e com uma camada de policarbonato por dentro para impedir o vidro de se estilhaçar. Era possível atirar com uma AK-47, a curta distância, que o vidro trincaria, mas continuaria tudo bem do lado de dentro. Esse tipo de vidro também pesava uma tonelada. Apertei o controle da janela. O vidro desceu, silencioso, e subiu novamente. Vovó Frida ficaria orgulhosa. Um controle normal de janelas não seria capaz de erguer o vidro novamente. Ele tinha controles customizados. O veículo era como uma armadura.

– Qual a classificação dessa blindagem?

– Munição pesada. É um veículo VR9.

Puta merda. O carro não era apenas capaz apenas de parar uma bala de revólver ou um tiro de rifle. Poderia aguentar um ataque com uma metralhadora. Toda essa blindagem significava muito peso extra, mas o carro deslizava como patins sobre o gelo, o que exigia suspensões reforçadas e amortecedores adaptados. Aquele veículo não tinha sido adaptado para ser blindado, ele tinha sido construído assim desde o início.

Para completar, tinha a mesma aparência que qualquer outra Range Rover de luxo na estrada. A maioria das pessoas não entendia que carros blindados não deviam ser apenas à prova de balas. Também precisavam ser discretos. Nenhum carro era completamente à prova de danos, nem mesmo um tanque, e a melhor estratégia para manter os ocupantes seguros, era, em primeiro lugar, não ser alvejado. Isso exigia que os carros fossem o mais parecido possível com suas versões não blindadas, de forma a poderem se mesclar com eles nas ruas. Sempre havia idiotas querendo blindagens aparentes e monstruosas que deixavam o carro parecendo que saiu de um filme pós-apocalíptico. Queriam se afirmar. Infelizmente, a afirmação dizia: “Ei, estou aqui, atire em mim”. Quem realmente precisava de proteção optava por blindagens discretas como esta, do tipo que custava um preço exorbitante e dizia muito sobre seus proprietários.

Louco Rogan não dava a mínima para o que os outros pensavam dele. Ele não precisava impressionar; queria o melhor e pagaria muito bem, desde que conseguisse o desejado. Por algum motivo, aquilo não fazia eu me sentir nem um pouco melhor.

– O que tem em Jersey Village? – ele perguntou.

– Besouro. Ele é um especialista em vigilância. Tenho algo que ele quer, e vou fazê-lo encontrar Adam Pierce para nós. Precisamos fazer isso agora, antes que Adam apareça na minha casa de novo, porque minha mãe ameaçou negociar com ele e depois mandar o que sobrar dele para a Casa em um saco plástico.

– Sua mãe parece confiante.

– Você sabe o que é um “cinquenta leve”? – perguntei.

– É um fuzil Barrett M82 para atiradores de elite.

– Minha mãe estava olhando para sua cabeça pela mira de um enquanto almoçávamos. Precisamos encontrar Adam Pierce antes de a minha mãe atirar nele, ou de a minha avó atropelá-lo com um tanque. Ou antes de ele incinerar minha casa com minha família dentro.

– Como combinamos, tenho uma equipe cuidando do galpão. Se ele aparecer em qualquer lugar próximo, vamos ficar sabendo. Agora, sua vez. Quero as informações agora – Louco Rogan disse. – Tudo o que tiver.

Comecei pelo momento em que a MII nos chamou, contei resumidamente que a MII nos contratou para achar Adam Pierce e passei pela minha investigação, ocultando os detalhes sem importância, como a hipoteca e os sonhos com ele seminu.

Voluntariado era para otários e ele não teria nenhuma informação minha a não ser que fosse absolutamente necessária.

Ele fez uma careta.

– Augustine finalmente cedeu.

– Você o conhece?

– Conheço. Fizemos faculdade juntos. Não sou a pessoa de que ele mais gosta.

– Por quê?

– Eu o vi sem magia. – Louco Rogan encolheu os ombros musculosos. – Augustine sempre teve senso de lealdade exagerado à Casa dele. Lutou contra isso. Eu lhe disse, na época, que se ele não tomasse cuidado, terminaria em um escritório, dançando conforme a música que sua família quisesse.

– Foi por isso que você foi para as Forças Armadas? Para fugir da sua família? – E por que eu perguntei isso?

– Fui porque me disseram que eu poderia matar sem ir para a prisão e ainda seria recompensado.

Verdade. Puta merda. Eu estava aprisionada em um carro com um maníaco homicida. Incrível.

– Você está com uma expressão estranha – ele disse.

– Apenas me dei conta de que eu não devia estar no carro com você. Na verdade, eu não deveria ter ligado; então, estou tentando, com muita força, voltar no tempo.

Ele riu. Estou divertindo o dragão. Oba.

– Você preferiria que eu tivesse mentido para você? Não que me importe, mas mesmo assim, não tem sentido nisso, tem?

Não respondi. Manter a boca fechada era uma excelente estratégia.

– Augustine sabe que você é uma Buscadora da Verdade?

Ele tinha descoberto. Eu não estava surpresa, não depois de tê-lo mantido preso e conseguido tirar as respostas dele.

– O que meus empregadores sabem ou não a meu respeito não é da sua conta. – Louco Rogan deu uma boa e genuína gargalhada.

– O que é tão engraçado?

– Augustine se orgulha de seus poderes de observação e de ser um ótimo juiz de personalidades. Ele se acha um Sherlock Holmes. Costumava fazer deduções brilhantes apenas prestando atenção no que as pessoas vestiam e em como agiam. Mas tem uma Buscadora da Verdade na equipe e não faz ideia. Ele quer empregar um há séculos. – Louco Rogan riu mais uma vez. – A ironia, ela é uma delícia.

Mantive a boca fechada. Se eu desse sorte, ele não me perguntaria mais nada.

– Sua capacidade é o terceiro talento mágico mais raro. Por que não viver disso? Você não deveria estar em um escritório com um espelho falso fazendo perguntas desconfortáveis?

– Isso não está nos termos do nosso acordo.

Ele me olhou com os olhos escuros.

– Você prefere falar a respeito do seu sonho?

– Não.

– Considerando que eu fiz parte dele, acho que mereço saber os detalhes. Eu estava sem roupas porque estávamos na cama? Eu estava tocando em você? – Ele me olhou novamente.

Sua voz poderia ter derretido as roupas sobre meu corpo.

– Você estava me tocando? – ele continuou.

Eu não deveria ter entrado naquele carro. Deveria ter vindo em outro veículo.

– O gato comeu sua língua, Nevada?

– Não, não estávamos na cama. Eu estava empurrando você de um abismo para te matar. – Apontei para a rodovia. – Pegue a próxima saída e fique na faixa da direita, por favor. Vamos precisar fazer uma curva à direita.

Ele riu de novo e pegou a saída.

A Range Rover parou suavemente no fim de uma saída da rodovia e viramos à direita na deserta Senate Avenue. De certa forma, era uma típica avenida de subúrbio, com duas pistas de cada lado, divididas por um canteiro de flores e árvores decorativas. Um gramado se estendia à esquerda. Da mesma forma, havia um gramado à direita, com uma entrada curva que permitia o acesso a uma construção de um andar feita de tijolos. Uma grande placa estava posicionada à direita, em um robusto poste de metal: Você está saindo do perímetro urbano de Houston.

Uma segunda placa, em amarelo brilhante, gritava conosco com suas grandes letras pretas: Área de inundação, faça o retorno.

– Vire à direita aqui. – Apontei para o caminho.

Louco Rogan virou. O caminho nos levou a uma cancela de metal sólido que bloqueava a chegada à construção de tijolos. Mais uma placa dizia: Estacionamento para a Área de Segurança Privada. $2 por hora, $12 por dia, valor máximo.

– Deixe que eu falo – eu disse.

– Por favor.

A janela se abriu e uma mulher olhou para mim. Ela era baixa e forte, tinha a pele negra e os cabelos pretos e brilhantes presos em seis tranças afro. Ela usava um uniforme tático e, na mesa ao seu lado, estava uma Sig Sauer.

– Oi, Thea. – Mostrei-lhe meu documento.

– Não vejo você faz um tempo – Thea disse. – Quem é o príncipe no banco do motorista?

– Um cliente.

– E agora você traz clientes para a Cova? – Thea ergueu a sobrancelha.

– Tem sempre uma primeira vez pra tudo.

Thea se inclinou para a frente um pouco, e olhou para Louco Rogan com seu olhar duro.

– Ok, cliente. Aviso básico de segurança: você saiu do perímetro urbano de Houston. Está entrando em um território controlado pela Casa Shaw. É uma área de segurança demarcada. Se ultrapassar a linha vermelha ao final do estacionamento, pode ser vítima de um crime violento, como roubo, assalto, estupro ou assassinato. A Casa Shaw patrulha as águas e, se virem você sendo vítima de algum desses crimes, vão oferecer ajuda, mas, ao cruzar a linha, você reconhece que a Casa Shaw tem condições limitadas para ajudá-lo. Essa conversa está sendo gravada. Você entendeu o alerta que recebeu?

– Entendi – respondeu Louco Rogan.

– Sua resposta foi gravada e será usada como prova caso resolva processar a Casa Shaw por qualquer dano que lhe ocorra na Cova. Entrar é fácil, sair é difícil. Bem-vindos ao fim do mundo de Houston. Divirtam-se, crianças.

Ela pegou um papel da máquina ao lado de sua mesa e entregou a Rogan. Ele pegou. A cancela se abriu e ele conduziu o veículo pelo estacionamento deserto. Foi até o fim e parou bem perto da linha vermelha de trinta centímetros traçada no piso. A cerca de cem metros havia uma lagoa. A água verde-escura estava plácida. À esquerda, o piso superior de uma construção de dois andares ficava fora do campo visual. Árvores que um dia foram decorativas estavam submersas até a metade, perto de postes de iluminação feitos de ferro, também submersos.

Jersey Village costumava ser uma daquelas pequenas cidades suburbanas que Houston tinha o hábito de engolir à medida que crescia. Uma tediosa comunidade-dormitório a nordeste do centro, Jersey Village lentamente cresceu e gerou um robusto minicentro, com diversas companhias de tecnologia alugando seus escritórios no local. O lugar continuaria a existir em sua feliz obscuridade, não fosse pelo infame prefeito Bruce. O prefeito Thomas Bruce, mais conhecido como Bubba Bruce, conseguiu, de alguma forma, eleger-se usando como plataforma o fato de ser um cara divertido para ir ao seu churrasco de fim de semana. No gabinete, Bubba Bruce tentou, desesperadamente, deixar sua marca em Houston. Queria de verdade construir um aeroporto, mas, como Houston já tinha um, Bubba decidiu construir um metrô. Informaram a ele que Houston havia sido construída sobre pântanos e que a umidade do solo seria um problema. Bubba Bruce insistiu. Ele planejava usar magia para “empurrar” a água do solo para fora das áreas de construção. Apesar da forte oposição ao projeto, feita por pessoas muito mais inteligentes do que ele, o prefeito seguiu em frente.

Doze anos atrás, um conjunto de magos abriu o chão para a primeira estação ali, em Jersey Village. Gastaram um mês ajustando os feitiços e, finalmente, ativaram a complexa magia. A água se afastou da região. Mas, sem a água, o peso da cidade provou ser muito grande, e assim Jersey Village, que ficava sobre um campo vazio de petróleo, rapidamente afundou. Uma hora depois, a água voltou enfurecida, somada à agua de lagoas próximas e veios subterrâneos. Em vinte e quatro horas, Jersey Village virou um pântano. Dois dias depois, o prefeito Bruce foi expulso do gabinete.

Durante o ano seguinte, a cidade tentou, sem sucesso, drenar a área. Os moradores usaram seus seguros para ir embora, enquanto criminosos, viciados em drogas e desabrigados se alojavam em prédios submersos. Por fim, o conselho municipal, cansado dos processos e das tentativas frustradas de drenar a água, desistiu e extirpou toda a área alagada da região metropolitana de Houston, pois sozinha a região tinha dobrado os índices criminais da cidade. Agora, empresas privadas patrulhavam a região. A tarefa de impedir a Cova da completa degradação, transformando-se em uma região sem lei, veio junto de alguns contratos municipais lucrativos. Então, com o passar dos anos, a área ia passando de Casa em Casa. Shaw cuidava da Cova. E faziam apenas o suficiente para manter o contrato.

Durante a última década, Jersey Village se tornou o ponto-final. Magos deformados, gângsteres, os mais procurados – todos iam para lá, escondendo-se da luz do dia nos escritórios abandonados. As Casas não se importavam, desde que eles não saíssem dali. Da última vez que fui à Cova, levei Aisha como reforço. Me custou mil dólares e para nós duas sairmos, foi difícil.

Verifiquei minha arma no coldre de ombro e desci do carro. Louco Rogan saiu do outro lado. Uma pequena doca levava até a Cova, desviando dos prédios. Comecei a caminhar pela ponte. Louco Rogan me acompanhava.

Os pântanos tinham sua própria beleza primitiva, um tipo de elegância eterna, com calmas águas escuras e ciprestes enormes apoiando as margens com seus troncos fortes. Jersey Village não tinha nada disso. Parecia apenas uma zona inundada de onde a água não tinha ido embora. Aqui e acolá a parte de cima de um carro enferrujado aparecia no meio da água suja. Alguns prédios menores tinham se rompido, deformados por conta da inundação, jogando todo o lixo para a superfície. Uma espuma verde-clara flutuava na superfície. A Cova era um lugar feio, cujo cheiro era ainda pior. Parecia que você tinha colocado a cabeça dentro de um aquário sujo.

– Lugar adorável – Louco Rogan disse.

– Espere até conhecer os nativos.

– Vamos ter uma festa de boas-vindas? – Um riso sarcástico surgiu em seus lábios.

– Provavelmente.

Ele parou e ergueu o braço, bloqueando minha passagem. A água na nossa frente se abriu. Uma mão em forma de garra apareceu, pegou na fina base da ponte, e uma mulher nua se ergueu sobre as pranchas de madeira. Sua pele era sarapintada de verde. Era possível tocar xilofone em suas costelas. Ela piscou para mim, os olhos vazios e sem brilho.

– Como vai a vida, Cherry? – perguntei.

– Como é que você acha que vai a merda da vida? Você me trouxe carne?

Procurei em minha mochila e peguei um recipiente plástico que tinha duas coxas de frango cruas com muita carne.

– Besouro continua vivo?

– Continua. Está no seu buraco velho, no prédio da Xadar. Fique longe da ponte principal; Pêssego e Montrel estão brigando por território.

Isso significava que Pêssego tinha acabado com o antigo patrão. Não era bom. Passei o recipiente para Cherry. Ela pegou a coxa de frango e a mordeu com seus dentes triangulares de crocodilo. Continuei andando. Louco Rogan me seguiu.

– Amiga sua?

– Eu a conheci há uns dois anos – falei. – Ela foi deformada por magia.

– Deu pra perceber.

A magia era uma coisa engraçada. Há cerca de um século e meio, quando o soro que trazia poderes mágicos foi desenvolvido, algumas pessoas o tomaram e ganharam poderes, enquanto outras se transformaram em monstros. Agora, gerações depois, todos ainda tínhamos o potencial de ficarmos deformados. Às vezes, quando as pessoas tentavam aumentar seu poder, a magia se manifestava de maneiras terríveis, e elas ficavam como Cherry: deformadas.

– O que aconteceu com ela? – perguntou ele.

– Eu não sei. O braço dela tem marcas de injeção, então acho que ela, em algum momento, foi viciada. Provavelmente vendeu o corpo para algum instituto ou Casa fazer teste de aumento de poder e não deu certo. Eu trago frango para ela em troca de informações.

– É um prato raro para ela? – ele perguntou.

– É.

– Então você não conseguiu um bom negócio. Ela não disse tudo o que podia para justificar o frango.

– Ela me contou que Pêssego matou Basta e tomou o lado sul. Montrel está com o lado norte e ele pode ser razoável, mas Pêssego é completamente maluco e não tem jeito de fugir dele, porque só existem poucas formas de sair daqui. O prédio da Xadar fica do lado sul.

– Você poderia ter tirado mais dela.

– O que está querendo dizer? – perguntei, virando para ele.

Louco Rogan se aproximou.

– Você trouxe frango porque sente pena dela.

– Sinto. Qual o problema?

– Não julgo – ele disse. – Você tem direito de sentir compaixão.

Ah, ótimo. Obrigada pela permissão.

– Você está fazendo aquilo de novo.

– Fazendo o quê?

– Dizendo o que devo fazer.

A ponte bifurcou-se e seguimos pela direita, fugindo da rota principal. Na frente, prédios comerciais cheios de água pareciam ilhas de concreto e tijolos. Os telhados brilhavam com postes metálicos suportando fios emaranhados. Acima do segundo andar, uma linha amarela marcava os edifícios, e palavras, também em amarelo, diziam: Sem eletricidade abaixo desta linha.

A magia de Louco Rogan passou por mim e senti uma necessidade de voltar.

– Como eu disse, não julgo. Se você tivesse chutado o rosto dela, em vez de dar o frango, eu precisaria saber. Se tivesse jogado o frango na água e feito ela ir atrás dele, eu também precisaria saber. Quanto mais informações eu tiver, melhor posso antecipar suas ações quando for preciso. Por exemplo, se um homem faminto te apontar uma arma e você estiver em posição de vantagem, vai deixá-lo ir por sentir pena dele. Esse é o tipo de pessoa que você é.

– E que tipo de pessoa você é?

Seu rosto era duro.

– O tipo que atira primeiro.

A ponte fez uma curva atrás dos prédios de escritórios. Passamos pela primeira construção gigante de concreto submersa. Um pouco à frente, a ponte acabava repentinamente.

– Droga.

– Vamos ter de pegar a ponte principal? – Louco Rogan perguntou.

Coloquei a mão dentro da jaqueta, tirei a arma do coldre e a coloquei no bolso. Louco Rogan me observava com uma pitada de satisfação no rosto. Viramos para a esquerda, seguindo nosso caminho pela frágil ponte até chegarmos à área aberta entre os prédios de escritórios. Ali o chão se erguia um pouco. Com o passar dos anos, os moradores da Cova foram jogando pilhas de cascalho, concreto e pedaços de tijolos até um retângulo estreito formar uma ilha. Dali saíam as pontes de madeira, indo para todas as direções. Bem na minha frente, homens e mulheres espiavam das janelas de prédios abandonados. À direita, um grupo de pessoas estava abaixado em torno de alguma coisa.

Pisei na ilha. O grupo se afastou e um homem alto se levantou. Era magro e pálido. Seus braços e pernas eram muito longos para o corpo. Cabelos sujos e avermelhados contornavam seu rosto, os fios emaranhados da cor exata de pêssegos maduros.

– Pêssego? – Louco Rogan murmurou ao meu lado.

– É.

– Algo que eu precise saber?

– Ele invoca enxames de moscas venenosas do pântano.

É sabido que pedófilos têm a aparência de pessoas normais, comuns. Pêssego parecia exatamente com essa imagem padrão de um pedófilo: seu rosto não era desagradável, mas havia algo profundamente inquietante em seu olhar. Algo doentio e assustador. A sensação era de óleo velho na frigideira.

Pêssego apontou para além de mim, na direção de Louco Rogan.

– Ei, você! Você! Que merda que você pensa que está fazendo na minha casa?

À esquerda de Pêssego, um homem alto empunhava uma Glock. Uma mulher de regata preta e jeans sujo de terra ergueu uma Chiappa Rhino. Aquilo não era nenhuma novidade. Exatamente o que precisávamos.

– Não estamos procurando encrenca – eu disse. – Só estamos de passagem.

– Encrenca? Eu sou a merda da encrenca, vadia! – Pêssego movimentou os braços. Seu rosto ficou vermelho. Ele estava se gabando. Se fosse um peru selvagem, estaria com todas as penas eriçadas. Ele usaria a violência em um minuto. Louco Rogan deve ter feito soar algum alarme na cabeça de Pêssego para que ele achasse que ganharia alguma coisa se o humilhasse. – Você acha que pode vir aqui com essa vadia?

Louco Rogan não respondeu.

– Você é mudo, idiota? É mudo? – Saliva voava dos lábios de Pêssego. Ele se aproximou.

Meu coração acelerou. Meus joelhos fraquejaram levemente por conta da descarga de adrenalina.

Pêssego parecia prestes a bater em Louco Rogan com o peito. Louco Rogan olhava para ele. Era um olhar frio, sem emoção. Pêssego decidiu que a distância de meio metro era suficiente.

– Agora você está na minha área! E quem manda aqui sou eu!

Suas mãos quase me tocavam enquanto ele gesticulava. Dei um passo para trás.

– Não se mova, porra! Atirem nela se ela se mexer. – O homem à esquerda destravou a Glock. Pêssego se aproximou. – Vou dizer uma coisa: se eu estivesse de bom humor, acabaria com você e o mandaria embora sem a vadia; mas estou de mau humor. Estou de mau humor, idiota. Vou matar sua vadia bem aqui e depois vou colocar você num buraco. Você vale dinheiro, cara, porque você parece valer dinheiro.

Eu poderia atirar em Pêssego de onde eu estava. Já tinha atirado de dentro do bolso antes. Mas teria de matá-lo, pois, se ele sobrevivesse, as moscas que ele convocaria me deixariam toda inflamada. Mirar de dentro do bolso era arriscado.

Louco Rogan abriu um grande e conciliador sorriso e ergueu as mãos.

– Ei, ei. Não precisa ficar assim. Olha, sem armas. Dá pra ver que quem manda é você. É você quem manda aqui.

– É isso mesmo!

– Você é um homem de negócios, certo? – Louco Rogan continuava sorrindo, sua expressão agradável e tranquila. – Vamos conversar, então, como dois homens de negócio. – Ele convidou Pêssego para vir até a ponte, recuando pelo caminho de onde tínhamos vindo. – Vamos nos acalmar um pouco e conversar, pode ser, cara?

– Vamos falar de dinheiro, idiota – Pêssego disse, acompanhando Louco Rogan pela ponte.

Louco Rogan chegou perto dele e disse:

– Eu entendo que tudo isso seja seu, que você esteja no comando e tudo mais...

Então, Louco Rogan pegou Pêssego pelo pescoço, tirou seus pés do chão e o jogou na água como se o homem alto não pesasse nada.

Muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo: eu peguei minha arma e assumi posição de tiro; o cartucho da Glock e da Chiappa se separaram das armas como se tivessem sido cortados por uma lâmina; e Pêssego caiu na água. Todos paramos de nos mover; eu com minha Ruger apontada para o grupo, e os dois atiradores olhando, sem expressão, para as armas desfiguradas.

O homem maior abriu a mão e deixou o que sobrou da Glock cair no chão.

– Eu vou matar você! – Pêssego gritou levantando-se, com água até a altura dos quadris.

Pontos verde-escuros começaram a girar ao seu redor. Um enxame de grandes moscas saiu voando de suas mãos, rodeando-o como um xale.

Louco Rogan estalou os dedos. A parede do edifício mais próximo partiu-se em um uma longa placa de seis metros, deslizou da construção e esmagou Pêssego.

Ah. Meu. Deus.

Louco Rogan virou-se para encarar o grupo de pessoas. Atrás dele, um grande estalo partiu o edifício, e os tijolos e o cimento caíram sobre o primeiro bloco. Ninguém gritou.

O último tijolo caiu sobre os demais. O silêncio era tanto que se podia ouvir uma gota caindo.

– Agora, já sabemos – Louco Rogan disse, com a voz fria. – Eu estou no comando. Estou no comando de vocês. Estou no comando de quem estiver perto de vocês. Estou no comando do chão em que vocês pisam. Quando eu partir, não me importa quem ficará no comando. Quando eu for embora, podem lutar e matar uns aos outros para definir quem manda nas coisas enquanto eu não estiver aqui. Mas vamos deixar uma coisa clara: quando eu estiver aqui, quando me virem, quem manda sou eu.

A mulher baixou o resto de sua arma desfigurada. O resto do pessoal de Pêssego permaneceu imóvel.

– Ficou alguma dúvida? – Louco Rogan perguntou.

Um homem baixo vestindo uma calça de caubói esfarrapada levantou a mão lentamente. A mulher de regata segurou a mão dele e a puxou para baixo.

– Então está certo. Vocês podem ir agora.

Foi o tempo de eu respirar três vezes e a ilha estava vazia.

Louco Rogan me perguntou:

– Onde está seu especialista?


– Você matou o Pêssego – eu disse ao pular o vão na ponte.

– Claro que eu o matei.

Abri minha boca e a fechei na sequência.

– Ok. Isso está te distraindo e preciso de você para que isso funcione. Qual parte do que aconteceu está te perturbando?

Abri a boca mais uma vez e a fechei novamente sem dizer uma palavra. Pêssego teria nos atacado, talvez nos matado, então, o que Louco Rogan fez era justificável. O que tinha me chocado foi a súbita brutalidade. Em um momento, Pêssego estava lá e, no outro, não estava mais. Não sobrou sinal dele. Foi esmagado e deixou de existir. Ele estava... morto.

– Deixe eu ajudar – ele disse. – Você foi ensinada a vida toda que matar outra pessoa era errado, e essa crença permanece mesmo diante de fatos como esse. Pêssego não apenas teria nos matado se déssemos chance, como, dessa forma, matei apenas uma pessoa em vez de matar uma dúzia de seus seguidores. Salvei diversas vidas, mas seu condicionamento diz que eu fiz uma coisa errada. E eu não fiz. Foi ele quem começou. Eu só terminei.

– Não é isso. Eu estava me preparando para atirar na cabeça dele.

Mas quando você atira em alguém ainda existe uma pequena chance de a pessoa sobreviver. Existe um corpo. O que ele fez foi tão completo e repentino que eu precisava de alguns momentos para conseguir absorver.

– Então, o que é?

– É que... – Eu buscava as palavras. – Ploft.

Louco Rogan me observava com um olhar confuso.

– Ploft?

– É.

– Considerei por um minuto empalar o cara num dos postes metálicos no topo das construções, mas achei que a imagem seria muito chocante para você. Isso teria sido preferível?

Minha mente formou a imagem de Pêssego pendurado pelo estômago em um poste.

– Não.

– Eu realmente gostaria de saber – ele disse com genuína curiosidade. – Da próxima vez que eu matar alguém, gostaria que fosse de um jeito que não te deixasse tão perturbada.

– Que tal não matar ninguém por um tempo?

– Não posso fazer essa promessa.

Papo-furado com o dragão. Como vai? Tem comido muitos aventureiros ultimamente? Claro, comi um hoje de manhã. Olha, ainda tenho o fêmur dele preso nos dentes. Está te incomodando?

À frente, o prédio da Xatar se erguia. Três pisos acima da água, seu antigo letreiro encardido e manchado pelas algas do pântano. O emaranhado de fios no telhado parecia uma teia de aranha preta. Em algum lugar ali dentro, Besouro estaria sentado no meio daquela teia, envolto em sua histérica loucura. Parei.

– Não mate o Besouro – eu disse. – Estou falando muito sério. – Louco Rogan sorriu. – É sério. Não o mate. Se você o matar, nosso acordo termina.

– Está bem – ele disse.

Voltei a andar.

– Talvez você devesse fazer uma lista de pessoas que eu não posso matar e outra com as formas como as pessoas podem morrer – disse ele.

– Você não é engraçado.

– Sou muito engraçado. Pergunte ao Pêssego.

Chegamos ao edifício e subimos até a grande janela do segundo piso. Um cheiro úmido, ruim, saía do carpete comercial. Caramujos escalavam as divisórias caídas. Um antigo pôster motivacional estava pendurado na parede. Mostrava um alpinista pendurado pelas mãos a um penhasco. A legenda dizia. Rompa os limites. O vidro estava quebrado.

– Não toque em nada – pedi. – Ele mantém o local todo cheio de armadilhas.

Segui por um caminho estreito entre as divisórias e parei em frente a uma câmera presa na quina das paredes e ergui o pequeno frasco com pílulas laranja.

Um interfone em algum lugar perto fez um som de estática e depois foi possível ouvir uma voz masculina.

– Fique aí. Estou mandando Napoleão.

– Você já matou alguém? – Louco Rogan me perguntou.

– Não. Eu vi um homem morrer uma vez. – Não devia ter dito isso.

– E como aconteceu?

Olhei para ele e ele parou. Louco Rogan estava olhando para mim, como se eu estivesse prestes a lhe dizer a coisa mais curiosa do mundo e ele precisasse estar preparado para absorver cada palavra. Até mesmo sua magia pairava ao redor, em ansiedade. Por alguns minutos, tive a completa atenção de Louco Rogan, e não foi assustador. Foi... lisonjeiro. Desde que eu lhe dissesse coisas, ele continuaria me olhando daquele jeito e, isso, em si, era incentivo suficiente para fazer a maioria das mulheres lhe dizer tudo o que ele quisesse saber. E se eu dissesse coisas, provavelmente ele as usaria contra mim de alguma maneira.

Ele continuava esperando. Ai, que inferno.

– Meu pai queria me mostrar as diferentes áreas de trabalho de um investigador particular, então, quando eu tinha dezesseis anos, fiz um estágio com um agente de reapropriação. Ele trabalhava com os dois filhos. Nossas primeiras atividades foram ótimas. Encontramos o carro, espiamos e desvendamos, foi como espiões em alguma operação secreta de filme. Eu estava animada. Eles me disseram como as pessoas tentavam tirar dinheiro dos bancos e, por isso, estávamos fazendo algo bom. – Meus lábios ficaram secos. A lembrança ainda me incomodava mesmo depois de quase uma década.

– E o que aconteceu? – ele perguntou, seus olhos azuis receptivos. Um homem não deveria ter o direito de ser tão atraente sem fazer esforço algum. – Estávamos tentando recuperar uma caminhonete em uma pequena casa do subúrbio quando uma mulher saiu de casa. Ela estava carregando uma criança e seus olhos tinham aquela expressão vazia. Ela disse: “Podem levar, eu não consigo colocar combustível no carro mesmo.” A expressão em seu rosto era terrível. Eu devia ter saído naquele momento. Devia ter ligado para o meu pai e pedido para ele ir me buscar. Mas eu estava tentando fazer o que era certo. Meu pai tinha conseguido o emprego para mim e eu faria o que precisasse, mesmo se não gostasse. Os rapazes apreenderam o veículo e, então, o homem saiu da casa com um rifle e começou a atirar em nós. Sem avisar. Nem conseguimos entrar no carro. Apenas nos abaixamos atrás dele. A mulher gritava, mas ele continuava atirando em nosso carro. Doug chamou a polícia. Eles chegaram rápido. O homem atirou na viatura e os policiais o mataram. Eu vi as balas o atingirem no peito e, depois, ele cair. Mais crianças saíram correndo de dentro da casa, e todos começaram a chorar e a gritar. Lembro de ver os policiais levando a mulher enquanto ela continuava dizendo que ele era um bom homem e não faria algo assim. Mais tarde descobri que ele tinha perdido o emprego quatro meses antes do ocorrido e que a casa tinha ido a leilão. Meu pai foi me buscar e eu nunca precisei voltar.” E por isso eu agradeci às estrelas da sorte todas as manhãs, por um mês. Sua vez. A primeira pessoa que você viu morrer.

– Eu tinha sete anos – ele disse, a voz íntima e baixa. – Estava praticando feitiços, e meu avô estava assistindo. Ele cochilou na cadeira, como costumava fazer. De repente, sua cabeça tombou, ele gemeu e caiu. Fui até ele, mas ele não estava respirando. Foi um aneurisma cerebral. Desci as escadas e disse para minha avó que o vovô tinha morrido. Ela me disse que a preguiça era a pior característica de uma pessoa, e que inventar desculpas para parar de estudar não era muito melhor. Então ela mandou Gerard, seu criado, me levar para o quarto de estudos e me trancar lá. Fiquei sentado no chão por duas horas olhando para o corpo do meu avô.

Meu Deus.

Um som veio do corredor. Um pequeno cachorro apareceu. Ele era forte, tinha orelhas triangulares enormes e um focinho afundado que demonstrava que, em algum momento em sua ancestralidade, estava um aventureiro buldogue francês. A origem do restante de seu DNA era um mistério. Ele era completamente preto, de pelagem grossa e cheia, e ele se movia como se fosse o dono do lugar.

– Oi, Napoleão – eu disse.

Napoleão me olhou com os solenes olhos escuros em sua graciosa cara de gárgula. Então ele deu meia-volta e começou a andar pelo corredor.

– Um cão guia – Louco Rogan disse.

– Sim. Tome cuidado. Besouro gosta de colocar linha de pesca por aí. Se tropeçar em uma, coisas ruins acontecem.

– Que tipo de coisas ruins? – ele perguntou.

– Do tipo que explode.

Seguimos Napoleão pelo labirinto de corredores até o terceiro andar. Uma pesada porta de ferro bloqueava a passagem. Peguei a arma de choque de dentro da mochila.

– Nada de mortes.

– Vou ter um comportamento exemplar – Louco Rogan me garantiu.

A porta se abriu e desvelou uma sala cheia de monitores. Eles brotavam das paredes e do teto em pequenos montes, como flores eletrônicas retangulares florescendo entre videiras de cabos. No meio daquela floresta digital, em um círculo de teclados quebrados que saíam da parede, um homem estava sentado numa cadeira giratória. Suas roupas, uma camiseta de mangas longas escura e suja, e uma calça velha que já tinha tido dias melhores, estavam penduradas em sua pequena estrutura. O cabelo escuro desgrenhado, mais jogado do que escovado, competia com as roupas para ver quem estava sem lavar havia mais tempo. O nariz e a boca pequenos combinavam com a mandíbula triangular que fazia seu rosto parecer muito grande na parte superior. Os olhos eram castanhos e carregavam certa intensidade maníaca. Suas mãos tremiam.

– Me dá. – Ele se levantou da cadeira. Tinha praticamente a minha altura e pesava, provavelmente, uns dez quilos a menos. – Me dá.

– Primeiro o trabalho. – Levantei a arma de choque.

Ele saltou no lugar.

– Eu preciso. Me dá.

– Primeiro o trabalho.

– Me dá! Me dá, me dá, me dá... – Ele se movia de maneira muito acelerada, tremendo fortemente. Suas palavras começaram a se fundir. – Dá logo pra mim, dá, me dá, preciso-preciso-preciso...

– Primeiro o trabalho.

– Merda! – Besouro deu meia-volta. – O quê?

– Adam Pierce. Encontre-o.

Ele ergueu o dedo.

– Para acalmar. Uma. Uma!

Passei o frasco para Louco Rogan, mantendo a arma de choque perto de Besouro. Ele já tinha me atacado uma vez.

– Por favor, dê uma pílula a ele.

Louco Rogan abriu o frasco. Uma pílula flutuou pelo ar. Uau, seu controle era impressionante.

A pílula chegou até Besouro. Ele a pegou do ar, tirou uma faca da bainha no cinto, colocou a pílula na mesa e cortou um terço dela, que colocou na boca. Besouro ficou congelado, em pé, as mãos relaxaram, como se ele fosse alçar voo. O tremor parou. Ele ficou profundamente imóvel.

Louco Rogan olhou para mim.

– Equzol – eu disse.

Equzol era uma droga militar para alcançar equilíbrio. Se você estivesse sonolento, ela o manteria acordado; se estivesse acelerado, ela o acalmava. Quando você a tomava, o mundo ficava mais claro. Você via tudo, ficava consciente de tudo, reagia rápido, mas nada o desequilibrava. Tinha sido criada para atiradores e motoristas de comboios. Eles tomavam para evitar a fadiga e, quando o efeito passava, dormiam por vinte horas seguidas. Era uma substância controlada, mas minha mãe ainda tinha conhecidos.

Besouro abriu os olhos. A estranha e intensa histeria ainda estava ali, mas havia cedido um pouco, enrolando-se para um descanso dentro de si.

– Estão em silêncio – ele disse suavemente e sorriu.

– Adam Pierce. – Apontei com a cabeça para o frasco.

Besouro sentou-se em sua cadeira e puxou as mangas da camiseta suja. Dúzias de pequenos pontos marcavam seus braços, cada um, uma pequena tatuagem mesclando-se aos demais na formação de um símbolo mágico. Suas mãos digitaram uma dúzia de teclas como se ele fosse um virtuoso pianista. O som tranquilo de música instrumental ecoou pelo espaço. O conteúdo nas telas passava muito rapidamente para se tentar acompanhar. As imagens piscavam. Ele estava vendo as câmeras de segurança das ruas. Eu já o tinha visto fazer isso antes, era um especialista.

A expressão facial de Louco Rogan tinha endurecido, agora estava determinada. Seus olhos se tornaram impiedosos.

– O que foi? – perguntei baixinho.

– Ele é um Inseto – ele disse entredentes.

– É.

– Há quanto tempo?

– Há quanto tempo ele é um?

– É.

– Três anos. Foi escalado para um enxame dois anos depois de entrar no serviço militar. E ele está fora da Força Aérea há um ano.

Louco Rogan olhou para Besouro.

– Ele deveria estar morto. A expectativa de vida deles depois de serem escalados é de dezoito meses.

– Besouro é especial.

Insetos eram especialistas em vigilância. Eram ligados por meio da mágica ao que eles mesmos descreviam como enxames. Os enxames não tinham manifestações físicas. Existiam, de certa forma, dentro da psique do inseto, de modo que a atenção do indivíduo se dividia entre centenas de tarefas independentes, como se fosse um rio dividido em diversos córregos. Eles processam informações a uma velocidade sobre-humana. A maioria era escalada durante o serviço militar e não sobrevivia a mais de dois anos depois da transição. Aqueles que se voluntariavam para o procedimento, costumavam estar em fase terminal de doenças ou tentados por um volumoso bônus pago para sua família. De alguma forma, Besouro sobreviveu. Devia ter sido sua câmara de privação ou, talvez, ele fosse mais apto à função do que os demais. Mas ele sobreviveu, saiu da Força Aérea e se escondeu ali, longe de todos.

Louco Rogan cerrou os dentes. Aquilo fazia sua mandíbula parecer ainda mais quadrada.

– Isso incomoda você? – perguntei.

– O que me incomoda é que façam isso com soldados. Tiram tudo o que podem deles e depois os descartam como se fossem lixo. As pessoas sabem que isso acontece e ninguém dá a mínima. São perdas aceitáveis – ele disse as palavras finais como se queimassem seus lábios.

Então alguma parte do dragão era humana, no final das contas.

Meu telefone tocou. Número bloqueado. Mais uma vez. Atendi.

– Sim?

– Olá, Neve – Adam Pierce ronronou no meu ouvido.

Lutei contra o impulso de gritar com ele.

– Oi, Adam. – Coloquei a ligação no viva-voz. – Decidiu se entregar?

Louco Rogan passou da raiva fria para o alerta predatório em um piscar de olhos.

– Depende. Ainda estamos com tesão? Quer dizer, apaixonados? Engraçado como continuo cometendo esse erro.

– Depende – eu disse. – Quer marcar de nos encontrarmos para conversar a respeito?

– Agora não – Adam respondeu. – Estou ocupado essa noite. Talvez depois.

– Achei ele. – Besouro pressionou uma tecla.

A tela piscou e mostrou a mesma imagem de diferentes ângulos. Adam Pierce estava na esquina de uma rua movimentada, segurando o telefone no ouvido. Jeans velhos cobriam suas longas pernas e seu traseiro. Ele vestia a jaqueta de couro, que era sua marca registrada, e botas pretas. Um edifício alto com dez pisos se erguia à sua frente com vidros escuros fumê com riscas de um amarelo vivo. À esquerda, outro prédio, uma torre alta e estreita com janelas de alumínio que refletiam os raios do sol da tarde.

– Estava me procurando? – Adam perguntou. – Que graça.

– Tem certeza de que não quer me encontrar?

– Tenho. Ligue a TV. Tenho algo a mostrar.

O telefone ficou mudo. Na tela, Adam jogou o celular na rua, tirou a jaqueta e a deixou cair no chão, ficando com o dorso nu. Seu rosto estava estampado em todos os noticiários ao menos uma vez por dia e ali estava ele, em plena luz do dia, tirando as roupas em público. Alguém iria reconhecê-lo e chamaria a polícia, com certeza. Merda.

Adam foi para o meio do cruzamento, ignorando o trânsito. Pneus cantaram quando um sedã preto desviou, tentando desesperadamente não atropelá-lo. Adam ergueu a cabeça. O ar à sua volta começou a tremer, a subir. Um pedaço de papel veio carregado pelo vento e queimou antes de cair, transformado em cinzas.

Um anel de fogo se acendeu no asfalto ao seu redor. As chamas laranja e brilhantes se espalhavam para fora, desenhando com algum tipo de combustível um complexo padrão no asfalto.

– O que é isso? – perguntei.

– Eu não sei – Louco Rogan grunhiu. – É um feitiço com fogo. Posso dizer que é um círculo de alto nível. Ele está prestes a reunir muito poder.

Adam inclinou-se para trás. Os músculos definidos se moviam sob sua pele. Ele abriu os braços, seus bíceps tremiam com o esforço. Seu corpo estava imóvel; os músculos tensos; todos os tendões, prontos. Um Jaguar verde estacionado na rua, a poucos metros, começou a derreter.

– Onde é isso? – Louco Rogan perguntou.

– Esquina da Sam Houston Drive com a Bear Street – Besouro disse.

A cerca de dez minutos de onde estávamos, saindo pela Sam Houston Parkway. Em torno de Adam, o trânsito parou. As pessoas desciam dos carros para olhar.

– Aproxime a imagem – Louco Rogan ordenou.

Besouro pressionou uma tecla. A câmera aproximou a imagem de Adam. Seus olhos não existiam mais. Em seu lugar, uma luz amarela infernal olhava para o mundo. Uma nova forma translúcida cobriu o corpo de Adam, brilhando aqui e ali com um forte e profundo laranja. Suas mãos cresceram e garras fantasmas surgiram, como se ele tivesse colocado um par de luvas demoníacas feitas de vidro. Espinhos curvos e translúcidos surgiram em sua coluna.

– Puta merda! – Louco Rogan bradou. – Eu sei o que é isso.

Bolas de fogo, quentes, brancas e brilhantes, formavam-se entre os dedos abertos de Adam. Eram salpicadas por partículas vermelhas e amarelas.

– É a Desova Infernal – Rogan retomou. – O feitiço máximo da Casa Pierce.

Os feitiços máximos eram resultados de gerações de pesquisa e experiências, e Adam Pierce estava prestes a usar um deles no meio da cidade para causar uma grande destruição. Naquele exato momento, a Casa Pierce estava tendo convulsões coletivas.

Adam abriu a boca e vomitou uma corrente de fogo contra o prédio escuro. Os vidros quebraram e começaram a cair. O fogo tomou a construção e parte das chamas subiram, derretendo os vidros em uma coluna de fogo.

As pessoas gritavam. Os alarmes soavam. A enorme coluna de fogo aumentava. Um Superior desenfreado e seu poder selvagem.

Um carro de bombeiros desceu a rua, desviou-se de Adam, e parou no estacionamento, erguendo a escada. Estranho.

– Está vendo isso? – perguntei.

– Estou – Rogan focava no carro dos bombeiros.

As portas se abriram e pessoas em roupas antichamas desceram e seguiram para o prédio de um jeito determinado.

– Por que evacuar esse prédio em vez do que ele está queimando? – pensei em voz alta. – Você pode aproximar a imagem?

Besouro clicou em algumas teclas simultaneamente. Três de suas câmeras focaram na equipe de bombeiros.

Dois carregavam mangueiras. Os outros três carregavam rifles. Não havia um motivo que explicasse o fato de bombeiros carregarem rifles. Quando as pessoas se deparavam com a possibilidade de ficarem presas num prédio em chamas, elas entravam em pânico. Por isso gastávamos tanto tempo treinando as crianças a nunca questionar o que um bombeiro dizia. Éramos condicionados, desde muito cedo, a não pensar e apenas obedecer cegamente o que um bombeiro dizia porque ele estava ali para nos salvar. Se um bombeiro mandava evacuar, a gente procurava a saída mais próxima.

Como se fosse uma deixa, as portas do prédio se abriram, e pessoas em roupas de trabalho começaram a correr para fora.

Louco Rogan ficou irritado.

Adam Pierce era uma distração. O alvo real estava no edifício e os “bombeiros” com rifles estavam indo atrás dele.

As telas ficaram pretas.

– Cague fogo e economize fósforos – Besouro resmungou. – Alguém desligou as câmeras da rua. Deixe eu tentar um outro ângulo... – As telas piscavam, mas continuavam pretas. – Nada das câmeras do outro lado do quarteirão também. – Besouro franziu o cenho. – Bando de desgraçados.

Louco Rogan pegou minha mão.

– Agora nós realmente precisamos ir. Vamos.

– Antes o Equzol! – Besouro gritou.

Eu joguei o frasco para ele, que o pegou no ar.

– Napoleão, saída!

O cachorro saiu de sua almofada e começou a andar pela sala. Eu o segui.

Louco Rogan deu um número de telefone para Besouro.

– Consiga as imagens internas do edifício e consigo o dobro dessas suas pílulas da felicidade.

Corremos pelos corredores, com cuidado para não cair em nenhuma armadilha. Louco Rogan pegou o celular.

– Preciso de uma lista das empresas no edifício na esquina da Sam Houston Drive com a Bear Street. Plantas-baixas, nome dos donos, me envie tudo.

– Você acha que Adam é só uma distração? – Quase bati numa pilha de cadeiras.

– Se for isso, ele é uma boa distração.

Saímos pela ponte de madeira. Algo brilhou em um edifício vazio, na nossa direção, refletindo o sol. Peguei o braço de Louco Rogan e o puxei para perto de mim. Um tiro.

– Onde? – Louco Rogan grunhiu.

– Cobertura, esquina esquerda.

Um pedaço de concreto do tamanho de uma bola de basquete saiu da pilha de entulho e entrou em uma janela escura. Um grito abafado ecoou pelo edifício.

– Ah!

Corremos pela ponte.

– Crown Tech – disse uma voz masculina tranquila ao telefone de Louco Rogan. – Emerald Drilling, Palomo Industries, Powell Piping Technologies, Bickard, Stang e Associados, e Reisen Information Services Corporation.

Louco Rogan desligou.

– Isso te diz alguma coisa? – perguntei.

– Não.

À frente, um padrão cobria a ponte, desenhado em giz e carvão. Não estava lá quando passamos no outro sentido. Louco Rogan franziu o cenho. As pranchas com o padrão estavam quebradas. Uma névoa verde e fedida surgiu no ar. Ele pulou a parte quebrada. Eu o segui.

– Acho que estão tentando me matar – Louco Rogan disse.

– Você vem na Cova e mexe com eles no território deles. É claro que estão tentando matar você. Acostume-se.

O chão tremeu sob nossos pés; corremos pela ilha, seguindo a ponte que nos levaria para fora dali.

Adiante, o sol refletiu um longo brilho horizontal na altura da garganta de Louco Rogan.

– Arame!

– Estou vendo.

