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Series & Trilogias Literarias
MAIS ESCURO QUE A NOITE Michael ConnellyMcCaleb, agente do FBI aposentado, aproveita a vida à beira-mar com sua mulher e a filha recém-nascida quando é chamado para voltar à ativa e auxiliar na investigação de um misterioso assassinato. Apesar dos protestos silenciosos de sua esposa, aceita a incumbência, e, sem perceber, começa a reencontrar uma alegria há muito perdida.
Ao aprofundar suas investigações, depara-se com um suspeito inesperado: o detetive Hieronymous Bosch, um dos melhores tiras da polícia de Los Angeles, que está ocupado demais como testemunha no julgamento de um assassinato cujo réu é David Storey, um grande diretor de cinema.
Os dois casos correm paralelamente e, à medida que Bosch apresenta as provas que o levaram a concluir que David é o assassino, McCaleb encontra evidências da culpabilidade de Bosch no outro crime.
Bosch, porém, logo percebe ser alvo de uma investigação que, se for adiante, pode incriminá-lo e deixar em liberdade o cineasta, um homem que ele acredita ter feito outras vítimas também. Com o passar do tempo, McCaleb se aproxima da verdade e Bosch vê seu suspeito escapar por entre seus dedos. Até que surgem novas informações e os rumos dos dois casos mudam, levando a resultados imprevisíveis.
Um clássico da literatura policial que junta dois dos melhores detetives criados nos anos 90 em uma aventura eletrizante e inesquecível.
Prólogo
Bosch espiou pelo pequeno quadrado de vidro e viu que o sujeito estava sozinho na cela. Tirou a arma do coldre e entregou-a ao sargento de serviço. Procedimento
padrão. A porta de aço foi destrancada e abriu-se deslizando. Imediatamente, o cheiro de suor e vômito atingiu as narinas de Bosch.
- Há quanto tempo ele está aí dentro?
- Cerca de três horas - disse o sargento. - Está bêbado feito um gambá, de modo que não sei o que você vai conseguir.
Bosch entrou na cela, mantendo o olhar no vulto estendido de bruços no chão.
- Está bem, pode fechar.
- É só me avisar.
A porta deslizou, fechando-se com um baque forte. O sujeito deitado no chão gemeu e se mexeu levemente. Bosch avançou e sentou-se no banco mais próximo a ele. Tirou
o gravador do bolso do paletó e colocou-o no banco. Erguendo o olhar para a placa de vidro, viu o rosto do sargento afastar-se. Usou a ponta do sapato para cutucar
o corpo do sujeito, que gemeu mais uma vez.
- Acorda, seu merda.
O homem no chão da cela girou lentamente a cabeça e depois a levantou: tinta salpicada no cabelo e vômito endurecido na frente da camisa e do pescoço. Abriu os olhos
e fechou-os imediatamente,
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reagindo à luz forte que vinha do teto do aposento. Sua voz saiu num sussurro áspero:
- Você de novo.
Bosch balançou a cabeça. - É. Sou eu mesmo.
- Nosso velho número.
Um sorriso abriu-se na barba de três dias da cara do bêbado. Bosch notou que o sujeito havia perdido um dente desde a última vez em que o tinha visto. Baixou a mão
e colocou-a sobre o gravador, sem ligá-lo.
- Levante-se. E hora de falar.
- Esquece, cara. Não quero...
- O seu tempo está se esgotando. Comece a falar.
- Não fode. Me deixa em paz.
Bosch olhou para a janelinha. Não havia ninguém ali. Tornou a olhar para o homem no chão.
- A sua salvação está na verdade. Agora mais do que nunca. Não posso fazer nada por você sem a verdade.
- Virou padre? Veio aqui me confessar?
- Você veio se confessar?
O sujeito deitado não disse nada. Depois de uns instantes Bosch achou que ele adormecera novamente. Enfiou a ponta do sapato no flanco do homem, perto do rim. O
sujeito mexeu-se repentinamente, agitando os braços e as pernas.
- Vá se foder! - gritou. - Não quero você aqui. Quero um advogado.
Bosch ficou em silêncio um instante. Pegou o gravador e colocou-o de volta no bolso. Depois se inclinou para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos, e juntou
as mãos. Olhou para o bêbado e abanou lentamente a cabeça.
- Então acho que não posso fazer nada por você - disse. Levantou-se e bateu na janelinha, chamando o sargento de
serviço. Deixou o homem deitado ali no chão.
Capítulo 1
- Alguém está vindo aí.
Terry McCaleb olhou para a esposa e depois seguiu o olhar dela em direção à estrada que serpenteava lá embaixo. Viu o carrinho de golfe subindo a estrada íngreme
e tortuosa que levava à casa. O condutor estava oculto pelo teto do veículo.
Graciela e ele estavam sentados no pátio dos fundos da casa que haviam alugado na avenida La Mesa. A vista ia da estradinha que serpenteava abaixo da casa até a
área do porto de Avalon, ampliando-se sobre a baía de Santa Monica até a nuvem de poluição que pairava sobre a cidade. Fora esse o motivo pelo qual eles haviam escolhido
aquela casa para ser seu novo lar na ilha. Mas quando sua esposa falou, ele tinha o olhar fixo no bebê que carregava nos braços, e não na paisagem. Não via nada
a não ser os grandes olhos azuis e penetrantes da filha.
MacCaleb viu o número de aluguel na lateral do carrinho de golfe que passava lá embaixo. Não era uma visita local. Era alguém que provavelmente chegara da cidade
no Cataíma Express. Ainda assim, ficou imaginando como Graciela sabia que o visitante se destinava à casa deles, e não a qualquer outra da avenida.
Não perguntou isso a ela, pois a mulher já tivera premonições antes. Simplesmente esperou, e logo que o carrinho desapareceu de vista alguém bateu à porta da frente.
Graciela foi atender, e em instantes
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voltou ao pátio acompanhada de uma mulher que McCaleb não via fazia uns três anos.
Jaye Winston, uma detetive do escritório do xerife, sorriu quando viu a criança nos braços dele. Era um sorriso sincero, mas ao mesmo tempo perturbado: via-se que
não tinha ido até lá para admirar um bebê recém-chegado. McCaleb sabia que a grossa pasta verde e a fita de videocassete que ela carregava nas mãos significavam
que Jaye estava ali a serviço. Serviço de morte.
- Como vai, Terry? - perguntou a detetive.
- Não podia ir melhor. Lembra da Graciela?
- E claro. E quem é essa aí?
- É a CiCi.
McCaleb nunca usava o nome formal da filha diante de outras pessoas. Só gostava de chamá-la de Cielo quando estava sozinho com ela.
- CiCi - disse Jaye hesitando, como à espera de uma explicação para o nome. Como a explicação não veio, ela perguntou: Que idade ela tem?
- Quase quatro meses. Ela é grande.
- E mesmo, dá pra ver... E o menino... onde está ele?
- Raymond? - disse Graciela. - Está com uns amigos hoje. O Terry tinha um passeio de barco marcado, e ele foi até o parque jogar bola com uns amigos.
A conversa parecia hesitante e estranha. Ou Jaye não estava muito interessada ou estava desacostumada de conversas triviais.
- Quer beber alguma coisa? - perguntou McCaleb, entregando o bebê a Graciela.
- Não, obrigada. Tomei uma Coca na barca.
Como seguindo a deixa, ou talvez indignada por ter sido passada adiante, CiCi começou a se agitar. Graciela disse que a levaria para dentro da casa e deixou os dois
no pátio. McCaleb apontou para uma mesa redonda com cadeiras; eles jantavam ali quase toda noite, enquanto o bebê dormia.
- Vamos sentar.
Indicou para Jaye a cadeira de onde ela teria a melhor vista da baía. Ela pousou a pasta verde - que McCaleb logo reconheceu
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como um dossiê de assassinato - sobre a mesa e pôs a fita de vídeo sobre a pasta.
- Linda - disse ela.
- É mesmo, ela é incrível. Sou capaz de ficar olhando para a CiCi...
Ele parou e sorriu, percebendo que ela falava da paisagem, não da criança. Jaye também sorriu.
- A CiCi é linda, Terry. Muito linda. Você também parece estar bem, tão bronzeado e tudo mais.
- Tenho saído com o barco.
- E a saúde, vai bem?
- Não posso me queixar de nada além de todos os remédios que eles me obrigam a tomar. Mas já estou nessa há três anos, sem qualquer problema. Acho que me dei bem,
Jaye. Só preciso continuar tomando as porcarias das pílulas, e isso vai ser sempre assim.
Ele sorriu, e realmente parecia a personificação da saúde. O sol escurecera-lhe a pele, mas o efeito no cabelo fora o oposto. Cortado rente e penteado, estava quase
louro. O trabalho no barco também realçara-lhe a musculatura dos braços e ombros. O único sinal destoante escondia-se sob a camisa: uma cicatriz de vinte e cinco
centímetros, resultante da cirurgia do transplante.
- Que ótimo - disse Jaye. - Você parece estar muito bem aqui. Família nova, casa nova... longe de tudo.
Silenciou um instante, virando a cabeça num gesto de quem abarcasse tudo em volta de uma só vez: a vista, a ilha e a própria vida de McCaleb. Este sempre achara
Jaye Winston uma mulher atraente, com um jeito de menina levada. Ela tinha o cabelo louro claro, cortado na altura dos ombros. Jamais usou maquiagem na época em
que trabalhava com ele. Mas tinha olhos penetrantes, sagazes, e um sorriso fácil e meio triste, como se visse humor e tragédia em tudo ao mesmo tempo. Usava jeans
pretas e uma camiseta branca debaixo de um blazer preto. Parecia calma e firme, e McCaleb sabia por experiência própria que ela era assim mesmo. Tinha o hábito de
prender o cabelo atrás da orelha enquanto falava. Por alguma razão desconhecida, ele achava aquele gesto cativante. Sempre pensara que se não houvesse se ligado
a Graciela
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poderia ter tentado conhecer Jaye Winston melhor. Também percebia que ela achava a mesma coisa.
- Me sinto até meio culpada por ter vindo aqui - disse ela. McCaleb indicou com a cabeça a pasta e a fita.
- Você veio a serviço. Podia ter dado um telefonema, Jaye. Provavelmente teria ganho tempo.
- Mas você não me mandou nenhum cartão comunicando sua mudança de endereço ou telefone. Como se não quisesse que as pessoas soubessem onde veio parar.
Ela prendeu o cabelo atrás da orelha esquerda e sorriu novamente.
- Não foi isso - disse ele. - Só achei que ninguém ia querer saber onde eu estava.-Como me encontrou?
- Perguntando na marina lá no continente.
- Na cidade. É como a gente fala aqui.
- Pois é, na cidade. Na superintendência do porto me disseram que o seu barco ainda tinha vaga lá, mas que ficava ancorado aqui. Fiz a travessia e saí com uma lancha
alugada pelo porto até encontrar o barco. Seu amigo estava lá. Ele me deu as coordenadas.
- Buddy.
McCaleb estendeu o olhar até o porto e avistou seu barco, o Mar que Segue. Estava a uns oitocentos metros de distância. Dava para ver Buddy Lockridge curvado na
popa. Mais um instante, e percebeu que Buddy lavava os molinetes com a mangueira do tanque de água doce.
- O que está havendo, Jaye? - perguntou McCaleb sem olhar para ela. - Só pode ser algo importante, pra você passar por tudo isso no seu dia de folga. Calculo que
tire folga aos domingos.
- Geralmente.
Jaye afastou a fita e abriu a pasta. McCaleb olhou para a pasta. Embora estivesse virada ao contrário, dava para ver que a página de cima era um boletim de ocorrência
de homicídio, normalmente a primeira página de todos os dossiês de assassinatos que ele já lera. Era o ponto de partida. Os olhos de McCaleb focalizaram o campo
de endereço. Mesmo com a pasta invertida, dava para ver que era um caso ocorrido em West Hollywood.
- Gostaria que você desse uma olhada neste caso aqui. Quer dizer, quando tiver tempo. Talvez seja o seu tipo de coisa. Queria que fizesse uma avaliação. Talvez me
mostrasse um novo caminho.
Assim que tinha visto a pasta nas mãos de Jaye, McCaleb percebeu que ela lhe pediria isso. Feito o pedido, mergulhou num torvelinho de sentimentos. Sentia a emoção
da possibilidade de recuperar uma parte de sua vida anterior. Mas também se sentia culpado pela idéia de trazer a morte a um lar tão cheio de vida nova e felicidade.
Olhou para a porta entreaberta, a fim de ver se Graciela estava por ali. Não estava.
- Meu tipo de coisa? - disse ele. - Se for um caso de assassinatos em série, é melhor não perder tempo. Vá ao FBI, ligue para Maggie Griffin. Ela irá...
- Já fiz tudo isso, Terry. E ainda preciso de você.
- Quando foi isso?
- Duas semanas.
Ela ergueu os olhos para o rosto dele.
- Dia de Ano-Novo?
Jaye balançou afirmativamente a cabeça.
- Primeiro assassinato do ano - disse ela. - No condado de Los Angeles, pelo menos. Tem gente que acha que o verdadeiro milênio só começou este ano.
- Acha que o cara é um maluco do milênio?
- Quem fez isso só pode ser maluco. Eu acho. É por isso que estou aqui.
- O que o FBI disse? Levou isso à Maggie?
- Você está desatualizado, Terry. A Maggie foi mandada de volta para Quantico. O movimento caiu nos últimos anos, e a Unidade de Ciências Comportamentais reconvocou
a Maggie. Não há mais seção do FBI em Los Angeles. Mas eu falei com ela. Pelo telefone, em Quantico. Ela entrou no PCCV e não achou nada.
McCaleb sabia que ela estava falando do Programa de Captura de Criminosos Violentos.
- Fizeram um perfil? - perguntou.
- Estou na lista de espera. Sabia que no país inteiro, na véspera
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e no dia de Ano-Novo, houve trinta e quatro assassinatos inspirados pela mudança do milênio? Por isso eles agora estão assoberbados de trabalho. E os departamentos
maiores como o nosso estão no fim da fila, porque o FBI acha que os departamentos menores, com menos experiência, especialistas e mão-de-obra, precisam mais da ajuda
deles.
Ela esperou um instante, deixando McCaleb refletir sobre aquilo tudo. Ele compreendia a filosofia do FBI. Era uma forma de triagem.
- Não me importo de esperar um mês ou coisa assim até que a Maggie ou alguém consiga me dar alguma coisa, mas minha intuição me diz que o tempo é um fator crucial
aqui, Terry. Se for um caso de assassinatos em série, um mês talvez seja tempo demais para esperar. Foi por isso que pensei em vir aqui. Estou dando com a cabeça
na parede neste caso, e talvez você seja a nossa última esperança de conseguirmos ir em frente no momento. Ainda me lembro do Homem do Cemitério e do Assassino do
Código. Sei o que pode fazer com um dossiê de assassinato e um vídeo da cena do crime.
A últimas frases eram gratuitas, o único movimento em falso de Jaye até então, pensou McCaleb. Afora isso, achava que ela estava sendo sincera ao dizer que o assassino
podia atacar novamente.
- Estou afastado há muito tempo, Jaye - começou McCaleb. - Depois daquela coisa com a irmã da Graciela, não me envolvi com...
- Terry, deixa de babaquice, tá legal? Você pode ficar a semana inteira sentado aqui com um bebê no colo, mas isso não vai apagar o que você foi e o que fez. Eu
te conheço. Não nos vemos nem conversamos há muito tempo, mas eu te conheço. E sei que não passa um dia sequer sem pensar em casos. Um dia sequer.
Fez uma pausa e ficou olhando para ele.
- Quando eles tiraram o seu coração, não tiraram o que faz você funcionar, entende?
McCaleb desviou o olhar em direção ao barco novamente. Buddy estava sentado na cadeira de pesca, com os pés em cima da verga. McCaleb achava que ele tinha uma cerveja
na mão, mas a distância era grande demais para ter certeza.
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- Se consegue enxergar as pessoas tão bem, pra que precisa de
mim?
- Talvez eu seja boa nisso, mas você é o melhor que eu já vi. Diabo, mesmo que o pessoal de Quantico não estivesse atolado até a Páscoa, eu preferiria você a qualquer
um daqueles traçadores de perfil. Estou falando a verdade. Você era...
- Jaye, não é preciso vir com esse papo de vendedor, tá legal? Meu ego está indo muito bem sem toda essa...
- Então o que é preciso? Ele olhou de novo para ela.
- Só um pouco de tempo. Preciso pensar no assunto.
- Estou aqui porque minha intuição me diz que não temos muito tempo.
McCaleb levantou-se e foi até a balaustrada do pátio. Olhou para o mar. Uma barca do Cataíina Express vinha chegando. Ele sabia que estaria quase vazia. Os meses
de inverno traziam poucos visitantes.
- A barca está chegando - disse. - Estamos no horário de inverno, Jaye. Se não aproveitar essa para voltar, vai ter que passar a noite aqui.
- Peço para o departamento mandar um helicóptero me pegar, se for preciso. Terry, só preciso de um dia seu, no máximo. Talvez até uma noite. Você senta, lê o dossiê,
assiste à fita, e depois me telefona de manhã, dizendo o que viu. Talvez não seja nada, ou pelo menos nada que seja novidade. Mas talvez veja alguma coisa que nós
deixamos escapar, ou tenha uma idéia que ainda não ocorreu a ninguém. É só o que estou pedindo. Acho que não é muito.
McCaleb afastou os olhos da barca que chegava e se virou, recostando-se na balaustrada.
- Não parece muito pra você, porque está dentro do negócio. Eu não estou. Estou fora, Jaye. Voltar a isso, mesmo que seja só por um dia, vai mudar as coisas. Eu
me mudei pra cá para recomeçar e esquecer todos os troços em que eu era bom. Para ser bom fazendo outra coisa. Para ser pai e marido, por exemplo.
Jaye levantou-se e foi até a balaustrada. Enquanto McCaleb continuava olhando para a casa, ela postou-se ao lado dele,
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olhando para a paisagem, e começou a falar em tom baixo. Se Graciela estivesse de antena ligada lá dentro, não conseguiria ouvir nada.
- Lembra o que me disse no caso da irmã de Graciela? Disse que teve uma segunda chance na vida, e que tinha que haver uma razão para isso. Agora você construiu essa
vida, com a irmã dela, o filho dela, e até a sua própria filha. Isso é maravilhoso, Terry, eu realmente acho. Mas essa não pode ser a razão que você estava procurando.
Pode achar que é, mas não é. Lá no fundo você sabe disso. Sabia muito bem fisgar essas pessoas. Perto disso, o que é fisgar
peixes
McCaleb balançou a cabeça ligeiramente e sentiu-se mal por concordar com tamanha presteza.
- Deixe o troço aí - disse. - Telefono pra você quando puder. A caminho da porta Jaye procurou Graciela com o olhar, mas
não a viu.
- Deve estar com o bebê - explicou McCaleb.
- Bom, diga a ela que eu me despedi. - Está bem.
Houve um silêncio constrangedor durante o percurso até a porta. Quando McCaleb finalmente a abriu, Jaye disse:
- E aí, Terry, como é ser pai?
- E a melhor época da vida, e é a pior época da vida.
Sua resposta automática. Refletiu um instante e acrescentou algo que já pensara, mas que jamais dissera, nem para Graciela.
- E como ter uma arma encostada na cabeça o tempo todo. Jaye pareceu confusa, e até um pouco preocupada.
- Como assim?
- Porque eu sei que se alguma coisa acontecer a ela, qualquer coisa, minha vida estará acabada.
Ela balançou a cabeça.
- Acho que dá pra entender.
Jaye saiu. Parecia bastante idiota ao se afastar. Uma detetive, com grande experiência em homicídios, andando num carrinho de golfe.
Capítulo 2
O jantar de domingo com Graciela e Raymond foi calmo. Eles comeram uma perca branca que McCaleb pescara de manhã ao levar clientes até a ilha, perto do istmo. Os
clientes que alugavam o barco sempre queriam guardar os peixes que apanhavam, mas em geral mudavam de idéia quando voltavam ao porto. Aquilo tinha a ver com o instinto
humano de matar, achava McCaleb. Não bastava pegar as presas. Era preciso matá-las também. E isso significava que peixe era um prato freqüente no jantar na casa
deles.
McCaleb assara o peixe com espigas de milho na churrasqueira do quintal. Graciela fizera uma salada e biscoitos. Os dois estavam bebendo vinho branco, enquanto Raymond
tomava leite. A comida estava boa, mas o silêncio não. McCaleb levantou o olhar para Raymond e viu que o menino já percebera as vibrações entre os adultos e embarcara
na onda. Lembrou-se que fazia a mesma coisa em criança, quando seus próprios pais guardavam silêncio entre si. Raymond era filho de Gloria, irmã de Graciela. Seu
pai jamais fizera parte de sua vida. Quando Gloria morreu - assassinada - três anos antes, Raymond foi morar com Graciela. McCaleb conhecera os dois quando investigava
o caso.
- Como foi o jogo hoje? - perguntou finalmente McCaleb.
- Acho que foi bom.
- Marcou algum ponto?
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- Não.
- Vai marcar. Não se preocupe. E só continuar tentando.
Continue treinando.
McCaleb balançou a cabeça. O menino pedira para acompanhá-lo de manhã, mas ele não deixara. O passeio fora marcado por seis homens da cidade. Com McCaleb e Buddy
seriam oito no Mar que Segue, e esse era o limite que o barco podia levar dentro das normas de segurança. McCaleb nunca violava essas regras.
- Bom, o próximo passeio será no sábado, e até agora temos apenas quatro pessoas. Estamos na temporada de inverno e duvido que consigamos mais alguém. Se a coisa
ficar assim, você pode ir.
A expressão sombria do menino pareceu se iluminar, e ele balançou a cabeça vigorosamente enquanto metia o garfo na carne muito alva do peixe no prato. O garfo parecia
grande na mão dele, e McCaleb sentiu uma tristeza passageira pelo menino. Ele era pequeno demais para um menino de dez anos. Raymond se incomodava muito com isso,
e freqüentemente perguntava a McCaleb quando cresceria. McCaleb sempre lhe dizia que isso aconteceria em pouco tempo, embora particularmente achasse que o menino
sempre seria baixo. Sabia que a mãe fora uma mulher de estatura mediana, mas Graciela lhe contara que o pai de Raymond fora um homem muito baixo - em tamanho e caráter.
Ele desaparecera antes do nascimento do menino.
Sempre o último a ser escolhido para o time, pequeno demais para competir com os outros meninos de sua idade, Raymond fora atraído por outros passatempos que não
os esportes de equipe. Pescar era a sua paixão, e nos dias de folga McCaleb geralmente saía com ele pela baía para pegar linguados. Quando tinha um passeio marcado,
o menino sempre lhe implorava para ir, e quando havia lugar McCaleb permitia que ele fosse junto como ajudante de piloto. Tinha sempre um grande prazer em colocar
uma nota de cinco dólares num envelope, fechá-lo e entregá-lo ao menino ao fim do dia.
- Vamos precisar de você na torre de comando - disse McCaleb. - Esse grupo quer ir para o sul pescar marlins. Vai ser um passeio longo.
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- Legal!
McCaleb sorriu. Raymond adorava ficar de vigia na torre, procurando marlins negros que estivessem dormindo ou brincando na superfície. Usando um binóculo, já estava
até ficando afiado na coisa. McCaleb ergueu os olhos para Graciela a fim de compartilhar aquele momento, mas ela baixara o olhar para o prato. Não havia sombra de
sorriso no seu rosto.
Depois de alguns minutos Raymond terminou de comer e pediu para se levantar, pois queria brincar com o computador no quarto. Graciela disse-lhe para manter o som
baixo, para não acordar o bebê. O menino levou o prato até a cozinha, deixando Graciela e McCaleb a sós.
Ele entendeu o silêncio dela. Graciela sabia que não podia reclamar do envolvimento dele numa investigação, porque fora seu próprio pedido para investigar a morte
da irmã que fizera com que eles se conhecessem três anos antes. Suas emoções estavam enredadas nessa ironia.
- Graciela - começou McCaleb. - Sei que não quer que eu faça isso, mas...
- Eu não disse nada.
- Nem precisava dizer. Eu te conheço, e posso dizer pela expressão do seu rosto, desde que Jaye chegou aqui, que...
- Só não quero que tudo mude, mais nada.
- Eu entendo. Também não quero que mude nada. E não vai mudar. Só vou dar uma olhada no dossiê e na fita, e dizer a ela o que eu acho.
- Não vai ser só isso. Eu conheço você. Já vi isso acontecer antes. Vai ser fisgado. E nisso que você é craque.
- Não vou ser fisgado. Só vou fazer o que ela pediu, e pronto. E nem vou fazer isso aqui. Vou pegar o que ela me deu e levar para o barco. Assim a coisa nem vai
ficar aqui em casa. Está bem? Não quero isso aqui em casa.
Ele sabia que ia fazer aquilo com ou sem a aprovação dela, mas mesmo assim queria essa aprovação. O relacionamento deles era tão recente que ele parecia estar sempre
procurando a aprovação dela. Já pensara sobre isso, imaginando se tinha algo a ver com sua
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segunda chance. Tinha passado três anos lutando contra um grande sentimento de culpa, mas aquilo surgia como um posto de controle na estrada a cada poucos quilômetros.
McCaleb parecia sentir que tudo estaria bem se ele conseguisse fazer aquela mulher aprovar sua existência. Seu cardiologista chamava isso de sentimento de culpa
do sobrevivente. Ele sobrevivera porque alguém morrera, e agora precisava atingir uma espécie de redenção por causa disso. Mas McCaleb achava que a explicação não
era tão simples.
Graciela tinha franzido a testa, mas isso não a deixava menos bonita aos olhos dele. Ela tinha a pele cor de cobre, e uma cabeleira castanho-escura que emoldurava
um rosto com olhos de um castanho tão escuro que quase não havia separação entre a íris e a pupila. Aquela beleza era outra razão pela qual procurava a aprovação
dela em todas as coisas. Havia algo de purificador na luz dos sorrisos que ela às vezes lançava para ele.
- Terry, ouvi vocês dois falando ali no pátio. Depois que o bebê ficou quieto. Ouvi o que Jaye disse sobre o que faz você vibrar, e que você não passa um dia sem
pensar no que costumava fazer. Fala só isso... Ela tinha razão?
McCaleb ficou em silêncio por um instante. Baixou o olhar para o prato vazio, lançando-o em seguida sobre o porto para as luzes do casario que se encarapitava na
colina do outro lado, chegando até a pousada no cume do monte Ada. Balançou a cabeça lentamente e olhou novamente para ela.
- Tinha, ela tinha razão.
- Então tudo isto aqui, o que a gente está fazendo, o bebê... é tudo mentira?
- Não. Claro que não. Isto é tudo para mim, e eu protegeria essas coisas com todas as minhas forças. Mas a resposta é... sim, eu penso sobre o que eu era e o que
fazia. Quando estava no FBI, eu salvava vidas, Graciela... é simplesmente isso. E afastava o mal desse mundo. Fazia o mundo lá fora ficar um pouco menos escuro.
Ele levantou a mão e fez um gesto na direção da baía.
- Agora eu levo uma vida maravilhosa com você, Cielo e Raymond. E eu... eu pesco peixes para ricaços que não têm nada melhor para fazer com o dinheiro deles.
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- Então você quer as duas coisas.
- Não sei o que quero. Sei que só disse certas coisas a Jaye porque sabia que você estava escutando. Fiquei dizendo o que eu sabia que você queria ouvir, mas bem
lá no fundo do coração sabia que aquilo não era o que eu queria. O que eu queria era abrir aquele dossiê de uma vez e começar a trabalhar. Ela tinha razão a meu
respeito, Gracie. Não me via fazia três anos, mas conseguiu me fisgar.
Graciela levantou-se, deu a volta à mesa e sentou-se no colo dele.
- Só estou com medo por você, é isso - disse ela, abraçando-o com força.
McCaleb pegou dois copos altos no armário e colocou-os na bancada. Encheu o primeiro com água mineral e o segundo com suco de laranja. Depois começou a engolir as
vinte e sete pílulas que alinhara na bancada, alternando goles de água e de suco de laranja para ajudá-las a descer. Engolir as pílulas - duas vezes por dia - era
um ritual, e ele o odiava. Não por causa do gosto, pois depois de três anos já nem ligava mais, e sim porque o ritual era um lembrete do quanto sua vida dependia
de preocupações exteriores. As pílulas eram uma coleira. McCaleb não podia viver sem elas. Grande parte do seu mundo agora estava organizado de modo a assegurar
que ele sempre as tivesse à mão. Fazia planos em torno disso, armazenava um grande estoque delas e às vezes chegava a sonhar que estava tomando pílulas.
Quando terminou, voltou à sala, onde Graciela lia uma revista. Ela não olhou quando ele entrou no aposento, outro sinal de que estava infeliz com o que estava subitamente
acontecendo no seu lar. McCaleb ficou ali parado um instante, esperando, e quando as coisas não se alteraram seguiu pelo corredor até o quarto do bebê.
Cielo ainda dormia no berço. A luz que vinha do teto tinha um interruptor em resistência, e McCaleb a aumentou apenas o suficiente para poder vê-la claramente. Foi
até o berço e se inclinou para ouvir a respiração da criança, vê-la, e sentir aquele cheiro de neném. Cielo era morena como a mãe na pele e no cabelo,
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mas os olhos eram azuis como o oceano. As mãos pequeninas estavam cerradas, como se estivesse demonstrando sua prontidão para lutar pela vida. McCaleb ficava mais
apaixonado pela menina quando a via dormindo. Pensava em todos os preparativos que eles haviam feito: os livros, as aulas e os conselhos das amigas de Graciela no
hospital, que eram enfermeiras pediátricas. Tudo para que eles estivessem prontos para cuidar de uma vida frágil, tão dependente deles. Nada fora dito ou lido a
fim de prepará-lo para o oposto: a percepção que tivera, quando a segurara pela primeira vez, de que sua própria vida agora dependia dela.
McCaleb estendeu a mão para a criança, cobrindo as costas do bebê, que não se mexeu. Dava para sentir aquele coração diminuto batendo. Parecia rápido e desesperado,
como uma prece sussurrada. Às vezes aproximava a cadeira de balanço do berço e ficava olhando a filha até tarde da noite. Mas hoje seria diferente. Ele tinha que
ir. Tinha um trabalho a fazer. Um trabalho sangrento. Não sabia ao certo se fora até lá simplesmente para se despedir por aquela noite ou também, de certa forma,
para ganhar inspiração ou a aprovação dela. Na sua mente aquilo não fazia muito sentido. Sabia apenas que precisava vê-la e tocá-la antes de ir trabalhar.
McCaleb foi andando pelo píer e desceu os degraus até o cais dos esquifes. Achou o seu Zodiac inflável entre os outros botes e embarcou, abrigando cuidadosamente
a fita de vídeo e o dossiê na proa para que não ficassem molhados. Puxou duas vezes o cordão de partida do motor antes que este pegasse e seguiu pelo canal central
do porto. No porto de Avalon não havia cais para barcos maiores, que ficavam amarrados a bóias enfileiradas, acompanhando a concavidade natural da baía. Como era
inverno, havia poucos barcos no local, mas McCaleb não cortou caminho por entre as bóias. Seguiu pelo canal, como se estivesse dirigindo um carro nas ruas de um
bairro. Ninguém corta caminho pelos gramados; todo mundo fica na pista de rolamento.
Estava frio na água, e McCaleb fechou o zíper do agasalho. Ao se aproximar do Mar que Segue, viu o brilho do televisor por trás das cortinas do salão. Isso significava
que Buddy Leckridge não tinha terminado o serviço a tempo de pegar a última barca e ia passar a noite ali.
McCaleb e Buddy eram sócios no negócio de passeio de barco. Embora o título de propriedade da embarcação estivesse no nome de Graciela, a licença para alugar o barco
e todos os outros documentos relativos ao negócio estavam no nome de Buddy. Os dois haviam se conhecido mais de três anos antes, quando McCaleb ancorara o Mar que
Segue na marina Cabrillo, na baía de Los Angeles, e passara morar a bordo enquanto restaurava a embarcação. Buddy era um vizinho, que morava em um veleiro ancorado
ali perto. Haviam iniciado uma amizade que acabara se transformando em sociedade.
Durante a agitada temporada da primavera e do verão, Buddy dormia quase sempre no barco. Mas durante os períodos calmos geralmente pegava a barca até a cidade e
ficava no seu próprio barco na marina Cabrillo. Parecia conseguir encontrar mais companhias femininas nos bares da cidade do que nos poucos lugares semelhantes que
havia na ilha. McCaleb presumiu que ele fosse voltar para a cidade pela manhã, pois não tinham passeios marcados nos próximos cinco dias.
Encostou o Zodiac na popa do Mar que Segue e desligou o motor. Saltou carregando a fita de vídeo e o dossiê. Prendeu o Zodiac num gancho na popa e caminhou para
a porta do salão. Buddy estava lá, esperando, pois tinha ouvido o Zodiac ou sentido o pequeno choque na popa. Abriu a porta corrediça, segurando junto à perna um
livro de bolso. McCaleb deu uma olhada para a televisão, mas não conseguiu reconhecer o programa que ele estava vendo.
- Qual é, Terror? - perguntou Buddy.
- Nada. Preciso trabalhar um pouco, só isso. Vou usar a cabine da frente, está bem?
Entrou no salão. Estava quente ali. Buddy tinha o aquecedor ligado.
- Claro, tudo bem. Posso ajudar em alguma coisa?
- Neca, não é coisa ligada ao nosso negócio.
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- É coisa da mulher que passou por aqui? A que trabalha na polícia do condado?
McCaleb esquecera que Jaye viera primeiro ao barco e obtivera o endereço dele com Buddy. -É.
- Está trabalhando num caso dela?
- Não - disse McCaleb rapidamente, na esperança de limitar o interesse e o envolvimento de Buddy. - Só preciso olhar uns troços e ligar para ela de volta.
- Que barato, cara.
- Nada demais. E só um favor. O que está vendo na tevê?
- Ah, nada. Um programa sobre uma força-tarefa que persegue piratas de computador. Por quê? Já viu isso?
- Não, mas será que você poderia me emprestar a tevê por um tempinho?
McCaleb levantou a fita. Os olhos de Buddy brilharam.
- Fique à vontade. Coloque a fita ali.
- Hum, aqui não, Buddy. A detetive Jaye me pediu o máximo de sigilo. Trago a tevê de volta assim que tiver acabado.
O rosto de Buddy denunciou seu desapontamento, mas McCaleb não ficou preocupado. Foi até a bancada que separava a cozinha do salão e largou lá o dossiê e a fita.
Desligou o televisor da tomada e soltou-o da moldura que o impedia de cair quando o mar estava agitado. O aparelho tinha um videocassete embutido e era pesado. McCaleb
desceu pela escada estreita e levou-o até o camarote da frente, que fora parcialmente transformado em escritório. Dois lados do aposento tinham camas-beliche. A
de baixo à esquerda fora substituída por uma escrivaninha, e as duas de cima eram usadas para guardar arquivos de antigos casos do FBI - Graciela não queria aquele
material dentro de casa, onde Raymond poderia descobri-lo acidentalmente. O único problema era que McCaleb tinha certeza que Buddy já vasculhara as caixas e examinara
os arquivos. E aquilo o chateava. Era uma espécie de invasão. Já tinha pensado em manter o camarote trancado, mas sabia que isso poderia ser um erro fatal. A única
escotilha de teto no convés inferior ficava no camarote da frente, e aquele acesso não deveria
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ser bloqueado, caso um dia houvesse necessidade de uma evacuação de emergência pela proa.
Pôs o televisor na escrivaninha e ligou a tomada. Quando se virou para subir até o salão e pegar o dossiê e a fita, viu Buddy descendo os degraus, segurando a fita
e folheando o dossiê.
- Ei, Buddy...
- Parece coisa braba, cara.
McCaleb estendeu a mão e fechou o dossiê. Depois o tirou, juntamente com a fita, das mãos de seu sócio de pescaria.
- Só estava dando uma espiada.
- Já disse que é confidencial.
- É, mas nós trabalhamos bem juntos. Que nem antes.
Era verdade que Buddy acabara sendo de grande ajuda quando McCaleb investigara a morte da irmã de Graciela. Mas aquilo fora uma investigação de rua. O caso agora
era simplesmente de revisão. E McCaleb não queria ter alguém olhando por cima de seu ombro.
- Isto aqui é diferente, Buddy. É coisa de uma noite só. Vou apenas dar uma olhada no troço, e pronto. Agora me deixa trabalhar, para que eu não fique aqui a noite
toda.
Buddy não disse nada, e McCaleb não ficou esperando. Fechou a porta do camarote e virou-se para a escrivaninha. Ao olhar para o dossiê de assassinato nas suas mãos,
sentiu uma emoção forte, bem como o surgimento familiar de medo e culpa.
Percebeu que chegara a hora de voltar às trevas. De voltar a explorá-las e conhecê-las. De achar o caminho através delas. Embora estivesse sozinho, balançou a cabeça,
em reconhecimento de que tinha esperado muito tempo por aquele momento.
Capítulo 3
A fita de vídeo tinha uma imagem clara e firme, e a iluminação era boa. Os aspectos técnicos das gravações em vídeo de cenas de crimes haviam melhorado muito desde
os tempos de McCaleb no FBI. Já o conteúdo não mudara. A fita que ele observava mostrava vividamente o quadro mudo de um assassinato. McCaleb finalmente congelou
a imagem e a examinou. O camarote estava silencioso, exceto pelo suave marulhar das águas contra o casco do barco.
No foco central via-se um corpo nu que parecia ser de um homem amarrado com arame. Os braços e pernas estavam presos contra as costas, a tal ponto que o corpo parecia
estar numa posição fetal invertida. O corpo estava de bruços sobre um tapete velho e sujo. O foco era fechado demais para que se pudesse determinar em que tipo de
local o corpo fora encontrado. McCaleb julgou que a vítima fosse um homem baseando-se apenas na massa corporal e na musculatura, porque a cabeça da vítima não era
visível. Um balde de plástico cinzento, desses usados para limpeza, cobria-lhe inteiramente a cabeça. McCaleb viu que um pedaço do arame repuxava os tornozelos,
passava pelas costas entre os braços e mergulhava debaixo da borda do balde, dando a volta ao pescoço da vítima. À primeira vista aquilo parecia um estrangulamento
por ligadura, no qual a alavanca formada pelas pernas e os pés apertava
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o arame em torno do pescoço, causando asfixia. Na realidade, a vítima fora amarrada de tal modo que em última análise causara sua própria morte, quando já não
conseguira manter as pernas dobradas para trás naquela posição extrema.
McCaleb continuou examinando a cena. Uma pequena quantidade de sangue vazara do balde para o tapete, indicando haver algum tipo de ferimento na cabeça.
Recostou-se na velha cadeira, pensando em suas impressões iniciais. Ainda não abrira o dossiê, preferindo primeiro assistir à fita com a cena do crime e estudá-la
o mais detidamente possível, tal como os investigadores haviam visto originalmente o local. Já estava fascinado com o que via. Pressentia uma sugestão ritualística
na cena projetada na tela da tevê. E sentiu novamente o jorro de adrenalina no sangue. Apertou o botão do controle remoto e o vídeo continuou.
O foco afastou-se quando Jaye Winston entrou no enquadramento. McCaleb conseguiu ver um pouco mais do cenário e notou que aquilo parecia ser um pequeno apartamento
ou casa, quase sem móveis.
Coincidentemente, Jaye estava usando a mesma roupa que tinha usado quando fora até sua casa com o dossiê e a fita. Calçara luvas de borracha, puxando as bordas por
cima dos punhos do fclazer. Trazia o emblema de detetive pendurado num cadarço preto em volta do pescoço. Tomou posição à esquerda do homem morto, enquanto seu parceiro,
um detetive que McCaleb não reconheceu, postava-se à direita. Pela primeira vez ouviram-se vozes no vídeo.
"O corpo já foi examinado pelo médico-legista e liberado para a investigação da cena do crime", disse Jaye. "A vítima foi fotografada in situ. Vamos agora retirar
o balde para prosseguir com o exame."
McCaleb sabia que ela estava escolhendo cuidadosamente suas palavras e sua atitude, já pensando no futuro, que incluiria o julgamento de um réu por assassinato,
e no qual a fita da cena do crime seria revista pelo júri. Ela tinha que parecer profissional e objetiva, completamente desligada em termos emocionais do que estava
encontrando ali. Tudo que se desviasse dessa conduta poderia se
transformar num motivo para o advogado de defesa pedir que a fita não fosse considerada como prova.
Jaye estendeu a mão e prendeu o cabelo atrás das orelhas. Depois colocou ambas as mãos sobre os ombros da vítima. Com a ajuda do parceiro, virou o corpo de lado,
voltando a nuca do homem morto para a câmera.
O foco passou sobre o ombro da vítima e se aproximou, enquanto Jaye suavemente soltava a alça do balde do queixo do homem e cuidadosamente o afastava da cabeça.
"Pronto", disse ela.
Mostrou o interior do balde para a câmera - havia sangue coagulado dentro do recipiente - e colocou-o dentro de uma caixa de papelão usada para coletar provas. Depois
virou-se de novo e olhou para a vítima.
Uma fita adesiva cinzenta fora amarrada em torno da cabeça do homem, formando uma mordaça firme ao longo da boca. Os olhos estavam abertos e distendidos - esbugalhados.
Ambas as córneas se encontravam avermelhadas devido à hemorragia, da mesma forma que a pele em torno dos olhos.
"PC", disse o parceiro, apontando para os olhos.
"Kurt", disse Jaye. "Tem áudio aqui."
"Desculpe."
Ela estava mandando o parceiro guardar os seus comentários para si mesmo. Mais uma vez, tomava precauções quanto ao futuro. McCaleb sabia que o parceiro estava mostrando
a hemorragia, ou petéquia conjuntiva, que sempre acompanha o estrangulamento por ligadura. Entretanto aquele tipo de comentário deveria ser feito perante o júri
por um médico-legista, não por um investigador de homicídios.
O cabelo do homem morto, de comprimento médio, estava ensopado de sangue que se acumulara no balde junto ao lado esquerdo do rosto. Jaye começou a apalpar a cabeça,
passando os dedos pelo cabelo do morto à procura da origem do sangue. Finalmente encontrou o ferimento no topo da cabeça. Afastou o cabelo tanto quanto possível
para poder enxergar melhor.
"Barney, feche mais aqui se puder", disse ela.
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A câmera se aproximou. McCaleb viu um ferimento pequeno, redondo, que não parecia ter perfurado o crânio. Sabia que a quantidade de sangue aparente nem sempre batia
com a gravidade do ferimento. Até ferimentos sem grandes conseqüências no couro cabeludo podem produzir muito sangue. Ele teria uma descrição formal e completa do
ferimento no laudo da autópsia.
"Barn, pegue isso aqui", disse Jaye, com a voz subindo um pouco em comparação com o tom monocórdio anterior. "Tem algo escrito, ou coisa assim, na fita da mordaça."
Ela percebera aquilo ao apalpar a cabeça. A câmera se aproximou. McCaleb viu uns rabiscos leves onde a fita passava sobre a boca do homem morto. As letras pareciam
ter sido escritas a tinta, mas a mensagem estava coberta de sangue. Ele conseguiu distinguir o que parecia ser uma palavra na mensagem.
- Cave - leu em voz alta. - Caverna?
Achou que aquilo talvez fosse apenas parte de uma palavra, mas não conseguiu se lembrar de nenhuma palavra maior - a não ser caverna - que contivesse aquelas letras
na mesma ordem.
Congelou o quadro e ficou só observando. Estava fascinado. O que ele via ali o fazia voltar aos seus dias como elaborador de perfis, quando quase todo caso que lhe
era atribuído deixava-o com a mesma pergunta: De que mente sombria e torturada veio isso?
As palavras de um assassino eram sempre importantes e colocavam o caso num plano mais alto. Na maioria das vezes significavam que o assassinato era uma declaração,
uma mensagem transmitida do assassino para a vítima, e depois dos investigadores para o mundo.
McCaleb ficou de pé e estendeu a mão para o beliche superior. Puxou uma das caixas de arquivos antigos e largou-a pesadamente no chão. Levantando rapidamente a tampa,
começou a vasculhar os arquivos à procura de um caderno com algumas páginas ainda em branco. Fora sempre um ritual seu, quando no FBI, começar cada caso que lhe
era atribuído com um novo caderno em espiral. Finalmente chegou a um arquivo que continha apenas um formulário de solicitação de auxílio e um caderno. Um arquivo
com tão
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poucos documentos significava um caso curto, e o caderno deveria conter muitas páginas em branco.
Folheou o caderno e viu que estava quase sem uso. Pegou então o formulário Solicitação de Auxílio do FBI e leu rapidamente a folha de rosto para ver de que caso
se tratava. Lembrou-se imediatamente, porque aquilo fora resolvido com um único telefonema. A solicitação tinha vindo de um detetive da pequena cidade de White Elk,
no estado de Minnesota, quase dez anos antes, quando McCaleb ainda trabalhava na sede de Quantico. O relatório do investigador dizia que dois homens bêbados haviam
iniciado uma briga na casa que compartilhavam, desafiado um ao outro para um duelo e se assassinado mutuamente com tiros simultâneos dados a dez metros de distância,
no quintal da casa. O detetive não precisava de auxílio naquele caso de duplo homicídio, porque tudo estava claro como água. Contudo estava intrigado com outra coisa.
Durante uma busca na casa das vítimas, os investigadores haviam encontrado algo estranho no freezer do porão. Empurrados para um canto do freezer, havia dúzias e
dúzias de absorventes femininos usados. Eram de diversos fabricantes e marcas, e os testes preliminares de uma amostra do material haviam identificado sangue menstrual
originário de várias mulheres diferentes.
O detetive encarregado do caso não sabia o que tinha em mãos, mas temia o pior. Queria da Unidade de Ciências Comportamentais do FBI uma idéia do que aqueles absorventes
poderiam significar e do procedimento que ele deveria adotar. Mais especificamente, queria saber se os absorventes poderiam ser suvenires guardados por um ou dois
assassinos seriais, e que só haviam sido descobertos quando eles se mataram mutuamente.
McCaleb sorriu ao lembrar-se do caso. Já havia encontrado absorventes femininos em um freezer antes. Telefonara para o detetive e fizera-lhe três perguntas. Como
aqueles homens ganhavam a vida? Além das armas de fogo usadas no duelo, haviam sido encontradas no apartamento quaisquer armas longas ou uma licença para caçar?
E, por fim, quando começara a temporada de caça nos bosques ao norte de Minnesota?
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As respostas do investigador resolveram rapidamente o mistério dos absorventes. Ambos os homens trabalhavam numa empresa de limpeza para aviões comerciais no aeroporto
de Minneapolis. Haviam sido encontrados vários fuzis de caça na casa, mas nenhuma licença para caçar. E a temporada de caça a ursos só começaria dali a três semanas.
McCaleb dissera ao detetive que aparentemente os homens não eram assassinos seriais, mas provavelmente vinham reunindo o conteúdo dos recipientes onde eram jogados
os absorventes nos sanitários dos aviões em que faziam a limpeza. Levavam os absorventes para casa e os congelavam. Quando começava a temporada de caça, provavelmente
descongelavam os absorventes e os usavam como isca para os ursos, que conseguem detectar o cheiro de sangue a grande distância. A maioria dos caçadores usa restos
de comida como isca, mas nada se compara a sangue.
McCaleb recordava que o tal detetive tinha parecido desapontado, vendo que não tinha em mãos o caso de um ou dois assassinos seriais. Talvez houvesse ficado envergonhado
de que um agente do FBI, sentado à uma mesa em Quantico, houvesse resolvido tão rapidamente aquele mistério, ou então estivesse simplesmente aborrecido com o fato
de que não haveria uma corrida da mídia para cobrir o caso. O sujeito desligara abruptamente e nunca mais telefonara para ele.
McCaleb arrancou do caderno as poucas páginas com anotações do caso, colocou-as no arquivo com o formulário de solicitação de auxílio e repôs o arquivo no lugar.
Depois colocou a tampa na caixa e ergueu-a de volta à prateleira que era o beliche superior. Empurrou a caixa para o lugar que ocupava antes, fazendo-a bater com
força na parede.
Sentando-se novamente, olhou para a imagem congelada na tela do televisor. Depois examinou a página em branco do caderno e finalmente pegou a caneta no bolso da
camisa. Quando ia começar a escrever, a porta do camarote se abriu subitamente e Buddy Lockridge apareceu ali parado. -Tudo bem?
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- O quê?
Ouvi um barulho. O barco inteiro balançou.
- Está tudo bem, Buddy. Eu só...
- Porra, que diabo é isso?
Ele estava olhando para a tela da tevê. McCaleb levantou imediatamente o controle remoto e apagou a imagem.
- Buddy, olhe aqui, eu disse que isto é confidencial, e não posso...
- Tá legal, eu sei. Só vim ver se você não tinha desmaiado ou coisa assim.
- Ótimo, obrigado, mas eu estou bem.
Ainda vou ficar acordado durante algum tempo, se precisar de alguma coisa.
Não vou precisar, mas obrigado.
Está gastando muita energia, sabia? Vai ter que ligar o gerador amanhã depois que eu for embora.
- Não tem problema. Eu faço isso. A gente se vê depois, Buddy. Buddy apontou para a tela da tevê, agora apagada.
- Que coisa esquisita.
Tchau, Buddy - disse McCaleb, impaciente. Levantou-se e fechou a porta com Buddy ainda parado ali, mas dessa vez a trancou. Depois voltou à cadeira e ao caderno.
Começou a escrever e dentro de poucos minutos tinha elaborado uma lista:
CENA
1. Ligadura
2. Nu
3. Ferimento na Cabeça l
4. Fita/Mordaça-"Cave"?
5. Balde?
Examinou a lista durante alguns instantes, à espera de uma idéia qualquer, mas nada surgiu. Era cedo demais. Instintivamente, McCaleb sabia que as palavras na fita
adesiva eram uma chave que ele não poderia girar antes de ter a mensagem completa. Lutou contra a vontade de abrir o dossiê de assassinato e mergulhar no assunto.
Em vez disso, ligou de novo o televisor e começou a passar
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a fita do ponto em que tinha parado. A câmera focalizava de perto a boca do homem morto e a fita adesiva esticada ao longo dela.
"Vamos deixar isso para o legista", disse Jaye. "Já pegou tudo que podia disso, Barn?"
"Peguei", disse o operador de vídeo, sem ser visto. "Tá legal, vamos voltar e examinar a amarração." A câmera foi seguindo o arame desde o pescoço até os pés. O
fio enrolava-se em torno do pescoço e passava num nó corrediço. Seguia depois pela coluna vertebral até dar várias voltas em torno dos tornozelos, que haviam sido
puxados tanto para trás que os calcanhares da vítima estavam encostados na bunda.
Os pulsos estavam amarrados com um pedaço separado de arame, o qual fora enrolado seis vezes e depois arrematado com um nó. As amarras deixavam marcas profundas
na pele dos pulsos e dos tornozelos, indicando que a vítima lutara durante algum tempo antes de finalmente sucumbir.
Quando a filmagem do corpo foi completada, Jaye mandou o operador oculto fazer uma tomada completa de todos os aposentos do apartamento.
A câmera afastou-se do corpo e focalizou o restante do espaço da sala de estar/jantar. A casa parecia mobiliada com móveis de segunda mão. Não havia uniformidade,
e nenhuma das peças combinava com as outras. Os poucos quadros pendurados nas paredes pareciam ter vindo de um quarto da cadeia de hotéis Howard Johnson dez anos
antes - eram todos em tom pastel, alaranjados e azul-esverdeados. Na extremidade mais afastada do aposento via-se uma cristaleira alta, sem louça alguma dentro.
Algumas prateleiras continham livros, mas a maioria estava vazia. Em cima da cristaleira havia algo que McCaleb achou curioso: uma coruja de uns sessenta centímetros
de altura, que parecia ter sido pintada a mão. Ele já vira muitas daquelas corujas antes, principalmente no porto de Avalon e na marina Cabrillo. Quase sempre eram
feitas de plástico oco e colocadas no alto de mastros ou na ponte de comando de lanchas, geralmente numa tentativa malsucedida de afastar gaivotas e outros pássaros
das embarcações. Teoricamente, a coruja seria vista
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como um predador pelas outras aves, que assim ficariam longe e deixariam os barcos livres de suas fezes.
McCaleb também já vira aquelas corujas usadas no exterior de prédios públicos, onde os pombos eram um problema. Mas ficou interessado ao ver a coruja de plástico
naquele local por nunca ter visto ou ouvido falar de nenhuma usada dentro de uma residência particular, fosse como ornamento, fosse com outro objetivo. Sabia que
as pessoas colecionam todo tipo de coisa, inclusive corujas, mas nunca vira nenhuma em um apartamento a não ser aquela ali, postada no centro da cristaleira. Abriu
rapidamente o dossiê e achou o laudo de identificação da vítima. Dizia que o sujeito era pintor de paredes. McCaleb fechou o dossiê. Pensou que a vítima talvez tivesse
trazido a coruja de um local de trabalho ou que a tivesse retirado de alguma estrutura que estivesse se preparando para pintar.
Fez a fita recuar, e viu novamente o operador da câmera passar do corpo para a cristaleira onde estava pousada a coruja. Pareceulhe que a câmera fizera um giro de
180 graus, e isso significava que a coruja estaria diretamente diante da vítima, lançando o olhar sobre a cena do crime.
Embora houvesse outras possibilidades, seu instinto lhe dizia que a coruja de plástico era, de certa forma, parte da cena do crime. Pegou o caderno e colocou a coruja
como a sexta anotação da lista.
O restante da gravação da cena do crime atraiu pouca atenção de McCaleb. Registrava os demais aposentos do apartamento da vítima - o quarto, o banheiro e a cozinha.
Ele não viu outras corujas e não fez mais anotações. Quando chegou ao final da fita, rebobinou-a e assistiu a tudo novamente, mas nada de novo chamoulhe a atenção.
Ejetou a fita e meteu-a no invólucro de cartolina. Depois carregou a tevê de volta para o salão, prendendo-a no suporte sobre a bancada.
Buddy estava estirado no sofá lendo o tal livro de bolso. Não disse nada, e McCaleb percebeu que ele se ofendera ao ter a porta do escritório fechada e trancada
na sua cara. Pensou em pedir desculpas, mas decidiu deixar por isso mesmo. Buddy era muito
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intrometido acerca do passado e do presente dele. Talvez aquela rejeição o fizesse perceber isso.
- O que está lendo? - perguntou, em vez de pedir desculpas.
- Um livro - respondeu Buddy, sem levantar os olhos. McCaleb sorriu para si mesmo. Tinha certeza que Buddy sentira o golpe.
- Bom, aí está a tevê, se quiser ver o noticiário ou outra coisa qualquer.
- O noticiário já era.
McCaleb olhou para o relógio. Meia-noite. Não tinha sentido o tempo passar. Isso lhe acontecia muito. Quando estava no FBI, era bastante comum ficar trabalhando
durante a hora do almoço ou entrar pela noite sem perceber, sempre que estava mergulhado a fundo num caso.
Deixou Buddy emburrado ali e voltou ao escritório. Fechou a porta de novo ruidosamente, e a trancou.
Capítulo 4
Depois de virar uma nova folha em branco no caderno, McCaleb abriu o dossiê do assassinato. Soltou as argolas e tirou os documentos, empilhando-os cuidadosamente
na escrivaninha. Era um pequeno cacoete: não gostava de fazer a revisão de um caso virando as páginas como num livro. Gostava de segurar nas mãos os relatórios individuais.
Gostava de acertar os cantos da pilha inteira. Pôs a pasta de lado e começou a ler cuidadosamente, em ordem cronológica, os resumos investigativos. Dentro em pouco
estava completamente imerso na investigação.
O relato de homicídio chegara de forma anônima à recepção da subdelegacia de West Hollywood, do gabinete do xerife de Los Angeles, ao meio-dia de segunda-feira,
1 de janeiro. A pessoa que ligara tinha dito que havia um homem morto no apartamento 2B do Edifício Grand Royale, na avenida Sweetzer, perto de Melrose. Desligara
sem dar o nome ou qualquer outra mensagem. Como chegara por uma das linhas da recepção que não eram de emergência, o relato não fora gravado, e o aparelho não dispunha
de identificador de chamadas.
Dois patrulheiros foram destacados para o apartamento e encontraram a porta da frente entreaberta. Sem obter resposta quando bateram e chamaram, os policiais entraram
no apartamento, percebendo rapidamente que o informante anônimo tinha feito
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um relato preciso. Havia um homem morto no recinto. Os policiais saíram do apartamento, e a equipe da Homicídios fora convocada, sendo encarregados do caso os parceiros
Jaye Winston e Kurt Mintz, com Jaye na chefia.
A vítima era identificada nos relatórios como Edward Gunn, um pintor de paredes itinerante de quarenta e quatro anos. Morava sozinho no apartamento da avenida Sweetzer
havia nove anos.
Uma pesquisa por computador em busca de registros criminais ou atividades criminosas conhecidas revelara que Gunn tinha um passado de condenações por pequenos delitos,
que iam desde o aliciamento de prostitutas e vadiagem até prisões repetidas por bebedeiras em público e dirigir alcoolizado. Fora preso duas vezes por dirigir bêbado
nos três meses anteriores à sua morte, inclusive na noite de 30 de dezembro. Pagara fiança no dia 31 e fora solto. Menos de vinte e quatro horas depois, estava morto.
Os relatórios também mostravam uma prisão por um crime sério, sem condenação subseqüente. Seis anos antes Gunn fora levado preso pelo Departamento de Polícia de
Los Angeles e interrogado sobre um homicídio. Fora solto mais tarde, sem sequer ter sido indiciado.
De acordo com os relatórios investigativos incluídos por Jaye Winston e seu parceiro no dossiê de assassinato, não havia sinais de roubo no apartamento de Gunn ou
no corpo da própria vítima, afastando a hipótese de latrocínio. Outros residentes do prédio de seis apartamentos haviam dito que nada de anormal fora ouvido no apartamento
de Gunn na véspera do Ano-Novo. Qualquer som que pudesse ter saído do apartamento durante o assassinato provavelmente tinha sido abafado pelo barulho de uma festa
dada por um inquilino que morava embaixo de Gunn. A festa entrara pela manhã do dia
1 de janeiro. Gunn, segundo diversos participantes da festa que haviam sido
entrevistados, não comparecera ao evento e não fora convidado.
Uma busca na vizinhança, formada principalmente por pequenos prédios semelhantes ao Grand Royale, não produzira testemunhas que recordassem ter visto Gunn nos dias
anteriores à morte dele.
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Tudo indicava que o criminoso tinha ido atrás de Gunn. A ausência de danos nas portas e janelas do apartamento mostrava que não houvera arrombamento e que era muito
possível que Gunn conhecesse seu assassino. Pensando nisso, Jaye e Mintz haviam interrogado todos os colegas e conhecidos da vítima, bem como todos os inquilinos
e pessoas que haviam comparecido à festa no andar de baixo, num esforço para apontar um suspeito. O resultado fora nulo.
Eles também haviam conferido todos os registros financeiros da vítima, procurando uma pista que indicasse uma motivação pecuniária, sem encontrar nada. Gunn não
tinha emprego fixo. Tinha como base uma loja de pinturas e decoração de interiores no bulevar Beverly, onde oferecia seus serviços a clientes na base de diárias.
Vivia ao Deus dará, ganhando o estritamente necessário para pagar e manter o apartamento, além de uma pequena picape na qual transportava o material de pintura.
Tinha um único parente vivo, uma irmã que morava em Long Beach. Na ocasião de sua morte, não se viam havia mais de um ano, embora houvesse telefonado para ela na
véspera da desgraça, de uma cela da delegacia do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estava ali porque o pegaram dirigindo bêbado. A irmã tinha relatado que
dissera ao irmão que não podia mais continuar a ajudá-lo, pagando as fianças dele. Desligara. E não pudera fornecer aos investigadores qualquer informação útil relativa
ao assassinato do irmão.
O incidente pelo qual Gunn tinha sido preso seis anos antes fora meticulosamente reexaminado. Ele matara uma prostituta num quarto de hotel do Sunset Boulevar. Usara
a faca da própria mulher para apunhalá-la quando ela tentara feri-lo e roubá-lo, segundo seu depoimento no relatório apresentado pela Divisão de Hollywood do Departamento
de Polícia de Los Angeles. Havia pequenas inconsistências entre o depoimento original de Gunn aos policiais da patrulha chamada ao local e as provas físicas, mas
que não eram suficientemente fortes para que o promotor público o indiciasse. Embora de modo relutante, o caso acabara sendo considerado legítima defesa e arquivado.
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McCaleb observou que o investigador-chefe do caso fora o detetive Harry Bosch. Já havia trabalhado com Bosch num caso antigo, uma investigação em que ainda pensava
com freqüência. Bosch se mostrara ríspido e misterioso às vezes, mas mesmo assim era um bom policial, com grande talento, intuição e instinto de investigador. Na
realidade, os dois se viram de certa forma ligados, devido ao torvelinho emocional no qual o caso os mergulhara. McCaleb anotou o nome de Bosch no caderno como um
lembrete, a fim de telefonar para o detetive e ver se ele tinha alguma idéia sobre o caso de Gunn.
Voltou à leitura dos sumários. Tendo em mente o registro anterior do envolvimento de Gunn com uma prostituta, o passo seguinte de Jaye Winston e Mintz fora vasculhar
os registros telefônicos da vítima, bem como compras com cheques e cartões de crédito, procurando indicações de que talvez Gunn houvesse continuado a procurar prostitutas,
mas nada haviam encontrado. Durante três noites, haviam percorrido o Sunset Boulevar com uma equipe da Delegacia de Costumes do Departamento de Polícia de Los Angeles,
parando e entrevistando prostitutas de rua. Contudo nenhuma delas admitira conhecer o homem das fotos que a irmã de Gunn emprestara aos detetives.
Os investigadores haviam pesquisado os anúncios de serviços sexuais nos jornais alternativos locais, à procura de algum anúncio que Gunn pudesse ter colocado. Mas
isso também não os ajudou em nada.
Finalmente a investigação lançara-se ao recurso, com pequena probabilidade de êxito, de rastrear a família e as ligações da prostituta morta seis anos antes. Embora
Gunn jamais houvesse sido acusado da morte da mulher, ainda havia a chance de que alguém houvesse acreditado que ele não agira em legítima defesa - alguém que poderia
querer se vingar.
Mas isso também se mostrara um beco sem saída. A família da mulher era da Filadélfia e perdera contato com ela muitos anos antes. Nenhum parente chegara a reclamar
o corpo antes que este fosse cremado à custa dos contribuintes do condado. Não havia razão para que alguém buscasse vingança por uma morte ocorrida
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seis anos antes, se para começar ninguém se importara muito com
essa morte.
O caso estancara num beco sem saída após outro. Um caso não resolvido nas primeiras quarenta e oito horas tinha menos de cinqüenta por cento de chances de ser esclarecido.
Depois de duas semanas a coisa se assemelhava a um cadáver anônimo no necrotério - ficava lá, no frio e no escuro, por muito, muito tempo.
E fora por isso que Jaye finalmente recorrera a McCaleb. Ele era o último recurso para um caso sem esperança de solução.
Terminada a leitura dos sumários, McCaleb decidiu fazer uma parada. Olhou para o relógio e viu que eram quase duas horas da manhã. Abriu a porta da cabine e subiu
para o salão. As luzes estavam apagadas. Aparentemente Buddy fora dormir na cabine principal, sem fazer barulho. McCaleb abriu a geladeira e examinou seu conteúdo.
Havia um pacote de cervejas que sobrara do passeio, mas ele não queria aquilo. Tinha também um pacote de suco de laranja e água mineral. Pegou a água e passou para
o convés pela porta do salão. Sempre fazia frio no mar, mas a temperatura estava mais baixa ainda do que o habitual. Cruzou os braços sobre o peito e ergueu o olhar
sobre a baía até a casa na colina onde sua família dormia. Apenas uma luz solitária brilhava no pátio dos fundos.
Uma ligeira pontada de culpa perpassou-lhe a alma. Ele sabia que, apesar de seu profundo amor pela mulher e pelas duas crianças atrás daquela luz, preferia estar
ali no barco com o dossiê de assassinato do que lá em cima na casa adormecida. Tentou afastar aqueles pensamentos e as questões por eles suscitadas, mas não podia
esconder inteiramente de si mesmo a conclusão essencial de que havia algo de errado com ele, alguma coisa que lhe faltava. Era algo que o impedia de abraçar plenamente
aquilo pelo qual a maioria dos homens parecia ansiar.
Voltou a entrar no barco. Sabia que se mergulhasse na leitura dos relatórios do caso a culpa desapareceria.
O laudo da autópsia não continha surpresas. A causa da morte fora o que McCaleb previra ao ver a fita: hipoxia cerebral devido à compressão das artérias carótidas
por estrangulamento de ligadura.
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A hora da morte fora estimada entre meia-noite e três da madrugada do dia
1de janeiro. O médico-legista que fizera a autópsia observara que os danos interiores no pescoço eram mínimos. Nem o osso hióide nem a cartilagem tiroidiana estavam
quebrados.
Esse aspecto, juntamente com os sulcos múltiplos de ligadura na pele, haviam levado o legista a concluir que Gunn sufocara vagarosamente, enquanto lutava desesperadamente
para manter os pés atrás das costas, de modo que o laço de arame não lhe apertasse o pescoço. A conclusão da autópsia sugeria que a vítima talvez tivesse lutado
naquela posição por umas duas horas.
McCaleb ficou pensando nisso, imaginando que o assassino talvez houvesse permanecido no apartamento durante todo o tempo, observando a agonia do homem. Ou talvez
houvesse amarrado a vítima e partido antes que esta estivesse morta, possivelmente colocando em prática algum plano de álibi - como aparecer numa festa de Ano-Novo,
a fim de que diversas testemunhas garantissem tê-lo visto na hora da morte da vítima.
Lembrou-se então do balde e concluiu que o assassino permanecera no local. Cobrir o rosto da vítima era algo freqüente em assassinatos com motivação sexual ou ódio.
O agressor cobria o rosto da vítima como meio de desumanizá-la e evitar o contacto visual. McCaleb já trabalhara em dezenas de casos onde observara esse fenômeno:
mulheres estupradas e assassinadas com camisolas ou fronhas cobrindo o rosto ou crianças com a cabeça envolvida em toalhas. Ele poderia elaborar uma lista de exemplos
que encheriam um caderno inteiro. Em vez disso, escreveu uma linha na página embaixo do nome de Bosch.
SUDES estava lá o tempo todo. Ficou assistindo.
O sujeito desconhecido, pensou McCaleb. Mais uma vez nos encontramos.
Antes de continuar, folheou o laudo da autópsia à procura de duas informações. Primeiro, o ferimento na cabeça. Encontrou
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uma descrição do ferimento nos comentários do legista. A laceração perimortem era circular e superficial. O dano causado fora mínimo e possivelmente tratava-se de
um ferimento defensivo.
McCaleb achava impossível que aquele ferimento fosse defensivo. O único sangue no tapete na cena do crime era o que caíra do balde depois que este fora colocado
sobre a cabeça da vítima. Além do mais, o sangue do ferimento no alto da cabeça fluíra na direção da face e escorrera sobre esta. Isso mostrava que a cabeça estava
inclinada para a frente. Levando tudo isso em conta, McCaleb concluiu que Gunn já estava amarrado e caído no chão quando o golpe foi desferido na sua cabeça e quando
esta foi coberta pelo balde. Seu instinto lhe dizia que aquilo talvez houvesse sido um golpe desfechado com a intenção de apressar o fim da vítima; um impacto na
cabeça que enfraqueceria a vítima e abreviaria sua luta contra o enforcamento.
Anotou essas impressões no caderno e voltou à leitura do laudo da autópsia. Localizou o que fora descoberto no exame do ânus e do pênis. O material colhido indicava
não ter havido atividade sexual no período antes da morte. McCaleb escreveu Sem Sexo no caderno. Embaixo anotou a palavra Raiva e fez um círculo em torno dela.
Sabia que Jaye Winston provavelmente já chegara a grande parte - e talvez ao total - das suspeitas e conclusões que ele estava levantando ali. Entretanto aquela
sempre fora a sua rotina no exame de cenas do crime. Primeiro ele fazia sua própria avaliação e depois olhava para ver como aquilo se portava face às conclusões
dos investigadores iniciais.
Depois da autópsia, passou para os relatórios referentes às provas. Primeiro examinou a lista de provas materiais coletadas e verificou que a coruja de plástico
que vira na fita não fora empacotada e etiquetada. Sabia que isso deveria ter sido feito e anotou uma observação sobre o fato. Também faltava na lista qualquer menção
sobre a recuperação de uma arma. Aparentemente, fosse qual fosse o objeto usado para abrir o ferimento no couro cabeludo de Gunn, tinha sido levado da cena pelo
assassino. McCaleb anotou isso
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também, pois tratava-se de outra informação sobre o perfil do assassino, que parecia alguém organizado, meticuloso e cauteloso. O relatório sobre a análise da fita
adesiva usada para amordaçar a vítima estava arquivado em um envelope separado, que McCaleb encontrou numa das divisões do dossiê. Além de um relato impresso e um
adendo, havia diversas fotografias que mostravam o comprimento total da fita depois que esta fora cortada e retirada do rosto e da cabeça da vítima. O primeiro conjunto
de fotografias revelava a parte dianteira e traseira da fita como esta fora encontrada, com uma quantidade significativa de sangue coagulado tapando a mensagem escrita.
O grupo seguinte mostrava a fita, pela frente e por trás, depois que o sangue fora removido com água e sabão. McCaleb ficou olhando para a mensagem por muito tempo,
embora soubesse que nunca poderia decifrá-la por conta própria.
Cave Cave Dus Videt
Pôs finalmente as fotografias de lado e pegou os relatórios que as acompanhavam. Descobriu que a fita não continha impressões digitais, mas vários pêlos e fibras
microscópicas haviam sido colhidas do lado adesivo. Fora verificado que os pêlos eram da vítima. As fibras haviam sido preservadas, à espera de ordens posteriores
para análise. McCaleb sabia que isso significava que havia restrições de tempo e dinheiro. As fibras só seriam analisadas quando a investigação chegasse a um ponto
em que houvesse fibras pertencentes a um suspeito qualquer que também pudessem ser analisadas e comparadas. Caso contrário, a análise das fibras, cara e demorada,
não valeria para nada. McCaleb já vira esse tipo de priorização investigativa antes. Era uma rotina das autoridades locais não tomar medidas caras até que isso fosse
necessário. Mas ficou um pouco surpreso ao ver que isso não tinha sido considerado necessário no caso em pauta. Concluiu que o passado de Gunn como suspeito anterior
de um crime poderia tê-lo relegado a vítima de segunda classe, para a qual esse tipo de providência não era tomada. Talvez, pensou ele, houvesse sido por aquele
motivo que Jaye Winston viera procurá-lo. Ela não dissera nada sobre pagá-lo pelas
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horas gastas com o caso - e de qualquer forma ele não poderia aceitar qualquer pagamento.
McCaleb passou para o relatório em adendo, que fora elaborado por Jaye. Ela levara uma fotografia da fita adesiva e da mensagem a um professor de lingüística da
Universidade da Califórnia, Los Angeles, que identificara as palavras como latinas. Depois procurara um padre católico aposentado, que morava na reitoria da igreja
de St. Catherine, em Hollywood, e ensinara latim por vinte anos na escola paroquial antes que a matéria fosse retirada do currículo escolar no início da década de
1970. Ele traduzira facilmente a mensagem para Jaye.
Cave Cave Dus Videt Cave Cave D(omin)us Videt Cuidado Cuidado Deus Vê
- Santa merda - disse McCaleb baixinho, para si mesmo.
Isso não foi dito como uma exclamação. Mais exatamente, era a frase que ele e seus colegas que elaboravam perfis de criminosos no FBI usavam para classificar informalmente
os casos em que assuntos religiosos faziam parte das provas. Quando se descobria que Deus era parte da provável motivação para um crime, o caso era mencionado como
uma "santa merda" em conversas informais. O fato também alterava significativamente as coisas, pois o trabalho de Deus nunca terminava. Quando um assassino andava
à solta usando o nome Dele como parte de sua marca num crime, com freqüência havia mais crimes. Dizia-se, nos escritórios de perfil do FBI, que os assassinos de
Deus nunca paravam por sua própria vontade. Precisavam ser detidos. McCaleb entendia agora a apreensão de Jaye Winston em deixar que o caso caísse no esquecimento.
Se Edward Gunn era a primeira vítima conhecida, havia mais alguém na mira do assassino naquele exato momento.
McCaleb copiou a tradução da mensagem do assassino e algumas outras impressões. Escreveu Aquisição de Vítimas e sublinhou a expressão duas vezes.
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Olhou de novo para o relatório de Jaye e percebeu que no final da página onde se encontrava a tradução havia um parágrafo assinalado com um asterisco.
* O padre Ryan declarou que a palavra "Dus", como vista na fita adesiva, era uma forma abreviada de "Deus" ou "Dominus", encontrada principalmente nas bíblias medievais,
bem como em baixos-relevos de igrejas e outras peças artísticas.
McCaleb recostou-se na cadeira e bebeu água da garrafa. Achava que o parágrafo final era o mais interessante de todo o conjunto. A informação ali contida poderia
ser um meio pelo qual o assassino talvez pudesse ser isolado em um pequeno grupo e depois encontrado. Inicialmente, o conjunto de suspeitos era muito grande - incluía
essencialmente qualquer um que houvesse tido acesso a Edward Gunn na véspera de Ano-Novo. Mas a informação do padre Ryan reduzia o elenco significativamente, passando
a ser suspeito apenas quem tivesse conhecimento de latim medieval ou quem houvesse tirado a palavra Dus, e possivelmente toda a mensagem, de algo que vira. Talvez
algo numa igreja.
Capítulo 5
McCaleb estava muito excitado com tudo o que tinha lido e visto para pensar em dormir. Eram quatro e meia da manhã, e ele sabia que terminaria a noite acordado ali
no escritório. Provavelmente ainda era cedo demais em Quantico, Virginia, para que alguém já estivesse na Unidade de Ciências Comportamentais, mas decidiu telefonar
assim mesmo. Foi até o salão, tirou o telefone celular do carregador de bateria e teclou o número de memória. Quando a telefonista geral atendeu, ele pediu para
a ligação ser transferida para a mesa da agente especial Brasília Doran. Poderia falar com muita gente ali, mas escolheu Brasília porque eles haviam sido bons colegas
- e muitas vezes a grande distância um do outro - quando ele estava no FBI. Brasília também era especializada na identificação e simbologia de ícones.
O telefonema foi atendido por uma secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem de Brasília, McCaleb tentou rapidamente decidir se deixava uma mensagem ou simplesmente
telefonaria outra vez. Inicialmente, achou que seria melhor desligar e tentar falar ao vivo com ela mais tarde, porque um telefonema pessoal é muito mais difícil
de ser ignorado do que uma mensagem gravada. Contudo depois decidiu acreditar na antiga camaradagem dos dois, embora ele já estivesse afastado do FBI há cinco anos.
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- Brass, é Terry McCaleb. Há quanto tempo não nos vemos... Escute, estou telefonando porque preciso de um favor. Pode ligar de volta logo que tiver tempo? Eu gostaria
muito.
Deu o número do seu telefone celular, agradeceu e desligou. Podia levar o telefone para casa e esperar a chamada, mas lá Graciela poderia ouvir a conversa dele com
Brasília Doran, e isso ele não queria. Voltou ao camarote dianteiro e começou a reler os documentos do dossiê de assassinato. Conferiu novamente cada uma das páginas,
procurando algo que se destacasse, fosse por inclusão ou exclusão. Tomou mais algumas notas e arrolou as coisas que ainda precisava fazer e saber antes de elaborar
um perfil. Entretanto estava apenas esperando por Brasilia. Finalmente, às cinco e trinta, ela retornou o telefonema.
- Quanto tempo mesmo - disse ela, num cumprimento.
- Muito mesmo. Como está, Brass?
- Não posso me queixar, já que ninguém escuta.
- Soube que vocês estão atolados de trabalho.
- Nisso você tem razão. Atolados e estourados. Você sabe que no ano passado nós mandamos metade da equipe para Kosovo a fim de ajudar nas investigações dos crimes
de guerra. Em turnos de seis semanas. Isso simplesmente nos arrasou. Estamos tão atrasados no serviço que a situação está ficando crítica.
McCaleb ficou pensando se ela não estaria lhe passando um aviso de coitadinha-de-mim, para que ele não pudesse pedir-lhe o favor que mencionara no telefonema. Decidiu
ir em frente.
- Bom, então você não vai gostar de falar comigo - disse ele. - Ah, estou tremendo de medo. Do que você precisa, Terry?
- Estou fazendo um favor aqui para a equipe de homicídios do gabinete do xerife. Estou dando uma olhada em um caso de homicídio e...
- Ele já nos contactou?
- E ela. Entrou no programa PCCV e não conseguiu nada. Só isso. Depois ela soube que vocês aí são craques em elaborar perfis de criminosos, e veio me procurar. Eu
devo a ela uma espécie de favor, de modo que disse que daria uma olhada no caso.
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- E agora está querendo furar a fila, não é?
McCaleb sorriu, na esperança de que ela também estivesse sorrindo do outro lado.
- Por aí. Mas acho que é jogo rápido. Só quero uma coisa.
- Então desembuche logo. O que é?
- Preciso de uma pesquisa iconográfica. Estou seguindo um palpite nesse sentido.
- Está bem. Não parece que isso vá me tomar muito tempo.
Qual é o símbolo?
- Uma coruja.
- Uma coruja? Só uma coruja?
- Uma coruja de plástico, na verdade. Mas uma coruja, mesmo assim. Quero saber se isso já pintou por aí antes e o que significa.
- Bom, eu me lembro de uma coruja num saco de batata frita. Qual é aquela marca?
- Wise, sábia. Eu me lembro. É uma marca da Costa Leste. - Pois é. A coruja é esperta. É sábia.
- Brass, eu esperava alguma coisa mais...
- Eu sei, eu sei. Vamos fazer o seguinte... Vou ver o que posso fazer. Mas é bom lembrar que os símbolos mudam. O significado de uma coisa numa determinada época
pode ser algo completamente diferente em outra. Só está procurando empregos e exemplos contemporâneos?
McCaleb pensou um instante sobre a mensagem na fita adesiva.
- Dá pra levar a coisa até a época medieval?
- Parece que você está com um caso estranho... Mas todos são estranhos, não? Deixe-me adivinhar... E um caso de "santa merda"?
- Pode ser. Como percebeu?
- Ah, todos esses troços de Inquisição e igreja na era medieval. Já vi isso antes. Eu tenho o seu telefone. Vou ver se dou retorno
ainda hoje.
McCaleb pensou em pedir que ela fizesse uma análise da mensagem na fita adesiva, mas decidiu não acumular as coisas. Além disso, provavelmente a mensagem fora incluída
na pesquisa por computador feita por Jaye. Ele agradeceu, e estava prestes a desligar, quando ela lhe perguntou como ia a saúde. Ele disse que ia bem.
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- Você ainda mora naquele barco, como ouvi dizer?
- Neca. Estou morando numa ilha agora. Mas ainda tenho o barco. Além de um esposa e uma filhinha pequena.
- Uau! Esse é o Terry "Jantar Com Tevê" McCaleb que eu conhecia?
- O mesmo, acho eu.
- Bom, parece que deu um acerto na sua vida.
- Acho que finalmente consegui.
- Então tenha cuidado. Pra que se meter novamente num caso desses?
McCaleb hesitou.
- Não tenho certeza.
- Não tente me enrolar. Tanto eu quanto você sabemos por que está fazendo isso. Vou ver o que descubro e ligo de volta para você.
- Obrigado, Brass. Vou ficar esperando.
McCaleb foi até o camarote principal e sacudiu Buddy para acordá-lo. O amigo se espantou e começou a agitar os braços desordenadamente.
- Sou eu, sou eu!
Antes de se acalmar, Buddy golpeou McCaleb no lado da cabeça com o livro que estava segurando quando pegou no sono.
- O que está fazendo? - exclamou Buddy.
- Estou tentando te acordar, cara.
- Pra quê? Que horas são?
- São quase seis. Quero levar o barco para o outro lado.
- Agora?
- E, agora. Levante e me ajude. Vou pegar as cordas.
- Cara, agora? A gente vai pegar uma névoa forte. Por que não espera até clarear?
- Porque não tenho tempo.
Buddy estendeu a mão e acendeu a lâmpada de leitura presa à parede da cabine, logo acima da cabeceira. McCaleb viu que o livro que o outro estava lendo era Rastros
da maldade - O canto da sereia.
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- Com toda certeza alguma coisa deu um choque no seu sangue, cara - disse ele, esfregando a orelha atingida pelo livro.
- Desculpe. Mas por que está com tanta pressa de cruzar? E o tal caso, não é?
- Vou subir. Vamos botar o pé na estrada.
McCaleb saiu da cabine. Como já esperava, Buddy chamou-o, dizendo:
- Vai precisar de um motorista?
- Não, Buddy. Você sabe que eu venho dirigindo há dois anos.
- E, mas pode precisar de ajuda nesse caso, cara.
- Eu me viro. Depressa, Bud, quero chegar logo.
McCaleb tirou a chave do gancho perto da porta do salão, saiu e subiu à ponte de comando. O ar ainda estava frio, e pequenos feixes da luz da aurora abriam caminho
na névoa da manhã. Ligou o radar Raytheon e deu a partida nos motores. Pegaram imediatamente - Buddy levara o barco até a marina
del Rey na semana anterior para fazer manutenção.
McCaleb deixou os motores em ponto morto, desceu de novo e foi até a popa. Soltou o cabo do Zodiac e foi puxando o bote inflável até a proa. Amarrou-o no cabo da
bóia de ancoragem depois de soltá-lo do gancho dianteiro, deixando o barco livre. Depois subiu à parte mais alta da proa. Quando olhou para a ponte de comando, viu
Buddy, com o cabelo parecendo um ninho emaranhado devido ao sono, tomando o assento do piloto. McCaleb fez sinal de que a embarcação estava livre. Buddy empurrou
os aceleradores para frente e o Mar que Segue começou a se mover. McCaleb pegou no convés a haste de atracação, de quase três metros, e usou-a para manter a bóia
afastada da proa enquanto o barco girava no canal livre e vagarosamente tomava a direção da entrada da baía.
McCaleb ficou ali, na parte mais alta da proa, encostado na balaustrada, observando a ilha se afastar atrás do barco. Levantou novamente os olhos na direção de sua
casa e viu apenas uma única luz acesa. Era cedo demais para a família estar acordada. Pensou no erro que conscientemente acabara de cometer. Deveria ter ido para
casa e dito a Graciela o que estava fazendo, explicando a coisa.
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Mas sabia que aquilo lhe tomaria um bocado de tempo e que nunca encontraria uma explicação que a satisfizesse. Decidiu simplesmente ir em frente. Telefonaria para
a esposa após a travessia e arcaria com as conseqüências de sua decisão mais tarde.
A aurora tinha um tom acinzentado como o de um tubarão, e o ar frio esticara a pele de seus braços e de seu pescoço. Ele se virou ali na proa e lançou o olhar sobre
a baía, para o ponto onde sabia que ficava a cidade escondida pela névoa. A sensação de não conseguir enxergar o que sabia estar lá era sinistra, e ele baixou o
olhar. A água cortada pela proa parecia lisa, de um tom azul-negro como um marlim. McCaleb sabia que precisava subir à ponte de comando para auxiliar Buddy. Um deles
pilotaria a embarcação, enquanto o outro mantinha os olhos na tela do radar a fim de mapear uma trajetória segura até o porto de Los Angeles. Era uma pena, pensou,
que não houvesse um radar que ele pudesse usar quando chegasse à terra de novo e tentasse achar seu caminho naquele caso que o fisgara. Um nevoeiro de tipo diferente
o esperava lá. E foram esses pensamentos, ao tentar enxergar o caminho adiante, que o levaram a recordar aquilo que o intrigara tão profundamente naquele caso.
Cuidado Cuidado Deus Vê
As palavras giravam na sua cabeça como um mantra recém-descoberto. Naquela névoa espessa ali na frente, havia alguém que escrevera aquelas palavras. Alguém que agira
segundo aquelas palavras de forma extremada pelo menos uma vez, e que provavelmente faria isso de novo. McCaleb estava indo encontrar essa pessoa. E ao fazê-lo,
pensou, estaria agindo segundo as palavras de quem? Havia um verdadeiro Deus enviando-o nessa jornada?
Sentiu um toque no ombro e virou-se sobressaltado, quase deixando cair a haste de atracação por cima da balaustrada. Era Buddy.
-Jesus Cristo, cara, não faça isso!
- Você está bem?
- Eu estava até você me pregar esse baita susto. O que está fazendo? Devia estar pilotando.
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McCaleb deu uma olhada por cima do ombro para verificar se eles estavam afastados das bóias sinalizadoras e já no centro da baía.
- Sei lá - disse Buddy. - Você parecia o capitão Ahab, parado aqui com essa haste. Achei que havia algo de errado. O que está fazendo?
- Estou pensando. Se incomoda? Não me dê um susto como esse de novo, cara.
- Bom, acho que com essa ficamos empatados.
- Vá pilotar o barco, Buddy. Eu subo num minuto. E verifique o gerador... é bom carregar as baterias.
Enquanto Buddy se afastava, McCaleb sentiu seu coração voltar ao compasso normal. Saiu da proa e prendeu a haste de atracação nos grampos do convés. Ao se inclinar,
sentiu a embarcação subir e baixar ao passar por uma onda de um metro e pouco. Endireitou-se e olhou em torno para ver a origem da marola. Mas não viu nada. Talvez
um fantasma deslizando na superfície lisa da baía.
Capítulo 6
Harry Bosch levantou a maleta como um escudo, usando-a para abrir caminho entre a multidão de repórteres e cinegrafistas reunidos diante das portas do tribunal.
- Com licença, por favor, com licença.
A maioria deles só se mexia quando ele os empurrava para o lado com a maleta. Agrupavam-se desesperadamente, estendendo gravadores e câmeras na direção do centro
do nó humano onde o advogado de defesa dava entrevista.
Bosch conseguiu finalmente chegar à porta, onde um policial do escritório do xerife estava encurralado contra a maçaneta. Ele reconheceu Bosch e afastou-se para
o lado a fim de abrir a porta.
- Isso vai acontecer todo dia, sabia? - disse Bosch ao policial.
- Esse cara tem mais a dizer fora do tribunal do que dentro. Vocês deviam pensar em estabelecer certas regras para que as pessoas possam entrar e sair.
Ao passar pela porta, Bosch ouviu o policial dizer que ele mesmo devia falar com o juiz sobre o assunto.
Seguiu pelo corredor central e cruzou o portão que levava à mesa da promotoria. Fora o primeiro a chegar. Puxou a terceira cadeira e sentou-se. Abriu a maleta sobre
a mesa, tirou a pesada pasta azul e colocou-a ali ao lado. Depois abaixou a tampa e os fechos da maleta e colocou-a no chão, ao lado da cadeira.
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Ele estava pronto. Inclinou-se para a frente e cruzou os braços em cima da pasta. O tribunal estava silencioso e quase vazio, exceto pelo auxiliar do juiz e um escrivão
que se preparavam para o dia. Bosch gostava daquelas ocasiões. Era a calmaria antes da tempestade. E ele sabia, sem dúvida, que uma tempestade certamente viria.
Balançou a cabeça silenciosamente. Estava pronto, pronto para dançar com o diabo mais uma vez. Percebia que sua missão na vida girava em torno de momentos como aquele.
Momentos que deveriam ser saboreados e lembrados, mas que sempre causavam uma pontada em suas entranhas.
Ouviu-se um forte ruído metálico, e a porta da cela de detenção lateral foi aberta. Dois policiais fizeram um homem entrar. Ele era jovem e misteriosamente continuava
bronzeado apesar dos quase três meses de prisão. Usava um terno que facilmente cobriria os contracheques semanais dos dois homens que o ladeavam. Suas mãos pendiam
ao lado do corpo, algemadas a uma corrente na cintura que parecia destoar daquele terno azul bem-talhado. Numa das mãos trazia um bloco de desenho. Na outra, tinha
uma caneta hidrográfica, a única espécie de instrumento de escrita permitida na cadeia.
O sujeito foi levado para a mesa da defesa e colocado diante do assento central. Quando as algemas e a corrente foram retiradas, ele sorriu e olhou para a frente.
Um policial pôs a mão no ombro dele, fazendo com que se sentasse. Depois os dois policiais recuaram e tomaram posição em cadeiras atrás do sujeito.
Ele inclinou-se imediatamente para a frente, abriu o bloco e começou a desenhar com a caneta. Bosch ficou observando. Podia ouvir a ponta da caneta riscando furiosamente
o papel.
- Eles não me deixam usar carvão, Bosch. Acredita nisso? Que ameaça pode representar um pedaço de carvão?
Não tinha olhado para Bosch ao dizer aquilo, e Bosch não respondeu.
- São essas coisinhas que mais me chateiam - disse o homem.
- E melhor ir se acostumando - disse Bosch.
O sujeito riu, mas ainda assim não olhou para o detetive.
- Não sei como, mas eu sabia que você ia dizer exatamente isso.
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Bosch ficou calado.
- Você é tão previsível, Bosch, entende? Todos vocês.
A porta dos fundos do tribunal se abriu, e Bosch desviou os olhos do réu. Os advogados de defesa já estavam entrando. Eles estavam prestes a começar.
Capítulo 7
Third Street Promsnade
Quando chegou ao Mercado do Fazendeiro, McCaleb estava meia hora atrasado para o encontro com Jaye Winston. Ele e Buddy haviam feito a travessia em uma hora e meia,
e McCaleb telefonara para a detetive depois de ancorar na marina Cabrillo. Haviam combinado o encontro, mas depois ele viu que a bateria do Cherokee estava descarregada,
pois não usava o carro há umas duas semanas. Tivera de pedir a Buddy que lhe desse uma carona no velho Taurus, e isso tomou tempo.
Entrou no Dupar's, o restaurante na esquina do mercado, mas não viu Jaye em qualquer das mesas, nem no balcão. Torceu para que ela não tivesse vindo e ido embora.
Escolheu uma divisória desocupada que lhe desse o máximo de privacidade e se sentou à mesa. Não precisava olhar para o cardápio. Eles haviam escolhido o Mercado
do Fazendeiro por ser perto do apartamento de Edward Gunn e porque McCaleb queria tomar o café da manhã no Dupar's. Dissera a Jaye que sentia falta das panquecas
do Dupar's mais do que qualquer outra coisa em Los Angeles. Geralmente ele, Graciela e as crianças comiam no Dupar's quando faziam sua ida mensal à cidade para comprar
roupas e suprimentos inexistentes em Catalina. McCaleb sempre pedia panquecas, pouco importando se era o café da manhã, almoço ou jantar. Raymond também. Mas ele
era fã de geléia de amora, enquanto McCaleb ia de xarope de maple.
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McCaleb disse à garçonete que estava esperando outra pessoa, mas pediu um suco de laranja grande e um copo d'água. Depois que a moça trouxe os dois copos, ele abriu
a bolsa de couro e tirou a caixa de plástico com as pílulas. Mantinha um suprimento semanal das pílulas no barco e outro, para apenas dois dias, no porta-luvas do
Cherokee. Preparara a caixa depois de ancorar. Alternando goles de suco de laranja e água, engoliu as vinte e sete pílulas que constituíam sua dosagem matutina.
Sabia o nome de cada uma pela forma, a cor e o gosto; Prilosec, Imuran, Digoxin. Conforme seguia metodicamente a fileira de pílulas, viu uma mulher numa mesa próxima
olhando para ele com expressão de espanto.
Nunca se livraria das pílulas. Para ele aquilo era tão certo quanto a morte e os impostos. Ao longo dos anos algumas seriam trocadas, outras subtraídas e novas acrescentadas,
mas sabia que iria engolir pílulas e lavar aquele gosto terrível com suco de laranja pelo resto da vida.
- Pelo que vejo, você pediu sem me esperar.
Ele ergueu o olhar das três últimas pílulas de ciclosporina que estava prestes a engolir, enquanto Jaye se sentava do lado oposto da mesa.
- Desculpe, estou tão atrasada. O trânsito na rua 10 estava uma merda.
- Tudo bem. Eu também me atrasei. Fiquei sem bateria.
- Quantas dessas pílulas você toma atualmente?
- Cinqüenta e quatro por dia.
- Incrível.
- Tive que transformar um armário no corredor em arca de remédios. O armário inteiro.
- Bom, pelo menos você ainda está aqui.
Ela sorriu, e McCaleb balançou a cabeça. A garçonete aproximou-se da mesa trazendo o cardápio para Jaye, mas a detetive disse que era melhor os dois pedirem logo.
- Vou querer o que ele pedir.
McCaleb pediu uma grande pilha de panquecas com manteiga derretida. Disse à garçonete que eles dividiriam uma porção de bacon bem-passado.
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- Café? - perguntou a moça. Parecia que aquilo era o milionésimo pedido de panquecas que ela já anotara.
- Sim, por favor - disse Jaye. - Sem açúcar. McCaleb disse que para ele bastava o suco de laranja. Depois que ficaram sozinhos, ele olhou para a detetive por
cima da mesa.
- E então, conseguiu contactar o encarregado do prédio?
- Ele vai se encontrar conosco às dez e meia. O apartamento ainda não foi alugado, mas já fizeram uma limpeza. Depois que liberamos o local, a irmã da vítima foi
até lá, examinou as coisas e levou o que queria.
- E, eu já receava uma coisa assim.
- O encarregado acha que não foi muito... O cara não tinha mesmo muita coisa.
- E a coruja?
- Ele não se lembrava da coruja. Francamente, eu também não, até você mencionar isso hoje de manhã.
- E só um palpite. Eu gostaria de dar uma olhada nela.
- Bom, vamos ver se o bicho ainda está lá. O que mais quer fazer? Espero que não tenha atravessado a baía só para ver o apartamento do cara.
- Estava pensando em procurar a irmã. E talvez Harry Bosch
também.
Jaye ficou em silêncio, mas pela expressão que fez, McCaleb viu que ela esperava uma explicação.
- Para traçar o perfil de um sujeito desconhecido, é importante conhecer a vítima. Suas rotinas, personalidade, tudo. Você conhece o esquema. A irmã e, em grau menor,
Bosch podem ajudar nisso.
- Só pedi pra você dar uma olhada no dossiê e na fita, Terry. Vai fazer com que eu comece a me sentir culpada.
McCaleb fez uma pausa, enquanto a garçonete trazia o café de Jaye e punha na mesa duas pequenas jarras com geléia de amora e xarope de maple. Depois que a mulher
se afastou, ele disse:
- Você sabia que eu ia ser fisgado, Jaye. "Cuidado, cuidado, Deus vê?" Ora essa, vai me dizer que achou que eu ia ver aquilo
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tudo e fazer um relatório pelo telefone? Além do mais, não estou me queixando. Estou aqui porque quero estar. Se está se sentindo culpada, pode pagar as panquecas.
- O que sua mulher disse sobre o caso?
- Nada. Ela sabe que eu preciso fazer isso. Telefonei pra ela do cais assim que cheguei aqui. De qualquer modo, já era tarde demais para que ela dissesse alguma
coisa. Só me disse pra eu comprar um saco de tamales de milho verde no El Cholo antes de voltar. Eles vendem a coisa congelada.
As panquecas chegaram. Eles pararam de falar, e McCaleb esperou educadamente que Jaye escolhesse um dos acompanhamentos primeiro, mas ela ficou revirando as panquecas
no prato com o garfo, e ele por fim não conseguiu esperar mais. Banhou sua pilha com xarope de mapk e começou a comer. A garçonete voltou e pôs a conta na mesa.
Jaye rapidamente a pegou.
- O xerife paga.
- Agradeça a ele por mim.
- Não sei o que você espera de Harry Bosch, sabia? Ele me disse que teve apenas um punhado de contatos com Gunn nos seis anos que se passaram desde o caso da prostituta.
- Quando foram esses contatos? Na época em que ele foi preso?
Jaye balançou a cabeça enquanto derramava geléia de amora nas panquecas.
- Então eles se viram na véspera da morte de Gunn. Não vi nada disso no dossiê.
- Ainda não anotei isso. Mas não significa muito. O sargento de serviço telefonou para ele e disse que Gunn estava na cela de detenção por dirigir alcoolizado.
McCaleb balançou a cabeça.
- E aí?
- E ele foi até lá para dar uma olhada no cara. Foi só isso. Disse que nem conversaram, porque Gunn estava mamado demais.
- Bom... mesmo assim, quero falar com Harry. Já trabalhei num caso com ele. E um bom policial. Intuitivo e observador. Talvez saiba de alguma coisa que eu possa
usar.
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- Se conseguir falar com ele.
- O que quer dizer?
- Então não sabe? Ele faz parte da equipe de acusação no caso de assassinato de David Storey. Lá em Van Nuys. Não tem visto o noticiário?
- Caceta, eu esqueci disso. Lembro que li o nome dele nos jornais depois que mataram Storey. Acho que foi em outubro. O julgamento já começou?
- Claro. Não houve demora, e eles não precisaram de audiência preliminar porque passaram por um júri de instrução. Começaram a selecionar os jurados logo depois
do primeiro dia do ano. A última coisa que eu soube foi que eles já têm a lista pronta, de modo que a coisa pode começar esta semana, talvez até hoje.
- Merda.
- Isso mesmo, vai precisar de sorte para chegar até Bosch. Tenho certeza que é exatamente esse tipo de coisa que ele anda querendo ouvir.
- Está dizendo que não quer que eu fale com ele? Jaye deu de ombros.
- Não, não estou dizendo isso, absolutamente. Faça o que você quiser fazer. Só não achava que você ia se enfiar tanto no caso. Posso conversar com o capitão sobre
uma taxa de consultoria pra você, mas...
- Não se preocupe com isso. O xerife já está pagando o café da
manhã. Basta isso.
- Não parece.
McCaleb não lhe disse que trabalharia no caso até de graça, só para voltar àquele mundo por alguns dias. E não lhe disse que não podia aceitar dinheiro da parte
dela, de qualquer forma. Se tivesse qualquer rendimento "oficial", perderia o direito à assistência médica estadual que pagava as cinqüenta e quatro pílulas que
ele engolia todo dia. As pílulas eram tão caras que se ele tivesse que pagá-las do próprio bolso iria à falência em seis meses, a menos que tivesse um salário anual
de seis dígitos. Era esse o feio segredo por trás do milagre médico que o salvara. Ele conseguira uma segunda chance na vida, enquanto não usasse aquilo para tentar
ganhar a
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vida. Era por isso que a firma de passeios fretados estava no nome de Buddy. Oficialmente, McCaleb era um auxiliar de bordo sem vencimentos. Buddy simplesmente alugava
o barco de Graciela para fretá-lo, e o aluguel representava sessenta por cento de todas as taxas cobradas pelo passeio, depois de deduzidas as despesas.
- Como estão as panquecas? - perguntou ele a Jaye.
- Maravilha.
- Pode crer.
Capítulo 8
O Grand Royale era uma ofensa de dois andares aos olhos, uma caixa de estuque decadente cuja tentativa de ter estilo começava e terminava num desenho modernoso das
letras do seu nome afixadas na portaria. As ruas de West Hollywood e de toda a baixada eram cheias desses prédios banais, com os apartamentos de grande densidade
populacional que haviam substituído os quarteirões menores de bangalôs nas décadas de 1950 e 1960. Trocara-se um estilo autêntico por floreados ornamentais e nomes
que refletiam exatamente o que não eram.
McCaleb e Jaye entraram no apartamento do segundo andar que pertencera a Edward Gunn seguidos pelo encarregado do prédio, um homem chamado Rohrshak. "Que nem o teste,
só que soletrado diferente", dissera o sujeito.
Se não soubesse de antemão em que lugar procurar, McCaleb não teria notado o vestígio de sangue no tapete onde Gunn morrera. O tapete não fora trocado, apenas lavado,
e por isso aquela leve mancha marrom que provavelmente levaria o próximo inquilino a pensar em restos de refrigerante ou café derramados.
O local sofrera uma limpeza e estava pronto para ser alugado. Contudo o mobiliário era o mesmo. McCaleb reconheceu os móveis pelo vídeo da cena do crime.
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Olhou para a cristaleira do outro lado do aposento, mas o móvel estava vazio. Não havia nenhuma coruja de plástico pousada no seu topo. Ele olhou para Jaye.
- Sumiu.
Jaye virou-se para o encarregado.
- Rohrshak, achamos que a coruja que ficava no alto da cristaleira é importante. Tem certeza que não sabe o que aconteceu com ela?
Rohrshak abriu os braços e deixou-os cair ao lado do corpo.
- Não, não sei. Você me perguntou isso antes e eu pensei: "Não me lembro de coruja nenhuma." Mas se está dizendo que tinha...
Deu de ombros, espichou o queixo e depois balançou a cabeça, como concordando relutantemente que havia uma coruja na cristaleira.
McCaleb leu aqueles gestos e palavras como os maneirismos clássicos de um mentiroso. Se você negar a existência do objeto que furtou, você elimina o furto. Presumiu
que Jaye também já percebera isso.
-Jaye, você tem um telefone? Pode ligar para a irmã dele a fim de confirmar isso?
- Estou resistindo até que o condado compre um para mim. McCaleb preferia manter seu telefone livre, pois Brass Doran
poderia ligar de volta, mas arriou a bolsa de couro no sofá cujo estofamento parecia prestes a estourar, tirou o telefone e passou o aparelho a Jaye.
Ela precisou procurar o número da irmã de Gunn num caderno dentro da pasta. Enquanto Jaye fazia a chamada, McCaleb ficou andando vagarosamente pelo apartamento,
observando tudo e tentando captar vibrações do local. Na área onde se faziam as refeições, parou diante de uma mesa de madeira redonda, rodeada por quatro cadeiras
de espaldar reto. O relatório de análise da cena do crime dizia que três das cadeiras tinham numerosas nódoas com impressões digitais latentes, tanto completas quanto
parciais todas pertencentes à vítima, Edward Gunn. A quarta cadeira, a que fora encontrada no lado norte da mesa, não tinha qualquer
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impressão digital, completa ou não. A cadeira fora totalmente limpa. O mais provável era que o assassino houvesse feito isso depois de usar a cadeira com algum objetivo.
McCaleb orientou-se e foi até a cadeira do lado norte da mesa. Tomando cuidado para não tocar no encosto, meteu a mão embaixo do assento e afastou-a da mesa, aproximando-a
da cristaleira. Posicionou-a no centro e subiu. Levantou os braços como se estivesse colocando alguma coisa em cima da cristaleira. A cadeira balançou, apoiada nas
pernas desiguais, e McCaleb instintivamente estendeu a mão para o alto da cristaleira a fim de se firmar. Mas, antes de se agarrar ali, percebeu algo e interrompeu
o gesto, apoiando o antebraço na moldura de uma das portas de vidro do móvel.
- Tenha cuidado aí, Terry.
Ele olhou para baixo. Jaye estava parada ao lado. O telefone estava fechado na sua mão.
- Estou tendo. Então, ela está com a ave?
- Não, nem sabia do que eu estava falando.
McCaleb ficou na ponta dos pés e olhou por cima da borda superior da cristaleira.
- Ela disse o que levou daqui?
- Só umas roupas e fotografias velhas dos dois quando eram crianças. Não quis mais nada.
McCaleb balançou a cabeça. Ainda estava examinando o topo da cristaleira de cima a baixo. Havia uma grossa camada de poeira ali em cima.
- Você disse alguma coisa sobre minha ida até lá para conversar com ela?
- Esqueci. Mas posso ligar de novo.
- Tem uma lanterna aí, Jaye?
Ela vasculhou a bolsa e entregou-lhe uma lanterna fina. McCaleb acendeu-a e lançou o feixe de luz, em ângulo baixo, sobre o topo da cristaleira. A luz tornava mais
nítida a poeira da superfície, e ele viu claramente uma marca de feitio octogonal deixada por algo posto em cima da cristaleira e da poeira. A base da coruja.
McCaleb deslocou a luz ao longo das bordas da placa superior do móvel, apagou a lanterna, desceu da cadeira e devolveu a lanterna a Jaye.
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- Obrigado. Talvez fosse bom trazer a equipe de impressões digitais de volta aqui.
- Pra quê? A coruja não está ali, está? McCaleb deu um olhar rápido para Rohrshak.
- Neca, sumiu. Mas quem pôs o bicho lá em cima usou aquela cadeira. Quando a cadeira cambaleou, a pessoa se agarrou na cristaleira.
Ele tirou uma caneta do bolso, ergueu o braço e bateu levemente na parte fronteira da cristaleira, na área onde vira as impressões digitais na poeira.
- Está muito empoeirado, mas pode haver impressões digitais ali.
- E se tiver sido a pessoa que levou a coruja?
McCaleb olhou descaradamente para Rohrshak ao responder.
- Mesma coisa. Pode haver impressões digitais. Rohrshak desviou o olhar.
- Posso usar isso de novo? Jaye mostrou o telefone dele.
- Vá em frente.
Enquanto Jaye convocava uma equipe de impressões digitais, McCaleb puxou a cadeira para o meio da sala de estar, a cerca de um metro da marca de sangue. Depois sentou-se
e percorreu a sala com o olhar. Nessa posição, a coruja estaria olhando tanto para o assassino quanto para a vítima. Um certo instinto dizia-lhe que era aquela configuração
que o assassino queria. Ele baixou o olhar para a mancha de sangue e imaginou-se vendo Edward Gunn lutar pela vida e perder vagarosamente a batalha. O balde, pensou.
Tudo se encaixava, menos o balde. O assassino arrumara o cenário, mas depois não conseguira assistir à peça. Precisava do balde para não ver o rosto da vítima. Aquilo
não se encaixava e incomodava McCaleb.
Jaye veio até ele e entregou-lhe o telefone.
- Há uma equipe acabando de cobrir um arrombamento em Kings. O pessoal vai estar aqui em quinze minutos.
- Que sorte.
- Muita. O que está fazendo?
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- Só pensando. Acho que ele sentou aqui e ficou assistindo, mas depois não agüentou. Golpeou a vítima na cabeça, talvez para apressar a coisa. Depois pegou o balde
e cobriu a cabeça para não precisar assistir mais.
Jaye Winston balançou a cabeça.
- De onde veio o balde? Não havia nada no...
- Achamos que estava embaixo da pia da cozinha. Há um anel d'água na prateleira que coincide com a base do balde. Está no suplemento que Kurt digitou. Ele deve ter
esquecido de colocar isso no dossiê.
McCaleb balançou a cabeça e se levantou.
- Vai esperar pela equipe das impressões digitais, não?
- Vou, não deve demorar.
- Vou dar uma volta.
Ele foi andando para a porta aberta.
- Vou com você - disse Rohrshak. McCaleb se voltou.
- Não, Rohrshak, você precisa ficar aqui com a detetive. Precisamos de uma testemunha independente para monitorar o que fazemos no apartamento.
McCaleb olhou para Jaye por cima do ombro de Rohrshak. Ela deu uma piscadela, avisando que entendera a história falsa e o que ele estava fazendo.
- É, Rohrshak. Por favor, fique aqui, se não for incômodo. Rohrshak deu de ombros novamente e ergueu as mãos. McCaleb desceu as escadas até o pátio coberto no centro
do
prédio. Foi girando em círculo, percorrendo com o olhar a linha do telhado baixo. Não viu a coruja em lugar algum, virou e atravessou a porta de entrada que dava
para a rua.
Do outro lado da avenida Sweetzer havia um prédio de três andares, em forma de L, chamado Braxton Arms, com passadiços e escadas externas. McCaleb cruzou a rua e
deparou-se na entrada com um portão de segurança e uma cerca de um metro e oitenta de altura. A coisa era mais para exibição do que para dissuasão. Ele tirou o agasalho,
dobrou-o e meteu-o entre duas barras do portão. Depois pôs o pé na maçaneta, verificou se agüentava seu peso e
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içou-se até o alto do portão. Caiu do outro lado e olhou em torno para verificar se fora visto por alguém. Tudo limpo. Pegou o agasalho e partiu para a escada.
Foi até o terceiro andar e seguiu o passadiço até a fachada do prédio. Estava respirando alto e com dificuldade, devido ao esforço para pular o portão e subir a
escada. Quando chegou à fachada pôs as mãos na balaustrada e inclinou-se para a frente até recuperar o fôlego. Depois lançou o olhar sobre a avenida Sweetzer na
direção do telhado plano do prédio onde Edward Gunn morara. Também lá não viu a coruja de plástico.
McCaleb apoiou os antebraços na balaustrada e continuou tentando recuperar o fôlego. Ficou ouvindo seu coração bater, até finalmente se aquietar. Sentia o suor porejando
no couro cabeludo. Sabia que não era o coração que estava fraco. Era o seu corpo, enfraquecido por todos os remédios que ele tomava para manter o coração forte.
Aquilo era frustrante. Ele sabia que nunca ficaria forte e que passaria o resto da vida escutando o coração, tal como um arrombador noturno escuta os rangidos do
assoalho.
Ao ouvir o ruído de um veículo, olhou para baixo e viu uma picape branca, com o emblema do xerife na porta do motorista, parar diante da porta do prédio do outro
lado da rua. A equipe de impressões digitais chegara.
McCaleb deu mais uma olhada para o telhado do outro lado da rua e virou-se para descer, derrotado. Subitamente, parou. Lá estava a coruja, pousada no topo de um
compressor do sistema de ar condicionado central, no telhado da extensão em L do edifício onde ele se achava.
Ele foi rapidamente até a escada e subiu no passadiço do telhado. Teve que rodear alguns móveis que estavam empilhados e guardados no passadiço, mas descobriu que
a porta estava destrancada e atravessou depressa o telhado plano, coberto de cascalho, até o condicionador de ar.
Examinou a coruja antes de tocar no bicho. Combinava com a imagem que memorizara do vídeo da cena do crime. A base era um pedestal de forma octogonal. Ele sabia
que era a coruja que desaparecera. Retirou o arame que fora enrolado em torno da base e
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preso à grade de admissão do condicionador de ar. Observou que a grade e a cobertura metálica da unidade estavam cobertas de velhas fezes de pássaros. Concluiu que
as fezes constituíam um problema para a manutenção e que Rohrshak - aparentemente encarregado também daquele prédio, além do outro - pegara a coruja no apartamento
de Gunn para usá-la como espantalho.
McCaleb pegou o arame e enrolou-o em torno do pescoço da coruja para poder carregá-la sem tocá-la, embora duvidasse que ainda houvesse no objeto qualquer impressão
digital ou fibra que tivesse utilidade como prova. Levantou a coruja do condicionador de ar e dirigiu-se para a escada.
Quando chegou de volta ao apartamento de Edward Gunn, viu dois especialistas em cenas de crime tirando equipamento de uma caixa. Havia uma escada portátil diante
da cristaleira.
- Talvez seja melhor começar por isto aqui - disse ele.
Viu os olhos de Rohrshak se arregalarem ao entrar no aposento e colocar a coruja de plástico sobre a mesa.
- Você é encarregado do prédio do outro lado da rua, não é?
- Hum...
- Tudo bem. É fácil descobrir.
- É, sim - disse Jaye, inclinando-se para olhar a coruja. - Ele estava lá quando precisei dele no dia do crime. Ele mora lá.
- Alguma idéia de como isto foi parar no telhado? - perguntou McCaleb.
Rohrshak não respondeu.
- Acho que ela simplesmente voou até lá, certo? Rohrshak não conseguia tirar os olhos da coruja.
- Você já pode ir agora, Rohrshak. Mas fique perto de sua casa. Se conseguirmos uma impressão digital na ave ou na cristaleira, vamos precisar tirar as suas para
comparar.
Rohrshak olhou para McCaleb, e seus olhos ficaram ainda mais esbugalhados.
- Pode ir, Rohrshak.
O encarregado do prédio virou-se e saiu vagarosamente do apartamento.
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- E feche a porta, por favor - disse McCaleb enquanto ele se afastava.
Depois que ele saiu e fechou a porta, Jaye quase explodiu numa risada.
- Terry, você está sendo muito durão. Na realidade, ele não fez nada de errado, você sabe. Nós examinamos o local, e ele deixou a irmã de Gunn vir pegar o que quisesse.
O que ele deveria fazer depois, tentar alugar o apartamento com essa coruja idiota ali em cima?
McCaleb abanou a cabeça.
- Ele mentiu para nós. Isso foi errado. Eu quase me arrebentei subindo naquele prédio do outro lado da rua. Ele podia simplesmente nos dizer que a coisa estava lá.
- Bom, agora ele está apavorado. Acho que aprendeu a lição.
- Tomara.
Ele recuou para que um dos técnicos pudesse trabalhar na coruja, enquanto o outro subia a escada para trabalhar no alto da cristaleira.
Ficou examinando a ave, enquanto o técnico passava nela, com uma escova, o pó preto de impressões digitais. A coruja parecia ter sido pintada à mão. Era marrom-escura
e preta nas asas, cabeça e costas. O peito era de um marrom mais claro, com laivos amarelos. Os olhos eram de um preto brilhante.
- Isso estava ao ar livre? - perguntou o técnico.
- Infelizmente - respondeu McCaleb, recordando as chuvas que haviam varrido o continente e a ilha Catalina na semana anterior.
- Bom, não estou conseguindo nada.
- Eu imagino.
McCaleb lançou para Jaye um olhar que refletia uma raiva renovada contra Rohrshak.
- Nada também aqui em cima - disse o outro técnico. - Tem poeira demais.
Capítulo 9
O julgamento de David Storey estava sendo realizado no tribunal de Van Nuys. O crime central do caso não tinha a menor relação com Van Nuys, e nem com o vale de
San Fernando, mas o tribunal fora escolhido pelos distribuidores da promotoria porque o Departamento N estava disponível e era a maior sala de julgamento do condado.
Era resultado da fusão de dois tribunais menores vários anos antes, a fim de acomodar confortavelmente os dois corpos de jurados - bem como um monte de gente da
mídia - do caso do assassinato dos irmãos Menendez. A morte dos pais por parte desses irmãos tinha sido um dos diversos casos criminais de Los Angeles, na década
anterior, a atrair a atenção da mídia, e portanto do público. Quando tudo terminou, a promotoria não se deu ao trabalho de desconstruir o enorme tribunal. Alguém
teve a intuição de perceber que em Los Angeles sempre haveria um caso que poderia encher o Departamento N.
E no momento esse era o caso de David Storey.
O diretor de cinema, de trinta e oito anos, conhecido por filmes que levavam a violência e a sexualidade aos limites máximos da categoria X-rated, fora acusado de
assassinar uma jovem atriz que levara para casa depois da estréia de um de seus filmes mais recentes. O corpo da mulher de vinte e três anos fora encontrado na manhã
do dia seguinte num pequeno bangalô em Nichols
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Canyon que ela dividia com outra pretendente a atriz. A vítima fora estrangulada, e o corpo nu colocado na cama numa pose que os investigadores acreditavam ser parte
de um plano cuidadoso do assassino para evitar ser descoberto.
Os elementos do caso - poder, celebridade, sexo e dinheiro - e a conexão adicional representada por Hollywood serviram para atrair a máxima atenção da mídia. David
Storey trabalhava do lado errado da câmera para ser uma celebridade de pleno direito, mas seu nome era conhecido, e ele dispunha do tremendo poder de um homem que
fizera sete sucessos de bilheteria em igual número de anos. A mídia foi atraída pelo julgamento de Storey tal como os jovens são atraídos pelo sonho de Hollywood.
A cobertura antecipada delineava claramente o caso como uma parábola de avareza e excessos hollywoodianos desenfreados.
O caso também tinha um inusitado grau de mistério em julgamentos criminais. Os promotores designados levaram suas provas a um júri de instrução a fim de procurar
indiciar Storey. Essa jogada permitira-lhes evitar uma audiência preliminar, onde a maior parte das provas acumuladas contra um réu é geralmente tornada pública.
Sem essa fonte de informação sobre o caso, a mídia foi obrigada a buscar suas fontes tanto no lado da acusação quanto da defesa. Ainda assim, pouca coisa vazou para
a imprensa, a não ser aspectos genéricos. As provas que a promotoria usaria para ligar Storey ao assassinato permaneciam em segredo, e essa era mais uma causa do
alvoroço da mídia a respeito do julgamento.
Fora justamente esse alvoroço que convencera o promotor a deslocar o julgamento para o grande salão do Departamento N em Van Nuys. O segundo recinto do júri seria
usado para acomodar mais elementos da mídia dentro do tribunal, enquanto a inutilizada sala de deliberação seria convertida numa sala de imprensa, onde os jornalistas
de segundo e terceiro escalões assistiriam ao julgamento num telão. O esquema, que daria a toda a mídia - desde o National Enquirer até o New York Times - total
acesso ao julgamento e aos participantes, garantia que o caso se tornaria o primeiro circo de horrores da mídia do novo século.
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Na arena central desse circo, sentado à mesa da acusação, estava o detetive Harry Bosch, o principal investigador do caso. Todas as análises da mídia anteriores
ao julgamento haviam chegado a uma só conclusão: o destino das acusações contra David Storey dependeria de Bosch. Todas as provas em favor da acusação de assassinato
eram consideradas circunstanciais; o alicerce do caso viria de Bosch. A única prova sólida que vazara para a mídia era que Bosch testemunharia que, num momento de
privacidade, sem outras testemunhas ou dispositivos à mão para registrar a declaração, Storey presunçosamente admitira que cometera o crime e se gabara de certamente
sair vitorioso do julgamento.
McCaleb já sabia de tudo isso quando entrou no tribunal de Van Nuys, pouco antes do meio-dia. Postou-se na fila para passar pelo detector de metais, lembrando-se
de como tudo mudara em sua vida. Quando era agente do FBI, precisava apenas mostrar seu distintivo e passar à frente da fila. Agora era apenas um cidadão. Tinha
que esperar.
O corredor do quarto andar fervilhava de gente. McCaleb observou que muitas pessoas portavam pilhas de fotos 18x24 cm, em preto e branco, de estrelas e astros cinematográficos
que esperavam ver no julgamento - fosse como testemunhas ou como espectadores - apoiando o réu. Ele atravessou a porta dupla de entrada do Departamento N, mas um
dos dois policiais do gabinete do xerife postados ali disse-lhe que o tribunal estava lotado. O policial apontou para uma longa fila de pessoas atrás de um cordão.
Disse que era a fila de gente esperando para entrar. Toda vez que uma pessoa saísse do tribunal, outra poderia entrar. McCaleb balançou a cabeça e afastou-se das
portas.
Viu que mais adiante no corredor havia uma porta aberta cercada por várias pessoas. Reconheceu entre elas um repórter de um noticiário televisivo local. Calculou
que a sala de imprensa fosse ali e se aproximou.
Quando chegou à porta aberta, olhou para dentro e viu dois grandes televisores fixados no alto dos cantos do aposento, onde havia várias pessoas apinhadas em
torno de uma grande mesa de júri. Repórteres. Estavam digitando em seus computadores
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portáteis, tomando notas em blocos e comendo sanduíches tirados de embalagens para viagem. O centro da mesa estava coalhado de copos plásticos de café e refrigerantes.
Ele ergueu o olhar para um dos televisores e viu que o tribunal ainda estava em sessão, embora já passasse de meio-dia. A câmera mostrava uma imagem ampla do aposento,
e ele viu Harry Bosch sentado com um homem e uma mulher na mesa da promotoria. Não parecia que ele estivesse prestando atenção aos trabalhos. Um homem que McCaleb
reconheceu estava de pé junto à tribuna, entre as mesas da promotoria e da defesa. Era J. Reason Fowkkes, o principal advogado de defesa. À mesa à sua esquerda sentava-se
o réu, David Storey.
McCaleb não conseguia ouvir o sinal de áudio, mas sabia que Fowkkes não estava fazendo as alegações iniciais, pois estava olhando para o juiz, e não na direção do
recinto do júri. Provavelmente, moções de última hora estavam sendo discutidas pelos advogados antes do início da sessão. Subitamente as duas telas de televisão
gêmeas passaram para uma nova câmera e focalizaram o juiz, que começou a falar, aparentemente estabelecendo as regras. McCaleb notou a placa de identificação na
frente do juiz, que dizia: Juiz do Tribunal Superior John A. Houghton.
- Agente McCaleb?
McCaleb desviou o olhar do televisor e viu ao seu lado um homem que reconheceu, mas que não conseguiu localizar imediatamente.
- Só McCaleb. Terry McCaleb.
O sujeito percebeu o desconforto dele e estendeu a mão.
- Jack McEvoy. Entrevistei você uma vez. Foi muito rápido. Sobre a investigação do Poeta.
- Ah, sim, lembrei - disse McCaleb, apertando a mão do outro. -Já faz bastante tempo.
Ele realmente se lembrava de McEvoy. O repórter se enfronhara no caso do Poeta e depois escreveu um livro sobre o assunto. McCaleb teve uma participação muito periférica
no caso - quando a investigação passara para Los Angeles. Nunca lera o livro de
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McEvoy, mas tinha certeza que não contribuíra em nada para a obra, e provavelmente não fora mencionado nela.
- Eu achava que você era do Colorado - disse ele, lembrando que McEvoy trabalhava num jornal de Denver. - Eles mandaram você cobrir isso aqui?
McEvoy balançou a cabeça.
- Boa memória. Eu era de lá, mas agora moro aqui. Trabalho como free lancer.
McCaleb balançou a cabeça, tentando imaginar algo para dizer.
- Pra quem você está cobrindo este caso?
- Venho escrevendo uma coluna semanal para o New Times sobre o assunto. Você lê o jornal?
McCaleb balançou a cabeça. Conhecia bem o New Times. Era um tablóide semanal, cheio de denúncias escandalosas e com postura contrária às autoridades. Sua renda principal
parecia vir principalmente de anúncios de entretenimento, que abarcavam desde filmes aos serviços de acompanhamento que enchiam suas últimas páginas. Era gratuito,
e Buddy vivia deixando exemplares pelo barco. McCaleb dava uma olhada no jornal de tempos em tempos, mas nunca notara o nome de McEvoy.
- Também estou fazendo uma cobertura geral para a Vanity Fair - disse McEvoy. - Sabe como é... uma coisa mais discursiva, o lado sombrio de Hollywood. E também estou
pensando em escrever outro livro. O que trouxe você aqui? Está... envolvido nisto de alguma...
- Eu, não. Estava por perto e tenho um amigo no julgamento. Só queria ter a oportunidade de dar um alô pra ele.
Enquanto mentia, McCaleb desviou o olhar do escritor e lançou-o de volta para os televisores através da porta. O ângulo da câmera já mostrava todo o tribunal. Parecia
que Bosch estava guardando suas coisas numa maleta.
-Harry Bosch?
McCaleb olhou de volta para ele.
- É, Harry. Já trabalhamos num caso juntos e... hum, o que está havendo ali agora?
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- Moções finais, antes de começarem. Eles começaram com uma sessão fechada e agora estão dando uma arrumação na casa. Não vale a pena ficar lá. Todo mundo acha que
o juiz provavelmente terminará a sessão antes do almoço e dará aos advogados o resto do dia para trabalharem nas alegações iniciais. Elas começam amanhã, às dez.
Você acha que a casa está cheia agora? Espere até amanhã.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Pois é. Então foi bom ver você de novo, Jack. Boa sorte com a matéria. E com o livro, se acabar saindo.
- Eu gostaria de ter escrito a sua história, sabia? Sobre o coração e esse negócio todo.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Bom, eu devia um favor a Keisha Russell, e ela fez um bom trabalho.
Notou que as pessoas estavam começando a abrir caminho para sair da sala da mídia. Ao fundo, viu nas telas dos televisores que o juiz já saíra da bancada. A sessão
do tribunal fora suspensa.
- Vou até o tribunal ver se encontro Harry. Foi um prazer ver você de novo, Jack - continuou ele, estendendo a mão e cumprimentando McEvoy. Depois seguiu os outros
repórteres até as portas do tribunal.
As portas principais do Departamento N foram abertas pelos dois policiais, e por elas saiu a multidão de cidadãos afortunados que haviam conseguido lugares para
assistir àquela sessão, que provavelmente fora um verdadeiro porre. Os que não haviam conseguido entrar apinhavam-se para ver de perto alguma celebridade, mas ficaram
desapontados. As celebridades só começariam a aparecer no dia seguinte, quando seriam feitas as alegações iniciais. Estas eram como os créditos de abertura de um
filme, portanto, o lugar em que as celebridades gostariam de ser vistas.
Atrás da multidão vinham os advogados e assessores. Storey já voltara para a prisão, mas seu advogado foi direto para o semicírculo de repórteres e começou a dar
sua versão do que transpirara dentro do tribunal. Um homem alto, muito bronzeado, de cabelo preto retinto e olhos verdes inquietos tomou posição diretamente
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atrás do advogado para cobrir-lhe a retaguarda. Chamava a atenção, e McCaleb achou que o conhecia, mas não conseguia imaginar de onde. Ele parecia um dos atores
que Storey normalmente punha em seus filmes.
Os promotores saíram e logo formaram seu próprio círculo de repórteres. Suas respostas foram mais curtas do que as do advogado de defesa. Recusaram-se a comentar
várias perguntas sobre as provas que apresentariam.
McCaleb ficou aguardando Bosch, e finalmente viu-o esgueirar-se para fora por último. Bosch driblou a multidão mantendo-se perto da parede, e dirigiu-se para os
elevadores. Uma repórter avançou em sua direção, mas ele levantou a mão, mandando-a embora. A mulher parou e voltou feito uma molécula solta no ar para a matilha
que rodeava J. Reason Fowkkes.
McCaleb seguiu Bosch ao longo do corredor e alcançou-o quando ele parou à espera do elevador.
- Olá, Harry Bosch.
Bosch se voltou, já armando no rosto a expressão "sem comentários", e viu que era McCaleb.
- Olá... McCaleb.
Sorriu, e os dois se cumprimentaram.
- Parece o caso com mais publicidade do mundo - disse McCaleb.
- Nem me fale. O que está fazendo aqui? Não me diga que está escrevendo um livro sobre esse troço?
- O quê?
- Todo mundo que trabalhava no FBI anda escrevendo livros hoje em dia.
- Neca, isso não é comigo. Na realidade, eu estava com esperança de poder convidar você para almoçar. Quero falar com você sobre um negócio.
Bosch olhou para o relógio, indeciso acerca de algo.
- Edward Gunn.
Bosch ergueu os olhos para ele.
- Jaye Winston?
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente.
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- Ela me pediu pra dar uma olhada na coisa.
O elevador chegou, e eles entraram com uma multidão de pessoas que haviam estado no tribunal. Todas pareciam estar olhando para Bosch, embora tentassem não aparentar
isso. McCaleb decidiu ficar calado até eles saírem.
Chegando ao térreo, dirigiram-se para a saída.
- Eu disse a ela que elaboraria o perfil do assassino. Coisa rápida. Pra fazer isso, preciso saber alguma coisa de Gunn. Pensei que talvez você pudesse me contar
algo sobre aquele caso antigo e sobre o tipo de sujeito que ele era.
- Gunn era um escroto. Olhe, eu tenho cerca de quarenta e cinco minutos no máximo. Preciso meter o pé na estrada. Vou queimar as pestanas hoje para garantir que
todo mundo esteja pronto para a abertura.
- Eu fico com esses quarenta e cinco, se você puder dispor deles. Tem algum lugar bom pra se comer aqui perto?
- Esqueça a cantina daqui... é terrível. Há um Cupid's ali no bulevar Victory.
- Vocês policiais só comem do melhor.
- É por isso que a gente faz o que faz.
Capítulo 10
Eles foram comer os cachorros-quentes numa mesa ao ar livre, sem guarda-sol. Embora fosse um dia de inverno com temperatura amena, McCaleb estava suando. Em qualquer
dia o Vale sempre era de quatro a seis graus mais quente do que Catalina, e ele não estava acostumado com a mudança. Seus sistemas internos de aquecimento e resfriamento
não haviam se normalizado depois do transplante, e ele era dado a calafrios e suores repentinos.
Começou batendo papo sobre o atual caso de Bosch.
- Está preparado para virar o Harry Hollywood com esse caso?
- Não, obrigado - disse Bosch, dando mordidas no que era anunciado como um cachorro Chicago. - Acho que preferiria o turno da madrugada na Septuagésima Sétima.
- Bom, acha que está com tudo em cima? Dá pra pegar o cara? - Nunca se sabe. A promotoria não ganha nada importante
desde o caso da discoteca. Não sei como vai rolar. Todos os advogados dizem que depende do júri. Eu sempre pensei que dependia da qualidade das provas, mas não passo
de um detetive idiota. John Reason trouxe o consultor do júri do O. J. Simpson, e na realidade eles estão muito contentes com os doze jurados selecionados. Merda,
John Reason. Veja só, já estou até chamando o cara pelo nome que os repórteres usam. Isso mostra bem como ele sabe controlar as coisas, esculpir as coisas.
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Abanou a cabeça e deu mais uma mordida no almoço.
- Quem é o grandalhão que eu vi com ele? - perguntou McCaleb. - O cara de pé atrás dele, com cara de mau.
- Rudy Valentino, o investigador dele. -E o nome dele?
- Não, o nome é Rudy Tafero. Já trabalhou no Departamento de Polícia de Los Angeles. Treinava detetives de Hollywood até poucos anos atrás. O pessoal do FBI chamava
o cara de Valentino por causa da aparência dele, que se irritava com isso. Em todo caso, ele foi trabalhar por conta própria. Tirou licença de fiador profissional.
Não me pergunte como, mas ele começou a obter contratos para fazer a segurança de um bando de gente em Hollywood. E surgiu nesse caso logo depois que prendemos Storey.
Na realidade, Rudy levou o caso de Storey para Fowkkes. Provavelmente ganhou por isso uma boa comissão como agenciador de clientes.
- E o juiz? Como ele vai proceder?
Bosch balançou a cabeça, como se houvesse encontrado algo de bom na conversa.
- Houghton Bala. Com ele não tem papo de segunda chance. Não brinca em serviço. Vai calar a boca do Fowkkes, se for preciso. Pelo menos nós temos isso a nosso favor.
- Houghton Bala?
- Ele geralmente anda armado por baixo da toga preta... ou pelo menos as pessoas acham que sim. Há cerca de cinco anos ele teve um caso da máfia mexicana. Quando
o júri deu o veredicto de culpado, vários amiguinhos e familiares do réu que estavam na platéia se enfureceram, e quase começaram um tumulto no tribunal. Houghton
puxou uma Glock e disparou um tiro para o teto. As coisas se acalmaram rapidinho. Desde então ele vem sendo reeleito com uma porcentagem maior do que qualquer outro
juiz candidato no condado. Vá lá no tribunal e verifique o teto. O buraco da bala ainda está lá. Ele não deixa ninguém consertar a coisa.
Bosch deu outra mordida no almoço, olhou para o relógio e mudou de assunto, falando com a boca cheia.
- Não é nada pessoal, mas acho que eles entraram num beco sem saída no caso de Gunn, se já estão pedindo ajuda externa.
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente.
- E por aí.
Baixou o olhar para o cachorro-quente com molho apimentado à sua frente, desejando ter garfo e faca.
- Qual é o problema? Não precisávamos ter vindo aqui.
- Nada. Só estava pensando. Juntando as panquecas do Dupar's hoje cedo e isto aqui, vou precisar de outro coração quando chegar a hora do jantar.
- Se quiser fazer seu coração parar, da próxima vez que for ao Dupar's arremate com uma visita ao Bob's Donuts. Bem ali no Mercado do Fazendeiro. Peça duas daquelas
roscas com cobertura dupla. Você sentirá suas artérias endurecerem e caírem feito pingentes de gelo numa casa. Eles não conseguiram achar nenhum suspeito, não é?
- E. Nenhum.
- Então por que se interessou tanto?
- Pelo mesmo motivo que Jaye. Alguma coisa a respeito desse caso. Achamos que o sujeito, seja quem for, pode estar apenas começando.
Bosch simplesmente balançou a cabeça. Tinha a boca cheia.
McCaleb lançou-lhe um olhar de avaliação. O cabelo de Bosch parecia mais curto. Mais grisalho também, mas isso era de esperar. Ele ainda tinha o mesmo bigode e os
olhos que faziam McCaleb recordar os de Graciela. Eram tão negros que quase não havia linha de separação entre a íris e a pupila. Mas os olhos de Bosch eram cansados
e ligeiramente cobertos por rugas nos cantos. Ainda assim, viviam se mexendo e observando tudo. Ele se sentava ligeiramente inclinado para a frente, como preparado
para agir. McCaleb lembrou que Bosch sempre lhe passara uma sensação de mola comprimida. Tinha a impressão que a qualquer momento, ou por qualquer razão, o policial
podia explodir.
Bosch meteu a mão no paletó do terno, tirou um par de óculos escuros e colocou-os no rosto. McCaleb ficou pensando se ele reagira à percepção de estar sendo examinado.
Curvou-se para a frente, levantou o cachorro-quente com molho e deu enfim uma mordida naquilo. Tinha um gosto delicioso e letal ao mesmo tempo.
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Recolocou o troço gotejante no prato de papel e limpou a mão no guardanapo.
- Fale alguma coisa do Gunn. Você disse que ele era um escroto. O que mais?
- O que mais? É isso aí. Ele era um predador. Usava as mulheres, comprava as mulheres. Matou aquela garota no quarto do motel, não tenho a menor dúvida.
- Mas a promotoria arquivou o caso.
- Pois é. Gunn alegou legítima defesa. Disse umas coisas que não se encaixavam, mas não a ponto de alguém encaixar uma acusação. Alegou legítima defesa, e não haveria
o suficiente para contestar isso num julgamento. Daí o negócio foi arquivado, fim de papo, vamos ao caso seguinte.
- Ele chegou a saber que você não acreditou nele?
- Ah, é claro. Ele soube.
- Você tentou dar algum aperto nele?
Bosch lançou-lhe um olhar que McCaleb conseguiu interpretar mesmo através dos óculos escuros. Aquela última pergunta questionava a credibilidade de Bosch como investigador.
- Quer dizer, o que aconteceu quando você tentou dar um aperto nele? - acrescentou ele rapidamente.
- A verdade é que nunca tivemos chance de fazer isso. Houve um problema. Chegamos até a armar a coisa. Levamos o escroto até uma das nossas salas. Eu e meu parceiro
estávamos planejando deixar o Gunn de molho ali por algum tempo, para que ele pensasse sobre o assunto, íamos aprontar toda a papelada, registrar o caso no dossiê
e depois dar um bote nele para tentar desmontar aquela versão. Não tivemos chance de fazer isso. Quer dizer, de fazer a coisa direito.
- O que aconteceu?
- Eu e o meu parceiro, Jérry Edgar, fomos ao fim do corredor tomar um café e conversar sobre a melhor maneira de fazer a coisa. Enquanto estávamos lá, o tenente
da equipe viu Gunn sentado na sala de entrevistas e não entendeu que porra ele estava fazendo ali. Resolveu por conta própria entrar e ver se o cara tinha sido avisado
sobre os seus direitos corretamente.
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Mesmo seis anos após a ocorrência, McCaleb viu o rosto de Bosch encher-se de raiva.
- Veja bem, Gunn estava lá como testemunha, e ostensivamente como a vítima de um crime. Contou que a mulher tinha avançado pra cima dele com a faca e que ele virou
a arma contra ela. Portanto, não tínhamos que avisar o sujeito de direito algum. O plano era entrar lá, desmontar aquela versão e fazer com que ele cometesse algum
engano. Feito isso, íamos falar sobre os direitos dele. Mas o tal tenente de merda não sabia de nada disso. Simplesmente entrou lá e avisou o cara. Com isso, ele
nos matou. Gunn percebeu que nós iríamos em cima dele. Pediu um advogado logo que entramos na sala.
Bosch abanou a cabeça e olhou para a rua. McCaleb seguiu o olhar dele. Do outro lado do bulevar Victory havia um pátio de venda de carros usados, com bandeirolas
vermelhas, brancas e azuis ondulando ao vento. Para McCaleb, Van Nuys era sempre sinônimo de pátios de vendas de carros. Estavam por toda parte, novos e usados.
- Então, o que você disse ao tenente? - perguntou ele.
- Dizer? Eu não disse nada. Simplesmente joguei o cara pela janela do escritório. Ganhei uma suspensão por causa disso... licença involuntária devido a estresse.
Jerry Edgar acabou levando o caso para a promotoria. Eles ficaram sentados no troço por algum tempo e finalmente arquivaram tudo.
Bosch balançou a cabeça e pousou os olhos no prato de papel vazio, acrescentando:
- Eu meio que estraguei a coisa. É isso, eu estraguei a coisa. McCaleb esperou alguns instantes antes de falar. Uma rajada
de vento arrancou o prato de Bosch da mesa, e o detetive ficou observando o objeto ser arrastado pela área de piquenique, sem fazer movimento algum para alcançá-lo.
- Você ainda trabalha com esse tenente?
- Não. Ele não está mais conosco. Pouco tempo depois, saiu à noite e não voltou para casa. Foi encontrado dentro do carro no túnel do parque Griffith, perto do Observatório.
- Como assim, ele se matou?
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- Não. Alguém fez isso por ele. O caso ainda está em aberto. Tecnicamente - disse Bosch, lançando outro olhar para ele.
McCaleb baixou os olhos e observou que o prendedor de gravata de Bosch era um pequeno par de algemas de prata.
- O que mais posso contar? - disse Bosch. - Nada disso tem qualquer coisa a ver com Gunn. Ele não passava de uma mosca no melado... sendo o melado essa merda que
eles chamam de sistema judicário.
- Parece que você não teve muito tempo para vasculhar os antecedentes dele.
- Tempo nenhum, na verdade. Tudo isso que eu contei aconteceu num período de oito ou nove horas. Depois do que aconteceu, eu fui afastado do caso, e o cara saiu
livre feito um passarinho.
- Mas você não desistiu. Jaye me disse que você foi falar com Gunn na cela dos bêbados na véspera da morte dele.
- Fui mesmo. Ele foi pego dirigindo bêbado quando andava atrás de prostitutas no Sunset. Estava na cela de custódia, e eu recebi um telefonema. Fui dar uma olhada,
pra sacudir o cara um pouco e ver se ele estava pronto para falar. Mas ele estava bêbado feito um gambá, deitado no chão em cima do vômito. E foi isso aí. Você pode
dizer que a gente não conseguiu se comunicar.
Bosch olhou para o cachorro-quente com molho que McCaleb não terminara de comer e depois para o próprio relógio.
- Desculpe, mas não sei de mais nada. Vai comer isso ou podemos ir?
- Umas mordidas mais, umas perguntinhas mais. Não quer fumar um cigarro?
- Parei há dois anos. Só fumo em ocasiões especiais.
- Não me diga que foi por causa do cartaz do Homem de Marlboro impotente, ali no Sunset Boulevar.
- Não, minha mulher queria que nós dois parássemos. E conseguimos.
- Sua mulher? Harry, você está cheio de surpresas.
- Não fique entusiasmado. Ela veio e se foi. Mas pelo menos eu não fumo mais. Não sei onde ela está.
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McCaleb simplesmente balançou a cabeça, sentindo que se intrometera demais no mundo pessoal do outro, e voltou ao caso, dizendo:
- Tem alguma teoria sobre quem matou Gunn? Deu outra mordida enquanto Bosch respondia.
- Meu palpite é que ele provavelmente encontrou alguém parecido com ele. Alguém que saiu da linha em algum lugar. Não me interprete mal. Espero que você e Jaye peguem
essa pessoa. Mas até agora, quem quer que seja, ele ou ela, não fez nada que me incomodasse muito. Entende o que quero dizer?
- É engraçado você mencionar "ela". Acha que pode ter sido uma mulher?
- Não sei o bastante sobre o caso. Mas como eu disse, ele explorava mulheres. Talvez uma delas tenha posto fim a isso.
McCaleb simplesmente balançou a cabeça. Não conseguia pensar em nada mais que pudesse perguntar a Bosch. Em todo caso, aquela fora uma cartada sem muitas probabilidades
de êxito. Talvez ele até já soubesse que a coisa sairia assim e desejasse simplesmente reatar o relacionamento com Bosch por outras razões.
- Ainda pensa sobre a garota na colina, Harry? - disse ele com os olhos no prato de papel. Não queria dizer em voz alta o nome que Bosch dera a ela.
Bosch balançou a cabeça.
- De tempos em tempos eu penso. A coisa ficou grudada em mim. Tudo isso fica, eu acho.
McCaleb balançou a cabeça, dizendo:
- É isso mesmo. Mas então nada... ninguém jamais reivindicou
o corpo?
- Não. E eu ainda tentei falar com Seguin uma última vez. Fui até a prisão no ano passado, uma semana antes que ele fosse para a cadeira elétrica. Tentei novamente
descobrir alguma coisa, mas ele só sorria para mim. Como se soubesse que aquilo era a última coisa que podia reter de mim, ou coisa assim. Dava pra ver que ele estava
gostando da situação. Daí eu levantei e disse pra ele ir se divertir no inferno. Sabe o que ele disse? "Ouvi dizer que lá o calor é seco." - Bosch abanou a cabeça
e acrescentou: - Filho da puta. Fui
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até lá e voltei no meu dia de folga. Doze horas dentro do carro, com o ar-condicionado quebrado.
Olhou diretamente para McCaleb, que mesmo através dos óculos escuros sentiu novamente o laço forte que o unira àquele homem havia tanto tempo.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ouviu o celular tocar no bolso do agasalho que deixara dobrado no banco ao seu lado. Lutou contra a roupa para achar o bolso
e pegar o telefone antes que a pessoa desistisse da chamada. Era Brass Doran.
- Tenho uns troços pra você. Não é muito, mas talvez seja um ponto de partida.
- Onde você está? Eu retorno a ligação daqui a pouco.
- Na realidade, estou na sala central de reuniões. Estamos prestes a iniciar uma sessão intensiva sobre um caso, e sou a orientadora. Só vou estar livre daqui a
algumas horas. Você pode telefonar para minha casa à noite, se...
- Não, espere um instante.
Ele abaixou o telefone e olhou para Bosch.
- Preciso atender esta ligação. Falo com você depois, se aparecer alguma coisa, está bem?
- Claro.
Bosch começou a se levantar, levando a Coca-Cola.
- Obrigado - disse McCaleb, estendendo a mão. - Boa sorte no julgamento.
Bosch apertou a mão do amigo.
- Obrigado. Provavelmente vamos precisar.
McCaleb viu-o sair da área de piquenique e pegar a calçada que levava ao tribunal. Levou de novo o telefone ao ouvido.
- Brass?
- Estou aqui. Bom, você estava falando de corujas em geral, certo? Não sabe o tipo ou o gênero, certo?
- Certo. E só uma coruja comum, acho eu.
- De que cor?
- Hum, a maior parte é marrom. Nas costas e nas asas. Enquanto falava, tirou do bolso umas páginas de caderno
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dobradas e uma caneta. Afastou para o lado o cachorro-quente com molho, meio comido, e preparou-se para tomar notas.
- Muito bem, a iconografia moderna é o que se esperaria mesmo. A coruja é o símbolo da sabedoria e da verdade, denota conhecimento, a visão de um quadro maior, em
oposição a pequenos detalhes. A coruja vê à noite. Em outras palavras, ver através das trevas é ver a verdade. É descobrir a verdade, portanto, conhecimento. E do
conhecimento vem a sabedoria. Certo?
McCaleb não precisava anotar aquilo. O que Doran dissera era óbvio. Mas só para manter a cabeça atenta, escreveu:
Ver no escuro = Sabedoria
Depois sublinhou a última palavra.
- Está bem, ótimo. O que mais?
- Isso é basicamente o que eu tenho, quanto às aplicações contemporâneas. Mas quando a gente vai para o passado a coisa fica bem mais interessante. A reputação da
nossa amiga coruja rejuvenesceu totalmente. Ela costumava ser a vilã da história.
- Fale, Brass.
- Pegue o lápis. A coruja é vista reiteradamente na arte e na iconografia religiosa, desde os primeiros tempos medievais até os períodos finais da Renascença. Muitas
vezes é encontrada em exibições religiosas alegóricas... pinturas, painéis de igrejas e estações do Calvário. A coruja era...
- Tá legal, Brass, mas o que ela significava?
- Estou chegando lá. Seu significado podia divergir de figura para figura, e também segundo a espécie mostrada. Contudo sua aparição essencialmente era um símbolo
do mal.
McCaleb anotou a palavra.
- Mal. Tá legal.
- Pensei que ia ficar mais entusiasmado.
- E porque você não está me vendo. Estou plantando bananeira aqui. O que mais você tem?
- Vamos percorrer a lista de referências. Foram tiradas de trechos da literatura crítica sobre a arte do período. As referências a
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figuras de corujas mostram o pássaro como... vou citar... símbolo da destruição, inimigo da inocência, o próprio Diabo, símbolo de heresia, loucura, morte e desgraça,
a ave das trevas, e, finalmente, o tormento da alma humana em sua jornada inevitável para a danação eterna. Bonito, né? Gosto dessa última. Acho que no século quinze
eles não vendiam muitos sacos de batata frita com figuras de corujas. McCaleb não respondeu. Estava anotando as descrições que ela lera para ele.
- Leia a última novamente.
Ela leu e ele anotou palavra por palavra.
- Mas tem mais - disse Brass. - Há também algumas interpretações da coruja como sendo o símbolo da ira, bem como a punição do mal. Portanto, obviamente era algo
que significava coisas diferentes em épocas diferentes, e para pessoas diferentes.
- A punição do mal - disse McCaleb enquanto anotava. Olhou para a lista que fizera.
- Mais alguma coisa? -Não basta isso?
- Provavelmente, sim. Há qualquer coisa sobre os livros que mostram alguns desses troços, ou os nomes dos artistas e escritores que costumavam chamar a coruja de
"ave das trevas" em suas obras?
McCaleb ouviu no fone o ruído das páginas sendo viradas, e Brass ficou silenciosa por alguns instantes.
- Não tenho muita coisa aqui. Nenhum livro, mas posso dar os nomes de alguns dos artistas mencionados, e você provavelmente pode conseguir alguma coisa na Internet
ou talvez na biblioteca da UCLA.
- Tudo bem.
- Tenho que andar depressa. Estamos prestes a começar aqui. - Diga o que você tem.
- Bom, tenho um artista chamado Bruegel, que pintou um rosto enorme como sendo o portão do inferno. Uma coruja marrom tinha o seu ninho dentro da narina de um rosto
- disse ela, começando a rir e acrescentando: - Não me pergunte nada. Só estou dizendo o que encontrei.
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- Ótimo - disse McCaleb, anotando a descrição. - Continue.
- Tá legal, dois outros que se destacaram por usar a coruja como símbolo do mal foram Van Oostanen e Dürer. Não tenho o nome dos quadros específicos.
McCaleb ouviu mais páginas sendo viradas. Perguntou como se soletravam os nomes dos artistas e anotou.
- Tá legal, achei. A obra desse último cara aqui supostamente está repleta de corujas por toda parte. Não consigo pronunciar o primeiro nome dele. Escreve-se H-I-E-R-O-N-Y-M-U-S.
Ele era dos Países Baixos e fazia parte do movimento renascentista do norte. Acho que as corujas faziam sucesso lá.
McCaleb olhou para papel à sua frente. O nome que ela acabara de soletrar lhe parecia familiar.
- Você esqueceu o último nome dele. Qual era?
- Ah, desculpe. É Bosch. Como as velas de ignição. McCaleb ficou paralisado. Não se movia, não respirava.
Olhava fixamente para o nome no papel, incapaz de escrever a última parte, que Brass acabara de lhe dar. Finalmente, virou a cabeça e olhou para a área de piquenique,
observando o ponto da calçada onde vira Bosch pela última vez, indo embora.
- Terry, ainda está aí? Ele se recuperou.
- Estou.
- É só, na realidade. E tenho que ir. Já vamos começar por aqui.
- Mais alguma coisa sobre Bosch?
- Na verdade, não. E meu tempo se esgotou.
- Tá legal, Brass. Escute, muito obrigado. Fico devendo essa a você.
- E algum dia eu vou cobrar. Quero saber como as coisas se desenvolvem, está bem?
- Pode estar certa disso.
- E manda uma foto daquela menininha pra mim.
- Vou mandar.
Ela desligou, e McCaleb fechou o telefone celular vagarosamente. Fez uma anotação no fim da página para lembrar de enviar
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a Brass uma foto de sua filha. Era somente um artifício para evitar o nome do pintor que ele anotara.
- Merda - sussurrou.
Ficou sentado, imerso nos próprios pensamentos, durante bastante tempo. Estava perturbado pela coincidência de receber aquela informação misteriosa poucos minutos
depois de almoçar com Harry Bosch. Estudou as anotações durante uns momentos, mas sabia que ali não se encontrava a informação imediata de que precisava. Finalmente
abriu novamente o telefone e ligou para 213, informações. Um minuto mais tarde, estava telefonando para a seção de pessoal do Departamento de Polícia de Los Angeles.
Uma mulher atendeu depois de nove toques.
- Sim, estou telefonando em nome do gabinete do xerife do condado de Los Angeles e preciso contatar um determinado policial do Departamento de Polícia. Mas não sei
onde ele trabalha. Só tenho o nome dele.
Torceu para que a mulher não perguntasse o que ele queria dizer com em nome do. Houve o que pareceu ser um longo silêncio, e depois ele ouviu o som de alguém digitando
num teclado.
- Ultimo nome?
- Hum... Bosch.
Ele soletrou o nome e depois olhou para as anotações, pronto para soletrar o primeiro nome.
- E o primeiro no... não importa, só há um. Hie...ro...nimus. E isso? Acho que não sei pronunciar esse troço.
- Hieronymus. É esse mesmo.
Ele soletrou o nome e perguntou se coincidia. Coincidia.
- Bom, ele é detetive de terceiro grau e trabalha na Divisão Hollywood. Precisa do número de lá?
McCaleb não respondeu.
- Senhor, precisa...
- Não, já tenho. Muito obrigado.
McCaleb fechou o telefone, olhou para o relógio e reabriu o aparelho. Ligou para o número direto de Jaye Winston, que atendeu imediatamente. Ele perguntou se ela
conseguira algum resultado do laboratório sobre o exame da coruja de plástico.
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- Ainda não. Faz apenas duas horas, e uma delas era de almoço. Vou esperar até amanhã antes de começar a bater na porta deles.
- Tem tempo de dar uns telefonemas e me fazer um favor?
- Que telefonemas?
Ele descreveu a pesquisa iconográfica que Brass Doran fizera, mas omitiu qualquer referência a Hieronymus Bosch. Disse que queria conversar com um perito em pintura
renascentista do norte da Europa, mas achava que as coisas poderiam andar mais depressa e a cooperação seria mais fácil se a solicitação viesse de uma detetive de
homicídios oficial.
- Farei isso - disse Jaye. - Por onde a gente começa?
- Eu tentaria o museu Getty. Estou em Van Nuys agora. Se alguém quiser me receber, posso chegar lá em meia hora.
- Vou ver o que posso fazer. Falou com Harry Bosch?
- Falei.
- Alguma novidade?
- Na verdade, não.
- Eu sabia. Fique frio. Já ligo de volta.
McCaleb jogou o que restara do almoço numa das latas de lixo e dirigiu-se para o tribunal, onde deixara o Cherokee estacionado numa rua transversal, junto aos escritórios
de liberdade condicional do estado. Enquanto caminhava, foi pensando sobre a mentira por omissão que contara a Jaye. Sabia que deveria ter falado da conexão ou coincidência
com Bosch, fosse o que fosse aquilo. Tentou entender o que o fizera omitir a informação, mas não encontrou resposta.
O telefone tocou assim que ele chegou ao Cherokee. Era Jaye.
- Você tem um encontro marcado no museu Getty às duas horas. Procure Leigh Alasdair Scott. É um dos curadores de pinturas.
McCaleb pegou as anotações e escreveu o nome do sujeito, usando o capo do carro como apoio, depois de perguntar a Jaye como se soletrava aquilo.
- Foi rápido, Jaye. Obrigado.
- Nossa meta é agradar. Falei diretamente com Scott, e ele disse que se não pudesse ajudar encontraria alguém que pudesse.
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- Mencionou a coruja?
- Não, a entrevista é sua.
- Certo.
McCaleb percebeu que aquela era outra chance de falar de Hieronymus Bosch para Jaye. Mas novamente deixou a coisa passar.
-Telefono mais tarde, está bem?
- Até logo.
Ele fechou o telefone e destrancou o carro. Olhou por cima da capota do veículo para os escritórios de liberdade condicional e viu um grande cartaz branco, com dizeres
em letra azul, pendendo sobre a fachada acima da portaria.
SEJA BEM-VINDA DE VOLTA, THELMA!
Entrou no carro, pensando se a Thelma que estava recebendo boas-vindas seria uma presa ou uma funcionária. Seguiu na direção do bulevar Victory. Pegaria a 405 e
seguiria para o sul.
Capítulo 11
A rodovia se elevava para cruzar as montanhas Santa Monica pelo passo Sepulveda, e McCaleb viu o Getty surgir no alto da colina. A estrutura do próprio museu era
tão impressionante quanto qualquer das grandes obras artísticas ali abrigadas. Parecia um castelo assentado no topo de uma colina medieval. McCaleb viu um dos dois
trenzinhos duplos avançando vagarosamente morro acima para deixar mais um grupo naquele altar da história e da arte.
Quando estacionou no sopé da colina e pegou o trenzinho para subir, McCaleb já estava quinze minutos atrasado para o encontro com Leigh Alasdair Scott. Depois de
pedir informações a um guarda do museu, atravessou rapidamente a praça calçada de pedras calcárias e chegou a uma entrada controlada. Identificou-se no balcão e
ficou esperando num banco até Scott vir buscá-lo.
O homem tinha cinqüenta e poucos anos, e falava com um sotaque que McCaleb inicialmente achou ser da Austrália ou Nova Zelândia. Era amável, e parecia contente de
estar prestando um favor ao gabinete do xerife do condado de Los Angeles.
- Já tivemos a oportunidade de oferecer nossa ajuda e experiência a detetives no passado. Geralmente no que diz respeito à autenticação de obras de arte ou oferecendo
o embasamento histórico de peças específicas - disse ele, levando McCaleb por um longo corredor até o seu escritório. - A detetive Jaye Winston deu a
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entender que desta vez seria diferente. Você precisa de informações gerais sobre a Renascença no norte da Europa?
Abriu uma porta e fez McCaleb entrar num conjunto de escritórios. Os dois foram para a primeira sala depois do balcão de controle. Era um escritório pequeno com
uma grande janela, de onde se avistava um panorama que ia desde o passo Sepulveda até o casario na encosta de Bel-Air. A sala parecia atulhada, devido às estantes
de livros que forravam duas paredes e também por causa da mesa de trabalho repleta de coisas. Só havia lugar para duas cadeiras. Scott indicou uma delas a McCaleb
e sentou-se na outra.
- Na realidade, as coisas mudaram um pouco depois que a detetive Jaye falou com você - disse McCaleb. -Já posso ser mais específico sobre o que necessito. Consegui
concentrar minhas perguntas num pintor específico daquele período. Se puder me falar dele e talvez me mostrar algumas obras de sua autoria, já seria de grande ajuda.
- E qual é o nome dele?
- Vou lhe mostrar.
McCaleb tirou as anotações dobradas e mostrou-as a Scott, que leu o nome em voz alta com óbvia familiaridade, pronunciando o primeiro nome "i-e-rô-ni-mo".
- Achei que a pronúncia era mesmo essa.
- Rima com anônimo. Na verdade, sua obra é bastante conhecida. Não sabia?
- Não. Não estudei muita coisa de arte. O museu tem algum quadro dele?
- Nenhuma das obras de Bosch faz parte da coleção Getty, mas há um quadro de um discípulo dele na seção de conservação. Está sofrendo um grande trabalho de restauração.
A maior parte das obras autenticadas está na Europa, sendo que as mais representativas estão no museu do Prado. Outras estão espalhadas pelo mundo. Entretanto não
sou a pessoa mais indicada para conversar com você sobre isso.
McCaleb franziu a testa numa pergunta muda.
- Como concentrou sua pesquisa especificamente em Bosch, há uma pessoa aqui mais qualificada para falar com você. Ela é
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assistente da curadoria. Acontece que também está trabalhando num catálogo raisonné sobre o pintor... um projeto de longo prazo para ela. Um trabalho de amor, talvez.
- Ela está aqui? Posso falar com ela?
Scott estendeu a mão para o telefone e apertou o botão do microfone. Consultou uma lista de ramais colada na mesa ao lado e apertou três dígitos. Uma mulher respondeu
depois de três toques.
- Lola Walter, em que posso ajudar?
- Lola, é Scott. Penelope está disponível?
- Está trabalhando no Inferno hoje.
- Ah, entendi. Vamos falar com ela lá.
Scott apertou o botão do microfone, desligando, e foi para a porta.
- Você está com sorte - disse.
- Inferno? - perguntou McCaleb.
- E a tal pintura do discípulo. Faça o favor de me acompanhar. Scott conduziu McCaleb até um elevador e os dois desceram
um andar. Ao longo do caminho, ele explicou que o museu tinha um dos melhores ateliês de conservação do mundo. Conseqüentemente, obras de arte de outros museus e
de coleções particulares eram com freqüência despachadas para o Getty a fim de serem reparadas e restauradas. No momento, um quadro que se acreditava ser de um aluno
de Bosch ou de um pintor de seu ateliê estava sendo restaurado para um colecionador particular. O quadro chamava-se Inferno.
O ateliê de conservação era um enorme aposento dividido em duas seções principais. Um delas era a oficina onde as molduras eram restauradas. A outra seção era dedicada
à restauração de quadros e subdividia-se em uma série de baias dispostas ao longo de uma parede de vidro com a mesma vista que Scott tinha do escritório.
McCaleb foi conduzido à segunda baia, onde uma mulher estava de pé atrás de um homem sentado, ambos diante de um quadro preso a um grande cavalete. O homem usava
um avental sobre a camisa social e a gravata, e algo que parecia ser um par de lentes de
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aumento de joalheiro. Estava inclinado em direção à pintura, usando um pincel com a ponta diminuta para aplicar o que parecia ser tinta prateada à superfície.
Nem o homem nem a mulher olharam para McCaleb e Scott, que levantou as mãos num gesto de Pare aqui, enquanto o homem sentado completava a pincelada. McCaleb olhou
para o quadro. Tinha cerca de um metro e vinte de altura e um metro e oitenta de largura. Era uma paisagem escura que mostrava uma aldeia sendo inteiramente queimada
durante a noite, enquanto os habitantes eram torturados e executados por uma variedade de criaturas sobrenaturais. A parte superior do quadro, que mostrava principalmente
o céu noturno em torvelinho, estava marcada por pequenas manchas causadas por danos ou trechos sem tinta. Os olhos de McCaleb se fixaram num pequeno segmento abaixo
daquilo, onde se via um homem - nu e com os olhos vendados - sendo forçado a subir uma escada para a forca por um grupo de criaturas semelhantes a pássaros com lanças.
O homem do pincel terminou sua tarefa e colocou o pincel no tampo de vidro da mesa à esquerda. Depois inclinou-se de volta para o quadro a fim de examinar seu trabalho.
Scott pigarreou. Apenas a mulher se virou.
- Penelope Fitzgerald, este é o detetive McCaleb. Ele está envolvido numa investigação e precisa fazer perguntas sobre Hieronymus Bosch.
Fez um gesto na direção do quadro.
- Eu disse que você era a pessoa da equipe mais indicada para conversar com ele.
McCaleb viu os olhos da mulher registrarem surpresa e preocupação, numa reação normal a uma súbita apresentação à polícia. Já o sujeito sentado nem se virou. Em
vez disso, pegou o pincel e voltou a trabalhar no quadro. McCaleb estendeu a mão para a mulher.
- Na realidade, eu não sou oficialmente um detetive. O escritório do xerife pediu que eu ajudasse numa investigação.
Eles se cumprimentaram.
- Não entendi - disse ela. - Algum quadro de Bosch foi roubado?
- Não, nada disso. Esse quadro é dele?
Fez um gesto na direção da pintura.
- Não exatamente. Pode ser cópia de uma obra dele. Se for, então o original se perdeu e isso é tudo que temos. O estilo e o traço são dele. Mas é geralmente aceito
como trabalho de um aluno da oficina de Bosch. Provavelmente foi pintado depois que ele morreu.
Enquanto ela falava, seus olhos jamais se afastaram da pintura. Eram penetrantes e amistosos, traindo facilmente sua paixão pelo pintor. McCaleb atribuiu-lhe cerca
de sessenta anos e pensou que provavelmente ela dedicara sua vida ao estudo e ao amor à arte. Penelope Fitzgerald o surpreendera. A breve descrição que Scott fizera
dela, como sendo uma assistente que trabalhava num catálogo da obra de Bosch, fizera com que ele a visualizasse como uma jovem estudante de arte. Silenciosamente,
repreendeu-se por ter feito tal suposição.
O sujeito sentado pousou o pincel novamente e pegou um pano branco limpo na bancada para limpar as mãos. Girou na cadeira e ergueu os olhos ao notar McCaleb e Scott.
Só então McCaleb percebeu que fizera outra suposição errada. O homem não ignorara a presença deles. Simplesmente não ouvira nada.
O sujeito tirou as lentes do alto da cabeça enquanto metia a mão embaixo do avental, perto do peito, ajustando um aparelho auditivo.
- Desculpe - disse ele. - Não sabia que tínhamos visitas. Falava com forte sotaque alemão.
- Doutor Derek Vosskuhler, este é Terry McCaleb - disse Scott. - Ele é investigador e precisa lhe roubar a Penelope por alguns minutos.
- Compreendo. Está bem.
- O doutor Vosskuhler é um dos nossos peritos em restauração
- esclareceu Scott.
Vosskuhler balançou a cabeça e ergueu os olhos para McCaleb, estudando-o como talvez estudasse uma pintura. Não fez qualquer movimento para estender a mão.
- Uma investigação? A respeito de Hieronymus Bosch, é?
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- De modo periférico. Eu só quero saber tudo que puder sobre ele. Soube que existe uma especialista aqui - disse McCaleb sorrindo para Penelope.
- Ninguém é especialista em Bosch - disse Vosskuhler, sem sorrir. - Alma torturada, gênio atormentado... Como poderemos chegar a conhecer o que verdadeiramente se
passa no coração de um homem?
McCaleb simplesmente balançou a cabeça. Vosskuhler voltou-se e examinou a pintura, dizendo: -O que vê aqui? McCaleb olhou para o quadro e custou bastante a responder.
- Muito sofrimento.
Vosskuhler balançou a cabeça em aprovação. Depois levantou e olhou bem de perto para o quadro, abaixando os óculos e inclinando-se para o quarto superior da pintura,
com as lentes a poucos centímetros do céu noturno sobre a aldeia em chamas.
- Bosch conhecia todos os demônios - disse ele sem se virar. A treva...
Passou-se um longo momento.
Houve outro longo período de silêncio antes que Scott interrompesse abruptamente, dizendo que precisava voltar ao escritório, e saísse. E depois de outro momento,
Vosskuhler finalmente deu as costas para o quadro. Não se deu ao trabalho de levantar as lentes quando olhou para McCaleb. Meteu vagarosamente a mão embaixo do avental
e desligou o aparelho auditivo.
- Eu também preciso voltar ao trabalho. Boa sorte na investigação.
McCaleb balançou a cabeça, enquanto Vosskuhler se sentava de volta na cadeira giratória e pegava novamente o pequeno pincel.
- Podemos ir até o meu escritório - disse Penelope Fitzgerald.
- Tenho todos os livros ilustrados da nossa biblioteca lá. Posso lhe mostrar o trabalho de Bosch.
- Isso seria ótimo. Obrigado.
Ela se dirigiu para a porta. McCaleb demorou-se um instante, lançando um último olhar para o quadro. Seus olhos foram atraídos
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para a parte superior, na direção das trevas em torvelinho, acima das chamas.
O escritório de Penelope Fitzgerald era um compartimento de dois por dois metros, numa sala compartilhada por vários assistentes da curadoria. Ela enfiou num espaço
apertado uma cadeira que tirou de um compartimento contíguo, onde ninguém estava trabalhando, e mandou McCaleb se sentar. Sua escrivaninha tinha a forma de L, com
um lap top do lado esquerdo e um espaço de trabalho atulhado de coisas do lado direito. Havia vários livros empilhados na mesa. McCaleb notou que atrás de uma das
pilhas havia uma reprodução colorida de um quadro muito semelhante em estilo ao que Vosskuhler estava restaurando. Ele empurrou os livros um palmo para o lado e
inclinou-se a fim de examinar a reprodução. Era dividida em três painéis, com o maior no centro. Ali também reinava o caos. Dezenas e dezenas de figuras espalhavam-se
pelos painéis, em cenas de libertinagem e tortura.
- Reconhece isso? - disse Penelope.
- Acho que não. Mas é de Bosch, não é?
- E a sua obra mais característica. O tríptico denominado O jardim das delícias terrenas. Está no museu do Prado, em Madri. Certa vez eu fiquei quatro horas diante
dele. Não foi o bastante para apreender toda a obra. Quer café, água ou alguma outra coisa, Sr. McCaleb?
- Não, obrigado. Pode me chamar de Terry se quiser.
- E você me chama de Nep. McCaleb fez uma expressão intrigada.
- Apelido de infância. Ele balançou a cabeça.
- Bom - disse ela. - Nesses livros eu posso lhe mostrar todas as obras de Bosch já identificadas. É uma investigação importante?
McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que sim. E um homicídio.
- E você é uma espécie de consultor?
- Eu trabalhava para o FBI aqui em Los Angeles. A detetive do escritório do xerife a quem o caso foi distribuído pediu que eu
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desse uma olhada na história e visse o que eu achava. Foi isso que me trouxe aqui. A Bosch. Desculpe, mas não posso revelar os detalhes do caso, e sei que isso deve
ser frustrante para você. Quero fazer perguntas, mas na verdade não posso responder a nenhuma pergunta sua.
- Droga - disse ela sorrindo. - A coisa parece realmente interessante.
- Mas se houver um ponto sobre o qual eu possa falar prometo fazer isso.
- Parece justo.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Pelo que o doutor Vosskuhler falou, entendi que se sabe pouco do homem por trás dos quadros.
Penelope balançou a cabeça.
- Hieronymus Bosch é certamente considerado um enigma e provavelmente sempre será.
McCaleb abriu suas anotações sobre a mesa e começou a escrever enquanto ela falava.
- Ele tinha uma das imaginações menos convencionais de sua época. Ou de qualquer época, pode-se dizer. Sua obra é realmente extraordinária, e cinco séculos mais
tarde continua sujeita a reestudos e reinterpretações. Mas acho que você perceberá que a maioria das análises críticas até hoje afirma que ele era um profeta da
destruição. Sua obra é inspirada nos portentos da destruição e do fogo eterno, e por avisos sobre os custos do pecado. Para colocar a coisa de maneira mais sucinta,
os quadros são primordialmente variações sobre o mesmo tema: que a loucura da humanidade nos leva todos ao inferno como nosso destino final.
McCaleb escrevia rapidamente para tentar acompanhá-la, desejando ter trazido um gravador.
- Sujeito legal, hein? - acrescentou Penelope.
- Parece que sim - disse McCaleb, meneando a cabeça na direção da reprodução do tríptico. - Devia ser divertido numa noite de sábado.
Ela sorriu.
- Foi exatamente o que eu pensei quando estive no Prado.
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- Alguma qualidade redentora? Ele abrigava órfãos, era bondoso com os cachorros, trocava pneus furados para as velhinhas, qualquer coisa assim?
- Você precisa lembrar da época e do lugar em que ele vivia para compreender integralmente o que ele estava fazendo com sua arte. Embora seu trabalho fosse pontilhado
por cenas violentas e representações de tortura e angústia, naquela época esse tipo de coisa não era incomum. Ele vivia numa época violenta, e sua obra reflete isso
claramente. Os quadros também refletem a crença medieval na existência de demônios por toda parte. O mal espreita em todas as pinturas.
- A coruja?
Ela ficou olhando para ele com expressão vaga por um instante.
- Sim, a coruja é um dos símbolos que ele usava. Achei que você disse que não tinha familiaridade com a obra dele.
- E não tenho. Foi uma coruja que me trouxe aqui. Mas não posso entrar nesse assunto e não deveria ter interrompido. Por
favor, continue.
- Eu só ia acrescentar que isso é revelador, quando se considera que Bosch foi contemporâneo de Leonardo, Michelangelo e Rafael. Contudo, se você examinasse as obras
de todos eles lado a lado, seria levado a acreditar que Bosch... com todos os símbolos medievais e a destruição... era do século anterior.
- Mas ele não era.
Ela abanou a cabeça como se sentisse pena de Bosch.
- Ele e Leonardo da Vinci tinham uma diferença de idade de apenas um ano ou dois. No final do século quinze, da Vinci estava criando obras que eram cheias de esperança,
celebração dos valores humanos e espiritualidade, enquanto Bosch era só melancolia e destruição.
- Isso deixa você triste, não é?
Ela pôs as mãos no livro mais alto da pilha, mas não o abriu. A lombada ostentava simplesmente o nome de BOSCH e não havia ilustrações na encadernação de couro preto.
- Não posso deixar de pensar no que poderia ter acontecido se Bosch tivesse trabalhado lado a lado com da Vinci ou
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michelangelo, e no que poderia ter acontecido se ele tivesse usado seu talento e imaginação na celebração e não na danação do mundo.
Ela baixou os olhos para o livro e depois encarou McCaleb de novo.
- Mas é nisso que está a beleza da arte, e é por isso que estudamos e celebramos essas obras. Cada pintura é uma janela para a alma e a imaginação do artista. Por
mais sombria e perturbadora que seja, é essa visão que diferencia cada artista e torna seus quadros únicos. O que acontece comigo, em relação a Bosch, é que os quadros
servem para me transportar até a alma do artista, e eu sinto o tormento ali dentro.
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente. Penelope baixou os olhos e abriu o livro.
Para McCaleb, o mundo de Hieronymus Bosch era tão surpreendente quanto perturbador. As paisagens dolorosas que se desenrolavam nas páginas que Penelope virava assemelhavam-se
a algumas das mais horríveis cenas de crimes que ele já vira, mas naquelas cenas pintadas os atores ainda viviam e sofriam. Os dentes arreganhados e as carnes dilaceradas
estavam em ação e eram reais. As telas estavam apinhadas daqueles seres humanos condenados ao inferno, que tinham seus pecados castigados por demônios visíveis e
criaturas tornadas vivas pela mão de uma imaginação horrenda.
Ele começara a examinar as reproduções coloridas das pinturas em silêncio, absorvendo tudo como começaria a observar a fotografia da cena de um crime. Mas subitamente
ela virou uma página e viu um quadro que representava três pessoas de pé em torno de um homem sentado. Uma das pessoas de pé estava usando o que parecia um bisturi
primitivo para abrir um corte no topo da cabeça do homem sentado. A imagem era representada em um círculo. Havia palavras pintadas acima e abaixo do círculo.
- Que quadro é esse? - perguntou ele.
- Chama-se A operação da pedra - disse Penelope. - Na época muita gente acreditava que a estupidez e a mentira podiam ser curadas removendo uma pedra da cabeça de
quem sofresse da doença.
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McCaleb curvou-se sobre o ombro dela e olhou de perto para a pintura, especificamente para o local do corte cirúrgico. Era um local comparável ao ferimento na cabeça
de Edward Gunn.
- Muito bem, pode continuar.
Havia corujas por toda parte. Penelope quase nunca precisava mostrá-las, tão óbvias eram suas posições. Mas explicava algumas das imagens correlatas. Na maioria
dos quadros, quando a coruja era representada numa árvore, o galho onde pousara o símbolo do mal estava desfolhado e acinzentado - morto.
Ela virou a página e mostrou uma pintura composta por três painéis.
- Chama-se O juízo Final, com o painel da esquerda subintitulado A queda da humanidade, e o painel direito, de forma simples e óbvia, Inferno.
- Ele gostava de pintar o inferno.
Mas Nep Fitzgerald não sorriu. Seus olhos examinavam o livro.
O painel da esquerda da pintura era uma cena passada no Jardim do Éden. Adão e Eva apareciam no centro, recebendo o fruto da serpente na macieira. Num galho morto
de uma árvore próxima, uma coruja observava a transação. No painel oposto, o Inferno era mostrado como um lugar escuro, onde criaturas semelhantes a pássaros estripavam
os condenados, retalhando seus corpos e colocando os pedaços em tachos a serem enfiados em fornos flamej antes.
- Tudo isso saiu da cabeça desse cara - disse McCaleb. - Eu
não...
Não terminou, porque não sabia ao certo o que estava tentando dizer.
- Uma alma atormentada - disse Penelope virando a página. A pintura seguinte era outra imagem circular, com sete cenas
diferentes apresentadas em torno da borda externa e um retrato de Deus no centro. No círculo dourado que cercava o retrato de Deus e o separava das cenas exteriores,
havia quatro palavras em latim que McCaleb reconheceu imediatamente.
- Cuidado, cuidado, Deus vê. Penelope ergueu os olhos para ele.
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- Obviamente, você já viu isso antes. Ou simplesmente conhece latim do século quinze. O caso em que está trabalhando deve ser muito estranho.
- E o que está parecendo. Mas eu só conheço as palavras, e não o quadro. O que é isso?
- Na realidade é um tampo de mesa, provavelmente criado para a reitoria de uma igreja ou a residência de uma pessoa santa. E o olho de Deus. Ele está no centro e
o que ele vê quando olha para baixo são essas imagens, os sete pecados mortais.
McCaleb balançou a cabeça. Olhando para as cenas distintas, dava para perceber alguns dos pecados mais óbvios: gula, luxúria e orgulho.
- E agora a obra-prima - disse a sua guia naquela turnê, virando a página.
Era o mesmo tríptico que ela pregara na parede da divisória. O jardim das delícias terrenas. McCaleb examinou a pintura de perto. O painel da esquerda era uma cena
bucólica de Adão e Eva sendo colocados no jardim pelo Criador. Perto havia uma macieira. O painel central, o maior, mostrava dezenas de pessoas nuas copulando e
dançando com luxúria desinibida, montadas em cavalos, lindos pássaros e criaturas inteiramente imaginárias saídas do lago em primeiro plano. E o último painel, o
mais escuro, era o resultado. O inferno, um lugar de sofrimento e angústia administrado por aves monstruosas e outras criaturas horrendas. A pintura era tão detalhada
e fascinante que McCaleb compreendeu por que alguém podia ficar parado diante dela - do original - por quatro horas e ainda assim não absorver tudo.
- Tenho certeza que você já está apreendendo as idéias dos temas tão repetidos por Bosch - disse Penelope. - Mas essa é considerada a mais coerente de suas obras,
bem como a mais lindamente imaginada e realizada.
McCaleb balançou a cabeça e apontou para os três painéis, dizendo:
- Aqui você tem Adão e Eva, na boa vida até comerem a maçã. Aqui no centro você tem o que acontece depois da perda do
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estado de graça: a vida sem regras. A liberdade de escolha nos leva à luxúria e ao pecado. E onde vai dar tudo isso? No inferno.
- Muito bem. Quer que eu tente salientar alguns pontos específicos que possam lhe interessar?
- Por favor.
Ela começou pelo primeiro painel.
- O paraíso terrestre. Você tem razão ao dizer que isso mostra Adão e Eva antes da queda. O lago e a fonte no centro representam a promessa da vida eterna. Você
já observou a árvore do fruto à esquerda do centro.
O dedo de Penelope moveu-se ao longo da pintura até a estrutura da fonte, uma torre feita do que parecia ser um monte de pétalas de flores que misteriosamente despejavam
água em quatro diferentes vertentes no lago abaixo. Depois ele viu a coisa. O dedo dela parou embaixo de uma pequena abertura escura no centro da estrutura da fonte.
O rosto de uma coruja espreitava nas trevas.
- Você mencionou a coruja antes. A imagem dela está aqui. Você vê que nem tudo é perfeito nesse paraíso. O mal espreita, e como você sabe acabará vitorioso. Segundo
Bosch. Depois, indo para o próximo painel, vemos essas imagens correlatas aparecerem repetidamente.
Ela apontou para duas representações distintas de corujas e mais duas de criaturas parecidas com corujas. Os olhos de McCaleb se fixaram em uma das imagens, que
mostrava uma grande coruja marrom, de reluzentes olhos negros, sendo abraçada por um homem nu. O colorido e os olhos da coruja coincidiam com os da ave de plástico
encontrada no apartamento de Edward Gunn.
- Vê alguma coisa aí, Terry? Ele apontou para a coruja.
- Esta aqui. Realmente não posso descer a detalhes com você, mas esta se encaixa na razão da minha presença aqui.
- Há muitos símbolos em ação neste painel. Este é um dos mais óbvios. Depois da queda, o livre-arbítrio leva o homem à libertinagem, à gula, à loucura e à avareza,
sendo a luxúria o pior de todos os pecados, no mundo de Bosch. O homem coloca seus braços em torno da coruja e assim abraça o mal.
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McCaleb balançou a cabeça.
- Mas depois paga por isso.
- Depois paga por isso. Como pode observar no último painel, esta é uma representação do inferno sem fogo. Em vez disso,
trata-se de um lugar com miríades de tormentos e dor interminável. De trevas.
McCaleb ficou em silêncio durante muito tempo, enquanto seus olhos se deslocavam ao longo da paisagem da pintura. Recordou o que o doutor Vosskuhler dissera.
Capítulo 12
Bosch pôs as mãos em concha e colocou-as sobre a vidraça ao lado da porta de entrada do apartamento. Estava olhando para o interior da cozinha. As bancadas estavam
imaculadamente limpas. Não havia bagunça, nem cafeteira elétrica, nem mesmo uma torradeira. Ele começou a ter um mau pressentimento. Foi até a porta e bateu mais
uma vez. Depois ficou andando de um lado para o outro, esperando. Ao olhar para baixo, viu na soleira a marca deixada por um capacho de boas-vindas.
- Caceta - disse.
Meteu a mão no bolso e tirou uma bolsinha de couro. Abriu o zíper e pegou dois pequenos estiletes de aço que fizera com serras metálicas. Olhando em torno, não viu
ninguém. Estava no recesso oculto de um grande complexo de apartamentos em Westwood. A maioria dos residentes provavelmente ainda estava trabalhando. Ele foi até
a porta e começou a trabalhar com os estiletes na fechadura. Noventa segundos mais tarde conseguiu abrir a porta e entrar.
Viu que o apartamento estava vazio logo que entrou, mas examinou cada cômodo mesmo assim. Todos estavam vazios. Na esperança de encontrar um frasco de remédio vazio,
verificou até o armário do banheiro. Sobre uma prateleira havia um barbeador de plástico cor-de-rosa, já usado, e nada mais.
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Bosch voltou à sala e pegou o telefone celular. Na véspera, já colocara o número do celular de Janis Langwiser na discagem rápida de seu aparelho. Ela era a co-promotora
do caso, e os dois haviam trabalhado no testemunho dele durante toda a semana. O telefonema ainda a encontrou no escritório temporário que a equipe da promotoria
ocupava no tribunal de Van Nuys.
- Escute, não quero estragar a festa, mas Annabelle Crowe sumiu.
- O que quer dizer com sumiu?
- Quero dizer que ela sumiu, gatinha, sumiu. Entrei no que era o apartamento dela. Está vazio.
- Merda! A gente precisa muito dela, Harry. Quando ela se mudou?
- Não sei. Acabei de descobrir que ela sumiu.
- Falou com o encarregado do prédio?
- Ainda não. Mas no máximo ele só vai saber há quanto tempo ela deu no pé. Se ela está fugindo do julgamento, não ia deixar um endereço novo com o encarregado.
- Bom, quando falou com ela pela última vez?
- Quinta-feira. Liguei pra cá. Mas essa linha foi desligada. E ela não deixou o número novo com a companhia telefônica.
- Merda!
- Eu sei. Você já disse isso.
- Ela recebeu a intimação, não foi?
- Foi, recebeu a intimação na quinta-feira. Foi por isso que telefonei pra ela. Pra ter certeza.
- Bom, então talvez ela apareça aqui amanhã. Bosch examinou o apartamento e disse:
- Eu não contaria com isso.
Olhou para o relógio. Já passava das cinco. Ele se sentia tão seguro acerca de Annabelle Crowe que a deixara por último na lista de testemunhas que precisava conferir.
Ela não dera sinal algum de que iria cair fora. Agora ele sabia que passaria a noite tentando descobrir o paradeiro dela.
- O que você pode fazer? - perguntou Janis.
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- Tenho algumas informações que posso verificar. Ela só pode estar na cidade. Ela é atriz, para onde mais iria?
- Nova York?
- Pra lá só vai quem é artista de verdade. Ela não passa de um rostinho bonito. Vai ficar aqui.
- Encontre essa mulher, Harry. Vamos precisar dela na semana
que vem.
- Vou tentar.
Houve um momento de silêncio, enquanto ambos refletiam
sobre a situação.
- Acha que o Storey chegou até ela? - perguntou Janis por fim.
- Estou pensando nisso. Ele pode ter se aproximado com algo que ela queria... um emprego, um papel, um cheque no fim do mês. Quando eu encontrar Annabelle, vou perguntar
isso.
- Tá legal, Harry. Boa sorte. Se você chegar a ela hoje à noite, avise. Senão, a gente se vê de manhã.
- Tá certo.
Bosch fechou o telefone e colocou o aparelho na bancada da cozinha. Do bolso do paletó, tirou uma pilha fina de cartões tamanho oito por doze. Cada cartão tinha
o nome de uma das testemunhas que ele precisava interrogar cuidadosamente e preparar para o julgamento. Ali estavam os endereços residenciais e de trabalho, bem
como os números dos telefones e bips das pessoas. Conferiu o cartão destinado a Annabelle Crowe e teclou o número do bip no telefone. Uma mensagem gravada informou
que aquele bip estava desativado.
Bosch fechou o telefone e olhou de novo para o cartão. O nome e o telefone do agente de Annabelle Crowe estavam relacionados no fim. Ele concluiu que o agente seria
o único elo que ela não quebraria.
Recolocou o telefone e os cartões nos bolsos. Aquela investigação ele tinha que fazer pessoalmente.
Capítulo 13
McCaleb fez a travessia sozinho, e o Mar que Segue chegou ao porto de Avalon logo que escureceu. Buddy ficara na marina Cabrillo. Não haviam aparecido novos clientes,
e sua presença só seria necessária no sábado. Ao chegar à ilha, McCaleb chamou o encarregado do ancoradouro pelo canal 16 do rádio e conseguiu ajuda para atracar
o barco.
A subida até sua casa se tornou exaustiva por causa do peso dos dois volumes grandes que encontrara na seção de livros usados na livraria Dutton, em Brentwood, e
do pequeno isopor cheio de tamales congelados. McCaleb teve de parar duas vezes no acostamento para descansar. Cada vez que parava e sentava no isopor, tirava
um dos livros da bolsa de couro para voltar a estudar a obra sombria de Hieronymus Bosch - até em meio às sombras do anoitecer.
Desde a visita ao museu Getty, as imagens dos quadros de Bosch não haviam se afastado mais de seus pensamentos. Nep Fitzgerald dissera algo importante no final do
encontro no escritório. Pouco antes de fechar as páginas das gravuras que reproduziam O jardim das delícias terrenas, ela olhara para ele com um pequeno sorriso,
como se tivesse algo a dizer, mas hesitasse.
- O que foi? - dissera ele.
- Nada, na verdade, só uma observação.
- Vá em frente, fale. Quero ouvir.
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Eu só ia mencionar que muitos críticos e estudiosos que examinam a obra de Bosch enxergam corolários nos dias de hoje. Essa é a marca de um grande artista... se
sua obra suporta o teste do tempo. Se ele tem o poder de tocar... e talvez influenciar as pessoas.
McCaleb assentira, percebendo que ela queria saber em que ele estava trabalhando.
- Entendo o que está dizendo. Desculpe, mas no momento não posso lhe contar nada. Talvez possa fazer isso um dia, ou talvez um dia você simplesmente descubra o que
era. Mas obrigado. Você ajudou muito, acho eu. Ainda não sei ao certo.
Sentado ali no isopor, McCaleb lembrou-se da conversa. Corolários nos dias de hoje, pensou. E nos crimes de hoje. Abriu o maior dos dois livros que comprara e achou
uma ilustração da obraprima de Bosch. Examinou a coruja de olhos negros. Todos os seus instintos lhe diziam que ele estava na pista de algo importante. Algo rnuito
sombrio e perigoso.
Quando McCaleb chegou em casa, Graciela pegou o isopor e abriu-o sobre a bancada da cozinha. Tirou três dos tamales de milho verde e colocou-os num prato para descongelar
no microondas.
- Estou fazendo chilis rellenos com molho também - disse ela. Ainda bem que você telefonou do barco, senão nós teríamos jantado sem você.
McCaleb deixou que Graciela desabafasse. Sabia que ela se zangara com o que ele fizera. Foi até a mesa, onde Cielo estava sentada numa cadeira de balanço. A criança
olhava para o ventilador do teto e mexia as mãos diante dos olhos, acostumando-se com elas. McCaleb inclinou-se, beijando as duas mãozinhas e depois a testa do
bebê.
- Onde está Raymond?
- No quarto. No computador. Por que só comprou dez? McCaleb olhou para ela enquanto se sentava numa cadeira
perto de Cielo. Graciela estava pondo os outros tamales para congelar num recipiente plástico.
- Eu entreguei o isopor e mandei que eles enchessem. Só cabem dez, acho eu.
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Ela abanou a cabeça, aborrecida com ele.
- Vai sobrar um.
- Então jogue esse fora ou convide um dos amigos de Raymond para jantar da próxima vez. E daí, Graciela? É só um tomais..
Graciela se virou, lançando-lhe um olhar sombrio e perturbado, mas que logo se abrandou.
- Você está todo suado.
- Eu acabei de subir a ladeira a pé. Não tinha mais condução. Ela abriu um armário acima de sua cabeça e tirou uma caixa de
plástico com um termômetro. Havia um termômetro em cada cômodo da casa. Ela sacudiu o instrumento e se aproximou dele. -Abre.
- Vamos usar o eletrônico.
- Não, eu não confio neles.
Graciela pôs a ponta do termômetro embaixo da língua de McCaleb. Depois elevou o maxilar dele e fechou-lhe a boca. Muito profissional. Na época em que ele a conhecera,
Graciela era enfermeira de um pronto-socorro, e atualmente trabalhava como enfermeira e auxiliar de escritório na escola de ensino básico de Catalina. Acabara de
voltar ao trabalho depois dos feriados de Natal. McCaleb pressentia que ela queria ser mãe em tempo integral, mas como eles não podiam se dar a esse luxo, jamais
mencionava o assunto diretamente. Esperava que dali a alguns anos o serviço de aluguel do barco estivesse mais consolidado, para que então eles pudessem optar. Às
vezes lamentava não ter guardado uma parte do dinheiro recebido pelos direitos do livro e do filme, mas também sabia que a única opção deles fora homenagear a irmã
de Graciela recusando-se a ganhar dinheiro com o que acontecera. Haviam doado metade do dinheiro para a Fundação Faça um Pedido e colocado o restante numa poupança
para Raymond. Se o menino quisesse, aquilo pagaria sua faculdade.
Graciela segurou o pulso de McCaleb e conferiu os batimentos cardíacos dele, que ficou sentado observando-a silenciosamente.
- Está acelerado - disse ela, largando o pulso dele. - Abre. Ele abriu a boca. Ela tirou o termômetro e fez a leitura do marcador. Foi até a pia, lavou o instrumento,
recolocou-o no estojo e
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guardou-o no armário. Não disse nada, e McCaleb percebeu que sua temperatura estava normal.
- Gostaria que eu estivesse com febre, não é?
- Está maluco?
- Claro que gostaria. Assim poderia me mandar parar com isso.
- Como assim, mandar você parar com isso? Ontem à noite você disse que ia ser só ontem à noite. Hoje de manhã disse que ia ser só o dia de hoje. O que está me dizendo
agora, Terry?
Ele olhou para Cielo e estendeu um dedo para a neném agarrar. Depois olhou novamente para Graciela e disse:
- Ainda não acabou. Surgiram algumas coisas hoje.
- Algumas coisas? Seja lá o que for, passe tudo para a detetive Jaye Winston. É serviço dela. Não é serviço seu.
- Não posso. Ainda não. Pelo menos até ter certeza. Graciela se virou e voltou para a bancada. Pôs o prato com os
tamales dentro do microondas e ajustou o aparelho para descongelar.
- Quer levar Cielo lá pra dentro e mudar a fralda dela? Já está na hora. E ela precisa tomar a mamadeira enquanto eu preparo o jantar.
McCaleb tirou a filha cuidadosamente da cadeira de balanço e colocou-a no ombro. Cielo se agitou ruidosamente, e ele a acalmou com uns tapinhas suaves no dorso.
Foi até Graciela, que estava de costas, enlaçou-a com o braço e puxou-a de encontro ao seu corpo. Beijou-a no alto da cabeça e manteve o rosto encostado no cabelo
dela.
- Logo tudo isso vai acabar, e nós voltaremos ao normal.
- Tomara que sim.
Graciela pôs a mão no braço dele, que lhe cruzava o corpo abaixo dos seios. O toque das pontas dos dedos dela era a aprovação que ele buscava. Mostrava que aquilo
era uma fase difícil, mas que eles estavam bem. Ele a apertou com mais força, beijou-lhe a nuca e soltou-a.
Enquanto McCaleb punha uma fralda nova naquele corpo diminuto, Cielo ficou olhando para o mobile que oscilava lentamente, pendurado sobre o trocador. Estrelas e
meias-luas de cartolina pendiam dos fios. Aquilo fora feito por Raymond e Graciela
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como presente de Natal para ela. Uma corrente de ar vinda do interior da casa fazia o objeto girar lentamente, atraindo a atenção dos olhos de Cielo, de um tom azul-escuro.
McCaleb inclinou-se e beijou a testa da menina.
Depois de embrulhá-la em dois cobertores infantis, levou-a para o pátio e deu-lhe a mamadeira, enquanto balançava suavemente na cadeira de balanço. Baixando o olhar
para o porto, percebeu que deixara ligadas as luzes dos instrumentos na ponte de comando do Mar que Segue. Sabia que podia telefonar para o encarregado do píer,
e que quem estivesse dando plantão noturno poderia simplesmente pegar um bote a motor e ir desligá-las. Mas também sabia que voltaria ao barco depois do jantar.
Ele mesmo poderia apagar as luzes.
Baixou o olhar para Cielo. Os olhos dela estavam fechados, mas ele sabia que ela estava acordada, pois sugava com força a mamadeira. Graciela
parara de amamentá-la em tempo integral quando voltou a trabalhar. Dar mamadeira era uma coisa nova, e McCaleb achava que aqueles momentos talvez fossem os mais prazerosos de sua recente
paternidade. Freqüentemente sussurrava para a filha nessas ocasiões e quase sempre prometia coisas. Prometia que sempre a amaria e estaria com ela. Dizia pra ela
nunca ter medo ou sentir-se sozinha. Às vezes, quando Cielo abria subitamente os olhos e olhava para ele, McCaleb tinha a impressão de que ela estava lhe comunicando
as mesmas coisas. E sentia uma espécie de amor que nunca conhecera antes.
- Terry.
Ele ergueu os olhos ao ouvir o murmúrio de Graciela.
- O jantar está pronto.
McCaleb examinou a mamadeira e viu que estava quase vazia.
- Estarei lá em um minuto - sussurrou.
Depois que Graciela saiu, ele baixou os olhos para a filha. O sussurro a fizera abrir os olhos, e ela ficou encarando o pai. Ele a beijou na testa e depois ficou
simplesmente olhando para ela.
- Preciso fazer isso, gatinha - murmurou.
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Fazia frio no interior do barco. McCaleb acendeu as luzes do salão e posicionou o aquecedor no centro do aposento, ajustando-o no nível baixo. Queria se aquecer
mas não demais, para não ficar com sono. Ainda estava cansado dos afazeres do dia.
Estava deitado na cabine da frente, examinando seus antigos arquivos, quando ouviu o celular começar a tocar dentro da bolsa de couro no salão. Fechou o arquivo
que estava examinando e levou-o consigo enquanto subia a escada até o salão, pegando o telefone na bolsa. Era Jaye Winston.
- E aí, como foi o negócio no Getty? Achei que ia me telefonar de volta.
- Bom... já era tarde, e eu queria chegar ao barco para fazer a travessia antes de escurecer. Esqueci de telefonar.
- Voltou para a ilha? Ela parecia desapontada.
- Voltei. Eu disse a Graciela hoje de manhã que voltaria. Mas não se preocupe, ainda estou trabalhando em algumas coisas.
- O que aconteceu no Getty?
- Não aconteceu muita coisa - mentiu ele. - Falei com algumas pessoas e vi alguns quadros.
- Viu alguma coruja que combinasse com a nossa? Ela riu ao fazer a pergunta.
- Algumas chegavam bem perto. Arranjei uns livros que quero consultar ainda hoje. Eu ia telefonar pra você e ver se podíamos nos reunir amanhã.
- Quando? De manhã eu tenho uma reunião às dez e outra às onze.
- Eu estava pensando na tarde, de qualquer maneira. Também preciso fazer uma coisa de manhã.
Não queria contar a Jaye que ia assistir às alegações iniciais do julgamento de Storey. Sabia que os trabalhos seriam transmitidos ao vivo pela TV Tribunal, que
ele podia pegar em casa com a antena parabólica.
- Bom, talvez eu consiga um helicóptero para me levar aí, mas preciso verificar com o departamento aéreo primeiro.
119
- Não, eu vou voltar.
- Vai? Ótimo! Quer vir até aqui?
- Não, eu estava pensando num lugar mais calmo e com mais privacidade.
- Por quê?
- Amanhã eu conto.
- Você está ficando misterioso comigo. Não é um truque para fazer o xerife pagar mais panquecas pra você, é?
Ambos riram.
- Não tem truque nenhum. Acha que dá pra você ir até a marina Cabrillo e me encontrar no barco?
- Estarei lá. A que horas?
Ele marcou o encontro para as três horas, pensando que isso lhe daria tempo de sobra para preparar o perfil e imaginar como poderia contar a Jaye o que sabia. Também
lhe daria tempo bastante para se preparar para o que queria que ela lhe permitisse fazer na noite seguinte.
- Algum resultado com a coruja? - perguntou ele depois de
acertar o encontro.
- Muito pouco, nada de bom. Dentro só há as marcas do fabricante. O molde plástico foi feito na China. A empresa envia os bichos para dois distribuidores aqui, um
em Ohio e outro no Tennessee. De lá as corujas provavelmente saem para toda parte. E uma chance muito remota e significa muito trabalho.
- Então vai abandonar essa pista.
- Não, eu não disse isso. Só que não é prioridade. Ficou como tarefa para o meu parceiro. Ele vai dar os telefonemas. A gente vê o que ele consegue com os distribuidores,
avalia e decide para onde ir depois.
McCaleb balançou a cabeça. Priorizar as pistas de investigação
- e até as próprias investigações - era um mal necessário. Mesmo assim, aquilo o incomodava. Ele tinha certeza que a coruja era uma chave, e seria útil saber tudo
a respeito do bicho.
- Bom, então está tudo combinado? - perguntou Jaye.
- Para amanhã? Está, tudo combinado. - Nós vemos você às três.
120
-Nós?
- Eu e Kurt. Meu parceiro. Você ainda não foi apresentado a
- Hum... Olhe, amanhã não podia ser só eu e você? Nada contra seu parceiro, mas eu gostaria de falar só com você amanhã, Jaye.
Houve um momento de silêncio antes que ela respondesse.
- Terry, o que está acontecendo com você?
- Eu só quero conversar com você sobre isso. Você me trouxe para o caso, eu quero dar o que tenho para você. Se quiser chamar o seu parceiro depois disso, tudo bem.
Houve outra pausa.
- Estou tendo um mau pressentimento com tudo isso, Terry.
- Sinto muito, mas é assim que eu quero as coisas. Acho que para você é pegar ou largar.
O ultimato fez com que Jaye ficasse em silêncio um tempo ainda maior. McCaleb ficou aguardando a resposta dela.
- Está bem, cara - disse ela por fim. - Eu confio no seu taco. Vou pegar.
- Obrigado, Jaye. A gente se vê amanhã.
Eles desligaram. McCaleb ficou olhando para o arquivo do caso antigo que trouxera e ainda tinha na mão. Colocou o telefone na mesa de café, inclinou-se no sofá e
abriu o arquivo.
Capítulo 14
O caso da Menina Perdida foi o primeiro nome atribuído à história, porque a vítima não tinha nome. Achava-se que ela tinha cerca de catorze ou quinze anos; era uma
latina - provavelmente mexicana - cujo corpo fora encontrado entre os arbustos e detritos sob um dos viadutos de Mulholland Drive. O caso fora dado a Bosch e seu
parceiro na época, Frankie Sheehan. Isso fora antes de Bosch trabalhar na seção de homicídios da Divisão Hollywood. Ele e Sheehan formavam uma equipe de Roubo-Homicídio,
e foi Bosch que contactou McCaleb no FBI. McCaleb acabara de retornar a Los Angeles, vindo de Quantico. Estava organizando um posto avançado da Unidade de Ciências
Comportamentais e do Programa de Captura de Criminosos Violentos. O caso da Menina Perdida foi um dos primeiros que lhe chegou às mãos.
Bosch o procurou, levando o arquivo e as fotos da cena do crime ao pequeno escritório que McCaleb ocupava no décimo terceiro andar do edifício federal, em Westwood.
Foi sem Sheehan, porque o parceiro se opunha a levar o caso ao FBI. Ciumeira entre agências. Mas Bosch estava pouco se importando com tudo aquilo. Importava-se apenas
com o caso. Tinha os olhos fundos. Claramente, o caso o estava perseguindo tanto quanto ele perseguia o caso.
O corpo fora encontrado nu e violentado de várias maneiras. A menina fora estrangulada pelas mãos enluvadas do assassino. Não haviam sido achadas nem roupas nem
bolsa na encosta. As
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impressões digitais não batiam com nenhum registro computadorizado. A menina não combinava com nenhuma descrição dos casos de pessoas desaparecidas ainda sob investigação
no condado de Los Angeles ou do sistema nacional computadorizado de crimes. Um desenho do rosto da vítima feito por um artista e apresentado no noticiário da televisão
e nos jornais não produzira telefonemas de qualquer ente querido. Também não haviam tido resposta os esboços enviados por fax para quinhentas delegacias de polícia
do sudoeste e para a Polícia Judiciária do México. A vítima permanecera sem identificação e o corpo não foi reclamado, ficando depositado em uma geladeira na divisão
médico-legal, enquanto Bosch e seu parceiro trabalhavam no caso.
Não fora encontrada qualquer prova física junto ao corpo. E além de ser desovada tarde da noite nos arredores de Mulholland Drive, sem as roupas ou qualquer pertence
que possibilitasse sua identificação, a vítima aparentemente fora lavada com um detergente industrial.
O exame do corpo fornecera somente uma pista. Uma impressão na pele do quadril esquerdo. A lividez post-mortem indicava que o sangue no corpo se depositara na metade
esquerda, dando a entender que a menina ficara deitada sobre o lado esquerdo no período decorrido entre a parada do coração e a hora em que o corpo fora atirado
encosta abaixo, onde caíra de bruços numa pilha de latas de cerveja e garrafas de tequila vazias. Aquela prova indicava que - durante o tempo que o sangue levara
para se acomodar - o corpo ficara deitado em cima do objeto que deixara aquela impressão no quadril.
A impressão era composta pelo número 1, pela letra J e por parte de uma terceira letra que podia ser a parte superior esquerda de um H, K ou L. Era parte da placa
de um carro.
Bosch achava que quem matara a menina sem nome escondera o corpo na mala de um carro até a hora de se livrar dele. Depois de limpar cuidadosamente o corpo, o assassino
o pusera na mala do carro, depositando-o por engano sobre parte de uma placa que fora retirada do veículo e também colocada na mala. A teoria de Bosch era que a
placa fora removida e possivelmente substituída por uma placa roubada, como mais uma medida de segurança que ajudaria o
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assassino a não ser apanhado caso seu carro fosse visto por um passante desconfiado no viaduto de Mulholland Drive.
Embora a impressão na pele não indicasse em que estado o veículo fora emplacado, Bosch seguira as porcentagens. Do Departamento de Veículos Automotores estadual
obtivera a relação de todos os carros registrados no condado de Los Angeles com placas que começassem por 1JH, 1JK e 1JL. A relação tinha três mil nomes de proprietários.
Ele e o parceiro haviam cortado quarenta por cento deles, descartando as mulheres. Os nomes restantes haviam sido colocados um a um no computador do índice Criminal
Nacional, e os detetives haviam chegado a uma lista de quarenta e seis homens com antecedentes criminais, que iam dos menores aos mais extremados.
Fora a essa altura que Bosch procurara McCaleb. Queria um perfil do assassino, para saber se ele e Sheehan estavam na pista certa ao suspeitarem que o sujeito tinha
um passado criminoso. E também queria saber como abordar e avaliar os quarenta e seis homens que constavam da lista.
McCaleb estudou o caso por quase uma semana. Examinava as fotos da cena do crime duas vezes por dia - logo de manhã cedo e antes de ir dormir - e estudava com freqüência
o dossiê. Por fim disse a Bosch que acreditava que os dois detetives estavam na pista certa. Usando os dados acumulados de centenas de crimes semelhantes, analisados
pelo Programa de Captura de Criminosos Violentos, ele conseguira fornecer o perfil de um homem à beira dos trinta anos, com um passado de crimes de gravidade crescente
e que provavelmente incluíam agressões de natureza sexual. A cena do crime sugeria o trabalho de um exibicionista - um assassino que queria ver seu crime tornado
público, instilando horror e medo na população em geral. Portanto, o local de desova do corpo teria sido escolhido por esses motivos, não por razões de conveniência.
Comparando o perfil com a lista de quarenta e seis nomes, Bosch estreitou o foco das possibilidades sobre dois suspeitos: o encarregado de um prédio de escritórios
em Woodland Hills, fichado anteriormente por incêndio criminoso e atentado ao pudor, e um cenotécnico que trabalhava num estúdio em Burbank, e que já
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fora preso por tentar estuprar uma vizinha quando era adolescente. Ambos tinham quase trinta anos.
Bosch e Sheehan preferiam o encarregado, devido ao acesso que ele tinha a detergentes industriais como o usado para lavar o corpo da vítima. Entretanto McCaleb preferia
o cenotécnico como suspeito, pois aquela tentativa de estupro na juventude indicava uma ação impulsiva, mais de acordo com o perfil do responsável pelo crime atual.
Os detetives decidiram entrevistar informalmente os dois homens, e convidaram McCaleb a ir junto. O agente do FBI enfatizou que os homens deveriam ser entrevistados
em casa, para que ele pudesse estudá-los no ambiente em que viviam e procurar pistas entre os pertences deles.
O cenotécnico foi o primeiro. Chamava-se Victor Seguin. Pareceu ficar em total estado de choque ao vê-los na porta e ouvir a explicação que Bosch deu para a visita.
Não obstante, convidou os três a entrar. Enquanto Bosch e Sheehan faziam perguntas calmamente, McCaleb sentou-se no sofá estudando o mobiliário limpo e arrumado
do apartamento. Em cinco minutos percebeu que aquele era o homem certo e meneou a cabeça para Bosch num sinal já combinado.
Victor Seguin foi informado de seus direitos e preso, sendo colocado no carro dos detetives. Sua casinhola, sob a zona de aterrissagem de aviões do aeroporto de
Burbank, fora lacrada até a expedição de um mandado de busca. Duas horas mais tarde, quando o mandado chegara, eles encontraram uma garota de dezesseis anos amarrada
e amordaçada, mas viva, num buraco à prova de som e parecido com um caixão construído pelo cenotécnico sob um alçapão oculto pela cama.
Foi só depois de passada a excitação - e quando o nível de adrenalina por terem solucionado o caso e salvado uma vida já começava a baixar - que Bosch finalmente
perguntou a McCaleb como ele percebera que aquele era o homem certo. McCaleb foi com o detetive até a estante da sala, onde apontou para uma cópia bastante gasta
de um livro chamado O colecionador. Era um romance sobre um homem que seqüestra diversas mulheres.
Seguin foi indiciado pelo assassinato da menina não identificada,
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além do seqüestro e do estupro da jovem que os investigadores tinham salvado. Negou qualquer culpa pelo assassinato e tentou obter um acordo, segundo o qual
ele confessaria apenas o seqüestro e o estupro da sobrevivente. A promotoria recusou qualquer acordo e levou-o a julgamento com o que tinha - o testemunho da sobrevivente,
algo de cortar o coração, e a impressão da placa do carro no quadril da menina morta.
O júri considerou o réu culpado de todas as acusações depois de menos de quatro horas de deliberação. A promotoria então sugeriu um possível acordo com Seguin, prometendo
não pedir a pena de morte durante a segunda fase do julgamento, caso o assassino concordasse em dizer aos investigadores quem era sua primeira vítima e onde ele
a seqüestrara. Para conseguir o acordo Seguin teria que abandonar sua postura de inocência. Ele recusou. A promotoria pediu a pena de morte e foi vitoriosa. Bosch
não chegou a descobrir quem era a menina morta, e McCaleb sabia que ele ficara perturbado com o fato de aparentemente ninguém se importar a ponto de vir reclamar
o corpo.
Ele próprio também ficara perturbado com aquilo. No dia em que compareceu ao tribunal para testemunhar, já na fase da sentença, almoçou com Bosch e notou que havia
um nome escrito nos dossiês do caso.
- O que é isso? - perguntou McCaleb, excitado. - Conseguiu identificar a menina?
Bosch baixou o olhar, viu o nome nas etiquetas e virou os dossiês de cabeça para baixo.
- Não, ainda não temos identificação.
- Bom, então o que é isso?
- Só um nome. Acabei dando um nome a ela.
Bosch parecia constrangido. McCaleb estendeu a mão e virou os dossiês para cima a fim de ler o nome escrito ali.
- Cielo Azul?
- É, ela era hispânica, eu lhe dei um nome hispânico.
- Significa céu azul, não é?
- É, céu azul. Eu... hum... McCaleb ficou esperando. Nada.
- O quê?
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- Bom... eu não sou tão religioso assim, entende? -Sei.
- Mas pensei que se ninguém aqui embaixo queria reclamar a menina, então quem sabe... talvez haja alguém lá em cima que faça isso - disse Bosch, dando de ombros
e desviando o olhar.
McCaleb viu as maçãs do rosto dele se ruborizarem.
- E difícil encontrar a mão de Deus no que nós fazemos. No que nós vemos.
Bosch simplesmente balançou a cabeça, e eles não voltaram a falar do nome.
McCaleb levantou a última página do dossiê com o nome de Cielo Azul e olhou para a orelha traseira da pasta de cartolina marrom. No FBI ele se habituara a fazer
anotações na orelha traseira, onde elas não poderiam ser vistas tão facilmente devido às páginas anexadas. Eram anotações que fazia sobre os investigadores que pediam
perfis para os casos. McCaleb percebera que os insights sobre o investigador às vezes eram tão importantes quanto as informações contidas no dossiê do caso. Pois
era através dos olhos do investigador que ele era apresentado a muitos dos aspectos do crime.
Aquele caso com Bosch surgira havia mais de dez anos, antes que ele começasse a elaborar os perfis dos investigadores junto com os dos casos. No dossiê ele escrevera
apenas o nome de Bosch e quatro palavras embaixo.
Meticuloso - Inteligente - H. M. - A. V.
McCaleb olhou para as duas últimas anotações. Fora parte de sua rotina usar abreviações e estenografia quando estava anotando coisas que precisavam ser mantidas
em sigilo. As duas últimas anotações indicavam sua interpretação do que motivava Bosch. McCaleb concluíra que os investigadores de homicídios, uma estirpe diferente
de policiais, recorriam a profundas emoções e motivações interiores a fim de aceitar e levar a cabo a sempre difícil tarefa de seu cargo. Geralmente eles se dividiam
em dois tipos: os que encaravam sua função como uma habilidade ou um ofício, e os que a viam como uma missão na vida. Dez anos antes, McCaleb pusera Bosch na segunda
classe. Ele era um homem com uma missão.
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Essa motivação dos detetives podia ainda ser subdividida quanto ao que lhes dava esse sentimento de propósito ou missão. Para alguns, o cargo era visto quase como
um jogo; tinham alguma carência interior que os obrigava a provar que eram melhores, mais inteligentes e mais ardilosos que suas presas. Só conseguiam validar suas
vidas quando na realidade invalidavam os assassinos que procuravam, colocando-os atrás das grades. Outros, embora tivessem certo grau da mesma carência interior,
também se viam com a dimensão adicional de serem porta-vozes dos mortos. Havia um elo sagrado entre vítima e policial, que se formava na cena do crime e não podia
ser rompido. Era isso que, em última análise, impelia-os à caça e permitia-lhes superar todos os obstáculos no caminho. McCaleb classificava esses policiais como
anjos vingadores. A experiência lhe mostrara que esses policiais/anjos eram os melhores investigadores de todos. E também fizera com que ele concluísse que eram
eles que se equilibravam mais perto daquela borda invisível abaixo da qual jaz o abismo.
Dez anos antes, ele classificara Harry Bosch como um anjo vingador. Agora tinha que julgar se o detetive se aproximara demais da borda do precipício. Tinha que pensar
que talvez Bosch a tivesse ultrapassado.
Fechou o dossiê e tirou os dois livros de arte da bolsa. Ambos intitulavam-se, simplesmente, Bosch. O maior, com reproduções multicoloridas das pinturas, era de
autoria de R. H. Marijnissen e P. Ruyffelaere. O segundo livro, que parecia conter mais análises dos quadros que o primeiro, fora escrito por Erik Larsen.
McCaleb começou pelo livro menor e foi examinando rapidamente as páginas de análise. Logo descobriu que, como dissera Penelope Fitzgerald, havia muitas opiniões
- às vezes até conflitantes - sobre Hieronymus Bosch. O livro de Larsen citava estudiosos que chamavam Bosch de humanista, e até outro que afirmava que o pintor
fazia parte de um grupo herético que acreditava que a terra era, literalmente, um inferno governado por Satã. Os estudiosos divergiam sobre os significados inerentes
a algumas das pinturas. Discutiam se algumas delas podiam realmente ser atribuídas a Bosch, e se o pintor alguma vez viajara até a Itália, tomando assim conhecimento
das obras de seus contemporâneos renascentistas.
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McCaleb finalmente fechou o livro quando percebeu que - pelo menos para o seu objetivo - as palavras sobre Hieronymus Bosch talvez não fossem importantes. Se a obra
do pintor era sujeita a múltiplas interpretações, então a única interpretação que importava era a da pessoa que matara Edward Gunn. O que importava era o que aquela
pessoa vira e tirara das pinturas de Hieronymus Bosch.
Ele abriu o livro maior e começou a estudar vagarosamente as reproduções. O exame que fizera das reproduções das pinturas no museu Getty fora apressado e prejudicado
pela falta de privacidade. McCaleb pôs o caderno no braço do sofá a fim de registrar o número de corujas que visse nos quadros, bem como as descrições das aves.
Logo percebeu que os detalhes dos quadros ficavam tão minúsculos naquelas reproduções em escala menor que ele talvez estivesse perdendo coisas importantes. Desceu
até a cabine dianteira para achar uma lente de aumento que sempre mantinha na sua mesa no FBI e que usava para examinar fotos das cenas dos crimes. Ao se curvar
sobre uma caixa cheia de material de escritório que trouxera de sua mesa no FBI, cinco anos antes, sentiu um pequeno baque contra o barco e ergueu o corpo. Amarrara
o Zodiac inflável na popa, de modo que aquilo não podia ter sido causado pelo bote. Estava pensando no que seria, quando sentiu o inconfundível movimento para cima
e para baixo do barco que indicava que alguém subira a bordo. Sua mente se concentrou na porta do salão. Tinha certeza que a deixara destrancada.
Baixou o olhar para a caixa onde estivera remexendo pouco antes e pegou a espátula de abrir cartas.
Subindo a escada e entrando na cozinha, McCaleb examinou o salão. Não havia ninguém ali e nada fora mexido. Era difícil enxergar além do reflexo interior da porta
corrediça, mas no convés ali fora, silhuetado contra as luzes da rua Crescent, havia um homem. O sujeito estava parado de costas para o salão, como admirando as
luzes da cidade que subiam pela colina.
McCaleb avançou rapidamente e abriu a porta corrediça. Tinha a espátula ao lado do corpo, mas com a ponta virada para cima. O sujeito parado no convés se voltou.
McCaleb baixou a arma, enquanto o sujeito arregalava os olhos para a lâmina.
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- Desculpe, eu...
- Tudo bem, Charlie... é que eu não sabia quem era. Charlie era o plantonista noturno da administração do porto.
McCaleb não sabia o sobrenome dele. Mas sabia que freqüentemente Charlie visitava Buddy nas noites em que ele dormia no barco. Provavelmente Buddy gostava de tomar
umas cervejas com ele de vez em quando, nas noites mais compridas. Fora por isso, provavelmente, que Charlie remara do píer até ali.
- Eu vi as luzes e pensei que talvez Buddy estivesse aqui - disse ele. - Só queria fazer uma visita.
- Não, Buddy está na cidade hoje. Provavelmente só vai voltar na sexta-feira.
- Bom, então já vou indo. Está tudo bem? Ou veio dormir no barco por causa da patroa?
-Não, Charlie, está tudo bem. Só estou trabalhando um pouco. Levantou a espátula como se aquilo explicasse o que ele estava fazendo.
- Está bem, então. Vou voltar.
- Boa noite, Charlie. Obrigado por vir conferir.
McCaleb entrou novamente e desceu até o escritório. Encontrou a lente, que dispunha de uma pequena lanterna, no fundo da caixa de material.
Passou as duas horas seguintes examinando as pinturas. Viu-se novamente fascinado por aquelas paisagens sobrenaturais de demônios fantasmagóricos rodeando as presas
humanas. Conforme estudava cada obra, assinalava descobertas específicas como as corujas com pequenos pedaços de papel amarelo gomado, a fim de poder reencontrá-las
facilmente.
Listou dezesseis representações diretas de corujas nas obras, e mais uma dúzia de criaturas ou estruturas semelhantes a corujas. As aves eram sempre pintadas de
cores escuras, e espreitavam em todos os quadros, como sentinelas do juízo final e da destruição. McCaleb olhava para elas, sem conseguir deixar de pensar na analogia
da coruja com o detetive. Tanto uma quanto outro eram criaturas da noite, ambas vigiando e caçando - observadores em primeira mão do mal e da dor que seres humanos
e animais se infligem
uns aos outros.
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A descoberta individual mais significativa que McCaleb fez durante o exame dos quadros não foi uma coruja, e sim uma forma humana. Ele descobriu isso ao examinar,
com a lente luminosa, o painel central de um quadro denominado O Juízo Final. Diante do forno do inferno em que eram lançados os pecadores, havia diversas vítimas
amarradas à espera de serem desmembradas e queimadas. Nesse agrupamento, McCaleb encontrou a imagem de um homem nu, com os braços e as pernas amarrados atrás das
costas. As extremidades do pecador haviam sido esticadas, numa dolorosa posição fetal invertida. A imagem refletia fielmente o que ele vira no foco principal da
fita de vídeo e das fotografias do assassinato de Edward Gunn.
McCaleb marcou a descoberta com um pedaço de papel gomado e fechou o livro. Quando, no mesmo instante, o telefone celular tocou sobre o sofá ao seu lado, ele saltou
de pé, assustado. Deu uma olhada no relógio antes de atender e viu que era exatamente meia-noite.
Era Graciela ao telefone.
- Achei que você fosse voltar hoje à noite.
- Vou voltar. Terminei agora e já estou a caminho.
- Desceu com o carrinho, não foi?
- Foi. Não vou ter problema para voltar.
- Tá legal, até logo.
- Até logo.
McCaleb decidiu deixar tudo no barco, pensando que precisava arejar a cabeça antes do dia seguinte. Se levasse os dossiês e os pesados livros, ele só reforçaria
os pensamentos sombrios que já carregava por dentro. Trancou o barco e levou o Zodiac até o embarcadouro. No fim do píer, entrou no carrinho de golfe. Saiu dirigindo
pelo deserto distrito comercial e subiu a colina de volta para casa. Apesar dos esforços para afastá-los, seus pensamentos continuavam ligados ao abismo. Um lugar
onde criaturas com bicos, garras e facas afiadas atormentavam perpetuamente os decaídos. Àquela altura, ele já tinha certeza de pelo menos uma coisa: o pintor Bosch
teria dado um bom elaborador de perfis. Dominava o assunto. Conhecia os pesadelos que chacoalham nas mentes da maioria das pessoas. Bem como os pensamentos que às
vezes escapam.
Capítulo 15
As alegações preliminares no julgamento de David Storey foram atrasadas para que os advogados discutissem as moções finais com o juiz a portas fechadas. Bosch ficou
sentado à mesa da promotoria, esperando. Tentava tirar da cabeça todas as idéias estranhas ao caso, inclusive sua infrutífera busca por Annabelle Crowe, na noite
da véspera.
Às dez e quarenta e cinco os advogados finalmente entraram no tribunal e foram para suas respectivas mesas. Depois o réu - usando um terno que parecia cobrir o valor
dos contracheques de três agentes policiais - foi trazido da cela de detenção para o recinto, e por fim o juiz Houghton tomou lugar na bancada.
Chegara a hora de começar, e Bosch sentiu a tensão na sala aumentar consideravelmente. Los Angeles alçara - ou rebaixara o julgamento criminal ao nível de entretenimento
mundial, mas os participantes jamais encaravam a coisa assim. Estavam jogando para valer, e naquele julgamento - talvez até mais do que na maioria - havia uma sensação
palpável de hostilidade entre os dois campos oponentes.
O juiz deu ordem ao agente do gabinete do xerife, que estava ali na condição de oficial de justiça, para fazer entrar o júri. Bosch levantou-se junto com todos,
virando-se para observar os jurados entrarem silenciosamente em fila indiana e tomarem seus lugares.
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Pensou ter visto uma certa excitação em alguns dos rostos. Aqueles homens e mulheres vinham aguardando havia duas semanas durante a seleção do júri e as moções iniciais
das partes - para as coisas começarem. Os olhos de Bosch se elevaram na direção de duas câmeras montadas na parede acima do recinto do júri. Elas cobriam inteiramente
o tribunal, com exceção do recinto do júri. Depois que todos se sentaram, Houghton pigarreou e inclinou-se para o microfone instalado em sua mesa, olhando para os
jurados. - Senhoras e senhores, como estão passando? Houve um murmúrio geral, e Houghton balançou a cabeça.
- Peço desculpas pelo atraso. Por favor, lembrem-se que o sistema judiciário é em essência dirigido por advogados. Assim sendo, funciona devaaagaaaar.
Ouviu-se um riso educado no tribunal. Bosch notou que os advogados - tanto da acusação quanto da defesa - juntaram-se às risadas conscienciosamente, com alguns exagerando
a coisa. A experiência já lhe mostrara ser impossível um juiz soltar uma piada num tribunal em sessão aberta sem que os advogados rissem.
Ele lançou o olhar para a esquerda além da mesa da defesa e viu que o outro recinto do júri estava repleto de gente da mídia. Reconheceu muitos dos repórteres de
noticiários televisivos e de coletivas de imprensa do passado.
Percorreu com os olhos o restante do tribunal e viu que os bancos destinados ao público estavam lotados, com exceção da fileira diretamente atrás da mesa da defesa.
Ali estavam sentadas diversas pessoas com amplo espaço de cada lado. Pareciam ter passado a manhã inteira num trailer de maquiagem. Bosch supôs que fossem celebridades
de algum tipo, mas não tinha intimidade com aquele campo e não conseguiu identificar nenhuma delas. Pensou em inclinar-se para Janis Langwiser e perguntar a ela,
mas achou melhor não fazer isso.
- Tivemos que esclarecer alguns detalhes de última hora na minha sala - continuou o juiz para os jurados. - Mas já estamos prontos para iniciar. Começaremos com
as alegações preliminares, e preciso alertar o júri que não se trata de afirmações de fatos, e sim afirmações sobre o que cada parte acha que são os fatos, e que
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tentarão provar durante o julgamento. Essas afirmações não devem ser consideradas como contendo provas. Isso só acontecerá mais tarde. Portanto, ouçam atentamente,
mas mantenham a mente aberta, pois muita coisa ainda virá por aí. Agora vamos começar com a acusação e, como sempre, dar ao réu a última palavra. A promotoria pode
começar.
O promotor principal se levantou e avançou para a tribuna que ficava entre as mesas das partes. Meneou a cabeça para o júri e se identificou como Roger Kretzler,
promotor encarregado da seção de crimes especiais. Era um advogado alto e magro, com uma barba avermelhada, cabelo escuro cortado curto e óculos sem aros. Tinha
uns quarenta e cinco anos. Bosch não o achava particularmente simpático, mas ele era muito eficiente na função. E o fato de continuar nas trincheiras acusando réus
- enquanto outros da mesma idade já haviam partido para os mundos mais bem remunerados da advocacia de defesa empresarial ou criminal - tornava-o ainda mais admirável.
Bosch suspeitava que ele não tinha vida familiar. Nas noites anteriores ao julgamento, em que haviam surgido algumas dúvidas sobre a investigação e Bosch fora convocado
pelo bip, o número para ligar de volta fora sempre o do escritório de Kretzler - qualquer que fosse o horário.
Kretzler identificou sua colega de acusação como Janis Langwiser, também da unidade de crimes especiais, e o investigador principal como o detetive de terceiro grau
Harry Bosch, do Departamento de Polícia de Los Angeles.
- Vou ser breve e simples na minha exposição, para que possamos ir aos fatos o mais cedo possível, conforme o juiz Houghton corretamente lembrou. Senhoras e senhores,
o caso que ouvirão neste tribunal certamente tem os ornamentos da celebridade. Tudo demonstra se tratar de um grande evento. Sim, o réu, David N. Storey, é um homem
de poder e posição na nossa comunidade, nesta época movida a fama em que vivemos. Contudo, se afastarmos dos fatos os ornamentos do poder e da purpurina, como prometo
que faremos nos próximos dias, o que temos aqui é algo tão básico quanto por demais comum na nossa sociedade. Um simples caso de assassinato.
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Kretzler fez uma pausa dramática. Bosch examinou os jurados. Todos os olhos estavam fixos no promotor.
- O homem que vêem sentado na mesa da defesa, David N. Storey, saiu com uma mulher de vinte e três anos chamada Jody Krementz na noite de 12 de outubro passado.
Depois de uma noitada que incluiu a estréia de seu filme mais recente e uma recepção, ele a levou para sua casa em Hollywood Hills, onde os dois fizeram sexo por
consenso. Não creio que a defesa argumente contra quaisquer desses fatos. Nós não estamos aqui por causa disso. O que nos traz aqui hoje é o que aconteceu durante
e depois do ato sexual. Na manhã de 13 de outubro, o corpo de Jody Krementz foi encontrado estrangulado em sua própria cama, no pequeno apartamento que ela dividia
com outra atriz.
Kretzler virou uma página do bloco à sua frente na tribuna, embora parecesse claro para Bosch - e provavelmente para todos os demais - que sua exposição fora memorizada
e ensaiada.
- No decurso deste julgamento, o estado da Califórnia provará, além de qualquer dúvida razoável, que foi David Storey quem tirou a vida de Jody Krementz, num momento
de fúria sexual brutal. Depois ele levou o corpo, ou fez com que este fosse levado, de sua casa para a casa da vítima. Dispôs o corpo de tal maneira que a morte
pudesse parecer acidental. E a seguir tentou utilizar seu poder e posição para frustrar a investigação do crime pelo Departamento de Polícia de Los Angeles. David
Storey, que como todos verão tem um histórico de comportamento violento contra mulheres, estava tão certo de escapar impune desse crime que, num momento de...
Kretzler escolheu esse instante para dar as costas à tribuna e lançar um olhar desdenhoso para o réu sentado. Storey ficou olhando fixamente para a frente, sem piscar,
e o promotor finalmente voltou-se novamente para o júri.
- ... candura, digamos, chegou a se gabar diante do investigador principal do caso, detetive Bosch, de que faria justamente isso, sair impune do crime.
Kretzler pigarreou, indicando que estava pronto para dar a estocada final.
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- Nós estamos aqui, senhoras e senhores do júri, a fim de buscar justiça para Jody Krementz. Para garantir que o assassino não saia impune de seu crime. O estado
da Califórnia pede, e eu pessoalmente peço, que ouçam cuidadosamente a apresentação das provas durante o julgamento, considerando-as judiciosamente. Se fizerem isso,
temos certeza que a justiça será feita. Para Jody Krementz. Para todos nós.
Ele pegou o bloco e se virou a fim de voltar para o seu lugar. Mas aí parou, como se algo houvesse acabado de lhe ocorrer. Bosch percebeu naquilo uma jogada bem-ensaiada
e achou que o júri encararia a coisa da mesma forma.
- Acabo de pensar numa coisa que todos sabem. A cidade de Los Angeles vem assistindo ao seu departamento de polícia ser colocado no banco dos réus em todos os casos
espetaculares mais recentes. "Se a mensagem não agrada, fuzile-se o mensageiro", diz sempre a defesa, que adora tirar esse truque da cartola. Quero que todos prometam
a si próprios ficar atentos e manter os olhos no prêmio, sendo esse prêmio a verdade e a justiça. Não se deixem enganar. Não se deixem levar na direção errada. Confiem
em si mesmos quanto à verdade e encontrarão o caminho.
Ele foi para o seu lugar e se sentou. Bosch viu Janis estender a mão e apertar o antebraço de Kretzler, num gesto de congratulações. Aquilo também fazia parte de
uma jogada bem-ensaiada.
O juiz disse então aos jurados que - em virtude da brevidade da peroração da promotoria - o julgamento passaria sem interrupção à fala da defesa. Mas a interrupção
veio logo em seguida, quando Fowkkes levantou-se, foi até a tribuna e gastou ainda menos tempo do que Kretzler dirigindo-se aos jurados.
- Todo mundo conhece, senhoras e senhores, essa conversa fiada de fuzilar o mensageiro ou não fuzilar o mensageiro. Quero falar um pouco sobre essa história. Aquelas
lindas palavras que ouvimos do promotor no final... Bom, quero avisar que todo promotor neste prédio diz a mesma coisa no início de todo julgamento nesta sala. Ao
que parece, eles devem ter essas palavras impressas em cartões dentro das pastas.
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Kretzler levantou-se e protestou contra o que chamou de um "enorme exagero". Houghton advertiu Fowkkes, mas depois aconselhou o promotor a fazer melhor uso de seus
protestos. Fowkkes aproveitou a brecha.
- Se me excedi, peço desculpas. Sei que essa é uma questão espinhosa para os promotores e para a polícia. Mas só estou dizendo, gente, que onde há fumaça geralmente
há fogo. E no decurso deste julgamento vamos tentar encontrar a saída no meio da fumaça. Podemos ou não encontrar fogo, mas tenho certeza que chegaremos à conclusão
de que este homem...
Ele se virou e apontou com força na direção de seu cliente. - ... este homem, David N. Storey, é, sem sombra de dúvida, inocente do crime do qual está sendo acusado.
Sim, ele é um homem de poder e posição, mas lembrem-se que isso não é crime. Sim, ele conhece algumas celebridades, mas da última vez que examinei a revista Peopk
isso também ainda não era crime. Acho até que alguém pode se sentir agredido por certos elementos da vida pessoal e dos apetites de David Storey. Sei que me sinto.
Mas lembrem-se que isso não constitui o crime do qual ele está sendo acusado nos autos. O crime aqui é assassinato. Nada mais e nada menos. E um crime do qual David
Storey NÃO é culpado. E pouco importa o que o doutor Kretzler, a doutora Langwiser, o detetive Bosch e suas testemunhas lhes digam, não há absolutamente a menor
prova de culpa neste caso.
Depois que Fowkkes fez uma reverência para o júri e se sentou, o juiz Houghton anunciou que o julgamento seria suspenso para que todos pudessem almoçar cedo, antes
que as testemunhas começassem a depor à tarde.
Bosch ficou vendo os jurados saírem enfileirados pela porta ao lado do recinto do júri. Alguns lançaram o olhar por cima do ombro para o tribunal. A última da fila,
uma negra de cerca de cinqüenta anos, olhou diretamente para Bosch. Ele baixou os olhos, mas arrependeu-se imediatamente de ter feito isso. Quando ergueu o olhar
de novo, ela já desaparecera.
Capítulo 16
McCaleb desligou a televisão quando o julgamento foi suspenso para o almoço. Não queria ouvir as análises dos comentaristas. Achava que a defesa se saíra melhor.
Fowkkes fizera uma jogada sutil, dizendo ao júri que também se sentia agredido pela vida pessoal e pelos hábitos de seu cliente. Estava lhes dizendo que se ele,
Fowkkes, conseguia suportá-los, eles também conseguiriam. Estava lembrando a eles que o caso era sobre uma vida que fora tirada, não sobre como alguém vivia a sua
própria vida.
Ele voltou a se preparar para reunião à tarde com Jaye Winston. Retornara ao barco depois do café da manhã, juntando os dossiês e livros. Com uma tesoura e fita
gomada, estava montando uma apresentação com a qual esperava não apenas impressionar Jaye, mas convencê-la de algo que ele próprio estava achando difícil acreditar.
De certo modo, a montagem e a apresentação era um ensaio geral para a argumentação do caso. Por esse ângulo, McCaleb achou bastante útil o tempo gasto trabalhando
no que ele mostraria e diria a Jaye. Permitia-lhe ver os furos na lógica e preparar respostas para as perguntas que ele sabia que Jaye faria.
Enquanto pensava sobre o que exatamente diria a ela, Jaye ligou pelo telefone celular.
- Podemos ter uma pista na coruja. Mas pode ser que não.
-O que é?
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- O distribuidor lá de Middleton, Ohio, acha que sabe de onde ela veio. Um lugar bem aqui em Carson, chamado Afasta Aves.
- Por que ele acha isso?
- Porque Kurt enviou por fax fotos da nossa ave, e o sujeito com quem ele estava lidando em Ohio percebeu que o fundo do molde estava aberto.
- E. E o que significa isso?
- Bom, aparentemente as corujas são despachadas com a base incluída, a fim de serem enchidas com areia para que a ave fique de pé no vento, na chuva, e em tudo mais.
- Entendi.
- Bom, eles só têm um subdistribuidor que encomenda as corujas sem a base: a Afasta Aves, que encomenda a coisa assim porque fixa as corujas em cima de uma engenhoca
que guincha.
- Guincha!
- Você sabe, feito uma coruja de verdade. Acho que isso ajuda a afugentar os pássaros. Sabe qual é o slogan da Afasta Aves? "A número um quando as aves querem fazer
o número dois." Bonito, não? E assim que eles atendem o telefone lá.
A cabeça de McCaleb estava girando rápido demais para registrar qualquer piada, e ele não riu.
- Esse lugar é em Carson?
- E, não muito longe da sua marina. Preciso ir a uma reunião agora, mas vou dar um pulo lá antes de me encontrar com você. Prefere encontrar comigo lá? Pode chegar
lá a tempo?
- Seria bom. Estarei lá.
Ela deu o endereço, que ficava a cerca de quinze minutos da marina Cabrillo, e os dois acertaram se encontrar lá às duas. Jaye disse que o presidente da empresa,
um homem chamado Cameron Riddell, concordara em recebê-los.
- Vai levar a coruja? - perguntou McCaleb.
- O que acha, Terry? Sou detetive há doze anos. E tenho cérebro há mais tempo do que isso.
- Desculpe.
- Vejo você às duas.
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Depois de desligar o telefone, McCaleb tirou do freezer um tamale que sobrara, cozinhou-o no microondas, embrulhou-o em papel-alumínio e colocou-o na bolsa de couro
para comê-lo durante a travessia da baía. Deu uma olhada na filha, que estava na sala dormindo nos braços da Sra. Perez, a babá que dava meio-expediente ali. Tocou
a bochecha do bebê e saiu.
A Afasta Aves ficava numa vizinhança de galpões comerciais modernos que se alinhavam no lado leste da auto-estrada 405, logo abaixo do campo de aviação onde o dirigível
da Goodyear atracava. O dirigível estava ali, e McCaleb viu as amarras que o prendiam, tensionadas pelo vento da tarde que vinha do mar. Ao parar no estacionamento
da Afasta Aves, ele notou um LTD com aros de rodas comerciais. Sabia que aquele só podia ser o carro de Jaye Winston. Tinha razão. Quando passou pela porta de vidro,
viu-a sentada numa pequena sala de espera. No chão perto da cadeira havia uma maleta e uma caixa de papelão lacrada com uma fita vermelha, onde se lia PROVA. Ela
levantou-se imediatamente e foi até o guichê de recepção, atrás do qual via-se um rapaz sentado com um arco telefônico no ouvido.
- Pode dizer a Riddell que nós dois já estamos aqui?
O rapaz, que aparentemente estava atendendo a uma chamada, balançou afirmativamente a cabeça para ela.
Poucos minutos depois eles foram levados até a sala de Cameron Riddell. McCaleb carregava a caixa. Jaye fez as apresentações, chamando McCaleb de colega. Era verdade,
mas também escondia a falta de distintivo por parte dele.
Riddell era um homem simpático, de trinta e poucos anos, que parecia ansioso por ajudar na investigação. Jaye calçou um par de luvas de látex tiradas da maleta e
correu uma chave ao longo da fita vermelha, abrindo a caixa. Retirou a coruja e colocou-a na mesa de Riddell.
- O que pode nos dizer sobre isso, Sr. Riddell?
Riddell permaneceu de pé atrás da mesa, inclinando-se para examinar a coruja.
- Não posso tocar nela?
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- Por que não calça isto, então?
Jaye abriu a maleta e entregou-lhe outro par de luvas tiradas do invólucro de cartolina. McCaleb ficou olhando, pois decidira que só interviria se Jaye pedisse ou
cometesse uma omissão óbvia durante a entrevista. Riddell atrapalhou-se com as luvas,
calçando-as devagar.
- Desculpe - disse Jaye. - São de tamanho médio. O senhor parece ser tamanho grande.
Calçadas as luvas, Riddell pegou a coruja com ambas as mãos e examinou a parte inferior da base. Olhou para o interior do molde de plástico e depois segurou a ave
diretamente à sua frente, parecendo estudar os olhos pintados. Depois colocou-a no canto da mesa e voltou para a cadeira. Sentou-se e apertou um botão no intercomunicador.
- Monique, é Cameron. Será que você pode ir lá atrás, tirar da linha de montagem uma daquelas corujas que guincham e trazer o bicho até aqui? Preciso dela agora.
-Já estou indo.
Riddell tirou as luvas e flexionou os dedos. Depois olhou para Jaye, intuindo que ela era a pessoa importante. Fez um gesto na direção da coruja.
- É uma das nossas corujas, mas foi... não sei qual seria a palavra a usar. Ela foi alterada, modificada. Nós não vendemos as aves dessa forma.
-Como assim?
- Bom, Monique está pegando uma para que vocês possam ver, mas essencialmente esta aqui foi repintada um pouco, e o mecanismo que guincha foi retirado. Além disso,
temos uma etiqueta de fabricação que prendemos aqui na base, e a desta coruja desapareceu.
Apontou para a traseira da base.
- Vamos começar pela pintura - disse Jaye. - O que foi feito?
Antes que Riddell pudesse responder, ouviu-se uma única batida na porta e uma mulher entrou. Carregava outra coruja embrulhada em plástico. Riddell mandou-a colocar
o objeto na mesa e retirar o plástico. McCaleb notou que ela fez uma careta quando
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viu os olhos negros pintados da coruja que Jaye trouxera. Riddell agradeceu à mulher e ela saiu da sala.
McCaleb examinou as corujas colocadas lado a lado. A coruja do caso fora pintada em tom mais escuro. A coruja da Afasta Aves tinha cinco cores nas penas, inclusive
branco e azul-claro, bem como olhos plásticos com as pupilas orladas em tom âmbar brilhante. Além disso, a nova coruja estava aboletada em cima de uma base de plástico
preto.
- Como podem ver, a coruja de vocês foi repintada - disse Riddell. - Principalmente os olhos. Quando eles são repintados, perde-se muito do efeito. Chamam-se olhos
de reflexo laminado. A camada de laminado no plástico capta a luz e dá aos olhos uma aparência de movimento.
- E os pássaros pensam que a coruja é de verdade.
- Exatamente. Você perde isso quando pinta os olhos dessa maneira.
- Achamos que a pessoa que pintou não estava preocupada com pássaros. O que mais é diferente?
Riddell simplesmente abanou a cabeça.
- Só que a plumagem foi bastante escurecida. Dá pra ver.
- É. Mas você disse que o mecanismo foi retirado. Que mecanismo?
- Nossa firma compra isso em Ohio, pinta a coruja e coloca nela um de dois mecanismos. O que estão vendo aqui é o nosso
modelo básico.
Riddell levantou a coruja e mostrou a eles a parte de baixo. A base de plástico preto girou sobre um eixo quando ele mexeu nela, soltando um guincho forte
- Ouviram o guincho?
- Ouvimos, já chega.
- Desculpe. Mas, como vêem, a coruja está fixada nessa base e reage ao vento. Quando gira, ela emite o guincho e soa como um predador. Funciona bem, desde que o
vento esteja soprando. Temos também um modelo de luxo, com um dispositivo eletrônico na base. Contém um alto-falante que emite sons gravados de predadores como o
falcão. Não depende do vento.
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- E possível comprar uma coruja sem qualquer dos dispositivos?
- Sim, você pode comprar uma substituta para encaixar sobre uma de nossas bases exclusivas, caso a sua coruja seja danificada ou se perca. Ficando ao ar livre, principalmente
em ambientes marinhos, a pintura dura dois ou três anos, e depois disso a coruja pode perder parte de sua eficácia. Você tem que repintar a ave, ou simplesmente
comprar uma nova. Na verdade, o molde é a parte mais barata do conjunto.
Jaye olhou para McCaleb, que não tinha nada a acrescentar ou perguntar na linha do interrogatório que ela estava conduzindo. Ele simplesmente balançou a cabeça para
ela, que se voltou para Riddell.
- Tá legal. Acho que agora queremos saber se há jeito de rastrear esta coruja daqui até o proprietário eventual.
Riddell lançou um olhar demorado para a coruja, como se a própria ave pudesse responder à pergunta.
- Bom, isso pode ser difícil. Elas são vendidas por atacado. Vendemos milhares delas por ano. Despachamos para os pontos de varejo e também vendemos por meio de
catálogos, pelo nosso site na Internet...
- Subitamente, ele estalou os dedos.
- Mas há uma coisa que pode abreviar isso. -O que é?
- Eles mudaram o molde no ano passado. Na China. Fizeram uma pesquisa e decidiram que a coruja-chifruda era considerada uma ameaça maior a outros pássaros do que
a coruja de cabeça redonda. Passaram para o modelo com chifres.
- Não estou acompanhando muito bem.
Riddell ergueu um dedo, como dizendo-lhes para esperar um instante. Abriu a gaveta da mesa e remexeu nuns papéis lá dentro. Retirou um catálogo e começou a virar
as páginas rapidamente. McCaleb viu que o negócio principal da Afasta Aves não era vender corujas de plástico, e sim instalar grandes sistemas de barreiras para
pássaros que incluíam redes, telas de arame e espigões. Riddell
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encontrou a página que mostrava as corujas de plástico, virando o catálogo para que Jaye e McCaleb pudessem vê-lo.
- Este é o catálogo do ano passado - disse ele. - Dá pra ver que a coruja tem a cabeça redonda. O fabricante mudou isso em junho passado, cerca de sete meses atrás.
Agora temos estes bichos aqui.
Ele apontou para as duas corujas na mesa.
- A plumagem vira para cima nas duas pontas, ou ouvidos, no alto da cabeça. O vendedor disse que essas coisas são chamadas de chifres, e que esse tipo de coruja
é às vezes denominado corujadiabo.
Jaye lançou um olhar para McCaleb, que ergueu momentaneamente as sobrancelhas.
- Está dizendo que esta coruja aqui foi encomendada ou comprada depois de junho? - disse Jaye a Riddell.
- O mais provável é depois de agosto, ou talvez setembro. Eles trocaram em junho, mas provavelmente nós só começamos a receber o novo modelo no final de julho. E
primeiro teríamos liquidado nosso estoque da coruja de cabeça redonda.
Jaye interrogou Riddell sobre os registros de vendas e soube que as informações sobre encomendas pelo correio e compras pelo site da Internet eram mantidas completas
e atualizadas nos arquivos do computador da empresa. Contudo as corujas despachadas para grandes varejistas de produtos domésticos e marítimos não eram registradas,
obviamente. Ele virou-se para o computador na mesa e teclou alguns comandos. Depois apontou para a tela, embora McCaleb e Jaye não estivessem numa posição de onde
pudessem vê-la.
- Vejam, pedi as vendas desses números de peças desde o dia 1a de agosto - disse ele.
- Números de peças?
- É, para os modelos básico e de luxo e depois para os moldes de substituição. Aqui diz que nós despachamos diretamente quatrocentas e catorze no total. Também despachamos
exatamente seiscentas para os varejistas.
- E o que está nos dizendo é que só podemos rastrear, pelo menos aqui, as quatrocentas e catorze.
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- Correto.
- Tem os nomes dos compradores e os endereços para onde foram despachadas as corujas?
- Tenho.
- E está disposto a nos ceder essas informações sem necessidade de um mandado judicial?
Riddell franziu as sobrancelhas, como se a pergunta fosse absurda.
- Vocês disseram que estão trabalhando num assassinato, não é? -É.
- Nós não precisamos de um mandado judicial. Se pudermos ajudar, queremos ajudar.
- Que novidade boa, Sr. Riddell.
Eles estavam sentados no carro de Jaye, examinando os relatórios computadorizados que Riddell lhes dera. A caixa da prova, contendo a coruja, estava entre os dois
no assento. Havia três relações, divididas entre os modelos básico, de luxo, e para substituição. McCaleb pediu para ver a lista de substituições, porque seu instinto
lhe dizia que a coruja no apartamento de Edward Gunn fora comprada com o objetivo expresso de desempenhar um papel na cena do assassinato, e portanto não precisaria
de mecanismo algum. Além disso, a coruja para substituição era a mais barata.
- Tomara que a gente encontre alguma coisa aqui - disse Jaye, esquadrinhando a lista de compradores do modelo básico. - Porque sair caçando compradores pelas lojas
de ferragens e outros varejistas vai exigir mandado judicial, advogados e... ei, o museu Getty está aqui. Eles encomendaram quatro.
McCaleb olhou para Jaye e pensou no que ela dissera. Depois deu de ombros e voltou à sua lista. Jaye continuou relacionando as dificuldades que eles encontrariam
se tivessem que ir aos varejistas onde a coruja-chifruda era vendida. McCaleb parou de ouvi-la quando chegou ao antepenúltimo nome de sua relação. A partir do nome
que reconhecera, foi correndo o dedo pela linha que detalhava o endereço de recebimento, modo de pagamento, origem da ordem de compra, além do nome de quem receberia
a ave caso não
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fosse o comprador. Provavelmente parara de respirar, porque Jaye captou a vibração. -O que foi?
- Achei algo aqui.
Ele estendeu a relação para ela por cima do assento e apontou para a linha.
- Este comprador. Jerome Van Aiken. Ele despachou uma coruja na véspera do Natal para o endereço do apartamento de Gunn. A encomenda foi paga por ordem de pagamento.
Jaye tirou a relação das mãos dele e começou a ler a informação.
- Enviada para o endereço da avenida Sweetzer, mas para um tal de Lubbert Das, aos cuidados de Edward Gunn. Lubbert Das. Ninguém chamado Lubbert Das apareceu nessa
investigação. Também não me lembro desse nome na lista de residentes do prédio. Vou telefonar para Rohrshak para ver se Gunn teve alguma vez um companheiro de quarto
com esse nome.
- Não é preciso. Lubbert Das nunca morou lá. Jaye ergueu os olhos das páginas para o rosto dele.
- Você sabe quem é Lubbert Das?
- Mais ou menos.
Ela franziu a testa fortemente.
- Mais ou menos? Mais ou menos? E Jerome Van Aiken?
Ele balançou a cabeça. Jaye deixou cair as páginas na caixa entre eles. Olhou para McCaleb com uma expressão que demonstrava curiosidade e aborrecimento ao mesmo
tempo.
- Bom, Terry, acho que está na hora de começar a me contar o que sabe.
McCaleb balançou a cabeça de novo e pôs a mão na maçaneta da porta.
- Por que não vamos até o barco? Podemos conversar lá?
- Por que não conversamos aqui mesmo, neste exato momento, caralho?
McCaleb tentou dar um sorrisinho.
- Porque quero fazer o que você chamaria de uma apresentação audiovisual.
Abriu a porta e saiu, olhando novamente para ela.
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- Vejo você lá, está bem? Ela abanou a cabeça.
- E bom você ter um perfil do cacete pronto para mim. Aí ele abanou a cabeça.
- Eu ainda não tenho um perfil pronto para você, Jaye.
- Então o que você tem?
- Um suspeito.
McCaleb fechou a porta, ouvindo os palavrões abafados enquanto ia para o carro. Ao atravessar o estacionamento, percebeu uma grande sombra escurecer tudo à sua volta.
Olhou para cima e viu o dirigível da Goodyear cruzando o céu, eclipsando o sol totalmente.
Capítulo 17
Street Promenade
Os dois se reencontraram quinze minutos depois a bordo do Mar que Segue. McCaleb pegou umas Coca-Cola e mandou Jaye se sentar na cadeira estofada na extremidade
da mesa de café no salão. Ainda no estacionamento, ele lhe dissera para trazer a coruja de plástico até o barco. Pegou duas toalhas de papel para retirar a ave da
caixa e colocá-la na mesa diante de Jaye, que o observava com os lábios crispados de aborrecimento. McCaleb disse que entendia a raiva dela por estar sendo manipulada
no próprio caso, mas acrescentou que ela reassumiria o controle das coisas logo que ele apresentasse o que descobrira.
- Terry, tomara que isso seja bom pra caralho. É o que eu tenho
a dizer.
Ele se lembrou que já anotara - na orelha interna do dossiê do primeiro caso em que trabalhara com Jaye - que ela tinha tendência a dizer palavrões quando estressada.
Também anotara que ela era inteligente e intuitiva. Esperava que essas características não
houvessem mudado.
Foi até a bancada onde colocara o dossiê de apresentação. Abriu-o e tirou a folha de cima, colocando-a na mesa de café. Empurrou para o lado a relação da Afasta
Aves e pôs a folha ao lado da base da coruja de plástico.
- O que você acha, esta é a nossa ave?
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Jaye inclinou-se à frente para estudar a imagem colorida que ele colocara ali. Era um detalhe ampliado de O jardim das delícias terrenas, o quadro de Bosch, e mostrava
o tal homem nu abraçando a coruja escura de reluzentes olhos negros. McCaleb recortara a figura e outros detalhes do livro de Marijnissen. Ficou observando os olhos
da detetive se moverem entre a coruja de plástico e o detalhe da pintura.
- Eu diria que são iguais - disse ela finalmente. - Onde conseguiu isso? No Getty? Devia ter me falado disso ontem, Terry. Que , porra está acontecendo?
McCaleb ergueu as mãos pedindo calma.
- Vou explicar tudo. Só preciso mostrar esse troço do jeito que eu quero. Depois respondo a todas as perguntas que você quiser fazer. Ela fez um aceno com a mão,
indicando que ele podia continuar. McCaleb foi até a bancada, pegou uma segunda folha e trouxe-a de volta, colocando-a na frente de Jaye.
- O mesmo pintor, outro quadro.
Ela olhou. Era um detalhe de O Juízo Final, mostrando o pecador amarrado na posição fetal invertida, à espera de ser enviado ao inferno.
- Não faça isso comigo. Quem pintou essas coisas?
- Conto para você num minuto. Ele foi até a bancada e o dossiê.
- Este cara ainda está vivo? - perguntou ela.
Ele pegou a terceira folha e colocou-a na mesa perto das outras duas.
- Morreu há uns quinhentos anos. -Jesus.
Ela pegou a terceira folha, examinando-a detidamente. Era uma cópia integral de Os sete pecados capitais, a pintura no tampo de mesa.
- Dizem que isso é o olho de Deus vendo todos os pecados do mundo - explicou McCaleb. - Reconhece as palavras no centro, dispostas em torno da íris?
- Cuidado, cuidado... - murmurou ela, traduzindo. - Ah, meu Deus, a gente está lidando com um pirado. Quem é?
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- Só mais uma folha. Esta aqui faz tudo se encaixar.
Ele voltou até o dossiê pela quarta vez e voltou com outra reprodução do livro de Bosch, entregando-a a Jaye.
- Chama-se A operação de pedra. Na época medieval algumas pessoas acreditavam que a estupidez e a mentira podiam ser curadas por uma operação para remover uma pedra
do cérebro. Veja o local da incisão.
- Eu vi, eu vi. Exatamente como no nosso cara. O que é tudo isso aqui em volta?
Ela acompanhou com o dedo a borda exterior da pintura circular. Na margem negra externa viam-se palavras que originalmente haviam sido pintadas com tinta dourada
para efeito ornamental, mas que haviam se deteriorado com o tempo e estavam quase indecifráveis.
- A tradução é "Mestre, corte fora a pedra. Meu nome é Lubbert Das". A literatura especializada existente sobre o pintor que criou essas obras explica que na época
Lubbert era um epíteto pejorativo aplicado aos pervertidos e estúpidos.
Jaye pôs a folha em cima das outras e ergueu as mãos com as palmas abertas.
