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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MÁGIC SLAYS / Ilona Andrews
MÁGIC SLAYS / Ilona Andrews

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Atormentado por uma guerra entre magia e tecnologia, Atlanta nunca foi tão mortal. Ainda bem que Kate Daniels está no trabalho.
Kate Daniels pode ter desistido da Ordem de Ajuda Misericordiosa, mas ela ainda está com problemas paranormais. Ou estaria se conseguisse alguém para contratá-la. Começar seu próprio negócio tem sido mais desafiador do que ela pensava, agora que a Ordem está depreciando seu bom nome. Além disso, muitos clientes em potencial têm medo de ficar do lado ruim do Senhor das Feras, que por acaso é o companheiro de Kate.
Então, quando o primeiro Mestre dos Mortos de Atlanta pede ajuda com um vampiro à solta, Kate aproveita a chance de algum trabalho remunerado. Mas acontece que este não é um incidente isolado. Kate precisa chegar ao fundo e rápido, ou a cidade e todos que ela gosta podem pagar o preço final...

 


 


Prólogo


O TOQUE DO TELEFONE ME TIROU DO SONO. Esfreguei meus olhos antes de abri-los e saí da cama. Por alguma razão, alguém havia movido o chão a vários metros abaixo do que esperava e caí com um baque surdo.

Aí.

Uma cabeça loira apareceu ao lado da cama e uma voz masculina familiar perguntou, — Está tudo bem aí embaixo?

Curran. O Senhor das Feras estava em minha cama. Não, espera um minuto. Eu não tinha uma cama, porque minha tia louca tinha destruído meu apartamento. Estava acasalada ao Senhor das Feras, o que significava que eu estava na Fortaleza, no quarto de Curran e em sua cama. Nossa cama. Que tinha um metro vinte de altura. Certo.

— Kate?

— Estou bem.

— Você gostaria que mandasse instalar um corrimão infantil em seu lado da cama?

Eu olhei para ele e peguei o telefone. — Sim?

— Bom-dia, consorte1, —disse uma voz feminina.

Consorte? Isso era novo. Normalmente, os metamorfos me chamavam de Alfa ou Senhora e ocasionalmente de Companheira. Companheira estava em algum lugar entre beber leite azedo e fazer um canal radicular2 na minha lista de coisas que eu odiava, então a maioria tinha aprendido a evitar me chamar assim.

— O assistente do diretor Parker na linha. Diz que é urgente.

Julie. — Vou atender.

Julie era minha filha adotiva. Nove meses atrás, ela me contratou para encontrar sua mãe desaparecida. Em vez disso, encontramos o corpo de sua mãe sendo comido pelos demônios do mar celta que decidiram aparecer no meio de Atlanta e ressuscitar um deus aspirante. Não foi bom para os demônios. Também não foi bom para Julie e eu a acolhi, como Greg, meu agora falecido guardião, havia me acolhido anos atrás, quando meu pai faleceu.

As pessoas ao meu redor morriam, geralmente de maneira horrível e sangrenta, então mandei Julie para o melhor colégio interno que pude encontrar. O problema era que Julie odiava a escola com a paixão ardente de mil sóis. Ela fugiu três vezes nos últimos seis meses. A última vez que a assistente do diretor Parker ligou, uma garota no vestiário da escola acusou Julie de ser uma prostituta durante os dois anos que passou na rua. Minha filha se ofendeu e decidiu demonstrar o sentimento mediante a aplicação de uma cadeira na cabeça da parte ofensora. Eu disse a ela para ir para o intestino da próxima vez, deixava menos evidências.

Se Parker estava chamando, Julie estava em apuros novamente e como ele ligava às seis horas da manhã, aquele problema tinha um P maiúsculo ligado a ele. Julie raramente fazia alguma coisa pela metade.

Ao meu redor o quarto estava mergulhado na escuridão. Nós estávamos no último andar da Fortaleza. À minha esquerda, uma janela oferecia uma visão da terra da Bando: um céu escuro e interminável, ainda intocado pela aurora e abaixo dela uma mata escura rolando pela noite. Ao longe, a cidade meio arruinada manchava o horizonte. A magia estava a todo vapor, tínhamos sorte de não ter caído as linhas telefônicas, na distância as luminarias a gás de potência industrial brilhavam como pequenas estrelas azuis entre os edifícios destruídos. Um feitiço de proteção blindava a janela, e quando a luz da lua a golpeava de frente, toda a cena brilhava com prata pálida, como se estivesse escondida atrás de uma cortina transparente translúcida. A voz feminina falou de novo na linha. — Consorte?

— Sim?

— Ele me colocou em espera.

— Então ele liga porque é urgente e coloca você em espera?

— Sim.

Imbecil.

— Devo desligar? —Perguntou.

— Não, está tudo bem. Vou aguardar.

O pulso do mundo pulou uma batida. O feitiço que guardava a janela desapareceu. Algo tocou na parede e a luminária elétrica do lado esquerdo piscou e se acendeu, iluminando a mesa de cabeceira com um brilho amarelo. Eu estendi a mão e desliguei.

Ao longe, as estrelas azuis das luminárias de gás desapareceram da existência. A cidade escura respirou. Um clarão luminoso brilhou com o branco entre as ruínas, desabrochando em uma explosão de luz e fogo. Um momento depois, um trovão rolou pela noite. Provavelmente um transformador explodindo depois que a onda mágica recuou. Um fraco brilho vermelho iluminou o horizonte. Você pensaria que era o nascer do sol, mas a última vez que eu chequei, o sol nascia no leste, não no sudoeste. Olhei para a luz vermelha. Sim, Atlanta estava acesa. Novamente.

A magia tinha desaparecido do mundo e a tecnologia uma vez mais tinha ganho a partida. As pessoas chamavam a ressonância de pós-Mudança. A magia ia e vinha a seu desejo, alagando o mundo como um tsunami, arrastando monstros bizarros para a nossa realidade, protelando motores, desativando armas, destruindo edifícios altos e desaparecendo novamente sem aviso prévio. Ninguém sabia quando nos atacaria ou quanto tempo duraria cada onda. Eventualmente a magia venceria esta guerra, mas por enquanto a tecnologia estava lutando muito e nós estávamos presos no meio do caos, lutando para reconstruir um mundo meio arruinado de acordo com novas regras.

O telefone clicou e o barítono de Parker encheu meu ouvido. — Bom dia, Srta. Daniels. Estou ligando para informar que Julie deixou nossas instalações.

De novo não.

Os braços de Curran se fecharam em volta de mim e ele me abraçou. Eu me inclinei contra ele. — Como?

— Ela se enviou por correspondência.

— Não entendi?

Parker limpou a garganta. — Como você sabe, todos os nossos alunos são obrigados a realizar duas horas de serviço escolar por dia. Julie trabalhava na sala de correspondência. Nós a consideramos o melhor local, porque ela estava sob supervisão quase constante e não tinha oportunidade de sair do prédio. Aparentemente, ela conseguiu uma caixa grande, falsificou uma etiqueta de remessa e enviou-se dentro dela.

Curran riu no meu ouvido.

Eu me virei e bati minha cabeça contra o peito dele algumas vezes. Era a superfície dura mais próxima.

— Encontramos a caixa perto da linha Ley.3

Bem, pelo menos ela foi inteligente o suficiente para sair da caixa antes de ser empurrada para a corrente mágica. Com a minha sorte, acabaria sendo enviada para o Cabo Horn.4

— Ela vai vir para cá, —eu disse. — Vou levá-la de volta em alguns dias.

Parker pronunciou as palavras com muito cuidado. — Isso não será necessário.

— O que você quer dizer com ‘não será necessário’?

Ele suspirou. — Senhora Daniels, somos educadores. Não somos guardas de prisão. No ano letivo passado, Julie fugiu três vezes. Ela é uma criança muito inteligente, muito inventiva e é dolorosamente óbvio que não quer estar aqui. Nada além de prendê-la à parede a manterá em nossas instalações e não estou convencido de que isso funcionaria. Eu falei com ela depois de sua última fuga e a minha opinião é que continuará a fugir. Ela não quer fazer parte desta escola. Mantê-la aqui contra sua vontade requer um gasto significativo de nossos recursos e não podemos nos dar ao luxo de ser responsabilizados por quaisquer danos que Julie possa sofrer nessas tentativas de fuga. Estamos reembolsando o restante de suas mensalidades. Eu sinto muito.

Se eu pudesse alcança-lo pelo telefone o estrangularia. Pensando bem, se tivesse esse tipo de poder psíquico, poderia arrancar Julie de qualquer lugar que estivesse e deixá-la no meio da sala. Ela estaria implorando para voltar àquela escola sangrenta quando eu terminasse.

Parker limpou a garganta novamente. — Tenho uma lista de instituições educacionais alternativas que posso recomendar a você ...

— Isso não será necessário. —Desliguei. Já tinha uma lista de instituições educacionais alternativas. Tinha pesquisado algumas depois da primeira fuga de Julie. Ela não quis saber de nenhum deles.

Um largo sorriso dividiu o rosto de Curran.

— Não é engraçado.

— É muito engraçado. Além disso, é melhor assim.

Tirei minha calça jeans da cadeira e a vesti. — Eles chutaram minha filha para fora da escola. Como diabos isso é melhor?

— Onde você vai?

— Eu vou encontrar Julie e vou moer sua bunda até que ela esqueça como se parece o sol e então eu vou até a escola e arrancar as pernas deles.

Curran riu.

— Não é engraçado.

— Também não é culpa deles. Eles tentaram ajudá-la e ela não cooperou. Ela odeia essa maldita escola. Você não deveria tê-la colocado lá em primeiro lugar

— Bem, obrigada, Vossa Peludeza, por criticar minhas decisões de mãe.

— Não é uma crítica, é uma declaração de fato. Você sabe onde sua filha está agora? Não. Sabe onde ela não está? Não está na escola e nem está aqui.

Um sujo falando de um mal lavado. — Pelo que eu lembro, você não sabia onde seu chefe de segurança e toda a sua equipe estavam por quase uma semana. —Puxei minha gola alta.

— Sabia exatamente onde eles estavam. Estavam com você. Eu poderia ter consertado essa situação, mas alguma aspirante a lutadora colocou seu nariz na minha bagunça e transformou um erro em um desastre.

Peguei minha espada. — Não, eu salvei o dia. Você simplesmente não quer admitir isso.

Curran se inclinou para frente. — Kate.

O som do meu nome em sua voz me parou na metade. Eu não sei como diabos ele fazia isso, mas sempre que ele dizia meu nome, cortava todas as outras distrações e me fazia parar, como se tivesse me agarrado e me beijado.

Curran esfregou meus ombros. — Abaixe a espada por um segundo.

Certo. Coloquei a Matadora de volta na mesa de cabeceira e cruzei os braços.

— Me escute. Qual o problema em manter Julie aqui? Conosco? Ela já tem um quarto. Tem uma amiga, a sobrinha do Doolittle gosta muito dela.

— Maddie.

— Sim, Maddie. Há mil e quinhentos metamorfos no Bando. Mais uma garota maluca não vai fazer diferença.

— Não é sobre isso.

— Então o que é?

— As pessoas ao meu redor morrem, Curran. Elas caem como moscas. Passei a vida deixando um rastro de cadáveres atrás de mim. Minha mãe está morta, meu padrasto está morto, meu guardião está morto, minha tia está morta, porque eu a matei, e quando meu pai verdadeiro me encontrar, ele moverá o céu e a terra para me matar. Não quero que Julie viva tropeçando nos confrontos violentos, sempre preocupada que as pessoas com quem ela se importa não sobrevivam. Você e eu nunca teremos uma vida normal, mas se ela ficasse naquela escola, ela poderia ter.

Curran encolheu os ombros. — As únicas pessoas que podem ter uma vida normal são aquelas que não conseguem se importar por toda a merda fodida que acontece ao redor delas. Julie não quer o normal. Ela provavelmente não consegue lidar com o normal. Ela vai sair dessa escola e correr direto para o fogo para provar a si mesma que pode suportar o calor. Isso vai acontecer de um jeito ou de outro. Mantê-la longe apenas garante que não estará preparada quando estiver sozinha.

Me inclinei contra a mesa de cabeceira. — Só quero que esteja segura. Não quero que nada de ruim aconteça com ela.

Curran me puxou para perto. — Nós podemos mantê-la segura aqui. Pode ir a uma de nossas escolas ou podemos levá-la para algum lugar da cidade. Ela é sua, mas agora que estamos acasalados, também é minha, o que faz dela a protegida do Senhor das Feras e da sua companheira. Confie em mim, ninguém quer nos irritar. Além disso, temos centenas de metamorfos na Fortaleza a qualquer momento, e cada um deles matará qualquer coisa que a ameace. Não pode ficar mais segura que isso.

Ele tinha razão. Eu não poderia ter Julie comigo antes, quando morava em um apartamento caindo aos pedaços com calor insuficiente. Era atacado toda vez que eu encontrava uma pista em um dos meus casos. Trabalhava para a Ordem dos Cavaleiros de Ajuda Misericordiosa naquela época e exigia todo o meu tempo. Julie teria ficado sozinha a maior parte do dia, sem eu poder cuidar dela e me certificar de que comesse e ficasse segura. As coisas eram diferentes agora. Agora Julie poderia ficar aqui, na Fortaleza cheia de maníacos homicidas que tinham dentes do tamanho de canivetes e irrompiam em um frenesi violento quando ameaçados.

De algum jeito, esse pensamento não conseguia me fazer sentir melhor.

— Você terá que treiná-la de uma forma ou de outra, —disse Curran. — Se você quer que ela saiba se defender.

Ele estava certo. Sabia que estava certo, mas ainda não gostava disso. — Estamos cerca de cento e sessenta quilômetros de Macon5?

Ele assentiu com a cabeça. — Mais ou menos.

— Ela vai ficar longe da linha Ley e está carregando acônito.6

— Por que? —Curran franziu a testa

— Porque a última vez que ela escapou, Derek a pegou em um ponto da linha Ley e trouxe-a aqui em um jipe do Bando. Ele até parou para pegar um pouco de frango frito e sorvete. Ela se divertiu muito, então eu disse que se fizesse esse truque de novo, não chamasse ninguém da Fortaleza. Eu mesma iria ou mandaria alguém encontrá-la e levá-la de volta para escola. Não quero que ligue para a Fortaleza, não vai receber atenção de mim e Derek, sem fofocas com Maddie e eu não mudaria de opinião, sem negociação. Ela quer evitar ser capturada, por isso vai caminhar até aqui.

Curran sorriu. — Está determinada, eu vou dar isso a ela.

— Você poderia enviar um rastreador para vigiá-la, mas ficar fora de vista?

— O que está pensando?

— Deixe ela andar. Uma centena de quilômetros por terrenos acidentados, levará alguns dias. Quando eu era criança, Voron, meu padrasto, me levava para a floresta e me deixava sem nada além de um cantil7 e uma faca. É claro que Julie não é como eu quando criança, mas ela é uma menina esperta, se virou bem na rua. Não tenho dúvidas de que conseguirá sobreviver sozinha. Ainda assim, é melhor prevenir do que remediar.

— Dois pássaros com uma cajadada só: é um bom castigo por ter fugido e quando ela chegar aqui e nós a confinarmos no quarto, vai achar que mereceu. Vou mandar alguns lobos para fora. Eles vão encontrá-la e vão mantê-la segura.

Beijei seus lábios e peguei minha espada. — Obrigada. E diga a eles para não a estragar com frango frito se tiverem que resgatá-la.
Curran sacudiu a cabeça. — Não posso prometer isso. Não sou um bastardo completo.


Capítulo 1


MEU ESCRITÓRIO OCUPAVA UM EDIFÍCIO PEQUENO, robusto na Jeremiah Street, na parte nordeste da cidade. A Jeremiah Street costumava ser chamada North Arcadia Street, até que um dia um pregador do Sul saiu no meio do cruzamento entre North Arcadia e Ponce de Leon e começou a gritar sobre o fogo do inferno e a danação. Se auto intitulou como o segundo Jeremiah e exigiu que os transeuntes se arrependessem e cessassem sua adoração de ídolos. Quando a multidão o ignorou, soltou uma chuva de meteoros que nivelou dois quarteirões da cidade. No momento em que um atirador da Divisão de Atividade Paranormal atirou nele com uma besta, a rua era uma ruína fumegante. Desde que eles tiveram que reconstruí-la a partir do zero, mudaram o nome da rua para o nome do homem que a demoliu. Havia uma lição em algum lugar nisso tudo, mas agora eu não estava com vontade de pensar nela.

Antes, tecnicamente fazia parte da Decatur e agora era parte da enorme confusão que era Atlanta, Jeremiah Street não era tão ocupada quanto Ponce de Leon, mas funileiros e um grande pátio de oficinas de caminhões deixava a rua do meu escritório bastante movimentada. Deixei meu Jeep parado na rua, desci, abri a corrente que guardava a garagem e entrei.

Meu escritório deve ter sido uma casa em algum momento. A porta lateral da garagem levava a uma cozinha pequena, mas funcional, que por sua vez levava à grande sala principal, onde minha mesa esperava por mim. Na parede de trás, escadas de madeira ofereciam acesso ao loft no segundo andar, completo com uma cama de armar. Várias salas menores se ramificavam da sala principal. Eu as usava para armazenar meu suprimento de ervas e equipamentos, os quais atualmente se destacavam pelo o acúmulo de poeira.

Depositei minha bolsa na minha mesa e verifiquei minha secretária eletrônica. Um grande zero vermelho olhou para mim da tela digital. Sem mensagens. Revoltante.

Andei até as janelas e puxei as persianas. A luz da manhã inundou a sala, cortadas pelas grossas barras de metal que prendiam o vidro. Destranquei a porta da frente na esperança de qualquer cliente em potencial passasse. Era uma porta enorme, grossa e reforçada com aço. Tinha a sensação de que, se alguém disparasse um canhão, a bala de canhão bateria, voltaria e rolaria pela rua.

Voltei para a cozinha, liguei a cafeteira, voltei para a minha mesa e aterrissei na cadeira. Uma pilha de contas estava na minha frente. Olhei feio para elas, mas se recusaram a gritar e sair voando para as colinas.

Suspirei, puxei uma faca de arremesso e abri os envelopes marrons simples. Conta de energia elétrica. Conta de água. Conta de gás para luminárias a gás. Conta do coletor de lixo, com uma notificação ameaçando causar danos irreparáveis à minha pessoa, a menos que eu pague a conta. Um envelope do coletor de lixo com o cheque da conta voltou. A empresa de lixo insistia em dizer meu nome errado como Donovan, apesar das repetidas correções e quando eu lhes enviei o pagamento, eles não conseguiam encontrar minha conta. Mesmo que eu colocasse o número da conta no maldito cheque.

Nós passamos por essa música e dançamos duas vezes agora. Tinha a sensação de que, se eu entrasse em seu escritório e entalhasse meu nome na parede com a minha espada, ainda conseguiriam errar.

Me inclinei para trás. Estar no escritório me deixava com um humor azedo. Nunca tive meu próprio negócio antes. Tinha trabalhado para o Associação de Mercenários, que se encarregavam da magia de materiais perigosos, ganhando dinheiro e sem fazer perguntas. Depois trabalhei para a Ordem dos Cavaleiros da Ajuda Misericordiosa, que ofereciam ajuda violenta a sua própria maneira. A Ordem e eu tínhamos separado nossos caminhos e agora eu era a proprietária de Investigações Cutting Edge. A empresa abriu oficialmente suas portas há um mês. Eu tinha uma reputação de rua sólida e conexões decentes. Coloquei um anúncio em jornal, coloquei a palavra na rua e até agora ninguém me contratou para fazer malditamente nada.

Isso me deixava louca. Tive que confiar no Bando para financiar o negócio e eles assumiram minhas contas de serviços públicos por um ano. Me deram o empréstimo não porque eu era uma lutadora eficiente e habilidosa e não porque em algum momento consegui o status de amiga do Bando. Eles me deram porque eu estava acasalada com Curran, o que me fazia a alfa feminina do bando. Até agora, a Cutting Edge parecia uma daquelas empresas que os homens ricos davam às esposas para mantê-las ocupadas. Queria que isso tivesse sucesso. Que droga! Queria ser rentável e ficar em pé sozinha. Se as coisas continuassem assim, seria forçada a correr para cima e para baixo gritando, ‘Nós matamos coisas por dinheiro’. Talvez alguém tivesse piedade e me atirasse algum trocado.

O telefone tocou. Eu olhei para ele incrédula. Nunca se sabe. Pode ser um truque. O telefone tocou novamente. Eu peguei. — Cutting Edge.
— Kate. —Uma voz seca vibrou com urgência.

Muito tempo sem matar. — Olá, Ghastek. —E o que o premiado Mestre dos Mortos de Atlanta quer comigo?

Quando uma vítima do patógeno Immortuus morria, sua mente e ego morriam com ele, deixando uma casca de corpo, super-forte, super-rápido, letal e governada apenas pela sede de sangue. O Mestre dos Mortos se apoderava da casca vazia e dirigia o vampiro como um carro de controle remoto. Eles ditavam os movimentos do vampiro, viam através de seus olhos, ouviam através de seus ouvidos e falavam através de sua boca. Nas mãos de um navegador excepcional, um vampiro era o material de pesadelos humanos. Ghastek, como noventa por cento dos navegadores de vampiros, trabalhava para a Nação, uma mistura entre culto, empresa e um centro de investigação. Eu odiava apaixonadamente a Nação e odiava ainda mais Roland, o homem que os liderava.

Infelizmente, os mendigos não podem escolher. Se Ghastek estava ligando, era porque queria um favor, o que significava que ele me deveria. Ter o melhor Mestre dos Mortos da cidade em dívida comigo viria a calhar na minha linha de trabalho. — O que posso fazer por você?

— Um vampiro solto está indo em sua direção.

Por todos os demônios! Sem um navegador, a fome insaciável levava os sanguessugas ao massacre. Um vampiro solto mataria a tudo o que encontrasse. Poderia matar uma dúzia de pessoas em meio minuto.

— O que você precisa?

— Estou a menos de vinte quilômetros atrás dele. Preciso de você para atrasá-lo, até eu entrar no alcance.

— Em que direção?

— Noroeste. E Kate, tente não o danificar. Ele é valioso.

Larguei o telefone e corri para fora, explodindo em um ar quase dolorosamente frio. As pessoas enchiam a rua, funcionários, compradores, transeuntes aleatórios correndo para casa. Alimentos a serem abatidos. Puxei um pouco de ar frio e gritei, — Vampiro! Vampiro solto! Corram!

Por uma fração de segundo nada aconteceu e então as pessoas se espalharam como peixes diante de um tubarão. Em uma respiração eu estava sozinha.

A corrente da garagem que eu tinha destrancado esta manhã estava enrolada ao lado do prédio, com o cadeado aberto. Perfeito.

Dois segundos para garagem.

Um segundo para arrancar o cadeado do chão.

Mais três segundos para arrastar a corrente para uma árvore velha.

Muito devagar.

Enrolei a corrente ao redor do tronco e trabalhei a outra ponta em um nó corrediço com o cadeado.

Precisava de sangue para atrair o vampiro. Muito, muito sangue.

Uma carroça de bois virou a esquina. Corri para eles, agarrando uma faca de arremesso. O motorista, um homem latino mais velho, olhou para mim. Sua mão pegou um rifle no assento ao lado dele.

— Corra! Vampiro solto!

Ele saiu da carroça. Cortei um longo, mas raso rasgo no ombro do boi e passei as mãos ao longo do corte. Vermelho quente encharcou meus dedos.

O boi berrou com os olhos enlouquecidos de dor e atacou, puxando o outro animal com ele, a carroça balançou atrás deles.

Agarrei a corda que os segurava.

Uma forma magra saltou do telhado. Faixas de músculos formavam sua estrutura sob a pele tão rígida que cada ligamento e veia se destacavam abaixo dela. O vampiro aterrissou na calçada de quatro, derrapou, as longas garras de foice raspando o asfalto com um som de arranho agudo. Girou. Olhos de rubi me encararam em um rosto horrível. Mandíbulas maciças se abriram, mostrando presas afiadas, brancas como ossos em uma boca negra. Acenei minhas mãos, espalhando gotas sangrentas pelo ar.

O vampiro correu.

Voou por cima do chão a uma velocidade sobrenatural, puxado pelo cheiro inebriante de sangue.

Esperei. Meu batimento cardíaco extremamente alto em meus ouvidos. Teria apenas uma chance nisso.

O vampiro saltou, cobrindo os poucos metros entre nós. Ele voou, membros abertos, garras erguidas para matar.

Empurrei a corrente para cima e sobre sua cabeça.

Seu corpo me atingiu. O impacto me derrubou. Eu caí no chão e rolei na vertical. O vampiro se lançou contra mim. A corrente se esticou em sua garganta atirando o não-morto ao pavimento. O sugador de sangue caiu e pulou para cima, girando e sacudindo no final da corrente como um gato feroz preso, apanhado em uma coleira amarrada a um poste.

Dei alguns passos para trás e tomei um pouco de ar.

O vampiro virou e se lançou em minha direção. A árvore tremeu e gemeu. A corrente cavou em volta do pescoço, o não-morto rasgava a sua própria carne com suas garras. O sangue jorrava debaixo da corrente. Ou arrebentaria a árvore ou a corrente cortaria sua garganta.

O sugador de sangue se jogou em mim novamente, estalando a corrente e caiu no chão, seu salto foi interrompido. Ele levantou e sentou-se. A inteligência inundou seus olhos vermelhos ardentes. As enormes mandíbulas relaxaram e a voz de Ghastek surgiu.

— Uma corrente?

— Não há de que. —Já era hora de aparecer. — Cortei um boi para conseguir que se fixasse em mim. É necessário compensar ao proprietário. — O boi era o sustento do dono. Não havia razão dele ficar no prejuízo porque a Nação não conseguia manter seus mortos-vivos em uma coleira adequada.

— É claro.

Podia apostar seu traseiro, que sim. Um grande boi era caro. Um vampiro, especialmente um tão antigo como este, era trinta vezes mais caro.

O vampiro se agachou na neve. — Como você conseguiu colocar uma corrente nele?

— Tenho loucas habilidades. —Queria me encostar em algo, mas mostrar fraqueza de qualquer tipo na frente de Ghastek não era uma boa ideia. Era o mesmo que insultar um lobo raivoso com um porco assado. Meu rosto estava quente, minhas mãos estavam frias. Minha boca estava amarga. A adrenalina estava se esgotando.

— Que diabos aconteceu? —Perguntei.

— Um dos Oficiais da Rowena desmaiou, —disse Ghastek. — A mulher está grávida. Acontece. Não preciso dizer que agora está proibida de navegar.

Os Oficiais, Mestres dos Mortos em treinamento, estavam perfeitamente conscientes de que, se o controle sobre os mortos-vivos diminuísse, o vampiro transformaria a cidade em um matadouro. Eles tinham nervos de pilotos de caça. Não desmaiavam. Havia mais do que isso, mas o tom de Ghastek deixava claro que obter mais informações dele precisaria de uma equipe de advogados e um dispositivo de tortura medieval.

Tudo bem. Quanto menos eu interagisse com a Nação, melhor. — Isso matou alguém?

— Não houve vítimas.

Meu pulso finalmente desacelerou.

Vários quarteirões à minha direita, um Humvee8 entrou na rua a uma velocidade vertiginosa. Blindado como um tanque, carregava uma M240B,9 uma metralhadora média, montada no teto. Era uma unidade de primeira resposta do PAD.10

O PAD, fazia parte da excelência em Atlanta, lidava especificamente com questões relacionadas à magia. Era a primeira unidade a chegar na cena, uma versão do SWAT. Eles atiravam primeiro e identificavam os restos sangrentos mais tarde.

— A cavalaria, —eu disse.

O vampiro fez uma careta, imitando a expressão de Ghastek. — Claro. Os machões se vestiram para matar um vampiro e agora não conseguem atirar com a arma grande. Kate, você se importaria de se aproximar? Caso contrário, eles podem atirar no vampiro de qualquer maneira.

Só pode estar brincando comigo. Me transformei em escudo de corpo de vampiro. — Você me deve.

— Eu sei. —O sanguessuga levantou-se ao meu lado, agitando seus membros da frente. — Não há necessidade de preocupação. O assunto está sob controle.

Um SUV preto virou a esquina da rua esquerda. Os dois veículos pararam bruscamente na minha frente e do vampiro. Pularam para fora do Humvee quatro policiais de armadura azul da Divisão de Atividade Paranormal.

O mais alto dos quatro policiais apontou com uma escopeta para o vampiro e gritou: — Que diabos pensa que está fazendo? Poderia ter matado metade da cidade!

A porta do SUV se abriu e Ghastek saiu. Magro e sombrio, usava um terno cinza perfeitamente esticado, sem uma única marca visível. Três membros da Nação saíram do SUV atrás dele, um homem e duas mulheres: uma morena magra e uma mulher ruiva que mal parecia ter idade para usar um terno. Todos os três estavam meticulosamente bem vestidos e pareciam que ficariam muito à vontade em uma sala de reuniões de alta pressão.

— Não há necessidade de exagerar. —Ghastek caminhou para o vampiro. — Nenhuma vida foi perdida.

— Não, graças a você. —O policial alto não mostrava sinais de abaixar escopeta.

— Ele está completamente seguro agora, —disse Ghastek. — Permita-me demonstrar. —O vampiro levantou-se de seus quadris e fez uma reverência.

O PAD inteiro se virou para cena com raiva em seus rostos.

Recuei em direção ao meu escritório, antes que eles decidissem lembrar que eu estava lá e me arrastassem para essa bagunça.

— Vejam? Tenho total controle sobre o vam ... os olhos de Ghastek reviraram em sua cabeça. Sua boca se abriu. Por um longo segundo ele permaneceu de pé, seu corpo completamente imóvel e então suas pernas cederam. Ele balançou uma vez e caiu na neve suja.

Os olhos assassinos do vampiro brilharam intensamente de vermelho. Ele abriu a boca, revelando duas foices de presas de marfim.

O PAD abriu fogo.


Capítulo 2


AS ARMAS RUGIRAM.

A primeira bala atingiu o peito do vampiro, perfurou o músculo seco e alcançou o Oficial de Ghastek no ombro. Ele girou com o impacto, e o fluxo constante de rodadas do M240B perfurou o vampiro e atravessou a coluna do Oficial, quase o cortando em dois. Sangue pulverizado por todos os lados.

As mulheres caíram no chão.

As balas lascavam o pavimento. Alguns centímetros à direita e a cabeça de Ghastek teria explodido como uma melancia sob uma marreta. Mergulhei sob fogo de artilharia, agarrei as pernas de Ghastek e o puxei para fora da linha de fogo, levando-o para o meu escritório.

As mulheres se arrastaram para mim através da calçada.

O vampiro se virou, estremecendo sob a saraivada de balas, saltou sobre o homem caído e rasgou suas costas, jogando sangue e carne no ar.

Arrastei o corpo de Ghastek para a porta e o joguei para dentro. Atrás de mim, uma mulher gritou. Eu corri de volta, pulando sobre a mulher de cabelos escuros enquanto ela se puxava pela minha porta. Na rua, a menina ruiva caiu no chão, apertando a coxa, os olhos enormes como pires. O sangue manchando a neve com um escarlate dolorosamente brilhante. Um tiro na perna.

Estava muito longe na rua. Tinha que tirá-la de lá antes que o vampiro a tocasse ou o PAD disparasse novamente.

Caí no chão, rastejei até ela, agarrei o seu braço e puxei com tudo que eu tinha. Ela gritou, mas deslizou alguns centímetros em minha direção através do asfalto cheio de marcas de neve, inundado de neve derretida. Eu recuei e puxei novamente. Outro grito, outro centímetro mais perto da porta.

Respire, puxe, deslize.

Respire, puxe, deslize.

Porta.

Empurrei-a dentro, fechei a porta e a bloqueei. Era uma boa porta de metal, reforçada com uma placa de dez centímetros. Aguentaria. Tinha que aguentar.

Uma mancha vermelha larga se espalhava no chão da perna da mulher ferida. Ajoelhei-me e cortei a perna da calça. Sangue jorrou do músculo triturado com balas. A perna quase tinha sido arrancada. Os fragmentos de ossos me encaravam, banhados em vermelhidão úmida. Corte da artéria femoral11, corte da veia safena magna12, tudo cortado. O fêmur se despedaçou.

Merda.

Seria necessário um torniquete.

— Você! Coloque pressão aqui!

A garota de cabelos escuros me encarou com olhos vidrados e chocados. Nenhuma vida inteligente lá. Cada segundo contava.

Peguei a mão da ruiva e coloquei sobre a sua artéria femoral. — Segure ou você vai sangrar.

Ela gemeu, mas pressionou.

Corri até o depósito para pegar suprimentos médicos. Os torniquetes são dispositivos de último recurso. O meu era um CAT13, um modelo militar, mas não importava se era o melhor, se o mantivesse por muito tempo, corria-se o risco de danificar os nervos principais, perder o membro e ocasionalmente a morte. E uma vez que colocava só poderia ser tirado em uma sala de emergência ou morreria rapidamente.

Precisava de paramédicos, mas chamá-los não adiantaria. Procedimento operacional padrão: quando confrontado com um vampiro solto, isolar a área. A ambulância não viria a menos que os policiais permitissem aos paramédicos passar pela área. Era só eu, o torniquete, e uma garota que provavelmente iria sangrar a vida dela.

Ajoelhei-me ao lado da mulher e tirei o CAT do saco.

— Não! —A garota tentou se afastar de mim. — Não, eu vou perder minha perna.

— Você vai sangrar até a morte.

— Não, não é tão ruim assim! Não dói!

Eu agarrei seus ombros e apoiei-a. Ela viu a bagunça destroçada de sua coxa. — Oh Deus.

— Qual o seu nome?

Ela soluçou.

— Seu nome?

— Emily.

— Emily, sua perna quase foi amputada. Se eu colocar o torniquete agora, ele irá parar o sangramento e você poderá sobreviver. Se eu não o colocar, você vai sangrar até a morte em minutos.

Ela se agarrou a mim, chorando no meu ombro. — Eu vou ser uma inválida.

— Você vai estar viva. E com magia, suas chances de manter sua perna são muito boas. Você sabe, os medimagos curam todos os tipos de feridas. Mas temos que mantê-la viva até que a onda mágica aconteça. Sim?

Ela chorava, grandes lágrimas rolavam pelo seu rosto.

— Sim, Emily?

— Sim.

— Bom.

Coloquei a fita sob a perna dela, enrolei-a pela fivela, apertei-a bem e enrolei o guincho até o sangramento cessar.

Quatro minutos depois, o tiroteio finalmente morreu. Ghastek ainda estava inconsciente. Seu pulso e respiração estavam firmes. Emily estava imóvel, choramingando de dor, a perna apertada pela braçadeira larga do torniquete. Sua amiga se abraçava, balançando para frente e para trás e resmungando repetidas vezes: — Eles atiraram em nós, atiraram em nós.

Mimados.

Esse era o problema com a Nação: a maioria deles via a ação apenas através dos olhos do vampiro enquanto sentavam em um quarto seguro e bem blindado dentro do Casino, tomando café e se entregando de vez em quando a um lanche açucarado. Levar um tiro enquanto montava a mente de um vampiro e esquivando-se de balas reais eram duas coisas diferentes.

Um estrondo alto ressoou pela porta. Uma voz masculina gritou. — Esquadrão Paranormal de Atlanta. Abra a porta.

A garota de cabelos escuros congelou. Sua voz caiu para um sussurro horrorizado. — Não abra.

— Não se preocupe. Tenho isso sob controle.

Deslizei um painel estreito de lado, revelando um olho mágico de cinco centímetros por dez centímetros. Uma sombra mudou para a minha esquerda, o soldado pressionou contra a parede com receio de que eu pudesse atirar nele pela abertura.

— Você matou o vampiro?

— Matamos. Abra a porta.

— Para quê?

Houve uma pequena pausa. — Abra. A. Porta.

— Não. —Eles estavam eufóricos por matar o vampiro e ainda agressivos. Não havia como dizer o que fariam se eu os deixasse entrar.

— Como assim não?

Ele parecia genuinamente confuso.

— Por que você precisa que eu abra a porta?

— Queremos prender o filho de puta que deixou um vampiro solto no centro da cidade.

Ótimo. — Você acabou de matar um membro da Nação no fogo cruzado, feriu outro e quer que eu deixe você ter o resto das testemunhas. Não te conheço bem o suficiente para fazer isso.

O PAD geralmente seguia o caminho reto e estreito, mas havia certas coisas que uma pessoa não fazia: você não entregava o assassino de um policial ao parceiro dele e não entregava um necromante à Unidade de Primeira Resposta. Todos eram voluntários e a sanidade era um requisito opcional. Se eu desse Ghastek e seu pessoal para eles, havia uma boa chance de nunca chegarem ao hospital. O termo oficial seria ‘mortos no caminho pelos ferimentos’.

A voz masculina gritou. — Que tal isso: abra a porta ou vamos derrubá-la.

— Necessita de uma ordem judicial para isso.

— Não preciso de ordem judicial se eu achar que você está em perigo imediato. Diga, Charlie, você acha que ela está em perigo?

— Oh, eu acho que ela está em muito perigo, — disse Charlie.

— E seria nosso dever, como policiais, resgatá-la do perigo?

— Seria um crime não fazer isso.

Uma pessoa morta, uma pintando o chão com o sangue dela. Eu não achava que era hora das piadas.

— Você ouviu Charlie. Abra a porta ou vamos abrir por você. Inclinei um pouco mais longe do olho mágico. Se eles tentassem invadir, provavelmente poderia surpreendê-los, mas também poderia dar adeus a qualquer tipo de cooperação futura do PAD.

— Pare. —Uma voz feminina familiar soou do lado de fora da porta. Não poderia ser.

— Senhora, dê um passo para trás, —o policial ladrou. — Você está interferindo com uma questão policial.

— Sou um Cavaleiro da Ordem. Meu nome é Andrea Nash, aqui está minha identidade.

Andrea era minha melhor amiga. Não a via há dois meses, desde que minha tia destruiu metade de Atlanta.

Após a luta final com Erra, Andrea havia desaparecido. Cerca de duas semanas depois recebi uma carta que dizia:

‘Kate, sinto muito por tudo. Tenho que ir embora por um tempo, por favor, não me procure. Não se preocupe com Grendel, vou cuidar bem dele. Obrigada por ser minha amiga.’

Cinco minutos depois, me encontrava a caminho da cidade a sua busca, com o mal-humorado Senhor das Feras a reboque. Nós não encontramos nada. Nenhum sinal de Andrea ou meu poodle de ataque, que acabara sob seus cuidados depois do caos do meu apartamento demolido pela minha tia. Então eu importunei Jim, o chefe de segurança do Bando e meu amigo da Associação de Mercenários, até que ele colocou uma de suas unidades rastreando pela cidade atrás dela. Eles voltaram de mãos vazias. Andrea Nash desaparecera no ar.

Aparentemente ainda estava viva. Se eu saísse desse cerco, lhe daria um soco na cara.

A voz do policial trocou de tom. Cavaleiros da Ordem não voltavam atrás. — Está certo, Senhorita Nash. Dê um passo para trás ou vamos colocá-la sob prisão e você pode ligar para a Ordem da estação e mandá-los socorrer você.

— Olhe em cima da porta. Você vê uma pata de metal presa na madeira?

— E?

— Este negócio é propriedade do Bando. Se derrubar a porta, terá que comparecer ante um juiz e explicar por que invadiram estas instalações sem uma ordem judicial, detiveram os hóspedes do Bando, e causaram danos à propriedade do Bando.

— Podemos fazer isso, —disse o policial.

— Não, não pode, porque vou testemunhar que você não tinha motivos razoáveis para entrar no prédio. A menos que estejam planejando me matar, neste caso, comece a orar agora, porque vou colocar uma bala na cabeça de cada homem da sua equipe antes que você dê um único tiro.

— Ela não está blefando, —eu disse. — Já a vi atirar. Está sendo modesta.

— De que lado você está, afinal? —O policial rosnou.

— Estou do lado de servir e proteger, —disse Andrea. — Seu esquadrão matou um civil no fogo cruzado.

— Foi uma morte justificada, —disse o policial. — Não vou discutir com você.

A voz de Andrea vibrava como aço. — Um homem já está morto. E a julgar pela trilha de sangue na calçada, alguém naquele prédio está ferido. Alguém engatinhou ou foi arrastado para o escritório e provavelmente está sangrando dentro dele. Você agora tem uma escolha. Pode chamar os paramédicos ou pode deixar outro civil morrer de ferimentos, invadir um escritório de propriedade do Bando, agredir a companheira do Senhor das Feras e atirar num Cavaleiro da Ordem. Você pode fazer isso de qualquer forma, mas prometo que se de alguma forma sobreviver, daqui a vinte anos, quando estiver velho e quebrado, olhará para trás neste momento e desejaria ter levado dois segundos e pensado sobre sua decisão, porque este foi o ponto onde tudo deu errado.

Uau. — Não há mais nada a dizer.

Houve uma larga pausa. Estavam pensando.

— Olha, eu trabalhei com vocês antes, —disse. — Chame o detetive Michael Gray. Ele vai atestar por mim. Se você chamar os paramédicos aqui, vou abrir a porta. Sem problemas, sem danos, todo mundo ficará feliz, ninguém será levado ao tribunal. Também precisaremos de uma ambulância em breve. Eu tenho uma das garotas em um torniquete e se não apressarmos isso, ela sangrará até a morte.

— Vou lhe dizer o que vamos fazer, —disse o policial. — Abra a porta, vamos levar a garota ferida para fora, e depois chamaremos Gray.

Como se eu tivesse nascido ontem. — No momento em que eu abrir a porta, você vai me atacar. Vou esperar até os paramédicos chegarem aqui.

— Bem. Eu vou fazer a ligação, mas você está brincando com a vida dela. Ela morre, a culpa é sua e eu pessoalmente vou te prender.

Deslizei a fechadura de metal e olhei para as mulheres. A mulher de cabelos escuros me encarou com olhos assombrados. — Você vai deixar que eles nos prendam?

— Se é uma escolha entre a vida de sua amiga e sua liberdade, sim. Por enquanto, vamos esperar. Minha melhor amiga está do outro lado, e ela não deixará que façam nada estúpido. —Olhei para a mulher de cabelos escuros.

— Quando Ghastek desmaiou, por que nenhum de vocês agarrou a mente do vampiro?

— Eu tentei. Não estava lá.

— O que você quer dizer, ‘não estava lá’? Mentes de vampiro não apenas piscam para fora da existência.

A mulher de cabelos escuros balançou a cabeça. — Não estava lá.

— Ela está certa, —disse Emily. — Também tentei. É como se eu não conseguisse navegar mais. —Estremeceu no chão. — Estou com frio.

Entrei no depósito, tirei um manto sobressalente e a cobri com ele.

Os lábios de Emily estavam azuis. — Eu vou morrer?

— Não se eu puder evitar.


Capítulo 3


OS MINUTOS GOTEJAVAM, FRIOS E LENTOS. CINCO. SEIS. Oito.

Uma batida alta ecoou pela porta. — Kate? — Gritou a voz de Andrea.

— Sim?

— Os paramédicos estão comigo. Me deixa entrar.

Destranquei a porta e abri. Quatro paramédicos correram para a sala. Andrea os seguiu.

Ela era baixa, tinha olhos azuis e por alguma razão as pontas de seus curtos cabelos loiros estavam cobertos de azul neon. O cano de um rifle se projetava sobre o ombro de sua jaqueta. Conhecendo-a, provavelmente tinha duas SIG-Sauers14 sob o casaco, uma faca de combate e balas suficientes para enfrentar a Horda de Ouro.

Normalmente, o rosto de Andrea tinha uma expressão agradável e descontraída que fazia com que estranhos aleatórios quisessem despejar seus corações. Olhar para ela agora faria qualquer um atravessar para o outro lado da rua. A tensão congelou seu rosto em uma máscara rígida e tensa, se movia como um soldado em território inimigo, esperando uma bala entre as omoplatas a qualquer momento e pronta para disparar de volta em uma fração de segundo.

Atrás, dois policiais com uniformes da PAD esperavam na porta, dando-me suas melhores versões de uma carranca de policial.

Estranhamente, não tive nenhuma vontade de tremer de terror.

Andrea se aproximou e manteve a voz baixa. — Deixo você sozinha por oito semanas e você começa um concurso de mijada com o PAD.

— É assim que trabalho, —disse a ela.

Emily gritou.

— Desculpe-me. Fui até onde os paramédicos a tinham colocado na maca. Ela estendeu a mão e segurou a minha.

— Vai ficar tudo bem, —eu disse a ela. — Você está indo para o hospital. Eles cuidarão de você.

Emily não disse nada. Apenas segurou minha mão e não soltou até que a colocaram na ambulância. Uma maca com Ghastek seguiu para o segundo veículo e então a mulher de cabelos escuros saiu envolta em um cobertor, liderada por dois paramédicos. As portas da ambulância fecharam e os dois veículos de emergência decolaram gemendo como uma Banshees15.

Quando voltei ao escritório, estava vazio, exceto por Andrea e uma poça de sangue no chão.

— Onde estão os policiais?

Ela encolheu os ombros. — Foram embora.

Nós olhamos uma para a outra. Ela salvou meu traseiro, mas não mudava o fato de que desapareceu por dois meses e que algo estava errado.

— Que diabos? —Andrea olhou para mim. — Como no mundo você acabou com três navegadores em seu escritório e com o PAD fora pronto para invadir? Você é louca?

— O que diabos de volta para você. Onde você esteve? Você esqueceu como usar o telefone?

Andrea cruzou os braços. — Eu escrevi uma carta para você!

— Você me escreveu uma nota que fez meu cabelo ficar em pé.

O telefone tocou. O que agora? Marchei para a minha mesa e atendi. — Sim?

A voz de Curran encheu o telefone. — Você está bem?

Era completamente absurdo, mas ouvi-lo instantaneamente fazia eu me sentir melhor. — Sim.

— Você precisa de ajuda? —Sua voz era perfeitamente equilibrada. O Senhor das Feras estava pronto para me ajudar.

— Não, eu estou bem. —Por alguma razão, minhas entranhas se juntaram em um doloroso nó. Poderia ter sido baleada e nunca mais o teria visto. Essa era uma sensação nova e indesejável. Ótimo. Agora tenho ansiedade.

Precisei fazer um esforço para tirar esse sentimento do meu peito.

Forcei as palavras para fora. Elas pareciam tensas. — Quem delatou?

— Temos pessoas monitorando frequências de rádio da polícia. Ofereceram ao Jim ajuda no caso de nossa segurança invadir o escritório da PAD e te resgatar. Descobri quando vi Jim andando pelo corredor rindo para si mesmo.

Fiz uma nota mental para cortar Jim no braço na próxima vez que eu o visse. — Achou engraçado, não é?

— Não achei engraçado.

Eu aposto. — Algumas pessoas da Nação estavam prestes a morrer e eu poderia salvá-las. Havia uma menina ... de qualquer forma, não estou ferida. Estarei em casa para o jantar.

— Como quiser, —disse ele.

Meu coração deu um pequeno pulo. Eu também te amo.

A tensão em sua voz diminuiu. — Tem certeza de que não precisa de seu príncipe encantado para salvá-la?

O nó no meu estômago evaporou. Meu Príncipe Encantado, hum. — Claro, você conhece algum?

— Oh, acho que poderia procurar um em algum lugar. Quantas vezes for necessário para te salvar ...

— Vou te chutar na cabeça quando chegar em casa. Repetidamente.

— Pode até tentar. Você provavelmente precisa de exercício, já que fica sentada no escritório o dia todo.

— Quer saber, não fale comigo.

— O que você quiser, baby.

Agora ele estava apenas empurrando minha coleira. Rosnei ao telefone.

— Ei, antes de você desligar, mandei Jackson e Martina para rastrear Julie. Nós devemos saber algo esta noite.

— Obrigada.

Desliguei. Me salvar. Desgraçado. Não iria apenas chutá-lo, iria chutá-lo com tanta força que ele choraria.

— Nada mudou, eu vejo. —Andrea sorriu. O sorriso parecia um pouco frágil nas bordas. — Ainda curtindo sua lua de mel? É tudo arco-íris e corações de açúcar e beijos de chocolate?

Eu cruzei meus braços. — Onde está meu cachorro?

— Na minha caminhonete, comendo o estofamento.

Nós duas olhamos para o sangue. Se deixarmos Grendel entrar, ele iria tentar lamber.

Fui ao quarto dos fundos e peguei pedaços de pano, peróxido16 e um balde. Andrea colocou o rifle de lado e levantou as mangas.

Nós nos ajoelhamos e começamos a limpar a mancha.

— Deus, isso é um monte de sangue. —Andrea fez uma careta. — Você acha que a garota vai sobreviver?

— Não sei. Ela levou vários tiros de uma M240B. Sua perna está toda malditamente estraçalhada. —Espremi o sangue do pano no balde.

— Como isso aconteceu? —Perguntou.

Queria agarrá-la e sacudi-la até que me dissesse onde ela estivera nos últimos meses. Mas pelo menos estava aqui e estava falando. Eu iria tirar a história dela mais cedo ou mais tarde.

— Ghastek ligou. Disse que eles tinham um vampiro solto e estava vindo na minha direção. Fui lá e o acorrentei. Envolvi o maldito ao redor de uma árvore enquanto Ghastek chegasse perto o suficiente para controlá-lo. O PAD apareceu armado até os dentes e depois chegaram Ghastek e seus Oficiais. Trocaram algumas palavras e então Ghastek desmaiou.

Andrea fez uma pausa, as mãos em um pano ensanguentado. — O que você quer dizer com desmaiou?

— Mergulhou. Beijou a calçada. Desmaiou como uma beldade sulista depois de seu primeiro beijo. Teve um caso terrível de vapores17.

— Isso é estranho.

— Seus olhos rolaram e ele caiu, como se alguém o tivesse derrubado. —Joguei um pouco de água limpa no chão. — Então os olhos do vampiro ficaram vermelhos e o PAD abriu fogo. Ghastek tinha três pessoas com ele. O homem foi abatido nos primeiros dois segundos e o sanguessuga foi para cima dele.

— E depois?

— Então trouxe os três aqui para o escritório e tranquei a porta e o resto você sabe.

Andrea suspirou. — Não é bom negar o acesso ao PAD. Eles não gostam disso.

— Diga-me algo que eu não sei. —Como por exemplo, onde ela esteve nesses últimos dois meses. Talvez ela tenha se juntado a um convento. Ou a Legião Estrangeira Francesa.

— Você poderia ter chamado o Casino. Eles teriam desencadeado uma horda de advogados. —Andrea derramou peróxido na madeira molhada.

Eu me endireitei. — Os oficiais do PAD são brutos e estavam cheios de agressividade. Ainda estavam nadando na adrenalina de terem atirado no vampiro. Eu os escutei destroçar a calçada com balas por quase cinco minutos. Foi um exagero. A única maneira de acalmá-los seria se eles pudessem matar outro vampiro. Ou talvez vários. Se eu ligasse para o Casino, não importava o que eu dissesse, o pessoal enviaria um vampiro para cá. Essa é a resposta padrão deles. O PAD iria atirar e a Nação iria retaliar. Isso sairia do controle e eu precisava que tudo ficasse calmo para que pudesse manter Emily respirando.

— Ghastek disse por que eles tinham um vampiro solto correndo por aí?

Fiz uma careta. — Algo sobre uma menina grávida desmaiando.

Andrea franziu o nariz com um sorriso de desprezo metamorfo. — Eu farejo mentira.

Ela estava certa. Dois navegadores, ambos desmaiaram enquanto pilotavam o mesmo vampiro? Ghastek desmaiando? Isso simplesmente não acontecia.

Peguei um pano seco e limpei o peróxido. A mancha não parecia tão ruim agora. Ainda assim, uma vez que o sangue manchava alguma coisa, permanecia lá para sempre, mesmo que você não pudesse mais vê-lo. Meu escritório foi batizado no sangue de Emily. Maravilha!

Joguei o pano no balde e olhei para Andrea. — Meu dia não foi bom.

— Percebi.

— O PAD provavelmente agora quer me matar, a Nação vai encontrar alguma maneira de me culpar pelo massacre do vampiro e esperar a restituição e Curran descobriu que eu arrisquei minha vida para salvar um Mestre dos Mortos, o que significa que vou ter muitas explicações para fazer no jantar, porque Curran acredita que sou feita de vidro. Se eu tivesse sido baleada e o Bando descobrisse que a doce vadia companheira do Senhor das Feras estava ferida, como resultado da bagunça da Nação, eles teriam uma apoplexia coletiva e atacariam o Casino.

— Arrá, —disse Andrea. — Vou ignorar que você acabou de se referir a si mesmo como doce vadia. Existe algum ponto nessa história?

— O ponto é que não tenho mais paciência. Você vai me dizer onde esteve quando desapareceu. Agora.

Andrea levantou o queixo, como se me desafiasse a dar um soco. — Ou?

Ou o que exatamente? — Ou eu vou socar sua cara.

Andrea congelou. Por um segundo, pensei que fosse fugir para a porta. Ela suspirou em seu lugar. — Posso ao menos tomar um café primeiro?

*

NÓS NOS SENTAMOS NA COZINHA na mesa velha e cheia de marcas. Derramei um café passado a duas horas atrás em nossas canecas.

Andrea olhou para a xícara. — Eu estava no lado norte do buraco quando sua tia apareceu para o confronto final. Ainda estava chateada por ... algumas coisas e isso mexeu com a minha cabeça. Então escolhi um bom lugar para mim em uma pilha de detritos bem na borda da abertura e preparei meu rifle. Parecia uma boa ideia na época. Quando sua tia fez sua grande entrada, tentei atirar nos olhos dela. Exceto que ela se mexeu e eu a perdi. E então ela começou a explodir fogo por toda parte. É aí que a minha falta de cabeça limpa ferrou tudo, eu não conseguia pensar em estratégia de saída. Ela me assou como uma costela. No momento em que me tiraram desses detritos, tinha queimaduras de terceiro grau em mais de quarenta por cento do meu corpo. A dor foi demais. Desmaiei. Aparentemente, mudei para o meu outro eu na cama do hospital.

Merda. O Vírus-L, o vírus metamorfo, roubava pedaços do DNA do hospedeiro e arrastava-os para sua próxima vítima. Na maioria das vezes, o DNA animal era transferido dos animais para hospedeiros humanos, resultando em um metamorfo: um humano que assumia a forma de animal. De vez em quando o processo acontecia ao contrário, e algum animal infeliz acabava como um animal-humano. A maioria deles eram criaturas patéticas, confusas, mentalmente atrasadas e incapazes de compreender as regras da sociedade humana. Leis não significavam nada para eles, e isso os tornava imprevisíveis e perigosos. Metamorfos regularmente os assassinavam.

No entanto, todas as regras tinham uma exceção, e o pai de Andrea, uma hiena-humana, era um deles. Andrea lembrava muito pouco do pai dela. Ela disse uma vez que ele tinha a capacidade mental de uma criança de cinco anos de idade. Isso não impediu que se acasalasse com a mãe de Andrea, que era uma metamorfa hiena ou bouda, como eles preferiam ser chamados. Seu sangue fazia Andrea bestial, e ela fez um grande esforço para escondê-lo. Ela se juntou à Ordem como humana, sujeitou-se a métodos tortuosos para passar em todos os testes necessários, formou-se na Academia e destacou-se em ser um Cavaleiro. Estava no caminho mais rápido, escalando a cadeia de comando da Ordem quando um caso deu errado e foi transferida para Atlanta.

O chefe da Ordem de Atlanta, o Cavaleiro protetor Ted Moynohan, sabia que havia algo errado com Andrea, mas ele não podia provar, então a manteve em serviço de apoio. Ted não gostava dos metamorfos. Na verdade, ele nem sequer os considerava humanos. Essa foi uma das razões pelas quais saí. Apesar de tudo, Andrea permaneceu fanaticamente fiel à Ordem. Para ela, a Ordem significava honra e dever e uma sensação de servir a uma causa mais elevada. Mudando de forma na cama do hospital tinha aberto a porta do armário.

Andrea manteve o olhar firmemente em sua xícara. Seu rosto, um olhar vazio e tenso, o queixo caído, como se estivesse arrastando uma pedra pesada por uma montanha e estivesse decidida a chegar ao topo.

— A coisa com sua tia não foi boa. Ted havia chamado reforços de todos os lugares. Doze cavaleiros morreram, entre eles dois mestres-de-armas, um adivinho e um mestre em ofício. Sete outros foram gravemente feridos. A Ordem conduziu uma audiência. Como meu disfarce tinha sido descoberto de qualquer maneira, achei que seria um bom momento para defender que alguém como eu poderia ser útil para a Ordem.

Agora as coisas faziam sentido. Esta era sua cruzada. Deveria ter visto isso chegando. Nós falamos logo antes de eu deixar a Ordem, e Andrea argumentou contra a minha saída. Ela queria que eu ficasse e lutasse com ela para mudar a Ordem. Eu disse a ela que, mesmo que tentasse mudar a Ordem, não conseguiria. Eu não era um Cavaleiro. Minha opinião não tinha peso. Mas Andrea era um Cavaleiro, uma veterana condecorada. Ela viu uma chance de deixar sua marca.

Andrea tomou um pequeno gole de café e tossiu. — Porra, Kate, eu sei que você está chateada, mas tinha que colocar óleo de motor na minha bebida?

— Essa foi a pior piada que já ouvi você fazer. Pare de enrolar. O que aconteceu?

Ela olhou para mim e quase desviei o olhar. Seus olhos eram ocos e amargos.

— Eu tinha um dos melhores defensores da Ordem no sul. Ele pensou que havia uma chance de podermos fazer a diferença. Há outros como eu na Ordem. Humanos de sangue não puro. Queria melhorar a vida deles. Ele me aconselhou a me separar dos metamorfos, escrevi essa carta para você. Ia trazer Grendel de volta também, mas nós tivemos que sair com pressa, então o levei comigo e fui para Wolf Trap.

Wolf Trap, Virginia. Sede nacional da Ordem. Todo mundo sabendo que Andrea era uma bestial. Deve ter sido puro inferno.

Andrea esfregou a borda da xícara, como se tentasse remover alguma sujeira que só ela podia ver. Se esfregasse com mais força, faria um buraco nela.

Passamos um mês preparando, vinte e quatro horas por dia durante todos os dias da semana, reunindo documentos, puxando todos os meus registros. Meu advogado falou por três horas na audiência e fez um argumento muito apaixonado e lógico a meu favor.

Nós tínhamos gráficos, nós tínhamos estatísticas, tínhamos minhas condecorações de serviço em exibição. Tínhamos tudo.

Uma sensação de frio brotou na boca do estômago, e me disse exatamente como ia terminar. — E?

Andrea endireitou os ombros e abriu a boca.

Nada saiu. Fechou novamente.

Esperei.

Seu rosto empalideceu. Sentou-se rígida, a boca em uma linha tensa. Um leve brilho avermelhado coloria seus olhos, a sugestão da hiena se esgueirando sob pressão.

Andrea afrouxou os dentes. Sua voz saiu completamente plana, peneirada através da força de sua vontade até que toda sugestão de emoção tivesse sido apagada dela.

— Me concederam o título de Mestre de Armas, me aposentaram por estar mentalmente inapta para o trabalho. O diagnóstico oficial é transtorno de estresse pós-traumático. A decisão é final e não posso recorrer. Não posso nem os acusar de discriminação, porque as ordens finais não abordaram o fato de que sou bestial. Eles simplesmente se recusaram a reconhecer que isso era um problema.

Aqueles filhos da puta. Eles não apenas a jogaram para fora como um pedaço de lixo, enviaram uma mensagem com ela. Se você não é humano, não importa o quão bom você é. Nós não queremos sua bunda aqui.

— Então. —Andrea respirou fundo e empurrou as palavras para fora. — Eu falhei.

Para Andrea, a Ordem era mais que simplesmente um trabalho. Era a vida dela. Passou a infância em um bando de metamorfos que a insultavam porque seu pai era um animal e sua mãe era fraca demais para protegê-la. Todos os ossos do seu corpo tinham sido quebrados antes dos dez anos de idade. Andrea rejeitou tudo que era relacionado aos metamorfos. Trancou aquela parte de si mesma profundamente e dedicou sua existência a se tornar completamente humana, a se colocar entre os fracos e os fortes e era muito boa nisso.

Agora a Ordem a transformara em um pária. Foi uma traição monumental.

— Tudo se foi. —Andrea forçou um sorriso. Seu rosto parecia que iria quebrar a qualquer momento. — Meu trabalho, minha identidade. Se os policiais tivessem olhado mais de perto o meu ID, eles viriam que ele dizia APOSENTADA. As pessoas que eu pensei que eram minhas amigas não falam comigo, como se eu fosse uma leprosa. Quando voltei para Atlanta, liguei para o escritório da Ordem em busca de Shane. Ele ficou com a responsabilidade do arsenal quando saí. Algumas dessas armas são de minha propriedade pessoal. Eu as quero de volta.

Shane era um cavaleiro típico: nenhuma família para amarrá-lo, condição física superior, competente, seguia rigidamente as regras.

Ele e eu não nos dávamos bem, porque ele nunca conseguia descobrir onde me encaixava na hierarquia da Ordem.

Mas ele e Andrea se devam bem. Eram colegas. Amigos mesmo.

— Como ele está? —Perguntei.

Ultraje brilhou nos olhos de Andrea. — Não falou comigo. Sei que ele estava lá, porque Maxine atendeu e você sabe como sua voz fica distante quando ela está falando na cabeça de alguém ao mesmo tempo? Foi assim. Ela deve ter perguntado se ele queria falar comigo e então ela recebeu uma mensagem. Também não me ligou de volta.

Shane é um idiota. Voltando de uma missão uma vez, estava chovendo tanto que mal conseguia enxergar, encontrei ele correndo com a mochila. Eu perguntei por que. Ele me disse que era seu dia de folga e estava tentando diminuir vinte segundos do seu tempo para poder marcar trezentos na escala PE18. Ele não tem cérebro próprio, abre a boca e o Código da Ordem aparece.

Em uma luta real, os vinte segundos extras não o ajudariam. Poderia matá-lo em um. Shane não tinha o instinto predatório que transformava um homem bem treinado em um assassino. Ele tratava cada luta como uma partida de torneio, onde alguém estava totalizando seus pontos. E apesar de seu esforço óbvio, a Ordem reconhecia esse problema. Todos os cavaleiros começavam como defensores de cavaleiros. A Ordem dava-lhes dez anos para se destacar, e se você falhasse, no final dos dez anos se tornava um mestre-defensor, um ajudante de cavaleiro. Shane queria claramente mais do que isso, mas ele tinha nove anos de mandato com a Ordem, e Ted não mostrava sinais de promovê-lo.

Andrea cruzou os braços. — Shane não é o ponto. Não dou a mínima para o Shane. Não é mais que a gota que encheu o copo. De qualquer forma. Depois da audiência, eu e Grendel ficamos em meu lugar por algumas semanas lambendo minhas feridas, mas não posso me esconder no meu buraco para sempre. Estive conversando com um cachorro, isso vai me deixar louca. Além disso, ele come coisas que são ruins para ele, como tapetes e acessórios de banheiro. Ele mastigou um buraco no meu chão da cozinha. Era uma superfície completamente plana.

— Isso não me surpreende.

Apenas ela e o poodle feio e fedorento se escondendo em seu apartamento juntos. Sem amigos, sem visitantes, nada, apenas sentados em sua própria miséria, orgulhosos demais para descarregar em qualquer outra pessoa. Era algo que eu teria feito. Exceto que agora quando ia para casa, alguém estava lá esperando por mim e ele iria virar a cidade do avesso se estivesse atrasada mais do que algumas horas. Mas Andrea não tinha ninguém. Nem mesmo Raphael, ela cuidadosamente não mencionou o nome dele.

— Tenho um livro de treinamento de cães, —disse Andrea. — Diz que Grendel precisa de estímulo mental, então tentei treiná-lo, mas acho que pode ser retardado. Imaginei que você gostaria de ver seu cachorro eventualmente, então aqui estamos nós. Provavelmente já comeu meu painel agora.

Se ela tivesse sorte. Se não, ele também teria vomitado no chão e, em seguida, feito uma boa quantidade de xixi. Me inclinei para trás. — E agora?

Andrea encolheu os ombros em um movimento brusco e forçado. Sua voz ainda era monótona. — Eu não sei. A Ordem me ofereceu uma pensão. Disse para enfiar no rabo deles. Não me entenda mal, é meu direito, mas não quero isso.

Não teria tomado isso também.

— Tenho algum dinheiro guardado, então não tenho que procurar trabalho neste segundo. Talvez eu vá pescar. Sei que eventualmente terei que encontrar algo, provavelmente na aplicação da lei. Apenas não agora. Eles vão fazer verificações de antecedentes e eu não quero lidar com isso.

— Você gostaria de trabalhar aqui comigo?

Andrea olhou para mim.

— Não temos clientes e o pagamento é uma merda.

Continuou olhando. Nem sabia se ela me ouviu.

— Mesmo que os negócios estivessem crescendo, ainda não conseguiria pagar o que você vale. — Nenhuma reação.

— Mas senão se importar em sentar no escritório bebendo café com óleo de motor e falando besteira comigo ...

Andrea colocou as mãos sobre o rosto.

Ah merda. O que eu faço agora? Eu digo alguma coisa, não digo nada?

Continuei falando, mantendo minha voz tão leve quanto podia. — Tenho uma mesa extra. Se o PAD vier tentar nos calar, talvez precise de suporte de um sniper, e não posso disparar em uma vaca a três metros. Podemos virar nossas mesas e atirar granadas contra eles quando invadirem a porta ...

Os ombros de Andrea tremeram ligeiramente.

Ela estava chorando. Foda-me. Sentei lá sem saber o que fazer comigo mesma.

Andrea continuou tremendo, estranhamente quieta.

Levantei e voltei com um lenço. Andrea pegou o lenço e apertou-o contra o rosto.

Piedade só tornaria isso pior. Ela queria manter seu orgulho, era tudo o que restava e eu tinha que ajudá-la a preservá-lo. Fingi beber meu café olhando para a minha caneca. Andrea fingiu não estar chorando, enquanto tentava enxugar as lágrimas.

Por alguns minutos nos sentamos assim, desajeitadas e severamente determinadas a agir como se nada estivesse acontecendo.

Se eu olhasse para essa caneca um momento mais, ela iria explodir em chamas por pura tensão.

Andrea assoou o nariz. Sua voz saiu ligeiramente rouca. — Você tem alguma coisa para atirar no PAD?

— Tenho um arsenal no andar de cima. O Bando me deu algumas armas e munição. Estão em caixas à esquerda.

Andrea fez uma pausa. — Em caixas de papelão?

— Sim.

Andrea gemeu.

— Ei, armas não são minhas coisas. Se eles tivessem me trazido espadas, isso seria diferente. É aí que você entra ... Andrea se levantou e me abraçou. Foi um abraço de fração de segundo, e então ela foi embora, subindo as escadas, com o lenço na mão.

Essa coisa de melhor amiga estava seriamente chutando minha bunda.

No andar de cima alguma coisa estalou.

Certo. Tinha que continuar com a programação. Peguei as chaves na mesa e fui tirar Grendel da caminhonete antes que ele o demolisse.


Capítulo 4


MEIA HORA MAIS TARDE, SENTEI NA CADEIRA DA MINHA MESA, PENSANDO em uma quantia adequada para cobrar Ghastek pela captura do vampiro. O vampiro agora estava morto, mas não mudava o fato de que eu o peguei. A enorme monstruosidade desgrenhada que era Grendel se esparramava a meus pés. Quando o encontrei pela primeira vez, seu pelo era um emaranhado de dreadlocks19 malcheirosos e um tosador acabou raspando toda a bagunça.

Agora seu pelo tinha crescido parcialmente e parecia um casaco de karakul20 que vi uma vez em um dos clientes de classe alta da Associação: preto curto, encaracolado e brilhante. Ele até cheirava meio decente. Grendel levantou a cabeça e lambeu minha mão. Abri a gaveta de cima, peguei um biscoito de aveia e ofereci a ele. Pegou muito cuidadosamente da minha mão e engoliu sem mastigar, como se não tivesse sido alimentado em mil anos.

Na segunda mesa, Andrea revirava uma caixa de papelão gigante que arrastara do andar de cima.

— Há uma gaiola em um dos quartos, —disse ela.

Era a maior gaiola de loup que eu já tinha visto também, dois metros e meio de largura, por dois e meio de comprimento, por dois metros de altura. Tiveram que trazê-la para o escritório em pedaços e montá-lo no quarto. As barras de liga de aço e prata eram tão grossas quanto meu pulso. Todos os escritórios do Bando estavam equipados com uma gaiola de loup. Os metamorfos sabiam melhor do que ninguém a rapidez com que poderiam enlouquecer. Mas como eu era tecnicamente humana, Jim continuava tentando encontrar algum nome diplomático para isso. Ele pensou que chamar de gaiola de loup assustaria meus clientes.

— Não é uma gaiola de loup, você sabe, —disse a ela. — É uma cela de espera. Ou quarto seguro. Eu não acho que Jim tenha resolvido qual termo que quer chamar.

— Ram, ram. É uma gaiola de loup. —Andrea pigarreou. — Eu toquei com o dedo e doeu. Isso é para algum caso de problemas conjugais?

— A Ordem retornou seu senso de humor como parte do pacote de indenização?

— Vá se ferrar. Foda-se! —Andrea hesitou. — Kate ... Você está feliz? Com Curran, quero dizer.

— Quando tudo está tranquilo.

Ela olhou para mim. — E o resto do tempo?

— O resto do tempo estou em estado de pânico silencioso. Tenho medo que isso acabe. Vou perdê-lo. Perder Julie. Perder todos.

— Sei como é isso, —disse Andrea. — Perdi todo mundo. É foda.

Não é brincadeira.

Andrea levantou uma arma preta, segurando-a como se estivesse coberta de lodo. — Esta é uma Witness 4521. Tem uma falha de moldagem no ferrolho aqui, viu? Se você atirar, vai machucar sua mão.

Ela pegou outra arma. — Esta é uma Raven 2522. Não se fabrica desde o início dos anos noventa. Nem sabia que ainda existiam. Era uma arma barata. Costumavam chamá-las de Saturday Night Specials23. Você não consegue nem vinte rodadas sem que aqueça, e do jeito que está parece, eu nem arriscaria carregá-la. Pode explodir na minha mão. E isto? Esta é uma Hi Point24, também conhecido como Beemiller25.

— Isso deveria me dizer alguma coisa?

Ela olhou para mim. — É a arma mais barata lá fora. As armas normais custam mais de mil dólares. Essa custa cem dólares. O ferrolho é feito de zinco com alumínio.

Olhei para ela.

— Olha, eu posso dobrar com a minha mão.

Eu também a vi dobrar uma barra de aço com a mão, mas agora não parecia a melhor hora para mencionar isso.

Andrea colocou a Hi-Point na mesa. — Onde você conseguiu isso mesmo?

— Elas são armas excedentes do Bando. Confiscadas, pelo que entendi.

— Confiscado durante brigas violentas?

— Sim.

Andrea afundou na cadeira. Seus cabelos de ponta azul caíram em derrota. — Kate, se alguém usou uma arma contra os metamorfos e agora os metamorfos têm a arma, não era uma arma muito boa, não é?

— Não estou discutindo com você. Não tive escolha. Isso é o que estava aqui quando me mudei.

Andrea tirou um revólver de prata de aparência feroz da caixa. Seus olhos se arregalaram. Ela olhou para ele por um momento e bateu no canto da mesa. A arma respondeu com um pop seco.

Olhou para mim com uma expressão de desespero abominável. — É de plástico.

Abri meus braços para ela.

Andrea jogou a arma de plástico para Grendel. — Aqui, mastigue isso.

O poodle farejou.

Uma batida cuidadosa ecoou pela porta.

Grendel levantou-se e rosnou, saltando para cima e para baixo.

Provavelmente era o PAD que veio me prender. Toc, toc, deixe-nos entrar, nós trouxemos uma ordem judicial e um morteiro ... — Entre!

A porta se abriu e uma mulher ruiva carregando um envelope de papel pardo entrou no meu escritório. Alta, magra e de pernas compridas, se movia como uma esgrimista, leve, mas firme. Você tinha a sensação de que, se um raio a atingisse, ela se inclinaria para fora do caminho e a atravessaria antes de atingir o chão. Usava calças cáqui, uma gola alta e um colete de couro leve. Uma luva de couro escondia a mão esquerda. A comprida espada em seu cinto e botas altas completava a roupa. Eu a vi antes. O nome dela era Rene e a última vez que nos vimos, ela estava fazendo a segurança para os Jogos da Meia-Noite, uma arena ilegal de gladiadores de todo tipo que aconteciam na noite.

Atrás, seus dois homens na sua cola. Ambos usavam coletes táticos e carregavam armas suficientes para enfrentar um pequeno exército e vencer. O homem da direita era jovem, loiro e caminhava com uma leve segurança em seu passo que dizia que poderia ser um lutador marcial experiente. O homem à esquerda era mais magro, mais velho e mais sombrio, com um ar militar distinto e uma pequena cicatriz no pescoço. A cicatriz tinha bordas irregulares. Algo tinha cortado o seu pescoço em algum momento, mas ele tinha vivido para lutar outro dia.

Os olhos cinza escuros de Rene me olhavam.

— Me desculpe, milady, —eu disse. — Athos, Porthos e Aramis26 acabaram de sair.

— Eles disseram algo sobre cavalgar para a Inglaterra com D'Artagnan27 para recuperar alguns diamantes, —acrescentou Andrea.

— Vocês duas acham que são muito engraçadas, —disse Rene.

— Nós tentamos, —eu disse. — Calma, Grendel.

O cachorro mostrou a Rene os dentes, para o caso dela decidir tentar alguma coisa engraçada, como tomar a sua arma, se deitar e a roer.

Rene olhou para Grendel. — O que diabos é isso?

— Esse é o nosso poodle de ataque mutante, —eu disse a ela.

— Ele está mastigando uma arma?

— Não é uma arma de verdade, —disse Andrea.

Rene suspirou. — Claro que não. Isso seria uma irresponsabilidade sua, não é?

O homem mais velho à esquerda de Rene se inclinou para ela. — Isso pode ser uma má ideia.

Ela acenou para ele.

O homem loiro à direita de Rene fixou os olhos na mesa de Andrea. — Isso é uma Hi-Point.

Andrea ficou vermelha beterraba.

Me inclinei para frente. — O que podemos fazer para os Jogos da Meia-noite?

— A Guarda Vermelha não trabalha mais com os Jogos da Meia-Noite. —Rene cuidadosamente dobrou sua longa estrutura na cadeira de cliente. Os dois sujeitos atrás dela permaneceram em pé. — Após os eventos recentes, tivemos que responder a muitas perguntas e decidimos nos desvincular do local.

Tradução: você arruinou a nossa diversão e me ferrou. Tive que sair do trabalho. — Eu pensei que você fosse uma contratada independente.

Ela balançou a cabeça. — Não, eu sou da Guarda Vermelha. Tenho sido nos últimos doze anos.

Doze anos na Guarda Vermelha não eram nada para se jogar fora. — Nesse caso, o que podemos fazer pela Guarda?

— Nós gostaríamos de contratá-la.

Acho que não ouvi direito. — Qual a necessidade?

René cruzou as mãos no joelho. — Nós perdemos um item e precisamos recuperá-lo.

— Você sabe onde está o item?

Ela fez uma careta para mim. — Se soubéssemos quem o tinha, não precisaríamos contratá-la, não é mesmo?

— Então o item não foi perdido, foi roubado.

— Sim.

Certo. — Tudo o que você disser neste escritório é confidencial, mas não privilegiado, o que significa que fica entre nós, a menos que recebamos uma intimação. Pouparia muito tempo para todos nós, se você fosse direto ao assunto, dessa forma podemos decidir se aceitaremos ou não o trabalho.

Rene abriu o envelope e sacudiu o conteúdo na mão dela. Uma fotografia deslizou em sua palma. Colocou na mesa.

Um homem que parecia estar em seus quarenta e poucos anos olhou para mim. Cabelo castanho encaracolado, ficando cinzento, um rosto bastante agradável, nem bonito nem feio. Linhas profundas ao redor da boca. Olhos tristes. Ele parecia que tinha sido destruído pela vida e conseguiu se recompor, mas uma parte dele não tinha conseguido.

— Adam Kamen, —disse Rene. — Trinta e oito anos de idade. Engenheiro brilhante, genial teórico da magia aplicada. Fomos contratados para protegê-lo enquanto ele trabalhava em um projeto valioso. Adam foi financiado por três investidores separados.

— Quão bem? —Perguntei.

— Bem o suficiente para pagar por uma unidade de guarda de elite.

Isso era algum dinheiro sério. As unidades de Elite da Guarda Vermelha não eram baratas.

— Nós colocamos Adam em uma casa segura no meio do nada. A propriedade era protegida por duas Proteções defensivas: um perímetro interno que protegia a casa e o laboratório, e um perímetro exterior mais amplo que protegia uma área de mil metros quadrados com a casa em seu centro. A casa era vigiada por uma tripulação de doze pessoas: quatro por turno de oito horas. Escolhi cada um dos guardas. Todos eles haviam passado por checagem de antecedentes e mostravam longos registros de serviço diferenciado.

Rene recostou-se. — Ontem à noite, Adam e o protótipo desapareceram. Sua ausência e o corpo mutilado de um dos guardas foram descobertos esta manhã durante uma mudança de turno.

Certo. — Mutilado como?

A linha da boca de Rene endureceu. — Você teria que ver por si mesma. Quero que você encontre Adam e recupere o dispositivo.

Entendo.

— Qual desses dois é a prioridade?

— Obviamente, meus empregadores prefeririam recuperar ambos. A linha oficial diz que o dispositivo tem prioridade, pessoalmente, quero que Adam seja salvo.

Uma vez guarda-costas, sempre guarda-costas. Rene foi contratada para guardar Kamen e fazia de seu trabalho algo pessoal.

Rene trançou os longos dedos no joelho. — Neste momento, apenas quatro pessoas, além dos guardas e de nós nesta sala, estão cientes deste problema. Três desses quatro são investidores de Adam e o quarto é meu superior direto. É essencial que nenhuma informação seja divulgada. O dano à reputação da Guarda Vermelha seria catastrófico.

Adorável. Teríamos que procurá-lo sem fazer barulho. Minha técnica investigativa consistia principalmente em passar pela lista de suspeitos e fazer o máximo de barulho possível, até que o culpado perdesse a paciência e tentasse me calar.

Rene se concentrou em mim. — Ser sutil é muito importante neste caso.

— Podemos ser sutis, —assegurei a ela.

— É o nosso nome do meio, —acrescentou Andrea.

Por alguma estranha razão, Rene não parecia convencida.

Peguei um bloco de papel e uma caneta. — Qual era a natureza do dispositivo?

Rene sacudiu a cabeça. — Não estávamos a par dessa informação. Pelo que sei, nunca foi testado com sucesso.

Certo. — Preciso do nome completo, endereço, família e associados conhecidos do engenheiro.

— Seu nome é Adam Kamen. Sabemos que tem trinta e oito, viúvo. Sua esposa tinha diabetes e estava passando por diálise28 por insuficiência renal. Eventualmente, a doença a matou. Adam ficou severamente traumatizado com a morte dela. Seu trabalho está conectado a esse evento, mas não posso lhe dizer como. Fala sem sotaque, não parecia religioso e não expressou opiniões políticas fortes.

— Há quanto tempo vocês o têm? —Andrea escreveu uma nota em seu próprio bloco.

— Noventa e seis dias. Não tinha visitantes enquanto estava sob nossa custódia. Não sabemos de mais nada além disso: sem endereço, nenhum parente conhecido, nenhuma informação sobre inimigos ou amigos. —Rene pegou outro pedaço de papel.

— Esta é a última imagem do dispositivo.

Na foto, em cima de uma mesa de trabalho, um cilindro de metal de aproximadamente um metro de altura e provavelmente uns trinta centímetros de diâmetro. Padrões estranhos cobriam o metal cinza, alguns pálidos, quase brancos, alguns com um amarelo familiar de ouro, outros uma dúzia de tons de prata e azul. Eles se torciam uns sobre os outros, alguns tão elaborados que deveria ter levado horas de trabalho e ferramentas de joalheria para criá-los.

Olhei para Rene. — O cilindro principal é de ferro?

— Irídio. Os rabiscos são ouro, platina, cobalto e chumbo. Ele tem metade da tabela periódica nessa coisa.

Hum, tudo de metal, todos raros, todos caros, e todos reagiam a magia extremamente bem, exceto o chumbo. O chumbo era magicamente inerte: a magia saltava-o como ervilhas secas de uma parede. Por que construir um dispositivo mágico e adicionar chumbo a ele? — Alguma ideia do que isso deveria fazer?

Rene sacudiu a cabeça.

— Você tem alguma ideia sobre quem poderia querer roubar o dispositivo dele? —Andrea perguntou.

— Não.

Bati no papel. — Você pode me dar os nomes dos três investidores?

— Não.

Andrea franziu a testa. — Não, você não sabe quem eles são, ou não, você não vai nos dizer?

— Ambos.

Bati no papel com minha caneta. — Rene, você quer que a gente encontre algo que não sabe o que é, não sabe por que estava sendo feito e nem para quem estava sendo feito e mesmo que soubesse não me diria?

Rene encolheu os ombros. — Você terá acesso total ao seu laboratório, à casa segura e ao corpo. Pode entrevistar os guardas e terá nossa total cooperação. Vou te dar um código e avisar ao sargento que você irá. As identidades dos investidores são confidenciais por contrato, se quiserem se aproximar de você, eles podem, mas não podemos forçá-las a fazer isso, então minhas mãos estão amarradas aqui. Quanto a Adam, fomos contratados para proteger seu corpo e seu trabalho, não para entrevistá-lo sobre sua história familiar.

— Achava que checagem de antecedentes é um requisito padrão para a Guarda Vermelha. —Bati meu papel com o lápis.

— E são.

— Então, por que não fizeram?

— Porque o cliente nos deu um monte de dinheiro. —Rene sorriu, um controle afiado de dentes.