Ele puxou uma faca de sua calça e cortou o fio. Houve um estalo e as duas extremidades se enrolaram. Seguimos pela ponte até o estacionamento e entramos na Range Rover. Louco Rogan saiu do estacionamento tão rapidamente que o carro quase virou. Segurei na porta por autopreservação.

– Se ele está usando a Desova Infernal, podemos não conseguir pegá-lo – disse ele.

– O quê?

– A Desova Infernal cria um espaço nulo.

– E isso significa?

– Que a quantidade de mágica que ele está usando é tão grande que os limites do círculo no qual se encontra não existem em nosso mundo físico.

– Como pode não existir? O que faz isso... – Um pequeno corpo cinza se jogou na frente do carro. – Esquilo!

Louco Rogan desviou para o lado, tentando evitar atingir o animal suicida. A Range Rover bateu na guia e deu um salto. Por um assustador segundo, quase voamos, sem peso. Meu coração foi parar na garganta. O pesado veículo aterrissou novamente no chão com um forte estrondo. O esquilo corria pela grama do outro lado.

Lembrei de respirar.

– Obrigada por não ter matado o esquilo.

– De nada, embora minha vontade, agora, seja de voltar lá e estrangulá-lo. – Louco Rogan pegou a saída para a rodovia. – De volta aos círculos mágicos. Os limites do círculo estão onde nossa realidade física se encontra com o reino mágico, o “lugar” onde buscamos enxames para insetos, por exemplo. É um pequeno buraco em nosso espaço. Nada pode penetrar o círculo enquanto o espaço nulo estiver ativado. Você pode jogar granadas em Pierce que elas vão voltar.

Veremos.

Enquanto o carro corria pela rodovia, uma conversa imaginária entre Adam e eu passava em minha cabeça. Oi, Adam. Você colocou fogo na minha casa? Tentou matar minha avó? Disseram que eu precisaria te levar de volta vivo. Ninguém disse nada a respeito do estado em que ele poderia se encontrar.

Talvez eu pudesse fazer de novo o que fiz com Louco Rogan: travar Adam no lugar e fazê-lo responder às minhas perguntas. Aposto que eu conseguiria. Só de pensar na minha avó eu já começava a tremer.

Louco Rogan pegou a saída e olhou no relógio. Quatro minutos. Tínhamos feito o percurso em tempo recorde.

À frente, a rua estava sem trânsito. No meio do cruzamento, Adam Pierce jogava chamas brancas e quentes no edifício. Duas carcaças do que antes eram carros derretiam a poucos metros dele.

Louco Rogan pisou forte nos freios e a Range Rover parou.

– Precisamos chegar mais perto, por favor. – Peguei minha arma.

– Muito quente. Veja.

O asfalto em volta de Adam tinha ficado escuro e estava mole. Ele estava derretendo a rua.

Desci do carro. O calor me tocou, bloqueando o caminho como um muro.

A porta do carro rangeu quando Louco Rogan desceu. Um poste de metal, com uma luminária, dobrou-se ao meio e foi voando como uma lança contra Adam Pierce. O poste bateu no círculo e ricocheteou, voltando em nossa direção pelo ar. Engoli em seco. Depois ele mudou de direção, batendo nos limites invisíveis do círculo mágico de Adam, quebrando-se contra ele.

Louco Rogan se irritou.

O poste caiu no chão.

– Espaço nulo – ele disse. – Vamos.

Eu podia ver Adam. Ele estava bem ali. Argh!

– Nevada! Estamos perdendo tempo.

Bem ali.

Mas os bombeiros e Adam estavam trabalhando juntos. Se pegássemos o que os bombeiros estavam buscando, Adam viria até nós.

Demos meia-volta e entramos no carro. Louco Rogan fez uma curva acentuada à esquerda, contornando os edifícios, indo em direção à torre prateada. Ele seguiu até a frente e estacionou o carro, então, descemos. Assim que pisei no caminho que levava até a porta, uma dor de cabeça cega espremeu meu cérebro como uma garra, cada vez mais forte. Dei mais um passo nos degraus. A porta oscilava à minha frente, distorcida. A dor raspava o interior do meu crânio. Eu tinha a absurda sensação de que meu cérebro estava inchado como um balão prestes a estourar.

– Eles têm um mago bloqueando a porta. – Louco Rogan voltou e foi para a direita, olhando para seu telefone.

Eu o segui. Assim que saímos do caminho, a dor de cabeça passou. Aquele era um poder bom de se ter. Se eu o tivesse, não precisaria fazer escadas retráteis para chegar ao meu quarto.

Ao longe, as sirenes soavam. Os socorristas estavam a caminho, o que significava que os falsos bombeiros no edifício teriam de acelerar o que quer que estivessem fazendo para poderem sair antes de toda a tropa de Houston chegar ao local. Precisávamos conseguir entrar. E precisávamos imediatamente.

Como os bombeiros deixaram alguém cuidando da entrada principal, era altamente provável que estivessem no primeiro piso. A equipe era pequena. Se o objetivo estivesse em outro andar, não colocariam alguém na entrada principal; teriam todos ido para o tal andar. Mas deixaram um guarda, então, era provável que todos estivessem ali. E eles estavam armados, o que significava, provavelmente, que defenderiam também as entradas laterais. Isso nos deixava com as janelas, mas o primeiro piso do edifício era sólido como rocha e as janelas mais baixas estavam a dois metros e meio do chão.

– Eles esperam que as pessoas tentem as entradas laterais – gritei.

– Por isso não vamos utilizá-las. – Louco Rogan me mostrou a planta-baixa em seu celular. – Existem cinco caminhos para chegar ao saguão: a entrada principal, duas entradas laterais, o elevador e uma escada interna.

– Perfeito. – Eles haviam evacuado o prédio, por isso não esperariam que chegássemos pela escada interna. – Então agora só precisamos entrar no prédio em si.

Louco Rogan apontou para duas caçambas industriais verdes. Elas deslizaram pelo chão na nossa direção. A primeira bateu na parede. Louco Rogan fez força. A segunda se ergueu no ar e parou sobre a primeira, com uma parte suspensa. Juntas, elas eram altas o suficiente para alcançarmos as janelas do segundo andar.

Subi na primeira caçamba. Sacos de lixo a enchiam quase até a boca. Quando pisei, afundei até a altura do joelho. O saco de cima estourou e uma tonelada de lasanha estragada espirrou nas minhas calças. O fedor do molho de macarrão azedo me cobriu por inteiro. Eca. De todas as caçambas de lixo daquele prédio gigante eu tinha que pisar justo na da praça de alimentação? Droga.

Bom, definitivamente eles sentiriam o cheiro quando eu me aproximasse.

Fui escalando os sacos para conseguir chegar até a segunda caçamba. Subi, peguei minha arma e bati com a coronha no vidro. Ele se quebrou. Empurrei os estilhaços e entrei.

Uma sala de conferência: uma mesa comprida, cadeiras e uma televisão presa na parede. Louco Rogan entrou logo depois de mim, pegou o celular e me mostrou. Uma mensagem de texto de um número bloqueado, com o link de um vídeo. Ele clicou no link. Uma imagem granulada ocupou a tela, mostrando o saguão de um prédio, com um piso polido cinzento e duas fileiras de colunas largas. No alto da imagem, a porta de vidro da entrada principal que deixava o sol entrar e bater no chão. Um homem com uniforme dos bombeiros estava apoiado na parede perto da porta, com um rifle nas mãos. Abaixo dele, à direita, outro homem armado se apoiava em uma das colunas. Um pouco mais para baixo, à esquerda, logo depois dos elevadores, três pessoas estavam paradas perto da parede. Uma delas com as mãos contra o mármore, outra balançando um machado, batendo na parede e, a terceira, dando cobertura com o rifle. O vídeo parou, apenas cinco segundos. Besouro tinha conseguido entrar.

Fosse lá o que eles quisessem, estava na parede. O homem com a mão no mármore certamente era um farejador. Os farejadores tinham alta sensibilidade à magia e podiam encontrar objetos mágicos mesmo através de pedras.

– A escada nos levará até aqui. – Louco Rogan apontou para o canto inferior esquerdo da tela.

Teríamos plena visão dos três homens armados.

– Você é à prova de balas?

– Não, mas a porta de metal que bloqueia a escada provavelmente é. Você está com sua Ruger aí?

Peguei a arma do coldre.

– Vou segurar a porta como um escudo, mas você vai precisar atirar.

– Por que você não pode simplesmente fatiá-los, como fez com os hashis?

– Porque minha magia telecinética não funciona em coisas vivas. Posso jogar algo de metal com velocidade suficiente para fatiar um oponente. Posso lançar um painel contra ele, porque a madeira cortada já está morta. Mas não posso simplesmente arremessar um corpo.

Ah.

– Então, o melhor jeito de lutar contra você é se despir e atacar?

Seus olhos brilharam com uma luz perversa.

– Sim. Você deveria tentar isso para ver o que acontece. – Bom, eu mereci essa. – Eu poderia tentar desmontar as armas deles, mas considerando a distância, precisaria de muitos segundos para mirar e eles, provavelmente, atirariam em nós. Então, eu garanto o escudo, mas o resto é com você. Sou um atirador abaixo da média.

Recuei.

– Humildade? Não fazia ideia que você tinha tal característica.

– Não – ele disse. – Honestidade. Não sou muito bom com armas. Não costumo usá-las.

A pilha de entulho que havia soterrado Pêssego voltou à minha mente. Talvez ele nunca tivesse precisado de uma.

– Que bom que eu trouxe a minha, então.

– Nevada – Louco Rogan chamou.

O som de meu nome saindo de seus lábios deu curto-circuito no meu cérebro. Todos os meus pensamentos pararam. Droga. Eu precisava superara isso, e logo.

– Esses homens são altamente treinados – ele concluiu.

Claro que eram. Eles haviam se posicionado de modo a cobrir todas as entradas com, ao menos, dois campos cruzados de balas. Não importava por onde entrássemos, ao menos dois deles poderiam nos atingir por ângulos diferentes.

– Se entrarmos por aqui, vão atirar em nós. Não vão hesitar, atirarão por instinto. É a segunda natureza deles, um reflexo, como parar diante de um farol vermelho.

– Hum. – Que bom que ele estava ali para me explicar isso. Nunca perceberia sozinha.

– Vai precisar atirar neles pelas costas. Isso é um problema?

– Só tem um jeito de descobrir – respondi.

Ele abriu a porta. Um hall vazio se encontrava à nossa frente. Corremos passando pelos corredores e pelos elevadores. Parei e apertei o botão para descer. Uma distração nunca machucou ninguém.

A porta do elevador se abriu com o som de uma campainha.

– Boa ideia. – Louco Rogan entrou, apertou o botão para o lobby e saiu.

Corremos até o final do hall, onde havia uma grande placa escrito SAÍDA. Atrás de nós, as portas do elevador soaram a campainha e começaram a descer para o lobby. Com sorte, todos olhariam para o elevador, e não para a escada.

Descemos as escadas correndo. Meu sangue corria pelas veias, meu coração batia muito forte e rápido.

Se eu não atirasse neles, atirariam em mim. Eu nunca tinha matado ninguém antes.

As escadas terminaram em uma grande porta. À sua frente, um homem grisalho, com uniforme de segurança estava no chão, de barriga para baixo. Na parte de trás de sua cabeça havia um grande e úmido buraco vermelho. Não, eles não hesitaram em atirar. Nem um pouco. Haviam matado aquele homem. Provavelmente o pai de alguém, o avô de alguém... Naquela manhã ele tinha levantado, tomado café e ido trabalhar e, agora, estava no chão, frio e sozinho. E nunca mais se levantaria. Nunca mais falaria, nunca mais abraçaria alguém, nunca mais sorriria. Mataram o homem e o deixaram ali.

Eu precisava parar Adam Pierce. Não apenas porque perderia tudo se não o fizesse, não apenas porque ele havia tentado matar minha avó, mas porque, no momento, ele estava do lado de fora, cuspindo fogo sem se importar com quantas pessoas seriam feridas. A maneira mais fácil de parar Adam seria conseguir a coisa que ele estava buscando.

Eu estava fazendo a coisa certa.

Louco Rogan se aproximou da porta, os pés afastados na largura dos ombros, as mãos erguidas.

Eu não estava pronta. Eu não estava pronta...

– Mire no centro de massa – ele sussurrou.

Centro de massa uma ova.

– Pronta? – sussurrou.

Não. Não, eu não estava. Destravei a arma. A Ruger parecia muito pesada nas minhas mãos. Pesada e fria.

– Vai.

A porta foi para a frente, a quinze centímetros do chão, então ela girou, ficando na horizontal, como o tampo de uma mesa.

Três homens armados, um bem em frente, um à direita, perto do elevador, e um terceiro à esquerda, perto da coluna.

Um deles se afastou do elevador e veio em nossa direção. Mirei nele – parecia lento, impossivelmente lento –, e puxei o gatilho. A arma disparou. A bala bateu na porta do elevador. Ajustei a mira e disparei um segundo tiro. A cabeça do homem foi para trás. Virei para a esquerda e atirei no outro perto da coluna. O primeiro tiro o acertou no pescoço; o segundo, na parte inferior da cabeça, bem na boca.

O terceiro homem armado abriu fogo. A porta virou, novamente na vertical, como um escudo. As balas batiam contra ela.

Louco Rogan pegou minha mão e me puxou para uma coluna à nossa esquerda. Corri com ele, protegida pela porta, e pressionei as costas contra o mármore frio. A chuva de balas nos seguia.

A coisa toda devia ter demorado um segundo, talvez dois.

Eu tinha matado duas pessoas. Não pense nisso, não pense nisso...

Louco Rogan olhou para mim, boquiaberto, uma expressão de profundo choque no rosto. Eu teria dado risada se pudesse.

– Minha mãe foi atiradora de elite – expliquei. – Sei atirar bem.

Os tiros mudaram de direção. O atirador se aproximava de nós.

A porta se curvou em volta da coluna, nos protegendo.

– Me dê cobertura – Louco Rogan piscou para mim.

Inclinei-me para a esquerda e disparei contra o casal perto da parede, em rajadas curtas. Bum, bum, bum. Eles se agacharam atrás da coluna. A mulher farejadora pegou uma arma e devolveu os tiros. As balas se aproximavam pelo ar. Eu me escondi atrás da coluna, mirei a arma e atirei na direção de onde ela estava. Bum, bum, bum. Nada. Tirei o cartucho, peguei um novo no bolso e encaixei, destravando a arma. Mais dez disparos, era tudo o que eu tinha. Da próxima vez que fosse a qualquer lugar com Louco Rogan, traria uma daquelas bandoleiras que os astros dos filmes de ação usavam quando perseguiam terroristas para fora das florestas.

Louco Rogan se jogou para a esquerda.

Atirei novamente, a arma soltava as balas e fazia barulho. Bum, bum. Oito tiros.

Alguém gritou. Os tiros de rifle pararam, interrompidos pelo som de vidro se quebrando. Louco Rogan agachou-se atrás da coluna ao meu lado.

– Onde está a porta? – perguntei.

– Do lado de fora.

Inclinei-me e saí de trás da coluna. O homem puxou algo da parede. A mulher abriu os braços, ficando na clássica posição mágica. Ah, não, não mesmo. Atirei nela duas vezes, as balas giraram pelo ar velozmente. Uma densa cortina de fumaça se ergueu na frente dela, e as balas sumiram. Eu só tinha mais seis.

Havia uma entrada lateral bem atrás deles. Estavam prestes a escapar.

Balas cortaram a cortina de fumaça, muito grossa, acertando a parede atrás de mim. Eles também não conseguiam enxergar através da fumaça.

Louco Rogan correu para a entrada lateral.

À frente, o homem saiu da fumaça, com uma faca em uma das mãos. Louco Rogan foi diretamente em sua direção. Ele travou o braço direito do homem com o antebraço esquerdo e golpeou-lhe o nariz com a base de sua mão direita. O homem cambaleou. Louco Rogan deu-lhe um chute. Seu pé pegou a lateral do corpo do homem, bem acima do fígado. O bombeiro encolheu-se e caiu no chão.

Ok, lutar contra ele, nu ou não, era uma péssima ideia.

Uma bala passou por mim. Eu recuei. A mulher saltou da fumaça e veio para cima de mim. Sua arma apontada em minha direção, uma arma preta e impressionantemente grande. O mundo se resumia àquela arma. Peguei seu pulso e virei, colocando todo o meu peso no movimento, tentando tirar a arma dela. Ela me puxou em sua direção e me golpeou com a mão direita. Meu braço doía. Vi uma faca de relance. Apontei a arma para o rosto da farejadora, mas ela desviou e me golpeou. Uma queimadura gelada em minhas costelas. Ela era mais forte e mais treinada. Por uma fração de segundos, nossos olhares se encontraram, e percebi os cálculos frios em seus olhos. Ela ia me matar.

Algum instinto saltou dentro de mim. Um ímpeto mágico dolorido em meus ombros, descendo até os meus dedos e explodindo de forma luminosa na mão da mulher.

Ela revirava os olhos.

Doía. Doía muito. Meu peito estremeceu. Parecia que todos os nervos no meu braço estavam soltos, sofrendo, agonizando.

A mulher tremia nas minhas mãos. A magia nos conectava, a dor nos mantinha unidas. Soltei os dedos, encerrando a conexão.

Ela caiu no chão, as pernas se debatendo. Espuma saindo de sua boca. Ela estrebuchou mais uma vez e ficou imóvel.

– Você é cheia de surpresas – Louco Rogan disse para mim.

A dor diminuiu, um eco difuso da lancinante agonia. Meu braço direito estava vermelho de sangue.

– Você está bem? – ele perguntou.

A mulher caída no chão, à minha frente, não se movia. Não parecia respirar mais. Jesus. Abaixei-me ao seu lado para sentir o pulso. Nada. Eu não queria... Não, acho que eu queria, sim.

Louco Rogan aproximou-se e pegou meu braço delicadamente para olhar o corte de cinco centímetros.

– Superficial. Você vai sobreviver.

Meus lábios estavam dormentes. Fiz a boca se mover.

– Obrigada, doutor.

Ele ergueu uma grande joia cravejada com pequenas pedras claras, cada uma aproximadamente do tamanho de uma semente de romã. Pareciam duas voltas ovais alongadas, uma sobre a outra, como se uma criança tivesse tentado desenhar um hambúrguer e tivesse esquecido de desenhar a parte de cima do pão. Uma peça reta, cravejada com as mesmas pedras, passava, verticalmente, pelo centro das duas partes ovais. No centro, a peça reta se alargava num anel do tamanho do círculo formado quando eu tocava meu indicador no polegar. Se aquilo fosse um adereço de qualquer tipo, tinha o design mais estranho que eu já tinha visto.

– Era disso que eles estavam atrás?

Louco Rogan fez que sim.

– E o que é?

– Não tenho ideia – ele disse. – Por que não pergunta para ele?

Olhei para onde o último atirador estava, encolhido, caído e apoiado na parede. Ok, eu podia fazer isso. Não seria preciso matar ninguém.

Fui até lá e me abaixei ao lado do bombeiro. Sua respiração estava muito irregular.

– O que você fez com ele?

– Dei um chute no fígado e quebrei duas costelas. Ele vai sobreviver se os paramédicos chegarem nos próximos dez ou quinze minutos.

Peguei a joia.

– Vocês vieram atrás disso?

Ele olhava para mim. Concentrei-me, tentando recriar o ambiente mágico com que tinha prendido Louco Rogan e o forçado a responder. Nada aconteceu.

– Force-o a responder – Louco Rogan disse.

– Estou tentando.

Louco Rogan pegou a faca que tinha caído da mão da mulher.

– Podemos sempre recorrer ao plano B.

– Me dê um minuto.

– Nevada, você está perdendo tempo. – Sua voz tinha se tornado fria e precisa. – Seja útil ao menos uma vez.

Útil? Imbecil.

– Estou cansado de carregar seu peso morto – ele continuou, e nada em mim zumbiu. – Faça alguma coisa em vez de ficar aí sentada.

– Alguém já disse que você é um imbecil sem tamanho?

Louco Rogan fechou a cara.

– Aparentemente, raiva não é o seu gatilho, e não temos tempo para descobrir qual é. Muito bem.

Ele enfiou a faca na perna do homem. O bombeiro gritou. Eu estremeci.

– Foi atrás disso que vocês vieram? – Louco Rogan bradou.

– Foi.

Verdade.

– É alguma peça mágica? – perguntei.

– Não.

– Mentira – eu disse.

Louco Rogan pegou a faca e golpeou novamente a perna do homem. Ele uivou de dor.

– Vou continuar cortando você até sua perna virar um hambúrguer – ele o alertou, com a voz serena. – Daí eu faço um torniquete e começo na outra perna. Responda às perguntas dela, ou nunca mais vai andar.

– Você está trabalhando com Adam Pierce? – perguntei.

– Não.

– Mentira.

Louco Rogan golpeou a perna dele mais uma vez.

– O que isso faz? – perguntei.

O homem olhava para mim.

Louco Rogan golpeou sua perna novamente, metódica e calmamente, a faca entrava e saía, entrava e saía... O homem gritou:

– Abre o portão para a iluminação!

– Verdade.

Louco Rogan olhou para mim. Abri os braços.

– Que horas são? – o homem perguntou.

Olhei para o relógio digital acima do elevador.

– São 5h39. Não, espere, 5h40.

O homem riu.

– Três...

Louco Rogan deu meia-volta.

– Dois...

Louco Rogan me pegou, tirando-me do chão.

– Um...

Uma enorme bola de fogo surgiu na entrada lateral. Chamas laranja fervilhavam e vinham na nossa direção. O calor banhou meu rosto.

É isso, foi o que pensei. Estou morta.

O chão se abriu e nos engoliu.


Eu estava deitada de lado. Tudo à minha volta estava escuro.

Um braço firme me envolvia. O corpo de alguém estava contra o meu.

– Estou morta?

– Não – Louco Rogan disse.

Eu estava de conchinha com Louco Rogan. O pensamento passou pela minha mente. Tentei me afastar. Meu peito encontrou pedras duras. Minhas costas estavam contra uma superfície tão dura quanto, que por acaso era o peito dele. Não havia para onde me afastar.

– O que aconteceu?

– Bom, eles devem ter deixado um explosivo para dar cobertura quando saíssem. E ele explodiu.

– Isso eu percebi. Quero entender a parte em que não morri. – E a parte em que estávamos de conchinha. Ele estava me tocando, meu Deus, ele estava me tocando.

– Não havia tempo para fugir, então, quebrei o piso e o coloquei por cima de nós para nos proteger.

Sua voz era baixa, quase íntima. Ele parecia racional, como se fosse alguma coisa corriqueira. Quebrei umas pedras de mármore e as transformei em um abrigo para nos proteger em uma fração de segundo. Nada de mais. Faço isso todos os dias. Só de pensar na quantidade de magia necessária para conseguir fazer isso já me dava calafrios.

Ele continuou:

– Houve uma explosão, alguns escombros caíram sobre nós. Precisei ajeitar as coisas, mas está relativamente estável agora.

– E você consegue ajeitar as coisas para podermos escapar?

– Estou esgotado – ele disse, com a mesma voz calma. – Movimentar algumas centenas de quilos de pedra me esgotou. Preciso de tempo para me recuperar.

Então havia um limite para seu poder. Bom saber que ocasionalmente ele era mortal.

– Obrigada por me salvar.

– De nada.

Finalmente meu cérebro digeriu as palavras dele.

– Então estamos presos no subsolo com um prédio acima de nós. – Estávamos enterrados vivos. O medo me dominou.

– Não o prédio todo. Tenho praticamente certeza de que ele continua em pé. Disparei o alerta e minha equipe está a caminho. É só chegarem para nos tirar daqui.

– E se ficarmos sem ar?

– Seria muita falta de sorte.

– Rogan!

– Estamos aqui há quinze minutos. É provável que aqui tenha uns seis metros cúbicos de ar, que é a média de um caixão padrão.

Se eu saísse dali, eu o mataria.

– Estamos em dois e você está respirando aceleradamente, então, eu estimaria que temos algo em torno de meia hora. Se não estivéssemos conseguindo ar de algum lugar, já estaríamos sentindo o acúmulo de gás carbônico.

Fechei a boca.

– Nevada? – ele chamou.

– Estou tentando conservar o oxigênio.

Ele riu com o rosto em meu cabelo. Meu corpo decidiu que aquele era um bom momento para me lembrar de que o corpo dele estava envolvendo o meu, e que seu corpo era musculoso, firme e quente, e que minha bunda estava pressionada em sua virilha. Abraçada por um dragão. Não, obrigada. Pare o trem que eu quero descer.

– Se você continuar se mexendo, as coisas vão ficar desconfortáveis – ele disse no meu ouvido; sua voz, uma carícia. – Estou fazendo o melhor que posso, mas pensar em beisebol não está sendo suficiente.

Congelei.

Ficamos ali, imóveis e em silêncio.

– O que é esse cheiro? – Louco Rogan perguntou.

– Minhas calças. Um saco de lixo vindo da praça de alimentação estourou quando eu subi na caçamba.

Um minuto se passou. E mais um.

– Então – ele disse –, você vem sempre aqui?

– Rogan, por favor, pare de falar.

Ele riu de novo.

– O ar não está pesado. Estamos conseguindo oxigênio.

Ele estava certo, o ar não estava pesado. Ao menos não morreríamos sufocados. Infelizmente, isso não resolvia todos os demais problemas, como estar enterrada viva e envolvida por ele.

– Tem como você se virar, para não ficar grudado no meu corpo?

– Eu poderia – ele disse, sua voz demonstrava o quanto ele estava se divertindo. – Mas aí você teria de deitar em cima de mim.

Meu cérebro dizia “NÃO!”. Meu corpo dizia “OBA!”. Desisti e fiquei quieta.

E esperei.

Enterrada.

Com toneladas de entulho sobre nós.

Se algo acontecesse, seríamos esmagados. Eu estava tensa, prestando atenção aos sons mais sutis de qualquer coisa que se movesse acima de nós.

Esmagados.

Com nossos ossos se quebrando como cascas de ovos sob o peso das pedras e do concreto e...

– Por que você se alistou no Exército?

– Pergunta simples com resposta complicada – ele disse. – Quando você é Superior, especialmente um Superior herdeiro, sua vida deixa de ser sua quando você se forma na faculdade. Algumas coisas são esperadas de você. Sua especialização é determinada pelas necessidades da sua família. Já está subentendido que você vai se formar, trabalhar para ampliar os ganhos da família, escolher alguém com um bom pedigree genético que aumente as chances de gerar filhos com bons dons mágicos, se casar e ter os tais filhos. Ao menos um, mas não mais de três.

– Por que não mais de três?

– Porque isso tende a dificultar a árvore familiar e a divisão de bens. É a mesma coisa de ir para a escola certa, casar com a pessoa certa, ter o emprego certo. Só que no nosso caso, a magia é quem determina tudo isso. O sistema permite uma pequena variação, mas é pequena. Em vez de trabalhar no sistema avançado de armamentos, como o meu pai, eu poderia ter ido para a área de reatores nucleares. Em vez de me casar com Rynda Charles, eu poderia me casar com a irmã dela, ou poderia importar uma esposa, como meu pai fez.

Quando saíssemos dali, eu precisava procurar essa Rynda Charles para saber como ela era.

– Meu destino estava traçado. Eu era filho único e Superior. Em algum ponto, perto do meu aniversário de dezoito anos, percebi que meu tempo livre estava acabando mais rápido do que o de meus colegas. Se eu desejasse me libertar da minha cela dourada e extremamente desconfortável, precisaria encontrar alguém forte o suficiente para bloquear a influência da minha família. O Exército se encaixava nesse papel.

Minha memória retomou suas palavras anteriores. Entrei porque me disseram que eu poderia matar sem ir para a prisão e ainda seria recompensado.

– E porque você poderia matar as pessoas.

– Sim. Não vamos esquecer disso. Seu pai também era militar, não era?

– Não. Meu pai nunca entrou para o Exército. Essa é uma tradição que vem mais pelo lado feminino da família.

Ele estava fazendo aquela coisa de novo. Eu não podia ver o seu rosto, mas sabia que ele estava ouvindo atentamente, o que me fazia querer continuar falando e falando apenas para desfrutar de sua atenção. Seu corpo se moveu levemente junto do meu, me abraçando. Não pense nisso, não pense nisso, não pense nisso... Se eu me concentrasse muito nesse aspecto, ele poderia perceber. Eu não fazia ideia do tipo de telepatia que ele tinha ou de suas capacidades.

– Você também não entrou – ele disse.

– Meu pai morreu quando eu tinha dezenove anos. Alguém precisava cuidar do negócio da família. Minha mãe não podia porque... por diversas razões. Todos os outros eram muito jovens.

– O que aconteceu com seu pai?

Algo dentro de mim se encolheu, revirou, gerando uma bola fria e dolorosa.

– Ele teve um tipo raro de câncer. É chamado de tumor maligno da bainha dos nervos periféricos. TMBNP. – Como eu odiava essas cinco letras. – Ele teve sarcomas, tumores malignos que se formam em volta dos nervos. Eram tão próximos da coluna que os médicos não podiam fazer uma cirurgia para retirá-los. Quando todos os tratamentos tradicionais falharam, mudamos para terapias alternativas. Ele lutou por quatro anos, mas a doença acabou por vencê-lo. – E o último ano tinha sido horrível.

– E você se culpa? – Sua voz era suave.

– Não. Não fui eu quem fez ele ter câncer. Eu nem sabia ao certo qual era o seu diagnóstico. Apenas li uma carta de seu médico e não entendi completamente. Ele me pegou e me fez jurar que não contaria a ninguém. Eu deveria ter contado para minha mãe.

– Por que ele não queria que ninguém soubesse?

– Porque meu pai sabia que estava em fase terminal e não havia chance de se recuperar. – Suspirei. – Nunca foi a respeito da cura do câncer. Era apenas um jeito de lhe dar um pouco mais de tempo. E ele sabia que isso teria um enorme custo emocional e financeiro. Meu pai sempre quis cuidar da família. Ele... ele arcou com o peso dos custos e do sofrimento dos tratamentos por alguns anos de sua vida e decidiu que não valia a pena. Quando finalmente descobrimos, minha mãe ficou muito brava com ele. Eu também fiquei. Todos entraram em pânico. Fizemos pressão para ele buscar tratamento.

– Exatamente o que ele não queria – ele disse, como se tivesse entendido.

– Sim. Conseguimos três anos.

Ainda havia muito a falar. Meu pai tinha dedicado sua vida à construção da agência. Em sua cabeça, aquele era o meio de ele nos garantir sustento, inclusive quando tivéssemos nossos filhos. Um negócio de família. Hipotecamos a agência para a MII a fim de conseguir o dinheiro para as terapias alternativas. Nesse ponto, o controle da agência tinha passado para mim e para minha mãe como sócias, sendo que eu tinha setenta e cinco por cento e minha mãe os outros vinte e cinco. Nunca contamos para o meu pai de onde vinha o dinheiro. Aquilo o teria matado mais rápido do que o câncer. Já havia muita culpa envolvida. E nós continuamos nos dando suporte mútuo.

Não importava o que acontecesse, eu manteria a agência funcionando.

Alguma coisa raspou na pedra acima de mim. Fiquei assustada.

– Calma – Louco Rogan me puxou para perto dele, seus braços me protegendo.

Seu telefone tocou.

Seu telefone tocou! Ele tinha sinal. Não podíamos estar a uma profundidade tão grande.

Louco Rogan atendeu.

– Sim?

Uma voz feminina respondeu:

– Major?

– Aqui – Louco Rogan disse.

– Peço desculpas pela demora, senhor. Precisamos convencer os responsáveis a nos permitir acesso à área. Estamos exatamente acima do sinal do seu telefone. Não parece uma situação muito ruim. O senhor está abaixo de duas colunas destruídas.

Para um suposto recluso, ele empregava muitas pessoas. E as pessoas falavam em tons muito familiares. Ele contratava ex-militares ou antigos agentes da lei. Provavelmente ambos.

– Os policiais pegaram Pierce? – perguntei a Rogan.

– Pierce? – ele perguntou.

– Desapareceu – disse a mulher.

Como ele poderia ter desaparecido? Ele estava no meio da rua, cuspindo fogo em um cruzamento e os policiais estavam a caminho. Deviam ter feito um cerco a ele como lobos. Como ele poderia ter escapado?

– Peço permissão para começar as escavações, senhor.

– Autorizada – Rogan disse.

– Aguardem.

Um forte som mecânico, de algum tipo de serra motorizada rompeu o silêncio sobre nós. Um pouco de concreto caiu em meu rosto. Fechei os olhos.

– Bom, eu sabia que eles viriam nos buscar em algum momento – Louco Rogan disse. – Mas você não pode negar que tivemos momentos muito agradáveis.


Toquei a campainha.

– Você não precisa esperar comigo. Mesmo.

– Preciso – Louco Rogan disse. – Tenho de devolver você para sua mãe ou ela pode atirar em mim.

Ela poderia atirar em nós dois. Já eram quase oito horas da noite. Levou mais de uma hora para a equipe de Rogan nos tirar dos escombros, e a polícia nos deteve para interrogatório por mais uma hora. Mentimos. A espera pelo resgate nos deu um bom tempo para criar uma história convincente. Nem Louco Rogan nem eu tínhamos nenhum tipo de ligação com Pierce, então, alegamos estar ali a negócios. As explosões haviam basicamente destruído os corpos e, quando eu perguntei a Louco Rogan sobre o fato de haver balas de uma arma registrada em meu nome nos corpos e nas paredes do que sobrou do saguão, ele me disse que cuidaria disso. Assim, não mencionei ter atirado em ninguém, ele não mencionou ter usado a porta, e eu descobri uma diferença crucial entre ser uma pessoa normal, como eu, e um Superior, como ele. Quando os policiais chamavam Louco Rogan de “senhor”, realmente queriam dizer isso. Ele lhes contou o que aconteceu e ninguém duvidou. Eu nunca tinha sido tratada com deferência pela polícia antes. Naquele dia, sim, simplesmente por estar ali com ele. Não sabia ao certo o que eu achava disso.

O pessoal de Louco Rogan colocou a joia em uma pequena maleta de metal e a levou para o seu cofre. Não contestei sua decisão. Se Adam e quem quer que estivesse trabalhando com ele decidisse que queria a peça de volta, o exército particular de Louco Rogan estaria muito mais preparado para enfrentá-los. Eu tiraria muitas fotos e as enviaria para Bern.

A porta se abriu. Eu me preparei.

Já havia examinado meu reflexo no retrovisor da Range Rover e sabia exatamente em que estado me encontrava. Um corte raso na raiz de meu cabelo havia feito escorrer sangue por todo o meu rosto. O sangue coagulado havia se misturado com a poeira dos escombros, com a fuligem grossa da explosão e com a espuma para contenção de fogo dos bombeiros, que caiu sobre mim quando a equipe de Louco Rogan finalmente nos tirou do buraco. Meu cabelo estava absolutamente embaraçado e desgrenhado, e a espuma o deixava todo grudado. Para completar, a lasanha nas minhas calças havia secado e agora soltava o cheiro característico de um cadáver de animal atropelado no dia anterior. Eu estava ensanguentada, imunda e cheia de fuligem, e Louco Rogan não estava em um estado muito melhor.

Minha mãe olhou para mim e depois para Louco Rogan. Então, voltou a olhar para mim.

Ergui a mão.

– Oi, mãe.

– Pra dentro – ela ordenou. – Você também.

– Ele não precisa entrar – eu disse. Não queria Louco Rogan perto da minha família.

– Ele está coberto de sangue. Ao menos ele pode se lavar.

– Tenho certeza de que ele tem um chuveiro excelente na casa dele – eu disse.

– Na verdade eu ficaria muito grato pela chance de me limpar. – Louco Rogan tocou a testa e os dedos saíram com sangue e fuligem. De repente ele parecia jovem e inofensivo, como um dos meus primos quando se metiam em problemas. – E também agradeceria alguma coisa para comer, se puderem compartilhar comigo.

Se ele se esforçasse um pouco mais, estaria pronto para fazer um teste para interpretar Oliver Twist. Minha mãe não podia cair nessa.

– Você nem tem roupas limpas. – Eu estava espumando.

– Tenho, sim – respondeu. – Sempre carrego uma muda de roupas limpas no carro.

– Pra dentro – minha mãe disse.

Eu conhecia aquele tom. Significava que a discussão havia terminado.

Entrei. Louco Rogan pegou uma bolsa na Range Rover e me seguiu. Minha mãe fechou a porta atrás de nós. Eu o levei pelo corredor, passando pelo escritório. Ele inspecionava o galpão todo, começando pela sala de entretenimento e pela cozinha. Depois, os quartos das meninas, construídos um sobre o outro: o de Catalina pintado de branco por fora, e o de Arabella coberto com suas tentativas de grafite, na maior parte envolvendo seu próprio nome. Os quartos de minha avó, e o quarto de hóspedes. Meu quarto e banheiro acima do depósito que ficava no canto. O quarto de minha mãe, os quartos dos meninos e, finalmente, a Cabana do Mal. Os olhos de Louco Rogan se arregalaram.

– Se você ferir alguém da minha família, juro que te mato – ameacei.

– Vou me lembrar disso.

Eu o levei até o quarto de hóspedes.

Foi preciso passar xampu três vezes e esfregar muito, mas quando saí do meu quarto, eu estava limpa. No ar, era possível sentir o cheiro de bacon e panquecas. De repente percebi que eu estava morrendo de fome.

Entrei na cozinha e encontrei Louco Rogan ali. Sentado à mesa, vestindo uma camisa azul e calça jeans e tomando café em uma caneca estampada com um gatinho cinza. Seu cabelo escuro estava penteado para trás. Seu rosto estava novamente limpo e barbeado. Sou um dragão bem-educado e não ameaçador, com excelentes modos. Os chifres ficam escondidos, assim como a cauda e as presas. Nunca faria nada cruel, como esfaquear um homem por dez minutos para fazê-lo responder a algumas perguntas.

De alguma forma, essa versão bem-comportada era mais assustadora do que assistir a ele acabando com um homem com as próprias mãos. Depois do que tínhamos passado, eu esperava vê-lo em um lugar escuro, comendo carne crua, cheio de fumaça, tomando algum tipo de bebida absurdamente forte, como uísque, querosene ou algo do tipo, e tendo pensamentos cruéis sobre a vida e a morte. Mas, não. Ali estava ele. Lindo e tranquilo, tomando café.

Louco Rogan me viu e sorriu.

E imediatamente fiquei sem jeito.

Como ele foi parar na minha cozinha?

Minha mãe se virou do fogão, segurando um prato de panquecas. Peguei o prato de sua mão e coloquei-o na mesa, ao lado do bacon. Louco Rogan empurrou uma segunda caneca com café para mim. Essa era estampada com um gatinho laranja.

Vovó Frida entrou na cozinha, seguida por Lina e Arabella.

– Sinto o cheiro de bacon! Penelope, você sabia que tem um homem lindo na sua cozinha?

Senhor, lá vamos nós.

Minha mãe fez um barulho entre o grunhido e o tossir.

– Bom – vovó Frida continuou –, alguém pode nos apresentar?

– Vó, Louco Rogan. Louco Rogan, vó – eu disse.

Os olhos de Arabella ficaram realmente arregalados. Ela pegou o telefone e começou a digitar.

– Leon vai se mijar.

– Deixa disso. – Lina pegou uma cadeira e sentou-se ao meu lado.

Minha avó pegou uma cadeira e se sentou ao lado de Rogan.

– Como está se sentindo? – ele lhe perguntou.

– Bem, obrigada. – Ela abriu um grande sorriso.

Passei um prato para Rogan e sentei na sua frente. Leon entrou correndo na cozinha e parou, olhos fixos em Louco Rogan. Bern esbarrou nele, fazendo com que o impacto o levasse para dentro do cômodo.

– Se você não quer bacon, pode sair do caminho – Arabella disse, pegando três pedaços do prato. – É meu!

– Festa do bacon! – Lina disse.

– Podem se acalmar, tem mais bacon. – Minha mãe tirou mais uma assadeira de bacon do forno.

Peguei uma panqueca, coloquei bacon no meio. Estava macio e delicioso e, sem nenhum motivo aparente, me fez sentir vontade de chorar.

– Aliás – Arabella disse –, você deve receber uma ligação da escola. Esqueci de mencionar antes.

Minha mãe parou.

– Por quê?

– Bom, estávamos jogando basquete e acho que puxei o uniforme do Diego. Não me lembro de ter feito isso. E Valerie decidiu que seria uma boa ideia me delatar. Quer dizer, eu a vi indo até o treinador e puxando a manga da blusa dele, como se tivesse cinco anos. Cheguei até a perguntar se Diego se importava, e ele disse que nem tinha percebido. É um jogo! Eu estava jogando.

– Aha – minha mãe disse. – Voltemos à parte em que vão me ligar da escola.

– Eu disse para ela que as coisas devem ser pagas na mesma moeda. E o treinador disse que eu fiz uma ameaça terrorista.

– Isso é ridículo – Lina disse, puxando seu cabelo escuro para trás. – Não é uma ameaça, é só uma coisa que as pessoas dizem.

– Pagar as coisas na mesma moeda – Bern resmungou.

– Sua escola é ridícula – vovó Frida contribuiu.

– Aí ele disse que eu precisaria me desculpar e eu me recusei, já que ela tinha me dedurado, e fui mandada para a diretoria. Não estou com problemas, mas agora querem me mudar para o terceiro período de Educação Física.

Bom, poderia ter sido pior. Ao menos ela não machucou ninguém.

O silêncio dominou o ambiente. À minha frente, Louco Rogan cortava sua panqueca em pedaços perfeitos e os devorava com familiar eficiência. Quando minha mãe voltou para casa, comia daquele mesmo jeito. Ela estava apoiada na ilha agora, observando-o.

– Você é Louco Rogan! – Leon soltou.

– Sou – Louco Rogan respondeu, com a voz calma.

– E você pode quebrar cidades?

– Posso.

– E tem todo aquele dinheiro e magia?

– Tenho.

Aonde Leon estava querendo chegar?

Meu primo piscou.

– E essa é a sua... aparência?

Louco Rogan balançou a cabeça.

– É.

Os olhos escuros de Leon se arregalaram. Ele olhou para Louco Rogan, e depois olhou para si. Aos quinze anos, Leon pesava pouco mais de cinquenta quilos, seus braços e pernas pareciam gravetinhos.

– O mundo é injusto! – Leon declarou.

Eu ri e quase me engasguei com a panqueca. Minha mãe abriu um sorriso.

– Você também sabe tocar violão? – Leon perguntou. – Porque, se souber, eu vou ali me matar agora mesmo.

– Não, mas eu sei cantar – Louco Rogan respondeu.

– Caramba! – Leon deu um soco na mesa.

– Ei, calma aí – Bern disse.

– Cala a boca. Você é do tamanho de um gorila. – Leon apontou para Louco Rogan. – Está vendo isso? Como isso pode ser justo?

– Ele tem quinze anos – eu disse a Louco Rogan. – A justiça é muito importante no momento.

– Você tem tempo – Louco Rogan disse.

– Sei... – Leon balançou a cabeça. – Não, não é verdade. Eu não sei cantar nada e nunca vou ter essa aparência.

– Sou o produto de uma linhagem selecionada – Louco Rogan disse. – Fui concebido porque seria bom para minha Casa ter um herdeiro e porque os genes dos meus pais tinham a combinação correta. Você provavelmente foi concebido porque seus pais se amavam.

– De acordo com nossa mãe – Bern disse –, ele foi concebido porque ela estava bêbada demais para lembrar de usar preservativo.

Louco Rogan parou de mastigar.

– Eu fui concebido porque minha mãe pagou fiança. Seu namorado da época ameaçou chamar a polícia e ela precisou fazer alguma coisa para impedi-lo – Bern disse, tentando ajudar.

Incrível. Exatamente o tipo certo de informação a se compartilhar.

– Tia Gisela não é exatamente a melhor mãe do mundo – falei. – Acontece nas melhores famílias.

– O que você faz? – Leon se inclinou para a frente. – Você saiu do Exército e desapareceu. Como assim?

– Leon! – minha mãe o advertiu.

– Foi por causa da guerra? – Lina perguntou.

– As pessoas no Herald dizem que você teve transtorno de estresse pós-traumático e se tornou um ermitão e um monge por conta disso.

– Ou um monge ou um ermitão, não os dois – corrigi, por força do hábito.

– No Herald também dizem que ele ficou desfigurado. – Arabella arregalou os olhos.

– Sim, sou um ermitão. Em geral fico em casa – disse Louco Rogan. – Também sou muito bom em chafurdar na lama. Passo meus dias mergulhado na melancolia, olhando pela janela. De vez em quando, uma lágrima solitária rola pelo meu rosto.

Arabella e Lina riram e falaram ao mesmo tempo.

– Você também passa uma orquídea branca nos lábios? – Arabella acrescentou.

– Enquanto toca música triste de fundo? – Lina riu.

– Talvez – Louco Rogan respondeu.

– Você tem namorada? – vovó Frida perguntou. Cobri o rosto com a mão.

– Não – Louco Rogan disse.

– Namorado? – vovó perguntou mais uma vez.

– Não.

– Que tal...

– Não! – mamãe e eu respondemos em uníssono.

– Mas vocês nem sabem o que eu ia perguntar!

– Não! – dissemos juntas novamente.

– Estraga-prazeres. – Ela deu de ombros.

– Já são nove horas – minha mãe disse. – Pode ir.

Leon apontou para nosso visitante.

– Mas é o Louco Rogan!

– Mas você tirou nota baixa em Francês – ela anunciou. – Você vai recuperar o direito de ficar acordado até mais tarde quando passar.

– Mas... – Leon moveu os braços.

– Não me faça carregar você – Bern resmungou.

– O chuveiro é meu! – Arabella se levantou num salto.

As garotas saíram da cozinha e levaram Leon com elas. Vovó Frida, mamãe, Bern, Louco Rogan e eu ficamos.

Minha mãe se aproximou.

– Nevada está indo atrás de Pierce porque não temos escolha como família. Não sei qual é seu motivo. Não sei se é orgulho, ou se você está apenas entediado. Sei que sequestrou minha filha. Você a assustou e a torturou. Se ferir minha menina mais uma vez, acabo com você. Mesmo que você seja um Superior.

Boa, mãe. Tenho certeza de que ele ficou com medo.

Louco Rogan sorriu sem mostrar os dentes. O olhar predatório e frio já familiar surgiu em seus olhos, o dragão estava acordando e mostrando quem era de verdade.

– Agradeço ter me convidado para entrar em sua adorável casa e ter me oferecido esse delicioso jantar. – Sua voz era calma e comedida. – Como sou seu convidado, sinto que tenho uma dívida com a senhora e, portanto, vou deixar absolutamente claro, sargento. Sei quem a senhora é. Vi sua ficha de serviço militar e a considero uma ameaça em potencial. Se me ameaçar de novo, vou considerar a ameaça iminente e vou tomar uma atitude em relação a isso.