- Muito bem, Terry, já chega. Quem era o pintor, e quem é esse suspeito que você diz ter descoberto?
McCaleb balançou a cabeça. Chegara a hora.
- O pintor se chamava Jerome Van Aiken. Era dos Países Baixos, e considerado um dos grandes nomes da Renascença do norte da Europa. Mas seus quadros são escuros,
cheios de monstros e demônios fantasmagóricos. Além de corujas. Um monte de corujas. A literatura especializada sugere que as corujas encontradas em seus quadros
simbolizavam o mal, a destruição, a queda da humanidade, esse tipo de coisa.
Ele separou as folhas na mesa de café e levantou o detalhe do homem abraçando a coruja.
- Acho que isso diz tudo sobre ele. O homem que abraça o mal... a coruja-diabo, para usar a descrição do Riddell... tem inevitavelmente o destino do inferno. Aqui
está o quadro por inteiro.
Ele foi até o dossiê e trouxe para ela a
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o Jardim das delícias terrenas. Ficou observando os olhos de Jaye enquanto ela examinava as imagens. Viu a repulsa, bem como o fascínio. Apontou para as quatro corujas
que encontrara no quadro, inclusive o detalhe que mostrara a ela.
Subitamente, Jaye puxou a folha para o lado e olhou para ele.
- Espere um minuto. Eu sei que já vi isso antes. Num livro, ou talvez numa aula de arte que tive na CSUN. Mas nunca ouvi falar desse Van Aiken, acho eu. Ele pintou
isso? McCaleb balançou a cabeça.
- O jardim das delícias terrenas. Foi pintado por Van Aiken, mas você nunca ouviu falar dele porque ele não era conhecido pelo seu nome real. Usava a versão latina
de Jerome e aproveitou o nome de sua cidade natal como sobrenome. Era conhecido como Hieronymus Bosch.
Jaye ficou simplesmente olhando para ele durante longo tempo, como se tudo estivesse se juntando: as imagens que ele lhe mostrara, os nomes na relação do computador
e o que ela sabia sobre o caso Edward Gunn.
- Bosch - disse ela, como expulsando o ar dos pulmões. Hieronymus é...?
Não terminou. McCaleb balançou a cabeça.
- E, esse é o verdadeiro nome de Harry.
Os dois estavam andando de um lado para o outro no salão, com as cabeças baixas, mas tomando cuidado para não se esbarrarem. Falando aos arrancos e com o sangue
pulsando num ritmo ruim mas acelerado.
- Isso é muita loucura, Terry. Você sabe o que está dizendo?
- Sei exatamente o que estou dizendo. E não pense que não meditei muito sobre o assunto antes de falar com você. Considero Harry um amigo, Jaye. Houve uma... sei
lá. Numa certa época eu achei que nós dois éramos muito parecidos. Mas veja esse troço, veja essas conexões, os paralelos. A coisa se encaixa. Tudo se encaixa.
Ele parou e olhou para Jaye, que continuou a andar.
- Ele é um policial! Um policial da Homicídios, pelo amor de Deus.
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- Vai me dizer que isso é impossível só porque ele é um policial? Aqui é Los Angeles... a versão moderna do Jardim das Delícias Terrenas. Com as mesmas tentações
e demônios. Nem é preciso sair dos limites da cidade para achar exemplos de policiais cruzando a linha... traficando drogas, roubando bancos e até assassinando gente.
- Eu sei, eu sei. Só que... Ela não terminou de falar.
- O mínimo que nós podemos fazer é examinar isso com muito cuidado.
Ela parou de andar e olhou de volta para ele.
- Nós? Pode esquecer, Terry. Pedi a você pra dar uma olhada no dossiê, não pra sair seguindo as pistas. Você está fora do caso de agora em diante.
- Olhe aqui, se eu não tivesse seguido algumas pistas você não teria nada. Essa coruja ainda estaria sentada no telhado do outro prédio daquele cara, Rohrshak.
- Reconheço isso. E agradeço muito. Mas você é paisano. Está fora.
- Não vou me afastar, Jaye. Se fui eu que pus o foco em Bosch, não vou me afastar agora.
Jaye deixou-se cair pesadamente na cadeira.
- Está bem, mas podemos conversar sobre isso quando, e se, chegarmos a esse ponto? Eu ainda não me convenci.
- Que bom. Nem eu.
- Bom, você certamente deu um show mostrando as pinturas e montando a acusação.
- Só estou dizendo que Harry Bosch tem alguma ligação com isso. E aí a coisa toma dois rumos. Um, ele matou o cara. Dois, é armação de alguém. Ele é policial há
muito tempo.
- Vinte e cinco, trinta anos. A lista de gente que ele mandou para a penitenciária deve ter um quilômetro de comprimento. E quem já entrou e saiu provavelmente dá
metade disso. Vai levar um ano pra conferir todo mundo, caralho.
McCaleb balançou a cabeça.
- E não pense que ele não sabia disso.
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Ela ergueu os olhos bruscamente para ele. McCaleb recomeçou a andar de um lado para o outro com a cabeça baixa. Depois de um longo silêncio, ergueu os olhos e viu
Jaye olhando para ele.
-O que foi?
- Você realmente acha que Bosch é o cara, não é? Está sabendo de mais coisas.
- Não, não estou. Quero permanecer com a mente aberta. Todos os caminhos de possibilidades precisam ser trilhados.
- Conversa fiada. Você está seguindo um caminho só. McCaleb não respondeu. A culpa que sentia por aquilo já bastava, sem que Jaye precisasse aumentar a dose.
- Está bem - insistiu ela. - Por que não esclarece tudo para mim? E não se preocupe, não vou acusar você de nada quando o raciocínio desandar.
Ele parou e olhou para ela.
- Vamos, esclareça tudo de uma vez.
McCaleb abanou a cabeça.
- Ainda não cheguei lá. Só sei que temos aqui algo que está longe, longe da coincidência. Portanto, tem que haver uma explicação.
- Então me dê a explicação que envolve Bosch. Eu conheço você. Sei que vem pensando nisso.
- Muito bem, mas lembre-se que tudo não passa de teoria.
- Vou me lembrar. Pode começar.
- A primeira coisa é que o detetive Hieronymus Bosch acredita... não, ele sabe... que esse cara, Edward Gunn, se livrou de uma acusação de homicídio. A segunda é
que Gunn aparece estrangulado, numa pose tirada de um quadro do pintor Hieronymus Bosch. E só acrescentar uma coruja de plástico, meia dúzia de outros pontos de
conexão entre os dois, sem falar no nome Bosch, e pronto.
- Pronto o quê? Essas conexões não significam que Bosch cometeu o crime. Você mesmo disse que alguém pode ter armado tudo isso, só para nós irmos em cima dele.
- Eu não sei o que me levou a isso. Instinto visceral, acho eu. Há alguma coisa em Bosch... alguma coisa que não bate bem.
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Ele se lembrou da frase com que Vosskuhler descrevera as pinturas.
- O que isso quer dizer?
McCaleb fez um gesto descartando a pergunta, estendeu a mão e pegou a folha que mostrava o detalhe da coruja abraçada pelo homem. Colocou-a diante do rosto de Jaye.
- Veja as trevas aqui. Nos olhos. Há algo dentro de Harry igual a isto.
- Você está até me assustando, Terry. O que está dizendo? Que Harry Bosch foi uma pintura numa vida anterior? E sério, ouça o que está dizendo.
Ele pôs a folha de volta na mesa e se afastou dela, abanando a cabeça.
- Eu não sei como dizer isto - disse ele. - Mas há alguma coisa ali, só isso. Uma conexão de algum tipo entre eles dois, e que vai além do nome.
Fez um gesto, como afastando o pensamento.
- Está bem, vamos em frente - disse Jaye. - Por que agora, Terry? Se foi Bosch, por que agora? E por que Gunn? Ele se livrou de Bosch há seis anos.
- É interessante você dizer que Gunn se livrou dele e não da justiça.
- Eu não quis dizer nada com isso. Você simplesmente gosta de pegar...
- Por que agora? Quem sabe? Mas houve aquele reencontro na cela dos bêbados na véspera da morte de Gunn, além da ocasião em outubro. E a coisa vai ainda mais para
trás. Sempre que o cara era preso, Bosch aparecia.
- Mas na última noite Gunn estava bêbado demais pra falar. -Quemdisse isso?
Ela balançou a cabeça. Eles tinham apenas a versão de Bosch sobre o encontro na cela dos bêbados.
- Está bem. Mas por que Gunn? Não quero fazer juízo de valor sobre assassinos ou suas vítimas, mas o cara esfaqueou uma prostituta num motel de alta rotatividade
em Hollywood. Todos nós
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sabemos que algumas pessoas valem mais que outras, e essa não devia valer grande coisa. Se você leu o dossiê, você viu... nem a família dela se interessou pelo caso.
- Então há alguma coisa faltando, algo que nós não sabemos. Porque Harry se interessou. Além disso, não acho que ele é do tipo que valoriza um caso ou indivíduo
mais do que outros. Mas há alguma coisa sobre Gunn que ainda não sabemos. Tem que haver... Há seis anos isso levou Harry a atirar seu comandante pela janela e pegar
uma suspensão. Também fez com que ele visitasse Gunn toda vez que o cara era preso e posto numa cela - disse McCaleb balançando a cabeça para si próprio e acrescentando:
- Nós temos que achar o gatilho. O fator estressante. Aquilo que levou o ato a ser cometido agora, e não um ano atrás, dois anos atrás, ou quando quer que seja.
Jaye levantou-se abruptamente.
- Quer parar de dizer "nós"? Sabe, nisso tudo há algo que você está convenientemente omitindo. Por que esse homem, um detetive de homicídios veterano, mataria esse
cara e deixaria um monte de pistas apontando para ele mesmo? Isso não faz sentido... em termos de Harry Bosch. Ele seria inteligente demais para fazer isso.
- Só do nosso ponto de vista. Todas essas coisas podem parecer óbvias agora, depois de descobertas. E você está esquecendo que o ato de assassinato já é, por si
só, evidência de um pensamento deformado, de uma personalidade dissimulada. Se Harry Bosch desviou-se do caminho e caiu na vala... no abismo... nós não podemos presumir
nada sobre a sua maneira de pensar ou planejar um assassinato. Deixar essas pistas pode ter sido algo sintomático.
Jaye descartou a explicação dele com um gesto e disse:
- Lá vem o velho papo do FBI. Cheio de enrolação. - Depois apanhou a cópia de O jardim das delícias terrenas na mesa e pôs-se a examiná-la, acrescentando: - Eu falei
com Harry sobre o caso há duas semanas. Você falou com ele ontem. Ele não parecia estar subindo pelas paredes ou espumando de raiva. E pense no julgamento em que
ele anda depondo atualmente. Mas Harry está tranqüilo, calmo, e com a porra toda dominada. Sabe que apelido os conhecidos da repartição puseram nele? O Homem
de Marlboro.
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- Bom, ele parou de fumar. E talvez o caso de Storey tenha sido o fator estressante. E muita pressão. O troço tem que sair por algum lugar.
McCaleb percebeu que ela não estava escutando. Jaye tinha os olhos fixos em alguma coisa na pintura. Largou a folha e pegou a que mostrava o detalhe da coruja escura
abraçada pelo homem nu.
- Quero perguntar uma coisa a você - disse ela. - Se o nosso cara encomendou a coruja diretamente daquele galpão para a vítima, como essa repintura sob medida foi
feita, caralho?
McCaleb balançou a cabeça.
- Boa pergunta. Ele deve ter pintado o bicho lá no apartamento mesmo. Talvez enquanto via Gunn tentando sobreviver.
- Não havia tinta desse tipo no apartamento. E nós também verificamos a lixeira do prédio. Não vimos tinta alguma.
- Ele levou a tinta embora para jogar fora em outro lugar.
- Ou para usar novamente da próxima vez.
Jaye fez uma longa pausa enquanto raciocinava. McCaleb ficou esperando.
- O que nós podemos fazer? - perguntou ela por fim. -Agora é "nós"?
- Por enquanto. Mudei de idéia. Não posso levar essa história para o departamento. E perigoso demais. Se a coisa estiver errada, talvez seja o fim da linha pra mim.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Você e seu parceiro têm outros casos?
- Temos três casos em aberto, inclusive este aqui.
- Bom, coloque seu parceiro em um dos outros, enquanto você trabalha neste... comigo. Nós podemos investigar Bosch até termos alguma coisa palpável... a favor ou
contra... que você possa tornar oficial.
- E o que eu faço, ligo para Harry Bosch e digo que precisamos conversar porque ele é suspeito de um assassinato?
- Eu falo com Bosch primeiro. Vai ser menos óbvio se eu fizer o primeiro contato. Vou só sentir o pulso da coisa. Quem sabe? Talvez a minha intuição esteja errada.
Ou a gente encontre o gatilho.
- Isso é mais fácil de falar que de fazer. Se a gente chegar perto
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demais, ele vai perceber. E não quero esse troço explodindo na nossa cara... na minha cara, principalmente. -É aí que eu posso ser útil.
- É? Como?
- Eu não sou tira. Posso chegar mais perto dele. Preciso entrar na casa dele, ver como ele vive. Enquanto isso, você...
- Espere um instante. Você não está falando em arrombar a casa dele. Não posso ser cúmplice disso.
- Não, nada de ilegal.
- Então como vai entrar lá?
- Batendo na porta.
- Boa sorte. O que ia dizer antes? Enquanto isso, eu faço o quê?
- Você trabalha na periferia, nos troços óbvios. Rastreie a ordem de pagamento da coruja. Descubra mais coisas sobre Gunn e o assassinato de seis anos atrás. Investigue
o incidente entre Harry e seu antigo tenente... e investigue a morte do tenente. Harry disse que o cara saiu certa noite e apareceu morto num túnel.
- Caceta, eu lembro dessa história. Teve a ver com Gunn?
- Não sei. Mas ontem Bosch fez uma espécie de referência velada a isso.
- Posso pesquisar essas coisas e sair fazendo perguntas sobre os outros troços. Mas talvez Bosch acabe percebendo a movimentação.
McCaleb balançou a cabeça, achando que era um risco que precisava ser assumido.
- Sabe de algum conhecido dele? - perguntou ele. Ela abanou a cabeça, irritada.
- Escute, não se lembra mais? Todo policial é paranóico. Assim que eu fizer uma pergunta sobre Harry Bosch, o pessoal vai perceber a nossa jogada.
- Não necessariamente. Use o caso do Storey, que tem alta visibilidade. Diga que viu Bosch na tevê e achou que ele não estava legal. "Ele está bem? O que anda acontecendo
com ele?" Coisas assim. Finja que está fofocando.
Jaye não parecia tranqüilizada. Foi até a porta corrediça e olhou para a marina. Encostou a testa na vidraça.
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- Conheço a antiga parceira dele - disse ela. - Temos um grupo informal de mulheres que se reúne uma vez por mês. Todas trabalham em homicídios, e tem gente de todos
os departamentos locais. Somos cerca de uma dúzia. A antiga parceira dele, Kiz Rider, acabou de ser transferida de Hollywood para a RoubosHomicídios. Chegou ao topo.
Mas acho que eles já foram íntimos. Bosch era uma espécie de mentor dela. Pode ser que eu consiga alguma coisa com ela, se usar um pouco de sutileza.
McCaleb balançou a cabeça e pensou numa coisa.
- Harry me disse que se divorciou. Não sei há quanto tempo, mas você pode perguntar isso a Kiz, como se estivesse interessada nele, esse tipo de coisa. Se perguntar
assim, talvez ela dê toda a ficha dele.
Jaye desviou o olhar da porta e encarou McCaleb.
- E, ela vai me adorar quando descobrir que era tudo papo furado, e que eu estava armando o bote em cima do seu ex-parceiro...
seu mentor.
- Se ela for uma boa policial, vai entender. Ou você limpava a barra dele ou metia Bosch em cana, e em qualquer dos dois casos queria fazer isso com a maior discrição
possível
Jaye lançou o olhar para fora novamente.
- Preciso ser capaz de negar essa história toda.
- O que isso significa?
- Significa que preciso poder me safar, se a gente fizer isso. Caso você entre lá e tudo dê errado.
McCaleb balançou a cabeça. Teria preferido que ela não houvesse dito aquilo, mas percebia a necessidade que ela tinha de se proteger.
- Estou falando com toda a sinceridade, Terry. Se a vaca for pró brejo, vai parecer que você se excedeu. Que eu só lhe pedi para dar uma olhada no dossiê, mas que
você tomou o freio nos dentes. Sinto muito, mas preciso me proteger.
- Eu entendo, Jaye. Dá pra levar assim mesmo. Vou arriscar.
Capítulo 18
Jaye ficou em silêncio durante bastante tempo, olhando fixamente para fora pela porta do salão. McCaleb pressentiu que ela estava resolvendo alguma coisa e ficou
esperando.
- Vou contar pra você uma história sobre Harry Bosch - disse ela por fim. - Conheci Harry há cerca de quatro anos. Era um caso duplo. Dois
seqüestros seguidos de assassinato. O de Hollywood era dele, o de West Hollywood era meu. Mulheres jovens, na realidade garotas. As provas materiais ligavam os dois casos. Basicamente,
trabalhávamos nos casos em separado, mas almoçávamos juntos toda quarta-feira para trocar informações.
- Levantaram o perfil do criminoso?
- Levantamos. Isso aconteceu quando Maggie Griffin ainda trabalhava no FBI. Ela levantou alguma coisa para nós. O costumeiro. Mas as coisas esquentaram quando houve
um terceiro caso de desaparecimento. Dessa vez uma garota de dezessete anos. As provas colhidas nos dois primeiros casos indicavam que o culpado mantinha as vítimas
vivas por quatro ou cinco dias antes de se cansar e matar as garotas. Portanto, tínhamos que correr contra o tempo. Conseguimos reforços e comparamos os denominadores
comuns aos três casos.
McCaleb balançou a cabeça. Aparentemente, eles haviam seguido o método clássico de caça a um assassino serial.
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- Surgiu uma pequena possibilidade - disse ela. - As três vítimas usavam a mesma lavanderia a seco em Santa Monica, perto de La Cienega. A última, a garota de dezessete
anos, tinha um emprego de férias na Universal e levava seus uniformes para lavar a seco lá. Antes de falar com a gerência, fomos ao estacionamento dos funcionários,
anotamos as placas e pesquisamos os números. Talvez conseguíssemos descobrir alguma coisa antes de entrarmos e nos apresentarmos. Acertamos em cheio. O próprio gerente.
Ele tinha sido preso dez anos antes por atentado ao pudor. Pegamos a ficha, e o caso era uma variante dos exibicionistas de parque. Ele parou o carro num ponto de
ônibus e abriu a porta para que a mulher sentada no banco desse uma olhada no seu bilau. Só que ela era uma policial disfarçada e estava lá como isca. Eles já sabiam
que havia um tarado agindo na vizinhança. Em todo caso, ele pegou liberdade condicional com acompanhamento psicológico. Mentiu sobre o problema quando foi entrevistado
para o emprego na lavanderia e ao longo dos anos fez carreira até chegar ao cargo de gerente.
- Quanto maior o cargo, maior o estresse, e maior o nível de transgressão.
- Foi o que pensamos. Mas não tínhamos prova alguma. Foi aí que Bosch teve uma idéia. Disse que todos - eu, ele e nossos parceiros - iríamos até a casa desse cara,
que se chamava Hagen. Afirmou que tinha aprendido com um agente do FBI a sempre interrogar o suspeito em casa, se houvesse chance, porque às vezes dava para obter
mais informação a partir do ambiente do que das coisas que ele pudesse dizer.
McCaleb reprimiu um sorriso. Fora a lição que Bosch aprendera no caso de Cielo Azul.
- Fomos até a casa de Hagen. Ele morava num velho casarão em Los Feliz, perto de Franklin. Já fazia quatro dias que a terceira mulher tinha desaparecido, de modo
que sabíamos que estávamos correndo contra o tempo. Batemos à porta. O plano era agir como se não soubéssemos da ficha policial dele, fingindo que estávamos ali
só para conseguir a ajuda dele na verificação dos funcionários da loja. Pra ver como ele reagiria, ou se dava uma escorregadela.
- Certo.
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- Bom, entramos na sala do cara, e eu mesma conduzi a maior parte da conversa, porque Bosch queria observar como o cara reagiria ao ver uma mulher controlando a
situação. Nem cinco minutos depois, Bosch levantou de repente e disse: "É ele. Ela está em algum lugar aqui." Quando ele disse isso, Hagen se levantou e correu para
a porta. Mas não foi longe.
- Foi um blefe ou fazia parte do plano?
- Nem uma coisa nem outra. Bosch simplesmente percebeu. Na mesinha perto do sofá havia uma babá eletrônica. Bosch viu aquilo e sacou imediatamente. Era a parte errada
que estava ali. O transmissor. Ou seja, o receptor estava em outro lugar. Quem tem filho usa o sistema ao contrário. Ouve na sala de estar o barulho que o bebê faz
lá no quarto. Mas ali a coisa estava invertida. O perfil que Maggie fizera dizia que o sujeito era um controlador e que provavelmente coagia verbalmente suas vítimas.
Quando Bosch viu o transmissor, sentiu a idéia clicar na sua cabeça... O cara tinha a garota presa em algum lugar e tocava punheta enquanto falava com ela.
- Ele estava certo?
- Completamente. Encontramos a garota na garagem, dentro de um freezer desligado com três buracos para ventilação. O troço parecia um caixão de defunto. O receptor
da babá eletrônica também estava lá. Mais tarde ela nos contou que Hagen falava com ela incessantemente, sempre que estava em casa. Além de cantar pra ela sucessos
da década de quarenta. Ele mudava as letras, dizendo que ia estuprar e matar a garota.
McCaleb balançou a cabeça, desejando ter participado daquele caso, pois sabia o que Bosch sentira naquele momento súbito de coalescência, quando os átomos colidem.
Quando tudo fica claro. Era um momento tão emocionante que chegava a dar medo. O momento pelo qual anseia secretamente todo detetive de homicídios.
- Estou contando essa história por causa do que Bosch fez e disse depois. Colocamos Hagen no banco traseiro de um dos carros e começamos a revistar a casa, mas Bosch
permaneceu na sala com a tal babá. Ligou o aparelho e ficou falando com ela. Não parou até encontrar a garota. Dizia: "Jennifer, estamos aqui. Está tudo bem,
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Jennifer, estamos chegando. Você está salva e vamos buscar você. Ninguém vai machucar você." Não parou de falar com ela, acalmando a garota desse jeito.
Jaye fez uma longa pausa, e McCaleb viu que os olhos dela estavam fixos naquela lembrança.
- Depois que encontramos a garota, todos nós nos sentimos tão bem. Foi a sensação mais empolgante que já tive nesse serviço. Fui até Bosch e disse: "Você deve ter
filhos. Falou com a garota como se ela fosse uma filha sua." Ele simplesmente abanou a cabeça e disse que não. Disse: "E que eu sei o que é ficar sozinho no escuro."
E depois se afastou.
Ela desviou o olhar da porta para McCaleb.
- O que você disse sobre a treva me fez lembrar isso. McCaleb balançou a cabeça.
- O que vamos fazer se chegarmos a ter certeza total que foi ele? - perguntou Jaye, voltando o rosto novamente para a vidraça.
McCaleb respondeu rapidamente, para não ter que pensar sobre a pergunta.
- Não sei - disse.
Depois que Jaye pôs a coruja de plástico na caixa das provas, reuniu todas as páginas que ele lhe mostrara e partiu, McCaleb ficou parado diante da porta corrediça,
vendo-a subir a rampa até o portão. Olhou para o relógio e viu que dispunha de muito tempo antes de precisar se preparar para a noite. Decidiu assistir a um pouco
do julgamento na TV Tribunal.
Lançou novamente o olhar pela porta e viu Jaye pondo a caixa de provas na mala do carro. Subitamente, ouviu alguém pigarrear. Virou-se abruptamente e viu Buddy Lockridge
ao pé da escada do convés inferior, olhando para ele com uma pilha de roupas nos braços.
- Buddy, que diabo está fazendo?
- Cara, esse caso em que você está trabalhando é estranho.
- Eu disse que diabo você está fazendo?
- Eu ia lavar roupa, e vim até aqui porque metade das minhas coisas estava na cabine. Depois vocês dois chegaram, e quando começaram a falar eu vi que não podia
aparecer.
Mostrou a pilha de roupas nos braços como prova de sua história.
- Fiquei sentado na cama, esperando.
- E ouvindo tudo que dissemos.
- É um caso maluco, cara. O que você vai fazer? Eu já vi esse tal de Bosch na TV Tribunal. Ele parece um pouco tenso demais.
- Eu sei o que não vou fazer. Não vou falar sobre isso com você. McCaleb apontou para a porta de vidro.
- Vá embora, Buddy, e não diga uma palavra desse troço a ninguém. Entendeu?
- Entendi. Eu só estava...
- Fora.
- Sinto muito, cara.
- Eu também.
McCaleb abriu a porta corrediça, e Buddy saiu feito um cachorro com o rabo entre as pernas. McCaleb teve que se segurar para não lhe dar um pé na bunda. Em vez disso,
fechou a porta com raiva, batendo-a com força no umbral. Ficou parado ali olhando pela vidraça, até que viu Buddy subir a rampa e chegar ao prédio onde havia uma
lavanderia a quilo.
O fato de Buddy ter escutado tudo comprometera a investigação. McCaleb sabia que deveria ligar imediatamente para Jaye e contar o ocorrido à detetive, para saber
o que ela preferia fazer. Mas deixou a coisa passar em branco. A verdade era que ele não queria fazer nada que pudesse afastá-lo da investigação.
Capítulo 19
Depois de pousar a mão sobre a Bíblia e prometer dizer toda a verdade, Harry Bosch sentou-se no banco das testemunhas e ergueu o olhar para a câmera instalada na
parede acima do recinto do júri. Sabia que o olho do mundo estava sobre ele. O julgamento estava sendo televisado ao vivo, em rede nacional pela TV Tribunal e localmente
pelo Canal 9. Bosch tentou não aparentar nervosismo. Mas o fato era que seu desempenho e personalidade não estariam sendo examinados e julgados apenas pelos jurados.
Pela primeira vez em muitos anos de testemunhos em julgamentos criminais, ele não se sentia totalmente à vontade. Estar do lado da verdade não era um consolo, quando
sabia que a verdade tinha que atravessar uma traiçoeira pista de obstáculos colocada à sua frente pelo réu e seu advogado, ambos ricos e bem-relacionados.
Bosch colocou a pasta azul - o dossiê de assassinato - numa prateleira à sua frente no banco das testemunhas e puxou o microfone mais para perto, ocasionando um
guincho agudo que feriu os ouvidos de todos no tribunal.
- Detetive Bosch, por favor não toque no microfone - alertou o juiz Houghton.
- Perdão, meritíssimo.
Um agente do escritório do xerife que fazia o papel de oficial de justiça foi até o banco das testemunhas, desligou o microfone e
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ajustou a posição do aparelho. Quando Bosch balançou a cabeça, concordando com a nova posição, o oficial de justiça ligou o dispositivo de novo. O auxiliar do juiz
pediu que Bosch declarasse seu nome e sobrenome, soletrando-o para que fosse registrado.
- Muito bem - disse o juiz depois que Bosch terminou. - Doutora Janis Langwiser?
A promotora-assistente levantou-se da mesa da acusação e dirigiu-se à tribuna. Levava um bloco de anotações com suas perguntas. Ocupava o segundo lugar na mesa da
acusação, mas trabalhara com os investigadores desde o início do caso. Ficara decidido que ela conduziria o depoimento de Bosch.
Janis era uma advogada jovem e promissora da equipe da promotoria. Começara como simples arquivista de processos para os advogados mais experientes da promotoria,
mas em poucos anos já passara a levar pessoalmente os casos ao tribunal. Bosch trabalhara com ela num caso traiçoeiro e politicamente delicado, conhecido como os
assassinatos do Vôo dos Anjos. A experiência fizera com que ele a recomendasse para primeira assistente de Kretzler. Depois que voltara a trabalhar com ela novamente,
Bosch concluíra que suas primeiras impressões tinham fundamento. Janis detinha total comando e lembrança dos fatos do caso. Enquanto a maioria dos advogados precisava
folhear os relatórios de provas a fim de localizar uma informação, ela sabia de memória a informação e a sua localização nos relatórios. Mas sua habilidade não se
limitava às minúcias do caso. Ela nunca perdia de vista o objetivo maior de todos os esforços deles - trancafiar David Storey definitivamente.
- Boa tarde, detetive Bosch - começou Janis. - Por favor, conte para o júri um pouco de sua carreira como agente de polícia. Bosch pigarreou:
- Pois não. Eu faço parte do Departamento de Polícia de Los Angeles há vinte e oito anos. Passei mais da metade desse tempo investigando homicídios. Sou um detetive
três, atualmente na equipe de homicídios da Divisão Hollywood.
- O que significa "detetive três"?
- Significa detetive de terceiro grau. É o posto mais alto da carreira de detetive, equivalente a sargento, mas não há sargentos-
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detetives no Departamento. Depois de detetive três o próximo posto seria tenente-detetive.
- Quantos homicídios o senhor diria que investigou durante a sua carreira?
-Já perdi a conta. Diria que no mínimo algumas centenas, em quinze anos.
- Algumas centenas.
Janis ergueu os olhos para o júri ao enfatizar a última palavra. - Mais ou menos isso.
- E como detetive três o senhor atualmente é o supervisor da equipe de homicídios?
- Tenho alguns deveres de supervisão. E também chefio uma equipe de três policiais que lida com investigações de homicídios.
- Como tal, o senhor comandava a equipe que foi chamada à cena de um homicídio em 13 de outubro do ano passado, certo?
- Certo.
Bosch olhou para a mesa da defesa. David Storey mantinha a cabeça baixa, usando sua caneta hidrográfica para desenhar no bloco. Mantivera-se ocupado assim desde
que a seleção do júri começara. Bosch desviou o olhar para J. Reason Fowkkes, encarando o advogado do réu. Sustentou o olhar até Janis lhe fazer a pergunta seguinte.
- Tratava-se do assassinato de Donatella Speers? Bosch olhou de novo para Janis.
- Correto. Esse era o nome que ela usava.
- Não era o nome verdadeiro?
- Era o nome artístico, acho que poderíamos dizer. Ela era atriz e mudou de nome. Chamava-se Jody Krementz antes.
O juiz interrompeu e pediu que Bosch soletrasse os nomes para o escrivão. Depois Janis continuou.
- Relate as circunstâncias da chamada passo a passo, detetive Bosch. Onde o senhor estava, o que estava fazendo, como esse caso veio parar nas suas mãos?
Bosch pigarreou e estendeu a mão para puxar o microfone, mas lembrou do que acontecera antes. Deixou o microfone onde estava e inclinou-se à frente.
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- Eu e meus dois parceiros estávamos almoçando num restaurante chamado Musso and Frank's, no bulevar Hollywood. Era sexta-feira, e geralmente almoçamos ali quando
temos tempo. Às onze e quarenta e oito meu bip tocou. Reconheci o número como o da minha supervisora, tenente Grace Billets. Enquanto telefonava para ela, os bíps
dos meus parceiros, Jerry Edgar e Kizmin Rider, também tocaram. A essa altura já sabíamos que tínhamos um caso. Falei com a tenente Billets, e ela mandou nossa equipe
ir para o número mil e um da rua Nichols Canyon, onde uma viatura e uma ambulância haviam atendido a uma chamada de emergência, relatando que havia uma jovem morta
na cama em circunstâncias suspeitas.
- Sua equipe foi até o endereço dado?
- Não. Nós três tínhamos ido para o Musso no meu carro. Então voltei à delegacia de Hollywood, que fica a poucas quadras dali, e larguei meus parceiros lá para que
eles pegassem seus próprios veículos. Depois fomos separadamente para o endereço. Nunca se sabe pra onde se deverá ir a partir da cena do crime. E mais prático cada
detetive ter o seu próprio carro.
- Nessa hora o senhor já sabia quem era a vítima ou quais eram as circunstâncias suspeitas da morte
dela?
- Não, não sabia.
- O que encontrou quando chegou lá?
- Era uma casa pequena de dois quartos, com vista para o cânion. Havia duas viaturas no local. Os enfermeiros já haviam ido embora, depois de verificar que a vítima
estava morta. Dois patrulheiros e um sargento estavam dentro da casa. Na sala havia uma mulher sentada no sofá, chorando. Ela me foi apresentada como Jane Gilley.
Dividia a casa com a Srta. Krementz.
Bosch parou de falar e ficou esperando uma pergunta. Janis estava curvada sobre a mesa da acusação, conversando com o promotor Roger Kretzler.
- Doutora, isso conclui seu interrogatório do detetive Bosch? - perguntou o juiz Houghton.
Janis endireitou o corpo sobressaltada, não tendo notado que Bosch parara de falar.
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- Não, meritíssimo. - Ela voltou à tribuna e disse: - Continue, detetive Bosch, e conte para esta sala o que aconteceu depois da sua entrada na casa.
- Falei com o sargento Kim e ele me informou que havia uma jovem morta na cama do quarto que ficava à direita nos fundos da casa. Apresentou a mulher no sofá e disse
que seu pessoal tinha saído do quarto sem mexer em nada, depois que os enfermeiros verificaram que a vítima estava morta. Então segui pelo pequeno corredor até o
quarto e entrei.
- O que encontrou ali?
- Vi a vítima na cama. Era uma mulher branca, esbelta e loura. Foi mais tarde identificada como Jody Krementz, de vinte e três anos de idade.
Janis pediu permissão para mostrar uma série de fotografias a Bosch. Houghton balançou a cabeça, e Bosch identificou as provas fotográficas policiais como sendo
da vítima in sítu - tal como o cadáver fora visto inicialmente pela polícia. A mulher estava com rosto para cima. Os lençóis estavam repuxados para o lado, revelando
o corpo nu com as pernas separadas por cerca de 60 centímetros na altura dos joelhos. Os seios volumosos mantinham seu formato apesar da posição horizontal do corpo,
numa indicação de implantes. O braço esquerdo estava estendido sobre o estômago. A palma da mão esquerda cobria a região púbica. Dois dedos dessa mão penetravam
na vagina.
Os olhos da vítima estavam fechados, e a cabeça repousava num travesseiro mas formando um ângulo agudo com o pescoço. Amarrada fortemente em torno do pescoço havia
uma echarpe amarela, que também fora enrolada em torno da trave superior da cabeceira da cama. A ponta da echarpe de seda saía da trave e dava várias voltas em torno
da mão direita da vítima, que estava no travesseiro acima da cabeça.
As fotografias eram coloridas. Podia-se ver uma marca vermelho-arroxeada no pescoço da vítima, onde a echarpe comprimira a pele. Em
torno das órbitas havia um tom avermelhado descolorido. Também se notava uma descoloração azulada correndo ao longo de todo o lado esquerdo do corpo, incluindo o braço e a perna.
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Depois que Bosch identificou as fotografias como sendo de Jody Krementz m situ, Janis pediu que elas fossem mostradas ao júri. J. Reason Fowkkes protestou, alegando
que as fotos poderiam causar grande comoção entre os jurados e prejudicar o senso de avaliação deles. O juiz não aceitou o protesto, mas ordenou que Janis escolhesse
apenas uma foto que fosse representativa do conjunto. Janis escolheu a foto tirada mais de perto, que foi entregue ao jurado que estava sentado na primeira cadeira
do recinto do júri. Enquanto a fotografia era passada lentamente de mão em mão, e depois aos jurados reservas, Bosch ficou observando os rostos se crispando de choque
e horror. Recostou-se na cadeira e bebeu água num copo de papel. Quando esvaziou o copo, olhou para o agente do gabinete do xerife, fez sinal de que queria mais
e aproximou-se novamente do microfone.
Depois de percorrer todo o júri, a fotografia foi entregue ao auxiliar do juiz. Seria devolvida aos jurados, juntamente com todas as outras provas materiais apresentadas
durante o julgamento, quando o júri fosse deliberar sobre o veredicto.
Bosch viu Janis voltar à tribuna para continuar o interrogatório. Sabia que ela estava nervosa. Eles haviam almoçado juntos na lanchonete do subsolo do outro prédio
do tribunal, e Janis lhe confidenciara suas preocupações. Embora fosse apenas assistente de Kretzler, tratava-se de um julgamento importante, com potencial para
impulsionar ou destruir a carreira dos dois.
Janis conferiu o bloco de anotações antes de continuar.
- Detetive Bosch, depois de inspecionar o corpo, em que momento o senhor declarou que aquela morte seria investigada como homicídio?
- Imediatamente. Antes até da chegada dos meus parceiros.
- Por quê? A morte não parecia ter ocorrido por acidente?
- Não, a morte...
- Doutora, faça uma pergunta de cada vez, por favor - interpôs o juiz Houghton.
- Desculpe, meritíssimo. Detetive Bosch, não lhe pareceu que a mulher pudesse ter se matado acidentalmente?
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- Não, não pareceu. Achei que alguém estava tentando dar essa impressão.
Janis ficou olhando para o bloco durante bastante tempo antes de continuar. Bosch tinha quase certeza de que se tratava de uma pausa planejada para aquele momento,
quando a fotografia e o seu testemunho já houvessem prendido toda a atenção do júri.
- Detetive, conhece a expressão asfixia auto-erótica?
- Conheço.
- Poderia explicar ao júri o que é isso? Fowkkes levantou-se para protestar.
- Meritíssimo, o detetive Bosch pode ser muitas coisas, mas não foi provado ao tribunal que ele seja perito em sexualidade humana.
Houve um murmúrio de risos abafados na sala. Bosch viu alguns jurados reprimindo sorrisos. Houghton bateu o martelo uma vez e olhou para Janis.
- E agora, doutora?
- Meritíssimo, posso apresentar uma prova disso.
- Continue, então.
- Detetive Bosch, o senhor disse que já trabalhou em centenas de homicídios. Já investigou mortes que não foram causadas por homicídio?
- Sim, provavelmente centenas delas também. Mortes acidentais, suicídios e até mortes por causas naturais. É rotineiro um detetive de homicídios ser chamado por
patrulheiros ao local de uma morte para ajudar a decidir se a tal morte deve ser investigada como um homicídio. Foi o que aconteceu nesse caso. Os patrulheiros e
o sargento não sabiam direito o que tinham ali. Classificaram a morte como suspeita, e minha equipe foi convocada.
-Já foi convocado para investigar, ou já investigou, uma morte classificada pelo senhor, ou pelo médico-legista, como morte acidental por asfixia auto-erótica?
-Já.
Fowkkes levantou-se de novo.
- Protesto novamente, meritíssimo. Estamos entrando numa área na qual o detetive Bosch não é especialista.
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- Meritíssimo - disse Janis -, já está claramente estabelecido que o detetive Bosch é especialista na investigação de mortes, o que inclui todos os tipos de morte.
Ele já se deparou com isso antes. E pode testemunhar a respeito.
Havia um tom de exasperação na voz de Janis. Bosch achou que ela estava falando mais para o júri do que para Houghton. Aquilo era um meio subliminar de comunicar
aos doze jurados que ela queria chegar à verdade, enquanto outros queriam bloquear o acesso a ela.
- Eu me inclino a concordar, doutor Fowkkes - disse Houghton depois de uma pequena pausa. - Vou rejeitar todos os protestos a essa linha de interrogatório. Continue,
doutora.
- Muito obrigado, meritíssimo. Portanto, detetive Bosch, o senhor está familiarizado com casos de asfixia auto-erótica?
- Estou, já trabalhei em três ou quatro. Também estudei a literatura existente sobre o assunto. A asfixia auto-erótica é citada em vários livros sobre técnicas de
investigação de homicídio. Também li resumos de amplas pesquisas realizadas pelo FBI e outros órgãos.
- Antes da ocorrência desse caso?
- Sim, antes.
- O que é a asfixia auto-erótica? Como acontece?
- Doutora Janis Langwiser... - começou o juiz.
- Desculpe, meritíssimo. Vou reformular. O que é asfixia autoerótica, detetive Bosch?
Bosch tomou um gole de água enquanto concatenava os pensamentos. Eles haviam repassado aquelas perguntas durante o almoço.
- É uma morte acidental. Ocorre quando a vítima tenta aumentar a sensação de prazer ao se masturbar, cortando ou desviando o fluxo de sangue arterial para o cérebro.
Geralmente, isso é feito sob a forma de uma ligadura em torno do pescoço. O aperto da ligadura resulta em hipoxia ou diminuição da oxigenação do cérebro. As pessoas
que... hum... fazem isso acreditam que a hipoxia, ou leve tontura, provocada assim aumenta as sensações masturbatórias. Mas a coisa pode levar à morte acidental
se o sujeito
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for longe demais, a ponto de danificar as artérias carótidas ou desmaiar com a ligadura ainda apertada no lugar e sufocar.
- O senhor disse "o sujeito", detetive. Mas neste caso a vítima é uma mulher.
- Este caso aqui não envolve asfixia auto-erótica. Todos os casos desse tipo de morte que vi e investiguei ocorreram com homens.
- O senhor está dizendo que neste caso a morte foi maquiada para parecer asfixia auto-erótica?
- Sim, foi essa a minha conclusão imediata. E continua sendo. Janis balançou a cabeça e fez uma pausa. Bosch bebeu um gole
de água. Ao levar o copo à boca, olhou para o recinto do júri. Todos os jurados pareciam atentos.
- Descreva a situação passo a passo, detetive. Como o senhor chegou a essa conclusão?
- Posso consultar meus relatórios?
- Por favor.
Bosch abriu a pasta à sua frente. As quatro primeiras páginas eram do RIO - relatório do incidente original. Ele foi até a quarta página, que continha o resumo do
chefe da equipe. Na realidade o documento fora escrito por Kiz Rider, embora Bosch fosse o chefe naquele caso. Ele folheou rapidamente o resumo para refrescar a
memória e depois ergueu os olhos para os jurados.
- Várias coisas contradiziam a hipótese de um acidente fatal causado por asfixia auto-erótica. Em primeiro lugar, estranhei, porque estatisticamente é raro esse
tipo de morte ocorrer com vítimas femininas. Não chega a ser um fenômeno cem por cento masculino, mas é quase. E como eu sabia disso, prestei bastante atenção ao
corpo e à cena do crime.
- Poderíamos dizer que o senhor ficou imediatamente desconfiado em relação à cena do crime?
- Poderíamos.
- Muito bem, continue. O que mais lhe chamou a atenção?
- A ligadura. Em quase todos os casos relatados por escrito ou por mim presenciados, a vítima usava alguma espécie de proteção em torno do pescoço para não machucar
ou romper a pele. Na
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maioria das vezes uma peça de vestuário pesado, como um suéter ou uma toalha, era enrolada em volta do pescoço. A ligadura era então feita em torno dessa proteção,
para não provocar uma contusão circular em todo o pescoço. Mas naquele caso ali não havia proteção alguma.
- E o que isso significava, na sua opinião?
- Bom, isso não fazia sentido do ponto de vista da vítima. Quer dizer, supondo que ela realmente tivesse se engajado naquela atividade, a cena não fazia sentido.
Significava que ela não tinha usado de proteção alguma porque não se importava de ficar com o pescoço marcado. Para mim, o que a cena mostrava contradizia o bom
senso. Essa contradição era maior ainda porque ela era atriz, coisa que eu percebi imediatamente por causa de uma pilha de fotos de rosto em cima da cômoda. Ela
dependia de sua presença e atributos físicos para arranjar trabalho como atriz. Eu não podia acreditar que ela tivesse conscientemente se engajado numa atividade,
sexual ou não, que deixasse contusões visíveis no seu pescoço. Isso e outras coisas me levaram a concluir que a cena era uma armação.
Bosch olhou para a mesa da defesa. Storey ainda tinha a cabeça baixa e desenhava no seu bloco como se estivesse sentado no banco de um parque qualquer. Bosch percebeu
que Fowkkes estava anotando algo. Ficou pensando se dissera algo na última resposta que, de alguma forma, pudesse ser usado contra ele. Sabia que Fowkkes era um
especialista em pegar frases de testemunhas e darlhes novo significado quando usadas fora de contexto.
- Que outras coisas levaram o senhor a essa conclusão? - perguntou Janis.
Bosch consultou novamente o resumo do relatório do incidente original.
- Isoladamente, a coisa mais importante foi perceber pela lividez post mortem que o corpo fora deslocado.
- Em termos leigos, detetive, o que significa lividez post-mortem?
- Quando o coração pára de bombear, o sangue começa a se acumular na metade inferior do corpo, seja qual for a posição. Com o tempo, a pele dessa parte adquire uma
aparência contundida.
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Mesmo que o corpo seja movido de lugar, essa contusão permanece na posição original, porque o sangue já coagulou. Com o tempo, o efeito vai se tornando mais visível.
- O que aconteceu neste caso?
- Neste caso havia clara indicação de que o sangue tinha se acumulado no lado esquerdo do corpo. Isso significava que no momento da morte, ou pouco depois, a vítima
esteve deitada sobre o lado esquerdo.
- Entretanto não foi assim que o corpo foi achado, correto?
- Correto. O corpo foi achado na posição supina, ou seja, deitado de costas.
- O que o senhor concluiu disso?
- Que o corpo foi deslocado depois da morte. Que a mulher foi colocada de costas como parte da armação para fazer sua morte parecer asfixia auto-erótica.
- Qual foi a causa da morte, na sua opinião?
- Aquela altura eu não tinha certeza. Só achava que não era o que parecia ser. A contusão no pescoço embaixo da ligadura me levava a crer num caso de estrangulamento
- mas não pelas mãos da própria vítima.
- Quando os seus parceiros chegaram à cena do crime?
- Enquanto eu fazia as anotações iniciais sobre o corpo e a cena do crime.
- Eles chegaram às mesmas conclusões que o senhor?
Fowkkes protestou, dizendo que a pergunta exigia uma resposta que envolvia testemunhos de outrem. O juiz aceitou o protesto. Bosch sabia que aquilo era uma questão
menor. Se Janis quisesse as conclusões de Edgar e Rider registradas nos anais, podia simplesmente convocá-los a depor.
- O senhor compareceu à autópsia do corpo de Jody Krementz?
- Compareci - disse ele, folheando a pasta até achar o laudo da autópsia. - Foi no dia 17 de outubro e realizada pela doutora Teresa Corazón, chefe da Divisão Médico-Legal.
- A causa da morte foi determinada pela Dra. Teresa durante a
autópsia?
- Foi. A causa da morte foi asfixia. Ela foi estrangulada.
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- Por ligadura?
- Sim.
- Mas isso não contradiz sua teoria de que a morte não foi causada por asfixia auto-erótica?
- Não, isso confirmou minha teoria. A pose de uma asfixia auto-erótica foi usada para disfarçar o assassinato da vítima por estrangulamento. Os danos internos às
duas artérias carótidas, ao tecido muscular do pescoço e ao osso hióide, que foi esmagado, levaram a doutora Teresa a confirmar que a morte foi causada por mão alheia.
Os danos eram grandes demais para terem sido autoinfligidos.
Bosch percebeu que levara a mão no pescoço ao descrever as contusões, e deixou-a cair no colo.
- O exame médico-legal encontrou alguma prova independente de homicídio?
Bosch balançou a cabeça.
- Sim, o exame da boca da vítima revelou uma laceração profunda, ocasionada por uma mordida na língua. Esse ferimento é comum em casos de estrangulamento.
Janis virou uma página do seu bloco de anotações.
- Muito bem, detetive Bosch, vamos voltar à cena do crime. O senhor ou seus parceiros interrogaram Jane Gilley?
- Sim, eu interroguei. Juntamente com a detetive Rider.
- A partir desse interrogatório o senhor descobriu onde a vítima esteve nas vinte e quatro horas anteriores à descoberta de sua morte?
- Sim. Primeiro soubemos que ela tinha conhecido o réu numa lanchonete vários dias antes, sendo convidada a ir com ele à estréia de um filme no Chinese Theater,
em Hollywood, na noite de 12 de outubro. O réu apanhou a vítima entre sete e sete e trinta da noite. Jane Gilley viu a cena por uma janela da casa e identificou
o réu.
- Ela sabia a que horas Jody Krementz tinha voltado?
- Não, ela saiu, logo depois da partida de Jody com o réu, e passou a noite fora. Conseqüentemente, não sabia a que horas a colega tinha chegado. Quando voltou para
casa, às onze horas da manhã de 13 de outubro, descobriu o corpo da colega.
- Como se chamava o filme que tinha estreado na véspera?
- Chamava-se Ponto Morto.
- E quem era o diretor?
- David Storey.
Janis fez uma pausa longa. Depois consultou o relógio e olhou para o juiz.
- Meritíssimo - disse -, vou passar a uma nova linha de interrogatório com o detetive Bosch. Talvez seja o melhor momento de interrompermos os trabalhos, se não
for inconveniente.
Houghton afastou a folgada manga preta da toga e olhou para o relógio. Bosch consultou o seu. Eram três e quarenta e cinco.
- Muito bem, doutora. A sessão está suspensa até as nove horas de amanhã.
Houghton disse que Bosch podia sair do banco das testemunhas. Depois proibiu o júri de ler relatos jornalísticos ou assistir a noticiários televisivos sobre o julgamento.
Todos se levantaram, enquanto os jurados saíam em fila indiana. Bosch, que já se juntara a Janis perto da mesa da acusação, lançou o olhar para o lado da defesa.
David Storey estava olhando para ele. O rosto do réu não traía qualquer emoção. Mas Bosch teve a impressão de ver algo naqueles pálidos olhos azuis. Não podia ter
certeza, mas achou que era deboche.
Desviou o olhar do rosto de Storey.
Capítulo 20
Depois que a sala do tribunal se esvaziou, Bosch ficou confabulando com Janis e Kretzler sobre a testemunha desaparecida.
- Alguma novidade? - perguntou Kretzler. - Dependendo do tempo que John Reason mantiver você ali em cima, vamos precisar dela amanhã de tarde ou na manhã seguinte.
- Nada ainda - disse Bosch. - Mas estou me mexendo. Na verdade, preciso ir embora.
- Não estou gostando nada disso - disse Kretzler. - A corda pode arrebentar do nosso lado. Se ela não apareceu, há um motivo. Nunca comprei cem por cento a versão
dela.
- Storey pode ter chegado a ela - sugeriu Bosch.
- Nós precisamos do testemunho dela - disse Janis. - Para demonstrar o hábito. Você tem que encontrar essa mulher.
- Estou tentando.
Ele se levantou da mesa para ir embora.
- Boa sorte, Harry - disse Janis. - A propósito, acho que até agora você se saiu muito bem ali em cima.
Bosch balançou a cabeça.
- A calmaria antes da tempestade.
Caminhando pelo corredor na direção dos elevadores, Bosch foi abordado por um dos repórteres. Não sabia o nome do sujeito, mas já o vira nas cadeiras reservadas
para a imprensa no tribunal.
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- Detetive Bosch? - Bosch continuou andando.
- Escute, eu já disse a todo mundo que não vou fazer comentários até o fim do julgamento. Desculpe. Você vai ter que...
- Não, tudo bem. Eu só queria saber se você encontrou Terry McCaleb.
Bosch parou e olhou para o repórter. -Como assim?
- Ontem. Ele estava à sua procura aqui. - Ah, sim, falei com ele. Conhece Terry?
- Escrevi um livro sobre o FBI há alguns anos. Nós nos conhecemos nessa época. Antes do transplante dele.
Bosch balançou a cabeça, e estava prestes a seguir caminho quando o repórter estendeu-lhe a mão.
- Jack McEvoy.
Bosch cumprimentou o repórter relutantemente, reconhecendo o nome. Cinco anos antes, o FBI seguira a pista de um assassino serial até Los Angeles, onde se acreditava
que ele ia atacar sua próxima vítima - um detetive de homicídios de Hollywood chamado Ed Thomas. Usara informações passadas por McEvoy, repórter do Rocky Mountain
News, um jornal de Denver, para seguir a pista do chamado Poeta, e a vida de Thomas não chegou a ser posta em perigo. Ele já se aposentara e era dono de uma livraria
no condado de Orange.
- Ei, eu me lembro de você - disse Bosch. - Ed Thomas é meu amigo.
Os dois homens se avaliaram mutuamente.
- Está cobrindo isto aqui? - perguntou Bosch de forma óbvia.
- Estou. Para o Neui Times e a Vanity Fair. Também estou pensando em escrever um livro. Talvez a gente possa conversar
quando tudo terminar.
- É, talvez.
- A menos que você já esteja trabalhando nisso com Terry.
- Com Terry? Não, nós falamos de outra coisa ontem. Nada de livro.
- Tá legal, então não me esqueça.
181
McEvoy tirou a carteira do bolso e entregou a Bosch um cartão de visitas.
- Eu trabalho principalmente na minha casa, em Laurel Canyon. Fique à vontade para me dar um telefonema, se quiser.
Bosch ergueu o cartão.
- Tá legal. Preciso ir embora. A gente se vê por aí.
- Falou.
Bosch se afastou e apertou o botão do elevador. Olhou para o cartão novamente enquanto esperava e pensou sobre Ed Thomas. Depois pôs o cartão no bolso do paletó.
Antes que o elevador chegasse, olhou para o corredor e viu que McEvoy continuava lá. Estava conversando com Rudy Tafero, o grandalhão que era investigador da defesa.
Tafero estava inclinado para a frente, falando bem perto de McEvoy, como se aquilo fosse uma espécie de encontro conspiratório. McEvoy tomava notas num bloco.
O elevador se abriu, e Bosch entrou. Ficou observando os dois até as portas se fecharem.
Bosch subiu a colina pelo bulevar Laurel Canyon e desceu em Hollywood, evitando o trânsito do fim da tarde. Dobrou à direita no Sunset Boulevard e poucos quarteirões
depois de entrar em West Hollywood encostou no meio-fio diante de um bar de striptease. Acionou o parquímetro e atravessou a rua, entrando em um acanhado prédio
de escritórios pintado de branco. A construção de dois andares tinha um pátio interno e era ocupada por pequenas produtoras cinematográficas. Eram escritórios pequenos,
com pédireito baixo. As produtoras viviam de filme para filme. Entre as filmagens não havia necessidade de mais espaço ou escritórios luxuosos.
Bosch consultou o relógio e viu que chegara bem na hora. Eram quatro e quarenta e cinco, e a reunião estava marcada para as cinco. Ele subiu a escada até o segundo
andar e passou por uma porta com um letreiro que dizia SAIDEIRA PRODUÇÕES. Era um conjunto de três salas, um dos maiores do prédio. Bosch já estivera ali antes e
conhecia a disposição dos cômodos: a sala de espera com
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a mesa da secretária, o escritório do amigo de Bosch, Albert Said, o "Eira", e uma sala de reunião. A mulher sentada à mesa da secretária ergueu os olhos para Bosch
quando ele entrou.
- Vim falar com Albert Said. Meu nome é Harry Bosch.
Ela balançou a cabeça, pegou o telefone e teclou um número. Bosch ouviu um aparelho tocar na outra sala e reconheceu a voz de Said respondendo.
- E Harry Bosch - disse a secretária.
Bosch ouviu Said dizer à mulher que o fizesse entrar. Foi seguindo para a porta antes que ela largasse o fone.
- Pode entrar - disse ela para as costas dele.
Bosch entrou numa sala mobiliada de forma simples: uma mesa, duas cadeiras, um sofá de couro preto e uma estante com televisão e vídeo. As paredes estavam cobertas
por cartazes dos filmes de Said e outras lembranças, tais como os encostos das cadeiras dos produtores com os títulos dos filmes estampados. Os dois haviam se conhecido
pelo menos quinze anos antes - quando o veterano produtor contratara Bosch como consultor técnico de um filme vagamente baseado num dos casos que o detetive investigara
- e mantido contatos esporádicos na década posterior. Said geralmente telefonava para Bosch quando tinha qualquer dúvida técnica sobre um procedimento policial que
estivesse usando num filme. A maior parte de suas produções não chegava aos cinemas. Eram filmes feitos para a televisão aberta ou a cabo.
Albert Said estava de pé atrás da mesa, e Bosch estendeu a mão para ele.
- Oi, Eira, como vão as coisas? - Indo bem, meu amigo.
Ele apontou para a televisão.
- Vi a sua bela atuação na TV Tribuna/ hoje. Bravo.
Bateu palmas polidamente. Bosch fez um gesto descartando o elogio e consultou novamente o relógio.
- Obrigado. E aqui, está tudo combinado?
- Acho que sim. A Marjorie vai fazer com que ela me espere na sala de reunião. Lá você assume o comando.
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- Eu agradeço, Eira. Diga o que eu posso fazer para acertar essa dívida.
- Pode participar do meu próximo filme. Você tem uma grande presença, meu amigo. Assisti ao troço todo hoje. Até gravei, se quiser conferir.
- Não, acho que não. E em todo caso, não vamos ter tempo para isso. O que anda aprontando atualmente?
- Ah, você sabe, esperando o sinal verde. Tenho um projeto com financiamento internacional que está quase saindo. E sobre um tira que é mandado para a prisão. O
trauma de perder seu distintivo, seu auto-respeito e tudo mais faz o sujeito ter amnésia. Ele vai para a prisão sem conseguir lembrar quais são os caras que pôs
lá e os que não pôs. Fica numa luta constante para sobreviver. O único preso com quem faz amizade acaba sendo um assassino serial que ele mesmo mandou para lá.
Éum filme de suspense, Harry. O que acha? Steven Segal está lendo o roteiro.
As espessas sobrancelhas negras de Said se arquearam, formando duas pontas agudas sobre a testa. Ele estava claramente entusiasmado com o argumento do filme.
- Não sei, Eira - disse Bosch. - Acho que isso já foi feito antes.
- Tudo já foi feito antes. Mas o que acha?
Bosch foi salvo pelo gongo. No silêncio que se seguiu à pergunta de Said, os dois ouviram a secretária falando com alguém na sala de espera. Depois o intercomunicador
tocou na mesa de Said, e a secretária disse: "A Srta. Crowe chegou. Vai esperar na sala de
reunião."
Bosch meneou a cabeça para Said.
- Obrigado, Eira - sussurrou ele. - A partir de agora é comigo.
- Tem certeza?
- Eu aviso se precisar de ajuda.
Bosch virou-se para a porta do escritório, mas voltou até a mesa e estendeu a mão.
- Pode ser que eu tenha que me mandar meio rápido. E melhor a gente se despedir. Boa sorte com o projeto. Tem pinta de mais um sucesso.
Eles se despediram com um aperto de mãos.
184
- E, vamos ver - disse Said.
Bosch saiu do escritório, cruzou o pequeno corredor e entrou na sala de reunião. No centro do aposento havia uma mesa quadrada, com tampo de vidro e uma cadeira
de cada lado. Annabelle Crowe estava sentada na cadeira do lado oposto à porta. Examinava uma fotografia em preto-e-branco de si mesma quando Bosch entrou. Ergueu
os olhos com um amplo sorriso, mostrando dentes perfeitos. O sorriso foi mantido por pouco mais de um segundo e depois desabou do seu rosto feito uma avalanche de
lama em Malibu.
- O que... o que está fazendo aqui?
- Olá, Annabelle. Como vai?
- Isso aqui é um teste... Você não pode...
- Tem razão, é um teste. Estou testando você para o papel de testemunha num julgamento de assassinato.
A mulher se levantou. Uma foto do seu rosto e um currículo deslizaram da mesa para o chão.
- Você não pode... O que está acontecendo aqui?
- Você sabe o que está acontecendo. Você se mudou e não deixou o endereço. Seus pais não puderam me ajudar. Seu agente não quis me ajudar. Eu só podia chegar até
você marcando um teste. Agora sente aí e vamos conversar. Onde se meteu e por que está se esquivando do julgamento?
- Então o tal papel não existe? Bosch quase riu. Ela ainda não sacara.
- Não, não há papel algum.
- E eles não vão refilmar Chinatoum?
Dessa vez ele riu abertamente, mas logo se recuperou.
- Vão chegar lá um dia desses. Mas você é jovem demais para o papel, e eu não sou Jake Gittes. Quer se sentar, por favor?
Bosch fez menção de puxar uma cadeira à frente dela. Mas Annabelle não queria se sentar. Parecia muito zangada. Era uma jovem linda, com um rosto que freqüentemente
a fazia conseguir o que queria. Mas não no momento.
- Eu mandei você se sentar - disse Bosch em tom severo. - Precisa entender uma coisa, Annabelle. Quando não obedeceu à
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intimação para comparecer hoje ao tribunal, você infringiu a lei. Isso significa que eu posso prender você, se quiser. Aí nós conversamos no xadrez. A alternativa é
nos sentarmos nesta sala agradável que está à nossa disposição, e conversarmos de forma civilizada. Você decide, Annabelle.
Ela deixou-se cair novamente na cadeira. Tinha a boca comprimida numa linha fina. O batom que passara cuidadosamente para o teste de elenco já estava começando a
rachar e desbotar. Bosch ficou olhando para ela durante bastante tempo antes de começar.
- Quem chegou até você, Annabelle? Ela lançou-lhe um olhar nervoso.
- Escute, eu fiquei com medo, tá legal? E ainda estou com medo. David Storey é um sujeito poderoso e tem uns caras maus por trás dele.
Bosch se inclinou sobre a mesa.
- Está dizendo que foi ameaçada por ele? Ou por eles?
- Não, não estou dizendo isso. Eles não precisam me ameaçar. Eu já vi esse filme.
Bosch se recostou na cadeira e ficou examinando Annabelle, calado. O olhar dela se movia pela sala em todas as direções, menos para ele. O ruído do trânsito vindo
do Sunset Boulevard infiltrava-se através da única janela da sala, que se achava fechada. Alguém deu a descarga numa privada em algum lugar do prédio. Finalmente,
Annabelle olhou para Bosch.
- O que foi? O que você quer?
- Quero que você testemunhe. Quero que enfrente esse cara. Pelo que ele tentou fazer com você. Por Jody Krementz. E por Alicia Lopez.
- Quem é Alicia Lopez?
- Outra vítima que encontramos. Ela não teve a mesma sorte que você.
Bosch percebeu a perturbação no rosto da mulher. Evidentemente, ela via alguma espécie de perigo no ato de testemunhar.
- Se eu testemunhar, nunca mais vou trabalhar. E a coisa pode não parar por aí.
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- Quem lhe disse isso? Ela não respondeu.
- Vamos, quem? Isso veio deles, do seu agente, de quem?
Ela hesitou e depois abanou a cabeça, como se não acreditasse que estava falando com ele.
- Eu estava malhando no step da Crunch e um cara pegou o aparelho ao lado do meu. Ele estava lendo o jornal, com a página dobrada numa reportagem qualquer. E eu
estava pensando nos meus problemas, quando de repente ele começou a falar. Nem olhou para mim. Simplesmente foi falando, enquanto continuava com os olhos no jornal.
Disse que a reportagem que ele estava lendo era sobre o julgamento de David Storey e que ele detestaria testemunhar contra ele. Disse que quem fizesse isso nunca
mais trabalharia nesta cidade.
Ela parou de falar, mas Bosch ficou esperando, ainda examinando Annabelle. A angústia provocada pela narrativa da história parecia genuína. Ela estava à beira das
lágrimas.
- E eu... eu entrei num pânico tão grande com ele ali do lado, que larguei o aparelho e corri para o vestiário. Fiquei uma hora lá dentro, o tempo todo com medo
que ele ainda estivesse ali fora, esperando por mim. Pra me vigiar.
Ela começou a chorar. Bosch se levantou, saiu da sala e inspecionou o banheiro no corredor. Havia uma caixa com lenços de papel. Ele pegou a caixa e voltou para
a sala de reunião. Entregou a caixa a Annabelle Crowe e sentou-se novamente.
- Onde fica a Crunch?
- Logo ali, descendo a rua. Na esquina do Sunset com Crescent Heights.
Bosch balançou a cabeça. Havia um complexo de compras e entretenimento naquele local, e a lanchonete em que Jody Krementz conhecera David Storey também era lá. Ele
ficou imaginando se haveria alguma ligação entre as duas coisas. Talvez Storey fosse sócio da Crunch. Ou tivesse arranjado um colega de malhação para ameaçar Annabelle
Crowe.
- Conseguiu ver o cara?
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- Consegui, mas isso não interessa. Não sei quem ele era. Nunca tinha visto o sujeito antes e não vi mais. Bosch pensou em Rudy Tafero.
- Sabe quem é o investigador da equipe de defesa? Um cara chamado Rudy Tafero? Ele é alto, tem cabelo preto e vive bronzeado. Um sujeito boa-pinta?
- Não sei quem esse cara é, mas não é o homem que estava lá naquele dia. O sujeito era baixo e careca. E usava óculos.
A descrição não trouxe ninguém à lembrança a Bosch. Ele decidiu pôr aquilo de lado momentaneamente. Teria que avisar Janis Langwiser e Kretzler da ameaça. Talvez
eles quisessem levar o assunto ao juiz Houghton. Talvez quisessem que Bosch passasse na Crunch e começasse a fazer perguntas, para ver se conseguia confirmar alguma
coisa.
- Então, o que vai fazer? - perguntou ela. - Vai me obrigar a testemunhar?
- Isso não depende de mim. Os promotores vão decidir depois que eu contar sua história pra eles.
- Você acredita em mim?
Bosch hesitou, e depois balançou a cabeça.
- Mas você tem que se apresentar mesmo assim. Foi intimada. Esteja lá amanhã entre meio-dia e uma. Eles vão dizer a você o que querem fazer.
Bosch sabia que eles obrigariam Annabelle a testemunhar. Não iam querer saber se a ameaça era verdadeira ou não. Precisavam se preocupar com o caso. Annabelle Crowe
seria sacrificada para que David Storey fosse apanhado. Um peixe pequeno para apanhar um peixe grande, era assim que a banda tocava.
Bosch mandou Annabelle esvaziar a bolsa e remexeu nas coisas dela. Encontrou um endereço e um número de telefone anotados. Era um apartamento alugado por temporada
em Burbank. Ela confessou que pusera seus móveis num depósito e fora para o apartamento esperar o fim do julgamento.
- Vou aliviar sua barra, Annabelle, e não vou obrigar você a passar a noite no xilindró. Mas assim como a encontrei desta vez,
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posso encontrar de novo. Se não aparecer amanhã, faço isso, e você vai direto para o xadrez de Sybil Brand, está entendendo? Ela balançou a cabeça.
- Vai aparecer?
Ela balançou a cabeça novamente.
- Eu não devia ter contado aquela história a vocês. Bosch balançou a cabeça. Ela tinha razão.
- E tarde demais para se lamentar - disse ele. - Você agiu certo. Agora tem que agüentar. A justiça tem isso de engraçado. Você resolve ser corajoso, põe o pescoço
para fora, e eles não deixam mais você recuar.
Capítulo 21
Art Pepper tocava ao fundo, e Bosch estava ao telefone com Janis Langwiser quando alguém bateu à porta. Ele saiu da cozinha para o corredor e viu um vulto espiando
através da tela. Aborrecido com a intrusão de algum angariador de donativos, foi até a porta de madeira. Ia simplesmente fechá-la sem dizer nada, mas reconheceu
o visitante como Terry McCaleb. Ainda ao telefone, onde ouvia Janis Langwiser reclamar de possíveis ameaças a testemunhas, ele ligou a luz externa, abriu a porta
de tela e acenou para que McCaleb entrasse.
McCaleb fez sinal de que ficaria calado até o final do telefonema. Bosch viu-o cruzar a sala até a varanda dos fundos, de onde se avistava as luzes do passo Cahuenga.
Tentou se concentrar no que Janis dizia, mas estava curioso para saber por que McCaleb se dera ao trabalho de subir de carro as colinas para vê-lo.
- Harry, está me ouvindo?
- Estou. Qual foi a última parte?
- Perguntei se você acha que Houghton Bala vai atrasar o julgamento se abrirmos uma investigação.
Bosch não teve que pensar muito para responder. - De jeito nenhum. O show tem que continuar.
- Também acho. Vou ligar para o Roger e ver o que ele quer fazer. Em todo caso, esse é o nosso menor problema. Assim que
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você mencionar Alicia Lopez no seu depoimento vai haver uma luta brutal.
- Pensei que essa briga já estava ganha. Houghton decidiu...
- Isso não significa que Fowkkes não tentará um novo ataque. Ainda não podemos ficar tranqüilos.
Houve uma pausa. A voz dela não parecera muito confiante.
- Vejo você amanhã, Harry.
- Está bem, Janis. Até logo.
Bosch desligou e foi recolocar o telefone na base dentro da cozinha. Quando saiu, McCaleb estava parado na sala, examinando uma fotografia da esposa de Bosch nas
prateleiras acima do aparelho de som.
- Terry, o que há?
- Oi, Harry. Desculpe vir assim, sem avisar. Não liguei antes porque não sabia o telefone daqui.
- Como achou a casa? Quer uma cerveja ou outra coisa? - disse Bosch. Depois apontou para o peito dele e acrescentou: - Pode tomar cerveja?
- Agora já posso. Na verdade, acabo de ser liberado. Já posso beber de novo. Com moderação. Uma cerveja cai bem.
Bosch foi até a cozinha. McCaleb continuou falando da sala.
- Já estive aqui antes. Não se lembra?
Bosch voltou com duas garrafas abertas de Anchor Steam e entregou uma a McCaleb.
- Quer um copo? Quando esteve aqui? McCaleb pegou a garrafa.
- Cielo Azul.
Deu um gole grande na garrafa, respondendo à pergunta de Bosch.
Cielo Azul, pensou Bosch. Depois se lembrou. Eles haviam se embebedado ali na varanda dos fundos certa vez. Ambos queriam esquecer os detalhes sórdidos daquele caso,
que era terrível demais para ser analisado em profundidade sobriamente. Bosch lembrou que ficara perguntando retoricamente, com a voz embriagada: "Onde está a mão
de Deus, onde está a mão de Deus?", e que no dia seguinte se envergonhara daquele descontrole.
- Ah, é - disse ele. - Um dos meus mais brilhantes momentos existenciais.
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- Pois é. Só que a casa está diferente agora. A antiga desceu colina abaixo com o terremoto?
- Quase isso. Tudo aqui foi condenado. Tive que recomeçar dos alicerces.
- E, eu não reconheci o lugar. Vim subindo à procura da casa antiga. Mas aí vi o Shamu e imaginei que não podia ter outro tira na vizinhança.
Bosch pensou na viatura preta-e-branca estacionada na garagem. Não se dera ao trabalho de levá-la à delegacia para trocá-la por seu carro particular. Aquilo o faria
economizar tempo pela manhã, permitindo-lhe ir direto para o tribunal. O carro era uma viatura policial normal, mas sem as luzes de emergência na capota. Todas as
divisões faziam os detetives usar aqueles carros. Era uma norma oficial, para dar a impressão de que havia mais radiopatrulhas nas ruas.
McCaleb estendeu sua garrafa e tocou a garrafa de Bosch.
- A Cielo Azul - disse ele.
- Pois é - disse Bosch, bebendo um gole da garrafa. Estava ótima, geladíssima. Era a primeira cerveja que ele bebia desde o início do julgamento. Decidiu que só
beberia aquela, mesmo que McCaleb bebesse outras.
- Sua ex-mulher? - perguntou McCaleb, apontando para a fotografia nas prateleiras.
- Minha mulher. Ainda não é minha ex... pelo menos até onde eu sei. Mas acho que a coisa está indo por esse caminho - disse Bosch, olhando para o retrato de Eleanor
Wish. Era a única fotografia que tinha dela.
- Que pena, cara.
- Pois é. Mas o que está havendo, Terry? Tenho uns troços que preciso rever para...
- Sei, o julgamento. Desculpe a invasão, cara. Sei que o depoimento deve estar tomando todo o seu tempo. Eu só queria esclarecer umas coisinhas do caso Gunn. Mas
também quero contar uma coisa pra você. Quer dizer, mostrar uma coisa.
McCaleb tirou a carteira do bolso traseiro, abriu-a e retirou uma fotografia. Passou-a a Bosch. A fotografia, que assumira o contorno da carteira, mostrava um bebê
de cabelo preto nos braços de uma mulher de cabelo preto.
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- Essa é a minha filha, Harry. E minha mulher.
Bosch balançou a cabeça e examinou a fotografia. Tanto a mãe quando a filha tinham cabelo preto e pele morena. Ambas eram muito bonitas. Ele sabia que provavelmente
pareciam ainda mais bonitas para McCaleb.
- Lindas - disse ele. - A neném parece tão novinha. Tão pequenina.
- Ela já tem quase quatro meses. Mas essa foto foi tirada um mês atrás. Eu esqueci de contar isso pra você no almoço de ontem. Nós demos a ela o nome de Cielo Azul.
Bosch ergueu o olhar da fotografia para McCaleb. Ficou olhando para ele um instante e depois balançou a cabeça.
- Bacana.
- E, eu disse a Graciela que queria dar esse nome a ela, e contei por quê. Ela achou que era uma boa idéia.
Bosch devolveu-lhe a fotografia.
- Espero que algum dia a guria também ache.
- Eu também espero. Quase sempre ela é chamada de CiCi. Mas lembra da noite em que você ficou repetindo aquela pergunta sobre a mão de Deus, dizendo que não conseguia
mais encontrar isso em lugar algum? Aconteceu comigo também. Eu perdi a esperança. Nesse tipo de trabalho... é difícil não perder. E aí...
Ele ergueu a fotografia.
- Aqui está ela, bem aqui. Eu achei a mão de Deus novamente. Vejo isso nos olhos dela.
Bosch ficou olhando para ele durante bastante tempo e depois balançou a cabeça.
- Que bom pra você, Terry.
- Quer dizer, não estou tentando posar de... Quer dizer, não estou tentando converter você, ou qualquer coisa assim. Só estou dizendo que encontrei uma coisa que
estava faltando. E não sei se você ainda está procurando por ela... Só queria dizer, sabe, que a mão de Deus está lá fora. Não desista.
Bosch desviou o olhar de McCaleb, dirigindo-o para a escuridão através das portas de vidro.
- Para algumas pessoas, tenho certeza que está.
Bebeu o restante da cerveja e foi até a cozinha quebrar a promessa
193
que fizera a si mesmo de tomar apenas uma. Perguntou a McCaleb se ele queria outra, mas o visitante recusou. Ao curvar-se diante da geladeira aberta, Bosch
parou e fechou os olhos, deixando que o ar frio lhe acariciasse o rosto. Pensou no que McCaleb acabara de lhe dizer.
- Você não acha que é uma dessas pessoas?
Bosch ergueu-se sobressaltado quando ouviu o som da voz de McCaleb, que estava parado na soleira da porta da cozinha.
- O quê?
- Você disse que a mão de Deus estava lá fora para algumas pessoas. Não acha que é uma dessas pessoas?
Bosch pegou uma cerveja na geladeira e enfiou-a no abridoi preso na parede. Abriu a tampinha e deu um bom gole antes de retrucar.
- O que é isso, Terry, o jogo das vinte perguntas? Está pensando em virar padre, alguma coisa assim?
McCaleb sorriu e abanou a cabeça.
- Desculpe, Harry. Pai recente, entende? Acho que quero contar a todo mundo, só isso.
- Bacana. Quer falar sobre Gunn agora?
- Claro.
- Vamos lá pra fora ver a noite.
Eles foram para a varanda dos fundos e ficaram olhando a vista. A rodovia 101 apresentava a costumeira fita de luzes, uma veia brilhante cortando as montanhas. O
céu estava claro, pois a névoa da poluição fora lavada pela chuva de uma semana antes. Bosch viu as luzes na parte baixa do Vale, parecendo se estender até o infinito.
Mais perto da casa via-se apenas a escuridão do matagal na encosta da colina. Ele sentiu o cheiro dos eucaliptos ali embaixo; era sempre mais forte depois da chuva.
McCaleb falou primeiro.
- Você tem uma casa bacana aqui, Harry. Num lugar bacana. Deve odiar ter que descer toda manhã para aquela pestilência.
Bosch olhou para ele.
- Pouco me importa, se de vez em quando eu conseguir pegar alguns agentes transmissores da pestilência. Gente como David Storey.
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- E os que conseguem escapar? Como Gunn?
- Ninguém escapa, Terry. Se eu acreditar que eles escapam, não vou mais poder fazer o que faço. E verdade que a gente não consegue pôr a mão em todos eles, mas eu
acredito no círculo. Na grande roda. Tudo que gira acaba voltando. No final. Eu posso não ver a mão de Deus com tanta freqüência quanto você, mas acredito nisso.
Bosch pôs a garrafa sobre a balaustrada. Estava vazia e ele queria outra, mas sabia que era melhor pisar no freio. Ia precisar de cada célula cerebral que pudesse
utilizar no tribunal no dia seguinte. Pensou em fumar um cigarro. Sabia que havia um maço fechado no armário da cozinha. Mas decidiu evitar aquilo também.
- Então acho que o que aconteceu com Gunn deve ser uma confirmação da sua fé na teoria da grande roda.
Bosch não disse nada durante bastante tempo. Ficou olhando fixamente para o vale das luzes.
- É - disse finalmente. - Acho que foi.
Desviou o olhar e virou de costas para a paisagem. Encostado na balaustrada, olhou de novo para McCaleb.
- Que história é essa de Gunn? Acho que ontem eu contei tudo que havia para ser contado. Está com o dossiê, não é?
McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que você provavelmente contou, e eu vi o dossiê. Mas achei que talvez tivesse surgido mais alguma coisa. Que talvez a nossa conversa tivesse despertado alguma
lembrança do caso em você, entende?
Bosch deu uma espécie de risada e pegou a garrafa antes de se lembrar que estava vazia.
- Qual é, cara? Estou no meio de um julgamento. Estou depondo para tentar pegar um sujeito muito esperto. Quer dizer, parei de pensar na sua investigação no minuto
em que levantei da mesa no Cupid's. O que exatamente quer de mim?
- Nada, Harry. Não quero nada que você não tenha. Só achei que valia a pena arriscar, mais nada. Estou trabalhando nesse troço jogando a rede por toda parte. Achei
que talvez... Deixa pra lá.
- Você é um cara estranho, McCaleb. Estou lembrando disso
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agora. O jeito com que você costumava olhar para as fotos da cena do crime. Quer outra cerveja?
- Porque não?
Bosch afastou-se da balaustrada, pegou sua garrafa e estendeu a mão para a de McCaleb. Ainda estava um terço cheia, pelo menos. Ele a pôs de volta.
- Bom, acabe esta primeiro.
Entrou e pegou mais duas cervejas na geladeira. Quando voltou da cozinha McCaleb estava parado na sala, estendendo-lhe a garrafa vazia. Por um instante, o detetive
ficou na dúvida se ele terminara de beber ou se derramara a cerveja por cima da balaustrada. Levou a garrafa vazia para a cozinha, e quando voltou viu McCaleb parado
diante do aparelho de som, examinando um estojo de CD.
- É isto que está tocando? - perguntou. - Art Pepper encontra a Rhythm Section?
Bosch se aproximou.
- É. Art Pepper e os músicos de Miles. Red Garland ao piano, Paul Chambers no contrabaixo, Philly Joe Jones na bateria. Gravado aqui em Los Angeles em 19 de janeiro
de 1957. Um dia só. Dizem que a cortiça no pescoço do saxofone de Pepper estava rachada, mas ele não se importou. Só tinha uma chance de tocar com os caras. Tirou
o máximo proveito. Um dia, uma tentativa, um clássico. E assim que se faz a coisa.
- Esses caras eram do conjunto de Miles Davis?
- Na época, eram.
McCaleb balançou a cabeça. Bosch se inclinou para ver mais de perto a capa do CD nas mãos dele.
- Pois é, Art Pepper - disse ele. - Quando eu era criança, não sabia quem era o meu pai. Minha mãe tinha um monte de discos desse cara. Ela freqüentava umas boates
de jazz onde ele tocava. O Art era um sujeito boa-pinta. Para um viciado. Olhe só pra esta foto. Cheio de pose. Inventei que ele era meu velho e que não vivia conosco
porque estava sempre viajando e gravando discos. Quase cheguei ao ponto de acreditar na história toda. Mais tarde, quer dizer, anos mais tarde, li um livro sobre
ele. Dizia que estava drogado de cair quando tirou esta foto. Vomitou logo que terminou e voltou para a cama.
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McCaleb examinou a foto na capa do CD. Um homem bonito encostado em uma árvore, com o saxofone embaixo do braço direito.
- Bom, ele tocava muito - disse McCaleb.
- E verdade - concordou Bosch. - Um gênio com uma agulha no braço.
Ele avançou e aumentou ligeiramente o volume. A música era Straight Life, o carro-chefe de Art Pepper.
- Você acredita nisso? - perguntou McCaleb.
- Em quê, que ele era um gênio? Com o saxofone acredito que
era.
- Não, quero saber se acha que todo gênio - músico, artista plástico, até um detetive - tem um defeito fatal como esse? A agulha no braço.
- Acho que todo mundo tem um defeito fatal, seja gênio ou não.
Bosch aumentou ainda mais o volume. McCaleb pôs a cerveja sobre uma das caixas de som do chão. Bosch pegou a garrafa e a devolveu a ele. Usou a palma da mão para
enxugar o anel de umidade na superfície da madeira. McCaleb baixou o volume da música.
- Vamos, Harry, solta alguma coisa.
- Do que está falando?
- Eu fiz essa viagem toda até aqui. Solta alguma coisa sobre Gunn. Sei que está pouco se lixando para ele... a roda girou e ele não escapou. Mas eu não gostei da
maneira como a coisa foi feita. Esse cara, seja lá quem for, ainda está solto por aí. E vai fazer de novo. Posso garantir.
Bosch deu de ombros, como se pouco se importasse com aquilo.
- Está bem, vou te dizer uma coisa. É pouco, mas talvez valha a pena tentar. Quando fui falar com ele na cela, na véspera do assassinato, também falei com os guardas
do condado que tinham prendido o Gunn por dirigir alcoolizado. Eles disseram que perguntaram onde ele tinha bebido, e que ele disse que tinha saído de um lugar chamado
Nat's. Fica no lado sul do bulevar, a cerca de um quarteirão do Musso's.
- Tá legal, dá pra encontrar - disse McCaleb, com um tom de e-daí? na voz. - Qual é a ligação?
- Bom, quando eu conheci o Gunn, há seis anos, ele tinha passado
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a noite bebendo no Nat's. Foi lá que ele pegou a tal mulher que matou.
- Então era freguês da casa.
- Parece que sim.
- Obrigado, Harry. Vou verificar esse troço. Por que não contou isso a Jaye Winston? Bosch deu de ombros.
- Acho que não me ocorreu, e ela também não me perguntou. McCaleb quase pôs a cerveja na caixa de som novamente, mas
em vez disso entregou a garrafa a Bosch.
- Talvez eu passe lá ainda hoje.
- Não esqueça. -Esquecer o quê?
- Se pegar o cara que fez aquilo, dê meus parabéns a ele. McCaleb não respondeu. Olhou em volta, como se houvesse
acabado de entrar.
- Posso usar o banheiro?
- Lá no fim do corredor, à direita.
McCaleb partiu para o banheiro, enquanto Bosch levava as cervejas para a cozinha e as punha na lata de reciclagem com as outras. Abriu a geladeira e viu que só sobrara
uma garrafa das seis que comprara a caminho de casa, depois de armar aquela encenação com Annabelle Crowe. Fechou a geladeira quando McCaleb entrou no aposento.
- Aquele quadro que você pendurou no corredor é maluco pra caralho - disse ele.
- O quê? Ah, é. Gosto daquele quadro.
- O que aquilo significa?
- Não sei. Acho que significa que a grande roda não pára de girar. Ninguém escapa.
McCaleb balançou a cabeça, dizendo:
- Também acho.
- Vai descer até o Nat's?
- Estou pensando nisso. Quer ir?
Bosch ficou tentado, embora soubesse que seria tolice. Tinha que rever metade do dossiê de assassinato a fim de se preparar para a continuação do depoimento na manhã
seguinte.
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- Não, preciso trabalhar um pouco aqui e me preparar para amanhã.
- Tá legal. E como foi hoje?
- Até agora tudo bem. Mas por enquanto a bola rolou macia... eu fui interrogado pela acusação. Amanhã a bola vai estar com John Reason, e ele só dá passe na fogueira.
- Vou assistir ao noticiário.
McCaleb avançou e estendeu a mão para Bosch, que a apertou.
- Tome cuidado por aí.
- Você também, Harry. Obrigado pelas cervejas.
- Não tem problema - disse Bosch.
Levou McCaleb até a porta e viu-o entrar no Cherokee preto estacionado na rua. O motor pegou de pronto e McCaleb foi embora, deixando Bosch parado na soleira iluminada.
Bosch entrou, trancou a porta e apagou as luzes da sala. Deixou o som ligado. O aparelho se desligaria automaticamente quando terminasse o momento clássico de Art
Pepper. Era cedo, mas Bosch já estava cansado, dfevido às pressões do dia e ao álcool que corria em seu sangue. Decidiu dormir e acordar mais cedo para preparar
o testemunho. Entrou na cozinha e pegou a última garrafa de cerveja na geladeira.
No corredor que levava ao quarto, parou e ficou olhando para o quadro emoldurado a que McCaleb se referira. Era uma reprodução de O jardim das delícias terrenas,
a pintura de Hieronymus Bosch. Ele possuía aquele quadro desde seus tempos de garoto. A superfície da gravura estava enrugada e arranhada, em mau estado. Fora Eleanor
que a levara da sala para o corredor. Ela não gostava de ver aquilo ali, no lugar onde eles ficavam sentados à noite. Bosch nunca entendera se aquilo era por causa
do que havia no quadro ou porque a gravura estava velha e estragada.
Vendo o panorama de luxúria e sofrimento humanos mostrado no quadro, Bosch pensou na possibilidade de levá-lo novamente para o lugar onde ficava antes - na sala.
No sonho, Bosch se deslocava pela água escura, incapaz de ver as mãos diante do próprio rosto. Ouvindo uma campainha, ele fez força para se elevar através das trevas.
Bosch acordou. A luz estava acesa, mas tudo estava silencioso. O aparelho de som se desligara. Quando foi olhar o relógio, o telefone em cima da mesinha-de-cabeceira
tocou novamente, e ele agarrou-o rapidamente.
-Alô.
- Oi, Harry, é Kiz. Sua antiga parceira. -O que há, Kiz?
- Você está bem? Parece... meio desligado.
- Estou bem. Eu só estava... estava dormindo.
Ele olhou para o relógio. Passava um pouco das dez.
- Desculpe, Harry, achei que estava queimando as pestanas se preparando para amanhã.
- Vou levantar cedo para fazer isso.
- Bom, você se saiu bem hoje. Ficamos com a televisão ligada lá no trabalho. Todo mundo estava torcendo por você.
- Sei, sei. Como estão as coisas lá?
- Estão indo. De certa forma, estou começando de novo. Tenho que provar meu valor pra eles.
- Não se preocupe com isso. Você vai ultrapassar aqueles caras como se eles estivessem parados. Exatamente como fez comigo.
- Harry... você é o máximo. Nem sabe quanta coisa eu aprendi com você.
Bosch hesitou. Estava sinceramente tocado pelo que ela dissera.
- E muita gentileza sua, Kiz. Você devia telefonar com mais freqüência pra mim.
Ela riu.
- Bom, não foi por isso que liguei. Eu disse a uma amiga que faria isso. Estou me sentindo no segundo grau, mas aí vai. Conheço uma pessoa que está interessada em
você. Eu disse que ia conferir pra ver se você estava de novo em campo, entende o que quero dizer?
Bosch nem precisou pensar antes de responder.
- Não, Kiz, não estou disponível. Eu... eu ainda não desisti de Eleanor. Ainda tenho esperança que ela telefone ou apareça, e talvez a gente possa dar um jeito nas
coisas. Sabe como é.
- Sei. Legal, Harry. Eu só disse que ia perguntar. Mas, se mudar de idéia, é uma garota bacana.
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- Alguém que eu conheça?
- Conhece, sim. É a Jaye Winston, lá do escritório do xerife. Fazemos parte de um grupo de mulheres. Canas sem Canudos. Ficamos conversando sobre você hoje.
Bosch não disse nada. Estava com uma estranha sensação de aperto no peito. Ele não acreditava em coincidências.
- Harry, você está aí?
- Sim, estou aqui. Só estava pensando numa coisa.
- Bom, vou deixar você em paz. E, escute, Jaye me pediu pra não dar o nome dela. Sabe como é... Ela só queria saber de você, soltando um balão-de-ensaio anônimo.
Pra não haver constrangimento quando vocês se esbarrassem no serviço. Portanto, você não soube da coisa por meu intermédio, certo?
- Certo. Ela fez perguntas sobre mim?
- Algumas. Nada de importante. Espero que não se incomode. Eu disse que ela tinha escolhido bem. Falei que se eu não fosse, você sabe, do jeito que sou, também ficaria
interessada.
- Obrigado, Kiz - disse Bosch, com a cabeça a mil por hora.
- Bom, escute, preciso desligar. Tchau. Bote pra quebrar amanhã, está bem?
- Vou tentar.
Ela desligou e Bosch recolocou o telefone no suporte lentamente. O aperto no peito ficou mais intenso. Ele começou a pensar nas perguntas que McCaleb fizera durante
a visita e no que ele respondera. Agora era Jaye Winston fazendo perguntas sobre ele.
Ele não acreditava que aquilo fosse uma coincidência. Estava claro que eles tinham a mira assestada nele. Estavam atrás dele por causa do assassinato de Edward Gunn.
E ele sabia que provavelmente fornecera a McCaleb o insight necessário para que ele acreditasse estar no caminho certo.
Bosch esvaziou a garrafa de cerveja que estava na cômoda. O último gole estava morno e azedo. Ele sabia que não havia mais garrafas na geladeira. Levantou-se para
pegar um cigarro no lugar da cerveja.
Capítulo 22
O Nat's era um bar do tamanho de um vagão ferroviário, semelhante a muitas outras espeluncas de Hollywood. Era freqüentado por bebedores inveterados durante o dia,
putas e sua clientela nas primeiras horas da noite, e a turma das tatuagens e jaquetas de couro durante a madrugada. Era o tipo de lugar onde quem tentava pagar
as bebidas com um cartão de crédito dourado era visto como alvo fácil.
McCaleb parara no Musso's para jantar - seu relógio corporal exigia nutrientes, ameaçando parar totalmente - e só chegou ao Nat's depois das dez. Enquanto comia
o pastelão de galinha, ficou pensando se valia mesmo a pena perder tempo indo até o bar para fazer perguntas sobre Gunn. A dica viera do próprio suspeito. Será que
ele orientaria conscientemente o investigador na direção certa? Parecia que não, mas McCaleb pesara o fato de Bosch ter bebido e não estar ciente da verdadeira intenção
da visita dele. A dica podia muito bem ser válida, e ele decidira não negligenciar parte alguma da investigação.
Ao entrar, levou alguns segundos para se acostumar à iluminação fraca e avermelhada. Quando o recinto ficou nítido, viu que estava meio vazio. Era o intervalo entre
a turma do anoitecer e o grupo da madrugada. Duas mulheres - uma negra, uma branca -
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sentadas na ponta do balcão que corria ao longo do lado esquerdo do aposento examinaram-no de alto a baixo. McCaleb viu a palavra tira registrada nos olhos delas,
ao mesmo tempo que os seus registravam putas. Intimamente, ele ficou satisfeito por ainda ter aquela aparência. Passou por elas e avançou recinto adentro. Quase
todas as mesas com divisórias alinhadas do lado direito da sala estavam ocupadas. Ninguém ali deu-lhe sequer um olhar.
McCaleb foi até o balcão, meteu-se entre dois banquinhos e acenou para uma das atendentes.
Uma antiga canção de Bob Seger, Night Moves, saía em tom ensurdecedor da vitrola automática nos fundos do recinto. A atendente inclinou-se sobre o balcão para poder
ouvir o pedido de McCaleb. Usava um colete preto abotoado, sem blusa por baixo. Tinha cabelo preto, comprido e liso, e uma fina argola de ouro perfurando a sobrancelha
esquerda.
- O que quer?
- Uma informação.
McCaleb empurrou sobre o balcão uma fotografia de Edward Gunn. Era uma ampliação 8x12 do retrato da carteira de motorista de Gunn, que estava no dossiê que Jaye
lhe dera. A atendente examinou a fotografia um instante e olhou de volta para McCaleb.
- O que há com ele? Ele morreu. -Como sabe?
Ela deu de ombros.
- Sei lá. Acho que ouvi por aí. Você é da polícia? McCaleb balançou a cabeça, baixou a voz para que a música a
encobrisse e disse:
- Mais ou menos.
A atendente inclinou-se mais sobre o balcão para poder escutar. A posição abriu a parte superior do colete, expondo a maior parte dos seios dela, que eram pequenos
mas redondos. No lado esquerdo via-se a tatuagem de um coração rodeado de arame farpado. Parecia um machucado numa pêra e não era muito apetitoso. McCaleb desviou
o olhar.
- Edward Gunn - disse ele. - Ele era freguês da casa, não era?
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- Vinha muito aqui.
McCaleb balançou a cabeça. Aquilo confirmava a dica de Bosch.
- Você trabalhou na véspera do Ano-Novo? Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- Sabe se ele apareceu nessa noite? Ela negou.
- Não me lembro. Tinha muita gente aqui na véspera do AnoNovo. Houve uma festa. Não sei se ele estava aqui ou não. Mas não seria surpresa. As pessoas ficavam indo
e voltando.
McCaleb meneou a cabeça na direção do outro atendente, um tipo latino que também estava de colete preto sem blusa por baixo.
- E ele ali? Acha que ele se lembraria?
- Não, porque só começou a trabalhar na semana passada. Ainda estou ensinando o cara.
Ela deu um sorriso rápido, que McCaleb ignorou. Twisting the Night Away, na versão de Rod Stewart, começou a tocar ao fundo.
- Conhecia bem o Gunn?
Ela deixou escapar uma risada curta.
- Meu bem, este é o tipo de lugar em que ninguém gosta muito de dizer quem é e o que faz. Se eu conhecia bem esse cara? Conhecia, tá legal? Como eu disse, ele vinha
aqui. Mas eu nem sabia o nome dele, até ele morrer e as pessoas começarem a falar. Alguém disse que Eddie Gunn tinha aparecido morto e eu disse: "Quem é Eddie Gunn,
caralho?" Tiveram que descrever o cara pra mim. O cara do uísque com gelo que sempre pintava o cabelo. Aí eu soube quem era Eddie Gunn.
McCaleb balançou a cabeça. Meteu a mão no bolso do paletó e tirou um pedaço de jornal dobrado, estendendo-o sobre o balcão. Ela inclinou-se para olhar, permitindo
que ele visse seus seios outra vez. McCaleb achou que aquilo era intencional.
- E aquele tira do julgamento, não é?
McCaleb não respondeu. O jornal estava dobrado de modo a mostrar uma fotografia de Harry Bosch que saíra no Los Angeles Times naquela manhã, como chamada para o
depoimento que ia começar no julgamento de Storey. Era um instantâneo de Bosch
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parado diante da porta do tribunal. Ele provavelmente nem percebera que fora fotografado. Já viu este sujeito?
-Já, ele vem aqui. Por que está perguntando por ele?
McCaleb sentiu sua nuca se eriçar.
- Quando é que ele vem?
- Sei lá, de vez em quando. Não diria que é um freguês da casa. Mas vem. E não fica muito tempo. Ele é das rapidinhas... Toma uma bebida e se manda. Ele...
A atendente ergueu um dedo e inclinou a cabeça para o lado, como vasculhando seus arquivos internos. Depois baixou o dedo de repente, como registrando algo.
- Lembrei. Cerveja em garrafa. Pede sempre Anchor Steam, porque sempre se esquece que a gente não tem essa marca. E cara demais, ficaria encalhada. E aí ele fica
mesmo com a velha trintae-três.
McCaleb estava prestes a perguntar o que era aquilo, quando ela respondeu à pergunta muda.
- Rolling Rock.
Ele balançou a cabeça e disse:
- Ele esteve aqui na véspera de Ano-Novo? Ela abanou a cabeça.
Mesma resposta. Não me lembro. Gente demais, drinques demais, e já faz muito tempo.
McCaleb balançou a cabeça, puxando o jornal de volta sobre o balcão e colocando-o no bolso.
Esse tira está metido em alguma encrenca? McCaleb abanou a cabeça. Uma das mulheres na ponta do balcão bateu levemente com o canto no copo do balcão e chamou a atendente.
- Ei, Miranda, aqui tem freguês que paga.
A atendente olhou em volta, procurando o parceiro. Aparentemente, o sujeito desaparecera nos fundos do recinto ou no banheiro.
- Tenho que voltar ao trabalho - disse ela.
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McCaleb viu Miranda ir até a ponta do balcão e preparar mais duas vodcas com gelo para as putas. Durante um intervalo na música, conseguiu ouvir uma delas mandar
a atendente parar de conversar com o tira, a fim de que ele fosse embora. Quando ela se encaminhou de volta para o lugar onde ele estava, uma das piranhas disse
em voz alta:
- E pare de dar corda para o sujeito, senão ele não sai nunca
mais.
McCaleb fingiu que não ouviu. Quando se aproximou, Miranda suspirou como se estivesse cansada.
- Não sei onde o Javier se enfiou. Não posso ficar aqui parada conversando com você a noite toda.
- Só quero fazer uma última pergunta - disse ele. - Lembra de ter visto o tira e o Eddie Gunn aqui na mesma ocasião, juntos ou separados?
Ela pensou um instante e inclinou-se para a frente.
- Talvez, pode ter acontecido. Mas não me lembro. McCaleb balançou a cabeça. Tinha quase certeza que aquilo
era o máximo que poderia extrair dela. Ficou pensando se devia deixar algum dinheiro no balcão. Jamais soubera fazer aquele tipo de coisa quando era agente. Nunca
sabia quando aquilo era adequado e quando seria considerado um insulto.
- Posso perguntar uma coisa agora? - perguntou Miranda.
- O quê?
- Você gosta do que está vendo?
Imediatamente, ele sentiu o rosto começar a se avermelhar de vergonha.
- Quer dizer, você estava olhando tanto. Achei que podia perguntar.
Ela lançou um olhar para as piranhas, dando um sorriso cúmplice para elas. Todas estavam se divertindo com o constrangimento de McCaleb.
- São muito bacanas - disse ele ao se afastar do bar, deixando uma nota de vinte dólares para ela. - Tenho certeza que fazem o pessoal voltar aqui. Provavelmente
faziam Edward Gunn voltar sempre
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McCaleb rumou para a porta, sentindo suas costas serem atingidas pelas palavras da atendente durante todo o percurso, enquanto ela exclamava:
- Então talvez você deva voltar e tentar pegar neles uma vez, tenente'.
Ao cruzar a porta, ele ouviu as putas gargalharem, erguerem os braços e estalarem as mãos em cumprimento.
McCaleb ficou sentado no Cherokee diante do Nat's, tentando afastar a sensação de constrangimento. Concentrou-se nas informações que obtivera com a atendente. Primeiro,
Gunn era freguês habitual da casa e talvez houvesse estado lá na última noite de sua vida. Segundo, ela reconhecera Bosch como freqüentador. Ele também talvez houvesse
estado lá na última noite de vida de Gunn. Era intrigante o fato de essas informações terem vindo indiretamente de Bosch. McCaleb ficou pensando novamente por que
Bosch - se realmente matara Gunn - lhe dera uma pista válida. Teria sido por arrogância, por acreditar que jamais seria considerado suspeito e que portanto seu nome
não seria mencionado durante o interrogatório no bar? Ou haveria uma motivação psicológica mais profunda? McCaleb sabia que muitos criminosos cometem erros que provocam
sua captura porque subconscientemente não querem ficar impunes. A teoria da grande roda, pensou ele. Talvez Bosch estivesse subconscientemente garantindo que a roda
também girasse para ele.
Abriu o telefone celular e conferiu o sinal. Estava forte. Ligou para o número da residência de Jaye Winston. Olhou para o relógio enquanto o telefone tocava e pensou
se já não seria tarde demais para telefonar. Depois de cinco toques, ela finalmente atendeu.
- Sou eu. Descobri uns troços.
- Eu também. Mas ainda estou no telefone. Posso ligar pra você quando terminar?
- Pode, eu espero.
McCaleb desligou. Ficou sentado no carro, esperando e pensando
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nas coisas. Viu pelo pára-brisa a puta branca sair do bar rebocando um sujeito com boné de beisebol. Os dois acenderam cigarros e seguiram pela calçada na
direção de um motel chamado Skylark.
O telefone tocou. Era Jaye.
- A coisa está ficando quente, Terry. Estou levando fé. -O que soube?
- Primeiro você. Não disse que descobriu uns troços?
- Não, você primeiro. O que eu soube é mixaria. Parece que você fisgou alguma coisa grande.
- Tá legal, escute só. A mãe de Harry Bosch era uma prostituta de Hollywood. Foi assassinada quando ele era garotinho. E quem fez o troço se safou. Que tal isso
como motivação psicológica, doutor Perfilador?
McCaleb não respondeu. Aquela informação era surpreendente e fornecia muitas das peças que faltavam na teoria em elaboração. Ele viu a puta e o freguês chegarem
ao guichê da recepção do motel. O sujeito pagou em dinheiro vivo e recebeu uma chave. Os dois entraram por uma porta de vidro.
- Gunn mata uma prostituta e se safa - disse Jaye quando ele não respondeu. - Foi exatamente o que aconteceu com a mãe de Bosch.
- Como descobriu isso? - perguntou McCaleb por fim.
- Dei o tal telefonema que nós mencionamos. Para a minha amiga Kiz. Agi como se estivesse interessada em Bosch e perguntei se ele já tinha, você sabe, se recuperado
do divórcio. Ela me contou o que sabia dele. Aparentemente, o troço sobre a mãe de Bosch veio à tona num julgamento cível há alguns anos, quando Bosch foi processado
por ter matado indevidamente o Bonequeiro. Lembra do caso?
- Lembro. O departamento de polícia de Los Angeles se recusou a chamar o FBI. Ele também matava prostitutas. Bosch matou o cara, que estava desarmado.
- Há uma psicologia nisso tudo. Um padrão, caceta.
- O que aconteceu com Bosch depois que a mãe dele morreu?
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- Kiz não sabia direito. Ela se referiu a ele como "um homem de instituições". O troço aconteceu quando ele tinha dez ou onze anos. A partir daí ele foi criado em
orfanatos e lares adotivos. Foi servir ao exército e depois entrou para a polícia. O importante é que era isso que estava faltando para nós. O elemento que transformou
um caso insignificante numa coisa que Bosch não poderia deixar escapar.
McCaleb balançou a cabeça para si mesmo.
- E tem mais - disse Jaye. - Examinei todos os arquivos sobre o assunto, até coisas irrelevantes que não pus no dossiê de assassinato. Vi o laudo da autópsia da
mulher que Gunn matou há seis anos. O nome dela era Frances Weldon, por falar nisso. Havia uma coisa lá que agora parece importante, à luz do que nós descobrimos
sobre Bosch. O exame do útero e dos quadris mostrou que ela já tinha tido um filho.
McCaleb abanou a cabeça.
- Bosch não podia saber disso. Jogou o tenente pela janela e já estava suspenso quando a autópsia foi feita.
- É verdade. Mas ele pode ter consultado os arquivos do caso depois de voltar, e provavelmente consultou. Pode ter descoberto que Gunn fez a outra criança a mesma
coisa que tinha sido feita a ele. Tudo se encaixa, entende? Há oito horas eu achava que você estava de miolo mole. Agora parece que acertou na mosca.
McCaleb não se sentia muito bem por ter acertado na mosca. Mas compreendia a empolgação de Jaye. Quando um caso começava a ser esclarecido, às vezes a empolgação
obscurecia a realidade do crime.
- O que aconteceu com o filho dela? - perguntou ele.
- Não tenho idéia. Ela provavelmente abandonou a criança depois do parto. Não interessa. O que interessa é o que isso significou para Bosch.
Ela tinha razão. Mas McCaleb não estava gostando daquela ponta solta no ar.
- Vamos voltar ao seu telefonema para a antiga parceira de Boch. Ela vai ligar pra ele e contar as perguntas que você fez?
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- Kiz já fez isso. -Hoje à noite?
- Foi, agora mesmo. Eu estava falando com ela no telefone. Bosch não deu bola. Disse que tinha esperança de reatar com a
mulher.
- Ela contou que era você que estava interessada?
- Não era pra ela fazer isso.
- Mas provavelmente fez. Isso significa que ele já sabe que estamos atrás dele.
- Isso é impossível. Como?
- Eu acabei de vir de lá agora. Estive na casa dele. E na mesma noite ele recebe um telefonema sobre você. Um cara como Bosch não acredita em coincidências, Jaye.
- E como você levou a coisa lá em cima? - perguntou Jaye por
fim.
- Como nós combinamos. Eu queria mais informações sobre Gunn, mas fui levando a conversa para a vida dele. Foi por isso que liguei pra você. Descobri uns troços
interessantes. Não se comparam aos seus, mas também se encaixam. Mas se ele recebeu esse telefonema sobre você logo depois que eu saí... Sei lá.
- Conta o que descobriu.
- Tudo mixaria. Ele tem a fotografia da esposa que foi embora numa posição de destaque na sala. Fiquei lá menos de uma hora, e o cara meteu três cervejas pra dentro.
Portanto, há a síndrome do álcool, sintomática de pressões internas. Ele também falou de uma coisa que chama de "a grande roda". Faz parte do sistema de crenças
dele. Bosch não vê a mão de Deus nas coisas. Ele vê a Grande Roda. Tudo que vai volta. Ele disse que os caras como Gunn não se safam, na realidade. Sempre são pegos
por alguma coisa. A roda. Eu usei frases específicas pra ver se conseguia que ele reagisse ou discordasse. Chamei o mundo lá fora de pestilência. Ele não discordou.
Disse que ele conseguia lidar com a pestilência, desde que pudesse pegar os agentes transmissores. É tudo muito sutil, Jaye, mas está tudo ali. Ele tem uma gravura
de Bosch na parede do corredor. O jardim das delícias terrenas. A nossa coruja está lá.
210
- Ora, o nome dele é igual ao do cara. Se o meu nome fosse Picasso, eu teria uma gravura de Picasso na parede.
- Eu agi como se nunca tivesse visto aquilo e perguntei o que significava. Ele só disse que era a grande roda girando. É isso que significa para ele.
- Pequenas peças que se encaixam.
- Ainda temos trabalho pela frente.
- Bom, você ainda está no caso? Ou vai voltar?
- Por enquanto estou dentro. Vou dormir aqui hoje. Mas tenho um passeio marcado no sábado. Tenho que voltar para isso.
Ela não disse nada.
- Conseguiu mais alguma coisa? - perguntou ele por fim.
- Consegui. Quase esqueci. -O quê?
- A coruja da Afasta Aves foi paga com uma ordem de pagamento dos Correios. Consegui o número com Cameron Riddell e fui verificar. A ordem foi paga no dia 22 de
dezembro no correio da rua Wilcox, em Hollywood. Fica a cerca de quatro quarteirões da delegacia de polícia onde Bosch trabalha.
Ele abanou a cabeça.
- As leis da física.
- O que quer dizer com isso?
- Para cada ação há uma reação igual e contrária. Quando a gente olha para o abismo, o abismo olha para a gente. Você conhece todos esses" clichês. São clichês porque
são verdadeiros. Você não entra nas trevas sem que as trevas entrem em você e arranquem um pedaço. Bosch pode ter entrado lá vezes demais. Perdeu
o rumo.
Eles ficaram em silêncio durante um instante depois disso e marcaram um encontro para o dia seguinte. Ao desligar, McCaleb viu a puta sair do motel sozinha e se
dirigir novamente para o Nat's. Ela usava uma jaqueta de brim, que apertou em torno do corpo para se defender da friagem noturna. Ajeitou a peruca caminhando na
direção do bar, onde buscaria outro freguês.
Vendo a mulher e pensando em Bosch, McCaleb se lembrou
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de tudo que tinha e de como a vida lhe sorrira. Recordou que a sorte podia ser uma coisa fugaz. Precisava ser merecida e depois defendida com todas as forças. Ele
sabia que não estava fazendo isso no momento. Estava abrindo a guarda enquanto penetrava nas trevas.
Capítulo 23
O julgamento recomeçou vinte e cinco minutos depois das nove, que era a hora aprazada, devido à malsucedida tentativa por parte da promotoria de pedir sanções contra
a defesa por intimidação de testemunhas, além de um adiamento enquanto as declarações de Annabelle Crowe eram investigadas integralmente. Sentado atrás da mesa de
cerejeira na sala de audiências, o juiz Houghton se mostrou favorável à investigação, mas disse que não adiaria o julgamento e não imporia sanções ou outras penalidades,
a menos que fossem encontradas provas que corroborassem as declarações da testemunha. Proibiu os promotores e Bosch - que relatara ali sua conversa com Annabelle,
numa reunião a portas fechadas - de vazarem para a mídia uma só palavra sobre as acusações da testemunha.
Cinco minutos mais tarde eles se dirigiram para o tribunal e os jurados foram levados às duas fileiras de cadeiras que ocupavam. Bosch voltou ao banco das testemunhas
e foi avisado pelo juiz de que ainda estava sob juramento. Janis Langwiser voltou à tribuna com seu bloco de anotações.
- Bom, detetive Bosch, nós terminamos o dia de ontem com a sua conclusão de que a morte de Jody Krementz foi um homicídio. Correto?
- Correto.
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- E essa conclusão se baseou não apenas na sua própria investigação, mas na investigação e na autópsia realizadas pela Divisão Médico-Legal, correto?
- Correto.
- Por favor, poderia dizer aos jurados como se deu a investigação, uma vez definida a morte como homicídio?
Bosch virou-se na cadeira a fim de olhar diretamente para o recinto dos jurados enquanto falava. O movimento foi doloroso. A dor que martelava no lado esquerdo de
sua cabeça era tão intensa que ele ficou imaginando que as pessoas estavam realmente vendo suas têmporas latejando.
- Bom, eu e meus dois parceiros, Jerry Edgar e Kizmin Rider, começamos a enxamear, a examinar, quero dizer, as provas materiais que tínhamos acumulado. Também começamos
a interrogar os conhecidos de Jody Krementz que sabíamos terem estado com ela nas últimas vinte e quatro horas de vida da vítima.
- O senhor mencionou provas materiais. Por favor, explique ao júri que provas materiais já haviam sido acumuladas.
- Na realidade, ainda não tínhamos reunido muita coisa. Mas por toda a casa havia impressões digitais que precisávamos analisar. Também tínhamos recolhido algumas
fibras e pêlos colhidos sobre o corpo da vítima e em torno dela.
J. Reason Fowkkes interveio rapidamente, antes que Bosch pudesse continuar a responder.
- Protesto. A frase "sobre o corpo da vítima e em torno dela" é vaga e enganosa.
- Meritíssimo - contrapôs Janis -, acho que, se o Sr. Fowkkes der ao detetive Bosch a oportunidade de terminar de responder à pergunta, não haverá nada vago nem
enganoso. Mas não cabe interromper uma testemunha para dizer que sua resposta é vaga ou enganosa.
- Protesto rejeitado - disse o juiz Houghton, antes que Fowkkes pudesse apresentar uma réplica. - Vamos deixar a testemunha completar a resposta, e depois veremos
até que ponto ela é vaga. Adiante, detetive Bosch.
Bosch pigarreou.
215
- Eu ia dizer que várias amostras de pêlos pubianos não...
- O que é "várias", meritíssimo? - disse Fowkkes. - Continuo protestando contra a falta de precisão das declarações que essa testemunha está dando ao júri.
Bosch olhou para Janis e viu que ela estava ficando furiosa.
- Meritíssimo, será que o tribunal poderia determinar claramente quando os protestos podem ser feitos? - disse ela. - A defesa está procurando interromper constantemente
a testemunha, pois sabe que estamos entrando num campo que lhe é particulamente desfavorável...
- Doutora Janis, ainda não chegamos às alegações finais - cortou o juiz. - Doutor Fowkkes, a não ser que o senhor esteja vendo um pavoroso erro judiciário, quero
que os protestos sejam feitos antes que as testemunhas falem ou depois que elas tenham completado pelo menos uma frase.
- Meritíssimo, as conseqüências soo pavorosas neste caso. O estado está tentando tirar a vida do meu cliente, simplesmente porque suas opiniões morais são...
Doutor Fowkkes! - trovejou o juiz. - O que eu disse sobre as alegações finais também se aplica ao senhor. Vamos continuar com o depoimento, está bem?
Virou-se para Bosch.
Detetive, continue, e tente ser um pouco mais preciso nas respostas.
Bosch olhou para Janis e viu os olhos dela se fecharem momentaneamente. Aquela orientação displiscente dada a Bosch pelo juiz era o que Fowkkes queria. Insinuava
para os jurados que talvez houvesse imprecisão, ou até confusão deliberada, nos argumentos da promotoria. Fowkkes conseguira instigar o juiz a parecer que concordava
com seus protestos.
Bosch lançou um olhar para Fowkkes e viu o advogado sentado, com os braços cruzados e um ar satisfeito, se não presunçoso, no rosto. Depois olhou novamente para
o dossiê de assassinato à sua frente.
- Posso consultar minhas anotações? - perguntou.
A permissão foi concedida. Ele abriu a pasta e procurou os relatórios sobre as provas. Olhando para o laudo do legista, recomeçou.
216
- Antes da autópsia, foi passada uma escova coletora de provas nos pêlos pubianos da vítima. A escova colheu oito amostras de pêlo pubiano, que testes laboratoriais
subseqüentes mostraram não pertencer à vítima.
Ele ergueu o olhar para Janis, que disse:
- Esses pêlos pubianos eram de oito pessoas diferentes?
- Não, os testes de laboratório mostraram que todos os pêlos vinham de uma só pessoa desconhecida.
- E o que isso indicava, detetive?
- Que a vítima provavelmente tinha tido relações sexuais com alguém depois de tomar seu último banho e antes de morrer.
Janis olhou para suas anotações.
- Alguma outra prova baseada em pêlos foi encontrada na vítima ou na cena do crime, detetive?
Bosch virou a página do dossiê de assassinato.
- Foi. Um fio de cabelo, com seis centímetros de comprimento, foi encontrado em torno do fecho de um colar de ouro que a vítima usava no pescoço. O fecho localizava-se
na nuca da vítima. Também esse fio foi identificado pela análise laboratorial como pertencente a uma pessoa diferente da vítima.
- Vamos voltar por um instante ao pêlo pubiano. Havia outros sinais ou provas, tanto no corpo quanto na cena do crime, indicando que a vítima tinha tido relações
sexuais no período entre o banho e a morte?
- Não, não havia. Não foi encontrado sêmen na vagina.
- Há conflito entre isso e a descoberta do pêlo pubiano?
- Nenhum conflito. Simplesmente indica o possível uso de uma camisinha durante o ato sexual.
- Muito bem. Vamos adiante, detetive. Impressões digitais. O senhor mencionou que foram encontradas impressões digitais na casa. Por favor, fale sobre essa área
da investigação.
Bosch virou as páginas do dossiê até encontrar o laudo sobre as impressões digitais.
- Sessenta e oito exemplares de impressões digitais foram colhidas dentro da casa onde a vítima foi encontrada. Ela e sua
217
colega respondiam por cinqüenta e duas. Foi verificado que as dezesseis restantes haviam sido deixadas por um total de sete pessoas.
- E quem eram essas pessoas?
Bosch leu a lista de nomes existente no dossiê. Respondendo às perguntas de Janis Langwiser, explicou quem era cada pessoa. Depois detalhou como os detetives haviam
descoberto em que ocasião e por que cada uma delas estivera na casa. A lista era formada por amigos, parentes, um ex-namorado e um antigo conhecido das mulheres.
A equipe da promotoria sabia que a defesa tentaria fazer um carnaval com as impressões digitais, usando-as como pistas falsas para desviar a atenção dos jurados
dos fatos do caso. Por isso o depoimento prosseguiu vagarosamente, com Bosch explicando tediosamente a localização e a origem de cada impressão digital encontrada
e identificada na casa. Ele finalizou testemunhando a respeito de um conjunto completo de impressões digitais encontrado na cabeceira da cama em que a vítima fora
encontrada. Ele e Janis sabiam que essas eram as impressões que Fowkkes exploraria mais. Por isso Janis tentou minimizar o prejuízo em potencial revelando-as durante
seu próprio interrogatório da testemunha.
- A que distância do corpo da vítima estavam localizadas essas impressões?
Bosch olhou para o laudo no dossiê.
- Setenta centímetros.
- Exatamente em que ponto da cabeceira?
- Atrás, entre a cabeceira e a parede.
- Havia muito espaço ali?
- Cerca de cinco centímetros.
- Como alguém poderia deixar impressões digitais nesse lugar? Fowkkes protestou, dizendo que Bosch não tinha qualificação
para determinar como um conjunto de impressões digitais podia ser deixado em qualquer lugar, mas o juiz permitiu que a pergunta fosse mantida.
- Só consigo imaginar duas maneiras - respondeu Bosch. Elas foram parar lá quando a cama não estava encostada à parede. Ou então alguém enfiou os dedos no espaço
entre as ripas da cabeceira e deixou as impressões lá enquanto as segurava.
218
Janis apresentou uma fotografia tirada por um técnico em impressões digitais. A fotografia foi incluída nos autos e mostrada aos jurados.
- Na segunda explicação que o senhor ofereceu, a tal pessoa teria que estar deitada na cama, não é?
- Parece que sim.
- Com o rosto para baixo? -Sim.
Fowkkes levantou-se para protestar, mas o próprio juiz interferiu antes que ele chegasse a pronunciar uma só palavra.
- A senhora está se desviando do assunto com suposições, doutora Janis. Vamos adiante.
- Sim, meritíssimo.
Ela consultou o bloco por um instante.
- Essa impressão digital na cama da vítima não fez o senhor pensar que a pessoa que tinha deixado aquilo ali deveria ser considerada um dos principais suspeitos?
- Inicialmente, não. E impossível dizer há quanto tempo uma impressão foi deixada num determinado lugar. Além disso, havia o fator adicional de sabermos que a vítima
não tinha sido morta na cama, e sim levada para lá depois de ser assassinada em outro local. Não achamos que assassino teria que se apoiar no lugar onde a impressão
digital foi encontrada para colocar o corpo na cama.
- A quem pertenciam essas impressões?
- A um homem chamado Allan Weiss, que tinha saído com Jody Krementz em três ocasiões anteriores. O encontro mais recente tinha sido três semanas antes da morte dela.
- O senhor interrogou esse homem?
- Interroguei. Junto com o detetive Edgar.
- Ele admitiu ter estado alguma vez na cama da vítima?
- Admitiu. Disse que havia dormido com ela na última ocasião em que a viu, três semanas antes da morte dela.
- Ele disse que tocou a cabeceira da cama no local onde o senhor nos mostrou que estavam as impressões digitais?
- Ele disse que poderia ter tocado, mas que não se lembrava especificamente de ter feito isso.
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- O senhor investigou as atividades de Allan Weiss na noite da morte de Jody Krementz?
- Investiguei. Ele tinha um álibi excelente.
- Que álibi era esse?
- Ele contou que tinha viajado ao Havaí para participar de um simpósio imobiliário. Pesquisamos os registros da empresa aérea e do hotel e conferimos com os promotores
do seminário. Confirmamos que ele esteve lá.
Janis olhou para o juiz Houghton e disse que aquele seria um bom momento para fazer o intervalo matinal. O juiz disse que ainda era um pouco cedo, mas acedeu ao
pedido e mandou os jurados voltarem dali a quinze minutos.
Bosch sabia que Janis queria o intervalo naquele momento porque estava prestes a entrar nas perguntas sobre David Storey, e queria separá-las bem do restante do
depoimento. Quando ele saiu do banco das testemunhas e voltou para a mesa da promotoria, ela estava folheando alguns arquivos. Janis falou com ele sem erguer os
olhos.
- O que há de errado, Harry? -Como assim?
- Você não está ligado. Não como ontem. Está nervoso ou alguma coisa assim?
- Não. Você está?
- Claro, com tudo isso. Muita coisa depende disso.
- Vou me ligar mais.
- Estou falando sério, Harry.
- Eu também, Janis.
Ele se afastou da mesa da promotoria e saiu do tribunal.
Decidiu tomar uma xícara de café na cantina do segundo andar. Mas antes entrou no toalete perto dos elevadores e foi até uma das pias jogar água fria no rosto. Curvou-se
sobre a pia com cuidado para não molhar o terno e ouviu a descarga de uma privada. Quando ergueu o corpo e olhou para o espelho, viu Rudy Tafero passando em direção
à pia mais afastada. Curvou-se novamente, pegou mais água e manteve-a encostada no rosto. O frio fazia bem aos seus olhos, diminuindo a dor de cabeça.
220
- Como é o troço, Rudy? - perguntou ele sem olhar para o outro homem.
- Que troço, Harry?
- Trabalhar para o diabo, ora. Conseguiu dormir essa noite? Bosch foi até o rolo de papel-toalha e arrancou várias folhas
para enxugar as mãos e o rosto. Tafero se aproximou, arrancou uma folha e começou a enxugar as mãos.
- E engraçado - disse ele. - Em toda a minha vida, só tive dificuldade para dormir na época em que eu era tira. Fico imaginando por que isso acontecia.
Fez uma bola com a toalha de papel e jogou-a na cesta de lixo. Sorriu para Bosch e foi embora. Bosch ficou vendo o outro sair, ainda esfregando as mãos nas toalhas.
Capítulo 24
Bosch sentia o café trabalhando no seu sangue. Ele já estava se recuperando. A dor de cabeça diminuíra. Estava pronto. Tudo sairia como eles haviam planejado, como
haviam coreografado. Ele se inclinou na direção do microfone e aguardou a pergunta.
- Detetive Bosch, quando o nome de David Storey surgiu na investigação? - disse Janis da tribuna.
- Quase imediatamente. Jane Gilley, que dividia o apartamento com Jody Krementz, informou que ela tinha saído com David Storey na última noite de sua vida.
- O senhor interrogou David Storey sobre essa última noite?
- Sim. Rapidamente.
- Por que rapidamente, detetive Bosch? Afinal, era um homicídio.
- Foi uma decisão dele. Na sexta-feira, quando o corpo foi encontrado, e também no dia seguinte tentamos várias vezes interrogar David Storey, mas não conseguimos
localizar o seu paradeiro. Finalmente, por meio do seu advogado, ele concordou em ser interrogado no outro dia, que era domingo, sob a condição de irmos ao seu escritório
nos Estúdios Archway e realizarmos o interrogatório lá. Com relutância, concordamos em fazer a coisa assim, mas fizemos isso no intuito de colaborar e porque precisávamos
falar com ele. Àquela altura já estávamos investigando o caso
222
havia dois dias e não tínhamos conseguido falar com a última pessoa que tinha visto a vítima ainda viva. Quando chegamos ao escritório, seu advogado pessoal, Jason
Fleer, estava lá. Começamos a interrogar David Storey, mas menos de cinco minutos depois o advogado interrompeu o interrogatório.
- Essa conversa foi gravada?
- Foi.
Janis solicitou que a gravação fosse reproduzida, e a solicitação foi aprovada pelo juiz Houghton apesar dos protestos da defesa. Fowkkes pediu que o juiz permitisse
apenas que os jurados lessem uma transcrição que ele preparara do curto interrogatório. Mas Janis protestou, dizendo que não tivera tempo de examinar a transcrição
e verificar sua fidelidade. Disse também que era importante que o júri ouvisse o tom de voz e o jeito de falar de Storey. Com sabedoria salomônica, o juiz decidiu
que a fita seria ouvida, mas que a transcrição também seria entregue como ajuda aos jurados. Encorajou Bosch e a equipe da promotoria a também ler a transcrição
para verificar sua fidelidade.
BOSCH: Meu nome é detetive Hieronymus Bosch, do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estou acompanhado por meus parceiros, detetives Jerry Edgar e Kizmin Rider.
Hoje são 15 de outubro de 2000. Estamos interrogando David Storey no seu escritório nos Estúdios Archway em relação ao caso número zen>zero-oito-novesete. David
Storey está acompanhado por seu advogado, doutor Jason Fleer. Sr. Storey, doutor Fleer? Alguma pergunta antes de começarmos?
FLEER: Nenhuma pergunta.
BOSCH: Ah, e obviamente, estamos gravando essas declarações. Sr. Storey, conhecia uma mulher chamada Jody Krementz, também conhecida como Donatella Speers?
STOREY: Você já sabe a resposta a isso.
FLEER: David...
STOREY: Conhecia. Estive com ela quinta-feira à noite. Isso não quer dizer que eu matei a mulher.
223
FLEER: Por favor, David. Responda apenas às perguntas que eles fizerem.
STOREY: Para mim, tanto faz.
BOSCH: Posso continuar?
FLEER: Por favor.
STOREY: Sim, por favor.
BOSCH: O senhor disse que esteve com ela na noite de quintafeira. Era um encontro marcado?
STOREY: Para que perguntar essas coisas, se você já sabe a resposta? Era, era um encontro marcado, se quiser descrever a coisa assim.
BOSCH: Como o senhor descreveria a coisa?
STOREY: Não interessa.
(pausa)
BOSCH: Poderia nos dizer quanto tempo ficou com ela?
STOREY: Eu apanhei a mulher às sete e meia e voltei com ela mais ou menos à meia-noite.
BOSCH: O senhor entrou na casa quando foi buscar Jody?
STOREY: Para falar a verdade, não entrei. Já estava muito atrasado, e liguei pelo celular pedindo para ela sair porque eu não tinha tempo de entrar. Acho que ela
queria que eu conhecesse sua colega - outra atriz, sem dúvida -, mas eu não tinha tempo.
BOSCH: Portanto, quando o senhor parou o carro ela já estava esperando lá fora.
STOREY: Foi o que eu disse.
BOSCH: Das sete e meia até meia-noite. São quatro horas e meia.
STOREY: Você é bom em matemática. Gosto de ver isso num detetive.
FLEER: David, vamos tentar acabar logo com isso.
STOREY: Estou tentando.
BOSCH: Pode nos dizer o que fez durante o tempo que passou com Jody Krementz?
STOREY: Fizemos um três-efes completo: filme, festa e foda.
BOSCH: O quê?
224
STOREY: Fomos à estréia do meu filme, depois fomos à recepção comer alguma coisa, e aí fomos para a minha casa fazer sexo. Sexo consensual, detetive. Acredite ou
não, as pessoas marcam encontros pra fazer isso o tempo todo. E não é só aqui em Hollywood. Acontece em todo o nosso grande país. A sua grandeza vem daí. BOSCH:
Entendi. O senhor levou Jody para casa depois disso?
STOREY: Sempre um cavalheiro, levei.
BOSCH: Entrou na casa dela dessa vez?
STOREY: Não. Eu só estava com a porra do meu roupão. Cheguei lá, ela saltou e entrou. Eu voltei pra casa. Não sei o que aconteceu depois. Não estou envolvido nisso,
de qualquer forma, jeito ou maneira. Vocês só podem...
FLEER: David, por favor.
STOREY: ... ter merda na cabeça, se por causa da porra de um instante acham...
FLEER: David, pare!
(pausa)
FLEER: Detetive Bosch, acho que precisamos parar por aqui.
BOSCH: Estamos aqui no meio de um interrogatório e...
FLEER: David, aonde você vai?
STOREY: Fodam-se esses caras. Vou lá fora fumar um cigarro.
BOSCH: David Storey acaba de sair do escritório.
FLEER: Acho que a esta altura ele está exercendo os direitos que lhe são garantidos pela Quinta Emenda. Este interrogatório terminou.
A fita emudeceu, e Janis desligou o aparelho. Bosch olhou para os jurados. Vários deles estavam olhando para Storey. A arrogância dele se evidenciara de forma eloqüente
na fita. Isso era importante, pois dali a pouco eles pediriam que o júri acreditasse que - a sós com Bosch -Storey se vangloriara do assassinato e dissera que se
safaria do processo. Somente um homem arrogante faria isso. A promotoria precisava provar que Storey era não apenas um assassino, mas um assassino arrogante ainda
por cima.
225
- Muito bem - disse Janis. - Detetive Bosch, David Storey voltou para continuar o interrogatório?
Não, não voltou - respondeu Bosch. - E nós fomos convidados a sair.
O fato de David Storey negar qualquer envolvimento no assassinato de Jody Krementz fez cessar seu interesse nele?
Não, não fez. Tínhamos a obrigação de investigar o caso integralmente, e isso abrangia incluir ou excluir David Storey como suspeito.
- O comportamento dele durante o curto interrogatório causou suspeita?
- Está falando da arrogância dele? Não, ele... Fowkkes pôs-se de pé, protestando.
Mentíssimo, a arrogância de um homem é a confiança de outro na própria inocência. Não há...
Tem razão, doutor Fowkkes - disse Houghton. Ele aceitou o protesto, ordenou que a resposta de Bosch não constasse dos autos e mandou os jurados ignorarem o comentário.
O comportamento dele durante o interrogatório não causou suspeita recomeçou Bosch. - Nossa atenção e investigação imediatas foram motivadas pelo fato de ele ter
sido a última pessoa a estar com a vítima. A falta de cooperação era suspeita, mas àquela altura estávamos abertos para qualquer possibilidade. Eu e meus parceiros
temos, somados, um total de mais de vinte e cinco anos de experiência na investigação de homicídios. Sabemos que as coisas nem sempre são o que parecem.
Para onde se dirigiram as investigações em seguida?
Continuamos seguindo todas as pistas. Uma dessas era, obviamente, David Storey. Baseados na declaração de que ele e a vítima tinham ido à casa dele durante o encontro,
meus parceiros solicitaram um mandado de busca e apreensão ao Tribunal do Condado e receberam autorização para revistar a casa de David Storey.
Janis apresentou ao juiz o mandado de busca, que foi aceito como prova nos autos. Ela levou o documento de volta para a
226
tribuna. Bosch então declarou que a busca na casa de Mulholland Drive fora realizada às seis horas da manhã, dois dias depois do interrogatório inicial de Storey.
- O mandado de busca autorizava sua equipe a apreender qualquer prova do assassinato de Jody Krementz, qualquer prova de seus pertences e qualquer prova de sua presença
no local, correto?
- Correto.
- Quem realizou a busca?
- Eu, meus parceiros e uma equipe de dois homens da Divisão Médico-Legal. Tínhamos também um fotógrafo para fazer fotos e tomadas de vídeo. Seis pessoas ao todo.
- Quanto tempo demorou a busca?
- Aproximadamente sete horas.
- O réu esteve presente durante a busca?
- Na maior parte do tempo. Teve que sair a certa altura para ir a um encontro com um ator de cinema, um compromisso que, segundo ele, não poderia adiar. Ficou fora
mais ou menos duas horas. Durante esse período seu advogado pessoal, o doutor Fleer, permaneceu na casa fiscalizando a busca. Em momento algum fomos deixados sozinhos
lá dentro, se é esta a dúvida.
Janis folheou as páginas do mandado de busca até o final.
- Detetive Bosch, quando quaisquer itens são apreendidos durante uma busca com mandado judicial, a lei exige que seja feito um inventário com recibo, correto?
- Correto.
- Esse recibo é então incluído nos autos, correto?
- Correto.
- Pode nos dizer por que este recibo está em branco, então?
- Nós não tiramos item algum da casa durante a busca.
- Não encontraram nada que indicasse que Jody Krementz estivera na casa de David Storey, conforme ele dissera?
- Nada.
- Essa busca ocorreu quantos dias depois da noite em que David Storey disse que levara Jody Krementz para casa e tivera relações sexuais com ela?
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- Cinco dias depois da noite do assassinato, dois dias depois do interrogatório de David Storey.
- Não encontraram nada que confirmasse a declaração de David Storey?
- Nada. O lugar estava totalmente limpo.
Bosch sabia que Janis estava tentando transformar algo negativo em positivo, tentando sugerir que a busca sem êxito era uma indicação da culpa de Storey.
- O senhor diria que a busca foi malsucedida?
- Não. Não existe sucesso nesse tipo de coisa. Nós estávamos procurando provas que corroborassem a declaração dele, além de qualquer evidência de um possível ato
criminoso envolvendo Jody Krementz. Não encontramos nada na casa que indicasse isso. Mas às vezes o importante não é o que achamos, e sim o que não achamos.
- Pode explicar isso para o júri?
- Bom, é verdade que não encontramos prova alguma na casa. Mas descobrimos que algo estava faltando, e isso mais tarde se tornou importante para nós.
-O quê?
- Um livro. Estava faltando um livro lá.
- Como o senhor podia saber que estava faltando, se o livro não estava lá?
- Na sala da casa havia uma grande estante embutida. Todas as prateleiras estavam repletas de livros, menos uma, onde havia um espaço vazio. Faltava um livro ali.
Nós não conseguimos descobrir que livro poderia ser. Não havia nenhum outro livro largado pelo resto da casa. Na ocasião achamos que aquilo era apenas um detalhe.
Obviamente, alguém tinha tirado um livro da prateleira sem colocá-lo de volta no lugar. Só ficamos curiosos por não conseguir descobrir que livro era nem onde estava.
Janis apresentou como provas duas fotografias da estante tiradas durante a busca. Houghton incluiu-as nos autos, apesar de um protesto de rotina por parte de Fowkkes.
As fotos mostravam a estante inteira, e a segunda prateleira em detalhe. Havia um espaço vazio entre um livro chamado The Fifth Horizon e uma biografia do diretor
cinematográfico John Ford, Print the Legend.
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- Detetive Bosch, o senhor disse que na ocasião não sabia se o livro que faltava tinha alguma importância ou significado para o caso, correto? - disse Janis.
- E verdade.
- Mas depois conseguiram descobrir que livro fora retirado da prateleira?
- Conseguimos.
Janis fez uma pausa. Bosch sabia o que ela ia fazer. O número fora ensaiado. Ele achava que Janis era uma boa contadora de histórias. Ela sabia espichar as coisas
e prender a atenção das pessoas, levando-as até a beira do abismo e depois puxando-as para trás.
- Bom, vamos seguir a ordem e voltar ao livro depois - disse ela. - O senhor teve ocasião de conversar com David Storey no dia da busca?
- Ele se manteve à parte durante a maior parte do tempo, quase sempre ao telefone. Mas falamos com ele quando batemos à porta e anunciamos a busca. E também ao final
do dia, quando eu lhe disse que estávamos saindo sem levar nada.
- Ele foi acordado pela sua chegada às seis horas da manhã? -Foi.
- Estava sozinho na casa?
- Estava.
- Convidou sua equipe a entrar?
- Inicialmente, não. Protestou contra a busca. Eu lhe disse que...
- Desculpe, detetive, talvez seja mais fácil nós mostrarmos a coisa. O senhor disse que havia um homem com uma câmera de vídeo na equipe. Ele estava gravando quando
o senhor bateu à porta às seis horas da manhã?
- Estava.
Janis tomou as medidas adequadas para apresentar a fita de vídeo, que foi aceita como prova nos autos, apesar dos protestos da defesa. Um televisor de tela grande
foi trazido e colocado no centro do tribunal, diante do recinto dos jurados. Janis pediu que Bosch identificasse a fita. As luzes do tribunal foram diminuídas, e
a fita começou a rodar.
A imagem abriu focalizando Bosch e a equipe diante da porta vermelha da entrada de uma casa. Ele se identificou, dando também o endereço e o número do caso sob investigação.
Falava em voz baixa. Depois se virou e bateu com força na porta. Anunciou que era a polícia, e bateu novamente com força. Todos ficaram esperando. A cada quinze
segundos, Bosch batia novamente. Cerca de dois minutos depois da primeira batida, a porta finalmente se abriu e David Storey espiou para fora. Tinha o cabelo despenteado,
e seus olhos mostravam cansaço.
"O que é?", perguntou ele.
"Temos aqui um mandado de busca e apreensão, Sr. Storey", disse Bosch. "O documento nos autoriza a realizar uma busca neste local."
"Vocês devem estar brincando, caralho."
"Não, não estamos. Poderia se afastar e nos deixar entrar? Quanto mais cedo entrarmos, mais cedo sairemos."
"Vou ligar para o meu advogado."
Storey fechou e trancou a porta. Imediatamente, Bosch avançou e colou o rosto no batente, falando em voz alta.
"Tem dez minutos, Sr. Storey. Se esta porta não for aberta às seis e quinze, teremos que entrar à força. Temos um mandado de busca e apreensão expedido pelo tribunal,
e vamos executar nossas ordens."
Depois virou para a câmera e fez o sinal de corte com o dedo atravessando a garganta.
A imagem pulou para outro ponto da porta. O marcador de tempo no canto inferior já mostrava 6:13. A porta se abriu e Storey recuou, acenando para que a equipe de
busca entrasse. Usava calças jeans e camiseta pretas. Estava descalço, e seu cabelo parecia ter sido penteado com as mãos.
"Façam logo o que têm que fazer e caiam fora. Meu advogado está vindo para cá e vai ficar de olho em vocês. Se quebrarem uma porra de uma coisa nesta casa, meto
uma porra de um processo em cima de vocês. Esta casa foi projetada por David Serrurier. Se arranharem uma só dessas paredes, acabo com o emprego de vocês. De todos
vocês."
230
"Tomaremos cuidado, Sr. Storey", disse Bosch ao passar pela porta.
O operador de câmera foi o último a entrar na casa. Storey olhou direto para a lente, como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez.
"E afaste essa porra de cima de mim."
Ele fez um movimento e o ângulo da imagem pulou para cima, apontando para o teto. Permaneceu ali enquanto Storey e o operador de câmera continuavam discutindo fora
de quadro.
"Ei, não toque na câmera!"
"Então tire isso da minha cara!"
"Tá legal. Tudo bem. Mas não toque na câmera."
A imagem desapareceu da tela, e as luzes do tribunal voltaram à intensidade normal. Janis continuou o interrogatório.
- Detetive Bosch, o senhor ou alguém da equipe de busca teve mais alguma... conversa com David Storey depois disso?
- Durante a busca, não. A partir do momento em que seu advogado chegou, o Sr. Storey permaneceu no escritório. Quando demos a busca lá, ele foi para o quarto. Quando
ele saiu para o tal encontro, fiz algumas perguntas sobre isso, e depois ele partiu. Foram mais ou menos esses os nossos contatos durante a busca e nossa permanência
na casa.
- E ao final do dia, sete horas mais tarde, quando a busca terminou, o senhor falou novamente com o réu?
- Sim, falei com ele rapidamente na porta. Já tínhamos arrumado as coisas e estávamos prontos para sair. O advogado já tinha ido embora. Eu estava no meu carro com
meus parceiros. Estávamos dando marcha a ré, quando percebi que tinha esqueci' do de dar a David Storey uma cópia do mandado de busca. Isso é exigido por lei. Por
isso voltei até a porta e bati.
- Foi o próprio David Storey quem atendeu?
- Atendeu depois de umas quatro batidas fortes. Dei-lhe a cópia e disse que aquilo era obrigatório.
- Ele disse alguma coisa?
Fowkkes levantou-se e protestou, mas só para que constasse dos autos, pois a questão já fora decidida em moções e decisões
231
anteriores ao julgamento. O juiz ordenou que o protesto constasse dos autos e o rejeitou, fazendo sua decisão também constar dos autos. Janis repetiu a pergunta.
- Posso consultar minhas anotações?
- Por favor.
Bosch consultou as notas que tomara no carro logo depois da
conversa.
- Primeiro, ele disse: "Você não encontrou porra nenhuma, encontrou?" Eu disse que ele tinha razão, que não estávamos levando nada. Aí ele disse: "Porque não havia
nada para levar." Eu assenti, e estava me virando para ir embora quando ele disse: "Ei, Bosch." Quando me virei de novo, ele se inclinou para mim e disse: "Você
nunca vai descobrir o que está procurando." Eu disse: "Ah, é? O que estou procurando?" Ele não respondeu. Só olhou para mim e sorriu.
Depois de uma pausa, Janis perguntou:
- A conversa acabou aí?
- Não. Nesse momento eu percebi que poderia fazer com que ele falasse mais, e disse: "Foi você, não foi?" Ele continuou sorrindo, e depois balançou a cabeça vagarosamente,
dizendo: "E vou me safar disso." Ele disse: "Eu sou..."
- Mentira! Você é uma porra de um mentiroso!
Era Storey. Estava de pé, apontando para Bosch. Fowkkes pusera a mão nele, tentando trazê-lo de volta à cadeira. Um agente do escritório do xerife, que ficara posicionado
a uma escrivaninha atrás da mesa da defesa, já se levantara e avançava para Storey
por trás.
- O réu deve se SENTAR! - trovejou o juiz atrás da bancada, batendo simultaneamente com o martelo.
- Ele está mentindo, caralho!
- Policial, faça o réu se sentar!
O policial avançou, pôs as duas mãos nos ombros de Storey por trás e empurrou-o com força de volta à cadeira. O juiz acenou para que outro policial fosse na direção
do júri.
- Retire os jurados.
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Enquanto os jurados eram rapidamente mandados para a sala de deliberação, Storey continuou lutando com o policial e Fowkkes. Mas logo que os jurados saíram pareceu
relaxar seus esforços e se acalmou. Bosch olhou para os repórteres, tentando ver se algum deles percebera que a encenação de Storey terminara logo que os jurados
desapareceram.
- Sr. Storey! - berrou o juiz, de pé. - Esse comportamento e essa linguagem não são aceitáveis neste tribunal. Doutor Fowkkes, se o senhor não conseguir controlar
o seu cliente, meu pessoal fará isso. Mais uma explosão, e eu mandarei o réu ser amordaçado e acorrentado à cadeira. Fui claro?
- Perfeitamente, meritíssimo. Eu peço descul...
- Esta regra é de tolerância zero. Se houver qualquer explosão daqui por diante, ele será algemado. Pouco me importa quem ele seja ou quem sejam seus amigos.
- Sim, meritíssimo. Nós entendemos.
- Vou dar cinco minutos de intervalo e depois recomeçaremos. O juiz deixou abruptamente a bancada, batendo os pés com
força ao descer rapidamente os três degraus. Desapareceu pela porta do corredor dos fundos que levava a sua sala.
Bosch olhou para Janis. Os olhos da promotora traíam seu prazer com o que acabara de acontecer. Para Bosch, aquilo era toma-ládá-cá. Por um lado, os jurados haviam
visto Storey agir raivosamente e de forma descontrolada - possivelmente exibindo o mesmo furor que o levara ao assassinato. Mas, por outro, o réu deixara registrado
seu inconformismo com o que estava lhe acontecendo no tribunal. E isso poderia causar uma reação favorável por parte dos jurados. Storey só precisava influenciar
um deles para sair livre dali.
Antes do julgamento, Janis previra que eles conseguiriam fazer Storey explodir. Bosch achara que ela estava enganada. Achava que Storey era frio e calculista demais.
A menos, é claro, que a explosão fosse uma jogada calculada. Storey era um homem que ganhava a vida dirigindo cenas e personagens dramáticos. Bosch percebeu que
deveria ter previsto que talvez viesse a ser usado como coadjuvante involuntário numa daquelas cenas.
Capítulo 25
O juiz voltou à bancada dois minutos depois, e Bosch ficou imaginando se ele não tinha ido até sua sala só para colocar um coldre sob a toga. Logo que se sentou,
Houghton olhou para a mesa da defesa. Storey estava sentado com uma expressão sombria no rosto, olhando para o bloco de desenho à sua frente.
- Estamos prontos? - perguntou o juiz.
As duas partes murmuraram que estavam prontas. O juiz mandou chamar os jurados, que foram trazidos de volta. A maioria olhou diretamente para Storey ao entrar.
- Muito bem, pessoal, vamos tentar novamente - disse o juiz Houghton. - As exclamações que ouviram há poucos minutos por parte do réu devem ser ignoradas. Não constituem
provas, não são nada. Se David Storey quer negar pessoalmente as acusações ou qualquer outra coisa dita sobre ele nos depoimentos, terá oportunidade de fazer isso
depois.
Bosch viu os olhos de Janis dançarem de felicidade. Os comentários do juiz eram uma maneira de fustigar a defesa. Ele estava criando a expectativa de um depoimento
de Storey durante a fase da defesa. Se ele não fizesse isso, os jurados poderiam ficar desapontados.
Houghton passou novamente a palavra para Janis, que continuou a interrogar Bosch.
234
- Antes da interrupção, o senhor estava depondo sobre sua conversa com o réu na porta da casa dele.
-Sim.
- Declarou que o réu disse: "E vou me safar disso", correto?
- Correto.
- E tomou esse comentário como uma referência à morte de Jody Krementz, correto?
- Era sobre isso que estávamos falando.
- O réu disse qualquer coisa depois?
- Disse.
Bosch fez uma pausa, imaginando se Storey iria ter outra explosão, mas nada aconteceu.
- Ele disse: "Eu sou um deus nesta cidade, detetive Bosch. Ninguém fode com os deuses."
Quase dez segundos se passaram antes que o juiz instigasse Janis a prosseguir.
- O que o senhor fez depois que o réu declarou isso?
- Bom, fiquei meio aturdido, surpreso que ele tivesse dito aquilo para mim.
- O senhor não estava gravando a conversa, correto?
- Correto. Era só uma conversa à porta, depois que eu bati lá.
- O que aconteceu em seguida?
- Fui imediatamente até o carro e anotei textualmente a conversa enquanto a coisa ainda estava fresca na minha memória. Contei a meus parceiros o que tinha acabado
de ocorrer, e decidimos consultar a promotoria para saber se a admissão de David Storey justificava sua prisão. Mas não conseguimos fazer funcionar nossos telefones
celulares, porque estávamos lá no alto das colinas. Por isso descemos até o posto dos bombeiros em Mulholland Drive, a leste do bulevar Laurel Canyon. Ali pedimos
para usar o telefone, e eu liguei para a promotoria.
- E com quem o senhor falou?
- Com a senhora. Narrei o caso, o que tinha ocorrido durante a busca e o que David Storey tinha dito na porta. Foi decidido continuar a investigação a partir daquele
ponto, sem efetuar a prisão.
- O senhor concordou com essa decisão?
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- Na hora, não. Eu queria prender David Storey.
- A admissão dele mudou a direção das investigações?
- Fechamos muito o foco. O sujeito tinha admitido o crime para mim. Passamos a suspeitar apenas dele.
- O senhor chegou a pensar que talvez a admissão fosse uma bazófia, e que enquanto o senhor provocava o réu ele podia estar fazendo o mesmo com o senhor?
- Sim, pensei nisso. Mas acabei acreditando que ele tinha feito aquelas declarações porque eram verdadeiras e porque àquela altura ele acreditava estar numa posição
inexpugnável.
Ouviu-se o barulho de algo sendo rasgado quando Storey arrancou a página de cima do bloco de desenho. Ele amassou o papel e jogou-o sobre a mesa. O papel atingiu
a tela de um computador e caiu no chão.
- Obrigado, detetive - disse Janis Langwiser. - O senhor disse que a decisão foi continuar com a investigação. Pode dizer ao júri o que isso abrangia?
Bosch descreveu como ele e seus parceiros haviam interrogado dezenas de testemunhas que tinham visto o réu e a vítima na estréia do filme ou na recepção posterior,
dada numa tenda de circo armada num estacionamento próximo. Eles também haviam interrogado dezenas de outras pessoas que conheciam Storey ou que já haviam trabalhado
com ele. Bosch reconheceu que nenhum dos interrogatórios produzira informações importantes para a investigação.
- Anteriormente, o senhor mencionou sua curiosidade a respeito de um livro que viu faltando na casa do réu durante a busca, correto?
- Correto. Fowkkes protestou.
- Não há qualquer prova de que faltava um livro. Havia um espaço vazio na prateleira. Isso não quer dizer que havia um livro naquele lugar.
Janis prometeu que logo esclareceria tudo, e o juiz ignorou o
protesto.
- O senhor chegou a descobrir qual era o livro que tinha ocupado aquele lugar da prateleira na casa do réu?
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- Cheguei, durante a coleta de informações sobre o'passado de David Storey. Minha parceira, Kizmin Rider, que conhecia o trabalho e a reputação profissional do réu,
lembrou que tinha lido um artigo sobre ele numa revista chamada Architectural Digest. Ela fez uma pesquisa na Internet, verificou que a edição de que se lembrava
era de fevereiro do ano passado e encomendou um exemplar à editora. Recordava que a matéria trazia fotografias de David Storey e sua casa. Lembrava das estantes
porque é uma leitora ávida e tinha ficado curiosa para saber que livros aquele diretor de cinema tinha nas prateleiras.
Janis solicitou que a revista fosse incorporada aos autos como prova. O pedido foi aceito pelo juiz, e Janis entregou o exemplar a Bosch no banco das testemunhas.
- Foi esta revista que sua parceira recebeu?
- Foi.
- Pode abrir a matéria sobre o réu e descrever a fotografia que há na página de abertura?
Bosch abriu a revista na página indicada por um marcador.
- E uma fotografia de David Storey sentado no sofá da sala de sua casa. A estante aparece à sua esquerda.
- E possível ler os títulos dos livros nas lombadas?
- Só de alguns. Nem todos estão nítidos.
- Quando o senhor recebeu esta revista da editora, o que fez com o exemplar?
- Vimos que nem todos os livros estavam nítidos. Fizemos contato com a editora novamente e pedimos emprestado o negativo dessa fotografia. Falamos com o editor-chefe,
que não deixou que os negativos saíssem da empresa. Ele citou a legislação referente à mídia e as salvaguardas da imprensa livre.
- O que aconteceu então?
- O editor disse que se oporia até a uma ordem judicial. Um representante da procuradoria do condado foi convocado e começou a negociar com o advogado da revista.
O resultado foi que eu peguei um avião até Nova York e tive acesso ao negativo no laboratório fotográfico da Architectural Digest.
237
- Para que conste dos autos, em que data o senhor esteve lá?
- Peguei um vôo noturno no dia 29 de outubro. Na manhã seguinte já estava na sede da revista. Era segunda-feira, 30 de outubro.
- E o que fez lá?
- Pedi que o gerente do laboratório fotográfico fizesse ampliações da foto que mostrava a estante.
Janis apresentou duas grandes ampliações fotográficas montadas em papelão como novas provas a serem incluídas nos autos. Depois de vê-las aceitas, apesar dos protestos
da defesa, ela as colocou em cavaletes diante do júri. Uma mostrava a estante toda, enquanto a outra era a ampliação de uma só prateleira. A imagem era granulada,
mas os títulos nas lombadas dos livros estavam bem nítidos.
- Detetive, o senhor comparou essas fotografias com as que foram tiradas durante a busca na casa do réu?
- Comparei.
Janis solicitou permissão para instalar um terceiro e um quarto cavaletes, e colocar neles as fotografias de toda a estante e da prateleira com o espaço vazio tiradas
durante a busca. O juiz aprovou a solicitação. Depois ela pediu que Bosch saísse do banco das testemunhas e usasse um ponteiro para explicar o que descobrira durante
o estudo comparativo. Aquilo era óbvio para qualquer pessoa que visse as fotos, mas Janis estava seguindo passo a passo, laboriosamente, para que nenhum jurado se
confundisse.
Bosch pôs o ponteiro sobre a fotografia que mostrava o espaço vazio entre os livros na prateleira. E depois colocou o ponteiro num livro que ocupava o mesmo local
na outra fotografia.
- Quando fizemos a busca na casa, no dia 17 de outubro, não havia livro algum entre The Fifth Horizon e Print the Legend. Já nessa foto, tirada dez meses antes,
há um livro entre os dois.
- E qual é o título do livro?
- Victims of the Night.
- Muito bem, mas o senhor examinou as fotografias que tinha batido da estante cheia durante a busca para ver se esse livro, Victims ofthe Night, tinha sido colocado
em outro lugar das prateleiras?
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Bosch apontou para a ampliação da foto da estante inteira batida no dia 17 de outubro.
- Examinamos. Não estava lá.
- O livro foi encontrado em algum outro lugar da casa?
- Não, não foi.
- Obrigado, detetive. Já pode voltar ao banco das testemunhas. Janis solicitou que um exemplar de Victims of the Night fosse
incorporado aos autos como prova. Depois entregou o livro a Bosch.
- Pode dizer ao júri o que é isto, detetive?
- E um exemplar de Victims of the Night.
- Era ele que estava na prateleira do réu quando a fotografia da Architectural Digest foi batida em janeiro do ano passado?
- Não, não era. Este é um exemplar do mesmo título, comprado por mim.
-Onde?
- Numa livraria chamada Mystery, em Westwood.
- Por que o senhor comprou o livro lá?
- Dei uns telefonemas. Foi o único lugar que encontrei que tinha o livro em estoque.
- Por que é um livro tão difícil de encontrar?
- O sujeito da Mystery disse que se tratava de uma tiragem pequena feita por uma editora pequena.
- O senhor leu o livro?
- Partes dele. A maior parte é composta por fotografias de cenas inusitadas de crimes e acidentes, esse tipo de coisa.
- Algo nesse livro chamou sua atenção como inusitado ou talvez relacionado com a morte de Jody Krementz?
- Sim, na página 73 há a fotografia de uma cena de morte que imediatamente me chamou a atenção.
- Descreva a cena, por favor.
Bosch abriu o livro na página indicada por um marcador. Enquanto falava, examinava a fotografia de página inteira do lado direito do livro.
- Mostra uma mulher numa cama. Ela está morta. Um lenço enrolado em torno de seu pescoço passa sobre uma das traves da
cabeceira da cama. A mulher está nua da cintura para baixo. Tem a mão esquerda entre as pernas e dois dedos enfiados na vagina.
- Pode ler a legenda embaixo da fotografia, por favor?
- A legenda diz: "Morte Auto-Erótica: Esta mulher foi encontrada na cama em Nova Orleans, vítima de asfixia auto-erótica. No mundo inteiro mais de quinhentas pessoas,
aproximadamente, morrem anualmente devido a esse infortúnio acidental."
Janis Langwiser pediu e recebeu permissão para colocar como provas duas outras fotografias ampliadas nos cavaletes. Colocou-as bem em cima de duas das fotografias
das estantes. Lado a lado, as fotografias reproduziam o corpo de Jody Krementz na cama e a tal página de Victims of the Night.
- Detetive, o senhor comparou a fotografia da vítima do caso, Jody Krementz, com a fotografia do livro?
- Comparei. Achei as duas muito semelhantes.
- Pareceu-lhe que o corpo de Jody Krementz poderia ter sido arrumado com base na fotografia do livro?
- Pareceu.
- Já teve oportunidade de perguntar ao réu o que aconteceu com o exemplar que ele tinha de Victims of the Night?
- Não. Desde o dia da busca na casa, David Storey e seus advogados recusaram todos os pedidos de entrevista que fizemos.
Janis balançou a cabeça e olhou para o juiz.
- Meritíssimo, posso tirar essas fotografias daqui e entregá-las ao oficial de justiça?
- Por favor, faça isso - respondeu o juiz.
Ao tirar dos cavaletes as fotografias das duas mulheres mortas, Janis fez questão de juntá-las como se fossem duas metades de um espelho se fechando. Era um pequeno
detalhe, mas Bosch viu os jurados prestando atenção.
- Muito bem, detetive Bosch - disse Janis quando os cavaletes foram removidos. - O senhor fez alguma pesquisa ou realizou mais investigações sobre mortes por asfixia
auto-erótica?
- Sim. Percebi que a classificação da morte como homicídio disfarçado desse tipo de acidente poderia ser contestada se um dia
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o caso fosse a julgamento. E a legenda do livro também me deixou curioso. Francamente, o número de quinhentas mortes por ano me surpreendeu. Mas conferi com o FBI
e verifiquei que a cifra era realmente precisa, se não subestimada.
- E isso levou o senhor a pesquisar mais?
- Levou, num nível mais local.
Com Janis fazendo as perguntas apropriadas, Bosch testemunhou que examinara os registros da Divisão Médíco-Legal em busca de mortes por asfixia auto-erótica. A pesquisa
cobrira os cinco anos anteriores.
- E o que descobriu?
- Nesses cinco anos houve dezesseis mortes no condado de Los Angeles classificadas como morte acidental e atribuídas especificamente à asfixia auto-erótica.
- E em quantos desses casos as vítimas eram mulheres?
- Somente um ocorreu com uma mulher.
- O senhor examinou esse caso?
Fowkkes levantou-se para protestar, e dessa vez pediu uma reunião com o juiz junto à bancada. Houghton acatou o pedido, e os advogados se aproximaram dele. Bosch
não conseguiu ouvir a conversa sussurrada, mas sabia que provavelmente Fowkkes estava tentando desviar a direção que o depoimento estava tomando. Janis Langwiser
e Kretzler já haviam previsto que ele solicitaria novamente que o nome de Alicia Lopez não fosse mencionado diante dos jurados. Provavelmente aquele seria o ponto
crucial do julgamento - para ambos os lados.
Depois de cinco minutos de discussão sussurrada, o juiz mandou os advogados de volta para os seus lugares, disse aos jurados que a questão colocada perante o tribunal
tomaria mais tempo do que o previsto e suspendeu a sessão por quinze minutos. Bosch voltou à mesa da promotoria.
- Alguma novidade? - perguntou ele a Janis.
- Não, o mesmo argumento de antes. Por alguma razão, Houghton quer ouvir a coisa novamente. Vamos precisar de sorte.
Os advogados e o juiz se retiraram para a sala de audiências a fim de discutir a questão levantada. Bosch ficou sozinho na mesa.
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Usou o telefone celular para conferir os recados deixados em casa e no escritório. Havia apenas um recado no local de trabalho. Era de Terry McCaleb, agradecendo
a Bosch a dica da noite anterior. Dizia que ele obtivera boas informações no Nat's e que entraria em contato. Bosch apagou a mensagem e fechou o telefone, tentando
imaginar o que McCaleb descobrira.
Quando os advogados voltaram, entrando pela porta traseira do tribunal, Bosch leu a decisão do juiz no rosto deles. Fowkkes parecia abatido, com os olhos baixos.
Kretzler e Janis vinham sorrindo.
Depois que os jurados foram trazidos de volta e o julgamento recomeçou, Janis partiu diretamente para o ataque, pedindo que o escrivão relesse a última pergunta
antes do protesto.
- "O senhor examinou esse caso?" - leu o escrivão.
- Vamos cancelar essa pergunta - disse Janis. - Não vamos confundir a questão. Detetive, qual era o nome da falecida no único caso em que a vítima era mulher dos
dezesseis que o senhor encontrou nos registros da Divisão Médico-Legal?
- Alicia Lopez.
- Pode nos dizer alguma coisa sobre ela?
- Ela tinha vinte e quatro anos e morava em Culver City. Trabalhava como assistente-administrativa do vice-presidente de produção da Sony Pictures, também em Culver
City. Foi encontrada morta na cama no dia 20 de maio de 1998.
- Ela morava sozinha?
- Morava.
- Quais foram as circunstâncias da morte?
- Ela foi encontrada na própria cama por uma colega que tinha ficado preocupada com a ausência dela no trabalho. Alicia havia faltado dois dias em seguida ao fim
de semana, sem sequer telefonar. O médico-legista avaliou que ela tinha morrido três ou quatro dias antes. A decomposição do corpo já era grande.
- Doutora Janis? - disse Houghton, interrompendo o testemunho. - Nosso acordo foi que a ligação entre os casos seria rapidamente estabelecida.
- Já estou quase lá, meritíssimo. Obrigado. Detetive, alguma coisa nesse caso alertou o senhor ou chamou sua atenção?
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- Várias coisas. Examinei as fotografias tiradas na cena do crime, e, embora a decomposição já fosse grande, consegui perceber que a vítima daquele caso estava numa
postura muito parecida com a da vítima do caso atual. Notei ainda que no caso Lopez a ligadura também tinha sido usada sem proteção, como no caso atual. Eu já sabia,
com base na nossa investigação do passado de David Storey, que na época da morte de Alicia Lopez ele estava fazendo um filme para uma empresa chamada Cold Hou-se
Films, parcialmente financiada pela Sony Pictures.
No momento que se seguiu a essa resposta, Bosch percebeu que o tribunal ficara inusitadamente imóvel e silencioso. Nas galerias, ninguém sussurrava ou pigarreava.
Era como se todos - jurados, advogados, espectadores e jornalistas - houvessem resolvido prender a respiração juntos. Bosch olhou para os jurados e viu que quase
todos estavam olhando para a mesa da defesa. Ele também olhou para lá e viu Storey, com o rosto ainda voltado para baixo, ardendo de ódio. Por fim, Janis Langwiser
quebrou o silêncio.
- Detetive, o senhor continuou investigando o caso Lopez?
- Continuei. Falei com o detetive do departamento de polícia de Culver City encarregado do caso. Também investiguei o trabalho que Alicia Lopez fazia na Sony.
- E o que soube a esse respeito que pudesse ter relação com o caso presente?
- Soube que na época de sua morte ela fazia a ligação entre o estúdio e a produção do filme que David Storey estava dirigindo.
- Lembra do nome desse filme?
- The Fifth Horizon.
- Onde estava sendo filmado?
- Em Los Angeles. A maior parte em Venice.
- E, como elo de ligação, Alicia Lopez tinha algum contato direto com David Storey?
- Tinha. Ela falava com ele por telefone ou pessoalmente todo dia que havia filmagem.
Fez-se novamente um silêncio que parecia ensurdecedor. Janis aproveitou o máximo que pôde e passou a dar as marteladas finais.
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- Preciso ver se entendi tudo direito, detetive. Segundo o seu testemunho, nos últimos cinco anos só houve uma morte de mulher no condado de Los Angeles atribuída
a asfixia auto-erótica, e no caso atual a morte de Jody Krementz foi disfarçada para parecer asfixia auto-erótica?
- Protesto - interpôs Fowkkes. - Isso já foi perguntado e respondido.
- Protesto rejeitado - disse Houghton, sem esperar argumentação por parte de Janis. - A testemunha pode responder.
- Sim - disse Bosch. - Correto.
- E ambas as mulheres conheciam o réu, David Storey?
- Correto.
- E ambas as mortes mostram semelhanças com a fotografia de um caso de morte auto-erótica exibida num livro que sabidamente o réu possuía em casa?
- Correto.
Bosch olhou para Storey ao dizer aquilo, na esperança de que ele erguesse o olhar para poder encará-lo mais uma vez.
- O que o departamento de polícia de Culver City disse sobre o assunto, detetive Bosch?
- Baseados nas minhas investigações, eles reabriram o caso, Mas estão com dificuldades.
- Porquê?
- O caso é antigo. Por ter sido originalmente classificado como morte acidental, nem todos os registros ficaram arquivados. Como a decomposição já era grande na
época em que o corpo foi descoberto, é difícil fazer observações e tirar conclusões definitivas. E o corpo não pode ser exumado, porque foi cremado.
- Foi? Por quem?
Fowkkes levantou-se e protestou, mas o juiz disse que seus argumentos já haviam sido ouvidos e rejeitados. Janis repetiu a pergunta antes mesmo de Fowkkes se sentar
novamente.
- Por quem, detetive Bosch?
- Pela família dela. Mas tudo - a cremação, o serviço funerário
- foi pago por David Storey como uma homenagem à memória de Alicia Lopez.
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Janis Langwiser virou ruidosamente uma página do bloco de anotações. Estava num grande momento, e todos ali sabiam disso. Conseguira fazer o que os tiras e promotores
chamavam de entrar no tubo, em referência ao surfe. Significava que eles tinham levado o caso para dentro do famoso túnel de água onde tudo corria suavemente, com
perfeição, num equilíbrio glorioso.
- Detetive, depois dessa parte da investigação, o senhor foi procurado por uma mulher chamada Annabelle Crowe?
- Fui. O Los Angeles Times publicou uma reportagem sobre a investigação, dizendo que David Storey era o foco central. Ela leu o artigo e se apresentou.
- E quem é ela?
- E uma atriz. Mora em West Hollywood.
- E que relação ela tinha com este caso?
- Ela contou que tinha saído com David Storey uma vez no ano passado e que ele a sufocara enquanto os dois faziam sexo.
Fowkkes fez mais um protesto, dessa vez sem a força dos outros. Mas foi novamente ignorado, pois o depoimento já fora liberado pelo juiz em moções anteriores.
- Onde Annabelle Crowe disse que esse incidente ocorreu?
- Na casa de David Storey em Mulholland Drive. Pedi a ela que descrevesse o lugar, coisa que fez com precisão. Realmente tinha estado lá.
- Ela não poderia ter visto o número da Architectural Digest que mostrava fotografias da casa do réu?
- Ela descreveu com detalhes precisos partes da suíte principal e do banheiro que não foram mostradas na revista.
- O que aconteceu com ela quando foi sufocada pelo réu?
- Ela contou que desmaiou. Quando acordou, David Storey não estava no aposento. Tomava um banho de chuveiro. Ela pegou as roupas dela e fugiu da casa.
Janis sublinhou aquilo com um longo silêncio. Depois fechou as páginas do bloco, deu uma olhada na direção da mesa da defesa e ergueu o olhar para o juiz Houghton.
- Meritíssimo, nada mais tenho a perguntar ao detetive Bosch no momento.
Capítulo 26
McCaleb chegou ao El Cochinito às quinze para o meio-dia. Não entrava no pequeno restaurante de Silver Lake havia cinco anos, mas lembrava que o lugar não tinha
mais que uma dúzia de mesas, em geral rapidamente ocupadas na hora do almoço, quase sempre por tiras. Não porque o nome do restaurante - "O Porquinho" - constituísse
uma atração, mas porque a comida era de alta qualidade e barata. A experiência ensinou a McCaleb que os policiais tinham o dom de descobrir tais estabelecimentos
entre os muitos restaurantes de qualquer cidade. Quando viajava em missões do FBI, ele sempre pedia ao pessoal que patrulhava as ruas recomendações sobre lugares
para comer. Raramente ficava desapontado.
Enquanto esperava por Jaye, examinou cuidadosamente o cardápio e planejou a refeição. No ano anterior seu paladar finalmente voltara, e com força total. McCaleb
passara os dezoito primeiros meses depois da cirurgia sem sentir o gosto de nada. Pouco importava o que ele comia, pois tudo tinha o mesmo gosto insípido. Até uma
pesada dose de molho habanera, fosse num sanduíche ou num prato de massa, só lhe provocava uma picada mínima na língua. Vagarosamente, porém, seu paladar começou
a voltar, e aquilo foi um segundo renascimento para McCaleb, depois do transplante propriamente dito. Ele passou a adorar tudo que Graciela fazia. Adorava até o
que ele fazia - e isso apesar de sua total incompetência para fazer qualquer coisa que não fosse churrasco. Comia tudo
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com um prazer que nunca havia sentido, mesmo antes do transplante. Um sanduíche de geléia e manteiga de amendoim de madrugada era algo que, em particular, ele saboreava
tanto quanto uma ida à cidade com Graciela para um jantar chique no Jozu, de Melrose. Conseqüentemente, começou a engordar, recuperando os doze quilos que perdera
enquanto seu próprio coração murchava e ele aguardava o novo. Voltou aos oitenta e dois quilos que tinha antes de adoecer, e pela primeira vez em quatro anos precisava
tomar cuidado com o que comia. Quando fez o último cardiograma, a médica percebeu a situação e deu o alerta, dizendo que ele precisava diminuir a ingestão de calorias
e gorduras.
Mas não naquele almoço. Ele aguardava havia muito tempo a chance de comer ali. Anos antes passara bastante tempo na Flórida atrás de um assassino serial, e a única
coisa boa que resultara daquilo tinha sido seu amor pela comida cubana. Depois de sua transferência para a filial do FBI em Los Angeles, foi difícil achar um restaurante
cubano que se comparasse aos lugares que ele freqüentava em Ybor City, perto de Tampa. Mas no decorrer de uma investigação ele acabou conhecendo um patrulheiro que
era descendente de cubanos. McCaleb perguntou onde ele ia quando queria uma comida realmente caseira. A resposta do policial foi El Cochinito. E McCaleb logo se
tornou freguês habitual.
Concluiu que examinar o cardápio era perda de tempo, pois ele já chegou sabendo o que queria. Leitão assado com feijão preto, arroz, banana frita e yucca, sem contar
nada à médica. Ele só queria que Jaye chegasse logo, para poder fazer o pedido.
Pôs o cardápio de lado e pensou em Harry Bosch. McCaleb passara quase toda a manhã no barco, assistindo ao julgamento pela televisão. Considerou extraordinário o
desempenho de Bosch no banco das testemunhas. A revelação de que Storey estivera ligado a outra morte fora chocante para McCaleb, e aparentemente para toda a mídia
também. Durante os intervalos, os comentaristas nos" estúdios pareciam vibrar com a perspectiva de mais carniça. A certa altura a transmissão passou para o corredor
fora do tribunal, onde o advogado de defesa foi bombardeado com perguntas sobre os novos desdobramentos. Fowkkes, provavelmente pela primeira vez na vida, não fez
comentário algum. Aos comentaristas restou especular sobre as novas informações e analisar a metódica - e ainda assim arrebatadora - estratégia da promotoria.
Contudo assistir ao julgamento trouxera apenas inquietação a McCaleb. Era difícil aceitar a idéia de que Bosch - que ele vira descrevendo com tanta habilidade os
aspectos e etapas de uma investigação complicada - era o homem que ele estava investigando, um homem que sua intuição dizia que cometera o mesmo tipo de crime de
que o réu era acusado ali.
Ao meio-dia, hora do encontro que tinham marcado, McCaleb ergueu o olhar distraidamente e viu Jaye Winston passar pela porta da frente do restaurante. Dois homens
a seguiam. Um era negro e o outro branco. Essa era a melhor forma de diferenciá-los, pois ambos usavam terno cinza e gravata marrom. McCaleb percebeu que eram agentes
do FBI antes que chegassem à mesa.
Jaye tinha uma expressão de resignação desanimada no rosto.
- Terry, quero apresentar este pessoal a você - disse ela antes de se sentar. Indicou o agente negro primeiro. - Este é Don Twilley, e este é Marcus Friedman. Eles
trabalham no FBI.
Os três puxaram cadeiras e se sentaram, Friedman junto de McCaleb, e Twilley do outro lado da mesa. Ninguém cumprimentou ninguém.
- Nunca provei comida cubana - disse Twilley, pegando um cardápio no porta-guardanapos. - A daqui é boa?
McCaleb lançou o olhar para ele.
- Não. É por isso que eu gosto de comer aqui.
Os olhos de Twilley ergueram-se do cardápio, e ele sorriu.
- Eu sei, pergunta idiota - disse, olhando novamente o cardápio e depois para McCaleb. - Sabia que eu já ouvi falar de você, Terry? Você é uma porra de uma lenda
lá na filial. Não por causa do coração, mas por causa dos casos que investigou. Estou contente por finalmente conhecer você.
McCaleb olhou para Jaye com uma expressão que perguntava que diabo estava acontecendo ali.
- Terry, Marc e Don são da Seção de Direitos Civis.
- Ah, é? Ótimo. Vieram lá da filial para conhecer a lenda e experimentar comida cubana, ou há algo mais?
- Hum... - começou Twilley.
248
- Terry, jogaram merda no ventilador - disse Jaye. - Um repórter telefonou para o meu chefe hoje de manhã e perguntou se nós estávamos investigando Harry Bosch como
suspeito no caso Gunn.
McCaleb recostou-se na cadeira, chocado com a novidade. Estava prestes a responder quando um garçom veio até a mesa.
- Espere alguns instantes - disse Twilley rudemente para o homem, mandando-o embora com um gesto autoritário que incomodou McCaleb.
- Terry - continuou Jeye -, antes de continuarmos essa conversa, preciso saber uma coisa. Foi você que vazou isso?
McCaleb balançou a cabeça em sinal de desagrado.
- Está querendo me gozar, perguntando isso pra mim?
- Escute, só sei que não fui eu. Não contei pra ninguém. Nem para o capitão Hitchens, nem para o meu próprio parceiro, que dirá um repórter.
- Bom, não fui eu. Obrigado por perguntar.
McCaleb olhou para Twilley e depois de volta para Jaye. Estava detestando ter aquela altercação com Jaye na frente dos sujeitos.
- O que esses caras estão fazendo aqui? - perguntou. Depois, olhando novamente para Twilley, acrescentou: - O que vocês querem?
- Eles estão assumindo o caso, Terry - respondeu Jaye. - E você está fora.
McCaleb olhou novamente para Jaye, com a boca entreaberta.
- Do que está falando? Eu estou fora? Eu sou o único que está dentro. Venho trabalhando nisso como...
- Eu sei, Terry. Mas as coisas mudaram. Depois que o repórter telefonou para Hitchens, tive que contar o que estava acontecendo e o que vínhamos fazendo. Ele teve
um ataque, e depois decidiu que a melhor forma de lidar com isso era colocar o FBI no caso.
- A Seção de Direitos Civis, Terry - disse Twilley. - Investigar policiais é o nosso feijão-com-arroz. Nós podemos...
- Vá se foder, Twilley. Não me venha com a conversa mole do FBI. Já fui do clube, lembra? Sei como a coisa funciona. Vocês chegam, pegam minhas pistas e depois desfilam
com Bosch diante das câmeras a caminho do xadrez.
249
- E isso que interessa a você? - disse Friedman. - Receber os louros?
- Não precisa se preocupar com isso, Terry - disse Twilley. - A gente põe você diante das câmeras, se o problema é esse.
- O problema não é esse. E não me chame de Terry. Você nem me conhece, caralho.
Ele baixou o olhar para a mesa, balançando a cabeça.
- Puta que pariu, esperei tanto tempo para voltar a esse restaurante, e agora nem estou mais com vontade de comer.
- Terry... - disse Jaye, sem oferecer mais nada.
- O quê? Vai me dizer que isso é direito?
- Não. Não é direito nem errado. É o que é. A investigação passou a ser oficial. Você não faz parte do quadro oficial. Sabia que isso poderia acontecer desde o
início.
Ele balançou a cabeça com relutância. Pôs os cotovelos em cima da mesa e o rosto entre as mãos.
- Que repórter foi esse?
Quando Jaye não respondeu, ele baixou as mãos e olhou penetrantemente para ela.
- Quem foi?
- Um cara chamado Jack McEvoy. Trabalha no New Times, um semanário alternativo que gosta de jogar merda no ventilador.
- Eu sei que jornal é.
- Você conhece McEvoy? - perguntou Twilley.
O celular de McCaleb começou a tocar. Estava no bolso do paletó dobrado sobre a cadeira. Ele ficou com a mão presa no bolso quando tentou tirar o aparelho. Ansiosamente,
lutou para desvencilhar a mão, pois supunha que fosse Graciela. Além de Jaye e Buddy Lockridge, ele só dera aquele número para Brass Doran em Quantico, e não tinha
mais nada a tratar com ela.
Conseguiu atender depois do quinto toque.
- Oi, McCaleb. Aqui é Jack McEvoy do New Times. Tem uns minutos pra conversar?
McCaleb lançou o olhar sobre a mesa para Twilley, imaginando se o agente podia ouvir a voz do outro lado da linha.
- Na realidade, não. Estou enrolado aqui. Como conseguiu este número?
250
- Liguei para Informações em Catalina. Depois liguei para o número que eles me deram, e sua esposa atendeu. Ela me deu o número do celular. Algum problema?
- Não, nenhum problema. Mas não posso conversar agora.
- Quando pode? E importante. Descobri uma coisa que quero muito contar pra você...
- É só ligar mais tarde. Daqui a uma hora.
McCaleb fechou o telefone e colocou-o sobre a mesa. Ficou olhando para o aparelho, na expectativa de que McEvoy telefonasse de novo imediatamente. Todo repórter
era assim.
- Terry, está tudo bem?
Ele ergueu o olhar para Jaye.
- Tudo bem. Era sobre o passeio de amanhã. O cara queria saber como estava o tempo
Olhou para Twilley.
- Qual foi a pergunta que você fez?
Você conhece Jack McEvoy? O repórter que telefonou para o capitão Hitchens?
- Eu conheço Jack. Você sabe disso.
- Tem razão, o caso do Poeta. Você participou daquilo.
- Uma pequena participação.
- Quando foi a última vez que falou com McEvoy?
- Bom, acho que foi... há uns dois dias.
Jaye ficou visivelmente tensa. McCaleb olhou para ela.
- Relaxe, está bem, Jaye? Eu esbarrei com McEvoy no julgamento de Storey. Fui até lá pra falar com Bosch. McEvoy está cobrindo o caso para o New Times e me cumprimentou.
Eu não falava com ele havia cinco anos. E não contei o que estava fazendo, nem no que estava trabalhando. Na realidade, naquele momento Bosch ainda nem era suspeito.
- Bom, ele viu você com Bosch?
- Viu. Todo mundo viu. Havia tanta gente da mídia lá quanto no julgamento de O. J. Simpson. Ele citou especificamente o meu nome para o seu chefe?
- Se citou, Hitchens não me contou.
- Muito bem, então. Se não foi de você nem de mim, de onde veio esse vazamento?
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- É o que lhe estamos perguntando - disse Twilley. - Antes de entrarmos no caso queremos saber a configuração das coisas, e quem está falando com quem.
McCaleb não respondeu. Estava ficando claustrofóbico. Entre a conversa com McEvoy, o interrogatório de Twilley e as pessoas de pé no restaurante apertado à espera
de mesas, ele estava começando a se sentir sem ar.
- E esse bar onde você foi ontem à noite? -perguntou Friedman. McCaleb recostou-se e olhou para ele.
- O que tem o bar?
- Jaye nos disse o que você contou pra ela. Você perguntou especificamente por Bosch e Gunn lá, certo?
- Certo. E daí? Você acha que a atendente foi direto para o telefone, ligou para o New Times e perguntou por Jack McEvoy? Só porque eu mostrei a ela uma fotografia
de Bosch? Dá um tempo, caralho.
- Ei, essa cidade vive pensando na mídia. As pessoas estão sempre ligadas. Vendem reportagens, informações e dados o tempo todo.
McCaleb abanou a cabeça, recusando-se a acreditar que aquela atendente de colete fosse inteligente o suficiente para sacar a jogada dele e telefonar para um repórter.
Subitamente, percebeu quem tinha inteligência e informação para fazer aquilo. Buddy Lockridge. Mas se realmente houvesse sido Buddy, era como se houvesse sido ele
próprio que deixara vazar a história. McCaleb sentiu o suor começar a esquentar-lhe o couro cabeludo, pensando em Buddy escondido no convés inferior enquanto ele
apresentava a Jaye os argumentos de acusação contra Bosch.
- Você bebeu alguma coisa enquanto esteve no bar? Ouvi dizer que você toma um montão de pílulas todo dia. Misturando isso com álcool... Sabe como é, o peixe morre
pela boca.
A pergunta fora feita por Twilley, mas McCaleb olhou bruscamente para Jaye. Sentia-se traído e magoado, por toda aquela cena e pela rapidez com que as coisa haviam
mudado. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa viu o pedido de desculpas nos olhos dela e percebeu que Jaye também queria as coisas pudessem ser diferentes.
Finalmente, olhou para Twilley.
252
- Você acha que eu talvez tenha misturado bebida demais com pílulas, Twilley? E isso? Acha que eu comecei a dar com a língua nos dentes lá no bar?
- Não acho isso. Só estou perguntando, certo? Não é preciso ficar na defensiva por causa disso. Só estou tentando descobrir como esse repórter ficou sabendo o que
ele acha que está sabendo.
- Bom, descubra sem mim.
McCaleb empurrou a cadeira para trás para se levantar.
- Experimentem o leitão assado - disse. - E o melhor da cidade. Quando ele começou a se levantar, Twilley estendeu a mão
sobre a mesa e agarrou-lhe o antebraço.
- Vamos, Terry, vamos conversar sobre isso - disse Twilley.
- Terry, por favor - disse Jaye.
McCaleb soltou o braço da mão de Twilley e levantou-se, olhando para Jaye.
- Boa sorte com esses caras, Jaye. Provavelmente vai precisar. Depois olhou para Friedman e Twilley.
- E vão se foder, vocês dois.
Foi abrindo caminho pela multidão que esperava e saiu porta afora. Ninguém foi atrás dele.
McCaleb ficou sentado no Cherokee estacionado no Sunset Boulevard, olhando para o restaurante enquanto deixava a raiva esvair-se lentamente do corpo. Num certo nível,
sabia que as medidas tomadas por Jaye e seu chefe estavam certas. Mas em outro nível, não gostara de ter sido afastado de seu próprio caso. Um caso era como um carro.
Você podia estar dirigindo, ou podia estar sendo conduzido no assento dianteiro ou traseiro. E também podia ser deixado no acostamento enquanto o carro seguia. Ele
acabara de ser retirado do volante e estava no acostamento pedindo carona. Aquilo doía.
Começou a pensar em Buddy Lockridge e em como lidar com ele. Se descobrisse que Buddy falara com McEvoy depois de ouvir escondido aquela conversa com Jaye, teria
evidentemente que cortar todos os laços com ele. Sócios ou não, ele não conseguiria mais trabalhar com Buddy.
Lembrou que Buddy tinha o número do seu telefone celular e
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percebeu que poderia ter sido ele que o dera a McEvoy. Pegou o aparelho e ligou para casa. Graciela atendeu, pois sexta-feira era um de seus dias de meio expediente
na escola.
- Graciela, você deu o número do meu celular para alguém ultimamente?
- Sim, a um repórter que disse que conhecia você e que precisava entrar em contato com urgência. Jack qualquer coisa. Por quê? Alguma coisa errada?
- Não, nada de errado. Só queria conferir.
- Tem certeza?
McCaleb ouviu o sinal de chamada em espera. Olhou para o relógio. Eram dez para uma. McEvoy só deveria telefonar depois da uma.
- Tenho - disse ele a Graciela. - Escute, preciso dar outro telefonema. Só vou chegar em casa ao anoitecer. Tchau.
Passou para a outra ligação. Era McEvoy, explicando que estava no tribunal e precisava voltar ao julgamento à uma em ponto ou perderia seu precioso lugar. Não podia
esperar mais para telefonar.
- Pode conversar agora? - perguntou ele. - O que você quer?
- Preciso falar com você.
- Você fica repetindo isso. Sobre o quê?
- Harry Bosch. Estou fazendo uma matéria sobre...
- Não sei nada sobre o caso Storey. Só o que passa na tevê.
- Não é isso. É sobre o caso Edward Gunn.
McCaleb não respondeu. Sabia que aquilo não era uma coisa boa. Conversar com um repórter sobre aquele tipo de coisa só podia dar confusão.
Depois de um silêncio, McEvoy disse:
- Era por isso que você queria falar com Harry Bosch outro dia, quando encontrei você aqui? Está trabalhando no caso Gunn?
- Escute aqui. Eu posso dizer honestamente que não estou trabalhando no caso Edward Gunn. Tá legal?
Bom, pensou McCaleb. Até ali ele não mentira.
- Você estava trabalhando no caso? Para o gabinete do xerife?
- Posso perguntar uma coisa? Quem disse isso a você? Quem disse que eu estava trabalhando nesse caso?
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- Não posso contar. Tenho que proteger minhas fontes. Se você quiser me dar informações, eu também protegerei a sua identidade. Mas se eu revelar uma fonte, estou
fodido no ramo.
- Bom, vou dizer uma coisa, Jack. Só falo com você se você falar comigo, entende o que quero dizer? E uma rua de mão dupla. Você me diz quem está espalhando essa
merda sobre mim, e eu converso com você. Caso contrário, não temos nada a dizer um para o outro.
Ele ficou esperando. McEvoy não disse nada.
- Era o que eu achava. Até mais ver, Jack.
Fechou o telefone. Mencionando ou não o nome dele para o capitão Hitchens, era evidente que McEvoy conseguira aquela informação com uma fonte confiável. E mais uma
vez McCaleb viu o foco se estreitar sobre uma pessoa, além dele próprio e Jaye Winston.
- Caceta! - disse ele em voz alta no carro.
Poucos minutos depois de uma hora viu Jaye sair do El Cochinito. McCaleb estava na esperança de conseguir cercá-la e conversar com ela a sós, talvez até falar de
Buddy. Mas Twilley e Friedman estavam com ela. Os três entraram no mesmo carro. Um carro do FBI.
McCaleb viu-os entrar no fluxo do trânsito e seguir para o centro da cidade. Ele saiu do Cherokee e voltou ao restaurante. Estava faminto. Não havia mesas vagas,
de modo que ele pediu comida para viagem. Comeria no Cherokee.
A velha que anotou o pedido ergueu um par de tristes olhos castanhos para ele. Disse que a semana fora muito movimentada e que o leitão assado acabara naquele momento.
Capítulo 27
Third Street Promenade
John Reason surpreendeu o público, os jurados e provavelmente a maior parte da mídia ao dizer que só reinquiriria Bosch quando o julgamento passasse à fase da defesa,
mas a jogada já fora prevista pela promotoria. A estratégia da defesa era fuzilar o mensageiro, e o mensageiro era Bosch. O melhor momento de disparar o tiro seria
durante a apresentação dos argumentos da defesa. Assim, o ataque de Fowkkes a Bosch poderia ser parte de um ataque orquestrado a todas as acusações contra David
Storey.
Depois do intervalo para o almoço, durante o qual Bosch e os promotores foram incessantemente assediados pela mídia com perguntas sobre o depoimento do detetive,
a promotoria aproveitou o impulso ganho na sessão matutina. Kretzler e Janis começaram a se revezar, interrogando rapidamente uma série de testemunhas.
A primeira foi Teresa Corazón, chefe da Divisão Médico-Legal. Respondendo a perguntas de Kretzler, ela descreveu o que fora descoberto durante a autópsia, declarando
que Jody Krementz morrera entre meia-noite e duas da madrugada de sexta-feira, 13 de outubro. E confirmou a baixa ocorrência de casos de mulheres mortas por asfixia
auto-erótica.
Mais uma vez Fowkkes reservou-se o direito de interrogar a testemunha durante a fase da defesa. Corazón foi liberada depois de ficar menos de meia hora no banco
das testemunhas.
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Bosch não precisava mais permanecer no tribunal o tempo todo, pois seu depoimento já terminara, pelo menos na fase da acusação. Enquanto Janis convocava a próxima
testemunha - um técnico de laboratório que identificaria os pêlos colhidos no corpo da vítima como pertencentes a Storey -, ele levou Corazón até o carro. Os dois
haviam sido amantes muitos anos antes, mantendo o que poderia ser chamado de um relacionamento casual pelos atuais padrões culturais. Para Bosch, porém, embora não
houvesse amor envolvido, aquilo nada tivera de casual. Na sua opinião, tratara-se do encontro de duas pessoas que viam a morte de perto todo dia e que a afastavam
com o ato máximo de afirmação da vida.
Corazón terminara o romance ao ser nomeada para a chefia da Divisão Médico-Legal. Desde então o relacionamento entre os dois fora estritamente profissional, embora
o novo cargo de Corazón reduzisse seu tempo nas câmaras de autópsia e Bosch já não a visse com freqüência. Mas o caso Jody Krementz era diferente. Corazón percebeu
instintivamente que aquilo poderia atrair a atenção das hordas da mídia e ela mesma se encarregou da autópsia. Valera a pena. Seu depoimento seria visto por todo
o país e provavelmente em todo o mundo. Ela era atraente, inteligente, habilidosa e metódica. Aquela meia hora que passara sentada no banco das testemunhas viraria
um comercial de meia hora, atraindo lucrativas comissões como legista independente ou comentarista. Bosch aprendera uma coisa sobre ela na época do relacionamento
entre os dois: Teresa Corazón entra diretamente no caso.
Ela estacionara na garagem ao lado do escritório de liberdade condicional, nos fundos do complexo judiciário. Os dois foram conversando sobre banalidades - o tempo,
as tentativas que Harry fazia de parar de fumar - até Corazón entrar diretamente no caso.
- A coisa parece estar indo bem.
- Até agora.
- Seria bom ganharmos um desses casos importantes, para variar.
- Seria.
- Vi você depor hoje de manhã. Liguei a tevê no escritório. Se saiu muito bem, Harry. >
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Ele conhecia aquele tom. Estava preparando o terreno para alguma coisa. -Mas?
- Mas parece cansado. E você sabe que eles vão vir com tudo. Nesse tipo de caso, se eles conseguem destruir o policial, destroem
o caso.
- O. J. Simpson, Lei um-zero-um. Sem provas cabais e falta de credibilidade da investigação.
- Pois é. Está pronto para o que der e vier?
- Acho que sim.
- Que bom. Mas é melhor descansar.
- Isso é mais fácil de dizer do que de fazer.
Quando se aproximaram da garagem, Bosch olhou para o escritório de liberdade condicional e viu a equipe reunida do lado de fora para uma espécie de apresentação.
O grupo estava parado sob uma faixa que pendia do telhado e dizia SEJA BEM-VINDA DE VOLTA, THELMA. Um homem de terno estava entregando uma placa a uma robusta mulher
negra apoiada numa bengala.
- Ah... é aquela agente da condicional - disse Corazón. - A que foi baleada no ano passado. Por aquele pistoleiro de
Las Vegas, lembra?
- Certo - disse Bosch, lembrando-se da história. - Ela voltou.
Ele viu que não havia câmeras de televisão registrando a entrega da placa. Uma mulher era baleada no cumprimento do dever e depois lutava para voltar ao trabalho.
Aparentemente não valia a pena gastar fita de vídeo com aquilo.
- Seja bem-vinda de volta - disse ele.
O carro de Corazón estava no segundo pavimento. Era um reluzente Mercedes esporte escuro.
- Pelo visto os bicos estão rendendo - disse Bosch. Ela balançou a cabeça.
- No meu último contrato consegui uma licença profissional de quatro semanas. Estou aproveitando ao máximo. Julgamentos, programas de tevê, esse tipo de coisa. Também
participei daquele documentário sobre autópsias da HBO. Vai ao ar no mês que vem.
- Teresa, a qualquer momento você vai ser mundialmente famosa.
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Ela sorriu, aproximou-se dele e endireitou-lhe a gravata.
- Eu sei o que você acha disso, Harry. Tudo bem.
- Não interessa o que eu acho. Está feliz? Ela balançou a cabeça.
- Muito.
- Então fico feliz por você. É melhor eu entrar de novo. Tchau, Teresa.
Subitamente, ela se ergueu na ponta dos pés e beijou-o no rosto. Fazia muito tempo que Harry não era beijado assim
- Espero que se saia bem, Harry.
- E, eu também.
Bosch saltou do elevador e foi andando pelo corredor na direção do tribunal do Departamento N. Viu uma fila de pessoas perto da porta. Era gente esperando que vagasse
um lugar. Alguns repórteres estavam parados junto à porta aberta da sala da imprensa, mas todos os demais estavam a postos, observando o julgamento.
- Detetive Bosch?
Bosch se virou, viu Jack McEvoy, o repórter que conhecera na véspera, numa espécie de alcova onde havia um telefone público, e parou.
- Vi você sair e fiquei esperando.
- Preciso voltar lá para dentro.
- Eu sei. Só queria dizer que eu preciso muito conversar com você. Quanto mais cedo melhor.
- Do que está falando? O que é tão importante?
- Bom, é sobre você.
McEvoy saiu da alcova do telefone, aproximando-se de Bosch para não precisar falar tão alto.
- Sobre mim? O quê?
- Sabia que está sendo investigado pelo gabinete do xerife?
Bosch lançou o olhar pelo corredor na direção da porta do tribunal e depois olhou novamente para McEvoy. O repórter estava erguendo lentamente um bloco e uma caneta,
pronto para anotar.
- Espere um minuto - disse Bosch, segurando o bloco. - Do que está falando? Que investigação?
- Lembra de Edward Gunn? Ele está morto, e você é o suspeito deles.
Bosch ficou olhando para ele com a boca entreaberta.
- Achei que talvez quisesse fazer algum comentário sobre isso. Pra se defender. Vou escrever uma reportagem para a edição da semana que vem e queria lhe dar a chance
de dizer...
- Sem comentários. Eu preciso voltar.
Bosch virou-se e deu alguns passos na direção do tribunal, mas depois parou. Voltou até McEvoy, que escrevia no bloco.
- O que está escrevendo? Eu não disse nada.
- Eu sei. É isso que estou anotando. McEvoy ergueu o olhar do bloco para ele.
- Você disse semana que vem - disse Bosch. - Quando o jornal sai?
- O New Times é publicado toda manhã de quinta-feira.
- Então posso esperar até quando, se decidir falar com você?
- Mais ou menos até a hora do almoço de quarta-feira. Mas aí vai ficar muito apertado. Só vou conseguir incluir algumas frases suas. A hora de falar é agora.
- Quem lhe contou isso? Quem é a sua fonte? McEvoy abanou a cabeça.
- Não posso falar sobre minhas fontes. Quero falar com você sobre as alegações. Matou Edward Gunn? E uma espécie de anjo vingador? É isso que eles pensam.
Bosch examinou o repórter por um longo tempo antes de finalmente falar.
- Não cite a minha expressão, mas vá se foder, está entendendo? Não sei se essa merda é um blefe ou não, mas vou lhe dar um conselho. E bom você ter absoluta certeza
do que vai dizer, antes de colocar qualquer coisa nesse seu jornal. Um bom investigador sempre sabe a motivação das suas fontes. É o que se chama ter um besteirômetro.
E bom o seu estar funcionando muito bem.
Virou-se e foi andando rapidamente para a porta do tribunal.
Janis acabara de terminar o interrogatório do especialista em pêlos quando Bosch entrou de volta na sala. Mais uma vez Fowkkes
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levantou-se e reservou-se o direito de reinquirir a testemunha na fase da defesa.
O especialista atravessou o portão atrás da tribuna dos advogados. Bosch passou por ele e foi ocupar seu lugar na mesa da promotoria. Não disse nada, nem olhou para
Janis ou Kretzler. Cruzou os braços e ficou olhando para o bloco de anotações que deixara na mesa. Percebeu que tomara a mesma posição e postura que vira David Storey
adotar na mesa da defesa. A postura de um homem culpado. Rapidamente, deixou cair os braços no colo e ergueu o olhar para o brasão do estado da Califórnia, que pendia
da parede acima da bancada do juiz.
Janis levantou-se e chamou a testemunha seguinte, um perito em impressões digitais. O depoimento do sujeito foi rápido, sendo mais uma corroboração do testemunho
de Bosch e não teve contestação por parte de Fowkkes. O perito foi seguido no banco pelo patrulheiro que tinha atendido à chamada da colega de Jody Krementz, e depois
pelo sargento que tinha sido a pessoa seguinte a chegar à casa.
Bosch mal ouviu os depoimentos. Não continham nada de novo, e sua cabeça estava voando em outra direção. Ele pensava em McEvoy e na matéria que o repórter estava
escrevendo. Sabia que deveria informar Janis e Kretzler, mas queria ter mais tempo para pensar. Decidiu adiar a coisa até o final da semana.
A primeira testemunha que não pertencia aos órgãos de segurança da cidade foi chamada. Era a colega da vítima, Jane Gilley. Ela deu um depoimento choroso e sincero,
confirmando os detalhes da investigação que já haviam sido revelados por Bosch, mas acrescentou algumas pequenas informações pessoais. Contou que Jody Krementz estava
empolgada por sair com uma importante figura de Hollywood, e que ambas haviam passado a véspera do encontro indo a manicures, pedicures e cabeleireiros.
- Ela pagou minha despesa - disse Jane. - Foi tão boazinha.
Seu depoimento colocou um rosto humano no que até então fora uma análise quase antisséptica por parte dos agentes da lei especializados em homicídios.
Quando Janis terminou de interrogar Jane, Fowkkes finalmente
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quebrou o padrão que vinha seguindo e anunciou que tinha algumas perguntas para a testemunha. Foi até a tribuna sem levar anotações. Cruzou as mãos atrás das
costas e inclinou-se ligeiramente na direção do microfone.
- A sua colega era uma jovem atraente, não era?
- Sim, ela era linda.
- E era popular? Em outras palavras, ela saía com muitos rapazes? Jane balançou a cabeça com relutância.
- Saía.
- Muito, pouco, com que freqüência?
- É difícil dizer. Eu não era a secretária social dela e também tenho namorado.
- Entendi. Vamos então pegar, digamos, as dez semanas anteriores à morte dela. Em quantas dessas dez semanas você diria que Jody não saiu com ninguém?
Janis levantou-se e protestou.
- Meritíssimo, isso é ridículo. Não tem ligação alguma com a noite de 12 de outubro ou a manhã do dia 13.
- Ah, meritíssimo, eu acho que tem - retrucou Fowkkes. - E acho que a doutora Janis sabe que tem. Se Vossa Excelência me der um pouco de liberdade, logo mostrarei
por quê.
Houghton rejeitou o protesto e mandou Fowkkes repetir a pergunta.
- Em quantas das dez semanas anteriores à sua morte Jody
Krementz não saiu com ninguém?
- Não sei. Talvez uma. Talvez nenhuma.
- Talvez nenhuma - repetiu Fowkkes. - E em quantas dessas semanas você diria que sua colega saiu pelo menos duas vezes?
Janis protestou outra vez, mas o juiz a ignorou novamente.
- Não sei a resposta - disse Jane. - Muitas. - Muitas - repetiu Fowkkes.
Janis levantou-se e pediu ao juiz que proibisse Fowkkes de repetir a resposta da testemunha, a menos que fosse sob a forma de pergunta. O juiz concordou. Fowkkes
prosseguiu como se não houvesse sido corrigido.
262
- Todos esses encontros foram com o mesmo homem?
- Não. Quase sempre eram homens diferentes, com algumas repetições.
- Então ela gostava de namorar, certo?
- Acho que sim.
- Isso é um sim ou um não?
- E um sim.
- Obrigado. Nas dez semanas anteriores à morte dela, semanas em que você disse que ela freqüentemente saiu pelo menos duas vezes, quantos homens diferentes você
viu?
Jane Gilley abanou a cabeça, exasperada.
- Não tenho idéia. Não contei. E o que isso tem a ver com...
- Obrigado. Eu gostaria que se limitasse a responder às perguntas que eu fizer.
Ele ficou esperando, mas Jane não disse nada. - Jody alguma vez teve problemas quando parava de sair com um homem? Quando passava para o seguinte?
- Não sei o que isso quer dizer.
- Quero saber se todos os homens ficavam satisfeitos quando não conseguiam sair com ela novamente?
- Às vezes ficavam com raiva quando ela não queria sair com eles novamente. Mas nada de sério.
- Nenhuma ameaça de violência? Ela tinha medo de alguém?
- Não que eu soubesse.
- Ela falava sobre todos os homens com quem saía? -Não.
- Quando voltava desses encontros, trazia os homens para a casa que vocês dividiam?
- Às vezes.
- Eles passavam a noite lá?
- Às vezes, não sei.
- Muitas vezes você não estava lá, certo?
- É, eu freqüentemente dormia na casa do meu namorado.
- Porquê?
Ela deu uma risada curta.
- Porque eu amo meu namorado.
263
- Bom, vocês já passaram alguma noite juntos na sua casa?
- Não me lembro que ele tenha dormido lá.
- Porquê?
- Acho que é porque ele mora sozinho. A gente tem mais privacidade na casa dele.
- E verdade que você passava várias noites por semana na casa do seu namorado?
- Às vezes. E daí?
- E que isso acontecia porque você não gostava da constante procissão de hóspedes noturnos da sua colega.
Janis se levantou.
- Meritíssimo, isso nem chega a ser uma pergunta. Quero protestar quanto à forma e o conteúdo. O estilo de vida de Jody Krementz não está sendo julgado aqui. É David
Storey que está sendo julgado pelo assassinato dela, e não é justo permitir que a defesa ataque uma pessoa que...
- Muito bem, doutora Janis, já chega - disse o juiz Houghton, lançando o olhar para Fowkkes. - Doutor Fowkkes, não vou lhe dar mais liberdade para prosseguir nessa
direção. A doutora Janis tem razão. Quero que o senhor avance no depoimento da testemunha.
Fowkkes balançou a cabeça. Bosch ficou examinando o advogado. O sujeito era um ator perfeito. Com sua postura, conseguira transmitir a frustração de um homem impedido
de revelar uma verdade oculta. Bosch ficou imaginando se o júri veria aquilo como uma encenação.
- Muito bem, meritíssimo - disse Fowkkes, pondo a frustração na inflexão da voz. - Nada mais tenho para perguntar à testemunha no momento.
O juiz suspendeu a sessão por quinze minutos para o intervalo da tarde. Bosch ajudou Jane Gilley a driblar os repórteres, levando-a ao elevador e depois até o carro.
Disse que ela se saíra muito bem e que passara perfeitamente pela reinquirição de Fowkkes. Depois foi se juntar a Kretzler e Janis no gabinete da promotoria no segundo
andar, onde a equipe de acusação montara um escritório temporário durante o julgamento. Havia uma pequena máquina de café na sala, ainda cheia do café feito durante
o intervalo matinal.
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Não havia tempo para fazer um novo café, de modo que todos eles beberam o café velho, enquanto Kretzler e Janis discutiam sobre o progresso do dia.
- Acho que essa tentativa deles de mostrar que ela era uma piranha vai sair pela culatra mais tarde - disse Janis. - Eles devem ter mais coisa na manga do que isso.
- Ele só está tentando mostrar que ela tinha um monte de homens - disse Kretzler. - E que pode ter sido qualquer um deles. É a famosa defesa da espingarda. Você
dispara um monte de chumbinhos, e um deles acaba acertando o alvo.
- Mesmo assim, não vai funcionar.
- Com John Reason adiando o interrogatório de todas essas testemunhas, estamos indo até depressa. Se ele continuar fazendo isso, vamos terminar nossa parte na terça
ou na quarta-feira.
- Que bom. Quero saber logo o que eles têm na manga.
- Eu não - interrompeu Bosch. Janis olhou para ele.
- Ora, Harry. Você já agüentou essas tempestades antes.
- É, mas desta vez estou com um pressentimento ruim.
- Não se preocupe - disse Kretzler. - Vamos dar uma surra neles no tribunal. Estamos dentro do tubo, cara, e não vamos perder a onda.
Os três juntaram os copos plásticos num brinde.
Jerry Edgar, o atual parceiro de Bosch, e Kizmin Rider, exparceira, prestaram depoimento durante a sessão da tarde. A promotoria pediu a ambos que rememorassem os
momentos depois da busca na casa de David Storey, quando Bosch entrou no carro e disse que Storey se gabara de ter cometido o crime. O testemunho dos dois foi exatamente
igual ao de Bosch, e serviria como anteparo para os ataques da defesa contra o caráter de Bosch, que também sabia que os promotores esperavam subir no conceito do
júri, porque ambos, Edgar e Kizmin, eram negros. Cinco membros do júri, além dos dois reservas, eram negros. Numa época em que a veracidade de qualquer policial
branco de Los Angeles era considerada suspeita por jurados negros, ter Edgar e Rider prestando solidariedade a Bosch era um grande trunfo.
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A ex-parceira depôs primeiro, e Fowkkes não quis reinquiri-la. O testemunho de Jerry foi uma cópia do de Kiz, mas foram-lhe feitas perguntas adicionais, pois foi
ele que entregou o segundo mandado de busca e apreensão emitido no caso. O mandado era uma ordem do tribunal para a coleta de amostras de pêlos e sangue de David
Storey. Tinha sido aprovado e assinado por um juiz enquanto Bosch estava em Nova York, seguindo a pista da Architectural Digest, e Kizmin estava no Havaí, curtindo
férias planejadas antes do assassinato. Com um patrulheiro a reboque e o mandado na mão, Edgar apareceu outra vez às seis da manhã na casa de Storey. Ele testemunhou
que Storey havia mantido os dois esperando na porta enquanto contatava o advogado, que já era o criminalista J. Reason Fowkkes.
Posto a par da situação, Fowkkes mandou Storey cooperar, e o suspeito foi levado ao Parker Center, no centro da cidade, onde uma enfermeira do laboratório coletou
amostras dos pêlos pubianos, cabelo e sangue dele.
- O senhor interrogou o réu sobre o crime em algum momento do trajeto ou do processo de coleta? - perguntou Kretzler.
- Não, não interroguei - respondeu Edgar. - Antes de deixar a residência ele me passou o telefone, e eu falei com o doutor Fowkkes. Ele me disse que seu cliente
não desejava ser interrogado nem hostilizado, segundo ele, de qualquer forma. Portanto, basicamente nós seguimos de carro em silêncio... pelo menos da minha parte.
E também não falamos no Parker Center. Quando terminamos, o doutor Fowkkes estava lá e levou David Storey para casa.
- David Storey fez algum comentário espontâneo durante esse período?
- Somente um.
- E onde foi isso?
- No carro, indo para o Parker Center.
- E o que ele disse?
- Ele estava olhando pela janela e disse apenas: "Vocês estão fodidos se acham que vão me derrubar por causa disso."
-' E esse trecho da conversa foi gravado?" -Foi.
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-Porquê?
- Por causa da admissão anterior feita ao detetive Bosch, nós achamos que havia chance de que ele fizesse outra declaração como aquela. Quando fui apresentar o mandado
relativo aos pêlos e ao sangue, peguei emprestado um carro da Narcóticos. E um carro que eles usam para fazer prisões na rua. Está equipado com sistema de gravação.
- Trouxe a fita daquele dia, detetive?
- Trouxe.
Kretzler solicitou que a fita fosse incorporada aos autos como prova. Fowkkes protestou, dizendo que Edgar já depusera sobre o que fora dito, e que a fita de áudio
não era necessária. O juiz rejeitou o protesto, e a fita foi posta para tocar. Kretzler começou a fita bem antes da tal declaração de Storey, para que os jurados
pudessem ouvir o ruído do motor do carro e do trânsito, e percebessem que Edgar não violara os direitos do réu, interrogando-o a fim de extrair aquela declaração.
Quando a fita chegou ao comentário de Storey, o tom de arrogância e até ódio para com investigadores soou alto e claro.
Na intenção de que aquele tom ficasse na memória dos jurados durante o fim de semana, Kretzler encerrou a inquirição de Edgar.
Fowkkes, talvez compreendendo a manobra, disse que faria uma-breve reinquirição. Fez a Edgar uma série de perguntas inócuas que pouco acrescentaram aos autos em
favor da defesa ou desfavor da promotoria. Terminou a reinquirição precisamente às quatro e meia, e o juiz Houghton prontamente declarou o tribunal em recesso durante
o fim de semana.
Enquanto o tribunal se esvaziava, com as pessoas saindo em direção ao corredor, Bosch olhou em torno procurando McEvoy mas não o viu. Edgar e Kizmin, que haviam
ficado por ali depois dos depoimentos, aproximaram-se dele.
- Harry, que tal um drinque? - disse Kizmin.
- Que tal um porre? - retrucou Harry.
Capítulo 28
Eles ficaram esperando até as dez e meia da manhã de sábado pelo pessoal que alugara o barco, mas ninguém apareceu. McCaleb estava sentado em silêncio na amurada
da popa, remoendo vagarosamente tudo que acontecera: os clientes que não tinham vindo, seu afastamento do caso, o último telefonema de Jaye, tudo. Antes de sair
de casa, recebeu uma ligação de Jaye, pedindo desculpas pelos acontecimentos da véspera. Ele fingiu indiferença, dizendo-lhe que devia esquecer o episódio. E não
contou que Buddy Lockridge ouviu escondido a conversa deles no barco dois dias antes. Jaye disse que Twilley e Friedman haviam decidido que era melhor que ele devolvesse
as cópias de todos os documentos relacionados com o caso, e ele respondeu que eles podiam vir pegá-las, se quisessem. Acrescentou que tinha um passeio marcado e
que precisava sair. Os dois se despediram abruptamente e desligaram.
Raymond estava debruçado na popa, pescando com um pequeno caniço que McCaleb lhe dera depois da mudança para a ilha. Através da água clara, acompanhava o movimento
das formas alaranjadas dos peixes garibaldi lá embaixo, a sete metros de profundidade. Buddy estava sentado na cadeira de pesca, lendo a seção local do Los Angeles
Times. Parecia relaxado como uma onda de verão. McCaleb ainda não o confrontara com a suspeita de que o vazamento partira dele. Esperava o momento certo.
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- Ei, Terror, viu essa reportagem? - disse Buddy. - Sobre o depoimento do Bosch no tribunal de Van Nuys ontem?
- Neca.
- Cara, eles estão insinuando aqui que esse diretor é um assassino serial. Parece um daqueles seus casos antigos. E o sujeito no banco das testemunhas com o dedo
apontado para ele é um...
- Buddy, já disse pra você não falar sobre isso. Ou já esqueceu?
- Está bem, desculpe. Só ia dizer que se isso não é irônico eu não sei o que é, mais nada.
- Ótimo. Vamos parar por aí.
McCaleb consultou novamente o relógio. Os clientes deveriam ter chegado às dez. Ele se levantou e foi até a porta do salão.
- Vou dar uns telefonemas - disse. - Não quero ficar esperando o dia inteiro por essa gente.
No salão do barco, abriu uma gaveta da mesinha de navegação e tirou uma prancheta onde ficavam as reservas. Havia somente duas páginas ali. A relação dos clientes
daquele dia e uma reserva para o sábado seguinte. Os meses de inverno eram fracos. McCaleb examinou as informações na página de cima. Não estava familiarizado com
aquilo, porque foi Buddy que tinha feito a reserva, que era para quatro homens de Long Beach. Eles deveriam ter chegado na noite de sexta-feira e se hospedado no
Zane Grey. Fariam um passeio de quatro horas - das dez às duas de sábado - e depois pegariam a barca de volta para o continente. Buddy anotara o telefone da residência
do organizador e o nome do hotel, além de receber um depósito no valor de metade do preço do passeio.
McCaleb examinou a lista de hotéis e números de telefone colada na mesa de navegação e ligou primeiro para o Zane Grey. Soube imediatamente que ninguém com o nome
do organizador do passeio - o único dos quatro que McCaleb tinha - estava hospedado no hotel. Depois telefonou para a residência do sujeito e falou com a mulher
dele, que disse que o marido não estava em casa.
Bom, nós estamos esperando por ele aqui num barco em Catalina. Sabe se ele e os amigos estão a caminho?
Houve um longo silêncio. Está ouvindo?
269
- Ah, sim, sim. Só que eles não vão pescar hoje. Disseram que haviam cancelado a viagem. Estão jogando golfe agora. Posso lhe dar o número do celular do meu marido,
se quiser. Você pode falar...
- Não é necessário. Tenha um bom dia.
McCaleb fechou o telefone. Sabia exatamente o que acontecera. Nem ele nem Buddy haviam conferido a caixa postal do telefone que constava dos anúncios que eles publicavam
em diversas listas telefônicas e revistas de pesca. McCaleb ligou para o tal número, apertou o código e viu que realmente havia um recado esperando desde quarta-feira.
O grupo cancelara o passeio e remarcaria a coisa outro dia.
- É, claro - disse McCaleb.
Apagou a mensagem e fechou o telefone. Sentiu vontade de atirar o aparelho na cabeça de Buddy através da porta de vidro, mas tentou se acalmar. Foi até a pequena
cozinha, tirou um litro de suco de laranja da geladeira e levou-o até a popa.
- Não vai ter passeio hoje - disse, antes de tomar um longo gole da caixa.
- Por que não? - perguntou Raymond, obviamente desapontado. McCaleb limpou a boca no punho da camiseta de manga comprida.
- Eles cancelaram.
Buddy ergueu os olhos do jornal, e McCaleb dirigiu-lhe um olhar furioso.
- Bom, nós ficamos com o depósito, certo? - perguntou Buddy.
- Eu recebi um depósito de duzentos dólares pelo cartão Visa.
- Não, nós não ficamos com o depósito porque eles cancelaram o passeio na quarta-feira. Nós dois estávamos ocupados demais, eu acho, para verificar a caixa postal
como deveríamos ter feito.
- Ah, caralho! Culpa minha.
- Buddy, não fale assim na frente do menino. Quantas vezes eu já disse isso?
- Desculpe. Desculpe.
McCaleb continuou a olhar fixamente para ele. Planejara falar sobre o vazamento para McEvoy depois do passeio, porque
270
precisava que Buddy o ajudasse com o grupo de quatro pescadores. Mas isso não era mais necessário. Tinha chegado a hora.
- Raymond - disse ele, com o olhar fixo em Buddy. - Ainda quer ganhar o seu dinheiro?
-Opa.
- Você quer dizer "sim", não é?
- Opa. Quer dizer, sim. Sim.
- Tá legal. Então recolha a linha, prenda o anzol e comece a levar esses caniços lá para dentro. Arrume tudo na prateleira. Consegue fazer isso?
- É claro.
O menino enrolou rapidamente a linha, tirou a isca e lançou-a na água. Prendeu o anzol num dos ilhoses do caniço e encostou-o num canto da popa, para poder levá-lo
para casa depois. Ele gostava de ficar treinando no deque dos fundos da casa, lançando um peso de borracha, próprio para treinamento, sobre os telhados e quintais
lá embaixo.
Começou a tirar os caniços de pesca oceânica dos suportes em que Buddy os colocara ao preparar o barco para o passeio. Foi levando-os de dois em dois para o salão,
colocando-os nas prateleiras superiores. Tinha que subir no sofá para fazer isso, mas o sofá era velho e precisava urgentemente de uma nova capa, de modo que McCaleb
estava pouco se importando.
- Algum problema, Terror? - disse Buddy. - Era só um passeio, cara. Nós sabíamos que a coisa ia ser devagar este mês.
- Não é o passeio, Bud.
- Então, o que é? É o tal caso?
McCaleb deu um gole menor no suco e pôs a caixa na amurada. - Você está falando do caso em que eu não trabalho mais?
- Acho que sim. Não sei. Não está mais trabalhando nele? Quando isso...
- Não, Buddy, não estou mais no caso. E quero conversar com você sobre uma coisa.
Ele esperou Raymond levar outro conjunto de caniços para o salão.
-Já leu o New Times alguma vez, Buddy?
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- Aquele semanário gratuito?
- É, aquele semanário gratuito. O New Times, Buddy. Sai toda quinta-feira. Sempre põem uma pilha na lavanderia da marina. Na verdade, por que estou perguntando
isso? Eu sei que você lê o Neut Times.
Subitamente, Buddy baixou o olhar para o convés. Parecia abatido, cheio de culpa. Ergueu a mão e esfregou o rosto. Manteve a mão sobre os olhos enquanto falava.
- Terry, desculpe. Nunca pensei que o troço estouraria em cima de você. O que aconteceu?
- Qual é o problema, tio Buddy? Era Raymond, na porta do salão.
- Raymond, será que pode entrar e fechar a porta por uns minutos? - disse McCaleb. - Pode ligar a tevê. Preciso conversar sozinho com Buddy.
O menino hesitou, olhando o tempo todo para Buddy, que tinha o rosto tapado com a mão.
- Raymond, por favor. E leve isto de volta para a geladeira.
O menino finalmente se aproximou e pegou a caixa de suco de laranja. Entrou novamente e fechou a porta corrediça. McCaleb olhou novamente para Buddy.
- Como pôde pensar que o troço não estouraria em cima de mim?
- Não sei. Só achei que ninguém ia ficar sabendo.
- Bom, você estava enganado. E isso me trouxe muitos problemas. Mas o pior é a porra da traição, Buddy. Eu simplesmente não consigo acreditar que você tenha feito
uma coisa dessas.
McCaleb deu uma olhada para a porta de vidro, para ter certeza de que o garoto não podia ouvir sua voz. Não havia sinal de Raymond, que provavelmente descera para
um dos camarotes. McCaleb percebeu que sua respiração estava acelerada. Sentia tanta raiva que estava tendo hiperventilação. Tinha que terminar aquilo e se acalmar.
- Graciela precisa saber disso? - perguntou Buddy, quase implorando.
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- Não sei. Não interessa o que ela vai saber ou não. O que interessa é que nós tínhamos um relacionamento bom, e você fez uma coisa dessas pelas minhas costas.
Buddy ainda tinha os olhos escondidos atrás das mãos.
- Eu não sabia que isso significaria tanto para você, mesmo que você descobrisse. Foi uma coisa pequena. Eu...
- Não tente amenizar o troço, nem me contar qual foi o tamanho da coisa, está bem? E nem fale comigo com essa voz esganiçada, implorando. Cale a boca, só isso.
McCaleb foi até a popa e apoiou as coxas na amurada acolchoada. De costas para Buddy, ergueu os olhos para a encosta acima do distrito comercial da vila. Avistou
sua casa. Graciela estava no deque segurando o bebê. Ela acenou e depois ergueu a mão de Cielo, fazendo a neném acenar também. McCaleb respondeu ao aceno.
- O que quer que eu faça? - disse Buddy atrás dele. Sua voz já estava mais controlada. - O que quer que eu diga? Que não vou mais fazer isso? Está bem, não vou mais
fazer isso.
McCaleb não se virou. Continuou olhando para a esposa e a filha.
- Não interessa o que você não vai mais fazer. O mal já foi feito. Tenho que pensar sobre o assunto. Nós somos sócios, além de amigos. Ou pelo menos éramos. Mas
agora eu só quero que você desapareça. Vou lá para baixo ficar com Raymond. Pegue o esquife e vá para o píer. Volte para a cidade de barca hoje. Só não quero você
aqui, Buddy. Pelo menos agora.
- Como vocês vão voltar para o píer?
Era uma pergunta desesperada, com uma resposta óbvia.
- Eu chamo uma lancha de aluguel.
- A gente tem um passeio marcado para sábado que vem. São cinco pessoas e...
- Vou me preocupar com sábado depois. Posso cancelar tudo se precisar, ou passar o troço para Jim Hall.
- Terry, tem certeza disso? Eu só...
- Tenho. Vá embora, Buddy. Não quero conversar mais. McCaleb deu as costas para a paisagem e passou por Buddy,
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indo em direção ao salão. Abriu a porta corrediça, entrou e se fechou lá dentro. Não olhou mais para Buddy. Foi até a mesinha de navegação e tirou um envelope da
gaveta. Meteu dentro uma nota de cinco dólares que tirou do bolso, fechou o envelope e escreveu nele o nome de Raymond.
- Ei, Raymond, onde você está? - exclamou.
Eles jantaram sanduíches de queijo grelhado com molho apimentado. O molho era da Busy Bee. McCaleb o comprara ao voltar do barco com Raymond.
Ele estava sentado diante de Graciela, com Raymond à esquerda. A neném estava à direita, num assento portátil preso à mesa. Estavam jantando dentro de casa porque
um nevoeiro noturno engolfara a ilha num abraço gelado. McCaleb permaneceu calado, com expressão triste, durante toda a refeição, como passara grande parte do dia.
Quando ele voltara, Graciela decidiu se manter afastada. Levou Raymond para um passeio no Jardim Botânico de Wrigley, em Avalon Canyon. McCaleb ficou com a neném,
que quase não parou de se agitar. Mas ele não se importou. Pelo menos assim não ficava remoendo as coisas.
À hora do jantar, porém, não havia como eles se evitarem. meCaleb fez os sanduíches, sendo o último a se sentar à mesa. Assim que começou a comer, Graciela perguntou
qual era o problema.
- Nada - disse ele. - Está tudo bem.
- Raymond disse que você e Buddy tiveram uma discussão.
- Talvez Raymond não devesse meter o nariz onde não é chamado.
Olhou para o garoto ao dizer isso, e Raymond baixou os olhos para o prato.
- Isso não é justo, Terry - disse Graciela.
Ela tinha razão. McCaleb sabia disso. Ele estendeu a mão e despenteou o cabelo do garoto. O cabelo dele era tão macio. McCaleb gostava de fazer aquilo. Torceu para
que o gesto transmitisse seu pedido de desculpas.
- Fui tirado do caso porque Buddy vazou a história para um repórter.
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-O quê?
- Nós chegamos, ou eu cheguei, a um suspeito. Um tira. Buddy ouviu minha conversa com Jaye sobre essa descoberta. Contou tudo a um repórter, que começou a dar telefonemas.
Jaye e o chefe dela acharam que eu tinha vazado a coisa.
- Isso não faz sentido. Por que Buddy faria isso?
- Não sei. Ele não disse. Na realidade, até disse. Disse que achava que eu não me incomodaria, ou que a coisa não tinha importância. Alguma coisa assim. Isso foi
hoje, no barco.
Fez um gesto na direção de Raymond, dando a entender que fora essa conversa tensa que o garoto ouvira parcialmente e depois contara a Graciela.
- Bom, você telefonou para Jaye e contou que foi ele?
- Não, isso não interessa. O vazamento surgiu por meu intermédio. Foi burrice minha deixar Buddy no barco. Vamos mudar de assunto? Estou cansado de pensar e falar
sobre isso.
- Muito bem, Terry, você quer falar sobre o quê?
Ele ficou em silêncio. Ela ficou em silêncio. Depois de algum tempo, ele começou a rir.
- Não consigo pensar em mais nada agora.
Graciela terminou de comer um pedaço de sanduíche. McCaleb olhou para Cielo, que fitava uma bola azul e branca pendurada num arame preso ao lado do assento. Ela
estava tentando alcançar a bola com as mãozinhas, mas não conseguia. McCaleb viu que ela estava ficando frustrada. Entendia perfeitamente o sentimento da neném.
- Raymond, conte a seu pai o que vimos no Jardim Botânico hoje - disse Graciela.
Recentemente, ela começara se referir a McCaleb como pai de Raymond. Eles haviam adotado o garoto, mas McCaleb não queria pressionar Raymond a pensar nele como pai
ou a se referir a ele assim. O garoto geralmente o chamava de Terry.
- Vimos uma raposa das ilhas Channel - disse Raymond. Estava caçando no cânion.
- Eu achava que as raposas caçavam à noite e dormiam de dia.
- Bom, então alguém acordou o bicho, porque nós vimos a raposa lá. Era grande.
Graciela balançou a cabeça, confirmando a história.
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- Legal - disse McCaleb. - Que pena que vocês não tiraram uma foto.
Continuaram comendo em silêncio por alguns instantes. Graciela usou o guardanapo para limpar a saliva no queixo do bebê.
- Em todo caso, você deve estar contente com a minha saída do caso e com a volta das coisas ao normal aqui em casa - disse McCaleb.
Graciela olhou para ele.
- Só quero a sua segurança. Quero a família toda junta e em segurança. É isso que me deixa contente, Terry. - Ele balançou a cabeça e terminou o sanduíche. Graciela
continuou, dizendo: - Eu quero que você seja feliz. Mas se isso significa trabalhar nesses casos, vejo um conflito com o seu bem-estar pessoal em termos de saúde,
e com o bem-estar desta família.
- Bom, não precisa mais se preocupar com isso. Acho que agora ninguém vai me procurar novamente.
Ele se levantou para tirar a mesa. Mas antes de pegar os pratos, inclinou-se sobre o assento da filha e curvou o arame, colocando a bola azul e branca ao alcance
dela.
- Isto não é pra ficar assim - disse Graciela. McCaleb olhou para ela.
- É, sim.
Capítulo 29
McCaleb ficou acordado até de madrugada com a neném. Ele e Graciela se alternavam naquela tarefa, para que pelo menos um dos dois tivesse uma noite de sono decente.
Cielo parecia ter um relógio de alimentação que soava quase que de hora em hora. Cada vez que ela acordava, McCaleb lhe dava a mamadeira e andava com ela pela casa
escura. Batia de leve nas costas da menina até que ela arrotasse e a devolvia ao berço. Dali a uma hora o processo recomeçava.
Depois de cada ciclo, McCaleb andava pela casa e conferia as portas. Era um hábito nervoso que virara rotina. Por ficar na encosta da colina, a casa vivia mergulhada
num nevoeiro espesso. Olhando pelas janelas dos fundos, não conseguia ver nem as luzes do píer lá embaixo. Ficou imaginando se o nevoeiro se estendia sobre a baía
até o continente. A casa de Harry Bosch localizava-se num ponto elevado. Ele ficou pensando se o detetive também não estaria de pé junto à janela, olhando para aquele
vazio enevoado.
De manhãzinha Graciela pegou o bebê, e McCaleb, exausto pela noite e tudo mais, dormiu até às onze horas. Quando acordou, percebeu que a casa estava em silêncio.
De camiseta e short, foi andando pelo corredor e viu que a cozinha e a sala estavam vazias. Graciela deixara um bilhete na mesa da cozinha, dizendo que levara as
crianças à igreja de St. Catherine para o serviço religioso das
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dez horas, e que iria ao mercado depois. O bilhete dizia que estariam de volta ao meio-dia.
McCaleb foi até a geladeira, pegou o galão de suco de laranja e encheu um copo inteiro. Depois pegou suas chaves na bancada e voltou ao corredor, onde ficava o armário
trancado. Tirou de lá um saquinho plástico contendo uma dose matinal dos remédios que o mantinham vivo. No primeiro dia de cada mês, ele e Graciela separavam cuidadosamente
as doses e as colocavam em saquinhos plásticos marcados com as datas, diferenciando as doses matinais das vespertinas. Era mais fácil do que abrir dezenas de frascos
de pílulas duas vezes por dia.
Levou o saquinho de volta à cozinha e começou a tomar as pílulas, duas ou três de cada vez, com goles do suco de laranja. Enquanto seguia essa rotina, lançou o olhar
pela janela da cozinha na direção do porto lá embaixo. O nevoeiro fora embora. O tempo ainda estava um pouco enevoado, mas já clareara o bastante para ele ver o
Mar que Segue. Havia um esquife amarrado na popa.
McCaleb foi até uma das gavetas da cozinha e pegou o binóculo que Graciela gostava de usar para vê-lo manobrar o barco no porto, partindo ou voltando com um grupo
de clientes. Depois foi até o pátio e aproximou-se da balaustrada. Focalizou o binóculo. Não viu ninguém na cabine ou na ponte de comando do barco e não conseguia
enxergar através da película refletora na porta corrediça do salão. Dirigiu o foco para o esquife, que era de um verde desbotado, com motor de popa de um cavalo
e meio, e o reconheceu. Era um dos barcos de aluguel do concessionário do píer.
Entrou novamente e largou o binóculo sobre a bancada, enquanto recolhia as pílulas restantes com a mão. Levou-as com o suco de laranja para o quarto. Começou a engolir
as pílulas rapidamente, enquanto se vestia. Sabia que Buddy Lockridge não teria alugado um esquife para ir até o Mar que Segue. Buddy sabia qual era o Zodiac de
McCaleb e simplesmente teria pegado o bote emprestado.
Era outra pessoa que estava no barco.
McCaleb levou vinte minutos para caminhar até o píer, pois Graciela pegara o carrinho de golfe. Foi primeiro até a cabine de aluguel de barcos para perguntar quem
alugara o tal esquife, mas o guichê estava fechado. Havia um cartaz com a figura de um relógio, dizendo que o funcionário só estaria de volta ao meio-dia e meia.
McCaleb consultou o relógio. Meio-dia e dez. Não podia esperar. Desceu a rampa até o cais dos esquifes, entrou no Zodiac e deu a partida ao motor.
Enquanto seguia o canal em direção ao Mar que Segue, foi examinando as escotilhas laterais do salão, mas não conseguiu ver qualquer movimento ou indicação de que
alguém estivesse na embarcação. Desligou o motor do Zodiac quando chegou a vinte metros de distância, e o bote inflável fez o restante do percurso deslizando silenciosamente.
McCaleb abriu o zíper do bolso do agasalho e tirou uma Glock 17, a arma que usava em serviço quando trabalhava no FBI.
O Zodiac bateu de leve na popa, ao lado do esquife de aluguel. McCaleb examinou o esquife, mas viu apenas um colete salvavidas e uma almofada de flutuação, sem indicação
alguma de quem alugara o barco. Subiu na popa agachado e enrolou o cabo do Zodiac num dos ganchos traseiros. Olhou por cima da verga e viu apenas seu próprio reflexo
na porta corrediça. Percebeu que teria que se aproximar da porta sem saber se estava sendo observado por alguém do outro lado.
Agachou-se novamente e olhou em torno. Ficou pensando se deveria recuar e voltar com o barco de patrulha do porto. Depois de um instante decidiu que não. Olhou para
sua casa lá em cima na colina, levantou-se e jogou o corpo por cima da verga. Com a arma abaixada e escondida atrás do quadril, foi até a porta e examinou a fechadura,
que não mostrava sinal algum de ter sido violada. Puxou a maçaneta, e a porta se abriu. Tinha certeza que a deixara trancada na véspera, antes de ir embora com Raymond.
McCaleb entrou. O salão estava vazio, sem sinal algum de invasão ou roubo. Ele fechou a porta e ficou escutando. O barco estava em silêncio. Ouvia-se o som da água
batendo de leve contra a superfície externa, e mais nada. Ele deslocou o olhar para os
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degraus que levavam aos camarotes inferiores e o banheiro. Foi andando naquela direção, já com a pistola erguida à frente.
No segundo dos quatro degraus, McCaleb pisou numa tábua rachada que gemeu sob seu peso. Ficou imóvel, tentando escutar alguma reação, mas ouviu apenas o silêncio
e o ruído incansável da água contra as laterais do barco. Ao pé da escada havia um corredor curto com três portas. Diretamente à frente ficava o camarote dianteiro,
que ele convertera em escritório e sala de arquivo. À direita ficava o camarote principal, e à esquerda, o banheiro.
A porta do camarote principal estava fechada. McCaleb não recordava como a deixara ao sair do barco vinte e quatro horas antes. A porta do banheiro estava totalmente
aberta, presa à parede para não balançar e bater quando o barco estivesse em movimento. A porta do escritório estava parcialmente aberta, balançando suavemente no
ritmo do movimento do barco. Havia uma luz acesa lá dentro, e McCaleb viu que era a luz da escrivaninha, embutida no leito inferior dos beliches à esquerda da porta.
Ele resolveu inspecionar o banheiro primeiro, em seguida o escritório e depois o camarote principal. Ao se aproximar do banheiro, sentiu um cheiro de cigarro.
O banheiro estava vazio, e de qualquer forma era pequeno demais para ser usado como esconderijo. Quando se virou para a porta do escritório e ergueu a arma, uma
voz soou lá dentro.
- Entre, Terry.
Ele reconheceu a voz. Cautelosamente, avançou e usou a mão livre para empurrar a porta, abrindo-a com a arma ainda erguida
A porta se abriu e ele viu Harry Bosch sentado à escrivaninha, com o corpo relaxadamente recostado, olhando para a porta. O detetive tinha as duas mãos à vista.
Ambas estavam vazias, a não ser por um cigarro apagado entre os dedos da mão direita. McCaleb entrou vagarosamente no pequeno aposento, ainda com a arma erguida
e apontada para Bosch.
- Vai atirar em mim? Quer ser meu acusador e meu executor?
- Isto é arrombamento e invasão.
- Então acho que estamos quites.
- Do que está falando?
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- Que nome dá ao teatrinho que fez na minha casa naquela noite? "Harry, tenho mais umas perguntas sobre o caso." Só que não fez nenhuma pergunta de verdade, fez?
Em vez disso, deu uma olhada no retrato da minha mulher e perguntou por ela. Depois bebeu minha cerveja e perguntou sobre a gravura no corredor. Ah, e também me
contou aquela história de encontrar Deus nos olhos azuis da sua filhinha. Portanto, que nome dá a tudo isso, Terry?
Bosch girou despreocupadamente a cadeira e lançou o olhar sobre o ombro na direção da escrivaninha. McCaleb acompanhou o olhar dele, vendo que seu computador laptop
estava aberto e ligado. Percebeu que Bosch abrira o arquivo com as observações para o perfil que ele esteve compondo até a véspera, quando tudo mudara. Intimamente,
lamentou não ter protegido o arquivo com uma senha.
- Pra mim parece ser arrombamento e invasão - disse Bosch com os olhos na tela. - Talvez coisa até pior.
A nova posição de Bosch fez com que a jaqueta de couro de aviador que ele usava se abrisse, e McCaleb viu a pistola presa ao coldre na cintura. Continuou com a arma
erguida e pronta.
Bosch olhou novamente para ele.
- Ainda não tive chance de examinar tudo isso. Parece um monte de anotações e análises. Pelo que conheço de você, provavelmente é coisa de primeira categoria. Mas
não sei como, em algum ponto você errou o caminho, McCaleb. Não fui eu.
McCaleb deixou-se cair vagarosamente no leito inferior do beliche oposto. Já mantinha a arma erguida com menos precisão. Sentia que não havia perigo imediato da
parte de Bosch. Se quisesse, o detetive poderia tê-lo emboscado quando ele entrara.
- Você não devia estar aqui, Harry. Não devia estar falando comigo.
- Eu sei, tudo que eu disser pode e será usado contra mim num tribunal. Mas com quem vou falar? Foi você que me colocou na linha de tiro. Quero que me tire de lá.
- Bom, agora é tarde. Já saí do caso. E é melhor você nem saber quem entrou.
Bosch ficou simplesmente olhando para ele, esperando.
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- A Seção de Direitos Civis do FBI. Você achava a corregedoria de polícia um pé-no-saco? Pois esse pessoal do FBI vive e respira com um único objetivo: arrancar
o couro cabeludo da gente. E um couro cabeludo do Departamento de Polícia de Los Angeles vale mais do que Boardwalk e Park Place juntos.
- Como aconteceu? Foi o repórter? McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que ele conversou com você também. Bosch balançou a cabeça.
- Tentou. Ontem.
Bosch olhou em torno, notou o cigarro ainda na mão e colocou-o na boca.
- Se importa se eu fumar aqui?
- Você já andou fumando aqui.
Bosch tirou o isqueiro do bolso da jaqueta e acendeu o cigarro. Pegou a cesta de lixo embaixo da escrivaninha e colocou-a perto da cadeira para servir de cinzeiro.
- Parece que não consigo largar este troço.
- Personalidade propensa ao vício. Uma característica boa e má em detetives.
- E, sei lá - disse Bosch, dando uma tragada e acrescentando: Nós nos conhecemos há o quê, dez, doze anos?
- Mais ou menos.
- Já trabalhamos juntos em alguns casos, e ninguém trabalha com alguém num caso sem formar uma opinião do outro. Sabe do que estou falando?
McCaleb não respondeu. Bosch bateu de leve o cigarro na borda da cesta de lixo.
- E o que me mais incomoda, mais até do que a própria acusação, é ser acusado por você. E pensar em como e por que você pôde achar isso, entende? Que opinião tinha
de mim para poder chegar a essa conclusão?
McCaleb fez um gesto com ambas as mãos, como dizendo que a resposta era óbvia.
- As pessoas mudam. Se houve uma coisa que o trabalho me ensinou sobre as pessoas é que qualquer um de nós é capaz de qual-
quer coisa, dadas as circunstâncias certas, as pressões certas, os motivos certos, e o momento certo.
- Tudo isso é psicobesteira. Não...
Bosch não terminou, deixando a frase no ar. Ele olhou novamente para o computador e para os papéis espalhados na escrivaninha. Apontou com o cigarro para a tela
do laptop.
- Você fala das noites... de algo mais escuro que a noite. -E daí?
Bosch deu uma tragada forte no cigarro, inclinou a cabeça para trás e soltou a fumaça na direção do teto, dizendo:
- Quando eu servi no exterior, fui mandado para os túneis. Quer saber o que é treva? Pois eu digo a você, treva era aquilo. Lá embaixo. Às vezes não dava pra ver
a porra da mão a menos de centímetros do rosto. Era tão escuro que os olhos doíam, tentando ver alguma coisa. Qualquer coisa que fosse.
Deu outra longa tragada no cigarro. McCaleb ficou examinando os olhos de Bosch, que pareciam sem expressão, perdidos na lembrança. Subitamente, ele voltou. Estendeu
a mão, apagou o cigarro fumado apenas pela metade na borda interna da cesta de lixo e jogou-o lá dentro.
- E o meu jeito de tentar largar o troço. Só fumo essas merdas mentoladas e nunca passo da metade. Já baixei para um maço por semana.
- Não vai funcionar.
- Eu sei.
Ele ergueu os olhos para McCaleb e deu um sorriso maroto, como pedindo desculpas. Mas logo mudou de expressão e voltou à história.
- Mas às vezes não era tão escuro lá embaixo. Nos túneis. Às vezes tinha um pouquinho de luz e dava até pra enxergar o caminho. O negócio é que eu nunca sabia de
onde aquela luz vinha. Era como se a luz estivesse presa lá embaixo com a gente. Eu e meus amigos chamávamos aquilo de luz perdida. Estava perdida, mas foi encontrada
por nós.
McCaleb ficou esperando, mas Bosch não disse mais nada.
- O que está querendo me dizer, Harry?
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- Que deixou escapar alguma coisa. Não sei o que foi, mas deixou escapar alguma coisa.
Ele manteve os olhos escuros fixos em McCaleb. Estendeu a mão de volta para a escrivaninha e pegou a pilha de documentos copiados que Jaye Winston trouxera. Jogou-os
pelo pequeno aposento no colo de McCaleb, que não fez movimento para apanhálos. Os papéis caíram e se espalharam pelo chão.
- Olhe de novo. Deixou escapar alguma coisa, e a soma total do que encontrou apontava para mim. Volte lá e encontre a peça que deixou escapar. Isso vai mudar a soma
total.
- Eu já disse, estou fora do caso.
- Pois vou colocar você dentro novamente.
Bosch disse isso de forma peremptória, como se McCaleb não tivesse escolha.
- Você tem até quarta-feira, que é o prazo máximo daquele jornalista. Tem que evitar a publicação da matéria dele com a verdade. Se não conseguir, sabe o carnaval
que J. Reason Fowkkes vai fazer com isso.
Eles ficaram sentados ali, encarando-se em silêncio, por um longo momento. Na época em que trabalhava como elaborador de perfis, McCaleb conversara com dúzias de
assassinos. Poucos deles admitiam prontamente seus crimes. Portanto, nisso Bosch não era diferente. Mas a intensidade com que o detetive o encarava, sentado ali
sem piscar, era algo que McCaleb jamais vira em homem algum, culpado ou inocente.
- Storey já matou duas mulheres, e essas são só as que nós sabemos. Ele é o monstro que você levou toda a sua vida caçando, McCaleb. E agora... e agora você está
dando a ele a chave que destranca a porta da jaula. Se ele sair, vai fazer a mesma coisa de novo. Você conhece o tipo. Sabe que vai.
McCaleb não conseguia competir com o olhar de Bosch. Baixou os olhos para a arma em suas mãos.
- O que fez você pensar que eu concordaria com isso? - perguntou.
- Como eu disse, a gente forma opinião sobre os outros. Eu formei a minha sobre você, McCaleb. Você vai concordar. Senão, vai
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passar o resto da vida perseguido pelo monstro que vai libertar. Se Deus está realmente nos olhos da sua filha, como vai conseguir voltar a olhar pra ela?
McCaleb balançou a cabeça inconscientemente e pôs-se a pensar no que acabara de fazer.
- Lembro-me do que me disse uma vez - prosseguiu Bosch. - Que se Deus está nos detalhes, o diabo também está. Você queria dizer que a pessoa que nós procuramos geralmente
está bem na nossa frente, escondida nos detalhes o tempo todo. Sempre me lembro dessa frase. E isso me ajuda até hoje.
McCaleb balançou a cabeça novamente e baixou o olhar para os documentos jogados no chão.
- Escute, Harry, você pode entender. Eu estava plenamente convencido disso quando levei a coisa para Jaye. Não sei se posso dar meia-volta e ir na direção oposta.
Se quer ajuda, provavelmente eu sou a pessoa errada.
Bosch balançou a cabeça e sorriu.
- E exatamente por isso que você é a pessoa certa. Se puder ser convencido, o mundo poderá ser convencido.
- E, onde você estava na véspera do Ano-Novo? Por que não começamos por aí?
Bosch deu de ombros.
- Em casa.
- Sozinho?
Bosch deu de ombros novamente e não respondeu. Levantou-se para sair. Pôs as mãos nos bolsos da jaqueta. Passou pela porta estreita e subiu a escada para o salão.
McCaleb foi atrás dele, já com a arma ao lado do corpo.
Bosch abriu a porta corrediça com o ombro. Ao passar para o convés, ergueu os olhos para a catedral na encosta da colina e olhou em seguida para McCaleb.
- Era conversa fiada todo aquele papo lá em casa sobre achar a mão de Deus? Era técnica de entrevista, esse tipo de coisa? Era uma declaração destinada a obter uma
resposta que se encaixaria num perfil?
McCaleb abanou a cabeça.
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- Não, não era conversa fiada.
- Que bom. Eu estava torcendo para que não fosse.
Bosch passou pela verga na direção da popa. Desamarrou o esquife alugado, entrou na embarcação e sentou-se no banco traseiro. Antes de ligar o motor, olhou mais
uma vez para McCaleb e apontou para a popa do barco.
- Mar que Segue. O que isso quer dizer?
- Foi meu pai que batizou o barco. Era dele. O mar que segue é a onda que se ergue atrás de nós, que nos atinge antes de vermos que ela está vindo. Acho que ele
deu esse nome ao barco como um tipo de aviso. Cuidado com a retaguarda, entende?
Bosch balançou a cabeça.
- Quando eu servi no exterior, a gente dizia um para o outro, mão no coldre.
Foj a vez de McCaleb balançar a cabeça.
- E a mesma coisa.
Ficaram em silêncio por um momento. Bosch pôs a mão na maçaneta de partida do motor, mas não fez nada.
- Conhece a história deste lugar, Terry? Estou falando do tempo antes da chegada dos missionários.
- Não. Você conhece?
- Um pouco. Eu costumava ler muitos livros de história quando era criança. Tudo que houvesse na biblioteca- Gostava de história local. De Los Angeles principalmente,
e da Califórnia. Gostava de ler essas coisas, mais nada. Uma vez o orfanato fez uma excursão até aqui. E eu li tudo que podia sobre este lugar.
McCaleb balançou a cabeça.
- Os índios que viviam aqui, os gabrielinos, eram adoradores do sol - disse Bosch. - Os missionários chegaram e mudaram tudo. Na verdade, foram eles que batizaram
os índios de gabrielinos. Eles próprios se chamavam de outra coisa, mas não lembro o que era. Mas antes os índios já estavam aqui e adoravam o sol. Acho que o sol
era tão importante para a vida na ilha que eles imaginaram que só podia ser um deus.
McCaleb viu os olhos escuros de Bosch perscrutarem a baía.
- Os índios do continente consideravam os índios da ilha feiticeiros ferozes, que podiam controlar o tempo e as ondas por meio de orações e sacrifícios ao seu Deus.
Quer dizer, eles só podiam ser ferozes e fortes para conseguirem cruzar a baía, a fim de vender sua cerâmica e peles de foca no continente.
McCaleb ficou examinando Bosch, tentando entender a mensagem que tinha certeza que o detetive estava tentando transmitir.
- Do que está falando, Harry? Bosch deu de ombros.
- Sei lá. Acho que quero dizer que as pessoas encontram Deus onde precisam que Ele esteja. No sol, nos olhos de uma
recém-nascida... num coração novo.
Olhou para McCaleb. Tinha os olhos negros e indecifráveis como os da coruja pintada.
- E algumas pessoas - começou McCaleb - encontram a salvação na verdade, na justiça e no que é direito.
Bosch balançou a cabeça e deu aquele sorriso maroto novamente.
- Isso parece bacana.
Virou-se e deu a partida no motor com um único puxão. Depois fez uma continência de brincadeira para McCaleb e se afastou, orientando o esquife de aluguel na direção
do píer. Por não conhecer as regras do porto, cortou pelo meio do canal e foi passando entre as bóias de atracação sem uso. Não olhou para trás. McCaleb ficou observando-o
durante todo o percurso. Um homem sozinho na água, num velho barco de madeira. Aquele pensamento trazia uma pergunta. Ele estava pensando em Bosch ou nele mesmo?
Capítulo 30
Bosch comprou uma Coca-Cola no balcão da concessionária da barca de volta, na esperança de que o refrigerante acalmasse seu estômago, evitando o enjôo. Perguntou
a uma das comissárias onde era o lugar mais estável da embarcação e foi orientado para um dos assentos centrais no interior. Sentou-se e bebeu um pouco do refrigerante.
Depois tirou do bolso da jaqueta as páginas dobradas que imprimira no escritório de McCaleb.
Ele imprimira dois arquivos antes de ver McCaleb se aproximando no Zodiac. Um se chamava PERFIL DA CENA DO CRIME, e o outro PERFIL DO INDIVÍDUO. Dobrara os dois
e os pusera no bolso, desconectando a impressora portátil do laptop antes de McCaleb entrar no barco. Só tivera tempo de examiná-los rapidamente na tela do computador
e começou a fazer uma leitura mais completa ali na barca-
Pegou primeiro o perfil da cena do crime, que tinha apenas uma página. Estava inacabado e parecia uma simples listagem das anotações e impressões de McCaleb a partir
do vídeo da cena do crime
Ainda assim, aquilo revelava como McCaleb trabalhava. Mostrava como suas observações de uma cena se transformavam em observações sobre um suspeito.
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CENA
1. Ligadura
2. Nu
3. Ferimento na cabeça
4. Fita gomada/mordaça - "Caverna"?
5. Balde?
6. Coruja - assistindo?
altamente organizado
detalhista
declaração - a cena é sua declaração
ele estava lá - ele assistiu (a coruja?)
exposição = humilhação da vítima
= ódio à vítima, desprezo
balde - remorso?
assassino - conhecimento prévio da vítima
conhecimento pessoal - interação
prévia
ódio pessoal
assassino dentro do círculo
qual é a declaração?
Bosch releu a página e ficou pensando sobre aquilo. Embora não conhecesse plenamente a cena do crime de onde as anotações haviam sido extraídas, ficou impressionado
com os saltos de lógica que McCaleb dava. Ele tinha descido cuidadosamente os degraus até concluir que o assassino era um conhecido de Gunn, alguém a ser encontrado
dentro do círculo pessoal dele. Em qualquer caso, aquela era sempre uma distinção importante a ser feita. Geralmente as prioridades investigativas eram estabelecidas
quando se decidia se o suspeito procurado cruzara com a vítima somente quando a matara, ou antes. Pelas características da cena do crime,
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McCaleb concluíra que o assassino era um conhecido de Gunn, e que houvera um prelúdio para esse cruzamento final e fatal entre assassino e vítima.
A segunda página continuava a listagem de anotações resumidas, e Bosch supôs que McCaleb planejava transformar aquilo num perfil de carne e osso. Enquanto lia, percebeu
que alguns grupos de palavras eram frases que McCaleb ouvira dele próprio.
SUSPEITO Bosch:
instituições - abrigo juvenil, Vietnã, DPLA marginal - alienação olhos - perdidos, perda homem com uma missão - anjo vingador a grande roda sempre girando ninguém
escapa o que vai volta
álcool
divórcio - esposa? por quê?
alienação/obsessão
mãe
casos
sistema judiciário - "besteira"
transmissores da pestilência
culpa?
Harry = Hieronymus
coruja = mal
mal = Gunn
morte do mal = liberação dos fatores estressantes
pinturas - demônios - diabos - mal
treva e luz - a borda
punição
mãe - justiça - Gunn
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a mão de Deus - polícia - Bosch punição = obra de Deus
Mais
escuro que a noite - Bosch
Bosch não sabia ao certo como interpretar aquelas anotações, mas seus olhos foram atraídos para a última linha. Ele leu aquilo várias vezes, sem saber direito o
que McCaleb estava dizendo a respeito dele.
Depois dobrou cuidadosamente a página e ficou sentado, imóvel, por bastante tempo. De certa forma, era uma sensação surrealista ficar sentado naquela barca depois
de tentar interpretar as anotações que outra pessoa fizera a respeito dos motivos pelos quais ele deveria ser considerado suspeito de assassinato. Começou a sentir
um leve enjôo e percebeu que talvez estivesse ficando mareado. Engoliu o restante da Coca-Cola e se levantou, pondo as páginas de volta no bolso do paletó.
Dirigiu-se à parte dianteira da embarcação e empurrou a pesada porta que dava para a proa. O ar frio deu-lhe um choque imediato, e ele avistou o tênue contorno do
continente à distância. Manteve os olhos no horizonte e respirou com força. Em poucos minutos estava se sentindo melhor.
Capítulo 31
McCaleb ficou muito tempo sentado no velho sofá do salão, pensando sobre seu encontro com Bosch. Pela primeira vez, em toda sua carreira de investigador, um suspeito
de assassinato o procurara para pedir ajuda. Ele precisava decidir se aquilo fora o ato de um homem desesperado ou de um homem sincero. Ou ainda outra coisa, possivelmente.
E se ele não tivesse percebido o esquife alugado e corrido para o barco? Bosch teria esperado por ele?
McCaleb desceu até o camarote dianteiro e olhou para os documentos espalhados no chão. Ficou imaginando se Bosch os jogara intencionalmente, para que os papéis caíssem
no chão e se misturassem. Será que o detetive levara algo?
Voltou à escrivaninha e examinou o laptop. O computador não estava ligado à impressora, mas McCaleb sabia que isso não significava nada. Fechou o arquivo que estava
na tela e abriu a janela de gerenciamento da impressora. Clicou no arquivo de tarefas executadas e viu que dois arquivos haviam sido impressos naquele dia - os perfis
da cena do crime e do suspeito. Bosch os levara.
McCaleb visualizou o detetive sentado na barca da Express, cruzando a baía e lendo o que fora escrito a seu respeito. Sentiu-se desconfortável diante daquela imagem,
pois jamais pensou que um dos perfis elaborados por ele pudesse ser lido pelo próprio suspeito.
Afastou a idéia e decidiu ocupar a cabeça com outra coisa.
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Ajoelhou-se e começou a pegar os dossiês de assassinatos, arrumando-os numa pilha sem se preocupar no momento em colocálos em ordem.
Depois de arrumar a bagunça, sentou-se à escrivaninha com os dossiês empilhados à sua frente e pegou uma página em branco numa gaveta. Com o grosso marcador preto
que usava para etiquetar as caixas de papelão onde guardava os dossiês, escreveu:
VOCÊ DEIXOU ESCAPAR UMA COISA
Pegou uma fita adesiva na escrivaninha e colou a folha na parede à sua frente. Ficou olhando para aquilo durante bastante tempo. Tudo que Bosch lhe dissera podia
ser resumido naquela única linha. Só precisava decidir se aquilo era verdade, se aquilo era possível. Ou se era a última jogada de um homem desesperado.