Alguma emoção inquietante cintilou em seus olhos e desapareceu. — Nós não somos investigadores. Somos guarda-costas. Precisamos de um profissional para resolver essa situação. Contratar a Associação de Mercenários está fora de questão: eles não sabem ser discretos. A Ordem também não é uma opção: não quero seus dedos no nosso bolo, porque eles tentarão reivindicar a propriedade de tudo. Resta-nos contratar uma empresa privada. Eu conheço você, vi você trabalhar e sei que fará isso mais barato do que qualquer outra pessoa na cidade, porque não tem escolha. Você abriu o escritório há um mês e não tem clientes. Precisa de um caso significativo para colocar seu nome de volta no mapa ou vai ter que sair do mercado. Se conseguir nos ajudar, a Guarda Vermelha irá recompensá-la publicamente.

René acenou para o homem à sua esquerda. Ele colocou uma pequena maleta sobre a mesa. Rene abriu-a. Cinco pilhas de dinheiro olhavam para mim.

— Dez mil agora e mais dez mil quando Adam e/ou o dispositivo nos forem devolvidos. Vinte mil se o Sr. Kamen estiver vivo e livre de ferimentos com risco de vida.

Vinte mil e o apoio dos melhores guarda-costas da cidade ou sentada na minha bunda bebendo café com óleo de motor. Deixe-me pensar ...

Rene me observou. Lá estava outra vez, um estranho brilho de angústia em seus olhos. Desta vez estava pronta para isso e eu peguei, medo. A mulher que costumava dirigir a segurança para os Jogos da Meia-Noite estava apavorada, e ela estava tentando ao máximo esconder isso.

Olhei para os dois homens atrás dela. — Podemos falar em particular?

Rene acenou com a mão e os dois arsenais de caminhada partiram.

Inclinei-me para frente. — Existem várias empresas de Investigação Particular experientes na cidade que ficariam felizes em cuidar disso por vinte mil dólares. Os Pinkerton, John Bishop, Annamarie e sua White Magnolia, qualquer um deles aceitaria o pagamento e agradeceria. Mas você veio aqui.

Rene cruzou os braços no peito. — Você está tentando me convencer a não contratar você? Uma estratégia comercial peculiar.

— Não, estou afirmando um fato. Nós duas sabemos que minha reputação é agora uma merda, porque Ted Moynohan disse a qualquer um que ouvisse que eu era a grande culpada das engrenagens de seu brilhante plano não ter dado certo.

A minha direita o queixo de Andrea endureceu e cerrou os dentes.

— Moynohan diz muitas coisas, —disse Rene. — Ele está destruído e ninguém gosta de desculpas.

— Não tenho treinamento formal de investigação e meu currículo é curto. Meu ponto é, se eu tivesse perdido um objeto valioso e minha carreira estivesse dependendo de recuperá-lo, eu não iria me contratar. Poderia contratar Andrea, porque ela tem experiência e treinamento formal. Ela pode dizer a altura do atacante a partir da trigonometria do respingo de sangue, enquanto eu estou confusa sobre o que é trigonometria. Contratar-nos por causa de Andrea faria sentido, mas você não tinha ideia de que ela trabalhava aqui até que entrasse pela porta. A única vez que você me viu trabalhar foi na arena de jogos. —Onde eu matei coisas com muito derramamento de sangue.

Rene me deu uma olhada. — Continue.

— Você não veio aqui procurando por uma detetive. Você veio aqui procurando uma assassina de aluguel. Então, por que não é sincera comigo e me diz porque precisa de mim?

Um silêncio tenso pairou entre nós. Um segundo passou. Outro.

— Eu não sei o que Adam estava construindo, —disse Rene, sua voz quase um sussurro. — Sei que, quando disse ao meu supervisor direto que Adam e o aparelho estavam desaparecidos, ele ligou para a família e disse à esposa para fazer as malas, jogar o essencial no carro, ir para a Carolina do Norte e não voltar até que ele os chamasse.

— Ele mandou a sua família sair da cidade? —Andrea piscou.

Rene assentiu. — Meu irmão está de cama. Ele não pode ser movido. Não posso tirá-lo da cidade. Estou presa em Atlanta. —Se inclinou para frente, o rosto sombrio. — Você se importa com seus amigos, Daniels. O suficiente para pular na frente de uma espada por eles. Você tem muito a perder e se ficar preocupada o suficiente, tem o Bando para ajudá-la, o que é muito mais mão-de-obra do que posso conseguir. Encontre Adam e encontre seu dispositivo para mim. Antes que o ladrão, de algum jeito o use e aconteça algo que nós duas nos arrependeremos.

*

A PORTA FECHOU POR TRÁS DE RENE. Andrea levantou e se aproximou da pequena janela estreita, observando ela e seus capangas atravessarem o estacionamento até o veículo. — Fui contratada há duas horas e já temos um cliente e um trabalho do inferno.

Tirei cinco mil dólares da maleta. Andrea se afastou da janela e entreguei a mochila com o resto do dinheiro para ela.

— Pelo que?

— Orçamento de arma.

Andrea correu o polegar, revirando a pilha de notas de vinte dólares. — Legal. Precisamos de munição.

— Você achou que ela estava assustada? —Perguntei.

Andrea fez uma careta. — Ela é uma cadela fria e disfarça bem, mas passei toda a minha infância lendo rostos, assim saberia de onde o próximo soco estava vindo. E eu sou uma predadora. Prendo-me ao medo, porque sinaliza a presa. Ela está realmente abalada. Provavelmente vamos nos arrepender disso.

— Talvez devêssemos aceitar a outra oferta. Oh espere. Nós não temos outra oferta.

— Você é tão inteligente, senhorita Daniels. Ou é Sra. Curran?

Dei a ela meu olhar duro. Ela soltou uma risada curta.

Coloquei minha bolsa na minha mesa e a abri para verificar o conteúdo. Os cadáveres tinham a tendência irritante de decompor. Quanto mais cedo chegássemos à cena, melhor.

Andrea verificou suas armas. — Então, Ted disse a todos que você arruinou seus planos?

— Muito.

— Um dia eu vou matá-lo, fique ciente.

Olhei para ela. Estava mortalmente séria. Matar Ted desencadearia uma tempestade de proporções catastróficas. Ele era o chefe da seção de Atlanta da Ordem. Todos os Cavaleiros do país nos caçariam até o último suspiro. Claro, Andrea sabia de tudo isso.

— Estou nessa. —Tirei minha mochila da mesa. — Pronta para ir?

— Nasci pronta. Onde fica esse laboratório, afinal?

Chequei as instruções que Rene tinha me dado. Floresta Sibley.

Andrea xingou.


Capítulo 5


TINHA DOIS CARROS: UM VELHO E DESMANTELADO SUBARU chamado Betsi que funcionava durante a tecnologia e um pesadelo horrível de uma caminhonete chamada Karmelion. Karmelion levava vinte minutos de cânticos intensos para aquecer e fazia mais barulho do que um bando de adolescentes bêbados em um bar em uma noite de sábado, mas funcionava durante a magia.

Por desgraça, o Senhor da Feras condenou ambos os veículos como inseguros e em seu lugar agora dirigia um Jeep do Bando ao que dei o nome de Hector. Equipado com dois motores, Hector trabalhava durante a magia ou tecnologia. Não era muito rápido, especialmente durante a magia, mas até agora não tinha me deixado na mão. Enquanto nossas perseguições em alta velocidade fossem a menos de sessenta por hora, estaríamos preparadas.

Andrea olhou para Hector. — Onde está Betsi?

— Ela está guardada na Fortaleza. Sua Peludeza me fez aceitar Hector do Bando em seu lugar. Betsi não foi aprovada pelos seus padrões de exigência. —Subi no banco do motorista.

Andrea abriu a porta do passageiro e Grendel entrou no espaço atrás dela, antes havia um banco traseiro e agora era o espaço onde guardava o equipamento. — Oh sim?

— Sim. Acredito que as palavras exatas que usou foram — ‘uma armadilha mortal com quatro rodas. Tivemos uma luta gloriosa sobre isso.

Ela sorriu e deu um tapinha no painel de Hector. — Você perdeu.

— Não, escolhi aceitar graciosamente a oferta generosa do Bando.

— Arram. Continue dizendo isso a si mesma.

Cuidado agora, gelo muito fino. — Uma pessoa me explicou em detalhes que, quando você administra uma empresa, as pessoas julgam o sucesso pela sua apresentação. Se você está dirigindo um veículo ruim, eles acham que precisa de dinheiro e sua empresa está com dificuldades.

— Isso soa como Raphael, —disse Andrea.

E ela acertou em cheio. — Sim.

Fechou a boca. Liguei o motor e manobrei Hector para fora do estacionamento.

Um ... dois ... três ...

— Então, com quem ele está agarrado agora?

Três segundos. Isso foi tudo que ela durou. — Ninguém, que eu saiba.

Ela olhou diretamente através do para-brisa. — Acho isso difícil de acreditar.

Dado que Raphael era um bouda e eles viam o sexo como uma atividade recreativa divertida que deveria ser praticada vigorosamente e com frequência, normalmente eu teria concordado com ela. Mas Raphael era um caso especial. Ele perseguiu Andrea por meses até que ela finalmente deu a ele uma chance. Por algumas semanas foram felizes e estavam apaixonados, mas Andrea teve que escolher entre a Ordem e o Bando e tudo desmoronou.

— Ele não está com ninguém desde que vocês brigaram, —eu disse.

Ela bufou. — Tenho certeza que um pedaço bonito de bunda vai chamar sua atenção, mais cedo ou mais tarde.

— Ele está muito ocupado se deprimindo.

Andrea olhou para mim. — Deprimido?

— Definhando. — Fiz uma curva larga em torno de um grande buraco cheio de gosma azul de aparência estranha. — Se ele começar a cantar baladas irlandesas tristes, teremos que fazer uma intervenção.

— Oh, por favor. —Andrea virou-se para a janela do passageiro.

— Ele se retirou do clã bouda.

— O que?

— Não oficialmente, é claro. —Ignorei. — Mas parou de fazer o que o bouda alfa macho faz. — No clã bouda, como na natureza, as fêmeas eram dominantes. A tia B dirigia esse clã com garras de aço, e Raphael, sendo seu filho, servia como a cabeça dos machos. — Ele matou Tara.

Os olhos azuis de Andrea ficaram grandes. — A terceira fêmea?

— Sim. Tia B mencionou isso na última vez que nos falamos. Ele estava na casa do clã bouda por algum tipo de coisa relacionada a negócios e Tara apareceu e agarrou suas bolas. Aparentemente, ela queria verificar se ainda havia alguma coisa entre elas. Ele deu um soco no rosto dela. Ela mudou para a forma de guerreiro e foi para sua garganta. Pelo que a Tia B disse, ele não apenas a matou, a rasgou em pedaços. Não esteve na casa do clã desde então.

— Puta merda.

— Sim. Isso é o que aconteceu. —Era uma daquelas coisas idiotas que poderiam ter sido resolvidas em uma fração de segundo. Tara não tinha o direito de tocar em Raphael, e uma vez que ela fez, ele tinha todo o direito de dar um soco nela. Ela deveria ter deixado isso assim, e agora ela estava morta. Os machos de Bouda assumiram voluntariamente o papel de beta, mas em uma luta eles eram cruéis, e Raphael era o melhor. Eu não lutaria com ele a menos que não tivesse escolha. Poderia até ganhar dele, mas sairia machucada antes de acabar com ele.

— Eu continuo pensando sobre a coisa da Nação, —disse Andrea. — Acho que algo deu muito errado no Casino.

E nós mudamos o assunto. Andrea um, Kate casamenteira zero. — Por que você acha?

— Dois navegadores desmaiaram enquanto pilotavam o mesmo vampiro.

E um desses navegadores era Ghastek, que poderia pilotar um vampiro através de uma pista de obstáculos cravejada de lâminas de serras rotativas e poços de lava derretida enquanto carregava um copo cheio de água e não derramar uma gota. Se eu tivesse que dar um palpite, eu diria que a Nação tinha tropeçado em algo, algum tipo de magia que não conseguiram controlar. De alguma forma isso tinha contaminado o vampiro. Mas chegar ao fundo desse mistério seria impossível. Além disso, ninguém nos contratou para resolver os problemas de navegação da Nação.

— Claro, poderia ser uma coincidência. —Andrea encolheu os ombros. — Não sabemos nada sobre a mulher que desmaiou, exceto que ela supostamente está grávida. Não sabemos qual relação ela e Ghastek tinham antes dessa bagunça. Talvez tenham ido juntos para o café da manhã e pedido uma omelete ruim.

— Isso seria um inferno de uma omelete.

— Eu não sei, você comeu na Grease Trap29 ultimamente? Suas omeletes são cinza.

Tecnicamente, o local era chamado de Wrap grego, mas ninguém o chamava pelo seu nome real. O Grease Trap servia café da manhã 24/730, oferecia wraps31 que nada tinha a ver com culinária grega, e abertamente admitia ter carne no menu. Era o tipo de lugar que você frequentava quando seus problemas terrestres se tornavam demais e você estava procurando uma maneira criativa de cometer suicídio.

— Por que diabos alguém comeria na Grease Trap? Eu vi moscas morrendo de intoxicação naquele lugar.

Andrea cruzou os braços. — Oh, eu não sei, provavelmente porque sua carreira acabou e você está deprimida e não sente vontade de respirar, muito menos de sair, mas seu corpo ainda precisa de comida e esse é o lugar mais próximo do seu apartamento onde não se importa se você trouxer um cachorro gigante com você.

— O que? Você não conseguiu encontrar uma lata de lixo mais perto?

Andrea olhou para mim. — Por que você está implicando?

— A lata de lixo teria comida melhor.

— Bem, com licença, senhorita ‘boa comida’.

— Ghastek não seria pego morto no Grease Trap.

Andrea acenou com os braços. — Foi só um exemplo.

Olhei Grendel pelo espelho retrovisor. — Que tipo de bravo companheiro canino deixa seu humano comer na Grease Trap? Você está demitido.

Grendel acenou com o rabo. Quaisquer que tenham sido os horrores em sua vida canina, Grendel sempre se recuperava com fácil entusiasmo quando alguma comida aparecia. Um deleite, um cobertor em uma bela casa quente, um tapinha ocasional na cabeça, e Grendel seria tão feliz quanto poderia ser.

Se fossem assim tão fácil para as pessoas.

— Você poderia tirar um vampiro de seu navegador? —Andrea perguntou.

Parei, pensando nisso. — Poderia.

Eu poderia fazer muito mais do que isso. No departamento de energia bruta, explodiria Ghastek da escala. Poderia entrar no Casino agora mesmo e esvaziar seus estábulos e todos os Mestres dos Mortos juntos não conseguiriam arrancar o controle de seus mortos-vivos de mim. Eu não teria coragem de fazer nada com a minha horda de vampiros, exceto fazê-los correr como um rebanho, mas seria um rebanho muito impressionante. Ninguém, exceto Andrea e Julie, sabiam que eu poderia pilotar os mortos-vivos, e se tivesse alguma esperança de me esconder, teria que continuar assim.

Claro que, após a morte da minha tia, me esconder era um ponto discutível.

— Se eu fizesse isso, o vampiro estaria sob meu controle. Não estaria solto. Perguntei aos navegadores e as duas disseram que não conseguiram alcançar a mente do vampiro. Como se tivessem perdido a habilidade de navegar. Eu não tenho ideia de como fazer a mente de um vampiro desaparecer.

Andrea franziu a testa. — Roland pode fazer isso?

— Não sei. —Considerando que meu pai biológico tinha criado os vampiros, nada estava fora do reino da possibilidade.

— Não leve a mal, mas por que ele não procurou por você ainda?

Olhei para Andrea. — Quem, Roland?

— Sim. Já se passaram dois meses desde que alguém matou sua irmã quase imortal. Achava que ele enviaria alguém para investigar.

— Ele tem cinco mil anos de idade. Para ele dois meses é mais como um par de minutos. —Fiz uma careta. — Erra atacou a Associação, a Ordem, o Bando, as empresas civis, o Templo, basicamente tudo o que ela encontrou, o que constitui um ato de terrorismo de proporções federais. Agora nada oficialmente liga Erra a Roland. Se ele reivindicasse a responsabilidade por seu comportamento, os Estados Unidos se sentiriam compelidos a fazer algo a respeito. Tenho a sensação de que ele não quer um conflito completo—ainda não. Mandará alguém aqui assim que a cidade esfriar um pouco, mas ninguém sabe quando. Pode ser amanhã, embora eu duvide, ou talvez seja daqui a um ano. A ausência de Hugh me incomoda mais.

Hugh d'Ambray era o sucessor do meu padrasto e o Senhor da Guerra de Roland. Hugh também havia desenvolvido um interesse doentio por mim depois que me viu quebrar uma espada indestrutível de Roland.

— Eu posso resolver esse mistério para você, —disse Andrea. — Fiz algumas perguntas muito cuidadosas enquanto estava na Virgínia. Hugh está na América do Sul.

— Por quê?

— Ninguém sabe. Foi visto deixando Miami com alguns de seus capangas da Ordem dos Cães de Ferro no início de janeiro. O navio estava destinado à Argentina.

O que diabos Hugh queria na Argentina?

— Alguma sorte na armadura de sangue? —Andrea perguntou.

— Não. —Meu pai possuía a capacidade de moldar seu próprio sangue. Ele moldava-o em armaduras impenetráveis e armas devastadoras. Eu tinha sido capaz de controlar o meu sangue algumas vezes, mas toda vez que fiz isso, estava perto da morte. — Tenho praticado.

— E?

— E nada. Posso sentir a magia. Sei que está aqui, querendo ser usada. Mas eu não posso alcançá-la. É como se houvesse uma parede entre mim e o sangue. Se estou realmente chateada, posso moldar algumas agulhas, mas elas duram apenas um segundo ou dois.

— Isso é uma merda.

Controle sobre o sangue era o maior poder de Roland. Ou eu aprendia a dominar ou precisaria começar a trabalhar na minha lápide. Exceto que não tinha a menor ideia de como aprender essa habilidade, e ninguém poderia me ensinar. Roland poderia fazer isso; minha tia fazia isso; eu tinha que aprender a fazer isso. Havia algum tipo de truque, algum segredo que eu não sabia.

— Hugh voltará eventualmente, —disse Andrea.

— Quando fizer, vou lidar com isso, —disse a ela.

Hugh d'Ambray, Superior da Ordem dos Cães de Ferro, treinado por Voron, reforçado pela magia do meu pai.

Matá-lo sem saber manipular armaduras de sangue e armas de sangue seria uma merda.

Nós nos voltamos para Rodovia Johnson Ferry. Depois que o Rio Chattahoochee decidiu se transformar em um paraíso dos monstros mágicos de águas profundas, a ponte em Johnson Ferry tornou-se o caminho mais rápido para a margem oeste. Exceto hoje: carros e veículos entupiam a estrada. Burros zurravam, cavalos chicoteavam-se com suas caudas, e uma variedade de veículos estranhos arrotavam, espirravam e sacudiam, poluindo o ar com ruído e fumaça de gasolina.

— Que diabos?

— Talvez a ponte esteja interditada. —Andrea soltou o cinto de segurança e saiu. — Vou verificar.

Ela decolou, explodindo em uma corrida fácil. Tamborilei meus dedos no volante. Se a ponte estivesse interditada, estávamos ferradas. O cruzamento mais próximo ficava na antiga rodovia Interestadual 285, a oito quilômetros de distância, e, considerando que a I-285 e a maior parte da área em torno dela estava em ruínas, precisaríamos de equipamentos de montanhismo para atravessá-la, levaria pelo menos meia hora para chegar lá. Acrescente mais uma hora para esperar que a balsa nos leve para o outro lado do rio e atravessaríamos o canal só amanhã.

Os carros rugiram, os animais de carga relincharam e bufaram. Ninguém se movia um centímetro. Movi o carro para o acostamento e desliguei o motor. O combustível era caro.

O motorista da carroça na minha frente inclinou-se para a esquerda e vi Andrea correndo ao longo do seu ombro.

Ela correu para o carro e abriu a porta. — Pegue sua espada!

Eu não precisava pegar minha espada, estava nas minhas costas. Tirei as chaves da ignição, pulei para fora e bati a porta, impedindo a desesperada tentativa de Grendel pela liberdade. — O que está acontecendo?

— O Troll da Ponte está solto! Está furioso na estrada!

— O que aconteceu? —Três anos atrás, o Troll da Ponte saiu da Floresta Sibley e entrou na Ponte Johnson Ferry, numa tentativa de provar que o Universo possuía um senso de humor. Era muito difícil matá-lo então os magos o atraíram para debaixo da ponte e o colocaram sob um feitiço de sono. O troll precisava de magia para acordar, então durante a tecnologia ele hibernava sozinho, e durante as ondas mágicas o feitiço o mantinha na terra dos sonhos. A cidade construiu uma caixa de concreto em torno dele onde dava uma de Bela Adormecida há anos. A menos que as proteções ao redor da caixa falhassem de alguma forma, ele deveria permanecer dormindo.

Andrea desceu pelo acostamento. — O feitiço do sono entrou em colapso. Ele acordou, ficou deitado por um tempo, e então decidiu destruir a caixa e descer na ponte. Vamos, temos que salvar o público.

Que tenha recompensa, por favor. A persegui. — Tem recompensa?

— Uma grande se nós o derrubarmos antes que ele termine com o caminhão que está destruindo.

Um capuz verde brilhante saiu de trás dos carros como um míssil e colidiu com um carro a três metros à nossa esquerda. Um rugido gutural surdo seguiu-se.

Coloquei algum esforço nisso e nós corremos ao longo da fila de carros até a ponte.


Capítulo 6


A FLORESTA SIBLEY TINHA COMEÇADO COMO UM BAIRRO de primeiro nível, escondida na curva de uma pequena área arborizada abraçando Sope Creek antes que ele desembocasse no Rio Chattahoochee. Em seu apogeu, o bairro ostentava cerca de trezentas casas situadas entre uma vegetação luxuriante e etiquetas de preço de meio milhão de dólares. Era um bairro seguro, agradável e rico até a Mudança, quando a primeira onda mágica chutou o mundo no rosto.

Quando o centro da cidade desmoronou, a Floresta Sibley também foi vítima da magia. Tudo começou com o rio. Cerca de cinco anos após a Mudança, o Chattahoochee ganhou força, aumentando suas margens e causando inundações. Sope Creek rapidamente seguiu o exemplo. A pequena floresta domada que fazia fronteira com o bairro resistiu por mais um ano ou dois, e então a magia floresceu no coração de Sibley e causou um motim.

Árvores reivindicaram os gramados bem cuidados, crescendo a um ritmo alarmante, tirando mordidas do bairro. A princípio, a associação de proprietários cortava o novo crescimento, e então o queimavam, mas a floresta continuava avançando, estendendo-se para o céu praticamente da noite para o dia, até que engoliu o bairro inteiro e Sibley se tornou uma verdadeira floresta.

As árvores continuaram a atacar, tentando ganhar o Norte, para unir forças com a Floresta Nacional de Chattahoochee. Os animais vinham das profundezas da floresta com as suas patas macias e mostrando grandes dentes.

Coisas estranhas saíam da escuridão sob as raízes das árvores e rondavam a noite à procura de carne.

Finalmente a associação de moradores desistiu. A maioria dos donos fugiu. Os poucos remanescentes gastavam pequenas fortunas em Proteção mágicas, cercas e munições. Agora, ter um endereço na Floresta Sibley significava que você tinha dinheiro, gostava de privacidade e não se importava com coisas estranhas em seu gramado. Às vezes literalmente.

Nós desviamos de galhos. À frente, a floresta se erguia como uma enorme parede tingida de verde pálido. Aqui e ali flores desabrochavam. Os botões no resto de Atlanta mal floresciam.

— Você está vendo isso?

Andrea mostrou os dentes. — Estou vendo. Odeio este lugar. Cheira mal e uma merda estranha pode saltar a qualquer momento dos arbustos e tentar roer suas pernas.

A única coisa que eu podia sentir era o sangue do troll manchando nossos sapatos. O folclore dizia duas coisas sobre os trolls: eles se transformavam em pedra ao amanhecer e se regeneravam. O troll definitivamente não tinha recebido o memorando petrificante, mas a regeneração acontecia com enorme sucesso. Conseguimos levar o troll de volta para a caixa em ruínas e depois o mantivemos lá até o que PAD chegou. Pelo menos agora, estávamos um pouco mais ricas.

A estrada passava por um enorme carvalho. Formidável, sua casca marcada, a enorme árvore erguida sobre a rua, e o Jeep inclinou-se e balançou enquanto rolava sobre as ondas no pavimento feito por suas raízes. Os galhos diante de nós estremeceram com folhas verdes estreitas, musgos grudavam em seu tronco, enquanto os galhos de frente para a floresta estavam cobertos de verde brilhante e aglomerados de longos fios amarelos, as flores de carvalho, ocupadas enviando pólen para o ar.

Uma placa de madeira estava ao lado das raízes do carvalho. Letras com traços afiados talhadas na madeira formavam o letreiro:


SIBLEY

LEÕES E TIGRES E URSOS

CUIDADO!

Nós percorremos a estrada. A mata subia dos dois lados do que antes era uma rua do bairro. Na luz fraca da tarde nublada, a floresta parecia surpreendentemente etérea, como se estivesse pronta para flutuar.

Árvores altas tocadas com musgo verde disputavam o espaço. Pequenos montes de flores floresciam em manchas brilhantes aqui e ali: dente-de-leão32, dragão roxo33, minúsculas flores brancas em uma moita verde, pareciam agrião, mas não tinha certeza. Meu conhecimento de ervas na maior parte se dividia em duas categorias: aquelas que eu poderia usar para fins medicinais ou mágicos e aquelas que poderia usar como tempero.

Uma ampla ilha de arbustos de forsythia34 florescia à esquerda em uma bolha de amarelo vívido, como se mergulhasse no sol. À direita, uma videira sem nome escorria dos galhos, ameaçando derramar delicadas flores lavanda. Absolutamente maravilhoso. Você meio que esperava que o Ursinho Pooh saísse do mato. Claro, sabendo que era em Sibley, Pooh abriria uma boca cheia de dentes escuros e tentaria tirar um pedaço dos nossos pneus.

Andrea abriu o envelope de Rene. — Aqui diz que o nome do guarda morto é Laurent de Harven, trinta e dois anos, cabelos castanhos, olhos cinzas, quatro anos no Exército, unidade MSDU, seis anos como policial na ensolarada Orlando, Flórida, e quatro anos com a Guarda Vermelha. Promovido uma vez para o posto de Especialista espadachim, prefere lâminas táticas. Krav maga, faixa preta, Dan cinco. —Andrea assobiou. — Cara difícil de matar.

— O que mais nós temos?

— Vamos ver, guarda no comando: Shohan Henderson, fuzileiro naval oito anos, guarda onze anos, especialista em uma lista de armas de uma milha de comprimento. Também podemos aguardar um encontro com Debra Abrams, a supervisora de turnos, Mason Vaughn, e Rigoberto ‘Rig’ Devara.

Andrea continuou lendo as anotações. Depois de quinze minutos, ficou claro que os quatro guardas e seu sargento poderiam se defender de uma turba enfurecida, se lançariam no caminho de uma bala num piscar de olhos, e teriam registros tão estelares que precisariam guardar seus currículos em uma gaveta à noite, então a luz dourada que fluía das páginas não os manteria acordados.

As instruções da direção diziam dois a direita, um à esquerda e depois reto. Os dois primeiros foram bastante fáceis, a esquerda foi uma passagem apertada entre dois pinheiros. Além da curva, o bambu alto abraçava a estrada, formando um denso túnel verde. Dirigi o Jeep através dele.

— Você tem certeza de que sabe para onde está indo? —Andrea franziu a testa.

— Você gostaria que eu parasse e perguntasse aquele bambu a direção?

— Não sei. Você acha que ele responderia?

Nós olhamos para o bambu.

— Acho bem provável, —disse Andrea.

— Talvez haja um heffalump35 escondido nele.

Andrea olhou para mim.

— Você sabe, heffalump? Do Ursinho Pooh?

— Onde você tira essas merdas?

O bambu terminou abruptamente, nos cuspindo em uma entrada de cascalho que levava a uma grande casa modificada no estilo A-frame36.

Envolto em uma varanda com o teto que se estendia por todos os degraus da varanda, a casa parecia ter crescido da floresta: fundação de pedra, paredes de cedro escuro, telhado marrom. Arbustos abraçavam os degraus da varanda. Sem cores não naturais, sem ornamentos ou esculturas.

— Olhe para todo aquele espaço da janela. Construído antes da Mudança. —Andrea murmurou.

Assenti. Podia ver oito janelas de onde nós estávamos, a maioria era tão alta quanto eu e nenhuma tinha grades.

Casas modernas pareciam caixas. Qualquer janela maior que uma caixa de pão era barrada.

Dirigi no meio do caminho até a calçada e parei com o motor em marcha lenta. Bons guardas não andavam soltos pelo perímetro, isso os tornava alvos fáceis. Eles se escondiam.

— Um atirador no sótão, —disse Andrea.

Levei um segundo, e então vi uma forma sombria, escondida pela escuridão sob a parede lateral, um contorno preto de um cano de rifle que se estendia da janela do sótão. Saí do Jeep e me inclinei no para-choque. Andrea se juntou a mim.

— Pinheiro, nove horas, —eu disse.

Andrea olhou para onde um homem em uma roupa de camuflagem fazia o melhor para se misturar com a folhagem. — Arbustos às duas.

Ela inalou profundamente. — Além disso, alguém está atrás do Jeep.

— Isso faz três. O quarto está vindo da esquerda para nós, —eu disse.

— Devemos ir encontrá-lo? —Andrea arqueou uma sobrancelha.

— Acho que tem hera venenosa por lá. Eu voto que nos sentamos aqui e esperamos até que eles nos perguntem pelo código.

Os arbustos à esquerda se separaram e um homem negro mais velho saiu. Seu cabelo grisalho era cortado em um severo corte militar. Henderson, parecendo exatamente como na foto do arquivo que Andrea me mostrou.

A julgar pelas linhas duras de seu rosto e pelo olhar concentrado em seus olhos, ele deixou os fuzileiros navais, mas os fuzileiros não o deixaram. O escudo de proteção da Guarda Vermelha no ombro de Henderson tinha duas listras vermelhas, ele havia sido promovido duas vezes como sargento, o que o tornava o sargento-mor. Rene supervisionou esse trabalho, mas ela provavelmente também supervisionava outras pessoas. Henderson dispunha de apenas um emprego de cada vez e mesmo assim, seus caras tinham falhado e perdido o homem que estavam guardando. Ele parecia que alguém tinha mijado em sua caixa de areia, e não estava muito satisfeito que nós viemos para cavar a bagunça.

Balancei a cabeça para ele. — Tarde, sargento-mor.

— Nomes?

— Daniels e Nash, —disse Andrea.

O sargento verificou um pequeno pedaço de papel. — Código?

— Trinta e sete e vinte e oito, —eu disse.

— O nome é Henderson. Não deixe o ‘sargento-mor’ atrapalhar seu pensamento. Trabalho para viver. Vocês estão liberadas para prosseguir. Estacione no alto da entrada da garagem.

Voltamos para o Jeep e fui até a casa. Henderson trotou atrás de nós até as portas.

Saí do veículo. — Onde está o corpo de Harven?

— No laboratório.

Nós seguimos Henderson atrás da casa.

O laboratório ocupava um galpão de madeira grande o suficiente para caber um pequeno apartamento. O portão de madeira do tamanho de uma garagem estava entreaberto.

Henderson parou. — Lá.

Entrei.

Um balcão corria ao longo da parede, cheio de ferramentas e sucata de metal. Recipientes de plástico cheios de parafusos subiam em torres ao lado de caixas de porcas, parafusos e lixo de metal sortido, uma selva de metal que estaria mais à vontade na fenda de Honeycomb37 do que aqui. No balcão esquerdo, delicadas ferramentas de vidro de propósito desconhecido disputavam espaço com uma lupa de joalheiro e alicates minúsculos. À direita, ferramentas de metal foram espalhadas: esmeriladora38 de tamanhos variados para o corte de metais; tesouras, martelos, serras, um grande torno39 com um cilindro de metal ainda fixo nele. Um padrão delicado de glifos40 decorava a extremidade esquerda do cilindro, alguém, provavelmente Kamen, havia começado a aplicar na complexa estrutura metálica, mas não havia terminado.

Um corpo nu masculino pendurado nas vigas no meio do armázem, suspenso por uma corrente grossa, provavelmente preso a um gancho que mordia as costas do cadáver. Sua cabeça pendia para o lado. Cabelos longos e escuros se derramavam de seu couro cabeludo sobre o peito, emoldurando um rosto congelado pela morte em uma máscara contorcida. Olhos cinzentos e claros saltaram das órbitas. A boca do homem aberta, os lábios sem sangue mostrando os dentes. Pânico e surpresa em um só. Olá Laurent.

Larguei minha bolsa e tirei uma câmera Polaroid41 dela. A magia tinha um jeito de estragar câmeras digitais. Às vezes, limpava os cartões de memória, às vezes fazia barulho, e ocasionalmente as imagens saíam perfeitas. Não estava disposta a jogar roleta russa com minhas provas. A Polaroid era horrivelmente cara, mas as fotos eram instantâneas.

Andrea levantou as sobrancelhas. — Olhe para você, toda preparada.

— Sim, você pensaria que sou uma detetive ou algo parecido.

Andrea estendeu a mão. — Você vai estragar isso.

Coloquei a câmera na mão dela e me agachei, tentando dar uma olhada no chão sob o corpo.

— Sem gotejamento? —Andrea perguntou.

— Não. Você cheira alguma coisa? Decomposição, sangue ...

Ela franziu o nariz. — Pimenta-caiena42. O lugar cheira a isso. Isso abafa todo o resto.

Estranho.

Caí de quatro e me abaixei. Uma linha tênue de pó cor de ferrugem cruzava as tábuas do assoalho. Me inclinei, tentando dar uma olhada melhor. A linha corria para o balcão à direita e tocava a parede à esquerda.

Manchas salpicavam as tábuas da parede.

Apontei para ele. — Urina.

Andrea esticou o pescoço e levantou a câmera. — Trabalho glamouroso que temos. Tirar fotos de manchas de xixi.

Eu virei minha cabeça. Uma mancha idêntica marcava a outra parede, exatamente em frente à primeira. — É por isso que fazemos. Pelo o glamour.

— Um xamã? —Andrea perguntou.

— Possivelmente.

Todas as coisas vivas geravam magia e os humanos não eram exceção. A magia estava no sangue, na saliva, em lágrimas e na urina. Os líquidos corporais poderiam ser usados de várias maneiras. Eu selava as proteções com meu sangue. Roland fazia armas e armaduras com o dele, mas a urina geralmente apontava para uma magia mais primitiva.

Xamãs, bruxas e alguns praticantes de cultos neopagãos usavam urina. Pessoas que se consideravam próximas da natureza. Imitavam os animais que marcavam seu território e uma série de outras coisas primárias.

O uso de pimenta-caiena parecia uma espécie de proteção para mim e a presença de urina confirmava isso. Alguém havia marcado um limite no chão e o selou com o fluido corporal, provavelmente para conter alguma coisa.

O que seria não dava para saber agora com a magia para baixo, não sentia nada, nem uma gota de poder.

Pisei na linha da pimenta-caiena e fui para frente, puxando a Matadora da bainha nas minhas costas e ficando à direita para dar a Andrea uma visão melhor.

A câmera clicou. Um momento depois a Polaroid zumbiu. — Mais um ... —Andrea murmurou.

— Todo aquele material de vidro e os delicados instrumentos nos balcões e nada foi quebrado. Você pensaria que com todo o seu treinamento, Laurent teria lutado.

— Talvez ele conhecesse seu agressor e não o visse como uma ameaça até que fosse tarde demais.

Isso faria Adam Kamen ou outro guarda o principal suspeito. Um guarda-costas não esperaria ser agredido por um homem que ele guardava ou seus próprios amigos. Todos os outros teriam sido vítimas de violência.

O cadáver de Laurent não apresentava ferimentos, exceto por uma longa cicatriz negra que cortava seu corpo do peito até a virilha: uma linha vertical que se dividia em três no umbigo, como uma marca invertida de um pé de galinha ou como o símbolo da paz43 perversamente arrancado do seu círculo. Corte incomum. Parecia quase uma runa.44

A câmera clicou, piscando uma vez, duas vezes ...

O golpe mágico rolou sobre nós como um tsunami invisível. A magia voltou. Andrea levantou a câmera e apertou o botão. Sem flash. Nem mesmo um clique. Olhou para a câmera em desgosto. — Droga.

A cicatriz negra estremeceu.

Eu dei um passo para trás.

Um leve estremecimento percorreu o cadáver. A linha negra tremeu, suas bordas se elevaram e entraram em movimento. Ah Merda!

— Kate!

— Estou vendo.

O corpo balançou. As correntes rangeram cada vez mais alto. O poder inchou, forçando dentro do cadáver.

Recuei para a linha de Proteção.

O estômago do cadáver estava inchando, a linha negra inchando.

Pisei na linha de pimenta caiena. Magia acendeu na minha pele.

A cicatriz negra explodiu.

Pequenos corpos se jogaram em nossa direção e caíram inofensivamente do outro lado da linha, encharcando o chão em uma torrente escura. Nem uma única partícula de preto chegou até nós.

Atrás de nós, Henderson gritou. — Que diabos é isso?

— Formigas, —eu disse.

A enxurrada negra rodopiava, girando cada vez mais devagar. Um por um, os pequenos corpos pararam de se mover. Um momento e o chão estava completamente parado.

Formigas mortas. Um galão de vinte litros cheio delas espalhadas pelo chão.

O corpo balançou para frente e para trás. Toda a carne do homem havia desaparecido. Seu esqueleto estava nu e a pele pendia da estrutura óssea como um balão vazio.

— Ceeeerto, —disse Andrea. — Essa é uma das coisas mais bizarras que já vi.

*

QUANDO SE DEPARA COM A COISA MAIS bizarra que você já viu, a melhor estratégia é dividir e conquistar. Andrea decidiu escanear a cena, enquanto eu ficava com a tarefa invejável de entrevistar Henderson.

Ele não parecia satisfeito.

Eu o levei para uma mesa do pátio de aço que ficava entre a casa e o laboratório. Nós nos sentamos nas duras cadeiras de metal. A partir daqui nós dois podíamos observar o laboratório e a entrada de carros, onde Andrea se preparava para tirar o m-scanner do Jeep e barrar Grendel que já estava pronto para escapar no momento em que ela abrisse a porta.

O m-scanner portátil parecia uma máquina de costura coberta de vômito com mecanismo de relógio. Detectava magia residual e cuspia o resultado como um gráfico de cores: verde para metamorfo, roxo para morto-vivo, azul para humano. Não era nem preciso nem infalível, e ler um m-scan era mais arte do que ciência, mas ainda era a melhor ferramenta de diagnóstico que tínhamos. Também pesava quase quarenta quilos.

Andrea abriu a porta do Jeep e enfiou a mão. Grendel se lançou e colidiu com a palma da mão. O impacto o derrubou de volta. Andrea pegou o m-scanner, tirou-o do Jeep e fechou a porta no rosto peludo de Grendel. O poodle de ataque atacou a janela e soltou um longo uivo desanimado. Andrea virou-se e dirigiu-se ao laboratório, carregando o scanner de quarenta quilos, com toda suavidade, pelos degraus acima, como se fosse uma cesta de piquenique. A força de metamorfo vinha a calhar. Pena que o custo da infecção pelo Vírus-L era tão alto.

Henderson observou Andrea atravessar o pátio. — Uma metamorfo?

— Sim. Tem algum problema com isso?

— Bom. —Henderson assentiu. — Nós poderíamos usar o nariz dela.

Peguei meu bloco de anotações e minha caneta. — Quantas pessoas foram designadas para esse trabalho? —Rene dissera doze, mas não fazia mal verificar.

— Doze incluindo eu.

— Três turnos de quatro guardas, oito horas cada?

— Sim. Dia, tarde e noite.

Escrevi. — Qual turno você trabalha?

— Alterno entre a tarde e à noite. Eu trabalhei no turno da tarde ontem, das quatorze horas às vinte.

Deduzindo. A maioria dos problemas acontecia depois do anoitecer, e Henderson me parecia o tipo de homem que queria encontrar problemas pela frente e socá-los. E quando o problema apareceu, ele o perdeu.

— Quando o corpo foi descoberto?

— Às seis horas na troca de turno. —Henderson cruzou os braços. O bom sargento pareceu não gostar para onde minhas perguntas estavam indo. Estranho. Rene já tinha me dado a maior parte dessas informações, então por que falar sobre isso o deixaria todo agitadinho?

— Você poderia me explicar como o corpo foi encontrado?

— Cada turno tem um sargento de turno. Às cinco e cinquenta e cinco da manhã, o sargento do turno diurno Julio Rivera e a sargento do turno da noite Debra Abrams fizeram uma verificação de rotina no laboratório.

— Por que o laboratório? Por que não a casa?

Se o rosto de Henderson pudesse endurecer mais, racharia. — Porque o homem foi visto pela última vez entrando no laboratório.

Se eu ainda tivesse meu ID da Ordem, toda essa conversa seria muito mais tranquila. O ID exigia respeito instantâneo, especialmente de um ex-soldado como Henderson. Seu mundo se dividia em dois campos: profissional e amador, e agora ele me atrelou a uma arma contratada de segunda categoria. Rene ordenou que cooperasse e ele era um homem da empresa, então respondia minhas perguntas, mas não reconhecia exatamente o meu direito de perguntar a ele.

— Adam costumava trabalhar a noite toda? —Perguntei.

— Noite, tarde, manhã, sempre. Às vezes ele trabalhava o dia inteiro, dormia por duas horas e voltava ao trabalho, e às vezes não fazia nada durante dois dias.

Arrá. — Quando foi a última vez que ele foi visto?

Músculos rangeram ao longo da mandíbula do sargento-mor. — Três horas depois da meia-noite.

Fechei o caderno. — Se eu tivesse um sujeito errático que vagasse de um lado para o outro entre o laboratório e a casa sempre que a inspiração o atingisse, eu teria meus caras verificando ele a cada hora. Só para ter certeza de que ele não quebrou o perímetro e partiu para a floresta em um surto criativo. E eu não tenho duas listras na manga.

Henderson me bateu com um olhar duro. Era um olhar pesado, mas não lembrava nada da íris de ouro de Curran quando estava irritado.

Segurei seu olhar. — Meu trabalho não é julgar. Meu trabalho é encontrar Adam Kamen e seu dispositivo. Isso é tudo. O que aconteceu aqui é entre você e sua cadeia de comando, mas preciso saber como tudo aconteceu para poder seguir em frente. Se você dificultar para mim, eu vou passar por você.

Ele se inclinou para frente uma polegada. — Acha que pode?

— Teste-me.

Henderson era um homem grande e estava acostumado a pessoas que recuavam quando ele empurrava. Era um guarda e um soldado, mas não era um assassino. Claro, ele atiraria de volta se alguém atirasse nele primeiro e poderia te esfaquear se isso acontecesse, porque era o seu trabalho, mas não cortaria a garganta de um homem e passaria por cima de seu corpo enquanto o sangue quente espirrava no chão. Eu faria. E isso não me incomodaria muito. Na verdade, estava fora de ação há mais de dois meses. Sentia falta, perdi a emoção da luta.

Nós nos encaramos.

Eu te mataria em um instante sem hesitação.

Um lento reconhecimento passou pelo rosto de Henderson. — Então é assim, —disse ele.

Exatamente.

Henderson estreitou os olhos. — Por que Rene contrataria o seu tipo?

— Que tipo é esse?

— Você não é um soldado e não é um detetive.

— Costumava ser uma agente da Ordem, senhor. —Balancei a cabeça na direção do laboratório. — E ela é um Cavaleiro aposentada e mestre de armas. Rene nos trouxe porque não é o nosso primeiro rodeio. O que aconteceu com o seu turno, sargento-mor? Esta é a última vez que estou perguntando.

Henderson se endireitou. Ele queria que eu fosse me ferrar. Vi na cara dele. Ele pensou sobre isso, mas deve ter vislumbrado algo que não gostou em meus olhos. Apertou sua mandíbula. — O turno da noite adormeceu.

— Todos os quatro guardas?

Henderson assentiu. — Exceto Harven.

— Em seus postos?

Henderson assentiu novamente.

Porcaria. — Que mais?

— Aproximadamente entre as quatro as seis da manhã, na mudança de turno.

Duas horas. Mais do que tempo suficiente para raptar um homem. Ou cortar a garganta dele, enterrá-lo na floresta e roubar seu projeto mágico. Como diabos Harven se encaixava nisso? Ele surpreendeu os ladrões? Claro, Adam Kamen poderia ter matado seu super guarda-costas e fugindo com o objeto. Porque era secretamente um ninja, perito em combate mortal e desapareceu no ar. Sim, foi isso. Caso resolvido. Próximo, por favor.

Guardas Vermelhos treinados não dormiam por conta própria por duas horas no meio do turno.

Magia ou drogas tinham que estar envolvidas. Mesmo assim, três dos guardas desmaiaram enquanto Harven entrava no laboratório. E por que ele não estava também dando uma de Bela Adormecida? — Onde estão os guardas agora?

— Os turnos da noite e da manhã estão esperando na casa. Imaginei que você gostaria de falar com eles.

Henderson fez uma pausa. — Há mais. Nós pesquisamos a área.

— Encontrou algo?

— Encontramos alguma coisa, certamente. —Henderson se levantou e andou mais longe atrás da casa. Eu segui. Um grande Humvee esperava, estacionado sob um carvalho. O teto da lona foi puxado para trás, expondo o chão da traseira contendo duas mochilas e uma caixote de plástico. Henderson colocou o caixote no chão e abriu-o com uma precisão cuidadosa, como se esperasse que uma cabeça de serpente saísse de dentro.

Um retângulo simples de algodão branco estava no interior do caixote, exibindo uma variedade de ervas. Cabeças de papoula verdes, cones de lúpulo, caules prateados de lavanda com pétalas roxas, erva-de-gato, valeriana e uma raiz espessa e pálida, curvada quase como um homem em posição fetal, com as pernas dobradas nos joelhos. Mandragora45. Raro, caro e poderoso.

Traços de pó marrom fino polvilhavam o tecido. Toquei-o, lambi a ponta do meu dedo, e o gosto apimentado familiar picou minha língua. Raiz de kava kava46, moído até a poeira. Havia poder herbal suficiente aqui para colocar um pequeno exército para dormir.

Já vi isso antes. As ervas tinham sido combinadas com vários quilos de pó de kava kava seco, enrolados em tecido, tratados com alguma magia pesada e depois selados. No momento certo, o dono desse pacote mágico jogou-o no chão, quebrando o selo, e a magia pressurizada explodiu, espalhando pó de kava kava pelo ar. Nocaute instantâneo para qualquer pessoa com pulmões em um raio de 400 metros.

Chamavam de bomba do sono.

As bombas do sono foram inventadas logo após a primeira onda mágica como meio de controle de multidões para subjugar pacificamente a população em pânico durante os tumultos de três meses. Naquela época, a magia era uma força nova e inexperiente, e havia alguma dúvida sobre se as bombas do sono funcionariam. Por desgraça, logo se descobriu que quando os policiais usavam as bombas de sono na multidão, funcionavam tão bem que alguns dos manifestantes nunca despertaram. As bombas eram ilegais agora.

Fazer uma bomba do sono exigia um monte de poder mágico, perícia e muito dinheiro. A melhor mandrágora vinha da Europa, e a kava kava deveria ter sido importada do Havaí, Fiji ou Samoa. Isso custava uma boa fortuna. Adam tinha investidores com bolsos cheios. Talvez um deles tenha decidido não compartilhar o doce com o resto da turma. Bombardeie os guardas com a bomba de sono, sequestre Adam, pegue o dispositivo, mantenha todos os lucros para si mesmo. Bom plano.

Precisava obter uma lista desses investidores.

Olhei para as entranhas da bomba do sono espalhada no pano. Todas aquelas ervas eram um soco mágico mesmo quando seladas. — Rene disse que este lugar foi protegido contra magia.

Henderson assentiu. — Dois lugares. A área de Proteção interna começa no topo da entrada e protege a casa e o laboratório. O exterior começa na parte inferior da entrada e circula a propriedade.

— Estamos dentro da Proteção interior agora?

— Sim.

— Qual é o limite? —Os feitiços defensivos variavam de intensidade. Alguns não deixavam passar nada; outros deixavam passar magia específica.

— Se você é mago e não está ligado a ele, você não pode passar, disse Henderson. — É uma Proteção de nível quatro.

Uma Proteção de nível quatro seguraria praticamente qualquer coisa. — Então um metamorfo não poderia passar por ele, correto?

— Correto, —confirmou Henderson.

— Acabamos de ver Andrea indo até o carro e voltando. —A Proteção acabou. — Onde fica o amparo?

Nós olhamos para a entrada da garagem.

Henderson puxou uma corrente de seu pescoço. Um pequeno pedaço de quartzo pendia na corrente ao lado de suas dogtags47. Caminhou para a calçada e estendeu a mão. A pedra pendia da corrente. Henderson olhou para o cristal por um longo momento, xingou e desceu a entrada da garagem. Eu segui. Ao pé da estrada de cascalho, Henderson acenou de novo para o cristal. Ele não brilhou.

Henderson olhou para mim. Proteções eram feitiços persistentes e não desapareciam. Era possível quebrar uma barreira, fiz isso algumas vezes, mas as Proteções se regeneravam quase imediatamente. Eles absorvem a magia do ambiente. Se as Proteções tivessem sido quebradas, elas deveriam começar a se reconstruir assim que a nova onda mágica surgisse. Estávamos bem no limite da área e não senti nada. Era como se os feitiços defensivos nunca tivessem existido em primeiro lugar. Isso simplesmente não acontecia.

Além disso, ter sua Proteção despedaçada dispararia um canhão de dor dentro do crânio. Bomba de sono ou não, se alguém tivesse explodido as proteções, os guardas teriam acordado.

— As Proteções sumiram, —disse Kate Daniels, mestra do óbvio.

— Parece que sim, —disse Henderson.

— As Proteções estavam presentes ontem à noite?

— Sim, —disse Henderson.

— Bombas de sono emitem magia mesmo quando seladas. Você não pode carregar uma através de uma área de nível quatro, por isso deve ter sido trazido durante a tecnologia. Adam tinha algum visitante?

— Não.

Músculos da mandíbula do Henderson se contraíram. Eu não precisava soletrar. A pessoa que havia trazido cinco grandes ervas para o jardim do engenheiro estava usando um emblema da Guarda Vermelha na manga. E como todos os outros estavam na terra dos sonhos, isso deixaria Laurent de Harven como o mais provável culpado. A Guarda Vermelha tinha uma toupeira48 e, como Rene tinha escolhido a dedo as pessoas para essa missão, a responsabilidade era totalmente dela. Teria vapor saindo de suas orelhas.

Isso ainda não explicava o que havia acontecido com as áreas protegidas.

Andrea saiu do galpão, carregando uma cópia do m-scanner na mão.

— Temos um problema, —disse a ela.

— Mais de um. —Me entregou o papel. Uma larga faixa de azul-violeta impressa no papel, interrompida por uma ponta afiada e estreita de um azul tão claro que parecia quase prateada. Humano divino. Esse era um perfil mágico inconfundível, um dos primeiros que todos aprendemos quando estudamos m-scans.

Harven foi sacrificado.

*

HENDERSON CAMINHOU PELA PARTE SUPERIOR do meio-fio. Os três guardas restantes do turno da noite ficaram diante dele em posição de descanso. A julgar pela cara de Henderson, ia desatar-se uma bronca de proporções colossais. Tanto Debra como Mason Vaughn, um ruivo corpulento, pareciam chateados e envergonhados. Rig Devara fazia o seu melhor para fingir estar chateado e envergonhado. Basicamente parecia entediado. De acordo com o arquivo, ele era o mais jovem de seu turno. Normalmente, a bronca começaria de cima para baixo, então quando Herderson chegasse a Rig não sobraria muita coisa para falar.

Andrea e eu assistimos da varanda. Henderson tinha muita frustração para desabafar. Ele não seria coerente tão cedo.

— Temos um corpo morto e o tempo está passando, —eu disse a Andrea. — Temos que descobrir o que fazer com Harven ou ele vai apodrecer.

— O que você quer dizer com o que fazer com ele? Nós vamos ligar para Maxine e ... oh, foda-se. —Andrea fez uma careta

Sim. A secretária telepática da Ordem, que convenientemente cuidava de pequenos detalhes como cadáveres, não estava mais disponível. Bem-vindo ao mundo real. Se ligássemos para a polícia, eles colocariam o corpo em quarentena. Nenhuma de nós era da lei, e ter acesso ao cadáver seria quase impossível. Seria como despachar nossas provas em um foguete e enviá-lo para a lua.

Caminhei em direção à casa. — Se o telefone estiver funcionando, vou ligar para Teddy Jo.

— Você vai chamar Thanatos? O cara com a espada flamejante?

— Ele é Thanatos apenas parte do tempo. O resto do tempo é Teddy Jo, que não é tão mal assim. Ele comprou um freezer mortuário há alguns meses para um trabalho que tinha que fazer. Está se enchendo de poeira em seu galpão. — Eu sabia disso porque a última vez que parei no lugar de Teddy, ele passou uma hora falando o quanto a maldita coisa tinha custado. — Vou fazer uma oferta e ver se consigo tirar isso das mãos dele. Acho que ele até pode ter um saco de cadáver ou dois para mandar junto com o freezer.

Andrea suspirou. — Vou começar a processar a casa.

O telefone funcionou e Teddy Jo atendeu no segundo toque. Li uma vez que todos os dias havia uma lição a ser aprendida. A lição de hoje, entre outras coisas, parecia ser que a barganha com o anjo grego da morte deveria ser evitada de qualquer maneira, porque lhe custaria um braço e uma perna.

— Sete mil, —a voz rouca de Teddy Jo anunciou por telefone.

— Quatro.

— Seis quinhentos.

— Quatro.

— Kate, a coisa me custou cinco mil. Eu tenho que lucrar.

— Primeiro, que é usado.

— Agora olhe aqui, —rosnou Teddy Jo. — Não é um Cadillac. É um freezer para cadáveres. O valor não cai porque você o tirou do lote.

— Eu não sei que tipo de cadáver você colocou lá, Teddy. Poderia ter colocado um leucrocota49 lá. Essas coisas fedem.

— Não é como se os mortos se importassem. Eles não podem cheirar a merda, e eles mesmos não cheiram melhor.

Ele tinha razão, mas eu não tinha que admitir isso. — Quatro e quinhentos.

— Como vai o negócio, Kate?

Para onde ele estava indo com isso? — O negócio está indo bem.

— Pelo que eu ouvi você não está fazendo merda nenhuma. Então, o fato de estar me ligando para conseguir freezer me diz que, de repente, você tem um cadáver em extrema necessidade de congelar. Isso significa que finalmente conseguiu um cliente. Agora, cerca de quatro minutos após a morte, as células do corpo experimentam a privação de oxigênio, que eleva o nível de dióxido de carbono no sangue, diminuindo simultaneamente o pH, tornando o ambiente do corpo mais ácido. Nesse ponto as enzimas começam a canibalizar as células, fazendo com que elas se rompam, liberando nutrientes. Isso é chamado de autólise ou autodigestão, e quanto mais enzimas e água os órgãos contêm, mais rapidamente eles se degradam. Órgãos como o fígado e o cérebro são os primeiros. Antes que você perceba, o corpo está apodrecendo, pele se desprende e toda a sua evidência se degradou em nada. Então você tem que se perguntar, vale a pena continuar discutindo comigo e arriscar perder o corpo e o cliente, ou você deveria me dar meus malditos seis mil dólares?

Céus, droga! — Se sabe que eu não tenho clientes, então você provavelmente sabe que eu não posso pagar tão alto pelo freezer.

Teddy Jo ficou em silêncio por um longo segundo. — Cinco mil. Minha última oferta. Pegue ou largue, Kate.

— Três mil agora, com dois pagamentos de mil dólares em sessenta dias e preciso que entregue o freezer em meu escritório.

— O negócio estar tão ruim que você recorreu a roubar pessoas honestas agora, hein?

— Teddy, é um maldito freezer. Não está fazendo nada em seu galpão e as pessoas não estão fazendo fila na esquina para comprá-lo de você.

— Bem. Dane-se, vamos fazer isso.

Finalmente. Alguma coisa andou do meu jeito hoje. — Essa coisa da autólise50 foi muito impressionante. Está indo para a escola noturna no seu tempo livre?

— Sou um anjo da morte. Não preciso da escola noturna, mulher. Você deveria desistir dessa merda de detetive e começar a matar pessoas para ganhar a vida. É um trabalho simples e honesto e você não precisa de inteligência para isso.

— Sim, sim. Também te amo, Teddy.

Desliguei. O pagamento no congelador daria uma grande mordida em meus cinco mil restantes, e eu tinha que manter dinheiro na mão para trabalhar no caso. Em último caso poderia pedir ao Bando emprestado.

Preferia comer merda.


Capítulo 7


NOS LEVOU QUATRO HORAS PARA PROCESSAR A CENA. Nós limpamos o laboratório em busca de impressões digitais e levantamos digitais parciais suficientes para usar um rolo inteiro de fita. Rastejando em minhas mãos e joelhos à procura de provas e tendo amostras das manchas de urina fez efeito ruim em mim. Meu joelho era um imã de problemas, primeiro minha tia o rasgou, depois a maratona de lutas até a morte que me fez a fêmea alfa do bando. Passeei por aí com uma bengala por um mês, com um agravante do fato de que só podia usar a dita nos meus aposentos, porque fazê-la à vista do Bando mandava a mensagem de fraqueza.

Agora o joelho tinha desenvolvido uma dor constante e irritante, e eu tinha a sensação absurda de que a dor só iria embora, se conseguisse um milagre.

Nós terminamos com o laboratório e andamos pela casa. Era uma espaçosa casa de madeira cor de mel, limpa e janelas enormes. Adam levava uma vida simples. Encontrei roupas suficientes para algumas semanas e alguns livros com pontas dobradas em algumas páginas, principalmente engenharia, física e teoria da magia. Andrea catalogou as compras e relatou muita manteiga de amendoim e geleia na geladeira. A cabine da Guarda Vermelha estava equipada com utensílios de cozinha e uma variedade de panelas e frigideiras penduradas nos ganchos em uma moldura de madeira. A camada de poeira nas panelas me dizia que elas não tinham sido tocadas há algum tempo.

Encontrei uma foto de uma jovem loira na cama de Adam. Ela estava olhando o oceano, o rosto sério e tingido de resignação e tristeza. A esposa de Adam. Ensaquei isto e pus em nosso Jeep.

Pegamos as declarações de todos, os fizemos assinarem tudo e voltamos pelas estradas sinuosas de Sibley para a Johnson Ferry. A bagunça do trânsito na ponte havia se dissolvido. Um Humvee com MSDU pintado em cinza ardósia estava no acostamento. Ao lado, um homem baixo e corpulento, de cabelos castanho-escuros, empacotava um m-scanner em uma van com o PAD escrito ao lado. O capuz vermelho do homem lia-se MAGO EM GERAL.

Puxei para o acostamento.

— Você o conhece? —Andrea perguntou

— É Luther Dillon. Ele costumava fazer alguns trabalhos clandestinos para os Mercenários um par de anos atrás. Espere um segundo, já volto.

Saí do carro e caminhei de volta pelo acostamento, as mãos à vista.

Luther me viu e suspirou dramaticamente. — Fique longe. Pelo menos um metro.

— Por quê?

— A Ordem te despediu por estragar tudo. Portanto, você está azarada. Isso pode passar pra mim.

Se Andrea quisesse matar Ted, ela teria que ficar na fila. — Não fui demitida, eu sai por conta própria. E considerando que capturei seu troll para você, esperava uma recepção mais calorosa.

Luther se curvou e bateu palmas. — Bravo! Bravíssimo! Encore, encore!51 Era esse tipo de recepção que estava esperando?

— Isso é o suficiente.

De onde eu estava, podia ver o caminho que descia a encosta e sob a ponte para a caixa do troll. — Como ele está?

— Dormindo como um bebê. —Luther fechou a porta da van e encostou-se no veículo. — Demorei duas horas, que não tenho na minha agenda, me ocupando com isso, também.

— O mínimo que você deveria fazer desde que suas Proteções falharam.

Luther se empurrou do carro. — Minhas Proteções não falharam. Elas se foram. —Ele fechou a mão em um punho e abriu os dedos. — Poof! Nenhum resíduo, nenhum traço, nada. Nunca vi algo como isso. É como se ...

— Nunca estivessem lá, —terminei. Déjà vu52.

Luther focou em mim como um ponteiro53 em um faisão. — Você sabe algo.

Quando estiver com problemas, se faça de idiota. — Eu?

— Você. Conte-me.

— Não posso. —Primeiro, as Proteções ao redor do laboratório de Adam. Então aqui. Atravessar a ponte era a saída mais rápida de Sibley.

— Kate, pare de brincar. Se alguém estiver andando pela cidade, arrancando as Proteções por aí, preciso saber disso.

— Eu não posso, Luther. Confidencialidade do cliente.

— Você quer que eu a leve para interrogatório? —Luther disse. — Porque vou fazer isso. Vou fazer agora. Veja. Conheço pessoas que gentilmente irão persuadi-la a vir comigo

Olhei para ele. — Você realmente precisa trabalhar em suas ameaças. Não sei dizer se você está me ameaçando ou me convidando para um chá.

— Os dois não são mutuamente exclusivos. Uma xícara de chá na delegacia e você me contará tudo o que sabe por pura autoconservação. —Ele estendeu a mão e inclinou os dedos para trás e para a frente no gesto universal de ‘pode vir’. ‘fale logo. Se não ...’

Andrea saiu do Jeep e encostou-se no para-choque. Aparentemente, sentiu que eu precisava de apoio. Se tivéssemos sorte, Grendel não rasgaria o saco de plástico e devoraria o cadáver de Harven na traseira de Hector.

— Luther, para levar alguém, tem que ter uma causa provável, o que você não tem.

Um leve raspar de um pé contra a terra veio de trás da van. Me inclinei para olhar ao redor de Luther e vi um homem subindo o caminho da água. Ele usava calças pretas, botas pretas, uma camisa cinza e um colete preto tático sobre ela. Óculos escuros de aviador escondiam seus olhos. Adicione o cabelo loiro escuro cortado curto e uma mandíbula limpa, e você tem um agente genuíno da aplicação da lei. Shane Andersen, Cavaleiro da Ordem.

Luther suspirou. — Você acha que ele tem 'fodão do governo' tatuado em seu peito? — Murmurei. Uma leve careta distorceu a boca de Luther. — Eu até diria a você, mas depois teria que te matar.

Luther não era difícil de irritar, mas havia algum ódio genuíno ali. — O que ele fez?

Luther olhou para mim. — Me chamou de 'suporte'. Não sou um suporte, sou um maldito perito em casos como esse. Sem mim, ainda estariam tentando transformar o troll em uma torta de carne.

Shane, o herói arrogante, ainda rebolou até o topo do caminho e parou diante de nós. — Olá, Kate.

— Oi.

Ele olhou para Luther. — Ela está incomodando você?

— Não.

— Hum-rum. —Shane baixou os óculos do nariz e me deu sua versão de um olhar severo.

Me inclinei um pouco na direção de Luther. — Esta é a parte em que eu desmaio de medo?

Luther mordeu o lábio. — Ele também pode aceitar cair de joelhos e segurar suas mãos em súplicas humildes. Torna mais fácil para ele colocar as algemas.

— Sua presença aqui é uma distração, —disse Shane, obviamente saboreando cada palavra. — Você está impedindo um oficial do PAD de realizar suas funções. Siga em frente, Kate. Não há nada para ver aqui.

Idiota. Vamos ver: dois veículos da MSDU, policiais no rio, muitas testemunhas. Meu cérebro imaginou a manchete de notícias: A COMPANHEIRA DO SENHOR DAS FERAS SOCA A BOCA DE UM CAVALEIRO DA ORDEM ARRANCADO QUATRO DOS SEUS DENTES.

Sim, mas não hoje.

— Desculpe, Luther, me disseram para seguir em frente. —Ignorei. — Tenho que ir. Vou ligar para você se houver alguma coisa. Ah, e, Anderson, se você ainda está tendo problemas com esse pau enfiado no seu traseiro, me avise. Conheço um cara que consegue puxá-lo para fora.

Me virei para o Jeep. Bem na hora também, Andrea começou a andar na minha direção, focada em Shane como uma ave de rapina. Hora de dar o fora daqui.

— É uma pena que você tenha sido expulsa da Ordem, Daniels, —disse Shane. — Perder sua casa assim também. Sempre achei que você fosse capaz. Conheço pessoas que poderiam ter te ajudado. Se você tivesse vindo até mim, eu poderia ter facilitado as coisas para você. A vida é dura, mas pelo menos você não teria que se prostituir com uma aberração.

— Cara, —Luther exalou.

Andrea aumentou a velocidade, seus olhos furiosos. Tinha que tirá-la daqui agora. Ela mal segurava a borda da razão. Se puxasse a arma para ele, iria para a cadeia, e nem mesmo os advogados do Bando a tirariam.

— Estar na Ordem não faz você intocável, Shane. —Continuei andando.

— As mulheres se prostituem porque estão morrendo de fome, porque elas têm filhos para alimentar, porque são viciadas, —disse Shane. — Eu não tolero isso, mas entendo. Você se vendeu por quatro paredes na Jeremiah Street. Vale a pena subir na cama com um animal todas as noites?

Encontrei Andrea. Ela tentou passar por mim e eu a bloqueei. — Não.

— Afaste-se.

— Agora não, não aqui.

— Olá, Nash, —Shane chamou. — Você quer que eu embale suas armas e mande para o seu apartamento? Te salve da vergonha de ir até o escritório da Ordem?

Andrea segurou meu braço.

— Mais tarde, —disse a ela. — Muitas pessoas agora.

Andrea cerrou os dentes.

— Mais tarde.

Ela se virou e voltamos para o Jeep. Deslizei Hector de volta para o tráfego.

— Esse filho da puta, —Andrea grunhiu.

— Ele é um falador que gosta de falar merda. Não há lei contra ser um idiota. Deixe-o se esconder atrás de seu escudo por enquanto. Isso é tudo que ele pode fazer.

Andrea apertou a mão em um punho duro. — Se eu ainda tivesse minha identidade da Ordem ...

— Vocês seriam melhores amigos.

Ela olhou para mim.

— É verdade, —disse a ela.

Não me respondeu.

Nos primeiros dez anos da sua vida, Andrea foi o saco de pancadas do seu clã bouda. Ela passou os últimos dezesseis anos, certificando-se de que não se sentiria impotente novamente. Nunca havia andado na rua sem o peso adicional da identidade da Ordem. Estava acostumada a ser uma boa moça, respeitada e até mesmo admirada pelo que fazia e por quem era. Nunca foi provocada por alguém com um distintivo, porque ela carregava um.

Mas cada escolha tinha consequências, e agora essas consequências a atingiam diretamente.

— Não podemos fazer nada com esse verme, —ela disse.

— Agora não.

Ela se virou para mim. — Não acho que posso fazer isso.

— Você pode, — disse a ela. — Você é uma sobrevivente.

— Você não sabe como é.

Eu ri. Parecia fria. — Você está certa, não tenho ideia do que é ouvir merda de pessoas que eu poderia matar de olhos fechados.

Andrea exalou. — Certo. Desculpa. Isso foi uma coisa estúpida para dizer. Eu só ... Merda!

— No final, Shane não importa, —eu disse. — Contanto que você o evite e não dê a ele uma oportunidade de machucá-la, ele é impotente para fazer qualquer coisa além de provocar um pouco. No entanto, se alguém fizesse algo estúpido, como atirar nele de algum teto em uma noite, teríamos problemas reais.

— Eu era um Cavaleiro, —disse Andrea. — Não vou começar a atirar em todos os idiotas que me provocam.

— Apenas certificando.

— Além disso, se eu atirasse nele, faria isso para que ninguém pudesse me rastrear. Atiraria em algum lugar remoto, sua cabeça explodiria como um melão, e eles nunca encontrariam seu corpo. Ele simplesmente desapareceria.

Esta seria uma longa viagem, sabia disso.

*

QUINZE MINUTOS MAIS TARDE CHEGAMOS AO ESCRITÓRIO e encontramos Teddy Jo, que estava esperando com o freezer no estacionamento. Dei a Teddy seu pagamento, nós lutamos com o freezer para colocá-lo no quarto dos fundos, e depois passei uma hora recitando feitiços de preservação e fabricando Proteções apenas no caso de Harven decidir levantar-se no meio da noite e fazer outra festa de formigas.

Já eram oito da noite quando saí da rodovia para a estreita estrada de terra que levava à Fortaleza. Estava cansada e suja, minha perna doía como um filho de uma cadela, e eu não tinha comido o dia todo. Você quase pensaria que eu estava de volta a trabalhar para a Ordem ou algo assim. Exceto que estava trabalhando para mim mesma.

Eu poderia entender Andrea. Minha vida tinha sido muito mais fácil com o ID da Ordem também, podia intimidar as pessoas para responder às minhas perguntas, tinha acesso aos registros criminais, e se acabasse com um corpo cheio de formigas, a Ordem cuidaria disso para mim.

Ainda assim, eu não trocaria meu pequeno escritório por nada no mundo.

Nós tínhamos muitas evidências, e nada disso fazia muito sentido. Harven tinha levado a bomba do sono. Era a única coisa que sabíamos. O resíduo de kava kava em suas mãos tinha confirmado essa suspeita, e tínhamos encontrado uma máscara de gás no canto do laboratório.

Ele quebrou o selo da bomba do sono e foi para o laboratório. Então algo aconteceu que terminou com sua morte e Kamen e o dispositivo desaparecidos. Talvez Harven tivesse tentado roubar o dispositivo ou prejudicar Adam, e Adam retaliou matando-o. Exceto que Adam Kamen estava mais para isca, enquanto Harven era um assassino treinado.

Suponha que Adam de algum modo levou o melhor sob Harven. Por que reservar um tempo para sacrificá-lo? Além disso, o currículo de Adam tinha ‘teoria de magia’ escrito por toda parte. Caras como ele construíam dispositivos complexos. Eles não urinavam nas paredes, transformando a carne do atacante em formigas e depois desapareciam na noite com um dispositivo pesando mais de trezentos quilos. Fazer esse tipo de magia significava completa dedicação à divindade à qual o sacrifício havia sido oferecido. Devoção significava adoração constante e adoração exigia ritual. Os guardas nunca tinham visto Adam orar.

O corte no torso de Harven me incomodava. Um pé de galinha invertido. Tinha que ser uma runa. Não havia razão anatômica para cortar o corpo dessa maneira, e as runas eram associadas a cultos neopagãos e frequentemente empregadas em rituais xamanísticos, o que era consistente com a magia da cena. Runas antecediam o alfabeto latino. Antigas tribos germânicas e nórdicas usavam-nas para tudo, desde escrever suas sagas, predizer o futuro até trazer os mortos de volta à vida.

Runologia não era o meu forte, mas essa runa em particular eu conhecia muito bem. Algiz, uma das runas mais antigas, associada a grama de junco, Thor e Heimdall54 e várias outras coisas dependendo de quem você perguntasse e qual alfabeto rúnico você usasse. Algiz tinha um significado universal: proteção. Como proteção era completamente reativo. Ele servia como um aviso ou fornecia uma defesa, mas em qualquer caso, Algiz só poderia ser ativado se algo o tocasse, então ele retaliaria. Era a maneira mais responsável para um usuário de magia rúnica proteger sua propriedade, porque Algiz nunca atacaria primeiro.

Por que colocar em um corpo? Não protegeu o corpo, não avisou ninguém de nada. Estava quebrando meu cérebro contra isso desde que o tinha visto, e eu não conseguia pensar em nada. Zip, zilch, zero. E nenhum dos deuses do panteão nórdico estava fortemente associado às formigas.

Algo estava acontecendo aqui, algo maior e mais feio do que parecia. O medo nos olhos de Rene me incomodou. Começou como uma preocupação moderada quando a vi pela primeira vez, ficando cada vez pior à medida que o dia avançava, e agora ela amadurecera em uma completa ansiedade. Você tem muitos amigos, Kate. Você tem muito a perder.

A voz de Voron emergiu das profundezas da minha memória. ‘Eu te disse.’

Respirei fundo e tentei exalar minha preocupação. Tarde demais para avisos agora. Eu era a companheira de Curran e o alfa feminino do Bando. O bem-estar de mil e quinhentos metamorfos era agora minha responsabilidade.

Qualquer que fosse a tempestade em Atlanta, a encontraria e lutaria contra isso. Se fosse o preço de estar com Curran, então eu pagaria.

Ele valia a pena.

O Jeep rolou sobre as enormes raízes. A estrada precisava ser limpa novamente, as árvores grossas se amontoavam, como soldados tentando barrar a passagem para intrusos. Magia odiava todas as coisas tecnológicas e roía seus monumentos até o miolo, transformando concreto e argamassa em pó. Arranha-céus, pontes altas, estádios enormes, quanto maiores eram, mais depressa caíam. A mesma força que transformou o Georgia Dome55 em escombros também alimentava as florestas. As árvores brotavam aqui e ali, crescendo a uma velocidade recorde, a natureza se esforçava para conquistar as ruínas decadentes que outrora foram orgulhosas conquistas da civilização tecnológica. A vegetação rasteira espalhava-se, as videiras se estendiam e antes que você percebesse uma floresta de cinquenta anos se erguia, onde dez anos atrás eram apenas mudas finas, estradas e postos de gasolina. Isso tornava a vida difícil para a maioria das pessoas, mas os metamorfos adoravam.

A humilde morada do Bando realmente merecia um nome melhor. ‘Fortaleza’ não fazia justiça. Ficava na clareira entre a nova floresta, a nordeste da cidade, erguendo-se contra as enormes árvores como uma torre sinistra e sombria. A torre descia por muitos níveis subterrâneos. Não satisfeitos, os metamorfos continuaram construindo a Fortaleza, acrescentando paredes, novas alas e torres menores, transformando-a em uma completa cidadela da supremacia do Bando. Enquanto manobrava o Jeep, não pude deixar de notar que a estrutura estava começando a se assemelhar a um castelo. Talvez precisássemos de uma placa de néon para iluminar a entrada: COVIL DE MONSTROS

LIMPE SUAS PATAS E ENTREGUE SUA PRATA NA PORTA.

Dirigi o Jeep pelos portões maciços, estacionei no pátio interno, entrei por uma pequena porta e caminhei pelo estreito corredor claustrofóbico. As passagens estreitas eram uma estratégia de defesa de Curran. Se você tentasse invadir a Fortaleza e atravessasse o portão e as portas reforçadas, teria que lutar em um corredor como este, três, quatro homens de cada vez. Um único metamorfo poderia segurar um exército aqui por horas.

O corredor levava-me à escada de um milhão de degraus. Minha perna gritava em protesto. Suspirei e comecei a subir. Só tinha que evitar mancar. Mancar mostrava fraqueza, e eu não precisava de metamorfos empreendedores motivados pela carreira, tentando me desafiar pelo domínio agora.

Certa vez mencionei meu desejo por um elevador e Sua Majestade me perguntou se eu gostaria que um bando de pombas me levasse aos meus aposentos para que meus pés não tivessem que tocar o chão. Nós estávamos treinando na hora e eu o chutei no rim em retaliação.

Oito horas aqui parecia duas da tarde para os Metamorfos. A fortaleza estava cheia. As pessoas balançavam a cabeça para mim quando eu passava. A maioria deles eu não conhecia. O Bando contava com mil e quinhentos metamorfos. Eu estava aprendendo os nomes, mas levava tempo.

No segundo lance de escadas, algo começou a ranger no meu joelho. Tinha uma escolha: ou eu consertava agora ou falharia na próxima vez que tivesse uma briga séria. Minha imaginação pintou uma linda imagem minha voando para a batalha e minha perna estalando como um palito de dente. Ótimo.

Parei no terceiro andar e então caminhei até a enfermaria médica de Doolittle. A mulher na sala da frente deu uma olhada para mim e correu de volta para buscar o médico. Caí na cadeira e exalei. Sentar era bom.

As portas duplas se abriram e Doolittle emergiu das profundezas do hospital, parecendo nervoso. Com cinquenta e poucos anos, pele escura e cabelos curtos, Doolittle irradiava paciência. Mesmo se você estivesse perto da morte, no momento em que olhasse nos olhos dele, sabia que ele cuidaria de você e de alguma forma tudo ficaria bem. No ano passado, estive perto da morte várias vezes e todas as vezes Doolittle me consertou. Ele era de longe a melhor medimago que já conheci.

Ele também era exaustivo como uma mãe galinha. Era por isso que normalmente o evitava a todo custo.

Doolittle me olhou, provavelmente procurando por sinais de sangramento e fragmentos de ossos quebrados cutucando minha pele. — Qual é o problema?

— Nada importante. Meu joelho está doendo um pouco.

Doolittle olhou para mim. — O fato de estar aqui significa que você está prestes a desmaiar.

— Realmente não é tão ruim assim.

Os dedos de Doolittle sondaram meu joelho. A dor atingiu minha perna. Eu cerrei meus dentes.

— Que o céu me ajude. —O bom doutor soltou um suspiro. — O que você fez?

— Nada.

Doolittle pegou minha mão, levantou a palma da mão e a cheirou. — Engatinhar de quatro é muito ruim para seu joelho. Para não mencionar o quanto é indigno.

Me inclinei em direção a ele. — Tenho um cliente.

— Parabéns. Mas sou apenas um simples médico do sul ...

Aqui vamos nós. Atrás de Doolittle, a enfermeira revirava os olhos.

— ... mas parece-me que seria muito mais prudente ter uma perna para trabalhar. No entanto, desde que você não tem nenhum grande sangramento, nenhuma concussão e nenhum osso quebrado, agradecerei essas bênçãos.

Apertei minha boca fechada. Qualquer conversa com Doolittle quando ele estava com esse humor resultaria apenas em uma palestra de uma hora.

O médico do Bando sussurrava. Sua voz cresceu em um murmúrio baixo, um cântico melodioso derramando de seus lábios.

A dor no meu joelho recuou, entorpecida pela medimagia. Doolittle se endireitou. — Vou misturar uma solução e enviá-la aos seus aposentos. Você precisa de uma maca?

— Vou fazer isso do meu próprio jeito. —Fiquei em pé. — Obrigada.

— De nada.

Saí do hospital e continuei minha escalada. O joelho gritava, mas segurei. Por fim, as escadas terminaram, levando-me a um pouso estreito diante de uma grande porta reforçada. Durante o horário comercial, das onze da manhã às oito da noite, a porta estava aberta. Andei através dela e acenei para o guarda atrás da mesa à esquerda.

— Ei, Seraphine.

Seraphine se separou do saco de pipocas o tempo suficiente para inclinar a cabeça, suas tranças tremeram e voltou para sua comida. Ser uma mulher rato fazia que tivesse o metabolismo de uma mussaranha. Os ratos comiam constantemente ou ficavam nervosos.

Derek saiu do escritório lateral e acenou se curvando para mim.

— Seus acenos estão ficando cada vez mais exagerados. —Logo seria uma reverência e nós conversaríamos sobre isso. A única coisa que eu não gostava mais do que reverência era ser chamada de Companheira.

Ele encolheu os ombros. — Talvez eu esteja apenas ficando mais alto.

Eu o examinei. Derek costumava ser embaraçosamente bonito. Lindo mesmo. Então coisas terríveis aconteceram e agora ninguém o chamaria de bonito, nem mesmo com pouca luz. Nenhuma pessoa sensata ousaria sequer mencionar o assunto do seu rosto. O garoto não foi desfigurado, embora ele achasse que estava e ninguém poderia convencê-lo do contrário. Seu rosto endureceu e perdeu sua beleza perfeita. Ele parecia perigoso e cruel, e seus olhos, outrora marrons e macios, estavam agora quase negros e frios. Se tivesse o conhecido em um beco escuro, não pensaria duas vezes em ir para o outro lado. Felizmente, ele já jogou de Robin para o meu Batman, e o que quer que tenha acontecido, ele estava do meu lado.

Nós seguimos pelo corredor. Derek respirou fundo, como os metamorfos faziam quando experimentavam o ar em busca de aromas. — Vejo que Andrea está de volta.

— Está. E como está a Sua Grande Peludeza hoje?

Os olhos do Derek brilharam um pouco. — Sua Majestade está de mau humor. Estão rolando rumores de que sua companheira quase levou um tiro.

Derek adorava o chão em que Curran pisava, mas ainda era um rapaz de dezenove anos e ocasionalmente saía de sua concha para uma piada. Seu humor estava seco e oculto profundamente. Eu estava grata por isso ter sobrevivido ao que lhe aconteceu.

— Onde estão minhas boudas? —Antes de me tornar a Senhora das Feras, tia B, a alfa dos boudas, e eu fizemos uma barganha. Eu ajudaria o Clã Bouda quando eles se metessem em confusão, e eles se metiam muito, e em troca a tia B me daria dois dos melhores dela, Barabas e Jezebel, que me ajudariam a navegar no pântano obscuro da política do Bando. Eles se referiam a si mesmos como meus conselheiros. Na realidade, eles eram minhas babás.

— Barabas está dormindo na sala da guarda e Jezebel desceu para pegar comida.

— Alguma mensagem para mim?

— O templo ligou.

Isso deveria ser interessante. Eu tinha ido ao templo tentando restaurar um pergaminho judeu para descobrir a identidade da minha tia. Ela se ofendeu e o templo tinha sofrido alguns danos. Os rabinos haviam me expulsado do terreno do Templo, mas não antes de um deles curar minhas feridas. Eu não tinha lidado com a situação toda muito bem, então quando a tempestade acabou eu peguei o fragmento do pergaminho e enviei para o templo como um presente e como minhas desculpas.

— Rabino Peter envia seus cumprimentos. Ele está muito feliz com o pergaminho. Tem algum tipo de valor histórico. Você foi perdoada e pode visitar o Templo, desde que avise a eles vinte e quatro horas antes.