Ele tinha visto a ficha de serviço da minha mãe. Sua Casa tinha feito uma pesquisa de antecedentes. Significava que a pergunta sobre meu pai ter servido o Exército foi totalmente ridícula. Ele provavelmente sabia toda a história da minha família. Ele tinha me manipulado e eu caí direitinho. Idiota.

– Eu prefiro não matar crianças – Louco Rogan continuou. – Mas não tenho nenhum problema em deixá-las órfãs.

Verdade. Cada palavra. Ele estava falando sério.

Bern piscou.

Louco Rogan deu um gole na caneca com o gatinho cinza e prosseguiu:

– Além disso, se considerarmos a habilidade da sua filha com armas, é provável que ela atire em mim antes de eu fazer qualquer coisa.

Minha mãe virou-se para mim:

– O que aconteceu?

– Não quero falar disso – respondi. Eu estava me esforçando muito para fingir que aquilo não tinha acontecido.

– Nevada... – ela começou.

– Não – interferi em voz baixa. Uma mancha escura estava aparecendo na camisa de Louco Rogan na altura das costelas. – Você está sangrando.

Ele olhou para a camisa e franziu o cenho. Eu levantei para ver o que era.

– Não é nada.

– Rogan – falei –, levante a camisa.

Ele levantou a camisa e deixou a lateral do tronco à mostra. Um pedaço de papel toalha dobrado cobria sua costela inferior e estava preso com fita isolante.

– O que é isso? – questionei.

– É um curativo – Bern disse.

– Não é, não.

– É sim – vovó Frida retrucou. – Às vezes você corta o dedo e coloca papel em volta, aperta bem e coloca fita isolante em volta e está pronto pra outra.

– Seu pai fazia isso – minha mãe disse. – Eu juro, é como se todo homem nascesse assim, ou se fizessem algum tipo de curso secreto pra aprender a fazer isso.

Acenei para eles.

– É papel toalha. Com fita isolante! Onde você pegou a fita isolante?

Louco Rogan encolheu os ombros.

– No armário, embaixo da pia no seu banheiro. Achei que tivesse parado de sangrar.

– Bom, não parou. Como você fez isso?

– Fui atingido por alguns destroços durante a explosão – ele disse.

– Você limpou?

– Tomei banho.

– Certo. – Olhei para minha mãe. – Ok, vocês dois vão ter de adiar a disputa para descobrir quem é o mais durão até eu resolver isso.

Levantei e peguei o kit de primeiros-socorros no armário da cozinha.

Meu celular vibrou no bolso. Eu peguei o aparelho e liguei. Uma mensagem de texto de um número desconhecido. Suspirei. Lógico.

Coloquei o telefone sobre a mesa e cliquei na mensagem. Uma imagem em que estávamos Louco Rogan e eu perto da torre apareceu. Na foto, meu rosto estava pálido e minha boca era uma linha dura. Parecia que eu estava me esforçando para não chorar, o que era estranho, porque, no momento, eu não estava nem perto de chorar. O rosto de Louco Rogan estava virado, sua cabeça estava erguida, já que ele olhava para as janelas do segundo piso.

Uma segunda mensagem apareceu. Dizia: “Quem é o cara?”.

Rogan olhou para o telefone e disse:

– Pierce.

Respondi a mensagem: “Onde você está?”.

“Do lado de fora da sua casa.”

Meu coração acelerou. Louco Rogan levantou-se e foi rumo à porta. Minha mãe se moveu. Eu não a via se locomover tão depressa desde que tinha saído do Exército. Vovó Frida foi para a oficina e Bern correu para a Cabana do Mal, enquanto eu seguia Louco Rogan. Alcancei-o quando estávamos na porta, entrei no escritório e digitei algumas teclas no teclado. Uma imagem cinza da câmera térmica tomou a tela, dividida em quatro partes. Cada quadro mostrava um ângulo do lado de fora da casa: o estacionamento e a rua em frente à oficina, no fundo do galpão; as árvores à direita; a rua à esquerda e a porta da frente, com o carro de Louco Rogan estacionado ao lado do meu.

Segurei a respiração. Nada.

Louco Rogan se inclinou sobre mim. Seu peito roçou meu ombro direito.

Na tela, fora da casa, a noite se estendia, uma pintura a carvão trazida à vida. Nada se movia. Nenhum carro passava. Se minha mãe colocasse uma bala no coração de Adam Pierce, poderíamos dar adeus à agência. Se ele tivesse vindo para nos matar queimados... ele não conseguiria fazer isso. A Desova Infernal era um feitiço de alto nível. Deveria tê-lo esgotado, assim como Louco Rogan ficou esgotado. Ao menos era o que eu esperava.

O intercomunicador do telefone piscou. Apertei.

– Três pessoas no edifício do outro lado da rua – Bern disse tranquilamente. A imagem do monitor se aproximou de três vultos humanos no telhado de um galpão ao norte. Um deles deitado na tradicional posição de atiradores.

– Esses são meus – Louco Rogan replicou com calma.

Esperamos. As árvores balançavam suavemente na brisa noturna, mas era possível ver na tela.

Meu telefone vibrou. Mais uma mensagem.

“Senhora, aqui é a polícia. A chamada foi feita de DENTRO DA SUA CASA.”

Imbecil!

“Assustei você?”.

Aaaaaaaah!

Toquei no intercomunicador.

– Recebi mais uma mensagem. Acho que ele está brincando com a gente.

– Fique firme – minha mãe disse.

Digitei “Imbecil” no celular.

“Rs. Diga ao seu novo amigo que mandei um oi.”

Na tela, vimos a Range Rover explodir. A força da explosão fez a porta e a parede tremerem como se tivessem recebido um soco forte e invisível. O galpão tremeu.

O intercomunicador piscou.

– Vocês estão com as crianças?

– Estamos – Bern disse. – Aqui comigo.

As chamas brancas e brilhantes tomavam a carcaça metálica da Range Rover. Ir até lá não era uma possibilidade. Seríamos todos excelentes alvos com todo aquele fogo.

Ficamos sentados, esperando e observando a Range Rover queimar até os bombeiros aparecerem no fim da rua, com suas luzes e sirenes.


– Tire a camisa.

Taí uma coisa que nunca me imaginei dizendo para o Carrasco do México.

Louco Rogan tirou a camisa e eu me esforcei ao máximo para não olhar. Os músculos se desenhavam sob sua pele bronzeada. Ele não era mais moreno do que eu, mas quando tomava sol, eu ficava vermelha. Já ele ficava com a pele em um tom de marrom profundo. Suas proporções eram perfeitas. Seus ombros largos se encaixavam em um peito definido e musculoso que afinava até os músculos retos do abdômen. Dizer que ele era bonito ou atlético não era justo. Dançarinos ou ginastas eram atléticos. Ele tinha o tipo de corpo que deveria ter pertencido a um homem de outro tempo, alguém que usasse uma espada ferozmente, sem misericórdia, para proteger suas terras e correr pelos campos contra os inimigos. Havia um tipo de eficiência brutal na forma como seus músculos o contornavam.

Eu ainda não tinha percebido como ele era grande, pois todas aquelas roupas o faziam parecer menor, e suas proporções eram tão perfeitas que ele até parecia alguém normal. Mas agora, com ele sentado na minha cozinha, fazendo a cadeira parecer projetada para anões, não havia como não perceber. O poder físico dele, absoluto, era inacreditável. Se me pegasse, poderia me esmagar. Mas eu não me importava. Eu poderia ficar olhando para ele a noite toda. Não dormiria. Não precisaria descansar. Poderia apenas ficar ali, sentada, olhando para ele. E, se eu olhasse bastante tempo, jogaria a cautela pela janela, chegaria mais perto e passaria a mão por aqueles músculos poderosos. Sentiria a força de seus ombros. Beijaria...

E já chegava disso.

Por trás de toda aquela masculinidade e beleza dura, estava a frieza, o tipo de frieza de quem pode golpear um homem indefeso com uma faca, sentir chegar ao osso e golpear de novo, e de novo, e não se incomodar com isso. Essa frieza me assustava. Louco Rogan, diferente das demais pessoas, raramente mentia. Eu não sabia se era porque ele sabia que eu descobriria ou por ser, simplesmente, o seu jeito de ser. Quando ele dizia que poderia matar você, ele realmente queria dizer isso. Ele não fazia ameaças ou promessas, ele declarava fatos. E quando queria alguma coisa, fazia o que fosse preciso para conseguir.

Abri o kit de primeiros-socorros e peguei gazes e esparadrapo.

Os bombeiros já tinham ido embora, depois de apagar, com espuma, os tristes restos da Range Rover. Foi impressionante como as perguntas rapidamente acabaram depois de Rogan lhes dizer seu nome. Minha mãe insistia em ficar no ponto de vigília que ela e minha avó tinham instalado enquanto eu tinha ido falar com Besouro. As crianças tinham ido dormir. Minha avó também. Um dos funcionários de Louco Rogan tinha vindo pessoalmente assumir a responsabilidade por não terem evitado a explosão. Quando Arabella tinha dois ou três anos, ela não gostava de se meter em problemas. Não gostava que ninguém ficasse bravo com ela ou de esperar até que decidissem qual seria o seu castigo. Era demais para ela, então, quando fazia algo errado, declarava: “Vou me castigar!” e ia para o quarto ficar de castigo. Eu vi exatamente esse mesmo olhar no rosto do funcionário enquanto ele conversava com Louco Rogan em um desespero silencioso. Ele mesmo se puniria, se pudesse.

Ele já tinha ido embora e o galpão estava silencioso. Me abaixei para ter uma visão melhor do que Louco Rogan chamava de curativo.

– Vou tirar isso agora.

– Vou tentar não chorar.

Revirei os olhos e puxei a fita isolante. Ele estremeceu.

Um talho superficial cortava suas costelas do lado direito. Era mais um arranhão do que um corte profundo, mas tinha quase dez centímetros, e sangrava. Ao menos não era uma ferida aberta, assim, poderíamos fugir dos pontos. Peguei a solução salina e limpei o ferimento.

– Sinto muito pelo seu carro. – Joguei a solução no ferimento e o cobri.

– Concordamos em contar tudo – ele disse. – Quando você ia me contar que Pierce está obcecado por você?

– Ele não está obcecado por mim.

– Ele ligou para você para contar que ia começar um incêndio hoje. Disse estar com tesão. Depois mandou uma mensagem de texto para garantir que você veria ele explodir meu carro. Isso significa que ele notificou você duas vezes antes de fazer algo que considerava incrível.

Passei um unguento antibiótico sobre o corte e coloquei a gaze por cima.

– Adam é pirado. Ele é impulsivo e gosta que as pessoas reafirmem o quanto ele é legal e incrível. Sou uma mulher jovem, sou atraente e demonstrei não estar impressionada pelas travessuras dele. – Comecei a cortar o esparadrapo. – Ele chegou a cogitar me levar para conhecer a mãe apenas para ver a cara dela. Ele ri disso. Não é obsessão, é... uma coisa passageira, seja lá como costumem chamar.

– Essas são coisas de que preciso saber – ele disse. – Posso usar essas informações. Se soubesse disso, teria lidado com o dia de hoje de forma completamente diferente.

– Engraçado como você trata tudo como “eu”, nunca como “nós”. – Fechei o outro lado do ferimento.

– O que você fez para deixá-lo assim apaixonado? Vocês se beijaram? Ficaram de mãos dadas?

Sua voz tinha assumido um tom distante, mas havia um pouco de calor nela.

– Dei um beijo no rosto dele. Não teve nada de sexual. Ele estava tentando me convencer a fugir com ele e eu não queria dispensá-lo tão abertamente de forma que ele fechasse a porta. Ainda preciso levá-lo para casa.

– Então por que ele está apaixonado?

– Não sei – eu disse, irritada. – Provavelmente porque estou indo atrás dele e porque o recusei. Ele não consegue compreender que estou atrás dele para que a MII não jogue minha família na rua. A Casa dele sempre esteve por cima, e ele nem consegue conceber alguém fazendo isso com eles, quanto mais entender como é a situação. Ele provavelmente acha que estou secretamente fascinada pela brilhante joia que ele é.

Ops. Acho que falei um pouco demais. Eu não queria que Rogan soubesse que a Montgomery estava nos obrigando. Não havia como saber o que ele faria com essa informação. Ajeitei minha postura.

– Olha, no momento, há duas pessoas nessa cozinha. Uma é um Superior cheio de caprichos e extremamente rico, e a outra sou eu. Você tem muito mais em comum com Adam do que eu. Por que não me diz a razão de ele estar fazendo essas coisas?

Louco Rogan olhou para mim, seus olhos cristalinos e duros.

– Não me pareço em nada com ele.

Nesse ponto, nós dois concordávamos. Rogan não parecia em nada com Pierce. Adam era um adolescente em corpo de homem. Rogan era um homem, um homem teimoso, calculista e poderoso.

Bern entrou na cozinha quase correndo e parou. Percebi que eu estava parada a poucos centímetros de Louco Rogan, que estava seminu e olhava para mim.

– Devo voltar depois? – Bern perguntou.

– Não – respondi, afastando-me de Louco Rogan. – Ele estava me interrogando enquanto eu fazia o curativo, mas já terminamos.

Louco Rogan olhou para o local do ferimento.

– Obrigado.

– De nada.

Bern colocou um laptop sobre a mesa e disse:

– Achei.

No laptop, um vídeo mostrava a gravação da câmera da porta de entrada. O relógio indicava 20h26. Oito horas e vinte e seis minutos, isso era pouco depois de termos chegado.

Dois adolescentes desceram a rua de skate, um vestia uma camisa azul e o outro, uma camisa preta. Pareciam típicos adolescentes de Houston: cabelos escuros, bronzeados, na faixa dos catorze ou quinze anos. Eles atiraram algo na Range Rover e depois seguiram. O vídeo parava com o garoto de camisa preta falando ao celular quando ia embora.

Bern digitou algumas teclas. A imagem voltou em câmera lenta e deu para ver o garoto de camisa azul curvando-se um pouco para arremessar um pequeno objeto na Range Rover ao saltar sobre a calçada.

– Isso é...

– Uma bomba – Bern confirmou. – Ele deve tê-la detonado a distância.

– Ele usou crianças para colocar uma bomba?

– Usou – Bern confirmou novamente.

– Crianças? – Minha mente não conseguia processar.

– E uma dessas crianças ligou para informá-lo – disse Louco Rogan, com os olhos cobertos de gelo.

Me joguei em uma cadeira.

– E se tivesse detonado antes? Quem dá bombas nas mãos de crianças? E por qual razão? Para afirmar um ponto idiota?

– Diego? – Louco Rogan fez uma ligação. – Ele usou crianças. Sim. Não. Apenas me mantenha informado. – E desligou.

Dois adolescentes tinham passado de skate na frente da minha casa carregando uma bomba. E se um deles caísse? E se alguém estivesse no carro? E se um de nós tivesse ido ver a caixa de correspondências? Então, poderíamos ter mais corpos. A contagem de mortos do dia passaria de seis. Seis era mais do que suficiente, principalmente porque três dessas seis mortes tinham ocorrido pelas minhas mãos.

Meu peito doía. Eu tinha matado pessoas hoje. Tinha tirado suas vidas. Elas tirariam a minha, mas por algum motivo, isso não parecia importar no momento. Minha avó quase não tinha conseguido sobreviver. Minha casa tinha pegado fogo, e dois moleques jogaram uma bomba em um carro parado na frente de casa. Tudo isso estava caindo sobre mim como uma avalanche.

– Você está bem? – Louco Rogan focou em mim.

– Não – respondi.

Bern também olhava para mim.

– Posso fazer chá – ele disse. – Você quer um pouco de chá?

– Não, obrigada. – Virei para Louco Rogan. Ele era Superior e, no momento, não poderíamos dispensar qualquer proteção que ele pudesse oferecer. – Você ainda consegue fazer alguma coisa com sua magia ou está completamente esgotado?

– Já está voltando. Não estou incapaz.

– Pode ficar aqui esta noite? – perguntei.

– Posso – ele respondeu.

– E, se o Pierce aparecer ou alguma coisa acontecer...

– Eu cuido de tudo – ele disse.

Verdade. Ele realmente cuidaria.

– Obrigada – falei. – Vejo vocês dois pela manhã.

Saí da cozinha e fui para o meu quarto, quase correndo. Fechei a porta, sentei na cama e dobrei as pernas, encostando-as no peito. Havia um grande buraco vazio dentro de mim. Estava ficando cada vez maior, e eu não sabia como fechá-lo.

Uma batida na porta. Provavelmente era minha mãe. Por um momento considerei fingir que não tinha ouvido. Mas eu queria que ela entrasse. Queria que ela me abraçasse e me dissesse que tudo ficaria bem.

– Quem é?

– Sou eu – minha mãe respondeu.

– Está aberta.

Ela entrou trazendo um tablet. Estava se movimentando mais devagar do que de costume. Sua perna estava doendo muito e percebi que tinha sido por subir as escadas. Ela se sentou ao meu lado na cama e passou o dedo na tela. Um vídeo começou. Tinha sido feito pelo telefone de alguém. Na tela, Adam Pierce, com seus espinhos e garras fantasmas brilhando, cuspia fogo. A lateral da torre onde Rogan e eu vivemos nossa pequena aventura estava à direita.

A entrada da frente do edifício explodiu com um barulho de estourar os tímpanos. O edifício balançou. Um homem gritou: “Puta merda!”.

O vídeo mostrou a mão de quem quer que estivesse filmando. A pessoa pegou o telefone e saiu correndo dali.

– Você estava do lado de dentro? – minha mãe perguntou.

Fiz que sim.

– Adam era uma distração. Enquanto ele cuspia fogo, uma equipe entrou no prédio para pegar um tipo de joia escondido na parede. Nós os impedimos.

– Quer falar a respeito? – minha mãe perguntou. Eu fiz que não. – Posso ajudar? – ela perguntou com delicadeza. – Posso fazer alguma coisa?

Fiz que não e me apoiei nela. Ela passou o braço em volta de mim. Eu não ia chorar. Tinha vinte e cinco anos. Não ia chorar.

– A equipe do Rogan está analisando a joia que encontramos – eu disse, minha voz estava abafada. – Mandei uma foto para o Bern. Ele também está pesquisando. Tem algo muito feio e grande acontecendo, mãe. E sinto que estou bem no meio. Isso me assusta. Fiquei assustada comigo hoje.

– Você está fazendo o que precisa ser feito – ela disse, me abraçando. – Lembre-se das regras: precisamos ser capazes de nos olhar no espelho. Às vezes, isso significa fazer coisas horríveis por não haver outra escolha. Você está fazendo a coisa certa?

– Acho que sim. Só que saiu do controle muito de repente. Pierce está disposto a queimar um prédio para conseguir uma coisa que deseja. Dar uma bomba para uma criança da idade de Leon. Quem faz isso?

– Alguém que precisa ser detido.

– Fico pensando que se a MII não tivesse se envolvido e me chamado para ir ao escritório, isso estaria acontecendo com outra pessoa. E nós estaríamos vendo na televisão e dizendo: “Meu Deus, que loucura!”.

– Você pode pensar assim – minha mãe me alertou. – Assim você vai ficar louca. Acredite em mim, ficar pensando como seria se tivesse acontecido diferente nunca ajudou ninguém. Só faz a gente se afundar em autopiedade e nos deixa menos alertas. Não há mais como voltar, Nevada. Veja isso como um trabalho. Como algo que você precisa fazer. Termine o trabalho e venha para casa.

– Acho que Rogan está me usando como isca – eu disse.

– Use-o também – respondeu. – Jogue-o contra Pierce e deixe que ele o vença.

– E se ele matar Adam Pierce?

– O problema maior é se o Pierce matar Louco Rogan. Mas se ele matar o Pierce, passa a ser um problema entre as Casas Pierce e Rogan. Deixe que eles resolvam. Seu objetivo principal aqui é sobreviver. Depois, trazer Pierce de volta, se for possível.

Apoiei a cabeça no ombro dela.

– Vou precisar de mais munição.

– Como foi com a Ruger? – ela perguntou delicadamente. Já tinha entendido.

– Acertei meu alvo – respondi.


Acordei cedo. O sol ainda não tinha nascido, mas o céu estava claro, com uma cor perolada. Tirei os curativos do meu rosto e do meu braço e coloquei algumas gotas de lavanda e gerânio rosa no aromatizador, acendi uma vela sob ele e tomei um longo banho. Eu já estava limpa, mas um banho costumava ajudar a me sentir melhor. Fiquei sob a ducha de água quente, desejando lavar os resquícios do dia anterior. Tinha sonhado que eu atirava em pessoas. Em meu sonho, eu as matava de novo e de novo, cada bala atingindo suas cabeças em câmera lenta, o sangue se espalhando como uma flor vermelha desabrochando. Não tinha sido nada parecido com isso. Toda a luta devia ter durado três ou quatro minutos, se tanto. Em meu sonho, minha arma tinha o som de um trovão. No saguão, o som era seco, como fogos de artifício. Bum, bum. Uma vida encerrada. Bum, bum. Mais um caído.

Deixei a água correr por meu corpo e tentei entender como minha mãe tinha sobrevivido àquilo. Como ela podia olhar pela mira, apertar o gatilho e terminar com a vida de alguém e repetir tudo diversas vezes e ainda se manter inteira? Eu queria lhe fazer essa pergunta. Haveria algum segredo para se conseguir isso?

Já haviam se passado dois anos desde a última visita da minha mãe ao grupo de apoio. Ela estava melhor. Remexer em velhos demônios não lhe faria bem nenhum. Eu precisaria lidar com isso por conta própria.

Fiquei embaixo do chuveiro até a culpa me dominar. Acabar com toda a água quente não seria bacana. Minhas irmãs e meus primos ainda precisavam tomar banho. Saí do chuveiro, enrolei uma toalha no cabelo e outra no corpo e olhei para meu reflexo. Os cortes superficiais no meu rosto e no meu braço continuavam sem sangrar. O corte na costela estava pior. Passei um unguento antibiótico. Estremecer e gemer não parecia estar ajudando a fazer a dor ser menor. Coloquei um curativo sobre aquele corte e um sobre o corte no braço, para o caso de ele resolver abrir e fazer uma meleca.

Se ao menos eu tivesse papel toalha e uma fita isolante por perto... Revirei os olhos. Que raios que ele estava pensando? Ele era o quê, um multimilionário? E fazia um curativo daqueles, com papel toalha e fita isolante. Como ele sabia o que era a fita isolante? Vai ver ele tinha uma versão Superior em casa, feita em ouro e cravejada com diamantes, no caso de se cortar com papel.

Ri silenciosamente, ri bastante. Ali, pingando, e rindo feito uma maluca. Muito saudável mentalmente.

Tirei a toalha do cabelo e me estiquei para pendurá-la no gancho perto da janela, então, parei. Meu banheiro fazia vista para a oficina e, daquele ângulo, era possível ver toda a expansão dos domínios da vovó Frida. Veículos cobertos com telas e estantes com peças penduradas nas paredes. No meio do piso polido de concreto, Louco Rogan desenhava um círculo mágico com giz. Começava com um grande pentágono que tinha um círculo de aproximadamente 75 centímetros de diâmetro em cada ponta. Linhas seccionavam o pentágono em partes diferentes, com glifos em toda a margem do desenho. Parecia perfeito, os lados do pentágono estavam retos; os círculos, redondos. Deviam ter sido necessários anos de prática.

Louco Rogan terminou o último símbolo e se levantou. Ele vestia a mesma camisa e a mesma calça da noite anterior. Ele se esticou, erguendo uma perna, depois a outra, e pulando no lugar, como se saltasse uma corda invisível. Por um momento, ele ficou em pé, descalço, em frente ao pentágono, então, cruzou a linha e parou, de frente para o meu lado do galpão. Seus olhos estavam fechados, os braços estavam ao lado do corpo.

A Chave. Já tinha lido a respeito. Era um ritual que algumas das principais Casas usavam para recarregar as energias. Louco Rogan tinha gasto toda a sua magia e estava tentando recuperá-la. Em algum lugar, provavelmente, Adam Pierce fazia algo muito semelhante. As pessoas tinham opiniões diferentes a respeito do que a Chave fazia de verdade. Algumas diziam que o ritual restabelecia a plenitude mágica; outras, que realinhava o usuário para que ele pudesse fazer o melhor uso possível de sua magia. Eu tinha visto alguns vídeos na internet, mas nenhum tinha boa qualidade. As Chaves eram todas guardadas em segredo. Cada uma era exclusiva da Casa que a desenvolvera.

Louco Rogan ergueu os braços, seus cotovelos ficaram dobrados; as mãos, abertas; os olhos, fechados. Inclinei-me na direção da parede lateral. Era uma variação da pose mágica. Ok. Até aí, nada de muito interessante.

Rogan virou o braço direito para o lado, flexionando as costas, esticando o peito e, simultaneamente, pisou nos círculos laterais com uma beleza fluida, como se todo o seu corpo se abrisse repentinamente. Ele se virou dentro das margens do desenho, com uma velocidade chocante. Seu pé disparou um chute alto, forte e devastador, contra um oponente invisível. Suas mãos cortaram o ar, à direita, depois à esquerda, como lâminas prontas para matar um agressor.

O contorno externo do círculo começou a brilhar num azul tênue.

Louco Rogan se virou, saltou, girou e se moveu para o segundo círculo. Seus dedos rígidos fecharam-se em punhos, e as lâminas viraram martelos enquanto ele disparava socos rápidos e duros. Seus longos chutes tornaram-se curtos e repetitivos, sua velocidade e força se fundiram em puro poder. Ele era gracioso, como um dançarino, mas brutal e eficiente, como um assassino escondido em um canto.

O segundo círculo começou a brilhar. O suor brotava do rosto de Louco Rogan, apesar de sua expressão calma e serena. Ele passou para o terceiro círculo. As mãos desceram, os dedos dobraram. Eu tinha visto aquele exato movimento no dia anterior, quando ele atacou o falso bombeiro no rosto. Ele devia ter parado no começo, porque se fizesse como estava fazendo agora, teria enfiado a cartilagem do homem no cérebro.

Havia uma fluidez, uma graça magnética na forma como ele se movia. Todos os músculos que eu admirei no dia anterior eram um subproduto da jornada rumo ao seu objetivo. E o objetivo era poder. Poder puro e letal. Todo ele, sua incrível força, a velocidade inacreditável, sua flexibilidade, destreza e resistência se misturavam para alcançar uma selvageria quase animal. Os pelos dos meus braços se eriçaram. Era como assistir a uma dança primitiva da violência humana, e eu não conseguia parar de olhar. Se eu pudesse ter aquele homem só para mim... Como seria caminhar até ele, colocar as mãos em seus ombros e ver toda aquela violência condensada se transformar em luxúria?

Todos os cinco círculos brilhavam agora. Ele entrou no pentágono, de volta à posição mágica. O brilho foi ficando cada vez mais intenso, depois sumiu, como se tivesse sido sugado para dentro dele. Louco Rogan saiu do desenho, secou o suor da testa e dos braços, pegou uma garrafa de água que estava apoiada sobre o veículo mais próximo, e a tomou.

Soltei um suspiro que não sabia que estava segurando e estremeci. Senti pontadas dolorosas no pé esquerdo: estava dormente. Dei um pulinho, segurei a toalha antes que ela caísse e voltei a olhar pela janela. Ele continuava ali. O sol tinha nascido e a luz dourada iluminava o galpão, desenhando longos retângulos no chão. A luz o banhava, fazendo sua pele bronzeada brilhar. Eu não conseguia ver seu rosto, apenas o definido ângulo, aquecido pelo sol.

Se eu estivesse ao seu lado no momento, e ele se aproximasse, eu deixaria que ele fizesse o que quisesse bem ali, no capô de algum tanque.

Eu estava fora de mim. Suspirei e tentei encobrir a necessidade que pulsava em meu corpo. Louco Rogan ultrapassava todos os limites. Ele era de um mundo diferente, tinha parâmetros diferentes e tinha prometido me deixar órfã se minha mãe o ameaçasse novamente. Ok, essa última bateu. Já estava tudo bem.

Afastei-me da janela.

Eu precisava me recompor. Nada além de muitos problemas viria se me envolvesse com Louco Rogan. Ele e eu precisávamos pegar Adam Pierce, levá-lo para sua família e seguirmos nossas vidas, separadamente.

Quando desci as escadas, não conseguia encontrar Louco Rogan em lugar nenhum. Fui atrás de vovó Frida na oficina. Ela estava apoiada no veículo no qual estava trabalhando enquanto tomava seu chá matinal.

– Uma coisa ele, não? – ela me perguntou, em voz baixa.

– A senhora me viu observando?

Ela fez que sim e tirou uma mecha de cabelos do meu rosto.

– Quando foi que você cresceu tanto? Quando fiquei tão velha?

– A senhora não é velha, vó. Provavelmente é muito mais ágil do que eu.

– Tome cuidado, Nevada. – Ela suspirou. – Ele é um homem muito perigoso.

Nem me diga.

– Não pretendo ficar perto dele nem um segundo além do necessário. – Minha avó me deu um olhar estranho. – O que foi?

– Ele sabe disso?

– Sim, ele sabe. Eu já disse. Esse é um acordo puramente profissional.

Minha avó balançou a cabeça e tomou um gole de seu chá.

– E como está indo a investigação, Sherlock?

– Bem, encontramos uma peça estranha de joalheria e quase fomos explodidos.

– E o que isso tem a ver com Pierce?

– Não faço ideia. – Balancei a cabeça. – Mas estão ligados, de alguma forma. Onde está Louco Rogan?

– Bern veio pegá-lo.

Quanto menos contato Louco Rogan tivesse com meus primos, e minhas irmãs, melhor.

– Então, acho que vou atrás deles.

– Acho que sim – ela disse. – Se cuide, Nevada.

– Sempre.

– Porque ele não é o Kevin.

Virei sobre meus pés.

– Sério, vó?

– Vá. – Ela acenou.

Vovó tinha razão. Louco Rogan era distante de Kevin quanto possível.

Um minuto depois, eu estava subindo os cinco degraus da Cabana do Mal. Bern estava em sua estação de trabalho. Louco Rogan estava em pé, atrás dele. Três telas à frente de Bern mostravam o lado de dentro da floresta digital de Besouro e toda a sua glória. O próprio Besouro estava sentado na frente de um monitor central, acariciando Napoleão, largado no colo dele. Seu rosto o revelava relaxado. Ele não tremia. Seus olhos não saltavam. Ele estava completamente chapado de Equzol.

Como era possível que Louco Rogan o tivesse convencido a se ligar ao sistema de Bern? Em geral, Besouro era muito paranoico. Nos dois anos em que eu o conhecia, nunca me deu nem mesmo um número de telefone.

– ... nada mal para um sistema doméstico – Besouro estava dizendo.

– Atrás de você, isso é um servidor Strix T09x? – Bern perguntou, e Besouro fez que sim. – Que legal. Com Talon-M7?

– Olhe de novo – Besouro disse.

– Quanto Equzol isso te custou? – perguntei em voz baixa para Louco Rogan.

– Você não quer saber – ele respondeu.

Bern ampliou a imagem em um pedaço retorcido de computador.

– Não pode ser.

– Veja e chore.

Besouro ergueu um biscoito canino na frente de Napoleão. O cachorro abriu a boca e, pacientemente, esperou Besouro dar o biscoito.

Bern franziu o cenho.

– Como você conseguiu isso? O M8 só vai ser lançado em dois meses. O M9 ainda nem deveria estar em produção.

– É o que querem que você acredite. Estão esperando o chip Stryker. Quando o M8 for lançado, o preço vai subir muito e, depois, vão ficar sem valor em um mês, porque o M9, com o novo Stryker, vai inundar o mercado. Fode-pau.

– Você fica dizendo isso – Louco Rogan replicou. – Você sabe que não faz sentido?

– Por quê? – Besouro questionou.

– Não dá para foder um pau – respondeu Louco Rogan.

– Mas você pode foder com um pau – Besouro disse.

– Aí é redundante – Bern interveio.

Aquela era uma discussão que poderia seguir por horas.

– Besouro, você descobriu alguma coisa?

– Não. – Ele revirou os olhos. – Estou aqui sentado falando com vocês, imbecis, excluindo o major, porque sou uma borboleta sociável e amo muito todos vocês. – Os dedos dele dançavam sobre o teclado. – Parece que o First National armazena dois meses de suas informações de segurança e, todas as noites, descarrega em um servidor remoto. Fui atrás e voilà!

Os dados internos de segurança do banco preencheram o monitor à esquerda. Um pequeno retângulo deslizou pela tela e mostrou uma mulher magra andando sobre um piso brilhante. Seu cabelo loiro-platinado, bem tingido, uma blusa branca e um grosso colar de ouro, saia cinza, um cinto vermelho absurdamente brilhante e um par de sapatos de salto também vermelhos, acompanhados por uma bolsa de grife. Um funcionário encontrou-se com ela e a câmera capturou seu rosto quando ela se virou. Estava na faixa dos trinta anos, tinha grandes olhos cinzentos emoldurados por longos cílios postiços e uma boca fina. Uma bonita cobertura pelo polimento do dinheiro.

– Conheçam Harper Larvo – Besouro anunciou. – Tem vinte e nove anos, filha de Philip Larvo e Lynn Larvo, ambos do mercado imobiliário. Sem filiação a nenhuma Casa. Frequentou a Phillips Academy Andover, depois foi para Darthmouth, onde conseguiu um diploma em História da Arte, sendo que já vi a transcrição e não é nada boa. Harper é uma harmonizadora, como seus pais e seu avô.

Harmonizador, em termos mágicos, não tinha nada a ver com música. Um harmonizador talentoso podia entrar em uma sala e fazer com que ela passasse a ter uma energia completamente diferente ao rearranjar alguns objetos. Esse não é um talento muito raro. Os harmonizadores costumavam trabalhar como decoradores, floristas, consultores de moda, ou em qualquer esfera que precisasse de uma coordenação para o prazer estético.

– Harper está classificada como Notável, mas ela não está muito acima de Padrão – Besouro disse. – Isso é importante, mas não incrível. Seus pais também são Notáveis, e seu avô, Significativo. Sua família tem todas as contas no Central Bank há cinquenta anos. Então, o que ela está fazendo ali? Não há nenhum sinal de que tenha aberto uma conta. Afora isso, meus docinhos de coco, Harper está mais ou menos desempregada. Está estagiando em uma revista de moda, trabalha num hotel em Dallas com um tal de Sullivan que parece ser famoso e participa de algumas instituições de caridade, mas, na maior parte do tempo, ela só é linda e vai a festas. Como uma borboleta. Inútil e famosa por nada.

Meia dúzia de imagens apareceram na tela. Harper com uma taça de champanhe. Harper deitada sobre uma mesa, lindamente com as pernas para cima. Harper em um tipo de sessão de fotos, posando no sofá e fazendo biquinho para a câmera.

– E minha favorita – Besouro anunciou.

Uma imagem ocupou toda a tela. Harper rindo, seu cabelo, loiro e brilhante, encostada em Adam Pierce, lindo em sua típica jaqueta de couro. Ele tinha um braço em volta dela.

– Quando foi isso? – Louco Rogan perguntou.

– Quatro anos atrás – Besouro respondeu.

O vídeo voltou a passar e vimos Harper e o funcionário do banco caminharem até o elevador. Eles se moviam lentamente, o funcionário falava e gesticulava, como se explicasse algo. As portas do elevador se abriram e os dois desapareceram das imagens.

– E lá foram eles para a sala do cofre – Besouro declarou.

– Ela foi fazer um tour – sugeri. – Ela só precisava dizer que estava interessada, marcar uma reunião para que lhe mostrassem o banco, incluindo a sala do cofre, onde ela poderia marcar a caixa certa para Gavin.

– Você tem o telefone dela? – Louco Rogan perguntou.

– Sim, major. Enviei para o seu telefone.

Quando Besouro dizia “major”, ele dizia com o mesmo tom que as pessoas costumavam dizer “senhor”. Até agora, eu poderia jurar que Besouro nem sabia o significado da palavra respeito.

Louco Rogan deslizou o dedo pela tela de seu telefone e levou o aparelho ao ouvido.

– Aqui é Louco Rogan. Encontre-me na Galeria, ao lado da fonte de Nordstrom, em uma hora. – Ele desligou e olhou para mim. – Você quer vir?

– Claro.

– Nos encontramos na porta da frente em quinze minutos – ele avisou antes de se virar e partir.

Olhei para o rosto de Besouro no monitor.

– Quando nos conhecemos, você disse que preferiria beber água de esgoto do que voltar a trabalhar com um Superior ou alguém do Exército.

– E daí?

Apontei com o dedão sobre meu ombro.

– Ele é um Superior e era do Exército.

– Você não entende. Ele... ele é o Louco Rogan.

– Ah, não diga.

Besouro se despediu com um aceno e disse para Bern:

– Me mudo em breve, garoto. Se quiser ficar com o M9, é seu.

– Isso é muito bacana – Bern respondeu. – Qual é a pegadinha?

– Nenhuma. Consegui algo melhor, então não ache que estou sendo bonzinho. Só vai me livrar de ter que arranjar o que fazer com toda essa tralha.

A tela ficou preta.

– Louco Rogan recrutou o Besouro? – perguntei.

– É o que parece – Bern respondeu.

Ficamos nos olhando.

– Conseguiu alguma coisa a respeito do ornamento? – perguntei.

– Nada. É uma forma estranha. Cheguei a um broche japonês na forma de libélula, mas não acho que seja isso. O padrão está levemente errado.

– Você pode, por favor, continuar pesquisando? Sei que é como procurar uma agulha no palheiro, e fico muito, muito, muito grata.

– Claro.

– Não confio em Louco Rogan. Precisamos desvendar isso.

– Não se preocupe – Bern disse. – Vamos conseguir. E tenho uma coisa pra você. – Ele abriu uma gaveta e pegou um saco plástico lacrado com uma peça de metal. – É um emissor de sinal GPS.

Foi assim que Louco Rogan soube que eu tinha ido me encontrar com Adam Pierce no parque.

– Você está bem? – Bern perguntou.

– Estou – menti. – Vou me arrumar. – E pegar minha arma.

– Nevada – ele me chamou. – Esse M9 seria muito legal. Você vê algum problema?

– Se puder fazer um acordo com Besouro, vá em frente. Só tome cuidado para não ficar devendo nenhum favor que não vá poder pagar.

Saí pela porta da frente do galpão e olhei em volta duas vezes. Louco Rogan me esperava no banco do motorista de uma Range Rover perfeitamente intacta. O carro tinha sido completamente destruído algumas horas antes. Não podia ser o mesmo carro.

Vi que ele me olhava pela janela. Seus olhos estavam muito azuis naquela manhã. Uma sensação agora já familiar me tomou, dois quartos de atração, um quarto de desespero e o resto de frustração. O impacto de toda aquela masculinidade já deveria ter se dissipado. Eu já devia estar inoculada e imune. Em vez disso, ele continuava me derrubando.

Correntes, fiz questão de me lembrar ao entrar no carro.

– Você tem mais de uma Range Rover?

– Tenho várias – ele disse, com a voz calma.

– Então acho que não foi um grande problema Adam ter acabado com um dos seus carros.

– Tenho muitos iguais porque gosto do carro.

Olhei para ele. Sua mandíbula estava firme. A boca dura, uma linha. Seus olhos, sob as sobrancelhas escuras, tinham uma frieza de aço e era possível ver a raiva em seu interior. Não aquele tipo de raiva expressa, mas uma fúria determinada que fazia gelar os ossos. Meus instintos me mandavam sair do carro. Saia agora, com as mãos para o alto.

– Aquela Range Rover, em especial, era a minha preferida – Rogan disse, sua voz e sua expressão permaneciam calmas e agradáveis. – Quando encontrarmos Pierce, vou acertar as contas com ele.

Se antes o assunto não era pessoal, agora, definitivamente, era.

– Precisamos de Adam Pierce vivo – relembrei a Louco Rogan. – Você me prometeu.

– Eu lembro – ele disse, seu tom de voz indicando que não estava satisfeito com isso.

Talvez eu desse sorte, e Adam ficasse na dele hoje, porque se Rogan o encontrasse, iria matá-lo, e teria prazer em fazê-lo.

Afivelei o cinto, e o carro começou a andar. Levaríamos cerca de 45 minutos até a Galeria.

– Você conhece Harper Larvo?

– Nunca a vi – Rogan respondeu.

– E o que faz você achar que ela vá aparecer?

– Conheço o tipo dela.

– E que tipo é esse?

– O vetor fracassado. – Olhei para ele. – Seu avô era Significativo. Teve três filhos. Todos Notáveis. E os netos são Notáveis ou Padrão.

– Como você sabe?

– Verifiquei os dados da Casa enquanto Besouro estava falando. Não mencionei no momento porque ele estava fazendo um trabalho excelente e era seu momento de brilhar. É preciso deixar seu pessoal ter orgulho de um trabalho bem-feito e reconhecê-los por isso. Consegue melhores resultados.

Tudo o que Rogan fazia tinha a eficiência como força motriz, até mesmo a forma como ele tratava os empregados. Empregados felizes trabalhavam mais e eram mais leais, então ele se dava o tempo de reconhecer suas conquistas. Eu me perguntava onde eu estava na escala do reconhecimento. Provavelmente ele me considerava sua funcionária. Bom, mas eu não era. A única coisa que eu queria dele era Adam Pierce, de preferência imobilizado.

– Em cerca de setenta por cento dos casos, a magia passa de pai para filho sem uma grande alteração de nível – Louco Rogan disse. – Alguns descendentes, cerca de três a cinco por cento, apresentam um repentino avanço. O restante perde um pouco de magia a cada geração. É possível comprovar esse padrão dentro de uma mesma família. Mesmo se os pais forem Superiores, é comum haver variação de poder entre os filhos. Uma vez você me perguntou por que não se esperava de mim mais de três filhos. Essa é a outra razão. Se o primeiro filho for Superior, há grandes chances de o segundo não ser. Ainda assim, a maioria das Casas prefere que os chefes tenham ao menos dois filhos extras. Sabe do que são chamados?

– Não.

Ele olhou para mim, o rosto fechado.

– Plano B. As casas lutam entre si. Nem sempre temos as melhores expectativas de vida. Você sabe por que Adam foi concebido?

– Não. – E não tinha certeza de que quisesse saber.

– Porque Peter, seu irmão, despertou tarde. A completa extensão da magia dele não se manifestou até ele ter onze anos. Achavam que ele fosse um fiasco, e isso fazia com que sobrasse apenas Tatyana, a irmã, como Superior da Casa. Se alguém a matasse, a Casa Pierce ficaria sem um Superior. Então, correram para fazer mais um filho, só por precaução.

– Isso parece tão cínico. E sem graça.

– E costuma ser – Louco Rogan continuou. – Se o enfraquecer dos efeitos mágicos persiste em duas gerações, essa linhagem em particular se torna um vetor fracassado. Cada geração vem mais fraca que a anterior. As Casas têm um único medo, que é a perda de poder. Se eu for um vetor fracassado, quem se casar comigo sabe que os filhos que tivermos serão menos poderosos do que somos.

As peças estavam se encaixando.

– Ninguém vai chegar nem perto da Harper.

– Exato. O avô dela era um mago poderoso e isso lhe garantiu entrar para a sociedade. Ela provavelmente surgiu como uma debutante linda, certa de que encontraria o amor de sua vida e de que se casaria com alguém que a fizesse entrar para uma Casa poderosa. Com o passar dos anos, ela percebeu que os homens saíam com ela, transavam com ela, mas sempre a deixavam. Ela está com vinte e nove anos. A flor já está começando a murchar. Ela conhece a verdade, sabe que um casamento com uma Casa é impossível, mas ainda o deseja desesperadamente. Viu o avô ser parte de um círculo poderoso, viu os pais terem apenas uma fração dessa influência, e ela fará qualquer coisa para voltar ao topo. Sou um homem Superior. Sou poderoso, bonito e incrivelmente rico.

– Humilde e modesto também. – Não pude me conter.

– Isso também – ele disse sem piscar. – Ela vai aparecer. Não pode perder a chance.

– Isso é muito triste. Fico muito feliz por não ser Superior, porque vocês são uns idiotas.

Louco Rogan me deu um olhar estranho.

– O poder tem seu preço. Nem sempre queremos, mas acabamos sempre pagando. Você escolheu o poder ontem acima de vida e morte. Como se sentiu?

– Não quero falar sobre isso. – Não vou abrir meu coração com você.

– A primeira vez que matei uma pessoa, e me refiro a uma morte próxima, na qual vi a vida indo embora de seus olhos, eu esperei. Tinha lido todos os livros e visto todos os filmes, sabia o que deveria acontecer. Eu deveria me sentir mal, arrasado e depois lidar com isso. Então, fiquei ali, esperando. E não senti nada. Pensei que talvez fosse acontecer da próxima vez.

– E aconteceu?

– Não – ele disse.

– Quantas pessoas você já matou?

– Não sei. Parei de contar. Foi uma guerra dura.

Suas palavras ficaram rodando na minha cabeça. Ele havia compartilhado algo particular e pessoal comigo. Provavelmente ele não entenderia, mas eu sentia a necessidade de contar-lhe mesmo assim. Eu precisava falar com alguém.

– Senti como se eu tivesse perdido uma parte de mim. Estou com um enorme buraco no meu peito, como se algo tivesse sido arrancado dali com violência. Hoje eu estava escovando os dentes e pensei naqueles dois homens e naquela mulher. Pensei que eles nunca mais vão escovar os dentes. Não vão mais tomar café da manhã. Nem dizer olá para a mãe. Não vão mais fazer essas coisas simples. E por minha causa. Eu puxei o gatilho. Sei que eles tentaram fazer o mesmo comigo, mas me sinto culpada e sofro por mim e por eles. Algo em mim partiu para sempre. Queria ficar completa de novo, mas sei que nunca vai acontecer.

– E se em vez de encontrarmos Harper, caíssemos em uma armadilha e alguém apontasse a arma para você? – ele perguntou.

– Eu atiraria – respondi. – Seria ruim depois, mas eu lidaria com isso. Ajudaria se eu soubesse o motivo. Por que estão dispostos a matar? O que há de tão importante para Adam queimar um edifício inteiro apenas para servir de distração?

– Essa é uma boa pergunta – Louco Rogan comentou.

– Tudo isso, o banco, o prédio de escritórios, a equipe de pessoas, parece complexo demais para Adam. – Aquilo vinha me inquietando desde que tinha visto a equipe de falsos bombeiros entrar no edifício. – Ele não gosta de trabalhar e essa coisa toda parece muito bem organizada e cuidadosamente planejada. Ele não me parece um cara que se preocuparia com tanto planejamento.

Louco Rogan trocou de pista com uma precisão cirúrgica.

– Há muito tempo aprendi a apenas empregar os melhores. Escolho minha equipe com muita cautela. Eles são competentes, bem-treinados e diligentes. E no momento estão vasculhando a cidade. Tenho recursos consideráveis à minha disposição. E tenho contato com as pessoas que coordenam o submundo de Houston. – Eu não queria saber como ele tinha tudo isso. – Não estou dizendo isso para me vangloriar. Estou estabelecendo uma referência. Quando quero encontrar alguém, a pessoa é trazida para mim em questão de horas. – Louco Rogan olhou para mim. – E não consigo encontrar Adam Pierce.