Ouviu o celular tocando. O aparelho estava no bolso da jaqueta que tinha deixado no sofá do salão. Subiu correndo a escada e pegou-a. Quando
meteu a mão no bolso, sentiu o contorno da arma. Tentou o outro bolso e pegou o telefone. Era Graciela.
- Já chegamos em casa - disse ela. - Pensei que você estaria aqui. Achei que talvez pudéssemos ir todos almoçar no El Encanto.
- Hum...
McCaleb não queria deixar o escritório nem seus pensamentos sobre Bosch. Mas a última semana fora meio estressante com Graciela. Precisava conversar com ela sobre
isso, sobre as mudanças que andava vendo nas coisas.
- Estou terminando um negócio aqui - disse por fim. - Por que não desce com as crianças e eu me encontro com vocês no píer?
Olhou para o relógio. Eram quinze para a uma.
- Uma e meia é tarde demais?
- Ótimo - disse ela abruptamente. - Qual é o negócio?
- Ah, é só... Estou meio que fechando esse negócio para Jaye.
- Você não disse que tinha saído do caso?
- Saí, mas estou com todos os relatórios e queria concluir o... Dar uma espécie de arremate, entende?
- Não se atrase, Terry - disse Graciela, num tom de voz que insinuava que ele perderia mais do que o almoço, caso se atrasasse.
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- Não vou me atrasar. Vejo vocês lá.
Fechou o telefone e voltou ao escritório. Olhou para o relógio novamente. Tinha cerca de meia hora antes de ser obrigado a pegar o bote e voltar ao píer. O El Encanto
ficava a cinco minutos dali, a pé. Era um dos poucos restaurantes da ilha que ficavam abertos durante os meses de inverno.
Sentou-se e começou a pôr em ordem os documentos da pilha. Não era uma tarefa difícil. Cada página tinha um carimbo com a data no canto superior direito. Mas McCaleb
parou logo depois de começar. Olhou para a mensagem pregada na parede e concluiu que precisava examinar as informações por outro ângulo se queria descobrir algo
que não notara antes, que lhe escapara. Decidiu não pôr a pilha na ordem correta. Em vez disso, releria os documentos na ordem aleatória em que se encontravam. Fazendo
isso, evitaria pensar no fluxo das investigações e suas etapas sucessivas. Simplesmente teria que considerar cada relatório como uma peça isolada num quebra-cabeças.
Era um truque mental simples, mas ele já agira assim em outros casos no FBI. Às vezes surgia algo novo, algo que lhe escapara anteriormente.
Olhou para o relógio novamente e pegou o primeiro documento da pilha. Era o laudo da autópsia.
Capítulo 32
McCaleb aproximou-se rapidamente dos degraus da entrada do El Encanto. Viu seu carrinho de golfe estacionado no meio-fio. A maioria dos veículos desse tipo existentes
na ilha eram parecidos, mas ele identificou o dele por causa do assento rosa e branco do bebê. Sua família ainda estava ali.
Subiu os degraus, e a recepcionista, reconhecendo-o como morador da ilha, apontou-lhe a mesa onde sua família estava. Correu para lá e puxou uma cadeira ao lado
de Graciela. Eles estavam quase terminando de almoçar, e ele notou que a garçonete já deixara a conta na mesa.
- Desculpe, eu me atrasei.
Pegou uma batata frita da cestinha no centro da mesa e molhou-a nas tigelas de salsa e guacamole antes de metê-la na boca. Graciela consultou o relógio e fuzilou-o
com seus profundos olhos castanhos. Ele agüentou firme, já se preparando para o próximo olhar, que tinha certeza que viria
- Não posso ficar.
Ela pousou o garfo ruidosamente no prato. Terminara. - Terry...
- Eu sei, eu sei. Mas surgiu uma coisa. Preciso ir à cidade ainda hoje.
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- O que pode ter surgido? Você está fora do caso. É domingo. As pessoas estão vendo futebol, e não se metendo em assassinatos que não lhes pediram para solucionar.
Ela apontou para um televisor instalado no canto superior do salão. Três comentaristas com pescoços grossos estavam sentados diante de uma bancada, tendo ao fundo
um campo de futebol americano. McCaleb sabia que o vencedor daquele dia seria um dos adversários do próximo jogo do Super Bowl. Estava pouco se importando com aquilo,
mas subitamente lembrou que prometera assistir a pelo menos um dos jogos com Raymond.
- Pediram, sim, Graciela.
- Do que está falando? Não me disse que eles te pediram pra ficar fora do caso?
Ele revelou que descobrira Bosch no barco naquela manhã e contou o que o detetive lhe pedira para fazer.
- E foi esse cara que você apontou para Jaye como o provável culpado?
McCaleb balançou a cabeça.
- Como ele sabia onde você morava?
- Ele não sabia. Ele sabia do barco, mas não onde a gente mora. Não precisa ficar preocupada com isso.
- Acho que preciso. Terry, você está levando isso longe demais e não está enxergando os perigos pra você mesmo e pra sua família. Eu acho que...
- Sério? Eu acho que...
Ele parou de falar, meteu a mão no bolso e tirou duas moedas de vinte e cinco centavos. Virou-se para Raymond.
- Raymond, já acabou de comer? -Opa.
- Você quer dizer "sim"? -Sim.
- Tá legal, pegue isso e vá jogar videogame ali perto do bar. O menino pegou as moedas.
- Você está dispensado.
Raymond levantou-se, hesitante, e correu para o salão contíguo, onde havia uns videogames de mesa que eles já tinham
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jogado antes. Escolheu um jogo que McCaleb sabia que era o Pac-man e se sentou, ainda dentro do raio de visão deles.
McCaleb olhou novamente para Graciela, que tinha a bolsa no colo. Ela estava pegando dinheiro e pondo-o sobre a conta.
- Graciela, pare um instante. Olhe pra mim.
Ela terminou de contar o dinheiro e meteu novamente a carteira na bolsa. Olhou para ele.
- Temos que ir embora. Está na hora da soneca de CiCi.
A neném estava no seu assento emborrachado junto à mesa, segurando a bola azul e branca pendurada no arame.
- Ela está bem. Pode dormir aqui mesmo. Simplesmente me escute um minuto.
Ficou esperando, e Graciela assumiu uma expressão condescendente.
- Muito bem. Diga o que tem a dizer, mas depois eu preciso ir embora.
McCaleb se virou, inclinando-se para perto de Graciela a fim de que suas palavras só fossem ouvidas por ela. Notou a borda de uma das orelhas dela aparecendo entre
as mechas de cabelo.
- A gente está se aproximando de uma crise, não é? Graciela concordou com a cabeça. Imediatamente, lágrimas
escorreram pelo seu rosto, como se o fato de McCaleb ter dito aquelas palavras em voz alta houvesse derrubado o tênue mecanismo de defesa que ela construíra interiormente
para se proteger e proteger seu casamento. McCaleb pegou o guardanapo limpo embaixo dos talheres e entregou-o a ela. Depois colocou a mão na nuca de Graciela e puxou-a
em sua direção, beijando-a no rosto. Por cima da cabeça de Graciela, viu Raymond observando-os com uma expressão assustada.
- A gente já conversou sobre isso, Graci - começou ele. - Você meteu na cabeça que nós não podemos ter nossa casa, nossa família e tudo mais, se eu trabalhar nisso.
O problema é a palavra "se". Esse é que é o erro. Porque não existe "se". Não é "se eu trabalhar nisso". E nisso que eu trabalho. E já passei tempo demais pensando
o contrário, tentando me convencer de outra coisa.
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Mais lágrimas irromperam, e Graciela levou o guardanapo ao rosto. Chorava em silêncio, mas McCaleb sabia que as pessoas no restaurante já haviam notado e estavam
assistindo à cena entre os dois, indiferentes à televisão ali no alto. Deu uma olhada para Raymond e viu que o garoto já voltara ao videogame.
- Eu sei - conseguiu dizer Graciela.
Ele ficou surpreso com a admissão dela. Tomou aquilo como um bom sinal.
- Então, o que a gente vai fazer? Não estou falando só de agora e desse caso. Estou falando de agora e sempre. O que a gente vai fazer? Graci, estou cansado de tentar
ser o que não sou e de ignorar aquilo dentro de mim que eu sei que é o que sou de verdade. Foi preciso esse caso para que eu finalmente percebesse e admitisse isso
pra mim mesmo.
Graciela não disse nada. McCaleb não esperava que ela dissesse.
- Você sabe que eu te amo, e que amo as crianças. O problema
não é esse. Eu acho que posso ter as duas coisas, e você acha que
não. Você adotou essa atitude de uma-coisa-ou-outra, e eu acho
que isso não é certo. Nem justo.
Ele sabia que estava magoando Graciela com aquelas palavras. Estava traçando uma linha divisória. Um dos dois teria que capitular. E estava dizendo que não seria
ele.
- Escute, vamos pensar sobre isso. Aqui não é um bom lugar pra conversar. Vou terminar o meu trabalho nesse negócio, e depois nós vamos nos sentar e conversar sobre
o nosso futuro. Está bem?
Ela balançou a cabeça vagarosamente, mas não olhou para ele.
- Faça o que tiver que fazer - disse ela, num tom de voz que McCaleb percebeu que o deixaria culpado para sempre. - Só espero que tome cuidado.
Ele a puxou para si e a beijou novamente.
- Tenho coisa demais aqui com você pra não tomar. Levantou-se e deu a volta à mesa. Foi até a neném e beijou-a
no alto da cabeça. Destravou o cinto de segurança do assento emborrachado e ergueu a menina.
- Vou levar a Ciei até o carrinho de golfe - disse ele. - Por que não pega o Raymond?
301
Levou a neném até o carrinho e prendeu-a no assento de segurança. Pôs o assento emborrachado no compartimento de carga traseiro. Graciela chegou com Raymond poucos
minutos depois. Tinha os olhos inchados de tanto chorar. McCaleb pôs a mão no ombro de Raymond e levou-o até o banco do carona.
- Raymond, vai ter que assistir ao segundo jogo sem mim. Tenho um trabalho a fazer.
- Posso ir com você. Posso ajudar.
- Não, não é um passeio marcado
- Eu sei, mas mesmo assim posso ajudar.
McCaleb sabia que Graciela estava olhando para ele e sentiu a culpa ardendo feito o sol nas costas.
- Obrigado, Raymond, mas talvez da próxima vez. Ponha o cinto de segurança.
Depois que o menino se acomodou, McCaleb deu um passo atrás. Olhou para Graciela, que não estava mais olhando para ele, e disse:
- Vou voltar logo que puder. E vou levar o telefone, caso você queira ligar.
Graciela fingiu que não ouviu. Afastou o carrinho do meio-fio e seguiu pela avenida Manila. McCaleb ficou olhando até eles
desaparecerem de vista.
Capítulo 33
Na caminhada de volta ao píer o celular tocou. Era Jaye Wtnston retornando a ligação dele. Ela estava falando bem baixinho e disse que estava telefonando da casa
da mãe. McCaleb estava com dificuldade para ouvi-la, e sentou-se num dos bancos ao longo da calçada do cassino. Inclinou-se para a frente e pôs os cotovelos nos
joelhos, com uma das mãos segurando o telefone junto ao ouvido e a outra sobre a primeira.
- Deixamos escapar alguma coisa - disse ele. - Deixei escapar alguma coisa.
- Terry, do que está falando?
- No dossiê de assassinato. No prontuário da prisão de Gunn. Ele estava...
- Terry, o que é isso? Você está fora do caso.
- Quem disse isso, o FBI? Eu não trabalho mais pra eles, Jaye.
- Então quem diz sou eu. Não quero que prossiga nisso...
- Também não trabalho pra você, Jaye. Lembra? Houve um longo silêncio ao telefone.
- Terry, não sei o que está fazendo, mas tem que parar. Você não tem autoridade, não desempenha mais qualquer função nesse caso. Se aqueles caras, Twilley e Friedman,
descobrirem que ainda está metendo o bedelho nisso, podem prender você por interferência. E você sabe que eles são do tipo que faz isso.
- Você quer uma função, eu já tenho uma função.
304
- O quê? Ontem mesmo retirei a autorização que dei a você. Não pode me usar pra isso.
McCaleb hesitou, e depois decidiu contar tudo a Jaye.
- Tenho uma função. Acho que dá pra dizer que estou trabalhando para o acusado.
O silêncio de Jaye foi mais longo ainda dessa vez. Quando voltou a falar, pronunciou as palavras com muita lentidão.
- Está dizendo que foi procurar Bosch?
- Não. Ele veio me procurar. Apareceu no barco hoje de manhã. Eu tinha razão sobre a coincidência daquela noite. Apareço na casa dele, e a ex-parceira dele liga
falando de você. Ele juntou as coisas. O repórter do New Times também telefonou pra ele. Bosch percebeu o que estava acontecendo sem que eu precisasse lhe contar
nada. Mas nada disso importa, Jaye. O que importa é que eu acho que me precipitei acusando Bosch. Deixei escapar alguma coisa, e já não tenho tanta certeza. E possível
que tudo tenha sido uma armação.
- Ele convenceu você.
Não, eu mesmo me convenci.
McCaleb ouviu vozes ao fundo, e Jaye disse-lhe que esperasse um instante. Depois ouviu vozes abafadas por uma mão sobre o fone, no que parecia uma discussão. Levantou-se
e continuou a andar na direção do píer. Jaye voltou ao telefone depois de alguns segundos.
Desculpe - disse ela. - Não é uma boa hora pra conversar. Estou no meio de uma confusão aqui.
Podemos nos encontrar amanhã de manhã? Do que está falando? - disse Jaye, quase guinchando. Acaba de me dizer que está trabalhando para o alvo de uma investigação.
Não vou me encontrar com você. O que ia parecer, caralho? Espere um instante...
McCaleb ouviu a voz abafada de Jaye pedindo desculpas a alguém pelo palavreado. Depois voltou à linha. - Olhe, preciso desligar.
Escute, não me interessa o que ia parecer. Estou interessado é na verdade, e achei que você também estava. Se não quer se encontrar comigo, ótimo. Também preciso
desligar.
- Terry, espere.
305
Ele ficou ouvindo. Jaye não disse nada. McCaleb percebeu que ela estava pensando em outra coisa. -E aí, Jaye?
- O que disse que nós deixamos escapar?
- Estava no pacote sobre a última prisão de Gunn por bebedeira. Depois que Bosch contou que conversara com Gunn na cadeia, acho que você reuniu todos os prontuários.
Só dei uma olhada neles quando folheei o dossiê pela primeira vez.
- Eu reuni os prontuários - disse ela em tom defensivo. - Ele passou a noite de 30 de dezembro na cela de detenção de Hollywood. Foi lá que Bosch falou com ele.
- E foi libertado sob fiança pela manhã. Às sete e meia.
- E. E daí? Não entendi.
- Veja quem pagou a fiança.
- Terry, estou na casa dos meus pais. Não tenho...
- Tem razão, desculpe. A fiança foi paga por Rudy Tafero. Silêncio. McCaleb já chegara ao píer. Foi andando pelo passa-
diço que levava ao cais dos esquifes e apoiou-se na balaustrada. Pôs novamente a mão livre em concha sobre o ouvido.
- Tá legal, a fiança foi paga por Rudy Tafero - disse Jaye. Presumo que Rudy seja um fiador licenciado. O que isso significa?
- Você não anda assistindo à tevê. Tem razão, Tafero é um fiador licenciado. Pelo menos pôs o número da licença na folha de fiança. Mas também é investigador particular
e consultor de segurança. Além disso... prepare-se, Jaye ... trabalha para David Storey.
Jaye não disse nada, mas McCaleb ouviu-a soltar um arquejo ao telefone.
- Terry, acho melhor você ir mais devagar. Está tirando conclusões demais a partir disso.
- Nada é coincidência, Jaye.
- Que coincidência? O sujeito é um fiador licenciado. Trabalha nisso. Tira as pessoas da cadeia. Aposto com você uma caixa de rosquinhas que o escritório dele fica
bem diante da delegacia de Hollywood junto com os outros. Provavelmente ele paga a fiança de um terço dos bêbados e de um quarto das prostitutas da cela de detenção
de lá.
306
- Você não acredita que a explicação seja tão simples, e sabe disso.
- Não venha me dizer o que eu sei.
- Isso foi no meio dos preparativos para o julgamento de Storey. Por que Tafero iria até lá e assinaria ele próprio uma fiança por bebedeira?
- Porque talvez ele trabalhe sozinho, e talvez, como eu disse, só precisasse atravessar a rua.
- Não acredito. E tem mais. A folha de ocorrência diz que Gunn deu o telefonema a que tinha direito às três da madrugada,
31 de dezembro. O número está na folha... Ele ligou para a irmã em Long Beach.
- Tá legal, e daí? Já sabíamos disso.
- Telefonei pra ela hoje e perguntei se tinha chamado um fiador para ele. Ela disse que não. Disse que estava cansada de receber telefonemas de madrugada e de viver
literalmente tirando o irmão da forca. Disse que dessa vez mandara Gunn se virar sozinho.
- Então ele procurou Tafero. E daí?
- Como conseguiu? Já tinha dado o único telefonema permitido. Jaye não conseguiu responder. Os dois ficaram em silêncio por
certo tempo. McCaleb lançou um olhar pelo porto. A lancha de aluguel amarela estava deslizando lentamente por um dos canais,
vazio, a não ser pelo homem ao volante. Homens sozinhos em barcos, pensou McCaleb.
- O que vai fazer? - perguntou Jaye por fim. - Para onde vai levar essa história?
- Vou à cidade hoje à noite. Pode encontrar-se comigo de manhã?
-Onde? Quando?
O tom de voz de Jaye revelava que ela estava irritada com a perspectiva daquele encontro.
- Sete e trinta, diante da delegacia de Hollywood. Houve uma pausa, e depois Jaye disse:
- Espere um instante, espere um instante. Não posso fazer isso. Se Hitchens souber, estou frita. Ele vai me transferir para Palmdale. Vou passar o resto da minha
carreira desencavando ossos na areia do deserto.
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McCaleb estava pronto para aquele protesto.
- Não disse que os caras do FBI querem o dossiê de assassinato de volta? Você se encontra comigo, e eu levo o dossiê. O que Hitchens pode dizer a respeito disso?
Houve um silêncio enquanto Jaye pensava no assunto.
- Tá legal, vai funcionar. Estarei lá.
Capítulo 34
Quando chegou em casa à noite, Bosch encontrou a luz de recados da secretária eletrônica piscando. Apertou o botão e ouviu dois recados, um de cada promotor do caso
Storey. Decidiu retornar primeiro o telefonema de Janis Langwiser. Enquanto teclava o número no telefone, ficou imaginando que emergência fizera os dois membros
da equipe da promotoria lhe telefonarem. Pensou que talvez tivessem sido contatados pelos agentes do FBI que McCaleb mencionara. Ou pelo repórter.
- O que há? - perguntou ele, quando Janis atendeu. - Pra vocês dois me ligarem, deve ser coisa grande e ruim.
- Harry? Como está?
- Vou levando. O que estão aprontando?
- E engraçado você dizer isso. Roger está vindo pra cá, e eu estou aprontando o jantar. Vamos repassar o depoimento de Annabelle Crowe para o júri de instrução mais
uma vez. Não quer vir?
Ele sabia que ela morava em Água Dulce, a uma hora de carro ao norte dali.
- Hum, já passei o dia todo dirigindo. Fui até Long Beach e voltei. Acha que precisam mesmo de mim aí?
- Opcional. Só não queríamos que se sentisse excluído. Mas não foi por isso que telefonamos.
- Qual foi o motivo?
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Ele estava na cozinha, colocando um engradado de cervejas Anchor Steam na geladeira. Tirou uma garrafa e fechou a porta.
- Eu e Roger passamos o fim de semana inteiro conversando sobre isso. Também falamos com Alice Short sobre o assunto.
Alice Short era a principal assistente da promotoria, encarregada dos julgamentos mais importantes. Chefe deles. Parecia que haviam sido contatados a respeito do
caso Gunn.
- Que "assunto"? - perguntou Bosch, enfiando a garrafa no abridor da parede e arrancando a tampa.
- Bom, achamos que o caso está realmente correndo como manda o figurino. Tudo se encaixou. Na verdade, a coisa é à prova de bala, Harry, e achamos que devemos puxar
o gatilho amanhã.
Bosch ficou em silêncio por algum tempo, enquanto tentava decifrar o código armamentista utilizado.
- Está dizendo que vamos encerrar amanhã?
- Achamos que sim. Provavelmente vamos conversar sobre isso novamente hoje, mas já temos a bênção de Alice, e Roger acha que essa é realmente a jogada certa. Estamos
pensando em interrogar várias testemunhas de encerramento pela manhã e convocar Annabelle Crowe depois do almoço. Finalizaríamos com ela... uma história humana.
Ela vai ser o nosso fecho de ouro.
Bosch ficou mudo. Podia ser a jogada certa do ponto de vista da promotoria, mas colocaria J. Reason Fowkkes no controle das coisas já na terça-feira.
- Harry, o que acha?
Ele deu um bom gole na garrafa. A cerveja não estava muito gelada. Tinha ficado muito tempo no carro.
- Acho que assim vocês só têm um tiro - disse ele, mantendo as imagens de armamento. - É melhor pensarem bastante nisso hoje, enquanto prepararam o macarrão. Não
vão ter uma segunda chance de argumentar.
- Sabemos disso, Harry. E como sabe que estou preparando macarrão?
Dava para ouvir o sorriso na voz dela.
- Chutei.
- Bom, não se preocupe, vamos pensar bastante no caso. E o
que temos feito.
Ela fez uma pausa, permitindo que ele respondesse, mas Bosch
ficou em silêncio.
- Se seguirmos esse caminho, qual é a situação de Annabelle?
- Ela está esperando nos bastidores. Pronta para entrar em
cena.
- Consegue falar com ela hoje?
- Sem problema. Vou dizer a ela pra estar lá ao meio-dia.
- Obrigado, Harry. A gente se vê amanhã.
Desligaram. Bosch refletiu sobre as coisas. Ficou pensando se deveria telefonar para McCaleb e contar o que estava acontecendo. Decidiu esperar. Foi para a sala
e ligou o som. O CD de Art Pepper ainda estava na bandeja do aparelho. A música encheu o aposento.
Capítulo 35
McCaleb estava encostado no Cherokee estacionado diante da delegacia de Hollywood do Departamento de Polícia de Los Angeles, quando Jaye Winston chegou numa BMW
Z3 e estacionou. Quando saltou, viu que McCaleb examinava com admiração
o carro.
- Me atrasei e não tive tempo de pegar um carro oficial.
- Gostei do carango. Sabe aquele ditado sobre Los Angeles? Você é o que você dirige.
- Não comece a traçar o meu perfil, Terry. E cedo pra caralho. Onde estão o dossiê e a fita?
Ele notou o palavreado dela, mas não disse nada. Desencostou do carro e deu a volta até o lado do carona. Abriu a porta, tirando o dossiê de assassinato e a fita
de vídeo. Entregou-os a ela, que levou tudo de volta para o BMW. McCaleb fechou e trancou o Cherokee, baixando o olhar através da vidraça para o assoalho do banco
traseiro, onde estava a caixa Kinko que ele cobrira com o jornal da manhã. Antes de ir para o encontro, tinha passado numa loja 24 horas no Sunset Boulevard e feito
uma fotocópia do dossiê inteiro. A fita de vídeo era um problema, pois não sabia onde poderia copiá-la rapidamente. Por isso simplesmente comprara uma fita nova
na Rite-Aid, perto da marina, e metera a fita virgem na caixa que Jaye Winston lhe dera. Calculou que ela não iria verificar na hora se ele tinha devolvido a fita
certa.
314
Quando Jaye voltou do carro, McCaleb apontou com o queixo para o outro lado da rua.
- Acho que devo uma caixa de rosquinhas a você.
Ela olhou para o outro lado da rua Wilcox. Bem na frente da delegacia havia um prédio maltratado, de dois andares, com um punhado de escritórios de
fiadores. Nas janelas viam-se os números dos telefones em anúncios baratos de néon. Talvez aquilo ajudasse os possíveis clientes a memorizá-los quando passassem sentados no banco
traseiro das radiopatrulhas. O escritório do meio tinha uma placa pintada na janela: Fianças Valentino.
- Qual deles? - perguntou Jaye.
- Valentino. Rudy Valentino Tafero. Era assim que o chamavam quando trabalhava do lado de cá da rua.
McCaleb examinou novamente o pequeno negócio e abanou a cabeça.
- Ainda não entendo como David Storey pode ter se ligado a um fiador com anúncio de néon.
- Hollywood não passa de lixo de rua com dinheiro. Mas o que a gente está fazendo aqui? Não tenho muito tempo.
- Trouxe seu distintivo?
Jaye lhe lançou um olhar do tipo não-me-sacaneie, e McCaleb explicou o que queria fazer. Os dois subiram os degraus e entraram na delegacia. No balcão da recepção
Jaye mostrou o distintivo e pediu para falar com o sargento do plantão matinal. Um sujeito que trazia o nome Zucker no peito e divisas de sargento na manga saiu
do pequeno escritório. Jaye mostrou o distintivo novamente e se apresentou. Depois apresentou McCaleb como seu sócio. Zucker franziu as volumosas sobrancelhas, mas
não perguntou o que era aquele negócio de sócio.
- Estamos trabalhando num caso de homicídio ocorrido na véspera de Ano-Novo. A vítima passou a noite anterior na cela de detenção aqui. Nós...
- Edward Gunn.
- Certo. Conhecia o sujeito?
- Ele esteve aqui algumas vezes. E é claro que ouvi dizer que não vai mais voltar.
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- Precisamos falar com o responsável pela cela na parte da manhã.
- Então deve ser comigo. Não temos um plantão específico para isso. Aqui a coisa funciona na base de quem está disponível. O que querem saber?
McCaleb tirou do bolso várias fotocópias do dossiê de assassinato e espalhou-as no balcão. Notou o olhar que Jaye lhe lançou, mas ignorou o gesto.
- Estamos interessados em saber como ele conseguiu a fiança disse.
Zucker girou as folhas sobre o balcão para poder ler. Pôs o dedo na assinatura de Rudy Tafero.
- Diz bem aqui. Rudy Tafero. Ele tem um escritório do outro lado da rua. Veio até aqui e pagou a fiança.
- Alguém telefonou pra ele?
- Sim, o cara telefonou. Gunn.
McCaleb bateu com o dedo na cópia da folha do dossiê.
- Diz aqui que ele usou o telefonema permitido pra ligar pra este número. E o telefone da irmã dele.
- Então ela deve ter telefonado para Rudy, em nome dele.
- Portanto, aqui ninguém dá dois telefonemas.
- Não. O movimento é muito grande, e geralmente estamos tão ocupados que eles têm sorte se conseguem dar um.
McCaleb balançou a cabeça. Dobrou as fotocópias e já ia colocá-las de volta no bolso, quando Jaye as tirou da sua mão.
- Eu fico com isso - disse ela.
Meteu as cópias dobradas no bolso traseiro das calças jeans e disse:
- Você não é o tipo do sargento bonzinho que faria o favor de ligar para Tafero, já que ele foi do departamento, dando a dica de que havia um freguês em potencial
pra ele aqui na cela, não é?
Zucker ficou olhando para ela por um instante, com um rosto que parecia de pedra.
- Isso é muito importante, sargento Zucker. Se não nos contar, a coisa pode arrebentar para o seu lado.
O rosto de pedra rachou-se num pálido sorriso.
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- Não, eu não sou bonzinho assim - disse Zucker. - E não tenho ninguém bonzinho assim no turno da manhã. Por sinal, está na minha hora de largar o serviço, de modo
que não sou obrigado a ficar falando com vocês. Tenham um bom-dia.
Começou a se afastar do balcão.
- Uma última coisa - disse Jaye rapidamente. Zucker voltou-se.
- Foi você que telefonou para Harry Bosch e contou que Gunn estava na cela?
Zucker balançou a cabeça.
- Eu tinha uma solicitação permanente dele. Sempre que Gunn fosse trazido para aqui, Bosch queria ser informado. Ele vinha e falava com o cara, tentando arrancar
dele algo sobre um caso antigo. Bosch não desistia.
- Aqui diz que Gunn só foi autuado às duas e trinta - disse McCaleb. - Você telefonou para Bosch no meio da noite?
- Era parte do acordo. Bosch não se importava com a hora. E na realidade eu ligava para o bip dele. Só depois é que ele telefonava para mim.
Foi o que aconteceu naquela noite?
Foi. Eu liguei para o bip dele, e Bosch telefonou de volta. Eu disse que Gunn estava aqui novamente. Bosch apareceu e falou com ele. Ainda avisei que era melhor
esperar até de manhã, porque Gunn estava bêbado feito um gambá, mas Bosch veio de qualquer maneira. Por que estão me fazendo tantas perguntas sobre ele? Jaye não
respondeu, de modo que McCaleb se intrometeu.
- Estamos fazendo perguntas sobre Gunn.
- Bom, isso é tudo que eu sei. Posso ir pra casa agora? Foi um dia longo.
- Todos são, não? - disse Jaye. - Obrigado, sargento.
Eles se afastaram do balcão e foram andando até os degraus da frente.
O que acha? - perguntou Jaye.
Me pareceu sincero. Mas vamos dar uma olhada no estacionamento dos funcionários.
- Pra quê?
- Faça esse favor para mim. Vamos ver qual é o carro do sargento.
- Está desperdiçando meu tempo, Terry.
Eles entraram no Cherokee de McCaleb e deram a volta no quarteirão, até chegarem ao portão do estacionamento dos funcionários da delegacia. McCaleb avançou cerca
de cinqüenta metros e estacionou ao lado de um hidrante. Ajustou o espelho retrovisor lateral para poder ver qualquer carro que saísse do estacionamento. Os dois
ficaram sentados esperando em silêncio, até que Jaye falou.
- Se nós somos o que dirigimos, o que este carro faz de você? McCaleb sorriu.
- Nunca pensei nisso. Um Cherokee... Acho que me faz o último remanescente de alguma estirpe, ou coisa assim.
Ele olhou para ela e depois de volta para o espelho.
- Ah, é? E essa camada de poeira em tudo, o que isso...
- Lá vamos nós. Acho que é ele - disse McCaleb, vendo um carro sair do estacionamento e dobrar à esquerda na direção deles. Depois acrescentou: - Está vindo pra
cá.
Nenhum dos dois se mexeu. O carro se aproximou e parou bem ao lado deles. McCaleb olhou para o lado displicentemente, e seus olhos encontraram os de Zucker. O tira
abaixou a vidraça do lado do carona. McCaleb viu que não tinha saída e também abaixou a sua.
- Está estacionado ao lado de um hidrante, detetive. Cuidado com a multa.
McCaleb balançou a cabeça. Zucker bateu continência com dois dedos e foi embora. McCaleb notou que ele dirigia um Crown Victoria com pára-choques e rodas comuns.
Era uma radiopatrulha de segunda mão. Provavelmente Zucker comprara o carro num leilão por quatrocentos dólares e mandara pintá-lo por noventa.
- Estamos parecendo dois idiotas - disse Jaye.
- Pois é.
- E agora, qual é sua teoria sobre aquele carro?
- Ou é um sujeito honesto, ou vem trabalhar nesse calhambeque pra ninguém ver o Porsche - disse McCaleb fazendo uma pausa. Depois virou-se para Jaye, sorriu e acrescentou:
- Ou o Z3.
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- Muito engraçado, Terry. E agora? Em algum momento do dia eu vou ter que começar a trabalhar de verdade. E tenho um encontro marcado com os seus chapas do FBI ainda
pela manhã.
- Fique comigo... e eles não são meus chapas.' Ele ligou o Cherokee e se afastou do meio-fio.
- Acha mesmo que este carro está sujo? - perguntou.
Capítulo 36
O correio da rua Wilcox era um prédio grande, do tempo da Segunda Guerra Mundial, com pé-direito de mais de oito metros e murais com bucólicas cenas de amizade e
boas ações cobrindo a parte superior das paredes. Quando entraram, McCaleb esquadrinhou os murais, mas não por suas qualidades artísticas ou filosóficas. Contou
três pequenas câmeras instaladas acima das áreas públicas da repartição. Mostrou-as a Jaye Winston. Eles tinham uma chance.
Entraram na fila. Quando chegaram ao guichê, Jaye mostrou seu distintivo e perguntou pelo chefe da segurança no local. Foram orientados para uma porta perto de uma
fileira de máquinas de venda e esperaram quase cinco minutos antes que a porta se abrisse e um homenzinho negro, com cabelo grisalho, espiasse para fora.
- Sr. Lucas? - perguntou Jaye.
- Sou eu - disse ele com um sorriso.
Jaye mostrou o distintivo novamente e apresentou McCaleb simplesmente pelo nome. Ao saírem da delegacia de Hollywood, ele dissera que aquele negócio de chamá-lo
de "sócio" não estava funcionando.
- Estamos trabalhando na investigação de um homicídio e uma das provas materiais importantes é uma ordem de pagamento que foi comprada aqui e provavelmente enviada
pelo correio no dia 22 de dezembro.
320
- No dia 22? Então foi durante a correria do Natal.
- Pois é.
Jaye olhou para McCaleb.
- Notamos as suas câmeras lá nas paredes - disse ela. - Gostaríamos de saber se o senhor tem uma fita de videocassete do dia 22.
- Videocassete - repetiu Lucas, como se a palavra lhe fosse estranha.
- O senhor é o chefe da segurança aqui, não é? - disse Jaye, impaciente.
- Sou, sou o homem da segurança. Eu controlo as câmeras.
- Poderia nos levar lá dentro e mostrar o seu sistema de segurança? - disse McCaleb num tom mais gentil.
- Opa, é claro que posso. Levo vocês lá assim que tiverem autorização.
- Como e onde podemos conseguir essa autorização? - perguntou Jaye.
- Na Regional de Los Angeles. No centro da cidade.
- Temos que falar com quem? Estamos numa investigação de homicídio. O tempo é fundamental.
- Teriam que falar com o Preechnar. E o inspetor postal.
- Seria incômodo irmos ao seu escritório e telefonarmos para Preechnar juntos? - perguntou McCaleb. - Isso nos pouparia muito tempo, e ele poderia falar diretamente
com o senhor.
Lucas pensou um pouco na proposta e decidiu que era uma boa idéia. Balançou a cabeça.
- Vamos ver o que podemos fazer.
Abriu a porta e os fez atravessar um lugar apinhado de grandes cestas com correspondência, indo até um escritório minúsculo, com duas escrivaninhas espremidas uma
contra a outra. Numa das mesas havia um monitor de vídeo com a tela dividida entre as imagens das quatro câmeras que vigiavam a área pública do correio. McCaleb
percebeu que não notara uma das câmeras quando examinara as paredes ao entrar.
Lucas correu o dedo pela relação de números de telefone pregada no tampo da mesa e fez a chamada. Assim que o supervisor
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atendeu, ele explicou a situação e passou o fone para Jaye. Ela explicou novamente o que queriam e devolveu o fone a Lucas, balançando a cabeça para McCaleb. Tinham
conseguido a aprovação do homem.
- Muito bem - disse Lucas depois de desligar. - Vamos ver o que temos aqui.
Levou a mão ao quadril e puxou uma argola de chaves presa ao cinto por um fio retrátil. Foi até o outro lado da sala e abriu a porta de um armário, revelando um
suporte para aparelhos de vídeo e quatro prateleiras superiores, cada uma com fitas marcadas por números que iam de 1 a 31. No chão havia dois caixotes de fitas
virgens.
McCaleb viu tudo aquilo e subitamente percebeu que eram 22 de janeiro, exatamente um mês depois do dia em que a ordem de pagamento fora comprada.
- Sr. Lucas, pare as máquinas - disse ele.
- Não posso fazer isso. As máquinas têm que funcionar sempre. Se estamos abertos para o público, as fitas têm que rodar.
- O senhor não entendeu. Vinte e dois de dezembro é o dia que queremos. Nós estamos gravando em cima do dia que queremos examinar.
- Alto lá, detetive McCallan. Preciso explicar como a coisa funciona.
McCaleb nem se deu ao trabalho de corrigir o engano do sujeito quanto ao seu nome. Não havia tempo.
- Então, depressa, por favor.
Consultou o relógio. Eram oito e quarenta e cinco. O correio abrira havia quarenta e oito minutos. Ou seja, quarenta e oito minutos da fita de vinte e dois de dezembro
já haviam sido apagados pelos quarenta e oito minutos da gravação em curso.
Lucas começou a explicar o procedimento de gravação. Havia um aparelho para cada câmera. Cada aparelho recebia uma fita ao começo do dia. As quatro câmeras estavam
programadas para gravar trinta quadros por minuto, permitindo que cada fita cobrisse o dia inteiro. As fitas de cada dia eram mantidas por um mês e depois
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reutilizadas se não fossem requisitadas pelas investigações do serviço de inspetoria postal.
- A gente recebe muita picaretagem. Sabem como é em Hollywood... E acaba com uma porção de fitas requisitadas. Ou são buscadas aqui pelos inspetores ou despachadas
por malote.
- Nós compreendemos - disse Jaye, com um tom de urgência na voz, ao aparentemente perceber o mesmo que McCaleb. - Por favor, quer desligar as máquinas e substituir
as fitas? Estamos gravando por cima de coisas que talvez sejam provas importantes.
- Imediatamente - disse Lucas.
Mas primeiro retirou quatro fitas virgens do caixote no chão. Depois arrancou etiquetas de um rolo e pregou-as nas fitas. Pegou uma caneta atrás da orelha, escrevendo
a data e uma espécie de código nas etiquetas. Só então começou finalmente a retirar as fitas dos aparelhos e a substituí-las pelas fitas virgens.
- Como querem fazer isso? Essas fitas são de propriedade dos correios. Não podem sair daqui. Se quiserem, posso deixar vocês aqui na mesa com uma tevê portátil que
tem um aparelho de vídeo embutido.
- Tem certeza que não pode simplesmente nos emprestar as fitas por hoje? - disse Jaye. - Posso trazer tudo de volta às...
- Só com um mandado judicial. Foi isso que Preechnar me disse. E é isso que vou fazer.
- Então acho que não temos escolha - disse Jaye, olhando para McCaleb e abanando a cabeça, frustrada.
Quando Lucas foi buscar a tevê, os dois decidiram que McCaleb ficaria e examinaria as fitas, enquanto Jaye iria até o escritório para a reunião das onze horas com
Twilley e Friedman, os homens do FBI. Ela disse que não falaria nada sobre a volta de McCaleb à investigação, nem sobre a possibilidade de que a suspeita sobre Bosch
podia ter sido um engano. Devolveria o dossiê de assassinato, já copiado, e a fita da cena do crime.
- Sei que não acredita em coincidências, mas isso é tudo que podemos fazer no momento, Terry. Se descobrir algo na fita, eu levo a coisa ao capitão. Aí nós mandamos
Twilley e Friedman para o espaço. Mas até você conseguir isso... Eu ainda estou num mato
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sem cachorro e preciso de algo mais que uma coincidência para pensar em outro suspeito que não seja Bosch.
- E o telefonema para Tafero?
- Que telefonema?
- De alguma forma, Tafero soube que Gunn estava na cela de detenção e veio pagar a fiança dele... para que eles pudessem matar o cara naquela noite e jogar a culpa
em Bosch.
- Quanto ao telefonema, não sei... Se não foi Zucker, provavelmente foi outro policial da delegacia que deve ter um esquema armado com Tafero. E o resto do que você
disse é pura especulação, sem apoio em um só fato.
- Eu acho que é...
- Pare, Terry. Não quero ouvir nada até você ter alguma base de apoio. Vou trabalhar.
Como seguindo a deixa, Lucas voltou empurrando um carrinho com um pequeno televisor em cima.
- Vou montar isso pra vocês - disse ele.
- Sr. Lucas, eu tenho um compromisso - disse Jaye. - Meu colega vai examinar as fitas. Obrigado pela cooperação.
- Fico contente por poder ajudar. Jaye olhou para McCaleb.
- Ligue pra mim.
- Quer que eu leve você até o carro?
- São só alguns quarteirões. Vou andando. Ele balançou a cabeça.
- Boa caçada - disse ela.
McCaleb balançou a cabeça. Ela já lhe dissera aquilo uma vez, num caso que não terminara muito bem para ele.
Capítulo 37
Janis e Kretzler disseram a Bosch que iam levar adiante o plano de terminar a fase da acusação até o final do dia.
- Storey já está no laço - disse Kretzler, sorrindo e gozando o surto de adrenalina provocado pela decisão de puxar o gatilho. Quando terminarmos, ele vai estar
mais enrolado que carretel. Vamos interrogar Hendricks e Annabelle Crowe hoje. Temos tudo que precisamos.
- Exceto o motivo - disse Bosch.
- O motivo não é importante num crime que obviamente é obra de um psicopata - disse Janis. - Aqueles jurados não vão voltar para a sala no final e dizer:
"É, mas por que ele cometeu o crime?" Vão dizer que esse cara é a porra de um doente e...
Sua voz caiu para um sussurro quando o juiz surgiu na porta atrás da bancada e entrou no tribunal.
-... precisa ser colocado atrás das grades.
O juiz chamou o júri, e poucos minutos depois os promotores começaram a apresentar suas últimas testemunhas.
Os três primeiros a depor eram integrantes da indústria cinematográfica que haviam comparecido à festa da estréia na noite da morte de Jody Krementz. Todos disseram
que haviam visto David Storey na estréia do filme e na recepção que se seguiu com uma mulher que identificaram pelas fotografias dos autos como Jody
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Krementz. A quarta testemunha, um roteirista chamado Brent Wiggan, declarou que deixara a festa poucos minutos antes da meia-noite e que ficara esperando seu carro
ser trazido ao balcão dos manobreiros junto com David Storey e uma mulher que também identificou como Jody Krementz.
- Por que o senhor tem tanta certeza que faltavam apenas alguns minutos para a meia-noite? - perguntou Kretzler. - Afinal de contas, aquilo era uma festa. Ficou
olhando para o relógio?
- Uma pergunta de cada vez, doutor Kretzler - avisou o juiz.
- Desculpe, meritíssimo. Por que o senhor está tão certo de que faltavam só alguns minutos para a meia-noite?
- Porque, na realidade, eu estava olhando para o relógio - disse Wiggan. - Isto é, para o meu relógio. Escrevo à noite. Sou mais produtivo de meia-noite às seis.
E por isso estava vigiando o relógio, sabendo que precisava voltar para casa por volta de meia-noite ou iria me atrasar no trabalho.
- Isso também quer dizer que não estava tomando bebida alcoólica na festa?
- Correto. Eu não estava bebendo porque não queria ficar cansado ou ter minha criatividade prejudicada. Geralmente, as pessoas não bebem antes de irem trabalhar
num banco ou pilotar um avião... Bom, acho que a maioria não bebe.
Fez uma pausa até as risadinhas cessarem O juiz fez cara de aborrecido, mas não disse nada. Wiggan parecia estar gostando daquele momento de atenção. Bosch começou
a ficar nervoso.
- Eu não bebo antes de ir trabalhar - continuou Wiggan por fim. - Escrever é uma arte, mas é também um trabalho, e é assim que eu encaro a coisa.
- Então está cristalinamente clara na sua memória a pessoa com quem David Storey estava poucos minutos antes da meianoite?
- Correto.
- E o senhor já conhecia David Storey pessoalmente, certo?
- E verdade. Conheço David Storey há vários anos.
-Já trabalhou para ele em algum projeto cinematográfico?
- Não, não trabalhei. Mas não por falta de tentar.
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Wiggan deu um sorriso triste. Aquela parte do depoimento, que incluía o comentário autodepreciativo, fora cuidadosamente planejada por Kretzler. Questionando diretamente
os pontos fracos de Wiggan, o promotor limitava o potencial de prejuízos que podiam ser causados ao testemunho.
O que quer dizer com isso?
- Ah, eu diria que nos últimos cinco anos, mais ou menos, enviei seis ou sete projetos de filmes diretamente para David ou para o pessoal da sua produtora. Ele nunca
comprou nenhum. Deu de ombros num gesto ingênuo.
Diria que isso criou um sentimento de animosidade entre o senhor e ele?
Não, de jeito nenhum... pelo menos da minha parte. E assim que a banda toca em Hollywood. Você vai tentando vender seu peixe, na esperança de que alguém acabe mordendo
a isca. Mas, se tiver um couro grosso, é melhor.
Sorriu e meneou a cabeça para o júri. Bosch já estava ficando em pânico com aquilo. Queria que Kretzler terminasse logo, antes que eles perdessem o júri.
Obrigado, Sr. Wiggan. É só isso - disse Kretzler, aparentemente sentindo as mesmas vibrações que Bosch.
Wiggan fez cara de desapontado quando percebeu que seu momento de glória estava acabando.
Mas nesse momento Fowkkes, que dispensara a reinquirição das três primeiras testemunhas do dia, levantou-se e foi até a tribuna.
Bom dia, Sr. Wiggan.
Bom dia - disse Wiggan, erguendo as sobrancelhas com expressão de o-que-temos-aqui?.
Só algumas perguntas. Poderia relacionar para o júri os títulos dos filmes que o senhor roteirizou e que foram produzidos?
Bom... até agora, nada foi feito. Tenho algumas opções e acho que em poucos...
Entendi. Ficaria surpreso ao saber que nos últimos quatro anos o senhor ofereceu projetos ou enviou roteiros a David Storey em vinte e nove ocasiões diferentes,
sendo todos rejeitados? O rosto de Wiggan ficou vermelho de vergonha.
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- Bom... talvez seja verdade. Eu... realmente não sei. Não fico registrando minhas rejeições, como David Storey aparentemente faz.
A última declaração foi dada em tom agressivo, e Bosch quase fez uma careta. Nada era pior que uma testemunha que é pega numa mentira e depois assume um tom defensivo.
Bosch olhou para o júri. Vários jurados haviam desviado o olhar da testemunha, num sinal de que estavam tão constrangidos quanto Bosch.
Fowkkes avançou para dar o golpe fatal.
- O senhor foi rejeitado pelo réu em vinte e nove ocasiões, e contudo diz ao júri que não quer mal a ele, correto?
- E assim que as coisas são em Hollywood. Pode perguntar a qualquer um.
- Bom, estou perguntando ao senhor. Está dizendo ao júri que não tem má vontade com o réu, embora ele viva dizendo que seu trabalho não é bom?
Wiggan quase balbuciou a resposta ao microfone.
- É, isso é verdade.
- Bom, o senhor é um homem melhor do que eu - disse Fowkkes. - Obrigado, meritíssimo. Nada mais, por enquanto.
Bosch sentiu que o balão da promotoria murchara bastante. Com quatro perguntas e em menos de dois minutos, Fowkkes pusera em dúvida toda a credibilidade de Wiggan.
E a prova de que a hábil cirurgia do advogado de defesa fora absolutamente perfeita era que Kretzler pouco poderia fazer para ressuscitar Wiggan se o interrogasse
novamente. E o promotor percebeu que era melhor não se arriscar a aumentar o tamanho do buraco. Dispensou a testemunha, e o juiz deu o intervalo matinal de quinze
minutos.
Depois que os jurados foram retirados e as pessoas começaram a sair do tribunal, Kretzler inclinou-se à frente de Janis e sussurrou em tom irritado para Bosch:
- Devíamos ter percebido que esse cara não ia segurar o rojão.
Bosch olhou em torno para ver se não havia repórteres ao alcance de sua voz e se inclinou para Kretzler.
329
- Pode até ser - disse ele. - Mas seis semanas atrás você disse que ia preparar Wiggan. Ele era responsabilidade sua, não minha. Vou tomar um café.
Levantou-se e deixou os dois promotores sentados ali.
Depois do intervalo os promotores decidiram que precisavam voltar com força depois da desastrosa reinquirição de Wiggan. Assim, abandonaram o plano de trazer mais
uma testemunha simplesmente para depor que vira Storey e a vítima juntos na festa de estréia do filme. Janis convocou ao banco um técnico de segurança residencial
chamado Jamal Hendricks.
Bosch foi buscar Hendricks no corredor. Era um negro de calças azuis e blusa de uniforme azul-clara, com o nome de batismo bordado num dos bolsos e o emblema da
Lighthou-se Security no outro. Ele planejara seguir direto para o trabalho depois de prestar depoimento.
Ao passar pelo primeiro conjunto de portas que davam acesso ao tribunal, Bosch perguntou a Hendricks, em tom baixo, se ele
estava nervoso.
- Não, cara, é moleza - replicou Hendricks.
No banco das testemunhas, Janis fez Hendricks relembrar seu currículo como técnico de manutenção da empresa de segurança residencial. Depois passou especificamente
para o trabalho que ele fizera no sistema de segurança da residência de David Storey. Hendricks disse que oito meses antes instalara um sistema Millenium 21, modelo
de luxo, na casa do diretor em Mulholland Drive.
- Pode nos descrever algumas das características do sistema Millenium 21, modelo de luxo?
- Bom, é o mais sofisticado do mercado. Tem de tudo. Sensoriamento e operação por controle remoto, programação de comando por reconhecimento de voz, amostragem automática
de sensores, programa hoteleiro... O equipamento de David Storey tem tudo.
- O que é um programa de registro hoteleiro?
- Basicamente, é um programa que registra as operações realizadas. Revela que portas e janelas foram abertas, a hora do evento, quando o sistema foi ligado e desligado,
que códigos pessoais foram
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usados, e vai por aí. Faz o acompanhamento de todo o sistema. É usado principalmente no comércio e na indústria, mas David Storey queria um sistema comercial e o
dispositivo foi incluído.
- Portanto, ele não pediu especificamente o programa hoteleiro?
- Isso eu não sei. Não vendi o sistema pra ele, só instalei.
- Mas ele podia ignorar a existência do programa.
- Tudo é possível, acho eu.
- É verdade que o detetive Bosch telefonou para a Lighthou-se Security e pediu que um técnico fosse ao encontro dele na casa de David Storey?
- É, e o pedido foi parar na minha mão porque eu tinha instalado o sistema. Me encontrei com ele lá na casa. Isso foi depois da prisão de David Storey, mas o advogado
dele também compareceu.
- Quando foi exatamente?
- No dia 11 de novembro.
- O que o detetive Bosch lhe pediu para fazer?
- Bom, primeiro ele me mostrou um mandado de busca que autorizava a coleta de informações do chip do sistema.
- Você ajudou o detetive nessa tarefa?
- Ajudei. Baixei o arquivo do programa hoteleiro e imprimi os dados para ele.
Janis Langwiser pediu que o mandado de busca e apreensão - o terceiro executado durante a investigação - fosse incluído nos autos como prova, juntamente com o relatório
impresso que Hendricks mencionara no depoimento.
- Bom, o detetive Bosch estava interessado nos dados do programa hoteleiro relativos à noite do dia 12 de outubro e a manhã do dia 13, certo?
- Certo.
- Pode examinar o relatório e ler os dados relativos a esse período de tempo?
Hendricks examinou o papel durante vários segundos antes de falar.
- Bom, aqui diz que a porta interna que leva à garagem foi aberta e o sistema de alarme foi ativado pela voz de David Storey às sete e nove da noite do dia 12. Depois
disso, os dados já são do dia 13.
À meia-noite e doze o sistema de alarme foi desativado pela voz de David Storey, e a porta interna da garagem foi novamente aberta. Ele então ativou novamente o
alarme... depois de entrar na casa.
Hendricks examinou o documento antes de continuar.
- O sistema continuou ativado até a uma e dezenove da madrugada, quando o alarme foi desativado. A porta interna da garagem foi aberta e o sistema de alarme ativado
mais uma vez pela voz de David Storey. Quarenta e dois minutos mais tarde, às quatro e um da madrugada, o alarme foi desativado pela voz de David Storey, a porta
interna da garagem se abriu e o sistema de alarme foi novamente ativado. Não houve qualquer outra atividade até as onze da manhã, quando o alarme foi desativado
pela voz de Betilda Lockett.
- Sabe quem é Betilda Lockett?
- Sim, quando instalei o sistema incluí a voz dela no programa de aceitação. Ela é a assistente-executiva de David Storey.
Janis pediu permissão para montar um quadro sobre um cavalete mostrando as horas e as atividades que Hendricks acabara de mencionar. O pedido foi aprovado apesar
de um protesto da defesa, e Bosch ajudou a promotora a montar o quadro, que tinha duas colunas. Uma mostrava os dados sobre a ativação do alarme da casa e a outra
indicava o uso da porta interna entre a casa e a garagem.
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12/10
13/10
13/10
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13/10
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ALARME
7:09 da noite ativado por David Storey
12:12 da madrugada desativado por David Storey
12:12 da madrugada ativado por David Storey
3:19 da madrugada desativado por David Storey
3:19 da madrugadaativado por David Storey
4:01 da madrugada desativado por David Storey
4:01 da madrugada
- ativado por David Storey
PORTA INTERNA DA GARAGEM
aberta/fechada aberta/fechada
aberta/fechada aberta/fechada
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Janis continuou a inquirição de Hendricks.
- Esta ilustração reflete com precisão o seu depoimento sobre o sistema de alarme da casa de David Storey na noite de 12 para 13 de outubro?
O técnico olhou para o quadro com cuidado e depois balançou a cabeça.
- Isso é um "sim"?
- É um "sim".
- Obrigado. Como essas ações foram desencadeadas pelo sistema ao reconhecer e aprovar a voz de David Storey, você está dizendo ao júri que isso representa o registro
das idas e vindas de David Storey durante o período de tempo em questão?
Fowkkes protestou, dizendo que a pergunta pressupunha fatos que não haviam sido provados. Houghton concordou e mandou Janis reformular a pergunta ou fazer outra.
Como já alcançara seu objetivo com os jurados, ela passou adiante.
- Se eu tivesse uma fita com a voz de David Storey gravada, poderia tocá-la ao microfone da central do sistema Millenium 21 e obter autorização para ativar ou desativar
o alarme?
- Não. Há dois mecanismos de segurança. E preciso usar uma senha reconhecida pelo computador e dizer a data. Assim, são necessárias a voz, a senha e a data correta
para o sistema aceitar o comando.
- Qual era a senha de David Storey?
- Não sei. E coisa particular dele. O sistema permite que a senha seja trocada quando o usuário quiser.
Janis olhou para o quadro no cavalete. Aproximou-se e pegou um ponteiro no descanso, usando-o para demarcar os registros de
3:19 e 4:01 da madrugada.
- A partir destes dados, pode me dizer se alguém com a voz de David Storey saiu da casa às três e dezenove e voltou às quatro e um, ou se ocorreu o contrário, ou
seja, alguém chegou às três e dezenove e saiu às quatro e um?
- Posso.
- Como?
- O sistema também registra que estações transmissoras foram usadas para ativar e desativar o sistema. Nessa casa, as estações foram montadas dos dois lados de três
portas... por dentro e por fora de cada porta, entende? As três são a porta da frente, a porta da garagem e uma das portas do deque dos fundos. Os transmissores
estão do lado de fora e do lado de dentro de cada porta. Qualquer um que seja usado fica registrado no programa hoteleiro.
- Pode examinar o relatório do sistema de David Storey que viu antes e dizer que transmissores foram usados durante os registros de três e dezenove e quatro e um?
Hendricks examinou o papel antes de responder.
- Hum, sim. Às três e dezenove foi usado o transmissor exterior. Isso significa que alguém estava na garagem quando o alarme foi ativado na casa. Às quatro e um,
o mesmo transmissor externo foi usado para desativar o alarme. A porta foi aberta e fechada, e depois o alarme foi ativado novamente por dentro da casa.
- Então alguém chegou em casa às quatro e um, é isso que está dizendo?
- Sim, é.
- E o computador do sistema registrou essa pessoa como sendo David Storey, correto?
- O sistema identificou a voz dele, sim.
- E essa pessoa precisaria usar a senha de David Storey, além de fornecer a data corretamente?
- Sim, é isso aí.
Janis declarou que não tinha mais perguntas. Fowkkes disse ao juiz que queria fazer uma rápida reinquirição. Foi até a tribuna e olhou para Hendricks.
- Jamal Hendricks, há quanto tempo trabalha na Lighthou-se?
- Vou completar três anos no mês que vem.
- Então já era funcionário da Lighthou-se no dia 1 de janeiro, há um ano, quando foi feita a famosa alteração para o bug do milênio?
- Era - disse Hendricks, hesitante.
- Pode nos dizer o que aconteceu com muitos dos clientes da Lighthou-se naquele dia?
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- Hum, nós tivemos alguns problemas. - Alguns problemas, Jamal Hendricks?
- Houve falhas de sistemas.
- Que sistema em particular?
- O sistema Millenium 2 apresentou um defeito no programa. Mas foi pequeno. Nós conseguimos..
- Quantos clientes com Millenium 2 foram afetados na área de Los Angeles?
- Todos. Mas nós descobrimos o defeito e...
- E só isso. Obrigado.
- Nós corrigimos o defeito.
- Jamal Hendricks - atalhou o juiz. - Já chega. O júri deverá desconsiderar essa última declaração.
Ele olhou para Janis.
- Reinquirição, doutora?
Janis disse que tinha apenas algumas perguntas rápidas. Bosch soubera dos problemas do bug do milênio e informara os promotores. A esperança deles era que a defesa
não soubesse daquilo ou levantasse a questão.
- A Lighthou-se corrigiu o defeito apresentado pelos sistemas depois do bug do milênio?
- Sim, nós corrigimos o defeito imediatamente.
- Isso teria afetado de alguma forma os dados registrados pelo sistema do réu dez meses depois do bug do milênio?
- Em absoluto. O problema foi resolvido. O sistema foi consertado.
Janis disse que nada mais tinha a perguntar à testemunha e se sentou. Fowkkes levantou-se para fazer outra reinquirição.
- Jamal Hendricks, o defeito corrigido era o defeito que a empresa conhecia, correto?
Hendricks lançou-lhe um olhar confuso.
- Sim, foi o que causou o problema.
- Então está dizendo que esses defeitos só são percebidos quando causam problemas.
- Hum, geralmente.
- Portanto, poderia haver um defeito no programa do sistema de segurança de David Storey que você só perceberia quando surgisse um problema, certo?
Hendricks deu de ombros.
- Tudo é possível.
Fowkkes se sentou, e o juiz perguntou a Janis se ela tinha mais alguma pergunta. A promotora hesitou um instante, mas em seguida disse que não. Hendricks foi dispensado
por Houghton, que sugeriu antecipar o intervalo do almoço.
- Nossa próxima testemunha será muito rápida, meritíssimo. Eu gostaria de ouvir seu depoimento antes do intervalo. Vamos nos concentrar numa única testemunha durante
a sessão da tarde.
- Muito bem, vá em frente.
- Queremos reconvocar o detetive Bosch.
Bosch se levantou e foi até o banco das testemunhas, levando o dossiê de assassinato. Dessa vez não tocou no microfone. Sentou-se e foi lembrado pelo juiz de que
ainda estava sob juramento.
- Detetive Bosch - começou Janis. - A certa altura da investigação do assassinato de Jody Krementz, o senhor foi instruído a fazer de carro o trajeto de ida e volta
entre a casa da vítima?
- Fui. Pela senhora.
- Seguiu a instrução?
- Segui.
- Quando?
- No dia 16 de novembro, às três e meia da madrugada.
- Anotou os tempos do percurso de carro?
- Sim, anotei. Em ambas as direções.
- E pode nos dizer que tempos foram esses? Pode consultar suas anotações, se quiser.
Bosch abriu a pasta numa página previamente marcada. Levou algum tempo examinando as anotações, embora já soubesse aquilo de cor.
- Levei onze minutos e vinte e dois segundos da casa de David Storey até a casa de Jody Krementz, dirigindo dentro dos limites de velocidade permitidos. Para voltar,
levei onze minutos e quarenta
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e cinco segundos. O percurso de ida e volta levou vinte e três minutos e dez segundos.
- Obrigado, detetive.
E foi só. Fowkkes dispensou novamente a reinquirição, reservando-se o direito de reconvocar Bosch ao banco das testemunhas durante a fase da defesa. O juiz Houghton
declarou o tribunal em recesso para o almoço, e o tribunal apinhado foi vagarosamente se esvaziando em direção ao corredor.
Bosch foi abrindo caminho pela multidão de advogados, espectadores e repórteres no corredor, à procura de Annabelle Crowe, quando uma mão agarrou firmemente seu
braço por trás. Ele se virou e olhou para o rosto de um negro que não reconheceu. Outro sujeito, um branco, aproximou-se deles. Os dois usavam ternos cinzentos quase
iguais. Antes que o primeiro sujeito abrisse a boca, Bosch já tinha percebido que eram do FBI.
- Detetive Bosch, sou o agente especial Twilley, do FBI. Este é o agente especial Friedman. Podemos conversar em particular?
Capítulo 38
McCaleb levou três horas examinando cuidadosamente a fita de vídeo. No fim, não conseguiu nada que compensasse esse tempo, exceto uma multa por estacionamento proibido.
Tafero não apareceu em nenhum momento na fita do correio no dia em que a ordem de pagamento foi comprada. E nem Harry Bosch. Os quarenta e oito minutos de vídeo
que haviam sido gravados sobre o registro antigo, antes de McCaleb e Jaye chegarem lá, vinham continuadamente à sua lembrança. Se eles tivessem ido ao correio primeiro
e à delegacia de Hollywood depois talvez tivessem o assassino na fita. Aqueles quarenta e oito minutos podiam fazer a diferença no caso, a diferença entre a condenação
ou a absolvição de Bosch.
McCaleb estava imaginando esses cenários alternativos, quando chegou ao Cherokee e encontrou a multa de trânsito sob o limpador do pára-brisa. Disse um palavrão,
tirou a papeleta e examinou-a. Ficara tão absorto vendo a fita que esquecera que estacionara na zona com tolerância de quinze minutos diante do correio. A multa
lhe custaria quarenta dólares, e aquilo doía. Com poucos passeios contratados nos meses de inverno, sua família vinha vivendo principalmente de sua pensão mensal
do FBI e do pequeno contracheque de Graciela. Não havia muita margem de manobra, com as despesas de duas crianças. Aquela multa, aliada ao passeio cancelado de sábado,
iria fazer falta.
338
Ele recolocou a papeleta no pára-brisa e foi andando pela calçada. Decidiu ir até a Fianças Valentino, embora soubesse que Rudy Tafero provavelmente estaria no tribunal
em Van Nuys. Seria uma atitude coerente com o seu costume de examinar o alvo em ambientes confortáveis. O alvo podia não estar lá dessa vez, mas o ambiente onde
ele se sentia seguro estava.
Enquanto caminhava, pegou o telefone celular e ligou para Jaye, mas quem atendeu foi a secretária eletrônica. McCaleb desligou sem deixar recado e ligou para o bip
dela. Quatro quarteirões adiante, quando já estava chegando à Fianças Valentino, Jaye retornou a chamada.
- Não consegui nada - anunciou ele. -Nada?
- Nem Tafero, nem Bosch.
- Caceta.
- A imagem devia estar naqueles quarenta e oito minutos que foram apagados.
- Nós devíamos ter...
- Ido ao correio antes. Eu sei. Culpa minha. A única coisa que arrumei foi uma multa de trânsito.
- Que chato, Terry.
- Pelo menos isso me deu uma idéia. O troço foi pouco antes do Natal, e a rua estava cheia. Se ele estacionou numa zona com tolerância de quinze minutos, pode ter
ultrapassado o tempo enquanto esperava na fila. Os palhaços que vigiam o estacionamento aqui na cidade parecem nazistas. Ficam espreitando nas sombras. Sempre há
a possibilidade de que ele tenha sido multado. Vale a pena conferir.
- Feito o Filho de Sam?
- Pois é.
Ela estava se referindo a um assassino serial apanhado por causa de uma multa em Nova York na década de 1970.
- Vou dar uma olhada nisso e ver se surge alguma coisa. O que você vai fazer?
- Estou quase chegando à Fianças Valentino.
- Ele está aí? <
339
- Provavelmente está no tribunal. Vou até lá depois pra ver se consigo falar com Bosch sobre tudo isso.
- É melhor ter cuidado. Seus colegas do FBI disseram que iam encontrar com ele na hora do almoço. Podem ainda estar por lá quando você chegar.
- Eles estão esperando que Bosch fique tão impressionado com os ternos deles que confesse? E isso?
- Não sei. Algo parecido. Iam dar um aperto nele. Pra tentar pegar uma declaração oficial e depois encontrar as contradições. Você sabe, as armadilhas verbais rotineiras.
- Harry Bosch não é um caso rotineiro. Eles estão perdendo tempo.
- Eu sei. Eu disse isso pra eles. Mas ninguém consegue dizer nada a um agente do FBI, sabe disso.
Ele sorriu.
- Ei, se a coisa for para o outro lado e nós cravarmos Tafero, quero que o xerife pague esta multa.
- Ei, você não está trabalhando para mim. Está trabalhando para Bosch, lembra? Ele paga as multas. O xerife só paga as panquecas.
- Está bem. Preciso ir.
- Ligue pra mim.
Ele guardou o telefone no bolso do agasalho e abriu a porta de vidro da Fianças Valentino.
Era um pequeno aposento branco, com um sofá para visitantes e um balcão. Para McCaleb aquilo parecia a recepção de um motel. Um calendário na parede mostrava uma
cena de praia em Puerto Vallarta. Atrás do balcão havia um homem sentado de cabeça baixa, fazendo palavras cruzadas. Atrás dele via-se uma porta fechada, que provavelmente
dava para um escritório interno. McCaleb pôs um sorriso no rosto e começou a contornar o balcão com andar decidido, antes que o sujeito erguesse o olhar.
- Rudy? Ei, Rudy, vem cá!
O sujeito só ergueu o olhar quando McCaleb já passara por ele e abrira a porta, entrando num escritório que tinha mais do que o dobro do tamanho da recepção.
340
- Rudy?
O sujeito do balcão entrou direto atrás dele.
- Ei, cara, o que está fazendo?
McCaleb virou-se, examinando o aposento.
- Procurando Rudy. Onde ele está?
- Ele não está aqui. Quer, por favor, sair...
- Ele me disse que estaria aqui, que só precisaria estar no tribunal mais tarde.
Examinando o escritório, McCaleb viu que a parede traseira estava coberta por fotografias emolduradas. Chegou mais perto. A maioria eram instantâneos de Tafero com
celebridades que ele tirara da cadeia sob fiança ou auxiliara como consultor de segurança. Algumas das fotos eram obviamente dos tempos em que ele trabalhava do
outro lado da rua, na delegacia.
- Desculpe, mas quem é você?
McCaleb fez uma cara de insultado e olhou para o sujeito, que bem poderia ser o irmão mais novo de Tafero. Tinha o mesmo cabelo e olhos escuros, com uma espécie
de beleza rude.
- Sou amigo dele. Terry. Nós trabalhávamos juntos lá do outro lado da rua.
McCaleb apontou para a fotografia de um grupo que estava na parede. Mostrava vários homens de terno e algumas mulheres parados diante da fachada de tijolos da delegacia
da Divisão Hollywood. A equipe de detetives. McCaleb viu Harry Bosch e Rudy Tafero na fileira de trás. O rosto de Bosch estava ligeiramente desviado da câmera. Ele
tinha um cigarro na boca, e a fumaça que se elevava obscurecia-lhe parcialmente o rosto.
O sujeito virou e começou a examinar a fotografia.
Os olhos de McCaleb deram outra volta pelo aposento. Era bem mobiliado, com uma escrivaninha à esquerda e um grupo estofado à direita, onde se viam dois sofás curtos
e um tapete oriental. Ele se aproximou da escrivaninha a fim de examinar uma pasta colocada bem no centro do mata-borrão. Mas a coisa - embora estivesse cheia de
documentos, com quase três centímetros de grossura - nada ostentava na etiqueta.
- Que porra é essa? Você não está na foto.
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- Estou, sim - disse McCaleb sem se virar da escrivaninha. Estou fumando. Não dá pra ver o meu rosto.
À direita do mata-borrão havia uma bandeja de documentos cheia de pastas. McCaleb inclinou a cabeça para poder ler as etiquetas. Viu diversos nomes, alguns dos quais
reconheceu como animadores ou atores. Mas nenhum deles tinha qualquer ligação com a investigação.
- Conversa fiada, cara, este não é você. E Harry Bosch.
- Sério? Conhece Harry?
O sujeito não respondeu. McCaleb se virou. O homem estava olhando para ele com uma expressão raivosa e desconfiada. Pela primeira vez McCaleb notou que ele segurava
um velho cassetete ao lado do corpo.
- Preciso conferir isso.
Avançou e examinou a fotografia emoldurada.
- Você tem razão, sabia? Este é o Harry. Eu devo estar na outra foto que eles tiraram no ano anterior. Estava trabalhando disfarçado quando eles tiraram essa aí
e não podia aparecer na fotografia.
Despreocupadamente, deu um passo na direção da porta. Por dentro, já estava enrijecendo o corpo, pronto para levar um golpe de cassetete.
- Diga a ele que eu estive aqui, está bem? Diga que o Terry passou por aqui.
Conseguiu chegar à porta, mas uma última fotografia emoldurada lhe chamou a atenção. Mostrava Tafero e outro homem, lado a lado, segurando juntos uma tabuleta de
madeira polida nas mãos. A fotografia era antiga, e Tafero parecia quase dez anos mais moço. Os olhos estavam mais brilhantes, e o sorriso parecia sincero. A tabuleta
propriamente dita estava pendurada na parede ao lado da fotografia. McCaleb inclinou-se e leu a placa de latão presa na parte de baixo.
RUDY TAFERO
DETETIVE DO MÊS
FEVEREIRO 1995
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McCaleb olhou para a fotografia novamente e depois passou pela porta, indo para a recepção.
- Terry o quê? - disse o sujeito quando ele saiu. McCaleb foi até a porta da frente antes de se virar para ele.
- E só dizer que foi Terry, o cara que trabalha disfarçado. Saiu do escritório e foi caminhando pela rua sem olhar para
trás.
McCaleb ficou sentado no carro diante do correio. Sentia-se inquieto, como sempre ficava quando sabia que a resposta estava ao alcance da mão, mas ele não conseguia
enxergá-la. Sua intuição dizia que ele estava na pista certa. Tafero, o investigador particular que escondia sua clientela endinheirada de Hollywood atrás de um
barraco de fiador profissional, era a chave. McCaleb simplesmente não conseguia achar a porta.
Percebeu que estava faminto. Ligou o carro e pensou num lugar para comer. Estava a poucos quarteirões do Musso's, mas tinha comido lá recentemente. Ficou imaginando
se serviam comida no Nat's, mas calculou que se fizessem isso a coisa seria perigosa para o estômago. Em vez disso, seguiu para o In 'n' Out no Sunset Boulevard
e pediu um hambúrguer servido no carro.
Enquanto comia em cima da embalagem para viagem dentro do Cherokee, o celular tocou. Pôs o sanduíche em cima da embalagem, limpou as mãos num guardanapo e abriu
o aparelho.
- Você é um gênio. Era Jaye Winston. -Porquê?
- O Mercedes de Tafero, um 430CLK preto, foi multado. Estava na zona de quinze minutos de tolerância diante do correio. A multa foi lavrada às oito e dezenove da
manhã do dia 22. Ainda não foi paga, mas vence hoje. Ele tem até as cinco horas pra pagar.
McCaleb ficou em silêncio enquanto refletia sobre aquilo. Sentia as sinapses nervosas disparando feito dominós pela espinha. A multa era um golpe de sorte extraordinário.
Não provava absolutamente nada, mas mostrava que ele estava na pista certa. E, às vezes, saber que você estava no caminho certo era melhor do que ter a prova.
Seus pensamentos pularam para a visita que fizera ao escritório de Tafero e para as fotografias que vira ali.
- Ei, Jaye, deu pra você pesquisar alguma coisa sobre o caso do antigo tenente de Bosch?
- Nem precisei procurar. Twilley e Friedman já tinham um relatório hoje. Tenente Harvey Pounds. Foi espancado até a morte cerca de quatro semanas depois de ter aquela
altercação com Bosch por causa de Gunn. Devido aos antecedentes, Bosch era um suspeito provável. Mas aparentemente foi inocentado... ao menos pelo Departamento de
Polícia de Los Angeles. O caso ainda está em aberto, mas parado. O FBI ficou observando de longe e também mantém a coisa em aberto. Twilley me disse hoje que há
gente no departamento de polícia que acha que Bosch foi inocentado depressa demais.
- Ah, e aposto que Twilley adorou isso.
- Adorou. Ele já tem certeza que foi Bosch. Acha que Gunn é só a ponta do iceberg do caso de Bosch.
McCaleb abanou a cabeça, mas passou adiante. Não podia perder tempo com as fraquezas e motivações dos outros. Havia muito a considerar e planejar na investigação
que ele tinha nas mãos.
- Tem uma cópia da multa? - perguntou ele.
- Ainda não. Foi tudo por telefone. Mas a cópia vai ser mandada por fax. O negócio é que eu e você sabemos o que isso significa, mas ainda estamos muito longe de
ter alguma prova.
- Eu sei. Mas será um bom esteio quando chegar a hora.
- Quando chegar a hora de quê?
- De fazer a nossa jogada. Vamos usar Tafero para pegar Storey. Você sabe que a coisa está caminhando nessa direção.
- Nós? Já tem tudo planejado, não é, Terry? - Não tudo, mas estou chegando lá.
Não queria discutir com ela sobre o seu próprio papel na investigação.
- Escute, meu almoço está esfriando - disse ele.
- Bom, desculpe. Vá comer.
- Ligue pra mim depois. Vou falar com Bosch mais tarde. Alguma coisa de Twilley e Friedman a esse respeito?
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- Acho que eles ainda estão lá com ele.
- Tá legal. Falo com você mais tarde.
Ele fechou o telefone, saiu do carro e levou a embalagem até uma lata de lixo. Pulou de volta ao volante e ligou o motor. A caminho do correio na rua Wilcox, abriu
todas as janelas para livrar o carro do cheiro de comida gordurosa.
Capítulo 39
Annabelle Crowe foi até o banco das testemunhas, atraindo todos os olhares no tribunal. Era estonteantemente bonita, mas havia uma qualidade quase desajeitada em
seus movimentos. Essa mistura fazia-a parecer velha e jovem ao mesmo tempo, ficando ainda mais bonita. Janis Langwiser estava encarregada da inquirição. Esperou
até que Annabelle se sentasse, antes de quebrar o encanto e se dirigir à tribuna.
Bosch quase não notara a entrada da última testemunha da promotoria. Estava sentado à mesa com os olhos baixos, mergulhado profundamente nos pensamentos sobre a
entrevista com a dupla de agentes do FBI. Ele os avaliara de imediato. Os dois haviam farejado sangue e sabiam que virariam celebridades caso o pegassem pela morte
de Gunn. Bosch esperava que eles dessem o bote a qualquer momento.
Janis fez várias perguntas rápidas a Annabelle Crowe, mostrando que ela era uma atriz novata com algumas peças e comerciais no currículo, bem como uma ponta num
filme ainda a ser lançado. Sua história parecia confirmar como era difícil vencer em Hollywood - uma beleza de fechar o comércio, mas que era apenas mais uma numa
cidade cheia delas. Annabelle ainda vivia da mesada que recebia dos pais em Albuquerque.
Depois a promotora passou para uma parte mais substancial do depoimento, focalizando a noite de 14 de abril do ano anterior,
346
quando Annabelle saíra com David Storey. Descrevendo com brevidade o jantar e os drinques do casal no restaurante Dan Tana's, em West Hollywood, Janis entrou logo
na segunda metade da noite, quando Annabelle tinha ido para a casa de Storey em Mulholland Drive.
Ela declarou que os dois haviam dividido uma jarra inteira de margarita no deque dos fundos, antes de irem para o quarto.
- E você foi por vontade própria? -Fui.
- Teve relações sexuais com o réu?
- Sim, tive.
- E foi uma relação consensual?
- Sim, foi.
- Aconteceu alguma coisa inusitada depois que começou a ter relações sexuais com o réu?
- Sim, ele começou ame sufocar.
- Ele começou a sufocar você. Como foi?
- Bom, acho que em certo momento fechei os olhos, e parecia que ele estava mudando de posição ou se mexendo em cima de mim. Senti que passou a mão por trás da minha
nuca, levantando um pouco minha cabeça do travesseiro. Depois senti que estava passando alguma coisa sobre...
Ela parou de falar e pôs a mão na boca. Aparentava estar lutando para manter o controle.
- Não se apresse, Annabelle.
A testemunha parecia estar genuinamente tentando conter as lágrimas. Por fim, baixou a mão e pegou um copo de água. Bebeu um gole e ergueu os olhos para Janis com
uma expressão de determinação.
- Senti que ele estava passando alguma coisa sobre a minha cabeça e em torno do meu pescoço. Abri os olhos e vi que ele estava apertando uma gravata em volta do
meu pescoço.
Ela parou e tomou outro gole de água.
- Pode descrever a gravata?
- Tinha uns desenhos. Losangos azuis sobre um fundo roxo. Lembro bem dela.
- O que aconteceu quando o réu apertou a gravata em torno do seu pescoço?
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- Aquilo estava me sufocando! - respondeu Annabelle com voz aguda, como se a pergunta fosse idiota e a resposta óbvia. - Ele estava me sufocando. E continuava...
se mexendo dentro de mim... Tentei lutar contra ele, mas ele era forte demais para mim.
- Ele disse alguma coisa nessa hora?
- Só ficava dizendo: "Tenho que fazer isso, tenho que fazer isso." Respirava com força, e continuava a fazer sexo comigo. Tinha os dentes cerrados quando disse aquilo.
Eu...
Ela parou de falar novamente. Duas lágrimas isoladas escorreram pelas maçãs do rosto, uma ligeiramente depois da outra. Janis foi até a mesa da promotoria e pegou
uma caixa de lenços de papel entre suas coisas. Ergueu-a e disse:
- Meritíssimo, posso?
O juiz permitiu que ela se aproximasse da testemunha. Janis entregou a caixa de lenços e voltou para a tribuna. O tribunal estava silencioso, salvo pelo choro da
testemunha. Janis quebrou o silêncio.
- Quer um minuto de intervalo, Annabelle?
- Não, eu estou bem. Obrigada.
- Desmaiou quando foi sufocada pelo réu?
- Sim.
- Lembra do que aconteceu depois?
- Acordei na cama dele.
- Ele estava lá?
- Não, mas ouvi a água do chuveiro correndo. No banheiro vizinho ao quarto.
- O que você fez?
- Me levantei e me vesti. Queria ir embora antes que ele saísse do chuveiro.
- Suas roupas estavam no mesmo lugar que antes?
- Não. Encontrei minhas roupas numa sacola... tipo uma sacola de supermercado... perto da porta do quarto. Vesti minha roupa de baixo.
- Você estava com uma bolsa de mão naquela noite?
- Estava. A bolsa também estava na sacola. Mas estava aberta. Olhei e vi que ele tinha tirado as chaves. Eu...
Fowkkes protestou, dizendo que a resposta pressupunha fatos não provados, e o juiz aceitou o protesto.
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- Viu o réu tirar as chaves de sua bolsa? - perguntou Janis. Bom, não. Mas elas estavam em minha bolsa. Eu não tirei as
chaves de lá.
- Muito bem, então alguém... alguém que você não viu porque estava inconsciente na cama... tirou suas chaves, correto?
É.
- Muito bem. Onde encontrou as chaves depois que percebeu que elas não estavam na bolsa?
- Na cômoda, perto das chaves dele.
- Você terminou de se vestir e foi embora?
- Na verdade, eu estava tão apavorada que simplesmente peguei minhas roupas, as chaves e a bolsa e saí correndo da casa. Acabei de me vestir quando já estava do
lado de fora. E aí saí correndo pela rua.
Como chegou em casa?
Cansei de correr e fui andando por Mulholland Drive durante muito tempo, até que cheguei a um posto de bombeiros onde havia uma cabine telefônica. Liguei para um
táxi e fui pra casa.
- Chamou a polícia quando chegou em casa?
- Hum, não chamei.
- Porquê?
- Bom, por duas coisas. Quando cheguei em casa, ouvi David deixando um recado na secretária eletrônica e atendi o telefone. Ele se desculpou e disse que tinha se
excedido. Disse que achava que o sufocamento aumentaria o meu prazer enquanto fazíamos sexo.
Acreditou nele?
- Não sei. Eu estava confusa. - Perguntou a ele por que tinha posto suas roupas numa sacola?
- Perguntei. Ele disse que achava que precisaria me levar ao hospital, caso eu não tivesse acordado quando ele saísse do chuveiro.
- Perguntou por que ele resolveu tomar uma chuveirada antes de levar ao hospital uma mulher desmaiada na cama?
- Isso, não.
- Perguntou a ele por que não chamou a ambulância?
- Não, não pensei nisso.
- Que outra razão você teve para não chamar a polícia?
A testemunha olhou para as próprias mãos, que estavam firme-
mente unidas no seu colo.
- Bom, fiquei envergonhada. Depois do telefonema dele, fiquei sem entender o que tinha acontecido. Já não sabia se ele tinha tentado me matar, ou se estava... tentando
aumentar o meu prazer. Não sei. A gente sempre ouve falar que o pessoal de Hollywood é meio tarado. Achei que talvez fosse só... sei lá, atraso e caretice da minha
parte.
Ela mantinha os olhos baixos, e duas outras lágrimas escorreram pelas maçãs do rosto. Bosch viu uma gota atingir a gola da blusa de chiffon e deixar uma marca úmida.
Janis continuou, num tom de voz muito suave.
- Quando contou à polícia o ocorrido entre vocês dois naquela noite?
Annabelle Crowe respondeu num tom mais suave.
- Quando li que ele tinha sido preso por matar Jody Krementz do mesmo jeito.
- Falou com o detetive Bosch nessa ocasião? Ela balançou a cabeça.
- Sim. E percebi que se eu... se eu tivesse chamado a polícia naquela noite, talvez ela ainda...
Não terminou. Pegou alguns lenços de papel da caixa e começou a chorar convulsivamente. Janis disse ao juiz que já terminara a inquirição. Fowkkes disse que haveria
uma reinquirição, mas sugeriu que isso fosse feito depois de um intervalo, para que a testemunha pudesse se recuperar. O juiz Houghton declarou que era uma boa idéia
e anunciou um recesso de quinze minutos.
Bosch ficou no tribunal, vendo Annabelle usar toda a caixa de lenços de papel. Quando ela terminou, seu rosto já não era mais lindo. Estava distorcido e vermelho,
com as órbitas inchadas. Bosch achava que Annabelle fora convincente, mas sabia que ela ainda não se defrontara com Fowkkes. Seu desempenho na reinquirição determinaria
se o júri acreditaria em qualquer coisa que ela dissera na inquirição.
Ao voltar, Janis disse a Bosch que havia alguém na porta do tribunal querendo falar com ele.
- Quem é?
- Não perguntei. Só ouvi a conversa dele com os policiais quando entrei. Os policiais não deixaram o sujeito entrar.
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- Estava de terno? Era um cara negro?
- Não, roupas comuns. Com um agasalho.
- Fique de olho em Annabelle. E é melhor arranjar outra caixa de lenços de papel.
Ele se levantou e foi até as portas do tribunal, abrindo caminho no meio da multidão que voltava ao fim do recesso. Em certo momento ficou cara a cara com Rudy Tafero.
Bosch afastou-se para a direita a fim de passar, mas Tafero mexeu-se para a esquerda. Os dois ficaram dançando de um lado para o outro, e Tafero deu um largo sorriso.
Por fim, Bosch parou e não se mexeu mais até Tafero passar.
No corredor, olhou em volta mas não viu ninguém que reconhecesse. Depois Terry McCaleb saiu de um dos banheiros masculinos, e os dois trocaram um meneio de cabeça.
Bosch foi até a balaustrada de uma das janelas que iam do chão ao teto e davam para a praça lá embaixo. McCaleb juntou-se a ele.
- Tenho uns dois minutos, depois preciso voltar pra lá.
- Só quero saber se podemos conversar depois da sessão de hoje. Estão acontecendo certas coisas e preciso conversar com você.
- Eu sei que estão acontecendo coisas. Dois agentes vieram aqui hoje.
- O que disse pra eles?
- Mandei os dois se foderem. Ficaram zangados.
- Agentes federais não gostam muito de ouvir esse tipo de linguagem. Já devia saber disso, Bosch.
- E, bom, sempre fui um aluno lento.
- E depois da sessão?
- Vou ficar por aqui. A menos que Fowkkes massacre nossa testemunha. Aí não sei, minha equipe pode ter que se reunir em algum lugar pra lamber as feridas.
- Muito bem, então vou ficar por aqui, assistindo pela tevê.
- Até mais tarde.
Bosch voltou para o tribunal, imaginando o que McCaleb teria descoberto tão depressa. O júri já voltara, e o juiz estava autorizando Fowkkes a começar. O advogado
de defesa esperou educadamente que Bosch passasse por ele na direção da mesa da promotoria. Depois começou.
- A senhorita é atriz em tempo integral?
-Sim.
- Estava representando aqui hoje?
Janis protestou de imediato, raivosamente acusando Fowkkes de hostilizar a testemunha. Bosch achou a reação dela extremada demais, mas sabia que aquilo era um recado
para Fowkkes: Janis iria defender sua testemunha com unhas e dentes. O juiz rejeitou o protesto, dizendo que Fowkkes estava dentro dos limites de reinquirição de
uma testemunha hostil a seu cliente.
- Não, não estava representando - respondeu Annabelle com energia.
Fowkkes balançou a cabeça.
- A senhorita declarou que está em Hollywood há três anos.
- Sim.
- Eu contei cinco trabalhos pagos que a senhorita citou. Mais algum?
- Até agora não. Fowkkes balançou a cabeça.
- E sempre bom ter esperança. É muito difícil entrar no meio, não é?
- É, muito difícil, muito desanimador.
- Mas agora a senhorita está na tevê, não está?
Ela hesitou um instante. Seu rosto mostrava que ela percebera que tinha caído numa armadilha.
- O senhor também está - disse ela.
Bosch quase sorriu. Era a melhor resposta que ela poderia ter dado.
- Vamos falar sobre esse... acontecimento que supostamente teve lugar entre a senhorita e David Storey - disse Fowkkes. - Na realidade, esse acontecimento é algo
que a senhorita imaginou a partir das reportagens sobre a prisão de David Storey, correto?
- Não. Ele tentou me matar.
- Isso é o que a senhorita diz.
Janis levantou-se para protestar, mas antes que fizesse isso o juiz mandou Fowkkes guardar tais comentários editoriais para si mesmo. O advogado de defesa prosseguiu.
- Depois de supostamente ser sufocada por David Storey a ponto de desmaiar, a senhorita ficou como pescoço machucado?
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- Sim, fiquei com um machucado por quase uma semana. Não podia sair. Não podia comparecer a testes, nem nada.
- E tirou fotografias do machucado para documentar sua existência, correto?
- Não, não tirei.
- Mas mostrou o machucado a seu agente e seus amigos, não mostrou?
-Não.
- E por que não?
- Porque não pensei que a coisa chegaria a esse ponto, em que eu precisaria tentar provar o que ele fez. Só queria que o machucado sumisse, e não queria que ninguém
soubesse.
- Portanto, temos apenas a sua palavra quanto a esse machucado, correto?
-Sim.
- Assim como temos apenas a sua palavra quanto a todo o incidente, correto?
- Ele tentou me matar.
- A senhorita depôs que quando chegou em casa, naquela noite, David Storey estava deixando um recado na sua secretária eletrônica, correto?
- Correto.
- E a senhorita atendeu o telefonema... um telefonema de um homem que supostamente tentara matar a senhorita. E verdade o que estou dizendo?
Fowkkes fez um gesto, como atendendo a um telefone. Ficou com a mão erguida até Annabelle responder.
- Sim.
- E deixou o recado gravado na fita, a fim de documentar as palavras dele e tudo que tinha acontecido antes, correto?
- Não, eu regravei a fita. Por engano.
- Por engano. Está dizendo que deixou a fita na secretária e acabou gravando por cima do recado?
- E. Eu não queria fazer isso, mas esqueci e gravei por cima.
- Está dizendo que esqueceu que alguém tinha tentado matar a senhorita e que acabou gravando por cima do recado?
- Não, eu não esqueci que ele tentou me matar. Nunca vou esquecer isso.
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- Portanto, temos apenas a sua palavra quanto a essa fita, correto?
- É verdade.
Havia um tom de desafio na voz dela. Mas para Bosch aquilo de certa forma era digno de pena. Era como berrar "Foda-se" para um motor a jato. Ele sentia que Annabelle
estava prestes a ser lançada dentro do motor e despedaçada.
- Bom, a senhorita declarou que é sustentada parcialmente por seus pais e que já ganhou algum dinheiro como atriz. Tem qualquer outra fonte de renda que não tenha
citado para nós?
- Bom... na verdade, não. Minha avó me manda dinheiro. Mas só raramente.
- Algo mais?
- Não que eu me lembre.
- Aceita dinheiro de homens de vez em quando, Srta. Crowe? Houve um protesto por parte de Janis, e o juiz convocou os
advogados à bancada. Enquanto eles cochichavam, Bosch ficou examinando o rosto de Annabelle. Ainda se via ali um resquício de desafio, mas já quase superado pelo
medo. Ela sabia que vinha alguma coisa pela frente. Bosch percebeu que Fowkkes tinha algo de legítimo com que atacar. Era algo que prejudicaria Annabelle e portanto
prejudicaria a promotoria.
Quando a confabulação terminou, Janis e Kretzler retornaram aos seus lugares na mesa da promotoria. Kretzler inclinou-se para Bosch-
- Estamos fodidos - sussurrou. - Ele tem quatro sujeitos que vão testemunhar que pagaram pra fazer sexo com ela. Como nós não sabíamos disso?
Bosch não respondeu. Quando recebera a atribuição de investigar a vida pessoal da testemunha, ele interrogara Annabelle longamente e fora conferir para ver se ela
não tinha impressões digitais fichadas na polícia. Nada surgira a partir das respostas dela e nem da pesquisa por computador. Como ela jamais fora presa por prostituição
e negara ter cometido qualquer atividade criminosa, não havia muito mais que Bosch pudesse ter feito.
De volta à tribuna, Fowkkes reformulou a pergunta.
- Srta. Crowe, já fez sexo com homens em troca de dinheiro?
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- Não, absolutamente não. Isso é mentira.
- Conhece um homem chamado André Snow?
- Sim, conheço.
- Se ele testemunhasse sob juramento que pagou para ter relações sexuais com a senhorita, estaria mentindo?
- Sim, estaria.
Fowkkes deu o nome de três outros homens, fazendo o mesmo tipo de pergunta. Annabelle admitiu que os conhecia mas negando ter feito sexo com eles por dinheiro.
- Mas a senhorita já aceitou dinheiro desses homens, embora não em troca de sexo? - perguntou Fowkkes, num tom de falsa exasperação.
- Sim, algumas vezes. Mas não tinha nada a ver com o fato de fazermos sexo ou não.
- Tinha a ver com o quê, então?
- Queriam me ajudar. Eu achava que eram meus amigos. -Já fez sexo com eles?
Annabelle olhou para as próprias mãos e abanou a cabeça.
- Está dizendo que não, Srta. Crowe?
- Estou dizendo que não fazia sexo com eles toda vez que me davam dinheiro. Eles não me davam dinheiro toda vez que fazíamos sexo. Uma coisa não tinha nada a ver
com a outra. O senhor está tentando fazer com que a coisa pareça o que não é.
- Só estou fazendo perguntas, Srta. Crowe. Como é o meu dever fazer. Assim como é o seu dever contar a verdade ao júri.
Depois de uma longa pausa, Fowkkes disse que nada mais tinha a perguntar.
Bosch percebeu que agarrara os braços da cadeira com tanta força que as juntas dos seus dedos estavam brancas e dormentes. Esfregou as mãos uma na outra e tentou
relaxar, mas não conseguiu. Sabia que Fowkkes era um mestre, um artista da estocada. Ele era rápido, objetivo e devastador como um estilete. Bosch percebeu que seu
desconforto não vinha apenas da posição indefesa e humilhação pública de Annabelle Crowe, e sim de sua própria posição. Sabia que o estilete seria apontado para
ele a seguir.
Capítulo 40
Eles se acomodaram numa das mesas com divisória do Nat's, depois de pegarem no balcão garrafas de Rolling Rock com a atendente tatuada com o coração enrolado em
arame farpado. Ao tirar as garrafas da geladeira, a mulher não comentara que McCaleb já estivera ali perguntando pelo homem que o acompanhava. Era cedo e o lugar
estava vazio, exceto por grupos de bebedores inveterados no balcão e na mesa com divisória dos fundos. Na vitrola automática, Bruce Springsteen cantava There's a
darkness on the edge of town.
McCaleb examinou Bosch, achando que ele estava preocupado com alguma coisa. Provavelmente era o julgamento. A última testemunha fora um zero à esquerda, na melhor
das hipóteses. Boa na inquirição, ruim na reinquirição. O tipo de testemunha que não se usa - quando há escolha.
- Parece que vocês se estreparam com a testemunha. Bosch balançou a cabeça.
- Culpa minha. Eu devia ter previsto isso. Mas olhei pra ela, e pensei que era tão bonita que não podia de jeito algum... Eu simplesmente acreditei nela.
- Eu entendo.
- Foi a última vez que acreditei num rosto.
- Mas vocês ainda parecem ter chance. Têm mais alguma coisa escondida?
Bosch deu um sorriso irônico.
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- E só. Eles iam encerrar hoje, mas decidiram esperar até amanhã de manhã para não deixar Fowkkes se preparar durante a noite. Mas já gastamos toda a nossa munição.
A partir de amanhã vamos ver o que eles têm.
McCaleb viu Bosch tomar quase metade da cerveja de um só gole. Decidiu que era melhor fazer logo as perguntas sérias, enquanto o detetive ainda estivesse sóbrio.
- Fale de Rudy Tafero.
Bosch deu de ombros, num gesto ambivalente. -O que tem ele?
- Não sei. Você conhece bem Tafero? Ou conhecia bem?
- Bom, conhecia quando ele estava no nosso time. Ele atuou como detetive de Hollywood por cinco anos, mais ou menos, enquanto eu estava lá. Depois se aposentou com
direito a pensão por vinte anos de serviço e foi trabalhar do outro lado da rua. Começou a tirar da cadeia o pessoal que a gente punha na cadeia.
- Mas quando estavam na mesma equipe lá em Hollywood, vocês eram íntimos?
- Não sei o que significa íntimos. Nós não éramos amigos, nem parceiros de bebedeira. Ele trabalhava em arrombamentos, e eu em homicídios. Por que está fazendo tantas
perguntas sobre ele? O que ele tem a ver com...
Ele parou de falar e olhou para McCaleb, com as engrenagens mentais obviamente girando. Rod Stewart cantava Twisting the Night Away.
- Está brincando comigo, caralho? - perguntou por fim. - Está desconfiando que...
- Quero só fazer umas perguntas - interpôs McCaleb. - Depois você faz as suas.
Bosch esvaziou a cerveja e ergueu a garrafa até a atendente notar.
- Não servimos nas mesas, gente - anunciou ela. - Desculpem.
- Puta que pariu - disse Bosch.
Saiu da divisória e foi até o balcão. Voltou com mais quatro Rocks, embora McCaleb mal tivesse começado a beber a primeira.
- Pode perguntar - disse Bosch.
- Por que vocês dois não eram próximos?
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Bosch pôs os cotovelos sobre a mesa e segurou uma nova garrafa com as duas mãos. Lançou o olhar para fora da divisória e depois encarou McCaleb novamente.
- Há cinco ou dez anos havia dois grupos no FBI. E em grande parte a mesma coisa acontecia no departamento de polícia. Era como se houvesse os santos e os pecadores...
dois grupos distintos.
- Os renascidos e os antinascidos?
- Algo por aí.
McCaleb se lembrava. Tornara-se notório nos círculos das organizações de segurança, uma década antes, que dentro do Departamento de Polícia de Los Angeles um grupo
conhecido como os "renascidos" tinha membros em posições-chave que controlavam as promoções e os cargos privilegiados. Os membros desse grupo - várias centenas de
elementos, de todas as graduações - pertenciam a uma igreja no vale de San Fernando, onde o subchefe do departamento encarregado das operações era pregador leigo.
Os policiais ambiciosos se uniam à igreja aos magotes, na esperança de impressionar o subchefe e melhorar suas perspectivas de fazer carreira. Havia dúvidas sobre
a espiritualidade envolvida naquilo. Mas quando o subchefe fazia seu sermão de domingo às onze horas, a igreja ficava entupida de policiais que não estavam de serviço,
em pé, com os olhos dirigidos fervorosamente para o púlpito. McCaleb ouvira dizer que certa vez o alarme de um carro disparara no estacionamento durante o serviço
religioso das onze horas. O infeliz viciado que estava remexendo no porta-luvas do carro logo se vira rodeado de uma centena de armas apontadas por policiais de
folga.
- Aposto que você era do time dos pecadores, Harry. Bosch sorriu e balançou a cabeça.
- E claro.
- E Tafero estava entre os santos.
- Pois é. Como o nosso tenente na época. Um burocrata chamado Harvey Pounds. Ele e Tafero tinham a tal igrejinha e eram íntimos por causa disso. Acho que eu jamais
me aproximaria de um cara ligado a Pounds, fosse por causa da igreja ou não. Percebe o que eu quero dizer? E os caras também não se aproximavam de mim.
McCaleb balançou a cabeça. Percebia mais do que estava deixando entrever.
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- Pounds foi o cara que bagunçou o caso Gunn - disse. - O cara que você jogou pela janela.
- Esse mesmo.
Bosch baixou a cabeça e abanou-a, desgostoso consigo mesmo.
- Tafero estava lá nesse dia?
- Tafero? Não sei. É provável.
- Mas a corregedoria não tomou os depoimentos das testemunhas pra fazer uma sindicância interna?
- Tomou, mas nem examinei aquilo. Eu tinha jogado o cara pela janela na frente da equipe. Não podia negar a coisa.
- E mais tarde... o quê, um mês ou dois... Pounds aparece morto num túnel nas colinas.
- Pois é. Em Griffith Park.
- E o caso ainda está em aberto... Bosch balançou a cabeça.
- Tecnicamente.
- Você já disse isso antes. O que isso significa?
- Significa que o caso está em aberto, mas que ninguém está investigando. O departamento de polícia tem uma classificação especial para casos assim. São casos que
eles preferem esquecer, e classificados como casos encerrados sem prisão, por outras circunstâncias.
- E você conhece essas circunstâncias?
Bosch terminou a segunda garrafa, empurrou-a para o lado e colocou outra à sua frente.
- Você não está bebendo - disse.
- Você está bebendo por nós dois. Conhece essas circunstâncias? Bosch inclinou-se para a frente.
- Escute, vou contar a você uma coisa que muito pouca gente sabe, tá legal?
McCaleb balançou a cabeça. Sabia que não era hora de perguntar nada. Era melhor deixar Bosch falar.
- Levei uma suspensão por causa do negócio da janela. Quando cansei de dar voltas pela casa olhando para as paredes, comecei a investigar um caso antigo. Um caso
já frio. Um caso de assassinato. Fiz a coisa sozinho e acabei seguindo uma pista maluca que desembocava em gente muito poderosa. Mas na época eu não
tinha distintivo, nem autoridade de fato. Por isso dei alguns telefonemas usando o nome de Pounds. Estava tentando esconder o que fazia, entende?
- Se o departamento descobrisse que você estava investigando um caso durante a suspensão, as coisas teriam piorado ainda mais pra você.
- Exatamente. Por isso eu usava o nome dele quando dava os telefonemas que achava inócuos, de rotina. Mas aí uma noite alguém ligou para Pounds dizendo que tinha
uma informação urgente para ele. Pounds foi ao encontro sozinho. E mais tarde foi encontrado naquele túnel. Ele foi muito espancado, como se tivesse sido torturado
por alguém. Só que ele não conseguira responder às perguntas, porque era o cara errado. Eu tinha usado o nome dele. Era a mim que eles queriam.
Bosch deixou o queixo cair sobre o peito e ficou em silêncio por um longo período.
- Eu causei a morte dele - disse, sem erguer os olhos. - O cara era um babaca completo, mas os meus atos causaram a morte dele.
Bosch ergueu subitamente a cabeça e bebeu um gole da garrafa. McCaleb viu que os olhos deles estavam escuros e brilhantes. Pareciam cansados.
- E isso que queria saber, Terry? Isso ajuda em alguma coisa? McCaleb balançou a cabeça.
- Até que ponto Tafero sabia disso?
- Ele não sabia de nada.
- Ele não pode ter pensado que foi você quem telefonou para Pounds naquela noite?
- Talvez. Teve gente que pensou e que provavelmente ainda pensa. Mas o que isso significa? O que isso tem a ver com Gunn?
McCaleb deu o primeiro grande gole na cerveja. Estava gelada, e ele sentiu o frio no peito. Descansou a garrafa e decidiu que já estava
na hora de dar a Bosch alguma coisa em troca.
- Preciso saber entender Tafero porque preciso entender as razões, os motivos. Não posso provar nada... ainda... mas acho que Tafero matou Gunn. Fez isso a mando
de Storey. E armou a coisa pra estourar em você.
-Jesus...
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- Foi uma bela armação, perfeita. A cena do crime está ligada ao pintor Hieronymus Bosch, o pintor está ligado a você por ser seu homônimo, e você está ligado a
Gunn. Sabe quando Storey teve a idéia de fazer isso, provavelmente?
Bosch abanou a cabeça. Estava atordoado demais para falar.
- No dia da tentativa de interrogatório no escritório dele. Você passou a fita no tribunal na semana passada e se identificou pelo seu nome de batismo completo.
- Eu sempre faço isso. Eu...
- Ele chamou Tafero, e Tafero já tem a vítima perfeita pra fazer a armação... Gunn. Um homem que ele sabia ter escapado de você e de uma acusação de assassinato,
há seis anos.
Bosch ergueu a garrafa alguns centímetros acima da mesa e baixou-a com força.
- Acho que o plano era duplo. Se eles tivessem sorte, a conexão seria estabelecida rapidamente, e você já estaria se defendendo de uma acusação de assassinato antes
que o julgamento de Storey tivesse começado. Se isso não acontecesse, havia o plano B. Eles ainda teriam esse plano para esmagar você durante o julgamento. Era só
destruir você para destruir a acusação. Hoje Fowkkes afundou aquela mulher e já baleou algumas das outras testemunhas. Em que se baseia a acusação? Em você, Harry.
Eles sabiam que a coisa acabaria em você
Bosch virou a cabeça ligeiramente, e seus olhos pareciam não estar enxergando nada. Enquanto olhava para o tampo de mesa arranhada, ele pensava no que McCaleb dissera.
- Eu precisava conhecer o seu passado com Tafero. Pois a pergunta é... por que ele faria isso? Sim, provavelmente há dinheiro na coisa, e se Storey conseguir escapar
fica à mercê dele. Mas tinha que haver algo mais. E acho que você acabou de me contar o que era. Ele provavelmente odeia você há muito tempo.
Bosch ergueu o olhar da mesa e encarou McCaleb.
- Ele está dando o troco. McCaleb balançou a cabeça.
- Por causa de Pounds. E se a gente não conseguir provar isso, a coisa pode funcionar.
Bosch ficou em silêncio e baixou os olhos para a mesa. Parecia cansado e esgotado para McCaleb.
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- Ainda quer dar os parabéns a ele? - perguntou McCaleb. Bosch ergueu os olhos.
- Desculpe, Harry. Foi um golpe baixo.
Bosch abanou a cabeça, como quem não se importa.
- Eu mereço. Diga lá, o que você descobriu?
- Não muito. Mas você tinha razão. Eu tinha deixado escapar uma coisa. Tafero pagou a fiança de Gunn na véspera de Ano-Novo. Acho que o plano era matar Gunn naquela
noite, montar a cena do crime e deixar que as coisas tomassem seu curso. A conexão Hieronymus Bosch viria à tona... ou por Jaye Winston ou por uma pesquisa no Programa
de Captura de Criminosos Violentos do FBI... e você se tornaria um alvo natural. Mas Gunn veio se embebedar aqui.
Ele ergueu a garrafa e apontou para o balcão.
- Foi preso por dirigir bêbado ao ir para casa. Tafero teve que soltar Gunn para poder continuar seguindo o plano e matar o sujeito. A multa de trânsito é o único
elo de ligação direto que a gente tem.
Bosch balançou a cabeça. McCaleb viu que ele estava percebendo o esquema.
- Foram eles que vazaram a notícia para aquele repórter - disse Bosch. - Quando a coisa estourasse na mídia, poderiam fingir que era novidade e fazer um carnaval
como se estivessem correndo atrás do prejuízo, quando na verdade estavam o tempo todo na nossa frente.
McCaleb balançou a cabeça, hesitante. Não mencionou a admissão de Buddy Lockridge para não meter uma cunha na teoria que Bosch desenvolvera.
- O que foi? - perguntou Bosch.
- Nada. Eu só estava pensando.
- Você não tem nada além do pagamento da fiança por Tafero?
- Uma multa de trânsito, e é só, por enquanto.
McCaleb descreveu detalhadamente as visitas que fizera pela manhã à Fianças Valentino e ao correio. Mencionou também que por ter chegado ao correio quarenta e oito
minutos atrasado talvez houvesse perdido a chance de livrar Bosch das suspeitas, e cravar Tafero.
Bosch fez uma careta e pegou uma garrafa, mas depois largou-a na mesa sem beber.
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- A multa de trânsito mostra que ele esteve no correio - disse McCaleb.
- Isso não quer dizer nada. Ele tem um escritório a cinco quarteirões dali. Pode alegar que foi a única vaga que encontrou. Pode dizer que emprestou o carro a alguém.
Não quer dizer nada.
McCaleb não queria se concentrar no que eles não tinham. Queria encaixar as peças.
- Escute, o sargento do plantão da manhã contou que você tinha deixado lá um pedido para ser avisado toda vez que Gunn fosse preso. Será que Tafero ficou sabendo
disso? Ou na época em que ele era da polícia ou de algum outro modo?
- Talvez. Isso não era segredo. Eu estava trabalhando em cima de Gunn. Um dia ia fazer o cara abrir o bico.
- A propósito, qual era a aparência de Pounds? Bosch lançou-lhe um olhar confuso.
- Baixo, corpulento e meio calvo, com um bigode?
Bosch confirmou com a cabeça e ia fazer uma pergunta, mas McCaleb respondeu antes.
- O retrato dele está no escritório de Tafero. Pounds aparece entregando a ele uma placa de Detetive do Mês. Aposto que você nunca recebeu uma, Harry.
- Não. Pounds fazia a escolha.
McCaleb ergueu o olhar e viu que Jaye Winston entrara no bar, carregando uma maleta. Ele meneou a cabeça para ela, e Jaye começou a se dirigir para a mesa deles.
Andava com os ombros encolhidos, como se estivesse pisando com cuidado sobre um aterro.
McCaleb abriu espaço e ela sentou-se ao seu lado.
- Lugar agradável.
- Harry, acho que você conhece Jaye Winston - disse meCaleb.
Bosch e Jaye se entreolharam.
- Para começar, desculpe aquele negócio com Kiz - disse Jaye.
- Espero que...
- A gente faz o que tem que fazer - disse Bosch. - Quer um drinque? Eles não servem nas mesas aqui.
- Eu ficaria chocada se servissem. Maker's Mark, com gelo, se tiver.
- Terry, nada pra você?
- Nada.
Bosch foi buscar a bebida. Jaye virou-se e olhou para McCaleb.
- Como está indo a coisa?
- Pedacinhos, aqui e ali.
- Como ele está levando?
- Nada mal, acho eu, para um cara que foi colocado numa fria. E você?
Jaye sorriu de um jeito que fez McCaleb adivinhar que ela descobrira algo.
- Arranjei a fotografia e uns outros... pedacinhos... interessantes. Bosch pôs o drinque de Jaye na mesa e sentou-se novamente.
- Ela riu quando eu disse Maker's Mark - disse ele. - Isso aí é a lavagem da casa.
- Maravilha. Obrigada.
Jaye afastou o copo para o lado e pôs a maleta na mesa. Abriu-a, tirou uma pasta, fechou a maleta e colocou-a no chão, perto do banco. McCaleb viu Bosch observando
Jaye com um olhar de expectativa.
Jaye abriu a pasta e estendeu para McCaleb uma fotografia
12x18 de Rudy Tafero.
- É uma ampliação da licença de fiador dele. Tem onze meses. Depois consultou uma página de suas anotações datilografadas.
- Fui até o xadrez do condado e consultei tudo que havia sobre Storey. Ele ficou lá até ser transferido para a cadeia de Van Nuys no início do julgamento. Durante
sua estada no xadrez, recebeu dezenove visitas de Tafero. As doze primeiras visitas se realizaram durante as três primeiras semanas em que esteve ali. Nesse período,
Fowkkes só visitou Storey quatro vezes. Um advogado do escritório de Fowkkes visitou Storey mais umas quatro vezes, e a assistente executiva de Storey, Betilda Lockett,
apareceu seis vezes. É só. Storey se encontrou com um investigador mais vezes do que com seus advogados.
- Foi quando eles planejaram a coisa - disse McCaleb. Ela balançou a cabeça e sorriu do mesmo jeito anterior.
- O que é? - perguntou McCaleb.
- Estava só deixando o melhor para o fim.
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Ela pegou novamente a maleta e a abriu.
- A cadeia registra todos os bens e pertences dos internos, tanto as coisas que eles trazem, quanto as coisas aprovadas e trazidas pelos visitantes. Há uma anotação
nos registros de Storey de que sua assistente, Betilda Lockett, recebeu permissão para lhe dar um livro durante a segunda das seis visitas. Segundo o registro de
bens, o livro chamava-se A arte das trevas. Eu fui até o centro da cidade e conferi.
Ela tirou da maleta um livro grande e pesado, com uma capa de tecido azul. Começou a abri-lo sobre a mesa. Uma papeleta gomada fora colocada como marcador.
- E um estudo de artistas que usaram as trevas como uma parte essencial do meio visual, segundo a introdução.
Jaye ergueu o olhar e sorriu, enquanto abria o livro no marcador.
- Há um capítulo bem longo sobre Hieronymus Bosch. Cheio de ilustrações-
McCaleb ergueu a garrafa vazia e bateu-a contra o copo de Jaye, ainda intocado. Depois inclinou-se, juntamente com Bosch, para examinar as páginas.
- Lindo - disse.
Jaye foi virando as páginas. As ilustrações da obra de Bosch incluíam todos os quadros de onde se poderiam tirar partes da cena do crime-- A operação de pedra, Os
sete pecados capitais com o olho de Deus, O Juízo Final e O jardim das delícias terrenas.
- Ele planejou a coisa lá na cela mesmo - espantou-se meCaleb
- Parece que sim - disse Jaye.
Ambos olharam para Bosch, que balançava a cabeça quase imperceptivelmente.
- Agora é sua vez, Harry - disse McCaleb. Bosch fez uma expressão perplexa.
- Minha vez de quê?
- De dar sorte.
McCaleb empurrou o retrato de Tafero pela mesa e meneou a cabeça na direção da atendente. Bosch pegou a fotografia e foi até o balcão
- Ainda estamos tateando nas bordas - disse Jaye, vendo
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Bosch interrogar a moça sobre a fotografia. - Temos alguns pedacinhos, mas só isso.
- Eu sei - disse McCaleb, sem conseguir ouvir a conversa no balcão. A música estava alta demais, com Van Morrison cantando The Wild Night h Corning.
Bosch meneou a cabeça para a moça no balcão e retornou à mesa.
- Ela reconheceu Tafero. Por incrível que pareça, ele só bebe Kahlúa com creme. Mas não conseguiu associar o rosto dele a Gunn.
McCaleb deu de ombros, num gesto de isso-não-significanada.
- Valeu arriscar.
- Vocês sabem onde isso vai desembocar, não sabem? - disse Bosch, olhando ora para McCaleb, ora para Jaye. - Vocês vão ter que fazer uma jogada. E a única maneira.
E tem que ser uma porra de uma jogada boa, porque o meu está na reta.
McCaleb balançou a cabeça.
- Nós sabemos - disse ele.
- Quando? Meu tempo está se esgotando. McCaleb olhou para Jaye. Era uma decisão dela.
- Logo - disse ela. - Talvez amanhã. Ainda não levei isso ao departamento. Tenho que ter tato com o capitão nesse assunto, porque ele só sabe que Terry está fora
do caso e que eu estou trabalhando com o FBI atrás de você. Tenho também que conseguir o auxílio da promotoria, porque quando fizermos a jogada é preciso agir rápido.
Se tudo sair bem, acho que pegamos Tafero amanhã à noite e armamos a jogada em cima dele.
Bosch olhou para a mesa com um sorriso tristonho. Ficou empurrando uma garrafa vazia de um lado para o outro entre as mãos.
- Encontrei aqueles caras hoje. Os agentes.
- Ouvi falar. Você não conseguiu convencer os dois da sua inocência. Eles voltaram irritados.
Bosch ergueu os olhos.
- Então, o que querem que eu faça nesse troço?
- Queremos que você fique quieto - disse Jaye. - Nós avisaremos, se a jogada for amanhã à noite.
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Bosch balançou a cabeça.
- Só tem uma coisa - disse McCaleb. - Você tem acesso às provas materiais que foram juntadas aos autos do julgamento?
- Durante as sessões no tribunal, sim. Fora disso, elas ficam com o auxiliar do juiz. Por quê?
- Porque é óbvio que Storey tinha conhecimento anterior do pintor Hieronymus Bosch. Ele deve ter reconhecido o seu nome durante o interrogatório e percebido o que
podia fazer com isso. Portanto, acho que aquele livro que Betilda Lockett levou até o xadrez só podia ser dele. Ele mandou a assistente trazer o livro.
Bosch balançou a cabeça.
- A fotografia da estante. McCaleb balançou a cabeça.
- É isso aí.
- Eu aviso vocês - disse Bosch, dando uma olhada em torno. - Terminamos?
- Terminamos - disse Jaye. - A gente se fala.
Ela saiu da mesa, seguida por Bosch e McCaleb, deixando duas cervejas e um uísque com gelo intocados. Na porta, McCaleb deu uma olhada para trás e viu um casal de
fregueses habituais avançando para o tesouro. Na vitrola automática, John Fogerty cantava There's a Bad Moon on the Rise...
Capítulo 41
A friagem do mar penetrava nos ossos de McCaleb. Ele meteu as mãos nos bolsos do agasalho e enfiou o pescoço o mais que pôde na gola, enquanto descia cuidadosamente
a rampa para a doca da marina Cabrillo.
Embora o queixo estivesse baixo, seus olhos estavam atentos, perscrutando as docas à procura de qualquer movimento inusitado. Nada lhe chamou a atenção, exceto o
barco a vela de Buddy Lockridge atracado ali. A despeito da tralha que enchia o convés - pranchas de surfe, bicicletas, churrasqueira a gás, um caiaque oceânico,
bagulhos variados e outros equipamentos variados -, ele percebeu que as luzes da cabine estavam acesas. Mas foi em frente, pisando em silêncio nas pranchas de madeira.
Quer Buddy estivesse acordado ou não, já era muito tarde, e McCaleb estava cansado demais e com frio demais para lidar com seu suposto sócio. Ainda assim, ao se
aproximar do Mar que Segue, não pôde deixar de examinar mentalmente a incômoda anomalia na explicação teórica que montara para o caso. Bosch estivera certo lá no
bar, quando deduzira que alguém ligado a Storey devia ter vazado a história da investigação de Gunn para o New Times. McCaleb sabia que sua teoria só poderia se
sustentar se alguém como Tafero, Fowkkes ou até Storey - da cadeia - tivesse sido a fonte de McEvoy. O problema era que Buddy já confessara ter vazado a notícia
sobre a investigação para o tablóide semanal.
McCaleb só enxergava uma possibilidade de sua teoria permanecer de pé: Buddy e alguém do grupo de Storey terem, ao mesmo
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tempo, vazado a mesma informação para a mesma fonte da mídia. E isso, é claro, era uma coincidência que até quem acreditava em coincidências teria dificuldade para
aceitar.
Ele tentou afastar esses pensamentos da mente momentaneamente. Chegou ao barco, olhou novamente em volta e desceu para a cabine. Destrancou a porta corrediça e entrou,
acendendo as luzes. Decidiu que pela manhã interrogaria Buddy mais cuidadosamente sobre o que ele fizera e com quem falara.
Trancou a porta, pondo as chaves e o aparelho de vídeo que estava carregando sobre a mesa de navegação. Entrou imediatamente na cozinha e encheu um copo grande de
suco de laranja. Depois apagou as luzes do convés e desceu com o suco para o convés inferior, dirigindo-se para o camarote da frente e dando início ao ritual vespertino
das pílulas. Enquanto engolia as pílulas e o suco de laranja, ficou olhando para si mesmo no pequeno espelho que havia em cima da pia. Pensou na aparência de Bosch
e no esgotamento claramente estampado nos olhos fundos do detetive. Ficou imaginando se também não teria a mesma aparência dali a poucos anos, depois de mais alguns
casos.
Quando acabou a rotina medicinal, tirou a roupa e tomou uma chuveirada gélida, pois o aquecedor não tinha sido ligado desde que ele cruzara a baía na véspera.
Foi tremendo até o camarote principal, onde vestiu um short e uma camiseta. Estava morto de cansaço, mas assim que se deitou decidiu anotar algumas idéias sobre
a jogada de Jaye em cima de Tafero. Estendeu a mão para a gaveta da mesinha-de-cabeceira, onde mantinha canetas e blocos de rascunho. Quando a abriu, encontrou um
jornal dobrado enfiado no pequeno espaço da gaveta. Tirou-o, desdobrou-o e viu que era o número da semana anterior do New Times. As páginas haviam sido dobradas
para trás, de modo que a seção de anúncios estava na frente. McCaleb ficou olhando para uma página cheia de pequenos anúncios sob o título de MASSAGENS A DOMICÍLIO.
Levantou-se rapidamente e foi até o agasalho, que jogara sobre uma cadeira. Tirou o celular do bolso e voltou para a cama. Nos últimos dias ele se deslocara sempre
com o aparelho, mas geralmente o telefone ficava no carregador instalado no barco. A conta era paga com a renda do negócio e lançada como despesa operacional,
369
pois o aparelho era usado pelos clientes durante os passeios, e por Buddy para confirmar reservas e pagamentos via cartão de crédito.
O telefone tinha uma pequena tela digital com um menu que McCaleb examinou. Acionou o programa de chamadas feitas e começou a pesquisar os últimos cem números que
o telefone acessara. Identificou e eliminou rapidamente a maioria dos números. Mas toda vez que não reconhecia um número, comparava-o com os telefones exibidos na
página de anúncios de massagem. Teve sucesso na quarta tentativa. O número pertencia a uma mulher que se anunciava como "Beleza Exótica Nipo-Havaiana" e se chamava
Leilani. O anúncio dizia que ela especializada em "relaxamento completo" e que não era ligada a agências de massagem.
McCaleb fechou o telefone e levantou novamente da cama. Começou a vestir uma calça de malha, enquanto tentava recordar exatamente o que dissera ao acusar Buddy de
vazar a informação para o New Times.
Quando terminou de se vestir, McCaleb já percebera que não chegara a acusar Buddy, especificamente, de ter vazado a informação para o jornal. Ele apenas mencionara
o New Times, e Buddy imediatamente começara a se desculpar. McCaleb percebeu que o pedido de desculpas e o constrangimento de Buddy poderiam ter se originado do
fato de ele ter usado o Mar que Segue na semana anterior, quando o barco estava na marina, para se encontrar com a massagista do relaxamento completo. Isso explicaria
por que ele perguntara se McCaleb contaria a Graciela o que ele fizera.
McCaleb olhou para o relógio. Eram onze e dez da noite. Ele pegou o jornal e foi até o convés. Não queria esperar até a manhã para confirmar aquilo. Achava que Buddy
usara o Mar que Segue para se encontrar com a mulher, porque o barco dele era tão pequeno e cheio de tralhas que parecia uma ratoeira flutuante de aparência sinistra.
Não tinha cabine fechada - apenas um espaço aberto, tão cheio de tralhas quanto o convés de cima. Se Buddy tivesse o Mar que Segue à disposição, ele o teria usado.
No salão nem se deu ao trabalho de acender as luzes. Inclinou-se sobre o sofá e lançou o olhar pela janela para a esquerda da embarcação. O barco de Buddy, o Doubk
Down, estava quatro vagas adiante, e ele viu que as luzes da cabine ainda estavam acesas. Buddy ainda estava acordado, a menos que tivesse desmaiado com as luzes
acesas.
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McCaleb aproximou-se da porta corrediça para destrancá-la, mas percebeu que a porta já estava entreaberta. Havia alguém na embarcação. Provavelmente a pessoa entrara
enquanto ele tomava a chuveirada. Fora por isso que ele não ouvira a tranca se abrir e nem sentira o peso adicional no barco. Afastou rapidamente a porta para o
lado, abrindo-a por completo na tentativa de escapar. Estava justamente atravessando a porta quando foi agarrado por trás. Sentiu um braço passar por cima de seu
ombro direito e pela frente de seu pescoço. Viu o cotovelo se dobrar e sua garganta ficar presa no ângulo assim formado. O outro antebraço do atacante fechou o triângulo
atrás do pescoço de McCaleb, apertando-o como se fosse um torno e comprimindo as carótidas que levavam sangue oxigenado para o cérebro. Com um distanciamento quase
clínico, McCaleb percebeu o que estava acontecendo. Ele estava preso numa chave clássica de estrangulamento. Começou a lutar. Ergueu os braços e tentou enfiar os
dedos embaixo do antebraço e do bíceps que comprimiam seu pescoço, mas sentiu que era inútil. Já estava enfraquecendo.
Viu-se arrastado para longe da porta e de volta ao salão escuro. Ergueu a mão esquerda até o lugar onde a mão direita do atacante agarrava o antebraço esquerdo -
o ponto fraco do triângulo. Mas não tinha alavancagem e estava perdendo rapidamente as forças. Tentou gritar. Talvez Buddy escutasse. Mas sua voz desaparecera, e
nada saiu.
Lembrou-se de outro golpe defensivo. Ergueu o pé direito e lançou o calcanhar na direção do pé do atacante, com as últimas forças que conseguiu reunir. Mas errou.
Seu calcanhar bateu inocuamente no chão, e o atacante deu mais um passo atrás, desequilibrando McCaleb violentamente e deixando-o incapaz de tentar o golpe do pé
novamente.
McCaleb começou a perder a consciência velozmente. Sua visão das luzes da marina através da porta do salão foi sendo tomada por uma treva rodeada de vermelho. Já
quase inconsciente, percebeu que estava preso na chave clássica de estrangulamento que fora ensinada nos departamentos de polícia por todo o país, até provocar um
número excessivo de mortes.
Logo até esse pensamento se esvaiu, e ele deixou de ver as luzes. A treva avançou e o engoliu.
Capítulo 42
McCaleb voltou a si sentindo uma dor terrível nos ombros e nas coxas. Quando abriu os olhos, percebeu que estava deitado de bruços no beliche do camarote principal.
Sua cabeça estava apoiada diretamente no colchão, com o lado esquerdo do rosto para baixo, e ele olhava para a cabeceira da cama. Depois de um instante, lembrou-se
que fora atacado por trás quando estava indo visitar Buddy.
Ficou completamente consciente e tentou relaxar os músculos doloridos, mas percebeu que não podia se mexer. Tinha os pulsos atados nas costas e as pernas dobradas
para trás à altura dos joelhos. Alguém estava mantendo-as nessa posição.
Ele ergueu a cabeça do colchão e tentou se virar, mas não achou ângulo para isso. Caiu novamente sobre o colchão e virou a cabeça para a esquerda. Ergueu o corpo
novamente e virou a cabeça, vendo Rudy Tafero parado perto da cama, sorrindo. Com uma mão enluvada, ele segurava os pés de McCaleb, que estavam amarrados nos tornozelos
e dobrados para trás na direção das coxas.
Subitamente, McCaleb compreendeu tudo. Percebeu que estava nu e amarrado, na mesma postura em que vira o corpo de Edward Gunn. Era a posição fetal invertida do quadro
de Hieronymus Bosch. Sentiu um calafrio de terror explodir em seu peito. Instintivamente, flexionou os músculos das pernas, mas Tafero se preparara para aquele movimento.
Os pés de McCaleb quase não
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se mexeram, mas ele ouviu três cliques atrás da cabeça e sentiu a ligadura em torno do pescoço.
- Calma - disse Tafero. - Calma aí. Ainda não.
McCaleb parou de se mexer. Tafero continuava a pressionar os tornozelos dele para baixo, na direção das coxas.
- Você já viu o esquema antes - disse Tafero, em tom objetivo.
- Este aqui é um pouco diferente. Liguei várias algemas plásticas do tipo que todo tira de Los Angeles leva na mala do carro.
McCaleb entendeu o recado. Aquelas fitas de plástico haviam sido inventadas para ligar cabos, mas depois os órgãos policiais haviam descoberto que elas eram úteis
em ocasionais distúrbios de rua, onde havia necessidade de fazer prisões em massa. Um policial podia carregar apenas um par de algemas, mas centenas das algemas
plásticas. Eram enroladas no pulso dos presos, com a extremidade metida no fecho. As pequenas ranhuras na fita plástica se interpenetravam à medida que a pressão
ficava maior. Só podiam ser removidas depois de cortadas. McCaleb percebeu que os cliques que acabara de ouvir eram da algema plástica apertando seu pescoço.
- Portanto, tome cuidado - disse Tafero. - Fique paradinho aí.
McCaleb apoiou o rosto no colchão. Sua mente girava à procura de uma saída. Se pudesse começar uma conversa com Tafero, talvez ganhasse algum tempo. Mas tempo para
o quê?
- Como me encontrou? - disse ele, com a boca no colchão.
- Muito fácil. Meu irmãozinho te seguiu quando você saiu do escritório e anotou a sua placa. Devia olhar mais em volta, pra ver se não está sendo seguido.
- Vou me lembrar disso.
McCaleb compreendeu que o plano era fazer parecer que o assassino de Gunn o pegara quando ele chegara perto demais. Virou a cabeça novamente para poder ver Tafero.
- Isso não vai funcionar, Tafero - disse. - As pessoas já estão sabendo. Não vão cair nessa de pensar que foi Bosch.
Tafero sorriu para ele.
- Está falando de Jaye Winston? Não se preocupe. Vou fazer uma visita a ela quando terminar com você. Rua Willoughby, número oitenta e oito-zero-um, apartamento
seis, West Hollywood. Também foi fácil descobrir isso.
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Ele ergueu a mão livre e mexeu os dedos, como se estivesse tocando piano ou batendo à máquina.
- Deixe seus dedos caminharem pelas listas de eleitores... Eu tenho tudo em CD-ROM. Ela é uma democrata registrada, acredita? Uma detetive de homicídios que vota
com os democratas. Vivendo e aprendendo.
- Tem mais gente. O FBI está metido nisso. Você...
- Eles estão atrás de Bosch. Não de mim. Vi os caras no tribunal hoje.
Estendeu a mão e prendeu uma das algemas plásticas das pernas de McCaleb ao pescoço dele.
- E tenho certeza que essas algemas apontarão diretamente para o detetive Bosch.
Sorriu com a genialidade do plano. E McCaleb percebeu que o raciocínio dele estava certo. Twilley e Friedman iriam atrás de Bosch como dois cachorros correndo atrás
de um carro.
- Paradinho aí.
Tafero largou os pés de McCaleb e desapareceu de vista. McCaleb esforçou-se para manter as pernas dobradas. Quase imediatamente, sentiu os músculos das pernas começarem
a doer. Percebeu que não teria forças para manter aquela posição por muito tempo.
- Por favor...
Tafero voltou ao campo de visão dele. Segurava uma coruja de plástico nas mãos e tinha um sorriso de satisfação no rosto.
- Peguei esta coruja num dos barcos no ancoradouro. Está um pouco estragada pelo tempo, mas vai funcionar bem. Tenho que arranjar outra para Jaye Winston.
Olhou em torno do camarote como procurando um lugar para a coruja. Colocou-a numa prateleira acima da escrivaninha embutida. Pôs a coruja lá, olhou novamente para
McCaleb e ajustou a posição da ave de plástico, fazendo-a olhar diretamente para o homem deitado.
- Perfeito-disse.
McCaleb fechou os olhos. Sentia os músculos vibrando com o esforço. Uma imagem da filha apareceu em sua mente. Ela estava em seus braços, observando-o por cima da
mamadeira e dizendo-lhe para
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não se preocupar, para não ter medo. Aquilo o acalmou. Ele se concentrou no rosto dela e até achou que conseguia sentir o cheiro do cabelo da menina. Sentiu lágrimas
correrem pelos olhos e as pernas começarem a ceder. Sentiu o clique das algemas se apertando, e... Tafero forçou as pernas dele para baixo.
- Ainda não.
Algo duro bateu na cabeça de McCaleb e caiu com um baque no colchão ao seu lado. Ele virou o rosto, abriu os olhos e viu que era a fita de vídeo que pedira emprestado
a Lucas, o chefe da segurança do correio. Olhou para a etiqueta com o emblema do correio
- uma águia voando - que Lucas colocara na fita para ele.
- Espero que não se importe, mas enquanto você estava se recuperando do estrangulamento, dei uma olhada nessa fita que estava no seu aparelho. Não encontrei nada
aí. A fita está em branco. Porquê?
McCaleb sentiu uma pontada de esperança. Percebeu que só não estava morto ainda por causa da fita que Tafero encontrara. Aquilo levantara muitas questões, e era
uma brecha. Ele tentou pensar num meio de aproveitar aquela chance. A fita tinha mesmo que estar em branco, pois fazia parte de um blefe. Eles haviam planejado usá-la
como isca, quando trouxessem Tafero e armassem a jogada para cima dele. Mostrariam a fita e diriam que ele aparecia enviando a ordem de pagamento. Mas não chegariam
a exibir a fita. McCaleb pensou que talvez ainda pudesse usar aquilo - mas de modo inverso.
Tafero empurrou os tornozelos dele para baixo, com tanta força que quase encostou-os nas nádegas. McCaleb gemeu com o esforço dos músculos. Tafero relaxou a pressão.
- Eu fiz uma pergunta, seu puto, e quero a porra de uma resposta.
- Não é nada. E para estar em branco mesmo.
- Conversa fiada. A etiqueta diz "22 de dezembro". Diz "Vigilância de Wilcox". Por que a fita está em branco?
Tafero aumentou a pressão nas pernas de McCaleb, mas não tanto quanto antes.
- Tá legal, vou contar a verdade. Vou contar.
McCaleb respirou profundamente e tentou relaxar. Assim que
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seu corpo ficou imóvel, com o ar parado nos pulmões, teve a impressão de perceber um movimento do barco fora do ritmo suave da marola na marina. Alguém pisara no
barco. McCaleb só conseguiu pensar em Buddy Lockridge. Se fosse ele, era provável que estivesse caminhando para sua própria morte. McCaleb começou a falar rapidamente
em voz alta, na esperança de que sua voz alertasse Buddy.
- É só um engodo, mais nada. Nós íamos blefar com você, dizendo que você aparecia na fita comprando a ordem de pagamento com que a coruja foi encomendada. O plano
era fazer você se voltar contra Storey. Nós sabemos que ele planejou tudo lá na cadeia. Você só cumpria ordens. Eles querem Storey mais do que querem você. Eu ia...
- Está bem, cale a boca.
McCaleb se calou, pensando que Tafero sentira o movimento diferente do barco ou ouvira alguma coisa. Mas depois viu a fita ser levantada da cama. Percebeu que deixara
Tafero intrigado. Depois de um longo momento de silêncio, Tafero finalmente falou.
- Acho que você está falando merda, McCaleb. Acho que esta fita é daqueles sistemas de vigilância multiplex que eles usam. Não passa num aparelho de vídeo comum.
Se cada músculo do seu corpo não aparentasse estar gritando de dor, McCaleb teria sorrido. Ele fisgara Tafero. Estava amarrado na cama, impotente, mas controlava
seu carcereiro. Tafero estava revendo o próprio plano.
- Quem mais tem cópia disto? - perguntou Tafero. McCaleb não respondeu. Começou a pensar que se enganara a
respeito do movimento do barco. Já se passara muito tempo. Não havia outra pessoa a bordo.
Tafero bateu a fita com força na cabeça de McCaleb.
- Eu disse Quem mais tem cópia disto?
Sua voz já tinha outro tom. Parte da confiança desaparecera, substituída pelo medo de que houvesse uma falha no seu plano perfeito.
- Vá se foder - disse McCaleb. - Pode fazer o que tiver que fazer comigo. De qualquer forma, logo vai descobrir quem mais tem cópia disso.
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Tafero empurrou as pernas dele para baixo e inclinou-se sobre ele. McCaleb sentiu o hálito dele perto do ouvido.
- Escute, seu porra... Ouviu-se um estrondo ao fundo.
- Não se mova, caralho! - anunciou uma voz.
No mesmo instante Tafero se levantou e soltou as pernas de McCaleb. A súbita liberação da pressão e o forte barulho fizeram com que McCaleb se assustasse e involuntariamente
flexionasse todos os músculos de uma vez. Ele ouviu o estalido das algemas plásticas se fechando em diversos pontos das amarras. Numa reação em cadeia, a ligadura
em torno de seu pescoço se apertou e se trancou. McCaleb tentou levantar as pernas, mas já era tarde demais. A algema se fechara, penetrando na carne do pescoço.
Ele estava sem ar. Abriu a boca, mas não conseguiu emitir som algum.
Capítulo 43
Harry Bosch parou na porta do camarote do barco e apontou a arma para Rudy Tafero. Seus olhos se arregalaram quando ele viu a cena no aposento. Terry McCaleb estava
nu na cama, com os braços e pernas amarrados às costas. Bosch viu que várias algemas de plástico tinham sido unidas e usadas para atar os pulsos e tornozelos dele,
enquanto outra fileira de algemas saía dos tornozelos, passava embaixo dos pulsos e dava uma laçada em torno do pescoço. Não conseguia ver o rosto de McCaleb, mas
percebeu que o plástico penetrara profundamente na pele do pescoço, que já estava assumindo um tom vermelho-escuro. Ele estava sendo estrangulado.
- Vire e encoste na parede - gritou ele para Tafero. - Ele precisa de ajuda, Bosch. Você...
- Eu disse pra ficar contra a porra da parede! Já!
Ergueu a arma até o nível do peito de Tafero para mostrar que a ordem era para valer. Tafero ergueu as mãos e começou a se virar para a parede.
- Tá legal, tá legal, estou me virando.
Logo que Tafero se virou, Bosch avançou rapidamente e empurrou o homenzarrão contra a parede. Olhou para McCaleb. Já dava para ver o rosto dele, que estava ficando
cada vez mais vermelho. Os olhos estavam abertos e esbugalhados. A boca se abrira numa tentativa desesperada - mas infrutífera - de engolir ar.
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Bosch enfiou o cano da arma nas costas de Tafero e apalpou-o com a outra mão para ver se ele não tinha outra arma. Tirou uma pistola do cinto do sujeito e recuou.
Olhou novamente para McCaleb e viu que não podia perder tempo. O problema era controlar Tafero e chegar a McCaleb para soltá-lo. Subitamente, percebeu o que precisava
ser feito. Recuou e juntou as duas mãos, pondo as armas lado a lado. Ergueu-as acima da cabeça e baixou violentamente as coronhas na parte traseira da cabeça de
Tafero. O homenzarrão foi jogado para a frente, batendo com a cara na parede revestida de madeira e caindo imóvel ao chão.
Bosch virou-se, jogou as duas armas na cama e tirou rapidamente as chaves do bolso.
- Agüenta aí, agüenta aí.
Com os dedos resvalando na lâmina, abriu o canivete preso à argola de chaves. Estendeu a mão para o garrote plástico em torno do pescoço de McCaleb, mas não conseguiu
meter os dedos embaixo da fita. Virou McCaleb de lado e meteu rapidamente os dedos embaixo do plástico na garganta do outro. Enfiou a lâmina ali e cortou a algema.
A ponta do canivete fez um pequeno corte na pele.
Um som horrível saiu da garganta de McCaleb, enquanto ele tentava falar e engolir ao mesmo tempo. As palavras eram ininteligíveis, perdidas na urgência instintiva
de inspirar oxigênio.
- Cale a boca e respire! - gritou Bosch. - Só respire!
A cada respiração de McCaleb ouvia-se um chacoalhar interior. Bosch viu que uma linha em tom vermelho vivo corria em toda a circunferência do pescoço dele. Tocou
levemente naquela região, querendo ver se houvera dano à traquéia, à laringe ou às artérias. McCaleb girou um pouco a cabeça no colchão, tentando se afastar.
- Só... me solte.
As palavras o fizeram tossir violentamente no colchão, com o corpo todo estremecendo pelo trauma sofrido.
Bosch usou o canivete para libertar as mãos e depois os tornozelos. Viu as marcas vermelhas da ligadura em ambos os membros, de um lado e do outro. Afastou todas
as algemas e jogou-as no chão. Olhou em torno e viu as calças de malha e a camiseta no chão. Pegou-as e lançou-as na cama. McCaleb estava se virando vagarosamente
para ele, com o rosto ainda avermelhado.
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- Você... você... me salvou...
- Não fale.
Ouviu-se um gemido no chão, e Bosch viu Tafero começar a se mexer, recobrando a consciência. Avançou e colocou-se com as pernas abertas sobre o corpo. Tirou um par
de algemas do cinto, curvou-se e puxou violentamente os braços de Tafero para trás a fim de algemá-lo. Enquanto fazia isso, foi falando com McCaleb.
- Ei, se quiser levar este cara ali pra fora, amarrar a âncora nele e jogar tudo pela amurada, por mim tudo bem. Não ligo a mínima.
McCaleb não respondeu. Estava reunindo forças para se sentar. Depois de algemar Tafero, Bosch endireitou o corpo e olhou para o prisioneiro, que já abrira os olhos.
Fique parado, seu merda. E pode se acostumar a essas algemas. Você está preso por assassinato, tentativa de assassinato e conspiração geral para ser um babaca.
Acho que já conhece os seus direitos, mas faça um favor a si mesmo e não diga uma palavra antes que eu pegue o cartão e leia a coisa pra você.
Assim que terminou de falar, Bosch ouviu um rangido vindo do corredor. Num segundo percebeu que alguém aproveitara suas palavras para chegar silenciosamente perto
da porta.
As coisas pareceram assumir a nitidez do movimento em câmera lenta. Bosch levou instintivamente a mão esquerda à cintura, mas percebeu que a arma não estava ali.
Ele a deixara na cama. Começou a virar para lá, mas viu McCaleb sentado, ainda nu, apontando uma das armas para a porta.
Os olhos de Bosch seguiram a mira da arma até a porta. Um homem surgira agachado ali, com as duas mãos segurando uma pistola. Mirava na direção de Bosch. Ouviu-se
um tiro que estilhaçou a madeira do umbral da porta. O atirador fez uma careta e semicerrou os olhos. Depois se recuperou e começou a erguer novamente a arma. Ouviu-se
outro tiro, e depois mais um. O barulho era ensurdecedor no pequeno camarote revestido de madeira. Bosch viu que uma das balas acertara a parede. As outras duas
haviam acertado o atirador no peito, jogando-o para trás contra a parede do corredor. Ele escorregara para o chão, mas ainda podia ser visto do camarote. Não! -
gritou Tafero, caído no chão. - Jesse, não!
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O atirador caído ainda se movia, mas estava tendo dificuldade para controlar seus movimentos. Com uma das mãos, ergueu desajeitadamente a arma mais uma vez e fez
uma tentativa patética de apontar para Bosch.
Ouviu-se outro tiro. Bosch viu o rosto do atirador explodir num jorro de sangue, enquanto a cabeça batia com força contra a parede do fundo. O sujeito ficou imóvel.
- Não! - gritou novamente Tafero.
Fez-se um silêncio.
Bosch olhou para a cama. McCaleb ainda segurava a arma apontada para a porta. Uma nuvem azul de pólvora se elevava no centro do camarote. O ar tinha um cheiro acre,
de coisa queimada.
Bosch pegou sua arma na cama e foi até o corredor. Agachou-se perto do atirador, mas nem precisou tocá-lo para saber que estava morto. Durante o tiroteio pensara
ter reconhecido o irmão mais moço de Tafero, que trabalhava no escritório de fianças. A maior parte do rosto do sujeito desaparecera.
Bosch se levantou e foi ao banheiro pegar uma toalha de papel, que usou para tirar a arma da mão do homem morto. Levou-a de volta ao camarote principal e a colocou
na mesinha-de-cabeceira. A arma que McCaleb usara, caída sobre a cama. McCaleb estava de pé do outro lado. Já vestira a calça de malha e estava pondo a camiseta.
Assim que sua cabeça apareceu, ele olhou para Bosch.
Os dois ficaram se encarando por muito tempo. Haviam salvado a vida um do outro. Por fim, Bosch balançou a cabeça.
Tafero conseguiu sentar-se de costas para a parede. Corria sangue do seu nariz e também de ambos os lados da boca. Aquilo parecia um grotesco bigode de Fu Manchu.
Bosch viu que ele quebrara o nariz quando batera de cara na parede. Tafero ficou sentado, derreado contra a parede, olhando horrorizado para o corpo no corredor.
Bosch usou a toalha de papel para pegar a arma na cama e colocá-la perto da outra, na mesinha-de-cabeceira. Depois tirou um celular do bolso e teclou um número.
Enquanto esperava a ligação se completar, olhou para Tafero.
- Você fez com que seu irmãozinho fosse morto, Rudy - disse ele. - Isso é muito ruim.
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Tafero baixou os olhos e começou a chorar.
O telefonema de Bosch foi atendido pela central de polícia. Ele deu o endereço da marina e disse que precisava de uma equipe da Homicídios da unidade encarregada
de tiroteios contra policiais. Precisava também da presença de uma equipe da Divisão Médico-Legal e de técnicos da Divisão de Investigação Científica. Disse à central
para mandar todos os avisos por telefone fixo. Não queria que a mídia soubesse do incidente pelo rádio da polícia, até que chegasse a hora apropriada.
Fechou o telefone e ergueu o aparelho para McCaleb.
- Quer uma ambulância? Você precisa ser examinado.
- Eu estou bem.
- Seu pescoço parece...
- Eu disse que estou bem. Bosch balançou a cabeça.
- Você é que sabe.
Deu a volta na cama e parou diante de Tafero.
- Vou tirar este sujeito daqui e levar até o carro.
Colocou Tafero em pé e empurrou-o para a porta. Quando passou pelo corpo do irmão no corredor, Tafero deixou escapar um gemido alto, feito um bicho. Bosch ficou
surpreso ao ouvir aquilo da parte de um homem tão grande.
- E, que pena - disse Bosch, sem uma gota de compaixão na voz. - O garoto tinha um futuro brilhante pela frente, ajudando você a matar gente e ajudando gente a se
livrar da cadeia.
Empurrou Tafero na direção da escada do salão.
Caminhando pelo passadiço que levava ao estacionamento, Bosch viu um homem parado no convés de um barco à vela repleto de flutuantes, pranchas de surfe e outras
tralhas. O sujeito olhou para Bosch, depois para Tafero e depois para Bosch novamente. Seus olhos se arregalaram, e ficou claro que ele os reconhecera, provavelmente
devido à cobertura que a tevê fazia do julgamento.
- Ei, ouvi uns tiros. Terry está bem?
- Vai ficar bem.
- Posso ir falar com ele?
- É melhor não. A polícia está vindo aí e vai cuidar do caso.
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- Ei, você é Bosch, não é? O cara do julgamento?
- É, eu sou Bosch.
O sujeito não disse mais nada. Bosch seguiu em frente com Tafero.
Quando Bosch voltou à embarcação poucos minutos depois, McCaleb estava na cozinha bebendo um copo de suco de laranja. Atrás dele, esparramadas nos degraus, viam-se
as pernas do homem morto.
- Um vizinho seu perguntou por você lá fora. McCaleb balançou a cabeça.
- Buddy.
Não disse mais nada.
Bosch lançou o olhar pela janela na direção do estacionamento. Achou que estava ouvindo sirenes à distância, mas talvez fosse apenas o vento brincando com sons.
- Eles vão chegar a qualquer minuto - disse ele. - Como está a garganta? Espero que possa falar, porque nós vamos ter muita coisa para explicar.
- Está bem. Por que está aqui, Harry?
Bosch pôs as chaves do carro na bancada. Ficou sem responder por muito tempo.
- Simplesmente adivinhei que você podia estar precisando de ajuda, só isso.
- Como assim?
- Você apertou o irmão dele no escritório hoje de manhã. Calculei que o cara podia ter seguido você e anotado a placa, ou coisa assim. Eles poderiam seguir sua pista
até aqui.
McCaleb lançou-lhe um olhar penetrante.
- E aí você estava à toa na marina e viu Rudy, mas não o irmãozinho dele?
- Não, eu vim de carro e fiquei rodando, na espreita. Vi o velho Lincoln de Rudy estacionado lá em cima e imaginei que podia estar havendo alguma coisa. Em momento
algum vi o irmão... Ele devia estar escondido em algum lugar, vigiando.
- Ele devia estar nas docas, procurando uma coruja que pudesse
tirar de um barco para usar depois com Jaye. Hoje eles estavam improvisando.
Bosch balançou a cabeça.
- Em todo caso, eu estava fuçando por aí e vi a porta do seu barco aberta. Resolvi conferir. Achei que a noite estava fria demais para um cara cuidadoso como você
dormir de porta aberta.
McCaleb balançou a cabeça.
Bosch ouviu o som inconfundível de sirenes se aproximando. Lançou o olhar pela janela para o estacionamento além das docas. Viu duas radiopatrulhas entrarem e pararem
perto do seu carro, onde Tafero estava trancado na traseira. As sirenes foram desligadas, mas as luzes azuis continuaram cintilando.
- É melhor eu ir receber o pessoal - disse ele.
Capítulo 44
Eles passaram a maior parte da noite separados, sendo interrogados incessantemente. Depois os interrogadores trocaram de sala, e eles ouviram as mesmas perguntas
mais uma vez, vindas de bocas diferentes. Cinco horas depois do tiroteio no Mar que Segue, as portas se abriram e McCaleb e Bosch se encontraram no corredor do Parker
Center.
- Você está bem?
- Cansado.
- Pois é.
McCaleb viu o detetive colocar um cigarro na boca mas sem acendê-lo.
- Vou até o gabinete do xerife - disse Bosch. - Quero estar lá. McCaleb balançou a cabeça.
- Vejo você lá.
Eles se apertaram ao lado do operador de câmera, atrás de uma vidraça opaca de um lado e transparente do outro. McCaleb sentiu o hálito de cigarro mentolado de Bosch
e o cheiro da colônia barata que vira o detetive aplicar no corpo dentro do carro, enquanto o seguia na direção de Whittier. Viu o reflexo fraco do rosto de Bosch
na vidraça e percebeu que o detetive observava através daquela superfície o que estava acontecendo na outra sala.
Do outro lado da vidraça havia uma mesa de reunião, onde Rudy Tafero estava sentado com um defensor público chamado
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Arnold Prince. Tafero tinha um esparadrapo branco no nariz e algodão em ambas as narinas. Levara seis pontos no alto da cabeça, que não podiam ser vistos por causa
de sua vasta cabeleira. Os enfermeiros haviam feito o curativo no nariz quebrado e na laceração na cabeça ainda na marina Cabrillo.
Jaye Winston estava sentada do lado oposto a Tafero, com a promotora Alice Short à direita. À sua esquerda viam-se o subchefe do Departamento de Polícia de Los Angeles,
Irvin Irving, e Donald Twilley, do FBI. As primeiras horas da manhã haviam sido gastas numa briga por posição entre todos os órgãos de segurança remotamente envolvidos
na investigação, que queriam tirar vantagem do que todos sabiam ser um caso de grande importância. Já eram seis e trinta da manhã, e chegara a hora de interrogar
o suspeito.
Fora decidido que Jaye conduziria o interrogatório - pois o caso fora dela desde o início -, enquanto os outros três ficariam observando, prontos para assessorá-la.
Ela começou o interrogatório declarando a data, a hora e a identidade dos presentes. Depois leu os direitos constitucionais de Tafero, fazendo-o assinar um formulário
de concordância. O defensor público disse que Tafero não faria pronunciamento algum no momento.
- Muito bem - disse Jaye, com os olhos em Tafero. - Eu não preciso que ele me conte nada. Quero conversar com ele. Quero dar uma idéia do que ele tem pela frente.
Não quero que futuramente ele venha a lamentar alguma falha de comunicação ou ter deixado escapar a única oportunidade de cooperar que terá.
Ela olhou para o dossiê à sua frente e o abriu. McCaleb reconheceu pela folha de rosto que se tratava de um formulário de indiciamento da promotoria.
- Rudy Tafero, quero que saiba que nesta manhã está sendo indiciado por assassinato qualificado de Edward Gunn, no dia
1 de janeiro deste ano, pela tentativa de
assassinato de Terrell McCaleb na data de hoje e pelo assassinato de Jesse Tafero, também na data de hoje. Sei que conhece a lei, mas sou obrigada a lhe explicar
a última acusação. A morte de seu irmão ocorreu enquanto você cometia um crime. Portanto, segundo as leis da Califórnia, você foi cúmplice da morte dele.
Ela esperou um instante, encarando os olhos aparentemente mortos de Tafero. Voltou a ler o indiciamento.
- Além do mais, precisa saber que a promotoria concordou em acrescentar uma acusação de circunstâncias especiais em relação à morte de Edward Gunn, Isto é, assassinato
contratado. O acréscimo de circunstâncias especiais tornará possível a aplicação da pena de morte no caso. Alice?
Alice Short inclinou-se para a frente. Era uma mulher pequena e atraente, à beira dos quarenta anos, com olhos grandes e envolventes. Era a promotora encarregada
dos julgamentos mais importantes. Tratava-se de muito poder num corpo tão pequeno principalmente quando contrastado com o tamanho do homem do outro lado da mesa.
- Rudy Tafero, você foi policial por vinte anos - disse ela. - Mais do que ninguém, conhece a gravidade de seus atos. Não me lembro um só caso que exigisse tanto
a pena de morte. E isso que pediremos que o júri aplique. E não tenho dúvida de que teremos êxito.
Depois de desempenhar seu papel na peça ensaiada, Alice recostou-se na cadeira e passou a palavra a Jaye. Houve um longo silêncio enquanto Jaye olhava para Tafero,
à espera de que ele devolvesse o olhar. Por fim Tafero ergueu o olhar e a encarou.
- Rudy Tafero, você é um homem experiente e já esteve até na posição oposta em salas como esta. Acho que não conseguiríamos enganar você nem que tivéssemos um ano
pra tentar. Portanto, vamos fazer apenas uma oferta. A oferta será feita apenas uma vez, e será rescindida permanentemente quando sairmos desta sala. É o seguinte.
O foco dos olhos de Tafero se dirigira novamente para a mesa. Jaye inclinou-se para a frente e o encarou.
- Você quer viver ou quer arriscar sua sorte com o júri? É, isso. E antes que responda, há algumas coisas a considerar. Número um, os jurados vão ver as provas fotográficas
do que você fez a Edward Gunn. Dois, eles vão ouvir Terry McCaleb descrever o que é sentirse impotente e ver sua vida se esvaindo ao ser estrangulado por você, Rudy
Tafero. Geralmente eu não faço apostas nesse sentido, mas cravaria menos de uma hora para os jurados deliberarem. Aposto que teremos um dos veredictos com sentença
de morte mais rápidos decretados nos tribunais da Califórnia.
Jaye Winston recolheu e fechou o dossiê à sua frente. McCaleb se pegou balançando a cabeça. Ela estava indo muito bem.
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- Nós queremos pegar o seu patrão - disse Jaye. - Queremos provas físicas que liguem Storey ao caso Gunn. Minha intuição diz que alguém como você tomaria precauções
antes de executar um plano desses. Seja o que for, nós queremos o que você tem.
Ela olhou para Alice. A promotora balançou a cabeça à guisa de elogio.
Passou-se quase um minuto. Por fim, Tafero virou-se para o defensor público, prestes a sussurrar uma pergunta. Mas voltou-se para Jaye antes.
- Foda-se, eu mesmo vou perguntar. Não reconheço as acusações feitas aqui, mas o que acontecerá se vocês deixarem de lado as circunstâncias especiais? O que eu pego?
Jaye soltou uma gargalhada e abanou a cabeça. McCaleb sorriu.
- Você está brincando? - perguntou Jaye. - "O que eu pego?" Cara, você vai ser enterrado em concreto e aço. E isso que você vai pegar. Você jamais, nunca mais verá
a luz do dia novamente. Com trato ou sem trato, isso é um fato consumado, e não é negociável.
O advogado de Tafero limpou a garganta.
- Srta. Winston, isso não é um modo profissional de...
- Estou cagando e andando para os meus modos. Esse sujeito é um assassino. É um pistoleiro de aluguel, mas pior. Antigamente ele tinha um distintivo, e por isso
merece mais desprezo ainda. Portanto, é isso que faremos pelo seu cliente, doutor Prince. Aceitaremos que ele se declare culpado pelo assassinato de Edward Gunn
e pela tentativa de assassinato de Terry McCaleb. Prisão perpétua sem condicional por essas duas acusações. Isso não é negociável. Ele não será indiciado pela morte
do irmão. Talvez consiga viver melhor se não for acusado disso. Isso realmente não me interessa. O que me interessa é que ele compreenda que a vida que conheceu
terminou. Ele está acabado. E pode ir para a galeria da morte ou para uma penitenciária de segurança máxima, mas vai pra uma das duas, e não vai voltar.
Ela consultou o relógio.
- Temos cerca de cinco minutos, e depois vamos embora. Se não quiserem aceitar o trato, muito bem, levaremos os dois a julgamento. Storey pode até ter alguma chance,
mas não há dúvida quanto a Rudy Tafero. Vai haver promotores arrombando a porta de Alice, mandando flores e chocolates. Todo dia vai ser Dia dos Namorados,
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o dia de São Valentim... ou de Valentino, no caso. Quem pegar ganha um bilhete premiado para ser escolhido promotor do ano.
Prince pôs uma maleta fina em cima da mesa e guardou o bloco de anotações. Não escrevera uma palavra.
- Muito obrigado pela sua atenção - disse. - Acho que pediremos uma audiência para estipular a fiança e depois trataremos da descoberta do crime e outros assuntos.
Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Tafero ergueu lentamente a cabeça e encarou Jaye, com os olhos fortemente injetados devido à hemorragia no nariz.
- Foi idéia dele fazer a coisa parecer um quadro - disse. - Foi idéia de David Storey.
Houve um momento de silêncio surpreendente. Depois o defensor público sentou-se pesadamente, fechando os olhos de dor.
- Sr. Tafero - disse Prince. - Aconselho fortemente que...
- Cale a boca - rebateu Tafero. - Seu merdinha. Não é você que vai encarar a agulha.
Ele olhou novamente para Jaye Winston.
- Aceito o trato. Desde que eu não seja indiciado pela morte do meu irmão.
Jaye balançou a cabeça.
Tafero virou-se para Alice Short, apontou o dedo para ela e ficou esperando. Alice balançou a cabeça.
- Trato feito - disse ela.
- Só uma coisa - disse Jaye, rapidamente. - Não podemos entrar nisso com a sua palavra contra a dele. O que mais nós temos?
Tafero olhou para ela, e um sorriso sem emoção surgiu no seu rosto.
Na sala de observação, Bosch aproximou-se da vidraça. meCaleb viu o reflexo dele mais nítido no vidro. Os olhos de Bosch não pestanejavam.
- Eu tenho as imagens - disse Tafero.
Jaye prendeu o cabelo atrás da orelha e estreitou os olhos. Inclinou-se sobre a mesa.
- Imagens? Como assim? Fotografias? Fotografias de quê? Tafero abanou a cabeça.
- Não. Imagens. Ele desenhava imagens para mim na sala de visitas da cadeia. Desenhava uma imagem de como queria que a cena do crime ficasse. Assim, a coisa ficaria
parecida com o quadro.
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McCaleb cerrou as mãos em punhos ao lado do corpo.
- Onde estão esses desenhos? - disse Jaye. Tafero sorriu novamente.
- Num cofre particular de um banco, o City National Bank, na esquina do Sunset Boulevard com Doheny. A chave está naquela argola que estava no meu bolso.
Bosch ergueu as mãos e bateu palmas.
- Bingo! - exclamou ele, alto o suficiente para Tafero virar-se e olhar na direção do vidro.
Por favor! - sussurrou o operador de câmera. - Estamos gravando.
Bosch foi até a porta da saleta e saiu, seguido por McCaleb. O detetive virou-se e olhou para ele, balançando a cabeça.
- Storey está acabado - disse ele. - O monstro volta para as trevas de onde veio.
Os dois ficaram se encarando silenciosamente por um momento, e Bosch quebrou o silêncio.
- Preciso ir - disse.
- Para onde?
- Vou me aprontar para o tribunal.
Ele se virou e atravessou a ala de detenção do esquadrão de homicídios do gabinete do xerife, que naquele momento estava deserta. McCaleb viu-o esmurrar uma escrivaninha
e dar um soco no ar.
McCaleb voltou à saleta de observação e ficou assistindo à continuação do interrogatório. Tafero estava contando à equipe reunida na outra sala que David Storey
exigira que Edward Gunn fosse assassinado na primeira manhã do Ano-Novo.
McCaleb ficou ouvindo durante algum tempo, mas lembrou-se de algo. Saiu da saleta de observação e seguiu pela ala de detenção. Os detetives já estavam começando
a chegar ao trabalho. Foi até uma mesa vazia e tirou uma folha de um bloco que estava ali em cima. Escreveu "Perguntar pelo Lincoln" na folha. Dobrou-a e levou-a
até a porta da sala de interrogatório.
Bateu à porta, que depois de um instante foi aberta por Alice Short. McCaleb entregou-lhe o bilhete dobrado.
- Dê isso a Jaye antes do fim do interrogatório - sussurrou.
Ela balançou a cabeça e fechou a porta. McCaleb voltou à saleta de
observação.
Capítulo 45
Barbeado e de banho tomado, Bosch saiu do elevador e foi andando na direção das portas do tribunal da Divisão N. Caminhava com ar decidido. Sentia-se um verdadeiro
príncipe da cidade. Mal tinha dado alguns passos, foi abordado por McEvoy, que saiu de uma alcova como um coiote à espreita da presa desprevenida numa caverna. Mas
nada poderia afetar a pose de Bosch. Ele sorriu quando o repórter passou a acompanhá-lo.
- Detetive Bosch, já pensou mais sobre o que falamos? Preciso começar a escrever minha reportagem hoje.
Bosch não diminuiu o passo. Sabia que não teria muito tempo a partir do momento em que entrasse no tribunal.
- Rudy Tafero - disse ele.
- Desculpe, não entendi.
- Ele foi o seu informante. Rudy Tafero. Descobri isso hoje de manhã.
- Detetive, já disse que não posso revelar...
- É, eu sei. Mas sou eu que estou revelando a coisa, entende? De qualquer forma, isso não interessa.
- Por que não?
Bosch parou de repente. McEvoy ainda deu alguns passos, mas depois voltou.
- Por que não? - perguntou novamente.
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- Hoje é o seu dia de sorte, Jack. Tenho duas dicas boas para
você?
-Tá legal. Quais?
McEvoy começou a tirar um bloco de anotações do bolso traseiro. Bosch pôs a mão no ombro dele, para detê-lo.
- Não tire isso daí. Se os outros repórteres virem isso, vão pensar que eu estou contando alguma coisa pra você.
Ele apontou ao longo do corredor para a porta aberta da sala da imprensa, onde um bando de repórteres esperava o começo da sessão do dia.
- Vão vir até aqui, e eu vou ter que contar pra eles. McEvoy deixou o bloco de anotações no lugar.
- Tá legal. Quais são as dicas?
- Primeiro, sua matéria está furada pra caralho. Na verdade, seu informante foi preso hoje cedo pela morte de Edward Gunn, bem como por tentativa de assassinato
contra Terry McCaleb.
-O quê? Ele...
- Espere. Quero terminar. Não tenho muito tempo. Ele esperou, e McEvoy balançou a cabeça.
- Pois é, Rudy foi em cana. Ele matou Gunn. O plano era pôr a culpa em mim e espalhar isso para o mundo durante a fase da defesa no julgamento.
- Está dizendo que Storey participou de...
- Exatamente. O que nos leva à dica número dois. Se eu fosse você, entraria no tribunal hoje bem antes que o juiz chegue e as coisas comecem. Está vendo aqueles
caras parados ali adiante? Eles vão perder o espetáculo, Jack. Não faça como eles.
Bosch deixou McEvoy parado ali e meneou a cabeça para o policial na porta, que o deixou entrar.
Dois policiais estavam colocando David Storey no seu lugar na mesa da defesa quando Bosch entrou no tribunal. Fowkkes já estava lá, e Janis Langwiser e Roger Kretzler
estavam sentados à mesa da promotoria. Bosch consultou o relógio ao passar pelo portão. Tinha cerca de quinze minutos antes que o juiz entrasse e chamasse o júri.
Foi até a mesa da promotoria, mas permaneceu de pé. Inclinou-se, pôs ambas as mãos sobre a mesa e olhou para os dois promotores.
- Harry, você está pronto? - começou Janis. - Hoje é o grande dia.
- Hoje é o grande dia, mas não pelo que vocês dois pensam. Vocês aceitariam uma confissão de culpa de Storey, não aceitariam? Se ele admitisse ser culpado no caso
de Jody Krementz e de Alicia Lopez, vocês não pediriam a agulha pra ele, certo?
Os dois ficaram olhando para ele com expressão confusa.
- Vem cá, nós não temos muito tempo até o juiz entrar. Querem que eu vá até a mesa da defesa e em cinco minutos dê a vocês dois casos de assassinato? Os parentes
de Alicia Lopez iam adorar. Vocês disseram a eles que não tinham provas para uma acusação.
- Harry, do que está falando? - disse Janis. - Nós já tentamos fazer acordo. Duas vezes. Fowkkes recusou terminantemente.
- E não temos provas no caso de Alicia Lopez - acrescentou Kretzler. - Você sabe disso. O júri de instrução recusou o indiciamento. Ninguém...
- Escutem, vocês querem um acordo ou não? Eu acho que posso ir até ali e conseguir isso. Prendi Rudy Tafero hoje de manhã. A coisa toda foi uma armação orquestrada
por Storey para me pegar. O tiro saiu pela culatra e Tafero aceitou um acordo. Ele está confessando.
-Jesus Cristo! - disse Kretzler.
Falou alto demais. Bosch se virou e olhou para a mesa da defesa. Fowkkes e Storey estavam olhando para eles. Bosch viu meEvoy sentar-se atrás da mesa da defesa,
num espaço reservado à mídia que ficava bem próximo a Fowkkes e aos outros. Nenhum outro repórter entrara e sentara ainda.
- Harry, do que está falando? - disse Janis. - Que assassinato? Bosch ignorou as perguntas.
- Posso ir até lá? - disse Bosch. - Quero olhar nos olhos de Storey quando contar isso a ele.
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Kretzler e Janis se entreolharam. A promotora deu de ombros e ergueu as mãos em sinal de exasperação.
- Vale a pena tentar. Nós só estávamos guardando o pedido de pena de morte como um trunfo.
- Tá legal - disse Bosch. - Veja se o auxiliar do juiz me consegue um pouco mais de tempo.
Bosch foi até a mesa da defesa e parou numa posição que lhe permitia olhar tanto para Fowkkes quanto para Storey. O advogado estava escrevendo alguma coisa no bloco
de anotações. Bosch pigarreou, e depois de alguns instantes Fowkkes ergueu vagarosamente o olhar para ele.
- Pois não, detetive Bosch? Não deveria estar se preparando para...
- Onde está Rudy Tafero?
Bosch ficou olhando para Storey ao fazer a pergunta.
Fowkkes olhou para trás, na direção do lugar encostado na balaustrada que Tafero normalmente ocupava durante a sessão do tribunal.
- Deve estar a caminho - disse ele. - Ainda temos ainda alguns minutos.
Bosch sorriu.
- A caminho? E, ele está a caminho. A caminho daquela penitenciária de segurança máxima em Corcoran, ou talvez Pelican Cove se tiver sorte. Eu realmente detestaria
ser ex-policial e cumprir minha pena em Corcoran.
Fowkkes não pareceu ficar impressionado.
- Detetive, não sei do que está falando. Estou aqui tentando preparar uma estratégia de defesa, porque acho que a promotoria vai encerrar sua parte hoje. Portanto,
se não se importa...
Bosch olhou para Storey ao responder.
- Não há estratégia possível. Não há defesa possível. Rudy Tafero foi preso hoje cedo, acusado de assassinato e tentativa de assassinato. Tenho certeza que seu cliente
pode lhe contar tudo sobre o caso, doutor. Se é que o senhor ainda não sabe.
Fowkkes levantou-se abruptamente, como se fosse apresentar um protesto.
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- Detetive, é altamente irregular aproximar-se da mesa da defesa...
- Ele aceitou um acordo há cerca de duas horas. Está entregando tudo por escrito.
Mais uma vez Bosch ignorou Fowkkes e olhou para Storey ao falar
- Portanto, aqui está o acordo. Você tem cerca de cinco minutos para ir até Janis Langwiser e Kretzler, e aceitar se declarar culpado pelo assassinato de Jody Krementz
e de Alicia Lopez.
- Isso é um absurdo. Vou me queixar ao juiz sobre a sua conduta.
Bosch olhou para Fowkkes.
- Fique à vontade. Mas isso não vai mudar as coisas. Cinco minutos-
Bosch afastou-se e foi até a escrivaninha do auxiliar do juiz, diante da bancada. As provas estavam empilhadas numa mesa lateral. Bosch folheou-as até encontrar
o cartaz que procurava. Retirou-o e levou-o de volta à mesa da defesa. Fowkkes ainda estava de pé, mas curvara-se para que Storey pudesse sussurrar no seu ouvido.
Bosch largou sobre a mesa o cartaz que continha a fotografia ampliada da estante da casa de Storey. Bateu levemente com os dedos em dois dos livros da prateleira
superior. Os títulos nas lombadas eram claramente legíveis. Um título era A arte das trevas, e o outro livro estava meramente intitulado Bosch.
- O seu conhecimento prévio está bem aqui.
Deixou a prova na mesa da defesa e começou a voltar para a mesa da promotoria. Mas depois de dois passos voltou e pôs as palmas das mãos abertas sobre a mesa. Olhou
fixamente para Storey e falou com uma voz suficientemente alta para que McEvoy ouvisse no recinto da imprensa.
- Sabe qual foi seu grande erro, David?
- Não - disse Storey, em tom de sarcasmo. - Por que não me diz, detetive?
Fowkkes segurou imediatamente o braço de seu cliente, num gesto para que ele calasse a boca.
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- Desenhar a cena do crime para Tafero - disse Bosch. - Ele foi até o banco City National e colocou as lindas figuras que você fez num cofre particular. Sabia que
elas poderiam vir a ser úteis, e isso realmente aconteceu. Usou as imagens hoje cedo para escapar da pena de morte. O que você vai usar?
Bosch viu a vacilação e a admissão nos olhos de Storey. Por um breve instante, os olhos dele piscaram sem realmente piscar. E Bosch percebeu que tudo terminara,
porque Storey percebera o mesmo.
Bosch endireitou o corpo e consultou displicentemente o relógio. Depois olhou para Fowkkes.
- Faltam uns três minutos, doutor Fowkkes. A vida do seu cliente está em jogo.
Voltou para a mesa da promotoria e se sentou. Kretzler e Janis se inclinaram em sua direção. Começaram a lhe sussurrar perguntas, mas Bosch as ignorou.
- Vamos só ver o que acontece.
Não olhou uma só vez para a mesa da defesa durante os cinco minutos seguintes. Ouviu murmúrios e algumas palavras em voz abafada, mas não entendeu nada. O tribunal
foi sendo tomado pelos espectadores e pelo pessoal da mídia.
A mesa da defesa não se manifestou.
Precisamente às nove horas, a porta atrás da bancada abriu-se. O juiz Houghton subiu os degraus até seu lugar e se sentou. Olhou para a mesa da promotoria e para
a mesa da defesa.
- Senhoras e senhores, estão prontos para o júri?
- Sim, meritíssimo - disse Kretzler.
Nada veio da mesa da defesa. Houghton ergueu o olhar, com um sorriso curioso no rosto.
- Doutor Fowkkes? Posso mandar entrar os jurados?
Bosch recostou-se no assento e olhou para a mesa da defesa, do outro lado de Janis e Kretzler. Fowkkes estava arriado na cadeira, numa postura que jamais assumira
no tribunal antes. Apoiara o cotovelo no braço da cadeira e tinha a mão levantada, agitando uma caneta nos dedos. Parecia perdido num pensamento profundo e deprimente.
Seu cliente estava sentado junto dele, com o rosto para baixo. i
- Doutor Fowkkes? Estou esperando uma resposta. Fowkkes finalmente olhou para o juiz. Muito vagarosamente,
levantou-se da cadeira e foi até a tribuna.
- Meritíssimo, posso me aproximar da bancada por um instante? O juiz pareceu ficar curioso e aborrecido ao mesmo tempo. A
norma do julgamento fora apresentar todos os pedidos de confabulação particulares às oito e trinta, para que as moções pudessem ser examinadas e discutidas na sala
de audiências, sem entrar pelo tempo destinado ao julgamento propriamente dito.
- Isso não pode ser tratado com o tribunal em sessão, doutor Fowkkes?
- Não, meritíssimo. Pelo menos no momento.
- Muito bem. Podem se aproximar.
Houghton fez sinal com ambas as mãos para os advogados se aproximarem, como se estivesse dando sinal para um caminhão dar marcha a ré.
Os advogados se aproximaram da bancada e reuniram-se ao juiz. De onde estava sentado Bosch podia ver todos os rostos e não precisava ouvir o que estava sendo sussurrado.
Fowkkes estava extremamente pálido, e depois de alguns segundos Kretzler e Janis Langwiser assumiram a postura de vencedores. A promotora chegou até a olhar para
Bosch, e ele sentiu a mensagem da vitória nos olhos dela.
Ele se virou, olhou para o réu e ficou esperando. David Storey voltou-se lentamente para ele, e os olhos dos dois se encontraram uma vez mais. Bosch não sorriu.
Não piscou. Não fez nada, a não ser manter o olhar fixo. Por fim, Storey baixou o olhar para as próprias mãos apoiadas no colo. Bosch sentiu uma vibração perpassar
pelo couro cabeludo. Já sentira aquilo antes ao encarar a face normalmente escondida do monstro.
A confabulação junto à bancada do juiz terminou, e os dois promotores voltaram rapidamente para a mesa, com a empolgação claramente visível nos passos e nos rostos.
Já J. Reason Fowkkes caminhou vagarosamente até a mesa da defesa.
- Já era, Fowkkes - disse Bosch entre dentes. Janis pegou Bosch pelo ombro enquanto se sentava.
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- Ele vai se confessar culpado - sussurrou empolgada. - Jody Krementz e Alicia Lopes. Quando você foi até lá, falou em sentenças consecutivas ou concorrentes?
- Nem uma coisa nem outra.
- Tá legal. Acabamos de concordar com sentenças concorrentes, mas vamos até a sala de audiências para estabelecer os detalhes. Primeiro precisamos acusar Storey
formalmente do assassinato de Alicia Lopez. Quer entrar e fazer a prisão?
- Tanto faz. Se você quer que eu entre.
Bosch sabia que aquilo era apenas uma formalidade legal. Storey já estava sob custódia.
- Você merece, Harry. Nós queremos que você esteja lá.
- Está bem.
O juiz bateu o martelo uma vez e chamou a atenção do tribunal. Os repórteres no recinto da mídia estavam todos inclinados para a frente nas cadeiras. Sabiam que
algo estava acontecendo.
- Ficaremos em recesso até as dez horas - anunciou o juiz. - Vou me reunir com as partes na sala de audiências.
Levantou-se e desceu rapidamente os três degraus que conduziam à porta traseira, antes que o policial tivesse tempo de dizer: "Todos de pé."
Capítulo 46
McCaleb continuou longe do Mar que Segue, mesmo depois que os detetives e peritos especializados terminaram o trabalho. O barco vinha sendo vigiado por repórteres
e equipes de noticiários televisivos desde o início da tarde. O tiroteio a bordo, a prisão de Tafero e a súbita confissão de David Storey haviam transformado a embarcação
na imagem central de uma história que crescera rapidamente durante o dia. Todos os canais locais de televisão, além das redes nacionais, tinham transmitido seus
noticiários diretamente da marina, tendo o Mar que Segue - com a fita amarela da polícia estendida na porta do salão - como cenário.
McCaleb passou a maior parte da tarde escondido no barco de Buddy, permanecendo abaixo do convés. Quando colocava a cabeça para fora da escotilha, a fim de ver o
que estava acontecendo, punha um dos chapéus de pescaria frouxos e caídos do sócio. Os dois já estavam se falando novamente. Logo depois de sair do escritório do
xerife e vir para a marina, antes da chegada da mídia, McCaleb procurara Buddy e pedira desculpas por ter presumido que ele deixara vazar a história. O sócio, por
sua vez, pedira desculpas por ter usado o barco - e o camarote de McCaleb - como ponto de encontro com massagistas eróticas. McCaleb concordara em dizer a Graciela
que se enganara a respeito do fato de Buddy ter vazado a história. O sócio explicara que não queria cair ainda mais no conceito de Graciela.
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Escondidos no barco, os dois ficaram assistindo à pequena televisão de doze polegadas de Buddy, acompanhando minuto a minuto o desenrolar dos acontecimentos. O Canal
9, que vinha transmitindo o julgamento de Storey ao vivo, realizara transmissões contínuas do tribunal de Van Nuys e do gabinete do xerife.
McCaleb estava estupefato e abalado com os acontecimentos do dia. Subitamente, em Van Nuys David Storey se declarara culpado de dois assassinatos. Ao mesmo tempo,
no tribunal central de Los Angeles fora acusado de formação de quadrilha no caso Gunn. O diretor de cinema escapara da pena de morte nos dois primeiros casos, mas
ainda podia ter que encará-la no caso Gunn se não fizesse outro acordo prévio com os promotores.
Uma entrevista coletiva televisada do escritório do xerife colocou Jaye Winston em posição proeminente. Ela respondeu a perguntas dos repórteres depois que o xerife,
flanqueado por figuras importantes do Departamento de Polícia de Los Angeles e do FBI, leu uma declaração descrevendo os acontecimentos do dia do ponto de vista
investigativo. O nome de McCaleb foi mencionado diversas vezes na discussão sobre a investigação e o subseqüente tiroteio a bordo do Mar que Segue. Jaye Winston
também mencionou o nome dele ao final da entrevista para a imprensa, expressando sua gratidão e dizendo que tinha sido o trabalho voluntário dele que conseguiu desatar
o impasse a que o caso chegou.
Bosch também foi mencionado com freqüência, mas não participou da entrevista coletiva. Depois que o juiz acolheu os veredictos de culpa de David Storey em Van Nuys,
o detetive e os advogados envolvidos no caso foram acossados por uma multidão às portas do tribunal. Mas num dos canais McCaleb viu Bosch se recusar a fazer qualquer
comentário, abrir caminho entre os repórteres e câmeras, ir até uma saída de incêndio e desaparecer escada abaixo.
O único repórter que havia falado com McCaleb foi Jack McEvoy, que ainda tinha o número do celular dele. McCaleb conversou rapidamente com ele, mas negou-se a comentar
o ocorrido no camarote principal do Mar que Segue e o perigo mortal por que
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passou. Seus pensamentos sobre o assunto eram pessoais demais, e ele jamais compartilharia aquilo com algum repórter.
McCaleb também falou com Graciela. Telefonou para ela e a informou dos acontecimentos antes que ela soubesse de tudo pelo noticiário. Disse que provavelmente só
chegaria em casa no dia seguinte, pois tinha certeza que a mídia ficaria vigiando o barco até bem depois do escurecer. Ela disse que estava contente por tudo ter
terminado e ele estar voltando para casa. McCaleb percebeu que ainda havia um alto nível de estresse na voz dela e sabia que teria que lidar com aquilo quando voltasse
para a ilha.
No fim do dia ele conseguiu escapulir do barco de Buddy sem ser notado, num momento em que a mídia tinha sido distraída por uma movimentação no estacionamento da
marina. O Departamento de Polícia de Los Angeles estava rebocando o velho Lincoln Continental em que os irmãos Tafero haviam vindo matar McCaleb na noite anterior.
Enquanto as equipes de noticiário filmavam e observavam o prosaico ato de um carro sendo içado e rebocado, McCaleb conseguiu chegar ao Cherokee sem ser notado. Ele
deu a partida ao carro e saiu do estacionamento à frente do caminhão-reboque. Nenhum repórter o viu sair.
Já havia escurecido completamente quando ele chegou à casa de Bosch. Como da vez anterior, a porta da frente estava aberta e a porta de tela fechada. McCaleb bateu
de leve no umbral de madeira e lançou o olhar pela tela na direção da escuridão reinante na casa. Só havia uma luz acesa - um abajur de leitura - na sala de estar.
Dava para ouvir o som de música, e ele achou que era o mesmo CD de Art Pepper que tocara durante sua última visita. Mas não viu Bosch.
McCaleb desviou o olhar da porta para examinar a rua, e quando olhou de volta assustou-se ao ver Bosch parado do outro lado da tela. O detetive abriu o fecho da
porta de tela e a abriu. Usava o mesmo terno com que McCaleb o havia visto nos noticiários. Segurava uma garrafa de Anchor Steam ao lado do corpo.
- Entre, Terry. Achei que talvez fosse um repórter. Eles me
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tiram do sério quando vêm até aqui. Deveria haver pelo menos um lugar aonde eles não pudessem ir.
- É, entendo o que você quer dizer. Eles cercaram o barco. Tive que cair fora.
McCaleb passou por Bosch, entrou no vestíbulo da casa, e foi para a sala.
- Mas, tirando os repórteres, como estão as coisas, Harry?
- Melhor do que nunca. Foi um bom dia para o nosso lado. Como vai o seu pescoço?
- Doendo pra diabo. Mas ainda estou vivo.
- É, isso é que é importante. Quer uma cerveja?
- Hum, seria bom.
Enquanto Bosch ia pegar a cerveja, McCaleb foi para a varanda dos fundos.
Bosch apagara as luzes da varanda para realçar as luzes da cidade à distância. McCaleb ouviu o onipresente ruído da rodovia no fundo do desfiladeiro. Holofotes cruzavam
o céu, vindos de três pontos diferentes na parte baixa do vale. Bosch saiu da casa e passou-lhe uma cerveja.
-Sem copo, não é?
- Sem copo.
Eles ficaram olhando para a paisagem noturna, bebendo as cervejas em silêncio durante algum tempo. McCaleb procurava uma maneira de dizer o que queria dizer. Ainda
estava amadurecendo a coisa.
- A última coisa que vi antes de sair de lá foi o carro de Tafero sendo rebocado - disse depois de algum tempo.
Bosch balançou a cabeça.
- E o barco? Já terminaram o exame? -Já.
- Ficou uma bagunça? Eles sempre deixam as coisas reviradas.
- Provavelmente. Ainda não entrei lá. Vou me preocupar com isso amanhã.
Bosch balançou a cabeça. McCaleb deu um grande gole na cerveja e pôs a garrafa em cima da balaustrada da varanda. Tinha
bebido demais. O líquido regurgitou na sua garganta, fazendo o interior do nariz arder.
- Tudo bem? - perguntou Bosch.
- Tudo bem - disse McCaleb, limpando a boca com as costas da mão. - Harry, vim aqui dizer a você que não posso mais ser seu amigo.
Bosch começou a rir, mas depois parou.
- Porquê?
McCaleb olhou para ele. Mesmo na escuridão, o olhar de Bosch continuava penetrante. Seus olhos haviam capturado um lampejo de luz refletida de alguma parte, e McCaleb
viu-se preso no foco daqueles dois pontos brilhantes.
- Você devia ter continuado lá hoje de manhã, enquanto Jaye interrogava Tafero.
- Eu não tinha tempo.
- Ela perguntou sobre o Lincoln, e ele disse que era o seu carro clandestino. Usava o Lincoln para fazer serviços em que não queria deixar chance de ser rastreado.
O carro tem placas roubadas. E o registro é falso.
- Faz sentido um cara daqueles ter um carro só para negócios sujos.
- Você não sacou, não é?
Bosch terminara a cerveja. Apoiara-se com os cotovelos na balaustrada. Estava arrancando o rótulo colado na garrafa e jogando os pedacinhos na escuridão lá embaixo.
- Não, não saquei, Terry. Por que não me diz logo do que está falando?
McCaleb pegou a cerveja, mas colocou-a novamente na balaustrada sem beber.
- O carro verdadeiro dele, o que ele usa todo dia, é um Mercedes Quatro-trinta C-L-K. Foi com esse carro que ele foi multado por ter estacionado na porta do correio,
quando enviou a ordem de pagamento.
- Tá legal, o cara tinha dois carros. O carro secreto e o carro de exibição. O que isso quer dizer?
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- Quer dizer que você sabia de algo que não deveria saber.
- Do que está falando? Saber de quê?
- Ontem à noite eu perguntei por que você tinha ido até o barco. Você disse que tinha visto o Lincoln de Tafero e que sabia que havia algo de errado. Como sabia
que o Lincoln era dele?
Bosch ficou calado por muito tempo. Olhou para a escuridão e balançou a cabeça.
- Eu salvei a sua vida - disse.
- E eu salvei a sua.
- Então estamos quites. Vamos deixar as coisas assim, Terry. McCaleb abanou a cabeça. Era como se houvesse um punho
fechado no seu estômago, empurrando seu peito e tentando chegar ao seu coração novo.
- Eu acho que você já conhecia aquele Lincoln e percebeu que aquilo significava problemas para mim porque já tinha seguido Tafero antes. Numa noite em que ele usou
o Lincoln, talvez. Na noite em que ele seguiu Gunn e planejou o crime, talvez. Na noite em que ele cometeu o crime, talvez. Você salvou a minha vida porque já sabia
de alguma coisa, Harry.
McCaleb ficou em silêncio por um instante, dando a Bosch a oportunidade de dizer algo em defesa própria.
- Isso é muito talvez, Terry.
- Pois é. Muito talvez e um palpite. Meu palpite é que de alguma forma você soube ou descobriu, quando Tafero combinou tudo com Storey, que eles teriam que ir em
cima de você no tribunal. Você ficou vigiando Tafero e viu quando ele armou pra cima de Gunn. Você sabia o que ia acontecer e deixou que acontecesse.
McCaleb bebeu outro gole grande de cerveja e pôs a garrafa novamente na balaustrada.
- Foi uma jogada perigosa, Harry. Eles quase escaparam. Mas também acho que você teria bolado outro jeito de fazer a coisa se voltar contra eles, mesmo que eu não
tivesse aparecido no caso.
Bosch continuou olhando para a escuridão sem dizer nada.
- Só espero que não tenha sido você que contou a Tafero que Gunn estava em custódia naquela noite. Diga que não foi você que
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deu aquele telefonema, Harry. Diga que você não ajudou Gunn a sair da cadeia para ser assassinado daquele jeito.
Bosch continuou em silêncio. McCaleb balançou a cabeça.
- Se quiser dar os parabéns a alguém, Harry, dê a si mesmo. Bosch baixou o olhar para a escuridão abaixo da varanda.
McCaleb ficou olhando atentamente e viu o detetive balançar vagarosamente a cabeça.
- A gente faz o que tem que fazer - disse Bosch em voz baixa.
- Às vezes pode escolher. Às vezes não tem escolha, só necessidade. A gente vê as coisas acontecerem e sabe que elas estão erradas, mas de alguma forma também estão
certas.
Ele se calou por alguns instantes, e McCaleb ficou esperando.
- Eu não dei aquele telefonema - disse Bosch.
Virou-se e olhou para McCaleb, que viu mais uma vez os dois pontos brilhantes de luz no negrume dos olhos dele.
- Três pessoas... três monstros... se acabaram.
- Mas não assim. A gente não faz as coisas assim. Bosch concordou.
- E a sua jogada de invadir o escritório do irmãozinho dele, Terry? Não achou que aquilo ia dar merda? Você precipitou tudo com aquela jogada, e sabe disso.
McCaleb sentiu seu rosto se acalorar sob o olhar de Bosch. Não respondeu, pois não sabia o que dizer.
- Você também tinha o seu plano, Terry. Portanto, qual é a diferença?
- A diferença? Se você não vê qual é a diferença, é porque já caiu completamente. Está perdido.
- Bom, talvez eu esteja perdido ou talvez eu tenha sido encontrado. Tenho que pensar a respeito. Mas enquanto isso, por que não vai pra casa? Volte para a sua ilhazinha
e sua menininha. Vá se esconder atrás do que você vê nos olhos dela. Finja que o mundo não é o que você sabe que é.
McCaleb balançou a cabeça. Já dissera o que queria dizer. Afastou-se da balaustrada, deixando a cerveja ali, e dirigiu-se para a porta da casa. Mas Bosch ainda o
atingiu com mais algumas palavras, antes que ele entrasse.
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- Só porque deu à sua filha o nome de uma garota que ninguém amava e com quem ninguém se importava, você acha que pode compensar a perda dela? Bom, você está errado,
cara. Vá pra casa e continue sonhando.
McCaleb hesitou na porta e olhou para trás.
- Adeus, Harry.
- É, adeus.
McCaleb atravessou a casa. Quando chegou ao abajur aceso ao lado da poltrona de leitura, viu a cópia do perfil que fizera de Bosch sobre o braço da cadeira. Continuou
andando. Quando passou pela porta da frente, fechou-a atrás de si.
Capítulo 47
Bosch ficou parado, com os braços cruzados sobre a balaustrada e a cabeça baixa. Pensava nas palavras - ditas e escritas - de McCaleb, que pareciam estilhaços de
uma granada atravessando seu corpo. Ele sentia seu revestimento interior rasgando-se profundamente. Parecia que ele fora agarrado por algo interior e que estava
sendo arrastado para um buraco negro. Parecia que estava implodindo e desaparecendo.
- O que eu fiz? - murmurou. - O que eu fiz?
Endireitou o corpo e viu a garrafa sem rótulo na balaustrada. Pegou-a e atirou-a o mais longe que pôde na escuridão. Ficou observando a trajetória, seguindo o vôo
devido ao luar refletido no vidro marrom. A garrafa explodiu no matagal da encosta rochosa lá embaixo.
Ele viu a garrafa meio cheia de McCaleb e a agarrou. Levou o braço para trás, querendo lançá-la na rodovia. Depois parou. Pôs a garrafa na balaustrada e entrou.
Tirou o perfil impresso do braço da cadeira e começou a picotar as duas folhas. Foi até a cozinha, abriu a torneira e pôs os pedaços na pia. Ligou o triturador de
lixo e empurrou os pedaços de papel para o ralo da pia. Ficou esperando até perceber, pelo ruído, que o papel se desmanchara e desaparecera. Desligou o triturador
e ficou observando a água correr pelo ralo.
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Vagarosamente, seus olhos se ergueram e ele lançou o olhar pela janela da cozinha na direção do passo Cahuenga. As luzes de Hollywood brilhavam no desfiladeiro,
espelhando as estrelas de todas as galáxias. Bosch pensou em tudo que havia de ruim lá fora. Uma cidade com mais coisas erradas do que certas. Um lugar onde você
podia ser tragado subitamente pela terra e engolfado no negrume. Uma cidade de luz perdida. A cidade dele. Era tudo isso, e ainda assim, sempre assim, um lugar para
se recomeçar. A cidade dele. A cidade da segunda chance.
Bosch balançou a cabeça e se inclinou. Fechou os olhos, pôs as mãos embaixo da água e levou-as ao rosto. A água estava fria e penetrante, como ele achava que qualquer
batismo, o início de uma segunda chance, deveria ser.
Capítulo 48
Ainda dava para sentir o cheiro de pólvora queimada. McCaleb parou no camarote principal e olhou em volta. Havia luvas de borracha e outras coisas espalhadas no
chão. O pó negro usado para colher impressões digitais cobria tudo por toda parte. A porta do camarote desaparecera, bem como os umbrais, arrancados da parede. No
corredor também fora removido um painel de madeira inteiro. McCaleb seguiu em frente e olhou para o chão, onde o irmão de Tafero morrera baleado por ele. O sangue
coagulara e dei' xaria manchas indeléveis nas tábuas claras e escuras que se alternavam no assoalho. Sempre estariam lá para servir de lembrete.
Olhando para o sangue, ele reviveu os tiros que dera no-sujeito. As imagens em sua mente se deslocavam muito mais devagar do que no tempo real. Pensou no que Bosch
dissera lá na varanda. Que ele deixara que o irmãozinho o seguisse. Pensou na própria culpabilidade. Sua culpa poderia ser menor do que a de Bosch? Ambos tinham
posto as coisas em movimento. Para cada ação há uma reação igual e oposta. Você não entra nas trevas sem que as trevas entrem em você.
- A gente faz o que tem que fazer - disse ele, em voz alta.
Subiu até o salão e lançou o olhar pela porta na direção do estacionamento. Os repórteres ainda estavam por lá com as vans. Ele se esgueirara até o barco sem ser
notado. Estacionara na outra
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extremidade da marina e pegara emprestado o esquife da embarcação de alguém para chegar ao Mar que Segue. Subira a bordo e entrara no barco sem ser visto.
Percebeu que as vans estavam com as antenas de microondas armadas. As equipes já se preparavam para o noticiário das onze horas, com os ângulos das câmeras ajustados
para pegar o Mar que Segue, mais uma vez, em todas as tomadas. McCaleb sorriu e abriu o telefone. Teclou um número gravado na memória, e Buddy atendeu.
- Buddy, sou eu. Escute. Estou no barco e preciso ir pra casa. Quer me fazer um favor?
- Precisa ir hoje? Tem certeza?
- Tenho. Quero que faça uma coisa. Quando ouvir o motor ser ligado, venha até aqui e solte os cabos de amarração. Faça isso depressa. Eu faço o restante.
- Quer que eu vá com você?
- Não é preciso. Pegue uma barca pra lá na sexta-feira. Temos aquele passeio marcado no sábado de manhã.
- Está bem, Terror. Ouvi pelo rádio que o mar está bem calmo e que não há nevoeiro, mas tenha cuidado.
McCaleb fechou o telefone e foi até a porta do salão. A maioria dos repórteres e das equipes estavam atarefados e não olhavam mais para o barco, porque já haviam
verificado que não havia ninguém lá. Ele abriu a porta e saiu. Fechou a porta e subiu rapidamente a escada até a ponte de comando. Abriu a cortina plástica que envolvia
a ponte e se meteu ali dentro. Viu que os dois aceleradores estavam em ponto morto, puxou o afogador e meteu a chave na ignição.
Virou a chave e os motores de partida começaram a gemer alto. Olhando para trás pela cortina de plástico, McCaleb viu que todos os repórteres haviam se virado para
o barco. Os motores finalmente pegaram, e ele acionou os aceleradores para fazer um aquecimento rápido das máquinas. Olhou novamente para trás e viu Buddy vindo
pelo cais até a popa da embarcação. Alguns repórteres já estavam correndo pelo passadiço atrás dele.
Buddy soltou rapidamente os dois cabos da popa e lançou-os sobre o convés. Foi caminhando pelo píer para pegar o cabo da proa. McCaleb perdeu-o de vista, mas depois
ouviu o grito.
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-Livre!
McCaleb tirou os aceleradores da posição neutra e afastou o barco do cais. Ao entrar no canal de navegação, olhou para trás e viu Buddy parado no píer lateral, com
os repórteres atrás.
Uma vez longe das câmeras, abriu as cortinas da ponte e retirou-as. O ar frio varreu a ponte, fazendo com que ele se encolhesse. Avistou as luzes vermelhas piscantes
das bóias que assinalavam o canal e pôs o barco naquela rota. Lançou o olhar para a escuridão à sua frente, além das bóias, mas não conseguiu enxergar nada. Ligou
o Raytheon e viu no radar o que não conseguia enxergar à sua frente. A ilha estava ali na tela do radar.
Dez minutos mais tarde, depois de ter passado da linha de arrebentação da baía, McCaleb tirou o telefone do bolso e teclou o número de casa já gravado. Sabia que
era tarde demais para telefonar e que estava se arriscando a acordar as crianças. Graciela atendeu rapidamente, sussurrando.
- Desculpe, sou eu de novo.
- Terry, você está bem?
- Agora estou. Estou indo pra casa.
- Está cruzando a baía no escuro?
McCaleb refletiu um instante sobre a pergunta.
- Vai dar tudo certo. Eu consigo enxergar no escuro. Graciela não disse nada. Ela conseguia perceber quando ele
estava dizendo uma coisa e falando de outra coisa.
- Ligue a luz do pátio - disse ele. - Vou me orientar por ela quando estiver perto.
McCaleb fechou o telefone e empurrou os aceleradores para a frente. A proa começou a se elevar e depois se nivelou. Ele passou a última bóia do canal, vinte metros
à esquerda. Estava bem no curso. Em quarto crescente, a lua brilhava no céu lá adiante, formando uma cintilante trilha de prata líquida que ele poderia seguir até
chegar em casa. McCaleb segurou firme no volante e pensou no momento em que realmente achara que ia morrer. Lembrou que a imagem da filha lhe aparecera e que aquilo
o confortara. Lágrimas começaram a rolar pelas suas faces. Logo o vento que vinha do mar as secava em seu rosto.
MAIS ESCURO QUE A NOITE Michael ConnellyMcCaleb, agente do FBI aposentado, aproveita a vida à beira-mar com sua mulher e a filha recém-nascida quando é chamado para voltar à ativa e auxiliar na investigação de um misterioso assassinato. Apesar dos protestos silenciosos de sua esposa, aceita a incumbência, e, sem perceber, começa a reencontrar uma alegria há muito perdida.
Ao aprofundar suas investigações, depara-se com um suspeito inesperado: o detetive Hieronymous Bosch, um dos melhores tiras da polícia de Los Angeles, que está ocupado demais como testemunha no julgamento de um assassinato cujo réu é David Storey, um grande diretor de cinema.
Os dois casos correm paralelamente e, à medida que Bosch apresenta as provas que o levaram a concluir que David é o assassino, McCaleb encontra evidências da culpabilidade de Bosch no outro crime.
Bosch, porém, logo percebe ser alvo de uma investigação que, se for adiante, pode incriminá-lo e deixar em liberdade o cineasta, um homem que ele acredita ter feito outras vítimas também. Com o passar do tempo, McCaleb se aproxima da verdade e Bosch vê seu suspeito escapar por entre seus dedos. Até que surgem novas informações e os rumos dos dois casos mudam, levando a resultados imprevisíveis.
Um clássico da literatura policial que junta dois dos melhores detetives criados nos anos 90 em uma aventura eletrizante e inesquecível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/_MAIS_ESCURO_QUE_A_NOITE.jpg
Prólogo
Bosch espiou pelo pequeno quadrado de vidro e viu que o sujeito estava sozinho na cela. Tirou a arma do coldre e entregou-a ao sargento de serviço. Procedimento
padrão. A porta de aço foi destrancada e abriu-se deslizando. Imediatamente, o cheiro de suor e vômito atingiu as narinas de Bosch.
- Há quanto tempo ele está aí dentro?
- Cerca de três horas - disse o sargento. - Está bêbado feito um gambá, de modo que não sei o que você vai conseguir.
Bosch entrou na cela, mantendo o olhar no vulto estendido de bruços no chão.
- Está bem, pode fechar.
- É só me avisar.
A porta deslizou, fechando-se com um baque forte. O sujeito deitado no chão gemeu e se mexeu levemente. Bosch avançou e sentou-se no banco mais próximo a ele. Tirou
o gravador do bolso do paletó e colocou-o no banco. Erguendo o olhar para a placa de vidro, viu o rosto do sargento afastar-se. Usou a ponta do sapato para cutucar
o corpo do sujeito, que gemeu mais uma vez.
- Acorda, seu merda.
O homem no chão da cela girou lentamente a cabeça e depois a levantou: tinta salpicada no cabelo e vômito endurecido na frente da camisa e do pescoço. Abriu os olhos
e fechou-os imediatamente,
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reagindo à luz forte que vinha do teto do aposento. Sua voz saiu num sussurro áspero:
- Você de novo.
Bosch balançou a cabeça. - É. Sou eu mesmo.
- Nosso velho número.
Um sorriso abriu-se na barba de três dias da cara do bêbado. Bosch notou que o sujeito havia perdido um dente desde a última vez em que o tinha visto. Baixou a mão
e colocou-a sobre o gravador, sem ligá-lo.
- Levante-se. E hora de falar.
- Esquece, cara. Não quero...
- O seu tempo está se esgotando. Comece a falar.
- Não fode. Me deixa em paz.
Bosch olhou para a janelinha. Não havia ninguém ali. Tornou a olhar para o homem no chão.
- A sua salvação está na verdade. Agora mais do que nunca. Não posso fazer nada por você sem a verdade.
- Virou padre? Veio aqui me confessar?
- Você veio se confessar?
O sujeito deitado não disse nada. Depois de uns instantes Bosch achou que ele adormecera novamente. Enfiou a ponta do sapato no flanco do homem, perto do rim. O
sujeito mexeu-se repentinamente, agitando os braços e as pernas.
- Vá se foder! - gritou. - Não quero você aqui. Quero um advogado.
Bosch ficou em silêncio um instante. Pegou o gravador e colocou-o de volta no bolso. Depois se inclinou para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos, e juntou
as mãos. Olhou para o bêbado e abanou lentamente a cabeça.
- Então acho que não posso fazer nada por você - disse. Levantou-se e bateu na janelinha, chamando o sargento de
serviço. Deixou o homem deitado ali no chão.
Capítulo 1
- Alguém está vindo aí.
Terry McCaleb olhou para a esposa e depois seguiu o olhar dela em direção à estrada que serpenteava lá embaixo. Viu o carrinho de golfe subindo a estrada íngreme
e tortuosa que levava à casa. O condutor estava oculto pelo teto do veículo.
Graciela e ele estavam sentados no pátio dos fundos da casa que haviam alugado na avenida La Mesa. A vista ia da estradinha que serpenteava abaixo da casa até a
área do porto de Avalon, ampliando-se sobre a baía de Santa Monica até a nuvem de poluição que pairava sobre a cidade. Fora esse o motivo pelo qual eles haviam escolhido
aquela casa para ser seu novo lar na ilha. Mas quando sua esposa falou, ele tinha o olhar fixo no bebê que carregava nos braços, e não na paisagem. Não via nada
a não ser os grandes olhos azuis e penetrantes da filha.
MacCaleb viu o número de aluguel na lateral do carrinho de golfe que passava lá embaixo. Não era uma visita local. Era alguém que provavelmente chegara da cidade
no Cataíma Express. Ainda assim, ficou imaginando como Graciela sabia que o visitante se destinava à casa deles, e não a qualquer outra da avenida.
Não perguntou isso a ela, pois a mulher já tivera premonições antes. Simplesmente esperou, e logo que o carrinho desapareceu de vista alguém bateu à porta da frente.
Graciela foi atender, e em instantes
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voltou ao pátio acompanhada de uma mulher que McCaleb não via fazia uns três anos.
Jaye Winston, uma detetive do escritório do xerife, sorriu quando viu a criança nos braços dele. Era um sorriso sincero, mas ao mesmo tempo perturbado: via-se que
não tinha ido até lá para admirar um bebê recém-chegado. McCaleb sabia que a grossa pasta verde e a fita de videocassete que ela carregava nas mãos significavam
que Jaye estava ali a serviço. Serviço de morte.
- Como vai, Terry? - perguntou a detetive.
- Não podia ir melhor. Lembra da Graciela?
- E claro. E quem é essa aí?
- É a CiCi.
McCaleb nunca usava o nome formal da filha diante de outras pessoas. Só gostava de chamá-la de Cielo quando estava sozinho com ela.
- CiCi - disse Jaye hesitando, como à espera de uma explicação para o nome. Como a explicação não veio, ela perguntou: Que idade ela tem?
- Quase quatro meses. Ela é grande.
- E mesmo, dá pra ver... E o menino... onde está ele?
- Raymond? - disse Graciela. - Está com uns amigos hoje. O Terry tinha um passeio de barco marcado, e ele foi até o parque jogar bola com uns amigos.
A conversa parecia hesitante e estranha. Ou Jaye não estava muito interessada ou estava desacostumada de conversas triviais.
- Quer beber alguma coisa? - perguntou McCaleb, entregando o bebê a Graciela.
- Não, obrigada. Tomei uma Coca na barca.
Como seguindo a deixa, ou talvez indignada por ter sido passada adiante, CiCi começou a se agitar. Graciela disse que a levaria para dentro da casa e deixou os dois
no pátio. McCaleb apontou para uma mesa redonda com cadeiras; eles jantavam ali quase toda noite, enquanto o bebê dormia.
- Vamos sentar.
Indicou para Jaye a cadeira de onde ela teria a melhor vista da baía. Ela pousou a pasta verde - que McCaleb logo reconheceu
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como um dossiê de assassinato - sobre a mesa e pôs a fita de vídeo sobre a pasta.
- Linda - disse ela.
- É mesmo, ela é incrível. Sou capaz de ficar olhando para a CiCi...
Ele parou e sorriu, percebendo que ela falava da paisagem, não da criança. Jaye também sorriu.
- A CiCi é linda, Terry. Muito linda. Você também parece estar bem, tão bronzeado e tudo mais.
- Tenho saído com o barco.
- E a saúde, vai bem?
- Não posso me queixar de nada além de todos os remédios que eles me obrigam a tomar. Mas já estou nessa há três anos, sem qualquer problema. Acho que me dei bem,
Jaye. Só preciso continuar tomando as porcarias das pílulas, e isso vai ser sempre assim.
Ele sorriu, e realmente parecia a personificação da saúde. O sol escurecera-lhe a pele, mas o efeito no cabelo fora o oposto. Cortado rente e penteado, estava quase
louro. O trabalho no barco também realçara-lhe a musculatura dos braços e ombros. O único sinal destoante escondia-se sob a camisa: uma cicatriz de vinte e cinco
centímetros, resultante da cirurgia do transplante.
- Que ótimo - disse Jaye. - Você parece estar muito bem aqui. Família nova, casa nova... longe de tudo.
Silenciou um instante, virando a cabeça num gesto de quem abarcasse tudo em volta de uma só vez: a vista, a ilha e a própria vida de McCaleb. Este sempre achara
Jaye Winston uma mulher atraente, com um jeito de menina levada. Ela tinha o cabelo louro claro, cortado na altura dos ombros. Jamais usou maquiagem na época em
que trabalhava com ele. Mas tinha olhos penetrantes, sagazes, e um sorriso fácil e meio triste, como se visse humor e tragédia em tudo ao mesmo tempo. Usava jeans
pretas e uma camiseta branca debaixo de um blazer preto. Parecia calma e firme, e McCaleb sabia por experiência própria que ela era assim mesmo. Tinha o hábito de
prender o cabelo atrás da orelha enquanto falava. Por alguma razão desconhecida, ele achava aquele gesto cativante. Sempre pensara que se não houvesse se ligado
a Graciela
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poderia ter tentado conhecer Jaye Winston melhor. Também percebia que ela achava a mesma coisa.
- Me sinto até meio culpada por ter vindo aqui - disse ela. McCaleb indicou com a cabeça a pasta e a fita.
- Você veio a serviço. Podia ter dado um telefonema, Jaye. Provavelmente teria ganho tempo.
- Mas você não me mandou nenhum cartão comunicando sua mudança de endereço ou telefone. Como se não quisesse que as pessoas soubessem onde veio parar.
Ela prendeu o cabelo atrás da orelha esquerda e sorriu novamente.
- Não foi isso - disse ele. - Só achei que ninguém ia querer saber onde eu estava.-Como me encontrou?
- Perguntando na marina lá no continente.
- Na cidade. É como a gente fala aqui.
- Pois é, na cidade. Na superintendência do porto me disseram que o seu barco ainda tinha vaga lá, mas que ficava ancorado aqui. Fiz a travessia e saí com uma lancha
alugada pelo porto até encontrar o barco. Seu amigo estava lá. Ele me deu as coordenadas.
- Buddy.
McCaleb estendeu o olhar até o porto e avistou seu barco, o Mar que Segue. Estava a uns oitocentos metros de distância. Dava para ver Buddy Lockridge curvado na
popa. Mais um instante, e percebeu que Buddy lavava os molinetes com a mangueira do tanque de água doce.
- O que está havendo, Jaye? - perguntou McCaleb sem olhar para ela. - Só pode ser algo importante, pra você passar por tudo isso no seu dia de folga. Calculo que
tire folga aos domingos.
- Geralmente.
Jaye afastou a fita e abriu a pasta. McCaleb olhou para a pasta. Embora estivesse virada ao contrário, dava para ver que a página de cima era um boletim de ocorrência
de homicídio, normalmente a primeira página de todos os dossiês de assassinatos que ele já lera. Era o ponto de partida. Os olhos de McCaleb focalizaram o campo
de endereço. Mesmo com a pasta invertida, dava para ver que era um caso ocorrido em West Hollywood.
- Gostaria que você desse uma olhada neste caso aqui. Quer dizer, quando tiver tempo. Talvez seja o seu tipo de coisa. Queria que fizesse uma avaliação. Talvez me
mostrasse um novo caminho.
Assim que tinha visto a pasta nas mãos de Jaye, McCaleb percebeu que ela lhe pediria isso. Feito o pedido, mergulhou num torvelinho de sentimentos. Sentia a emoção
da possibilidade de recuperar uma parte de sua vida anterior. Mas também se sentia culpado pela idéia de trazer a morte a um lar tão cheio de vida nova e felicidade.
Olhou para a porta entreaberta, a fim de ver se Graciela estava por ali. Não estava.
- Meu tipo de coisa? - disse ele. - Se for um caso de assassinatos em série, é melhor não perder tempo. Vá ao FBI, ligue para Maggie Griffin. Ela irá...
- Já fiz tudo isso, Terry. E ainda preciso de você.
- Quando foi isso?
- Duas semanas.
Ela ergueu os olhos para o rosto dele.
- Dia de Ano-Novo?
Jaye balançou afirmativamente a cabeça.
- Primeiro assassinato do ano - disse ela. - No condado de Los Angeles, pelo menos. Tem gente que acha que o verdadeiro milênio só começou este ano.
- Acha que o cara é um maluco do milênio?
- Quem fez isso só pode ser maluco. Eu acho. É por isso que estou aqui.
- O que o FBI disse? Levou isso à Maggie?
- Você está desatualizado, Terry. A Maggie foi mandada de volta para Quantico. O movimento caiu nos últimos anos, e a Unidade de Ciências Comportamentais reconvocou
a Maggie. Não há mais seção do FBI em Los Angeles. Mas eu falei com ela. Pelo telefone, em Quantico. Ela entrou no PCCV e não achou nada.
McCaleb sabia que ela estava falando do Programa de Captura de Criminosos Violentos.
- Fizeram um perfil? - perguntou.
- Estou na lista de espera. Sabia que no país inteiro, na véspera
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e no dia de Ano-Novo, houve trinta e quatro assassinatos inspirados pela mudança do milênio? Por isso eles agora estão assoberbados de trabalho. E os departamentos
maiores como o nosso estão no fim da fila, porque o FBI acha que os departamentos menores, com menos experiência, especialistas e mão-de-obra, precisam mais da ajuda
deles.
Ela esperou um instante, deixando McCaleb refletir sobre aquilo tudo. Ele compreendia a filosofia do FBI. Era uma forma de triagem.
- Não me importo de esperar um mês ou coisa assim até que a Maggie ou alguém consiga me dar alguma coisa, mas minha intuição me diz que o tempo é um fator crucial
aqui, Terry. Se for um caso de assassinatos em série, um mês talvez seja tempo demais para esperar. Foi por isso que pensei em vir aqui. Estou dando com a cabeça
na parede neste caso, e talvez você seja a nossa última esperança de conseguirmos ir em frente no momento. Ainda me lembro do Homem do Cemitério e do Assassino do
Código. Sei o que pode fazer com um dossiê de assassinato e um vídeo da cena do crime.
A últimas frases eram gratuitas, o único movimento em falso de Jaye até então, pensou McCaleb. Afora isso, achava que ela estava sendo sincera ao dizer que o assassino
podia atacar novamente.
- Estou afastado há muito tempo, Jaye - começou McCaleb. - Depois daquela coisa com a irmã da Graciela, não me envolvi com...
- Terry, deixa de babaquice, tá legal? Você pode ficar a semana inteira sentado aqui com um bebê no colo, mas isso não vai apagar o que você foi e o que fez. Eu
te conheço. Não nos vemos nem conversamos há muito tempo, mas eu te conheço. E sei que não passa um dia sequer sem pensar em casos. Um dia sequer.
Fez uma pausa e ficou olhando para ele.
- Quando eles tiraram o seu coração, não tiraram o que faz você funcionar, entende?
McCaleb desviou o olhar em direção ao barco novamente. Buddy estava sentado na cadeira de pesca, com os pés em cima da verga. McCaleb achava que ele tinha uma cerveja
na mão, mas a distância era grande demais para ter certeza.
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- Se consegue enxergar as pessoas tão bem, pra que precisa de
mim?
- Talvez eu seja boa nisso, mas você é o melhor que eu já vi. Diabo, mesmo que o pessoal de Quantico não estivesse atolado até a Páscoa, eu preferiria você a qualquer
um daqueles traçadores de perfil. Estou falando a verdade. Você era...
- Jaye, não é preciso vir com esse papo de vendedor, tá legal? Meu ego está indo muito bem sem toda essa...
- Então o que é preciso? Ele olhou de novo para ela.
- Só um pouco de tempo. Preciso pensar no assunto.
- Estou aqui porque minha intuição me diz que não temos muito tempo.
McCaleb levantou-se e foi até a balaustrada do pátio. Olhou para o mar. Uma barca do Cataíina Express vinha chegando. Ele sabia que estaria quase vazia. Os meses
de inverno traziam poucos visitantes.
- A barca está chegando - disse. - Estamos no horário de inverno, Jaye. Se não aproveitar essa para voltar, vai ter que passar a noite aqui.
- Peço para o departamento mandar um helicóptero me pegar, se for preciso. Terry, só preciso de um dia seu, no máximo. Talvez até uma noite. Você senta, lê o dossiê,
assiste à fita, e depois me telefona de manhã, dizendo o que viu. Talvez não seja nada, ou pelo menos nada que seja novidade. Mas talvez veja alguma coisa que nós
deixamos escapar, ou tenha uma idéia que ainda não ocorreu a ninguém. É só o que estou pedindo. Acho que não é muito.
McCaleb afastou os olhos da barca que chegava e se virou, recostando-se na balaustrada.
- Não parece muito pra você, porque está dentro do negócio. Eu não estou. Estou fora, Jaye. Voltar a isso, mesmo que seja só por um dia, vai mudar as coisas. Eu
me mudei pra cá para recomeçar e esquecer todos os troços em que eu era bom. Para ser bom fazendo outra coisa. Para ser pai e marido, por exemplo.
Jaye levantou-se e foi até a balaustrada. Enquanto McCaleb continuava olhando para a casa, ela postou-se ao lado dele,
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olhando para a paisagem, e começou a falar em tom baixo. Se Graciela estivesse de antena ligada lá dentro, não conseguiria ouvir nada.
- Lembra o que me disse no caso da irmã de Graciela? Disse que teve uma segunda chance na vida, e que tinha que haver uma razão para isso. Agora você construiu essa
vida, com a irmã dela, o filho dela, e até a sua própria filha. Isso é maravilhoso, Terry, eu realmente acho. Mas essa não pode ser a razão que você estava procurando.
Pode achar que é, mas não é. Lá no fundo você sabe disso. Sabia muito bem fisgar essas pessoas. Perto disso, o que é fisgar
peixes
McCaleb balançou a cabeça ligeiramente e sentiu-se mal por concordar com tamanha presteza.
- Deixe o troço aí - disse. - Telefono pra você quando puder. A caminho da porta Jaye procurou Graciela com o olhar, mas
não a viu.
- Deve estar com o bebê - explicou McCaleb.
- Bom, diga a ela que eu me despedi. - Está bem.
Houve um silêncio constrangedor durante o percurso até a porta. Quando McCaleb finalmente a abriu, Jaye disse:
- E aí, Terry, como é ser pai?
- E a melhor época da vida, e é a pior época da vida.
Sua resposta automática. Refletiu um instante e acrescentou algo que já pensara, mas que jamais dissera, nem para Graciela.
- E como ter uma arma encostada na cabeça o tempo todo. Jaye pareceu confusa, e até um pouco preocupada.
- Como assim?
- Porque eu sei que se alguma coisa acontecer a ela, qualquer coisa, minha vida estará acabada.
Ela balançou a cabeça.
- Acho que dá pra entender.
Jaye saiu. Parecia bastante idiota ao se afastar. Uma detetive, com grande experiência em homicídios, andando num carrinho de golfe.
Capítulo 2
O jantar de domingo com Graciela e Raymond foi calmo. Eles comeram uma perca branca que McCaleb pescara de manhã ao levar clientes até a ilha, perto do istmo. Os
clientes que alugavam o barco sempre queriam guardar os peixes que apanhavam, mas em geral mudavam de idéia quando voltavam ao porto. Aquilo tinha a ver com o instinto
humano de matar, achava McCaleb. Não bastava pegar as presas. Era preciso matá-las também. E isso significava que peixe era um prato freqüente no jantar na casa
deles.
McCaleb assara o peixe com espigas de milho na churrasqueira do quintal. Graciela fizera uma salada e biscoitos. Os dois estavam bebendo vinho branco, enquanto Raymond
tomava leite. A comida estava boa, mas o silêncio não. McCaleb levantou o olhar para Raymond e viu que o menino já percebera as vibrações entre os adultos e embarcara
na onda. Lembrou-se que fazia a mesma coisa em criança, quando seus próprios pais guardavam silêncio entre si. Raymond era filho de Gloria, irmã de Graciela. Seu
pai jamais fizera parte de sua vida. Quando Gloria morreu - assassinada - três anos antes, Raymond foi morar com Graciela. McCaleb conhecera os dois quando investigava
o caso.
- Como foi o jogo hoje? - perguntou finalmente McCaleb.
- Acho que foi bom.
- Marcou algum ponto?
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- Não.
- Vai marcar. Não se preocupe. E só continuar tentando.
Continue treinando.
McCaleb balançou a cabeça. O menino pedira para acompanhá-lo de manhã, mas ele não deixara. O passeio fora marcado por seis homens da cidade. Com McCaleb e Buddy
seriam oito no Mar que Segue, e esse era o limite que o barco podia levar dentro das normas de segurança. McCaleb nunca violava essas regras.
- Bom, o próximo passeio será no sábado, e até agora temos apenas quatro pessoas. Estamos na temporada de inverno e duvido que consigamos mais alguém. Se a coisa
ficar assim, você pode ir.
A expressão sombria do menino pareceu se iluminar, e ele balançou a cabeça vigorosamente enquanto metia o garfo na carne muito alva do peixe no prato. O garfo parecia
grande na mão dele, e McCaleb sentiu uma tristeza passageira pelo menino. Ele era pequeno demais para um menino de dez anos. Raymond se incomodava muito com isso,
e freqüentemente perguntava a McCaleb quando cresceria. McCaleb sempre lhe dizia que isso aconteceria em pouco tempo, embora particularmente achasse que o menino
sempre seria baixo. Sabia que a mãe fora uma mulher de estatura mediana, mas Graciela lhe contara que o pai de Raymond fora um homem muito baixo - em tamanho e caráter.
Ele desaparecera antes do nascimento do menino.
Sempre o último a ser escolhido para o time, pequeno demais para competir com os outros meninos de sua idade, Raymond fora atraído por outros passatempos que não
os esportes de equipe. Pescar era a sua paixão, e nos dias de folga McCaleb geralmente saía com ele pela baía para pegar linguados. Quando tinha um passeio marcado,
o menino sempre lhe implorava para ir, e quando havia lugar McCaleb permitia que ele fosse junto como ajudante de piloto. Tinha sempre um grande prazer em colocar
uma nota de cinco dólares num envelope, fechá-lo e entregá-lo ao menino ao fim do dia.
- Vamos precisar de você na torre de comando - disse McCaleb. - Esse grupo quer ir para o sul pescar marlins. Vai ser um passeio longo.
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- Legal!
McCaleb sorriu. Raymond adorava ficar de vigia na torre, procurando marlins negros que estivessem dormindo ou brincando na superfície. Usando um binóculo, já estava
até ficando afiado na coisa. McCaleb ergueu os olhos para Graciela a fim de compartilhar aquele momento, mas ela baixara o olhar para o prato. Não havia sombra de
sorriso no seu rosto.
Depois de alguns minutos Raymond terminou de comer e pediu para se levantar, pois queria brincar com o computador no quarto. Graciela disse-lhe para manter o som
baixo, para não acordar o bebê. O menino levou o prato até a cozinha, deixando Graciela e McCaleb a sós.
Ele entendeu o silêncio dela. Graciela sabia que não podia reclamar do envolvimento dele numa investigação, porque fora seu próprio pedido para investigar a morte
da irmã que fizera com que eles se conhecessem três anos antes. Suas emoções estavam enredadas nessa ironia.
- Graciela - começou McCaleb. - Sei que não quer que eu faça isso, mas...
- Eu não disse nada.
- Nem precisava dizer. Eu te conheço, e posso dizer pela expressão do seu rosto, desde que Jaye chegou aqui, que...
- Só não quero que tudo mude, mais nada.
- Eu entendo. Também não quero que mude nada. E não vai mudar. Só vou dar uma olhada no dossiê e na fita, e dizer a ela o que eu acho.
- Não vai ser só isso. Eu conheço você. Já vi isso acontecer antes. Vai ser fisgado. E nisso que você é craque.
- Não vou ser fisgado. Só vou fazer o que ela pediu, e pronto. E nem vou fazer isso aqui. Vou pegar o que ela me deu e levar para o barco. Assim a coisa nem vai
ficar aqui em casa. Está bem? Não quero isso aqui em casa.
Ele sabia que ia fazer aquilo com ou sem a aprovação dela, mas mesmo assim queria essa aprovação. O relacionamento deles era tão recente que ele parecia estar sempre
procurando a aprovação dela. Já pensara sobre isso, imaginando se tinha algo a ver com sua
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segunda chance. Tinha passado três anos lutando contra um grande sentimento de culpa, mas aquilo surgia como um posto de controle na estrada a cada poucos quilômetros.
McCaleb parecia sentir que tudo estaria bem se ele conseguisse fazer aquela mulher aprovar sua existência. Seu cardiologista chamava isso de sentimento de culpa
do sobrevivente. Ele sobrevivera porque alguém morrera, e agora precisava atingir uma espécie de redenção por causa disso. Mas McCaleb achava que a explicação não
era tão simples.
Graciela tinha franzido a testa, mas isso não a deixava menos bonita aos olhos dele. Ela tinha a pele cor de cobre, e uma cabeleira castanho-escura que emoldurava
um rosto com olhos de um castanho tão escuro que quase não havia separação entre a íris e a pupila. Aquela beleza era outra razão pela qual procurava a aprovação
dela em todas as coisas. Havia algo de purificador na luz dos sorrisos que ela às vezes lançava para ele.
- Terry, ouvi vocês dois falando ali no pátio. Depois que o bebê ficou quieto. Ouvi o que Jaye disse sobre o que faz você vibrar, e que você não passa um dia sem
pensar no que costumava fazer. Fala só isso... Ela tinha razão?
McCaleb ficou em silêncio por um instante. Baixou o olhar para o prato vazio, lançando-o em seguida sobre o porto para as luzes do casario que se encarapitava na
colina do outro lado, chegando até a pousada no cume do monte Ada. Balançou a cabeça lentamente e olhou novamente para ela.
- Tinha, ela tinha razão.
- Então tudo isto aqui, o que a gente está fazendo, o bebê... é tudo mentira?
- Não. Claro que não. Isto é tudo para mim, e eu protegeria essas coisas com todas as minhas forças. Mas a resposta é... sim, eu penso sobre o que eu era e o que
fazia. Quando estava no FBI, eu salvava vidas, Graciela... é simplesmente isso. E afastava o mal desse mundo. Fazia o mundo lá fora ficar um pouco menos escuro.
Ele levantou a mão e fez um gesto na direção da baía.
- Agora eu levo uma vida maravilhosa com você, Cielo e Raymond. E eu... eu pesco peixes para ricaços que não têm nada melhor para fazer com o dinheiro deles.
V
- Então você quer as duas coisas.
- Não sei o que quero. Sei que só disse certas coisas a Jaye porque sabia que você estava escutando. Fiquei dizendo o que eu sabia que você queria ouvir, mas bem
lá no fundo do coração sabia que aquilo não era o que eu queria. O que eu queria era abrir aquele dossiê de uma vez e começar a trabalhar. Ela tinha razão a meu
respeito, Gracie. Não me via fazia três anos, mas conseguiu me fisgar.
Graciela levantou-se, deu a volta à mesa e sentou-se no colo dele.
- Só estou com medo por você, é isso - disse ela, abraçando-o com força.
McCaleb pegou dois copos altos no armário e colocou-os na bancada. Encheu o primeiro com água mineral e o segundo com suco de laranja. Depois começou a engolir as
vinte e sete pílulas que alinhara na bancada, alternando goles de água e de suco de laranja para ajudá-las a descer. Engolir as pílulas - duas vezes por dia - era
um ritual, e ele o odiava. Não por causa do gosto, pois depois de três anos já nem ligava mais, e sim porque o ritual era um lembrete do quanto sua vida dependia
de preocupações exteriores. As pílulas eram uma coleira. McCaleb não podia viver sem elas. Grande parte do seu mundo agora estava organizado de modo a assegurar
que ele sempre as tivesse à mão. Fazia planos em torno disso, armazenava um grande estoque delas e às vezes chegava a sonhar que estava tomando pílulas.
Quando terminou, voltou à sala, onde Graciela lia uma revista. Ela não olhou quando ele entrou no aposento, outro sinal de que estava infeliz com o que estava subitamente
acontecendo no seu lar. McCaleb ficou ali parado um instante, esperando, e quando as coisas não se alteraram seguiu pelo corredor até o quarto do bebê.
Cielo ainda dormia no berço. A luz que vinha do teto tinha um interruptor em resistência, e McCaleb a aumentou apenas o suficiente para poder vê-la claramente. Foi
até o berço e se inclinou para ouvir a respiração da criança, vê-la, e sentir aquele cheiro de neném. Cielo era morena como a mãe na pele e no cabelo,
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mas os olhos eram azuis como o oceano. As mãos pequeninas estavam cerradas, como se estivesse demonstrando sua prontidão para lutar pela vida. McCaleb ficava mais
apaixonado pela menina quando a via dormindo. Pensava em todos os preparativos que eles haviam feito: os livros, as aulas e os conselhos das amigas de Graciela no
hospital, que eram enfermeiras pediátricas. Tudo para que eles estivessem prontos para cuidar de uma vida frágil, tão dependente deles. Nada fora dito ou lido a
fim de prepará-lo para o oposto: a percepção que tivera, quando a segurara pela primeira vez, de que sua própria vida agora dependia dela.
McCaleb estendeu a mão para a criança, cobrindo as costas do bebê, que não se mexeu. Dava para sentir aquele coração diminuto batendo. Parecia rápido e desesperado,
como uma prece sussurrada. Às vezes aproximava a cadeira de balanço do berço e ficava olhando a filha até tarde da noite. Mas hoje seria diferente. Ele tinha que
ir. Tinha um trabalho a fazer. Um trabalho sangrento. Não sabia ao certo se fora até lá simplesmente para se despedir por aquela noite ou também, de certa forma,
para ganhar inspiração ou a aprovação dela. Na sua mente aquilo não fazia muito sentido. Sabia apenas que precisava vê-la e tocá-la antes de ir trabalhar.
McCaleb foi andando pelo píer e desceu os degraus até o cais dos esquifes. Achou o seu Zodiac inflável entre os outros botes e embarcou, abrigando cuidadosamente
a fita de vídeo e o dossiê na proa para que não ficassem molhados. Puxou duas vezes o cordão de partida do motor antes que este pegasse e seguiu pelo canal central
do porto. No porto de Avalon não havia cais para barcos maiores, que ficavam amarrados a bóias enfileiradas, acompanhando a concavidade natural da baía. Como era
inverno, havia poucos barcos no local, mas McCaleb não cortou caminho por entre as bóias. Seguiu pelo canal, como se estivesse dirigindo um carro nas ruas de um
bairro. Ninguém corta caminho pelos gramados; todo mundo fica na pista de rolamento.
Estava frio na água, e McCaleb fechou o zíper do agasalho. Ao se aproximar do Mar que Segue, viu o brilho do televisor por trás das cortinas do salão. Isso significava
que Buddy Leckridge não tinha terminado o serviço a tempo de pegar a última barca e ia passar a noite ali.
McCaleb e Buddy eram sócios no negócio de passeio de barco. Embora o título de propriedade da embarcação estivesse no nome de Graciela, a licença para alugar o barco
e todos os outros documentos relativos ao negócio estavam no nome de Buddy. Os dois haviam se conhecido mais de três anos antes, quando McCaleb ancorara o Mar que
Segue na marina Cabrillo, na baía de Los Angeles, e passara morar a bordo enquanto restaurava a embarcação. Buddy era um vizinho, que morava em um veleiro ancorado
ali perto. Haviam iniciado uma amizade que acabara se transformando em sociedade.
Durante a agitada temporada da primavera e do verão, Buddy dormia quase sempre no barco. Mas durante os períodos calmos geralmente pegava a barca até a cidade e
ficava no seu próprio barco na marina Cabrillo. Parecia conseguir encontrar mais companhias femininas nos bares da cidade do que nos poucos lugares semelhantes que
havia na ilha. McCaleb presumiu que ele fosse voltar para a cidade pela manhã, pois não tinham passeios marcados nos próximos cinco dias.
Encostou o Zodiac na popa do Mar que Segue e desligou o motor. Saltou carregando a fita de vídeo e o dossiê. Prendeu o Zodiac num gancho na popa e caminhou para
a porta do salão. Buddy estava lá, esperando, pois tinha ouvido o Zodiac ou sentido o pequeno choque na popa. Abriu a porta corrediça, segurando junto à perna um
livro de bolso. McCaleb deu uma olhada para a televisão, mas não conseguiu reconhecer o programa que ele estava vendo.
- Qual é, Terror? - perguntou Buddy.
- Nada. Preciso trabalhar um pouco, só isso. Vou usar a cabine da frente, está bem?
Entrou no salão. Estava quente ali. Buddy tinha o aquecedor ligado.
- Claro, tudo bem. Posso ajudar em alguma coisa?
- Neca, não é coisa ligada ao nosso negócio.
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- É coisa da mulher que passou por aqui? A que trabalha na polícia do condado?
McCaleb esquecera que Jaye viera primeiro ao barco e obtivera o endereço dele com Buddy. -É.
- Está trabalhando num caso dela?
- Não - disse McCaleb rapidamente, na esperança de limitar o interesse e o envolvimento de Buddy. - Só preciso olhar uns troços e ligar para ela de volta.
- Que barato, cara.
- Nada demais. E só um favor. O que está vendo na tevê?
- Ah, nada. Um programa sobre uma força-tarefa que persegue piratas de computador. Por quê? Já viu isso?
- Não, mas será que você poderia me emprestar a tevê por um tempinho?
McCaleb levantou a fita. Os olhos de Buddy brilharam.
- Fique à vontade. Coloque a fita ali.
- Hum, aqui não, Buddy. A detetive Jaye me pediu o máximo de sigilo. Trago a tevê de volta assim que tiver acabado.
O rosto de Buddy denunciou seu desapontamento, mas McCaleb não ficou preocupado. Foi até a bancada que separava a cozinha do salão e largou lá o dossiê e a fita.
Desligou o televisor da tomada e soltou-o da moldura que o impedia de cair quando o mar estava agitado. O aparelho tinha um videocassete embutido e era pesado. McCaleb
desceu pela escada estreita e levou-o até o camarote da frente, que fora parcialmente transformado em escritório. Dois lados do aposento tinham camas-beliche. A
de baixo à esquerda fora substituída por uma escrivaninha, e as duas de cima eram usadas para guardar arquivos de antigos casos do FBI - Graciela não queria aquele
material dentro de casa, onde Raymond poderia descobri-lo acidentalmente. O único problema era que McCaleb tinha certeza que Buddy já vasculhara as caixas e examinara
os arquivos. E aquilo o chateava. Era uma espécie de invasão. Já tinha pensado em manter o camarote trancado, mas sabia que isso poderia ser um erro fatal. A única
escotilha de teto no convés inferior ficava no camarote da frente, e aquele acesso não deveria
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ser bloqueado, caso um dia houvesse necessidade de uma evacuação de emergência pela proa.
Pôs o televisor na escrivaninha e ligou a tomada. Quando se virou para subir até o salão e pegar o dossiê e a fita, viu Buddy descendo os degraus, segurando a fita
e folheando o dossiê.
- Ei, Buddy...
- Parece coisa braba, cara.
McCaleb estendeu a mão e fechou o dossiê. Depois o tirou, juntamente com a fita, das mãos de seu sócio de pescaria.
- Só estava dando uma espiada.
- Já disse que é confidencial.
- É, mas nós trabalhamos bem juntos. Que nem antes.
Era verdade que Buddy acabara sendo de grande ajuda quando McCaleb investigara a morte da irmã de Graciela. Mas aquilo fora uma investigação de rua. O caso agora
era simplesmente de revisão. E McCaleb não queria ter alguém olhando por cima de seu ombro.
- Isto aqui é diferente, Buddy. É coisa de uma noite só. Vou apenas dar uma olhada no troço, e pronto. Agora me deixa trabalhar, para que eu não fique aqui a noite
toda.
Buddy não disse nada, e McCaleb não ficou esperando. Fechou a porta do camarote e virou-se para a escrivaninha. Ao olhar para o dossiê de assassinato nas suas mãos,
sentiu uma emoção forte, bem como o surgimento familiar de medo e culpa.
Percebeu que chegara a hora de voltar às trevas. De voltar a explorá-las e conhecê-las. De achar o caminho através delas. Embora estivesse sozinho, balançou a cabeça,
em reconhecimento de que tinha esperado muito tempo por aquele momento.
Capítulo 3
A fita de vídeo tinha uma imagem clara e firme, e a iluminação era boa. Os aspectos técnicos das gravações em vídeo de cenas de crimes haviam melhorado muito desde
os tempos de McCaleb no FBI. Já o conteúdo não mudara. A fita que ele observava mostrava vividamente o quadro mudo de um assassinato. McCaleb finalmente congelou
a imagem e a examinou. O camarote estava silencioso, exceto pelo suave marulhar das águas contra o casco do barco.
No foco central via-se um corpo nu que parecia ser de um homem amarrado com arame. Os braços e pernas estavam presos contra as costas, a tal ponto que o corpo parecia
estar numa posição fetal invertida. O corpo estava de bruços sobre um tapete velho e sujo. O foco era fechado demais para que se pudesse determinar em que tipo de
local o corpo fora encontrado. McCaleb julgou que a vítima fosse um homem baseando-se apenas na massa corporal e na musculatura, porque a cabeça da vítima não era
visível. Um balde de plástico cinzento, desses usados para limpeza, cobria-lhe inteiramente a cabeça. McCaleb viu que um pedaço do arame repuxava os tornozelos,
passava pelas costas entre os braços e mergulhava debaixo da borda do balde, dando a volta ao pescoço da vítima. À primeira vista aquilo parecia um estrangulamento
por ligadura, no qual a alavanca formada pelas pernas e os pés apertava
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o arame em torno do pescoço, causando asfixia. Na realidade, a vítima fora amarrada de tal modo que em última análise causara sua própria morte, quando já não
conseguira manter as pernas dobradas para trás naquela posição extrema.
McCaleb continuou examinando a cena. Uma pequena quantidade de sangue vazara do balde para o tapete, indicando haver algum tipo de ferimento na cabeça.
Recostou-se na velha cadeira, pensando em suas impressões iniciais. Ainda não abrira o dossiê, preferindo primeiro assistir à fita com a cena do crime e estudá-la
o mais detidamente possível, tal como os investigadores haviam visto originalmente o local. Já estava fascinado com o que via. Pressentia uma sugestão ritualística
na cena projetada na tela da tevê. E sentiu novamente o jorro de adrenalina no sangue. Apertou o botão do controle remoto e o vídeo continuou.
O foco afastou-se quando Jaye Winston entrou no enquadramento. McCaleb conseguiu ver um pouco mais do cenário e notou que aquilo parecia ser um pequeno apartamento
ou casa, quase sem móveis.
Coincidentemente, Jaye estava usando a mesma roupa que tinha usado quando fora até sua casa com o dossiê e a fita. Calçara luvas de borracha, puxando as bordas por
cima dos punhos do fclazer. Trazia o emblema de detetive pendurado num cadarço preto em volta do pescoço. Tomou posição à esquerda do homem morto, enquanto seu parceiro,
um detetive que McCaleb não reconheceu, postava-se à direita. Pela primeira vez ouviram-se vozes no vídeo.
"O corpo já foi examinado pelo médico-legista e liberado para a investigação da cena do crime", disse Jaye. "A vítima foi fotografada in situ. Vamos agora retirar
o balde para prosseguir com o exame."
McCaleb sabia que ela estava escolhendo cuidadosamente suas palavras e sua atitude, já pensando no futuro, que incluiria o julgamento de um réu por assassinato,
e no qual a fita da cena do crime seria revista pelo júri. Ela tinha que parecer profissional e objetiva, completamente desligada em termos emocionais do que estava
encontrando ali. Tudo que se desviasse dessa conduta poderia se
transformar num motivo para o advogado de defesa pedir que a fita não fosse considerada como prova.
Jaye estendeu a mão e prendeu o cabelo atrás das orelhas. Depois colocou ambas as mãos sobre os ombros da vítima. Com a ajuda do parceiro, virou o corpo de lado,
voltando a nuca do homem morto para a câmera.
O foco passou sobre o ombro da vítima e se aproximou, enquanto Jaye suavemente soltava a alça do balde do queixo do homem e cuidadosamente o afastava da cabeça.
"Pronto", disse ela.
Mostrou o interior do balde para a câmera - havia sangue coagulado dentro do recipiente - e colocou-o dentro de uma caixa de papelão usada para coletar provas. Depois
virou-se de novo e olhou para a vítima.
Uma fita adesiva cinzenta fora amarrada em torno da cabeça do homem, formando uma mordaça firme ao longo da boca. Os olhos estavam abertos e distendidos - esbugalhados.
Ambas as córneas se encontravam avermelhadas devido à hemorragia, da mesma forma que a pele em torno dos olhos.
"PC", disse o parceiro, apontando para os olhos.
"Kurt", disse Jaye. "Tem áudio aqui."
"Desculpe."
Ela estava mandando o parceiro guardar os seus comentários para si mesmo. Mais uma vez, tomava precauções quanto ao futuro. McCaleb sabia que o parceiro estava mostrando
a hemorragia, ou petéquia conjuntiva, que sempre acompanha o estrangulamento por ligadura. Entretanto aquele tipo de comentário deveria ser feito perante o júri
por um médico-legista, não por um investigador de homicídios.
O cabelo do homem morto, de comprimento médio, estava ensopado de sangue que se acumulara no balde junto ao lado esquerdo do rosto. Jaye começou a apalpar a cabeça,
passando os dedos pelo cabelo do morto à procura da origem do sangue. Finalmente encontrou o ferimento no topo da cabeça. Afastou o cabelo tanto quanto possível
para poder enxergar melhor.
"Barney, feche mais aqui se puder", disse ela.
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A câmera se aproximou. McCaleb viu um ferimento pequeno, redondo, que não parecia ter perfurado o crânio. Sabia que a quantidade de sangue aparente nem sempre batia
com a gravidade do ferimento. Até ferimentos sem grandes conseqüências no couro cabeludo podem produzir muito sangue. Ele teria uma descrição formal e completa do
ferimento no laudo da autópsia.
"Barn, pegue isso aqui", disse Jaye, com a voz subindo um pouco em comparação com o tom monocórdio anterior. "Tem algo escrito, ou coisa assim, na fita da mordaça."
Ela percebera aquilo ao apalpar a cabeça. A câmera se aproximou. McCaleb viu uns rabiscos leves onde a fita passava sobre a boca do homem morto. As letras pareciam
ter sido escritas a tinta, mas a mensagem estava coberta de sangue. Ele conseguiu distinguir o que parecia ser uma palavra na mensagem.
- Cave - leu em voz alta. - Caverna?
Achou que aquilo talvez fosse apenas parte de uma palavra, mas não conseguiu se lembrar de nenhuma palavra maior - a não ser caverna - que contivesse aquelas letras
na mesma ordem.
Congelou o quadro e ficou só observando. Estava fascinado. O que ele via ali o fazia voltar aos seus dias como elaborador de perfis, quando quase todo caso que lhe
era atribuído deixava-o com a mesma pergunta: De que mente sombria e torturada veio isso?
As palavras de um assassino eram sempre importantes e colocavam o caso num plano mais alto. Na maioria das vezes significavam que o assassinato era uma declaração,
uma mensagem transmitida do assassino para a vítima, e depois dos investigadores para o mundo.
McCaleb ficou de pé e estendeu a mão para o beliche superior. Puxou uma das caixas de arquivos antigos e largou-a pesadamente no chão. Levantando rapidamente a tampa,
começou a vasculhar os arquivos à procura de um caderno com algumas páginas ainda em branco. Fora sempre um ritual seu, quando no FBI, começar cada caso que lhe
era atribuído com um novo caderno em espiral. Finalmente chegou a um arquivo que continha apenas um formulário de solicitação de auxílio e um caderno. Um arquivo
com tão
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poucos documentos significava um caso curto, e o caderno deveria conter muitas páginas em branco.
Folheou o caderno e viu que estava quase sem uso. Pegou então o formulário Solicitação de Auxílio do FBI e leu rapidamente a folha de rosto para ver de que caso
se tratava. Lembrou-se imediatamente, porque aquilo fora resolvido com um único telefonema. A solicitação tinha vindo de um detetive da pequena cidade de White Elk,
no estado de Minnesota, quase dez anos antes, quando McCaleb ainda trabalhava na sede de Quantico. O relatório do investigador dizia que dois homens bêbados haviam
iniciado uma briga na casa que compartilhavam, desafiado um ao outro para um duelo e se assassinado mutuamente com tiros simultâneos dados a dez metros de distância,
no quintal da casa. O detetive não precisava de auxílio naquele caso de duplo homicídio, porque tudo estava claro como água. Contudo estava intrigado com outra coisa.
Durante uma busca na casa das vítimas, os investigadores haviam encontrado algo estranho no freezer do porão. Empurrados para um canto do freezer, havia dúzias e
dúzias de absorventes femininos usados. Eram de diversos fabricantes e marcas, e os testes preliminares de uma amostra do material haviam identificado sangue menstrual
originário de várias mulheres diferentes.
O detetive encarregado do caso não sabia o que tinha em mãos, mas temia o pior. Queria da Unidade de Ciências Comportamentais do FBI uma idéia do que aqueles absorventes
poderiam significar e do procedimento que ele deveria adotar. Mais especificamente, queria saber se os absorventes poderiam ser suvenires guardados por um ou dois
assassinos seriais, e que só haviam sido descobertos quando eles se mataram mutuamente.
McCaleb sorriu ao lembrar-se do caso. Já havia encontrado absorventes femininos em um freezer antes. Telefonara para o detetive e fizera-lhe três perguntas. Como
aqueles homens ganhavam a vida? Além das armas de fogo usadas no duelo, haviam sido encontradas no apartamento quaisquer armas longas ou uma licença para caçar?
E, por fim, quando começara a temporada de caça nos bosques ao norte de Minnesota?
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As respostas do investigador resolveram rapidamente o mistério dos absorventes. Ambos os homens trabalhavam numa empresa de limpeza para aviões comerciais no aeroporto
de Minneapolis. Haviam sido encontrados vários fuzis de caça na casa, mas nenhuma licença para caçar. E a temporada de caça a ursos só começaria dali a três semanas.
McCaleb dissera ao detetive que aparentemente os homens não eram assassinos seriais, mas provavelmente vinham reunindo o conteúdo dos recipientes onde eram jogados
os absorventes nos sanitários dos aviões em que faziam a limpeza. Levavam os absorventes para casa e os congelavam. Quando começava a temporada de caça, provavelmente
descongelavam os absorventes e os usavam como isca para os ursos, que conseguem detectar o cheiro de sangue a grande distância. A maioria dos caçadores usa restos
de comida como isca, mas nada se compara a sangue.
McCaleb recordava que o tal detetive tinha parecido desapontado, vendo que não tinha em mãos o caso de um ou dois assassinos seriais. Talvez houvesse ficado envergonhado
de que um agente do FBI, sentado à uma mesa em Quantico, houvesse resolvido tão rapidamente aquele mistério, ou então estivesse simplesmente aborrecido com o fato
de que não haveria uma corrida da mídia para cobrir o caso. O sujeito desligara abruptamente e nunca mais telefonara para ele.
McCaleb arrancou do caderno as poucas páginas com anotações do caso, colocou-as no arquivo com o formulário de solicitação de auxílio e repôs o arquivo no lugar.
Depois colocou a tampa na caixa e ergueu-a de volta à prateleira que era o beliche superior. Empurrou a caixa para o lugar que ocupava antes, fazendo-a bater com
força na parede.
Sentando-se novamente, olhou para a imagem congelada na tela do televisor. Depois examinou a página em branco do caderno e finalmente pegou a caneta no bolso da
camisa. Quando ia começar a escrever, a porta do camarote se abriu subitamente e Buddy Lockridge apareceu ali parado. -Tudo bem?
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- O quê?
Ouvi um barulho. O barco inteiro balançou.
- Está tudo bem, Buddy. Eu só...
- Porra, que diabo é isso?
Ele estava olhando para a tela da tevê. McCaleb levantou imediatamente o controle remoto e apagou a imagem.
- Buddy, olhe aqui, eu disse que isto é confidencial, e não posso...
- Tá legal, eu sei. Só vim ver se você não tinha desmaiado ou coisa assim.
- Ótimo, obrigado, mas eu estou bem.
Ainda vou ficar acordado durante algum tempo, se precisar de alguma coisa.
Não vou precisar, mas obrigado.
Está gastando muita energia, sabia? Vai ter que ligar o gerador amanhã depois que eu for embora.
- Não tem problema. Eu faço isso. A gente se vê depois, Buddy. Buddy apontou para a tela da tevê, agora apagada.
- Que coisa esquisita.
Tchau, Buddy - disse McCaleb, impaciente. Levantou-se e fechou a porta com Buddy ainda parado ali, mas dessa vez a trancou. Depois voltou à cadeira e ao caderno.
Começou a escrever e dentro de poucos minutos tinha elaborado uma lista:
CENA
1. Ligadura
2. Nu
3. Ferimento na Cabeça l
4. Fita/Mordaça-"Cave"?
5. Balde?
Examinou a lista durante alguns instantes, à espera de uma idéia qualquer, mas nada surgiu. Era cedo demais. Instintivamente, McCaleb sabia que as palavras na fita
adesiva eram uma chave que ele não poderia girar antes de ter a mensagem completa. Lutou contra a vontade de abrir o dossiê de assassinato e mergulhar no assunto.
Em vez disso, ligou de novo o televisor e começou a passar
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a fita do ponto em que tinha parado. A câmera focalizava de perto a boca do homem morto e a fita adesiva esticada ao longo dela.
"Vamos deixar isso para o legista", disse Jaye. "Já pegou tudo que podia disso, Barn?"
"Peguei", disse o operador de vídeo, sem ser visto. "Tá legal, vamos voltar e examinar a amarração." A câmera foi seguindo o arame desde o pescoço até os pés. O
fio enrolava-se em torno do pescoço e passava num nó corrediço. Seguia depois pela coluna vertebral até dar várias voltas em torno dos tornozelos, que haviam sido
puxados tanto para trás que os calcanhares da vítima estavam encostados na bunda.
Os pulsos estavam amarrados com um pedaço separado de arame, o qual fora enrolado seis vezes e depois arrematado com um nó. As amarras deixavam marcas profundas
na pele dos pulsos e dos tornozelos, indicando que a vítima lutara durante algum tempo antes de finalmente sucumbir.
Quando a filmagem do corpo foi completada, Jaye mandou o operador oculto fazer uma tomada completa de todos os aposentos do apartamento.
A câmera afastou-se do corpo e focalizou o restante do espaço da sala de estar/jantar. A casa parecia mobiliada com móveis de segunda mão. Não havia uniformidade,
e nenhuma das peças combinava com as outras. Os poucos quadros pendurados nas paredes pareciam ter vindo de um quarto da cadeia de hotéis Howard Johnson dez anos
antes - eram todos em tom pastel, alaranjados e azul-esverdeados. Na extremidade mais afastada do aposento via-se uma cristaleira alta, sem louça alguma dentro.
Algumas prateleiras continham livros, mas a maioria estava vazia. Em cima da cristaleira havia algo que McCaleb achou curioso: uma coruja de uns sessenta centímetros
de altura, que parecia ter sido pintada a mão. Ele já vira muitas daquelas corujas antes, principalmente no porto de Avalon e na marina Cabrillo. Quase sempre eram
feitas de plástico oco e colocadas no alto de mastros ou na ponte de comando de lanchas, geralmente numa tentativa malsucedida de afastar gaivotas e outros pássaros
das embarcações. Teoricamente, a coruja seria vista
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como um predador pelas outras aves, que assim ficariam longe e deixariam os barcos livres de suas fezes.
McCaleb também já vira aquelas corujas usadas no exterior de prédios públicos, onde os pombos eram um problema. Mas ficou interessado ao ver a coruja de plástico
naquele local por nunca ter visto ou ouvido falar de nenhuma usada dentro de uma residência particular, fosse como ornamento, fosse com outro objetivo. Sabia que
as pessoas colecionam todo tipo de coisa, inclusive corujas, mas nunca vira nenhuma em um apartamento a não ser aquela ali, postada no centro da cristaleira. Abriu
rapidamente o dossiê e achou o laudo de identificação da vítima. Dizia que o sujeito era pintor de paredes. McCaleb fechou o dossiê. Pensou que a vítima talvez tivesse
trazido a coruja de um local de trabalho ou que a tivesse retirado de alguma estrutura que estivesse se preparando para pintar.
Fez a fita recuar, e viu novamente o operador da câmera passar do corpo para a cristaleira onde estava pousada a coruja. Pareceulhe que a câmera fizera um giro de
180 graus, e isso significava que a coruja estaria diretamente diante da vítima, lançando o olhar sobre a cena do crime.
Embora houvesse outras possibilidades, seu instinto lhe dizia que a coruja de plástico era, de certa forma, parte da cena do crime. Pegou o caderno e colocou a coruja
como a sexta anotação da lista.
O restante da gravação da cena do crime atraiu pouca atenção de McCaleb. Registrava os demais aposentos do apartamento da vítima - o quarto, o banheiro e a cozinha.
Ele não viu outras corujas e não fez mais anotações. Quando chegou ao final da fita, rebobinou-a e assistiu a tudo novamente, mas nada de novo chamoulhe a atenção.
Ejetou a fita e meteu-a no invólucro de cartolina. Depois carregou a tevê de volta para o salão, prendendo-a no suporte sobre a bancada.
Buddy estava estirado no sofá lendo o tal livro de bolso. Não disse nada, e McCaleb percebeu que ele se ofendera ao ter a porta do escritório fechada e trancada
na sua cara. Pensou em pedir desculpas, mas decidiu deixar por isso mesmo. Buddy era muito
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intrometido acerca do passado e do presente dele. Talvez aquela rejeição o fizesse perceber isso.
- O que está lendo? - perguntou, em vez de pedir desculpas.
- Um livro - respondeu Buddy, sem levantar os olhos. McCaleb sorriu para si mesmo. Tinha certeza que Buddy sentira o golpe.
- Bom, aí está a tevê, se quiser ver o noticiário ou outra coisa qualquer.
- O noticiário já era.
McCaleb olhou para o relógio. Meia-noite. Não tinha sentido o tempo passar. Isso lhe acontecia muito. Quando estava no FBI, era bastante comum ficar trabalhando
durante a hora do almoço ou entrar pela noite sem perceber, sempre que estava mergulhado a fundo num caso.
Deixou Buddy emburrado ali e voltou ao escritório. Fechou a porta de novo ruidosamente, e a trancou.
Capítulo 4
Depois de virar uma nova folha em branco no caderno, McCaleb abriu o dossiê do assassinato. Soltou as argolas e tirou os documentos, empilhando-os cuidadosamente
na escrivaninha. Era um pequeno cacoete: não gostava de fazer a revisão de um caso virando as páginas como num livro. Gostava de segurar nas mãos os relatórios individuais.
Gostava de acertar os cantos da pilha inteira. Pôs a pasta de lado e começou a ler cuidadosamente, em ordem cronológica, os resumos investigativos. Dentro em pouco
estava completamente imerso na investigação.
O relato de homicídio chegara de forma anônima à recepção da subdelegacia de West Hollywood, do gabinete do xerife de Los Angeles, ao meio-dia de segunda-feira,
1 de janeiro. A pessoa que ligara tinha dito que havia um homem morto no apartamento 2B do Edifício Grand Royale, na avenida Sweetzer, perto de Melrose. Desligara
sem dar o nome ou qualquer outra mensagem. Como chegara por uma das linhas da recepção que não eram de emergência, o relato não fora gravado, e o aparelho não dispunha
de identificador de chamadas.
Dois patrulheiros foram destacados para o apartamento e encontraram a porta da frente entreaberta. Sem obter resposta quando bateram e chamaram, os policiais entraram
no apartamento, percebendo rapidamente que o informante anônimo tinha feito
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um relato preciso. Havia um homem morto no recinto. Os policiais saíram do apartamento, e a equipe da Homicídios fora convocada, sendo encarregados do caso os parceiros
Jaye Winston e Kurt Mintz, com Jaye na chefia.