Para mobilizar suas forças, sem dúvida, e estabelecer um suprimento adequado de papel e canetas que neutralizasse qualquer problema que eu desencadiasse. O misticismo judaico era difícil de estudar, mas dava aos seus praticantes grandes recompensas. Quando os rabinos diziam que a caneta era mais poderosa que a espada, eles queriam dizer isso.

Os lábios de Derek se curvaram em um leve sorriso. — Além disso, Ascanio Ferara foi preso novamente.

— Novamente?

— Sim.

Ascanio estava se transformando rapidamente na ruína da minha existência. Um bouda de quinze anos de idade, ele tinha sessenta quilos de hormônios malucos e não tinha nenhum sentido comum. O garoto nunca conheceu uma lei que não quisesse quebrar. O Bando estava muito ciente de que pessoas de fora os viam como monstros, e faziam questão de reprimir qualquer atividade criminosa com garras de aço. O mesmo acordo que me trouxe Barabas e Jezebel me obrigou a pedir clemência em favor de Ascanio. Infelizmente, Ascanio parecia determinado a ganhar algum trabalho duro — O que ele fez agora?

— Foi pego fazendo sexo em grupo nos degraus do necrotério.

Parei e olhei para ele. — Defina 'grupo’.

— Duas mulheres.

Poderia ter sido pior.

— Para um garoto de quinze anos, ele está se saindo bem, —disse Derek, com o rosto completamente inexpressivo.

— Não fale assim.

Derek riu.

Esse era o problema com lobisomens adolescentes, eles não tinham respeito pela dor de outras pessoas.

Ele me deu uma meia reverência, meio aceno de cabeça, voltou para o escritório e parou. — Kate?

— Sim?

— Você disse uma vez que não conseguiria ser um guarda-costas, por contas de alguns detalhes. Por quê?

Onde ele estava querendo chegar com isso? — Duas razões. Primeiro não importa o quanto é bom, você responde por apenas cinquenta por cento da chance de sucesso. Os outros cinquenta estão andando no corpo que você está guardando. Eu vi guardas brilhantes falharem completamente, porque o dono daquele corpo não conseguia seguir uma simples diretiva como ‘fique aqui e não se mova’.

— E em segundo?

— Guarda-costas reagem naturalmente por definição. Terá algumas pessoas que discutirão esse ponto com você, mas no final das contas, você está no modo de defesa durante a maior parte do trabalho. Não tenho a mentalidade adequada para a defesa constante. Eu escolho brigar, sou agressiva e acabaria me concentrando em matar o alvo em vez de manter meu cliente vivo. Não gosto de me sentar e esperar. Posso fazê-lo, porque me treinaram para fazê-lo, mas não está em minha natureza.

Derek me deu um olhar estranho. — Então você fica entediada.

— Sim. Acho que é isso em poucas palavras. Por que você pergunta?

Ele encolheu os ombros. — Nenhuma razão.

— Arram. —Nós já tínhamos passado por essa estrada antes, e então derramaram um pouco de metal derretido em seu rosto. — Não se envolva em algo que você não consegue lidar.

Ele sorriu, um rápido lampejo de dentes. — Eu não vou.

— Estou falando sério.

— Palavra de escoteiro.

— Você não é esse tipo de explorador.

O sorriso ficou mais largo. — Você se preocupa muito.

— Se você se matar, não venha chorar no meu lado.

Derek riu e voltou para o escritório de guarda.

Ele estava tramando algo. Se eu o obrigasse a me dizer, ele nunca me perdoaria por tratá-lo como uma criança. Se eu não fizesse, ele poderia ter seu rosto esmagado novamente. De qualquer maneira, fracasso total.

Amigos tornavam a vida totalmente complicada.

Continuei andando, não me importando de mancar. Ninguém me veria aqui.

À direita, a porta preta de Julie apareceu. Uma adaga brilhava no meio dela, Julie tinha pego a ideia da Ordem. Uma caveira e ossos cruzados desenhados em tinta fluorescente brilhavam acima do punhal. Sob ele várias frases gritavam avisos: NÃO ENTRE

ENTRE POR SEU PRÓPRIO RISCO

PERIGO, MEU QUARTO NÃO É SEU

ABANDONE TODA A ESPERANÇA SE ENTRAR AQUI

CUIDADO, MANTENHA-SE AFASTADO

BATER ANTES DE ENTRAR.

Ficar naquela escola podia ser a coisa certa, mas sentia falta dela. Ela se sentia feliz na fortaleza. E tinha Maddie como amiga, o que era ótimo porque Maddie era sensata. Normalmente, Julie e sensatez não podiam se encaixar no mesmo prédio. Tinha conseguido seu desejo, estava voltando para casa. Mesmo que fosse em meus termos e ela não tinha que gostar disso.

*

TINHA SAÍDO DA MINHA ÚLTIMA PEÇA DE ROUPA quando Curran atravessou a porta do nosso quarto. Alguns homens eram bonitos. Alguns eram poderosos. Curran era ... perigoso.

Musculoso e atlético, ele se movia com uma graça fácil e confiante, perfeitamente equilibrado e você sabia apenas observando-o que ele era forte e rápido. Poderia perseguir como um tigre faminto, movendo-se pelo chão em absoluto silêncio. Passei a vida inteira preparada para escutar ruídos de perigo e ele me espreitava só para me ver pular, porque achava engraçado. Mas seu poder físico por si só não o tornava especial, muitos homens eram fortes e rápidos e podiam andar em silêncio.

Não era seu corpo que definia Curran à parte. Eram seus olhos. Quando você olhava para eles, via violência acorrentada mostrando dentes e garras para você, e seu instinto lhe dizia que, se ele se soltasse dessa corrente, você não sobreviveria. Ele estava aterrorizado em algum nível profundo e primordial e usava esse medo como uma arma, usando-o para inspirar pânico ou confiança. Entrava em cada sala como se fosse o dono. Estava acostumada a pensar que era arrogância e assim era, Sua Majestade tinha uma opinião bastante elevada de si mesmo, mas a arrogância representava só uma fração disso. Curran irradiava uma suprema confiança. Ele lidaria com qualquer problema que encontrasse de forma eficiente e decisiva e se você estivesse em seu caminho, ele não teria nem o menor indício de dúvida de que poderia chutar seu traseiro. As pessoas sentiam e se reuniam ao seu redor. Podia entrar em uma sala de estranhos histéricos e, em segundos, eles se acalmavam e olhavam para ele em busca de liderança.

Ele era perigoso. E difícil. E era todo meu.

Às vezes, de manhã, quando ele trabalhava na academia um andar abaixo, eu ficava na parede de vidro da academia por alguns minutos antes de entrar para treinar. Eu o observava levantar halteres ou fazer mergulhos com os pesos presos ao cinto, músculos vigorosos e relaxados com esforço controlado, enquanto as barras rangiam sob seu peso. Suor alisando seus cabelos loiros e brilhando sua pele. Observá-lo nunca deixava de enviar um calor lento e insistente através de mim. Ele não estava treinando agora. Estava de calça moletom e uma camiseta azul, carregando algum tipo de garrafa e eu estava pronta para pular em seus ossos. Poderia imaginá-lo em cima de mim na cama.

Pelo menos isso não aparecia no meu rosto. Eu tinha que ter alguma dignidade.

Sentia muito a falta dele, quase doía. Começava no momento em que saía da Fortaleza e me incomodava o dia todo.

Todos os dias tinha que lutar comigo mesma para evitar inventar razões de chamar a Fortaleza só para que eu pudesse ouvir sua voz. Minha única graça salvadora era que Curran não estava lidando com essa coisa toda de acasalamento muito bem também.

Ontem ele me ligou no escritório alegando que não conseguia encontrar as meias. Nós conversamos por duas horas.

Eu enfrentei muitas coisas na minha vida. Mas essa emoção assustava a merda dentro de mim. Não tinha ideia de como lidar com isso.

Curran sorriu para mim. — Disseram-me que você entrou e foi ver Doolittle.

A Fortaleza não tinha segredos.

— Bem, parei para verificar seu diagnóstico. —Curran levantou a garrafa. — Você deveria tomar um banho quente com isso nele. E eu estou encarregado de fiscalizar a uma curta distância, para ter certeza de que seu joelho não caia.

Arrá! Tenho certeza de que Doolittle disse exatamente isso, especialmente a observação da parte de curta distância.

— Você gostaria de se sentar no meu banho terapêutico desagradável comigo? —E por que isso saiu da minha boca?

Os olhos de Curran acenderam. — Sim, gostaria.

Arqueei minha sobrancelha. — É o suficientemente digno de confiança para eu permitir entrar na banheira comigo?

Ele sorriu. — Permitir?

— Permitir.

— Eu possuo esta banheira. —Curran se inclinou para mim. — Eu não sei se você sabe, mas eu meio que sou dono deste lugar. Não sou apenas totalmente confiável, mas meu comportamento está além da contestação.

Perdi dessa vez e fui para o banheiro, rindo sob a minha respiração.

Estar acasalada ao Senhor das Feras tinha suas vantagens, uma das quais era a enorme banheira e uma ducha com água sempre quente que funcionava com magia ou a tecnologia, não importava qual delas estivesse em alta. A maioria das coisas nos aposentos de Curran eram superdimensionadas. Sua banheira era a mais profunda que eu já tinha visto, seu sofá podia acomodar oito, e sua cama criminalmente macia, a um metro e meio de altura do chão, feita sob medida para ser mais larga para acomodar sua forma animal. No fundo, Curran era um gato. Ele gostava de coisas suaves, lugares altos e espaço suficiente para se esticar.

Tomei um banho rápido para lavar a maior parte do sangue e da sujeira e entrei na banheira. Afundar em água perto da fervura cheirando a ervas e vinagre incomodou por uma fração de segundo, e então a queimadura dentro do meu joelho aliviou.

Curran voltou da cozinha carregando duas cervejas. As colocou na beira da banheira e se despiu, tirando a roupa do torso musculoso. Observei a camisa deslizar das costas de Curran. Tudo meu.

Oh garoto.

Entrou na banheira e sentou-se à minha frente, presenteando-me de perto com uma visão do melhor peito masculino do mundo.

Seduzi-lo na banheira cheirando a vinagre estava fora de questão. Tinha que haver limites.

Curran se inclinou para me entregar uma cerveja. Estendi a mão para ele e então o braço dele estava em volta de mim. Seu rosto estava muito perto. Colocou uma armadilha e eu caí nela direitinho. Baixou a cabeça e me beijou.

Pensando bem, poderíamos fazer na banheira. Por que não?

Os olhos cinzentos de Curran olharam os meus. — As pupilas não parecem estar dilatadas. Você não está drogada, não está bêbada. Que diabos te possuiu para sair de um bom escritório seguro e ir parar num tiroteio?

E ele acabou de disparar sua chance de sexo no espaço sideral. — Te disse, havia uma garota. O PAD abriu fogo e a perna dela quase foi arrancada completamente. Tinha no máximo vinte anos. Sangrou perto da morte no meu escritório.

— Foi a escolha dela. Se quisesse ficar segura, poderia se juntar às Garotas Escoteiras. Ela não está vendendo biscoitos, está pilotando cadáveres doentes para ganhar a vida.

Peguei minha cerveja da mão dele e bebi. — Então você ficaria parado e deixaria o PAD matar quatro pessoas?

Curran recostou-se, esparramado contra a parede da banheira. — Quatro pessoas da Nação. E não é só isso, posso tomar um tiro de uma M24. Você não pode.

— Quando você me ofereceu este negócio, achou que eu ficaria no escritório o dia todo assando biscoitos?

— Ninguém nunca morreu baleado por um biscoito.

Me pegou. Procurei no meu cérebro um retorno mal-humorado. — Sempre há uma primeira vez.

Oh, agora essa foi uma resposta brilhante. Sem dúvida, ele desmoronaria aos meus pés com admiração pela minha magnificência intelectual.

— Se alguém consegue ser baleado por um biscoito, essa seria você. —Curran encolheu os ombros. — Nós concordamos que você não se arriscaria.

— Nós concordamos que você me deixaria fazer o meu trabalho como bem entender.

Ele bebeu sua cerveja. — E estou me segurando para não dá fim nesse acordo. Não larguei tudo e corri para protegê-la das balas, enfiar as armas no traseiro do PAD e dar uns tapas nos oficiais da Nação até que eles pudessem encontrar uma boa razão para tentar de foder. Sabia que você poderia lidar com isso.

— Então por que você está me pressionando?

Pequenas luzes malvadas acenderam em seus olhos. — Apesar de mostrar contenção sobre-humana, eu ainda estava preocupado com você. Fiquei emocionalmente comprometido.

— Sério? Não me diga. Emocionalmente comprometido?

— A Tia B usou essa frase hoje para me explicar por que eu não deveria punir um idiota de quinze anos por fazer um trio na frente do necrotério.

A Tia B tinha pulado a cerca. Deveria ter me deixado lidar com isso primeiro.

Curran ponderou sua cerveja. — Nunca teria pensado em usar isso para descrever o problema da criança.

— Bem, como você descreveria?

— Jovem, burro e cheio de porra.

Isso resumia bastante. — Você perdeu sua vocação. Deveria ter sido um poeta.

Curran tomou metade de sua cerveja e se sentou ao meu lado. — Não tome riscos estúpidos. Isso é tudo que peço. Você é importante para mim. Queria que tomasse cuidado.

Tentar distrair Curran era como tentar virar um trem: impossível. — Se eu te beijar, você vai esquecer isso?

— Depende.

— Deixa para lá. A oferta é retirada. —Apoiei a cabeça em seu bíceps. Era quente o abraço do leão, desde que você não se importasse com as enormes garras. — Tenho um cliente.

— Parabéns. —Curran levantou a cerveja. Nós tilintamos nossas garrafas e bebemos.

— Quem é?

— Lembra da mulher encarregada da segurança nos jogos da meia-noite?

Ele assentiu. — Cabelo avermelhado, alta e espada verde.

— Ela trabalha para a Guarda Vermelha ... —Contei a ele tudo, inclusive o freezer de Teddy Jo.

— Parece que a Guarda Vermelha quer que você salve a bunda deles, e se explodir em suas caras, eles vão culpá-la por isso.

Inclinei-me para trás. — Tenho que começar a reconstruir minha reputação em algum momento. E é um longo caminho para consertá-la.

Uma feroz luz dourada iluminou os olhos de Curran. De repente, ele parecia predador. Se não tivesse cem por cento de certeza que ele me amava, teria dado o fora dessa banheira agora. Em vez disso, me inclinei e acariciei a barba por fazer em sua mandíbula.

— Imaginando matar Ted Moynohan em sua cabeça novamente?

— Hum.

— Não vale a pena.

Ele deslizou a mão pelo meu braço e eu quase estremeci. Sua voz era como veludo, escondendo um grunhido rouco logo abaixo da superfície. — Você já imaginou isso também.

Bebi minha cerveja. — Já. —Na verdade, agora eu gostaria de dar um soco em Shane ainda mais. Seria bom para mim. Terapêutico mesmo. — Ainda não vale a pena.

— Se você precisar de mais dinheiro, tudo que precisa fazer é chamar a contabilidade, —disse Curran.

— O orçamento que me deram é justo. Gostaria de tentar com ele. De qualquer forma, te disse o meu dia, você vai me contar o seu? O que está te incomodando?

Os dedos de Curran arrastaram-se ao longo do meu braço até o meu ombro e para o meu lado. Hummm ...

— Um render abandonou a reserva, —disse ele. Renders eram guerreiros especializados. Todos os membros do Bando eram treinados para lutar assim que podiam andar, mas os metamorfos comuns tinham outros empregos: eram padeiros, alfaiates, professores. Guerreiros não tinham outro emprego. Na batalha, eles se especializavam de acordo com seu animal. Os ursos funcionavam como tanques, eles aguentavam muito dano antes de morrerem e desbravavam os caminhos quando atacavam. Lobos e chacais eram valetes de todos os ofícios, enquanto gatos e boudas eram renders. Solte um render no meio de uma luta e trinta segundos depois eles estariam ofegando em um círculo de cadáveres.

— Que tipo de render?

— Um lince fêmea. Nome dela é Leslie Wren.

Minha memória foi para uma mulher em boa forma, com cabelo castanho-mel e uma pitada de sardas no nariz, seguida por um metamorfo de um metro e oitenta de altura, musculosa, em forma de guerreira. Eu conheci Leslie Wren. Alguns meses atrás, quando lutamos contra uma horda demoníaca durante o Flare, ela lutou ao meu lado. Matou dezenas e desfrutou disso. A vi novamente a pouco tempo atrás ... — O que aconteceu?

Curran fez uma careta. — Não se apresentou em seu posto, procuramos em sua casa, faltavam todas suas armas. Seu noivo está surpreso. Acha que ela deve estar em problemas.

— O que você acha?

A carranca de Curran se aprofundou. — O pessoal de Jim rastreou o cheiro dela até Honeycomb. Eles conseguiram o rastro até algumas centenas de metros e depois só sentiram cheiro de acônito.

O Honeycomb era um lugar maluco, cheio de magia selvagem e repleto de caminhos que não levavam a lugar nenhum.

Mudava o tempo todo, como um crescimento cancerígeno mutante, e fedia como o inferno, adicione acônito a ele, o que garantiria um ataque instantâneo de alergia aos rastreadores metamorfos, e você tinha uma fuga limpa.

— Nenhum outro rastro do cheiro dela?

Curran sacudiu a cabeça. Então ninguém segurou uma arma na cabeça dela. Entrou no Honeycomb sozinha e usou acônito, porque não queria ser encontrada. Leslie Wren foi desonesta. Metamorfos eram desonestos por várias razões. Na melhor das hipóteses, teve um problema com alguém no grupo, não conseguiu resolvê-lo e decidiu jogar tudo para o alto e fugir. Pior cenário, ela ficou loup. Um metamorfo normal ficando loup significava uma matança. Um render ficando loup significava um massacre.

— Tenho que caçá-la amanhã, —disse Curran.

Caçar Leslie Wren antes que alguém se machucasse. Finalmente me lembrei de onde a vi pela última vez, ela deixou Julie e Maddie acompanhá-la para caçar um cervo na floresta perto da Fortaleza. Fazia todo o sentido que Curran fosse. Um render limparia o chão com um metamorfo comum. Curran seria capaz de derrubá-la com o mínimo de dano. Entedia, mas não gostava.

— Precisa de ajuda? —Perguntei.

— Não. Seu joelho ainda está doendo?

— Não. Por que?

— Só perguntando se você precisa de alguma distração da dor.

Humm ... — Que tipo de distração você tem em mente?

Curran se inclinou, os olhos escuros e cheios de faíscas douradas. Seus lábios se fecharam nos meus. O choque de sua língua contra a minha era eletrizante. Deslizei meus braços ao redor de seu pescoço, moldando-me contra ele. Meus mamilos pressionaram contra seu peito. O músculo duro de suas costas se agrupou sob meus dedos, e eu o beijei, seus lábios, o canto de sua boca, o ponto sensível sob sua mandíbula, saboreando seu suor e o toque afiado de barba em meus lábios. Ele fez um ruído masculino e discreto, a meio caminho entre um rugido profundo e um ronronar.

Meu Deus.

Suas mãos deslizaram sobre minhas costas e para baixo, acariciando, mudando-me para mais perto, até que senti o comprimento duro de sua ereção pressionando contra mim. Aí sim.

— Devemos sair da banheira. —Belisquei seu lábio inferior.

Ele beijou meu pescoço. — Por quê?

— Porque eu quero que você esteja em cima e eu não tenho guelras56.

Curran levantou-se, me levando da água para a sala de estar.

*

ESTÁVAMOS NO SOFÁ, ENROLADOS EM UM COBERTOR. — Então o que vai fazer sobre Ascanio? —Perguntei a ele.

Curran suspirou. — A maioria dos jovens tem alguém para se espelhar: pai, alfa e eu. Quando era mais jovem, eu tinha meu pai e depois Mahon. Ascanio não tem ninguém. Seu pai está morto, seu alfa é uma fêmea e ele não quer nada comigo. Me obedece e reconhece que tenho o direito de puni-lo, mas ele não sente a necessidade de ser como eu.

— Você quer dizer que ele não o adora como herói? —Sofra com o pensamento.

Ele fez uma careta para mim. — Acho que ofender o Senhor das Feras é altamente punível.

— Punível com o quê?

— Oh, vou pensar em alguma coisa. De qualquer forma, decidi dar ele para o Raphael.

Raphael era bonito, ele ganhava uma boa vida, as mulheres se jogavam para alinhar seu caminho, e ele era cruel em uma briga. Ninguém podia imaginar que um jovem bouda macho poderia ser tão frio em uma luta.

— Vou pedir a Raphael para orientá-lo, —disse Curran. — Como um favor pessoal. Mas antes disso, pessoalmente vou fazer a vida daquele pirralho mimado puro inferno, então quando Raphael o tirar de nossas mãos, Ascanio vai pensar que ele tirou a sorte grande.

Isso fazia todo o sentido, exceto que Curran e Raphael não estavam em boas condições. De fato, Curran certa vez se referiu a Raphael como o precioso pavão de tia B. — Você vai pedir um favor a Raphael? —Parei e fiz um grande show olhando nos olhos de Curran. — As pupilas não estão dilatadas. Você não está drogado ou bêbado ...

— Ele ajudou a montar o seu negócio, —disse Curran. — E temos algumas coisas em comum.

— Como o quê?

— Eu sei o que ele está passando. Estive lá. Raphael está muito em sua própria cabeça agora. O menino seria bom para ele. Isso o forçará a pensar em outra coisa.

Eu tinha certeza que nada menos que Andrea tiraria Raphael da cabeça dele. — Isso seria ótimo, exceto que ele está com problemas até o pescoço. A Tia B provavelmente já perguntou a ele e ele deve ter dito não.

— Eu não sou a Tia B, —disse Curran.

— Percebo.

Ele acariciou meu ombro. — Sua tatuagem desapareceu. Mal posso ver.

Virei minha cabeça, tentando dar uma olhada no corvo. As linhas pretas do desenho tinham se desvanecido em cinza pálido, a espada e as palavras ??? ??????, ‘O presente do Corvo’, quase desapareceram.

— Doolittle diz que é por causa de toda a medimágica que ele tem me submetido nas últimas semanas. Muitas das minhas cicatrizes também desapareceram. É provavelmente o melhor. Era uma tatuagem de merda de qualquer maneira. Toda vez que alguém via me perguntava o que significava e por que eu tenho letras cirílicas no meu ombro ... —fechei minha boca.

— O que foi?

O alfabeto cirílico foi criado por dois monges gregos por volta de 900 d.C. Antes do alfabeto cirílico, os eslavos usavam a escrita glagolítica, que se baseava na escrita de traços e incisões, runas eslavas.

O sobrenome do engenheiro desaparecido era Kamen. Kamen queria dizer ‘pedra’ em russo. Geralmente, os nomes russos terminavam em ‘-ov’ ou ‘-ev’, mas era possível que sua família tivesse mudado seu sobrenome para facilitar a fala de um inglês.

Liguei para a sala de guarda. Barabas pegou o telefone, seu tom ligeiramente irônico e divertido e antes que eu tivesse a chance de dizer qualquer coisa ... — Sim, consorte?

— Por que todo mundo está me chamando de Consorte?

— Jim designou você como Consorte em documentos oficiais. Você não quer ser chamada de Companheira, Alfa é confuso, e ‘Senhora das Feras’ faria as pessoas rirem.

— Por que é necessário anexar um título para mim?

— Porque você está acasalada ao Senhor das Feras.

Atrás de mim, Curran ria para si mesmo. Aparentemente eu divertia todo mundo esta noite. — Sei que é tarde, mas você poderia encontrar um livro para mim, por favor? Chama-se Os eslavos: estudo da tradição pagã de Osvintsev.

Barabas suspirou dramaticamente. — Kate, você me leva ao desespero. Vamos tentar de novo, do começo, exceto que desta vez vai fingir que é uma alfa.

— Não preciso de uma palestra. Só preciso do livro.

— Muito melhor. Pouco mais rugido na voz da próxima vez?

— Barabas!

— E nós chegamos lá. Parabéns! Ainda há esperança para você. Vou procurar o livro.

Desliguei o telefone e olhei para Curran. — O que é tão engraçado?

— Você.

— Ria enquanto pode. Você tem que dormir eventualmente, e então vou me vingar.

— Você é uma mulher muito violenta. Sempre com ameaças. Deve procurar algumas técnicas de meditação ...

Pulei no sofá e coloquei o Senhor das Feras em uma chave de braço57.


Capítulo 8


OS DOIS RASTREADORES INFORMARAM NO INÍCIO DA manhã seguinte que encontraram o rastro de Julie, mas logo perderam por conta do acônito e encontraram sua trilha de novo na destruída rodovia 23, exceto que era um rastro de duas horas e misturado com aromas de cavalo. A peste estava pedindo carona. Ótimo. Impressionante. Pelo menos sempre carregava uma faca com ela.

Quando contei isso para Curran, ele ignorou e disse: — Se ela matar alguém, nós faremos isso desaparecer.

Lema dos pais dos metamorfos—se seu filho cortar a garganta de alguém, sempre tenha um plano de apoio para fazer o corpo desaparecer.

Coloquei minhas roupas, peguei minha espada, dei um beijo de despedida em Curran e fui para o andar de baixo.

Barabas esperava por mim na escrivaninha, magro, elegante e com um sorriso irônico. A primeira coisa que você notava sobre Barabas era o cabelo dele. Cortado curto nas laterais e atrás, tinha cerca de quatro centímetros de comprimento em cima de sua cabeça, ele escovava e esfregava gel até que todos os quatro centímetros ficassem em pé como os pelos de um cão chateado. Também era brilhante, vermelho ardente. Parecia que sua cabeça estava em chamas.

Tecnicamente, Barabas não era um bouda. Sua mãe se transformava em uma hiena, mas seu pai era um mangusto58 do Clã Ágil. Como era costume nos sindicatos interclânicos com o Bando, seus pais tinham a opção de pertencer a qualquer um dos clãs e escolheram o abraço carinhoso da Tia B e a proteção de suas garras afiadas como navalhas. Diante da mesma escolha em seu décimo oitavo aniversário, Barabas optou por permanecer com o Clã Bouda e logo se deparou com alguns problemas pessoais. Quando a tia B deu-o para mim, foi para seu benefício tanto quanto o meu.

— Bom dia, Consorte. —Barabas me entregou um pacote embrulhado em papel vermelho cintilante. Um grande laço vermelho foi colocado em cima do papel alumínio.

— Por que o embrulho?

— É um presente. Por que não o tornar especial?

— Obrigada. —Desatei o laço. — Esta render que Curran deverá caçar hoje. Leslie Wren. O quanto ela é boa?

— Os vinte melhores do bando. Eu não lutaria com ela, —disse Barabas. — Conheço alguns alfas que também não.

Ótimo. Desembrulhei o papel, revelando uma edição antiga do Osvintsev. — Onde você achou isso?

— Na biblioteca da Fortaleza.

— A Fortaleza tem uma biblioteca?

— Papel e digital.

Folheei as páginas. Runas, runas, runas ... Runas. Uma runa de Algiz invertida. A legenda ao lado dizia — Chernobog59. O Deus Negro.

Certo. Claro, não seria Chernobog, O Deus do Orvalho da Manhã das Pétalas de Rosa, mas uma mulher poderia sempre esperar.

Folheei as páginas procurando pelos deuses e deusas. O panteão eslavo dividia-se em duas facções opostas, benevolentes e malévolas. Eu pulei a facção dos ‘bonzinhos’.

No momento em que virei as páginas para a facção das trevas, uma runa de Algiz invertida me encarou. Ao lado havia um esboço de um homem com um bigode grisalho. Sua armadura preta estava cheia de espinhos. Sua mão apertava uma lança sangrenta. Ele estava em uma pilha de cadáveres desmembrados cobertos de formigas pretas enquanto corvos negros circulavam sobre sua cabeça. A fúria fazia com que seu rosto fizesse uma careta feia. A legenda dizia: Chernobog. A Serpente Negra imortal. Senhor das trevas e da morte. Regente do frio congelante. Mestre da Destruição. Deus da insanidade. Incorporação de tudo de ruim. Perverso.

Barabas olhou por cima do meu ombro. — Isso não parece bom.

O eufemismo do ano. Harven foi sacrificado a Chernobog, provavelmente por um Volhv, um sacerdote pagão eslavo. Os Volhvs tinham amplos poderes, como os druidas, mas ao contrário dos druidas, que eram muito autoconscientes de seu passado de sacrifícios humanos, os Volhvs não tinham aversão à violência. E os Volhvs de Atlanta, infelizmente, não gostavam de mim.

Bati no livro, pensando. A comunidade pagã eslava seguia suas próprias leis: os deuses de luz eram rebatidos pelos da escuridão, e os Volhvs de ambas as facções eram respeitados por igual. Sacrificar Harven tinha necessitado uma enorme quantidade da magia. Um grupo Volhv com tanta magia seria muito conhecido e estaria enraizado na comunidade. Eu não conseguiria nada com eles. Tinha que encontrar um plano B.

Os Volhvs eram todos do sexo masculino. Se você fosse mulher e praticasse magia pagã eslava, provavelmente seria uma bruxa, e a bruxa eslava mais poderosa da cidade era Evdokia. Ela fazia parte do Oráculo da Bruxa e da última vez que nos conhecemos, Evdokia me disse que conhecia meu padrasto. Não tinha ideia se ela falaria comigo, mas valia a pena tentar.

A magia ainda estava em alta, mas tentei o telefone de qualquer maneira. Tom de discagem. Digitei o número de Ksenia. Ksenia possuía uma pequena loja de ervas no lado norte. Fui lá algumas vezes quando meus suprimentos tinham acabado, e a última vez que estive lá, Ksenia se gabou de que Evdokia havia comprado algumas ervas dela. Talvez ela pudesse me arranjar uma audiência.

*

FORA, O VENTO FRIO DE MARÇO ME MORDIA como presas de vampiro. Duas pessoas me esperavam no meu carro. O primeiro era mais alto, o cabelo escuro curto. Usava um moletom cinza escuro e jeans desbotado. Sua postura era enganosamente relaxada, mas ele me observava enquanto eu caminhava. Derek. A segunda pessoa era mais baixa, vestida com um conjunto impecável de jeans pretos, gola alta preta e uma jaqueta de couro. Cabelo preto, rosto angelical e olhos diabólicos. Ascanio Ferara. O garoto era tão bonito que quase parecia irreal. Combine isso com um rosto expressivo que passava da inocência ao remorso e a admiração em um piscar de olhos e você tinha um ímã puro de garotas. Ascanio sabia o efeito que ele tinha e usava cada gota dele a seu favor.

— O que você está fazendo aqui?

Ascanio me ofereceu um sorriso deslumbrante que dizia ‘Eu nunca poderia fazer nada de errado’ com todas as suas forças. — Obedecendo ao Senhor das Feras, Consorte.

— Elabore.

— Fui designado para te proteger.

Só pode estar brincando comigo.

Derek bufou.

Ascanio fingiu não ouvir. — O Senhor das Feras falou comigo esta manhã. Sou responsável pelo seu bem-estar e se você se machucar, eu responderei pessoalmente.

Aaaa, aquele bastardo. Encontrou para o garoto um trabalho duro, não é?

Derek riu baixinho.

Ascanio finalmente julgou necessário reconhecer a existência de Derek. — Isso é algo engraçado?

— Eu nem te conheço e já sinto muito por você.

Ascanio ficou um pouco mais pálido. — Você está dizendo que não sou capaz de proteger a Consorte, lobo?

Derek soltou um riso irônico. — Você foi preso por dois policiais humanos enquanto fazia sua aberração em um necrotério. Não é capaz de se proteger, muito menos a ela.

— Elas eram policiais fêmeas, —disse Ascanio. — E eu me diverti muito. Quando foi a última vez que você transou? Deixe-me saber se você precisa de alguns conselhos.

Derek mostrou os dentes.

Bati nele com meu olhar duro. — Volto já. Fiquem aqui. Não se toquem.

— Você não precisa se preocupar comigo, —disse Ascanio. — Já não posso falar pelo lobo, mas eu prefiro mulheres.

— Cale a boca.

Me virei, marchei de volta para a Fortaleza, peguei o primeiro telefone que vi e disquei 0011 nele. O telefone tocou uma vez e a voz de Curran respondeu. — Sim?

— O que há de errado com você?

— Muitas, muitas coisas.

— Não vou levá-lo comigo. Ele é um garoto.

— Ele é um bouda de quinze anos. Ele suspende trezentos e sessenta quilos em supino e sua alfa me disse que tem uma meia-forma decente.

— Curran!

— Adoro quando você diz meu nome. É tão sexy.

— Estou investigando pessoas que sacrificam assassinos treinados para os deuses das trevas.

— Perfeito. Isso vai mantê-lo ocupado.

Aaaarr. — Não.

— Ele precisa de uma saída para toda essa energia e você poderia usá-lo.

— Em que função?

— Isca.

Por que eu, por que? — Te odeio.

— Se você não o levar, a bola está de volta ao meu campo e eu vou ter que dar a esse pirralho um trabalho duro. A última vez que o sentenciei a trabalhar na construção da Fortaleza esteve fazendo as rochas de supino, fazendo um grande trabalho ‘para as meninas’. Ele tem um cérebro, e o trabalho duro não diz nada em seu caso. Dessa forma, ele pode desperdiçar sua energia tentando protegê-la e, acidentalmente, aprender algo no processo. Pode ser que não aprenda nada, mas ainda assim seria útil. Quando Raphael vier libertá-lo, ele irá beijar suas botas.

— Curran, não estou administrando uma creche aqui. Essa merda vai ficar cabeluda. Você sabe disso e eu sei disso. O garoto pode se machucar.

— Eu tenho que sangrar ele algum dia, Kate. Ele chegou ao Bando tarde. A maioria das crianças da sua idade já teve sua primeira briga com consequências reais. Ele não teve. B tem um fraquinho pelo garoto porque é do sexo masculino e teve uma infância difícil. Ela não vai levá-lo na mão para o resta da vida, e mesmo se o fizer, há dezessete homens no clã bouda agora, todos com menos de dez ou mais de vinte anos. Não tem amigos e está isolado.

— Então, coloque-o com outras crianças da sua idade.

— Não. Não pode ser desafiado, porque é menor de idade, mas os adolescentes lutam pelo domínio entre si. Ele não obedece a hierarquia e acha que é tudo um grande jogo. Vão desafiá-lo e quando isso terminar uma das duas coisas irá acontecer: ou eles vão quebrar seu espírito ou ele vai enlouquecer e matar alguém, e então nem Tia B, nem você, nem ninguém neste Bando poderá protegê-lo. Ele precisa aprender a ser um macho do bando.

— E você acha que eu posso ensinar isso a ele?

— Você não. Mas Derek pode.

Aaa. Agora tudo ficou claro. Ele organizou tudo isso como se estivesse movendo peças de xadrez em um tabuleiro. Cerrei meus dentes. — Estou muito chateada com você agora. Poderia ter me contado tudo isso ontem à noite e me pedir para levá-lo. Em vez disso você me manipulou. Não gosto de me sentir manipulada, Curran. Não gosto de ser colocada nessa posição e caso você tenha esquecido, não sou um dos seus lacaios. Não preciso ser gerenciada e liderada por sua mão.

Sua voz caiu em um tom paciente e medido que me fez querer arrancar sua cabeça. — Você está deixando isso fora de proporção. Está tentando fazer uma briga por nada.

Desliguei o telefone.

O telefone tocou. Eu peguei.

— Kate, —ele rosnou.

— Adivinha? Não tenho que ouvir você. —Desliguei novamente e marchei para fora. Derek e Ascanio estavam em lados opostos do veículo. Apontei para Ascanio. — No carro. Agora.

Ascanio subiu no Jeep. Me virei para Derek. — O que você está fazendo aqui?

— Renunciei.

— Renunciou o que?

Ele sorriu. — Meu trabalho.

O que em nome de tudo que era sagrado ... — Por quê?

Derek encolheu os ombros. — Apenas senti que era hora.

Como arrancar dentes. Tentei falar devagar e formar frases coerentes. — O que fez você deixar o seu trabalho?

Ele olhou para o céu acima de nós. — Curran e eu tivemos uma conversa.

Me perguntei se chutá-lo na cabeça faria toda a explicação sair de sua boca em um único pedaço. — O que ele disse?

— Disse que eu estava fazendo um bom trabalho. Perguntou para mim qual seria o cargo mais alto que um guarda-costas poderia obter no Bando. E eu disse que seria o cargo de proteger o Senhor das Feras e sua companheira.

— Arram ...

— Ele assentiu e perguntou quantos anos eu tinha.

Curran sabia perfeitamente bem quantos anos ele tinha. — Você disse: 'Dezenove' e?

— Ele disse: 'Certo, e o que você vai fazer depois disso?'

Agora fazia sentido. Derek estava sendo desperdiçado no serviço de guarda-costas, e Curran sabia disso. Derek tinha talento e vontade de fazer outra coisa. Ele não podia subir mais alto na escada da guarda do Bando e se sentia confortável onde estava. Aparentemente meu docinho peludo decidiu que era hora de deixá-lo desconfortável. Isso ainda não explicava o que o menino maravilha estava fazendo aqui.

— Então, o que você respondeu?

Derek olhou para mim, seus olhos escuros luminescentes com um brilho que só os metamorfos possuem. — Eu disse: ‘Depois vou desafiar Jim pelo cargo dele.’

Senti um desejo de bater minha cabeça contra algo duro. — Resposta brilhante, menino maravilha. O que Curran disse?

— Ele disse: ‘Em cerca de trinta anos, talvez.’

— Tire lutar com Jim fora de sua mente. Você ainda não chegou lá.

Derek revirou os olhos. — Sim, Sua Majestade explicou-me em detalhes como Jim espirrando na minha direção, eu teria uma estadia de uma semana no hospital.

— Jim é mortal. Não é um exagero, é um fato. Além disso, ele está neste jogo há muito mais tempo que você.

— Sem lutas com Jim. Certo?

— Sim, —concordou Derek.

Talvez ele tenha algum sentido depois de tudo.

— Assim ... —Derek mudou de um pé para outro. — Posso ter um emprego?

Fechei meus olhos e contei de dez a zero. Bem devagar.

— Kate?

— Nas últimas duas vezes que você e eu cruzamos os caminhos, você teve sua perna rasgada e metal derretido derramado em seu rosto.

— O metal foi culpa minha, não sua. —Todo o humor fugiu de seus olhos. Um lobo olhou para mim, um lobo vicioso com um rosto cheio de cicatrizes. — Trabalhei com Jim durante três anos como ‘o cara’. Fui disfarçado, obtive informações e as trouxe de volta, a salvo. Depois disso, fiz a segurança pessoal de Curran por seis meses. Conheço os protocolos de segurança, conheço procedimentos e já provei que posso usar recursos de forma eficaz à minha disposição. Se você me contratar, eu seria um ativo valioso.

— Muito agradável. Quantas vezes você ensaiou esse discurso?

— Estou falando sério, Kate. Posso ser útil para você. Além disso, você precisa de alguém para montar guarda. Você deu Grendel para Andrea, então você não tem um respaldo. Posso vomitar melhor do que um poodle depilado, garanto. E honestamente, você poderia usar um motorista — O que você está insinuando?

— Não estou insinuando, estou dizendo isso. Você é o oposto de Dali. Ela dirige como uma maníaca, você dirige como uma velha senhora ...

Por todos os demônios. Fechei os olhos. Não podia lhe dizer que não e ele sabia.

— Está bem?

— Preciso que você vá até a garagem e pegue outro Jeep, porque o meu só acomoda dois. Então preciso que você me siga no outro Jeep. E se eu ouvir de novo algum sussurro sobre minhas habilidades de direção, vou demitir você na hora.

— Obrigado, Kate. —Ele sorriu e saiu correndo.

Curran se livrou de Ascanio e me selou com não um, mas dois guarda-costas. Deus ajude qualquer um que ousasse me olhar de maneira engraçada. Eles o rasgariam em pedaços, apenas para superar um ao outro.

*

NÃO IMPORTAVA QUANTAS VEZES VISITASSE O CASINO, sempre me pegava de surpresa. Depois dos duros congelamentos de um inverno assustadoramente frio, o início da primavera pintava Atlanta de preto, marrom e cinza. Ruínas sombrias surgiam aqui e ali, como cascas escuras manchadas de chuva fria de primavera. Casas desoladas olhavam para as ruas com janelas gradeadas. A lama manchava as ruas, agitadas pelo tráfego de cavalos, mulas, bois e um ocasional camelo. Vagões rangiam, motores roncavam, motoristas soltavam xingamentos um para o outro, animais zurravam ... E então você virava a esquina e se deparava com o castelo vindo direto das Mil e Uma Noites. Branco puro e quase delicado, flutuava no meio de um enorme lote, ladeado por elegantes torres e envolvido por uma parede com um parapeito texturizado. Longas fontes se estendiam em direção às portas ornamentadas e deuses hindus, fundidos em bronze e cobre, posavam congelados no tempo acima da água.

Por um momento, fiquei sem fôlego. E então você via os vampiros, manchados de protetor solar roxo e verde limão, patrulhando aquelas paredes brancas como neve e a realidade voltava muito rápido. Havia algo tão estranho e fora do lugar sobre os mortos-vivos rastejando sobre toda aquela beleza. Queria arrancá-los como pulgas de um gato branco.

Parei o carro no estacionamento e desliguei o motor. Um momento depois, Derek encostou o outro veículo ao lado do meu, estacionou e saiu. — Vamos entrar?

— Vamos.

— Com ele? —Acenou para Ascanio.

O garoto mostrou os dentes. — O que exatamente você quer dizer com isso?

Virei-me para ele. — Quem é o principal inimigo do Bando?

Ascanio hesitou. — A Nação?

Eu assenti. — Temos uma trégua muito desconfortável. Tenho que ir ao Casino para conversar com Ghastek. Ele é um Mestre dos mortos. Porque eu sou a Consorte, eu não posso entrar lá sem uma escolta adequada. —Agora eu estava me chamando de Consorte. Alguém me mate!

— Se Kate for sozinha, a Nação pode alegar que ela fez algo para quebrar a trégua, —disse Derek. — Ou algo poderia acontecer com ela. Desta forma, vamos agir como testemunhas.

— Você tem uma escolha: pode ficar com os veículos ou pode vir conosco, —eu disse. — Mas se você decidir vir, obedeça a Derek e mantenha sua boca fechada. Você não flerta, não faz piadas, não dá respostas para qualquer tipo de ofensa que vier. Uma palavra errada e estamos em guerra. Fui clara?

Ascanio assentiu. — Sim, Consorte.

— Bom. —Peguei uma pasta de papel pardo no banco da frente do meu Jeep e tranquei o carro. — Coloquem suas caras de fodões e siga-me.

Nós atravessamos o estacionamento comigo liderando o caminho e Derek e Ascanio atrás, com as caras de poucos amigos e emanando uma disposição para matar, no caso de qualquer pessoa perdida sair da linha. Duas sentinelas solenes com espadas curvadas de yatagan60 guardavam as portas do casino. Passamos direto por eles, atravessando o andar cheio de máquinas caça-níqueis improvisadas para trabalhar durante a magia, cruzamos até o fundo onde havia um balcão de atendimento. Uma jovem, no uniforme do casino de calça preta e colete roxo escuro, olhava para mim por trás do balcão.

— Kate Daniels, —disse a ela. — Preciso ver Ghastek.

Ela assentiu. — Por favor sente-se.

Sentei. Os dois garotos ficaram de pé, um de cada lado da minha cadeira. O barulho da multidão flutuou pela porta, um zumbido constante interrompido por explosões periódicas de risos e gritos.

A porta lateral se abriu e um homem loiro saiu. — Bom Dia. Sinto muito, mas seus acompanhantes terão que permanecer aqui.

— Tudo bem. —Me levantei.

— Por favor siga-me.

Segui pelas escadas para baixo, depois por corredores e para uma escada novamente. Descemos cada vez mais, um andar, dois, três. O ar cheirava a mortos-vivos, um aroma seco e revoltante, misturado com um toque de magia suja.

Nós entramos no patamar e outro lance de escadas rolava para baixo, terminando no chão de pedra e uma porta de metal. Um vampiro agarrava-se à parede acima dela, como uma lagartixa musculosa de aço, seus olhos vermelhos maçantes rastreando nossos movimentos. Antes da Mudança, as corporações instalavam câmeras. Agora a Nação instalou vampiros.

O homem loiro abriu a porta e levou-me a um estreito túnel de concreto, com o teto pontuado por pontos brilhantes de luz elétrica. O ventre do Casino era um labirinto de túneis claustrofóbicos. Vampiros soltos não eram bons em sentido de direção. No caso das fechaduras em suas celas quebrarem, o pessoal das salas evacuaria, e os vampiros soltos vagariam pelos túneis, confusos e contidos, até que os navegadores os segurassem um por um.

Os túneis terminaram, abrindo-se para uma enorme câmara cheia de celas, colocadas de costas em fileiras duplas que apontavam para o centro da sala como raios de uma roda. As paredes laterais e as partes de trás das celas eram de pedra e concreto, mas as frentes consistiam em grades grossas de metal, projetadas para deslizar para cima. O fedor da morte me atingiu com força total e eu quase vomitei. Vampiros enchiam as celas, acorrentados às paredes, andando atrás das barras de metal, agachando-se nos cantos, os olhos loucos brilhando com a fome insana.

Chegamos ao centro vazio da sala e viramos outra fileira de celas. À nossa frente, uma sacada de vidro se projetava da parede. Os painéis de vidro colorido pareciam opacos do lado de fora, mas eu já tinha estado no escritório de Ghastek antes. De dentro, o vidro era cristalino.

Passamos por outra porta, por um túnel de acesso e por uma porta de madeira marcada com o símbolo de Ghastek: uma flecha com um círculo. Meu guia se afastou. Eu bati.

— Entre, —gritou a voz de Ghastek.

Oh bom. Empurrei a porta e ela se abriu silenciosamente sob a pressão dos meus dedos.

Uma grande sala me cumprimentou, parecendo mais uma sala de estar do que o lar de um Mestre dos Mortos. Prateleiras cobriam a parede dos fundos, cheias até o ponto de arrebentar com livros de todas as cores e tamanhos. Na parede oposta, um par de algemas medievais estava pendurado em ganchos, exibidos como uma obra de arte de valor inestimável. Um sofá vermelho em forma de lua estava no meio do chão escuro, de frente para o balcão de vidro que oferecia uma visão do chão ao teto das salas de jogos. No outro extremo do sofá, estava sentado Ghastek, vestindo calças pretas sob medida e uma gola alta. Ele já era magro e as roupas severas o faziam parecer quase esquelético. Estava bebendo um café espumante de um pequeno copo marrom. Dois vampiros sentavam no chão ao lado dele, um de cada lado. Os vampiros agarravam agulhas de tricô, movendo-os com velocidade vertiginosa. Uma longa amostra de tecido de malha, um azul e outro verde, estendia-se de cada um deles.

Está bem então. Se isso não era uma comovente pintura de Norman Rockwell61, eu não sabia o que era.

As agulhas estalavam, mastigando o fio. Eu podia controlar vários vampiros ao mesmo tempo, mas não conseguiria fazer um tricô mesmo que as agulhas fossem tão grossas quanto meus dedos e as movesse em câmera lenta. Ghastek tinha dois fazendo ao mesmo tempo. Lutei contra um arrepio. Ele poderia enviar um daqueles sanguessugas para a frente e me esfaquear nos olhos, e eu não tinha certeza se seria rápida o suficiente para pará-lo.

— É um momento ruim? —Perguntei. — Posso voltar se você e os gêmeos estão tendo um momento particular.

O olhar de Ghastek se fixou em mim. — Não seja grossa, Kate. Gostaria de uma bebida?

Beber seria estúpido, não beber seria um insulto. Mas então duvidava que Ghastek se desse ao trabalho de me envenenar. Não era o estilo dele. — Água seria bom.

O vampiro da esquerda deixou cair as agulhas e correu para outra sala.

Tirei meu casaco, dobrei-o e o coloquei no braço do sofá e me sentei. — Não pode me culpar por pensar que você é esquisito. Você tem algemas na parede.

Os olhos de Ghastek se iluminaram. — Ah. Essas são interessantes, não são? Eles são de Nordlingen, na Alemanha, do final do século XVI.

— Da inquisição das bruxas?

Ghastek assentiu.

— Você acha que teria sido queimado na fogueira no século XVI?

— Não.

— Porque você não é uma mulher?

— Ser mulher fazia pouca diferença. A maioria das bruxas queimadas na Islândia e na Finlândia eram homens, por exemplo. Não, eu não teria sido queimado porque não sou pobre.

O morto-vivo voltou e se agachou ao meu lado, segurando um copo de água com gelo em suas longas garras. Uma fatia estreita de limão flutuava na água. A boca do vampiro estava aberta, as estreitas foices de suas presas totalmente brancas contra a escuridão de sua boca. Serviço com sorriso.

Peguei a água e tomei um gole. — Obrigada. Então, por que as algemas?

O morto-vivo voltou ao seu tricô.

— As pessoas nos veem e a nossos vampiros como abominações, —disse Ghastek. — Eles chamam os mortos-vivos de desumanos, sem perceber a ironia: apenas humanos são capazes de desumanidade. Quatro mil anos de tecnologia, com magia encolhendo a um mero fio antes da Mudança, mas o mundo era tão maligno quanto agora. Não são vampiros ou lobisomens que cometeram as piores atrocidades, mas pessoas comuns. Elas são os assassinos, os estupradores de crianças, os inquisidores, os caçadores de bruxas, os perpetradores de ações monstruosas. As algemas na minha parede são o símbolo da capacidade da humanidade para a crueldade. Eu as mantenho para me lembrar de que devo temer aqueles que me temem. Dada a sua afiliação atual, eu sugiro que você faça o mesmo.

Isso bateu perto de casa. Se minha linhagem se tornasse conhecida, as pessoas se alinhariam ao redor do quarteirão para me matar ou banir-me o máximo que pudessem para se manterem protegidas da ira de Roland quando ele e eu tivermos nossa feliz reunião de família.

Ghastek tomou um gole de seu café. — Estritamente por curiosidade, qual foi o fator decisivo na escolha do Senhor das Feras? Você tinha opções e a vida com ele deve ser controlada. Ele parece ser do tipo que afirma seu domínio e você sempre pareceu uma pessoa que não gosta de ser dominada.

— Eu o amo.

Ghastek pensou por um segundo e assentiu. — Ah. Isso explica tudo.

Os vampiros continuaram sua maratona de artesanato. — Por que tricô?

— É intrincado. Poderia tê-los fazendo colar de miçangas ou figuras com dominós. É um exercício.

O desmaio o abalou. Ele estava tentando se assegurar de que ainda tinha tudo sob controle. Talvez eu pudesse pedir um par de meias artesanais.

— Como está Emily?

O olhar de Ghastek ganhou uma borda gelada. — Sua perna teve que ser amputada. Ela terá a melhor prótese que podemos fornecer. O PAD deve pagar por isso. Tenho a intenção de seguir tratando a questão com todos os recursos a minha disposição.

Tecnicamente, a lei estava do lado do PAD. Quando confrontados com um sugador de sangue solto, eles eram obrigados a fazer tudo ao seu alcance para limpá-lo da face do planeta, não importando as consequências. Mas a Nação não se esqueceria disso. Eles guardavam ressentimentos para sempre e além.

Enfiei a mão no meu bolso. — Eu trouxe uma fatura pela a captura do vampiro.

Ghastek suspirou. — Claro.

O vampiro à direita correu, pegou o papel da minha mão e entregou para Ghastek. Ele olhou. Seus olhos arregalaram. Enfiou a mão no bolso, tirou uma carteira de couro, extraiu um dólar e passou para o vampiro. O morto-vivo trouxe para mim e eu coloquei na pasta. — Pago integralmente. Você gostaria de um recibo?

— Por favor.

Um recibo de um dólar. Por que isso não me surpreendeu? Escrevi o recibo, inclinei-me e entreguei a ele. — Quando você me ligou na quarta de manhã, como você fez isso?

— Perdi alguns segundos valiosos em um telefone público.

Foi o que pensei. — Fiquei pensando um pouco ...

— Esse é um passatempo muito perigoso, —disse Ghastek.

Ele fez uma piada. Certamente o apocalipse não estava muito longe. — O vampiro estava solto. Você não tinha como saber que iria correr em direção ao meu escritório. Vampiros soltos são atraídos pelo sangue. Na ausência de sangue, eles tendem andar sem rumo. No entanto, os vampiros têm glândulas de cheiro perto da base de seus dedos. Eles marcam o chão enquanto correm. O cheiro é muito fraco, mas quando um vampiro segue a mesma rota várias vezes, eles criam uma trilha de perfume inconfundível.

Ghastek assentiu. — Essa é uma das razões pelas quais preferimos executá-los ao longo dos telhados.

— Isso faz com que matar pessoas seja mais fácil pulando sobre suas vítimas desavisadas de cima.

— De fato.

— Um vampiro solto naturalmente seguirá um rastro de cheiro vampírico se tropeçar nele, porque pode haver comida do outro lado. —Peguei um mapa da minha pasta e apontei para a linha vermelha que marcava o seu caminho pelas ruas. — Esta é uma seção da sua linha de patrulha. Pelo menos três vampiros passam por essa rota todos os dias. Eu diria que essa é uma trilha de cheiro tão forte quanto você poderia conseguir. A navegadora estava patrulhando essa rota quando ela desmaiou e perdeu o vampiro?

— Correto. —Ghastek estava me observando com interesse agudo. — Desde que o vampiro já estava seguindo o rastro de cheiro, eu senti que era improvável que ele se desviasse de seu curso. Seu escritório fica bem embaixo da nossa linha de patrulha externa. O prédio em si está no território do Bando, mas o estacionamento está no nosso. Tenho certeza que foi erro de design.

Isso era. A localização do meu escritório me colocava em uma posição perfeita para observar a fronteira da Nação.

Curran e eu havíamos discutido extensamente esse detalhe. Essa era parte da razão pela qual minha porta poderia suportar o bombardeio concentrado de um tanque. No caso dos metamorfos terem problemas em suas aventuras da meia-noite na terra dos vampiros, eles poderiam correr para o meu escritório e se esconder atrás da minha porta robusta.

— Foi uma jogada inteligente da parte do Bando, —disse Ghastek. — O acordo de cooperação proíbe que qualquer estrutura do Bando ou da Nação seja fortificada dentro de uma milha da fronteira, mas não proíbe uma empresa licenciada por qualquer das partes.

— E eu tenho certeza que você licencia várias empresas perto da fronteira.

— Não seria do meu interesse confirmar ou negar. —Ghastek permitiu-se um pequeno meio sorriso.

Aqui vêm a parte difícil. Eu tinha que dizer o suficiente para manter seu interesse, mas não muito para trair a confidencialidade da Guarda Vermelha. — Estou trabalhando em um caso em Sibley. Durante minha investigação, encontrei uma área que a Proteção desapareceu.

Ghastek se inclinou para frente. — O que você quer dizer com desapareceu?

— Desapareceu, como se nunca tivesse estado lá. —Virei o mapa e apontei para Johnson Ferry. — Essa ponte é uma das duas principais formas de sair de Sibley e entrar na cidade. Ontem, as Proteções guardando o Troll da Ponte também desapareceram. —Eu segui com o dedo no mapa Johnson Ferry até cruzar a linha vermelha da patrulha de vampiros. — Estou supondo que este é o ponto em que sua garota perdeu o vampiro.

Ghastek não disse nada.

— Alguma coisa passou por Sibley, pela ponte e por essa rua. Algo que destruiu as Proteções e contaminou seu vampiro. Suas próprias oficiais navegadoras me disseram que não conseguiam entender o porquê. Eu acho que levou todo o seu poder para segurá-lo. —Foi por isso que ele fez um show para o PAD. Foi um blefe enorme e chocante.

Ghastek riu baixinho.

— A coisa que destruiu a Proteção deixou Sibley em uma carroça ou um carro, e sua garota provavelmente viu isso antes de desmaiar. Eu preciso saber como era esse veículo.

Ghastek considerou isso. — Vou pensar sobre isso.

Eu salvei a vida desse miserável. Aparentemente, isso não valia uma pequena migalha de informação. Debater com Ghastek em seu próprio escritório estava fora de questão. Primeiro, ele tinha dois vampiros com ele e, segundo eu causaria um incidente diplomático. Me levantei. — Faça isso.

Estava quase na porta quando ele falou. — Kate?

— Sim?

— Gostava mais de você como uma mercenária.

— Eu também. —Poderia chutar as pessoas e dizer o que realmente pensava, sem causar um desastre diplomático. — Mas todos nós temos que crescer em algum momento.

*

QUANDO NOSSO DESFILE DE DOIS JEEPS chegaram ao escritório, Andrea já estava lá. Sabia disso porque havia uma nova poça nojenta de vômito de cachorro a três metros de nossa porta lateral.

Os dois metamorfos adolescentes observavam o vômito.

Apontei para o ponto na frente da porta. — Ascanio, fique bem aqui.

Ele se mudou para o local. — Por quê?

Pisei para o lado e abri a porta. Cinquenta quilos de Grendel, presos em intensa alegria canina, irromperam pela porta. O poodle de ataque lançou-se no ar. Ascanio agarrou-o e apertou Grendel com força.

Bom tempo de reação, garoto.

Ascanio olhou para o poodle. — O que é isso?

— Um fiel companheiro canino.

— Ele fede como um esgoto.

O poodle mutante se contorceu e lambeu o queixo de Ascanio.

— Nojento. O que eu faço com ele?

— Traga-o para dentro.

Entrei no escritório. Atrás de mim, Derek disse: — Lavaria meu rosto se fosse você.

— Cuide da sua vida, lobo.

O escritório cheirava a café. No interior, Andrea levantou a cabeça de um pequeno laptop colocado em cima da papelada espalhada em sua mesa. — Por que demorou tanto?

— Bom dia para você também, sol. —Deixei minha bolsa na minha cadeira.

Andrea jogou um envelope para mim. Olhei para ele. O logotipo do escudo da Ordem marcava o canto superior esquerdo.

Uuu-óóó...

— O que é isso?

— Shane, —ela rosnou. — Ele quer que eu 'cesse meus esforços' para pegar minhas armas, porque elas estão sendo usadas para prender criminosos reais.

Ah, pensei que era algo terrível. — Ele está apenas sacudindo sua coleira. Se você quiser, vou pedir a Barabas que faça uma carta com as credenciais de advogado dele. Vamos enviá-lo para a Ordem e você receberá suas armas de volta. Shane não pode segurar sua propriedade.

— Eu sei disso. Ainda estou chateada. É seu dever, como minha melhor amiga, ficar indignada comigo.

— Estou indignada! —Rosnei. — Aquele bastardo!

— Obrigada, —disse Andrea.

Ascanio limpou a garganta. — Consorte? Posso colocá-lo no chão agora?

Virei. Ainda segurava Grendel, que parecia estar gostando, a julgar pela maneira como continuava lambendo o ombro de Ascanio. Atrás dele, Derek tentava sufocar uma risada.

— Sim.

Ascanio colocou Grendel no chão.

Andrea olhou para Derek. — O que você está fazendo aqui?

— Eu o contratei, —disse a ela.

As sobrancelhas loiras de Andrea se arrastaram por uma fração de centímetro. — E ele?

— Ele também.

Andrea apontou para Ascanio com a caneta. — Quantos anos você tem?

— Quinze.

— Ele não pode trabalhar aqui. É jovem demais.

Ignorei. — A idade legal para o emprego é catorze.

— Sim, com exceção de trabalhos perigosos.

— Ele será um ajudante de escritório. Como isso é perigoso?

— Kate! Você gostaria de ir lá fora e ver os buracos de bala na calçada?

— Ele não será um funcionário em tempo integral. Ele é um estagiário.

Andrea olhou para mim por um longo momento. — Eu não acho que você entende todo esse negócio. Clientes produzem dinheiro. Empregados custam dinheiro. Queremos menos funcionários e mais clientes, e não o contrário. Nós não precisamos de adolescentes viciados em sexo como estagiários.

— Como você sabe que ele é um viciado em sexo?

Andrea olhou para mim como se eu estivesse com problemas mentais. — Ele tem quinze anos e é um bouda. Oi?

Bom ponto. Balancei a cabeça para o menino maravilha e o demônio sexual. — Puxem algumas cadeiras.

Quando voltei da cozinha com uma garrafa de café e quatro canecas para despejá-la, todos se reuniram em torno da mesa de Andrea.

Abri a pasta do arquivo do caso e o repassei para eles. No momento em que terminei, Derek tinha o cenho franzido. Um resplendor iluminou os olhos de louco do Ascanio. — Você acha que vão tentar nos matar?

— Sim.

— Legal.

Legal. Certo. — Há um freezer na sala dos fundos com o corpo de Harven. Vá e examinem. Olhem para o rosto dele e memorize os aromas. Depois disso, andem pelo escritório para conhecer o layout.

Eles decolaram.

— O que está te incomodando? —Andrea perguntou.

— Tive uma briga com Curran.

— Sobre o quê?

— Ele está me manipulando.

Andrea levantou as sobrancelhas.

— Ele manobra eventos, tirando minhas escolhas até que haja apenas uma solução possível para um problema. Isso me irrita.

— Isso é o que os alfas fazem. —Andrea fez uma careta. — Recebi uma nota da Tia B ontem à noite.

Aviso, aviso, armadilhas montadas à frente. — E?

— Ela quer me encontrar. Para um ‘bom papo’.

Sabia exatamente o que este bom papo seria. Andrea era uma metamorfa e nenhum metamorfo poderia existir dentro de Atlanta sem se tornar um membro da horda peluda do Bando. Antes, Andrea era um membro da Ordem, e os boudas mantiveram seu segredo. Agora ela estava afastada da Ordem. Andrea teria que fazer uma escolha: entrar no Bando e se tornar uma das boudas da Tia B ou ir embora. Depois de sua infância, Andrea preferia cortar o braço do que se tornar uma bouda.

— Não vou, —Andrea disse de repente.

A Tia B não deixaria passar. De todos os alfas do Bando, dois me deram uma pausa: Mahon, o executor do bando e o chefe do Clã Heavy, e Tia B. Provocar Tia B era como colocar as mãos em um moedor de carne. Ela era toda doçura e biscoitos, e então garras gigantescas saíam e as entranhas das pessoas terminavam como guirlandas no lustre.

— É uma cortesia, —disse a ela. — Ela está deixando você se aproximar no seu tempo. Mas se demorar muito, vai forçar você falar com ela.

— Eu sei. —Andrea trancou os dentes. Certo. Nenhuma vida inteligente aí dentro. Argumentar sobre isso só pioraria as coisas.

Os dois metamorfos trotaram de volta e sentaram-se à mesa.

Expliquei sobre Chernobog, o sobrenome de Adam, e o fato de que ele provavelmente tinha laços com uma comunidade russa.

Andrea franziu a testa. — Um sacrifício dá ao sacerdócio um impulso mágico.

Assenti. — Só dura alguns segundos, mas sim.

— Ele poderia pegar Adam e sua ‘coisa’ e se teleportar para fora?

Agora havia um pensamento. — Se ele for um Volhv realmente poderoso, provavelmente sim. Mas por que os Volhvs precisariam de Adam?

— Eu não entendo, —disse Derek. — Por que não podemos simplesmente conversar diretamente com eles?

— Quando eu era mercenária, aceitei um emprego para proteger um homem. Ele havia roubado algo dos Volhvs e eu os impedi de matá-lo. Eles não falam comigo ou com ninguém associado a mim. —Fiz uma pausa para me certificar de que tinha a atenção deles. — Volhvs trabalham ao redor de magias pesadas. Assim que começarmos a fazer perguntas, eles estarão sobre nós como pulgas. Precisamos de um protocolo de segurança.

Olhei para Derek. Comece a ganhar seu sustento, menino maravilha.

Ele se afastou da borda da mesa. — Daqui em diante estamos em alerta máximo. Saímos juntos, chegamos juntos. Este escritório é uma pequena fortaleza. —Derek apontou para a porta e olhou para Ascanio. — Enquanto estivermos no escritório, essa porta fica trancada. A porta dos fundos é reforçada com uma grade de metal. Ela também fica trancada e bloqueada em todos os momentos também. Nós não abrimos as portas a menos que conheçamos a pessoa do outro lado e elas cheirem bem. Se você tiver que sair, deixe alguém saber para onde você está indo e quando voltará, a menos que seja uma emergência.

O telefone tocou. Peguei.

— Kate? —A voz de Ksenia do outro lado. — Evdokia diz que vai encontrá-la no John White Park. Eu iria correndo e não andando se eu fosse você.

— Obrigada. —Desliguei. — Tenho uma audiência com uma bruxa.

— Nós dividimos e conquistamos. —Andrea se levantou. — Derek, você e eu precisamos cavar o passado de Harven. Sua casa, seus vizinhos, história, tudo o que podemos conseguir.

— E eu? —Perguntou Ascanio.

— Você protege o escritório, —disse a ele.

— Mas ...

— Este é o momento em que você diz: 'Sim, Alfa’, —disse Derek.

Ascanio lançou-lhe um olhar que era puro assassinato. — Sim, Alfa.

Isso não ia acabar bem. Tinha certeza.


Capítulo 9


EM OUTRA VIDA, JOHN WHITE PARK POSSUÍA UM CAMPO de golfe ladeado por um bairro de classe média de casas de alvenaria e ruas de curvas arbitrárias. As casas ainda sobreviviam, mas o parque havia ido para o inferno há algum tempo. Densa vegetação rasteira marginava a estrada de asfalto que se desfazia e, passando por ela, álamos62 chegavam ao céu, disputando espaço com pinheiros retos.

Segundo os mapas, antes da Mudança, o parque tinha uns quarenta acres. Segundo os mapas recentes do Bando, que era a inveja de todos os agentes da lei na área e do qual eu era agora uma orgulhosa proprietária por ser a ‘Consorte’, o parque aproximava-se dos noventa. As árvores tinham comido um pedaço da subdivisão ao sul da rua Beecher e invadiram o cemitério de Greenwood.

Noventa acres de mata densa tinham muito terreno para cobrir.

Virei a esquina. Um grande pato estava no meio da rua. À esquerda do pato, uma vala profunda ocupava metade da estrada. De jeito nenhum.

A magia estava em alta e meu Jeep fez barulho suficiente para dar inveja a um deus do trovão. Achei que o pássaro estúpido se moveria. Desci a mão na buzina. O pato olhou para mim, agitando suas penas marrons.

Bi, bi, biiiiiimmmmm ...

Nada.

— Mova-se, seu pássaro bobo.

O pato permaneceu sem se impressionar. Estava entediada. Essa vida de acasalamento me deixou muito mole. Não conseguia assustar um pato fora da estrada.

Saí do Jeep e fui até o pato. — Corra!

O pássaro me deu um olhar maligno.

Cutuquei gentilmente com a minha bota. O pato se levantou e encostou no meu pé. O bico beliscou minha calça jeans e o pássaro tentou me puxar para a esquerda. Um de nós estava louco e não era eu.

— Isso não é engraçado.

O pássaro virou à esquerda e soltou um único grasnido alto.

— O que foi? Timmy caiu em um poço?63

— Quack!

Dei alguns passos para frente e vi uma abertura estreita na parede verde. Um caminho, mergulhando profundamente no parque. Eu olhei para a floresta. Não dizia ‘Eu vou matar você com minhas árvores’ do jeito que Sibley fazia, mas também não parecia nada bom.

O mato era muito denso para um voo de pato. Terrenos difíceis para atravessar a pé, especialmente se você tiver que gingar.

— Como eu deveria segui-lo até lá, seu pássaro demente? Você não pode voar através desses troncos. A menos que você esteja planejando perder uns quilos ...

O pato estremeceu. Penas rastejaram, afundando de volta na carne, dobrando-se. Meu estômago revirou. Penugem densa brotou enquanto o corpo do pato desaparecia, se remodelando. A bolha que costumava ser pato esticou uma última vez e encaixou em um pequeno coelho marrom.

Fechei minha boca com um clique.

O coelhinho tirou uma poeira inexistente do nariz com as duas patas e desceu pelo caminho. Voltei ao Jeep, desliguei o motor e persegui o coelho-pato pela densa mata da floresta de John White.

*

A FLORESTA PULAVA COM VIDA. Esquilos minusculos subiam e desciam as árvores. Um galo silvestre atirou-se no chão da floresta. Em algum lugar à esquerda, um javali grunhiu. Três cervos me viram seguir o caminho de uma distância segura. Afundei-me no andar tranquilo que utilizava quando caminhava pelo bosque: enganosamente calma e sem pressa. O pequeno coelho se adaptou a meu passo e fez coro a meu lado.

Um galho se quebrou. Corri para um lado e saltei detrás de um carvalho. O coelho se escondeu a meus pés, tremendo.

Me inclinei apenas o suficiente para ver. Uma flecha brotou do chão onde meu pé havia estado um segundo atrás. O ângulo era alto. Olhei para cima. Do outro lado do caminho, um homem se agachou em uma árvore velha, posicionado em um local onde o tronco se dividia em dois ramos maciços. Jovem, vinte e poucos anos. Calça jeans esfarrapada, manchada de marrom e verde, camiseta marrom simples. Parecia o camuflado padrão do exército. Cabelo curto. Os galhos obscureciam o rosto e a maior parte do peito. Nenhum lugar para afundar uma faca de arremesso.

Quando não tem certeza das intenções do estranho, a melhor política é abrir um diálogo significativo. — Ei, idiota! Quem te ensinou a atirar? Louis Braille64? Aquela flecha passou longe de mim por uma milha.

— Estava apontando para o coelho, sua cadela estúpida.

— Você errou. —Se eu o irritasse o suficiente, ele poderia se mover para ter uma chance melhor em mim. Minhas facas de arremesso não podiam esperar para dizer olá.

— Eu vejo isso.

— Pensei só em te informar, já que você deve ser cego. Talvez possa praticar apontando para um celeiro.

Uma corda do arco vibrou. Me abaixei atrás da árvore. Uma flecha cortou as folhas a um fio de cabelo do carvalho.

Ele era bom, mas não ótimo. Andrea teria terminado com isso.

— Você está viva? —Ele gritou.

— Sim. Ainda respirando. Você perdeu de novo, garotão.

— Olha, não tenho nenhum problema com você. Me dê o maldito coelho e vou deixar você ir.

Sem chance. — Este é meu coelho. Obtenha o seu próprio.

— Não é seu coelho. É o coelho da bruxa.

Imaginava. — Você tem um problema com a bruxa?

— Sim, eu tenho um problema.

Se Evdokia o quisesse morto, ele estaria morto. Esta era a floresta dela. Ela não o matou, o que significava que ela se divertia com suas travessuras, ou pior, ele era um parente ou um filho de um amigo. Feri-lo estava fora de questão, ou eu poderia dar adeus a qualquer chance de cooperação de Evdokia.

— Última chance, me dê o coelho e vou embora.

— Não.

— Você escolheu, então.

Um assobio estridente atravessou a floresta, destruindo meus tímpanos. O som disparou cada vez mais alto, para uma intensidade insuportável. Apertei minhas mãos sobre meus ouvidos.

O assobio se construiu, cortando as pétalas de flores silvestres à esquerda e à direita do carvalho, apunhalando das minhas mãos até o meu cérebro. O mundo desapareceu. Provei sangue na minha boca.

O apito parou.

O súbito silêncio foi ensurdecedor.

Os contos de fadas russos falavam de um Bandido Rouxinol, capaz de dobrar árvores com seu assobio. Parecia que encontrei a versão na vida real.

— Você está viva? —Ele gritou.

Mal. — Sim. Cavei no meu cérebro, tentando lembrar os velhos contos folclóricos russos. Ele tinha alguma fraqueza? ... se tinha, não me lembrava de nenhum. — Você assobia lindamente. Faz casamentos também?

— Em cinco segundos, vou dividir a árvore no meio e você com ela. Será difícil fazer piadas com seus pulmões cheios de sangue.

Deslizei uma faca de arremesso da bainha no meu cinto e dei uma olhada. Ele sentou-se em uma árvore, uma perna debaixo dele, a outra pendurada. Relaxado e fácil.

— Tudo bem, você me pegou. Estou saindo.

— Com o coelho?

— Com o coelho. Coloquei uma faca de arremesso na minha mão, testei seu peso, e farfalhei as ervas daninhas à minha esquerda com o meu pé. O Rouxinol inclinou-se para o lado, tentando dar uma olhada melhor. Lancei-me para a direita e joguei a faca. A lâmina cortou o ar. O cabo de madeira bateu em sua garganta. O Rouxinol emitiu um pequeno som gorgolejante. Corri para a árvore, agarrei seu tornozelo e o puxei para baixo. Ele caiu no chão como um tronco. Bati na garganta dele um par de vezes para ter certeza que ele ficasse quieto, coloquei-o de bruços, puxei uma algema de plástico do meu bolso e amarrei suas mãos juntas.

— Não vá a lugar nenhum.

Ele gorgolejou alguma coisa.

Circulei a árvore e corri para um cavalo amarrado ao galho, com a cabeça envolta em algum tipo de tela. Um rolo de corda esperava na sela. Mas olha, isso não é conveniente?

Peguei a corda e puxei o Rouxinol em pé contra a árvore, de frente para a casca. Ele era baixo, mas bem musculoso, seu cabelo escuro cortado em uma mera penugem em sua cabeça.

Um suspiro rouco saiu de sua boca. — Cadela sangrenta.

— Teve sorte. —Terminei de amarrá-lo. Ele não conseguia nem virar a cabeça. — Lembre-se, poderia ter sido a outra ponta da faca.

Recuei. Ele parecia seguro o suficiente. Cortei o nó e pendurei-a pela casca para que ele pudesse ver. — Vou ver a bruxa agora. Em seu lugar, eu tentaria me libertar. Posso estar de mau humor no meu caminho de volta. Venha coelhinho.

O coelho desceu pelo caminho e eu o segui, ouvindo a doce serenata de maldições.

*

O TRONCO TINHA DOIS METROS E COBERTO com crânios humanos enegrecidos, decorado por uma vela meio derretida. Ele se projetava ao lado da estrada, como um marcador de caminho sinistro. Alguns metros depois, outro crânio amarelado oferecia uma segunda vela. Algumas pessoas usavam tochas tiki65. Outras usavam crânios humanos ...

Olhei para o coelhinho-pato. — Em que você me meteu?

O coelhinho-pato esfregou o nariz.

O crânio parecia um pouco estranho. Por um lado, todos os dentes eram iguais. Fiquei na ponta dos pés e bati na têmpora óssea. Plástico. Há, há.

O coelho pulou a trilha. Nada a fazer além de seguir.

O caminho se abriu em um jardim. Para a esquerda, arbustos de framboesa se erguiam ao lado de groselhas. À direita, sentavam-se fileiras de morangos, pontuadas por lanças de alho e cebola, para evitar os insetos. Árvores subiam aqui e ali, cercadas de ervas. Eu reconheci maçã, pêra e cereja. Depois de tudo, no final de um caminho sinuoso no meio de um gramado verde, havia uma grande casa de madeira. Melhor dizendo, a parte de trás de uma grande casa de madeira.

Duas janelas de vidro limpas me encaravam acima de um parapeito da varanda, mas nenhuma porta era visível.

Nós paramos na casa. O que agora?

— Toc-Toc?

O chão estremeceu sob meus pés. Dei um passo para trás. A borda da varanda tremeu e subiu, subindo e balançando-se um pouco, abaixo dela enormes pernas de galinha cavados no chão com garras do tamanho de meus braços.

Puta merda.

As pernas se moviam, girando a casa com uma lentidão enorme a três metros do chão: canto, parede, outro canto, Evdokia sentada numa cadeira de balanço na varanda.

— Assim já está bom, disse a bruxa.

A casa se agachou e se acomodou no lugar. Evdokia me deu um sorriso doce. De meia-idade, ela era gordinha e parecia feliz com isso. Seu rosto era redondo, seu estômago era redondo e uma trança grossa de cabelo castanho serpenteava por cima do ombro até o colo. Estava tricotando algum tipo de tubo com fios cor de morango.

Havia apenas uma pessoa em toda a mitologia eslava que tinha uma casa com pernas de frango: Baba Yaga66, a Bruxa Avó, aquela com uma perna de pedra e dentes de ferro. Ela era conhecida por voar em um morteiro e por canibalismo casual de heróis errantes. E eu andei até a casa dela sozinha.

Fale sobre entrega para viagem.

Evdokia assentiu para a cadeira ao lado dela. — Bem, vamos lá. V nogah pravda nyet.

Traduzindo: ‘Nas pernas da justiça’. Certo. ‘Você pode entrar na minha sala’, disse a aranha para a mosca ... Seu sorriso ficou mais largo. — Assustada?

— Não. —Subi os degraus e peguei a cadeira. A casa estremeceu, meu estômago deu um pulo e o jardim ficou abaixo. As pernas de galinha suspenderam a casa. Presa. Não importa. — Além disso, eu gosto de cartilagem e carne dura de pernas de frango de qualquer maneira.

Ela riu. — Oh, eu não gosto muito, prefiro um grande prato de borscht67. Jogue alguns cogumelos lá e humm.

Borscht, eca.

— Não é fã? —Evdokia chegou à mesinha entre nós, serviu duas xícaras de chá e me entregou uma.

— Não. —Tomei um gole. Ótimo chá. Esperei um momento para ver se me transformava em uma cabra. Não, sem chifres, as roupas ainda estavam lá. Levantei o copo para ela. — Obrigada.

— Não há de que. Você odeia borscht porque Voron nunca a fez corretamente. Eu juro, qualquer receita na mão daquele homem, ele transformaria em mingau. Demorei mais tempo para convecê-lo a comer comida normal. Por um tempo foi ‘borscht e batatas’.

O coelho pulou no colo dela. Seus dedos roçaram o pelo escuro. Carne e pele ferviam, torcendo-se em um novo corpo, e um pequeno gato preto rolou de costas no colo de Evdokia batendo em seus dedos com as patas macias.

Por um momento, o controle da bruxa escorregou, e eu vislumbrei magia envolvida em torno dela como um xale denso antes que se escondesse novamente. Se isso azedar, sair dessa varanda viva seria uma merda.

— Agora, cai fora, —disse Evdokia. — Você está enrolando meu fio.

A gatinha rolou, pulou para o corrimão da varanda, lambeu a pata e começou a se lamber. Eu nem sabia por onde começar. Isso é um animal de estimação? Como você transforma um pato em um coelho?

As agulhas clicaram nas mãos da mulher mais velha. — Teve algum problema em encontrar o seu caminho?

— Na verdade não. Encontrei um Bandido Rouxinol, mas é só isso.

— Vyacheslav. Slava, para os conhecidos. Ele está com raiva porque não vou deixar ele roubar as pessoas na minha terra. Slava é conversador, faz um grande show, mas é inofensivo.

Ele dividiu árvores sólidas em farpas e faz os ouvidos das pessoas sangrarem com um assobio supersônico, mas claro, ele é completamente inofensivo. Tola, me preocupando por nada.

Evdokia assentiu para o prato de biscoitos. — Quer um.

Quem está na chuva é para se molhar. Peguei um biscoito e mordi. Ele quebrou na minha boca em um leve pó de migalhas de baunilha doce, derretendo na minha língua, e de repente eu tinha cinco anos de idade. Comi aqueles antes, quando eu era muito pequena, e esse gosto me empurrou de volta ao passado. Uma mulher alta ria em algum lugar ao lado e me chamava. ‘Katenka68’!

Ignorei, tirando-a da minha mente. Não há tempo para uma viagem pela estrada da memória.

Por alguns minutos nos sentamos em silêncio. O ar cheirava a flores e um toque de algo frutado. O chá estava quente e tinha gosto de limão. Tudo parecia assim... bom. Dei uma olhada para a bruxa. Ela parecia concentrada em seu tricô. Eu precisava começar com as perguntas sobre Volhv.

Evdokia olhou para mim. — Você já ouviu falar do seu pai? Ele não vai deixar a morte da irmã impune.

Deixei cair a minha xícara e peguei a um centímetro das tábuas do chão da varanda.

— Bom reflexo. —Evdokia puxou seu fio para dar mais folga no seu trabalho de tricô.

Minha boca estava seca. Coloquei a xícara com muito cuidado na mesa. — Como você sabe? —Quanto você sabe? Quem mais sabe? Quantas pessoas eu tenho que matar?

— Sobre o seu pai? Você me disse.

Escolhi minhas palavras com muito cuidado. — Não me lembro disso.

— Nós estávamos sentadas bem aqui. Você tinha biscoitos e chá e me contou tudo sobre como seu pai matou sua mãe e como você tinha que ficar forte e matá-lo um dia. Você tinha seis anos de idade. E então Voron veio e fez você correr em volta do jardim. Você se lembra de mim?

Me esforcei, tentando cavar fundo em minhas memórias. Uma mulher olhava para mim, muito alta, com cabelo vermelho brilhante trançado em uma trança longa por cima do ombro, um gato preto esfregando em seus pés. Seus olhos eram azuis e eles riam para mim. Uma sugestão de voz veio, feliz, me oferecendo um biscoito em russo.

— Me lembro de uma mulher ...cabelo vermelho ... e biscoitos.

Evdokia assentiu. — Era eu.

— Havia um gato. —Lembrava vividamente de uma coleira de couro com a palavra russa ‘Kitty69’ escrita em preto. Eu escrevi isso.

— Kisa. Ela morreu há sete anos. Era uma gata velha.

— Você era alta.

— Não, você é que era uma coisinha pequena. Eu era do mesmo tamanho, exceto que era magra naquela época. E eu tingia meu cabelo de vermelho fogo para que seu padrasto gostasse de mim. Era muito idiota na minha juventude. Voron, ele parecia um homem adequado. —Evdokia suspirou. — Muito forte, bonito. Confiável. Realmente gostava dele e tentei. Oh, como eu tentei. Mas não era para ser.

— Por que não?

— Por um lado, por causa de sua mãe. Uma mulher viva eu poderia aguentar, mas lutar pelo seu pai com uma morta, bem, essa era uma luta que eu não conseguiria vencer. Por outro lado, seu pai não era o homem que eu pensava que ele era.

— O que você quer dizer?

Evdokia levantou a chaleira e encheu minha xícara. — Açúcar?

— Não, obrigada.

— Você deveria colocar um pouco. Estou prestes a falar mal dos mortos. O açúcar ajuda com o amargo.