Por um momento, a máscara de serenidade caiu e eu pude ver seu interior. Ele não estava apenas frustrado. Estava furioso.

– Ele se move pela cidade como um fantasma – Louco Rogan prosseguiu. – Aparece e desaparece quando quer.

Agora eu entendia por que ele se aproximou de mim. Tudo o que sua equipe fazia tinha falhado. E lá estava eu, comprando camisetas para Adam Pierce.

– Você acha que ele está sendo ocultado por um mago ilusionista? – perguntei. Ilusionistas realmente fortes podiam distorcer a realidade.

– Não por um mago. Ele está sendo ocultado por um grupo. Ocultar um alvo móvel exige esforços coordenados e treinamento especial. A equipe que derrotamos no edifício tinha esse tipo de treinamento. – Rogan fez uma careta. – Pierce não teria conexões ou o conhecimento para montar uma operação desse tamanho. Não tem dinheiro, não conhece as pessoas certas e, mesmo se, de algum jeito, conseguisse o dinheiro e os contatos, ninguém o levaria a sério. – Ele tinha razão. – Isso nem passaria pela cabeça de Adam. Ele não é um jogador de equipe. Alguém deve estar coordenando tudo.

– Quem pode ter tanta influência sobre Adam se sua própria família não consegue controlá-lo? – A ansiedade me dominava.

– Eu não sei. – Louco Rogan fechou a cara. – Talvez Harper possa nos dizer.

Seguimos em silêncio.

– Quero uma justificativa para ter acabado com a vida daquelas pessoas – eu disse, em voz baixa. – Quero saber por quê.

– Prometo para você que descobriremos o motivo – Louco Rogan disse.

Nem era preciso usar minha magia para saber que ele dizia a verdade.

A Galeria de Houston era o maior shopping do Texas. Tinha centenas de lojas, Nordstrom, Saks, duas Macy’s, e uma pista de gelo que ficava aberta o ano todo. Tinha sido construída no fim da década de 1960, por Gerald D. Hines que, por sua vez, tinha pego a ideia de Glenn H. McCarthy, o lendário explorador e magnata do petróleo de Houston, conhecido como Glenn Diamante. Desde a inauguração, em 1970, o shopping já tinha passado por muitas ampliações. Estávamos indo para a ala mais nova, Galeria IV.

O shopping estava à nossa frente, dois pisos de lojas, todo de vidro, tijolos claros, enormes claraboias abobadadas interrompidas por arcos brancos. Caminhávamos por ali casualmente. Eu estava, novamente, de jeans e camiseta, e trazia comigo minha bolsa preferida: de couro escuro, leve, pequena, fácil de carregar no ombro e com um compartimento frontal modificado que me permitia pegar a arma em uma fração de segundo. Eu levava comigo uma Kahr PM9. Com cerca de catorze centímetros, ela pesava aproximadamente meio quilo com o cartucho de seis balas. Não tinha a trava, então, estava pronta para o uso assim que eu a tirasse da minha bolsa modificada, e tinha um dispositivo externo de segurança que fazia eu me sentir melhor. Meu plano A para quando as coisas iam mal era fugir sem atirar em ninguém. O plano B era mostrar a arma e fazer a pessoa se afastar, nesse caso a última coisa que eu gostaria seria um disparo acidental. Apenas o plano C envolvia realmente disparar a arma de fogo e, considerando onde estávamos, eu precisaria ter muita certeza de que seria possível apertar o gatilho sem ferir algum inocente.

Louco Rogan caminhava ao meu lado. Ele usava um terno cinza com uma camisa preta desabotoada no colarinho. Suas roupas não eram nada elaboradas ou destacáveis. Apenas encaixavam-se em seu manequim com grande precisão e eram excepcionalmente bem-feitas. Deveríamos estar combinando um pouco mais. Não parecíamos pertencer ao mesmo grupo, mas a Galeria era a casa de uma estranha multidão. Jovens mães andavam com bebês em carrinhos e dividiam a cena com adolescentes de cabelo azul, roxo e rosa. À nossa frente, duas mulheres de meia-idade, vestindo calças caras, tinham o rosto suavizado pela magia da ilusão, chegando quase à perfeição plástica. Elas entraram em uma loja, desviando de um encontrão com um homem que usava boné e tinha o shorts sujos de tinta.

Uma jovem mulher passou por nós e reduziu a velocidade olhando para Louco Rogan. Continuamos andando e vi seu reflexo em uma vitrine. Ela continuava olhando para ele de um jeito feminino e lisonjeiro. Dois homens saíram da loja à direita e pararam, com o mesmo olhar apreciativo direcionado a Rogan. O mais jovem piscou para mim.

Pensando bem, não importava o que estivéssemos vestindo, as pessoas iriam notar nossa presença. Louco Rogan não era o homem mais bonito na Galeria. Mas sua aura? Seu ar? Seu jeito masculino ou o que quer que fosse, se manifestava. Eram seus ombros, seu jeito de andar. Como se não houvesse nada que ele não pudesse resolver. Era sua pele levemente áspera. A dureza de seu olhar. Em um mar de rostos genericamente trabalhados com a ilusão, ele se destacava, e as pessoas o observavam.

Passamos por uma loja de presentes que vendia buquês de flores em vasos de cristal. O buquê do meio tinha cravos, grandes flores de centro rosa e bordas brancas alongadas. Eu amava cravos. Tão delicados e de resistência surpreendente. Quando as rosas murchavam nos vasos, os cravos continuavam lindos. E adoro o aroma, uma fragrância delicada, fresca e levemente forte.

– O que foi? – Louco Rogan perguntou.

Percebi que tinha olhado para as flores um pouco mais do que o normal.

– Nada. É só que gosto de cravos.

A fonte da Nordstrom ficava no primeiro piso. Uma fonte redonda, com flores bem organizadas no centro. Um anel de luzes brancas subterrâneas envolviam as plantas, suavemente brilhando sob a água. Uma loira estava ao lado da fonte. Ela usava um vestido feito de tricô, com tranças roxo-escuras brilhantes formando um complexo trabalho sobre seus ombros. Eu não fazia ideia nem mesmo de como ela conseguia entrar naquele vestido, mas precisava ser sincera, ela sabia chamar a atenção. Ela estava em pé, relaxada, um pouco inclinada para trás, um pé virado para dentro, apontando para o outro naquela posição estranha que as revistas de moda gostam. O vestido caía perfeitamente em seu corpo. Se fosse um pouquinho mais justo, passaria de modelado a vulgar. Sua imagem era perfeita, a cintura fina, as pernas bronzeadas e torneadas, os seios e os quadris cheios sem serem muito grandes. Seus cabelos tinham sido tingidos de loiro-platinado para loiro suavemente avermelhado e caíam em anéis sobre os ombros. A maquiagem era leve e perfeita. Perfeita demais. Harper tinha sido enfeitiçada antes de vir nos encontrar. Nada muito óbvio, mas a pele humana costuma ter poros.

– Como facilitar para você dizer se ela está mentindo? – Louco Rogan perguntou em voz baixa.

– Perguntas de sim ou não são mais fáceis – respondi.

Louco Rogan parou na área de descanso perto da fonte e se sentou. Eu me sentei ao lado dele.

Harper veio na nossa direção, lentamente, como um gato, suas sandálias douradas de tiras e salto alto faziam um leve som ao tocar no piso ladrilhado.

– Rogan, eu presumo. – Sua voz combinava com ela, rouca. Ela se sentou em uma cadeira na frente de Rogan, cruzando as pernas e deixando uma quantidade perigosa de coxa à vista. Ela passou os olhos por ele, de cima a baixo, lentamente, fazendo uma clara avaliação e sorriu. – Gostei.

Aquilo não ia dar certo.

Harper me deu um olhar rápido e geral, e voltou-se para Rogan.

– O que posso fazer por você, Louco Rogan?

– Quando você marcou a caixa no cofre do First National – Rogan recostou-se na cadeira –, sabia que Pierce explodiria o banco?

Direto na jugular, ok, então.

Harper sorriu.

– Você me chamou aqui para falar de Adam? Eu preferiria muito mais falar de você. O que tem feito todos esses anos?

– Vou perguntar de novo: você sabia que Pierce colocaria fogo no banco? – Rogan questionou.

– E se eu não responder? – Harper ergueu a sobrancelha. – Vai fazer coisas comigo? Dizem que você é tátil. – Ela olhou para mim. – Ele é tátil?

– Não sei – respondi. Não tinha ideia do que significava ser tátil.

– Ah, vocês não transaram. – Os olhos azuis de Harper brilharam. – Não se sinta mal, acho que ele não fica com qualquer uma.

Qualquer uma? Que fofa.

Ela olhou para mim, avaliando.

– A tintura não foi malfeita, mas o resto precisa de ajuda. Principalmente os sapatos. Eu diria para usar bico fino, mas talvez você não conseguisse.

Naquele momento entendi o perfil de Harper. Ela era uma daquelas mulheres que julgava as outras pelo tipo de homem com quem estavam. Eu tinha vindo com Louco Rogan, e ela, a princípio, não sabia se estávamos competindo ou não. Quando percebeu que não éramos um casal, resolveu me diminuir, só para garantir. Aquilo era patético, na verdade.

– Responda à minha pergunta – Louco Rogan disse. Seus olhos tinham ficado mais escuros. Ele estava se irritando.

– Saí com um tátil uma vez – Harper ronronou. – Da parte Ramirez da família Espinoza. Ele não era do seu nível, mas foi... uma experiência. Ele podia tirar minhas roupas com o pensamento. Você também pode? – Ela inclinou a cabeça. – Pode tirar a minha roupa sem tocar em mim?

Louco Rogan inclinou-se para a frente, sua máscara de irritação repentinamente transformada em um sorriso.

– Claro, querida.

Ai, não. Eu já tinha ouvido aquele tom de voz antes, pouco antes de Pêssego ter sido esmagado.

– Me mostre – ela disse. – Depois eu falo tudo sobre Adam.

Uau. Ali estava um Superior que ela conhecia há trinta segundos e ela já estava falando em ir pra cama. Deus, ela realmente devia estar desesperada. Eu sentia vergonha alheia por Harper Larvo.

Louco Rogan recostou-se e sorriu. Harper devolveu o sorriso, mostrando os dentes brancos. E por que eu desenvolvi uma repentina necessidade de jogar a água daquela fonte nos dois?

Harper engasgou.

– Foi mais ou menos assim? – Louco Rogan perguntou.

Ela engasgou de novo, puxando o ar com firmeza, as bochechas vermelhas. Algo estava claramente acontecendo e eu não tinha ideia do que fosse, mas ela parecia gostar.

As tranças sobre os ombros de Harper deslizaram para perto uma da outra sozinhas. Elas foram se desmanchando, virando, para a direita, para a esquerda...

Harper engoliu em seco e arregalou os olhos, as pupilas enormes.

– Me toque mais uma vez – ela pediu.

Mais uma trança começou a se mover no meio das outras. Ele ia mesmo despi-la ali? Eu seguia o movimento. Ah, não. Ele não estava tirando a roupa dela, como ela imaginava. Ele estava tecendo um nó em torno de seu pescoço.

– Não ouse.

Louco Rogan me ignorou.

– Estou falando sério. Pare.

– Não interfira – ele disse.

– Se você estiver muito constrangida, pode esperar ao lado da fonte – Harper murmurou e olhou novamente para Rogan, seus olhos semicerrados. – Eu não esperava que você empregasse uma puritana. Você é um homem interessante... cheio de... oh, meu Deus... surpresas.

As tranças se mexeram novamente.

– Rogan!

Harper inclinou-se para a frente, como um gato pronto para receber o carinho de seu dono. Suas palavras saíram aos solavancos, sem ar.

– Dá cem dólares pra ela e manda ela ir comprar alguma coisa para nos deixar em paz... Mais, Rogan. Mais...

O nó se apertou, fechando-se no pescoço de Harper. Ela buscava ar, a boca aberta.

– Você não pode estrangulá-la!

– Claro que posso.

Harper se agarrava no vestido, puxando-o de seu pescoço, tentando liberar a garganta.

Peguei a arma da minha bolsa e apontei para a perna de Louco Rogan.

– Solta ela ou atiro em você.

Ele se virou para mim, genuinamente confuso.

– Você vai atirar em mim?

– Para salvar a vida dela, vou. – Mesmo isso significando que ele acabaria comigo no minuto seguinte. – Deixe-a ir.

O rosto de Harper estava vermelho como uma ameixa. Ela lutava, as costas rígidas.

Louco Rogan me encarou. Olhar em seus olhos era como olhar diretamente para dentro do dragão.

– Por favor, deixe ela ir. – Destravei a arma.

O nó em volta do pescoço de Harper se afrouxou. Ela se sentou novamente, buscando por ar. Lágrimas escorriam de seus olhos.

– Olhe para mim. – Louco Rogan aproximou-se. Suas palavras tinham um claro desprezo. – Você sabia que Adam explodiria o prédio?

– Sabia! – Harper engasgou. – Sim, eu sabia, seu doente!

Verdade.

– Você sabe o que tinha na caixa?

– Não!

Verdade.

– Você sabe o que estava no prédio ao lado do que foi incendiado por Adam ontem? – perguntei.

– Não!

Verdade.

As pessoas olhavam para nós. Sangue escorria dos cortes que Harper tinha feito em seu próprio pescoço ao tentar soltar o nó.

– Você sabe o que Adam está planejando? – perguntei.

– Você acha que o Adam planeja alguma coisa? – Ela olhou para mim. – Ele só quer tacar fogo nas coisas! Ele é só uma vaca do rebanho O’Reilly. É um meio para um fim. Vocês não têm ideia do que está por vir. Em breve, a Mudança vai ocorrer e a única coisa que vai importar é do lado de quem você está. Eu vou estar no topo. Você, sua vadia, vai queimar no inferno com esse pervertido imbecil! Espero que vocês sofram.

Harper se levantou e saiu correndo, em meio a soluços. Um grande painel de propaganda pendurado sobre a ponte do segundo piso se movia lentamente à medida que ela se aproximava, prestes a cair. Se caísse sobre ela...

– Não. – Coloquei a mão sobre o braço de Louco Rogan.

O painel parou. Harper passou correndo por debaixo da ponte e entrou no shopping com o celular no ouvido. Travei o dispositivo de segurança e guardei a arma novamente.

– Você teria atirado em mim por causa dela? – Louco Rogan perguntou.

– Você não pode simplesmente matar as pessoas.

– E por que não?

– Porque é moralmente errado. Ela é uma pessoa. Um ser humano vivo, que respira.

– Moralmente errado de acordo com quem? – ele perguntou.

– De acordo com a maioria das pessoas. É contra a lei.

– E quem contaria para a lei? – ele perguntou. – Eu poderia tê-la esganado e depois jogado o corpo sobre esses arcos acima de nós. Ninguém descobriria por dias, até pedaços do corpo dela começarem a cair.

– Ainda assim é errado. Você não pode matar as pessoas porque elas te incomodam.

– Você continua dizendo que eu “não posso”.

– Você não deve. – Era como conversar com um ser alienígena.

Ele se recostou e me examinou.

– Eu ajudei e protegi você. Mais, você precisa que eu pegue Pierce. Então você tem interesses financeiros e emocionais em manter uma relação profissional comigo. Sou importante para você. Ela insultou e diminuiu você. Ela é um ser humano completamente inútil. Em cinco anos, ela vai estar fazendo exatamente o que faz agora, indo a festas, dando assunto para jornais de fofoca e reclamando da mãe dela para as amigas, exceto que as festas não vão ser tão bacanas e as menções nas colunas não vão ser mais tão frequentes. Ela não contribui com nada.

– Você está tentando fazer eu me sentir culpada por protegê-la? – perguntei.

– Não. Estou tentando entender. Você não se incomodou com ela.

– Eu me incomodo com as pessoas que ensinaram a ela que o único objetivo na vida dela é se vincular a alguém com mais poderes mágicos. Me incomodo por ela achar que, por ter um pouco de dinheiro, pode diminuir os outros. Mas não me sinto ameaçada por ela, no final das contas. Rogan, eu tenho meu próprio negócio. Sou boa no que faço. Tenho sucesso suficiente para manter um teto sobre nossas cabeças e para ser respeitada pelos meus colegas. Minha família me ama incondicionalmente. E quando um homem estranho liga e me manda estar em algum lugar, eu não largo tudo e vou correndo. Eu sou livre. Vivo minha vida e faço minhas escolhas. Não estou tentando, desesperadamente, ganhar a aprovação das pessoas que acham que não valho nada porque não tenho poderes mágicos o suficiente ou porque fracassei em atingir suas expectativas. Você não acha que se Harper fosse sincera consigo mesma por um minuto ela preferiria ser eu?

– Você está dando muito crédito a ela. Harper pode mudar a vida dela a qualquer momento – ele retrucou.

– Ainda assim você não pode matá-la.

– Sim, eu posso. Eu não ia fazer exatamente isso agora porque queria a informação, mas seu argumento de que eu não deveria não tem embasamento. Você entende que ela participou de um incêndio que tirou a vida de um homem?

– Você não pode matá-la porque é contra a lei. Porque você vive neste país e as leis se aplicam a você também, independentemente de sua capacidade mágica. Deixamos a polícia resolver as coisas. Temos um sistema judiciário. Porque sair matando as pessoas aleatoriamente apenas porque fizeram algo que você não gostou faz com que você seja o vilão.

Seus lábios se curvaram. Uma leve faísca de diversão brilhou em seus olhos e Louco Rogan soltou uma gargalhada.

Joguei as mãos para o alto e me levantei.

– Cansei de falar com você.

Ele se levantou, rindo.

– Poderíamos ter tirado mais informações dela se você tivesse me deixado apertar o pescoço só mais um pouco.

– Acho que conseguimos o tanto que poderíamos conseguir. Você a humilhou. Acho que vocês estavam, de alguma forma, dando uns amassos, e depois você quase a matou. Ela vai ter medo disso para sempre.

– E se ela tivesse tentado me enforcar?

– Eu teria atirado nela. Talvez teria alertado antes. Não sei. – Franzi o cenho. – Bom, sabemos que ela está envolvida. E ela não sabe o que tinha na caixa.

– Provavelmente só disseram o suficiente para ela aceitar participar – Louco Rogan disse. – Mas ainda assim poderíamos ter conseguido mais.

Balancei a cabeça.

– O que foi?

– Rogan, eu não sou idiota. No momento, você provavelmente já grampeou o carro dela e o telefone, e colocou alguém dentro do computador dela também. Você a aterrorizou e sabe que ela vai dar as informações para os superiores dela e seu pessoal vai ter acesso à conversa.

Ele riu de novo.

Peguei o telefone e mandei uma mensagem de texto para Bern, pedindo que ele buscasse na rede alguma informação sobre a Mudança. Então, parei. Ela disse que Adam era apenas uma vaca do rebanho O’Reilly. Será que ela quis dizer O’Leary? Alguém chamou Adam assim e ela ouviu errado, talvez?

Seguimos para a saída mais próxima. A multidão tinha diminuído. Éramos apenas eu e ele.

– O que é um tátil? – Eu não deveria estar fazendo essa pergunta.

Ele ficou pálido, não respondeu.

Devo tê-lo deixado desconfortável.

– Esquece. Entendo que é algo pessoal. Não deveria ter perguntado.

– Não. Só estou pensando na melhor forma de explicar. Meu pai sobreviveu a nove tentativas de assassinato. A Casa Rogan sempre teve muitos inimigos. Se podemos ver uma ameaça, podemos lidar com ela, mas nem sempre é possível ver um atirador escondido na noite. Meu pai era obcecado por compensar o que ele percebia como fraqueza. Queria um filho com poderes telepáticos além de seus próprios poderes telecinéticos, então, depois de muita avaliação, encontrou minha mãe. Ela possuía um talento telecinético secundário, e era uma telepata poderosa. Meu pai teve de ir até a Europa para encontrar a combinação certa de genes.

– De onde sua mãe veio?

– Da Espanha. Ela era basca. Meu pai queria que eu tivesse um talento secundário e que eu fosse um telecinético sensato, alguém que percebesse quando estava sendo observado ou alvejado. Mas meu poder telecinético se provou muito forte, então, em vez disso sou um tátil. Posso fazer você se sentir tocada – ele parou. – Seria mais fácil se eu demonstrasse. Tenho permissão?

Sim.

– Não. – Ser tocada por Louco Rogan não era uma boa ideia.

Continuamos andando. Como seria?

– E dói?

– Não.

Como seria? Como seria sentir... Ah, droga.

– Ok – parei. Estávamos em frente a um recuo na parede. Não havia ninguém por perto. Se eu fizesse um papel ridículo, ninguém saberia. – Só uma vez.

Um calor suave tocou meu pescoço. Nunca havia sentido algo assim. Era como se alguém me tocasse com uma luva de pele, mas o toque era suave e firme. Era... era...

O calor desceu de meu pescoço, rápido, por minha coluna, deixando cada nervo em chamas antes de sumir no fim das minhas costas. O eco pulsava por todo o meu ser. Meu corpo cantava.

Ele tinha me tocado. Eu o queria. Eu o queria agora.

– Isso foi... – Vi seus olhos, e as palavras sumiram.

Toda a dureza tinha sumido de seus olhos. Eles estavam vivos e aquecidos.

– Você me quer.

– O quê?

O calor mágico deslizava por meus ombros, dissolvendo-se em puro prazer.

– Eu sinto o feedback. – Ele deu um passo na minha direção, sorrindo. – Nevada, você é uma mentirosa.

Ai. Recuei.

– Que feedback?

– Quando faço isso... – O calor passou por minhas costas e costelas. Engasguei. Ai, senhor. – ... o que você sente volta para mim. Sou em partes um empático.

– Você não mencionou isso. – Meu coração estava se esforçando ao máximo para sair do meu peito, e eu não sabia dizer se era medo, desejo ou uma estranha mistura entre os dois.

Ele riu, aproximando-se.

– Quanto mais quente você fica, mais quente eu fico. E você está pegando fogo.

Minhas costas encostaram na parede. Ele se aproximou com uma intensidade quase aterrorizante. Seu corpo musculoso me prensou.

– Rogan – alertei.

Na minha mente, uma música tocava repetidamente, cantando para mim com uma voz sedutora: Rogan, Rogan, Rogan, sexo... quero...

– Lembra daquele sonho que você teve? – Sua voz era baixa, autoritária.

– Rogan!

Aquele delicioso calor percorria meu pescoço.

– No que eu estava sem roupa?

O calor se dividiu e se espalhou por meu corpo, pelos sensíveis nervos na parte de trás do meu pescoço, meu colo, pelos meus seios, envolvendo-os e indo para as pontas, enrijecendo meus mamilos, e descendo, pela minha barriga, na lateral do meu corpo, no meu quadril, no meio das minhas pernas. Estava em todo lugar ao mesmo tempo e fluía por mim como uma cascata de êxtase sensual, sobrecarregando meus sentidos, encobrindo minha razão e me deixando sem palavras. Eu lutava contra isso, tentando superar as sensações, mas falhava. Minha cabeça girava.

Ele estava bem ali, másculo, quente, sensual, incrivelmente sensual e eu queria senti-lo. Queria suas mãos em mim. Queria que ele pressionasse seu corpo contra o ponto dolorido no meio das minhas pernas.

Seus braços se fecharam em torno de mim. Seu rosto estava muito perto; seus olhos eram sedutores, atraentes, excitados.

– Vamos falar daquele sonho, Nevada.

Eu estava presa. Não tinha para onde ir. Se ele me beijasse, eu derreteria. Eu gemeria e imploraria por ele. Eu faria sexo com ele bem ali, na Galeria, em público.

Um ponto de dor percorreu meu braço por puro instinto. Peguei no ombro dele. Uma luz leve disparou e o atingiu.

Meu corpo explodia de agonia, que me limpava como se fosse uma ducha gelada.

O corpo dele se contorceu, como se tivesse sido atingido por uma corrente elétrica. Durou apenas um segundo e eu não usei toda a força que deveria. Eu estava aprendendo a controlar aquilo.

Rogan se reaproximou de mim, seus olhos ferozes. Sua voz, um grunhido.

– Isso era pra ter machucado?

– Era para chamar sua atenção. – Empurrei-o. – Você estava ficando muito animadinho.

– Um “não” teria sido suficiente.

– Eu não tinha certeza disso. – Afastei-me da parede e fui na direção do carro. – Eu disse “uma vez”. Foi bem mais do que uma vez. Eu queria que você parasse.

– Fui incentivado por você gemendo meu nome.

Girei nos calcanhares.

– Não gemi seu nome. Eu estava gritando de pânico.

– Foi o grito mais rouco e sexy que já ouvi.

– Você precisa sair mais. – Minhas bochechas queimavam.

– Os dispositivos de choque precisam de seis meses de treinamento e, às vezes, matam quem os usa. Por que você os implantou?

– Porque você me sequestrou.

– Essa é a coisa mais estúpida que já ouvi.

– Senhor Rogan. – Deixei minha voz gelada. – O que eu coloco no meu corpo é problema meu.

Ok, aquilo não tinha soado bem. Desisti e atravessei a porta para ver o sol. Aquilo tinha sido muito idiota. Claro, tente seu toque mágico sexual em mim. O que poderia acontecer? Meu corpo ficou todo aceso, envolto em desejo e ansiedade. Eu tinha feito um papelão. Se eu pudesse me enfiar num buraco, era isso o que faria.

– Nevada – ele chamou, atrás de mim.

Sua voz percorreu meu ser, misturando comando e sedução, prometendo coisas que eu realmente queria.

Você é uma profissional. Aja como uma. Juntei todas as minhas forças e consegui responder com calma:

– Sim?

Ele chegou perto de mim.

– Precisamos conversar sobre isso.

– Não há nada para conversar – respondi. – Meu corpo teve uma resposta involuntária à sua magia. – Apontei para o cartaz de Crash and Burn II na parede do shopping, no qual Leif Magnusson aparecia com duas armas, envolto em chamas. – Se Leif aparecesse no meio deste estacionamento, meu corpo também teria uma resposta à presença dele, mas não significa que eu fosse tomar alguma atitude a respeito.

Louco Rogan olhou para Leif com desprezo e voltou-se para mim.

– Dizem que admitir que você tem um problema é o primeiro passo para a recuperação.

Ele estava mudando de tática. Não ia funcionar.

– Você sabe qual é meu problema? Meu problema é um homicida pirocinético Superior que eu preciso levar de volta para sua família narcisista.

Percorremos o grande estacionamento. Divisores gramados com algumas pequenas árvores separavam o pátio em vagas. E Louco Rogan tinha parado no fim delas, perto da rampa de saída.

– Há uma linha de pensamento que diz que a melhor maneira de lidar com um assunto como este é a terapia de exposição – disse ele. – Por exemplo, se você morre de medo de cobras, lidar com elas várias vezes vai curá-la.

Tá bom.

– Não vou lidar com a sua cobra.

Ele riu.

– Querida, você não conseguiria lidar com a minha cobra.

Enfim entendi. Louco Rogan, o Huracán, tinha acabado de me dar uma cantada. Depois de quase ter estrangulado, casualmente, uma mulher em público. Mandei uma mensagem de texto para Bern: “Preciso que me pegue na Galeria IV”. Entrar no carro de Rogan estava fora de cogitação.

À nossa frente, uma SUV cinza parou em uma vaga e do carro desceram três pessoas. Dois homens de bermudas e camisetas e uma mulher de vestido. Eles começaram a andar na direção do shopping. Na nossa direção. Eles se moviam decididos, tinham um propósito, cada passo era calculado.

Meus instintos me alertaram.

– Rogan. Três pessoas à frente.

– Estou vendo.

O som do motor de um carro me fez olhar por cima do ombro. Um sedã azul veio na nossa pista e parou. As portas se abriram, e um homem mais velho, de cabelos curtos e grisalhos, com calças cáqui e camisa branca, desceu de um lado, enquanto uma mulher de vestido branco desceu pelo outro.

O tempo parou. As coisas aconteceram todas de uma vez, num espaço mínimo de tempo. Um segundo absolutamente repleto de tensão.

O capô do carro se soltou e foi para o lado, como um frisbee, cortou a mulher e seguiu voando.

Peguei minha arma.

O homem bateu as mãos e faíscas azuis brilharam, atingindo direto o peito de Rogan.

Disparei dois tiros. As balas foram para o rosto do mago, abrindo dois buracos vermelhos e úmidos em seu crânio.

Rogan caiu como uma árvore cortada.

A parte de cima do corpo da mulher caiu para trás, uma enorme ferida aberta em sua cintura, como uma boca aberta e vermelha. Ela caiu.

Disparei mais dois tiros contra o para-brisa.

O carro deu marcha à ré. Suas rodas passaram por cima do corpo estrebuchante da mulher.

Virei-me e disparei meus dois últimos tiros contra o trio que vinha em nossa direção. Eles se esconderam atrás dos carros.

Peguei Rogan pelas pernas e o puxei para um vão estreito entre um Tahoe preto e um Honda vermelho.

Alguém apertou o play no invisível controle remoto divino. Repentinamente, o tempo voltou a correr. Peguei um cartucho extra de munição, soltei o antigo e encaixei o novo de forma automática. Seis balas. O mago da luz e a mulher estavam no chão, mas os outros três e o motorista do carro permaneciam vivos. Seis balas, quatro pessoas. A matemática não estava a meu favor.

O medo se movia dentro de mim como um animal vivo. As pernas e os braços de Rogan se moviam, em espasmos. Por favor, Senhor, não deixe que isso seja para sempre.

Se ficássemos ali, seríamos um alvo fácil. Eles viriam em nossa direção e eu não tinha ideia do tipo de magia de que dispunham. As balas não seriam suficientes.

Eu precisava tirá-los do caminho.

Abaixei a arma e empurrei Rogan, tentando colocá-lo debaixo do Tahoe. Seu corpo mal se moveu. Ele era muito pesado. Empurrei-o pelo asfalto. Rogan se moveu um centímetro. Mais um. O que ele comia de jantar? Tijolos? Chumbo? Empurrei com toda a minha força. Enfim, ele entrou embaixo do carro.

Peguei minha arma, fiquei agachada e corri por entre os carros estacionados, na direção do shopping, socando os capôs dos carros. Um, dois, três... vamos, eram só SUVs, Cadillacs e BMWs, algum deles deveria disparar o alarme... Quatro, cinco... Eu precisava do barulho. Bati em mais um capô, um Pontiac Aztek laranja, bem chumbado e com o para-choque todo amassado. O alarme do carro começou a berrar. Sério? Todos aqueles carros e alguém colocou o alarme em um Aztek? Bom, tudo bem, melhor assim. Continuei me movendo, tomei ar e gritei:

– Socorro! Socorro! Socorro!

Venham atrás de mim, seus malditos.

– Socorro!

Um homem mais velho, de cabelos brancos e com óculos de armação aramada se aproximou entre os carros, seu rosto avermelhado estava confuso. Ele usava calça preta, camisa branca e uma gravata escura com flores vermelhas e douradas estilizadas. Trazia uma caneca de café da Starbucks na mão direita.

– Você está bem? – Ele olhou para mim.

Já devia ter passado dos sessenta havia uma década. Por que eu não podia atrair um jovem bom samaritano?

– Não é seguro! – Acenei para ele. – Saia daqui!

– O que está acontecendo?

– Saia...

O homem jogou o conteúdo da caneca em mim. Um monte de fios de cobre enrolados em uma bola, que refletiu a luz do sol e bateu no meu peito. Os fios se soltaram da bola, prendendo meus braços, minha perna, meu pescoço, e me tiraram o equilíbrio, fazendo-me cair entre os carros. Os fios chicotearam, prendendo-se ao suporte de bicicleta de uma SUV e esticando meus braços. Fiquei pendurada entre uma SUV e uma pequena árvore que crescia no divisor gramado. Meus pés mal tocavam o chão. O fio em volta de meu pescoço se retesou, deixando-me sem ar.

O senhor aproximou-se entre os carros, os fios saindo da caneca em suas mãos.

– Shh – ele disse. – Não lute, só vai piorar.

Ele levou a mão ao ouvido esquerdo. Uma escuta. Não havia visto antes. Seu cabelo a havia ocultado. Estúpida, estúpida, estúpida.

– Estou com ela. – Ele tirou a mão do ouvido e olhou para mim. – Me dê a arma.

Eu tentava puxar um pouco de ar. Eu não lhe daria a arma. Ele precisaria pegá-la.

– Vamos. – O homem esticou a mão sob meu punho direito. – Apenas solte. Seja uma boa garota.

Acho que não.

O velho apertou a caneca, e os fios no meu pescoço se tensionaram ainda mais. Tentei gritar, mas apenas consegui um gemido abafado.

– Sempre do jeito mais difícil, não é? Tudo bem.

Ele se aproximou. Sua mão fechou-se em volta da Kahr. Eu larguei a arma e agarrei seu punho. A dor desceu por meu ombro e deixei que se transformasse em agonia. A luz suave chegou até ele e o velho se curvou para trás, a sua coluna rígida. Seus olhos reviraram-se. Sua boca começou a espumar. Soltei seu punho e ele caiu de joelhos, tombando, depois, de cara, contra o chão.

Os fios se soltaram. Caí no chão e enfiei as mãos nas tiras de metal que apertavam meu pescoço, deixando-a mais frouxa. Ar. Bom e delicioso ar. Um fluido vermelho brilhante manchava meus dedos. O sangue era meu. Os fios deviam ter me ferido.

Eu precisava sair dali. Os outros estavam vindo. Olhei para a frente. Um sedã prateado vinha na minha direção. Eu via tudo com extrema clareza, cada detalhe, como se estivesse olhando para uma enorme imagem em alta definição: os faróis, as janelas escuras, o capô brilhante, o topo do carro ao se virar antes de me atingir. Não havia tempo para correr. Não havia tempo para nada.

Estou morta.

Ergui as mãos por reflexo.

O carro parou a poucos centímetros. Ele fez um forte barulho, o metal virando, e pude ver Louco Rogan. Sua ira era inacreditável e monumental.

O carro passou por ele, na direção dos atacantes. A mulher de vestido tentou se esquivar do veículo, mas ele a atingiu e a derrubou.

Tirei o restante dos fios de meus tornozelos e pulsos e levantei.

O carro passou por cima do corpo da mulher, cantando pneus no asfalto, virou e pegou o homem mais alto. Ele caiu e o carro passou por cima dele também, esmagando-o. O veículo foi na direção do terceiro homem, que vestia uma camiseta azul-escura. O homem saltou, como se tivesse asas e pousou sobre o topo do sedã, sobre um pé, perfeitamente em equilíbrio.

– Você está bem? – Louco Rogan perguntou.

– Vou sobreviver – respondi ao pegar minha arma.

O sedã estava no ar, girando. O homem corria sobre o carro em movimento como um lenhador em uma competição em cima de um tronco boiando na água. Ele saltou entre os carros e veio em nossa direção, correndo entre os carros como se fossem terra firme.

Eu o avistei e apertei o gatilho. O para-brisa da caminhonete branca, à direita, se quebrou. A bala pegou bem no meio do vidro e ricocheteou. Adorável.

– Um mago do vento.

Louco Rogan uniu as mãos e as afastou. O capô de dois carros próximos voou até o mago. O aerocinético se esquivou, com a graça de um bailarino, e socou o ar. Louco Rogan saltou para a direita. No asfalto ao meu lado, abriu-se uma rachadura de alguns centímetros. A segunda abertura foi a cinco centímetros do pé de Rogan. Puta merda.

Os dois capôs vieram até nós como escudos. Qualquer coisa menor teria sido levada pelo mago do vento. Qualquer coisa mais pesada seria muito lenta para atingi-lo. Ardil 22.

Louco Rogan pegou um giz.

– Desenhe um círculo de amplificação em torno de mim.

Peguei o giz. O círculo de amplificação era o nível mais básico da magia. Um pequeno círculo em torno dos pés do mago, um maior em volta deste, três sequências rúnicas. Só que eu nunca tinha tentado desenhar um no asfalto enquanto um mago do vento mandava rajadas invisíveis contra nós.

O capô em frente a Rogan se dividiu, fazendo um barulho alto. Uma linha vermelha surgiu em seu peito. Ele fazia caretas. Os capôs começaram a girar em volta de nós, cada vez mais rápido.

Terminei o círculo menor. Não estava perfeito, mas estava redondo.

Algo atingiu os capôs, parecia granizo. O mago não podia nos ver, mas nós também não podíamos vê-lo.

Terminei o segundo círculo.

Mais um golpe de rajadas de vento com granizo, dessa vez vindo da direita. O aerocinético tinha nos encurralado.

Desenhei as runas.

– Pronto.

Um pouco da poeira do giz se soltou das linhas e tomou o ar.

Rogan se curvou, os braços dobrados. Uma veia saltou em seu pescoço.

Os capôs continuavam a girar. Se eu fosse um mago do vento, tentaria conseguir uma queda sobre nós...

Olhei para cima. Uma figura graciosa planava sobre nós no céu.

– Lá em cima! – gritei.

O aerocinético ergueu os braços. Estávamos completamente vulneráveis. Um ônibus de viagem bateu contra o mago. Eu consegui ver seu rosto contra o para-brisa do ônibus, como um inseto, os olhos selvagens. O ônibus caiu no chão bem na frente do shopping, afundando-se meio metro na calçada, mas permanecendo quase inteiro.

Louco Rogan sorriu, como um gatinho que acabava de conseguir roubar algo da pia.

– Magos do vento. São lindos dançarinos até você jogar algo pesado em cima deles.

Eu olhava para o ônibus como uma idiota, ainda segurando o giz em meus dedos. Um pneu de carro era algo pesado. Ele tinha jogado a merda de um ônibus!

Meus pulsos e tornozelos sangravam. Meus joelhos também, devia ter me ferido enquanto tentava desenhar os círculos. Até aquele momento, em um único dia, eu tinha visto uma mulher quase morrer, tinha atirado em uma pessoa e matado outra usando meu choque, tinha ficado presa por arames e quase tinha sido esmagada por um carro. Agora, estava toda ensanguentada. E se eu pudesse, daria um belo soco na cara do dia de hoje.

O Civic preto de Bern chegou ao estacionamento e desviou para não bater no ônibus.

Louco Rogan olhou para minhas linhas.

– Esse é o pior círculo mágico que já vi. Você desenhou de olhos fechados?

Já era demais. Joguei o giz nele, levantei e fui até o Civic. Entrei no carro.

– Vamos, Bern, por favor.

Meu primo não falou nada do sangue, do ônibus ou de Louco Rogan. Ele acelerou e fomos direto para casa.


Bern dirigiu com precisão, respeitando todas as leis e regulamentações de trânsito. Leon e Arabella, ambos tinham permissão de aprendiz. Cinco minutos no carro com qualquer um deles era suficiente para meus cabelos ficarem brancos, mas com Bern era absolutamente tranquilo. Ele tinha feito um cálculo simples: o valor de uma multa de trânsito em Houston variava de 165 a 300 dólares e acabaria com o seguro dele. E Bern não tinha 165 dólares para gastar.

Três carros da polícia, com as sirenes berrando, passaram na pista oposta. Bom. Até onde eu sabia, Louco Rogan podia lidar com eles e me deixar em paz.

– Lembra que você me disse que o grande incêndio de Chicago tinha sido iniciado pela vaca da senhora O’Leary? Seu professor tem algum tipo de teoria alternativa para isso?

Bern me deu um olhar engraçado.

– Você viu o ônibus enfiado no chão?

– Eu não quero falar sobre o ônibus.

– Ok – Bern disse, com a voz calma. – Não precisamos falar sobre o ônibus. Podemos, em vez disso, falar sobre a vaca.

– Tem alguma chance de podermos falar com seu professor?

– Professor Itou? Claro. Acho que ele tem horários de atendimento hoje. Confirmo quando chegarmos em casa. Por quê?

– Uma coisa que Harper disse. Ela chamou Adam de sagrada vaca do rebanho O’Reilly. Acho que ela quis dizer O’Leary.

– Ela deve ter usado no sentido figurado.

– Claro, mas quero seguir essa pista e ver aonde leva. Foi muito aleatório e não tinha conexão com nada.

– Sem problemas, cuido disso – ele disse. – Ligaram da MII. Duas vezes. Parecia ser algum problema. Querem que você ligue de volta.

Entendido. A Casa Pierce não estava feliz com o fato de Adam ter colocado fogo em um prédio de escritórios e, provavelmente, cobraram Augustine Montgomery. Agora, ele iria me cobrar. Era merda no ventilador.

Eu precisaria ligar para Augustine Montgomery. Mas não estava ansiosa para fazê-lo.

Os cortes no meu pescoço e nos meus pulsos eram superficiais. Catalina me ajudou a higienizá-los e passou Neosporin. Não tive muita chance de me recuperar. Bern logo chegou com os horários de atendimento do professor Itou, que era entre duas e quatro da tarde. Arrumei a maquiagem e o cabelo, coloquei um terninho – não um dos caros, mas um cinza, simples e já batido –, entrei no carro e fui até a Universidade de Houston.

Encontramos o professor Itou em seu escritório, no departamento de História. Havia alguém com ele, então, ficamos aguardando, sentados na recepção, impacientes. Estudantes passavam de um lado para o outro com suas mochilas e bebidas cheias de cafeína. Todos pareciam tão jovens. Eu não era tão velha, mas, por alguma razão, me sentia uma anciã. Acho que só estava cansada.

Mesmo quando eu estava na faculdade, as pessoas me pareciam jovens. Eu tinha um trabalho de período integral. Ir para a faculdade, para mim, significava entrar, sentar, fazer o que tinha que fazer e ir embora o mais rápido possível. Fui a uma festa e só porque tinha uma quedinha por um cara da minha turma de Organização da Justiça Criminal e Administração. Ele tinha olhos castanhos enormes e cílios absurdamente longos. Sempre que piscava, era uma experiência. Saímos três vezes, concordamos que era uma má ideia e nos afastamos. Depois, comecei a namorar Kevin. Ele era um ótimo cara e fez meu primeiro e meu segundo ano de faculdade serem incríveis. Eu ficava muito à vontade com ele. Kevin tinha aquele jeito de me deixar confortável e quase nunca mentia para mim. Nós conversávamos, saíamos, o sexo era bom e fazíamos tudo o que um casal jovem costuma fazer. Eu achava que me casaria com ele. Não que ele ou eu tivéssemos feito o pedido, mas na época, eu me via casada com ele. Não era um relacionamento selvagem, dramático, de fazer o coração sair pela boca. As pessoas começaram a dizer que parecíamos um casal de velhos depois de três meses juntos. Kevin era sólido como uma rocha. Estar com ele era muito fácil. Não havia pressão.

Minha mãe não gostava dele. Achava que eu estava namorando por conta da morte do meu pai, que tinha acontecido menos de um ano antes, apenas para me estabilizar. Na época eu não achava isso. Então, no último ano, Kevin foi aceito em um programa da CalTech. Ele me convidou para ir com ele para Pasadena. Eu disse que não podia. Minha família estava aqui, minha empresa estava aqui, eu não podia abandonar tudo. Ele disse que entendia, mas que não podia perder a oportunidade. Nenhum dos dois ficou muito chateado com a situação. Não houve um rompimento triste, não houve choro. Eu fiquei chateada nos primeiros fins de semana e depois passou. Kevin agora estava em Seattle, trabalhando para uma empresa de engenharia. Ele se casou e sua esposa teve gêmeos, agora com seis meses. Vi no Facebook. Fiquei um pouco triste mas, no geral, estava feliz por ele.

Este era o ponto, enquanto eu estava na faculdade, não fazia todas aquelas coisas típicas. Nunca fui de uma irmandade. Não pertencia aos clubes. Se eu chegasse em casa ao amanhecer, era por ter feito algum trabalho de vigilância. As pessoas falam da experiência na faculdade, e eu realmente não faço ideia do que querem dizer.

Olhei para Bern.

– Ei. Sabe, se você quiser entrar para uma fraternidade, você pode.

Meu primo enrugou as sobrancelhas grossas. Ele se aproximou e, cuidadosamente, colocou a mão na minha testa para ver se eu tinha febre.

– Estou preocupado com você.

– Estou falando sério. – Afastei a mão dele. – Não quero que sinta como se tivesse perdido alguma coisa.

Ele apontou para si mesmo.

– Programador e mago cibernético. Nós não entramos em fraternidades. Nos escondemos em nossas tocas no escuro e florescemos sob o brilho das telas de computador.

– Como cogumelos?

– Isso mesmo. Exceto pelo fato de que cogumelos não florescem. Eles produzem esporos.

A porta do escritório do professor Itou se abriu e uma garota de cabelos escuros presos em um rabo de cavalo saiu balançando um bloco de papéis. Ela olhou para nós.

– Ele pode ficar com o B dele. Um B! Foi o melhor ensaio da classe! – Ela seguiu pelo corredor.

Bern segurou a porta antes que se fechasse.

– Professor? Mandei um e-mail mais cedo.

– Entre – respondeu uma alegre voz masculina.

Professor Itou tinha aproximadamente minha altura e uns quinze anos a mais do que eu. Era atlético, forte e compacto, e tinha olhos escuros e fundos. Parecia cheio de energia ao apertar minha mão, quando se sentou atrás de sua escrivaninha, emoldurado por uma estante cheia de livros até o teto. Sua expressão era amigável.

– O que posso fazer por você, senhorita Baylor?

– Eu gostaria de saber mais sobre sua teoria a respeito do grande incêndio de Chicago. Bern mencionou que o senhor não acha que foi a vaca quem deu início a ele.

Professor Itou sorriu, cruzou as pernas e bateu com os dedos no joelho. Sua expressão era a de alguém que ouviu uma boa piada e continuava rindo por dentro.

– Não é algo que costume ser falado nos círculos de historiadores. De fato, minha pesquisa sobre isso me fez alvo de piadas não muito gentis. Acadêmicos... – Ele abriu os olhos, fingindo pavor. – Bestas do mal. Abrem sua garganta se você não for cuidadoso.

Bern riu. Eu entendia por que meu primo gostava dele. Os acadêmicos claramente não o levavam a sério.

– Estou armada – avisei. – E se nos metermos em problemas, podemos colocar Bern na frente da porta. Ele consegue segurar todos os acadêmicos. Ninguém vai entrar.

Os olhos do professor Itou brilharam.

– Você tem certeza de que quer saber de tudo? Porque não me perguntam muito a esse respeito e, quando começo a falar, me animo e demoro a parar.

Peguei o gravador.

– Sim, por favor.