A vítima era identificada nos relatórios como Edward Gunn, um pintor de paredes itinerante de quarenta e quatro anos. Morava sozinho no apartamento da avenida Sweetzer
havia nove anos.
Uma pesquisa por computador em busca de registros criminais ou atividades criminosas conhecidas revelara que Gunn tinha um passado de condenações por pequenos delitos,
que iam desde o aliciamento de prostitutas e vadiagem até prisões repetidas por bebedeiras em público e dirigir alcoolizado. Fora preso duas vezes por dirigir bêbado
nos três meses anteriores à sua morte, inclusive na noite de 30 de dezembro. Pagara fiança no dia 31 e fora solto. Menos de vinte e quatro horas depois, estava morto.
Os relatórios também mostravam uma prisão por um crime sério, sem condenação subseqüente. Seis anos antes Gunn fora levado preso pelo Departamento de Polícia de
Los Angeles e interrogado sobre um homicídio. Fora solto mais tarde, sem sequer ter sido indiciado.
De acordo com os relatórios investigativos incluídos por Jaye Winston e seu parceiro no dossiê de assassinato, não havia sinais de roubo no apartamento de Gunn ou
no corpo da própria vítima, afastando a hipótese de latrocínio. Outros residentes do prédio de seis apartamentos haviam dito que nada de anormal fora ouvido no apartamento
de Gunn na véspera do Ano-Novo. Qualquer som que pudesse ter saído do apartamento durante o assassinato provavelmente tinha sido abafado pelo barulho de uma festa
dada por um inquilino que morava embaixo de Gunn. A festa entrara pela manhã do dia
1 de janeiro. Gunn, segundo diversos participantes da festa que haviam sido
entrevistados, não comparecera ao evento e não fora convidado.
Uma busca na vizinhança, formada principalmente por pequenos prédios semelhantes ao Grand Royale, não produzira testemunhas que recordassem ter visto Gunn nos dias
anteriores à morte dele.
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Tudo indicava que o criminoso tinha ido atrás de Gunn. A ausência de danos nas portas e janelas do apartamento mostrava que não houvera arrombamento e que era muito
possível que Gunn conhecesse seu assassino. Pensando nisso, Jaye e Mintz haviam interrogado todos os colegas e conhecidos da vítima, bem como todos os inquilinos
e pessoas que haviam comparecido à festa no andar de baixo, num esforço para apontar um suspeito. O resultado fora nulo.
Eles também haviam conferido todos os registros financeiros da vítima, procurando uma pista que indicasse uma motivação pecuniária, sem encontrar nada. Gunn não
tinha emprego fixo. Tinha como base uma loja de pinturas e decoração de interiores no bulevar Beverly, onde oferecia seus serviços a clientes na base de diárias.
Vivia ao Deus dará, ganhando o estritamente necessário para pagar e manter o apartamento, além de uma pequena picape na qual transportava o material de pintura.
Tinha um único parente vivo, uma irmã que morava em Long Beach. Na ocasião de sua morte, não se viam havia mais de um ano, embora houvesse telefonado para ela na
véspera da desgraça, de uma cela da delegacia do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estava ali porque o pegaram dirigindo bêbado. A irmã tinha relatado que
dissera ao irmão que não podia mais continuar a ajudá-lo, pagando as fianças dele. Desligara. E não pudera fornecer aos investigadores qualquer informação útil relativa
ao assassinato do irmão.
O incidente pelo qual Gunn tinha sido preso seis anos antes fora meticulosamente reexaminado. Ele matara uma prostituta num quarto de hotel do Sunset Boulevar. Usara
a faca da própria mulher para apunhalá-la quando ela tentara feri-lo e roubá-lo, segundo seu depoimento no relatório apresentado pela Divisão de Hollywood do Departamento
de Polícia de Los Angeles. Havia pequenas inconsistências entre o depoimento original de Gunn aos policiais da patrulha chamada ao local e as provas físicas, mas
que não eram suficientemente fortes para que o promotor público o indiciasse. Embora de modo relutante, o caso acabara sendo considerado legítima defesa e arquivado.
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McCaleb observou que o investigador-chefe do caso fora o detetive Harry Bosch. Já havia trabalhado com Bosch num caso antigo, uma investigação em que ainda pensava
com freqüência. Bosch se mostrara ríspido e misterioso às vezes, mas mesmo assim era um bom policial, com grande talento, intuição e instinto de investigador. Na
realidade, os dois se viram de certa forma ligados, devido ao torvelinho emocional no qual o caso os mergulhara. McCaleb anotou o nome de Bosch no caderno como um
lembrete, a fim de telefonar para o detetive e ver se ele tinha alguma idéia sobre o caso de Gunn.
Voltou à leitura dos sumários. Tendo em mente o registro anterior do envolvimento de Gunn com uma prostituta, o passo seguinte de Jaye Winston e Mintz fora vasculhar
os registros telefônicos da vítima, bem como compras com cheques e cartões de crédito, procurando indicações de que talvez Gunn houvesse continuado a procurar prostitutas,
mas nada haviam encontrado. Durante três noites, haviam percorrido o Sunset Boulevar com uma equipe da Delegacia de Costumes do Departamento de Polícia de Los Angeles,
parando e entrevistando prostitutas de rua. Contudo nenhuma delas admitira conhecer o homem das fotos que a irmã de Gunn emprestara aos detetives.
Os investigadores haviam pesquisado os anúncios de serviços sexuais nos jornais alternativos locais, à procura de algum anúncio que Gunn pudesse ter colocado. Mas
isso também não os ajudou em nada.
Finalmente a investigação lançara-se ao recurso, com pequena probabilidade de êxito, de rastrear a família e as ligações da prostituta morta seis anos antes. Embora
Gunn jamais houvesse sido acusado da morte da mulher, ainda havia a chance de que alguém houvesse acreditado que ele não agira em legítima defesa - alguém que poderia
querer se vingar.
Mas isso também se mostrara um beco sem saída. A família da mulher era da Filadélfia e perdera contato com ela muitos anos antes. Nenhum parente chegara a reclamar
o corpo antes que este fosse cremado à custa dos contribuintes do condado. Não havia razão para que alguém buscasse vingança por uma morte ocorrida
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seis anos antes, se para começar ninguém se importara muito com
essa morte.
O caso estancara num beco sem saída após outro. Um caso não resolvido nas primeiras quarenta e oito horas tinha menos de cinqüenta por cento de chances de ser esclarecido.
Depois de duas semanas a coisa se assemelhava a um cadáver anônimo no necrotério - ficava lá, no frio e no escuro, por muito, muito tempo.
E fora por isso que Jaye finalmente recorrera a McCaleb. Ele era o último recurso para um caso sem esperança de solução.
Terminada a leitura dos sumários, McCaleb decidiu fazer uma parada. Olhou para o relógio e viu que eram quase duas horas da manhã. Abriu a porta da cabine e subiu
para o salão. As luzes estavam apagadas. Aparentemente Buddy fora dormir na cabine principal, sem fazer barulho. McCaleb abriu a geladeira e examinou seu conteúdo.
Havia um pacote de cervejas que sobrara do passeio, mas ele não queria aquilo. Tinha também um pacote de suco de laranja e água mineral. Pegou a água e passou para
o convés pela porta do salão. Sempre fazia frio no mar, mas a temperatura estava mais baixa ainda do que o habitual. Cruzou os braços sobre o peito e ergueu o olhar
sobre a baía até a casa na colina onde sua família dormia. Apenas uma luz solitária brilhava no pátio dos fundos.
Uma ligeira pontada de culpa perpassou-lhe a alma. Ele sabia que, apesar de seu profundo amor pela mulher e pelas duas crianças atrás daquela luz, preferia estar
ali no barco com o dossiê de assassinato do que lá em cima na casa adormecida. Tentou afastar aqueles pensamentos e as questões por eles suscitadas, mas não podia
esconder inteiramente de si mesmo a conclusão essencial de que havia algo de errado com ele, alguma coisa que lhe faltava. Era algo que o impedia de abraçar plenamente
aquilo pelo qual a maioria dos homens parecia ansiar.
Voltou a entrar no barco. Sabia que se mergulhasse na leitura dos relatórios do caso a culpa desapareceria.
O laudo da autópsia não continha surpresas. A causa da morte fora o que McCaleb previra ao ver a fita: hipoxia cerebral devido à compressão das artérias carótidas
por estrangulamento de ligadura.
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A hora da morte fora estimada entre meia-noite e três da madrugada do dia
1de janeiro. O médico-legista que fizera a autópsia observara que os danos interiores no pescoço eram mínimos. Nem o osso hióide nem a cartilagem tiroidiana estavam
quebrados.
Esse aspecto, juntamente com os sulcos múltiplos de ligadura na pele, haviam levado o legista a concluir que Gunn sufocara vagarosamente, enquanto lutava desesperadamente
para manter os pés atrás das costas, de modo que o laço de arame não lhe apertasse o pescoço. A conclusão da autópsia sugeria que a vítima talvez tivesse lutado
naquela posição por umas duas horas.
McCaleb ficou pensando nisso, imaginando que o assassino talvez houvesse permanecido no apartamento durante todo o tempo, observando a agonia do homem. Ou talvez
houvesse amarrado a vítima e partido antes que esta estivesse morta, possivelmente colocando em prática algum plano de álibi - como aparecer numa festa de Ano-Novo,
a fim de que diversas testemunhas garantissem tê-lo visto na hora da morte da vítima.
Lembrou-se então do balde e concluiu que o assassino permanecera no local. Cobrir o rosto da vítima era algo freqüente em assassinatos com motivação sexual ou ódio.
O agressor cobria o rosto da vítima como meio de desumanizá-la e evitar o contacto visual. McCaleb já trabalhara em dezenas de casos onde observara esse fenômeno:
mulheres estupradas e assassinadas com camisolas ou fronhas cobrindo o rosto ou crianças com a cabeça envolvida em toalhas. Ele poderia elaborar uma lista de exemplos
que encheriam um caderno inteiro. Em vez disso, escreveu uma linha na página embaixo do nome de Bosch.
SUDES estava lá o tempo todo. Ficou assistindo.
O sujeito desconhecido, pensou McCaleb. Mais uma vez nos encontramos.
Antes de continuar, folheou o laudo da autópsia à procura de duas informações. Primeiro, o ferimento na cabeça. Encontrou
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uma descrição do ferimento nos comentários do legista. A laceração perimortem era circular e superficial. O dano causado fora mínimo e possivelmente tratava-se de
um ferimento defensivo.
McCaleb achava impossível que aquele ferimento fosse defensivo. O único sangue no tapete na cena do crime era o que caíra do balde depois que este fora colocado
sobre a cabeça da vítima. Além do mais, o sangue do ferimento no alto da cabeça fluíra na direção da face e escorrera sobre esta. Isso mostrava que a cabeça estava
inclinada para a frente. Levando tudo isso em conta, McCaleb concluiu que Gunn já estava amarrado e caído no chão quando o golpe foi desferido na sua cabeça e quando
esta foi coberta pelo balde. Seu instinto lhe dizia que aquilo talvez houvesse sido um golpe desfechado com a intenção de apressar o fim da vítima; um impacto na
cabeça que enfraqueceria a vítima e abreviaria sua luta contra o enforcamento.
Anotou essas impressões no caderno e voltou à leitura do laudo da autópsia. Localizou o que fora descoberto no exame do ânus e do pênis. O material colhido indicava
não ter havido atividade sexual no período antes da morte. McCaleb escreveu Sem Sexo no caderno. Embaixo anotou a palavra Raiva e fez um círculo em torno dela.
Sabia que Jaye Winston provavelmente já chegara a grande parte - e talvez ao total - das suspeitas e conclusões que ele estava levantando ali. Entretanto aquela
sempre fora a sua rotina no exame de cenas do crime. Primeiro ele fazia sua própria avaliação e depois olhava para ver como aquilo se portava face às conclusões
dos investigadores iniciais.
Depois da autópsia, passou para os relatórios referentes às provas. Primeiro examinou a lista de provas materiais coletadas e verificou que a coruja de plástico
que vira na fita não fora empacotada e etiquetada. Sabia que isso deveria ter sido feito e anotou uma observação sobre o fato. Também faltava na lista qualquer menção
sobre a recuperação de uma arma. Aparentemente, fosse qual fosse o objeto usado para abrir o ferimento no couro cabeludo de Gunn, tinha sido levado da cena pelo
assassino. McCaleb anotou isso
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também, pois tratava-se de outra informação sobre o perfil do assassino, que parecia alguém organizado, meticuloso e cauteloso. O relatório sobre a análise da fita
adesiva usada para amordaçar a vítima estava arquivado em um envelope separado, que McCaleb encontrou numa das divisões do dossiê. Além de um relato impresso e um
adendo, havia diversas fotografias que mostravam o comprimento total da fita depois que esta fora cortada e retirada do rosto e da cabeça da vítima. O primeiro conjunto
de fotografias revelava a parte dianteira e traseira da fita como esta fora encontrada, com uma quantidade significativa de sangue coagulado tapando a mensagem escrita.
O grupo seguinte mostrava a fita, pela frente e por trás, depois que o sangue fora removido com água e sabão. McCaleb ficou olhando para a mensagem por muito tempo,
embora soubesse que nunca poderia decifrá-la por conta própria.
Cave Cave Dus Videt
Pôs finalmente as fotografias de lado e pegou os relatórios que as acompanhavam. Descobriu que a fita não continha impressões digitais, mas vários pêlos e fibras
microscópicas haviam sido colhidas do lado adesivo. Fora verificado que os pêlos eram da vítima. As fibras haviam sido preservadas, à espera de ordens posteriores
para análise. McCaleb sabia que isso significava que havia restrições de tempo e dinheiro. As fibras só seriam analisadas quando a investigação chegasse a um ponto
em que houvesse fibras pertencentes a um suspeito qualquer que também pudessem ser analisadas e comparadas. Caso contrário, a análise das fibras, cara e demorada,
não valeria para nada. McCaleb já vira esse tipo de priorização investigativa antes. Era uma rotina das autoridades locais não tomar medidas caras até que isso fosse
necessário. Mas ficou um pouco surpreso ao ver que isso não tinha sido considerado necessário no caso em pauta. Concluiu que o passado de Gunn como suspeito anterior
de um crime poderia tê-lo relegado a vítima de segunda classe, para a qual esse tipo de providência não era tomada. Talvez, pensou ele, houvesse sido por aquele
motivo que Jaye Winston viera procurá-lo. Ela não dissera nada sobre pagá-lo pelas
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horas gastas com o caso - e de qualquer forma ele não poderia aceitar qualquer pagamento.
McCaleb passou para o relatório em adendo, que fora elaborado por Jaye. Ela levara uma fotografia da fita adesiva e da mensagem a um professor de lingüística da
Universidade da Califórnia, Los Angeles, que identificara as palavras como latinas. Depois procurara um padre católico aposentado, que morava na reitoria da igreja
de St. Catherine, em Hollywood, e ensinara latim por vinte anos na escola paroquial antes que a matéria fosse retirada do currículo escolar no início da década de
1970. Ele traduzira facilmente a mensagem para Jaye.
Cave Cave Dus Videt Cave Cave D(omin)us Videt Cuidado Cuidado Deus Vê
- Santa merda - disse McCaleb baixinho, para si mesmo.
Isso não foi dito como uma exclamação. Mais exatamente, era a frase que ele e seus colegas que elaboravam perfis de criminosos no FBI usavam para classificar informalmente
os casos em que assuntos religiosos faziam parte das provas. Quando se descobria que Deus era parte da provável motivação para um crime, o caso era mencionado como
uma "santa merda" em conversas informais. O fato também alterava significativamente as coisas, pois o trabalho de Deus nunca terminava. Quando um assassino andava
à solta usando o nome Dele como parte de sua marca num crime, com freqüência havia mais crimes. Dizia-se, nos escritórios de perfil do FBI, que os assassinos de
Deus nunca paravam por sua própria vontade. Precisavam ser detidos. McCaleb entendia agora a apreensão de Jaye Winston em deixar que o caso caísse no esquecimento.
Se Edward Gunn era a primeira vítima conhecida, havia mais alguém na mira do assassino naquele exato momento.
McCaleb copiou a tradução da mensagem do assassino e algumas outras impressões. Escreveu Aquisição de Vítimas e sublinhou a expressão duas vezes.
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Olhou de novo para o relatório de Jaye e percebeu que no final da página onde se encontrava a tradução havia um parágrafo assinalado com um asterisco.
* O padre Ryan declarou que a palavra "Dus", como vista na fita adesiva, era uma forma abreviada de "Deus" ou "Dominus", encontrada principalmente nas bíblias medievais,
bem como em baixos-relevos de igrejas e outras peças artísticas.
McCaleb recostou-se na cadeira e bebeu água da garrafa. Achava que o parágrafo final era o mais interessante de todo o conjunto. A informação ali contida poderia
ser um meio pelo qual o assassino talvez pudesse ser isolado em um pequeno grupo e depois encontrado. Inicialmente, o conjunto de suspeitos era muito grande - incluía
essencialmente qualquer um que houvesse tido acesso a Edward Gunn na véspera de Ano-Novo. Mas a informação do padre Ryan reduzia o elenco significativamente, passando
a ser suspeito apenas quem tivesse conhecimento de latim medieval ou quem houvesse tirado a palavra Dus, e possivelmente toda a mensagem, de algo que vira. Talvez
algo numa igreja.
Capítulo 5
McCaleb estava muito excitado com tudo o que tinha lido e visto para pensar em dormir. Eram quatro e meia da manhã, e ele sabia que terminaria a noite acordado ali
no escritório. Provavelmente ainda era cedo demais em Quantico, Virginia, para que alguém já estivesse na Unidade de Ciências Comportamentais, mas decidiu telefonar
assim mesmo. Foi até o salão, tirou o telefone celular do carregador de bateria e teclou o número de memória. Quando a telefonista geral atendeu, ele pediu para
a ligação ser transferida para a mesa da agente especial Brasília Doran. Poderia falar com muita gente ali, mas escolheu Brasília porque eles haviam sido bons colegas
- e muitas vezes a grande distância um do outro - quando ele estava no FBI. Brasília também era especializada na identificação e simbologia de ícones.
O telefonema foi atendido por uma secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem de Brasília, McCaleb tentou rapidamente decidir se deixava uma mensagem ou simplesmente
telefonaria outra vez. Inicialmente, achou que seria melhor desligar e tentar falar ao vivo com ela mais tarde, porque um telefonema pessoal é muito mais difícil
de ser ignorado do que uma mensagem gravada. Contudo depois decidiu acreditar na antiga camaradagem dos dois, embora ele já estivesse afastado do FBI há cinco anos.
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- Brass, é Terry McCaleb. Há quanto tempo não nos vemos... Escute, estou telefonando porque preciso de um favor. Pode ligar de volta logo que tiver tempo? Eu gostaria
muito.
Deu o número do seu telefone celular, agradeceu e desligou. Podia levar o telefone para casa e esperar a chamada, mas lá Graciela poderia ouvir a conversa dele com
Brasília Doran, e isso ele não queria. Voltou ao camarote dianteiro e começou a reler os documentos do dossiê de assassinato. Conferiu novamente cada uma das páginas,
procurando algo que se destacasse, fosse por inclusão ou exclusão. Tomou mais algumas notas e arrolou as coisas que ainda precisava fazer e saber antes de elaborar
um perfil. Entretanto estava apenas esperando por Brasilia. Finalmente, às cinco e trinta, ela retornou o telefonema.
- Quanto tempo mesmo - disse ela, num cumprimento.
- Muito mesmo. Como está, Brass?
- Não posso me queixar, já que ninguém escuta.
- Soube que vocês estão atolados de trabalho.
- Nisso você tem razão. Atolados e estourados. Você sabe que no ano passado nós mandamos metade da equipe para Kosovo a fim de ajudar nas investigações dos crimes
de guerra. Em turnos de seis semanas. Isso simplesmente nos arrasou. Estamos tão atrasados no serviço que a situação está ficando crítica.
McCaleb ficou pensando se ela não estaria lhe passando um aviso de coitadinha-de-mim, para que ele não pudesse pedir-lhe o favor que mencionara no telefonema. Decidiu
ir em frente.
- Bom, então você não vai gostar de falar comigo - disse ele. - Ah, estou tremendo de medo. Do que você precisa, Terry?
- Estou fazendo um favor aqui para a equipe de homicídios do gabinete do xerife. Estou dando uma olhada em um caso de homicídio e...
- Ele já nos contactou?
- E ela. Entrou no programa PCCV e não conseguiu nada. Só isso. Depois ela soube que vocês aí são craques em elaborar perfis de criminosos, e veio me procurar. Eu
devo a ela uma espécie de favor, de modo que disse que daria uma olhada no caso.
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- E agora está querendo furar a fila, não é?
McCaleb sorriu, na esperança de que ela também estivesse sorrindo do outro lado.
- Por aí. Mas acho que é jogo rápido. Só quero uma coisa.
- Então desembuche logo. O que é?
- Preciso de uma pesquisa iconográfica. Estou seguindo um palpite nesse sentido.
- Está bem. Não parece que isso vá me tomar muito tempo.
Qual é o símbolo?
- Uma coruja.
- Uma coruja? Só uma coruja?
- Uma coruja de plástico, na verdade. Mas uma coruja, mesmo assim. Quero saber se isso já pintou por aí antes e o que significa.
- Bom, eu me lembro de uma coruja num saco de batata frita. Qual é aquela marca?
- Wise, sábia. Eu me lembro. É uma marca da Costa Leste. - Pois é. A coruja é esperta. É sábia.
- Brass, eu esperava alguma coisa mais...
- Eu sei, eu sei. Vamos fazer o seguinte... Vou ver o que posso fazer. Mas é bom lembrar que os símbolos mudam. O significado de uma coisa numa determinada época
pode ser algo completamente diferente em outra. Só está procurando empregos e exemplos contemporâneos?
McCaleb pensou um instante sobre a mensagem na fita adesiva.
- Dá pra levar a coisa até a época medieval?
- Parece que você está com um caso estranho... Mas todos são estranhos, não? Deixe-me adivinhar... E um caso de "santa merda"?
- Pode ser. Como percebeu?
- Ah, todos esses troços de Inquisição e igreja na era medieval. Já vi isso antes. Eu tenho o seu telefone. Vou ver se dou retorno
ainda hoje.
McCaleb pensou em pedir que ela fizesse uma análise da mensagem na fita adesiva, mas decidiu não acumular as coisas. Além disso, provavelmente a mensagem fora incluída
na pesquisa por computador feita por Jaye. Ele agradeceu, e estava prestes a desligar, quando ela lhe perguntou como ia a saúde. Ele disse que ia bem.
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- Você ainda mora naquele barco, como ouvi dizer?
- Neca. Estou morando numa ilha agora. Mas ainda tenho o barco. Além de um esposa e uma filhinha pequena.
- Uau! Esse é o Terry "Jantar Com Tevê" McCaleb que eu conhecia?
- O mesmo, acho eu.
- Bom, parece que deu um acerto na sua vida.
- Acho que finalmente consegui.
- Então tenha cuidado. Pra que se meter novamente num caso desses?
McCaleb hesitou.
- Não tenho certeza.
- Não tente me enrolar. Tanto eu quanto você sabemos por que está fazendo isso. Vou ver o que descubro e ligo de volta para você.
- Obrigado, Brass. Vou ficar esperando.
McCaleb foi até o camarote principal e sacudiu Buddy para acordá-lo. O amigo se espantou e começou a agitar os braços desordenadamente.
- Sou eu, sou eu!
Antes de se acalmar, Buddy golpeou McCaleb no lado da cabeça com o livro que estava segurando quando pegou no sono.
- O que está fazendo? - exclamou Buddy.
- Estou tentando te acordar, cara.
- Pra quê? Que horas são?
- São quase seis. Quero levar o barco para o outro lado.
- Agora?
- E, agora. Levante e me ajude. Vou pegar as cordas.
- Cara, agora? A gente vai pegar uma névoa forte. Por que não espera até clarear?
- Porque não tenho tempo.
Buddy estendeu a mão e acendeu a lâmpada de leitura presa à parede da cabine, logo acima da cabeceira. McCaleb viu que o livro que o outro estava lendo era Rastros
da maldade - O canto da sereia.
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- Com toda certeza alguma coisa deu um choque no seu sangue, cara - disse ele, esfregando a orelha atingida pelo livro.
- Desculpe. Mas por que está com tanta pressa de cruzar? E o tal caso, não é?
- Vou subir. Vamos botar o pé na estrada.
McCaleb saiu da cabine. Como já esperava, Buddy chamou-o, dizendo:
- Vai precisar de um motorista?
- Não, Buddy. Você sabe que eu venho dirigindo há dois anos.
- E, mas pode precisar de ajuda nesse caso, cara.
- Eu me viro. Depressa, Bud, quero chegar logo.
McCaleb tirou a chave do gancho perto da porta do salão, saiu e subiu à ponte de comando. O ar ainda estava frio, e pequenos feixes da luz da aurora abriam caminho
na névoa da manhã. Ligou o radar Raytheon e deu a partida nos motores. Pegaram imediatamente - Buddy levara o barco até a marina
del Rey na semana anterior para fazer manutenção.
McCaleb deixou os motores em ponto morto, desceu de novo e foi até a popa. Soltou o cabo do Zodiac e foi puxando o bote inflável até a proa. Amarrou-o no cabo da
bóia de ancoragem depois de soltá-lo do gancho dianteiro, deixando o barco livre. Depois subiu à parte mais alta da proa. Quando olhou para a ponte de comando, viu
Buddy, com o cabelo parecendo um ninho emaranhado devido ao sono, tomando o assento do piloto. McCaleb fez sinal de que a embarcação estava livre. Buddy empurrou
os aceleradores para frente e o Mar que Segue começou a se mover. McCaleb pegou no convés a haste de atracação, de quase três metros, e usou-a para manter a bóia
afastada da proa enquanto o barco girava no canal livre e vagarosamente tomava a direção da entrada da baía.
McCaleb ficou ali, na parte mais alta da proa, encostado na balaustrada, observando a ilha se afastar atrás do barco. Levantou novamente os olhos na direção de sua
casa e viu apenas uma única luz acesa. Era cedo demais para a família estar acordada. Pensou no erro que conscientemente acabara de cometer. Deveria ter ido para
casa e dito a Graciela o que estava fazendo, explicando a coisa.
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Mas sabia que aquilo lhe tomaria um bocado de tempo e que nunca encontraria uma explicação que a satisfizesse. Decidiu simplesmente ir em frente. Telefonaria para
a esposa após a travessia e arcaria com as conseqüências de sua decisão mais tarde.
A aurora tinha um tom acinzentado como o de um tubarão, e o ar frio esticara a pele de seus braços e de seu pescoço. Ele se virou ali na proa e lançou o olhar sobre
a baía, para o ponto onde sabia que ficava a cidade escondida pela névoa. A sensação de não conseguir enxergar o que sabia estar lá era sinistra, e ele baixou o
olhar. A água cortada pela proa parecia lisa, de um tom azul-negro como um marlim. McCaleb sabia que precisava subir à ponte de comando para auxiliar Buddy. Um deles
pilotaria a embarcação, enquanto o outro mantinha os olhos na tela do radar a fim de mapear uma trajetória segura até o porto de Los Angeles. Era uma pena, pensou,
que não houvesse um radar que ele pudesse usar quando chegasse à terra de novo e tentasse achar seu caminho naquele caso que o fisgara. Um nevoeiro de tipo diferente
o esperava lá. E foram esses pensamentos, ao tentar enxergar o caminho adiante, que o levaram a recordar aquilo que o intrigara tão profundamente naquele caso.
Cuidado Cuidado Deus Vê
As palavras giravam na sua cabeça como um mantra recém-descoberto. Naquela névoa espessa ali na frente, havia alguém que escrevera aquelas palavras. Alguém que agira
segundo aquelas palavras de forma extremada pelo menos uma vez, e que provavelmente faria isso de novo. McCaleb estava indo encontrar essa pessoa. E ao fazê-lo,
pensou, estaria agindo segundo as palavras de quem? Havia um verdadeiro Deus enviando-o nessa jornada?
Sentiu um toque no ombro e virou-se sobressaltado, quase deixando cair a haste de atracação por cima da balaustrada. Era Buddy.
-Jesus Cristo, cara, não faça isso!
- Você está bem?
- Eu estava até você me pregar esse baita susto. O que está fazendo? Devia estar pilotando.
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McCaleb deu uma olhada por cima do ombro para verificar se eles estavam afastados das bóias sinalizadoras e já no centro da baía.
- Sei lá - disse Buddy. - Você parecia o capitão Ahab, parado aqui com essa haste. Achei que havia algo de errado. O que está fazendo?
- Estou pensando. Se incomoda? Não me dê um susto como esse de novo, cara.
- Bom, acho que com essa ficamos empatados.
- Vá pilotar o barco, Buddy. Eu subo num minuto. E verifique o gerador... é bom carregar as baterias.
Enquanto Buddy se afastava, McCaleb sentiu seu coração voltar ao compasso normal. Saiu da proa e prendeu a haste de atracação nos grampos do convés. Ao se inclinar,
sentiu a embarcação subir e baixar ao passar por uma onda de um metro e pouco. Endireitou-se e olhou em torno para ver a origem da marola. Mas não viu nada. Talvez
um fantasma deslizando na superfície lisa da baía.
Capítulo 6
Harry Bosch levantou a maleta como um escudo, usando-a para abrir caminho entre a multidão de repórteres e cinegrafistas reunidos diante das portas do tribunal.
- Com licença, por favor, com licença.
A maioria deles só se mexia quando ele os empurrava para o lado com a maleta. Agrupavam-se desesperadamente, estendendo gravadores e câmeras na direção do centro
do nó humano onde o advogado de defesa dava entrevista.
Bosch conseguiu finalmente chegar à porta, onde um policial do escritório do xerife estava encurralado contra a maçaneta. Ele reconheceu Bosch e afastou-se para
o lado a fim de abrir a porta.
- Isso vai acontecer todo dia, sabia? - disse Bosch ao policial.
- Esse cara tem mais a dizer fora do tribunal do que dentro. Vocês deviam pensar em estabelecer certas regras para que as pessoas possam entrar e sair.
Ao passar pela porta, Bosch ouviu o policial dizer que ele mesmo devia falar com o juiz sobre o assunto.
Seguiu pelo corredor central e cruzou o portão que levava à mesa da promotoria. Fora o primeiro a chegar. Puxou a terceira cadeira e sentou-se. Abriu a maleta sobre
a mesa, tirou a pesada pasta azul e colocou-a ali ao lado. Depois abaixou a tampa e os fechos da maleta e colocou-a no chão, ao lado da cadeira.
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Ele estava pronto. Inclinou-se para a frente e cruzou os braços em cima da pasta. O tribunal estava silencioso e quase vazio, exceto pelo auxiliar do juiz e um escrivão
que se preparavam para o dia. Bosch gostava daquelas ocasiões. Era a calmaria antes da tempestade. E ele sabia, sem dúvida, que uma tempestade certamente viria.
Balançou a cabeça silenciosamente. Estava pronto, pronto para dançar com o diabo mais uma vez. Percebia que sua missão na vida girava em torno de momentos como aquele.
Momentos que deveriam ser saboreados e lembrados, mas que sempre causavam uma pontada em suas entranhas.
Ouviu-se um forte ruído metálico, e a porta da cela de detenção lateral foi aberta. Dois policiais fizeram um homem entrar. Ele era jovem e misteriosamente continuava
bronzeado apesar dos quase três meses de prisão. Usava um terno que facilmente cobriria os contracheques semanais dos dois homens que o ladeavam. Suas mãos pendiam
ao lado do corpo, algemadas a uma corrente na cintura que parecia destoar daquele terno azul bem-talhado. Numa das mãos trazia um bloco de desenho. Na outra, tinha
uma caneta hidrográfica, a única espécie de instrumento de escrita permitida na cadeia.
O sujeito foi levado para a mesa da defesa e colocado diante do assento central. Quando as algemas e a corrente foram retiradas, ele sorriu e olhou para a frente.
Um policial pôs a mão no ombro dele, fazendo com que se sentasse. Depois os dois policiais recuaram e tomaram posição em cadeiras atrás do sujeito.
Ele inclinou-se imediatamente para a frente, abriu o bloco e começou a desenhar com a caneta. Bosch ficou observando. Podia ouvir a ponta da caneta riscando furiosamente
o papel.
- Eles não me deixam usar carvão, Bosch. Acredita nisso? Que ameaça pode representar um pedaço de carvão?
Não tinha olhado para Bosch ao dizer aquilo, e Bosch não respondeu.
- São essas coisinhas que mais me chateiam - disse o homem.
- E melhor ir se acostumando - disse Bosch.
O sujeito riu, mas ainda assim não olhou para o detetive.
- Não sei como, mas eu sabia que você ia dizer exatamente isso.
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Bosch ficou calado.
- Você é tão previsível, Bosch, entende? Todos vocês.
A porta dos fundos do tribunal se abriu, e Bosch desviou os olhos do réu. Os advogados de defesa já estavam entrando. Eles estavam prestes a começar.
Capítulo 7
Third Street Promsnade
Quando chegou ao Mercado do Fazendeiro, McCaleb estava meia hora atrasado para o encontro com Jaye Winston. Ele e Buddy haviam feito a travessia em uma hora e meia,
e McCaleb telefonara para a detetive depois de ancorar na marina Cabrillo. Haviam combinado o encontro, mas depois ele viu que a bateria do Cherokee estava descarregada,
pois não usava o carro há umas duas semanas. Tivera de pedir a Buddy que lhe desse uma carona no velho Taurus, e isso tomou tempo.
Entrou no Dupar's, o restaurante na esquina do mercado, mas não viu Jaye em qualquer das mesas, nem no balcão. Torceu para que ela não tivesse vindo e ido embora.
Escolheu uma divisória desocupada que lhe desse o máximo de privacidade e se sentou à mesa. Não precisava olhar para o cardápio. Eles haviam escolhido o Mercado
do Fazendeiro por ser perto do apartamento de Edward Gunn e porque McCaleb queria tomar o café da manhã no Dupar's. Dissera a Jaye que sentia falta das panquecas
do Dupar's mais do que qualquer outra coisa em Los Angeles. Geralmente ele, Graciela e as crianças comiam no Dupar's quando faziam sua ida mensal à cidade para comprar
roupas e suprimentos inexistentes em Catalina. McCaleb sempre pedia panquecas, pouco importando se era o café da manhã, almoço ou jantar. Raymond também. Mas ele
era fã de geléia de amora, enquanto McCaleb ia de xarope de maple.
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McCaleb disse à garçonete que estava esperando outra pessoa, mas pediu um suco de laranja grande e um copo d'água. Depois que a moça trouxe os dois copos, ele abriu
a bolsa de couro e tirou a caixa de plástico com as pílulas. Mantinha um suprimento semanal das pílulas no barco e outro, para apenas dois dias, no porta-luvas do
Cherokee. Preparara a caixa depois de ancorar. Alternando goles de suco de laranja e água, engoliu as vinte e sete pílulas que constituíam sua dosagem matutina.
Sabia o nome de cada uma pela forma, a cor e o gosto; Prilosec, Imuran, Digoxin. Conforme seguia metodicamente a fileira de pílulas, viu uma mulher numa mesa próxima
olhando para ele com expressão de espanto.
Nunca se livraria das pílulas. Para ele aquilo era tão certo quanto a morte e os impostos. Ao longo dos anos algumas seriam trocadas, outras subtraídas e novas acrescentadas,
mas sabia que iria engolir pílulas e lavar aquele gosto terrível com suco de laranja pelo resto da vida.
- Pelo que vejo, você pediu sem me esperar.
Ele ergueu o olhar das três últimas pílulas de ciclosporina que estava prestes a engolir, enquanto Jaye se sentava do lado oposto da mesa.
- Desculpe, estou tão atrasada. O trânsito na rua 10 estava uma merda.
- Tudo bem. Eu também me atrasei. Fiquei sem bateria.
- Quantas dessas pílulas você toma atualmente?
- Cinqüenta e quatro por dia.
- Incrível.
- Tive que transformar um armário no corredor em arca de remédios. O armário inteiro.
- Bom, pelo menos você ainda está aqui.
Ela sorriu, e McCaleb balançou a cabeça. A garçonete aproximou-se da mesa trazendo o cardápio para Jaye, mas a detetive disse que era melhor os dois pedirem logo.
- Vou querer o que ele pedir.
McCaleb pediu uma grande pilha de panquecas com manteiga derretida. Disse à garçonete que eles dividiriam uma porção de bacon bem-passado.
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- Café? - perguntou a moça. Parecia que aquilo era o milionésimo pedido de panquecas que ela já anotara.
- Sim, por favor - disse Jaye. - Sem açúcar. McCaleb disse que para ele bastava o suco de laranja. Depois que ficaram sozinhos, ele olhou para a detetive por
cima da mesa.
- E então, conseguiu contactar o encarregado do prédio?
- Ele vai se encontrar conosco às dez e meia. O apartamento ainda não foi alugado, mas já fizeram uma limpeza. Depois que liberamos o local, a irmã da vítima foi
até lá, examinou as coisas e levou o que queria.
- E, eu já receava uma coisa assim.
- O encarregado acha que não foi muito... O cara não tinha mesmo muita coisa.
- E a coruja?
- Ele não se lembrava da coruja. Francamente, eu também não, até você mencionar isso hoje de manhã.
- E só um palpite. Eu gostaria de dar uma olhada nela.
- Bom, vamos ver se o bicho ainda está lá. O que mais quer fazer? Espero que não tenha atravessado a baía só para ver o apartamento do cara.
- Estava pensando em procurar a irmã. E talvez Harry Bosch
também.
Jaye ficou em silêncio, mas pela expressão que fez, McCaleb viu que ela esperava uma explicação.
- Para traçar o perfil de um sujeito desconhecido, é importante conhecer a vítima. Suas rotinas, personalidade, tudo. Você conhece o esquema. A irmã e, em grau menor,
Bosch podem ajudar nisso.
- Só pedi pra você dar uma olhada no dossiê e na fita, Terry. Vai fazer com que eu comece a me sentir culpada.
McCaleb fez uma pausa, enquanto a garçonete trazia o café de Jaye e punha na mesa duas pequenas jarras com geléia de amora e xarope de maple. Depois que a mulher
se afastou, ele disse:
- Você sabia que eu ia ser fisgado, Jaye. "Cuidado, cuidado, Deus vê?" Ora essa, vai me dizer que achou que eu ia ver aquilo
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tudo e fazer um relatório pelo telefone? Além do mais, não estou me queixando. Estou aqui porque quero estar. Se está se sentindo culpada, pode pagar as panquecas.
- O que sua mulher disse sobre o caso?
- Nada. Ela sabe que eu preciso fazer isso. Telefonei pra ela do cais assim que cheguei aqui. De qualquer modo, já era tarde demais para que ela dissesse alguma
coisa. Só me disse pra eu comprar um saco de tamales de milho verde no El Cholo antes de voltar. Eles vendem a coisa congelada.
As panquecas chegaram. Eles pararam de falar, e McCaleb esperou educadamente que Jaye escolhesse um dos acompanhamentos primeiro, mas ela ficou revirando as panquecas
no prato com o garfo, e ele por fim não conseguiu esperar mais. Banhou sua pilha com xarope de mapk e começou a comer. A garçonete voltou e pôs a conta na mesa.
Jaye rapidamente a pegou.
- O xerife paga.
- Agradeça a ele por mim.
- Não sei o que você espera de Harry Bosch, sabia? Ele me disse que teve apenas um punhado de contatos com Gunn nos seis anos que se passaram desde o caso da prostituta.
- Quando foram esses contatos? Na época em que ele foi preso?
Jaye balançou a cabeça enquanto derramava geléia de amora nas panquecas.
- Então eles se viram na véspera da morte de Gunn. Não vi nada disso no dossiê.
- Ainda não anotei isso. Mas não significa muito. O sargento de serviço telefonou para ele e disse que Gunn estava na cela de detenção por dirigir alcoolizado.
McCaleb balançou a cabeça.
- E aí?
- E ele foi até lá para dar uma olhada no cara. Foi só isso. Disse que nem conversaram, porque Gunn estava mamado demais.
- Bom... mesmo assim, quero falar com Harry. Já trabalhei num caso com ele. E um bom policial. Intuitivo e observador. Talvez saiba de alguma coisa que eu possa
usar.
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- Se conseguir falar com ele.
- O que quer dizer?
- Então não sabe? Ele faz parte da equipe de acusação no caso de assassinato de David Storey. Lá em Van Nuys. Não tem visto o noticiário?
- Caceta, eu esqueci disso. Lembro que li o nome dele nos jornais depois que mataram Storey. Acho que foi em outubro. O julgamento já começou?
- Claro. Não houve demora, e eles não precisaram de audiência preliminar porque passaram por um júri de instrução. Começaram a selecionar os jurados logo depois
do primeiro dia do ano. A última coisa que eu soube foi que eles já têm a lista pronta, de modo que a coisa pode começar esta semana, talvez até hoje.
- Merda.
- Isso mesmo, vai precisar de sorte para chegar até Bosch. Tenho certeza que é exatamente esse tipo de coisa que ele anda querendo ouvir.
- Está dizendo que não quer que eu fale com ele? Jaye deu de ombros.
- Não, não estou dizendo isso, absolutamente. Faça o que você quiser fazer. Só não achava que você ia se enfiar tanto no caso. Posso conversar com o capitão sobre
uma taxa de consultoria pra você, mas...
- Não se preocupe com isso. O xerife já está pagando o café da
manhã. Basta isso.
- Não parece.
McCaleb não lhe disse que trabalharia no caso até de graça, só para voltar àquele mundo por alguns dias. E não lhe disse que não podia aceitar dinheiro da parte
dela, de qualquer forma. Se tivesse qualquer rendimento "oficial", perderia o direito à assistência médica estadual que pagava as cinqüenta e quatro pílulas que
ele engolia todo dia. As pílulas eram tão caras que se ele tivesse que pagá-las do próprio bolso iria à falência em seis meses, a menos que tivesse um salário anual
de seis dígitos. Era esse o feio segredo por trás do milagre médico que o salvara. Ele conseguira uma segunda chance na vida, enquanto não usasse aquilo para tentar
ganhar a
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vida. Era por isso que a firma de passeios fretados estava no nome de Buddy. Oficialmente, McCaleb era um auxiliar de bordo sem vencimentos. Buddy simplesmente alugava
o barco de Graciela para fretá-lo, e o aluguel representava sessenta por cento de todas as taxas cobradas pelo passeio, depois de deduzidas as despesas.
- Como estão as panquecas? - perguntou ele a Jaye.
- Maravilha.
- Pode crer.
Capítulo 8
O Grand Royale era uma ofensa de dois andares aos olhos, uma caixa de estuque decadente cuja tentativa de ter estilo começava e terminava num desenho modernoso das
letras do seu nome afixadas na portaria. As ruas de West Hollywood e de toda a baixada eram cheias desses prédios banais, com os apartamentos de grande densidade
populacional que haviam substituído os quarteirões menores de bangalôs nas décadas de 1950 e 1960. Trocara-se um estilo autêntico por floreados ornamentais e nomes
que refletiam exatamente o que não eram.
McCaleb e Jaye entraram no apartamento do segundo andar que pertencera a Edward Gunn seguidos pelo encarregado do prédio, um homem chamado Rohrshak. "Que nem o teste,
só que soletrado diferente", dissera o sujeito.
Se não soubesse de antemão em que lugar procurar, McCaleb não teria notado o vestígio de sangue no tapete onde Gunn morrera. O tapete não fora trocado, apenas lavado,
e por isso aquela leve mancha marrom que provavelmente levaria o próximo inquilino a pensar em restos de refrigerante ou café derramados.
O local sofrera uma limpeza e estava pronto para ser alugado. Contudo o mobiliário era o mesmo. McCaleb reconheceu os móveis pelo vídeo da cena do crime.
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Olhou para a cristaleira do outro lado do aposento, mas o móvel estava vazio. Não havia nenhuma coruja de plástico pousada no seu topo. Ele olhou para Jaye.
- Sumiu.
Jaye virou-se para o encarregado.
- Rohrshak, achamos que a coruja que ficava no alto da cristaleira é importante. Tem certeza que não sabe o que aconteceu com ela?
Rohrshak abriu os braços e deixou-os cair ao lado do corpo.
- Não, não sei. Você me perguntou isso antes e eu pensei: "Não me lembro de coruja nenhuma." Mas se está dizendo que tinha...
Deu de ombros, espichou o queixo e depois balançou a cabeça, como concordando relutantemente que havia uma coruja na cristaleira.
McCaleb leu aqueles gestos e palavras como os maneirismos clássicos de um mentiroso. Se você negar a existência do objeto que furtou, você elimina o furto. Presumiu
que Jaye também já percebera isso.
-Jaye, você tem um telefone? Pode ligar para a irmã dele a fim de confirmar isso?
- Estou resistindo até que o condado compre um para mim. McCaleb preferia manter seu telefone livre, pois Brass Doran
poderia ligar de volta, mas arriou a bolsa de couro no sofá cujo estofamento parecia prestes a estourar, tirou o telefone e passou o aparelho a Jaye.
Ela precisou procurar o número da irmã de Gunn num caderno dentro da pasta. Enquanto Jaye fazia a chamada, McCaleb ficou andando vagarosamente pelo apartamento,
observando tudo e tentando captar vibrações do local. Na área onde se faziam as refeições, parou diante de uma mesa de madeira redonda, rodeada por quatro cadeiras
de espaldar reto. O relatório de análise da cena do crime dizia que três das cadeiras tinham numerosas nódoas com impressões digitais latentes, tanto completas quanto
parciais todas pertencentes à vítima, Edward Gunn. A quarta cadeira, a que fora encontrada no lado norte da mesa, não tinha qualquer
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impressão digital, completa ou não. A cadeira fora totalmente limpa. O mais provável era que o assassino houvesse feito isso depois de usar a cadeira com algum objetivo.
McCaleb orientou-se e foi até a cadeira do lado norte da mesa. Tomando cuidado para não tocar no encosto, meteu a mão embaixo do assento e afastou-a da mesa, aproximando-a
da cristaleira. Posicionou-a no centro e subiu. Levantou os braços como se estivesse colocando alguma coisa em cima da cristaleira. A cadeira balançou, apoiada nas
pernas desiguais, e McCaleb instintivamente estendeu a mão para o alto da cristaleira a fim de se firmar. Mas, antes de se agarrar ali, percebeu algo e interrompeu
o gesto, apoiando o antebraço na moldura de uma das portas de vidro do móvel.
- Tenha cuidado aí, Terry.
Ele olhou para baixo. Jaye estava parada ao lado. O telefone estava fechado na sua mão.
- Estou tendo. Então, ela está com a ave?
- Não, nem sabia do que eu estava falando.
McCaleb ficou na ponta dos pés e olhou por cima da borda superior da cristaleira.
- Ela disse o que levou daqui?
- Só umas roupas e fotografias velhas dos dois quando eram crianças. Não quis mais nada.
McCaleb balançou a cabeça. Ainda estava examinando o topo da cristaleira de cima a baixo. Havia uma grossa camada de poeira ali em cima.
- Você disse alguma coisa sobre minha ida até lá para conversar com ela?
- Esqueci. Mas posso ligar de novo.
- Tem uma lanterna aí, Jaye?
Ela vasculhou a bolsa e entregou-lhe uma lanterna fina. McCaleb acendeu-a e lançou o feixe de luz, em ângulo baixo, sobre o topo da cristaleira. A luz tornava mais
nítida a poeira da superfície, e ele viu claramente uma marca de feitio octogonal deixada por algo posto em cima da cristaleira e da poeira. A base da coruja.
McCaleb deslocou a luz ao longo das bordas da placa superior do móvel, apagou a lanterna, desceu da cadeira e devolveu a lanterna a Jaye.
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- Obrigado. Talvez fosse bom trazer a equipe de impressões digitais de volta aqui.
- Pra quê? A coruja não está ali, está? McCaleb deu um olhar rápido para Rohrshak.
- Neca, sumiu. Mas quem pôs o bicho lá em cima usou aquela cadeira. Quando a cadeira cambaleou, a pessoa se agarrou na cristaleira.
Ele tirou uma caneta do bolso, ergueu o braço e bateu levemente na parte fronteira da cristaleira, na área onde vira as impressões digitais na poeira.
- Está muito empoeirado, mas pode haver impressões digitais ali.
- E se tiver sido a pessoa que levou a coruja?
McCaleb olhou descaradamente para Rohrshak ao responder.
- Mesma coisa. Pode haver impressões digitais. Rohrshak desviou o olhar.
- Posso usar isso de novo? Jaye mostrou o telefone dele.
- Vá em frente.
Enquanto Jaye convocava uma equipe de impressões digitais, McCaleb puxou a cadeira para o meio da sala de estar, a cerca de um metro da marca de sangue. Depois sentou-se
e percorreu a sala com o olhar. Nessa posição, a coruja estaria olhando tanto para o assassino quanto para a vítima. Um certo instinto dizia-lhe que era aquela configuração
que o assassino queria. Ele baixou o olhar para a mancha de sangue e imaginou-se vendo Edward Gunn lutar pela vida e perder vagarosamente a batalha. O balde, pensou.
Tudo se encaixava, menos o balde. O assassino arrumara o cenário, mas depois não conseguira assistir à peça. Precisava do balde para não ver o rosto da vítima. Aquilo
não se encaixava e incomodava McCaleb.
Jaye veio até ele e entregou-lhe o telefone.
- Há uma equipe acabando de cobrir um arrombamento em Kings. O pessoal vai estar aqui em quinze minutos.
- Que sorte.
- Muita. O que está fazendo?
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- Só pensando. Acho que ele sentou aqui e ficou assistindo, mas depois não agüentou. Golpeou a vítima na cabeça, talvez para apressar a coisa. Depois pegou o balde
e cobriu a cabeça para não precisar assistir mais.
Jaye Winston balançou a cabeça.
- De onde veio o balde? Não havia nada no...
- Achamos que estava embaixo da pia da cozinha. Há um anel d'água na prateleira que coincide com a base do balde. Está no suplemento que Kurt digitou. Ele deve ter
esquecido de colocar isso no dossiê.
McCaleb balançou a cabeça e se levantou.
- Vai esperar pela equipe das impressões digitais, não?
- Vou, não deve demorar.
- Vou dar uma volta.
Ele foi andando para a porta aberta.
- Vou com você - disse Rohrshak. McCaleb se voltou.
- Não, Rohrshak, você precisa ficar aqui com a detetive. Precisamos de uma testemunha independente para monitorar o que fazemos no apartamento.
McCaleb olhou para Jaye por cima do ombro de Rohrshak. Ela deu uma piscadela, avisando que entendera a história falsa e o que ele estava fazendo.
- É, Rohrshak. Por favor, fique aqui, se não for incômodo. Rohrshak deu de ombros novamente e ergueu as mãos. McCaleb desceu as escadas até o pátio coberto no centro
do
prédio. Foi girando em círculo, percorrendo com o olhar a linha do telhado baixo. Não viu a coruja em lugar algum, virou e atravessou a porta de entrada que dava
para a rua.
Do outro lado da avenida Sweetzer havia um prédio de três andares, em forma de L, chamado Braxton Arms, com passadiços e escadas externas. McCaleb cruzou a rua e
deparou-se na entrada com um portão de segurança e uma cerca de um metro e oitenta de altura. A coisa era mais para exibição do que para dissuasão. Ele tirou o agasalho,
dobrou-o e meteu-o entre duas barras do portão. Depois pôs o pé na maçaneta, verificou se agüentava seu peso e
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içou-se até o alto do portão. Caiu do outro lado e olhou em torno para verificar se fora visto por alguém. Tudo limpo. Pegou o agasalho e partiu para a escada.
Foi até o terceiro andar e seguiu o passadiço até a fachada do prédio. Estava respirando alto e com dificuldade, devido ao esforço para pular o portão e subir a
escada. Quando chegou à fachada pôs as mãos na balaustrada e inclinou-se para a frente até recuperar o fôlego. Depois lançou o olhar sobre a avenida Sweetzer na
direção do telhado plano do prédio onde Edward Gunn morara. Também lá não viu a coruja de plástico.
McCaleb apoiou os antebraços na balaustrada e continuou tentando recuperar o fôlego. Ficou ouvindo seu coração bater, até finalmente se aquietar. Sentia o suor porejando
no couro cabeludo. Sabia que não era o coração que estava fraco. Era o seu corpo, enfraquecido por todos os remédios que ele tomava para manter o coração forte.
Aquilo era frustrante. Ele sabia que nunca ficaria forte e que passaria o resto da vida escutando o coração, tal como um arrombador noturno escuta os rangidos do
assoalho.
Ao ouvir o ruído de um veículo, olhou para baixo e viu uma picape branca, com o emblema do xerife na porta do motorista, parar diante da porta do prédio do outro
lado da rua. A equipe de impressões digitais chegara.
McCaleb deu mais uma olhada para o telhado do outro lado da rua e virou-se para descer, derrotado. Subitamente, parou. Lá estava a coruja, pousada no topo de um
compressor do sistema de ar condicionado central, no telhado da extensão em L do edifício onde ele se achava.
Ele foi rapidamente até a escada e subiu no passadiço do telhado. Teve que rodear alguns móveis que estavam empilhados e guardados no passadiço, mas descobriu que
a porta estava destrancada e atravessou depressa o telhado plano, coberto de cascalho, até o condicionador de ar.
Examinou a coruja antes de tocar no bicho. Combinava com a imagem que memorizara do vídeo da cena do crime. A base era um pedestal de forma octogonal. Ele sabia
que era a coruja que desaparecera. Retirou o arame que fora enrolado em torno da base e
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preso à grade de admissão do condicionador de ar. Observou que a grade e a cobertura metálica da unidade estavam cobertas de velhas fezes de pássaros. Concluiu que
as fezes constituíam um problema para a manutenção e que Rohrshak - aparentemente encarregado também daquele prédio, além do outro - pegara a coruja no apartamento
de Gunn para usá-la como espantalho.
McCaleb pegou o arame e enrolou-o em torno do pescoço da coruja para poder carregá-la sem tocá-la, embora duvidasse que ainda houvesse no objeto qualquer impressão
digital ou fibra que tivesse utilidade como prova. Levantou a coruja do condicionador de ar e dirigiu-se para a escada.
Quando chegou de volta ao apartamento de Edward Gunn, viu dois especialistas em cenas de crime tirando equipamento de uma caixa. Havia uma escada portátil diante
da cristaleira.
- Talvez seja melhor começar por isto aqui - disse ele.
Viu os olhos de Rohrshak se arregalarem ao entrar no aposento e colocar a coruja de plástico sobre a mesa.
- Você é encarregado do prédio do outro lado da rua, não é?
- Hum...
- Tudo bem. É fácil descobrir.
- É, sim - disse Jaye, inclinando-se para olhar a coruja. - Ele estava lá quando precisei dele no dia do crime. Ele mora lá.
- Alguma idéia de como isto foi parar no telhado? - perguntou McCaleb.
Rohrshak não respondeu.
- Acho que ela simplesmente voou até lá, certo? Rohrshak não conseguia tirar os olhos da coruja.
- Você já pode ir agora, Rohrshak. Mas fique perto de sua casa. Se conseguirmos uma impressão digital na ave ou na cristaleira, vamos precisar tirar as suas para
comparar.
Rohrshak olhou para McCaleb, e seus olhos ficaram ainda mais esbugalhados.
- Pode ir, Rohrshak.
O encarregado do prédio virou-se e saiu vagarosamente do apartamento.
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- E feche a porta, por favor - disse McCaleb enquanto ele se afastava.
Depois que ele saiu e fechou a porta, Jaye quase explodiu numa risada.
- Terry, você está sendo muito durão. Na realidade, ele não fez nada de errado, você sabe. Nós examinamos o local, e ele deixou a irmã de Gunn vir pegar o que quisesse.
O que ele deveria fazer depois, tentar alugar o apartamento com essa coruja idiota ali em cima?
McCaleb abanou a cabeça.
- Ele mentiu para nós. Isso foi errado. Eu quase me arrebentei subindo naquele prédio do outro lado da rua. Ele podia simplesmente nos dizer que a coisa estava lá.
- Bom, agora ele está apavorado. Acho que aprendeu a lição.
- Tomara.
Ele recuou para que um dos técnicos pudesse trabalhar na coruja, enquanto o outro subia a escada para trabalhar no alto da cristaleira.
Ficou examinando a ave, enquanto o técnico passava nela, com uma escova, o pó preto de impressões digitais. A coruja parecia ter sido pintada à mão. Era marrom-escura
e preta nas asas, cabeça e costas. O peito era de um marrom mais claro, com laivos amarelos. Os olhos eram de um preto brilhante.
- Isso estava ao ar livre? - perguntou o técnico.
- Infelizmente - respondeu McCaleb, recordando as chuvas que haviam varrido o continente e a ilha Catalina na semana anterior.
- Bom, não estou conseguindo nada.
- Eu imagino.
McCaleb lançou para Jaye um olhar que refletia uma raiva renovada contra Rohrshak.
- Nada também aqui em cima - disse o outro técnico. - Tem poeira demais.
Capítulo 9
O julgamento de David Storey estava sendo realizado no tribunal de Van Nuys. O crime central do caso não tinha a menor relação com Van Nuys, e nem com o vale de
San Fernando, mas o tribunal fora escolhido pelos distribuidores da promotoria porque o Departamento N estava disponível e era a maior sala de julgamento do condado.
Era resultado da fusão de dois tribunais menores vários anos antes, a fim de acomodar confortavelmente os dois corpos de jurados - bem como um monte de gente da
mídia - do caso do assassinato dos irmãos Menendez. A morte dos pais por parte desses irmãos tinha sido um dos diversos casos criminais de Los Angeles, na década
anterior, a atrair a atenção da mídia, e portanto do público. Quando tudo terminou, a promotoria não se deu ao trabalho de desconstruir o enorme tribunal. Alguém
teve a intuição de perceber que em Los Angeles sempre haveria um caso que poderia encher o Departamento N.
E no momento esse era o caso de David Storey.
O diretor de cinema, de trinta e oito anos, conhecido por filmes que levavam a violência e a sexualidade aos limites máximos da categoria X-rated, fora acusado de
assassinar uma jovem atriz que levara para casa depois da estréia de um de seus filmes mais recentes. O corpo da mulher de vinte e três anos fora encontrado na manhã
do dia seguinte num pequeno bangalô em Nichols
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Canyon que ela dividia com outra pretendente a atriz. A vítima fora estrangulada, e o corpo nu colocado na cama numa pose que os investigadores acreditavam ser parte
de um plano cuidadoso do assassino para evitar ser descoberto.
Os elementos do caso - poder, celebridade, sexo e dinheiro - e a conexão adicional representada por Hollywood serviram para atrair a máxima atenção da mídia. David
Storey trabalhava do lado errado da câmera para ser uma celebridade de pleno direito, mas seu nome era conhecido, e ele dispunha do tremendo poder de um homem que
fizera sete sucessos de bilheteria em igual número de anos. A mídia foi atraída pelo julgamento de Storey tal como os jovens são atraídos pelo sonho de Hollywood.
A cobertura antecipada delineava claramente o caso como uma parábola de avareza e excessos hollywoodianos desenfreados.
O caso também tinha um inusitado grau de mistério em julgamentos criminais. Os promotores designados levaram suas provas a um júri de instrução a fim de procurar
indiciar Storey. Essa jogada permitira-lhes evitar uma audiência preliminar, onde a maior parte das provas acumuladas contra um réu é geralmente tornada pública.
Sem essa fonte de informação sobre o caso, a mídia foi obrigada a buscar suas fontes tanto no lado da acusação quanto da defesa. Ainda assim, pouca coisa vazou para
a imprensa, a não ser aspectos genéricos. As provas que a promotoria usaria para ligar Storey ao assassinato permaneciam em segredo, e essa era mais uma causa do
alvoroço da mídia a respeito do julgamento.
Fora justamente esse alvoroço que convencera o promotor a deslocar o julgamento para o grande salão do Departamento N em Van Nuys. O segundo recinto do júri seria
usado para acomodar mais elementos da mídia dentro do tribunal, enquanto a inutilizada sala de deliberação seria convertida numa sala de imprensa, onde os jornalistas
de segundo e terceiro escalões assistiriam ao julgamento num telão. O esquema, que daria a toda a mídia - desde o National Enquirer até o New York Times - total
acesso ao julgamento e aos participantes, garantia que o caso se tornaria o primeiro circo de horrores da mídia do novo século.
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Na arena central desse circo, sentado à mesa da acusação, estava o detetive Harry Bosch, o principal investigador do caso. Todas as análises da mídia anteriores
ao julgamento haviam chegado a uma só conclusão: o destino das acusações contra David Storey dependeria de Bosch. Todas as provas em favor da acusação de assassinato
eram consideradas circunstanciais; o alicerce do caso viria de Bosch. A única prova sólida que vazara para a mídia era que Bosch testemunharia que, num momento de
privacidade, sem outras testemunhas ou dispositivos à mão para registrar a declaração, Storey presunçosamente admitira que cometera o crime e se gabara de certamente
sair vitorioso do julgamento.
McCaleb já sabia de tudo isso quando entrou no tribunal de Van Nuys, pouco antes do meio-dia. Postou-se na fila para passar pelo detector de metais, lembrando-se
de como tudo mudara em sua vida. Quando era agente do FBI, precisava apenas mostrar seu distintivo e passar à frente da fila. Agora era apenas um cidadão. Tinha
que esperar.
O corredor do quarto andar fervilhava de gente. McCaleb observou que muitas pessoas portavam pilhas de fotos 18x24 cm, em preto e branco, de estrelas e astros cinematográficos
que esperavam ver no julgamento - fosse como testemunhas ou como espectadores - apoiando o réu. Ele atravessou a porta dupla de entrada do Departamento N, mas um
dos dois policiais do gabinete do xerife postados ali disse-lhe que o tribunal estava lotado. O policial apontou para uma longa fila de pessoas atrás de um cordão.
Disse que era a fila de gente esperando para entrar. Toda vez que uma pessoa saísse do tribunal, outra poderia entrar. McCaleb balançou a cabeça e afastou-se das
portas.
Viu que mais adiante no corredor havia uma porta aberta cercada por várias pessoas. Reconheceu entre elas um repórter de um noticiário televisivo local. Calculou
que a sala de imprensa fosse ali e se aproximou.
Quando chegou à porta aberta, olhou para dentro e viu dois grandes televisores fixados no alto dos cantos do aposento, onde havia várias pessoas apinhadas em
torno de uma grande mesa de júri. Repórteres. Estavam digitando em seus computadores
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portáteis, tomando notas em blocos e comendo sanduíches tirados de embalagens para viagem. O centro da mesa estava coalhado de copos plásticos de café e refrigerantes.
Ele ergueu o olhar para um dos televisores e viu que o tribunal ainda estava em sessão, embora já passasse de meio-dia. A câmera mostrava uma imagem ampla do aposento,
e ele viu Harry Bosch sentado com um homem e uma mulher na mesa da promotoria. Não parecia que ele estivesse prestando atenção aos trabalhos. Um homem que McCaleb
reconheceu estava de pé junto à tribuna, entre as mesas da promotoria e da defesa. Era J. Reason Fowkkes, o principal advogado de defesa. À mesa à sua esquerda sentava-se
o réu, David Storey.
McCaleb não conseguia ouvir o sinal de áudio, mas sabia que Fowkkes não estava fazendo as alegações iniciais, pois estava olhando para o juiz, e não na direção do
recinto do júri. Provavelmente, moções de última hora estavam sendo discutidas pelos advogados antes do início da sessão. Subitamente as duas telas de televisão
gêmeas passaram para uma nova câmera e focalizaram o juiz, que começou a falar, aparentemente estabelecendo as regras. McCaleb notou a placa de identificação na
frente do juiz, que dizia: Juiz do Tribunal Superior John A. Houghton.
- Agente McCaleb?
McCaleb desviou o olhar do televisor e viu ao seu lado um homem que reconheceu, mas que não conseguiu localizar imediatamente.
- Só McCaleb. Terry McCaleb.
O sujeito percebeu o desconforto dele e estendeu a mão.
- Jack McEvoy. Entrevistei você uma vez. Foi muito rápido. Sobre a investigação do Poeta.
- Ah, sim, lembrei - disse McCaleb, apertando a mão do outro. -Já faz bastante tempo.
Ele realmente se lembrava de McEvoy. O repórter se enfronhara no caso do Poeta e depois escreveu um livro sobre o assunto. McCaleb teve uma participação muito periférica
no caso - quando a investigação passara para Los Angeles. Nunca lera o livro de
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McEvoy, mas tinha certeza que não contribuíra em nada para a obra, e provavelmente não fora mencionado nela.
- Eu achava que você era do Colorado - disse ele, lembrando que McEvoy trabalhava num jornal de Denver. - Eles mandaram você cobrir isso aqui?
McEvoy balançou a cabeça.
- Boa memória. Eu era de lá, mas agora moro aqui. Trabalho como free lancer.
McCaleb balançou a cabeça, tentando imaginar algo para dizer.
- Pra quem você está cobrindo este caso?
- Venho escrevendo uma coluna semanal para o New Times sobre o assunto. Você lê o jornal?
McCaleb balançou a cabeça. Conhecia bem o New Times. Era um tablóide semanal, cheio de denúncias escandalosas e com postura contrária às autoridades. Sua renda principal
parecia vir principalmente de anúncios de entretenimento, que abarcavam desde filmes aos serviços de acompanhamento que enchiam suas últimas páginas. Era gratuito,
e Buddy vivia deixando exemplares pelo barco. McCaleb dava uma olhada no jornal de tempos em tempos, mas nunca notara o nome de McEvoy.
- Também estou fazendo uma cobertura geral para a Vanity Fair - disse McEvoy. - Sabe como é... uma coisa mais discursiva, o lado sombrio de Hollywood. E também estou
pensando em escrever outro livro. O que trouxe você aqui? Está... envolvido nisto de alguma...
- Eu, não. Estava por perto e tenho um amigo no julgamento. Só queria ter a oportunidade de dar um alô pra ele.
Enquanto mentia, McCaleb desviou o olhar do escritor e lançou-o de volta para os televisores através da porta. O ângulo da câmera já mostrava todo o tribunal. Parecia
que Bosch estava guardando suas coisas numa maleta.
-Harry Bosch?
McCaleb olhou de volta para ele.
- É, Harry. Já trabalhamos num caso juntos e... hum, o que está havendo ali agora?
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- Moções finais, antes de começarem. Eles começaram com uma sessão fechada e agora estão dando uma arrumação na casa. Não vale a pena ficar lá. Todo mundo acha que
o juiz provavelmente terminará a sessão antes do almoço e dará aos advogados o resto do dia para trabalharem nas alegações iniciais. Elas começam amanhã, às dez.
Você acha que a casa está cheia agora? Espere até amanhã.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Pois é. Então foi bom ver você de novo, Jack. Boa sorte com a matéria. E com o livro, se acabar saindo.
- Eu gostaria de ter escrito a sua história, sabia? Sobre o coração e esse negócio todo.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Bom, eu devia um favor a Keisha Russell, e ela fez um bom trabalho.
Notou que as pessoas estavam começando a abrir caminho para sair da sala da mídia. Ao fundo, viu nas telas dos televisores que o juiz já saíra da bancada. A sessão
do tribunal fora suspensa.
- Vou até o tribunal ver se encontro Harry. Foi um prazer ver você de novo, Jack - continuou ele, estendendo a mão e cumprimentando McEvoy. Depois seguiu os outros
repórteres até as portas do tribunal.
As portas principais do Departamento N foram abertas pelos dois policiais, e por elas saiu a multidão de cidadãos afortunados que haviam conseguido lugares para
assistir àquela sessão, que provavelmente fora um verdadeiro porre. Os que não haviam conseguido entrar apinhavam-se para ver de perto alguma celebridade, mas ficaram
desapontados. As celebridades só começariam a aparecer no dia seguinte, quando seriam feitas as alegações iniciais. Estas eram como os créditos de abertura de um
filme, portanto, o lugar em que as celebridades gostariam de ser vistas.
Atrás da multidão vinham os advogados e assessores. Storey já voltara para a prisão, mas seu advogado foi direto para o semicírculo de repórteres e começou a dar
sua versão do que transpirara dentro do tribunal. Um homem alto, muito bronzeado, de cabelo preto retinto e olhos verdes inquietos tomou posição diretamente
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atrás do advogado para cobrir-lhe a retaguarda. Chamava a atenção, e McCaleb achou que o conhecia, mas não conseguia imaginar de onde. Ele parecia um dos atores
que Storey normalmente punha em seus filmes.
Os promotores saíram e logo formaram seu próprio círculo de repórteres. Suas respostas foram mais curtas do que as do advogado de defesa. Recusaram-se a comentar
várias perguntas sobre as provas que apresentariam.
McCaleb ficou aguardando Bosch, e finalmente viu-o esgueirar-se para fora por último. Bosch driblou a multidão mantendo-se perto da parede, e dirigiu-se para os
elevadores. Uma repórter avançou em sua direção, mas ele levantou a mão, mandando-a embora. A mulher parou e voltou feito uma molécula solta no ar para a matilha
que rodeava J. Reason Fowkkes.
McCaleb seguiu Bosch ao longo do corredor e alcançou-o quando ele parou à espera do elevador.
- Olá, Harry Bosch.
Bosch se voltou, já armando no rosto a expressão "sem comentários", e viu que era McCaleb.
- Olá... McCaleb.
Sorriu, e os dois se cumprimentaram.
- Parece o caso com mais publicidade do mundo - disse McCaleb.
- Nem me fale. O que está fazendo aqui? Não me diga que está escrevendo um livro sobre esse troço?
- O quê?
- Todo mundo que trabalhava no FBI anda escrevendo livros hoje em dia.
- Neca, isso não é comigo. Na realidade, eu estava com esperança de poder convidar você para almoçar. Quero falar com você sobre um negócio.
Bosch olhou para o relógio, indeciso acerca de algo.
- Edward Gunn.
Bosch ergueu os olhos para ele.
- Jaye Winston?
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente.
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- Ela me pediu pra dar uma olhada na coisa.
O elevador chegou, e eles entraram com uma multidão de pessoas que haviam estado no tribunal. Todas pareciam estar olhando para Bosch, embora tentassem não aparentar
isso. McCaleb decidiu ficar calado até eles saírem.
Chegando ao térreo, dirigiram-se para a saída.
- Eu disse a ela que elaboraria o perfil do assassino. Coisa rápida. Pra fazer isso, preciso saber alguma coisa de Gunn. Pensei que talvez você pudesse me contar
algo sobre aquele caso antigo e sobre o tipo de sujeito que ele era.
- Gunn era um escroto. Olhe, eu tenho cerca de quarenta e cinco minutos no máximo. Preciso meter o pé na estrada. Vou queimar as pestanas hoje para garantir que
todo mundo esteja pronto para a abertura.
- Eu fico com esses quarenta e cinco, se você puder dispor deles. Tem algum lugar bom pra se comer aqui perto?
- Esqueça a cantina daqui... é terrível. Há um Cupid's ali no bulevar Victory.
- Vocês policiais só comem do melhor.
- É por isso que a gente faz o que faz.
Capítulo 10
Eles foram comer os cachorros-quentes numa mesa ao ar livre, sem guarda-sol. Embora fosse um dia de inverno com temperatura amena, McCaleb estava suando. Em qualquer
dia o Vale sempre era de quatro a seis graus mais quente do que Catalina, e ele não estava acostumado com a mudança. Seus sistemas internos de aquecimento e resfriamento
não haviam se normalizado depois do transplante, e ele era dado a calafrios e suores repentinos.
Começou batendo papo sobre o atual caso de Bosch.
- Está preparado para virar o Harry Hollywood com esse caso?
- Não, obrigado - disse Bosch, dando mordidas no que era anunciado como um cachorro Chicago. - Acho que preferiria o turno da madrugada na Septuagésima Sétima.
- Bom, acha que está com tudo em cima? Dá pra pegar o cara? - Nunca se sabe. A promotoria não ganha nada importante
desde o caso da discoteca. Não sei como vai rolar. Todos os advogados dizem que depende do júri. Eu sempre pensei que dependia da qualidade das provas, mas não passo
de um detetive idiota. John Reason trouxe o consultor do júri do O. J. Simpson, e na realidade eles estão muito contentes com os doze jurados selecionados. Merda,
John Reason. Veja só, já estou até chamando o cara pelo nome que os repórteres usam. Isso mostra bem como ele sabe controlar as coisas, esculpir as coisas.
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Abanou a cabeça e deu mais uma mordida no almoço.
- Quem é o grandalhão que eu vi com ele? - perguntou McCaleb. - O cara de pé atrás dele, com cara de mau.
- Rudy Valentino, o investigador dele. -E o nome dele?
- Não, o nome é Rudy Tafero. Já trabalhou no Departamento de Polícia de Los Angeles. Treinava detetives de Hollywood até poucos anos atrás. O pessoal do FBI chamava
o cara de Valentino por causa da aparência dele, que se irritava com isso. Em todo caso, ele foi trabalhar por conta própria. Tirou licença de fiador profissional.
Não me pergunte como, mas ele começou a obter contratos para fazer a segurança de um bando de gente em Hollywood. E surgiu nesse caso logo depois que prendemos Storey.
Na realidade, Rudy levou o caso de Storey para Fowkkes. Provavelmente ganhou por isso uma boa comissão como agenciador de clientes.
- E o juiz? Como ele vai proceder?
Bosch balançou a cabeça, como se houvesse encontrado algo de bom na conversa.
- Houghton Bala. Com ele não tem papo de segunda chance. Não brinca em serviço. Vai calar a boca do Fowkkes, se for preciso. Pelo menos nós temos isso a nosso favor.
- Houghton Bala?
- Ele geralmente anda armado por baixo da toga preta... ou pelo menos as pessoas acham que sim. Há cerca de cinco anos ele teve um caso da máfia mexicana. Quando
o júri deu o veredicto de culpado, vários amiguinhos e familiares do réu que estavam na platéia se enfureceram, e quase começaram um tumulto no tribunal. Houghton
puxou uma Glock e disparou um tiro para o teto. As coisas se acalmaram rapidinho. Desde então ele vem sendo reeleito com uma porcentagem maior do que qualquer outro
juiz candidato no condado. Vá lá no tribunal e verifique o teto. O buraco da bala ainda está lá. Ele não deixa ninguém consertar a coisa.
Bosch deu outra mordida no almoço, olhou para o relógio e mudou de assunto, falando com a boca cheia.
- Não é nada pessoal, mas acho que eles entraram num beco sem saída no caso de Gunn, se já estão pedindo ajuda externa.
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente.
- E por aí.
Baixou o olhar para o cachorro-quente com molho apimentado à sua frente, desejando ter garfo e faca.
- Qual é o problema? Não precisávamos ter vindo aqui.
- Nada. Só estava pensando. Juntando as panquecas do Dupar's hoje cedo e isto aqui, vou precisar de outro coração quando chegar a hora do jantar.
- Se quiser fazer seu coração parar, da próxima vez que for ao Dupar's arremate com uma visita ao Bob's Donuts. Bem ali no Mercado do Fazendeiro. Peça duas daquelas
roscas com cobertura dupla. Você sentirá suas artérias endurecerem e caírem feito pingentes de gelo numa casa. Eles não conseguiram achar nenhum suspeito, não é?
- E. Nenhum.
- Então por que se interessou tanto?
- Pelo mesmo motivo que Jaye. Alguma coisa a respeito desse caso. Achamos que o sujeito, seja quem for, pode estar apenas começando.
Bosch simplesmente balançou a cabeça. Tinha a boca cheia.
McCaleb lançou-lhe um olhar de avaliação. O cabelo de Bosch parecia mais curto. Mais grisalho também, mas isso era de esperar. Ele ainda tinha o mesmo bigode e os
olhos que faziam McCaleb recordar os de Graciela. Eram tão negros que quase não havia linha de separação entre a íris e a pupila. Mas os olhos de Bosch eram cansados
e ligeiramente cobertos por rugas nos cantos. Ainda assim, viviam se mexendo e observando tudo. Ele se sentava ligeiramente inclinado para a frente, como preparado
para agir. McCaleb lembrou que Bosch sempre lhe passara uma sensação de mola comprimida. Tinha a impressão que a qualquer momento, ou por qualquer razão, o policial
podia explodir.
Bosch meteu a mão no paletó do terno, tirou um par de óculos escuros e colocou-os no rosto. McCaleb ficou pensando se ele reagira à percepção de estar sendo examinado.
Curvou-se para a frente, levantou o cachorro-quente com molho e deu enfim uma mordida naquilo. Tinha um gosto delicioso e letal ao mesmo tempo.
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Recolocou o troço gotejante no prato de papel e limpou a mão no guardanapo.
- Fale alguma coisa do Gunn. Você disse que ele era um escroto. O que mais?
- O que mais? É isso aí. Ele era um predador. Usava as mulheres, comprava as mulheres. Matou aquela garota no quarto do motel, não tenho a menor dúvida.
- Mas a promotoria arquivou o caso.
- Pois é. Gunn alegou legítima defesa. Disse umas coisas que não se encaixavam, mas não a ponto de alguém encaixar uma acusação. Alegou legítima defesa, e não haveria
o suficiente para contestar isso num julgamento. Daí o negócio foi arquivado, fim de papo, vamos ao caso seguinte.
- Ele chegou a saber que você não acreditou nele?
- Ah, é claro. Ele soube.
- Você tentou dar algum aperto nele?
Bosch lançou-lhe um olhar que McCaleb conseguiu interpretar mesmo através dos óculos escuros. Aquela última pergunta questionava a credibilidade de Bosch como investigador.
- Quer dizer, o que aconteceu quando você tentou dar um aperto nele? - acrescentou ele rapidamente.
- A verdade é que nunca tivemos chance de fazer isso. Houve um problema. Chegamos até a armar a coisa. Levamos o escroto até uma das nossas salas. Eu e meu parceiro
estávamos planejando deixar o Gunn de molho ali por algum tempo, para que ele pensasse sobre o assunto, íamos aprontar toda a papelada, registrar o caso no dossiê
e depois dar um bote nele para tentar desmontar aquela versão. Não tivemos chance de fazer isso. Quer dizer, de fazer a coisa direito.
- O que aconteceu?
- Eu e o meu parceiro, Jérry Edgar, fomos ao fim do corredor tomar um café e conversar sobre a melhor maneira de fazer a coisa. Enquanto estávamos lá, o tenente
da equipe viu Gunn sentado na sala de entrevistas e não entendeu que porra ele estava fazendo ali. Resolveu por conta própria entrar e ver se o cara tinha sido avisado
sobre os seus direitos corretamente.
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Mesmo seis anos após a ocorrência, McCaleb viu o rosto de Bosch encher-se de raiva.
- Veja bem, Gunn estava lá como testemunha, e ostensivamente como a vítima de um crime. Contou que a mulher tinha avançado pra cima dele com a faca e que ele virou
a arma contra ela. Portanto, não tínhamos que avisar o sujeito de direito algum. O plano era entrar lá, desmontar aquela versão e fazer com que ele cometesse algum
engano. Feito isso, íamos falar sobre os direitos dele. Mas o tal tenente de merda não sabia de nada disso. Simplesmente entrou lá e avisou o cara. Com isso, ele
nos matou. Gunn percebeu que nós iríamos em cima dele. Pediu um advogado logo que entramos na sala.
Bosch abanou a cabeça e olhou para a rua. McCaleb seguiu o olhar dele. Do outro lado do bulevar Victory havia um pátio de venda de carros usados, com bandeirolas
vermelhas, brancas e azuis ondulando ao vento. Para McCaleb, Van Nuys era sempre sinônimo de pátios de vendas de carros. Estavam por toda parte, novos e usados.
- Então, o que você disse ao tenente? - perguntou ele.
- Dizer? Eu não disse nada. Simplesmente joguei o cara pela janela do escritório. Ganhei uma suspensão por causa disso... licença involuntária devido a estresse.
Jerry Edgar acabou levando o caso para a promotoria. Eles ficaram sentados no troço por algum tempo e finalmente arquivaram tudo.
Bosch balançou a cabeça e pousou os olhos no prato de papel vazio, acrescentando:
- Eu meio que estraguei a coisa. É isso, eu estraguei a coisa. McCaleb esperou alguns instantes antes de falar. Uma rajada
de vento arrancou o prato de Bosch da mesa, e o detetive ficou observando o objeto ser arrastado pela área de piquenique, sem fazer movimento algum para alcançá-lo.
- Você ainda trabalha com esse tenente?
- Não. Ele não está mais conosco. Pouco tempo depois, saiu à noite e não voltou para casa. Foi encontrado dentro do carro no túnel do parque Griffith, perto do Observatório.
- Como assim, ele se matou?
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- Não. Alguém fez isso por ele. O caso ainda está em aberto. Tecnicamente - disse Bosch, lançando outro olhar para ele.
McCaleb baixou os olhos e observou que o prendedor de gravata de Bosch era um pequeno par de algemas de prata.
- O que mais posso contar? - disse Bosch. - Nada disso tem qualquer coisa a ver com Gunn. Ele não passava de uma mosca no melado... sendo o melado essa merda que
eles chamam de sistema judicário.
- Parece que você não teve muito tempo para vasculhar os antecedentes dele.
- Tempo nenhum, na verdade. Tudo isso que eu contei aconteceu num período de oito ou nove horas. Depois do que aconteceu, eu fui afastado do caso, e o cara saiu
livre feito um passarinho.
- Mas você não desistiu. Jaye me disse que você foi falar com Gunn na cela dos bêbados na véspera da morte dele.
- Fui mesmo. Ele foi pego dirigindo bêbado quando andava atrás de prostitutas no Sunset. Estava na cela de custódia, e eu recebi um telefonema. Fui dar uma olhada,
pra sacudir o cara um pouco e ver se ele estava pronto para falar. Mas ele estava bêbado feito um gambá, deitado no chão em cima do vômito. E foi isso aí. Você pode
dizer que a gente não conseguiu se comunicar.
Bosch olhou para o cachorro-quente com molho que McCaleb não terminara de comer e depois para o próprio relógio.
- Desculpe, mas não sei de mais nada. Vai comer isso ou podemos ir?
- Umas mordidas mais, umas perguntinhas mais. Não quer fumar um cigarro?
- Parei há dois anos. Só fumo em ocasiões especiais.
- Não me diga que foi por causa do cartaz do Homem de Marlboro impotente, ali no Sunset Boulevar.
- Não, minha mulher queria que nós dois parássemos. E conseguimos.
- Sua mulher? Harry, você está cheio de surpresas.
- Não fique entusiasmado. Ela veio e se foi. Mas pelo menos eu não fumo mais. Não sei onde ela está.
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McCaleb simplesmente balançou a cabeça, sentindo que se intrometera demais no mundo pessoal do outro, e voltou ao caso, dizendo:
- Tem alguma teoria sobre quem matou Gunn? Deu outra mordida enquanto Bosch respondia.
- Meu palpite é que ele provavelmente encontrou alguém parecido com ele. Alguém que saiu da linha em algum lugar. Não me interprete mal. Espero que você e Jaye peguem
essa pessoa. Mas até agora, quem quer que seja, ele ou ela, não fez nada que me incomodasse muito. Entende o que quero dizer?
- É engraçado você mencionar "ela". Acha que pode ter sido uma mulher?
- Não sei o bastante sobre o caso. Mas como eu disse, ele explorava mulheres. Talvez uma delas tenha posto fim a isso.
McCaleb simplesmente balançou a cabeça. Não conseguia pensar em nada mais que pudesse perguntar a Bosch. Em todo caso, aquela fora uma cartada sem muitas probabilidades
de êxito. Talvez ele até já soubesse que a coisa sairia assim e desejasse simplesmente reatar o relacionamento com Bosch por outras razões.
- Ainda pensa sobre a garota na colina, Harry? - disse ele com os olhos no prato de papel. Não queria dizer em voz alta o nome que Bosch dera a ela.
Bosch balançou a cabeça.
- De tempos em tempos eu penso. A coisa ficou grudada em mim. Tudo isso fica, eu acho.
McCaleb balançou a cabeça, dizendo:
- É isso mesmo. Mas então nada... ninguém jamais reivindicou
o corpo?
- Não. E eu ainda tentei falar com Seguin uma última vez. Fui até a prisão no ano passado, uma semana antes que ele fosse para a cadeira elétrica. Tentei novamente
descobrir alguma coisa, mas ele só sorria para mim. Como se soubesse que aquilo era a última coisa que podia reter de mim, ou coisa assim. Dava pra ver que ele estava
gostando da situação. Daí eu levantei e disse pra ele ir se divertir no inferno. Sabe o que ele disse? "Ouvi dizer que lá o calor é seco." - Bosch abanou a cabeça
e acrescentou: - Filho da puta. Fui
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até lá e voltei no meu dia de folga. Doze horas dentro do carro, com o ar-condicionado quebrado.
Olhou diretamente para McCaleb, que mesmo através dos óculos escuros sentiu novamente o laço forte que o unira àquele homem havia tanto tempo.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ouviu o celular tocar no bolso do agasalho que deixara dobrado no banco ao seu lado. Lutou contra a roupa para achar o bolso
e pegar o telefone antes que a pessoa desistisse da chamada. Era Brass Doran.
- Tenho uns troços pra você. Não é muito, mas talvez seja um ponto de partida.
- Onde você está? Eu retorno a ligação daqui a pouco.
- Na realidade, estou na sala central de reuniões. Estamos prestes a iniciar uma sessão intensiva sobre um caso, e sou a orientadora. Só vou estar livre daqui a
algumas horas. Você pode telefonar para minha casa à noite, se...
- Não, espere um instante.
Ele abaixou o telefone e olhou para Bosch.
- Preciso atender esta ligação. Falo com você depois, se aparecer alguma coisa, está bem?
- Claro.
Bosch começou a se levantar, levando a Coca-Cola.
- Obrigado - disse McCaleb, estendendo a mão. - Boa sorte no julgamento.
Bosch apertou a mão do amigo.
- Obrigado. Provavelmente vamos precisar.
McCaleb viu-o sair da área de piquenique e pegar a calçada que levava ao tribunal. Levou de novo o telefone ao ouvido.
- Brass?
- Estou aqui. Bom, você estava falando de corujas em geral, certo? Não sabe o tipo ou o gênero, certo?
- Certo. E só uma coruja comum, acho eu.
- De que cor?
- Hum, a maior parte é marrom. Nas costas e nas asas. Enquanto falava, tirou do bolso umas páginas de caderno
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dobradas e uma caneta. Afastou para o lado o cachorro-quente com molho, meio comido, e preparou-se para tomar notas.
- Muito bem, a iconografia moderna é o que se esperaria mesmo. A coruja é o símbolo da sabedoria e da verdade, denota conhecimento, a visão de um quadro maior, em
oposição a pequenos detalhes. A coruja vê à noite. Em outras palavras, ver através das trevas é ver a verdade. É descobrir a verdade, portanto, conhecimento. E do
conhecimento vem a sabedoria. Certo?
McCaleb não precisava anotar aquilo. O que Doran dissera era óbvio. Mas só para manter a cabeça atenta, escreveu:
Ver no escuro = Sabedoria
Depois sublinhou a última palavra.
- Está bem, ótimo. O que mais?
- Isso é basicamente o que eu tenho, quanto às aplicações contemporâneas. Mas quando a gente vai para o passado a coisa fica bem mais interessante. A reputação da
nossa amiga coruja rejuvenesceu totalmente. Ela costumava ser a vilã da história.
- Fale, Brass.
- Pegue o lápis. A coruja é vista reiteradamente na arte e na iconografia religiosa, desde os primeiros tempos medievais até os períodos finais da Renascença. Muitas
vezes é encontrada em exibições religiosas alegóricas... pinturas, painéis de igrejas e estações do Calvário. A coruja era...
- Tá legal, Brass, mas o que ela significava?
- Estou chegando lá. Seu significado podia divergir de figura para figura, e também segundo a espécie mostrada. Contudo sua aparição essencialmente era um símbolo
do mal.
McCaleb anotou a palavra.
- Mal. Tá legal.
- Pensei que ia ficar mais entusiasmado.
- E porque você não está me vendo. Estou plantando bananeira aqui. O que mais você tem?
- Vamos percorrer a lista de referências. Foram tiradas de trechos da literatura crítica sobre a arte do período. As referências a
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figuras de corujas mostram o pássaro como... vou citar... símbolo da destruição, inimigo da inocência, o próprio Diabo, símbolo de heresia, loucura, morte e desgraça,
a ave das trevas, e, finalmente, o tormento da alma humana em sua jornada inevitável para a danação eterna. Bonito, né? Gosto dessa última. Acho que no século quinze
eles não vendiam muitos sacos de batata frita com figuras de corujas. McCaleb não respondeu. Estava anotando as descrições que ela lera para ele.
- Leia a última novamente.
Ela leu e ele anotou palavra por palavra.
- Mas tem mais - disse Brass. - Há também algumas interpretações da coruja como sendo o símbolo da ira, bem como a punição do mal. Portanto, obviamente era algo
que significava coisas diferentes em épocas diferentes, e para pessoas diferentes.
- A punição do mal - disse McCaleb enquanto anotava. Olhou para a lista que fizera.
- Mais alguma coisa? -Não basta isso?
- Provavelmente, sim. Há qualquer coisa sobre os livros que mostram alguns desses troços, ou os nomes dos artistas e escritores que costumavam chamar a coruja de
"ave das trevas" em suas obras?
McCaleb ouviu no fone o ruído das páginas sendo viradas, e Brass ficou silenciosa por alguns instantes.
- Não tenho muita coisa aqui. Nenhum livro, mas posso dar os nomes de alguns dos artistas mencionados, e você provavelmente pode conseguir alguma coisa na Internet
ou talvez na biblioteca da UCLA.
- Tudo bem.
- Tenho que andar depressa. Estamos prestes a começar aqui. - Diga o que você tem.
- Bom, tenho um artista chamado Bruegel, que pintou um rosto enorme como sendo o portão do inferno. Uma coruja marrom tinha o seu ninho dentro da narina de um rosto
- disse ela, começando a rir e acrescentando: - Não me pergunte nada. Só estou dizendo o que encontrei.
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- Ótimo - disse McCaleb, anotando a descrição. - Continue.
- Tá legal, dois outros que se destacaram por usar a coruja como símbolo do mal foram Van Oostanen e Dürer. Não tenho o nome dos quadros específicos.
McCaleb ouviu mais páginas sendo viradas. Perguntou como se soletravam os nomes dos artistas e anotou.
- Tá legal, achei. A obra desse último cara aqui supostamente está repleta de corujas por toda parte. Não consigo pronunciar o primeiro nome dele. Escreve-se H-I-E-R-O-N-Y-M-U-S.
Ele era dos Países Baixos e fazia parte do movimento renascentista do norte. Acho que as corujas faziam sucesso lá.
McCaleb olhou para papel à sua frente. O nome que ela acabara de soletrar lhe parecia familiar.
- Você esqueceu o último nome dele. Qual era?
- Ah, desculpe. É Bosch. Como as velas de ignição. McCaleb ficou paralisado. Não se movia, não respirava.
Olhava fixamente para o nome no papel, incapaz de escrever a última parte, que Brass acabara de lhe dar. Finalmente, virou a cabeça e olhou para a área de piquenique,
observando o ponto da calçada onde vira Bosch pela última vez, indo embora.
- Terry, ainda está aí? Ele se recuperou.
- Estou.
- É só, na realidade. E tenho que ir. Já vamos começar por aqui.
- Mais alguma coisa sobre Bosch?
- Na verdade, não. E meu tempo se esgotou.
- Tá legal, Brass. Escute, muito obrigado. Fico devendo essa a você.
- E algum dia eu vou cobrar. Quero saber como as coisas se desenvolvem, está bem?
- Pode estar certa disso.
- E manda uma foto daquela menininha pra mim.
- Vou mandar.
Ela desligou, e McCaleb fechou o telefone celular vagarosamente. Fez uma anotação no fim da página para lembrar de enviar
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a Brass uma foto de sua filha. Era somente um artifício para evitar o nome do pintor que ele anotara.
- Merda - sussurrou.
Ficou sentado, imerso nos próprios pensamentos, durante bastante tempo. Estava perturbado pela coincidência de receber aquela informação misteriosa poucos minutos
depois de almoçar com Harry Bosch. Estudou as anotações durante uns momentos, mas sabia que ali não se encontrava a informação imediata de que precisava. Finalmente
abriu novamente o telefone e ligou para 213, informações. Um minuto mais tarde, estava telefonando para a seção de pessoal do Departamento de Polícia de Los Angeles.
Uma mulher atendeu depois de nove toques.
- Sim, estou telefonando em nome do gabinete do xerife do condado de Los Angeles e preciso contatar um determinado policial do Departamento de Polícia. Mas não sei
onde ele trabalha. Só tenho o nome dele.
Torceu para que a mulher não perguntasse o que ele queria dizer com em nome do. Houve o que pareceu ser um longo silêncio, e depois ele ouviu o som de alguém digitando
num teclado.
- Ultimo nome?
- Hum... Bosch.
Ele soletrou o nome e depois olhou para as anotações, pronto para soletrar o primeiro nome.
- E o primeiro no... não importa, só há um. Hie...ro...nimus. E isso? Acho que não sei pronunciar esse troço.
- Hieronymus. É esse mesmo.
Ele soletrou o nome e perguntou se coincidia. Coincidia.
- Bom, ele é detetive de terceiro grau e trabalha na Divisão Hollywood. Precisa do número de lá?
McCaleb não respondeu.
- Senhor, precisa...
- Não, já tenho. Muito obrigado.
McCaleb fechou o telefone, olhou para o relógio e reabriu o aparelho. Ligou para o número direto de Jaye Winston, que atendeu imediatamente. Ele perguntou se ela
conseguira algum resultado do laboratório sobre o exame da coruja de plástico.
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- Ainda não. Faz apenas duas horas, e uma delas era de almoço. Vou esperar até amanhã antes de começar a bater na porta deles.
- Tem tempo de dar uns telefonemas e me fazer um favor?
- Que telefonemas?
Ele descreveu a pesquisa iconográfica que Brass Doran fizera, mas omitiu qualquer referência a Hieronymus Bosch. Disse que queria conversar com um perito em pintura
renascentista do norte da Europa, mas achava que as coisas poderiam andar mais depressa e a cooperação seria mais fácil se a solicitação viesse de uma detetive de
homicídios oficial.
- Farei isso - disse Jaye. - Por onde a gente começa?
- Eu tentaria o museu Getty. Estou em Van Nuys agora. Se alguém quiser me receber, posso chegar lá em meia hora.
- Vou ver o que posso fazer. Falou com Harry Bosch?
- Falei.
- Alguma novidade?
- Na verdade, não.
- Eu sabia. Fique frio. Já ligo de volta.
McCaleb jogou o que restara do almoço numa das latas de lixo e dirigiu-se para o tribunal, onde deixara o Cherokee estacionado numa rua transversal, junto aos escritórios
de liberdade condicional do estado. Enquanto caminhava, foi pensando sobre a mentira por omissão que contara a Jaye. Sabia que deveria ter falado da conexão ou coincidência
com Bosch, fosse o que fosse aquilo. Tentou entender o que o fizera omitir a informação, mas não encontrou resposta.
O telefone tocou assim que ele chegou ao Cherokee. Era Jaye.
- Você tem um encontro marcado no museu Getty às duas horas. Procure Leigh Alasdair Scott. É um dos curadores de pinturas.
McCaleb pegou as anotações e escreveu o nome do sujeito, usando o capo do carro como apoio, depois de perguntar a Jaye como se soletrava aquilo.
- Foi rápido, Jaye. Obrigado.
- Nossa meta é agradar. Falei diretamente com Scott, e ele disse que se não pudesse ajudar encontraria alguém que pudesse.
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- Mencionou a coruja?
- Não, a entrevista é sua.
- Certo.
McCaleb percebeu que aquela era outra chance de falar de Hieronymus Bosch para Jaye. Mas novamente deixou a coisa passar.
-Telefono mais tarde, está bem?
- Até logo.
Ele fechou o telefone e destrancou o carro. Olhou por cima da capota do veículo para os escritórios de liberdade condicional e viu um grande cartaz branco, com dizeres
em letra azul, pendendo sobre a fachada acima da portaria.
SEJA BEM-VINDA DE VOLTA, THELMA!
Entrou no carro, pensando se a Thelma que estava recebendo boas-vindas seria uma presa ou uma funcionária. Seguiu na direção do bulevar Victory. Pegaria a 405 e
seguiria para o sul.
Capítulo 11
A rodovia se elevava para cruzar as montanhas Santa Monica pelo passo Sepulveda, e McCaleb viu o Getty surgir no alto da colina. A estrutura do próprio museu era
tão impressionante quanto qualquer das grandes obras artísticas ali abrigadas. Parecia um castelo assentado no topo de uma colina medieval. McCaleb viu um dos dois
trenzinhos duplos avançando vagarosamente morro acima para deixar mais um grupo naquele altar da história e da arte.
Quando estacionou no sopé da colina e pegou o trenzinho para subir, McCaleb já estava quinze minutos atrasado para o encontro com Leigh Alasdair Scott. Depois de
pedir informações a um guarda do museu, atravessou rapidamente a praça calçada de pedras calcárias e chegou a uma entrada controlada. Identificou-se no balcão e
ficou esperando num banco até Scott vir buscá-lo.
O homem tinha cinqüenta e poucos anos, e falava com um sotaque que McCaleb inicialmente achou ser da Austrália ou Nova Zelândia. Era amável, e parecia contente de
estar prestando um favor ao gabinete do xerife do condado de Los Angeles.
- Já tivemos a oportunidade de oferecer nossa ajuda e experiência a detetives no passado. Geralmente no que diz respeito à autenticação de obras de arte ou oferecendo
o embasamento histórico de peças específicas - disse ele, levando McCaleb por um longo corredor até o seu escritório. - A detetive Jaye Winston deu a
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entender que desta vez seria diferente. Você precisa de informações gerais sobre a Renascença no norte da Europa?
Abriu uma porta e fez McCaleb entrar num conjunto de escritórios. Os dois foram para a primeira sala depois do balcão de controle. Era um escritório pequeno com
uma grande janela, de onde se avistava um panorama que ia desde o passo Sepulveda até o casario na encosta de Bel-Air. A sala parecia atulhada, devido às estantes
de livros que forravam duas paredes e também por causa da mesa de trabalho repleta de coisas. Só havia lugar para duas cadeiras. Scott indicou uma delas a McCaleb
e sentou-se na outra.
- Na realidade, as coisas mudaram um pouco depois que a detetive Jaye falou com você - disse McCaleb. -Já posso ser mais específico sobre o que necessito. Consegui
concentrar minhas perguntas num pintor específico daquele período. Se puder me falar dele e talvez me mostrar algumas obras de sua autoria, já seria de grande ajuda.
- E qual é o nome dele?
- Vou lhe mostrar.
McCaleb tirou as anotações dobradas e mostrou-as a Scott, que leu o nome em voz alta com óbvia familiaridade, pronunciando o primeiro nome "i-e-rô-ni-mo".
- Achei que a pronúncia era mesmo essa.
- Rima com anônimo. Na verdade, sua obra é bastante conhecida. Não sabia?
- Não. Não estudei muita coisa de arte. O museu tem algum quadro dele?
- Nenhuma das obras de Bosch faz parte da coleção Getty, mas há um quadro de um discípulo dele na seção de conservação. Está sofrendo um grande trabalho de restauração.
A maior parte das obras autenticadas está na Europa, sendo que as mais representativas estão no museu do Prado. Outras estão espalhadas pelo mundo. Entretanto não
sou a pessoa mais indicada para conversar com você sobre isso.
McCaleb franziu a testa numa pergunta muda.
- Como concentrou sua pesquisa especificamente em Bosch, há uma pessoa aqui mais qualificada para falar com você. Ela é
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assistente da curadoria. Acontece que também está trabalhando num catálogo raisonné sobre o pintor... um projeto de longo prazo para ela. Um trabalho de amor, talvez.
- Ela está aqui? Posso falar com ela?
Scott estendeu a mão para o telefone e apertou o botão do microfone. Consultou uma lista de ramais colada na mesa ao lado e apertou três dígitos. Uma mulher respondeu
depois de três toques.
- Lola Walter, em que posso ajudar?
- Lola, é Scott. Penelope está disponível?
- Está trabalhando no Inferno hoje.
- Ah, entendi. Vamos falar com ela lá.
Scott apertou o botão do microfone, desligando, e foi para a porta.
- Você está com sorte - disse.
- Inferno? - perguntou McCaleb.
- E a tal pintura do discípulo. Faça o favor de me acompanhar. Scott conduziu McCaleb até um elevador e os dois desceram
um andar. Ao longo do caminho, ele explicou que o museu tinha um dos melhores ateliês de conservação do mundo. Conseqüentemente, obras de arte de outros museus e
de coleções particulares eram com freqüência despachadas para o Getty a fim de serem reparadas e restauradas. No momento, um quadro que se acreditava ser de um aluno
de Bosch ou de um pintor de seu ateliê estava sendo restaurado para um colecionador particular. O quadro chamava-se Inferno.
O ateliê de conservação era um enorme aposento dividido em duas seções principais. Um delas era a oficina onde as molduras eram restauradas. A outra seção era dedicada
à restauração de quadros e subdividia-se em uma série de baias dispostas ao longo de uma parede de vidro com a mesma vista que Scott tinha do escritório.
McCaleb foi conduzido à segunda baia, onde uma mulher estava de pé atrás de um homem sentado, ambos diante de um quadro preso a um grande cavalete. O homem usava
um avental sobre a camisa social e a gravata, e algo que parecia ser um par de lentes de
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aumento de joalheiro. Estava inclinado em direção à pintura, usando um pincel com a ponta diminuta para aplicar o que parecia ser tinta prateada à superfície.
Nem o homem nem a mulher olharam para McCaleb e Scott, que levantou as mãos num gesto de Pare aqui, enquanto o homem sentado completava a pincelada. McCaleb olhou
para o quadro. Tinha cerca de um metro e vinte de altura e um metro e oitenta de largura. Era uma paisagem escura que mostrava uma aldeia sendo inteiramente queimada
durante a noite, enquanto os habitantes eram torturados e executados por uma variedade de criaturas sobrenaturais. A parte superior do quadro, que mostrava principalmente
o céu noturno em torvelinho, estava marcada por pequenas manchas causadas por danos ou trechos sem tinta. Os olhos de McCaleb se fixaram num pequeno segmento abaixo
daquilo, onde se via um homem - nu e com os olhos vendados - sendo forçado a subir uma escada para a forca por um grupo de criaturas semelhantes a pássaros com lanças.
O homem do pincel terminou sua tarefa e colocou o pincel no tampo de vidro da mesa à esquerda. Depois inclinou-se de volta para o quadro a fim de examinar seu trabalho.
Scott pigarreou. Apenas a mulher se virou.
- Penelope Fitzgerald, este é o detetive McCaleb. Ele está envolvido numa investigação e precisa fazer perguntas sobre Hieronymus Bosch.
Fez um gesto na direção do quadro.
- Eu disse que você era a pessoa da equipe mais indicada para conversar com ele.
McCaleb viu os olhos da mulher registrarem surpresa e preocupação, numa reação normal a uma súbita apresentação à polícia. Já o sujeito sentado nem se virou. Em
vez disso, pegou o pincel e voltou a trabalhar no quadro. McCaleb estendeu a mão para a mulher.
- Na realidade, eu não sou oficialmente um detetive. O escritório do xerife pediu que eu ajudasse numa investigação.
Eles se cumprimentaram.
- Não entendi - disse ela. - Algum quadro de Bosch foi roubado?
- Não, nada disso. Esse quadro é dele?
Fez um gesto na direção da pintura.
- Não exatamente. Pode ser cópia de uma obra dele. Se for, então o original se perdeu e isso é tudo que temos. O estilo e o traço são dele. Mas é geralmente aceito
como trabalho de um aluno da oficina de Bosch. Provavelmente foi pintado depois que ele morreu.
Enquanto ela falava, seus olhos jamais se afastaram da pintura. Eram penetrantes e amistosos, traindo facilmente sua paixão pelo pintor. McCaleb atribuiu-lhe cerca
de sessenta anos e pensou que provavelmente ela dedicara sua vida ao estudo e ao amor à arte. Penelope Fitzgerald o surpreendera. A breve descrição que Scott fizera
dela, como sendo uma assistente que trabalhava num catálogo da obra de Bosch, fizera com que ele a visualizasse como uma jovem estudante de arte. Silenciosamente,
repreendeu-se por ter feito tal suposição.
O sujeito sentado pousou o pincel novamente e pegou um pano branco limpo na bancada para limpar as mãos. Girou na cadeira e ergueu os olhos ao notar McCaleb e Scott.
Só então McCaleb percebeu que fizera outra suposição errada. O homem não ignorara a presença deles. Simplesmente não ouvira nada.
O sujeito tirou as lentes do alto da cabeça enquanto metia a mão embaixo do avental, perto do peito, ajustando um aparelho auditivo.
- Desculpe - disse ele. - Não sabia que tínhamos visitas. Falava com forte sotaque alemão.
- Doutor Derek Vosskuhler, este é Terry McCaleb - disse Scott. - Ele é investigador e precisa lhe roubar a Penelope por alguns minutos.
- Compreendo. Está bem.
- O doutor Vosskuhler é um dos nossos peritos em restauração
- esclareceu Scott.
Vosskuhler balançou a cabeça e ergueu os olhos para McCaleb, estudando-o como talvez estudasse uma pintura. Não fez qualquer movimento para estender a mão.
- Uma investigação? A respeito de Hieronymus Bosch, é?
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- De modo periférico. Eu só quero saber tudo que puder sobre ele. Soube que existe uma especialista aqui - disse McCaleb sorrindo para Penelope.
- Ninguém é especialista em Bosch - disse Vosskuhler, sem sorrir. - Alma torturada, gênio atormentado... Como poderemos chegar a conhecer o que verdadeiramente se
passa no coração de um homem?
McCaleb simplesmente balançou a cabeça. Vosskuhler voltou-se e examinou a pintura, dizendo: -O que vê aqui? McCaleb olhou para o quadro e custou bastante a responder.
- Muito sofrimento.
Vosskuhler balançou a cabeça em aprovação. Depois levantou e olhou bem de perto para o quadro, abaixando os óculos e inclinando-se para o quarto superior da pintura,
com as lentes a poucos centímetros do céu noturno sobre a aldeia em chamas.
- Bosch conhecia todos os demônios - disse ele sem se virar. A treva...
Passou-se um longo momento.
Houve outro longo período de silêncio antes que Scott interrompesse abruptamente, dizendo que precisava voltar ao escritório, e saísse. E depois de outro momento,
Vosskuhler finalmente deu as costas para o quadro. Não se deu ao trabalho de levantar as lentes quando olhou para McCaleb. Meteu vagarosamente a mão embaixo do avental
e desligou o aparelho auditivo.
- Eu também preciso voltar ao trabalho. Boa sorte na investigação.
McCaleb balançou a cabeça, enquanto Vosskuhler se sentava de volta na cadeira giratória e pegava novamente o pequeno pincel.
- Podemos ir até o meu escritório - disse Penelope Fitzgerald.
- Tenho todos os livros ilustrados da nossa biblioteca lá. Posso lhe mostrar o trabalho de Bosch.
- Isso seria ótimo. Obrigado.
Ela se dirigiu para a porta. McCaleb demorou-se um instante, lançando um último olhar para o quadro. Seus olhos foram atraídos
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para a parte superior, na direção das trevas em torvelinho, acima das chamas.
O escritório de Penelope Fitzgerald era um compartimento de dois por dois metros, numa sala compartilhada por vários assistentes da curadoria. Ela enfiou num espaço
apertado uma cadeira que tirou de um compartimento contíguo, onde ninguém estava trabalhando, e mandou McCaleb se sentar. Sua escrivaninha tinha a forma de L, com
um lap top do lado esquerdo e um espaço de trabalho atulhado de coisas do lado direito. Havia vários livros empilhados na mesa. McCaleb notou que atrás de uma das
pilhas havia uma reprodução colorida de um quadro muito semelhante em estilo ao que Vosskuhler estava restaurando. Ele empurrou os livros um palmo para o lado e
inclinou-se a fim de examinar a reprodução. Era dividida em três painéis, com o maior no centro. Ali também reinava o caos. Dezenas e dezenas de figuras espalhavam-se
pelos painéis, em cenas de libertinagem e tortura.
- Reconhece isso? - disse Penelope.
- Acho que não. Mas é de Bosch, não é?
- E a sua obra mais característica. O tríptico denominado O jardim das delícias terrenas. Está no museu do Prado, em Madri. Certa vez eu fiquei quatro horas diante
dele. Não foi o bastante para apreender toda a obra. Quer café, água ou alguma outra coisa, Sr. McCaleb?
- Não, obrigado. Pode me chamar de Terry se quiser.
- E você me chama de Nep. McCaleb fez uma expressão intrigada.
- Apelido de infância. Ele balançou a cabeça.
- Bom - disse ela. - Nesses livros eu posso lhe mostrar todas as obras de Bosch já identificadas. É uma investigação importante?
McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que sim. E um homicídio.
- E você é uma espécie de consultor?
- Eu trabalhava para o FBI aqui em Los Angeles. A detetive do escritório do xerife a quem o caso foi distribuído pediu que eu
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desse uma olhada na história e visse o que eu achava. Foi isso que me trouxe aqui. A Bosch. Desculpe, mas não posso revelar os detalhes do caso, e sei que isso deve
ser frustrante para você. Quero fazer perguntas, mas na verdade não posso responder a nenhuma pergunta sua.
- Droga - disse ela sorrindo. - A coisa parece realmente interessante.
- Mas se houver um ponto sobre o qual eu possa falar prometo fazer isso.
- Parece justo.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Pelo que o doutor Vosskuhler falou, entendi que se sabe pouco do homem por trás dos quadros.
Penelope balançou a cabeça.
- Hieronymus Bosch é certamente considerado um enigma e provavelmente sempre será.
McCaleb abriu suas anotações sobre a mesa e começou a escrever enquanto ela falava.
- Ele tinha uma das imaginações menos convencionais de sua época. Ou de qualquer época, pode-se dizer. Sua obra é realmente extraordinária, e cinco séculos mais
tarde continua sujeita a reestudos e reinterpretações. Mas acho que você perceberá que a maioria das análises críticas até hoje afirma que ele era um profeta da
destruição. Sua obra é inspirada nos portentos da destruição e do fogo eterno, e por avisos sobre os custos do pecado. Para colocar a coisa de maneira mais sucinta,
os quadros são primordialmente variações sobre o mesmo tema: que a loucura da humanidade nos leva todos ao inferno como nosso destino final.
McCaleb escrevia rapidamente para tentar acompanhá-la, desejando ter trazido um gravador.
- Sujeito legal, hein? - acrescentou Penelope.
- Parece que sim - disse McCaleb, meneando a cabeça na direção da reprodução do tríptico. - Devia ser divertido numa noite de sábado.
Ela sorriu.
- Foi exatamente o que eu pensei quando estive no Prado.
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- Alguma qualidade redentora? Ele abrigava órfãos, era bondoso com os cachorros, trocava pneus furados para as velhinhas, qualquer coisa assim?
- Você precisa lembrar da época e do lugar em que ele vivia para compreender integralmente o que ele estava fazendo com sua arte. Embora seu trabalho fosse pontilhado
por cenas violentas e representações de tortura e angústia, naquela época esse tipo de coisa não era incomum. Ele vivia numa época violenta, e sua obra reflete isso
claramente. Os quadros também refletem a crença medieval na existência de demônios por toda parte. O mal espreita em todas as pinturas.
- A coruja?
Ela ficou olhando para ele com expressão vaga por um instante.
- Sim, a coruja é um dos símbolos que ele usava. Achei que você disse que não tinha familiaridade com a obra dele.
- E não tenho. Foi uma coruja que me trouxe aqui. Mas não posso entrar nesse assunto e não deveria ter interrompido. Por
favor, continue.
- Eu só ia acrescentar que isso é revelador, quando se considera que Bosch foi contemporâneo de Leonardo, Michelangelo e Rafael. Contudo, se você examinasse as obras
de todos eles lado a lado, seria levado a acreditar que Bosch... com todos os símbolos medievais e a destruição... era do século anterior.
- Mas ele não era.
Ela abanou a cabeça como se sentisse pena de Bosch.
- Ele e Leonardo da Vinci tinham uma diferença de idade de apenas um ano ou dois. No final do século quinze, da Vinci estava criando obras que eram cheias de esperança,
celebração dos valores humanos e espiritualidade, enquanto Bosch era só melancolia e destruição.
- Isso deixa você triste, não é?
Ela pôs as mãos no livro mais alto da pilha, mas não o abriu. A lombada ostentava simplesmente o nome de BOSCH e não havia ilustrações na encadernação de couro preto.
- Não posso deixar de pensar no que poderia ter acontecido se Bosch tivesse trabalhado lado a lado com da Vinci ou
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michelangelo, e no que poderia ter acontecido se ele tivesse usado seu talento e imaginação na celebração e não na danação do mundo.
Ela baixou os olhos para o livro e depois encarou McCaleb de novo.
- Mas é nisso que está a beleza da arte, e é por isso que estudamos e celebramos essas obras. Cada pintura é uma janela para a alma e a imaginação do artista. Por
mais sombria e perturbadora que seja, é essa visão que diferencia cada artista e torna seus quadros únicos. O que acontece comigo, em relação a Bosch, é que os quadros
servem para me transportar até a alma do artista, e eu sinto o tormento ali dentro.
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente. Penelope baixou os olhos e abriu o livro.
Para McCaleb, o mundo de Hieronymus Bosch era tão surpreendente quanto perturbador. As paisagens dolorosas que se desenrolavam nas páginas que Penelope virava assemelhavam-se
a algumas das mais horríveis cenas de crimes que ele já vira, mas naquelas cenas pintadas os atores ainda viviam e sofriam. Os dentes arreganhados e as carnes dilaceradas
estavam em ação e eram reais. As telas estavam apinhadas daqueles seres humanos condenados ao inferno, que tinham seus pecados castigados por demônios visíveis e
criaturas tornadas vivas pela mão de uma imaginação horrenda.
Ele começara a examinar as reproduções coloridas das pinturas em silêncio, absorvendo tudo como começaria a observar a fotografia da cena de um crime. Mas subitamente
ela virou uma página e viu um quadro que representava três pessoas de pé em torno de um homem sentado. Uma das pessoas de pé estava usando o que parecia um bisturi
primitivo para abrir um corte no topo da cabeça do homem sentado. A imagem era representada em um círculo. Havia palavras pintadas acima e abaixo do círculo.
- Que quadro é esse? - perguntou ele.
- Chama-se A operação da pedra - disse Penelope. - Na época muita gente acreditava que a estupidez e a mentira podiam ser curadas removendo uma pedra da cabeça de
quem sofresse da doença.
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McCaleb curvou-se sobre o ombro dela e olhou de perto para a pintura, especificamente para o local do corte cirúrgico. Era um local comparável ao ferimento na cabeça
de Edward Gunn.
- Muito bem, pode continuar.
Havia corujas por toda parte. Penelope quase nunca precisava mostrá-las, tão óbvias eram suas posições. Mas explicava algumas das imagens correlatas. Na maioria
dos quadros, quando a coruja era representada numa árvore, o galho onde pousara o símbolo do mal estava desfolhado e acinzentado - morto.
Ela virou a página e mostrou uma pintura composta por três painéis.
- Chama-se O juízo Final, com o painel da esquerda subintitulado A queda da humanidade, e o painel direito, de forma simples e óbvia, Inferno.
- Ele gostava de pintar o inferno.
Mas Nep Fitzgerald não sorriu. Seus olhos examinavam o livro.
O painel da esquerda da pintura era uma cena passada no Jardim do Éden. Adão e Eva apareciam no centro, recebendo o fruto da serpente na macieira. Num galho morto
de uma árvore próxima, uma coruja observava a transação. No painel oposto, o Inferno era mostrado como um lugar escuro, onde criaturas semelhantes a pássaros estripavam
os condenados, retalhando seus corpos e colocando os pedaços em tachos a serem enfiados em fornos flamej antes.
- Tudo isso saiu da cabeça desse cara - disse McCaleb. - Eu
não...
Não terminou, porque não sabia ao certo o que estava tentando dizer.
- Uma alma atormentada - disse Penelope virando a página. A pintura seguinte era outra imagem circular, com sete cenas
diferentes apresentadas em torno da borda externa e um retrato de Deus no centro. No círculo dourado que cercava o retrato de Deus e o separava das cenas exteriores,
havia quatro palavras em latim que McCaleb reconheceu imediatamente.
- Cuidado, cuidado, Deus vê. Penelope ergueu os olhos para ele.
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- Obviamente, você já viu isso antes. Ou simplesmente conhece latim do século quinze. O caso em que está trabalhando deve ser muito estranho.
- E o que está parecendo. Mas eu só conheço as palavras, e não o quadro. O que é isso?
- Na realidade é um tampo de mesa, provavelmente criado para a reitoria de uma igreja ou a residência de uma pessoa santa. E o olho de Deus. Ele está no centro e
o que ele vê quando olha para baixo são essas imagens, os sete pecados mortais.
McCaleb balançou a cabeça. Olhando para as cenas distintas, dava para perceber alguns dos pecados mais óbvios: gula, luxúria e orgulho.
- E agora a obra-prima - disse a sua guia naquela turnê, virando a página.
Era o mesmo tríptico que ela pregara na parede da divisória. O jardim das delícias terrenas. McCaleb examinou a pintura de perto. O painel da esquerda era uma cena
bucólica de Adão e Eva sendo colocados no jardim pelo Criador. Perto havia uma macieira. O painel central, o maior, mostrava dezenas de pessoas nuas copulando e
dançando com luxúria desinibida, montadas em cavalos, lindos pássaros e criaturas inteiramente imaginárias saídas do lago em primeiro plano. E o último painel, o
mais escuro, era o resultado. O inferno, um lugar de sofrimento e angústia administrado por aves monstruosas e outras criaturas horrendas. A pintura era tão detalhada
e fascinante que McCaleb compreendeu por que alguém podia ficar parado diante dela - do original - por quatro horas e ainda assim não absorver tudo.
- Tenho certeza que você já está apreendendo as idéias dos temas tão repetidos por Bosch - disse Penelope. - Mas essa é considerada a mais coerente de suas obras,
bem como a mais lindamente imaginada e realizada.
McCaleb balançou a cabeça e apontou para os três painéis, dizendo:
- Aqui você tem Adão e Eva, na boa vida até comerem a maçã. Aqui no centro você tem o que acontece depois da perda do
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estado de graça: a vida sem regras. A liberdade de escolha nos leva à luxúria e ao pecado. E onde vai dar tudo isso? No inferno.
- Muito bem. Quer que eu tente salientar alguns pontos específicos que possam lhe interessar?
- Por favor.
Ela começou pelo primeiro painel.
- O paraíso terrestre. Você tem razão ao dizer que isso mostra Adão e Eva antes da queda. O lago e a fonte no centro representam a promessa da vida eterna. Você
já observou a árvore do fruto à esquerda do centro.
O dedo de Penelope moveu-se ao longo da pintura até a estrutura da fonte, uma torre feita do que parecia ser um monte de pétalas de flores que misteriosamente despejavam
água em quatro diferentes vertentes no lago abaixo. Depois ele viu a coisa. O dedo dela parou embaixo de uma pequena abertura escura no centro da estrutura da fonte.
O rosto de uma coruja espreitava nas trevas.
- Você mencionou a coruja antes. A imagem dela está aqui. Você vê que nem tudo é perfeito nesse paraíso. O mal espreita, e como você sabe acabará vitorioso. Segundo
Bosch. Depois, indo para o próximo painel, vemos essas imagens correlatas aparecerem repetidamente.
Ela apontou para duas representações distintas de corujas e mais duas de criaturas parecidas com corujas. Os olhos de McCaleb se fixaram em uma das imagens, que
mostrava uma grande coruja marrom, de reluzentes olhos negros, sendo abraçada por um homem nu. O colorido e os olhos da coruja coincidiam com os da ave de plástico
encontrada no apartamento de Edward Gunn.
- Vê alguma coisa aí, Terry? Ele apontou para a coruja.
- Esta aqui. Realmente não posso descer a detalhes com você, mas esta se encaixa na razão da minha presença aqui.
- Há muitos símbolos em ação neste painel. Este é um dos mais óbvios. Depois da queda, o livre-arbítrio leva o homem à libertinagem, à gula, à loucura e à avareza,
sendo a luxúria o pior de todos os pecados, no mundo de Bosch. O homem coloca seus braços em torno da coruja e assim abraça o mal.
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McCaleb balançou a cabeça.
- Mas depois paga por isso.
- Depois paga por isso. Como pode observar no último painel, esta é uma representação do inferno sem fogo. Em vez disso,
trata-se de um lugar com miríades de tormentos e dor interminável. De trevas.
McCaleb ficou em silêncio durante muito tempo, enquanto seus olhos se deslocavam ao longo da paisagem da pintura. Recordou o que o doutor Vosskuhler dissera.
Capítulo 12
Bosch pôs as mãos em concha e colocou-as sobre a vidraça ao lado da porta de entrada do apartamento. Estava olhando para o interior da cozinha. As bancadas estavam
imaculadamente limpas. Não havia bagunça, nem cafeteira elétrica, nem mesmo uma torradeira. Ele começou a ter um mau pressentimento. Foi até a porta e bateu mais
uma vez. Depois ficou andando de um lado para o outro, esperando. Ao olhar para baixo, viu na soleira a marca deixada por um capacho de boas-vindas.
- Caceta - disse.
Meteu a mão no bolso e tirou uma bolsinha de couro. Abriu o zíper e pegou dois pequenos estiletes de aço que fizera com serras metálicas. Olhando em torno, não viu
ninguém. Estava no recesso oculto de um grande complexo de apartamentos em Westwood. A maioria dos residentes provavelmente ainda estava trabalhando. Ele foi até
a porta e começou a trabalhar com os estiletes na fechadura. Noventa segundos mais tarde conseguiu abrir a porta e entrar.
Viu que o apartamento estava vazio logo que entrou, mas examinou cada cômodo mesmo assim. Todos estavam vazios. Na esperança de encontrar um frasco de remédio vazio,
verificou até o armário do banheiro. Sobre uma prateleira havia um barbeador de plástico cor-de-rosa, já usado, e nada mais.
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Bosch voltou à sala e pegou o telefone celular. Na véspera, já colocara o número do celular de Janis Langwiser na discagem rápida de seu aparelho. Ela era a co-promotora
do caso, e os dois haviam trabalhado no testemunho dele durante toda a semana. O telefonema ainda a encontrou no escritório temporário que a equipe da promotoria
ocupava no tribunal de Van Nuys.
- Escute, não quero estragar a festa, mas Annabelle Crowe sumiu.
- O que quer dizer com sumiu?
- Quero dizer que ela sumiu, gatinha, sumiu. Entrei no que era o apartamento dela. Está vazio.
- Merda! A gente precisa muito dela, Harry. Quando ela se mudou?
- Não sei. Acabei de descobrir que ela sumiu.
- Falou com o encarregado do prédio?
- Ainda não. Mas no máximo ele só vai saber há quanto tempo ela deu no pé. Se ela está fugindo do julgamento, não ia deixar um endereço novo com o encarregado.
- Bom, quando falou com ela pela última vez?
- Quinta-feira. Liguei pra cá. Mas essa linha foi desligada. E ela não deixou o número novo com a companhia telefônica.
- Merda!
- Eu sei. Você já disse isso.
- Ela recebeu a intimação, não foi?
- Foi, recebeu a intimação na quinta-feira. Foi por isso que telefonei pra ela. Pra ter certeza.
- Bom, então talvez ela apareça aqui amanhã. Bosch examinou o apartamento e disse:
- Eu não contaria com isso.
Olhou para o relógio. Já passava das cinco. Ele se sentia tão seguro acerca de Annabelle Crowe que a deixara por último na lista de testemunhas que precisava conferir.
Ela não dera sinal algum de que iria cair fora. Agora ele sabia que passaria a noite tentando descobrir o paradeiro dela.
- O que você pode fazer? - perguntou Janis.
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- Tenho algumas informações que posso verificar. Ela só pode estar na cidade. Ela é atriz, para onde mais iria?
- Nova York?
- Pra lá só vai quem é artista de verdade. Ela não passa de um rostinho bonito. Vai ficar aqui.
- Encontre essa mulher, Harry. Vamos precisar dela na semana
que vem.
- Vou tentar.
Houve um momento de silêncio, enquanto ambos refletiam
sobre a situação.
- Acha que o Storey chegou até ela? - perguntou Janis por fim.
- Estou pensando nisso. Ele pode ter se aproximado com algo que ela queria... um emprego, um papel, um cheque no fim do mês. Quando eu encontrar Annabelle, vou perguntar
isso.
- Tá legal, Harry. Boa sorte. Se você chegar a ela hoje à noite, avise. Senão, a gente se vê de manhã.
- Tá certo.
Bosch fechou o telefone e colocou o aparelho na bancada da cozinha. Do bolso do paletó, tirou uma pilha fina de cartões tamanho oito por doze. Cada cartão tinha
o nome de uma das testemunhas que ele precisava interrogar cuidadosamente e preparar para o julgamento. Ali estavam os endereços residenciais e de trabalho, bem
como os números dos telefones e bips das pessoas. Conferiu o cartão destinado a Annabelle Crowe e teclou o número do bip no telefone. Uma mensagem gravada informou
que aquele bip estava desativado.
Bosch fechou o telefone e olhou de novo para o cartão. O nome e o telefone do agente de Annabelle Crowe estavam relacionados no fim. Ele concluiu que o agente seria
o único elo que ela não quebraria.
Recolocou o telefone e os cartões nos bolsos. Aquela investigação ele tinha que fazer pessoalmente.
Capítulo 13
McCaleb fez a travessia sozinho, e o Mar que Segue chegou ao porto de Avalon logo que escureceu. Buddy ficara na marina Cabrillo. Não haviam aparecido novos clientes,
e sua presença só seria necessária no sábado. Ao chegar à ilha, McCaleb chamou o encarregado do ancoradouro pelo canal 16 do rádio e conseguiu ajuda para atracar
o barco.
A subida até sua casa se tornou exaustiva por causa do peso dos dois volumes grandes que encontrara na seção de livros usados na livraria Dutton, em Brentwood, e
do pequeno isopor cheio de tamales congelados. McCaleb teve de parar duas vezes no acostamento para descansar. Cada vez que parava e sentava no isopor, tirava
um dos livros da bolsa de couro para voltar a estudar a obra sombria de Hieronymus Bosch - até em meio às sombras do anoitecer.
Desde a visita ao museu Getty, as imagens dos quadros de Bosch não haviam se afastado mais de seus pensamentos. Nep Fitzgerald dissera algo importante no final do
encontro no escritório. Pouco antes de fechar as páginas das gravuras que reproduziam O jardim das delícias terrenas, ela olhara para ele com um pequeno sorriso,
como se tivesse algo a dizer, mas hesitasse.
- O que foi? - dissera ele.
- Nada, na verdade, só uma observação.
- Vá em frente, fale. Quero ouvir.
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Eu só ia mencionar que muitos críticos e estudiosos que examinam a obra de Bosch enxergam corolários nos dias de hoje. Essa é a marca de um grande artista... se
sua obra suporta o teste do tempo. Se ele tem o poder de tocar... e talvez influenciar as pessoas.
McCaleb assentira, percebendo que ela queria saber em que ele estava trabalhando.
- Entendo o que está dizendo. Desculpe, mas no momento não posso lhe contar nada. Talvez possa fazer isso um dia, ou talvez um dia você simplesmente descubra o que
era. Mas obrigado. Você ajudou muito, acho eu. Ainda não sei ao certo.
Sentado ali no isopor, McCaleb lembrou-se da conversa. Corolários nos dias de hoje, pensou. E nos crimes de hoje. Abriu o maior dos dois livros que comprara e achou
uma ilustração da obraprima de Bosch. Examinou a coruja de olhos negros. Todos os seus instintos lhe diziam que ele estava na pista de algo importante. Algo rnuito
sombrio e perigoso.
Quando McCaleb chegou em casa, Graciela pegou o isopor e abriu-o sobre a bancada da cozinha. Tirou três dos tamales de milho verde e colocou-os num prato para descongelar
no microondas.
- Estou fazendo chilis rellenos com molho também - disse ela. Ainda bem que você telefonou do barco, senão nós teríamos jantado sem você.
McCaleb deixou que Graciela desabafasse. Sabia que ela se zangara com o que ele fizera. Foi até a mesa, onde Cielo estava sentada numa cadeira de balanço. A criança
olhava para o ventilador do teto e mexia as mãos diante dos olhos, acostumando-se com elas. McCaleb inclinou-se, beijando as duas mãozinhas e depois a testa do
bebê.
- Onde está Raymond?
- No quarto. No computador. Por que só comprou dez? McCaleb olhou para ela enquanto se sentava numa cadeira
perto de Cielo. Graciela estava pondo os outros tamales para congelar num recipiente plástico.
- Eu entreguei o isopor e mandei que eles enchessem. Só cabem dez, acho eu.
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Ela abanou a cabeça, aborrecida com ele.
- Vai sobrar um.
- Então jogue esse fora ou convide um dos amigos de Raymond para jantar da próxima vez. E daí, Graciela? É só um tomais..
Graciela se virou, lançando-lhe um olhar sombrio e perturbado, mas que logo se abrandou.
- Você está todo suado.
- Eu acabei de subir a ladeira a pé. Não tinha mais condução. Ela abriu um armário acima de sua cabeça e tirou uma caixa de
plástico com um termômetro. Havia um termômetro em cada cômodo da casa. Ela sacudiu o instrumento e se aproximou dele. -Abre.
- Vamos usar o eletrônico.
- Não, eu não confio neles.
Graciela pôs a ponta do termômetro embaixo da língua de McCaleb. Depois elevou o maxilar dele e fechou-lhe a boca. Muito profissional. Na época em que ele a conhecera,
Graciela era enfermeira de um pronto-socorro, e atualmente trabalhava como enfermeira e auxiliar de escritório na escola de ensino básico de Catalina. Acabara de
voltar ao trabalho depois dos feriados de Natal. McCaleb pressentia que ela queria ser mãe em tempo integral, mas como eles não podiam se dar a esse luxo, jamais
mencionava o assunto diretamente. Esperava que dali a alguns anos o serviço de aluguel do barco estivesse mais consolidado, para que então eles pudessem optar. Às
vezes lamentava não ter guardado uma parte do dinheiro recebido pelos direitos do livro e do filme, mas também sabia que a única opção deles fora homenagear a irmã
de Graciela recusando-se a ganhar dinheiro com o que acontecera. Haviam doado metade do dinheiro para a Fundação Faça um Pedido e colocado o restante numa poupança
para Raymond. Se o menino quisesse, aquilo pagaria sua faculdade.
Graciela segurou o pulso de McCaleb e conferiu os batimentos cardíacos dele, que ficou sentado observando-a silenciosamente.
- Está acelerado - disse ela, largando o pulso dele. - Abre. Ele abriu a boca. Ela tirou o termômetro e fez a leitura do marcador. Foi até a pia, lavou o instrumento,
recolocou-o no estojo e
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guardou-o no armário. Não disse nada, e McCaleb percebeu que sua temperatura estava normal.
- Gostaria que eu estivesse com febre, não é?
- Está maluco?
- Claro que gostaria. Assim poderia me mandar parar com isso.
- Como assim, mandar você parar com isso? Ontem à noite você disse que ia ser só ontem à noite. Hoje de manhã disse que ia ser só o dia de hoje. O que está me dizendo
agora, Terry?
Ele olhou para Cielo e estendeu um dedo para a neném agarrar. Depois olhou novamente para Graciela e disse:
- Ainda não acabou. Surgiram algumas coisas hoje.
- Algumas coisas? Seja lá o que for, passe tudo para a detetive Jaye Winston. É serviço dela. Não é serviço seu.
- Não posso. Ainda não. Pelo menos até ter certeza. Graciela se virou e voltou para a bancada. Pôs o prato com os
tamales dentro do microondas e ajustou o aparelho para descongelar.
- Quer levar Cielo lá pra dentro e mudar a fralda dela? Já está na hora. E ela precisa tomar a mamadeira enquanto eu preparo o jantar.
McCaleb tirou a filha cuidadosamente da cadeira de balanço e colocou-a no ombro. Cielo se agitou ruidosamente, e ele a acalmou com uns tapinhas suaves no dorso.
Foi até Graciela, que estava de costas, enlaçou-a com o braço e puxou-a de encontro ao seu corpo. Beijou-a no alto da cabeça e manteve o rosto encostado no cabelo
dela.
- Logo tudo isso vai acabar, e nós voltaremos ao normal.
- Tomara que sim.
Graciela pôs a mão no braço dele, que lhe cruzava o corpo abaixo dos seios. O toque das pontas dos dedos dela era a aprovação que ele buscava. Mostrava que aquilo
era uma fase difícil, mas que eles estavam bem. Ele a apertou com mais força, beijou-lhe a nuca e soltou-a.
Enquanto McCaleb punha uma fralda nova naquele corpo diminuto, Cielo ficou olhando para o mobile que oscilava lentamente, pendurado sobre o trocador. Estrelas e
meias-luas de cartolina pendiam dos fios. Aquilo fora feito por Raymond e Graciela
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como presente de Natal para ela. Uma corrente de ar vinda do interior da casa fazia o objeto girar lentamente, atraindo a atenção dos olhos de Cielo, de um tom azul-escuro.
McCaleb inclinou-se e beijou a testa da menina.
Depois de embrulhá-la em dois cobertores infantis, levou-a para o pátio e deu-lhe a mamadeira, enquanto balançava suavemente na cadeira de balanço. Baixando o olhar
para o porto, percebeu que deixara ligadas as luzes dos instrumentos na ponte de comando do Mar que Segue. Sabia que podia telefonar para o encarregado do píer,
e que quem estivesse dando plantão noturno poderia simplesmente pegar um bote a motor e ir desligá-las. Mas também sabia que voltaria ao barco depois do jantar.
Ele mesmo poderia apagar as luzes.
Baixou o olhar para Cielo. Os olhos dela estavam fechados, mas ele sabia que ela estava acordada, pois sugava com força a mamadeira. Graciela
parara de amamentá-la em tempo integral quando voltou a trabalhar. Dar mamadeira era uma coisa nova, e McCaleb achava que aqueles momentos talvez fossem os mais prazerosos de sua recente
paternidade. Freqüentemente sussurrava para a filha nessas ocasiões e quase sempre prometia coisas. Prometia que sempre a amaria e estaria com ela. Dizia pra ela
nunca ter medo ou sentir-se sozinha. Às vezes, quando Cielo abria subitamente os olhos e olhava para ele, McCaleb tinha a impressão de que ela estava lhe comunicando
as mesmas coisas. E sentia uma espécie de amor que nunca conhecera antes.
- Terry.
Ele ergueu os olhos ao ouvir o murmúrio de Graciela.
- O jantar está pronto.
McCaleb examinou a mamadeira e viu que estava quase vazia.
- Estarei lá em um minuto - sussurrou.
Depois que Graciela saiu, ele baixou os olhos para a filha. O sussurro a fizera abrir os olhos, e ela ficou encarando o pai. Ele a beijou na testa e depois ficou
simplesmente olhando para ela.
- Preciso fazer isso, gatinha - murmurou.
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Fazia frio no interior do barco. McCaleb acendeu as luzes do salão e posicionou o aquecedor no centro do aposento, ajustando-o no nível baixo. Queria se aquecer
mas não demais, para não ficar com sono. Ainda estava cansado dos afazeres do dia.
Estava deitado na cabine da frente, examinando seus antigos arquivos, quando ouviu o celular começar a tocar dentro da bolsa de couro no salão. Fechou o arquivo
que estava examinando e levou-o consigo enquanto subia a escada até o salão, pegando o telefone na bolsa. Era Jaye Winston.
- E aí, como foi o negócio no Getty? Achei que ia me telefonar de volta.
- Bom... já era tarde, e eu queria chegar ao barco para fazer a travessia antes de escurecer. Esqueci de telefonar.
- Voltou para a ilha? Ela parecia desapontada.
- Voltei. Eu disse a Graciela hoje de manhã que voltaria. Mas não se preocupe, ainda estou trabalhando em algumas coisas.
- O que aconteceu no Getty?
- Não aconteceu muita coisa - mentiu ele. - Falei com algumas pessoas e vi alguns quadros.
- Viu alguma coruja que combinasse com a nossa? Ela riu ao fazer a pergunta.
- Algumas chegavam bem perto. Arranjei uns livros que quero consultar ainda hoje. Eu ia telefonar pra você e ver se podíamos nos reunir amanhã.
- Quando? De manhã eu tenho uma reunião às dez e outra às onze.
- Eu estava pensando na tarde, de qualquer maneira. Também preciso fazer uma coisa de manhã.
Não queria contar a Jaye que ia assistir às alegações iniciais do julgamento de Storey. Sabia que os trabalhos seriam transmitidos ao vivo pela TV Tribunal, que
ele podia pegar em casa com a antena parabólica.
- Bom, talvez eu consiga um helicóptero para me levar aí, mas preciso verificar com o departamento aéreo primeiro.
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- Não, eu vou voltar.
- Vai? Ótimo! Quer vir até aqui?
- Não, eu estava pensando num lugar mais calmo e com mais privacidade.
- Por quê?
- Amanhã eu conto.
- Você está ficando misterioso comigo. Não é um truque para fazer o xerife pagar mais panquecas pra você, é?
Ambos riram.
- Não tem truque nenhum. Acha que dá pra você ir até a marina Cabrillo e me encontrar no barco?
- Estarei lá. A que horas?
Ele marcou o encontro para as três horas, pensando que isso lhe daria tempo de sobra para preparar o perfil e imaginar como poderia contar a Jaye o que sabia. Também
lhe daria tempo bastante para se preparar para o que queria que ela lhe permitisse fazer na noite seguinte.
- Algum resultado com a coruja? - perguntou ele depois de
acertar o encontro.
- Muito pouco, nada de bom. Dentro só há as marcas do fabricante. O molde plástico foi feito na China. A empresa envia os bichos para dois distribuidores aqui, um
em Ohio e outro no Tennessee. De lá as corujas provavelmente saem para toda parte. E uma chance muito remota e significa muito trabalho.
- Então vai abandonar essa pista.
- Não, eu não disse isso. Só que não é prioridade. Ficou como tarefa para o meu parceiro. Ele vai dar os telefonemas. A gente vê o que ele consegue com os distribuidores,
avalia e decide para onde ir depois.
McCaleb balançou a cabeça. Priorizar as pistas de investigação
- e até as próprias investigações - era um mal necessário. Mesmo assim, aquilo o incomodava. Ele tinha certeza que a coruja era uma chave, e seria útil saber tudo
a respeito do bicho.
- Bom, então está tudo combinado? - perguntou Jaye.
- Para amanhã? Está, tudo combinado. - Nós vemos você às três.
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-Nós?
- Eu e Kurt. Meu parceiro. Você ainda não foi apresentado a
- Hum... Olhe, amanhã não podia ser só eu e você? Nada contra seu parceiro, mas eu gostaria de falar só com você amanhã, Jaye.
Houve um momento de silêncio antes que ela respondesse.
- Terry, o que está acontecendo com você?
- Eu só quero conversar com você sobre isso. Você me trouxe para o caso, eu quero dar o que tenho para você. Se quiser chamar o seu parceiro depois disso, tudo bem.
Houve outra pausa.
- Estou tendo um mau pressentimento com tudo isso, Terry.
- Sinto muito, mas é assim que eu quero as coisas. Acho que para você é pegar ou largar.
O ultimato fez com que Jaye ficasse em silêncio um tempo ainda maior. McCaleb ficou aguardando a resposta dela.
- Está bem, cara - disse ela por fim. - Eu confio no seu taco. Vou pegar.
- Obrigado, Jaye. A gente se vê amanhã.
Eles desligaram. McCaleb ficou olhando para o arquivo do caso antigo que trouxera e ainda tinha na mão. Colocou o telefone na mesa de café, inclinou-se no sofá e
abriu o arquivo.
Capítulo 14
O caso da Menina Perdida foi o primeiro nome atribuído à história, porque a vítima não tinha nome. Achava-se que ela tinha cerca de catorze ou quinze anos; era uma
latina - provavelmente mexicana - cujo corpo fora encontrado entre os arbustos e detritos sob um dos viadutos de Mulholland Drive. O caso fora dado a Bosch e seu
parceiro na época, Frankie Sheehan. Isso fora antes de Bosch trabalhar na seção de homicídios da Divisão Hollywood. Ele e Sheehan formavam uma equipe de Roubo-Homicídio,
e foi Bosch que contactou McCaleb no FBI. McCaleb acabara de retornar a Los Angeles, vindo de Quantico. Estava organizando um posto avançado da Unidade de Ciências
Comportamentais e do Programa de Captura de Criminosos Violentos. O caso da Menina Perdida foi um dos primeiros que lhe chegou às mãos.
Bosch o procurou, levando o arquivo e as fotos da cena do crime ao pequeno escritório que McCaleb ocupava no décimo terceiro andar do edifício federal, em Westwood.
Foi sem Sheehan, porque o parceiro se opunha a levar o caso ao FBI. Ciumeira entre agências. Mas Bosch estava pouco se importando com tudo aquilo. Importava-se apenas
com o caso. Tinha os olhos fundos. Claramente, o caso o estava perseguindo tanto quanto ele perseguia o caso.
O corpo fora encontrado nu e violentado de várias maneiras. A menina fora estrangulada pelas mãos enluvadas do assassino. Não haviam sido achadas nem roupas nem
bolsa na encosta. As
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impressões digitais não batiam com nenhum registro computadorizado. A menina não combinava com nenhuma descrição dos casos de pessoas desaparecidas ainda sob investigação
no condado de Los Angeles ou do sistema nacional computadorizado de crimes. Um desenho do rosto da vítima feito por um artista e apresentado no noticiário da televisão
e nos jornais não produzira telefonemas de qualquer ente querido. Também não haviam tido resposta os esboços enviados por fax para quinhentas delegacias de polícia
do sudoeste e para a Polícia Judiciária do México. A vítima permanecera sem identificação e o corpo não foi reclamado, ficando depositado em uma geladeira na divisão
médico-legal, enquanto Bosch e seu parceiro trabalhavam no caso.
Não fora encontrada qualquer prova física junto ao corpo. E além de ser desovada tarde da noite nos arredores de Mulholland Drive, sem as roupas ou qualquer pertence
que possibilitasse sua identificação, a vítima aparentemente fora lavada com um detergente industrial.
O exame do corpo fornecera somente uma pista. Uma impressão na pele do quadril esquerdo. A lividez post-mortem indicava que o sangue no corpo se depositara na metade
esquerda, dando a entender que a menina ficara deitada sobre o lado esquerdo no período decorrido entre a parada do coração e a hora em que o corpo fora atirado
encosta abaixo, onde caíra de bruços numa pilha de latas de cerveja e garrafas de tequila vazias. Aquela prova indicava que - durante o tempo que o sangue levara
para se acomodar - o corpo ficara deitado em cima do objeto que deixara aquela impressão no quadril.
A impressão era composta pelo número 1, pela letra J e por parte de uma terceira letra que podia ser a parte superior esquerda de um H, K ou L. Era parte da placa
de um carro.
Bosch achava que quem matara a menina sem nome escondera o corpo na mala de um carro até a hora de se livrar dele. Depois de limpar cuidadosamente o corpo, o assassino
o pusera na mala do carro, depositando-o por engano sobre parte de uma placa que fora retirada do veículo e também colocada na mala. A teoria de Bosch era que a
placa fora removida e possivelmente substituída por uma placa roubada, como mais uma medida de segurança que ajudaria o
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assassino a não ser apanhado caso seu carro fosse visto por um passante desconfiado no viaduto de Mulholland Drive.
Embora a impressão na pele não indicasse em que estado o veículo fora emplacado, Bosch seguira as porcentagens. Do Departamento de Veículos Automotores estadual
obtivera a relação de todos os carros registrados no condado de Los Angeles com placas que começassem por 1JH, 1JK e 1JL. A relação tinha três mil nomes de proprietários.
Ele e o parceiro haviam cortado quarenta por cento deles, descartando as mulheres. Os nomes restantes haviam sido colocados um a um no computador do índice Criminal
Nacional, e os detetives haviam chegado a uma lista de quarenta e seis homens com antecedentes criminais, que iam dos menores aos mais extremados.
Fora a essa altura que Bosch procurara McCaleb. Queria um perfil do assassino, para saber se ele e Sheehan estavam na pista certa ao suspeitarem que o sujeito tinha
um passado criminoso. E também queria saber como abordar e avaliar os quarenta e seis homens que constavam da lista.
McCaleb estudou o caso por quase uma semana. Examinava as fotos da cena do crime duas vezes por dia - logo de manhã cedo e antes de ir dormir - e estudava com freqüência
o dossiê. Por fim disse a Bosch que acreditava que os dois detetives estavam na pista certa. Usando os dados acumulados de centenas de crimes semelhantes, analisados
pelo Programa de Captura de Criminosos Violentos, ele conseguira fornecer o perfil de um homem à beira dos trinta anos, com um passado de crimes de gravidade crescente
e que provavelmente incluíam agressões de natureza sexual. A cena do crime sugeria o trabalho de um exibicionista - um assassino que queria ver seu crime tornado
público, instilando horror e medo na população em geral. Portanto, o local de desova do corpo teria sido escolhido por esses motivos, não por razões de conveniência.
Comparando o perfil com a lista de quarenta e seis nomes, Bosch estreitou o foco das possibilidades sobre dois suspeitos: o encarregado de um prédio de escritórios
em Woodland Hills, fichado anteriormente por incêndio criminoso e atentado ao pudor, e um cenotécnico que trabalhava num estúdio em Burbank, e que já
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fora preso por tentar estuprar uma vizinha quando era adolescente. Ambos tinham quase trinta anos.
Bosch e Sheehan preferiam o encarregado, devido ao acesso que ele tinha a detergentes industriais como o usado para lavar o corpo da vítima. Entretanto McCaleb preferia
o cenotécnico como suspeito, pois aquela tentativa de estupro na juventude indicava uma ação impulsiva, mais de acordo com o perfil do responsável pelo crime atual.
Os detetives decidiram entrevistar informalmente os dois homens, e convidaram McCaleb a ir junto. O agente do FBI enfatizou que os homens deveriam ser entrevistados
em casa, para que ele pudesse estudá-los no ambiente em que viviam e procurar pistas entre os pertences deles.
O cenotécnico foi o primeiro. Chamava-se Victor Seguin. Pareceu ficar em total estado de choque ao vê-los na porta e ouvir a explicação que Bosch deu para a visita.
Não obstante, convidou os três a entrar. Enquanto Bosch e Sheehan faziam perguntas calmamente, McCaleb sentou-se no sofá estudando o mobiliário limpo e arrumado
do apartamento. Em cinco minutos percebeu que aquele era o homem certo e meneou a cabeça para Bosch num sinal já combinado.
Victor Seguin foi informado de seus direitos e preso, sendo colocado no carro dos detetives. Sua casinhola, sob a zona de aterrissagem de aviões do aeroporto de
Burbank, fora lacrada até a expedição de um mandado de busca. Duas horas mais tarde, quando o mandado chegara, eles encontraram uma garota de dezesseis anos amarrada
e amordaçada, mas viva, num buraco à prova de som e parecido com um caixão construído pelo cenotécnico sob um alçapão oculto pela cama.
Foi só depois de passada a excitação - e quando o nível de adrenalina por terem solucionado o caso e salvado uma vida já começava a baixar - que Bosch finalmente
perguntou a McCaleb como ele percebera que aquele era o homem certo. McCaleb foi com o detetive até a estante da sala, onde apontou para uma cópia bastante gasta
de um livro chamado O colecionador. Era um romance sobre um homem que seqüestra diversas mulheres.
Seguin foi indiciado pelo assassinato da menina não identificada,
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além do seqüestro e do estupro da jovem que os investigadores tinham salvado. Negou qualquer culpa pelo assassinato e tentou obter um acordo, segundo o qual
ele confessaria apenas o seqüestro e o estupro da sobrevivente. A promotoria recusou qualquer acordo e levou-o a julgamento com o que tinha - o testemunho da sobrevivente,
algo de cortar o coração, e a impressão da placa do carro no quadril da menina morta.
O júri considerou o réu culpado de todas as acusações depois de menos de quatro horas de deliberação. A promotoria então sugeriu um possível acordo com Seguin, prometendo
não pedir a pena de morte durante a segunda fase do julgamento, caso o assassino concordasse em dizer aos investigadores quem era sua primeira vítima e onde ele
a seqüestrara. Para conseguir o acordo Seguin teria que abandonar sua postura de inocência. Ele recusou. A promotoria pediu a pena de morte e foi vitoriosa. Bosch
não chegou a descobrir quem era a menina morta, e McCaleb sabia que ele ficara perturbado com o fato de aparentemente ninguém se importar a ponto de vir reclamar
o corpo.
Ele próprio também ficara perturbado com aquilo. No dia em que compareceu ao tribunal para testemunhar, já na fase da sentença, almoçou com Bosch e notou que havia
um nome escrito nos dossiês do caso.
- O que é isso? - perguntou McCaleb, excitado. - Conseguiu identificar a menina?
Bosch baixou o olhar, viu o nome nas etiquetas e virou os dossiês de cabeça para baixo.
- Não, ainda não temos identificação.
- Bom, então o que é isso?
- Só um nome. Acabei dando um nome a ela.
Bosch parecia constrangido. McCaleb estendeu a mão e virou os dossiês para cima a fim de ler o nome escrito ali.
- Cielo Azul?
- É, ela era hispânica, eu lhe dei um nome hispânico.
- Significa céu azul, não é?
- É, céu azul. Eu... hum... McCaleb ficou esperando. Nada.
- O quê?
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- Bom... eu não sou tão religioso assim, entende? -Sei.
- Mas pensei que se ninguém aqui embaixo queria reclamar a menina, então quem sabe... talvez haja alguém lá em cima que faça isso - disse Bosch, dando de ombros
e desviando o olhar.
McCaleb viu as maçãs do rosto dele se ruborizarem.
- E difícil encontrar a mão de Deus no que nós fazemos. No que nós vemos.
Bosch simplesmente balançou a cabeça, e eles não voltaram a falar do nome.
McCaleb levantou a última página do dossiê com o nome de Cielo Azul e olhou para a orelha traseira da pasta de cartolina marrom. No FBI ele se habituara a fazer
anotações na orelha traseira, onde elas não poderiam ser vistas tão facilmente devido às páginas anexadas. Eram anotações que fazia sobre os investigadores que pediam
perfis para os casos. McCaleb percebera que os insights sobre o investigador às vezes eram tão importantes quanto as informações contidas no dossiê do caso. Pois
era através dos olhos do investigador que ele era apresentado a muitos dos aspectos do crime.
Aquele caso com Bosch surgira havia mais de dez anos, antes que ele começasse a elaborar os perfis dos investigadores junto com os dos casos. No dossiê ele escrevera
apenas o nome de Bosch e quatro palavras embaixo.
Meticuloso - Inteligente - H. M. - A. V.
McCaleb olhou para as duas últimas anotações. Fora parte de sua rotina usar abreviações e estenografia quando estava anotando coisas que precisavam ser mantidas
em sigilo. As duas últimas anotações indicavam sua interpretação do que motivava Bosch. McCaleb concluíra que os investigadores de homicídios, uma estirpe diferente
de policiais, recorriam a profundas emoções e motivações interiores a fim de aceitar e levar a cabo a sempre difícil tarefa de seu cargo. Geralmente eles se dividiam
em dois tipos: os que encaravam sua função como uma habilidade ou um ofício, e os que a viam como uma missão na vida. Dez anos antes, McCaleb pusera Bosch na segunda
classe. Ele era um homem com uma missão.
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Essa motivação dos detetives podia ainda ser subdividida quanto ao que lhes dava esse sentimento de propósito ou missão. Para alguns, o cargo era visto quase como
um jogo; tinham alguma carência interior que os obrigava a provar que eram melhores, mais inteligentes e mais ardilosos que suas presas. Só conseguiam validar suas
vidas quando na realidade invalidavam os assassinos que procuravam, colocando-os atrás das grades. Outros, embora tivessem certo grau da mesma carência interior,
também se viam com a dimensão adicional de serem porta-vozes dos mortos. Havia um elo sagrado entre vítima e policial, que se formava na cena do crime e não podia
ser rompido. Era isso que, em última análise, impelia-os à caça e permitia-lhes superar todos os obstáculos no caminho. McCaleb classificava esses policiais como
anjos vingadores. A experiência lhe mostrara que esses policiais/anjos eram os melhores investigadores de todos. E também fizera com que ele concluísse que eram
eles que se equilibravam mais perto daquela borda invisível abaixo da qual jaz o abismo.
Dez anos antes, ele classificara Harry Bosch como um anjo vingador. Agora tinha que julgar se o detetive se aproximara demais da borda do precipício. Tinha que pensar
que talvez Bosch a tivesse ultrapassado.
Fechou o dossiê e tirou os dois livros de arte da bolsa. Ambos intitulavam-se, simplesmente, Bosch. O maior, com reproduções multicoloridas das pinturas, era de
autoria de R. H. Marijnissen e P. Ruyffelaere. O segundo livro, que parecia conter mais análises dos quadros que o primeiro, fora escrito por Erik Larsen.
McCaleb começou pelo livro menor e foi examinando rapidamente as páginas de análise. Logo descobriu que, como dissera Penelope Fitzgerald, havia muitas opiniões
- às vezes até conflitantes - sobre Hieronymus Bosch. O livro de Larsen citava estudiosos que chamavam Bosch de humanista, e até outro que afirmava que o pintor
fazia parte de um grupo herético que acreditava que a terra era, literalmente, um inferno governado por Satã. Os estudiosos divergiam sobre os significados inerentes
a algumas das pinturas. Discutiam se algumas delas podiam realmente ser atribuídas a Bosch, e se o pintor alguma vez viajara até a Itália, tomando assim conhecimento
das obras de seus contemporâneos renascentistas.
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McCaleb finalmente fechou o livro quando percebeu que - pelo menos para o seu objetivo - as palavras sobre Hieronymus Bosch talvez não fossem importantes. Se a obra
do pintor era sujeita a múltiplas interpretações, então a única interpretação que importava era a da pessoa que matara Edward Gunn. O que importava era o que aquela
pessoa vira e tirara das pinturas de Hieronymus Bosch.
Ele abriu o livro maior e começou a estudar vagarosamente as reproduções. O exame que fizera das reproduções das pinturas no museu Getty fora apressado e prejudicado
pela falta de privacidade. McCaleb pôs o caderno no braço do sofá a fim de registrar o número de corujas que visse nos quadros, bem como as descrições das aves.
Logo percebeu que os detalhes dos quadros ficavam tão minúsculos naquelas reproduções em escala menor que ele talvez estivesse perdendo coisas importantes. Desceu
até a cabine dianteira para achar uma lente de aumento que sempre mantinha na sua mesa no FBI e que usava para examinar fotos das cenas dos crimes. Ao se curvar
sobre uma caixa cheia de material de escritório que trouxera de sua mesa no FBI, cinco anos antes, sentiu um pequeno baque contra o barco e ergueu o corpo. Amarrara
o Zodiac inflável na popa, de modo que aquilo não podia ter sido causado pelo bote. Estava pensando no que seria, quando sentiu o inconfundível movimento para cima
e para baixo do barco que indicava que alguém subira a bordo. Sua mente se concentrou na porta do salão. Tinha certeza que a deixara destrancada.
Baixou o olhar para a caixa onde estivera remexendo pouco antes e pegou a espátula de abrir cartas.
Subindo a escada e entrando na cozinha, McCaleb examinou o salão. Não havia ninguém ali e nada fora mexido. Era difícil enxergar além do reflexo interior da porta
corrediça, mas no convés ali fora, silhuetado contra as luzes da rua Crescent, havia um homem. O sujeito estava parado de costas para o salão, como admirando as
luzes da cidade que subiam pela colina.
McCaleb avançou rapidamente e abriu a porta corrediça. Tinha a espátula ao lado do corpo, mas com a ponta virada para cima. O sujeito parado no convés se voltou.
McCaleb baixou a arma, enquanto o sujeito arregalava os olhos para a lâmina.
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- Desculpe, eu...
- Tudo bem, Charlie... é que eu não sabia quem era. Charlie era o plantonista noturno da administração do porto.
McCaleb não sabia o sobrenome dele. Mas sabia que freqüentemente Charlie visitava Buddy nas noites em que ele dormia no barco. Provavelmente Buddy gostava de tomar
umas cervejas com ele de vez em quando, nas noites mais compridas. Fora por isso, provavelmente, que Charlie remara do píer até ali.
- Eu vi as luzes e pensei que talvez Buddy estivesse aqui - disse ele. - Só queria fazer uma visita.
- Não, Buddy está na cidade hoje. Provavelmente só vai voltar na sexta-feira.
- Bom, então já vou indo. Está tudo bem? Ou veio dormir no barco por causa da patroa?
-Não, Charlie, está tudo bem. Só estou trabalhando um pouco. Levantou a espátula como se aquilo explicasse o que ele estava fazendo.
- Está bem, então. Vou voltar.
- Boa noite, Charlie. Obrigado por vir conferir.
McCaleb entrou novamente e desceu até o escritório. Encontrou a lente, que dispunha de uma pequena lanterna, no fundo da caixa de material.
Passou as duas horas seguintes examinando as pinturas. Viu-se novamente fascinado por aquelas paisagens sobrenaturais de demônios fantasmagóricos rodeando as presas
humanas. Conforme estudava cada obra, assinalava descobertas específicas como as corujas com pequenos pedaços de papel amarelo gomado, a fim de poder reencontrá-las
facilmente.
Listou dezesseis representações diretas de corujas nas obras, e mais uma dúzia de criaturas ou estruturas semelhantes a corujas. As aves eram sempre pintadas de
cores escuras, e espreitavam em todos os quadros, como sentinelas do juízo final e da destruição. McCaleb olhava para elas, sem conseguir deixar de pensar na analogia
da coruja com o detetive. Tanto uma quanto outro eram criaturas da noite, ambas vigiando e caçando - observadores em primeira mão do mal e da dor que seres humanos
e animais se infligem
uns aos outros.
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A descoberta individual mais significativa que McCaleb fez durante o exame dos quadros não foi uma coruja, e sim uma forma humana. Ele descobriu isso ao examinar,
com a lente luminosa, o painel central de um quadro denominado O Juízo Final. Diante do forno do inferno em que eram lançados os pecadores, havia diversas vítimas
amarradas à espera de serem desmembradas e queimadas. Nesse agrupamento, McCaleb encontrou a imagem de um homem nu, com os braços e as pernas amarrados atrás das
costas. As extremidades do pecador haviam sido esticadas, numa dolorosa posição fetal invertida. A imagem refletia fielmente o que ele vira no foco principal da
fita de vídeo e das fotografias do assassinato de Edward Gunn.
McCaleb marcou a descoberta com um pedaço de papel gomado e fechou o livro. Quando, no mesmo instante, o telefone celular tocou sobre o sofá ao seu lado, ele saltou
de pé, assustado. Deu uma olhada no relógio antes de atender e viu que era exatamente meia-noite.
Era Graciela ao telefone.
- Achei que você fosse voltar hoje à noite.
- Vou voltar. Terminei agora e já estou a caminho.
- Desceu com o carrinho, não foi?
- Foi. Não vou ter problema para voltar.
- Tá legal, até logo.
- Até logo.
McCaleb decidiu deixar tudo no barco, pensando que precisava arejar a cabeça antes do dia seguinte. Se levasse os dossiês e os pesados livros, ele só reforçaria
os pensamentos sombrios que já carregava por dentro. Trancou o barco e levou o Zodiac até o embarcadouro. No fim do píer, entrou no carrinho de golfe. Saiu dirigindo
pelo deserto distrito comercial e subiu a colina de volta para casa. Apesar dos esforços para afastá-los, seus pensamentos continuavam ligados ao abismo. Um lugar
onde criaturas com bicos, garras e facas afiadas atormentavam perpetuamente os decaídos. Àquela altura, ele já tinha certeza de pelo menos uma coisa: o pintor Bosch
teria dado um bom elaborador de perfis. Dominava o assunto. Conhecia os pesadelos que chacoalham nas mentes da maioria das pessoas. Bem como os pensamentos que às
vezes escapam.
Capítulo 15
As alegações preliminares no julgamento de David Storey foram atrasadas para que os advogados discutissem as moções finais com o juiz a portas fechadas. Bosch ficou
sentado à mesa da promotoria, esperando. Tentava tirar da cabeça todas as idéias estranhas ao caso, inclusive sua infrutífera busca por Annabelle Crowe, na noite
da véspera.
Às dez e quarenta e cinco os advogados finalmente entraram no tribunal e foram para suas respectivas mesas. Depois o réu - usando um terno que parecia cobrir o valor
dos contracheques de três agentes policiais - foi trazido da cela de detenção para o recinto, e por fim o juiz Houghton tomou lugar na bancada.
Chegara a hora de começar, e Bosch sentiu a tensão na sala aumentar consideravelmente. Los Angeles alçara - ou rebaixara o julgamento criminal ao nível de entretenimento
mundial, mas os participantes jamais encaravam a coisa assim. Estavam jogando para valer, e naquele julgamento - talvez até mais do que na maioria - havia uma sensação
palpável de hostilidade entre os dois campos oponentes.
O juiz deu ordem ao agente do gabinete do xerife, que estava ali na condição de oficial de justiça, para fazer entrar o júri. Bosch levantou-se junto com todos,
virando-se para observar os jurados entrarem silenciosamente em fila indiana e tomarem seus lugares.
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Pensou ter visto uma certa excitação em alguns dos rostos. Aqueles homens e mulheres vinham aguardando havia duas semanas durante a seleção do júri e as moções iniciais
das partes - para as coisas começarem. Os olhos de Bosch se elevaram na direção de duas câmeras montadas na parede acima do recinto do júri. Elas cobriam inteiramente
o tribunal, com exceção do recinto do júri. Depois que todos se sentaram, Houghton pigarreou e inclinou-se para o microfone instalado em sua mesa, olhando para os
jurados. - Senhoras e senhores, como estão passando? Houve um murmúrio geral, e Houghton balançou a cabeça.
- Peço desculpas pelo atraso. Por favor, lembrem-se que o sistema judiciário é em essência dirigido por advogados. Assim sendo, funciona devaaagaaaar.
Ouviu-se um riso educado no tribunal. Bosch notou que os advogados - tanto da acusação quanto da defesa - juntaram-se às risadas conscienciosamente, com alguns exagerando
a coisa. A experiência já lhe mostrara ser impossível um juiz soltar uma piada num tribunal em sessão aberta sem que os advogados rissem.
Ele lançou o olhar para a esquerda além da mesa da defesa e viu que o outro recinto do júri estava repleto de gente da mídia. Reconheceu muitos dos repórteres de
noticiários televisivos e de coletivas de imprensa do passado.
Percorreu com os olhos o restante do tribunal e viu que os bancos destinados ao público estavam lotados, com exceção da fileira diretamente atrás da mesa da defesa.
Ali estavam sentadas diversas pessoas com amplo espaço de cada lado. Pareciam ter passado a manhã inteira num trailer de maquiagem. Bosch supôs que fossem celebridades
de algum tipo, mas não tinha intimidade com aquele campo e não conseguiu identificar nenhuma delas. Pensou em inclinar-se para Janis Langwiser e perguntar a ela,
mas achou melhor não fazer isso.
- Tivemos que esclarecer alguns detalhes de última hora na minha sala - continuou o juiz para os jurados. - Mas já estamos prontos para iniciar. Começaremos com
as alegações preliminares, e preciso alertar o júri que não se trata de afirmações de fatos, e sim afirmações sobre o que cada parte acha que são os fatos, e que
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tentarão provar durante o julgamento. Essas afirmações não devem ser consideradas como contendo provas. Isso só acontecerá mais tarde. Portanto, ouçam atentamente,
mas mantenham a mente aberta, pois muita coisa ainda virá por aí. Agora vamos começar com a acusação e, como sempre, dar ao réu a última palavra. A promotoria pode
começar.
O promotor principal se levantou e avançou para a tribuna que ficava entre as mesas das partes. Meneou a cabeça para o júri e se identificou como Roger Kretzler,
promotor encarregado da seção de crimes especiais. Era um advogado alto e magro, com uma barba avermelhada, cabelo escuro cortado curto e óculos sem aros. Tinha
uns quarenta e cinco anos. Bosch não o achava particularmente simpático, mas ele era muito eficiente na função. E o fato de continuar nas trincheiras acusando réus
- enquanto outros da mesma idade já haviam partido para os mundos mais bem remunerados da advocacia de defesa empresarial ou criminal - tornava-o ainda mais admirável.
Bosch suspeitava que ele não tinha vida familiar. Nas noites anteriores ao julgamento, em que haviam surgido algumas dúvidas sobre a investigação e Bosch fora convocado
pelo bip, o número para ligar de volta fora sempre o do escritório de Kretzler - qualquer que fosse o horário.
Kretzler identificou sua colega de acusação como Janis Langwiser, também da unidade de crimes especiais, e o investigador principal como o detetive de terceiro grau
Harry Bosch, do Departamento de Polícia de Los Angeles.
- Vou ser breve e simples na minha exposição, para que possamos ir aos fatos o mais cedo possível, conforme o juiz Houghton corretamente lembrou. Senhoras e senhores,
o caso que ouvirão neste tribunal certamente tem os ornamentos da celebridade. Tudo demonstra se tratar de um grande evento. Sim, o réu, David N. Storey, é um homem
de poder e posição na nossa comunidade, nesta época movida a fama em que vivemos. Contudo, se afastarmos dos fatos os ornamentos do poder e da purpurina, como prometo
que faremos nos próximos dias, o que temos aqui é algo tão básico quanto por demais comum na nossa sociedade. Um simples caso de assassinato.
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Kretzler fez uma pausa dramática. Bosch examinou os jurados. Todos os olhos estavam fixos no promotor.
- O homem que vêem sentado na mesa da defesa, David N. Storey, saiu com uma mulher de vinte e três anos chamada Jody Krementz na noite de 12 de outubro passado.
Depois de uma noitada que incluiu a estréia de seu filme mais recente e uma recepção, ele a levou para sua casa em Hollywood Hills, onde os dois fizeram sexo por
consenso. Não creio que a defesa argumente contra quaisquer desses fatos. Nós não estamos aqui por causa disso. O que nos traz aqui hoje é o que aconteceu durante
e depois do ato sexual. Na manhã de 13 de outubro, o corpo de Jody Krementz foi encontrado estrangulado em sua própria cama, no pequeno apartamento que ela dividia
com outra atriz.
Kretzler virou uma página do bloco à sua frente na tribuna, embora parecesse claro para Bosch - e provavelmente para todos os demais - que sua exposição fora memorizada
e ensaiada.
- No decurso deste julgamento, o estado da Califórnia provará, além de qualquer dúvida razoável, que foi David Storey quem tirou a vida de Jody Krementz, num momento
de fúria sexual brutal. Depois ele levou o corpo, ou fez com que este fosse levado, de sua casa para a casa da vítima. Dispôs o corpo de tal maneira que a morte
pudesse parecer acidental. E a seguir tentou utilizar seu poder e posição para frustrar a investigação do crime pelo Departamento de Polícia de Los Angeles. David
Storey, que como todos verão tem um histórico de comportamento violento contra mulheres, estava tão certo de escapar impune desse crime que, num momento de...
Kretzler escolheu esse instante para dar as costas à tribuna e lançar um olhar desdenhoso para o réu sentado. Storey ficou olhando fixamente para a frente, sem piscar,
e o promotor finalmente voltou-se novamente para o júri.
- ... candura, digamos, chegou a se gabar diante do investigador principal do caso, detetive Bosch, de que faria justamente isso, sair impune do crime.
Kretzler pigarreou, indicando que estava pronto para dar a estocada final.
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- Nós estamos aqui, senhoras e senhores do júri, a fim de buscar justiça para Jody Krementz. Para garantir que o assassino não saia impune de seu crime. O estado
da Califórnia pede, e eu pessoalmente peço, que ouçam cuidadosamente a apresentação das provas durante o julgamento, considerando-as judiciosamente. Se fizerem isso,
temos certeza que a justiça será feita. Para Jody Krementz. Para todos nós.
Ele pegou o bloco e se virou a fim de voltar para o seu lugar. Mas aí parou, como se algo houvesse acabado de lhe ocorrer. Bosch percebeu naquilo uma jogada bem-ensaiada
e achou que o júri encararia a coisa da mesma forma.
- Acabo de pensar numa coisa que todos sabem. A cidade de Los Angeles vem assistindo ao seu departamento de polícia ser colocado no banco dos réus em todos os casos
espetaculares mais recentes. "Se a mensagem não agrada, fuzile-se o mensageiro", diz sempre a defesa, que adora tirar esse truque da cartola. Quero que todos prometam
a si próprios ficar atentos e manter os olhos no prêmio, sendo esse prêmio a verdade e a justiça. Não se deixem enganar. Não se deixem levar na direção errada. Confiem
em si mesmos quanto à verdade e encontrarão o caminho.
Ele foi para o seu lugar e se sentou. Bosch viu Janis estender a mão e apertar o antebraço de Kretzler, num gesto de congratulações. Aquilo também fazia parte de
uma jogada bem-ensaiada.
O juiz disse então aos jurados que - em virtude da brevidade da peroração da promotoria - o julgamento passaria sem interrupção à fala da defesa. Mas a interrupção
veio logo em seguida, quando Fowkkes levantou-se, foi até a tribuna e gastou ainda menos tempo do que Kretzler dirigindo-se aos jurados.
- Todo mundo conhece, senhoras e senhores, essa conversa fiada de fuzilar o mensageiro ou não fuzilar o mensageiro. Quero falar um pouco sobre essa história. Aquelas
lindas palavras que ouvimos do promotor no final... Bom, quero avisar que todo promotor neste prédio diz a mesma coisa no início de todo julgamento nesta sala. Ao
que parece, eles devem ter essas palavras impressas em cartões dentro das pastas.
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Kretzler levantou-se e protestou contra o que chamou de um "enorme exagero". Houghton advertiu Fowkkes, mas depois aconselhou o promotor a fazer melhor uso de seus
protestos. Fowkkes aproveitou a brecha.
- Se me excedi, peço desculpas. Sei que essa é uma questão espinhosa para os promotores e para a polícia. Mas só estou dizendo, gente, que onde há fumaça geralmente
há fogo. E no decurso deste julgamento vamos tentar encontrar a saída no meio da fumaça. Podemos ou não encontrar fogo, mas tenho certeza que chegaremos à conclusão
de que este homem...
Ele se virou e apontou com força na direção de seu cliente. - ... este homem, David N. Storey, é, sem sombra de dúvida, inocente do crime do qual está sendo acusado.
Sim, ele é um homem de poder e posição, mas lembrem-se que isso não é crime. Sim, ele conhece algumas celebridades, mas da última vez que examinei a revista Peopk
isso também ainda não era crime. Acho até que alguém pode se sentir agredido por certos elementos da vida pessoal e dos apetites de David Storey. Sei que me sinto.
Mas lembrem-se que isso não constitui o crime do qual ele está sendo acusado nos autos. O crime aqui é assassinato. Nada mais e nada menos. E um crime do qual David
Storey NÃO é culpado. E pouco importa o que o doutor Kretzler, a doutora Langwiser, o detetive Bosch e suas testemunhas lhes digam, não há absolutamente a menor
prova de culpa neste caso.
Depois que Fowkkes fez uma reverência para o júri e se sentou, o juiz Houghton anunciou que o julgamento seria suspenso para que todos pudessem almoçar cedo, antes
que as testemunhas começassem a depor à tarde.
Bosch ficou vendo os jurados saírem enfileirados pela porta ao lado do recinto do júri. Alguns lançaram o olhar por cima do ombro para o tribunal. A última da fila,
uma negra de cerca de cinqüenta anos, olhou diretamente para Bosch. Ele baixou os olhos, mas arrependeu-se imediatamente de ter feito isso. Quando ergueu o olhar
de novo, ela já desaparecera.
Capítulo 16
McCaleb desligou a televisão quando o julgamento foi suspenso para o almoço. Não queria ouvir as análises dos comentaristas. Achava que a defesa se saíra melhor.
Fowkkes fizera uma jogada sutil, dizendo ao júri que também se sentia agredido pela vida pessoal e pelos hábitos de seu cliente. Estava lhes dizendo que se ele,
Fowkkes, conseguia suportá-los, eles também conseguiriam. Estava lembrando a eles que o caso era sobre uma vida que fora tirada, não sobre como alguém vivia a sua
própria vida.
Ele voltou a se preparar para reunião à tarde com Jaye Winston. Retornara ao barco depois do café da manhã, juntando os dossiês e livros. Com uma tesoura e fita
gomada, estava montando uma apresentação com a qual esperava não apenas impressionar Jaye, mas convencê-la de algo que ele próprio estava achando difícil acreditar.
De certo modo, a montagem e a apresentação era um ensaio geral para a argumentação do caso. Por esse ângulo, McCaleb achou bastante útil o tempo gasto trabalhando
no que ele mostraria e diria a Jaye. Permitia-lhe ver os furos na lógica e preparar respostas para as perguntas que ele sabia que Jaye faria.
Enquanto pensava sobre o que exatamente diria a ela, Jaye ligou pelo telefone celular.
- Podemos ter uma pista na coruja. Mas pode ser que não.
-O que é?
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- O distribuidor lá de Middleton, Ohio, acha que sabe de onde ela veio. Um lugar bem aqui em Carson, chamado Afasta Aves.
- Por que ele acha isso?
- Porque Kurt enviou por fax fotos da nossa ave, e o sujeito com quem ele estava lidando em Ohio percebeu que o fundo do molde estava aberto.
- E. E o que significa isso?
- Bom, aparentemente as corujas são despachadas com a base incluída, a fim de serem enchidas com areia para que a ave fique de pé no vento, na chuva, e em tudo mais.
- Entendi.
- Bom, eles só têm um subdistribuidor que encomenda as corujas sem a base: a Afasta Aves, que encomenda a coisa assim porque fixa as corujas em cima de uma engenhoca
que guincha.
- Guincha!
- Você sabe, feito uma coruja de verdade. Acho que isso ajuda a afugentar os pássaros. Sabe qual é o slogan da Afasta Aves? "A número um quando as aves querem fazer
o número dois." Bonito, não? E assim que eles atendem o telefone lá.
A cabeça de McCaleb estava girando rápido demais para registrar qualquer piada, e ele não riu.
- Esse lugar é em Carson?
- E, não muito longe da sua marina. Preciso ir a uma reunião agora, mas vou dar um pulo lá antes de me encontrar com você. Prefere encontrar comigo lá? Pode chegar
lá a tempo?
- Seria bom. Estarei lá.
Ela deu o endereço, que ficava a cerca de quinze minutos da marina Cabrillo, e os dois acertaram se encontrar lá às duas. Jaye disse que o presidente da empresa,
um homem chamado Cameron Riddell, concordara em recebê-los.
- Vai levar a coruja? - perguntou McCaleb.
- O que acha, Terry? Sou detetive há doze anos. E tenho cérebro há mais tempo do que isso.
- Desculpe.
- Vejo você às duas.
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Depois de desligar o telefone, McCaleb tirou do freezer um tamale que sobrara, cozinhou-o no microondas, embrulhou-o em papel-alumínio e colocou-o na bolsa de couro
para comê-lo durante a travessia da baía. Deu uma olhada na filha, que estava na sala dormindo nos braços da Sra. Perez, a babá que dava meio-expediente ali. Tocou
a bochecha do bebê e saiu.
A Afasta Aves ficava numa vizinhança de galpões comerciais modernos que se alinhavam no lado leste da auto-estrada 405, logo abaixo do campo de aviação onde o dirigível
da Goodyear atracava. O dirigível estava ali, e McCaleb viu as amarras que o prendiam, tensionadas pelo vento da tarde que vinha do mar. Ao parar no estacionamento
da Afasta Aves, ele notou um LTD com aros de rodas comerciais. Sabia que aquele só podia ser o carro de Jaye Winston. Tinha razão. Quando passou pela porta de vidro,
viu-a sentada numa pequena sala de espera. No chão perto da cadeira havia uma maleta e uma caixa de papelão lacrada com uma fita vermelha, onde se lia PROVA. Ela
levantou-se imediatamente e foi até o guichê de recepção, atrás do qual via-se um rapaz sentado com um arco telefônico no ouvido.
- Pode dizer a Riddell que nós dois já estamos aqui?
O rapaz, que aparentemente estava atendendo a uma chamada, balançou afirmativamente a cabeça para ela.
Poucos minutos depois eles foram levados até a sala de Cameron Riddell. McCaleb carregava a caixa. Jaye fez as apresentações, chamando McCaleb de colega. Era verdade,
mas também escondia a falta de distintivo por parte dele.
Riddell era um homem simpático, de trinta e poucos anos, que parecia ansioso por ajudar na investigação. Jaye calçou um par de luvas de látex tiradas da maleta e
correu uma chave ao longo da fita vermelha, abrindo a caixa. Retirou a coruja e colocou-a na mesa de Riddell.
- O que pode nos dizer sobre isso, Sr. Riddell?
Riddell permaneceu de pé atrás da mesa, inclinando-se para examinar a coruja.
- Não posso tocar nela?
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- Por que não calça isto, então?
Jaye abriu a maleta e entregou-lhe outro par de luvas tiradas do invólucro de cartolina. McCaleb ficou olhando, pois decidira que só interviria se Jaye pedisse ou
cometesse uma omissão óbvia durante a entrevista. Riddell atrapalhou-se com as luvas,
calçando-as devagar.
- Desculpe - disse Jaye. - São de tamanho médio. O senhor parece ser tamanho grande.
Calçadas as luvas, Riddell pegou a coruja com ambas as mãos e examinou a parte inferior da base. Olhou para o interior do molde de plástico e depois segurou a ave
diretamente à sua frente, parecendo estudar os olhos pintados. Depois colocou-a no canto da mesa e voltou para a cadeira. Sentou-se e apertou um botão no intercomunicador.
- Monique, é Cameron. Será que você pode ir lá atrás, tirar da linha de montagem uma daquelas corujas que guincham e trazer o bicho até aqui? Preciso dela agora.
-Já estou indo.
Riddell tirou as luvas e flexionou os dedos. Depois olhou para Jaye, intuindo que ela era a pessoa importante. Fez um gesto na direção da coruja.
- É uma das nossas corujas, mas foi... não sei qual seria a palavra a usar. Ela foi alterada, modificada. Nós não vendemos as aves dessa forma.
-Como assim?
- Bom, Monique está pegando uma para que vocês possam ver, mas essencialmente esta aqui foi repintada um pouco, e o mecanismo que guincha foi retirado. Além disso,
temos uma etiqueta de fabricação que prendemos aqui na base, e a desta coruja desapareceu.
Apontou para a traseira da base.
- Vamos começar pela pintura - disse Jaye. - O que foi feito?
Antes que Riddell pudesse responder, ouviu-se uma única batida na porta e uma mulher entrou. Carregava outra coruja embrulhada em plástico. Riddell mandou-a colocar
o objeto na mesa e retirar o plástico. McCaleb notou que ela fez uma careta quando
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viu os olhos negros pintados da coruja que Jaye trouxera. Riddell agradeceu à mulher e ela saiu da sala.
McCaleb examinou as corujas colocadas lado a lado. A coruja do caso fora pintada em tom mais escuro. A coruja da Afasta Aves tinha cinco cores nas penas, inclusive
branco e azul-claro, bem como olhos plásticos com as pupilas orladas em tom âmbar brilhante. Além disso, a nova coruja estava aboletada em cima de uma base de plástico
preto.
- Como podem ver, a coruja de vocês foi repintada - disse Riddell. - Principalmente os olhos. Quando eles são repintados, perde-se muito do efeito. Chamam-se olhos
de reflexo laminado. A camada de laminado no plástico capta a luz e dá aos olhos uma aparência de movimento.
- E os pássaros pensam que a coruja é de verdade.
- Exatamente. Você perde isso quando pinta os olhos dessa maneira.
- Achamos que a pessoa que pintou não estava preocupada com pássaros. O que mais é diferente?
Riddell simplesmente abanou a cabeça.
- Só que a plumagem foi bastante escurecida. Dá pra ver.
- É. Mas você disse que o mecanismo foi retirado. Que mecanismo?
- Nossa firma compra isso em Ohio, pinta a coruja e coloca nela um de dois mecanismos. O que estão vendo aqui é o nosso
modelo básico.
Riddell levantou a coruja e mostrou a eles a parte de baixo. A base de plástico preto girou sobre um eixo quando ele mexeu nela, soltando um guincho forte
- Ouviram o guincho?
- Ouvimos, já chega.
- Desculpe. Mas, como vêem, a coruja está fixada nessa base e reage ao vento. Quando gira, ela emite o guincho e soa como um predador. Funciona bem, desde que o
vento esteja soprando. Temos também um modelo de luxo, com um dispositivo eletrônico na base. Contém um alto-falante que emite sons gravados de predadores como o
falcão. Não depende do vento.
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- E possível comprar uma coruja sem qualquer dos dispositivos?
- Sim, você pode comprar uma substituta para encaixar sobre uma de nossas bases exclusivas, caso a sua coruja seja danificada ou se perca. Ficando ao ar livre, principalmente
em ambientes marinhos, a pintura dura dois ou três anos, e depois disso a coruja pode perder parte de sua eficácia. Você tem que repintar a ave, ou simplesmente
comprar uma nova. Na verdade, o molde é a parte mais barata do conjunto.
Jaye olhou para McCaleb, que não tinha nada a acrescentar ou perguntar na linha do interrogatório que ela estava conduzindo. Ele simplesmente balançou a cabeça para
ela, que se voltou para Riddell.
- Tá legal. Acho que agora queremos saber se há jeito de rastrear esta coruja daqui até o proprietário eventual.
Riddell lançou um olhar demorado para a coruja, como se a própria ave pudesse responder à pergunta.
- Bom, isso pode ser difícil. Elas são vendidas por atacado. Vendemos milhares delas por ano. Despachamos para os pontos de varejo e também vendemos por meio de
catálogos, pelo nosso site na Internet...
- Subitamente, ele estalou os dedos.
- Mas há uma coisa que pode abreviar isso. -O que é?
- Eles mudaram o molde no ano passado. Na China. Fizeram uma pesquisa e decidiram que a coruja-chifruda era considerada uma ameaça maior a outros pássaros do que
a coruja de cabeça redonda. Passaram para o modelo com chifres.
- Não estou acompanhando muito bem.
Riddell ergueu um dedo, como dizendo-lhes para esperar um instante. Abriu a gaveta da mesa e remexeu nuns papéis lá dentro. Retirou um catálogo e começou a virar
as páginas rapidamente. McCaleb viu que o negócio principal da Afasta Aves não era vender corujas de plástico, e sim instalar grandes sistemas de barreiras para
pássaros que incluíam redes, telas de arame e espigões. Riddell
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encontrou a página que mostrava as corujas de plástico, virando o catálogo para que Jaye e McCaleb pudessem vê-lo.
- Este é o catálogo do ano passado - disse ele. - Dá pra ver que a coruja tem a cabeça redonda. O fabricante mudou isso em junho passado, cerca de sete meses atrás.
Agora temos estes bichos aqui.
Ele apontou para as duas corujas na mesa.
- A plumagem vira para cima nas duas pontas, ou ouvidos, no alto da cabeça. O vendedor disse que essas coisas são chamadas de chifres, e que esse tipo de coruja
é às vezes denominado corujadiabo.
Jaye lançou um olhar para McCaleb, que ergueu momentaneamente as sobrancelhas.
- Está dizendo que esta coruja aqui foi encomendada ou comprada depois de junho? - disse Jaye a Riddell.
- O mais provável é depois de agosto, ou talvez setembro. Eles trocaram em junho, mas provavelmente nós só começamos a receber o novo modelo no final de julho. E
primeiro teríamos liquidado nosso estoque da coruja de cabeça redonda.
Jaye interrogou Riddell sobre os registros de vendas e soube que as informações sobre encomendas pelo correio e compras pelo site da Internet eram mantidas completas
e atualizadas nos arquivos do computador da empresa. Contudo as corujas despachadas para grandes varejistas de produtos domésticos e marítimos não eram registradas,
obviamente. Ele virou-se para o computador na mesa e teclou alguns comandos. Depois apontou para a tela, embora McCaleb e Jaye não estivessem numa posição de onde
pudessem vê-la.
- Vejam, pedi as vendas desses números de peças desde o dia 1a de agosto - disse ele.
- Números de peças?
- É, para os modelos básico e de luxo e depois para os moldes de substituição. Aqui diz que nós despachamos diretamente quatrocentas e catorze no total. Também despachamos
exatamente seiscentas para os varejistas.
- E o que está nos dizendo é que só podemos rastrear, pelo menos aqui, as quatrocentas e catorze.
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- Correto.
- Tem os nomes dos compradores e os endereços para onde foram despachadas as corujas?
- Tenho.
- E está disposto a nos ceder essas informações sem necessidade de um mandado judicial?
Riddell franziu as sobrancelhas, como se a pergunta fosse absurda.
- Vocês disseram que estão trabalhando num assassinato, não é? -É.
- Nós não precisamos de um mandado judicial. Se pudermos ajudar, queremos ajudar.
- Que novidade boa, Sr. Riddell.
Eles estavam sentados no carro de Jaye, examinando os relatórios computadorizados que Riddell lhes dera. A caixa da prova, contendo a coruja, estava entre os dois
no assento. Havia três relações, divididas entre os modelos básico, de luxo, e para substituição. McCaleb pediu para ver a lista de substituições, porque seu instinto
lhe dizia que a coruja no apartamento de Edward Gunn fora comprada com o objetivo expresso de desempenhar um papel na cena do assassinato, e portanto não precisaria
de mecanismo algum. Além disso, a coruja para substituição era a mais barata.
- Tomara que a gente encontre alguma coisa aqui - disse Jaye, esquadrinhando a lista de compradores do modelo básico. - Porque sair caçando compradores pelas lojas
de ferragens e outros varejistas vai exigir mandado judicial, advogados e... ei, o museu Getty está aqui. Eles encomendaram quatro.
McCaleb olhou para Jaye e pensou no que ela dissera. Depois deu de ombros e voltou à sua lista. Jaye continuou relacionando as dificuldades que eles encontrariam
se tivessem que ir aos varejistas onde a coruja-chifruda era vendida. McCaleb parou de ouvi-la quando chegou ao antepenúltimo nome de sua relação. A partir do nome
que reconhecera, foi correndo o dedo pela linha que detalhava o endereço de recebimento, modo de pagamento, origem da ordem de compra, além do nome de quem receberia
a ave caso não
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fosse o comprador. Provavelmente parara de respirar, porque Jaye captou a vibração. -O que foi?
- Achei algo aqui.
Ele estendeu a relação para ela por cima do assento e apontou para a linha.
- Este comprador. Jerome Van Aiken. Ele despachou uma coruja na véspera do Natal para o endereço do apartamento de Gunn. A encomenda foi paga por ordem de pagamento.
Jaye tirou a relação das mãos dele e começou a ler a informação.
- Enviada para o endereço da avenida Sweetzer, mas para um tal de Lubbert Das, aos cuidados de Edward Gunn. Lubbert Das. Ninguém chamado Lubbert Das apareceu nessa
investigação. Também não me lembro desse nome na lista de residentes do prédio. Vou telefonar para Rohrshak para ver se Gunn teve alguma vez um companheiro de quarto
com esse nome.
- Não é preciso. Lubbert Das nunca morou lá. Jaye ergueu os olhos das páginas para o rosto dele.
- Você sabe quem é Lubbert Das?
- Mais ou menos.
Ela franziu a testa fortemente.
- Mais ou menos? Mais ou menos? E Jerome Van Aiken?
Ele balançou a cabeça. Jaye deixou cair as páginas na caixa entre eles. Olhou para McCaleb com uma expressão que demonstrava curiosidade e aborrecimento ao mesmo
tempo.
- Bom, Terry, acho que está na hora de começar a me contar o que sabe.
McCaleb balançou a cabeça de novo e pôs a mão na maçaneta da porta.
- Por que não vamos até o barco? Podemos conversar lá?
- Por que não conversamos aqui mesmo, neste exato momento, caralho?
McCaleb tentou dar um sorrisinho.
- Porque quero fazer o que você chamaria de uma apresentação audiovisual.
Abriu a porta e saiu, olhando novamente para ela.
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- Vejo você lá, está bem? Ela abanou a cabeça.
- E bom você ter um perfil do cacete pronto para mim. Aí ele abanou a cabeça.
- Eu ainda não tenho um perfil pronto para você, Jaye.
- Então o que você tem?
- Um suspeito.
McCaleb fechou a porta, ouvindo os palavrões abafados enquanto ia para o carro. Ao atravessar o estacionamento, percebeu uma grande sombra escurecer tudo à sua volta.
Olhou para cima e viu o dirigível da Goodyear cruzando o céu, eclipsando o sol totalmente.
Capítulo 17
Street Promenade
Os dois se reencontraram quinze minutos depois a bordo do Mar que Segue. McCaleb pegou umas Coca-Cola e mandou Jaye se sentar na cadeira estofada na extremidade
da mesa de café no salão. Ainda no estacionamento, ele lhe dissera para trazer a coruja de plástico até o barco. Pegou duas toalhas de papel para retirar a ave da
caixa e colocá-la na mesa diante de Jaye, que o observava com os lábios crispados de aborrecimento. McCaleb disse que entendia a raiva dela por estar sendo manipulada
no próprio caso, mas acrescentou que ela reassumiria o controle das coisas logo que ele apresentasse o que descobrira.
- Terry, tomara que isso seja bom pra caralho. É o que eu tenho
a dizer.
Ele se lembrou que já anotara - na orelha interna do dossiê do primeiro caso em que trabalhara com Jaye - que ela tinha tendência a dizer palavrões quando estressada.
Também anotara que ela era inteligente e intuitiva. Esperava que essas características não
houvessem mudado.
Foi até a bancada onde colocara o dossiê de apresentação. Abriu-o e tirou a folha de cima, colocando-a na mesa de café. Empurrou para o lado a relação da Afasta
Aves e pôs a folha ao lado da base da coruja de plástico.
- O que você acha, esta é a nossa ave?
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Jaye inclinou-se à frente para estudar a imagem colorida que ele colocara ali. Era um detalhe ampliado de O jardim das delícias terrenas, o quadro de Bosch, e mostrava
o tal homem nu abraçando a coruja escura de reluzentes olhos negros. McCaleb recortara a figura e outros detalhes do livro de Marijnissen. Ficou observando os olhos
da detetive se moverem entre a coruja de plástico e o detalhe da pintura.
- Eu diria que são iguais - disse ela finalmente. - Onde conseguiu isso? No Getty? Devia ter me falado disso ontem, Terry. Que , porra está acontecendo?
McCaleb ergueu as mãos pedindo calma.
- Vou explicar tudo. Só preciso mostrar esse troço do jeito que eu quero. Depois respondo a todas as perguntas que você quiser fazer. Ela fez um aceno com a mão,
indicando que ele podia continuar. McCaleb foi até a bancada, pegou uma segunda folha e trouxe-a de volta, colocando-a na frente de Jaye.
- O mesmo pintor, outro quadro.
Ela olhou. Era um detalhe de O Juízo Final, mostrando o pecador amarrado na posição fetal invertida, à espera de ser enviado ao inferno.
- Não faça isso comigo. Quem pintou essas coisas?
- Conto para você num minuto. Ele foi até a bancada e o dossiê.
- Este cara ainda está vivo? - perguntou ela.
Ele pegou a terceira folha e colocou-a na mesa perto das outras duas.
- Morreu há uns quinhentos anos. -Jesus.
Ela pegou a terceira folha, examinando-a detidamente. Era uma cópia integral de Os sete pecados capitais, a pintura no tampo de mesa.
- Dizem que isso é o olho de Deus vendo todos os pecados do mundo - explicou McCaleb. - Reconhece as palavras no centro, dispostas em torno da íris?
- Cuidado, cuidado... - murmurou ela, traduzindo. - Ah, meu Deus, a gente está lidando com um pirado. Quem é?
149
- Só mais uma folha. Esta aqui faz tudo se encaixar.
Ele voltou até o dossiê pela quarta vez e voltou com outra reprodução do livro de Bosch, entregando-a a Jaye.
- Chama-se A operação de pedra. Na época medieval algumas pessoas acreditavam que a estupidez e a mentira podiam ser curadas por uma operação para remover uma pedra
do cérebro. Veja o local da incisão.
- Eu vi, eu vi. Exatamente como no nosso cara. O que é tudo isso aqui em volta?
Ela acompanhou com o dedo a borda exterior da pintura circular. Na margem negra externa viam-se palavras que originalmente haviam sido pintadas com tinta dourada
para efeito ornamental, mas que haviam se deteriorado com o tempo e estavam quase indecifráveis.
- A tradução é "Mestre, corte fora a pedra. Meu nome é Lubbert Das". A literatura especializada existente sobre o pintor que criou essas obras explica que na época
Lubbert era um epíteto pejorativo aplicado aos pervertidos e estúpidos.
Jaye pôs a folha em cima das outras e ergueu as mãos com as palmas abertas.
- Muito bem, Terry, já chega. Quem era o pintor, e quem é esse suspeito que você diz ter descoberto?
McCaleb balançou a cabeça. Chegara a hora.
- O pintor se chamava Jerome Van Aiken. Era dos Países Baixos, e considerado um dos grandes nomes da Renascença do norte da Europa. Mas seus quadros são escuros,
cheios de monstros e demônios fantasmagóricos. Além de corujas. Um monte de corujas. A literatura especializada sugere que as corujas encontradas em seus quadros
simbolizavam o mal, a destruição, a queda da humanidade, esse tipo de coisa.
Ele separou as folhas na mesa de café e levantou o detalhe do homem abraçando a coruja.
- Acho que isso diz tudo sobre ele. O homem que abraça o mal... a coruja-diabo, para usar a descrição do Riddell... tem inevitavelmente o destino do inferno. Aqui
está o quadro por inteiro.
Ele foi até o dossiê e trouxe para ela a
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o Jardim das delícias terrenas. Ficou observando os olhos de Jaye enquanto ela examinava as imagens. Viu a repulsa, bem como o fascínio. Apontou para as quatro corujas
que encontrara no quadro, inclusive o detalhe que mostrara a ela.
Subitamente, Jaye puxou a folha para o lado e olhou para ele.
- Espere um minuto. Eu sei que já vi isso antes. Num livro, ou talvez numa aula de arte que tive na CSUN. Mas nunca ouvi falar desse Van Aiken, acho eu. Ele pintou
isso? McCaleb balançou a cabeça.
- O jardim das delícias terrenas. Foi pintado por Van Aiken, mas você nunca ouviu falar dele porque ele não era conhecido pelo seu nome real. Usava a versão latina
de Jerome e aproveitou o nome de sua cidade natal como sobrenome. Era conhecido como Hieronymus Bosch.
Jaye ficou simplesmente olhando para ele durante longo tempo, como se tudo estivesse se juntando: as imagens que ele lhe mostrara, os nomes na relação do computador
e o que ela sabia sobre o caso Edward Gunn.
- Bosch - disse ela, como expulsando o ar dos pulmões. Hieronymus é...?
Não terminou. McCaleb balançou a cabeça.
- E, esse é o verdadeiro nome de Harry.
Os dois estavam andando de um lado para o outro no salão, com as cabeças baixas, mas tomando cuidado para não se esbarrarem. Falando aos arrancos e com o sangue
pulsando num ritmo ruim mas acelerado.
- Isso é muita loucura, Terry. Você sabe o que está dizendo?
- Sei exatamente o que estou dizendo. E não pense que não meditei muito sobre o assunto antes de falar com você. Considero Harry um amigo, Jaye. Houve uma... sei
lá. Numa certa época eu achei que nós dois éramos muito parecidos. Mas veja esse troço, veja essas conexões, os paralelos. A coisa se encaixa. Tudo se encaixa.
Ele parou e olhou para Jaye, que continuou a andar.
- Ele é um policial! Um policial da Homicídios, pelo amor de Deus.
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- Vai me dizer que isso é impossível só porque ele é um policial? Aqui é Los Angeles... a versão moderna do Jardim das Delícias Terrenas. Com as mesmas tentações
e demônios. Nem é preciso sair dos limites da cidade para achar exemplos de policiais cruzando a linha... traficando drogas, roubando bancos e até assassinando gente.
- Eu sei, eu sei. Só que... Ela não terminou de falar.
- O mínimo que nós podemos fazer é examinar isso com muito cuidado.
Ela parou de andar e olhou de volta para ele.
- Nós? Pode esquecer, Terry. Pedi a você pra dar uma olhada no dossiê, não pra sair seguindo as pistas. Você está fora do caso de agora em diante.
- Olhe aqui, se eu não tivesse seguido algumas pistas você não teria nada. Essa coruja ainda estaria sentada no telhado do outro prédio daquele cara, Rohrshak.
- Reconheço isso. E agradeço muito. Mas você é paisano. Está fora.
- Não vou me afastar, Jaye. Se fui eu que pus o foco em Bosch, não vou me afastar agora.
Jaye deixou-se cair pesadamente na cadeira.
- Está bem, mas podemos conversar sobre isso quando, e se, chegarmos a esse ponto? Eu ainda não me convenci.
- Que bom. Nem eu.
- Bom, você certamente deu um show mostrando as pinturas e montando a acusação.
- Só estou dizendo que Harry Bosch tem alguma ligação com isso. E aí a coisa toma dois rumos. Um, ele matou o cara. Dois, é armação de alguém. Ele é policial há
muito tempo.
- Vinte e cinco, trinta anos. A lista de gente que ele mandou para a penitenciária deve ter um quilômetro de comprimento. E quem já entrou e saiu provavelmente dá
metade disso. Vai levar um ano pra conferir todo mundo, caralho.
McCaleb balançou a cabeça.
- E não pense que ele não sabia disso.
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Ela ergueu os olhos bruscamente para ele. McCaleb recomeçou a andar de um lado para o outro com a cabeça baixa. Depois de um longo silêncio, ergueu os olhos e viu
Jaye olhando para ele.
-O que foi?
- Você realmente acha que Bosch é o cara, não é? Está sabendo de mais coisas.
- Não, não estou. Quero permanecer com a mente aberta. Todos os caminhos de possibilidades precisam ser trilhados.
- Conversa fiada. Você está seguindo um caminho só. McCaleb não respondeu. A culpa que sentia por aquilo já bastava, sem que Jaye precisasse aumentar a dose.
- Está bem - insistiu ela. - Por que não esclarece tudo para mim? E não se preocupe, não vou acusar você de nada quando o raciocínio desandar.
Ele parou e olhou para ela.
- Vamos, esclareça tudo de uma vez.
McCaleb abanou a cabeça.
- Ainda não cheguei lá. Só sei que temos aqui algo que está longe, longe da coincidência. Portanto, tem que haver uma explicação.
- Então me dê a explicação que envolve Bosch. Eu conheço você. Sei que vem pensando nisso.
- Muito bem, mas lembre-se que tudo não passa de teoria.
- Vou me lembrar. Pode começar.
- A primeira coisa é que o detetive Hieronymus Bosch acredita... não, ele sabe... que esse cara, Edward Gunn, se livrou de uma acusação de homicídio. A segunda é
que Gunn aparece estrangulado, numa pose tirada de um quadro do pintor Hieronymus Bosch. E só acrescentar uma coruja de plástico, meia dúzia de outros pontos de
conexão entre os dois, sem falar no nome Bosch, e pronto.
- Pronto o quê? Essas conexões não significam que Bosch cometeu o crime. Você mesmo disse que alguém pode ter armado tudo isso, só para nós irmos em cima dele.
- Eu não sei o que me levou a isso. Instinto visceral, acho eu. Há alguma coisa em Bosch... alguma coisa que não bate bem.
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Ele se lembrou da frase com que Vosskuhler descrevera as pinturas.
- O que isso quer dizer?
McCaleb fez um gesto descartando a pergunta, estendeu a mão e pegou a folha que mostrava o detalhe da coruja abraçada pelo homem. Colocou-a diante do rosto de Jaye.
- Veja as trevas aqui. Nos olhos. Há algo dentro de Harry igual a isto.
- Você está até me assustando, Terry. O que está dizendo? Que Harry Bosch foi uma pintura numa vida anterior? E sério, ouça o que está dizendo.
Ele pôs a folha de volta na mesa e se afastou dela, abanando a cabeça.
- Eu não sei como dizer isto - disse ele. - Mas há alguma coisa ali, só isso. Uma conexão de algum tipo entre eles dois, e que vai além do nome.
Fez um gesto, como afastando o pensamento.
- Está bem, vamos em frente - disse Jaye. - Por que agora, Terry? Se foi Bosch, por que agora? E por que Gunn? Ele se livrou de Bosch há seis anos.
- É interessante você dizer que Gunn se livrou dele e não da justiça.
- Eu não quis dizer nada com isso. Você simplesmente gosta de pegar...
- Por que agora? Quem sabe? Mas houve aquele reencontro na cela dos bêbados na véspera da morte de Gunn, além da ocasião em outubro. E a coisa vai ainda mais para
trás. Sempre que o cara era preso, Bosch aparecia.
- Mas na última noite Gunn estava bêbado demais pra falar. -Quemdisse isso?
Ela balançou a cabeça. Eles tinham apenas a versão de Bosch sobre o encontro na cela dos bêbados.
- Está bem. Mas por que Gunn? Não quero fazer juízo de valor sobre assassinos ou suas vítimas, mas o cara esfaqueou uma prostituta num motel de alta rotatividade
em Hollywood. Todos nós
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sabemos que algumas pessoas valem mais que outras, e essa não devia valer grande coisa. Se você leu o dossiê, você viu... nem a família dela se interessou pelo caso.
- Então há alguma coisa faltando, algo que nós não sabemos. Porque Harry se interessou. Além disso, não acho que ele é do tipo que valoriza um caso ou indivíduo
mais do que outros. Mas há alguma coisa sobre Gunn que ainda não sabemos. Tem que haver... Há seis anos isso levou Harry a atirar seu comandante pela janela e pegar
uma suspensão. Também fez com que ele visitasse Gunn toda vez que o cara era preso e posto numa cela - disse McCaleb balançando a cabeça para si próprio e acrescentando:
- Nós temos que achar o gatilho. O fator estressante. Aquilo que levou o ato a ser cometido agora, e não um ano atrás, dois anos atrás, ou quando quer que seja.
Jaye levantou-se abruptamente.
- Quer parar de dizer "nós"? Sabe, nisso tudo há algo que você está convenientemente omitindo. Por que esse homem, um detetive de homicídios veterano, mataria esse
cara e deixaria um monte de pistas apontando para ele mesmo? Isso não faz sentido... em termos de Harry Bosch. Ele seria inteligente demais para fazer isso.
- Só do nosso ponto de vista. Todas essas coisas podem parecer óbvias agora, depois de descobertas. E você está esquecendo que o ato de assassinato já é, por si
só, evidência de um pensamento deformado, de uma personalidade dissimulada. Se Harry Bosch desviou-se do caminho e caiu na vala... no abismo... nós não podemos presumir
nada sobre a sua maneira de pensar ou planejar um assassinato. Deixar essas pistas pode ter sido algo sintomático.
Jaye descartou a explicação dele com um gesto e disse:
- Lá vem o velho papo do FBI. Cheio de enrolação. - Depois apanhou a cópia de O jardim das delícias terrenas na mesa e pôs-se a examiná-la, acrescentando: - Eu falei
com Harry sobre o caso há duas semanas. Você falou com ele ontem. Ele não parecia estar subindo pelas paredes ou espumando de raiva. E pense no julgamento em que
ele anda depondo atualmente. Mas Harry está tranqüilo, calmo, e com a porra toda dominada. Sabe que apelido os conhecidos da repartição puseram nele? O Homem
de Marlboro.
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- Bom, ele parou de fumar. E talvez o caso de Storey tenha sido o fator estressante. E muita pressão. O troço tem que sair por algum lugar.
McCaleb percebeu que ela não estava escutando. Jaye tinha os olhos fixos em alguma coisa na pintura. Largou a folha e pegou a que mostrava o detalhe da coruja escura
abraçada pelo homem nu.
- Quero perguntar uma coisa a você - disse ela. - Se o nosso cara encomendou a coruja diretamente daquele galpão para a vítima, como essa repintura sob medida foi
feita, caralho?
McCaleb balançou a cabeça.
- Boa pergunta. Ele deve ter pintado o bicho lá no apartamento mesmo. Talvez enquanto via Gunn tentando sobreviver.
- Não havia tinta desse tipo no apartamento. E nós também verificamos a lixeira do prédio. Não vimos tinta alguma.
- Ele levou a tinta embora para jogar fora em outro lugar.
- Ou para usar novamente da próxima vez.
Jaye fez uma longa pausa enquanto raciocinava. McCaleb ficou esperando.
- O que nós podemos fazer? - perguntou ela por fim. -Agora é "nós"?
- Por enquanto. Mudei de idéia. Não posso levar essa história para o departamento. E perigoso demais. Se a coisa estiver errada, talvez seja o fim da linha pra mim.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Você e seu parceiro têm outros casos?
- Temos três casos em aberto, inclusive este aqui.
- Bom, coloque seu parceiro em um dos outros, enquanto você trabalha neste... comigo. Nós podemos investigar Bosch até termos alguma coisa palpável... a favor ou
contra... que você possa tornar oficial.
- E o que eu faço, ligo para Harry Bosch e digo que precisamos conversar porque ele é suspeito de um assassinato?
- Eu falo com Bosch primeiro. Vai ser menos óbvio se eu fizer o primeiro contato. Vou só sentir o pulso da coisa. Quem sabe? Talvez a minha intuição esteja errada.
Ou a gente encontre o gatilho.
- Isso é mais fácil de falar que de fazer. Se a gente chegar perto
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demais, ele vai perceber. E não quero esse troço explodindo na nossa cara... na minha cara, principalmente. -É aí que eu posso ser útil.
- É? Como?
- Eu não sou tira. Posso chegar mais perto dele. Preciso entrar na casa dele, ver como ele vive. Enquanto isso, você...
- Espere um instante. Você não está falando em arrombar a casa dele. Não posso ser cúmplice disso.
- Não, nada de ilegal.
- Então como vai entrar lá?
- Batendo na porta.
- Boa sorte. O que ia dizer antes? Enquanto isso, eu faço o quê?
- Você trabalha na periferia, nos troços óbvios. Rastreie a ordem de pagamento da coruja. Descubra mais coisas sobre Gunn e o assassinato de seis anos atrás. Investigue
o incidente entre Harry e seu antigo tenente... e investigue a morte do tenente. Harry disse que o cara saiu certa noite e apareceu morto num túnel.
- Caceta, eu lembro dessa história. Teve a ver com Gunn?
- Não sei. Mas ontem Bosch fez uma espécie de referência velada a isso.
- Posso pesquisar essas coisas e sair fazendo perguntas sobre os outros troços. Mas talvez Bosch acabe percebendo a movimentação.
McCaleb balançou a cabeça, achando que era um risco que precisava ser assumido.
- Sabe de algum conhecido dele? - perguntou ele. Ela abanou a cabeça, irritada.
- Escute, não se lembra mais? Todo policial é paranóico. Assim que eu fizer uma pergunta sobre Harry Bosch, o pessoal vai perceber a nossa jogada.
- Não necessariamente. Use o caso do Storey, que tem alta visibilidade. Diga que viu Bosch na tevê e achou que ele não estava legal. "Ele está bem? O que anda acontecendo
com ele?" Coisas assim. Finja que está fofocando.
Jaye não parecia tranqüilizada. Foi até a porta corrediça e olhou para a marina. Encostou a testa na vidraça.
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- Conheço a antiga parceira dele - disse ela. - Temos um grupo informal de mulheres que se reúne uma vez por mês. Todas trabalham em homicídios, e tem gente de todos
os departamentos locais. Somos cerca de uma dúzia. A antiga parceira dele, Kiz Rider, acabou de ser transferida de Hollywood para a RoubosHomicídios. Chegou ao topo.
Mas acho que eles já foram íntimos. Bosch era uma espécie de mentor dela. Pode ser que eu consiga alguma coisa com ela, se usar um pouco de sutileza.
McCaleb balançou a cabeça e pensou numa coisa.
- Harry me disse que se divorciou. Não sei há quanto tempo, mas você pode perguntar isso a Kiz, como se estivesse interessada nele, esse tipo de coisa. Se perguntar
assim, talvez ela dê toda a ficha dele.
Jaye desviou o olhar da porta e encarou McCaleb.
- E, ela vai me adorar quando descobrir que era tudo papo furado, e que eu estava armando o bote em cima do seu ex-parceiro...
seu mentor.
- Se ela for uma boa policial, vai entender. Ou você limpava a barra dele ou metia Bosch em cana, e em qualquer dos dois casos queria fazer isso com a maior discrição
possível
Jaye lançou o olhar para fora novamente.
- Preciso ser capaz de negar essa história toda.
- O que isso significa?
- Significa que preciso poder me safar, se a gente fizer isso. Caso você entre lá e tudo dê errado.
McCaleb balançou a cabeça. Teria preferido que ela não houvesse dito aquilo, mas percebia a necessidade que ela tinha de se proteger.
- Estou falando com toda a sinceridade, Terry. Se a vaca for pró brejo, vai parecer que você se excedeu. Que eu só lhe pedi para dar uma olhada no dossiê, mas que
você tomou o freio nos dentes. Sinto muito, mas preciso me proteger.
- Eu entendo, Jaye. Dá pra levar assim mesmo. Vou arriscar.
Capítulo 18
Jaye ficou em silêncio durante bastante tempo, olhando fixamente para fora pela porta do salão. McCaleb pressentiu que ela estava resolvendo alguma coisa e ficou
esperando.
- Vou contar pra você uma história sobre Harry Bosch - disse ela por fim. - Conheci Harry há cerca de quatro anos. Era um caso duplo. Dois
seqüestros seguidos de assassinato. O de Hollywood era dele, o de West Hollywood era meu. Mulheres jovens, na realidade garotas. As provas materiais ligavam os dois casos. Basicamente,
trabalhávamos nos casos em separado, mas almoçávamos juntos toda quarta-feira para trocar informações.
- Levantaram o perfil do criminoso?
- Levantamos. Isso aconteceu quando Maggie Griffin ainda trabalhava no FBI. Ela levantou alguma coisa para nós. O costumeiro. Mas as coisas esquentaram quando houve
um terceiro caso de desaparecimento. Dessa vez uma garota de dezessete anos. As provas colhidas nos dois primeiros casos indicavam que o culpado mantinha as vítimas
vivas por quatro ou cinco dias antes de se cansar e matar as garotas. Portanto, tínhamos que correr contra o tempo. Conseguimos reforços e comparamos os denominadores
comuns aos três casos.
McCaleb balançou a cabeça. Aparentemente, eles haviam seguido o método clássico de caça a um assassino serial.
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- Surgiu uma pequena possibilidade - disse ela. - As três vítimas usavam a mesma lavanderia a seco em Santa Monica, perto de La Cienega. A última, a garota de dezessete
anos, tinha um emprego de férias na Universal e levava seus uniformes para lavar a seco lá. Antes de falar com a gerência, fomos ao estacionamento dos funcionários,
anotamos as placas e pesquisamos os números. Talvez conseguíssemos descobrir alguma coisa antes de entrarmos e nos apresentarmos. Acertamos em cheio. O próprio gerente.
Ele tinha sido preso dez anos antes por atentado ao pudor. Pegamos a ficha, e o caso era uma variante dos exibicionistas de parque. Ele parou o carro num ponto de
ônibus e abriu a porta para que a mulher sentada no banco desse uma olhada no seu bilau. Só que ela era uma policial disfarçada e estava lá como isca. Eles já sabiam
que havia um tarado agindo na vizinhança. Em todo caso, ele pegou liberdade condicional com acompanhamento psicológico. Mentiu sobre o problema quando foi entrevistado
para o emprego na lavanderia e ao longo dos anos fez carreira até chegar ao cargo de gerente.
- Quanto maior o cargo, maior o estresse, e maior o nível de transgressão.
- Foi o que pensamos. Mas não tínhamos prova alguma. Foi aí que Bosch teve uma idéia. Disse que todos - eu, ele e nossos parceiros - iríamos até a casa desse cara,
que se chamava Hagen. Afirmou que tinha aprendido com um agente do FBI a sempre interrogar o suspeito em casa, se houvesse chance, porque às vezes dava para obter
mais informação a partir do ambiente do que das coisas que ele pudesse dizer.
McCaleb reprimiu um sorriso. Fora a lição que Bosch aprendera no caso de Cielo Azul.
- Fomos até a casa de Hagen. Ele morava num velho casarão em Los Feliz, perto de Franklin. Já fazia quatro dias que a terceira mulher tinha desaparecido, de modo
que sabíamos que estávamos correndo contra o tempo. Batemos à porta. O plano era agir como se não soubéssemos da ficha policial dele, fingindo que estávamos ali
só para conseguir a ajuda dele na verificação dos funcionários da loja. Pra ver como ele reagiria, ou se dava uma escorregadela.
- Certo.
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- Bom, entramos na sala do cara, e eu mesma conduzi a maior parte da conversa, porque Bosch queria observar como o cara reagiria ao ver uma mulher controlando a
situação. Nem cinco minutos depois, Bosch levantou de repente e disse: "É ele. Ela está em algum lugar aqui." Quando ele disse isso, Hagen se levantou e correu para
a porta. Mas não foi longe.
- Foi um blefe ou fazia parte do plano?
- Nem uma coisa nem outra. Bosch simplesmente percebeu. Na mesinha perto do sofá havia uma babá eletrônica. Bosch viu aquilo e sacou imediatamente. Era a parte errada
que estava ali. O transmissor. Ou seja, o receptor estava em outro lugar. Quem tem filho usa o sistema ao contrário. Ouve na sala de estar o barulho que o bebê faz
lá no quarto. Mas ali a coisa estava invertida. O perfil que Maggie fizera dizia que o sujeito era um controlador e que provavelmente coagia verbalmente suas vítimas.
Quando Bosch viu o transmissor, sentiu a idéia clicar na sua cabeça... O cara tinha a garota presa em algum lugar e tocava punheta enquanto falava com ela.
- Ele estava certo?
- Completamente. Encontramos a garota na garagem, dentro de um freezer desligado com três buracos para ventilação. O troço parecia um caixão de defunto. O receptor
da babá eletrônica também estava lá. Mais tarde ela nos contou que Hagen falava com ela incessantemente, sempre que estava em casa. Além de cantar pra ela sucessos
da década de quarenta. Ele mudava as letras, dizendo que ia estuprar e matar a garota.
McCaleb balançou a cabeça, desejando ter participado daquele caso, pois sabia o que Bosch sentira naquele momento súbito de coalescência, quando os átomos colidem.
Quando tudo fica claro. Era um momento tão emocionante que chegava a dar medo. O momento pelo qual anseia secretamente todo detetive de homicídios.
- Estou contando essa história por causa do que Bosch fez e disse depois. Colocamos Hagen no banco traseiro de um dos carros e começamos a revistar a casa, mas Bosch
permaneceu na sala com a tal babá. Ligou o aparelho e ficou falando com ela. Não parou até encontrar a garota. Dizia: "Jennifer, estamos aqui. Está tudo bem,
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Jennifer, estamos chegando. Você está salva e vamos buscar você. Ninguém vai machucar você." Não parou de falar com ela, acalmando a garota desse jeito.
Jaye fez uma longa pausa, e McCaleb viu que os olhos dela estavam fixos naquela lembrança.
- Depois que encontramos a garota, todos nós nos sentimos tão bem. Foi a sensação mais empolgante que já tive nesse serviço. Fui até Bosch e disse: "Você deve ter
filhos. Falou com a garota como se ela fosse uma filha sua." Ele simplesmente abanou a cabeça e disse que não. Disse: "E que eu sei o que é ficar sozinho no escuro."
E depois se afastou.
Ela desviou o olhar da porta para McCaleb.
- O que você disse sobre a treva me fez lembrar isso. McCaleb balançou a cabeça.
- O que vamos fazer se chegarmos a ter certeza total que foi ele? - perguntou Jaye, voltando o rosto novamente para a vidraça.
McCaleb respondeu rapidamente, para não ter que pensar sobre a pergunta.
- Não sei - disse.
Depois que Jaye pôs a coruja de plástico na caixa das provas, reuniu todas as páginas que ele lhe mostrara e partiu, McCaleb ficou parado diante da porta corrediça,
vendo-a subir a rampa até o portão. Olhou para o relógio e viu que dispunha de muito tempo antes de precisar se preparar para a noite. Decidiu assistir a um pouco
do julgamento na TV Tribunal.
Lançou novamente o olhar pela porta e viu Jaye pondo a caixa de provas na mala do carro. Subitamente, ouviu alguém pigarrear. Virou-se abruptamente e viu Buddy Lockridge
ao pé da escada do convés inferior, olhando para ele com uma pilha de roupas nos braços.
- Buddy, que diabo está fazendo?
- Cara, esse caso em que você está trabalhando é estranho.
- Eu disse que diabo você está fazendo?
- Eu ia lavar roupa, e vim até aqui porque metade das minhas coisas estava na cabine. Depois vocês dois chegaram, e quando começaram a falar eu vi que não podia
aparecer.
Mostrou a pilha de roupas nos braços como prova de sua história.
- Fiquei sentado na cama, esperando.
- E ouvindo tudo que dissemos.
- É um caso maluco, cara. O que você vai fazer? Eu já vi esse tal de Bosch na TV Tribunal. Ele parece um pouco tenso demais.
- Eu sei o que não vou fazer. Não vou falar sobre isso com você. McCaleb apontou para a porta de vidro.
- Vá embora, Buddy, e não diga uma palavra desse troço a ninguém. Entendeu?
- Entendi. Eu só estava...
- Fora.
- Sinto muito, cara.
- Eu também.
McCaleb abriu a porta corrediça, e Buddy saiu feito um cachorro com o rabo entre as pernas. McCaleb teve que se segurar para não lhe dar um pé na bunda. Em vez disso,
fechou a porta com raiva, batendo-a com força no umbral. Ficou parado ali olhando pela vidraça, até que viu Buddy subir a rampa e chegar ao prédio onde havia uma
lavanderia a quilo.
O fato de Buddy ter escutado tudo comprometera a investigação. McCaleb sabia que deveria ligar imediatamente para Jaye e contar o ocorrido à detetive, para saber
o que ela preferia fazer. Mas deixou a coisa passar em branco. A verdade era que ele não queria fazer nada que pudesse afastá-lo da investigação.
Capítulo 19
Depois de pousar a mão sobre a Bíblia e prometer dizer toda a verdade, Harry Bosch sentou-se no banco das testemunhas e ergueu o olhar para a câmera instalada na
parede acima do recinto do júri. Sabia que o olho do mundo estava sobre ele. O julgamento estava sendo televisado ao vivo, em rede nacional pela TV Tribunal e localmente
pelo Canal 9. Bosch tentou não aparentar nervosismo. Mas o fato era que seu desempenho e personalidade não estariam sendo examinados e julgados apenas pelos jurados.
Pela primeira vez em muitos anos de testemunhos em julgamentos criminais, ele não se sentia totalmente à vontade. Estar do lado da verdade não era um consolo, quando
sabia que a verdade tinha que atravessar uma traiçoeira pista de obstáculos colocada à sua frente pelo réu e seu advogado, ambos ricos e bem-relacionados.
Bosch colocou a pasta azul - o dossiê de assassinato - numa prateleira à sua frente no banco das testemunhas e puxou o microfone mais para perto, ocasionando um
guincho agudo que feriu os ouvidos de todos no tribunal.
- Detetive Bosch, por favor não toque no microfone - alertou o juiz Houghton.
- Perdão, meritíssimo.
Um agente do escritório do xerife que fazia o papel de oficial de justiça foi até o banco das testemunhas, desligou o microfone e
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ajustou a posição do aparelho. Quando Bosch balançou a cabeça, concordando com a nova posição, o oficial de justiça ligou o dispositivo de novo. O auxiliar do juiz
pediu que Bosch declarasse seu nome e sobrenome, soletrando-o para que fosse registrado.
- Muito bem - disse o juiz depois que Bosch terminou. - Doutora Janis Langwiser?
A promotora-assistente levantou-se da mesa da acusação e dirigiu-se à tribuna. Levava um bloco de anotações com suas perguntas. Ocupava o segundo lugar na mesa da
acusação, mas trabalhara com os investigadores desde o início do caso. Ficara decidido que ela conduziria o depoimento de Bosch.
Janis era uma advogada jovem e promissora da equipe da promotoria. Começara como simples arquivista de processos para os advogados mais experientes da promotoria,
mas em poucos anos já passara a levar pessoalmente os casos ao tribunal. Bosch trabalhara com ela num caso traiçoeiro e politicamente delicado, conhecido como os
assassinatos do Vôo dos Anjos. A experiência fizera com que ele a recomendasse para primeira assistente de Kretzler. Depois que voltara a trabalhar com ela novamente,
Bosch concluíra que suas primeiras impressões tinham fundamento. Janis detinha total comando e lembrança dos fatos do caso. Enquanto a maioria dos advogados precisava
folhear os relatórios de provas a fim de localizar uma informação, ela sabia de memória a informação e a sua localização nos relatórios. Mas sua habilidade não se
limitava às minúcias do caso. Ela nunca perdia de vista o objetivo maior de todos os esforços deles - trancafiar David Storey definitivamente.
- Boa tarde, detetive Bosch - começou Janis. - Por favor, conte para o júri um pouco de sua carreira como agente de polícia. Bosch pigarreou:
- Pois não. Eu faço parte do Departamento de Polícia de Los Angeles há vinte e oito anos. Passei mais da metade desse tempo investigando homicídios. Sou um detetive
três, atualmente na equipe de homicídios da Divisão Hollywood.
- O que significa "detetive três"?
- Significa detetive de terceiro grau. É o posto mais alto da carreira de detetive, equivalente a sargento, mas não há sargentos-
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detetives no Departamento. Depois de detetive três o próximo posto seria tenente-detetive.
- Quantos homicídios o senhor diria que investigou durante a sua carreira?
-Já perdi a conta. Diria que no mínimo algumas centenas, em quinze anos.
- Algumas centenas.
Janis ergueu os olhos para o júri ao enfatizar a última palavra. - Mais ou menos isso.
- E como detetive três o senhor atualmente é o supervisor da equipe de homicídios?
- Tenho alguns deveres de supervisão. E também chefio uma equipe de três policiais que lida com investigações de homicídios.
- Como tal, o senhor comandava a equipe que foi chamada à cena de um homicídio em 13 de outubro do ano passado, certo?
- Certo.
Bosch olhou para a mesa da defesa. David Storey mantinha a cabeça baixa, usando sua caneta hidrográfica para desenhar no bloco. Mantivera-se ocupado assim desde
que a seleção do júri começara. Bosch desviou o olhar para J. Reason Fowkkes, encarando o advogado do réu. Sustentou o olhar até Janis lhe fazer a pergunta seguinte.
- Tratava-se do assassinato de Donatella Speers? Bosch olhou de novo para Janis.
- Correto. Esse era o nome que ela usava.
- Não era o nome verdadeiro?
- Era o nome artístico, acho que poderíamos dizer. Ela era atriz e mudou de nome. Chamava-se Jody Krementz antes.
O juiz interrompeu e pediu que Bosch soletrasse os nomes para o escrivão. Depois Janis continuou.
- Relate as circunstâncias da chamada passo a passo, detetive Bosch. Onde o senhor estava, o que estava fazendo, como esse caso veio parar nas suas mãos?
Bosch pigarreou e estendeu a mão para puxar o microfone, mas lembrou do que acontecera antes. Deixou o microfone onde estava e inclinou-se à frente.
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- Eu e meus dois parceiros estávamos almoçando num restaurante chamado Musso and Frank's, no bulevar Hollywood. Era sexta-feira, e geralmente almoçamos ali quando
temos tempo. Às onze e quarenta e oito meu bip tocou. Reconheci o número como o da minha supervisora, tenente Grace Billets. Enquanto telefonava para ela, os bíps
dos meus parceiros, Jerry Edgar e Kizmin Rider, também tocaram. A essa altura já sabíamos que tínhamos um caso. Falei com a tenente Billets, e ela mandou nossa equipe
ir para o número mil e um da rua Nichols Canyon, onde uma viatura e uma ambulância haviam atendido a uma chamada de emergência, relatando que havia uma jovem morta
na cama em circunstâncias suspeitas.
- Sua equipe foi até o endereço dado?
- Não. Nós três tínhamos ido para o Musso no meu carro. Então voltei à delegacia de Hollywood, que fica a poucas quadras dali, e larguei meus parceiros lá para que
eles pegassem seus próprios veículos. Depois fomos separadamente para o endereço. Nunca se sabe pra onde se deverá ir a partir da cena do crime. E mais prático cada
detetive ter o seu próprio carro.
- Nessa hora o senhor já sabia quem era a vítima ou quais eram as circunstâncias suspeitas da morte
dela?
- Não, não sabia.
- O que encontrou quando chegou lá?
- Era uma casa pequena de dois quartos, com vista para o cânion. Havia duas viaturas no local. Os enfermeiros já haviam ido embora, depois de verificar que a vítima
estava morta. Dois patrulheiros e um sargento estavam dentro da casa. Na sala havia uma mulher sentada no sofá, chorando. Ela me foi apresentada como Jane Gilley.
Dividia a casa com a Srta. Krementz.
Bosch parou de falar e ficou esperando uma pergunta. Janis estava curvada sobre a mesa da acusação, conversando com o promotor Roger Kretzler.
- Doutora, isso conclui seu interrogatório do detetive Bosch? - perguntou o juiz Houghton.
Janis endireitou o corpo sobressaltada, não tendo notado que Bosch parara de falar.
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- Não, meritíssimo. - Ela voltou à tribuna e disse: - Continue, detetive Bosch, e conte para esta sala o que aconteceu depois da sua entrada na casa.
- Falei com o sargento Kim e ele me informou que havia uma jovem morta na cama do quarto que ficava à direita nos fundos da casa. Apresentou a mulher no sofá e disse
que seu pessoal tinha saído do quarto sem mexer em nada, depois que os enfermeiros verificaram que a vítima estava morta. Então segui pelo pequeno corredor até o
quarto e entrei.
- O que encontrou ali?
- Vi a vítima na cama. Era uma mulher branca, esbelta e loura. Foi mais tarde identificada como Jody Krementz, de vinte e três anos de idade.
Janis pediu permissão para mostrar uma série de fotografias a Bosch. Houghton balançou a cabeça, e Bosch identificou as provas fotográficas policiais como sendo
da vítima in sítu - tal como o cadáver fora visto inicialmente pela polícia. A mulher estava com rosto para cima. Os lençóis estavam repuxados para o lado, revelando
o corpo nu com as pernas separadas por cerca de 60 centímetros na altura dos joelhos. Os seios volumosos mantinham seu formato apesar da posição horizontal do corpo,
numa indicação de implantes. O braço esquerdo estava estendido sobre o estômago. A palma da mão esquerda cobria a região púbica. Dois dedos dessa mão penetravam
na vagina.
Os olhos da vítima estavam fechados, e a cabeça repousava num travesseiro mas formando um ângulo agudo com o pescoço. Amarrada fortemente em torno do pescoço havia
uma echarpe amarela, que também fora enrolada em torno da trave superior da cabeceira da cama. A ponta da echarpe de seda saía da trave e dava várias voltas em torno
da mão direita da vítima, que estava no travesseiro acima da cabeça.
As fotografias eram coloridas. Podia-se ver uma marca vermelho-arroxeada no pescoço da vítima, onde a echarpe comprimira a pele. Em
torno das órbitas havia um tom avermelhado descolorido. Também se notava uma descoloração azulada correndo ao longo de todo o lado esquerdo do corpo, incluindo o braço e a perna.
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Depois que Bosch identificou as fotografias como sendo de Jody Krementz m situ, Janis pediu que elas fossem mostradas ao júri. J. Reason Fowkkes protestou, alegando
que as fotos poderiam causar grande comoção entre os jurados e prejudicar o senso de avaliação deles. O juiz não aceitou o protesto, mas ordenou que Janis escolhesse
apenas uma foto que fosse representativa do conjunto. Janis escolheu a foto tirada mais de perto, que foi entregue ao jurado que estava sentado na primeira cadeira
do recinto do júri. Enquanto a fotografia era passada lentamente de mão em mão, e depois aos jurados reservas, Bosch ficou observando os rostos se crispando de choque
e horror. Recostou-se na cadeira e bebeu água num copo de papel. Quando esvaziou o copo, olhou para o agente do gabinete do xerife, fez sinal de que queria mais
e aproximou-se novamente do microfone.
Depois de percorrer todo o júri, a fotografia foi entregue ao auxiliar do juiz. Seria devolvida aos jurados, juntamente com todas as outras provas materiais apresentadas
durante o julgamento, quando o júri fosse deliberar sobre o veredicto.
Bosch viu Janis voltar à tribuna para continuar o interrogatório. Sabia que ela estava nervosa. Eles haviam almoçado juntos na lanchonete do subsolo do outro prédio
do tribunal, e Janis lhe confidenciara suas preocupações. Embora fosse apenas assistente de Kretzler, tratava-se de um julgamento importante, com potencial para
impulsionar ou destruir a carreira dos dois.
Janis conferiu o bloco de anotações antes de continuar.
- Detetive Bosch, depois de inspecionar o corpo, em que momento o senhor declarou que aquela morte seria investigada como homicídio?
- Imediatamente. Antes até da chegada dos meus parceiros.
- Por quê? A morte não parecia ter ocorrido por acidente?
- Não, a morte...
- Doutora, faça uma pergunta de cada vez, por favor - interpôs o juiz Houghton.
- Desculpe, meritíssimo. Detetive Bosch, não lhe pareceu que a mulher pudesse ter se matado acidentalmente?
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- Não, não pareceu. Achei que alguém estava tentando dar essa impressão.
Janis ficou olhando para o bloco durante bastante tempo antes de continuar. Bosch tinha quase certeza de que se tratava de uma pausa planejada para aquele momento,
quando a fotografia e o seu testemunho já houvessem prendido toda a atenção do júri.
- Detetive, conhece a expressão asfixia auto-erótica?
- Conheço.
- Poderia explicar ao júri o que é isso? Fowkkes levantou-se para protestar.
- Meritíssimo, o detetive Bosch pode ser muitas coisas, mas não foi provado ao tribunal que ele seja perito em sexualidade humana.
Houve um murmúrio de risos abafados na sala. Bosch viu alguns jurados reprimindo sorrisos. Houghton bateu o martelo uma vez e olhou para Janis.
- E agora, doutora?
- Meritíssimo, posso apresentar uma prova disso.
- Continue, então.
- Detetive Bosch, o senhor disse que já trabalhou em centenas de homicídios. Já investigou mortes que não foram causadas por homicídio?
- Sim, provavelmente centenas delas também. Mortes acidentais, suicídios e até mortes por causas naturais. É rotineiro um detetive de homicídios ser chamado por
patrulheiros ao local de uma morte para ajudar a decidir se a tal morte deve ser investigada como um homicídio. Foi o que aconteceu nesse caso. Os patrulheiros e
o sargento não sabiam direito o que tinham ali. Classificaram a morte como suspeita, e minha equipe foi convocada.
-Já foi convocado para investigar, ou já investigou, uma morte classificada pelo senhor, ou pelo médico-legista, como morte acidental por asfixia auto-erótica?
-Já.
Fowkkes levantou-se de novo.
- Protesto novamente, meritíssimo. Estamos entrando numa área na qual o detetive Bosch não é especialista.
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- Meritíssimo - disse Janis -, já está claramente estabelecido que o detetive Bosch é especialista na investigação de mortes, o que inclui todos os tipos de morte.
Ele já se deparou com isso antes. E pode testemunhar a respeito.
Havia um tom de exasperação na voz de Janis. Bosch achou que ela estava falando mais para o júri do que para Houghton. Aquilo era um meio subliminar de comunicar
aos doze jurados que ela queria chegar à verdade, enquanto outros queriam bloquear o acesso a ela.
- Eu me inclino a concordar, doutor Fowkkes - disse Houghton depois de uma pequena pausa. - Vou rejeitar todos os protestos a essa linha de interrogatório. Continue,
doutora.
- Muito obrigado, meritíssimo. Portanto, detetive Bosch, o senhor está familiarizado com casos de asfixia auto-erótica?
- Estou, já trabalhei em três ou quatro. Também estudei a literatura existente sobre o assunto. A asfixia auto-erótica é citada em vários livros sobre técnicas de
investigação de homicídio. Também li resumos de amplas pesquisas realizadas pelo FBI e outros órgãos.
- Antes da ocorrência desse caso?
- Sim, antes.
- O que é a asfixia auto-erótica? Como acontece?
- Doutora Janis Langwiser... - começou o juiz.
- Desculpe, meritíssimo. Vou reformular. O que é asfixia autoerótica, detetive Bosch?
Bosch tomou um gole de água enquanto concatenava os pensamentos. Eles haviam repassado aquelas perguntas durante o almoço.
- É uma morte acidental. Ocorre quando a vítima tenta aumentar a sensação de prazer ao se masturbar, cortando ou desviando o fluxo de sangue arterial para o cérebro.
Geralmente, isso é feito sob a forma de uma ligadura em torno do pescoço. O aperto da ligadura resulta em hipoxia ou diminuição da oxigenação do cérebro. As pessoas
que... hum... fazem isso acreditam que a hipoxia, ou leve tontura, provocada assim aumenta as sensações masturbatórias. Mas a coisa pode levar à morte acidental
se o sujeito
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for longe demais, a ponto de danificar as artérias carótidas ou desmaiar com a ligadura ainda apertada no lugar e sufocar.
- O senhor disse "o sujeito", detetive. Mas neste caso a vítima é uma mulher.
- Este caso aqui não envolve asfixia auto-erótica. Todos os casos desse tipo de morte que vi e investiguei ocorreram com homens.
- O senhor está dizendo que neste caso a morte foi maquiada para parecer asfixia auto-erótica?
- Sim, foi essa a minha conclusão imediata. E continua sendo. Janis balançou a cabeça e fez uma pausa. Bosch bebeu um gole
de água. Ao levar o copo à boca, olhou para o recinto do júri. Todos os jurados pareciam atentos.
- Descreva a situação passo a passo, detetive. Como o senhor chegou a essa conclusão?
- Posso consultar meus relatórios?
- Por favor.
Bosch abriu a pasta à sua frente. As quatro primeiras páginas eram do RIO - relatório do incidente original. Ele foi até a quarta página, que continha o resumo do
chefe da equipe. Na realidade o documento fora escrito por Kiz Rider, embora Bosch fosse o chefe naquele caso. Ele folheou rapidamente o resumo para refrescar a
memória e depois ergueu os olhos para os jurados.
- Várias coisas contradiziam a hipótese de um acidente fatal causado por asfixia auto-erótica. Em primeiro lugar, estranhei, porque estatisticamente é raro esse
tipo de morte ocorrer com vítimas femininas. Não chega a ser um fenômeno cem por cento masculino, mas é quase. E como eu sabia disso, prestei bastante atenção ao
corpo e à cena do crime.
- Poderíamos dizer que o senhor ficou imediatamente desconfiado em relação à cena do crime?
- Poderíamos.
- Muito bem, continue. O que mais lhe chamou a atenção?
- A ligadura. Em quase todos os casos relatados por escrito ou por mim presenciados, a vítima usava alguma espécie de proteção em torno do pescoço para não machucar
ou romper a pele. Na
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maioria das vezes uma peça de vestuário pesado, como um suéter ou uma toalha, era enrolada em volta do pescoço. A ligadura era então feita em torno dessa proteção,
para não provocar uma contusão circular em todo o pescoço. Mas naquele caso ali não havia proteção alguma.
- E o que isso significava, na sua opinião?
- Bom, isso não fazia sentido do ponto de vista da vítima. Quer dizer, supondo que ela realmente tivesse se engajado naquela atividade, a cena não fazia sentido.
Significava que ela não tinha usado de proteção alguma porque não se importava de ficar com o pescoço marcado. Para mim, o que a cena mostrava contradizia o bom
senso. Essa contradição era maior ainda porque ela era atriz, coisa que eu percebi imediatamente por causa de uma pilha de fotos de rosto em cima da cômoda. Ela
dependia de sua presença e atributos físicos para arranjar trabalho como atriz. Eu não podia acreditar que ela tivesse conscientemente se engajado numa atividade,
sexual ou não, que deixasse contusões visíveis no seu pescoço. Isso e outras coisas me levaram a concluir que a cena era uma armação.
Bosch olhou para a mesa da defesa. Storey ainda tinha a cabeça baixa e desenhava no seu bloco como se estivesse sentado no banco de um parque qualquer. Bosch percebeu
que Fowkkes estava anotando algo. Ficou pensando se dissera algo na última resposta que, de alguma forma, pudesse ser usado contra ele. Sabia que Fowkkes era um
especialista em pegar frases de testemunhas e darlhes novo significado quando usadas fora de contexto.
- Que outras coisas levaram o senhor a essa conclusão? - perguntou Janis.
Bosch consultou novamente o resumo do relatório do incidente original.
- Isoladamente, a coisa mais importante foi perceber pela lividez post mortem que o corpo fora deslocado.
- Em termos leigos, detetive, o que significa lividez post-mortem?
- Quando o coração pára de bombear, o sangue começa a se acumular na metade inferior do corpo, seja qual for a posição. Com o tempo, a pele dessa parte adquire uma
aparência contundida.
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Mesmo que o corpo seja movido de lugar, essa contusão permanece na posição original, porque o sangue já coagulou. Com o tempo, o efeito vai se tornando mais visível.
- O que aconteceu neste caso?
- Neste caso havia clara indicação de que o sangue tinha se acumulado no lado esquerdo do corpo. Isso significava que no momento da morte, ou pouco depois, a vítima
esteve deitada sobre o lado esquerdo.
- Entretanto não foi assim que o corpo foi achado, correto?
- Correto. O corpo foi achado na posição supina, ou seja, deitado de costas.
- O que o senhor concluiu disso?
- Que o corpo foi deslocado depois da morte. Que a mulher foi colocada de costas como parte da armação para fazer sua morte parecer asfixia auto-erótica.
- Qual foi a causa da morte, na sua opinião?
- Aquela altura eu não tinha certeza. Só achava que não era o que parecia ser. A contusão no pescoço embaixo da ligadura me levava a crer num caso de estrangulamento
- mas não pelas mãos da própria vítima.
- Quando os seus parceiros chegaram à cena do crime?
- Enquanto eu fazia as anotações iniciais sobre o corpo e a cena do crime.
- Eles chegaram às mesmas conclusões que o senhor?
Fowkkes protestou, dizendo que a pergunta exigia uma resposta que envolvia testemunhos de outrem. O juiz aceitou o protesto. Bosch sabia que aquilo era uma questão
menor. Se Janis quisesse as conclusões de Edgar e Rider registradas nos anais, podia simplesmente convocá-los a depor.
- O senhor compareceu à autópsia do corpo de Jody Krementz?
- Compareci - disse ele, folheando a pasta até achar o laudo da autópsia. - Foi no dia 17 de outubro e realizada pela doutora Teresa Corazón, chefe da Divisão Médico-Legal.
- A causa da morte foi determinada pela Dra. Teresa durante a
autópsia?
- Foi. A causa da morte foi asfixia. Ela foi estrangulada.
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- Por ligadura?
- Sim.
- Mas isso não contradiz sua teoria de que a morte não foi causada por asfixia auto-erótica?
- Não, isso confirmou minha teoria. A pose de uma asfixia auto-erótica foi usada para disfarçar o assassinato da vítima por estrangulamento. Os danos internos às
duas artérias carótidas, ao tecido muscular do pescoço e ao osso hióide, que foi esmagado, levaram a doutora Teresa a confirmar que a morte foi causada por mão alheia.
Os danos eram grandes demais para terem sido autoinfligidos.
Bosch percebeu que levara a mão no pescoço ao descrever as contusões, e deixou-a cair no colo.
- O exame médico-legal encontrou alguma prova independente de homicídio?
Bosch balançou a cabeça.
- Sim, o exame da boca da vítima revelou uma laceração profunda, ocasionada por uma mordida na língua. Esse ferimento é comum em casos de estrangulamento.
Janis virou uma página do seu bloco de anotações.
- Muito bem, detetive Bosch, vamos voltar à cena do crime. O senhor ou seus parceiros interrogaram Jane Gilley?
- Sim, eu interroguei. Juntamente com a detetive Rider.
- A partir desse interrogatório o senhor descobriu onde a vítima esteve nas vinte e quatro horas anteriores à descoberta de sua morte?
- Sim. Primeiro soubemos que ela tinha conhecido o réu numa lanchonete vários dias antes, sendo convidada a ir com ele à estréia de um filme no Chinese Theater,
em Hollywood, na noite de 12 de outubro. O réu apanhou a vítima entre sete e sete e trinta da noite. Jane Gilley viu a cena por uma janela da casa e identificou
o réu.
- Ela sabia a que horas Jody Krementz tinha voltado?
- Não, ela saiu, logo depois da partida de Jody com o réu, e passou a noite fora. Conseqüentemente, não sabia a que horas a colega tinha chegado. Quando voltou para
casa, às onze horas da manhã de 13 de outubro, descobriu o corpo da colega.
- Como se chamava o filme que tinha estreado na véspera?
- Chamava-se Ponto Morto.
- E quem era o diretor?
- David Storey.
Janis fez uma pausa longa. Depois consultou o relógio e olhou para o juiz.
- Meritíssimo - disse -, vou passar a uma nova linha de interrogatório com o detetive Bosch. Talvez seja o melhor momento de interrompermos os trabalhos, se não
for inconveniente.
Houghton afastou a folgada manga preta da toga e olhou para o relógio. Bosch consultou o seu. Eram três e quarenta e cinco.
- Muito bem, doutora. A sessão está suspensa até as nove horas de amanhã.
Houghton disse que Bosch podia sair do banco das testemunhas. Depois proibiu o júri de ler relatos jornalísticos ou assistir a noticiários televisivos sobre o julgamento.
Todos se levantaram, enquanto os jurados saíam em fila indiana. Bosch, que já se juntara a Janis perto da mesa da acusação, lançou o olhar para o lado da defesa.
David Storey estava olhando para ele. O rosto do réu não traía qualquer emoção. Mas Bosch teve a impressão de ver algo naqueles pálidos olhos azuis. Não podia ter
certeza, mas achou que era deboche.
Desviou o olhar do rosto de Storey.
Capítulo 20
Depois que a sala do tribunal se esvaziou, Bosch ficou confabulando com Janis e Kretzler sobre a testemunha desaparecida.
- Alguma novidade? - perguntou Kretzler. - Dependendo do tempo que John Reason mantiver você ali em cima, vamos precisar dela amanhã de tarde ou na manhã seguinte.
- Nada ainda - disse Bosch. - Mas estou me mexendo. Na verdade, preciso ir embora.
- Não estou gostando nada disso - disse Kretzler. - A corda pode arrebentar do nosso lado. Se ela não apareceu, há um motivo. Nunca comprei cem por cento a versão
dela.
- Storey pode ter chegado a ela - sugeriu Bosch.
- Nós precisamos do testemunho dela - disse Janis. - Para demonstrar o hábito. Você tem que encontrar essa mulher.
- Estou tentando.
Ele se levantou da mesa para ir embora.
- Boa sorte, Harry - disse Janis. - A propósito, acho que até agora você se saiu muito bem ali em cima.
Bosch balançou a cabeça.
- A calmaria antes da tempestade.
Caminhando pelo corredor na direção dos elevadores, Bosch foi abordado por um dos repórteres. Não sabia o nome do sujeito, mas já o vira nas cadeiras reservadas
para a imprensa no tribunal.
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- Detetive Bosch? - Bosch continuou andando.
- Escute, eu já disse a todo mundo que não vou fazer comentários até o fim do julgamento. Desculpe. Você vai ter que...
- Não, tudo bem. Eu só queria saber se você encontrou Terry McCaleb.
Bosch parou e olhou para o repórter. -Como assim?
- Ontem. Ele estava à sua procura aqui. - Ah, sim, falei com ele. Conhece Terry?
- Escrevi um livro sobre o FBI há alguns anos. Nós nos conhecemos nessa época. Antes do transplante dele.
Bosch balançou a cabeça, e estava prestes a seguir caminho quando o repórter estendeu-lhe a mão.
- Jack McEvoy.
Bosch cumprimentou o repórter relutantemente, reconhecendo o nome. Cinco anos antes, o FBI seguira a pista de um assassino serial até Los Angeles, onde se acreditava
que ele ia atacar sua próxima vítima - um detetive de homicídios de Hollywood chamado Ed Thomas. Usara informações passadas por McEvoy, repórter do Rocky Mountain
News, um jornal de Denver, para seguir a pista do chamado Poeta, e a vida de Thomas não chegou a ser posta em perigo. Ele já se aposentara e era dono de uma livraria
no condado de Orange.
- Ei, eu me lembro de você - disse Bosch. - Ed Thomas é meu amigo.
Os dois homens se avaliaram mutuamente.
- Está cobrindo isto aqui? - perguntou Bosch de forma óbvia.
- Estou. Para o Neui Times e a Vanity Fair. Também estou pensando em escrever um livro. Talvez a gente possa conversar
quando tudo terminar.
- É, talvez.
- A menos que você já esteja trabalhando nisso com Terry.
- Com Terry? Não, nós falamos de outra coisa ontem. Nada de livro.
- Tá legal, então não me esqueça.
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McEvoy tirou a carteira do bolso e entregou a Bosch um cartão de visitas.
- Eu trabalho principalmente na minha casa, em Laurel Canyon. Fique à vontade para me dar um telefonema, se quiser.
Bosch ergueu o cartão.
- Tá legal. Preciso ir embora. A gente se vê por aí.
- Falou.
Bosch se afastou e apertou o botão do elevador. Olhou para o cartão novamente enquanto esperava e pensou sobre Ed Thomas. Depois pôs o cartão no bolso do paletó.
Antes que o elevador chegasse, olhou para o corredor e viu que McEvoy continuava lá. Estava conversando com Rudy Tafero, o grandalhão que era investigador da defesa.
Tafero estava inclinado para a frente, falando bem perto de McEvoy, como se aquilo fosse uma espécie de encontro conspiratório. McEvoy tomava notas num bloco.
O elevador se abriu, e Bosch entrou. Ficou observando os dois até as portas se fecharem.
Bosch subiu a colina pelo bulevar Laurel Canyon e desceu em Hollywood, evitando o trânsito do fim da tarde. Dobrou à direita no Sunset Boulevard e poucos quarteirões
depois de entrar em West Hollywood encostou no meio-fio diante de um bar de striptease. Acionou o parquímetro e atravessou a rua, entrando em um acanhado prédio
de escritórios pintado de branco. A construção de dois andares tinha um pátio interno e era ocupada por pequenas produtoras cinematográficas. Eram escritórios pequenos,
com pédireito baixo. As produtoras viviam de filme para filme. Entre as filmagens não havia necessidade de mais espaço ou escritórios luxuosos.
Bosch consultou o relógio e viu que chegara bem na hora. Eram quatro e quarenta e cinco, e a reunião estava marcada para as cinco. Ele subiu a escada até o segundo
andar e passou por uma porta com um letreiro que dizia SAIDEIRA PRODUÇÕES. Era um conjunto de três salas, um dos maiores do prédio. Bosch já estivera ali antes e
conhecia a disposição dos cômodos: a sala de espera com
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a mesa da secretária, o escritório do amigo de Bosch, Albert Said, o "Eira", e uma sala de reunião. A mulher sentada à mesa da secretária ergueu os olhos para Bosch
quando ele entrou.
- Vim falar com Albert Said. Meu nome é Harry Bosch.
Ela balançou a cabeça, pegou o telefone e teclou um número. Bosch ouviu um aparelho tocar na outra sala e reconheceu a voz de Said respondendo.
- E Harry Bosch - disse a secretária.
Bosch ouviu Said dizer à mulher que o fizesse entrar. Foi seguindo para a porta antes que ela largasse o fone.
- Pode entrar - disse ela para as costas dele.
Bosch entrou numa sala mobiliada de forma simples: uma mesa, duas cadeiras, um sofá de couro preto e uma estante com televisão e vídeo. As paredes estavam cobertas
por cartazes dos filmes de Said e outras lembranças, tais como os encostos das cadeiras dos produtores com os títulos dos filmes estampados. Os dois haviam se conhecido
pelo menos quinze anos antes - quando o veterano produtor contratara Bosch como consultor técnico de um filme vagamente baseado num dos casos que o detetive investigara
- e mantido contatos esporádicos na década posterior. Said geralmente telefonava para Bosch quando tinha qualquer dúvida técnica sobre um procedimento policial que
estivesse usando num filme. A maior parte de suas produções não chegava aos cinemas. Eram filmes feitos para a televisão aberta ou a cabo.
Albert Said estava de pé atrás da mesa, e Bosch estendeu a mão para ele.
- Oi, Eira, como vão as coisas? - Indo bem, meu amigo.
Ele apontou para a televisão.
- Vi a sua bela atuação na TV Tribuna/ hoje. Bravo.
Bateu palmas polidamente. Bosch fez um gesto descartando o elogio e consultou novamente o relógio.
- Obrigado. E aqui, está tudo combinado?
- Acho que sim. A Marjorie vai fazer com que ela me espere na sala de reunião. Lá você assume o comando.
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- Eu agradeço, Eira. Diga o que eu posso fazer para acertar essa dívida.