Ela e Doolittle foram separados no nascimento. Toda vez que eu sofria uma experiência de quase morte, ele me trazia xarope e alegava que era chá gelado.

A mulher mais velha se inclinou para trás, olhando para o jardim. — Quando te vi pela primeira vez, você tinha dois anos de idade. Você era uma bebê tão fofa e gordinha. Olhos grandes. Então Voron foi embora e levou você com ele. Eu vi você de novo quando você tinha quatro anos e alguns meses depois, e depois novamente. Toda vez que eu te via, você estava mais e mais difícil. Eu trançava seu cabelo e colocava você em um lindo vestido e íamos para o Solstício, ou para o nosso coven, e você ficava muito feliz. Então ele voltava e fazia você tirar tudo e a mandava para caçar cães ferozes com uma faca. Você voltava toda ensanguentada e se sentava a seus pés como uma espécie de cachorrinho, esperando que ele lhe dissesse que você se saiu bem.


Lembrei-me disso, sentada aos pés de Voron. Ele não me elogiava muitas vezes, mas quando fazia, era como se eu tivesse crescido asas. Teria feito qualquer coisa por esse elogio.

— Finalmente Anna Ivanovna me chamou para ir vê-la. Você tinha sete anos e ela era uma bruxa do Oracle na época. Velha mulher de olhos assustadores. Eu te levei comigo. Nós visitamos a casa dela e ela olhou para você por um tempo e então disse que não estava certo o que Voron estava fazendo com você. Isso ficou preso na minha mente e eu não sou do tipo que segura a língua, então o encurralei naquela noite durante o jantar e disse isso a ele. Disse a ele que você era uma garotinha. Uma inocente. Que se você fosse sua própria carne e sangue, ele não estaria tratando você desse jeito.

Se isso fosse verdade, ela se levantou contra Voron por minha causa. Poucas pessoas fizeram. — Ele me fez assim para que eu sobrevivesse. Foi uma necessidade.

Evdokia franziu os lábios por um longo momento. Uma sombra escureceu seus olhos. Algo dentro de mim se apertou, como se esperasse um soco.

— O que Voron disse?

Evdokia olhou para o que estava tricotando.

— O que ele disse?

— Ele disse que de fato, você não era sua carne e seu sangue, e esse era o ponto principal.

Isso machucou. Era a verdade e sabia disso toda a minha vida, mas ainda doía. Ele era meu pai em tudo, menos no sangue. Ele se importava comigo, à sua maneira, ele ...

— Eu disse a ele que os Covens te aceitariam, —disse Evdokia. — Ele disse não. Então perguntei a ele o que achava que aconteceria quando você e Roland finalmente se encontrassem. Ele me disse que, se tivesse sorte, você mataria seu pai. Se a sorte dele acabasse, então Roland teria que matar sua própria filha e isso era o suficiente para ele.

Uma dor aguda me apunhalou em algum lugar logo abaixo do coração. Minha garganta se fechou.

Não era verdade. Essa conversa nunca aconteceu. Voron amava minha mãe. Ela morreu por mim. Ele me treinou para me fortalecer, de modo que quando o confronto final chegasse, eu me seguraria contra meu pai verdadeiro.

A raiva vibrou na voz de Evdokia. — Eu disse a ele para ir embora. Pensei que ele esqueceria esse absurdo e eu o convenceria a dar você para mim. Mas ele desapareceu e levou você com ele. A próxima vez que eu vi você, você veio pedir um favor no Ventre da Tartaruga. Quase não te reconheci. Não é o que queríamos para você. Sei que não foi tudo ele. Kalina o quebrou, mas eu culpo Voron do mesmo jeito. Foi culpa dele também.

Me esforcei para falar, mas as palavras não saíram. Me senti impotente, como se estivesse presa no meio de algum vazio e não conseguisse escapar disso.

— Você era uma das nossas. Nós teríamos te escondido, te protegido e te ensinado, mas não era para ser. Não consegui te afastar dele e isso me atormenta até hoje.

Minha boca finalmente conseguiu produzir um som. — O que você quer dizer com ‘uma das nossas’?

— Por causa de sua mãe, é claro.

Olhei para ela.

Evdokia ofegou. — Ele não te contou, aquele pridurok70. Kalina, sua mãe, era uma das nossas. Uma antiga família ucraniana. A irmã de sua avó, Olyona, casou com meu tio Igor. Somos parentes.

O mundo deu um pulo e me chutou no rosto.


Capítulo 10


— SOMOS DE UM PEQUENO POVOADO NA FRONTEIRA entre Ucrânia e Polônia, —disse Evdokia. — Zeleniy Hutir. Tem sido um lugar ruim para viver desde a antiguidade. A fronteira lá salta para frente e para trás, em uma geração, são poloneses, a próxima russa, depois turca e depois outra coisa. Diz a lenda, em tempos selvagens, quando a Ucrânia era o lar de tribos eslavas, eles foram a guerra com o Império Khazar para o leste. Durante um desses ataques todos os homens da aldeia foram levados. A magia ainda estava no mundo naquela época, embora estivesse se enfraquecendo e os modos antigos eram fortes na área. As mulheres fizeram um feitiço que as tornaram irresistíveis e o poder do encantamento faziam as pessoas quererem agradá-las. Dessa forma recuperaram seus homens de volta. O poder veio com um preço enorme, a maioria delas ficou estéril depois disso, mas se elas quisessem um vestido novo, tudo o que tinham que fazer era sorrir e qualquer um faria qualquer coisa por elas. É daí que vem o poder da sua mãe.

Isso soou suspeitamente familiar. — Há uma mulher trabalhando para a Nação. O nome dela é Rowena.

Evdokia assentiu. — Eu a vi. Mesmo ancestral, mas diluído. Sua magia é como uma lareira, só sentirá o calor se ficar bem perto. Nada de grandioso. A magia da sua mãe era como uma fogueira. Não apenas aquecia, queimava.

Isso seria um inferno de poder.

— Muitas de nós, as antigas famílias que vieram da Rússia e da Ucrânia, sabíamos que éramos magos, —continuou Evdokia. — Mesmo quando a tecnologia estava no auge, pouco antes da Mudança, ainda restava um pequeno rastro de magia no mundo, e conhecíamos seus efeitos e a usamos nos pequenos problemas. As mulheres velhas curavam uma dor de dente, encontravam os corpos afogados ou se intrometiam na vida amorosa das pessoas. Eu tive um amigo cuja mãe uma vez sonhou que sua casa pegaria fogo. Dois dias depois, seu avô senil derramou querosene em seu fogão para acender o fogo. Quase queimou todo o lugar.

Pequenos problemas assim.

— Sua avó tinha poder, mas não o usava. Ela tinha um doutorado em psicologia e não usava nenhuma das velhas ‘superstições’, como chamava. Ela forçou Kalina a ir pelos mesmos caminhos, exceto que quando terminou seus estudos, a magia a agarrou com força e ela encontrou seu poder. Sua mãe era muito boa no que fazia. Costumava lecionar em todo o país. Universidades, militares, policiais. Fazia tudo isso.

Uma luz passou na minha cabeça. Isso tinha que ser como minha mãe conheceu Greg, meu guardião. — Ela trabalhou com a Ordem?

Evdokia assentiu. — Ah sim. Eles também tentaram recrutá-la. Então ela conheceu seu pai, seu verdadeiro pai e tudo o que aconteceu depois disso entrou no esquecimento. Ela desapareceu.

— Você acha que ela o amava?

— Eu não sei, —disse a velha bruxa. — Nós nunca fomos muito próximas. A magia de Kalina vazava, mesmo quando ela mantinha sob controle. Eu não gosto de ter minhas emoções espalhadas por aí. Eu a vi uma vez desde que ela estava com Roland. Ela voltou para o funeral de sua mãe. Parecia feliz. Segura, como uma mulher que é bem cuidada, amada e não está muito preocupada com o amanhã.

Eu não consegui manter a amargura da minha voz. — Isso não durou.

— Não, não durou. Deveria estar desesperada para salvar você.

— Ela estava. Ficou para trás e se sacrificou por minha causa, porque enquanto vivesse, Roland não pararia de persegui-la. Voron me levou.

Evdokia fez uma careta. — E essa é a raiz de tudo isso. Eu faria qualquer coisa pelo meu filho. Kalina faria o mesmo. Qualquer mulher sensata faria. Estava presa e grávida, e sabia que Roland continuaria procurando por ela, mesmo que corresse para as extremidades da Terra. Ela tinha que encontrar alguém para protegê-la, alguém forte que soubesse como o cérebro de Roland funcionava. Encontrou Voron. Ele era forte e implacável, mas era fiel a Roland.

Os olhos azuis da bruxa se encheram de arrependimento. — Ela o enfeitiçou, Katenka. Teve tempo de fazê-lo e amarrou-o com tanta força que ele deixou Roland por ela e passou os últimos anos de sua vida criando você. Deveria ter visto isso antes, mas eu era cega de amor.

Não. Não, eles se amavam. Voron amava minha mãe. Vi isso no rosto dele. Quando ele falava dela todo o seu comportamento mudava. Ele se tornava um homem diferente.

Se Evdokia estivesse certa, minha mãe teria trabalhado nele por meses, ajustando e realinhando os padrões emocionais, de modo que quando Voron e eu estivéssemos sozinhos, ele não me levaria de volta para Roland ou me jogaria em alguma vala.

Na minha cabeça, minha mãe era uma deusa. Ela era gentil e maravilhosa, linda e doce, era todas as coisas que eu queria em uma mãe quando criança. Todas aquelas coisas que foram arrancadas de mim. Amor incondicional. Calor. Alegria. Minha mãe não era culpada de nada além de ser ingênua e se apaixonar pelo homem errado. Ela se viu presa e Voron a salvou, porque ele a amava.

Ninguém era assim. As pessoas não eram assim. Sabia que não era assim que o mundo funcionava. Eu não era mais uma criança; eu vi a coragem, selvageria e crueldade; eu provei a minha parte e joguei fora.

Então, por que nunca duvidei dessa imagem cor de rosa antes? Por que sempre acreditei que minha mãe era uma princesa e Voron serviu como seu cavaleiro de armadura brilhante? Nunca questionei isso. Nem uma vez.

Evdokia continuou falando. Mal a ouvia. O templo resplandecente e brilhante que eu construí para minha mãe em minha mente estava caindo aos pedaços e o barulho era muito alto.

— ...o que ela fez é proibido por um bom motivo. Isso nunca acaba bem. Kalina era consciente disso. Ela deve ter visto que era a única solução.

Apertei minha mão. A mulher mais velha ficou em silêncio.

Pedaços de lembranças esquecidas flutuaram para a superfície: o rosto de Evdokia, muito mais jovem. O pequeno gato preto. Indo para uma festa na floresta, usando um lindo vestido. Alguma mulher perguntando: ‘Quantos anos você tem, querida?’ Minha própria voz, pequena e jovem, ‘tenho cinco anos’. Uma bonequinha que alguém me deu e a voz de Evdokia: ‘Esse é o seu bebê. Ela não é bonita? Você tem que cuidar do seu bebê.’ Voron, tomando a boneca. ‘Nós temos que ir agora. É peso extra. Lembre-se, pegue apenas o que você pode carregar.’

Minha infância inteira foi uma mentira. Até mesmo a sede de vingança de Voron não era real. Foi implantado nele quando a magia da minha mãe tinha queimado seu cérebro. Havia alguma coisa real no meu passado? Algo que pudesse me apegar neste momento.

Tão patética.

Todas as vezes em que fui à exaustão para agradar Voron. Todas as vezes que fiz como me disse.

Pessoas que eu matei, coisas que eu lutei, toda a merda que ele me fez passar só para dá a última risada quando Roland e eu nos encontrarmos e nos matarmos.

Fúria explodiu em mim em uma torrente crua. Eu queria rasgar seu túmulo, puxar seus ossos e sacudi-los, gritando. Queria saber se era verdade, se tudo era verdade.

— Eu avisei, —Evdokia disse suavemente.

— Ele está morto, —eu disse. Minha voz não tinha emoção alguma. — Ele está morto e eu não posso machucá-lo.

— Agora, não se sinta assim, —Evdokia murmurou. — Ele era humano, Katenka. Estava orgulhoso de você à sua maneira.

— Orgulhoso do cão de guarda que ele treinou? Ataque. Aponte-me na direção certa, tire a minha focieira e veja-me rasgar as coisas por uma migalha de elogios.

Evdokia se aproximou e segurou minha mão.

Eu era o subproduto biológico de um megalomaníaco e uma mulher que magicamente fazia lavagem cerebral em outros para fazer sua vontade e eu fui criada por um homem que se deleitava com o conhecimento que meu pai biológico um dia me mataria. Todos esses anos, minha vida, minhas realizações, qualquer sentimento que tivesse por ele, tudo que eu era, Voron teria trocado tudo por uma chance de ver o olhar no rosto de Roland quando ele cortasse minha garganta. E minha mãe o fez assim.

Magia se espalhou de mim, alimentada pela minha raiva.

No parapeito da varanda, a gata arqueou as costas, o pelo ereto. O chão embaixo dos meus pés estremeceu.

— Calma, calma agora, —Evdokia murmurou. — Você está assustando a casa.

Deixe isso para trás. Apenas supere. Guarde isso, empurre-o para o lado, para que você possa lidar com isso mais tarde.

A magia me encheu, ameaçando explodir. A casa balançou. Copos se chocaram na mesa. Evdokia apertou minha mão.

Tinha que sair daqui viva. Se eu deixasse tudo explodir, Evdokia lutaria comigo para salvar a si mesma. Precisava manter minha cabeça clara.

Guarde isso.

Eu poderia fazer isto. Eu era forte o suficiente. Tinha que agradecer Voron por isso.

Puxei a magia de volta. Toda a raiva, toda a dor. Empurrei tudo para o fundo, para dentro. Isso machucava.

Tirei a mão dos dedos de Evdokia e peguei minha xícara de chá. Chá frio tocou meus lábios. — Está frio. Acho que preciso de mais um pouco.

Evdokia olhou para mim por um longo momento. Você está certa, senhora. Sou quase humana. Você entendeu. Tive uma chance quando eu tinha cinco anos. Agora era tarde demais.

— Você nunca disse o que faria sobre o seu pai, —disse a bruxa.

— Nada mudou. Ainda será ele ou eu.

— Você não é forte o suficiente, —disse Evdokia. — Ainda não. Mas posso te fazer mais forte.

— A que preço?

Ela soltou um suspiro. — Sem preço, Katenka. Você é uma das nossas.

— Se eu sou uma das suas, por que esperou até agora? Por que não me ajudou quando minha tia quase me matou? Onde você estava quando Voron morreu e eu não tinha para onde ir?

Evdokia franziu os lábios.

Fixei-a com o meu olhar. — O que você quer de mim?

A magia da bruxa se acendeu. Ela colocou a xícara no chão. — Sienna previu uma torre sobre Atlanta.

Torres eram a marca registrada de Roland. — Sienna, a Bruxa Oráculo? A Oráculo sabe quem eu sou?

Evdokia assentiu. — Sim.

— Quem mais sabe? —A lista de pessoas a assassinar estava ficando mais e mais longa.

— Só nós. —Evdokia me olhou com firmeza. Seus olhos azuis ficaram duros. — Também guardamos para nós mesmos.

— Por quê?

— Porque nós nos governamos. Ninguém nos diz o que fazer.

Eu sorri para ela. Não era um sorriso agradável. O gato saltou do alpendre para o colo de Evdokia e rosnou, estufando o pelo.

— Entendi. Você tem poder. Status. Respeito. Você sabe que Roland está vindo de um jeito ou de outro. E Roland não tolera nenhum governo exceto o seu. Ele não tem aliados ou amigos. Ele tem servos.

Evdokia estreitou os olhos. — Está certa. Ganhei meu lugar neste mundo com trabalho árduo. Não cederei meu joelho a ninguém, nem a um governo, nem a um juiz, nem a esse tirano amaldiçoado.

Levantei-me e encostei-me no poste da varanda. — Eu sou sua melhor aposta para evitar que Roland assuma.

— Sim.

— Jovem, precisando ser ensinada ...

Evdokia cruzou os braços. — Sim.

— Facilmente manipulada? Emocionalmente comprometida? São estas as minhas melhores qualidades?

Evdokia levantou as mãos exasperada.

— Gostaria apenas de saber os detalhes desde o início. Então não tenho decepções depois.

— Boginiya, pomogi mne s rebenkom71.

— Duvido que a Deusa te ajude com essa criança. A última vez que me deparei com uma deusa, ela decidiu que não quer nenhuma.

Evdokia sacudiu a cabeça. — Você é o que você é, Kate. Não pode fugir de si mesma. Acha que seu leão não considerou quem você era antes que te escolhesse? Todos esses anos, todas aquelas mulheres e você é quem ele acasalou. Ele estava interessado em mais do que a sua cama, eu posso te garantir isso.

Ai! — Deixe Curran fora disso.

— O homem não é um tolo. E você também não é. Agora é a hora de construir alianças e aprender, porque quando seu pai aparecer aqui, será tarde demais. Estou oferecendo poder. Conhecimento. Coisas que você vai precisar. Posso te ajudar. Você não precisa fazer nada em troca.

Irei aceitar isso. Voltarei para cá e me sentarei, tomarei chá e comerei biscoitos. Trarei Julie comigo e assistiremos o gato-coelho-pato brincar com essa coisa mutante que ele faz. Mas ainda não. Agora não.

Tirei a foto do corpo de Harven do meu bolso e passei para ela. Evdokia olhou, cuspiu três vezes sobre o ombro esquerdo e bateu no corrimão de madeira.

— Volhv Chernobog. Grigoriii. Esse é o trabalho dele.

— Esta foto foi tirada no laboratório de um engenheiro russo. O nome é Adam Kamen.

— Ah! Adam Kamenov. Sim, eu ouvi sobre ele. Garoto inteligente, sem bom senso. Estava construindo algo abominável. Tinha todos os Volhvs mais velhos amarrados e preocupados. Fosse o que fosse, disseram-lhe para não construí-lo. Eu entendo que ele construiu de qualquer maneira.

— Ele está desaparecido.

— Eles o têm, então. —Evdokia encolheu os ombros.

— Os Volhvs sacrificaram alguém para teleportá-lo para fora.

A velha bruxa fez uma careta. — Isso não me surpreende. Eles são homens. Eles resolvem as coisas diretamente. Grigoriii precisava de energia, então ele pegou. Dê-me um coven de treze bruxas e eu poderia teletransportá-lo também e sem sangue. Nós canalizaríamos a magia através de nós, puxaríamos da natureza através de nossos corpos e nos concentraríamos no alvo. O jeito de Grigoriii é levar tudo de um único ser. Nosso caminho é pegar um pouco de cada um de nós, para que todos possam se recuperar.

— Eu preciso encontrar Adam.

Ela levantou o queixo. — Vou perguntar por aí.

Ela não faria nada que a colocasse em conflito com os Volhvs. Ela me ensinaria, e ela poderia me dar uma migalha de informação de vez em quando, mas não lutaria minhas batalhas por mim. Tudo bem.

Comecei a descer as escadas da varanda. — Obrigada pelo chá.

— Não há de que.

A casa se abaixou e eu pisei no caminho. No momento em que meus pés tocaram o chão, a varanda levantou-se novamente.

— Pense no que eu disse, Katenka, —Evdokia chamou de cima. — Pense com cuidado.

*

QUANDO SAÍ DA FLORESTA, UM HOMEM ESTAVA no meu Jeep, apoiado em um cajado alto de madeira inacabado, com uma parte superior grossa. Parecia que ele tinha acabado de cortar um galho grosso, tirado os galhos e folhas, arrancado a casca e fazendo para si uma bengala.

Uma túnica preta pendia dos ombros até abaixo dos joelhos, revelando botas de couro. Bordados de prata corriam pelas largas mangas da túnica e ao longo da bainha. Um largo cinto de couro amarrado na cintura, e pequenas cantinas e amuletos pendurados nele em correntes e cordões. Um capuz profundo escondia a maior parte do rosto.

Um Volhv. Se seus trajes não tivessem o entregado, os feitiços no cinto teriam. A julgar pelos bordados, não era tão jovem, mas também não é um dos mais antigos. Os Volks mais jovens não podiam pagar prata costurada à mão e os mais velhos não se importavam com isso.

— Eu tenho um problema real com pessoas em capuzes, —eu disse.

— Isso é muito ruim. —Ele tinha uma voz rica, profunda e confiante. Sim, uma divertida e emocionante tempestade mágica estava a ponto de vir em minha direção. Por que eu nunca tinha uma troca de magia para tecnologia quando precisava de uma?

O Volhv puxou o capuz para trás. Olhos grandes, escuros como piche derretido e emoldurados por grossos cílios negros, olhavam para mim com um divertimento irônico. Suas feições eram bem-feitas: maçãs do rosto salientes, mandíbula masculina forte e um nariz aquilino, mais acentuado porque o cabelo nas laterais da cabeça fora raspado além das orelhas. O resto de seu cabelo preto caia nas costas como uma juba de cavalo. Seu bigode também era preto. Sua barba era inexistente, exceto por um cavanhaque cuidadosamente aparado que encontrava seu bigode nos dois lados da boca. Seus lábios cheios se curvavam em um meio sorriso.

O efeito geral o dava o aspecto de vilão. Só faltava um cavalo preto e uma horda de bárbaros para liderar.

Isso ou uma tripulação de assassinos, um navio com velas vermelho-sangue e alguma heroína idiota para cobiçar. Ele se encaixaria nos romances de Andrea como um capitão pirata malvado. Se ele começasse a acariciar sua barba, eu teria que matá-lo em princípio.

— Grigoriii? —Provavelmente não.

— Grigoriii não se incomoda com pessoas como você.

Como esperado. — Olha, eu tive um dia ruim. Que tal você apenas se afastar do meu Jeep?

O Volhv sorriu mais largo, piscando os dentes brancos. — Você foi ver a bruxa. O que ela te disse?

— Disseme que a sua túnica está totalmente fora de moda.

— Ah? Foi mesmo? —Ele levantou a mão para o cavanhaque.

Apenas termine com isso. — Sim. E o que há com a barba e a juba de cavalo? Você parece um vilão de encomenda.

Os olhos do Volhv se arregalaram. Ele acenou com a mão para mim. — Bem, você não parece uma ... fêmea ... em suas calças.

— Isso foi um inferno de um insulto. Você pensou nele sozinho ou teve que pedir ajuda a seu deus?

O Volhv apontou para mim. — Agora, não blasfeme. Isso não é legal. Me diga o que a bruxa disse, hum? Vamos lá, você sabe que quer me contar. —Ele piscou para mim. — Vamos lá, compartilhe. Você me diz, eu não mato você imediatamente, todo mundo fica feliz.

Tirei a Matadora de sua bainha traseira.

O Volhv piscou. — Não? Não quer me contar?

— Afaste-se do meu carro.

— Eu não queria fazer isso, mas tudo bem. —Ele levantou seu cajado e bateu na calçada. A madeira grossa no topo do cajado fluiu, se transformando. Um maldito bico de madeira emergiu de cima, seguido por olhos redondos e selvagens.

— A Proteção está desativada, —disse o Volhv. — Última chance de me dizer o que a bruxa disse.

Na minha mente imaginei o meu ataque: Matadora pronta para atacar, meu joelho estalando com um rangido seco, minha perna dobrando e eu rolando para a calçada bem a tempo de ver o final do cajado do Volhv enquanto perfurava meu peito.

Ótimo. Sem correr. Doolittle havia realizado milagres médicos e o joelho não doía, mas não queria arriscar. Precisava salvar a perna para os próximos combates. Teria que confiar na magia até chegar muito perto dele. E se eu o matasse, teria um tumulto na minha porta. Eles competiriam entre si para ver quem me pegaria. Eu começaria a guerra entre os Volhvs e o Bando e matariam Adam Kamen na briga.

Estupendo!

Caminhei em direção ao Volhv, transmitindo toda a ameaça que poderia reunir. Talvez ele entrasse em pânico e caísse de joelhos com as mãos no ar.

Sem chance.

O Volhv me observou. — Se apresse. Pelo menos ponha algum esforço nisso!

— Para alguém como você? Porque me importar?

O Volhv girou no lugar, seu cajado cortando o ar. O bico de madeira se abriu com um rangido e arrotou um enxame de minúsculas moscas negras. Provavelmente venenosas. Ótimo. Essa luta estava no saco.

Puxei um saco de alecrim em pó do meu cinto e o abri, cantando sob a minha respiração.

O enxame veio para mim.

Joguei o pó no ar. Minha magia segurou e o pó ficou imóvel como uma nuvem congelada no meio do movimento. O enxame perfurou-o. Por meio segundo, nada aconteceu e então as moscas e o alecrim caíram no chão.

O suor encharcou meu couro cabeludo. Isso levou uma quantidade de magia. Continuei andando.

O Volhv plantou o cajado na calçada e o soltou. Permaneceu em pé. Ele tirou um galho enfeitiçado do cinto, quebrou-o ao meio e jogou um pedaço no chão, segurando a outra em seu punho. O galho explodiu em fumaça negra e se transformou em um cão do tamanho de um mastim.72 Riachos de fumaça deslizavam e enrolavam-se ao longo de sua pelagem negra. Olhos brancos puros olhavam para mim, como duas estrelas presas em uma nuvem de tempestade.

Alimentei magia na minha espada. A lâmina opaca brilhou ligeiramente e sibilou, suando. Finas mechas de fumaça subiram da lâmina.

As sobrancelhas do Volhv se levantaram. Ele rosnou uma única palavra. A boca do cachorro se abriu, mostrando presas brilhantes. A besta de fumaça me atacou.

Veio para mim, patas maciças batendo na calçada. Ataquei e cortei. A lâmina da matadora passou pelo pescoço do cachorro em um corte preciso e limpo. Sem resistência de ossos ou músculos. Merda.

A fumaça ao longo do corte rodou, fechando-o. O cachorro atacou a minha perna esquerda, mas consegui me desviar.

As presas brilhantes apenas rasparam meu jeans logo acima do joelho. Uma linha fina de dor cortou minha coxa, como um fio quente. Calor úmido encharcou minha pele, sangue. Eu girei e afundei a lâmina da Matadora no olho derretido do cachorro. O sabre encantado deslizou até a metade. Nada. Puxei e dancei para longe quando as presas do cachorro rasparam a distância de um fio do meu braço.

Se eu tivesse um ventilador portátil comigo, estaria tudo acabado. Talvez se eu soprasse muito em sua direção o cão de fumaça se desmancharia.

Uma mancha escura e quente encharcou minha perna da calça esquerda. Eu estava sangrando como um porco cortado.

O Volhv moveu seu punho. O cachorro recuou, estalando os dentes. Ele estava controlando-o como uma marionete com a outra metade do graveto na mão.

— Pronta para conversar? —Perguntou o Volhv.

— Sem chance.

O Volhv sacudiu o punho. O cachorro correu para mim, as patas de fumaça golpeando pequenos fios de vapor da calçada.

Enfiei a mão no corte no meu jeans. Ele saiu escorregadio com carmesim. A magia do meu sangue arrepiou minha pele.

Tinha apenas uma fração de segundo para conseguir isso.

O cachorro saltou. Recuei para a direita e enfiei minha mão profundamente nas espirais de fumaça ao seu lado. A magia pulsou da minha mão, eriçando meu sangue em uma dúzia de agulhas afiadas. Picos carmesins perfuraram o cachorro. Do outro lado da rua o Volhv gritou, embalando seu punho com a outra mão. O galho rolou de seus dedos. A fumaça desmoronou sobre si mesma, sugada por um pequeno galho retorcido no chão. Eu pisei nele, esmagando-o em pedaços.

Os espinhos se transformaram em poeira negra e caíram dos meus dedos, derretendo em pó. Minha mão parecia que tinha sido enfiada em água fervente.

— Foda-se, isso dói. —O Volhv mostrou os dentes para mim.

Seis metros entre nós. Corri.

Ele girou seu cajado, cantando.

Três metros. Lancei a matadora na minha mão, invertendo a lâmina.

Dois.

O Volhv balançou o cajado, com o objetivo de me acertar na esquerda. Bloqueei o ataque com minha espada, agarrei seu pulso direito com minha mão esquerda, forçando o cajado para o lado, e soquei a borda cega da lâmina da Matadora em seu lado direito. Costelas quebradas. Bati o braço direito do Volhv com o plano da lâmina. Ele deixou cair o cajado. Deixei a Matadora deslizar dos meus dedos, me agachei um pouco, puxei meus braços para os lados do meu corpo e endireitei meus joelhos, dirigindo ambos os punhos para a parte inferior macia de sua mandíbula. A cabeça do Volkhv foi para trás, com o corpo bem aberto. Afundei um soco no seu tórax. Todo o ar saiu de seus pulmões em um único e doloroso suspiro. O Volhv se dobrou e eu agarrei seu braço esquerdo, empurrei-o para frente e balancei meu braço direito em um arco amplo, esmagando meu punho na parte de trás de sua cabeça. Os olhos do Volhv rolaram e ele caiu.

Dancei de volta na ponta dos meus pés, leve e pronta, caso ele decidisse se levantar.

O Volhv ficou imóvel. Seu cajado estalou o bico para mim em fúria impotente.

Tinha acabado. Ainda tinha muita raiva para colocar fora, mas acabou. Droga.

Parei de dançar e senti seu pulso. Vivo e bem. Dormindo como um bebê, exceto que bebês não costumam acordar em um mundo de dor.

Me apoiei na Matadora. — Desculpa.

Se a espada se ressentia de ser usada como uma bengala, ela não disse nada.

A magia acabou seu turno. De volta a tecnologia. O monstro feroz no cajado do Volkhv transformou-se de volta à madeira comum.

Levantei meus braços e olhei para o céu. — Mesmo? Agora? Teria matado você acabar quinze minutos atrás?

O Universo estava rindo de mim.

Suspirei e fui ao meu Jeep para buscar suprimentos médicos, corda e gasolina. Meu sangue estava por toda o chão, gritando minha identidade para qualquer um que quisesse ouvir e eu precisava incendiá-lo.


Capítulo 11


QUANDO VOLTEI PARA O ESCRITÓRIO, ASCANIO abriu a porta e me deu um sorriso de mil watts. O sorriso evaporou com a próxima respiração.

— Sinto o cheiro de sangue.

— Não é nada. Onde está todo mundo?

— O lobo e Andrea ainda não voltaram.

— Há um homem amarrado e desmaiado na parte de trás do meu Jeep. Preciso de você para carregá-lo e trancá-lo na gaiola do loup. Não o desamarre. Se acordar, não fale com ele. Ele é um mago poderoso e tentará conjurar coisas dolorosas.

Ascanio decolou. Andei até a minha mesa. Uma pilha de arquivos estava no centro, cada pasta bege marcada com a pata do Bando. Ao lado deles, esperava um fichário cheio de papéis. Abri.
Art.: 7º - Seção A. Terra e Propriedade do Clã.

Todos os bens imóveis, conforme definido pelo Artigo 3, Seção 1.0, são de propriedade conjunta do Bando, com direitos de sobrevivência. Cada membro do Bando tem o direito de usar e desfrutar de toda a propriedade, mas não pode impedir outro membro do Bando de fazê-lo.

A propriedade oficial sujeita a uma locação entre um Clã e o Bando deve ser exclusiva para a casa de reuniões oficial do Clã. Qualquer uso não conforme é uma violação do contrato de locação e funcionará como a revogação imediata da concessão de um Clã. Qualquer propriedade pessoal localizada em propriedade oficial alugada por um Clã será considerada propriedade exclusiva do Clã ...

Que diabos?

Ascanio levou o corpo do Volhv através da porta, carregando-o por cima do ombro como um saco de batatas e brandiu o cajado do Volhv para mim. — O que devo fazer com o pau?

— Tranque-o no armário. E tenha cuidado quando a magia está em alta, morde.

Ascanio assentiu e levou o Volhv para a gaiola do loup. Olhei para o telefone. Mais cedo ou mais tarde, teria que ligar para os Volhvs e dizer a eles que eu tinha o garoto amarrado no meu quarto dos fundos. Na melhor das hipóteses, trocariam Adam Kamen por ele. Pior cenário, todos nós morremos de morte agonizante. Hmmm ... Para quem ligar e o que dizer?

Ascanio voltou. — O que aconteceu com ele? Parece que foi atropelado por um carro.

Ele foi atropelado pelo meu punho. — O que são esses arquivos?

— Barabas os deixou para você. Ele disse para lhe dizer que o Senhor da Feras saiu numa missão importante.

Sim, caçando Leslie antes que ela fizesse algum dano maior.

— E que você estará lidando com as petições esta noite.

Estou farta.

Haviam duas coisas que eu odiava: estar em exposição e tomar decisões sobre a vida de outras pessoas.

Ouvir petições envolvia ambos. Quando um metamorfo tinha um problema com alguém dentro do Bando, informavam ao casal alfa, que atuavam como árbitro. Se dois Clãs diferentes estivessem envolvidos, dois conjuntos de alfas tinham que chegar a uma decisão. Se uma decisão não fosse alcançada, o assunto ia para Curran e, porque eu era sua companheira, também para mim.

Meu plano original era evitar as petições por completo. Infelizmente, Curran havia me explicado extensamente e com muito detalhe como esse era um dos fardos do alfa e como ele não estava inclinado a sofrer sozinho. Foi por isso que uma vez por semana, acabava sentada ao lado de Sua Majestade por trás de uma grande escrivaninha em uma sala muito grande, proporcionando um alvo conveniente para o público de metamorfos. Até agora, tudo o que eu tinha que fazer era parecer que estava prestando atenção e esperar que Curran não precisasse cortar nenhum bebê ao meio73. Lidar com petições não estava na minha agenda. Eu nem sabia quais casos estavam agendados para a audiência ou o que eles diziam.

Eu bati no fichário. — Essas são petições, o que é isso?

— Barabas disse que eles são essencialmente anotações e apontamentos do código da lei do Bando relevante para a audiência.

— Inferno!

— Barabas me avisou que você iria dizer isso. Então devo lhe dizer o que ele disse. —Ascanio limpou a garganta e produziu uma impressão notavelmente precisa do tenor de Barabas: — Coragem, Sua Majestade.

— Eu vou matá-lo.

— O Senhor das Feras ou Barabas?

— Os dois. —Esfreguei meu rosto e olhei para o relógio na parede. Quatro e dez. As petições estavam marcadas para as oito, e eu levaria uma hora para chegar até lá, o que significava que eu tinha um total de três horas para enfiar essas coisas na minha cabeça. Aaaa! Eu não queria fazer isso. O Volhv teria que esperar até que eu resolvesse isso. Bem, ele não era feito de sorvete, não era como se ele fosse derreter.

— Alguma mensagem da Fortaleza?

— Não, Consorte.

— Não me chame de Consorte. Me chame de Kate.

Nenhuma notícia de Julie. Porra, quanto tempo demora uma criança a andar cento e sessenta quilômetros? Se os rastreadores de Curran não chegassem até amanhã à noite, iria procurá-la eu mesma. Rene e seu dispositivo apocalíptico teriam que esperar.

Juntei os arquivos e o fichário. — Estou indo para o andar de cima. Não me importo com quem vier até a porta, a menos que haja sangue ou fogo, não quero ser incomodada.

Ascanio bateu os calcanhares e fez uma saudação rápida. — Sim, Consorte!

Alguns dias eu entendia porque Curran rugia.

*

A LEITURA ATRAVÉS DAS PETIÇÕES FAZIA MEU CÉREBRO doer. Resolvi os dois primeiros em uma hora, e então dei de cara em uma disputa de propriedade entre os dois clãs e fiquei presa. Descobrindo quem era quem e o que pertencia a quem era como desembaraçar um nó górdio74. Se eu sacudisse minha cabeça e os pedaços da Lei do Bando caíssem do meu cabelo, não ficaria surpresa. Cuidadosamente os varreria e os colocaria de volta no fichário de Barabas, mas eu não ficaria surpresa.

Não ajudou a minha mente continuar repetindo a conversa com Evdokia. ‘Você acha que seu leão não considerou quem você era antes que ele te escolhesse?’

O que ela me contou sobre Voron e minha mãe doeu. Nos primeiros quinze anos da minha vida, confiara completamente em Voron, sem qualquer reserva. Se eu estivesse em apuros, ele me arrastaria para fora disso. Se me fez suportar algo foi porque era necessário para minha sobrevivência. Eu não tinha mãe, mas tinha pai. Ele era um herói da minha infância. Ele poderia fazer qualquer coisa, poderia consertar qualquer coisa, poderia matar qualquer um, e ele me amava porque eu era sua filha. Porque era isso que os pais faziam.

Era uma mentira. Uma traição tão profunda que rachou algo vital dentro de mim e agora eu estava cheia de raiva. Eu não era filha dele. Eu era uma ferramenta para ser usada. Se eu quebrasse na batalha final, nenhuma grande perda, contanto que eu fizesse o dano.

Isso machucava. Vendo isso agora com os olhos de um adulto. Precisava gritar, socar, chutar e bater em algo até que minha dor fosse embora. Se ficasse parada e realmente me permitisse pensar nisso, me perderia. Mas o que aconteceu entre minha mãe e Voron estava no passado. Tinha que lutar com isso e superar, esquecer. O passado não tinha como ser mudado. Estava feito.

Curran e eu estávamos acontecendo agora.

Quando eu tinha dezessete anos, com Voron morto por dois anos e Greg atuando como meu guardião, conheci um cara. Derin era alguns anos mais velho, bonito e engraçado. Eu não estava exatamente apaixonada, mas estava envolvida de alguma forma, pela primeira vez. Poderia ter sido algo especial. Na manhã seguinte, saí de seu apartamento direto para encontrar Greg esperando por mim na rua.

Pensei que haveria gritos. Voron tinha muita paciência, mas ele gritava de vez em quando. Eu deveria saber melhor. Greg nunca gritou. Ele apenas explicava as coisas de uma maneira lógica, sem pressa, até que ele fazia você gritar.

Greg me levou para a Sunrise House para tomar café da manhã. Ele me comprou uma dessas panquecas gigantes com geleia e chantilly e enquanto eu comia, ele falou. Ainda me lembrava da voz paciente e calma dele.

— O sexo é uma necessidade humana. É também uma questão de confiança, para você mais do que para outras pessoas. A intimidade te coloca em perigo, Kate.

Ignorei. — Eu posso aguentar Derin. Ele não é tudo isso.

Greg suspirou. — Não é isso que eu quero dizer. A intimidade física leva à intimidade emocional e vice-versa. Se você tem um relacionamento com Derin, mesmo se você pretende que seja puramente física, mais cedo ou mais tarde você vai baixar a guarda. Diga-me, qual é a pior coisa que pode acontecer se Derin perceber o quanto poderosa você é?

Enfiei um pedaço enorme da panqueca na minha boca e mastiguei devagar, só para irritá-lo. — Ele vai ligar os pontos e me vender para o meu pai de verdade?

— Isso seria lamentável, sim. Mas isso não é a pior coisa que pode acontecer.

— Se você está falando sobre transferência, usamos proteção. Eu não sou uma idiota, Greg.

Ele balançou sua cabeça.

— Bem, não estou convencido disso.

Os olhos azuis de Greg se fixaram em mim. — Derin é do tipo ambicioso. Média perfeita, melhor aluno, o primeira de sua turma a ser promovido a Aprendiz de Nível Dois pela Academia de Magos.

— Está me espionando?

Ele jogou o garfo de lado. — Derin pretende ir longe na vida. Ele quer tudo: dinheiro, prestígio, respeito, poder. Ele quer tanto, que quase consigo sentir o gosto. E você está vulnerável, Kate. Você sente falta do seu pai e não gosta de mim. Você está desesperada por aceitação. Se persistir, cedo ou tarde, e acredito que mais cedo, Derin reconhecerá seu potencial. Ele se tornará o melhor namorado que você poderia esperar encontrar: gentil, atencioso, compreensivo. Você vai se apaixonar ou pelo menos se apegar. É natural: se alguém faz você se sentir melhor, você quer estar com essa pessoa. Então Derin vai pedir para você fazer algo por ele. Vai começar pequeno. Talvez ele tenha um problema com outro aluno. Ou ele precisa impressionar um professor para obter uma bolsa de estudos. Uma coisa pequena. Nada realmente.

— Pode exigir que você use sua magia ou talvez apenas uma gota ou duas de seu sangue. Você vai fazer isso, porque você o ama. Então ele vai pedir outra coisa. E então algo maior. E toda vez que você obedecer, ele vai cuidar de você e fazer você se sentir como se fosse a única mulher na Terra. E um dia vai acordar e perceber que você foi usada, que se acorrentou a este homem que procura apenas promover seus próprios interesses à custa de seus sentimentos e segurança, e que seu uso descuidado de seu poder chamou a atenção de seu pai. Agora você deve defendê-lo e a si mesmo e você não está pronta. Então, quando a oportunidade se apresentar, ele trairá você para salvar sua própria pele. Essa é a pior coisa que pode acontecer. Mesmo se você escapar, essa experiência vai quebrá-la e cicatrizes emocionais nunca curam completamente. Você nunca vai se recuperar.

Eu olhei para ele, panquecas esquecidas.

Greg bebeu o café. — Você tem um problema, Kate. Se você formar um relacionamento com alguém fraco, ele será um problema. Ele se sentirá inadequado e você se negará a satisfação e a alegria de um verdadeiro companheirismo. Se você formar um relacionamento com alguém poderoso, você corre o risco de exposição ou de ser manipulada e usada. Nunca pense que um homem em uma posição de poder não derrubará todas as muralhas em seu caminho para formar uma aliança com você. Sua magia faz de você um bem inestimável. Como você pode saber se alguém te ama ou anseia por seu poder?

— Eu não sei.

Greg assentiu. — Nem eu. Uma noite sem compromisso é a opção mais segura para você. Não é justo, mas essa é a sua realidade. É a sua vida, Kate. Aconselho, mas não vou forçá-la a seguir meu conselho. Peço-lhe que considere o que lhe disse. Você chegou até aqui. Odiaria ver tudo isso desperdiçado.

Voltei para Derin logo após o café da manhã. Nos escondemos em seu apartamento, bebemos bebida barata e fizemos sexo por dois dias. No final do fim de semana prolongado, decidi tomar um banho. Quando saí, Derin estava segurando minha espada. — Nunca tinha visto nada assim antes. Poderia pegar algumas amostras. Estou fazendo um estudo independente para a Academia dos Magos. Isso realmente me ajudaria.

Eu disse a ele que trocaria amostras por um burrito de frango. O lugar mais próximo que os vendia estava a alguns quilômetros de distância. Ele reclamou, mas eu não cederia. No momento em que ele saiu, liguei para Greg. Greg levou vinte minutos para chegar ao apartamento e, quando chegou lá, sacudimos os lençóis e as fronhas na varanda, enfiei-os na máquina de lavar roupa, varremos o chão e afoguei os pratos na pia. Limpei a mobília e o ralo do chuveiro. Eu removi todo lixo, todo tecido, todo cabelo perdido, tudo que poderia me trair. Greg purificou o apartamento, queimando-o com seu poder. Caso permanecesse algum traço residual da minha magia, seria escondido. Se Derin fizesse a varredura do apartamento, o m-scan registraria apenas a explosão azul do poder do adivinho. Então nós e os sacos de lixo deixamos o prédio. Quarenta e oito horas depois, eu estava a caminho da Academia da Ordem, e não sabia se era porque queria ficar longe de Derin ou fugir de Greg, porque ele estava certo.

Olhei para os arquivos marcados com a pegada do Bando.

Curran era paranoico. Ele valorizava sua segurança e a segurança do Bando, inferno, ele se dedicou a preservá-lo. Eu sempre achei que o coloquei em perigo e eu disse isso a ele. Ele me queria de qualquer maneira. Isso significava tudo para mim.

Mas Curran também era um manipulador. Se eu sentasse lá e olhasse objetivamente para a situação, a imagem não parecia bonita. Roland marcou o Bando para eliminação. Curran se tornara poderoso demais, e meu pai queria destruí-lo agora, antes que o Bando crescesse mais forte. Ele atacara com rakshasas e, quando isso falhou, mandou minha tia para dizimar os metamorfos. De um jeito ou de outro, o choque entre Roland e o Bando estava chegando. O que Curran tem a perder ao se acasalar comigo?

Eu o queria tanto que nunca pensei que ele pudesse querer me usar. Todo esse tempo estava focada em me preocupar que minha ascendência o impediria de estar comigo. Nunca passou pela minha cabeça que ele pudesse ver isso como um ativo. Era hora de abrir os olhos.

Quando olhava em seus olhos, sabia que ele me amava. Ele veio para mim quando eu tinha desistido de toda a esperança de sobreviver. Me resgatou de uma horda de demônios. Queria me proteger. Nunca realmente disse isso, mas parecia que ele me amava.

Além disso, Voron era um ótimo pai e minha mãe era uma santa. E unicórnios cor-de-rosa voavam em asas de arco-íris sobre montanhas de chocolate e rios de mel.

Me afastei da mesa. Estava ficando louca. Essa inquietação não era própria de mim.

A porta rangeu. Provavelmente Andrea e Derek. Bom. Se ficasse aqui com meus próprios pensamentos por mais um minuto, precisaria de uma camisa de força.


Capítulo 12


NO MOMENTO EM QUE TERMINEI DE DESCER A ESCADA, Andrea me agarrou. Um rubor rosa pintava suas bochechas.

Ela parecia agitada. Agitada não era bom.

— Nós precisamos conversar. Derek também.

Todo mundo precisava falar comigo. Estava ficando cansada de falar. — Antes de fazermos isso, tenho algo para mostrar a você.

Eu a levei para a gaiola do loup. O Volhv pendia para direita sentado e amarrado à uma cadeira. Seus olhos fechados. Parecia desmaiado.

Os olhos de Andrea se arregalaram. — O que é ele?

— É um Volhv.

Os cílios do Volhv tremeram. Vamos, acorde.

— O que sequestrou Kamen?

— Não. O que sequestrou Kamen é um ancião Volhv. Este é mais parecido com o intermediário, poderoso, mas ainda não está lá.

Andrea arqueou as sobrancelhas. — Aaaa. Como ele ficou todo assim?

— Ele me incomodou sobre encontrar com Evdokia.

— Você estava de mau humor ou algo assim?

Você não tem ideia. — Sim. Pode dizer isso.

Andrea franziu os lábios. — Por que ele parece um pirata Hidalgo? Eu achava que os russos eram loiros.

— E todos nós carregamos uma garrafa de vodca no bolso e usamos um chapéu de pele o ano todo. —O Volhv abriu seus olhos negros. Seu olhar se fixou em Andrea. Ele piscou e olhou, atordoado.

Oh garoto.

— Fingindo estar desmaiado, —eu disse.

— Apenas descansando meus olhos. —Ele ainda estava olhando para Andrea. — É bom aqui. Tranquilo. —Um sorriso lento curvou os lábios do Volhv. — Embora, se você quiser que eu modele um chapéu de pele para você, nós poderíamos chegar a um entendimento.

Andrea soltou uma risada zombeteira e saiu do quarto.

— Ela trabalha aqui com você? —O Volhv perguntou.

— Não é de sua conta, —disse a ele, saí e tranquei a porta atrás de mim por precaução.

Andrea cruzou os braços. — Que atrevimento. Você viu aqueles olhos? Atraentes.

Sim, atraentes. — Você queria me dizer alguma coisa?

— Sim. Derek também. Cozinha?

— Sim.

Nós três sentamos a mesa da cozinha. Ascanio entrou e se encostou na parede.

— Os registros de Harven são imaculados, —Andrea começou. — Tudo certo. Ele esteve quatro anos no exército. Encontrei seu DD21475 e atestados de antecedentes e liguei para o National Personnel Records. Eles disseram que levaria dois meses para confirmar, então liguei para um amigo meu na Unidade Militar de Defesa Sobrenatural. Ele diz que tudo sobre Harven no MSDU é perfeito. Também encontrei as avaliações do NCO de Harven e seus recibos de pagamento.

Um homem pode falsificar seus documentos de antecedentes e idoneidade, mas ele teria que ir a um trabalho extra para falsificar recibos de pagamento e relatórios de desempenho.

— O Departamento Policial de Orlando confirmou que ele era um policial, —disse Derek. — Conversei com duas pessoas que o conheciam. Eles disseram que ele era um bom policial. Dedicado.

— Passamos pelo apartamento de Harven. —Andrea abriu um envelope e tirou uma Polaroid. Era uma foto de uma pintura digital. Um nascer do sol descia sobre o mar, deixando nuvens cinzentas e irregulares em seu rastro. No centro da imagem, uma rocha solitária se projetava de águas turbulentas, sustentando uma espiral branca de um farol que enviava um raio de luz brilhante em direção ao horizonte. A legenda sob a imagem dizia: ‘A escuridão brota ao pé do farol.’

— Isso deveria me dizer alguma coisa? —Perguntei.

— É um farol, —disse Andrea na mesma voz em que as pessoas geralmente diziam: ‘É um assassinato’.

— É um farol muito legal. Muitas pessoas têm pinturas de faróis. —Para onde ela estava indo com isso?

Andrea pegou o envelope e tirou uma foto de um quadro. Duas fileiras de adolescentes estavam em suas vestes de formatura. Andrea apontou para um garoto de cabelos escuros à esquerda. — Harven. —Ela esfaqueou o garoto loiro na extrema direita. — Hunter Becker.

Eu esperei para ver se ela derramaria mais alguma luz sobre isso.

— Hunter Becker! —Repetiu Andrea. — Eles estavam na mesma turma do ensino médio!

— Quem é Hunter Becker?

— Becker, o Gory? Guardiões do Farol? Boston?

— Eu preferia Becker que se rende facilmente ou Becker o bastante razoável, mas além disso seu nome não me diz nada.

Andrea suspirou. — A Ordem suspeita da existência de uma sociedade secreta chamada Guardiões do Farol. Eles são bem organizados e muito bem escondidos.

— Uma sociedade secreta? —Derek franziu a testa. — O que, como maçons76?

Andrea bufou. — Sim, assim como os maçons, mas ao invés de ficarem juntos, vestindo chapéus ridículos, se embebedando e patrocinando eventos de caridade, eles se juntam e pensam em maneiras de matar pessoas e destruir prédios do governo. Eles odeiam magia, odeiam usuários mágicos, odeiam criaturas mágicas e adorariam nos exterminar com extremo preconceito.

Bem, isso praticamente cobria todos nesta sala.

— Por quê? —Perguntou Derek.

— Porque eles acreditam que a civilização tecnológica é o estado perfeito da humanidade. Acham que a magia está nos arrastando para a barbárie e precisam preservar a luz do progresso e da tecnologia. Sem ela, todos cairão na escuridão. —Andrea balançou a cabeça. — Há três anos, Hunter Becker explodiu um hospital de medicina em Boston. Dezenas de mortos e centenas de feridos. Eles o rastrearam e ele saiu direto para uma unidade da SWAT, apertando uma arma em cada mão.

Suicídio por policial77. Sempre conveniente.

Andrea levantou a polaroid, apontando para a legenda. — Isto estava escrito na parede de sua casa. Isso é o que em nosso negócio é chamado de ‘pista’.

Obrigada, senhorita Espertinha. — Excelente trabalho, Senhorita Marple78.

Ela mostrou os dentes para mim. — Kate, essas pessoas são fanáticas. Esse golpe em Boston levou muito trabalho em equipe. O hospital estava desenvolvendo um tratamento mágico experimental para a gripe azul. Eles tinham várias variações virulentas em seus laboratórios, guardados melhor que Fort Knox.

Ela começou a contar em seus dedos. — Alguém construiu várias bombas com uma elaborada segurança contra falhas. Alguém contornou três níveis de segurança. Alguém distribuiu as bombas em andares separados em áreas restritas com acesso limitado. Finalmente, alguém deu a Becker acesso ao prédio do outro lado da rua, que era a delegacia de polícia local. Estimou-se que pelo menos seis pessoas estavam diretamente envolvidas no bombardeio, algumas das quais tinham que ser funcionários do hospital. Ninguém, exceto Becker, foi descoberto e a única razão pela qual encontraram Becker foi que ele havia sido ferido por detritos e deixou uma trilha de sangue. Nenhuma das pessoas foi plantada, Kate. Eles realmente trabalhavam lá. Desde então, a Ordem encontrou dois outros casos de terrorismo, todos envolvendo equipes de agentes secretos. É assim que essas pessoas operam: elas recrutam jovens e ativam seus membros conforme a necessidade.

Células adormecidas de terroristas domésticos. Essa investigação estava ficando melhor e melhor. — Como você sabe tudo isso?

Andrea mordeu o lábio. — Becker era um Cavaleiro da Ordem.

Se os Guardiões se infiltrassem na Ordem, seria impossível encontrá-los. Com sua atitude anti-mágica, eles se encaixariam perfeitamente. Alguém como Ted os receberia de braços abertos. Inferno, Ted poderia ser um deles. Eu teria que ser muito cuidadosa agora, porque queria muito que Ted estivesse envolvido. Tanto que, se não tomasse cuidado, torceria a realidade para implicar Ted, sendo ele culpado ou não.

— Eles se infiltraram na Ordem e no PAD, —disse Derek. — Harven era um policial antes de ser um guarda.

— Qualquer um pode ser membro dessa sociedade. Poderia ser Rene. Andrea balançou os braços. — Poderia ser Henderson. Qualquer um.

— Não qualquer um, —eu disse. — Eu não sou, você não é, nem Derek. Tenho certeza de que podemos excluir Curran e o garoto também.

Ascanio sorriu.

Andrea olhou para mim. — Você não vai me levar a sério!

— Isso é provavelmente porque você não está animada o suficiente, —disse Derek. — Você deveria cerrar os punhos como eles fazem nos filmes, sacudi-los e gritar: 'Isso é maior do que qualquer um de nós! Vamos até o fim! '

Andrea apontou o dedo para ele. — Cale a boca. Não tenho que ouvir nada de você. Dela, talvez. Mas não de você.

— Eu confio em seu julgamento profissional, —eu disse. — Se diz que existe uma sociedade secreta, então existe uma. Estou simplesmente tentando definir os limites da nossa paranoia. Todos os outros incidentes envolveram mais de uma pessoa?

— Sim.

Pensei em voz alta. — Se Harven era um membro dos Faroleiros, então ele foi recrutado para conseguir o dispositivo de Adam Kamen, o que significa que podemos esperar que haja uma célula inteira.

— Provavelmente.

— O tamanho ideal de uma célula terrorista varia entre sete e oito membros, —disse Derek. — Grupos com menos de cinco membros carecem de recursos, mão de obra e flexibilidade suficientes, enquanto um grupo acima de dez começa a se fraturar devido à especialização. Grupos maiores exigem que a supervisão gerencial permaneça coesa. Isso é difícil de fazer enquanto a célula está em estado de adormecimento.

Fechei a boca com um clique audível.

— Então podemos esperar entre cinco e dez pessoas? —Perguntei.

— Provavelmente mais perto de cinco, —disse Derek. — Especialmente desde que Harven está morto. No entanto, isso pressupõe que estamos lidando com uma única célula. Eles podem ter mais de uma célula em uma cidade do tamanho de Atlanta e também podem mobilizar células vizinhas se seu objetivo for suficientemente importante.

Ninguém despertaria uma célula adormecida para algo menor, não quando seus membros estivessem inativos por anos. — Quantas pessoas podemos esperar se eles descartarem a cautela e movimentarem todas as células disponíveis?

Derek franziu a testa, concentrando-se. — Acho que entre cinquenta a trezentos. Quanto mais pessoas, menos coeso o grupo. Se eu fosse eles, confiaria em terceiros contratados. Nem todo trabalho tem que envolver toda a célula. Alguns alvos podem ser eliminados por um assassino contratado, por exemplo. Isso minimiza o risco e a exposição, se o trabalho acabar, o assassino só pode trair um membro do grupo.

Andrea balançou para frente e para trás. — Que diabos Kamen construíu naquele laboratório?

— Eu não sei. Mas conheço alguém que sabe. Está amarrado em nossa gaiola de loup.

Andei a passos largos até a gaiola de loup, Andrea, Derek e Ascanio a reboque. Tirei a chave do gancho na parede e destranquei a porta.

A gaiola do loup estava vazia. Corda perfeitamente intacta estava enrolada no chão. Ainda amarrada.

Derek parecia ligeiramente doente. Eu vi esse olhar preciso no rosto de Jim quando um ladrão de teletransporte roubou os mapas do Bando há alguns meses. — Como o inferno ...

— Magia, —disse Ascanio.

— A tecnologia acabou. — Tentei a porta da gaiola. Bloqueado — Puro truque.

— Da próxima vez, vamos acorrentá-lo à parede, —disse Andrea.

— Não haverá uma próxima vez. — Ele não se deixará ser pego novamente. Pelo menos não tão facilmente.

Derek saiu. — A porta dos fundos está destrancada, —ele gritou.

Bem, pelo menos sabíamos que não evaporou no ar.

Não conseguimos encontrar Kamen, não conseguimos recuperar o dispositivo, e a única pessoa que poderia esclarecer o que estava acontecendo desapareceu de uma gaiola trancada enquanto estava sob nossa custódia. Era bom que eu fosse meu próprio patrão senão me demitiria.

— O pau dele ainda está aqui, —disse Ascanio, segurando o cajado do Volhv.

Ha! Peguei você. — Traga aqui. —Fui para o quarto dos fundos, abri a porta do freezer e enfiei o cajado nele.

— O que você está fazendo? —Andrea perguntou.

— Um Volhv sem seu cajado é como um policial sem uma arma. Ele voltará por ele. O escritório é uma fortaleza, então ele não poderá entrar durante a tecnologia. Ele retornará durante a magia, quando estiver mais forte. Enfeiticei com magia de Proteção esse freezer com tanta força que precisaria da MSDU para passar por isso. Quando ele retornar, nós o pegamos. E dessa vez ele ficará parado.

*

A VIAGEM PARA CASA FOI MORTAL. Eram sete e cinquenta e cinco quando estacionei e sai correndo pelo pátio. Alcancei os corredores e eu e meus arquivos nos dirigimos escada abaixo, de dois em dois degraus.

Estava quase no patamar quando Jezebel, a segunda das minhas boudas, barrou meu caminho. Seus olhos brilharam vermelho intenso. Parecia pronta para cuspir fogo.

— Eu sei, estou atrasada. —Coloquei alguma velocidade na minha corrida, esperando que meu joelho não doesse.

Jezabel me perseguiu, mantendo uma facilidade ridícula. — Eu vou arrancar suas cabeças e foder com elas.

Isso seria algo para ver, especialmente porque ela não tinha um pênis. Quando Jezebel se empolgava, conseguir que ela explicasse as coisas era quase impossível. Estava aprendendo a adivinhar. — Quem?

— Os lobos, —rosnou.

De novo não. — Qual dos lobos?

Ela mostrou os dentes. — Eu vou arrancar as pernas dela.

Então Jennifer estava envolvida. Claro. Durante a fúria da minha tia, Jennifer, a metade feminina do par alfa lupino, tomou uma decisão executiva de não evacuar. Minha tia atacou a casa secreta dos lobos na cidade enquanto Jennifer estava fora, e sua magia fez todos na casa enlouquecer, incluindo a irmã de nove anos de Jennifer, Naomi. Quando eu corri para dentro da casa, esperando matar minha tia, Naomi me atacou e eu terminei com a vida dela. Jennifer me culpou pela morte da irmã. Os lobos tinham saído de seu caminho para que ela me atacasse cada vez que podia. Eles transformaram isso em quase um jogo.

A porta do auditório surgiu diante de mim. Dois minutos para as oito. — Vamos falar sobre isso depois.

— Kate?

— Depois.

Respirei fundo, abri a porta e entrei, Jez atrás de mim. Um enorme auditório se estendia diante de mim. Fileiras de saliências cruzavam-no, oferecendo um lugar para se deitar e sentar, todos de frente para um amplo palco iluminado por lâmpadas elétricas e braseiros que continham chamas. Uma mesa gigante com uma cadeira esperava no meio do palco.

Geralmente era ladeado por duas cadeiras. Apenas uma cadeira dessa vez. Minha cadeira.

As linhas inferiores foram preenchidas. Metamorfos espalhados aqui e ali, alguns sozinhos, alguns em casais. Pelo menos cem pessoas, talvez mais. Petições raramente atraíam esse tipo de audiência.

Algo estava acontecendo.

Levantei a cabeça, atravessei o palco até a mesa e sentei-me. À esquerda, logo abaixo de mim, uma segunda mesa estava perpendicular ao palco. A mesa estava ocupada por uma mulher de cabelos escuros da minha idade. Ela tinha cabelos castanhos encaracolados, grandes olhos escuros e uma risada contagiante. Se apresentava como George.

O nome completo de George era na verdade Georgetta, e ela tendia a quebrar os ossos das pessoas quando eles o usavam. Seus pais eram os únicos seres na Terra capazes de dizê-lo sem consequências, e desde que seu pai era Mahon, o carrasco do bando, eu não queria tentar a minha sorte. Durante as petições, George atuava como terceiro imparcial79, que preparava resumos dos casos e conduzia as audiências.

George levantou-se e tocou a campainha. — Estamos agora em sessão.

A multidão se acalmou.

Porra! Havia muita gente aqui. Metamorfos fofocavam como velhas damas do Sul na igreja. Se eles soubessem de algum rumor suculento, apareceriam em massa para observá-lo se desdobrar. Até agora no meu dia, eu tinha sido cortada, queimada, machucada, avisada de que estávamos diante de uma sociedade secreta e ‘emocionalmente comprometida’. Não precisava de mais surpresas sangrentas.

— Caso Donovan versus Perollo, —anunciou George.

Dois metamorfos se levantaram da plateia e desceram para a primeira fileira.

Eu abri o primeiro arquivo.

Os quatro primeiros casos eram rotineiros. Uma disputa sobre um carro abandonado na fronteira do território dos ratos.

Um dos gatos o encontrou e passou algumas horas tirando-o do barranco. Tecnicamente, todo o território dos metamorfos era território do Bando, mas cada clã tinha algumas milhas quadradas de suas terras, de modo que pudessem se reunir em particular. O carro era dos ratos. Decidi que o gato não tinha nem que estar em terras pertencentes aos ratos, em primeiro lugar.

O segundo caso era uma disputa interna entre ex-cônjuges pertencentes a diferentes clãs. Quando o casal se divorciou, o pai do rato levou as crianças, e a mãe chacal alegou que ela não tinha que pagar pensão alimentícia porque as duas crianças se transformavam em ratos. Decidi que ela tinha.

O terceiro e quarto casos envolveram um negócio de propriedade conjunta de Clã Heavy e Clã Jackal. Foi longo e complicado e eu tive que verificar minhas anotações mais vezes do que poderia contar. Quando todas as partes interessadas finalmente concordaram, tive que controlar a vontade de cair de alívio na minha mesa.

Outro casal se aproximou. O braço direito do homem estava em uma tipoia e ele parecia que esteve em uma briga. Tinha vinte e poucos anos. É difícil dizer com certeza, os metamorfos envelheciam mais lentamente e algumas pessoas que eu poderia jurar que tinham quarenta e tantos anos estavam beirando setenta.

A mulher parecia ter a mesma idade. Esbelta, ela tinha um rosto bonito emoldurado por uma cachoeira de cabelos loiros que caía abaixo de sua cintura. Parecia no limite, como se esperasse que eu voasse para cima dela a qualquer momento.

O homem levantou a cabeça. — Kenneth Thompson, clã lobo, peticionário80.

A mulher endireitou os ombros. — Sandra Martin, clã lobo, acusada.

Um sino de aviso disparou na minha cabeça.

Ken olhou para mim. — Eu exercito meu direito de apelação individual. Apelo para que minha petição seja julgada pela Consorte.

Isso significava que ele queria que eu fizesse o julgamento. Se Curran estivesse aqui, ele poderia oferecer sua opinião, mas a decisão seria de minha responsabilidade. Exceto que Curran não estava aqui.

— Eu sou a única pessoa aqui, —disse a ele. — Tenho que julgar o seu caso por padrão.

Ken parecia um pouco confuso. — Foi-me dito para pedir apelo direto.

Olhei para George. Ela fez um movimento sinuoso com a mão esquerda. Continue. Certo.

Barabas me fez memorizar o protocolo, então pelo menos não estava completamente perdida. Olhei para Sandra.

— Você tem alguma objeção?

Ela engoliu em seco. — Não.

— O pedido de recurso individual foi concedido, —disse.

O público se concentrou em mim. Então era isso. Era por isso que todo intrometido do Bando estava aqui. Olhei para o casal alfa lobo. Daniel estava impassível e Jennifer tinha um pequeno sorriso no rosto comprido.

Certo. Você quer uma briga, você vai ter uma. Abri o arquivo e tirei o resumo, duas páginas digitadas.

Com Andrea e suas teorias de conspiração, esse era o único caso que eu não consegui estudar antes.

George me deu uma piscadela tranquilizadora de sua mesa.

Eu fiz a varredura do resumo. Oh garoto.

— Estes são os fatos do caso: você, Kenneth, estava romanticamente perseguindo Sandra. Em um esforço para cortejá-la, invadiu a casa dela na sexta-feira. Ela acordou, encontrou você em seu quarto e atirou com uma Glock 21, danificando três de suas costelas e quebrando os ossos do seu braço direito. Você sente que sua reação foi excessiva e quer compensação pela dor e sofrimento e contas médicas. Isso está correto?

Ken assentiu. — Sim, Consorte.

Olhei para o resumo. — Aqui diz que quando Sandra acordou, você estava nu e carregando um buquê de gravetos.

Ken ficou um pouco mais vermelho, mas eu não sabia se era por vergonha ou indignação. — Eles eram rosas. Rasguei as pétalas e as coloquei no tapete.

Se Curran estivesse aqui, ele estaria fechando os olhos e contando até dez em sua cabeça.

— Posso dizer uma coisa? —Sandra perguntou.

Olhei para ela. — Não, você não pode. Você tem que esperar sua vez.

Ela fechou a boca.

Voltei-me para Ken. — Sandra encorajou o seu ... namoro? Ela lhe deu alguma indicação de que gostava de você?

— Alguns, —disse Kenneth.

— Seja específico, —disse George.

— Ela me disse que me achava legal. Eu tenho tentado me aproximar por um tempo, então ela sabia que eu gostava dela.

— Posso dizer uma coisa? —Sandra perguntou.

— Não. E se me perguntar mais uma vez, removerei você e continuaremos sem você.

Ela piscou.

Olhei de volta para Ken. — O que mais Sandra fez para encorajar você?

Ken considerou. — Ela olhou para mim.

Ótimo. Tudo perfeito.

— Então, porque Sandra olhou para você e disse que você parecia legal, você decidiu invadir a casa dela e surpreendê-la em sua cama nu?

Uma leve risada percorreu a plateia. Olhei para eles. A risada morreu.

Ken ficou vermelho e voltou a encarar os metamorfos nas arquibancadas. Tudo o que precisávamos agora era que ele ficasse peludo e rasgasse nossos espectadores.

— Kenneth, olhe para mim.

Ele olhou para mim.

— Aqui diz que você e Sandra trabalham juntos no escritório da Northern Recovery. Isso está correto?

— Sim.

— Além do que aconteceu na sexta-feira, você diria que Sandra é uma pessoa amigável?

Ken ficou intrigado. Ele não tinha certeza para onde eu estava indo. — Eu suponho que sim.

— Será que quando Sandra lhe disse que você parecia legal, ela poderia estar apenas tentando ser amigável?

— Não.

— Então você nunca a viu elogiar ninguém no escritório?

Ele fez uma pausa. — Bem, sim, ela diz coisas agradáveis às vezes para as pessoas, mas quero dizer, eu sou o único cara lá, então é diferente.

Isso não era minha praia. Eu só queria pular na mesa, socar a cabeça dele e acabar com isso. — Mas é possível que você tenha interpretado erroneamente o comentário de Sandra?

Demorou mais alguns segundos e ele finalmente disse: — É possível.

Aleluia. — Suponha que houvesse um homem trabalhando em seu escritório. Um homem muito maior e mais forte. Vamos dizer um render. Ele entrou no escritório usando uma jaqueta de couro nova. Você teve uma conversa amigável, elogiou a jaqueta dele e naquela noite você acordou com o homem parado em cima de você, nu e segurando um buquê de rosas.

Os olhos de Kenneth se arregalaram. — Mas eu não sou gay!

— Não é sobre ser gay. É sobre ser confrontado por alguém maior e mais forte do que você quando você está mais vulnerável. Se você encontrasse esse cara no seu quarto, ficaria chateado?

— Claro que sim, eu ficaria chateado. Diria a ele para dar o fora. Mas ela não me disse para sair. Se ela tivesse dito ‘Ken, dê o fora!’ Eu teria ido embora. Ela atirou em mim oito vezes.

Oh, isso estraga tudo. — Ela é menor e mais fraca que você. Ela acordou, viu você nu e pronto para a ação e provavelmente pensou que você iria estuprá-la. Ela estava com medo, Ken. Você a assustou até a morte.

— Ela não tinha nada para se assustar! Eu não teria feito nada.

— Ela não sabia disso. Você já invadiu a casa dela, então você não tem respeito por sua propriedade. O que a faria pensar que você a respeitaria como pessoa e simplesmente se afastaria se ela lhe dissesse para sair?

Músculos se apertaram ao longo das mandíbulas de Ken. — É assim que os metamorfos fazem isso. Todo mundo sabe que você não encorajou o Senhor das Feras, mas ele invadiu seu apartamento e você não atirou nele.

A audiência ficou tão quieta que eu podia me ouvir respirar. Então era isso. Isso era o que Jennifer queria.

— Entedi. —Minha voz ficou quieta. — É por isso que você decidiu apelar diretamente para mim?

— Sim.

— Quem sugeriu isso?

— Minha alfa.

Jennifer queria me envergonhar. Bem, se ela esperava que eu murchasse, ficaria esperando até que o inferno brotasse rosas. Me virei e olhei para Jennifer. Ela sorriu de volta para mim. Meio segundo para atravessar a mesa, dois segundos para atravessar a sala e eu poderia afundar meu punho no rosto dela. Curando todos os seus males e os meus.

— Eu não fazia ideia de que os alfas do Clã Lobo mantinham um olho tão próximo no meu relacionamento com o Senhor das Feras. Vou ter que verificar debaixo da nossa cama hoje à noite para ter certeza de que nenhum minúsculo espião esteja escondido lá embaixo.

Alguém bufou e sufocou.

— Você sabe o que eu fiz depois que descobri que o Senhor das Feras estava no meu apartamento?

Ken percebeu que ele estava em terreno movediço. — Não.

— Coloquei uma faca em sua garganta, —eu disse. — E troquei a fechadura da minha porta. Além disso, eu encorajei o Senhor das Feras antes dele invadir. Flertei com ele, o beijei e eu desfilei na frente dele de calcinha.

Estava quase terminando. Eu só tinha que evitar agredir Jennifer por um pouco mais de tempo. — Sandra já fez alguma dessas coisas?

— Não.

Vamos colocar tudo para fora. — Ela já ficou com você em uma banheira de hidromassagem ou se ofereceu para servir o seu jantar, nua?

Meu rosto deve ter ficado mais escuro, porque Ken engoliu em seco. — Não.

Me virei para George. — O Código da Lei do Bando tem alguma coisa a dizer sobre o namoro?

George limpou a garganta. — O Artigo Cinco, Seção Um, afirma que nenhum membro do Bando pode ameaçar ou agredir outro membro com a intenção de forçar o interlúdio sexual.

— Qual é a punição por estupro? —Perguntei.

— Morte, —respondeu George.

Ken ficou branco.

— Suas ações podem ser interpretadas como um prelúdio para a agressão sexual. É alarmante que seus alfas não tenham percebido isso, já que é seu trabalho saber coisas desse tipo e reforçar essa compreensão para os membros do clã. O acasalamento forçado é comum no Clã Lobo?

A plateia se virou para olhar para os alfas dos lobos. Daniel se assustou. Jennifer apertou os dentes.

Ken mostrou todo o desespero de um homem preso em um pedaço de gelo no meio de um rio furioso.

— Não.

— Então seus alfas não encorajam estupro, com o melhor de seu conhecimento?

— Não!

— Muito bem. Estou pronto para julgar.

Olhei para Sandra. — Você pode dizer algo se quiser.

Ela balançou a cabeça.

Eu olhei para Ken. — Você agiu como um idiota e conseguiu oito balas como resultado. Conte-se com sorte que ela não atirou em você onde deveria. Se tivesse sido eu, cortaria sua cabeça e arquivaria um relatório policial depois que você terminasse de sangrar no meu tapete. Absorva, aprenda com isso e siga em frente. Você não ganha nada. Peça desculpas a Sandra por assustá-la e, em seguida, causar-lhe uma carga de constrangimento por ter este assunto arrastado ante a assembleia do Bando.

Ele olhou para ela com olhos arregalados. — Eu sinto muito.

— Este processo acabou. —Olhei para os alfas de lobos. — Os alfas do Clã Lobo, por favor, fiquem quando todos saírem.

O auditório foi limpo em tempo recorde. Me recostei na minha cadeira.

Daniel e Jennifer se aproximaram da minha mesa.

Ambas minhas boudas se aproximaram.

— Jezebel, Barabas, deixe-nos, —disse. Quanto menos testemunhas tivéssemos, melhor.

Barabas inverteu seu curso no meio e saiu pela porta. Jez hesitou, rosnou algo baixinho e o seguiu para fora.

Apenas eu, Jennifer, Daniel e George.

— Foi divertido, —eu disse. — Mas o jogo acaba agora.

— Que jogo? —Perguntou Jennifer.

Ignorei. — Você tem três escolhas. Primeira, você pode parar de foder comigo e ir embora. Segundo você pode me desafiar e eu vou te matar. Seria bom para mim. Eu preciso da prática.

Jennifer mostrou os dentes. Daniel colocou a mão no antebraço dela. Eu poderia levá-la sozinha. Os dois, com magia fora do seu turno, seriam difíceis.

— Em terceiro lugar, você pode continuar me incomodando, e nesse caso, no próximo Conselho do Bando, eu pedirei a sua remoção. Posso fazer isso, não posso, George?

— Sim, você pode, —disse George com um grande sorriso.

— Com base em quê? —Jennifer rosnou.

— Incompetência. Eu cito este processo como prova. Este assunto dizia respeito a dois membros do clã Lobo, que estavam sob sua autoridade. Então, ou você não sabia como lidar com isso, ou não queria lidar com isso, devido à preguiça ou devido ao consentimento ativo do estupro. De qualquer forma, você deve ser removida e uma investigação deve ser lançada sobre as práticas de acasalamento do Clã dos Lobos.

— Eles não encontrarão nada, —disse Daniel.

— Quinhentos lobos, dos quais provavelmente há pelo menos cento e cinquenta casais? Como você acha que eles vão reagir a ter seus rituais de acasalamento examinados?

— Você não pode fazer isso! —Jennifer virou-se para Daniel. — Ela não pode fazer isso.

— Tecnicamente, ela pode, —disse Daniel. — Acabou, Jennifer. Você não pode ganhar isso.

Os olhos de Jennifer ficaram completamente verdes. — O que diabos você sabe sobre ser um alfa? Você é humana. A única razão pela qual você está aqui é porque você está fodendo Curran.

Agradável. — Não sei muito, mas estou aprendendo rápido. — Levantei-me. — E estou aqui porque matei vinte e dois metamorfos em duas semanas. Ganhei meu lugar. Quantos desafios você teve, Jennifer? Ah, espere. Nenhum. Me ilumine, como chegou a ser alfa? —Voltei-me para o Daniel. — Ajude-me a terminar com isto. Com quem está ela fodendo, Daniel? Com você? Deve ser especialmente boa, porque essa é a única maneira que você teria suportado isso por tanto tempo.

Eu mal vi Daniel se mexer. Um segundo ele estava ali, solto, e no outro ele apertava Jennifer em um abraço. Foi um abraço muito cuidadoso, parecia gentil, mas eu poderia dizer que ela não conseguia se mover um centímetro.

— Pedimos desculpas por qualquer ofensa a Consorte. Não quisemos desrespeitar, —disse ele.

— Desculpas aceitas.

— Pare de falar como se eu não estivesse aqui, —Jennifer gritou.

— Estamos ansiosos para trabalhar com você no futuro, — disse Daniel. — Com sua licença?

— Por favor. Tenham uma noite agradável.

Daniel se moveu e Jennifer se moveu com ele. Juntos, eles saíram do auditório.

Esperei até a porta se fechar e cair na minha cadeira. George olhou para mim. — Oh malditos deuses. Eu não posso acreditar que ela foi tão longe.

Fechei meus olhos.

— Você está bem?

— Estou cansada. Meu joelho está doendo de novo e estou tentando me teletransportar para o andar de cima.

— Um, Kate, você não pode fazer isso.

— Eu sei. Mas estou tentando mesmos assim. Deixe-me saber se eu começar a desaparecer?

Infelizmente, o teletransporte não funcionou. Subi as escadas, entrei no chuveiro, lavei a sujeira e o sangue e vesti roupas limpas.

O quarto parecia vazio sem Curran. Fiquei na porta do quarto por um tempo e olhei para a cama.

Não queria que tudo acabasse sendo uma grande mentira.

Uma pequena parte de mim queria ir embora. Basta sair agora, sem explicações e decepções.

Desaparecer. Dessa forma, se isso fosse uma mentira, eu nunca saberia.

Mas então eu não corria dos meus desafios. Eu os encontrava de frente e batia minha cabeça contra eles, até que me deixasse ferida, sangrando e atordoada.

Me abracei. Quando eu estava com Curran, ele preenchia o espaço vazio. Se estivesse triste, ele me faria rir.

Se estivesse chateada, ele me convidaria para lutar. Eu estava esquecendo como era ficar sozinha. E estava sozinha. Além de Roland, não havia outro ser humano tão ferrado por milhares de quilômetros.

Se amanhã eu acordasse e Roland esperasse na porta da Fortaleza, eu morreria. Rapidamente também.

Evdokia estava certa. Tive todo o treinamento com a espada que sempre precisaria, mas quando meu pai e eu nos encontrarmos, a luta não seria decidida pela espada. Eu precisava de treinamento mágico e muito disso. E não tinha ideia de como Curran reagiria a isso. Ei, querido, você não se importa se eu praticar virar um vampiro de dentro para fora nos terrenos da Fortaleza, não é? Por favor, ignore os gritos torturantes do seu povo quando as coisas correrem terrivelmente mal.

Uma coisa era saber que você se acasalou com a filha de Roland. Outra coisa totalmente diferente era ter seu nariz esfregado nele.

Em última análise, não precisava descobrir se Curran realmente me amava. Tudo o que eu precisava saber era se o amava o suficiente para não me importar porque ele estava comigo. Sabia a resposta. Só não queria admitir isso. Se ele ligasse agora ferido eu o encontraria e o salvaria, mesmo que isso me custasse a vida, independente se ele me amasse ou não. Isso era todo tipo de confusão.

Não, eu estava errada. Se ele estava comigo porque precisava de mim para lutar contra Roland, tinha que sair. Não podia ficar aqui, dormir ao lado dele nesta cama, tocá-lo, beijá-lo, sabendo que ele não me amava de verdade, mas estava ligado à necessidade de sobrevivência. Eu ainda o amaria, mas não conseguiria ficar. Se ele tivesse me contado isso desde o começo, antes de eu ter a chance de me apaixonar, poderia ter juntado forças com ele de qualquer maneira. Eu não teria dormido com Curran, mas uma aliança com o Bando teria me fortalecido e ele e eu poderíamos ter feito algum tipo de acordo comercial. Agora era tarde demais. Eu queria amor ou nada.

Roubei meu travesseiro da cama e me enrolei no sofá, enrolada em um cobertor sobressalente. Eventualmente ele voltaria para casa. Então nós conversaríamos.


Capítulo 13


O ALARME TOCOU AS SEIS DA MANHÃ, SINALIZANDO o fim da noite e a ausência de magia. Minhas costas e costelas haviam decidido desenvolver uma dor durante a noite. Rolei para fora do sofá, sentindo cada nó e rangido em meus músculos, vesti meu moletom, e desci as escadas para o ginásio. Quarenta minutos depois me sentia muito melhor. Ainda não sabia onde estava a minha história com Curran, mas por enquanto não poderia fazer nada sobre isso. Tinha pessoas para matar e um dispositivo do Juízo final para encontrar.

Andei até a mesa do guarda. — Alguma mensagem para mim?

Curtis, um lobisomem mais velho de cabelos escuros, me ofereceu dois pedaços de papel. — Há também uma mensagem do Senhor das Feras, Consorte. Está na sua caixa privada. Você pode acessá-lo de seu quarto discando 1000.

Ele ligou, mas não falou comigo. Fracote. — Quando ele ligou?

— Doze minutos depois da meia-noite.

— Por que você não me acordou?

Curtis parecia desconfortável. — Ele nos instruiu que você não deveria ser perturbada.

Deveria estar chateada porque ele não fez questão de falar comigo ou tocada porque ele se preocupou em me deixar descansar? Não tinha certeza.

Olhei para o pedaço de papel. A mensagem dizia que os rastreadores encontraram o cheiro de Julie na periferia da cidade. Pelo menos ela não tinha sido sequestrada.

A segunda mensagem tinha um número e um nome. Roman.

Peguei meus pedaços de papel, subi as escadas e disquei 1000. A voz de Curran encheu a sala. — Ei. Sou eu.

Sentei na cadeira. Ouvi-lo era como chegar em casa depois de uma tempestade e encontrar as luzes acesas e a casa quente. Eu estava tão no fundo disso tudo que nem podia ver mais a superfície.

— Eles disseram que você está dormindo. Fico feliz que esteja em casa em segurança. Estou preso em algum buraco no lado sul. Leslie está correndo por toda a cidade. Nenhuma rima ou razão para isso. Nós vamos alcançá-la eventualmente. Ela não pode correr para sempre.

E quando eles fizessem, haveria um banho de sangue.

— Pensei sobre o que você disse. Está certa. Eu faço as coisas assim porque geralmente é dessa forma que sempre funcionou e já faço há muito tempo. Mas eu não quero fazer isso com você.

Ha! Eu ganhei um.

— Mas nós concordamos que não faríamos mais a coisa de não falar e você desligou duas vezes. Se o nosso acordo mudou, eu não recebi o memorando.