– Prepare-se para ficar surpresa. – Ele se recostou. – Primeiro, os fatos básicos. Era o ano de 1871 e o verão estava muito seco. Chicago, que era em sua maioria de madeira, assava no calor e na secura. No domingo, dia 8 de outubro de 1871, a noite caiu e todos foram dormir. Alguns minutos depois das nove horas da noite, Daniel “Pegleg” Sullivan viu um incêndio pela janela do celeiro de seus vizinhos, Patrick e Catherine O’Leary. Ele soou o alarme e correu para salvar os animais. Os bombeiros foram notificados, mas tinham passado todo o dia anterior apagando um grande incêndio e estavam cansados. Foram para o bairro errado e, quando chegaram ao local correto, o fogo estava alto. Tentaram apagá-lo e falharam. Por dois dias, Chicago queimou, até que, em 10 de outubro, a chuva finalmente acalmou o incêndio. Cerca de trezentas pessoas morreram, mais de 100 mil ficaram desabrigadas e o restante da cidade ficou em escombros. A causa oficial do incêndio nunca foi determinada. Mais tarde, um repórter do Chicago Tribune escreveu sobre o episódio, alegando que uma vaca de posse do casal O’Leary havia chutado um lampião, derrubando-o no feno. A senhora O’Leary virou uma pária social e morreu poucos anos depois, arrasada, de acordo com a família.

Professor Itou inclinou-se para a frente. Seu rosto assumiu uma expressão de conspiração. Ele se aproximou. Eu me inclinei em sua direção.

Ele abaixou o tom da voz e disse, suavemente, como se me contasse um grande segredo:

– Não foi a vaca.

– Não? – perguntei.

– Não. O repórter admitiu, tempos depois, que havia incluído a vaca pra dar mais drama à história. Na época, isso alimentou o espírito anti-irlandeses. Aqui temos mais um detalhe interessante: um estudo de campo provou que Pegleg Sullivan não teria como ter visto o incêndio de onde estava.

– Ele mentiu – Bern disse.

– Exato! – Professor Itou golpeou o ar com o indicador em riste, triunfante. – O incêndio de Chicago foi o tema da minha monografia da faculdade. Tenho uma personalidade um pouco obsessiva, então, consegui uma cópia de um mapa antigo de Chicago e me ocupei em recriar a expansão das chamas, pintando os edifícios com café.

– Por que café? – perguntei.

– Na época era a única tinta disponível para mim em grande quantidade. Eu era um pobre estudante universitário, mas sempre tive café. Era uma necessidade. – O professor Itou cruzou os braços. – Quando eu estava mapeando o fogo, um colega de quarto, tonto como só ele, entrou na cozinha para usar a mesa com propósitos mundanos, como fazer um sanduíche. Ele era um pirocinético e percebeu que o padrão era assustadoramente consistente com o padrão de anéis de fogo de quando um pirocinético emprega o fogo concêntrico. O que significa que alguém queimou Chicago em círculos. O fogo se espalhou para o norte e para o sul, contra a direção do vento. E mais, a velocidade do incêndio indicava presença de magia. Bairros inteiros foram engolidos em minutos.

Fim do século XIX. Os testes do soro que trouxeram à tona habilidades mágicas estavam começando, mas ainda não eram conhecidos. É possível que algum pirocinético primário tenha feito isso com Chicago.

– Mas por que queimar a cidade deliberadamente?

Professor Itou ergueu a mão.

– Essa é a pergunta que eu me fazia. Vou explicar para você. Aqui está um resumo: os militares britânicos estavam administrando o soro em alguns de seus oficiais na tentativa de manter o controle do império. Um desses oficiais era o coronel Rudyard Emmens. Ele passou a maior parte de seus anos de serviço no Império Britânico no “Oriente”. Infelizmente, nunca consegui descobrir em qual parte do Oriente. Depois de se aposentar, mudou-se para Chicago. Não sabemos ao certo qual era seu talento, mas sabemos, por conta de suas agendas pessoais, que tinha a ver com fogo. E ele tinha muitas questões a respeito disso. Incomodava-se com o medo de que “o poder dos infernos” tivesse passado para seu único filho, Edward. Quando aconteceu o incêndio de Chicago, Edward tinha dezoito anos. Ele tem uma história interessante: de acordo com um reconhecido historiador de Chicago, o centro da cidade ficou extremamente quente por uns dois dias depois de o fogo ter sido apagado. Quando os bombeiros, enfim, puderam entrar no forno que tinha virado Chicago, encontraram Edward Emmens bem no meio. Ele estava exausto, desidratado e cheio de fuligem, mas não tinha ferimentos.

Apenas um mago pirocinético poderia ficar no meio do inferno e sobreviver.

– Ele era Superior?

– É o que se pensaria, mas não era. – Professor Itou riu. – Sua magia foi classificada como Notável mais adiante.

– Parece um poder mágico absurdo para um mago pirocinético classificado como Notável – retruquei.

– Isso mesmo. – Itou virou-se, procurou na estante e pegou um livro vermelho. – David Harrisson, um dos vinte e seis tenentes da polícia de Chicago da época interessou-se muito pelo incêndio e por suas causas. Ninguém sabe o que ele realmente descobriu porque poderes superiores encerraram sua investigação mas, anos depois, ele começou a publicar ficção criminal sob o pseudônimo de John F. Shepard. – Itou abriu o livro. – O Fogo do Demônio. Uma pequena história sobre um jovem que rouba um artefato africano de seu pai e o utiliza para destruir Boston.

Ele me mostrou a página e fechou o livro. Então, prosseguiu.

– Existe uma confissão no leito de morte de um tal Frederick van Pelt detalhando como ele e outros três jovens se encontraram com Edward Emmens, que tinha pego o objeto mágico de seu pai e lhes mostraria coisas maravilhosas. Eles se encontraram em um celeiro cujos donos sabidamente dormiam cedo. E pagaram um vigia para ficar de olho. Ele disse que, depois do incêndio, o objeto se quebrou em três peças, que foram escondidas separadamente.

Eu juntei dois mais dois.

– Então, deixe eu ver se entendi: Rudyard Emmens levou para casa um tipo de artefato que veio de algum lugar da Ásia. Anos depois, seu filho usa o objeto para impressionar os amigos, perde o controle e incendeia Chicago, é isso?

Professor Itou olhou para mim por um longo segundo e sorriu.

– Sim.

– E como foi com a monografia? – Bern perguntou.

Os olhos do professor Itou se arregalaram. Ele começou a gesticular com o livro na mão.

– Engraçado você mencionar isso. Eu fiquei tão entusiasmado. Tinha minhas fontes todas. Tinha trabalhado por semanas. Tinha escrito um artigo que faria os anjos chorarem. Fui o último a me apresentar diante da banca de professores. Eles me ouviram, concordaram e me ofereceram uma bolsa de estudos integral. Admissão garantida no programa de PhD, com tudo pago. Só tinha um detalhe, minha tese não poderia ser publicada. Não era de interesse público.

– Eles subornaram você – sugeri.

Ele se inclinou para a frente e colocou o livro sobre a mesa para reforçar o que queria dizer.

– E eu aceitei. Na época eu aceitei porque era pobre e não tinha escolha. Agora eu aceitaria por motivos completamente diferentes. A existência de artefatos de amplificação está em debate há anos. Sabemos que algumas pessoas desenvolvem poderes mágicos sem o soro, e sabemos que objetos mágicos podem ser criados, então existe uma chance de existir algum objeto que deixe sua magia mais forte. Se um artefato assim puder ser encontrado, ele só poderá ocasionar tragédias. Se puder ser controlado, será entregue a um Superior e se transformará em uma arma devastadora. Se não puder ser controlado, qualquer tentativa de fazê-lo resultará em um desastre natural. É melhor que esse artefato teórico permaneça oculto. É uma lição para todos nós e um legado do Colonialismo. Roubar os tesouros de outras nações nunca termina bem.

Edward Emmens era Notável, um mago de terceira categoria, e tinha incendiado Chicago. Adam Pierce era Superior. Se ele conseguisse colocar as mãos no tal artefato, brilharia como uma estrela cadente. Uma gelada preocupação percorreu meu corpo. Sobraria alguma coisa depois que ele terminasse?

– Você sabe o que era? – Bern perguntou.

– O artefato? – Professou Itou balançou a cabeça, com o rosto triste. – Não. Tentei descobrir por anos, mas falhei. Nem sabemos de onde veio. Sabemos que provavelmente veio do extremo Oriente ou do Oriente Médio, mas a herança cultural de toda a região é muito rica e variada. É como procurar uma agulha no palheiro.

Peguei o telefone e mostrei a ele uma foto da joia.

– Poderia ser assim?

– Poderia. – Itou franziu o cenho e abriu as mãos. – Lembre-se de que, quando falamos de Oriente, nos referimos ao Leste, um termo antigo para padrões modernos, que assumiu significado diferente com o passar dos anos. Na época de 1800, o termo significava principalmente Índia, China e o extremo Oriente, mas não podemos nos esquecer do Oriente Médio. O Expresso do Oriente, por exemplo, ia para Istambul. Provavelmente eu poderia dizer mais coisas se pudesse ter acesso aos documentos da família Emmens, mas os descendentes se recusam a falar comigo. Seria necessário alguém com muito mais tarimba do que eu para juntar tudo. – Ele expirou e balançou os braços. – Eu desisti.

– O que você acha dessa joia? – perguntei. Afinal, perguntar nunca machucou ninguém...

– Uma antiga antena de televisão? – Itou franziu o cenho. – Acho que não posso ajudar muito.

– Agradeço muito suas informações. Só mais uma pergunta: existe alguém no seu departamento com quem possamos falar sobre o artefato? – questionei.

Professor Itou sorriu.

– Magdalene Sherbo. Mas infelizmente ela está na Índia como parte de seu intercâmbio educacional. Podemos tentar mandar um e-mail para ela, mas seu acesso é esporádico e ela é conhecida por não ver sua conta. Devem conseguir uma resposta em um mês, mais ou menos. Uma vez lhe enviei um convite para o chá de bebê da minha esposa. Dois meses depois ela respondeu que adoraria ir, ao mesmo tempo em que eu estava mandando fotos do bebê para todos que tinham e-mail. – Ele riu.

– Podemos ficar com o e-mail dela, para garantir? – Bern perguntou.

Professor Itou anotou o e-mail em um post-it amarelo e entregou a Bern.

– Mais uma vez, obrigada – falei.

– O artefato está prestes a ressurgir? – ele perguntou.

– Acredito que sim – respondi.

Todo o bom humor desapareceu do rosto do professor. Ele pegou a carteira e, de dentro, tirou uma fotografia. Nela, uma mulher de origem asiática, com o cabelo escuro solto, estava ao lado de dois garotos, com uma grande árvore de fundo. Os meninos pareciam-se muito com o professor Itou, com o mesmo brilho esperto e travesso no olhar.

– Esses são minha mulher e meus filhos.

– Sua família é linda – eu disse.

– Vivemos aqui, na cidade. Se o artefato for descoberto e alguém usá-lo aqui, em Houston, pessoas vão morrer. O grande incêndio de Chicago deixou trezentas pessoas mortas. A densidade populacional em nossa cidade é muito superior à de Chicago no ápice do século XX. Se esse artefato cair em mãos erradas, sendo que não há mãos certas para ele, as consequências serão catastróficas. – Ele me entregou a fotografia. – Você descobriu algo potencialmente devastador e não pode recuar agora. Tem uma obrigação moral com eles, comigo e com sua própria família. Por possuir esse perigoso conhecimento, passa a ser parcialmente responsável por nossa sobrevivência. Por favor, lembre-se disso.

Saímos do escritório e cruzamos o estacionamento iluminado pelo sol da tarde até o nosso carro.

– Devemos ir às autoridades? – Bern perguntou.

– Se formos, só teremos uma chance de convencê-los de que isso é sério. Se estivermos certos, Adam quer esse artefato e, se der um jeito de colocar as mãos nele, será preciso evacuação em massa. Não vão fazer algo assim sem uma evidência concreta. No momento, só temos a teoria de uma monografia de graduação que nunca foi publicada e a foto de uma joia estranha. Sou totalmente a favor de botar pra quebrar, mas precisamos ter alguma coisa.

– Então, o que fazemos agora? – Bern perguntou.

– Vamos para casa fazer nossa pesquisa.

Pela manhã, se tudo o mais desse errado, eu pediria a Rogan que tentasse pegar os documentos da família Emmens. O professor Itou estava certo. A família não falaria com ele nem comigo, mas falaria com o Huracán.


Olhei para minha família reunida em torno da mesa da cozinha. Minhas duas irmãs, meus dois primos, minha mãe e vovó Frida. Eu tinha explicado em termos gerais a história do grande incêndio de Chicago e sobre o artefato que podia estar relacionado a ele.

– Preciso da ajuda de vocês para pesquisar sobre esse artefato – anunciei.

– Eu tenho lição de casa – Catalina disse.

Arabella olhou para ela.

– É sério? Você não pode ser menos ridícula uma vez na vida?

– Você vai deixar ela falar assim comigo? – Lina resmungou.

– Escrevo a desculpa que você quiser – eu disse. – Mas estamos sem tempo e eu realmente preciso da ajuda de vocês. – Empurrei o laptop na direção deles. – Aqui está um mapa do Império Britânico em 1850, quando Emmens provavelmente serviu o Exército. – Coloquei o telefone com a foto da joia ao lado do computador. – E é isso que estamos procurando. Provavelmente é parte de alguma outra coisa, algum tipo de artefato. Cada um vai pegar uma região e tentar encontrar um artefato parecido com isso. Catalina e Arabella, vocês ficam com a China. Leon, Índia. Bern, Egito. Mãe, Turquia e Arábia. Eu fico com o extremo Oriente. Vovó Frida, escolha um time, se quiser. E nada de falar sobre isso com ninguém. Nada da Facebook, Instagram e, especialmente, nada de Herald.

Eles se dividiram.

Eu fui para meu escritório. Era tranquilo e silencioso. Acendi uma vela sob o aromatizador, pinguei umas gotinhas de gerânio rosa e comecei a trabalhar.

Dizer que era como procurar uma agulha em um palheiro era ser muito otimista. Tentei a busca de imagens. Fiz pesquisa histórica. Procurei na Wikipédia e nas galerias on-line de museus.

Nada.

Minha cabeça começou a doer. Afastei-me da mesa, esfreguei os olhos e consultei o relógio, 21h17. Eu já estava fazendo aquilo havia duas horas, e ainda não tinha conseguido absolutamente nada.

Ao menos a parte do artefato, se era isso o que era, estava em algum lugar seguro nas entranhas da caverna do dragão de Rogan.

Uma memória fantasma dele me tocando percorreu minha pele. O que havia de errado comigo? Eu quase tinha ficado com ele na Galeria. Depois do que ele tinha feito com Harper, eu deveria ter fugido para salvar minha vida, isso sim. Uma coisa era me sentir atraída por garotos maus, algo que não costumava ser o meu estilo. Outra era se sentir atraída por homens maus. E Louco Rogan era um homem mau, muito mau. Se quisesse alguma coisa, ele comprava, ou persuadia você a lhe dar, ou, simplesmente, tomava. Eu precisava garantir que ele não me quisesse. Porque se ele decidisse querer, seria do jeito dele, e eu não ia gostar.

Não, eu ia gostar, sim, o que era muito pior. Se Louco Rogan repentinamente aparecesse no meio do meu trabalho, me levantasse da cadeira com seus fortes e musculosos braços e me levasse até o quarto, me jogasse na cama, ao menos cinquenta por cento de mim estariam absolutamente em paz com o que quer que viesse a seguir. Seria incrível. Só de vê-lo nu, ver aquele corpo perfeito e poderoso, tocá-lo, seria o ponto alto de minha vida romântica adulta.

Os outros cinquenta por cento estariam lívidos. Aquele idiota. Nada de “Obrigado por salvar minha vida”. Nada de “Você está bem?”. Nada de reconhecer uma experiência quase mortal. Ah, não, não, ele decidiu criticar meu desenho com o giz enquanto eu estava ali, sentada no chão, sangrando e tentando respirar. Eu já tinha cansado. Tinha cansado de seus fogos e ônibus voadores e edifícios explodindo. Já era suficiente.

Fazia total sentido que Louco Rogan, um homem rico, lindo, atlético e Superior, fosse um imbecil egocêntrico. O que não fazia nenhum sentido era o fato de que, a cada vez que ele me olhava ou pronunciava meu nome, eu precisasse de dez segundos para voltar à realidade.

E não era apenas o prazer físico ou a coisa mental intoxicante que ele tinha feito hoje. Era aquela intensidade assustadora que irradiava quando ele se concentrava. Eu sentia, com algum tipo de intuição feminina, que quando a gente transasse, ele estaria completamente comprometido. Ele faria sexo como outros homens fazem guerra. Eu queria ser a única coisa no mundo todo com a qual ele se preocupasse, mesmo que fosse por apenas alguns minutos. Desejava-o por completo, mente e corpo, queria que ele fosse meu.

E esse era o ponto principal. Louco Rogan nunca seria meu. Eu não era o tipo de mulher com quem ele ficaria. Nem era o fato de eu não ter dinheiro. Me faltava o pedigree certo. Superiores se casavam por magia. E minha magia não era do mesmo nível da dele e definitivamente não era do tipo certo. Seus poderes eram primariamente telecinéticos, e sua telepatia era suave. Ele procuraria uma telecinética ou uma telepata. Minha magia primária era baseada na vontade e não se encaixava direito em nenhuma categoria. Eu conseguiria Louco Rogan apenas se ele se apaixonasse por mim. O conceito de se apaixonar nem mesmo deveria existir em seu vocabulário.

Se eu me jogasse para ele, ele provavelmente me desprezaria. Ele tentou ficar comigo na Galeria. Eu era jovem e bonita, e ele era um homem livre. Bem, suponho que fosse livre. Se fosse comprometido, isso provavelmente não o impediria. Era um pensamento ruim.

Em termos realistas, a única coisa que eu poderia desejar de um relacionamento com ele seriam algumas noites de sexo glorioso.

Deus, quase valeria a pena.

Não, não, não seria. Eu me conhecia bem o suficiente. Acabaria me apaixonando. Seria muito difícil não me apaixonar, tudo nele era excepcional. E pessoas assim não surgiam no nosso mundo frequentemente. Se eu saltasse nessas águas profundas, eu me afogaria. E eu não queria me afogar. Não podia me afogar. Eu tinha família, uma empresa...

O telefone tocou. Dei um salto. Tocou de novo. Atendi.

– Sim?

– Finalmente, senhorita Baylor – disse a voz entrecortada de Augustine.

Droga.

– Como posso ajudar?

– Vi a cobertura jornalística dos eventos recentes desta manhã. Talvez eu não tenha sido claro em nossa última reunião. Qual parte de “capturar Adam Pierce e devolvê-lo à sua família” não foi entendida?

Ah, seu babaca.

– A parte na qual eu faço isso sem ajuda ou recursos da MII.

– A Casa Pierce está insatisfeita. Agora são responsáveis financeiramente por um caro prédio de escritórios e são também alvo de diversos possíveis processos judiciais.

– Talvez devessem ter considerado essa possibilidade quando descobriram que Adam era Superior. Se não tivessem criado um mimado, imaturo e egoísta, não estariam no meio dessa confusão.

– Senhorita Baylor.

Alguém bateu na porta da frente.

– Um momento – eu disse. – Volto já.

Caminhei até a entrada e olhei a câmera. Louco Rogan.

Abri a porta.

Louco Rogan estava no degrau de entrada da minha casa, segurando um buquê de cravos. Aqueles que estavam na loja eram rendados e de flores claras. Esses eram enormes, com flores pesadas, carmesim, brilhantes, tão escuros perto da base que chegavam a ser quase pretos, com uma borda escarlate. Pareciam mergulhados em sangue. Ele podia também ter me trazido um punhado de rubis.

Seu olhar era presunçoso.

Eu olhei para as flores, para ele, e fechei a porta.

Não, espera.

Abri a porta, peguei os cravos dele e fechei a porta. E tranquei. Pronto. Eu quase tinha morrido e pegar os cravos me faria sentir melhor. Voltei para o escritório e apertei os botões do telefone.

– Voltei.

– Você me colocou na espera. – Sua voz podia congelar todo o Golfo do México.

Senti o cheiro dos cravos. Uau.

– Sim. Tinha alguém na porta. Poderia ser Adam.

Procurei um vaso para colocar as flores. A única coisa que eu tinha era um vidro alto e decorativo cheio de bolas de gude, porque o escritório precisava de algumas bugigangas. Coloquei as bolinhas em uma gaveta, abri uma garrafa de água que guardava para os clientes, coloquei no vaso e, depois, coloquei os cravos. Perfeito.

– Acho que não entendeu a seriedade da situação – Augustine disse.

O galpão tremeu. Toda a estrutura vibrou por um segundo e parou.

– Nas últimas quarenta e oito horas, minha casa foi alvo de um incêndio. Depois, um carro explodiu na frente da porta – O galpão tremeu de novo. Louco Rogan estava balançando a casa. Droga. – Quase fui estrangulada, quase fui esmagada, quase fui enterrada viva. Entendo a seriedade da situação.

Treme. Treme.

– Adam envergonhou publicamente a Casa dele. Esse problema agora envolve não só você... – Treme. – ... mas a reputação de toda a empresa e...

– Vou precisar colocá-lo na espera por um momento.

– Senhorita Bay...

Fui até a porta da frente e a abri. Louco Rogan sorriu para mim. Indiquei o caminho para meu escritório e ele entrou. Tranquei a porta atrás de mim. Louco Rogan entrou na minha sala e sentou-se em uma cadeira. Repentinamente meu escritório encolheu. Antes havia espaço. Agora, havia Rogan.

Apertei o botão.

– Voltei.

– Minha paciência está acabando – Augustine disse, com uma incrível precisão. – Preciso me reportar à Casa Pierce, e meu relatório, aparentemente, dirá que você não obteve progresso. Você está fazendo a MII parecer incompetente.

Estou tremendo em meus chinelos.

– E por que não diz a eles a verdade: que deu esse caso para mim, porque esperava que eu falhasse e, quando eu o fizesse, o senhor tomaria nosso negócio?

– Estou tentando te dar uma chance de manter seu negócio – Augustine disse.

– Ela vai precisar ligar para você mais tarde – Louco Rogan comentou.

– O quê?

– Eu disse que ela vai precisar ligar para você mais tarde, Panqueca. Ela está ocupada no momento.

Ele desligou a ligação.

Ele não tinha desligado na cara de Augustine. Sim, ele tinha.

– Panqueca? – perguntei.

– Quando ele estava tentando entrar para o Clube de Arcanos de Harvard, uma das provas era comer o máximo de comida. Naquele ano foram panquecas. Ele ganhou e foi admitido. Mas demorou seis meses até conseguir passar perto de uma panqueca sem querer vomitar. – Rogan sorriu. – Ele sentia o cheiro e saía correndo da sala.

– Bom, o Panqueca tem a hipoteca da minha empresa. Você acabou de desligar na cara do meu chefe – eu disse.

– Ele estava sendo prolixo. Ele vai superar.

– Você sabe qual é o seu problema? E dos Superiores em geral?

– Acho que você está prestes a me contar. – Louco Rogan se inclinou para a frente, com atenção.

– Seu problema é que ninguém fala “não” pra vocês. Podem fazer o que quiserem, entrar onde desejarem...

– Seduzir quem quisermos. – Ele riu, um sorriso de lobo mau.

Ah, não. Não podíamos desviar dos trilhos para esse caminho.

– Vocês brincam com a vida das pessoas. Quando os policiais aparecem, vocês erguem as mãos e os fazem ir embora. Porque são Superiores, e o resto de nós, aparentemente, não é nada.

– Humm – ele disse. – A ironia nisso é tão rica, é simplesmente delicioso.

– Não vejo nada de irônico nisso.

– Eu vou contar para você, mas vai acabar com a graça.

– Tem como ser mais metido?

Ele se apoiou nos cotovelos.

– Tem, sim. Vejo que gostou das flores.

Senti uma necessidade de jogar os cravos no fogo.

– São lindas. E elas não têm culpa de que quem as trouxe foi você. – Apoiei-me na mesa. – Senhor Rogan...

– Louco – ele me corrigiu. – Louco Rogan.

– Senhor Rogan, existem alguns limites. O senhor está me usando como isca para Adam Pierce. Eu o estou usando como meio para capturar Adam. Acho que o senhor é um homem perigoso.

– Tão formal – disse Louco Rogan.

– Lá vai a versão informal: temos de trabalhar juntos e, quando terminarmos, vamos seguir caminhos separados. Não me traga flores. Não temos esse tipo de relação.

Ele riu. Foi uma gargalhada genuína, divertida.

– Você está completamente louca por mim.

Eu estava louca, mas dizer isso seria admitir que eu me deixaria envolver emocionalmente, e ele não precisava saber disso.

– Não, só não quero comprometer nossa relação profissional. É tarde e estou cansada. Se não tiver nada para me dizer a respeito de Adam, por favor, vá embora.

– Obrigado por salvar minha vida mais cedo – ele disse. – Eu deveria ter agradecido. Não agradeci. Em minha defesa, seu círculo mágico é realmente terrível.

Abri a boca para lhe dizer onde ele poderia enfiar o círculo mágico quando alguém bateu na porta. O que estava acontecendo com os visitantes esta noite?

Fui até a porta e olhei o monitor. Augustine Montgomery, vestindo um terno prateado, os óculos apoiados em seu rosto perfeito, seu cabelo claro penteado em seu preciso corte. Sério?

– Quem é? – Louco Rogan veio atrás de mim e olhou por cima do meu ombro. Ele estava muito perto.

Eu não queria deixar o Panqueca entrar, mas ele ainda era o dono da minha empresa. Destranquei a porta.

Augustine olhou por cima do meu ombro. Seus olhos frios como gelo.

– O que você está fazendo aqui?

– Passei para pegar uma xícara de açúcar – Louco Rogan disse.

– Você não devia estar aqui. – Augustine olhou para mim. – Ele não devia estar aqui.

– Você chegou rápido – Rogan disse.

– Eu estava dirigindo quando liguei.

Atrás de Augustine, um elegante Porsche prateado estava estacionado, sozinho. Tínhamos colocado todos os nossos carros para dentro, pois não poderíamos apenas pedir um novo se um deles explodisse.

– Talvez seja melhor não parar ali – Louco Rogan disse. Parei aí ontem e minha Range Rover explodiu.

Augustine abriu a boca.

Se ficássemos ali com a porta aberta, mais cedo ou mais tarde minha mãe viria ver o que estava acontecendo. Se ela descobrisse que Augustine Montgomery, a razão de todos os nossos problemas, tinha aparecido na nossa casa, ela atiraria nele. Só por princípios. Sem mencionar que estávamos nos fazendo de alvos fáceis ali, iluminados pelos holofotes. A última coisa que eu queria era estar com os dois naquele lugar, ao mesmo tempo. Mas eu não tinha escolha.

– Entre – resmunguei.

Levei os dois até meu escritório. Augustine viu as flores, piscou e virou-se para Louco Rogan.

– Então você decidiu se envolver nisso por causa de Gavin? Por que essa repentina preocupação com seus parentes? Tão inesperado de você, Connor.

Louco Rogan olhou para ele.

– Por que você está usando óculos? Sei que sua visão é perfeita.

Lá vamos nós. Isso ia terminar com os dois abaixando as calças para ver quem era maior.

– Você deveria ter se mantido afastado. – A voz de Augustine era seca.

– E o que aconteceu com seu cabelo? – Louco Rogan ergueu a sobrancelha. – O que está escondendo aqui? Está ficando careca antes da hora?

– Você não tem ideia de com quem está lidando – Augustine disse para mim. – Esse homem é extremamente perigoso.

Louco Rogan aproximou-se do cabelo de Augustine, mas abaixou a mão.

– Eu tocaria, mas estou com medo de me cortar.

– Escute. – Era possível perceber a urgência na voz de Augustine. – Você precisa limitar sua parceria com esse homem. Existimos em um frágil equilíbrio, e o centro desse equilíbrio, aquilo que nos limita, é nossa família. Ele não sente nenhum tipo de vínculo com sua família ou com quem quer que seja. Ele não tem limites. Você não tem ideia do tipo de coisas em que ele está envolvido.

E era esse, exatamente esse o problema com os Superiores. Bem isso.

– Ela precisa limitar a parceria com você – Louco Rogan disse. – Você está tentando tirar a empresa dela.

Augustine tirou os óculos.

– Posso estar colocando ela em risco financeiramente, mas você lhe tiraria a vida, se fosse o caso, e depois faria piadas.

Na verdade, Augustine tinha me mandado atrás de Adam Pierce, o que era quase uma sentença de morte.

Ele prosseguiu:

– Você não tem ética, Connor. Não sabe nada a respeito de dever, honra ou autossacrifício...

Rogan se moveu, brutal e impressionantemente rápido. As costas de Augustine bateram contra a parede. Louco Rogan levou o antebraço esquerdo contra o pescoço dele, prendendo-o. Seus olhos estavam frios e impiedosos.

– Você passou seus dias depois da faculdade sentado em um confortável escritório, aprendendo o negócio da família. – A voz era precisa e carregada com um tom de ameaça tão forte que os pelinhos da minha nuca se arrepiaram. – Esse foi seu grande exemplo de autossacrifício. Fica sentado, envolto em seu casulo de luxo, chafurdando em autopiedade, enquanto eu passei seis anos servindo e sangrando em malditas florestas, onde todo o dinheiro do mundo não pode comprar um gole de água limpa. Fiz isso para que pessoas que nem conheço pudessem dormir em paz. O que você sabe de sacrifício? Nunca viu a cabeça de alguém explodir depois de um tiro, nunca tirou pedaços humanos de cima de você para que pudesse seguir em frente. Então, que tal calar sua maldita boca?

A sala ficou escura. Manchas pretas corriam pelas paredes. O medo percorreu minha coluna. Todos os meus instintos gritavam que o que quer que estivesse nas paredes era algo mau e perigoso e que, se eclodisse, eu precisaria correr.

– Não force, Connor – Augustine grunhiu. – Você vai se arrepender.

Uma luz violenta e perturbadora brilhou nos olhos de Louco Rogan.

– Vamos testar sua teoria sobre mortes e piadas. Tenho uma boa para a ocasião.

As manchas eclodiram. Tentáculos negros saíam das paredes. Se aquilo era uma ilusão, era a melhor que eu já tinha visto. O pânico me tomou, travando meus pés no lugar. Eu lutava contra ele. Que diabos de magia era aquela?

As coisas se erguiam no ar à medida que Rogan vasculhava meus pertences em busca de uma arma.

Não. Esta é minha casa. Você não vai destruir minha casa e colocar minha família em risco.

A fria carapaça do pânico se quebrou.

– Já chega! – bradei. Os dois se assustaram.

Augustine franziu o cenho.

– Como...

– O que há de errado com vocês dois? Isso aqui não é um bar onde podem quebrar tudo. Este é meu local de trabalho. É a minha casa! Há crianças dormindo a poucos metros desta sala. – A escuridão se desfez, como um chama de vela apagada pelo vento. Rogan soltou Augustine. – Não sei qual dos dois é pior. Estão fora de si? Vocês são dois mimados egoístas.

– Nevada? – minha mãe disse, atrás de mim.

Olhei por cima do ombro. Minha mãe estava no corredor com vovó Frida ao seu lado. Carregava uma arma. Minha avó trazia o telefone.

– Por que você está gritando para uma sala vazia? – minha mãe perguntou.

Só podia ser uma das ilusões de Augustine. Olhei bem para ele.

– Já chega.

Ele fez uma careta. Minha avó engasgou. Percebi que ela e minha mãe tinham acabado de ver Louco Rogan e Augustine Montgomery repentinamente aparecerem em meu escritório.

– Saiam da minha casa! – eu disse.

Minha mãe destravou uma arma com seu inconfundível som metálico.

Os dois saíram do escritório. Vovó Frida ergueu o telefone e tirou uma foto. A porta se fechou. Sentei na minha cadeira.

Minha mãe olhou para os cravos.

– Tem alguma coisa acontecendo que eu deva saber?

Neguei e peguei o telefone.

– Bern? Me fala que você tem tudo isso gravado.

– Tenho, sim – ele disse. – Fiz uma cópia física e subi o conteúdo para dois servidores remotos.

– Bom – eu disse.

Se precisasse entrar com uma medida cautelar contra eles, ao menos eu teria uma boa prova. Superiores ou não, nenhum juiz me negaria uma medida cautelar depois de ver aquilo.

 

Alguém bateu na porta do meu quarto. Abri os olhos. Eu estava sentada na cama, apoiada nos travesseiros, com o computador no colo. Olhei o relógio. Uau. Cinco e meia da manhã. Eu tinha ido para o quarto depois da meia-noite, quando meus olhos tinham começado a falhar. Devia ter caído no sono. Tinha sido um longo dia.

– Entre – pedi.

A porta se abriu e Bern entrou carregando um monte de papéis.

– Ei.

– Ei.

– As crianças imprimiram algumas coisas. – Ele colocou os papéis sobre a cama. Seus olhos estavam vermelhos; o rosto, cansado.

– Você ficou acordado até agora?

Ele fez que sim.

– Estava vendo algumas coisas. Não é egípcio, japonês ou chinês, isso eu posso dizer. Leon pesquisou a Índia, mas ele pifou, então... – Ele bocejou. – Você... – Ele bocejou de novo.

– Vá dormir um pouco. Eu fico com a Índia.

Ele se sentou na bicama que costumava ser minha quando eu era muito menor. Às vezes, quando minhas irmãs e eu assistíamos a um filme no meu quarto, elas acabavam dormindo ali.

– Só vou me sentar aqui por um minuto – ele disse.

– Claro.

Folheei os papéis. Impressões de artigos sobre vários artefatos. Algumas coisas estranhas. A foto de um cavaleiro segurando um escudo contra chamas.

– Nada mau. – Virei para mostrar para Bern, que tinha caído no sono na bicama.

Coitado.

Digitei uma tecla para acordar o laptop. Certo. Índia.

Leon tinha anotado os temas de pesquisa. Índia, artefato, Emmens... mais de trinta e cinco buscas. Respirei fundo. Ele era bastante minucioso.

Vejamos. O que o cara disse antes da explosão? Algo sobre o portal da iluminação, ou porta para a iluminação... digitei “artefato indiano iluminação”. O mecanismo de busca voltou com resultados de imagens. Um monte de coisas sobre os nativos norte-americanos e suas tribos. Vejamos, que tal artefato hindu de iluminação? Humm, imagens de flores, lugares antigos, mosaicos, a ilustração de alguma deidade com quatro braços sentada sobre uma flor rosa, uma estátua de metal de um deus com cabeça de elefante, a foto de latas de cerveja e uma garrafa vazia de refrigerante... Como isso foi parar ali? Era realmente uma caçada. Continuei passando pelas imagens. Uma cidade com o rio lambendo suas paredes, um pedaço de quartzo, mais uma deidade, dessa vez azul com faixas brancas na testa...

Espera. Espera, espera, espera.

Cliquei na imagem. A ilustração de um belo homem de pele azul e uma das mãos erguidas olhava para mim. Duas faixas brancas marcavam sua testa, formando um contorno alongado. Peguei meu telefone e abri a foto do artefato. Exatamente a mesma forma. Meu coração acelerou. Havia algo no topo das linhas, mas a imagem era pequena demais para conseguir determinar o que era. Cliquei no link para a página. Abriu um site de venda de antiguidades.

Eu digitava tão rápido que meus dedos voavam pelo teclado. Deus hindu pele azul. O mecanismo de busca mostrou as imagens. Não, não, não, sim! Exatamente a mesma imagem. Cliquei. Site fora do ar. Droga.

Continuei rolando a tela. Mais uma referência, algo sobre um jogo. Cliquei na imagem. Shiva. Eu tinha um nome. Dúzias de artigos apareceram. Shiva, supremo deus da mitologia hindu. Entre seus principais atributos estão uma cobra no pescoço e um terceiro olho... Um terceiro olho!

Continuei seguindo a trilha de farelos de pão. Lorde Shiva, o dos três olhos, seu olho direito é o Sol, seu olho esquerdo é a Lua, seu terceiro olho é o Fogo. Fogo? Uma vez um deus do amor, Kamadeva, distraiu Shiva durante sua meditação e Shiva abriu o terceiro olho. O fogo jorrou, consumindo Kamadeva... Ah, isso não é nada bom. Mais sites. Quando Shiva abriu o terceiro olho com raiva, a maioria das coisas virou cinzas. Shiva, o Destruidor. Shiva, o Professor Universal, seu terceiro olho destrói a ignorância. Shiva, que uma vez revelou sua infinidade aos outros deuses na forma de uma coluna de fogo.

Tudo se encaixava. Emmens devia ter encontrado o artefato em uma das estátuas de Shiva, mas acabou que era uma coisa real. Se Adam Pierce tomasse posse daquilo, também se tornaria uma coluna de fogo, e todos nós seríamos queimados.

– Nevada? – Minha mãe estava no corredor.

– Shh. – Apontei para Bern.

– Como está indo? – ela perguntou, em voz baixa, ao se sentar na cama comigo.

– Encontramos.

Deixei que ela lesse o artigo. Seu rosto foi ficando cada vez mais sombrio.

– É isso o que Pierce quer? Queimar tudo?

– Não sei – respondi. – Acho que você deveria pegar a vovó e as crianças e sair da cidade por uns dias.

Minha mãe me olhou.

– Você ficaria mais tranquila?

– Ficaria. – Procurei um argumento. Só queria ter certeza de que eles não morreriam queimados.

– Ok – ela disse. – Vou arrumar as coisas e vamos fazer uma viagem.

– Obrigada.

– Faço qualquer coisa para diminuir o fardo que está carregando. – Ela fez uma pausa. – Você está planejando trabalhar com Louco Rogan?

– Estou. Ele continua sendo a única esperança que tenho de pegar Adam e levá-lo de volta.

– Nevada, você sabe precisamente o tamanho da fortuna de Louco Rogan?

– Não sei. – Franzi o cenho. – Bern fez uma pesquisa sobre ele. As palavras foram “assustadoramente rico”. Provavelmente alguns milhões, imagino. Ou talvez algumas centenas de milhões.

Minha mãe estava com uma expressão bem neutra no rosto.

– Ele é solteiro?

– Na verdade eu não sei. Me parece uma pessoa com uma interpretação muito liberal dessa palavra. Por que a pergunta?

– Olhe pela janela.

Eu me levantei e abri a janela, tentando não acordar Bern. Lindos cravos vermelhos enchiam o estacionamento. Alguns de um vermelho-vivo, outros mais escuros, quase roxos. Eles estavam em canteiros, centenas, não, provavelmente milhares, iluminados por pequenas lâmpadas vermelhas, unindo-se na formação de uma única linda e enorme flor.

Fechei a boca, surpresa.

– Chegaram por volta das duas da manhã – minha mãe enunciou. – Dois caminhões de flores e oito pessoas. Levaram quase três horas. Saíram há alguns minutos.

– Isso é loucura. – O que ele estava pensando?

– Não é da minha conta, mas vocês dois estão juntos?

– Não. – Virei-me para ela. – Não, não estamos.

– E ele sabe disso?

– Ele sabe. Eu disse claramente para não me trazer flores. Foi por isso que ele trouxe. Provavelmente achou que seria engraçado.

Minha mãe suspirou.

– Nevada, mesmo se ele tiver comprado esses cravos por um dólar cada, são cerca de cinco mil flores ali embaixo, sem contar o trabalho e o horário. Deve ter sido um bom dinheiro para pagar isso tudo. Não é uma piada. É, provavelmente, o preço de um bom carro usado.

– Provavelmente foram os trocados que ele tirou do sofá. – Imaginei Louco Rogan procurando o troco em um móvel ultramoderno. – Eu deveria ter dito para ele não me dar partes de carros. Em vez disso ele me traria um tanque completo. E a vovó ia adorar.

– É a sua vida – minha mãe disse. – Só nunca imaginei você com alguém como Louco Rogan.

Ah, não, não era hora para o sermão do namorado inadequado. Pisquei para ela.

– E com quem você me imagina?

Ela franziu o cenho, confusa.

– Não sei. Alguém alto. Atlético.

– É isso? – Ri. – É só isso que você quer do seu genro? Porque Louco Rogan é alto e atlético.

Minha mãe balançou as mãos, frustrada.

– Alguém como nós. Normal. Dinheiro e pedigree mágico são uma maldição. Acredite em mim.

– Mãe, não planejo ter nada com Louco Rogan. – Apoiei-me na janela. – Ele me sequestrou e me acorrentou num porão. Ele não entende a palavra “não”. A última coisa que quero é me envolver emocional ou sexualmente com ele. O homem não tem freios, e o tipo de poder dele é como... como...

– Um furacão – minha mãe completou.

– Sim. Isso mesmo. Vou cuidar das minhas palavras e, se possível, mantê-lo a uma boa distância.

– E o que vamos fazer com todos esses cravos?

– Não sei. – Ri. – Vamos dar um jeito.

Minha mãe balançou a cabeça e saiu.

Abri a janela e olhei para o mar vermelho abaixo dela. O ar tinha cheiro de flor, uma nota delicada e acentuada de um aroma que prometia coisas maravilhosas. Os cravos eram tão lindos, meus cravos. Eu não sabia por que ele os tinha me dado. Provavelmente era uma armadilha ou algum tipo de manipulação. Talvez um pedido de desculpas. Eu não tinha ideia, mas tinha certeza de que não importava quanto eu vivesse, nenhum homem me daria, novamente, cinco mil cravos. Era algo mágico que só podia acontecer uma vez. Então, fiquei ali, inalando aquele aroma, e me permiti sonhar.


Entrei no prédio com formato de barbatana de tubarão da Montgomery Investigações Internacionais armada com meu laptop, meu telefone e Bern. Meu primo inspecionou o saguão ultramoderno enquanto caminhávamos até o elevador. Ele não parecia impressionado.

– Você acha que Louco Rogan vem? – Bern perguntou.

– Espero que sim.

Eu havia mandado uma mensagem de texto para ele antes de sair de casa: “Sei o que Adam está querendo fazer. Encontre-se comigo na MII, no escritório de Augustine, às nove”. Ele não havia respondido. Precisávamos de Rogan. Aquilo era grande demais para mim e Bern, e eu não tinha certeza de que lado Augustine defendia. Ele e Rogan claramente tinham algum tipo de problema, mas eu tinha certeza de que Rogan queria colocar as mãos em Adam Pierce. Até onde eu sabia, Augustine poderia estar ajudando Adam e quem quer que fosse que estivesse, misteriosamente, por trás de toda aquela equipe.

O elevador nos levou ao décimo sétimo andar. Verifiquei meu telefone. Faltavam três minutos para as nove horas. Quando saímos do elevador, a recepcionista nos recebeu na porta e nos acompanhou pelo corredor.

Ela olhou para mim.

– Entendo que você está trabalhando com Louco Rogan.

– Sim. Ele chegou?

– Sim, ele chegou. E você tem tudo em ordem? Digo, por precaução. – Os olhos de Bern se arregalaram. – Meus tios têm uma empresa funerária. Me diga se precisarem de qualquer ajuda. É bom estar preparado. Assim não se torna um fardo para sua família.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o corredor chegou ao fim e entramos na sala fria e privada de Augustine. Ele estava atrás da mesa; o cabelo, as roupas e tudo o mais impecavelmente perfeito. Louco Rogan estava sentado em uma cadeira à sua frente, tomando café. Seu corpo forte, envolto por um terno escuro que lhe caía como uma luva. Bem. Eles não tinham aberto a garganta um do outro.

Passei os olhos pelo escritório.

– O que você está procurando? – Augustine perguntou.

– Sangue e uns pedaços de corpos.

– O que você presenciou na noite passada era pessoal – Louco Rogan disse. – Isso é trabalho, e somos perfeitamente civilizados quando se trata de trabalho.

– Somos?

– Cabeças e herdeiros das Casas – respondeu Louco Rogan.

– Sua mensagem indica que você tem alguma grande novidade. Ambos queremos Adam Pierce, então, estamos dispostos a deixar as diferenças de lado. Além disso, se formos brigar, não faremos isso na empresa.

– Exatamente – Augustine concordou. – Seguiremos todas as formalidades antes de matarmos um ao outro.

Está certo, então. Coloquei meu laptop sobre a mesa e abri na imagem do terceiro olho de Shiva.

– Acredito que Adam Pierce está planejando destruir Houston.

Foram necessários vinte minutos para eu explicar a história do grande incêndio de Chicago, contar sobre Emmens, Shiva, e sobre a lenda a respeito do seu terceiro olho.

– Acredito que esse amuleto não foi destruído. Acho que foi separado em três partes, e Adam está tentando montá-lo novamente. Temos uma das partes. Adam tem a parte que ele roubou no First National e ainda existe uma terceira parte em algum lugar. Se eu estiver certa, somos agora responsáveis por esse conhecimento. E acho que estou certa. Pedi para minha família sair da cidade. Também liguei para o professor Itou e sugeri que a família dele fizesse o mesmo.

Augustine suspirou.

– Senhorita Baylor, você está tentando deixar todos em pânico?

– Não, só estou retribuindo quem me ajudou. Cheguei ao limite. Estou sem saída. Se eu levar isso até as autoridades, e não tenho ideia de quem sejam ou de onde estejam essas misteriosas autoridades, provavelmente não vão acreditar em mim. A família Emmens, se ainda tiver alguém vivo, não vai querer falar comigo. – Empurrei o laptop na direção deles. – Agora é com vocês. Os dois são Superiores. São responsáveis por Houston.

Rogan e Augustine trocaram olhares. Augustine perguntou:

– Você trouxe?

Rogan colocou a mão dentro do bolso interno e tirou um objeto enrolado em seda, que entregou a Augustine. Ele desembrulhou o objeto e pegou a parte do amuleto que tínhamos encontrado. Virou a peça para a luz e as pedras brilharam ao refletir o sol.

– Está certa – Augustine murmurou. – Considerando o valor, deve ser a peça real.

– Não achei que quartzo valesse tanto assim – eu disse.

– Não são quartzos – Rogan interveio.

– São diamantes brutos – completou Augustine. – De excelente qualidade. Cada um deles deve ficar mais ou menos com 1,75 quilates depois de lapidado. Eu estimaria de vinte a trinta mil dólares por pedra.

Eram pelo menos cem pedras. Quase engasguei.

– Está pensando em Lenora? – Augustine perguntou.

Lenora Jordan, advogada do distrito de County Harris? Lenora Jordan, minha heroína do colegial que colocava os criminosos atrás das grades? Ela deveria ser a única Lenora que eu conhecia em posição de autoridade.

– Você está falando de Lenora Jordan? – Tentei manter a animação oculta em minha voz e fracassei.

Louco Rogan olhou para mim e depois voltou a olhar para Augustine.

– Você a conhece. Ela pega o caso.

– Se for um amplificador, não vai conseguir esconder. – Augustine devolveu a joia para Rogan. – As Casas não vão aceitar. Virão armados levar o artefato sobre seu cadáver e lutar até a morte por ele. Nem mesmo você pode lutar contra todos nós.

Rogan fez uma careta.

– Você quer Lenora ou Emmens?

– Emmens – respondeu Augustine. – Lenora sempre desgostou menos de você. Fora isso, a Casa Pierce terá de ser informada. – Ele fez uma careta como se tivesse tomado leite azedo. – Ugh. Vai ser uma experiência agradável, tenho certeza. Também vou ter de colocar gente minha atrás do Pierce.