- Pode participar do meu próximo filme. Você tem uma grande presença, meu amigo. Assisti ao troço todo hoje. Até gravei, se quiser conferir.
- Não, acho que não. E em todo caso, não vamos ter tempo para isso. O que anda aprontando atualmente?
- Ah, você sabe, esperando o sinal verde. Tenho um projeto com financiamento internacional que está quase saindo. E sobre um tira que é mandado para a prisão. O
trauma de perder seu distintivo, seu auto-respeito e tudo mais faz o sujeito ter amnésia. Ele vai para a prisão sem conseguir lembrar quais são os caras que pôs
lá e os que não pôs. Fica numa luta constante para sobreviver. O único preso com quem faz amizade acaba sendo um assassino serial que ele mesmo mandou para lá.
Éum filme de suspense, Harry. O que acha? Steven Segal está lendo o roteiro.
As espessas sobrancelhas negras de Said se arquearam, formando duas pontas agudas sobre a testa. Ele estava claramente entusiasmado com o argumento do filme.
- Não sei, Eira - disse Bosch. - Acho que isso já foi feito antes.
- Tudo já foi feito antes. Mas o que acha?
Bosch foi salvo pelo gongo. No silêncio que se seguiu à pergunta de Said, os dois ouviram a secretária falando com alguém na sala de espera. Depois o intercomunicador
tocou na mesa de Said, e a secretária disse: "A Srta. Crowe chegou. Vai esperar na sala de
reunião."
Bosch meneou a cabeça para Said.
- Obrigado, Eira - sussurrou ele. - A partir de agora é comigo.
- Tem certeza?
- Eu aviso se precisar de ajuda.
Bosch virou-se para a porta do escritório, mas voltou até a mesa e estendeu a mão.
- Pode ser que eu tenha que me mandar meio rápido. E melhor a gente se despedir. Boa sorte com o projeto. Tem pinta de mais um sucesso.
Eles se despediram com um aperto de mãos.
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- E, vamos ver - disse Said.
Bosch saiu do escritório, cruzou o pequeno corredor e entrou na sala de reunião. No centro do aposento havia uma mesa quadrada, com tampo de vidro e uma cadeira
de cada lado. Annabelle Crowe estava sentada na cadeira do lado oposto à porta. Examinava uma fotografia em preto-e-branco de si mesma quando Bosch entrou. Ergueu
os olhos com um amplo sorriso, mostrando dentes perfeitos. O sorriso foi mantido por pouco mais de um segundo e depois desabou do seu rosto feito uma avalanche de
lama em Malibu.
- O que... o que está fazendo aqui?
- Olá, Annabelle. Como vai?
- Isso aqui é um teste... Você não pode...
- Tem razão, é um teste. Estou testando você para o papel de testemunha num julgamento de assassinato.
A mulher se levantou. Uma foto do seu rosto e um currículo deslizaram da mesa para o chão.
- Você não pode... O que está acontecendo aqui?
- Você sabe o que está acontecendo. Você se mudou e não deixou o endereço. Seus pais não puderam me ajudar. Seu agente não quis me ajudar. Eu só podia chegar até
você marcando um teste. Agora sente aí e vamos conversar. Onde se meteu e por que está se esquivando do julgamento?
- Então o tal papel não existe? Bosch quase riu. Ela ainda não sacara.
- Não, não há papel algum.
- E eles não vão refilmar Chinatoum?
Dessa vez ele riu abertamente, mas logo se recuperou.
- Vão chegar lá um dia desses. Mas você é jovem demais para o papel, e eu não sou Jake Gittes. Quer se sentar, por favor?
Bosch fez menção de puxar uma cadeira à frente dela. Mas Annabelle não queria se sentar. Parecia muito zangada. Era uma jovem linda, com um rosto que freqüentemente
a fazia conseguir o que queria. Mas não no momento.
- Eu mandei você se sentar - disse Bosch em tom severo. - Precisa entender uma coisa, Annabelle. Quando não obedeceu à
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intimação para comparecer hoje ao tribunal, você infringiu a lei. Isso significa que eu posso prender você, se quiser. Aí nós conversamos no xadrez. A alternativa é
nos sentarmos nesta sala agradável que está à nossa disposição, e conversarmos de forma civilizada. Você decide, Annabelle.
Ela deixou-se cair novamente na cadeira. Tinha a boca comprimida numa linha fina. O batom que passara cuidadosamente para o teste de elenco já estava começando a
rachar e desbotar. Bosch ficou olhando para ela durante bastante tempo antes de começar.
- Quem chegou até você, Annabelle? Ela lançou-lhe um olhar nervoso.
- Escute, eu fiquei com medo, tá legal? E ainda estou com medo. David Storey é um sujeito poderoso e tem uns caras maus por trás dele.
Bosch se inclinou sobre a mesa.
- Está dizendo que foi ameaçada por ele? Ou por eles?
- Não, não estou dizendo isso. Eles não precisam me ameaçar. Eu já vi esse filme.
Bosch se recostou na cadeira e ficou examinando Annabelle, calado. O olhar dela se movia pela sala em todas as direções, menos para ele. O ruído do trânsito vindo
do Sunset Boulevard infiltrava-se através da única janela da sala, que se achava fechada. Alguém deu a descarga numa privada em algum lugar do prédio. Finalmente,
Annabelle olhou para Bosch.
- O que foi? O que você quer?
- Quero que você testemunhe. Quero que enfrente esse cara. Pelo que ele tentou fazer com você. Por Jody Krementz. E por Alicia Lopez.
- Quem é Alicia Lopez?
- Outra vítima que encontramos. Ela não teve a mesma sorte que você.
Bosch percebeu a perturbação no rosto da mulher. Evidentemente, ela via alguma espécie de perigo no ato de testemunhar.
- Se eu testemunhar, nunca mais vou trabalhar. E a coisa pode não parar por aí.
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- Quem lhe disse isso? Ela não respondeu.
- Vamos, quem? Isso veio deles, do seu agente, de quem?
Ela hesitou e depois abanou a cabeça, como se não acreditasse que estava falando com ele.
- Eu estava malhando no step da Crunch e um cara pegou o aparelho ao lado do meu. Ele estava lendo o jornal, com a página dobrada numa reportagem qualquer. E eu
estava pensando nos meus problemas, quando de repente ele começou a falar. Nem olhou para mim. Simplesmente foi falando, enquanto continuava com os olhos no jornal.
Disse que a reportagem que ele estava lendo era sobre o julgamento de David Storey e que ele detestaria testemunhar contra ele. Disse que quem fizesse isso nunca
mais trabalharia nesta cidade.
Ela parou de falar, mas Bosch ficou esperando, ainda examinando Annabelle. A angústia provocada pela narrativa da história parecia genuína. Ela estava à beira das
lágrimas.
- E eu... eu entrei num pânico tão grande com ele ali do lado, que larguei o aparelho e corri para o vestiário. Fiquei uma hora lá dentro, o tempo todo com medo
que ele ainda estivesse ali fora, esperando por mim. Pra me vigiar.
Ela começou a chorar. Bosch se levantou, saiu da sala e inspecionou o banheiro no corredor. Havia uma caixa com lenços de papel. Ele pegou a caixa e voltou para
a sala de reunião. Entregou a caixa a Annabelle Crowe e sentou-se novamente.
- Onde fica a Crunch?
- Logo ali, descendo a rua. Na esquina do Sunset com Crescent Heights.
Bosch balançou a cabeça. Havia um complexo de compras e entretenimento naquele local, e a lanchonete em que Jody Krementz conhecera David Storey também era lá. Ele
ficou imaginando se haveria alguma ligação entre as duas coisas. Talvez Storey fosse sócio da Crunch. Ou tivesse arranjado um colega de malhação para ameaçar Annabelle
Crowe.
- Conseguiu ver o cara?
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- Consegui, mas isso não interessa. Não sei quem ele era. Nunca tinha visto o sujeito antes e não vi mais. Bosch pensou em Rudy Tafero.
- Sabe quem é o investigador da equipe de defesa? Um cara chamado Rudy Tafero? Ele é alto, tem cabelo preto e vive bronzeado. Um sujeito boa-pinta?
- Não sei quem esse cara é, mas não é o homem que estava lá naquele dia. O sujeito era baixo e careca. E usava óculos.
A descrição não trouxe ninguém à lembrança a Bosch. Ele decidiu pôr aquilo de lado momentaneamente. Teria que avisar Janis Langwiser e Kretzler da ameaça. Talvez
eles quisessem levar o assunto ao juiz Houghton. Talvez quisessem que Bosch passasse na Crunch e começasse a fazer perguntas, para ver se conseguia confirmar alguma
coisa.
- Então, o que vai fazer? - perguntou ela. - Vai me obrigar a testemunhar?
- Isso não depende de mim. Os promotores vão decidir depois que eu contar sua história pra eles.
- Você acredita em mim?
Bosch hesitou, e depois balançou a cabeça.
- Mas você tem que se apresentar mesmo assim. Foi intimada. Esteja lá amanhã entre meio-dia e uma. Eles vão dizer a você o que querem fazer.
Bosch sabia que eles obrigariam Annabelle a testemunhar. Não iam querer saber se a ameaça era verdadeira ou não. Precisavam se preocupar com o caso. Annabelle Crowe
seria sacrificada para que David Storey fosse apanhado. Um peixe pequeno para apanhar um peixe grande, era assim que a banda tocava.
Bosch mandou Annabelle esvaziar a bolsa e remexeu nas coisas dela. Encontrou um endereço e um número de telefone anotados. Era um apartamento alugado por temporada
em Burbank. Ela confessou que pusera seus móveis num depósito e fora para o apartamento esperar o fim do julgamento.
- Vou aliviar sua barra, Annabelle, e não vou obrigar você a passar a noite no xilindró. Mas assim como a encontrei desta vez,
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posso encontrar de novo. Se não aparecer amanhã, faço isso, e você vai direto para o xadrez de Sybil Brand, está entendendo? Ela balançou a cabeça.
- Vai aparecer?
Ela balançou a cabeça novamente.
- Eu não devia ter contado aquela história a vocês. Bosch balançou a cabeça. Ela tinha razão.
- E tarde demais para se lamentar - disse ele. - Você agiu certo. Agora tem que agüentar. A justiça tem isso de engraçado. Você resolve ser corajoso, põe o pescoço
para fora, e eles não deixam mais você recuar.
Capítulo 21
Art Pepper tocava ao fundo, e Bosch estava ao telefone com Janis Langwiser quando alguém bateu à porta. Ele saiu da cozinha para o corredor e viu um vulto espiando
através da tela. Aborrecido com a intrusão de algum angariador de donativos, foi até a porta de madeira. Ia simplesmente fechá-la sem dizer nada, mas reconheceu
o visitante como Terry McCaleb. Ainda ao telefone, onde ouvia Janis Langwiser reclamar de possíveis ameaças a testemunhas, ele ligou a luz externa, abriu a porta
de tela e acenou para que McCaleb entrasse.
McCaleb fez sinal de que ficaria calado até o final do telefonema. Bosch viu-o cruzar a sala até a varanda dos fundos, de onde se avistava as luzes do passo Cahuenga.
Tentou se concentrar no que Janis dizia, mas estava curioso para saber por que McCaleb se dera ao trabalho de subir de carro as colinas para vê-lo.
- Harry, está me ouvindo?
- Estou. Qual foi a última parte?
- Perguntei se você acha que Houghton Bala vai atrasar o julgamento se abrirmos uma investigação.
Bosch não teve que pensar muito para responder. - De jeito nenhum. O show tem que continuar.
- Também acho. Vou ligar para o Roger e ver o que ele quer fazer. Em todo caso, esse é o nosso menor problema. Assim que
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você mencionar Alicia Lopez no seu depoimento vai haver uma luta brutal.
- Pensei que essa briga já estava ganha. Houghton decidiu...
- Isso não significa que Fowkkes não tentará um novo ataque. Ainda não podemos ficar tranqüilos.
Houve uma pausa. A voz dela não parecera muito confiante.
- Vejo você amanhã, Harry.
- Está bem, Janis. Até logo.
Bosch desligou e foi recolocar o telefone na base dentro da cozinha. Quando saiu, McCaleb estava parado na sala, examinando uma fotografia da esposa de Bosch nas
prateleiras acima do aparelho de som.
- Terry, o que há?
- Oi, Harry. Desculpe vir assim, sem avisar. Não liguei antes porque não sabia o telefone daqui.
- Como achou a casa? Quer uma cerveja ou outra coisa? - disse Bosch. Depois apontou para o peito dele e acrescentou: - Pode tomar cerveja?
- Agora já posso. Na verdade, acabo de ser liberado. Já posso beber de novo. Com moderação. Uma cerveja cai bem.
Bosch foi até a cozinha. McCaleb continuou falando da sala.
- Já estive aqui antes. Não se lembra?
Bosch voltou com duas garrafas abertas de Anchor Steam e entregou uma a McCaleb.
- Quer um copo? Quando esteve aqui? McCaleb pegou a garrafa.
- Cielo Azul.
Deu um gole grande na garrafa, respondendo à pergunta de Bosch.
Cielo Azul, pensou Bosch. Depois se lembrou. Eles haviam se embebedado ali na varanda dos fundos certa vez. Ambos queriam esquecer os detalhes sórdidos daquele caso,
que era terrível demais para ser analisado em profundidade sobriamente. Bosch lembrou que ficara perguntando retoricamente, com a voz embriagada: "Onde está a mão
de Deus, onde está a mão de Deus?", e que no dia seguinte se envergonhara daquele descontrole.
- Ah, é - disse ele. - Um dos meus mais brilhantes momentos existenciais.
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- Pois é. Só que a casa está diferente agora. A antiga desceu colina abaixo com o terremoto?
- Quase isso. Tudo aqui foi condenado. Tive que recomeçar dos alicerces.
- E, eu não reconheci o lugar. Vim subindo à procura da casa antiga. Mas aí vi o Shamu e imaginei que não podia ter outro tira na vizinhança.
Bosch pensou na viatura preta-e-branca estacionada na garagem. Não se dera ao trabalho de levá-la à delegacia para trocá-la por seu carro particular. Aquilo o faria
economizar tempo pela manhã, permitindo-lhe ir direto para o tribunal. O carro era uma viatura policial normal, mas sem as luzes de emergência na capota. Todas as
divisões faziam os detetives usar aqueles carros. Era uma norma oficial, para dar a impressão de que havia mais radiopatrulhas nas ruas.
McCaleb estendeu sua garrafa e tocou a garrafa de Bosch.
- A Cielo Azul - disse ele.
- Pois é - disse Bosch, bebendo um gole da garrafa. Estava ótima, geladíssima. Era a primeira cerveja que ele bebia desde o início do julgamento. Decidiu que só
beberia aquela, mesmo que McCaleb bebesse outras.
- Sua ex-mulher? - perguntou McCaleb, apontando para a fotografia nas prateleiras.
- Minha mulher. Ainda não é minha ex... pelo menos até onde eu sei. Mas acho que a coisa está indo por esse caminho - disse Bosch, olhando para o retrato de Eleanor
Wish. Era a única fotografia que tinha dela.
- Que pena, cara.
- Pois é. Mas o que está havendo, Terry? Tenho uns troços que preciso rever para...
- Sei, o julgamento. Desculpe a invasão, cara. Sei que o depoimento deve estar tomando todo o seu tempo. Eu só queria esclarecer umas coisinhas do caso Gunn. Mas
também quero contar uma coisa pra você. Quer dizer, mostrar uma coisa.
McCaleb tirou a carteira do bolso traseiro, abriu-a e retirou uma fotografia. Passou-a a Bosch. A fotografia, que assumira o contorno da carteira, mostrava um bebê
de cabelo preto nos braços de uma mulher de cabelo preto.
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- Essa é a minha filha, Harry. E minha mulher.
Bosch balançou a cabeça e examinou a fotografia. Tanto a mãe quando a filha tinham cabelo preto e pele morena. Ambas eram muito bonitas. Ele sabia que provavelmente
pareciam ainda mais bonitas para McCaleb.
- Lindas - disse ele. - A neném parece tão novinha. Tão pequenina.
- Ela já tem quase quatro meses. Mas essa foto foi tirada um mês atrás. Eu esqueci de contar isso pra você no almoço de ontem. Nós demos a ela o nome de Cielo Azul.
Bosch ergueu o olhar da fotografia para McCaleb. Ficou olhando para ele um instante e depois balançou a cabeça.
- Bacana.
- E, eu disse a Graciela que queria dar esse nome a ela, e contei por quê. Ela achou que era uma boa idéia.
Bosch devolveu-lhe a fotografia.
- Espero que algum dia a guria também ache.
- Eu também espero. Quase sempre ela é chamada de CiCi. Mas lembra da noite em que você ficou repetindo aquela pergunta sobre a mão de Deus, dizendo que não conseguia
mais encontrar isso em lugar algum? Aconteceu comigo também. Eu perdi a esperança. Nesse tipo de trabalho... é difícil não perder. E aí...
Ele ergueu a fotografia.
- Aqui está ela, bem aqui. Eu achei a mão de Deus novamente. Vejo isso nos olhos dela.
Bosch ficou olhando para ele durante bastante tempo e depois balançou a cabeça.
- Que bom pra você, Terry.
- Quer dizer, não estou tentando posar de... Quer dizer, não estou tentando converter você, ou qualquer coisa assim. Só estou dizendo que encontrei uma coisa que
estava faltando. E não sei se você ainda está procurando por ela... Só queria dizer, sabe, que a mão de Deus está lá fora. Não desista.
Bosch desviou o olhar de McCaleb, dirigindo-o para a escuridão através das portas de vidro.
- Para algumas pessoas, tenho certeza que está.
Bebeu o restante da cerveja e foi até a cozinha quebrar a promessa
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que fizera a si mesmo de tomar apenas uma. Perguntou a McCaleb se ele queria outra, mas o visitante recusou. Ao curvar-se diante da geladeira aberta, Bosch
parou e fechou os olhos, deixando que o ar frio lhe acariciasse o rosto. Pensou no que McCaleb acabara de lhe dizer.
- Você não acha que é uma dessas pessoas?
Bosch ergueu-se sobressaltado quando ouviu o som da voz de McCaleb, que estava parado na soleira da porta da cozinha.
- O quê?
- Você disse que a mão de Deus estava lá fora para algumas pessoas. Não acha que é uma dessas pessoas?
Bosch pegou uma cerveja na geladeira e enfiou-a no abridoi preso na parede. Abriu a tampinha e deu um bom gole antes de retrucar.
- O que é isso, Terry, o jogo das vinte perguntas? Está pensando em virar padre, alguma coisa assim?
McCaleb sorriu e abanou a cabeça.
- Desculpe, Harry. Pai recente, entende? Acho que quero contar a todo mundo, só isso.
- Bacana. Quer falar sobre Gunn agora?
- Claro.
- Vamos lá pra fora ver a noite.
Eles foram para a varanda dos fundos e ficaram olhando a vista. A rodovia 101 apresentava a costumeira fita de luzes, uma veia brilhante cortando as montanhas. O
céu estava claro, pois a névoa da poluição fora lavada pela chuva de uma semana antes. Bosch viu as luzes na parte baixa do Vale, parecendo se estender até o infinito.
Mais perto da casa via-se apenas a escuridão do matagal na encosta da colina. Ele sentiu o cheiro dos eucaliptos ali embaixo; era sempre mais forte depois da chuva.
McCaleb falou primeiro.
- Você tem uma casa bacana aqui, Harry. Num lugar bacana. Deve odiar ter que descer toda manhã para aquela pestilência.
Bosch olhou para ele.
- Pouco me importa, se de vez em quando eu conseguir pegar alguns agentes transmissores da pestilência. Gente como David Storey.
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- E os que conseguem escapar? Como Gunn?
- Ninguém escapa, Terry. Se eu acreditar que eles escapam, não vou mais poder fazer o que faço. E verdade que a gente não consegue pôr a mão em todos eles, mas eu
acredito no círculo. Na grande roda. Tudo que gira acaba voltando. No final. Eu posso não ver a mão de Deus com tanta freqüência quanto você, mas acredito nisso.
Bosch pôs a garrafa sobre a balaustrada. Estava vazia e ele queria outra, mas sabia que era melhor pisar no freio. Ia precisar de cada célula cerebral que pudesse
utilizar no tribunal no dia seguinte. Pensou em fumar um cigarro. Sabia que havia um maço fechado no armário da cozinha. Mas decidiu evitar aquilo também.
- Então acho que o que aconteceu com Gunn deve ser uma confirmação da sua fé na teoria da grande roda.
Bosch não disse nada durante bastante tempo. Ficou olhando fixamente para o vale das luzes.
- É - disse finalmente. - Acho que foi.
Desviou o olhar e virou de costas para a paisagem. Encostado na balaustrada, olhou de novo para McCaleb.
- Que história é essa de Gunn? Acho que ontem eu contei tudo que havia para ser contado. Está com o dossiê, não é?
McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que você provavelmente contou, e eu vi o dossiê. Mas achei que talvez tivesse surgido mais alguma coisa. Que talvez a nossa conversa tivesse despertado alguma
lembrança do caso em você, entende?
Bosch deu uma espécie de risada e pegou a garrafa antes de se lembrar que estava vazia.
- Qual é, cara? Estou no meio de um julgamento. Estou depondo para tentar pegar um sujeito muito esperto. Quer dizer, parei de pensar na sua investigação no minuto
em que levantei da mesa no Cupid's. O que exatamente quer de mim?
- Nada, Harry. Não quero nada que você não tenha. Só achei que valia a pena arriscar, mais nada. Estou trabalhando nesse troço jogando a rede por toda parte. Achei
que talvez... Deixa pra lá.
- Você é um cara estranho, McCaleb. Estou lembrando disso
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agora. O jeito com que você costumava olhar para as fotos da cena do crime. Quer outra cerveja?
- Porque não?
Bosch afastou-se da balaustrada, pegou sua garrafa e estendeu a mão para a de McCaleb. Ainda estava um terço cheia, pelo menos. Ele a pôs de volta.
- Bom, acabe esta primeiro.
Entrou e pegou mais duas cervejas na geladeira. Quando voltou da cozinha McCaleb estava parado na sala, estendendo-lhe a garrafa vazia. Por um instante, o detetive
ficou na dúvida se ele terminara de beber ou se derramara a cerveja por cima da balaustrada. Levou a garrafa vazia para a cozinha, e quando voltou viu McCaleb parado
diante do aparelho de som, examinando um estojo de CD.
- É isto que está tocando? - perguntou. - Art Pepper encontra a Rhythm Section?
Bosch se aproximou.
- É. Art Pepper e os músicos de Miles. Red Garland ao piano, Paul Chambers no contrabaixo, Philly Joe Jones na bateria. Gravado aqui em Los Angeles em 19 de janeiro
de 1957. Um dia só. Dizem que a cortiça no pescoço do saxofone de Pepper estava rachada, mas ele não se importou. Só tinha uma chance de tocar com os caras. Tirou
o máximo proveito. Um dia, uma tentativa, um clássico. E assim que se faz a coisa.
- Esses caras eram do conjunto de Miles Davis?
- Na época, eram.
McCaleb balançou a cabeça. Bosch se inclinou para ver mais de perto a capa do CD nas mãos dele.
- Pois é, Art Pepper - disse ele. - Quando eu era criança, não sabia quem era o meu pai. Minha mãe tinha um monte de discos desse cara. Ela freqüentava umas boates
de jazz onde ele tocava. O Art era um sujeito boa-pinta. Para um viciado. Olhe só pra esta foto. Cheio de pose. Inventei que ele era meu velho e que não vivia conosco
porque estava sempre viajando e gravando discos. Quase cheguei ao ponto de acreditar na história toda. Mais tarde, quer dizer, anos mais tarde, li um livro sobre
ele. Dizia que estava drogado de cair quando tirou esta foto. Vomitou logo que terminou e voltou para a cama.
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McCaleb examinou a foto na capa do CD. Um homem bonito encostado em uma árvore, com o saxofone embaixo do braço direito.
- Bom, ele tocava muito - disse McCaleb.
- E verdade - concordou Bosch. - Um gênio com uma agulha no braço.
Ele avançou e aumentou ligeiramente o volume. A música era Straight Life, o carro-chefe de Art Pepper.
- Você acredita nisso? - perguntou McCaleb.
- Em quê, que ele era um gênio? Com o saxofone acredito que
era.
- Não, quero saber se acha que todo gênio - músico, artista plástico, até um detetive - tem um defeito fatal como esse? A agulha no braço.
- Acho que todo mundo tem um defeito fatal, seja gênio ou não.
Bosch aumentou ainda mais o volume. McCaleb pôs a cerveja sobre uma das caixas de som do chão. Bosch pegou a garrafa e a devolveu a ele. Usou a palma da mão para
enxugar o anel de umidade na superfície da madeira. McCaleb baixou o volume da música.
- Vamos, Harry, solta alguma coisa.
- Do que está falando?
- Eu fiz essa viagem toda até aqui. Solta alguma coisa sobre Gunn. Sei que está pouco se lixando para ele... a roda girou e ele não escapou. Mas eu não gostei da
maneira como a coisa foi feita. Esse cara, seja lá quem for, ainda está solto por aí. E vai fazer de novo. Posso garantir.
Bosch deu de ombros, como se pouco se importasse com aquilo.
- Está bem, vou te dizer uma coisa. É pouco, mas talvez valha a pena tentar. Quando fui falar com ele na cela, na véspera do assassinato, também falei com os guardas
do condado que tinham prendido o Gunn por dirigir alcoolizado. Eles disseram que perguntaram onde ele tinha bebido, e que ele disse que tinha saído de um lugar chamado
Nat's. Fica no lado sul do bulevar, a cerca de um quarteirão do Musso's.
- Tá legal, dá pra encontrar - disse McCaleb, com um tom de e-daí? na voz. - Qual é a ligação?
- Bom, quando eu conheci o Gunn, há seis anos, ele tinha passado
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a noite bebendo no Nat's. Foi lá que ele pegou a tal mulher que matou.
- Então era freguês da casa.
- Parece que sim.
- Obrigado, Harry. Vou verificar esse troço. Por que não contou isso a Jaye Winston? Bosch deu de ombros.
- Acho que não me ocorreu, e ela também não me perguntou. McCaleb quase pôs a cerveja na caixa de som novamente, mas
em vez disso entregou a garrafa a Bosch.
- Talvez eu passe lá ainda hoje.
- Não esqueça. -Esquecer o quê?
- Se pegar o cara que fez aquilo, dê meus parabéns a ele. McCaleb não respondeu. Olhou em volta, como se houvesse
acabado de entrar.
- Posso usar o banheiro?
- Lá no fim do corredor, à direita.
McCaleb partiu para o banheiro, enquanto Bosch levava as cervejas para a cozinha e as punha na lata de reciclagem com as outras. Abriu a geladeira e viu que só sobrara
uma garrafa das seis que comprara a caminho de casa, depois de armar aquela encenação com Annabelle Crowe. Fechou a geladeira quando McCaleb entrou no aposento.
- Aquele quadro que você pendurou no corredor é maluco pra caralho - disse ele.
- O quê? Ah, é. Gosto daquele quadro.
- O que aquilo significa?
- Não sei. Acho que significa que a grande roda não pára de girar. Ninguém escapa.
McCaleb balançou a cabeça, dizendo:
- Também acho.
- Vai descer até o Nat's?
- Estou pensando nisso. Quer ir?
Bosch ficou tentado, embora soubesse que seria tolice. Tinha que rever metade do dossiê de assassinato a fim de se preparar para a continuação do depoimento na manhã
seguinte.
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- Não, preciso trabalhar um pouco aqui e me preparar para amanhã.
- Tá legal. E como foi hoje?
- Até agora tudo bem. Mas por enquanto a bola rolou macia... eu fui interrogado pela acusação. Amanhã a bola vai estar com John Reason, e ele só dá passe na fogueira.
- Vou assistir ao noticiário.
McCaleb avançou e estendeu a mão para Bosch, que a apertou.
- Tome cuidado por aí.
- Você também, Harry. Obrigado pelas cervejas.
- Não tem problema - disse Bosch.
Levou McCaleb até a porta e viu-o entrar no Cherokee preto estacionado na rua. O motor pegou de pronto e McCaleb foi embora, deixando Bosch parado na soleira iluminada.
Bosch entrou, trancou a porta e apagou as luzes da sala. Deixou o som ligado. O aparelho se desligaria automaticamente quando terminasse o momento clássico de Art
Pepper. Era cedo, mas Bosch já estava cansado, dfevido às pressões do dia e ao álcool que corria em seu sangue. Decidiu dormir e acordar mais cedo para preparar
o testemunho. Entrou na cozinha e pegou a última garrafa de cerveja na geladeira.
No corredor que levava ao quarto, parou e ficou olhando para o quadro emoldurado a que McCaleb se referira. Era uma reprodução de O jardim das delícias terrenas,
a pintura de Hieronymus Bosch. Ele possuía aquele quadro desde seus tempos de garoto. A superfície da gravura estava enrugada e arranhada, em mau estado. Fora Eleanor
que a levara da sala para o corredor. Ela não gostava de ver aquilo ali, no lugar onde eles ficavam sentados à noite. Bosch nunca entendera se aquilo era por causa
do que havia no quadro ou porque a gravura estava velha e estragada.
Vendo o panorama de luxúria e sofrimento humanos mostrado no quadro, Bosch pensou na possibilidade de levá-lo novamente para o lugar onde ficava antes - na sala.
No sonho, Bosch se deslocava pela água escura, incapaz de ver as mãos diante do próprio rosto. Ouvindo uma campainha, ele fez força para se elevar através das trevas.
Bosch acordou. A luz estava acesa, mas tudo estava silencioso. O aparelho de som se desligara. Quando foi olhar o relógio, o telefone em cima da mesinha-de-cabeceira
tocou novamente, e ele agarrou-o rapidamente.
-Alô.
- Oi, Harry, é Kiz. Sua antiga parceira. -O que há, Kiz?
- Você está bem? Parece... meio desligado.
- Estou bem. Eu só estava... estava dormindo.
Ele olhou para o relógio. Passava um pouco das dez.
- Desculpe, Harry, achei que estava queimando as pestanas se preparando para amanhã.
- Vou levantar cedo para fazer isso.
- Bom, você se saiu bem hoje. Ficamos com a televisão ligada lá no trabalho. Todo mundo estava torcendo por você.
- Sei, sei. Como estão as coisas lá?
- Estão indo. De certa forma, estou começando de novo. Tenho que provar meu valor pra eles.
- Não se preocupe com isso. Você vai ultrapassar aqueles caras como se eles estivessem parados. Exatamente como fez comigo.
- Harry... você é o máximo. Nem sabe quanta coisa eu aprendi com você.
Bosch hesitou. Estava sinceramente tocado pelo que ela dissera.
- E muita gentileza sua, Kiz. Você devia telefonar com mais freqüência pra mim.
Ela riu.
- Bom, não foi por isso que liguei. Eu disse a uma amiga que faria isso. Estou me sentindo no segundo grau, mas aí vai. Conheço uma pessoa que está interessada em
você. Eu disse que ia conferir pra ver se você estava de novo em campo, entende o que quero dizer?
Bosch nem precisou pensar antes de responder.
- Não, Kiz, não estou disponível. Eu... eu ainda não desisti de Eleanor. Ainda tenho esperança que ela telefone ou apareça, e talvez a gente possa dar um jeito nas
coisas. Sabe como é.
- Sei. Legal, Harry. Eu só disse que ia perguntar. Mas, se mudar de idéia, é uma garota bacana.
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- Alguém que eu conheça?
- Conhece, sim. É a Jaye Winston, lá do escritório do xerife. Fazemos parte de um grupo de mulheres. Canas sem Canudos. Ficamos conversando sobre você hoje.
Bosch não disse nada. Estava com uma estranha sensação de aperto no peito. Ele não acreditava em coincidências.
- Harry, você está aí?
- Sim, estou aqui. Só estava pensando numa coisa.
- Bom, vou deixar você em paz. E, escute, Jaye me pediu pra não dar o nome dela. Sabe como é... Ela só queria saber de você, soltando um balão-de-ensaio anônimo.
Pra não haver constrangimento quando vocês se esbarrassem no serviço. Portanto, você não soube da coisa por meu intermédio, certo?
- Certo. Ela fez perguntas sobre mim?
- Algumas. Nada de importante. Espero que não se incomode. Eu disse que ela tinha escolhido bem. Falei que se eu não fosse, você sabe, do jeito que sou, também ficaria
interessada.
- Obrigado, Kiz - disse Bosch, com a cabeça a mil por hora.
- Bom, escute, preciso desligar. Tchau. Bote pra quebrar amanhã, está bem?
- Vou tentar.
Ela desligou e Bosch recolocou o telefone no suporte lentamente. O aperto no peito ficou mais intenso. Ele começou a pensar nas perguntas que McCaleb fizera durante
a visita e no que ele respondera. Agora era Jaye Winston fazendo perguntas sobre ele.
Ele não acreditava que aquilo fosse uma coincidência. Estava claro que eles tinham a mira assestada nele. Estavam atrás dele por causa do assassinato de Edward Gunn.
E ele sabia que provavelmente fornecera a McCaleb o insight necessário para que ele acreditasse estar no caminho certo.
Bosch esvaziou a garrafa de cerveja que estava na cômoda. O último gole estava morno e azedo. Ele sabia que não havia mais garrafas na geladeira. Levantou-se para
pegar um cigarro no lugar da cerveja.
Capítulo 22
O Nat's era um bar do tamanho de um vagão ferroviário, semelhante a muitas outras espeluncas de Hollywood. Era freqüentado por bebedores inveterados durante o dia,
putas e sua clientela nas primeiras horas da noite, e a turma das tatuagens e jaquetas de couro durante a madrugada. Era o tipo de lugar onde quem tentava pagar
as bebidas com um cartão de crédito dourado era visto como alvo fácil.
McCaleb parara no Musso's para jantar - seu relógio corporal exigia nutrientes, ameaçando parar totalmente - e só chegou ao Nat's depois das dez. Enquanto comia
o pastelão de galinha, ficou pensando se valia mesmo a pena perder tempo indo até o bar para fazer perguntas sobre Gunn. A dica viera do próprio suspeito. Será que
ele orientaria conscientemente o investigador na direção certa? Parecia que não, mas McCaleb pesara o fato de Bosch ter bebido e não estar ciente da verdadeira intenção
da visita dele. A dica podia muito bem ser válida, e ele decidira não negligenciar parte alguma da investigação.
Ao entrar, levou alguns segundos para se acostumar à iluminação fraca e avermelhada. Quando o recinto ficou nítido, viu que estava meio vazio. Era o intervalo entre
a turma do anoitecer e o grupo da madrugada. Duas mulheres - uma negra, uma branca -
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sentadas na ponta do balcão que corria ao longo do lado esquerdo do aposento examinaram-no de alto a baixo. McCaleb viu a palavra tira registrada nos olhos delas,
ao mesmo tempo que os seus registravam putas. Intimamente, ele ficou satisfeito por ainda ter aquela aparência. Passou por elas e avançou recinto adentro. Quase
todas as mesas com divisórias alinhadas do lado direito da sala estavam ocupadas. Ninguém ali deu-lhe sequer um olhar.
McCaleb foi até o balcão, meteu-se entre dois banquinhos e acenou para uma das atendentes.
Uma antiga canção de Bob Seger, Night Moves, saía em tom ensurdecedor da vitrola automática nos fundos do recinto. A atendente inclinou-se sobre o balcão para poder
ouvir o pedido de McCaleb. Usava um colete preto abotoado, sem blusa por baixo. Tinha cabelo preto, comprido e liso, e uma fina argola de ouro perfurando a sobrancelha
esquerda.
- O que quer?
- Uma informação.
McCaleb empurrou sobre o balcão uma fotografia de Edward Gunn. Era uma ampliação 8x12 do retrato da carteira de motorista de Gunn, que estava no dossiê que Jaye
lhe dera. A atendente examinou a fotografia um instante e olhou de volta para McCaleb.
- O que há com ele? Ele morreu. -Como sabe?
Ela deu de ombros.
- Sei lá. Acho que ouvi por aí. Você é da polícia? McCaleb balançou a cabeça, baixou a voz para que a música a
encobrisse e disse:
- Mais ou menos.
A atendente inclinou-se mais sobre o balcão para poder escutar. A posição abriu a parte superior do colete, expondo a maior parte dos seios dela, que eram pequenos
mas redondos. No lado esquerdo via-se a tatuagem de um coração rodeado de arame farpado. Parecia um machucado numa pêra e não era muito apetitoso. McCaleb desviou
o olhar.
- Edward Gunn - disse ele. - Ele era freguês da casa, não era?
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- Vinha muito aqui.
McCaleb balançou a cabeça. Aquilo confirmava a dica de Bosch.
- Você trabalhou na véspera do Ano-Novo? Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- Sabe se ele apareceu nessa noite? Ela negou.
- Não me lembro. Tinha muita gente aqui na véspera do AnoNovo. Houve uma festa. Não sei se ele estava aqui ou não. Mas não seria surpresa. As pessoas ficavam indo
e voltando.
McCaleb meneou a cabeça na direção do outro atendente, um tipo latino que também estava de colete preto sem blusa por baixo.
- E ele ali? Acha que ele se lembraria?
- Não, porque só começou a trabalhar na semana passada. Ainda estou ensinando o cara.
Ela deu um sorriso rápido, que McCaleb ignorou. Twisting the Night Away, na versão de Rod Stewart, começou a tocar ao fundo.
- Conhecia bem o Gunn?
Ela deixou escapar uma risada curta.
- Meu bem, este é o tipo de lugar em que ninguém gosta muito de dizer quem é e o que faz. Se eu conhecia bem esse cara? Conhecia, tá legal? Como eu disse, ele vinha
aqui. Mas eu nem sabia o nome dele, até ele morrer e as pessoas começarem a falar. Alguém disse que Eddie Gunn tinha aparecido morto e eu disse: "Quem é Eddie Gunn,
caralho?" Tiveram que descrever o cara pra mim. O cara do uísque com gelo que sempre pintava o cabelo. Aí eu soube quem era Eddie Gunn.
McCaleb balançou a cabeça. Meteu a mão no bolso do paletó e tirou um pedaço de jornal dobrado, estendendo-o sobre o balcão. Ela inclinou-se para olhar, permitindo
que ele visse seus seios outra vez. McCaleb achou que aquilo era intencional.
- E aquele tira do julgamento, não é?
McCaleb não respondeu. O jornal estava dobrado de modo a mostrar uma fotografia de Harry Bosch que saíra no Los Angeles Times naquela manhã, como chamada para o
depoimento que ia começar no julgamento de Storey. Era um instantâneo de Bosch
204
parado diante da porta do tribunal. Ele provavelmente nem percebera que fora fotografado. Já viu este sujeito?
-Já, ele vem aqui. Por que está perguntando por ele?
McCaleb sentiu sua nuca se eriçar.
- Quando é que ele vem?
- Sei lá, de vez em quando. Não diria que é um freguês da casa. Mas vem. E não fica muito tempo. Ele é das rapidinhas... Toma uma bebida e se manda. Ele...
A atendente ergueu um dedo e inclinou a cabeça para o lado, como vasculhando seus arquivos internos. Depois baixou o dedo de repente, como registrando algo.
- Lembrei. Cerveja em garrafa. Pede sempre Anchor Steam, porque sempre se esquece que a gente não tem essa marca. E cara demais, ficaria encalhada. E aí ele fica
mesmo com a velha trintae-três.
McCaleb estava prestes a perguntar o que era aquilo, quando ela respondeu à pergunta muda.
- Rolling Rock.
Ele balançou a cabeça e disse:
- Ele esteve aqui na véspera de Ano-Novo? Ela abanou a cabeça.
Mesma resposta. Não me lembro. Gente demais, drinques demais, e já faz muito tempo.
McCaleb balançou a cabeça, puxando o jornal de volta sobre o balcão e colocando-o no bolso.
Esse tira está metido em alguma encrenca? McCaleb abanou a cabeça. Uma das mulheres na ponta do balcão bateu levemente com o canto no copo do balcão e chamou a atendente.
- Ei, Miranda, aqui tem freguês que paga.
A atendente olhou em volta, procurando o parceiro. Aparentemente, o sujeito desaparecera nos fundos do recinto ou no banheiro.
- Tenho que voltar ao trabalho - disse ela.
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McCaleb viu Miranda ir até a ponta do balcão e preparar mais duas vodcas com gelo para as putas. Durante um intervalo na música, conseguiu ouvir uma delas mandar
a atendente parar de conversar com o tira, a fim de que ele fosse embora. Quando ela se encaminhou de volta para o lugar onde ele estava, uma das piranhas disse
em voz alta:
- E pare de dar corda para o sujeito, senão ele não sai nunca
mais.
McCaleb fingiu que não ouviu. Quando se aproximou, Miranda suspirou como se estivesse cansada.
- Não sei onde o Javier se enfiou. Não posso ficar aqui parada conversando com você a noite toda.
- Só quero fazer uma última pergunta - disse ele. - Lembra de ter visto o tira e o Eddie Gunn aqui na mesma ocasião, juntos ou separados?
Ela pensou um instante e inclinou-se para a frente.
- Talvez, pode ter acontecido. Mas não me lembro. McCaleb balançou a cabeça. Tinha quase certeza que aquilo
era o máximo que poderia extrair dela. Ficou pensando se devia deixar algum dinheiro no balcão. Jamais soubera fazer aquele tipo de coisa quando era agente. Nunca
sabia quando aquilo era adequado e quando seria considerado um insulto.
- Posso perguntar uma coisa agora? - perguntou Miranda.
- O quê?
- Você gosta do que está vendo?
Imediatamente, ele sentiu o rosto começar a se avermelhar de vergonha.
- Quer dizer, você estava olhando tanto. Achei que podia perguntar.
Ela lançou um olhar para as piranhas, dando um sorriso cúmplice para elas. Todas estavam se divertindo com o constrangimento de McCaleb.
- São muito bacanas - disse ele ao se afastar do bar, deixando uma nota de vinte dólares para ela. - Tenho certeza que fazem o pessoal voltar aqui. Provavelmente
faziam Edward Gunn voltar sempre
206
McCaleb rumou para a porta, sentindo suas costas serem atingidas pelas palavras da atendente durante todo o percurso, enquanto ela exclamava:
- Então talvez você deva voltar e tentar pegar neles uma vez, tenente'.
Ao cruzar a porta, ele ouviu as putas gargalharem, erguerem os braços e estalarem as mãos em cumprimento.
McCaleb ficou sentado no Cherokee diante do Nat's, tentando afastar a sensação de constrangimento. Concentrou-se nas informações que obtivera com a atendente. Primeiro,
Gunn era freguês habitual da casa e talvez houvesse estado lá na última noite de sua vida. Segundo, ela reconhecera Bosch como freqüentador. Ele também talvez houvesse
estado lá na última noite de vida de Gunn. Era intrigante o fato de essas informações terem vindo indiretamente de Bosch. McCaleb ficou pensando novamente por que
Bosch - se realmente matara Gunn - lhe dera uma pista válida. Teria sido por arrogância, por acreditar que jamais seria considerado suspeito e que portanto seu nome
não seria mencionado durante o interrogatório no bar? Ou haveria uma motivação psicológica mais profunda? McCaleb sabia que muitos criminosos cometem erros que provocam
sua captura porque subconscientemente não querem ficar impunes. A teoria da grande roda, pensou ele. Talvez Bosch estivesse subconscientemente garantindo que a roda
também girasse para ele.
Abriu o telefone celular e conferiu o sinal. Estava forte. Ligou para o número da residência de Jaye Winston. Olhou para o relógio enquanto o telefone tocava e pensou
se já não seria tarde demais para telefonar. Depois de cinco toques, ela finalmente atendeu.
- Sou eu. Descobri uns troços.
- Eu também. Mas ainda estou no telefone. Posso ligar pra você quando terminar?
- Pode, eu espero.
McCaleb desligou. Ficou sentado no carro, esperando e pensando
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nas coisas. Viu pelo pára-brisa a puta branca sair do bar rebocando um sujeito com boné de beisebol. Os dois acenderam cigarros e seguiram pela calçada na
direção de um motel chamado Skylark.
O telefone tocou. Era Jaye.
- A coisa está ficando quente, Terry. Estou levando fé. -O que soube?
- Primeiro você. Não disse que descobriu uns troços?
- Não, você primeiro. O que eu soube é mixaria. Parece que você fisgou alguma coisa grande.
- Tá legal, escute só. A mãe de Harry Bosch era uma prostituta de Hollywood. Foi assassinada quando ele era garotinho. E quem fez o troço se safou. Que tal isso
como motivação psicológica, doutor Perfilador?
McCaleb não respondeu. Aquela informação era surpreendente e fornecia muitas das peças que faltavam na teoria em elaboração. Ele viu a puta e o freguês chegarem
ao guichê da recepção do motel. O sujeito pagou em dinheiro vivo e recebeu uma chave. Os dois entraram por uma porta de vidro.
- Gunn mata uma prostituta e se safa - disse Jaye quando ele não respondeu. - Foi exatamente o que aconteceu com a mãe de Bosch.
- Como descobriu isso? - perguntou McCaleb por fim.
- Dei o tal telefonema que nós mencionamos. Para a minha amiga Kiz. Agi como se estivesse interessada em Bosch e perguntei se ele já tinha, você sabe, se recuperado
do divórcio. Ela me contou o que sabia dele. Aparentemente, o troço sobre a mãe de Bosch veio à tona num julgamento cível há alguns anos, quando Bosch foi processado
por ter matado indevidamente o Bonequeiro. Lembra do caso?
- Lembro. O departamento de polícia de Los Angeles se recusou a chamar o FBI. Ele também matava prostitutas. Bosch matou o cara, que estava desarmado.
- Há uma psicologia nisso tudo. Um padrão, caceta.
- O que aconteceu com Bosch depois que a mãe dele morreu?
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- Kiz não sabia direito. Ela se referiu a ele como "um homem de instituições". O troço aconteceu quando ele tinha dez ou onze anos. A partir daí ele foi criado em
orfanatos e lares adotivos. Foi servir ao exército e depois entrou para a polícia. O importante é que era isso que estava faltando para nós. O elemento que transformou
um caso insignificante numa coisa que Bosch não poderia deixar escapar.
McCaleb balançou a cabeça para si mesmo.
- E tem mais - disse Jaye. - Examinei todos os arquivos sobre o assunto, até coisas irrelevantes que não pus no dossiê de assassinato. Vi o laudo da autópsia da
mulher que Gunn matou há seis anos. O nome dela era Frances Weldon, por falar nisso. Havia uma coisa lá que agora parece importante, à luz do que nós descobrimos
sobre Bosch. O exame do útero e dos quadris mostrou que ela já tinha tido um filho.
McCaleb abanou a cabeça.
- Bosch não podia saber disso. Jogou o tenente pela janela e já estava suspenso quando a autópsia foi feita.
- É verdade. Mas ele pode ter consultado os arquivos do caso depois de voltar, e provavelmente consultou. Pode ter descoberto que Gunn fez a outra criança a mesma
coisa que tinha sido feita a ele. Tudo se encaixa, entende? Há oito horas eu achava que você estava de miolo mole. Agora parece que acertou na mosca.
McCaleb não se sentia muito bem por ter acertado na mosca. Mas compreendia a empolgação de Jaye. Quando um caso começava a ser esclarecido, às vezes a empolgação
obscurecia a realidade do crime.
- O que aconteceu com o filho dela? - perguntou ele.
- Não tenho idéia. Ela provavelmente abandonou a criança depois do parto. Não interessa. O que interessa é o que isso significou para Bosch.
Ela tinha razão. Mas McCaleb não estava gostando daquela ponta solta no ar.
- Vamos voltar ao seu telefonema para a antiga parceira de Boch. Ela vai ligar pra ele e contar as perguntas que você fez?
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- Kiz já fez isso. -Hoje à noite?
- Foi, agora mesmo. Eu estava falando com ela no telefone. Bosch não deu bola. Disse que tinha esperança de reatar com a
mulher.
- Ela contou que era você que estava interessada?
- Não era pra ela fazer isso.
- Mas provavelmente fez. Isso significa que ele já sabe que estamos atrás dele.
- Isso é impossível. Como?
- Eu acabei de vir de lá agora. Estive na casa dele. E na mesma noite ele recebe um telefonema sobre você. Um cara como Bosch não acredita em coincidências, Jaye.
- E como você levou a coisa lá em cima? - perguntou Jaye por
fim.
- Como nós combinamos. Eu queria mais informações sobre Gunn, mas fui levando a conversa para a vida dele. Foi por isso que liguei pra você. Descobri uns troços
interessantes. Não se comparam aos seus, mas também se encaixam. Mas se ele recebeu esse telefonema sobre você logo depois que eu saí... Sei lá.
- Conta o que descobriu.
- Tudo mixaria. Ele tem a fotografia da esposa que foi embora numa posição de destaque na sala. Fiquei lá menos de uma hora, e o cara meteu três cervejas pra dentro.
Portanto, há a síndrome do álcool, sintomática de pressões internas. Ele também falou de uma coisa que chama de "a grande roda". Faz parte do sistema de crenças
dele. Bosch não vê a mão de Deus nas coisas. Ele vê a Grande Roda. Tudo que vai volta. Ele disse que os caras como Gunn não se safam, na realidade. Sempre são pegos
por alguma coisa. A roda. Eu usei frases específicas pra ver se conseguia que ele reagisse ou discordasse. Chamei o mundo lá fora de pestilência. Ele não discordou.
Disse que ele conseguia lidar com a pestilência, desde que pudesse pegar os agentes transmissores. É tudo muito sutil, Jaye, mas está tudo ali. Ele tem uma gravura
de Bosch na parede do corredor. O jardim das delícias terrenas. A nossa coruja está lá.
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- Ora, o nome dele é igual ao do cara. Se o meu nome fosse Picasso, eu teria uma gravura de Picasso na parede.
- Eu agi como se nunca tivesse visto aquilo e perguntei o que significava. Ele só disse que era a grande roda girando. É isso que significa para ele.
- Pequenas peças que se encaixam.
- Ainda temos trabalho pela frente.
- Bom, você ainda está no caso? Ou vai voltar?
- Por enquanto estou dentro. Vou dormir aqui hoje. Mas tenho um passeio marcado no sábado. Tenho que voltar para isso.
Ela não disse nada.
- Conseguiu mais alguma coisa? - perguntou ele por fim.
- Consegui. Quase esqueci. -O quê?
- A coruja da Afasta Aves foi paga com uma ordem de pagamento dos Correios. Consegui o número com Cameron Riddell e fui verificar. A ordem foi paga no dia 22 de
dezembro no correio da rua Wilcox, em Hollywood. Fica a cerca de quatro quarteirões da delegacia de polícia onde Bosch trabalha.
Ele abanou a cabeça.
- As leis da física.
- O que quer dizer com isso?
- Para cada ação há uma reação igual e contrária. Quando a gente olha para o abismo, o abismo olha para a gente. Você conhece todos esses" clichês. São clichês porque
são verdadeiros. Você não entra nas trevas sem que as trevas entrem em você e arranquem um pedaço. Bosch pode ter entrado lá vezes demais. Perdeu
o rumo.
Eles ficaram em silêncio durante um instante depois disso e marcaram um encontro para o dia seguinte. Ao desligar, McCaleb viu a puta sair do motel sozinha e se
dirigir novamente para o Nat's. Ela usava uma jaqueta de brim, que apertou em torno do corpo para se defender da friagem noturna. Ajeitou a peruca caminhando na
direção do bar, onde buscaria outro freguês.
Vendo a mulher e pensando em Bosch, McCaleb se lembrou
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de tudo que tinha e de como a vida lhe sorrira. Recordou que a sorte podia ser uma coisa fugaz. Precisava ser merecida e depois defendida com todas as forças. Ele
sabia que não estava fazendo isso no momento. Estava abrindo a guarda enquanto penetrava nas trevas.
Capítulo 23
O julgamento recomeçou vinte e cinco minutos depois das nove, que era a hora aprazada, devido à malsucedida tentativa por parte da promotoria de pedir sanções contra
a defesa por intimidação de testemunhas, além de um adiamento enquanto as declarações de Annabelle Crowe eram investigadas integralmente. Sentado atrás da mesa de
cerejeira na sala de audiências, o juiz Houghton se mostrou favorável à investigação, mas disse que não adiaria o julgamento e não imporia sanções ou outras penalidades,
a menos que fossem encontradas provas que corroborassem as declarações da testemunha. Proibiu os promotores e Bosch - que relatara ali sua conversa com Annabelle,
numa reunião a portas fechadas - de vazarem para a mídia uma só palavra sobre as acusações da testemunha.
Cinco minutos mais tarde eles se dirigiram para o tribunal e os jurados foram levados às duas fileiras de cadeiras que ocupavam. Bosch voltou ao banco das testemunhas
e foi avisado pelo juiz de que ainda estava sob juramento. Janis Langwiser voltou à tribuna com seu bloco de anotações.
- Bom, detetive Bosch, nós terminamos o dia de ontem com a sua conclusão de que a morte de Jody Krementz foi um homicídio. Correto?
- Correto.
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- E essa conclusão se baseou não apenas na sua própria investigação, mas na investigação e na autópsia realizadas pela Divisão Médico-Legal, correto?
- Correto.
- Por favor, poderia dizer aos jurados como se deu a investigação, uma vez definida a morte como homicídio?
Bosch virou-se na cadeira a fim de olhar diretamente para o recinto dos jurados enquanto falava. O movimento foi doloroso. A dor que martelava no lado esquerdo de
sua cabeça era tão intensa que ele ficou imaginando que as pessoas estavam realmente vendo suas têmporas latejando.
- Bom, eu e meus dois parceiros, Jerry Edgar e Kizmin Rider, começamos a enxamear, a examinar, quero dizer, as provas materiais que tínhamos acumulado. Também começamos
a interrogar os conhecidos de Jody Krementz que sabíamos terem estado com ela nas últimas vinte e quatro horas de vida da vítima.
- O senhor mencionou provas materiais. Por favor, explique ao júri que provas materiais já haviam sido acumuladas.
- Na realidade, ainda não tínhamos reunido muita coisa. Mas por toda a casa havia impressões digitais que precisávamos analisar. Também tínhamos recolhido algumas
fibras e pêlos colhidos sobre o corpo da vítima e em torno dela.
J. Reason Fowkkes interveio rapidamente, antes que Bosch pudesse continuar a responder.
- Protesto. A frase "sobre o corpo da vítima e em torno dela" é vaga e enganosa.
- Meritíssimo - contrapôs Janis -, acho que, se o Sr. Fowkkes der ao detetive Bosch a oportunidade de terminar de responder à pergunta, não haverá nada vago nem
enganoso. Mas não cabe interromper uma testemunha para dizer que sua resposta é vaga ou enganosa.
- Protesto rejeitado - disse o juiz Houghton, antes que Fowkkes pudesse apresentar uma réplica. - Vamos deixar a testemunha completar a resposta, e depois veremos
até que ponto ela é vaga. Adiante, detetive Bosch.
Bosch pigarreou.
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- Eu ia dizer que várias amostras de pêlos pubianos não...
- O que é "várias", meritíssimo? - disse Fowkkes. - Continuo protestando contra a falta de precisão das declarações que essa testemunha está dando ao júri.
Bosch olhou para Janis e viu que ela estava ficando furiosa.
- Meritíssimo, será que o tribunal poderia determinar claramente quando os protestos podem ser feitos? - disse ela. - A defesa está procurando interromper constantemente
a testemunha, pois sabe que estamos entrando num campo que lhe é particulamente desfavorável...
- Doutora Janis, ainda não chegamos às alegações finais - cortou o juiz. - Doutor Fowkkes, a não ser que o senhor esteja vendo um pavoroso erro judiciário, quero
que os protestos sejam feitos antes que as testemunhas falem ou depois que elas tenham completado pelo menos uma frase.
- Meritíssimo, as conseqüências soo pavorosas neste caso. O estado está tentando tirar a vida do meu cliente, simplesmente porque suas opiniões morais são...
Doutor Fowkkes! - trovejou o juiz. - O que eu disse sobre as alegações finais também se aplica ao senhor. Vamos continuar com o depoimento, está bem?
Virou-se para Bosch.
Detetive, continue, e tente ser um pouco mais preciso nas respostas.
Bosch olhou para Janis e viu os olhos dela se fecharem momentaneamente. Aquela orientação displiscente dada a Bosch pelo juiz era o que Fowkkes queria. Insinuava
para os jurados que talvez houvesse imprecisão, ou até confusão deliberada, nos argumentos da promotoria. Fowkkes conseguira instigar o juiz a parecer que concordava
com seus protestos.
Bosch lançou um olhar para Fowkkes e viu o advogado sentado, com os braços cruzados e um ar satisfeito, se não presunçoso, no rosto. Depois olhou novamente para
o dossiê de assassinato à sua frente.
- Posso consultar minhas anotações? - perguntou.
A permissão foi concedida. Ele abriu a pasta e procurou os relatórios sobre as provas. Olhando para o laudo do legista, recomeçou.
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- Antes da autópsia, foi passada uma escova coletora de provas nos pêlos pubianos da vítima. A escova colheu oito amostras de pêlo pubiano, que testes laboratoriais
subseqüentes mostraram não pertencer à vítima.
Ele ergueu o olhar para Janis, que disse:
- Esses pêlos pubianos eram de oito pessoas diferentes?
- Não, os testes de laboratório mostraram que todos os pêlos vinham de uma só pessoa desconhecida.
- E o que isso indicava, detetive?
- Que a vítima provavelmente tinha tido relações sexuais com alguém depois de tomar seu último banho e antes de morrer.
Janis olhou para suas anotações.
- Alguma outra prova baseada em pêlos foi encontrada na vítima ou na cena do crime, detetive?
Bosch virou a página do dossiê de assassinato.
- Foi. Um fio de cabelo, com seis centímetros de comprimento, foi encontrado em torno do fecho de um colar de ouro que a vítima usava no pescoço. O fecho localizava-se
na nuca da vítima. Também esse fio foi identificado pela análise laboratorial como pertencente a uma pessoa diferente da vítima.
- Vamos voltar por um instante ao pêlo pubiano. Havia outros sinais ou provas, tanto no corpo quanto na cena do crime, indicando que a vítima tinha tido relações
sexuais no período entre o banho e a morte?
- Não, não havia. Não foi encontrado sêmen na vagina.
- Há conflito entre isso e a descoberta do pêlo pubiano?
- Nenhum conflito. Simplesmente indica o possível uso de uma camisinha durante o ato sexual.
- Muito bem. Vamos adiante, detetive. Impressões digitais. O senhor mencionou que foram encontradas impressões digitais na casa. Por favor, fale sobre essa área
da investigação.
Bosch virou as páginas do dossiê até encontrar o laudo sobre as impressões digitais.
- Sessenta e oito exemplares de impressões digitais foram colhidas dentro da casa onde a vítima foi encontrada. Ela e sua
217
colega respondiam por cinqüenta e duas. Foi verificado que as dezesseis restantes haviam sido deixadas por um total de sete pessoas.
- E quem eram essas pessoas?
Bosch leu a lista de nomes existente no dossiê. Respondendo às perguntas de Janis Langwiser, explicou quem era cada pessoa. Depois detalhou como os detetives haviam
descoberto em que ocasião e por que cada uma delas estivera na casa. A lista era formada por amigos, parentes, um ex-namorado e um antigo conhecido das mulheres.
A equipe da promotoria sabia que a defesa tentaria fazer um carnaval com as impressões digitais, usando-as como pistas falsas para desviar a atenção dos jurados
dos fatos do caso. Por isso o depoimento prosseguiu vagarosamente, com Bosch explicando tediosamente a localização e a origem de cada impressão digital encontrada
e identificada na casa. Ele finalizou testemunhando a respeito de um conjunto completo de impressões digitais encontrado na cabeceira da cama em que a vítima fora
encontrada. Ele e Janis sabiam que essas eram as impressões que Fowkkes exploraria mais. Por isso Janis tentou minimizar o prejuízo em potencial revelando-as durante
seu próprio interrogatório da testemunha.
- A que distância do corpo da vítima estavam localizadas essas impressões?
Bosch olhou para o laudo no dossiê.
- Setenta centímetros.
- Exatamente em que ponto da cabeceira?
- Atrás, entre a cabeceira e a parede.
- Havia muito espaço ali?
- Cerca de cinco centímetros.
- Como alguém poderia deixar impressões digitais nesse lugar? Fowkkes protestou, dizendo que Bosch não tinha qualificação
para determinar como um conjunto de impressões digitais podia ser deixado em qualquer lugar, mas o juiz permitiu que a pergunta fosse mantida.
- Só consigo imaginar duas maneiras - respondeu Bosch. Elas foram parar lá quando a cama não estava encostada à parede. Ou então alguém enfiou os dedos no espaço
entre as ripas da cabeceira e deixou as impressões lá enquanto as segurava.
218
Janis apresentou uma fotografia tirada por um técnico em impressões digitais. A fotografia foi incluída nos autos e mostrada aos jurados.
- Na segunda explicação que o senhor ofereceu, a tal pessoa teria que estar deitada na cama, não é?
- Parece que sim.
- Com o rosto para baixo? -Sim.
Fowkkes levantou-se para protestar, mas o próprio juiz interferiu antes que ele chegasse a pronunciar uma só palavra.
- A senhora está se desviando do assunto com suposições, doutora Janis. Vamos adiante.
- Sim, meritíssimo.
Ela consultou o bloco por um instante.
- Essa impressão digital na cama da vítima não fez o senhor pensar que a pessoa que tinha deixado aquilo ali deveria ser considerada um dos principais suspeitos?
- Inicialmente, não. E impossível dizer há quanto tempo uma impressão foi deixada num determinado lugar. Além disso, havia o fator adicional de sabermos que a vítima
não tinha sido morta na cama, e sim levada para lá depois de ser assassinada em outro local. Não achamos que assassino teria que se apoiar no lugar onde a impressão
digital foi encontrada para colocar o corpo na cama.
- A quem pertenciam essas impressões?
- A um homem chamado Allan Weiss, que tinha saído com Jody Krementz em três ocasiões anteriores. O encontro mais recente tinha sido três semanas antes da morte dela.
- O senhor interrogou esse homem?
- Interroguei. Junto com o detetive Edgar.
- Ele admitiu ter estado alguma vez na cama da vítima?
- Admitiu. Disse que havia dormido com ela na última ocasião em que a viu, três semanas antes da morte dela.
- Ele disse que tocou a cabeceira da cama no local onde o senhor nos mostrou que estavam as impressões digitais?
- Ele disse que poderia ter tocado, mas que não se lembrava especificamente de ter feito isso.
219
- O senhor investigou as atividades de Allan Weiss na noite da morte de Jody Krementz?
- Investiguei. Ele tinha um álibi excelente.
- Que álibi era esse?
- Ele contou que tinha viajado ao Havaí para participar de um simpósio imobiliário. Pesquisamos os registros da empresa aérea e do hotel e conferimos com os promotores
do seminário. Confirmamos que ele esteve lá.
Janis olhou para o juiz Houghton e disse que aquele seria um bom momento para fazer o intervalo matinal. O juiz disse que ainda era um pouco cedo, mas acedeu ao
pedido e mandou os jurados voltarem dali a quinze minutos.
Bosch sabia que Janis queria o intervalo naquele momento porque estava prestes a entrar nas perguntas sobre David Storey, e queria separá-las bem do restante do
depoimento. Quando ele saiu do banco das testemunhas e voltou para a mesa da promotoria, ela estava folheando alguns arquivos. Janis falou com ele sem erguer os
olhos.
- O que há de errado, Harry? -Como assim?
- Você não está ligado. Não como ontem. Está nervoso ou alguma coisa assim?
- Não. Você está?
- Claro, com tudo isso. Muita coisa depende disso.
- Vou me ligar mais.
- Estou falando sério, Harry.
- Eu também, Janis.
Ele se afastou da mesa da promotoria e saiu do tribunal.
Decidiu tomar uma xícara de café na cantina do segundo andar. Mas antes entrou no toalete perto dos elevadores e foi até uma das pias jogar água fria no rosto. Curvou-se
sobre a pia com cuidado para não molhar o terno e ouviu a descarga de uma privada. Quando ergueu o corpo e olhou para o espelho, viu Rudy Tafero passando em direção
à pia mais afastada. Curvou-se novamente, pegou mais água e manteve-a encostada no rosto. O frio fazia bem aos seus olhos, diminuindo a dor de cabeça.
220
- Como é o troço, Rudy? - perguntou ele sem olhar para o outro homem.
- Que troço, Harry?
- Trabalhar para o diabo, ora. Conseguiu dormir essa noite? Bosch foi até o rolo de papel-toalha e arrancou várias folhas
para enxugar as mãos e o rosto. Tafero se aproximou, arrancou uma folha e começou a enxugar as mãos.
- E engraçado - disse ele. - Em toda a minha vida, só tive dificuldade para dormir na época em que eu era tira. Fico imaginando por que isso acontecia.
Fez uma bola com a toalha de papel e jogou-a na cesta de lixo. Sorriu para Bosch e foi embora. Bosch ficou vendo o outro sair, ainda esfregando as mãos nas toalhas.
Capítulo 24
Bosch sentia o café trabalhando no seu sangue. Ele já estava se recuperando. A dor de cabeça diminuíra. Estava pronto. Tudo sairia como eles haviam planejado, como
haviam coreografado. Ele se inclinou na direção do microfone e aguardou a pergunta.
- Detetive Bosch, quando o nome de David Storey surgiu na investigação? - disse Janis da tribuna.
- Quase imediatamente. Jane Gilley, que dividia o apartamento com Jody Krementz, informou que ela tinha saído com David Storey na última noite de sua vida.
- O senhor interrogou David Storey sobre essa última noite?
- Sim. Rapidamente.
- Por que rapidamente, detetive Bosch? Afinal, era um homicídio.
- Foi uma decisão dele. Na sexta-feira, quando o corpo foi encontrado, e também no dia seguinte tentamos várias vezes interrogar David Storey, mas não conseguimos
localizar o seu paradeiro. Finalmente, por meio do seu advogado, ele concordou em ser interrogado no outro dia, que era domingo, sob a condição de irmos ao seu escritório
nos Estúdios Archway e realizarmos o interrogatório lá. Com relutância, concordamos em fazer a coisa assim, mas fizemos isso no intuito de colaborar e porque precisávamos
falar com ele. Àquela altura já estávamos investigando o caso
222
havia dois dias e não tínhamos conseguido falar com a última pessoa que tinha visto a vítima ainda viva. Quando chegamos ao escritório, seu advogado pessoal, Jason
Fleer, estava lá. Começamos a interrogar David Storey, mas menos de cinco minutos depois o advogado interrompeu o interrogatório.
- Essa conversa foi gravada?
- Foi.
Janis solicitou que a gravação fosse reproduzida, e a solicitação foi aprovada pelo juiz Houghton apesar dos protestos da defesa. Fowkkes pediu que o juiz permitisse
apenas que os jurados lessem uma transcrição que ele preparara do curto interrogatório. Mas Janis protestou, dizendo que não tivera tempo de examinar a transcrição
e verificar sua fidelidade. Disse também que era importante que o júri ouvisse o tom de voz e o jeito de falar de Storey. Com sabedoria salomônica, o juiz decidiu
que a fita seria ouvida, mas que a transcrição também seria entregue como ajuda aos jurados. Encorajou Bosch e a equipe da promotoria a também ler a transcrição
para verificar sua fidelidade.
BOSCH: Meu nome é detetive Hieronymus Bosch, do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estou acompanhado por meus parceiros, detetives Jerry Edgar e Kizmin Rider.
Hoje são 15 de outubro de 2000. Estamos interrogando David Storey no seu escritório nos Estúdios Archway em relação ao caso número zen>zero-oito-novesete. David
Storey está acompanhado por seu advogado, doutor Jason Fleer. Sr. Storey, doutor Fleer? Alguma pergunta antes de começarmos?
FLEER: Nenhuma pergunta.
BOSCH: Ah, e obviamente, estamos gravando essas declarações. Sr. Storey, conhecia uma mulher chamada Jody Krementz, também conhecida como Donatella Speers?
STOREY: Você já sabe a resposta a isso.
FLEER: David...
STOREY: Conhecia. Estive com ela quinta-feira à noite. Isso não quer dizer que eu matei a mulher.
223
FLEER: Por favor, David. Responda apenas às perguntas que eles fizerem.
STOREY: Para mim, tanto faz.
BOSCH: Posso continuar?
FLEER: Por favor.
STOREY: Sim, por favor.
BOSCH: O senhor disse que esteve com ela na noite de quintafeira. Era um encontro marcado?
STOREY: Para que perguntar essas coisas, se você já sabe a resposta? Era, era um encontro marcado, se quiser descrever a coisa assim.
BOSCH: Como o senhor descreveria a coisa?
STOREY: Não interessa.
(pausa)
BOSCH: Poderia nos dizer quanto tempo ficou com ela?
STOREY: Eu apanhei a mulher às sete e meia e voltei com ela mais ou menos à meia-noite.
BOSCH: O senhor entrou na casa quando foi buscar Jody?
STOREY: Para falar a verdade, não entrei. Já estava muito atrasado, e liguei pelo celular pedindo para ela sair porque eu não tinha tempo de entrar. Acho que ela
queria que eu conhecesse sua colega - outra atriz, sem dúvida -, mas eu não tinha tempo.
BOSCH: Portanto, quando o senhor parou o carro ela já estava esperando lá fora.
STOREY: Foi o que eu disse.
BOSCH: Das sete e meia até meia-noite. São quatro horas e meia.
STOREY: Você é bom em matemática. Gosto de ver isso num detetive.
FLEER: David, vamos tentar acabar logo com isso.
STOREY: Estou tentando.
BOSCH: Pode nos dizer o que fez durante o tempo que passou com Jody Krementz?
STOREY: Fizemos um três-efes completo: filme, festa e foda.
BOSCH: O quê?
224
STOREY: Fomos à estréia do meu filme, depois fomos à recepção comer alguma coisa, e aí fomos para a minha casa fazer sexo. Sexo consensual, detetive. Acredite ou
não, as pessoas marcam encontros pra fazer isso o tempo todo. E não é só aqui em Hollywood. Acontece em todo o nosso grande país. A sua grandeza vem daí. BOSCH:
Entendi. O senhor levou Jody para casa depois disso?
STOREY: Sempre um cavalheiro, levei.
BOSCH: Entrou na casa dela dessa vez?
STOREY: Não. Eu só estava com a porra do meu roupão. Cheguei lá, ela saltou e entrou. Eu voltei pra casa. Não sei o que aconteceu depois. Não estou envolvido nisso,
de qualquer forma, jeito ou maneira. Vocês só podem...
FLEER: David, por favor.
STOREY: ... ter merda na cabeça, se por causa da porra de um instante acham...
FLEER: David, pare!
(pausa)
FLEER: Detetive Bosch, acho que precisamos parar por aqui.
BOSCH: Estamos aqui no meio de um interrogatório e...
FLEER: David, aonde você vai?
STOREY: Fodam-se esses caras. Vou lá fora fumar um cigarro.
BOSCH: David Storey acaba de sair do escritório.
FLEER: Acho que a esta altura ele está exercendo os direitos que lhe são garantidos pela Quinta Emenda. Este interrogatório terminou.
A fita emudeceu, e Janis desligou o aparelho. Bosch olhou para os jurados. Vários deles estavam olhando para Storey. A arrogância dele se evidenciara de forma eloqüente
na fita. Isso era importante, pois dali a pouco eles pediriam que o júri acreditasse que - a sós com Bosch -Storey se vangloriara do assassinato e dissera que se
safaria do processo. Somente um homem arrogante faria isso. A promotoria precisava provar que Storey era não apenas um assassino, mas um assassino arrogante ainda
por cima.
225
- Muito bem - disse Janis. - Detetive Bosch, David Storey voltou para continuar o interrogatório?
Não, não voltou - respondeu Bosch. - E nós fomos convidados a sair.
O fato de David Storey negar qualquer envolvimento no assassinato de Jody Krementz fez cessar seu interesse nele?
Não, não fez. Tínhamos a obrigação de investigar o caso integralmente, e isso abrangia incluir ou excluir David Storey como suspeito.
- O comportamento dele durante o curto interrogatório causou suspeita?
- Está falando da arrogância dele? Não, ele... Fowkkes pôs-se de pé, protestando.
Mentíssimo, a arrogância de um homem é a confiança de outro na própria inocência. Não há...
Tem razão, doutor Fowkkes - disse Houghton. Ele aceitou o protesto, ordenou que a resposta de Bosch não constasse dos autos e mandou os jurados ignorarem o comentário.
O comportamento dele durante o interrogatório não causou suspeita recomeçou Bosch. - Nossa atenção e investigação imediatas foram motivadas pelo fato de ele ter
sido a última pessoa a estar com a vítima. A falta de cooperação era suspeita, mas àquela altura estávamos abertos para qualquer possibilidade. Eu e meus parceiros
temos, somados, um total de mais de vinte e cinco anos de experiência na investigação de homicídios. Sabemos que as coisas nem sempre são o que parecem.
Para onde se dirigiram as investigações em seguida?
Continuamos seguindo todas as pistas. Uma dessas era, obviamente, David Storey. Baseados na declaração de que ele e a vítima tinham ido à casa dele durante o encontro,
meus parceiros solicitaram um mandado de busca e apreensão ao Tribunal do Condado e receberam autorização para revistar a casa de David Storey.
Janis apresentou ao juiz o mandado de busca, que foi aceito como prova nos autos. Ela levou o documento de volta para a
226
tribuna. Bosch então declarou que a busca na casa de Mulholland Drive fora realizada às seis horas da manhã, dois dias depois do interrogatório inicial de Storey.
- O mandado de busca autorizava sua equipe a apreender qualquer prova do assassinato de Jody Krementz, qualquer prova de seus pertences e qualquer prova de sua presença
no local, correto?
- Correto.
- Quem realizou a busca?
- Eu, meus parceiros e uma equipe de dois homens da Divisão Médico-Legal. Tínhamos também um fotógrafo para fazer fotos e tomadas de vídeo. Seis pessoas ao todo.
- Quanto tempo demorou a busca?
- Aproximadamente sete horas.
- O réu esteve presente durante a busca?
- Na maior parte do tempo. Teve que sair a certa altura para ir a um encontro com um ator de cinema, um compromisso que, segundo ele, não poderia adiar. Ficou fora
mais ou menos duas horas. Durante esse período seu advogado pessoal, o doutor Fleer, permaneceu na casa fiscalizando a busca. Em momento algum fomos deixados sozinhos
lá dentro, se é esta a dúvida.
Janis folheou as páginas do mandado de busca até o final.
- Detetive Bosch, quando quaisquer itens são apreendidos durante uma busca com mandado judicial, a lei exige que seja feito um inventário com recibo, correto?
- Correto.
- Esse recibo é então incluído nos autos, correto?
- Correto.
- Pode nos dizer por que este recibo está em branco, então?
- Nós não tiramos item algum da casa durante a busca.
- Não encontraram nada que indicasse que Jody Krementz estivera na casa de David Storey, conforme ele dissera?
- Nada.
- Essa busca ocorreu quantos dias depois da noite em que David Storey disse que levara Jody Krementz para casa e tivera relações sexuais com ela?
227
- Cinco dias depois da noite do assassinato, dois dias depois do interrogatório de David Storey.
- Não encontraram nada que confirmasse a declaração de David Storey?
- Nada. O lugar estava totalmente limpo.
Bosch sabia que Janis estava tentando transformar algo negativo em positivo, tentando sugerir que a busca sem êxito era uma indicação da culpa de Storey.
- O senhor diria que a busca foi malsucedida?
- Não. Não existe sucesso nesse tipo de coisa. Nós estávamos procurando provas que corroborassem a declaração dele, além de qualquer evidência de um possível ato
criminoso envolvendo Jody Krementz. Não encontramos nada na casa que indicasse isso. Mas às vezes o importante não é o que achamos, e sim o que não achamos.
- Pode explicar isso para o júri?
- Bom, é verdade que não encontramos prova alguma na casa. Mas descobrimos que algo estava faltando, e isso mais tarde se tornou importante para nós.
-O quê?
- Um livro. Estava faltando um livro lá.
- Como o senhor podia saber que estava faltando, se o livro não estava lá?
- Na sala da casa havia uma grande estante embutida. Todas as prateleiras estavam repletas de livros, menos uma, onde havia um espaço vazio. Faltava um livro ali.
Nós não conseguimos descobrir que livro poderia ser. Não havia nenhum outro livro largado pelo resto da casa. Na ocasião achamos que aquilo era apenas um detalhe.
Obviamente, alguém tinha tirado um livro da prateleira sem colocá-lo de volta no lugar. Só ficamos curiosos por não conseguir descobrir que livro era nem onde estava.
Janis apresentou como provas duas fotografias da estante tiradas durante a busca. Houghton incluiu-as nos autos, apesar de um protesto de rotina por parte de Fowkkes.
As fotos mostravam a estante inteira, e a segunda prateleira em detalhe. Havia um espaço vazio entre um livro chamado The Fifth Horizon e uma biografia do diretor
cinematográfico John Ford, Print the Legend.
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- Detetive Bosch, o senhor disse que na ocasião não sabia se o livro que faltava tinha alguma importância ou significado para o caso, correto? - disse Janis.
- E verdade.
- Mas depois conseguiram descobrir que livro fora retirado da prateleira?
- Conseguimos.
Janis fez uma pausa. Bosch sabia o que ela ia fazer. O número fora ensaiado. Ele achava que Janis era uma boa contadora de histórias. Ela sabia espichar as coisas
e prender a atenção das pessoas, levando-as até a beira do abismo e depois puxando-as para trás.
- Bom, vamos seguir a ordem e voltar ao livro depois - disse ela. - O senhor teve ocasião de conversar com David Storey no dia da busca?
- Ele se manteve à parte durante a maior parte do tempo, quase sempre ao telefone. Mas falamos com ele quando batemos à porta e anunciamos a busca. E também ao final
do dia, quando eu lhe disse que estávamos saindo sem levar nada.
- Ele foi acordado pela sua chegada às seis horas da manhã? -Foi.
- Estava sozinho na casa?
- Estava.
- Convidou sua equipe a entrar?
- Inicialmente, não. Protestou contra a busca. Eu lhe disse que...
- Desculpe, detetive, talvez seja mais fácil nós mostrarmos a coisa. O senhor disse que havia um homem com uma câmera de vídeo na equipe. Ele estava gravando quando
o senhor bateu à porta às seis horas da manhã?
- Estava.
Janis tomou as medidas adequadas para apresentar a fita de vídeo, que foi aceita como prova nos autos, apesar dos protestos da defesa. Um televisor de tela grande
foi trazido e colocado no centro do tribunal, diante do recinto dos jurados. Janis pediu que Bosch identificasse a fita. As luzes do tribunal foram diminuídas, e
a fita começou a rodar.
A imagem abriu focalizando Bosch e a equipe diante da porta vermelha da entrada de uma casa. Ele se identificou, dando também o endereço e o número do caso sob investigação.
Falava em voz baixa. Depois se virou e bateu com força na porta. Anunciou que era a polícia, e bateu novamente com força. Todos ficaram esperando. A cada quinze
segundos, Bosch batia novamente. Cerca de dois minutos depois da primeira batida, a porta finalmente se abriu e David Storey espiou para fora. Tinha o cabelo despenteado,
e seus olhos mostravam cansaço.
"O que é?", perguntou ele.
"Temos aqui um mandado de busca e apreensão, Sr. Storey", disse Bosch. "O documento nos autoriza a realizar uma busca neste local."
"Vocês devem estar brincando, caralho."
"Não, não estamos. Poderia se afastar e nos deixar entrar? Quanto mais cedo entrarmos, mais cedo sairemos."
"Vou ligar para o meu advogado."
Storey fechou e trancou a porta. Imediatamente, Bosch avançou e colou o rosto no batente, falando em voz alta.
"Tem dez minutos, Sr. Storey. Se esta porta não for aberta às seis e quinze, teremos que entrar à força. Temos um mandado de busca e apreensão expedido pelo tribunal,
e vamos executar nossas ordens."
Depois virou para a câmera e fez o sinal de corte com o dedo atravessando a garganta.
A imagem pulou para outro ponto da porta. O marcador de tempo no canto inferior já mostrava 6:13. A porta se abriu e Storey recuou, acenando para que a equipe de
busca entrasse. Usava calças jeans e camiseta pretas. Estava descalço, e seu cabelo parecia ter sido penteado com as mãos.
"Façam logo o que têm que fazer e caiam fora. Meu advogado está vindo para cá e vai ficar de olho em vocês. Se quebrarem uma porra de uma coisa nesta casa, meto
uma porra de um processo em cima de vocês. Esta casa foi projetada por David Serrurier. Se arranharem uma só dessas paredes, acabo com o emprego de vocês. De todos
vocês."
230
"Tomaremos cuidado, Sr. Storey", disse Bosch ao passar pela porta.
O operador de câmera foi o último a entrar na casa. Storey olhou direto para a lente, como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez.
"E afaste essa porra de cima de mim."
Ele fez um movimento e o ângulo da imagem pulou para cima, apontando para o teto. Permaneceu ali enquanto Storey e o operador de câmera continuavam discutindo fora
de quadro.
"Ei, não toque na câmera!"
"Então tire isso da minha cara!"
"Tá legal. Tudo bem. Mas não toque na câmera."
A imagem desapareceu da tela, e as luzes do tribunal voltaram à intensidade normal. Janis continuou o interrogatório.
- Detetive Bosch, o senhor ou alguém da equipe de busca teve mais alguma... conversa com David Storey depois disso?
- Durante a busca, não. A partir do momento em que seu advogado chegou, o Sr. Storey permaneceu no escritório. Quando demos a busca lá, ele foi para o quarto. Quando
ele saiu para o tal encontro, fiz algumas perguntas sobre isso, e depois ele partiu. Foram mais ou menos esses os nossos contatos durante a busca e nossa permanência
na casa.
- E ao final do dia, sete horas mais tarde, quando a busca terminou, o senhor falou novamente com o réu?
- Sim, falei com ele rapidamente na porta. Já tínhamos arrumado as coisas e estávamos prontos para sair. O advogado já tinha ido embora. Eu estava no meu carro com
meus parceiros. Estávamos dando marcha a ré, quando percebi que tinha esqueci' do de dar a David Storey uma cópia do mandado de busca. Isso é exigido por lei. Por
isso voltei até a porta e bati.
- Foi o próprio David Storey quem atendeu?
- Atendeu depois de umas quatro batidas fortes. Dei-lhe a cópia e disse que aquilo era obrigatório.
- Ele disse alguma coisa?
Fowkkes levantou-se e protestou, mas só para que constasse dos autos, pois a questão já fora decidida em moções e decisões
231
anteriores ao julgamento. O juiz ordenou que o protesto constasse dos autos e o rejeitou, fazendo sua decisão também constar dos autos. Janis repetiu a pergunta.
- Posso consultar minhas anotações?
- Por favor.
Bosch consultou as notas que tomara no carro logo depois da
conversa.
- Primeiro, ele disse: "Você não encontrou porra nenhuma, encontrou?" Eu disse que ele tinha razão, que não estávamos levando nada. Aí ele disse: "Porque não havia
nada para levar." Eu assenti, e estava me virando para ir embora quando ele disse: "Ei, Bosch." Quando me virei de novo, ele se inclinou para mim e disse: "Você
nunca vai descobrir o que está procurando." Eu disse: "Ah, é? O que estou procurando?" Ele não respondeu. Só olhou para mim e sorriu.
Depois de uma pausa, Janis perguntou:
- A conversa acabou aí?
- Não. Nesse momento eu percebi que poderia fazer com que ele falasse mais, e disse: "Foi você, não foi?" Ele continuou sorrindo, e depois balançou a cabeça vagarosamente,
dizendo: "E vou me safar disso." Ele disse: "Eu sou..."
- Mentira! Você é uma porra de um mentiroso!
Era Storey. Estava de pé, apontando para Bosch. Fowkkes pusera a mão nele, tentando trazê-lo de volta à cadeira. Um agente do escritório do xerife, que ficara posicionado
a uma escrivaninha atrás da mesa da defesa, já se levantara e avançava para Storey
por trás.
- O réu deve se SENTAR! - trovejou o juiz atrás da bancada, batendo simultaneamente com o martelo.
- Ele está mentindo, caralho!
- Policial, faça o réu se sentar!
O policial avançou, pôs as duas mãos nos ombros de Storey por trás e empurrou-o com força de volta à cadeira. O juiz acenou para que outro policial fosse na direção
do júri.
- Retire os jurados.
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Enquanto os jurados eram rapidamente mandados para a sala de deliberação, Storey continuou lutando com o policial e Fowkkes. Mas logo que os jurados saíram pareceu
relaxar seus esforços e se acalmou. Bosch olhou para os repórteres, tentando ver se algum deles percebera que a encenação de Storey terminara logo que os jurados
desapareceram.
- Sr. Storey! - berrou o juiz, de pé. - Esse comportamento e essa linguagem não são aceitáveis neste tribunal. Doutor Fowkkes, se o senhor não conseguir controlar
o seu cliente, meu pessoal fará isso. Mais uma explosão, e eu mandarei o réu ser amordaçado e acorrentado à cadeira. Fui claro?
- Perfeitamente, meritíssimo. Eu peço descul...
- Esta regra é de tolerância zero. Se houver qualquer explosão daqui por diante, ele será algemado. Pouco me importa quem ele seja ou quem sejam seus amigos.
- Sim, meritíssimo. Nós entendemos.
- Vou dar cinco minutos de intervalo e depois recomeçaremos. O juiz deixou abruptamente a bancada, batendo os pés com
força ao descer rapidamente os três degraus. Desapareceu pela porta do corredor dos fundos que levava a sua sala.
Bosch olhou para Janis. Os olhos da promotora traíam seu prazer com o que acabara de acontecer. Para Bosch, aquilo era toma-ládá-cá. Por um lado, os jurados haviam
visto Storey agir raivosamente e de forma descontrolada - possivelmente exibindo o mesmo furor que o levara ao assassinato. Mas, por outro, o réu deixara registrado
seu inconformismo com o que estava lhe acontecendo no tribunal. E isso poderia causar uma reação favorável por parte dos jurados. Storey só precisava influenciar
um deles para sair livre dali.
Antes do julgamento, Janis previra que eles conseguiriam fazer Storey explodir. Bosch achara que ela estava enganada. Achava que Storey era frio e calculista demais.
A menos, é claro, que a explosão fosse uma jogada calculada. Storey era um homem que ganhava a vida dirigindo cenas e personagens dramáticos. Bosch percebeu que
deveria ter previsto que talvez viesse a ser usado como coadjuvante involuntário numa daquelas cenas.
Capítulo 25
O juiz voltou à bancada dois minutos depois, e Bosch ficou imaginando se ele não tinha ido até sua sala só para colocar um coldre sob a toga. Logo que se sentou,
Houghton olhou para a mesa da defesa. Storey estava sentado com uma expressão sombria no rosto, olhando para o bloco de desenho à sua frente.
- Estamos prontos? - perguntou o juiz.
As duas partes murmuraram que estavam prontas. O juiz mandou chamar os jurados, que foram trazidos de volta. A maioria olhou diretamente para Storey ao entrar.
- Muito bem, pessoal, vamos tentar novamente - disse o juiz Houghton. - As exclamações que ouviram há poucos minutos por parte do réu devem ser ignoradas. Não constituem
provas, não são nada. Se David Storey quer negar pessoalmente as acusações ou qualquer outra coisa dita sobre ele nos depoimentos, terá oportunidade de fazer isso
depois.
Bosch viu os olhos de Janis dançarem de felicidade. Os comentários do juiz eram uma maneira de fustigar a defesa. Ele estava criando a expectativa de um depoimento
de Storey durante a fase da defesa. Se ele não fizesse isso, os jurados poderiam ficar desapontados.
Houghton passou novamente a palavra para Janis, que continuou a interrogar Bosch.
234
- Antes da interrupção, o senhor estava depondo sobre sua conversa com o réu na porta da casa dele.
-Sim.
- Declarou que o réu disse: "E vou me safar disso", correto?
- Correto.
- E tomou esse comentário como uma referência à morte de Jody Krementz, correto?
- Era sobre isso que estávamos falando.
- O réu disse qualquer coisa depois?
- Disse.
Bosch fez uma pausa, imaginando se Storey iria ter outra explosão, mas nada aconteceu.
- Ele disse: "Eu sou um deus nesta cidade, detetive Bosch. Ninguém fode com os deuses."
Quase dez segundos se passaram antes que o juiz instigasse Janis a prosseguir.
- O que o senhor fez depois que o réu declarou isso?
- Bom, fiquei meio aturdido, surpreso que ele tivesse dito aquilo para mim.
- O senhor não estava gravando a conversa, correto?
- Correto. Era só uma conversa à porta, depois que eu bati lá.
- O que aconteceu em seguida?
- Fui imediatamente até o carro e anotei textualmente a conversa enquanto a coisa ainda estava fresca na minha memória. Contei a meus parceiros o que tinha acabado
de ocorrer, e decidimos consultar a promotoria para saber se a admissão de David Storey justificava sua prisão. Mas não conseguimos fazer funcionar nossos telefones
celulares, porque estávamos lá no alto das colinas. Por isso descemos até o posto dos bombeiros em Mulholland Drive, a leste do bulevar Laurel Canyon. Ali pedimos
para usar o telefone, e eu liguei para a promotoria.
- E com quem o senhor falou?
- Com a senhora. Narrei o caso, o que tinha ocorrido durante a busca e o que David Storey tinha dito na porta. Foi decidido continuar a investigação a partir daquele
ponto, sem efetuar a prisão.
- O senhor concordou com essa decisão?
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- Na hora, não. Eu queria prender David Storey.
- A admissão dele mudou a direção das investigações?
- Fechamos muito o foco. O sujeito tinha admitido o crime para mim. Passamos a suspeitar apenas dele.
- O senhor chegou a pensar que talvez a admissão fosse uma bazófia, e que enquanto o senhor provocava o réu ele podia estar fazendo o mesmo com o senhor?
- Sim, pensei nisso. Mas acabei acreditando que ele tinha feito aquelas declarações porque eram verdadeiras e porque àquela altura ele acreditava estar numa posição
inexpugnável.
Ouviu-se o barulho de algo sendo rasgado quando Storey arrancou a página de cima do bloco de desenho. Ele amassou o papel e jogou-o sobre a mesa. O papel atingiu
a tela de um computador e caiu no chão.
- Obrigado, detetive - disse Janis Langwiser. - O senhor disse que a decisão foi continuar com a investigação. Pode dizer ao júri o que isso abrangia?
Bosch descreveu como ele e seus parceiros haviam interrogado dezenas de testemunhas que tinham visto o réu e a vítima na estréia do filme ou na recepção posterior,
dada numa tenda de circo armada num estacionamento próximo. Eles também haviam interrogado dezenas de outras pessoas que conheciam Storey ou que já haviam trabalhado
com ele. Bosch reconheceu que nenhum dos interrogatórios produzira informações importantes para a investigação.
- Anteriormente, o senhor mencionou sua curiosidade a respeito de um livro que viu faltando na casa do réu durante a busca, correto?
- Correto. Fowkkes protestou.
- Não há qualquer prova de que faltava um livro. Havia um espaço vazio na prateleira. Isso não quer dizer que havia um livro naquele lugar.
Janis prometeu que logo esclareceria tudo, e o juiz ignorou o
protesto.
- O senhor chegou a descobrir qual era o livro que tinha ocupado aquele lugar da prateleira na casa do réu?
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- Cheguei, durante a coleta de informações sobre o'passado de David Storey. Minha parceira, Kizmin Rider, que conhecia o trabalho e a reputação profissional do réu,
lembrou que tinha lido um artigo sobre ele numa revista chamada Architectural Digest. Ela fez uma pesquisa na Internet, verificou que a edição de que se lembrava
era de fevereiro do ano passado e encomendou um exemplar à editora. Recordava que a matéria trazia fotografias de David Storey e sua casa. Lembrava das estantes
porque é uma leitora ávida e tinha ficado curiosa para saber que livros aquele diretor de cinema tinha nas prateleiras.
Janis solicitou que a revista fosse incorporada aos autos como prova. O pedido foi aceito pelo juiz, e Janis entregou o exemplar a Bosch no banco das testemunhas.
- Foi esta revista que sua parceira recebeu?
- Foi.
- Pode abrir a matéria sobre o réu e descrever a fotografia que há na página de abertura?
Bosch abriu a revista na página indicada por um marcador.
- E uma fotografia de David Storey sentado no sofá da sala de sua casa. A estante aparece à sua esquerda.
- E possível ler os títulos dos livros nas lombadas?
- Só de alguns. Nem todos estão nítidos.
- Quando o senhor recebeu esta revista da editora, o que fez com o exemplar?
- Vimos que nem todos os livros estavam nítidos. Fizemos contato com a editora novamente e pedimos emprestado o negativo dessa fotografia. Falamos com o editor-chefe,
que não deixou que os negativos saíssem da empresa. Ele citou a legislação referente à mídia e as salvaguardas da imprensa livre.
- O que aconteceu então?
- O editor disse que se oporia até a uma ordem judicial. Um representante da procuradoria do condado foi convocado e começou a negociar com o advogado da revista.
O resultado foi que eu peguei um avião até Nova York e tive acesso ao negativo no laboratório fotográfico da Architectural Digest.
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- Para que conste dos autos, em que data o senhor esteve lá?
- Peguei um vôo noturno no dia 29 de outubro. Na manhã seguinte já estava na sede da revista. Era segunda-feira, 30 de outubro.
- E o que fez lá?
- Pedi que o gerente do laboratório fotográfico fizesse ampliações da foto que mostrava a estante.
Janis apresentou duas grandes ampliações fotográficas montadas em papelão como novas provas a serem incluídas nos autos. Depois de vê-las aceitas, apesar dos protestos
da defesa, ela as colocou em cavaletes diante do júri. Uma mostrava a estante toda, enquanto a outra era a ampliação de uma só prateleira. A imagem era granulada,
mas os títulos nas lombadas dos livros estavam bem nítidos.
- Detetive, o senhor comparou essas fotografias com as que foram tiradas durante a busca na casa do réu?
- Comparei.
Janis solicitou permissão para instalar um terceiro e um quarto cavaletes, e colocar neles as fotografias de toda a estante e da prateleira com o espaço vazio tiradas
durante a busca. O juiz aprovou a solicitação. Depois ela pediu que Bosch saísse do banco das testemunhas e usasse um ponteiro para explicar o que descobrira durante
o estudo comparativo. Aquilo era óbvio para qualquer pessoa que visse as fotos, mas Janis estava seguindo passo a passo, laboriosamente, para que nenhum jurado se
confundisse.
Bosch pôs o ponteiro sobre a fotografia que mostrava o espaço vazio entre os livros na prateleira. E depois colocou o ponteiro num livro que ocupava o mesmo local
na outra fotografia.
- Quando fizemos a busca na casa, no dia 17 de outubro, não havia livro algum entre The Fifth Horizon e Print the Legend. Já nessa foto, tirada dez meses antes,
há um livro entre os dois.
- E qual é o título do livro?
- Victims of the Night.
- Muito bem, mas o senhor examinou as fotografias que tinha batido da estante cheia durante a busca para ver se esse livro, Victims ofthe Night, tinha sido colocado
em outro lugar das prateleiras?
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Bosch apontou para a ampliação da foto da estante inteira batida no dia 17 de outubro.
- Examinamos. Não estava lá.
- O livro foi encontrado em algum outro lugar da casa?
- Não, não foi.
- Obrigado, detetive. Já pode voltar ao banco das testemunhas. Janis solicitou que um exemplar de Victims of the Night fosse
incorporado aos autos como prova. Depois entregou o livro a Bosch.
- Pode dizer ao júri o que é isto, detetive?
- E um exemplar de Victims of the Night.
- Era ele que estava na prateleira do réu quando a fotografia da Architectural Digest foi batida em janeiro do ano passado?
- Não, não era. Este é um exemplar do mesmo título, comprado por mim.
-Onde?
- Numa livraria chamada Mystery, em Westwood.
- Por que o senhor comprou o livro lá?
- Dei uns telefonemas. Foi o único lugar que encontrei que tinha o livro em estoque.
- Por que é um livro tão difícil de encontrar?
- O sujeito da Mystery disse que se tratava de uma tiragem pequena feita por uma editora pequena.
- O senhor leu o livro?
- Partes dele. A maior parte é composta por fotografias de cenas inusitadas de crimes e acidentes, esse tipo de coisa.
- Algo nesse livro chamou sua atenção como inusitado ou talvez relacionado com a morte de Jody Krementz?
- Sim, na página 73 há a fotografia de uma cena de morte que imediatamente me chamou a atenção.
- Descreva a cena, por favor.
Bosch abriu o livro na página indicada por um marcador. Enquanto falava, examinava a fotografia de página inteira do lado direito do livro.
- Mostra uma mulher numa cama. Ela está morta. Um lenço enrolado em torno de seu pescoço passa sobre uma das traves da
cabeceira da cama. A mulher está nua da cintura para baixo. Tem a mão esquerda entre as pernas e dois dedos enfiados na vagina.
- Pode ler a legenda embaixo da fotografia, por favor?
- A legenda diz: "Morte Auto-Erótica: Esta mulher foi encontrada na cama em Nova Orleans, vítima de asfixia auto-erótica. No mundo inteiro mais de quinhentas pessoas,
aproximadamente, morrem anualmente devido a esse infortúnio acidental."
Janis Langwiser pediu e recebeu permissão para colocar como provas duas outras fotografias ampliadas nos cavaletes. Colocou-as bem em cima de duas das fotografias
das estantes. Lado a lado, as fotografias reproduziam o corpo de Jody Krementz na cama e a tal página de Victims of the Night.
- Detetive, o senhor comparou a fotografia da vítima do caso, Jody Krementz, com a fotografia do livro?
- Comparei. Achei as duas muito semelhantes.
- Pareceu-lhe que o corpo de Jody Krementz poderia ter sido arrumado com base na fotografia do livro?
- Pareceu.
- Já teve oportunidade de perguntar ao réu o que aconteceu com o exemplar que ele tinha de Victims of the Night?
- Não. Desde o dia da busca na casa, David Storey e seus advogados recusaram todos os pedidos de entrevista que fizemos.
Janis balançou a cabeça e olhou para o juiz.
- Meritíssimo, posso tirar essas fotografias daqui e entregá-las ao oficial de justiça?
- Por favor, faça isso - respondeu o juiz.
Ao tirar dos cavaletes as fotografias das duas mulheres mortas, Janis fez questão de juntá-las como se fossem duas metades de um espelho se fechando. Era um pequeno
detalhe, mas Bosch viu os jurados prestando atenção.
- Muito bem, detetive Bosch - disse Janis quando os cavaletes foram removidos. - O senhor fez alguma pesquisa ou realizou mais investigações sobre mortes por asfixia
auto-erótica?
- Sim. Percebi que a classificação da morte como homicídio disfarçado desse tipo de acidente poderia ser contestada se um dia
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o caso fosse a julgamento. E a legenda do livro também me deixou curioso. Francamente, o número de quinhentas mortes por ano me surpreendeu. Mas conferi com o FBI
e verifiquei que a cifra era realmente precisa, se não subestimada.
- E isso levou o senhor a pesquisar mais?
- Levou, num nível mais local.
Com Janis fazendo as perguntas apropriadas, Bosch testemunhou que examinara os registros da Divisão Médíco-Legal em busca de mortes por asfixia auto-erótica. A pesquisa
cobrira os cinco anos anteriores.
- E o que descobriu?
- Nesses cinco anos houve dezesseis mortes no condado de Los Angeles classificadas como morte acidental e atribuídas especificamente à asfixia auto-erótica.
- E em quantos desses casos as vítimas eram mulheres?
- Somente um ocorreu com uma mulher.
- O senhor examinou esse caso?
Fowkkes levantou-se para protestar, e dessa vez pediu uma reunião com o juiz junto à bancada. Houghton acatou o pedido, e os advogados se aproximaram dele. Bosch
não conseguiu ouvir a conversa sussurrada, mas sabia que provavelmente Fowkkes estava tentando desviar a direção que o depoimento estava tomando. Janis Langwiser
e Kretzler já haviam previsto que ele solicitaria novamente que o nome de Alicia Lopez não fosse mencionado diante dos jurados. Provavelmente aquele seria o ponto
crucial do julgamento - para ambos os lados.
Depois de cinco minutos de discussão sussurrada, o juiz mandou os advogados de volta para os seus lugares, disse aos jurados que a questão colocada perante o tribunal
tomaria mais tempo do que o previsto e suspendeu a sessão por quinze minutos. Bosch voltou à mesa da promotoria.
- Alguma novidade? - perguntou ele a Janis.
- Não, o mesmo argumento de antes. Por alguma razão, Houghton quer ouvir a coisa novamente. Vamos precisar de sorte.
Os advogados e o juiz se retiraram para a sala de audiências a fim de discutir a questão levantada. Bosch ficou sozinho na mesa.
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Usou o telefone celular para conferir os recados deixados em casa e no escritório. Havia apenas um recado no local de trabalho. Era de Terry McCaleb, agradecendo
a Bosch a dica da noite anterior. Dizia que ele obtivera boas informações no Nat's e que entraria em contato. Bosch apagou a mensagem e fechou o telefone, tentando
imaginar o que McCaleb descobrira.
Quando os advogados voltaram, entrando pela porta traseira do tribunal, Bosch leu a decisão do juiz no rosto deles. Fowkkes parecia abatido, com os olhos baixos.
Kretzler e Janis vinham sorrindo.
Depois que os jurados foram trazidos de volta e o julgamento recomeçou, Janis partiu diretamente para o ataque, pedindo que o escrivão relesse a última pergunta
antes do protesto.
- "O senhor examinou esse caso?" - leu o escrivão.
- Vamos cancelar essa pergunta - disse Janis. - Não vamos confundir a questão. Detetive, qual era o nome da falecida no único caso em que a vítima era mulher dos
dezesseis que o senhor encontrou nos registros da Divisão Médico-Legal?
- Alicia Lopez.
- Pode nos dizer alguma coisa sobre ela?
- Ela tinha vinte e quatro anos e morava em Culver City. Trabalhava como assistente-administrativa do vice-presidente de produção da Sony Pictures, também em Culver
City. Foi encontrada morta na cama no dia 20 de maio de 1998.
- Ela morava sozinha?
- Morava.
- Quais foram as circunstâncias da morte?
- Ela foi encontrada na própria cama por uma colega que tinha ficado preocupada com a ausência dela no trabalho. Alicia havia faltado dois dias em seguida ao fim
de semana, sem sequer telefonar. O médico-legista avaliou que ela tinha morrido três ou quatro dias antes. A decomposição do corpo já era grande.
- Doutora Janis? - disse Houghton, interrompendo o testemunho. - Nosso acordo foi que a ligação entre os casos seria rapidamente estabelecida.
- Já estou quase lá, meritíssimo. Obrigado. Detetive, alguma coisa nesse caso alertou o senhor ou chamou sua atenção?
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- Várias coisas. Examinei as fotografias tiradas na cena do crime, e, embora a decomposição já fosse grande, consegui perceber que a vítima daquele caso estava numa
postura muito parecida com a da vítima do caso atual. Notei ainda que no caso Lopez a ligadura também tinha sido usada sem proteção, como no caso atual. Eu já sabia,
com base na nossa investigação do passado de David Storey, que na época da morte de Alicia Lopez ele estava fazendo um filme para uma empresa chamada Cold Hou-se
Films, parcialmente financiada pela Sony Pictures.
No momento que se seguiu a essa resposta, Bosch percebeu que o tribunal ficara inusitadamente imóvel e silencioso. Nas galerias, ninguém sussurrava ou pigarreava.
Era como se todos - jurados, advogados, espectadores e jornalistas - houvessem resolvido prender a respiração juntos. Bosch olhou para os jurados e viu que quase
todos estavam olhando para a mesa da defesa. Ele também olhou para lá e viu Storey, com o rosto ainda voltado para baixo, ardendo de ódio. Por fim, Janis Langwiser
quebrou o silêncio.
- Detetive, o senhor continuou investigando o caso Lopez?
- Continuei. Falei com o detetive do departamento de polícia de Culver City encarregado do caso. Também investiguei o trabalho que Alicia Lopez fazia na Sony.
- E o que soube a esse respeito que pudesse ter relação com o caso presente?
- Soube que na época de sua morte ela fazia a ligação entre o estúdio e a produção do filme que David Storey estava dirigindo.
- Lembra do nome desse filme?
- The Fifth Horizon.
- Onde estava sendo filmado?
- Em Los Angeles. A maior parte em Venice.
- E, como elo de ligação, Alicia Lopez tinha algum contato direto com David Storey?
- Tinha. Ela falava com ele por telefone ou pessoalmente todo dia que havia filmagem.
Fez-se novamente um silêncio que parecia ensurdecedor. Janis aproveitou o máximo que pôde e passou a dar as marteladas finais.
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- Preciso ver se entendi tudo direito, detetive. Segundo o seu testemunho, nos últimos cinco anos só houve uma morte de mulher no condado de Los Angeles atribuída
a asfixia auto-erótica, e no caso atual a morte de Jody Krementz foi disfarçada para parecer asfixia auto-erótica?
- Protesto - interpôs Fowkkes. - Isso já foi perguntado e respondido.
- Protesto rejeitado - disse Houghton, sem esperar argumentação por parte de Janis. - A testemunha pode responder.
- Sim - disse Bosch. - Correto.
- E ambas as mulheres conheciam o réu, David Storey?
- Correto.
- E ambas as mortes mostram semelhanças com a fotografia de um caso de morte auto-erótica exibida num livro que sabidamente o réu possuía em casa?
- Correto.
Bosch olhou para Storey ao dizer aquilo, na esperança de que ele erguesse o olhar para poder encará-lo mais uma vez.
- O que o departamento de polícia de Culver City disse sobre o assunto, detetive Bosch?
- Baseados nas minhas investigações, eles reabriram o caso, Mas estão com dificuldades.
- Porquê?
- O caso é antigo. Por ter sido originalmente classificado como morte acidental, nem todos os registros ficaram arquivados. Como a decomposição já era grande na
época em que o corpo foi descoberto, é difícil fazer observações e tirar conclusões definitivas. E o corpo não pode ser exumado, porque foi cremado.
- Foi? Por quem?
Fowkkes levantou-se e protestou, mas o juiz disse que seus argumentos já haviam sido ouvidos e rejeitados. Janis repetiu a pergunta antes mesmo de Fowkkes se sentar
novamente.
- Por quem, detetive Bosch?
- Pela família dela. Mas tudo - a cremação, o serviço funerário
- foi pago por David Storey como uma homenagem à memória de Alicia Lopez.
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Janis Langwiser virou ruidosamente uma página do bloco de anotações. Estava num grande momento, e todos ali sabiam disso. Conseguira fazer o que os tiras e promotores
chamavam de entrar no tubo, em referência ao surfe. Significava que eles tinham levado o caso para dentro do famoso túnel de água onde tudo corria suavemente, com
perfeição, num equilíbrio glorioso.
- Detetive, depois dessa parte da investigação, o senhor foi procurado por uma mulher chamada Annabelle Crowe?
- Fui. O Los Angeles Times publicou uma reportagem sobre a investigação, dizendo que David Storey era o foco central. Ela leu o artigo e se apresentou.
- E quem é ela?
- E uma atriz. Mora em West Hollywood.
- E que relação ela tinha com este caso?
- Ela contou que tinha saído com David Storey uma vez no ano passado e que ele a sufocara enquanto os dois faziam sexo.
Fowkkes fez mais um protesto, dessa vez sem a força dos outros. Mas foi novamente ignorado, pois o depoimento já fora liberado pelo juiz em moções anteriores.
- Onde Annabelle Crowe disse que esse incidente ocorreu?
- Na casa de David Storey em Mulholland Drive. Pedi a ela que descrevesse o lugar, coisa que fez com precisão. Realmente tinha estado lá.
- Ela não poderia ter visto o número da Architectural Digest que mostrava fotografias da casa do réu?
- Ela descreveu com detalhes precisos partes da suíte principal e do banheiro que não foram mostradas na revista.
- O que aconteceu com ela quando foi sufocada pelo réu?
- Ela contou que desmaiou. Quando acordou, David Storey não estava no aposento. Tomava um banho de chuveiro. Ela pegou as roupas dela e fugiu da casa.
Janis sublinhou aquilo com um longo silêncio. Depois fechou as páginas do bloco, deu uma olhada na direção da mesa da defesa e ergueu o olhar para o juiz Houghton.
- Meritíssimo, nada mais tenho a perguntar ao detetive Bosch no momento.
Capítulo 26
McCaleb chegou ao El Cochinito às quinze para o meio-dia. Não entrava no pequeno restaurante de Silver Lake havia cinco anos, mas lembrava que o lugar não tinha
mais que uma dúzia de mesas, em geral rapidamente ocupadas na hora do almoço, quase sempre por tiras. Não porque o nome do restaurante - "O Porquinho" - constituísse
uma atração, mas porque a comida era de alta qualidade e barata. A experiência ensinou a McCaleb que os policiais tinham o dom de descobrir tais estabelecimentos
entre os muitos restaurantes de qualquer cidade. Quando viajava em missões do FBI, ele sempre pedia ao pessoal que patrulhava as ruas recomendações sobre lugares
para comer. Raramente ficava desapontado.
Enquanto esperava por Jaye, examinou cuidadosamente o cardápio e planejou a refeição. No ano anterior seu paladar finalmente voltara, e com força total. McCaleb
passara os dezoito primeiros meses depois da cirurgia sem sentir o gosto de nada. Pouco importava o que ele comia, pois tudo tinha o mesmo gosto insípido. Até uma
pesada dose de molho habanera, fosse num sanduíche ou num prato de massa, só lhe provocava uma picada mínima na língua. Vagarosamente, porém, seu paladar começou
a voltar, e aquilo foi um segundo renascimento para McCaleb, depois do transplante propriamente dito. Ele passou a adorar tudo que Graciela fazia. Adorava até o
que ele fazia - e isso apesar de sua total incompetência para fazer qualquer coisa que não fosse churrasco. Comia tudo
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com um prazer que nunca havia sentido, mesmo antes do transplante. Um sanduíche de geléia e manteiga de amendoim de madrugada era algo que, em particular, ele saboreava
tanto quanto uma ida à cidade com Graciela para um jantar chique no Jozu, de Melrose. Conseqüentemente, começou a engordar, recuperando os doze quilos que perdera
enquanto seu próprio coração murchava e ele aguardava o novo. Voltou aos oitenta e dois quilos que tinha antes de adoecer, e pela primeira vez em quatro anos precisava
tomar cuidado com o que comia. Quando fez o último cardiograma, a médica percebeu a situação e deu o alerta, dizendo que ele precisava diminuir a ingestão de calorias
e gorduras.
Mas não naquele almoço. Ele aguardava havia muito tempo a chance de comer ali. Anos antes passara bastante tempo na Flórida atrás de um assassino serial, e a única
coisa boa que resultara daquilo tinha sido seu amor pela comida cubana. Depois de sua transferência para a filial do FBI em Los Angeles, foi difícil achar um restaurante
cubano que se comparasse aos lugares que ele freqüentava em Ybor City, perto de Tampa. Mas no decorrer de uma investigação ele acabou conhecendo um patrulheiro que
era descendente de cubanos. McCaleb perguntou onde ele ia quando queria uma comida realmente caseira. A resposta do policial foi El Cochinito. E McCaleb logo se
tornou freguês habitual.
Concluiu que examinar o cardápio era perda de tempo, pois ele já chegou sabendo o que queria. Leitão assado com feijão preto, arroz, banana frita e yucca, sem contar
nada à médica. Ele só queria que Jaye chegasse logo, para poder fazer o pedido.
Pôs o cardápio de lado e pensou em Harry Bosch. McCaleb passara quase toda a manhã no barco, assistindo ao julgamento pela televisão. Considerou extraordinário o
desempenho de Bosch no banco das testemunhas. A revelação de que Storey estivera ligado a outra morte fora chocante para McCaleb, e aparentemente para toda a mídia
também. Durante os intervalos, os comentaristas nos" estúdios pareciam vibrar com a perspectiva de mais carniça. A certa altura a transmissão passou para o corredor
fora do tribunal, onde o advogado de defesa foi bombardeado com perguntas sobre os novos desdobramentos. Fowkkes, provavelmente pela primeira vez na vida, não fez
comentário algum. Aos comentaristas restou especular sobre as novas informações e analisar a metódica - e ainda assim arrebatadora - estratégia da promotoria.
Contudo assistir ao julgamento trouxera apenas inquietação a McCaleb. Era difícil aceitar a idéia de que Bosch - que ele vira descrevendo com tanta habilidade os
aspectos e etapas de uma investigação complicada - era o homem que ele estava investigando, um homem que sua intuição dizia que cometera o mesmo tipo de crime de
que o réu era acusado ali.
Ao meio-dia, hora do encontro que tinham marcado, McCaleb ergueu o olhar distraidamente e viu Jaye Winston passar pela porta da frente do restaurante. Dois homens
a seguiam. Um era negro e o outro branco. Essa era a melhor forma de diferenciá-los, pois ambos usavam terno cinza e gravata marrom. McCaleb percebeu que eram agentes
do FBI antes que chegassem à mesa.
Jaye tinha uma expressão de resignação desanimada no rosto.
- Terry, quero apresentar este pessoal a você - disse ela antes de se sentar. Indicou o agente negro primeiro. - Este é Don Twilley, e este é Marcus Friedman. Eles
trabalham no FBI.
Os três puxaram cadeiras e se sentaram, Friedman junto de McCaleb, e Twilley do outro lado da mesa. Ninguém cumprimentou ninguém.
- Nunca provei comida cubana - disse Twilley, pegando um cardápio no porta-guardanapos. - A daqui é boa?
McCaleb lançou o olhar para ele.
- Não. É por isso que eu gosto de comer aqui.
Os olhos de Twilley ergueram-se do cardápio, e ele sorriu.
- Eu sei, pergunta idiota - disse, olhando novamente o cardápio e depois para McCaleb. - Sabia que eu já ouvi falar de você, Terry? Você é uma porra de uma lenda
lá na filial. Não por causa do coração, mas por causa dos casos que investigou. Estou contente por finalmente conhecer você.
McCaleb olhou para Jaye com uma expressão que perguntava que diabo estava acontecendo ali.
- Terry, Marc e Don são da Seção de Direitos Civis.
- Ah, é? Ótimo. Vieram lá da filial para conhecer a lenda e experimentar comida cubana, ou há algo mais?
- Hum... - começou Twilley.
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- Terry, jogaram merda no ventilador - disse Jaye. - Um repórter telefonou para o meu chefe hoje de manhã e perguntou se nós estávamos investigando Harry Bosch como
suspeito no caso Gunn.
McCaleb recostou-se na cadeira, chocado com a novidade. Estava prestes a responder quando um garçom veio até a mesa.
- Espere alguns instantes - disse Twilley rudemente para o homem, mandando-o embora com um gesto autoritário que incomodou McCaleb.
- Terry - continuou Jeye -, antes de continuarmos essa conversa, preciso saber uma coisa. Foi você que vazou isso?
McCaleb balançou a cabeça em sinal de desagrado.
- Está querendo me gozar, perguntando isso pra mim?
- Escute, só sei que não fui eu. Não contei pra ninguém. Nem para o capitão Hitchens, nem para o meu próprio parceiro, que dirá um repórter.
- Bom, não fui eu. Obrigado por perguntar.
McCaleb olhou para Twilley e depois de volta para Jaye. Estava detestando ter aquela altercação com Jaye na frente dos sujeitos.
- O que esses caras estão fazendo aqui? - perguntou. Depois, olhando novamente para Twilley, acrescentou: - O que vocês querem?
- Eles estão assumindo o caso, Terry - respondeu Jaye. - E você está fora.
McCaleb olhou novamente para Jaye, com a boca entreaberta.
- Do que está falando? Eu estou fora? Eu sou o único que está dentro. Venho trabalhando nisso como...
- Eu sei, Terry. Mas as coisas mudaram. Depois que o repórter telefonou para Hitchens, tive que contar o que estava acontecendo e o que vínhamos fazendo. Ele teve
um ataque, e depois decidiu que a melhor forma de lidar com isso era colocar o FBI no caso.
- A Seção de Direitos Civis, Terry - disse Twilley. - Investigar policiais é o nosso feijão-com-arroz. Nós podemos...
- Vá se foder, Twilley. Não me venha com a conversa mole do FBI. Já fui do clube, lembra? Sei como a coisa funciona. Vocês chegam, pegam minhas pistas e depois desfilam
com Bosch diante das câmeras a caminho do xadrez.
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- E isso que interessa a você? - disse Friedman. - Receber os louros?
- Não precisa se preocupar com isso, Terry - disse Twilley. - A gente põe você diante das câmeras, se o problema é esse.
- O problema não é esse. E não me chame de Terry. Você nem me conhece, caralho.
Ele baixou o olhar para a mesa, balançando a cabeça.
- Puta que pariu, esperei tanto tempo para voltar a esse restaurante, e agora nem estou mais com vontade de comer.
- Terry... - disse Jaye, sem oferecer mais nada.
- O quê? Vai me dizer que isso é direito?
- Não. Não é direito nem errado. É o que é. A investigação passou a ser oficial. Você não faz parte do quadro oficial. Sabia que isso poderia acontecer desde o
início.
Ele balançou a cabeça com relutância. Pôs os cotovelos em cima da mesa e o rosto entre as mãos.
- Que repórter foi esse?
Quando Jaye não respondeu, ele baixou as mãos e olhou penetrantemente para ela.
- Quem foi?
- Um cara chamado Jack McEvoy. Trabalha no New Times, um semanário alternativo que gosta de jogar merda no ventilador.
- Eu sei que jornal é.
- Você conhece McEvoy? - perguntou Twilley.
O celular de McCaleb começou a tocar. Estava no bolso do paletó dobrado sobre a cadeira. Ele ficou com a mão presa no bolso quando tentou tirar o aparelho. Ansiosamente,
lutou para desvencilhar a mão, pois supunha que fosse Graciela. Além de Jaye e Buddy Lockridge, ele só dera aquele número para Brass Doran em Quantico, e não tinha
mais nada a tratar com ela.
Conseguiu atender depois do quinto toque.
- Oi, McCaleb. Aqui é Jack McEvoy do New Times. Tem uns minutos pra conversar?
McCaleb lançou o olhar sobre a mesa para Twilley, imaginando se o agente podia ouvir a voz do outro lado da linha.
- Na realidade, não. Estou enrolado aqui. Como conseguiu este número?
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- Liguei para Informações em Catalina. Depois liguei para o número que eles me deram, e sua esposa atendeu. Ela me deu o número do celular. Algum problema?
- Não, nenhum problema. Mas não posso conversar agora.
- Quando pode? E importante. Descobri uma coisa que quero muito contar pra você...
- É só ligar mais tarde. Daqui a uma hora.
McCaleb fechou o telefone e colocou-o sobre a mesa. Ficou olhando para o aparelho, na expectativa de que McEvoy telefonasse de novo imediatamente. Todo repórter
era assim.
- Terry, está tudo bem?
Ele ergueu o olhar para Jaye.
- Tudo bem. Era sobre o passeio de amanhã. O cara queria saber como estava o tempo
Olhou para Twilley.
- Qual foi a pergunta que você fez?
Você conhece Jack McEvoy? O repórter que telefonou para o capitão Hitchens?
- Eu conheço Jack. Você sabe disso.
- Tem razão, o caso do Poeta. Você participou daquilo.
- Uma pequena participação.
- Quando foi a última vez que falou com McEvoy?
- Bom, acho que foi... há uns dois dias.
Jaye ficou visivelmente tensa. McCaleb olhou para ela.
- Relaxe, está bem, Jaye? Eu esbarrei com McEvoy no julgamento de Storey. Fui até lá pra falar com Bosch. McEvoy está cobrindo o caso para o New Times e me cumprimentou.
Eu não falava com ele havia cinco anos. E não contei o que estava fazendo, nem no que estava trabalhando. Na realidade, naquele momento Bosch ainda nem era suspeito.
- Bom, ele viu você com Bosch?
- Viu. Todo mundo viu. Havia tanta gente da mídia lá quanto no julgamento de O. J. Simpson. Ele citou especificamente o meu nome para o seu chefe?
- Se citou, Hitchens não me contou.
- Muito bem, então. Se não foi de você nem de mim, de onde veio esse vazamento?
251
- É o que lhe estamos perguntando - disse Twilley. - Antes de entrarmos no caso queremos saber a configuração das coisas, e quem está falando com quem.
McCaleb não respondeu. Estava ficando claustrofóbico. Entre a conversa com McEvoy, o interrogatório de Twilley e as pessoas de pé no restaurante apertado à espera
de mesas, ele estava começando a se sentir sem ar.
- E esse bar onde você foi ontem à noite? -perguntou Friedman. McCaleb recostou-se e olhou para ele.
- O que tem o bar?
- Jaye nos disse o que você contou pra ela. Você perguntou especificamente por Bosch e Gunn lá, certo?
- Certo. E daí? Você acha que a atendente foi direto para o telefone, ligou para o New Times e perguntou por Jack McEvoy? Só porque eu mostrei a ela uma fotografia
de Bosch? Dá um tempo, caralho.
- Ei, essa cidade vive pensando na mídia. As pessoas estão sempre ligadas. Vendem reportagens, informações e dados o tempo todo.
McCaleb abanou a cabeça, recusando-se a acreditar que aquela atendente de colete fosse inteligente o suficiente para sacar a jogada dele e telefonar para um repórter.
Subitamente, percebeu quem tinha inteligência e informação para fazer aquilo. Buddy Lockridge. Mas se realmente houvesse sido Buddy, era como se houvesse sido ele
próprio que deixara vazar a história. McCaleb sentiu o suor começar a esquentar-lhe o couro cabeludo, pensando em Buddy escondido no convés inferior enquanto ele
apresentava a Jaye os argumentos de acusação contra Bosch.
- Você bebeu alguma coisa enquanto esteve no bar? Ouvi dizer que você toma um montão de pílulas todo dia. Misturando isso com álcool... Sabe como é, o peixe morre
pela boca.
A pergunta fora feita por Twilley, mas McCaleb olhou bruscamente para Jaye. Sentia-se traído e magoado, por toda aquela cena e pela rapidez com que as coisa haviam
mudado. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa viu o pedido de desculpas nos olhos dela e percebeu que Jaye também queria as coisas pudessem ser diferentes.
Finalmente, olhou para Twilley.
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- Você acha que eu talvez tenha misturado bebida demais com pílulas, Twilley? E isso? Acha que eu comecei a dar com a língua nos dentes lá no bar?
- Não acho isso. Só estou perguntando, certo? Não é preciso ficar na defensiva por causa disso. Só estou tentando descobrir como esse repórter ficou sabendo o que
ele acha que está sabendo.
- Bom, descubra sem mim.
McCaleb empurrou a cadeira para trás para se levantar.
- Experimentem o leitão assado - disse. - E o melhor da cidade. Quando ele começou a se levantar, Twilley estendeu a mão
sobre a mesa e agarrou-lhe o antebraço.
- Vamos, Terry, vamos conversar sobre isso - disse Twilley.
- Terry, por favor - disse Jaye.
McCaleb soltou o braço da mão de Twilley e levantou-se, olhando para Jaye.
- Boa sorte com esses caras, Jaye. Provavelmente vai precisar. Depois olhou para Friedman e Twilley.
- E vão se foder, vocês dois.
Foi abrindo caminho pela multidão que esperava e saiu porta afora. Ninguém foi atrás dele.
McCaleb ficou sentado no Cherokee estacionado no Sunset Boulevard, olhando para o restaurante enquanto deixava a raiva esvair-se lentamente do corpo. Num certo nível,
sabia que as medidas tomadas por Jaye e seu chefe estavam certas. Mas em outro nível, não gostara de ter sido afastado de seu próprio caso. Um caso era como um carro.
Você podia estar dirigindo, ou podia estar sendo conduzido no assento dianteiro ou traseiro. E também podia ser deixado no acostamento enquanto o carro seguia. Ele
acabara de ser retirado do volante e estava no acostamento pedindo carona. Aquilo doía.
Começou a pensar em Buddy Lockridge e em como lidar com ele. Se descobrisse que Buddy falara com McEvoy depois de ouvir escondido aquela conversa com Jaye, teria
evidentemente que cortar todos os laços com ele. Sócios ou não, ele não conseguiria mais trabalhar com Buddy.
Lembrou que Buddy tinha o número do seu telefone celular e
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percebeu que poderia ter sido ele que o dera a McEvoy. Pegou o aparelho e ligou para casa. Graciela atendeu, pois sexta-feira era um de seus dias de meio expediente
na escola.
- Graciela, você deu o número do meu celular para alguém ultimamente?
- Sim, a um repórter que disse que conhecia você e que precisava entrar em contato com urgência. Jack qualquer coisa. Por quê? Alguma coisa errada?
- Não, nada de errado. Só queria conferir.
- Tem certeza?
McCaleb ouviu o sinal de chamada em espera. Olhou para o relógio. Eram dez para uma. McEvoy só deveria telefonar depois da uma.
- Tenho - disse ele a Graciela. - Escute, preciso dar outro telefonema. Só vou chegar em casa ao anoitecer. Tchau.
Passou para a outra ligação. Era McEvoy, explicando que estava no tribunal e precisava voltar ao julgamento à uma em ponto ou perderia seu precioso lugar. Não podia
esperar mais para telefonar.
- Pode conversar agora? - perguntou ele. - O que você quer?
- Preciso falar com você.
- Você fica repetindo isso. Sobre o quê?
- Harry Bosch. Estou fazendo uma matéria sobre...
- Não sei nada sobre o caso Storey. Só o que passa na tevê.
- Não é isso. É sobre o caso Edward Gunn.
McCaleb não respondeu. Sabia que aquilo não era uma coisa boa. Conversar com um repórter sobre aquele tipo de coisa só podia dar confusão.
Depois de um silêncio, McEvoy disse:
- Era por isso que você queria falar com Harry Bosch outro dia, quando encontrei você aqui? Está trabalhando no caso Gunn?
- Escute aqui. Eu posso dizer honestamente que não estou trabalhando no caso Edward Gunn. Tá legal?
Bom, pensou McCaleb. Até ali ele não mentira.
- Você estava trabalhando no caso? Para o gabinete do xerife?
- Posso perguntar uma coisa? Quem disse isso a você? Quem disse que eu estava trabalhando nesse caso?
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- Não posso contar. Tenho que proteger minhas fontes. Se você quiser me dar informações, eu também protegerei a sua identidade. Mas se eu revelar uma fonte, estou
fodido no ramo.
- Bom, vou dizer uma coisa, Jack. Só falo com você se você falar comigo, entende o que quero dizer? E uma rua de mão dupla. Você me diz quem está espalhando essa
merda sobre mim, e eu converso com você. Caso contrário, não temos nada a dizer um para o outro.
Ele ficou esperando. McEvoy não disse nada.
- Era o que eu achava. Até mais ver, Jack.
Fechou o telefone. Mencionando ou não o nome dele para o capitão Hitchens, era evidente que McEvoy conseguira aquela informação com uma fonte confiável. E mais uma
vez McCaleb viu o foco se estreitar sobre uma pessoa, além dele próprio e Jaye Winston.
- Caceta! - disse ele em voz alta no carro.
Poucos minutos depois de uma hora viu Jaye sair do El Cochinito. McCaleb estava na esperança de conseguir cercá-la e conversar com ela a sós, talvez até falar de
Buddy. Mas Twilley e Friedman estavam com ela. Os três entraram no mesmo carro. Um carro do FBI.
McCaleb viu-os entrar no fluxo do trânsito e seguir para o centro da cidade. Ele saiu do Cherokee e voltou ao restaurante. Estava faminto. Não havia mesas vagas,
de modo que ele pediu comida para viagem. Comeria no Cherokee.
A velha que anotou o pedido ergueu um par de tristes olhos castanhos para ele. Disse que a semana fora muito movimentada e que o leitão assado acabara naquele momento.
Capítulo 27
Third Street Promenade
John Reason surpreendeu o público, os jurados e provavelmente a maior parte da mídia ao dizer que só reinquiriria Bosch quando o julgamento passasse à fase da defesa,
mas a jogada já fora prevista pela promotoria. A estratégia da defesa era fuzilar o mensageiro, e o mensageiro era Bosch. O melhor momento de disparar o tiro seria
durante a apresentação dos argumentos da defesa. Assim, o ataque de Fowkkes a Bosch poderia ser parte de um ataque orquestrado a todas as acusações contra David
Storey.
Depois do intervalo para o almoço, durante o qual Bosch e os promotores foram incessantemente assediados pela mídia com perguntas sobre o depoimento do detetive,
a promotoria aproveitou o impulso ganho na sessão matutina. Kretzler e Janis começaram a se revezar, interrogando rapidamente uma série de testemunhas.
A primeira foi Teresa Corazón, chefe da Divisão Médico-Legal. Respondendo a perguntas de Kretzler, ela descreveu o que fora descoberto durante a autópsia, declarando
que Jody Krementz morrera entre meia-noite e duas da madrugada de sexta-feira, 13 de outubro. E confirmou a baixa ocorrência de casos de mulheres mortas por asfixia
auto-erótica.
Mais uma vez Fowkkes reservou-se o direito de interrogar a testemunha durante a fase da defesa. Corazón foi liberada depois de ficar menos de meia hora no banco
das testemunhas.
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Bosch não precisava mais permanecer no tribunal o tempo todo, pois seu depoimento já terminara, pelo menos na fase da acusação. Enquanto Janis convocava a próxima
testemunha - um técnico de laboratório que identificaria os pêlos colhidos no corpo da vítima como pertencentes a Storey -, ele levou Corazón até o carro. Os dois
haviam sido amantes muitos anos antes, mantendo o que poderia ser chamado de um relacionamento casual pelos atuais padrões culturais. Para Bosch, porém, embora não
houvesse amor envolvido, aquilo nada tivera de casual. Na sua opinião, tratara-se do encontro de duas pessoas que viam a morte de perto todo dia e que a afastavam
com o ato máximo de afirmação da vida.
Corazón terminara o romance ao ser nomeada para a chefia da Divisão Médico-Legal. Desde então o relacionamento entre os dois fora estritamente profissional, embora
o novo cargo de Corazón reduzisse seu tempo nas câmaras de autópsia e Bosch já não a visse com freqüência. Mas o caso Jody Krementz era diferente. Corazón percebeu
instintivamente que aquilo poderia atrair a atenção das hordas da mídia e ela mesma se encarregou da autópsia. Valera a pena. Seu depoimento seria visto por todo
o país e provavelmente em todo o mundo. Ela era atraente, inteligente, habilidosa e metódica. Aquela meia hora que passara sentada no banco das testemunhas viraria
um comercial de meia hora, atraindo lucrativas comissões como legista independente ou comentarista. Bosch aprendera uma coisa sobre ela na época do relacionamento
entre os dois: Teresa Corazón entra diretamente no caso.
Ela estacionara na garagem ao lado do escritório de liberdade condicional, nos fundos do complexo judiciário. Os dois foram conversando sobre banalidades - o tempo,
as tentativas que Harry fazia de parar de fumar - até Corazón entrar diretamente no caso.
- A coisa parece estar indo bem.
- Até agora.
- Seria bom ganharmos um desses casos importantes, para variar.
- Seria.
- Vi você depor hoje de manhã. Liguei a tevê no escritório. Se saiu muito bem, Harry. >
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Ele conhecia aquele tom. Estava preparando o terreno para alguma coisa. -Mas?
- Mas parece cansado. E você sabe que eles vão vir com tudo. Nesse tipo de caso, se eles conseguem destruir o policial, destroem
o caso.
- O. J. Simpson, Lei um-zero-um. Sem provas cabais e falta de credibilidade da investigação.
- Pois é. Está pronto para o que der e vier?
- Acho que sim.
- Que bom. Mas é melhor descansar.
- Isso é mais fácil de dizer do que de fazer.
Quando se aproximaram da garagem, Bosch olhou para o escritório de liberdade condicional e viu a equipe reunida do lado de fora para uma espécie de apresentação.
O grupo estava parado sob uma faixa que pendia do telhado e dizia SEJA BEM-VINDA DE VOLTA, THELMA. Um homem de terno estava entregando uma placa a uma robusta mulher
negra apoiada numa bengala.
- Ah... é aquela agente da condicional - disse Corazón. - A que foi baleada no ano passado. Por aquele pistoleiro de
Las Vegas, lembra?
- Certo - disse Bosch, lembrando-se da história. - Ela voltou.
Ele viu que não havia câmeras de televisão registrando a entrega da placa. Uma mulher era baleada no cumprimento do dever e depois lutava para voltar ao trabalho.
Aparentemente não valia a pena gastar fita de vídeo com aquilo.
- Seja bem-vinda de volta - disse ele.
O carro de Corazón estava no segundo pavimento. Era um reluzente Mercedes esporte escuro.
- Pelo visto os bicos estão rendendo - disse Bosch. Ela balançou a cabeça.
- No meu último contrato consegui uma licença profissional de quatro semanas. Estou aproveitando ao máximo. Julgamentos, programas de tevê, esse tipo de coisa. Também
participei daquele documentário sobre autópsias da HBO. Vai ao ar no mês que vem.
- Teresa, a qualquer momento você vai ser mundialmente famosa.
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Ela sorriu, aproximou-se dele e endireitou-lhe a gravata.
- Eu sei o que você acha disso, Harry. Tudo bem.
- Não interessa o que eu acho. Está feliz? Ela balançou a cabeça.
- Muito.
- Então fico feliz por você. É melhor eu entrar de novo. Tchau, Teresa.
Subitamente, ela se ergueu na ponta dos pés e beijou-o no rosto. Fazia muito tempo que Harry não era beijado assim
- Espero que se saia bem, Harry.
- E, eu também.
Bosch saltou do elevador e foi andando pelo corredor na direção do tribunal do Departamento N. Viu uma fila de pessoas perto da porta. Era gente esperando que vagasse
um lugar. Alguns repórteres estavam parados junto à porta aberta da sala da imprensa, mas todos os demais estavam a postos, observando o julgamento.
- Detetive Bosch?
Bosch se virou, viu Jack McEvoy, o repórter que conhecera na véspera, numa espécie de alcova onde havia um telefone público, e parou.
- Vi você sair e fiquei esperando.
- Preciso voltar lá para dentro.
- Eu sei. Só queria dizer que eu preciso muito conversar com você. Quanto mais cedo melhor.
- Do que está falando? O que é tão importante?
- Bom, é sobre você.
McEvoy saiu da alcova do telefone, aproximando-se de Bosch para não precisar falar tão alto.
- Sobre mim? O quê?
- Sabia que está sendo investigado pelo gabinete do xerife?
Bosch lançou o olhar pelo corredor na direção da porta do tribunal e depois olhou novamente para McEvoy. O repórter estava erguendo lentamente um bloco e uma caneta,
pronto para anotar.
- Espere um minuto - disse Bosch, segurando o bloco. - Do que está falando? Que investigação?
- Lembra de Edward Gunn? Ele está morto, e você é o suspeito deles.
Bosch ficou olhando para ele com a boca entreaberta.
- Achei que talvez quisesse fazer algum comentário sobre isso. Pra se defender. Vou escrever uma reportagem para a edição da semana que vem e queria lhe dar a chance
de dizer...
- Sem comentários. Eu preciso voltar.
Bosch virou-se e deu alguns passos na direção do tribunal, mas depois parou. Voltou até McEvoy, que escrevia no bloco.
- O que está escrevendo? Eu não disse nada.
- Eu sei. É isso que estou anotando. McEvoy ergueu o olhar do bloco para ele.
- Você disse semana que vem - disse Bosch. - Quando o jornal sai?
- O New Times é publicado toda manhã de quinta-feira.
- Então posso esperar até quando, se decidir falar com você?
- Mais ou menos até a hora do almoço de quarta-feira. Mas aí vai ficar muito apertado. Só vou conseguir incluir algumas frases suas. A hora de falar é agora.
- Quem lhe contou isso? Quem é a sua fonte? McEvoy abanou a cabeça.
- Não posso falar sobre minhas fontes. Quero falar com você sobre as alegações. Matou Edward Gunn? E uma espécie de anjo vingador? É isso que eles pensam.
Bosch examinou o repórter por um longo tempo antes de finalmente falar.
- Não cite a minha expressão, mas vá se foder, está entendendo? Não sei se essa merda é um blefe ou não, mas vou lhe dar um conselho. E bom você ter absoluta certeza
do que vai dizer, antes de colocar qualquer coisa nesse seu jornal. Um bom investigador sempre sabe a motivação das suas fontes. É o que se chama ter um besteirômetro.
E bom o seu estar funcionando muito bem.
Virou-se e foi andando rapidamente para a porta do tribunal.
Janis acabara de terminar o interrogatório do especialista em pêlos quando Bosch entrou de volta na sala. Mais uma vez Fowkkes
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levantou-se e reservou-se o direito de reinquirir a testemunha na fase da defesa.
O especialista atravessou o portão atrás da tribuna dos advogados. Bosch passou por ele e foi ocupar seu lugar na mesa da promotoria. Não disse nada, nem olhou para
Janis ou Kretzler. Cruzou os braços e ficou olhando para o bloco de anotações que deixara na mesa. Percebeu que tomara a mesma posição e postura que vira David Storey
adotar na mesa da defesa. A postura de um homem culpado. Rapidamente, deixou cair os braços no colo e ergueu o olhar para o brasão do estado da Califórnia, que pendia
da parede acima da bancada do juiz.
Janis levantou-se e chamou a testemunha seguinte, um perito em impressões digitais. O depoimento do sujeito foi rápido, sendo mais uma corroboração do testemunho
de Bosch e não teve contestação por parte de Fowkkes. O perito foi seguido no banco pelo patrulheiro que tinha atendido à chamada da colega de Jody Krementz, e depois
pelo sargento que tinha sido a pessoa seguinte a chegar à casa.
Bosch mal ouviu os depoimentos. Não continham nada de novo, e sua cabeça estava voando em outra direção. Ele pensava em McEvoy e na matéria que o repórter estava
escrevendo. Sabia que deveria informar Janis e Kretzler, mas queria ter mais tempo para pensar. Decidiu adiar a coisa até o final da semana.
A primeira testemunha que não pertencia aos órgãos de segurança da cidade foi chamada. Era a colega da vítima, Jane Gilley. Ela deu um depoimento choroso e sincero,
confirmando os detalhes da investigação que já haviam sido revelados por Bosch, mas acrescentou algumas pequenas informações pessoais. Contou que Jody Krementz estava
empolgada por sair com uma importante figura de Hollywood, e que ambas haviam passado a véspera do encontro indo a manicures, pedicures e cabeleireiros.
- Ela pagou minha despesa - disse Jane. - Foi tão boazinha.
Seu depoimento colocou um rosto humano no que até então fora uma análise quase antisséptica por parte dos agentes da lei especializados em homicídios.
Quando Janis terminou de interrogar Jane, Fowkkes finalmente
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quebrou o padrão que vinha seguindo e anunciou que tinha algumas perguntas para a testemunha. Foi até a tribuna sem levar anotações. Cruzou as mãos atrás das
costas e inclinou-se ligeiramente na direção do microfone.
- A sua colega era uma jovem atraente, não era?
- Sim, ela era linda.
- E era popular? Em outras palavras, ela saía com muitos rapazes? Jane balançou a cabeça com relutância.
- Saía.
- Muito, pouco, com que freqüência?
- É difícil dizer. Eu não era a secretária social dela e também tenho namorado.
- Entendi. Vamos então pegar, digamos, as dez semanas anteriores à morte dela. Em quantas dessas dez semanas você diria que Jody não saiu com ninguém?
Janis levantou-se e protestou.
- Meritíssimo, isso é ridículo. Não tem ligação alguma com a noite de 12 de outubro ou a manhã do dia 13.
- Ah, meritíssimo, eu acho que tem - retrucou Fowkkes. - E acho que a doutora Janis sabe que tem. Se Vossa Excelência me der um pouco de liberdade, logo mostrarei
por quê.
Houghton rejeitou o protesto e mandou Fowkkes repetir a pergunta.
- Em quantas das dez semanas anteriores à sua morte Jody
Krementz não saiu com ninguém?
- Não sei. Talvez uma. Talvez nenhuma.
- Talvez nenhuma - repetiu Fowkkes. - E em quantas dessas semanas você diria que sua colega saiu pelo menos duas vezes?
Janis protestou outra vez, mas o juiz a ignorou novamente.
- Não sei a resposta - disse Jane. - Muitas. - Muitas - repetiu Fowkkes.
Janis levantou-se e pediu ao juiz que proibisse Fowkkes de repetir a resposta da testemunha, a menos que fosse sob a forma de pergunta. O juiz concordou. Fowkkes
prosseguiu como se não houvesse sido corrigido.
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- Todos esses encontros foram com o mesmo homem?
- Não. Quase sempre eram homens diferentes, com algumas repetições.
- Então ela gostava de namorar, certo?
- Acho que sim.
- Isso é um sim ou um não?
- E um sim.
- Obrigado. Nas dez semanas anteriores à morte dela, semanas em que você disse que ela freqüentemente saiu pelo menos duas vezes, quantos homens diferentes você
viu?
Jane Gilley abanou a cabeça, exasperada.
- Não tenho idéia. Não contei. E o que isso tem a ver com...
- Obrigado. Eu gostaria que se limitasse a responder às perguntas que eu fizer.
Ele ficou esperando, mas Jane não disse nada. - Jody alguma vez teve problemas quando parava de sair com um homem? Quando passava para o seguinte?
- Não sei o que isso quer dizer.
- Quero saber se todos os homens ficavam satisfeitos quando não conseguiam sair com ela novamente?
- Às vezes ficavam com raiva quando ela não queria sair com eles novamente. Mas nada de sério.
- Nenhuma ameaça de violência? Ela tinha medo de alguém?
- Não que eu soubesse.
- Ela falava sobre todos os homens com quem saía? -Não.
- Quando voltava desses encontros, trazia os homens para a casa que vocês dividiam?
- Às vezes.
- Eles passavam a noite lá?
- Às vezes, não sei.
- Muitas vezes você não estava lá, certo?
- É, eu freqüentemente dormia na casa do meu namorado.
- Porquê?
Ela deu uma risada curta.
- Porque eu amo meu namorado.
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- Bom, vocês já passaram alguma noite juntos na sua casa?
- Não me lembro que ele tenha dormido lá.
- Porquê?
- Acho que é porque ele mora sozinho. A gente tem mais privacidade na casa dele.
- E verdade que você passava várias noites por semana na casa do seu namorado?
- Às vezes. E daí?
- E que isso acontecia porque você não gostava da constante procissão de hóspedes noturnos da sua colega.
Janis se levantou.
- Meritíssimo, isso nem chega a ser uma pergunta. Quero protestar quanto à forma e o conteúdo. O estilo de vida de Jody Krementz não está sendo julgado aqui. É David
Storey que está sendo julgado pelo assassinato dela, e não é justo permitir que a defesa ataque uma pessoa que...
- Muito bem, doutora Janis, já chega - disse o juiz Houghton, lançando o olhar para Fowkkes. - Doutor Fowkkes, não vou lhe dar mais liberdade para prosseguir nessa
direção. A doutora Janis tem razão. Quero que o senhor avance no depoimento da testemunha.
Fowkkes balançou a cabeça. Bosch ficou examinando o advogado. O sujeito era um ator perfeito. Com sua postura, conseguira transmitir a frustração de um homem impedido
de revelar uma verdade oculta. Bosch ficou imaginando se o júri veria aquilo como uma encenação.
- Muito bem, meritíssimo - disse Fowkkes, pondo a frustração na inflexão da voz. - Nada mais tenho para perguntar à testemunha no momento.
O juiz suspendeu a sessão por quinze minutos para o intervalo da tarde. Bosch ajudou Jane Gilley a driblar os repórteres, levando-a ao elevador e depois até o carro.
Disse que ela se saíra muito bem e que passara perfeitamente pela reinquirição de Fowkkes. Depois foi se juntar a Kretzler e Janis no gabinete da promotoria no segundo
andar, onde a equipe de acusação montara um escritório temporário durante o julgamento. Havia uma pequena máquina de café na sala, ainda cheia do café feito durante
o intervalo matinal.
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Não havia tempo para fazer um novo café, de modo que todos eles beberam o café velho, enquanto Kretzler e Janis discutiam sobre o progresso do dia.
- Acho que essa tentativa deles de mostrar que ela era uma piranha vai sair pela culatra mais tarde - disse Janis. - Eles devem ter mais coisa na manga do que isso.
- Ele só está tentando mostrar que ela tinha um monte de homens - disse Kretzler. - E que pode ter sido qualquer um deles. É a famosa defesa da espingarda. Você
dispara um monte de chumbinhos, e um deles acaba acertando o alvo.
- Mesmo assim, não vai funcionar.
- Com John Reason adiando o interrogatório de todas essas testemunhas, estamos indo até depressa. Se ele continuar fazendo isso, vamos terminar nossa parte na terça
ou na quarta-feira.
- Que bom. Quero saber logo o que eles têm na manga.
- Eu não - interrompeu Bosch. Janis olhou para ele.
- Ora, Harry. Você já agüentou essas tempestades antes.
- É, mas desta vez estou com um pressentimento ruim.
- Não se preocupe - disse Kretzler. - Vamos dar uma surra neles no tribunal. Estamos dentro do tubo, cara, e não vamos perder a onda.
Os três juntaram os copos plásticos num brinde.
Jerry Edgar, o atual parceiro de Bosch, e Kizmin Rider, exparceira, prestaram depoimento durante a sessão da tarde. A promotoria pediu a ambos que rememorassem os
momentos depois da busca na casa de David Storey, quando Bosch entrou no carro e disse que Storey se gabara de ter cometido o crime. O testemunho dos dois foi exatamente
igual ao de Bosch, e serviria como anteparo para os ataques da defesa contra o caráter de Bosch, que também sabia que os promotores esperavam subir no conceito do
júri, porque ambos, Edgar e Kizmin, eram negros. Cinco membros do júri, além dos dois reservas, eram negros. Numa época em que a veracidade de qualquer policial
branco de Los Angeles era considerada suspeita por jurados negros, ter Edgar e Rider prestando solidariedade a Bosch era um grande trunfo.
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A ex-parceira depôs primeiro, e Fowkkes não quis reinquiri-la. O testemunho de Jerry foi uma cópia do de Kiz, mas foram-lhe feitas perguntas adicionais, pois foi
ele que entregou o segundo mandado de busca e apreensão emitido no caso. O mandado era uma ordem do tribunal para a coleta de amostras de pêlos e sangue de David
Storey. Tinha sido aprovado e assinado por um juiz enquanto Bosch estava em Nova York, seguindo a pista da Architectural Digest, e Kizmin estava no Havaí, curtindo
férias planejadas antes do assassinato. Com um patrulheiro a reboque e o mandado na mão, Edgar apareceu outra vez às seis da manhã na casa de Storey. Ele testemunhou
que Storey havia mantido os dois esperando na porta enquanto contatava o advogado, que já era o criminalista J. Reason Fowkkes.
Posto a par da situação, Fowkkes mandou Storey cooperar, e o suspeito foi levado ao Parker Center, no centro da cidade, onde uma enfermeira do laboratório coletou
amostras dos pêlos pubianos, cabelo e sangue dele.
- O senhor interrogou o réu sobre o crime em algum momento do trajeto ou do processo de coleta? - perguntou Kretzler.
- Não, não interroguei - respondeu Edgar. - Antes de deixar a residência ele me passou o telefone, e eu falei com o doutor Fowkkes. Ele me disse que seu cliente
não desejava ser interrogado nem hostilizado, segundo ele, de qualquer forma. Portanto, basicamente nós seguimos de carro em silêncio... pelo menos da minha parte.
E também não falamos no Parker Center. Quando terminamos, o doutor Fowkkes estava lá e levou David Storey para casa.
- David Storey fez algum comentário espontâneo durante esse período?
- Somente um.
- E onde foi isso?
- No carro, indo para o Parker Center.
- E o que ele disse?
- Ele estava olhando pela janela e disse apenas: "Vocês estão fodidos se acham que vão me derrubar por causa disso."
-' E esse trecho da conversa foi gravado?" -Foi.
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-Porquê?
- Por causa da admissão anterior feita ao detetive Bosch, nós achamos que havia chance de que ele fizesse outra declaração como aquela. Quando fui apresentar o mandado
relativo aos pêlos e ao sangue, peguei emprestado um carro da Narcóticos. E um carro que eles usam para fazer prisões na rua. Está equipado com sistema de gravação.
- Trouxe a fita daquele dia, detetive?
- Trouxe.
Kretzler solicitou que a fita fosse incorporada aos autos como prova. Fowkkes protestou, dizendo que Edgar já depusera sobre o que fora dito, e que a fita de áudio
não era necessária. O juiz rejeitou o protesto, e a fita foi posta para tocar. Kretzler começou a fita bem antes da tal declaração de Storey, para que os jurados
pudessem ouvir o ruído do motor do carro e do trânsito, e percebessem que Edgar não violara os direitos do réu, interrogando-o a fim de extrair aquela declaração.
Quando a fita chegou ao comentário de Storey, o tom de arrogância e até ódio para com investigadores soou alto e claro.
Na intenção de que aquele tom ficasse na memória dos jurados durante o fim de semana, Kretzler encerrou a inquirição de Edgar.
Fowkkes, talvez compreendendo a manobra, disse que faria uma-breve reinquirição. Fez a Edgar uma série de perguntas inócuas que pouco acrescentaram aos autos em
favor da defesa ou desfavor da promotoria. Terminou a reinquirição precisamente às quatro e meia, e o juiz Houghton prontamente declarou o tribunal em recesso durante
o fim de semana.
Enquanto o tribunal se esvaziava, com as pessoas saindo em direção ao corredor, Bosch olhou em torno procurando McEvoy mas não o viu. Edgar e Kizmin, que haviam
ficado por ali depois dos depoimentos, aproximaram-se dele.
- Harry, que tal um drinque? - disse Kizmin.
- Que tal um porre? - retrucou Harry.
Capítulo 28
Eles ficaram esperando até as dez e meia da manhã de sábado pelo pessoal que alugara o barco, mas ninguém apareceu. McCaleb estava sentado em silêncio na amurada
da popa, remoendo vagarosamente tudo que acontecera: os clientes que não tinham vindo, seu afastamento do caso, o último telefonema de Jaye, tudo. Antes de sair
de casa, recebeu uma ligação de Jaye, pedindo desculpas pelos acontecimentos da véspera. Ele fingiu indiferença, dizendo-lhe que devia esquecer o episódio. E não
contou que Buddy Lockridge ouviu escondido a conversa deles no barco dois dias antes. Jaye disse que Twilley e Friedman haviam decidido que era melhor que ele devolvesse
as cópias de todos os documentos relacionados com o caso, e ele respondeu que eles podiam vir pegá-las, se quisessem. Acrescentou que tinha um passeio marcado e
que precisava sair. Os dois se despediram abruptamente e desligaram.
Raymond estava debruçado na popa, pescando com um pequeno caniço que McCaleb lhe dera depois da mudança para a ilha. Através da água clara, acompanhava o movimento
das formas alaranjadas dos peixes garibaldi lá embaixo, a sete metros de profundidade. Buddy estava sentado na cadeira de pesca, lendo a seção local do Los Angeles
Times. Parecia relaxado como uma onda de verão. McCaleb ainda não o confrontara com a suspeita de que o vazamento partira dele. Esperava o momento certo.
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- Ei, Terror, viu essa reportagem? - disse Buddy. - Sobre o depoimento do Bosch no tribunal de Van Nuys ontem?
- Neca.
- Cara, eles estão insinuando aqui que esse diretor é um assassino serial. Parece um daqueles seus casos antigos. E o sujeito no banco das testemunhas com o dedo
apontado para ele é um...
- Buddy, já disse pra você não falar sobre isso. Ou já esqueceu?
- Está bem, desculpe. Só ia dizer que se isso não é irônico eu não sei o que é, mais nada.
- Ótimo. Vamos parar por aí.
McCaleb consultou novamente o relógio. Os clientes deveriam ter chegado às dez. Ele se levantou e foi até a porta do salão.
- Vou dar uns telefonemas - disse. - Não quero ficar esperando o dia inteiro por essa gente.
No salão do barco, abriu uma gaveta da mesinha de navegação e tirou uma prancheta onde ficavam as reservas. Havia somente duas páginas ali. A relação dos clientes
daquele dia e uma reserva para o sábado seguinte. Os meses de inverno eram fracos. McCaleb examinou as informações na página de cima. Não estava familiarizado com
aquilo, porque foi Buddy que tinha feito a reserva, que era para quatro homens de Long Beach. Eles deveriam ter chegado na noite de sexta-feira e se hospedado no
Zane Grey. Fariam um passeio de quatro horas - das dez às duas de sábado - e depois pegariam a barca de volta para o continente. Buddy anotara o telefone da residência
do organizador e o nome do hotel, além de receber um depósito no valor de metade do preço do passeio.
McCaleb examinou a lista de hotéis e números de telefone colada na mesa de navegação e ligou primeiro para o Zane Grey. Soube imediatamente que ninguém com o nome
do organizador do passeio - o único dos quatro que McCaleb tinha - estava hospedado no hotel. Depois telefonou para a residência do sujeito e falou com a mulher
dele, que disse que o marido não estava em casa.
Bom, nós estamos esperando por ele aqui num barco em Catalina. Sabe se ele e os amigos estão a caminho?
Houve um longo silêncio. Está ouvindo?
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- Ah, sim, sim. Só que eles não vão pescar hoje. Disseram que haviam cancelado a viagem. Estão jogando golfe agora. Posso lhe dar o número do celular do meu marido,
se quiser. Você pode falar...
- Não é necessário. Tenha um bom dia.
McCaleb fechou o telefone. Sabia exatamente o que acontecera. Nem ele nem Buddy haviam conferido a caixa postal do telefone que constava dos anúncios que eles publicavam
em diversas listas telefônicas e revistas de pesca. McCaleb ligou para o tal número, apertou o código e viu que realmente havia um recado esperando desde quarta-feira.
O grupo cancelara o passeio e remarcaria a coisa outro dia.
- É, claro - disse McCaleb.
Apagou a mensagem e fechou o telefone. Sentiu vontade de atirar o aparelho na cabeça de Buddy através da porta de vidro, mas tentou se acalmar. Foi até a pequena
cozinha, tirou um litro de suco de laranja da geladeira e levou-o até a popa.
- Não vai ter passeio hoje - disse, antes de tomar um longo gole da caixa.
- Por que não? - perguntou Raymond, obviamente desapontado. McCaleb limpou a boca no punho da camiseta de manga comprida.
- Eles cancelaram.
Buddy ergueu os olhos do jornal, e McCaleb dirigiu-lhe um olhar furioso.
- Bom, nós ficamos com o depósito, certo? - perguntou Buddy.
- Eu recebi um depósito de duzentos dólares pelo cartão Visa.
- Não, nós não ficamos com o depósito porque eles cancelaram o passeio na quarta-feira. Nós dois estávamos ocupados demais, eu acho, para verificar a caixa postal
como deveríamos ter feito.
- Ah, caralho! Culpa minha.
- Buddy, não fale assim na frente do menino. Quantas vezes eu já disse isso?
- Desculpe. Desculpe.
McCaleb continuou a olhar fixamente para ele. Planejara falar sobre o vazamento para McEvoy depois do passeio, porque
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precisava que Buddy o ajudasse com o grupo de quatro pescadores. Mas isso não era mais necessário. Tinha chegado a hora.
- Raymond - disse ele, com o olhar fixo em Buddy. - Ainda quer ganhar o seu dinheiro?
-Opa.
- Você quer dizer "sim", não é?
- Opa. Quer dizer, sim. Sim.
- Tá legal. Então recolha a linha, prenda o anzol e comece a levar esses caniços lá para dentro. Arrume tudo na prateleira. Consegue fazer isso?
- É claro.
O menino enrolou rapidamente a linha, tirou a isca e lançou-a na água. Prendeu o anzol num dos ilhoses do caniço e encostou-o num canto da popa, para poder levá-lo
para casa depois. Ele gostava de ficar treinando no deque dos fundos da casa, lançando um peso de borracha, próprio para treinamento, sobre os telhados e quintais
lá embaixo.
Começou a tirar os caniços de pesca oceânica dos suportes em que Buddy os colocara ao preparar o barco para o passeio. Foi levando-os de dois em dois para o salão,
colocando-os nas prateleiras superiores. Tinha que subir no sofá para fazer isso, mas o sofá era velho e precisava urgentemente de uma nova capa, de modo que McCaleb
estava pouco se importando.
- Algum problema, Terror? - disse Buddy. - Era só um passeio, cara. Nós sabíamos que a coisa ia ser devagar este mês.
- Não é o passeio, Bud.
- Então, o que é? É o tal caso?
McCaleb deu um gole menor no suco e pôs a caixa na amurada. - Você está falando do caso em que eu não trabalho mais?
- Acho que sim. Não sei. Não está mais trabalhando nele? Quando isso...
- Não, Buddy, não estou mais no caso. E quero conversar com você sobre uma coisa.
Ele esperou Raymond levar outro conjunto de caniços para o salão.
-Já leu o New Times alguma vez, Buddy?
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- Aquele semanário gratuito?
- É, aquele semanário gratuito. O New Times, Buddy. Sai toda quinta-feira. Sempre põem uma pilha na lavanderia da marina. Na verdade, por que estou perguntando
isso? Eu sei que você lê o Neut Times.
Subitamente, Buddy baixou o olhar para o convés. Parecia abatido, cheio de culpa. Ergueu a mão e esfregou o rosto. Manteve a mão sobre os olhos enquanto falava.
- Terry, desculpe. Nunca pensei que o troço estouraria em cima de você. O que aconteceu?
- Qual é o problema, tio Buddy? Era Raymond, na porta do salão.
- Raymond, será que pode entrar e fechar a porta por uns minutos? - disse McCaleb. - Pode ligar a tevê. Preciso conversar sozinho com Buddy.
O menino hesitou, olhando o tempo todo para Buddy, que tinha o rosto tapado com a mão.
- Raymond, por favor. E leve isto de volta para a geladeira.
O menino finalmente se aproximou e pegou a caixa de suco de laranja. Entrou novamente e fechou a porta corrediça. McCaleb olhou novamente para Buddy.
- Como pôde pensar que o troço não estouraria em cima de mim?
- Não sei. Só achei que ninguém ia ficar sabendo.
- Bom, você estava enganado. E isso me trouxe muitos problemas. Mas o pior é a porra da traição, Buddy. Eu simplesmente não consigo acreditar que você tenha feito
uma coisa dessas.
McCaleb deu uma olhada para a porta de vidro, para ter certeza de que o garoto não podia ouvir sua voz. Não havia sinal de Raymond, que provavelmente descera para
um dos camarotes. McCaleb percebeu que sua respiração estava acelerada. Sentia tanta raiva que estava tendo hiperventilação. Tinha que terminar aquilo e se acalmar.
- Graciela precisa saber disso? - perguntou Buddy, quase implorando.
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- Não sei. Não interessa o que ela vai saber ou não. O que interessa é que nós tínhamos um relacionamento bom, e você fez uma coisa dessas pelas minhas costas.
Buddy ainda tinha os olhos escondidos atrás das mãos.
- Eu não sabia que isso significaria tanto para você, mesmo que você descobrisse. Foi uma coisa pequena. Eu...
- Não tente amenizar o troço, nem me contar qual foi o tamanho da coisa, está bem? E nem fale comigo com essa voz esganiçada, implorando. Cale a boca, só isso.
McCaleb foi até a popa e apoiou as coxas na amurada acolchoada. De costas para Buddy, ergueu os olhos para a encosta acima do distrito comercial da vila. Avistou
sua casa. Graciela estava no deque segurando o bebê. Ela acenou e depois ergueu a mão de Cielo, fazendo a neném acenar também. McCaleb respondeu ao aceno.
- O que quer que eu faça? - disse Buddy atrás dele. Sua voz já estava mais controlada. - O que quer que eu diga? Que não vou mais fazer isso? Está bem, não vou mais
fazer isso.
McCaleb não se virou. Continuou olhando para a esposa e a filha.
- Não interessa o que você não vai mais fazer. O mal já foi feito. Tenho que pensar sobre o assunto. Nós somos sócios, além de amigos. Ou pelo menos éramos. Mas
agora eu só quero que você desapareça. Vou lá para baixo ficar com Raymond. Pegue o esquife e vá para o píer. Volte para a cidade de barca hoje. Só não quero você
aqui, Buddy. Pelo menos agora.
- Como vocês vão voltar para o píer?
Era uma pergunta desesperada, com uma resposta óbvia.
- Eu chamo uma lancha de aluguel.
- A gente tem um passeio marcado para sábado que vem. São cinco pessoas e...
- Vou me preocupar com sábado depois. Posso cancelar tudo se precisar, ou passar o troço para Jim Hall.
- Terry, tem certeza disso? Eu só...
- Tenho. Vá embora, Buddy. Não quero conversar mais. McCaleb deu as costas para a paisagem e passou por Buddy,
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indo em direção ao salão. Abriu a porta corrediça, entrou e se fechou lá dentro. Não olhou mais para Buddy. Foi até a mesinha de navegação e tirou um envelope da
gaveta. Meteu dentro uma nota de cinco dólares que tirou do bolso, fechou o envelope e escreveu nele o nome de Raymond.
- Ei, Raymond, onde você está? - exclamou.
Eles jantaram sanduíches de queijo grelhado com molho apimentado. O molho era da Busy Bee. McCaleb o comprara ao voltar do barco com Raymond.
Ele estava sentado diante de Graciela, com Raymond à esquerda. A neném estava à direita, num assento portátil preso à mesa. Estavam jantando dentro de casa porque
um nevoeiro noturno engolfara a ilha num abraço gelado. McCaleb permaneceu calado, com expressão triste, durante toda a refeição, como passara grande parte do dia.
Quando ele voltara, Graciela decidiu se manter afastada. Levou Raymond para um passeio no Jardim Botânico de Wrigley, em Avalon Canyon. McCaleb ficou com a neném,
que quase não parou de se agitar. Mas ele não se importou. Pelo menos assim não ficava remoendo as coisas.
À hora do jantar, porém, não havia como eles se evitarem. meCaleb fez os sanduíches, sendo o último a se sentar à mesa. Assim que começou a comer, Graciela perguntou
qual era o problema.
- Nada - disse ele. - Está tudo bem.
- Raymond disse que você e Buddy tiveram uma discussão.
- Talvez Raymond não devesse meter o nariz onde não é chamado.
Olhou para o garoto ao dizer isso, e Raymond baixou os olhos para o prato.
- Isso não é justo, Terry - disse Graciela.
Ela tinha razão. McCaleb sabia disso. Ele estendeu a mão e despenteou o cabelo do garoto. O cabelo dele era tão macio. McCaleb gostava de fazer aquilo. Torceu para
que o gesto transmitisse seu pedido de desculpas.
- Fui tirado do caso porque Buddy vazou a história para um repórter.
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-O quê?
- Nós chegamos, ou eu cheguei, a um suspeito. Um tira. Buddy ouviu minha conversa com Jaye sobre essa descoberta. Contou tudo a um repórter, que começou a dar telefonemas.
Jaye e o chefe dela acharam que eu tinha vazado a coisa.
- Isso não faz sentido. Por que Buddy faria isso?
- Não sei. Ele não disse. Na realidade, até disse. Disse que achava que eu não me incomodaria, ou que a coisa não tinha importância. Alguma coisa assim. Isso foi
hoje, no barco.
Fez um gesto na direção de Raymond, dando a entender que fora essa conversa tensa que o garoto ouvira parcialmente e depois contara a Graciela.
- Bom, você telefonou para Jaye e contou que foi ele?
- Não, isso não interessa. O vazamento surgiu por meu intermédio. Foi burrice minha deixar Buddy no barco. Vamos mudar de assunto? Estou cansado de pensar e falar
sobre isso.
- Muito bem, Terry, você quer falar sobre o quê?
Ele ficou em silêncio. Ela ficou em silêncio. Depois de algum tempo, ele começou a rir.
- Não consigo pensar em mais nada agora.
Graciela terminou de comer um pedaço de sanduíche. McCaleb olhou para Cielo, que fitava uma bola azul e branca pendurada num arame preso ao lado do assento. Ela
estava tentando alcançar a bola com as mãozinhas, mas não conseguia. McCaleb viu que ela estava ficando frustrada. Entendia perfeitamente o sentimento da neném.
- Raymond, conte a seu pai o que vimos no Jardim Botânico hoje - disse Graciela.
Recentemente, ela começara se referir a McCaleb como pai de Raymond. Eles haviam adotado o garoto, mas McCaleb não queria pressionar Raymond a pensar nele como pai
ou a se referir a ele assim. O garoto geralmente o chamava de Terry.
- Vimos uma raposa das ilhas Channel - disse Raymond. Estava caçando no cânion.
- Eu achava que as raposas caçavam à noite e dormiam de dia.
- Bom, então alguém acordou o bicho, porque nós vimos a raposa lá. Era grande.
Graciela balançou a cabeça, confirmando a história.
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- Legal - disse McCaleb. - Que pena que vocês não tiraram uma foto.
Continuaram comendo em silêncio por alguns instantes. Graciela usou o guardanapo para limpar a saliva no queixo do bebê.
- Em todo caso, você deve estar contente com a minha saída do caso e com a volta das coisas ao normal aqui em casa - disse McCaleb.
Graciela olhou para ele.
- Só quero a sua segurança. Quero a família toda junta e em segurança. É isso que me deixa contente, Terry. - Ele balançou a cabeça e terminou o sanduíche. Graciela
continuou, dizendo: - Eu quero que você seja feliz. Mas se isso significa trabalhar nesses casos, vejo um conflito com o seu bem-estar pessoal em termos de saúde,
e com o bem-estar desta família.
- Bom, não precisa mais se preocupar com isso. Acho que agora ninguém vai me procurar novamente.
Ele se levantou para tirar a mesa. Mas antes de pegar os pratos, inclinou-se sobre o assento da filha e curvou o arame, colocando a bola azul e branca ao alcance
dela.
- Isto não é pra ficar assim - disse Graciela. McCaleb olhou para ela.
- É, sim.
Capítulo 29
McCaleb ficou acordado até de madrugada com a neném. Ele e Graciela se alternavam naquela tarefa, para que pelo menos um dos dois tivesse uma noite de sono decente.
Cielo parecia ter um relógio de alimentação que soava quase que de hora em hora. Cada vez que ela acordava, McCaleb lhe dava a mamadeira e andava com ela pela casa
escura. Batia de leve nas costas da menina até que ela arrotasse e a devolvia ao berço. Dali a uma hora o processo recomeçava.
Depois de cada ciclo, McCaleb andava pela casa e conferia as portas. Era um hábito nervoso que virara rotina. Por ficar na encosta da colina, a casa vivia mergulhada
num nevoeiro espesso. Olhando pelas janelas dos fundos, não conseguia ver nem as luzes do píer lá embaixo. Ficou imaginando se o nevoeiro se estendia sobre a baía
até o continente. A casa de Harry Bosch localizava-se num ponto elevado. Ele ficou pensando se o detetive também não estaria de pé junto à janela, olhando para aquele
vazio enevoado.
De manhãzinha Graciela pegou o bebê, e McCaleb, exausto pela noite e tudo mais, dormiu até às onze horas. Quando acordou, percebeu que a casa estava em silêncio.
De camiseta e short, foi andando pelo corredor e viu que a cozinha e a sala estavam vazias. Graciela deixara um bilhete na mesa da cozinha, dizendo que levara as
crianças à igreja de St. Catherine para o serviço religioso das
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dez horas, e que iria ao mercado depois. O bilhete dizia que estariam de volta ao meio-dia.
McCaleb foi até a geladeira, pegou o galão de suco de laranja e encheu um copo inteiro. Depois pegou suas chaves na bancada e voltou ao corredor, onde ficava o armário
trancado. Tirou de lá um saquinho plástico contendo uma dose matinal dos remédios que o mantinham vivo. No primeiro dia de cada mês, ele e Graciela separavam cuidadosamente
as doses e as colocavam em saquinhos plásticos marcados com as datas, diferenciando as doses matinais das vespertinas. Era mais fácil do que abrir dezenas de frascos
de pílulas duas vezes por dia.
Levou o saquinho de volta à cozinha e começou a tomar as pílulas, duas ou três de cada vez, com goles do suco de laranja. Enquanto seguia essa rotina, lançou o olhar
pela janela da cozinha na direção do porto lá embaixo. O nevoeiro fora embora. O tempo ainda estava um pouco enevoado, mas já clareara o bastante para ele ver o
Mar que Segue. Havia um esquife amarrado na popa.
McCaleb foi até uma das gavetas da cozinha e pegou o binóculo que Graciela gostava de usar para vê-lo manobrar o barco no porto, partindo ou voltando com um grupo
de clientes. Depois foi até o pátio e aproximou-se da balaustrada. Focalizou o binóculo. Não viu ninguém na cabine ou na ponte de comando do barco e não conseguia
enxergar através da película refletora na porta corrediça do salão. Dirigiu o foco para o esquife, que era de um verde desbotado, com motor de popa de um cavalo
e meio, e o reconheceu. Era um dos barcos de aluguel do concessionário do píer.
Entrou novamente e largou o binóculo sobre a bancada, enquanto recolhia as pílulas restantes com a mão. Levou-as com o suco de laranja para o quarto. Começou a engolir
as pílulas rapidamente, enquanto se vestia. Sabia que Buddy Lockridge não teria alugado um esquife para ir até o Mar que Segue. Buddy sabia qual era o Zodiac de
McCaleb e simplesmente teria pegado o bote emprestado.
Era outra pessoa que estava no barco.
McCaleb levou vinte minutos para caminhar até o píer, pois Graciela pegara o carrinho de golfe. Foi primeiro até a cabine de aluguel de barcos para perguntar quem
alugara o tal esquife, mas o guichê estava fechado. Havia um cartaz com a figura de um relógio, dizendo que o funcionário só estaria de volta ao meio-dia e meia.
McCaleb consultou o relógio. Meio-dia e dez. Não podia esperar. Desceu a rampa até o cais dos esquifes, entrou no Zodiac e deu a partida ao motor.
Enquanto seguia o canal em direção ao Mar que Segue, foi examinando as escotilhas laterais do salão, mas não conseguiu ver qualquer movimento ou indicação de que
alguém estivesse na embarcação. Desligou o motor do Zodiac quando chegou a vinte metros de distância, e o bote inflável fez o restante do percurso deslizando silenciosamente.
McCaleb abriu o zíper do bolso do agasalho e tirou uma Glock 17, a arma que usava em serviço quando trabalhava no FBI.
O Zodiac bateu de leve na popa, ao lado do esquife de aluguel. McCaleb examinou o esquife, mas viu apenas um colete salvavidas e uma almofada de flutuação, sem indicação
alguma de quem alugara o barco. Subiu na popa agachado e enrolou o cabo do Zodiac num dos ganchos traseiros. Olhou por cima da verga e viu apenas seu próprio reflexo
na porta corrediça. Percebeu que teria que se aproximar da porta sem saber se estava sendo observado por alguém do outro lado.
Agachou-se novamente e olhou em torno. Ficou pensando se deveria recuar e voltar com o barco de patrulha do porto. Depois de um instante decidiu que não. Olhou para
sua casa lá em cima na colina, levantou-se e jogou o corpo por cima da verga. Com a arma abaixada e escondida atrás do quadril, foi até a porta e examinou a fechadura,
que não mostrava sinal algum de ter sido violada. Puxou a maçaneta, e a porta se abriu. Tinha certeza que a deixara trancada na véspera, antes de ir embora com Raymond.
McCaleb entrou. O salão estava vazio, sem sinal algum de invasão ou roubo. Ele fechou a porta e ficou escutando. O barco estava em silêncio. Ouvia-se o som da água
batendo de leve contra a superfície externa, e mais nada. Ele deslocou o olhar para os
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degraus que levavam aos camarotes inferiores e o banheiro. Foi andando naquela direção, já com a pistola erguida à frente.
No segundo dos quatro degraus, McCaleb pisou numa tábua rachada que gemeu sob seu peso. Ficou imóvel, tentando escutar alguma reação, mas ouviu apenas o silêncio
e o ruído incansável da água contra as laterais do barco. Ao pé da escada havia um corredor curto com três portas. Diretamente à frente ficava o camarote dianteiro,
que ele convertera em escritório e sala de arquivo. À direita ficava o camarote principal, e à esquerda, o banheiro.
A porta do camarote principal estava fechada. McCaleb não recordava como a deixara ao sair do barco vinte e quatro horas antes. A porta do banheiro estava totalmente
aberta, presa à parede para não balançar e bater quando o barco estivesse em movimento. A porta do escritório estava parcialmente aberta, balançando suavemente no
ritmo do movimento do barco. Havia uma luz acesa lá dentro, e McCaleb viu que era a luz da escrivaninha, embutida no leito inferior dos beliches à esquerda da porta.
Ele resolveu inspecionar o banheiro primeiro, em seguida o escritório e depois o camarote principal. Ao se aproximar do banheiro, sentiu um cheiro de cigarro.
O banheiro estava vazio, e de qualquer forma era pequeno demais para ser usado como esconderijo. Quando se virou para a porta do escritório e ergueu a arma, uma
voz soou lá dentro.
- Entre, Terry.
Ele reconheceu a voz. Cautelosamente, avançou e usou a mão livre para empurrar a porta, abrindo-a com a arma ainda erguida
A porta se abriu e ele viu Harry Bosch sentado à escrivaninha, com o corpo relaxadamente recostado, olhando para a porta. O detetive tinha as duas mãos à vista.
Ambas estavam vazias, a não ser por um cigarro apagado entre os dedos da mão direita. McCaleb entrou vagarosamente no pequeno aposento, ainda com a arma erguida
e apontada para Bosch.
- Vai atirar em mim? Quer ser meu acusador e meu executor?
- Isto é arrombamento e invasão.
- Então acho que estamos quites.
- Do que está falando?
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- Que nome dá ao teatrinho que fez na minha casa naquela noite? "Harry, tenho mais umas perguntas sobre o caso." Só que não fez nenhuma pergunta de verdade, fez?
Em vez disso, deu uma olhada no retrato da minha mulher e perguntou por ela. Depois bebeu minha cerveja e perguntou sobre a gravura no corredor. Ah, e também me
contou aquela história de encontrar Deus nos olhos azuis da sua filhinha. Portanto, que nome dá a tudo isso, Terry?
Bosch girou despreocupadamente a cadeira e lançou o olhar sobre o ombro na direção da escrivaninha. McCaleb acompanhou o olhar dele, vendo que seu computador laptop
estava aberto e ligado. Percebeu que Bosch abrira o arquivo com as observações para o perfil que ele esteve compondo até a véspera, quando tudo mudara. Intimamente,
lamentou não ter protegido o arquivo com uma senha.
- Pra mim parece ser arrombamento e invasão - disse Bosch com os olhos na tela. - Talvez coisa até pior.
A nova posição de Bosch fez com que a jaqueta de couro de aviador que ele usava se abrisse, e McCaleb viu a pistola presa ao coldre na cintura. Continuou com a arma
erguida e pronta.
Bosch olhou novamente para ele.
- Ainda não tive chance de examinar tudo isso. Parece um monte de anotações e análises. Pelo que conheço de você, provavelmente é coisa de primeira categoria. Mas
não sei como, em algum ponto você errou o caminho, McCaleb. Não fui eu.
McCaleb deixou-se cair vagarosamente no leito inferior do beliche oposto. Já mantinha a arma erguida com menos precisão. Sentia que não havia perigo imediato da
parte de Bosch. Se quisesse, o detetive poderia tê-lo emboscado quando ele entrara.
- Você não devia estar aqui, Harry. Não devia estar falando comigo.
- Eu sei, tudo que eu disser pode e será usado contra mim num tribunal. Mas com quem vou falar? Foi você que me colocou na linha de tiro. Quero que me tire de lá.
- Bom, agora é tarde. Já saí do caso. E é melhor você nem saber quem entrou.
Bosch ficou simplesmente olhando para ele, esperando.
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- A Seção de Direitos Civis do FBI. Você achava a corregedoria de polícia um pé-no-saco? Pois esse pessoal do FBI vive e respira com um único objetivo: arrancar
o couro cabeludo da gente. E um couro cabeludo do Departamento de Polícia de Los Angeles vale mais do que Boardwalk e Park Place juntos.
- Como aconteceu? Foi o repórter? McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que ele conversou com você também. Bosch balançou a cabeça.
- Tentou. Ontem.
Bosch olhou em torno, notou o cigarro ainda na mão e colocou-o na boca.
- Se importa se eu fumar aqui?
- Você já andou fumando aqui.
Bosch tirou o isqueiro do bolso da jaqueta e acendeu o cigarro. Pegou a cesta de lixo embaixo da escrivaninha e colocou-a perto da cadeira para servir de cinzeiro.
- Parece que não consigo largar este troço.
- Personalidade propensa ao vício. Uma característica boa e má em detetives.
- E, sei lá - disse Bosch, dando uma tragada e acrescentando: Nós nos conhecemos há o quê, dez, doze anos?
- Mais ou menos.
- Já trabalhamos juntos em alguns casos, e ninguém trabalha com alguém num caso sem formar uma opinião do outro. Sabe do que estou falando?
McCaleb não respondeu. Bosch bateu de leve o cigarro na borda da cesta de lixo.
- E o que me mais incomoda, mais até do que a própria acusação, é ser acusado por você. E pensar em como e por que você pôde achar isso, entende? Que opinião tinha
de mim para poder chegar a essa conclusão?
McCaleb fez um gesto com ambas as mãos, como dizendo que a resposta era óbvia.
- As pessoas mudam. Se houve uma coisa que o trabalho me ensinou sobre as pessoas é que qualquer um de nós é capaz de qual-
quer coisa, dadas as circunstâncias certas, as pressões certas, os motivos certos, e o momento certo.
- Tudo isso é psicobesteira. Não...
Bosch não terminou, deixando a frase no ar. Ele olhou novamente para o computador e para os papéis espalhados na escrivaninha. Apontou com o cigarro para a tela
do laptop.
- Você fala das noites... de algo mais escuro que a noite. -E daí?
Bosch deu uma tragada forte no cigarro, inclinou a cabeça para trás e soltou a fumaça na direção do teto, dizendo:
- Quando eu servi no exterior, fui mandado para os túneis. Quer saber o que é treva? Pois eu digo a você, treva era aquilo. Lá embaixo. Às vezes não dava pra ver
a porra da mão a menos de centímetros do rosto. Era tão escuro que os olhos doíam, tentando ver alguma coisa. Qualquer coisa que fosse.
Deu outra longa tragada no cigarro. McCaleb ficou examinando os olhos de Bosch, que pareciam sem expressão, perdidos na lembrança. Subitamente, ele voltou. Estendeu
a mão, apagou o cigarro fumado apenas pela metade na borda interna da cesta de lixo e jogou-o lá dentro.
- E o meu jeito de tentar largar o troço. Só fumo essas merdas mentoladas e nunca passo da metade. Já baixei para um maço por semana.
- Não vai funcionar.
- Eu sei.
Ele ergueu os olhos para McCaleb e deu um sorriso maroto, como pedindo desculpas. Mas logo mudou de expressão e voltou à história.
- Mas às vezes não era tão escuro lá embaixo. Nos túneis. Às vezes tinha um pouquinho de luz e dava até pra enxergar o caminho. O negócio é que eu nunca sabia de
onde aquela luz vinha. Era como se a luz estivesse presa lá embaixo com a gente. Eu e meus amigos chamávamos aquilo de luz perdida. Estava perdida, mas foi encontrada
por nós.
McCaleb ficou esperando, mas Bosch não disse mais nada.
- O que está querendo me dizer, Harry?
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- Que deixou escapar alguma coisa. Não sei o que foi, mas deixou escapar alguma coisa.
Ele manteve os olhos escuros fixos em McCaleb. Estendeu a mão de volta para a escrivaninha e pegou a pilha de documentos copiados que Jaye Winston trouxera. Jogou-os
pelo pequeno aposento no colo de McCaleb, que não fez movimento para apanhálos. Os papéis caíram e se espalharam pelo chão.
- Olhe de novo. Deixou escapar alguma coisa, e a soma total do que encontrou apontava para mim. Volte lá e encontre a peça que deixou escapar. Isso vai mudar a soma
total.
- Eu já disse, estou fora do caso.
- Pois vou colocar você dentro novamente.
Bosch disse isso de forma peremptória, como se McCaleb não tivesse escolha.
- Você tem até quarta-feira, que é o prazo máximo daquele jornalista. Tem que evitar a publicação da matéria dele com a verdade. Se não conseguir, sabe o carnaval
que J. Reason Fowkkes vai fazer com isso.
Eles ficaram sentados ali, encarando-se em silêncio, por um longo momento. Na época em que trabalhava como elaborador de perfis, McCaleb conversara com dúzias de
assassinos. Poucos deles admitiam prontamente seus crimes. Portanto, nisso Bosch não era diferente. Mas a intensidade com que o detetive o encarava, sentado ali
sem piscar, era algo que McCaleb jamais vira em homem algum, culpado ou inocente.
- Storey já matou duas mulheres, e essas são só as que nós sabemos. Ele é o monstro que você levou toda a sua vida caçando, McCaleb. E agora... e agora você está
dando a ele a chave que destranca a porta da jaula. Se ele sair, vai fazer a mesma coisa de novo. Você conhece o tipo. Sabe que vai.
McCaleb não conseguia competir com o olhar de Bosch. Baixou os olhos para a arma em suas mãos.
- O que fez você pensar que eu concordaria com isso? - perguntou.
- Como eu disse, a gente forma opinião sobre os outros. Eu formei a minha sobre você, McCaleb. Você vai concordar. Senão, vai
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passar o resto da vida perseguido pelo monstro que vai libertar. Se Deus está realmente nos olhos da sua filha, como vai conseguir voltar a olhar pra ela?
McCaleb balançou a cabeça inconscientemente e pôs-se a pensar no que acabara de fazer.
- Lembro-me do que me disse uma vez - prosseguiu Bosch. - Que se Deus está nos detalhes, o diabo também está. Você queria dizer que a pessoa que nós procuramos geralmente
está bem na nossa frente, escondida nos detalhes o tempo todo. Sempre me lembro dessa frase. E isso me ajuda até hoje.
McCaleb balançou a cabeça novamente e baixou o olhar para os documentos jogados no chão.
- Escute, Harry, você pode entender. Eu estava plenamente convencido disso quando levei a coisa para Jaye. Não sei se posso dar meia-volta e ir na direção oposta.
Se quer ajuda, provavelmente eu sou a pessoa errada.
Bosch balançou a cabeça e sorriu.
- E exatamente por isso que você é a pessoa certa. Se puder ser convencido, o mundo poderá ser convencido.
- E, onde você estava na véspera do Ano-Novo? Por que não começamos por aí?
Bosch deu de ombros.
- Em casa.
- Sozinho?
Bosch deu de ombros novamente e não respondeu. Levantou-se para sair. Pôs as mãos nos bolsos da jaqueta. Passou pela porta estreita e subiu a escada para o salão.
McCaleb foi atrás dele, já com a arma ao lado do corpo.
Bosch abriu a porta corrediça com o ombro. Ao passar para o convés, ergueu os olhos para a catedral na encosta da colina e olhou em seguida para McCaleb.
- Era conversa fiada todo aquele papo lá em casa sobre achar a mão de Deus? Era técnica de entrevista, esse tipo de coisa? Era uma declaração destinada a obter uma
resposta que se encaixaria num perfil?
McCaleb abanou a cabeça.
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- Não, não era conversa fiada.
- Que bom. Eu estava torcendo para que não fosse.
Bosch passou pela verga na direção da popa. Desamarrou o esquife alugado, entrou na embarcação e sentou-se no banco traseiro. Antes de ligar o motor, olhou mais
uma vez para McCaleb e apontou para a popa do barco.
- Mar que Segue. O que isso quer dizer?
- Foi meu pai que batizou o barco. Era dele. O mar que segue é a onda que se ergue atrás de nós, que nos atinge antes de vermos que ela está vindo. Acho que ele
deu esse nome ao barco como um tipo de aviso. Cuidado com a retaguarda, entende?
Bosch balançou a cabeça.
- Quando eu servi no exterior, a gente dizia um para o outro, mão no coldre.
Foj a vez de McCaleb balançar a cabeça.
- E a mesma coisa.
Ficaram em silêncio por um momento. Bosch pôs a mão na maçaneta de partida do motor, mas não fez nada.
- Conhece a história deste lugar, Terry? Estou falando do tempo antes da chegada dos missionários.
- Não. Você conhece?
- Um pouco. Eu costumava ler muitos livros de história quando era criança. Tudo que houvesse na biblioteca- Gostava de história local. De Los Angeles principalmente,
e da Califórnia. Gostava de ler essas coisas, mais nada. Uma vez o orfanato fez uma excursão até aqui. E eu li tudo que podia sobre este lugar.
McCaleb balançou a cabeça.
- Os índios que viviam aqui, os gabrielinos, eram adoradores do sol - disse Bosch. - Os missionários chegaram e mudaram tudo. Na verdade, foram eles que batizaram
os índios de gabrielinos. Eles próprios se chamavam de outra coisa, mas não lembro o que era. Mas antes os índios já estavam aqui e adoravam o sol. Acho que o sol
era tão importante para a vida na ilha que eles imaginaram que só podia ser um deus.
McCaleb viu os olhos escuros de Bosch perscrutarem a baía.
- Os índios do continente consideravam os índios da ilha feiticeiros ferozes, que podiam controlar o tempo e as ondas por meio de orações e sacrifícios ao seu Deus.
Quer dizer, eles só podiam ser ferozes e fortes para conseguirem cruzar a baía, a fim de vender sua cerâmica e peles de foca no continente.
McCaleb ficou examinando Bosch, tentando entender a mensagem que tinha certeza que o detetive estava tentando transmitir.
- Do que está falando, Harry? Bosch deu de ombros.
- Sei lá. Acho que quero dizer que as pessoas encontram Deus onde precisam que Ele esteja. No sol, nos olhos de uma
recém-nascida... num coração novo.
Olhou para McCaleb. Tinha os olhos negros e indecifráveis como os da coruja pintada.
- E algumas pessoas - começou McCaleb - encontram a salvação na verdade, na justiça e no que é direito.
Bosch balançou a cabeça e deu aquele sorriso maroto novamente.
- Isso parece bacana.
Virou-se e deu a partida no motor com um único puxão. Depois fez uma continência de brincadeira para McCaleb e se afastou, orientando o esquife de aluguel na direção
do píer. Por não conhecer as regras do porto, cortou pelo meio do canal e foi passando entre as bóias de atracação sem uso. Não olhou para trás. McCaleb ficou observando-o
durante todo o percurso. Um homem sozinho na água, num velho barco de madeira. Aquele pensamento trazia uma pergunta. Ele estava pensando em Bosch ou nele mesmo?
Capítulo 30
Bosch comprou uma Coca-Cola no balcão da concessionária da barca de volta, na esperança de que o refrigerante acalmasse seu estômago, evitando o enjôo. Perguntou
a uma das comissárias onde era o lugar mais estável da embarcação e foi orientado para um dos assentos centrais no interior. Sentou-se e bebeu um pouco do refrigerante.
Depois tirou do bolso da jaqueta as páginas dobradas que imprimira no escritório de McCaleb.
Ele imprimira dois arquivos antes de ver McCaleb se aproximando no Zodiac. Um se chamava PERFIL DA CENA DO CRIME, e o outro PERFIL DO INDIVÍDUO. Dobrara os dois
e os pusera no bolso, desconectando a impressora portátil do laptop antes de McCaleb entrar no barco. Só tivera tempo de examiná-los rapidamente na tela do computador
e começou a fazer uma leitura mais completa ali na barca-
Pegou primeiro o perfil da cena do crime, que tinha apenas uma página. Estava inacabado e parecia uma simples listagem das anotações e impressões de McCaleb a partir
do vídeo da cena do crime
Ainda assim, aquilo revelava como McCaleb trabalhava. Mostrava como suas observações de uma cena se transformavam em observações sobre um suspeito.
290
CENA
1. Ligadura
2. Nu
3. Ferimento na cabeça
4. Fita gomada/mordaça - "Caverna"?
5. Balde?
6. Coruja - assistindo?
altamente organizado
detalhista
declaração - a cena é sua declaração
ele estava lá - ele assistiu (a coruja?)
exposição = humilhação da vítima
= ódio à vítima, desprezo
balde - remorso?
assassino - conhecimento prévio da vítima
conhecimento pessoal - interação
prévia
ódio pessoal
assassino dentro do círculo
qual é a declaração?
Bosch releu a página e ficou pensando sobre aquilo. Embora não conhecesse plenamente a cena do crime de onde as anotações haviam sido extraídas, ficou impressionado
com os saltos de lógica que McCaleb dava. Ele tinha descido cuidadosamente os degraus até concluir que o assassino era um conhecido de Gunn, alguém a ser encontrado
dentro do círculo pessoal dele. Em qualquer caso, aquela era sempre uma distinção importante a ser feita. Geralmente as prioridades investigativas eram estabelecidas
quando se decidia se o suspeito procurado cruzara com a vítima somente quando a matara, ou antes. Pelas características da cena do crime,
291
McCaleb concluíra que o assassino era um conhecido de Gunn, e que houvera um prelúdio para esse cruzamento final e fatal entre assassino e vítima.
A segunda página continuava a listagem de anotações resumidas, e Bosch supôs que McCaleb planejava transformar aquilo num perfil de carne e osso. Enquanto lia, percebeu
que alguns grupos de palavras eram frases que McCaleb ouvira dele próprio.
SUSPEITO Bosch:
instituições - abrigo juvenil, Vietnã, DPLA marginal - alienação olhos - perdidos, perda homem com uma missão - anjo vingador a grande roda sempre girando ninguém
escapa o que vai volta
álcool
divórcio - esposa? por quê?
alienação/obsessão
mãe
casos
sistema judiciário - "besteira"
transmissores da pestilência
culpa?
Harry = Hieronymus
coruja = mal
mal = Gunn
morte do mal = liberação dos fatores estressantes
pinturas - demônios - diabos - mal
treva e luz - a borda
punição
mãe - justiça - Gunn
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a mão de Deus - polícia - Bosch punição = obra de Deus
Mais
escuro que a noite - Bosch
Bosch não sabia ao certo como interpretar aquelas anotações, mas seus olhos foram atraídos para a última linha. Ele leu aquilo várias vezes, sem saber direito o
que McCaleb estava dizendo a respeito dele.
Depois dobrou cuidadosamente a página e ficou sentado, imóvel, por bastante tempo. De certa forma, era uma sensação surrealista ficar sentado naquela barca depois
de tentar interpretar as anotações que outra pessoa fizera a respeito dos motivos pelos quais ele deveria ser considerado suspeito de assassinato. Começou a sentir
um leve enjôo e percebeu que talvez estivesse ficando mareado. Engoliu o restante da Coca-Cola e se levantou, pondo as páginas de volta no bolso do paletó.
Dirigiu-se à parte dianteira da embarcação e empurrou a pesada porta que dava para a proa. O ar frio deu-lhe um choque imediato, e ele avistou o tênue contorno do
continente à distância. Manteve os olhos no horizonte e respirou com força. Em poucos minutos estava se sentindo melhor.
Capítulo 31
McCaleb ficou muito tempo sentado no velho sofá do salão, pensando sobre seu encontro com Bosch. Pela primeira vez, em toda sua carreira de investigador, um suspeito
de assassinato o procurara para pedir ajuda. Ele precisava decidir se aquilo fora o ato de um homem desesperado ou de um homem sincero. Ou ainda outra coisa, possivelmente.
E se ele não tivesse percebido o esquife alugado e corrido para o barco? Bosch teria esperado por ele?
McCaleb desceu até o camarote dianteiro e olhou para os documentos espalhados no chão. Ficou imaginando se Bosch os jogara intencionalmente, para que os papéis caíssem
no chão e se misturassem. Será que o detetive levara algo?
Voltou à escrivaninha e examinou o laptop. O computador não estava ligado à impressora, mas McCaleb sabia que isso não significava nada. Fechou o arquivo que estava
na tela e abriu a janela de gerenciamento da impressora. Clicou no arquivo de tarefas executadas e viu que dois arquivos haviam sido impressos naquele dia - os perfis
da cena do crime e do suspeito. Bosch os levara.
McCaleb visualizou o detetive sentado na barca da Express, cruzando a baía e lendo o que fora escrito a seu respeito. Sentiu-se desconfortável diante daquela imagem,
pois jamais pensou que um dos perfis elaborados por ele pudesse ser lido pelo próprio suspeito.
Afastou a idéia e decidiu ocupar a cabeça com outra coisa.
294
Ajoelhou-se e começou a pegar os dossiês de assassinatos, arrumando-os numa pilha sem se preocupar no momento em colocálos em ordem.
Depois de arrumar a bagunça, sentou-se à escrivaninha com os dossiês empilhados à sua frente e pegou uma página em branco numa gaveta. Com o grosso marcador preto
que usava para etiquetar as caixas de papelão onde guardava os dossiês, escreveu:
VOCÊ DEIXOU ESCAPAR UMA COISA
Pegou uma fita adesiva na escrivaninha e colou a folha na parede à sua frente. Ficou olhando para aquilo durante bastante tempo. Tudo que Bosch lhe dissera podia
ser resumido naquela única linha. Só precisava decidir se aquilo era verdade, se aquilo era possível. Ou se era a última jogada de um homem desesperado.
Ouviu o celular tocando. O aparelho estava no bolso da jaqueta que tinha deixado no sofá do salão. Subiu correndo a escada e pegou-a. Quando
meteu a mão no bolso, sentiu o contorno da arma. Tentou o outro bolso e pegou o telefone. Era Graciela.
- Já chegamos em casa - disse ela. - Pensei que você estaria aqui. Achei que talvez pudéssemos ir todos almoçar no El Encanto.
- Hum...
McCaleb não queria deixar o escritório nem seus pensamentos sobre Bosch. Mas a última semana fora meio estressante com Graciela. Precisava conversar com ela sobre
isso, sobre as mudanças que andava vendo nas coisas.
- Estou terminando um negócio aqui - disse por fim. - Por que não desce com as crianças e eu me encontro com vocês no píer?
Olhou para o relógio. Eram quinze para a uma.
- Uma e meia é tarde demais?
- Ótimo - disse ela abruptamente. - Qual é o negócio?
- Ah, é só... Estou meio que fechando esse negócio para Jaye.
- Você não disse que tinha saído do caso?
- Saí, mas estou com todos os relatórios e queria concluir o... Dar uma espécie de arremate, entende?
- Não se atrase, Terry - disse Graciela, num tom de voz que insinuava que ele perderia mais do que o almoço, caso se atrasasse.
295
- Não vou me atrasar. Vejo vocês lá.
Fechou o telefone e voltou ao escritório. Olhou para o relógio novamente. Tinha cerca de meia hora antes de ser obrigado a pegar o bote e voltar ao píer. O El Encanto
ficava a cinco minutos dali, a pé. Era um dos poucos restaurantes da ilha que ficavam abertos durante os meses de inverno.
Sentou-se e começou a pôr em ordem os documentos da pilha. Não era uma tarefa difícil. Cada página tinha um carimbo com a data no canto superior direito. Mas McCaleb
parou logo depois de começar. Olhou para a mensagem pregada na parede e concluiu que precisava examinar as informações por outro ângulo se queria descobrir algo
que não notara antes, que lhe escapara. Decidiu não pôr a pilha na ordem correta. Em vez disso, releria os documentos na ordem aleatória em que se encontravam. Fazendo
isso, evitaria pensar no fluxo das investigações e suas etapas sucessivas. Simplesmente teria que considerar cada relatório como uma peça isolada num quebra-cabeças.
Era um truque mental simples, mas ele já agira assim em outros casos no FBI. Às vezes surgia algo novo, algo que lhe escapara anteriormente.
Olhou para o relógio novamente e pegou o primeiro documento da pilha. Era o laudo da autópsia.
Capítulo 32
McCaleb aproximou-se rapidamente dos degraus da entrada do El Encanto. Viu seu carrinho de golfe estacionado no meio-fio. A maioria dos veículos desse tipo existentes
na ilha eram parecidos, mas ele identificou o dele por causa do assento rosa e branco do bebê. Sua família ainda estava ali.
Subiu os degraus, e a recepcionista, reconhecendo-o como morador da ilha, apontou-lhe a mesa onde sua família estava. Correu para lá e puxou uma cadeira ao lado
de Graciela. Eles estavam quase terminando de almoçar, e ele notou que a garçonete já deixara a conta na mesa.
- Desculpe, eu me atrasei.
Pegou uma batata frita da cestinha no centro da mesa e molhou-a nas tigelas de salsa e guacamole antes de metê-la na boca. Graciela consultou o relógio e fuzilou-o
com seus profundos olhos castanhos. Ele agüentou firme, já se preparando para o próximo olhar, que tinha certeza que viria
- Não posso ficar.
Ela pousou o garfo ruidosamente no prato. Terminara. - Terry...
- Eu sei, eu sei. Mas surgiu uma coisa. Preciso ir à cidade ainda hoje.
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- O que pode ter surgido? Você está fora do caso. É domingo. As pessoas estão vendo futebol, e não se metendo em assassinatos que não lhes pediram para solucionar.
Ela apontou para um televisor instalado no canto superior do salão. Três comentaristas com pescoços grossos estavam sentados diante de uma bancada, tendo ao fundo
um campo de futebol americano. McCaleb sabia que o vencedor daquele dia seria um dos adversários do próximo jogo do Super Bowl. Estava pouco se importando com aquilo,
mas subitamente lembrou que prometera assistir a pelo menos um dos jogos com Raymond.
- Pediram, sim, Graciela.
- Do que está falando? Não me disse que eles te pediram pra ficar fora do caso?
Ele revelou que descobrira Bosch no barco naquela manhã e contou o que o detetive lhe pedira para fazer.
- E foi esse cara que você apontou para Jaye como o provável culpado?
McCaleb balançou a cabeça.
- Como ele sabia onde você morava?
- Ele não sabia. Ele sabia do barco, mas não onde a gente mora. Não precisa ficar preocupada com isso.
- Acho que preciso. Terry, você está levando isso longe demais e não está enxergando os perigos pra você mesmo e pra sua família. Eu acho que...
- Sério? Eu acho que...
Ele parou de falar, meteu a mão no bolso e tirou duas moedas de vinte e cinco centavos. Virou-se para Raymond.
- Raymond, já acabou de comer? -Opa.
- Você quer dizer "sim"? -Sim.
- Tá legal, pegue isso e vá jogar videogame ali perto do bar. O menino pegou as moedas.
- Você está dispensado.
Raymond levantou-se, hesitante, e correu para o salão contíguo, onde havia uns videogames de mesa que eles já tinham
299
jogado antes. Escolheu um jogo que McCaleb sabia que era o Pac-man e se sentou, ainda dentro do raio de visão deles.
McCaleb olhou novamente para Graciela, que tinha a bolsa no colo. Ela estava pegando dinheiro e pondo-o sobre a conta.
- Graciela, pare um instante. Olhe pra mim.
Ela terminou de contar o dinheiro e meteu novamente a carteira na bolsa. Olhou para ele.
- Temos que ir embora. Está na hora da soneca de CiCi.
A neném estava no seu assento emborrachado junto à mesa, segurando a bola azul e branca pendurada no arame.
- Ela está bem. Pode dormir aqui mesmo. Simplesmente me escute um minuto.
Ficou esperando, e Graciela assumiu uma expressão condescendente.
- Muito bem. Diga o que tem a dizer, mas depois eu preciso ir embora.
McCaleb se virou, inclinando-se para perto de Graciela a fim de que suas palavras só fossem ouvidas por ela. Notou a borda de uma das orelhas dela aparecendo entre
as mechas de cabelo.
- A gente está se aproximando de uma crise, não é? Graciela concordou com a cabeça. Imediatamente, lágrimas
escorreram pelo seu rosto, como se o fato de McCaleb ter dito aquelas palavras em voz alta houvesse derrubado o tênue mecanismo de defesa que ela construíra interiormente
para se proteger e proteger seu casamento. McCaleb pegou o guardanapo limpo embaixo dos talheres e entregou-o a ela. Depois colocou a mão na nuca de Graciela e puxou-a
em sua direção, beijando-a no rosto. Por cima da cabeça de Graciela, viu Raymond observando-os com uma expressão assustada.
- A gente já conversou sobre isso, Graci - começou ele. - Você meteu na cabeça que nós não podemos ter nossa casa, nossa família e tudo mais, se eu trabalhar nisso.
O problema é a palavra "se". Esse é que é o erro. Porque não existe "se". Não é "se eu trabalhar nisso". E nisso que eu trabalho. E já passei tempo demais pensando
o contrário, tentando me convencer de outra coisa.
300
Mais lágrimas irromperam, e Graciela levou o guardanapo ao rosto. Chorava em silêncio, mas McCaleb sabia que as pessoas no restaurante já haviam notado e estavam
assistindo à cena entre os dois, indiferentes à televisão ali no alto. Deu uma olhada para Raymond e viu que o garoto já voltara ao videogame.
- Eu sei - conseguiu dizer Graciela.
Ele ficou surpreso com a admissão dela. Tomou aquilo como um bom sinal.
- Então, o que a gente vai fazer? Não estou falando só de agora e desse caso. Estou falando de agora e sempre. O que a gente vai fazer? Graci, estou cansado de tentar
ser o que não sou e de ignorar aquilo dentro de mim que eu sei que é o que sou de verdade. Foi preciso esse caso para que eu finalmente percebesse e admitisse isso
pra mim mesmo.
Graciela não disse nada. McCaleb não esperava que ela dissesse.
- Você sabe que eu te amo, e que amo as crianças. O problema
não é esse. Eu acho que posso ter as duas coisas, e você acha que
não. Você adotou essa atitude de uma-coisa-ou-outra, e eu acho
que isso não é certo. Nem justo.
Ele sabia que estava magoando Graciela com aquelas palavras. Estava traçando uma linha divisória. Um dos dois teria que capitular. E estava dizendo que não seria
ele.
- Escute, vamos pensar sobre isso. Aqui não é um bom lugar pra conversar. Vou terminar o meu trabalho nesse negócio, e depois nós vamos nos sentar e conversar sobre
o nosso futuro. Está bem?
Ela balançou a cabeça vagarosamente, mas não olhou para ele.
- Faça o que tiver que fazer - disse ela, num tom de voz que McCaleb percebeu que o deixaria culpado para sempre. - Só espero que tome cuidado.
Ele a puxou para si e a beijou novamente.
- Tenho coisa demais aqui com você pra não tomar. Levantou-se e deu a volta à mesa. Foi até a neném e beijou-a
no alto da cabeça. Destravou o cinto de segurança do assento emborrachado e ergueu a menina.
- Vou levar a Ciei até o carrinho de golfe - disse ele. - Por que não pega o Raymond?
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Levou a neném até o carrinho e prendeu-a no assento de segurança. Pôs o assento emborrachado no compartimento de carga traseiro. Graciela chegou com Raymond poucos
minutos depois. Tinha os olhos inchados de tanto chorar. McCaleb pôs a mão no ombro de Raymond e levou-o até o banco do carona.
- Raymond, vai ter que assistir ao segundo jogo sem mim. Tenho um trabalho a fazer.
- Posso ir com você. Posso ajudar.
- Não, não é um passeio marcado
- Eu sei, mas mesmo assim posso ajudar.
McCaleb sabia que Graciela estava olhando para ele e sentiu a culpa ardendo feito o sol nas costas.
- Obrigado, Raymond, mas talvez da próxima vez. Ponha o cinto de segurança.
Depois que o menino se acomodou, McCaleb deu um passo atrás. Olhou para Graciela, que não estava mais olhando para ele, e disse:
- Vou voltar logo que puder. E vou levar o telefone, caso você queira ligar.
Graciela fingiu que não ouviu. Afastou o carrinho do meio-fio e seguiu pela avenida Manila. McCaleb ficou olhando até eles
desaparecerem de vista.
Capítulo 33
Na caminhada de volta ao píer o celular tocou. Era Jaye Wtnston retornando a ligação dele. Ela estava falando bem baixinho e disse que estava telefonando da casa
da mãe. McCaleb estava com dificuldade para ouvi-la, e sentou-se num dos bancos ao longo da calçada do cassino. Inclinou-se para a frente e pôs os cotovelos nos
joelhos, com uma das mãos segurando o telefone junto ao ouvido e a outra sobre a primeira.
- Deixamos escapar alguma coisa - disse ele. - Deixei escapar alguma coisa.
- Terry, do que está falando?
- No dossiê de assassinato. No prontuário da prisão de Gunn. Ele estava...
- Terry, o que é isso? Você está fora do caso.
- Quem disse isso, o FBI? Eu não trabalho mais pra eles, Jaye.
- Então quem diz sou eu. Não quero que prossiga nisso...
- Também não trabalho pra você, Jaye. Lembra? Houve um longo silêncio ao telefone.
- Terry, não sei o que está fazendo, mas tem que parar. Você não tem autoridade, não desempenha mais qualquer função nesse caso. Se aqueles caras, Twilley e Friedman,
descobrirem que ainda está metendo o bedelho nisso, podem prender você por interferência. E você sabe que eles são do tipo que faz isso.
- Você quer uma função, eu já tenho uma função.
304
- O quê? Ontem mesmo retirei a autorização que dei a você. Não pode me usar pra isso.
McCaleb hesitou, e depois decidiu contar tudo a Jaye.
- Tenho uma função. Acho que dá pra dizer que estou trabalhando para o acusado.
O silêncio de Jaye foi mais longo ainda dessa vez. Quando voltou a falar, pronunciou as palavras com muita lentidão.
- Está dizendo que foi procurar Bosch?
- Não. Ele veio me procurar. Apareceu no barco hoje de manhã. Eu tinha razão sobre a coincidência daquela noite. Apareço na casa dele, e a ex-parceira dele liga
falando de você. Ele juntou as coisas. O repórter do New Times também telefonou pra ele. Bosch percebeu o que estava acontecendo sem que eu precisasse lhe contar
nada. Mas nada disso importa, Jaye. O que importa é que eu acho que me precipitei acusando Bosch. Deixei escapar alguma coisa, e já não tenho tanta certeza. E possível
que tudo tenha sido uma armação.
- Ele convenceu você.
Não, eu mesmo me convenci.
McCaleb ouviu vozes ao fundo, e Jaye disse-lhe que esperasse um instante. Depois ouviu vozes abafadas por uma mão sobre o fone, no que parecia uma discussão. Levantou-se
e continuou a andar na direção do píer. Jaye voltou ao telefone depois de alguns segundos.
Desculpe - disse ela. - Não é uma boa hora pra conversar. Estou no meio de uma confusão aqui.
Podemos nos encontrar amanhã de manhã? Do que está falando? - disse Jaye, quase guinchando. Acaba de me dizer que está trabalhando para o alvo de uma investigação.
Não vou me encontrar com você. O que ia parecer, caralho? Espere um instante...
McCaleb ouviu a voz abafada de Jaye pedindo desculpas a alguém pelo palavreado. Depois voltou à linha. - Olhe, preciso desligar.
Escute, não me interessa o que ia parecer. Estou interessado é na verdade, e achei que você também estava. Se não quer se encontrar comigo, ótimo. Também preciso
desligar.
- Terry, espere.
305
Ele ficou ouvindo. Jaye não disse nada. McCaleb percebeu que ela estava pensando em outra coisa. -E aí, Jaye?
- O que disse que nós deixamos escapar?
- Estava no pacote sobre a última prisão de Gunn por bebedeira. Depois que Bosch contou que conversara com Gunn na cadeia, acho que você reuniu todos os prontuários.
Só dei uma olhada neles quando folheei o dossiê pela primeira vez.
- Eu reuni os prontuários - disse ela em tom defensivo. - Ele passou a noite de 30 de dezembro na cela de detenção de Hollywood. Foi lá que Bosch falou com ele.
- E foi libertado sob fiança pela manhã. Às sete e meia.
- E. E daí? Não entendi.
- Veja quem pagou a fiança.
- Terry, estou na casa dos meus pais. Não tenho...
- Tem razão, desculpe. A fiança foi paga por Rudy Tafero. Silêncio. McCaleb já chegara ao píer. Foi andando pelo passa-
diço que levava ao cais dos esquifes e apoiou-se na balaustrada. Pôs novamente a mão livre em concha sobre o ouvido.
- Tá legal, a fiança foi paga por Rudy Tafero - disse Jaye. Presumo que Rudy seja um fiador licenciado. O que isso significa?
- Você não anda assistindo à tevê. Tem razão, Tafero é um fiador licenciado. Pelo menos pôs o número da licença na folha de fiança. Mas também é investigador particular
e consultor de segurança. Além disso... prepare-se, Jaye ... trabalha para David Storey.
Jaye não disse nada, mas McCaleb ouviu-a soltar um arquejo ao telefone.
- Terry, acho melhor você ir mais devagar. Está tirando conclusões demais a partir disso.
- Nada é coincidência, Jaye.
- Que coincidência? O sujeito é um fiador licenciado. Trabalha nisso. Tira as pessoas da cadeia. Aposto com você uma caixa de rosquinhas que o escritório dele fica
bem diante da delegacia de Hollywood junto com os outros. Provavelmente ele paga a fiança de um terço dos bêbados e de um quarto das prostitutas da cela de detenção
de lá.
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- Você não acredita que a explicação seja tão simples, e sabe disso.
- Não venha me dizer o que eu sei.
- Isso foi no meio dos preparativos para o julgamento de Storey. Por que Tafero iria até lá e assinaria ele próprio uma fiança por bebedeira?
- Porque talvez ele trabalhe sozinho, e talvez, como eu disse, só precisasse atravessar a rua.
- Não acredito. E tem mais. A folha de ocorrência diz que Gunn deu o telefonema a que tinha direito às três da madrugada,
31 de dezembro. O número está na folha... Ele ligou para a irmã em Long Beach.
- Tá legal, e daí? Já sabíamos disso.
- Telefonei pra ela hoje e perguntei se tinha chamado um fiador para ele. Ela disse que não. Disse que estava cansada de receber telefonemas de madrugada e de viver
literalmente tirando o irmão da forca. Disse que dessa vez mandara Gunn se virar sozinho.
- Então ele procurou Tafero. E daí?
- Como conseguiu? Já tinha dado o único telefonema permitido. Jaye não conseguiu responder. Os dois ficaram em silêncio por
certo tempo. McCaleb lançou um olhar pelo porto. A lancha de aluguel amarela estava deslizando lentamente por um dos canais,
vazio, a não ser pelo homem ao volante. Homens sozinhos em barcos, pensou McCaleb.
- O que vai fazer? - perguntou Jaye por fim. - Para onde vai levar essa história?
- Vou à cidade hoje à noite. Pode encontrar-se comigo de manhã?
-Onde? Quando?
O tom de voz de Jaye revelava que ela estava irritada com a perspectiva daquele encontro.
- Sete e trinta, diante da delegacia de Hollywood. Houve uma pausa, e depois Jaye disse:
- Espere um instante, espere um instante. Não posso fazer isso. Se Hitchens souber, estou frita. Ele vai me transferir para Palmdale. Vou passar o resto da minha
carreira desencavando ossos na areia do deserto.
307
McCaleb estava pronto para aquele protesto.
- Não disse que os caras do FBI querem o dossiê de assassinato de volta? Você se encontra comigo, e eu levo o dossiê. O que Hitchens pode dizer a respeito disso?
Houve um silêncio enquanto Jaye pensava no assunto.
- Tá legal, vai funcionar. Estarei lá.
Capítulo 34
Quando chegou em casa à noite, Bosch encontrou a luz de recados da secretária eletrônica piscando. Apertou o botão e ouviu dois recados, um de cada promotor do caso
Storey. Decidiu retornar primeiro o telefonema de Janis Langwiser. Enquanto teclava o número no telefone, ficou imaginando que emergência fizera os dois membros
da equipe da promotoria lhe telefonarem. Pensou que talvez tivessem sido contatados pelos agentes do FBI que McCaleb mencionara. Ou pelo repórter.
- O que há? - perguntou ele, quando Janis atendeu. - Pra vocês dois me ligarem, deve ser coisa grande e ruim.
- Harry? Como está?
- Vou levando. O que estão aprontando?
- E engraçado você dizer isso. Roger está vindo pra cá, e eu estou aprontando o jantar. Vamos repassar o depoimento de Annabelle Crowe para o júri de instrução mais
uma vez. Não quer vir?
Ele sabia que ela morava em Água Dulce, a uma hora de carro ao norte dali.
- Hum, já passei o dia todo dirigindo. Fui até Long Beach e voltei. Acha que precisam mesmo de mim aí?
- Opcional. Só não queríamos que se sentisse excluído. Mas não foi por isso que telefonamos.
- Qual foi o motivo?
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Ele estava na cozinha, colocando um engradado de cervejas Anchor Steam na geladeira. Tirou uma garrafa e fechou a porta.
- Eu e Roger passamos o fim de semana inteiro conversando sobre isso. Também falamos com Alice Short sobre o assunto.
Alice Short era a principal assistente da promotoria, encarregada dos julgamentos mais importantes. Chefe deles. Parecia que haviam sido contatados a respeito do
caso Gunn.
- Que "assunto"? - perguntou Bosch, enfiando a garrafa no abridor da parede e arrancando a tampa.
- Bom, achamos que o caso está realmente correndo como manda o figurino. Tudo se encaixou. Na verdade, a coisa é à prova de bala, Harry, e achamos que devemos puxar
o gatilho amanhã.
Bosch ficou em silêncio por algum tempo, enquanto tentava decifrar o código armamentista utilizado.
- Está dizendo que vamos encerrar amanhã?
- Achamos que sim. Provavelmente vamos conversar sobre isso novamente hoje, mas já temos a bênção de Alice, e Roger acha que essa é realmente a jogada certa. Estamos
pensando em interrogar várias testemunhas de encerramento pela manhã e convocar Annabelle Crowe depois do almoço. Finalizaríamos com ela... uma história humana.
Ela vai ser o nosso fecho de ouro.
Bosch ficou mudo. Podia ser a jogada certa do ponto de vista da promotoria, mas colocaria J. Reason Fowkkes no controle das coisas já na terça-feira.
- Harry, o que acha?
Ele deu um bom gole na garrafa. A cerveja não estava muito gelada. Tinha ficado muito tempo no carro.
- Acho que assim vocês só têm um tiro - disse ele, mantendo as imagens de armamento. - É melhor pensarem bastante nisso hoje, enquanto prepararam o macarrão. Não
vão ter uma segunda chance de argumentar.
- Sabemos disso, Harry. E como sabe que estou preparando macarrão?
Dava para ouvir o sorriso na voz dela.
- Chutei.
- Bom, não se preocupe, vamos pensar bastante no caso. E o
que temos feito.
Ela fez uma pausa, permitindo que ele respondesse, mas Bosch
ficou em silêncio.
- Se seguirmos esse caminho, qual é a situação de Annabelle?
- Ela está esperando nos bastidores. Pronta para entrar em
cena.
- Consegue falar com ela hoje?
- Sem problema. Vou dizer a ela pra estar lá ao meio-dia.
- Obrigado, Harry. A gente se vê amanhã.
Desligaram. Bosch refletiu sobre as coisas. Ficou pensando se deveria telefonar para McCaleb e contar o que estava acontecendo. Decidiu esperar. Foi para a sala
e ligou o som. O CD de Art Pepper ainda estava na bandeja do aparelho. A música encheu o aposento.
Capítulo 35
McCaleb estava encostado no Cherokee estacionado diante da delegacia de Hollywood do Departamento de Polícia de Los Angeles, quando Jaye Winston chegou numa BMW
Z3 e estacionou. Quando saltou, viu que McCaleb examinava com admiração
o carro.
- Me atrasei e não tive tempo de pegar um carro oficial.
- Gostei do carango. Sabe aquele ditado sobre Los Angeles? Você é o que você dirige.
- Não comece a traçar o meu perfil, Terry. E cedo pra caralho. Onde estão o dossiê e a fita?
Ele notou o palavreado dela, mas não disse nada. Desencostou do carro e deu a volta até o lado do carona. Abriu a porta, tirando o dossiê de assassinato e a fita
de vídeo. Entregou-os a ela, que levou tudo de volta para o BMW. McCaleb fechou e trancou o Cherokee, baixando o olhar através da vidraça para o assoalho do banco
traseiro, onde estava a caixa Kinko que ele cobrira com o jornal da manhã. Antes de ir para o encontro, tinha passado numa loja 24 horas no Sunset Boulevard e feito
uma fotocópia do dossiê inteiro. A fita de vídeo era um problema, pois não sabia onde poderia copiá-la rapidamente. Por isso simplesmente comprara uma fita nova
na Rite-Aid, perto da marina, e metera a fita virgem na caixa que Jaye Winston lhe dera. Calculou que ela não iria verificar na hora se ele tinha devolvido a fita
certa.
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Quando Jaye voltou do carro, McCaleb apontou com o queixo para o outro lado da rua.
- Acho que devo uma caixa de rosquinhas a você.
Ela olhou para o outro lado da rua Wilcox. Bem na frente da delegacia havia um prédio maltratado, de dois andares, com um punhado de escritórios de
fiadores. Nas janelas viam-se os números dos telefones em anúncios baratos de néon. Talvez aquilo ajudasse os possíveis clientes a memorizá-los quando passassem sentados no banco
traseiro das radiopatrulhas. O escritório do meio tinha uma placa pintada na janela: Fianças Valentino.
- Qual deles? - perguntou Jaye.
- Valentino. Rudy Valentino Tafero. Era assim que o chamavam quando trabalhava do lado de cá da rua.
McCaleb examinou novamente o pequeno negócio e abanou a cabeça.
- Ainda não entendo como David Storey pode ter se ligado a um fiador com anúncio de néon.
- Hollywood não passa de lixo de rua com dinheiro. Mas o que a gente está fazendo aqui? Não tenho muito tempo.
- Trouxe seu distintivo?
Jaye lhe lançou um olhar do tipo não-me-sacaneie, e McCaleb explicou o que queria fazer. Os dois subiram os degraus e entraram na delegacia. No balcão da recepção
Jaye mostrou o distintivo e pediu para falar com o sargento do plantão matinal. Um sujeito que trazia o nome Zucker no peito e divisas de sargento na manga saiu
do pequeno escritório. Jaye mostrou o distintivo novamente e se apresentou. Depois apresentou McCaleb como seu sócio. Zucker franziu as volumosas sobrancelhas, mas
não perguntou o que era aquele negócio de sócio.
- Estamos trabalhando num caso de homicídio ocorrido na véspera de Ano-Novo. A vítima passou a noite anterior na cela de detenção aqui. Nós...
- Edward Gunn.
- Certo. Conhecia o sujeito?
- Ele esteve aqui algumas vezes. E é claro que ouvi dizer que não vai mais voltar.
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- Precisamos falar com o responsável pela cela na parte da manhã.
- Então deve ser comigo. Não temos um plantão específico para isso. Aqui a coisa funciona na base de quem está disponível. O que querem saber?
McCaleb tirou do bolso várias fotocópias do dossiê de assassinato e espalhou-as no balcão. Notou o olhar que Jaye lhe lançou, mas ignorou o gesto.
- Estamos interessados em saber como ele conseguiu a fiança disse.
Zucker girou as folhas sobre o balcão para poder ler. Pôs o dedo na assinatura de Rudy Tafero.
- Diz bem aqui. Rudy Tafero. Ele tem um escritório do outro lado da rua. Veio até aqui e pagou a fiança.
- Alguém telefonou pra ele?
- Sim, o cara telefonou. Gunn.
McCaleb bateu com o dedo na cópia da folha do dossiê.
- Diz aqui que ele usou o telefonema permitido pra ligar pra este número. E o telefone da irmã dele.
- Então ela deve ter telefonado para Rudy, em nome dele.
- Portanto, aqui ninguém dá dois telefonemas.
- Não. O movimento é muito grande, e geralmente estamos tão ocupados que eles têm sorte se conseguem dar um.
McCaleb balançou a cabeça. Dobrou as fotocópias e já ia colocá-las de volta no bolso, quando Jaye as tirou da sua mão.
- Eu fico com isso - disse ela.
Meteu as cópias dobradas no bolso traseiro das calças jeans e disse:
- Você não é o tipo do sargento bonzinho que faria o favor de ligar para Tafero, já que ele foi do departamento, dando a dica de que havia um freguês em potencial
pra ele aqui na cela, não é?
Zucker ficou olhando para ela por um instante, com um rosto que parecia de pedra.
- Isso é muito importante, sargento Zucker. Se não nos contar, a coisa pode arrebentar para o seu lado.
O rosto de pedra rachou-se num pálido sorriso.
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- Não, eu não sou bonzinho assim - disse Zucker. - E não tenho ninguém bonzinho assim no turno da manhã. Por sinal, está na minha hora de largar o serviço, de modo
que não sou obrigado a ficar falando com vocês. Tenham um bom-dia.
Começou a se afastar do balcão.
- Uma última coisa - disse Jaye rapidamente. Zucker voltou-se.
- Foi você que telefonou para Harry Bosch e contou que Gunn estava na cela?
Zucker balançou a cabeça.
- Eu tinha uma solicitação permanente dele. Sempre que Gunn fosse trazido para aqui, Bosch queria ser informado. Ele vinha e falava com o cara, tentando arrancar
dele algo sobre um caso antigo. Bosch não desistia.
- Aqui diz que Gunn só foi autuado às duas e trinta - disse McCaleb. - Você telefonou para Bosch no meio da noite?
- Era parte do acordo. Bosch não se importava com a hora. E na realidade eu ligava para o bip dele. Só depois é que ele telefonava para mim.
Foi o que aconteceu naquela noite?
Foi. Eu liguei para o bip dele, e Bosch telefonou de volta. Eu disse que Gunn estava aqui novamente. Bosch apareceu e falou com ele. Ainda avisei que era melhor
esperar até de manhã, porque Gunn estava bêbado feito um gambá, mas Bosch veio de qualquer maneira. Por que estão me fazendo tantas perguntas sobre ele? Jaye não
respondeu, de modo que McCaleb se intrometeu.
- Estamos fazendo perguntas sobre Gunn.
- Bom, isso é tudo que eu sei. Posso ir pra casa agora? Foi um dia longo.
- Todos são, não? - disse Jaye. - Obrigado, sargento.
Eles se afastaram do balcão e foram andando até os degraus da frente.
O que acha? - perguntou Jaye.
Me pareceu sincero. Mas vamos dar uma olhada no estacionamento dos funcionários.
- Pra quê?
- Faça esse favor para mim. Vamos ver qual é o carro do sargento.
- Está desperdiçando meu tempo, Terry.
Eles entraram no Cherokee de McCaleb e deram a volta no quarteirão, até chegarem ao portão do estacionamento dos funcionários da delegacia. McCaleb avançou cerca
de cinqüenta metros e estacionou ao lado de um hidrante. Ajustou o espelho retrovisor lateral para poder ver qualquer carro que saísse do estacionamento. Os dois
ficaram sentados esperando em silêncio, até que Jaye falou.
- Se nós somos o que dirigimos, o que este carro faz de você? McCaleb sorriu.
- Nunca pensei nisso. Um Cherokee... Acho que me faz o último remanescente de alguma estirpe, ou coisa assim.
Ele olhou para ela e depois de volta para o espelho.
- Ah, é? E essa camada de poeira em tudo, o que isso...
- Lá vamos nós. Acho que é ele - disse McCaleb, vendo um carro sair do estacionamento e dobrar à esquerda na direção deles. Depois acrescentou: - Está vindo pra
cá.
Nenhum dos dois se mexeu. O carro se aproximou e parou bem ao lado deles. McCaleb olhou para o lado displicentemente, e seus olhos encontraram os de Zucker. O tira
abaixou a vidraça do lado do carona. McCaleb viu que não tinha saída e também abaixou a sua.
- Está estacionado ao lado de um hidrante, detetive. Cuidado com a multa.
McCaleb balançou a cabeça. Zucker bateu continência com dois dedos e foi embora. McCaleb notou que ele dirigia um Crown Victoria com pára-choques e rodas comuns.
Era uma radiopatrulha de segunda mão. Provavelmente Zucker comprara o carro num leilão por quatrocentos dólares e mandara pintá-lo por noventa.
- Estamos parecendo dois idiotas - disse Jaye.
- Pois é.
- E agora, qual é sua teoria sobre aquele carro?
- Ou é um sujeito honesto, ou vem trabalhar nesse calhambeque pra ninguém ver o Porsche - disse McCaleb fazendo uma pausa. Depois virou-se para Jaye, sorriu e acrescentou:
- Ou o Z3.
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- Muito engraçado, Terry. E agora? Em algum momento do dia eu vou ter que começar a trabalhar de verdade. E tenho um encontro marcado com os seus chapas do FBI ainda
pela manhã.
- Fique comigo... e eles não são meus chapas.' Ele ligou o Cherokee e se afastou do meio-fio.
- Acha mesmo que este carro está sujo? - perguntou.
Capítulo 36
O correio da rua Wilcox era um prédio grande, do tempo da Segunda Guerra Mundial, com pé-direito de mais de oito metros e murais com bucólicas cenas de amizade e
boas ações cobrindo a parte superior das paredes. Quando entraram, McCaleb esquadrinhou os murais, mas não por suas qualidades artísticas ou filosóficas. Contou
três pequenas câmeras instaladas acima das áreas públicas da repartição. Mostrou-as a Jaye Winston. Eles tinham uma chance.
Entraram na fila. Quando chegaram ao guichê, Jaye mostrou seu distintivo e perguntou pelo chefe da segurança no local. Foram orientados para uma porta perto de uma
fileira de máquinas de venda e esperaram quase cinco minutos antes que a porta se abrisse e um homenzinho negro, com cabelo grisalho, espiasse para fora.
- Sr. Lucas? - perguntou Jaye.
- Sou eu - disse ele com um sorriso.
Jaye mostrou o distintivo novamente e apresentou McCaleb simplesmente pelo nome. Ao saírem da delegacia de Hollywood, ele dissera que aquele negócio de chamá-lo
de "sócio" não estava funcionando.
- Estamos trabalhando na investigação de um homicídio e uma das provas materiais importantes é uma ordem de pagamento que foi comprada aqui e provavelmente enviada
pelo correio no dia 22 de dezembro.
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- No dia 22? Então foi durante a correria do Natal.
- Pois é.
Jaye olhou para McCaleb.
- Notamos as suas câmeras lá nas paredes - disse ela. - Gostaríamos de saber se o senhor tem uma fita de videocassete do dia 22.
- Videocassete - repetiu Lucas, como se a palavra lhe fosse estranha.
- O senhor é o chefe da segurança aqui, não é? - disse Jaye, impaciente.
- Sou, sou o homem da segurança. Eu controlo as câmeras.
- Poderia nos levar lá dentro e mostrar o seu sistema de segurança? - disse McCaleb num tom mais gentil.
- Opa, é claro que posso. Levo vocês lá assim que tiverem autorização.
- Como e onde podemos conseguir essa autorização? - perguntou Jaye.
- Na Regional de Los Angeles. No centro da cidade.
- Temos que falar com quem? Estamos numa investigação de homicídio. O tempo é fundamental.
- Teriam que falar com o Preechnar. E o inspetor postal.
- Seria incômodo irmos ao seu escritório e telefonarmos para Preechnar juntos? - perguntou McCaleb. - Isso nos pouparia muito tempo, e ele poderia falar diretamente
com o senhor.
Lucas pensou um pouco na proposta e decidiu que era uma boa idéia. Balançou a cabeça.
- Vamos ver o que podemos fazer.
Abriu a porta e os fez atravessar um lugar apinhado de grandes cestas com correspondência, indo até um escritório minúsculo, com duas escrivaninhas espremidas uma
contra a outra. Numa das mesas havia um monitor de vídeo com a tela dividida entre as imagens das quatro câmeras que vigiavam a área pública do correio. McCaleb
percebeu que não notara uma das câmeras quando examinara as paredes ao entrar.
Lucas correu o dedo pela relação de números de telefone pregada no tampo da mesa e fez a chamada. Assim que o supervisor
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atendeu, ele explicou a situação e passou o fone para Jaye. Ela explicou novamente o que queriam e devolveu o fone a Lucas, balançando a cabeça para McCaleb. Tinham
conseguido a aprovação do homem.
- Muito bem - disse Lucas depois de desligar. - Vamos ver o que temos aqui.
Levou a mão ao quadril e puxou uma argola de chaves presa ao cinto por um fio retrátil. Foi até o outro lado da sala e abriu a porta de um armário, revelando um
suporte para aparelhos de vídeo e quatro prateleiras superiores, cada uma com fitas marcadas por números que iam de 1 a 31. No chão havia dois caixotes de fitas
virgens.
McCaleb viu tudo aquilo e subitamente percebeu que eram 22 de janeiro, exatamente um mês depois do dia em que a ordem de pagamento fora comprada.
- Sr. Lucas, pare as máquinas - disse ele.
- Não posso fazer isso. As máquinas têm que funcionar sempre. Se estamos abertos para o público, as fitas têm que rodar.
- O senhor não entendeu. Vinte e dois de dezembro é o dia que queremos. Nós estamos gravando em cima do dia que queremos examinar.
- Alto lá, detetive McCallan. Preciso explicar como a coisa funciona.
McCaleb nem se deu ao trabalho de corrigir o engano do sujeito quanto ao seu nome. Não havia tempo.
- Então, depressa, por favor.
Consultou o relógio. Eram oito e quarenta e cinco. O correio abrira havia quarenta e oito minutos. Ou seja, quarenta e oito minutos da fita de vinte e dois de dezembro
já haviam sido apagados pelos quarenta e oito minutos da gravação em curso.
Lucas começou a explicar o procedimento de gravação. Havia um aparelho para cada câmera. Cada aparelho recebia uma fita ao começo do dia. As quatro câmeras estavam
programadas para gravar trinta quadros por minuto, permitindo que cada fita cobrisse o dia inteiro. As fitas de cada dia eram mantidas por um mês e depois
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reutilizadas se não fossem requisitadas pelas investigações do serviço de inspetoria postal.
- A gente recebe muita picaretagem. Sabem como é em Hollywood... E acaba com uma porção de fitas requisitadas. Ou são buscadas aqui pelos inspetores ou despachadas
por malote.
- Nós compreendemos - disse Jaye, com um tom de urgência na voz, ao aparentemente perceber o mesmo que McCaleb. - Por favor, quer desligar as máquinas e substituir
as fitas? Estamos gravando por cima de coisas que talvez sejam provas importantes.
- Imediatamente - disse Lucas.
Mas primeiro retirou quatro fitas virgens do caixote no chão. Depois arrancou etiquetas de um rolo e pregou-as nas fitas. Pegou uma caneta atrás da orelha, escrevendo
a data e uma espécie de código nas etiquetas. Só então começou finalmente a retirar as fitas dos aparelhos e a substituí-las pelas fitas virgens.
- Como querem fazer isso? Essas fitas são de propriedade dos correios. Não podem sair daqui. Se quiserem, posso deixar vocês aqui na mesa com uma tevê portátil que
tem um aparelho de vídeo embutido.
- Tem certeza que não pode simplesmente nos emprestar as fitas por hoje? - disse Jaye. - Posso trazer tudo de volta às...
- Só com um mandado judicial. Foi isso que Preechnar me disse. E é isso que vou fazer.
- Então acho que não temos escolha - disse Jaye, olhando para McCaleb e abanando a cabeça, frustrada.
Quando Lucas foi buscar a tevê, os dois decidiram que McCaleb ficaria e examinaria as fitas, enquanto Jaye iria até o escritório para a reunião das onze horas com
Twilley e Friedman, os homens do FBI. Ela disse que não falaria nada sobre a volta de McCaleb à investigação, nem sobre a possibilidade de que a suspeita sobre Bosch
podia ter sido um engano. Devolveria o dossiê de assassinato, já copiado, e a fita da cena do crime.
- Sei que não acredita em coincidências, mas isso é tudo que podemos fazer no momento, Terry. Se descobrir algo na fita, eu levo a coisa ao capitão. Aí nós mandamos
Twilley e Friedman para o espaço. Mas até você conseguir isso... Eu ainda estou num mato
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sem cachorro e preciso de algo mais que uma coincidência para pensar em outro suspeito que não seja Bosch.
- E o telefonema para Tafero?
- Que telefonema?
- De alguma forma, Tafero soube que Gunn estava na cela de detenção e veio pagar a fiança dele... para que eles pudessem matar o cara naquela noite e jogar a culpa
em Bosch.
- Quanto ao telefonema, não sei... Se não foi Zucker, provavelmente foi outro policial da delegacia que deve ter um esquema armado com Tafero. E o resto do que você
disse é pura especulação, sem apoio em um só fato.
- Eu acho que é...
- Pare, Terry. Não quero ouvir nada até você ter alguma base de apoio. Vou trabalhar.
Como seguindo a deixa, Lucas voltou empurrando um carrinho com um pequeno televisor em cima.
- Vou montar isso pra vocês - disse ele.
- Sr. Lucas, eu tenho um compromisso - disse Jaye. - Meu colega vai examinar as fitas. Obrigado pela cooperação.
- Fico contente por poder ajudar. Jaye olhou para McCaleb.
- Ligue pra mim.
- Quer que eu leve você até o carro?
- São só alguns quarteirões. Vou andando. Ele balançou a cabeça.
- Boa caçada - disse ela.
McCaleb balançou a cabeça. Ela já lhe dissera aquilo uma vez, num caso que não terminara muito bem para ele.
Capítulo 37
Janis e Kretzler disseram a Bosch que iam levar adiante o plano de terminar a fase da acusação até o final do dia.
- Storey já está no laço - disse Kretzler, sorrindo e gozando o surto de adrenalina provocado pela decisão de puxar o gatilho. Quando terminarmos, ele vai estar
mais enrolado que carretel. Vamos interrogar Hendricks e Annabelle Crowe hoje. Temos tudo que precisamos.
- Exceto o motivo - disse Bosch.
- O motivo não é importante num crime que obviamente é obra de um psicopata - disse Janis. - Aqueles jurados não vão voltar para a sala no final e dizer:
"É, mas por que ele cometeu o crime?" Vão dizer que esse cara é a porra de um doente e...
Sua voz caiu para um sussurro quando o juiz surgiu na porta atrás da bancada e entrou no tribunal.
-... precisa ser colocado atrás das grades.
O juiz chamou o júri, e poucos minutos depois os promotores começaram a apresentar suas últimas testemunhas.
Os três primeiros a depor eram integrantes da indústria cinematográfica que haviam comparecido à festa da estréia na noite da morte de Jody Krementz. Todos disseram
que haviam visto David Storey na estréia do filme e na recepção que se seguiu com uma mulher que identificaram pelas fotografias dos autos como Jody
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Krementz. A quarta testemunha, um roteirista chamado Brent Wiggan, declarou que deixara a festa poucos minutos antes da meia-noite e que ficara esperando seu carro
ser trazido ao balcão dos manobreiros junto com David Storey e uma mulher que também identificou como Jody Krementz.
- Por que o senhor tem tanta certeza que faltavam apenas alguns minutos para a meia-noite? - perguntou Kretzler. - Afinal de contas, aquilo era uma festa. Ficou
olhando para o relógio?
- Uma pergunta de cada vez, doutor Kretzler - avisou o juiz.
- Desculpe, meritíssimo. Por que o senhor está tão certo de que faltavam só alguns minutos para a meia-noite?
- Porque, na realidade, eu estava olhando para o relógio - disse Wiggan. - Isto é, para o meu relógio. Escrevo à noite. Sou mais produtivo de meia-noite às seis.
E por isso estava vigiando o relógio, sabendo que precisava voltar para casa por volta de meia-noite ou iria me atrasar no trabalho.
- Isso também quer dizer que não estava tomando bebida alcoólica na festa?
- Correto. Eu não estava bebendo porque não queria ficar cansado ou ter minha criatividade prejudicada. Geralmente, as pessoas não bebem antes de irem trabalhar
num banco ou pilotar um avião... Bom, acho que a maioria não bebe.
Fez uma pausa até as risadinhas cessarem O juiz fez cara de aborrecido, mas não disse nada. Wiggan parecia estar gostando daquele momento de atenção. Bosch começou
a ficar nervoso.
- Eu não bebo antes de ir trabalhar - continuou Wiggan por fim. - Escrever é uma arte, mas é também um trabalho, e é assim que eu encaro a coisa.
- Então está cristalinamente clara na sua memória a pessoa com quem David Storey estava poucos minutos antes da meianoite?
- Correto.
- E o senhor já conhecia David Storey pessoalmente, certo?
- E verdade. Conheço David Storey há vários anos.
-Já trabalhou para ele em algum projeto cinematográfico?
- Não, não trabalhei. Mas não por falta de tentar.
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Wiggan deu um sorriso triste. Aquela parte do depoimento, que incluía o comentário autodepreciativo, fora cuidadosamente planejada por Kretzler. Questionando diretamente
os pontos fracos de Wiggan, o promotor limitava o potencial de prejuízos que podiam ser causados ao testemunho.
O que quer dizer com isso?
- Ah, eu diria que nos últimos cinco anos, mais ou menos, enviei seis ou sete projetos de filmes diretamente para David ou para o pessoal da sua produtora. Ele nunca
comprou nenhum. Deu de ombros num gesto ingênuo.
Diria que isso criou um sentimento de animosidade entre o senhor e ele?
Não, de jeito nenhum... pelo menos da minha parte. E assim que a banda toca em Hollywood. Você vai tentando vender seu peixe, na esperança de que alguém acabe mordendo
a isca. Mas, se tiver um couro grosso, é melhor.
Sorriu e meneou a cabeça para o júri. Bosch já estava ficando em pânico com aquilo. Queria que Kretzler terminasse logo, antes que eles perdessem o júri.
Obrigado, Sr. Wiggan. É só isso - disse Kretzler, aparentemente sentindo as mesmas vibrações que Bosch.
Wiggan fez cara de desapontado quando percebeu que seu momento de glória estava acabando.
Mas nesse momento Fowkkes, que dispensara a reinquirição das três primeiras testemunhas do dia, levantou-se e foi até a tribuna.
Bom dia, Sr. Wiggan.
Bom dia - disse Wiggan, erguendo as sobrancelhas com expressão de o-que-temos-aqui?.
Só algumas perguntas. Poderia relacionar para o júri os títulos dos filmes que o senhor roteirizou e que foram produzidos?
Bom... até agora, nada foi feito. Tenho algumas opções e acho que em poucos...
Entendi. Ficaria surpreso ao saber que nos últimos quatro anos o senhor ofereceu projetos ou enviou roteiros a David Storey em vinte e nove ocasiões diferentes,
sendo todos rejeitados? O rosto de Wiggan ficou vermelho de vergonha.
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- Bom... talvez seja verdade. Eu... realmente não sei. Não fico registrando minhas rejeições, como David Storey aparentemente faz.
A última declaração foi dada em tom agressivo, e Bosch quase fez uma careta. Nada era pior que uma testemunha que é pega numa mentira e depois assume um tom defensivo.
Bosch olhou para o júri. Vários jurados haviam desviado o olhar da testemunha, num sinal de que estavam tão constrangidos quanto Bosch.
Fowkkes avançou para dar o golpe fatal.
- O senhor foi rejeitado pelo réu em vinte e nove ocasiões, e contudo diz ao júri que não quer mal a ele, correto?
- E assim que as coisas são em Hollywood. Pode perguntar a qualquer um.
- Bom, estou perguntando ao senhor. Está dizendo ao júri que não tem má vontade com o réu, embora ele viva dizendo que seu trabalho não é bom?
Wiggan quase balbuciou a resposta ao microfone.
- É, isso é verdade.
- Bom, o senhor é um homem melhor do que eu - disse Fowkkes. - Obrigado, meritíssimo. Nada mais, por enquanto.
Bosch sentiu que o balão da promotoria murchara bastante. Com quatro perguntas e em menos de dois minutos, Fowkkes pusera em dúvida toda a credibilidade de Wiggan.
E a prova de que a hábil cirurgia do advogado de defesa fora absolutamente perfeita era que Kretzler pouco poderia fazer para ressuscitar Wiggan se o interrogasse
novamente. E o promotor percebeu que era melhor não se arriscar a aumentar o tamanho do buraco. Dispensou a testemunha, e o juiz deu o intervalo matinal de quinze
minutos.
Depois que os jurados foram retirados e as pessoas começaram a sair do tribunal, Kretzler inclinou-se à frente de Janis e sussurrou em tom irritado para Bosch:
- Devíamos ter percebido que esse cara não ia segurar o rojão.
Bosch olhou em torno para ver se não havia repórteres ao alcance de sua voz e se inclinou para Kretzler.
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- Pode até ser - disse ele. - Mas seis semanas atrás você disse que ia preparar Wiggan. Ele era responsabilidade sua, não minha. Vou tomar um café.
Levantou-se e deixou os dois promotores sentados ali.
Depois do intervalo os promotores decidiram que precisavam voltar com força depois da desastrosa reinquirição de Wiggan. Assim, abandonaram o plano de trazer mais
uma testemunha simplesmente para depor que vira Storey e a vítima juntos na festa de estréia do filme. Janis convocou ao banco um técnico de segurança residencial
chamado Jamal Hendricks.
Bosch foi buscar Hendricks no corredor. Era um negro de calças azuis e blusa de uniforme azul-clara, com o nome de batismo bordado num dos bolsos e o emblema da
Lighthou-se Security no outro. Ele planejara seguir direto para o trabalho depois de prestar depoimento.
Ao passar pelo primeiro conjunto de portas que davam acesso ao tribunal, Bosch perguntou a Hendricks, em tom baixo, se ele
estava nervoso.
- Não, cara, é moleza - replicou Hendricks.
No banco das testemunhas, Janis fez Hendricks relembrar seu currículo como técnico de manutenção da empresa de segurança residencial. Depois passou especificamente
para o trabalho que ele fizera no sistema de segurança da residência de David Storey. Hendricks disse que oito meses antes instalara um sistema Millenium 21, modelo
de luxo, na casa do diretor em Mulholland Drive.
- Pode nos descrever algumas das características do sistema Millenium 21, modelo de luxo?
- Bom, é o mais sofisticado do mercado. Tem de tudo. Sensoriamento e operação por controle remoto, programação de comando por reconhecimento de voz, amostragem automática
de sensores, programa hoteleiro... O equipamento de David Storey tem tudo.
- O que é um programa de registro hoteleiro?
- Basicamente, é um programa que registra as operações realizadas. Revela que portas e janelas foram abertas, a hora do evento, quando o sistema foi ligado e desligado,
que códigos pessoais foram
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usados, e vai por aí. Faz o acompanhamento de todo o sistema. É usado principalmente no comércio e na indústria, mas David Storey queria um sistema comercial e o
dispositivo foi incluído.
- Portanto, ele não pediu especificamente o programa hoteleiro?
- Isso eu não sei. Não vendi o sistema pra ele, só instalei.
- Mas ele podia ignorar a existência do programa.
- Tudo é possível, acho eu.
- É verdade que o detetive Bosch telefonou para a Lighthou-se Security e pediu que um técnico fosse ao encontro dele na casa de David Storey?
- É, e o pedido foi parar na minha mão porque eu tinha instalado o sistema. Me encontrei com ele lá na casa. Isso foi depois da prisão de David Storey, mas o advogado
dele também compareceu.
- Quando foi exatamente?
- No dia 11 de novembro.
- O que o detetive Bosch lhe pediu para fazer?
- Bom, primeiro ele me mostrou um mandado de busca que autorizava a coleta de informações do chip do sistema.
- Você ajudou o detetive nessa tarefa?
- Ajudei. Baixei o arquivo do programa hoteleiro e imprimi os dados para ele.
Janis Langwiser pediu que o mandado de busca e apreensão - o terceiro executado durante a investigação - fosse incluído nos autos como prova, juntamente com o relatório
impresso que Hendricks mencionara no depoimento.
- Bom, o detetive Bosch estava interessado nos dados do programa hoteleiro relativos à noite do dia 12 de outubro e a manhã do dia 13, certo?
- Certo.
- Pode examinar o relatório e ler os dados relativos a esse período de tempo?
Hendricks examinou o papel durante vários segundos antes de falar.
- Bom, aqui diz que a porta interna que leva à garagem foi aberta e o sistema de alarme foi ativado pela voz de David Storey às sete e nove da noite do dia 12. Depois
disso, os dados já são do dia 13.
À meia-noite e doze o sistema de alarme foi desativado pela voz de David Storey, e a porta interna da garagem foi novamente aberta. Ele então ativou novamente o
alarme... depois de entrar na casa.
Hendricks examinou o documento antes de continuar.
- O sistema continuou ativado até a uma e dezenove da madrugada, quando o alarme foi desativado. A porta interna da garagem foi aberta e o sistema de alarme ativado
mais uma vez pela voz de David Storey. Quarenta e dois minutos mais tarde, às quatro e um da madrugada, o alarme foi desativado pela voz de David Storey, a porta
interna da garagem se abriu e o sistema de alarme foi novamente ativado. Não houve qualquer outra atividade até as onze da manhã, quando o alarme foi desativado
pela voz de Betilda Lockett.
- Sabe quem é Betilda Lockett?
- Sim, quando instalei o sistema incluí a voz dela no programa de aceitação. Ela é a assistente-executiva de David Storey.
Janis pediu permissão para montar um quadro sobre um cavalete mostrando as horas e as atividades que Hendricks acabara de mencionar. O pedido foi aprovado apesar
de um protesto da defesa, e Bosch ajudou a promotora a montar o quadro, que tinha duas colunas. Uma mostrava os dados sobre a ativação do alarme da casa e a outra
indicava o uso da porta interna entre a casa e a garagem.
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13/10
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13/10
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13/10
ALARME
7:09 da noite ativado por David Storey
12:12 da madrugada desativado por David Storey
12:12 da madrugada ativado por David Storey
3:19 da madrugada desativado por David Storey
3:19 da madrugadaativado por David Storey
4:01 da madrugada desativado por David Storey
4:01 da madrugada
- ativado por David Storey
PORTA INTERNA DA GARAGEM
aberta/fechada aberta/fechada
aberta/fechada aberta/fechada
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Janis continuou a inquirição de Hendricks.
- Esta ilustração reflete com precisão o seu depoimento sobre o sistema de alarme da casa de David Storey na noite de 12 para 13 de outubro?
O técnico olhou para o quadro com cuidado e depois balançou a cabeça.
- Isso é um "sim"?
- É um "sim".
- Obrigado. Como essas ações foram desencadeadas pelo sistema ao reconhecer e aprovar a voz de David Storey, você está dizendo ao júri que isso representa o registro
das idas e vindas de David Storey durante o período de tempo em questão?
Fowkkes protestou, dizendo que a pergunta pressupunha fatos que não haviam sido provados. Houghton concordou e mandou Janis reformular a pergunta ou fazer outra.
Como já alcançara seu objetivo com os jurados, ela passou adiante.
- Se eu tivesse uma fita com a voz de David Storey gravada, poderia tocá-la ao microfone da central do sistema Millenium 21 e obter autorização para ativar ou desativar
o alarme?
- Não. Há dois mecanismos de segurança. E preciso usar uma senha reconhecida pelo computador e dizer a data. Assim, são necessárias a voz, a senha e a data correta
para o sistema aceitar o comando.
- Qual era a senha de David Storey?
- Não sei. E coisa particular dele. O sistema permite que a senha seja trocada quando o usuário quiser.
Janis olhou para o quadro no cavalete. Aproximou-se e pegou um ponteiro no descanso, usando-o para demarcar os registros de
3:19 e 4:01 da madrugada.
- A partir destes dados, pode me dizer se alguém com a voz de David Storey saiu da casa às três e dezenove e voltou às quatro e um, ou se ocorreu o contrário, ou
seja, alguém chegou às três e dezenove e saiu às quatro e um?
- Posso.
- Como?
- O sistema também registra que estações transmissoras foram usadas para ativar e desativar o sistema. Nessa casa, as estações foram montadas dos dois lados de três
portas... por dentro e por fora de cada porta, entende? As três são a porta da frente, a porta da garagem e uma das portas do deque dos fundos. Os transmissores
estão do lado de fora e do lado de dentro de cada porta. Qualquer um que seja usado fica registrado no programa hoteleiro.
- Pode examinar o relatório do sistema de David Storey que viu antes e dizer que transmissores foram usados durante os registros de três e dezenove e quatro e um?
Hendricks examinou o papel antes de responder.
- Hum, sim. Às três e dezenove foi usado o transmissor exterior. Isso significa que alguém estava na garagem quando o alarme foi ativado na casa. Às quatro e um,
o mesmo transmissor externo foi usado para desativar o alarme. A porta foi aberta e fechada, e depois o alarme foi ativado novamente por dentro da casa.
- Então alguém chegou em casa às quatro e um, é isso que está dizendo?
- Sim, é.
- E o computador do sistema registrou essa pessoa como sendo David Storey, correto?
- O sistema identificou a voz dele, sim.
- E essa pessoa precisaria usar a senha de David Storey, além de fornecer a data corretamente?
- Sim, é isso aí.
Janis declarou que não tinha mais perguntas. Fowkkes disse ao juiz que queria fazer uma rápida reinquirição. Foi até a tribuna e olhou para Hendricks.
- Jamal Hendricks, há quanto tempo trabalha na Lighthou-se?
- Vou completar três anos no mês que vem.
- Então já era funcionário da Lighthou-se no dia 1 de janeiro, há um ano, quando foi feita a famosa alteração para o bug do milênio?
- Era - disse Hendricks, hesitante.
- Pode nos dizer o que aconteceu com muitos dos clientes da Lighthou-se naquele dia?
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- Hum, nós tivemos alguns problemas. - Alguns problemas, Jamal Hendricks?
- Houve falhas de sistemas.
- Que sistema em particular?
- O sistema Millenium 2 apresentou um defeito no programa. Mas foi pequeno. Nós conseguimos..
- Quantos clientes com Millenium 2 foram afetados na área de Los Angeles?