Ele ganhou aqui.

— De qualquer forma, estou ficando muito cansado de perseguir a render, então eu vou pegá-la amanhã e voltar para casa. Quero saber se estamos bem. Vou tentar ligar para você no trabalho quando terminar. Adeus querida.

Escutei a mensagem novamente. Não disse nada diferente.

Ele queria saber se estávamos bem. Isso fazia dois de nós.

Disquei o número da mensagem de Roman, quem quer que ele fosse. Uma voz masculina familiar respondeu.

— Olá?

Ha! O Volhv. — Bom dia!

— Você deveria devolver o meu cajado. Posso ir ao seu escritório e pegá-lo. Prometo que não haverá nenhum truque. Ninguém vai morrer.

— Nisso tem razão.

— Vai ser difícil com isso? —Ele perguntou.

— Eu vou trocar o cajado por Adam Kamen.

— Não.

— Esses são os meus termos.

Ele soltou um suspiro dramático. — Nós poderíamos fazer isso como pessoas civilizadas. Mas não, agora vou ter que ir ao seu escritório e desencadear pragas, colocar fogo e amaldiçoar tudo por lá. Ninguém quer isso. Apenas me dê o cajado e nós poderemos até conversar. Estou tentando não ser um cara mau aqui.

Assim que a onda mágica chegasse, teria que reforçar as Proteções, só por precaução. Eu o derrubei, mas foi principalmente sorte e surpresa. Desta vez ele estaria pronto.

— Uma hora com Kamen, e você pode ter seu pau de volta.

— Chyort poberi, você é uma mulher teimosa.

— Você é pagão. Dizer ‘que o diabo te leve’ é uma maldição cristã. Como isso funciona exatamente?

— Isso é uma coisa engraçada sobre o cristianismo; quando os sacerdotes do Deus morto vieram para a Europa, eles transformaram todos os antigos deuses em demônios. Então, tecnicamente, quando estou dizendo ‘Chyort’, estou apelando para todo mal. Enfim, vou ver o que posso fazer.

— Espere. Quando vocês roubaram Adam da oficina dele, vocês pegaram o dispositivo que ele construiu?

Roman fez uma pausa. — Hipoteticamente, se tivéssemos pegado tal coisa, não existiria mais. Seria como se nunca tivesse sido construído. Uma lenda urbana.

— Então é isso? Uma lenda? —Se eles tivessem se apossado do dispositivo, eles teriam destruído isso agora.

— Nem tanto.

Desligou. Começando o dia com um debate filosófico com um sacerdócio da personificação de todo o mal. Só poderia ficar pior a partir daqui.

Tomei um banho, me vesti, peguei um sanduíche e desci as escadas, comendo no caminho. Nenhum metamorfo me agrediu e tentou pegar minha comida. Nenhum lobo alfa lançou ataques de surpresa. Ninguém me ofereceu um buquê de rosas sem as rosas. A falta de drama era absolutamente desanimadora.

Lá fora, o nascer do sol dividia o horizonte, súbito e brilhante, como um jorro de sangue de uma ferida de faca. Ambos os meus veículos estavam parados no quintal. O menino maravilha tinha ligado meu carro para mim e agora esperava no Jeep dele. Ele usava um moletom escuro com capuz e jeans surrados. Se você não visse o seu rosto e não prestasse atenção nos ombros largos, pensaria que era apenas um garoto, quinze, talvez dezesseis. Conhecendo Derek, ele fazia isso de propósito. Quanto mais jovem ele parecesse, menos seus potenciais oponentes pensariam dele. Exceto que seus músculos estavam crescendo. Mais um ano nesse ritmo, e ele teria que atualizar seu guarda-roupa.

— Obrigada por ligar o carro.

Ele sorriu, um rápido lampejo de dentes.

— Onde está a maldição da minha existência?

— Ele sabe a hora. Não sou sua babá.

— O que você achou dele?

— Não muito. Ele é um bebê mimado. —Deu de ombros. — Você dá as boudas um jovem macho e elas caem em cima para mimá-lo.

Uma porta lateral se abriu e Ascanio emergiu, seguido por uma mulher familiar e gorducha. Ela parecia ter cinquenta e poucos anos, cabelos grisalhos enrolados em um coque e um rosto gentil, como uma jovem avó. Você meio que esperava que ela começasse a distribuir almoços escolares e lhe dissesse para se comportar com as outras crianças.

Ela acenou para nós. — Kate!

Oh droga.

Eu limpei minha garganta. — Tia B, bom dia.

Tia B correu, Ascanio a reboque. — Tenho que ir à cidade. Então pensei, por que não pegar uma carona com você? Podemos jogar conversa fora.

Prefiro dar carona a um tigre raivoso. — Claro.

— Maravilhoso. —Tia B pulou no meu banco do passageiro.

Derek hesitou por um longo momento. Ele claramente não queria me deixar sozinha com a tia B, mas o Jeep só podia acomodar dois. Ele fez um movimento para Ascanio e, sem esperar, virou-se lentamente e foi para o seu próprio veículo.

Nós saímos do pátio da Fortaleza e nos dirigimos para a cidade.

— Ouvi sobre a audiência com os lobos, —disse a Tia B.

Obrigada, George. — Não foi nada demais.

— Não foi o que eu ouvi. Bem feito, querida. Bem feito. Jennifer não é má, mas é jovem. Ela tem sido uma alfa por apenas dois anos. Ainda está estabelecendo seu lugar e, claro, perder um ente querido, especialmente tão jovem, pode mexer com a cabeça. Ela se encaixará.

Esse seria o dia. — Você tem muita fé em seu senso comum.

Tia B sorriu. — Oh não, querida. Eu tenho muita fé em Daniel. Ele lutou duro por seu lugar no topo. Ele não vai deixar nada pôr em risco, nem mesmo ela. Por falar em coisas jovens e doces, como está meu garoto?

Como uma estaca quadrada em um buraco redondo. — Estamos trabalhando nisso.

— É tão raro, você sabe, que as boudas passem pela puberdade sem lupismo. Esse foi o problema com os meus dois primeiros meninos. Eles eram como Ascanio: bonitos, engraçados, charmosos ...

Indisciplinado, mimado, arrogante ...

— Ele tem muito potencial. Eu não vi uma meia forma tão boa em tão tenra idade em anos. Quase tão bom quanto o meu Raphael.

Oh uau. Ela realmente gostava dele, se estava comparando-o ao seu filho. — Então, por que dar ele para mim?

Tia B suspirou. — Ele não cresceu no Bando. Sua boca rebelde afasta todo mundo dele. Ele empurra as coisas longe demais, às vezes em público. Odiaria matá-lo. Faria isso, é claro, mas isso quebraria meu coração.

É isso aí, essa era a Tia B que conhecia. Por favor, segure a roda enquanto eu pulo deste veículo em movimento e corro pela minha vida.

— E a mãe dele é uma garota tão legal também. Isso a devastaria. De todos os lugares que ele poderia estar, o mais seguro é com você. Você é muito boa para matar crianças.

Olhei para ela.

— Cuide da estrada, querida.

Desviei para evitar uma árvore caída. — Qual é a história dele? Se eu tiver que cuidar dele tenho que saber os detalhes.

— É tudo muito, muito triste. Martina, sua mãe, conheceu seu pai enquanto ela morava no Centro-Oeste. Não havia muitas boudas assim, então quando ela o encontrou, ela não olhou muito de perto a qualidade de seu pretendente.

E ele parecia um tipo bom o suficiente, um bom bouda, do lado passivo, mas nossos homens às vezes seguem esse caminho. Eles se divertiram, ela concebeu. Ela ficou emocionada. Ele não.

— Não queria ser pai?

A Tia B balançou a cabeça de um lado para o outro. — Não exatamente. Acontece que ele estava em sua ‘peregrinação’. Ele cresceu em uma comunidade religiosa nas bênçãos lideradas por algum profeta, e eles o enviaram para ver como os 'pagãos' viviam. Ele não deveria estar se divertindo e nem nas buscas dos prazeres carnais.

Ela ergueu as sobrancelhas para ‘carnal’.

— Então o que aconteceu?

— Ele ficou com ela. Martina achava que eles eram uma família. Ela deu à luz. Foi um parto difícil. O hospital a sedara para que ela pudesse se livrar da dor. Quando acordou na cama do hospital, o bebê e o pai tinham desaparecido. Ele deixou uma nota para ela. Que iria criar o bebê da maneira ‘adequada’. O bebê era um inocente, mas ela era impura, porque eles pecaram e tiveram relações sexuais sem a bênção do profeta, então ela não podia ir com ele. Martina mal conseguiu segurar o menino. Uma memória fraca, isso é tudo que ele deixou. Ela não podia contar a história sem cair em lágrimas. Se fosse comigo teria encontrado, o matado e pegaria meu bebê de volta.

— Ela o procurou?

A Tia B assentiu. — Sim. Mas era fraca e ele era muito bom em cobrir seus rastros. Ela flutuou por alguns anos como um navio quebrado sem um leme até que veio aqui e nós a acolhemos. Ela é uma boa pessoa. Só precisava acertar a cabeça. Jurou que não teria mais filhos, e não podemos nos dar ao luxo de fazer isso, não com nossos números.

— O que aconteceu com Ascanio?

— O pai dele o levou à sua seita. —Tia B fez uma careta. — Do jeito que o garoto conta, era uma daquelas seitas em que o profeta começa a receber mensagens de algum deus flimflam celestial, que lhe diz para dormir com todas as mulheres. Especialmente as mais jovens e mais bonitas. Este profeta não estava interessado no retorno do pai de Ascanio.

— Eliminando a competição, —eu imaginei.

— Exatamente. A maioria dos jovens não voltava depois da peregrinação, por que você iria? Você teria que ter uma esposa eventualmente, e como você pode fazer isso sabendo que ela sai toda noite para ir dormir com esse profeta? Mas o pai de Ascanio era burro demais para pensar por si mesmo. Quando Ascanio tinha cerca de sete ou oito anos, ele morreu. Um acidente de caça.

— Arrá. Eu compro isso por um dólar. — Que tipo de acidente de caça teria que ser para matar um maldito bouda? Eles estavam caçando e um elefante caiu sobre ele?

— O menino foi criado coletivamente, —continuou a Tia B. — A seita consistia principalmente de mulheres, os únicos homens eram o profeta, alguns veteranos muito crentes para partir, e os filhos do profeta. Cuidaram bem dele, mas acabou crescendo. Você viu como se parece. Ele começou a semear algumas veias selvagens. O profeta começou a receber rapidinho mensagens de que Ascanio era impuro. Exceto por esse ponto, Ascanio era forte o suficiente para que o profeta se preocupasse em confrontá-lo diretamente. O pai de Ascanio havia escrito todo o relato sórdido de seu pecado em uma confissão, então o profeta encontrou o nome da mãe, descobriu onde ela estava e nos chamou. ‘Venha e pegue-o antes que algo ruim aconteça’. Então nós fomos e o trouxemos. É nosso agora. Ele tem um bom coração. Simplesmente não conhece as regras e não tem muito juízo naquela linda cabeça.

Então, o único modelo masculino que Ascanio já teve era um vigarista lascivo e assassino. Ótimo. Isso explicava algumas coisas.

Tia B olhou nos meus olhos. — Você vai cuidar do meu menino, não vai, Kate? Considerarei isso um favor pessoal.

— Farei o que puder, —disse a ela. — Mas não posso tirá-lo do fogo se ele pular nele depois de ser avisado.

— Eu não peço milagres, —disse a Tia B. — Apenas as coisas dentro da razão.

Seria preciso um milagre para manter Ascanio na linha. Mas agora não parecia um bom momento para mencionar isso.

*

TIA B QUERIA FICAR A UM QUILÔMETRO do meu escritório, em alguma padaria. Quando chegamos, Andrea já estava lá, sentada a sua mesa. O cão fiel começou a correr e me atingiu no peito.

Poderia ter usado a companhia de Grendel na noite passada. Mas Andrea ainda precisava dele mais do que eu.

— Você dormiu aqui? —Eu perguntei.

Ela levantou o queixo. — Claro que não.

Sim, ela dormiu no escritório. Às vezes, ficar sozinha em um apartamento vazio, com nada além de sua própria loucura por companhia, era muito pior do que suportar uma noite no escritório em uma cama desconfortável.

Pelo menos no escritório, você poderia fingir que ainda estava no trabalho e se manter ocupada. Já passei por isso.

Derek enfiou a cabeça na geladeira. — Não há nada para comer.

— Você não comeu antes de sairmos?

Derek me deu um longo olhar de sofrimento. — Sim eu fiz. Mas no almoço vamos precisar de comida, e não podemos nos dar ao luxo de ficar correndo para fora do prédio por causa da fome.

Ele estava certo. Nós tínhamos três metamorfos para alimentar, e toda vez que um de nós saía do escritório, nos tornávamos um alvo. — Tudo bem. —Abri o cofre e entreguei-lhe trezentos dólares. — Há uma mercearia na rua. Consiga algo que te sustente.

— Eu vou com ele, —disse Andrea. — Preciso colocar minha cara na rua de qualquer maneira.

Eles saíram e eu observei Ascanio fechar a porta atrás deles.

A caixa contendo a evidência da casa de Adam não estava na minha mesa. Se Andrea passou a noite, ela provavelmente subiu as escadas. Corri até os degraus. Lá estava ele, espalhado por todo o chão em pequenas pilhas: polaroids de um lado, minhas anotações e de Andrea do outro, saquinho com formigas mortas no meio. Sentei no chão. Tinha que haver algo aqui que poderíamos usar. Algo que estávamos perdendo. Até agora tudo o que eu tinha para trabalhar eram teorias e suposições. Os Volhvs provavelmente haviam sequestrado Adam, Roman praticamente confirmou isso. Mas a menos que ele estivesse mentindo, o dispositivo ainda estava lá fora, em algum lugar. A Guarda Vermelha também não tinha o dispositivo, caso contrário, os guardas não nos contratariam para procurá-lo.

Adam não poderia ter movido o dispositivo sozinho. Pesava uma tonelada. Isso deixaria para os Guardiões do Farol.

Eles devem ter querido tanto Adam quanto o dispositivo, mas os Volhvs pegaram Adam debaixo de seus narizes, então pegaram o dispositivo. E usaram algum tipo de veículo para sair de Sibley, deixando o rastro de magia. E eu saberia como seria esse veículo se Ghastek me ajudasse. Aaaa.

Se os Guardiões tivessem o dispositivo de Adam, nada de bom viria disso. De todos os adversários que tive que enfrentar, os fanáticos eram os piores. A maioria das pessoas poderia ser subornada, ameaçada, intimidada. Nenhum dos métodos usuais de persuasão aplicava-se a fanáticos. Eles faziam coisas que desafiavam a lógica.

E nós ainda não sabíamos o que diabos o dispositivo realmente fazia. Peneirei as evidências. Adam tinha mantido um diário, mas estava faltando, junto com todas as outras anotações.

Vinte minutos depois eu não estava mais perto de resolver nada. Peguei pedaços de papel ao acaso, marcados na mão firme e precisa de Andrea. LISTA DE ROUPA - LISTA DE UTENSÍLIOS DE COZINHA - LISTA DE MERCEARIAS. Ela catalogou a casa inteira. Examinei a lista de compras. Não é como se tivesse algo melhor para fazer. Queijo, leite, banana, chocolate, shakes de proteína ...

Espere um minuto maldito.

Açúcar, damascos secos ...

Olhei para a lista. Já vi essa lista de ingredientes antes. Eu os vi sendo colocados em um liquidificador um por um: banana, açúcar, shake de proteína, chocolate, leite. Era uma mistura nauseante que Saiman costumava beber quando estava prestes a mudar de forma e esperava queimar muitas calorias rapidamente.

Verifiquei a lista novamente. Saiman era o principal especialista de Atlanta em todas as coisas mágicas. Ele lidava com informações confidenciais, possuía parte de um torneio ilegal de artes marciais e tinha menos moral do que os deuses nórdicos dos quais ele descendia. Ele era um egoísta completo e total, focado unicamente em gratificar seus próprios desejos, e qualquer negociação com ele vinha com um preço gigante. Há alguns meses seu egoísmo finalmente o colocou em apuros. Ele me convenceu a jogar de sua escolta para a noite e me usou para se vigar de Curran, achando assim que recuperaria seu orgulho. Curran não aceitou bem. Na verdade, fiquei espantado que Saiman ainda estivesse entre os vivos.

Saiman também mudava de forma. Qualquer tipo de corpo humano, qualquer gênero. Uma vez ele se transformou em uma mulher, seduziu um sacerdote Volhvs, roubou sua bola mágica e depois contratou a Associação de Mercenários para mantê-lo seguro enquanto os amigos e parentes do sacerdote se viravam de dentro para fora tentando matá-lo. O padre que ele seduziu era um vovô. E eu era a mercenária idiota enviada para protegê-lo. Ele foi a razão pela qual eu tive que ir a Evdokia em vez dos Volhvs e ter minha infância destruída em pedaços.

Se Saiman estivesse envolvido, ele poderia se passar por alguém. Ele poderia ter sido um dos guardas ou fingir ser o próprio Adam Kamen. Mas por que? O que diabos ele queria? Saiman era muito rico.

Talvez ele fosse um dos investidores ...

Um fraco tinido de metal anunciou a barra sendo removida da porta. Isso foi um pouco rápido para compras de supermercado.

— Olá! —A voz de Ascanio tinha o tom inconfundível de um cara jovem tentando ser suave.

— Quem diabos é você e onde está Kate? —Perguntou a voz de Julie.


Capítulo 14


LEVANTEI, ME APOIEI NO CORRIMÃO E INCLINEI contra a parede, escondida na sombra. Daqui tinha uma excelente visão da sala principal. Ascanio barrou as escadas. Julie estava no meio da sala, com um olhar determinado no rosto. Seus cabelos claros estavam puxados em um rabo de cavalo. Bom equilíbrio, firmeza nos dedos dos pés. Sua mão estava em uma das minhas facas de arremesso. Não importa quantas vezes eu as tomasse dela, ela sempre conseguia roubá-las.

— Eu sou Ascanio Ferara do Clã Bouda. A questão é: quem é você?

— Afaste-se.

— Não posso fazer isso, —ronronou Ascanio. — Estou sob ordens estritas para não deixar ninguém que não conheça no andar de cima. E eu não te conheço.

Pelo menos em um aspecto, a escola tinha sido boa para Julie, eles tinham certeza de que ela comia frequentemente.

Ela percorreu um longo caminho desde a criança que encontrei no Honeycomb. Ainda esbelta e pálida, mas parecia mais forte agora, e suas pernas e braços não eram mais palitos de dente. Ela também era bonita, um fato que Ascanio notou, a julgar pelo sorriso matador e a leve flexão de seus braços.

Um lindo rosto e todas as minhas ordens de não admitir estranhos voaram pela janela. O garoto estava sem esperança.

— Mova-se, —repetiu Julie.

— Não. Você vê, eu tenho um problema. Kate não me disse que ela estava esperando um anjo.

Muhahahaha.

Julie piscou, obviamente atordoada.

— Eu gostaria de ajudá-la. —Ascanio abriu os braços. — Simplesmente não posso. Kate é uma alfa muito severa.

Severa?

— Ela pode me colocar em um buraco. Ou me chicotear.

Não, mas ela pode torcer sua cabeça por isso.

Julie colocou o rosto em uma expressão chocada. — Chicoteá-lo? Mesmo?

Ascanio assentiu. — É brutal. Mas se eu tivesse alguma coisa, algum pequeno favor, poderia valer a pena em ser punido.

— Um pequeno favor? —Julie assentiu. — Como o quê?

— Um beijo.

Os olhos de Julie se estreitaram. — Talvez eu volte mais tarde.

— Ela vai sair mais tarde e minha memória é terrível. Poderia esquecer que você esteve aqui e deixá-la partir para a Fortaleza. É muito difícil alcançá-la na Fortaleza. Existem muitos guardas.

Os quais todos brigariam entre si para entregá-la a mim?

Julie recuou. Ascanio se adiantou. Ela deu outro passo. Ele seguiu, com uma graça fluida de metamorfo. Ele pensou que ele estava perseguindo ela. Ela o estava puxando para longe das escadas, dando espaço para trabalhar.

— Você vai ser bonzinho se eu te beijar? —Julie deu outro passo para trás.

— Muito agradável.

— E sem língua.

— Nenhuma língua.

Alguém me mate.

Julie fez um sinal para ele. — Certo.

Ascanio deu um passo à frente. Julie ficou na ponta dos pés e gentilmente o beijou. Sua mão direita deslizou em uma bolsa de couro em seu cinto. Ascanio se inclinou para frente, deslizando as mãos pelos ombros dela. Julie recuou e sufocou um punhado de pasta amarelada, quase laranja, no rosto. Acônito. Potente como o inferno.

Ascanio fez um ruído estrangulado e arranhou seu rosto, tentando exalar o fogo que de repente explodiu em sua boca e nariz. Julie enganchou a perna direita com a dela e empurrou-o de volta. Ele caiu como um tronco.

Suas costas bateram no chão, forçando todo o ar para fora de seus pulmões em um suspiro rouco. Julie agarrou o braço dele, torceu-o, virou-o de bruços, pousou nas costas de Ascanio, tirou uma algema de plástico do bolso e amarrou os pulsos.

Eu queria pular para cima e para baixo, batendo palmas. Nós praticamos essa queda durante as férias de Natal e ela fez isso perfeitamente.

Julie agarrou Ascanio pelos cabelos, levantando o rosto do chão e enfiou a faca na garganta dele.

Um estranho ruído de hiena escapou dos lábios de Ascanio, um meio gemido ululante, meio riso, atado com um grunhido rouco, como uma porta de celeiro rangendo, centímetro a centímetro. Todo o cabelo subiu na minha nuca.

— Eu vou te despedaçar!

— Oh não. —Julie estalou a língua. — A maldosa garota humana derrubou você? O boudazinho quer a mamãe dele?

— Desamarre-me.

— Aaaaa, o bebezinho está chorando. Buáááá ... O bebê precisa de sua mamadeira e seu ursinho?

Aquela algema de plástico parecia muito fina para segurar um metamorfo.

— Quando eu ficar livre, eu vou ...

— Não se preocupe. Seu ursinho tem que estar aqui em algum lugar. Aposto que ele está lá em cima. Você fique aqui como um bom menino enquanto eu vou procurá-lo.

Ascanio se torceu. Músculos duros se arqueavam em seus braços. Julie deu um passo para trás.

O menino empurrou. Um grunhido rasgado saiu de sua garganta, sua pele se rompeu e um monstro surgiu. A algema de plástico se quebrou e um bouda de um metro e noventa de altura em forma de guerreiro se levantou. Listras escuras marcavam seus membros maciços, correndo até os ombros, onde o pelo marrom queimava em uma longa e espessa juba. Uma hiena marrom. Interessante. Eu só tinha visto um desses antes.

Olhos vermelhos encaravam Julie de um rosto chocantemente desumano.

Ela levantou a faca.

Ascanio se lançou. Seus dedos com garras seguraram seu pulso. Ele arrancou a faca da mão dela e a jogou no chão.

Isso era o suficiente. Abri minha boca.

A porta da frente se abriu e Derek entrou no escritório. Ascanio e Julie congelaram, o braço dela ainda preso em seu aperto.

Os olhos de Derek cintilaram com um brilho amarelo letal.

Fui para as escadas. Julie afastou o braço de Ascanio.

A voz de Derek estava congelada. — Julie, suba as escadas.

Julie contornou Ascanio e tirou a faca do chão.

A boca do bouda se abriu. Palavras mutiladas saíram, rasgadas por suas presas. — Varrr agooraa, faça o que ele disse, hein?

Surpresa, surpresa. Ele podia falar em uma meia forma. Isso exigia um verdadeiro talento.

Julie mostrou a língua, foi até a escada e me viu. Seu rosto caiu. Está certa. Você está muito encrencada.

Derek fechou a porta e olhou para Ascanio.

Ascanio abriu os braços, a voz gotejando de escárnio. — O que? O que? O que você vaairr faazerrr?

— Vou te ensinar uma lição. —Derek tirou o casaco e colocou-o sobre a cadeira.

Ascanio estalou os dentes enormes. — Você não vai me ensinar nada, mas eu vou lherrr darr algumasrr cicatrizesrr a maissrr. Vocêrrr aindaaarrr estáa muitoooo boniiiito.

Derek deu alguns passos para frente e apontou para Ascanio com a mão. — Essa é uma boa meia forma. Vamos ver o que você pode fazer com ela.

— Estou esperando por você, lobo. Eu vourrrr entregar a sua carrrrrcaça sangrentaaa para Kate. Pelo menos, me dê uma booooa luta.

Derek sorriu. Era um sorriso frio e sem humor que mostrava a ponta dos dentes. — Eu não posso esperar.

Ascanio saltou.

*

O BOUDA VOOU ATRAVÉS DO AR, GRANDES GARRAS prontas para a matança. Derek desviou do caminho. Ascanio passou por ele e se virou.

— Quando você está no ar, você não pode mudar sua direção, disse Derek. — Tente novamente

Ascanio rosnou e o atacou.

Derek atacou, girou seu pé esquerdo e chutou. A parte inferior de sua canela direita se conectou com o ouvido de Ascanio. Ascanio rolou para o lado, colidiu contra uma parede e se levantou.

— Cuide de suas laterais, —disse Derek. — Você tem visão periférica por um motivo.

— Vou te matarrrrr, porra!

— Pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo. —Derek levantou os braços. — Observe.

Ascanio se lançou. — Pé esquerdo. —Derek o encontrou no meio do caminho e afundou um doloroso chute no estômago do bouda.

Ascanio cambaleou para trás.

— Pé direito. —Derek deu um passo rápido, construindo o ímpeto. — Pé esquerdo. —Ele pulou e martelou a ponta do pé na testa de Ascanio, lhe dando uma martelada na cara.

O impacto enviou Ascanio voando. Ele bateu na minha mesa com um ruído crocante de ossos.

— Vá devagar na mobília, —eu gritei.

— Minhas desculpas, Alfa.

Com um grito brutal, Ascanio se lançou.

— Chute de esquerda. Chute direto. Soco de baixo para cima. Chave de braço. Veja, agora eu controlo sua cabeça. Isso não é bom, porque eu posso fazer isso. Ah, e agora enquanto você está deitado aí, seu oponente pode chutar você assim.

Julie estremeceu. — Ele vai matá-lo.

— Derek está sendo muito cuidadoso. O que eu falei sobre as algemas de plástico?

— Só para os humanos. —Murmurou Julie.

— Se você não me ouvir, eu não posso te ensinar nada.

Derek virou a cabeça para a esquerda, depois para a direita, estalando o pescoço. — Vamos sacudi-lo. Fique de pé. Você é um metamorfo. Você pode ter muita punição. Tudo vai curar, mas enquanto isso dói, não é? Chute, virilha, cotovelo, garganta. Não, não levante as mãos, você deixa seu estômago exposto. Chute lateral.

Ascanio bateu na parede. O prédio tremeu.

— Você sabe quem não cura tão bem quanto você? Humanos. Eles são menores e mais frágeis do que você, e eles quebram facilmente e ficam quebrados. É por isso que não colocamos nossas mãos em humanos. Especialmente garotas. E nunca essa menina.

As garras de Ascanio alcançaram a garganta de Derek. O garoto maravilha agarrou o braço esquerdo do bouda e torceu.

Com um aperto suave, o ombro se deslocou.

— É suficiente. —Desci as escadas.

Derek levantou as mãos e deu um passo para trás.

Ascanio se moveu para persegui-lo. Eu bati um único soco na parte de trás do pescoço de Ascanio. O menino caiu no chão.

Agarrei seu braço esquerdo e puxei bruscamente, colocando o ombro de volta no lugar. Ascanio ofegou. Eu o sacudi e olhei nos olhos vermelhos. — Acabou.

Ele mostrou os dentes para mim. Bati no nariz dele. — Eu disse que acabou. Ou você descobrirá como é a gaiola do loup por dentro.

Eu olhei para Derek. — Onde está Andrea?

— Ela disse que tinha uma missão. Está voltando para o escritório logo depois.

— Lave-se. —Balancei a cabeça para seus dedos sangrentos e voltei para Ascanio. — Você vem comigo. Nós precisamos conversar.

Ascanio me seguiu até a sala ao lado.

Eu apontei para a cadeira. — Sente.

Ele pousou seu corpo desgrenhado nela.

— Você sabe por que você está aqui?

Ele encolheu os ombros.

Sentei na outra cadeira. — As pessoas praticam há anos para criar uma boa meia-forma. Você tem apenas quinze anos e já tem. E você pode falar enquanto está nela. Isso exige talento, o tipo que é raro e difícil de encontrar. Normalmente, quando um jovem metamorfo exibe talento, há uma guerra de lances. A guarda de Curran, o pessoal da segurança de Jim, os treinadores guerreiros, todos querem e brigam por ele. Ninguém te quer. Nem mesmo sua própria alfa.

— Minha Alfa me quer.

— Claro, a Tia B gosta de você. Você é espirituoso e bonito e um espertinho. Ela enterrou dois filhos, meninos como você. Tem um fraquinho por você. É por isso que ela mandou você para mim.

Ascanio abriu a boca.

— Ela não pode controlar você e ela está preocupada que você vai cruzar a linha em público e ela terá que te matar.

As mandíbulas do bouda se fecharam, jogando baba na mesa.

— Isso iria devastá-la, mas não pense nem por um segundo que ela não faria isso. A Tia B é alfa há mais tempo do que eu vivo. Não ficou no poder porque faz ótimos biscoitos.

Ascanio olhou para a mesa à sua frente.

— Você acabou aqui porque de todas as pessoas no Bando, eu sou a menos provável de matá-lo. —Abaixei minha cabeça para que eu pudesse olhar em seus olhos. O monstro na minha mesa parecia pronto para chorar. Consegui fazer um adolescente se deprimir. Merecia um tapinha nas costas.

— Quais foram as suas ordens?

Ele não respondeu.

Não falei nada. O silêncio estava vazio entre nós. Eventualmente, a necessidade de preenchê-lo ganhou.

— Guarrrrdarrr a portarrr.

— E?

— Não deixaaarrr ninguém que não conheço entraaaarr.

— E você deixou Julie entrar. Você não tinha ideia de quem Julie era, porque se você soubesse que ela era minha filha ...

A cabeça de Ascanio se levantou.

— ... você não teria colocado suas mãos nela.

Ele olhou de volta para a mesa. Isso mesmo, você acabou de agredir fisicamente a princesa do Bando. Não que ela não tenha devolvido na mesma moeda.

Pobre garoto. Seu dia estava de mal a pior.

— Derek foi treinado por Curran, —eu disse a ele. — Depois disso, ele trabalhou para Jim. Ele era seu melhor agente disfarçado. Depois, ele comandou a guarda pessoal de Curran. Derek pensa em Julie como sua irmãzinha. Ele queria te esfolar vivo. Ele não fez isso, porque você pertence a mim e ele respeita minha autoridade, mas ele poderia. Não foi uma luta justa. Ele chutou sua bunda e não há vergonha nisso. Em termos de poder, a distância entre você e ele é tão grande quanto a diferença entre você e Julie. —Cruzei os braços. — Julie também chutou sua bunda. Se ela tivesse uma algema mais grossa, ou se ela tivesse enfiado a faca entre as vértebras do pescoço enquanto você estava lá beijando o chão, tudo estaria acabado. Se tiver sua cabeça cortada não vai crescer outra. Para não mencionar, ela poderia ter sido alguma criatura vestida em pele humana. Você colocou em perigo todos no escritório, deixando-a entrar.

Levantei-me. — Sua maneira de fazer as coisas não está funcionando. Hora de uma nova estratégia. A única diferença entre você e Derek é disciplina e treinamento. Ou você pode trabalhar em ambos, ou você pode continuar pensando com suas bolas. É a sua escolha. Diga ‘pop’.

— Pop?

— Esse é o som que fez quando puxei sua cabeça para fora da sua bunda. Se você colocá-la de volta lá, não há nada que eu possa fazer sobre isso. Esta é a única palestra que você vai receber de mim.

Fui para a porta.

— Posso vencê-lo?

Virei. — Derek?

Ele assentiu.

— Sim. Você terá que trabalhar duro na academia e aprender as regras do bando, para não ser morto nesse meio tempo, mas sim. Você pode.

Saí pela porta. Um adolescente mastigado, faltava outro.

*

JULIE TINHA SENTADO EM CIMA DA MESA. Ela não conseguia descobrir se ficaria melhor desafiadora ou lamentável, então tinha conseguido uma mistura estranha entre os dois: o lábio dela estava a segundos de tremer, mas seus olhos poderiam ter disparado raios laser.

Sentei na outra cadeira. — Faca.

Ela puxou a faca e colocou na mesa. Peguei. Sim, uma das minhas facas de arremesso, pintada de preto. Dois arranhões marcaram a lâmina perto do punho, onde alguma coisa arrancara a tinta do metal.

— Como você conseguiu isso?

— Eu puxei para fora da árvore.

Ah. Então foi essa faca. Quando ela teve problemas pela primeira vez na escola, tentei ajudá-la com sua credibilidade, encenando uma aparição. Foi um caso dramático, envolvendo cavalos negros, Raphael em couro preto, e eu jogando esta faca em uma árvore sentada em um cavalo. Foi um bom lançamento e a lâmina tinha mordido profundamente a casca.

— Você puxou isto fora sozinha?

Ela hesitou por um segundo. — Eu usei um alicate para soltá-lo.

Explica os arranhões. — Por que apertar a lâmina e não o cabo?

— Não queria que ele se quebrasse.

— Onde você conseguiu o alicate?

Ela encolheu os ombros. — Roubei em um laboratório.

Você poderia tirar a criança da rua, mas tirar a rua da criança era muito mais difícil. — E o acônito?

— Fiz na aula de fitoterapia. Tivemos que ter um projeto onde colhemos uma erva com propriedades mágicas e encontramos uma aplicação prática.

Ela encontrou uma aplicação prática, tudo bem. — Quando você colheu?

— Em setembro. Mantive a pasta em um saco com fecho de correr no congelador para que não estragasse. Em caso de emergência.

— Como o quê? Metamorfos selvagens atacando a escola?

Seu queixo se levantou. — Como metamorfos me levando de volta à escola.

E aqui vamos nós. — Pensei que deixei claro: você não pode pegar essa faca até sair da escola.

— Eu fiz. Saí da escola.

— Arram.

— Odeio essa escola. Odeio tudo lá. Odeio as pessoas, os professores, os assuntos. As crianças são estúpidas e ignorantes e simplesmente burras. Eles acham que são legais, mas são um bando de idiotas. Os professores querem ser amigos dos alunos e depois dizem coisas ruins pelas costas.

— Quem? Os professores dizem coisas más ou os alunos?

— Ambos. Eu não gosto do horário, não gosto de quanto trabalho você faz em coisas inúteis, não gosto do meu quarto. A única coisa boa é ir para casa.

— Não esconda nada. Me diga como você realmente se sente.

— Eu não vou voltar lá!

— E você tomou essa decisão por conta própria?

Julie assentiu. — Sim. E se você me levar de volta para lá, eu vou fugir novamente.

Cruzei os braços no meu peito. — Não posso levar você de volta para lá. Eles te expulsaram.

Os olhos de Julie ficaram grandes com indignação. — Eles não podem me expulsar! Eu é que desisto.

Eu perdi o controle e comecei a rir.

— Eles realmente me expulsaram?

— Reembolso das mensalidades e tudo mais.

Julie piscou algumas vezes, pensando no problema. — Então o que acontece agora?

— Espero que você se torne uma moradora de rua. Sem-teto e sem emprego, implorando na rua por um pedaço de pão ...

— Kate!

— Ah, tudo bem, suponho que, se você vier ao escritório de vez em quando, eu lhe darei um sanduíche. Você pode sentar no chão do escritório quando ficar muito frio lá fora. Podemos até pegar um cobertorzinho para você se deitar ...

— Estou falando sério!

— Eu também. É uma oferta honesta. Vou até colocar um verdadeiro rosbife no seu sanduíche. Sem carne de rato.

Ela olhou para mim com uma expressão martirizada. — Você se acha muito engraçada.

— Tenho meus momentos. —Me inclinei para frente e empurrei a faca para ela. — Mantenha. O acônito também. Você vai precisar, já que vai ficar na Fortaleza.

Julie olhou a faca. — Qual é o truque?

Suspirei. — Nenhum truque. Te coloquei nessa escola porque era um bom lugar. Um lugar seguro.

Julie balançou a cabeça, enviando o cabelo loiro voando. — Eu não quero estar segura. Quero ficar com você.

— Entendi isso. Curran e eu estamos investigando escolas na cidade. Há umas duas que podem ser mais adequadas. Você fica no seu quarto na Fortaleza, vem comigo para a cidade quando possível e vai para a escola. Quando terminar, você voltará ao escritório e alguém a levará de volta à Fortaleza. Você vai se comportar e você não fará nada estúpido. Enquanto estiver no escritório, será minha ajudante. Executará recados, limpará o local, trabalhará, arquivará ...

Julie se aproximou e me abraçou. Eu a abracei de volta. Ficamos assim por um longo momento, até que a porta se abriu e Andrea entrou, perguntando por que o lugar fedia a acónito.


Capítulo 15


AO MEIO DIA, NUVENS IRREGULARES INUNDAVAM O CÉU. O mundo ficou escuro e nebuloso e quando Derek e eu nos aproximamos de Champion Heights, a torre solitária do prédio de apartamentos e a cidade em ruínas ao redor pareciam pouco mais do que uma miragem, feita de nevoeiro e sombras.

Derek fez uma careta para o arranha-céu. — Eu o odeio.

— Eu sei, —disse.

Nós tínhamos três pistas, das quais Saiman era uma. Os Volhvs eram o outro. A terceira pista dizia respeito a Harven e os Guardiões. Como não podíamos fazer nada sobre os Volhvs, Andrea ligou para Rene, notificou-a sobre o possível status de trabalho secreto da sociedade secreta de Harven e pediu os arquivos detalhados de todos os guardas vermelhos que já haviam trabalhado com Harven. Rene teve um ataque muito controlado de apoplexia e prometeu entregar os arquivos, com um guarda vermelho que ficaria em pé ao lado de Andrea, enquanto ela analisava os arquivos e depois ele levaria-os de volta quando Andrea terminasse. O plano era que eu fosse ver Saiman sozinha e que Derek ajudasse Andrea a procurar padrões e possíveis cúmplices.

E foi aí que tanto Derek quanto Andrea pularam em seus calcanhares.

— Não. —Andrea acenou para enfatizar. — De jeito nenhum.

— Não é uma boa ideia, —confirmou Derek. — Eu deveria ir com você.

— Você despreza Saiman. Por que no mundo você gostaria de ir comigo?

— Porque seu leãozinho raivoso e Saiman tiveram uma briga gigante por você. —Andrea falou devagar, como se fosse uma criança. — Você mesma disse que o ego de Saiman é tão grande que ele tem que alugar um prédio separado para isso. Curran fez com que ele fugisse como um coelho assustado. Você não tem ideia de como ele reagirá quando vir você.

— Ela está certa, —disse Derek. — É um problema de segurança. O escritório está bem protegido, então Andrea não precisa de mim aqui. Você estará ao ar livre e dois é melhor que um. Além disso, você é alfa.

— E isso significa o que?

— Isso significa que você deve estar acima de qualquer reprovação e evitar até mesmo a aparência de impropriedade. Saiman é um pervertido degenerado. Você deveria levar uma escolta.

Cruzei meus braços no meu peito. — Então eu não posso ser confiável para vê-lo sem supervisão?

Andrea sacudiu a cabeça. — Kate, não é pessoal. É protocolo e é senso comum. Você não desafia as pessoas abaixo de você, não pode faltar aos jantares formais, e quando vai visitar um covarde instável que ferrou metade de Atlanta e que fez uma proposta em público para você, deve levar uma acompanhante. Lide com isso.

— Há três semanas uma mulher da cidade veio ver Curran, — disse Derek.

— Sim, uma advogada sobre a estrada. Lydia alguma coisa. Por alguma razão, Curran insistiu que eu precisava participar de uma reunião chata sobre o conserto de alguma estrada pertencente ao Bando. Eu não queria ir, então decidi não interromper meu treino. Eu não tinha percebido que ele adiou a reunião até eu me dignar a fazer uma aparição, então quando entrei na sala de reuniões, quase uma hora atrasada, ele, Lydia e os dois alfas do Clã Heavy estavam todos esperando pacientemente por mim. Mahon tinha cochilado, sua mulher tricotava uma meia e Lydia lançou-me um olhar de puro ódio. Eu me senti como um idiota total. A reunião durou um total de quinze minutos e nem eu nem o casal alfa do Clã Heavy precisávamos estar lá de qualquer maneira ...

Oh.

A luz acendeu. — Ela era uma das ex-namoradas de Curran?

Derek assentiu.

Curran havia seguido o protocolo. Eu faria o mesmo. — Bem.

Derek assentiu novamente. — Vou pegar minha jaqueta.

Uma hora depois, olhamos para Champion Heights, onde Saiman fazia sua humilde morada. Durante a onda mágica, pedaços da torre se desvaneceriam em granito vermelho duro, completo com musgo velho, o resultado de feitiços protegendo o edifício das mandíbulas da magia. Agora, era tudo tijolo, argamassa e vidro, pressentimento e escuridão.

Nenhum de nós queria entrar.

Ficar sentados no Jeep não resolveria nada. Parei o veículo no estacionamento da torre e subimos as largas escadas de concreto até a entrada de vidro e aço. Apesar de tudo o que aconteceu, Saiman ainda não havia alterado a palavra-código. Levamos menos de um minuto para passar pela segurança e subir no elevador até o décimo quinto andar. O elevador nos vomitou em um corredor forrado com tapete criminalmente luxuoso.

A carranca de Derek se formou em uma careta completa. Uma luz amarela furiosa embainhou suas íris.

— Tente parecer menos enojado.

Ele encolheu os ombros. — Você está preocupada que eu vou ofendê-lo?

— Seus olhos estão brilhando e seu lábio superior está tremendo como se você estivesse prestes a rosnar. Estou preocupado que Saiman entre em pânico, e essa porta é difícil de quebrar. Faça um esforço para parecer menos desequilibrado e ameaçador. Pense em arco-íris e sorvete, isso ajudará.

Derek suspirou, mas o brilho em seus olhos diminuiu.

Bati na porta.

Sem resposta.

Bati de novo.

Nada.

— Ele está aí, —disse Derek. — Posso ouvi-lo se movendo.

— Estou decidindo se eu deveria deixar você entrar, —a voz suave de Saiman pairou através da porta. — Nossas reuniões nunca acabam bem, Kate. Você vai me perdoar se eu estiver pouco entusiasmado.

— Adam Kamen, —eu disse.

A fechadura estalou e a porta se abriu. Saiman usava sua forma neutra, um homem careca de constituição leve e idade indeterminável, em algum lugar entre vinte e cinquenta. Ele era uma tela em branco, sem pelos, sem cor, sem qualquer característica distintiva. Se você esbarrasse com ele na rua e não notasse a inteligência afiada penetrada em seus olhos, você nunca se lembraria dele.

O rosto de Saiman exibia uma expressão martirizada. — Entre, entre ...

Entrei e congelei. O caos reinava ao meu redor. Normalmente, o apartamento de Saiman era um ambiente altamente arrumado, tapetes brancos, móveis de aço inoxidável e curvas ultramodernas. Nem uma única fibra de carpete ficava fora do lugar. Hoje o sofá continha uma variedade de roupas dobradas em pilhas limpas. Caixotes de madeira cobriam o chão, cheios de livros e lençóis. A porta do laboratório de última geração de Saiman estava bem aberta e, pela porta, eu podia ver mais caixas.

— O que você está fazendo?

— Eu estou jogando golfe, Kate. O que parece que estou fazendo?

Ele estava em forma rara hoje. — Por que você está fazendo as malas?

Saiman esfregou a testa. — Estamos jogando o jogo da pergunta óbvia? Eu peço desculpas, ninguém me disse as regras. Estou empacotando, porque pretendo me mudar.

— Cuidado com o seu tom, —disse Derek.

— Ou o quê? —Saiman abriu os braços. — Você me rasgará em pedaços? Me poupe de suas ameaças. Garanto-lhe que, nas circunstâncias atuais, elas não terão efeito.

Olhei para Derek. Deixe-me lidar com isso. Derek assentiu muito ligeiramente.

Aproximei-me de Saiman. O cheiro de uísque flutuou para mim. — Você está bêbado?

A última vez que ele ficou bêbado tive que dirigir como uma maníaca através de uma cidade coberta de neve enquanto um Curran enfurecido nos perseguia através dos telhados.

— Eu não estou bêbado. Estou bebendo, mas não estou bêbado. Kate, pare de me dar esse olhar, eu tive dois centímetros de uísque nas últimas duas horas. Com o meu metabolismo, é uma gota no balde. Estou funcionando com capacidade máxima. O álcool é apenas a graxa das minhas engrenagens.

— Você não me disse por que você está empacotando, —eu disse. Saiman era a última pessoa que eu esperava se mudar. Ele amava seu apartamento ridiculamente superfaturado no único arranha-céu pré-Mudança ainda em pé em Atlanta. Todos os contatos de negócios dele estavam ligados à cidade. Ele tinha meia dúzia de codinomes, cada um com seus dedos em uma torta diferente.

Saiman se balançou para trás nas pontas dos pés. — Estou me mudando porque a cidade está prestes a ser destruída. E não pretendo afundar com o navio.

*

— MOVA A ROUPA SE VOCÊ QUISER SENTAR-SE. Saiman caminhou até o bar, pegou uma taça de cristal e um copo grosso, e jogou um scotch de cor âmbar nela.

Nem Derek nem eu nos sentamos.

Saiman tomou um gole de sua bebida. — Tudo começou com Alfred Dugue. Franco-canadense. Um homem violento desagradável, muito conflituoso sobre sua sexualidade. Suas práticas sexuais eram ... estranhas.

Querido Deus, o que Saiman acharia estranho? Não importa, eu não queria saber.

Saiman pareceu estudar seu uísque. — Entendo que perceber que suas preferências estão em conflito com as normas estabelecidas pode ser traumático, mas Dugue estava engajado em extrema autoaversão. De alguma forma, entre ataques de chicotadas e rituais eróticos bizarros, ele conseguiu construir uma empresa bem-sucedida transportando mercadorias pelo Mississippi. Eu queria um pedaço da ação. Assumi a forma que combinasse com o tipo de Dugue, o encantei, seduzi e permiti que ele me levasse para casa. Eu deveria ter sido mais completo em minha pesquisa.

— Não foi bom, não é?

Os olhos de Saiman se encheram de indignação. — Ele me serviu vinho envenenado. Quando isso falhou, tentou me estrangular. Eu quebrei o pescoço dele como um palito de dente. Foi um momento desagradável.

— Tenho certeza.

— Estava lendo seus documentos quando tropecei em suas anotações sobre a pesquisa de Kamen. No começo eu descartei isso como um sonho. No entanto, depois de executar a operação de Dugue por algumas semanas ...

Claro. Por que eu não fiquei surpresa?

— Você se transformou no homem que você matou? —Derek não podia manter a zombaria de sua voz.

Saiman ignorou. — Ele já estava morto. Não podia se beneficiar de sua empresa e ela não podia ser deixada sem supervisão. Sei que eu a melhorei muito desde que entrou em minha posse. Por um lado, seus empregados agora recebem um salário digno. Consequentemente, os incidentes de roubo caíram 37%. Em breve, vou simplesmente vender todo o empreendimento para mim, eliminando a necessidade de perpetuar a personificação do Dugue. Mas eu refleti. Percebi que Dugue não gostava de apostas, se ele investisse em algo, era uma coisa grande. Dada a quantia obscena de dinheiro que ele investira em Kamen, revisei o assunto. Fui ver Adam.

— Enquanto ele estava sob a supervisão da Guarda Vermelha?

— Claro.

Para quem não recebeu nenhum visitante ... Sabia que era um trabalho de merda desde o começo. Sabia que Rene me negaria informação. Poderia lidar com isso. Mas uma mentira descarada dessa era demais. Marquei um contra Rene. — Continue.

— Nós conversamos. Kamen foi profundamente prejudicado pela morte de sua esposa, um gênio em seu trabalho, mas praticamente imprestável em todas as outras áreas de sua vida. Levei duas visitas para perceber que a máquina era real. Por um breve período, considerei usá-la para os meus próprios meios, mas depois percebi que ela teria que ser destruída.

Levantei minha mão. — Saiman, o que isso faz?

Ele me encarou por um longo momento. — Você não sabe?

— Quem está fazendo perguntas óbvias agora?

Saiman se inclinou para frente. — Isso destrói a magia, Kate.

O que? — Você não pode destruir a magia. É uma forma de energia, você pode convertê-la, mas ela não desaparece.

— Você também pode contê-la, —disse Saiman. — Adam Kamen construiu um dispositivo que colapsa o tecido da magia em si mesmo. Quando ativado, o dispositivo faz com que a magia ao seu redor imploda, convertendo-a em uma forma concentrada e densa. Pense nisso em termos de gás e líquido, se o estado normal da magia em nosso mundo é gás, então o dispositivo de Kamen o pressiona para um estado líquido.

Ele era louco. — E o que isso significa?

Saiman suspirou. — Eu não entendo mais do que isso. Para ser brutalmente simplista, o aparelho é basicamente um cilindro com um reservatório dentro de seu núcleo. O dispositivo é obrigado a carregar durante uma onda mágica por um determinado período de tempo. Quando o dispositivo é totalmente carregado, ele fica ativo. O processo real de limpeza mágica leva muito pouco tempo. O primeiro protótipo de Kamen limpou uma área de quinhentos metros em menos de dez minutos.

Ele continuou — O dispositivo puxa a magia para dentro do seu núcleo, afetando um grande raio diretamente em torno dele. A magia entra no dispositivo e passa por uma série de câmaras. Cada câmara sucessiva faz com que ela imploda mais e mais em si mesma, então no momento em que atinge o reservatório no núcleo, a magia está ‘líquida’, muito densa.

Ocupa um volume muito pequeno nesse estado. Quando a próxima onda mágica inunda, a área afetada pelo dispositivo permanece livre de magia. Eu não sei o porquê. Eu só sei que é assim que funciona.

Meu cérebro lutou para digerir isso. — Disseram-nos que nunca foi testado.

Saiman sacudiu a cabeça. — Kamen testou um modelo de mesa pequeno, o primeiro protótipo que ele construiu. Era do tamanho de uma garrafa de vinho e limpava a magia num raio de quinhentos metros. Há um lugar em Sibley onde não há magia, Kate. Eu fiquei na borda e passei por ela. Eu posso te dar as coordenadas. O segundo protótipo que ele havia construído deveria afetar uma área com um diâmetro de dois a sete quilômetros ...

Se o protótipo que eu tinha visto na foto de Rene fosse ativado, isso poderia acabar com uma cidade pequena. — O que acontece com as pessoas pegas na implosão?

Saiman drenou o copo. — Eu não sei. Só posso te dizer o que Kamen me disse, e até agora ele não estava errado. Ele teorizou que durante a implosão tudo o que usa magia morre.

O gelo deslizou pela minha espinha. — Defina tudo.

— Necromantes, vampiros, criaturas, seus preciosos metamorfos, você, eu. Qualquer um com uma quantidade significativa de magia. Nós. Todos. Morreremos.

Dupla merda. A cidade inteira acabaria. Homens, mulheres e crianças ... pelas últimas estimativas, pelo menos 30% da população usavam magia ou dependiam dela. Se os Faroleiros tivessem o dispositivo, eles o usariam. Isso destruiria a magia, eles se precipitariam para ativá-la e poderiam atacar em qualquer lugar. Se eles virassem essa coisa perto da Fortaleza, Atlanta estaria livre de metamorfos. Curran, morto. Julie morta. Derek, Andrea, Raphael, Ascanio, mortos, mortos, mortos.

Eu olhei para Saiman. — Por que ele iria construir algo assim?

— A esposa de Kamen precisava de diálise para viver, — continuou Saiman. — Três vezes por semana. Quando a magia interrompia o processo, uma das enfermeiras tinha que manobrar a máquina para devolver o sangue aos pacientes. Um dia, a onda mágica fez com que vários pacientes entrassem em parada cardíaca. Enquanto a enfermeira cuidava deles, a esposa de Kamen sangrou e morreu. Ele queria criar um modelo pequeno do aparelho que gerasse uma zona livre de magia na qual a tecnologia pudesse funcionar sem impedimentos. E uma vez que ele fez isso, quis construir uma maior só por desafio.

— Você sabia o que era e deixou que ele construísse? Que porra está errada com você?

— Eu não fiz! —Saiman arremessou seu copo através do quarto. Estalou contra a parede. — O visitei, mas estava muito vigiado para levar alguma arma por isso tentei envenená-lo. Ele sobreviveu. Depois contratei meia dúzia de homens, profissionais treinados e caros. Eles deveriam cortar a Guarda Vermelha e destruir tudo: Kamen, planos, protótipos. Tudo. Eu os forneci explosivos suficientes para fazer uma cratera do tamanho de um campo de futebol.

— O que aconteceu?

— Eles nunca chegaram à Guarda Vermelha. Foram encontrados na floresta por alguém e na manhã seguinte suas cabeças foram entregues à minha porta em um saco de lixo.

— Poderia um dos outros investidores ter feito isso? — Perguntou Derek.

Saiman sacudiu a cabeça. — Seus outros investidores são, o fundo de caridade Healthy Child do Grady Memorial, e Bright Future. Eles são, na verdade, o que pretendem ser, bem-intencionados.

Os Volhvs não teriam jogado as cabeças na porta de Saiman. Eles teriam feito os homens contratados desaparecerem. Não, essa era uma tática terrorista projetada para assustar e intimidar. Tinha que ser os Faroleiros. Matar Saiman teria criado muito barulho. Ele mantinha arquivos reveladores e prejudiciais de todas as pessoas importantes da cidade. Se Saiman morresse, eles entrariam em pânico. Todas agências de aplicação da lei estariam engatinhando por todo o seu assassinato. Os Guardiões não queriam barulho, ainda não.

— O que você sabe sobre os Guardiões do Farol?

O rosto de Saiman caiu. — Isso resume o tamanho do problema.

Merda.

— O que acontece se o dispositivo for quebrado? —Perguntou Derek.

— A magia escapa em uma explosão enorme, —disse Saiman. — Teoricamente, se a máquina for ativada, as pessoas mais próximas a ela sobrevivem por mais um pouco de tempo. Aqueles mais afastados dentro do perímetro do alcance da máquina morreriam primeiro, porque a magia fluiria da borda do perímetro para o dispositivo. Ficar ao lado do dispositivo seria como ficar de pé no olho de uma tempestade, por isso é possível interromper sua operação. No entanto, os indivíduos que roubaram são improváveis de permitir tais interrupções. As seis cabeças no saco de lixo atestam sua determinação. —Ele andava de um lado para o outro. — Essas pessoas me monitoraram, mataram meus mercenários e levaram a máquina debaixo dos narizes de uma unidade da Guarda Vermelha de elite. Isso indica que eles são competentes e altamente motivados. Se eles forem, de fato, os Guardiões do Farol, usarão o dispositivo onde infligirão o maior dano. Eles vão usá-lo. A destruição da magia é o propósito inteiro de sua existência. Eu preciso terminar de fazer minhas malas.

Exalei raiva. A cidade inteira estava prestes a morrer e ele estava fazendo as malas. Maldito seja, egoísta e imbecil. — Por que você não me procurou? Tenho mil e quinhentos metamorfos à minha disposição.

— Eu tinha uma razão perfeitamente boa.

— Estou morrendo de vontade de ouvir isso.

— Por favor, permita-me demonstrar. —Saiman virou-se para a gigantesca tela plana, tirou um estojo de DVD da prateleira e enfiou o disco na abertura do aparelho de DVD.

A tela se acendeu, mostrando um interior de um grande armazém, filmado em alta definição de cima. Os carros ficavam em duas linhas: um Porsche, um Bentley, uma Ferrari, um Lamborghini e algo elegante que eu não reconhecia... eu nunca vi tanta potência comprimida em um só lugar.

Olhei para Saiman. — O que é isso?

— Estes são os conteúdos do Merriweather, um dos navios da minha companhia de navegação. —Saiman trançou os dedos longos. — Esta frota de carros foi comprada na Europa, trazida para Savannah a um custo considerável, e depois enviada para Atlanta para um dos meus armazéns.

Nós olhamos para os carros. Os carros nos olharam de volta.

— Depois dos eventos daquela infeliz noite no Bernard's, eu esperava retribuição imediata do Senhor das Feras. Quando não chegou, liguei para você para verificar seu bem-estar. Você confirmou que estava bem. Comecei a acreditar que talvez tivesse evitado uma bala.

— Deixe-me adivinhar, você não se esquivou?

— Continue assistindo, —insistiu Saiman.

Nós olhamos para os carros.

— Eu não entendo. —Derek franziu a testa. — Nenhum deles é modificado para magia. Qual é o sentido de ter um veículo que não seja dirigível durante a magia?

— Para experimentar a velocidade, —disse Saiman. — Já dirigiu um carro de luxo a cento e noventa quilômetros por hora? É uma sensação que você nunca esquece.

A porta na parede oposta à câmera se abriu. Curran entrou na nossa vista. Ele se moveu sem pressa, quase relaxado. A câmera se fixou nele, dando zoom em seu rosto. Seus olhos estavam escuros.

O relógio digital no canto do filme dizia 10:13 da manhã. Doze horas depois de Saiman ter feito um insulto monumental a Curran enquanto a elite do Bando assistia. Uma hora depois que Saiman ligou e Curran escutou nosso telefonema, convertendo um dos meus pratos de metal em um tubo. Quarenta e cinco minutos depois eu me recusei a ir com ele para a Fortaleza anunciar que estávamos acasalados e Sua Majestade peluda tinha saído da minha casa emburrado.

Senti o alarme até a ponta dos dedos.

Um homem grande de uniforme escuro aproximou-se da direita de Curran, brandindo um bastão. — Ei amigo. Você não pode entrar aqui.

Curran continuou andando.

— Por que um bastão? —Derek perguntou.

— Porque não vou dar aos seguranças uma arma que possa causar furos em minhas mercadorias.

— Pare! —O guarda gritou. Um raio de luz correu ao longo do comprimento do bastão.

— Isso não é um bastão. —Eu me inclinei para a tela. — Isso é um torpere81. —Uma arma de choque elétrico. Era o top de linha no controle de multidões pouco antes da mudança.

— Isso mesmo. Uma típica arma de choque produz sua voltagem em rajadas curtas para evitar a morte do alvo, —disse Saiman. — Este é um modelo modificado. Quando acionado emite uma poderosa corrente elétrica ininterrupta por até doze minutos. Foi demonstrado que induz a parada cardíaca em dois.

— Pare! —O guarda balançou o bastão nas costas de Curran.

Curran bateu rápido demais para ver. Sua mão trancou no bastão. Metal rangeu, faíscas explodiram e a bagunça esmagada de metal e eletrônicos caíram no chão.

O guarda deu um passo para trás. Seu queixo inferior caiu. Ele olhou para o torpero, olhou para Curran e fugiu pela porta.

Curran se virou.


Atrás dele, um segundo guarda se aproximou.

O que você fez, Curran?

O Senhor das Feras examinou os carros. Seu rosto estava calmo e frio, como se esculpido em uma geleira. A quantidade de dinheiro amarrada nesses carros tinha que ser enorme. O armazém teria que ter sido bem protegido do lado de fora. Eu me perguntei quantos guardas ele tinha afugentado.

Um músculo na bochecha de Curran se sacudiu.

Seus olhos explodiram em ouro. Curran agarrou o Porsche à sua esquerda, arrancando a porta do carro como se fosse papel de seda. Ele agarrou o fundo do carro. Músculos monstruosos se arqueavam em seus braços. O Porsche foi jogado para ar, voou, virou duas vezes e bateu no Lamborghini vermelho. Vidro estalou, aço gemeu, e um alarme de carro disparou em um lamento afiado.

Puta merda.

Curran investiu contra um Bentley prateado. O capô voou. Ele enfiou a mão no carro. Metal gritou e Curran puxou uma bola torcida do capô e a esmagou no carro mais próximo como um porrete.

— Ele acabou de arrancar o motor? —Perguntei.

— Sim, —disse Saiman. — E agora ele está demolindo o Maserati com isso.

Dez segundos depois, Curran arremessou na parede os destroços retorcidos de preto e laranja que costumavam ser o Maserati.

As primeiras notas melódicas de uma música antiga vieram do computador. Eu olhei para Saiman.

Ele encolheu os ombros. — Ele implorou por uma trilha sonora.

Curran arrancou os restos de um carro em dois. Ele se enfureceu pelo armazém como um tornado, esmagando, destruíndo, rasgando o metal e o plástico, tão primitivo em sua fúria que era assustador e hipnótico ao mesmo tempo. E enquanto nós assistíamos ele se enfurecer, algum cantor que já tinha morrido cantava sobre ser beijado por uma rosa no túmulo de alguém.

A música terminou e ele ainda continuou. O rosto de Saiman permaneceu passivo, mas seus olhos perderam a habitual presunção. Eu olhei para eles e vi uma sombra de medo escondida abaixo da superfície.

Saiman tinha medo da dor física. Vi isso em primeira mão, quando ferido ele entrou em pânico e atacou com uma violência notável. Ele havia assistido à gravação, absorvido toda a extensão da devastação que Curran poderia desencadear, e esperou, imaginando quando o Senhor das Feras apareceria em sua porta. Assistiu à gravação várias vezes. Havia anexado uma trilha sonora lírica, tentando diminuir seu impacto através do absurdo disso. Um olhar para a expressão dele me disse que não ajudara: o rosto frio continuava relaxado pela força de vontade, pelos olhos assombrados, pela boca tensa. Curran deixara Saiman paranoico e o desgastara. Ele faria qualquer coisa para evitar a ira de Curran.

Curran parou. Ele se endireitou, examinando o monte de metal torturado, plástico arruinado e borracha rasgada.

Se virou. Olhos cinzentos olhavam diretamente para a câmera. Os cortes e rasgos em suas mãos e rosto se fecharam.

A voz clara e fria de Curran atravessou a sala. — Não ligue para ela, não fale com ela, não a envolva em seus esquemas. Ela não te deve nada. Se você a machucar de alguma forma, eu vou te matar. Se ela se machucar ajudando você, eu vou te matar.

Foi sobre mim. Essa devastação épica foi toda sobre mim. Curran deve ter pensado que Saiman segurava algo comprometedor sobre mim e estava usando isso para me forçar a ajudá-lo, então ele enviou uma mensagem.

O Senhor das Feras saiu do armazém. A tela ficou escura.

Meu cavaleiro de armadura peluda.

Saiman abriu a boca e olhou para mim. — É por isso que eu não te procurei. Pessoalmente, acho que o sorriso no seu rosto agora é inadequado.

Concentrei-me e mudei para uma carranca. — Me dê a gravação, e eu vou tentar que você faça as pazes com o Senhor das Feras.

— A que preço?

— Você vai me contar tudo o que sabe sobre o dispositivo e Adam Kamen. Entregará todos os documentos, anotações, tudo e nos ajudará a encontrá-los.

Saiman fechou os dedos das mãos e apoiou o queixo no punho, pensando. — Esse maníaco homicida que você está acasalada vai querer mais.

— Se ele fizer, tenho certeza que vocês dois podem chegar a um entendimento. —Endureci e firmei meu olhar. — Em Atlanta, você é uma pessoa importante. Fora, você é um desconhecido. Terá que começar de novo. É do seu interesse impedir a destruição da cidade. Vou interceder em seu nome com Curran. Aceite, Saiman, porque é tudo o que estou oferecendo.

Saiman franziu a testa. Um longo minuto se passou. Ele se levantou, puxou o disco, colocou-o em uma fina capa de plástico e o estendeu. — Combinado.

Peguei o disco e coloquei no bolso. — Os documentos?

Derek nos agarrou e mergulhou no chão, derrubando o sofá.

A porta atrás de nós explodiu.


Capítulo 16


AS BALAS CRAVARAM NO SOFÁ, O AÇO MORDENDO as almofadas. O mundo ficou branco em um clarão ofuscante. Trovão bateu nos meus ouvidos, sacudindo o cérebro do meu crânio. Todo o som desapareceu. Derek se sacudiu, apertando as mãos sobre as orelhas.

Uma granada de atordoamento.

Ao meu lado, Saiman tremia, abraçando o chão.

Persianas de aço caíram, cobrindo as janelas do chão ao teto, o sistema de defesa de Saiman disparara a toda velocidade.

As lâmpadas elétricas no teto brilhavam, iluminando-nos. O sofá não seguraria. Tínhamos que sair daqui.

À direita, a porta do laboratório se abriu escancarada. Quatro metros. Se tivéssemos uma distração, poderíamos ir para lá. Olhei ao redor, tentando encontrar algo para jogar. Roupas, não, muito leves, roupas, mais roupas ... Mesa.

A pesada mesa com tampo de vidro.

Me lancei para isso e tentei levantá-la. Muito pesada. Poderia levantá-la e talvez jogá-la a alguns metros. Não longe o suficiente, e eles me furariam enquanto eu lutava para levantá-la.

O rugido do tiroteio penetrou meus ouvidos, suave como o barulho de uma cachoeira distante.

Um objeto escuro rolou para o espaço à esquerda de nós, entre o sofá e o bar, e expeliu uma nuvem de gás verde. Merda. Segurei minha respiração. Derek pressionou a mão sobre o nariz. Lágrimas escorriam de seus olhos.

Os sentidos de metamorfo de Derek não aguentariam. Tínhamos que sair agora.

Agarrei o ombro de Derek, apontei para a mesa e fiz um movimento de arremesso com meus braços.

Ele assentiu.

— Saiman! —Minha voz era um eco fraco. — Saiman!

Ele olhou para mim e eu vi um familiar olhar vazio em seus olhos. Ele iria quebrar a qualquer segundo. Agarrei o braço dele. — Correr ou morrer!

Agachado, Derek agarrou a mesa e atirou-a nas chamas.

Levantei Saiman para seus pés e corri.

Atrás de mim, o vidro se despedaçou com o tiroteio. Pulei para dentro e me virei a tempo de ver Saiman mergulhar pela porta, com Derek nos seus calcanhares. Derek fechou a grossa porta reforçada e tropeçou, como um cego, com os olhos bem abertos, lágrimas escorrendo pelo rosto. O sangue jorrou de sua perna, manchando o jeans do avesso.

Lentamente, como se estivesse submerso, Saiman trancou a pesada porta de metal.

À direita, um chuveiro de descontaminação apareceu no canto. Eu empurrei Derek para dentro e puxei a corrente. A água o encharcou. Ele estremeceu e levantou o rosto para o riacho, deixando a água correr em seus olhos.

— O quanto ruim você está?

— A bala atravessou. Não é nada.

Balas bateram na porta com estrondo afiado. Não iria segurá-los por muito tempo.

Se eu tivesse um laboratório, teria a caixa de fusíveis por perto para o caso de ter que fechar tudo rapidamente. Olhei em volta e vi o retângulo cinza escuro da caixa de fusíveis na parede entre dois armários. Perfeito. Eu abri a tampa e puxei o fusível principal.

O laboratório ficou escuro como breu. Por um segundo eu estava cega e depois meus olhos se ajustaram, captando a luz fraca do relógio digital na parede. Deveria ser operado por bateria.

Ao meu lado o som de tecido rasgando anunciou o lobisomem destruíndo suas roupas e a sua pele humana.

Olhos amarelos incendiaram-se a dois metros do chão, como duas luas.

Saiman respirou fundo, estremecendo.

— Esconder ou lutar, —sussurrei para ele. — Só não fique no meu caminho.

A chuva de balas parou. Isso não era bom. Eles decidiram que não conseguiriam abrir caminho pela porta.

O próximo passo seriam explosivos. Corri para o lado esquerdo da porta e me pressionei contra a parede no canto.

Do outro lado da sala, o enorme monstro desgrenhado que era Derek pulou no balcão. Uma pata com garras agarrou o acendedor de butano de laboratório e colocou próximo ao aspersor de incêndio. Uma pequena chama azul ardia ao final do acendedor. A água pingou do aspersor, uma vez, duas, o aspersor choveu espalhando água por todo o laboratório.

Adeus gás.

Um gemido estridente rasgou o silêncio.

A explosão sacudiu a porta, batendo nos meus ouvidos. A porta de metal foi desbloqueada, deixando-a semiaberta. Um raio de luz cortou a escuridão, procurando por alvos.

Eu apertei o punho da minha espada. Era tão reconfortante, como apertar a mão de um velho amigo. A água encharcava meu cabelo.

Derek afundou as garras nos painéis, saltou e rastejou pelo teto com velocidade aterrorizante, agarrando as vigas de aço como apoio.

A porta se abriu. Deslizei para baixo em um agachamento.

O primeiro homem entrou na sala, sua arma preta agarrada em ambas as mãos em uma posição de atirador honrada pelo tempo. O colete à prova de balas fez com que ele parecesse quase quadrado. O homem girou para a direita, girou para a esquerda, girou o cano da arma dois pés acima de mim e avançou para a sala.

Um segundo homem seguiu, segurando a lanterna e a arma em Chapman Hold82: a arma agarrada na mão direita, a lanterna na esquerda, as mãos cerradas juntas. Ele se virou, sua lanterna varrendo o comprimento da sala.

Sua pose dizia o que o homem pensava naquele momento: Entre, não há nada a temer. Você é grande e forte, e sua arma vai te proteger.

O feixe luminoso deslizou sobre as mesas de laboratório, mordendo a escuridão quebrada por correntes de água. Esquerda direita ...

O terceiro homem entrou no quarto, cobrindo o homem com a lanterna. Clássico.

O facho deslizou para cima. Um pesadelo olhou para a luz: um homem enorme, dois metros e meio de altura, seus músculos colossais salientes em cumes duros em sua imensa estrutura. Sua pele brilhava na luz, branco puro, como se ele fosse moldado na neve. Uma juba azul descia pelos ombros, emoldurando um rosto cruel, e naquele rosto dois olhos ardiam, puro azul translúcido, como o gelo da parte mais funda de uma geleira. Olhando dentro eles eram como olhar para trás no tempo, para uma coisa que era alienígena e antiga e muito, muito hostil. Saiman tinha tomado sua verdadeira forma.

Os homens congelaram por meio segundo. Eles esperavam um homem, uma mulher e Saiman. Eles não esperavam que sua lanterna encontrasse um gigante de gelo enfurecido na escuridão e ficaram boquiabertos, assim como os antigos escandinavos haviam feito anos atrás, tomados por uma paralisação de temor e medo.

Cortei o interior da coxa do homem mais próximo em um impulso para cima, cortando os músculos e a artéria femoral, apunhalei-o no coração, arranquei a lâmina e cortei o pescoço do segundo homem em um movimento fluido e fácil, a lâmina era muito afiada, o corte era quase delicado.

O homem com a lanterna disparou uma vez. A mão enorme de Saiman bateu no punho da arma dele.

Dedos maciços o apertaram e o homem desapareceu na escuridão. Um grito rouco atravessou o silêncio, cheio de dor e puro terror.

Derek caiu no chão e pulou os corpos para a sala de estar. Eu o segui.

Atrás de nós o homem continuou uivando, não mais desesperado, apenas de dor.

Uma arma disparou balas para a direita, estalando na madeira, alguém atirando cegamente em pânico. Esperei quatro segundos até ele esvaziar o clipe, e então corri para o outro lado da sala, dei um passo atrás dele e cortei: um corte da esquerda para a direita, o segundo em linha reta na espinha, logo abaixo do colete à prova de balas. Ele caiu.

Algo se moveu atrás de mim.

Girei, cortando o homem atrás de mim, uma mera sombra na escuridão. Matadora bateu em uma lâmina mais grossa.

O homem deu um chute no meu lado esquerdo. Sua canela martelou minhas costelas em uma explosão de dor. Um lutador de Muay Thai. Bem. Eu girei com o impacto, chicoteei a redor, e chutei ele, calcanhar no plexo solar, colocando todo o poder do meu giro e minha coxa nele.

O impacto o derrubou de volta. Meu joelho rangeu. Meeerda.

Eu o persegui, saltando sobre caixas. O homem caído ficou de pé a tempo de eu abrir seu estômago. Arranquei a Matadora, afundei a lâmina entre as costelas inferiores do seu lado direito, era um bom lugar, puxei a Matadora de volta.

Os gritos pararam.

— Limpoo rrr, —disse a voz de Derek.

— Saiman! Ligue o fusível.

Um longo momento passou. A luz elétrica acendeu, súbita e violenta, como um soco. Cinco corpos estavam quebrados e retorcidos na sala de estar, o sangue ridiculamente vívido contra o pano de fundo monocromático do piso preto e dos móveis brancos. A enorme besta desgrenhada que era Derek se endireitou, escarlate escorrendo de suas garras, e jogou um corpo mutilado no chão. Ele levantou o focinho. Um longo uivo de lobo rolou pelo apartamento, uma canção de caça e sangue e uma presa assassinada.

Saiman saiu do laboratório, inclinando-se para dobrar seu corpo gigantesco pela porta. Uma coisa pendia de sua mão. Poderia ter sido um homem em algum momento, mas agora estava pendurado, mole e desossado, como um saco de carne humana perfurado aqui e ali por cacos de seus ossos.

— Acabou. —Mantive minha voz calma. — Coloque-o no chão.

Saiman sacudiu sua vítima.

— Largue isso. Você consegue. Apenas deixe ir.

Saiman libertou sua vítima. O corpo caiu com um baque surdo e molhado. O gigante de gelo caiu contra a parede e deslizou para se sentar no chão.

Passei pelo sofá virado para o homem cujo estômago eu cortei. Ele ainda estava respirando, apertando suas feridas, sua pesada espada tática deitada ao lado dele. Sangue grosso molhava os dedos em uma mancha escura quase como um alcatrão. Sim, acertei o fígado. Uma máscara de esqui escondia o rosto dele. Tirei isso. Um familiar rosto brutal me encarou com olhos pálidos.

Blaine ‘A Lâmina’ Simmons. Blaine costumava trabalhar para os Mercenários. Cerca de quatro anos atrás, ele decidiu que os Mercenários não eram hardcore83 o suficiente para ele e começou a trabalhar por conta própria. A palavra na rua era que Blaine gostava do trabalho sujo, quanto mais desagradável, melhor. Qualquer show, qualquer alvo, contanto que o dinheiro estivesse no jogo. Essa deveria ser sua equipe.

Agachei-me ao lado dele, minha espada ainda ensanguentada.

A respiração de Blaine era mero suspiros rápidos e irregulares.

— Quem contratou você?

Ele ofegou, seus dedos tremendo.

— Quem contratou você?

— Vá para o inferno!

Os olhos de Blaine reviraram em seu crânio. Ele ficou rígido e caiu. Suas mãos pararam de tremer.

— Tenho um viiivooo. —Derek pegou um corpo do chão. O homem estremeceu ao seu alcance. Sua perna direita estava pendurada em um ângulo não natural, fêmur quebrado. Um enorme corte se abria em suas costas, onde as garras de Derek rasgaram sua carne. Derek virou-o para que eu pudesse ver seu rosto. Olhos pálidos e aterrorizados olharam para mim.

— Se você ficar como está vai viver. Diga-me o que quero saber, e não vou piorar a sua situação, —eu disse.

O homem engoliu em seco. — Eu não sei! Blaine é que fazia os contratos!

— Quais foram as suas ordens?

— Tínhamos que vigiar este apartamento. Se a lei ou qualquer Investigador particular aparecesse, era para ser atacado rapidamente.

— Tinham ordens específicas para atacar Derek ou a mim?

O homem assentiu. — Você, sim. Mas não ele. Blaine tinha fotos de você e da loira.

Eles sabiam quem Andrea e eu éramos, o que significava que sabiam onde ficava o escritório. Se nos atingiram aqui, eles atacariam o escritório. Eu faria isso no lugar deles.

— Por que você usou uma granada de dispersão em vez de estilhaços?

O homem engoliu em seco. — Blaine disse que o louco tinha dinheiro. Disse que ninguém se importaria quando ou como ele morria, contanto que estivesse morto no final. Nós iríamos segurá-lo um pouco, tiraríamos dinheiro dele e depois acabaríamos com ele. Blaine disse que seria um bônus.

Agradável. — Você matou algumas pessoas em Sibley?

— Nós e alguns outros caras. Sabíamos exatamente quando e de onde eles viriam. Nós os limpamos. Mandamos todos para o inferno. Foi fácil.

Mistério resolvido. — Largue ele.

Derek abriu os dedos e o homem caiu no chão.

Fui até o telefone e liguei para o Cutting Edge. A voz de Julie apareceu no telefone. — Cutting Edge, boa tarde, como posso ajudá-lo?

— Ei, sou eu. Coloque Andrea no telefone.

— Ela não está aqui.

Droga. — Onde ela está?

— Alguns boudas vieram falar com ela. Disse que voltaria logo e saiu.

Tia B. Não podia nem esperar um minuto essa velha puta para falar com o Andrea?

— Joey está com a gente.

Me esforcei para colocar o nome em um rosto. Joey, Joey ... Minha mente lembrou de um homem de vinte e poucos anos, o cabelo escuro, quase preto. — Coloque Joey no telefone.

Uma jovem voz masculina disse: — Olá, Consorte. Como você está?

— Estamos sob ataque. Bloqueie a porta, não abra para quem você não conhece. Certifique-se de que as crianças entendam. Eu estarei aí em meia hora. Fique aí, você entendeu?

Toda alegria desapareceu de sua voz. — Sim, Consorte.

Desliguei e digitei o número da Guarda da Fortaleza. — Preciso de acesso a Jim. Agora.

— Ele está na cidade, —falou uma voz feminina.

Coloquei bastante ameaça em minha voz suficiente para aterrorizar um pequeno exército. — Encontre-o.

O telefone ficou em silêncio. Esperei. Os Faroleiros haviam contratado uma equipe de assassinos. Fazia sentido, seu próprio povo estava encoberto e eram muito valiosos para arriscar. Tínhamos que assumir que já sabiam do fracasso no ataque contra o apartamento e que já sabíamos sobre eles. Estariam vindo para Saiman.

O telefone tocou e a voz de Jim veio na linha. — Kate, estou um pouco ocupado aqui.

— Existe uma sociedade secreta anti-magia na cidade. Eles têm uma bomba. Quando ativada, mata qualquer coisa que tenha magia em um raio de vários quilômetros.

Jim não perdeu tempo. — O que você precisa?

— Estou no apartamento de Saiman. Nós fomos atacados, há sete corpos, um sobrevivente. Preciso saber de onde os atacantes vieram, quem os contratou, qualquer coisa que você possa conseguir. Estou enviando Derek com Saiman para a casa segura do Oeste. Saiman tem a documentação que descreve o dispositivo e agora ele é o alvo principal. Estou voltando para o meu escritório. Julie e Ascanio estão no escritório e eu preciso levá-los para a Fortaleza.

— Estamos no lado sul, perto de Palmetto, —disse Jim.

Do outro lado da cidade. Ótimo.

— Estou enviando uma escolta agora. Estará lá em uma hora.

— Curran está com você?

— Ele está no campo, mas eu vou pegá-lo.

— Diga a ele ... —Diga a ele que eu o amo. — Diga a ele que sinto muito que não nos falamos na noite passada.

— Direi.

Desliguei e olhei para Derek. — Leve Saiman e os documentos para o esconderijo oeste. Mantenha-o protegido, precisamos do conhecimento em sua cabeça.

A boca de Derek se abriu, como uma armadilha de urso. — Simrrr, Consorrrteee.

*

A MAGIA VOLTOU QUANDO ESTAVA A UM QUILÔMETRO e meio do escritório. O motor a gasolina do Jeep falhou e morreu e eu o guiei até parar no meio-fio.

A preocupação que se sentou na boca do meu estômago desde o telefonema ficava cada vez maior e mais forte até que floresceu em pleno desespero. Algo estava errado. Eu sentia.

As crianças estavam bem. Estavam em um escritório fortificado. Tinham um bouda adulto com eles.

Reforços estavam a caminho.

Olhei para o volante. Levaria quinze minutos para recitar o feitiço do motor de água.

Eles estavam bem.

Dane-se.

Pulei para fora do carro, tranquei e desci a rua em uma corrida suave. Meu joelho protestou, enviando um aviso de dor na minha coxa a cada passo. Uma dor lancinante roeu minhas costelas. Foi um bom chute, mas em retrospecto eu deveria ter dado um soco nele.

As ruas passaram. Fiz um quilômetro em sete minutos. Ainda mais rápido que enfeitiçar o carro. Virei-me para Jeremiah, passando por alguns caminhões de entrega, bloqueando a maior parte da rua. Não muito longe agora.

Algo estava na rua em frente ao escritório. Algo pequeno e embrulhado em tecido.

Meu coração martelou. Eu me apressei.

Um manequim infantil descansava no chão, envolto em suéter sujo. O sangue manchava suas roupas e rosto de plástico.

A porta do escritório estava entreaberta. O gelo rolou pela minha espinha.

Eu puxei a Matadora de sua bainha e me forcei a diminuir a velocidade. Precisaria da minha respiração. A porta estava intacta. Alguém havia aberto. Testei com as pontas dos meus dedos e ela abriu, revelando o escritório. Minha mesa estava de lado, uma enxurrada de papéis espalhados pelo chão. Vermelho manchava a madeira, onde a mão sangrenta de alguém a segurou.

Um corpo nu estava esparramado no chão à minha direita. Estava de costas numa poça de sangue, os ossos de suas costelas saiam do seu peito. Masculino. Um buraco marcava o pescoço e o ombro esquerdo. Algo o havia mordido com dentes sobrenaturais. A cabeça estava uma bagunça de sangue e tecido danificado. Uma perna da cadeira se projetava do estômago, onde alguém prendera o cadáver no chão como uma borboleta.

Me aproximei do corpo, espada pronta, e vi um choque de cabelo preto espetado no lado direito do crânio do cadáver. Joey.

Um grunhido enfurecido abalou o escritório. Algo ressoou, uma vez, duas vezes, um toque de metal sendo atingido.

Corri para os fundos.