– Não entendo – falei. – Achei que estivesse evitando lidar com Adam.

Augustine suspirou.

– Como você disse, sou um Superior de uma Casa de Houston. O bem-estar da cidade é minha responsabilidade.

Olhei para Rogan.

– Se Adam queima um ou dois prédios de escritórios, isso é um pouco incômodo – disse ele. – Se ele queimar o centro da cidade ou qualquer centro financeiro, o impacto econômico sobre as Casas será enorme. Todas as maiores Casas de Houston e muitas famílias de fora do Estado têm propriedade na cidade. Além do quê, o impacto financeiro imediato e o impacto na reputação das Casas afetadas seriam catastróficos. Nosso pessoal, nossos esteios, morreriam em grande número.

– Ninguém faria negócios com uma Casa que não consegue proteger seus próprios funcionários – Augustine disse.

– Se isso ocorrer – Rogan complementou –, as Casas vão procurar um bode expiatório. E o Augustine aqui foi encarregado de capturar Adam Pierce.

– Assim como a polícia de Houston – Bern argumentou.

– Esperamos que a polícia fracasse – Augustine acrescentou, com a voz seca.

– Seus registros de excelente investigador podem enganar a Casa Pierce, mas não se manterão firmes diante de uma busca nacional enfurecida – Louco Rogan continuou. – Vão descobrir exatamente o que Augustine tentou fazer e vão acabar com a Casa Montgomery.

O rosto de Augustine tremeu, como se sua ilusão quisesse escorregar de seus traços. Ele cerrou os dentes.

– Vão tentar. Vou atrás de Emmens. Saberemos onde está a terceira parte em vinte e quatro horas.

– Divirta-se. – Rogan se levantou.

– Você também. – Augustine olhou para mim. – E você, vai com ele visitar Lenora Jordan?

– Sim – Rogan e eu dissemos ao mesmo tempo.

– Não brinque com Lenora, não ceda informação, e mantenha suas respostas curtas. Se for presa, é responsável por sua própria fiança.

Saímos do edifício juntos, Bern, Rogan e eu. Bern e eu fomos para a direita, enquanto Rogan foi para a esquerda.

– Nevada – Rogan disse. – Meu carro está para cá.

– Vamos seguir você.

– Você quer se encontrar com Lenora? – perguntou. – Se quer, você vem comigo.

Eu queria encontrar Lenora Jordan. Metade do meu tempo de adolescente eu tinha passado idolatrando-a.

– Você deve ir – Bern disse. – Sigo vocês e te tiro da prisão, se for preciso.

Louco Rogan piscou para mim. De alguma forma, aquele desgraçado já me conhecia e agora estava usando Lenora Jordan como isca. Devia ter sido a animação em minha voz quando disse o nome dela.

Controle, controle... Dei a Rogan meu melhor sorriso profissional e comecei a andar na sua direção.

– Muito obrigada pela oferta generosa.

Louco Rogan riu. Um tentador e leve calor passou pelo meu corpo, dançou pelos meus ombros, e uma mistura incrível de calor e pressão envolveu meu pescoço. Quase dei um salto. A respiração ficou presa na garganta. Resisti à necessidade de me esticar como um gato por conta do toque fantasma.

– Faça isso de novo e vou machucar você.

O toque fantasma lentamente se dissipou e parte de mim quis ir atrás dele, para onde quer que fosse.

Louco Rogan andava ao meu lado com a mesma confiança e firmeza que me fizeram notá-lo no parque, e eu sabia precisamente onde ele estava e qual distância havia entre nós. Todo o meu corpo estava focado nele. Eu queria que ele me tocasse. Não queria que ele me tocasse. Eu estava esperando ele me tocar. Eu não sabia que diabos eu queria.

– Você gostou dos cravos?

Peguei um cartão vermelho em meu bolso.

“O Hospital Infantil do Texas agradece sua generosa doação. Graças a você, todos os quartos tinham lindas flores hoje pela manhã. Acredito que seja ao menos parcialmente dedutível do Imposto de Renda e, se sua equipe entrar em contato com a nossa, forneceremos todos os documentos necessários.”

Louco Rogan pegou o cartão, passando seus dedos quentes e secos sobre as minhas mãos. O cartão voou de sua mão e caiu na lixeira mais próxima.

Minha pele ficou arrepiada onde ele tocou. Era um tipo de tortura.

Um Audi preto estava parado a cerca de seis metros de onde estávamos. Um carro amplo, elegante, que parecia trazer poder e uma agressividade silenciosa. Era o tipo de carro que um homem rico comprava quando percebia que a Maserati, seu sonho adolescente, era muito chamativa.

– Esse é um A8 L Security? – A Range Rover era blindada e eu duvidava profundamente que o Audi não fosse. A maioria das Casas tinha vários carros blindados. Era isso que mantinha a vovó Frida trabalhando.

– É um A8 customizado. – Louco Rogan tocou a porta do carro e o motor ligou em resposta. – Fiz algumas modificações.

Claro que ele tinha feito modificações. Entrei e sentei no banco de couro do passageiro. O interior era surpreendentemente aconchegante, com linhas muito sofisticadas e um design claro, clean, elegante e eficiente. Legal.

Rogan saiu do estacionamento. O carro praticamente flutuava. O aspecto luxuoso não era o que mais me chamava a atenção, mas a qualidade era realmente muito boa. Minha avó disse uma vez que levava cerca de quinhentas horas de trabalho para montar um carro daqueles, e dava para entender o motivo. E andava muito bem também. Não importava o que dissessem, um carro de luxo de alta performance não era como um sedã comum, e um blindado de luxo também não.

– Queria algo mais fácil de manobrar para a cidade? – perguntei. Não que houvesse algo de errado com a Range Rover.

– Queria. A gente nunca sabe quando pode encontrar um esquilo. – O Audi estava no trânsito. – Deveríamos fazer sexo.

Eu devia ter ouvido errado.

– Desculpe, o quê?

Ele olhou para mim. Seus olhos azuis estavam quentes, como se o calor viesse de dentro. Uau.

– Eu disse que deveríamos fazer sexo. Você e eu.

– Não. – O pânico me fez ajeitar a postura no assento.

– Como assim, “não”?

– Não. Já faz tanto tempo que você não ouve essa palavra que já esqueceu o significado? – Ok, fui um pouco rude. Eu precisava manter aquilo o mais profissional possível. Com calma, muita calma, e firmeza.

– Sinto atração por você. – A voz dele era confiante e segura, como se toda a conversa fosse uma mera formalidade que ele soubesse onde iria terminar. – E sei que você também se sente atraída por mim. – Claro que ele precisava esfregar isso na minha cara, não é mesmo? – Somos dois adultos. Por que não deveríamos fazer sexo?

Porque você é perigoso demais, me assusta e porque seria inacreditavelmente bom. O que significa que eu iria querer mais, e mais, e eu realmente não poderia me apaixonar por você.

– Porque não temos esse tipo de relação.

– Estou sugerindo mudar nossa relação.

– Não é uma boa ideia.

Ele olhou para mim novamente, seu rosto um pouco feroz. Ele estava dando uma pista da intensidade, uma pequena amostra do que seria. Eu precisava tomar cuidado, muito, muito cuidado...

– Eu acho uma excelente ideia – Louco Rogan retrucou.

– Eu nem te conheço. Não confio em você.

– Confiou sua vida a mim ontem mesmo – ele disse.

– Estávamos em uma situação de risco e era de seu interesse me manter viva. Seguindo os mesmos critérios, os homens com quem você trabalha confiam a vida deles a você diariamente. Vocês todos também fazem sexo? Seria uma unidade interessante do Exército.

– Então você quer sedução? Jantares, flores, presentes? – A voz dele carregava um leve tom de desaprovação.

– Não.

– A sedução é um jogo – Rogan argumentou. – Você provoca, atiça e, enfim, seduz. As duas partes sabem o que está acontecendo mas seguem o percurso todo mesmo assim. Se der o suficiente do que for preciso, seja atenção, elogios, dinheiro, consegue o resultado desejado. Achei que você estivesse acima desse jogo.

– Não quero jogar jogo nenhum.

– Você me quer, Nevada. Já pensou a respeito, já imaginou e provavelmente se tocou durante esse processo. – Ah, meu Deus. Ele estava lá. – Faça sexo comigo, Nevada. Você vai gostar.

– Sabe o que quero? Uma conexão humana. Estar na cama com alguém que valha a pena estar junto.

– E eu não valho a pena? – Uma intensidade perigosa podia ser percebida em sua voz. Devo ter ido longe demais.

Viramos na Franklin Street. A torre retangular do Centro de Justiça Criminal de Harris County estava à nossa direita. Bridge Park, com sua icônica estátua de um caubói montando, à nossa esquerda. A rua tinha carros estacionados dos dois lados. Não havia vagas, exceto um pequeno espaço entre um Honda azul e um sedã vermelho do lado oposto ao parque. Rogan não podia estar pensando em parar ali. Estávamos muito rápido. Aquilo era um carro blindado, não um carro mágico.

Rogan olhava para mim em vez de olhar para o trânsito. Corríamos solto na estrada. O Audi mudou de pista, bem na frente de uma caminhonete enorme. Ele continuava olhando para mim em vez de olhar para a rua.

– Rogan!

Ele freou, o olhar fixo em mim. Os pneus cantaram quando o carro de trás desviou. Meu coração batia na garganta. O Audi virou 180 graus e entrou na vaga a poucos centímetros dos para-choques de ambos os carros.

O motorista da caminhonete buzinou e o enorme veículo passou, irado.

Soltei o ar.

Rogan apertou um botão, desligando o motor.

– Quero uma resposta – ele disse.

– Você é o homem que me sequestrou, me acorrentou em seu porão e quase estrangulou uma mulher que mal conhecia por tê-la achado irritante. Esse é o seu currículo. – Ok, provavelmente isso não era completamente justo, mas eu lhe devia pelo golpe do carro. – Entendo que seja estranho para você, porque noventa e nove por cento das vezes, seu nome, seu corpo e seu dinheiro são suficientes e fazem as mulheres abrir as pernas se você olhar para elas por mais de dez segundos. Eu não sou uma dessas mulheres.

Desci do carro e atravessei o estacionamento. Ele se aproximou de mim. Arrisquei olhar para seu rosto. Louco Rogan estava sorrindo. Algo que eu disse devia ter sido muito engraçado.

– E eu tenho alguma qualidade positiva? – ele perguntou.

Um dragão charmoso e modesto. Não, não vou cair nessa. Aquele encanto poderia acabar em uma fração de segundo e logo voltariam as chamas e os dentes afiados.

– Não ter atropelado o esquilo está a seu favor.

– Humm... Bom saber. – Seu sorriso ficou ainda maior.

Ah, não.

– Não faça isso.

– Fazer o quê?

– Sempre que você sorri assim, alguém morre. Se você me atacar, vou me defender.

– Entre as muitas coisas interessantes que estou pensando em fazer com você, matar ou ferir não estão na lista. – Ele piscou para mim.

Entramos no centro de justiça e pegamos o elevador. Dois homens carregando laptops correram para aproveitar a viagem. Louco Rogan olhou para eles com firmeza e, sem palavras, os dois, simultaneamente, mudaram de direção e foram para o outro elevador. As portas se fecharam e começamos a subir.

Aquilo estava realmente acontecendo. Eu ia conhecer Lenora Jordan. Lenora, que colocava os criminosos atrás das grades. Que não tinha medo de superiores. Que...

E se ela fosse como eles? Exatamente como Augustine ou Pierce? Não tinha certeza se eu conseguiria lidar com isso. Seria devastador.

Abri a boca.

– Sim? – Louco Rogan perguntou.

– Se ela não for o que aparenta ser, por favor, não me conte.

– Ela é exatamente o que aparenta ser – ele disse. – A lei e a ordem são seus deuses. Ela é uma entusiasta e ora para os deuses dela com sinceridade e frequência. É imparcial e resoluta. Cruzar seu caminho é burrice.

As portas se abriram. Entramos em um pequeno saguão. As pessoas saíam de nosso caminho quase que inconscientemente.

– Mesmo quem é Superior? – perguntei.

– Principalmente quem é Superior. Ela tem o escritório graças às Casas de Harris County. Nós a colocamos aqui porque mesmo nós sabemos que é preciso alguém para supervisionar.

Paramos em frente a uma porta. Louco Rogan a abriu para mim. Passei e me deparei com a mesa de uma recepcionista. Uma mulher de origem indígena, na casa dos quarenta anos, estava sentada atrás do balcão. Seu rosto era largo, seus olhos escuros eram grandes e sua boca era carnuda. Ela olhou para Rogan com uma expressão de parar um cão raivoso, e disse:

– Comporte-se.

Rogan virou para a esquerda e abriu a porta. Eu o segui, entrando em um grande escritório. Era um espaço bem mobiliado, com uma mesa de madeira maciça e diversas cadeiras confortáveis. Atrás, densas estantes de livros cobriam a parede. Entre as estantes e a mesa, estava Lenora Jordan. Ela era igual à foto no outdoor: forte, poderosa e confiante. Vestia um terninho azul-índigo. Seu cabelo preto e encaracolado estava preso em uma trança grossa e trabalhosa. Sua pele era morena e seu rosto, com grandes olhos, nariz largo e lábios carnudos, era atraente, mas a primeira coisa que você reparava nela era a total segurança com que se portava. Aquele era seu reino, e ela o governava sem opositores.

Lenora Jordan cruzou os braços.

– Eu estava prestes a fazer um convite formal para você vir ao meu escritório.

– Mesmo? – Louco Rogan perguntou.

– Sim. Até quando achou que poderia ficar aprontando pela cidade sem problemas? Deve haver uma forte razão para explicar o motivo de explodir coisas e jogar um ônibus sobre as pessoas. E estou ansiosa para ouvir. – Ela se virou para mim. – Quem é você?

Lenora Jordan estava falando comigo.

– Esta é minha parceira, senhorita Baylor – Louco Rogan respondeu.

– E sua parceira sabe falar?

– Sim, eu sei. – Minha boca se moveu e as palavras saíram. Não achei que fossem sair. – Prazer em conhecê-la.

Ela me olhava fixamente.

– Meu escritório está tentando identificar uma mulher que o vem acompanhando nesse reino de baderna. Essa mulher é você?

– Sou.

– Qual é o seu envolvimento com ele?

– Fui contratada pelos donos da minha empresa a convencer Adam Pierce a se entregar para a Casa dele.

Lenora ergueu a sobrancelha.

– A MII – explicou Louco Rogan.

– E quais são suas qualificações para esse trabalho? – ela perguntou.

– Sou dispensável – respondi.

Lenora franziu o cenho.

– Típico de Augustine. Ok, vamos ouvir o que você tem a dizer. Tudo o que tem a dizer.

Nós nos sentamos e Louco Rogan e eu nos revezamos para explicar a situação. Quando terminamos, Lenora estendeu a mão. Rogan pegou o artefato e lhe entregou. Ela o estudou por um momento.

– Sua equipe chegou a alguma conclusão? – perguntou.

– É mágico. É inerte. É indestrutível – Louco Rogan respondeu – Mergulhamos a peça em ácido. Colocamos fogo. Nada aconteceu.

Lenora ergueu a sobrancelha mais uma vez.

– Você fez isso pessoalmente?

Louco Rogan fez que sim.

Ela revirava a joia nas mãos. Os diamantes recebiam a luz e brilhavam suavemente.

– Isso não combina com a forma com que Adam costuma agir. Ele é impulsivo e impaciente. No ano passado, colocou fogo em um clube por ter sido expulso. Depois, foi para uma festa, ficou bêbado, se drogou e dançou até o amanhecer. Quando fomos prendê-lo, ele mal se lembrava do incidente. O que temos aqui é algo complicado e feito por etapas. Exige um cuidadoso planejamento e bastante preparo. E para quê? Senhorita Baylor, ele disse alguma coisa?

– Ele gosta de colocar fogo nas coisas e de envergonhar a Casa dele, especialmente a mãe – respondi. – Ele não me deu a impressão de ter algo maior acontecendo, mas é claro que suas ações são parte de um plano mais complexo. Ele também me manipulou, porque, enquanto eu informava à família dele que estávamos nos comunicando, a Casa Pierce ficava sob seu controle.

– O ataque contra sua família é a única coisa que não se encaixa. – Lenora bateu as unhas sobre a mesa. – E desde então ele não fez mais contato com você, pessoalmente?

– Não.

– Alguém o está controlando – Lenora disse. – Por quê? Ele poderia, silenciosamente, conseguir as peças. Em vez disso, a cada ação, ele faz um espetáculo público. Qual o propósito disso tudo?

– É uma desestabilização clássica – Louco Rogan concluiu. – As pessoas não se sentem seguras, as forças da lei parecem incompetentes e o sentimento público em relação às Casas despenca. Faz as pessoas se lembrarem de como podemos agir se escolhermos desrespeitar a lei. A maioria das pessoas acha isso desconfortável.

Era uma análise surpreendente vindo dele.

– Ninguém está acima da lei, Rogan – Lenora o alertou. – Nem mesmo você.

– E eu não sei?

– Vou ver com o departamento de Segurança Nacional se algum dos grupos terroristas anti-Casas pode estar envolvido. – Ela suspirou. – Mas seria necessária muita personalidade para convencer Adam a seguir um plano. Muitos tentaram e todos falharam.

– Lenora – Louco Rogan inclinou-se para a frente. – Ele precisa dessa peça. Ele tem ao menos uma, talvez as duas, mas eu duvido.

– Ele vai fazer mais um espetáculo para pegar a terceira parte – concordei.

– Ele vai vir buscar essa – Louco Rogan continuou.

– Está questionando a integridade do meu escritório? – Lenora o desafiou.

Sua voz era amigável, mas o olhar, não. Se ela me olhasse daquela maneira, provavelmente eu me levantaria da cadeira para me esconder. Louco Rogan nem piscou.

– Estou tentando prever todas as possibilidades. Se ele conseguir as três peças juntas, vai se tornar um pilar de fogo. Se o padrão for consistente, ele vai fazer isso em algum local público. Seja na frente deste edifício ou na frente da Casa Pierce. Algum lugar onde haja uma boa densidade populacional.

– Conto com você para garantir que isso não aconteça – ela disse.

– Mas se acontecer, vai ser necessário evacuar as premissas – Louco Rogan disse. – Você e eu sabemos como isso seria difícil.

– Você quer que eu autorize um alerta de terrorismo. – Lenora recostou-se na cadeira. – Você sabe que alertas não são bem recebidos. Há muito peso e planejamento que vêm junto. Preciso coordenar esforços com o departamento de Segurança Nacional, a Guarda Nacional e o FBI. Sem mencionar as Casas, que vão perder a cabeça.

– Você é quem sabe – Louco Rogan respondeu. – Mas tenha em mente que isso é real. Está acontecendo. Não quero que sejamos pegos desprevenidos.

– Vou pensar a respeito – respondeu ela.

Conseguimos sair dali sem ir para a prisão.

Louco Rogan olhou para o edifício e balançou a cabeça.

– O que foi?

– Da próxima vez que virmos o artefato, ele vai estar sendo usado por Adam Pierce.

– Acho que ela vai cuidar bem dele.

– Não tão bem quanto se estivesse trancado em um dos meus cofres.

Começamos a atravessar a rua. Meu telefone tocou. Era uma mensagem de texto. Chegamos a Austin. Já estamos no hotel. Agradeça a Rogan a escolta.

– Você mandou uma escolta com minha família?

– Mandei, eles eram um alvo.

– E como você sabia que estavam partindo?

– Meu pessoal os viu carregando as malas. Então, me ligaram e mandei que os seguissem.

Dã.

– Obrigada.

– De nada. Planejo mantê-los como reféns até você dormir comigo.

Eu tropecei.

Ele se virou e me deu um sorriso incrivelmente brilhante e lindo.

– Só estou brincando. – Droga. – Almoça comigo?

– Não.

– Nevada, você deveria almoçar comigo. Local público, seremos vistos facilmente. Ajudaria, também, se você fingisse estar aproveitando. Pode soltar o cabelo e sorrir. Talvez até soltar risinhos.

Parei.

– Jogar a isca para o senhor Pierce?

– Sim.

Não era má ideia. Eu não me importava de ser a isca se pegássemos Pierce, não mesmo.

– Bern...

– Você acha que seu primo ia preferir ficar sentado no carro, observando você e correndo o risco de ser incendiado por aquele lunático, ou ir brincar com Besouro em suas novas e seguras instalações no meu complexo?

Meu telefone tocou, como se obedecesse a uma deixa. Atendi.

– Oi – Bern disse. – Você ainda precisa de mim? O Besouro me convidou pra ir conhecer as novas instalações dele e tem um pessoal aqui com uma Range Rover blindada. Estão dizendo que Louco Rogan mandou me buscar.

Olhei para ele. Louco Rogan se aproximou. Seu grande corpo perto de mim, o olhar bastante quente. Senti uma nota de sândalo e de vetiver, misturadas com um aroma áspero, apimentado. Ele se abaixou, seus olhos tão azuis. Meu coração acelerou. Ele abriu um sorriso predatório.

– É inútil resistir.

– Você não está me assimilando. – Fiquei firme e levei o telefone ao ouvido. – Bern, se quiser ir com eles, pode ir.

– Tem certeza?

– Tenho.

Rogan já tinha minha família sob proteção em Austin, ao menos assim Bern também ficaria protegido. Desliguei e olhei para Louco Rogan.

– Vou almoçar com você. Mas não vou dar risinhos.


Casa Fortunato era um pequeno restaurante no cruzamento entre a Crawford Street e a Congress Avenue, apenas a alguns quarteirões do centro de justiça. Tinha uma pequena área ao ar livre que ficava de frente para o estádio Minute Maid. O dia estava quente e úmido, e a última coisa que eu queria era me sentar ao ar livre. Por isso mesmo, qualquer pessoa com o mínimo de bom senso preferiria comer nos restaurantes subterrâneos de Houston. Eles começaram a ser construídos como passagens subterrâneas entre dois cinemas e cresceram, com o passar dos anos, a ponto de conectar praticamente tudo, com seus próprios restaurantes e áreas de descanso. Em um dia quente, o centro da cidade ficava quase deserto. Infelizmente, se escolhêssemos um restaurante subterrâneo, Adam Pierce não teria a chance de nos encontrar. Era pouco provável que entrasse nos túneis, já que lá poderia ser facilmente encurralado.

Fomos até uma mesa de ladrilhos espanhóis brilhantes: amarelo, azul e branco. Louco Rogan puxou a cadeira para mim. Pendurei a bolsa no encosto e me sentei. A bolsa trazia uma Baby Desert Eagle, .40SW, com um cartucho de 12 balas. Depois do último encontro com o pessoal de Adam, eu não queria correr riscos, então, aumentei meu poder de fogo. Eu estava me tornando Clint Eastwood em Perseguidor implacável. Era uma arma grande e cruel se eu quisesse que fosse. Naturalmente, tudo isso acabaria, e eu poderia voltar ao meu trabalho normal de correr atrás de cônjuges adúlteros e descobrir fraudes em seguros. Podia ser menos interessante, mas raramente exigia que eu usasse arma de fogo dentro dos limites da cidade.

Aquela sensação familiar, horrível, travou minha garganta. Eu tinha matado alguém. Eu realmente não queria pensar a respeito. Mas sabia que em algum momento precisaria lidar com isso de um jeito ou de outro.

A garçonete apareceu com um pote de salsa e um prato de biscoitos ainda quentes para pegar nosso pedido de bebidas. Dois chás gelados com adoçante.

Fingi estar atenta ao menu. O que pedir? Algo que não fosse fazer muita sujeira. Tacos com camarões pareciam uma boa ideia. Abaixei o cardápio.

– O que achou de Lenora Jordan? – Louco Rogan perguntou.

– Acho ela incrível. Quero ser como ela quando crescer.

– Quer ser defensora?

– Não, eu quero... – Era difícil colocar em palavras. – Quero chegar onde ela chegou, profissionalmente, mas do meu jeito. Quero me sentir confiante e ser respeitada pelo que faço. Quero uma reputação. Quero que a Agência de Investigações Baylor seja conhecida por isso. Meu pai fundou a empresa e eu gostaria de garantir que o nome fosse sinônimo de competência e qualidade. E o que você quer?

Ele se recostou na cadeira. O sol brincava em seu rosto, passando pelas folhas de uma árvore que ficava no canto. Sua pele quase brilhava, destacando os traços fortes, o nariz marcante e o queixo entalhado. Ele encolheu os ombros.

– Nunca pensei nisso.

A garçonete voltou com as bebidas e anotou nosso pedido. Pedi taco com camarões; e ele, com lombo. Ela sumiu de novo.

O telefone dele tocou.

– Com licença. – Louco Rogan ergueu o aparelho até o ouvido. – Sim?

Havia um estranho contraste entre o homem que tirava as pessoas da vida, esmagando-as, e o que tinha perfeitos modos à mesa. De alguma forma, o furioso Superior e o milionário urbano eram a mesma pessoa, e isso fazia total sentido. Exceto pelo fato de sua parcela mundana tornar a parte violenta ainda mais assustadora.

– Quando? – ele perguntou. – Diga para ele me encontrar aqui. – Louco Rogan desligou o telefone e olhou para mim. – Sinto muito, preciso resolver uma coisa. Não vou poder esperar, mas vai ser rápido.

– Sem problemas. Vou me ocupar em ser vista e jogar o cabelo. Quer também que eu enrole o cabelo no dedo e morda o lábio?

– Pode ser?

– Não, desculpe. – Dei um sorriso amarelo.

– Provocante.

Minha mente foi diretamente para a sarjeta e arrastei-a de volta, chutando e berrando. Profissional! Ao menos tente se manter profissional.

– Então, você não tem metas?

– Não, tenho metas de curto prazo – respondeu. – Não são particularmente desafiadoras.

– Por quê?

Ele pegou a rodela de limão de seu copo e colocou no prato de apoio, como se fosse um inseto inconveniente.

– Bom, vejamos. O que um homem na minha posição costuma querer?

– Mais dinheiro? – Dei um gole na bebida.

– Tenho 1,2 bilhão de dólares.

Engasguei com o chá.

Ele esperou até eu controlar meu acesso de tosse, e continuou:

– Tenho investimentos e diversas empresas que geram dinheiro basicamente sem minha participação. Chega um momento em que mais dinheiro é apenas mais dinheiro. Alguns Superiores entram para o campo de pesquisas, mas isso nunca me interessou de verdade. De vez em quando, posso melhorar um feitiço se quiser conseguir um objetivo específico, mas acho a ideia de me dedicar a isso muito entediante.

– Metas profissionais?

Louco Rogan balançou a cabeça.

– Sou excelente apenas em uma coisa: destruição em massa. Já fiz isso, tenho muita experiência. Atingi o ápice dessa carreira.

Nossa comida chegou. Foi rápido.

Dei uma mordida no taco. Delicioso.

– Por que você saiu do Exército?

– Já se arrependeu de ter hipotecado sua empresa?

Entendi o jogo: uma resposta pela outra. Um pedaço de camarão escorregou do meu taco e caiu no prato.

– Ah, sim, claro. Deveríamos ter vendido a agência assim que soubemos da doença do meu pai. Com isso teríamos tido mais dinheiro e poderíamos ter começado o tratamento mais cedo. A terapia experimental estava funcionando, mas quando fizemos a hipoteca, a doença já estava muito avançada. Eu era muito crua na época, e cuidar de um negócio com nome já estabelecido me parecia o melhor a ser feito. Se a tivéssemos vendido, eu a teria reconstruído com outro nome. Mas é fácil saber o que fazer depois de as coisas terem acontecido. Minha mãe teve um pouco mais de tempo com meu pai e ele teve um pouco mais de tempo com a gente. Tenho de me contentar com isso. – Percebi que ele me olhava de maneira estranha. – O que foi?

– Não era isso que eu tinha perguntado, mas acredito que consegui minha resposta mesmo assim. – Ele inclinou a cabeça. – Saí do serviço militar porque estávamos vencendo a guerra. Quando entrei, Belize estava em ruínas, e o México ameaçava meia dúzia de nações na América do Sul. Era preciso bater com força para mudar o rumo da guerra. E foi o que fiz. – E esse era o maior eufemismo do século. – Anos depois, a coalizão venceu o México e pacificou a região. No final das contas, eles nem mesmo me implantavam. Estabelecer a minha presença era suficiente para forçar o outro lado a recuar. Quando os conflitos começaram a diminuir, a cadeia de comando do nosso lado passou a considerar invadir o México. Percebi que eu era um fator para essa decisão e renunciei meu comissionamento, porque, por mais que eu goste de usar a magia, já era hora de alguém reconstruir o que eu tinha destruído. Mesmo se a Iniciativa Mexicana não tivesse sido uma questão, eu teria saído. O Exército não tem o que fazer comigo em tempos de paz. Sou ruim com trabalho burocrático, não posso ensinar os outros a fazer o que eu faço. Sou um matador. Então, saí.

– E agora é um Superior sem causa.

– Sim. A maioria das coisas não traz desafio. – Ele se inclinou para a frente, olhando para mim. – Quando encontro um desafio, me dedico a ele.

Ele estava falando de mim? Porque eu não era um desafio, era um ser humano. Abri a boca para dizer isso ele, mas ele olhou por cima do meu ombro para o estacionamento. Virei e olhei para trás. Um Ford Escape cinza estava estacionado. Era um carro velho, com pelo menos dez ou doze anos. O homem que desceu do veículo estava na casa dos vinte anos, era atlético, tinha ombros largos e cabelo loiro e curto. Carregava uma pasta e vestia um terno preto que devia ter sido comprado muitos anos antes e tinha ficado no fundo do armário, enrolado em plástico, e que era usado apenas para casamentos, funerais e entrevistas de emprego.

O homem se aproximou. Louco Rogan se levantou. O homem estendeu a mão.

– Troy Linman, major.

Eles apertaram as mãos.

– Sente-se – disse Louco Rogan.

Troy sentou-se ao meu lado.

– Senhora.

Ex-soldado. Eu podia apostar todo o meu dinheiro nisso.

Troy passou a pasta para Louco Rogan, que abriu e viu o conteúdo.

– Eleven Bravo?1

– Sim, senhor.

Infantaria. Alguém dos serviços especiais do Exército, bem disfarçado para o mundo civil. Qualquer coisa na categoria 68, médica, estaria bom. Ou 91B, mecânico de automóveis. Eleven Bravo não era um desses serviços especiais: era a base do Exército, mas, no mundo civil, havia pouco a se fazer com isso.

– Por que você saiu? – Louco Rogan perguntou.

Troy hesitou.

– Eu estava indo para o meu realistamento. Minha esposa estava grávida de seis meses de nosso segundo filho, e ela não queria que eu me alistasse novamente. Ela não disse nada, mas eu percebi as indicações. E eu também já estava cansado. Queria tentar a vida civil. Queria voltar para casa todas as noites.

– E como vão as coisas?

– Estamos indo bem.

Seu tom de voz demonstrou que eles não estavam bem. Não mesmo.

Louco Rogan fixou o olhar nele.

– A verificação de informações diz que tomarão sua casa amanhã. Então, vou perguntar de novo, senhor Linman. Como vão as coisas?

Eu não conseguia ver a mão direita de Troy, mas a esquerda se fechou em punho.

– Trabalho no terceiro turno de uma fábrica de recauchutagem de pneus e entrego pizza à noite. Minha esposa trabalha durante o dia enquanto eu cuido das crianças. Ela trabalha em processamento de folhas de pagamento. Tenho mandado currículo para tudo, tentando conseguir um emprego, qualquer um, que me permitisse trabalhar durante o dia. Qualquer lugar com um salário decente exige formação.

Eu já tinha ouvido essa história tantas vezes e de tantas pessoas que podia adivinhar o que ele diria na sequência.

– Me candidatei à vaga de operador de pedágio. Querem alguém formado na faculdade. Pra que um operador de pedágio precisa de formação universitária? O Exército pagaria para eu fazer faculdade, mas não posso dispor desse tempo. Estamos lutando há dois anos, e só estamos nos afundando.

– Santino explicou como funciona o trabalho comigo?

– Explicou. – Troy assentiu.

– Minhas regras são simples – disse Louco Rogan. – Esteja onde eu mandar você estar, quando disser que deve estar. A primeira vez que mentir para mim será seu último dia de trabalho para minha Casa. Caso se esforce e falhe, não será considerado um ponto negativo. Ser preguiçoso ou displicente resulta em demissão. Usar drogas ou ficar bêbado também resulta em demissão. Ter dívidas também resulta em demissão.

Troy abriu a boca, seu rosto estoico.

– Eu cuido da sua hipoteca – Louco Rogan continuou.

– Com todo o respeito, major, vim atrás de um emprego, não de caridade. Quero trabalhar para poder sustentar minha família.

– Não é caridade. A Casa Rogan assume as dívidas de todos os funcionários. Casa, carro, faculdade e qualquer outra coisa. Quando outra pessoa fica responsável por alguma dessas dívidas, vocês se tornam um risco de segurança. E eu não gosto de riscos, por isso eu mesmo cuido. As pessoas que trabalham comigo se ferem. Seu atendimento médico está coberto, mas não há seguro de vida. Você tem uma família, então, leve isso em consideração. Pago bem, então, pegue parte desse dinheiro e faça um bom seguro de vida.

Louco Rogan ficou em silêncio. Troy engoliu em seco.

– Estou aceito?

– Está contratado.

O rosto de Troy ficou pálido. Ele parou de respirar e, por um momento, achei que fosse desmaiar. Ele poderia lidar com a rejeição. Devia ter se preparado para poder se levantar da mesa e ir embora com alguma dignidade. Mas o alívio por ter sido aceito era esmagador. Toda a sua vida dependia das palavras de Louco Rogan e, agora, ele não conseguia processá-las.

Toquei sua mão.

– Está tudo bem. – Ele olhou para mim, atônito. – Está tudo bem – repeti. – Ele contratou você. Sua casa está segura. Você está bem. Respire,Troy.

Troy respirou fundo.

Arrepios percorreram minha coluna. Finalmente percebi como Louco Rogan era perigoso. A maioria das Casas tinha seu próprio exército, mas Louco Rogan levava isso um passo além. Para Troy, não era só um emprego. Era a chance de voltar a ser um homem, de ser respeitado por suas habilidades e de sustentar a família. Era uma nova vida que Louco Rogan estava lhe dando. Era isso o que ele fazia. Ele resgatava ex-militares do fundo do poço, dava-lhes a chance de fazer a diferença e os recompensava por isso. Agora eu entendia perfeitamente o homem que se reportou a Rogan depois da explosão da Range Rover. Rogan não os possuía apenas financeiramente. Ele possuía suas almas. Eles achavam que ele era um deus.

– E quando eu começo? – Troy perguntou.

Um estrondo veio da rua. Saltei da cadeira. Veio de trás de Louco Rogan, da direita. Ele correu, pulou a cerca. Eu saí correndo do salão e fui para o estacionamento, que tinha saída para a Franklin Street. Troy estava logo atrás.

Saía fumaça do centro de justiça. A fumaça espessa saía do décimo primeiro andar e subia. Ah, não.

Alguma coisa foi arremessada da janela, logo abaixo da fumaça, e caiu na rua. Que diabos?

A coisa correu pela Franklin Street, na nossa direção e muito rápido, parcialmente ocultada pelos veículos. Era algo veloz e grande, como uma caminhonete.

– Pode começar agora, senhor Linman.

Louco Rogan correu na direção da coisa. Peguei a arma de dentro da bolsa; Troy Linman se livrou do paletó do terno e o jogou na rua para logo sair correndo na mesma direção de Louco Rogan. Eu os segui, com a arma em punho.

A coisa tirou o pequeno sedã da sua frente e pousou no asfalto. A forma era de um felino, com cabeça de cachorro, mas era feito de metal. Estruturas de grossos canos estavam no lugar dos ossos, e correntes uniam o esqueleto metálico. Não havia nada fazendo a união, nada exceto magia e a vontade de alguém. Eu nunca tinha visto algo assim. Pequenos animais animados, sim, mas isso; isso era inacreditável.

O animal diminuiu o ritmo e ergueu a cabeça. Uma pequena faísca brilhou em sua mandíbula.

– Ele está com o artefato! – gritei.

Louco Rogan parou e colocou os braços para a frente. O animal se desfez, fatiado em quatro partes. Os canos e as correntes se abriram à sua frente, espalhando-se pelo chão. Rogan começou a procurar o artefato. Troy pegou um cano solto que rolara até o seu pé e brandiu-o.

Eu me virei. Um mago animador deveria estar a pouca distância de sua criação. À nossa esquerda, havia um estacionamento particular, com uma cancela e uma cabine de cobrança automática. Bem à nossa frente, do outro lado da La Branch Street, um edifício garagem de dez pavimentos bloqueava a visão de parte do céu. Ambos eram más escolhas para uma fuga rápida. Num piscar de olhos, a área estaria repleta de oficiais de Justiça, agentes federais e policiais. Não havia como escapar rapidamente pelo edifício garagem ou pelo estacionamento lotado. Eu me virei. À direita, um terreno baldio ocupava todo o quarteirão. Havia apenas dois carros, devia ser um pátio de reboque. Ele também não se arriscaria a estacionar ali.

– O que você está procurando? – Troy perguntou, levantando o tubo como se fosse um taco.

Os canos à esquerda se moveram. Rogan virou...

Os pedaços de metal voaram até ele, apertando-o com uma terrível força. Puxei minha arma. Rogan sumiu atrás da gaiola de canos de metal. As correntes se enrolaram nos canos e apertaram. O metal gritava, deslizando e se movendo. Atirar naquilo não ajudaria em nada. E poderia atingi-lo por acidente.

Troy correu para a pilha de metal em movimento.

– Não! Não podemos ajudá-lo. Precisamos encontrar quem está animando isso!

A gaiola de metal se desmanchou, como se por uma explosão em seu interior. Troy ficou imóvel no meio da rua. Vi o rosto furioso de Rogan de relance. Os pedaços de metal voltaram a se apertar. Não sobrariam ossos nele se eu não corresse.

– O que você está procurando? – Troy gritou.

O poder de Rogan era incrível. Para disputar com ele, só mesmo um Superior.

– Um carro de luxo blindado.

Ele virou para a esquerda, eu virei para a direita, e passamos os olhos pela rua. Um grande Cadillac Escalade preto estava estacionado na La Branch perto de uma vaga, de frente para nós. Havia duas pessoas em seu interior: uma no banco do passageiro e outra no do motorista.

Os pedaços de metal se espalharam pelo chão novamente e, mais uma vez, se apertaram contra Louco Rogan.

À minha volta, veículos desviavam-se para evitar Louco Rogan e a explosão mágica que acontecia em volta dele. Qualquer um com um pouco de inteligência sairia dali correndo. Especialmente alguém com um Escalade.

– Troy! – Ergui a arma e fui na direção do Escalade.

O motorista não se moveu. Ele viu que eu me aproximava com uma arma e não se movia. Tínhamos encontrado quem estava fazendo aquilo.

Pelo canto dos meus olhos, vi o metal cair, apertar Rogan e cair novamente. O tempo ficou lento, longo. Um Escalade blindado significava uma carcaça reforçada, proteção do radiador, inserções auto-portantes e tiras de borracha nos pneus. Mesmo se eu atirasse nos pneus e os destruísse, o veículo ainda poderia andar a cem quilômetros por hora. O para-brisa era à prova de bala. Os tiros com a pistola Baby Desert Eagle não o penetrariam. Mas ainda assim, quebrariam a parte externa do vidro. Eu não precisava matar o Superior lá dentro. Só precisava obscurecer sua visão o suficiente para manter Louco Rogan vivo.

O tempo voltou a correr. Puxei o gatilho e fiz seis disparos bem próximos na frente do rosto do motorista. A arma disparava balas fazendo um forte estrondo. O para-brisa trincou, cada balas marcava o vidro e formava rombos, como se alguém tivesse pego gelo do freezer na mão e apertado contra o para-brisa. Eu mal podia ver o motorista.

Fiz mais seis disparos no lado onde se encontrava o Superior. Tirei o cartucho e coloquei um novo. Ainda me sobravam mais doze disparos.

Troy correu para perto de mim, saltou sobre o capô e bateu com seu pedaço de cano contra o para-brisa, jogando, na pancada, todo o peso de seu corpo. O vidro se quebrou, mas permaneceu unido. Ele deu mais um golpe. O para-brisa se curvou para dentro. Mais uma pancada forte e conseguiria quebrá-lo.

O Escalade ganhou vida e deu marcha à ré. Troy escorregou e caiu no chão, mas logo se levantou e correu atrás da SUV. O Escalade virou na esquina da La Branch, ainda de ré, e acelerou pela rua paralela à Franklin. Corri pelas vagas livres atrás do carro. O Escalade fez uma curva acentuada na Crawford. O motorista estava circulando o quarteirão em marcha à ré. Se ele virasse mais uma vez à direita, ficaria em perfeita rota de colisão com Louco Rogan.

– Troy! – Virei-me para a direita e atravessei o estacionamento o mais rápido que podia.

O Escalade virou na Franklin. Louco Rogan continuava lutando contra os pedaços de metal.

Usei absolutamente tudo o que podia dos meus músculos. O ar virou fogo nos meus pulmões. Uma dor quente me cutucava na lateral.

O Escalade acelerou na direção dos metais que rodeavam Rogan.

Atirei nos pneus, tentando fazer a velocidade diminuir. Quatro balas romperam a borracha.

A cela de canos e correntes se desfez, por meio segundo, Rogan ficou completamente exposto. O Escalade o atingiu. Houve um estrondo, um assustador estrondo. Ah, meu Deus.

Rogan voou pelo chão, caído, imóvel.

Parei entre ele e o carro, com a arma apontada para a janela traseira. Oito, sete, seis...

A porta do passageiro se abriu. Os canos se levantaram, formando de novo o animal, um escudo entre mim e o carro. Continuei atirando. Um braço na manga de um terno surgiu e pegou algo do chão. O sol refletiu no grosso anel de ouro pouco antes de a porta se fechar.

Última bala. Atirei.

A SUV acelerou e sumiu pela Franklin Street.

Rogan.

– Largue sua arma! – alguém disse atrás de mim.

Levantei as mãos no ar e, lentamente, soltei a arma, deixando-a cair de meus dedos. Algo encostou em mim pelas costas, entre as escápulas. Meu corpo travou, como se eu tivesse mergulhado em uma piscina de gelo e todos os músculos tivessem ficado rígidos de uma vez só e ficassem assim, mortos, quentes e doloridos. Caí para o lado. Minha cabeça bateu no chão. Três homens com uniforme de agentes federais saltaram sobre mim.

Choque, percebi. Eles tinham usado arma de choque em mim.

Eles me contorceram. Alguns forçando minhas mãos para trás, e senti o frio das algemas nos meus pulsos.

À frente, eu podia ver Lenora Jordan parada ao lado da pilha de metal. Onde estava Rogan?

Quatro pessoas de uniforme arrastavam Troy. Ele estava curvado, a pele ferida e sangrando por conta do impacto no asfalto.

Ah, meu Deus! Ah, meu Deus, ah, meu Deus. Por favor, não deixe que Rogan esteja morto.

A pilha de metal estremeceu.

Os agentes federais me soltaram e eu caí de joelhos, com força. Havia policiais, agentes federais e oficiais de Justiça para todo lado. E todas as armas estavam apontadas para a pilha de metais.

A pilha de canos e correntes explodiu. Rogan cambaleava. Sua aparência era péssima.

– Baixem as armas – Lenora ordenou.

Duas dúzias de oficiais baixaram as armas simultaneamente. Rogan virou-se para ela, seu rosto contorcido de raiva. Por um segundo, achei que ele poderia matá-la.

– Emita a merda do alerta, Lenora – grunhiu Louco Rogan.

1 “Eleven Bravo” (11B) é um termo da infantaria norte-americana; são soldados de infantaria padrão; os principais combatentes do Exército. (N. T.)


– Parece que ele está com duas costelas quebradas – informou-me uma paramédica. – É como uma fratura incompleta, mas o único jeito de saber ao certo é fazendo um raio X. Seu ombro estava deslocado e já o recolocamos na posição correta, mas ele se recusa a receber mais tratamento.

Ela olhou para Louco Rogan, que estava sentado na maca. Sua expressão apenas podia ser definida como Olhar de Fúria. Os socorristas estavam lhe oferecendo algum espaço.

– Ele realmente deveria ir para o hospital – continuou a paramédica. – De verdade.

– Já falou isso para ele?

– Sim, mas... – Esperei-a concluir. A paramédica se aproximou – Ele é o Louco Rogan. Disseram que eu deveria falar sobre isso com você. A defensora disse que você poderia ajudá-lo a agir racionalmente.

Se o céu se abrisse e um anjo descesse até a rua com toda a sua glória celestial e tentasse fazer Louco Rogan ser razoável, ele fracassaria e teria de pegar sua espada flamejante e voltar aos céus, envergonhado. Eu não tinha ideia de por que Lenora achava que eu poderia conseguir algo melhor.

Bom, se nenhum deles tinha coragem suficiente para explicar ao Carrasco do México que ele precisava ir para o hospital, acho que precisaria fazer o meu melhor.

– Muito obrigada. Vou cuidar disso.

Caminhei até Louco Rogan. A paramédica foi atrás de mim.

– Você está com costelas quebradas – informei.

– Você escutou o que ela disse – ele retrucou. – É uma fratura incompleta.

Estendi a mão. Louco Rogan olhou para mim.

– Me dê suas chaves, senhor Rogan. Vou levá-lo para o hospital.

Percebi um repentino silêncio ao nosso redor.

– Isso é ridículo – ele grunhiu.

– Costelas quebradas podem colocar a sua vida em risco. – Pigarreei. – E preciso de você em ordem, então, vamos resolver isso. Qual é a parte de ir ao hospital que te incomoda?

Ele apertou os olhos.

– Vai demorar uma eternidade. Vou chegar, ficar sentado por duas horas, aí alguém vai fazer um raio X e dizer: “Você está com as costelas quebradas.” Então, vão me dar uns remédios e me mandar para casa.

– Este é praticamente o mesmo argumento, palavra por palavra, que Leon usou no ano passado quando decidiu que seria uma ótima ideia descer as escadas de bicicleta.

– Mas é um argumento perfeitamente válido. O que tem de errado com ele?

– Leon tem quinze anos. Você tem o dobro da idade dele.

– Está querendo dizer que sou um velho decrépito?

– Estou querendo dizer que você deveria fazer melhor do que isso. Foi atingido por um veículo blindado a, pelo menos, quarenta quilômetros por hora. Antes disso, foi espremido por meia tonelada de ferro. Você pode estar com hemorragia interna. Pode ter sofrido uma concussão. Você deveria ter mais bom senso do que um garoto de quinze anos que queria fazer vídeos para o YouTube.

– Já me feri antes. Sei que não é nada sério.

– Sinto muito, no Exército sua designação era a de número 62 alfa? Você era um médico de emergências?