- Todos. Mas nós descobrimos o defeito e...
- E só isso. Obrigado.
- Nós corrigimos o defeito.
- Jamal Hendricks - atalhou o juiz. - Já chega. O júri deverá desconsiderar essa última declaração.
Ele olhou para Janis.
- Reinquirição, doutora?
Janis disse que tinha apenas algumas perguntas rápidas. Bosch soubera dos problemas do bug do milênio e informara os promotores. A esperança deles era que a defesa
não soubesse daquilo ou levantasse a questão.
- A Lighthou-se corrigiu o defeito apresentado pelos sistemas depois do bug do milênio?
- Sim, nós corrigimos o defeito imediatamente.
- Isso teria afetado de alguma forma os dados registrados pelo sistema do réu dez meses depois do bug do milênio?
- Em absoluto. O problema foi resolvido. O sistema foi consertado.
Janis disse que nada mais tinha a perguntar à testemunha e se sentou. Fowkkes levantou-se para fazer outra reinquirição.
- Jamal Hendricks, o defeito corrigido era o defeito que a empresa conhecia, correto?
Hendricks lançou-lhe um olhar confuso.
- Sim, foi o que causou o problema.
- Então está dizendo que esses defeitos só são percebidos quando causam problemas.
- Hum, geralmente.
- Portanto, poderia haver um defeito no programa do sistema de segurança de David Storey que você só perceberia quando surgisse um problema, certo?
Hendricks deu de ombros.
- Tudo é possível.
Fowkkes se sentou, e o juiz perguntou a Janis se ela tinha mais alguma pergunta. A promotora hesitou um instante, mas em seguida disse que não. Hendricks foi dispensado
por Houghton, que sugeriu antecipar o intervalo do almoço.
- Nossa próxima testemunha será muito rápida, meritíssimo. Eu gostaria de ouvir seu depoimento antes do intervalo. Vamos nos concentrar numa única testemunha durante
a sessão da tarde.
- Muito bem, vá em frente.
- Queremos reconvocar o detetive Bosch.
Bosch se levantou e foi até o banco das testemunhas, levando o dossiê de assassinato. Dessa vez não tocou no microfone. Sentou-se e foi lembrado pelo juiz de que
ainda estava sob juramento.
- Detetive Bosch - começou Janis. - A certa altura da investigação do assassinato de Jody Krementz, o senhor foi instruído a fazer de carro o trajeto de ida e volta
entre a casa da vítima?
- Fui. Pela senhora.
- Seguiu a instrução?
- Segui.
- Quando?
- No dia 16 de novembro, às três e meia da madrugada.
- Anotou os tempos do percurso de carro?
- Sim, anotei. Em ambas as direções.
- E pode nos dizer que tempos foram esses? Pode consultar suas anotações, se quiser.
Bosch abriu a pasta numa página previamente marcada. Levou algum tempo examinando as anotações, embora já soubesse aquilo de cor.
- Levei onze minutos e vinte e dois segundos da casa de David Storey até a casa de Jody Krementz, dirigindo dentro dos limites de velocidade permitidos. Para voltar,
levei onze minutos e quarenta
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e cinco segundos. O percurso de ida e volta levou vinte e três minutos e dez segundos.
- Obrigado, detetive.
E foi só. Fowkkes dispensou novamente a reinquirição, reservando-se o direito de reconvocar Bosch ao banco das testemunhas durante a fase da defesa. O juiz Houghton
declarou o tribunal em recesso para o almoço, e o tribunal apinhado foi vagarosamente se esvaziando em direção ao corredor.
Bosch foi abrindo caminho pela multidão de advogados, espectadores e repórteres no corredor, à procura de Annabelle Crowe, quando uma mão agarrou firmemente seu
braço por trás. Ele se virou e olhou para o rosto de um negro que não reconheceu. Outro sujeito, um branco, aproximou-se deles. Os dois usavam ternos cinzentos quase
iguais. Antes que o primeiro sujeito abrisse a boca, Bosch já tinha percebido que eram do FBI.
- Detetive Bosch, sou o agente especial Twilley, do FBI. Este é o agente especial Friedman. Podemos conversar em particular?
Capítulo 38
McCaleb levou três horas examinando cuidadosamente a fita de vídeo. No fim, não conseguiu nada que compensasse esse tempo, exceto uma multa por estacionamento proibido.
Tafero não apareceu em nenhum momento na fita do correio no dia em que a ordem de pagamento foi comprada. E nem Harry Bosch. Os quarenta e oito minutos de vídeo
que haviam sido gravados sobre o registro antigo, antes de McCaleb e Jaye chegarem lá, vinham continuadamente à sua lembrança. Se eles tivessem ido ao correio primeiro
e à delegacia de Hollywood depois talvez tivessem o assassino na fita. Aqueles quarenta e oito minutos podiam fazer a diferença no caso, a diferença entre a condenação
ou a absolvição de Bosch.
McCaleb estava imaginando esses cenários alternativos, quando chegou ao Cherokee e encontrou a multa de trânsito sob o limpador do pára-brisa. Disse um palavrão,
tirou a papeleta e examinou-a. Ficara tão absorto vendo a fita que esquecera que estacionara na zona com tolerância de quinze minutos diante do correio. A multa
lhe custaria quarenta dólares, e aquilo doía. Com poucos passeios contratados nos meses de inverno, sua família vinha vivendo principalmente de sua pensão mensal
do FBI e do pequeno contracheque de Graciela. Não havia muita margem de manobra, com as despesas de duas crianças. Aquela multa, aliada ao passeio cancelado de sábado,
iria fazer falta.
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Ele recolocou a papeleta no pára-brisa e foi andando pela calçada. Decidiu ir até a Fianças Valentino, embora soubesse que Rudy Tafero provavelmente estaria no tribunal
em Van Nuys. Seria uma atitude coerente com o seu costume de examinar o alvo em ambientes confortáveis. O alvo podia não estar lá dessa vez, mas o ambiente onde
ele se sentia seguro estava.
Enquanto caminhava, pegou o telefone celular e ligou para Jaye, mas quem atendeu foi a secretária eletrônica. McCaleb desligou sem deixar recado e ligou para o bip
dela. Quatro quarteirões adiante, quando já estava chegando à Fianças Valentino, Jaye retornou a chamada.
- Não consegui nada - anunciou ele. -Nada?
- Nem Tafero, nem Bosch.
- Caceta.
- A imagem devia estar naqueles quarenta e oito minutos que foram apagados.
- Nós devíamos ter...
- Ido ao correio antes. Eu sei. Culpa minha. A única coisa que arrumei foi uma multa de trânsito.
- Que chato, Terry.
- Pelo menos isso me deu uma idéia. O troço foi pouco antes do Natal, e a rua estava cheia. Se ele estacionou numa zona com tolerância de quinze minutos, pode ter
ultrapassado o tempo enquanto esperava na fila. Os palhaços que vigiam o estacionamento aqui na cidade parecem nazistas. Ficam espreitando nas sombras. Sempre há
a possibilidade de que ele tenha sido multado. Vale a pena conferir.
- Feito o Filho de Sam?
- Pois é.
Ela estava se referindo a um assassino serial apanhado por causa de uma multa em Nova York na década de 1970.
- Vou dar uma olhada nisso e ver se surge alguma coisa. O que você vai fazer?
- Estou quase chegando à Fianças Valentino.
- Ele está aí? <
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- Provavelmente está no tribunal. Vou até lá depois pra ver se consigo falar com Bosch sobre tudo isso.
- É melhor ter cuidado. Seus colegas do FBI disseram que iam encontrar com ele na hora do almoço. Podem ainda estar por lá quando você chegar.
- Eles estão esperando que Bosch fique tão impressionado com os ternos deles que confesse? E isso?
- Não sei. Algo parecido. Iam dar um aperto nele. Pra tentar pegar uma declaração oficial e depois encontrar as contradições. Você sabe, as armadilhas verbais rotineiras.
- Harry Bosch não é um caso rotineiro. Eles estão perdendo tempo.
- Eu sei. Eu disse isso pra eles. Mas ninguém consegue dizer nada a um agente do FBI, sabe disso.
Ele sorriu.
- Ei, se a coisa for para o outro lado e nós cravarmos Tafero, quero que o xerife pague esta multa.
- Ei, você não está trabalhando para mim. Está trabalhando para Bosch, lembra? Ele paga as multas. O xerife só paga as panquecas.
- Está bem. Preciso ir.
- Ligue pra mim.
Ele guardou o telefone no bolso do agasalho e abriu a porta de vidro da Fianças Valentino.
Era um pequeno aposento branco, com um sofá para visitantes e um balcão. Para McCaleb aquilo parecia a recepção de um motel. Um calendário na parede mostrava uma
cena de praia em Puerto Vallarta. Atrás do balcão havia um homem sentado de cabeça baixa, fazendo palavras cruzadas. Atrás dele via-se uma porta fechada, que provavelmente
dava para um escritório interno. McCaleb pôs um sorriso no rosto e começou a contornar o balcão com andar decidido, antes que o sujeito erguesse o olhar.
- Rudy? Ei, Rudy, vem cá!
O sujeito só ergueu o olhar quando McCaleb já passara por ele e abrira a porta, entrando num escritório que tinha mais do que o dobro do tamanho da recepção.
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- Rudy?
O sujeito do balcão entrou direto atrás dele.
- Ei, cara, o que está fazendo?
McCaleb virou-se, examinando o aposento.
- Procurando Rudy. Onde ele está?
- Ele não está aqui. Quer, por favor, sair...
- Ele me disse que estaria aqui, que só precisaria estar no tribunal mais tarde.
Examinando o escritório, McCaleb viu que a parede traseira estava coberta por fotografias emolduradas. Chegou mais perto. A maioria eram instantâneos de Tafero com
celebridades que ele tirara da cadeia sob fiança ou auxiliara como consultor de segurança. Algumas das fotos eram obviamente dos tempos em que ele trabalhava do
outro lado da rua, na delegacia.
- Desculpe, mas quem é você?
McCaleb fez uma cara de insultado e olhou para o sujeito, que bem poderia ser o irmão mais novo de Tafero. Tinha o mesmo cabelo e olhos escuros, com uma espécie
de beleza rude.
- Sou amigo dele. Terry. Nós trabalhávamos juntos lá do outro lado da rua.
McCaleb apontou para a fotografia de um grupo que estava na parede. Mostrava vários homens de terno e algumas mulheres parados diante da fachada de tijolos da delegacia
da Divisão Hollywood. A equipe de detetives. McCaleb viu Harry Bosch e Rudy Tafero na fileira de trás. O rosto de Bosch estava ligeiramente desviado da câmera. Ele
tinha um cigarro na boca, e a fumaça que se elevava obscurecia-lhe parcialmente o rosto.
O sujeito virou e começou a examinar a fotografia.
Os olhos de McCaleb deram outra volta pelo aposento. Era bem mobiliado, com uma escrivaninha à esquerda e um grupo estofado à direita, onde se viam dois sofás curtos
e um tapete oriental. Ele se aproximou da escrivaninha a fim de examinar uma pasta colocada bem no centro do mata-borrão. Mas a coisa - embora estivesse cheia de
documentos, com quase três centímetros de grossura - nada ostentava na etiqueta.
- Que porra é essa? Você não está na foto.
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- Estou, sim - disse McCaleb sem se virar da escrivaninha. Estou fumando. Não dá pra ver o meu rosto.
À direita do mata-borrão havia uma bandeja de documentos cheia de pastas. McCaleb inclinou a cabeça para poder ler as etiquetas. Viu diversos nomes, alguns dos quais
reconheceu como animadores ou atores. Mas nenhum deles tinha qualquer ligação com a investigação.
- Conversa fiada, cara, este não é você. E Harry Bosch.
- Sério? Conhece Harry?
O sujeito não respondeu. McCaleb se virou. O homem estava olhando para ele com uma expressão raivosa e desconfiada. Pela primeira vez McCaleb notou que ele segurava
um velho cassetete ao lado do corpo.
- Preciso conferir isso.
Avançou e examinou a fotografia emoldurada.
- Você tem razão, sabia? Este é o Harry. Eu devo estar na outra foto que eles tiraram no ano anterior. Estava trabalhando disfarçado quando eles tiraram essa aí
e não podia aparecer na fotografia.
Despreocupadamente, deu um passo na direção da porta. Por dentro, já estava enrijecendo o corpo, pronto para levar um golpe de cassetete.
- Diga a ele que eu estive aqui, está bem? Diga que o Terry passou por aqui.
Conseguiu chegar à porta, mas uma última fotografia emoldurada lhe chamou a atenção. Mostrava Tafero e outro homem, lado a lado, segurando juntos uma tabuleta de
madeira polida nas mãos. A fotografia era antiga, e Tafero parecia quase dez anos mais moço. Os olhos estavam mais brilhantes, e o sorriso parecia sincero. A tabuleta
propriamente dita estava pendurada na parede ao lado da fotografia. McCaleb inclinou-se e leu a placa de latão presa na parte de baixo.
RUDY TAFERO
DETETIVE DO MÊS
FEVEREIRO 1995
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McCaleb olhou para a fotografia novamente e depois passou pela porta, indo para a recepção.
- Terry o quê? - disse o sujeito quando ele saiu. McCaleb foi até a porta da frente antes de se virar para ele.
- E só dizer que foi Terry, o cara que trabalha disfarçado. Saiu do escritório e foi caminhando pela rua sem olhar para
trás.
McCaleb ficou sentado no carro diante do correio. Sentia-se inquieto, como sempre ficava quando sabia que a resposta estava ao alcance da mão, mas ele não conseguia
enxergá-la. Sua intuição dizia que ele estava na pista certa. Tafero, o investigador particular que escondia sua clientela endinheirada de Hollywood atrás de um
barraco de fiador profissional, era a chave. McCaleb simplesmente não conseguia achar a porta.
Percebeu que estava faminto. Ligou o carro e pensou num lugar para comer. Estava a poucos quarteirões do Musso's, mas tinha comido lá recentemente. Ficou imaginando
se serviam comida no Nat's, mas calculou que se fizessem isso a coisa seria perigosa para o estômago. Em vez disso, seguiu para o In 'n' Out no Sunset Boulevard
e pediu um hambúrguer servido no carro.
Enquanto comia em cima da embalagem para viagem dentro do Cherokee, o celular tocou. Pôs o sanduíche em cima da embalagem, limpou as mãos num guardanapo e abriu
o aparelho.
- Você é um gênio. Era Jaye Winston. -Porquê?
- O Mercedes de Tafero, um 430CLK preto, foi multado. Estava na zona de quinze minutos de tolerância diante do correio. A multa foi lavrada às oito e dezenove da
manhã do dia 22. Ainda não foi paga, mas vence hoje. Ele tem até as cinco horas pra pagar.
McCaleb ficou em silêncio enquanto refletia sobre aquilo. Sentia as sinapses nervosas disparando feito dominós pela espinha. A multa era um golpe de sorte extraordinário.
Não provava absolutamente nada, mas mostrava que ele estava na pista certa. E, às vezes, saber que você estava no caminho certo era melhor do que ter a prova.
Seus pensamentos pularam para a visita que fizera ao escritório de Tafero e para as fotografias que vira ali.
- Ei, Jaye, deu pra você pesquisar alguma coisa sobre o caso do antigo tenente de Bosch?
- Nem precisei procurar. Twilley e Friedman já tinham um relatório hoje. Tenente Harvey Pounds. Foi espancado até a morte cerca de quatro semanas depois de ter aquela
altercação com Bosch por causa de Gunn. Devido aos antecedentes, Bosch era um suspeito provável. Mas aparentemente foi inocentado... ao menos pelo Departamento de
Polícia de Los Angeles. O caso ainda está em aberto, mas parado. O FBI ficou observando de longe e também mantém a coisa em aberto. Twilley me disse hoje que há
gente no departamento de polícia que acha que Bosch foi inocentado depressa demais.
- Ah, e aposto que Twilley adorou isso.
- Adorou. Ele já tem certeza que foi Bosch. Acha que Gunn é só a ponta do iceberg do caso de Bosch.
McCaleb abanou a cabeça, mas passou adiante. Não podia perder tempo com as fraquezas e motivações dos outros. Havia muito a considerar e planejar na investigação
que ele tinha nas mãos.
- Tem uma cópia da multa? - perguntou ele.
- Ainda não. Foi tudo por telefone. Mas a cópia vai ser mandada por fax. O negócio é que eu e você sabemos o que isso significa, mas ainda estamos muito longe de
ter alguma prova.
- Eu sei. Mas será um bom esteio quando chegar a hora.
- Quando chegar a hora de quê?
- De fazer a nossa jogada. Vamos usar Tafero para pegar Storey. Você sabe que a coisa está caminhando nessa direção.
- Nós? Já tem tudo planejado, não é, Terry? - Não tudo, mas estou chegando lá.
Não queria discutir com ela sobre o seu próprio papel na investigação.
- Escute, meu almoço está esfriando - disse ele.
- Bom, desculpe. Vá comer.
- Ligue pra mim depois. Vou falar com Bosch mais tarde. Alguma coisa de Twilley e Friedman a esse respeito?
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- Acho que eles ainda estão lá com ele.
- Tá legal. Falo com você mais tarde.
Ele fechou o telefone, saiu do carro e levou a embalagem até uma lata de lixo. Pulou de volta ao volante e ligou o motor. A caminho do correio na rua Wilcox, abriu
todas as janelas para livrar o carro do cheiro de comida gordurosa.
Capítulo 39
Annabelle Crowe foi até o banco das testemunhas, atraindo todos os olhares no tribunal. Era estonteantemente bonita, mas havia uma qualidade quase desajeitada em
seus movimentos. Essa mistura fazia-a parecer velha e jovem ao mesmo tempo, ficando ainda mais bonita. Janis Langwiser estava encarregada da inquirição. Esperou
até que Annabelle se sentasse, antes de quebrar o encanto e se dirigir à tribuna.
Bosch quase não notara a entrada da última testemunha da promotoria. Estava sentado à mesa com os olhos baixos, mergulhado profundamente nos pensamentos sobre a
entrevista com a dupla de agentes do FBI. Ele os avaliara de imediato. Os dois haviam farejado sangue e sabiam que virariam celebridades caso o pegassem pela morte
de Gunn. Bosch esperava que eles dessem o bote a qualquer momento.
Janis fez várias perguntas rápidas a Annabelle Crowe, mostrando que ela era uma atriz novata com algumas peças e comerciais no currículo, bem como uma ponta num
filme ainda a ser lançado. Sua história parecia confirmar como era difícil vencer em Hollywood - uma beleza de fechar o comércio, mas que era apenas mais uma numa
cidade cheia delas. Annabelle ainda vivia da mesada que recebia dos pais em Albuquerque.
Depois a promotora passou para uma parte mais substancial do depoimento, focalizando a noite de 14 de abril do ano anterior,
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quando Annabelle saíra com David Storey. Descrevendo com brevidade o jantar e os drinques do casal no restaurante Dan Tana's, em West Hollywood, Janis entrou logo
na segunda metade da noite, quando Annabelle tinha ido para a casa de Storey em Mulholland Drive.
Ela declarou que os dois haviam dividido uma jarra inteira de margarita no deque dos fundos, antes de irem para o quarto.
- E você foi por vontade própria? -Fui.
- Teve relações sexuais com o réu?
- Sim, tive.
- E foi uma relação consensual?
- Sim, foi.
- Aconteceu alguma coisa inusitada depois que começou a ter relações sexuais com o réu?
- Sim, ele começou ame sufocar.
- Ele começou a sufocar você. Como foi?
- Bom, acho que em certo momento fechei os olhos, e parecia que ele estava mudando de posição ou se mexendo em cima de mim. Senti que passou a mão por trás da minha
nuca, levantando um pouco minha cabeça do travesseiro. Depois senti que estava passando alguma coisa sobre...
Ela parou de falar e pôs a mão na boca. Aparentava estar lutando para manter o controle.
- Não se apresse, Annabelle.
A testemunha parecia estar genuinamente tentando conter as lágrimas. Por fim, baixou a mão e pegou um copo de água. Bebeu um gole e ergueu os olhos para Janis com
uma expressão de determinação.
- Senti que ele estava passando alguma coisa sobre a minha cabeça e em torno do meu pescoço. Abri os olhos e vi que ele estava apertando uma gravata em volta do
meu pescoço.
Ela parou e tomou outro gole de água.
- Pode descrever a gravata?
- Tinha uns desenhos. Losangos azuis sobre um fundo roxo. Lembro bem dela.
- O que aconteceu quando o réu apertou a gravata em torno do seu pescoço?
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- Aquilo estava me sufocando! - respondeu Annabelle com voz aguda, como se a pergunta fosse idiota e a resposta óbvia. - Ele estava me sufocando. E continuava...
se mexendo dentro de mim... Tentei lutar contra ele, mas ele era forte demais para mim.
- Ele disse alguma coisa nessa hora?
- Só ficava dizendo: "Tenho que fazer isso, tenho que fazer isso." Respirava com força, e continuava a fazer sexo comigo. Tinha os dentes cerrados quando disse aquilo.
Eu...
Ela parou de falar novamente. Duas lágrimas isoladas escorreram pelas maçãs do rosto, uma ligeiramente depois da outra. Janis foi até a mesa da promotoria e pegou
uma caixa de lenços de papel entre suas coisas. Ergueu-a e disse:
- Meritíssimo, posso?
O juiz permitiu que ela se aproximasse da testemunha. Janis entregou a caixa de lenços e voltou para a tribuna. O tribunal estava silencioso, salvo pelo choro da
testemunha. Janis quebrou o silêncio.
- Quer um minuto de intervalo, Annabelle?
- Não, eu estou bem. Obrigada.
- Desmaiou quando foi sufocada pelo réu?
- Sim.
- Lembra do que aconteceu depois?
- Acordei na cama dele.
- Ele estava lá?
- Não, mas ouvi a água do chuveiro correndo. No banheiro vizinho ao quarto.
- O que você fez?
- Me levantei e me vesti. Queria ir embora antes que ele saísse do chuveiro.
- Suas roupas estavam no mesmo lugar que antes?
- Não. Encontrei minhas roupas numa sacola... tipo uma sacola de supermercado... perto da porta do quarto. Vesti minha roupa de baixo.
- Você estava com uma bolsa de mão naquela noite?
- Estava. A bolsa também estava na sacola. Mas estava aberta. Olhei e vi que ele tinha tirado as chaves. Eu...
Fowkkes protestou, dizendo que a resposta pressupunha fatos não provados, e o juiz aceitou o protesto.
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- Viu o réu tirar as chaves de sua bolsa? - perguntou Janis. Bom, não. Mas elas estavam em minha bolsa. Eu não tirei as
chaves de lá.
- Muito bem, então alguém... alguém que você não viu porque estava inconsciente na cama... tirou suas chaves, correto?
É.
- Muito bem. Onde encontrou as chaves depois que percebeu que elas não estavam na bolsa?
- Na cômoda, perto das chaves dele.
- Você terminou de se vestir e foi embora?
- Na verdade, eu estava tão apavorada que simplesmente peguei minhas roupas, as chaves e a bolsa e saí correndo da casa. Acabei de me vestir quando já estava do
lado de fora. E aí saí correndo pela rua.
Como chegou em casa?
Cansei de correr e fui andando por Mulholland Drive durante muito tempo, até que cheguei a um posto de bombeiros onde havia uma cabine telefônica. Liguei para um
táxi e fui pra casa.
- Chamou a polícia quando chegou em casa?
- Hum, não chamei.
- Porquê?
- Bom, por duas coisas. Quando cheguei em casa, ouvi David deixando um recado na secretária eletrônica e atendi o telefone. Ele se desculpou e disse que tinha se
excedido. Disse que achava que o sufocamento aumentaria o meu prazer enquanto fazíamos sexo.
Acreditou nele?
- Não sei. Eu estava confusa. - Perguntou a ele por que tinha posto suas roupas numa sacola?
- Perguntei. Ele disse que achava que precisaria me levar ao hospital, caso eu não tivesse acordado quando ele saísse do chuveiro.
- Perguntou por que ele resolveu tomar uma chuveirada antes de levar ao hospital uma mulher desmaiada na cama?
- Isso, não.
- Perguntou a ele por que não chamou a ambulância?
- Não, não pensei nisso.
- Que outra razão você teve para não chamar a polícia?
A testemunha olhou para as próprias mãos, que estavam firme-
mente unidas no seu colo.
- Bom, fiquei envergonhada. Depois do telefonema dele, fiquei sem entender o que tinha acontecido. Já não sabia se ele tinha tentado me matar, ou se estava... tentando
aumentar o meu prazer. Não sei. A gente sempre ouve falar que o pessoal de Hollywood é meio tarado. Achei que talvez fosse só... sei lá, atraso e caretice da minha
parte.
Ela mantinha os olhos baixos, e duas outras lágrimas escorreram pelas maçãs do rosto. Bosch viu uma gota atingir a gola da blusa de chiffon e deixar uma marca úmida.
Janis continuou, num tom de voz muito suave.
- Quando contou à polícia o ocorrido entre vocês dois naquela noite?
Annabelle Crowe respondeu num tom mais suave.
- Quando li que ele tinha sido preso por matar Jody Krementz do mesmo jeito.
- Falou com o detetive Bosch nessa ocasião? Ela balançou a cabeça.
- Sim. E percebi que se eu... se eu tivesse chamado a polícia naquela noite, talvez ela ainda...
Não terminou. Pegou alguns lenços de papel da caixa e começou a chorar convulsivamente. Janis disse ao juiz que já terminara a inquirição. Fowkkes disse que haveria
uma reinquirição, mas sugeriu que isso fosse feito depois de um intervalo, para que a testemunha pudesse se recuperar. O juiz Houghton declarou que era uma boa idéia
e anunciou um recesso de quinze minutos.
Bosch ficou no tribunal, vendo Annabelle usar toda a caixa de lenços de papel. Quando ela terminou, seu rosto já não era mais lindo. Estava distorcido e vermelho,
com as órbitas inchadas. Bosch achava que Annabelle fora convincente, mas sabia que ela ainda não se defrontara com Fowkkes. Seu desempenho na reinquirição determinaria
se o júri acreditaria em qualquer coisa que ela dissera na inquirição.
Ao voltar, Janis disse a Bosch que havia alguém na porta do tribunal querendo falar com ele.
- Quem é?
- Não perguntei. Só ouvi a conversa dele com os policiais quando entrei. Os policiais não deixaram o sujeito entrar.
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- Estava de terno? Era um cara negro?
- Não, roupas comuns. Com um agasalho.
- Fique de olho em Annabelle. E é melhor arranjar outra caixa de lenços de papel.
Ele se levantou e foi até as portas do tribunal, abrindo caminho no meio da multidão que voltava ao fim do recesso. Em certo momento ficou cara a cara com Rudy Tafero.
Bosch afastou-se para a direita a fim de passar, mas Tafero mexeu-se para a esquerda. Os dois ficaram dançando de um lado para o outro, e Tafero deu um largo sorriso.
Por fim, Bosch parou e não se mexeu mais até Tafero passar.
No corredor, olhou em volta mas não viu ninguém que reconhecesse. Depois Terry McCaleb saiu de um dos banheiros masculinos, e os dois trocaram um meneio de cabeça.
Bosch foi até a balaustrada de uma das janelas que iam do chão ao teto e davam para a praça lá embaixo. McCaleb juntou-se a ele.
- Tenho uns dois minutos, depois preciso voltar pra lá.
- Só quero saber se podemos conversar depois da sessão de hoje. Estão acontecendo certas coisas e preciso conversar com você.
- Eu sei que estão acontecendo coisas. Dois agentes vieram aqui hoje.
- O que disse pra eles?
- Mandei os dois se foderem. Ficaram zangados.
- Agentes federais não gostam muito de ouvir esse tipo de linguagem. Já devia saber disso, Bosch.
- E, bom, sempre fui um aluno lento.
- E depois da sessão?
- Vou ficar por aqui. A menos que Fowkkes massacre nossa testemunha. Aí não sei, minha equipe pode ter que se reunir em algum lugar pra lamber as feridas.
- Muito bem, então vou ficar por aqui, assistindo pela tevê.
- Até mais tarde.
Bosch voltou para o tribunal, imaginando o que McCaleb teria descoberto tão depressa. O júri já voltara, e o juiz estava autorizando Fowkkes a começar. O advogado
de defesa esperou educadamente que Bosch passasse por ele na direção da mesa da promotoria. Depois começou.
- A senhorita é atriz em tempo integral?
-Sim.
- Estava representando aqui hoje?
Janis protestou de imediato, raivosamente acusando Fowkkes de hostilizar a testemunha. Bosch achou a reação dela extremada demais, mas sabia que aquilo era um recado
para Fowkkes: Janis iria defender sua testemunha com unhas e dentes. O juiz rejeitou o protesto, dizendo que Fowkkes estava dentro dos limites de reinquirição de
uma testemunha hostil a seu cliente.
- Não, não estava representando - respondeu Annabelle com energia.
Fowkkes balançou a cabeça.
- A senhorita declarou que está em Hollywood há três anos.
- Sim.
- Eu contei cinco trabalhos pagos que a senhorita citou. Mais algum?
- Até agora não. Fowkkes balançou a cabeça.
- E sempre bom ter esperança. É muito difícil entrar no meio, não é?
- É, muito difícil, muito desanimador.
- Mas agora a senhorita está na tevê, não está?
Ela hesitou um instante. Seu rosto mostrava que ela percebera que tinha caído numa armadilha.
- O senhor também está - disse ela.
Bosch quase sorriu. Era a melhor resposta que ela poderia ter dado.
- Vamos falar sobre esse... acontecimento que supostamente teve lugar entre a senhorita e David Storey - disse Fowkkes. - Na realidade, esse acontecimento é algo
que a senhorita imaginou a partir das reportagens sobre a prisão de David Storey, correto?
- Não. Ele tentou me matar.
- Isso é o que a senhorita diz.
Janis levantou-se para protestar, mas antes que fizesse isso o juiz mandou Fowkkes guardar tais comentários editoriais para si mesmo. O advogado de defesa prosseguiu.
- Depois de supostamente ser sufocada por David Storey a ponto de desmaiar, a senhorita ficou como pescoço machucado?
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- Sim, fiquei com um machucado por quase uma semana. Não podia sair. Não podia comparecer a testes, nem nada.
- E tirou fotografias do machucado para documentar sua existência, correto?
- Não, não tirei.
- Mas mostrou o machucado a seu agente e seus amigos, não mostrou?
-Não.
- E por que não?
- Porque não pensei que a coisa chegaria a esse ponto, em que eu precisaria tentar provar o que ele fez. Só queria que o machucado sumisse, e não queria que ninguém
soubesse.
- Portanto, temos apenas a sua palavra quanto a esse machucado, correto?
-Sim.
- Assim como temos apenas a sua palavra quanto a todo o incidente, correto?
- Ele tentou me matar.
- A senhorita depôs que quando chegou em casa, naquela noite, David Storey estava deixando um recado na sua secretária eletrônica, correto?
- Correto.
- E a senhorita atendeu o telefonema... um telefonema de um homem que supostamente tentara matar a senhorita. E verdade o que estou dizendo?
Fowkkes fez um gesto, como atendendo a um telefone. Ficou com a mão erguida até Annabelle responder.
- Sim.
- E deixou o recado gravado na fita, a fim de documentar as palavras dele e tudo que tinha acontecido antes, correto?
- Não, eu regravei a fita. Por engano.
- Por engano. Está dizendo que deixou a fita na secretária e acabou gravando por cima do recado?
- E. Eu não queria fazer isso, mas esqueci e gravei por cima.
- Está dizendo que esqueceu que alguém tinha tentado matar a senhorita e que acabou gravando por cima do recado?
- Não, eu não esqueci que ele tentou me matar. Nunca vou esquecer isso.
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- Portanto, temos apenas a sua palavra quanto a essa fita, correto?
- É verdade.
Havia um tom de desafio na voz dela. Mas para Bosch aquilo de certa forma era digno de pena. Era como berrar "Foda-se" para um motor a jato. Ele sentia que Annabelle
estava prestes a ser lançada dentro do motor e despedaçada.
- Bom, a senhorita declarou que é sustentada parcialmente por seus pais e que já ganhou algum dinheiro como atriz. Tem qualquer outra fonte de renda que não tenha
citado para nós?
- Bom... na verdade, não. Minha avó me manda dinheiro. Mas só raramente.
- Algo mais?
- Não que eu me lembre.
- Aceita dinheiro de homens de vez em quando, Srta. Crowe? Houve um protesto por parte de Janis, e o juiz convocou os
advogados à bancada. Enquanto eles cochichavam, Bosch ficou examinando o rosto de Annabelle. Ainda se via ali um resquício de desafio, mas já quase superado pelo
medo. Ela sabia que vinha alguma coisa pela frente. Bosch percebeu que Fowkkes tinha algo de legítimo com que atacar. Era algo que prejudicaria Annabelle e portanto
prejudicaria a promotoria.
Quando a confabulação terminou, Janis e Kretzler retornaram aos seus lugares na mesa da promotoria. Kretzler inclinou-se para Bosch-
- Estamos fodidos - sussurrou. - Ele tem quatro sujeitos que vão testemunhar que pagaram pra fazer sexo com ela. Como nós não sabíamos disso?
Bosch não respondeu. Quando recebera a atribuição de investigar a vida pessoal da testemunha, ele interrogara Annabelle longamente e fora conferir para ver se ela
não tinha impressões digitais fichadas na polícia. Nada surgira a partir das respostas dela e nem da pesquisa por computador. Como ela jamais fora presa por prostituição
e negara ter cometido qualquer atividade criminosa, não havia muito mais que Bosch pudesse ter feito.
De volta à tribuna, Fowkkes reformulou a pergunta.
- Srta. Crowe, já fez sexo com homens em troca de dinheiro?
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- Não, absolutamente não. Isso é mentira.
- Conhece um homem chamado André Snow?
- Sim, conheço.
- Se ele testemunhasse sob juramento que pagou para ter relações sexuais com a senhorita, estaria mentindo?
- Sim, estaria.
Fowkkes deu o nome de três outros homens, fazendo o mesmo tipo de pergunta. Annabelle admitiu que os conhecia mas negando ter feito sexo com eles por dinheiro.
- Mas a senhorita já aceitou dinheiro desses homens, embora não em troca de sexo? - perguntou Fowkkes, num tom de falsa exasperação.
- Sim, algumas vezes. Mas não tinha nada a ver com o fato de fazermos sexo ou não.
- Tinha a ver com o quê, então?
- Queriam me ajudar. Eu achava que eram meus amigos. -Já fez sexo com eles?
Annabelle olhou para as próprias mãos e abanou a cabeça.
- Está dizendo que não, Srta. Crowe?
- Estou dizendo que não fazia sexo com eles toda vez que me davam dinheiro. Eles não me davam dinheiro toda vez que fazíamos sexo. Uma coisa não tinha nada a ver
com a outra. O senhor está tentando fazer com que a coisa pareça o que não é.
- Só estou fazendo perguntas, Srta. Crowe. Como é o meu dever fazer. Assim como é o seu dever contar a verdade ao júri.
Depois de uma longa pausa, Fowkkes disse que nada mais tinha a perguntar.
Bosch percebeu que agarrara os braços da cadeira com tanta força que as juntas dos seus dedos estavam brancas e dormentes. Esfregou as mãos uma na outra e tentou
relaxar, mas não conseguiu. Sabia que Fowkkes era um mestre, um artista da estocada. Ele era rápido, objetivo e devastador como um estilete. Bosch percebeu que seu
desconforto não vinha apenas da posição indefesa e humilhação pública de Annabelle Crowe, e sim de sua própria posição. Sabia que o estilete seria apontado para
ele a seguir.
Capítulo 40
Eles se acomodaram numa das mesas com divisória do Nat's, depois de pegarem no balcão garrafas de Rolling Rock com a atendente tatuada com o coração enrolado em
arame farpado. Ao tirar as garrafas da geladeira, a mulher não comentara que McCaleb já estivera ali perguntando pelo homem que o acompanhava. Era cedo e o lugar
estava vazio, exceto por grupos de bebedores inveterados no balcão e na mesa com divisória dos fundos. Na vitrola automática, Bruce Springsteen cantava There's a
darkness on the edge of town.
McCaleb examinou Bosch, achando que ele estava preocupado com alguma coisa. Provavelmente era o julgamento. A última testemunha fora um zero à esquerda, na melhor
das hipóteses. Boa na inquirição, ruim na reinquirição. O tipo de testemunha que não se usa - quando há escolha.
- Parece que vocês se estreparam com a testemunha. Bosch balançou a cabeça.
- Culpa minha. Eu devia ter previsto isso. Mas olhei pra ela, e pensei que era tão bonita que não podia de jeito algum... Eu simplesmente acreditei nela.
- Eu entendo.
- Foi a última vez que acreditei num rosto.
- Mas vocês ainda parecem ter chance. Têm mais alguma coisa escondida?
Bosch deu um sorriso irônico.
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- E só. Eles iam encerrar hoje, mas decidiram esperar até amanhã de manhã para não deixar Fowkkes se preparar durante a noite. Mas já gastamos toda a nossa munição.
A partir de amanhã vamos ver o que eles têm.
McCaleb viu Bosch tomar quase metade da cerveja de um só gole. Decidiu que era melhor fazer logo as perguntas sérias, enquanto o detetive ainda estivesse sóbrio.
- Fale de Rudy Tafero.
Bosch deu de ombros, num gesto ambivalente. -O que tem ele?
- Não sei. Você conhece bem Tafero? Ou conhecia bem?
- Bom, conhecia quando ele estava no nosso time. Ele atuou como detetive de Hollywood por cinco anos, mais ou menos, enquanto eu estava lá. Depois se aposentou com
direito a pensão por vinte anos de serviço e foi trabalhar do outro lado da rua. Começou a tirar da cadeia o pessoal que a gente punha na cadeia.
- Mas quando estavam na mesma equipe lá em Hollywood, vocês eram íntimos?
- Não sei o que significa íntimos. Nós não éramos amigos, nem parceiros de bebedeira. Ele trabalhava em arrombamentos, e eu em homicídios. Por que está fazendo tantas
perguntas sobre ele? O que ele tem a ver com...
Ele parou de falar e olhou para McCaleb, com as engrenagens mentais obviamente girando. Rod Stewart cantava Twisting the Night Away.
- Está brincando comigo, caralho? - perguntou por fim. - Está desconfiando que...
- Quero só fazer umas perguntas - interpôs McCaleb. - Depois você faz as suas.
Bosch esvaziou a cerveja e ergueu a garrafa até a atendente notar.
- Não servimos nas mesas, gente - anunciou ela. - Desculpem.
- Puta que pariu - disse Bosch.
Saiu da divisória e foi até o balcão. Voltou com mais quatro Rocks, embora McCaleb mal tivesse começado a beber a primeira.
- Pode perguntar - disse Bosch.
- Por que vocês dois não eram próximos?
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Bosch pôs os cotovelos sobre a mesa e segurou uma nova garrafa com as duas mãos. Lançou o olhar para fora da divisória e depois encarou McCaleb novamente.
- Há cinco ou dez anos havia dois grupos no FBI. E em grande parte a mesma coisa acontecia no departamento de polícia. Era como se houvesse os santos e os pecadores...
dois grupos distintos.
- Os renascidos e os antinascidos?
- Algo por aí.
McCaleb se lembrava. Tornara-se notório nos círculos das organizações de segurança, uma década antes, que dentro do Departamento de Polícia de Los Angeles um grupo
conhecido como os "renascidos" tinha membros em posições-chave que controlavam as promoções e os cargos privilegiados. Os membros desse grupo - várias centenas de
elementos, de todas as graduações - pertenciam a uma igreja no vale de San Fernando, onde o subchefe do departamento encarregado das operações era pregador leigo.
Os policiais ambiciosos se uniam à igreja aos magotes, na esperança de impressionar o subchefe e melhorar suas perspectivas de fazer carreira. Havia dúvidas sobre
a espiritualidade envolvida naquilo. Mas quando o subchefe fazia seu sermão de domingo às onze horas, a igreja ficava entupida de policiais que não estavam de serviço,
em pé, com os olhos dirigidos fervorosamente para o púlpito. McCaleb ouvira dizer que certa vez o alarme de um carro disparara no estacionamento durante o serviço
religioso das onze horas. O infeliz viciado que estava remexendo no porta-luvas do carro logo se vira rodeado de uma centena de armas apontadas por policiais de
folga.
- Aposto que você era do time dos pecadores, Harry. Bosch sorriu e balançou a cabeça.
- E claro.
- E Tafero estava entre os santos.
- Pois é. Como o nosso tenente na época. Um burocrata chamado Harvey Pounds. Ele e Tafero tinham a tal igrejinha e eram íntimos por causa disso. Acho que eu jamais
me aproximaria de um cara ligado a Pounds, fosse por causa da igreja ou não. Percebe o que eu quero dizer? E os caras também não se aproximavam de mim.
McCaleb balançou a cabeça. Percebia mais do que estava deixando entrever.
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- Pounds foi o cara que bagunçou o caso Gunn - disse. - O cara que você jogou pela janela.
- Esse mesmo.
Bosch baixou a cabeça e abanou-a, desgostoso consigo mesmo.
- Tafero estava lá nesse dia?
- Tafero? Não sei. É provável.
- Mas a corregedoria não tomou os depoimentos das testemunhas pra fazer uma sindicância interna?
- Tomou, mas nem examinei aquilo. Eu tinha jogado o cara pela janela na frente da equipe. Não podia negar a coisa.
- E mais tarde... o quê, um mês ou dois... Pounds aparece morto num túnel nas colinas.
- Pois é. Em Griffith Park.
- E o caso ainda está em aberto... Bosch balançou a cabeça.
- Tecnicamente.
- Você já disse isso antes. O que isso significa?
- Significa que o caso está em aberto, mas que ninguém está investigando. O departamento de polícia tem uma classificação especial para casos assim. São casos que
eles preferem esquecer, e classificados como casos encerrados sem prisão, por outras circunstâncias.
- E você conhece essas circunstâncias?
Bosch terminou a segunda garrafa, empurrou-a para o lado e colocou outra à sua frente.
- Você não está bebendo - disse.
- Você está bebendo por nós dois. Conhece essas circunstâncias? Bosch inclinou-se para a frente.
- Escute, vou contar a você uma coisa que muito pouca gente sabe, tá legal?
McCaleb balançou a cabeça. Sabia que não era hora de perguntar nada. Era melhor deixar Bosch falar.
- Levei uma suspensão por causa do negócio da janela. Quando cansei de dar voltas pela casa olhando para as paredes, comecei a investigar um caso antigo. Um caso
já frio. Um caso de assassinato. Fiz a coisa sozinho e acabei seguindo uma pista maluca que desembocava em gente muito poderosa. Mas na época eu não
tinha distintivo, nem autoridade de fato. Por isso dei alguns telefonemas usando o nome de Pounds. Estava tentando esconder o que fazia, entende?
- Se o departamento descobrisse que você estava investigando um caso durante a suspensão, as coisas teriam piorado ainda mais pra você.
- Exatamente. Por isso eu usava o nome dele quando dava os telefonemas que achava inócuos, de rotina. Mas aí uma noite alguém ligou para Pounds dizendo que tinha
uma informação urgente para ele. Pounds foi ao encontro sozinho. E mais tarde foi encontrado naquele túnel. Ele foi muito espancado, como se tivesse sido torturado
por alguém. Só que ele não conseguira responder às perguntas, porque era o cara errado. Eu tinha usado o nome dele. Era a mim que eles queriam.
Bosch deixou o queixo cair sobre o peito e ficou em silêncio por um longo período.
- Eu causei a morte dele - disse, sem erguer os olhos. - O cara era um babaca completo, mas os meus atos causaram a morte dele.
Bosch ergueu subitamente a cabeça e bebeu um gole da garrafa. McCaleb viu que os olhos deles estavam escuros e brilhantes. Pareciam cansados.
- E isso que queria saber, Terry? Isso ajuda em alguma coisa? McCaleb balançou a cabeça.
- Até que ponto Tafero sabia disso?
- Ele não sabia de nada.
- Ele não pode ter pensado que foi você quem telefonou para Pounds naquela noite?
- Talvez. Teve gente que pensou e que provavelmente ainda pensa. Mas o que isso significa? O que isso tem a ver com Gunn?
McCaleb deu o primeiro grande gole na cerveja. Estava gelada, e ele sentiu o frio no peito. Descansou a garrafa e decidiu que já estava
na hora de dar a Bosch alguma coisa em troca.
- Preciso saber entender Tafero porque preciso entender as razões, os motivos. Não posso provar nada... ainda... mas acho que Tafero matou Gunn. Fez isso a mando
de Storey. E armou a coisa pra estourar em você.
-Jesus...
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- Foi uma bela armação, perfeita. A cena do crime está ligada ao pintor Hieronymus Bosch, o pintor está ligado a você por ser seu homônimo, e você está ligado a
Gunn. Sabe quando Storey teve a idéia de fazer isso, provavelmente?
Bosch abanou a cabeça. Estava atordoado demais para falar.
- No dia da tentativa de interrogatório no escritório dele. Você passou a fita no tribunal na semana passada e se identificou pelo seu nome de batismo completo.
- Eu sempre faço isso. Eu...
- Ele chamou Tafero, e Tafero já tem a vítima perfeita pra fazer a armação... Gunn. Um homem que ele sabia ter escapado de você e de uma acusação de assassinato,
há seis anos.
Bosch ergueu a garrafa alguns centímetros acima da mesa e baixou-a com força.
- Acho que o plano era duplo. Se eles tivessem sorte, a conexão seria estabelecida rapidamente, e você já estaria se defendendo de uma acusação de assassinato antes
que o julgamento de Storey tivesse começado. Se isso não acontecesse, havia o plano B. Eles ainda teriam esse plano para esmagar você durante o julgamento. Era só
destruir você para destruir a acusação. Hoje Fowkkes afundou aquela mulher e já baleou algumas das outras testemunhas. Em que se baseia a acusação? Em você, Harry.
Eles sabiam que a coisa acabaria em você
Bosch virou a cabeça ligeiramente, e seus olhos pareciam não estar enxergando nada. Enquanto olhava para o tampo de mesa arranhada, ele pensava no que McCaleb dissera.
- Eu precisava conhecer o seu passado com Tafero. Pois a pergunta é... por que ele faria isso? Sim, provavelmente há dinheiro na coisa, e se Storey conseguir escapar
fica à mercê dele. Mas tinha que haver algo mais. E acho que você acabou de me contar o que era. Ele provavelmente odeia você há muito tempo.
Bosch ergueu o olhar da mesa e encarou McCaleb.
- Ele está dando o troco. McCaleb balançou a cabeça.
- Por causa de Pounds. E se a gente não conseguir provar isso, a coisa pode funcionar.
Bosch ficou em silêncio e baixou os olhos para a mesa. Parecia cansado e esgotado para McCaleb.
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- Ainda quer dar os parabéns a ele? - perguntou McCaleb. Bosch ergueu os olhos.
- Desculpe, Harry. Foi um golpe baixo.
Bosch abanou a cabeça, como quem não se importa.
- Eu mereço. Diga lá, o que você descobriu?
- Não muito. Mas você tinha razão. Eu tinha deixado escapar uma coisa. Tafero pagou a fiança de Gunn na véspera de Ano-Novo. Acho que o plano era matar Gunn naquela
noite, montar a cena do crime e deixar que as coisas tomassem seu curso. A conexão Hieronymus Bosch viria à tona... ou por Jaye Winston ou por uma pesquisa no Programa
de Captura de Criminosos Violentos do FBI... e você se tornaria um alvo natural. Mas Gunn veio se embebedar aqui.
Ele ergueu a garrafa e apontou para o balcão.
- Foi preso por dirigir bêbado ao ir para casa. Tafero teve que soltar Gunn para poder continuar seguindo o plano e matar o sujeito. A multa de trânsito é o único
elo de ligação direto que a gente tem.
Bosch balançou a cabeça. McCaleb viu que ele estava percebendo o esquema.
- Foram eles que vazaram a notícia para aquele repórter - disse Bosch. - Quando a coisa estourasse na mídia, poderiam fingir que era novidade e fazer um carnaval
como se estivessem correndo atrás do prejuízo, quando na verdade estavam o tempo todo na nossa frente.
McCaleb balançou a cabeça, hesitante. Não mencionou a admissão de Buddy Lockridge para não meter uma cunha na teoria que Bosch desenvolvera.
- O que foi? - perguntou Bosch.
- Nada. Eu só estava pensando.
- Você não tem nada além do pagamento da fiança por Tafero?
- Uma multa de trânsito, e é só, por enquanto.
McCaleb descreveu detalhadamente as visitas que fizera pela manhã à Fianças Valentino e ao correio. Mencionou também que por ter chegado ao correio quarenta e oito
minutos atrasado talvez houvesse perdido a chance de livrar Bosch das suspeitas, e cravar Tafero.
Bosch fez uma careta e pegou uma garrafa, mas depois largou-a na mesa sem beber.
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- A multa de trânsito mostra que ele esteve no correio - disse McCaleb.
- Isso não quer dizer nada. Ele tem um escritório a cinco quarteirões dali. Pode alegar que foi a única vaga que encontrou. Pode dizer que emprestou o carro a alguém.
Não quer dizer nada.
McCaleb não queria se concentrar no que eles não tinham. Queria encaixar as peças.
- Escute, o sargento do plantão da manhã contou que você tinha deixado lá um pedido para ser avisado toda vez que Gunn fosse preso. Será que Tafero ficou sabendo
disso? Ou na época em que ele era da polícia ou de algum outro modo?
- Talvez. Isso não era segredo. Eu estava trabalhando em cima de Gunn. Um dia ia fazer o cara abrir o bico.
- A propósito, qual era a aparência de Pounds? Bosch lançou-lhe um olhar confuso.
- Baixo, corpulento e meio calvo, com um bigode?
Bosch confirmou com a cabeça e ia fazer uma pergunta, mas McCaleb respondeu antes.
- O retrato dele está no escritório de Tafero. Pounds aparece entregando a ele uma placa de Detetive do Mês. Aposto que você nunca recebeu uma, Harry.
- Não. Pounds fazia a escolha.
McCaleb ergueu o olhar e viu que Jaye Winston entrara no bar, carregando uma maleta. Ele meneou a cabeça para ela, e Jaye começou a se dirigir para a mesa deles.
Andava com os ombros encolhidos, como se estivesse pisando com cuidado sobre um aterro.
McCaleb abriu espaço e ela sentou-se ao seu lado.
- Lugar agradável.
- Harry, acho que você conhece Jaye Winston - disse meCaleb.
Bosch e Jaye se entreolharam.
- Para começar, desculpe aquele negócio com Kiz - disse Jaye.
- Espero que...
- A gente faz o que tem que fazer - disse Bosch. - Quer um drinque? Eles não servem nas mesas aqui.
- Eu ficaria chocada se servissem. Maker's Mark, com gelo, se tiver.
- Terry, nada pra você?
- Nada.
Bosch foi buscar a bebida. Jaye virou-se e olhou para McCaleb.
- Como está indo a coisa?
- Pedacinhos, aqui e ali.
- Como ele está levando?
- Nada mal, acho eu, para um cara que foi colocado numa fria. E você?
Jaye sorriu de um jeito que fez McCaleb adivinhar que ela descobrira algo.
- Arranjei a fotografia e uns outros... pedacinhos... interessantes. Bosch pôs o drinque de Jaye na mesa e sentou-se novamente.
- Ela riu quando eu disse Maker's Mark - disse ele. - Isso aí é a lavagem da casa.
- Maravilha. Obrigada.
Jaye afastou o copo para o lado e pôs a maleta na mesa. Abriu-a, tirou uma pasta, fechou a maleta e colocou-a no chão, perto do banco. McCaleb viu Bosch observando
Jaye com um olhar de expectativa.
Jaye abriu a pasta e estendeu para McCaleb uma fotografia
12x18 de Rudy Tafero.
- É uma ampliação da licença de fiador dele. Tem onze meses. Depois consultou uma página de suas anotações datilografadas.
- Fui até o xadrez do condado e consultei tudo que havia sobre Storey. Ele ficou lá até ser transferido para a cadeia de Van Nuys no início do julgamento. Durante
sua estada no xadrez, recebeu dezenove visitas de Tafero. As doze primeiras visitas se realizaram durante as três primeiras semanas em que esteve ali. Nesse período,
Fowkkes só visitou Storey quatro vezes. Um advogado do escritório de Fowkkes visitou Storey mais umas quatro vezes, e a assistente executiva de Storey, Betilda Lockett,
apareceu seis vezes. É só. Storey se encontrou com um investigador mais vezes do que com seus advogados.
- Foi quando eles planejaram a coisa - disse McCaleb. Ela balançou a cabeça e sorriu do mesmo jeito anterior.
- O que é? - perguntou McCaleb.
- Estava só deixando o melhor para o fim.
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Ela pegou novamente a maleta e a abriu.
- A cadeia registra todos os bens e pertences dos internos, tanto as coisas que eles trazem, quanto as coisas aprovadas e trazidas pelos visitantes. Há uma anotação
nos registros de Storey de que sua assistente, Betilda Lockett, recebeu permissão para lhe dar um livro durante a segunda das seis visitas. Segundo o registro de
bens, o livro chamava-se A arte das trevas. Eu fui até o centro da cidade e conferi.
Ela tirou da maleta um livro grande e pesado, com uma capa de tecido azul. Começou a abri-lo sobre a mesa. Uma papeleta gomada fora colocada como marcador.
- E um estudo de artistas que usaram as trevas como uma parte essencial do meio visual, segundo a introdução.
Jaye ergueu o olhar e sorriu, enquanto abria o livro no marcador.
- Há um capítulo bem longo sobre Hieronymus Bosch. Cheio de ilustrações-
McCaleb ergueu a garrafa vazia e bateu-a contra o copo de Jaye, ainda intocado. Depois inclinou-se, juntamente com Bosch, para examinar as páginas.
- Lindo - disse.
Jaye foi virando as páginas. As ilustrações da obra de Bosch incluíam todos os quadros de onde se poderiam tirar partes da cena do crime-- A operação de pedra, Os
sete pecados capitais com o olho de Deus, O Juízo Final e O jardim das delícias terrenas.
- Ele planejou a coisa lá na cela mesmo - espantou-se meCaleb
- Parece que sim - disse Jaye.
Ambos olharam para Bosch, que balançava a cabeça quase imperceptivelmente.
- Agora é sua vez, Harry - disse McCaleb. Bosch fez uma expressão perplexa.
- Minha vez de quê?
- De dar sorte.
McCaleb empurrou o retrato de Tafero pela mesa e meneou a cabeça na direção da atendente. Bosch pegou a fotografia e foi até o balcão
- Ainda estamos tateando nas bordas - disse Jaye, vendo
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Bosch interrogar a moça sobre a fotografia. - Temos alguns pedacinhos, mas só isso.
- Eu sei - disse McCaleb, sem conseguir ouvir a conversa no balcão. A música estava alta demais, com Van Morrison cantando The Wild Night h Corning.
Bosch meneou a cabeça para a moça no balcão e retornou à mesa.
- Ela reconheceu Tafero. Por incrível que pareça, ele só bebe Kahlúa com creme. Mas não conseguiu associar o rosto dele a Gunn.
McCaleb deu de ombros, num gesto de isso-não-significanada.
- Valeu arriscar.
- Vocês sabem onde isso vai desembocar, não sabem? - disse Bosch, olhando ora para McCaleb, ora para Jaye. - Vocês vão ter que fazer uma jogada. E a única maneira.
E tem que ser uma porra de uma jogada boa, porque o meu está na reta.
McCaleb balançou a cabeça.
- Nós sabemos - disse ele.
- Quando? Meu tempo está se esgotando. McCaleb olhou para Jaye. Era uma decisão dela.
- Logo - disse ela. - Talvez amanhã. Ainda não levei isso ao departamento. Tenho que ter tato com o capitão nesse assunto, porque ele só sabe que Terry está fora
do caso e que eu estou trabalhando com o FBI atrás de você. Tenho também que conseguir o auxílio da promotoria, porque quando fizermos a jogada é preciso agir rápido.
Se tudo sair bem, acho que pegamos Tafero amanhã à noite e armamos a jogada em cima dele.
Bosch olhou para a mesa com um sorriso tristonho. Ficou empurrando uma garrafa vazia de um lado para o outro entre as mãos.
- Encontrei aqueles caras hoje. Os agentes.
- Ouvi falar. Você não conseguiu convencer os dois da sua inocência. Eles voltaram irritados.
Bosch ergueu os olhos.
- Então, o que querem que eu faça nesse troço?
- Queremos que você fique quieto - disse Jaye. - Nós avisaremos, se a jogada for amanhã à noite.
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Bosch balançou a cabeça.
- Só tem uma coisa - disse McCaleb. - Você tem acesso às provas materiais que foram juntadas aos autos do julgamento?
- Durante as sessões no tribunal, sim. Fora disso, elas ficam com o auxiliar do juiz. Por quê?
- Porque é óbvio que Storey tinha conhecimento anterior do pintor Hieronymus Bosch. Ele deve ter reconhecido o seu nome durante o interrogatório e percebido o que
podia fazer com isso. Portanto, acho que aquele livro que Betilda Lockett levou até o xadrez só podia ser dele. Ele mandou a assistente trazer o livro.
Bosch balançou a cabeça.
- A fotografia da estante. McCaleb balançou a cabeça.
- É isso aí.
- Eu aviso vocês - disse Bosch, dando uma olhada em torno. - Terminamos?
- Terminamos - disse Jaye. - A gente se fala.
Ela saiu da mesa, seguida por Bosch e McCaleb, deixando duas cervejas e um uísque com gelo intocados. Na porta, McCaleb deu uma olhada para trás e viu um casal de
fregueses habituais avançando para o tesouro. Na vitrola automática, John Fogerty cantava There's a Bad Moon on the Rise...
Capítulo 41
A friagem do mar penetrava nos ossos de McCaleb. Ele meteu as mãos nos bolsos do agasalho e enfiou o pescoço o mais que pôde na gola, enquanto descia cuidadosamente
a rampa para a doca da marina Cabrillo.
Embora o queixo estivesse baixo, seus olhos estavam atentos, perscrutando as docas à procura de qualquer movimento inusitado. Nada lhe chamou a atenção, exceto o
barco a vela de Buddy Lockridge atracado ali. A despeito da tralha que enchia o convés - pranchas de surfe, bicicletas, churrasqueira a gás, um caiaque oceânico,
bagulhos variados e outros equipamentos variados -, ele percebeu que as luzes da cabine estavam acesas. Mas foi em frente, pisando em silêncio nas pranchas de madeira.
Quer Buddy estivesse acordado ou não, já era muito tarde, e McCaleb estava cansado demais e com frio demais para lidar com seu suposto sócio. Ainda assim, ao se
aproximar do Mar que Segue, não pôde deixar de examinar mentalmente a incômoda anomalia na explicação teórica que montara para o caso. Bosch estivera certo lá no
bar, quando deduzira que alguém ligado a Storey devia ter vazado a história da investigação de Gunn para o New Times. McCaleb sabia que sua teoria só poderia se
sustentar se alguém como Tafero, Fowkkes ou até Storey - da cadeia - tivesse sido a fonte de McEvoy. O problema era que Buddy já confessara ter vazado a notícia
sobre a investigação para o tablóide semanal.
McCaleb só enxergava uma possibilidade de sua teoria permanecer de pé: Buddy e alguém do grupo de Storey terem, ao mesmo
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tempo, vazado a mesma informação para a mesma fonte da mídia. E isso, é claro, era uma coincidência que até quem acreditava em coincidências teria dificuldade para
aceitar.
Ele tentou afastar esses pensamentos da mente momentaneamente. Chegou ao barco, olhou novamente em volta e desceu para a cabine. Destrancou a porta corrediça e entrou,
acendendo as luzes. Decidiu que pela manhã interrogaria Buddy mais cuidadosamente sobre o que ele fizera e com quem falara.
Trancou a porta, pondo as chaves e o aparelho de vídeo que estava carregando sobre a mesa de navegação. Entrou imediatamente na cozinha e encheu um copo grande de
suco de laranja. Depois apagou as luzes do convés e desceu com o suco para o convés inferior, dirigindo-se para o camarote da frente e dando início ao ritual vespertino
das pílulas. Enquanto engolia as pílulas e o suco de laranja, ficou olhando para si mesmo no pequeno espelho que havia em cima da pia. Pensou na aparência de Bosch
e no esgotamento claramente estampado nos olhos fundos do detetive. Ficou imaginando se também não teria a mesma aparência dali a poucos anos, depois de mais alguns
casos.
Quando acabou a rotina medicinal, tirou a roupa e tomou uma chuveirada gélida, pois o aquecedor não tinha sido ligado desde que ele cruzara a baía na véspera.
Foi tremendo até o camarote principal, onde vestiu um short e uma camiseta. Estava morto de cansaço, mas assim que se deitou decidiu anotar algumas idéias sobre
a jogada de Jaye em cima de Tafero. Estendeu a mão para a gaveta da mesinha-de-cabeceira, onde mantinha canetas e blocos de rascunho. Quando a abriu, encontrou um
jornal dobrado enfiado no pequeno espaço da gaveta. Tirou-o, desdobrou-o e viu que era o número da semana anterior do New Times. As páginas haviam sido dobradas
para trás, de modo que a seção de anúncios estava na frente. McCaleb ficou olhando para uma página cheia de pequenos anúncios sob o título de MASSAGENS A DOMICÍLIO.
Levantou-se rapidamente e foi até o agasalho, que jogara sobre uma cadeira. Tirou o celular do bolso e voltou para a cama. Nos últimos dias ele se deslocara sempre
com o aparelho, mas geralmente o telefone ficava no carregador instalado no barco. A conta era paga com a renda do negócio e lançada como despesa operacional,
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pois o aparelho era usado pelos clientes durante os passeios, e por Buddy para confirmar reservas e pagamentos via cartão de crédito.
O telefone tinha uma pequena tela digital com um menu que McCaleb examinou. Acionou o programa de chamadas feitas e começou a pesquisar os últimos cem números que
o telefone acessara. Identificou e eliminou rapidamente a maioria dos números. Mas toda vez que não reconhecia um número, comparava-o com os telefones exibidos na
página de anúncios de massagem. Teve sucesso na quarta tentativa. O número pertencia a uma mulher que se anunciava como "Beleza Exótica Nipo-Havaiana" e se chamava
Leilani. O anúncio dizia que ela especializada em "relaxamento completo" e que não era ligada a agências de massagem.
McCaleb fechou o telefone e levantou novamente da cama. Começou a vestir uma calça de malha, enquanto tentava recordar exatamente o que dissera ao acusar Buddy de
vazar a informação para o New Times.
Quando terminou de se vestir, McCaleb já percebera que não chegara a acusar Buddy, especificamente, de ter vazado a informação para o jornal. Ele apenas mencionara
o New Times, e Buddy imediatamente começara a se desculpar. McCaleb percebeu que o pedido de desculpas e o constrangimento de Buddy poderiam ter se originado do
fato de ele ter usado o Mar que Segue na semana anterior, quando o barco estava na marina, para se encontrar com a massagista do relaxamento completo. Isso explicaria
por que ele perguntara se McCaleb contaria a Graciela o que ele fizera.
McCaleb olhou para o relógio. Eram onze e dez da noite. Ele pegou o jornal e foi até o convés. Não queria esperar até a manhã para confirmar aquilo. Achava que Buddy
usara o Mar que Segue para se encontrar com a mulher, porque o barco dele era tão pequeno e cheio de tralhas que parecia uma ratoeira flutuante de aparência sinistra.
Não tinha cabine fechada - apenas um espaço aberto, tão cheio de tralhas quanto o convés de cima. Se Buddy tivesse o Mar que Segue à disposição, ele o teria usado.
No salão nem se deu ao trabalho de acender as luzes. Inclinou-se sobre o sofá e lançou o olhar pela janela para a esquerda da embarcação. O barco de Buddy, o Doubk
Down, estava quatro vagas adiante, e ele viu que as luzes da cabine ainda estavam acesas. Buddy ainda estava acordado, a menos que tivesse desmaiado com as luzes
acesas.
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McCaleb aproximou-se da porta corrediça para destrancá-la, mas percebeu que a porta já estava entreaberta. Havia alguém na embarcação. Provavelmente a pessoa entrara
enquanto ele tomava a chuveirada. Fora por isso que ele não ouvira a tranca se abrir e nem sentira o peso adicional no barco. Afastou rapidamente a porta para o
lado, abrindo-a por completo na tentativa de escapar. Estava justamente atravessando a porta quando foi agarrado por trás. Sentiu um braço passar por cima de seu
ombro direito e pela frente de seu pescoço. Viu o cotovelo se dobrar e sua garganta ficar presa no ângulo assim formado. O outro antebraço do atacante fechou o triângulo
atrás do pescoço de McCaleb, apertando-o como se fosse um torno e comprimindo as carótidas que levavam sangue oxigenado para o cérebro. Com um distanciamento quase
clínico, McCaleb percebeu o que estava acontecendo. Ele estava preso numa chave clássica de estrangulamento. Começou a lutar. Ergueu os braços e tentou enfiar os
dedos embaixo do antebraço e do bíceps que comprimiam seu pescoço, mas sentiu que era inútil. Já estava enfraquecendo.
Viu-se arrastado para longe da porta e de volta ao salão escuro. Ergueu a mão esquerda até o lugar onde a mão direita do atacante agarrava o antebraço esquerdo -
o ponto fraco do triângulo. Mas não tinha alavancagem e estava perdendo rapidamente as forças. Tentou gritar. Talvez Buddy escutasse. Mas sua voz desaparecera, e
nada saiu.
Lembrou-se de outro golpe defensivo. Ergueu o pé direito e lançou o calcanhar na direção do pé do atacante, com as últimas forças que conseguiu reunir. Mas errou.
Seu calcanhar bateu inocuamente no chão, e o atacante deu mais um passo atrás, desequilibrando McCaleb violentamente e deixando-o incapaz de tentar o golpe do pé
novamente.
McCaleb começou a perder a consciência velozmente. Sua visão das luzes da marina através da porta do salão foi sendo tomada por uma treva rodeada de vermelho. Já
quase inconsciente, percebeu que estava preso na chave clássica de estrangulamento que fora ensinada nos departamentos de polícia por todo o país, até provocar um
número excessivo de mortes.
Logo até esse pensamento se esvaiu, e ele deixou de ver as luzes. A treva avançou e o engoliu.
Capítulo 42
McCaleb voltou a si sentindo uma dor terrível nos ombros e nas coxas. Quando abriu os olhos, percebeu que estava deitado de bruços no beliche do camarote principal.
Sua cabeça estava apoiada diretamente no colchão, com o lado esquerdo do rosto para baixo, e ele olhava para a cabeceira da cama. Depois de um instante, lembrou-se
que fora atacado por trás quando estava indo visitar Buddy.
Ficou completamente consciente e tentou relaxar os músculos doloridos, mas percebeu que não podia se mexer. Tinha os pulsos atados nas costas e as pernas dobradas
para trás à altura dos joelhos. Alguém estava mantendo-as nessa posição.
Ele ergueu a cabeça do colchão e tentou se virar, mas não achou ângulo para isso. Caiu novamente sobre o colchão e virou a cabeça para a esquerda. Ergueu o corpo
novamente e virou a cabeça, vendo Rudy Tafero parado perto da cama, sorrindo. Com uma mão enluvada, ele segurava os pés de McCaleb, que estavam amarrados nos tornozelos
e dobrados para trás na direção das coxas.
Subitamente, McCaleb compreendeu tudo. Percebeu que estava nu e amarrado, na mesma postura em que vira o corpo de Edward Gunn. Era a posição fetal invertida do quadro
de Hieronymus Bosch. Sentiu um calafrio de terror explodir em seu peito. Instintivamente, flexionou os músculos das pernas, mas Tafero se preparara para aquele movimento.
Os pés de McCaleb quase não
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se mexeram, mas ele ouviu três cliques atrás da cabeça e sentiu a ligadura em torno do pescoço.
- Calma - disse Tafero. - Calma aí. Ainda não.
McCaleb parou de se mexer. Tafero continuava a pressionar os tornozelos dele para baixo, na direção das coxas.
- Você já viu o esquema antes - disse Tafero, em tom objetivo.
- Este aqui é um pouco diferente. Liguei várias algemas plásticas do tipo que todo tira de Los Angeles leva na mala do carro.
McCaleb entendeu o recado. Aquelas fitas de plástico haviam sido inventadas para ligar cabos, mas depois os órgãos policiais haviam descoberto que elas eram úteis
em ocasionais distúrbios de rua, onde havia necessidade de fazer prisões em massa. Um policial podia carregar apenas um par de algemas, mas centenas das algemas
plásticas. Eram enroladas no pulso dos presos, com a extremidade metida no fecho. As pequenas ranhuras na fita plástica se interpenetravam à medida que a pressão
ficava maior. Só podiam ser removidas depois de cortadas. McCaleb percebeu que os cliques que acabara de ouvir eram da algema plástica apertando seu pescoço.
- Portanto, tome cuidado - disse Tafero. - Fique paradinho aí.
McCaleb apoiou o rosto no colchão. Sua mente girava à procura de uma saída. Se pudesse começar uma conversa com Tafero, talvez ganhasse algum tempo. Mas tempo para
o quê?
- Como me encontrou? - disse ele, com a boca no colchão.
- Muito fácil. Meu irmãozinho te seguiu quando você saiu do escritório e anotou a sua placa. Devia olhar mais em volta, pra ver se não está sendo seguido.
- Vou me lembrar disso.
McCaleb compreendeu que o plano era fazer parecer que o assassino de Gunn o pegara quando ele chegara perto demais. Virou a cabeça novamente para poder ver Tafero.
- Isso não vai funcionar, Tafero - disse. - As pessoas já estão sabendo. Não vão cair nessa de pensar que foi Bosch.
Tafero sorriu para ele.
- Está falando de Jaye Winston? Não se preocupe. Vou fazer uma visita a ela quando terminar com você. Rua Willoughby, número oitenta e oito-zero-um, apartamento
seis, West Hollywood. Também foi fácil descobrir isso.
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Ele ergueu a mão livre e mexeu os dedos, como se estivesse tocando piano ou batendo à máquina.
- Deixe seus dedos caminharem pelas listas de eleitores... Eu tenho tudo em CD-ROM. Ela é uma democrata registrada, acredita? Uma detetive de homicídios que vota
com os democratas. Vivendo e aprendendo.
- Tem mais gente. O FBI está metido nisso. Você...
- Eles estão atrás de Bosch. Não de mim. Vi os caras no tribunal hoje.
Estendeu a mão e prendeu uma das algemas plásticas das pernas de McCaleb ao pescoço dele.
- E tenho certeza que essas algemas apontarão diretamente para o detetive Bosch.
Sorriu com a genialidade do plano. E McCaleb percebeu que o raciocínio dele estava certo. Twilley e Friedman iriam atrás de Bosch como dois cachorros correndo atrás
de um carro.
- Paradinho aí.
Tafero largou os pés de McCaleb e desapareceu de vista. McCaleb esforçou-se para manter as pernas dobradas. Quase imediatamente, sentiu os músculos das pernas começarem
a doer. Percebeu que não teria forças para manter aquela posição por muito tempo.
- Por favor...
Tafero voltou ao campo de visão dele. Segurava uma coruja de plástico nas mãos e tinha um sorriso de satisfação no rosto.
- Peguei esta coruja num dos barcos no ancoradouro. Está um pouco estragada pelo tempo, mas vai funcionar bem. Tenho que arranjar outra para Jaye Winston.
Olhou em torno do camarote como procurando um lugar para a coruja. Colocou-a numa prateleira acima da escrivaninha embutida. Pôs a coruja lá, olhou novamente para
McCaleb e ajustou a posição da ave de plástico, fazendo-a olhar diretamente para o homem deitado.
- Perfeito-disse.
McCaleb fechou os olhos. Sentia os músculos vibrando com o esforço. Uma imagem da filha apareceu em sua mente. Ela estava em seus braços, observando-o por cima da
mamadeira e dizendo-lhe para
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não se preocupar, para não ter medo. Aquilo o acalmou. Ele se concentrou no rosto dela e até achou que conseguia sentir o cheiro do cabelo da menina. Sentiu lágrimas
correrem pelos olhos e as pernas começarem a ceder. Sentiu o clique das algemas se apertando, e... Tafero forçou as pernas dele para baixo.
- Ainda não.
Algo duro bateu na cabeça de McCaleb e caiu com um baque no colchão ao seu lado. Ele virou o rosto, abriu os olhos e viu que era a fita de vídeo que pedira emprestado
a Lucas, o chefe da segurança do correio. Olhou para a etiqueta com o emblema do correio
- uma águia voando - que Lucas colocara na fita para ele.
- Espero que não se importe, mas enquanto você estava se recuperando do estrangulamento, dei uma olhada nessa fita que estava no seu aparelho. Não encontrei nada
aí. A fita está em branco. Porquê?
McCaleb sentiu uma pontada de esperança. Percebeu que só não estava morto ainda por causa da fita que Tafero encontrara. Aquilo levantara muitas questões, e era
uma brecha. Ele tentou pensar num meio de aproveitar aquela chance. A fita tinha mesmo que estar em branco, pois fazia parte de um blefe. Eles haviam planejado usá-la
como isca, quando trouxessem Tafero e armassem a jogada para cima dele. Mostrariam a fita e diriam que ele aparecia enviando a ordem de pagamento. Mas não chegariam
a exibir a fita. McCaleb pensou que talvez ainda pudesse usar aquilo - mas de modo inverso.
Tafero empurrou os tornozelos dele para baixo, com tanta força que quase encostou-os nas nádegas. McCaleb gemeu com o esforço dos músculos. Tafero relaxou a pressão.
- Eu fiz uma pergunta, seu puto, e quero a porra de uma resposta.
- Não é nada. E para estar em branco mesmo.
- Conversa fiada. A etiqueta diz "22 de dezembro". Diz "Vigilância de Wilcox". Por que a fita está em branco?
Tafero aumentou a pressão nas pernas de McCaleb, mas não tanto quanto antes.
- Tá legal, vou contar a verdade. Vou contar.
McCaleb respirou profundamente e tentou relaxar. Assim que
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seu corpo ficou imóvel, com o ar parado nos pulmões, teve a impressão de perceber um movimento do barco fora do ritmo suave da marola na marina. Alguém pisara no
barco. McCaleb só conseguiu pensar em Buddy Lockridge. Se fosse ele, era provável que estivesse caminhando para sua própria morte. McCaleb começou a falar rapidamente
em voz alta, na esperança de que sua voz alertasse Buddy.
- É só um engodo, mais nada. Nós íamos blefar com você, dizendo que você aparecia na fita comprando a ordem de pagamento com que a coruja foi encomendada. O plano
era fazer você se voltar contra Storey. Nós sabemos que ele planejou tudo lá na cadeia. Você só cumpria ordens. Eles querem Storey mais do que querem você. Eu ia...
- Está bem, cale a boca.
McCaleb se calou, pensando que Tafero sentira o movimento diferente do barco ou ouvira alguma coisa. Mas depois viu a fita ser levantada da cama. Percebeu que deixara
Tafero intrigado. Depois de um longo momento de silêncio, Tafero finalmente falou.
- Acho que você está falando merda, McCaleb. Acho que esta fita é daqueles sistemas de vigilância multiplex que eles usam. Não passa num aparelho de vídeo comum.
Se cada músculo do seu corpo não aparentasse estar gritando de dor, McCaleb teria sorrido. Ele fisgara Tafero. Estava amarrado na cama, impotente, mas controlava
seu carcereiro. Tafero estava revendo o próprio plano.
- Quem mais tem cópia disto? - perguntou Tafero. McCaleb não respondeu. Começou a pensar que se enganara a
respeito do movimento do barco. Já se passara muito tempo. Não havia outra pessoa a bordo.
Tafero bateu a fita com força na cabeça de McCaleb.
- Eu disse Quem mais tem cópia disto?
Sua voz já tinha outro tom. Parte da confiança desaparecera, substituída pelo medo de que houvesse uma falha no seu plano perfeito.
- Vá se foder - disse McCaleb. - Pode fazer o que tiver que fazer comigo. De qualquer forma, logo vai descobrir quem mais tem cópia disso.
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Tafero empurrou as pernas dele para baixo e inclinou-se sobre ele. McCaleb sentiu o hálito dele perto do ouvido.
- Escute, seu porra... Ouviu-se um estrondo ao fundo.
- Não se mova, caralho! - anunciou uma voz.
No mesmo instante Tafero se levantou e soltou as pernas de McCaleb. A súbita liberação da pressão e o forte barulho fizeram com que McCaleb se assustasse e involuntariamente
flexionasse todos os músculos de uma vez. Ele ouviu o estalido das algemas plásticas se fechando em diversos pontos das amarras. Numa reação em cadeia, a ligadura
em torno de seu pescoço se apertou e se trancou. McCaleb tentou levantar as pernas, mas já era tarde demais. A algema se fechara, penetrando na carne do pescoço.
Ele estava sem ar. Abriu a boca, mas não conseguiu emitir som algum.
Capítulo 43
Harry Bosch parou na porta do camarote do barco e apontou a arma para Rudy Tafero. Seus olhos se arregalaram quando ele viu a cena no aposento. Terry McCaleb estava
nu na cama, com os braços e pernas amarrados às costas. Bosch viu que várias algemas de plástico tinham sido unidas e usadas para atar os pulsos e tornozelos dele,
enquanto outra fileira de algemas saía dos tornozelos, passava embaixo dos pulsos e dava uma laçada em torno do pescoço. Não conseguia ver o rosto de McCaleb, mas
percebeu que o plástico penetrara profundamente na pele do pescoço, que já estava assumindo um tom vermelho-escuro. Ele estava sendo estrangulado.
- Vire e encoste na parede - gritou ele para Tafero. - Ele precisa de ajuda, Bosch. Você...
- Eu disse pra ficar contra a porra da parede! Já!
Ergueu a arma até o nível do peito de Tafero para mostrar que a ordem era para valer. Tafero ergueu as mãos e começou a se virar para a parede.
- Tá legal, tá legal, estou me virando.
Logo que Tafero se virou, Bosch avançou rapidamente e empurrou o homenzarrão contra a parede. Olhou para McCaleb. Já dava para ver o rosto dele, que estava ficando
cada vez mais vermelho. Os olhos estavam abertos e esbugalhados. A boca se abrira numa tentativa desesperada - mas infrutífera - de engolir ar.
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Bosch enfiou o cano da arma nas costas de Tafero e apalpou-o com a outra mão para ver se ele não tinha outra arma. Tirou uma pistola do cinto do sujeito e recuou.
Olhou novamente para McCaleb e viu que não podia perder tempo. O problema era controlar Tafero e chegar a McCaleb para soltá-lo. Subitamente, percebeu o que precisava
ser feito. Recuou e juntou as duas mãos, pondo as armas lado a lado. Ergueu-as acima da cabeça e baixou violentamente as coronhas na parte traseira da cabeça de
Tafero. O homenzarrão foi jogado para a frente, batendo com a cara na parede revestida de madeira e caindo imóvel ao chão.
Bosch virou-se, jogou as duas armas na cama e tirou rapidamente as chaves do bolso.
- Agüenta aí, agüenta aí.
Com os dedos resvalando na lâmina, abriu o canivete preso à argola de chaves. Estendeu a mão para o garrote plástico em torno do pescoço de McCaleb, mas não conseguiu
meter os dedos embaixo da fita. Virou McCaleb de lado e meteu rapidamente os dedos embaixo do plástico na garganta do outro. Enfiou a lâmina ali e cortou a algema.
A ponta do canivete fez um pequeno corte na pele.
Um som horrível saiu da garganta de McCaleb, enquanto ele tentava falar e engolir ao mesmo tempo. As palavras eram ininteligíveis, perdidas na urgência instintiva
de inspirar oxigênio.
- Cale a boca e respire! - gritou Bosch. - Só respire!
A cada respiração de McCaleb ouvia-se um chacoalhar interior. Bosch viu que uma linha em tom vermelho vivo corria em toda a circunferência do pescoço dele. Tocou
levemente naquela região, querendo ver se houvera dano à traquéia, à laringe ou às artérias. McCaleb girou um pouco a cabeça no colchão, tentando se afastar.
- Só... me solte.
As palavras o fizeram tossir violentamente no colchão, com o corpo todo estremecendo pelo trauma sofrido.
Bosch usou o canivete para libertar as mãos e depois os tornozelos. Viu as marcas vermelhas da ligadura em ambos os membros, de um lado e do outro. Afastou todas
as algemas e jogou-as no chão. Olhou em torno e viu as calças de malha e a camiseta no chão. Pegou-as e lançou-as na cama. McCaleb estava se virando vagarosamente
para ele, com o rosto ainda avermelhado.
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- Você... você... me salvou...
- Não fale.
Ouviu-se um gemido no chão, e Bosch viu Tafero começar a se mexer, recobrando a consciência. Avançou e colocou-se com as pernas abertas sobre o corpo. Tirou um par
de algemas do cinto, curvou-se e puxou violentamente os braços de Tafero para trás a fim de algemá-lo. Enquanto fazia isso, foi falando com McCaleb.
- Ei, se quiser levar este cara ali pra fora, amarrar a âncora nele e jogar tudo pela amurada, por mim tudo bem. Não ligo a mínima.
McCaleb não respondeu. Estava reunindo forças para se sentar. Depois de algemar Tafero, Bosch endireitou o corpo e olhou para o prisioneiro, que já abrira os olhos.
Fique parado, seu merda. E pode se acostumar a essas algemas. Você está preso por assassinato, tentativa de assassinato e conspiração geral para ser um babaca.
Acho que já conhece os seus direitos, mas faça um favor a si mesmo e não diga uma palavra antes que eu pegue o cartão e leia a coisa pra você.
Assim que terminou de falar, Bosch ouviu um rangido vindo do corredor. Num segundo percebeu que alguém aproveitara suas palavras para chegar silenciosamente perto
da porta.
As coisas pareceram assumir a nitidez do movimento em câmera lenta. Bosch levou instintivamente a mão esquerda à cintura, mas percebeu que a arma não estava ali.
Ele a deixara na cama. Começou a virar para lá, mas viu McCaleb sentado, ainda nu, apontando uma das armas para a porta.
Os olhos de Bosch seguiram a mira da arma até a porta. Um homem surgira agachado ali, com as duas mãos segurando uma pistola. Mirava na direção de Bosch. Ouviu-se
um tiro que estilhaçou a madeira do umbral da porta. O atirador fez uma careta e semicerrou os olhos. Depois se recuperou e começou a erguer novamente a arma. Ouviu-se
outro tiro, e depois mais um. O barulho era ensurdecedor no pequeno camarote revestido de madeira. Bosch viu que uma das balas acertara a parede. As outras duas
haviam acertado o atirador no peito, jogando-o para trás contra a parede do corredor. Ele escorregara para o chão, mas ainda podia ser visto do camarote. Não! -
gritou Tafero, caído no chão. - Jesse, não!
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O atirador caído ainda se movia, mas estava tendo dificuldade para controlar seus movimentos. Com uma das mãos, ergueu desajeitadamente a arma mais uma vez e fez
uma tentativa patética de apontar para Bosch.
Ouviu-se outro tiro. Bosch viu o rosto do atirador explodir num jorro de sangue, enquanto a cabeça batia com força contra a parede do fundo. O sujeito ficou imóvel.
- Não! - gritou novamente Tafero.
Fez-se um silêncio.
Bosch olhou para a cama. McCaleb ainda segurava a arma apontada para a porta. Uma nuvem azul de pólvora se elevava no centro do camarote. O ar tinha um cheiro acre,
de coisa queimada.
Bosch pegou sua arma na cama e foi até o corredor. Agachou-se perto do atirador, mas nem precisou tocá-lo para saber que estava morto. Durante o tiroteio pensara
ter reconhecido o irmão mais moço de Tafero, que trabalhava no escritório de fianças. A maior parte do rosto do sujeito desaparecera.
Bosch se levantou e foi ao banheiro pegar uma toalha de papel, que usou para tirar a arma da mão do homem morto. Levou-a de volta ao camarote principal e a colocou
na mesinha-de-cabeceira. A arma que McCaleb usara, caída sobre a cama. McCaleb estava de pé do outro lado. Já vestira a calça de malha e estava pondo a camiseta.
Assim que sua cabeça apareceu, ele olhou para Bosch.
Os dois ficaram se encarando por muito tempo. Haviam salvado a vida um do outro. Por fim, Bosch balançou a cabeça.
Tafero conseguiu sentar-se de costas para a parede. Corria sangue do seu nariz e também de ambos os lados da boca. Aquilo parecia um grotesco bigode de Fu Manchu.
Bosch viu que ele quebrara o nariz quando batera de cara na parede. Tafero ficou sentado, derreado contra a parede, olhando horrorizado para o corpo no corredor.
Bosch usou a toalha de papel para pegar a arma na cama e colocá-la perto da outra, na mesinha-de-cabeceira. Depois tirou um celular do bolso e teclou um número.
Enquanto esperava a ligação se completar, olhou para Tafero.
- Você fez com que seu irmãozinho fosse morto, Rudy - disse ele. - Isso é muito ruim.
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Tafero baixou os olhos e começou a chorar.
O telefonema de Bosch foi atendido pela central de polícia. Ele deu o endereço da marina e disse que precisava de uma equipe da Homicídios da unidade encarregada
de tiroteios contra policiais. Precisava também da presença de uma equipe da Divisão Médico-Legal e de técnicos da Divisão de Investigação Científica. Disse à central
para mandar todos os avisos por telefone fixo. Não queria que a mídia soubesse do incidente pelo rádio da polícia, até que chegasse a hora apropriada.
Fechou o telefone e ergueu o aparelho para McCaleb.
- Quer uma ambulância? Você precisa ser examinado.
- Eu estou bem.
- Seu pescoço parece...
- Eu disse que estou bem. Bosch balançou a cabeça.
- Você é que sabe.
Deu a volta na cama e parou diante de Tafero.
- Vou tirar este sujeito daqui e levar até o carro.
Colocou Tafero em pé e empurrou-o para a porta. Quando passou pelo corpo do irmão no corredor, Tafero deixou escapar um gemido alto, feito um bicho. Bosch ficou
surpreso ao ouvir aquilo da parte de um homem tão grande.
- E, que pena - disse Bosch, sem uma gota de compaixão na voz. - O garoto tinha um futuro brilhante pela frente, ajudando você a matar gente e ajudando gente a se
livrar da cadeia.
Empurrou Tafero na direção da escada do salão.
Caminhando pelo passadiço que levava ao estacionamento, Bosch viu um homem parado no convés de um barco à vela repleto de flutuantes, pranchas de surfe e outras
tralhas. O sujeito olhou para Bosch, depois para Tafero e depois para Bosch novamente. Seus olhos se arregalaram, e ficou claro que ele os reconhecera, provavelmente
devido à cobertura que a tevê fazia do julgamento.
- Ei, ouvi uns tiros. Terry está bem?
- Vai ficar bem.
- Posso ir falar com ele?
- É melhor não. A polícia está vindo aí e vai cuidar do caso.
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- Ei, você é Bosch, não é? O cara do julgamento?
- É, eu sou Bosch.
O sujeito não disse mais nada. Bosch seguiu em frente com Tafero.
Quando Bosch voltou à embarcação poucos minutos depois, McCaleb estava na cozinha bebendo um copo de suco de laranja. Atrás dele, esparramadas nos degraus, viam-se
as pernas do homem morto.
- Um vizinho seu perguntou por você lá fora. McCaleb balançou a cabeça.
- Buddy.
Não disse mais nada.
Bosch lançou o olhar pela janela na direção do estacionamento. Achou que estava ouvindo sirenes à distância, mas talvez fosse apenas o vento brincando com sons.
- Eles vão chegar a qualquer minuto - disse ele. - Como está a garganta? Espero que possa falar, porque nós vamos ter muita coisa para explicar.
- Está bem. Por que está aqui, Harry?
Bosch pôs as chaves do carro na bancada. Ficou sem responder por muito tempo.
- Simplesmente adivinhei que você podia estar precisando de ajuda, só isso.
- Como assim?
- Você apertou o irmão dele no escritório hoje de manhã. Calculei que o cara podia ter seguido você e anotado a placa, ou coisa assim. Eles poderiam seguir sua pista
até aqui.
McCaleb lançou-lhe um olhar penetrante.
- E aí você estava à toa na marina e viu Rudy, mas não o irmãozinho dele?
- Não, eu vim de carro e fiquei rodando, na espreita. Vi o velho Lincoln de Rudy estacionado lá em cima e imaginei que podia estar havendo alguma coisa. Em momento
algum vi o irmão... Ele devia estar escondido em algum lugar, vigiando.
- Ele devia estar nas docas, procurando uma coruja que pudesse
tirar de um barco para usar depois com Jaye. Hoje eles estavam improvisando.
Bosch balançou a cabeça.
- Em todo caso, eu estava fuçando por aí e vi a porta do seu barco aberta. Resolvi conferir. Achei que a noite estava fria demais para um cara cuidadoso como você
dormir de porta aberta.
McCaleb balançou a cabeça.
Bosch ouviu o som inconfundível de sirenes se aproximando. Lançou o olhar pela janela para o estacionamento além das docas. Viu duas radiopatrulhas entrarem e pararem
perto do seu carro, onde Tafero estava trancado na traseira. As sirenes foram desligadas, mas as luzes azuis continuaram cintilando.
- É melhor eu ir receber o pessoal - disse ele.
Capítulo 44
Eles passaram a maior parte da noite separados, sendo interrogados incessantemente. Depois os interrogadores trocaram de sala, e eles ouviram as mesmas perguntas
mais uma vez, vindas de bocas diferentes. Cinco horas depois do tiroteio no Mar que Segue, as portas se abriram e McCaleb e Bosch se encontraram no corredor do Parker
Center.
- Você está bem?
- Cansado.
- Pois é.
McCaleb viu o detetive colocar um cigarro na boca mas sem acendê-lo.
- Vou até o gabinete do xerife - disse Bosch. - Quero estar lá. McCaleb balançou a cabeça.
- Vejo você lá.
Eles se apertaram ao lado do operador de câmera, atrás de uma vidraça opaca de um lado e transparente do outro. McCaleb sentiu o hálito de cigarro mentolado de Bosch
e o cheiro da colônia barata que vira o detetive aplicar no corpo dentro do carro, enquanto o seguia na direção de Whittier. Viu o reflexo fraco do rosto de Bosch
na vidraça e percebeu que o detetive observava através daquela superfície o que estava acontecendo na outra sala.
Do outro lado da vidraça havia uma mesa de reunião, onde Rudy Tafero estava sentado com um defensor público chamado
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Arnold Prince. Tafero tinha um esparadrapo branco no nariz e algodão em ambas as narinas. Levara seis pontos no alto da cabeça, que não podiam ser vistos por causa
de sua vasta cabeleira. Os enfermeiros haviam feito o curativo no nariz quebrado e na laceração na cabeça ainda na marina Cabrillo.
Jaye Winston estava sentada do lado oposto a Tafero, com a promotora Alice Short à direita. À sua esquerda viam-se o subchefe do Departamento de Polícia de Los Angeles,
Irvin Irving, e Donald Twilley, do FBI. As primeiras horas da manhã haviam sido gastas numa briga por posição entre todos os órgãos de segurança remotamente envolvidos
na investigação, que queriam tirar vantagem do que todos sabiam ser um caso de grande importância. Já eram seis e trinta da manhã, e chegara a hora de interrogar
o suspeito.
Fora decidido que Jaye conduziria o interrogatório - pois o caso fora dela desde o início -, enquanto os outros três ficariam observando, prontos para assessorá-la.
Ela começou o interrogatório declarando a data, a hora e a identidade dos presentes. Depois leu os direitos constitucionais de Tafero, fazendo-o assinar um formulário
de concordância. O defensor público disse que Tafero não faria pronunciamento algum no momento.
- Muito bem - disse Jaye, com os olhos em Tafero. - Eu não preciso que ele me conte nada. Quero conversar com ele. Quero dar uma idéia do que ele tem pela frente.
Não quero que futuramente ele venha a lamentar alguma falha de comunicação ou ter deixado escapar a única oportunidade de cooperar que terá.
Ela olhou para o dossiê à sua frente e o abriu. McCaleb reconheceu pela folha de rosto que se tratava de um formulário de indiciamento da promotoria.
- Rudy Tafero, quero que saiba que nesta manhã está sendo indiciado por assassinato qualificado de Edward Gunn, no dia
1 de janeiro deste ano, pela tentativa de
assassinato de Terrell McCaleb na data de hoje e pelo assassinato de Jesse Tafero, também na data de hoje. Sei que conhece a lei, mas sou obrigada a lhe explicar
a última acusação. A morte de seu irmão ocorreu enquanto você cometia um crime. Portanto, segundo as leis da Califórnia, você foi cúmplice da morte dele.
Ela esperou um instante, encarando os olhos aparentemente mortos de Tafero. Voltou a ler o indiciamento.
- Além do mais, precisa saber que a promotoria concordou em acrescentar uma acusação de circunstâncias especiais em relação à morte de Edward Gunn, Isto é, assassinato
contratado. O acréscimo de circunstâncias especiais tornará possível a aplicação da pena de morte no caso. Alice?
Alice Short inclinou-se para a frente. Era uma mulher pequena e atraente, à beira dos quarenta anos, com olhos grandes e envolventes. Era a promotora encarregada
dos julgamentos mais importantes. Tratava-se de muito poder num corpo tão pequeno principalmente quando contrastado com o tamanho do homem do outro lado da mesa.
- Rudy Tafero, você foi policial por vinte anos - disse ela. - Mais do que ninguém, conhece a gravidade de seus atos. Não me lembro um só caso que exigisse tanto
a pena de morte. E isso que pediremos que o júri aplique. E não tenho dúvida de que teremos êxito.
Depois de desempenhar seu papel na peça ensaiada, Alice recostou-se na cadeira e passou a palavra a Jaye. Houve um longo silêncio enquanto Jaye olhava para Tafero,
à espera de que ele devolvesse o olhar. Por fim Tafero ergueu o olhar e a encarou.
- Rudy Tafero, você é um homem experiente e já esteve até na posição oposta em salas como esta. Acho que não conseguiríamos enganar você nem que tivéssemos um ano
pra tentar. Portanto, vamos fazer apenas uma oferta. A oferta será feita apenas uma vez, e será rescindida permanentemente quando sairmos desta sala. É o seguinte.
O foco dos olhos de Tafero se dirigira novamente para a mesa. Jaye inclinou-se para a frente e o encarou.
- Você quer viver ou quer arriscar sua sorte com o júri? É, isso. E antes que responda, há algumas coisas a considerar. Número um, os jurados vão ver as provas fotográficas
do que você fez a Edward Gunn. Dois, eles vão ouvir Terry McCaleb descrever o que é sentirse impotente e ver sua vida se esvaindo ao ser estrangulado por você, Rudy
Tafero. Geralmente eu não faço apostas nesse sentido, mas cravaria menos de uma hora para os jurados deliberarem. Aposto que teremos um dos veredictos com sentença
de morte mais rápidos decretados nos tribunais da Califórnia.
Jaye Winston recolheu e fechou o dossiê à sua frente. McCaleb se pegou balançando a cabeça. Ela estava indo muito bem.
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- Nós queremos pegar o seu patrão - disse Jaye. - Queremos provas físicas que liguem Storey ao caso Gunn. Minha intuição diz que alguém como você tomaria precauções
antes de executar um plano desses. Seja o que for, nós queremos o que você tem.
Ela olhou para Alice. A promotora balançou a cabeça à guisa de elogio.
Passou-se quase um minuto. Por fim, Tafero virou-se para o defensor público, prestes a sussurrar uma pergunta. Mas voltou-se para Jaye antes.
- Foda-se, eu mesmo vou perguntar. Não reconheço as acusações feitas aqui, mas o que acontecerá se vocês deixarem de lado as circunstâncias especiais? O que eu pego?
Jaye soltou uma gargalhada e abanou a cabeça. McCaleb sorriu.
- Você está brincando? - perguntou Jaye. - "O que eu pego?" Cara, você vai ser enterrado em concreto e aço. E isso que você vai pegar. Você jamais, nunca mais verá
a luz do dia novamente. Com trato ou sem trato, isso é um fato consumado, e não é negociável.
O advogado de Tafero limpou a garganta.
- Srta. Winston, isso não é um modo profissional de...
- Estou cagando e andando para os meus modos. Esse sujeito é um assassino. É um pistoleiro de aluguel, mas pior. Antigamente ele tinha um distintivo, e por isso
merece mais desprezo ainda. Portanto, é isso que faremos pelo seu cliente, doutor Prince. Aceitaremos que ele se declare culpado pelo assassinato de Edward Gunn
e pela tentativa de assassinato de Terry McCaleb. Prisão perpétua sem condicional por essas duas acusações. Isso não é negociável. Ele não será indiciado pela morte
do irmão. Talvez consiga viver melhor se não for acusado disso. Isso realmente não me interessa. O que me interessa é que ele compreenda que a vida que conheceu
terminou. Ele está acabado. E pode ir para a galeria da morte ou para uma penitenciária de segurança máxima, mas vai pra uma das duas, e não vai voltar.
Ela consultou o relógio.
- Temos cerca de cinco minutos, e depois vamos embora. Se não quiserem aceitar o trato, muito bem, levaremos os dois a julgamento. Storey pode até ter alguma chance,
mas não há dúvida quanto a Rudy Tafero. Vai haver promotores arrombando a porta de Alice, mandando flores e chocolates. Todo dia vai ser Dia dos Namorados,
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o dia de São Valentim... ou de Valentino, no caso. Quem pegar ganha um bilhete premiado para ser escolhido promotor do ano.
Prince pôs uma maleta fina em cima da mesa e guardou o bloco de anotações. Não escrevera uma palavra.
- Muito obrigado pela sua atenção - disse. - Acho que pediremos uma audiência para estipular a fiança e depois trataremos da descoberta do crime e outros assuntos.
Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Tafero ergueu lentamente a cabeça e encarou Jaye, com os olhos fortemente injetados devido à hemorragia no nariz.
- Foi idéia dele fazer a coisa parecer um quadro - disse. - Foi idéia de David Storey.
Houve um momento de silêncio surpreendente. Depois o defensor público sentou-se pesadamente, fechando os olhos de dor.
- Sr. Tafero - disse Prince. - Aconselho fortemente que...
- Cale a boca - rebateu Tafero. - Seu merdinha. Não é você que vai encarar a agulha.
Ele olhou novamente para Jaye Winston.
- Aceito o trato. Desde que eu não seja indiciado pela morte do meu irmão.
Jaye balançou a cabeça.
Tafero virou-se para Alice Short, apontou o dedo para ela e ficou esperando. Alice balançou a cabeça.
- Trato feito - disse ela.
- Só uma coisa - disse Jaye, rapidamente. - Não podemos entrar nisso com a sua palavra contra a dele. O que mais nós temos?
Tafero olhou para ela, e um sorriso sem emoção surgiu no seu rosto.
Na sala de observação, Bosch aproximou-se da vidraça. meCaleb viu o reflexo dele mais nítido no vidro. Os olhos de Bosch não pestanejavam.
- Eu tenho as imagens - disse Tafero.
Jaye prendeu o cabelo atrás da orelha e estreitou os olhos. Inclinou-se sobre a mesa.
- Imagens? Como assim? Fotografias? Fotografias de quê? Tafero abanou a cabeça.
- Não. Imagens. Ele desenhava imagens para mim na sala de visitas da cadeia. Desenhava uma imagem de como queria que a cena do crime ficasse. Assim, a coisa ficaria
parecida com o quadro.
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McCaleb cerrou as mãos em punhos ao lado do corpo.
- Onde estão esses desenhos? - disse Jaye. Tafero sorriu novamente.
- Num cofre particular de um banco, o City National Bank, na esquina do Sunset Boulevard com Doheny. A chave está naquela argola que estava no meu bolso.
Bosch ergueu as mãos e bateu palmas.
- Bingo! - exclamou ele, alto o suficiente para Tafero virar-se e olhar na direção do vidro.
Por favor! - sussurrou o operador de câmera. - Estamos gravando.
Bosch foi até a porta da saleta e saiu, seguido por McCaleb. O detetive virou-se e olhou para ele, balançando a cabeça.
- Storey está acabado - disse ele. - O monstro volta para as trevas de onde veio.
Os dois ficaram se encarando silenciosamente por um momento, e Bosch quebrou o silêncio.
- Preciso ir - disse.
- Para onde?
- Vou me aprontar para o tribunal.
Ele se virou e atravessou a ala de detenção do esquadrão de homicídios do gabinete do xerife, que naquele momento estava deserta. McCaleb viu-o esmurrar uma escrivaninha
e dar um soco no ar.
McCaleb voltou à saleta de observação e ficou assistindo à continuação do interrogatório. Tafero estava contando à equipe reunida na outra sala que David Storey
exigira que Edward Gunn fosse assassinado na primeira manhã do Ano-Novo.
McCaleb ficou ouvindo durante algum tempo, mas lembrou-se de algo. Saiu da saleta de observação e seguiu pela ala de detenção. Os detetives já estavam começando
a chegar ao trabalho. Foi até uma mesa vazia e tirou uma folha de um bloco que estava ali em cima. Escreveu "Perguntar pelo Lincoln" na folha. Dobrou-a e levou-a
até a porta da sala de interrogatório.
Bateu à porta, que depois de um instante foi aberta por Alice Short. McCaleb entregou-lhe o bilhete dobrado.
- Dê isso a Jaye antes do fim do interrogatório - sussurrou.
Ela balançou a cabeça e fechou a porta. McCaleb voltou à saleta de
observação.
Capítulo 45
Barbeado e de banho tomado, Bosch saiu do elevador e foi andando na direção das portas do tribunal da Divisão N. Caminhava com ar decidido. Sentia-se um verdadeiro
príncipe da cidade. Mal tinha dado alguns passos, foi abordado por McEvoy, que saiu de uma alcova como um coiote à espreita da presa desprevenida numa caverna. Mas
nada poderia afetar a pose de Bosch. Ele sorriu quando o repórter passou a acompanhá-lo.
- Detetive Bosch, já pensou mais sobre o que falamos? Preciso começar a escrever minha reportagem hoje.
Bosch não diminuiu o passo. Sabia que não teria muito tempo a partir do momento em que entrasse no tribunal.
- Rudy Tafero - disse ele.
- Desculpe, não entendi.
- Ele foi o seu informante. Rudy Tafero. Descobri isso hoje de manhã.
- Detetive, já disse que não posso revelar...
- É, eu sei. Mas sou eu que estou revelando a coisa, entende? De qualquer forma, isso não interessa.
- Por que não?
Bosch parou de repente. McEvoy ainda deu alguns passos, mas depois voltou.
- Por que não? - perguntou novamente.
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- Hoje é o seu dia de sorte, Jack. Tenho duas dicas boas para
você?
-Tá legal. Quais?
McEvoy começou a tirar um bloco de anotações do bolso traseiro. Bosch pôs a mão no ombro dele, para detê-lo.
- Não tire isso daí. Se os outros repórteres virem isso, vão pensar que eu estou contando alguma coisa pra você.
Ele apontou ao longo do corredor para a porta aberta da sala da imprensa, onde um bando de repórteres esperava o começo da sessão do dia.
- Vão vir até aqui, e eu vou ter que contar pra eles. McEvoy deixou o bloco de anotações no lugar.
- Tá legal. Quais são as dicas?
- Primeiro, sua matéria está furada pra caralho. Na verdade, seu informante foi preso hoje cedo pela morte de Edward Gunn, bem como por tentativa de assassinato
contra Terry McCaleb.
-O quê? Ele...
- Espere. Quero terminar. Não tenho muito tempo. Ele esperou, e McEvoy balançou a cabeça.
- Pois é, Rudy foi em cana. Ele matou Gunn. O plano era pôr a culpa em mim e espalhar isso para o mundo durante a fase da defesa no julgamento.
- Está dizendo que Storey participou de...
- Exatamente. O que nos leva à dica número dois. Se eu fosse você, entraria no tribunal hoje bem antes que o juiz chegue e as coisas comecem. Está vendo aqueles
caras parados ali adiante? Eles vão perder o espetáculo, Jack. Não faça como eles.
Bosch deixou McEvoy parado ali e meneou a cabeça para o policial na porta, que o deixou entrar.
Dois policiais estavam colocando David Storey no seu lugar na mesa da defesa quando Bosch entrou no tribunal. Fowkkes já estava lá, e Janis Langwiser e Roger Kretzler
estavam sentados à mesa da promotoria. Bosch consultou o relógio ao passar pelo portão. Tinha cerca de quinze minutos antes que o juiz entrasse e chamasse o júri.
Foi até a mesa da promotoria, mas permaneceu de pé. Inclinou-se, pôs ambas as mãos sobre a mesa e olhou para os dois promotores.
- Harry, você está pronto? - começou Janis. - Hoje é o grande dia.
- Hoje é o grande dia, mas não pelo que vocês dois pensam. Vocês aceitariam uma confissão de culpa de Storey, não aceitariam? Se ele admitisse ser culpado no caso
de Jody Krementz e de Alicia Lopez, vocês não pediriam a agulha pra ele, certo?
Os dois ficaram olhando para ele com expressão confusa.
- Vem cá, nós não temos muito tempo até o juiz entrar. Querem que eu vá até a mesa da defesa e em cinco minutos dê a vocês dois casos de assassinato? Os parentes
de Alicia Lopez iam adorar. Vocês disseram a eles que não tinham provas para uma acusação.
- Harry, do que está falando? - disse Janis. - Nós já tentamos fazer acordo. Duas vezes. Fowkkes recusou terminantemente.
- E não temos provas no caso de Alicia Lopez - acrescentou Kretzler. - Você sabe disso. O júri de instrução recusou o indiciamento. Ninguém...
- Escutem, vocês querem um acordo ou não? Eu acho que posso ir até ali e conseguir isso. Prendi Rudy Tafero hoje de manhã. A coisa toda foi uma armação orquestrada
por Storey para me pegar. O tiro saiu pela culatra e Tafero aceitou um acordo. Ele está confessando.
-Jesus Cristo! - disse Kretzler.
Falou alto demais. Bosch se virou e olhou para a mesa da defesa. Fowkkes e Storey estavam olhando para eles. Bosch viu meEvoy sentar-se atrás da mesa da defesa,
num espaço reservado à mídia que ficava bem próximo a Fowkkes e aos outros. Nenhum outro repórter entrara e sentara ainda.
- Harry, do que está falando? - disse Janis. - Que assassinato? Bosch ignorou as perguntas.
- Posso ir até lá? - disse Bosch. - Quero olhar nos olhos de Storey quando contar isso a ele.
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Kretzler e Janis se entreolharam. A promotora deu de ombros e ergueu as mãos em sinal de exasperação.
- Vale a pena tentar. Nós só estávamos guardando o pedido de pena de morte como um trunfo.
- Tá legal - disse Bosch. - Veja se o auxiliar do juiz me consegue um pouco mais de tempo.
Bosch foi até a mesa da defesa e parou numa posição que lhe permitia olhar tanto para Fowkkes quanto para Storey. O advogado estava escrevendo alguma coisa no bloco
de anotações. Bosch pigarreou, e depois de alguns instantes Fowkkes ergueu vagarosamente o olhar para ele.
- Pois não, detetive Bosch? Não deveria estar se preparando para...
- Onde está Rudy Tafero?
Bosch ficou olhando para Storey ao fazer a pergunta.
Fowkkes olhou para trás, na direção do lugar encostado na balaustrada que Tafero normalmente ocupava durante a sessão do tribunal.
- Deve estar a caminho - disse ele. - Ainda temos ainda alguns minutos.
Bosch sorriu.
- A caminho? E, ele está a caminho. A caminho daquela penitenciária de segurança máxima em Corcoran, ou talvez Pelican Cove se tiver sorte. Eu realmente detestaria
ser ex-policial e cumprir minha pena em Corcoran.
Fowkkes não pareceu ficar impressionado.
- Detetive, não sei do que está falando. Estou aqui tentando preparar uma estratégia de defesa, porque acho que a promotoria vai encerrar sua parte hoje. Portanto,
se não se importa...
Bosch olhou para Storey ao responder.
- Não há estratégia possível. Não há defesa possível. Rudy Tafero foi preso hoje cedo, acusado de assassinato e tentativa de assassinato. Tenho certeza que seu cliente
pode lhe contar tudo sobre o caso, doutor. Se é que o senhor ainda não sabe.
Fowkkes levantou-se abruptamente, como se fosse apresentar um protesto.
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- Detetive, é altamente irregular aproximar-se da mesa da defesa...
- Ele aceitou um acordo há cerca de duas horas. Está entregando tudo por escrito.
Mais uma vez Bosch ignorou Fowkkes e olhou para Storey ao falar
- Portanto, aqui está o acordo. Você tem cerca de cinco minutos para ir até Janis Langwiser e Kretzler, e aceitar se declarar culpado pelo assassinato de Jody Krementz
e de Alicia Lopez.
- Isso é um absurdo. Vou me queixar ao juiz sobre a sua conduta.
Bosch olhou para Fowkkes.
- Fique à vontade. Mas isso não vai mudar as coisas. Cinco minutos-
Bosch afastou-se e foi até a escrivaninha do auxiliar do juiz, diante da bancada. As provas estavam empilhadas numa mesa lateral. Bosch folheou-as até encontrar
o cartaz que procurava. Retirou-o e levou-o de volta à mesa da defesa. Fowkkes ainda estava de pé, mas curvara-se para que Storey pudesse sussurrar no seu ouvido.
Bosch largou sobre a mesa o cartaz que continha a fotografia ampliada da estante da casa de Storey. Bateu levemente com os dedos em dois dos livros da prateleira
superior. Os títulos nas lombadas eram claramente legíveis. Um título era A arte das trevas, e o outro livro estava meramente intitulado Bosch.
- O seu conhecimento prévio está bem aqui.
Deixou a prova na mesa da defesa e começou a voltar para a mesa da promotoria. Mas depois de dois passos voltou e pôs as palmas das mãos abertas sobre a mesa. Olhou
fixamente para Storey e falou com uma voz suficientemente alta para que McEvoy ouvisse no recinto da imprensa.
- Sabe qual foi seu grande erro, David?
- Não - disse Storey, em tom de sarcasmo. - Por que não me diz, detetive?
Fowkkes segurou imediatamente o braço de seu cliente, num gesto para que ele calasse a boca.
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- Desenhar a cena do crime para Tafero - disse Bosch. - Ele foi até o banco City National e colocou as lindas figuras que você fez num cofre particular. Sabia que
elas poderiam vir a ser úteis, e isso realmente aconteceu. Usou as imagens hoje cedo para escapar da pena de morte. O que você vai usar?
Bosch viu a vacilação e a admissão nos olhos de Storey. Por um breve instante, os olhos dele piscaram sem realmente piscar. E Bosch percebeu que tudo terminara,
porque Storey percebera o mesmo.
Bosch endireitou o corpo e consultou displicentemente o relógio. Depois olhou para Fowkkes.
- Faltam uns três minutos, doutor Fowkkes. A vida do seu cliente está em jogo.
Voltou para a mesa da promotoria e se sentou. Kretzler e Janis se inclinaram em sua direção. Começaram a lhe sussurrar perguntas, mas Bosch as ignorou.
- Vamos só ver o que acontece.
Não olhou uma só vez para a mesa da defesa durante os cinco minutos seguintes. Ouviu murmúrios e algumas palavras em voz abafada, mas não entendeu nada. O tribunal
foi sendo tomado pelos espectadores e pelo pessoal da mídia.
A mesa da defesa não se manifestou.
Precisamente às nove horas, a porta atrás da bancada abriu-se. O juiz Houghton subiu os degraus até seu lugar e se sentou. Olhou para a mesa da promotoria e para
a mesa da defesa.
- Senhoras e senhores, estão prontos para o júri?
- Sim, meritíssimo - disse Kretzler.
Nada veio da mesa da defesa. Houghton ergueu o olhar, com um sorriso curioso no rosto.
- Doutor Fowkkes? Posso mandar entrar os jurados?
Bosch recostou-se no assento e olhou para a mesa da defesa, do outro lado de Janis e Kretzler. Fowkkes estava arriado na cadeira, numa postura que jamais assumira
no tribunal antes. Apoiara o cotovelo no braço da cadeira e tinha a mão levantada, agitando uma caneta nos dedos. Parecia perdido num pensamento profundo e deprimente.
Seu cliente estava sentado junto dele, com o rosto para baixo. i
- Doutor Fowkkes? Estou esperando uma resposta. Fowkkes finalmente olhou para o juiz. Muito vagarosamente,
levantou-se da cadeira e foi até a tribuna.
- Meritíssimo, posso me aproximar da bancada por um instante? O juiz pareceu ficar curioso e aborrecido ao mesmo tempo. A
norma do julgamento fora apresentar todos os pedidos de confabulação particulares às oito e trinta, para que as moções pudessem ser examinadas e discutidas na sala
de audiências, sem entrar pelo tempo destinado ao julgamento propriamente dito.
- Isso não pode ser tratado com o tribunal em sessão, doutor Fowkkes?
- Não, meritíssimo. Pelo menos no momento.
- Muito bem. Podem se aproximar.
Houghton fez sinal com ambas as mãos para os advogados se aproximarem, como se estivesse dando sinal para um caminhão dar marcha a ré.
Os advogados se aproximaram da bancada e reuniram-se ao juiz. De onde estava sentado Bosch podia ver todos os rostos e não precisava ouvir o que estava sendo sussurrado.
Fowkkes estava extremamente pálido, e depois de alguns segundos Kretzler e Janis Langwiser assumiram a postura de vencedores. A promotora chegou até a olhar para
Bosch, e ele sentiu a mensagem da vitória nos olhos dela.
Ele se virou, olhou para o réu e ficou esperando. David Storey voltou-se lentamente para ele, e os olhos dos dois se encontraram uma vez mais. Bosch não sorriu.
Não piscou. Não fez nada, a não ser manter o olhar fixo. Por fim, Storey baixou o olhar para as próprias mãos apoiadas no colo. Bosch sentiu uma vibração perpassar
pelo couro cabeludo. Já sentira aquilo antes ao encarar a face normalmente escondida do monstro.
A confabulação junto à bancada do juiz terminou, e os dois promotores voltaram rapidamente para a mesa, com a empolgação claramente visível nos passos e nos rostos.
Já J. Reason Fowkkes caminhou vagarosamente até a mesa da defesa.
- Já era, Fowkkes - disse Bosch entre dentes. Janis pegou Bosch pelo ombro enquanto se sentava.
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- Ele vai se confessar culpado - sussurrou empolgada. - Jody Krementz e Alicia Lopes. Quando você foi até lá, falou em sentenças consecutivas ou concorrentes?
- Nem uma coisa nem outra.
- Tá legal. Acabamos de concordar com sentenças concorrentes, mas vamos até a sala de audiências para estabelecer os detalhes. Primeiro precisamos acusar Storey
formalmente do assassinato de Alicia Lopez. Quer entrar e fazer a prisão?
- Tanto faz. Se você quer que eu entre.
Bosch sabia que aquilo era apenas uma formalidade legal. Storey já estava sob custódia.
- Você merece, Harry. Nós queremos que você esteja lá.
- Está bem.
O juiz bateu o martelo uma vez e chamou a atenção do tribunal. Os repórteres no recinto da mídia estavam todos inclinados para a frente nas cadeiras. Sabiam que
algo estava acontecendo.
- Ficaremos em recesso até as dez horas - anunciou o juiz. - Vou me reunir com as partes na sala de audiências.
Levantou-se e desceu rapidamente os três degraus que conduziam à porta traseira, antes que o policial tivesse tempo de dizer: "Todos de pé."
Capítulo 46
McCaleb continuou longe do Mar que Segue, mesmo depois que os detetives e peritos especializados terminaram o trabalho. O barco vinha sendo vigiado por repórteres
e equipes de noticiários televisivos desde o início da tarde. O tiroteio a bordo, a prisão de Tafero e a súbita confissão de David Storey haviam transformado a embarcação
na imagem central de uma história que crescera rapidamente durante o dia. Todos os canais locais de televisão, além das redes nacionais, tinham transmitido seus
noticiários diretamente da marina, tendo o Mar que Segue - com a fita amarela da polícia estendida na porta do salão - como cenário.
McCaleb passou a maior parte da tarde escondido no barco de Buddy, permanecendo abaixo do convés. Quando colocava a cabeça para fora da escotilha, a fim de ver o
que estava acontecendo, punha um dos chapéus de pescaria frouxos e caídos do sócio. Os dois já estavam se falando novamente. Logo depois de sair do escritório do
xerife e vir para a marina, antes da chegada da mídia, McCaleb procurara Buddy e pedira desculpas por ter presumido que ele deixara vazar a história. O sócio, por
sua vez, pedira desculpas por ter usado o barco - e o camarote de McCaleb - como ponto de encontro com massagistas eróticas. McCaleb concordara em dizer a Graciela
que se enganara a respeito do fato de Buddy ter vazado a história. O sócio explicara que não queria cair ainda mais no conceito de Graciela.
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Escondidos no barco, os dois ficaram assistindo à pequena televisão de doze polegadas de Buddy, acompanhando minuto a minuto o desenrolar dos acontecimentos. O Canal
9, que vinha transmitindo o julgamento de Storey ao vivo, realizara transmissões contínuas do tribunal de Van Nuys e do gabinete do xerife.
McCaleb estava estupefato e abalado com os acontecimentos do dia. Subitamente, em Van Nuys David Storey se declarara culpado de dois assassinatos. Ao mesmo tempo,
no tribunal central de Los Angeles fora acusado de formação de quadrilha no caso Gunn. O diretor de cinema escapara da pena de morte nos dois primeiros casos, mas
ainda podia ter que encará-la no caso Gunn se não fizesse outro acordo prévio com os promotores.
Uma entrevista coletiva televisada do escritório do xerife colocou Jaye Winston em posição proeminente. Ela respondeu a perguntas dos repórteres depois que o xerife,
flanqueado por figuras importantes do Departamento de Polícia de Los Angeles e do FBI, leu uma declaração descrevendo os acontecimentos do dia do ponto de vista
investigativo. O nome de McCaleb foi mencionado diversas vezes na discussão sobre a investigação e o subseqüente tiroteio a bordo do Mar que Segue. Jaye Winston
também mencionou o nome dele ao final da entrevista para a imprensa, expressando sua gratidão e dizendo que tinha sido o trabalho voluntário dele que conseguiu desatar
o impasse a que o caso chegou.
Bosch também foi mencionado com freqüência, mas não participou da entrevista coletiva. Depois que o juiz acolheu os veredictos de culpa de David Storey em Van Nuys,
o detetive e os advogados envolvidos no caso foram acossados por uma multidão às portas do tribunal. Mas num dos canais McCaleb viu Bosch se recusar a fazer qualquer
comentário, abrir caminho entre os repórteres e câmeras, ir até uma saída de incêndio e desaparecer escada abaixo.
O único repórter que havia falado com McCaleb foi Jack McEvoy, que ainda tinha o número do celular dele. McCaleb conversou rapidamente com ele, mas negou-se a comentar
o ocorrido no camarote principal do Mar que Segue e o perigo mortal por que
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passou. Seus pensamentos sobre o assunto eram pessoais demais, e ele jamais compartilharia aquilo com algum repórter.
McCaleb também falou com Graciela. Telefonou para ela e a informou dos acontecimentos antes que ela soubesse de tudo pelo noticiário. Disse que provavelmente só
chegaria em casa no dia seguinte, pois tinha certeza que a mídia ficaria vigiando o barco até bem depois do escurecer. Ela disse que estava contente por tudo ter
terminado e ele estar voltando para casa. McCaleb percebeu que ainda havia um alto nível de estresse na voz dela e sabia que teria que lidar com aquilo quando voltasse
para a ilha.
No fim do dia ele conseguiu escapulir do barco de Buddy sem ser notado, num momento em que a mídia tinha sido distraída por uma movimentação no estacionamento da
marina. O Departamento de Polícia de Los Angeles estava rebocando o velho Lincoln Continental em que os irmãos Tafero haviam vindo matar McCaleb na noite anterior.
Enquanto as equipes de noticiário filmavam e observavam o prosaico ato de um carro sendo içado e rebocado, McCaleb conseguiu chegar ao Cherokee sem ser notado. Ele
deu a partida ao carro e saiu do estacionamento à frente do caminhão-reboque. Nenhum repórter o viu sair.
Já havia escurecido completamente quando ele chegou à casa de Bosch. Como da vez anterior, a porta da frente estava aberta e a porta de tela fechada. McCaleb bateu
de leve no umbral de madeira e lançou o olhar pela tela na direção da escuridão reinante na casa. Só havia uma luz acesa - um abajur de leitura - na sala de estar.
Dava para ouvir o som de música, e ele achou que era o mesmo CD de Art Pepper que tocara durante sua última visita. Mas não viu Bosch.
McCaleb desviou o olhar da porta para examinar a rua, e quando olhou de volta assustou-se ao ver Bosch parado do outro lado da tela. O detetive abriu o fecho da
porta de tela e a abriu. Usava o mesmo terno com que McCaleb o havia visto nos noticiários. Segurava uma garrafa de Anchor Steam ao lado do corpo.
- Entre, Terry. Achei que talvez fosse um repórter. Eles me
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tiram do sério quando vêm até aqui. Deveria haver pelo menos um lugar aonde eles não pudessem ir.
- É, entendo o que você quer dizer. Eles cercaram o barco. Tive que cair fora.
McCaleb passou por Bosch, entrou no vestíbulo da casa, e foi para a sala.
- Mas, tirando os repórteres, como estão as coisas, Harry?
- Melhor do que nunca. Foi um bom dia para o nosso lado. Como vai o seu pescoço?
- Doendo pra diabo. Mas ainda estou vivo.
- É, isso é que é importante. Quer uma cerveja?
- Hum, seria bom.
Enquanto Bosch ia pegar a cerveja, McCaleb foi para a varanda dos fundos.
Bosch apagara as luzes da varanda para realçar as luzes da cidade à distância. McCaleb ouviu o onipresente ruído da rodovia no fundo do desfiladeiro. Holofotes cruzavam
o céu, vindos de três pontos diferentes na parte baixa do vale. Bosch saiu da casa e passou-lhe uma cerveja.
-Sem copo, não é?
- Sem copo.
Eles ficaram olhando para a paisagem noturna, bebendo as cervejas em silêncio durante algum tempo. McCaleb procurava uma maneira de dizer o que queria dizer. Ainda
estava amadurecendo a coisa.
- A última coisa que vi antes de sair de lá foi o carro de Tafero sendo rebocado - disse depois de algum tempo.
Bosch balançou a cabeça.
- E o barco? Já terminaram o exame? -Já.
- Ficou uma bagunça? Eles sempre deixam as coisas reviradas.
- Provavelmente. Ainda não entrei lá. Vou me preocupar com isso amanhã.
Bosch balançou a cabeça. McCaleb deu um grande gole na cerveja e pôs a garrafa em cima da balaustrada da varanda. Tinha
bebido demais. O líquido regurgitou na sua garganta, fazendo o interior do nariz arder.
- Tudo bem? - perguntou Bosch.
- Tudo bem - disse McCaleb, limpando a boca com as costas da mão. - Harry, vim aqui dizer a você que não posso mais ser seu amigo.
Bosch começou a rir, mas depois parou.
- Porquê?
McCaleb olhou para ele. Mesmo na escuridão, o olhar de Bosch continuava penetrante. Seus olhos haviam capturado um lampejo de luz refletida de alguma parte, e McCaleb
viu-se preso no foco daqueles dois pontos brilhantes.
- Você devia ter continuado lá hoje de manhã, enquanto Jaye interrogava Tafero.
- Eu não tinha tempo.
- Ela perguntou sobre o Lincoln, e ele disse que era o seu carro clandestino. Usava o Lincoln para fazer serviços em que não queria deixar chance de ser rastreado.
O carro tem placas roubadas. E o registro é falso.
- Faz sentido um cara daqueles ter um carro só para negócios sujos.
- Você não sacou, não é?
Bosch terminara a cerveja. Apoiara-se com os cotovelos na balaustrada. Estava arrancando o rótulo colado na garrafa e jogando os pedacinhos na escuridão lá embaixo.
- Não, não saquei, Terry. Por que não me diz logo do que está falando?
McCaleb pegou a cerveja, mas colocou-a novamente na balaustrada sem beber.
- O carro verdadeiro dele, o que ele usa todo dia, é um Mercedes Quatro-trinta C-L-K. Foi com esse carro que ele foi multado por ter estacionado na porta do correio,
quando enviou a ordem de pagamento.
- Tá legal, o cara tinha dois carros. O carro secreto e o carro de exibição. O que isso quer dizer?
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- Quer dizer que você sabia de algo que não deveria saber.
- Do que está falando? Saber de quê?
- Ontem à noite eu perguntei por que você tinha ido até o barco. Você disse que tinha visto o Lincoln de Tafero e que sabia que havia algo de errado. Como sabia
que o Lincoln era dele?
Bosch ficou calado por muito tempo. Olhou para a escuridão e balançou a cabeça.
- Eu salvei a sua vida - disse.
- E eu salvei a sua.
- Então estamos quites. Vamos deixar as coisas assim, Terry. McCaleb abanou a cabeça. Era como se houvesse um punho
fechado no seu estômago, empurrando seu peito e tentando chegar ao seu coração novo.
- Eu acho que você já conhecia aquele Lincoln e percebeu que aquilo significava problemas para mim porque já tinha seguido Tafero antes. Numa noite em que ele usou
o Lincoln, talvez. Na noite em que ele seguiu Gunn e planejou o crime, talvez. Na noite em que ele cometeu o crime, talvez. Você salvou a minha vida porque já sabia
de alguma coisa, Harry.
McCaleb ficou em silêncio por um instante, dando a Bosch a oportunidade de dizer algo em defesa própria.
- Isso é muito talvez, Terry.
- Pois é. Muito talvez e um palpite. Meu palpite é que de alguma forma você soube ou descobriu, quando Tafero combinou tudo com Storey, que eles teriam que ir em
cima de você no tribunal. Você ficou vigiando Tafero e viu quando ele armou pra cima de Gunn. Você sabia o que ia acontecer e deixou que acontecesse.
McCaleb bebeu outro gole grande de cerveja e pôs a garrafa novamente na balaustrada.
- Foi uma jogada perigosa, Harry. Eles quase escaparam. Mas também acho que você teria bolado outro jeito de fazer a coisa se voltar contra eles, mesmo que eu não
tivesse aparecido no caso.
Bosch continuou olhando para a escuridão sem dizer nada.
- Só espero que não tenha sido você que contou a Tafero que Gunn estava em custódia naquela noite. Diga que não foi você que
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deu aquele telefonema, Harry. Diga que você não ajudou Gunn a sair da cadeia para ser assassinado daquele jeito.
Bosch continuou em silêncio. McCaleb balançou a cabeça.
- Se quiser dar os parabéns a alguém, Harry, dê a si mesmo. Bosch baixou o olhar para a escuridão abaixo da varanda.
McCaleb ficou olhando atentamente e viu o detetive balançar vagarosamente a cabeça.
- A gente faz o que tem que fazer - disse Bosch em voz baixa.
- Às vezes pode escolher. Às vezes não tem escolha, só necessidade. A gente vê as coisas acontecerem e sabe que elas estão erradas, mas de alguma forma também estão
certas.
Ele se calou por alguns instantes, e McCaleb ficou esperando.
- Eu não dei aquele telefonema - disse Bosch.
Virou-se e olhou para McCaleb, que viu mais uma vez os dois pontos brilhantes de luz no negrume dos olhos dele.
- Três pessoas... três monstros... se acabaram.
- Mas não assim. A gente não faz as coisas assim. Bosch concordou.
- E a sua jogada de invadir o escritório do irmãozinho dele, Terry? Não achou que aquilo ia dar merda? Você precipitou tudo com aquela jogada, e sabe disso.
McCaleb sentiu seu rosto se acalorar sob o olhar de Bosch. Não respondeu, pois não sabia o que dizer.
- Você também tinha o seu plano, Terry. Portanto, qual é a diferença?
- A diferença? Se você não vê qual é a diferença, é porque já caiu completamente. Está perdido.
- Bom, talvez eu esteja perdido ou talvez eu tenha sido encontrado. Tenho que pensar a respeito. Mas enquanto isso, por que não vai pra casa? Volte para a sua ilhazinha
e sua menininha. Vá se esconder atrás do que você vê nos olhos dela. Finja que o mundo não é o que você sabe que é.
McCaleb balançou a cabeça. Já dissera o que queria dizer. Afastou-se da balaustrada, deixando a cerveja ali, e dirigiu-se para a porta da casa. Mas Bosch ainda o
atingiu com mais algumas palavras, antes que ele entrasse.
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- Só porque deu à sua filha o nome de uma garota que ninguém amava e com quem ninguém se importava, você acha que pode compensar a perda dela? Bom, você está errado,
cara. Vá pra casa e continue sonhando.
McCaleb hesitou na porta e olhou para trás.
- Adeus, Harry.
- É, adeus.
McCaleb atravessou a casa. Quando chegou ao abajur aceso ao lado da poltrona de leitura, viu a cópia do perfil que fizera de Bosch sobre o braço da cadeira. Continuou
andando. Quando passou pela porta da frente, fechou-a atrás de si.
Capítulo 47
Bosch ficou parado, com os braços cruzados sobre a balaustrada e a cabeça baixa. Pensava nas palavras - ditas e escritas - de McCaleb, que pareciam estilhaços de
uma granada atravessando seu corpo. Ele sentia seu revestimento interior rasgando-se profundamente. Parecia que ele fora agarrado por algo interior e que estava
sendo arrastado para um buraco negro. Parecia que estava implodindo e desaparecendo.
- O que eu fiz? - murmurou. - O que eu fiz?
Endireitou o corpo e viu a garrafa sem rótulo na balaustrada. Pegou-a e atirou-a o mais longe que pôde na escuridão. Ficou observando a trajetória, seguindo o vôo
devido ao luar refletido no vidro marrom. A garrafa explodiu no matagal da encosta rochosa lá embaixo.
Ele viu a garrafa meio cheia de McCaleb e a agarrou. Levou o braço para trás, querendo lançá-la na rodovia. Depois parou. Pôs a garrafa na balaustrada e entrou.
Tirou o perfil impresso do braço da cadeira e começou a picotar as duas folhas. Foi até a cozinha, abriu a torneira e pôs os pedaços na pia. Ligou o triturador de
lixo e empurrou os pedaços de papel para o ralo da pia. Ficou esperando até perceber, pelo ruído, que o papel se desmanchara e desaparecera. Desligou o triturador
e ficou observando a água correr pelo ralo.
408
Vagarosamente, seus olhos se ergueram e ele lançou o olhar pela janela da cozinha na direção do passo Cahuenga. As luzes de Hollywood brilhavam no desfiladeiro,
espelhando as estrelas de todas as galáxias. Bosch pensou em tudo que havia de ruim lá fora. Uma cidade com mais coisas erradas do que certas. Um lugar onde você
podia ser tragado subitamente pela terra e engolfado no negrume. Uma cidade de luz perdida. A cidade dele. Era tudo isso, e ainda assim, sempre assim, um lugar para
se recomeçar. A cidade dele. A cidade da segunda chance.
Bosch balançou a cabeça e se inclinou. Fechou os olhos, pôs as mãos embaixo da água e levou-as ao rosto. A água estava fria e penetrante, como ele achava que qualquer
batismo, o início de uma segunda chance, deveria ser.
Capítulo 48
Ainda dava para sentir o cheiro de pólvora queimada. McCaleb parou no camarote principal e olhou em volta. Havia luvas de borracha e outras coisas espalhadas no
chão. O pó negro usado para colher impressões digitais cobria tudo por toda parte. A porta do camarote desaparecera, bem como os umbrais, arrancados da parede. No
corredor também fora removido um painel de madeira inteiro. McCaleb seguiu em frente e olhou para o chão, onde o irmão de Tafero morrera baleado por ele. O sangue
coagulara e dei' xaria manchas indeléveis nas tábuas claras e escuras que se alternavam no assoalho. Sempre estariam lá para servir de lembrete.
Olhando para o sangue, ele reviveu os tiros que dera no-sujeito. As imagens em sua mente se deslocavam muito mais devagar do que no tempo real. Pensou no que Bosch
dissera lá na varanda. Que ele deixara que o irmãozinho o seguisse. Pensou na própria culpabilidade. Sua culpa poderia ser menor do que a de Bosch? Ambos tinham
posto as coisas em movimento. Para cada ação há uma reação igual e oposta. Você não entra nas trevas sem que as trevas entrem em você.
- A gente faz o que tem que fazer - disse ele, em voz alta.
Subiu até o salão e lançou o olhar pela porta na direção do estacionamento. Os repórteres ainda estavam por lá com as vans. Ele se esgueirara até o barco sem ser
notado. Estacionara na outra
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extremidade da marina e pegara emprestado o esquife da embarcação de alguém para chegar ao Mar que Segue. Subira a bordo e entrara no barco sem ser visto.
Percebeu que as vans estavam com as antenas de microondas armadas. As equipes já se preparavam para o noticiário das onze horas, com os ângulos das câmeras ajustados
para pegar o Mar que Segue, mais uma vez, em todas as tomadas. McCaleb sorriu e abriu o telefone. Teclou um número gravado na memória, e Buddy atendeu.
- Buddy, sou eu. Escute. Estou no barco e preciso ir pra casa. Quer me fazer um favor?
- Precisa ir hoje? Tem certeza?
- Tenho. Quero que faça uma coisa. Quando ouvir o motor ser ligado, venha até aqui e solte os cabos de amarração. Faça isso depressa. Eu faço o restante.
- Quer que eu vá com você?
- Não é preciso. Pegue uma barca pra lá na sexta-feira. Temos aquele passeio marcado no sábado de manhã.
- Está bem, Terror. Ouvi pelo rádio que o mar está bem calmo e que não há nevoeiro, mas tenha cuidado.
McCaleb fechou o telefone e foi até a porta do salão. A maioria dos repórteres e das equipes estavam atarefados e não olhavam mais para o barco, porque já haviam
verificado que não havia ninguém lá. Ele abriu a porta e saiu. Fechou a porta e subiu rapidamente a escada até a ponte de comando. Abriu a cortina plástica que envolvia
a ponte e se meteu ali dentro. Viu que os dois aceleradores estavam em ponto morto, puxou o afogador e meteu a chave na ignição.
Virou a chave e os motores de partida começaram a gemer alto. Olhando para trás pela cortina de plástico, McCaleb viu que todos os repórteres haviam se virado para
o barco. Os motores finalmente pegaram, e ele acionou os aceleradores para fazer um aquecimento rápido das máquinas. Olhou novamente para trás e viu Buddy vindo
pelo cais até a popa da embarcação. Alguns repórteres já estavam correndo pelo passadiço atrás dele.
Buddy soltou rapidamente os dois cabos da popa e lançou-os sobre o convés. Foi caminhando pelo píer para pegar o cabo da proa. McCaleb perdeu-o de vista, mas depois
ouviu o grito.
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-Livre!
McCaleb tirou os aceleradores da posição neutra e afastou o barco do cais. Ao entrar no canal de navegação, olhou para trás e viu Buddy parado no píer lateral, com
os repórteres atrás.
Uma vez longe das câmeras, abriu as cortinas da ponte e retirou-as. O ar frio varreu a ponte, fazendo com que ele se encolhesse. Avistou as luzes vermelhas piscantes
das bóias que assinalavam o canal e pôs o barco naquela rota. Lançou o olhar para a escuridão à sua frente, além das bóias, mas não conseguiu enxergar nada. Ligou
o Raytheon e viu no radar o que não conseguia enxergar à sua frente. A ilha estava ali na tela do radar.
Dez minutos mais tarde, depois de ter passado da linha de arrebentação da baía, McCaleb tirou o telefone do bolso e teclou o número de casa já gravado. Sabia que
era tarde demais para telefonar e que estava se arriscando a acordar as crianças. Graciela atendeu rapidamente, sussurrando.
- Desculpe, sou eu de novo.
- Terry, você está bem?
- Agora estou. Estou indo pra casa.
- Está cruzando a baía no escuro?
McCaleb refletiu um instante sobre a pergunta.
- Vai dar tudo certo. Eu consigo enxergar no escuro. Graciela não disse nada. Ela conseguia perceber quando ele
estava dizendo uma coisa e falando de outra coisa.
- Ligue a luz do pátio - disse ele. - Vou me orientar por ela quando estiver perto.
McCaleb fechou o telefone e empurrou os aceleradores para a frente. A proa começou a se elevar e depois se nivelou. Ele passou a última bóia do canal, vinte metros
à esquerda. Estava bem no curso. Em quarto crescente, a lua brilhava no céu lá adiante, formando uma cintilante trilha de prata líquida que ele poderia seguir até
chegar em casa. McCaleb segurou firme no volante e pensou no momento em que realmente achara que ia morrer. Lembrou que a imagem da filha lhe aparecera e que aquilo
o confortara. Lágrimas começaram a rolar pelas suas faces. Logo o vento que vinha do mar as secava em seu rosto.
MAIS ESCURO QUE A NOITE Michael ConnellyMcCaleb, agente do FBI aposentado, aproveita a vida à beira-mar com sua mulher e a filha recém-nascida quando é chamado para voltar à ativa e auxiliar na investigação de um misterioso assassinato. Apesar dos protestos silenciosos de sua esposa, aceita a incumbência, e, sem perceber, começa a reencontrar uma alegria há muito perdida.
Ao aprofundar suas investigações, depara-se com um suspeito inesperado: o detetive Hieronymous Bosch, um dos melhores tiras da polícia de Los Angeles, que está ocupado demais como testemunha no julgamento de um assassinato cujo réu é David Storey, um grande diretor de cinema.
Os dois casos correm paralelamente e, à medida que Bosch apresenta as provas que o levaram a concluir que David é o assassino, McCaleb encontra evidências da culpabilidade de Bosch no outro crime.
Bosch, porém, logo percebe ser alvo de uma investigação que, se for adiante, pode incriminá-lo e deixar em liberdade o cineasta, um homem que ele acredita ter feito outras vítimas também. Com o passar do tempo, McCaleb se aproxima da verdade e Bosch vê seu suspeito escapar por entre seus dedos. Até que surgem novas informações e os rumos dos dois casos mudam, levando a resultados imprevisíveis.
Um clássico da literatura policial que junta dois dos melhores detetives criados nos anos 90 em uma aventura eletrizante e inesquecível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/_MAIS_ESCURO_QUE_A_NOITE.jpg
Prólogo
Bosch espiou pelo pequeno quadrado de vidro e viu que o sujeito estava sozinho na cela. Tirou a arma do coldre e entregou-a ao sargento de serviço. Procedimento
padrão. A porta de aço foi destrancada e abriu-se deslizando. Imediatamente, o cheiro de suor e vômito atingiu as narinas de Bosch.
- Há quanto tempo ele está aí dentro?
- Cerca de três horas - disse o sargento. - Está bêbado feito um gambá, de modo que não sei o que você vai conseguir.
Bosch entrou na cela, mantendo o olhar no vulto estendido de bruços no chão.
- Está bem, pode fechar.
- É só me avisar.
A porta deslizou, fechando-se com um baque forte. O sujeito deitado no chão gemeu e se mexeu levemente. Bosch avançou e sentou-se no banco mais próximo a ele. Tirou
o gravador do bolso do paletó e colocou-o no banco. Erguendo o olhar para a placa de vidro, viu o rosto do sargento afastar-se. Usou a ponta do sapato para cutucar
o corpo do sujeito, que gemeu mais uma vez.
- Acorda, seu merda.
O homem no chão da cela girou lentamente a cabeça e depois a levantou: tinta salpicada no cabelo e vômito endurecido na frente da camisa e do pescoço. Abriu os olhos
e fechou-os imediatamente,
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reagindo à luz forte que vinha do teto do aposento. Sua voz saiu num sussurro áspero:
- Você de novo.
Bosch balançou a cabeça. - É. Sou eu mesmo.
- Nosso velho número.
Um sorriso abriu-se na barba de três dias da cara do bêbado. Bosch notou que o sujeito havia perdido um dente desde a última vez em que o tinha visto. Baixou a mão
e colocou-a sobre o gravador, sem ligá-lo.
- Levante-se. E hora de falar.
- Esquece, cara. Não quero...
- O seu tempo está se esgotando. Comece a falar.
- Não fode. Me deixa em paz.
Bosch olhou para a janelinha. Não havia ninguém ali. Tornou a olhar para o homem no chão.
- A sua salvação está na verdade. Agora mais do que nunca. Não posso fazer nada por você sem a verdade.
- Virou padre? Veio aqui me confessar?
- Você veio se confessar?
O sujeito deitado não disse nada. Depois de uns instantes Bosch achou que ele adormecera novamente. Enfiou a ponta do sapato no flanco do homem, perto do rim. O
sujeito mexeu-se repentinamente, agitando os braços e as pernas.
- Vá se foder! - gritou. - Não quero você aqui. Quero um advogado.
Bosch ficou em silêncio um instante. Pegou o gravador e colocou-o de volta no bolso. Depois se inclinou para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos, e juntou
as mãos. Olhou para o bêbado e abanou lentamente a cabeça.
- Então acho que não posso fazer nada por você - disse. Levantou-se e bateu na janelinha, chamando o sargento de
serviço. Deixou o homem deitado ali no chão.
Capítulo 1
- Alguém está vindo aí.
Terry McCaleb olhou para a esposa e depois seguiu o olhar dela em direção à estrada que serpenteava lá embaixo. Viu o carrinho de golfe subindo a estrada íngreme
e tortuosa que levava à casa. O condutor estava oculto pelo teto do veículo.
Graciela e ele estavam sentados no pátio dos fundos da casa que haviam alugado na avenida La Mesa. A vista ia da estradinha que serpenteava abaixo da casa até a
área do porto de Avalon, ampliando-se sobre a baía de Santa Monica até a nuvem de poluição que pairava sobre a cidade. Fora esse o motivo pelo qual eles haviam escolhido
aquela casa para ser seu novo lar na ilha. Mas quando sua esposa falou, ele tinha o olhar fixo no bebê que carregava nos braços, e não na paisagem. Não via nada
a não ser os grandes olhos azuis e penetrantes da filha.
MacCaleb viu o número de aluguel na lateral do carrinho de golfe que passava lá embaixo. Não era uma visita local. Era alguém que provavelmente chegara da cidade
no Cataíma Express. Ainda assim, ficou imaginando como Graciela sabia que o visitante se destinava à casa deles, e não a qualquer outra da avenida.
Não perguntou isso a ela, pois a mulher já tivera premonições antes. Simplesmente esperou, e logo que o carrinho desapareceu de vista alguém bateu à porta da frente.
Graciela foi atender, e em instantes
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voltou ao pátio acompanhada de uma mulher que McCaleb não via fazia uns três anos.
Jaye Winston, uma detetive do escritório do xerife, sorriu quando viu a criança nos braços dele. Era um sorriso sincero, mas ao mesmo tempo perturbado: via-se que
não tinha ido até lá para admirar um bebê recém-chegado. McCaleb sabia que a grossa pasta verde e a fita de videocassete que ela carregava nas mãos significavam
que Jaye estava ali a serviço. Serviço de morte.
- Como vai, Terry? - perguntou a detetive.
- Não podia ir melhor. Lembra da Graciela?
- E claro. E quem é essa aí?
- É a CiCi.
McCaleb nunca usava o nome formal da filha diante de outras pessoas. Só gostava de chamá-la de Cielo quando estava sozinho com ela.
- CiCi - disse Jaye hesitando, como à espera de uma explicação para o nome. Como a explicação não veio, ela perguntou: Que idade ela tem?
- Quase quatro meses. Ela é grande.
- E mesmo, dá pra ver... E o menino... onde está ele?
- Raymond? - disse Graciela. - Está com uns amigos hoje. O Terry tinha um passeio de barco marcado, e ele foi até o parque jogar bola com uns amigos.
A conversa parecia hesitante e estranha. Ou Jaye não estava muito interessada ou estava desacostumada de conversas triviais.
- Quer beber alguma coisa? - perguntou McCaleb, entregando o bebê a Graciela.
- Não, obrigada. Tomei uma Coca na barca.
Como seguindo a deixa, ou talvez indignada por ter sido passada adiante, CiCi começou a se agitar. Graciela disse que a levaria para dentro da casa e deixou os dois
no pátio. McCaleb apontou para uma mesa redonda com cadeiras; eles jantavam ali quase toda noite, enquanto o bebê dormia.
- Vamos sentar.
Indicou para Jaye a cadeira de onde ela teria a melhor vista da baía. Ela pousou a pasta verde - que McCaleb logo reconheceu
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como um dossiê de assassinato - sobre a mesa e pôs a fita de vídeo sobre a pasta.
- Linda - disse ela.
- É mesmo, ela é incrível. Sou capaz de ficar olhando para a CiCi...
Ele parou e sorriu, percebendo que ela falava da paisagem, não da criança. Jaye também sorriu.
- A CiCi é linda, Terry. Muito linda. Você também parece estar bem, tão bronzeado e tudo mais.
- Tenho saído com o barco.
- E a saúde, vai bem?
- Não posso me queixar de nada além de todos os remédios que eles me obrigam a tomar. Mas já estou nessa há três anos, sem qualquer problema. Acho que me dei bem,
Jaye. Só preciso continuar tomando as porcarias das pílulas, e isso vai ser sempre assim.
Ele sorriu, e realmente parecia a personificação da saúde. O sol escurecera-lhe a pele, mas o efeito no cabelo fora o oposto. Cortado rente e penteado, estava quase
louro. O trabalho no barco também realçara-lhe a musculatura dos braços e ombros. O único sinal destoante escondia-se sob a camisa: uma cicatriz de vinte e cinco
centímetros, resultante da cirurgia do transplante.
- Que ótimo - disse Jaye. - Você parece estar muito bem aqui. Família nova, casa nova... longe de tudo.
Silenciou um instante, virando a cabeça num gesto de quem abarcasse tudo em volta de uma só vez: a vista, a ilha e a própria vida de McCaleb. Este sempre achara
Jaye Winston uma mulher atraente, com um jeito de menina levada. Ela tinha o cabelo louro claro, cortado na altura dos ombros. Jamais usou maquiagem na época em
que trabalhava com ele. Mas tinha olhos penetrantes, sagazes, e um sorriso fácil e meio triste, como se visse humor e tragédia em tudo ao mesmo tempo. Usava jeans
pretas e uma camiseta branca debaixo de um blazer preto. Parecia calma e firme, e McCaleb sabia por experiência própria que ela era assim mesmo. Tinha o hábito de
prender o cabelo atrás da orelha enquanto falava. Por alguma razão desconhecida, ele achava aquele gesto cativante. Sempre pensara que se não houvesse se ligado
a Graciela
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poderia ter tentado conhecer Jaye Winston melhor. Também percebia que ela achava a mesma coisa.
- Me sinto até meio culpada por ter vindo aqui - disse ela. McCaleb indicou com a cabeça a pasta e a fita.
- Você veio a serviço. Podia ter dado um telefonema, Jaye. Provavelmente teria ganho tempo.
- Mas você não me mandou nenhum cartão comunicando sua mudança de endereço ou telefone. Como se não quisesse que as pessoas soubessem onde veio parar.
Ela prendeu o cabelo atrás da orelha esquerda e sorriu novamente.
- Não foi isso - disse ele. - Só achei que ninguém ia querer saber onde eu estava.-Como me encontrou?
- Perguntando na marina lá no continente.
- Na cidade. É como a gente fala aqui.
- Pois é, na cidade. Na superintendência do porto me disseram que o seu barco ainda tinha vaga lá, mas que ficava ancorado aqui. Fiz a travessia e saí com uma lancha
alugada pelo porto até encontrar o barco. Seu amigo estava lá. Ele me deu as coordenadas.
- Buddy.
McCaleb estendeu o olhar até o porto e avistou seu barco, o Mar que Segue. Estava a uns oitocentos metros de distância. Dava para ver Buddy Lockridge curvado na
popa. Mais um instante, e percebeu que Buddy lavava os molinetes com a mangueira do tanque de água doce.
- O que está havendo, Jaye? - perguntou McCaleb sem olhar para ela. - Só pode ser algo importante, pra você passar por tudo isso no seu dia de folga. Calculo que
tire folga aos domingos.
- Geralmente.
Jaye afastou a fita e abriu a pasta. McCaleb olhou para a pasta. Embora estivesse virada ao contrário, dava para ver que a página de cima era um boletim de ocorrência
de homicídio, normalmente a primeira página de todos os dossiês de assassinatos que ele já lera. Era o ponto de partida. Os olhos de McCaleb focalizaram o campo
de endereço. Mesmo com a pasta invertida, dava para ver que era um caso ocorrido em West Hollywood.
- Gostaria que você desse uma olhada neste caso aqui. Quer dizer, quando tiver tempo. Talvez seja o seu tipo de coisa. Queria que fizesse uma avaliação. Talvez me
mostrasse um novo caminho.
Assim que tinha visto a pasta nas mãos de Jaye, McCaleb percebeu que ela lhe pediria isso. Feito o pedido, mergulhou num torvelinho de sentimentos. Sentia a emoção
da possibilidade de recuperar uma parte de sua vida anterior. Mas também se sentia culpado pela idéia de trazer a morte a um lar tão cheio de vida nova e felicidade.
Olhou para a porta entreaberta, a fim de ver se Graciela estava por ali. Não estava.
- Meu tipo de coisa? - disse ele. - Se for um caso de assassinatos em série, é melhor não perder tempo. Vá ao FBI, ligue para Maggie Griffin. Ela irá...
- Já fiz tudo isso, Terry. E ainda preciso de você.
- Quando foi isso?
- Duas semanas.
Ela ergueu os olhos para o rosto dele.
- Dia de Ano-Novo?
Jaye balançou afirmativamente a cabeça.
- Primeiro assassinato do ano - disse ela. - No condado de Los Angeles, pelo menos. Tem gente que acha que o verdadeiro milênio só começou este ano.
- Acha que o cara é um maluco do milênio?
- Quem fez isso só pode ser maluco. Eu acho. É por isso que estou aqui.
- O que o FBI disse? Levou isso à Maggie?
- Você está desatualizado, Terry. A Maggie foi mandada de volta para Quantico. O movimento caiu nos últimos anos, e a Unidade de Ciências Comportamentais reconvocou
a Maggie. Não há mais seção do FBI em Los Angeles. Mas eu falei com ela. Pelo telefone, em Quantico. Ela entrou no PCCV e não achou nada.
McCaleb sabia que ela estava falando do Programa de Captura de Criminosos Violentos.
- Fizeram um perfil? - perguntou.
- Estou na lista de espera. Sabia que no país inteiro, na véspera
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e no dia de Ano-Novo, houve trinta e quatro assassinatos inspirados pela mudança do milênio? Por isso eles agora estão assoberbados de trabalho. E os departamentos
maiores como o nosso estão no fim da fila, porque o FBI acha que os departamentos menores, com menos experiência, especialistas e mão-de-obra, precisam mais da ajuda
deles.
Ela esperou um instante, deixando McCaleb refletir sobre aquilo tudo. Ele compreendia a filosofia do FBI. Era uma forma de triagem.
- Não me importo de esperar um mês ou coisa assim até que a Maggie ou alguém consiga me dar alguma coisa, mas minha intuição me diz que o tempo é um fator crucial
aqui, Terry. Se for um caso de assassinatos em série, um mês talvez seja tempo demais para esperar. Foi por isso que pensei em vir aqui. Estou dando com a cabeça
na parede neste caso, e talvez você seja a nossa última esperança de conseguirmos ir em frente no momento. Ainda me lembro do Homem do Cemitério e do Assassino do
Código. Sei o que pode fazer com um dossiê de assassinato e um vídeo da cena do crime.
A últimas frases eram gratuitas, o único movimento em falso de Jaye até então, pensou McCaleb. Afora isso, achava que ela estava sendo sincera ao dizer que o assassino
podia atacar novamente.
- Estou afastado há muito tempo, Jaye - começou McCaleb. - Depois daquela coisa com a irmã da Graciela, não me envolvi com...
- Terry, deixa de babaquice, tá legal? Você pode ficar a semana inteira sentado aqui com um bebê no colo, mas isso não vai apagar o que você foi e o que fez. Eu
te conheço. Não nos vemos nem conversamos há muito tempo, mas eu te conheço. E sei que não passa um dia sequer sem pensar em casos. Um dia sequer.
Fez uma pausa e ficou olhando para ele.
- Quando eles tiraram o seu coração, não tiraram o que faz você funcionar, entende?
McCaleb desviou o olhar em direção ao barco novamente. Buddy estava sentado na cadeira de pesca, com os pés em cima da verga. McCaleb achava que ele tinha uma cerveja
na mão, mas a distância era grande demais para ter certeza.
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- Se consegue enxergar as pessoas tão bem, pra que precisa de
mim?
- Talvez eu seja boa nisso, mas você é o melhor que eu já vi. Diabo, mesmo que o pessoal de Quantico não estivesse atolado até a Páscoa, eu preferiria você a qualquer
um daqueles traçadores de perfil. Estou falando a verdade. Você era...
- Jaye, não é preciso vir com esse papo de vendedor, tá legal? Meu ego está indo muito bem sem toda essa...
- Então o que é preciso? Ele olhou de novo para ela.
- Só um pouco de tempo. Preciso pensar no assunto.
- Estou aqui porque minha intuição me diz que não temos muito tempo.
McCaleb levantou-se e foi até a balaustrada do pátio. Olhou para o mar. Uma barca do Cataíina Express vinha chegando. Ele sabia que estaria quase vazia. Os meses
de inverno traziam poucos visitantes.
- A barca está chegando - disse. - Estamos no horário de inverno, Jaye. Se não aproveitar essa para voltar, vai ter que passar a noite aqui.
- Peço para o departamento mandar um helicóptero me pegar, se for preciso. Terry, só preciso de um dia seu, no máximo. Talvez até uma noite. Você senta, lê o dossiê,
assiste à fita, e depois me telefona de manhã, dizendo o que viu. Talvez não seja nada, ou pelo menos nada que seja novidade. Mas talvez veja alguma coisa que nós
deixamos escapar, ou tenha uma idéia que ainda não ocorreu a ninguém. É só o que estou pedindo. Acho que não é muito.
McCaleb afastou os olhos da barca que chegava e se virou, recostando-se na balaustrada.
- Não parece muito pra você, porque está dentro do negócio. Eu não estou. Estou fora, Jaye. Voltar a isso, mesmo que seja só por um dia, vai mudar as coisas. Eu
me mudei pra cá para recomeçar e esquecer todos os troços em que eu era bom. Para ser bom fazendo outra coisa. Para ser pai e marido, por exemplo.
Jaye levantou-se e foi até a balaustrada. Enquanto McCaleb continuava olhando para a casa, ela postou-se ao lado dele,
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olhando para a paisagem, e começou a falar em tom baixo. Se Graciela estivesse de antena ligada lá dentro, não conseguiria ouvir nada.
- Lembra o que me disse no caso da irmã de Graciela? Disse que teve uma segunda chance na vida, e que tinha que haver uma razão para isso. Agora você construiu essa
vida, com a irmã dela, o filho dela, e até a sua própria filha. Isso é maravilhoso, Terry, eu realmente acho. Mas essa não pode ser a razão que você estava procurando.
Pode achar que é, mas não é. Lá no fundo você sabe disso. Sabia muito bem fisgar essas pessoas. Perto disso, o que é fisgar
peixes
McCaleb balançou a cabeça ligeiramente e sentiu-se mal por concordar com tamanha presteza.
- Deixe o troço aí - disse. - Telefono pra você quando puder. A caminho da porta Jaye procurou Graciela com o olhar, mas
não a viu.
- Deve estar com o bebê - explicou McCaleb.
- Bom, diga a ela que eu me despedi. - Está bem.
Houve um silêncio constrangedor durante o percurso até a porta. Quando McCaleb finalmente a abriu, Jaye disse:
- E aí, Terry, como é ser pai?
- E a melhor época da vida, e é a pior época da vida.
Sua resposta automática. Refletiu um instante e acrescentou algo que já pensara, mas que jamais dissera, nem para Graciela.
- E como ter uma arma encostada na cabeça o tempo todo. Jaye pareceu confusa, e até um pouco preocupada.
- Como assim?
- Porque eu sei que se alguma coisa acontecer a ela, qualquer coisa, minha vida estará acabada.
Ela balançou a cabeça.
- Acho que dá pra entender.
Jaye saiu. Parecia bastante idiota ao se afastar. Uma detetive, com grande experiência em homicídios, andando num carrinho de golfe.
Capítulo 2
O jantar de domingo com Graciela e Raymond foi calmo. Eles comeram uma perca branca que McCaleb pescara de manhã ao levar clientes até a ilha, perto do istmo. Os
clientes que alugavam o barco sempre queriam guardar os peixes que apanhavam, mas em geral mudavam de idéia quando voltavam ao porto. Aquilo tinha a ver com o instinto
humano de matar, achava McCaleb. Não bastava pegar as presas. Era preciso matá-las também. E isso significava que peixe era um prato freqüente no jantar na casa
deles.
McCaleb assara o peixe com espigas de milho na churrasqueira do quintal. Graciela fizera uma salada e biscoitos. Os dois estavam bebendo vinho branco, enquanto Raymond
tomava leite. A comida estava boa, mas o silêncio não. McCaleb levantou o olhar para Raymond e viu que o menino já percebera as vibrações entre os adultos e embarcara
na onda. Lembrou-se que fazia a mesma coisa em criança, quando seus próprios pais guardavam silêncio entre si. Raymond era filho de Gloria, irmã de Graciela. Seu
pai jamais fizera parte de sua vida. Quando Gloria morreu - assassinada - três anos antes, Raymond foi morar com Graciela. McCaleb conhecera os dois quando investigava
o caso.
- Como foi o jogo hoje? - perguntou finalmente McCaleb.
- Acho que foi bom.
- Marcou algum ponto?
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- Não.
- Vai marcar. Não se preocupe. E só continuar tentando.
Continue treinando.
McCaleb balançou a cabeça. O menino pedira para acompanhá-lo de manhã, mas ele não deixara. O passeio fora marcado por seis homens da cidade. Com McCaleb e Buddy
seriam oito no Mar que Segue, e esse era o limite que o barco podia levar dentro das normas de segurança. McCaleb nunca violava essas regras.
- Bom, o próximo passeio será no sábado, e até agora temos apenas quatro pessoas. Estamos na temporada de inverno e duvido que consigamos mais alguém. Se a coisa
ficar assim, você pode ir.
A expressão sombria do menino pareceu se iluminar, e ele balançou a cabeça vigorosamente enquanto metia o garfo na carne muito alva do peixe no prato. O garfo parecia
grande na mão dele, e McCaleb sentiu uma tristeza passageira pelo menino. Ele era pequeno demais para um menino de dez anos. Raymond se incomodava muito com isso,
e freqüentemente perguntava a McCaleb quando cresceria. McCaleb sempre lhe dizia que isso aconteceria em pouco tempo, embora particularmente achasse que o menino
sempre seria baixo. Sabia que a mãe fora uma mulher de estatura mediana, mas Graciela lhe contara que o pai de Raymond fora um homem muito baixo - em tamanho e caráter.
Ele desaparecera antes do nascimento do menino.
Sempre o último a ser escolhido para o time, pequeno demais para competir com os outros meninos de sua idade, Raymond fora atraído por outros passatempos que não
os esportes de equipe. Pescar era a sua paixão, e nos dias de folga McCaleb geralmente saía com ele pela baía para pegar linguados. Quando tinha um passeio marcado,
o menino sempre lhe implorava para ir, e quando havia lugar McCaleb permitia que ele fosse junto como ajudante de piloto. Tinha sempre um grande prazer em colocar
uma nota de cinco dólares num envelope, fechá-lo e entregá-lo ao menino ao fim do dia.
- Vamos precisar de você na torre de comando - disse McCaleb. - Esse grupo quer ir para o sul pescar marlins. Vai ser um passeio longo.
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- Legal!
McCaleb sorriu. Raymond adorava ficar de vigia na torre, procurando marlins negros que estivessem dormindo ou brincando na superfície. Usando um binóculo, já estava
até ficando afiado na coisa. McCaleb ergueu os olhos para Graciela a fim de compartilhar aquele momento, mas ela baixara o olhar para o prato. Não havia sombra de
sorriso no seu rosto.
Depois de alguns minutos Raymond terminou de comer e pediu para se levantar, pois queria brincar com o computador no quarto. Graciela disse-lhe para manter o som
baixo, para não acordar o bebê. O menino levou o prato até a cozinha, deixando Graciela e McCaleb a sós.
Ele entendeu o silêncio dela. Graciela sabia que não podia reclamar do envolvimento dele numa investigação, porque fora seu próprio pedido para investigar a morte
da irmã que fizera com que eles se conhecessem três anos antes. Suas emoções estavam enredadas nessa ironia.
- Graciela - começou McCaleb. - Sei que não quer que eu faça isso, mas...
- Eu não disse nada.
- Nem precisava dizer. Eu te conheço, e posso dizer pela expressão do seu rosto, desde que Jaye chegou aqui, que...
- Só não quero que tudo mude, mais nada.
- Eu entendo. Também não quero que mude nada. E não vai mudar. Só vou dar uma olhada no dossiê e na fita, e dizer a ela o que eu acho.
- Não vai ser só isso. Eu conheço você. Já vi isso acontecer antes. Vai ser fisgado. E nisso que você é craque.
- Não vou ser fisgado. Só vou fazer o que ela pediu, e pronto. E nem vou fazer isso aqui. Vou pegar o que ela me deu e levar para o barco. Assim a coisa nem vai
ficar aqui em casa. Está bem? Não quero isso aqui em casa.
Ele sabia que ia fazer aquilo com ou sem a aprovação dela, mas mesmo assim queria essa aprovação. O relacionamento deles era tão recente que ele parecia estar sempre
procurando a aprovação dela. Já pensara sobre isso, imaginando se tinha algo a ver com sua
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segunda chance. Tinha passado três anos lutando contra um grande sentimento de culpa, mas aquilo surgia como um posto de controle na estrada a cada poucos quilômetros.
McCaleb parecia sentir que tudo estaria bem se ele conseguisse fazer aquela mulher aprovar sua existência. Seu cardiologista chamava isso de sentimento de culpa
do sobrevivente. Ele sobrevivera porque alguém morrera, e agora precisava atingir uma espécie de redenção por causa disso. Mas McCaleb achava que a explicação não
era tão simples.
Graciela tinha franzido a testa, mas isso não a deixava menos bonita aos olhos dele. Ela tinha a pele cor de cobre, e uma cabeleira castanho-escura que emoldurava
um rosto com olhos de um castanho tão escuro que quase não havia separação entre a íris e a pupila. Aquela beleza era outra razão pela qual procurava a aprovação
dela em todas as coisas. Havia algo de purificador na luz dos sorrisos que ela às vezes lançava para ele.
- Terry, ouvi vocês dois falando ali no pátio. Depois que o bebê ficou quieto. Ouvi o que Jaye disse sobre o que faz você vibrar, e que você não passa um dia sem
pensar no que costumava fazer. Fala só isso... Ela tinha razão?
McCaleb ficou em silêncio por um instante. Baixou o olhar para o prato vazio, lançando-o em seguida sobre o porto para as luzes do casario que se encarapitava na
colina do outro lado, chegando até a pousada no cume do monte Ada. Balançou a cabeça lentamente e olhou novamente para ela.
- Tinha, ela tinha razão.
- Então tudo isto aqui, o que a gente está fazendo, o bebê... é tudo mentira?
- Não. Claro que não. Isto é tudo para mim, e eu protegeria essas coisas com todas as minhas forças. Mas a resposta é... sim, eu penso sobre o que eu era e o que
fazia. Quando estava no FBI, eu salvava vidas, Graciela... é simplesmente isso. E afastava o mal desse mundo. Fazia o mundo lá fora ficar um pouco menos escuro.
Ele levantou a mão e fez um gesto na direção da baía.
- Agora eu levo uma vida maravilhosa com você, Cielo e Raymond. E eu... eu pesco peixes para ricaços que não têm nada melhor para fazer com o dinheiro deles.
V
- Então você quer as duas coisas.
- Não sei o que quero. Sei que só disse certas coisas a Jaye porque sabia que você estava escutando. Fiquei dizendo o que eu sabia que você queria ouvir, mas bem
lá no fundo do coração sabia que aquilo não era o que eu queria. O que eu queria era abrir aquele dossiê de uma vez e começar a trabalhar. Ela tinha razão a meu
respeito, Gracie. Não me via fazia três anos, mas conseguiu me fisgar.
Graciela levantou-se, deu a volta à mesa e sentou-se no colo dele.
- Só estou com medo por você, é isso - disse ela, abraçando-o com força.
McCaleb pegou dois copos altos no armário e colocou-os na bancada. Encheu o primeiro com água mineral e o segundo com suco de laranja. Depois começou a engolir as
vinte e sete pílulas que alinhara na bancada, alternando goles de água e de suco de laranja para ajudá-las a descer. Engolir as pílulas - duas vezes por dia - era
um ritual, e ele o odiava. Não por causa do gosto, pois depois de três anos já nem ligava mais, e sim porque o ritual era um lembrete do quanto sua vida dependia
de preocupações exteriores. As pílulas eram uma coleira. McCaleb não podia viver sem elas. Grande parte do seu mundo agora estava organizado de modo a assegurar
que ele sempre as tivesse à mão. Fazia planos em torno disso, armazenava um grande estoque delas e às vezes chegava a sonhar que estava tomando pílulas.
Quando terminou, voltou à sala, onde Graciela lia uma revista. Ela não olhou quando ele entrou no aposento, outro sinal de que estava infeliz com o que estava subitamente
acontecendo no seu lar. McCaleb ficou ali parado um instante, esperando, e quando as coisas não se alteraram seguiu pelo corredor até o quarto do bebê.
Cielo ainda dormia no berço. A luz que vinha do teto tinha um interruptor em resistência, e McCaleb a aumentou apenas o suficiente para poder vê-la claramente. Foi
até o berço e se inclinou para ouvir a respiração da criança, vê-la, e sentir aquele cheiro de neném. Cielo era morena como a mãe na pele e no cabelo,
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mas os olhos eram azuis como o oceano. As mãos pequeninas estavam cerradas, como se estivesse demonstrando sua prontidão para lutar pela vida. McCaleb ficava mais
apaixonado pela menina quando a via dormindo. Pensava em todos os preparativos que eles haviam feito: os livros, as aulas e os conselhos das amigas de Graciela no
hospital, que eram enfermeiras pediátricas. Tudo para que eles estivessem prontos para cuidar de uma vida frágil, tão dependente deles. Nada fora dito ou lido a
fim de prepará-lo para o oposto: a percepção que tivera, quando a segurara pela primeira vez, de que sua própria vida agora dependia dela.
McCaleb estendeu a mão para a criança, cobrindo as costas do bebê, que não se mexeu. Dava para sentir aquele coração diminuto batendo. Parecia rápido e desesperado,
como uma prece sussurrada. Às vezes aproximava a cadeira de balanço do berço e ficava olhando a filha até tarde da noite. Mas hoje seria diferente. Ele tinha que
ir. Tinha um trabalho a fazer. Um trabalho sangrento. Não sabia ao certo se fora até lá simplesmente para se despedir por aquela noite ou também, de certa forma,
para ganhar inspiração ou a aprovação dela. Na sua mente aquilo não fazia muito sentido. Sabia apenas que precisava vê-la e tocá-la antes de ir trabalhar.
McCaleb foi andando pelo píer e desceu os degraus até o cais dos esquifes. Achou o seu Zodiac inflável entre os outros botes e embarcou, abrigando cuidadosamente
a fita de vídeo e o dossiê na proa para que não ficassem molhados. Puxou duas vezes o cordão de partida do motor antes que este pegasse e seguiu pelo canal central
do porto. No porto de Avalon não havia cais para barcos maiores, que ficavam amarrados a bóias enfileiradas, acompanhando a concavidade natural da baía. Como era
inverno, havia poucos barcos no local, mas McCaleb não cortou caminho por entre as bóias. Seguiu pelo canal, como se estivesse dirigindo um carro nas ruas de um
bairro. Ninguém corta caminho pelos gramados; todo mundo fica na pista de rolamento.
Estava frio na água, e McCaleb fechou o zíper do agasalho. Ao se aproximar do Mar que Segue, viu o brilho do televisor por trás das cortinas do salão. Isso significava
que Buddy Leckridge não tinha terminado o serviço a tempo de pegar a última barca e ia passar a noite ali.
McCaleb e Buddy eram sócios no negócio de passeio de barco. Embora o título de propriedade da embarcação estivesse no nome de Graciela, a licença para alugar o barco
e todos os outros documentos relativos ao negócio estavam no nome de Buddy. Os dois haviam se conhecido mais de três anos antes, quando McCaleb ancorara o Mar que
Segue na marina Cabrillo, na baía de Los Angeles, e passara morar a bordo enquanto restaurava a embarcação. Buddy era um vizinho, que morava em um veleiro ancorado
ali perto. Haviam iniciado uma amizade que acabara se transformando em sociedade.
Durante a agitada temporada da primavera e do verão, Buddy dormia quase sempre no barco. Mas durante os períodos calmos geralmente pegava a barca até a cidade e
ficava no seu próprio barco na marina Cabrillo. Parecia conseguir encontrar mais companhias femininas nos bares da cidade do que nos poucos lugares semelhantes que
havia na ilha. McCaleb presumiu que ele fosse voltar para a cidade pela manhã, pois não tinham passeios marcados nos próximos cinco dias.
Encostou o Zodiac na popa do Mar que Segue e desligou o motor. Saltou carregando a fita de vídeo e o dossiê. Prendeu o Zodiac num gancho na popa e caminhou para
a porta do salão. Buddy estava lá, esperando, pois tinha ouvido o Zodiac ou sentido o pequeno choque na popa. Abriu a porta corrediça, segurando junto à perna um
livro de bolso. McCaleb deu uma olhada para a televisão, mas não conseguiu reconhecer o programa que ele estava vendo.
- Qual é, Terror? - perguntou Buddy.
- Nada. Preciso trabalhar um pouco, só isso. Vou usar a cabine da frente, está bem?
Entrou no salão. Estava quente ali. Buddy tinha o aquecedor ligado.
- Claro, tudo bem. Posso ajudar em alguma coisa?
- Neca, não é coisa ligada ao nosso negócio.
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- É coisa da mulher que passou por aqui? A que trabalha na polícia do condado?
McCaleb esquecera que Jaye viera primeiro ao barco e obtivera o endereço dele com Buddy. -É.
- Está trabalhando num caso dela?
- Não - disse McCaleb rapidamente, na esperança de limitar o interesse e o envolvimento de Buddy. - Só preciso olhar uns troços e ligar para ela de volta.
- Que barato, cara.
- Nada demais. E só um favor. O que está vendo na tevê?
- Ah, nada. Um programa sobre uma força-tarefa que persegue piratas de computador. Por quê? Já viu isso?
- Não, mas será que você poderia me emprestar a tevê por um tempinho?
McCaleb levantou a fita. Os olhos de Buddy brilharam.
- Fique à vontade. Coloque a fita ali.
- Hum, aqui não, Buddy. A detetive Jaye me pediu o máximo de sigilo. Trago a tevê de volta assim que tiver acabado.
O rosto de Buddy denunciou seu desapontamento, mas McCaleb não ficou preocupado. Foi até a bancada que separava a cozinha do salão e largou lá o dossiê e a fita.
Desligou o televisor da tomada e soltou-o da moldura que o impedia de cair quando o mar estava agitado. O aparelho tinha um videocassete embutido e era pesado. McCaleb
desceu pela escada estreita e levou-o até o camarote da frente, que fora parcialmente transformado em escritório. Dois lados do aposento tinham camas-beliche. A
de baixo à esquerda fora substituída por uma escrivaninha, e as duas de cima eram usadas para guardar arquivos de antigos casos do FBI - Graciela não queria aquele
material dentro de casa, onde Raymond poderia descobri-lo acidentalmente. O único problema era que McCaleb tinha certeza que Buddy já vasculhara as caixas e examinara
os arquivos. E aquilo o chateava. Era uma espécie de invasão. Já tinha pensado em manter o camarote trancado, mas sabia que isso poderia ser um erro fatal. A única
escotilha de teto no convés inferior ficava no camarote da frente, e aquele acesso não deveria
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ser bloqueado, caso um dia houvesse necessidade de uma evacuação de emergência pela proa.
Pôs o televisor na escrivaninha e ligou a tomada. Quando se virou para subir até o salão e pegar o dossiê e a fita, viu Buddy descendo os degraus, segurando a fita
e folheando o dossiê.
- Ei, Buddy...
- Parece coisa braba, cara.
McCaleb estendeu a mão e fechou o dossiê. Depois o tirou, juntamente com a fita, das mãos de seu sócio de pescaria.
- Só estava dando uma espiada.
- Já disse que é confidencial.
- É, mas nós trabalhamos bem juntos. Que nem antes.
Era verdade que Buddy acabara sendo de grande ajuda quando McCaleb investigara a morte da irmã de Graciela. Mas aquilo fora uma investigação de rua. O caso agora
era simplesmente de revisão. E McCaleb não queria ter alguém olhando por cima de seu ombro.
- Isto aqui é diferente, Buddy. É coisa de uma noite só. Vou apenas dar uma olhada no troço, e pronto. Agora me deixa trabalhar, para que eu não fique aqui a noite
toda.
Buddy não disse nada, e McCaleb não ficou esperando. Fechou a porta do camarote e virou-se para a escrivaninha. Ao olhar para o dossiê de assassinato nas suas mãos,
sentiu uma emoção forte, bem como o surgimento familiar de medo e culpa.
Percebeu que chegara a hora de voltar às trevas. De voltar a explorá-las e conhecê-las. De achar o caminho através delas. Embora estivesse sozinho, balançou a cabeça,
em reconhecimento de que tinha esperado muito tempo por aquele momento.
Capítulo 3
A fita de vídeo tinha uma imagem clara e firme, e a iluminação era boa. Os aspectos técnicos das gravações em vídeo de cenas de crimes haviam melhorado muito desde
os tempos de McCaleb no FBI. Já o conteúdo não mudara. A fita que ele observava mostrava vividamente o quadro mudo de um assassinato. McCaleb finalmente congelou
a imagem e a examinou. O camarote estava silencioso, exceto pelo suave marulhar das águas contra o casco do barco.
No foco central via-se um corpo nu que parecia ser de um homem amarrado com arame. Os braços e pernas estavam presos contra as costas, a tal ponto que o corpo parecia
estar numa posição fetal invertida. O corpo estava de bruços sobre um tapete velho e sujo. O foco era fechado demais para que se pudesse determinar em que tipo de
local o corpo fora encontrado. McCaleb julgou que a vítima fosse um homem baseando-se apenas na massa corporal e na musculatura, porque a cabeça da vítima não era
visível. Um balde de plástico cinzento, desses usados para limpeza, cobria-lhe inteiramente a cabeça. McCaleb viu que um pedaço do arame repuxava os tornozelos,
passava pelas costas entre os braços e mergulhava debaixo da borda do balde, dando a volta ao pescoço da vítima. À primeira vista aquilo parecia um estrangulamento
por ligadura, no qual a alavanca formada pelas pernas e os pés apertava
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o arame em torno do pescoço, causando asfixia. Na realidade, a vítima fora amarrada de tal modo que em última análise causara sua própria morte, quando já não
conseguira manter as pernas dobradas para trás naquela posição extrema.
McCaleb continuou examinando a cena. Uma pequena quantidade de sangue vazara do balde para o tapete, indicando haver algum tipo de ferimento na cabeça.
Recostou-se na velha cadeira, pensando em suas impressões iniciais. Ainda não abrira o dossiê, preferindo primeiro assistir à fita com a cena do crime e estudá-la
o mais detidamente possível, tal como os investigadores haviam visto originalmente o local. Já estava fascinado com o que via. Pressentia uma sugestão ritualística
na cena projetada na tela da tevê. E sentiu novamente o jorro de adrenalina no sangue. Apertou o botão do controle remoto e o vídeo continuou.
O foco afastou-se quando Jaye Winston entrou no enquadramento. McCaleb conseguiu ver um pouco mais do cenário e notou que aquilo parecia ser um pequeno apartamento
ou casa, quase sem móveis.
Coincidentemente, Jaye estava usando a mesma roupa que tinha usado quando fora até sua casa com o dossiê e a fita. Calçara luvas de borracha, puxando as bordas por
cima dos punhos do fclazer. Trazia o emblema de detetive pendurado num cadarço preto em volta do pescoço. Tomou posição à esquerda do homem morto, enquanto seu parceiro,
um detetive que McCaleb não reconheceu, postava-se à direita. Pela primeira vez ouviram-se vozes no vídeo.
"O corpo já foi examinado pelo médico-legista e liberado para a investigação da cena do crime", disse Jaye. "A vítima foi fotografada in situ. Vamos agora retirar
o balde para prosseguir com o exame."
McCaleb sabia que ela estava escolhendo cuidadosamente suas palavras e sua atitude, já pensando no futuro, que incluiria o julgamento de um réu por assassinato,
e no qual a fita da cena do crime seria revista pelo júri. Ela tinha que parecer profissional e objetiva, completamente desligada em termos emocionais do que estava
encontrando ali. Tudo que se desviasse dessa conduta poderia se
transformar num motivo para o advogado de defesa pedir que a fita não fosse considerada como prova.
Jaye estendeu a mão e prendeu o cabelo atrás das orelhas. Depois colocou ambas as mãos sobre os ombros da vítima. Com a ajuda do parceiro, virou o corpo de lado,
voltando a nuca do homem morto para a câmera.
O foco passou sobre o ombro da vítima e se aproximou, enquanto Jaye suavemente soltava a alça do balde do queixo do homem e cuidadosamente o afastava da cabeça.
"Pronto", disse ela.
Mostrou o interior do balde para a câmera - havia sangue coagulado dentro do recipiente - e colocou-o dentro de uma caixa de papelão usada para coletar provas. Depois
virou-se de novo e olhou para a vítima.
Uma fita adesiva cinzenta fora amarrada em torno da cabeça do homem, formando uma mordaça firme ao longo da boca. Os olhos estavam abertos e distendidos - esbugalhados.
Ambas as córneas se encontravam avermelhadas devido à hemorragia, da mesma forma que a pele em torno dos olhos.
"PC", disse o parceiro, apontando para os olhos.
"Kurt", disse Jaye. "Tem áudio aqui."
"Desculpe."
Ela estava mandando o parceiro guardar os seus comentários para si mesmo. Mais uma vez, tomava precauções quanto ao futuro. McCaleb sabia que o parceiro estava mostrando
a hemorragia, ou petéquia conjuntiva, que sempre acompanha o estrangulamento por ligadura. Entretanto aquele tipo de comentário deveria ser feito perante o júri
por um médico-legista, não por um investigador de homicídios.
O cabelo do homem morto, de comprimento médio, estava ensopado de sangue que se acumulara no balde junto ao lado esquerdo do rosto. Jaye começou a apalpar a cabeça,
passando os dedos pelo cabelo do morto à procura da origem do sangue. Finalmente encontrou o ferimento no topo da cabeça. Afastou o cabelo tanto quanto possível
para poder enxergar melhor.
"Barney, feche mais aqui se puder", disse ela.
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A câmera se aproximou. McCaleb viu um ferimento pequeno, redondo, que não parecia ter perfurado o crânio. Sabia que a quantidade de sangue aparente nem sempre batia
com a gravidade do ferimento. Até ferimentos sem grandes conseqüências no couro cabeludo podem produzir muito sangue. Ele teria uma descrição formal e completa do
ferimento no laudo da autópsia.
"Barn, pegue isso aqui", disse Jaye, com a voz subindo um pouco em comparação com o tom monocórdio anterior. "Tem algo escrito, ou coisa assim, na fita da mordaça."
Ela percebera aquilo ao apalpar a cabeça. A câmera se aproximou. McCaleb viu uns rabiscos leves onde a fita passava sobre a boca do homem morto. As letras pareciam
ter sido escritas a tinta, mas a mensagem estava coberta de sangue. Ele conseguiu distinguir o que parecia ser uma palavra na mensagem.
- Cave - leu em voz alta. - Caverna?
Achou que aquilo talvez fosse apenas parte de uma palavra, mas não conseguiu se lembrar de nenhuma palavra maior - a não ser caverna - que contivesse aquelas letras
na mesma ordem.
Congelou o quadro e ficou só observando. Estava fascinado. O que ele via ali o fazia voltar aos seus dias como elaborador de perfis, quando quase todo caso que lhe
era atribuído deixava-o com a mesma pergunta: De que mente sombria e torturada veio isso?
As palavras de um assassino eram sempre importantes e colocavam o caso num plano mais alto. Na maioria das vezes significavam que o assassinato era uma declaração,
uma mensagem transmitida do assassino para a vítima, e depois dos investigadores para o mundo.
McCaleb ficou de pé e estendeu a mão para o beliche superior. Puxou uma das caixas de arquivos antigos e largou-a pesadamente no chão. Levantando rapidamente a tampa,
começou a vasculhar os arquivos à procura de um caderno com algumas páginas ainda em branco. Fora sempre um ritual seu, quando no FBI, começar cada caso que lhe
era atribuído com um novo caderno em espiral. Finalmente chegou a um arquivo que continha apenas um formulário de solicitação de auxílio e um caderno. Um arquivo
com tão
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poucos documentos significava um caso curto, e o caderno deveria conter muitas páginas em branco.
Folheou o caderno e viu que estava quase sem uso. Pegou então o formulário Solicitação de Auxílio do FBI e leu rapidamente a folha de rosto para ver de que caso
se tratava. Lembrou-se imediatamente, porque aquilo fora resolvido com um único telefonema. A solicitação tinha vindo de um detetive da pequena cidade de White Elk,
no estado de Minnesota, quase dez anos antes, quando McCaleb ainda trabalhava na sede de Quantico. O relatório do investigador dizia que dois homens bêbados haviam
iniciado uma briga na casa que compartilhavam, desafiado um ao outro para um duelo e se assassinado mutuamente com tiros simultâneos dados a dez metros de distância,
no quintal da casa. O detetive não precisava de auxílio naquele caso de duplo homicídio, porque tudo estava claro como água. Contudo estava intrigado com outra coisa.
Durante uma busca na casa das vítimas, os investigadores haviam encontrado algo estranho no freezer do porão. Empurrados para um canto do freezer, havia dúzias e
dúzias de absorventes femininos usados. Eram de diversos fabricantes e marcas, e os testes preliminares de uma amostra do material haviam identificado sangue menstrual
originário de várias mulheres diferentes.
O detetive encarregado do caso não sabia o que tinha em mãos, mas temia o pior. Queria da Unidade de Ciências Comportamentais do FBI uma idéia do que aqueles absorventes
poderiam significar e do procedimento que ele deveria adotar. Mais especificamente, queria saber se os absorventes poderiam ser suvenires guardados por um ou dois
assassinos seriais, e que só haviam sido descobertos quando eles se mataram mutuamente.
McCaleb sorriu ao lembrar-se do caso. Já havia encontrado absorventes femininos em um freezer antes. Telefonara para o detetive e fizera-lhe três perguntas. Como
aqueles homens ganhavam a vida? Além das armas de fogo usadas no duelo, haviam sido encontradas no apartamento quaisquer armas longas ou uma licença para caçar?
E, por fim, quando começara a temporada de caça nos bosques ao norte de Minnesota?
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As respostas do investigador resolveram rapidamente o mistério dos absorventes. Ambos os homens trabalhavam numa empresa de limpeza para aviões comerciais no aeroporto
de Minneapolis. Haviam sido encontrados vários fuzis de caça na casa, mas nenhuma licença para caçar. E a temporada de caça a ursos só começaria dali a três semanas.
McCaleb dissera ao detetive que aparentemente os homens não eram assassinos seriais, mas provavelmente vinham reunindo o conteúdo dos recipientes onde eram jogados
os absorventes nos sanitários dos aviões em que faziam a limpeza. Levavam os absorventes para casa e os congelavam. Quando começava a temporada de caça, provavelmente
descongelavam os absorventes e os usavam como isca para os ursos, que conseguem detectar o cheiro de sangue a grande distância. A maioria dos caçadores usa restos
de comida como isca, mas nada se compara a sangue.
McCaleb recordava que o tal detetive tinha parecido desapontado, vendo que não tinha em mãos o caso de um ou dois assassinos seriais. Talvez houvesse ficado envergonhado
de que um agente do FBI, sentado à uma mesa em Quantico, houvesse resolvido tão rapidamente aquele mistério, ou então estivesse simplesmente aborrecido com o fato
de que não haveria uma corrida da mídia para cobrir o caso. O sujeito desligara abruptamente e nunca mais telefonara para ele.
McCaleb arrancou do caderno as poucas páginas com anotações do caso, colocou-as no arquivo com o formulário de solicitação de auxílio e repôs o arquivo no lugar.
Depois colocou a tampa na caixa e ergueu-a de volta à prateleira que era o beliche superior. Empurrou a caixa para o lugar que ocupava antes, fazendo-a bater com
força na parede.
Sentando-se novamente, olhou para a imagem congelada na tela do televisor. Depois examinou a página em branco do caderno e finalmente pegou a caneta no bolso da
camisa. Quando ia começar a escrever, a porta do camarote se abriu subitamente e Buddy Lockridge apareceu ali parado. -Tudo bem?
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- O quê?
Ouvi um barulho. O barco inteiro balançou.
- Está tudo bem, Buddy. Eu só...
- Porra, que diabo é isso?
Ele estava olhando para a tela da tevê. McCaleb levantou imediatamente o controle remoto e apagou a imagem.
- Buddy, olhe aqui, eu disse que isto é confidencial, e não posso...
- Tá legal, eu sei. Só vim ver se você não tinha desmaiado ou coisa assim.
- Ótimo, obrigado, mas eu estou bem.
Ainda vou ficar acordado durante algum tempo, se precisar de alguma coisa.
Não vou precisar, mas obrigado.
Está gastando muita energia, sabia? Vai ter que ligar o gerador amanhã depois que eu for embora.
- Não tem problema. Eu faço isso. A gente se vê depois, Buddy. Buddy apontou para a tela da tevê, agora apagada.
- Que coisa esquisita.
Tchau, Buddy - disse McCaleb, impaciente. Levantou-se e fechou a porta com Buddy ainda parado ali, mas dessa vez a trancou. Depois voltou à cadeira e ao caderno.
Começou a escrever e dentro de poucos minutos tinha elaborado uma lista:
CENA
1. Ligadura
2. Nu
3. Ferimento na Cabeça l
4. Fita/Mordaça-"Cave"?
5. Balde?
Examinou a lista durante alguns instantes, à espera de uma idéia qualquer, mas nada surgiu. Era cedo demais. Instintivamente, McCaleb sabia que as palavras na fita
adesiva eram uma chave que ele não poderia girar antes de ter a mensagem completa. Lutou contra a vontade de abrir o dossiê de assassinato e mergulhar no assunto.
Em vez disso, ligou de novo o televisor e começou a passar
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a fita do ponto em que tinha parado. A câmera focalizava de perto a boca do homem morto e a fita adesiva esticada ao longo dela.
"Vamos deixar isso para o legista", disse Jaye. "Já pegou tudo que podia disso, Barn?"
"Peguei", disse o operador de vídeo, sem ser visto. "Tá legal, vamos voltar e examinar a amarração." A câmera foi seguindo o arame desde o pescoço até os pés. O
fio enrolava-se em torno do pescoço e passava num nó corrediço. Seguia depois pela coluna vertebral até dar várias voltas em torno dos tornozelos, que haviam sido
puxados tanto para trás que os calcanhares da vítima estavam encostados na bunda.
Os pulsos estavam amarrados com um pedaço separado de arame, o qual fora enrolado seis vezes e depois arrematado com um nó. As amarras deixavam marcas profundas
na pele dos pulsos e dos tornozelos, indicando que a vítima lutara durante algum tempo antes de finalmente sucumbir.
Quando a filmagem do corpo foi completada, Jaye mandou o operador oculto fazer uma tomada completa de todos os aposentos do apartamento.
A câmera afastou-se do corpo e focalizou o restante do espaço da sala de estar/jantar. A casa parecia mobiliada com móveis de segunda mão. Não havia uniformidade,
e nenhuma das peças combinava com as outras. Os poucos quadros pendurados nas paredes pareciam ter vindo de um quarto da cadeia de hotéis Howard Johnson dez anos
antes - eram todos em tom pastel, alaranjados e azul-esverdeados. Na extremidade mais afastada do aposento via-se uma cristaleira alta, sem louça alguma dentro.
Algumas prateleiras continham livros, mas a maioria estava vazia. Em cima da cristaleira havia algo que McCaleb achou curioso: uma coruja de uns sessenta centímetros
de altura, que parecia ter sido pintada a mão. Ele já vira muitas daquelas corujas antes, principalmente no porto de Avalon e na marina Cabrillo. Quase sempre eram
feitas de plástico oco e colocadas no alto de mastros ou na ponte de comando de lanchas, geralmente numa tentativa malsucedida de afastar gaivotas e outros pássaros
das embarcações. Teoricamente, a coruja seria vista
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como um predador pelas outras aves, que assim ficariam longe e deixariam os barcos livres de suas fezes.
McCaleb também já vira aquelas corujas usadas no exterior de prédios públicos, onde os pombos eram um problema. Mas ficou interessado ao ver a coruja de plástico
naquele local por nunca ter visto ou ouvido falar de nenhuma usada dentro de uma residência particular, fosse como ornamento, fosse com outro objetivo. Sabia que
as pessoas colecionam todo tipo de coisa, inclusive corujas, mas nunca vira nenhuma em um apartamento a não ser aquela ali, postada no centro da cristaleira. Abriu
rapidamente o dossiê e achou o laudo de identificação da vítima. Dizia que o sujeito era pintor de paredes. McCaleb fechou o dossiê. Pensou que a vítima talvez tivesse
trazido a coruja de um local de trabalho ou que a tivesse retirado de alguma estrutura que estivesse se preparando para pintar.
Fez a fita recuar, e viu novamente o operador da câmera passar do corpo para a cristaleira onde estava pousada a coruja. Pareceulhe que a câmera fizera um giro de
180 graus, e isso significava que a coruja estaria diretamente diante da vítima, lançando o olhar sobre a cena do crime.
Embora houvesse outras possibilidades, seu instinto lhe dizia que a coruja de plástico era, de certa forma, parte da cena do crime. Pegou o caderno e colocou a coruja
como a sexta anotação da lista.
O restante da gravação da cena do crime atraiu pouca atenção de McCaleb. Registrava os demais aposentos do apartamento da vítima - o quarto, o banheiro e a cozinha.
Ele não viu outras corujas e não fez mais anotações. Quando chegou ao final da fita, rebobinou-a e assistiu a tudo novamente, mas nada de novo chamoulhe a atenção.
Ejetou a fita e meteu-a no invólucro de cartolina. Depois carregou a tevê de volta para o salão, prendendo-a no suporte sobre a bancada.
Buddy estava estirado no sofá lendo o tal livro de bolso. Não disse nada, e McCaleb percebeu que ele se ofendera ao ter a porta do escritório fechada e trancada
na sua cara. Pensou em pedir desculpas, mas decidiu deixar por isso mesmo. Buddy era muito
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intrometido acerca do passado e do presente dele. Talvez aquela rejeição o fizesse perceber isso.
- O que está lendo? - perguntou, em vez de pedir desculpas.
- Um livro - respondeu Buddy, sem levantar os olhos. McCaleb sorriu para si mesmo. Tinha certeza que Buddy sentira o golpe.
- Bom, aí está a tevê, se quiser ver o noticiário ou outra coisa qualquer.
- O noticiário já era.
McCaleb olhou para o relógio. Meia-noite. Não tinha sentido o tempo passar. Isso lhe acontecia muito. Quando estava no FBI, era bastante comum ficar trabalhando
durante a hora do almoço ou entrar pela noite sem perceber, sempre que estava mergulhado a fundo num caso.
Deixou Buddy emburrado ali e voltou ao escritório. Fechou a porta de novo ruidosamente, e a trancou.
Capítulo 4
Depois de virar uma nova folha em branco no caderno, McCaleb abriu o dossiê do assassinato. Soltou as argolas e tirou os documentos, empilhando-os cuidadosamente
na escrivaninha. Era um pequeno cacoete: não gostava de fazer a revisão de um caso virando as páginas como num livro. Gostava de segurar nas mãos os relatórios individuais.
Gostava de acertar os cantos da pilha inteira. Pôs a pasta de lado e começou a ler cuidadosamente, em ordem cronológica, os resumos investigativos. Dentro em pouco
estava completamente imerso na investigação.
O relato de homicídio chegara de forma anônima à recepção da subdelegacia de West Hollywood, do gabinete do xerife de Los Angeles, ao meio-dia de segunda-feira,
1 de janeiro. A pessoa que ligara tinha dito que havia um homem morto no apartamento 2B do Edifício Grand Royale, na avenida Sweetzer, perto de Melrose. Desligara
sem dar o nome ou qualquer outra mensagem. Como chegara por uma das linhas da recepção que não eram de emergência, o relato não fora gravado, e o aparelho não dispunha
de identificador de chamadas.
Dois patrulheiros foram destacados para o apartamento e encontraram a porta da frente entreaberta. Sem obter resposta quando bateram e chamaram, os policiais entraram
no apartamento, percebendo rapidamente que o informante anônimo tinha feito
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um relato preciso. Havia um homem morto no recinto. Os policiais saíram do apartamento, e a equipe da Homicídios fora convocada, sendo encarregados do caso os parceiros
Jaye Winston e Kurt Mintz, com Jaye na chefia.
A vítima era identificada nos relatórios como Edward Gunn, um pintor de paredes itinerante de quarenta e quatro anos. Morava sozinho no apartamento da avenida Sweetzer
havia nove anos.
Uma pesquisa por computador em busca de registros criminais ou atividades criminosas conhecidas revelara que Gunn tinha um passado de condenações por pequenos delitos,
que iam desde o aliciamento de prostitutas e vadiagem até prisões repetidas por bebedeiras em público e dirigir alcoolizado. Fora preso duas vezes por dirigir bêbado
nos três meses anteriores à sua morte, inclusive na noite de 30 de dezembro. Pagara fiança no dia 31 e fora solto. Menos de vinte e quatro horas depois, estava morto.
Os relatórios também mostravam uma prisão por um crime sério, sem condenação subseqüente. Seis anos antes Gunn fora levado preso pelo Departamento de Polícia de
Los Angeles e interrogado sobre um homicídio. Fora solto mais tarde, sem sequer ter sido indiciado.
De acordo com os relatórios investigativos incluídos por Jaye Winston e seu parceiro no dossiê de assassinato, não havia sinais de roubo no apartamento de Gunn ou
no corpo da própria vítima, afastando a hipótese de latrocínio. Outros residentes do prédio de seis apartamentos haviam dito que nada de anormal fora ouvido no apartamento
de Gunn na véspera do Ano-Novo. Qualquer som que pudesse ter saído do apartamento durante o assassinato provavelmente tinha sido abafado pelo barulho de uma festa
dada por um inquilino que morava embaixo de Gunn. A festa entrara pela manhã do dia
1 de janeiro. Gunn, segundo diversos participantes da festa que haviam sido
entrevistados, não comparecera ao evento e não fora convidado.
Uma busca na vizinhança, formada principalmente por pequenos prédios semelhantes ao Grand Royale, não produzira testemunhas que recordassem ter visto Gunn nos dias
anteriores à morte dele.
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Tudo indicava que o criminoso tinha ido atrás de Gunn. A ausência de danos nas portas e janelas do apartamento mostrava que não houvera arrombamento e que era muito
possível que Gunn conhecesse seu assassino. Pensando nisso, Jaye e Mintz haviam interrogado todos os colegas e conhecidos da vítima, bem como todos os inquilinos
e pessoas que haviam comparecido à festa no andar de baixo, num esforço para apontar um suspeito. O resultado fora nulo.
Eles também haviam conferido todos os registros financeiros da vítima, procurando uma pista que indicasse uma motivação pecuniária, sem encontrar nada. Gunn não
tinha emprego fixo. Tinha como base uma loja de pinturas e decoração de interiores no bulevar Beverly, onde oferecia seus serviços a clientes na base de diárias.
Vivia ao Deus dará, ganhando o estritamente necessário para pagar e manter o apartamento, além de uma pequena picape na qual transportava o material de pintura.
Tinha um único parente vivo, uma irmã que morava em Long Beach. Na ocasião de sua morte, não se viam havia mais de um ano, embora houvesse telefonado para ela na
véspera da desgraça, de uma cela da delegacia do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estava ali porque o pegaram dirigindo bêbado. A irmã tinha relatado que
dissera ao irmão que não podia mais continuar a ajudá-lo, pagando as fianças dele. Desligara. E não pudera fornecer aos investigadores qualquer informação útil relativa
ao assassinato do irmão.
O incidente pelo qual Gunn tinha sido preso seis anos antes fora meticulosamente reexaminado. Ele matara uma prostituta num quarto de hotel do Sunset Boulevar. Usara
a faca da própria mulher para apunhalá-la quando ela tentara feri-lo e roubá-lo, segundo seu depoimento no relatório apresentado pela Divisão de Hollywood do Departamento
de Polícia de Los Angeles. Havia pequenas inconsistências entre o depoimento original de Gunn aos policiais da patrulha chamada ao local e as provas físicas, mas
que não eram suficientemente fortes para que o promotor público o indiciasse. Embora de modo relutante, o caso acabara sendo considerado legítima defesa e arquivado.
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McCaleb observou que o investigador-chefe do caso fora o detetive Harry Bosch. Já havia trabalhado com Bosch num caso antigo, uma investigação em que ainda pensava
com freqüência. Bosch se mostrara ríspido e misterioso às vezes, mas mesmo assim era um bom policial, com grande talento, intuição e instinto de investigador. Na
realidade, os dois se viram de certa forma ligados, devido ao torvelinho emocional no qual o caso os mergulhara. McCaleb anotou o nome de Bosch no caderno como um
lembrete, a fim de telefonar para o detetive e ver se ele tinha alguma idéia sobre o caso de Gunn.
Voltou à leitura dos sumários. Tendo em mente o registro anterior do envolvimento de Gunn com uma prostituta, o passo seguinte de Jaye Winston e Mintz fora vasculhar
os registros telefônicos da vítima, bem como compras com cheques e cartões de crédito, procurando indicações de que talvez Gunn houvesse continuado a procurar prostitutas,
mas nada haviam encontrado. Durante três noites, haviam percorrido o Sunset Boulevar com uma equipe da Delegacia de Costumes do Departamento de Polícia de Los Angeles,
parando e entrevistando prostitutas de rua. Contudo nenhuma delas admitira conhecer o homem das fotos que a irmã de Gunn emprestara aos detetives.
Os investigadores haviam pesquisado os anúncios de serviços sexuais nos jornais alternativos locais, à procura de algum anúncio que Gunn pudesse ter colocado. Mas
isso também não os ajudou em nada.
Finalmente a investigação lançara-se ao recurso, com pequena probabilidade de êxito, de rastrear a família e as ligações da prostituta morta seis anos antes. Embora
Gunn jamais houvesse sido acusado da morte da mulher, ainda havia a chance de que alguém houvesse acreditado que ele não agira em legítima defesa - alguém que poderia
querer se vingar.
Mas isso também se mostrara um beco sem saída. A família da mulher era da Filadélfia e perdera contato com ela muitos anos antes. Nenhum parente chegara a reclamar
o corpo antes que este fosse cremado à custa dos contribuintes do condado. Não havia razão para que alguém buscasse vingança por uma morte ocorrida
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seis anos antes, se para começar ninguém se importara muito com
essa morte.
O caso estancara num beco sem saída após outro. Um caso não resolvido nas primeiras quarenta e oito horas tinha menos de cinqüenta por cento de chances de ser esclarecido.
Depois de duas semanas a coisa se assemelhava a um cadáver anônimo no necrotério - ficava lá, no frio e no escuro, por muito, muito tempo.
E fora por isso que Jaye finalmente recorrera a McCaleb. Ele era o último recurso para um caso sem esperança de solução.
Terminada a leitura dos sumários, McCaleb decidiu fazer uma parada. Olhou para o relógio e viu que eram quase duas horas da manhã. Abriu a porta da cabine e subiu
para o salão. As luzes estavam apagadas. Aparentemente Buddy fora dormir na cabine principal, sem fazer barulho. McCaleb abriu a geladeira e examinou seu conteúdo.
Havia um pacote de cervejas que sobrara do passeio, mas ele não queria aquilo. Tinha também um pacote de suco de laranja e água mineral. Pegou a água e passou para
o convés pela porta do salão. Sempre fazia frio no mar, mas a temperatura estava mais baixa ainda do que o habitual. Cruzou os braços sobre o peito e ergueu o olhar
sobre a baía até a casa na colina onde sua família dormia. Apenas uma luz solitária brilhava no pátio dos fundos.
Uma ligeira pontada de culpa perpassou-lhe a alma. Ele sabia que, apesar de seu profundo amor pela mulher e pelas duas crianças atrás daquela luz, preferia estar
ali no barco com o dossiê de assassinato do que lá em cima na casa adormecida. Tentou afastar aqueles pensamentos e as questões por eles suscitadas, mas não podia
esconder inteiramente de si mesmo a conclusão essencial de que havia algo de errado com ele, alguma coisa que lhe faltava. Era algo que o impedia de abraçar plenamente
aquilo pelo qual a maioria dos homens parecia ansiar.
Voltou a entrar no barco. Sabia que se mergulhasse na leitura dos relatórios do caso a culpa desapareceria.
O laudo da autópsia não continha surpresas. A causa da morte fora o que McCaleb previra ao ver a fita: hipoxia cerebral devido à compressão das artérias carótidas
por estrangulamento de ligadura.
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A hora da morte fora estimada entre meia-noite e três da madrugada do dia
1de janeiro. O médico-legista que fizera a autópsia observara que os danos interiores no pescoço eram mínimos. Nem o osso hióide nem a cartilagem tiroidiana estavam
quebrados.
Esse aspecto, juntamente com os sulcos múltiplos de ligadura na pele, haviam levado o legista a concluir que Gunn sufocara vagarosamente, enquanto lutava desesperadamente
para manter os pés atrás das costas, de modo que o laço de arame não lhe apertasse o pescoço. A conclusão da autópsia sugeria que a vítima talvez tivesse lutado
naquela posição por umas duas horas.
McCaleb ficou pensando nisso, imaginando que o assassino talvez houvesse permanecido no apartamento durante todo o tempo, observando a agonia do homem. Ou talvez
houvesse amarrado a vítima e partido antes que esta estivesse morta, possivelmente colocando em prática algum plano de álibi - como aparecer numa festa de Ano-Novo,
a fim de que diversas testemunhas garantissem tê-lo visto na hora da morte da vítima.
Lembrou-se então do balde e concluiu que o assassino permanecera no local. Cobrir o rosto da vítima era algo freqüente em assassinatos com motivação sexual ou ódio.
O agressor cobria o rosto da vítima como meio de desumanizá-la e evitar o contacto visual. McCaleb já trabalhara em dezenas de casos onde observara esse fenômeno:
mulheres estupradas e assassinadas com camisolas ou fronhas cobrindo o rosto ou crianças com a cabeça envolvida em toalhas. Ele poderia elaborar uma lista de exemplos
que encheriam um caderno inteiro. Em vez disso, escreveu uma linha na página embaixo do nome de Bosch.
SUDES estava lá o tempo todo. Ficou assistindo.
O sujeito desconhecido, pensou McCaleb. Mais uma vez nos encontramos.
Antes de continuar, folheou o laudo da autópsia à procura de duas informações. Primeiro, o ferimento na cabeça. Encontrou
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uma descrição do ferimento nos comentários do legista. A laceração perimortem era circular e superficial. O dano causado fora mínimo e possivelmente tratava-se de
um ferimento defensivo.
McCaleb achava impossível que aquele ferimento fosse defensivo. O único sangue no tapete na cena do crime era o que caíra do balde depois que este fora colocado
sobre a cabeça da vítima. Além do mais, o sangue do ferimento no alto da cabeça fluíra na direção da face e escorrera sobre esta. Isso mostrava que a cabeça estava
inclinada para a frente. Levando tudo isso em conta, McCaleb concluiu que Gunn já estava amarrado e caído no chão quando o golpe foi desferido na sua cabeça e quando
esta foi coberta pelo balde. Seu instinto lhe dizia que aquilo talvez houvesse sido um golpe desfechado com a intenção de apressar o fim da vítima; um impacto na
cabeça que enfraqueceria a vítima e abreviaria sua luta contra o enforcamento.
Anotou essas impressões no caderno e voltou à leitura do laudo da autópsia. Localizou o que fora descoberto no exame do ânus e do pênis. O material colhido indicava
não ter havido atividade sexual no período antes da morte. McCaleb escreveu Sem Sexo no caderno. Embaixo anotou a palavra Raiva e fez um círculo em torno dela.
Sabia que Jaye Winston provavelmente já chegara a grande parte - e talvez ao total - das suspeitas e conclusões que ele estava levantando ali. Entretanto aquela
sempre fora a sua rotina no exame de cenas do crime. Primeiro ele fazia sua própria avaliação e depois olhava para ver como aquilo se portava face às conclusões
dos investigadores iniciais.
Depois da autópsia, passou para os relatórios referentes às provas. Primeiro examinou a lista de provas materiais coletadas e verificou que a coruja de plástico
que vira na fita não fora empacotada e etiquetada. Sabia que isso deveria ter sido feito e anotou uma observação sobre o fato. Também faltava na lista qualquer menção
sobre a recuperação de uma arma. Aparentemente, fosse qual fosse o objeto usado para abrir o ferimento no couro cabeludo de Gunn, tinha sido levado da cena pelo
assassino. McCaleb anotou isso
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também, pois tratava-se de outra informação sobre o perfil do assassino, que parecia alguém organizado, meticuloso e cauteloso. O relatório sobre a análise da fita
adesiva usada para amordaçar a vítima estava arquivado em um envelope separado, que McCaleb encontrou numa das divisões do dossiê. Além de um relato impresso e um
adendo, havia diversas fotografias que mostravam o comprimento total da fita depois que esta fora cortada e retirada do rosto e da cabeça da vítima. O primeiro conjunto
de fotografias revelava a parte dianteira e traseira da fita como esta fora encontrada, com uma quantidade significativa de sangue coagulado tapando a mensagem escrita.
O grupo seguinte mostrava a fita, pela frente e por trás, depois que o sangue fora removido com água e sabão. McCaleb ficou olhando para a mensagem por muito tempo,
embora soubesse que nunca poderia decifrá-la por conta própria.
Cave Cave Dus Videt
Pôs finalmente as fotografias de lado e pegou os relatórios que as acompanhavam. Descobriu que a fita não continha impressões digitais, mas vários pêlos e fibras
microscópicas haviam sido colhidas do lado adesivo. Fora verificado que os pêlos eram da vítima. As fibras haviam sido preservadas, à espera de ordens posteriores
para análise. McCaleb sabia que isso significava que havia restrições de tempo e dinheiro. As fibras só seriam analisadas quando a investigação chegasse a um ponto
em que houvesse fibras pertencentes a um suspeito qualquer que também pudessem ser analisadas e comparadas. Caso contrário, a análise das fibras, cara e demorada,
não valeria para nada. McCaleb já vira esse tipo de priorização investigativa antes. Era uma rotina das autoridades locais não tomar medidas caras até que isso fosse
necessário. Mas ficou um pouco surpreso ao ver que isso não tinha sido considerado necessário no caso em pauta. Concluiu que o passado de Gunn como suspeito anterior
de um crime poderia tê-lo relegado a vítima de segunda classe, para a qual esse tipo de providência não era tomada. Talvez, pensou ele, houvesse sido por aquele
motivo que Jaye Winston viera procurá-lo. Ela não dissera nada sobre pagá-lo pelas
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horas gastas com o caso - e de qualquer forma ele não poderia aceitar qualquer pagamento.
McCaleb passou para o relatório em adendo, que fora elaborado por Jaye. Ela levara uma fotografia da fita adesiva e da mensagem a um professor de lingüística da
Universidade da Califórnia, Los Angeles, que identificara as palavras como latinas. Depois procurara um padre católico aposentado, que morava na reitoria da igreja
de St. Catherine, em Hollywood, e ensinara latim por vinte anos na escola paroquial antes que a matéria fosse retirada do currículo escolar no início da década de
1970. Ele traduzira facilmente a mensagem para Jaye.
Cave Cave Dus Videt Cave Cave D(omin)us Videt Cuidado Cuidado Deus Vê
- Santa merda - disse McCaleb baixinho, para si mesmo.
Isso não foi dito como uma exclamação. Mais exatamente, era a frase que ele e seus colegas que elaboravam perfis de criminosos no FBI usavam para classificar informalmente
os casos em que assuntos religiosos faziam parte das provas. Quando se descobria que Deus era parte da provável motivação para um crime, o caso era mencionado como
uma "santa merda" em conversas informais. O fato também alterava significativamente as coisas, pois o trabalho de Deus nunca terminava. Quando um assassino andava
à solta usando o nome Dele como parte de sua marca num crime, com freqüência havia mais crimes. Dizia-se, nos escritórios de perfil do FBI, que os assassinos de
Deus nunca paravam por sua própria vontade. Precisavam ser detidos. McCaleb entendia agora a apreensão de Jaye Winston em deixar que o caso caísse no esquecimento.
Se Edward Gunn era a primeira vítima conhecida, havia mais alguém na mira do assassino naquele exato momento.
McCaleb copiou a tradução da mensagem do assassino e algumas outras impressões. Escreveu Aquisição de Vítimas e sublinhou a expressão duas vezes.
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Olhou de novo para o relatório de Jaye e percebeu que no final da página onde se encontrava a tradução havia um parágrafo assinalado com um asterisco.
* O padre Ryan declarou que a palavra "Dus", como vista na fita adesiva, era uma forma abreviada de "Deus" ou "Dominus", encontrada principalmente nas bíblias medievais,
bem como em baixos-relevos de igrejas e outras peças artísticas.
McCaleb recostou-se na cadeira e bebeu água da garrafa. Achava que o parágrafo final era o mais interessante de todo o conjunto. A informação ali contida poderia
ser um meio pelo qual o assassino talvez pudesse ser isolado em um pequeno grupo e depois encontrado. Inicialmente, o conjunto de suspeitos era muito grande - incluía
essencialmente qualquer um que houvesse tido acesso a Edward Gunn na véspera de Ano-Novo. Mas a informação do padre Ryan reduzia o elenco significativamente, passando
a ser suspeito apenas quem tivesse conhecimento de latim medieval ou quem houvesse tirado a palavra Dus, e possivelmente toda a mensagem, de algo que vira. Talvez
algo numa igreja.
Capítulo 5
McCaleb estava muito excitado com tudo o que tinha lido e visto para pensar em dormir. Eram quatro e meia da manhã, e ele sabia que terminaria a noite acordado ali
no escritório. Provavelmente ainda era cedo demais em Quantico, Virginia, para que alguém já estivesse na Unidade de Ciências Comportamentais, mas decidiu telefonar
assim mesmo. Foi até o salão, tirou o telefone celular do carregador de bateria e teclou o número de memória. Quando a telefonista geral atendeu, ele pediu para
a ligação ser transferida para a mesa da agente especial Brasília Doran. Poderia falar com muita gente ali, mas escolheu Brasília porque eles haviam sido bons colegas
- e muitas vezes a grande distância um do outro - quando ele estava no FBI. Brasília também era especializada na identificação e simbologia de ícones.
O telefonema foi atendido por uma secretária eletrônica. Enquanto ouvia a mensagem de Brasília, McCaleb tentou rapidamente decidir se deixava uma mensagem ou simplesmente
telefonaria outra vez. Inicialmente, achou que seria melhor desligar e tentar falar ao vivo com ela mais tarde, porque um telefonema pessoal é muito mais difícil
de ser ignorado do que uma mensagem gravada. Contudo depois decidiu acreditar na antiga camaradagem dos dois, embora ele já estivesse afastado do FBI há cinco anos.
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- Brass, é Terry McCaleb. Há quanto tempo não nos vemos... Escute, estou telefonando porque preciso de um favor. Pode ligar de volta logo que tiver tempo? Eu gostaria
muito.
Deu o número do seu telefone celular, agradeceu e desligou. Podia levar o telefone para casa e esperar a chamada, mas lá Graciela poderia ouvir a conversa dele com
Brasília Doran, e isso ele não queria. Voltou ao camarote dianteiro e começou a reler os documentos do dossiê de assassinato. Conferiu novamente cada uma das páginas,
procurando algo que se destacasse, fosse por inclusão ou exclusão. Tomou mais algumas notas e arrolou as coisas que ainda precisava fazer e saber antes de elaborar
um perfil. Entretanto estava apenas esperando por Brasilia. Finalmente, às cinco e trinta, ela retornou o telefonema.
- Quanto tempo mesmo - disse ela, num cumprimento.
- Muito mesmo. Como está, Brass?
- Não posso me queixar, já que ninguém escuta.
- Soube que vocês estão atolados de trabalho.
- Nisso você tem razão. Atolados e estourados. Você sabe que no ano passado nós mandamos metade da equipe para Kosovo a fim de ajudar nas investigações dos crimes
de guerra. Em turnos de seis semanas. Isso simplesmente nos arrasou. Estamos tão atrasados no serviço que a situação está ficando crítica.
McCaleb ficou pensando se ela não estaria lhe passando um aviso de coitadinha-de-mim, para que ele não pudesse pedir-lhe o favor que mencionara no telefonema. Decidiu
ir em frente.
- Bom, então você não vai gostar de falar comigo - disse ele. - Ah, estou tremendo de medo. Do que você precisa, Terry?
- Estou fazendo um favor aqui para a equipe de homicídios do gabinete do xerife. Estou dando uma olhada em um caso de homicídio e...
- Ele já nos contactou?
- E ela. Entrou no programa PCCV e não conseguiu nada. Só isso. Depois ela soube que vocês aí são craques em elaborar perfis de criminosos, e veio me procurar. Eu
devo a ela uma espécie de favor, de modo que disse que daria uma olhada no caso.
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- E agora está querendo furar a fila, não é?
McCaleb sorriu, na esperança de que ela também estivesse sorrindo do outro lado.
- Por aí. Mas acho que é jogo rápido. Só quero uma coisa.
- Então desembuche logo. O que é?
- Preciso de uma pesquisa iconográfica. Estou seguindo um palpite nesse sentido.
- Está bem. Não parece que isso vá me tomar muito tempo.
Qual é o símbolo?
- Uma coruja.
- Uma coruja? Só uma coruja?
- Uma coruja de plástico, na verdade. Mas uma coruja, mesmo assim. Quero saber se isso já pintou por aí antes e o que significa.
- Bom, eu me lembro de uma coruja num saco de batata frita. Qual é aquela marca?
- Wise, sábia. Eu me lembro. É uma marca da Costa Leste. - Pois é. A coruja é esperta. É sábia.
- Brass, eu esperava alguma coisa mais...
- Eu sei, eu sei. Vamos fazer o seguinte... Vou ver o que posso fazer. Mas é bom lembrar que os símbolos mudam. O significado de uma coisa numa determinada época
pode ser algo completamente diferente em outra. Só está procurando empregos e exemplos contemporâneos?
McCaleb pensou um instante sobre a mensagem na fita adesiva.
- Dá pra levar a coisa até a época medieval?
- Parece que você está com um caso estranho... Mas todos são estranhos, não? Deixe-me adivinhar... E um caso de "santa merda"?
- Pode ser. Como percebeu?
- Ah, todos esses troços de Inquisição e igreja na era medieval. Já vi isso antes. Eu tenho o seu telefone. Vou ver se dou retorno
ainda hoje.
McCaleb pensou em pedir que ela fizesse uma análise da mensagem na fita adesiva, mas decidiu não acumular as coisas. Além disso, provavelmente a mensagem fora incluída
na pesquisa por computador feita por Jaye. Ele agradeceu, e estava prestes a desligar, quando ela lhe perguntou como ia a saúde. Ele disse que ia bem.
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- Você ainda mora naquele barco, como ouvi dizer?
- Neca. Estou morando numa ilha agora. Mas ainda tenho o barco. Além de um esposa e uma filhinha pequena.
- Uau! Esse é o Terry "Jantar Com Tevê" McCaleb que eu conhecia?
- O mesmo, acho eu.
- Bom, parece que deu um acerto na sua vida.
- Acho que finalmente consegui.
- Então tenha cuidado. Pra que se meter novamente num caso desses?
McCaleb hesitou.
- Não tenho certeza.
- Não tente me enrolar. Tanto eu quanto você sabemos por que está fazendo isso. Vou ver o que descubro e ligo de volta para você.
- Obrigado, Brass. Vou ficar esperando.
McCaleb foi até o camarote principal e sacudiu Buddy para acordá-lo. O amigo se espantou e começou a agitar os braços desordenadamente.
- Sou eu, sou eu!
Antes de se acalmar, Buddy golpeou McCaleb no lado da cabeça com o livro que estava segurando quando pegou no sono.
- O que está fazendo? - exclamou Buddy.
- Estou tentando te acordar, cara.
- Pra quê? Que horas são?
- São quase seis. Quero levar o barco para o outro lado.
- Agora?
- E, agora. Levante e me ajude. Vou pegar as cordas.
- Cara, agora? A gente vai pegar uma névoa forte. Por que não espera até clarear?
- Porque não tenho tempo.
Buddy estendeu a mão e acendeu a lâmpada de leitura presa à parede da cabine, logo acima da cabeceira. McCaleb viu que o livro que o outro estava lendo era Rastros
da maldade - O canto da sereia.
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- Com toda certeza alguma coisa deu um choque no seu sangue, cara - disse ele, esfregando a orelha atingida pelo livro.
- Desculpe. Mas por que está com tanta pressa de cruzar? E o tal caso, não é?
- Vou subir. Vamos botar o pé na estrada.
McCaleb saiu da cabine. Como já esperava, Buddy chamou-o, dizendo:
- Vai precisar de um motorista?
- Não, Buddy. Você sabe que eu venho dirigindo há dois anos.
- E, mas pode precisar de ajuda nesse caso, cara.
- Eu me viro. Depressa, Bud, quero chegar logo.
McCaleb tirou a chave do gancho perto da porta do salão, saiu e subiu à ponte de comando. O ar ainda estava frio, e pequenos feixes da luz da aurora abriam caminho
na névoa da manhã. Ligou o radar Raytheon e deu a partida nos motores. Pegaram imediatamente - Buddy levara o barco até a marina
del Rey na semana anterior para fazer manutenção.
McCaleb deixou os motores em ponto morto, desceu de novo e foi até a popa. Soltou o cabo do Zodiac e foi puxando o bote inflável até a proa. Amarrou-o no cabo da
bóia de ancoragem depois de soltá-lo do gancho dianteiro, deixando o barco livre. Depois subiu à parte mais alta da proa. Quando olhou para a ponte de comando, viu
Buddy, com o cabelo parecendo um ninho emaranhado devido ao sono, tomando o assento do piloto. McCaleb fez sinal de que a embarcação estava livre. Buddy empurrou
os aceleradores para frente e o Mar que Segue começou a se mover. McCaleb pegou no convés a haste de atracação, de quase três metros, e usou-a para manter a bóia
afastada da proa enquanto o barco girava no canal livre e vagarosamente tomava a direção da entrada da baía.
McCaleb ficou ali, na parte mais alta da proa, encostado na balaustrada, observando a ilha se afastar atrás do barco. Levantou novamente os olhos na direção de sua
casa e viu apenas uma única luz acesa. Era cedo demais para a família estar acordada. Pensou no erro que conscientemente acabara de cometer. Deveria ter ido para
casa e dito a Graciela o que estava fazendo, explicando a coisa.
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Mas sabia que aquilo lhe tomaria um bocado de tempo e que nunca encontraria uma explicação que a satisfizesse. Decidiu simplesmente ir em frente. Telefonaria para
a esposa após a travessia e arcaria com as conseqüências de sua decisão mais tarde.
A aurora tinha um tom acinzentado como o de um tubarão, e o ar frio esticara a pele de seus braços e de seu pescoço. Ele se virou ali na proa e lançou o olhar sobre
a baía, para o ponto onde sabia que ficava a cidade escondida pela névoa. A sensação de não conseguir enxergar o que sabia estar lá era sinistra, e ele baixou o
olhar. A água cortada pela proa parecia lisa, de um tom azul-negro como um marlim. McCaleb sabia que precisava subir à ponte de comando para auxiliar Buddy. Um deles
pilotaria a embarcação, enquanto o outro mantinha os olhos na tela do radar a fim de mapear uma trajetória segura até o porto de Los Angeles. Era uma pena, pensou,
que não houvesse um radar que ele pudesse usar quando chegasse à terra de novo e tentasse achar seu caminho naquele caso que o fisgara. Um nevoeiro de tipo diferente
o esperava lá. E foram esses pensamentos, ao tentar enxergar o caminho adiante, que o levaram a recordar aquilo que o intrigara tão profundamente naquele caso.
Cuidado Cuidado Deus Vê
As palavras giravam na sua cabeça como um mantra recém-descoberto. Naquela névoa espessa ali na frente, havia alguém que escrevera aquelas palavras. Alguém que agira
segundo aquelas palavras de forma extremada pelo menos uma vez, e que provavelmente faria isso de novo. McCaleb estava indo encontrar essa pessoa. E ao fazê-lo,
pensou, estaria agindo segundo as palavras de quem? Havia um verdadeiro Deus enviando-o nessa jornada?
Sentiu um toque no ombro e virou-se sobressaltado, quase deixando cair a haste de atracação por cima da balaustrada. Era Buddy.
-Jesus Cristo, cara, não faça isso!
- Você está bem?
- Eu estava até você me pregar esse baita susto. O que está fazendo? Devia estar pilotando.
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McCaleb deu uma olhada por cima do ombro para verificar se eles estavam afastados das bóias sinalizadoras e já no centro da baía.
- Sei lá - disse Buddy. - Você parecia o capitão Ahab, parado aqui com essa haste. Achei que havia algo de errado. O que está fazendo?
- Estou pensando. Se incomoda? Não me dê um susto como esse de novo, cara.
- Bom, acho que com essa ficamos empatados.
- Vá pilotar o barco, Buddy. Eu subo num minuto. E verifique o gerador... é bom carregar as baterias.
Enquanto Buddy se afastava, McCaleb sentiu seu coração voltar ao compasso normal. Saiu da proa e prendeu a haste de atracação nos grampos do convés. Ao se inclinar,
sentiu a embarcação subir e baixar ao passar por uma onda de um metro e pouco. Endireitou-se e olhou em torno para ver a origem da marola. Mas não viu nada. Talvez
um fantasma deslizando na superfície lisa da baía.
Capítulo 6
Harry Bosch levantou a maleta como um escudo, usando-a para abrir caminho entre a multidão de repórteres e cinegrafistas reunidos diante das portas do tribunal.
- Com licença, por favor, com licença.
A maioria deles só se mexia quando ele os empurrava para o lado com a maleta. Agrupavam-se desesperadamente, estendendo gravadores e câmeras na direção do centro
do nó humano onde o advogado de defesa dava entrevista.
Bosch conseguiu finalmente chegar à porta, onde um policial do escritório do xerife estava encurralado contra a maçaneta. Ele reconheceu Bosch e afastou-se para
o lado a fim de abrir a porta.
- Isso vai acontecer todo dia, sabia? - disse Bosch ao policial.
- Esse cara tem mais a dizer fora do tribunal do que dentro. Vocês deviam pensar em estabelecer certas regras para que as pessoas possam entrar e sair.
Ao passar pela porta, Bosch ouviu o policial dizer que ele mesmo devia falar com o juiz sobre o assunto.
Seguiu pelo corredor central e cruzou o portão que levava à mesa da promotoria. Fora o primeiro a chegar. Puxou a terceira cadeira e sentou-se. Abriu a maleta sobre
a mesa, tirou a pesada pasta azul e colocou-a ali ao lado. Depois abaixou a tampa e os fechos da maleta e colocou-a no chão, ao lado da cadeira.
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Ele estava pronto. Inclinou-se para a frente e cruzou os braços em cima da pasta. O tribunal estava silencioso e quase vazio, exceto pelo auxiliar do juiz e um escrivão
que se preparavam para o dia. Bosch gostava daquelas ocasiões. Era a calmaria antes da tempestade. E ele sabia, sem dúvida, que uma tempestade certamente viria.
Balançou a cabeça silenciosamente. Estava pronto, pronto para dançar com o diabo mais uma vez. Percebia que sua missão na vida girava em torno de momentos como aquele.
Momentos que deveriam ser saboreados e lembrados, mas que sempre causavam uma pontada em suas entranhas.
Ouviu-se um forte ruído metálico, e a porta da cela de detenção lateral foi aberta. Dois policiais fizeram um homem entrar. Ele era jovem e misteriosamente continuava
bronzeado apesar dos quase três meses de prisão. Usava um terno que facilmente cobriria os contracheques semanais dos dois homens que o ladeavam. Suas mãos pendiam
ao lado do corpo, algemadas a uma corrente na cintura que parecia destoar daquele terno azul bem-talhado. Numa das mãos trazia um bloco de desenho. Na outra, tinha
uma caneta hidrográfica, a única espécie de instrumento de escrita permitida na cadeia.
O sujeito foi levado para a mesa da defesa e colocado diante do assento central. Quando as algemas e a corrente foram retiradas, ele sorriu e olhou para a frente.
Um policial pôs a mão no ombro dele, fazendo com que se sentasse. Depois os dois policiais recuaram e tomaram posição em cadeiras atrás do sujeito.
Ele inclinou-se imediatamente para a frente, abriu o bloco e começou a desenhar com a caneta. Bosch ficou observando. Podia ouvir a ponta da caneta riscando furiosamente
o papel.
- Eles não me deixam usar carvão, Bosch. Acredita nisso? Que ameaça pode representar um pedaço de carvão?
Não tinha olhado para Bosch ao dizer aquilo, e Bosch não respondeu.
- São essas coisinhas que mais me chateiam - disse o homem.
- E melhor ir se acostumando - disse Bosch.
O sujeito riu, mas ainda assim não olhou para o detetive.
- Não sei como, mas eu sabia que você ia dizer exatamente isso.
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Bosch ficou calado.
- Você é tão previsível, Bosch, entende? Todos vocês.
A porta dos fundos do tribunal se abriu, e Bosch desviou os olhos do réu. Os advogados de defesa já estavam entrando. Eles estavam prestes a começar.
Capítulo 7
Third Street Promsnade
Quando chegou ao Mercado do Fazendeiro, McCaleb estava meia hora atrasado para o encontro com Jaye Winston. Ele e Buddy haviam feito a travessia em uma hora e meia,
e McCaleb telefonara para a detetive depois de ancorar na marina Cabrillo. Haviam combinado o encontro, mas depois ele viu que a bateria do Cherokee estava descarregada,
pois não usava o carro há umas duas semanas. Tivera de pedir a Buddy que lhe desse uma carona no velho Taurus, e isso tomou tempo.
Entrou no Dupar's, o restaurante na esquina do mercado, mas não viu Jaye em qualquer das mesas, nem no balcão. Torceu para que ela não tivesse vindo e ido embora.
Escolheu uma divisória desocupada que lhe desse o máximo de privacidade e se sentou à mesa. Não precisava olhar para o cardápio. Eles haviam escolhido o Mercado
do Fazendeiro por ser perto do apartamento de Edward Gunn e porque McCaleb queria tomar o café da manhã no Dupar's. Dissera a Jaye que sentia falta das panquecas
do Dupar's mais do que qualquer outra coisa em Los Angeles. Geralmente ele, Graciela e as crianças comiam no Dupar's quando faziam sua ida mensal à cidade para comprar
roupas e suprimentos inexistentes em Catalina. McCaleb sempre pedia panquecas, pouco importando se era o café da manhã, almoço ou jantar. Raymond também. Mas ele
era fã de geléia de amora, enquanto McCaleb ia de xarope de maple.
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McCaleb disse à garçonete que estava esperando outra pessoa, mas pediu um suco de laranja grande e um copo d'água. Depois que a moça trouxe os dois copos, ele abriu
a bolsa de couro e tirou a caixa de plástico com as pílulas. Mantinha um suprimento semanal das pílulas no barco e outro, para apenas dois dias, no porta-luvas do
Cherokee. Preparara a caixa depois de ancorar. Alternando goles de suco de laranja e água, engoliu as vinte e sete pílulas que constituíam sua dosagem matutina.
Sabia o nome de cada uma pela forma, a cor e o gosto; Prilosec, Imuran, Digoxin. Conforme seguia metodicamente a fileira de pílulas, viu uma mulher numa mesa próxima
olhando para ele com expressão de espanto.
Nunca se livraria das pílulas. Para ele aquilo era tão certo quanto a morte e os impostos. Ao longo dos anos algumas seriam trocadas, outras subtraídas e novas acrescentadas,
mas sabia que iria engolir pílulas e lavar aquele gosto terrível com suco de laranja pelo resto da vida.
- Pelo que vejo, você pediu sem me esperar.
Ele ergueu o olhar das três últimas pílulas de ciclosporina que estava prestes a engolir, enquanto Jaye se sentava do lado oposto da mesa.
- Desculpe, estou tão atrasada. O trânsito na rua 10 estava uma merda.
- Tudo bem. Eu também me atrasei. Fiquei sem bateria.
- Quantas dessas pílulas você toma atualmente?
- Cinqüenta e quatro por dia.
- Incrível.
- Tive que transformar um armário no corredor em arca de remédios. O armário inteiro.
- Bom, pelo menos você ainda está aqui.
Ela sorriu, e McCaleb balançou a cabeça. A garçonete aproximou-se da mesa trazendo o cardápio para Jaye, mas a detetive disse que era melhor os dois pedirem logo.
- Vou querer o que ele pedir.
McCaleb pediu uma grande pilha de panquecas com manteiga derretida. Disse à garçonete que eles dividiriam uma porção de bacon bem-passado.
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- Café? - perguntou a moça. Parecia que aquilo era o milionésimo pedido de panquecas que ela já anotara.
- Sim, por favor - disse Jaye. - Sem açúcar. McCaleb disse que para ele bastava o suco de laranja. Depois que ficaram sozinhos, ele olhou para a detetive por
cima da mesa.
- E então, conseguiu contactar o encarregado do prédio?
- Ele vai se encontrar conosco às dez e meia. O apartamento ainda não foi alugado, mas já fizeram uma limpeza. Depois que liberamos o local, a irmã da vítima foi
até lá, examinou as coisas e levou o que queria.
- E, eu já receava uma coisa assim.
- O encarregado acha que não foi muito... O cara não tinha mesmo muita coisa.
- E a coruja?
- Ele não se lembrava da coruja. Francamente, eu também não, até você mencionar isso hoje de manhã.
- E só um palpite. Eu gostaria de dar uma olhada nela.
- Bom, vamos ver se o bicho ainda está lá. O que mais quer fazer? Espero que não tenha atravessado a baía só para ver o apartamento do cara.
- Estava pensando em procurar a irmã. E talvez Harry Bosch
também.
Jaye ficou em silêncio, mas pela expressão que fez, McCaleb viu que ela esperava uma explicação.
- Para traçar o perfil de um sujeito desconhecido, é importante conhecer a vítima. Suas rotinas, personalidade, tudo. Você conhece o esquema. A irmã e, em grau menor,
Bosch podem ajudar nisso.
- Só pedi pra você dar uma olhada no dossiê e na fita, Terry. Vai fazer com que eu comece a me sentir culpada.
McCaleb fez uma pausa, enquanto a garçonete trazia o café de Jaye e punha na mesa duas pequenas jarras com geléia de amora e xarope de maple. Depois que a mulher
se afastou, ele disse:
- Você sabia que eu ia ser fisgado, Jaye. "Cuidado, cuidado, Deus vê?" Ora essa, vai me dizer que achou que eu ia ver aquilo
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tudo e fazer um relatório pelo telefone? Além do mais, não estou me queixando. Estou aqui porque quero estar. Se está se sentindo culpada, pode pagar as panquecas.
- O que sua mulher disse sobre o caso?
- Nada. Ela sabe que eu preciso fazer isso. Telefonei pra ela do cais assim que cheguei aqui. De qualquer modo, já era tarde demais para que ela dissesse alguma
coisa. Só me disse pra eu comprar um saco de tamales de milho verde no El Cholo antes de voltar. Eles vendem a coisa congelada.
As panquecas chegaram. Eles pararam de falar, e McCaleb esperou educadamente que Jaye escolhesse um dos acompanhamentos primeiro, mas ela ficou revirando as panquecas
no prato com o garfo, e ele por fim não conseguiu esperar mais. Banhou sua pilha com xarope de mapk e começou a comer. A garçonete voltou e pôs a conta na mesa.
Jaye rapidamente a pegou.
- O xerife paga.
- Agradeça a ele por mim.
- Não sei o que você espera de Harry Bosch, sabia? Ele me disse que teve apenas um punhado de contatos com Gunn nos seis anos que se passaram desde o caso da prostituta.
- Quando foram esses contatos? Na época em que ele foi preso?
Jaye balançou a cabeça enquanto derramava geléia de amora nas panquecas.
- Então eles se viram na véspera da morte de Gunn. Não vi nada disso no dossiê.
- Ainda não anotei isso. Mas não significa muito. O sargento de serviço telefonou para ele e disse que Gunn estava na cela de detenção por dirigir alcoolizado.
McCaleb balançou a cabeça.
- E aí?
- E ele foi até lá para dar uma olhada no cara. Foi só isso. Disse que nem conversaram, porque Gunn estava mamado demais.
- Bom... mesmo assim, quero falar com Harry. Já trabalhei num caso com ele. E um bom policial. Intuitivo e observador. Talvez saiba de alguma coisa que eu possa
usar.
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- Se conseguir falar com ele.
- O que quer dizer?
- Então não sabe? Ele faz parte da equipe de acusação no caso de assassinato de David Storey. Lá em Van Nuys. Não tem visto o noticiário?
- Caceta, eu esqueci disso. Lembro que li o nome dele nos jornais depois que mataram Storey. Acho que foi em outubro. O julgamento já começou?
- Claro. Não houve demora, e eles não precisaram de audiência preliminar porque passaram por um júri de instrução. Começaram a selecionar os jurados logo depois
do primeiro dia do ano. A última coisa que eu soube foi que eles já têm a lista pronta, de modo que a coisa pode começar esta semana, talvez até hoje.
- Merda.
- Isso mesmo, vai precisar de sorte para chegar até Bosch. Tenho certeza que é exatamente esse tipo de coisa que ele anda querendo ouvir.
- Está dizendo que não quer que eu fale com ele? Jaye deu de ombros.
- Não, não estou dizendo isso, absolutamente. Faça o que você quiser fazer. Só não achava que você ia se enfiar tanto no caso. Posso conversar com o capitão sobre
uma taxa de consultoria pra você, mas...
- Não se preocupe com isso. O xerife já está pagando o café da
manhã. Basta isso.
- Não parece.
McCaleb não lhe disse que trabalharia no caso até de graça, só para voltar àquele mundo por alguns dias. E não lhe disse que não podia aceitar dinheiro da parte
dela, de qualquer forma. Se tivesse qualquer rendimento "oficial", perderia o direito à assistência médica estadual que pagava as cinqüenta e quatro pílulas que
ele engolia todo dia. As pílulas eram tão caras que se ele tivesse que pagá-las do próprio bolso iria à falência em seis meses, a menos que tivesse um salário anual
de seis dígitos. Era esse o feio segredo por trás do milagre médico que o salvara. Ele conseguira uma segunda chance na vida, enquanto não usasse aquilo para tentar
ganhar a
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vida. Era por isso que a firma de passeios fretados estava no nome de Buddy. Oficialmente, McCaleb era um auxiliar de bordo sem vencimentos. Buddy simplesmente alugava
o barco de Graciela para fretá-lo, e o aluguel representava sessenta por cento de todas as taxas cobradas pelo passeio, depois de deduzidas as despesas.
- Como estão as panquecas? - perguntou ele a Jaye.
- Maravilha.
- Pode crer.
Capítulo 8
O Grand Royale era uma ofensa de dois andares aos olhos, uma caixa de estuque decadente cuja tentativa de ter estilo começava e terminava num desenho modernoso das
letras do seu nome afixadas na portaria. As ruas de West Hollywood e de toda a baixada eram cheias desses prédios banais, com os apartamentos de grande densidade
populacional que haviam substituído os quarteirões menores de bangalôs nas décadas de 1950 e 1960. Trocara-se um estilo autêntico por floreados ornamentais e nomes
que refletiam exatamente o que não eram.
McCaleb e Jaye entraram no apartamento do segundo andar que pertencera a Edward Gunn seguidos pelo encarregado do prédio, um homem chamado Rohrshak. "Que nem o teste,
só que soletrado diferente", dissera o sujeito.
Se não soubesse de antemão em que lugar procurar, McCaleb não teria notado o vestígio de sangue no tapete onde Gunn morrera. O tapete não fora trocado, apenas lavado,
e por isso aquela leve mancha marrom que provavelmente levaria o próximo inquilino a pensar em restos de refrigerante ou café derramados.
O local sofrera uma limpeza e estava pronto para ser alugado. Contudo o mobiliário era o mesmo. McCaleb reconheceu os móveis pelo vídeo da cena do crime.
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Olhou para a cristaleira do outro lado do aposento, mas o móvel estava vazio. Não havia nenhuma coruja de plástico pousada no seu topo. Ele olhou para Jaye.
- Sumiu.
Jaye virou-se para o encarregado.
- Rohrshak, achamos que a coruja que ficava no alto da cristaleira é importante. Tem certeza que não sabe o que aconteceu com ela?
Rohrshak abriu os braços e deixou-os cair ao lado do corpo.
- Não, não sei. Você me perguntou isso antes e eu pensei: "Não me lembro de coruja nenhuma." Mas se está dizendo que tinha...
Deu de ombros, espichou o queixo e depois balançou a cabeça, como concordando relutantemente que havia uma coruja na cristaleira.
McCaleb leu aqueles gestos e palavras como os maneirismos clássicos de um mentiroso. Se você negar a existência do objeto que furtou, você elimina o furto. Presumiu
que Jaye também já percebera isso.
-Jaye, você tem um telefone? Pode ligar para a irmã dele a fim de confirmar isso?
- Estou resistindo até que o condado compre um para mim. McCaleb preferia manter seu telefone livre, pois Brass Doran
poderia ligar de volta, mas arriou a bolsa de couro no sofá cujo estofamento parecia prestes a estourar, tirou o telefone e passou o aparelho a Jaye.
Ela precisou procurar o número da irmã de Gunn num caderno dentro da pasta. Enquanto Jaye fazia a chamada, McCaleb ficou andando vagarosamente pelo apartamento,
observando tudo e tentando captar vibrações do local. Na área onde se faziam as refeições, parou diante de uma mesa de madeira redonda, rodeada por quatro cadeiras
de espaldar reto. O relatório de análise da cena do crime dizia que três das cadeiras tinham numerosas nódoas com impressões digitais latentes, tanto completas quanto
parciais todas pertencentes à vítima, Edward Gunn. A quarta cadeira, a que fora encontrada no lado norte da mesa, não tinha qualquer
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impressão digital, completa ou não. A cadeira fora totalmente limpa. O mais provável era que o assassino houvesse feito isso depois de usar a cadeira com algum objetivo.
McCaleb orientou-se e foi até a cadeira do lado norte da mesa. Tomando cuidado para não tocar no encosto, meteu a mão embaixo do assento e afastou-a da mesa, aproximando-a
da cristaleira. Posicionou-a no centro e subiu. Levantou os braços como se estivesse colocando alguma coisa em cima da cristaleira. A cadeira balançou, apoiada nas
pernas desiguais, e McCaleb instintivamente estendeu a mão para o alto da cristaleira a fim de se firmar. Mas, antes de se agarrar ali, percebeu algo e interrompeu
o gesto, apoiando o antebraço na moldura de uma das portas de vidro do móvel.
- Tenha cuidado aí, Terry.
Ele olhou para baixo. Jaye estava parada ao lado. O telefone estava fechado na sua mão.
- Estou tendo. Então, ela está com a ave?
- Não, nem sabia do que eu estava falando.
McCaleb ficou na ponta dos pés e olhou por cima da borda superior da cristaleira.
- Ela disse o que levou daqui?
- Só umas roupas e fotografias velhas dos dois quando eram crianças. Não quis mais nada.
McCaleb balançou a cabeça. Ainda estava examinando o topo da cristaleira de cima a baixo. Havia uma grossa camada de poeira ali em cima.
- Você disse alguma coisa sobre minha ida até lá para conversar com ela?
- Esqueci. Mas posso ligar de novo.
- Tem uma lanterna aí, Jaye?
Ela vasculhou a bolsa e entregou-lhe uma lanterna fina. McCaleb acendeu-a e lançou o feixe de luz, em ângulo baixo, sobre o topo da cristaleira. A luz tornava mais
nítida a poeira da superfície, e ele viu claramente uma marca de feitio octogonal deixada por algo posto em cima da cristaleira e da poeira. A base da coruja.
McCaleb deslocou a luz ao longo das bordas da placa superior do móvel, apagou a lanterna, desceu da cadeira e devolveu a lanterna a Jaye.
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- Obrigado. Talvez fosse bom trazer a equipe de impressões digitais de volta aqui.
- Pra quê? A coruja não está ali, está? McCaleb deu um olhar rápido para Rohrshak.
- Neca, sumiu. Mas quem pôs o bicho lá em cima usou aquela cadeira. Quando a cadeira cambaleou, a pessoa se agarrou na cristaleira.
Ele tirou uma caneta do bolso, ergueu o braço e bateu levemente na parte fronteira da cristaleira, na área onde vira as impressões digitais na poeira.
- Está muito empoeirado, mas pode haver impressões digitais ali.
- E se tiver sido a pessoa que levou a coruja?
McCaleb olhou descaradamente para Rohrshak ao responder.
- Mesma coisa. Pode haver impressões digitais. Rohrshak desviou o olhar.
- Posso usar isso de novo? Jaye mostrou o telefone dele.
- Vá em frente.
Enquanto Jaye convocava uma equipe de impressões digitais, McCaleb puxou a cadeira para o meio da sala de estar, a cerca de um metro da marca de sangue. Depois sentou-se
e percorreu a sala com o olhar. Nessa posição, a coruja estaria olhando tanto para o assassino quanto para a vítima. Um certo instinto dizia-lhe que era aquela configuração
que o assassino queria. Ele baixou o olhar para a mancha de sangue e imaginou-se vendo Edward Gunn lutar pela vida e perder vagarosamente a batalha. O balde, pensou.
Tudo se encaixava, menos o balde. O assassino arrumara o cenário, mas depois não conseguira assistir à peça. Precisava do balde para não ver o rosto da vítima. Aquilo
não se encaixava e incomodava McCaleb.
Jaye veio até ele e entregou-lhe o telefone.
- Há uma equipe acabando de cobrir um arrombamento em Kings. O pessoal vai estar aqui em quinze minutos.
- Que sorte.
- Muita. O que está fazendo?
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- Só pensando. Acho que ele sentou aqui e ficou assistindo, mas depois não agüentou. Golpeou a vítima na cabeça, talvez para apressar a coisa. Depois pegou o balde
e cobriu a cabeça para não precisar assistir mais.
Jaye Winston balançou a cabeça.
- De onde veio o balde? Não havia nada no...
- Achamos que estava embaixo da pia da cozinha. Há um anel d'água na prateleira que coincide com a base do balde. Está no suplemento que Kurt digitou. Ele deve ter
esquecido de colocar isso no dossiê.
McCaleb balançou a cabeça e se levantou.
- Vai esperar pela equipe das impressões digitais, não?
- Vou, não deve demorar.
- Vou dar uma volta.
Ele foi andando para a porta aberta.
- Vou com você - disse Rohrshak. McCaleb se voltou.
- Não, Rohrshak, você precisa ficar aqui com a detetive. Precisamos de uma testemunha independente para monitorar o que fazemos no apartamento.
McCaleb olhou para Jaye por cima do ombro de Rohrshak. Ela deu uma piscadela, avisando que entendera a história falsa e o que ele estava fazendo.
- É, Rohrshak. Por favor, fique aqui, se não for incômodo. Rohrshak deu de ombros novamente e ergueu as mãos. McCaleb desceu as escadas até o pátio coberto no centro
do
prédio. Foi girando em círculo, percorrendo com o olhar a linha do telhado baixo. Não viu a coruja em lugar algum, virou e atravessou a porta de entrada que dava
para a rua.
Do outro lado da avenida Sweetzer havia um prédio de três andares, em forma de L, chamado Braxton Arms, com passadiços e escadas externas. McCaleb cruzou a rua e
deparou-se na entrada com um portão de segurança e uma cerca de um metro e oitenta de altura. A coisa era mais para exibição do que para dissuasão. Ele tirou o agasalho,
dobrou-o e meteu-o entre duas barras do portão. Depois pôs o pé na maçaneta, verificou se agüentava seu peso e
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içou-se até o alto do portão. Caiu do outro lado e olhou em torno para verificar se fora visto por alguém. Tudo limpo. Pegou o agasalho e partiu para a escada.
Foi até o terceiro andar e seguiu o passadiço até a fachada do prédio. Estava respirando alto e com dificuldade, devido ao esforço para pular o portão e subir a
escada. Quando chegou à fachada pôs as mãos na balaustrada e inclinou-se para a frente até recuperar o fôlego. Depois lançou o olhar sobre a avenida Sweetzer na
direção do telhado plano do prédio onde Edward Gunn morara. Também lá não viu a coruja de plástico.
McCaleb apoiou os antebraços na balaustrada e continuou tentando recuperar o fôlego. Ficou ouvindo seu coração bater, até finalmente se aquietar. Sentia o suor porejando
no couro cabeludo. Sabia que não era o coração que estava fraco. Era o seu corpo, enfraquecido por todos os remédios que ele tomava para manter o coração forte.
Aquilo era frustrante. Ele sabia que nunca ficaria forte e que passaria o resto da vida escutando o coração, tal como um arrombador noturno escuta os rangidos do
assoalho.
Ao ouvir o ruído de um veículo, olhou para baixo e viu uma picape branca, com o emblema do xerife na porta do motorista, parar diante da porta do prédio do outro
lado da rua. A equipe de impressões digitais chegara.
McCaleb deu mais uma olhada para o telhado do outro lado da rua e virou-se para descer, derrotado. Subitamente, parou. Lá estava a coruja, pousada no topo de um
compressor do sistema de ar condicionado central, no telhado da extensão em L do edifício onde ele se achava.
Ele foi rapidamente até a escada e subiu no passadiço do telhado. Teve que rodear alguns móveis que estavam empilhados e guardados no passadiço, mas descobriu que
a porta estava destrancada e atravessou depressa o telhado plano, coberto de cascalho, até o condicionador de ar.
Examinou a coruja antes de tocar no bicho. Combinava com a imagem que memorizara do vídeo da cena do crime. A base era um pedestal de forma octogonal. Ele sabia
que era a coruja que desaparecera. Retirou o arame que fora enrolado em torno da base e
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preso à grade de admissão do condicionador de ar. Observou que a grade e a cobertura metálica da unidade estavam cobertas de velhas fezes de pássaros. Concluiu que
as fezes constituíam um problema para a manutenção e que Rohrshak - aparentemente encarregado também daquele prédio, além do outro - pegara a coruja no apartamento
de Gunn para usá-la como espantalho.
McCaleb pegou o arame e enrolou-o em torno do pescoço da coruja para poder carregá-la sem tocá-la, embora duvidasse que ainda houvesse no objeto qualquer impressão
digital ou fibra que tivesse utilidade como prova. Levantou a coruja do condicionador de ar e dirigiu-se para a escada.
Quando chegou de volta ao apartamento de Edward Gunn, viu dois especialistas em cenas de crime tirando equipamento de uma caixa. Havia uma escada portátil diante
da cristaleira.
- Talvez seja melhor começar por isto aqui - disse ele.
Viu os olhos de Rohrshak se arregalarem ao entrar no aposento e colocar a coruja de plástico sobre a mesa.
- Você é encarregado do prédio do outro lado da rua, não é?
- Hum...
- Tudo bem. É fácil descobrir.
- É, sim - disse Jaye, inclinando-se para olhar a coruja. - Ele estava lá quando precisei dele no dia do crime. Ele mora lá.
- Alguma idéia de como isto foi parar no telhado? - perguntou McCaleb.
Rohrshak não respondeu.
- Acho que ela simplesmente voou até lá, certo? Rohrshak não conseguia tirar os olhos da coruja.
- Você já pode ir agora, Rohrshak. Mas fique perto de sua casa. Se conseguirmos uma impressão digital na ave ou na cristaleira, vamos precisar tirar as suas para
comparar.
Rohrshak olhou para McCaleb, e seus olhos ficaram ainda mais esbugalhados.
- Pode ir, Rohrshak.
O encarregado do prédio virou-se e saiu vagarosamente do apartamento.
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- E feche a porta, por favor - disse McCaleb enquanto ele se afastava.
Depois que ele saiu e fechou a porta, Jaye quase explodiu numa risada.
- Terry, você está sendo muito durão. Na realidade, ele não fez nada de errado, você sabe. Nós examinamos o local, e ele deixou a irmã de Gunn vir pegar o que quisesse.
O que ele deveria fazer depois, tentar alugar o apartamento com essa coruja idiota ali em cima?
McCaleb abanou a cabeça.
- Ele mentiu para nós. Isso foi errado. Eu quase me arrebentei subindo naquele prédio do outro lado da rua. Ele podia simplesmente nos dizer que a coisa estava lá.
- Bom, agora ele está apavorado. Acho que aprendeu a lição.
- Tomara.
Ele recuou para que um dos técnicos pudesse trabalhar na coruja, enquanto o outro subia a escada para trabalhar no alto da cristaleira.