A porta do quarto dos fundos estava em pedaços no chão. Pulei sobre ela. Um buraco na parede tinha sido aberto, e através da abertura eu vi um metamorfo feminino em forma de guerreiro. Enorme, pelo menos dois metros de altura coberta de pelos beges com manchas escuras, ela era toda garras e dentes, batendo na gaiola do loup com o resto da cadeira. Tufos de cabelos negros coroavam suas orelhas monstruosas. Um lince.

As peças se juntaram na minha cabeça. Leslie, a render perdida que Curran estava caçando.

Dentro da gaiola, um bouda em forma de guerreiro embalava alguma coisa, protegendo-a com seu corpo. Cortes profundos percorriam suas costas, marcados com manchas grossas de sangue. A forma em seus braços tremia. Duas pernas esticadas, deformadas e torcidas. Músculos inchados em lugares estranhos, cobertos por pele humana e manchas de pêlo bege.

Leslie me viu e congelou.

Ascanio se virou e eu vislumbrei a coisa que ele estava tentando proteger. Um rosto horrível me espantava, a mandíbula saliente, o rosto lembrava cera derretida, os olhos pouco mais que pequenas fendas. Era o rosto que as vítimas do Vírus-L tinham quando o vírus metamorfo infectava seus corpos pela primeira vez.

Os pequenos olhos castanhos olhavam para mim do rosto do monstro. Julie. Oh meu Deus, Julie.

Leslie estava tentando matar as crianças.

Eu ataquei.

Leslie rugiu e atirou a cadeira quebrada em mim. Me esquivei e a apunhalei no peito, apontando para o coração dela. A Matadora deslizou nas costelas, perfurei o pulmão dela. Isso era como cutucar um humano normal com uma agulha.

Garras arranharam meu ombro. Cortei seu estômago. Ela se inclinou para trás e chutou com os dois pés. Eu vi o chute, mas não havia como evitá-lo. O golpe foi direto em meu peito. Voei para a sala principal, enrolando em uma bola. Minhas costas bateram na parede. O mundo rodou.

Leslie saltou para mim através do buraco, garras levantadas, dentes gigantes estalando.

Esquivei-me. Ela bateu na parede a toda velocidade e girou ao redor, rasgando o ar, suas garras como adagas. Desviei para esquerda, esquerda, direita. Ela balançava demais e eu aproveitei, transformando a Matadora em um redemoinho de metal. Coxa esquerda, lateral, coxa direita, ombro esquerdo, peito ... ela rosnou e me deu um soco. Se fosse atingida por um martelo não doeria tanto. Minha cabeça estalou para trás e ela correu para mim com a outra mão. Dor estourou no meu estômago. Tropecei de volta.

Sangue encheu minha boca. Leslie sangrava de uma dúzia de lugares, mas não o suficiente para atrasá-la. Ela era rápida, Vírus-L estava curando seus cortes, e minha espada não estava causando danos suficiente.

Dei-lhe um chute. Ela deu um murro na minha coxa. Balancei no último momento e o punho pegou de raspão.

Meu fêmur gritou do impacto. Ela estava apontando para o meu joelho machucado. Enfiei a Matadora em seu fígado.

Leslie gritou e rugiu: — Morrarrr agorrrrra!

Cortei seu braço direito, acertando o tendão. Precisava derrotá-la senão as crianças morreriam. Vou matar essa cadela. Rasgar cada membro do seu corpo se for preciso.

Ela agarrou-me com a mão esquerda, apertando meu ombro, levantando-me do chão e me puxando para seus dentes. Puxei minha faca de arremesso e a apunhalei na garganta, rápido, como se estivesse martelando um prego. Ela gorgolejou, apertou-me e atirou-me para o lado.

Bati na mesa de Andrea com minhas costas, fiquei de pé e comecei a andar em direção a ela. Eu estava muito machucada, só a dor me impedia de desmaiar.

Leslie pegou um arquivo e atirou em mim. Eu me esquivei. Ela jogou uma cadeira. Me abaixei e continuei indo. Leslie levantou uma estante de livros. Isso me atingiria. Eu não tinha para onde ir.

Um cachorro preto do tamanho de um pônei atravessou a porta. Grendel, seu poodle mágico idiota.

O cachorro atingiu Leslie no peito como um aríete. O render caiu, derrubado pelo impacto. Eu corri para cima de Leslie. Essa era a minha chance.

Leslie apertou Grendel pela nuca e atirou-o para o lado. Ele bateu na parede com um grunhido.

Leslie ficou de pé e mostrou os dentes para mim. Sangue escorria entre suas presas, estendendo-se em longos fios vermelhos até o chão.

Não desmaie. Eu só tinha que ficar consciente.

— ‘Osanda.’ A palavra de poder deixou minha boca, arrancando um pedaço da minha magia em um flash de dor. Não me importava. Concentrei tudo nela. — Ajoelhar. Ajoelhe-se, vadia.

Ela ofegou. Os ossos das canelas dela estalaram como palitos de dente e ela caiu de joelhos. Balancei a Matadora. A lâmina pálida da espada fumegava, alimentando-se da minha fúria. Golpeei, cortando a coluna vertebral. A cabeça de Leslie caiu para o lado. Cortei de novo. Rolou para o chão. Seu corpo sem cabeça tombou em minha direção. Chutei a cabeça dela no canto e me arrastei até a gaiola do loup.

Julie choramingava em uma voz fina e minúscula, sua respiração assobiando pelo espaço entre suas mandíbulas mutiladas.

Ascanio estava deitado de costas. Seus olhos me olharam, piscando em vermelho. Ainda vivos. Ambos ainda estavam vivos.

Agarrei as barras. Deus, meu peito doía. — Ela está morta. Tudo vai dar certo. Tudo vai dar certo. Me dê as chaves.

Ascanio gritou e virou de lado. Uma costela havia perfurado seu peito para fora. Sua mão se abriu, a chave destacada em sua mão sangrenta. Ele fechou os olhos.

Enfiei a mão pelas barras, peguei a chave quente e lustrosa e destranquei a gaiola.

— Ajude-nos, —Julie sussurrou. — Dói, Kate ... isso dói.

— Eu sei, Baby. Eu sei. —Tinha que levá-los para Doolittle. Um quarto das vítimas do Vírus-L não sobrevivem à primeira transformação.

Lágrimas escorregaram dos olhos de Julie. — O menino está morrendo.

— Olhei para Ascanio. Costelas quebradas, rasgadas para trás. Toquei no pescoço de Ascanio. Pulso. Pulso fraco, mas constante. Ele abriu os olhos devagar. — Eu tenteeii.

— Você fez muito bem.

O rugido de um motor encantado trovejou lá fora. O reforço de Jim. Forcei-me a ficar de pé.

— Não me deixe! —Julie soluçou.

— Só vou até a porta. Preciso conseguir ajuda. Eu volto já.

Corri para a sala de estar, envolvida na minha dor como um manto, e vi uma van cinza estacionando na frente do escritório. O Bando não tinha vans cinzas.

Corri para a porta.

A porta da van se abriu. Um homem mais velho saiu e apontou uma besta84 para mim. Uma pequena faísca verde piscava no final da seta da besta. Uma flecha com cabeça explosiva.

Fechei a porta, bloqueando-a.

A explosão abalou o prédio.

Puxei a veneziana interna da janela da esquerda e corri para a direita. A flecha da besta chegou meio segundo antes de mim e bateu na Proteção mágica, recuando. Eu puxei a veneziana para baixo. A explosão de energia mágica foi como uma bola de demolição. As paredes gemeram, mas seguraram. Mais alguns golpes diretos e elas viriam a baixo.

As crianças não conseguiriam se mover, não o suficientemente rápido para escapar sem um veículo.

Grendel mancou para mim. Abracei seu pescoço desgrenhado e corri minhas mãos ao longo de suas costas. Nada foi quebrado.

Tinha suficiente energia para uma palavra de poder. Isso nos compraria alguns minutos, mas eu desmaiaria, com as crianças imóveis, ficaríamos presos.

— Quando a merda bater no ventilador, você se esconde, ouviu?

Grendel choramingou.

— Não dê um de herói, cachorro.

Deslizei o tampo da porta para o lado, expondo a estreita janela de visualização. A porta da van estava aberta.

No interior, o homem de colete tático85 lenta, metodicamente carregava outro explosivo em sua besta.

Acabou.

Quando eles explodissem através da parede, eu levaria alguns deles comigo. Isso era tudo que podia fazer.

O besteiro86 levantou o arco.

Uma forma cinza saltou do telhado. Uma fera enorme, uma mistura de humano e leão, pousou no teto da van, esmagando-a.

Curran.

As garras gigantescas arrancaram o topo da van e ele arrancou a folha de metal, como se abrisse uma lata de sardinha. O besteiro ergueu os olhos a tempo de ver a enorme pata pouco antes de estalar o crânio como um ovo. As enormes mandíbulas da cabeça leonina se abriram e um rugido ensurdecedor explodiu em uma declaração de guerra, afogando até o ruído do motor encantado. A fera mergulhou sua cabeça enorme dentro, puxou um, chutando o corpo para fora entre os dentes, prendendo-o com as patas e arrancando a metade superior do corpo.

Ele veio para mim novamente.

O corpo de Curran se transformou, tornando uma forma mais humanoide. Ele arrancou outro homem da van, quebrou o pescoço, jogou o corpo quebrado para o lado e mergulhou no veículo. A van balançou. O sangue espirrou nas janelas, alguém gritou, e ele saiu da van, ensanguentado, seus olhos dourados em chamas.

Desbloqueei a porta. A porta se abriu e ele me apertou contra ele. Atirei meus braços ao redor de seu pescoço e o beijei, o sangue e cabelo e tudo.


Capítulo 17


MISÉRIA TINHA CONDUZIDO A MALDITA CAMINHONETE enquanto escutava duas crianças morrerem no banco de trás e Grendel choramingando como se alguma coisa o estivesse matando. Miséria observava o olhar aterrador de Jezabel quando finalmente chegamos nas portas da Fortaleza, seu rosto era uma máscara distorcida de dor, apertando o corpo mutilado de Joey, balançando-o como uma criança, e gritando, gritando, como se fosse ela que estivesse morrendo. Miséria viu o medo nos olhos de Doolittle quando Curran carregou Julie, enrolada nos lençóis do meu catre87 do escritório, pela Fortaleza. Miséria sentou-se na sala de espera.

Curran falou ao telefone, gritando palavras. — Alguém vai me dizer por que a nossa porra de render atacou minha companheira?

Barabas entrou no quarto. Suas feições tensas, fazendo-o parecer mais afiado e frágil. Ele veio e se agachou ao meu lado. — Posso pegar alguma coisa para você?

Balancei a cabeça. Curran desligou o telefone.

Os olhos de Barabas estavam lacrimejando. Ele parecia febril e desequilibrado. Sua voz calma tremia com raiva mal contida. — Você a fez sofrer antes de matá-la?

— Sim, —disse Curran. — Eu vi o corpo.

— Bom. —Barabas engoliu em seco. Suas mãos tremiam. Dificuldades técnicas com controle de sua raiva. Eu poderia me identificar. — Jez ficará feliz em ouvir isso.

— Joey era um parente? —Perguntei. Minha voz rangeu. Poderia tirar o emprego de um portão de metal enferrujado no departamento de rangidos.

— Ele era o mais novo da nossa geração, —disse Barabas. — Jezebel costumava tomar conta dele. Todos nós fizemos, mas ela era a mais próxima.

A porta se abriu e Jim bloqueou a luz. Alto, moreno, sombrio e envolto em um casaco negro, ele parecia a morte entrando. Jim enfiou a mão na capa e tirou uma fina corrente de ouro. A luz do refletor brilhou no ouro e deslizou para um pequeno pingente. Um farol. Um pequeno diamante piscava no local onde a lâmpada do farol estaria.

— O namorado tinha isso, —disse Jim. — Leslie quebrou a corrente. Ele estava consertando para o aniversário dela.

Leslie Wren era um Guardião do Farol.

Não foi a caminhada de cem milhas em terrenos acidentados que tinham ferido Julie. Não tinha sido um acidente fortuito ou as ações de um loup. Não, fui eu. Se ela não estivesse naquele escritório, não teria sido atacada.

Mandei os rastreadores trazê-la de volta para a Fortaleza ...

— O pai de Leslie era engenheiro na Columbia, —disse Jim. — Fez um bom dinheiro. Cerca de quinze anos atrás, o homem perdeu a cabeça, largou o emprego e mudou a família para o norte de Atlanta, para o campo. Ele herdou a casa de seus pais. Leslie tinha um irmão mais velho, mas ele ficou em Columbia. Os moradores dizem que nunca viram muito a família. Eles se lembram de Leslie, uma criança quieta em roupas surradas. Ela foi para a escola, mas os pais não deixaram a propriedade.

— Como eles sobreviviam? —Perguntei.

Jim colocou o pingente na mesa. — Viveram da terra. Há veados na floresta, guaxinins, caças pequenas. Eles devem ter caçado muito. Três metamorfos precisam de muita comida.

Curran olhou para mim. — Isso explica porque Leslie fez um bom render. Provavelmente passou mais tempo crescendo em seu pêlo do que em pele humana. Não é bom para crianças. Mexe com as suas cabeças.

Jim tirou o casaco. — Ela veio direto para o Bando no momento em que completou dezoito anos. Está conosco há nove anos. Foi pesquisada. Sem sinais de aviso, sem problemas, nada. Em retrospectiva, eu deveria ter me perguntado por que não havia problemas. A maioria dos renders perde um passo de vez em quando. Ela nunca fez. Era a que intervinha quando havia algum problema.

Inclinei-me para trás. — Por que se envolver em algo assim?

— Ela esteve conosco por um terço de sua vida. Nós sempre a tratamos bem. —Curran se inclinou sobre a mesa. — Eu quero saber o porquê.

Jim endireitou os ombros. — Teresa, uma das minhas soldados, localizou o irmão de Leslie Wren. Ele voltou esta manhã. Disse que o pai de Leslie, Colin Wren, teve um caso sério de paranoia. A mãe, Liz, era uma mulher do tipo ‘vá com o fluxo’. O irmão diz que ela era passiva, não gostava de confrontos. Eles não eram o casal mais estável.

Um metamorfo paranoico com uma companheira passiva que faria praticamente qualquer coisa que ele quisesse para evitar uma briga.

Essa era uma receita para o desastre.

Jim continuou. — Quando Leslie tinha doze anos e o irmão dela tinha dezessete anos, a mãe deles teve um caso com Michael Waterson.

— Gato alfa local de Columbia, —disse Curran em meu benefício. — Não é um cara mau. Competente.

— O caso não durou muito, —disse Jim. — Quando Colin descobriu, ele enfureceu-se. O irmão contou que ele levou Leslie com ele para fora de Columbia e foi para a casa de seus pais e deu a Liz uma escolha: se ela não viesse com ele, nunca mais veria Leslie.

— Usou sua filha como garantia, —disse Curran.

Jim assentiu. — O irmão disse que a mãe teve medo do pai fazer algo com Leslie, então ela foi com ele. Waterson nunca a seguiu. Ele diz que ela disse para ele não procurar por ela e que ela tentaria salvar seu casamento. Eles se escondiam na casa. Liz não estava autorizada a sair da propriedade. O irmão estava no ensino médio na época e ficou para trás para terminar o ano. Vinha visitá-los em suas férias. O pai tentou matá-lo. Disse que ele era competição.

Viver nessa casa deve ter sido puro inferno. Mas isso não me fazia me arrepender de matar Leslie. — Ela devia culpar Vírus-L por enlouquecer seu pai.

Jim assentiu. — Sim.

— Besteira, —Barabas cuspiu. — Dezenas de metamorfos lidam com assuntos como esses. Casamentos acabam. Pessoas morrem. Nós continuamos. Não abusamos de nossos companheiros e filhos.

— Quando os Guardiões a recrutaram? —Perguntou Curran.

— Não sabemos, —disse Jim. — Creio que a muito tempo.

Algo horrível aconteceu com Leslie Wren naquela casa. Algo que a convenceu de que os metamorfos eram maus, a própria magia que tornava sua existência possível tinha que ser destruída. Ela acreditava tão profundamente que se juntou às pessoas que odiavam sua espécie, assinando sua própria sentença de morte. Tinha uma vida com o Bando, respeito, amizades, um futuro. Mas o que quer que tenha acontecido a marcou tão profundamente que jogou tudo fora quando os Guardiões ligaram.

Como? Como você vai de levar Julie para se divertir em uma caça a tentar assassiná-la? Matei dezenas, mas nunca conseguiria tirar a vida de criança a sangue frio. Isso estava além de mim.

A porta do corredor se abriu. Sander, um dos médicos júnior de Doolittle, um homem alto e magro que parecia que ia quebrar no meio a qualquer segundo, saiu e se aproximou de nós. — O menino está acordado.

*

ASCANIO ESTAVA DEITADO NA CAMA SOB OS LENÇÓIS. O rosto dele era uma máscara sem sangue. Parecia fraco e pequeno, seus olhos enormes, como duas piscinas escuras no rosto pálido. Se fosse humano, estaria morto. Sander disse que ele teve fraturas em ambas as pernas, perda de sangue grave, um pulmão perfurado e duas costelas quebradas. Leslie o jogara como um cachorro sacudindo um rato. O Vírus-L iria consertar ele de volta. Alguns dias e estaria de pé e andando. Mas enquanto isso, ia doer.

Sentei na cama dele. Curran permaneceu de pé.

O olhar de Ascanio se fixou nele.

— O que aconteceu? —Perguntou Curran.

— As boudas da Tia B vieram, —disse Ascanio, com a voz baixa. — Três delas. Disseram a Andrea que Tia B queria conversar. Andrea disse que não. Elas disseram: ‘Você vem conosco de uma forma ou de outra’. Achei que haveria problemas. Andrea olhou para mim e disse: ‘Alguém tem que ficar com as crianças’. Então eles deixaram Joey. Ele era o mais fraco. Grendel não gostou dele e continuou tentando morder Joey, então Andrea levou o cão com ela. Então você ligou e Joey nos disse para ficar longe da maldita porta. Ele subiu e disse que ia dormir.

Maldito boudas. Eu digo a ele nós estamos sendo atacados e ele vai tirar uma soneca.

— Cerca de meia hora depois, alguém bateu na porta. Uma mulher estava gritando.

Ascanio engoliu em seco.

— Continue, —Curran disse a ele.

— Julie disse: 'Vamos lá, porteiro, você não vai ver quem é?' E eu disse: 'Eu não sou um porteiro, e se você quiser saber tanto, vá ver por si mesma'. Ela foi. Ascanio fechou os olhos por um longo momento.

— A mulher do outro lado gritou: 'Me ajudem, eles machucaram meu bebê'. Julie olhou para fora e gritou que era Leslie. Ela a conhecia do Bando e Leslie carregava uma criança ensanguentada. Sabíamos que o Bando estava sendo atacado. Nós abrimos a porta.

Eles viram uma mulher metamorfa com uma criança manchada de sangue e eles a deixaram entrar. É claro que eles a deixaram entrar. Eu teria corrido pela porta para protegê-la. Deveria ter contado sobre Leslie. Nenhuma evidência existia de que os dois casos estavam conectados, e eu não sabia. Se tivesse, Julie não estaria perdendo a humanidade agora.

Ascanio respirou fundo. — Ela estava em forma de guerreiro quando entrou pela porta. Derrubou Julie de lado. Eu me mexi e bati nela. Ela era muito forte. Ataquei algumas vezes, mas ela me arranhou e quebrou minhas pernas. Pensei que iria me cortar em fitas e, em seguida, Julie pulou nas costas dela. O gato a puxou e a mordeu com força. Aconteceu tão rápido. E então Joey veio correndo. O gato disse: ‘Afaste-se, fraco. Sabes que não pode me levar’. E Joey puxou sua faca e me disse para proteger Julie.

Ascanio fechou os olhos com força. — Julie já estava sofrendo os efeitos do vírus. Eu a peguei e corri.

Suas pernas estavam quebradas e ele carregou Julie de qualquer maneira. Seja o que for que ele fizesse a partir de agora, eu nunca esqueceria isso.

— Eu sabia que, se saíssemos por trás, ela nos perseguiria, então entrei na gaiola do loup e tranquei a porta.

Ele engoliu o ar.

Eu queria matar Leslie novamente. Eu queria matá-la devagar, apreciando enquanto fazia.

— O gato fez alguma coisa com Joey para evitar que ele se mexesse, porque ouvimos Joey xingando-a. O gato veio tentar nos pegar, mas ela não conseguiu passar pelas barras. Isso realmente a irritou. Joey estava gritando e xingando, dizendo que ela deveria vir e escolher alguém do seu tamanho. O gato voltou para fora. E então ouvimos Joey gritar. Eu queria ir e ajudá-lo, mas não conseguia me levantar. O gato estava batendo nele até a morte e eu não conseguia me levantar.

— Você fez tudo certo, —disse a ele. — Você foi maravilhoso. Não poderia ter feito mais.

A mão de Ascanio tremeu. — Ele morreu para nos manter vivos. Por quê? Por que ele faria isso?

— Porque é isso que você faz, —disse Curran. — Isso é o que significa estar no Bando. Os fortes defendem os fracos. Joey protegeu você e protegeu Julie.

— Ele nem sequer nos conhecia! —Ele olhou para nós, com os olhos molhados. — Eu não sou como você. Eu não quero isso. Não quero que as pessoas morram por mim. Eu não quero andar por aí com isso pesando em mim.

Curran se inclinou para ele. — Então seja forte. Aprenda a ser forte o suficiente para que os outros não tenham que morrer para mantê-lo seguro.

Uma comoção irrompeu pela porta.

Uma voz feminina gritou: — Vai me deixar entrar ou eu vou te matar onde você está!

A porta se abriu. Uma mulher musculosa entrou, uma expressão atormentada no rosto. Martina, mãe de Ascanio. Ela nos viu e parou.

— Você tem um filho corajoso, —disse Curran. — Um crédito para o seu clã.

No final do corredor, a porta da sala de emergência se abriu. Doolittle saiu, limpando as mãos em uma toalha. Saí do quarto e marchei para ele. Ele me viu. Seu rosto usava uma expressão firme, como se estivesse se esforçando para mante-se equilibrado.

Quem fosse que estivesse no andar de cima, por favor, não me deixe que me diga que Julie está morta. Por favor.

Cheguei a ele. — Como ela está?

— Julie tem um enorme trauma no ombro, três fraturas de costelas e uma infecção por Vírus-L no terceiro estágio.

A infecção por Vírus-L tinha cinco estágios: introdução do vírus, início do turno, meio turno, mudança avançada e estabilização. Julie estava em meio turno, o que significava que seu corpo estava lutando contra o vírus para permanecer humano.

Seu rosto estava sombrio. Algo ruim estava chegando. Eu me preparei.

— Os níveis de floração em Julie são muito altos.

Meu peito se contraiu. O Vírus-L ‘florescia’ quando sua vítima estava sob estresse, saturando o corpo em grande número. Floração alta colocaria Julie no limite. Quarenta por cento de todas as vítimas do Vírus-L foram loup durante a quarta etapa. Julie foi mordida, ela era adolescente e ficou ferida. Seu nível de estresse estava saindo pelo do teto e seu corpo estava inundado de hormônios. Suas chances de enlouquecer eram astronomicamente altas.

Alguém perguntou: — Ela está indo loup? —Percebi que tinha sido eu.

— É muito cedo para dizer. —Doolittle esfregou o rosto. — Sua transformação está acontecendo muito rápido. Em todos os meus anos, nunca vi isso acontecer tão rápido. Ela começou a se transformar quase desde o momento em que o vírus entrou em seu sistema. Julie é muito mágica. Introduzir o vírus em seu corpo era como plantar uma semente em solo fértil.

A primeira transformação é sempre a mais volátil. Em um caso de infecção estável, o vírus deveria ter se estabilizado. Julie ainda está florescendo.

Ah não.

— Ligue para o Francês, —disse Curran. Eu quase pulei. Ele veio atrás de nós e eu não o ouvi.

— Não ligo para o que vai custar, apenas pegue.

— Conseguir o quê? —Olhei para ele.

— Os europeus têm uma mistura de ervas, —respondeu Curran. — Reduz as chances de lupismo em um terço. Eles guardam como se fosse ouro, mas conhecemos alguém que o contrabandeia.

O rosto de Doolittle estava triste. — Tomei a liberdade de ligar no momento em que ela entrou, meu senhor.

— E?

Doolittle sacudiu a cabeça.

— Você disse a ele quem estava perguntando? —Curran rosnou.

— Eu fiz. O Francês envia suas desculpas. Se ele tivesse alguma, a entregaria imediatamente, mas não há nada para ser feito.

Curran cerrou os punhos e os forçou a abrir.

— E agora? —Perguntei.

— Ela está sob forte sedação. A principal questão agora é fazê-la se sentir segura. Nenhum barulho alto, nenhuma voz alarmante, nenhuma agitação. Temos que mantê-la calma e segura. Isso é tudo que podemos fazer. Eu sinto muito.

— Quero vê-la.

— Não. —Doolittle barrou meu caminho.

— Como assim não?

— Ele quer dizer que você está tão agitada que vai aumentar seus níveis de vírus simplesmente caminhando até lá, —disse Curran. — Se você quer que ela melhore, volte e a veja quando estiver calma.

Gritar que eu estava calma, porra, só iria martelar seu ponto.

Curran virou-se para Doolittle. — Quando vamos saber?

— Eu vou mantê-la sob sedação por vinte e quatro horas. Depois disso vamos tentar acordá-la. Se ela mostrar sinais de lupismo, podemos sedá-la por mais vinte e quatro. Depois disso ... —Doolittle ficou em silêncio.

Depois disso eu teria que matar minha filha. Toda a força saiu das minhas pernas.

Teria dado qualquer coisa para que isso fosse um pesadelo. Toda a minha magia, todo o meu poder, por uma chance dela acordar bem. — Existe alguma esperança?

Doolittle abriu a boca e fechou sem dizer nada.

Virei-me e marchei pelo corredor. Os Guardiões do Farol tinham que ter uma base. Alguém tinha que ter possuído ou alugado aquela van. Alguém os forneceu com flechas explosivas. A única vez que eu os vi usando foi quando Andrea colocou dois deles em um golem de sangue controlado pela minha tia. Ela teve que ter ordens especiais para consegui-las.

Encontraria os guardiões. Eu os encontraria e mataria cada um deles.

Curran me alcançou. — Onde você vai?

— Tenho coisas para fazer.

Ele barrou meu caminho. — Você parece uma merda. Você precisa de um médico. Deixe Doolittle consertar você.

— Eu não tenho tempo para isso.

Ele se inclinou para mim, sua voz quieta. — Isso não está aberto à negociação.

Eu abri meus dentes. — Se eu não machucar alguma coisa, vou enlouquecer.

— Ou deixa ele te consertar agora ou estará despreparada fisicamente numa luta realmente importante. Você conhece seu corpo, sabe que está no seu limite. Não me faça carregar você.

— Apenas tente.

Ele mostrou a borda dos dentes para mim. — Isso é um desafio, baby?

Olhei para ele. — Você gostaria que fosse, querido?

Uma figura desajeitada apareceu no corredor. Mahon

Grosso e barrigudo, o alfa do Clã Heavy parecia que poderia pisar na frente de um trem em movimento e forçá-lo a frear até parar. Seus cabelos negros e barba estavam manchados de cinza. Ele não gostava muito de mim, mas nós nos respeitávamos e como Mahon era a coisa mais próxima que Curran tinha de um pai, tanto Mahon quanto eu fazíamos um esforço para permanecermos civilizados.

Mahon terminou de manobrar sua enorme estrutura perto de nós. — Meu Senhor. Consorte.

— Sim? —Curran perguntou, sua voz estridente no início de um rosnado.

Mahon nos cravou com seu olhar severo. — Ao contrário dos seus aposentos, este corredor não é à prova de som. Suas vozes podem ser ouvidas. Estes são tempos difíceis. Nosso povo te procura por orientação e exemplo.

Doolittle abriu uma porta para uma sala ao lado.

Mahon inclinou a cabeça em um meio arco lento. — Por favor, Consorte.

Bem. Meia hora não faria diferença de qualquer maneira.


Capítulo 18


ACORDEI NO NOSSO SOFÁ. MEU CORPO INTEIRO DOÍA, até os meus ossos. No fundo a dor era uma coisa boa. Dor significava que ainda estava viva e curando.

Curran apoiou-se no batente da janela, sua silhueta contra a luz do crepúsculo onde a aurora sangrava carmesim no céu. O sol estava no Leste. Manhã então. Dormi por várias horas.

Músculos se esticaram nas costas largas de Curran. Ele sabia que eu estava acordada.

Não importava onde eu estivesse ou em quantos problemas me metia, ele viria me buscar. Ele demoliria a cidade para me encontrar. Eu não tinha que estar sozinha.

Vários andares abaixo, Julie estava dormindo enquanto seu corpo trabalhava para traí-la. Minha Julie, minha pobre garota. Algumas pessoas acordavam para escapar de seus pesadelos. Eu acordei em um.

— Qualquer mudança?

— Ela ainda está dormindo, —disse Curran.

— Doolittle me sedou, aquele velho bastardo.

Ele se virou. — Não. Ele estava cantando a cura para fechar suas feridas e você adormeceu. Eu te trouxe aqui em cima. Dói menos agora?

Dei de ombros. — Como você sabe que doía em primeiro lugar?

— Você estava segurando sua respiração quando andava.

— Talvez eu estivesse apenas chateada.

— Não. —Ele veio em minha direção. — Sei quando está chateada. Como se move quando está chateada. Conheço o olhar.

Ele sabia o jeito que eu andava. O que deveria fazer com isso? — Grendel?

— Está na enfermaria de Doolittle. Nada sério. Alguns hematomas e uma lasca de madeira presa na pata. Andrea voltou para a Fortaleza. Ela disse que eles estavam comendo e ele decolou sem aviso. Atravessou a janela do restaurante.

Poodle bobo. Como ele sabia que estávamos em perigo?

Músculos se apertaram ao longo da mandíbula de Curran. — Deveríamos ter encontrado Leslie. Nós a rastreamos por toda a cidade. Seu perfume tinha menos de três horas em Palmetto. Se a tivéssemos encontrado, nada disso teria acontecido. Você não pode salvar todos. Fiz as pazes com isso. Mas nós deveríamos ter salvado a Julie ...

— Eu te amo, —disse a ele.

Curran parou no meio da sua fala e caminhou para mim. Eu o beijei, deslizando em seus braços. — Não quero falar. —Sussurrei.

Minhas bochechas estavam molhadas e eu sabia que estava chorando. Minha voz não tremia, mas as lágrimas continuavam vindo sem parar. Perdi minha mãe, meu padrasto e agora em dois dias, minha filha também. Era hora de pagar o flautista88.

Curran me beijou, seus lábios selando nos meus. Sua língua deslizou em minha boca, seu gosto tão familiar, tão bem-vindo. Apertei seus ombros, puxando-o para mais perto, arrancado sua camisa. Ele moveu os lençóis para o lado e se separou de mim por pouco tempo para tirar minha blusa. Beijei sua boca, meus dedos em seu cabelo curto, pedindo por sua força. Suas mãos deslizaram sobre meus seios, a pele áspera de suas mãos roçando meus mamilos. Ele me levantou de joelhos e lambeu meu seio esquerdo, o calor de sua boca anestesiando toda a dor que rodava dentro de mim. Deixei de lado tudo e me perdi nele, beijando, lambendo, acariciando, querendo ser um.

Ele levantou-se acima de mim, eu envolvi minhas pernas ao redor dele, e quando ele empurrou dentro de mim, o mundo deu um passo para trás. Havia apenas eu e ele. Nós construímos um ritmo rápido, mas suave, cada vez mais rápido, cada impulso me elevando mais alto, até que finalmente o calor floresceu dentro de mim, me afogando em uma cascata de prazer. Ele estremeceu e se esvaziou. Ficamos assim por um longo momento, então se moveu para o lado, me puxando contra ele. Nós nos deitamos enrolados juntos, enquanto o dia nascia do lado de fora da janela.

Me recusava a deixar Julie ir. Tinha que haver uma maneira de contornar isso. Tinha que haver algo que eu pudesse fazer. Ela ainda não era uma loup, droga. Tinha que haver um caminho.

— Nós vamos matá-los, —disse Curran, sua voz atada com tanta violência que eu quase estremeci. — Nós vamos acabar com eles.

Sim. — Daqui a um ano, ninguém se lembrará de que eles existiram. —Não haveria mais Guardiões do Farol depois que terminássemos. Não ajudaria minha filha. Mas isso poderia impedir que outras Julies fossem feridas.

Uma batida ressoou pela porta.

— O quê? —Curran rosnou.

— Jim está aqui, meu senhor, —disse Barabas.

Eu empurrei o travesseiro.

— Diga a ele para esperar, —disse Curran. Ele se virou para mim. Olhos cinzentos olhavam nos meus. — Eu também te amo.

Talvez ele realmente me amasse. — Prometa-me que quando saírmos, ninguém vai tocar Julie até voltarmos.

O ouro rolou nos olhos de Curran e desapareceu. — Não, se eles quiserem viver.

— Nem mesmo um alfa de um clã. —Eu não sabia o quanto era sombrio o interior da cabeça de Jennifer.

— Nem mesmo um alfa. Julie está sedada e contida em sua cama. O acesso ao quarto dela é restrito, e Derek ficará com ela. Ele colocou na cabeça que se ele não tivesse machucado Ascanio quando brigaram, o garoto bouda poderia ter lutado mais. Jennifer não tem a opção de passar por ele, nem tentaria. Não é quem ela é.

Ele pegou sua calça de moletom do chão.

Vesti a minha roupa. — Não teria importado a situação de Ascanio. Ela era uma render treinada. Você poderia ter matado ela. Tia B. Mahon. Talvez Jezabel. Jim ...

— Você, —disse Curran. — E agora toda a Fortaleza sabe disso.

Parei com uma bota na mão. Ele estava realmente orgulhoso de mim. Ouvi em sua voz. Oh inferno.

Ele estava olhando para mim com um sorriso de gato que comeu o canário.

— O que eu fiz com o meu outro sapato?

— Você está segurando.

— Ah. —Sentei-me no sofá e coloquei minha bota.

Curran enfiou a camiseta e foi até a porta. Eu segui. Curran abriu a porta, revelando Jim.

Seu casaco estava de volta. Andrea atrás dele. O lado direito do rosto dela era preto e azul como se tivesse sido atingida por um haltere de dois quilos. Ela parecia pronta para matar alguma coisa.

O rosto de Jim estava sombrio. — Os Guardiões ativaram o dispositivo em Palmetto.

— Quando? —Curran rosnou.

— Meia hora atrás.

Curran amaldiçoou.

*

O JEEP PULOU SOBRE UMA PLACA DE METAL NA ESTRADA, voou e aterrissou com um rangido. Jim dirigia o caminho se desviando de tudo que podia, beirando a imprudência, apesar do controle.

No banco da frente, Curran abaixou a janela e se inclinou, tentando ler uma placa suja na estrada. — Cinco quilômetros. —Ele rolou a janela antes que o rugido do motor encantado do Jeep nos fizesse todos surdos.

A estrada Roosevel passava pela janela, as árvores eram uma mancha verde longa. Ao meu lado, Andrea segurava sua besta. Nós não tivemos a chance de conversar, mas não havia necessidade. Pelo nosso estado de espírito só precisávamos de um alvo.

— Os guardiões trouxeram o dispositivo em algum momento durante a noite, —disse Jim. — A Feira da Fazenda Primavera está na cidade esta semana. É aí que a maioria de Palmetto faz boa parte do dinheiro. A escola é cancelada durante a semana e todos os serviços da igreja são movidos para as oito horas para acomodar a feira. Os Guardiões colocaram o dispositivo no meio de uma rua movimentada e caíram fora. A Feira tem duas áreas que vendem todo tipo de merda mágica estranha. Ninguém estranhou o dispositivo de Kamen.

As pessoas de Palmetto assistiram sem entender muito a bomba-relógio ser armada e abandonada lá. E quando ela foi ativada os matou.

— Por que não fizeram o perímetro de toda a feira? Porque só uma parte dela? —Andrea perguntou.

— Porque eles queriam testemunhas, —disse Jim. — As pessoas viriam para a feira, veriam uma cidade morta e correriam de volta para espalhar o pânico.

— Então o efeito acabou? —Eu perguntei.

— Sim, —disse Jim. — Nós tínhamos um pessoal vasculhando a cidade ontem, procurando por Leslie. Hoje de manhã mandei um homem da Fortaleza para informá-los sobre os Guardiões e dizer-lhes que voltassem. Eles estavam na estrada de volta para Atlanta quando viram a luz atrás deles. Ficaram bem longe disso. Pelo que dizem, a luz branca apareceu acima da cidade, brilhou por vários minutos, como as luzes do Norte89, e desapareceu. A coisa toda levou cerca de dez minutos.

À esquerda, quatro hienas, dois lobos, quatro chacais e um mangusto saíram do mato e ladearam o carro. Barabas, Jezebel e outros. Todo o clã bouda uivava por sangue.

— Nossa fonte disse que o dispositivo não pode ser movido por um carro enfeitiçado, —Jim disse sobre o ruído do motor.

Boa ideia Jim, não chamar Saiman pelo nome.

— Ele disse que destrói o encantamento do combustível. E não pode ser carregado no braço porque é muito pesado. Tem que ser movido de carroça ou cavalo. Existem quatro estradas saindo de Palmetto. Costumava ser cinco, mas a rodovia Tommy Lee Cook está fechada. Há um buraco de uns quatrocentos metros de largura. Eu tenho pessoas em cada estrada. A máquina puxa magia em um círculo a partir do perímetro e indo para centro, que é a própria máquina. O perímetro da zona de explosão é claramente visível porque ninguém saiu dele.

— Podemos entrar na zona depois da explosão? —Andrea perguntou.

— A fonte disse que ele atravessou a explosão do primeiro protótipo. Ele não pareceu sentir efeito algum, —eu disse a ela.

Um velho outdoor apareceu entre as árvores, anunciando um show de armas.

Jim pisou no freio, girando o volante. O motor crepitou e morreu. Os pneus do Jeep guincharam e o veículo virou para a esquerda e guinchou até parar. Quatorze corpos estavam do outro lado da estrada. Homens, mulheres, crianças, vestidos em boas roupas. À direita, uma igreja erguia-se, com as portas bem abertas. Um pregador estava deitado na escada, a Bíblia ainda na mão. Do outro lado da estrada, em um amplo recinto, carroças esperavam pelos donos que nunca viriam. Cavalos bufavam e chicoteavam suas caudas espantando as moscas.

— Santo Deus, —sussurrou Andrea.

Deviam ser Batistas do sétimo dia, indo à igreja para o culto de sábado de manhã. Famílias inteiras. Adam Kamen estava certo. Se você tivesse magia suficiente, o choque de perdê-lo matava você.

Por quê? Por que diabos os Guardiões estavam fazendo isso? O que diabos eles estavam esperando conseguir?

Um homem nu correu para fora da igreja e veio direto para nós. Cabelo castanho curto, constituição magra ... Carlos, um dos exploradores ratos. Ele parou ao lado de nós e se curvou, sem fôlego. — Não posso entrar em uma meia forma. Te transforma em humano ou animal. Te deixa mais fraco também.

Carlos se esforçou. Pele brotou ao longo de suas costas enquanto ossos estalavam. Um momento e um homem-rato estava na nossa frente. Carlos abriu as longas mandíbulas. — Obrigado Deussss, esssstavaaa preocuuupadoo.

Um uivo distante de lobo ecoou pelo ar.

Sul. Curran tirou as roupas. Sua pele se partiu. Músculos estremeceram, pele brotou, e ele caiu de quatro, listras escuras como marcas de chicote em sua pele. Jim tirou a camisa e um jaguar em forma de guerreiro pousou ao lado de Curran.

A monstruosa cabeça de leão abriu as mandíbulas e a voz de Curran rolou para frente, as palavras perfeitas. — Vamos explorar os campos ao longo da borda da zona de explosão.

— Vou pegar o carro.

Jim jogou as chaves para mim e eu as peguei no ar.

— Não quebre o dispositivo, —eu disse. — Você quebra, ele explode e todos nós ganharemos asas rapidamente.

Curran rosnou. — Mais tarde, docinho.

Docinho. Idiota. — Boa caçada, fofinho.

Pulei no banco do motorista. Andrea puxou um rifle debaixo do banco do passageiro e sentou montando a arma.

Curran correu para o campo, músculos poderosos o carregando. Os metamorfos o seguiram em uma procissão silenciosa. Virei a chave e o motor a gasolina ronronou em resposta. Sem magia. Certo.

Fiz um amplo círculo ao redor dos corpos e pisei no acelerador. O veículo disparou para frente, ganhando velocidade.

— Eita. —Andrea esfregou o rosto. — É como se alguém colocasse uma sacola na minha cabeça. Não consigo ouvir bem. Também não posso sentir o cheiro de nada.

— O que aconteceu com o seu rosto?

— Ela me fez sair, —disse Andrea com os dentes cerrados.

Olhei para ela.

— Tia B. Nós precisávamos conversar. Oh não, ela não podia esperar para ter essa conversa. Tinha que ser imediatamente, então ela poderia me explicar em detalhes como eu precisava me tornar uma de suas garotas. Não deveria ter ido, mas queria evitar uma briga na frente das crianças. Nós nos sentamos em Mona e comemos torta, então seu ego ficaria satisfeito, enquanto a render rasgava as crianças. Eu disse a ela isso. Você sabe o que ela disse? Ela disse que foi minha culpa, porque se eu tivesse obedecido-a como uma boa bouda quando ela me ligou pela primeira vez, não estaríamos nessa bagunça. Então eu dei um tapa nela.

— O que?

— Quando chegamos à Fortaleza e ficamos sabendo sobre Julie, subi e bati no rosto da Tia B. Na frente de todos.

Puta merda. — Você perdeu a cabeça?

— Você deveria ter visto o olhar dela. Valeu a pena. —Andrea lançou-me um olhar desafiador. — Então o rosto dela ficou todo psicótico. A velha cadela me deu uma surra. Eu não me lembro realmente de ser atingida. Apenas lembro-me de cair das escadas. Eu acho que ela me derrubou do patamar. Ela é muito forte. —Uma luz louca acendeu nos olhos de Andrea. — Eu faria de novo. Vou fazer minha missão de vida derrubá-la.

E as pessoas diziam que eu era a louca.

Andrea levantou a mão. — Esta é a mão que bateu na Tia B.

— Talvez você devesse banhá-la a ouro.

— Aqui, você pode tocá-la, já que você é minha melhor amiga.

— Sua mão está conectada ao seu cérebro? Você vai continuar a atacá-la até que ela te mate?

Andrea encolheu os ombros. — Eu posso matá-la em vez disso.

— E virar Alfa do clã bouda?

Ela piscou. — Não.

— E como você acha que Raphael aceitaria isso? Eu sei que você ainda ama ele. Você acha que ele ficará feliz por sua mãe estar morta?

Andrea soltou um longo suspiro. — Escute eu e Raphael ...

— Seu plano genial tem buracos grandes o suficiente para conduzir um caminhão.

— Agora veja, você ...

As árvores terminaram abruptamente quando a estrada nos atirou para o centro da cidade. Palavras morreram nos lábios de Andrea.

Corpos jaziam nas ruas. Trabalhadores. Mães com seus filhos. Um grupo de homens armados com bestas, provavelmente apenas passando. Um policial, uma mulher loira e baixa, seu uniforme impecável, deitado de bruços na calçada, a dois passos do cavalo da polícia.

Santo Céu ... Nós dirigimos através de tudo, cercadas pela morte de todos os lados, como se deslizando através do Armagedom.

Na extrema direita, um homem tropeçou, andando pela rua, com um olhar perdido no rosto, tentando aceitar o fim do mundo. Uma criança chorou à distância, um som fino e incerto.

Isso não foi ruim. Não foi apenas criminoso ou cruel, era tão profundamente desumano, que minha mente tinha dificuldade em compreender isso. Eu já vi a morte e assassinato em massa, eu vi pessoas abatidas por sede de sangue, mas isso não tinha emoção por trás. Apenas um cálculo clínico frio.

Outro uivo rompeu o silêncio. Mais perto desta vez e para o leste. Andrea tirou o mapa do colo.

— Eles provavelmente estão indo para a rodovia Fayetteville. Vire à esquerda no próximo cruzamento. Rua da Igreja.

Eu fiz um giro fechado à esquerda no próximo cruzamento. À nossa frente, um viaduto desmoronando barrou o caminho. Guiei o Jeep do lado, sobre a colina, rezando para que os pneus não explodissem e rolasse ladeira a baixo.

O veículo aguentou, suas molas do assento rangeram e nós pousamos de volta na estrada. Eu pisei no acelerador. O Jeep lançou-se para frente.

Uma bifurcação apareceu a nosso lado direito. Segui em frente. Tinha visto a maior quantidade de mortos que podia suportar. Agora só o que eu queria era fazer os meus próprios mortos.

A estrada virou à esquerda, cortando uma densa floresta. Eu tomei a vez. Algo preto e grande estava na estrada.

— Cuidado! —Andrea gritou.

Desviei, pegando um vislumbre de um enorme corpo equino. Um olho âmbar louco olhava para o nada, agora sem brilho, em uma cabeça coroada com um único chifre afiado.

A floresta acabou de repente como um lenço de seda verde puxado para fora do lugar. Uma faixa de estrada reta se desenrolava na nossa frente, antes de mergulhar na floresta novamente ao longe. No lado esquerdo, duas gigantescas estruturas em forma de A-frames, cobertos por telhados de zinco, abrigavam fileiras de barracas de antiguidade. As barracas estavam desertas. Metade dos seus donos fugiu. Os poucos que permaneciam esparramados na terra, seus olhos não haviam mais brilho nem vida.

Um grupo de cavaleiros emergiu da mata ao longe, forçando duramente os cavalos. Atrás deles dois cavalos puxando uma carroça. Pelo menos dez pessoas. A floresta dos dois lados da estrada era muito densa para o carro passar. Eles estavam se afastando da zona de magia e vindo em nossa direção, de volta para zona da explosão.

Virei o Jeep para o lado, bloqueando a estrada. Andrea olhou para o A-frame mais próximo. Isso daria a ela um bom ponto de observação. Mas no momento em que ela começasse a atirar, eles revidariam. Nós tínhamos que pará-los.

Estirei minha mão. — Dê-me uma granada.

Andrea abriu a mochila e enfiou uma granada na palma da minha mão. — Espere até que eles comecem a atirar no Jeep. O boom vem primeiro, o estilhaço em segundo. Conte até dez antes de correr para lá. E não estrague o dispositivo.

— Sim mãe. Não é a minha primeira vez.

— Esse é o agradecimento que eu recebo por tentar mantê-la viva, sua Alteza.

Saí do Jeep e corri pela vegetação rasteira do lado direito da estrada. Andrea saltou dois metros no ar, pegou a borda do telhado de zinco e subiu.

Galhos e folhas me batiam. Continuei me movendo, firmeza nos dedos dos pés. Se Curran estivesse aqui, teria me mastigado por fazer mais barulho do que um hipopótamo bêbado em uma loja de porcelana, mas com o barulho de cascos dos cavalos os cavaleiros não podiam me ouvir. À frente, o solo se nivelava, a vegetação rasteira de pinheiros vagos suficientemente espessos para proporcionar uma boa cobertura, mas fina o bastante para ser carregada rapidamente. Cerca de cem metros do Jeep. Longe o suficiente. Caí em um agachamento.

O cavaleiro líder passou por nós e parou a uns doze metros à frente. O resto dos cavaleiros parou, formando duas linhas soltas ao longo da estrada, cambaleando para minimizar a área alvo. A carroça parou com um rangido na minha frente. Um grande pacote coberto de lona se projetava no meio, preso por cordas.

Partições de madeira protegiam o dispositivo da parte de trás e da frente. Perfeito.

— Senhorita Cray, —disse o cavaleiro líder. — Por favor, remova a obstrução.

Uma mulher foi até o líder. — Senhor?

— Vá até o veículo, coloque-o em ponto morto e empurre-o para fora da estrada. Burgess, vá com ela. Santos, cubra-os. Se as coisas parecerem suspeitas, grite.

Os três cavaleiros avançaram em direção ao nosso Jeep, dois à frente, um atrás, o fuzil pronto. Esperei até que eles limpassem metade do trecho, puxei o pino de disparo e joguei a granada atrás do carro. O metal bateu no asfalto a duzentos metros de distância do carro. Longe o suficiente. Cabeças viraram. Eu caí e fui para o chão da floresta.

A explosão sacudiu as árvores. Cavalos recuaram, entrando em pânico. O aparelho não mostrou intenção de explodir.

— Proteja a máquina! —Gritou o líder. — Forma ... —Sua cabeça se sacudiu. A bala de Andrea o pegou na parte de trás do crânio e saiu logo abaixo de seus olhos, desintegrando seu rosto em um mingau de osso e carne sangrenta.

Tiros soaram como fogos de artifício estourando, eles dispararam cegamente para frente e para trás. Eu corri através dos pinheiros. Eles estavam muito próximos um dos outros para a espada. Segurei uma faca de arremesso. Outro cavaleiro caiu pelo tiro de Andrea.

Um cavaleiro apareceu. Pulou para fora da sela, apunhalei-o no rim, peguei uma mulher de um cavalo, cortei sua garganta e tirei outro homem da sela. O cano preto de uma 45 me encarou. Recuei para a esquerda. A arma explodiu. Calor roçou meu ombro. Eu o apunhalei no coração.

O cocheiro puxou as rédeas, girando a carroça. Os cavalos relinchavam e atravessaram o mato, contornando a cratera deixada pela granada. A carroça desceu correndo a estrada, saindo da zona da explosão e entrando na zona da magia, afastando-se do Jeep. Os demais cavaleiros perseguiram-na. Droga.

Um enorme leão cinza saltou para fora da floresta, barrando o caminho da carroça, quase tão alto quanto os cavalos.

A boca grande ficou boquiaberta e um rugido ensurdecedor sacudiu as árvores. Os cavalos ficaram aterrorizados. O cocheiro levantou-se e caiu, enquanto uma ferida vermelha do rifle de Andrea florescia na parte de trás de sua cabeça.

O leão se transformou, seu pêlo retrocedeu e Curran agarrou as rédeas soltas com o braço humano, acalmando os cavalos.

Metamorfos derramaram-se dos bosques, atacando os cavaleiros. — Vivo, —eu gritei. — Precisamos de pelo menos um vivo!

*

DOIS HOMENS E UMA MULHER ESTAVAM AJOELHADOS no chão, com as mãos na nuca. Ao nosso redor um campo vazio se estendia. A zona da explosão ficava a poucos metros de distância, atrás de uma banda da estrada em ruínas.

Os boudas circulavam os prisioneiros como tubarões. Eles queriam sangue. Eu queria sangue.

Curran se abaixou e pegou o maior dos homens pela garganta. O homem deixou cair as mãos, deixando os braços moles ao lado do corpo. Curran se aproximou do rosto do homem e olhou nos olhos dele.

O homem estremeceu.

— Por quê?

— Por que não? —O menor dos homens disse.

Ele não parecia um monstro. Ele parecia perfeitamente comum, assim como as centenas de pessoas na rua. Cabelo cor de trigo. Olhos azuis claros.

— Você matou uma cidade inteira, —eu disse. — Há crianças mortas deitadas na rua.

Ele olhou para mim. Seu rosto estava calmo, quase sereno. — Nós viramos o jogo, simples assim.

— Como essas crianças mortas podiam te machucar? Me esclareça.

Ele levantou o queixo. — Antes da mudança, nossa sociedade funcionava, porque para ganhar poder, você tinha que trabalhar. O sucesso era pavimentado com trabalho. Você tinha que usar sua mente e suas mãos para subir a escada, para que você pudesse viver o sonho americano: trabalhar duro, ganhar dinheiro, viver melhor do que seus pais. Mas agora, neste novo mundo, cérebros e trabalho duro não valem nada, se você não tiver magia. Seu futuro é determinado por puro acidente de nascimento: se você nasceu com magia, pode chegar ao topo sem esforço. As Proteções que estavam destinadas a manter os perigosos e desequilibrados fora do poder fracassaram. Qualquer um pode estar no comando agora. Eles não precisam ir para a faculdade certa, não precisam aprender as regras, não precisam provar que são bons o suficiente para serem bem-vindos nos círculos de poder. Tudo o que eles precisam fazer é nascer com magia. Bem, eu não tenho magia. Nenhuma uma gota. Por que eu deveria estar em desvantagem? Por que eu deveria sofrer em seu mundo? —Ele sorriu. — Não queremos matar ninguém. Tudo o que queremos é uma chance de ter as mesmas oportunidades que todos os outros. Queremos restaurar a ordem e a estrutura social. Aqueles que não podem sobreviver em nosso mundo, bem, são vítimas lamentáveis.

Os boudas rosnaram em uníssono.

Uma mulher saiu de trás de uma moita que margeava a estrada. Seu vestido sujo balançava ao redor dela, como uma bandeira suja. Veio em nossa direção, limpando o nariz com a mão suja. Um dos lobos se separou do bando e se moveu para acompanhá-la.

Inclinei-me mais perto. — Um dos seus homens atacou meu escritório e tentou matar uma criança. Minha filha. Ela não fez nada para você. Ela também é uma vítima lamentável?

O homem assentiu. — É trágico. Mas olhe para isso do meu ponto de vista: sua filha vai crescer e prosperar, enquanto eu e meus filhos seremos forçados a lutar e sofrer. Ela não é melhor que eu. Por que sua filha deveria tomar meu lugar sob o sol?

Nada que eu falasse penetraria em seu crânio, mas não consegui me conter. — Isso é bom. Eles fizeram uma boa lavagem cerebral em você. Mas no final, você é a escória. Um bandido comum pode matar um homem por dinheiro, mas você matou dezenas por uma esperança egoísta. Essa vida melhor que você espera obter para si nunca acontecerá, ou você já estaria vivendo ela, mago ou não. Você não pode pensar por si mesmo. Você quer uma desculpa para o seu fracasso e então você encontrou alguém para culpar. Se você sobrevivesse, seria sempre terra suja sob a bota de outra pessoa.

O homem levantou o rosto. — Diga o que você quiser. Sei que minha causa é justa. Vocês não nos pararão. Só acabou de atrasar o inevitável.

Ele não fez isso porque sua religião lhe disse para matar pessoas. Ele não fez isso porque não conseguiu se controlar. Ele fez por pura ganância egoísta, e ele não sentia nem um pouco de remorso por isso. Preferiria lutar contra uma horda demoníaca a qualquer momento.

A mulher nos alcançou. Ela tinha mais de trinta anos, talvez trinta e cinco. Olhei nos seus olhos e não vi nada. Um vazio doloroso. Ela não era uma ameaça. Era uma vítima.

A mulher parou e olhou para nós. — São eles? —Perguntou ela. Sua voz estava rouca. — Foram eles que fizeram isso?

— Sim, —Curran disse a ela.

Ela fungou. Seu olhar fixo nas três pessoas ajoelhadas na terra. — Eu quero minha vez com eles.

Andrea se aproximou dela.

— Eles mataram Lance, —disse ela. — Eles mataram meus bebês. Minha família inteira está morta. Eu quero uma vez.

Andrea pôs a mão no braço dela. — Senhora ...

— Vocês me dão a minha vez! —A voz da mulher começou a soluçar. Ela apertou a mão nos dedos de Andrea, tentando abri-los. — Eu não tenho mais nada, escutem! Nada. Toda a minha vida se foi. Vocês me dão esses filhos-da-puta, vocês ... —Curran aproximou-se dela. Ela ficou quieta.

— Se você esperar, —ele disse, — Prometo que vai ter a sua vez.

Ela fungou novamente.

— Vamos, —Andrea disse a ela, levando-a para o lado suavemente. — Venha comigo.

— Para onde estavam levando o dispositivo? —Jim perguntou.

O menor dos homens levantou a cabeça. — Não lhe diremos nada. Não temos medo da morte.

Curran olhou para os boudas. Uma grande hiena malhada avançou, com passos lentos e deliberados. Jezabel. Ela baixou a cabeça e olhou para os três cativos com um foco predatório sem piscar. Iria matá-los. Não sobraria muito de quem ela atacasse. Ela precisava vingar Joey. Depois que terminasse nada restaria deles.

Eu queria me juntar a ela. Queria machucá-los. Queria picá-los em pedaços, fatia por fatia, e vê-los sofrer. Mas se não tirássemos cada gota de informação deles agora, eu teria que procurar mais cadáveres.

Não. Não, isso acabava agora. Eles podem não ter medo da morte, mas tinham pavor da magia, de serem escravizados por aqueles que a usavam. Me deram todos os ingredientes para um pesadelo pessoal.

Olhei para Curran. Ele levantou a mão. Jezebel parou. Ela não queria, mas ela parou.

Me virei para Jim. — Qual deles vale menos?

Ele olhou para o homem mais baixo. — Esse parece saber mais, provavelmente é o cabeça entre os três.

Parei diante do homem mais alto. — Vamos começar com esse, então. —A antecipação do terror sempre era desesperadora. Eu queria que o homem baixinho ficasse com medo.

O prisioneiro mais alto olhou para mim. — O que você vai fazer comigo?

— Você acha que somos abominações. —Furei a palma da minha mão com a ponta da minha faca de arremesso. Uma gota de vermelho fluiu. Apertei minha mão, deixando a gota crescer. — Deixe-me mostrar a você como a magia abominável pode ser.

Bati minha mão na testa do homem mais alto. Meu sangue conectou com sua pele, e eu sussurrei uma única palavra de poder. — Amehe. —Obedeça.

Isso machucava. Queridos deuses, doía, doía como uma filha da puta, mas eu não me importava. Julie em uma cama de hospital, Ascanio rasgado e quebrado, Joey morto, cadáveres nas ruas, crianças em suas melhores roupas caídas no chão, olhando para o céu com os olhos mortos... eles nunca mais se levantariam. Eles nunca andariam, nunca ririam, nunca mais.

A raiva dentro de mim estava fervendo.

O homem congelou, a linha de magia entre ele e eu se esticou com o meu poder. Prometi a mim mesma que nunca mais faria isso de novo, mas algumas promessas tinham que ser quebradas.

— Levante, —eu disse a ele.

Ele levantou-se.

— O que você fez com ele? —A prisioneira mulher gritou, sua voz em pânico.

Curran estava me observando, seu rosto ilegível como uma laje de pedra.

— Corda. Dei ao homem um empurrão mental. O suor irrompeu na minha nuca. O dreno mágico me esmagou. Parecia que eu estava arrastando uma corrente com uma âncora no final dela.

Lentamente, ele foi até a carroça, desamarrou os nós e puxou a corda que amarrava o dispositivo. Apontei para o cabeça. — Amarre-o.

Jim agarrou os pulsos do mais baixo e o puxou para cima. O homem mais alto, comandado pelo meu poder, amarrou seu companheiro pela cintura, prendendo-o.

— Não há nada que você possa fazer que vá me fazer falar, — disse o cabeça.

A prisioneira mulher nos observava com horror.

Peguei a outra ponta da corda e mostrei para o homem maior. — Pegue.

Ele apertou a ponta da corda.

Olhei para os metamorfos. — Ele vai precisar de ajuda.

Jezebel voltou à pele humana e pegou a ponta da corda. Boa. A mudança a cansaria. Ela estava muito agitada. Precisava queimar um pouco dessa energia.

— Saiam da frente.

Os metamorfos se separaram. O cabeça estava sozinho.

Respirei fundo. — Ahissa. — Fugir.

O choque da palavra de poder quase me pôs de joelhos.

O cabeça gritou, um grito agudo cheio de medo animalesco e atordoante, e correu.

À esquerda, uma das boudas correu em pânico, apanhada pela borda da magia.

A corda se esticou. O homem caiu e arranhou a terra, chutando, tentando nadar para longe através de terra firme. Seu amigo maior o segurando na ponta da corda, uma expressão vazia no rosto. O cabeça afundou no solo, arranhando-o repetidas vezes, tentando fugir, uivando em frenesi histérico. Os metamorfos observavam-no com rostos de pedra.

— Quanto tempo dura? —Perguntou Curran.

— Quinze segundos ou um pouco mais.

Segundos que não acabavam mais. Finalmente o homem parou de cavar, seus gritos se transformaram em soluços histéricos fracos, ecoados pela mulher chorando atrás de mim. Seus dedos estavam ensanguentados, as unhas arrancadas. Eu fechei a distância entre nós e me inclinei sobre ele. Ele olhou para cima, lentamente, com os olhos cheios de ecos de pânico.

— Eu aposto que as pessoas de Palmetto teriam gritado também, se você tivesse dado uma chance, —disse suavemente.

— O que você acha de fazemos de novo? Aposto que posso deixar seu cabelo grisalho antes do almoço.

O homem se afastou de mim e ficou de pé. Ele conseguiu uma boa arrancada por cerca de três metros, mas a corda se esticou e puxou-o para baixo. Jezebel agarrou-o e puxou-o para trás, arrastando-o pelo chão.

— Não! —O homem lamentava. — Eu vou te dizer qualquer coisa, qualquer coisa!

Não demorou muito afinal de contas. Preparei-me e soltei outra palavra de poder. — Dair. —Livre.

O homem maior caiu no chão, sua mente subitamente livre. Por um segundo ele ficou sentado ali, com uma expressão triste e abandonada no rosto, e depois desmaiou, enrolando-se em uma bola e berrando como uma criança perdida.

— Eles são todos seus, —eu disse a Jim, e me forcei a caminhar até o Jeep. Cada passo levava um grande esforço.

Alguém tinha enchido meus sapatos com chumbo enquanto eu não estava olhando?

Nós vencemos. Custou centenas de vidas humanas, mas nós vencemos. Tínhamos o dispositivo. Golpearíamos os Guardiões. Talvez eu pudesse esperar pelo tempo e Julie iria sobreviver.

— Estamos construindo outro! —O homem atrás de mim gritou através dos soluços.

Os pequenos cabelos na parte de trás do meu pescoço se levantaram. Eu me virei devagar.

Ele se encolheu no chão. Curran se inclinou para ele. Seu rosto ilegível, sua voz quase casual. — O que disse? Explique isso.

— Nós tínhamos um homem, um homem infiltrado. —As palavras do homem saíam rápido demais, caindo umas sobre as outras. —Ele copiou os planos do engenheiro. Nós estamos construindo há semanas. Só precisávamos de um protótipo funcional para ajustá-lo. O nosso é três vezes maior que este.

Dane-se tudo para o inferno.

— Alcance? —Perguntou Curran.

— Oito quilômetros, —o homem gaguejou.

Poder suficiente para acabar com tudo, desde o centro da cidade até o Druid Hills. Eles poderiam matar a maior parte da cidade. Tudo o que eles precisavam era de uma forte onda mágica.

Curran apontou para Jim. — Diga àquele homem tudo que você sabe. Localização, hora, nomes, tudo.

Jim agarrou o homem pela garganta. Seus lábios se separaram em um sorriso feroz. — Não guarde nada para você.

— Barabas! —Curran rugiu.

O mangusto saiu do bando. Quarenta e cinco quilos, envoltos em pele avermelhada, Barabas abriu a boca cheia de dentes afiados e lambeu suas presas. As estreitas pupilas horizontais cortavam suas íris cor de coral ao meio, fazendo-o parecer demoníaco.

— Eu preciso de você humano, —ordenou Curran.

Pele abriu, desmanchando. Um momento e Barabas estava na frente de Curran, nu, seus olhos ainda brilhando de loucura. — Senhor?

— Chame o Conclave.

O Conclave começou como um encontro trimestral entre o Bando e a Nação, oficializado por uma festa neutra, geralmente alguém da Academia dos Magos, e realizado no Bernard's, um sofisticado restaurante de Northside. Isso deu ao Bando e a Nação uma chance de resolver problemas antes que as coisas saíssem de controle. Nas últimas duas vezes, representantes de outras facções participaram para resolver seus próprios problemas. Eu havia assistido a apenas um até agora, porque a reunião durante o feriado de Natal havia sido cancelada por mútuo acordo.

— Devo agendar isso no Bernard's? —Perguntou Barabas.

— Não. Lá. Curran apontou para uma churrascaria solitária do Western Sizzlin, cravada em uma colina baixa. O prédio era todo de vidro e pedra. As altas janelas davam para a cidade. Para chegar ao local, os líderes das facções teriam que atravessar o cemitério que era Palmetto.

— Quando?

— Daqui a quatro horas. O pôr-do-sol é às seis. Eu quero que eles vejam a cidade. Convide os magos, os druidas, as bruxas, os mercenários, os nativos, a herança nórdica. Convide todos.

— Exceto a Ordem dos Cavaleiros de Ajuda Misericordiosa, — acrescentei. — Os Guardiões podem ter se infiltrado na Ordem.

Curran assentiu.

— E se os policiais restringirem o acesso à área? —Perguntou Barabas.

O ouro rolou nos olhos de Curran. — Compre o lugar. Eles não podem restringir o acesso ao nosso próprio terreno. Vá.

Barabas saiu correndo.

— O Volhvs tem o engenheiro, —eu disse. — Precisamos de acesso. Eu preciso fazer alguns telefonemas.

— Vou levá-la, —disse Curran.

Nós caminhamos para o carro. Eu estava tão cansada que mal conseguia me mexer.

— Curran?

— Sim?

Hoje foi aparentemente o dia para descobrir o que o acasalamento comigo realmente significava. Balancei a cabeça para os homens.

— Um deles tem meu sangue na testa. O sangue deve ser destruído ou pode me denunciar se alguém investigar a origem.

Curran me deu um olhar geralmente reservado para as crianças pequenas. — Alguém teria que encontrar os corpos, primeiro.

Atrás dele, os sons de boudas enfurecidos rasgavam o silêncio, seguidos por uma cacofonia de gritos.

— Nesse caso, corte a cabeça, —eu disse.

Curran me deu uma olhada como se eu fosse idiota.

— Meu pai fez os malditos vampiros. Eu não sei o que meu sangue fará com um corpo morto. Corte a cabeça do cara antes de enterrá-lo.

— Devo encher sua boca com alho?

— Curran!

— Tudo bem, —disse ele. — Cuidarei disso.

Entrei no carro e caí contra o banco. O cansaço me pegou de jeito. Eu estava pendurada por um fio e agarrei-o, tentando desesperadamente ficar acordada. Estava acostumada a me desgastar, mas três palavras de poder seguidas equivaliam a um montão de magia saindo muito rápido.

Os gritos continuaram, mas estava tão fraca que não podia pegar minha fatia da torta de vingança. Apenas sentei lá e ouvi os gritos deles. Finalmente os uivos morreram. Curran se aproximou do carro e entrou no banco do motorista. — Está feito.

A mulher do vestido sujo tropeçou em nosso campo de visão. Suas mãos estavam sangrentas. Ela balançou, limpou o vermelho pingando de seus dedos em seu vestido, forçou seu caminho através das velhas ervas secas para a estrada, e continuou indo, de volta para a cidade.

— Ela teve sua vez, —disse Curran.


Capítulo 19


CURRAN ORDENOU QUE O BANDO FOSSE EMBORA. Sentei-me no assento do passageiro, observando a floresta passar. Andrea e Jim pegaram um veículo diferente, ele queria lhe fazer algumas perguntas sobre os Guardiões.

A magia tinha caído logo depois que terminamos de enterrar os corpos, e o zumbido constante do motor a gasolina colocou meus dentes na borda. Havia algo de entorpecente nisso, isso evocava imagens de ruas cheias de corpos. Não tínhamos ideia de onde o segundo dispositivo seria ativado. Eles poderiam extirpar toda a Fortaleza de seis quilômetros de distância. Nós nunca saberíamos o que nos atingiu.

Paramos em uma loja no caminho e eu fiz quatro telefonemas. Um para Roman, para informá-lo de que, a menos que os Volhvs entregassem Adam Kamen às três da tarde no Western Sizzlin, eu os crucificaria no Conclave. Queria uma chance com Kamen antes do resto de Atlanta. A segunda ligação foi para Evdokia para que ela soubesse o que eu estava fazendo sobre o Volhvs e que, se ela quisesse vir e sentar neles, eu não me importaria. Em seguida, liguei para a Fortaleza para falar com Doolittle. A notícia era a mesma. Nenhuma mudança. Agradeci e disse a ele para enviar Derek com o cajado do Volhv para o Western Sizzlin. A quarta ligação foi para Rene. Ela não gostou do que eu disse e quando ela descobriu que a coisa toda seria aberta no Conclave, gostou menos ainda.

— Quando eu contratei você, esperava discrição. —O telefone clicou e pequenos ruídos abafaram o som, ela me colocou no viva-voz.

— Quando você me contratou, esperava honestidade. Você me disse que não fazia ideia do que o dispositivo de Kamen fazia, mas ele testou o protótipo na floresta. Você me disse que ele não tinha visitantes, quando um dos investidores foi vê-lo em várias ocasiões.

Houve uma pequena pausa e, em seguida, a voz de Rene disse: — Do que ela está falando?

O barítono de Henderson respondeu. — Sinto muito, capitã.

— Sinto muito pelo que, sargento?

— Foi uma ordem vinda de cima.

A voz cortada de Rene estalou como um chicote. — Esta conversa não está terminada. —Então ela falou ao telefone novamente. — Kate?

— Você tem duas opções: ou você vai ao Conclave e ajuda, e nós ignoramos o fato de que você estava guardando o criador do Dispositivo do Juízo Final que está prestes a matar todos nos limites da cidade e depois o perdeu bem debaixo do seu nariz, ou você não aparece, e eu vou fazer a sua caveira. —Isso mesmo, eu vou jogar sua bunda bem debaixo do ônibus. Me observe.

— Nós vamos estar lá, —Rene desligou.

Agora estávamos de volta à estrada, indo em direção à churrascaria, e eu estava lutando contra o fantasma do medo da morte de Julie.

Curran enfiou a mão no porta-luvas e tirou um rolo de notas gastas. Ele arrancou um dólar e me entregou.

— Pelo que?

— Um dólar por seus pensamentos.

— O preço usual é um centavo, não um dólar. Se eu soubesse o quanto você administra mal seu dinheiro, teria reconsiderado essa coisa toda de acasalamento.

— Eu não preciso pechinchar. —Ele segurou o dólar na minha frente. — Olha, aqui está um belo dólar. Me diga o que está se passando na sua cabeça.

Peguei o dólar de seus dedos. Era velho. A tinta tinha desaparecido tanto que mal consegui ver.

— Você pegou o dinheiro. Agora diga.

— Todas aquelas pessoas não significavam nada para eles. Os Guardiões mataram uma cidade inteira por essa promessa de um futuro melhor. Em um mundo sem magia apenas o merecedor subiria ao topo? Mesmo? Eles não leram livros de história?

— Eles são fanáticos, —disse Curran. — É como esperar sentimentos humanos de uma rocha caindo. Ela não vai ter um ataque de compaixão e resolver não abrir seu crânio.

— Eu posso envolver minha mente em torno de demônios ou rakshasas odiando qualquer coisa humana, mas os Guardiões são pessoas. Um bandido rouba alguém por dinheiro. Um psicopata mata porque que não tem controle sobre isso. Eles estão cometendo assassinatos em massa sem nenhum ganho imediato. —Eu olhei para Curran impotente. — Como você pode fazer isso com seus vizinhos? Eles teriam que matar milhões de pessoas e para quê? É desumano.

— Não, é humano, —disse Curran. — Esse é o problema. Pessoas, especialmente pessoas infelizes, querem uma causa. Eles querem pertencer a algo, ser parte de algo grande e maior e ser liderado. É fácil ser uma peça em uma máquina: você não precisa pensar, não tem responsabilidade. Você está apenas seguindo os comandos. Fazendo o que te mandam.

— Não entendo porque tanto ódio a tantas pessoas. Não me entenda mal. Eu quero matar todos os guardiões que eu puder encontrar. Mas não por ódio. Por vingança, justiça.

Curran se inclinou e apertou minha mão. — Nós vamos encontrá-los.

Dirigimos em silêncio.

— Por que você se segura? —Ele perguntou.

Eu olhei para ele.

— Você nunca solta, —disse ele. — Você pode fazer toda essa magia, mas nunca a usa.

— Por que não mata todos os homens que te incomodam e estupra todas as mulheres que acha atraente? Você pode, você é poderoso o suficiente.

Seu rosto endureceu. — Primeiro, porque isso é errado. É o completo oposto de tudo que eu defendo. A pior coisa que aconteceu comigo, aconteceu porque alguém fez exatamente o que você descreveu. Os loups assassinaram meu pai, tiraram minha mãe e minha irmã de mim, destruíram minha família e minha casa. Por que eu me permitiria me tornar isso? Eu acredito em autodisciplina e ordem, e espero dos outros tais como esperam isso de mim. Segundo, se eu matasse e violasse aleatoriamente pessoas de acordo com meus caprichos, quem diabos me seguiria?

— Meu pai assassinou minha mãe. Não era o objetivo, mas isso não muda as coisas. Roland queria me matar. Por causa dele, minha mãe fez um feitiço que aprisionou a mente de Voron, obrigando-o a cuidar de mim. Por causa dele eu não tive infância e me tornei isso.

— Isso o quê?

— Uma assassina treinada. Eu gosto de lutar, Curran. Preciso disso. É uma função vital da minha existência, como respirar ou comer. Estou seriamente fodida. Toda vez que uso a magia de Roland, dou um passo mais perto de ser ele. Por que eu me permitiria me tornar isso?

— Não é o mesmo, —disse Curran. — Loupismo é perda de controle. Praticar magia é aperfeiçoar suas habilidades.

— Conquistar a mente de alguém me faz sentir como se estivesse nadando em um esgoto. Pelo que me lembro, certa vez que fiz isso, algum alfa autoritário insistiu em me fazer entender as consequências disso enfiando-as pela minha garganta.

Mastigue isso, seu grande alfa autoritário...

— Eu te dei um protetor.

Eu balancei a cabeça. — Eu não quero fazer isso de novo, a menos que seja necessário. Além disso, é uma magia limitada. Posso fazer a pessoa realizar tarefas físicas básicas, mas não posso forçá-la a me dizer o que ele sabe. Se não consigo imaginar, não posso obrigá-lo a fazer isso.

— É mais fácil se o fizer mais frequentemente?

— Sim. Dizer uma palavra de poder me nocauteava. Agora só me dói como o inferno. Posso usar duas ou três seguidas agora, dependendo da quantidade de magia que ponha nelas. —Encostei-me a assento. — Sei o que você está pensando. Magia é como qualquer outra coisa, você melhora com a prática.

Fechei meus olhos. Uma visão da minha tia morta na neve sangrenta brilhou diante de mim. — Antes da morte de Erra, ela falou comigo. Ela disse: Viva o suficiente para ver todos que você ama morrer. Sofra ... Como eu.

— Por que você está deixando a mulher morta foder com a sua cabeça? —Ele perguntou.

— Porque eu não acho que algum dia me tornarei Roland. É quase impossível. Mas me dê tempo suficiente e eu poderia me transformar em Erra. —Lutar com ela era quase como lutar comigo mesma.

— E toda vez que eu me transformo em um animal, tenho uma pequena chance de esquecer que sou humano. Toda vez que eu me curo ou uso uma força maior, tenho uma chance de virar loup.

O que é isso? Competição de te ‘mostro minhas cicatrizes se você me mostrar as suas?’ Se ele quiser jogar o estranho jogo dos poderes, eu venceria a bunda dele.

— Eu posso pilotar vampiros.

Curran olhou para mim. — Desde quando?

— Desde que eu tinha cinco anos.

— Quantos de cada vez?

— Você se lembra da mulher que matamos quando caçamos o upir? Olathe? Lembra-se da horda de vampiros no teto?

Ele olhou para mim.

— Eu estava segurando eles no lugar, —disse a ele.

— Havia pelo menos cinquenta mortos-vivos no teto, —disse Curran.

— Eu não disse que não doeu. Não pude fazer muito com eles. Com tantos, você tem que moldá-los em um todo. Como um enxame. —Olhei seu rosto. Está assustado, bebê?

— Então você poderia matar um vampiro com sua mente?

— Possivelmente. O mais fácil seria apenas bater a cabeça dele contra uma pedra. Eu quase não tenho prática, então não tenho nenhuma habilidade ou finess, é mais um desafio de poder. Se você tiver uma guerra com a Nação, Ghastek terá uma surpresa.

Curran franziu a testa. — Por que não praticar?

— Pilotar a cabeça de um morto-vivo deixa a assinatura da sua mente. Alguém como Ghastek poderia tirar a minha imagem da cabeça do vampiro morto se sua morte foi recente. Então eu teria que responder perguntas interessantes. Quanto menos perguntas, melhor.

— Alguma outra surpresa? —Perguntou Curran.

— Eu posso comer maçãs da imortalidade. Minha magia é antiga demais para ser afetada por elas, então é como comer uma maçã comum. Você também pode. Eu fiz uma torta de maçãs da imortalidade uma vez para você.

— Aaaa. Certo, da próxima vez que você decidir colocar maçãs mágicas na minha torta, eu quero ser notificado disso antes de comê-la.

— Você gostou.

— Estou falando sério, Kate.

— Como você desejar, Sua Majestade.

Nós ficamos em silêncio.

— A zona de explosão transformou os metamorfos em forma de guerreiro em humanos, —eu disse.

Curran assentiu. — É preciso magia para manter a forma de guerreiro.

— E se a gente trouxesse Julie para isso? O vírus desapareceria. Ela ficaria bem, certo?

O rosto de Curran deslizou em sua expressão de Senhor das Feras. — Péssima ideia.

— Por quê?

— Carlos conseguiu mudar novamente depois que saiu da zona, o que significa que não destrói o vírus, apenas neutraliza os seus efeitos. No momento em que Julie saísse da zona, ela a atingiria de uma só vez. Isso é uma garantia de loupismo instantâneo. Além disso, lembra como Julie estava quando a trouxemos?

Minha memória lembrava de restos de um corpo: uma mistura de pele, pêlo, músculos expostos e ossos nus, e um rosto grotesco.

— Eu lembro, —disse com os dentes cerrados.

— Ela está viva apenas porque o Vírus-L a sustenta. Um corpo humano normal não pode suportar tanto dano. Você a move para a zona, toda a regeneração dela desaparecerá. Ela morreria rapidamente e com muita dor.

Eu olhei pela janela.

— Sinto muito, —disse Curran.

— Ela não vai conseguir, não é?

Curran exalou devagar. — Você quer que eu minta para você?

— Não.

— Existe uma maneira de calcular a probabilidade de loupismo, —disse Curran. — É chamado Número Lycos. Um metamorfo comum tem dez Unidades de Vírus por Amostra de Sangue. Não sei exatamente como as Unidades são determinadas, mas Doolittle pode explicar isso para você. O nível da Unidade flutua à medida que os níveis de vírus sobem e descem no corpo de um metamorfo. Um metamorfo em forma intermediária agitado pode mostrar doze Unidades de Vírus, um metamorfo em uma luta pós-lesão pode mostrar dezessete ou dezoito. O número não é o mesmo para todos. Por exemplo, Dali mostra dezesseis Unidades em repouso e vinte e duas quando agitada. Sua regeneração é muito alta.

Eu arquivei isso para referência futura.

— Depois, temos o Coeficiente de Mudança. Um loup não consegue manter uma forma humana completa ou uma forma animal completa, —continuou Curran. — Eles não podem mudar completamente. É aí que fica complicado. Um metamorfo é considerado normal quando em forma animal ou humano tem Coeficiente de Mudança igual a um (1). Quando o metamorfo começa a mudar de forma, o Coeficiente muda. Suponha que você esteja se transformando de humano para animal. Quando você muda vinte por cento do seu corpo para animal e o resto permanece humano, seu Coeficiente de Mudança é dois. Trinta por cento, três. E assim por diante, até nove. Quando você se transforma cem por cento, você volta para um. Entendeu?

— Sim.

— O Número de Lycos90 é o produto do Coeficiente de Mudança multiplicado pela as Unidades de Vírus, multiplicado pelo Tempo, que se leva para mudar completamente. Vamos pegar Dali como exemplo. Ela pode mudar completamente em menos de três segundos ou em minutos, zero ponto zero cinco. Seu Número Lycos é um (1) multiplicado por dezesseis, multiplicado por zero ponto zero cinco minutos (0.05). Seu Número de Lycos é zero ponto oito (0.8). Qualquer coisa abaixo de duzentos e setenta (270) é segura. Mais de mil (1000) é uma garantia de lupismo. Dali não vai loupar tão cedo ou tão facilmente.

— Qual é o Número de Julie?

Curran olhou para mim. — Julie está flutuando entre trinta e dois a trinta e três Unidades de vírus. O Coeficiente de Mudança dela é de seis ponto cinco (6.5) e ela está nisso há dezesseis horas.

Deus querido, eu preciso de uma maldita calculadora.

— Doze mil quatrocentos e oitenta (12.480), —disse Curran. — Costumamos parar de contar depois de uma hora, quando não há mudanças significativas.

Doze vezes acima do limite do loupismo. Minha mente lutava para aceitar isso. Eu sabia o que ele estava dizendo, estava bem ali, simplesmente não conseguia me forçar a acreditar.

A realização me atingiu como um soco. — Quando você soube?

Sua voz estava rouca. — Quando chegamos, Doolittle determinou seu número de Unidade. Levamos quarenta e cinco minutos para chegar à Fortaleza. Ela havia começado a transformação pelo menos quinze minutos antes. Eu sabia que, a menos que ela mudasse na primeira hora e o seu Número de Unidade estivesse abaixo de vinte, suas chances seriam reduzidas em três quartos.

Meu coração martelou como se estivesse correndo a toda velocidade. — Eu ouvi falar que as primeiras transformações levam horas.

Ele assentiu. — Quando o número de vírus é baixo no sangue é possível. Isso acontece quando entra no corpo, durante a infecção, uma quantidade de vírus insuficiente ou algo está inibindo esse vírus. Assim você pode ter alguém com cinco Unidades em seu sangue, por exemplo. Um ritmo de mudança em uma hora de vinte por cento, ou seja, Coeficiente de Mudança dois, vamos ter cinco multiplicado por dois, multiplicado por sessenta que é igual a o Número Lycos de seiscentos. Então o vírus floresce e ocorre a mudança.