– Tive treinamento.

Balancei a cabeça.

– Sabe quem mais teve treinamento? Todos esses paramédicos aqui. – Apontei para os socorristas com a cabeça. – Levantem as mãos se acharem que o senhor Rogan não deve ir ao hospital.

Ninguém se moveu.

– Viu. Deixe-os fazer seu trabalho.

Louco Rogan inclinou-se para a frente. Um músculo saltou. Ele se recompôs, mas já era tarde demais. Eu tinha visto. Ele disse, pronunciando com todas as palavras com um toque de ameaça:

– Eu não vou para o hospital.

– Está bem – eu disse. – Existe algum outro local com um equipamento de raio X e equipe médica para onde você aceite ir?

– Existe. Pode me levar para a minha médica particular.

Ele colocou a mão no bolso e, lentamente, tirou as chaves, as quais pôs na minha mão.

– Obrigada pela cooperação.

Três minutos depois, eu estava dirigindo um Audi pelas ruas lotadas de Houston. Louco Rogan ia no banco do passageiro. Sua respiração estava parca. Troy se ajeitou no banco de trás. Havia fraturado a perna quando o Escalade o atingiu, na partida final. Ele também se recusava a ir ao hospital.

Mudei de pista, encaixando o Audi no espaço estreito entre dois carros. Era um sonho dirigir aquele carro.

– Talvez eu devesse dirigir – Troy disse.

– Ela sabe o que está fazendo – respondeu Louco Rogan.

Inalei.

– A fragrância de um genuíno elogio vindo de Louco Rogan. Tão raro e doce.

O rádio soou: “Esta é uma transmissão de emergência. O departamento de Segurança Nacional recebeu uma pista de fonte segura a respeito de um possível ataque terrorista à cidade de Houston...”.

Lenora tinha disparado o alerta. Com sorte, as pessoas começariam a sair do centro da cidade e dos escritórios.

– Pegue a saída a três quilômetros – Louco Rogan disse. – Leon conseguiu descer as escadas?

– Sim, ele conseguiu. Bateu com a bicicleta na parede, e o guidão quebrou suas costelas. Ele também conseguiu bater a cabeça e sofrer uma séria concussão.

Meu primo Leon estava em Austin com minhas irmãs e fora de perigo. Mas a cidade estava cheia de Leons, Arabellas e Catalinas, e Adam Pierce tinha, agora, mais uma peça do artefato. Até onde sabíamos, ele já tinha as três. Incendiaria a cidade. E, agora, mais um Superior estava envolvido. O que estava acontecendo? Por quê?

Parecia que, quanto mais fundo íamos, menos respostas conseguíamos.

A médica particular de Louco Rogan atendia em um edifício com três pisos, sem identificação. Parecia um prédio comum de escritórios, com janelas escuras e um pequeno estacionamento particular. Havia apenas três carros ali, e todos eram SUVs pretas.

Estacionei e me abaixei para observar o prédio pelo para-brisa. Nenhum sinal de movimento.

Louco Rogan estava saindo do carro, desci e abri a porta para Troy.

– Vou ver se consigo uma maca ou uma cadeira – Louco Rogan informou, enquanto digitava um código no teclado.

– Acho que consigo me virar – Troy disse.

– Tudo bem, tenho certeza de que podemos dar um jeito...

As portas duplas e escuras se abriram, dois homens e duas mulheres apareceram; eles empurravam duas macas com a eficiência de quem tinha prática. Atrás deles, vinha uma enorme mulher de origem hispânica. Ela não era gorda, mas era grande, alta, pelo menos um metro e oitenta, e muito forte, com ombros largos e braços que ficavam para fora do avental verde-escuro. O cabelo escuro estava preso. Seus traços, como tudo nela, eram fortes: olhos escuros, nariz marcante, boca grande e carnuda. Dava para perceber que ela sorria sempre, e aquele sorriso devia ser maravilhoso. Sua idade ficava em torno dos quarenta anos.

Ela olhou para Louco Rogan.

– O que você fez?

Ele abriu a boca, mas antes que respondesse, ela olhou para mim.

– O que ele fez?

– Foi atingido por um carro – respondi.

A mulher se virou novamente para Louco Rogan.

– Por que, nesse mundo, você faria algo tão estúpido assim? – Ele abriu a boca mais uma vez para responder, mas ela continuou: – Você não tem um exército enorme exatamente para impedir que esse tipo de coisa aconteça?

– Eu...

Ela se voltou para mim.

– Que tipo de carro foi?

– Um Escalade blindado.

– Bom, pelo menos foi um bom carro. – Ela se virou para Louco Rogan. – Quem iria querer estragar seu ótimo carro batendo em você?

Louco Rogan respirou profunda e lentamente.

– Acertaram você nas costelas, hein. – A mulher acenou. – Levem os dois para cima.

– Eu posso... – Louco Rogan começou.

Ela apontou para a maca:

– Deitado.

Eu sentia necessidade de fazer o que ela mandasse, e de fazer rápido.

Louco Rogan deitou-se na maca. A equipe empurrou as macas com ele e Troy para dentro do edifício.

– Sou a doutora Daniela Arias – a mulher me disse. – Entre. Você pode esperar na sala de espera.

Eu a segui. Não pareceu que eu tivesse outra opção. A maioria das salas de espera que eu conhecia tinha algumas fileiras de cadeiras não muito confortáveis, uma televisão e, se você tivesse sorte, uma máquina de café. Mas aquela parecia fazer parte de um hotel de luxo. Um enorme aquário que ia do chão até o teto ocupava uma das paredes, e peixes prateados de barbatanas vermelhas nadavam de um lado para outro, entrando e saindo de um elaborado coral branco, na base. Sofás confortáveis ocupavam a sala, alguns num canto, formando um anel semiparticular em torno da lareira obrigatória; outros de frente para uma enorme televisão ligada a todos os equipamentos de jogos conhecidos pelo homem. À esquerda, um grande refrigerador em aço inoxidável e porta de vidro tinha, em seu interior, água, suco de laranja, Gatorade, frios, iogurtes, saladas e recipientes plásticos com frutas e vegetais cortados. Fui incentivada a me servir. E me servi de uma tigela de framboesas.

Estava uma delícia.

Eu estava na terceira tigela – eu merecia – quando Daniela Arias passou pela porta.

– Ele vai sobreviver.

Droga.

– Ele quer ver você.

Apoiei a tigela de framboesas e a segui pelo corredor.

– Ele está com dor?

– Dei a ele um medicamento que vai ficar ativo pelas próximas seis horas. Mas se ele se mexer do jeito errado, vai sentir. Está com duas costelas quebradas e o ombro está severamente ferido.

Ele não estava morto, era só o que importava.

– E Troy?

– Quebrou a perna, uma fratura simples. Vai voltar para casa com um prêmio. E qual é a sua história? – Daniela perguntou. – Você também era do Exército?

– Não, senhora. Minha mãe era.

– E como ele resgatou você?

– Não trabalho para Louco Rogan. Só acabamos trabalhando juntos.

– Entendo.

– A senhora foi resgatada?

– Sim – ela disse. – Servi por dez anos, seis deles na América do Sul. Então, finalmente saí, pronta para a vida civil. Fui trabalhar em uma clínica de atendimento de urgências. Algumas dessas clínicas oferecem um bom serviço. Mas a em que eu trabalhava apenas se importava com dinheiro. Quando entrei na faculdade de medicina, queria salvar vidas. Então, se eu sabia que determinado remédio seria necessário, prescrevia. Se um tratamento era recomendado, eu aplicava. Mesmo sabendo que o paciente talvez não pudesse pagar a conta.

– E os donos não gostaram? – arrisquei.

– Não. Todos os médicos ajudam pacientes que não podem pagar. Mas os donos acharam que eu estava ajudando demais. Falaram comigo, depois me ameaçaram. Esperavam que eu me curvasse, mas não foi o que aconteceu. Eles pagavam um salário baseado no que achavam que eu faria. Algumas vezes, o seguro se recusou a pagar, e algumas contas não fechavam; então, acabei devendo dinheiro para a clínica. Em geral, as clínicas não fazem nada em relação a isso, mas eles fizeram. Exigiram que eu cobrisse o que o seguro não cobria e, como eu não podia, me processaram. Vendi minha casa, gastei todas as minhas economias e fui à falência. Foi quando Louco Rogan me encontrou, pagou minhas dívidas, me deu a chance de praticar a medicina e de construir uma vida muito melhor. Então, se você fizer algo para machucá-lo, coloco uma bala na sua cabeça. – Ela sorriu e abriu a porta. – Pode entrar.

Entrei e ouvi a porta se fechar atrás de mim. Eu estava em um belo quarto de hotel. Exatamente em frente à porta, uma grossa cortina cinza emoldurava uma janela do teto ao chão com vista para Houston. À direita, uma enorme cama estava perto da parede. Era alta demais, e sua base, em plástico e metal, também era trabalhada demais para servir como uma cama de hospital, mas ali, parecia mais uma cama de um hotel de luxo, arrumada com um cobertor branco como a neve e alguns travesseiros. Mais à direita, uma pequena cozinha ocupava a parede. Do outro lado, perto da cortina, uma peça retangular de vidro. Demorei alguns segundos para perceber que se tratava de um chuveiro com diversas saídas de água, e com água ainda escorrendo pelo lado de dentro de suas paredes. Louco Rogan estava ao lado do chuveiro, descalço, vestindo calça jeans e uma camiseta branca. Seu cabelo escuro estava molhado.

Tinha acabado de tomar banho. Ele tinha estado naquele box de vidro, nu, com água correndo por seu corpo. Provavelmente perdi a visão de Louco Rogan sem roupa por questão de poucos minutos.

Minha imaginação o desenhou nu, sua pele dourada molhada, firme, os suaves músculos se movendo nos braços à medida que passava a mão no cabelo... O calor percorreu meu corpo. Eu estava ficando vermelha. Sabia que estava.

Estávamos trancados, sozinhos, em um quarto. O quarto tinha uma cama. Por que meu coração estava acelerando?

– ... homem.

O quê?

Louco Rogan fez uma careta e prosseguiu:

– Não, eu não vi o rosto dele. Vi só a mão, quando ele se abaixou.

Ele estava ao telefone. Isso não era bom. Eu era observadora. Era uma de minhas qualidades profissionais, algo que eu treinava, mas também algo que eu tinha naturalmente. Ele estava bem ali, com o telefone na orelha, e eu simplesmente não tinha visto. Só tinha visto seus olhos, seu rosto e o forte contorno do pescoço, o contorno de peito musculoso sob a camiseta. Vi um enorme hematoma azulado na lateral esquerda de seu pescoço e muitos cortes e ferimentos menores nos braços. Mas não tinha visto o telefone. O pensamento dele no chuveiro havia dado curto-circuito na minha capacidade de observação.

Ok. Isso precisava acabar. Agora já estava interferindo ativamente nas minhas capacidades de trabalho. Eu precisava não pensar nele no chuveiro. Ou em estar no chuveiro com ele.

– Sim, tenho certeza, Augustine – Louco Rogan disse, ao telefone. – Ele não acariciou meu rosto com seus dedos calejados, mas vi uma mão masculina.

– Ele usava um anel – eu disse.

– Espere. – Louco Rogan colocou o aparelho no viva-voz. – Que tipo de anel?

– Um anel grosso, de ouro. Parecia um anel de fraternidade.

– Por acaso você reparou em qual dedo o anel estava? – Augustine disse, do outro lado da linha.

– No indicador.

– Tem certeza? – Augustine perguntou.

– Tenho. Achei estranho, porque anéis desse tipo costumam ser usados no anelar da mão direita.

– Não se for um anel da Zeta Sigma Mu – Louco Rogan retrucou.

– E que tipo de fraternidade é essa? – perguntei.

– Mágica. Da categoria de Notável para cima – Augustine disse.

– O anel dessa fraternidade é usado no indicador porque os antigos acreditavam que o dedo anelar tem uma veia que vai direto ao coração – Louco Rogan disse. – A magia é uma arte analítica e deve ficar livre de questões do coração; então, usa-se o anel o mais longe possível do anelar. O que, na prática, significaria o polegar. Mas fica impraticável.

– Existem oito casas de animadores no país – Augustine disse. – Talvez até mais. Não gosto disso. Não gosto de ter mais de um Superior envolvido nesta história. Agora as apostas foram às alturas. Está bem. Ligo quando estiver com ele.

Louco Rogan desligou o telefone e olhou para mim.

– Ele encontrou Mark Emmens, tataraneto do Emmens original. Está com setenta e nove anos e lúcido. Augustine está indo buscá-lo pessoalmente, para levá-lo à MII.

– Ótimo.

– Ele está enfeitiçado.

– E o que isso quer dizer?

Louco Rogan jogou o telefone na cama.

– Todos os membros da família Emmens foram colocados sob alguma forte compulsão que os impede de falar a respeito do artefato.

– Você consegue fazer isso?

– Eu, pessoalmente, não. Mas pode ser feito. É muito raro e exige meses de preparação. Aparentemente, a família Emmens considera proteger a localização do artefato seu dever sagrado.

Franzi o cenho.

– Então, como isso nos ajuda?

– Você vai ter de quebrar o feitiço.

– Eu?

– Você.

Abri os braços.

– Não tenho a menor ideia de como fazer isso. Você já usou Acubens Exemplar comigo. Não pode fazer algum feitiço poderoso para conseguir quebrar esse?

– Sou um telepata fraco. Minha telepatia é subproduto da minha capacidade tátil e, além disso, Acubens Exemplar demora semanas para ficar pronto. Sobrou de uma outra empreitada em que eu estava. E usá-lo me drenou completamente. Entre nós dois, você tem muito mais chances.

Ótimo.

– Rogan, não sei como. Vou me esforçar ao máximo, mas não sei como se faz isso.

Ele se sentou na cama.

– Você vai ter que chegar no mesmo ponto de quando me interrogou depois do incêndio que quase matou a sua avó.

Claro, facinho.

– Nevada?

– Não posso. Não sei o que eu fiz ou como fiz.

– Ok. – Louco Rogan se inclinou para a frente. – Vamos tentar entender isso. Quando você exercita seus poderes, você se esforça?

– Na verdade, não.

– E o que acontece quando sua magia falha?

– Não acontece.

Ele fez uma pausa.

– Você nunca teve um falso positivo?

– Não.

Louco Rogan olhou para mim.

– Está me dizendo que em todo esse tempo você nunca se exercitou e nunca errou?

– Não entendo o que quer dizer.

A expressão dele mudou. O silêncio tomou conta do quarto. Eu me sentia uma idiota ali.

– Rogan?

– Espere. Estou tentando condensar os trinta anos sendo Superior e aprendendo teoria mágica, em vinte minutos de explicação. Estou tentando colocar em palavras que você vá entender.

Balancei a cabeça.

– O que foi?

– Entendo que sou uma ignorante e isso é frustrante para você, mas seria bacana se não me tratasse como idiota.

– Você não é uma idiota. Estou tentando explicar como pilotar um jato para alguém que nunca viu um avião antes.

Suspirei e sentei-me em uma cadeira.

– Bom, quando encontrar as palavras que meu ser estúpido possa entender, me avise.

– Você ao menos vai tentar aprender, ou vai ficar aí, fazendo biquinho? Não combina nada com a sua personalidade.

– Rogan, você não sabe nada a respeito de quem eu sou.

Ele desceu da cama e se agachou ao meu lado. Nenhum piscar, nenhuma careta. Os analgésicos que a médica tinha dado para ele deviam ser realmente muito fortes. Ele se concentrou em mim completamente, da mesma forma como quando me fazia uma pergunta e esperava a resposta. Era quase impossível desviar o olhar. Se um dia ele se apaixonasse – o que provavelmente seria impossível, dado que era praticamente um psicopata –, teria a devoção com que as pessoas sonham.

– Você vai machucar suas costelas – eu disse.

– Qual é o problema, Nevada?

Eu queria mentir. Sentia uma necessidade forte, quase irresistível de inventar qualquer coisa. Mas não havia um motivo vital para fazê-lo. Eu só queria proteger meu ego, e isso, definitivamente, não era o suficiente para justificar uma mentira.

– Você já fez um trabalho de última hora pra escola ou pra faculdade?

– Claro.

– E aí alguém lê e diz que você foi displicente e que não deveria ter deixado para a última hora e você fica bravo com a pessoa; mas, na verdade, está bravo consigo mesmo.

– Você está brava com você mesma?

– Sim. É a minha magia. Parece que tenho muita, que é forte, e eu nunca fiz nada com ela. Segui em frente porque era suficiente. Nunca me testei. Li sobre os feitiços e sobre os círculos, mas até aquele dia com você, nunca tinha desenhado um no chão. E nem sei explicar o motivo. Nunca pensei nisso. Sempre achei que ser um detector de mentiras em forma de gente era meu limite. Não gosto de ver isso esfregado na minha cara.

– Ok. – Ele balançou a cabeça. – Agora estamos sendo claros. É o seguinte. Esse é seu momento para ficar irritada com sua própria preguiça e se deixar sentir dó de si mesma. Um momento é tudo o que você tem, porque a qualquer minuto Adam Pierce pode incendiar Houston. Use alguns minutos para sua autopiedade. Cinco está de bom tamanho?

– Você é um imbecil!

– Sim, mas sou um imbecil muito bem treinado. Estou oferecendo a você a minha expertise. Então, engole esse choro, levanta daí e vamos em frente. Você está comigo?

Quer saber? Não: se um dia ele se apaixonasse, não seria uma linda e romântica devoção. Seria um treinamento de frustração e luxúria e, no final, a outra parte o acabaria estrangulando.

Eu não podia deixar Houston queimar.

– Sim, estou com você.

Ele se levantou, sentiu um pouco de dor, e sentou-se na cama novamente.

– A magia age de duas formas: passiva e ativa. Vamos falar de um aquacinético, um mago da água. Um mago da água sabe onde está a fonte mais próxima de água. A questão é: como?

– Ele sente – chutei.

– Sim. Uma parte de sua magia escaneia o ambiente, independentemente de sua vontade. Se você pedir que se concentrem e apontem a água, por incrível que pareça, a maioria deles não consegue fazer tal esforço. Acontece inconscientemente. Isso é chamado de campo passivo. Eles também não podem impedir seu funcionamento. Um aquacinético no deserto vai ficar mais cansado do que todos os seus colegas. Por quê?

– Porque ele vai ficar o tempo todo buscando por água e não vai encontrar?

Louco Rogan fez que sim.

– Parece com o funcionamento do celular. Se você for com ele para um lugar onde não haja sinal, ele vai continuar procurando, procurando, e vai acabar com sua bateria. Campo passivo. Se o aquacinético decidir manipular a água captando a umidade do ar ou uma fonte de água, essa manipulação vai requerer um esforço ativo de sua parte. Isso é chamado de vetor ativo. Continuando com o exemplo do celular, o campo passivo é o aparelho buscando por sinal. E o vetor ativo é você fazendo uma ligação.

– Então, quando eu sei dizer se as pessoas estão mentindo, isso acontece porque estão no meu campo passivo. – Isso significava que, quando eu o pressionei por uma resposta a respeito da responsabilidade pelo incêndio, foi a primeira vez que usei meu poder ativamente. Uau. Não, espera. Eu também resisti ao seu feitiço quando ele me sequestrou. Talvez eu pudesse recorrer a isso.

– Sim. – Louco Rogan se levantou. – Tenho quarenta e cinco anos.

Minha magia deu sinal.

– Mentira.

– Vire-se de costas – ele disse e eu me virei, deixando de ver seu rosto. – Minha mãe me odiava.

Sinal.

– Mentira.

Virei de volta, ele tinha ido até a cozinha.

– Você está fazendo um teste de alcance? – perguntei.

– Estou.

– Podemos evitar o desgaste. Se eu puder ver você, ou se estiver perto o suficiente para eu poder ouvi-lo, funciona. Não funciona em ligações telefônicas, transmissões de televisão, conversas via Skype, então, precisa haver alguma proximidade física. Funciona melhor se eu puder ver e ouvir ao mesmo tempo. Contato direto, olho no olho, é o melhor.

Ele se aproximou e parou a poucos centímetros, olhando diretamente nos meus olhos.

– Faça uma pergunta e tente me forçar a responder.

Eu me ajeitei, foquei nele. Alguma pergunta simples, de resposta sim ou não. Sobre algum tópico neutro.

– Você já foi casado? – Claro. Completamente neutro.

Nada.

Esperamos mais dez segundos.

– Vamos tentar de outro jeito. – Louco Rogan procurou nas gavetas da cozinha e pegou um pedaço de giz. Ele me entregou e disse: – Desenhe um círculo amplificador.

Peguei o giz da mão dele, fui até a parte mais clara e aberta do quarto e comecei a desenhar um círculo no chão.

– Espera. – Ele se aproximou, ajoelhando-se atrás de mim. – Esse é um daqueles casos em que tamanho não é documento.

Ha-ha.

– Um círculo pequeno desenhado perfeitamente tem mais poder do que um grande, meio torto. Deixe eu te mostrar.

Ele colocou sua mão sobre a minha.

Senti o calor, a textura dos dedos, e a excitação tomou conta de mim, uma excitação apreensiva, em parte desejo, em parte medo. Seu outro braço me envolveu.

Ah, meu Deus. Para onde foi todo o ar?

– Estique o braço. Não trave o cotovelo.

A mão dele deslizou pelo meu braço, até o cotovelo, disparando uma reação em cadeia que percorreu meu braço, chegou às costas e terminou em um calor com arrepios. Minha mente queria urgentemente recuperar o controle, enquanto o corpo murmurava na minha cabeça. Toque em mim. De novo. Mais.

Ele prosseguiu, diretamente atrás de mim, falando no meu ouvido.

– Coloque o giz no chão.

O mundo se encolheu. Repentinamente, eu tinha consciência de cada centímetro entre nós. O ar ficou denso, como se houvesse uma tempestade. A ansiedade me assolava. Meus ouvidos desligaram tudo além de sua voz. Sua mão acariciava meu braço. O joelho dele tocou minha coxa. Eu quase dei um salto.

– É como um compasso. Seu corpo é o eixo e o giz é o grafite. – O timbre da voz dele tinha mudado. Ele respirava mais fundo. Segurou meu braço com mais firmeza, movendo-o. – Segure firme. Agora, vire.

Eu virei sobre meus pés, desenhando um arco quase perfeito no chão.

– Bom.

Minha mão tocou a perna dele. Larguei o giz e olhei para cima. Estávamos cara a cara.

Seus olhos, geralmente frios e impiedosos, ou sadicamente alegres, estavam num tom quente de azul, demonstrando a intensa necessidade masculina. Eles me atraíam, prometiam coisas que faziam a minha cabeça girar, e eu não me importava se essas coisas fossem mentira.

Ele se moveu para a frente, rápido, seus braços me pegaram e ele selou minha boca com a sua. Sua língua passou entre meus lábios, acariciando-me, fazendo com que eu me abrisse mais para ele e me seduzindo a sentir seu gosto.

Um calor fantasma passou pela parte de trás do meu pescoço, deslizou por minha garganta, como se fosse um mel quente, deslizando por minha carne, entrando em minhas veias, e toda a minha pele ficou arrepiada de desejo com aquela onda aquecida. O calor fluido escorreu lentamente, caindo no vale entre meus seios, deslizando pelo alto deles até as laterais, chegando, por fim, na parte inferior. Meus mamilos se enrijeceram. Logo o fogo se intensificou, envolveu meus seios com uma pressão macia. Apertava suavemente, envolvia-os e, finalmente, queimou meus mamilos com pequenas explosões de calor. Meu corpo estava em colapso diante daquele ataque de prazer. Engasguei na boca de Rogan.

Sua mão estava no meu cabelo, segurando a parte posterior da minha cabeça. Sua outra mão tinha me puxado para perto de si, estava firme nas minhas costas, sem fazer esforço para suportar meu peso. Seu peito roçava em meus mamilos. Aquela hora no shopping tinha sido só uma pequena amostra de sua magia. Isso? Isso era o paraíso, ou talvez o inferno, eu não sabia e não me importava. Eu queria mais.

O calor fluido que induzia à loucura estava sob meus seios, e descia pelo meu corpo, lentamente, muito lentamente, contornando os nervos sensíveis nas minhas costas e ativando-os um a um até todo o meu corpo gemer, quase em êxtase... Ele me tomou, como se nada mais importasse, e eu deixei.

O calor descia, cada vez mais para baixo, faixas de prazer que me envolviam. O prazer surgiu no meio de minhas pernas, a dor e o tremor da necessidade e da ansiedade. O calor pulsava dentro de mim, crescendo e crescendo.

Ele continuava me beijando; sua língua era incansável.

Ai, meu Deus. Eu não podia aguentar. Eu não...

Ele estava em minha boca. O calor aveludado me envolvia. O prazer era um rio no qual eu tinha me afogado, oprimida pela latejante corrente de êxtase e delírio. Meu corpo se contraía, com tanta força que chegava a doer, e eu gemi. Meus quadris se moviam por conta própria.

A pressão no meio das minhas pernas se desfez em uma cascata de tremores. Eu me soltei contra ele, em seus braços, flutuando naquela felicidade.

Ele me segurou perto de si e me beijou, o toque de seus lábios nos meus era quase delicado.

Alguém bateu na porta.

– Senhor? Senhor? – Daniela.

A realidade me atingiu como um trem. Eu estava me pegando com Louco Rogan e tinha gozado. Tinha tido um orgasmo desses de mudar a vida, que eu lembraria até o dia da minha morte, e ele nem tinha tirado minha roupa. Ah, não. Não, não, não. Cobri o rosto com as mãos.

– O que foi? – Louco Rogan rosnou.

– O senhor não está atendendo seu telefone. Estou com Augustine Montgomery na linha.

– Eu ligo para ele depois – Louco Rogan disse.

– Ele disse que é urgente.

– Eu ligo depois – Louco Rogan repetiu, com a voz dura como aço.

Ouvi os passos se afastando. Seus braços continuavam em volta de mim.

– Nevada? – ele perguntou. – Está tudo bem?

Eu tinha acabado com minha integridade profissional. Tinha feito papel de idiota. Tinha me pegado com Louco Rogan. Mas pior do que isso: ele tinha me dado uma pequena amostra do que seria ficar com ele. Era mágico. Era como uma droga, viciante desde o primeiro momento. E, como uma droga, iria consumir você e depois deixá-lo vazio. E ele me deixaria. Eu não poderia tê-lo para sempre. Ele era Superior, cuidava primeiro dos seus próprios interesses. No momento em que eu me tornasse chata ou que ele enjoasse, ele simplesmente iria embora. Só de pensar nisso já doía.

– Nevada? – ele repetiu.

Acorda. Tirei as mãos do rosto, afastei-me dele, alcancei a cama e lhe entreguei seu telefone.

Ele pegou o celular da minha mão e jogou por cima do ombro com um movimento desdenhoso do punho. O telefone bateu na parede e caiu sobre o carpete. Ele se aproximou de mim.

– Não – respondi-lhe.

– E por que não?

– Isso foi antiprofissional e perigoso. Nunca aconteceu.

– Aconteceu.

– Não.

– Aconteceu. Eu estava lá. E você gostou.

– Não.

– Você se derreteu. – Um sorriso de satisfação masculina surgiu em seus lábios. – Como neve na primavera.

– Eu não sei do que você está falando.

Ficamos olhando um para o outro.

– Está bem – ele disse. – Você não tinha ideia de que seria tão bom assim. Ninguém no seu passado já foi tão bom e sabe que ninguém no seu futuro vai ser. Você teve uma amostra e quer mais. Você quer sexo. Sexo sujo, pelado, quente. É isso o que está passando pela sua cabeça enquanto conversamos. Acha que pode imaginar como seria. Acredite em mim, você não faz ideia. Vou deixar assim por enquanto. Quanto mais você luta, mais irresistível vai ficar, até que um dia, eu vou acenar e você vai vir correndo.

Meus dedos se fecharam em alguma coisa dura. Joguei na cara dele. O giz o atingiu no meio da testa. Ele piscou.

Eu me levantei e fui para o banheiro, me recompor.


Ou o celular de Louco Rogan era à prova de impactos ou ele tinha um de reserva idêntico, porque quando saí do banheiro, ele o estava segurando no ouvido, escutando. Ele também estava de sapatos. Estávamos de saída.

Louco Rogan acenou para mim e foi na direção da porta. Eu o acompanhei e saímos do quarto, seguindo pelo corredor. Rogan andava rápido, e eu quase precisava correr para acompanhá-lo.

– Ok – disse ele. – Preciso que esteja lá em dez minutos. Consegue fazer isso?

Ele desligou e acelerou.

– Augustine ligou. Uma equipe de ronda da polícia viu Pierce dirigindo a caminho da cidade pela rodovia sul. Passaram o rádio há três minutos.

– Ele explodiu a viatura, transformando-a em uma bola de fogo e depois caiu na gargalhada? – Comecei a correr.

– Ele os ignorou, então um veículo blindado que o seguia bateu na viatura, tirando-a da pista. Abrimos a porta e chegamos à luz.

Adam não estava aproveitando a oportunidade para fazer uma declaração. Ele estava indo para a cidade pela rodovia sul, que o levaria diretamente ao centro, e estava economizando energia. Ele estava prestes a atingir Houston como um meteoro. Aquilo tinha virado uma corrida.

– Chaves. – Rogan estendeu a mão.

Coloquei-as em sua mão. Ele acionou o Audi e partimos.

– Ele não tem a terceira parte. – Rogan deu marcha à ré e acelerou, o Audi saiu do estacionamento como um tiro. – Ele fez um grande espetáculo ao pegar a primeira e a segunda, então, vai fazer o mesmo para pegar a terceira. Ele sabe onde está. Nós, não.

Pelo rádio, ouvimos: “Esta é uma transmissão de emergência. O departamento de Segurança Nacional recebeu uma prova confiável de um ataque terrorista no centro da cidade de Houston. O risco de ataque terrorista foi elevado para iminente. Evacuem o centro da cidade. Repito, evacuem o centro da cidade. Se não for possível sair, procurem abrigo no sistema de túneis. As principais entradas são...”

Louco Rogan desligou o aparelho. Passávamos pelas ruas a uma velocidade impressionante. Uma massa de carros seguia na rua, em direção oposta. Todos que estavam na nossa pista estavam procurando uma rua lateral para virar. As pessoas estavam fugindo do centro da cidade.

– Mark Emmens tem uma filha – Louco Rogan disse. – Sua esposa e sua irmã já faleceram. A filha e o marido são contabilizados. De acordo com Augustine, nada de diferente aconteceu na vida deles. Mas o neto de Mark, Jesse Emmens, desapareceu de seu dormitório em Edimburgo há três meses.

– O sobrenome do neto é Emmens? Havia um filho também?

– Não, o genro de Mark assumiu o nome Emmens. A família Emmens é respeitada e seu nome tem mais reconhecimento. Jesse Emmens desapareceu por quarenta e oito horas, depois foi deixado na porta do dormitório sem ferimentos, mas também sem memória do que aconteceu durante esse período. O bloqueio foi tão grande que ele demorou mais vinte e quatro horas para se lembrar do próprio nome.

– E Jesse sabia a localização dos artefatos?

Louco Rogan negou.

– Ele também era enfeitiçado. Alguém quebrou o feitiço para que isso pudesse acontecer.

E quem deveria fazer isso, agora, era eu. E eu continuava sem ideias sobre como fazer.

– Você consegue – Rogan disse. – Tudo seria muito diferente se você tivesse recebido orientações adequadas.

– Se eu tivesse recebido orientações adequadas, pessoas como Augustine me forçariam a ser seu detector de mentiras pessoal.

E agora, independentemente de eu fracassar ou não, era o que aconteceria de qualquer maneira. Isso presumindo que a MII sobrevivesse ao que quer que Adam estivesse prestes a aprontar.

– Augustine pode te forçar a fazer isso pelos termos do seu contrato?

– Pode.

– Eu posso comprar o seu contrato.

– Não, não pode. Qualquer venda da minha hipoteca requer meu consentimento, e eu não vou consentir.

Ele riu.

– Você não quer trabalhar abaixo de mim?

– Nem vou me dar ao trabalho de responder.

– Você tem uma cópia do contrato?

– Tenho no meu telefone.

– Leia para mim a cláusula que te obriga a aceitar os casos da MII.

Dez minutos depois, estacionamos em frente ao edifício da MII com sua forma de barbatana de tubarão em vidro azul. Uma enorme quantidade de carros seguia na direção oposta. Pessoas corriam para fora do prédio com o terror estampado no rosto. Augustine estava evacuando a MII. A recepcionista nos encontrou no saguão. Sua maquiagem continuava impecável, as roupas continuavam perfeitas, mas seu cabelo agora estava verde-malaquita.

– Sigam-me, por favor.

Ela foi para o elevador quase correndo. Nós a seguimos. Ela apertou o botão para o décimo quinto andar e disse:

– Conseguimos uma imagem de Adam Pierce vindo para a cidade pelas câmeras de trânsito antes de toda a rede cair. Ele estava na motocicleta, que vinha seguida de perto por duas SUVs BMW X6 pretas.

O elevador apitou, sinalizando a parada. As portas se abriram e a recepcionista seguiu pelo corredor.

– As gravações indicam que os observadores não viram nem Pierce nem as SUVs. As forças policiais montaram bloqueios nas principais avenidas do centro da cidade.

Alguém estava ocultando Adam Pierce. Outro mago poderoso. A cada minuto ficava mais e mais complicado. Quem quer que fossem essas pessoas, eram um grupo organizado e poderoso, e com um bom planejamento. A previsão para Houston não era nada boa.

O que eles queriam? Por quê? Por que isso estava acontecendo? Nada fazia sentido.

A recepcionista parou diante de uma porta que abriu para nós. Entramos em uma sala ampla. O piso era preto, não polido, mas também não era rústico. A mesma pintura cobria as paredes. Persianas grossas cobriam as janelas. A única luz vinha de seis cilindros de vidro verticais, que iam do piso ao teto, três de um lado da sala e três do outro. Cada um dos tubos, de aproximadamente 30 centímetros de diâmetro, tinha um líquido claro como preenchimento. Centenas de bolhas passeavam pelo líquido, subindo lenta e hipnoticamente, iluminadas por luzes roxas dentro dos tubos, o que fazia toda a instalação ter um brilho leve, cor de lavanda.

No amplo espaço entre os tubos, uma cadeira. Um homem de idade estava sentado nela, segurando na mão esquerda um bastão de madeira trabalhada. Ele vestia um terno e seu cabelo era branco e fino, parecia algodão. A idade marcava seu rosto com profundas rugas, mas os olhos cor de mel olhavam para mim expressando uma inteligência alerta e precisa. Augustine estava ao lado do homem. No canto posterior da sala, cinco pessoas estavam em seus computadores, abaixo de uma grande televisão. A luz de seus monitores iluminava um pouco a parede atrás deles, destacando desenhos de giz. Agora a estranha cor do piso e das paredes fazia sentido. Aquilo era uma sala de magia, inteiramente pintada com tinta de lousa.

– Senhor Emmens – Augustine disse –, permita-me apresentar Connor Rogan e sua parceira.

– É um prazer – senhor Emmens respondeu.

– Preciso de um círculo de amplificação desenhado – Louco Rogan disse –, com dois pontos focais, um a 45 graus e outro a 135 graus.

Uma mulher levantou-se de um dos terminais, aproximou-se rapidamente e começou a desenhar no chão.

– Com licença. – Augustine sorriu para o senhor Emmens. – Preciso falar com meu colega.

Ele puxou Louco Rogan para o canto. Eu os segui porque não sabia o que fazer.

– Isso não vai ajudar e você sabe – Augustine murmurou. – Ele foi enfeitiçado por Cesare Costa ao nascer. Você não é forte o suficiente para conseguir quebrar o feitiço. Para isso, seria preciso um Superior de quebras. Existem apenas dois deles no país, e ambos estão na Costa Oeste. Temos apenas alguns minutos.

– A senhorita Baylor gostaria de renegociar seu contrato.

Augustine virou-se para mim.

– Agora?

– Agora – Rogan respondeu. – Ela gostaria que uma palavra fosse acrescentada à cláusula sete. Deve ficar assim: A MII NÃO pode obrigar a Agência de Investigações Baylor a aceitar etc.

– E por que eu faria isso? Vai contra meu interesse principal. – Augustine franziu o cenho. – O que está acontecendo aqui?

– Você vai fazer isso porque o vento está soprando para o sul – Louco Rogan disse. – Não importa por onde no centro da cidade Adam comece seu incêndio, esse edifício será atingido por suas chamas, e você sabe disso. Sua Casa vai perder milhões. Uma palavra, Augustine. Considere os riscos. – Augustine travou o maxilar. – Não seja mesquinho.

– Está bem.

Augustine pegou um tablet da mesa mais próxima. Seus longos dedos dançaram pela tela. Ele me mostrou: “Adendo um”. Lá estava listado o parágrafo e era possível ler a correção. Augustine pressionou o polegar contra a tela, assinando com sua impressão digital e me entregou o tablet. Acrescentei minha impressão digital. A tela piscou.

– Pronto – Augustine disse.

– Agora é com você – Rogan voltou-se para mim.

Respirei fundo. Augustine me observava como um falcão. Louco Rogan me levou até o círculo.

– Tire os sapatos – murmurou.

Tirei os tênis e as meias. Ele segurou minha mão e me ajudou a entrar no círculo.

– Relaxe. Interaja com ele.

Fiquei no círculo. Era estranho, como se, de alguma forma, eu me equilibrasse na superfície elástica, líquida. Eu tinha a estranha sensação de que, se saltasse, aquilo me impulsionaria como um trampolim. O problema era que eu não tinha a menor ideia de como saltar.

O senhor Emmens olhou para mim.

– Antes de começarmos, fui alertado que responder a uma pergunta direta a respeito da localização do objeto que poderia me matar. Eu quero lhe dizer onde ele está, mas se a senhorita me forçar a dizer a localização exata, vou morrer antes de poder ajudar, e vocês nunca o encontrarão a tempo. Não me incomodo em morrer pela cidade. É o dever da minha família. Só peço que não desperdice minha vida. Não quero morrer respondendo à questão errada.

– Entendo.

Minha magia preenchia o círculo como um denso vapor. A superfície “líquida” sob meus pés estava calma. De alguma forma, os dois interagiam.

– Estamos perdendo tempo – Augustine reclamou.

– Você sente o círculo? – Louco Rogan perguntou, aproximando-se de mim.

– Sinto.

Lentamente, ele contornou o círculo de giz e parou à minha esquerda.

– Sente sua magia preenchendo-o?

– Sinto.

– Você sabe o que Pierce planeja fazer?

– Ele quer queimar a cidade.

Aonde ele queria chegar?

– O artefato tornou Emmens um Superior. – A voz de Louco Rogan era fria. – Ele vai tornar Adam Pierce um deus do fogo. Ele já pode derreter aço. O aço derrete a 1 500ºC. O artefato dobra isso. Uma caldeira nunca trabalha acima de 650ºC. Adam Pierce vai chegar a cinco vezes isso, talvez até mais quente. Em 1 200ºC, o concreto perde sua integridade estrutural e se transforma em óxido de cálcio, um pó branco. A 1 500ºC, o ferro que está dentro das construções derrete. O centro da cidade vai ser um pesadelo de metal derretido, concreto despedaçado, chamas e gases tóxicos. Vai ser o inferno na Terra. Milhares de pessoas vão morrer.

Engoli em seco. A ansiedade crescia dentro de mim.

– Pierce acaba de cruzar a Dreyfus Street – anunciou uma das pessoas nos computadores. – As câmeras perderam o sinal. E nós o perdemos novamente.

Ele estava fugindo das principais vias para evitar os bloqueios de Lenora. Mesmo com trânsito, ele demoraria apenas vinte minutos para chegar ao centro da cidade.

– O problema quando dizemos “milhares de pessoas” – Louco Rogan disse –, é que é muito impessoal.

Ele pegou o tablet de Augustine e tocou na tela. A grande televisão na parede começou a transmitir. Uma van prateada estava parada na frente de um edifício elaborado e ultramoderno, na esquina das ruas MacKinley e Fanin, no centro de Houston. Era um prédio muito bonito, todo de vidros pretos, bem no centro da cidade.

Louco Rogan devolveu o tablet para Augustine e ergueu o telefone.

– Bernard?

– Sim? – A voz do meu primo respondeu do outro lado da linha. – Preciso que você saia do carro e olhe para o prédio.

Não. Meu corpo ficou gelado.

A porta do passageiro da van se abriu. Bern desceu do veículo e se virou para o prédio. A câmera aproximou a imagem de seu rosto.

Tudo mais desapareceu. Eu só via os sérios olhos azuis de Bern na grande tela na parede. Adam estava a menos de vinte minutos dali. Bern ia morrer. E Louco Rogan sabia disso. Ele sabia e o tinha mandado estacionar ali.

Ouvi minha própria voz:

– Saia já daí! Saia daí!

– Ele não pode escutar você. – Louco Rogan baixou o telefone.

– Seu desgraçado!

Minha magia impactou o círculo. Uma nuvem de poeira de giz saindo por seus limites.

Augustine soltou o tablet. O círculo devolveu o impulso, e o poder me preencheu.

– Aí está – Louco Rogan murmurou. – Não é medo ou raiva. É o impulso de proteção.

– Ele tem dezenove anos! – Minha magia estava irada, assim como minha voz.

– Então é melhor você fazer alguma coisa para salvá-lo. – Minha magia foi diretamente para ele. – Não é comigo. – Rogan apontou para o senhor Emmens. – É com ele.

Eu me virei e minha magia atingiu o velho. Ele ficou pálido. O círculo me dava mais poder. Olhei bem nos olhos dele.

– O seu nome é Mark Emmens?

– Sim.

Verdade.

Minha magia o travou. Ele estava preso em uma barreira, como uma noz dentro da casca. Era velho, duro e forte. Eu senti sua vida, pulsando no interior, protegida e limitada pela casca. Os dois estavam ligados. Se eu quebrasse a barreira, a luz de sua vida também seria perdida.

– O senhor sabe onde está escondida a terceira parte do amuleto?

Ele tentou resistir. Golpeei o círculo com minha magia. O poder voltou para mim. Agarrei-me à barreira invisível com minha magia e tentei quebrá-la. Eu não precisava de muito. Só de uma brecha. Uma pequena abertura.

A barreira resistia.

Eu não tinha tempo para isso. Bern ia morrer.

Invoquei o poder do círculo. Ele continuava vindo. Era como se eu puxasse uma corda esperando poucos centímetros, mas ela continuasse vindo e, agora, eu a puxasse com as duas mãos, o mais rápido possível. O recebimento de poder diminuiu. Golpeei o círculo novamente e o fluxo voltou. Concentrei tudo na barreira.

Ela estremeceu.

Mais poder

Eu me sentia tonta.

Mais um tremor.

A barreira se rompeu. Em minha mente, vi luz saindo de dentro dela. Coloquei minha magia ali dentro como uma cunha e a mantive aberta.

– Sim – o senhor Emmens disse.

Ele tinha respondido à minha pergunta. Fiz minha boca se mover.

– A terceira parte está com o senhor?

– Não.

– Está escondida em uma propriedade do senhor?

– Não.

– Ela vai morrer – Augustine alertou. – Ela está puxando muito poder.

– Ela está bem – Louco Rogan disse.

Estava doendo. Doendo como se alguém tivesse colocado uma faca no meu estômago e eu estivesse tentando tirar aos poucos. Mas minha magia estava aguentando.

Pense, pense, pense...

O rosto de Bern olhava para mim pela tela. Eu precisava salvá-lo. Ele era apenas um garoto. Tinha toda a vida pela frente.

Adam Pierce estava indo para o centro da cidade. A peça tinha de estar ali. No centro da cidade. Não estaria em um banco ou em um prédio, pois a família Emmens não colocaria duas peças num mesmo lugar.

– Em alguma propriedade que já foi do senhor?

– Não.

– Na propriedade de algum parente seu?

– Não.

A dor estava me consumindo, quente e aguda.

– Em alguma propriedade que já pertenceu a algum parente seu?

– Sim.

Aquele sim quase me derrubou.

– Procurem nos arquivos! – Augustine bradou.

As cinco pessoas nos computadores digitavam furiosamente.

– Essa propriedade foi vendida?

– Não.

Se a propriedade não era mais de seu parente, mas também não tinha sido vendida, o que poderia ter acontecido? O mundo girava. Eu estava prestes a desmaiar. Agarrei-me à consciência, lutando desesperadamente para me manter em pé.

– Frederick Rome – um dos técnicos nos computadores relatou. – Ex-marido de sua filha, de seu primeiro casamento. Ele tinha um edifício na Caroline Street. Foi perdido no divórcio e ficou para sua segunda ex-mulher.

Augustine virou-se para mim.

– Pergunte se foi perdido em uma ação judicial.

– A propriedade foi perdida como resultado de uma ação legal ou de um acordo?

– Não.

Pequenos círculos vermelhos passavam em frente aos meus olhos. Minha magia estava acabando. Eu mal conseguia me manter em pé. Forcei meu cérebro a trabalhar apesar da dor e do cansaço. Era o centro da cidade. Não havia nada no centro além de grandes prédios comerciais das Casas, propriedades do governo e...

Propriedades do governo.

– É uma terra municipal?

– Sim – o senhor Emmens respondeu.

– A propriedade foi doada à cidade?

– Sim – o senhor Emmens balançou a cabeça.

Os técnicos digitavam tão rápido que o som das teclas se misturava em um único zumbido.

– Patricia Bridges – o técnico do meio disse. – Casada com William Bridges, nome de solteira, Emmens.

O senhor Emmens sorriu.

– William e Patricia Bridges doaram uma parcela de suas terras à cidade de Houston sob a condição de que a terra nunca fosse vendida ou construída, em vez disso, deveria ser um local para as pessoas do Texas poderem se reunir.

O Bridge Park. Exatamente na frente do centro de justiça. Minha magia estava falhando diante da pressão. Eu só tinha tempo para uma última pergunta.

– Está no monumento que também tem um cavalo?

– Sim – senhor Emmens respondeu.

A barreira se fechou, esmagando minha magia.

Louco Rogan me puxou para fora do círculo. A pressão e a dor passaram. Sentia-me tonta novamente.

Seu olhar buscava meus olhos.

– Fale comigo.

– Eu odeio você.

– Tudo bem. – Louco Rogan me soltou. – Você está bem.

Ele me entregou o telefone. Eu peguei.

– Bernard, saia já daí! Você não entende, Pierce está prestes a queimar a cidade!

– Eu sei. Fui eu que me voluntariei – disse ele. – Você conseguiu?

Ah, seu idiota.

– Sim! Saia já daí. Não se preocupe com a van, desça para os túneis.

Na tela, vi meu primo correndo pela rua.

– Nunca peça a alguém da minha família para se voluntariar a fazer nada – eu disse para Rogan.

– Você não quer saber o que é? – senhor Emmens perguntou.

Olhamos para ele.

– O feitiço esconde o que ele faz e onde está, mas não o que é – ele explicou. – É um diamante verde perfeito, de quarenta quilates. A cor é resultado de irradiação natural.