Ficou examinando a ave, enquanto o técnico passava nela, com uma escova, o pó preto de impressões digitais. A coruja parecia ter sido pintada à mão. Era marrom-escura
e preta nas asas, cabeça e costas. O peito era de um marrom mais claro, com laivos amarelos. Os olhos eram de um preto brilhante.
- Isso estava ao ar livre? - perguntou o técnico.
- Infelizmente - respondeu McCaleb, recordando as chuvas que haviam varrido o continente e a ilha Catalina na semana anterior.
- Bom, não estou conseguindo nada.
- Eu imagino.
McCaleb lançou para Jaye um olhar que refletia uma raiva renovada contra Rohrshak.
- Nada também aqui em cima - disse o outro técnico. - Tem poeira demais.
Capítulo 9
O julgamento de David Storey estava sendo realizado no tribunal de Van Nuys. O crime central do caso não tinha a menor relação com Van Nuys, e nem com o vale de
San Fernando, mas o tribunal fora escolhido pelos distribuidores da promotoria porque o Departamento N estava disponível e era a maior sala de julgamento do condado.
Era resultado da fusão de dois tribunais menores vários anos antes, a fim de acomodar confortavelmente os dois corpos de jurados - bem como um monte de gente da
mídia - do caso do assassinato dos irmãos Menendez. A morte dos pais por parte desses irmãos tinha sido um dos diversos casos criminais de Los Angeles, na década
anterior, a atrair a atenção da mídia, e portanto do público. Quando tudo terminou, a promotoria não se deu ao trabalho de desconstruir o enorme tribunal. Alguém
teve a intuição de perceber que em Los Angeles sempre haveria um caso que poderia encher o Departamento N.
E no momento esse era o caso de David Storey.
O diretor de cinema, de trinta e oito anos, conhecido por filmes que levavam a violência e a sexualidade aos limites máximos da categoria X-rated, fora acusado de
assassinar uma jovem atriz que levara para casa depois da estréia de um de seus filmes mais recentes. O corpo da mulher de vinte e três anos fora encontrado na manhã
do dia seguinte num pequeno bangalô em Nichols
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Canyon que ela dividia com outra pretendente a atriz. A vítima fora estrangulada, e o corpo nu colocado na cama numa pose que os investigadores acreditavam ser parte
de um plano cuidadoso do assassino para evitar ser descoberto.
Os elementos do caso - poder, celebridade, sexo e dinheiro - e a conexão adicional representada por Hollywood serviram para atrair a máxima atenção da mídia. David
Storey trabalhava do lado errado da câmera para ser uma celebridade de pleno direito, mas seu nome era conhecido, e ele dispunha do tremendo poder de um homem que
fizera sete sucessos de bilheteria em igual número de anos. A mídia foi atraída pelo julgamento de Storey tal como os jovens são atraídos pelo sonho de Hollywood.
A cobertura antecipada delineava claramente o caso como uma parábola de avareza e excessos hollywoodianos desenfreados.
O caso também tinha um inusitado grau de mistério em julgamentos criminais. Os promotores designados levaram suas provas a um júri de instrução a fim de procurar
indiciar Storey. Essa jogada permitira-lhes evitar uma audiência preliminar, onde a maior parte das provas acumuladas contra um réu é geralmente tornada pública.
Sem essa fonte de informação sobre o caso, a mídia foi obrigada a buscar suas fontes tanto no lado da acusação quanto da defesa. Ainda assim, pouca coisa vazou para
a imprensa, a não ser aspectos genéricos. As provas que a promotoria usaria para ligar Storey ao assassinato permaneciam em segredo, e essa era mais uma causa do
alvoroço da mídia a respeito do julgamento.
Fora justamente esse alvoroço que convencera o promotor a deslocar o julgamento para o grande salão do Departamento N em Van Nuys. O segundo recinto do júri seria
usado para acomodar mais elementos da mídia dentro do tribunal, enquanto a inutilizada sala de deliberação seria convertida numa sala de imprensa, onde os jornalistas
de segundo e terceiro escalões assistiriam ao julgamento num telão. O esquema, que daria a toda a mídia - desde o National Enquirer até o New York Times - total
acesso ao julgamento e aos participantes, garantia que o caso se tornaria o primeiro circo de horrores da mídia do novo século.
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Na arena central desse circo, sentado à mesa da acusação, estava o detetive Harry Bosch, o principal investigador do caso. Todas as análises da mídia anteriores
ao julgamento haviam chegado a uma só conclusão: o destino das acusações contra David Storey dependeria de Bosch. Todas as provas em favor da acusação de assassinato
eram consideradas circunstanciais; o alicerce do caso viria de Bosch. A única prova sólida que vazara para a mídia era que Bosch testemunharia que, num momento de
privacidade, sem outras testemunhas ou dispositivos à mão para registrar a declaração, Storey presunçosamente admitira que cometera o crime e se gabara de certamente
sair vitorioso do julgamento.
McCaleb já sabia de tudo isso quando entrou no tribunal de Van Nuys, pouco antes do meio-dia. Postou-se na fila para passar pelo detector de metais, lembrando-se
de como tudo mudara em sua vida. Quando era agente do FBI, precisava apenas mostrar seu distintivo e passar à frente da fila. Agora era apenas um cidadão. Tinha
que esperar.
O corredor do quarto andar fervilhava de gente. McCaleb observou que muitas pessoas portavam pilhas de fotos 18x24 cm, em preto e branco, de estrelas e astros cinematográficos
que esperavam ver no julgamento - fosse como testemunhas ou como espectadores - apoiando o réu. Ele atravessou a porta dupla de entrada do Departamento N, mas um
dos dois policiais do gabinete do xerife postados ali disse-lhe que o tribunal estava lotado. O policial apontou para uma longa fila de pessoas atrás de um cordão.
Disse que era a fila de gente esperando para entrar. Toda vez que uma pessoa saísse do tribunal, outra poderia entrar. McCaleb balançou a cabeça e afastou-se das
portas.
Viu que mais adiante no corredor havia uma porta aberta cercada por várias pessoas. Reconheceu entre elas um repórter de um noticiário televisivo local. Calculou
que a sala de imprensa fosse ali e se aproximou.
Quando chegou à porta aberta, olhou para dentro e viu dois grandes televisores fixados no alto dos cantos do aposento, onde havia várias pessoas apinhadas em
torno de uma grande mesa de júri. Repórteres. Estavam digitando em seus computadores
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portáteis, tomando notas em blocos e comendo sanduíches tirados de embalagens para viagem. O centro da mesa estava coalhado de copos plásticos de café e refrigerantes.
Ele ergueu o olhar para um dos televisores e viu que o tribunal ainda estava em sessão, embora já passasse de meio-dia. A câmera mostrava uma imagem ampla do aposento,
e ele viu Harry Bosch sentado com um homem e uma mulher na mesa da promotoria. Não parecia que ele estivesse prestando atenção aos trabalhos. Um homem que McCaleb
reconheceu estava de pé junto à tribuna, entre as mesas da promotoria e da defesa. Era J. Reason Fowkkes, o principal advogado de defesa. À mesa à sua esquerda sentava-se
o réu, David Storey.
McCaleb não conseguia ouvir o sinal de áudio, mas sabia que Fowkkes não estava fazendo as alegações iniciais, pois estava olhando para o juiz, e não na direção do
recinto do júri. Provavelmente, moções de última hora estavam sendo discutidas pelos advogados antes do início da sessão. Subitamente as duas telas de televisão
gêmeas passaram para uma nova câmera e focalizaram o juiz, que começou a falar, aparentemente estabelecendo as regras. McCaleb notou a placa de identificação na
frente do juiz, que dizia: Juiz do Tribunal Superior John A. Houghton.
- Agente McCaleb?
McCaleb desviou o olhar do televisor e viu ao seu lado um homem que reconheceu, mas que não conseguiu localizar imediatamente.
- Só McCaleb. Terry McCaleb.
O sujeito percebeu o desconforto dele e estendeu a mão.
- Jack McEvoy. Entrevistei você uma vez. Foi muito rápido. Sobre a investigação do Poeta.
- Ah, sim, lembrei - disse McCaleb, apertando a mão do outro. -Já faz bastante tempo.
Ele realmente se lembrava de McEvoy. O repórter se enfronhara no caso do Poeta e depois escreveu um livro sobre o assunto. McCaleb teve uma participação muito periférica
no caso - quando a investigação passara para Los Angeles. Nunca lera o livro de
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McEvoy, mas tinha certeza que não contribuíra em nada para a obra, e provavelmente não fora mencionado nela.
- Eu achava que você era do Colorado - disse ele, lembrando que McEvoy trabalhava num jornal de Denver. - Eles mandaram você cobrir isso aqui?
McEvoy balançou a cabeça.
- Boa memória. Eu era de lá, mas agora moro aqui. Trabalho como free lancer.
McCaleb balançou a cabeça, tentando imaginar algo para dizer.
- Pra quem você está cobrindo este caso?
- Venho escrevendo uma coluna semanal para o New Times sobre o assunto. Você lê o jornal?
McCaleb balançou a cabeça. Conhecia bem o New Times. Era um tablóide semanal, cheio de denúncias escandalosas e com postura contrária às autoridades. Sua renda principal
parecia vir principalmente de anúncios de entretenimento, que abarcavam desde filmes aos serviços de acompanhamento que enchiam suas últimas páginas. Era gratuito,
e Buddy vivia deixando exemplares pelo barco. McCaleb dava uma olhada no jornal de tempos em tempos, mas nunca notara o nome de McEvoy.
- Também estou fazendo uma cobertura geral para a Vanity Fair - disse McEvoy. - Sabe como é... uma coisa mais discursiva, o lado sombrio de Hollywood. E também estou
pensando em escrever outro livro. O que trouxe você aqui? Está... envolvido nisto de alguma...
- Eu, não. Estava por perto e tenho um amigo no julgamento. Só queria ter a oportunidade de dar um alô pra ele.
Enquanto mentia, McCaleb desviou o olhar do escritor e lançou-o de volta para os televisores através da porta. O ângulo da câmera já mostrava todo o tribunal. Parecia
que Bosch estava guardando suas coisas numa maleta.
-Harry Bosch?
McCaleb olhou de volta para ele.
- É, Harry. Já trabalhamos num caso juntos e... hum, o que está havendo ali agora?
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- Moções finais, antes de começarem. Eles começaram com uma sessão fechada e agora estão dando uma arrumação na casa. Não vale a pena ficar lá. Todo mundo acha que
o juiz provavelmente terminará a sessão antes do almoço e dará aos advogados o resto do dia para trabalharem nas alegações iniciais. Elas começam amanhã, às dez.
Você acha que a casa está cheia agora? Espere até amanhã.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Pois é. Então foi bom ver você de novo, Jack. Boa sorte com a matéria. E com o livro, se acabar saindo.
- Eu gostaria de ter escrito a sua história, sabia? Sobre o coração e esse negócio todo.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Bom, eu devia um favor a Keisha Russell, e ela fez um bom trabalho.
Notou que as pessoas estavam começando a abrir caminho para sair da sala da mídia. Ao fundo, viu nas telas dos televisores que o juiz já saíra da bancada. A sessão
do tribunal fora suspensa.
- Vou até o tribunal ver se encontro Harry. Foi um prazer ver você de novo, Jack - continuou ele, estendendo a mão e cumprimentando McEvoy. Depois seguiu os outros
repórteres até as portas do tribunal.
As portas principais do Departamento N foram abertas pelos dois policiais, e por elas saiu a multidão de cidadãos afortunados que haviam conseguido lugares para
assistir àquela sessão, que provavelmente fora um verdadeiro porre. Os que não haviam conseguido entrar apinhavam-se para ver de perto alguma celebridade, mas ficaram
desapontados. As celebridades só começariam a aparecer no dia seguinte, quando seriam feitas as alegações iniciais. Estas eram como os créditos de abertura de um
filme, portanto, o lugar em que as celebridades gostariam de ser vistas.
Atrás da multidão vinham os advogados e assessores. Storey já voltara para a prisão, mas seu advogado foi direto para o semicírculo de repórteres e começou a dar
sua versão do que transpirara dentro do tribunal. Um homem alto, muito bronzeado, de cabelo preto retinto e olhos verdes inquietos tomou posição diretamente
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atrás do advogado para cobrir-lhe a retaguarda. Chamava a atenção, e McCaleb achou que o conhecia, mas não conseguia imaginar de onde. Ele parecia um dos atores
que Storey normalmente punha em seus filmes.
Os promotores saíram e logo formaram seu próprio círculo de repórteres. Suas respostas foram mais curtas do que as do advogado de defesa. Recusaram-se a comentar
várias perguntas sobre as provas que apresentariam.
McCaleb ficou aguardando Bosch, e finalmente viu-o esgueirar-se para fora por último. Bosch driblou a multidão mantendo-se perto da parede, e dirigiu-se para os
elevadores. Uma repórter avançou em sua direção, mas ele levantou a mão, mandando-a embora. A mulher parou e voltou feito uma molécula solta no ar para a matilha
que rodeava J. Reason Fowkkes.
McCaleb seguiu Bosch ao longo do corredor e alcançou-o quando ele parou à espera do elevador.
- Olá, Harry Bosch.
Bosch se voltou, já armando no rosto a expressão "sem comentários", e viu que era McCaleb.
- Olá... McCaleb.
Sorriu, e os dois se cumprimentaram.
- Parece o caso com mais publicidade do mundo - disse McCaleb.
- Nem me fale. O que está fazendo aqui? Não me diga que está escrevendo um livro sobre esse troço?
- O quê?
- Todo mundo que trabalhava no FBI anda escrevendo livros hoje em dia.
- Neca, isso não é comigo. Na realidade, eu estava com esperança de poder convidar você para almoçar. Quero falar com você sobre um negócio.
Bosch olhou para o relógio, indeciso acerca de algo.
- Edward Gunn.
Bosch ergueu os olhos para ele.
- Jaye Winston?
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente.
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- Ela me pediu pra dar uma olhada na coisa.
O elevador chegou, e eles entraram com uma multidão de pessoas que haviam estado no tribunal. Todas pareciam estar olhando para Bosch, embora tentassem não aparentar
isso. McCaleb decidiu ficar calado até eles saírem.
Chegando ao térreo, dirigiram-se para a saída.
- Eu disse a ela que elaboraria o perfil do assassino. Coisa rápida. Pra fazer isso, preciso saber alguma coisa de Gunn. Pensei que talvez você pudesse me contar
algo sobre aquele caso antigo e sobre o tipo de sujeito que ele era.
- Gunn era um escroto. Olhe, eu tenho cerca de quarenta e cinco minutos no máximo. Preciso meter o pé na estrada. Vou queimar as pestanas hoje para garantir que
todo mundo esteja pronto para a abertura.
- Eu fico com esses quarenta e cinco, se você puder dispor deles. Tem algum lugar bom pra se comer aqui perto?
- Esqueça a cantina daqui... é terrível. Há um Cupid's ali no bulevar Victory.
- Vocês policiais só comem do melhor.
- É por isso que a gente faz o que faz.
Capítulo 10
Eles foram comer os cachorros-quentes numa mesa ao ar livre, sem guarda-sol. Embora fosse um dia de inverno com temperatura amena, McCaleb estava suando. Em qualquer
dia o Vale sempre era de quatro a seis graus mais quente do que Catalina, e ele não estava acostumado com a mudança. Seus sistemas internos de aquecimento e resfriamento
não haviam se normalizado depois do transplante, e ele era dado a calafrios e suores repentinos.
Começou batendo papo sobre o atual caso de Bosch.
- Está preparado para virar o Harry Hollywood com esse caso?
- Não, obrigado - disse Bosch, dando mordidas no que era anunciado como um cachorro Chicago. - Acho que preferiria o turno da madrugada na Septuagésima Sétima.
- Bom, acha que está com tudo em cima? Dá pra pegar o cara? - Nunca se sabe. A promotoria não ganha nada importante
desde o caso da discoteca. Não sei como vai rolar. Todos os advogados dizem que depende do júri. Eu sempre pensei que dependia da qualidade das provas, mas não passo
de um detetive idiota. John Reason trouxe o consultor do júri do O. J. Simpson, e na realidade eles estão muito contentes com os doze jurados selecionados. Merda,
John Reason. Veja só, já estou até chamando o cara pelo nome que os repórteres usam. Isso mostra bem como ele sabe controlar as coisas, esculpir as coisas.
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Abanou a cabeça e deu mais uma mordida no almoço.
- Quem é o grandalhão que eu vi com ele? - perguntou McCaleb. - O cara de pé atrás dele, com cara de mau.
- Rudy Valentino, o investigador dele. -E o nome dele?
- Não, o nome é Rudy Tafero. Já trabalhou no Departamento de Polícia de Los Angeles. Treinava detetives de Hollywood até poucos anos atrás. O pessoal do FBI chamava
o cara de Valentino por causa da aparência dele, que se irritava com isso. Em todo caso, ele foi trabalhar por conta própria. Tirou licença de fiador profissional.
Não me pergunte como, mas ele começou a obter contratos para fazer a segurança de um bando de gente em Hollywood. E surgiu nesse caso logo depois que prendemos Storey.
Na realidade, Rudy levou o caso de Storey para Fowkkes. Provavelmente ganhou por isso uma boa comissão como agenciador de clientes.
- E o juiz? Como ele vai proceder?
Bosch balançou a cabeça, como se houvesse encontrado algo de bom na conversa.
- Houghton Bala. Com ele não tem papo de segunda chance. Não brinca em serviço. Vai calar a boca do Fowkkes, se for preciso. Pelo menos nós temos isso a nosso favor.
- Houghton Bala?
- Ele geralmente anda armado por baixo da toga preta... ou pelo menos as pessoas acham que sim. Há cerca de cinco anos ele teve um caso da máfia mexicana. Quando
o júri deu o veredicto de culpado, vários amiguinhos e familiares do réu que estavam na platéia se enfureceram, e quase começaram um tumulto no tribunal. Houghton
puxou uma Glock e disparou um tiro para o teto. As coisas se acalmaram rapidinho. Desde então ele vem sendo reeleito com uma porcentagem maior do que qualquer outro
juiz candidato no condado. Vá lá no tribunal e verifique o teto. O buraco da bala ainda está lá. Ele não deixa ninguém consertar a coisa.
Bosch deu outra mordida no almoço, olhou para o relógio e mudou de assunto, falando com a boca cheia.
- Não é nada pessoal, mas acho que eles entraram num beco sem saída no caso de Gunn, se já estão pedindo ajuda externa.
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente.
- E por aí.
Baixou o olhar para o cachorro-quente com molho apimentado à sua frente, desejando ter garfo e faca.
- Qual é o problema? Não precisávamos ter vindo aqui.
- Nada. Só estava pensando. Juntando as panquecas do Dupar's hoje cedo e isto aqui, vou precisar de outro coração quando chegar a hora do jantar.
- Se quiser fazer seu coração parar, da próxima vez que for ao Dupar's arremate com uma visita ao Bob's Donuts. Bem ali no Mercado do Fazendeiro. Peça duas daquelas
roscas com cobertura dupla. Você sentirá suas artérias endurecerem e caírem feito pingentes de gelo numa casa. Eles não conseguiram achar nenhum suspeito, não é?
- E. Nenhum.
- Então por que se interessou tanto?
- Pelo mesmo motivo que Jaye. Alguma coisa a respeito desse caso. Achamos que o sujeito, seja quem for, pode estar apenas começando.
Bosch simplesmente balançou a cabeça. Tinha a boca cheia.
McCaleb lançou-lhe um olhar de avaliação. O cabelo de Bosch parecia mais curto. Mais grisalho também, mas isso era de esperar. Ele ainda tinha o mesmo bigode e os
olhos que faziam McCaleb recordar os de Graciela. Eram tão negros que quase não havia linha de separação entre a íris e a pupila. Mas os olhos de Bosch eram cansados
e ligeiramente cobertos por rugas nos cantos. Ainda assim, viviam se mexendo e observando tudo. Ele se sentava ligeiramente inclinado para a frente, como preparado
para agir. McCaleb lembrou que Bosch sempre lhe passara uma sensação de mola comprimida. Tinha a impressão que a qualquer momento, ou por qualquer razão, o policial
podia explodir.
Bosch meteu a mão no paletó do terno, tirou um par de óculos escuros e colocou-os no rosto. McCaleb ficou pensando se ele reagira à percepção de estar sendo examinado.
Curvou-se para a frente, levantou o cachorro-quente com molho e deu enfim uma mordida naquilo. Tinha um gosto delicioso e letal ao mesmo tempo.
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Recolocou o troço gotejante no prato de papel e limpou a mão no guardanapo.
- Fale alguma coisa do Gunn. Você disse que ele era um escroto. O que mais?
- O que mais? É isso aí. Ele era um predador. Usava as mulheres, comprava as mulheres. Matou aquela garota no quarto do motel, não tenho a menor dúvida.
- Mas a promotoria arquivou o caso.
- Pois é. Gunn alegou legítima defesa. Disse umas coisas que não se encaixavam, mas não a ponto de alguém encaixar uma acusação. Alegou legítima defesa, e não haveria
o suficiente para contestar isso num julgamento. Daí o negócio foi arquivado, fim de papo, vamos ao caso seguinte.
- Ele chegou a saber que você não acreditou nele?
- Ah, é claro. Ele soube.
- Você tentou dar algum aperto nele?
Bosch lançou-lhe um olhar que McCaleb conseguiu interpretar mesmo através dos óculos escuros. Aquela última pergunta questionava a credibilidade de Bosch como investigador.
- Quer dizer, o que aconteceu quando você tentou dar um aperto nele? - acrescentou ele rapidamente.
- A verdade é que nunca tivemos chance de fazer isso. Houve um problema. Chegamos até a armar a coisa. Levamos o escroto até uma das nossas salas. Eu e meu parceiro
estávamos planejando deixar o Gunn de molho ali por algum tempo, para que ele pensasse sobre o assunto, íamos aprontar toda a papelada, registrar o caso no dossiê
e depois dar um bote nele para tentar desmontar aquela versão. Não tivemos chance de fazer isso. Quer dizer, de fazer a coisa direito.
- O que aconteceu?
- Eu e o meu parceiro, Jérry Edgar, fomos ao fim do corredor tomar um café e conversar sobre a melhor maneira de fazer a coisa. Enquanto estávamos lá, o tenente
da equipe viu Gunn sentado na sala de entrevistas e não entendeu que porra ele estava fazendo ali. Resolveu por conta própria entrar e ver se o cara tinha sido avisado
sobre os seus direitos corretamente.
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Mesmo seis anos após a ocorrência, McCaleb viu o rosto de Bosch encher-se de raiva.
- Veja bem, Gunn estava lá como testemunha, e ostensivamente como a vítima de um crime. Contou que a mulher tinha avançado pra cima dele com a faca e que ele virou
a arma contra ela. Portanto, não tínhamos que avisar o sujeito de direito algum. O plano era entrar lá, desmontar aquela versão e fazer com que ele cometesse algum
engano. Feito isso, íamos falar sobre os direitos dele. Mas o tal tenente de merda não sabia de nada disso. Simplesmente entrou lá e avisou o cara. Com isso, ele
nos matou. Gunn percebeu que nós iríamos em cima dele. Pediu um advogado logo que entramos na sala.
Bosch abanou a cabeça e olhou para a rua. McCaleb seguiu o olhar dele. Do outro lado do bulevar Victory havia um pátio de venda de carros usados, com bandeirolas
vermelhas, brancas e azuis ondulando ao vento. Para McCaleb, Van Nuys era sempre sinônimo de pátios de vendas de carros. Estavam por toda parte, novos e usados.
- Então, o que você disse ao tenente? - perguntou ele.
- Dizer? Eu não disse nada. Simplesmente joguei o cara pela janela do escritório. Ganhei uma suspensão por causa disso... licença involuntária devido a estresse.
Jerry Edgar acabou levando o caso para a promotoria. Eles ficaram sentados no troço por algum tempo e finalmente arquivaram tudo.
Bosch balançou a cabeça e pousou os olhos no prato de papel vazio, acrescentando:
- Eu meio que estraguei a coisa. É isso, eu estraguei a coisa. McCaleb esperou alguns instantes antes de falar. Uma rajada
de vento arrancou o prato de Bosch da mesa, e o detetive ficou observando o objeto ser arrastado pela área de piquenique, sem fazer movimento algum para alcançá-lo.
- Você ainda trabalha com esse tenente?
- Não. Ele não está mais conosco. Pouco tempo depois, saiu à noite e não voltou para casa. Foi encontrado dentro do carro no túnel do parque Griffith, perto do Observatório.
- Como assim, ele se matou?
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- Não. Alguém fez isso por ele. O caso ainda está em aberto. Tecnicamente - disse Bosch, lançando outro olhar para ele.
McCaleb baixou os olhos e observou que o prendedor de gravata de Bosch era um pequeno par de algemas de prata.
- O que mais posso contar? - disse Bosch. - Nada disso tem qualquer coisa a ver com Gunn. Ele não passava de uma mosca no melado... sendo o melado essa merda que
eles chamam de sistema judicário.
- Parece que você não teve muito tempo para vasculhar os antecedentes dele.
- Tempo nenhum, na verdade. Tudo isso que eu contei aconteceu num período de oito ou nove horas. Depois do que aconteceu, eu fui afastado do caso, e o cara saiu
livre feito um passarinho.
- Mas você não desistiu. Jaye me disse que você foi falar com Gunn na cela dos bêbados na véspera da morte dele.
- Fui mesmo. Ele foi pego dirigindo bêbado quando andava atrás de prostitutas no Sunset. Estava na cela de custódia, e eu recebi um telefonema. Fui dar uma olhada,
pra sacudir o cara um pouco e ver se ele estava pronto para falar. Mas ele estava bêbado feito um gambá, deitado no chão em cima do vômito. E foi isso aí. Você pode
dizer que a gente não conseguiu se comunicar.
Bosch olhou para o cachorro-quente com molho que McCaleb não terminara de comer e depois para o próprio relógio.
- Desculpe, mas não sei de mais nada. Vai comer isso ou podemos ir?
- Umas mordidas mais, umas perguntinhas mais. Não quer fumar um cigarro?
- Parei há dois anos. Só fumo em ocasiões especiais.
- Não me diga que foi por causa do cartaz do Homem de Marlboro impotente, ali no Sunset Boulevar.
- Não, minha mulher queria que nós dois parássemos. E conseguimos.
- Sua mulher? Harry, você está cheio de surpresas.
- Não fique entusiasmado. Ela veio e se foi. Mas pelo menos eu não fumo mais. Não sei onde ela está.
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McCaleb simplesmente balançou a cabeça, sentindo que se intrometera demais no mundo pessoal do outro, e voltou ao caso, dizendo:
- Tem alguma teoria sobre quem matou Gunn? Deu outra mordida enquanto Bosch respondia.
- Meu palpite é que ele provavelmente encontrou alguém parecido com ele. Alguém que saiu da linha em algum lugar. Não me interprete mal. Espero que você e Jaye peguem
essa pessoa. Mas até agora, quem quer que seja, ele ou ela, não fez nada que me incomodasse muito. Entende o que quero dizer?
- É engraçado você mencionar "ela". Acha que pode ter sido uma mulher?
- Não sei o bastante sobre o caso. Mas como eu disse, ele explorava mulheres. Talvez uma delas tenha posto fim a isso.
McCaleb simplesmente balançou a cabeça. Não conseguia pensar em nada mais que pudesse perguntar a Bosch. Em todo caso, aquela fora uma cartada sem muitas probabilidades
de êxito. Talvez ele até já soubesse que a coisa sairia assim e desejasse simplesmente reatar o relacionamento com Bosch por outras razões.
- Ainda pensa sobre a garota na colina, Harry? - disse ele com os olhos no prato de papel. Não queria dizer em voz alta o nome que Bosch dera a ela.
Bosch balançou a cabeça.
- De tempos em tempos eu penso. A coisa ficou grudada em mim. Tudo isso fica, eu acho.
McCaleb balançou a cabeça, dizendo:
- É isso mesmo. Mas então nada... ninguém jamais reivindicou
o corpo?
- Não. E eu ainda tentei falar com Seguin uma última vez. Fui até a prisão no ano passado, uma semana antes que ele fosse para a cadeira elétrica. Tentei novamente
descobrir alguma coisa, mas ele só sorria para mim. Como se soubesse que aquilo era a última coisa que podia reter de mim, ou coisa assim. Dava pra ver que ele estava
gostando da situação. Daí eu levantei e disse pra ele ir se divertir no inferno. Sabe o que ele disse? "Ouvi dizer que lá o calor é seco." - Bosch abanou a cabeça
e acrescentou: - Filho da puta. Fui
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até lá e voltei no meu dia de folga. Doze horas dentro do carro, com o ar-condicionado quebrado.
Olhou diretamente para McCaleb, que mesmo através dos óculos escuros sentiu novamente o laço forte que o unira àquele homem havia tanto tempo.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ouviu o celular tocar no bolso do agasalho que deixara dobrado no banco ao seu lado. Lutou contra a roupa para achar o bolso
e pegar o telefone antes que a pessoa desistisse da chamada. Era Brass Doran.
- Tenho uns troços pra você. Não é muito, mas talvez seja um ponto de partida.
- Onde você está? Eu retorno a ligação daqui a pouco.
- Na realidade, estou na sala central de reuniões. Estamos prestes a iniciar uma sessão intensiva sobre um caso, e sou a orientadora. Só vou estar livre daqui a
algumas horas. Você pode telefonar para minha casa à noite, se...
- Não, espere um instante.
Ele abaixou o telefone e olhou para Bosch.
- Preciso atender esta ligação. Falo com você depois, se aparecer alguma coisa, está bem?
- Claro.
Bosch começou a se levantar, levando a Coca-Cola.
- Obrigado - disse McCaleb, estendendo a mão. - Boa sorte no julgamento.
Bosch apertou a mão do amigo.
- Obrigado. Provavelmente vamos precisar.
McCaleb viu-o sair da área de piquenique e pegar a calçada que levava ao tribunal. Levou de novo o telefone ao ouvido.
- Brass?
- Estou aqui. Bom, você estava falando de corujas em geral, certo? Não sabe o tipo ou o gênero, certo?
- Certo. E só uma coruja comum, acho eu.
- De que cor?
- Hum, a maior parte é marrom. Nas costas e nas asas. Enquanto falava, tirou do bolso umas páginas de caderno
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dobradas e uma caneta. Afastou para o lado o cachorro-quente com molho, meio comido, e preparou-se para tomar notas.
- Muito bem, a iconografia moderna é o que se esperaria mesmo. A coruja é o símbolo da sabedoria e da verdade, denota conhecimento, a visão de um quadro maior, em
oposição a pequenos detalhes. A coruja vê à noite. Em outras palavras, ver através das trevas é ver a verdade. É descobrir a verdade, portanto, conhecimento. E do
conhecimento vem a sabedoria. Certo?
McCaleb não precisava anotar aquilo. O que Doran dissera era óbvio. Mas só para manter a cabeça atenta, escreveu:
Ver no escuro = Sabedoria
Depois sublinhou a última palavra.
- Está bem, ótimo. O que mais?
- Isso é basicamente o que eu tenho, quanto às aplicações contemporâneas. Mas quando a gente vai para o passado a coisa fica bem mais interessante. A reputação da
nossa amiga coruja rejuvenesceu totalmente. Ela costumava ser a vilã da história.
- Fale, Brass.
- Pegue o lápis. A coruja é vista reiteradamente na arte e na iconografia religiosa, desde os primeiros tempos medievais até os períodos finais da Renascença. Muitas
vezes é encontrada em exibições religiosas alegóricas... pinturas, painéis de igrejas e estações do Calvário. A coruja era...
- Tá legal, Brass, mas o que ela significava?
- Estou chegando lá. Seu significado podia divergir de figura para figura, e também segundo a espécie mostrada. Contudo sua aparição essencialmente era um símbolo
do mal.
McCaleb anotou a palavra.
- Mal. Tá legal.
- Pensei que ia ficar mais entusiasmado.
- E porque você não está me vendo. Estou plantando bananeira aqui. O que mais você tem?
- Vamos percorrer a lista de referências. Foram tiradas de trechos da literatura crítica sobre a arte do período. As referências a
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figuras de corujas mostram o pássaro como... vou citar... símbolo da destruição, inimigo da inocência, o próprio Diabo, símbolo de heresia, loucura, morte e desgraça,
a ave das trevas, e, finalmente, o tormento da alma humana em sua jornada inevitável para a danação eterna. Bonito, né? Gosto dessa última. Acho que no século quinze
eles não vendiam muitos sacos de batata frita com figuras de corujas. McCaleb não respondeu. Estava anotando as descrições que ela lera para ele.
- Leia a última novamente.
Ela leu e ele anotou palavra por palavra.
- Mas tem mais - disse Brass. - Há também algumas interpretações da coruja como sendo o símbolo da ira, bem como a punição do mal. Portanto, obviamente era algo
que significava coisas diferentes em épocas diferentes, e para pessoas diferentes.
- A punição do mal - disse McCaleb enquanto anotava. Olhou para a lista que fizera.
- Mais alguma coisa? -Não basta isso?
- Provavelmente, sim. Há qualquer coisa sobre os livros que mostram alguns desses troços, ou os nomes dos artistas e escritores que costumavam chamar a coruja de
"ave das trevas" em suas obras?
McCaleb ouviu no fone o ruído das páginas sendo viradas, e Brass ficou silenciosa por alguns instantes.
- Não tenho muita coisa aqui. Nenhum livro, mas posso dar os nomes de alguns dos artistas mencionados, e você provavelmente pode conseguir alguma coisa na Internet
ou talvez na biblioteca da UCLA.
- Tudo bem.
- Tenho que andar depressa. Estamos prestes a começar aqui. - Diga o que você tem.
- Bom, tenho um artista chamado Bruegel, que pintou um rosto enorme como sendo o portão do inferno. Uma coruja marrom tinha o seu ninho dentro da narina de um rosto
- disse ela, começando a rir e acrescentando: - Não me pergunte nada. Só estou dizendo o que encontrei.
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- Ótimo - disse McCaleb, anotando a descrição. - Continue.
- Tá legal, dois outros que se destacaram por usar a coruja como símbolo do mal foram Van Oostanen e Dürer. Não tenho o nome dos quadros específicos.
McCaleb ouviu mais páginas sendo viradas. Perguntou como se soletravam os nomes dos artistas e anotou.
- Tá legal, achei. A obra desse último cara aqui supostamente está repleta de corujas por toda parte. Não consigo pronunciar o primeiro nome dele. Escreve-se H-I-E-R-O-N-Y-M-U-S.
Ele era dos Países Baixos e fazia parte do movimento renascentista do norte. Acho que as corujas faziam sucesso lá.
McCaleb olhou para papel à sua frente. O nome que ela acabara de soletrar lhe parecia familiar.
- Você esqueceu o último nome dele. Qual era?
- Ah, desculpe. É Bosch. Como as velas de ignição. McCaleb ficou paralisado. Não se movia, não respirava.
Olhava fixamente para o nome no papel, incapaz de escrever a última parte, que Brass acabara de lhe dar. Finalmente, virou a cabeça e olhou para a área de piquenique,
observando o ponto da calçada onde vira Bosch pela última vez, indo embora.
- Terry, ainda está aí? Ele se recuperou.
- Estou.
- É só, na realidade. E tenho que ir. Já vamos começar por aqui.
- Mais alguma coisa sobre Bosch?
- Na verdade, não. E meu tempo se esgotou.
- Tá legal, Brass. Escute, muito obrigado. Fico devendo essa a você.
- E algum dia eu vou cobrar. Quero saber como as coisas se desenvolvem, está bem?
- Pode estar certa disso.
- E manda uma foto daquela menininha pra mim.
- Vou mandar.
Ela desligou, e McCaleb fechou o telefone celular vagarosamente. Fez uma anotação no fim da página para lembrar de enviar
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a Brass uma foto de sua filha. Era somente um artifício para evitar o nome do pintor que ele anotara.
- Merda - sussurrou.
Ficou sentado, imerso nos próprios pensamentos, durante bastante tempo. Estava perturbado pela coincidência de receber aquela informação misteriosa poucos minutos
depois de almoçar com Harry Bosch. Estudou as anotações durante uns momentos, mas sabia que ali não se encontrava a informação imediata de que precisava. Finalmente
abriu novamente o telefone e ligou para 213, informações. Um minuto mais tarde, estava telefonando para a seção de pessoal do Departamento de Polícia de Los Angeles.
Uma mulher atendeu depois de nove toques.
- Sim, estou telefonando em nome do gabinete do xerife do condado de Los Angeles e preciso contatar um determinado policial do Departamento de Polícia. Mas não sei
onde ele trabalha. Só tenho o nome dele.
Torceu para que a mulher não perguntasse o que ele queria dizer com em nome do. Houve o que pareceu ser um longo silêncio, e depois ele ouviu o som de alguém digitando
num teclado.
- Ultimo nome?
- Hum... Bosch.
Ele soletrou o nome e depois olhou para as anotações, pronto para soletrar o primeiro nome.
- E o primeiro no... não importa, só há um. Hie...ro...nimus. E isso? Acho que não sei pronunciar esse troço.
- Hieronymus. É esse mesmo.
Ele soletrou o nome e perguntou se coincidia. Coincidia.
- Bom, ele é detetive de terceiro grau e trabalha na Divisão Hollywood. Precisa do número de lá?
McCaleb não respondeu.
- Senhor, precisa...
- Não, já tenho. Muito obrigado.
McCaleb fechou o telefone, olhou para o relógio e reabriu o aparelho. Ligou para o número direto de Jaye Winston, que atendeu imediatamente. Ele perguntou se ela
conseguira algum resultado do laboratório sobre o exame da coruja de plástico.
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- Ainda não. Faz apenas duas horas, e uma delas era de almoço. Vou esperar até amanhã antes de começar a bater na porta deles.
- Tem tempo de dar uns telefonemas e me fazer um favor?
- Que telefonemas?
Ele descreveu a pesquisa iconográfica que Brass Doran fizera, mas omitiu qualquer referência a Hieronymus Bosch. Disse que queria conversar com um perito em pintura
renascentista do norte da Europa, mas achava que as coisas poderiam andar mais depressa e a cooperação seria mais fácil se a solicitação viesse de uma detetive de
homicídios oficial.
- Farei isso - disse Jaye. - Por onde a gente começa?
- Eu tentaria o museu Getty. Estou em Van Nuys agora. Se alguém quiser me receber, posso chegar lá em meia hora.
- Vou ver o que posso fazer. Falou com Harry Bosch?
- Falei.
- Alguma novidade?
- Na verdade, não.
- Eu sabia. Fique frio. Já ligo de volta.
McCaleb jogou o que restara do almoço numa das latas de lixo e dirigiu-se para o tribunal, onde deixara o Cherokee estacionado numa rua transversal, junto aos escritórios
de liberdade condicional do estado. Enquanto caminhava, foi pensando sobre a mentira por omissão que contara a Jaye. Sabia que deveria ter falado da conexão ou coincidência
com Bosch, fosse o que fosse aquilo. Tentou entender o que o fizera omitir a informação, mas não encontrou resposta.
O telefone tocou assim que ele chegou ao Cherokee. Era Jaye.
- Você tem um encontro marcado no museu Getty às duas horas. Procure Leigh Alasdair Scott. É um dos curadores de pinturas.
McCaleb pegou as anotações e escreveu o nome do sujeito, usando o capo do carro como apoio, depois de perguntar a Jaye como se soletrava aquilo.
- Foi rápido, Jaye. Obrigado.
- Nossa meta é agradar. Falei diretamente com Scott, e ele disse que se não pudesse ajudar encontraria alguém que pudesse.
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- Mencionou a coruja?
- Não, a entrevista é sua.
- Certo.
McCaleb percebeu que aquela era outra chance de falar de Hieronymus Bosch para Jaye. Mas novamente deixou a coisa passar.
-Telefono mais tarde, está bem?
- Até logo.
Ele fechou o telefone e destrancou o carro. Olhou por cima da capota do veículo para os escritórios de liberdade condicional e viu um grande cartaz branco, com dizeres
em letra azul, pendendo sobre a fachada acima da portaria.
SEJA BEM-VINDA DE VOLTA, THELMA!
Entrou no carro, pensando se a Thelma que estava recebendo boas-vindas seria uma presa ou uma funcionária. Seguiu na direção do bulevar Victory. Pegaria a 405 e
seguiria para o sul.
Capítulo 11
A rodovia se elevava para cruzar as montanhas Santa Monica pelo passo Sepulveda, e McCaleb viu o Getty surgir no alto da colina. A estrutura do próprio museu era
tão impressionante quanto qualquer das grandes obras artísticas ali abrigadas. Parecia um castelo assentado no topo de uma colina medieval. McCaleb viu um dos dois
trenzinhos duplos avançando vagarosamente morro acima para deixar mais um grupo naquele altar da história e da arte.
Quando estacionou no sopé da colina e pegou o trenzinho para subir, McCaleb já estava quinze minutos atrasado para o encontro com Leigh Alasdair Scott. Depois de
pedir informações a um guarda do museu, atravessou rapidamente a praça calçada de pedras calcárias e chegou a uma entrada controlada. Identificou-se no balcão e
ficou esperando num banco até Scott vir buscá-lo.
O homem tinha cinqüenta e poucos anos, e falava com um sotaque que McCaleb inicialmente achou ser da Austrália ou Nova Zelândia. Era amável, e parecia contente de
estar prestando um favor ao gabinete do xerife do condado de Los Angeles.
- Já tivemos a oportunidade de oferecer nossa ajuda e experiência a detetives no passado. Geralmente no que diz respeito à autenticação de obras de arte ou oferecendo
o embasamento histórico de peças específicas - disse ele, levando McCaleb por um longo corredor até o seu escritório. - A detetive Jaye Winston deu a
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entender que desta vez seria diferente. Você precisa de informações gerais sobre a Renascença no norte da Europa?
Abriu uma porta e fez McCaleb entrar num conjunto de escritórios. Os dois foram para a primeira sala depois do balcão de controle. Era um escritório pequeno com
uma grande janela, de onde se avistava um panorama que ia desde o passo Sepulveda até o casario na encosta de Bel-Air. A sala parecia atulhada, devido às estantes
de livros que forravam duas paredes e também por causa da mesa de trabalho repleta de coisas. Só havia lugar para duas cadeiras. Scott indicou uma delas a McCaleb
e sentou-se na outra.
- Na realidade, as coisas mudaram um pouco depois que a detetive Jaye falou com você - disse McCaleb. -Já posso ser mais específico sobre o que necessito. Consegui
concentrar minhas perguntas num pintor específico daquele período. Se puder me falar dele e talvez me mostrar algumas obras de sua autoria, já seria de grande ajuda.
- E qual é o nome dele?
- Vou lhe mostrar.
McCaleb tirou as anotações dobradas e mostrou-as a Scott, que leu o nome em voz alta com óbvia familiaridade, pronunciando o primeiro nome "i-e-rô-ni-mo".
- Achei que a pronúncia era mesmo essa.
- Rima com anônimo. Na verdade, sua obra é bastante conhecida. Não sabia?
- Não. Não estudei muita coisa de arte. O museu tem algum quadro dele?
- Nenhuma das obras de Bosch faz parte da coleção Getty, mas há um quadro de um discípulo dele na seção de conservação. Está sofrendo um grande trabalho de restauração.
A maior parte das obras autenticadas está na Europa, sendo que as mais representativas estão no museu do Prado. Outras estão espalhadas pelo mundo. Entretanto não
sou a pessoa mais indicada para conversar com você sobre isso.
McCaleb franziu a testa numa pergunta muda.
- Como concentrou sua pesquisa especificamente em Bosch, há uma pessoa aqui mais qualificada para falar com você. Ela é
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assistente da curadoria. Acontece que também está trabalhando num catálogo raisonné sobre o pintor... um projeto de longo prazo para ela. Um trabalho de amor, talvez.
- Ela está aqui? Posso falar com ela?
Scott estendeu a mão para o telefone e apertou o botão do microfone. Consultou uma lista de ramais colada na mesa ao lado e apertou três dígitos. Uma mulher respondeu
depois de três toques.
- Lola Walter, em que posso ajudar?
- Lola, é Scott. Penelope está disponível?
- Está trabalhando no Inferno hoje.
- Ah, entendi. Vamos falar com ela lá.
Scott apertou o botão do microfone, desligando, e foi para a porta.
- Você está com sorte - disse.
- Inferno? - perguntou McCaleb.
- E a tal pintura do discípulo. Faça o favor de me acompanhar. Scott conduziu McCaleb até um elevador e os dois desceram
um andar. Ao longo do caminho, ele explicou que o museu tinha um dos melhores ateliês de conservação do mundo. Conseqüentemente, obras de arte de outros museus e
de coleções particulares eram com freqüência despachadas para o Getty a fim de serem reparadas e restauradas. No momento, um quadro que se acreditava ser de um aluno
de Bosch ou de um pintor de seu ateliê estava sendo restaurado para um colecionador particular. O quadro chamava-se Inferno.
O ateliê de conservação era um enorme aposento dividido em duas seções principais. Um delas era a oficina onde as molduras eram restauradas. A outra seção era dedicada
à restauração de quadros e subdividia-se em uma série de baias dispostas ao longo de uma parede de vidro com a mesma vista que Scott tinha do escritório.
McCaleb foi conduzido à segunda baia, onde uma mulher estava de pé atrás de um homem sentado, ambos diante de um quadro preso a um grande cavalete. O homem usava
um avental sobre a camisa social e a gravata, e algo que parecia ser um par de lentes de
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aumento de joalheiro. Estava inclinado em direção à pintura, usando um pincel com a ponta diminuta para aplicar o que parecia ser tinta prateada à superfície.
Nem o homem nem a mulher olharam para McCaleb e Scott, que levantou as mãos num gesto de Pare aqui, enquanto o homem sentado completava a pincelada. McCaleb olhou
para o quadro. Tinha cerca de um metro e vinte de altura e um metro e oitenta de largura. Era uma paisagem escura que mostrava uma aldeia sendo inteiramente queimada
durante a noite, enquanto os habitantes eram torturados e executados por uma variedade de criaturas sobrenaturais. A parte superior do quadro, que mostrava principalmente
o céu noturno em torvelinho, estava marcada por pequenas manchas causadas por danos ou trechos sem tinta. Os olhos de McCaleb se fixaram num pequeno segmento abaixo
daquilo, onde se via um homem - nu e com os olhos vendados - sendo forçado a subir uma escada para a forca por um grupo de criaturas semelhantes a pássaros com lanças.
O homem do pincel terminou sua tarefa e colocou o pincel no tampo de vidro da mesa à esquerda. Depois inclinou-se de volta para o quadro a fim de examinar seu trabalho.
Scott pigarreou. Apenas a mulher se virou.
- Penelope Fitzgerald, este é o detetive McCaleb. Ele está envolvido numa investigação e precisa fazer perguntas sobre Hieronymus Bosch.
Fez um gesto na direção do quadro.
- Eu disse que você era a pessoa da equipe mais indicada para conversar com ele.
McCaleb viu os olhos da mulher registrarem surpresa e preocupação, numa reação normal a uma súbita apresentação à polícia. Já o sujeito sentado nem se virou. Em
vez disso, pegou o pincel e voltou a trabalhar no quadro. McCaleb estendeu a mão para a mulher.
- Na realidade, eu não sou oficialmente um detetive. O escritório do xerife pediu que eu ajudasse numa investigação.
Eles se cumprimentaram.
- Não entendi - disse ela. - Algum quadro de Bosch foi roubado?
- Não, nada disso. Esse quadro é dele?
Fez um gesto na direção da pintura.
- Não exatamente. Pode ser cópia de uma obra dele. Se for, então o original se perdeu e isso é tudo que temos. O estilo e o traço são dele. Mas é geralmente aceito
como trabalho de um aluno da oficina de Bosch. Provavelmente foi pintado depois que ele morreu.
Enquanto ela falava, seus olhos jamais se afastaram da pintura. Eram penetrantes e amistosos, traindo facilmente sua paixão pelo pintor. McCaleb atribuiu-lhe cerca
de sessenta anos e pensou que provavelmente ela dedicara sua vida ao estudo e ao amor à arte. Penelope Fitzgerald o surpreendera. A breve descrição que Scott fizera
dela, como sendo uma assistente que trabalhava num catálogo da obra de Bosch, fizera com que ele a visualizasse como uma jovem estudante de arte. Silenciosamente,
repreendeu-se por ter feito tal suposição.
O sujeito sentado pousou o pincel novamente e pegou um pano branco limpo na bancada para limpar as mãos. Girou na cadeira e ergueu os olhos ao notar McCaleb e Scott.
Só então McCaleb percebeu que fizera outra suposição errada. O homem não ignorara a presença deles. Simplesmente não ouvira nada.
O sujeito tirou as lentes do alto da cabeça enquanto metia a mão embaixo do avental, perto do peito, ajustando um aparelho auditivo.
- Desculpe - disse ele. - Não sabia que tínhamos visitas. Falava com forte sotaque alemão.
- Doutor Derek Vosskuhler, este é Terry McCaleb - disse Scott. - Ele é investigador e precisa lhe roubar a Penelope por alguns minutos.
- Compreendo. Está bem.
- O doutor Vosskuhler é um dos nossos peritos em restauração
- esclareceu Scott.
Vosskuhler balançou a cabeça e ergueu os olhos para McCaleb, estudando-o como talvez estudasse uma pintura. Não fez qualquer movimento para estender a mão.
- Uma investigação? A respeito de Hieronymus Bosch, é?
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- De modo periférico. Eu só quero saber tudo que puder sobre ele. Soube que existe uma especialista aqui - disse McCaleb sorrindo para Penelope.
- Ninguém é especialista em Bosch - disse Vosskuhler, sem sorrir. - Alma torturada, gênio atormentado... Como poderemos chegar a conhecer o que verdadeiramente se
passa no coração de um homem?
McCaleb simplesmente balançou a cabeça. Vosskuhler voltou-se e examinou a pintura, dizendo: -O que vê aqui? McCaleb olhou para o quadro e custou bastante a responder.
- Muito sofrimento.
Vosskuhler balançou a cabeça em aprovação. Depois levantou e olhou bem de perto para o quadro, abaixando os óculos e inclinando-se para o quarto superior da pintura,
com as lentes a poucos centímetros do céu noturno sobre a aldeia em chamas.
- Bosch conhecia todos os demônios - disse ele sem se virar. A treva...
Passou-se um longo momento.
Houve outro longo período de silêncio antes que Scott interrompesse abruptamente, dizendo que precisava voltar ao escritório, e saísse. E depois de outro momento,
Vosskuhler finalmente deu as costas para o quadro. Não se deu ao trabalho de levantar as lentes quando olhou para McCaleb. Meteu vagarosamente a mão embaixo do avental
e desligou o aparelho auditivo.
- Eu também preciso voltar ao trabalho. Boa sorte na investigação.
McCaleb balançou a cabeça, enquanto Vosskuhler se sentava de volta na cadeira giratória e pegava novamente o pequeno pincel.
- Podemos ir até o meu escritório - disse Penelope Fitzgerald.
- Tenho todos os livros ilustrados da nossa biblioteca lá. Posso lhe mostrar o trabalho de Bosch.
- Isso seria ótimo. Obrigado.
Ela se dirigiu para a porta. McCaleb demorou-se um instante, lançando um último olhar para o quadro. Seus olhos foram atraídos
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para a parte superior, na direção das trevas em torvelinho, acima das chamas.
O escritório de Penelope Fitzgerald era um compartimento de dois por dois metros, numa sala compartilhada por vários assistentes da curadoria. Ela enfiou num espaço
apertado uma cadeira que tirou de um compartimento contíguo, onde ninguém estava trabalhando, e mandou McCaleb se sentar. Sua escrivaninha tinha a forma de L, com
um lap top do lado esquerdo e um espaço de trabalho atulhado de coisas do lado direito. Havia vários livros empilhados na mesa. McCaleb notou que atrás de uma das
pilhas havia uma reprodução colorida de um quadro muito semelhante em estilo ao que Vosskuhler estava restaurando. Ele empurrou os livros um palmo para o lado e
inclinou-se a fim de examinar a reprodução. Era dividida em três painéis, com o maior no centro. Ali também reinava o caos. Dezenas e dezenas de figuras espalhavam-se
pelos painéis, em cenas de libertinagem e tortura.
- Reconhece isso? - disse Penelope.
- Acho que não. Mas é de Bosch, não é?
- E a sua obra mais característica. O tríptico denominado O jardim das delícias terrenas. Está no museu do Prado, em Madri. Certa vez eu fiquei quatro horas diante
dele. Não foi o bastante para apreender toda a obra. Quer café, água ou alguma outra coisa, Sr. McCaleb?
- Não, obrigado. Pode me chamar de Terry se quiser.
- E você me chama de Nep. McCaleb fez uma expressão intrigada.
- Apelido de infância. Ele balançou a cabeça.
- Bom - disse ela. - Nesses livros eu posso lhe mostrar todas as obras de Bosch já identificadas. É uma investigação importante?
McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que sim. E um homicídio.
- E você é uma espécie de consultor?
- Eu trabalhava para o FBI aqui em Los Angeles. A detetive do escritório do xerife a quem o caso foi distribuído pediu que eu
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desse uma olhada na história e visse o que eu achava. Foi isso que me trouxe aqui. A Bosch. Desculpe, mas não posso revelar os detalhes do caso, e sei que isso deve
ser frustrante para você. Quero fazer perguntas, mas na verdade não posso responder a nenhuma pergunta sua.
- Droga - disse ela sorrindo. - A coisa parece realmente interessante.
- Mas se houver um ponto sobre o qual eu possa falar prometo fazer isso.
- Parece justo.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Pelo que o doutor Vosskuhler falou, entendi que se sabe pouco do homem por trás dos quadros.
Penelope balançou a cabeça.
- Hieronymus Bosch é certamente considerado um enigma e provavelmente sempre será.
McCaleb abriu suas anotações sobre a mesa e começou a escrever enquanto ela falava.
- Ele tinha uma das imaginações menos convencionais de sua época. Ou de qualquer época, pode-se dizer. Sua obra é realmente extraordinária, e cinco séculos mais
tarde continua sujeita a reestudos e reinterpretações. Mas acho que você perceberá que a maioria das análises críticas até hoje afirma que ele era um profeta da
destruição. Sua obra é inspirada nos portentos da destruição e do fogo eterno, e por avisos sobre os custos do pecado. Para colocar a coisa de maneira mais sucinta,
os quadros são primordialmente variações sobre o mesmo tema: que a loucura da humanidade nos leva todos ao inferno como nosso destino final.
McCaleb escrevia rapidamente para tentar acompanhá-la, desejando ter trazido um gravador.
- Sujeito legal, hein? - acrescentou Penelope.
- Parece que sim - disse McCaleb, meneando a cabeça na direção da reprodução do tríptico. - Devia ser divertido numa noite de sábado.
Ela sorriu.
- Foi exatamente o que eu pensei quando estive no Prado.
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- Alguma qualidade redentora? Ele abrigava órfãos, era bondoso com os cachorros, trocava pneus furados para as velhinhas, qualquer coisa assim?
- Você precisa lembrar da época e do lugar em que ele vivia para compreender integralmente o que ele estava fazendo com sua arte. Embora seu trabalho fosse pontilhado
por cenas violentas e representações de tortura e angústia, naquela época esse tipo de coisa não era incomum. Ele vivia numa época violenta, e sua obra reflete isso
claramente. Os quadros também refletem a crença medieval na existência de demônios por toda parte. O mal espreita em todas as pinturas.
- A coruja?
Ela ficou olhando para ele com expressão vaga por um instante.
- Sim, a coruja é um dos símbolos que ele usava. Achei que você disse que não tinha familiaridade com a obra dele.
- E não tenho. Foi uma coruja que me trouxe aqui. Mas não posso entrar nesse assunto e não deveria ter interrompido. Por
favor, continue.
- Eu só ia acrescentar que isso é revelador, quando se considera que Bosch foi contemporâneo de Leonardo, Michelangelo e Rafael. Contudo, se você examinasse as obras
de todos eles lado a lado, seria levado a acreditar que Bosch... com todos os símbolos medievais e a destruição... era do século anterior.
- Mas ele não era.
Ela abanou a cabeça como se sentisse pena de Bosch.
- Ele e Leonardo da Vinci tinham uma diferença de idade de apenas um ano ou dois. No final do século quinze, da Vinci estava criando obras que eram cheias de esperança,
celebração dos valores humanos e espiritualidade, enquanto Bosch era só melancolia e destruição.
- Isso deixa você triste, não é?
Ela pôs as mãos no livro mais alto da pilha, mas não o abriu. A lombada ostentava simplesmente o nome de BOSCH e não havia ilustrações na encadernação de couro preto.
- Não posso deixar de pensar no que poderia ter acontecido se Bosch tivesse trabalhado lado a lado com da Vinci ou
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michelangelo, e no que poderia ter acontecido se ele tivesse usado seu talento e imaginação na celebração e não na danação do mundo.
Ela baixou os olhos para o livro e depois encarou McCaleb de novo.
- Mas é nisso que está a beleza da arte, e é por isso que estudamos e celebramos essas obras. Cada pintura é uma janela para a alma e a imaginação do artista. Por
mais sombria e perturbadora que seja, é essa visão que diferencia cada artista e torna seus quadros únicos. O que acontece comigo, em relação a Bosch, é que os quadros
servem para me transportar até a alma do artista, e eu sinto o tormento ali dentro.
McCaleb balançou a cabeça afirmativamente. Penelope baixou os olhos e abriu o livro.
Para McCaleb, o mundo de Hieronymus Bosch era tão surpreendente quanto perturbador. As paisagens dolorosas que se desenrolavam nas páginas que Penelope virava assemelhavam-se
a algumas das mais horríveis cenas de crimes que ele já vira, mas naquelas cenas pintadas os atores ainda viviam e sofriam. Os dentes arreganhados e as carnes dilaceradas
estavam em ação e eram reais. As telas estavam apinhadas daqueles seres humanos condenados ao inferno, que tinham seus pecados castigados por demônios visíveis e
criaturas tornadas vivas pela mão de uma imaginação horrenda.
Ele começara a examinar as reproduções coloridas das pinturas em silêncio, absorvendo tudo como começaria a observar a fotografia da cena de um crime. Mas subitamente
ela virou uma página e viu um quadro que representava três pessoas de pé em torno de um homem sentado. Uma das pessoas de pé estava usando o que parecia um bisturi
primitivo para abrir um corte no topo da cabeça do homem sentado. A imagem era representada em um círculo. Havia palavras pintadas acima e abaixo do círculo.
- Que quadro é esse? - perguntou ele.
- Chama-se A operação da pedra - disse Penelope. - Na época muita gente acreditava que a estupidez e a mentira podiam ser curadas removendo uma pedra da cabeça de
quem sofresse da doença.
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McCaleb curvou-se sobre o ombro dela e olhou de perto para a pintura, especificamente para o local do corte cirúrgico. Era um local comparável ao ferimento na cabeça
de Edward Gunn.
- Muito bem, pode continuar.
Havia corujas por toda parte. Penelope quase nunca precisava mostrá-las, tão óbvias eram suas posições. Mas explicava algumas das imagens correlatas. Na maioria
dos quadros, quando a coruja era representada numa árvore, o galho onde pousara o símbolo do mal estava desfolhado e acinzentado - morto.
Ela virou a página e mostrou uma pintura composta por três painéis.
- Chama-se O juízo Final, com o painel da esquerda subintitulado A queda da humanidade, e o painel direito, de forma simples e óbvia, Inferno.
- Ele gostava de pintar o inferno.
Mas Nep Fitzgerald não sorriu. Seus olhos examinavam o livro.
O painel da esquerda da pintura era uma cena passada no Jardim do Éden. Adão e Eva apareciam no centro, recebendo o fruto da serpente na macieira. Num galho morto
de uma árvore próxima, uma coruja observava a transação. No painel oposto, o Inferno era mostrado como um lugar escuro, onde criaturas semelhantes a pássaros estripavam
os condenados, retalhando seus corpos e colocando os pedaços em tachos a serem enfiados em fornos flamej antes.
- Tudo isso saiu da cabeça desse cara - disse McCaleb. - Eu
não...
Não terminou, porque não sabia ao certo o que estava tentando dizer.
- Uma alma atormentada - disse Penelope virando a página. A pintura seguinte era outra imagem circular, com sete cenas
diferentes apresentadas em torno da borda externa e um retrato de Deus no centro. No círculo dourado que cercava o retrato de Deus e o separava das cenas exteriores,
havia quatro palavras em latim que McCaleb reconheceu imediatamente.
- Cuidado, cuidado, Deus vê. Penelope ergueu os olhos para ele.
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- Obviamente, você já viu isso antes. Ou simplesmente conhece latim do século quinze. O caso em que está trabalhando deve ser muito estranho.
- E o que está parecendo. Mas eu só conheço as palavras, e não o quadro. O que é isso?
- Na realidade é um tampo de mesa, provavelmente criado para a reitoria de uma igreja ou a residência de uma pessoa santa. E o olho de Deus. Ele está no centro e
o que ele vê quando olha para baixo são essas imagens, os sete pecados mortais.
McCaleb balançou a cabeça. Olhando para as cenas distintas, dava para perceber alguns dos pecados mais óbvios: gula, luxúria e orgulho.
- E agora a obra-prima - disse a sua guia naquela turnê, virando a página.
Era o mesmo tríptico que ela pregara na parede da divisória. O jardim das delícias terrenas. McCaleb examinou a pintura de perto. O painel da esquerda era uma cena
bucólica de Adão e Eva sendo colocados no jardim pelo Criador. Perto havia uma macieira. O painel central, o maior, mostrava dezenas de pessoas nuas copulando e
dançando com luxúria desinibida, montadas em cavalos, lindos pássaros e criaturas inteiramente imaginárias saídas do lago em primeiro plano. E o último painel, o
mais escuro, era o resultado. O inferno, um lugar de sofrimento e angústia administrado por aves monstruosas e outras criaturas horrendas. A pintura era tão detalhada
e fascinante que McCaleb compreendeu por que alguém podia ficar parado diante dela - do original - por quatro horas e ainda assim não absorver tudo.
- Tenho certeza que você já está apreendendo as idéias dos temas tão repetidos por Bosch - disse Penelope. - Mas essa é considerada a mais coerente de suas obras,
bem como a mais lindamente imaginada e realizada.
McCaleb balançou a cabeça e apontou para os três painéis, dizendo:
- Aqui você tem Adão e Eva, na boa vida até comerem a maçã. Aqui no centro você tem o que acontece depois da perda do
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estado de graça: a vida sem regras. A liberdade de escolha nos leva à luxúria e ao pecado. E onde vai dar tudo isso? No inferno.
- Muito bem. Quer que eu tente salientar alguns pontos específicos que possam lhe interessar?
- Por favor.
Ela começou pelo primeiro painel.
- O paraíso terrestre. Você tem razão ao dizer que isso mostra Adão e Eva antes da queda. O lago e a fonte no centro representam a promessa da vida eterna. Você
já observou a árvore do fruto à esquerda do centro.
O dedo de Penelope moveu-se ao longo da pintura até a estrutura da fonte, uma torre feita do que parecia ser um monte de pétalas de flores que misteriosamente despejavam
água em quatro diferentes vertentes no lago abaixo. Depois ele viu a coisa. O dedo dela parou embaixo de uma pequena abertura escura no centro da estrutura da fonte.
O rosto de uma coruja espreitava nas trevas.
- Você mencionou a coruja antes. A imagem dela está aqui. Você vê que nem tudo é perfeito nesse paraíso. O mal espreita, e como você sabe acabará vitorioso. Segundo
Bosch. Depois, indo para o próximo painel, vemos essas imagens correlatas aparecerem repetidamente.
Ela apontou para duas representações distintas de corujas e mais duas de criaturas parecidas com corujas. Os olhos de McCaleb se fixaram em uma das imagens, que
mostrava uma grande coruja marrom, de reluzentes olhos negros, sendo abraçada por um homem nu. O colorido e os olhos da coruja coincidiam com os da ave de plástico
encontrada no apartamento de Edward Gunn.
- Vê alguma coisa aí, Terry? Ele apontou para a coruja.
- Esta aqui. Realmente não posso descer a detalhes com você, mas esta se encaixa na razão da minha presença aqui.
- Há muitos símbolos em ação neste painel. Este é um dos mais óbvios. Depois da queda, o livre-arbítrio leva o homem à libertinagem, à gula, à loucura e à avareza,
sendo a luxúria o pior de todos os pecados, no mundo de Bosch. O homem coloca seus braços em torno da coruja e assim abraça o mal.
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McCaleb balançou a cabeça.
- Mas depois paga por isso.
- Depois paga por isso. Como pode observar no último painel, esta é uma representação do inferno sem fogo. Em vez disso,
trata-se de um lugar com miríades de tormentos e dor interminável. De trevas.
McCaleb ficou em silêncio durante muito tempo, enquanto seus olhos se deslocavam ao longo da paisagem da pintura. Recordou o que o doutor Vosskuhler dissera.
Capítulo 12
Bosch pôs as mãos em concha e colocou-as sobre a vidraça ao lado da porta de entrada do apartamento. Estava olhando para o interior da cozinha. As bancadas estavam
imaculadamente limpas. Não havia bagunça, nem cafeteira elétrica, nem mesmo uma torradeira. Ele começou a ter um mau pressentimento. Foi até a porta e bateu mais
uma vez. Depois ficou andando de um lado para o outro, esperando. Ao olhar para baixo, viu na soleira a marca deixada por um capacho de boas-vindas.
- Caceta - disse.
Meteu a mão no bolso e tirou uma bolsinha de couro. Abriu o zíper e pegou dois pequenos estiletes de aço que fizera com serras metálicas. Olhando em torno, não viu
ninguém. Estava no recesso oculto de um grande complexo de apartamentos em Westwood. A maioria dos residentes provavelmente ainda estava trabalhando. Ele foi até
a porta e começou a trabalhar com os estiletes na fechadura. Noventa segundos mais tarde conseguiu abrir a porta e entrar.
Viu que o apartamento estava vazio logo que entrou, mas examinou cada cômodo mesmo assim. Todos estavam vazios. Na esperança de encontrar um frasco de remédio vazio,
verificou até o armário do banheiro. Sobre uma prateleira havia um barbeador de plástico cor-de-rosa, já usado, e nada mais.
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Bosch voltou à sala e pegou o telefone celular. Na véspera, já colocara o número do celular de Janis Langwiser na discagem rápida de seu aparelho. Ela era a co-promotora
do caso, e os dois haviam trabalhado no testemunho dele durante toda a semana. O telefonema ainda a encontrou no escritório temporário que a equipe da promotoria
ocupava no tribunal de Van Nuys.
- Escute, não quero estragar a festa, mas Annabelle Crowe sumiu.
- O que quer dizer com sumiu?
- Quero dizer que ela sumiu, gatinha, sumiu. Entrei no que era o apartamento dela. Está vazio.
- Merda! A gente precisa muito dela, Harry. Quando ela se mudou?
- Não sei. Acabei de descobrir que ela sumiu.
- Falou com o encarregado do prédio?
- Ainda não. Mas no máximo ele só vai saber há quanto tempo ela deu no pé. Se ela está fugindo do julgamento, não ia deixar um endereço novo com o encarregado.
- Bom, quando falou com ela pela última vez?
- Quinta-feira. Liguei pra cá. Mas essa linha foi desligada. E ela não deixou o número novo com a companhia telefônica.
- Merda!
- Eu sei. Você já disse isso.
- Ela recebeu a intimação, não foi?
- Foi, recebeu a intimação na quinta-feira. Foi por isso que telefonei pra ela. Pra ter certeza.
- Bom, então talvez ela apareça aqui amanhã. Bosch examinou o apartamento e disse:
- Eu não contaria com isso.
Olhou para o relógio. Já passava das cinco. Ele se sentia tão seguro acerca de Annabelle Crowe que a deixara por último na lista de testemunhas que precisava conferir.
Ela não dera sinal algum de que iria cair fora. Agora ele sabia que passaria a noite tentando descobrir o paradeiro dela.
- O que você pode fazer? - perguntou Janis.
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- Tenho algumas informações que posso verificar. Ela só pode estar na cidade. Ela é atriz, para onde mais iria?
- Nova York?
- Pra lá só vai quem é artista de verdade. Ela não passa de um rostinho bonito. Vai ficar aqui.
- Encontre essa mulher, Harry. Vamos precisar dela na semana
que vem.
- Vou tentar.
Houve um momento de silêncio, enquanto ambos refletiam
sobre a situação.
- Acha que o Storey chegou até ela? - perguntou Janis por fim.
- Estou pensando nisso. Ele pode ter se aproximado com algo que ela queria... um emprego, um papel, um cheque no fim do mês. Quando eu encontrar Annabelle, vou perguntar
isso.
- Tá legal, Harry. Boa sorte. Se você chegar a ela hoje à noite, avise. Senão, a gente se vê de manhã.
- Tá certo.
Bosch fechou o telefone e colocou o aparelho na bancada da cozinha. Do bolso do paletó, tirou uma pilha fina de cartões tamanho oito por doze. Cada cartão tinha
o nome de uma das testemunhas que ele precisava interrogar cuidadosamente e preparar para o julgamento. Ali estavam os endereços residenciais e de trabalho, bem
como os números dos telefones e bips das pessoas. Conferiu o cartão destinado a Annabelle Crowe e teclou o número do bip no telefone. Uma mensagem gravada informou
que aquele bip estava desativado.
Bosch fechou o telefone e olhou de novo para o cartão. O nome e o telefone do agente de Annabelle Crowe estavam relacionados no fim. Ele concluiu que o agente seria
o único elo que ela não quebraria.
Recolocou o telefone e os cartões nos bolsos. Aquela investigação ele tinha que fazer pessoalmente.
Capítulo 13
McCaleb fez a travessia sozinho, e o Mar que Segue chegou ao porto de Avalon logo que escureceu. Buddy ficara na marina Cabrillo. Não haviam aparecido novos clientes,
e sua presença só seria necessária no sábado. Ao chegar à ilha, McCaleb chamou o encarregado do ancoradouro pelo canal 16 do rádio e conseguiu ajuda para atracar
o barco.
A subida até sua casa se tornou exaustiva por causa do peso dos dois volumes grandes que encontrara na seção de livros usados na livraria Dutton, em Brentwood, e
do pequeno isopor cheio de tamales congelados. McCaleb teve de parar duas vezes no acostamento para descansar. Cada vez que parava e sentava no isopor, tirava
um dos livros da bolsa de couro para voltar a estudar a obra sombria de Hieronymus Bosch - até em meio às sombras do anoitecer.
Desde a visita ao museu Getty, as imagens dos quadros de Bosch não haviam se afastado mais de seus pensamentos. Nep Fitzgerald dissera algo importante no final do
encontro no escritório. Pouco antes de fechar as páginas das gravuras que reproduziam O jardim das delícias terrenas, ela olhara para ele com um pequeno sorriso,
como se tivesse algo a dizer, mas hesitasse.
- O que foi? - dissera ele.
- Nada, na verdade, só uma observação.
- Vá em frente, fale. Quero ouvir.
114
Eu só ia mencionar que muitos críticos e estudiosos que examinam a obra de Bosch enxergam corolários nos dias de hoje. Essa é a marca de um grande artista... se
sua obra suporta o teste do tempo. Se ele tem o poder de tocar... e talvez influenciar as pessoas.
McCaleb assentira, percebendo que ela queria saber em que ele estava trabalhando.
- Entendo o que está dizendo. Desculpe, mas no momento não posso lhe contar nada. Talvez possa fazer isso um dia, ou talvez um dia você simplesmente descubra o que
era. Mas obrigado. Você ajudou muito, acho eu. Ainda não sei ao certo.
Sentado ali no isopor, McCaleb lembrou-se da conversa. Corolários nos dias de hoje, pensou. E nos crimes de hoje. Abriu o maior dos dois livros que comprara e achou
uma ilustração da obraprima de Bosch. Examinou a coruja de olhos negros. Todos os seus instintos lhe diziam que ele estava na pista de algo importante. Algo rnuito
sombrio e perigoso.
Quando McCaleb chegou em casa, Graciela pegou o isopor e abriu-o sobre a bancada da cozinha. Tirou três dos tamales de milho verde e colocou-os num prato para descongelar
no microondas.
- Estou fazendo chilis rellenos com molho também - disse ela. Ainda bem que você telefonou do barco, senão nós teríamos jantado sem você.
McCaleb deixou que Graciela desabafasse. Sabia que ela se zangara com o que ele fizera. Foi até a mesa, onde Cielo estava sentada numa cadeira de balanço. A criança
olhava para o ventilador do teto e mexia as mãos diante dos olhos, acostumando-se com elas. McCaleb inclinou-se, beijando as duas mãozinhas e depois a testa do
bebê.
- Onde está Raymond?
- No quarto. No computador. Por que só comprou dez? McCaleb olhou para ela enquanto se sentava numa cadeira
perto de Cielo. Graciela estava pondo os outros tamales para congelar num recipiente plástico.
- Eu entreguei o isopor e mandei que eles enchessem. Só cabem dez, acho eu.
115
Ela abanou a cabeça, aborrecida com ele.
- Vai sobrar um.
- Então jogue esse fora ou convide um dos amigos de Raymond para jantar da próxima vez. E daí, Graciela? É só um tomais..
Graciela se virou, lançando-lhe um olhar sombrio e perturbado, mas que logo se abrandou.
- Você está todo suado.
- Eu acabei de subir a ladeira a pé. Não tinha mais condução. Ela abriu um armário acima de sua cabeça e tirou uma caixa de
plástico com um termômetro. Havia um termômetro em cada cômodo da casa. Ela sacudiu o instrumento e se aproximou dele. -Abre.
- Vamos usar o eletrônico.
- Não, eu não confio neles.
Graciela pôs a ponta do termômetro embaixo da língua de McCaleb. Depois elevou o maxilar dele e fechou-lhe a boca. Muito profissional. Na época em que ele a conhecera,
Graciela era enfermeira de um pronto-socorro, e atualmente trabalhava como enfermeira e auxiliar de escritório na escola de ensino básico de Catalina. Acabara de
voltar ao trabalho depois dos feriados de Natal. McCaleb pressentia que ela queria ser mãe em tempo integral, mas como eles não podiam se dar a esse luxo, jamais
mencionava o assunto diretamente. Esperava que dali a alguns anos o serviço de aluguel do barco estivesse mais consolidado, para que então eles pudessem optar. Às
vezes lamentava não ter guardado uma parte do dinheiro recebido pelos direitos do livro e do filme, mas também sabia que a única opção deles fora homenagear a irmã
de Graciela recusando-se a ganhar dinheiro com o que acontecera. Haviam doado metade do dinheiro para a Fundação Faça um Pedido e colocado o restante numa poupança
para Raymond. Se o menino quisesse, aquilo pagaria sua faculdade.
Graciela segurou o pulso de McCaleb e conferiu os batimentos cardíacos dele, que ficou sentado observando-a silenciosamente.
- Está acelerado - disse ela, largando o pulso dele. - Abre. Ele abriu a boca. Ela tirou o termômetro e fez a leitura do marcador. Foi até a pia, lavou o instrumento,
recolocou-o no estojo e
116
guardou-o no armário. Não disse nada, e McCaleb percebeu que sua temperatura estava normal.
- Gostaria que eu estivesse com febre, não é?
- Está maluco?
- Claro que gostaria. Assim poderia me mandar parar com isso.
- Como assim, mandar você parar com isso? Ontem à noite você disse que ia ser só ontem à noite. Hoje de manhã disse que ia ser só o dia de hoje. O que está me dizendo
agora, Terry?
Ele olhou para Cielo e estendeu um dedo para a neném agarrar. Depois olhou novamente para Graciela e disse:
- Ainda não acabou. Surgiram algumas coisas hoje.
- Algumas coisas? Seja lá o que for, passe tudo para a detetive Jaye Winston. É serviço dela. Não é serviço seu.
- Não posso. Ainda não. Pelo menos até ter certeza. Graciela se virou e voltou para a bancada. Pôs o prato com os
tamales dentro do microondas e ajustou o aparelho para descongelar.
- Quer levar Cielo lá pra dentro e mudar a fralda dela? Já está na hora. E ela precisa tomar a mamadeira enquanto eu preparo o jantar.
McCaleb tirou a filha cuidadosamente da cadeira de balanço e colocou-a no ombro. Cielo se agitou ruidosamente, e ele a acalmou com uns tapinhas suaves no dorso.
Foi até Graciela, que estava de costas, enlaçou-a com o braço e puxou-a de encontro ao seu corpo. Beijou-a no alto da cabeça e manteve o rosto encostado no cabelo
dela.
- Logo tudo isso vai acabar, e nós voltaremos ao normal.
- Tomara que sim.
Graciela pôs a mão no braço dele, que lhe cruzava o corpo abaixo dos seios. O toque das pontas dos dedos dela era a aprovação que ele buscava. Mostrava que aquilo
era uma fase difícil, mas que eles estavam bem. Ele a apertou com mais força, beijou-lhe a nuca e soltou-a.
Enquanto McCaleb punha uma fralda nova naquele corpo diminuto, Cielo ficou olhando para o mobile que oscilava lentamente, pendurado sobre o trocador. Estrelas e
meias-luas de cartolina pendiam dos fios. Aquilo fora feito por Raymond e Graciela
117
como presente de Natal para ela. Uma corrente de ar vinda do interior da casa fazia o objeto girar lentamente, atraindo a atenção dos olhos de Cielo, de um tom azul-escuro.
McCaleb inclinou-se e beijou a testa da menina.
Depois de embrulhá-la em dois cobertores infantis, levou-a para o pátio e deu-lhe a mamadeira, enquanto balançava suavemente na cadeira de balanço. Baixando o olhar
para o porto, percebeu que deixara ligadas as luzes dos instrumentos na ponte de comando do Mar que Segue. Sabia que podia telefonar para o encarregado do píer,
e que quem estivesse dando plantão noturno poderia simplesmente pegar um bote a motor e ir desligá-las. Mas também sabia que voltaria ao barco depois do jantar.
Ele mesmo poderia apagar as luzes.
Baixou o olhar para Cielo. Os olhos dela estavam fechados, mas ele sabia que ela estava acordada, pois sugava com força a mamadeira. Graciela
parara de amamentá-la em tempo integral quando voltou a trabalhar. Dar mamadeira era uma coisa nova, e McCaleb achava que aqueles momentos talvez fossem os mais prazerosos de sua recente
paternidade. Freqüentemente sussurrava para a filha nessas ocasiões e quase sempre prometia coisas. Prometia que sempre a amaria e estaria com ela. Dizia pra ela
nunca ter medo ou sentir-se sozinha. Às vezes, quando Cielo abria subitamente os olhos e olhava para ele, McCaleb tinha a impressão de que ela estava lhe comunicando
as mesmas coisas. E sentia uma espécie de amor que nunca conhecera antes.
- Terry.
Ele ergueu os olhos ao ouvir o murmúrio de Graciela.
- O jantar está pronto.
McCaleb examinou a mamadeira e viu que estava quase vazia.
- Estarei lá em um minuto - sussurrou.
Depois que Graciela saiu, ele baixou os olhos para a filha. O sussurro a fizera abrir os olhos, e ela ficou encarando o pai. Ele a beijou na testa e depois ficou
simplesmente olhando para ela.
- Preciso fazer isso, gatinha - murmurou.
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Fazia frio no interior do barco. McCaleb acendeu as luzes do salão e posicionou o aquecedor no centro do aposento, ajustando-o no nível baixo. Queria se aquecer
mas não demais, para não ficar com sono. Ainda estava cansado dos afazeres do dia.
Estava deitado na cabine da frente, examinando seus antigos arquivos, quando ouviu o celular começar a tocar dentro da bolsa de couro no salão. Fechou o arquivo
que estava examinando e levou-o consigo enquanto subia a escada até o salão, pegando o telefone na bolsa. Era Jaye Winston.
- E aí, como foi o negócio no Getty? Achei que ia me telefonar de volta.
- Bom... já era tarde, e eu queria chegar ao barco para fazer a travessia antes de escurecer. Esqueci de telefonar.
- Voltou para a ilha? Ela parecia desapontada.
- Voltei. Eu disse a Graciela hoje de manhã que voltaria. Mas não se preocupe, ainda estou trabalhando em algumas coisas.
- O que aconteceu no Getty?
- Não aconteceu muita coisa - mentiu ele. - Falei com algumas pessoas e vi alguns quadros.
- Viu alguma coruja que combinasse com a nossa? Ela riu ao fazer a pergunta.
- Algumas chegavam bem perto. Arranjei uns livros que quero consultar ainda hoje. Eu ia telefonar pra você e ver se podíamos nos reunir amanhã.
- Quando? De manhã eu tenho uma reunião às dez e outra às onze.
- Eu estava pensando na tarde, de qualquer maneira. Também preciso fazer uma coisa de manhã.
Não queria contar a Jaye que ia assistir às alegações iniciais do julgamento de Storey. Sabia que os trabalhos seriam transmitidos ao vivo pela TV Tribunal, que
ele podia pegar em casa com a antena parabólica.
- Bom, talvez eu consiga um helicóptero para me levar aí, mas preciso verificar com o departamento aéreo primeiro.
119
- Não, eu vou voltar.
- Vai? Ótimo! Quer vir até aqui?
- Não, eu estava pensando num lugar mais calmo e com mais privacidade.
- Por quê?
- Amanhã eu conto.
- Você está ficando misterioso comigo. Não é um truque para fazer o xerife pagar mais panquecas pra você, é?
Ambos riram.
- Não tem truque nenhum. Acha que dá pra você ir até a marina Cabrillo e me encontrar no barco?
- Estarei lá. A que horas?
Ele marcou o encontro para as três horas, pensando que isso lhe daria tempo de sobra para preparar o perfil e imaginar como poderia contar a Jaye o que sabia. Também
lhe daria tempo bastante para se preparar para o que queria que ela lhe permitisse fazer na noite seguinte.
- Algum resultado com a coruja? - perguntou ele depois de
acertar o encontro.
- Muito pouco, nada de bom. Dentro só há as marcas do fabricante. O molde plástico foi feito na China. A empresa envia os bichos para dois distribuidores aqui, um
em Ohio e outro no Tennessee. De lá as corujas provavelmente saem para toda parte. E uma chance muito remota e significa muito trabalho.
- Então vai abandonar essa pista.
- Não, eu não disse isso. Só que não é prioridade. Ficou como tarefa para o meu parceiro. Ele vai dar os telefonemas. A gente vê o que ele consegue com os distribuidores,
avalia e decide para onde ir depois.
McCaleb balançou a cabeça. Priorizar as pistas de investigação
- e até as próprias investigações - era um mal necessário. Mesmo assim, aquilo o incomodava. Ele tinha certeza que a coruja era uma chave, e seria útil saber tudo
a respeito do bicho.
- Bom, então está tudo combinado? - perguntou Jaye.
- Para amanhã? Está, tudo combinado. - Nós vemos você às três.
120
-Nós?
- Eu e Kurt. Meu parceiro. Você ainda não foi apresentado a
- Hum... Olhe, amanhã não podia ser só eu e você? Nada contra seu parceiro, mas eu gostaria de falar só com você amanhã, Jaye.
Houve um momento de silêncio antes que ela respondesse.
- Terry, o que está acontecendo com você?
- Eu só quero conversar com você sobre isso. Você me trouxe para o caso, eu quero dar o que tenho para você. Se quiser chamar o seu parceiro depois disso, tudo bem.
Houve outra pausa.
- Estou tendo um mau pressentimento com tudo isso, Terry.
- Sinto muito, mas é assim que eu quero as coisas. Acho que para você é pegar ou largar.
O ultimato fez com que Jaye ficasse em silêncio um tempo ainda maior. McCaleb ficou aguardando a resposta dela.
- Está bem, cara - disse ela por fim. - Eu confio no seu taco. Vou pegar.
- Obrigado, Jaye. A gente se vê amanhã.
Eles desligaram. McCaleb ficou olhando para o arquivo do caso antigo que trouxera e ainda tinha na mão. Colocou o telefone na mesa de café, inclinou-se no sofá e
abriu o arquivo.
Capítulo 14
O caso da Menina Perdida foi o primeiro nome atribuído à história, porque a vítima não tinha nome. Achava-se que ela tinha cerca de catorze ou quinze anos; era uma
latina - provavelmente mexicana - cujo corpo fora encontrado entre os arbustos e detritos sob um dos viadutos de Mulholland Drive. O caso fora dado a Bosch e seu
parceiro na época, Frankie Sheehan. Isso fora antes de Bosch trabalhar na seção de homicídios da Divisão Hollywood. Ele e Sheehan formavam uma equipe de Roubo-Homicídio,
e foi Bosch que contactou McCaleb no FBI. McCaleb acabara de retornar a Los Angeles, vindo de Quantico. Estava organizando um posto avançado da Unidade de Ciências
Comportamentais e do Programa de Captura de Criminosos Violentos. O caso da Menina Perdida foi um dos primeiros que lhe chegou às mãos.
Bosch o procurou, levando o arquivo e as fotos da cena do crime ao pequeno escritório que McCaleb ocupava no décimo terceiro andar do edifício federal, em Westwood.
Foi sem Sheehan, porque o parceiro se opunha a levar o caso ao FBI. Ciumeira entre agências. Mas Bosch estava pouco se importando com tudo aquilo. Importava-se apenas
com o caso. Tinha os olhos fundos. Claramente, o caso o estava perseguindo tanto quanto ele perseguia o caso.
O corpo fora encontrado nu e violentado de várias maneiras. A menina fora estrangulada pelas mãos enluvadas do assassino. Não haviam sido achadas nem roupas nem
bolsa na encosta. As
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impressões digitais não batiam com nenhum registro computadorizado. A menina não combinava com nenhuma descrição dos casos de pessoas desaparecidas ainda sob investigação
no condado de Los Angeles ou do sistema nacional computadorizado de crimes. Um desenho do rosto da vítima feito por um artista e apresentado no noticiário da televisão
e nos jornais não produzira telefonemas de qualquer ente querido. Também não haviam tido resposta os esboços enviados por fax para quinhentas delegacias de polícia
do sudoeste e para a Polícia Judiciária do México. A vítima permanecera sem identificação e o corpo não foi reclamado, ficando depositado em uma geladeira na divisão
médico-legal, enquanto Bosch e seu parceiro trabalhavam no caso.
Não fora encontrada qualquer prova física junto ao corpo. E além de ser desovada tarde da noite nos arredores de Mulholland Drive, sem as roupas ou qualquer pertence
que possibilitasse sua identificação, a vítima aparentemente fora lavada com um detergente industrial.
O exame do corpo fornecera somente uma pista. Uma impressão na pele do quadril esquerdo. A lividez post-mortem indicava que o sangue no corpo se depositara na metade
esquerda, dando a entender que a menina ficara deitada sobre o lado esquerdo no período decorrido entre a parada do coração e a hora em que o corpo fora atirado
encosta abaixo, onde caíra de bruços numa pilha de latas de cerveja e garrafas de tequila vazias. Aquela prova indicava que - durante o tempo que o sangue levara
para se acomodar - o corpo ficara deitado em cima do objeto que deixara aquela impressão no quadril.
A impressão era composta pelo número 1, pela letra J e por parte de uma terceira letra que podia ser a parte superior esquerda de um H, K ou L. Era parte da placa
de um carro.
Bosch achava que quem matara a menina sem nome escondera o corpo na mala de um carro até a hora de se livrar dele. Depois de limpar cuidadosamente o corpo, o assassino
o pusera na mala do carro, depositando-o por engano sobre parte de uma placa que fora retirada do veículo e também colocada na mala. A teoria de Bosch era que a
placa fora removida e possivelmente substituída por uma placa roubada, como mais uma medida de segurança que ajudaria o
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assassino a não ser apanhado caso seu carro fosse visto por um passante desconfiado no viaduto de Mulholland Drive.
Embora a impressão na pele não indicasse em que estado o veículo fora emplacado, Bosch seguira as porcentagens. Do Departamento de Veículos Automotores estadual
obtivera a relação de todos os carros registrados no condado de Los Angeles com placas que começassem por 1JH, 1JK e 1JL. A relação tinha três mil nomes de proprietários.
Ele e o parceiro haviam cortado quarenta por cento deles, descartando as mulheres. Os nomes restantes haviam sido colocados um a um no computador do índice Criminal
Nacional, e os detetives haviam chegado a uma lista de quarenta e seis homens com antecedentes criminais, que iam dos menores aos mais extremados.
Fora a essa altura que Bosch procurara McCaleb. Queria um perfil do assassino, para saber se ele e Sheehan estavam na pista certa ao suspeitarem que o sujeito tinha
um passado criminoso. E também queria saber como abordar e avaliar os quarenta e seis homens que constavam da lista.
McCaleb estudou o caso por quase uma semana. Examinava as fotos da cena do crime duas vezes por dia - logo de manhã cedo e antes de ir dormir - e estudava com freqüência
o dossiê. Por fim disse a Bosch que acreditava que os dois detetives estavam na pista certa. Usando os dados acumulados de centenas de crimes semelhantes, analisados
pelo Programa de Captura de Criminosos Violentos, ele conseguira fornecer o perfil de um homem à beira dos trinta anos, com um passado de crimes de gravidade crescente
e que provavelmente incluíam agressões de natureza sexual. A cena do crime sugeria o trabalho de um exibicionista - um assassino que queria ver seu crime tornado
público, instilando horror e medo na população em geral. Portanto, o local de desova do corpo teria sido escolhido por esses motivos, não por razões de conveniência.
Comparando o perfil com a lista de quarenta e seis nomes, Bosch estreitou o foco das possibilidades sobre dois suspeitos: o encarregado de um prédio de escritórios
em Woodland Hills, fichado anteriormente por incêndio criminoso e atentado ao pudor, e um cenotécnico que trabalhava num estúdio em Burbank, e que já
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fora preso por tentar estuprar uma vizinha quando era adolescente. Ambos tinham quase trinta anos.
Bosch e Sheehan preferiam o encarregado, devido ao acesso que ele tinha a detergentes industriais como o usado para lavar o corpo da vítima. Entretanto McCaleb preferia
o cenotécnico como suspeito, pois aquela tentativa de estupro na juventude indicava uma ação impulsiva, mais de acordo com o perfil do responsável pelo crime atual.
Os detetives decidiram entrevistar informalmente os dois homens, e convidaram McCaleb a ir junto. O agente do FBI enfatizou que os homens deveriam ser entrevistados
em casa, para que ele pudesse estudá-los no ambiente em que viviam e procurar pistas entre os pertences deles.
O cenotécnico foi o primeiro. Chamava-se Victor Seguin. Pareceu ficar em total estado de choque ao vê-los na porta e ouvir a explicação que Bosch deu para a visita.
Não obstante, convidou os três a entrar. Enquanto Bosch e Sheehan faziam perguntas calmamente, McCaleb sentou-se no sofá estudando o mobiliário limpo e arrumado
do apartamento. Em cinco minutos percebeu que aquele era o homem certo e meneou a cabeça para Bosch num sinal já combinado.
Victor Seguin foi informado de seus direitos e preso, sendo colocado no carro dos detetives. Sua casinhola, sob a zona de aterrissagem de aviões do aeroporto de
Burbank, fora lacrada até a expedição de um mandado de busca. Duas horas mais tarde, quando o mandado chegara, eles encontraram uma garota de dezesseis anos amarrada
e amordaçada, mas viva, num buraco à prova de som e parecido com um caixão construído pelo cenotécnico sob um alçapão oculto pela cama.
Foi só depois de passada a excitação - e quando o nível de adrenalina por terem solucionado o caso e salvado uma vida já começava a baixar - que Bosch finalmente
perguntou a McCaleb como ele percebera que aquele era o homem certo. McCaleb foi com o detetive até a estante da sala, onde apontou para uma cópia bastante gasta
de um livro chamado O colecionador. Era um romance sobre um homem que seqüestra diversas mulheres.
Seguin foi indiciado pelo assassinato da menina não identificada,
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além do seqüestro e do estupro da jovem que os investigadores tinham salvado. Negou qualquer culpa pelo assassinato e tentou obter um acordo, segundo o qual
ele confessaria apenas o seqüestro e o estupro da sobrevivente. A promotoria recusou qualquer acordo e levou-o a julgamento com o que tinha - o testemunho da sobrevivente,
algo de cortar o coração, e a impressão da placa do carro no quadril da menina morta.
O júri considerou o réu culpado de todas as acusações depois de menos de quatro horas de deliberação. A promotoria então sugeriu um possível acordo com Seguin, prometendo
não pedir a pena de morte durante a segunda fase do julgamento, caso o assassino concordasse em dizer aos investigadores quem era sua primeira vítima e onde ele
a seqüestrara. Para conseguir o acordo Seguin teria que abandonar sua postura de inocência. Ele recusou. A promotoria pediu a pena de morte e foi vitoriosa. Bosch
não chegou a descobrir quem era a menina morta, e McCaleb sabia que ele ficara perturbado com o fato de aparentemente ninguém se importar a ponto de vir reclamar
o corpo.
Ele próprio também ficara perturbado com aquilo. No dia em que compareceu ao tribunal para testemunhar, já na fase da sentença, almoçou com Bosch e notou que havia
um nome escrito nos dossiês do caso.
- O que é isso? - perguntou McCaleb, excitado. - Conseguiu identificar a menina?
Bosch baixou o olhar, viu o nome nas etiquetas e virou os dossiês de cabeça para baixo.
- Não, ainda não temos identificação.
- Bom, então o que é isso?
- Só um nome. Acabei dando um nome a ela.
Bosch parecia constrangido. McCaleb estendeu a mão e virou os dossiês para cima a fim de ler o nome escrito ali.
- Cielo Azul?
- É, ela era hispânica, eu lhe dei um nome hispânico.
- Significa céu azul, não é?
- É, céu azul. Eu... hum... McCaleb ficou esperando. Nada.
- O quê?
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- Bom... eu não sou tão religioso assim, entende? -Sei.
- Mas pensei que se ninguém aqui embaixo queria reclamar a menina, então quem sabe... talvez haja alguém lá em cima que faça isso - disse Bosch, dando de ombros
e desviando o olhar.
McCaleb viu as maçãs do rosto dele se ruborizarem.
- E difícil encontrar a mão de Deus no que nós fazemos. No que nós vemos.
Bosch simplesmente balançou a cabeça, e eles não voltaram a falar do nome.
McCaleb levantou a última página do dossiê com o nome de Cielo Azul e olhou para a orelha traseira da pasta de cartolina marrom. No FBI ele se habituara a fazer
anotações na orelha traseira, onde elas não poderiam ser vistas tão facilmente devido às páginas anexadas. Eram anotações que fazia sobre os investigadores que pediam
perfis para os casos. McCaleb percebera que os insights sobre o investigador às vezes eram tão importantes quanto as informações contidas no dossiê do caso. Pois
era através dos olhos do investigador que ele era apresentado a muitos dos aspectos do crime.
Aquele caso com Bosch surgira havia mais de dez anos, antes que ele começasse a elaborar os perfis dos investigadores junto com os dos casos. No dossiê ele escrevera
apenas o nome de Bosch e quatro palavras embaixo.
Meticuloso - Inteligente - H. M. - A. V.
McCaleb olhou para as duas últimas anotações. Fora parte de sua rotina usar abreviações e estenografia quando estava anotando coisas que precisavam ser mantidas
em sigilo. As duas últimas anotações indicavam sua interpretação do que motivava Bosch. McCaleb concluíra que os investigadores de homicídios, uma estirpe diferente
de policiais, recorriam a profundas emoções e motivações interiores a fim de aceitar e levar a cabo a sempre difícil tarefa de seu cargo. Geralmente eles se dividiam
em dois tipos: os que encaravam sua função como uma habilidade ou um ofício, e os que a viam como uma missão na vida. Dez anos antes, McCaleb pusera Bosch na segunda
classe. Ele era um homem com uma missão.
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Essa motivação dos detetives podia ainda ser subdividida quanto ao que lhes dava esse sentimento de propósito ou missão. Para alguns, o cargo era visto quase como
um jogo; tinham alguma carência interior que os obrigava a provar que eram melhores, mais inteligentes e mais ardilosos que suas presas. Só conseguiam validar suas
vidas quando na realidade invalidavam os assassinos que procuravam, colocando-os atrás das grades. Outros, embora tivessem certo grau da mesma carência interior,
também se viam com a dimensão adicional de serem porta-vozes dos mortos. Havia um elo sagrado entre vítima e policial, que se formava na cena do crime e não podia
ser rompido. Era isso que, em última análise, impelia-os à caça e permitia-lhes superar todos os obstáculos no caminho. McCaleb classificava esses policiais como
anjos vingadores. A experiência lhe mostrara que esses policiais/anjos eram os melhores investigadores de todos. E também fizera com que ele concluísse que eram
eles que se equilibravam mais perto daquela borda invisível abaixo da qual jaz o abismo.
Dez anos antes, ele classificara Harry Bosch como um anjo vingador. Agora tinha que julgar se o detetive se aproximara demais da borda do precipício. Tinha que pensar
que talvez Bosch a tivesse ultrapassado.
Fechou o dossiê e tirou os dois livros de arte da bolsa. Ambos intitulavam-se, simplesmente, Bosch. O maior, com reproduções multicoloridas das pinturas, era de
autoria de R. H. Marijnissen e P. Ruyffelaere. O segundo livro, que parecia conter mais análises dos quadros que o primeiro, fora escrito por Erik Larsen.
McCaleb começou pelo livro menor e foi examinando rapidamente as páginas de análise. Logo descobriu que, como dissera Penelope Fitzgerald, havia muitas opiniões
- às vezes até conflitantes - sobre Hieronymus Bosch. O livro de Larsen citava estudiosos que chamavam Bosch de humanista, e até outro que afirmava que o pintor
fazia parte de um grupo herético que acreditava que a terra era, literalmente, um inferno governado por Satã. Os estudiosos divergiam sobre os significados inerentes
a algumas das pinturas. Discutiam se algumas delas podiam realmente ser atribuídas a Bosch, e se o pintor alguma vez viajara até a Itália, tomando assim conhecimento
das obras de seus contemporâneos renascentistas.
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McCaleb finalmente fechou o livro quando percebeu que - pelo menos para o seu objetivo - as palavras sobre Hieronymus Bosch talvez não fossem importantes. Se a obra
do pintor era sujeita a múltiplas interpretações, então a única interpretação que importava era a da pessoa que matara Edward Gunn. O que importava era o que aquela
pessoa vira e tirara das pinturas de Hieronymus Bosch.
Ele abriu o livro maior e começou a estudar vagarosamente as reproduções. O exame que fizera das reproduções das pinturas no museu Getty fora apressado e prejudicado
pela falta de privacidade. McCaleb pôs o caderno no braço do sofá a fim de registrar o número de corujas que visse nos quadros, bem como as descrições das aves.
Logo percebeu que os detalhes dos quadros ficavam tão minúsculos naquelas reproduções em escala menor que ele talvez estivesse perdendo coisas importantes. Desceu
até a cabine dianteira para achar uma lente de aumento que sempre mantinha na sua mesa no FBI e que usava para examinar fotos das cenas dos crimes. Ao se curvar
sobre uma caixa cheia de material de escritório que trouxera de sua mesa no FBI, cinco anos antes, sentiu um pequeno baque contra o barco e ergueu o corpo. Amarrara
o Zodiac inflável na popa, de modo que aquilo não podia ter sido causado pelo bote. Estava pensando no que seria, quando sentiu o inconfundível movimento para cima
e para baixo do barco que indicava que alguém subira a bordo. Sua mente se concentrou na porta do salão. Tinha certeza que a deixara destrancada.
Baixou o olhar para a caixa onde estivera remexendo pouco antes e pegou a espátula de abrir cartas.
Subindo a escada e entrando na cozinha, McCaleb examinou o salão. Não havia ninguém ali e nada fora mexido. Era difícil enxergar além do reflexo interior da porta
corrediça, mas no convés ali fora, silhuetado contra as luzes da rua Crescent, havia um homem. O sujeito estava parado de costas para o salão, como admirando as
luzes da cidade que subiam pela colina.
McCaleb avançou rapidamente e abriu a porta corrediça. Tinha a espátula ao lado do corpo, mas com a ponta virada para cima. O sujeito parado no convés se voltou.
McCaleb baixou a arma, enquanto o sujeito arregalava os olhos para a lâmina.
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- Desculpe, eu...
- Tudo bem, Charlie... é que eu não sabia quem era. Charlie era o plantonista noturno da administração do porto.
McCaleb não sabia o sobrenome dele. Mas sabia que freqüentemente Charlie visitava Buddy nas noites em que ele dormia no barco. Provavelmente Buddy gostava de tomar
umas cervejas com ele de vez em quando, nas noites mais compridas. Fora por isso, provavelmente, que Charlie remara do píer até ali.
- Eu vi as luzes e pensei que talvez Buddy estivesse aqui - disse ele. - Só queria fazer uma visita.
- Não, Buddy está na cidade hoje. Provavelmente só vai voltar na sexta-feira.
- Bom, então já vou indo. Está tudo bem? Ou veio dormir no barco por causa da patroa?
-Não, Charlie, está tudo bem. Só estou trabalhando um pouco. Levantou a espátula como se aquilo explicasse o que ele estava fazendo.
- Está bem, então. Vou voltar.
- Boa noite, Charlie. Obrigado por vir conferir.
McCaleb entrou novamente e desceu até o escritório. Encontrou a lente, que dispunha de uma pequena lanterna, no fundo da caixa de material.
Passou as duas horas seguintes examinando as pinturas. Viu-se novamente fascinado por aquelas paisagens sobrenaturais de demônios fantasmagóricos rodeando as presas
humanas. Conforme estudava cada obra, assinalava descobertas específicas como as corujas com pequenos pedaços de papel amarelo gomado, a fim de poder reencontrá-las
facilmente.
Listou dezesseis representações diretas de corujas nas obras, e mais uma dúzia de criaturas ou estruturas semelhantes a corujas. As aves eram sempre pintadas de
cores escuras, e espreitavam em todos os quadros, como sentinelas do juízo final e da destruição. McCaleb olhava para elas, sem conseguir deixar de pensar na analogia
da coruja com o detetive. Tanto uma quanto outro eram criaturas da noite, ambas vigiando e caçando - observadores em primeira mão do mal e da dor que seres humanos
e animais se infligem
uns aos outros.
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A descoberta individual mais significativa que McCaleb fez durante o exame dos quadros não foi uma coruja, e sim uma forma humana. Ele descobriu isso ao examinar,
com a lente luminosa, o painel central de um quadro denominado O Juízo Final. Diante do forno do inferno em que eram lançados os pecadores, havia diversas vítimas
amarradas à espera de serem desmembradas e queimadas. Nesse agrupamento, McCaleb encontrou a imagem de um homem nu, com os braços e as pernas amarrados atrás das
costas. As extremidades do pecador haviam sido esticadas, numa dolorosa posição fetal invertida. A imagem refletia fielmente o que ele vira no foco principal da
fita de vídeo e das fotografias do assassinato de Edward Gunn.
McCaleb marcou a descoberta com um pedaço de papel gomado e fechou o livro. Quando, no mesmo instante, o telefone celular tocou sobre o sofá ao seu lado, ele saltou
de pé, assustado. Deu uma olhada no relógio antes de atender e viu que era exatamente meia-noite.
Era Graciela ao telefone.
- Achei que você fosse voltar hoje à noite.
- Vou voltar. Terminei agora e já estou a caminho.
- Desceu com o carrinho, não foi?
- Foi. Não vou ter problema para voltar.
- Tá legal, até logo.
- Até logo.
McCaleb decidiu deixar tudo no barco, pensando que precisava arejar a cabeça antes do dia seguinte. Se levasse os dossiês e os pesados livros, ele só reforçaria
os pensamentos sombrios que já carregava por dentro. Trancou o barco e levou o Zodiac até o embarcadouro. No fim do píer, entrou no carrinho de golfe. Saiu dirigindo
pelo deserto distrito comercial e subiu a colina de volta para casa. Apesar dos esforços para afastá-los, seus pensamentos continuavam ligados ao abismo. Um lugar
onde criaturas com bicos, garras e facas afiadas atormentavam perpetuamente os decaídos. Àquela altura, ele já tinha certeza de pelo menos uma coisa: o pintor Bosch
teria dado um bom elaborador de perfis. Dominava o assunto. Conhecia os pesadelos que chacoalham nas mentes da maioria das pessoas. Bem como os pensamentos que às
vezes escapam.
Capítulo 15
As alegações preliminares no julgamento de David Storey foram atrasadas para que os advogados discutissem as moções finais com o juiz a portas fechadas. Bosch ficou
sentado à mesa da promotoria, esperando. Tentava tirar da cabeça todas as idéias estranhas ao caso, inclusive sua infrutífera busca por Annabelle Crowe, na noite
da véspera.
Às dez e quarenta e cinco os advogados finalmente entraram no tribunal e foram para suas respectivas mesas. Depois o réu - usando um terno que parecia cobrir o valor
dos contracheques de três agentes policiais - foi trazido da cela de detenção para o recinto, e por fim o juiz Houghton tomou lugar na bancada.
Chegara a hora de começar, e Bosch sentiu a tensão na sala aumentar consideravelmente. Los Angeles alçara - ou rebaixara o julgamento criminal ao nível de entretenimento
mundial, mas os participantes jamais encaravam a coisa assim. Estavam jogando para valer, e naquele julgamento - talvez até mais do que na maioria - havia uma sensação
palpável de hostilidade entre os dois campos oponentes.
O juiz deu ordem ao agente do gabinete do xerife, que estava ali na condição de oficial de justiça, para fazer entrar o júri. Bosch levantou-se junto com todos,
virando-se para observar os jurados entrarem silenciosamente em fila indiana e tomarem seus lugares.
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Pensou ter visto uma certa excitação em alguns dos rostos. Aqueles homens e mulheres vinham aguardando havia duas semanas durante a seleção do júri e as moções iniciais
das partes - para as coisas começarem. Os olhos de Bosch se elevaram na direção de duas câmeras montadas na parede acima do recinto do júri. Elas cobriam inteiramente
o tribunal, com exceção do recinto do júri. Depois que todos se sentaram, Houghton pigarreou e inclinou-se para o microfone instalado em sua mesa, olhando para os
jurados. - Senhoras e senhores, como estão passando? Houve um murmúrio geral, e Houghton balançou a cabeça.
- Peço desculpas pelo atraso. Por favor, lembrem-se que o sistema judiciário é em essência dirigido por advogados. Assim sendo, funciona devaaagaaaar.
Ouviu-se um riso educado no tribunal. Bosch notou que os advogados - tanto da acusação quanto da defesa - juntaram-se às risadas conscienciosamente, com alguns exagerando
a coisa. A experiência já lhe mostrara ser impossível um juiz soltar uma piada num tribunal em sessão aberta sem que os advogados rissem.
Ele lançou o olhar para a esquerda além da mesa da defesa e viu que o outro recinto do júri estava repleto de gente da mídia. Reconheceu muitos dos repórteres de
noticiários televisivos e de coletivas de imprensa do passado.
Percorreu com os olhos o restante do tribunal e viu que os bancos destinados ao público estavam lotados, com exceção da fileira diretamente atrás da mesa da defesa.
Ali estavam sentadas diversas pessoas com amplo espaço de cada lado. Pareciam ter passado a manhã inteira num trailer de maquiagem. Bosch supôs que fossem celebridades
de algum tipo, mas não tinha intimidade com aquele campo e não conseguiu identificar nenhuma delas. Pensou em inclinar-se para Janis Langwiser e perguntar a ela,
mas achou melhor não fazer isso.
- Tivemos que esclarecer alguns detalhes de última hora na minha sala - continuou o juiz para os jurados. - Mas já estamos prontos para iniciar. Começaremos com
as alegações preliminares, e preciso alertar o júri que não se trata de afirmações de fatos, e sim afirmações sobre o que cada parte acha que são os fatos, e que
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tentarão provar durante o julgamento. Essas afirmações não devem ser consideradas como contendo provas. Isso só acontecerá mais tarde. Portanto, ouçam atentamente,
mas mantenham a mente aberta, pois muita coisa ainda virá por aí. Agora vamos começar com a acusação e, como sempre, dar ao réu a última palavra. A promotoria pode
começar.
O promotor principal se levantou e avançou para a tribuna que ficava entre as mesas das partes. Meneou a cabeça para o júri e se identificou como Roger Kretzler,
promotor encarregado da seção de crimes especiais. Era um advogado alto e magro, com uma barba avermelhada, cabelo escuro cortado curto e óculos sem aros. Tinha
uns quarenta e cinco anos. Bosch não o achava particularmente simpático, mas ele era muito eficiente na função. E o fato de continuar nas trincheiras acusando réus
- enquanto outros da mesma idade já haviam partido para os mundos mais bem remunerados da advocacia de defesa empresarial ou criminal - tornava-o ainda mais admirável.
Bosch suspeitava que ele não tinha vida familiar. Nas noites anteriores ao julgamento, em que haviam surgido algumas dúvidas sobre a investigação e Bosch fora convocado
pelo bip, o número para ligar de volta fora sempre o do escritório de Kretzler - qualquer que fosse o horário.
Kretzler identificou sua colega de acusação como Janis Langwiser, também da unidade de crimes especiais, e o investigador principal como o detetive de terceiro grau
Harry Bosch, do Departamento de Polícia de Los Angeles.
- Vou ser breve e simples na minha exposição, para que possamos ir aos fatos o mais cedo possível, conforme o juiz Houghton corretamente lembrou. Senhoras e senhores,
o caso que ouvirão neste tribunal certamente tem os ornamentos da celebridade. Tudo demonstra se tratar de um grande evento. Sim, o réu, David N. Storey, é um homem
de poder e posição na nossa comunidade, nesta época movida a fama em que vivemos. Contudo, se afastarmos dos fatos os ornamentos do poder e da purpurina, como prometo
que faremos nos próximos dias, o que temos aqui é algo tão básico quanto por demais comum na nossa sociedade. Um simples caso de assassinato.
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Kretzler fez uma pausa dramática. Bosch examinou os jurados. Todos os olhos estavam fixos no promotor.
- O homem que vêem sentado na mesa da defesa, David N. Storey, saiu com uma mulher de vinte e três anos chamada Jody Krementz na noite de 12 de outubro passado.
Depois de uma noitada que incluiu a estréia de seu filme mais recente e uma recepção, ele a levou para sua casa em Hollywood Hills, onde os dois fizeram sexo por
consenso. Não creio que a defesa argumente contra quaisquer desses fatos. Nós não estamos aqui por causa disso. O que nos traz aqui hoje é o que aconteceu durante
e depois do ato sexual. Na manhã de 13 de outubro, o corpo de Jody Krementz foi encontrado estrangulado em sua própria cama, no pequeno apartamento que ela dividia
com outra atriz.
Kretzler virou uma página do bloco à sua frente na tribuna, embora parecesse claro para Bosch - e provavelmente para todos os demais - que sua exposição fora memorizada
e ensaiada.
- No decurso deste julgamento, o estado da Califórnia provará, além de qualquer dúvida razoável, que foi David Storey quem tirou a vida de Jody Krementz, num momento
de fúria sexual brutal. Depois ele levou o corpo, ou fez com que este fosse levado, de sua casa para a casa da vítima. Dispôs o corpo de tal maneira que a morte
pudesse parecer acidental. E a seguir tentou utilizar seu poder e posição para frustrar a investigação do crime pelo Departamento de Polícia de Los Angeles. David
Storey, que como todos verão tem um histórico de comportamento violento contra mulheres, estava tão certo de escapar impune desse crime que, num momento de...
Kretzler escolheu esse instante para dar as costas à tribuna e lançar um olhar desdenhoso para o réu sentado. Storey ficou olhando fixamente para a frente, sem piscar,
e o promotor finalmente voltou-se novamente para o júri.
- ... candura, digamos, chegou a se gabar diante do investigador principal do caso, detetive Bosch, de que faria justamente isso, sair impune do crime.
Kretzler pigarreou, indicando que estava pronto para dar a estocada final.
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- Nós estamos aqui, senhoras e senhores do júri, a fim de buscar justiça para Jody Krementz. Para garantir que o assassino não saia impune de seu crime. O estado
da Califórnia pede, e eu pessoalmente peço, que ouçam cuidadosamente a apresentação das provas durante o julgamento, considerando-as judiciosamente. Se fizerem isso,
temos certeza que a justiça será feita. Para Jody Krementz. Para todos nós.
Ele pegou o bloco e se virou a fim de voltar para o seu lugar. Mas aí parou, como se algo houvesse acabado de lhe ocorrer. Bosch percebeu naquilo uma jogada bem-ensaiada
e achou que o júri encararia a coisa da mesma forma.
- Acabo de pensar numa coisa que todos sabem. A cidade de Los Angeles vem assistindo ao seu departamento de polícia ser colocado no banco dos réus em todos os casos
espetaculares mais recentes. "Se a mensagem não agrada, fuzile-se o mensageiro", diz sempre a defesa, que adora tirar esse truque da cartola. Quero que todos prometam
a si próprios ficar atentos e manter os olhos no prêmio, sendo esse prêmio a verdade e a justiça. Não se deixem enganar. Não se deixem levar na direção errada. Confiem
em si mesmos quanto à verdade e encontrarão o caminho.
Ele foi para o seu lugar e se sentou. Bosch viu Janis estender a mão e apertar o antebraço de Kretzler, num gesto de congratulações. Aquilo também fazia parte de
uma jogada bem-ensaiada.
O juiz disse então aos jurados que - em virtude da brevidade da peroração da promotoria - o julgamento passaria sem interrupção à fala da defesa. Mas a interrupção
veio logo em seguida, quando Fowkkes levantou-se, foi até a tribuna e gastou ainda menos tempo do que Kretzler dirigindo-se aos jurados.
- Todo mundo conhece, senhoras e senhores, essa conversa fiada de fuzilar o mensageiro ou não fuzilar o mensageiro. Quero falar um pouco sobre essa história. Aquelas
lindas palavras que ouvimos do promotor no final... Bom, quero avisar que todo promotor neste prédio diz a mesma coisa no início de todo julgamento nesta sala. Ao
que parece, eles devem ter essas palavras impressas em cartões dentro das pastas.
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Kretzler levantou-se e protestou contra o que chamou de um "enorme exagero". Houghton advertiu Fowkkes, mas depois aconselhou o promotor a fazer melhor uso de seus
protestos. Fowkkes aproveitou a brecha.
- Se me excedi, peço desculpas. Sei que essa é uma questão espinhosa para os promotores e para a polícia. Mas só estou dizendo, gente, que onde há fumaça geralmente
há fogo. E no decurso deste julgamento vamos tentar encontrar a saída no meio da fumaça. Podemos ou não encontrar fogo, mas tenho certeza que chegaremos à conclusão
de que este homem...
Ele se virou e apontou com força na direção de seu cliente. - ... este homem, David N. Storey, é, sem sombra de dúvida, inocente do crime do qual está sendo acusado.
Sim, ele é um homem de poder e posição, mas lembrem-se que isso não é crime. Sim, ele conhece algumas celebridades, mas da última vez que examinei a revista Peopk
isso também ainda não era crime. Acho até que alguém pode se sentir agredido por certos elementos da vida pessoal e dos apetites de David Storey. Sei que me sinto.
Mas lembrem-se que isso não constitui o crime do qual ele está sendo acusado nos autos. O crime aqui é assassinato. Nada mais e nada menos. E um crime do qual David
Storey NÃO é culpado. E pouco importa o que o doutor Kretzler, a doutora Langwiser, o detetive Bosch e suas testemunhas lhes digam, não há absolutamente a menor
prova de culpa neste caso.
Depois que Fowkkes fez uma reverência para o júri e se sentou, o juiz Houghton anunciou que o julgamento seria suspenso para que todos pudessem almoçar cedo, antes
que as testemunhas começassem a depor à tarde.
Bosch ficou vendo os jurados saírem enfileirados pela porta ao lado do recinto do júri. Alguns lançaram o olhar por cima do ombro para o tribunal. A última da fila,
uma negra de cerca de cinqüenta anos, olhou diretamente para Bosch. Ele baixou os olhos, mas arrependeu-se imediatamente de ter feito isso. Quando ergueu o olhar
de novo, ela já desaparecera.
Capítulo 16
McCaleb desligou a televisão quando o julgamento foi suspenso para o almoço. Não queria ouvir as análises dos comentaristas. Achava que a defesa se saíra melhor.
Fowkkes fizera uma jogada sutil, dizendo ao júri que também se sentia agredido pela vida pessoal e pelos hábitos de seu cliente. Estava lhes dizendo que se ele,
Fowkkes, conseguia suportá-los, eles também conseguiriam. Estava lembrando a eles que o caso era sobre uma vida que fora tirada, não sobre como alguém vivia a sua
própria vida.
Ele voltou a se preparar para reunião à tarde com Jaye Winston. Retornara ao barco depois do café da manhã, juntando os dossiês e livros. Com uma tesoura e fita
gomada, estava montando uma apresentação com a qual esperava não apenas impressionar Jaye, mas convencê-la de algo que ele próprio estava achando difícil acreditar.
De certo modo, a montagem e a apresentação era um ensaio geral para a argumentação do caso. Por esse ângulo, McCaleb achou bastante útil o tempo gasto trabalhando
no que ele mostraria e diria a Jaye. Permitia-lhe ver os furos na lógica e preparar respostas para as perguntas que ele sabia que Jaye faria.
Enquanto pensava sobre o que exatamente diria a ela, Jaye ligou pelo telefone celular.
- Podemos ter uma pista na coruja. Mas pode ser que não.
-O que é?
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- O distribuidor lá de Middleton, Ohio, acha que sabe de onde ela veio. Um lugar bem aqui em Carson, chamado Afasta Aves.
- Por que ele acha isso?
- Porque Kurt enviou por fax fotos da nossa ave, e o sujeito com quem ele estava lidando em Ohio percebeu que o fundo do molde estava aberto.
- E. E o que significa isso?
- Bom, aparentemente as corujas são despachadas com a base incluída, a fim de serem enchidas com areia para que a ave fique de pé no vento, na chuva, e em tudo mais.
- Entendi.
- Bom, eles só têm um subdistribuidor que encomenda as corujas sem a base: a Afasta Aves, que encomenda a coisa assim porque fixa as corujas em cima de uma engenhoca
que guincha.
- Guincha!
- Você sabe, feito uma coruja de verdade. Acho que isso ajuda a afugentar os pássaros. Sabe qual é o slogan da Afasta Aves? "A número um quando as aves querem fazer
o número dois." Bonito, não? E assim que eles atendem o telefone lá.
A cabeça de McCaleb estava girando rápido demais para registrar qualquer piada, e ele não riu.
- Esse lugar é em Carson?
- E, não muito longe da sua marina. Preciso ir a uma reunião agora, mas vou dar um pulo lá antes de me encontrar com você. Prefere encontrar comigo lá? Pode chegar
lá a tempo?
- Seria bom. Estarei lá.
Ela deu o endereço, que ficava a cerca de quinze minutos da marina Cabrillo, e os dois acertaram se encontrar lá às duas. Jaye disse que o presidente da empresa,
um homem chamado Cameron Riddell, concordara em recebê-los.
- Vai levar a coruja? - perguntou McCaleb.
- O que acha, Terry? Sou detetive há doze anos. E tenho cérebro há mais tempo do que isso.
- Desculpe.
- Vejo você às duas.
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Depois de desligar o telefone, McCaleb tirou do freezer um tamale que sobrara, cozinhou-o no microondas, embrulhou-o em papel-alumínio e colocou-o na bolsa de couro
para comê-lo durante a travessia da baía. Deu uma olhada na filha, que estava na sala dormindo nos braços da Sra. Perez, a babá que dava meio-expediente ali. Tocou
a bochecha do bebê e saiu.
A Afasta Aves ficava numa vizinhança de galpões comerciais modernos que se alinhavam no lado leste da auto-estrada 405, logo abaixo do campo de aviação onde o dirigível
da Goodyear atracava. O dirigível estava ali, e McCaleb viu as amarras que o prendiam, tensionadas pelo vento da tarde que vinha do mar. Ao parar no estacionamento
da Afasta Aves, ele notou um LTD com aros de rodas comerciais. Sabia que aquele só podia ser o carro de Jaye Winston. Tinha razão. Quando passou pela porta de vidro,
viu-a sentada numa pequena sala de espera. No chão perto da cadeira havia uma maleta e uma caixa de papelão lacrada com uma fita vermelha, onde se lia PROVA. Ela
levantou-se imediatamente e foi até o guichê de recepção, atrás do qual via-se um rapaz sentado com um arco telefônico no ouvido.
- Pode dizer a Riddell que nós dois já estamos aqui?
O rapaz, que aparentemente estava atendendo a uma chamada, balançou afirmativamente a cabeça para ela.
Poucos minutos depois eles foram levados até a sala de Cameron Riddell. McCaleb carregava a caixa. Jaye fez as apresentações, chamando McCaleb de colega. Era verdade,
mas também escondia a falta de distintivo por parte dele.
Riddell era um homem simpático, de trinta e poucos anos, que parecia ansioso por ajudar na investigação. Jaye calçou um par de luvas de látex tiradas da maleta e
correu uma chave ao longo da fita vermelha, abrindo a caixa. Retirou a coruja e colocou-a na mesa de Riddell.
- O que pode nos dizer sobre isso, Sr. Riddell?
Riddell permaneceu de pé atrás da mesa, inclinando-se para examinar a coruja.
- Não posso tocar nela?
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- Por que não calça isto, então?
Jaye abriu a maleta e entregou-lhe outro par de luvas tiradas do invólucro de cartolina. McCaleb ficou olhando, pois decidira que só interviria se Jaye pedisse ou
cometesse uma omissão óbvia durante a entrevista. Riddell atrapalhou-se com as luvas,
calçando-as devagar.
- Desculpe - disse Jaye. - São de tamanho médio. O senhor parece ser tamanho grande.
Calçadas as luvas, Riddell pegou a coruja com ambas as mãos e examinou a parte inferior da base. Olhou para o interior do molde de plástico e depois segurou a ave
diretamente à sua frente, parecendo estudar os olhos pintados. Depois colocou-a no canto da mesa e voltou para a cadeira. Sentou-se e apertou um botão no intercomunicador.
- Monique, é Cameron. Será que você pode ir lá atrás, tirar da linha de montagem uma daquelas corujas que guincham e trazer o bicho até aqui? Preciso dela agora.
-Já estou indo.
Riddell tirou as luvas e flexionou os dedos. Depois olhou para Jaye, intuindo que ela era a pessoa importante. Fez um gesto na direção da coruja.
- É uma das nossas corujas, mas foi... não sei qual seria a palavra a usar. Ela foi alterada, modificada. Nós não vendemos as aves dessa forma.
-Como assim?
- Bom, Monique está pegando uma para que vocês possam ver, mas essencialmente esta aqui foi repintada um pouco, e o mecanismo que guincha foi retirado. Além disso,
temos uma etiqueta de fabricação que prendemos aqui na base, e a desta coruja desapareceu.
Apontou para a traseira da base.
- Vamos começar pela pintura - disse Jaye. - O que foi feito?
Antes que Riddell pudesse responder, ouviu-se uma única batida na porta e uma mulher entrou. Carregava outra coruja embrulhada em plástico. Riddell mandou-a colocar
o objeto na mesa e retirar o plástico. McCaleb notou que ela fez uma careta quando
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viu os olhos negros pintados da coruja que Jaye trouxera. Riddell agradeceu à mulher e ela saiu da sala.
McCaleb examinou as corujas colocadas lado a lado. A coruja do caso fora pintada em tom mais escuro. A coruja da Afasta Aves tinha cinco cores nas penas, inclusive
branco e azul-claro, bem como olhos plásticos com as pupilas orladas em tom âmbar brilhante. Além disso, a nova coruja estava aboletada em cima de uma base de plástico
preto.
- Como podem ver, a coruja de vocês foi repintada - disse Riddell. - Principalmente os olhos. Quando eles são repintados, perde-se muito do efeito. Chamam-se olhos
de reflexo laminado. A camada de laminado no plástico capta a luz e dá aos olhos uma aparência de movimento.
- E os pássaros pensam que a coruja é de verdade.
- Exatamente. Você perde isso quando pinta os olhos dessa maneira.
- Achamos que a pessoa que pintou não estava preocupada com pássaros. O que mais é diferente?
Riddell simplesmente abanou a cabeça.
- Só que a plumagem foi bastante escurecida. Dá pra ver.
- É. Mas você disse que o mecanismo foi retirado. Que mecanismo?
- Nossa firma compra isso em Ohio, pinta a coruja e coloca nela um de dois mecanismos. O que estão vendo aqui é o nosso
modelo básico.
Riddell levantou a coruja e mostrou a eles a parte de baixo. A base de plástico preto girou sobre um eixo quando ele mexeu nela, soltando um guincho forte
- Ouviram o guincho?
- Ouvimos, já chega.
- Desculpe. Mas, como vêem, a coruja está fixada nessa base e reage ao vento. Quando gira, ela emite o guincho e soa como um predador. Funciona bem, desde que o
vento esteja soprando. Temos também um modelo de luxo, com um dispositivo eletrônico na base. Contém um alto-falante que emite sons gravados de predadores como o
falcão. Não depende do vento.
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- E possível comprar uma coruja sem qualquer dos dispositivos?
- Sim, você pode comprar uma substituta para encaixar sobre uma de nossas bases exclusivas, caso a sua coruja seja danificada ou se perca. Ficando ao ar livre, principalmente
em ambientes marinhos, a pintura dura dois ou três anos, e depois disso a coruja pode perder parte de sua eficácia. Você tem que repintar a ave, ou simplesmente
comprar uma nova. Na verdade, o molde é a parte mais barata do conjunto.
Jaye olhou para McCaleb, que não tinha nada a acrescentar ou perguntar na linha do interrogatório que ela estava conduzindo. Ele simplesmente balançou a cabeça para
ela, que se voltou para Riddell.
- Tá legal. Acho que agora queremos saber se há jeito de rastrear esta coruja daqui até o proprietário eventual.
Riddell lançou um olhar demorado para a coruja, como se a própria ave pudesse responder à pergunta.
- Bom, isso pode ser difícil. Elas são vendidas por atacado. Vendemos milhares delas por ano. Despachamos para os pontos de varejo e também vendemos por meio de
catálogos, pelo nosso site na Internet...
- Subitamente, ele estalou os dedos.
- Mas há uma coisa que pode abreviar isso. -O que é?
- Eles mudaram o molde no ano passado. Na China. Fizeram uma pesquisa e decidiram que a coruja-chifruda era considerada uma ameaça maior a outros pássaros do que
a coruja de cabeça redonda. Passaram para o modelo com chifres.
- Não estou acompanhando muito bem.
Riddell ergueu um dedo, como dizendo-lhes para esperar um instante. Abriu a gaveta da mesa e remexeu nuns papéis lá dentro. Retirou um catálogo e começou a virar
as páginas rapidamente. McCaleb viu que o negócio principal da Afasta Aves não era vender corujas de plástico, e sim instalar grandes sistemas de barreiras para
pássaros que incluíam redes, telas de arame e espigões. Riddell
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encontrou a página que mostrava as corujas de plástico, virando o catálogo para que Jaye e McCaleb pudessem vê-lo.
- Este é o catálogo do ano passado - disse ele. - Dá pra ver que a coruja tem a cabeça redonda. O fabricante mudou isso em junho passado, cerca de sete meses atrás.
Agora temos estes bichos aqui.
Ele apontou para as duas corujas na mesa.
- A plumagem vira para cima nas duas pontas, ou ouvidos, no alto da cabeça. O vendedor disse que essas coisas são chamadas de chifres, e que esse tipo de coruja
é às vezes denominado corujadiabo.
Jaye lançou um olhar para McCaleb, que ergueu momentaneamente as sobrancelhas.
- Está dizendo que esta coruja aqui foi encomendada ou comprada depois de junho? - disse Jaye a Riddell.
- O mais provável é depois de agosto, ou talvez setembro. Eles trocaram em junho, mas provavelmente nós só começamos a receber o novo modelo no final de julho. E
primeiro teríamos liquidado nosso estoque da coruja de cabeça redonda.
Jaye interrogou Riddell sobre os registros de vendas e soube que as informações sobre encomendas pelo correio e compras pelo site da Internet eram mantidas completas
e atualizadas nos arquivos do computador da empresa. Contudo as corujas despachadas para grandes varejistas de produtos domésticos e marítimos não eram registradas,
obviamente. Ele virou-se para o computador na mesa e teclou alguns comandos. Depois apontou para a tela, embora McCaleb e Jaye não estivessem numa posição de onde
pudessem vê-la.
- Vejam, pedi as vendas desses números de peças desde o dia 1a de agosto - disse ele.
- Números de peças?
- É, para os modelos básico e de luxo e depois para os moldes de substituição. Aqui diz que nós despachamos diretamente quatrocentas e catorze no total. Também despachamos
exatamente seiscentas para os varejistas.
- E o que está nos dizendo é que só podemos rastrear, pelo menos aqui, as quatrocentas e catorze.
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- Correto.
- Tem os nomes dos compradores e os endereços para onde foram despachadas as corujas?
- Tenho.
- E está disposto a nos ceder essas informações sem necessidade de um mandado judicial?
Riddell franziu as sobrancelhas, como se a pergunta fosse absurda.
- Vocês disseram que estão trabalhando num assassinato, não é? -É.
- Nós não precisamos de um mandado judicial. Se pudermos ajudar, queremos ajudar.
- Que novidade boa, Sr. Riddell.
Eles estavam sentados no carro de Jaye, examinando os relatórios computadorizados que Riddell lhes dera. A caixa da prova, contendo a coruja, estava entre os dois
no assento. Havia três relações, divididas entre os modelos básico, de luxo, e para substituição. McCaleb pediu para ver a lista de substituições, porque seu instinto
lhe dizia que a coruja no apartamento de Edward Gunn fora comprada com o objetivo expresso de desempenhar um papel na cena do assassinato, e portanto não precisaria
de mecanismo algum. Além disso, a coruja para substituição era a mais barata.
- Tomara que a gente encontre alguma coisa aqui - disse Jaye, esquadrinhando a lista de compradores do modelo básico. - Porque sair caçando compradores pelas lojas
de ferragens e outros varejistas vai exigir mandado judicial, advogados e... ei, o museu Getty está aqui. Eles encomendaram quatro.
McCaleb olhou para Jaye e pensou no que ela dissera. Depois deu de ombros e voltou à sua lista. Jaye continuou relacionando as dificuldades que eles encontrariam
se tivessem que ir aos varejistas onde a coruja-chifruda era vendida. McCaleb parou de ouvi-la quando chegou ao antepenúltimo nome de sua relação. A partir do nome
que reconhecera, foi correndo o dedo pela linha que detalhava o endereço de recebimento, modo de pagamento, origem da ordem de compra, além do nome de quem receberia
a ave caso não
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fosse o comprador. Provavelmente parara de respirar, porque Jaye captou a vibração. -O que foi?
- Achei algo aqui.
Ele estendeu a relação para ela por cima do assento e apontou para a linha.
- Este comprador. Jerome Van Aiken. Ele despachou uma coruja na véspera do Natal para o endereço do apartamento de Gunn. A encomenda foi paga por ordem de pagamento.
Jaye tirou a relação das mãos dele e começou a ler a informação.
- Enviada para o endereço da avenida Sweetzer, mas para um tal de Lubbert Das, aos cuidados de Edward Gunn. Lubbert Das. Ninguém chamado Lubbert Das apareceu nessa
investigação. Também não me lembro desse nome na lista de residentes do prédio. Vou telefonar para Rohrshak para ver se Gunn teve alguma vez um companheiro de quarto
com esse nome.
- Não é preciso. Lubbert Das nunca morou lá. Jaye ergueu os olhos das páginas para o rosto dele.
- Você sabe quem é Lubbert Das?
- Mais ou menos.
Ela franziu a testa fortemente.
- Mais ou menos? Mais ou menos? E Jerome Van Aiken?
Ele balançou a cabeça. Jaye deixou cair as páginas na caixa entre eles. Olhou para McCaleb com uma expressão que demonstrava curiosidade e aborrecimento ao mesmo
tempo.
- Bom, Terry, acho que está na hora de começar a me contar o que sabe.
McCaleb balançou a cabeça de novo e pôs a mão na maçaneta da porta.
- Por que não vamos até o barco? Podemos conversar lá?
- Por que não conversamos aqui mesmo, neste exato momento, caralho?
McCaleb tentou dar um sorrisinho.
- Porque quero fazer o que você chamaria de uma apresentação audiovisual.
Abriu a porta e saiu, olhando novamente para ela.
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- Vejo você lá, está bem? Ela abanou a cabeça.
- E bom você ter um perfil do cacete pronto para mim. Aí ele abanou a cabeça.
- Eu ainda não tenho um perfil pronto para você, Jaye.
- Então o que você tem?
- Um suspeito.
McCaleb fechou a porta, ouvindo os palavrões abafados enquanto ia para o carro. Ao atravessar o estacionamento, percebeu uma grande sombra escurecer tudo à sua volta.
Olhou para cima e viu o dirigível da Goodyear cruzando o céu, eclipsando o sol totalmente.
Capítulo 17
Street Promenade
Os dois se reencontraram quinze minutos depois a bordo do Mar que Segue. McCaleb pegou umas Coca-Cola e mandou Jaye se sentar na cadeira estofada na extremidade
da mesa de café no salão. Ainda no estacionamento, ele lhe dissera para trazer a coruja de plástico até o barco. Pegou duas toalhas de papel para retirar a ave da
caixa e colocá-la na mesa diante de Jaye, que o observava com os lábios crispados de aborrecimento. McCaleb disse que entendia a raiva dela por estar sendo manipulada
no próprio caso, mas acrescentou que ela reassumiria o controle das coisas logo que ele apresentasse o que descobrira.
- Terry, tomara que isso seja bom pra caralho. É o que eu tenho
a dizer.
Ele se lembrou que já anotara - na orelha interna do dossiê do primeiro caso em que trabalhara com Jaye - que ela tinha tendência a dizer palavrões quando estressada.
Também anotara que ela era inteligente e intuitiva. Esperava que essas características não
houvessem mudado.
Foi até a bancada onde colocara o dossiê de apresentação. Abriu-o e tirou a folha de cima, colocando-a na mesa de café. Empurrou para o lado a relação da Afasta
Aves e pôs a folha ao lado da base da coruja de plástico.
- O que você acha, esta é a nossa ave?
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Jaye inclinou-se à frente para estudar a imagem colorida que ele colocara ali. Era um detalhe ampliado de O jardim das delícias terrenas, o quadro de Bosch, e mostrava
o tal homem nu abraçando a coruja escura de reluzentes olhos negros. McCaleb recortara a figura e outros detalhes do livro de Marijnissen. Ficou observando os olhos
da detetive se moverem entre a coruja de plástico e o detalhe da pintura.
- Eu diria que são iguais - disse ela finalmente. - Onde conseguiu isso? No Getty? Devia ter me falado disso ontem, Terry. Que , porra está acontecendo?
McCaleb ergueu as mãos pedindo calma.
- Vou explicar tudo. Só preciso mostrar esse troço do jeito que eu quero. Depois respondo a todas as perguntas que você quiser fazer. Ela fez um aceno com a mão,
indicando que ele podia continuar. McCaleb foi até a bancada, pegou uma segunda folha e trouxe-a de volta, colocando-a na frente de Jaye.
- O mesmo pintor, outro quadro.
Ela olhou. Era um detalhe de O Juízo Final, mostrando o pecador amarrado na posição fetal invertida, à espera de ser enviado ao inferno.
- Não faça isso comigo. Quem pintou essas coisas?
- Conto para você num minuto. Ele foi até a bancada e o dossiê.
- Este cara ainda está vivo? - perguntou ela.
Ele pegou a terceira folha e colocou-a na mesa perto das outras duas.
- Morreu há uns quinhentos anos. -Jesus.
Ela pegou a terceira folha, examinando-a detidamente. Era uma cópia integral de Os sete pecados capitais, a pintura no tampo de mesa.
- Dizem que isso é o olho de Deus vendo todos os pecados do mundo - explicou McCaleb. - Reconhece as palavras no centro, dispostas em torno da íris?
- Cuidado, cuidado... - murmurou ela, traduzindo. - Ah, meu Deus, a gente está lidando com um pirado. Quem é?
149
- Só mais uma folha. Esta aqui faz tudo se encaixar.
Ele voltou até o dossiê pela quarta vez e voltou com outra reprodução do livro de Bosch, entregando-a a Jaye.
- Chama-se A operação de pedra. Na época medieval algumas pessoas acreditavam que a estupidez e a mentira podiam ser curadas por uma operação para remover uma pedra
do cérebro. Veja o local da incisão.
- Eu vi, eu vi. Exatamente como no nosso cara. O que é tudo isso aqui em volta?
Ela acompanhou com o dedo a borda exterior da pintura circular. Na margem negra externa viam-se palavras que originalmente haviam sido pintadas com tinta dourada
para efeito ornamental, mas que haviam se deteriorado com o tempo e estavam quase indecifráveis.
- A tradução é "Mestre, corte fora a pedra. Meu nome é Lubbert Das". A literatura especializada existente sobre o pintor que criou essas obras explica que na época
Lubbert era um epíteto pejorativo aplicado aos pervertidos e estúpidos.
Jaye pôs a folha em cima das outras e ergueu as mãos com as palmas abertas.
- Muito bem, Terry, já chega. Quem era o pintor, e quem é esse suspeito que você diz ter descoberto?
McCaleb balançou a cabeça. Chegara a hora.
- O pintor se chamava Jerome Van Aiken. Era dos Países Baixos, e considerado um dos grandes nomes da Renascença do norte da Europa. Mas seus quadros são escuros,
cheios de monstros e demônios fantasmagóricos. Além de corujas. Um monte de corujas. A literatura especializada sugere que as corujas encontradas em seus quadros
simbolizavam o mal, a destruição, a queda da humanidade, esse tipo de coisa.
Ele separou as folhas na mesa de café e levantou o detalhe do homem abraçando a coruja.
- Acho que isso diz tudo sobre ele. O homem que abraça o mal... a coruja-diabo, para usar a descrição do Riddell... tem inevitavelmente o destino do inferno. Aqui
está o quadro por inteiro.
Ele foi até o dossiê e trouxe para ela a
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o Jardim das delícias terrenas. Ficou observando os olhos de Jaye enquanto ela examinava as imagens. Viu a repulsa, bem como o fascínio. Apontou para as quatro corujas
que encontrara no quadro, inclusive o detalhe que mostrara a ela.
Subitamente, Jaye puxou a folha para o lado e olhou para ele.
- Espere um minuto. Eu sei que já vi isso antes. Num livro, ou talvez numa aula de arte que tive na CSUN. Mas nunca ouvi falar desse Van Aiken, acho eu. Ele pintou
isso? McCaleb balançou a cabeça.
- O jardim das delícias terrenas. Foi pintado por Van Aiken, mas você nunca ouviu falar dele porque ele não era conhecido pelo seu nome real. Usava a versão latina
de Jerome e aproveitou o nome de sua cidade natal como sobrenome. Era conhecido como Hieronymus Bosch.
Jaye ficou simplesmente olhando para ele durante longo tempo, como se tudo estivesse se juntando: as imagens que ele lhe mostrara, os nomes na relação do computador
e o que ela sabia sobre o caso Edward Gunn.
- Bosch - disse ela, como expulsando o ar dos pulmões. Hieronymus é...?
Não terminou. McCaleb balançou a cabeça.
- E, esse é o verdadeiro nome de Harry.
Os dois estavam andando de um lado para o outro no salão, com as cabeças baixas, mas tomando cuidado para não se esbarrarem. Falando aos arrancos e com o sangue
pulsando num ritmo ruim mas acelerado.
- Isso é muita loucura, Terry. Você sabe o que está dizendo?
- Sei exatamente o que estou dizendo. E não pense que não meditei muito sobre o assunto antes de falar com você. Considero Harry um amigo, Jaye. Houve uma... sei
lá. Numa certa época eu achei que nós dois éramos muito parecidos. Mas veja esse troço, veja essas conexões, os paralelos. A coisa se encaixa. Tudo se encaixa.
Ele parou e olhou para Jaye, que continuou a andar.
- Ele é um policial! Um policial da Homicídios, pelo amor de Deus.
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- Vai me dizer que isso é impossível só porque ele é um policial? Aqui é Los Angeles... a versão moderna do Jardim das Delícias Terrenas. Com as mesmas tentações
e demônios. Nem é preciso sair dos limites da cidade para achar exemplos de policiais cruzando a linha... traficando drogas, roubando bancos e até assassinando gente.
- Eu sei, eu sei. Só que... Ela não terminou de falar.
- O mínimo que nós podemos fazer é examinar isso com muito cuidado.
Ela parou de andar e olhou de volta para ele.
- Nós? Pode esquecer, Terry. Pedi a você pra dar uma olhada no dossiê, não pra sair seguindo as pistas. Você está fora do caso de agora em diante.
- Olhe aqui, se eu não tivesse seguido algumas pistas você não teria nada. Essa coruja ainda estaria sentada no telhado do outro prédio daquele cara, Rohrshak.
- Reconheço isso. E agradeço muito. Mas você é paisano. Está fora.
- Não vou me afastar, Jaye. Se fui eu que pus o foco em Bosch, não vou me afastar agora.
Jaye deixou-se cair pesadamente na cadeira.
- Está bem, mas podemos conversar sobre isso quando, e se, chegarmos a esse ponto? Eu ainda não me convenci.
- Que bom. Nem eu.
- Bom, você certamente deu um show mostrando as pinturas e montando a acusação.
- Só estou dizendo que Harry Bosch tem alguma ligação com isso. E aí a coisa toma dois rumos. Um, ele matou o cara. Dois, é armação de alguém. Ele é policial há
muito tempo.
- Vinte e cinco, trinta anos. A lista de gente que ele mandou para a penitenciária deve ter um quilômetro de comprimento. E quem já entrou e saiu provavelmente dá
metade disso. Vai levar um ano pra conferir todo mundo, caralho.
McCaleb balançou a cabeça.
- E não pense que ele não sabia disso.
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Ela ergueu os olhos bruscamente para ele. McCaleb recomeçou a andar de um lado para o outro com a cabeça baixa. Depois de um longo silêncio, ergueu os olhos e viu
Jaye olhando para ele.
-O que foi?
- Você realmente acha que Bosch é o cara, não é? Está sabendo de mais coisas.
- Não, não estou. Quero permanecer com a mente aberta. Todos os caminhos de possibilidades precisam ser trilhados.
- Conversa fiada. Você está seguindo um caminho só. McCaleb não respondeu. A culpa que sentia por aquilo já bastava, sem que Jaye precisasse aumentar a dose.
- Está bem - insistiu ela. - Por que não esclarece tudo para mim? E não se preocupe, não vou acusar você de nada quando o raciocínio desandar.
Ele parou e olhou para ela.
- Vamos, esclareça tudo de uma vez.
McCaleb abanou a cabeça.
- Ainda não cheguei lá. Só sei que temos aqui algo que está longe, longe da coincidência. Portanto, tem que haver uma explicação.
- Então me dê a explicação que envolve Bosch. Eu conheço você. Sei que vem pensando nisso.
- Muito bem, mas lembre-se que tudo não passa de teoria.
- Vou me lembrar. Pode começar.
- A primeira coisa é que o detetive Hieronymus Bosch acredita... não, ele sabe... que esse cara, Edward Gunn, se livrou de uma acusação de homicídio. A segunda é
que Gunn aparece estrangulado, numa pose tirada de um quadro do pintor Hieronymus Bosch. E só acrescentar uma coruja de plástico, meia dúzia de outros pontos de
conexão entre os dois, sem falar no nome Bosch, e pronto.
- Pronto o quê? Essas conexões não significam que Bosch cometeu o crime. Você mesmo disse que alguém pode ter armado tudo isso, só para nós irmos em cima dele.
- Eu não sei o que me levou a isso. Instinto visceral, acho eu. Há alguma coisa em Bosch... alguma coisa que não bate bem.
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Ele se lembrou da frase com que Vosskuhler descrevera as pinturas.
- O que isso quer dizer?
McCaleb fez um gesto descartando a pergunta, estendeu a mão e pegou a folha que mostrava o detalhe da coruja abraçada pelo homem. Colocou-a diante do rosto de Jaye.
- Veja as trevas aqui. Nos olhos. Há algo dentro de Harry igual a isto.
- Você está até me assustando, Terry. O que está dizendo? Que Harry Bosch foi uma pintura numa vida anterior? E sério, ouça o que está dizendo.
Ele pôs a folha de volta na mesa e se afastou dela, abanando a cabeça.
- Eu não sei como dizer isto - disse ele. - Mas há alguma coisa ali, só isso. Uma conexão de algum tipo entre eles dois, e que vai além do nome.
Fez um gesto, como afastando o pensamento.
- Está bem, vamos em frente - disse Jaye. - Por que agora, Terry? Se foi Bosch, por que agora? E por que Gunn? Ele se livrou de Bosch há seis anos.
- É interessante você dizer que Gunn se livrou dele e não da justiça.
- Eu não quis dizer nada com isso. Você simplesmente gosta de pegar...
- Por que agora? Quem sabe? Mas houve aquele reencontro na cela dos bêbados na véspera da morte de Gunn, além da ocasião em outubro. E a coisa vai ainda mais para
trás. Sempre que o cara era preso, Bosch aparecia.
- Mas na última noite Gunn estava bêbado demais pra falar. -Quemdisse isso?
Ela balançou a cabeça. Eles tinham apenas a versão de Bosch sobre o encontro na cela dos bêbados.
- Está bem. Mas por que Gunn? Não quero fazer juízo de valor sobre assassinos ou suas vítimas, mas o cara esfaqueou uma prostituta num motel de alta rotatividade
em Hollywood. Todos nós
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sabemos que algumas pessoas valem mais que outras, e essa não devia valer grande coisa. Se você leu o dossiê, você viu... nem a família dela se interessou pelo caso.
- Então há alguma coisa faltando, algo que nós não sabemos. Porque Harry se interessou. Além disso, não acho que ele é do tipo que valoriza um caso ou indivíduo
mais do que outros. Mas há alguma coisa sobre Gunn que ainda não sabemos. Tem que haver... Há seis anos isso levou Harry a atirar seu comandante pela janela e pegar
uma suspensão. Também fez com que ele visitasse Gunn toda vez que o cara era preso e posto numa cela - disse McCaleb balançando a cabeça para si próprio e acrescentando:
- Nós temos que achar o gatilho. O fator estressante. Aquilo que levou o ato a ser cometido agora, e não um ano atrás, dois anos atrás, ou quando quer que seja.
Jaye levantou-se abruptamente.
- Quer parar de dizer "nós"? Sabe, nisso tudo há algo que você está convenientemente omitindo. Por que esse homem, um detetive de homicídios veterano, mataria esse
cara e deixaria um monte de pistas apontando para ele mesmo? Isso não faz sentido... em termos de Harry Bosch. Ele seria inteligente demais para fazer isso.
- Só do nosso ponto de vista. Todas essas coisas podem parecer óbvias agora, depois de descobertas. E você está esquecendo que o ato de assassinato já é, por si
só, evidência de um pensamento deformado, de uma personalidade dissimulada. Se Harry Bosch desviou-se do caminho e caiu na vala... no abismo... nós não podemos presumir
nada sobre a sua maneira de pensar ou planejar um assassinato. Deixar essas pistas pode ter sido algo sintomático.
Jaye descartou a explicação dele com um gesto e disse:
- Lá vem o velho papo do FBI. Cheio de enrolação. - Depois apanhou a cópia de O jardim das delícias terrenas na mesa e pôs-se a examiná-la, acrescentando: - Eu falei
com Harry sobre o caso há duas semanas. Você falou com ele ontem. Ele não parecia estar subindo pelas paredes ou espumando de raiva. E pense no julgamento em que
ele anda depondo atualmente. Mas Harry está tranqüilo, calmo, e com a porra toda dominada. Sabe que apelido os conhecidos da repartição puseram nele? O Homem
de Marlboro.
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- Bom, ele parou de fumar. E talvez o caso de Storey tenha sido o fator estressante. E muita pressão. O troço tem que sair por algum lugar.
McCaleb percebeu que ela não estava escutando. Jaye tinha os olhos fixos em alguma coisa na pintura. Largou a folha e pegou a que mostrava o detalhe da coruja escura
abraçada pelo homem nu.
- Quero perguntar uma coisa a você - disse ela. - Se o nosso cara encomendou a coruja diretamente daquele galpão para a vítima, como essa repintura sob medida foi
feita, caralho?
McCaleb balançou a cabeça.
- Boa pergunta. Ele deve ter pintado o bicho lá no apartamento mesmo. Talvez enquanto via Gunn tentando sobreviver.
- Não havia tinta desse tipo no apartamento. E nós também verificamos a lixeira do prédio. Não vimos tinta alguma.
- Ele levou a tinta embora para jogar fora em outro lugar.
- Ou para usar novamente da próxima vez.
Jaye fez uma longa pausa enquanto raciocinava. McCaleb ficou esperando.
- O que nós podemos fazer? - perguntou ela por fim. -Agora é "nós"?
- Por enquanto. Mudei de idéia. Não posso levar essa história para o departamento. E perigoso demais. Se a coisa estiver errada, talvez seja o fim da linha pra mim.
McCaleb balançou a cabeça e disse:
- Você e seu parceiro têm outros casos?
- Temos três casos em aberto, inclusive este aqui.
- Bom, coloque seu parceiro em um dos outros, enquanto você trabalha neste... comigo. Nós podemos investigar Bosch até termos alguma coisa palpável... a favor ou
contra... que você possa tornar oficial.
- E o que eu faço, ligo para Harry Bosch e digo que precisamos conversar porque ele é suspeito de um assassinato?
- Eu falo com Bosch primeiro. Vai ser menos óbvio se eu fizer o primeiro contato. Vou só sentir o pulso da coisa. Quem sabe? Talvez a minha intuição esteja errada.
Ou a gente encontre o gatilho.
- Isso é mais fácil de falar que de fazer. Se a gente chegar perto
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demais, ele vai perceber. E não quero esse troço explodindo na nossa cara... na minha cara, principalmente. -É aí que eu posso ser útil.
- É? Como?
- Eu não sou tira. Posso chegar mais perto dele. Preciso entrar na casa dele, ver como ele vive. Enquanto isso, você...
- Espere um instante. Você não está falando em arrombar a casa dele. Não posso ser cúmplice disso.
- Não, nada de ilegal.
- Então como vai entrar lá?
- Batendo na porta.
- Boa sorte. O que ia dizer antes? Enquanto isso, eu faço o quê?
- Você trabalha na periferia, nos troços óbvios. Rastreie a ordem de pagamento da coruja. Descubra mais coisas sobre Gunn e o assassinato de seis anos atrás. Investigue
o incidente entre Harry e seu antigo tenente... e investigue a morte do tenente. Harry disse que o cara saiu certa noite e apareceu morto num túnel.
- Caceta, eu lembro dessa história. Teve a ver com Gunn?
- Não sei. Mas ontem Bosch fez uma espécie de referência velada a isso.
- Posso pesquisar essas coisas e sair fazendo perguntas sobre os outros troços. Mas talvez Bosch acabe percebendo a movimentação.
McCaleb balançou a cabeça, achando que era um risco que precisava ser assumido.
- Sabe de algum conhecido dele? - perguntou ele. Ela abanou a cabeça, irritada.
- Escute, não se lembra mais? Todo policial é paranóico. Assim que eu fizer uma pergunta sobre Harry Bosch, o pessoal vai perceber a nossa jogada.
- Não necessariamente. Use o caso do Storey, que tem alta visibilidade. Diga que viu Bosch na tevê e achou que ele não estava legal. "Ele está bem? O que anda acontecendo
com ele?" Coisas assim. Finja que está fofocando.
Jaye não parecia tranqüilizada. Foi até a porta corrediça e olhou para a marina. Encostou a testa na vidraça.
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- Conheço a antiga parceira dele - disse ela. - Temos um grupo informal de mulheres que se reúne uma vez por mês. Todas trabalham em homicídios, e tem gente de todos
os departamentos locais. Somos cerca de uma dúzia. A antiga parceira dele, Kiz Rider, acabou de ser transferida de Hollywood para a RoubosHomicídios. Chegou ao topo.
Mas acho que eles já foram íntimos. Bosch era uma espécie de mentor dela. Pode ser que eu consiga alguma coisa com ela, se usar um pouco de sutileza.
McCaleb balançou a cabeça e pensou numa coisa.
- Harry me disse que se divorciou. Não sei há quanto tempo, mas você pode perguntar isso a Kiz, como se estivesse interessada nele, esse tipo de coisa. Se perguntar
assim, talvez ela dê toda a ficha dele.
Jaye desviou o olhar da porta e encarou McCaleb.
- E, ela vai me adorar quando descobrir que era tudo papo furado, e que eu estava armando o bote em cima do seu ex-parceiro...
seu mentor.
- Se ela for uma boa policial, vai entender. Ou você limpava a barra dele ou metia Bosch em cana, e em qualquer dos dois casos queria fazer isso com a maior discrição
possível
Jaye lançou o olhar para fora novamente.
- Preciso ser capaz de negar essa história toda.
- O que isso significa?
- Significa que preciso poder me safar, se a gente fizer isso. Caso você entre lá e tudo dê errado.
McCaleb balançou a cabeça. Teria preferido que ela não houvesse dito aquilo, mas percebia a necessidade que ela tinha de se proteger.
- Estou falando com toda a sinceridade, Terry. Se a vaca for pró brejo, vai parecer que você se excedeu. Que eu só lhe pedi para dar uma olhada no dossiê, mas que
você tomou o freio nos dentes. Sinto muito, mas preciso me proteger.
- Eu entendo, Jaye. Dá pra levar assim mesmo. Vou arriscar.
Capítulo 18
Jaye ficou em silêncio durante bastante tempo, olhando fixamente para fora pela porta do salão. McCaleb pressentiu que ela estava resolvendo alguma coisa e ficou
esperando.
- Vou contar pra você uma história sobre Harry Bosch - disse ela por fim. - Conheci Harry há cerca de quatro anos. Era um caso duplo. Dois
seqüestros seguidos de assassinato. O de Hollywood era dele, o de West Hollywood era meu. Mulheres jovens, na realidade garotas. As provas materiais ligavam os dois casos. Basicamente,
trabalhávamos nos casos em separado, mas almoçávamos juntos toda quarta-feira para trocar informações.
- Levantaram o perfil do criminoso?
- Levantamos. Isso aconteceu quando Maggie Griffin ainda trabalhava no FBI. Ela levantou alguma coisa para nós. O costumeiro. Mas as coisas esquentaram quando houve
um terceiro caso de desaparecimento. Dessa vez uma garota de dezessete anos. As provas colhidas nos dois primeiros casos indicavam que o culpado mantinha as vítimas
vivas por quatro ou cinco dias antes de se cansar e matar as garotas. Portanto, tínhamos que correr contra o tempo. Conseguimos reforços e comparamos os denominadores
comuns aos três casos.
McCaleb balançou a cabeça. Aparentemente, eles haviam seguido o método clássico de caça a um assassino serial.
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- Surgiu uma pequena possibilidade - disse ela. - As três vítimas usavam a mesma lavanderia a seco em Santa Monica, perto de La Cienega. A última, a garota de dezessete
anos, tinha um emprego de férias na Universal e levava seus uniformes para lavar a seco lá. Antes de falar com a gerência, fomos ao estacionamento dos funcionários,
anotamos as placas e pesquisamos os números. Talvez conseguíssemos descobrir alguma coisa antes de entrarmos e nos apresentarmos. Acertamos em cheio. O próprio gerente.
Ele tinha sido preso dez anos antes por atentado ao pudor. Pegamos a ficha, e o caso era uma variante dos exibicionistas de parque. Ele parou o carro num ponto de
ônibus e abriu a porta para que a mulher sentada no banco desse uma olhada no seu bilau. Só que ela era uma policial disfarçada e estava lá como isca. Eles já sabiam
que havia um tarado agindo na vizinhança. Em todo caso, ele pegou liberdade condicional com acompanhamento psicológico. Mentiu sobre o problema quando foi entrevistado
para o emprego na lavanderia e ao longo dos anos fez carreira até chegar ao cargo de gerente.
- Quanto maior o cargo, maior o estresse, e maior o nível de transgressão.
- Foi o que pensamos. Mas não tínhamos prova alguma. Foi aí que Bosch teve uma idéia. Disse que todos - eu, ele e nossos parceiros - iríamos até a casa desse cara,
que se chamava Hagen. Afirmou que tinha aprendido com um agente do FBI a sempre interrogar o suspeito em casa, se houvesse chance, porque às vezes dava para obter
mais informação a partir do ambiente do que das coisas que ele pudesse dizer.
McCaleb reprimiu um sorriso. Fora a lição que Bosch aprendera no caso de Cielo Azul.
- Fomos até a casa de Hagen. Ele morava num velho casarão em Los Feliz, perto de Franklin. Já fazia quatro dias que a terceira mulher tinha desaparecido, de modo
que sabíamos que estávamos correndo contra o tempo. Batemos à porta. O plano era agir como se não soubéssemos da ficha policial dele, fingindo que estávamos ali
só para conseguir a ajuda dele na verificação dos funcionários da loja. Pra ver como ele reagiria, ou se dava uma escorregadela.
- Certo.
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- Bom, entramos na sala do cara, e eu mesma conduzi a maior parte da conversa, porque Bosch queria observar como o cara reagiria ao ver uma mulher controlando a
situação. Nem cinco minutos depois, Bosch levantou de repente e disse: "É ele. Ela está em algum lugar aqui." Quando ele disse isso, Hagen se levantou e correu para
a porta. Mas não foi longe.
- Foi um blefe ou fazia parte do plano?
- Nem uma coisa nem outra. Bosch simplesmente percebeu. Na mesinha perto do sofá havia uma babá eletrônica. Bosch viu aquilo e sacou imediatamente. Era a parte errada
que estava ali. O transmissor. Ou seja, o receptor estava em outro lugar. Quem tem filho usa o sistema ao contrário. Ouve na sala de estar o barulho que o bebê faz
lá no quarto. Mas ali a coisa estava invertida. O perfil que Maggie fizera dizia que o sujeito era um controlador e que provavelmente coagia verbalmente suas vítimas.
Quando Bosch viu o transmissor, sentiu a idéia clicar na sua cabeça... O cara tinha a garota presa em algum lugar e tocava punheta enquanto falava com ela.
- Ele estava certo?
- Completamente. Encontramos a garota na garagem, dentro de um freezer desligado com três buracos para ventilação. O troço parecia um caixão de defunto. O receptor
da babá eletrônica também estava lá. Mais tarde ela nos contou que Hagen falava com ela incessantemente, sempre que estava em casa. Além de cantar pra ela sucessos
da década de quarenta. Ele mudava as letras, dizendo que ia estuprar e matar a garota.
McCaleb balançou a cabeça, desejando ter participado daquele caso, pois sabia o que Bosch sentira naquele momento súbito de coalescência, quando os átomos colidem.
Quando tudo fica claro. Era um momento tão emocionante que chegava a dar medo. O momento pelo qual anseia secretamente todo detetive de homicídios.
- Estou contando essa história por causa do que Bosch fez e disse depois. Colocamos Hagen no banco traseiro de um dos carros e começamos a revistar a casa, mas Bosch
permaneceu na sala com a tal babá. Ligou o aparelho e ficou falando com ela. Não parou até encontrar a garota. Dizia: "Jennifer, estamos aqui. Está tudo bem,
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Jennifer, estamos chegando. Você está salva e vamos buscar você. Ninguém vai machucar você." Não parou de falar com ela, acalmando a garota desse jeito.
Jaye fez uma longa pausa, e McCaleb viu que os olhos dela estavam fixos naquela lembrança.
- Depois que encontramos a garota, todos nós nos sentimos tão bem. Foi a sensação mais empolgante que já tive nesse serviço. Fui até Bosch e disse: "Você deve ter
filhos. Falou com a garota como se ela fosse uma filha sua." Ele simplesmente abanou a cabeça e disse que não. Disse: "E que eu sei o que é ficar sozinho no escuro."
E depois se afastou.
Ela desviou o olhar da porta para McCaleb.
- O que você disse sobre a treva me fez lembrar isso. McCaleb balançou a cabeça.
- O que vamos fazer se chegarmos a ter certeza total que foi ele? - perguntou Jaye, voltando o rosto novamente para a vidraça.
McCaleb respondeu rapidamente, para não ter que pensar sobre a pergunta.
- Não sei - disse.
Depois que Jaye pôs a coruja de plástico na caixa das provas, reuniu todas as páginas que ele lhe mostrara e partiu, McCaleb ficou parado diante da porta corrediça,
vendo-a subir a rampa até o portão. Olhou para o relógio e viu que dispunha de muito tempo antes de precisar se preparar para a noite. Decidiu assistir a um pouco
do julgamento na TV Tribunal.
Lançou novamente o olhar pela porta e viu Jaye pondo a caixa de provas na mala do carro. Subitamente, ouviu alguém pigarrear. Virou-se abruptamente e viu Buddy Lockridge
ao pé da escada do convés inferior, olhando para ele com uma pilha de roupas nos braços.
- Buddy, que diabo está fazendo?
- Cara, esse caso em que você está trabalhando é estranho.
- Eu disse que diabo você está fazendo?
- Eu ia lavar roupa, e vim até aqui porque metade das minhas coisas estava na cabine. Depois vocês dois chegaram, e quando começaram a falar eu vi que não podia
aparecer.
Mostrou a pilha de roupas nos braços como prova de sua história.
- Fiquei sentado na cama, esperando.
- E ouvindo tudo que dissemos.
- É um caso maluco, cara. O que você vai fazer? Eu já vi esse tal de Bosch na TV Tribunal. Ele parece um pouco tenso demais.
- Eu sei o que não vou fazer. Não vou falar sobre isso com você. McCaleb apontou para a porta de vidro.
- Vá embora, Buddy, e não diga uma palavra desse troço a ninguém. Entendeu?
- Entendi. Eu só estava...
- Fora.
- Sinto muito, cara.
- Eu também.
McCaleb abriu a porta corrediça, e Buddy saiu feito um cachorro com o rabo entre as pernas. McCaleb teve que se segurar para não lhe dar um pé na bunda. Em vez disso,
fechou a porta com raiva, batendo-a com força no umbral. Ficou parado ali olhando pela vidraça, até que viu Buddy subir a rampa e chegar ao prédio onde havia uma
lavanderia a quilo.
O fato de Buddy ter escutado tudo comprometera a investigação. McCaleb sabia que deveria ligar imediatamente para Jaye e contar o ocorrido à detetive, para saber
o que ela preferia fazer. Mas deixou a coisa passar em branco. A verdade era que ele não queria fazer nada que pudesse afastá-lo da investigação.
Capítulo 19
Depois de pousar a mão sobre a Bíblia e prometer dizer toda a verdade, Harry Bosch sentou-se no banco das testemunhas e ergueu o olhar para a câmera instalada na
parede acima do recinto do júri. Sabia que o olho do mundo estava sobre ele. O julgamento estava sendo televisado ao vivo, em rede nacional pela TV Tribunal e localmente
pelo Canal 9. Bosch tentou não aparentar nervosismo. Mas o fato era que seu desempenho e personalidade não estariam sendo examinados e julgados apenas pelos jurados.
Pela primeira vez em muitos anos de testemunhos em julgamentos criminais, ele não se sentia totalmente à vontade. Estar do lado da verdade não era um consolo, quando
sabia que a verdade tinha que atravessar uma traiçoeira pista de obstáculos colocada à sua frente pelo réu e seu advogado, ambos ricos e bem-relacionados.
Bosch colocou a pasta azul - o dossiê de assassinato - numa prateleira à sua frente no banco das testemunhas e puxou o microfone mais para perto, ocasionando um
guincho agudo que feriu os ouvidos de todos no tribunal.
- Detetive Bosch, por favor não toque no microfone - alertou o juiz Houghton.
- Perdão, meritíssimo.
Um agente do escritório do xerife que fazia o papel de oficial de justiça foi até o banco das testemunhas, desligou o microfone e
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ajustou a posição do aparelho. Quando Bosch balançou a cabeça, concordando com a nova posição, o oficial de justiça ligou o dispositivo de novo. O auxiliar do juiz
pediu que Bosch declarasse seu nome e sobrenome, soletrando-o para que fosse registrado.
- Muito bem - disse o juiz depois que Bosch terminou. - Doutora Janis Langwiser?
A promotora-assistente levantou-se da mesa da acusação e dirigiu-se à tribuna. Levava um bloco de anotações com suas perguntas. Ocupava o segundo lugar na mesa da
acusação, mas trabalhara com os investigadores desde o início do caso. Ficara decidido que ela conduziria o depoimento de Bosch.
Janis era uma advogada jovem e promissora da equipe da promotoria. Começara como simples arquivista de processos para os advogados mais experientes da promotoria,
mas em poucos anos já passara a levar pessoalmente os casos ao tribunal. Bosch trabalhara com ela num caso traiçoeiro e politicamente delicado, conhecido como os
assassinatos do Vôo dos Anjos. A experiência fizera com que ele a recomendasse para primeira assistente de Kretzler. Depois que voltara a trabalhar com ela novamente,
Bosch concluíra que suas primeiras impressões tinham fundamento. Janis detinha total comando e lembrança dos fatos do caso. Enquanto a maioria dos advogados precisava
folhear os relatórios de provas a fim de localizar uma informação, ela sabia de memória a informação e a sua localização nos relatórios. Mas sua habilidade não se
limitava às minúcias do caso. Ela nunca perdia de vista o objetivo maior de todos os esforços deles - trancafiar David Storey definitivamente.
- Boa tarde, detetive Bosch - começou Janis. - Por favor, conte para o júri um pouco de sua carreira como agente de polícia. Bosch pigarreou:
- Pois não. Eu faço parte do Departamento de Polícia de Los Angeles há vinte e oito anos. Passei mais da metade desse tempo investigando homicídios. Sou um detetive
três, atualmente na equipe de homicídios da Divisão Hollywood.
- O que significa "detetive três"?
- Significa detetive de terceiro grau. É o posto mais alto da carreira de detetive, equivalente a sargento, mas não há sargentos-
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detetives no Departamento. Depois de detetive três o próximo posto seria tenente-detetive.
- Quantos homicídios o senhor diria que investigou durante a sua carreira?
-Já perdi a conta. Diria que no mínimo algumas centenas, em quinze anos.
- Algumas centenas.
Janis ergueu os olhos para o júri ao enfatizar a última palavra. - Mais ou menos isso.
- E como detetive três o senhor atualmente é o supervisor da equipe de homicídios?
- Tenho alguns deveres de supervisão. E também chefio uma equipe de três policiais que lida com investigações de homicídios.
- Como tal, o senhor comandava a equipe que foi chamada à cena de um homicídio em 13 de outubro do ano passado, certo?
- Certo.
Bosch olhou para a mesa da defesa. David Storey mantinha a cabeça baixa, usando sua caneta hidrográfica para desenhar no bloco. Mantivera-se ocupado assim desde
que a seleção do júri começara. Bosch desviou o olhar para J. Reason Fowkkes, encarando o advogado do réu. Sustentou o olhar até Janis lhe fazer a pergunta seguinte.
- Tratava-se do assassinato de Donatella Speers? Bosch olhou de novo para Janis.
- Correto. Esse era o nome que ela usava.
- Não era o nome verdadeiro?
- Era o nome artístico, acho que poderíamos dizer. Ela era atriz e mudou de nome. Chamava-se Jody Krementz antes.
O juiz interrompeu e pediu que Bosch soletrasse os nomes para o escrivão. Depois Janis continuou.
- Relate as circunstâncias da chamada passo a passo, detetive Bosch. Onde o senhor estava, o que estava fazendo, como esse caso veio parar nas suas mãos?
Bosch pigarreou e estendeu a mão para puxar o microfone, mas lembrou do que acontecera antes. Deixou o microfone onde estava e inclinou-se à frente.
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- Eu e meus dois parceiros estávamos almoçando num restaurante chamado Musso and Frank's, no bulevar Hollywood. Era sexta-feira, e geralmente almoçamos ali quando
temos tempo. Às onze e quarenta e oito meu bip tocou. Reconheci o número como o da minha supervisora, tenente Grace Billets. Enquanto telefonava para ela, os bíps
dos meus parceiros, Jerry Edgar e Kizmin Rider, também tocaram. A essa altura já sabíamos que tínhamos um caso. Falei com a tenente Billets, e ela mandou nossa equipe
ir para o número mil e um da rua Nichols Canyon, onde uma viatura e uma ambulância haviam atendido a uma chamada de emergência, relatando que havia uma jovem morta
na cama em circunstâncias suspeitas.
- Sua equipe foi até o endereço dado?
- Não. Nós três tínhamos ido para o Musso no meu carro. Então voltei à delegacia de Hollywood, que fica a poucas quadras dali, e larguei meus parceiros lá para que
eles pegassem seus próprios veículos. Depois fomos separadamente para o endereço. Nunca se sabe pra onde se deverá ir a partir da cena do crime. E mais prático cada
detetive ter o seu próprio carro.
- Nessa hora o senhor já sabia quem era a vítima ou quais eram as circunstâncias suspeitas da morte
dela?
- Não, não sabia.
- O que encontrou quando chegou lá?
- Era uma casa pequena de dois quartos, com vista para o cânion. Havia duas viaturas no local. Os enfermeiros já haviam ido embora, depois de verificar que a vítima
estava morta. Dois patrulheiros e um sargento estavam dentro da casa. Na sala havia uma mulher sentada no sofá, chorando. Ela me foi apresentada como Jane Gilley.
Dividia a casa com a Srta. Krementz.
Bosch parou de falar e ficou esperando uma pergunta. Janis estava curvada sobre a mesa da acusação, conversando com o promotor Roger Kretzler.
- Doutora, isso conclui seu interrogatório do detetive Bosch? - perguntou o juiz Houghton.
Janis endireitou o corpo sobressaltada, não tendo notado que Bosch parara de falar.
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- Não, meritíssimo. - Ela voltou à tribuna e disse: - Continue, detetive Bosch, e conte para esta sala o que aconteceu depois da sua entrada na casa.
- Falei com o sargento Kim e ele me informou que havia uma jovem morta na cama do quarto que ficava à direita nos fundos da casa. Apresentou a mulher no sofá e disse
que seu pessoal tinha saído do quarto sem mexer em nada, depois que os enfermeiros verificaram que a vítima estava morta. Então segui pelo pequeno corredor até o
quarto e entrei.
- O que encontrou ali?
- Vi a vítima na cama. Era uma mulher branca, esbelta e loura. Foi mais tarde identificada como Jody Krementz, de vinte e três anos de idade.
Janis pediu permissão para mostrar uma série de fotografias a Bosch. Houghton balançou a cabeça, e Bosch identificou as provas fotográficas policiais como sendo
da vítima in sítu - tal como o cadáver fora visto inicialmente pela polícia. A mulher estava com rosto para cima. Os lençóis estavam repuxados para o lado, revelando
o corpo nu com as pernas separadas por cerca de 60 centímetros na altura dos joelhos. Os seios volumosos mantinham seu formato apesar da posição horizontal do corpo,
numa indicação de implantes. O braço esquerdo estava estendido sobre o estômago. A palma da mão esquerda cobria a região púbica. Dois dedos dessa mão penetravam
na vagina.
Os olhos da vítima estavam fechados, e a cabeça repousava num travesseiro mas formando um ângulo agudo com o pescoço. Amarrada fortemente em torno do pescoço havia
uma echarpe amarela, que também fora enrolada em torno da trave superior da cabeceira da cama. A ponta da echarpe de seda saía da trave e dava várias voltas em torno
da mão direita da vítima, que estava no travesseiro acima da cabeça.
As fotografias eram coloridas. Podia-se ver uma marca vermelho-arroxeada no pescoço da vítima, onde a echarpe comprimira a pele. Em
torno das órbitas havia um tom avermelhado descolorido. Também se notava uma descoloração azulada correndo ao longo de todo o lado esquerdo do corpo, incluindo o braço e a perna.
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Depois que Bosch identificou as fotografias como sendo de Jody Krementz m situ, Janis pediu que elas fossem mostradas ao júri. J. Reason Fowkkes protestou, alegando
que as fotos poderiam causar grande comoção entre os jurados e prejudicar o senso de avaliação deles. O juiz não aceitou o protesto, mas ordenou que Janis escolhesse
apenas uma foto que fosse representativa do conjunto. Janis escolheu a foto tirada mais de perto, que foi entregue ao jurado que estava sentado na primeira cadeira
do recinto do júri. Enquanto a fotografia era passada lentamente de mão em mão, e depois aos jurados reservas, Bosch ficou observando os rostos se crispando de choque
e horror. Recostou-se na cadeira e bebeu água num copo de papel. Quando esvaziou o copo, olhou para o agente do gabinete do xerife, fez sinal de que queria mais
e aproximou-se novamente do microfone.
Depois de percorrer todo o júri, a fotografia foi entregue ao auxiliar do juiz. Seria devolvida aos jurados, juntamente com todas as outras provas materiais apresentadas
durante o julgamento, quando o júri fosse deliberar sobre o veredicto.
Bosch viu Janis voltar à tribuna para continuar o interrogatório. Sabia que ela estava nervosa. Eles haviam almoçado juntos na lanchonete do subsolo do outro prédio
do tribunal, e Janis lhe confidenciara suas preocupações. Embora fosse apenas assistente de Kretzler, tratava-se de um julgamento importante, com potencial para
impulsionar ou destruir a carreira dos dois.
Janis conferiu o bloco de anotações antes de continuar.
- Detetive Bosch, depois de inspecionar o corpo, em que momento o senhor declarou que aquela morte seria investigada como homicídio?
- Imediatamente. Antes até da chegada dos meus parceiros.
- Por quê? A morte não parecia ter ocorrido por acidente?
- Não, a morte...
- Doutora, faça uma pergunta de cada vez, por favor - interpôs o juiz Houghton.
- Desculpe, meritíssimo. Detetive Bosch, não lhe pareceu que a mulher pudesse ter se matado acidentalmente?
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- Não, não pareceu. Achei que alguém estava tentando dar essa impressão.
Janis ficou olhando para o bloco durante bastante tempo antes de continuar. Bosch tinha quase certeza de que se tratava de uma pausa planejada para aquele momento,
quando a fotografia e o seu testemunho já houvessem prendido toda a atenção do júri.
- Detetive, conhece a expressão asfixia auto-erótica?
- Conheço.
- Poderia explicar ao júri o que é isso? Fowkkes levantou-se para protestar.
- Meritíssimo, o detetive Bosch pode ser muitas coisas, mas não foi provado ao tribunal que ele seja perito em sexualidade humana.
Houve um murmúrio de risos abafados na sala. Bosch viu alguns jurados reprimindo sorrisos. Houghton bateu o martelo uma vez e olhou para Janis.
- E agora, doutora?
- Meritíssimo, posso apresentar uma prova disso.
- Continue, então.
- Detetive Bosch, o senhor disse que já trabalhou em centenas de homicídios. Já investigou mortes que não foram causadas por homicídio?
- Sim, provavelmente centenas delas também. Mortes acidentais, suicídios e até mortes por causas naturais. É rotineiro um detetive de homicídios ser chamado por
patrulheiros ao local de uma morte para ajudar a decidir se a tal morte deve ser investigada como um homicídio. Foi o que aconteceu nesse caso. Os patrulheiros e
o sargento não sabiam direito o que tinham ali. Classificaram a morte como suspeita, e minha equipe foi convocada.
-Já foi convocado para investigar, ou já investigou, uma morte classificada pelo senhor, ou pelo médico-legista, como morte acidental por asfixia auto-erótica?
-Já.
Fowkkes levantou-se de novo.
- Protesto novamente, meritíssimo. Estamos entrando numa área na qual o detetive Bosch não é especialista.
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- Meritíssimo - disse Janis -, já está claramente estabelecido que o detetive Bosch é especialista na investigação de mortes, o que inclui todos os tipos de morte.
Ele já se deparou com isso antes. E pode testemunhar a respeito.
Havia um tom de exasperação na voz de Janis. Bosch achou que ela estava falando mais para o júri do que para Houghton. Aquilo era um meio subliminar de comunicar
aos doze jurados que ela queria chegar à verdade, enquanto outros queriam bloquear o acesso a ela.
- Eu me inclino a concordar, doutor Fowkkes - disse Houghton depois de uma pequena pausa. - Vou rejeitar todos os protestos a essa linha de interrogatório. Continue,
doutora.
- Muito obrigado, meritíssimo. Portanto, detetive Bosch, o senhor está familiarizado com casos de asfixia auto-erótica?
- Estou, já trabalhei em três ou quatro. Também estudei a literatura existente sobre o assunto. A asfixia auto-erótica é citada em vários livros sobre técnicas de
investigação de homicídio. Também li resumos de amplas pesquisas realizadas pelo FBI e outros órgãos.
- Antes da ocorrência desse caso?
- Sim, antes.
- O que é a asfixia auto-erótica? Como acontece?
- Doutora Janis Langwiser... - começou o juiz.
- Desculpe, meritíssimo. Vou reformular. O que é asfixia autoerótica, detetive Bosch?
Bosch tomou um gole de água enquanto concatenava os pensamentos. Eles haviam repassado aquelas perguntas durante o almoço.
- É uma morte acidental. Ocorre quando a vítima tenta aumentar a sensação de prazer ao se masturbar, cortando ou desviando o fluxo de sangue arterial para o cérebro.
Geralmente, isso é feito sob a forma de uma ligadura em torno do pescoço. O aperto da ligadura resulta em hipoxia ou diminuição da oxigenação do cérebro. As pessoas
que... hum... fazem isso acreditam que a hipoxia, ou leve tontura, provocada assim aumenta as sensações masturbatórias. Mas a coisa pode levar à morte acidental
se o sujeito
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for longe demais, a ponto de danificar as artérias carótidas ou desmaiar com a ligadura ainda apertada no lugar e sufocar.
- O senhor disse "o sujeito", detetive. Mas neste caso a vítima é uma mulher.
- Este caso aqui não envolve asfixia auto-erótica. Todos os casos desse tipo de morte que vi e investiguei ocorreram com homens.
- O senhor está dizendo que neste caso a morte foi maquiada para parecer asfixia auto-erótica?
- Sim, foi essa a minha conclusão imediata. E continua sendo. Janis balançou a cabeça e fez uma pausa. Bosch bebeu um gole
de água. Ao levar o copo à boca, olhou para o recinto do júri. Todos os jurados pareciam atentos.
- Descreva a situação passo a passo, detetive. Como o senhor chegou a essa conclusão?
- Posso consultar meus relatórios?
- Por favor.
Bosch abriu a pasta à sua frente. As quatro primeiras páginas eram do RIO - relatório do incidente original. Ele foi até a quarta página, que continha o resumo do
chefe da equipe. Na realidade o documento fora escrito por Kiz Rider, embora Bosch fosse o chefe naquele caso. Ele folheou rapidamente o resumo para refrescar a
memória e depois ergueu os olhos para os jurados.
- Várias coisas contradiziam a hipótese de um acidente fatal causado por asfixia auto-erótica. Em primeiro lugar, estranhei, porque estatisticamente é raro esse
tipo de morte ocorrer com vítimas femininas. Não chega a ser um fenômeno cem por cento masculino, mas é quase. E como eu sabia disso, prestei bastante atenção ao
corpo e à cena do crime.
- Poderíamos dizer que o senhor ficou imediatamente desconfiado em relação à cena do crime?
- Poderíamos.
- Muito bem, continue. O que mais lhe chamou a atenção?
- A ligadura. Em quase todos os casos relatados por escrito ou por mim presenciados, a vítima usava alguma espécie de proteção em torno do pescoço para não machucar
ou romper a pele. Na
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maioria das vezes uma peça de vestuário pesado, como um suéter ou uma toalha, era enrolada em volta do pescoço. A ligadura era então feita em torno dessa proteção,
para não provocar uma contusão circular em todo o pescoço. Mas naquele caso ali não havia proteção alguma.
- E o que isso significava, na sua opinião?
- Bom, isso não fazia sentido do ponto de vista da vítima. Quer dizer, supondo que ela realmente tivesse se engajado naquela atividade, a cena não fazia sentido.
Significava que ela não tinha usado de proteção alguma porque não se importava de ficar com o pescoço marcado. Para mim, o que a cena mostrava contradizia o bom
senso. Essa contradição era maior ainda porque ela era atriz, coisa que eu percebi imediatamente por causa de uma pilha de fotos de rosto em cima da cômoda. Ela
dependia de sua presença e atributos físicos para arranjar trabalho como atriz. Eu não podia acreditar que ela tivesse conscientemente se engajado numa atividade,
sexual ou não, que deixasse contusões visíveis no seu pescoço. Isso e outras coisas me levaram a concluir que a cena era uma armação.
Bosch olhou para a mesa da defesa. Storey ainda tinha a cabeça baixa e desenhava no seu bloco como se estivesse sentado no banco de um parque qualquer. Bosch percebeu
que Fowkkes estava anotando algo. Ficou pensando se dissera algo na última resposta que, de alguma forma, pudesse ser usado contra ele. Sabia que Fowkkes era um
especialista em pegar frases de testemunhas e darlhes novo significado quando usadas fora de contexto.
- Que outras coisas levaram o senhor a essa conclusão? - perguntou Janis.
Bosch consultou novamente o resumo do relatório do incidente original.
- Isoladamente, a coisa mais importante foi perceber pela lividez post mortem que o corpo fora deslocado.
- Em termos leigos, detetive, o que significa lividez post-mortem?
- Quando o coração pára de bombear, o sangue começa a se acumular na metade inferior do corpo, seja qual for a posição. Com o tempo, a pele dessa parte adquire uma
aparência contundida.
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Mesmo que o corpo seja movido de lugar, essa contusão permanece na posição original, porque o sangue já coagulou. Com o tempo, o efeito vai se tornando mais visível.
- O que aconteceu neste caso?
- Neste caso havia clara indicação de que o sangue tinha se acumulado no lado esquerdo do corpo. Isso significava que no momento da morte, ou pouco depois, a vítima
esteve deitada sobre o lado esquerdo.
- Entretanto não foi assim que o corpo foi achado, correto?
- Correto. O corpo foi achado na posição supina, ou seja, deitado de costas.
- O que o senhor concluiu disso?
- Que o corpo foi deslocado depois da morte. Que a mulher foi colocada de costas como parte da armação para fazer sua morte parecer asfixia auto-erótica.
- Qual foi a causa da morte, na sua opinião?
- Aquela altura eu não tinha certeza. Só achava que não era o que parecia ser. A contusão no pescoço embaixo da ligadura me levava a crer num caso de estrangulamento
- mas não pelas mãos da própria vítima.
- Quando os seus parceiros chegaram à cena do crime?
- Enquanto eu fazia as anotações iniciais sobre o corpo e a cena do crime.
- Eles chegaram às mesmas conclusões que o senhor?
Fowkkes protestou, dizendo que a pergunta exigia uma resposta que envolvia testemunhos de outrem. O juiz aceitou o protesto. Bosch sabia que aquilo era uma questão
menor. Se Janis quisesse as conclusões de Edgar e Rider registradas nos anais, podia simplesmente convocá-los a depor.
- O senhor compareceu à autópsia do corpo de Jody Krementz?
- Compareci - disse ele, folheando a pasta até achar o laudo da autópsia. - Foi no dia 17 de outubro e realizada pela doutora Teresa Corazón, chefe da Divisão Médico-Legal.
- A causa da morte foi determinada pela Dra. Teresa durante a
autópsia?
- Foi. A causa da morte foi asfixia. Ela foi estrangulada.
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- Por ligadura?
- Sim.
- Mas isso não contradiz sua teoria de que a morte não foi causada por asfixia auto-erótica?
- Não, isso confirmou minha teoria. A pose de uma asfixia auto-erótica foi usada para disfarçar o assassinato da vítima por estrangulamento. Os danos internos às
duas artérias carótidas, ao tecido muscular do pescoço e ao osso hióide, que foi esmagado, levaram a doutora Teresa a confirmar que a morte foi causada por mão alheia.
Os danos eram grandes demais para terem sido autoinfligidos.
Bosch percebeu que levara a mão no pescoço ao descrever as contusões, e deixou-a cair no colo.
- O exame médico-legal encontrou alguma prova independente de homicídio?
Bosch balançou a cabeça.
- Sim, o exame da boca da vítima revelou uma laceração profunda, ocasionada por uma mordida na língua. Esse ferimento é comum em casos de estrangulamento.
Janis virou uma página do seu bloco de anotações.
- Muito bem, detetive Bosch, vamos voltar à cena do crime. O senhor ou seus parceiros interrogaram Jane Gilley?
- Sim, eu interroguei. Juntamente com a detetive Rider.
- A partir desse interrogatório o senhor descobriu onde a vítima esteve nas vinte e quatro horas anteriores à descoberta de sua morte?
- Sim. Primeiro soubemos que ela tinha conhecido o réu numa lanchonete vários dias antes, sendo convidada a ir com ele à estréia de um filme no Chinese Theater,
em Hollywood, na noite de 12 de outubro. O réu apanhou a vítima entre sete e sete e trinta da noite. Jane Gilley viu a cena por uma janela da casa e identificou
o réu.
- Ela sabia a que horas Jody Krementz tinha voltado?
- Não, ela saiu, logo depois da partida de Jody com o réu, e passou a noite fora. Conseqüentemente, não sabia a que horas a colega tinha chegado. Quando voltou para
casa, às onze horas da manhã de 13 de outubro, descobriu o corpo da colega.
- Como se chamava o filme que tinha estreado na véspera?
- Chamava-se Ponto Morto.
- E quem era o diretor?
- David Storey.
Janis fez uma pausa longa. Depois consultou o relógio e olhou para o juiz.
- Meritíssimo - disse -, vou passar a uma nova linha de interrogatório com o detetive Bosch. Talvez seja o melhor momento de interrompermos os trabalhos, se não
for inconveniente.
Houghton afastou a folgada manga preta da toga e olhou para o relógio. Bosch consultou o seu. Eram três e quarenta e cinco.
- Muito bem, doutora. A sessão está suspensa até as nove horas de amanhã.
Houghton disse que Bosch podia sair do banco das testemunhas. Depois proibiu o júri de ler relatos jornalísticos ou assistir a noticiários televisivos sobre o julgamento.
Todos se levantaram, enquanto os jurados saíam em fila indiana. Bosch, que já se juntara a Janis perto da mesa da acusação, lançou o olhar para o lado da defesa.
David Storey estava olhando para ele. O rosto do réu não traía qualquer emoção. Mas Bosch teve a impressão de ver algo naqueles pálidos olhos azuis. Não podia ter
certeza, mas achou que era deboche.
Desviou o olhar do rosto de Storey.
Capítulo 20
Depois que a sala do tribunal se esvaziou, Bosch ficou confabulando com Janis e Kretzler sobre a testemunha desaparecida.
- Alguma novidade? - perguntou Kretzler. - Dependendo do tempo que John Reason mantiver você ali em cima, vamos precisar dela amanhã de tarde ou na manhã seguinte.
- Nada ainda - disse Bosch. - Mas estou me mexendo. Na verdade, preciso ir embora.
- Não estou gostando nada disso - disse Kretzler. - A corda pode arrebentar do nosso lado. Se ela não apareceu, há um motivo. Nunca comprei cem por cento a versão
dela.
- Storey pode ter chegado a ela - sugeriu Bosch.
- Nós precisamos do testemunho dela - disse Janis. - Para demonstrar o hábito. Você tem que encontrar essa mulher.
- Estou tentando.
Ele se levantou da mesa para ir embora.
- Boa sorte, Harry - disse Janis. - A propósito, acho que até agora você se saiu muito bem ali em cima.
Bosch balançou a cabeça.
- A calmaria antes da tempestade.
Caminhando pelo corredor na direção dos elevadores, Bosch foi abordado por um dos repórteres. Não sabia o nome do sujeito, mas já o vira nas cadeiras reservadas
para a imprensa no tribunal.
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- Detetive Bosch? - Bosch continuou andando.
- Escute, eu já disse a todo mundo que não vou fazer comentários até o fim do julgamento. Desculpe. Você vai ter que...
- Não, tudo bem. Eu só queria saber se você encontrou Terry McCaleb.
Bosch parou e olhou para o repórter. -Como assim?
- Ontem. Ele estava à sua procura aqui. - Ah, sim, falei com ele. Conhece Terry?
- Escrevi um livro sobre o FBI há alguns anos. Nós nos conhecemos nessa época. Antes do transplante dele.
Bosch balançou a cabeça, e estava prestes a seguir caminho quando o repórter estendeu-lhe a mão.
- Jack McEvoy.
Bosch cumprimentou o repórter relutantemente, reconhecendo o nome. Cinco anos antes, o FBI seguira a pista de um assassino serial até Los Angeles, onde se acreditava
que ele ia atacar sua próxima vítima - um detetive de homicídios de Hollywood chamado Ed Thomas. Usara informações passadas por McEvoy, repórter do Rocky Mountain
News, um jornal de Denver, para seguir a pista do chamado Poeta, e a vida de Thomas não chegou a ser posta em perigo. Ele já se aposentara e era dono de uma livraria
no condado de Orange.
- Ei, eu me lembro de você - disse Bosch. - Ed Thomas é meu amigo.
Os dois homens se avaliaram mutuamente.
- Está cobrindo isto aqui? - perguntou Bosch de forma óbvia.
- Estou. Para o Neui Times e a Vanity Fair. Também estou pensando em escrever um livro. Talvez a gente possa conversar
quando tudo terminar.
- É, talvez.
- A menos que você já esteja trabalhando nisso com Terry.
- Com Terry? Não, nós falamos de outra coisa ontem. Nada de livro.
- Tá legal, então não me esqueça.
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McEvoy tirou a carteira do bolso e entregou a Bosch um cartão de visitas.
- Eu trabalho principalmente na minha casa, em Laurel Canyon. Fique à vontade para me dar um telefonema, se quiser.
Bosch ergueu o cartão.
- Tá legal. Preciso ir embora. A gente se vê por aí.
- Falou.
Bosch se afastou e apertou o botão do elevador. Olhou para o cartão novamente enquanto esperava e pensou sobre Ed Thomas. Depois pôs o cartão no bolso do paletó.
Antes que o elevador chegasse, olhou para o corredor e viu que McEvoy continuava lá. Estava conversando com Rudy Tafero, o grandalhão que era investigador da defesa.
Tafero estava inclinado para a frente, falando bem perto de McEvoy, como se aquilo fosse uma espécie de encontro conspiratório. McEvoy tomava notas num bloco.
O elevador se abriu, e Bosch entrou. Ficou observando os dois até as portas se fecharem.
Bosch subiu a colina pelo bulevar Laurel Canyon e desceu em Hollywood, evitando o trânsito do fim da tarde. Dobrou à direita no Sunset Boulevard e poucos quarteirões
depois de entrar em West Hollywood encostou no meio-fio diante de um bar de striptease. Acionou o parquímetro e atravessou a rua, entrando em um acanhado prédio
de escritórios pintado de branco. A construção de dois andares tinha um pátio interno e era ocupada por pequenas produtoras cinematográficas. Eram escritórios pequenos,
com pédireito baixo. As produtoras viviam de filme para filme. Entre as filmagens não havia necessidade de mais espaço ou escritórios luxuosos.
Bosch consultou o relógio e viu que chegara bem na hora. Eram quatro e quarenta e cinco, e a reunião estava marcada para as cinco. Ele subiu a escada até o segundo
andar e passou por uma porta com um letreiro que dizia SAIDEIRA PRODUÇÕES. Era um conjunto de três salas, um dos maiores do prédio. Bosch já estivera ali antes e
conhecia a disposição dos cômodos: a sala de espera com
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a mesa da secretária, o escritório do amigo de Bosch, Albert Said, o "Eira", e uma sala de reunião. A mulher sentada à mesa da secretária ergueu os olhos para Bosch
quando ele entrou.
- Vim falar com Albert Said. Meu nome é Harry Bosch.
Ela balançou a cabeça, pegou o telefone e teclou um número. Bosch ouviu um aparelho tocar na outra sala e reconheceu a voz de Said respondendo.
- E Harry Bosch - disse a secretária.
Bosch ouviu Said dizer à mulher que o fizesse entrar. Foi seguindo para a porta antes que ela largasse o fone.
- Pode entrar - disse ela para as costas dele.
Bosch entrou numa sala mobiliada de forma simples: uma mesa, duas cadeiras, um sofá de couro preto e uma estante com televisão e vídeo. As paredes estavam cobertas
por cartazes dos filmes de Said e outras lembranças, tais como os encostos das cadeiras dos produtores com os títulos dos filmes estampados. Os dois haviam se conhecido
pelo menos quinze anos antes - quando o veterano produtor contratara Bosch como consultor técnico de um filme vagamente baseado num dos casos que o detetive investigara
- e mantido contatos esporádicos na década posterior. Said geralmente telefonava para Bosch quando tinha qualquer dúvida técnica sobre um procedimento policial que
estivesse usando num filme. A maior parte de suas produções não chegava aos cinemas. Eram filmes feitos para a televisão aberta ou a cabo.
Albert Said estava de pé atrás da mesa, e Bosch estendeu a mão para ele.
- Oi, Eira, como vão as coisas? - Indo bem, meu amigo.
Ele apontou para a televisão.
- Vi a sua bela atuação na TV Tribuna/ hoje. Bravo.
Bateu palmas polidamente. Bosch fez um gesto descartando o elogio e consultou novamente o relógio.
- Obrigado. E aqui, está tudo combinado?
- Acho que sim. A Marjorie vai fazer com que ela me espere na sala de reunião. Lá você assume o comando.
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- Eu agradeço, Eira. Diga o que eu posso fazer para acertar essa dívida.
- Pode participar do meu próximo filme. Você tem uma grande presença, meu amigo. Assisti ao troço todo hoje. Até gravei, se quiser conferir.
- Não, acho que não. E em todo caso, não vamos ter tempo para isso. O que anda aprontando atualmente?
- Ah, você sabe, esperando o sinal verde. Tenho um projeto com financiamento internacional que está quase saindo. E sobre um tira que é mandado para a prisão. O
trauma de perder seu distintivo, seu auto-respeito e tudo mais faz o sujeito ter amnésia. Ele vai para a prisão sem conseguir lembrar quais são os caras que pôs
lá e os que não pôs. Fica numa luta constante para sobreviver. O único preso com quem faz amizade acaba sendo um assassino serial que ele mesmo mandou para lá.
Éum filme de suspense, Harry. O que acha? Steven Segal está lendo o roteiro.
As espessas sobrancelhas negras de Said se arquearam, formando duas pontas agudas sobre a testa. Ele estava claramente entusiasmado com o argumento do filme.
- Não sei, Eira - disse Bosch. - Acho que isso já foi feito antes.
- Tudo já foi feito antes. Mas o que acha?
Bosch foi salvo pelo gongo. No silêncio que se seguiu à pergunta de Said, os dois ouviram a secretária falando com alguém na sala de espera. Depois o intercomunicador
tocou na mesa de Said, e a secretária disse: "A Srta. Crowe chegou. Vai esperar na sala de
reunião."
Bosch meneou a cabeça para Said.
- Obrigado, Eira - sussurrou ele. - A partir de agora é comigo.
- Tem certeza?
- Eu aviso se precisar de ajuda.
Bosch virou-se para a porta do escritório, mas voltou até a mesa e estendeu a mão.
- Pode ser que eu tenha que me mandar meio rápido. E melhor a gente se despedir. Boa sorte com o projeto. Tem pinta de mais um sucesso.
Eles se despediram com um aperto de mãos.
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- E, vamos ver - disse Said.
Bosch saiu do escritório, cruzou o pequeno corredor e entrou na sala de reunião. No centro do aposento havia uma mesa quadrada, com tampo de vidro e uma cadeira
de cada lado. Annabelle Crowe estava sentada na cadeira do lado oposto à porta. Examinava uma fotografia em preto-e-branco de si mesma quando Bosch entrou. Ergueu
os olhos com um amplo sorriso, mostrando dentes perfeitos. O sorriso foi mantido por pouco mais de um segundo e depois desabou do seu rosto feito uma avalanche de
lama em Malibu.
- O que... o que está fazendo aqui?
- Olá, Annabelle. Como vai?
- Isso aqui é um teste... Você não pode...
- Tem razão, é um teste. Estou testando você para o papel de testemunha num julgamento de assassinato.
A mulher se levantou. Uma foto do seu rosto e um currículo deslizaram da mesa para o chão.
- Você não pode... O que está acontecendo aqui?
- Você sabe o que está acontecendo. Você se mudou e não deixou o endereço. Seus pais não puderam me ajudar. Seu agente não quis me ajudar. Eu só podia chegar até
você marcando um teste. Agora sente aí e vamos conversar. Onde se meteu e por que está se esquivando do julgamento?
- Então o tal papel não existe? Bosch quase riu. Ela ainda não sacara.
- Não, não há papel algum.
- E eles não vão refilmar Chinatoum?
Dessa vez ele riu abertamente, mas logo se recuperou.
- Vão chegar lá um dia desses. Mas você é jovem demais para o papel, e eu não sou Jake Gittes. Quer se sentar, por favor?
Bosch fez menção de puxar uma cadeira à frente dela. Mas Annabelle não queria se sentar. Parecia muito zangada. Era uma jovem linda, com um rosto que freqüentemente
a fazia conseguir o que queria. Mas não no momento.
- Eu mandei você se sentar - disse Bosch em tom severo. - Precisa entender uma coisa, Annabelle. Quando não obedeceu à
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intimação para comparecer hoje ao tribunal, você infringiu a lei. Isso significa que eu posso prender você, se quiser. Aí nós conversamos no xadrez. A alternativa é
nos sentarmos nesta sala agradável que está à nossa disposição, e conversarmos de forma civilizada. Você decide, Annabelle.
Ela deixou-se cair novamente na cadeira. Tinha a boca comprimida numa linha fina. O batom que passara cuidadosamente para o teste de elenco já estava começando a
rachar e desbotar. Bosch ficou olhando para ela durante bastante tempo antes de começar.
- Quem chegou até você, Annabelle? Ela lançou-lhe um olhar nervoso.
- Escute, eu fiquei com medo, tá legal? E ainda estou com medo. David Storey é um sujeito poderoso e tem uns caras maus por trás dele.
Bosch se inclinou sobre a mesa.
- Está dizendo que foi ameaçada por ele? Ou por eles?
- Não, não estou dizendo isso. Eles não precisam me ameaçar. Eu já vi esse filme.
Bosch se recostou na cadeira e ficou examinando Annabelle, calado. O olhar dela se movia pela sala em todas as direções, menos para ele. O ruído do trânsito vindo
do Sunset Boulevard infiltrava-se através da única janela da sala, que se achava fechada. Alguém deu a descarga numa privada em algum lugar do prédio. Finalmente,
Annabelle olhou para Bosch.
- O que foi? O que você quer?
- Quero que você testemunhe. Quero que enfrente esse cara. Pelo que ele tentou fazer com você. Por Jody Krementz. E por Alicia Lopez.
- Quem é Alicia Lopez?
- Outra vítima que encontramos. Ela não teve a mesma sorte que você.
Bosch percebeu a perturbação no rosto da mulher. Evidentemente, ela via alguma espécie de perigo no ato de testemunhar.
- Se eu testemunhar, nunca mais vou trabalhar. E a coisa pode não parar por aí.
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- Quem lhe disse isso? Ela não respondeu.
- Vamos, quem? Isso veio deles, do seu agente, de quem?
Ela hesitou e depois abanou a cabeça, como se não acreditasse que estava falando com ele.
- Eu estava malhando no step da Crunch e um cara pegou o aparelho ao lado do meu. Ele estava lendo o jornal, com a página dobrada numa reportagem qualquer. E eu
estava pensando nos meus problemas, quando de repente ele começou a falar. Nem olhou para mim. Simplesmente foi falando, enquanto continuava com os olhos no jornal.
Disse que a reportagem que ele estava lendo era sobre o julgamento de David Storey e que ele detestaria testemunhar contra ele. Disse que quem fizesse isso nunca
mais trabalharia nesta cidade.
Ela parou de falar, mas Bosch ficou esperando, ainda examinando Annabelle. A angústia provocada pela narrativa da história parecia genuína. Ela estava à beira das
lágrimas.
- E eu... eu entrei num pânico tão grande com ele ali do lado, que larguei o aparelho e corri para o vestiário. Fiquei uma hora lá dentro, o tempo todo com medo
que ele ainda estivesse ali fora, esperando por mim. Pra me vigiar.
Ela começou a chorar. Bosch se levantou, saiu da sala e inspecionou o banheiro no corredor. Havia uma caixa com lenços de papel. Ele pegou a caixa e voltou para
a sala de reunião. Entregou a caixa a Annabelle Crowe e sentou-se novamente.
- Onde fica a Crunch?
- Logo ali, descendo a rua. Na esquina do Sunset com Crescent Heights.
Bosch balançou a cabeça. Havia um complexo de compras e entretenimento naquele local, e a lanchonete em que Jody Krementz conhecera David Storey também era lá. Ele
ficou imaginando se haveria alguma ligação entre as duas coisas. Talvez Storey fosse sócio da Crunch. Ou tivesse arranjado um colega de malhação para ameaçar Annabelle
Crowe.
- Conseguiu ver o cara?
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- Consegui, mas isso não interessa. Não sei quem ele era. Nunca tinha visto o sujeito antes e não vi mais. Bosch pensou em Rudy Tafero.
- Sabe quem é o investigador da equipe de defesa? Um cara chamado Rudy Tafero? Ele é alto, tem cabelo preto e vive bronzeado. Um sujeito boa-pinta?
- Não sei quem esse cara é, mas não é o homem que estava lá naquele dia. O sujeito era baixo e careca. E usava óculos.
A descrição não trouxe ninguém à lembrança a Bosch. Ele decidiu pôr aquilo de lado momentaneamente. Teria que avisar Janis Langwiser e Kretzler da ameaça. Talvez
eles quisessem levar o assunto ao juiz Houghton. Talvez quisessem que Bosch passasse na Crunch e começasse a fazer perguntas, para ver se conseguia confirmar alguma
coisa.
- Então, o que vai fazer? - perguntou ela. - Vai me obrigar a testemunhar?
- Isso não depende de mim. Os promotores vão decidir depois que eu contar sua história pra eles.
- Você acredita em mim?
Bosch hesitou, e depois balançou a cabeça.
- Mas você tem que se apresentar mesmo assim. Foi intimada. Esteja lá amanhã entre meio-dia e uma. Eles vão dizer a você o que querem fazer.
Bosch sabia que eles obrigariam Annabelle a testemunhar. Não iam querer saber se a ameaça era verdadeira ou não. Precisavam se preocupar com o caso. Annabelle Crowe
seria sacrificada para que David Storey fosse apanhado. Um peixe pequeno para apanhar um peixe grande, era assim que a banda tocava.
Bosch mandou Annabelle esvaziar a bolsa e remexeu nas coisas dela. Encontrou um endereço e um número de telefone anotados. Era um apartamento alugado por temporada
em Burbank. Ela confessou que pusera seus móveis num depósito e fora para o apartamento esperar o fim do julgamento.
- Vou aliviar sua barra, Annabelle, e não vou obrigar você a passar a noite no xilindró. Mas assim como a encontrei desta vez,
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posso encontrar de novo. Se não aparecer amanhã, faço isso, e você vai direto para o xadrez de Sybil Brand, está entendendo? Ela balançou a cabeça.
- Vai aparecer?
Ela balançou a cabeça novamente.
- Eu não devia ter contado aquela história a vocês. Bosch balançou a cabeça. Ela tinha razão.
- E tarde demais para se lamentar - disse ele. - Você agiu certo. Agora tem que agüentar. A justiça tem isso de engraçado. Você resolve ser corajoso, põe o pescoço
para fora, e eles não deixam mais você recuar.
Capítulo 21
Art Pepper tocava ao fundo, e Bosch estava ao telefone com Janis Langwiser quando alguém bateu à porta. Ele saiu da cozinha para o corredor e viu um vulto espiando
através da tela. Aborrecido com a intrusão de algum angariador de donativos, foi até a porta de madeira. Ia simplesmente fechá-la sem dizer nada, mas reconheceu
o visitante como Terry McCaleb. Ainda ao telefone, onde ouvia Janis Langwiser reclamar de possíveis ameaças a testemunhas, ele ligou a luz externa, abriu a porta
de tela e acenou para que McCaleb entrasse.
McCaleb fez sinal de que ficaria calado até o final do telefonema. Bosch viu-o cruzar a sala até a varanda dos fundos, de onde se avistava as luzes do passo Cahuenga.
Tentou se concentrar no que Janis dizia, mas estava curioso para saber por que McCaleb se dera ao trabalho de subir de carro as colinas para vê-lo.
- Harry, está me ouvindo?
- Estou. Qual foi a última parte?
- Perguntei se você acha que Houghton Bala vai atrasar o julgamento se abrirmos uma investigação.
Bosch não teve que pensar muito para responder. - De jeito nenhum. O show tem que continuar.
- Também acho. Vou ligar para o Roger e ver o que ele quer fazer. Em todo caso, esse é o nosso menor problema. Assim que
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você mencionar Alicia Lopez no seu depoimento vai haver uma luta brutal.
- Pensei que essa briga já estava ganha. Houghton decidiu...
- Isso não significa que Fowkkes não tentará um novo ataque. Ainda não podemos ficar tranqüilos.
Houve uma pausa. A voz dela não parecera muito confiante.
- Vejo você amanhã, Harry.
- Está bem, Janis. Até logo.
Bosch desligou e foi recolocar o telefone na base dentro da cozinha. Quando saiu, McCaleb estava parado na sala, examinando uma fotografia da esposa de Bosch nas
prateleiras acima do aparelho de som.
- Terry, o que há?
- Oi, Harry. Desculpe vir assim, sem avisar. Não liguei antes porque não sabia o telefone daqui.
- Como achou a casa? Quer uma cerveja ou outra coisa? - disse Bosch. Depois apontou para o peito dele e acrescentou: - Pode tomar cerveja?
- Agora já posso. Na verdade, acabo de ser liberado. Já posso beber de novo. Com moderação. Uma cerveja cai bem.
Bosch foi até a cozinha. McCaleb continuou falando da sala.
- Já estive aqui antes. Não se lembra?
Bosch voltou com duas garrafas abertas de Anchor Steam e entregou uma a McCaleb.
- Quer um copo? Quando esteve aqui? McCaleb pegou a garrafa.
- Cielo Azul.
Deu um gole grande na garrafa, respondendo à pergunta de Bosch.
Cielo Azul, pensou Bosch. Depois se lembrou. Eles haviam se embebedado ali na varanda dos fundos certa vez. Ambos queriam esquecer os detalhes sórdidos daquele caso,
que era terrível demais para ser analisado em profundidade sobriamente. Bosch lembrou que ficara perguntando retoricamente, com a voz embriagada: "Onde está a mão
de Deus, onde está a mão de Deus?", e que no dia seguinte se envergonhara daquele descontrole.
- Ah, é - disse ele. - Um dos meus mais brilhantes momentos existenciais.
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- Pois é. Só que a casa está diferente agora. A antiga desceu colina abaixo com o terremoto?
- Quase isso. Tudo aqui foi condenado. Tive que recomeçar dos alicerces.
- E, eu não reconheci o lugar. Vim subindo à procura da casa antiga. Mas aí vi o Shamu e imaginei que não podia ter outro tira na vizinhança.
Bosch pensou na viatura preta-e-branca estacionada na garagem. Não se dera ao trabalho de levá-la à delegacia para trocá-la por seu carro particular. Aquilo o faria
economizar tempo pela manhã, permitindo-lhe ir direto para o tribunal. O carro era uma viatura policial normal, mas sem as luzes de emergência na capota. Todas as
divisões faziam os detetives usar aqueles carros. Era uma norma oficial, para dar a impressão de que havia mais radiopatrulhas nas ruas.
McCaleb estendeu sua garrafa e tocou a garrafa de Bosch.
- A Cielo Azul - disse ele.
- Pois é - disse Bosch, bebendo um gole da garrafa. Estava ótima, geladíssima. Era a primeira cerveja que ele bebia desde o início do julgamento. Decidiu que só
beberia aquela, mesmo que McCaleb bebesse outras.
- Sua ex-mulher? - perguntou McCaleb, apontando para a fotografia nas prateleiras.
- Minha mulher. Ainda não é minha ex... pelo menos até onde eu sei. Mas acho que a coisa está indo por esse caminho - disse Bosch, olhando para o retrato de Eleanor
Wish. Era a única fotografia que tinha dela.
- Que pena, cara.
- Pois é. Mas o que está havendo, Terry? Tenho uns troços que preciso rever para...
- Sei, o julgamento. Desculpe a invasão, cara. Sei que o depoimento deve estar tomando todo o seu tempo. Eu só queria esclarecer umas coisinhas do caso Gunn. Mas
também quero contar uma coisa pra você. Quer dizer, mostrar uma coisa.
McCaleb tirou a carteira do bolso traseiro, abriu-a e retirou uma fotografia. Passou-a a Bosch. A fotografia, que assumira o contorno da carteira, mostrava um bebê
de cabelo preto nos braços de uma mulher de cabelo preto.
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- Essa é a minha filha, Harry. E minha mulher.
Bosch balançou a cabeça e examinou a fotografia. Tanto a mãe quando a filha tinham cabelo preto e pele morena. Ambas eram muito bonitas. Ele sabia que provavelmente
pareciam ainda mais bonitas para McCaleb.
- Lindas - disse ele. - A neném parece tão novinha. Tão pequenina.
- Ela já tem quase quatro meses. Mas essa foto foi tirada um mês atrás. Eu esqueci de contar isso pra você no almoço de ontem. Nós demos a ela o nome de Cielo Azul.
Bosch ergueu o olhar da fotografia para McCaleb. Ficou olhando para ele um instante e depois balançou a cabeça.
- Bacana.
- E, eu disse a Graciela que queria dar esse nome a ela, e contei por quê. Ela achou que era uma boa idéia.
Bosch devolveu-lhe a fotografia.
- Espero que algum dia a guria também ache.
- Eu também espero. Quase sempre ela é chamada de CiCi. Mas lembra da noite em que você ficou repetindo aquela pergunta sobre a mão de Deus, dizendo que não conseguia
mais encontrar isso em lugar algum? Aconteceu comigo também. Eu perdi a esperança. Nesse tipo de trabalho... é difícil não perder. E aí...
Ele ergueu a fotografia.
- Aqui está ela, bem aqui. Eu achei a mão de Deus novamente. Vejo isso nos olhos dela.
Bosch ficou olhando para ele durante bastante tempo e depois balançou a cabeça.
- Que bom pra você, Terry.
- Quer dizer, não estou tentando posar de... Quer dizer, não estou tentando converter você, ou qualquer coisa assim. Só estou dizendo que encontrei uma coisa que
estava faltando. E não sei se você ainda está procurando por ela... Só queria dizer, sabe, que a mão de Deus está lá fora. Não desista.
Bosch desviou o olhar de McCaleb, dirigindo-o para a escuridão através das portas de vidro.
- Para algumas pessoas, tenho certeza que está.
Bebeu o restante da cerveja e foi até a cozinha quebrar a promessa
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que fizera a si mesmo de tomar apenas uma. Perguntou a McCaleb se ele queria outra, mas o visitante recusou. Ao curvar-se diante da geladeira aberta, Bosch
parou e fechou os olhos, deixando que o ar frio lhe acariciasse o rosto. Pensou no que McCaleb acabara de lhe dizer.
- Você não acha que é uma dessas pessoas?
Bosch ergueu-se sobressaltado quando ouviu o som da voz de McCaleb, que estava parado na soleira da porta da cozinha.
- O quê?
- Você disse que a mão de Deus estava lá fora para algumas pessoas. Não acha que é uma dessas pessoas?
Bosch pegou uma cerveja na geladeira e enfiou-a no abridoi preso na parede. Abriu a tampinha e deu um bom gole antes de retrucar.
- O que é isso, Terry, o jogo das vinte perguntas? Está pensando em virar padre, alguma coisa assim?
McCaleb sorriu e abanou a cabeça.
- Desculpe, Harry. Pai recente, entende? Acho que quero contar a todo mundo, só isso.
- Bacana. Quer falar sobre Gunn agora?
- Claro.
- Vamos lá pra fora ver a noite.
Eles foram para a varanda dos fundos e ficaram olhando a vista. A rodovia 101 apresentava a costumeira fita de luzes, uma veia brilhante cortando as montanhas. O
céu estava claro, pois a névoa da poluição fora lavada pela chuva de uma semana antes. Bosch viu as luzes na parte baixa do Vale, parecendo se estender até o infinito.
Mais perto da casa via-se apenas a escuridão do matagal na encosta da colina. Ele sentiu o cheiro dos eucaliptos ali embaixo; era sempre mais forte depois da chuva.
McCaleb falou primeiro.
- Você tem uma casa bacana aqui, Harry. Num lugar bacana. Deve odiar ter que descer toda manhã para aquela pestilência.
Bosch olhou para ele.
- Pouco me importa, se de vez em quando eu conseguir pegar alguns agentes transmissores da pestilência. Gente como David Storey.
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- E os que conseguem escapar? Como Gunn?
- Ninguém escapa, Terry. Se eu acreditar que eles escapam, não vou mais poder fazer o que faço. E verdade que a gente não consegue pôr a mão em todos eles, mas eu
acredito no círculo. Na grande roda. Tudo que gira acaba voltando. No final. Eu posso não ver a mão de Deus com tanta freqüência quanto você, mas acredito nisso.
Bosch pôs a garrafa sobre a balaustrada. Estava vazia e ele queria outra, mas sabia que era melhor pisar no freio. Ia precisar de cada célula cerebral que pudesse
utilizar no tribunal no dia seguinte. Pensou em fumar um cigarro. Sabia que havia um maço fechado no armário da cozinha. Mas decidiu evitar aquilo também.
- Então acho que o que aconteceu com Gunn deve ser uma confirmação da sua fé na teoria da grande roda.
Bosch não disse nada durante bastante tempo. Ficou olhando fixamente para o vale das luzes.
- É - disse finalmente. - Acho que foi.
Desviou o olhar e virou de costas para a paisagem. Encostado na balaustrada, olhou de novo para McCaleb.
- Que história é essa de Gunn? Acho que ontem eu contei tudo que havia para ser contado. Está com o dossiê, não é?
McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que você provavelmente contou, e eu vi o dossiê. Mas achei que talvez tivesse surgido mais alguma coisa. Que talvez a nossa conversa tivesse despertado alguma
lembrança do caso em você, entende?
Bosch deu uma espécie de risada e pegou a garrafa antes de se lembrar que estava vazia.
- Qual é, cara? Estou no meio de um julgamento. Estou depondo para tentar pegar um sujeito muito esperto. Quer dizer, parei de pensar na sua investigação no minuto
em que levantei da mesa no Cupid's. O que exatamente quer de mim?
- Nada, Harry. Não quero nada que você não tenha. Só achei que valia a pena arriscar, mais nada. Estou trabalhando nesse troço jogando a rede por toda parte. Achei
que talvez... Deixa pra lá.
- Você é um cara estranho, McCaleb. Estou lembrando disso
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agora. O jeito com que você costumava olhar para as fotos da cena do crime. Quer outra cerveja?
- Porque não?
Bosch afastou-se da balaustrada, pegou sua garrafa e estendeu a mão para a de McCaleb. Ainda estava um terço cheia, pelo menos. Ele a pôs de volta.
- Bom, acabe esta primeiro.
Entrou e pegou mais duas cervejas na geladeira. Quando voltou da cozinha McCaleb estava parado na sala, estendendo-lhe a garrafa vazia. Por um instante, o detetive
ficou na dúvida se ele terminara de beber ou se derramara a cerveja por cima da balaustrada. Levou a garrafa vazia para a cozinha, e quando voltou viu McCaleb parado
diante do aparelho de som, examinando um estojo de CD.
- É isto que está tocando? - perguntou. - Art Pepper encontra a Rhythm Section?
Bosch se aproximou.
- É. Art Pepper e os músicos de Miles. Red Garland ao piano, Paul Chambers no contrabaixo, Philly Joe Jones na bateria. Gravado aqui em Los Angeles em 19 de janeiro
de 1957. Um dia só. Dizem que a cortiça no pescoço do saxofone de Pepper estava rachada, mas ele não se importou. Só tinha uma chance de tocar com os caras. Tirou
o máximo proveito. Um dia, uma tentativa, um clássico. E assim que se faz a coisa.
- Esses caras eram do conjunto de Miles Davis?
- Na época, eram.
McCaleb balançou a cabeça. Bosch se inclinou para ver mais de perto a capa do CD nas mãos dele.
- Pois é, Art Pepper - disse ele. - Quando eu era criança, não sabia quem era o meu pai. Minha mãe tinha um monte de discos desse cara. Ela freqüentava umas boates
de jazz onde ele tocava. O Art era um sujeito boa-pinta. Para um viciado. Olhe só pra esta foto. Cheio de pose. Inventei que ele era meu velho e que não vivia conosco
porque estava sempre viajando e gravando discos. Quase cheguei ao ponto de acreditar na história toda. Mais tarde, quer dizer, anos mais tarde, li um livro sobre
ele. Dizia que estava drogado de cair quando tirou esta foto. Vomitou logo que terminou e voltou para a cama.
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McCaleb examinou a foto na capa do CD. Um homem bonito encostado em uma árvore, com o saxofone embaixo do braço direito.
- Bom, ele tocava muito - disse McCaleb.
- E verdade - concordou Bosch. - Um gênio com uma agulha no braço.
Ele avançou e aumentou ligeiramente o volume. A música era Straight Life, o carro-chefe de Art Pepper.
- Você acredita nisso? - perguntou McCaleb.
- Em quê, que ele era um gênio? Com o saxofone acredito que
era.
- Não, quero saber se acha que todo gênio - músico, artista plástico, até um detetive - tem um defeito fatal como esse? A agulha no braço.
- Acho que todo mundo tem um defeito fatal, seja gênio ou não.
Bosch aumentou ainda mais o volume. McCaleb pôs a cerveja sobre uma das caixas de som do chão. Bosch pegou a garrafa e a devolveu a ele. Usou a palma da mão para
enxugar o anel de umidade na superfície da madeira. McCaleb baixou o volume da música.
- Vamos, Harry, solta alguma coisa.
- Do que está falando?
- Eu fiz essa viagem toda até aqui. Solta alguma coisa sobre Gunn. Sei que está pouco se lixando para ele... a roda girou e ele não escapou. Mas eu não gostei da
maneira como a coisa foi feita. Esse cara, seja lá quem for, ainda está solto por aí. E vai fazer de novo. Posso garantir.
Bosch deu de ombros, como se pouco se importasse com aquilo.
- Está bem, vou te dizer uma coisa. É pouco, mas talvez valha a pena tentar. Quando fui falar com ele na cela, na véspera do assassinato, também falei com os guardas
do condado que tinham prendido o Gunn por dirigir alcoolizado. Eles disseram que perguntaram onde ele tinha bebido, e que ele disse que tinha saído de um lugar chamado
Nat's. Fica no lado sul do bulevar, a cerca de um quarteirão do Musso's.
- Tá legal, dá pra encontrar - disse McCaleb, com um tom de e-daí? na voz. - Qual é a ligação?
- Bom, quando eu conheci o Gunn, há seis anos, ele tinha passado
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a noite bebendo no Nat's. Foi lá que ele pegou a tal mulher que matou.
- Então era freguês da casa.
- Parece que sim.
- Obrigado, Harry. Vou verificar esse troço. Por que não contou isso a Jaye Winston? Bosch deu de ombros.
- Acho que não me ocorreu, e ela também não me perguntou. McCaleb quase pôs a cerveja na caixa de som novamente, mas
em vez disso entregou a garrafa a Bosch.
- Talvez eu passe lá ainda hoje.
- Não esqueça. -Esquecer o quê?
- Se pegar o cara que fez aquilo, dê meus parabéns a ele. McCaleb não respondeu. Olhou em volta, como se houvesse
acabado de entrar.
- Posso usar o banheiro?
- Lá no fim do corredor, à direita.
McCaleb partiu para o banheiro, enquanto Bosch levava as cervejas para a cozinha e as punha na lata de reciclagem com as outras. Abriu a geladeira e viu que só sobrara
uma garrafa das seis que comprara a caminho de casa, depois de armar aquela encenação com Annabelle Crowe. Fechou a geladeira quando McCaleb entrou no aposento.
- Aquele quadro que você pendurou no corredor é maluco pra caralho - disse ele.
- O quê? Ah, é. Gosto daquele quadro.
- O que aquilo significa?
- Não sei. Acho que significa que a grande roda não pára de girar. Ninguém escapa.
McCaleb balançou a cabeça, dizendo:
- Também acho.
- Vai descer até o Nat's?
- Estou pensando nisso. Quer ir?
Bosch ficou tentado, embora soubesse que seria tolice. Tinha que rever metade do dossiê de assassinato a fim de se preparar para a continuação do depoimento na manhã
seguinte.
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- Não, preciso trabalhar um pouco aqui e me preparar para amanhã.
- Tá legal. E como foi hoje?
- Até agora tudo bem. Mas por enquanto a bola rolou macia... eu fui interrogado pela acusação. Amanhã a bola vai estar com John Reason, e ele só dá passe na fogueira.
- Vou assistir ao noticiário.
McCaleb avançou e estendeu a mão para Bosch, que a apertou.
- Tome cuidado por aí.
- Você também, Harry. Obrigado pelas cervejas.
- Não tem problema - disse Bosch.
Levou McCaleb até a porta e viu-o entrar no Cherokee preto estacionado na rua. O motor pegou de pronto e McCaleb foi embora, deixando Bosch parado na soleira iluminada.
Bosch entrou, trancou a porta e apagou as luzes da sala. Deixou o som ligado. O aparelho se desligaria automaticamente quando terminasse o momento clássico de Art
Pepper. Era cedo, mas Bosch já estava cansado, dfevido às pressões do dia e ao álcool que corria em seu sangue. Decidiu dormir e acordar mais cedo para preparar
o testemunho. Entrou na cozinha e pegou a última garrafa de cerveja na geladeira.
No corredor que levava ao quarto, parou e ficou olhando para o quadro emoldurado a que McCaleb se referira. Era uma reprodução de O jardim das delícias terrenas,
a pintura de Hieronymus Bosch. Ele possuía aquele quadro desde seus tempos de garoto. A superfície da gravura estava enrugada e arranhada, em mau estado. Fora Eleanor
que a levara da sala para o corredor. Ela não gostava de ver aquilo ali, no lugar onde eles ficavam sentados à noite. Bosch nunca entendera se aquilo era por causa
do que havia no quadro ou porque a gravura estava velha e estragada.
Vendo o panorama de luxúria e sofrimento humanos mostrado no quadro, Bosch pensou na possibilidade de levá-lo novamente para o lugar onde ficava antes - na sala.
No sonho, Bosch se deslocava pela água escura, incapaz de ver as mãos diante do próprio rosto. Ouvindo uma campainha, ele fez força para se elevar através das trevas.
Bosch acordou. A luz estava acesa, mas tudo estava silencioso. O aparelho de som se desligara. Quando foi olhar o relógio, o telefone em cima da mesinha-de-cabeceira
tocou novamente, e ele agarrou-o rapidamente.
-Alô.
- Oi, Harry, é Kiz. Sua antiga parceira. -O que há, Kiz?
- Você está bem? Parece... meio desligado.
- Estou bem. Eu só estava... estava dormindo.
Ele olhou para o relógio. Passava um pouco das dez.
- Desculpe, Harry, achei que estava queimando as pestanas se preparando para amanhã.
- Vou levantar cedo para fazer isso.
- Bom, você se saiu bem hoje. Ficamos com a televisão ligada lá no trabalho. Todo mundo estava torcendo por você.
- Sei, sei. Como estão as coisas lá?
- Estão indo. De certa forma, estou começando de novo. Tenho que provar meu valor pra eles.
- Não se preocupe com isso. Você vai ultrapassar aqueles caras como se eles estivessem parados. Exatamente como fez comigo.
- Harry... você é o máximo. Nem sabe quanta coisa eu aprendi com você.
Bosch hesitou. Estava sinceramente tocado pelo que ela dissera.
- E muita gentileza sua, Kiz. Você devia telefonar com mais freqüência pra mim.
Ela riu.
- Bom, não foi por isso que liguei. Eu disse a uma amiga que faria isso. Estou me sentindo no segundo grau, mas aí vai. Conheço uma pessoa que está interessada em
você. Eu disse que ia conferir pra ver se você estava de novo em campo, entende o que quero dizer?
Bosch nem precisou pensar antes de responder.
- Não, Kiz, não estou disponível. Eu... eu ainda não desisti de Eleanor. Ainda tenho esperança que ela telefone ou apareça, e talvez a gente possa dar um jeito nas
coisas. Sabe como é.
- Sei. Legal, Harry. Eu só disse que ia perguntar. Mas, se mudar de idéia, é uma garota bacana.
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- Alguém que eu conheça?
- Conhece, sim. É a Jaye Winston, lá do escritório do xerife. Fazemos parte de um grupo de mulheres. Canas sem Canudos. Ficamos conversando sobre você hoje.
Bosch não disse nada. Estava com uma estranha sensação de aperto no peito. Ele não acreditava em coincidências.
- Harry, você está aí?
- Sim, estou aqui. Só estava pensando numa coisa.
- Bom, vou deixar você em paz. E, escute, Jaye me pediu pra não dar o nome dela. Sabe como é... Ela só queria saber de você, soltando um balão-de-ensaio anônimo.
Pra não haver constrangimento quando vocês se esbarrassem no serviço. Portanto, você não soube da coisa por meu intermédio, certo?
- Certo. Ela fez perguntas sobre mim?
- Algumas. Nada de importante. Espero que não se incomode. Eu disse que ela tinha escolhido bem. Falei que se eu não fosse, você sabe, do jeito que sou, também ficaria
interessada.
- Obrigado, Kiz - disse Bosch, com a cabeça a mil por hora.
- Bom, escute, preciso desligar. Tchau. Bote pra quebrar amanhã, está bem?
- Vou tentar.
Ela desligou e Bosch recolocou o telefone no suporte lentamente. O aperto no peito ficou mais intenso. Ele começou a pensar nas perguntas que McCaleb fizera durante
a visita e no que ele respondera. Agora era Jaye Winston fazendo perguntas sobre ele.
Ele não acreditava que aquilo fosse uma coincidência. Estava claro que eles tinham a mira assestada nele. Estavam atrás dele por causa do assassinato de Edward Gunn.
E ele sabia que provavelmente fornecera a McCaleb o insight necessário para que ele acreditasse estar no caminho certo.
Bosch esvaziou a garrafa de cerveja que estava na cômoda. O último gole estava morno e azedo. Ele sabia que não havia mais garrafas na geladeira. Levantou-se para
pegar um cigarro no lugar da cerveja.
Capítulo 22
O Nat's era um bar do tamanho de um vagão ferroviário, semelhante a muitas outras espeluncas de Hollywood. Era freqüentado por bebedores inveterados durante o dia,
putas e sua clientela nas primeiras horas da noite, e a turma das tatuagens e jaquetas de couro durante a madrugada. Era o tipo de lugar onde quem tentava pagar
as bebidas com um cartão de crédito dourado era visto como alvo fácil.
McCaleb parara no Musso's para jantar - seu relógio corporal exigia nutrientes, ameaçando parar totalmente - e só chegou ao Nat's depois das dez. Enquanto comia
o pastelão de galinha, ficou pensando se valia mesmo a pena perder tempo indo até o bar para fazer perguntas sobre Gunn. A dica viera do próprio suspeito. Será que
ele orientaria conscientemente o investigador na direção certa? Parecia que não, mas McCaleb pesara o fato de Bosch ter bebido e não estar ciente da verdadeira intenção
da visita dele. A dica podia muito bem ser válida, e ele decidira não negligenciar parte alguma da investigação.
Ao entrar, levou alguns segundos para se acostumar à iluminação fraca e avermelhada. Quando o recinto ficou nítido, viu que estava meio vazio. Era o intervalo entre
a turma do anoitecer e o grupo da madrugada. Duas mulheres - uma negra, uma branca -
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sentadas na ponta do balcão que corria ao longo do lado esquerdo do aposento examinaram-no de alto a baixo. McCaleb viu a palavra tira registrada nos olhos delas,
ao mesmo tempo que os seus registravam putas. Intimamente, ele ficou satisfeito por ainda ter aquela aparência. Passou por elas e avançou recinto adentro. Quase
todas as mesas com divisórias alinhadas do lado direito da sala estavam ocupadas. Ninguém ali deu-lhe sequer um olhar.
McCaleb foi até o balcão, meteu-se entre dois banquinhos e acenou para uma das atendentes.
Uma antiga canção de Bob Seger, Night Moves, saía em tom ensurdecedor da vitrola automática nos fundos do recinto. A atendente inclinou-se sobre o balcão para poder
ouvir o pedido de McCaleb. Usava um colete preto abotoado, sem blusa por baixo. Tinha cabelo preto, comprido e liso, e uma fina argola de ouro perfurando a sobrancelha
esquerda.
- O que quer?
- Uma informação.
McCaleb empurrou sobre o balcão uma fotografia de Edward Gunn. Era uma ampliação 8x12 do retrato da carteira de motorista de Gunn, que estava no dossiê que Jaye
lhe dera. A atendente examinou a fotografia um instante e olhou de volta para McCaleb.
- O que há com ele? Ele morreu. -Como sabe?
Ela deu de ombros.
- Sei lá. Acho que ouvi por aí. Você é da polícia? McCaleb balançou a cabeça, baixou a voz para que a música a
encobrisse e disse:
- Mais ou menos.
A atendente inclinou-se mais sobre o balcão para poder escutar. A posição abriu a parte superior do colete, expondo a maior parte dos seios dela, que eram pequenos
mas redondos. No lado esquerdo via-se a tatuagem de um coração rodeado de arame farpado. Parecia um machucado numa pêra e não era muito apetitoso. McCaleb desviou
o olhar.
- Edward Gunn - disse ele. - Ele era freguês da casa, não era?
203
- Vinha muito aqui.
McCaleb balançou a cabeça. Aquilo confirmava a dica de Bosch.
- Você trabalhou na véspera do Ano-Novo? Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- Sabe se ele apareceu nessa noite? Ela negou.
- Não me lembro. Tinha muita gente aqui na véspera do AnoNovo. Houve uma festa. Não sei se ele estava aqui ou não. Mas não seria surpresa. As pessoas ficavam indo
e voltando.
McCaleb meneou a cabeça na direção do outro atendente, um tipo latino que também estava de colete preto sem blusa por baixo.
- E ele ali? Acha que ele se lembraria?
- Não, porque só começou a trabalhar na semana passada. Ainda estou ensinando o cara.
Ela deu um sorriso rápido, que McCaleb ignorou. Twisting the Night Away, na versão de Rod Stewart, começou a tocar ao fundo.
- Conhecia bem o Gunn?
Ela deixou escapar uma risada curta.
- Meu bem, este é o tipo de lugar em que ninguém gosta muito de dizer quem é e o que faz. Se eu conhecia bem esse cara? Conhecia, tá legal? Como eu disse, ele vinha
aqui. Mas eu nem sabia o nome dele, até ele morrer e as pessoas começarem a falar. Alguém disse que Eddie Gunn tinha aparecido morto e eu disse: "Quem é Eddie Gunn,
caralho?" Tiveram que descrever o cara pra mim. O cara do uísque com gelo que sempre pintava o cabelo. Aí eu soube quem era Eddie Gunn.
McCaleb balançou a cabeça. Meteu a mão no bolso do paletó e tirou um pedaço de jornal dobrado, estendendo-o sobre o balcão. Ela inclinou-se para olhar, permitindo
que ele visse seus seios outra vez. McCaleb achou que aquilo era intencional.
- E aquele tira do julgamento, não é?
McCaleb não respondeu. O jornal estava dobrado de modo a mostrar uma fotografia de Harry Bosch que saíra no Los Angeles Times naquela manhã, como chamada para o
depoimento que ia começar no julgamento de Storey. Era um instantâneo de Bosch
204
parado diante da porta do tribunal. Ele provavelmente nem percebera que fora fotografado. Já viu este sujeito?
-Já, ele vem aqui. Por que está perguntando por ele?
McCaleb sentiu sua nuca se eriçar.
- Quando é que ele vem?
- Sei lá, de vez em quando. Não diria que é um freguês da casa. Mas vem. E não fica muito tempo. Ele é das rapidinhas... Toma uma bebida e se manda. Ele...
A atendente ergueu um dedo e inclinou a cabeça para o lado, como vasculhando seus arquivos internos. Depois baixou o dedo de repente, como registrando algo.
- Lembrei. Cerveja em garrafa. Pede sempre Anchor Steam, porque sempre se esquece que a gente não tem essa marca. E cara demais, ficaria encalhada. E aí ele fica
mesmo com a velha trintae-três.
McCaleb estava prestes a perguntar o que era aquilo, quando ela respondeu à pergunta muda.
- Rolling Rock.
Ele balançou a cabeça e disse:
- Ele esteve aqui na véspera de Ano-Novo? Ela abanou a cabeça.
Mesma resposta. Não me lembro. Gente demais, drinques demais, e já faz muito tempo.
McCaleb balançou a cabeça, puxando o jornal de volta sobre o balcão e colocando-o no bolso.
Esse tira está metido em alguma encrenca? McCaleb abanou a cabeça. Uma das mulheres na ponta do balcão bateu levemente com o canto no copo do balcão e chamou a atendente.
- Ei, Miranda, aqui tem freguês que paga.
A atendente olhou em volta, procurando o parceiro. Aparentemente, o sujeito desaparecera nos fundos do recinto ou no banheiro.
- Tenho que voltar ao trabalho - disse ela.
205
McCaleb viu Miranda ir até a ponta do balcão e preparar mais duas vodcas com gelo para as putas. Durante um intervalo na música, conseguiu ouvir uma delas mandar
a atendente parar de conversar com o tira, a fim de que ele fosse embora. Quando ela se encaminhou de volta para o lugar onde ele estava, uma das piranhas disse
em voz alta:
- E pare de dar corda para o sujeito, senão ele não sai nunca
mais.
McCaleb fingiu que não ouviu. Quando se aproximou, Miranda suspirou como se estivesse cansada.
- Não sei onde o Javier se enfiou. Não posso ficar aqui parada conversando com você a noite toda.
- Só quero fazer uma última pergunta - disse ele. - Lembra de ter visto o tira e o Eddie Gunn aqui na mesma ocasião, juntos ou separados?
Ela pensou um instante e inclinou-se para a frente.
- Talvez, pode ter acontecido. Mas não me lembro. McCaleb balançou a cabeça. Tinha quase certeza que aquilo
era o máximo que poderia extrair dela. Ficou pensando se devia deixar algum dinheiro no balcão. Jamais soubera fazer aquele tipo de coisa quando era agente. Nunca
sabia quando aquilo era adequado e quando seria considerado um insulto.
- Posso perguntar uma coisa agora? - perguntou Miranda.
- O quê?
- Você gosta do que está vendo?
Imediatamente, ele sentiu o rosto começar a se avermelhar de vergonha.
- Quer dizer, você estava olhando tanto. Achei que podia perguntar.
Ela lançou um olhar para as piranhas, dando um sorriso cúmplice para elas. Todas estavam se divertindo com o constrangimento de McCaleb.
- São muito bacanas - disse ele ao se afastar do bar, deixando uma nota de vinte dólares para ela. - Tenho certeza que fazem o pessoal voltar aqui. Provavelmente
faziam Edward Gunn voltar sempre
206
McCaleb rumou para a porta, sentindo suas costas serem atingidas pelas palavras da atendente durante todo o percurso, enquanto ela exclamava:
- Então talvez você deva voltar e tentar pegar neles uma vez, tenente'.
Ao cruzar a porta, ele ouviu as putas gargalharem, erguerem os braços e estalarem as mãos em cumprimento.
McCaleb ficou sentado no Cherokee diante do Nat's, tentando afastar a sensação de constrangimento. Concentrou-se nas informações que obtivera com a atendente. Primeiro,
Gunn era freguês habitual da casa e talvez houvesse estado lá na última noite de sua vida. Segundo, ela reconhecera Bosch como freqüentador. Ele também talvez houvesse
estado lá na última noite de vida de Gunn. Era intrigante o fato de essas informações terem vindo indiretamente de Bosch. McCaleb ficou pensando novamente por que
Bosch - se realmente matara Gunn - lhe dera uma pista válida. Teria sido por arrogância, por acreditar que jamais seria considerado suspeito e que portanto seu nome
não seria mencionado durante o interrogatório no bar? Ou haveria uma motivação psicológica mais profunda? McCaleb sabia que muitos criminosos cometem erros que provocam
sua captura porque subconscientemente não querem ficar impunes. A teoria da grande roda, pensou ele. Talvez Bosch estivesse subconscientemente garantindo que a roda
também girasse para ele.
Abriu o telefone celular e conferiu o sinal. Estava forte. Ligou para o número da residência de Jaye Winston. Olhou para o relógio enquanto o telefone tocava e pensou
se já não seria tarde demais para telefonar. Depois de cinco toques, ela finalmente atendeu.
- Sou eu. Descobri uns troços.
- Eu também. Mas ainda estou no telefone. Posso ligar pra você quando terminar?
- Pode, eu espero.
McCaleb desligou. Ficou sentado no carro, esperando e pensando
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nas coisas. Viu pelo pára-brisa a puta branca sair do bar rebocando um sujeito com boné de beisebol. Os dois acenderam cigarros e seguiram pela calçada na
direção de um motel chamado Skylark.
O telefone tocou. Era Jaye.
- A coisa está ficando quente, Terry. Estou levando fé. -O que soube?
- Primeiro você. Não disse que descobriu uns troços?
- Não, você primeiro. O que eu soube é mixaria. Parece que você fisgou alguma coisa grande.
- Tá legal, escute só. A mãe de Harry Bosch era uma prostituta de Hollywood. Foi assassinada quando ele era garotinho. E quem fez o troço se safou. Que tal isso
como motivação psicológica, doutor Perfilador?
McCaleb não respondeu. Aquela informação era surpreendente e fornecia muitas das peças que faltavam na teoria em elaboração. Ele viu a puta e o freguês chegarem
ao guichê da recepção do motel. O sujeito pagou em dinheiro vivo e recebeu uma chave. Os dois entraram por uma porta de vidro.
- Gunn mata uma prostituta e se safa - disse Jaye quando ele não respondeu. - Foi exatamente o que aconteceu com a mãe de Bosch.
- Como descobriu isso? - perguntou McCaleb por fim.
- Dei o tal telefonema que nós mencionamos. Para a minha amiga Kiz. Agi como se estivesse interessada em Bosch e perguntei se ele já tinha, você sabe, se recuperado
do divórcio. Ela me contou o que sabia dele. Aparentemente, o troço sobre a mãe de Bosch veio à tona num julgamento cível há alguns anos, quando Bosch foi processado
por ter matado indevidamente o Bonequeiro. Lembra do caso?
- Lembro. O departamento de polícia de Los Angeles se recusou a chamar o FBI. Ele também matava prostitutas. Bosch matou o cara, que estava desarmado.
- Há uma psicologia nisso tudo. Um padrão, caceta.
- O que aconteceu com Bosch depois que a mãe dele morreu?
208
- Kiz não sabia direito. Ela se referiu a ele como "um homem de instituições". O troço aconteceu quando ele tinha dez ou onze anos. A partir daí ele foi criado em
orfanatos e lares adotivos. Foi servir ao exército e depois entrou para a polícia. O importante é que era isso que estava faltando para nós. O elemento que transformou
um caso insignificante numa coisa que Bosch não poderia deixar escapar.
McCaleb balançou a cabeça para si mesmo.
- E tem mais - disse Jaye. - Examinei todos os arquivos sobre o assunto, até coisas irrelevantes que não pus no dossiê de assassinato. Vi o laudo da autópsia da
mulher que Gunn matou há seis anos. O nome dela era Frances Weldon, por falar nisso. Havia uma coisa lá que agora parece importante, à luz do que nós descobrimos
sobre Bosch. O exame do útero e dos quadris mostrou que ela já tinha tido um filho.
McCaleb abanou a cabeça.
- Bosch não podia saber disso. Jogou o tenente pela janela e já estava suspenso quando a autópsia foi feita.
- É verdade. Mas ele pode ter consultado os arquivos do caso depois de voltar, e provavelmente consultou. Pode ter descoberto que Gunn fez a outra criança a mesma
coisa que tinha sido feita a ele. Tudo se encaixa, entende? Há oito horas eu achava que você estava de miolo mole. Agora parece que acertou na mosca.
McCaleb não se sentia muito bem por ter acertado na mosca. Mas compreendia a empolgação de Jaye. Quando um caso começava a ser esclarecido, às vezes a empolgação
obscurecia a realidade do crime.
- O que aconteceu com o filho dela? - perguntou ele.
- Não tenho idéia. Ela provavelmente abandonou a criança depois do parto. Não interessa. O que interessa é o que isso significou para Bosch.
Ela tinha razão. Mas McCaleb não estava gostando daquela ponta solta no ar.
- Vamos voltar ao seu telefonema para a antiga parceira de Boch. Ela vai ligar pra ele e contar as perguntas que você fez?
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- Kiz já fez isso. -Hoje à noite?
- Foi, agora mesmo. Eu estava falando com ela no telefone. Bosch não deu bola. Disse que tinha esperança de reatar com a
mulher.
- Ela contou que era você que estava interessada?
- Não era pra ela fazer isso.
- Mas provavelmente fez. Isso significa que ele já sabe que estamos atrás dele.
- Isso é impossível. Como?
- Eu acabei de vir de lá agora. Estive na casa dele. E na mesma noite ele recebe um telefonema sobre você. Um cara como Bosch não acredita em coincidências, Jaye.
- E como você levou a coisa lá em cima? - perguntou Jaye por
fim.
- Como nós combinamos. Eu queria mais informações sobre Gunn, mas fui levando a conversa para a vida dele. Foi por isso que liguei pra você. Descobri uns troços
interessantes. Não se comparam aos seus, mas também se encaixam. Mas se ele recebeu esse telefonema sobre você logo depois que eu saí... Sei lá.
- Conta o que descobriu.
- Tudo mixaria. Ele tem a fotografia da esposa que foi embora numa posição de destaque na sala. Fiquei lá menos de uma hora, e o cara meteu três cervejas pra dentro.
Portanto, há a síndrome do álcool, sintomática de pressões internas. Ele também falou de uma coisa que chama de "a grande roda". Faz parte do sistema de crenças
dele. Bosch não vê a mão de Deus nas coisas. Ele vê a Grande Roda. Tudo que vai volta. Ele disse que os caras como Gunn não se safam, na realidade. Sempre são pegos
por alguma coisa. A roda. Eu usei frases específicas pra ver se conseguia que ele reagisse ou discordasse. Chamei o mundo lá fora de pestilência. Ele não discordou.
Disse que ele conseguia lidar com a pestilência, desde que pudesse pegar os agentes transmissores. É tudo muito sutil, Jaye, mas está tudo ali. Ele tem uma gravura
de Bosch na parede do corredor. O jardim das delícias terrenas. A nossa coruja está lá.
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- Ora, o nome dele é igual ao do cara. Se o meu nome fosse Picasso, eu teria uma gravura de Picasso na parede.
- Eu agi como se nunca tivesse visto aquilo e perguntei o que significava. Ele só disse que era a grande roda girando. É isso que significa para ele.
- Pequenas peças que se encaixam.
- Ainda temos trabalho pela frente.
- Bom, você ainda está no caso? Ou vai voltar?
- Por enquanto estou dentro. Vou dormir aqui hoje. Mas tenho um passeio marcado no sábado. Tenho que voltar para isso.
Ela não disse nada.
- Conseguiu mais alguma coisa? - perguntou ele por fim.
- Consegui. Quase esqueci. -O quê?
- A coruja da Afasta Aves foi paga com uma ordem de pagamento dos Correios. Consegui o número com Cameron Riddell e fui verificar. A ordem foi paga no dia 22 de
dezembro no correio da rua Wilcox, em Hollywood. Fica a cerca de quatro quarteirões da delegacia de polícia onde Bosch trabalha.
Ele abanou a cabeça.
- As leis da física.
- O que quer dizer com isso?
- Para cada ação há uma reação igual e contrária. Quando a gente olha para o abismo, o abismo olha para a gente. Você conhece todos esses" clichês. São clichês porque
são verdadeiros. Você não entra nas trevas sem que as trevas entrem em você e arranquem um pedaço. Bosch pode ter entrado lá vezes demais. Perdeu
o rumo.
Eles ficaram em silêncio durante um instante depois disso e marcaram um encontro para o dia seguinte. Ao desligar, McCaleb viu a puta sair do motel sozinha e se
dirigir novamente para o Nat's. Ela usava uma jaqueta de brim, que apertou em torno do corpo para se defender da friagem noturna. Ajeitou a peruca caminhando na
direção do bar, onde buscaria outro freguês.
Vendo a mulher e pensando em Bosch, McCaleb se lembrou
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de tudo que tinha e de como a vida lhe sorrira. Recordou que a sorte podia ser uma coisa fugaz. Precisava ser merecida e depois defendida com todas as forças. Ele
sabia que não estava fazendo isso no momento. Estava abrindo a guarda enquanto penetrava nas trevas.
Capítulo 23
O julgamento recomeçou vinte e cinco minutos depois das nove, que era a hora aprazada, devido à malsucedida tentativa por parte da promotoria de pedir sanções contra
a defesa por intimidação de testemunhas, além de um adiamento enquanto as declarações de Annabelle Crowe eram investigadas integralmente. Sentado atrás da mesa de
cerejeira na sala de audiências, o juiz Houghton se mostrou favorável à investigação, mas disse que não adiaria o julgamento e não imporia sanções ou outras penalidades,
a menos que fossem encontradas provas que corroborassem as declarações da testemunha. Proibiu os promotores e Bosch - que relatara ali sua conversa com Annabelle,
numa reunião a portas fechadas - de vazarem para a mídia uma só palavra sobre as acusações da testemunha.
Cinco minutos mais tarde eles se dirigiram para o tribunal e os jurados foram levados às duas fileiras de cadeiras que ocupavam. Bosch voltou ao banco das testemunhas
e foi avisado pelo juiz de que ainda estava sob juramento. Janis Langwiser voltou à tribuna com seu bloco de anotações.
- Bom, detetive Bosch, nós terminamos o dia de ontem com a sua conclusão de que a morte de Jody Krementz foi um homicídio. Correto?
- Correto.
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- E essa conclusão se baseou não apenas na sua própria investigação, mas na investigação e na autópsia realizadas pela Divisão Médico-Legal, correto?
- Correto.
- Por favor, poderia dizer aos jurados como se deu a investigação, uma vez definida a morte como homicídio?
Bosch virou-se na cadeira a fim de olhar diretamente para o recinto dos jurados enquanto falava. O movimento foi doloroso. A dor que martelava no lado esquerdo de
sua cabeça era tão intensa que ele ficou imaginando que as pessoas estavam realmente vendo suas têmporas latejando.
- Bom, eu e meus dois parceiros, Jerry Edgar e Kizmin Rider, começamos a enxamear, a examinar, quero dizer, as provas materiais que tínhamos acumulado. Também começamos
a interrogar os conhecidos de Jody Krementz que sabíamos terem estado com ela nas últimas vinte e quatro horas de vida da vítima.
- O senhor mencionou provas materiais. Por favor, explique ao júri que provas materiais já haviam sido acumuladas.
- Na realidade, ainda não tínhamos reunido muita coisa. Mas por toda a casa havia impressões digitais que precisávamos analisar. Também tínhamos recolhido algumas
fibras e pêlos colhidos sobre o corpo da vítima e em torno dela.
J. Reason Fowkkes interveio rapidamente, antes que Bosch pudesse continuar a responder.
- Protesto. A frase "sobre o corpo da vítima e em torno dela" é vaga e enganosa.
- Meritíssimo - contrapôs Janis -, acho que, se o Sr. Fowkkes der ao detetive Bosch a oportunidade de terminar de responder à pergunta, não haverá nada vago nem
enganoso. Mas não cabe interromper uma testemunha para dizer que sua resposta é vaga ou enganosa.
- Protesto rejeitado - disse o juiz Houghton, antes que Fowkkes pudesse apresentar uma réplica. - Vamos deixar a testemunha completar a resposta, e depois veremos
até que ponto ela é vaga. Adiante, detetive Bosch.
Bosch pigarreou.
215
- Eu ia dizer que várias amostras de pêlos pubianos não...
- O que é "várias", meritíssimo? - disse Fowkkes. - Continuo protestando contra a falta de precisão das declarações que essa testemunha está dando ao júri.
Bosch olhou para Janis e viu que ela estava ficando furiosa.
- Meritíssimo, será que o tribunal poderia determinar claramente quando os protestos podem ser feitos? - disse ela. - A defesa está procurando interromper constantemente
a testemunha, pois sabe que estamos entrando num campo que lhe é particulamente desfavorável...
- Doutora Janis, ainda não chegamos às alegações finais - cortou o juiz. - Doutor Fowkkes, a não ser que o senhor esteja vendo um pavoroso erro judiciário, quero
que os protestos sejam feitos antes que as testemunhas falem ou depois que elas tenham completado pelo menos uma frase.
- Meritíssimo, as conseqüências soo pavorosas neste caso. O estado está tentando tirar a vida do meu cliente, simplesmente porque suas opiniões morais são...
Doutor Fowkkes! - trovejou o juiz. - O que eu disse sobre as alegações finais também se aplica ao senhor. Vamos continuar com o depoimento, está bem?
Virou-se para Bosch.
Detetive, continue, e tente ser um pouco mais preciso nas respostas.
Bosch olhou para Janis e viu os olhos dela se fecharem momentaneamente. Aquela orientação displiscente dada a Bosch pelo juiz era o que Fowkkes queria. Insinuava
para os jurados que talvez houvesse imprecisão, ou até confusão deliberada, nos argumentos da promotoria. Fowkkes conseguira instigar o juiz a parecer que concordava
com seus protestos.