Estava-me agarrando a um ferro em brasas. — E Andrea? Durante o surto ela estava em uma mudança parcial por pelo menos duas horas.

— Andrea tinha um objeto em seu corpo que interferia com a sua mudança. Depois de retirá-lo, levou meia hora para reconstruir o vírus e mudar de forma completa.

Droga. — Então, por que se preocupar com a sedação? — Doolittle deve ter feito isso por um motivo. Ele deve ter algum vislumbre de esperança.

Curran estendeu a mão e cobriu a minha mão com a dele. — Não é para ela. É para você. Doolittle está usando todas as suas habilidades para mantê-la viva e confortável. Ele está dando tempo para você aceitar isso ...

Olhei para a estrada através do para-brisa. Eles estavam esperando até eu desistir e concordar em colocar minha filha fora de sua miséria.

Curran continuou falando. — Eu a trouxe enrolada, então ninguém, exceto nós dois, Doolittle e Derek, sabem o quanto ela está ruim. O garoto não dirá nada. —Suas mãos agarraram o volante, os nós dos dedos brancos. Seu rosto estava calmo, sua voz completamente equilibrada e medida, quase reconfortante. Ele deve ter esperado que eu desmoronasse, porque ele trancou suas emoções dentro, afirmando o controle absoluto sobre si mesmo. — Julie não está com dor. Ela está dormindo. Você pode levar o seu tempo. Eu sei o quanto ela significa para você. Você se importa com ela. Às vezes pode ser muito difícil e quando for muito difícil, estarei aqui. Vou ajudá-la se precisar de mim.

— Por favor, pare o carro.

Ele parou. Os arredores de Atlanta há muito tempo sucumbiram ao massacre da magia. Ruínas rodeavam a estrada dos dois lados. O longo trecho da estrada estava deserto.

Saí do carro e marchei para o desmoronamento de algum prédio antigo, queimado por dentro, com as paredes pretas e cobertas de kudzu91 morto. Eu não sabia para onde estava indo. Só tinha que estar em pé, então eu andava de um lado para o outro, uma parede para a outra.

Curran me seguiu para dentro e parou na abertura na parede. Ele não disse nada. Nada precisava ser dito.

Andei de um lado para o outro. Tinha que haver alguma coisa, de alguma forma. A morte era para sempre, mas Julie ainda estava viva.

— Não consigo tirar da minha cabeça que se tivesse chegado vinte minutos antes, nada disso teria acontecido. Eu queria poder ... —Cerrei meus punhos.

— Matar Leslie novamente?

Olhei para ele e vi minha própria raiva refletida em seus olhos. Ele queria matar Leslie também. Ele tinha imaginado em sua cabeça mais de uma vez. As nossas mentes não conseguiam entender porque ela tinha se transformada em Guardiã.

Girei no meu pé, fazendo uma curva na parede. — Leslie poderia ter me mordido o tanto que quisesse. Eu ficaria com uma leve febre e mais nada ...

Uma luz acendeu no meu cérebro. Parei. Meu sangue comia Vírus-L no café da manhã e mastigava o vampirismo como sobremesa.

Curran estava certo. Julie estava pendurada por um fio. Uma transfusão direta do meu sangue a mataria.

— O quê? —Perguntou Curran.

Mas meu sangue poderia matar o Vírus-L. Isso poderia ser feito porque Roland havia feito isso antes. Apertei meu cérebro. Eu conhecia a essência geral da história, mas minha memória não armazenava detalhes. Precisava saber exatamente o que Roland havia feito. Onde eu li sobre isso? Não, espere, eu não li, ouvi. Se fechasse os olhos, poderia me lembrar da voz medida de uma mulher recitando as palavras.

Elias. É isso! As Crônicas de Elias, o Incrédulo. As Crônicas não puderam ser escritas, elas tinham que ser recitadas e passadas de memória. Quem na cidade os conheceria? Quem ...

Os rabinos. O templo era a minha melhor aposta.

Olhei para Curran.

— Você pode me levar para o templo?

Ele levantou a mão e me mostrou as chaves do carro.

*

CURRAN CONDUZIU ATÉ A RUA DO TEMPLO. À direita, restos de casas, pouco mais do que destroços de tijolos e pedras, invadiam a calçada. Atrás deles, o Unicorn Lane rugia, como uma ferida no corpo de Atlanta, sangrando magia crua mesmo no meio de uma onda tecnológica. Coisas hediondas se escondiam ali, em meio a arranha-céus decaídos, selvagens e famintos, torcidas pela própria magia que as sustentava, envenenadas pelo esgoto e comendo presas contaminadas.

O Unicorn lambia as paredes meio quebradas, deixando longos fios amarelos de musgo em seu rastro.

Eles brilhavam na estrutura metálica exposta das casas devastadas pela magia, alimentando-se de ferro e escorrendo lodo corrosivo, anunciando o avanço do Unicorn. O Templo ficava no final da rua, ao lado do Unicorn, e os rabinos o haviam protegido para permitir acesso seguro à sinagoga. Postes de luz vigiavam a rua, cada um decorado com mezuza92, pequenas caixas de estanho gravadas com a letra Shin93. Cada mezuza continha um pergaminho inscrito com versos sagrados da Torá. O conselho da cidade tentava conter o Unicorn Lane por décadas. Continuava crescendo, expandindo-se como um câncer, apesar de tudo o que a cidade havia feito. No entanto, aqui, os rabinos silenciosamente seguraram-no de volta sem qualquer alarde ou dificuldade.

— Quem era esse Elias? —Perguntou Curran.

— Ele era um pedreiro na Flórida. Era uma espécie de pau para toda obra, um faz tudo. Fazia qualquer coisa que viesse e do seu jeito: carros quebrados, pequenos reparos, mas principalmente construção de casa. Algo deve ter acontecido, porque de uma hora para outra um homem que tinha uma esposa e um filho e estava fazendo negócios o suficiente para pagar as contas, começou a beber. E não apenas beber de qualquer jeito, ele bebia muito. Eventualmente sua esposa o deixou.

— Grande história, —disse Curran.

— Fica melhor. Todo fim de semana, Elias pegava seu salário, ia até o bar local e fazia o possível para beber até a morte. Quando ele ficava bêbado o suficiente, começava a delirar. Às vezes ele cuspia pedaços da Bíblia, palavra por palavra ou dizia fábulas estranhas em outras línguas. As pessoas praticamente o julgaram como um lunático completo. Certa noite, um rabino estava em um bar. Ele ouviu Elias falar seus delírios e percebeu que estava ouvindo uma seção do Sefer ha-Kabod, que é um texto do século XII escrito por Eleazar de Worms, um dos mais importantes cabalistas hebreus. Elias era funcionalmente analfabeto. Ele mal podia escrever seu próprio nome.

Curran assentiu. — É como uma criança no jardim de infância, de repente, soltar a Ilíada em grego antigo.

— Exatamente. Então o rabino ficou na cidade por uma semana e pagou a Elias para continuar a tagarelar enquanto ele o gravava. No final da semana, Elias terminou seu último discurso e morreu.

— De que?

— Falência múltipla de órgãos. Ele parou de respirar. Depois de dezoito horas de gravação. Algumas delas eram pura tolice e outras eram proféticas. Nas gravações, há cerca de duas horas de fábulas. Todas as fábulas são sobre Roland.

Curran olhou para mim. — Sério?

— Sim.

— Por que você não possui uma cópia deste livro?

— Essa é a melhor parte da história. Você não pode transcrever as gravações. Toda vez que tentam escrever, a próxima onda mágica apaga-os. As pessoas tentaram escrevê-las e colocá-las até mesmos em caixas de chumbo. Não funciona. Magia atinge, as palavras desaparecem. Mesmo copiar as gravações não funciona na maioria das tentativas. O templo é a maior sinagoga do Sudeste. Se eles não tiverem uma cópia das fitas, alguém deve ter ouvido e memorizado.

Curran espiou pelo para-brisa. — Que diabo é isso?

Eu olhei para frente. Um enorme golem de barro bloqueava a estrada. A metade superior do golem era esculpida em um corpo humano musculoso, em cima um rosto de um homem com uma longa barba. A metade inferior era um enorme carneiro, completo com quatro patas e uma cauda. O golem brandia uma lança de metal alta. Parecia congelado no meio do caminho, o pé esquerdo levantado do chão, a lança balançando como se o golem estivesse fazendo uma curva.

— É um dos guardas do Templo. Por favor Curran, não derrube isso. Eu estou no gelo fino com o Templo.

Curran freou. O veículo parou lentamente. O golem não se mexeu. A magia estava ausente no mundo.

Sem isso, o protetor do templo era apenas uma estátua de barro.

Curran encolheu os ombros. — Eu acho que daqui nós vamos a pé.

O Templo ficava no final da estrada, uma sólida estrutura de tijolos vermelhos com uma coluna branca, ladeada por alguns prédios de serviços públicos e uma parede decorada com nomes suficientes de anjos e símbolos mágicos para deixar qualquer um tonto. Atravessamos o pátio e subimos a escada branca até a área da recepção. A mulher atrás do balcão me viu e empalideceu. O espelho atrás dela mostrava o nosso reflexo: ambos estávamos sujos de sangue e sujeira. Uma grande mancha vermelha marcava o moletom de Curran sobre o peito, ele havia levado uma bala logo abaixo da clavícula. Vírus-L curaria o dano, mas eu tive que puxar a bala para fora e a ferida sangrou depois que ele colocou o moletom. Minha gola verde-clara estava salpicada com algo que parecia suspeitamente com o cérebro de alguém, e uma grande impressão de uma mão ensanguentada marcava meu estômago, onde os dedos de alguém tinham claramente se arrastado sobre o tecido.

— Senhor das Feras e sua Consorte, para ver o rabino Peter, — disse Curran.

A mulher piscou algumas vezes. — Pode aguardar um momento?

— Certo.

Curran e eu nos sentamos nas cadeiras. A recepcionista falou em voz baixa ao telefone e desligou.

Curran se inclinou para mim. — Você acha que ela está chamando a polícia?

— Eu chamaria.

— Só avisando, não estou com nenhuma vontade de ser preso e, se eles tentarem, não vão gostar.

Por que eu?

Peguei uma cópia de um livro de receitas da mesa lateral e folheei. Rugelach de chocolate94.

Hmmm Chocolate, açúcar, amêndoas ...Curran pode gostar disso.

— Nós os vendemos, —disse a recepcionista, com a voz hesitante. — São receitas da congregação. Gostaria de comprar uma cópia?

Eu olhei para Curran. — Você tem algum dinheiro?

Ele enfiou a mão no bolso e tirou um rolo de dinheiro. — Quanto é?

— Dez dólares.

Curran folheou as notas.

Eu me inclinei para ele e sussurrei: — O que você está fazendo?

— Procurando por uma que não esteja manchada de sangue. Aqui. —Ele tirou uma nota de dez dólares.

Ofereci à recepcionista. Ela pegou o dinheiro com cuidado, como se estivesse quente, e me deu um pequeno sorriso. — Obrigada.

— Obrigada pelo livro.

Curran olhou para o corredor. Alguém estava vindo. Um momento depois eu também ouvi, um rápido bater de pés. O rabino Peter entrou no saguão. Alto e magro, com cabelo curto, barba curta e bem aparada e óculos grandes, o rabino Peter deveria parecer um professor universitário. Mas havia algo em seus olhos; eles transbordavam de curiosidade e excitação e, em vez de um acadêmico envelhecido, o rabino Peter parecia um jovem estudante ansioso.

Ele nos viu e fez uma pausa.

Nós nos levantamos.

O rabino Peter pigarreou. — Hum ... bem-vinda! Bem-vindo, o que posso fazer, ééé, você, Kate e, eh ... me desculpe, eu não sei como devo lhe chamar.

Os olhos de Curran acenderam. Se ele dissesse ao rabino para chamá-lo de Sua Majestade, poderíamos beijar a cooperação e dar adeus ao Templo.

Curran abriu a boca.

Dei uma cotovelada no lado dele.

— Curran, —disse ele, exalando. — Curran vai servir.

— Maravilhoso. —O rabino ofereceu-lhe a mão. Curran sacudiu e depois fiz o mesmo.

— Então, o que posso fazer por vocês?

— Você está familiarizado com Elias, o Incrédulo? —Perguntei.

— Claro. Aqui, por que não vamos ao meu escritório? Nós estaremos muito mais confortáveis lá.

Seguimos o rabino pelo corredor. Curran esfregou o lado e me lançou um olhar maligno. Murmurei — Comporte-se, —para ele. Ele revirou os olhos.

O rabino nos levou a um escritório. Estantes de livros cobriam as paredes do chão ao teto e ao redor de uma única e grande janela que parecia ter sido cortada entre os livros.

— Por favor, sente-se. —O rabino sentou atrás de sua mesa.

Nós nos acomodamos nas duas cadeiras disponíveis.

— Vocês gostariam de qualquer coisa, chá, água?

— Não, obrigada, —eu disse.

— Café, preto, se não for demais, —disse Curran.

— Claro! Sem problema. —O rabino levantou e tirou duas xícaras e uma garrafa térmica de um armário. Destampou a garrafa, serviu a bebida preta nas xícaras e ofereceu uma a Curran.

— Obrigado. —Curran bebeu. — Café bom.

— Obrigado, aprecie. Então Elias, o Incrédulo. Em qual parte em particular você está interessada, ou é a coisa toda?

— Precisamos de uma certa fábula, —eu disse a ele. — O homem na montanha e o lobo.

— Ah sim, sim, sim. Uma peça muito filosófica. Em essência, o homem na montanha encontra um lobo que quer se livrar de sua selvageria. O homem o transforma em um cachorro através do compartilhamento de seu sangue. Existem várias interpretações. Acreditamos que quando Deus criou Adão e Eva, ele os fez usando sua própria essência, essa essência, Neshama, que significa ‘respiração’, é o que separa os seres humanos dos animais. Na fábula, o lobo é feroz. Ele não tem alma e, portanto, é consumido pela raiva. O homem compartilha seu sangue com o lobo, forjando uma conexão constante entre eles, assim como Deus sopra uma alma em cada homem e mulher. Desde que é a nossa alma que nos dá a nossa consciência e nos leva além dos instintos animais, o lobo se torna um cão que seguirá para sempre seu mestre.

Peter deslizou os óculos pelo nariz. — Há uma segunda interpretação, baseada nos ensinamentos de Maimônides, que acreditavam na necessidade de equilíbrio. De acordo com Maimônides, a pessoa deve sempre andar na Estrada do Rei, mantendo-se longe dos extremos, nem se entregando completamente às emoções, nem as rejeitando completamente. O lobo feroz caminha pelo extremo do caminho, é selvagem. Então para encontrar esse equilíbrio ele se liga ao homem, tornando-se um cachorro. O cão ainda mantém sua selvageria primitiva, mas sua raiva agora é domada. Você estava procurando por uma interpretação particular?

— Estávamos procurando as palavras exatas. Por acaso você tem uma cópia da gravação aqui no Templo?

— Infelizmente, nós não temos.

Droga.

O rabino Peter sorriu. — Mas acontece que eu estudei as gravações extensivamente. Elias é minha área de estudo. Memorizei toda a gravação, então se tiver alguns minutos, posso recitar a fábula para você, se quiser.

Sim! Obrigada, universo. — Eu estarei em dívida com você.

— Muito bem. —O rabino chegou à mesa e acendeu três velas brancas. Pegou um fósforo e acendeu a primeira vela usando-a para acender mais duas.

— Por que as velas? —Perguntou Curran.

— É tradicional quando se precisam recitar as palavras de Elias. Em uma das gravações, Elias afirma que uma vela é sinônimo de sabedoria. Se você usar uma vela para acender outra, sua luz será agora duas vezes mais brilhante. Só assim quando um professor compartilha sua sabedoria com um aluno, ambas as mentes são iluminadas. Já que estou prestes a compartilhar as palavras de Elias com vocês, eu acendi duas novas velas e a nossa luz será três vezes mais brilhante.

O rabino arrumou as velas no canto da mesa. — Agora, então. Fábula número três. Era uma vez um homem de sabedoria que vivia em uma montanha. Um dia, um lobo raivoso bloqueou seu caminho. O lobo estava sofrendo, pois estava cheio de raiva e isso o levava ao assassinato e à violência. O lobo implorou ao homem para tirar sua raiva, a qualquer preço. O homem o negou, pois era muito perigoso e poderia custar a vida de ambos. No dia seguinte, o lobo retornou e implorou ao homem mais uma vez para tirar sua raiva. O homem o negou novamente, pois a raiva estava na natureza do lobo. Sem isso, o lobo não seria mais um lobo. No terceiro dia, o lobo retornou mais uma vez e se recusou a sair. Ele seguiu o homem, implorando e chorando, até que o homem teve pena dele. Ele concordou em libertar o lobo de sua sede de sangue, mas, por sua vez, o lobo teria que prometer servir ao homem até o fim de todos os tempos. —O rabino deu uma pequena pausa.

— No quarto dia, o homem e o lobo subiram ao topo da montanha. O homem acorrentou o lobo a uma rocha com correntes de prata e ferro. Então o homem abriu o braço e deixou o sangue correr solto enquanto uma chuva de agulhas caía sobre a montanha. Vendo o sangue, o lobo ficou louco de raiva e lutou para quebrar suas correntes, mas elas o seguraram fortemente. O homem cortou a garganta do lobo e aparou o sangue ainda fresco do lobo em sua mão. Quando o lobo estava morrendo, o homem misturou seu próprio sangue com o núcleo de fogo da alma do lobo. Então o homem empurrou o sangue misturado de volta para a ferida, falou as palavras de poder que ligavam o lobo para obedecê-lo para sempre, e caiu no chão, enfraquecido. O sangue do homem expurgou a raiva do lobo. Ele sentou-se ao lado de seu mestre, guardando-o enquanto descansava e, quando o homem acordou, descobriu que o lobo havia se tornado um cachorro. Esse é o fim da fábula.

O rabino tomou um gole de café. — O valor filosófico da fábula não pode ser negado, no entanto, nos últimos anos, alguns estudiosos, inclusive eu, especulam que a fábula é baseada em eventos reais. Uma grande porcentagem dos ensinamentos de Elias, primeiro tomados como alegorias, provou ser um fato. A fábula tem todas as características de tal ensinamento. Ele oferece detalhes específicos, embora um tanto enigmáticos: a chuva de agulhas, a mistura do sangue, as correntes de prata e ferro, onde as fábulas concebidas como ficção tipicamente falam em termos gerais. Mas é claro que radicais ousados como eu têm que se resignar aos nossos colegas. —Ele sorriu.

Minha tia fazia golens de carne tirando o sangue de suas vítimas, infundindo-a com sua magia e, de alguma forma, inserindo a mistura em carne nova, criando autômatos monstruosamente poderosos completamente sob seu controle. Roland fizera quase a mesma coisa. Ele tirou o sangue do corpo do metamorfo, o queimou com sua magia e o colocou de volta. E de alguma forma, ele e o metamorfo haviam sobrevivido.

Nem sabia por onde começar. Roland tinha muito mais poder do que eu, mas quando terminou esse ritual ele desabou, o que significa que eu precisaria de um aumento de poder. Assim como o Volhv quando teletransportou Adam para fora de seu laboratório. Nunca iria recorrer ao sacrifício. Mesmo por Julie. Estava fora de questão.

— Foi algo que eu disse? —Rabino Peter murmurou. — Você parece angustiada.

— Não, —disse Curran. — Tudo está bem. Obrigado pela sua ajuda.

Forcei as palavras saírem da minha boca. — Nós agradecemos.

O rabino tirou os óculos, limpou as lentes com um pano macio e colocou-as de volta no nariz.

— Desde que compartilhei meu conhecimento com você, talvez você pudesse compartilhar o seu comigo. Por que você precisa da fábula?

Levantei. — Desculpe, não posso te dizer isso. Mas posso te dizer o nome do lobo da fábula.

O rabino Peter levantou-se da cadeira. — Isso é além de intrigante. Sim, eu estaria mais interessado em aprender o nome.

— Seu nome é Arez. Os sumérios o conheciam como Enkidu. Ele foi o primeiro Mestre da Ordem dos Cães de Ferro e ele conquistou a maior parte da África e um terço da Eurásia para seu mestre. Viveu por quatrocentos anos e teria conquistado mais, mas os antigos gregos começaram a rezar para ele, e suas orações o transformaram em seu deus da guerra. Isso ajuda?

O rabino assentiu devagar.

— Obrigada por sua ajuda. —Curran e eu fomos para a porta.

— E o seu mestre? —Perguntou o rabino.

— Isso é uma conversa para outra hora, —eu disse a ele.

— Estou ansioso para isso, —o rabino gritou quando saímos para o corredor. — Aproveite o livro de receitas!


Capítulo 20


— NÃO. — CURRAN ANDOU QUASE CORRENDO PARA O CARRO, descendo a rua para longe do templo.

— Não o quê? —Eu sabia o que, mas queria que ele soletrasse. Dessa forma poderia argumentar melhor.

— Sei o que você está pensando e a resposta é não. Você não está fazendo esse ritual.

— Isso não é uma decisão sua.

Ele se virou. — Roland fez isso durante a magia completa. Ele desmaiou. A magia é fraca e você não é ele. O que diabos você acha que vai acontecer com você?

— Pensei sobre isso. Eu precisaria de um aumento de poder. Minha própria mini erupção mágica.

— Arram.

— O dispositivo contém magia concentrada. Quando aberto ...

— Quando aberto, explode, Kate. Seria como estar no meio de uma explosão atômica.

— Ela está morrendo.

Curran me encarou com um olhar poderoso de alfa. Seus olhos brilhavam com poder primal. Era como olhar nos olhos de um animal faminto emergindo da escuridão. Meus músculos se trancaram. Eu segurei seu olhar.

— Não, —disse ele, pronunciando a palavra lentamente.

— Você não pode me dizer o que fazer.

Curran rugiu. A explosão de barulho saindo de sua boca era como um trovão. Eu me curvei, lutando contra o desejo de dar um passo para trás.

— Sim, eu posso, —ele rosnou. — Ouça: este sou eu dizendo a você que você não fará.

Levantei o livro de receitas e bati no nariz dele. Gato mau.

Ele puxou o livro das minhas mãos, rasgou-o ao meio, juntou as duas metades, rasgou-as novamente e levantou a mão. As peças do livro de receitas flutuaram para o chão. — Não.

Bem. Eu me virei e fui embora em direção as ruínas dos prédios. Atrás de mim, o pé de Curran raspou no chão.

Ele saltou sobre mim e pousou no meu caminho. Parecia completamente feroz.

Eu parei. — Saia da frente

— Não.

Chutei ele na cabeça. A pressão das últimas quarenta e oito horas invadiu-me como uma tempestade e eu mergulhei tudo no chute. O impacto atingiu sua mandíbula em um ângulo. Curran cambaleou para trás. Girei e chutei outra vez. Ele se esquivou. Outra. Curran avançou para frente e para a direita. Meu chute perdido por um fio de cabelo.

Ele agarrou minha canela com a mão esquerda, apertando-a entre o braço e o lado, e varreu minha outra perna debaixo de mim. Agradável. Uma queda de kung fu.

Eu caí. O pavimento deu um tapa nas minhas costas. Rolei de volta e martelei um soco de baixo para cima em seu queixo.

Bater nele no corpo era inútil. Podia bater em um tanque que seria a mesma coisa. A cabeça era minha única chance.

Curran rosnou. Sangue escorria de um corte em sua bochecha. Eu abri um corte com o meu chute.

Joguei um gancho de esquerda. Ele tirou meu braço do caminho e me empurrou de volta. Torci para fora do caminho em puro instinto, droga, ele era rápido, caí em um agachamento e chutei em direção a suas pernas. Ele deu um pulo, evitando o chute e eu levei um joelho na cabeça.

Ai.

O mundo se despedaçou em pequenas faíscas dolorosas. Eu provei sangue, meu nariz estava pingando. Rolei para trás, ficando de pé, bloqueei seu soco e enfiei meus dedos em sua garganta, interrompendo seu rosnado no meio da nota. Senti isso, baby?

Curran atacou. Sua mão trancou nos meus ombros. Ele me tirou do chão e me bateu na parede, de volta para os tijolos, me prendendo. Seus dentes um fio da minha bochecha. Dei uma joelhada nele. Ele bloqueou e me segurou no lugar.

— Acabou? —Ele respirou. — Hein?

— Você acabou?

— Baby, eu nem sequer comecei.

— Que bom. Vá em frente para que eu possa terminar.

— E como exatamente fará isso?

Curran me segurou com mais força, me empurrando contra a parede. — Estou esperando. Mostre-me o que você tem.

— Deixe-me ir e eu vou.

— Ah é?

— Sim.

— Prometa-me que você não vai fazer isso e eu vou deixar.

Eu apenas olhei para ele.

Curran se virou, deu dois passos e deu um soco na parede. — Droga.

A parede se desintegrou em uma explosão de tijolos. Puxei um pedaço de gaze do bolso e limpei o sangue do nariz. Não havia muito. Perigo ocupacional de escolher uma briga com um homem que matava deuses para viver.

Curran soltou um grunhido entrecortado e deu um soco na outra parede. Ela estourou e toda a casa naufragou em uma nuvem de poeira. Ele apertou sua mão, seus dedos sangrentos.

— Tijolos são duros, —eu disse a ele pacientemente, como se dissesse a uma criança. — Não bata nos tijolos. Não, não.

Curran pegou um tijolo e partiu ao meio.

Idiota. — Oh, você é tão forte, Vossa Majestade.

Curran arremessou os pedaços dos tijolos. Eles atravessaram as ruínas e desapareceram no Unicorn.

— Se Derek estivesse em apuros, você arriscaria a sua vida em um piscar de olhos.

Ele se virou para mim. — Risco, sim. Eu não cortaria minha garganta por ele. Gosto da Julie. Ela é uma ótima criança. Mas eu te amo. Eu te proíbo de fazer isso.

— Não é assim que esse acasalamento funciona. Você não determina o que posso fazer e eu não posso te dizer o que fazer. É a única maneira de sobrevivermos, Curran.

Ele engoliu em seco. — Bem. Então eu vou implorar. Por favor, não faça isso. Por favor. Não posso suportar isso, Kate.

— Lembra-se quando eu disse que você não poderia lutar com Erra, que isso era estúpido e imprudente, porque ela iria deixá-lo louco?

O rosto de Curran estalou em sua máscara neutra do Senhor das Feras.

— Eu implorei para você não ir. Implorei. —Fechei a distância entre nós. — Você me disse que não pode escolher suas batalhas e foi de qualquer maneira.

— E nós vencemos.

— E você ficou em coma por duas semanas. Dê-me outro tijolo para que eu possa bater na sua cabeça com ele. Eu te disse! Te disse que a magia dela iria te ferrar. Você ouviu? Não. Você faria isso de novo?

— Claro que sim, —ele rosnou. — Ela chutou sua bunda duas vezes. Eu não ia deixar você ir lá sozinha. Era um desafio e era o meu trabalho.

— É meu trabalho manter Julie segura. Não conseguirei abrir o dispositivo sozinha. Preciso de alguém que canalize a magia para mim. Eu vou pedir ajuda às bruxas. Prometo a você que se Evdokia disser não, eu não farei.

Curran me encarou, com os olhos dourados e furiosos.

— Eu não vou sair correndo, tirar a tampa do aparelho e cortar a garganta de Julie. Eu poderia matá-la nesse caso. Eu vou ter que falar com Doolittle sobre o meu sangue. Vou ter que arrumar as coisas com as bruxas. Vou ter que falar com Kamen e ver se o dispositivo pode ser aberto sem provocar uma explosão gigante. Eu dou a minha palavra que se tudo isso parecer impossível em algum momento, vou desistir. Encontre-me no meio do caminho, por favor. É tudo o que estou pedindo.

Seu rosto estava sombrio.

— Você tem que me deixar pelo menos tentar. Não posso simplesmente sentar em minhas mãos e não fazer nada.

— Se eu te impedir de fazer isso, você vai me deixar, —disse ele.

— Eu não disse isso. —Dar um ultimato a Curran era como acenar um manto vermelho na frente de um touro louco.

— Você irá. Talvez não neste segundo. Mas eventualmente você irá embora. —Curran respirou profundamente. — Vou acompanhar todo o processo.

Venci.

— Contanto que você seja honesta comigo sobre suas chances, eu irei apoiá-la. Kate, se você mentir, acabou.

Cruzei meus braços. — Você espera que eu minta.

— Não. Estou apenas divulgando isso para que não haja surpresas.

Nós nos encaramos.

— Estamos bem? —Ele perguntou.

— Eu não sei, você me diz ...

Ele me puxou e me beijou. Foi um inferno de um beijo.

Nós nos separamos.

— Você fala demais, —disse ele.

— Isso é você que está dizendo, Vossa Peludeza. —Eu deslizei para perto dele, então seu braço estava em volta do meu ombro. Me sentia melhor. Ele também, sua postura perdeu um pouco da tensão.

Nós caminhamos para o carro e passamos dele. — Onde estamos indo?

— Para o templo, —disse Curran. — Te devo outro livro de receitas.

*

NAS TRÊS HORAS QUE TÍNHAMOS ESTADO FORA, a churrascaria tinha sido transformada no quartel general do Bando. Grupos de metamorfos patrulhavam a estrada e guardavam o prédio. Conhecendo Jim, sentinelas esperavam escondidas e observando a aproximação de um inimigo. As pessoas estavam rastejando no telhado, instalando balistas95 e metralhadoras.

O estacionamento estava vazio, mas o campo atrás do prédio estava cheio de carros distanciados um dos outros por uns três metros. Se os Guardiões lançassem um foguete no nosso estacionamento, nem todo veículo pegaria fogo. Eu esperava que eles tentassem alguma coisa. Minhas mãos coçavam pela minha espada.

Curran estacionou na frente. Jackson, um dos guardas, correu para fora e Curran jogou-lhe as chaves.

Jim nos encontrou na porta. Atrás dele, Derek emergiu. Ele parecia a morte: pálido, seus olhos sombrios.

Merda.

Parei. A mão de Curran roçou a minha e ele saiu com Jim.

Derek parou na minha frente.

— Ela está morta? — Perguntei.

— Não. Ela está dormindo.

Eu exalei. — Você quase me deu um ataque cardíaco.

— Se eu não tivesse ...

— Por favor, não se iluda. Nós dois sabemos que o garoto precisava de cinco anos de treinamento duro antes que ele pudesse enfrentá-la. Sua pequena surra não fez diferença alguma.

— Ela está ...não há mudança.

— Isso é uma boa notícia, —disse a ele. — Qualquer mudança agora será para pior. Preciso tê-la estável, até conseguir ajudá-la.

Ele olhou para mim. — Kate, você não pode fazer nada.

— Eu posso tentar. Você vai me ajudar ou vai ficar parado lá e lamentar?

Sua cabeça se levantou. Muito melhor.

— As bruxas estão aqui?

— Sim. Os russos também estão aqui e chateados.

Oh bom. — Onde eles estão?

— Na parte de trás da sala principal.

— Encontre Barabas, diga a ele que preciso que ele esteja por perto. E quando Curran terminar com Jim, diga a ele que estou iniciando a reunião até que ele possa se juntar a nós. —Não gostaria que Sua Arrogância perdesse nada. — E traga reforço, por favor.

Derek foi embora. Entrei na churrascaria.

*

GRIGORII ERA ALTO E MAGRO. SUA TÚNICA NEGRA estava pendurada em seus ombros como roupa molhada em um cabide. O longo cabelo preto de Chernobog, misturado com o cinza, emoldurava um rosto severo com olhos cor de avelã sob sobrancelhas espessas e um nariz adunco que o fazia parecer uma ave de rapina. Você meio que esperava que ele apertasse suas garras, soltasse um grito de águia, e te fizesse em pedaços. Um corvo negro empoleirava-se no ombro de Grigorii. Atrás da sua cadeira, Roman esperava, parecendo tão feliz quanto o noivo ameaçado por uma espingarda em um casamento.

O homem na cadeira ao lado de Grigorii era ainda mais velho. Ele usava uma túnica branca que caia abaixo dos joelhos. Bordados azuis desbotados corriam em uma faixa de oito centímetros na frente do manto. Volhv Belobog96. Tinha que ser. Belobog era irmão de Chernobog, eles eram diametralmente opostos, deus benevolente e o outro malévolo.

Uma criatura peluda jazia aos pés do Volhv branco. Parecia um cão de tamanho médio com pêlo cinzento. Um par de grandes asas de penas estava dobrado ao longo de suas costas, estendendo-se no chão atrás dele. Um lobo celestial. Puta merda.

Do outro lado da mesa, Evdokia sorria serenamente, tricotando algo azul. Seu gatinho-coelho-pato rolava pelo chão, brincando com o fio. O lobo celestial observava-o com uma expressão levemente faminta no rosto.

Atrás de Evdokia, duas bruxas a acompanhavam-na, jovens, bonitas e parecendo que não desistiriam de uma briga. O mesmo cabelo escuro, a mesma boca pequena e os mesmos olhos grandes. Provavelmente irmãs. A bruxa à esquerda usava um longo manto de tecido cinza com capuz. Sua amiga escolheu jeans e uma blusa em vez disso. Ela puxou as mangas do suéter até o cotovelo, expondo tatuagens turcas brilhantes de símbolos místicos envolvendo seus braços.

Cheguei à mesa, puxei uma cadeira e sentei-me. — Todo mundo trouxe um animal de estimação. Sinto-me excluída.

Um uivo entusiasmado quebrou o silêncio e Grendel saltou pela porta. Ele galopou pela churrascaria, derrapou no chão, bateu na minha cadeira e deixou cair um rato morto no meu colo.

Impressionante.

Os Volhvs ficaram olhando.

— Obrigada. —Coloquei o rato no chão e acariciei a garganta de Grendel. — Vamos começar em breve.

— O que é isso? —Grigoriii olhou para o cachorro.


— Um poodle depilado. —Tecnicamente, ele era agora um poodle bem aparado, mas quem se importava com a semântica.

— Isso é ridículo. —Grigoriii se inclinou para trás. Sua voz estava cortada e não tinha sotaque.

— Você já olhou pela janela? —Perguntei a ele.

A churrascaria ficava no topo de uma colina baixa. Além dele, Palmetto jazia inundado de policiais e pessoas em uniformes paramédicos. Eles meticulosamente ensacavam os cadáveres e os carregavam em caminhões, uns sobre os outros, como toras de madeira.

— Isso é uma coisa horrível, —disse o Volhv Belobog.

— Não gosto de esperar, —disse Grigorii. — O que estamos esperando?

— Por mim, —disse Curran.

Os Volhvs se assustaram. Curran puxou a cadeira e sentou-se ao meu lado. Barabas se materializou atrás dele.

— Grigoriii Semionovich, Vasiliy Evgenievich, Evdokia Ivanovna, sejam bem-vindos. Posso oferecer alguma coisa? Café, chá?

— Chá quente com limão, —disse Evdokia.

Barabas acenou. Jezebel trouxe uma bandeja com um bule de chá e várias xícaras, colocou tudo sobre a mesa e se posicionou na cabine próxima.

Jim puxou uma cadeira e sentou-se à direita de Curran. Andrea sentou-se à minha esquerda. Barabas e Derek ficaram de pé atrás de nossas cadeiras.

— Essa coisa não é da nossa conta, —disse Grigoriii. — Você não nos governa.

— Partiremos quando decidirmos, —disse Vasiliy.

— Você trouxe Kamen? —Curran perguntou.

Grigorii recostou-se e cruzou os braços. — E se nós não trouxemos, o que vai fazer?

Curran se inclinou para frente. — Você está abrigando um homem cuja máquina causou centenas de mortes. Por causa desse dispositivo, minha enteada, uma menina de quatorze anos, está morrendo. Um do meu povo está morto, dois estão gravemente feridos. Seu Volhv atacou minha companheira. Antes de irmos adiante, precisamos de uma demonstração de boa fé. Você nos dará acesso a Kamen agora.

As sobrancelhas brancas de Vasiliy se ergueram. — Ou?

— Ou esta reunião acaba. Consideraremos suas ações como uma declaração de guerra.

Os dois Volhvs se entreolharam.

— Vamos cumprir os acordos de uma reunião pacífica, —disse Curran. — Você está livre para sair. Vá para casa, beije suas esposas, abrace seus filhos e coloque seus assuntos em dia, porque amanhã eu vou queimar sua área até o chão. Nós vamos matar vocês, suas famílias, seus vizinhos, seus animais de estimação e qualquer um que estiver no nosso caminho. Um ataque à minha família não ficará impune.

Esse foi o melhor golpe baixo que eu já vi.

— Não, —disse Vasiliy. — Nenhuma guerra.

O corvo no ombro de Grigorii grasnou. O Volhv negro fez uma careta. — Roman.

Roman se abaixou.

— Tashi yego suda97.

Roman saiu correndo.

Inclinei-me para Curran. — Eles estão trazendo-o.

— Bom chá, —disse Evdokia.

Um longo minuto passou e Roman entrou, segurando um homem pelo ombro. O homem usava calça cáqui amassada e um suéter por cima de uma camisa que tinha visto dias melhores, sujeira manchava a curva da gola onde tocava o pescoço. Algum esforço fora feito para pentear os cabelos castanho-claros, tirando-os de cima dos olhos injetados, mas ficou preso na parte de trás da cabeça em tufos desgrenhados. Ele olhou em volta, parecendo perdido, como se não tivesse certeza de onde estava ou por quê.

Adam Kamen. A fonte da bagunça inteira.

Roman puxou uma cadeira e empurrou Kamen para baixo nela. Quando Roman se endireitou, seu olhar se fixou em algo à minha direita. Seus olhos se arregalaram. Ele se conteve e recuou, atrás da cadeira de Grigorii. Olhei para a direita e vi Andrea folheando suas anotações. Oh garoto.

Jezebel se aproximou de mim. — Posso matá-lo? Posso matá-lo agora, por favor?

Balancei a cabeça. Ela voltou ao seu posto reclamando. Levava toda a minha vontade para não socar o rosto de Kamen e transformar em uma massa sangrenta. Eu mal tinha contenção suficiente para mim, muito menos para ela.

Curran apontou para a janela. — Olhe.

Em Palmetto, um caminhão estava dando marcha a ré. Outro ocupava seu lugar. Os paramédicos paravam enquanto manobravam em direção a eles e continuavam a carregar os corpos.

— Eu vi, —disse Adam. — Estava olhando pela janela do carro. Muitas pessoas estão mortas.

— Por sua culpa, —eu disse. — Você construiu isto. Por quê?

— Para minha esposa, —disse ele. — Eu só queria que as máquinas do hospital funcionassem, isso é tudo.

— O primeiro foi para sua esposa, —disse Evdokia. — Por que você construiu o segundo?

Adam encolheu os ombros. — Porque é isso que eu faço. Se você faz um pequeno, logo que fazer um maior. É um desafio. Mas não posso construir mais nada. —Ele levantou as mãos. As bases de ambos os polegares estavam vermelhas e inchadas. Kamen fechou as mãos em punhos. Seus polegares não se mexeram. Eles cortaram o ligamento colateral ulnar98.

— Você o mutilou? —Perguntei a Vasiliy.

O Volhv branco suspirou. — Nós o avisamos. Ele não escutou. Durnoi chelovek.

‘Homem tolo’. Isso para não o chamar de coisa pior.

— A cabeça é brilhante, —continuou Vasiliy. — Mas não há sabedoria. Seu pai era muito respeitado na comunidade. Fez muito bem para muita gente.

— Era isso ou matá-lo, —disse Grigorii. — Não podemos confiar nele. Continuará construindo outras coisas e matará a todos.

— Não é possível construir nada agora, —disse Adam. — Não posso segurar uma chave de fenda. Não posse segurar uma chave. Ou um lápis. Acabado. Zakonchen. Minha vida acabou.

Fiquei de pé, agarrei-o pelos cabelos e virei a cabeça para a janela. — Suas vidas acabaram. Minha filha está morrendo por sua causa, seu imbecil e você está choramingando sobre suas mãos? Olhe para mim. Olhe-me nos olhos. Quero te esfolar vivo, entendeu?

— Eu nunca quis que isto acontecesse, —disse ele, com os braços moles. — Achei que era para o bem.

— Havia homens armados guardando você. Para que diabos você acha que era? Você testou isso. Você viu coisas morrerem na floresta. Por que você não a destruiu?

— Eu não podia parar. Esse é o meu objetivo, construir coisas. Isso era especial. Era a minha a vida. Era importante.

— Mais importante que a vida de crianças?

A boca de Adam ficou frouxa. Vislumbrei a resposta em seus olhos. Sim, o aparelho dele era mais importante que as crianças. Nada que eu pudesse dizer chegaria até ele.

Eu o empurrei de volta em sua cadeira.

— Eu te disse, —disse Vasiliy. — Não está certo da cabeça. Está maluco.

— Há uma seita de fanáticos contra a magia, —disse Curran. — Os Guardiões do Farol. Eles têm o projeto do dispositivo. Eles construíram sua própria versão.

Grigorii empalideceu.

— Qual o seu alcance? —Vasiliy perguntou.

— Por volta de oito quilômetros.

Grigoriii amaldiçoou. Vasiliy recostou-se, passando a mão pela boca. — Oito quilômetros?

Curran assentiu e olhou para Adam. Kamen se encolheu.

— Quanto tempo demora para ativar?

Kamen piscou. — O modelo menor levou quarenta e dois minutos. Para um maior, nunca testei ...

— Três horas e doze minutos o que usaram aqui em Palmetto, —disse Jim.

— Existe um coeficiente ... Dez horas, cinquenta e nove minutos e quatro segundos para um dispositivo capaz de atingir oito quilômetros, —disse Kamen.

— Então esse é o nosso tempo, —disse Jim. — Dez horas e cinquenta e nove minutos a partir do início da onda mágica. Magia voltando, a gente inicia a contagem regressiva.

— Pode ser desligado assim que a ativação começar? — Perguntou Curran.

— Sim, —disse Adam. — Há um interruptor para desligá-lo. Eu mostrarei a seu povo.

— E a máquina que foi usada? —Perguntei. — O que acontece se você a abrir?

— Você está com ela? —Os olhos de Kamen acenderam.

Grigorii se inclinou e deu um tapa na parte de trás da cabeça. Kamen se balançou para frente e olhou para Grigorii como um cachorro chutado. — Não precisa me machucar. Eu sei, eu sei. Você tem uma cerveja?

Barabas se afastou por um momento e colocou uma cerveja na frente de Kamen.

— Há uma válvula no topo. —Kamen bebeu a cerveja. — O dispositivo é de capacidade limitada. Tinha que haver uma maneira de esvaziá-lo para que pudesse ser reabastecido.

Ele construiu o equivalente a uma bomba atômica e a tornou reutilizável. Palavras me faltavam.

— Então eles podem ir de cidade em cidade nos matando, — Evdokia murmurou.

Kamen colocou a cerveja no chão. — Você aperta os interruptores e puf. —Ele agarrou a cerveja novamente, tentou torcer a tampa, e olhou impotente para ela. Polegares inúteis. Barabas se inclinou sobre ele e torceu a tampa com um estalo de dedos. Liquido jorrou para fora. A espuma se espalhou pelos lados da garrafa.

— Tenha cuidado para empurrar os interruptores corretamente ou ele vai escorregar, —disse Kamen. — E bum! O cilindro se quebra e todo mundo está morto.

Ótimo. Fiz um esforço heroico para ignorar o olhar de Curran. — Se você o abrir corretamente, a maior parte da magia será atirada para cima?

Kamen assentiu. — Sim. Pequena parte irá se espalhar pelas laterais, mas a maior parte irá para cima como um raio laser.

— A magia que saí, é potente?

— Muito.

— Como uma pequena erupção?

— Sim. —Kamen assentiu várias vezes. — Exatamente.

Eu olhei para Evdokia. — Essa magia pode ser aproveitada por um coven e transferida para uma outra pessoa?

— Possivelmente, —disse Evdokia.

Grigorii bufou. — Muita magia assim suas bruxas não iriam aguentar. E seu foco seria sobrecarregado. Você precisaria de uma âncora para isso, um objeto, para suportar o peso disso, então poderá extrair poder dele.

O coelho-gatinho-pato parou de rolar e silvou para Grigoriii.

— Ela estava perguntando a você? —Evdokia levantou o queixo.

— Estou apenas dizendo. Existe uma maneira correta de fazer as coisas.

— Não é da sua conta.

Vasiliy olhou para mim. — Por que você precisa do poder?

— Magia de sangue.

A mesa ficou tão quieta que você podia ouvir um alfinete cair.

— Para quê? —Vasiliy perguntou suavemente.

— Destruir o Vírus-L de uma garotinha.

Grigorii apontou um longo dedo para mim. — Isso é uma coisa não natural.

— Alguns diriam que lobos com asas e cajados de madeira que te picam são coisas não naturais, —eu disse.

— Alguns diriam que sacrificar um homem e transformar suas entranhas em formigas também não são naturais. Se você mora em uma casa de vidro, não dispare nenhuma espingarda.

— Vamos fazer isso por você, —disse Evdokia. — Meu coven fará isso. Vou obrigá-las a guardar silêncio. Ninguém vai falar sobre isso.

Arram. — Qual é o preço?

— Você assinará um mandado de parentesco. Um documento que reconhece sua mãe e sua ascendência. Ele será mantido selado, então não se preocupe. Nós só queremos um papel. Caso as coisas não saiam como esperado.

Qual era o truque? Tinha que haver uma armadilha lá em algum lugar.

Grigoriii ganhou vida como um tubarão sentindo uma gota de sangue na água. — Por quê? O que há de tão especial nela?

Evdokia deu um tapa na mesa. — Eu disse para você cuidar do seu próprio negócio, bode velho! Isso não tem nada a ver com você. Vá matar alguma coisa e divirta-se em seu sangue.

Os olhos de Grigorii se arregalaram para fora da cabeça. — Você vai manter sua língua civilizada em sua boca!

Evdokia se inclinou para frente. — Ou o que?

— Ou vou lhe ensinar boas maneiras, mulher!

A bruxa tatuada atrás de Evdokia olhou com indignação. — Papai! Você não pode falar com a mãe desse jeito!

— Eu vou falar com ela da maneira que eu quiser!

A bruxa no manto soltou um suspiro. — Hein. Papai, realmente, não há necessidade.

Recuei para longe da mesa, no caso de alguém começar a jogar coisas. Andrea recuou bem atrás de mim. Curran ficou com o queixo apoiado nas mãos cerradas em um punho duplo, provavelmente tentando decidir se deveria entrar no meio disso.

— Sim, vá em frente. — Evdokia apontou para Grigorii. — Cumpra sua reputação. Civilizado como um texugo raivoso.

O coelhinho-pato-gato silvou e rosnou. O corvo de Grigorii grasnou, batendo as asas. Grendel não aguentou e quebrou em uma cacofonia de latidos excitados.

Vasiliy colocou a mão sobre os olhos.

Grigorii entrou em russo. — Crazy old hag!

— Bruxa velha louca? —Evdokia arregaçou as mangas. — Deixe-me mostrar-lhe como eu posso ser uma velha louca.

— Roman! —A bruxa tatuada apontou para o jovem Volhv. — Faça alguma coisa! Você é o mais velho.

Roman assustou-se. — Eles são assim antes mesmo de nascermos. Não me meta nisso.

Então foi assim que ele sabia que eu procuraria Evdokia. Sua mãe disse a ele. Claro. Eles até se pareciam. Deveria ter percebido isto antes. Havia alguém aqui que não era parente?

A bruxa tatuada virou-se para Vasiliy. — Tio?

Não. Eles eram todos uma grande família feliz.

— Você fica quieta, criança! —Vasiliy estalou. — Os adultos estão conversando.

— Tio, eu tenho vinte e seis!

— Esse é o problema em trazer crianças para a magia, —disse Vasiliy. — Muitos de vocês experimentam o poder e crescem a malcriação.

Grigorii deu uma olhada na direção de seu irmão. Se olhares fossem punhais, aquele cortaria direto no coração do Volhv.

— Não tenho problema com os meus. Meu filho mais velho ...

— É um médico, —Evdokia terminou com uma voz zombeteira. — E minha filha é advogada. —Contiuou Evdokia zombando do outro Volhv.

Vasiliy levantou o queixo. — Inveja é ruim para você. Envenena o coração.

— Arram! —Evdokia bateu na mesa. — Que tal o seu filho mais novo, o músico? Como ele está?

— Sim, o que Vyacheslav está fazendo ultimamente? —Grigorii perguntou. — Não foi ele que vi com um olho roxo ontem? Ele assobiou para uma árvore e ela bateu nele?

Oh garoto.

Curran abriu a boca. Ao lado dele, Jim sacudiu a cabeça. Sua expressão parecia suspeitamente com medo.

— Ele é jovem, —disse Vasiliy.

— Ele está estragado, —Evdokia gritou. — Ele passa todo o tempo tentando matar meu gato. Uma criança é médica, a outra é advogada, a terceira é um assassino em série em treinamento.

Vasiliy olhou para ela, chocado.

— Estamos fazendo um pequeno recesso! —Curran rugiu e partiu. Fizemos uma saída estratégica para a porta da churrascaria. Barabas logo atrás fazendo barulhos estridentes e estrangulados em uma tentativa de controlar o riso.

Do lado de fora, Curran exalou e se virou para mim. — Você sabia que eles eram loucos?

— Eu nem sabia que eles eram casados.

— Eles não são, —disse Roman ao meu lado. De alguma forma, ele veio para fora também. — Eles se amam, mas simplesmente não podem viver juntos. Quando eu era mais jovem, sempre tinha um drama: eles estão juntos, estão separados, estão vendo outras pessoas. —Deu de ombros. — Mamãe nunca suportou todo o sangue, e papai não tem paciência para a feitiçaria. Temos sorte que a magia não está em alta. No último Ano Novo, eles incendiaram a casa. Houve álcool envolvido. Você trouxe meu cajado?

Olhei em volta procurando o menino maravilha. — Derek?

Derek apareceu ao meu lado com o cajado do Volhv com um saco de lixo em cima dele. Roman arrancou o plástico preto. — Por que o saco?

Derek mostrou os dentes. — Tentou me morder.

Roman acariciou o cajado. — Ele estava apenas com medo, isso é tudo. —Deu um passo em minha direção e baixou a voz. — Posso te fazer uma pergunta?

— Claro.

Nós nos afastamos alguns metros, como se fizesse alguma diferença com um monte de metamorfos ao redor. Roman se inclinou para mim. — A linda loira, ela trabalha com você?

Olhei para onde Andrea estava perto das portas. — Andrea? Sim.

— Oh, esse é um nome bonito, —disse Roman.

— Má ideia, —disse a ele.

— Por quê? Casada?

— Não. Um ex-namorado muito perigoso e muito ciumento.

Roman sorriu. — Casada é um problema. Perigoso, não é um problema.

Sobre o ombro de Roman, podia ver Curran. Ele ficou absolutamente imóvel, seu olhar fixo na nuca de Roman.

Houston, nós temos um problema99.

— Afaste-se de mim, —eu disse baixinho.

— Desculpe? —Roman inclinou-se mais perto.

Jim estava dizendo alguma coisa. Curran se aproximou de nós naquele andar de leão sem pressa que geralmente indicava que estava por um fio de explodir em violência.

— Afaste-se.

Roman deu dois passos para trás, bem a tempo de sair do caminho de Curran. O Senhor das Feras passou por ele e deliberadamente se colocou entre o Volhv e eu. Toquei sua bochecha, passando meus dedos pela barba por fazer. Ele pegou minha mão na dele. Um grunhido silencioso reverberou em sua garganta. Roman decidiu que ele tinha um lugar para estar e realmente precisava chegar o mais rápido possível.

— Muita emoção, Vossa Majestade? —Perguntei.

— Ele estava perto demais.

— Estava perguntando sobre Andrea.

— Muito perto. Não gostei disso. —Curran passou o braço em volta dos meus ombros e começamos a andar, me afastando do grupo. Sua Majestade Possessiva em toda a sua glória. — Este mandado de parentesco, que diabos é isso? Isso faz você se aliar a eles?

E ele mudou de assunto também. — Não. Eu só vi esse documento algumas vezes antes. O mandado só afirma que reconheço a minha maternidade e que sei a origem familiar de minha mãe. As bruxas dão muito valor na manutenção de registros familiares.

— Ela vai levar para Roland? —Perguntou Curran.

— Não é do interesse dela. Ela o odeia.

— Então, qual é o sentido disso?

— Seu palpite é tão bom quanto o meu.

— Eu não gosto disso, —disse ele.

— Você tem dito muito isso ultimamente.

Ele baixou a cabeça, seus olhos cinzentos olhando nos meus. — Você vai fazê-los?

— Sim. Nada mudou. Julie ainda está morrendo.

— Então faça logo, —disse Curran.

— Por quê?

Ele apontou para a estrada. Uma caravana de SUVs desfilava pela via. Formas finas e esqueléticas corriam estranhamente ao longo do acostamento da estrada.

— A Nação chegou, —disse Curran.


Capítulo 21


UMA HORA DEPOIS, O INTERIOR DA CHURRASCARIA havia sido modificado, todas as mesas do restaurante foram colocadas no centro em forma de um grande quadrado. A Nação trouxe quatro dos seus sete Mestres dos Mortos, liderados por Ghastek.

Nataraja deve ter se recusado a aparecer. Como a reunião estava sendo realizada no território do Bando, a Nação tinha o direito de escolher os lugares que iriam sentar, então se posicionaram de costas para a janela, para que pudessem observar as portas da frente e de trás.

Os quatro Mestres dos Mortos, Ghastek, Rowena, Mulradin e Filipa, ocuparam seus lugares à mesa. Atrás deles, sua equipe de oficiais sentava-se em suas cadeiras, encostados à janela, com os rostos cuidadosamente em branco. Os vampiros agachavam-se como gárgulas monstruosos: sem pelos, destacando as fibras visíveis de músculos duros como aço, e manchados de protetor solar verde-limão e roxo. Pesadelos com cheiro de chiclete.

Eu tinha que lutar contra o desejo de continuar olhando para Rowena. Baixa, talvez um metro e sessenta, Rowena era o sonho molhado de um adolescente. Figura perfeita, rosto sensual, olhos verde-esmeralda e cabelo vermelho flamejante caindo em uma cascata de ondas brilhantes por toda a sua cintura. Um elegante terno de negócios moldava suas curvas como uma luva. Quando ela sorria, cabeças masculinas se viraram. Se ela falasse alguma coisa, as pessoas concordariam com a cabeça. Havia algo sobre ela que fazia você querer ganhar sua aprovação. Ela poderia fazer você se sentir como um herói só por ter lhe passado o sal.

Era assim que minha mãe deveria ter sido. Eu poderia ter o seu DNA, mas não tinha nenhuma gota de sua magia.

À esquerda da Nação estavam os representantes do Associação de Mercenários. Reconheci três mercenários veteranos e Mark, que era o administrador do grupo e que agora era o superintendente, já que Solomon Red, o fundador dos Mercenários, estava a sete palmos abaixo da terra. Quer dizer, parte dele estava, porque depois que minha tia usou seu corpo como marionete, não havia sobrado muito dele.

Ao lado dos Mercenários estavam representantes dos nativos. Reconheci os xamãs das tribos Cherokee, Apalachee e Muskogee Creek, mas os outros dois nunca tinha visto antes.

Os Nórdicos ocupavam os três lugares seguintes. A Fundação Norse Heritage100 alegava que seu objetivo era preservar as tradições culturais escandinavas. Mas a verdade é que eles pegaram o ideal Vikings e correram com ela para longe de qualquer precisão cultural ou histórica que poderiam ir. A Norse Heritage recebia todos. Enquanto você estivesse disposto a beber cerveja, se tornar barulhento e proclamar-se um viking, teria um lugar à sua mesa.

Ragnvald, seu Jarl101, um enorme homem urso, aceitou vir sem problema, mas o pessoal de Jim teve o inferno em conseguir convencer sua escolta que entregasse seus machados e capacetes com chifres. Havia muito rugido, xingamentos e promessas de fazer coisas e gritos indelicados de ‘forceme!’ E ‘sobre seu corpo morto!’ Até que Curran saiu, os encarou por um tempo e voltou para dentro sem dizer uma única palavra. Ragnvald leu bem as entrelinhas do olhar e sua tripulação decidiu se desarmar voluntariamente.

O Colégio dos Magos forneceu três representantes, seguidos por nós, e depois pelas bruxas, Volhvs, druidas e meia dúzia de outras facções menores. Fazer com que todos se sentassem e ficassem quietos era como tentar arrastar a pedra de Sísifo102 pela montanha. Quando conseguimos, eu queria esfaquear meus olhos. Ninguém demonstrava que causaria algum problema, mas mantive a Matadora no meu colo debaixo da mesa por precaução.

Colocamos Kamen sentado sozinho em uma cadeira no meio do salão. Apenas no caso dele decidir sair e inventar um gerador de buraco negro a partir de uma caixa de fósforos e clipes enquanto não estávamos olhando. Rene e o seu supervisor da Guarda Vermelha sentaram-se à mesa diretamente atrás de Kamen. O rosto de Rene parecia um pouco verde.

Chá, café e água foram servidos e, em seguida, Jim levantou-se e deu um resumo sucinto da invenção de Kamen e as consequências de seu uso. A Guarda Vermelha foi apresentada como heróis, o envolvimento dos Volhvs foi taticamente omitido. Quando ele se mudou para explicar o terceiro dispositivo, o silêncio reivindicou a churrascaria. Oito quilômetros. Destruição absoluta. Se você tivesse uma gota de magia, não sobreviveria.

As pessoas empalideceram. O choque foi tão forte que até Ghastek parecia perturbado.

Em seguida, Andrea se levantou e traçou o perfil dos Guardiões do Farol. A maioria já sabia e observei os rostos enquanto ela falava.

— Os Guardiões estão muito bem conectados e financiados. Durante o ataque à Cutting Edge, os Guardiões usaram seta explosiva. —Andrea continuou. — A análise e um m-scan do resíduo forneceram um perfil consistente com as ogivas de Galahad Five. Estas ogivas são fabricadas exclusivamente pelos galeses para combater gigantes. Eles são escandalosamente caros e sua exportação para os Estados Unidos é limitada e apenas semilegal. Eu consegui um pequeno número de ogivas para Ordem de Atlanta durante meu mandato lá, e tive que pedir vários favores apenas para passar pela alfândega. Os Guardiões têm uma conexão lá ou o arsenal foi contrabandeado.

— Ou a Ordem foi infiltrada, —disse Rowena.

— É uma possibilidade, —Andrea concordou. — Posso garantir que nenhuma seta deixou o arsenal da Ordem antes de novembro, porque o inventário e a segurança do arsenal eram de minha responsabilidade naquele momento.

— É por isso que não há representantes da Ordem neste Conclave? —Perguntou um dos druidas.

— A Ordem nunca fez parte do Conclave, —disse Curran.

Ghastek permitiu-se um sorriso estreito. — Considerando o sucesso que os Guardiões tiveram infiltrando-se no Bando, se excluíssemos todas as organizações que não conseguem ser minuciosos com as suas medidas de proteção e segurança, essa assembleia não poderia ser realizada. Excluir o Bando sozinho reduziria pela metade os aqui presentes.

Mesmo agora, com ameaça de completa de destruição, Ghastek não podia deixar passar a oportunidade de cutucar Curran.

Jim mostrou a borda dos dentes.

— Eles recrutam crianças danificadas, —disse Andrea. — Vítimas de abuso e tragédia, que têm motivos para se odiar e a própria magia. Encontram adolescentes que são mais vulneráveis e os doutrinam, e então essas crianças passam a ter carreiras e vidas até serem chamadas ao dever pelos Guardiões. Ninguém está imune. Nem o Bando, nem a Nação.

— Onde está o aparelho agora? —Perguntou Ragnvald.

— Escondido, —respondeu Curran. — Ele será destruído em breve em um local seguro, onde causará danos mínimos ao meio ambiente.

— Como podemos ter certeza de que vai destruí-lo? —Mark perguntou.

Ghastek considerou encarar por meio segundo na direção de Mark. — Fui levado a acreditar que você possuía pelo menos uma inteligência moderada. Essa avaliação estava obviamente errada.

— O quê? —Mark recuou.

— Como eu sei que se eu lhe entregar uma arma carregada, você não a enfiará na boca e puxará o gatilho? Claro que ele não vai deixar de destruir, seu idiota. Nenhum de nós iria mantê-lo. Usá-lo seria equivalente ao suicídio.

Jim assentiu e Derek e Barabas deram a volta na mesa, distribuindo papel. — Esta é uma lista dos produtos químicos com as quantidades necessárias para construir o dispositivo. Alguns destes são raros. Comprá-los deixa uma trilha de papel.

— Temos dez horas e cinquenta e nove minutos a partir do início da próxima onda mágica. —Disse Curran. — Ou encontramos o dispositivo ou estaremos ...

Barabas se inclinou para ele e sussurrou algo em um tom urgente.

Os olhos de Curran brilharam com ouro. — Traga aqui.

Barabas assentiu. Um metamorfo feminino colocou um telefone na frente de Curran. Ele apertou o botão do viva-voz.

— Sim?

— Com quem estou falando? — Perguntou uma voz masculina modificada por algum aparelho.

— Você está falando com o Senhor das Feras. —O rosto de Curran parecia ter sido esculpido no gelo.

— Ah. Você é um homem difícil de alcançar. Claro, estou usando o termo homem vagamente.

— O que você quer? —Curran perguntou.

— Como eu disse à sua equipe, represento os Faroleiros. Estes são os nossos termos: devolva o dispositivo que você roubou e cesse todos os esforços para nos encontrar. Em troca, você tem minha garantia pessoal de que a Fortaleza não será destruída.

Arram. E aquela propriedade à beira-mar no Kansas que ele estava vendendo era uma pechincha103.

Curran se envolveu completamente de um poder alfa. — Fará isso mesmo?

— Para ser honesto, destruir você não está na nossa agenda de curto prazo. É uma logística simples: a localização da Fortaleza torna impossível alcançar vocês e o centro da cidade ao mesmo tempo. Nós preferimos implantar dentro dos limites da cidade. Retornar a Atlanta ao seu estado natural e torná-la adequada para habitação por uma população não poluída é o nosso principal objetivo. No entanto, se você recusar nossos termos, nós o classificaremos como uma ameaça iminente. Fugir não vai adiantar. Seguiremos seu povo até onde estará escondido e o destruiremos. Cessem seus esforços para nos encontrar.

Os olhos de Andrea se arregalaram.

Eu já ouvi essas palavras antes. Shane as usou em uma carta que enviou para Andrea sobre suas armas.

Shane. Filho da Puta.

À esquerda, um dos vikings sussurrou: — O que ele disse?

Ragnvald olhou para ele.

— Você irá concordar com nossos termos? —Perguntou o homem. — E então, qual sua resposta?

— Não, —disse Curran. — Aqui estão os nossos termos: vocês se alinham em frente ao Capitólio, imploram perdão por assassinar centenas de pessoas e vocês mesmos explodem seus miolos. Ou vocês podem se enforcar ou cair em suas próprias espadas. Podem também tocar fogo uns nos outros. Eu garanto que qualquer método de suicídio que escolherem será agradável comparado ao que faremos com vocês. Esperaremos por isso até o final da onda de tecnologia.

O sinal de desconexão soou como o toque de um sino fúnebre.

Ghastek fez uma careta. — Cessar seus esforços para nos encontrar? Mesmo?

— Claramente ele lê um dicionário de sinônimos antes de dormir, —opinou um xamã Cherokee.

Bob, um dos Mercenários, fez uma careta. — Ele parece um policial que lê muitos manuais de procedimentos policiais.

— Ou um oficial da MSDU, alguém do outro lado da mesa ofereceu.

Não. Não, ele era um Cavaleiro da Ordem. Ted precisava saber. Nós nunca provaríamos isso, mas Ted precisava saber.

— Como eu estava dizendo, temos dez horas e cinquenta e nove minutos a partir o início da próxima onda mágica, —disse Curran. — Isso é quanto tempo o dispositivo levará para carregar. Ou já está em posição ou estão colocando-o em posição agora. Se acharmos com tempo de sobra, Adam aqui vai desarmá-lo.

Um vampiro na extrema esquerda ficou tenso, reunindo seus músculos. Foi um movimento minúsculo, quase imperceptível. Apertei o cabo do Matadora, sentindo a textura familiar sob meus dedos.

— Se não houver tempo, quem encontrar pode ter que desarmar sozinho, —disse Curran. — Agora Adam nos explicará como fazer isso ...

O vampiro pulou, garras erguidas para a matança. Ele voou pelo ar em direção a Kamen, saltando a mesa em um único e poderoso salto. Pulei para a mesa e cortei da esquerda para a direita, em um ataque diagonal clássico.

A lâmina da Matadora atravessou a carne morta-viva como uma faca afiada através de uma pêra madura.

O corpo do sanguessuga caiu aos pés de Kamen.

A cabeça calva e solta voou e ricocheteou para fora da mesa, pulverizando a Nação com sangue vivo e denso.

Um Oficial da Nação de cabelos escuros ficou em pé tão rapidamente que sua cadeira caiu para trás. Uma arma brilhou em sua mão. Eu corri para ele. Estava pulando sobre Rowena quando ele empurrou o cano contra a sua testa e puxou o gatilho. A arma cuspiu trovão. A bagunça nojenta de sangue e cérebro pulverizou a janela.

A churrascaria explodiu com o barulho, a voz de Ghastek cortando-a, tremendo de raiva. — Encontre a pessoa que o admitiu, encontre as pessoas que fizeram sua verificação de antecedentes, encontre seu Mestre. Eu quero essas pessoas na minha frente em meia hora!

*

SENTEI-ME NA SOMBRA DO QUARTO DO HOSPITAL. Julie estava imóvel sobre os lençóis brancos, com o braço semi-humano exposto preso na teia de tubos do soro intravenoso que alimentava o sedativo em seu corpo. Seu rosto estava retorcido, suas mandíbulas grandes e distorcidas, com presas cortando seus lábios. Seus olhos estavam fechados.

Uma mecha de cabelo loiro claro era a única coisa que restava da minha filha.

Parecia irreal.

Eu estava aqui desde que a reunião na churrascaria tinha acabado. Estava olhando para ela, sentada aqui na esperança, contra toda lógica, que de algum jeito seu corpo venceria, que mudaria e retornaria a um ser humano. Ou um lince. Eu iria me contentar com um lince neste momento. Tudo menos a coisa distorcida que ela era.

A magia voltaria amanhã. Se não, então no dia seguinte. Eu teria que realizar o ritual. Se o dispositivo funcionasse como Kamen prometera, se as bruxas conseguissem canalizar energia para mim, se ... se tudo corresse como esperado. Ainda não tinha ideia de como exatamente tiraria o sangue de seu corpo.

No final, Julie ou eu, ou nós duas poderíamos acabar mortas. De todas as coisas estranhas e imprudentes que fiz, essa era a mais louca. Se alguém tivesse me dito há uma semana que eu estaria pensando em cortar a garganta de Julie, teria nocauteando-o na hora.

Doolittle disse que ela não podia me ouvir. Para manter o loupismo à distância, ele teve que sedá-la totalmente. Queria dizer a ela que a amava, que sentia muito. Que eu faria qualquer coisa, daria qualquer coisa para consertar isso. Mas ela não ouviria.

A porta se abriu. Uma mulher alta e magra entrou. Jennifer. Surpresa.

Sentou ao meu lado. Como ela chegou até aqui? A sala deveria ser restrita.

— Veio para tripudiar? —Eu perguntei.

A loba alfa se assustou. — Você realmente acha que eu faria ...?

— Você me diz.

Jennifer não disse nada. Nós nos sentamos lado a lado e olhamos para Julie. Seu peito subia e descia em um ritmo lento e constante.

— Você já pensou em como a vida é fodida? —Perguntou Jennifer.

— Sim. É por isso que eu tenho um saco de pancadas.

— Penso muito sobre isso ultimamente.

Nós olhamos para Julie mais um pouco.

— Estou grávida, —disse Jennifer. — Quatro meses. Doolittle disse que é uma garotinha.

— Parabéns, —eu disse a ela. Minha voz saiu monótona. — Daniel sabe?

— Sim. Meu cheiro mudou. —Jennifer olhou para Julie. — Toda vez que vejo você, me lembro do modo como Naomi morreu.

— Eu não podia fazer nada de diferente do que fiz.

— Eu sei, —disse ela. — Mas toda vez que vejo você, me faz pensar em todas as coisas que podem dar errado. Eu te odeio por isso.

— Isso é um desafio? —Perguntei, incapaz de manter o cansaço da minha voz.

Jennifer olhou para as mãos.

Ficamos sentadas em silêncio por mais um longo minuto.

— Não vou poder fazer isso. Eu não posso matar minha própria filha se ela se tornar loupina. Isso é tudo que eu penso. Seria meu dever como mãe e alfa e eu simplesmente não vou poder fazer.

— É por isso que há dois de vocês, —eu disse.

— E se ele não puder fazer isso? As coisas acontecem com os alfas. Daniel poderia ser desafiado. Ele poderia lutar contra uma ameaça ao Bando e perder. Se algo acontecer a Daniel e depois a nossa filha se tornar loupina, eu vou ter que matá-la. Então não haverá mais nada. —Ela olhou para mim. — Nada.

Se ela estava procurando por sabedoria, eu não tinha nada para oferecer. — Veja desta forma: se não encontrarmos esse dispositivo amanhã, todos morreremos. Problema resolvido.

Jennifer encolheu os ombros estreitos, os olhos assombrados. — Creio que sim. Eu não pedi para nascer uma metamorfa. Apenas aconteceu. Às vezes você quer bater os pés e gritar: ‘Não é justo’, mas isso não mudará nada.

Eu não pedi para nascer a filha de Roland. Só tinha que viver com isso. O mundo estava arruinado.

Os fanáticos tentavam nos matar e às vezes tínhamos que matar nossos próprios filhos.

— Sinto tanta raiva, —Jennifer murmurou. — Se eu pudesse superar minha raiva, ficaria bem.

Que diabos ela queria de mim? Eu deveria abraçá-la e dizer a ela que tudo ficaria bem, com Julie deitada ali tão perto de morrer?

— Há algo que faço que as vezes me ajuda. —Disse a ela. — Encontre uma hora em que ninguém vai incomodá-la e imagine o pior cenário com o máximo de detalhes que você puder pensar. Deixe-se viver através disso, sinta o medo, sinta a dor. É uma coisa terrível para se passar, mas uma vez feito, a ansiedade desaparece. Nunca desaparecerá completamente, mas deixa você equilibrada o suficiente para continuar a viver.

— Obrigada, —disse Jennifer. — Tentarei isso.

Doolittle entrou no quarto, quieto como um fantasma, e deu um tapinha no meu ombro. Jennifer levantou-se e saiu pela porta tão silenciosamente quanto entrou

— É hora de dar um tempo, —murmurou Doolittle. — Venha. Vou te dar um bom copo de chá gelado.

Levantei-me e o segui até uma pequena sala do outro lado do corredor. Parecia uma cozinha comum: fogão, geladeira, mesa com banco e três cadeiras ... Doolittle apontou para o banco acolchoado. Sentei. Ele pegou um jarro de chá gelado da geladeira e dois copos grandes. Ah não.

O chá gelado derramou no copo. Peguei e bebi. Cinquenta por cento de mel. Talvez mais.

— As pessoas acham que é a fera que nos faz perder a sanidade. —Doolittle provou o chá em seu copo e sentou-se com um sorriso triste. — Eles acham que a besta assumindo nos tornaremos loup. Animais não destroem uns aos outros por puro prazer. Eles não têm assassinos em série. Eles matam, não assassinam. Não, não é a fera em nós que nos faz perder o equilíbrio. É o homem. De todos os animais, somos os mais agressivos e os mais predatórios. Somos obrigados a ser, senão nunca teríamos sobrevivido aos tempos. Você pode ver isso em crianças, especialmente adolescentes. A vida é difícil para eles, então eles atacam e lutam por seu próprio lugar. Homo homini lupus.

— O homem é o lobo do próprio homem?

Doolittle assentiu. — Um sábio dramaturgo romano disse isso uma vez.

— Ele escrevia tragédias?

— Não. Comédias. Muito boas, inclusive. —Doolittle tomou seu chá. — Eu não admiro muito tragédias. É fácil deixar uma pessoa triste ao mostrar-lhe algo trágico. Todos nós reconhecemos quando coisas tristes acontecem: alguém morre, alguém perde um ente querido, o amor jovem é esmagado. É muito mais difícil fazer um homem rir, o que é engraçado para uma pessoa não é engraçado para outra pessoa.

Valentemente bebi meu chá. — Isso é o que eu não entendo sobre os Guardiões do Farol. Eles são pessoas. Eles riem, choram e de algum modo, matam centenas de amigos e vizinhos sem nenhum remorso. Não há emoção envolvida em nada disso.

— Não, minha querida. É tudo emoção, —disse Doolittle. É ódio.

— Contra o quê?

— Eles mesmos, principalmente. O ódio é uma coisa poderosa. As pessoas ficam chateadas com muitas coisas. Empregos frustrantes, pequenos contratempos, horas ruins. As pessoas desejam algo, as pessoas se sentem humilhadas por que outros têm esse algo que elas querem e isso as deixa privadas e impotentes. Tudo isso alimenta o ódio. O ódio cresce mais e mais e se não houver saída para isso, logo transforma a pessoa. Eles andam por aí como uma arma carregada, prontos para disparar se puderem encontrar o alvo certo. Querem machucar alguma coisa. Eles precisam disso.

Ele encheu seu copo e o meu. — Os humanos tendem a segregar o mundo: inimigos de um lado, amigos do outro. Amigos são pessoas que conhecemos. Inimigos são os Outros. Você pode fazer praticamente qualquer coisa com o Outro. Não importa se esse Outro é realmente culpado de algum crime, porque é uma questão de emoção, não de lógica. Entenda, pessoas furiosas não estão interessadas em justiça. Eles só querem uma desculpa para desabafar seu ódio.

Doolittle suspirou. — E uma vez que se torna o Outro deles, você não é mais uma pessoa. É apenas uma ideia, uma abstração de tudo que está errado no mundo deles. Dê-lhes a menor desculpa, e vão te derrubar. E a maneira mais fácil de julgar você como o Outro é encontrar algo diferente em você. Cor da sua pele. O jeito que fala. O lugar de onde é. Magia. O preconceito vem e vai em ciclos, Kate. Cada nova geração escolhe seu próprio Outro. Para os Guardiões, são pessoas com magia. E para nós, bem, são os Guardiões. Nós vamos matar todos eles. Não importa se alguns deles são confusos, ou facilmente conduzidos, ou debilitados. Ou se eles têm famílias. Eles vão morrer. Isso me faz sentir desespero às vezes.

Havia uma tristeza tão profunda em sua voz que me fez querer me abraçar.

— E ainda há almas perdidas como Leslie, tão cheias de ódio por si mesmas que pisoteiam o mundo na ânsia de culpar alguém pela dor. —Ele balançou a cabeça. — Bem, olhe para mim, ficando todo melancólico na minha velhice. Não sei o que aconteceu comigo.

Eu sabia. Estava olhando para o corpo torturado de Julie pelas últimas vinte e quatro horas. Ele olhava para ela e sentia um pesar terrível. Eu olhava para ela e sentia ódio.

— Quando Erra morreu, você pegou alguma amostra de tecido? —Perguntei. — Sangue, cabelo, esse tipo de coisa?

Doolittle olhou para mim por cima da borda do copo. — Por que você não me diz logo o que você está procurando?

— Existe um ritual que pode salvar Julie. Para fazer isso, preciso ser capaz de fazer o que Erra fez. Preciso saber se há alguma diferença entre meu sangue e o dela para descobrir se é possível adaptar o ritual.

— Isso vai levar tempo, —disse Doolittle.

— Você pode mantê-la dormindo por tempo suficiente?

Doolittle assentiu e se levantou. — Siga-me.

Nós andamos pelos corredores, cada vez mais fundo na ala médica. — Este ritual ...você está certa que vai funcionar?

— ‘Certa’ pode ser uma palavra muito forte.

— E se falhar? —Doolittle perguntou.

— Então finalmente vou te deixar em paz e você não terá que me consertar mais.

Doolittle parou e olhou para mim. Por um momento ele pareceu chocado, e então cruzou os braços.

— Não fará nada isso, não agora. Você é meu melhor trabalho. Se alguma vez eu for a uma dessas conferências de medimagia que me convidam, vou levá-la. Olhem senhores! —Ele estendeu as mãos para mim e falou com voz de palestrante.

— Foi atacada por dragões de ossos, demônios do mar, rakshasas e, pior de tudo, desafiada pelo nosso próprio povo, e essas mãos mágicas a mantiveram viva por tudo isso. Olhem para ela andar! Vocês não podem nem sequer vê-la mancar. —Olhou para mim. — Contanto que você não abra a boca, parecerá um exemplo perfeito de uma mulher adulta saudável. Com sua história eles estarão me chamando de milagreiro.

Eu ri. — Prometo ficar de boca fechada.

Doolittle balançou a cabeça, fingindo tristeza. — É má sorte prometer coisas impossíveis. Como está o joelho?

Honestidade agora.

— Dói.

— Vou dar outra olhada quando a onda mágica chegar. Doolittle parou diante de uma porta. — Pronta?

Para quê? — Nasci pronta.

Doolittle enfiou uma chave na fechadura e a rodou com um clique silencioso. A porta se abriu, revelando uma pequena câmara com um barril de metal no centro. Sessenta centímetros de largura por um metro de altura, selados com uma tampa plana.

Doolittle aproximou-se, torceu o fecho de metal e virou a tampa para o lado. O frio agrediu meu rosto. No interior, sacos de gelo vermelho estavam em fileiras.

— O sangue de Erra, —disse Doolittle. — Depois que você e nosso Senhor lutaram com ela, Jim me trouxe seu corpo. Antes de enterrá-la, eu a drenei.


Capítulo 22


SUBI E ME LAVEI DE TODA A SUJEIRA. Doolittle disse que precisaria de pelo menos vinte e quatro horas para analisar meu sangue e o de Erra. Normalmente agora seria o momento em que Voron gritaria advertências para mim das profundezas da minha memória, mas ele estava quieto. Talvez fosse porque eu confiava em Doolittle, ou talvez porque o fantasma de Voron não tinha mais influência sobre mim.

Fiquei sob a água quente, deixando-a correr sobre a minha pele. Julie teria que esperar, e não apenas por Doolittle. Primeiro, tínhamos que encontrar os Guardiões, porque se conseguissem ativar o dispositivo dentro do alcance da Fortaleza, nada importaria. Curran ordenou aos guardas que nos notificasse no momento em que surgissem notícias importantes ou a onda mágica começasse. Eu não sabia quanto tempo tínhamos, mas seja lá quanto tínhamos, queria aproveitar bem. Por tudo que sabíamos, todos nós poderíamos morrer amanhã.

Quando eu abri a porta do chuveiro, o cheiro de carne assada me envolveu. Uma sacola pendurada no gancho da toalha. Com a minha sorte, encontraria dentro dela uma roupa de empregada francesa.

Enxuguei meu cabelo e abri o zíper da bolsa. Um tecido prateado captou a luz e cintilou com um brilho suave, como se alguém tivesse capturado um riacho de montanha cristalino e de alguma forma o prendesse à seda prata e cremosa. Eu corri meus dedos sobre ele, sentindo a fluidez. Tão bonito. Eu vi esse vestido na vitrine logo depois do Natal. O vestido sem alças realmente me fez parar. Havia algo mágico sobre o vestido, algo etéreo e sobrenatural. Não importava o quanto eu olhasse para vitrine da loja, eu não conseguia me imaginar nele. Curran me disse que eu deveria comprá-lo. Eu disse a ele que não tinha lugar para usá-lo e, além disso, onde colocaria minha espada? Ele se lembrou do vestido.

Uma voz minúscula me incomodava de que deveríamos estar lá fora, procurando a ameaça, mas então toda a população mágica de Atlanta já estava procurando por ela. Andrea e Jim juntaram forças, tentando localizar o esconderijo de Shane. A Ordem estava sob constante vigilância. Um metamorfo leão dominador e uma Mercenária barulhenta não fariam muita diferença. Encontrei o secador de cabelo. Um vestido como esse merecia cabelo seco. Se eu estivesse sozinha, já teria ido deitar para economizar energia antes da luta. Mas então as coisas podiam dar erradas amanhã. Tinha que aproveitar ao máximo esta noite.

Vinte minutos depois, com o cabelo escovado, sombra nos olhos e o rímel nos meus cílios, vesti o vestido. Ele abraçava meu corpo, curvando-se sobre os meus seios, entre eles uma pequena flor de cristal, e deslizava sobre a curva dos meus quadris todo o caminho. Uma longa fenda ia do chão até a parte superior da coxa.

Abri a porta. Um par de sandálias transparentes estava no chão. Deslizei meus pés neles. Ajuste perfeito.

Saí para a cozinha. Curran estava à mesa. Ele usava calça cinza e uma camisa branca social. A camisa era semitransparente e se moldava ao torso musculoso como uma luva. Ele se barbeou, e a luz das velas sobre a mesa brincava em seu rosto, jogando leves reflexos sobre sua mandíbula masculina. Parecia quase insuportavelmente bonito.

Parei.

Estava olhando para mim com uma espécie de necessidade que de alguma forma conseguia ser crua e suave ao mesmo tempo. Me tirou o fôlego.

Nós nos entreolhamos, um pouco desajeitados.

Finalmente eu levantei minha mão. — Oi.

— Oi, —ele disse. — Fiz o jantar. Pelo menos eu fiz os bifes. O resto veio da cozinha ... você gostaria de se sentar?

— Sim, gostaria.

Segurou a minha cadeira e eu me sentei. Ele sentou-se à minha frente. Havia algum tipo de comida na mesa e uma garrafa de alguma coisa, provavelmente vinho.

— Você está vestindo uma camisa social, —eu disse. — Eu não tinha ideia de que possuía uma. —A maneira como ele olhava para mim provocou um curto-circuito na conexão entre minha boca e meu cérebro. Camisa social? O que diabos eu estava falando?

— Percebi que combinaria com o seu vestido, —disse ele. Ele parecia ligeiramente chocado.

— Você gostou?

— Muito. Você parece ótima. Bonita.