– Preciso ir – Rogan me disse.

– Eu vou com você. – Eu ia acompanhar aquilo até o fim.

Ia chegar ao fim e dar um soco na cara de Adam Pierce enquanto Rogan pegava a última peça do artefato daquele cavalo.

– Está bem. Então vamos. – Ele se virou e saiu correndo.

– Preciso de algemas – falei para Augustine. Um dos técnicos nos computadores abriu uma gaveta e me jogou um par de algemas junto das chaves. – Obrigada!

Corri e alcancei Rogan no corredor.

– Pare! – Augustine gritou. Eu me virei. – Você é uma bateria sem carga. Não tem magia nenhuma. O que pode fazer contra Pierce?

– Ela pode dar um tiro bem no meio da cara dele – respondeu Rogan, apertando o botão do elevador.

– Se Rogan não conseguir impedi-lo, você vai morrer – Augustine argumentou.

As portas se abriram.

– Se ele falhar, vamos todos morrer de qualquer jeito – respondi, entrando no elevador com Louco Rogan.


Duas filas de carros ocupavam a Caroline Street. Os carros, nas duas faixas, iam para o sul, na direção oposta ao centro da cidade. Nada se movia. Os carros tinham sido abandonados. Os donos deviam ter ido para os túneis. Louco Rogan fez uma curva muito fechada. Segurei no apoio de braço para ficar firme. O Audi subiu na guia, ficando sobre a calçada. A lateral do veículo raspou contra um edifício. Louco Rogan acelerava. Seguimos pela calçada, o Audi gritando, em protesto contra as pedras que o arranhavam do lado do motorista. À nossa frente, avistei um poste de luz. Me preparei. O poste foi arrancado e voou para o lado.

– Tente não nos matar – falei por entre os dentes.

– Não se preocupe. Não quero desapontar Adam.

À nossa frente, a Congress Avenue estava completamente abarrotada de carros. As árvores verdes do Bridge Park balançavam com o vento, bem no meio do trânsito.

O Audi parou bruscamente, cantando pneus. Desci. A pistola Baby Desert Eagle ia na minha mão. Corri por entre os carros. O parque ocupava apenas um quarteirão da cidade. Vi a estátua do caubói de bronze no meio das árvores. A cabeça do cavalo não estava mais lá, era apenas uma massa de metal derretido. Ao lado da estátua estava Adam Pierce. O terceiro olho de Shiva estava em sua cabeça: três fileiras de diamantes brutos cortadas por um olho vertical incrustado com rubis cor de sangue. No centro do olho, onde seria a íris, um enorme diamante verde brilhava sob o sol, como uma gota de pura luz capturada, de alguma maneira, e facetada e posicionada entre as pedras menores.

Eu vi Adam Pierce, mirei em seu corpo e atirei. As balas bateram no espaço ao seu redor e caíram, sem feri-lo, na grama. Continuei atirando, caminhando em sua direção. Minha arma disparava as balas, o som era muito alto.

Bum. Bum. Bum.

Clique.

As balas acabaram.

Baixei a arma. Estávamos face a face, Adam e eu. Exatamente ao seu redor, a grama estava baixa. Ele estava em um círculo mágico, não um desenhado com giz, mas feito pelo terceiro olho de Shiva.

– Espaço nulo – Adam disse. – Você chegou tarde demais.

– Por quê? Por que, Adam? Milhares de pessoas vão morrer. Você não se importa? Não se importa nem um pouquinho?

– Olhe em volta – ele disse. – Vê isso tudo? Parece tudo bem, mas se olhar com mais atenção, vai ver como é podre. Completamente podre.

– Do que você está falando?

– O Estado – ele esclareceu. – O chamado sistema de justiça. Justiça. Que grande piada. Não é justiça, é opressão. É um sistema projetado para acorrentar aqueles que podem àqueles que não podem. A podridão é completa. São os políticos, os empresários, os tribunais. Não há como consertar. Só há um jeito de acabar com isso tudo. E eu vou purificar o centro da cidade.

– Há pessoas nos túneis, pessoas comuns, Adam. Elas não têm nada a ver com sua rebelião.

– Elas têm tudo a ver com isso. – Ele me encarou, os olhos completamente lúcidos. – Elas estão nos puxando para baixo. Eles nos impedem de tomar posse do que, por direito, é nosso. Sabe, enfiaram na nossa cabeça essa besteirada de utilitarismo. Aceitamos que o que é bom é o que beneficia a maioria. Bom, eu não dou a mínima para a maioria. Por que eu deveria me preocupar com suas leis e suas necessidades? Se eu tivesse o poder de obter e manter o que desejo, então, devo poder fazer isso.

– E se alguém mais forte tirar o que você conseguiu?

– Paciência. – Abriu os braços. – Agora você está entendendo. Estou iluminando a podridão. Sou um guerreiro da liberdade. Estou nos libertando. Cortando as amarras.

– Da mesma maneira que tentou me libertar da minha família?

Ele balançou a cabeça.

– Achei que entenderia, mas você não estava pronta. Ou você tem o poder, ou não tem, Floco de Neve. Poder é ação. E hoje eu escolhi agir. Vou transformar este lugar em cinzas, como uma floresta destruída, e observar o novo crescimento. Vou ser lembrado.

– Então quer que este seja seu legado? Quer ser aquele que queimou vivas milhares de pessoas? Famílias? Crianças? Escute o que está dizendo. Você não pode ser esse monstro.

– Shhh. – Ele levou um dedo aos lábios. – Pena que você não vai viver para saber. Sem ressentimentos? – Não havia como argumentar com ele. – Olá, Louco Rogan. – Adam prolongou a palavra Louco. – Enfim nos encontramos. Como se sente sendo o segundo maior?

– Nevada – Louco Rogan me chamou. – Venha aqui.

– Quase sinto pena de você, cara – Adam sorriu. – Quase teve chance de ser convidado para a festa, mas, em vez disso, seu próprio primo fez de você um bode expiatório. Deus, isso deve ser péssimo.

Louco Rogan me pegou pela mão, puxando-me para perto de si e me afastando de Adam.

Íamos morrer. Houston estava prestes a virar cinzas. Era o fim.

– Nada a dizer, ó Magnífico? Vamos lá, Carrasco do México! – Adam gritou. – Olhe para mim enquanto falo. Vou tocar fogo em você.

– A festa é sua. – Rogan olhou para Adam. – É você quem está usando a tiara. Tente ser um anfitrião agradável.

– Vá se foder! – O rosto de Adam ficou vermelho e ele apontou o dedo em nossa direção. – Vá se foder, cara. Vocês dois, aliás.

– As crianças de hoje em dia... – Louco Rogan balançou a cabeça. – Sem nenhuma educação.

Rogan parou no meio do gramado. Eu parei com ele. Tudo estava tão brilhante. As árvores estavam parecendo esmeraldas de tão verdes, o céu estava muito azul. Eu podia ver cada folhinha à nossa volta.

– Não quero morrer – sussurrei.

Percebi que eu estava chorando. Era esperado que eu fosse estoica, ou forte, mas tudo em que eu podia pensar era em como amava estar viva. Eu mal tinha conseguido fazer alguma coisa com minha vida. Nunca poderia ver minhas irmãs crescendo. Nunca me apaixonaria e constituiria uma família. Nem mesmo pude me despedir adequadamente. Só tinha dado um beijo no rosto de minha mãe. Eu...

– Fique perto de mim – Louco Rogan aconselhou. – Você vai sentir a barreira à nossa volta. Não importa o que acontecer, não a ultrapasse. Entendeu, Nevada? Você não pode entrar no espaço nulo, mas pode sair, e se fizer isso enquanto eu estiver ativo, ele vai transformá-la em uma névoa ensanguentada. – Engoli em seco. – Quando eu começar, posso não conseguir parar. Não vou saber onde você está. Não vou te escutar. Não vou te ver. Não saia do círculo. Não importa o que aconteça, aqui você vai estar em segurança. Você entendeu?

– Entendi.

Ele me puxou para perto, minhas costas contra o seu peito. E passou os braços em volta de mim. A magia emanava dele. O vento agitava a grama à nossa volta.

– Não vai funcionar – Adam advertiu. – O que quer que esteja fazendo, não vai funcionar. Eu vou incendiar tudo.

– Vamos dançar – Louco Rogan disse. Sua voz estava estranha, profunda e distante.

Nada aconteceu. Seus braços continuavam em volta de mim. Ele não se movia.

Os segundos passavam, lentamente, muito lentamente.

À nossa frente, uma fraca luz alaranjada emanava do círculo de Adam. Ela se acendia, como uma chama fantasma, morria, se acendia novamente, morrendo mais uma vez. Adam Pierce abriu a boca. A voz não era mais a dele. Era a voz de algo antigo e terrível, o rugido de um vulcão entrando em atividade.

– EU SOU O FOGO. QUEIME POR MIM.

O vento parou. Estava lá um segundo antes, e agora tinha parado. Eu ainda podia vê-lo fazendo farfalhar as árvores e a grama, mas não sentia nada. Uma estranha calma tomou conta de mim, como se uma parede invisível nos separasse do mundo. Eu sentia que ela estava a uns sessenta centímetros à minha frente, formando um círculo de aproximadamente três metros e meio de diâmetro. Era tão tranquilo ali. Tão silencioso.

Louco Rogan me soltou. Seus braços deslizaram de meus ombros. Virei-me. Seus olhos tinham se tornado de um turquesa irreal. Seu rosto era sereno.

– Rogan?

Ele olhava ao longe. Não me via. Seus pés saíram do chão. Seu corpo flutuava a uns trinta centímetros, solto no ar. Seus braços se abriram, distanciando-se de seu corpo. A grama do lado de fora do círculo se curvou, como se uma rajada de vento partisse daquele movimento.

Em seu círculo, Adam Pierce começou a produzir fogo, que girava em torno de si. Denso e já com mais de um metro de altura. Ele olhava diretamente para mim, e seus olhos eram puro fogo. Fiquei arrepiada.

O círculo à minha volta pulsava. Não era possível ouvir, mas dava para sentir. Reverberava no meu corpo, ecoando nos meus ossos, não era doloroso, mas também não era agradável. As árvores à nossa volta caíram, cortadas pela raiz. A estátua do caubói deslizou para o lado e se espatifou no chão.

O círculo pulsou mais uma vez. O centro de justiça de Harris County tremeu. À direita, a enorme torre do tribunal civil de Harris County estremeceu.

O que Rogan estava fazendo?

O círculo pulsou mais uma vez, como a batida do coração de um titã.

O centro de justiça foi para o lado e se estraçalhou. Por uma fração de segundo, algumas das partes ficaram suspensas no ar, como se estivessem decidindo se deveriam ou não obedecer à lei da gravidade. Centenas de cacos de vido pairaram, refletindo o sol. Milhares de pedaços de concreto flutuavam, imóveis. Entre eles, a estrutura interna do prédio estava à mostra, quebrada, todos os dez metros de sua altura destruídos e expostos. Era como se a enorme estrutura tivesse se transformado em vidro e alguma deidade o tivesse quebrado com um seu martelo divino.

O grande edifício implodiu. Toneladas de pedra, vidro, madeira e aço caíram no chão. Não houve som. Meu cérebro se recusava a aceitar que não havia feito som algum. Eu continuava tentando ouvir, mas não havia o que ouvir.

À direita, o tribunal civil deslizou e se espatifou. Duas nuvens de poeira surgiram à frente, pedaços de entulho flutuando em meio à poeira. Eu me encolhi, com as mãos sobre a cabeça. Nada atingiu o círculo. Acima de mim, Louco Rogan levitava. Seu rosto tinha um brilho que vinha de dentro, o turquesa de seus olhos era brilhante, como estrelas. Ele parecia um anjo.

Olhei para Adam. O fogo havia se mesclado a ele, tornando-o uma coluna, que subia cada vez mais alto, girando. Três metros; não, três metros e meio; não, quatro metros de altura.

O círculo em volta de mim pulsou novamente. A força transformou os escombros em poeira, empurrando, varrendo para longe. Atrás do parque, o centro da vara familiar de Harris County se desintegrou. Do outro lado da Congress Avenue, o centro de justiça da juventude se desfez, cuspindo uma pedra do tamanho de um carro. Ela voou pelo ar. Ah, meu Deus.

Não saia do círculo.

Fechei as mãos em punhos.

A pedra bateu no círculo e voltou. O círculo pulsou mais uma vez. Cada pulsar empurrava a pedra para o alto e para longe. E mais uma vez, e mais outra.

Rogan estava construindo um muro. Se ele pudesse conter o fogo, as chamas não se espalhariam.

A coluna de fogo já tinha quinze metros e continuava crescendo. O muro já tinha dez.

E eles continuavam competindo: um subia a coluna; o outro, o muro; coluna, muro.

A coluna devia estar com mais de trinta metros de altura. Eu não conseguia dizer se o muro estava mais alto.

A coluna de fogo brilhava, branca. Um anel de chamas explodiu, vindo na minha direção. As árvores caídas rapidamente viraram cinzas.

Segurei a respiração.

O fogo bateu contra o círculo e o engoliu. Eu estava viva. O ar à minha volta nem mesmo estava quente. Eu nem sentia o cheiro da fumaça. O ar era fresco.

O fogo vinha na direção do muro. Por favor, seja alta o suficiente. Por favor, seja alta o suficiente.

As chamas bateram contra a barreira e subiram quinze metros.

Segurei a respiração. Ainda poderia queimar.

À minha volta, um inferno queimava e, em suas profundezas, estava Adam Pierce, brilhando em uma luz dourada, envolto em chamas. O artefato roubado, em sua cabeça, brilhava como um sol enfurecido.

A rua ficou preta e brilhante. O piso havia derretido. A estátua do caubói também, seu metal escorria em um rio de asfalto que se movia lentamente. A grama sob meus pés permanecia intacta.

O círculo continuava pulsando, reforçando o muro.

O fogo batia contra a barreira. A camada externa de concreto se transformara em um pó branco.

Por favor, aguente. Por favor.

Os minutos passavam, lentamente. Sentei-me. Não aguentava mais ficar em pé. Meu coração estava cansado de bater tão rápido. Todo o meu corpo tremia de ansiedade. Eu sentia a pulsação por todo ele.

O muro começou a brilhar com uma fraca luz. O concreto tinha se transformado em óxido de cálcio, que agora derretia e produzia o mesmo tipo de luz que iluminava as peças de teatro antes de a eletricidade surgir.

O fogo estava enfurecido e consumia o muro.

Todas aquelas pessoas nos túneis. Se o muro se rompesse e o fogo varresse o centro da cidade, elas se sufocariam com a fumaça. Se não fossem cozidas vivas antes.

O muro à esquerda parou de brilhar. Olhei para ele. O fogo ainda queimava, mas o concreto e as pedras não mais brilhavam.

Minha mente lutava contra o fato. Eu estava muito chocada para processar tal informação. Finalmente as peças se juntaram em minha cabeça. O muro parou de brilhar, o que significava que havia um espaço entre ele e o fogo mágico. Adam tinha feito a coluna de fogo crescer o máximo que podia. Rogan podia contê-lo. A chama estava contida.

O alívio me dominou. Um soluço saiu, depois outro. Percebi que eu estava chorando.

Bern iria morrer nos túneis. A cidade iria...

Mais um pulsar. O círculo continuava pulsando. Os edifícios em volta do muro estavam balançando. Ah, não. Rogan ia continuar. Se Adam não ia queimar a cidade, Rogan ia fazer quase a mesma coisa. Levantei-me.

Rogan estava a quase um metro do chão. Seu rosto brilhava, ele flutuava tão alto que parecia inumano e inalcançável.

Se eu interferisse no que Rogan estava fazendo, o círculo poderia arrebentar. Ambos seríamos incinerados. Eu morreria. Eu mataria Rogan. O pensamento passou por mim como uma corrente fria. Eu não queria que ele morresse.

Se eu não encontrasse um caminho para interrompê-lo, todo o centro da cidade desmoronaria sobre os túneis. Em vez de morrerem queimadas, todas aquelas pessoas seriam enterradas vivas.

Nossa vida pela de Bern. Pelas incontáveis vidas de pessoas dentro dos túneis, pela vida das crianças que confiavam em seus pais, pela vida daqueles que se amavam, pela vida daqueles que nada fizeram para merecer morrer.

Isso não era nem mesmo uma opção.

– Rogan! – Ele não respondeu. – Rogan!!!

Agarrei seus pés. Não conseguia movê-lo nem mesmo um centímetro. Ele estava completamente imóvel. Bati em suas pernas.

– Rogan, acorde! Acorde!

Nada.

Eu precisava chegar até ele. Se ao menos pudesse ver seu rosto. Juntaria o pouco de magia que me restava.

O círculo pulsou outra vez. Enquanto o pulsar reverberava em mim, empurrei-o da mesma forma que havia feito no círculo de amplificação, dando tudo de mim naquela ação. Algo aconteceu. Meus pés se levantaram do chão e eu flutuei, agarrando Rogan com meus braços. Aquilo não duraria, meus instintos diziam. Eu tinha segundos antes de minha magia acabar e de a gravidade me puxar para baixo. E eu não tinha forças para fazer isso de novo. Era minha única chance. Eu precisava acordá-lo.

Sua expressão era tão serena, seus olhos grandes, a boca levemente aberta. Ele não estava ali comigo. Ele não estava nem mesmo neste planeta.

Respirei fundo, fechei os olhos e o beijei. Todas as minhas vontades, todos os meus desejos e todas as vezes que o observei e nos imaginei juntos, toda a gratidão por ter salvo minha avó e por proteger Houston e seus moradores, toda a minha frustração e minha raiva por ter colocado meu primo em perigo e por não se preocupar com a vida humana, tudo isso eu coloquei naquele beijo. Ele era feito de cravos e lágrimas, olhares roubados e uma necessidade desesperada e ardente. Eu o beijei como se o amasse. Eu o beijei como se fosse o único beijo que já teve importância.

Sua boca se abriu sob a minha. Seus braços me envolveram. Ele também me beijou. Não havia magia naquilo. Nada de calor fantasma ou de pressão. Apenas um homem, com o sabor da glória dos céus e do pecado do inferno misturado em um só.

Meus pés tocaram o solo e abri os olhos. Ele estava olhando para mim. Seus olhos continuavam turquesa. Sua pele continuava brilhando. Mas agora ele estava ali, comigo. O círculo permanecia formado, os rios de asfalto e fogo passavam por nós enquanto Adam queimava em seu próprio ódio.

– Você precisa parar – sussurrei. – Você ganhou, mas está destruindo a cidade.

– Me beija de novo que eu paro – ele disse.

Uma hora depois, Adam finalmente parou e caiu no chão. Rogan manteve o círculo ativo. Tudo estava muito quente.

Sentei-me com ele no círculo e observei o asfalto se solidificar lentamente. Em algum momento cochilei, apoiada em Louco Rogan.

Quando acordei, os olhos e a pele de Rogan tinham parado de brilhar. Um helicóptero passava sobre nossa cabeça. Uma rachadura apareceu no muro. Não podíamos ouvir, mas víamos o que acontecia. Uma torrente de água foi despejada e se evaporou instantaneamente ao tocar o solo queimado por Adam. Mas a água continuava vindo. Os aquacinéticos deviam ter pego a baía de Buffalo para ter o suprimento suficiente de água.

O mundo se transformou em vapor. Demorou mais uma hora antes de a água parar de evaporar. E mais uma até percebermos que não seríamos cozidos vivos. Rogan desativou o poder que o conectava ao círculo. A água entrou, alcançando meus tornozelos. Estava quente, ao menos quarenta graus, mas não queimava. Aproximamo-nos de Adam Pierce. Ele estava deitado de costas. Seu círculo deve ter se aberto em algum momento, pois a água molhava seu cabelo e seu peito nu. Ele não parecia tão mal para desgaste. O artefato continuava em sua cabeça.

Louco Rogan o pegou e me entregou.

– Segure isso por um segundo. – Ele se inclinou sobre o corpo de Adam e o chacoalhou pelos ombros. – Ei, cara.

Os olhos de Adam se abriram.

– Ei – ele respondeu, com a voz rouca.

– Sente-se. – Rogan o ajudou, com um sorriso nos lábios. – Você está bem? Tudo correu conforme planejado? Adam olhava para ele, confuso.

– Claro.

– Você sabe quem é?

– Adam Pierce.

– Sabe o que aconteceu aqui?

– Sei. – Adam se levantou. – Eu queimei tudo.

– E você não está ferido? Nada quebrado?

– Não.

– Ah, que bom. – Louco Rogan deu um forte soco na mandíbula de Adam. Ele caiu de joelhos, a boca sangrando. – E agora, Adam? Agora tem alguma coisa doendo?

Adam se levantou e partiu para cima de Rogan. Seu punho tocou o rosto dele. Louco Rogan acertou um soco no estômago de Adam com a mão esquerda, enquanto a mão direita acertava um gancho no rosto dele. Adam caiu.

– E tem mais. – Rogan o golpeou de novo, com força; seu punho como uma marreta. Adam colocou os braços na frente do rosto. – Seu merda! – grunhiu. Mais um soco. – Nós não matamos civis. Não fazemos apresentações públicas para assustar as pessoas. – Mais um soco. – Não abusamos do nosso poder, seu maldito imbecil. Você é uma desgraça!

– Rogan! Já é suficiente. – Peguei-o e o puxei para longe de Adam.

Adam rolou, apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Eu o chutei o mais forte que pude bem no estômago. Ele caiu e se encolheu.

– Você quase matou minha avó. Usou crianças para colocar uma bomba na minha casa. – Eu o chutei mais uma vez. – Venha dar em cima de mim de novo, seu desgraçado! Vamos ver se fico impressionada.

Atrás de mim, Louco Rogan se matava de rir. Adam tentou se levantar. Eu virei, colocando meu corpo em posição, como minha mãe havia me ensinado. Meu soco acertou seu estômago. Adam suspirou e caiu de novo. Eu o chutei mais uma vez.

– Aposto que agora queria estar usando uma camiseta, não queria? Precisa de algo para secar o sangue? – esbravejei.

Louco Rogan me pegou e me afastou de Adam.

– Ok, já deu. Você precisa ter alguma coisa para devolver para a família dele.

– Me solta!

– Nevada, você ainda tem um contrato.

Eu me soltei dele e fui na direção de Adam. Ele ergueu as mãos.

– Levante-se – bradei. – Ou vou fazer o Rogan bater em você e levá-lo pelos cabelos de volta para sua família.

Adam se levantou.

– Mãos na frente do corpo, pulsos unidos – orientei.

Ele colocou as mãos para a frente. Coloquei as algemas nele e passamos pela rua alagada.

Atravessamos a fenda no muro. Louco Rogan na frente e, depois, eu puxando Adam. Do lado de fora, a rua estava cheia. As pessoas tiravam fotos. Vi Lenora Jordan. Ao seu lado, uma mulher alta e afetada com uma expressão arrogante. Christina Pierce, a mãe de Adam. Perfeito.

Levei Adam Pierce até a frente dela e dei um chute na parte de trás dos joelhos dele. Adam caiu ajoelhado. Peguei a chave que estava no meu bolso e a joguei perto dele.

– Adam Pierce entregue vivo à sua Casa, como foi solicitado. A MII espera pagamento imediato.

Ela olhava para mim. Se ela fosse uma cobra venenosa, teria cuspido muito veneno em mim naquele momento.

Virei de costas e me afastei, do muro e da multidão, seguindo pela rua cheia de escombros. A maior parte do centro da cidade permanecia em pé. Eu mal podia acreditar naquilo.

Uma figura familiar saiu do meio da multidão e correu para mim. Abri os braços e abracei Bern o mais forte que pude.


Dei um gole em minha cidra e bati com uma chave de rodas na perna. As portas se abriram e a oficina da vovó Frida se encheu de luz do dia. Os grandes ventiladores industriais criavam uma brisa agradável.

Havia se passado uma semana desde que Adam Pierce tinha tentado transformar o centro da cidade em uma terra devastada. Eu sabia que a MII havia recebido o pagamento da Casa Pierce, pois tinha contabilizado nossa parcela do valor na hipoteca. Augustine não havia retornado minha ligação a respeito do relatório. Ele provavelmente ainda estava bravo por Louco Rogan tê-lo forçado a mexer no meu contrato. Eu tinha falado com a secretária. Seu nome era Lina, e ela me passou uma mensagem: o terceiro olho de Shiva tinha sido devolvido à Índia, que era seu lugar. O professor Itou sempre esteve certo. Roubar os tesouros de outros povos nunca funcionou.

Recebi muitos convites para entrevistas, e recusei todos. Algumas pessoas continuavam insistindo, e passei seus nomes para os advogados da MII. Pararam de ligar. Eu não queria fama nem queria angariar clientes fazendo um circuito pelos programas de entrevista. Eu preferia que a Agência de Investigações Baylor fosse sinônimo de profissionalismo e discrição.

Houve uma ação formal. Mas não tinha ideia de como tinha sido, pois não fui convocada a depor. Quaisquer testemunhos que as Casas Rogan, Montgomery e Pierce e Lenora Jordan tenham dado tinha sido suficiente. Eu seguia sem a menor ideia de quem eram aquelas pessoas por trás de Adam. Só sabia que o tinham encarcerado na Caixa de Gelo, uma prisão subterrânea, de segurança máxima, no Alasca. Era uma prisão projetada para conter usuários de magia. Ele estava aguardando julgamento. Provavelmente eu teria de testemunhar nessa fase, a não ser que ele se declarasse culpado.

Gavin Waller foi encontrado. Os jornais divulgaram que Adam Pierce o havia mantido preso em um quarto de hotel com suprimento de comida e drogas. Gavin passou a semana em pânico, achando que as autoridades o encontrariam e o executariam. Vinte e quatro horas depois dos eventos no centro da cidade, Louco Rogan o levou à delegacia. O detetive responsável pelo caso do incêndio disse publicamente que acreditava que a única razão de Gavin estar vivo era que Adam tinha estado preocupado demais com seus planos de acabar com o mundo e simplesmente tinha se esquecido do garoto.

Eu não tinha notícias de Rogan. De certa forma, isso era muito bom.

Era sábado, e eu estava ajudando minha avó com seu mais recente projeto. Uma das Casas tinha encomendado um tanque flutuante de uma das outras garagens de carros blindados. O tanque nem flutuava nem era um bom tanque. Eles tinham gasto muito dinheiro e, finalmente, acabaram vendendo. Vovó Frida o tinha comprado e estávamos desmontando para pegar as peças. Ela havia entrado em casa para pegar um sanduíche, mas já fazia dez minutos. Devia ter se distraído.

Alguém apareceu na porta da garagem. Apertei os olhos contra a luz. Louco Rogan.

Ele vestia um terno escuro que se encaixava em seu corpo como uma luva. Ombros largos, peito musculoso, barriga definida e pernas longas. Bom. Uma visita do dragão. Nunca poderia ser algo bom.

Ele começou a vir na minha direção. As partes de carros à sua esquerda saíram do caminho, como se tivessem sido afastadas por mãos invisíveis. O Humvee à sua direita deslizou pelo chão. Ergui as sobrancelhas.

Ele continuava se aproximando, seus olhos azuis estavam fixos em mim. Dei um passo para trás por puro instinto. Minhas costas bateram contra a parede.

O tanque flutuante pairou contra a parede. Então havia um segredo para ele funcionar. Só precisava que Louco Rogan cuidasse de tudo.

Rogan se aproximou e parou a meio metro de distância. A ansiedade percorreu meu corpo, transformando-se em uma mistura de ansiedade e medo.

– Oi – falei. – Você pretende colocar tudo de volta no lugar que estava quando você chegou?

Seus olhos eram muito azuis. Eu poderia ficar olhando para eles eternamente. Ele me estendeu a mão.

– Hora de ir.

– Ir para onde?

– Para onde você quiser. Escolha um lugar no planeta.

Uau.

– Não.

Ele se inclinou, delicadamente. Estávamos quase nos tocando.

– Dei a você uma semana para ficar com sua família. Agora é hora de vir comigo. Não seja teimosa, Nevada. Aquele beijo me disse tudo o que eu precisava saber. Você e eu sabemos como isso termina.

Balancei a cabeça.

– Como esse encontro se desenhou em sua mente? Você planejou entrar aqui, me pegar e levar embora como um fiscal de uma fábrica de filmes antigos?

Ele riu. Ele estava quase inacreditavelmente lindo naquele momento.

– Você quer que eu a leve carregada?

– A resposta é não, Rogan. – Ele piscou. – Não – repeti.

– E por que não?

– A explicação é longa e você não vai gostar.

– Estou ouvindo.

Respirei fundo.

– Você não tem respeito pela vida humana – eu disse. – Salvou a cidade, mas não acho que fez isso por genuinamente se importar com as pessoas. Acho que fez porque Adam Pierce entrou no seu caminho. Você contrata oficiais desesperados, mas também não faz isso para salvá-los. Faz isso porque lhes oferecem uma lealdade inquestionável. Resgatou seu primo, mas ficaria feliz em esquecer da existência de todo aquele braço da sua família. Se você tivesse entrado na vida de Gavin antes, talvez ele nunca viesse a conhecer Adam Pierce. Você não acha que as regras se aplicam a você. Se quer alguma coisa, você compra ou toma. Você não parece se sentir mal com essas coisas e só demonstra gratidão quando precisa para superar algum obstáculo. Acho que você pode ser um psicopata. Não posso ficar com você independentemente do quanto me deixa louca, porque você não tem empatia, Rogan. Não estou falando de magia. Estou falando da habilidade humana de se vincular. Eu só seria importante para você enquanto tivesse utilidade e, mesmo assim, eu seria mais um objeto do que uma amante ou uma parceira. O abismo entre nós, tanto financeiro quanto social, é muito grande. Você me usaria e, quando terminasse, me dispensaria e eu precisaria juntar os caquinhos da minha vida, e não tenho certeza se haveria alguma coisa quando chegasse esse momento. Então, não. Eu não vou com você. Quero estar com alguém que, se não me amar, ao menos genuinamente se importe comigo. E você não é esse homem.

– Belo discurso.

– É só o que tenho a dizer.

– Eu sei o que está acontecendo aqui. Você está com medo de entrar no meu mundo. Está com medo de não conseguir dominá-lo. Muito melhor se esconder aqui e ser um peixe grande em uma lagoa pequena.

– Se é isso o que você pensa, tudo bem. – Ergui o queixo. – Não tenho nada a provar para você, Rogan.

– Mas agora eu tenho uma coisa para te provar – ele disse. – Prometo que vou ganhar e, quando eu terminar, você não vai caminhar, vai é correr para a minha cama.

– Pode esperar sentado – avisei.

Agora todo aquele verniz de civilizado tinha sumido. O dragão me encarava, dentes expostos, garras de fora, soprando fogo.

– Você não só vai dormir comigo como vai ficar obcecada por mim. Vai implorar que eu te toque e, quando esse momento chegar, vamos relembrar tudo o que aconteceu aqui hoje.

– Nunca em um milhão de anos. – Apontei para a porta. – A saída é...

Ele me pegou. Sua boca perto da minha. Seu corpo envolvendo o meu. Seu peito apertando meus seios. Seus braços me puxaram para perto. Um nas minhas costas, outro segurando minha bunda. Sua magia percorreu meu corpo em um fluxo emocionante. Meu corpo se rendeu. Meus músculos ficaram quentes e flexíveis. Meus mamilos se enrijeceram, meus seios ficaram prontos para serem apertados, prontos para seus dedos e sua boca. Uma dor de anseio passou entre as minhas pernas. Minha língua o lambeu. Deus, eu o queria. Eu o queria muito.

Ele me soltou, deu meia-volta e saiu andando, rindo.

Aaargh!

– Isso mesmo! Vá... embora! – Arremessei a chave de rodas em sua direção.

– Isso é que é um belo beijo – vovó Frida disse do corredor atrás de mim.

Dei um salto.

– Há quanto tempo a senhora está aí?

– Tempo suficiente. Ele não brinca em serviço.

Todas as minhas palavras tentaram sair, de uma vez só, juntas:

– Eu não... o que... imbecil... acabar com ele de qualquer jeito!

– Ohm, o amor jovem, tão passional – minha avó disse. – Vou comprar uma assinatura da revista de noivas para você. Precisa começar a pensar no vestido.

Balancei os braços e fui embora antes de dizer alguma coisa da qual fosse me arrepender.


Ele parou o carro, desceu e olhou para a casa. Uma típica casa de subúrbio, uma casa de bonecas tradicional em um gramado quadrangular. Daquelas que existem às dúzias em qualquer loteamento. Ele foi até a porta e testou a maçaneta. Destrancada. Tom tinha dito que estaria assim.

Ele tinha deixado Thomas Waller com Daniela. No momento, Thomas estava sedado. Seu filho adolescente tinha sido preso, condenado por assassinato. Sua esposa tinha desaparecido. Então, ele recebeu um e-mail dela, e suas palavras acabaram com as últimas certezas de que Thomas tinha. Suas mãos tremiam enquanto eles conversavam.

Ele entrou na casa pela cozinha. Um laptop novinho o esperava no balcão, a caixa ainda estava ao seu lado. Tom tinha seguido as instruções do e-mail da esposa ao pé da letra.

Ele verificou o horário: 18h59. Colocou o celular para gravar e o apoiou na mesa atrás de si. O relógio na tela mudou para sete horas. Um ícone azul piscou, indicando que uma chamada estava sendo recebida. Ele clicou no ícone.

O rosto de Kelly Waller preencheu a tela.

– Olá, Connor.

Ele escondeu sua raiva e perguntou:

– Por quê?

– Porque eu te odeio. Quero que saiba disso. Te odeio muito. Se pudesse colocar minhas mãos em você, te pegaria pelos cabelos e bateria seu rosto contra o balcão até ficar todo ensanguentado. Queimaria você. Espetaria você. Queria dar vazão à minha raiva por dias.

Aquilo não dizia nada. Dez anos antes, ele havia entrado em contato com ela por intermédio de sua mãe e se oferecido para financiar os estudos universitários de Gavin, mas ela recusou. Ela havia deixado dolorosamente claro que não queria nada associado ao nome Rogan perto de sua família. Na época, ele pensou que poderia ser orgulho. Agora ele percebia que tinha sido ódio. Mas ele ainda não entendia.

– Por quê?

– Porque eles o amavam e mimavam. Porque você tem magia e eu não, e eu nunca vou ser boa o suficiente. Eu queria acabar com você. Queria acabar com você com minhas próprias mãos, mas não tinha forças. Então, encontrei pessoas muito mais poderosas do que eu. Sacrifiquei meu filho pela minha vingança. Mas você fez tudo dar errado, Connor.

Seu rosto tremeu um pouco, distorcido pelo ódio.

– Sabíamos que Adam era um canhão desgovernado. Precisávamos de mais segurança. E quem poderia ser melhor do que você. O Carrasco. O Huracán. Sabíamos que havia uma chance de você impedir Adam, mas contávamos que você fosse destruir Houston no processo. E era o que você estava fazendo. Eu vi os prédios tremendo. Então, você parou. Como foi que você parou, Connor? Você nunca conseguiu parar sua magia quando chegava aos estágios mais avançados, e isso desde que era uma criança. Uma vez que começava a subir, só parava quando todo o seu poder tivesse sido gasto. Nem mesmo sua mãe conseguia atingir você. O que você fez? O que aconteceu? É alguma habilidade nova?

Ele não respondeu.

– Como é que entre você e Adam você não tenha conseguido fazer algo tão simples? Não importa. Contávamos com isso e tanto Adam quanto você nos desapontaram. Vamos encontrar um caminho diferente.

Nós. Era isso, a força secreta que cuidava de todo o plano. Ela sabia. Ele só precisava encontrá-la e tirar a informação dela.

– Quero te dizer uma coisa, Connor: você não tem ideia do que está por vir. É grande. E você não pode impedir, não importa o quanto tente. Quando estiver caído, morrendo, quebrado, quero que se lembre deste momento e do meu rosto. Lembre-se de mim, Connor, esse é só o começo.

A tela do laptop ficou preta.

Ele se levantou e ficou olhando para o computador. Fazia um mês que ele não tinha metas, apenas tarefas chatas e pequenas que o ocupavam, sem desafiá-lo. Agora ele tinha duas.

Precisava vencer quem quer que estivesse por trás de sua prima e de Adam Pierce. Lutaria por seu país e pela integridade de seus habitantes porque acreditava nisso. O sistema não era perfeito, mas era melhor do que muito do que ele já tinha visto fora. Aquela cidade lhe pertencia. Em breve ele saberia que tipo de inimigo tinha feito. Essa era sua primeira meta. Já a segunda...

Fechou os olhos por um momento e buscou na memória. Não existia nada. Era um local de magia e poder; calmo, mas completamente vazio. Ele entrou ali para acessar o ápice de seu poder, mas ali dentro não havia alegria nem tristeza. Nem frio ou calor, apenas serenidade. Era uma prisão e um palácio em uma única versão.

Então ele a sentiu. Ela era quente e dourada, atravessou a esterilidade da ascensão e o alcançou. Ela o beijou e, ao compartilhar com ele todos os seus medos e desejos, ele se sentiu vivo. Ele tinha largado a fria serenidade por ela, e o mundo ao seu redor floresceu. Ele se sentia como um viciado que, depois de ter abusado de alguma substância por anos, repentinamente, encontrava-se sóbrio, vagando por sua casa, abria a porta da frente e via um lindo dia de primavera.

Ele queria Nevada Baylor. Ele a queria mais do que já quis alguém em muito, muito tempo. E a conseguiria. Ela só não sabia disso ainda.

 

 

Eu estava no banheiro executivo da Montgomery Investigações Internacionais e calcei uma grande bota preta no meu pé esquerdo. A bota ia quase até o joelho, couro cor de carvão, opaco, parecia ter saído de um filme antigo. Augustine Montgomery apoiou-se no gabinete de mármore e me observou apoiar o calcanhar na pedra.

Quando você via Augustine pela primeira vez, era de tirar o fôlego. Seu rosto não era apenas belo, era perfeito da mesma forma que os melhores trabalhos da Renascença eram perfeitos. Sua pele não tinha marcas, o cabelo loiro-claro tinha o penteado perfeito, e seus traços tinham uma elegância nobre que implorava para ser imortalizada em uma tela ou, melhor ainda, em mármore. Sua beleza tinha aquele frio ar de distanciamento. Se ele, de alguma maneira, viajasse até o século XVI e se encontrasse com Michelangelo, a estátua do anjo seria completamente diferente. Augustine Montgomery havia se especializado em ilusões e era Superior, o nível máximo dos usuários de magia, o que significava que ele era capaz de fazer coisas incríveis. Não havia como saber o que se escondia por trás da fachada perfeita. A única coisa humana nele eram os óculos de armação metálica e seus olhos. Sagazes e espertos, entregavam sua idade real – algo em torno dos trinta anos – e diziam a quem visse que enfrentá-lo podia ser perigoso.

Lina, a recepcionista, me olhava com fortes críticas. Diferente de Augustine, ela não tinha o benefício de ser uma ilusionista Superior, então, sua maquiagem perfeita e seu cabelo escarlate tingido eram resultado de horas de preparação diária.

– É uma péssima ideia, senhorita Baylor – Augustine disse. Eu não ia discutir, tinha uma ideia melhor. – Deixe-me explicar o motivo pelo qual é uma péssima ideia.

“Deixe-me” era uma figura de linguagem. Eu não tinha opção, já que dependia dele para fazer aquilo acontecer.

– Se fizer isso uma vez, mesmo que seja completamente anônimo, vão esperar que faça de novo – ele disse. – E, quando não fizer, vão ficar insatisfeitos. Tal insatisfação levará ao descontentamento e, por fim, um deles deixará escapar: há uma usuária de magia que pode extrair a verdade de todos os criminosos, mas é egoísta demais para nos ajudar.

Coloquei o pé direito na bota.

– É por isso que Superiores não se envolvem nas operações sociais do dia a dia. Somos apenas pessoas. Não podemos estar em todo lugar ao mesmo tempo. Se um aquacinético apaga um incêndio, da próxima vez que algo pegar fogo, se ele não estiver por perto, a opinião pública fica contra ele.

– Entendo. – Ajeitei minha postura.

– Acho que não entende. Você está prestes a fazer algo ilegal. Sim, também não posso pensar em uma causa mais nobre do que salvar uma criança, mas ainda assim você estará infringindo a lei.

Ele estava errado. Eu entendia completamente. Minha manhã tinha começado completamente diferente. Eu tinha recebido o pagamento de um cliente e, depois, fui parar na frente do novo centro de justiça lendo, em meu tablet, os artigos a respeito do homem mais odiado da cidade e Houston.

Seu nome era Jeff Caldwell. Tinha quarenta e tantos anos, não era feio nem bonito. Se você o visse na rua, nem prestaria atenção. Ele trabalhava como especialista de trânsito em Harris County, o que significava que quando alguém entrava com solicitação de transporte porta a porta era ele quem lia as fichas. Ele tinha uma família absolutamente comum, a esposa era professora infantil e seus dois filhos estavam na faculdade. Ele não era usuário de magia e não estava afiliado a nenhuma das Casas das poderosas famílias que comandavam Houston. Seus amigos o consideravam um homem gentil e amigável.

Em seu tempo livre, Jeff Caldwell sequestrava garotinhas. Ele as mantinha vivas por até uma semana, depois as estrangulava até a morte e deixava seus corpos em parques, rodeados por flores. Suas vítimas tinham entre cinco e sete anos, e as histórias que seus corpos contavam, faziam você querer que o inferno existisse apenas para que Jeff Caldwell fosse mandado para lá depois de morrer.

Na noite anterior, ele tinha sido pego em flagrante desovando o corpo de sua última vítima e foi preso.

O terror que estava assolando Houston no último ano havia, finalmente, acabado. Havia apenas um problema. A garotinha Amy Madrid, de sete anos, estava desaparecida. Tinha sido sequestrada dois dias atrás no ponto de ônibus escolar, a menos de trinta metros de sua casa. O perfil era muito parecido com o dos outros sequestros de Jeff Caldwell para aquilo ser coincidência. Ele a tinha levado, e isso significava que ela ainda estava viva em algum lugar.

Jeff Caldwell se recusava a falar

A polícia revistou a casa dele. Interrogou família, amigos e colegas de trabalho. Verificaram os registros de seu telefone celular. Eles o interrogaram por horas. Ele não falou nada.

Eu poderia fazê-lo falar. Dez minutos com ele e minha magia quebraria sua casca como se fosse uma noz. Só tinha um problema, fazer isso seria o mesmo que declarar ao departamento policial de Houston que eu era uma buscadora da verdade.

Se eu fosse membro de uma família de destaque ou herdeira de uma das Casas, como a Casa Montgomery, o poder e a influência de tal dinastia mágica me protegeria das consequências de expor minha magia. Mas eu não era. Eu tinha vinte e cinco anos e cuidava da Agência de Investigações Baylor, uma pequena empresa familiar de investigações. Não tinha riqueza, poder ou pedigree. Eu não era ninguém.

Se entrasse na delegacia e declarasse que meu nome era Nevada Baylor e tirasse a verdade de Jeff Caldwell, horas depois receberia a visita de policiais de Houston, do departamento de Segurança Nacional, do FBI, da CIA, das Casas e de quem mais precisasse de meu talento como uma interrogadora com cem por cento de precisão nas respostas obtidas. Meu poder era raro e valioso. Minha vida se transformaria em um inferno e fariam muita pressão em cima de mim e da minha família até eu ceder e ir trabalhar para um deles como uma detectora de mentiras humana. Se o governo não me forçasse a fazer parte de sua equipe, uma das Casas o faria. Eu gostava do meu trabalho, amava minha mãe e amava até mesmo nossa estranha casa. Mas se uma de minhas irmãs tivesse sido sequestrada e uma certa mulher que eu não conhecesse pudesse encontrá-la, eu faria qualquer coisa que pudesse para convencê-la a fazer isso. Eu choraria, imploraria e ofereceria o que ela quisesse apenas para trazer minha irmã de volta. No momento, os pais de Amy Madrid estavam, provavelmente, chorando e implorando, tentando convencer aquele monstro a lhes devolver a filha. E eu era a outra mulher, sentada em meu carro, enquanto, em algum lugar, Amy Madrid estava, lentamente, morrendo de fome e de sede.

Eu estava a caminho do novo centro de justiça e prestes a destruir minha vida quando Augustine me ligou. Tecnicamente, a MII era dona da Agência de Investigações Baylor. Tínhamos hipotecado a empresa para pagar as despesas médicas do meu pai. Augustine Montgomery tinha um cliente para mim. Ele não podia mais me obrigar a pegar seus casos, graças à renegociação de nosso contrato, então declinei da oferta. Mas ele insistiu. O cliente era seu amigo e havia pedido especificamente para trabalhar comigo. Fizemos um acordo. Eu falaria com o cliente, e Augustine garantiria que eu pudesse interrogar Jeff Caldwell anonimamente. E foi assim que fui parar no banheiro da empresa, colocando o disfarce que Augustine tinha preparado para mim. Era o único jeito de ele me deixar fazer aquilo.

Lina me entregou uma máscara preta que parecia uma mistura de máscara de esqui com capuz ninja. Coloquei, certificando-me de prender qualquer fio solto de cabelo e olhei no espelho. A máscara escondia meu rosto e meu cabelo loiro completamente. Só era possível ver meus olhos castanhos e uma fina faixa de pele bronzeada em volta deles.

– Estique as mãos – Lina disse, pegando um par de longas luvas pretas. – Você não consegue calçar isso sozinha.

Estiquei as mãos e ela calçou as luvas em mim.

– Nevada – Augustine disse. – Não faça isso.

– Preciso fazer – respondi. Eu não conseguia tirar a imagem de Amy Madrid de minha cabeça.

– Não, você não precisa.

– Senhor Montgomery, quando meu pai ainda estava vivo, ele estabeleceu três regras para a agência. Seguimos com o caso depois de contratados. Evitamos fazer coisas ilegais. E, mais importante, no fim do dia, devemos conseguir olhar nosso reflexo nos olhos. Eu preciso fazer isso. Ela é só uma garotinha. E está morrendo aos poucos em algum lugar.

Augustine suspirou. Lina se virou para a sacola de roupas pretas pendurada no gancho na parede. Ela abriu o zíper e tirou uma peça longa e verde.

– Braços.

Ergui os braços novamente. Ela colocou a peça em mim. Eu estava usando uma capa. Uma capa verde-escura que me escondia da cabeça aos pés. Lina apertou o velcro que a prendia em meu peito, colocou o capuz sobre minha cabeça e se afastou.

Eu nem podia mais dizer se eu era um homem ou uma mulher.

– O que é isso?

– É um figurino da produção do Alley Theater – Lina respondeu.

– Parabéns. – Seu rosto perfeito se contorceu de desaprovação. – Agora você é Sir Dougal MacLagain, o assaltante escocês.

Lina abriu a porta do banheiro.

– Hora do show!

 

 

                                                    Ilona Andrews         

 

 

 

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