Nós olhamos um para o outro.

— Nós deveríamos comer, —eu disse.

— Sim. —Ele estava olhando para mim.

O silêncio pairou entre nós. Tinha que saber por que ele estava comigo. Pensei que não importava, mas me enganei.

Encontrei o seu olhar. — Minha mãe tinha um poder que fazia os homens fazerem o que ela quisesse. Ela fez uma lavagem cerebral mágica em Voron. Ela o enfeitiçou e o amarrou tão fortemente que ele deixou Roland por ela. Ela precisava que ele cuidasse de mim. Exceto que ela passou dos limites. Voron ficou tão magoado com a morte dela que nunca se importou comigo. Ele só queria ver o meu encontro com Roland. Ele disse que se assistisse meu pai me matar, seria o suficiente de vingança para ele.

— Como você sabe disso?

— A bruxa, —disse a ele. — Evdokia. Ela e eu somos parentes. Ela está dizendo a verdade.

A expressão de Curran se manteve protegida. — Isso é fodido.

— Antes de você e eu nos casarmos, você e Jim conversaram sobre o que isso significaria para o Bando?

Seria algo que Jim faria. Ele suspeitava o que eu era, se já não tivesse certeza.

— Sim, —disse Curran. Seu rosto ainda neutro.

— O que Jim disse?

— Aconselhou contra. Ele tinha argumentos do porquê isso não era uma boa ideia

Meu coração pulou um pouco.

— Ele também disse que, desde que eu ia fazer isso de qualquer maneira, apesar do que ele dissesse, deveria fazer o mais rápido possível, porque exigia muita mão de obra para me rastrear por toda a cidade. Ele sempre enviava guardas para me seguir e eu normalmente os despistava antes de chegar ao seu apartamento. Disse que a vida dele seria muito mais fácil se eu simplesmente te trouxesse para a Fortaleza.

— É por isso que você me queria aqui?

Curran se inclinou para frente. A máscara que era seu rosto desapareceu. — Eu queria você aqui porque queria estar com você. Para o melhor ou pior, Kate. Você não fez um feitiço de ligação como o que sua mãe fez ao Voron. Você não tem seus poderes. Muito pelo contrário, em todo caso.

Tudo ou nada. — Você sabia que Roland era meu pai antes que eu contei?

— Sim.

De repente eu estava gelada.

— Como?

— Quebrar a espada de Roland foi uma grande pista, —disse ele. — Jim obteve algumas fotos de Roland. Você se parece com ele. E há uma história flutuando sobre uma criança que Roland supostamente matou. Eu coloquei dois e dois juntos.

Eu tinha agoniado em dizer quem eu era. Levou cada fragmento de vontade para admitir isto, e ele já sabia de tudo. — E você me deixou sentar lá e contar tudo sobre isso, quando você já sabia?

— Era importante, —disse Curran. — Você tinha que fazer isso, então eu escutei.

— Você levou em consideração quem eu era antes de me oferecer o acasalamento?

Curran se inclinou para frente. Um brilho fraco tocou seus olhos e desapareceu. — Claro que sim.

E aqui estava. Pelo menos ele não mentiu. No fundo eu sabia disso. Curran estava acostumado demais a calcular as probabilidades. Como Evdokia disse, não era sua primeira vez no rodeio do amor. Não é como se ele tivesse caído de cabeça para baixo nesses sentimentos, do jeito que eu fiz.

— Eu tenho uma série de casas seguras em todo o país, —disse ele.

Eu devo ter ouvido mal. — O que?

— Tenho uma casa segura em quase todos os estados. Tenho mais do que dinheiro suficiente para nos manter confortáveis pelo resto de nossas vidas, se precisarmos sair. Eu movi a maioria dos meus investimentos para lugares fora do Bando.

— Do que você está falando?

— Eu sei que ele está vindo e você está com medo. Se você não quiser lutar contra ele, você e eu podemos desaparecer.

Olhei para ele.

— O trânsito em massa acabou. Não existem mais aviões, nenhuma estrada confiável. O mundo é grande novamente, Kate. Ele nunca nos encontrará.

— E o Bando?

Seu lábio superior tremeu, traindo a borda de seus dentes. — Foda-se o Bando. Eu dei a eles quinze anos da minha vida. Lutei por eles, sangrei por eles, e no momento em que minhas costas viraram, eles atacaram minha esposa. Eu não lhes devo nada.

Curran estendeu a mão e cobriu meus dedos. — Estou falando sério. Diga a palavra agora e estamos fora. Podemos levar Julie conosco, se você quiser.

— Jim nos encontraria.

— Não. Eu cobriria meus rastros. Se Jim nos encontrar, ele se arrependerá. Além disso, Jim é um amigo. Ele entenderia e ele não seria muito duro conosco.

Não era um blefe. Eu ouvi a verdade em sua voz. Ele faria isso. Ele iria embora. — Você deixaria todas essas pessoas, todas as reverências e as ...

Seus olhos cinzentos olhavam nos meus. — Se eu lutasse por eles e ficasse machucado, todos diriam coisas boas na minha frente e então eles me substituiriam e esqueceriam de mim e o que fiz. Você ficaria comigo. Você cuidaria de mim, porque você me ama. Eu também te amo, Kate. Se você se machucar, não vou te deixar. Estarei lá. Onde quer que você queira viver.

Senti vontade de chorar. Ótimo, ele me transformou em uma fracote chorona.

— Você gostaria de ir embora? —Ele perguntou.

Engoli. — Não a menos que você queira.

— Então nós vamos ficar. Por agora.

— Sim.

— Tudo bem, —disse ele.

Eu tive sorte. De alguma forma, talvez por causa de toda a merda desarrumada que o Universo jogou na minha direção, eu o encontrei. Ele era meu, completamente meu. E me amava.

Construí barreiras entre nós e ele derrubou-as todas heroicamente. Se era por medo ou desconfiança, ou por qualquer outra razão, eu tinha que parar de fazer isso.

Olhei para baixo, analisando as velas. A comida estava esfriando, nossos pratos ainda vazios. — Você acha que elas dão conta de manter nossa comida quente?

Ele levantou-se em um pulo. — Claro que sim.

*

AS VELAS NÃO AGUENTARAM. Quando voltamos para a cozinha, as velas tinham pingado cera sobre o candelabro. Cutuquei meu bife, morno. As batatas assadas estavam frias. A espiga de milho mal aquecida. Não me importava.

— Estou faminta,

— Tem que manter suas forças. —Curran sorriu. — Então você pode acompanhar meu ritmo.

Apertei a mão na minha garganta e fiz alguns barulhos estrangulados. — Ajude-me, eu não posso respirar, seu ego está empurrando todo o ar para fora da sala.

Ele riu.

— Este menu parece muito familiar, —eu disse, carregando meu prato. Mudei para um moletom completo. Meu vestido tinha sido descartado de qualquer maneira e, além disso, tínhamos concordado em levar nossos pratos de volta para o sofá e eu não queria que caísse comida nele.

— Hum rum, —disse Curran, espetando um pedaço de carne. — Torta de maçã está na geladeira.

Ele recriou o menu do jantar que eu serviria a ele nua. Ha!

— Como você sabe o tamanho do meu sapato?

— Eu vi seu pé de perto várias vezes. —Curran apontou para seu peito. — Eu o vi aqui. —Ele moveu a mão para sua mandíbula. — Aqui. —Ele tocou o lugar sobre sua bochecha onde meu chute tinha o cortado. — E aqui.

Ah, ah, ah. — Você gostaria de assistir a um filme enquanto comemos?

— Pode ser. Que tipo de filme?

— Tem tudo no filme: ação, drama, comédia, trilha sonora linda. Um ator quente, todo macho alfa.

Suas sobrancelhas grossas subiram um centímetro. — Esse último não é exatamente um incentivo.

— Ciumento dos atores agora?

— O que? De algum menino riquinho na tela? Inconcebível.

Ah, isso ia ser bom.

Levamos nossos pratos para a mesa de café ao lado do sofá e eu deslizei o disco de Saiman no aparelho. O armazém cheio de carros solidificou na tela. O rosto de Curran ficou neutro.

Quando as primeiras notas da música soaram pela sala, ele olhou para mim. — Ele colocou música?

— Suas palavras exatas foram: 'ele implorou por uma trilha sonora’.

Uma Ferrari voou pela tela e colidiu com a parede. Curran parecia impassível.

Mastiguei um pedaço do meu bife. Tinha que ser o melhor bife que eu já comi. — Lembro-me de um certo homem gabando-se de seu controle sobre-humano.

— Mostrei notável autocontrole.

— Você destruiu cinco milhões de dólares em carros de luxo.

— Sim, mas nenhum deles está usando cabeças humanas como enfeites de retrovisor.

Caí sobre as almofadas. — Então você quer crédito por não repintar o lugar com sangue?

— Os guardas sobreviveram. Saiman está vivo. Diga-me que isso não é autocontrole sobre-humano. —Curran me puxou perto dele e beijou meu pescoço onde se encontrava com meu ombro. Humm.

— Onde você conseguiu isso? —Sua voz era casual demais para o meu gosto.

— Essa fonte que Jim está se referindo é Saiman. Ele está até os joelhos nesse problema. Ele deixou algumas evidências na casa de Kamen e eu o conectei ao caso.

— Você foi vê-lo? —Perguntou Curran.

Aviso: perigo à frente. Rochas caíndo, todo mundo morre.

— Sim.

— No apartamento dele?

— Sim.

— Onde está Saiman agora?

— Não tenho certeza. Embaixo da cama? Talvez você devesse procurar no armário.

— Kate!

Eu ri. — Você tinha que ver sua cara. Não confia em mim?

— Eu confio em você, —disse ele. — Só preciso conversar com ele.

Arram, Conversar. Sua Majestade, Mestre da Negociação. — Levei Derek comigo quando fui vê-lo. Saiman está com tanto medo de você que nem queria nos deixar entrar. E os Guardiões mandaram uma equipe ao apartamento de Saimam para acabar com todos nós. Como você pode ficar com ciúmes dele? É como se eu estivesse com ciúmes de Myong. —Não que sua última ex namorada não inspirasse ciúmes. Ela era uma mulher deslumbrante, elegante, bonita de uma maneira exótica. Ela era também frágil como um delicado enfeite de vidro.

— Nada aconteceu entre mim e Myong, —disse ele.

Eu revirei meus olhos. — Certo.

— Estou falando sério. Não que eu não quisesse na época, mas eu tentei beijá-la uma vez e ela ficou com um olhar de cervo assustado no rosto. Tive a sensação de que se eu fosse mais longe, ela fecharia os olhos e rezaria para que tudo acabasse logo, então recuei.

— Talvez eu devesse verificar o armário para ver se a linda Myong está escondida lá, já que você é tão quente por ela ...

Ele piscou. Que ver se meu pé tem sabor?

— Blá blá blá.

— Você é tão eloquente, Vossa Majestade. Tão gentil e generoso com seus assuntos. Tão cheio de respostas rápidas.

— Não se esqueça de brutalmente honesto. Em meu próprio detrimento, inclusive.

— Aí sim. Exageradamente honesto.

— Você nunca me disse onde Saiman está escondido.

Levei meu prato para a cozinha.

Ele me seguiu. — Você gosta de me atormentar, sabia? Saiman, aquele mago russo, aquele mercenário ...

— Que mercenário?

— Bob.

Destruí meu cérebro. Eu mal disse duas palavras para Bob. — Ele parou na nossa mesa para me perguntar para quem eu votaria nas eleições do Associação de Mercenários. Eles ainda não decidiram quem está no comando, e eu estou tecnicamente na lista.

— Sim. Ele tinha que se inclinar sobre você enquanto falava?

— Ele estava tentando deixar Mark pensar que eu e ele éramos amigos.

— E você não é.

Joguei um pão nele. Curran pegou-o no ar.

— Você gostaria que eu carregasse um pedaço de pau? Posso cutucar as pessoas para longe quando elas chegarem perto demais.

— Isso é uma boa ideia. —Ele esticou o braço para frente. — Se você puder estender seu braço e tocá-los com o bastão, eles estarão muito próximos.

— Você é louco.

— Se eu sou louco, o que você é?

— Uma terrível juíza de caráter.

Voltei para o sofá. Poderia ter me apaixonado por alguém firme. Confiável. Equilibrado. Mas nãooo, eu tinha que perder a cabeça por causa desse idiota.

Curran atacou. Foi um excelente ataque, executado com velocidade sobrenatural. Ele me prendeu no sofá. — Diga-me onde está Saiman.

— Ou o que?

— Ou eu vou estar descontente.

Revirei meus olhos. — Ele é paranoico, Curran. Quando Jim e eu estávamos lidando com os rakshasas durante os Jogos da Meia-Noite, Saiman entrou no ringue para plantar um rastreador em um oponente rakshasa. Ele estava tão apavorado que mal conseguia se mexer. O rakshasa o cortou e Saiman estalou. Ele bateu o rakshasa até a morte e continuou batendo em seu corpo por cerca de cinco minutos. Quando ele finalmente se acalmou, sobrou apenas mingau. Eu sei que você pode com ele. Eu também posso com ele. A questão é por quê? Por que fazer um inimigo dele? Você tem que matá-lo agora ou parar de brigar com ele, e se você resolver matá-lo, então sou realmente uma péssima juíza de caráter.

Curran rosnou e se sentou ao meu lado.

— Ele quer que a pressão de ser seu inimigo acabe. Ele está preparado para acalmar seu ego. Nos deu tudo o que sabia sobre Kamen e o dispositivo por este exato motivo e ele espera que você peça mais.

— Meu ego não precisa ser acalmado por ninguém, —disse Curran. — Eu não quero que ele acalme qualquer coisa minha, incluindo você.

— Jim o escondeu em uma das casas seguras. Faça o que você quiser.

Eu olhei para ele.

— O quê? —Ele rosnou.

— Esperando para ver se você vai passar comigo a última noite antes do Apocalipse ou vai atrás de Saimam e bater em sua bunda.

Curran me alcançou. — Ele vai esperar. Não há pressa.

— Mantenha suas mãos para si mesmo. Você disse que não precisava de ninguém para te acalmar.

— Mudei de ideia. Além disso, sou o protagonista masculino quente do filme. Atores pegam todas as garotas.

Ele me beijou.

— Você ainda está pensando em fazer o ritual de Julie?

— Sim, —eu disse a ele honestamente.

— Não, — disse ele.

Eu caí para frente. — Eu tenho que pelo menos tentar. Você vai tentar me impedir?

— Não. Você tomou uma decisão e está seguindo em frente. Eu não gosto disso, mas vou ajudá-la, porque você é minha companheira e eu esperaria o mesmo de você. —Curran fez uma careta. — Seria pior se você sentasse em suas mãos e gemesse por não saber o que fazer. Eu não conseguiria lidar com isso.

Esse era o caminho do Senhor das Feras: muitas vezes errado, mas nunca em dúvida.

— Já que estamos falando disso, —disse Curran. - Na parábola o homem empurrou o sangue de volta para a ferida e falou as palavras que obrigaria o lobo a obedecê-lo para sempre. Se você fizer isso, Julie nunca será capaz de desobedecer a uma ordem direta sua. Você estará fazendo uma escrava.

Olhei para ele. — Pensei sobre isso. Eu não sei se é necessário para o ritual falar a palavra de poder, mas eu não posso perder essa chance. Vou ter que fazer exatamente do jeito que Roland fez.

— Ela nunca pode saber, —disse Curran. — Olha, estou no comando de pessoas há muito tempo. Confie em mim, você não pode tirar o livre arbítrio de Julie. Se fizer esse ritual, isso terá que ser o seu segredo e você vai ter que aprender a viver com ele. Tem que ser forte o suficiente para esconder isso dela e isso significa pensar duas vezes antes que qualquer instrução saia da sua boca.

Esfreguei meu rosto. Ele estava certo. Se Julie desconfiasse de que ela não tinha escolha quanto a me obedecer, eu a perderia. As coisas mais naturais como, ‘Não, você não pode sair para a floresta com Maddie no meio da noite’ agora teria que se tornar ‘Eu preferiria que você ficasse em casa.’ Teria que fazer um duro esforço nessa direção.

— Vou lidar com isso, —eu disse. — Quero ela viva, o resto descobriremos ao longo do caminho.

A magia rolou sobre nós como um cobertor sufocante.

A contagem regressiva havia começado. Tínhamos dez horas e cinquenta e nove minutos.

Alguém bateu. Curran foi até a porta. De onde eu estava, pude ver seu rosto de perfil. Sua boca se curvou. Ele voltou, rindo para si mesmo.

— Sim?

— As bruxas lhe enviaram um presente.

*

MEU PRESENTE ESTAVA ATRÁS DA MESA DA PEQUENA sala de conferências. Escondia-se nas dobras de um manto escuro. Apenas a mão era visível, uma pequena mão feminina com unhas bem cuidadas que segurava uma colher, mexendo o chá em um copo azul. Jezebel encostada na parede oposta, olhando para a mulher encapuzada como se ela fosse um dragão cuspidor de fogo. Barabas esperava na porta. Ele me viu e sorriu. Era um sorriso afiado e desagradável, como um gato que finalmente pegou o rato e estava prestes a torturá-lo até a morte.

E agora o que foi?

Puxei meu cabelo em um coque e me dirigi para dentro. Barabas me entregou um bilhete de Evdokia escrito em russo. Li:

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‘Um presente para você, Katenka. Me agradeça depois’. Cuidado com presentes de Baba Yaga, eles vinham amarrados a um preço, e às vezes, se você os pegasse, acabava no forno como jantar.

— Ela veio sozinha?

— Não, as filhas de Evdokia a trouxeram. —O sorriso de Barabas ficou maior. — Pesquisei a família. Edvokia e Grigorii têm cinco filhos. Eles são sua própria máfia russa privada.

Entrei pela porta e sentei-me à mesa. A mulher puxou o capuz para trás, expondo uma riqueza de cabelos vermelhos brilhante. Rowena.

Se ela tivesse tirado o capuz e se transformado em Medusa com a cabeça cheia de víboras, teria ficado menos surpresa.

Nós olhamos uma para a outra. Um rubor vermelho febril coloriu suas bochechas. Olhos vermelhos, nariz inchado. Delineador ligeiramente manchado. Rowena esteve chorando. Essa era a primeira vez que a vi assim. Rowena mantinha a compostura, não importava o que acontecesse.

O teto poderia desmoronar e ela sorriria enquanto os pedaços caíam e pediria tranquilamente que você fizesse o favor de se mover em direção à saída.

— Tudo bem, —eu disse. — Quero uma explicação. Agora. O que você está fazendo aqui?

Rowena engoliu em seco. — Bozydar, o Oficial navegador que se matou hoje na reunião, era meu sobrinho. Estou banida da navegação até terminarem a investigação. Eu serei inocentada de todas as acusações e eles me restabelecerão.

— Você parece muito certa disso.

Rowena fungou. — Ghastek é ambicioso. Nataraja não durará muito mais tempo, alguma coisa aconteceu, e ele se esconde principalmente em seus aposentos agora. Ghastek e Mulradin estão temporariamente comandando tudo e cada um deles quer estar no topo. Eles estão se esforçando para formar alianças. Estou em terceiro lugar na hierarquia e em quarto no poder, e apoio a Ghastek. Ele não pode se dar ao luxo de me perder.

— Então porque você está aqui?

— Bozydar tinha uma namorada, —disse Rowena, sua voz pouco acima de um sussurro. — O nome dela é Christine. Ela fazia qualquer coisa por ele. Ela o amava muito. Falei com ela. Ela disse que meu sobrinho havia sido recrutado pelos Guardiões anos atrás, quando meu irmão e sua esposa morreram. Eles estavam na Rota 90 atravessando o Mississippi, quando as pontes desmoronaram devido à erosão mágica. Eles se afogaram. Bozydar foi puxado para fora do rio em coma. Antes de eu encontrá-lo ele esteve em um orfanato. —Rowena apertou as mãos. — Sofreu muito abuso. Fizeram coisas abomináveis com ele. Dei a ele uma chance de vingança, mas eu não percebi que a vingança não seria o suficiente.

Ela ficou em silêncio. Esperei pelo resto.

— Ele estava trabalhando para os Guardiões, e Christine o ajudou, —disse Rowena. — Ela estava enfiada até os joelhos. Encobria-o, dava-lhe informações privilegiadas e tudo o que ele pedia, ela fazia.

— Ela é um membro dos Guardiões?

Rowena sacudiu a cabeça negando. — É apenas uma garota tola que estava apaixonada por um garoto quebrado. Quando Palmetto foi atingida, ela ficou horrorizada.

Aposto que sim.

Rowena agarrou seus dedos finos com tanta força que suas unhas bem-feitas deixaram marcas vermelhas em sua pele. — Fomos publicamente constrangidos e Ghastek está procurando um bode expiatório. Se ele descobrir o que Christine fez, ele vai expulsá-la. Oficiais navegadores expulsos não vão para casa, Kate. Eles desaparecem. Um dia, ela não estará presente para o seu turno e logo o novo horário será publicado e todo mundo saberá o que aconteceu com ela. Ghastek irá matá-la, Kate, só para demonstrar que ele é capaz de fazer com que os problemas desapareçam.

Eu ainda estava esperando pela piada.

— Christine está grávida de cinco meses, —disse Rowena.

Ah! Aqui vamos nós.

— As pessoas da minha família têm dificuldades com a fertilidade. Eu tenho tentado ter um filho por anos. Até agora falhei. Bozydar era o único parente que eu tinha. Agora ele está morto e seu bebê é minha única família. Você tem alguma família, Kate?

Agora ela fez uma pergunta pesada. — Não.

Ela se inclinou para frente, os olhos arregalados e desesperados. — Este bebê não nascido é tudo para mim. Não posso proteger Christine. Mesmo que eu lhe dê dinheiro e mande-a embora, Ghastek a encontrará. Ele pode ser assustadoramente persistente.

Finalmente coloquei dois e dois juntos. — Então você foi para as bruxas.

— Sim. —Murmurou Rowena. — Sim eu fiz. Minha família tem raízes nesse mundo. Então eu fui e ofereci aos covens tudo o que eles queriam para esconder Christine.

Ela deve estar realmente desesperada. — Qual foi o preço?

Rowena olhou para mim. — Três anos de serviço. Para você.

— Não entendi?

— Elas me ligaram a você por três anos. Fiz um juramento de sangue. Farei o que precisar e jurei jamais falar disso. Ela levantou a mão. Uma cicatriz fresca cortava sua palma. — Eu não sei o porquê elas quiseram fazer esse pacto e se Ghastek descobrir que eu ajudei Christine ou que eu andei aqui, estou morta. Então, te pergunto, —Rowena se inclinou sobre a mesa. — Como posso te servir?

Apoiei o cotovelo na mesa dobrando os meus braços e encostei meu queixo em minhas mãos. Respirei fundo. Ter acesso a um necromante qualificado era como encontrar munição ao acaso no meio de um tiroteio. Aqui estava a minha chance de aprender e treinar. Eu precisava dela desesperadamente. Infelizmente eu confiava nela tanto quanto a minha certeza que poderia vencê-la em uma disputa. Eu era forte e ela era pequena e rápida, mas não rápida suficiente.

— O problema é que eu não confio em você, —eu disse.

— Eu também não confio em você, —disse ela. — Mas se eu não fizer o que elas determinaram a vida de Christine estará perdida.

— Elas fizeram você jurar na frente de Christine, não foi?

Ela assentiu. — Ela estava bem ali. Ficou ali enquanto eu jurava. Ouviu cada palavra. Se elas a matarem, saberá que é porque eu falhei.

Nota mental: evite como se evitasse a peste estar em dívida com as bruxas.

— Seja o que for que você quiser, Kate, farei isso. Não importa o quanto ruim for. Mesmo que isso signifique me degradar e me humilhar ...

Maravilha. Quem ela achava que eu era exatamente? — Acho que vamos começar com a humilhação, passar para a degradação e talvez fazer alguma tortura para finalizarmos com estilo. —Olhei para Jezebel. — O nosso torturador está na Fortaleza?

Rowena abriu a boca, parecendo prestes a dizer algo desagradável, mas deve ter pensado melhor, porque fechou a boca.

— Qual o seu nível em necromancia?

Ela se endireitou. — Sou uma Mestre dos Mortos de Terceiro Calibre, Nível Dois, o que significa que posso segurar simultaneamente três vampiros e efetivamente pilotar dois na ocasião. Passei por todos os exames prévios. Sou a terceira na hierarquia e o quarto em poder em Atlanta e a septuagésima primeira no total entre os Navegadores da Nação. Mas a fila é enganosa, já que quando se está tão alto, as diferenças entre os postos são mínimas. Por exemplo, o alcance da pessoa que está acima de mim é apenas vinte centímetros maior que o meu. Tenho o escudo da Legião de Prata. A Legião de Ouro é ...

— Os cinquenta melhores de Roland, —terminei. — Você tem que subir a escada, correto? — A escada era a maneira que Roland promovia a educação entre a Nação. Cada passo da escada consistia em um trabalho sobre magia, necromancia ou filosofia. Alguns passos estavam nos livros, outros em pergaminhos. Depois de dominar um passo, você fazia um teste para provar seu conhecimento. Quanto mais etapas, maior o pagamento.

Os olhos de Rowena se estreitaram. — Sim, a escada do conhecimento. Você tem que completar dez para ser classificado como um Navegador de Segundo Calibre, e vinte e cinco para obter o título de Mestre. Como você sabe disso?

— Quantos passos você completou?

— Oitenta e nove, —disse ela.

— E Ghastek?

— Cento e sessenta e cinco. —Ela fez uma careta. — O homem é uma máquina. Como eu disse, Ghastek pode ser extremamente persistente. Se você está pensando em me usar contra ele, eu vou obedecer, é claro, mas você deve entender que, embora eu possa machucá-lo, ele vencerá essa luta.

— Quando Roland fez Arez, ele usou um ritual para livrá-lo do loupismo. A técnica envolve retirar o sangue de uma pessoa e purificá-lo. Você está familiarizado com isso, Rowena?

— Sim.

— Fale-me sobre isso?

— É o mesmo processo que ele usa para criar seu escolhido, — disse ela. —Você recebe um presente que é seu sangue e poder, mas em troca estará ligado a ele para sempre. Ele não faz isso frequentemente.

— Hugh d'Ambray está vinculado a ele?

— Sim.

Pensei mais um pouco. Tanto Arez quanto Hugh tinham sido Mestres da Ordem dos Cães de Ferro e estavam vinculados a Roland, Voron também deveria estar preso. Foi por isso que minha mãe ficou para trás para lutar contra Roland. Voron não conseguiria desobedecer a uma ordem direta de Roland. Se meu pai tivesse ordenado que ele me entregasse, Voron teria feito isso, ele não tinha escolha.

— Você já viu isso ser feito?

Ela balançou a cabeça. — Só o que eu li.

— O uso da palavra de poder da obediência é necessário?

— Sim. Isso é o que lhe dá controle sobre o sangue, uma vez que é removido do corpo.

Me inclinei para trás. Não havia maneira de contornar isso. Se ela sobrevivesse, Julie estaria ligada a mim para sempre.

— Kate, é um ritual muito difícil. Outras pessoas, membros de alto escalão da Legião de Ouro, tentaram e falharam. Você não pode simplesmente fazer algo assim. O sangue e o poder de Roland são únicos.

Sim. Sim.

Rowena continuou falando. — Eu o conheci quando fui iniciada na Legião de Prata. A magia que irradia através de seu sangue é diferente de tudo que já senti.

À direita, Jezebel revirou os olhos.

— É como conhecer um deus pessoalmente. Está ... não consigo nem descrever isso.

Me perguntei o que ela faria se eu cortasse meu antebraço, mergulhasse meus dedos no sangue e tocasse sua mão com ele. Seria algo assim?

Aposto que ela iria pular.

Eu dobrei meus braços no meu peito. — Só me fale sobre o ritual, Rowena. Isso é tudo que preciso agora.

Ela estava olhando além de mim. Virei-me e vi Curran olhando através das portas de vidro, irradiando ameaça. Ele abriu a porta. — Os Guardiões foram vistos na Nameless Square. Preciso de você.

Olhei para Jezebel. — Dê a nossa convidada uma folha de papel. Depois que ela anotar tudo sobre o ritual, certifique-se de que saia em segurança.


Capítulo 23


AGACHEI-ME ATRÁS DE UMA ENORME ROCHA QUE SAÍA da calçada de concreto como a popa de um navio afundando. À esquerda, um prédio abandonado se erguia na rua, a cerâmica da fachada e os tijolos se transformaram em pó há muito tempo. Apenas um esqueleto enferrujado da estrutura permanecia, empurrando grades marrons para o céu da manhã iluminado pelo sol. Lá embaixo, os destroços do centro da cidade eram visíveis: edifícios antigos reduzidos a montes de escombros e ruínas abandonadas, entrecruzados por estradas, antes ocupadas, agora na maior parte destruídas e estruturas de blocos grossos nascidas da nova era. À direita, a cúpula dourada do edifício do Capitólio do Estado da Geórgia captava a luz, a estátua de cobre da Senhorita Liberdade104 em seu topo empurrando sua tocha para cima. À esquerda, ao longe, Unicorn Lane fervia com magia selvagem. O ar brilhava ali enquanto uma névoa negra se erguia entre os arranha-céus caídos, marcados por manchas berrantes de vegetação mutante e mágica.

Olhei o horizonte. Nada.

A pista em Nameless Square acabou por ser um fiasco. Alguém teve um vislumbre de um grande cilindro de metal e soou o alarme muito cedo. O cilindro de metal era um enorme purificador de ar sendo instalado no Capitólio como um sistema de auxílio, no caso dos purificadores já instalados pararem de funcionar.

Desde então, estivemos em meia dúzia de pontos dentro da cidade. Os magos vasculhavam atrás dos os guardiões e de vez em quando levantavam um alarme aqui e ali. Todas as pistas pareciam serem promissoras, mas todas eram falsas. Nós estávamos jogando Whack-A-Mole105 e estávamos quase sem tempo.

Olhei para o sol. Por volta das dez. Faltavam quatro horas? Menos? Atlanta era uma enorme besta dispersa. Cada ruína era um esconderijo em potencial.

Eu não vi Jim, Andrea ou Derek desde ontem. Isso me preocupava.

Abaixo de mim, Curran se ajoelhou, saltou três metros no ar, pousou na calçada, deu outro salto, depois outro, e pousou ao meu lado.

— Eu Kate. Você Tarzan?

— Não. —Curran mostrou os dentes para mim. — No primeiro livro, ele pega um leão pela cauda e puxa-o. Nunca vai acontecer. Primeiro, um leão adulto pesa quinhentos quilos. Segundo você pega meu rabo, eu me viro e arranco sua cabeça. —Ele olhou para cidade.

— Nada, —disse a ele.

Curran acariciou minhas costas. — Quando a contagem regressiva for de uma hora e ainda não soubermos onde está, quero que você saia.

Virei-me para ele.

— As crianças estão fora da Fortaleza, —disse Curran. — Eles foram enviados durante a noite para a Floresta. —A Floresta, também conhecida como Floresta Nacional de Chattahoochee, servia como terreno de caça para o Bando.

Curran havia comprado um contrato de arrendamento de cem anos e, uma vez por mês, cada metamorfo fazia uma peregrinação ali para correr entre as árvores, totalmente transformados em seu animal. — Eles têm ordens para se espalhar. Julie está em Augusta106 sob forte sedação. Barabas e dois dos nossos guardas estão com ela.

— Vou ficar, —eu disse a ele.

— Não. —Seus olhos estavam claros, sua voz calma. — Você me deve por concordar com o ritual. Se a contagem regressiva chegar a uma hora e ainda não tivermos pistas, você sairá. O Bando deve ter um alfa. Você vai assumir. Os betas de cada clã foram evacuados, eles estão espalhados por todo o estado. Eles serão seu novo Conselho.

O medo agarrou minha garganta e apertou, esmagando. Em um piscar de olhos eu poderia perdê-lo. — Eu não posso comandar o Bando, Curran. Você está enganado.

Ele olhou para mim. Não estava me dando um olhar duro; Ele apenas olhou para mim. — Eu preciso que você me diga que fará isso. Nenhum argumento, nenhum heroísmo besta. Apenas faça isso por mim.

— Por quê?

— Porque eu quero que você esteja segura. Quero que você sobreviva e se eu não estiver lá para protegê-la, o Bando será o melhor lugar para você. Prometa-me, —disse ele.

— Tudo bem, —eu disse a ele. — Mas se os encontrarmos, vou ficar até o fim.

Uma explosão brilhante de verde floresceu à direita. Sul. Uma nova pista. O que estava ao sul do Capitólio? ...

— O aeroporto?

Curran amaldiçoou.

*

ANTES DA MUDANÇA, O AEROPORTO DE HARKSFIEL-JACKSON servia como o eixo principal a todos os voos para o sul dos Estados Unidos. Com quase cinco quilômetros de largura e rodeado por estradas por todos os lados, o aeroporto tomava uma enorme parte do lado sul da cidade. O maldito lugar era tão grande que um trem fazia linha através dele. Se você estivesse indo para o sul, teria que parar em Atlanta e pegar o trem antes de chegar ao outro lado.

A Mudança modificou tudo isso. A indústria da aviação comercial levou um século para crescer e apenas cinco minutos para morrer. A primeira onda mágica derrubou cinco mil aviões no céu de uma vez. Quando a noite chegou, o aeroporto estava acabado.

A estrutura não ficou abandonada por muito tempo. Quando a MSDU entrou oficialmente em vigor, batizada no sangue dos Distúrbios dos Três Meses, a Unidade local assumiu o aeroporto, transformando-o em uma base fortificada e no QG de operações militares para o sudeste. Ao longo das décadas que se seguiram, as forças da MSDU continuaram a aumentar constantemente as defesas do aeroporto, transformando-o em uma fortaleza completa.

Enquanto dirigia por uma estreita estrada de acesso, pude ver a borda das pistas, o saguão e, além deles, a torre de controle branca e brilhante. O lugar parecia impenetrável. O longo prédio cinza do terminal estava repleto de máquinas de cerco e metralhadoras, auxiliados por guaritas de concreto. A cem metros de distância, a segunda fila de guaritas vigiava o saguão. Entre as guaritas e nós tinham cerca de quinhentos metros de chão limpo. Nada além do antigo asfalto das pistas e grama acastanhados, ceifada a simples penugem. Sem cobertura, sem abordagem segura, nada.

Três Proteções brilhavam no ar. A primeira embainhava a torre em um casulo translúcido azulado. A segunda subia logo depois das guaritas. Fios brilhantes de magia pálida passavam por elas, girando como cores em uma bolha de sabão. A terceira e última Proteção, uma parede translúcida tingida de vermelho, estendia no comprimento do campo.

Por que as três Proteções estavam ligadas? A MSDU geralmente não se preocupava em ativar os feitiços defensivos, a menos que eles tivessem que conter algo desagradável, e mesmo assim, apenas o perímetro e a Proteção do campo da morte ficavam ativos. Eu podia ver o campo de morte à esquerda, nenhum feitiço o protegia. O que diabos estava acontecendo?

— Os Guardiões poderiam ter atacado a MSDU? — Murmurei.

Curran agitou-se no banco do passageiro. — Se eles tiverem, o dispositivo está na torre.

Eu colocaria o dispositivo em algum tipo de depósito em um local esquecido, mas se os Guardiões de alguma forma reivindicassem a base, eles escolheriam a torre. Eles sabiam que estávamos chegando. A torre era um excelente lugar para a última parada. Coloque bastantes atiradores com bestas no topo e todos pareceríamos ouriços, cravados de flechas quando chegássemos a ele. Presumindo que conseguiríamos passar por todas as outras defesas primeiro.

— A Proteção vermelha é uma segurança, —eu disse. — Não é muito difícil de quebrar. Com todo o nosso poder mágico, podemos quebrá-lo em quinze, vinte minutos. Nós passamos por ele, e ele vai se fechar bem atrás de nós. Ficaremos presos entre essa Proteção e o que quer que esteja nas guaritas da frente.

— Como você sabe?

— O vermelho é mais opaco perto do chão, o que significa que a magia está concentrada lá. Isso geralmente é uma marca de um feitiço de segurança. As Proteções adequadas têm espessura uniforme, como as que eu costumava ter no meu apartamento.

Eles podem ser abertos ou fechados, mas uma vez que eles quebram, levam várias ondas mágicas para se regenerar. Este vai se regenerar quase de imediato.

— Suas Proteções também eram transparentes, —disse Curran.

— Eu poderia fazê-la em cores. As Proteções transparentes exigem mais esforços. Neste caso, eles estão protegendo uma área de cerca de cinco quilômetros de diâmetro. Foi uma questão de dinheiro, o maior alcance com o menor custo. E para as pessoas que não sabem sobre feitiços de proteção, gigantescas cúpulas vermelhas parecem impressionantes.

A estrada de acesso nos levou ao campo. Estava movimentada, os grupos de busca passavam pelas outras duas estradas. Um vampiro completamente coberto de protetor solar rosa subiu em nossa aproximação e acenou com suas garras.

Eu estacionei. No momento em que desci do carro, Andrea estava lá. — Os guardiões tomaram o MSDU.

— Como?

— Lembra de um amigo que chamei quando investiguei o Harven? —Disse Andrea. — Ele tem três filhos. Todos eles cheios de magia. Assim o chamei. —Levantou suas mãos. — Eu sei, sei. Não ia dizer nada para ele. Só iria sugerir que levasse a sua família a uma viagem pela costa ou algo assim. Ele não respondeu o telefone. Assim chamei à recepção de seu prédio. Um homem que eu não reconheci a voz respondeu e disse que meu amigo estava no trabalho. Eu estava perto do seu prédio, assim passei por sua casa. Sua esposa me disse que ele não voltou para casa ontem à noite. Tinha chamado à base, e o MSDU lhe havia dito que o necessitavam durante toda a noite devido a uma emergência. Não acreditei isso. Por isso vim até aqui. Olhe! —Ela empurrou um par de binóculos para mim. — Terceira guarita da esquerda.

Olhei através dos binóculos. Primeiro segundo terceiro ... Uma perna de um uniforme camuflado e uma bota de bico de aço do Exército saíam de trás da guarita. Eu esperei alguns segundos. Não se mexeu. Ou ele estava sofrendo de um ataque súbito de narcolepsia107 grave ou tínhamos um soldado morto. Um corpo assim não ficaria exposto se a base ainda estivesse sob controle militar. Os guardiões devem ter tomado a base.

Passei os binóculos para Curran. Ele olhou através deles.

Jim veio caminhando, seu casaco fluído atrás dele. — O portão está fechado. A Proteção está bloqueando a abordagem.

— Você tentou chamar o número da chamada de emergência? —Perguntou Curran.

— Duas vezes. Sem resposta. A Nação tentou também e nada. A base está desligada. Os telefones estão funcionando, mas não atendem chamadas telefônicas.

— Tudo bem, —disse Curran. — Envie os sinais luminosos. Tragam todos aqui.

Jim se virou e levantou a mão. Um jovem metamorfo correu de grupo em grupo. No final do campo, os magos levantaram seus cajados. Magia estourou, como um grande foguete, e sete explosões verdes estouraram no céu.

*

OS METAMORFOS ALINHARAM-SE AO LONGO DO PERÍMETRO do escudo mágico. Alguns eu conhecia, outros não. Sentei no capô do Jeep. Precisaria da energia para a luta.

Ao meu lado, Ghastek estava de pé, encostado no capô do Jeep, parecendo um pouco esquisito em um terno preto formal e um colete a prova de bala cinza. Dois vampiros sentavam-se a seus pés como gatos carecas e mutantes, ambos cobertos por um brilhante protetor solar verde-limão. Ghastek tinha alcance suficiente para navegar vampiros do outro lado da cidade. Diferente de nós, ele não precisava estar aqui pessoalmente.

— Por que você está aqui? Não deveria estar fugindo em algum ônibus blindado a quilômetros de distância?

Ghastek olhou para mim. — Preocupação por mim, Kate? Isso é novidade vindo de você. Estou aqui porque quando este infeliz caso acabar, as pessoas vão lembrar de quem estáva aqui e quem não estava.

— Eu soube que Mulradin escolheu fugir. —Disse a ele.

Ghastek inclinou os lábios em um quase sorriso. — É um fato infeliz da vida que algumas pessoas valorizam a prudência acima da bravura. Como diz o ditado, a sorte favorece os corajosos.

Ou aos tolos. — Ah, claro, o fato de que, se sobrevivermos, você sair disso vivo parecendo um herói não tem nada a ver com a sua decisão.

Ele arregalou os olhos simulando choque. — Kate, você está certa! Como não pensei nisso antes?

Talvez um dos Guardiões atirasse nele.

Abaixo de nós, Kamen olhava para a Proteção. Dois Volhvs mais jovens o observavam. Ele disse que cerca de vinte minutos antes da ativação, o dispositivo enviaria uma ‘nuvem’ de magia. Em outras palavras: Quando a merda estivesse prestes a acertar o ventilador, receberíamos um curto aviso.

Kamen também disse que levantar o dispositivo do chão estenderia seu alcance em cerca de um quilômetro e meio. Nós pensávamos que os Guardiões estavam mirando o centro da cidade. Estávamos errados. Eles estavam apontando para os bairros densamente povoados na periferia da cidade. A base da MSDU fornecia proteção em caso de emergência. Os imóveis ao lado da Unidade eram altamente caros e o Bando possuía um quarto disso. Era lá que os metamorfos que trabalhavam na cidade construíram suas casas.

Todas as alegações feitas pelo Guardião capturado em Palmetto de que ‘nós lamentamos as mortes de alguns’, foram uma besteira completa. Eles apontavam diretamente para as vítimas.

Acabar com esses bairros arrebentaria a espinha dorsal da cidade. Os cidadãos de centro de Atlanta entrariam em pânico e fugiriam, e os Guardiões poderiam limpar toda a cidade tranquilamente.

Um longo grito desamparado rolou pelo céu. Levantei a minha mão para os meus olhos, protegendo-os da luz do sol.

Um enorme pássaro escuro circulava a cúpula, enormes asas esticadas e aterrissaram no campo distante. Um homem desceu das costas do pássaro e correu até nós. Amadahy, um dos xamãs cherokee.

Amadahy parou perto de Curran. Sua voz chegou até nós. — As guaritas não têm teto. Há uma catapulta em cada uma e um pequeno cheiroballista108. Também há armas.

Há pessoas nas guaritas? —Perguntou Curran.

Amadahy assentiu. — Eles estavam preparando as catapultas enquanto eu voava.

A catapulta lançaria algo desagradável em nosso caminho, e o cheiroballistra nos atiraria com flechas enquanto corríamos tentando evitá-lo. Ótimo.

Thomas e Robert Lonesco vieram ao longo da linha dos metamorfos. Thomas era alto, com mais de um metro e oitenta. Robert, seu cônjuge, era mais sombrio e delicado, com grandes olhos castanhos e um rosto estreito. Eles falavam com Curran.

— Só por curiosidade, o seu amante tem um plano real para romper esta Proteção, ou ele está improvisando à medida que tudo for acontecendo?

— Ghastek, você quer liderar este ataque sozinho?

— Não, obrigado. Estou atrás dos benefícios, não da responsabilidade.

— Então cale a boca.

Robert Lonesco deu um passo à frente para a Proteção e levantou a mão. Atrás dele, membros do Clã Rato formavam cinco colunas, cada coluna com doze pessoas. Robert fechou a mão em um punho. As colunas dividiram-se em uma formação em V invertido109, com Robert à frente e na ponta do V.

Robert tirou o moletom. Por um segundo ele ficou nu, e então sua pele mudou. Os músculos tremeram e esticaram-se como cordas elásticas, e um homem-rato apareceu em seu lugar, uma enorme garra apoiada no chão. Um brilho verde cobria os olhos de Robert. Atrás dele, os ratos perderam a humanidade. Robert levantou o focinho para o céu. Uma voz profunda e irregular se soltou de sua boca. — Em frrrrreennnteee!

Os ratos se agacharam e começaram a cavar o chão. Poeira voou.

— Tática interessante, —Ghastek murmurou.

Nós não precisaríamos quebrar a Proteção. Simplesmente escavaríamos sob ela. Interessante.

Andrea correu até o Jeep e subiu ao meu lado. — Ei.

— Ei.

Equipes de quatro metamorfos começaram a arrastar vigas de madeira e as deitaram atrás dos ratos para reforçar o túnel.

Olhei para Ghastek. — Você não vai ajudá-los a cavar?

Ghastek ignorou. — Um vampiro é um instrumento de precisão, não um trator escavadeira.

As linhas de frente dos ratos haviam desaparecido no chão. Eles só tinham que percorrer cerca de quinze metros ou um pouco mais. A proteção em si era estreita, mas para passar por debaixo dela seria preciso algum esforço.

Vinte minutos depois, o chão do outro lado da Proteção mudou. O primeiro dos metamorfos rato emergiu da poeira.

Algo brilhou em laranja na fenda da janela estreita da guarita. Provavelmente a catapulta por dentro.

O som rolou e uma bola laranja brilhante disparou da guarita sem teto. Ele assobiou pelo ar e bateu direto na coluna do meio, explodindo em líquido laranja. O líquido se espalhou em um amplo arco. Duas outras guaritas seguiram o exemplo, adicionando mais gosma laranja à bagunça. Relâmpago amarelo dançou em sua superfície.

O líquido pegou fogo.

Gritos roucos, meio rosnados, meio ganidos seguidos. Os túneis do nosso lado da proteção lançaram os homens-rato em uma inundação escura. Os ratos escavadores das primeiras filas tinham bolhas onde o pêlo havia sido queimado. Robert foi o último a sair. Seu braço esquerdo era uma confusão de músculos queimados, a pele carbonizada, quase negra. Ele rosnou e caminhou até Thomas. O rato alfa agarrou a mão de seu companheiro e apontou para Doolittle e seus medimagos, instalados no campo atrás de nós.

O fogo se alastrou além da Proteção. Os metamorfos continuaram a transportar vigas de madeira para dentro dos túneis, reforçando-os.

Eu acariciei minha espada. Cada segundo contado.

— Curran não envolve você em suas sessões estratégicas? —Perguntou Ghastek.

— Não, eu estou aqui apenas para ficar bonita. —Curran não precisava de mim. Eu não era um general, não conhecia estratégias militares, eu era uma arma que precisava de um alvo. Organizar grandes grupos de pessoas em uma força de ataque não era minha coisa.

Finalmente as chamas diminuíram. Um grupo de Volhvs se adiantou, liderado por Grigorii. Os druidas se formaram ao lado deles atrás de Cadeyrn, seu líder. Os dois grupos dividiram-se entre os túneis e entraram.

O silêncio reivindicou o campo. As três guaritas mais próximas do túnel brilharam de laranja, prontos e preparados para jogar mais porcaria em nossas cabeças.

Acima do túnel, além da Proteção, o ar tremia como o calor que subia da calçada em um dia escaldante de verão.

— O que é isso? —Ghastek apertou os olhos.

— Insetos.

Os tremores se condensaram em nuvens escuras. Por um longo segundo os cinco enxames ficaram parados acima do solo e, em seguida, atravessaram o campo em direção as guaritas. Os enxames afundaram nas fortificações como se fossem sugados. Seguiram-se gritos agudos. Um homem saiu correndo da guarita da direita, perseguido por uma escura nuvem de insetos, correu três metros e caiu lá de cima. A nuvem se desfez. Ele não se mexeu.

Os Volhvs e druidas emergiram dos túneis e para o aberto.

Ghastek pegou um relógio do bolso e verificou. — Uma hora e três minutos até a ativação.

Levantei-me. Primeira Proteção tinha sido ultrapassada. Faltavam duas agora.

*

A SEGUNDA PROTEÇÃO MÁGICA AZUL PÁLIDA ERA DIFERENTE DA PRIMEIRA. Com menos de três quilômetros de diâmetro, cobria os saguões e os prédios internos do aeroporto. Também parecia espessa e difícil de quebrar. O concreto sólido se estendia por vinte e cinco metros de cada lado da Proteção. Cavar sob ele levaria uma eternidade e estávamos com pouco tempo.

Além da Proteção, uma cerca de arame farpado se erguia. O chão logo atrás parecia que tinha sido cavado a pouco tempo. Impressionante.

À esquerda, um portão se abriu no fundo do saguão, liberando um grupo de animais que tinham cerca de um metro e oitenta de altura até o ombro, escuros, com cerdas afiadas subindo em uma crista ao longo de seus pescoços e corcundas em suas costas. Os animais galopavam ao longo do perímetro interno, inundando o espaço entre a faixa do solo mexido e a Proteção.

— São búfalos? —Alguém perguntou atrás de mim.

A fera líder freou diretamente à nossa frente e baixou a cabeça. A colossal boca se abriu, exibindo pares gêmeos de presas amarelas maiores que meu braço. Um grunhido profundo explodiu de sua boca e rompeu em bufos irritados. Não era um búfalo.

— Javalis, —disse um druida ao meu lado. — Javalis calydonianos110.

Eu lutei com um javali calydoniano antes. Eles são fortes e agressivos como o inferno, e a dor só os irrita. Suas cerdas cortam como lâminas de barbear. Foram necessários quatro mercenários para matar uma fêmea e dois de nós tinham armas automáticas. Havia pelo menos três dúzias de javalis lá fora, e todos eram do sexo masculino. Cada javali tinha pelo menos dois metros do rabo a cabeça. Duas e meia toneladas de pura raiva estúpida. Curran podia matar um em combate individual. Mahon também podia. Fora eles, um metamorfo de tamanho normal não tinha chance. Nem mesmo em meia forma. Os porcos os esmagariam.

Curran veio até mim. Um grupo de alfas o seguiu: Mahon e sua esposa, Martha; Daniel e Jennifer; Thomas Lonesco; Tia B; Jim ...

Curran acenou com a cabeça para a torre. — Você pode quebrar a terceira Proteção?

Olhei para a Proteção. Não eram somente seiscentos metros de distância. Eram seiscentos metros de distância cheios de javalis. — Se você puder me levar até lá.

Meu sangue quebraria quase tudo com magia suficiente. A questão era: eu tinha poder suficiente em mim? Imaginei que iríamos descobrir logo.

Curran sorriu, parecendo um pouco malvado. — Prepare-se para correr.

Daniel e Jennifer entraram na minha frente. Eu olhei para Jennifer. — Você deveria estar aqui?

Seu lábio superior tremeu em um precursor de um grunhido. Certo. Ela faria seu trabalho e eu tinha que fazer o meu.

Derek tomou um lugar à minha esquerda, Jezebel à minha direita. Tia B e Thomas chegaram à retaguarda. Atrás deles, seis metamorfos formavam duas filas, três pessoas em linha. Renders.

Bob dos Mercenários entrou no grupo e ergueu a espada.

Eduardo saiu do túnel, arrastando um enorme saco. Quase dois metros de altura, o metamorfo búfalo era esculpido com músculos grossos, mesmo em sua forma humana. Atrás dele, três membros do Clã Heavy traziam sacos idênticos.

Eduardo deixou cair seu saco no chão. A boca do saco se abriu. No interior, grossos emaranhados de cintos de couro e correntes conectavam uma bagunça de placas de armadura e cota de malha. — Pegue seus sapatinhos de cristal e asas de fada, senhoras.

Os membros do Clã Heavy começaram a separar os emaranhados. Mahon agarrou uma confusão de cintos, arrumou-a no chão e tirou a roupa. Ele respirou fundo, e um urso Kodiak111 gigantesco apareceu, preenchendo os cintos com seu corpo peludo. O arnês o seu redor, esticando e deslizando no lugar. Uma fileira de placas blindadas cobria as costas e os quartos traseiros do urso, abaixando-se nas laterais para proteger os flancos vulneráveis.

Mahon esticou os membros da frente e levantou-se, testando a armadura e caindo de volta. De quatro, ele era pelo menos um metro mais alto que eu.

Ao nosso redor, os homens-ursos, alguns cinzentos, alguns marrons e um branco, erguiam-se. Um metamorfo javali bufou ao lado de um enorme metamorfo alce.

As bestas do Clã Heavy formavam uma linha blindada ao nosso redor, com Mahon na liderança. Eduardo à sua direita, um búfalo colossal de quase dois metros de altura.

Curran me beijou. — Vejo você lá, baby.

— Tente me acompanhar, —eu disse a ele.

Seu corpo se torceu, brotando pêlo. O leão cinzento balançou a juba, piscou para mim e tomou seu lugar à direita de Mahon.

À esquerda, os Mercenários terminaram de martelar longas plataformas de madeira, reunindo tábua por tábua através dos túneis. Eles pensaram da mesma forma que eu, tocar aquela faixa de solo mexido não era uma boa ideia. Algo parecia estranho lá. Não havia razão para cercar a base, a menos que algo desagradável se escondesse nela.

Os magos formaram um semicírculo perto da Proteção, bem entre as duas guaridas mais próximas. Atrás deles, as bruxas formavam sua própria linha, e depois os druidas e os Volhvs. Três vampiros se agacharam no chão de cada guarida, abraçando a terra.

Os magos levantaram as mãos.

— Em três, —um deles falou. — Lembrem-se, na base do escudo de proteção. E três. Dois. Vão.

A energia explodiu dos dez magos, fluindo em uma única corrente luminosa, enredada com flashes de verde e amarelo. A corrente se chocou contra a Proteção, dançando em sua superfície.

Os druidas e os Volhvs levantaram seus cajados. Entre as duas linhas, as bruxas fizeram uma pose rígida, com os braços estendidos. Magia foi derramada dos Volhvs para as bruxas e para os magos. Tanta magia. A corrente tremia, deslizando de um lado para o outro contra a Proteção, como raios enjaulados.

À esquerda, um dos druidas caiu. Então outro. Um Volhv caiu.

Fissuras finas se formaram na Proteção.

A bruxa à esquerda gritou.

Com o som de um prédio em colapso, a Proteção fraturou e quebrou. Partes dela flutuaram até o chão, como fragmentos de gelo pesados de um metro de espessura. O degelo tinha chegado.

Os vampiros atacaram, limpando a cerca com facilidade risível.

As três linhas de magos desabaram no chão.

Os sanguessugas invadiram as guaritas.

Antes do primeiro mago ficar de pé, os vampiros emergiram com as suas garras sangrentas.

À esquerda, um metamorfo jogou uma pedra na faixa de terra mexida. Um brilho verde de fogo saiu do chão, lambendo a pedra. A rocha ficou branca. O brilho desapareceu, deixando a pedra queimando no chão. Uma armadilha. Foi o que pensei.

Atrás de nós, os xamãs se uniram e começaram a cantar em uníssono, suas vozes como uma batida de um coração humano, rítmica, mas sobreposta. A magia fluiu dos xamãs e se condensou diretamente à nossa frente.

Os Mercenários levantaram as plataformas para a frente. As tábuas deslizaram pelo chão mexido e congelaram, suspensas dez centímetros acima da terra pela magia dos xamãs.

O búfalo à minha esquerda rugiu, bufando e arranhando o chão.

As quatro bestas javalis à nossa frente levantaram a cabeça diante do desafio.

O homem-búfalo abaixou a cabeça enorme e avançou pela ponte de tábuas suspensas improvisada com um guincho feroz, disparando como uma bala de canhão.

Por uma fração de segundo, os javalis calydonianos olharam em choque e em seguida, como um só, se lançaram em sua perseguição. O grupo galopou até detrás dos edifícios, fora da vista.

Mahon começou a avançar. Nós seguimos. O urso pegou velocidade, a princípio se movendo devagar, depois mais e mais rápido, até que eu estava correndo a toda velocidade no meio de uma manada.

Um javali saiu de trás do saguão. O urso à esquerda desviou-se para interceptá-lo. Outro javali veio da direita, um macho cinza cheio de cicatrizes. Eduardo acelerou em um golpe e bateu na cabeça dele. O javali e o búfalo desceram em um emaranhado de presas e cascos.

Eu mal podia ver. As enormes costas peludas bloquearam minha visão. Um bufo e outro metamorfo caiu. Novamente, outra vez e de novo. Mahon e Curran fizeram uma curva acentuada à esquerda e de repente eu vi a torre, a cem metros à nossa frente e três javalis gigantes que corriam feito foguetes em nossa direção.

— Leve-a para a torre, —grunhiu Curran atacando os javalis. Mahon seguiu. Nossa barreira blindada de metamorfos se foi. Era só eu, Bob, os alfas e um punhado de renders.

Nós corremos. O ar virou fogo em meus pulmões. Sangue bateu nas minhas têmporas.

Setenta metros.

Sessenta metros.

Quarenta. Eu puxei a Matadora de sua bainha.

Acima de nós, dentro da Proteção, a magia escorria da torre, desdobrando-se em manchas de plumas iridescentes. A ‘nuvem’ do aviso prévio. Tínhamos vinte minutos antes que o dispositivo se ativasse.

À esquerda, um edifício baixo voou e pelo canto do olho vi um enorme javali correndo em nossa direção com a boca aberta, as presas prontas para atacar. Ele parecia tão grande quanto uma casa. Olhos cruéis me encararam.

Eu corri, espremendo até a última gota dos meus músculos.

O javali se aproximava cada vez mais perto.

Vinte metros. O javali estava em cima de nós. Não conseguiríamos.

Jennifer virou-se para o javali, mostrando os dentes. A mão de Daniel se fechou em seu ombro. Ele empurrou-a para o lado e se jogou no javali. As garras do lobisomem atingiram a cabeça do porco, arrancando o olho esquerdo. O javali gritou furioso. Sua presa prendeu Daniel no estômago. O javali disparou para frente, meio cego e bateu na Proteção. A cabeça loira de Daniel atingiu o brilho pálido. A parte de trás de seu crânio explodiu, seu rosto ainda intacto, seus olhos azuis olhando diretamente para nós, e então o lobisomem e o javali se desintegraram em um clarão ofuscante.

Nove metros.

Jennifer soltou um grito rouco de dor, arrancada do coração.

Fiz um corte com a Matadora em meu antebraço, cobrindo a lâmina com o meu sangue, e bati na barreira, afundando toda a minha magia na palavra de poder. — Hesaad. Meu.

Agonia atravessou-me em uma cascata de fogo.

A Proteção estremeceu. Veias de um vermelho puro e intenso atravessavam a barreira mágica. Ela se despedaçou e os metamorfos o atravessaram, batendo na torre.

Tropecei para frente, tentando me segurar na realidade. Não desmaie, não desmaie ...

Derek arrancou a porta da torre de suas dobradiças. Um homem levantou uma besta, bloqueando nosso caminho. Jennifer se lançou para ele. A flecha a pegou na coxa. Ela arrancou a cabeça do homem, puxou a flecha e entrou, onde mais atiradores esperavam na escada.

Subimos a torre, passo a passo. Durante os primeiros dois minutos, Jennifer desabafou a fúria e depois entrou em um corredor lateral, deixando outro no seu lugar. Nós matamos e esquartejamos enquanto subíamos e as escadas atrás de nós ficaram vermelhas de sangue.

Uma porta surgiu à frente. Os metamorfos bateram nela, sedentos de sangue e raiva. As pessoas dentro se voltaram para nós, um rosto familiar entre eles. Shane. Corri em sua direção e estripei-o com um ataque preciso.

Ele agarrou seu estômago, tentando segurar dentro as tripas escorregadias de seus intestinos. Eu cortei seu peito e pescoço e o chutei no chão. Ele caiu aos meus pés, sangrando até a morte.

O dispositivo surgiu à minha frente, um cilindro de metal reluzente, incrustado com pedras preciosas e pintado de glifos e padrões, magia se derramando de seu topo em fios de plumas brilhantes. Um aparelho de controle se ergueu ao lado, cheio de alavancas. Três medidores, retângulos longos e estreitos, cheios de luz pálida, brilhavam acima do aparelho.

Ao redor do cilindro, os metamorfos rasgavam os Guardiões como tubarões em focas bebês. Puxei as instruções de Kamen do bolso do meu jeans e desdobrei-as, tomando cuidado para manter minhas impressões digitais sangrentas fora do texto. De acordo com Kamen, desligar a máquina exigia que as alavancas fossem empurradas em uma sequência precisa. Ele disse que levaria de três a dez minutos. Não tinha ideia de quantos minutos eu tinha.

Não pense nisso. Apenas faça.

Empurrei a primeira alavanca. O medidor à esquerda ficou azul. Se ele se tornasse verde brilhante, o dispositivo se tornaria instável e todos nós desapareceríamos em uma explosão de magia. Puxei minha mão para trás.

O indicador brilhava azul, crescendo lentamente, cada vez mais claro.

Segundos se passaram. Vamos. Se eu, alguma vez construísse um dispositivo que pudesse destruir o mundo, faria que ele pudesse ser desligado fácil e em dois segundos: vire uma chave e pronto, desligado.

Vamos.

O medidor ficou branco. Empurrei a segunda alavanca. O terceiro medidor disparou em verde azulado. Eu segurei minha respiração.

A luz brilhou, segurando a marca quase verde.

Fique branco. Fique branco, maldito, desgraçado.

Atrás de mim alguém rosnou.

Branco. Fique branco.

O medidor empalideceu, deslizando em cinza claro. Bom o bastante.

Puxei a primeira alavanca novamente. Todos os três medidores permaneceram firmemente claros.

Terceira alavanca.

Segunda alavanca.

Terceira alavanca novamente. Quando isso acabasse, eu iria arrancar a cabeça de Kamen de seus ombros como uma tampa de uma garrafa de cerveja.

Primeira alavanca.

Todos os três indicadores ficaram verdes.

Porra.

A parte superior do aparelho se abriu, a magia se curvando em torno dele como véus de fumaça branca, beliscando minha pele.

Não exploda. Só não exploda.

Os indicadores deslizaram para o azul. Espere mais um pouco.

Minhas mãos tremiam. Cerrei em punhos.

Espere mais um pouco.

Espere.

Espere.

Os indicadores ficaram brancos. Empurrei a alavanca final.

Nada.

Que diabos?

Eu tinha feito tudo certo, memorizei as instruções, elas estavam na minha mão ... Talvez Kamen tivesse mentido.

Talvez ele quisesse que o dispositivo fosse ativado ...

Alguma coisa ressoou dentro da máquina. Os medidores foram drenados, o brilho desaparecendo. Os véus da magia se dissiparam, dissolvendo-se em nada. As últimas faíscas de energia se fundiram no aparelho e ele ficou inerte, apenas um pedaço de metal, sem brilho e inofensivo.

Eu caí no chão. À minha volta, metamorfos se moviam. Alguém jogou um corpo pela janela.

Nós ganhamos. De alguma forma nós ganhamos.

Meu olhar se fixou em Shane, esparramado no chão na bagunça de suas entranhas. Ele olhou para mim, seus olhos selvagens.

— Nós vencemos, —eu disse a ele.

Ele olhou para mim com os olhos cheios de ódio.

Atrás dele, Curran apareceu à porta. Ele estava em sua forma humana e manchado de sangue da cabeça aos pés. Passou por cima de Shane e se agachou ao meu lado. Coloquei meus braços em volta do seu pescoço e nos beijamos, ambos cobertos de sangue e nenhum dos dois se importando. Nós nos beijamos enquanto ao nosso redor, os soldados do Bando jogavam os corpos pelas janelas, passando por cima de Shane enquanto agonizava lentamente, sangrando sua vida, vendo seus intestinos tremer no chão na sua frente.


Epílogo


OS GUARDIÕES ESTAVAM MORTOS. A ELITE MÁGICA DE Atlanta celebrava em frente à sede da MSDU. A comida apareceu como mágica no ar, as fogueiras flamejavam aqui e ali, e dois javalis calydonianos foram cortados em pedaços e viraram churrasco. Magos, a Nação, bruxas e metamorfos celebravam a simples glória de estarem vivos. Todos nós sabíamos que na manhã seguinte a aliança iria se romper e velhas rivalidades voltariam, mas por uma noite nós comemorávamos e assistimos os policiais e a MSDU das cidades vizinhas tentarem organizar os destroços. As agências de aplicação da lei não estavam muito felizes com o nosso churrasco improvisado, mas dado que tínhamos acabado de quebrar sua melhor fortaleza como uma noz, por cautela nos deixaram em paz.

Os Guardiões haviam trazidos para a fortaleza da MSDU tantos membros quanto puderam reunir. O MSDU perdeu quarenta pessoas, o resto foi preso em uma cela subterrânea, os Guardiões não quiseram desperdiçar a munição com os prisioneiros.

Os ratos os encontraram e os soltaram. O amigo de Andrea não conseguiu sobreviver.

Passei pelas mesas. Rostos sorridentes, muita comida, o zumbido da conversa animada. Ghastek veio andando na minha direção, carregando um prato. — Humanos são criaturas volúveis, —disse ele. — Há três dias aposto que nenhuma dessas pessoas teria encontrado uma causa para dar uma festa. Aqui estamos celebrando, quando tudo o que fizemos foi retornar as coisas ao normal.

— Nada como uma grande tragédia para fazer você apreciar a vida, —eu disse a ele.

— De fato. Você não está comemorando, Kate.

Difícil de comemorar quando visões de sua filha em uma cama de hospital continuam flutuando em sua cabeça. — Não sei do que você está falando. Estou emocionada.

— Rowena foi visitá-la esta manhã, —disse Ghastek. — Por quê?

Aaa! — Lembra quando eu pedi para me ajudar a obter as informações daquele navegador que desmaiou e você me ignorou? —Perguntei a ele.

— Vá se fuder, Ghastek.

Afastei-me.

Uma figura solitária sentou-se longe das fogueiras, abraçando os joelhos. Cheguei mais perto e vi cabelos claros. Jennifer. Fui me sentar com ela. Olhava para frente. Eu não tinha certeza se ela percebeu que eu estava lá.

Ficamos sentadas por um longo tempo, olhando para a base que fervilhava de policiais.

— Eu nem tenho um corpo para enterrar, —disse ela.

— Você vai ter uma filha dele, —eu disse.

Ela descansou a mão em seu estômago. Sua voz era amarga. — E se eu tiver muita sorte, não vou ter que matá-la.

— Jennifer! —Uma mulher veio até nós. Ela tinha o corpo magro e comprido, parecido com o de Jennifer e cabelos claros. Uma de suas irmãs. — Ei! Achei você. Venha comigo. Nós temos uma mesa organizada.

Jennifer não se mexeu.

— Você precisa comer, —disse a mulher. — Está comendo por dois agora, lembra?

Jennifer se levantou devagar.

— É isso aí, —sua irmã murmurou. — Venha. Vamos cuidar desse bebê.

Ela levou Jennifer embora. Eu me sentei sozinha.

Curran caiu ao meu lado. — Ei.

Uma pessoa tem dificuldade de pular enquanto está sentada. Eu acabei de consegui essa proeza. — Por que você se aproxima de mim assim?

— É engraçado.

— Não é. —Me inclinei para ele que colocou o braço em volta de mim.

— Isto é hilário. É quase tão engraçado quanto o seu ronco.

— Eu não ronco.

Ele assentiu com um largo sorriso. — É um tipo calmo e pacífico de ronco. Como um pequeno demônio da Tasmânia. Fofo enquanto está dormindo, mas quando acorda todas as garras e dentes aparecem.

— Você ronca pior. Pelo menos eu não me transformo em um leão enquanto durmo.

— Foi apenas uma vez.

— Uma vez foi estranho o suficiente, obrigada.

Ele olhou para mim. — Você ainda está planejado fazer o ritual de Julie?

— Sim. Por que você continua me perguntando?

— Eu continuo esperando que você mude de ideia.

— Eu não vou.

Suspirou e me puxou para mais perto dele.

*

— O SEU SANGUE E O SANGUE DE ERRA SÃO BASICAMENTE O MESMO, —disse Doolittle.

Esfreguei meus olhos. Não dormi muito na noite anterior e passei a manhã toda tentando fazer uma amostra de sangue de metamorfo responder à minha magia. Tinha obtido absolutamente nada. O sangue estava inerte no prato de plástico. Não ajudava o fato de Curran ter insistido em me vigiar e passar as últimas três horas sentado no canto, parecendo chateado. Havia as consequências do caos dos Guardiões para lidar e metamorfos voltando para a Fortaleza, mas não, ele colocou tudo em espera para que pudesse sentar aqui e me ver falhar.

— A única diferença entre você e ela é a concentração de magia, —continuou Doolittle.

Ela tinha milhares de anos para acumular, enquanto eu mal tinha um quarto de século.

— Acredito que isso não está nos levando a lugar nenhum, —disse Doolittle. — E não me olhe com essa cara feia, minha senhora. Eu não disse que devíamos desistir.

— Acho que devemos, —disse Curran.

— O que precisamos é de uma âncora. Algo no sangue de Julie que responderia à sua magia. Doolittle pegou uma seringa da mesa e deixou cair uma única gota da seringa no sangue do prato. Magia bruta me puxou.

— Sangue de vampiro. —Senti a morte se mover através do sangue no prato.

Doolittle assentiu. — Tente agora.

Eu me concentrei e tentei.

Poderia fazer isso. Deveria ser capaz de fazer isso.

O suor desceu na minha nunca.

O sangue subiu do prato cerca de um centímetro, enrolando-se em um globo vermelho. Eu segurei no ar e o transformei em um disco. Ele fluiu, obediente e flexível.

— Como você sabia? —Perguntou Curran.

— Erra tem vestígios de vampirismo em sua amostra de sangue, —disse Doolittle. — Não de uma forma virulenta. É uma coisa muito estranha, quase como um precursor inativo do próprio vírus. Nossa consorte também, em menor concentração.

Deixei o sangue escorrer para o prato.

— Eu arriscaria um palpite de que a maioria dos navegadores dos mortos-vivos também possui o mesmo, provavelmente em quantidades muito menores. Quando tiver algum tempo livre, quero ver seu sangue, Curran, mais detalhadamente. —Doolittle franziu a testa.

— O que? Nós temos isso também? —Curran levantou.

— Reage à magia, —disse Doolittle. — Talvez seja uma adaptação evolucionária para o mundo onde a magia é uma presença constante. Eu teria que fazer mais testes, mas por enquanto precisamos lidar com o problema em questão. Precisamos do vetor vampírico.

— Você está me dizendo que eu tenho que infectar Julie com vampirismo? —Isso era uma loucura. O vampirismo era irreversível. Mas o Vírus-L também.

— Não me atreveria a dizer isso, —disse Doolittle. — Todo esse plano é uma loucura. No entanto, se você insistir nesse esforço insensato e imprudente, essa é a única maneira de moldar o sangue dela.

— Que tal nós simplesmente não fazermos isso, —disse Curran.

Eu respirei fundo. — Você pode me dizer com absoluta certeza que Julie vai a loup no momento que ela acordar?

Ambos responderam. — Sim.

— Então tenho que fazer isso, —disse a eles. — Eu não tenho escolha.

*

TRÊS DIAS DEPOIS PERCORRI ATÉ O FUNDO DA FLORESTA SIBLEY para realizar o ritual Arez. As bruxas estavam lá e, de alguma forma, Grigorii e seu irmão também estavam. Eu nunca descobri ao certo de como eles tinham resolvido suas diferenças, mas decidi não me importar com a presença de Volhvs.

Escolhemos um lugar no topo de uma rocha solitária de quartzo, aflorada do chão da floresta como uma versão diminuta da Montanha de Pedra. Kamen operava o dispositivo que pegamos em Palmetto. As bruxas estavam em volta de mim em círculo, enquanto Julie estava na minha frente em uma maca. Sua sedação estava acabando, e os músculos e ossos se arqueavam e se moviam sob a pele como se tivessem uma mente própria. Derek e Jezebel estavam em ambos lados da maca, esperando.

Kamen abriu o dispositivo. A magia se derramou em uma densa cascata de brilho pálido. As bruxas se esforçaram e, em seguida, uma inundação de poder me atingiu, tão fria que parecia que meus músculos haviam congelados. Espalhou-se através de mim, fluindo de célula em célula, saturando meu sangue, deixando meus nervos em chamas.

As bruxas continuaram me alimentando de poder cada vez mais. O frio se transformou em agonia, raspando-me por dentro, raspando camada após camada do meu interior.

Na névoa de magia, Doolittle deu um passo em direção a Julie. A seringa na mão dele subiu. A agulha tocou sua pele e o patógeno Immortuus entrou em seu corpo.

Em uma vítima normal, levaria sete horas para a colonização completa do corpo. Sete horas desde a infecção até o vampirismo total. O processo era irreversível. Nós não precisávamos de sete horas. Só precisávamos de um minuto para o sangue vampírico circular completamente através do corpo de Julie.

Mais magia veio. Minhas mãos e pés se dissolveram em dor. Cada instinto gritava para eu parar. Acabar com isso. Apenas termine e a dor iria parar. O corpo de Julie começou a brilhar. Acenando para mim, como fogo fátuo112, me chamando cada vez mais. Ela chutou e convulsionou em sua maca, músculos inchados e pelos crescendo.

Eu estava quase lá. Um pouco mais de magia. Um pouco mais de dor.

Uma explosão de magia esmagadora me atingiu, empurrando-me sobre a borda.

Julie rosnou. Suas restrições estalaram e ela levantou-se, sua carne fervendo. Mandíbulas grotescas surgiram de seu rosto. Ela estava curvada, meio humana, meio lince, mas enquanto a forma guerreira de um metamorfo era proporcional, o corpo de Julie era uma bagunça de partes incompatíveis. Seu braço esquerdo era enorme, sua perna direita tinha um joelho que se inclinava para trás. Pelo cobria seu estômago, enquanto a pele humana era coberta de manchas claras.

Ela me olhou hipnotizada.

Senti o sangue deslizando por suas veias, fluindo em uma corrente de minúsculas partículas de magia.

Julie abriu a boca, o rosto deformado, monstruoso.

Derek a apertou em um abraço de urso e Jezebel cortou seu pescoço, atingindo a jugular. Sangue disparou em um jato pressurizado e eu agarrei com o meu poder, reunindo cada minúscula gota preciosa, condensando, girando, girando-a em um globo de magia brilhante.

Todo o som desapareceu, exceto a batida do meu coração.

Continuei puxando-o, puxando-o para fora do seu corpo, até que eu tinha todo ele.

A criatura que possuíra o sangue antes de mim caiu no chão.

Acenei para a esfera e ela flutuou em minha direção, pousando nas palmas das minhas mãos abertas, tão viva, tão cheia de magia.

Algo estava errado nisso tudo. Era corrompido, contaminado de alguma forma. Mas era tão lindo que tirava o fôlego.

Uma presença distante me tocou, vindo de longe, estendendo-se para mim através da distância ou do tempo, eu não sabia dizer. Espiou dentro de mim, permeando minha magia, examinando o sangue em minhas mãos.

Eu deveria fazer algo com esse sangue, não é? Ou talvez não. Estava em minhas palmas, tão quente e pulsante de poder.

A presença me observava. Eu observei-o de volta.

Um pensamento se formou na minha cabeça e não era meu, mas de alguma forma também era. — Muito bem.

Olhei para o corpo da criatura sem o seu sangue, outra criatura gritava comigo com o rosto contorcido. Uma terceira criatura olhava para mim com uma expressão de puro horror estampada em seu rosto.

Estranho, esse sangue. Tudo errado. Eu tinha que fazer algo com isso, mas eu não tinha certeza do que.

Segurei o sangue e mostrei para a presença misteriosa. — Está sujo.

— Então você deve limpá-lo, —a presença sugeriu gentilmente.

Eu tinha que limpá-lo. Sim, era isso.

— Deixe seu sangue fluir, —a presença murmurou.

Suei sangue. Derramou dos meus poros, sangrando magia.

— Agora, ligue-os juntos, —sugeriu a presença.

Eu moldei meu sangue, estendendo-o em filamentos finos para o globo brilhante do sangue da criatura na minha mão, envolvendo minha magia em torno dele, perfurando-o, limpando.

— É isso aí. Isso mesmo, —a presença me disse. — Excelente. Agora devolva-o.

— É meu!

— Você deve devolvê-lo ou a criança não vai sobreviver.

— Mas é meu!

— Não. Você só pegou emprestado. Se você o manter, irá matar a criança.

As criaturas estavam gritando.

Eu não queria matar ninguém.

Segurei a esfera por mais um longo momento, saboreando-a e enfiei-a de volta no corpo da criatura. Ele fluiu para dentro dela, percorrendo suas veias e artérias colapsadas.

A criatura não se mexeu.

— Você deve querer que ela viva, —a presença me disse gentilmente. — Ela precisa da sua ajuda.

— Meu, —eu disse ao sangue. — Me obedeça. Viver. Sobreviver. Obedeça, obedeça, obedeça ...

A criatura deu um suspiro rouco sacudindo-se. A ferida no pescoço dela sangrou. Seu corpo tremendo, sofrendo com espasmos. Os outros se lançaram para ela.

O mundo se inclinou de lado, ficou escuro e tudo ficou quieto.

*

ABRI OS OLHOS, CURRAN ESTAVA SENTADO AO MEU LADO, seus olhos cinzentos me observando.

— Julie ...

— Ela sobreviveu, —disse ele. Sua voz calma ganhou um grunhido áspero. — Se você acha que eu vou deixar você fazer essa merda de novo, então essa coisa entre nós acaba. Estaremos fodidos.

Conseguimos. Nós fizemos isso e estávamos inteiras. Ela não morreu, Julie não morreu, eu não morri ... Era algum tipo de milagre sangrento.

— Pensei que você me amava e nunca me deixaria.

— Aquilo não era você. Estava possuída.

Coloquei meus braços ao redor dele e o beijei. Curran me apertou para ele. Meus ossos gemeram. — Nunca mais.

— Nunca mais, —prometi. — Eu te dou minha palavra. Nunca mais.

— Estou muito feliz que você acordou.

— Arrá! O sapato está no outro pé agora, hein.

— Cale a boca. —Ele me beijou e puxei meu psicótico pessoal para a cama comigo.

*

VINTE MINUTOS MAIS TARDE ESTAVA comendo sopa de galinha. Era a melhor sopa que eu já provei. — Quanto tempo estive desacordada?

— Três dias.

— Isso não é nada. Você estava desacordado onze.

Curran encolheu os ombros. — Três foi mais que o suficiente.

— Como está Julie?

— Assustada e sob prisão domiciliar, mas está bem.

— Por que sob prisão domiciliar?

Curran sacudiu a cabeça e tentou imitar a voz de Julie. — ‘Oh não, eu matei a Kate. Kate está morta por minha causa. Se ela morrer, eu vou me matar.’ E outras besteiras nessa linha. Eu ordenei que ela ficasse trancada para que não fizesse algo idiota. Doolittle diz que ela está se curando bem. Nenhum traço de Vírus-L. Nenhum vampirismo. —Curran concentrou-se em mim. — Eu pensei que perderia vocês duas lá atrás.

— Acho que você poderia ter perdido. Eu estava realmente confusa em algum momento. Acho que alucinei. Quase posso jurar que ouvi alguém.

— Quem?

— Eu não sei. Prometo, nunca mais. Não acho que posso sobreviver a outro assim.

Curran suspirou. — Eu suponho que você vai querer ver a garota agora.

— Sim.

Curran rugiu. — Barabas!

A porta se abriu e minha babá enfiou a cabeça espetada para dentro. Ele me viu e seu rosto se abriu em um sorriso afiado. — Meu senhor, minha senhora, posso dizer que estou feliz que minha alfa favorita esteja se sentindo melhor. Apesar de saber que provavelmente a qualquer momento se colocará em perigo aterrador.

Curran rosnou. — Cale-se. Traga Julie.

Três minutos depois, Julie entrou no quarto. Ela parou na entrada, uma figura pálida e magra. Eu esperei, mas ela não chegou mais perto.

— Ei, —eu disse.

— Ei, —ela respondeu.

— Você está bem?

— Eu não sei. —Julie engoliu em seco.

Oh garota. — Qual é o problema?

— Você fez algo comigo. —Julie hesitou. — Minha magia parece com a sua.

Eu olhei para Curran. — Você não contou a ela?

— Oh não, essa é a sua bagunça. Você pode ter esse trabalho. Vá em frente.

Eu me endireitei. -— Quando Leslie mordeu você, ela te infectou com o Vírus-L. Eu usei um ritual antigo e limpei seu sangue com o meu para salvá-lo.

Julie piscou algumas vezes. — Então o que isso significa?

— Isso significa que você está imune ao Vírus-L e ao vampirismo. Você pode desenvolver alguns novos poderes. Pode ser estranho por um tempo, mas vou ajudá-la com isso.

Julie engoliu em seco. — Então eu sou como sua sobrinha agora?

— Algo parecido. Eu quase morri te salvando. Não vou ganhar nenhum abraço?

Ela deu um passo, começou a correr e me abraçou.

Curran sacudiu a cabeça.

Mostrei minha língua para ele. Tanto faz. Ela estava viva. Eu lidaria com tudo o mais que viesse.

— Você nunca pode contar isso a ninguém, —disse Curran. — O que Kate fez por você não pode ser feito com mais ninguém, entendeu? O Bando está cheio de pais desesperados cujos filhos podem ir a loup. Você não pode sair por aí dizendo às pessoas que Kate te curou do loupismo. Se alguém perguntar, você saiu do loupismo por conta própria. Sua magia era tão forte que seu corpo rejeitou o Vírus-L. Julie, prometa-me.

— Sim, senhor, —disse Julie em meus braços. — Eu saí por conta própria.

Uma batida soou e Barabas voltou para o quarto, carregando um vaso azul estreito cheio de flores. — Reencontro feliz. Além disso, estas vieram para você, Kate. Eu coloquei em um vaso. Não sei bem o que são essas flores, mas elas têm um cheiro divino.

O vaso continha uma dúzia de pequenas flores, suas pétalas brancas, como pequenas estrelas pretas no centro. Eu congelei com Julie ainda em meus braços.

Sinos de Morgan. Conhecia essas flores, eu as fiz. Elas brotaram durante a explosão no local onde eu chorei segurando o corpo sem vida de Bran.

Ao meu lado, Curran estava muito quieto.

Forcei a minha boca em movimento. — Existe um cartão?

Barabas assentiu e passou-me um pequeno retângulo branco dobrado ao meio. Eu abri.


Parabéns pela sua vitória, Alteza.

Ansioso para nossa próxima reunião.


Hugh


Parabéns pela sua vitória, Alteza.

Ansioso para nossa próxima reunião.


Hugh

 

 

                                                   Ilona Andrews         

 

 

 

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