Bosch lançou um olhar para Fowkkes e viu o advogado sentado, com os braços cruzados e um ar satisfeito, se não presunçoso, no rosto. Depois olhou novamente para
o dossiê de assassinato à sua frente.
- Posso consultar minhas anotações? - perguntou.
A permissão foi concedida. Ele abriu a pasta e procurou os relatórios sobre as provas. Olhando para o laudo do legista, recomeçou.
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- Antes da autópsia, foi passada uma escova coletora de provas nos pêlos pubianos da vítima. A escova colheu oito amostras de pêlo pubiano, que testes laboratoriais
subseqüentes mostraram não pertencer à vítima.
Ele ergueu o olhar para Janis, que disse:
- Esses pêlos pubianos eram de oito pessoas diferentes?
- Não, os testes de laboratório mostraram que todos os pêlos vinham de uma só pessoa desconhecida.
- E o que isso indicava, detetive?
- Que a vítima provavelmente tinha tido relações sexuais com alguém depois de tomar seu último banho e antes de morrer.
Janis olhou para suas anotações.
- Alguma outra prova baseada em pêlos foi encontrada na vítima ou na cena do crime, detetive?
Bosch virou a página do dossiê de assassinato.
- Foi. Um fio de cabelo, com seis centímetros de comprimento, foi encontrado em torno do fecho de um colar de ouro que a vítima usava no pescoço. O fecho localizava-se
na nuca da vítima. Também esse fio foi identificado pela análise laboratorial como pertencente a uma pessoa diferente da vítima.
- Vamos voltar por um instante ao pêlo pubiano. Havia outros sinais ou provas, tanto no corpo quanto na cena do crime, indicando que a vítima tinha tido relações
sexuais no período entre o banho e a morte?
- Não, não havia. Não foi encontrado sêmen na vagina.
- Há conflito entre isso e a descoberta do pêlo pubiano?
- Nenhum conflito. Simplesmente indica o possível uso de uma camisinha durante o ato sexual.
- Muito bem. Vamos adiante, detetive. Impressões digitais. O senhor mencionou que foram encontradas impressões digitais na casa. Por favor, fale sobre essa área
da investigação.
Bosch virou as páginas do dossiê até encontrar o laudo sobre as impressões digitais.
- Sessenta e oito exemplares de impressões digitais foram colhidas dentro da casa onde a vítima foi encontrada. Ela e sua
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colega respondiam por cinqüenta e duas. Foi verificado que as dezesseis restantes haviam sido deixadas por um total de sete pessoas.
- E quem eram essas pessoas?
Bosch leu a lista de nomes existente no dossiê. Respondendo às perguntas de Janis Langwiser, explicou quem era cada pessoa. Depois detalhou como os detetives haviam
descoberto em que ocasião e por que cada uma delas estivera na casa. A lista era formada por amigos, parentes, um ex-namorado e um antigo conhecido das mulheres.
A equipe da promotoria sabia que a defesa tentaria fazer um carnaval com as impressões digitais, usando-as como pistas falsas para desviar a atenção dos jurados
dos fatos do caso. Por isso o depoimento prosseguiu vagarosamente, com Bosch explicando tediosamente a localização e a origem de cada impressão digital encontrada
e identificada na casa. Ele finalizou testemunhando a respeito de um conjunto completo de impressões digitais encontrado na cabeceira da cama em que a vítima fora
encontrada. Ele e Janis sabiam que essas eram as impressões que Fowkkes exploraria mais. Por isso Janis tentou minimizar o prejuízo em potencial revelando-as durante
seu próprio interrogatório da testemunha.
- A que distância do corpo da vítima estavam localizadas essas impressões?
Bosch olhou para o laudo no dossiê.
- Setenta centímetros.
- Exatamente em que ponto da cabeceira?
- Atrás, entre a cabeceira e a parede.
- Havia muito espaço ali?
- Cerca de cinco centímetros.
- Como alguém poderia deixar impressões digitais nesse lugar? Fowkkes protestou, dizendo que Bosch não tinha qualificação
para determinar como um conjunto de impressões digitais podia ser deixado em qualquer lugar, mas o juiz permitiu que a pergunta fosse mantida.
- Só consigo imaginar duas maneiras - respondeu Bosch. Elas foram parar lá quando a cama não estava encostada à parede. Ou então alguém enfiou os dedos no espaço
entre as ripas da cabeceira e deixou as impressões lá enquanto as segurava.
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Janis apresentou uma fotografia tirada por um técnico em impressões digitais. A fotografia foi incluída nos autos e mostrada aos jurados.
- Na segunda explicação que o senhor ofereceu, a tal pessoa teria que estar deitada na cama, não é?
- Parece que sim.
- Com o rosto para baixo? -Sim.
Fowkkes levantou-se para protestar, mas o próprio juiz interferiu antes que ele chegasse a pronunciar uma só palavra.
- A senhora está se desviando do assunto com suposições, doutora Janis. Vamos adiante.
- Sim, meritíssimo.
Ela consultou o bloco por um instante.
- Essa impressão digital na cama da vítima não fez o senhor pensar que a pessoa que tinha deixado aquilo ali deveria ser considerada um dos principais suspeitos?
- Inicialmente, não. E impossível dizer há quanto tempo uma impressão foi deixada num determinado lugar. Além disso, havia o fator adicional de sabermos que a vítima
não tinha sido morta na cama, e sim levada para lá depois de ser assassinada em outro local. Não achamos que assassino teria que se apoiar no lugar onde a impressão
digital foi encontrada para colocar o corpo na cama.
- A quem pertenciam essas impressões?
- A um homem chamado Allan Weiss, que tinha saído com Jody Krementz em três ocasiões anteriores. O encontro mais recente tinha sido três semanas antes da morte dela.
- O senhor interrogou esse homem?
- Interroguei. Junto com o detetive Edgar.
- Ele admitiu ter estado alguma vez na cama da vítima?
- Admitiu. Disse que havia dormido com ela na última ocasião em que a viu, três semanas antes da morte dela.
- Ele disse que tocou a cabeceira da cama no local onde o senhor nos mostrou que estavam as impressões digitais?
- Ele disse que poderia ter tocado, mas que não se lembrava especificamente de ter feito isso.
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- O senhor investigou as atividades de Allan Weiss na noite da morte de Jody Krementz?
- Investiguei. Ele tinha um álibi excelente.
- Que álibi era esse?
- Ele contou que tinha viajado ao Havaí para participar de um simpósio imobiliário. Pesquisamos os registros da empresa aérea e do hotel e conferimos com os promotores
do seminário. Confirmamos que ele esteve lá.
Janis olhou para o juiz Houghton e disse que aquele seria um bom momento para fazer o intervalo matinal. O juiz disse que ainda era um pouco cedo, mas acedeu ao
pedido e mandou os jurados voltarem dali a quinze minutos.
Bosch sabia que Janis queria o intervalo naquele momento porque estava prestes a entrar nas perguntas sobre David Storey, e queria separá-las bem do restante do
depoimento. Quando ele saiu do banco das testemunhas e voltou para a mesa da promotoria, ela estava folheando alguns arquivos. Janis falou com ele sem erguer os
olhos.
- O que há de errado, Harry? -Como assim?
- Você não está ligado. Não como ontem. Está nervoso ou alguma coisa assim?
- Não. Você está?
- Claro, com tudo isso. Muita coisa depende disso.
- Vou me ligar mais.
- Estou falando sério, Harry.
- Eu também, Janis.
Ele se afastou da mesa da promotoria e saiu do tribunal.
Decidiu tomar uma xícara de café na cantina do segundo andar. Mas antes entrou no toalete perto dos elevadores e foi até uma das pias jogar água fria no rosto. Curvou-se
sobre a pia com cuidado para não molhar o terno e ouviu a descarga de uma privada. Quando ergueu o corpo e olhou para o espelho, viu Rudy Tafero passando em direção
à pia mais afastada. Curvou-se novamente, pegou mais água e manteve-a encostada no rosto. O frio fazia bem aos seus olhos, diminuindo a dor de cabeça.
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- Como é o troço, Rudy? - perguntou ele sem olhar para o outro homem.
- Que troço, Harry?
- Trabalhar para o diabo, ora. Conseguiu dormir essa noite? Bosch foi até o rolo de papel-toalha e arrancou várias folhas
para enxugar as mãos e o rosto. Tafero se aproximou, arrancou uma folha e começou a enxugar as mãos.
- E engraçado - disse ele. - Em toda a minha vida, só tive dificuldade para dormir na época em que eu era tira. Fico imaginando por que isso acontecia.
Fez uma bola com a toalha de papel e jogou-a na cesta de lixo. Sorriu para Bosch e foi embora. Bosch ficou vendo o outro sair, ainda esfregando as mãos nas toalhas.
Capítulo 24
Bosch sentia o café trabalhando no seu sangue. Ele já estava se recuperando. A dor de cabeça diminuíra. Estava pronto. Tudo sairia como eles haviam planejado, como
haviam coreografado. Ele se inclinou na direção do microfone e aguardou a pergunta.
- Detetive Bosch, quando o nome de David Storey surgiu na investigação? - disse Janis da tribuna.
- Quase imediatamente. Jane Gilley, que dividia o apartamento com Jody Krementz, informou que ela tinha saído com David Storey na última noite de sua vida.
- O senhor interrogou David Storey sobre essa última noite?
- Sim. Rapidamente.
- Por que rapidamente, detetive Bosch? Afinal, era um homicídio.
- Foi uma decisão dele. Na sexta-feira, quando o corpo foi encontrado, e também no dia seguinte tentamos várias vezes interrogar David Storey, mas não conseguimos
localizar o seu paradeiro. Finalmente, por meio do seu advogado, ele concordou em ser interrogado no outro dia, que era domingo, sob a condição de irmos ao seu escritório
nos Estúdios Archway e realizarmos o interrogatório lá. Com relutância, concordamos em fazer a coisa assim, mas fizemos isso no intuito de colaborar e porque precisávamos
falar com ele. Àquela altura já estávamos investigando o caso
222
havia dois dias e não tínhamos conseguido falar com a última pessoa que tinha visto a vítima ainda viva. Quando chegamos ao escritório, seu advogado pessoal, Jason
Fleer, estava lá. Começamos a interrogar David Storey, mas menos de cinco minutos depois o advogado interrompeu o interrogatório.
- Essa conversa foi gravada?
- Foi.
Janis solicitou que a gravação fosse reproduzida, e a solicitação foi aprovada pelo juiz Houghton apesar dos protestos da defesa. Fowkkes pediu que o juiz permitisse
apenas que os jurados lessem uma transcrição que ele preparara do curto interrogatório. Mas Janis protestou, dizendo que não tivera tempo de examinar a transcrição
e verificar sua fidelidade. Disse também que era importante que o júri ouvisse o tom de voz e o jeito de falar de Storey. Com sabedoria salomônica, o juiz decidiu
que a fita seria ouvida, mas que a transcrição também seria entregue como ajuda aos jurados. Encorajou Bosch e a equipe da promotoria a também ler a transcrição
para verificar sua fidelidade.
BOSCH: Meu nome é detetive Hieronymus Bosch, do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estou acompanhado por meus parceiros, detetives Jerry Edgar e Kizmin Rider.
Hoje são 15 de outubro de 2000. Estamos interrogando David Storey no seu escritório nos Estúdios Archway em relação ao caso número zen>zero-oito-novesete. David
Storey está acompanhado por seu advogado, doutor Jason Fleer. Sr. Storey, doutor Fleer? Alguma pergunta antes de começarmos?
FLEER: Nenhuma pergunta.
BOSCH: Ah, e obviamente, estamos gravando essas declarações. Sr. Storey, conhecia uma mulher chamada Jody Krementz, também conhecida como Donatella Speers?
STOREY: Você já sabe a resposta a isso.
FLEER: David...
STOREY: Conhecia. Estive com ela quinta-feira à noite. Isso não quer dizer que eu matei a mulher.
223
FLEER: Por favor, David. Responda apenas às perguntas que eles fizerem.
STOREY: Para mim, tanto faz.
BOSCH: Posso continuar?
FLEER: Por favor.
STOREY: Sim, por favor.
BOSCH: O senhor disse que esteve com ela na noite de quintafeira. Era um encontro marcado?
STOREY: Para que perguntar essas coisas, se você já sabe a resposta? Era, era um encontro marcado, se quiser descrever a coisa assim.
BOSCH: Como o senhor descreveria a coisa?
STOREY: Não interessa.
(pausa)
BOSCH: Poderia nos dizer quanto tempo ficou com ela?
STOREY: Eu apanhei a mulher às sete e meia e voltei com ela mais ou menos à meia-noite.
BOSCH: O senhor entrou na casa quando foi buscar Jody?
STOREY: Para falar a verdade, não entrei. Já estava muito atrasado, e liguei pelo celular pedindo para ela sair porque eu não tinha tempo de entrar. Acho que ela
queria que eu conhecesse sua colega - outra atriz, sem dúvida -, mas eu não tinha tempo.
BOSCH: Portanto, quando o senhor parou o carro ela já estava esperando lá fora.
STOREY: Foi o que eu disse.
BOSCH: Das sete e meia até meia-noite. São quatro horas e meia.
STOREY: Você é bom em matemática. Gosto de ver isso num detetive.
FLEER: David, vamos tentar acabar logo com isso.
STOREY: Estou tentando.
BOSCH: Pode nos dizer o que fez durante o tempo que passou com Jody Krementz?
STOREY: Fizemos um três-efes completo: filme, festa e foda.
BOSCH: O quê?
224
STOREY: Fomos à estréia do meu filme, depois fomos à recepção comer alguma coisa, e aí fomos para a minha casa fazer sexo. Sexo consensual, detetive. Acredite ou
não, as pessoas marcam encontros pra fazer isso o tempo todo. E não é só aqui em Hollywood. Acontece em todo o nosso grande país. A sua grandeza vem daí. BOSCH:
Entendi. O senhor levou Jody para casa depois disso?
STOREY: Sempre um cavalheiro, levei.
BOSCH: Entrou na casa dela dessa vez?
STOREY: Não. Eu só estava com a porra do meu roupão. Cheguei lá, ela saltou e entrou. Eu voltei pra casa. Não sei o que aconteceu depois. Não estou envolvido nisso,
de qualquer forma, jeito ou maneira. Vocês só podem...
FLEER: David, por favor.
STOREY: ... ter merda na cabeça, se por causa da porra de um instante acham...
FLEER: David, pare!
(pausa)
FLEER: Detetive Bosch, acho que precisamos parar por aqui.
BOSCH: Estamos aqui no meio de um interrogatório e...
FLEER: David, aonde você vai?
STOREY: Fodam-se esses caras. Vou lá fora fumar um cigarro.
BOSCH: David Storey acaba de sair do escritório.
FLEER: Acho que a esta altura ele está exercendo os direitos que lhe são garantidos pela Quinta Emenda. Este interrogatório terminou.
A fita emudeceu, e Janis desligou o aparelho. Bosch olhou para os jurados. Vários deles estavam olhando para Storey. A arrogância dele se evidenciara de forma eloqüente
na fita. Isso era importante, pois dali a pouco eles pediriam que o júri acreditasse que - a sós com Bosch -Storey se vangloriara do assassinato e dissera que se
safaria do processo. Somente um homem arrogante faria isso. A promotoria precisava provar que Storey era não apenas um assassino, mas um assassino arrogante ainda
por cima.
225
- Muito bem - disse Janis. - Detetive Bosch, David Storey voltou para continuar o interrogatório?
Não, não voltou - respondeu Bosch. - E nós fomos convidados a sair.
O fato de David Storey negar qualquer envolvimento no assassinato de Jody Krementz fez cessar seu interesse nele?
Não, não fez. Tínhamos a obrigação de investigar o caso integralmente, e isso abrangia incluir ou excluir David Storey como suspeito.
- O comportamento dele durante o curto interrogatório causou suspeita?
- Está falando da arrogância dele? Não, ele... Fowkkes pôs-se de pé, protestando.
Mentíssimo, a arrogância de um homem é a confiança de outro na própria inocência. Não há...
Tem razão, doutor Fowkkes - disse Houghton. Ele aceitou o protesto, ordenou que a resposta de Bosch não constasse dos autos e mandou os jurados ignorarem o comentário.
O comportamento dele durante o interrogatório não causou suspeita recomeçou Bosch. - Nossa atenção e investigação imediatas foram motivadas pelo fato de ele ter
sido a última pessoa a estar com a vítima. A falta de cooperação era suspeita, mas àquela altura estávamos abertos para qualquer possibilidade. Eu e meus parceiros
temos, somados, um total de mais de vinte e cinco anos de experiência na investigação de homicídios. Sabemos que as coisas nem sempre são o que parecem.
Para onde se dirigiram as investigações em seguida?
Continuamos seguindo todas as pistas. Uma dessas era, obviamente, David Storey. Baseados na declaração de que ele e a vítima tinham ido à casa dele durante o encontro,
meus parceiros solicitaram um mandado de busca e apreensão ao Tribunal do Condado e receberam autorização para revistar a casa de David Storey.
Janis apresentou ao juiz o mandado de busca, que foi aceito como prova nos autos. Ela levou o documento de volta para a
226
tribuna. Bosch então declarou que a busca na casa de Mulholland Drive fora realizada às seis horas da manhã, dois dias depois do interrogatório inicial de Storey.
- O mandado de busca autorizava sua equipe a apreender qualquer prova do assassinato de Jody Krementz, qualquer prova de seus pertences e qualquer prova de sua presença
no local, correto?
- Correto.
- Quem realizou a busca?
- Eu, meus parceiros e uma equipe de dois homens da Divisão Médico-Legal. Tínhamos também um fotógrafo para fazer fotos e tomadas de vídeo. Seis pessoas ao todo.
- Quanto tempo demorou a busca?
- Aproximadamente sete horas.
- O réu esteve presente durante a busca?
- Na maior parte do tempo. Teve que sair a certa altura para ir a um encontro com um ator de cinema, um compromisso que, segundo ele, não poderia adiar. Ficou fora
mais ou menos duas horas. Durante esse período seu advogado pessoal, o doutor Fleer, permaneceu na casa fiscalizando a busca. Em momento algum fomos deixados sozinhos
lá dentro, se é esta a dúvida.
Janis folheou as páginas do mandado de busca até o final.
- Detetive Bosch, quando quaisquer itens são apreendidos durante uma busca com mandado judicial, a lei exige que seja feito um inventário com recibo, correto?
- Correto.
- Esse recibo é então incluído nos autos, correto?
- Correto.
- Pode nos dizer por que este recibo está em branco, então?
- Nós não tiramos item algum da casa durante a busca.
- Não encontraram nada que indicasse que Jody Krementz estivera na casa de David Storey, conforme ele dissera?
- Nada.
- Essa busca ocorreu quantos dias depois da noite em que David Storey disse que levara Jody Krementz para casa e tivera relações sexuais com ela?
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- Cinco dias depois da noite do assassinato, dois dias depois do interrogatório de David Storey.
- Não encontraram nada que confirmasse a declaração de David Storey?
- Nada. O lugar estava totalmente limpo.
Bosch sabia que Janis estava tentando transformar algo negativo em positivo, tentando sugerir que a busca sem êxito era uma indicação da culpa de Storey.
- O senhor diria que a busca foi malsucedida?
- Não. Não existe sucesso nesse tipo de coisa. Nós estávamos procurando provas que corroborassem a declaração dele, além de qualquer evidência de um possível ato
criminoso envolvendo Jody Krementz. Não encontramos nada na casa que indicasse isso. Mas às vezes o importante não é o que achamos, e sim o que não achamos.
- Pode explicar isso para o júri?
- Bom, é verdade que não encontramos prova alguma na casa. Mas descobrimos que algo estava faltando, e isso mais tarde se tornou importante para nós.
-O quê?
- Um livro. Estava faltando um livro lá.
- Como o senhor podia saber que estava faltando, se o livro não estava lá?
- Na sala da casa havia uma grande estante embutida. Todas as prateleiras estavam repletas de livros, menos uma, onde havia um espaço vazio. Faltava um livro ali.
Nós não conseguimos descobrir que livro poderia ser. Não havia nenhum outro livro largado pelo resto da casa. Na ocasião achamos que aquilo era apenas um detalhe.
Obviamente, alguém tinha tirado um livro da prateleira sem colocá-lo de volta no lugar. Só ficamos curiosos por não conseguir descobrir que livro era nem onde estava.
Janis apresentou como provas duas fotografias da estante tiradas durante a busca. Houghton incluiu-as nos autos, apesar de um protesto de rotina por parte de Fowkkes.
As fotos mostravam a estante inteira, e a segunda prateleira em detalhe. Havia um espaço vazio entre um livro chamado The Fifth Horizon e uma biografia do diretor
cinematográfico John Ford, Print the Legend.
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- Detetive Bosch, o senhor disse que na ocasião não sabia se o livro que faltava tinha alguma importância ou significado para o caso, correto? - disse Janis.
- E verdade.
- Mas depois conseguiram descobrir que livro fora retirado da prateleira?
- Conseguimos.
Janis fez uma pausa. Bosch sabia o que ela ia fazer. O número fora ensaiado. Ele achava que Janis era uma boa contadora de histórias. Ela sabia espichar as coisas
e prender a atenção das pessoas, levando-as até a beira do abismo e depois puxando-as para trás.
- Bom, vamos seguir a ordem e voltar ao livro depois - disse ela. - O senhor teve ocasião de conversar com David Storey no dia da busca?
- Ele se manteve à parte durante a maior parte do tempo, quase sempre ao telefone. Mas falamos com ele quando batemos à porta e anunciamos a busca. E também ao final
do dia, quando eu lhe disse que estávamos saindo sem levar nada.
- Ele foi acordado pela sua chegada às seis horas da manhã? -Foi.
- Estava sozinho na casa?
- Estava.
- Convidou sua equipe a entrar?
- Inicialmente, não. Protestou contra a busca. Eu lhe disse que...
- Desculpe, detetive, talvez seja mais fácil nós mostrarmos a coisa. O senhor disse que havia um homem com uma câmera de vídeo na equipe. Ele estava gravando quando
o senhor bateu à porta às seis horas da manhã?
- Estava.
Janis tomou as medidas adequadas para apresentar a fita de vídeo, que foi aceita como prova nos autos, apesar dos protestos da defesa. Um televisor de tela grande
foi trazido e colocado no centro do tribunal, diante do recinto dos jurados. Janis pediu que Bosch identificasse a fita. As luzes do tribunal foram diminuídas, e
a fita começou a rodar.
A imagem abriu focalizando Bosch e a equipe diante da porta vermelha da entrada de uma casa. Ele se identificou, dando também o endereço e o número do caso sob investigação.
Falava em voz baixa. Depois se virou e bateu com força na porta. Anunciou que era a polícia, e bateu novamente com força. Todos ficaram esperando. A cada quinze
segundos, Bosch batia novamente. Cerca de dois minutos depois da primeira batida, a porta finalmente se abriu e David Storey espiou para fora. Tinha o cabelo despenteado,
e seus olhos mostravam cansaço.
"O que é?", perguntou ele.
"Temos aqui um mandado de busca e apreensão, Sr. Storey", disse Bosch. "O documento nos autoriza a realizar uma busca neste local."
"Vocês devem estar brincando, caralho."
"Não, não estamos. Poderia se afastar e nos deixar entrar? Quanto mais cedo entrarmos, mais cedo sairemos."
"Vou ligar para o meu advogado."
Storey fechou e trancou a porta. Imediatamente, Bosch avançou e colou o rosto no batente, falando em voz alta.
"Tem dez minutos, Sr. Storey. Se esta porta não for aberta às seis e quinze, teremos que entrar à força. Temos um mandado de busca e apreensão expedido pelo tribunal,
e vamos executar nossas ordens."
Depois virou para a câmera e fez o sinal de corte com o dedo atravessando a garganta.
A imagem pulou para outro ponto da porta. O marcador de tempo no canto inferior já mostrava 6:13. A porta se abriu e Storey recuou, acenando para que a equipe de
busca entrasse. Usava calças jeans e camiseta pretas. Estava descalço, e seu cabelo parecia ter sido penteado com as mãos.
"Façam logo o que têm que fazer e caiam fora. Meu advogado está vindo para cá e vai ficar de olho em vocês. Se quebrarem uma porra de uma coisa nesta casa, meto
uma porra de um processo em cima de vocês. Esta casa foi projetada por David Serrurier. Se arranharem uma só dessas paredes, acabo com o emprego de vocês. De todos
vocês."
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"Tomaremos cuidado, Sr. Storey", disse Bosch ao passar pela porta.
O operador de câmera foi o último a entrar na casa. Storey olhou direto para a lente, como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez.
"E afaste essa porra de cima de mim."
Ele fez um movimento e o ângulo da imagem pulou para cima, apontando para o teto. Permaneceu ali enquanto Storey e o operador de câmera continuavam discutindo fora
de quadro.
"Ei, não toque na câmera!"
"Então tire isso da minha cara!"
"Tá legal. Tudo bem. Mas não toque na câmera."
A imagem desapareceu da tela, e as luzes do tribunal voltaram à intensidade normal. Janis continuou o interrogatório.
- Detetive Bosch, o senhor ou alguém da equipe de busca teve mais alguma... conversa com David Storey depois disso?
- Durante a busca, não. A partir do momento em que seu advogado chegou, o Sr. Storey permaneceu no escritório. Quando demos a busca lá, ele foi para o quarto. Quando
ele saiu para o tal encontro, fiz algumas perguntas sobre isso, e depois ele partiu. Foram mais ou menos esses os nossos contatos durante a busca e nossa permanência
na casa.
- E ao final do dia, sete horas mais tarde, quando a busca terminou, o senhor falou novamente com o réu?
- Sim, falei com ele rapidamente na porta. Já tínhamos arrumado as coisas e estávamos prontos para sair. O advogado já tinha ido embora. Eu estava no meu carro com
meus parceiros. Estávamos dando marcha a ré, quando percebi que tinha esqueci' do de dar a David Storey uma cópia do mandado de busca. Isso é exigido por lei. Por
isso voltei até a porta e bati.
- Foi o próprio David Storey quem atendeu?
- Atendeu depois de umas quatro batidas fortes. Dei-lhe a cópia e disse que aquilo era obrigatório.
- Ele disse alguma coisa?
Fowkkes levantou-se e protestou, mas só para que constasse dos autos, pois a questão já fora decidida em moções e decisões
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anteriores ao julgamento. O juiz ordenou que o protesto constasse dos autos e o rejeitou, fazendo sua decisão também constar dos autos. Janis repetiu a pergunta.
- Posso consultar minhas anotações?
- Por favor.
Bosch consultou as notas que tomara no carro logo depois da
conversa.
- Primeiro, ele disse: "Você não encontrou porra nenhuma, encontrou?" Eu disse que ele tinha razão, que não estávamos levando nada. Aí ele disse: "Porque não havia
nada para levar." Eu assenti, e estava me virando para ir embora quando ele disse: "Ei, Bosch." Quando me virei de novo, ele se inclinou para mim e disse: "Você
nunca vai descobrir o que está procurando." Eu disse: "Ah, é? O que estou procurando?" Ele não respondeu. Só olhou para mim e sorriu.
Depois de uma pausa, Janis perguntou:
- A conversa acabou aí?
- Não. Nesse momento eu percebi que poderia fazer com que ele falasse mais, e disse: "Foi você, não foi?" Ele continuou sorrindo, e depois balançou a cabeça vagarosamente,
dizendo: "E vou me safar disso." Ele disse: "Eu sou..."
- Mentira! Você é uma porra de um mentiroso!
Era Storey. Estava de pé, apontando para Bosch. Fowkkes pusera a mão nele, tentando trazê-lo de volta à cadeira. Um agente do escritório do xerife, que ficara posicionado
a uma escrivaninha atrás da mesa da defesa, já se levantara e avançava para Storey
por trás.
- O réu deve se SENTAR! - trovejou o juiz atrás da bancada, batendo simultaneamente com o martelo.
- Ele está mentindo, caralho!
- Policial, faça o réu se sentar!
O policial avançou, pôs as duas mãos nos ombros de Storey por trás e empurrou-o com força de volta à cadeira. O juiz acenou para que outro policial fosse na direção
do júri.
- Retire os jurados.
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Enquanto os jurados eram rapidamente mandados para a sala de deliberação, Storey continuou lutando com o policial e Fowkkes. Mas logo que os jurados saíram pareceu
relaxar seus esforços e se acalmou. Bosch olhou para os repórteres, tentando ver se algum deles percebera que a encenação de Storey terminara logo que os jurados
desapareceram.
- Sr. Storey! - berrou o juiz, de pé. - Esse comportamento e essa linguagem não são aceitáveis neste tribunal. Doutor Fowkkes, se o senhor não conseguir controlar
o seu cliente, meu pessoal fará isso. Mais uma explosão, e eu mandarei o réu ser amordaçado e acorrentado à cadeira. Fui claro?
- Perfeitamente, meritíssimo. Eu peço descul...
- Esta regra é de tolerância zero. Se houver qualquer explosão daqui por diante, ele será algemado. Pouco me importa quem ele seja ou quem sejam seus amigos.
- Sim, meritíssimo. Nós entendemos.
- Vou dar cinco minutos de intervalo e depois recomeçaremos. O juiz deixou abruptamente a bancada, batendo os pés com
força ao descer rapidamente os três degraus. Desapareceu pela porta do corredor dos fundos que levava a sua sala.
Bosch olhou para Janis. Os olhos da promotora traíam seu prazer com o que acabara de acontecer. Para Bosch, aquilo era toma-ládá-cá. Por um lado, os jurados haviam
visto Storey agir raivosamente e de forma descontrolada - possivelmente exibindo o mesmo furor que o levara ao assassinato. Mas, por outro, o réu deixara registrado
seu inconformismo com o que estava lhe acontecendo no tribunal. E isso poderia causar uma reação favorável por parte dos jurados. Storey só precisava influenciar
um deles para sair livre dali.
Antes do julgamento, Janis previra que eles conseguiriam fazer Storey explodir. Bosch achara que ela estava enganada. Achava que Storey era frio e calculista demais.
A menos, é claro, que a explosão fosse uma jogada calculada. Storey era um homem que ganhava a vida dirigindo cenas e personagens dramáticos. Bosch percebeu que
deveria ter previsto que talvez viesse a ser usado como coadjuvante involuntário numa daquelas cenas.
Capítulo 25
O juiz voltou à bancada dois minutos depois, e Bosch ficou imaginando se ele não tinha ido até sua sala só para colocar um coldre sob a toga. Logo que se sentou,
Houghton olhou para a mesa da defesa. Storey estava sentado com uma expressão sombria no rosto, olhando para o bloco de desenho à sua frente.
- Estamos prontos? - perguntou o juiz.
As duas partes murmuraram que estavam prontas. O juiz mandou chamar os jurados, que foram trazidos de volta. A maioria olhou diretamente para Storey ao entrar.
- Muito bem, pessoal, vamos tentar novamente - disse o juiz Houghton. - As exclamações que ouviram há poucos minutos por parte do réu devem ser ignoradas. Não constituem
provas, não são nada. Se David Storey quer negar pessoalmente as acusações ou qualquer outra coisa dita sobre ele nos depoimentos, terá oportunidade de fazer isso
depois.
Bosch viu os olhos de Janis dançarem de felicidade. Os comentários do juiz eram uma maneira de fustigar a defesa. Ele estava criando a expectativa de um depoimento
de Storey durante a fase da defesa. Se ele não fizesse isso, os jurados poderiam ficar desapontados.
Houghton passou novamente a palavra para Janis, que continuou a interrogar Bosch.
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- Antes da interrupção, o senhor estava depondo sobre sua conversa com o réu na porta da casa dele.
-Sim.
- Declarou que o réu disse: "E vou me safar disso", correto?
- Correto.
- E tomou esse comentário como uma referência à morte de Jody Krementz, correto?
- Era sobre isso que estávamos falando.
- O réu disse qualquer coisa depois?
- Disse.
Bosch fez uma pausa, imaginando se Storey iria ter outra explosão, mas nada aconteceu.
- Ele disse: "Eu sou um deus nesta cidade, detetive Bosch. Ninguém fode com os deuses."
Quase dez segundos se passaram antes que o juiz instigasse Janis a prosseguir.
- O que o senhor fez depois que o réu declarou isso?
- Bom, fiquei meio aturdido, surpreso que ele tivesse dito aquilo para mim.
- O senhor não estava gravando a conversa, correto?
- Correto. Era só uma conversa à porta, depois que eu bati lá.
- O que aconteceu em seguida?
- Fui imediatamente até o carro e anotei textualmente a conversa enquanto a coisa ainda estava fresca na minha memória. Contei a meus parceiros o que tinha acabado
de ocorrer, e decidimos consultar a promotoria para saber se a admissão de David Storey justificava sua prisão. Mas não conseguimos fazer funcionar nossos telefones
celulares, porque estávamos lá no alto das colinas. Por isso descemos até o posto dos bombeiros em Mulholland Drive, a leste do bulevar Laurel Canyon. Ali pedimos
para usar o telefone, e eu liguei para a promotoria.
- E com quem o senhor falou?
- Com a senhora. Narrei o caso, o que tinha ocorrido durante a busca e o que David Storey tinha dito na porta. Foi decidido continuar a investigação a partir daquele
ponto, sem efetuar a prisão.
- O senhor concordou com essa decisão?
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- Na hora, não. Eu queria prender David Storey.
- A admissão dele mudou a direção das investigações?
- Fechamos muito o foco. O sujeito tinha admitido o crime para mim. Passamos a suspeitar apenas dele.
- O senhor chegou a pensar que talvez a admissão fosse uma bazófia, e que enquanto o senhor provocava o réu ele podia estar fazendo o mesmo com o senhor?
- Sim, pensei nisso. Mas acabei acreditando que ele tinha feito aquelas declarações porque eram verdadeiras e porque àquela altura ele acreditava estar numa posição
inexpugnável.
Ouviu-se o barulho de algo sendo rasgado quando Storey arrancou a página de cima do bloco de desenho. Ele amassou o papel e jogou-o sobre a mesa. O papel atingiu
a tela de um computador e caiu no chão.
- Obrigado, detetive - disse Janis Langwiser. - O senhor disse que a decisão foi continuar com a investigação. Pode dizer ao júri o que isso abrangia?
Bosch descreveu como ele e seus parceiros haviam interrogado dezenas de testemunhas que tinham visto o réu e a vítima na estréia do filme ou na recepção posterior,
dada numa tenda de circo armada num estacionamento próximo. Eles também haviam interrogado dezenas de outras pessoas que conheciam Storey ou que já haviam trabalhado
com ele. Bosch reconheceu que nenhum dos interrogatórios produzira informações importantes para a investigação.
- Anteriormente, o senhor mencionou sua curiosidade a respeito de um livro que viu faltando na casa do réu durante a busca, correto?
- Correto. Fowkkes protestou.
- Não há qualquer prova de que faltava um livro. Havia um espaço vazio na prateleira. Isso não quer dizer que havia um livro naquele lugar.
Janis prometeu que logo esclareceria tudo, e o juiz ignorou o
protesto.
- O senhor chegou a descobrir qual era o livro que tinha ocupado aquele lugar da prateleira na casa do réu?
236
- Cheguei, durante a coleta de informações sobre o'passado de David Storey. Minha parceira, Kizmin Rider, que conhecia o trabalho e a reputação profissional do réu,
lembrou que tinha lido um artigo sobre ele numa revista chamada Architectural Digest. Ela fez uma pesquisa na Internet, verificou que a edição de que se lembrava
era de fevereiro do ano passado e encomendou um exemplar à editora. Recordava que a matéria trazia fotografias de David Storey e sua casa. Lembrava das estantes
porque é uma leitora ávida e tinha ficado curiosa para saber que livros aquele diretor de cinema tinha nas prateleiras.
Janis solicitou que a revista fosse incorporada aos autos como prova. O pedido foi aceito pelo juiz, e Janis entregou o exemplar a Bosch no banco das testemunhas.
- Foi esta revista que sua parceira recebeu?
- Foi.
- Pode abrir a matéria sobre o réu e descrever a fotografia que há na página de abertura?
Bosch abriu a revista na página indicada por um marcador.
- E uma fotografia de David Storey sentado no sofá da sala de sua casa. A estante aparece à sua esquerda.
- E possível ler os títulos dos livros nas lombadas?
- Só de alguns. Nem todos estão nítidos.
- Quando o senhor recebeu esta revista da editora, o que fez com o exemplar?
- Vimos que nem todos os livros estavam nítidos. Fizemos contato com a editora novamente e pedimos emprestado o negativo dessa fotografia. Falamos com o editor-chefe,
que não deixou que os negativos saíssem da empresa. Ele citou a legislação referente à mídia e as salvaguardas da imprensa livre.
- O que aconteceu então?
- O editor disse que se oporia até a uma ordem judicial. Um representante da procuradoria do condado foi convocado e começou a negociar com o advogado da revista.
O resultado foi que eu peguei um avião até Nova York e tive acesso ao negativo no laboratório fotográfico da Architectural Digest.
237
- Para que conste dos autos, em que data o senhor esteve lá?
- Peguei um vôo noturno no dia 29 de outubro. Na manhã seguinte já estava na sede da revista. Era segunda-feira, 30 de outubro.
- E o que fez lá?
- Pedi que o gerente do laboratório fotográfico fizesse ampliações da foto que mostrava a estante.
Janis apresentou duas grandes ampliações fotográficas montadas em papelão como novas provas a serem incluídas nos autos. Depois de vê-las aceitas, apesar dos protestos
da defesa, ela as colocou em cavaletes diante do júri. Uma mostrava a estante toda, enquanto a outra era a ampliação de uma só prateleira. A imagem era granulada,
mas os títulos nas lombadas dos livros estavam bem nítidos.
- Detetive, o senhor comparou essas fotografias com as que foram tiradas durante a busca na casa do réu?
- Comparei.
Janis solicitou permissão para instalar um terceiro e um quarto cavaletes, e colocar neles as fotografias de toda a estante e da prateleira com o espaço vazio tiradas
durante a busca. O juiz aprovou a solicitação. Depois ela pediu que Bosch saísse do banco das testemunhas e usasse um ponteiro para explicar o que descobrira durante
o estudo comparativo. Aquilo era óbvio para qualquer pessoa que visse as fotos, mas Janis estava seguindo passo a passo, laboriosamente, para que nenhum jurado se
confundisse.
Bosch pôs o ponteiro sobre a fotografia que mostrava o espaço vazio entre os livros na prateleira. E depois colocou o ponteiro num livro que ocupava o mesmo local
na outra fotografia.
- Quando fizemos a busca na casa, no dia 17 de outubro, não havia livro algum entre The Fifth Horizon e Print the Legend. Já nessa foto, tirada dez meses antes,
há um livro entre os dois.
- E qual é o título do livro?
- Victims of the Night.
- Muito bem, mas o senhor examinou as fotografias que tinha batido da estante cheia durante a busca para ver se esse livro, Victims ofthe Night, tinha sido colocado
em outro lugar das prateleiras?
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Bosch apontou para a ampliação da foto da estante inteira batida no dia 17 de outubro.
- Examinamos. Não estava lá.
- O livro foi encontrado em algum outro lugar da casa?
- Não, não foi.
- Obrigado, detetive. Já pode voltar ao banco das testemunhas. Janis solicitou que um exemplar de Victims of the Night fosse
incorporado aos autos como prova. Depois entregou o livro a Bosch.
- Pode dizer ao júri o que é isto, detetive?
- E um exemplar de Victims of the Night.
- Era ele que estava na prateleira do réu quando a fotografia da Architectural Digest foi batida em janeiro do ano passado?
- Não, não era. Este é um exemplar do mesmo título, comprado por mim.
-Onde?
- Numa livraria chamada Mystery, em Westwood.
- Por que o senhor comprou o livro lá?
- Dei uns telefonemas. Foi o único lugar que encontrei que tinha o livro em estoque.
- Por que é um livro tão difícil de encontrar?
- O sujeito da Mystery disse que se tratava de uma tiragem pequena feita por uma editora pequena.
- O senhor leu o livro?
- Partes dele. A maior parte é composta por fotografias de cenas inusitadas de crimes e acidentes, esse tipo de coisa.
- Algo nesse livro chamou sua atenção como inusitado ou talvez relacionado com a morte de Jody Krementz?
- Sim, na página 73 há a fotografia de uma cena de morte que imediatamente me chamou a atenção.
- Descreva a cena, por favor.
Bosch abriu o livro na página indicada por um marcador. Enquanto falava, examinava a fotografia de página inteira do lado direito do livro.
- Mostra uma mulher numa cama. Ela está morta. Um lenço enrolado em torno de seu pescoço passa sobre uma das traves da
cabeceira da cama. A mulher está nua da cintura para baixo. Tem a mão esquerda entre as pernas e dois dedos enfiados na vagina.
- Pode ler a legenda embaixo da fotografia, por favor?
- A legenda diz: "Morte Auto-Erótica: Esta mulher foi encontrada na cama em Nova Orleans, vítima de asfixia auto-erótica. No mundo inteiro mais de quinhentas pessoas,
aproximadamente, morrem anualmente devido a esse infortúnio acidental."
Janis Langwiser pediu e recebeu permissão para colocar como provas duas outras fotografias ampliadas nos cavaletes. Colocou-as bem em cima de duas das fotografias
das estantes. Lado a lado, as fotografias reproduziam o corpo de Jody Krementz na cama e a tal página de Victims of the Night.
- Detetive, o senhor comparou a fotografia da vítima do caso, Jody Krementz, com a fotografia do livro?
- Comparei. Achei as duas muito semelhantes.
- Pareceu-lhe que o corpo de Jody Krementz poderia ter sido arrumado com base na fotografia do livro?
- Pareceu.
- Já teve oportunidade de perguntar ao réu o que aconteceu com o exemplar que ele tinha de Victims of the Night?
- Não. Desde o dia da busca na casa, David Storey e seus advogados recusaram todos os pedidos de entrevista que fizemos.
Janis balançou a cabeça e olhou para o juiz.
- Meritíssimo, posso tirar essas fotografias daqui e entregá-las ao oficial de justiça?
- Por favor, faça isso - respondeu o juiz.
Ao tirar dos cavaletes as fotografias das duas mulheres mortas, Janis fez questão de juntá-las como se fossem duas metades de um espelho se fechando. Era um pequeno
detalhe, mas Bosch viu os jurados prestando atenção.
- Muito bem, detetive Bosch - disse Janis quando os cavaletes foram removidos. - O senhor fez alguma pesquisa ou realizou mais investigações sobre mortes por asfixia
auto-erótica?
- Sim. Percebi que a classificação da morte como homicídio disfarçado desse tipo de acidente poderia ser contestada se um dia
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o caso fosse a julgamento. E a legenda do livro também me deixou curioso. Francamente, o número de quinhentas mortes por ano me surpreendeu. Mas conferi com o FBI
e verifiquei que a cifra era realmente precisa, se não subestimada.
- E isso levou o senhor a pesquisar mais?
- Levou, num nível mais local.
Com Janis fazendo as perguntas apropriadas, Bosch testemunhou que examinara os registros da Divisão Médíco-Legal em busca de mortes por asfixia auto-erótica. A pesquisa
cobrira os cinco anos anteriores.
- E o que descobriu?
- Nesses cinco anos houve dezesseis mortes no condado de Los Angeles classificadas como morte acidental e atribuídas especificamente à asfixia auto-erótica.
- E em quantos desses casos as vítimas eram mulheres?
- Somente um ocorreu com uma mulher.
- O senhor examinou esse caso?
Fowkkes levantou-se para protestar, e dessa vez pediu uma reunião com o juiz junto à bancada. Houghton acatou o pedido, e os advogados se aproximaram dele. Bosch
não conseguiu ouvir a conversa sussurrada, mas sabia que provavelmente Fowkkes estava tentando desviar a direção que o depoimento estava tomando. Janis Langwiser
e Kretzler já haviam previsto que ele solicitaria novamente que o nome de Alicia Lopez não fosse mencionado diante dos jurados. Provavelmente aquele seria o ponto
crucial do julgamento - para ambos os lados.
Depois de cinco minutos de discussão sussurrada, o juiz mandou os advogados de volta para os seus lugares, disse aos jurados que a questão colocada perante o tribunal
tomaria mais tempo do que o previsto e suspendeu a sessão por quinze minutos. Bosch voltou à mesa da promotoria.
- Alguma novidade? - perguntou ele a Janis.
- Não, o mesmo argumento de antes. Por alguma razão, Houghton quer ouvir a coisa novamente. Vamos precisar de sorte.
Os advogados e o juiz se retiraram para a sala de audiências a fim de discutir a questão levantada. Bosch ficou sozinho na mesa.
241
Usou o telefone celular para conferir os recados deixados em casa e no escritório. Havia apenas um recado no local de trabalho. Era de Terry McCaleb, agradecendo
a Bosch a dica da noite anterior. Dizia que ele obtivera boas informações no Nat's e que entraria em contato. Bosch apagou a mensagem e fechou o telefone, tentando
imaginar o que McCaleb descobrira.
Quando os advogados voltaram, entrando pela porta traseira do tribunal, Bosch leu a decisão do juiz no rosto deles. Fowkkes parecia abatido, com os olhos baixos.
Kretzler e Janis vinham sorrindo.
Depois que os jurados foram trazidos de volta e o julgamento recomeçou, Janis partiu diretamente para o ataque, pedindo que o escrivão relesse a última pergunta
antes do protesto.
- "O senhor examinou esse caso?" - leu o escrivão.
- Vamos cancelar essa pergunta - disse Janis. - Não vamos confundir a questão. Detetive, qual era o nome da falecida no único caso em que a vítima era mulher dos
dezesseis que o senhor encontrou nos registros da Divisão Médico-Legal?
- Alicia Lopez.
- Pode nos dizer alguma coisa sobre ela?
- Ela tinha vinte e quatro anos e morava em Culver City. Trabalhava como assistente-administrativa do vice-presidente de produção da Sony Pictures, também em Culver
City. Foi encontrada morta na cama no dia 20 de maio de 1998.
- Ela morava sozinha?
- Morava.
- Quais foram as circunstâncias da morte?
- Ela foi encontrada na própria cama por uma colega que tinha ficado preocupada com a ausência dela no trabalho. Alicia havia faltado dois dias em seguida ao fim
de semana, sem sequer telefonar. O médico-legista avaliou que ela tinha morrido três ou quatro dias antes. A decomposição do corpo já era grande.
- Doutora Janis? - disse Houghton, interrompendo o testemunho. - Nosso acordo foi que a ligação entre os casos seria rapidamente estabelecida.
- Já estou quase lá, meritíssimo. Obrigado. Detetive, alguma coisa nesse caso alertou o senhor ou chamou sua atenção?
242
- Várias coisas. Examinei as fotografias tiradas na cena do crime, e, embora a decomposição já fosse grande, consegui perceber que a vítima daquele caso estava numa
postura muito parecida com a da vítima do caso atual. Notei ainda que no caso Lopez a ligadura também tinha sido usada sem proteção, como no caso atual. Eu já sabia,
com base na nossa investigação do passado de David Storey, que na época da morte de Alicia Lopez ele estava fazendo um filme para uma empresa chamada Cold Hou-se
Films, parcialmente financiada pela Sony Pictures.
No momento que se seguiu a essa resposta, Bosch percebeu que o tribunal ficara inusitadamente imóvel e silencioso. Nas galerias, ninguém sussurrava ou pigarreava.
Era como se todos - jurados, advogados, espectadores e jornalistas - houvessem resolvido prender a respiração juntos. Bosch olhou para os jurados e viu que quase
todos estavam olhando para a mesa da defesa. Ele também olhou para lá e viu Storey, com o rosto ainda voltado para baixo, ardendo de ódio. Por fim, Janis Langwiser
quebrou o silêncio.
- Detetive, o senhor continuou investigando o caso Lopez?
- Continuei. Falei com o detetive do departamento de polícia de Culver City encarregado do caso. Também investiguei o trabalho que Alicia Lopez fazia na Sony.
- E o que soube a esse respeito que pudesse ter relação com o caso presente?
- Soube que na época de sua morte ela fazia a ligação entre o estúdio e a produção do filme que David Storey estava dirigindo.
- Lembra do nome desse filme?
- The Fifth Horizon.
- Onde estava sendo filmado?
- Em Los Angeles. A maior parte em Venice.
- E, como elo de ligação, Alicia Lopez tinha algum contato direto com David Storey?
- Tinha. Ela falava com ele por telefone ou pessoalmente todo dia que havia filmagem.
Fez-se novamente um silêncio que parecia ensurdecedor. Janis aproveitou o máximo que pôde e passou a dar as marteladas finais.
243
- Preciso ver se entendi tudo direito, detetive. Segundo o seu testemunho, nos últimos cinco anos só houve uma morte de mulher no condado de Los Angeles atribuída
a asfixia auto-erótica, e no caso atual a morte de Jody Krementz foi disfarçada para parecer asfixia auto-erótica?
- Protesto - interpôs Fowkkes. - Isso já foi perguntado e respondido.
- Protesto rejeitado - disse Houghton, sem esperar argumentação por parte de Janis. - A testemunha pode responder.
- Sim - disse Bosch. - Correto.
- E ambas as mulheres conheciam o réu, David Storey?
- Correto.
- E ambas as mortes mostram semelhanças com a fotografia de um caso de morte auto-erótica exibida num livro que sabidamente o réu possuía em casa?
- Correto.
Bosch olhou para Storey ao dizer aquilo, na esperança de que ele erguesse o olhar para poder encará-lo mais uma vez.
- O que o departamento de polícia de Culver City disse sobre o assunto, detetive Bosch?
- Baseados nas minhas investigações, eles reabriram o caso, Mas estão com dificuldades.
- Porquê?
- O caso é antigo. Por ter sido originalmente classificado como morte acidental, nem todos os registros ficaram arquivados. Como a decomposição já era grande na
época em que o corpo foi descoberto, é difícil fazer observações e tirar conclusões definitivas. E o corpo não pode ser exumado, porque foi cremado.
- Foi? Por quem?
Fowkkes levantou-se e protestou, mas o juiz disse que seus argumentos já haviam sido ouvidos e rejeitados. Janis repetiu a pergunta antes mesmo de Fowkkes se sentar
novamente.
- Por quem, detetive Bosch?
- Pela família dela. Mas tudo - a cremação, o serviço funerário
- foi pago por David Storey como uma homenagem à memória de Alicia Lopez.
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Janis Langwiser virou ruidosamente uma página do bloco de anotações. Estava num grande momento, e todos ali sabiam disso. Conseguira fazer o que os tiras e promotores
chamavam de entrar no tubo, em referência ao surfe. Significava que eles tinham levado o caso para dentro do famoso túnel de água onde tudo corria suavemente, com
perfeição, num equilíbrio glorioso.
- Detetive, depois dessa parte da investigação, o senhor foi procurado por uma mulher chamada Annabelle Crowe?
- Fui. O Los Angeles Times publicou uma reportagem sobre a investigação, dizendo que David Storey era o foco central. Ela leu o artigo e se apresentou.
- E quem é ela?
- E uma atriz. Mora em West Hollywood.
- E que relação ela tinha com este caso?
- Ela contou que tinha saído com David Storey uma vez no ano passado e que ele a sufocara enquanto os dois faziam sexo.
Fowkkes fez mais um protesto, dessa vez sem a força dos outros. Mas foi novamente ignorado, pois o depoimento já fora liberado pelo juiz em moções anteriores.
- Onde Annabelle Crowe disse que esse incidente ocorreu?
- Na casa de David Storey em Mulholland Drive. Pedi a ela que descrevesse o lugar, coisa que fez com precisão. Realmente tinha estado lá.
- Ela não poderia ter visto o número da Architectural Digest que mostrava fotografias da casa do réu?
- Ela descreveu com detalhes precisos partes da suíte principal e do banheiro que não foram mostradas na revista.
- O que aconteceu com ela quando foi sufocada pelo réu?
- Ela contou que desmaiou. Quando acordou, David Storey não estava no aposento. Tomava um banho de chuveiro. Ela pegou as roupas dela e fugiu da casa.
Janis sublinhou aquilo com um longo silêncio. Depois fechou as páginas do bloco, deu uma olhada na direção da mesa da defesa e ergueu o olhar para o juiz Houghton.
- Meritíssimo, nada mais tenho a perguntar ao detetive Bosch no momento.
Capítulo 26
McCaleb chegou ao El Cochinito às quinze para o meio-dia. Não entrava no pequeno restaurante de Silver Lake havia cinco anos, mas lembrava que o lugar não tinha
mais que uma dúzia de mesas, em geral rapidamente ocupadas na hora do almoço, quase sempre por tiras. Não porque o nome do restaurante - "O Porquinho" - constituísse
uma atração, mas porque a comida era de alta qualidade e barata. A experiência ensinou a McCaleb que os policiais tinham o dom de descobrir tais estabelecimentos
entre os muitos restaurantes de qualquer cidade. Quando viajava em missões do FBI, ele sempre pedia ao pessoal que patrulhava as ruas recomendações sobre lugares
para comer. Raramente ficava desapontado.
Enquanto esperava por Jaye, examinou cuidadosamente o cardápio e planejou a refeição. No ano anterior seu paladar finalmente voltara, e com força total. McCaleb
passara os dezoito primeiros meses depois da cirurgia sem sentir o gosto de nada. Pouco importava o que ele comia, pois tudo tinha o mesmo gosto insípido. Até uma
pesada dose de molho habanera, fosse num sanduíche ou num prato de massa, só lhe provocava uma picada mínima na língua. Vagarosamente, porém, seu paladar começou
a voltar, e aquilo foi um segundo renascimento para McCaleb, depois do transplante propriamente dito. Ele passou a adorar tudo que Graciela fazia. Adorava até o
que ele fazia - e isso apesar de sua total incompetência para fazer qualquer coisa que não fosse churrasco. Comia tudo
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com um prazer que nunca havia sentido, mesmo antes do transplante. Um sanduíche de geléia e manteiga de amendoim de madrugada era algo que, em particular, ele saboreava
tanto quanto uma ida à cidade com Graciela para um jantar chique no Jozu, de Melrose. Conseqüentemente, começou a engordar, recuperando os doze quilos que perdera
enquanto seu próprio coração murchava e ele aguardava o novo. Voltou aos oitenta e dois quilos que tinha antes de adoecer, e pela primeira vez em quatro anos precisava
tomar cuidado com o que comia. Quando fez o último cardiograma, a médica percebeu a situação e deu o alerta, dizendo que ele precisava diminuir a ingestão de calorias
e gorduras.
Mas não naquele almoço. Ele aguardava havia muito tempo a chance de comer ali. Anos antes passara bastante tempo na Flórida atrás de um assassino serial, e a única
coisa boa que resultara daquilo tinha sido seu amor pela comida cubana. Depois de sua transferência para a filial do FBI em Los Angeles, foi difícil achar um restaurante
cubano que se comparasse aos lugares que ele freqüentava em Ybor City, perto de Tampa. Mas no decorrer de uma investigação ele acabou conhecendo um patrulheiro que
era descendente de cubanos. McCaleb perguntou onde ele ia quando queria uma comida realmente caseira. A resposta do policial foi El Cochinito. E McCaleb logo se
tornou freguês habitual.
Concluiu que examinar o cardápio era perda de tempo, pois ele já chegou sabendo o que queria. Leitão assado com feijão preto, arroz, banana frita e yucca, sem contar
nada à médica. Ele só queria que Jaye chegasse logo, para poder fazer o pedido.
Pôs o cardápio de lado e pensou em Harry Bosch. McCaleb passara quase toda a manhã no barco, assistindo ao julgamento pela televisão. Considerou extraordinário o
desempenho de Bosch no banco das testemunhas. A revelação de que Storey estivera ligado a outra morte fora chocante para McCaleb, e aparentemente para toda a mídia
também. Durante os intervalos, os comentaristas nos" estúdios pareciam vibrar com a perspectiva de mais carniça. A certa altura a transmissão passou para o corredor
fora do tribunal, onde o advogado de defesa foi bombardeado com perguntas sobre os novos desdobramentos. Fowkkes, provavelmente pela primeira vez na vida, não fez
comentário algum. Aos comentaristas restou especular sobre as novas informações e analisar a metódica - e ainda assim arrebatadora - estratégia da promotoria.
Contudo assistir ao julgamento trouxera apenas inquietação a McCaleb. Era difícil aceitar a idéia de que Bosch - que ele vira descrevendo com tanta habilidade os
aspectos e etapas de uma investigação complicada - era o homem que ele estava investigando, um homem que sua intuição dizia que cometera o mesmo tipo de crime de
que o réu era acusado ali.
Ao meio-dia, hora do encontro que tinham marcado, McCaleb ergueu o olhar distraidamente e viu Jaye Winston passar pela porta da frente do restaurante. Dois homens
a seguiam. Um era negro e o outro branco. Essa era a melhor forma de diferenciá-los, pois ambos usavam terno cinza e gravata marrom. McCaleb percebeu que eram agentes
do FBI antes que chegassem à mesa.
Jaye tinha uma expressão de resignação desanimada no rosto.
- Terry, quero apresentar este pessoal a você - disse ela antes de se sentar. Indicou o agente negro primeiro. - Este é Don Twilley, e este é Marcus Friedman. Eles
trabalham no FBI.
Os três puxaram cadeiras e se sentaram, Friedman junto de McCaleb, e Twilley do outro lado da mesa. Ninguém cumprimentou ninguém.
- Nunca provei comida cubana - disse Twilley, pegando um cardápio no porta-guardanapos. - A daqui é boa?
McCaleb lançou o olhar para ele.
- Não. É por isso que eu gosto de comer aqui.
Os olhos de Twilley ergueram-se do cardápio, e ele sorriu.
- Eu sei, pergunta idiota - disse, olhando novamente o cardápio e depois para McCaleb. - Sabia que eu já ouvi falar de você, Terry? Você é uma porra de uma lenda
lá na filial. Não por causa do coração, mas por causa dos casos que investigou. Estou contente por finalmente conhecer você.
McCaleb olhou para Jaye com uma expressão que perguntava que diabo estava acontecendo ali.
- Terry, Marc e Don são da Seção de Direitos Civis.
- Ah, é? Ótimo. Vieram lá da filial para conhecer a lenda e experimentar comida cubana, ou há algo mais?
- Hum... - começou Twilley.
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- Terry, jogaram merda no ventilador - disse Jaye. - Um repórter telefonou para o meu chefe hoje de manhã e perguntou se nós estávamos investigando Harry Bosch como
suspeito no caso Gunn.
McCaleb recostou-se na cadeira, chocado com a novidade. Estava prestes a responder quando um garçom veio até a mesa.
- Espere alguns instantes - disse Twilley rudemente para o homem, mandando-o embora com um gesto autoritário que incomodou McCaleb.
- Terry - continuou Jeye -, antes de continuarmos essa conversa, preciso saber uma coisa. Foi você que vazou isso?
McCaleb balançou a cabeça em sinal de desagrado.
- Está querendo me gozar, perguntando isso pra mim?
- Escute, só sei que não fui eu. Não contei pra ninguém. Nem para o capitão Hitchens, nem para o meu próprio parceiro, que dirá um repórter.
- Bom, não fui eu. Obrigado por perguntar.
McCaleb olhou para Twilley e depois de volta para Jaye. Estava detestando ter aquela altercação com Jaye na frente dos sujeitos.
- O que esses caras estão fazendo aqui? - perguntou. Depois, olhando novamente para Twilley, acrescentou: - O que vocês querem?
- Eles estão assumindo o caso, Terry - respondeu Jaye. - E você está fora.
McCaleb olhou novamente para Jaye, com a boca entreaberta.
- Do que está falando? Eu estou fora? Eu sou o único que está dentro. Venho trabalhando nisso como...
- Eu sei, Terry. Mas as coisas mudaram. Depois que o repórter telefonou para Hitchens, tive que contar o que estava acontecendo e o que vínhamos fazendo. Ele teve
um ataque, e depois decidiu que a melhor forma de lidar com isso era colocar o FBI no caso.
- A Seção de Direitos Civis, Terry - disse Twilley. - Investigar policiais é o nosso feijão-com-arroz. Nós podemos...
- Vá se foder, Twilley. Não me venha com a conversa mole do FBI. Já fui do clube, lembra? Sei como a coisa funciona. Vocês chegam, pegam minhas pistas e depois desfilam
com Bosch diante das câmeras a caminho do xadrez.
249
- E isso que interessa a você? - disse Friedman. - Receber os louros?
- Não precisa se preocupar com isso, Terry - disse Twilley. - A gente põe você diante das câmeras, se o problema é esse.
- O problema não é esse. E não me chame de Terry. Você nem me conhece, caralho.
Ele baixou o olhar para a mesa, balançando a cabeça.
- Puta que pariu, esperei tanto tempo para voltar a esse restaurante, e agora nem estou mais com vontade de comer.
- Terry... - disse Jaye, sem oferecer mais nada.
- O quê? Vai me dizer que isso é direito?
- Não. Não é direito nem errado. É o que é. A investigação passou a ser oficial. Você não faz parte do quadro oficial. Sabia que isso poderia acontecer desde o
início.
Ele balançou a cabeça com relutância. Pôs os cotovelos em cima da mesa e o rosto entre as mãos.
- Que repórter foi esse?
Quando Jaye não respondeu, ele baixou as mãos e olhou penetrantemente para ela.
- Quem foi?
- Um cara chamado Jack McEvoy. Trabalha no New Times, um semanário alternativo que gosta de jogar merda no ventilador.
- Eu sei que jornal é.
- Você conhece McEvoy? - perguntou Twilley.
O celular de McCaleb começou a tocar. Estava no bolso do paletó dobrado sobre a cadeira. Ele ficou com a mão presa no bolso quando tentou tirar o aparelho. Ansiosamente,
lutou para desvencilhar a mão, pois supunha que fosse Graciela. Além de Jaye e Buddy Lockridge, ele só dera aquele número para Brass Doran em Quantico, e não tinha
mais nada a tratar com ela.
Conseguiu atender depois do quinto toque.
- Oi, McCaleb. Aqui é Jack McEvoy do New Times. Tem uns minutos pra conversar?
McCaleb lançou o olhar sobre a mesa para Twilley, imaginando se o agente podia ouvir a voz do outro lado da linha.
- Na realidade, não. Estou enrolado aqui. Como conseguiu este número?
250
- Liguei para Informações em Catalina. Depois liguei para o número que eles me deram, e sua esposa atendeu. Ela me deu o número do celular. Algum problema?
- Não, nenhum problema. Mas não posso conversar agora.
- Quando pode? E importante. Descobri uma coisa que quero muito contar pra você...
- É só ligar mais tarde. Daqui a uma hora.
McCaleb fechou o telefone e colocou-o sobre a mesa. Ficou olhando para o aparelho, na expectativa de que McEvoy telefonasse de novo imediatamente. Todo repórter
era assim.
- Terry, está tudo bem?
Ele ergueu o olhar para Jaye.
- Tudo bem. Era sobre o passeio de amanhã. O cara queria saber como estava o tempo
Olhou para Twilley.
- Qual foi a pergunta que você fez?
Você conhece Jack McEvoy? O repórter que telefonou para o capitão Hitchens?
- Eu conheço Jack. Você sabe disso.
- Tem razão, o caso do Poeta. Você participou daquilo.
- Uma pequena participação.
- Quando foi a última vez que falou com McEvoy?
- Bom, acho que foi... há uns dois dias.
Jaye ficou visivelmente tensa. McCaleb olhou para ela.
- Relaxe, está bem, Jaye? Eu esbarrei com McEvoy no julgamento de Storey. Fui até lá pra falar com Bosch. McEvoy está cobrindo o caso para o New Times e me cumprimentou.
Eu não falava com ele havia cinco anos. E não contei o que estava fazendo, nem no que estava trabalhando. Na realidade, naquele momento Bosch ainda nem era suspeito.
- Bom, ele viu você com Bosch?
- Viu. Todo mundo viu. Havia tanta gente da mídia lá quanto no julgamento de O. J. Simpson. Ele citou especificamente o meu nome para o seu chefe?
- Se citou, Hitchens não me contou.
- Muito bem, então. Se não foi de você nem de mim, de onde veio esse vazamento?
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- É o que lhe estamos perguntando - disse Twilley. - Antes de entrarmos no caso queremos saber a configuração das coisas, e quem está falando com quem.
McCaleb não respondeu. Estava ficando claustrofóbico. Entre a conversa com McEvoy, o interrogatório de Twilley e as pessoas de pé no restaurante apertado à espera
de mesas, ele estava começando a se sentir sem ar.
- E esse bar onde você foi ontem à noite? -perguntou Friedman. McCaleb recostou-se e olhou para ele.
- O que tem o bar?
- Jaye nos disse o que você contou pra ela. Você perguntou especificamente por Bosch e Gunn lá, certo?
- Certo. E daí? Você acha que a atendente foi direto para o telefone, ligou para o New Times e perguntou por Jack McEvoy? Só porque eu mostrei a ela uma fotografia
de Bosch? Dá um tempo, caralho.
- Ei, essa cidade vive pensando na mídia. As pessoas estão sempre ligadas. Vendem reportagens, informações e dados o tempo todo.
McCaleb abanou a cabeça, recusando-se a acreditar que aquela atendente de colete fosse inteligente o suficiente para sacar a jogada dele e telefonar para um repórter.
Subitamente, percebeu quem tinha inteligência e informação para fazer aquilo. Buddy Lockridge. Mas se realmente houvesse sido Buddy, era como se houvesse sido ele
próprio que deixara vazar a história. McCaleb sentiu o suor começar a esquentar-lhe o couro cabeludo, pensando em Buddy escondido no convés inferior enquanto ele
apresentava a Jaye os argumentos de acusação contra Bosch.
- Você bebeu alguma coisa enquanto esteve no bar? Ouvi dizer que você toma um montão de pílulas todo dia. Misturando isso com álcool... Sabe como é, o peixe morre
pela boca.
A pergunta fora feita por Twilley, mas McCaleb olhou bruscamente para Jaye. Sentia-se traído e magoado, por toda aquela cena e pela rapidez com que as coisa haviam
mudado. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa viu o pedido de desculpas nos olhos dela e percebeu que Jaye também queria as coisas pudessem ser diferentes.
Finalmente, olhou para Twilley.
252
- Você acha que eu talvez tenha misturado bebida demais com pílulas, Twilley? E isso? Acha que eu comecei a dar com a língua nos dentes lá no bar?
- Não acho isso. Só estou perguntando, certo? Não é preciso ficar na defensiva por causa disso. Só estou tentando descobrir como esse repórter ficou sabendo o que
ele acha que está sabendo.
- Bom, descubra sem mim.
McCaleb empurrou a cadeira para trás para se levantar.
- Experimentem o leitão assado - disse. - E o melhor da cidade. Quando ele começou a se levantar, Twilley estendeu a mão
sobre a mesa e agarrou-lhe o antebraço.
- Vamos, Terry, vamos conversar sobre isso - disse Twilley.
- Terry, por favor - disse Jaye.
McCaleb soltou o braço da mão de Twilley e levantou-se, olhando para Jaye.
- Boa sorte com esses caras, Jaye. Provavelmente vai precisar. Depois olhou para Friedman e Twilley.
- E vão se foder, vocês dois.
Foi abrindo caminho pela multidão que esperava e saiu porta afora. Ninguém foi atrás dele.
McCaleb ficou sentado no Cherokee estacionado no Sunset Boulevard, olhando para o restaurante enquanto deixava a raiva esvair-se lentamente do corpo. Num certo nível,
sabia que as medidas tomadas por Jaye e seu chefe estavam certas. Mas em outro nível, não gostara de ter sido afastado de seu próprio caso. Um caso era como um carro.
Você podia estar dirigindo, ou podia estar sendo conduzido no assento dianteiro ou traseiro. E também podia ser deixado no acostamento enquanto o carro seguia. Ele
acabara de ser retirado do volante e estava no acostamento pedindo carona. Aquilo doía.
Começou a pensar em Buddy Lockridge e em como lidar com ele. Se descobrisse que Buddy falara com McEvoy depois de ouvir escondido aquela conversa com Jaye, teria
evidentemente que cortar todos os laços com ele. Sócios ou não, ele não conseguiria mais trabalhar com Buddy.
Lembrou que Buddy tinha o número do seu telefone celular e
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percebeu que poderia ter sido ele que o dera a McEvoy. Pegou o aparelho e ligou para casa. Graciela atendeu, pois sexta-feira era um de seus dias de meio expediente
na escola.
- Graciela, você deu o número do meu celular para alguém ultimamente?
- Sim, a um repórter que disse que conhecia você e que precisava entrar em contato com urgência. Jack qualquer coisa. Por quê? Alguma coisa errada?
- Não, nada de errado. Só queria conferir.
- Tem certeza?
McCaleb ouviu o sinal de chamada em espera. Olhou para o relógio. Eram dez para uma. McEvoy só deveria telefonar depois da uma.
- Tenho - disse ele a Graciela. - Escute, preciso dar outro telefonema. Só vou chegar em casa ao anoitecer. Tchau.
Passou para a outra ligação. Era McEvoy, explicando que estava no tribunal e precisava voltar ao julgamento à uma em ponto ou perderia seu precioso lugar. Não podia
esperar mais para telefonar.
- Pode conversar agora? - perguntou ele. - O que você quer?
- Preciso falar com você.
- Você fica repetindo isso. Sobre o quê?
- Harry Bosch. Estou fazendo uma matéria sobre...
- Não sei nada sobre o caso Storey. Só o que passa na tevê.
- Não é isso. É sobre o caso Edward Gunn.
McCaleb não respondeu. Sabia que aquilo não era uma coisa boa. Conversar com um repórter sobre aquele tipo de coisa só podia dar confusão.
Depois de um silêncio, McEvoy disse:
- Era por isso que você queria falar com Harry Bosch outro dia, quando encontrei você aqui? Está trabalhando no caso Gunn?
- Escute aqui. Eu posso dizer honestamente que não estou trabalhando no caso Edward Gunn. Tá legal?
Bom, pensou McCaleb. Até ali ele não mentira.
- Você estava trabalhando no caso? Para o gabinete do xerife?
- Posso perguntar uma coisa? Quem disse isso a você? Quem disse que eu estava trabalhando nesse caso?
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- Não posso contar. Tenho que proteger minhas fontes. Se você quiser me dar informações, eu também protegerei a sua identidade. Mas se eu revelar uma fonte, estou
fodido no ramo.
- Bom, vou dizer uma coisa, Jack. Só falo com você se você falar comigo, entende o que quero dizer? E uma rua de mão dupla. Você me diz quem está espalhando essa
merda sobre mim, e eu converso com você. Caso contrário, não temos nada a dizer um para o outro.
Ele ficou esperando. McEvoy não disse nada.
- Era o que eu achava. Até mais ver, Jack.
Fechou o telefone. Mencionando ou não o nome dele para o capitão Hitchens, era evidente que McEvoy conseguira aquela informação com uma fonte confiável. E mais uma
vez McCaleb viu o foco se estreitar sobre uma pessoa, além dele próprio e Jaye Winston.
- Caceta! - disse ele em voz alta no carro.
Poucos minutos depois de uma hora viu Jaye sair do El Cochinito. McCaleb estava na esperança de conseguir cercá-la e conversar com ela a sós, talvez até falar de
Buddy. Mas Twilley e Friedman estavam com ela. Os três entraram no mesmo carro. Um carro do FBI.
McCaleb viu-os entrar no fluxo do trânsito e seguir para o centro da cidade. Ele saiu do Cherokee e voltou ao restaurante. Estava faminto. Não havia mesas vagas,
de modo que ele pediu comida para viagem. Comeria no Cherokee.
A velha que anotou o pedido ergueu um par de tristes olhos castanhos para ele. Disse que a semana fora muito movimentada e que o leitão assado acabara naquele momento.
Capítulo 27
Third Street Promenade
John Reason surpreendeu o público, os jurados e provavelmente a maior parte da mídia ao dizer que só reinquiriria Bosch quando o julgamento passasse à fase da defesa,
mas a jogada já fora prevista pela promotoria. A estratégia da defesa era fuzilar o mensageiro, e o mensageiro era Bosch. O melhor momento de disparar o tiro seria
durante a apresentação dos argumentos da defesa. Assim, o ataque de Fowkkes a Bosch poderia ser parte de um ataque orquestrado a todas as acusações contra David
Storey.
Depois do intervalo para o almoço, durante o qual Bosch e os promotores foram incessantemente assediados pela mídia com perguntas sobre o depoimento do detetive,
a promotoria aproveitou o impulso ganho na sessão matutina. Kretzler e Janis começaram a se revezar, interrogando rapidamente uma série de testemunhas.
A primeira foi Teresa Corazón, chefe da Divisão Médico-Legal. Respondendo a perguntas de Kretzler, ela descreveu o que fora descoberto durante a autópsia, declarando
que Jody Krementz morrera entre meia-noite e duas da madrugada de sexta-feira, 13 de outubro. E confirmou a baixa ocorrência de casos de mulheres mortas por asfixia
auto-erótica.
Mais uma vez Fowkkes reservou-se o direito de interrogar a testemunha durante a fase da defesa. Corazón foi liberada depois de ficar menos de meia hora no banco
das testemunhas.
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Bosch não precisava mais permanecer no tribunal o tempo todo, pois seu depoimento já terminara, pelo menos na fase da acusação. Enquanto Janis convocava a próxima
testemunha - um técnico de laboratório que identificaria os pêlos colhidos no corpo da vítima como pertencentes a Storey -, ele levou Corazón até o carro. Os dois
haviam sido amantes muitos anos antes, mantendo o que poderia ser chamado de um relacionamento casual pelos atuais padrões culturais. Para Bosch, porém, embora não
houvesse amor envolvido, aquilo nada tivera de casual. Na sua opinião, tratara-se do encontro de duas pessoas que viam a morte de perto todo dia e que a afastavam
com o ato máximo de afirmação da vida.
Corazón terminara o romance ao ser nomeada para a chefia da Divisão Médico-Legal. Desde então o relacionamento entre os dois fora estritamente profissional, embora
o novo cargo de Corazón reduzisse seu tempo nas câmaras de autópsia e Bosch já não a visse com freqüência. Mas o caso Jody Krementz era diferente. Corazón percebeu
instintivamente que aquilo poderia atrair a atenção das hordas da mídia e ela mesma se encarregou da autópsia. Valera a pena. Seu depoimento seria visto por todo
o país e provavelmente em todo o mundo. Ela era atraente, inteligente, habilidosa e metódica. Aquela meia hora que passara sentada no banco das testemunhas viraria
um comercial de meia hora, atraindo lucrativas comissões como legista independente ou comentarista. Bosch aprendera uma coisa sobre ela na época do relacionamento
entre os dois: Teresa Corazón entra diretamente no caso.
Ela estacionara na garagem ao lado do escritório de liberdade condicional, nos fundos do complexo judiciário. Os dois foram conversando sobre banalidades - o tempo,
as tentativas que Harry fazia de parar de fumar - até Corazón entrar diretamente no caso.
- A coisa parece estar indo bem.
- Até agora.
- Seria bom ganharmos um desses casos importantes, para variar.
- Seria.
- Vi você depor hoje de manhã. Liguei a tevê no escritório. Se saiu muito bem, Harry. >
257
Ele conhecia aquele tom. Estava preparando o terreno para alguma coisa. -Mas?
- Mas parece cansado. E você sabe que eles vão vir com tudo. Nesse tipo de caso, se eles conseguem destruir o policial, destroem
o caso.
- O. J. Simpson, Lei um-zero-um. Sem provas cabais e falta de credibilidade da investigação.
- Pois é. Está pronto para o que der e vier?
- Acho que sim.
- Que bom. Mas é melhor descansar.
- Isso é mais fácil de dizer do que de fazer.
Quando se aproximaram da garagem, Bosch olhou para o escritório de liberdade condicional e viu a equipe reunida do lado de fora para uma espécie de apresentação.
O grupo estava parado sob uma faixa que pendia do telhado e dizia SEJA BEM-VINDA DE VOLTA, THELMA. Um homem de terno estava entregando uma placa a uma robusta mulher
negra apoiada numa bengala.
- Ah... é aquela agente da condicional - disse Corazón. - A que foi baleada no ano passado. Por aquele pistoleiro de
Las Vegas, lembra?
- Certo - disse Bosch, lembrando-se da história. - Ela voltou.
Ele viu que não havia câmeras de televisão registrando a entrega da placa. Uma mulher era baleada no cumprimento do dever e depois lutava para voltar ao trabalho.
Aparentemente não valia a pena gastar fita de vídeo com aquilo.
- Seja bem-vinda de volta - disse ele.
O carro de Corazón estava no segundo pavimento. Era um reluzente Mercedes esporte escuro.
- Pelo visto os bicos estão rendendo - disse Bosch. Ela balançou a cabeça.
- No meu último contrato consegui uma licença profissional de quatro semanas. Estou aproveitando ao máximo. Julgamentos, programas de tevê, esse tipo de coisa. Também
participei daquele documentário sobre autópsias da HBO. Vai ao ar no mês que vem.
- Teresa, a qualquer momento você vai ser mundialmente famosa.
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Ela sorriu, aproximou-se dele e endireitou-lhe a gravata.
- Eu sei o que você acha disso, Harry. Tudo bem.
- Não interessa o que eu acho. Está feliz? Ela balançou a cabeça.
- Muito.
- Então fico feliz por você. É melhor eu entrar de novo. Tchau, Teresa.
Subitamente, ela se ergueu na ponta dos pés e beijou-o no rosto. Fazia muito tempo que Harry não era beijado assim
- Espero que se saia bem, Harry.
- E, eu também.
Bosch saltou do elevador e foi andando pelo corredor na direção do tribunal do Departamento N. Viu uma fila de pessoas perto da porta. Era gente esperando que vagasse
um lugar. Alguns repórteres estavam parados junto à porta aberta da sala da imprensa, mas todos os demais estavam a postos, observando o julgamento.
- Detetive Bosch?
Bosch se virou, viu Jack McEvoy, o repórter que conhecera na véspera, numa espécie de alcova onde havia um telefone público, e parou.
- Vi você sair e fiquei esperando.
- Preciso voltar lá para dentro.
- Eu sei. Só queria dizer que eu preciso muito conversar com você. Quanto mais cedo melhor.
- Do que está falando? O que é tão importante?
- Bom, é sobre você.
McEvoy saiu da alcova do telefone, aproximando-se de Bosch para não precisar falar tão alto.
- Sobre mim? O quê?
- Sabia que está sendo investigado pelo gabinete do xerife?
Bosch lançou o olhar pelo corredor na direção da porta do tribunal e depois olhou novamente para McEvoy. O repórter estava erguendo lentamente um bloco e uma caneta,
pronto para anotar.
- Espere um minuto - disse Bosch, segurando o bloco. - Do que está falando? Que investigação?
- Lembra de Edward Gunn? Ele está morto, e você é o suspeito deles.
Bosch ficou olhando para ele com a boca entreaberta.
- Achei que talvez quisesse fazer algum comentário sobre isso. Pra se defender. Vou escrever uma reportagem para a edição da semana que vem e queria lhe dar a chance
de dizer...
- Sem comentários. Eu preciso voltar.
Bosch virou-se e deu alguns passos na direção do tribunal, mas depois parou. Voltou até McEvoy, que escrevia no bloco.
- O que está escrevendo? Eu não disse nada.
- Eu sei. É isso que estou anotando. McEvoy ergueu o olhar do bloco para ele.
- Você disse semana que vem - disse Bosch. - Quando o jornal sai?
- O New Times é publicado toda manhã de quinta-feira.
- Então posso esperar até quando, se decidir falar com você?
- Mais ou menos até a hora do almoço de quarta-feira. Mas aí vai ficar muito apertado. Só vou conseguir incluir algumas frases suas. A hora de falar é agora.
- Quem lhe contou isso? Quem é a sua fonte? McEvoy abanou a cabeça.
- Não posso falar sobre minhas fontes. Quero falar com você sobre as alegações. Matou Edward Gunn? E uma espécie de anjo vingador? É isso que eles pensam.
Bosch examinou o repórter por um longo tempo antes de finalmente falar.
- Não cite a minha expressão, mas vá se foder, está entendendo? Não sei se essa merda é um blefe ou não, mas vou lhe dar um conselho. E bom você ter absoluta certeza
do que vai dizer, antes de colocar qualquer coisa nesse seu jornal. Um bom investigador sempre sabe a motivação das suas fontes. É o que se chama ter um besteirômetro.
E bom o seu estar funcionando muito bem.
Virou-se e foi andando rapidamente para a porta do tribunal.
Janis acabara de terminar o interrogatório do especialista em pêlos quando Bosch entrou de volta na sala. Mais uma vez Fowkkes
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levantou-se e reservou-se o direito de reinquirir a testemunha na fase da defesa.
O especialista atravessou o portão atrás da tribuna dos advogados. Bosch passou por ele e foi ocupar seu lugar na mesa da promotoria. Não disse nada, nem olhou para
Janis ou Kretzler. Cruzou os braços e ficou olhando para o bloco de anotações que deixara na mesa. Percebeu que tomara a mesma posição e postura que vira David Storey
adotar na mesa da defesa. A postura de um homem culpado. Rapidamente, deixou cair os braços no colo e ergueu o olhar para o brasão do estado da Califórnia, que pendia
da parede acima da bancada do juiz.
Janis levantou-se e chamou a testemunha seguinte, um perito em impressões digitais. O depoimento do sujeito foi rápido, sendo mais uma corroboração do testemunho
de Bosch e não teve contestação por parte de Fowkkes. O perito foi seguido no banco pelo patrulheiro que tinha atendido à chamada da colega de Jody Krementz, e depois
pelo sargento que tinha sido a pessoa seguinte a chegar à casa.
Bosch mal ouviu os depoimentos. Não continham nada de novo, e sua cabeça estava voando em outra direção. Ele pensava em McEvoy e na matéria que o repórter estava
escrevendo. Sabia que deveria informar Janis e Kretzler, mas queria ter mais tempo para pensar. Decidiu adiar a coisa até o final da semana.
A primeira testemunha que não pertencia aos órgãos de segurança da cidade foi chamada. Era a colega da vítima, Jane Gilley. Ela deu um depoimento choroso e sincero,
confirmando os detalhes da investigação que já haviam sido revelados por Bosch, mas acrescentou algumas pequenas informações pessoais. Contou que Jody Krementz estava
empolgada por sair com uma importante figura de Hollywood, e que ambas haviam passado a véspera do encontro indo a manicures, pedicures e cabeleireiros.
- Ela pagou minha despesa - disse Jane. - Foi tão boazinha.
Seu depoimento colocou um rosto humano no que até então fora uma análise quase antisséptica por parte dos agentes da lei especializados em homicídios.
Quando Janis terminou de interrogar Jane, Fowkkes finalmente
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quebrou o padrão que vinha seguindo e anunciou que tinha algumas perguntas para a testemunha. Foi até a tribuna sem levar anotações. Cruzou as mãos atrás das
costas e inclinou-se ligeiramente na direção do microfone.
- A sua colega era uma jovem atraente, não era?
- Sim, ela era linda.
- E era popular? Em outras palavras, ela saía com muitos rapazes? Jane balançou a cabeça com relutância.
- Saía.
- Muito, pouco, com que freqüência?
- É difícil dizer. Eu não era a secretária social dela e também tenho namorado.
- Entendi. Vamos então pegar, digamos, as dez semanas anteriores à morte dela. Em quantas dessas dez semanas você diria que Jody não saiu com ninguém?
Janis levantou-se e protestou.
- Meritíssimo, isso é ridículo. Não tem ligação alguma com a noite de 12 de outubro ou a manhã do dia 13.
- Ah, meritíssimo, eu acho que tem - retrucou Fowkkes. - E acho que a doutora Janis sabe que tem. Se Vossa Excelência me der um pouco de liberdade, logo mostrarei
por quê.
Houghton rejeitou o protesto e mandou Fowkkes repetir a pergunta.
- Em quantas das dez semanas anteriores à sua morte Jody
Krementz não saiu com ninguém?
- Não sei. Talvez uma. Talvez nenhuma.
- Talvez nenhuma - repetiu Fowkkes. - E em quantas dessas semanas você diria que sua colega saiu pelo menos duas vezes?
Janis protestou outra vez, mas o juiz a ignorou novamente.
- Não sei a resposta - disse Jane. - Muitas. - Muitas - repetiu Fowkkes.
Janis levantou-se e pediu ao juiz que proibisse Fowkkes de repetir a resposta da testemunha, a menos que fosse sob a forma de pergunta. O juiz concordou. Fowkkes
prosseguiu como se não houvesse sido corrigido.
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- Todos esses encontros foram com o mesmo homem?
- Não. Quase sempre eram homens diferentes, com algumas repetições.
- Então ela gostava de namorar, certo?
- Acho que sim.
- Isso é um sim ou um não?
- E um sim.
- Obrigado. Nas dez semanas anteriores à morte dela, semanas em que você disse que ela freqüentemente saiu pelo menos duas vezes, quantos homens diferentes você
viu?
Jane Gilley abanou a cabeça, exasperada.
- Não tenho idéia. Não contei. E o que isso tem a ver com...
- Obrigado. Eu gostaria que se limitasse a responder às perguntas que eu fizer.
Ele ficou esperando, mas Jane não disse nada. - Jody alguma vez teve problemas quando parava de sair com um homem? Quando passava para o seguinte?
- Não sei o que isso quer dizer.
- Quero saber se todos os homens ficavam satisfeitos quando não conseguiam sair com ela novamente?
- Às vezes ficavam com raiva quando ela não queria sair com eles novamente. Mas nada de sério.
- Nenhuma ameaça de violência? Ela tinha medo de alguém?
- Não que eu soubesse.
- Ela falava sobre todos os homens com quem saía? -Não.
- Quando voltava desses encontros, trazia os homens para a casa que vocês dividiam?
- Às vezes.
- Eles passavam a noite lá?
- Às vezes, não sei.
- Muitas vezes você não estava lá, certo?
- É, eu freqüentemente dormia na casa do meu namorado.
- Porquê?
Ela deu uma risada curta.
- Porque eu amo meu namorado.
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- Bom, vocês já passaram alguma noite juntos na sua casa?
- Não me lembro que ele tenha dormido lá.
- Porquê?
- Acho que é porque ele mora sozinho. A gente tem mais privacidade na casa dele.
- E verdade que você passava várias noites por semana na casa do seu namorado?
- Às vezes. E daí?
- E que isso acontecia porque você não gostava da constante procissão de hóspedes noturnos da sua colega.
Janis se levantou.
- Meritíssimo, isso nem chega a ser uma pergunta. Quero protestar quanto à forma e o conteúdo. O estilo de vida de Jody Krementz não está sendo julgado aqui. É David
Storey que está sendo julgado pelo assassinato dela, e não é justo permitir que a defesa ataque uma pessoa que...
- Muito bem, doutora Janis, já chega - disse o juiz Houghton, lançando o olhar para Fowkkes. - Doutor Fowkkes, não vou lhe dar mais liberdade para prosseguir nessa
direção. A doutora Janis tem razão. Quero que o senhor avance no depoimento da testemunha.
Fowkkes balançou a cabeça. Bosch ficou examinando o advogado. O sujeito era um ator perfeito. Com sua postura, conseguira transmitir a frustração de um homem impedido
de revelar uma verdade oculta. Bosch ficou imaginando se o júri veria aquilo como uma encenação.
- Muito bem, meritíssimo - disse Fowkkes, pondo a frustração na inflexão da voz. - Nada mais tenho para perguntar à testemunha no momento.
O juiz suspendeu a sessão por quinze minutos para o intervalo da tarde. Bosch ajudou Jane Gilley a driblar os repórteres, levando-a ao elevador e depois até o carro.
Disse que ela se saíra muito bem e que passara perfeitamente pela reinquirição de Fowkkes. Depois foi se juntar a Kretzler e Janis no gabinete da promotoria no segundo
andar, onde a equipe de acusação montara um escritório temporário durante o julgamento. Havia uma pequena máquina de café na sala, ainda cheia do café feito durante
o intervalo matinal.
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Não havia tempo para fazer um novo café, de modo que todos eles beberam o café velho, enquanto Kretzler e Janis discutiam sobre o progresso do dia.
- Acho que essa tentativa deles de mostrar que ela era uma piranha vai sair pela culatra mais tarde - disse Janis. - Eles devem ter mais coisa na manga do que isso.
- Ele só está tentando mostrar que ela tinha um monte de homens - disse Kretzler. - E que pode ter sido qualquer um deles. É a famosa defesa da espingarda. Você
dispara um monte de chumbinhos, e um deles acaba acertando o alvo.
- Mesmo assim, não vai funcionar.
- Com John Reason adiando o interrogatório de todas essas testemunhas, estamos indo até depressa. Se ele continuar fazendo isso, vamos terminar nossa parte na terça
ou na quarta-feira.
- Que bom. Quero saber logo o que eles têm na manga.
- Eu não - interrompeu Bosch. Janis olhou para ele.
- Ora, Harry. Você já agüentou essas tempestades antes.
- É, mas desta vez estou com um pressentimento ruim.
- Não se preocupe - disse Kretzler. - Vamos dar uma surra neles no tribunal. Estamos dentro do tubo, cara, e não vamos perder a onda.
Os três juntaram os copos plásticos num brinde.
Jerry Edgar, o atual parceiro de Bosch, e Kizmin Rider, exparceira, prestaram depoimento durante a sessão da tarde. A promotoria pediu a ambos que rememorassem os
momentos depois da busca na casa de David Storey, quando Bosch entrou no carro e disse que Storey se gabara de ter cometido o crime. O testemunho dos dois foi exatamente
igual ao de Bosch, e serviria como anteparo para os ataques da defesa contra o caráter de Bosch, que também sabia que os promotores esperavam subir no conceito do
júri, porque ambos, Edgar e Kizmin, eram negros. Cinco membros do júri, além dos dois reservas, eram negros. Numa época em que a veracidade de qualquer policial
branco de Los Angeles era considerada suspeita por jurados negros, ter Edgar e Rider prestando solidariedade a Bosch era um grande trunfo.
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A ex-parceira depôs primeiro, e Fowkkes não quis reinquiri-la. O testemunho de Jerry foi uma cópia do de Kiz, mas foram-lhe feitas perguntas adicionais, pois foi
ele que entregou o segundo mandado de busca e apreensão emitido no caso. O mandado era uma ordem do tribunal para a coleta de amostras de pêlos e sangue de David
Storey. Tinha sido aprovado e assinado por um juiz enquanto Bosch estava em Nova York, seguindo a pista da Architectural Digest, e Kizmin estava no Havaí, curtindo
férias planejadas antes do assassinato. Com um patrulheiro a reboque e o mandado na mão, Edgar apareceu outra vez às seis da manhã na casa de Storey. Ele testemunhou
que Storey havia mantido os dois esperando na porta enquanto contatava o advogado, que já era o criminalista J. Reason Fowkkes.
Posto a par da situação, Fowkkes mandou Storey cooperar, e o suspeito foi levado ao Parker Center, no centro da cidade, onde uma enfermeira do laboratório coletou
amostras dos pêlos pubianos, cabelo e sangue dele.
- O senhor interrogou o réu sobre o crime em algum momento do trajeto ou do processo de coleta? - perguntou Kretzler.
- Não, não interroguei - respondeu Edgar. - Antes de deixar a residência ele me passou o telefone, e eu falei com o doutor Fowkkes. Ele me disse que seu cliente
não desejava ser interrogado nem hostilizado, segundo ele, de qualquer forma. Portanto, basicamente nós seguimos de carro em silêncio... pelo menos da minha parte.
E também não falamos no Parker Center. Quando terminamos, o doutor Fowkkes estava lá e levou David Storey para casa.
- David Storey fez algum comentário espontâneo durante esse período?
- Somente um.
- E onde foi isso?
- No carro, indo para o Parker Center.
- E o que ele disse?
- Ele estava olhando pela janela e disse apenas: "Vocês estão fodidos se acham que vão me derrubar por causa disso."
-' E esse trecho da conversa foi gravado?" -Foi.
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-Porquê?
- Por causa da admissão anterior feita ao detetive Bosch, nós achamos que havia chance de que ele fizesse outra declaração como aquela. Quando fui apresentar o mandado
relativo aos pêlos e ao sangue, peguei emprestado um carro da Narcóticos. E um carro que eles usam para fazer prisões na rua. Está equipado com sistema de gravação.
- Trouxe a fita daquele dia, detetive?
- Trouxe.
Kretzler solicitou que a fita fosse incorporada aos autos como prova. Fowkkes protestou, dizendo que Edgar já depusera sobre o que fora dito, e que a fita de áudio
não era necessária. O juiz rejeitou o protesto, e a fita foi posta para tocar. Kretzler começou a fita bem antes da tal declaração de Storey, para que os jurados
pudessem ouvir o ruído do motor do carro e do trânsito, e percebessem que Edgar não violara os direitos do réu, interrogando-o a fim de extrair aquela declaração.
Quando a fita chegou ao comentário de Storey, o tom de arrogância e até ódio para com investigadores soou alto e claro.
Na intenção de que aquele tom ficasse na memória dos jurados durante o fim de semana, Kretzler encerrou a inquirição de Edgar.
Fowkkes, talvez compreendendo a manobra, disse que faria uma-breve reinquirição. Fez a Edgar uma série de perguntas inócuas que pouco acrescentaram aos autos em
favor da defesa ou desfavor da promotoria. Terminou a reinquirição precisamente às quatro e meia, e o juiz Houghton prontamente declarou o tribunal em recesso durante
o fim de semana.
Enquanto o tribunal se esvaziava, com as pessoas saindo em direção ao corredor, Bosch olhou em torno procurando McEvoy mas não o viu. Edgar e Kizmin, que haviam
ficado por ali depois dos depoimentos, aproximaram-se dele.
- Harry, que tal um drinque? - disse Kizmin.
- Que tal um porre? - retrucou Harry.
Capítulo 28
Eles ficaram esperando até as dez e meia da manhã de sábado pelo pessoal que alugara o barco, mas ninguém apareceu. McCaleb estava sentado em silêncio na amurada
da popa, remoendo vagarosamente tudo que acontecera: os clientes que não tinham vindo, seu afastamento do caso, o último telefonema de Jaye, tudo. Antes de sair
de casa, recebeu uma ligação de Jaye, pedindo desculpas pelos acontecimentos da véspera. Ele fingiu indiferença, dizendo-lhe que devia esquecer o episódio. E não
contou que Buddy Lockridge ouviu escondido a conversa deles no barco dois dias antes. Jaye disse que Twilley e Friedman haviam decidido que era melhor que ele devolvesse
as cópias de todos os documentos relacionados com o caso, e ele respondeu que eles podiam vir pegá-las, se quisessem. Acrescentou que tinha um passeio marcado e
que precisava sair. Os dois se despediram abruptamente e desligaram.
Raymond estava debruçado na popa, pescando com um pequeno caniço que McCaleb lhe dera depois da mudança para a ilha. Através da água clara, acompanhava o movimento
das formas alaranjadas dos peixes garibaldi lá embaixo, a sete metros de profundidade. Buddy estava sentado na cadeira de pesca, lendo a seção local do Los Angeles
Times. Parecia relaxado como uma onda de verão. McCaleb ainda não o confrontara com a suspeita de que o vazamento partira dele. Esperava o momento certo.
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- Ei, Terror, viu essa reportagem? - disse Buddy. - Sobre o depoimento do Bosch no tribunal de Van Nuys ontem?
- Neca.
- Cara, eles estão insinuando aqui que esse diretor é um assassino serial. Parece um daqueles seus casos antigos. E o sujeito no banco das testemunhas com o dedo
apontado para ele é um...
- Buddy, já disse pra você não falar sobre isso. Ou já esqueceu?
- Está bem, desculpe. Só ia dizer que se isso não é irônico eu não sei o que é, mais nada.
- Ótimo. Vamos parar por aí.
McCaleb consultou novamente o relógio. Os clientes deveriam ter chegado às dez. Ele se levantou e foi até a porta do salão.
- Vou dar uns telefonemas - disse. - Não quero ficar esperando o dia inteiro por essa gente.
No salão do barco, abriu uma gaveta da mesinha de navegação e tirou uma prancheta onde ficavam as reservas. Havia somente duas páginas ali. A relação dos clientes
daquele dia e uma reserva para o sábado seguinte. Os meses de inverno eram fracos. McCaleb examinou as informações na página de cima. Não estava familiarizado com
aquilo, porque foi Buddy que tinha feito a reserva, que era para quatro homens de Long Beach. Eles deveriam ter chegado na noite de sexta-feira e se hospedado no
Zane Grey. Fariam um passeio de quatro horas - das dez às duas de sábado - e depois pegariam a barca de volta para o continente. Buddy anotara o telefone da residência
do organizador e o nome do hotel, além de receber um depósito no valor de metade do preço do passeio.
McCaleb examinou a lista de hotéis e números de telefone colada na mesa de navegação e ligou primeiro para o Zane Grey. Soube imediatamente que ninguém com o nome
do organizador do passeio - o único dos quatro que McCaleb tinha - estava hospedado no hotel. Depois telefonou para a residência do sujeito e falou com a mulher
dele, que disse que o marido não estava em casa.
Bom, nós estamos esperando por ele aqui num barco em Catalina. Sabe se ele e os amigos estão a caminho?
Houve um longo silêncio. Está ouvindo?
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- Ah, sim, sim. Só que eles não vão pescar hoje. Disseram que haviam cancelado a viagem. Estão jogando golfe agora. Posso lhe dar o número do celular do meu marido,
se quiser. Você pode falar...
- Não é necessário. Tenha um bom dia.
McCaleb fechou o telefone. Sabia exatamente o que acontecera. Nem ele nem Buddy haviam conferido a caixa postal do telefone que constava dos anúncios que eles publicavam
em diversas listas telefônicas e revistas de pesca. McCaleb ligou para o tal número, apertou o código e viu que realmente havia um recado esperando desde quarta-feira.
O grupo cancelara o passeio e remarcaria a coisa outro dia.
- É, claro - disse McCaleb.
Apagou a mensagem e fechou o telefone. Sentiu vontade de atirar o aparelho na cabeça de Buddy através da porta de vidro, mas tentou se acalmar. Foi até a pequena
cozinha, tirou um litro de suco de laranja da geladeira e levou-o até a popa.
- Não vai ter passeio hoje - disse, antes de tomar um longo gole da caixa.
- Por que não? - perguntou Raymond, obviamente desapontado. McCaleb limpou a boca no punho da camiseta de manga comprida.
- Eles cancelaram.
Buddy ergueu os olhos do jornal, e McCaleb dirigiu-lhe um olhar furioso.
- Bom, nós ficamos com o depósito, certo? - perguntou Buddy.
- Eu recebi um depósito de duzentos dólares pelo cartão Visa.
- Não, nós não ficamos com o depósito porque eles cancelaram o passeio na quarta-feira. Nós dois estávamos ocupados demais, eu acho, para verificar a caixa postal
como deveríamos ter feito.
- Ah, caralho! Culpa minha.
- Buddy, não fale assim na frente do menino. Quantas vezes eu já disse isso?
- Desculpe. Desculpe.
McCaleb continuou a olhar fixamente para ele. Planejara falar sobre o vazamento para McEvoy depois do passeio, porque
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precisava que Buddy o ajudasse com o grupo de quatro pescadores. Mas isso não era mais necessário. Tinha chegado a hora.
- Raymond - disse ele, com o olhar fixo em Buddy. - Ainda quer ganhar o seu dinheiro?
-Opa.
- Você quer dizer "sim", não é?
- Opa. Quer dizer, sim. Sim.
- Tá legal. Então recolha a linha, prenda o anzol e comece a levar esses caniços lá para dentro. Arrume tudo na prateleira. Consegue fazer isso?
- É claro.
O menino enrolou rapidamente a linha, tirou a isca e lançou-a na água. Prendeu o anzol num dos ilhoses do caniço e encostou-o num canto da popa, para poder levá-lo
para casa depois. Ele gostava de ficar treinando no deque dos fundos da casa, lançando um peso de borracha, próprio para treinamento, sobre os telhados e quintais
lá embaixo.
Começou a tirar os caniços de pesca oceânica dos suportes em que Buddy os colocara ao preparar o barco para o passeio. Foi levando-os de dois em dois para o salão,
colocando-os nas prateleiras superiores. Tinha que subir no sofá para fazer isso, mas o sofá era velho e precisava urgentemente de uma nova capa, de modo que McCaleb
estava pouco se importando.
- Algum problema, Terror? - disse Buddy. - Era só um passeio, cara. Nós sabíamos que a coisa ia ser devagar este mês.
- Não é o passeio, Bud.
- Então, o que é? É o tal caso?
McCaleb deu um gole menor no suco e pôs a caixa na amurada. - Você está falando do caso em que eu não trabalho mais?
- Acho que sim. Não sei. Não está mais trabalhando nele? Quando isso...
- Não, Buddy, não estou mais no caso. E quero conversar com você sobre uma coisa.
Ele esperou Raymond levar outro conjunto de caniços para o salão.
-Já leu o New Times alguma vez, Buddy?
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- Aquele semanário gratuito?
- É, aquele semanário gratuito. O New Times, Buddy. Sai toda quinta-feira. Sempre põem uma pilha na lavanderia da marina. Na verdade, por que estou perguntando
isso? Eu sei que você lê o Neut Times.
Subitamente, Buddy baixou o olhar para o convés. Parecia abatido, cheio de culpa. Ergueu a mão e esfregou o rosto. Manteve a mão sobre os olhos enquanto falava.
- Terry, desculpe. Nunca pensei que o troço estouraria em cima de você. O que aconteceu?
- Qual é o problema, tio Buddy? Era Raymond, na porta do salão.
- Raymond, será que pode entrar e fechar a porta por uns minutos? - disse McCaleb. - Pode ligar a tevê. Preciso conversar sozinho com Buddy.
O menino hesitou, olhando o tempo todo para Buddy, que tinha o rosto tapado com a mão.
- Raymond, por favor. E leve isto de volta para a geladeira.
O menino finalmente se aproximou e pegou a caixa de suco de laranja. Entrou novamente e fechou a porta corrediça. McCaleb olhou novamente para Buddy.
- Como pôde pensar que o troço não estouraria em cima de mim?
- Não sei. Só achei que ninguém ia ficar sabendo.
- Bom, você estava enganado. E isso me trouxe muitos problemas. Mas o pior é a porra da traição, Buddy. Eu simplesmente não consigo acreditar que você tenha feito
uma coisa dessas.
McCaleb deu uma olhada para a porta de vidro, para ter certeza de que o garoto não podia ouvir sua voz. Não havia sinal de Raymond, que provavelmente descera para
um dos camarotes. McCaleb percebeu que sua respiração estava acelerada. Sentia tanta raiva que estava tendo hiperventilação. Tinha que terminar aquilo e se acalmar.
- Graciela precisa saber disso? - perguntou Buddy, quase implorando.
272
- Não sei. Não interessa o que ela vai saber ou não. O que interessa é que nós tínhamos um relacionamento bom, e você fez uma coisa dessas pelas minhas costas.
Buddy ainda tinha os olhos escondidos atrás das mãos.
- Eu não sabia que isso significaria tanto para você, mesmo que você descobrisse. Foi uma coisa pequena. Eu...
- Não tente amenizar o troço, nem me contar qual foi o tamanho da coisa, está bem? E nem fale comigo com essa voz esganiçada, implorando. Cale a boca, só isso.
McCaleb foi até a popa e apoiou as coxas na amurada acolchoada. De costas para Buddy, ergueu os olhos para a encosta acima do distrito comercial da vila. Avistou
sua casa. Graciela estava no deque segurando o bebê. Ela acenou e depois ergueu a mão de Cielo, fazendo a neném acenar também. McCaleb respondeu ao aceno.
- O que quer que eu faça? - disse Buddy atrás dele. Sua voz já estava mais controlada. - O que quer que eu diga? Que não vou mais fazer isso? Está bem, não vou mais
fazer isso.
McCaleb não se virou. Continuou olhando para a esposa e a filha.
- Não interessa o que você não vai mais fazer. O mal já foi feito. Tenho que pensar sobre o assunto. Nós somos sócios, além de amigos. Ou pelo menos éramos. Mas
agora eu só quero que você desapareça. Vou lá para baixo ficar com Raymond. Pegue o esquife e vá para o píer. Volte para a cidade de barca hoje. Só não quero você
aqui, Buddy. Pelo menos agora.
- Como vocês vão voltar para o píer?
Era uma pergunta desesperada, com uma resposta óbvia.
- Eu chamo uma lancha de aluguel.
- A gente tem um passeio marcado para sábado que vem. São cinco pessoas e...
- Vou me preocupar com sábado depois. Posso cancelar tudo se precisar, ou passar o troço para Jim Hall.
- Terry, tem certeza disso? Eu só...
- Tenho. Vá embora, Buddy. Não quero conversar mais. McCaleb deu as costas para a paisagem e passou por Buddy,
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indo em direção ao salão. Abriu a porta corrediça, entrou e se fechou lá dentro. Não olhou mais para Buddy. Foi até a mesinha de navegação e tirou um envelope da
gaveta. Meteu dentro uma nota de cinco dólares que tirou do bolso, fechou o envelope e escreveu nele o nome de Raymond.
- Ei, Raymond, onde você está? - exclamou.
Eles jantaram sanduíches de queijo grelhado com molho apimentado. O molho era da Busy Bee. McCaleb o comprara ao voltar do barco com Raymond.
Ele estava sentado diante de Graciela, com Raymond à esquerda. A neném estava à direita, num assento portátil preso à mesa. Estavam jantando dentro de casa porque
um nevoeiro noturno engolfara a ilha num abraço gelado. McCaleb permaneceu calado, com expressão triste, durante toda a refeição, como passara grande parte do dia.
Quando ele voltara, Graciela decidiu se manter afastada. Levou Raymond para um passeio no Jardim Botânico de Wrigley, em Avalon Canyon. McCaleb ficou com a neném,
que quase não parou de se agitar. Mas ele não se importou. Pelo menos assim não ficava remoendo as coisas.
À hora do jantar, porém, não havia como eles se evitarem. meCaleb fez os sanduíches, sendo o último a se sentar à mesa. Assim que começou a comer, Graciela perguntou
qual era o problema.
- Nada - disse ele. - Está tudo bem.
- Raymond disse que você e Buddy tiveram uma discussão.
- Talvez Raymond não devesse meter o nariz onde não é chamado.
Olhou para o garoto ao dizer isso, e Raymond baixou os olhos para o prato.
- Isso não é justo, Terry - disse Graciela.
Ela tinha razão. McCaleb sabia disso. Ele estendeu a mão e despenteou o cabelo do garoto. O cabelo dele era tão macio. McCaleb gostava de fazer aquilo. Torceu para
que o gesto transmitisse seu pedido de desculpas.
- Fui tirado do caso porque Buddy vazou a história para um repórter.
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-O quê?
- Nós chegamos, ou eu cheguei, a um suspeito. Um tira. Buddy ouviu minha conversa com Jaye sobre essa descoberta. Contou tudo a um repórter, que começou a dar telefonemas.
Jaye e o chefe dela acharam que eu tinha vazado a coisa.
- Isso não faz sentido. Por que Buddy faria isso?
- Não sei. Ele não disse. Na realidade, até disse. Disse que achava que eu não me incomodaria, ou que a coisa não tinha importância. Alguma coisa assim. Isso foi
hoje, no barco.
Fez um gesto na direção de Raymond, dando a entender que fora essa conversa tensa que o garoto ouvira parcialmente e depois contara a Graciela.
- Bom, você telefonou para Jaye e contou que foi ele?
- Não, isso não interessa. O vazamento surgiu por meu intermédio. Foi burrice minha deixar Buddy no barco. Vamos mudar de assunto? Estou cansado de pensar e falar
sobre isso.
- Muito bem, Terry, você quer falar sobre o quê?
Ele ficou em silêncio. Ela ficou em silêncio. Depois de algum tempo, ele começou a rir.
- Não consigo pensar em mais nada agora.
Graciela terminou de comer um pedaço de sanduíche. McCaleb olhou para Cielo, que fitava uma bola azul e branca pendurada num arame preso ao lado do assento. Ela
estava tentando alcançar a bola com as mãozinhas, mas não conseguia. McCaleb viu que ela estava ficando frustrada. Entendia perfeitamente o sentimento da neném.
- Raymond, conte a seu pai o que vimos no Jardim Botânico hoje - disse Graciela.
Recentemente, ela começara se referir a McCaleb como pai de Raymond. Eles haviam adotado o garoto, mas McCaleb não queria pressionar Raymond a pensar nele como pai
ou a se referir a ele assim. O garoto geralmente o chamava de Terry.
- Vimos uma raposa das ilhas Channel - disse Raymond. Estava caçando no cânion.
- Eu achava que as raposas caçavam à noite e dormiam de dia.
- Bom, então alguém acordou o bicho, porque nós vimos a raposa lá. Era grande.
Graciela balançou a cabeça, confirmando a história.
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- Legal - disse McCaleb. - Que pena que vocês não tiraram uma foto.
Continuaram comendo em silêncio por alguns instantes. Graciela usou o guardanapo para limpar a saliva no queixo do bebê.
- Em todo caso, você deve estar contente com a minha saída do caso e com a volta das coisas ao normal aqui em casa - disse McCaleb.
Graciela olhou para ele.
- Só quero a sua segurança. Quero a família toda junta e em segurança. É isso que me deixa contente, Terry. - Ele balançou a cabeça e terminou o sanduíche. Graciela
continuou, dizendo: - Eu quero que você seja feliz. Mas se isso significa trabalhar nesses casos, vejo um conflito com o seu bem-estar pessoal em termos de saúde,
e com o bem-estar desta família.
- Bom, não precisa mais se preocupar com isso. Acho que agora ninguém vai me procurar novamente.
Ele se levantou para tirar a mesa. Mas antes de pegar os pratos, inclinou-se sobre o assento da filha e curvou o arame, colocando a bola azul e branca ao alcance
dela.
- Isto não é pra ficar assim - disse Graciela. McCaleb olhou para ela.
- É, sim.
Capítulo 29
McCaleb ficou acordado até de madrugada com a neném. Ele e Graciela se alternavam naquela tarefa, para que pelo menos um dos dois tivesse uma noite de sono decente.
Cielo parecia ter um relógio de alimentação que soava quase que de hora em hora. Cada vez que ela acordava, McCaleb lhe dava a mamadeira e andava com ela pela casa
escura. Batia de leve nas costas da menina até que ela arrotasse e a devolvia ao berço. Dali a uma hora o processo recomeçava.
Depois de cada ciclo, McCaleb andava pela casa e conferia as portas. Era um hábito nervoso que virara rotina. Por ficar na encosta da colina, a casa vivia mergulhada
num nevoeiro espesso. Olhando pelas janelas dos fundos, não conseguia ver nem as luzes do píer lá embaixo. Ficou imaginando se o nevoeiro se estendia sobre a baía
até o continente. A casa de Harry Bosch localizava-se num ponto elevado. Ele ficou pensando se o detetive também não estaria de pé junto à janela, olhando para aquele
vazio enevoado.
De manhãzinha Graciela pegou o bebê, e McCaleb, exausto pela noite e tudo mais, dormiu até às onze horas. Quando acordou, percebeu que a casa estava em silêncio.
De camiseta e short, foi andando pelo corredor e viu que a cozinha e a sala estavam vazias. Graciela deixara um bilhete na mesa da cozinha, dizendo que levara as
crianças à igreja de St. Catherine para o serviço religioso das
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dez horas, e que iria ao mercado depois. O bilhete dizia que estariam de volta ao meio-dia.
McCaleb foi até a geladeira, pegou o galão de suco de laranja e encheu um copo inteiro. Depois pegou suas chaves na bancada e voltou ao corredor, onde ficava o armário
trancado. Tirou de lá um saquinho plástico contendo uma dose matinal dos remédios que o mantinham vivo. No primeiro dia de cada mês, ele e Graciela separavam cuidadosamente
as doses e as colocavam em saquinhos plásticos marcados com as datas, diferenciando as doses matinais das vespertinas. Era mais fácil do que abrir dezenas de frascos
de pílulas duas vezes por dia.
Levou o saquinho de volta à cozinha e começou a tomar as pílulas, duas ou três de cada vez, com goles do suco de laranja. Enquanto seguia essa rotina, lançou o olhar
pela janela da cozinha na direção do porto lá embaixo. O nevoeiro fora embora. O tempo ainda estava um pouco enevoado, mas já clareara o bastante para ele ver o
Mar que Segue. Havia um esquife amarrado na popa.
McCaleb foi até uma das gavetas da cozinha e pegou o binóculo que Graciela gostava de usar para vê-lo manobrar o barco no porto, partindo ou voltando com um grupo
de clientes. Depois foi até o pátio e aproximou-se da balaustrada. Focalizou o binóculo. Não viu ninguém na cabine ou na ponte de comando do barco e não conseguia
enxergar através da película refletora na porta corrediça do salão. Dirigiu o foco para o esquife, que era de um verde desbotado, com motor de popa de um cavalo
e meio, e o reconheceu. Era um dos barcos de aluguel do concessionário do píer.
Entrou novamente e largou o binóculo sobre a bancada, enquanto recolhia as pílulas restantes com a mão. Levou-as com o suco de laranja para o quarto. Começou a engolir
as pílulas rapidamente, enquanto se vestia. Sabia que Buddy Lockridge não teria alugado um esquife para ir até o Mar que Segue. Buddy sabia qual era o Zodiac de
McCaleb e simplesmente teria pegado o bote emprestado.
Era outra pessoa que estava no barco.
McCaleb levou vinte minutos para caminhar até o píer, pois Graciela pegara o carrinho de golfe. Foi primeiro até a cabine de aluguel de barcos para perguntar quem
alugara o tal esquife, mas o guichê estava fechado. Havia um cartaz com a figura de um relógio, dizendo que o funcionário só estaria de volta ao meio-dia e meia.
McCaleb consultou o relógio. Meio-dia e dez. Não podia esperar. Desceu a rampa até o cais dos esquifes, entrou no Zodiac e deu a partida ao motor.
Enquanto seguia o canal em direção ao Mar que Segue, foi examinando as escotilhas laterais do salão, mas não conseguiu ver qualquer movimento ou indicação de que
alguém estivesse na embarcação. Desligou o motor do Zodiac quando chegou a vinte metros de distância, e o bote inflável fez o restante do percurso deslizando silenciosamente.
McCaleb abriu o zíper do bolso do agasalho e tirou uma Glock 17, a arma que usava em serviço quando trabalhava no FBI.
O Zodiac bateu de leve na popa, ao lado do esquife de aluguel. McCaleb examinou o esquife, mas viu apenas um colete salvavidas e uma almofada de flutuação, sem indicação
alguma de quem alugara o barco. Subiu na popa agachado e enrolou o cabo do Zodiac num dos ganchos traseiros. Olhou por cima da verga e viu apenas seu próprio reflexo
na porta corrediça. Percebeu que teria que se aproximar da porta sem saber se estava sendo observado por alguém do outro lado.
Agachou-se novamente e olhou em torno. Ficou pensando se deveria recuar e voltar com o barco de patrulha do porto. Depois de um instante decidiu que não. Olhou para
sua casa lá em cima na colina, levantou-se e jogou o corpo por cima da verga. Com a arma abaixada e escondida atrás do quadril, foi até a porta e examinou a fechadura,
que não mostrava sinal algum de ter sido violada. Puxou a maçaneta, e a porta se abriu. Tinha certeza que a deixara trancada na véspera, antes de ir embora com Raymond.
McCaleb entrou. O salão estava vazio, sem sinal algum de invasão ou roubo. Ele fechou a porta e ficou escutando. O barco estava em silêncio. Ouvia-se o som da água
batendo de leve contra a superfície externa, e mais nada. Ele deslocou o olhar para os
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degraus que levavam aos camarotes inferiores e o banheiro. Foi andando naquela direção, já com a pistola erguida à frente.
No segundo dos quatro degraus, McCaleb pisou numa tábua rachada que gemeu sob seu peso. Ficou imóvel, tentando escutar alguma reação, mas ouviu apenas o silêncio
e o ruído incansável da água contra as laterais do barco. Ao pé da escada havia um corredor curto com três portas. Diretamente à frente ficava o camarote dianteiro,
que ele convertera em escritório e sala de arquivo. À direita ficava o camarote principal, e à esquerda, o banheiro.
A porta do camarote principal estava fechada. McCaleb não recordava como a deixara ao sair do barco vinte e quatro horas antes. A porta do banheiro estava totalmente
aberta, presa à parede para não balançar e bater quando o barco estivesse em movimento. A porta do escritório estava parcialmente aberta, balançando suavemente no
ritmo do movimento do barco. Havia uma luz acesa lá dentro, e McCaleb viu que era a luz da escrivaninha, embutida no leito inferior dos beliches à esquerda da porta.
Ele resolveu inspecionar o banheiro primeiro, em seguida o escritório e depois o camarote principal. Ao se aproximar do banheiro, sentiu um cheiro de cigarro.
O banheiro estava vazio, e de qualquer forma era pequeno demais para ser usado como esconderijo. Quando se virou para a porta do escritório e ergueu a arma, uma
voz soou lá dentro.
- Entre, Terry.
Ele reconheceu a voz. Cautelosamente, avançou e usou a mão livre para empurrar a porta, abrindo-a com a arma ainda erguida
A porta se abriu e ele viu Harry Bosch sentado à escrivaninha, com o corpo relaxadamente recostado, olhando para a porta. O detetive tinha as duas mãos à vista.
Ambas estavam vazias, a não ser por um cigarro apagado entre os dedos da mão direita. McCaleb entrou vagarosamente no pequeno aposento, ainda com a arma erguida
e apontada para Bosch.
- Vai atirar em mim? Quer ser meu acusador e meu executor?
- Isto é arrombamento e invasão.
- Então acho que estamos quites.
- Do que está falando?
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- Que nome dá ao teatrinho que fez na minha casa naquela noite? "Harry, tenho mais umas perguntas sobre o caso." Só que não fez nenhuma pergunta de verdade, fez?
Em vez disso, deu uma olhada no retrato da minha mulher e perguntou por ela. Depois bebeu minha cerveja e perguntou sobre a gravura no corredor. Ah, e também me
contou aquela história de encontrar Deus nos olhos azuis da sua filhinha. Portanto, que nome dá a tudo isso, Terry?
Bosch girou despreocupadamente a cadeira e lançou o olhar sobre o ombro na direção da escrivaninha. McCaleb acompanhou o olhar dele, vendo que seu computador laptop
estava aberto e ligado. Percebeu que Bosch abrira o arquivo com as observações para o perfil que ele esteve compondo até a véspera, quando tudo mudara. Intimamente,
lamentou não ter protegido o arquivo com uma senha.
- Pra mim parece ser arrombamento e invasão - disse Bosch com os olhos na tela. - Talvez coisa até pior.
A nova posição de Bosch fez com que a jaqueta de couro de aviador que ele usava se abrisse, e McCaleb viu a pistola presa ao coldre na cintura. Continuou com a arma
erguida e pronta.
Bosch olhou novamente para ele.
- Ainda não tive chance de examinar tudo isso. Parece um monte de anotações e análises. Pelo que conheço de você, provavelmente é coisa de primeira categoria. Mas
não sei como, em algum ponto você errou o caminho, McCaleb. Não fui eu.
McCaleb deixou-se cair vagarosamente no leito inferior do beliche oposto. Já mantinha a arma erguida com menos precisão. Sentia que não havia perigo imediato da
parte de Bosch. Se quisesse, o detetive poderia tê-lo emboscado quando ele entrara.
- Você não devia estar aqui, Harry. Não devia estar falando comigo.
- Eu sei, tudo que eu disser pode e será usado contra mim num tribunal. Mas com quem vou falar? Foi você que me colocou na linha de tiro. Quero que me tire de lá.
- Bom, agora é tarde. Já saí do caso. E é melhor você nem saber quem entrou.
Bosch ficou simplesmente olhando para ele, esperando.
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- A Seção de Direitos Civis do FBI. Você achava a corregedoria de polícia um pé-no-saco? Pois esse pessoal do FBI vive e respira com um único objetivo: arrancar
o couro cabeludo da gente. E um couro cabeludo do Departamento de Polícia de Los Angeles vale mais do que Boardwalk e Park Place juntos.
- Como aconteceu? Foi o repórter? McCaleb balançou a cabeça.
- Acho que ele conversou com você também. Bosch balançou a cabeça.
- Tentou. Ontem.
Bosch olhou em torno, notou o cigarro ainda na mão e colocou-o na boca.
- Se importa se eu fumar aqui?
- Você já andou fumando aqui.
Bosch tirou o isqueiro do bolso da jaqueta e acendeu o cigarro. Pegou a cesta de lixo embaixo da escrivaninha e colocou-a perto da cadeira para servir de cinzeiro.
- Parece que não consigo largar este troço.
- Personalidade propensa ao vício. Uma característica boa e má em detetives.
- E, sei lá - disse Bosch, dando uma tragada e acrescentando: Nós nos conhecemos há o quê, dez, doze anos?
- Mais ou menos.
- Já trabalhamos juntos em alguns casos, e ninguém trabalha com alguém num caso sem formar uma opinião do outro. Sabe do que estou falando?
McCaleb não respondeu. Bosch bateu de leve o cigarro na borda da cesta de lixo.
- E o que me mais incomoda, mais até do que a própria acusação, é ser acusado por você. E pensar em como e por que você pôde achar isso, entende? Que opinião tinha
de mim para poder chegar a essa conclusão?
McCaleb fez um gesto com ambas as mãos, como dizendo que a resposta era óbvia.
- As pessoas mudam. Se houve uma coisa que o trabalho me ensinou sobre as pessoas é que qualquer um de nós é capaz de qual-
quer coisa, dadas as circunstâncias certas, as pressões certas, os motivos certos, e o momento certo.
- Tudo isso é psicobesteira. Não...
Bosch não terminou, deixando a frase no ar. Ele olhou novamente para o computador e para os papéis espalhados na escrivaninha. Apontou com o cigarro para a tela
do laptop.
- Você fala das noites... de algo mais escuro que a noite. -E daí?
Bosch deu uma tragada forte no cigarro, inclinou a cabeça para trás e soltou a fumaça na direção do teto, dizendo:
- Quando eu servi no exterior, fui mandado para os túneis. Quer saber o que é treva? Pois eu digo a você, treva era aquilo. Lá embaixo. Às vezes não dava pra ver
a porra da mão a menos de centímetros do rosto. Era tão escuro que os olhos doíam, tentando ver alguma coisa. Qualquer coisa que fosse.
Deu outra longa tragada no cigarro. McCaleb ficou examinando os olhos de Bosch, que pareciam sem expressão, perdidos na lembrança. Subitamente, ele voltou. Estendeu
a mão, apagou o cigarro fumado apenas pela metade na borda interna da cesta de lixo e jogou-o lá dentro.
- E o meu jeito de tentar largar o troço. Só fumo essas merdas mentoladas e nunca passo da metade. Já baixei para um maço por semana.
- Não vai funcionar.
- Eu sei.
Ele ergueu os olhos para McCaleb e deu um sorriso maroto, como pedindo desculpas. Mas logo mudou de expressão e voltou à história.
- Mas às vezes não era tão escuro lá embaixo. Nos túneis. Às vezes tinha um pouquinho de luz e dava até pra enxergar o caminho. O negócio é que eu nunca sabia de
onde aquela luz vinha. Era como se a luz estivesse presa lá embaixo com a gente. Eu e meus amigos chamávamos aquilo de luz perdida. Estava perdida, mas foi encontrada
por nós.
McCaleb ficou esperando, mas Bosch não disse mais nada.
- O que está querendo me dizer, Harry?
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- Que deixou escapar alguma coisa. Não sei o que foi, mas deixou escapar alguma coisa.
Ele manteve os olhos escuros fixos em McCaleb. Estendeu a mão de volta para a escrivaninha e pegou a pilha de documentos copiados que Jaye Winston trouxera. Jogou-os
pelo pequeno aposento no colo de McCaleb, que não fez movimento para apanhálos. Os papéis caíram e se espalharam pelo chão.
- Olhe de novo. Deixou escapar alguma coisa, e a soma total do que encontrou apontava para mim. Volte lá e encontre a peça que deixou escapar. Isso vai mudar a soma
total.
- Eu já disse, estou fora do caso.
- Pois vou colocar você dentro novamente.
Bosch disse isso de forma peremptória, como se McCaleb não tivesse escolha.
- Você tem até quarta-feira, que é o prazo máximo daquele jornalista. Tem que evitar a publicação da matéria dele com a verdade. Se não conseguir, sabe o carnaval
que J. Reason Fowkkes vai fazer com isso.
Eles ficaram sentados ali, encarando-se em silêncio, por um longo momento. Na época em que trabalhava como elaborador de perfis, McCaleb conversara com dúzias de
assassinos. Poucos deles admitiam prontamente seus crimes. Portanto, nisso Bosch não era diferente. Mas a intensidade com que o detetive o encarava, sentado ali
sem piscar, era algo que McCaleb jamais vira em homem algum, culpado ou inocente.
- Storey já matou duas mulheres, e essas são só as que nós sabemos. Ele é o monstro que você levou toda a sua vida caçando, McCaleb. E agora... e agora você está
dando a ele a chave que destranca a porta da jaula. Se ele sair, vai fazer a mesma coisa de novo. Você conhece o tipo. Sabe que vai.
McCaleb não conseguia competir com o olhar de Bosch. Baixou os olhos para a arma em suas mãos.
- O que fez você pensar que eu concordaria com isso? - perguntou.
- Como eu disse, a gente forma opinião sobre os outros. Eu formei a minha sobre você, McCaleb. Você vai concordar. Senão, vai
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passar o resto da vida perseguido pelo monstro que vai libertar. Se Deus está realmente nos olhos da sua filha, como vai conseguir voltar a olhar pra ela?
McCaleb balançou a cabeça inconscientemente e pôs-se a pensar no que acabara de fazer.
- Lembro-me do que me disse uma vez - prosseguiu Bosch. - Que se Deus está nos detalhes, o diabo também está. Você queria dizer que a pessoa que nós procuramos geralmente
está bem na nossa frente, escondida nos detalhes o tempo todo. Sempre me lembro dessa frase. E isso me ajuda até hoje.
McCaleb balançou a cabeça novamente e baixou o olhar para os documentos jogados no chão.
- Escute, Harry, você pode entender. Eu estava plenamente convencido disso quando levei a coisa para Jaye. Não sei se posso dar meia-volta e ir na direção oposta.
Se quer ajuda, provavelmente eu sou a pessoa errada.
Bosch balançou a cabeça e sorriu.
- E exatamente por isso que você é a pessoa certa. Se puder ser convencido, o mundo poderá ser convencido.
- E, onde você estava na véspera do Ano-Novo? Por que não começamos por aí?
Bosch deu de ombros.
- Em casa.
- Sozinho?
Bosch deu de ombros novamente e não respondeu. Levantou-se para sair. Pôs as mãos nos bolsos da jaqueta. Passou pela porta estreita e subiu a escada para o salão.
McCaleb foi atrás dele, já com a arma ao lado do corpo.
Bosch abriu a porta corrediça com o ombro. Ao passar para o convés, ergueu os olhos para a catedral na encosta da colina e olhou em seguida para McCaleb.
- Era conversa fiada todo aquele papo lá em casa sobre achar a mão de Deus? Era técnica de entrevista, esse tipo de coisa? Era uma declaração destinada a obter uma
resposta que se encaixaria num perfil?
McCaleb abanou a cabeça.
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- Não, não era conversa fiada.
- Que bom. Eu estava torcendo para que não fosse.
Bosch passou pela verga na direção da popa. Desamarrou o esquife alugado, entrou na embarcação e sentou-se no banco traseiro. Antes de ligar o motor, olhou mais
uma vez para McCaleb e apontou para a popa do barco.
- Mar que Segue. O que isso quer dizer?
- Foi meu pai que batizou o barco. Era dele. O mar que segue é a onda que se ergue atrás de nós, que nos atinge antes de vermos que ela está vindo. Acho que ele
deu esse nome ao barco como um tipo de aviso. Cuidado com a retaguarda, entende?
Bosch balançou a cabeça.
- Quando eu servi no exterior, a gente dizia um para o outro, mão no coldre.
Foj a vez de McCaleb balançar a cabeça.
- E a mesma coisa.
Ficaram em silêncio por um momento. Bosch pôs a mão na maçaneta de partida do motor, mas não fez nada.
- Conhece a história deste lugar, Terry? Estou falando do tempo antes da chegada dos missionários.
- Não. Você conhece?
- Um pouco. Eu costumava ler muitos livros de história quando era criança. Tudo que houvesse na biblioteca- Gostava de história local. De Los Angeles principalmente,
e da Califórnia. Gostava de ler essas coisas, mais nada. Uma vez o orfanato fez uma excursão até aqui. E eu li tudo que podia sobre este lugar.
McCaleb balançou a cabeça.
- Os índios que viviam aqui, os gabrielinos, eram adoradores do sol - disse Bosch. - Os missionários chegaram e mudaram tudo. Na verdade, foram eles que batizaram
os índios de gabrielinos. Eles próprios se chamavam de outra coisa, mas não lembro o que era. Mas antes os índios já estavam aqui e adoravam o sol. Acho que o sol
era tão importante para a vida na ilha que eles imaginaram que só podia ser um deus.
McCaleb viu os olhos escuros de Bosch perscrutarem a baía.
- Os índios do continente consideravam os índios da ilha feiticeiros ferozes, que podiam controlar o tempo e as ondas por meio de orações e sacrifícios ao seu Deus.
Quer dizer, eles só podiam ser ferozes e fortes para conseguirem cruzar a baía, a fim de vender sua cerâmica e peles de foca no continente.
McCaleb ficou examinando Bosch, tentando entender a mensagem que tinha certeza que o detetive estava tentando transmitir.
- Do que está falando, Harry? Bosch deu de ombros.
- Sei lá. Acho que quero dizer que as pessoas encontram Deus onde precisam que Ele esteja. No sol, nos olhos de uma
recém-nascida... num coração novo.
Olhou para McCaleb. Tinha os olhos negros e indecifráveis como os da coruja pintada.
- E algumas pessoas - começou McCaleb - encontram a salvação na verdade, na justiça e no que é direito.
Bosch balançou a cabeça e deu aquele sorriso maroto novamente.
- Isso parece bacana.
Virou-se e deu a partida no motor com um único puxão. Depois fez uma continência de brincadeira para McCaleb e se afastou, orientando o esquife de aluguel na direção
do píer. Por não conhecer as regras do porto, cortou pelo meio do canal e foi passando entre as bóias de atracação sem uso. Não olhou para trás. McCaleb ficou observando-o
durante todo o percurso. Um homem sozinho na água, num velho barco de madeira. Aquele pensamento trazia uma pergunta. Ele estava pensando em Bosch ou nele mesmo?
Capítulo 30
Bosch comprou uma Coca-Cola no balcão da concessionária da barca de volta, na esperança de que o refrigerante acalmasse seu estômago, evitando o enjôo. Perguntou
a uma das comissárias onde era o lugar mais estável da embarcação e foi orientado para um dos assentos centrais no interior. Sentou-se e bebeu um pouco do refrigerante.
Depois tirou do bolso da jaqueta as páginas dobradas que imprimira no escritório de McCaleb.
Ele imprimira dois arquivos antes de ver McCaleb se aproximando no Zodiac. Um se chamava PERFIL DA CENA DO CRIME, e o outro PERFIL DO INDIVÍDUO. Dobrara os dois
e os pusera no bolso, desconectando a impressora portátil do laptop antes de McCaleb entrar no barco. Só tivera tempo de examiná-los rapidamente na tela do computador
e começou a fazer uma leitura mais completa ali na barca-
Pegou primeiro o perfil da cena do crime, que tinha apenas uma página. Estava inacabado e parecia uma simples listagem das anotações e impressões de McCaleb a partir
do vídeo da cena do crime
Ainda assim, aquilo revelava como McCaleb trabalhava. Mostrava como suas observações de uma cena se transformavam em observações sobre um suspeito.
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CENA
1. Ligadura
2. Nu
3. Ferimento na cabeça
4. Fita gomada/mordaça - "Caverna"?
5. Balde?
6. Coruja - assistindo?
altamente organizado
detalhista
declaração - a cena é sua declaração
ele estava lá - ele assistiu (a coruja?)
exposição = humilhação da vítima
= ódio à vítima, desprezo
balde - remorso?
assassino - conhecimento prévio da vítima
conhecimento pessoal - interação
prévia
ódio pessoal
assassino dentro do círculo
qual é a declaração?
Bosch releu a página e ficou pensando sobre aquilo. Embora não conhecesse plenamente a cena do crime de onde as anotações haviam sido extraídas, ficou impressionado
com os saltos de lógica que McCaleb dava. Ele tinha descido cuidadosamente os degraus até concluir que o assassino era um conhecido de Gunn, alguém a ser encontrado
dentro do círculo pessoal dele. Em qualquer caso, aquela era sempre uma distinção importante a ser feita. Geralmente as prioridades investigativas eram estabelecidas
quando se decidia se o suspeito procurado cruzara com a vítima somente quando a matara, ou antes. Pelas características da cena do crime,
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McCaleb concluíra que o assassino era um conhecido de Gunn, e que houvera um prelúdio para esse cruzamento final e fatal entre assassino e vítima.
A segunda página continuava a listagem de anotações resumidas, e Bosch supôs que McCaleb planejava transformar aquilo num perfil de carne e osso. Enquanto lia, percebeu
que alguns grupos de palavras eram frases que McCaleb ouvira dele próprio.
SUSPEITO Bosch:
instituições - abrigo juvenil, Vietnã, DPLA marginal - alienação olhos - perdidos, perda homem com uma missão - anjo vingador a grande roda sempre girando ninguém
escapa o que vai volta
álcool
divórcio - esposa? por quê?
alienação/obsessão
mãe
casos
sistema judiciário - "besteira"
transmissores da pestilência
culpa?
Harry = Hieronymus
coruja = mal
mal = Gunn
morte do mal = liberação dos fatores estressantes
pinturas - demônios - diabos - mal
treva e luz - a borda
punição
mãe - justiça - Gunn
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a mão de Deus - polícia - Bosch punição = obra de Deus
Mais
escuro que a noite - Bosch
Bosch não sabia ao certo como interpretar aquelas anotações, mas seus olhos foram atraídos para a última linha. Ele leu aquilo várias vezes, sem saber direito o
que McCaleb estava dizendo a respeito dele.
Depois dobrou cuidadosamente a página e ficou sentado, imóvel, por bastante tempo. De certa forma, era uma sensação surrealista ficar sentado naquela barca depois
de tentar interpretar as anotações que outra pessoa fizera a respeito dos motivos pelos quais ele deveria ser considerado suspeito de assassinato. Começou a sentir
um leve enjôo e percebeu que talvez estivesse ficando mareado. Engoliu o restante da Coca-Cola e se levantou, pondo as páginas de volta no bolso do paletó.
Dirigiu-se à parte dianteira da embarcação e empurrou a pesada porta que dava para a proa. O ar frio deu-lhe um choque imediato, e ele avistou o tênue contorno do
continente à distância. Manteve os olhos no horizonte e respirou com força. Em poucos minutos estava se sentindo melhor.
Capítulo 31
McCaleb ficou muito tempo sentado no velho sofá do salão, pensando sobre seu encontro com Bosch. Pela primeira vez, em toda sua carreira de investigador, um suspeito
de assassinato o procurara para pedir ajuda. Ele precisava decidir se aquilo fora o ato de um homem desesperado ou de um homem sincero. Ou ainda outra coisa, possivelmente.
E se ele não tivesse percebido o esquife alugado e corrido para o barco? Bosch teria esperado por ele?
McCaleb desceu até o camarote dianteiro e olhou para os documentos espalhados no chão. Ficou imaginando se Bosch os jogara intencionalmente, para que os papéis caíssem
no chão e se misturassem. Será que o detetive levara algo?
Voltou à escrivaninha e examinou o laptop. O computador não estava ligado à impressora, mas McCaleb sabia que isso não significava nada. Fechou o arquivo que estava
na tela e abriu a janela de gerenciamento da impressora. Clicou no arquivo de tarefas executadas e viu que dois arquivos haviam sido impressos naquele dia - os perfis
da cena do crime e do suspeito. Bosch os levara.
McCaleb visualizou o detetive sentado na barca da Express, cruzando a baía e lendo o que fora escrito a seu respeito. Sentiu-se desconfortável diante daquela imagem,
pois jamais pensou que um dos perfis elaborados por ele pudesse ser lido pelo próprio suspeito.
Afastou a idéia e decidiu ocupar a cabeça com outra coisa.
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Ajoelhou-se e começou a pegar os dossiês de assassinatos, arrumando-os numa pilha sem se preocupar no momento em colocálos em ordem.
Depois de arrumar a bagunça, sentou-se à escrivaninha com os dossiês empilhados à sua frente e pegou uma página em branco numa gaveta. Com o grosso marcador preto
que usava para etiquetar as caixas de papelão onde guardava os dossiês, escreveu:
VOCÊ DEIXOU ESCAPAR UMA COISA
Pegou uma fita adesiva na escrivaninha e colou a folha na parede à sua frente. Ficou olhando para aquilo durante bastante tempo. Tudo que Bosch lhe dissera podia
ser resumido naquela única linha. Só precisava decidir se aquilo era verdade, se aquilo era possível. Ou se era a última jogada de um homem desesperado.
Ouviu o celular tocando. O aparelho estava no bolso da jaqueta que tinha deixado no sofá do salão. Subiu correndo a escada e pegou-a. Quando
meteu a mão no bolso, sentiu o contorno da arma. Tentou o outro bolso e pegou o telefone. Era Graciela.
- Já chegamos em casa - disse ela. - Pensei que você estaria aqui. Achei que talvez pudéssemos ir todos almoçar no El Encanto.
- Hum...
McCaleb não queria deixar o escritório nem seus pensamentos sobre Bosch. Mas a última semana fora meio estressante com Graciela. Precisava conversar com ela sobre
isso, sobre as mudanças que andava vendo nas coisas.
- Estou terminando um negócio aqui - disse por fim. - Por que não desce com as crianças e eu me encontro com vocês no píer?
Olhou para o relógio. Eram quinze para a uma.
- Uma e meia é tarde demais?
- Ótimo - disse ela abruptamente. - Qual é o negócio?
- Ah, é só... Estou meio que fechando esse negócio para Jaye.
- Você não disse que tinha saído do caso?
- Saí, mas estou com todos os relatórios e queria concluir o... Dar uma espécie de arremate, entende?
- Não se atrase, Terry - disse Graciela, num tom de voz que insinuava que ele perderia mais do que o almoço, caso se atrasasse.
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- Não vou me atrasar. Vejo vocês lá.
Fechou o telefone e voltou ao escritório. Olhou para o relógio novamente. Tinha cerca de meia hora antes de ser obrigado a pegar o bote e voltar ao píer. O El Encanto
ficava a cinco minutos dali, a pé. Era um dos poucos restaurantes da ilha que ficavam abertos durante os meses de inverno.
Sentou-se e começou a pôr em ordem os documentos da pilha. Não era uma tarefa difícil. Cada página tinha um carimbo com a data no canto superior direito. Mas McCaleb
parou logo depois de começar. Olhou para a mensagem pregada na parede e concluiu que precisava examinar as informações por outro ângulo se queria descobrir algo
que não notara antes, que lhe escapara. Decidiu não pôr a pilha na ordem correta. Em vez disso, releria os documentos na ordem aleatória em que se encontravam. Fazendo
isso, evitaria pensar no fluxo das investigações e suas etapas sucessivas. Simplesmente teria que considerar cada relatório como uma peça isolada num quebra-cabeças.
Era um truque mental simples, mas ele já agira assim em outros casos no FBI. Às vezes surgia algo novo, algo que lhe escapara anteriormente.
Olhou para o relógio novamente e pegou o primeiro documento da pilha. Era o laudo da autópsia.
Capítulo 32
McCaleb aproximou-se rapidamente dos degraus da entrada do El Encanto. Viu seu carrinho de golfe estacionado no meio-fio. A maioria dos veículos desse tipo existentes
na ilha eram parecidos, mas ele identificou o dele por causa do assento rosa e branco do bebê. Sua família ainda estava ali.
Subiu os degraus, e a recepcionista, reconhecendo-o como morador da ilha, apontou-lhe a mesa onde sua família estava. Correu para lá e puxou uma cadeira ao lado
de Graciela. Eles estavam quase terminando de almoçar, e ele notou que a garçonete já deixara a conta na mesa.
- Desculpe, eu me atrasei.
Pegou uma batata frita da cestinha no centro da mesa e molhou-a nas tigelas de salsa e guacamole antes de metê-la na boca. Graciela consultou o relógio e fuzilou-o
com seus profundos olhos castanhos. Ele agüentou firme, já se preparando para o próximo olhar, que tinha certeza que viria
- Não posso ficar.
Ela pousou o garfo ruidosamente no prato. Terminara. - Terry...
- Eu sei, eu sei. Mas surgiu uma coisa. Preciso ir à cidade ainda hoje.
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- O que pode ter surgido? Você está fora do caso. É domingo. As pessoas estão vendo futebol, e não se metendo em assassinatos que não lhes pediram para solucionar.
Ela apontou para um televisor instalado no canto superior do salão. Três comentaristas com pescoços grossos estavam sentados diante de uma bancada, tendo ao fundo
um campo de futebol americano. McCaleb sabia que o vencedor daquele dia seria um dos adversários do próximo jogo do Super Bowl. Estava pouco se importando com aquilo,
mas subitamente lembrou que prometera assistir a pelo menos um dos jogos com Raymond.
- Pediram, sim, Graciela.
- Do que está falando? Não me disse que eles te pediram pra ficar fora do caso?
Ele revelou que descobrira Bosch no barco naquela manhã e contou o que o detetive lhe pedira para fazer.
- E foi esse cara que você apontou para Jaye como o provável culpado?
McCaleb balançou a cabeça.
- Como ele sabia onde você morava?
- Ele não sabia. Ele sabia do barco, mas não onde a gente mora. Não precisa ficar preocupada com isso.
- Acho que preciso. Terry, você está levando isso longe demais e não está enxergando os perigos pra você mesmo e pra sua família. Eu acho que...
- Sério? Eu acho que...
Ele parou de falar, meteu a mão no bolso e tirou duas moedas de vinte e cinco centavos. Virou-se para Raymond.
- Raymond, já acabou de comer? -Opa.
- Você quer dizer "sim"? -Sim.
- Tá legal, pegue isso e vá jogar videogame ali perto do bar. O menino pegou as moedas.
- Você está dispensado.
Raymond levantou-se, hesitante, e correu para o salão contíguo, onde havia uns videogames de mesa que eles já tinham
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jogado antes. Escolheu um jogo que McCaleb sabia que era o Pac-man e se sentou, ainda dentro do raio de visão deles.
McCaleb olhou novamente para Graciela, que tinha a bolsa no colo. Ela estava pegando dinheiro e pondo-o sobre a conta.
- Graciela, pare um instante. Olhe pra mim.
Ela terminou de contar o dinheiro e meteu novamente a carteira na bolsa. Olhou para ele.
- Temos que ir embora. Está na hora da soneca de CiCi.
A neném estava no seu assento emborrachado junto à mesa, segurando a bola azul e branca pendurada no arame.
- Ela está bem. Pode dormir aqui mesmo. Simplesmente me escute um minuto.
Ficou esperando, e Graciela assumiu uma expressão condescendente.
- Muito bem. Diga o que tem a dizer, mas depois eu preciso ir embora.
McCaleb se virou, inclinando-se para perto de Graciela a fim de que suas palavras só fossem ouvidas por ela. Notou a borda de uma das orelhas dela aparecendo entre
as mechas de cabelo.
- A gente está se aproximando de uma crise, não é? Graciela concordou com a cabeça. Imediatamente, lágrimas
escorreram pelo seu rosto, como se o fato de McCaleb ter dito aquelas palavras em voz alta houvesse derrubado o tênue mecanismo de defesa que ela construíra interiormente
para se proteger e proteger seu casamento. McCaleb pegou o guardanapo limpo embaixo dos talheres e entregou-o a ela. Depois colocou a mão na nuca de Graciela e puxou-a
em sua direção, beijando-a no rosto. Por cima da cabeça de Graciela, viu Raymond observando-os com uma expressão assustada.
- A gente já conversou sobre isso, Graci - começou ele. - Você meteu na cabeça que nós não podemos ter nossa casa, nossa família e tudo mais, se eu trabalhar nisso.
O problema é a palavra "se". Esse é que é o erro. Porque não existe "se". Não é "se eu trabalhar nisso". E nisso que eu trabalho. E já passei tempo demais pensando
o contrário, tentando me convencer de outra coisa.
300
Mais lágrimas irromperam, e Graciela levou o guardanapo ao rosto. Chorava em silêncio, mas McCaleb sabia que as pessoas no restaurante já haviam notado e estavam
assistindo à cena entre os dois, indiferentes à televisão ali no alto. Deu uma olhada para Raymond e viu que o garoto já voltara ao videogame.
- Eu sei - conseguiu dizer Graciela.
Ele ficou surpreso com a admissão dela. Tomou aquilo como um bom sinal.
- Então, o que a gente vai fazer? Não estou falando só de agora e desse caso. Estou falando de agora e sempre. O que a gente vai fazer? Graci, estou cansado de tentar
ser o que não sou e de ignorar aquilo dentro de mim que eu sei que é o que sou de verdade. Foi preciso esse caso para que eu finalmente percebesse e admitisse isso
pra mim mesmo.
Graciela não disse nada. McCaleb não esperava que ela dissesse.
- Você sabe que eu te amo, e que amo as crianças. O problema
não é esse. Eu acho que posso ter as duas coisas, e você acha que
não. Você adotou essa atitude de uma-coisa-ou-outra, e eu acho
que isso não é certo. Nem justo.
Ele sabia que estava magoando Graciela com aquelas palavras. Estava traçando uma linha divisória. Um dos dois teria que capitular. E estava dizendo que não seria
ele.
- Escute, vamos pensar sobre isso. Aqui não é um bom lugar pra conversar. Vou terminar o meu trabalho nesse negócio, e depois nós vamos nos sentar e conversar sobre
o nosso futuro. Está bem?
Ela balançou a cabeça vagarosamente, mas não olhou para ele.
- Faça o que tiver que fazer - disse ela, num tom de voz que McCaleb percebeu que o deixaria culpado para sempre. - Só espero que tome cuidado.
Ele a puxou para si e a beijou novamente.
- Tenho coisa demais aqui com você pra não tomar. Levantou-se e deu a volta à mesa. Foi até a neném e beijou-a
no alto da cabeça. Destravou o cinto de segurança do assento emborrachado e ergueu a menina.
- Vou levar a Ciei até o carrinho de golfe - disse ele. - Por que não pega o Raymond?
301
Levou a neném até o carrinho e prendeu-a no assento de segurança. Pôs o assento emborrachado no compartimento de carga traseiro. Graciela chegou com Raymond poucos
minutos depois. Tinha os olhos inchados de tanto chorar. McCaleb pôs a mão no ombro de Raymond e levou-o até o banco do carona.
- Raymond, vai ter que assistir ao segundo jogo sem mim. Tenho um trabalho a fazer.
- Posso ir com você. Posso ajudar.
- Não, não é um passeio marcado
- Eu sei, mas mesmo assim posso ajudar.
McCaleb sabia que Graciela estava olhando para ele e sentiu a culpa ardendo feito o sol nas costas.
- Obrigado, Raymond, mas talvez da próxima vez. Ponha o cinto de segurança.
Depois que o menino se acomodou, McCaleb deu um passo atrás. Olhou para Graciela, que não estava mais olhando para ele, e disse:
- Vou voltar logo que puder. E vou levar o telefone, caso você queira ligar.
Graciela fingiu que não ouviu. Afastou o carrinho do meio-fio e seguiu pela avenida Manila. McCaleb ficou olhando até eles
desaparecerem de vista.
Capítulo 33
Na caminhada de volta ao píer o celular tocou. Era Jaye Wtnston retornando a ligação dele. Ela estava falando bem baixinho e disse que estava telefonando da casa
da mãe. McCaleb estava com dificuldade para ouvi-la, e sentou-se num dos bancos ao longo da calçada do cassino. Inclinou-se para a frente e pôs os cotovelos nos
joelhos, com uma das mãos segurando o telefone junto ao ouvido e a outra sobre a primeira.
- Deixamos escapar alguma coisa - disse ele. - Deixei escapar alguma coisa.
- Terry, do que está falando?
- No dossiê de assassinato. No prontuário da prisão de Gunn. Ele estava...
- Terry, o que é isso? Você está fora do caso.
- Quem disse isso, o FBI? Eu não trabalho mais pra eles, Jaye.
- Então quem diz sou eu. Não quero que prossiga nisso...
- Também não trabalho pra você, Jaye. Lembra? Houve um longo silêncio ao telefone.
- Terry, não sei o que está fazendo, mas tem que parar. Você não tem autoridade, não desempenha mais qualquer função nesse caso. Se aqueles caras, Twilley e Friedman,
descobrirem que ainda está metendo o bedelho nisso, podem prender você por interferência. E você sabe que eles são do tipo que faz isso.
- Você quer uma função, eu já tenho uma função.
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- O quê? Ontem mesmo retirei a autorização que dei a você. Não pode me usar pra isso.
McCaleb hesitou, e depois decidiu contar tudo a Jaye.
- Tenho uma função. Acho que dá pra dizer que estou trabalhando para o acusado.
O silêncio de Jaye foi mais longo ainda dessa vez. Quando voltou a falar, pronunciou as palavras com muita lentidão.
- Está dizendo que foi procurar Bosch?
- Não. Ele veio me procurar. Apareceu no barco hoje de manhã. Eu tinha razão sobre a coincidência daquela noite. Apareço na casa dele, e a ex-parceira dele liga
falando de você. Ele juntou as coisas. O repórter do New Times também telefonou pra ele. Bosch percebeu o que estava acontecendo sem que eu precisasse lhe contar
nada. Mas nada disso importa, Jaye. O que importa é que eu acho que me precipitei acusando Bosch. Deixei escapar alguma coisa, e já não tenho tanta certeza. E possível
que tudo tenha sido uma armação.
- Ele convenceu você.
Não, eu mesmo me convenci.
McCaleb ouviu vozes ao fundo, e Jaye disse-lhe que esperasse um instante. Depois ouviu vozes abafadas por uma mão sobre o fone, no que parecia uma discussão. Levantou-se
e continuou a andar na direção do píer. Jaye voltou ao telefone depois de alguns segundos.
Desculpe - disse ela. - Não é uma boa hora pra conversar. Estou no meio de uma confusão aqui.
Podemos nos encontrar amanhã de manhã? Do que está falando? - disse Jaye, quase guinchando. Acaba de me dizer que está trabalhando para o alvo de uma investigação.
Não vou me encontrar com você. O que ia parecer, caralho? Espere um instante...
McCaleb ouviu a voz abafada de Jaye pedindo desculpas a alguém pelo palavreado. Depois voltou à linha. - Olhe, preciso desligar.
Escute, não me interessa o que ia parecer. Estou interessado é na verdade, e achei que você também estava. Se não quer se encontrar comigo, ótimo. Também preciso
desligar.
- Terry, espere.
305
Ele ficou ouvindo. Jaye não disse nada. McCaleb percebeu que ela estava pensando em outra coisa. -E aí, Jaye?
- O que disse que nós deixamos escapar?
- Estava no pacote sobre a última prisão de Gunn por bebedeira. Depois que Bosch contou que conversara com Gunn na cadeia, acho que você reuniu todos os prontuários.
Só dei uma olhada neles quando folheei o dossiê pela primeira vez.
- Eu reuni os prontuários - disse ela em tom defensivo. - Ele passou a noite de 30 de dezembro na cela de detenção de Hollywood. Foi lá que Bosch falou com ele.
- E foi libertado sob fiança pela manhã. Às sete e meia.
- E. E daí? Não entendi.
- Veja quem pagou a fiança.
- Terry, estou na casa dos meus pais. Não tenho...
- Tem razão, desculpe. A fiança foi paga por Rudy Tafero. Silêncio. McCaleb já chegara ao píer. Foi andando pelo passa-
diço que levava ao cais dos esquifes e apoiou-se na balaustrada. Pôs novamente a mão livre em concha sobre o ouvido.
- Tá legal, a fiança foi paga por Rudy Tafero - disse Jaye. Presumo que Rudy seja um fiador licenciado. O que isso significa?
- Você não anda assistindo à tevê. Tem razão, Tafero é um fiador licenciado. Pelo menos pôs o número da licença na folha de fiança. Mas também é investigador particular
e consultor de segurança. Além disso... prepare-se, Jaye ... trabalha para David Storey.
Jaye não disse nada, mas McCaleb ouviu-a soltar um arquejo ao telefone.
- Terry, acho melhor você ir mais devagar. Está tirando conclusões demais a partir disso.
- Nada é coincidência, Jaye.
- Que coincidência? O sujeito é um fiador licenciado. Trabalha nisso. Tira as pessoas da cadeia. Aposto com você uma caixa de rosquinhas que o escritório dele fica
bem diante da delegacia de Hollywood junto com os outros. Provavelmente ele paga a fiança de um terço dos bêbados e de um quarto das prostitutas da cela de detenção
de lá.
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- Você não acredita que a explicação seja tão simples, e sabe disso.
- Não venha me dizer o que eu sei.
- Isso foi no meio dos preparativos para o julgamento de Storey. Por que Tafero iria até lá e assinaria ele próprio uma fiança por bebedeira?
- Porque talvez ele trabalhe sozinho, e talvez, como eu disse, só precisasse atravessar a rua.
- Não acredito. E tem mais. A folha de ocorrência diz que Gunn deu o telefonema a que tinha direito às três da madrugada,
31 de dezembro. O número está na folha... Ele ligou para a irmã em Long Beach.
- Tá legal, e daí? Já sabíamos disso.
- Telefonei pra ela hoje e perguntei se tinha chamado um fiador para ele. Ela disse que não. Disse que estava cansada de receber telefonemas de madrugada e de viver
literalmente tirando o irmão da forca. Disse que dessa vez mandara Gunn se virar sozinho.
- Então ele procurou Tafero. E daí?
- Como conseguiu? Já tinha dado o único telefonema permitido. Jaye não conseguiu responder. Os dois ficaram em silêncio por
certo tempo. McCaleb lançou um olhar pelo porto. A lancha de aluguel amarela estava deslizando lentamente por um dos canais,
vazio, a não ser pelo homem ao volante. Homens sozinhos em barcos, pensou McCaleb.
- O que vai fazer? - perguntou Jaye por fim. - Para onde vai levar essa história?
- Vou à cidade hoje à noite. Pode encontrar-se comigo de manhã?
-Onde? Quando?
O tom de voz de Jaye revelava que ela estava irritada com a perspectiva daquele encontro.
- Sete e trinta, diante da delegacia de Hollywood. Houve uma pausa, e depois Jaye disse:
- Espere um instante, espere um instante. Não posso fazer isso. Se Hitchens souber, estou frita. Ele vai me transferir para Palmdale. Vou passar o resto da minha
carreira desencavando ossos na areia do deserto.
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McCaleb estava pronto para aquele protesto.
- Não disse que os caras do FBI querem o dossiê de assassinato de volta? Você se encontra comigo, e eu levo o dossiê. O que Hitchens pode dizer a respeito disso?
Houve um silêncio enquanto Jaye pensava no assunto.
- Tá legal, vai funcionar. Estarei lá.
Capítulo 34
Quando chegou em casa à noite, Bosch encontrou a luz de recados da secretária eletrônica piscando. Apertou o botão e ouviu dois recados, um de cada promotor do caso
Storey. Decidiu retornar primeiro o telefonema de Janis Langwiser. Enquanto teclava o número no telefone, ficou imaginando que emergência fizera os dois membros
da equipe da promotoria lhe telefonarem. Pensou que talvez tivessem sido contatados pelos agentes do FBI que McCaleb mencionara. Ou pelo repórter.
- O que há? - perguntou ele, quando Janis atendeu. - Pra vocês dois me ligarem, deve ser coisa grande e ruim.
- Harry? Como está?
- Vou levando. O que estão aprontando?
- E engraçado você dizer isso. Roger está vindo pra cá, e eu estou aprontando o jantar. Vamos repassar o depoimento de Annabelle Crowe para o júri de instrução mais
uma vez. Não quer vir?
Ele sabia que ela morava em Água Dulce, a uma hora de carro ao norte dali.
- Hum, já passei o dia todo dirigindo. Fui até Long Beach e voltei. Acha que precisam mesmo de mim aí?
- Opcional. Só não queríamos que se sentisse excluído. Mas não foi por isso que telefonamos.
- Qual foi o motivo?
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311
Ele estava na cozinha, colocando um engradado de cervejas Anchor Steam na geladeira. Tirou uma garrafa e fechou a porta.
- Eu e Roger passamos o fim de semana inteiro conversando sobre isso. Também falamos com Alice Short sobre o assunto.
Alice Short era a principal assistente da promotoria, encarregada dos julgamentos mais importantes. Chefe deles. Parecia que haviam sido contatados a respeito do
caso Gunn.
- Que "assunto"? - perguntou Bosch, enfiando a garrafa no abridor da parede e arrancando a tampa.
- Bom, achamos que o caso está realmente correndo como manda o figurino. Tudo se encaixou. Na verdade, a coisa é à prova de bala, Harry, e achamos que devemos puxar
o gatilho amanhã.
Bosch ficou em silêncio por algum tempo, enquanto tentava decifrar o código armamentista utilizado.
- Está dizendo que vamos encerrar amanhã?
- Achamos que sim. Provavelmente vamos conversar sobre isso novamente hoje, mas já temos a bênção de Alice, e Roger acha que essa é realmente a jogada certa. Estamos
pensando em interrogar várias testemunhas de encerramento pela manhã e convocar Annabelle Crowe depois do almoço. Finalizaríamos com ela... uma história humana.
Ela vai ser o nosso fecho de ouro.
Bosch ficou mudo. Podia ser a jogada certa do ponto de vista da promotoria, mas colocaria J. Reason Fowkkes no controle das coisas já na terça-feira.
- Harry, o que acha?
Ele deu um bom gole na garrafa. A cerveja não estava muito gelada. Tinha ficado muito tempo no carro.
- Acho que assim vocês só têm um tiro - disse ele, mantendo as imagens de armamento. - É melhor pensarem bastante nisso hoje, enquanto prepararam o macarrão. Não
vão ter uma segunda chance de argumentar.
- Sabemos disso, Harry. E como sabe que estou preparando macarrão?
Dava para ouvir o sorriso na voz dela.
- Chutei.
- Bom, não se preocupe, vamos pensar bastante no caso. E o
que temos feito.
Ela fez uma pausa, permitindo que ele respondesse, mas Bosch
ficou em silêncio.
- Se seguirmos esse caminho, qual é a situação de Annabelle?
- Ela está esperando nos bastidores. Pronta para entrar em
cena.
- Consegue falar com ela hoje?
- Sem problema. Vou dizer a ela pra estar lá ao meio-dia.
- Obrigado, Harry. A gente se vê amanhã.
Desligaram. Bosch refletiu sobre as coisas. Ficou pensando se deveria telefonar para McCaleb e contar o que estava acontecendo. Decidiu esperar. Foi para a sala
e ligou o som. O CD de Art Pepper ainda estava na bandeja do aparelho. A música encheu o aposento.
Capítulo 35
McCaleb estava encostado no Cherokee estacionado diante da delegacia de Hollywood do Departamento de Polícia de Los Angeles, quando Jaye Winston chegou numa BMW
Z3 e estacionou. Quando saltou, viu que McCaleb examinava com admiração
o carro.
- Me atrasei e não tive tempo de pegar um carro oficial.
- Gostei do carango. Sabe aquele ditado sobre Los Angeles? Você é o que você dirige.
- Não comece a traçar o meu perfil, Terry. E cedo pra caralho. Onde estão o dossiê e a fita?
Ele notou o palavreado dela, mas não disse nada. Desencostou do carro e deu a volta até o lado do carona. Abriu a porta, tirando o dossiê de assassinato e a fita
de vídeo. Entregou-os a ela, que levou tudo de volta para o BMW. McCaleb fechou e trancou o Cherokee, baixando o olhar através da vidraça para o assoalho do banco
traseiro, onde estava a caixa Kinko que ele cobrira com o jornal da manhã. Antes de ir para o encontro, tinha passado numa loja 24 horas no Sunset Boulevard e feito
uma fotocópia do dossiê inteiro. A fita de vídeo era um problema, pois não sabia onde poderia copiá-la rapidamente. Por isso simplesmente comprara uma fita nova
na Rite-Aid, perto da marina, e metera a fita virgem na caixa que Jaye Winston lhe dera. Calculou que ela não iria verificar na hora se ele tinha devolvido a fita
certa.
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Quando Jaye voltou do carro, McCaleb apontou com o queixo para o outro lado da rua.
- Acho que devo uma caixa de rosquinhas a você.
Ela olhou para o outro lado da rua Wilcox. Bem na frente da delegacia havia um prédio maltratado, de dois andares, com um punhado de escritórios de
fiadores. Nas janelas viam-se os números dos telefones em anúncios baratos de néon. Talvez aquilo ajudasse os possíveis clientes a memorizá-los quando passassem sentados no banco
traseiro das radiopatrulhas. O escritório do meio tinha uma placa pintada na janela: Fianças Valentino.
- Qual deles? - perguntou Jaye.
- Valentino. Rudy Valentino Tafero. Era assim que o chamavam quando trabalhava do lado de cá da rua.
McCaleb examinou novamente o pequeno negócio e abanou a cabeça.
- Ainda não entendo como David Storey pode ter se ligado a um fiador com anúncio de néon.
- Hollywood não passa de lixo de rua com dinheiro. Mas o que a gente está fazendo aqui? Não tenho muito tempo.
- Trouxe seu distintivo?
Jaye lhe lançou um olhar do tipo não-me-sacaneie, e McCaleb explicou o que queria fazer. Os dois subiram os degraus e entraram na delegacia. No balcão da recepção
Jaye mostrou o distintivo e pediu para falar com o sargento do plantão matinal. Um sujeito que trazia o nome Zucker no peito e divisas de sargento na manga saiu
do pequeno escritório. Jaye mostrou o distintivo novamente e se apresentou. Depois apresentou McCaleb como seu sócio. Zucker franziu as volumosas sobrancelhas, mas
não perguntou o que era aquele negócio de sócio.
- Estamos trabalhando num caso de homicídio ocorrido na véspera de Ano-Novo. A vítima passou a noite anterior na cela de detenção aqui. Nós...
- Edward Gunn.
- Certo. Conhecia o sujeito?
- Ele esteve aqui algumas vezes. E é claro que ouvi dizer que não vai mais voltar.
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- Precisamos falar com o responsável pela cela na parte da manhã.
- Então deve ser comigo. Não temos um plantão específico para isso. Aqui a coisa funciona na base de quem está disponível. O que querem saber?
McCaleb tirou do bolso várias fotocópias do dossiê de assassinato e espalhou-as no balcão. Notou o olhar que Jaye lhe lançou, mas ignorou o gesto.
- Estamos interessados em saber como ele conseguiu a fiança disse.
Zucker girou as folhas sobre o balcão para poder ler. Pôs o dedo na assinatura de Rudy Tafero.
- Diz bem aqui. Rudy Tafero. Ele tem um escritório do outro lado da rua. Veio até aqui e pagou a fiança.
- Alguém telefonou pra ele?
- Sim, o cara telefonou. Gunn.
McCaleb bateu com o dedo na cópia da folha do dossiê.
- Diz aqui que ele usou o telefonema permitido pra ligar pra este número. E o telefone da irmã dele.
- Então ela deve ter telefonado para Rudy, em nome dele.
- Portanto, aqui ninguém dá dois telefonemas.
- Não. O movimento é muito grande, e geralmente estamos tão ocupados que eles têm sorte se conseguem dar um.
McCaleb balançou a cabeça. Dobrou as fotocópias e já ia colocá-las de volta no bolso, quando Jaye as tirou da sua mão.
- Eu fico com isso - disse ela.
Meteu as cópias dobradas no bolso traseiro das calças jeans e disse:
- Você não é o tipo do sargento bonzinho que faria o favor de ligar para Tafero, já que ele foi do departamento, dando a dica de que havia um freguês em potencial
pra ele aqui na cela, não é?
Zucker ficou olhando para ela por um instante, com um rosto que parecia de pedra.
- Isso é muito importante, sargento Zucker. Se não nos contar, a coisa pode arrebentar para o seu lado.
O rosto de pedra rachou-se num pálido sorriso.
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- Não, eu não sou bonzinho assim - disse Zucker. - E não tenho ninguém bonzinho assim no turno da manhã. Por sinal, está na minha hora de largar o serviço, de modo
que não sou obrigado a ficar falando com vocês. Tenham um bom-dia.
Começou a se afastar do balcão.
- Uma última coisa - disse Jaye rapidamente. Zucker voltou-se.
- Foi você que telefonou para Harry Bosch e contou que Gunn estava na cela?
Zucker balançou a cabeça.
- Eu tinha uma solicitação permanente dele. Sempre que Gunn fosse trazido para aqui, Bosch queria ser informado. Ele vinha e falava com o cara, tentando arrancar
dele algo sobre um caso antigo. Bosch não desistia.
- Aqui diz que Gunn só foi autuado às duas e trinta - disse McCaleb. - Você telefonou para Bosch no meio da noite?
- Era parte do acordo. Bosch não se importava com a hora. E na realidade eu ligava para o bip dele. Só depois é que ele telefonava para mim.
Foi o que aconteceu naquela noite?
Foi. Eu liguei para o bip dele, e Bosch telefonou de volta. Eu disse que Gunn estava aqui novamente. Bosch apareceu e falou com ele. Ainda avisei que era melhor
esperar até de manhã, porque Gunn estava bêbado feito um gambá, mas Bosch veio de qualquer maneira. Por que estão me fazendo tantas perguntas sobre ele? Jaye não
respondeu, de modo que McCaleb se intrometeu.
- Estamos fazendo perguntas sobre Gunn.
- Bom, isso é tudo que eu sei. Posso ir pra casa agora? Foi um dia longo.
- Todos são, não? - disse Jaye. - Obrigado, sargento.
Eles se afastaram do balcão e foram andando até os degraus da frente.
O que acha? - perguntou Jaye.
Me pareceu sincero. Mas vamos dar uma olhada no estacionamento dos funcionários.
- Pra quê?
- Faça esse favor para mim. Vamos ver qual é o carro do sargento.
- Está desperdiçando meu tempo, Terry.
Eles entraram no Cherokee de McCaleb e deram a volta no quarteirão, até chegarem ao portão do estacionamento dos funcionários da delegacia. McCaleb avançou cerca
de cinqüenta metros e estacionou ao lado de um hidrante. Ajustou o espelho retrovisor lateral para poder ver qualquer carro que saísse do estacionamento. Os dois
ficaram sentados esperando em silêncio, até que Jaye falou.
- Se nós somos o que dirigimos, o que este carro faz de você? McCaleb sorriu.
- Nunca pensei nisso. Um Cherokee... Acho que me faz o último remanescente de alguma estirpe, ou coisa assim.
Ele olhou para ela e depois de volta para o espelho.
- Ah, é? E essa camada de poeira em tudo, o que isso...
- Lá vamos nós. Acho que é ele - disse McCaleb, vendo um carro sair do estacionamento e dobrar à esquerda na direção deles. Depois acrescentou: - Está vindo pra
cá.
Nenhum dos dois se mexeu. O carro se aproximou e parou bem ao lado deles. McCaleb olhou para o lado displicentemente, e seus olhos encontraram os de Zucker. O tira
abaixou a vidraça do lado do carona. McCaleb viu que não tinha saída e também abaixou a sua.
- Está estacionado ao lado de um hidrante, detetive. Cuidado com a multa.
McCaleb balançou a cabeça. Zucker bateu continência com dois dedos e foi embora. McCaleb notou que ele dirigia um Crown Victoria com pára-choques e rodas comuns.
Era uma radiopatrulha de segunda mão. Provavelmente Zucker comprara o carro num leilão por quatrocentos dólares e mandara pintá-lo por noventa.
- Estamos parecendo dois idiotas - disse Jaye.
- Pois é.
- E agora, qual é sua teoria sobre aquele carro?
- Ou é um sujeito honesto, ou vem trabalhar nesse calhambeque pra ninguém ver o Porsche - disse McCaleb fazendo uma pausa. Depois virou-se para Jaye, sorriu e acrescentou:
- Ou o Z3.
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- Muito engraçado, Terry. E agora? Em algum momento do dia eu vou ter que começar a trabalhar de verdade. E tenho um encontro marcado com os seus chapas do FBI ainda
pela manhã.
- Fique comigo... e eles não são meus chapas.' Ele ligou o Cherokee e se afastou do meio-fio.
- Acha mesmo que este carro está sujo? - perguntou.
Capítulo 36
O correio da rua Wilcox era um prédio grande, do tempo da Segunda Guerra Mundial, com pé-direito de mais de oito metros e murais com bucólicas cenas de amizade e
boas ações cobrindo a parte superior das paredes. Quando entraram, McCaleb esquadrinhou os murais, mas não por suas qualidades artísticas ou filosóficas. Contou
três pequenas câmeras instaladas acima das áreas públicas da repartição. Mostrou-as a Jaye Winston. Eles tinham uma chance.
Entraram na fila. Quando chegaram ao guichê, Jaye mostrou seu distintivo e perguntou pelo chefe da segurança no local. Foram orientados para uma porta perto de uma
fileira de máquinas de venda e esperaram quase cinco minutos antes que a porta se abrisse e um homenzinho negro, com cabelo grisalho, espiasse para fora.
- Sr. Lucas? - perguntou Jaye.
- Sou eu - disse ele com um sorriso.
Jaye mostrou o distintivo novamente e apresentou McCaleb simplesmente pelo nome. Ao saírem da delegacia de Hollywood, ele dissera que aquele negócio de chamá-lo
de "sócio" não estava funcionando.
- Estamos trabalhando na investigação de um homicídio e uma das provas materiais importantes é uma ordem de pagamento que foi comprada aqui e provavelmente enviada
pelo correio no dia 22 de dezembro.
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- No dia 22? Então foi durante a correria do Natal.
- Pois é.
Jaye olhou para McCaleb.
- Notamos as suas câmeras lá nas paredes - disse ela. - Gostaríamos de saber se o senhor tem uma fita de videocassete do dia 22.
- Videocassete - repetiu Lucas, como se a palavra lhe fosse estranha.
- O senhor é o chefe da segurança aqui, não é? - disse Jaye, impaciente.
- Sou, sou o homem da segurança. Eu controlo as câmeras.
- Poderia nos levar lá dentro e mostrar o seu sistema de segurança? - disse McCaleb num tom mais gentil.
- Opa, é claro que posso. Levo vocês lá assim que tiverem autorização.
- Como e onde podemos conseguir essa autorização? - perguntou Jaye.
- Na Regional de Los Angeles. No centro da cidade.
- Temos que falar com quem? Estamos numa investigação de homicídio. O tempo é fundamental.
- Teriam que falar com o Preechnar. E o inspetor postal.
- Seria incômodo irmos ao seu escritório e telefonarmos para Preechnar juntos? - perguntou McCaleb. - Isso nos pouparia muito tempo, e ele poderia falar diretamente
com o senhor.
Lucas pensou um pouco na proposta e decidiu que era uma boa idéia. Balançou a cabeça.
- Vamos ver o que podemos fazer.
Abriu a porta e os fez atravessar um lugar apinhado de grandes cestas com correspondência, indo até um escritório minúsculo, com duas escrivaninhas espremidas uma
contra a outra. Numa das mesas havia um monitor de vídeo com a tela dividida entre as imagens das quatro câmeras que vigiavam a área pública do correio. McCaleb
percebeu que não notara uma das câmeras quando examinara as paredes ao entrar.
Lucas correu o dedo pela relação de números de telefone pregada no tampo da mesa e fez a chamada. Assim que o supervisor
321
atendeu, ele explicou a situação e passou o fone para Jaye. Ela explicou novamente o que queriam e devolveu o fone a Lucas, balançando a cabeça para McCaleb. Tinham
conseguido a aprovação do homem.
- Muito bem - disse Lucas depois de desligar. - Vamos ver o que temos aqui.
Levou a mão ao quadril e puxou uma argola de chaves presa ao cinto por um fio retrátil. Foi até o outro lado da sala e abriu a porta de um armário, revelando um
suporte para aparelhos de vídeo e quatro prateleiras superiores, cada uma com fitas marcadas por números que iam de 1 a 31. No chão havia dois caixotes de fitas
virgens.
McCaleb viu tudo aquilo e subitamente percebeu que eram 22 de janeiro, exatamente um mês depois do dia em que a ordem de pagamento fora comprada.
- Sr. Lucas, pare as máquinas - disse ele.
- Não posso fazer isso. As máquinas têm que funcionar sempre. Se estamos abertos para o público, as fitas têm que rodar.
- O senhor não entendeu. Vinte e dois de dezembro é o dia que queremos. Nós estamos gravando em cima do dia que queremos examinar.
- Alto lá, detetive McCallan. Preciso explicar como a coisa funciona.
McCaleb nem se deu ao trabalho de corrigir o engano do sujeito quanto ao seu nome. Não havia tempo.
- Então, depressa, por favor.
Consultou o relógio. Eram oito e quarenta e cinco. O correio abrira havia quarenta e oito minutos. Ou seja, quarenta e oito minutos da fita de vinte e dois de dezembro
já haviam sido apagados pelos quarenta e oito minutos da gravação em curso.
Lucas começou a explicar o procedimento de gravação. Havia um aparelho para cada câmera. Cada aparelho recebia uma fita ao começo do dia. As quatro câmeras estavam
programadas para gravar trinta quadros por minuto, permitindo que cada fita cobrisse o dia inteiro. As fitas de cada dia eram mantidas por um mês e depois
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reutilizadas se não fossem requisitadas pelas investigações do serviço de inspetoria postal.
- A gente recebe muita picaretagem. Sabem como é em Hollywood... E acaba com uma porção de fitas requisitadas. Ou são buscadas aqui pelos inspetores ou despachadas
por malote.
- Nós compreendemos - disse Jaye, com um tom de urgência na voz, ao aparentemente perceber o mesmo que McCaleb. - Por favor, quer desligar as máquinas e substituir
as fitas? Estamos gravando por cima de coisas que talvez sejam provas importantes.
- Imediatamente - disse Lucas.
Mas primeiro retirou quatro fitas virgens do caixote no chão. Depois arrancou etiquetas de um rolo e pregou-as nas fitas. Pegou uma caneta atrás da orelha, escrevendo
a data e uma espécie de código nas etiquetas. Só então começou finalmente a retirar as fitas dos aparelhos e a substituí-las pelas fitas virgens.
- Como querem fazer isso? Essas fitas são de propriedade dos correios. Não podem sair daqui. Se quiserem, posso deixar vocês aqui na mesa com uma tevê portátil que
tem um aparelho de vídeo embutido.
- Tem certeza que não pode simplesmente nos emprestar as fitas por hoje? - disse Jaye. - Posso trazer tudo de volta às...
- Só com um mandado judicial. Foi isso que Preechnar me disse. E é isso que vou fazer.
- Então acho que não temos escolha - disse Jaye, olhando para McCaleb e abanando a cabeça, frustrada.
Quando Lucas foi buscar a tevê, os dois decidiram que McCaleb ficaria e examinaria as fitas, enquanto Jaye iria até o escritório para a reunião das onze horas com
Twilley e Friedman, os homens do FBI. Ela disse que não falaria nada sobre a volta de McCaleb à investigação, nem sobre a possibilidade de que a suspeita sobre Bosch
podia ter sido um engano. Devolveria o dossiê de assassinato, já copiado, e a fita da cena do crime.
- Sei que não acredita em coincidências, mas isso é tudo que podemos fazer no momento, Terry. Se descobrir algo na fita, eu levo a coisa ao capitão. Aí nós mandamos
Twilley e Friedman para o espaço. Mas até você conseguir isso... Eu ainda estou num mato
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sem cachorro e preciso de algo mais que uma coincidência para pensar em outro suspeito que não seja Bosch.
- E o telefonema para Tafero?
- Que telefonema?
- De alguma forma, Tafero soube que Gunn estava na cela de detenção e veio pagar a fiança dele... para que eles pudessem matar o cara naquela noite e jogar a culpa
em Bosch.
- Quanto ao telefonema, não sei... Se não foi Zucker, provavelmente foi outro policial da delegacia que deve ter um esquema armado com Tafero. E o resto do que você
disse é pura especulação, sem apoio em um só fato.
- Eu acho que é...
- Pare, Terry. Não quero ouvir nada até você ter alguma base de apoio. Vou trabalhar.
Como seguindo a deixa, Lucas voltou empurrando um carrinho com um pequeno televisor em cima.
- Vou montar isso pra vocês - disse ele.
- Sr. Lucas, eu tenho um compromisso - disse Jaye. - Meu colega vai examinar as fitas. Obrigado pela cooperação.
- Fico contente por poder ajudar. Jaye olhou para McCaleb.
- Ligue pra mim.
- Quer que eu leve você até o carro?
- São só alguns quarteirões. Vou andando. Ele balançou a cabeça.
- Boa caçada - disse ela.
McCaleb balançou a cabeça. Ela já lhe dissera aquilo uma vez, num caso que não terminara muito bem para ele.
Capítulo 37
Janis e Kretzler disseram a Bosch que iam levar adiante o plano de terminar a fase da acusação até o final do dia.
- Storey já está no laço - disse Kretzler, sorrindo e gozando o surto de adrenalina provocado pela decisão de puxar o gatilho. Quando terminarmos, ele vai estar
mais enrolado que carretel. Vamos interrogar Hendricks e Annabelle Crowe hoje. Temos tudo que precisamos.
- Exceto o motivo - disse Bosch.
- O motivo não é importante num crime que obviamente é obra de um psicopata - disse Janis. - Aqueles jurados não vão voltar para a sala no final e dizer:
"É, mas por que ele cometeu o crime?" Vão dizer que esse cara é a porra de um doente e...
Sua voz caiu para um sussurro quando o juiz surgiu na porta atrás da bancada e entrou no tribunal.
-... precisa ser colocado atrás das grades.
O juiz chamou o júri, e poucos minutos depois os promotores começaram a apresentar suas últimas testemunhas.
Os três primeiros a depor eram integrantes da indústria cinematográfica que haviam comparecido à festa da estréia na noite da morte de Jody Krementz. Todos disseram
que haviam visto David Storey na estréia do filme e na recepção que se seguiu com uma mulher que identificaram pelas fotografias dos autos como Jody
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Krementz. A quarta testemunha, um roteirista chamado Brent Wiggan, declarou que deixara a festa poucos minutos antes da meia-noite e que ficara esperando seu carro
ser trazido ao balcão dos manobreiros junto com David Storey e uma mulher que também identificou como Jody Krementz.
- Por que o senhor tem tanta certeza que faltavam apenas alguns minutos para a meia-noite? - perguntou Kretzler. - Afinal de contas, aquilo era uma festa. Ficou
olhando para o relógio?
- Uma pergunta de cada vez, doutor Kretzler - avisou o juiz.
- Desculpe, meritíssimo. Por que o senhor está tão certo de que faltavam só alguns minutos para a meia-noite?
- Porque, na realidade, eu estava olhando para o relógio - disse Wiggan. - Isto é, para o meu relógio. Escrevo à noite. Sou mais produtivo de meia-noite às seis.
E por isso estava vigiando o relógio, sabendo que precisava voltar para casa por volta de meia-noite ou iria me atrasar no trabalho.
- Isso também quer dizer que não estava tomando bebida alcoólica na festa?
- Correto. Eu não estava bebendo porque não queria ficar cansado ou ter minha criatividade prejudicada. Geralmente, as pessoas não bebem antes de irem trabalhar
num banco ou pilotar um avião... Bom, acho que a maioria não bebe.
Fez uma pausa até as risadinhas cessarem O juiz fez cara de aborrecido, mas não disse nada. Wiggan parecia estar gostando daquele momento de atenção. Bosch começou
a ficar nervoso.
- Eu não bebo antes de ir trabalhar - continuou Wiggan por fim. - Escrever é uma arte, mas é também um trabalho, e é assim que eu encaro a coisa.
- Então está cristalinamente clara na sua memória a pessoa com quem David Storey estava poucos minutos antes da meianoite?
- Correto.
- E o senhor já conhecia David Storey pessoalmente, certo?
- E verdade. Conheço David Storey há vários anos.
-Já trabalhou para ele em algum projeto cinematográfico?
- Não, não trabalhei. Mas não por falta de tentar.
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Wiggan deu um sorriso triste. Aquela parte do depoimento, que incluía o comentário autodepreciativo, fora cuidadosamente planejada por Kretzler. Questionando diretamente
os pontos fracos de Wiggan, o promotor limitava o potencial de prejuízos que podiam ser causados ao testemunho.
O que quer dizer com isso?
- Ah, eu diria que nos últimos cinco anos, mais ou menos, enviei seis ou sete projetos de filmes diretamente para David ou para o pessoal da sua produtora. Ele nunca
comprou nenhum. Deu de ombros num gesto ingênuo.
Diria que isso criou um sentimento de animosidade entre o senhor e ele?
Não, de jeito nenhum... pelo menos da minha parte. E assim que a banda toca em Hollywood. Você vai tentando vender seu peixe, na esperança de que alguém acabe mordendo
a isca. Mas, se tiver um couro grosso, é melhor.
Sorriu e meneou a cabeça para o júri. Bosch já estava ficando em pânico com aquilo. Queria que Kretzler terminasse logo, antes que eles perdessem o júri.
Obrigado, Sr. Wiggan. É só isso - disse Kretzler, aparentemente sentindo as mesmas vibrações que Bosch.
Wiggan fez cara de desapontado quando percebeu que seu momento de glória estava acabando.
Mas nesse momento Fowkkes, que dispensara a reinquirição das três primeiras testemunhas do dia, levantou-se e foi até a tribuna.
Bom dia, Sr. Wiggan.
Bom dia - disse Wiggan, erguendo as sobrancelhas com expressão de o-que-temos-aqui?.
Só algumas perguntas. Poderia relacionar para o júri os títulos dos filmes que o senhor roteirizou e que foram produzidos?
Bom... até agora, nada foi feito. Tenho algumas opções e acho que em poucos...
Entendi. Ficaria surpreso ao saber que nos últimos quatro anos o senhor ofereceu projetos ou enviou roteiros a David Storey em vinte e nove ocasiões diferentes,
sendo todos rejeitados? O rosto de Wiggan ficou vermelho de vergonha.
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- Bom... talvez seja verdade. Eu... realmente não sei. Não fico registrando minhas rejeições, como David Storey aparentemente faz.
A última declaração foi dada em tom agressivo, e Bosch quase fez uma careta. Nada era pior que uma testemunha que é pega numa mentira e depois assume um tom defensivo.
Bosch olhou para o júri. Vários jurados haviam desviado o olhar da testemunha, num sinal de que estavam tão constrangidos quanto Bosch.
Fowkkes avançou para dar o golpe fatal.
- O senhor foi rejeitado pelo réu em vinte e nove ocasiões, e contudo diz ao júri que não quer mal a ele, correto?
- E assim que as coisas são em Hollywood. Pode perguntar a qualquer um.
- Bom, estou perguntando ao senhor. Está dizendo ao júri que não tem má vontade com o réu, embora ele viva dizendo que seu trabalho não é bom?
Wiggan quase balbuciou a resposta ao microfone.
- É, isso é verdade.
- Bom, o senhor é um homem melhor do que eu - disse Fowkkes. - Obrigado, meritíssimo. Nada mais, por enquanto.
Bosch sentiu que o balão da promotoria murchara bastante. Com quatro perguntas e em menos de dois minutos, Fowkkes pusera em dúvida toda a credibilidade de Wiggan.
E a prova de que a hábil cirurgia do advogado de defesa fora absolutamente perfeita era que Kretzler pouco poderia fazer para ressuscitar Wiggan se o interrogasse
novamente. E o promotor percebeu que era melhor não se arriscar a aumentar o tamanho do buraco. Dispensou a testemunha, e o juiz deu o intervalo matinal de quinze
minutos.
Depois que os jurados foram retirados e as pessoas começaram a sair do tribunal, Kretzler inclinou-se à frente de Janis e sussurrou em tom irritado para Bosch:
- Devíamos ter percebido que esse cara não ia segurar o rojão.
Bosch olhou em torno para ver se não havia repórteres ao alcance de sua voz e se inclinou para Kretzler.
329
- Pode até ser - disse ele. - Mas seis semanas atrás você disse que ia preparar Wiggan. Ele era responsabilidade sua, não minha. Vou tomar um café.
Levantou-se e deixou os dois promotores sentados ali.
Depois do intervalo os promotores decidiram que precisavam voltar com força depois da desastrosa reinquirição de Wiggan. Assim, abandonaram o plano de trazer mais
uma testemunha simplesmente para depor que vira Storey e a vítima juntos na festa de estréia do filme. Janis convocou ao banco um técnico de segurança residencial
chamado Jamal Hendricks.
Bosch foi buscar Hendricks no corredor. Era um negro de calças azuis e blusa de uniforme azul-clara, com o nome de batismo bordado num dos bolsos e o emblema da
Lighthou-se Security no outro. Ele planejara seguir direto para o trabalho depois de prestar depoimento.
Ao passar pelo primeiro conjunto de portas que davam acesso ao tribunal, Bosch perguntou a Hendricks, em tom baixo, se ele
estava nervoso.
- Não, cara, é moleza - replicou Hendricks.
No banco das testemunhas, Janis fez Hendricks relembrar seu currículo como técnico de manutenção da empresa de segurança residencial. Depois passou especificamente
para o trabalho que ele fizera no sistema de segurança da residência de David Storey. Hendricks disse que oito meses antes instalara um sistema Millenium 21, modelo
de luxo, na casa do diretor em Mulholland Drive.
- Pode nos descrever algumas das características do sistema Millenium 21, modelo de luxo?
- Bom, é o mais sofisticado do mercado. Tem de tudo. Sensoriamento e operação por controle remoto, programação de comando por reconhecimento de voz, amostragem automática
de sensores, programa hoteleiro... O equipamento de David Storey tem tudo.
- O que é um programa de registro hoteleiro?
- Basicamente, é um programa que registra as operações realizadas. Revela que portas e janelas foram abertas, a hora do evento, quando o sistema foi ligado e desligado,
que códigos pessoais foram
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usados, e vai por aí. Faz o acompanhamento de todo o sistema. É usado principalmente no comércio e na indústria, mas David Storey queria um sistema comercial e o
dispositivo foi incluído.
- Portanto, ele não pediu especificamente o programa hoteleiro?
- Isso eu não sei. Não vendi o sistema pra ele, só instalei.
- Mas ele podia ignorar a existência do programa.
- Tudo é possível, acho eu.
- É verdade que o detetive Bosch telefonou para a Lighthou-se Security e pediu que um técnico fosse ao encontro dele na casa de David Storey?
- É, e o pedido foi parar na minha mão porque eu tinha instalado o sistema. Me encontrei com ele lá na casa. Isso foi depois da prisão de David Storey, mas o advogado
dele também compareceu.
- Quando foi exatamente?
- No dia 11 de novembro.
- O que o detetive Bosch lhe pediu para fazer?
- Bom, primeiro ele me mostrou um mandado de busca que autorizava a coleta de informações do chip do sistema.
- Você ajudou o detetive nessa tarefa?
- Ajudei. Baixei o arquivo do programa hoteleiro e imprimi os dados para ele.
Janis Langwiser pediu que o mandado de busca e apreensão - o terceiro executado durante a investigação - fosse incluído nos autos como prova, juntamente com o relatório
impresso que Hendricks mencionara no depoimento.
- Bom, o detetive Bosch estava interessado nos dados do programa hoteleiro relativos à noite do dia 12 de outubro e a manhã do dia 13, certo?
- Certo.
- Pode examinar o relatório e ler os dados relativos a esse período de tempo?
Hendricks examinou o papel durante vários segundos antes de falar.
- Bom, aqui diz que a porta interna que leva à garagem foi aberta e o sistema de alarme foi ativado pela voz de David Storey às sete e nove da noite do dia 12. Depois
disso, os dados já são do dia 13.
À meia-noite e doze o sistema de alarme foi desativado pela voz de David Storey, e a porta interna da garagem foi novamente aberta. Ele então ativou novamente o
alarme... depois de entrar na casa.
Hendricks examinou o documento antes de continuar.
- O sistema continuou ativado até a uma e dezenove da madrugada, quando o alarme foi desativado. A porta interna da garagem foi aberta e o sistema de alarme ativado
mais uma vez pela voz de David Storey. Quarenta e dois minutos mais tarde, às quatro e um da madrugada, o alarme foi desativado pela voz de David Storey, a porta
interna da garagem se abriu e o sistema de alarme foi novamente ativado. Não houve qualquer outra atividade até as onze da manhã, quando o alarme foi desativado
pela voz de Betilda Lockett.
- Sabe quem é Betilda Lockett?
- Sim, quando instalei o sistema incluí a voz dela no programa de aceitação. Ela é a assistente-executiva de David Storey.
Janis pediu permissão para montar um quadro sobre um cavalete mostrando as horas e as atividades que Hendricks acabara de mencionar. O pedido foi aprovado apesar
de um protesto da defesa, e Bosch ajudou a promotora a montar o quadro, que tinha duas colunas. Uma mostrava os dados sobre a ativação do alarme da casa e a outra
indicava o uso da porta interna entre a casa e a garagem.
l
12/10
13/10
13/10
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13/10
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13/10
ALARME
7:09 da noite ativado por David Storey
12:12 da madrugada desativado por David Storey
12:12 da madrugada ativado por David Storey
3:19 da madrugada desativado por David Storey
3:19 da madrugadaativado por David Storey
4:01 da madrugada desativado por David Storey
4:01 da madrugada
- ativado por David Storey
PORTA INTERNA DA GARAGEM
aberta/fechada aberta/fechada
aberta/fechada aberta/fechada
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Janis continuou a inquirição de Hendricks.
- Esta ilustração reflete com precisão o seu depoimento sobre o sistema de alarme da casa de David Storey na noite de 12 para 13 de outubro?
O técnico olhou para o quadro com cuidado e depois balançou a cabeça.
- Isso é um "sim"?
- É um "sim".
- Obrigado. Como essas ações foram desencadeadas pelo sistema ao reconhecer e aprovar a voz de David Storey, você está dizendo ao júri que isso representa o registro
das idas e vindas de David Storey durante o período de tempo em questão?
Fowkkes protestou, dizendo que a pergunta pressupunha fatos que não haviam sido provados. Houghton concordou e mandou Janis reformular a pergunta ou fazer outra.
Como já alcançara seu objetivo com os jurados, ela passou adiante.
- Se eu tivesse uma fita com a voz de David Storey gravada, poderia tocá-la ao microfone da central do sistema Millenium 21 e obter autorização para ativar ou desativar
o alarme?
- Não. Há dois mecanismos de segurança. E preciso usar uma senha reconhecida pelo computador e dizer a data. Assim, são necessárias a voz, a senha e a data correta
para o sistema aceitar o comando.
- Qual era a senha de David Storey?
- Não sei. E coisa particular dele. O sistema permite que a senha seja trocada quando o usuário quiser.
Janis olhou para o quadro no cavalete. Aproximou-se e pegou um ponteiro no descanso, usando-o para demarcar os registros de
3:19 e 4:01 da madrugada.
- A partir destes dados, pode me dizer se alguém com a voz de David Storey saiu da casa às três e dezenove e voltou às quatro e um, ou se ocorreu o contrário, ou
seja, alguém chegou às três e dezenove e saiu às quatro e um?
- Posso.
- Como?
- O sistema também registra que estações transmissoras foram usadas para ativar e desativar o sistema. Nessa casa, as estações foram montadas dos dois lados de três
portas... por dentro e por fora de cada porta, entende? As três são a porta da frente, a porta da garagem e uma das portas do deque dos fundos. Os transmissores
estão do lado de fora e do lado de dentro de cada porta. Qualquer um que seja usado fica registrado no programa hoteleiro.
- Pode examinar o relatório do sistema de David Storey que viu antes e dizer que transmissores foram usados durante os registros de três e dezenove e quatro e um?
Hendricks examinou o papel antes de responder.
- Hum, sim. Às três e dezenove foi usado o transmissor exterior. Isso significa que alguém estava na garagem quando o alarme foi ativado na casa. Às quatro e um,
o mesmo transmissor externo foi usado para desativar o alarme. A porta foi aberta e fechada, e depois o alarme foi ativado novamente por dentro da casa.
- Então alguém chegou em casa às quatro e um, é isso que está dizendo?
- Sim, é.
- E o computador do sistema registrou essa pessoa como sendo David Storey, correto?
- O sistema identificou a voz dele, sim.
- E essa pessoa precisaria usar a senha de David Storey, além de fornecer a data corretamente?
- Sim, é isso aí.
Janis declarou que não tinha mais perguntas. Fowkkes disse ao juiz que queria fazer uma rápida reinquirição. Foi até a tribuna e olhou para Hendricks.
- Jamal Hendricks, há quanto tempo trabalha na Lighthou-se?
- Vou completar três anos no mês que vem.
- Então já era funcionário da Lighthou-se no dia 1 de janeiro, há um ano, quando foi feita a famosa alteração para o bug do milênio?
- Era - disse Hendricks, hesitante.
- Pode nos dizer o que aconteceu com muitos dos clientes da Lighthou-se naquele dia?
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- Hum, nós tivemos alguns problemas. - Alguns problemas, Jamal Hendricks?
- Houve falhas de sistemas.
- Que sistema em particular?
- O sistema Millenium 2 apresentou um defeito no programa. Mas foi pequeno. Nós conseguimos..
- Quantos clientes com Millenium 2 foram afetados na área de Los Angeles?
- Todos. Mas nós descobrimos o defeito e...
- E só isso. Obrigado.
- Nós corrigimos o defeito.
- Jamal Hendricks - atalhou o juiz. - Já chega. O júri deverá desconsiderar essa última declaração.
Ele olhou para Janis.
- Reinquirição, doutora?
Janis disse que tinha apenas algumas perguntas rápidas. Bosch soubera dos problemas do bug do milênio e informara os promotores. A esperança deles era que a defesa
não soubesse daquilo ou levantasse a questão.
- A Lighthou-se corrigiu o defeito apresentado pelos sistemas depois do bug do milênio?
- Sim, nós corrigimos o defeito imediatamente.
- Isso teria afetado de alguma forma os dados registrados pelo sistema do réu dez meses depois do bug do milênio?
- Em absoluto. O problema foi resolvido. O sistema foi consertado.
Janis disse que nada mais tinha a perguntar à testemunha e se sentou. Fowkkes levantou-se para fazer outra reinquirição.
- Jamal Hendricks, o defeito corrigido era o defeito que a empresa conhecia, correto?
Hendricks lançou-lhe um olhar confuso.
- Sim, foi o que causou o problema.
- Então está dizendo que esses defeitos só são percebidos quando causam problemas.
- Hum, geralmente.
- Portanto, poderia haver um defeito no programa do sistema de segurança de David Storey que você só perceberia quando surgisse um problema, certo?
Hendricks deu de ombros.
- Tudo é possível.
Fowkkes se sentou, e o juiz perguntou a Janis se ela tinha mais alguma pergunta. A promotora hesitou um instante, mas em seguida disse que não. Hendricks foi dispensado
por Houghton, que sugeriu antecipar o intervalo do almoço.
- Nossa próxima testemunha será muito rápida, meritíssimo. Eu gostaria de ouvir seu depoimento antes do intervalo. Vamos nos concentrar numa única testemunha durante
a sessão da tarde.
- Muito bem, vá em frente.
- Queremos reconvocar o detetive Bosch.
Bosch se levantou e foi até o banco das testemunhas, levando o dossiê de assassinato. Dessa vez não tocou no microfone. Sentou-se e foi lembrado pelo juiz de que
ainda estava sob juramento.
- Detetive Bosch - começou Janis. - A certa altura da investigação do assassinato de Jody Krementz, o senhor foi instruído a fazer de carro o trajeto de ida e volta
entre a casa da vítima?
- Fui. Pela senhora.
- Seguiu a instrução?
- Segui.
- Quando?
- No dia 16 de novembro, às três e meia da madrugada.
- Anotou os tempos do percurso de carro?
- Sim, anotei. Em ambas as direções.
- E pode nos dizer que tempos foram esses? Pode consultar suas anotações, se quiser.
Bosch abriu a pasta numa página previamente marcada. Levou algum tempo examinando as anotações, embora já soubesse aquilo de cor.
- Levei onze minutos e vinte e dois segundos da casa de David Storey até a casa de Jody Krementz, dirigindo dentro dos limites de velocidade permitidos. Para voltar,
levei onze minutos e quarenta
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e cinco segundos. O percurso de ida e volta levou vinte e três minutos e dez segundos.
- Obrigado, detetive.
E foi só. Fowkkes dispensou novamente a reinquirição, reservando-se o direito de reconvocar Bosch ao banco das testemunhas durante a fase da defesa. O juiz Houghton
declarou o tribunal em recesso para o almoço, e o tribunal apinhado foi vagarosamente se esvaziando em direção ao corredor.
Bosch foi abrindo caminho pela multidão de advogados, espectadores e repórteres no corredor, à procura de Annabelle Crowe, quando uma mão agarrou firmemente seu
braço por trás. Ele se virou e olhou para o rosto de um negro que não reconheceu. Outro sujeito, um branco, aproximou-se deles. Os dois usavam ternos cinzentos quase
iguais. Antes que o primeiro sujeito abrisse a boca, Bosch já tinha percebido que eram do FBI.
- Detetive Bosch, sou o agente especial Twilley, do FBI. Este é o agente especial Friedman. Podemos conversar em particular?
Capítulo 38
McCaleb levou três horas examinando cuidadosamente a fita de vídeo. No fim, não conseguiu nada que compensasse esse tempo, exceto uma multa por estacionamento proibido.
Tafero não apareceu em nenhum momento na fita do correio no dia em que a ordem de pagamento foi comprada. E nem Harry Bosch. Os quarenta e oito minutos de vídeo
que haviam sido gravados sobre o registro antigo, antes de McCaleb e Jaye chegarem lá, vinham continuadamente à sua lembrança. Se eles tivessem ido ao correio primeiro
e à delegacia de Hollywood depois talvez tivessem o assassino na fita. Aqueles quarenta e oito minutos podiam fazer a diferença no caso, a diferença entre a condenação
ou a absolvição de Bosch.
McCaleb estava imaginando esses cenários alternativos, quando chegou ao Cherokee e encontrou a multa de trânsito sob o limpador do pára-brisa. Disse um palavrão,
tirou a papeleta e examinou-a. Ficara tão absorto vendo a fita que esquecera que estacionara na zona com tolerância de quinze minutos diante do correio. A multa
lhe custaria quarenta dólares, e aquilo doía. Com poucos passeios contratados nos meses de inverno, sua família vinha vivendo principalmente de sua pensão mensal
do FBI e do pequeno contracheque de Graciela. Não havia muita margem de manobra, com as despesas de duas crianças. Aquela multa, aliada ao passeio cancelado de sábado,
iria fazer falta.
338
Ele recolocou a papeleta no pára-brisa e foi andando pela calçada. Decidiu ir até a Fianças Valentino, embora soubesse que Rudy Tafero provavelmente estaria no tribunal
em Van Nuys. Seria uma atitude coerente com o seu costume de examinar o alvo em ambientes confortáveis. O alvo podia não estar lá dessa vez, mas o ambiente onde
ele se sentia seguro estava.
Enquanto caminhava, pegou o telefone celular e ligou para Jaye, mas quem atendeu foi a secretária eletrônica. McCaleb desligou sem deixar recado e ligou para o bip
dela. Quatro quarteirões adiante, quando já estava chegando à Fianças Valentino, Jaye retornou a chamada.
- Não consegui nada - anunciou ele. -Nada?
- Nem Tafero, nem Bosch.
- Caceta.
- A imagem devia estar naqueles quarenta e oito minutos que foram apagados.
- Nós devíamos ter...
- Ido ao correio antes. Eu sei. Culpa minha. A única coisa que arrumei foi uma multa de trânsito.
- Que chato, Terry.
- Pelo menos isso me deu uma idéia. O troço foi pouco antes do Natal, e a rua estava cheia. Se ele estacionou numa zona com tolerância de quinze minutos, pode ter
ultrapassado o tempo enquanto esperava na fila. Os palhaços que vigiam o estacionamento aqui na cidade parecem nazistas. Ficam espreitando nas sombras. Sempre há
a possibilidade de que ele tenha sido multado. Vale a pena conferir.
- Feito o Filho de Sam?
- Pois é.
Ela estava se referindo a um assassino serial apanhado por causa de uma multa em Nova York na década de 1970.
- Vou dar uma olhada nisso e ver se surge alguma coisa. O que você vai fazer?
- Estou quase chegando à Fianças Valentino.
- Ele está aí? <
339
- Provavelmente está no tribunal. Vou até lá depois pra ver se consigo falar com Bosch sobre tudo isso.
- É melhor ter cuidado. Seus colegas do FBI disseram que iam encontrar com ele na hora do almoço. Podem ainda estar por lá quando você chegar.
- Eles estão esperando que Bosch fique tão impressionado com os ternos deles que confesse? E isso?
- Não sei. Algo parecido. Iam dar um aperto nele. Pra tentar pegar uma declaração oficial e depois encontrar as contradições. Você sabe, as armadilhas verbais rotineiras.
- Harry Bosch não é um caso rotineiro. Eles estão perdendo tempo.
- Eu sei. Eu disse isso pra eles. Mas ninguém consegue dizer nada a um agente do FBI, sabe disso.
Ele sorriu.
- Ei, se a coisa for para o outro lado e nós cravarmos Tafero, quero que o xerife pague esta multa.
- Ei, você não está trabalhando para mim. Está trabalhando para Bosch, lembra? Ele paga as multas. O xerife só paga as panquecas.
- Está bem. Preciso ir.
- Ligue pra mim.
Ele guardou o telefone no bolso do agasalho e abriu a porta de vidro da Fianças Valentino.
Era um pequeno aposento branco, com um sofá para visitantes e um balcão. Para McCaleb aquilo parecia a recepção de um motel. Um calendário na parede mostrava uma
cena de praia em Puerto Vallarta. Atrás do balcão havia um homem sentado de cabeça baixa, fazendo palavras cruzadas. Atrás dele via-se uma porta fechada, que provavelmente
dava para um escritório interno. McCaleb pôs um sorriso no rosto e começou a contornar o balcão com andar decidido, antes que o sujeito erguesse o olhar.
- Rudy? Ei, Rudy, vem cá!
O sujeito só ergueu o olhar quando McCaleb já passara por ele e abrira a porta, entrando num escritório que tinha mais do que o dobro do tamanho da recepção.
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- Rudy?
O sujeito do balcão entrou direto atrás dele.
- Ei, cara, o que está fazendo?
McCaleb virou-se, examinando o aposento.
- Procurando Rudy. Onde ele está?
- Ele não está aqui. Quer, por favor, sair...
- Ele me disse que estaria aqui, que só precisaria estar no tribunal mais tarde.
Examinando o escritório, McCaleb viu que a parede traseira estava coberta por fotografias emolduradas. Chegou mais perto. A maioria eram instantâneos de Tafero com
celebridades que ele tirara da cadeia sob fiança ou auxiliara como consultor de segurança. Algumas das fotos eram obviamente dos tempos em que ele trabalhava do
outro lado da rua, na delegacia.
- Desculpe, mas quem é você?
McCaleb fez uma cara de insultado e olhou para o sujeito, que bem poderia ser o irmão mais novo de Tafero. Tinha o mesmo cabelo e olhos escuros, com uma espécie
de beleza rude.
- Sou amigo dele. Terry. Nós trabalhávamos juntos lá do outro lado da rua.
McCaleb apontou para a fotografia de um grupo que estava na parede. Mostrava vários homens de terno e algumas mulheres parados diante da fachada de tijolos da delegacia
da Divisão Hollywood. A equipe de detetives. McCaleb viu Harry Bosch e Rudy Tafero na fileira de trás. O rosto de Bosch estava ligeiramente desviado da câmera. Ele
tinha um cigarro na boca, e a fumaça que se elevava obscurecia-lhe parcialmente o rosto.
O sujeito virou e começou a examinar a fotografia.
Os olhos de McCaleb deram outra volta pelo aposento. Era bem mobiliado, com uma escrivaninha à esquerda e um grupo estofado à direita, onde se viam dois sofás curtos
e um tapete oriental. Ele se aproximou da escrivaninha a fim de examinar uma pasta colocada bem no centro do mata-borrão. Mas a coisa - embora estivesse cheia de
documentos, com quase três centímetros de grossura - nada ostentava na etiqueta.
- Que porra é essa? Você não está na foto.
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- Estou, sim - disse McCaleb sem se virar da escrivaninha. Estou fumando. Não dá pra ver o meu rosto.
À direita do mata-borrão havia uma bandeja de documentos cheia de pastas. McCaleb inclinou a cabeça para poder ler as etiquetas. Viu diversos nomes, alguns dos quais
reconheceu como animadores ou atores. Mas nenhum deles tinha qualquer ligação com a investigação.
- Conversa fiada, cara, este não é você. E Harry Bosch.
- Sério? Conhece Harry?
O sujeito não respondeu. McCaleb se virou. O homem estava olhando para ele com uma expressão raivosa e desconfiada. Pela primeira vez McCaleb notou que ele segurava
um velho cassetete ao lado do corpo.
- Preciso conferir isso.
Avançou e examinou a fotografia emoldurada.
- Você tem razão, sabia? Este é o Harry. Eu devo estar na outra foto que eles tiraram no ano anterior. Estava trabalhando disfarçado quando eles tiraram essa aí
e não podia aparecer na fotografia.
Despreocupadamente, deu um passo na direção da porta. Por dentro, já estava enrijecendo o corpo, pronto para levar um golpe de cassetete.
- Diga a ele que eu estive aqui, está bem? Diga que o Terry passou por aqui.
Conseguiu chegar à porta, mas uma última fotografia emoldurada lhe chamou a atenção. Mostrava Tafero e outro homem, lado a lado, segurando juntos uma tabuleta de
madeira polida nas mãos. A fotografia era antiga, e Tafero parecia quase dez anos mais moço. Os olhos estavam mais brilhantes, e o sorriso parecia sincero. A tabuleta
propriamente dita estava pendurada na parede ao lado da fotografia. McCaleb inclinou-se e leu a placa de latão presa na parte de baixo.
RUDY TAFERO
DETETIVE DO MÊS
FEVEREIRO 1995
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McCaleb olhou para a fotografia novamente e depois passou pela porta, indo para a recepção.
- Terry o quê? - disse o sujeito quando ele saiu. McCaleb foi até a porta da frente antes de se virar para ele.
- E só dizer que foi Terry, o cara que trabalha disfarçado. Saiu do escritório e foi caminhando pela rua sem olhar para
trás.
McCaleb ficou sentado no carro diante do correio. Sentia-se inquieto, como sempre ficava quando sabia que a resposta estava ao alcance da mão, mas ele não conseguia
enxergá-la. Sua intuição dizia que ele estava na pista certa. Tafero, o investigador particular que escondia sua clientela endinheirada de Hollywood atrás de um
barraco de fiador profissional, era a chave. McCaleb simplesmente não conseguia achar a porta.
Percebeu que estava faminto. Ligou o carro e pensou num lugar para comer. Estava a poucos quarteirões do Musso's, mas tinha comido lá recentemente. Ficou imaginando
se serviam comida no Nat's, mas calculou que se fizessem isso a coisa seria perigosa para o estômago. Em vez disso, seguiu para o In 'n' Out no Sunset Boulevard
e pediu um hambúrguer servido no carro.
Enquanto comia em cima da embalagem para viagem dentro do Cherokee, o celular tocou. Pôs o sanduíche em cima da embalagem, limpou as mãos num guardanapo e abriu
o aparelho.
- Você é um gênio. Era Jaye Winston. -Porquê?
- O Mercedes de Tafero, um 430CLK preto, foi multado. Estava na zona de quinze minutos de tolerância diante do correio. A multa foi lavrada às oito e dezenove da
manhã do dia 22. Ainda não foi paga, mas vence hoje. Ele tem até as cinco horas pra pagar.
McCaleb ficou em silêncio enquanto refletia sobre aquilo. Sentia as sinapses nervosas disparando feito dominós pela espinha. A multa era um golpe de sorte extraordinário.
Não provava absolutamente nada, mas mostrava que ele estava na pista certa. E, às vezes, saber que você estava no caminho certo era melhor do que ter a prova.
Seus pensamentos pularam para a visita que fizera ao escritório de Tafero e para as fotografias que vira ali.
- Ei, Jaye, deu pra você pesquisar alguma coisa sobre o caso do antigo tenente de Bosch?
- Nem precisei procurar. Twilley e Friedman já tinham um relatório hoje. Tenente Harvey Pounds. Foi espancado até a morte cerca de quatro semanas depois de ter aquela
altercação com Bosch por causa de Gunn. Devido aos antecedentes, Bosch era um suspeito provável. Mas aparentemente foi inocentado... ao menos pelo Departamento de
Polícia de Los Angeles. O caso ainda está em aberto, mas parado. O FBI ficou observando de longe e também mantém a coisa em aberto. Twilley me disse hoje que há
gente no departamento de polícia que acha que Bosch foi inocentado depressa demais.
- Ah, e aposto que Twilley adorou isso.
- Adorou. Ele já tem certeza que foi Bosch. Acha que Gunn é só a ponta do iceberg do caso de Bosch.
McCaleb abanou a cabeça, mas passou adiante. Não podia perder tempo com as fraquezas e motivações dos outros. Havia muito a considerar e planejar na investigação
que ele tinha nas mãos.
- Tem uma cópia da multa? - perguntou ele.
- Ainda não. Foi tudo por telefone. Mas a cópia vai ser mandada por fax. O negócio é que eu e você sabemos o que isso significa, mas ainda estamos muito longe de
ter alguma prova.
- Eu sei. Mas será um bom esteio quando chegar a hora.
- Quando chegar a hora de quê?
- De fazer a nossa jogada. Vamos usar Tafero para pegar Storey. Você sabe que a coisa está caminhando nessa direção.
- Nós? Já tem tudo planejado, não é, Terry? - Não tudo, mas estou chegando lá.
Não queria discutir com ela sobre o seu próprio papel na investigação.
- Escute, meu almoço está esfriando - disse ele.
- Bom, desculpe. Vá comer.
- Ligue pra mim depois. Vou falar com Bosch mais tarde. Alguma coisa de Twilley e Friedman a esse respeito?
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- Acho que eles ainda estão lá com ele.
- Tá legal. Falo com você mais tarde.
Ele fechou o telefone, saiu do carro e levou a embalagem até uma lata de lixo. Pulou de volta ao volante e ligou o motor. A caminho do correio na rua Wilcox, abriu
todas as janelas para livrar o carro do cheiro de comida gordurosa.
Capítulo 39
Annabelle Crowe foi até o banco das testemunhas, atraindo todos os olhares no tribunal. Era estonteantemente bonita, mas havia uma qualidade quase desajeitada em
seus movimentos. Essa mistura fazia-a parecer velha e jovem ao mesmo tempo, ficando ainda mais bonita. Janis Langwiser estava encarregada da inquirição. Esperou
até que Annabelle se sentasse, antes de quebrar o encanto e se dirigir à tribuna.
Bosch quase não notara a entrada da última testemunha da promotoria. Estava sentado à mesa com os olhos baixos, mergulhado profundamente nos pensamentos sobre a
entrevista com a dupla de agentes do FBI. Ele os avaliara de imediato. Os dois haviam farejado sangue e sabiam que virariam celebridades caso o pegassem pela morte
de Gunn. Bosch esperava que eles dessem o bote a qualquer momento.
Janis fez várias perguntas rápidas a Annabelle Crowe, mostrando que ela era uma atriz novata com algumas peças e comerciais no currículo, bem como uma ponta num
filme ainda a ser lançado. Sua história parecia confirmar como era difícil vencer em Hollywood - uma beleza de fechar o comércio, mas que era apenas mais uma numa
cidade cheia delas. Annabelle ainda vivia da mesada que recebia dos pais em Albuquerque.
Depois a promotora passou para uma parte mais substancial do depoimento, focalizando a noite de 14 de abril do ano anterior,
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quando Annabelle saíra com David Storey. Descrevendo com brevidade o jantar e os drinques do casal no restaurante Dan Tana's, em West Hollywood, Janis entrou logo
na segunda metade da noite, quando Annabelle tinha ido para a casa de Storey em Mulholland Drive.
Ela declarou que os dois haviam dividido uma jarra inteira de margarita no deque dos fundos, antes de irem para o quarto.
- E você foi por vontade própria? -Fui.
- Teve relações sexuais com o réu?
- Sim, tive.
- E foi uma relação consensual?
- Sim, foi.
- Aconteceu alguma coisa inusitada depois que começou a ter relações sexuais com o réu?
- Sim, ele começou ame sufocar.
- Ele começou a sufocar você. Como foi?
- Bom, acho que em certo momento fechei os olhos, e parecia que ele estava mudando de posição ou se mexendo em cima de mim. Senti que passou a mão por trás da minha
nuca, levantando um pouco minha cabeça do travesseiro. Depois senti que estava passando alguma coisa sobre...
Ela parou de falar e pôs a mão na boca. Aparentava estar lutando para manter o controle.
- Não se apresse, Annabelle.
A testemunha parecia estar genuinamente tentando conter as lágrimas. Por fim, baixou a mão e pegou um copo de água. Bebeu um gole e ergueu os olhos para Janis com
uma expressão de determinação.
- Senti que ele estava passando alguma coisa sobre a minha cabeça e em torno do meu pescoço. Abri os olhos e vi que ele estava apertando uma gravata em volta do
meu pescoço.
Ela parou e tomou outro gole de água.
- Pode descrever a gravata?
- Tinha uns desenhos. Losangos azuis sobre um fundo roxo. Lembro bem dela.
- O que aconteceu quando o réu apertou a gravata em torno do seu pescoço?
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- Aquilo estava me sufocando! - respondeu Annabelle com voz aguda, como se a pergunta fosse idiota e a resposta óbvia. - Ele estava me sufocando. E continuava...
se mexendo dentro de mim... Tentei lutar contra ele, mas ele era forte demais para mim.
- Ele disse alguma coisa nessa hora?
- Só ficava dizendo: "Tenho que fazer isso, tenho que fazer isso." Respirava com força, e continuava a fazer sexo comigo. Tinha os dentes cerrados quando disse aquilo.
Eu...
Ela parou de falar novamente. Duas lágrimas isoladas escorreram pelas maçãs do rosto, uma ligeiramente depois da outra. Janis foi até a mesa da promotoria e pegou
uma caixa de lenços de papel entre suas coisas. Ergueu-a e disse:
- Meritíssimo, posso?
O juiz permitiu que ela se aproximasse da testemunha. Janis entregou a caixa de lenços e voltou para a tribuna. O tribunal estava silencioso, salvo pelo choro da
testemunha. Janis quebrou o silêncio.
- Quer um minuto de intervalo, Annabelle?
- Não, eu estou bem. Obrigada.
- Desmaiou quando foi sufocada pelo réu?
- Sim.
- Lembra do que aconteceu depois?
- Acordei na cama dele.
- Ele estava lá?
- Não, mas ouvi a água do chuveiro correndo. No banheiro vizinho ao quarto.
- O que você fez?
- Me levantei e me vesti. Queria ir embora antes que ele saísse do chuveiro.
- Suas roupas estavam no mesmo lugar que antes?
- Não. Encontrei minhas roupas numa sacola... tipo uma sacola de supermercado... perto da porta do quarto. Vesti minha roupa de baixo.
- Você estava com uma bolsa de mão naquela noite?
- Estava. A bolsa também estava na sacola. Mas estava aberta. Olhei e vi que ele tinha tirado as chaves. Eu...
Fowkkes protestou, dizendo que a resposta pressupunha fatos não provados, e o juiz aceitou o protesto.
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- Viu o réu tirar as chaves de sua bolsa? - perguntou Janis. Bom, não. Mas elas estavam em minha bolsa. Eu não tirei as
chaves de lá.
- Muito bem, então alguém... alguém que você não viu porque estava inconsciente na cama... tirou suas chaves, correto?
É.
- Muito bem. Onde encontrou as chaves depois que percebeu que elas não estavam na bolsa?
- Na cômoda, perto das chaves dele.
- Você terminou de se vestir e foi embora?
- Na verdade, eu estava tão apavorada que simplesmente peguei minhas roupas, as chaves e a bolsa e saí correndo da casa. Acabei de me vestir quando já estava do
lado de fora. E aí saí correndo pela rua.
Como chegou em casa?
Cansei de correr e fui andando por Mulholland Drive durante muito tempo, até que cheguei a um posto de bombeiros onde havia uma cabine telefônica. Liguei para um
táxi e fui pra casa.
- Chamou a polícia quando chegou em casa?
- Hum, não chamei.
- Porquê?
- Bom, por duas coisas. Quando cheguei em casa, ouvi David deixando um recado na secretária eletrônica e atendi o telefone. Ele se desculpou e disse que tinha se
excedido. Disse que achava que o sufocamento aumentaria o meu prazer enquanto fazíamos sexo.
Acreditou nele?
- Não sei. Eu estava confusa. - Perguntou a ele por que tinha posto suas roupas numa sacola?
- Perguntei. Ele disse que achava que precisaria me levar ao hospital, caso eu não tivesse acordado quando ele saísse do chuveiro.
- Perguntou por que ele resolveu tomar uma chuveirada antes de levar ao hospital uma mulher desmaiada na cama?
- Isso, não.
- Perguntou a ele por que não chamou a ambulância?
- Não, não pensei nisso.
- Que outra razão você teve para não chamar a polícia?
A testemunha olhou para as próprias mãos, que estavam firme-
mente unidas no seu colo.
- Bom, fiquei envergonhada. Depois do telefonema dele, fiquei sem entender o que tinha acontecido. Já não sabia se ele tinha tentado me matar, ou se estava... tentando
aumentar o meu prazer. Não sei. A gente sempre ouve falar que o pessoal de Hollywood é meio tarado. Achei que talvez fosse só... sei lá, atraso e caretice da minha
parte.
Ela mantinha os olhos baixos, e duas outras lágrimas escorreram pelas maçãs do rosto. Bosch viu uma gota atingir a gola da blusa de chiffon e deixar uma marca úmida.
Janis continuou, num tom de voz muito suave.
- Quando contou à polícia o ocorrido entre vocês dois naquela noite?
Annabelle Crowe respondeu num tom mais suave.
- Quando li que ele tinha sido preso por matar Jody Krementz do mesmo jeito.
- Falou com o detetive Bosch nessa ocasião? Ela balançou a cabeça.
- Sim. E percebi que se eu... se eu tivesse chamado a polícia naquela noite, talvez ela ainda...
Não terminou. Pegou alguns lenços de papel da caixa e começou a chorar convulsivamente. Janis disse ao juiz que já terminara a inquirição. Fowkkes disse que haveria
uma reinquirição, mas sugeriu que isso fosse feito depois de um intervalo, para que a testemunha pudesse se recuperar. O juiz Houghton declarou que era uma boa idéia
e anunciou um recesso de quinze minutos.
Bosch ficou no tribunal, vendo Annabelle usar toda a caixa de lenços de papel. Quando ela terminou, seu rosto já não era mais lindo. Estava distorcido e vermelho,
com as órbitas inchadas. Bosch achava que Annabelle fora convincente, mas sabia que ela ainda não se defrontara com Fowkkes. Seu desempenho na reinquirição determinaria
se o júri acreditaria em qualquer coisa que ela dissera na inquirição.
Ao voltar, Janis disse a Bosch que havia alguém na porta do tribunal querendo falar com ele.
- Quem é?
- Não perguntei. Só ouvi a conversa dele com os policiais quando entrei. Os policiais não deixaram o sujeito entrar.
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- Estava de terno? Era um cara negro?
- Não, roupas comuns. Com um agasalho.
- Fique de olho em Annabelle. E é melhor arranjar outra caixa de lenços de papel.
Ele se levantou e foi até as portas do tribunal, abrindo caminho no meio da multidão que voltava ao fim do recesso. Em certo momento ficou cara a cara com Rudy Tafero.
Bosch afastou-se para a direita a fim de passar, mas Tafero mexeu-se para a esquerda. Os dois ficaram dançando de um lado para o outro, e Tafero deu um largo sorriso.
Por fim, Bosch parou e não se mexeu mais até Tafero passar.
No corredor, olhou em volta mas não viu ninguém que reconhecesse. Depois Terry McCaleb saiu de um dos banheiros masculinos, e os dois trocaram um meneio de cabeça.
Bosch foi até a balaustrada de uma das janelas que iam do chão ao teto e davam para a praça lá embaixo. McCaleb juntou-se a ele.
- Tenho uns dois minutos, depois preciso voltar pra lá.
- Só quero saber se podemos conversar depois da sessão de hoje. Estão acontecendo certas coisas e preciso conversar com você.
- Eu sei que estão acontecendo coisas. Dois agentes vieram aqui hoje.
- O que disse pra eles?
- Mandei os dois se foderem. Ficaram zangados.
- Agentes federais não gostam muito de ouvir esse tipo de linguagem. Já devia saber disso, Bosch.
- E, bom, sempre fui um aluno lento.
- E depois da sessão?
- Vou ficar por aqui. A menos que Fowkkes massacre nossa testemunha. Aí não sei, minha equipe pode ter que se reunir em algum lugar pra lamber as feridas.
- Muito bem, então vou ficar por aqui, assistindo pela tevê.
- Até mais tarde.
Bosch voltou para o tribunal, imaginando o que McCaleb teria descoberto tão depressa. O júri já voltara, e o juiz estava autorizando Fowkkes a começar. O advogado
de defesa esperou educadamente que Bosch passasse por ele na direção da mesa da promotoria. Depois começou.
- A senhorita é atriz em tempo integral?
-Sim.
- Estava representando aqui hoje?
Janis protestou de imediato, raivosamente acusando Fowkkes de hostilizar a testemunha. Bosch achou a reação dela extremada demais, mas sabia que aquilo era um recado
para Fowkkes: Janis iria defender sua testemunha com unhas e dentes. O juiz rejeitou o protesto, dizendo que Fowkkes estava dentro dos limites de reinquirição de
uma testemunha hostil a seu cliente.
- Não, não estava representando - respondeu Annabelle com energia.
Fowkkes balançou a cabeça.
- A senhorita declarou que está em Hollywood há três anos.
- Sim.
- Eu contei cinco trabalhos pagos que a senhorita citou. Mais algum?
- Até agora não. Fowkkes balançou a cabeça.
- E sempre bom ter esperança. É muito difícil entrar no meio, não é?
- É, muito difícil, muito desanimador.
- Mas agora a senhorita está na tevê, não está?
Ela hesitou um instante. Seu rosto mostrava que ela percebera que tinha caído numa armadilha.
- O senhor também está - disse ela.
Bosch quase sorriu. Era a melhor resposta que ela poderia ter dado.
- Vamos falar sobre esse... acontecimento que supostamente teve lugar entre a senhorita e David Storey - disse Fowkkes. - Na realidade, esse acontecimento é algo
que a senhorita imaginou a partir das reportagens sobre a prisão de David Storey, correto?
- Não. Ele tentou me matar.
- Isso é o que a senhorita diz.
Janis levantou-se para protestar, mas antes que fizesse isso o juiz mandou Fowkkes guardar tais comentários editoriais para si mesmo. O advogado de defesa prosseguiu.
- Depois de supostamente ser sufocada por David Storey a ponto de desmaiar, a senhorita ficou como pescoço machucado?
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- Sim, fiquei com um machucado por quase uma semana. Não podia sair. Não podia comparecer a testes, nem nada.
- E tirou fotografias do machucado para documentar sua existência, correto?
- Não, não tirei.
- Mas mostrou o machucado a seu agente e seus amigos, não mostrou?
-Não.
- E por que não?
- Porque não pensei que a coisa chegaria a esse ponto, em que eu precisaria tentar provar o que ele fez. Só queria que o machucado sumisse, e não queria que ninguém
soubesse.
- Portanto, temos apenas a sua palavra quanto a esse machucado, correto?
-Sim.
- Assim como temos apenas a sua palavra quanto a todo o incidente, correto?
- Ele tentou me matar.
- A senhorita depôs que quando chegou em casa, naquela noite, David Storey estava deixando um recado na sua secretária eletrônica, correto?
- Correto.
- E a senhorita atendeu o telefonema... um telefonema de um homem que supostamente tentara matar a senhorita. E verdade o que estou dizendo?
Fowkkes fez um gesto, como atendendo a um telefone. Ficou com a mão erguida até Annabelle responder.
- Sim.
- E deixou o recado gravado na fita, a fim de documentar as palavras dele e tudo que tinha acontecido antes, correto?
- Não, eu regravei a fita. Por engano.
- Por engano. Está dizendo que deixou a fita na secretária e acabou gravando por cima do recado?
- E. Eu não queria fazer isso, mas esqueci e gravei por cima.
- Está dizendo que esqueceu que alguém tinha tentado matar a senhorita e que acabou gravando por cima do recado?
- Não, eu não esqueci que ele tentou me matar. Nunca vou esquecer isso.
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- Portanto, temos apenas a sua palavra quanto a essa fita, correto?
- É verdade.
Havia um tom de desafio na voz dela. Mas para Bosch aquilo de certa forma era digno de pena. Era como berrar "Foda-se" para um motor a jato. Ele sentia que Annabelle
estava prestes a ser lançada dentro do motor e despedaçada.
- Bom, a senhorita declarou que é sustentada parcialmente por seus pais e que já ganhou algum dinheiro como atriz. Tem qualquer outra fonte de renda que não tenha
citado para nós?
- Bom... na verdade, não. Minha avó me manda dinheiro. Mas só raramente.
- Algo mais?
- Não que eu me lembre.
- Aceita dinheiro de homens de vez em quando, Srta. Crowe? Houve um protesto por parte de Janis, e o juiz convocou os
advogados à bancada. Enquanto eles cochichavam, Bosch ficou examinando o rosto de Annabelle. Ainda se via ali um resquício de desafio, mas já quase superado pelo
medo. Ela sabia que vinha alguma coisa pela frente. Bosch percebeu que Fowkkes tinha algo de legítimo com que atacar. Era algo que prejudicaria Annabelle e portanto
prejudicaria a promotoria.
Quando a confabulação terminou, Janis e Kretzler retornaram aos seus lugares na mesa da promotoria. Kretzler inclinou-se para Bosch-
- Estamos fodidos - sussurrou. - Ele tem quatro sujeitos que vão testemunhar que pagaram pra fazer sexo com ela. Como nós não sabíamos disso?
Bosch não respondeu. Quando recebera a atribuição de investigar a vida pessoal da testemunha, ele interrogara Annabelle longamente e fora conferir para ver se ela
não tinha impressões digitais fichadas na polícia. Nada surgira a partir das respostas dela e nem da pesquisa por computador. Como ela jamais fora presa por prostituição
e negara ter cometido qualquer atividade criminosa, não havia muito mais que Bosch pudesse ter feito.
De volta à tribuna, Fowkkes reformulou a pergunta.
- Srta. Crowe, já fez sexo com homens em troca de dinheiro?
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- Não, absolutamente não. Isso é mentira.
- Conhece um homem chamado André Snow?
- Sim, conheço.
- Se ele testemunhasse sob juramento que pagou para ter relações sexuais com a senhorita, estaria mentindo?
- Sim, estaria.
Fowkkes deu o nome de três outros homens, fazendo o mesmo tipo de pergunta. Annabelle admitiu que os conhecia mas negando ter feito sexo com eles por dinheiro.
- Mas a senhorita já aceitou dinheiro desses homens, embora não em troca de sexo? - perguntou Fowkkes, num tom de falsa exasperação.
- Sim, algumas vezes. Mas não tinha nada a ver com o fato de fazermos sexo ou não.
- Tinha a ver com o quê, então?
- Queriam me ajudar. Eu achava que eram meus amigos. -Já fez sexo com eles?
Annabelle olhou para as próprias mãos e abanou a cabeça.
- Está dizendo que não, Srta. Crowe?
- Estou dizendo que não fazia sexo com eles toda vez que me davam dinheiro. Eles não me davam dinheiro toda vez que fazíamos sexo. Uma coisa não tinha nada a ver
com a outra. O senhor está tentando fazer com que a coisa pareça o que não é.
- Só estou fazendo perguntas, Srta. Crowe. Como é o meu dever fazer. Assim como é o seu dever contar a verdade ao júri.
Depois de uma longa pausa, Fowkkes disse que nada mais tinha a perguntar.
Bosch percebeu que agarrara os braços da cadeira com tanta força que as juntas dos seus dedos estavam brancas e dormentes. Esfregou as mãos uma na outra e tentou
relaxar, mas não conseguiu. Sabia que Fowkkes era um mestre, um artista da estocada. Ele era rápido, objetivo e devastador como um estilete. Bosch percebeu que seu
desconforto não vinha apenas da posição indefesa e humilhação pública de Annabelle Crowe, e sim de sua própria posição. Sabia que o estilete seria apontado para
ele a seguir.
Capítulo 40
Eles se acomodaram numa das mesas com divisória do Nat's, depois de pegarem no balcão garrafas de Rolling Rock com a atendente tatuada com o coração enrolado em
arame farpado. Ao tirar as garrafas da geladeira, a mulher não comentara que McCaleb já estivera ali perguntando pelo homem que o acompanhava. Era cedo e o lugar
estava vazio, exceto por grupos de bebedores inveterados no balcão e na mesa com divisória dos fundos. Na vitrola automática, Bruce Springsteen cantava There's a
darkness on the edge of town.
McCaleb examinou Bosch, achando que ele estava preocupado com alguma coisa. Provavelmente era o julgamento. A última testemunha fora um zero à esquerda, na melhor
das hipóteses. Boa na inquirição, ruim na reinquirição. O tipo de testemunha que não se usa - quando há escolha.
- Parece que vocês se estreparam com a testemunha. Bosch balançou a cabeça.
- Culpa minha. Eu devia ter previsto isso. Mas olhei pra ela, e pensei que era tão bonita que não podia de jeito algum... Eu simplesmente acreditei nela.
- Eu entendo.
- Foi a última vez que acreditei num rosto.
- Mas vocês ainda parecem ter chance. Têm mais alguma coisa escondida?
Bosch deu um sorriso irônico.
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- E só. Eles iam encerrar hoje, mas decidiram esperar até amanhã de manhã para não deixar Fowkkes se preparar durante a noite. Mas já gastamos toda a nossa munição.
A partir de amanhã vamos ver o que eles têm.
McCaleb viu Bosch tomar quase metade da cerveja de um só gole. Decidiu que era melhor fazer logo as perguntas sérias, enquanto o detetive ainda estivesse sóbrio.
- Fale de Rudy Tafero.
Bosch deu de ombros, num gesto ambivalente. -O que tem ele?
- Não sei. Você conhece bem Tafero? Ou conhecia bem?
- Bom, conhecia quando ele estava no nosso time. Ele atuou como detetive de Hollywood por cinco anos, mais ou menos, enquanto eu estava lá. Depois se aposentou com
direito a pensão por vinte anos de serviço e foi trabalhar do outro lado da rua. Começou a tirar da cadeia o pessoal que a gente punha na cadeia.
- Mas quando estavam na mesma equipe lá em Hollywood, vocês eram íntimos?
- Não sei o que significa íntimos. Nós não éramos amigos, nem parceiros de bebedeira. Ele trabalhava em arrombamentos, e eu em homicídios. Por que está fazendo tantas
perguntas sobre ele? O que ele tem a ver com...
Ele parou de falar e olhou para McCaleb, com as engrenagens mentais obviamente girando. Rod Stewart cantava Twisting the Night Away.
- Está brincando comigo, caralho? - perguntou por fim. - Está desconfiando que...
- Quero só fazer umas perguntas - interpôs McCaleb. - Depois você faz as suas.
Bosch esvaziou a cerveja e ergueu a garrafa até a atendente notar.
- Não servimos nas mesas, gente - anunciou ela. - Desculpem.
- Puta que pariu - disse Bosch.
Saiu da divisória e foi até o balcão. Voltou com mais quatro Rocks, embora McCaleb mal tivesse começado a beber a primeira.
- Pode perguntar - disse Bosch.
- Por que vocês dois não eram próximos?
357
Bosch pôs os cotovelos sobre a mesa e segurou uma nova garrafa com as duas mãos. Lançou o olhar para fora da divisória e depois encarou McCaleb novamente.
- Há cinco ou dez anos havia dois grupos no FBI. E em grande parte a mesma coisa acontecia no departamento de polícia. Era como se houvesse os santos e os pecadores...
dois grupos distintos.
- Os renascidos e os antinascidos?
- Algo por aí.
McCaleb se lembrava. Tornara-se notório nos círculos das organizações de segurança, uma década antes, que dentro do Departamento de Polícia de Los Angeles um grupo
conhecido como os "renascidos" tinha membros em posições-chave que controlavam as promoções e os cargos privilegiados. Os membros desse grupo - várias centenas de
elementos, de todas as graduações - pertenciam a uma igreja no vale de San Fernando, onde o subchefe do departamento encarregado das operações era pregador leigo.
Os policiais ambiciosos se uniam à igreja aos magotes, na esperança de impressionar o subchefe e melhorar suas perspectivas de fazer carreira. Havia dúvidas sobre
a espiritualidade envolvida naquilo. Mas quando o subchefe fazia seu sermão de domingo às onze horas, a igreja ficava entupida de policiais que não estavam de serviço,
em pé, com os olhos dirigidos fervorosamente para o púlpito. McCaleb ouvira dizer que certa vez o alarme de um carro disparara no estacionamento durante o serviço
religioso das onze horas. O infeliz viciado que estava remexendo no porta-luvas do carro logo se vira rodeado de uma centena de armas apontadas por policiais de
folga.
- Aposto que você era do time dos pecadores, Harry. Bosch sorriu e balançou a cabeça.
- E claro.
- E Tafero estava entre os santos.
- Pois é. Como o nosso tenente na época. Um burocrata chamado Harvey Pounds. Ele e Tafero tinham a tal igrejinha e eram íntimos por causa disso. Acho que eu jamais
me aproximaria de um cara ligado a Pounds, fosse por causa da igreja ou não. Percebe o que eu quero dizer? E os caras também não se aproximavam de mim.
McCaleb balançou a cabeça. Percebia mais do que estava deixando entrever.
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- Pounds foi o cara que bagunçou o caso Gunn - disse. - O cara que você jogou pela janela.
- Esse mesmo.
Bosch baixou a cabeça e abanou-a, desgostoso consigo mesmo.
- Tafero estava lá nesse dia?
- Tafero? Não sei. É provável.
- Mas a corregedoria não tomou os depoimentos das testemunhas pra fazer uma sindicância interna?
- Tomou, mas nem examinei aquilo. Eu tinha jogado o cara pela janela na frente da equipe. Não podia negar a coisa.
- E mais tarde... o quê, um mês ou dois... Pounds aparece morto num túnel nas colinas.
- Pois é. Em Griffith Park.
- E o caso ainda está em aberto... Bosch balançou a cabeça.
- Tecnicamente.
- Você já disse isso antes. O que isso significa?
- Significa que o caso está em aberto, mas que ninguém está investigando. O departamento de polícia tem uma classificação especial para casos assim. São casos que
eles preferem esquecer, e classificados como casos encerrados sem prisão, por outras circunstâncias.
- E você conhece essas circunstâncias?
Bosch terminou a segunda garrafa, empurrou-a para o lado e colocou outra à sua frente.
- Você não está bebendo - disse.
- Você está bebendo por nós dois. Conhece essas circunstâncias? Bosch inclinou-se para a frente.
- Escute, vou contar a você uma coisa que muito pouca gente sabe, tá legal?
McCaleb balançou a cabeça. Sabia que não era hora de perguntar nada. Era melhor deixar Bosch falar.
- Levei uma suspensão por causa do negócio da janela. Quando cansei de dar voltas pela casa olhando para as paredes, comecei a investigar um caso antigo. Um caso
já frio. Um caso de assassinato. Fiz a coisa sozinho e acabei seguindo uma pista maluca que desembocava em gente muito poderosa. Mas na época eu não
tinha distintivo, nem autoridade de fato. Por isso dei alguns telefonemas usando o nome de Pounds. Estava tentando esconder o que fazia, entende?
- Se o departamento descobrisse que você estava investigando um caso durante a suspensão, as coisas teriam piorado ainda mais pra você.
- Exatamente. Por isso eu usava o nome dele quando dava os telefonemas que achava inócuos, de rotina. Mas aí uma noite alguém ligou para Pounds dizendo que tinha
uma informação urgente para ele. Pounds foi ao encontro sozinho. E mais tarde foi encontrado naquele túnel. Ele foi muito espancado, como se tivesse sido torturado
por alguém. Só que ele não conseguira responder às perguntas, porque era o cara errado. Eu tinha usado o nome dele. Era a mim que eles queriam.
Bosch deixou o queixo cair sobre o peito e ficou em silêncio por um longo período.
- Eu causei a morte dele - disse, sem erguer os olhos. - O cara era um babaca completo, mas os meus atos causaram a morte dele.
Bosch ergueu subitamente a cabeça e bebeu um gole da garrafa. McCaleb viu que os olhos deles estavam escuros e brilhantes. Pareciam cansados.
- E isso que queria saber, Terry? Isso ajuda em alguma coisa? McCaleb balançou a cabeça.
- Até que ponto Tafero sabia disso?
- Ele não sabia de nada.
- Ele não pode ter pensado que foi você quem telefonou para Pounds naquela noite?
- Talvez. Teve gente que pensou e que provavelmente ainda pensa. Mas o que isso significa? O que isso tem a ver com Gunn?
McCaleb deu o primeiro grande gole na cerveja. Estava gelada, e ele sentiu o frio no peito. Descansou a garrafa e decidiu que já estava
na hora de dar a Bosch alguma coisa em troca.
- Preciso saber entender Tafero porque preciso entender as razões, os motivos. Não posso provar nada... ainda... mas acho que Tafero matou Gunn. Fez isso a mando
de Storey. E armou a coisa pra estourar em você.
-Jesus...
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- Foi uma bela armação, perfeita. A cena do crime está ligada ao pintor Hieronymus Bosch, o pintor está ligado a você por ser seu homônimo, e você está ligado a
Gunn. Sabe quando Storey teve a idéia de fazer isso, provavelmente?
Bosch abanou a cabeça. Estava atordoado demais para falar.
- No dia da tentativa de interrogatório no escritório dele. Você passou a fita no tribunal na semana passada e se identificou pelo seu nome de batismo completo.
- Eu sempre faço isso. Eu...
- Ele chamou Tafero, e Tafero já tem a vítima perfeita pra fazer a armação... Gunn. Um homem que ele sabia ter escapado de você e de uma acusação de assassinato,
há seis anos.
Bosch ergueu a garrafa alguns centímetros acima da mesa e baixou-a com força.
- Acho que o plano era duplo. Se eles tivessem sorte, a conexão seria estabelecida rapidamente, e você já estaria se defendendo de uma acusação de assassinato antes
que o julgamento de Storey tivesse começado. Se isso não acontecesse, havia o plano B. Eles ainda teriam esse plano para esmagar você durante o julgamento. Era só
destruir você para destruir a acusação. Hoje Fowkkes afundou aquela mulher e já baleou algumas das outras testemunhas. Em que se baseia a acusação? Em você, Harry.
Eles sabiam que a coisa acabaria em você
Bosch virou a cabeça ligeiramente, e seus olhos pareciam não estar enxergando nada. Enquanto olhava para o tampo de mesa arranhada, ele pensava no que McCaleb dissera.
- Eu precisava conhecer o seu passado com Tafero. Pois a pergunta é... por que ele faria isso? Sim, provavelmente há dinheiro na coisa, e se Storey conseguir escapar
fica à mercê dele. Mas tinha que haver algo mais. E acho que você acabou de me contar o que era. Ele provavelmente odeia você há muito tempo.
Bosch ergueu o olhar da mesa e encarou McCaleb.
- Ele está dando o troco. McCaleb balançou a cabeça.
- Por causa de Pounds. E se a gente não conseguir provar isso, a coisa pode funcionar.
Bosch ficou em silêncio e baixou os olhos para a mesa. Parecia cansado e esgotado para McCaleb.
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- Ainda quer dar os parabéns a ele? - perguntou McCaleb. Bosch ergueu os olhos.
- Desculpe, Harry. Foi um golpe baixo.
Bosch abanou a cabeça, como quem não se importa.
- Eu mereço. Diga lá, o que você descobriu?
- Não muito. Mas você tinha razão. Eu tinha deixado escapar uma coisa. Tafero pagou a fiança de Gunn na véspera de Ano-Novo. Acho que o plano era matar Gunn naquela
noite, montar a cena do crime e deixar que as coisas tomassem seu curso. A conexão Hieronymus Bosch viria à tona... ou por Jaye Winston ou por uma pesquisa no Programa
de Captura de Criminosos Violentos do FBI... e você se tornaria um alvo natural. Mas Gunn veio se embebedar aqui.
Ele ergueu a garrafa e apontou para o balcão.
- Foi preso por dirigir bêbado ao ir para casa. Tafero teve que soltar Gunn para poder continuar seguindo o plano e matar o sujeito. A multa de trânsito é o único
elo de ligação direto que a gente tem.
Bosch balançou a cabeça. McCaleb viu que ele estava percebendo o esquema.
- Foram eles que vazaram a notícia para aquele repórter - disse Bosch. - Quando a coisa estourasse na mídia, poderiam fingir que era novidade e fazer um carnaval
como se estivessem correndo atrás do prejuízo, quando na verdade estavam o tempo todo na nossa frente.
McCaleb balançou a cabeça, hesitante. Não mencionou a admissão de Buddy Lockridge para não meter uma cunha na teoria que Bosch desenvolvera.
- O que foi? - perguntou Bosch.
- Nada. Eu só estava pensando.
- Você não tem nada além do pagamento da fiança por Tafero?
- Uma multa de trânsito, e é só, por enquanto.
McCaleb descreveu detalhadamente as visitas que fizera pela manhã à Fianças Valentino e ao correio. Mencionou também que por ter chegado ao correio quarenta e oito
minutos atrasado talvez houvesse perdido a chance de livrar Bosch das suspeitas, e cravar Tafero.
Bosch fez uma careta e pegou uma garrafa, mas depois largou-a na mesa sem beber.
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- A multa de trânsito mostra que ele esteve no correio - disse McCaleb.
- Isso não quer dizer nada. Ele tem um escritório a cinco quarteirões dali. Pode alegar que foi a única vaga que encontrou. Pode dizer que emprestou o carro a alguém.
Não quer dizer nada.
McCaleb não queria se concentrar no que eles não tinham. Queria encaixar as peças.
- Escute, o sargento do plantão da manhã contou que você tinha deixado lá um pedido para ser avisado toda vez que Gunn fosse preso. Será que Tafero ficou sabendo
disso? Ou na época em que ele era da polícia ou de algum outro modo?
- Talvez. Isso não era segredo. Eu estava trabalhando em cima de Gunn. Um dia ia fazer o cara abrir o bico.
- A propósito, qual era a aparência de Pounds? Bosch lançou-lhe um olhar confuso.
- Baixo, corpulento e meio calvo, com um bigode?
Bosch confirmou com a cabeça e ia fazer uma pergunta, mas McCaleb respondeu antes.
- O retrato dele está no escritório de Tafero. Pounds aparece entregando a ele uma placa de Detetive do Mês. Aposto que você nunca recebeu uma, Harry.
- Não. Pounds fazia a escolha.
McCaleb ergueu o olhar e viu que Jaye Winston entrara no bar, carregando uma maleta. Ele meneou a cabeça para ela, e Jaye começou a se dirigir para a mesa deles.
Andava com os ombros encolhidos, como se estivesse pisando com cuidado sobre um aterro.
McCaleb abriu espaço e ela sentou-se ao seu lado.
- Lugar agradável.
- Harry, acho que você conhece Jaye Winston - disse meCaleb.
Bosch e Jaye se entreolharam.
- Para começar, desculpe aquele negócio com Kiz - disse Jaye.
- Espero que...
- A gente faz o que tem que fazer - disse Bosch. - Quer um drinque? Eles não servem nas mesas aqui.
- Eu ficaria chocada se servissem. Maker's Mark, com gelo, se tiver.
- Terry, nada pra você?
- Nada.
Bosch foi buscar a bebida. Jaye virou-se e olhou para McCaleb.
- Como está indo a coisa?
- Pedacinhos, aqui e ali.
- Como ele está levando?
- Nada mal, acho eu, para um cara que foi colocado numa fria. E você?
Jaye sorriu de um jeito que fez McCaleb adivinhar que ela descobrira algo.
- Arranjei a fotografia e uns outros... pedacinhos... interessantes. Bosch pôs o drinque de Jaye na mesa e sentou-se novamente.
- Ela riu quando eu disse Maker's Mark - disse ele. - Isso aí é a lavagem da casa.
- Maravilha. Obrigada.
Jaye afastou o copo para o lado e pôs a maleta na mesa. Abriu-a, tirou uma pasta, fechou a maleta e colocou-a no chão, perto do banco. McCaleb viu Bosch observando
Jaye com um olhar de expectativa.
Jaye abriu a pasta e estendeu para McCaleb uma fotografia
12x18 de Rudy Tafero.
- É uma ampliação da licença de fiador dele. Tem onze meses. Depois consultou uma página de suas anotações datilografadas.
- Fui até o xadrez do condado e consultei tudo que havia sobre Storey. Ele ficou lá até ser transferido para a cadeia de Van Nuys no início do julgamento. Durante
sua estada no xadrez, recebeu dezenove visitas de Tafero. As doze primeiras visitas se realizaram durante as três primeiras semanas em que esteve ali. Nesse período,
Fowkkes só visitou Storey quatro vezes. Um advogado do escritório de Fowkkes visitou Storey mais umas quatro vezes, e a assistente executiva de Storey, Betilda Lockett,
apareceu seis vezes. É só. Storey se encontrou com um investigador mais vezes do que com seus advogados.
- Foi quando eles planejaram a coisa - disse McCaleb. Ela balançou a cabeça e sorriu do mesmo jeito anterior.
- O que é? - perguntou McCaleb.
- Estava só deixando o melhor para o fim.
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Ela pegou novamente a maleta e a abriu.
- A cadeia registra todos os bens e pertences dos internos, tanto as coisas que eles trazem, quanto as coisas aprovadas e trazidas pelos visitantes. Há uma anotação
nos registros de Storey de que sua assistente, Betilda Lockett, recebeu permissão para lhe dar um livro durante a segunda das seis visitas. Segundo o registro de
bens, o livro chamava-se A arte das trevas. Eu fui até o centro da cidade e conferi.
Ela tirou da maleta um livro grande e pesado, com uma capa de tecido azul. Começou a abri-lo sobre a mesa. Uma papeleta gomada fora colocada como marcador.
- E um estudo de artistas que usaram as trevas como uma parte essencial do meio visual, segundo a introdução.
Jaye ergueu o olhar e sorriu, enquanto abria o livro no marcador.
- Há um capítulo bem longo sobre Hieronymus Bosch. Cheio de ilustrações-
McCaleb ergueu a garrafa vazia e bateu-a contra o copo de Jaye, ainda intocado. Depois inclinou-se, juntamente com Bosch, para examinar as páginas.
- Lindo - disse.
Jaye foi virando as páginas. As ilustrações da obra de Bosch incluíam todos os quadros de onde se poderiam tirar partes da cena do crime-- A operação de pedra, Os
sete pecados capitais com o olho de Deus, O Juízo Final e O jardim das delícias terrenas.
- Ele planejou a coisa lá na cela mesmo - espantou-se meCaleb
- Parece que sim - disse Jaye.
Ambos olharam para Bosch, que balançava a cabeça quase imperceptivelmente.
- Agora é sua vez, Harry - disse McCaleb. Bosch fez uma expressão perplexa.
- Minha vez de quê?
- De dar sorte.
McCaleb empurrou o retrato de Tafero pela mesa e meneou a cabeça na direção da atendente. Bosch pegou a fotografia e foi até o balcão
- Ainda estamos tateando nas bordas - disse Jaye, vendo
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Bosch interrogar a moça sobre a fotografia. - Temos alguns pedacinhos, mas só isso.
- Eu sei - disse McCaleb, sem conseguir ouvir a conversa no balcão. A música estava alta demais, com Van Morrison cantando The Wild Night h Corning.
Bosch meneou a cabeça para a moça no balcão e retornou à mesa.
- Ela reconheceu Tafero. Por incrível que pareça, ele só bebe Kahlúa com creme. Mas não conseguiu associar o rosto dele a Gunn.
McCaleb deu de ombros, num gesto de isso-não-significanada.
- Valeu arriscar.
- Vocês sabem onde isso vai desembocar, não sabem? - disse Bosch, olhando ora para McCaleb, ora para Jaye. - Vocês vão ter que fazer uma jogada. E a única maneira.
E tem que ser uma porra de uma jogada boa, porque o meu está na reta.
McCaleb balançou a cabeça.
- Nós sabemos - disse ele.
- Quando? Meu tempo está se esgotando. McCaleb olhou para Jaye. Era uma decisão dela.
- Logo - disse ela. - Talvez amanhã. Ainda não levei isso ao departamento. Tenho que ter tato com o capitão nesse assunto, porque ele só sabe que Terry está fora
do caso e que eu estou trabalhando com o FBI atrás de você. Tenho também que conseguir o auxílio da promotoria, porque quando fizermos a jogada é preciso agir rápido.
Se tudo sair bem, acho que pegamos Tafero amanhã à noite e armamos a jogada em cima dele.
Bosch olhou para a mesa com um sorriso tristonho. Ficou empurrando uma garrafa vazia de um lado para o outro entre as mãos.
- Encontrei aqueles caras hoje. Os agentes.
- Ouvi falar. Você não conseguiu convencer os dois da sua inocência. Eles voltaram irritados.
Bosch ergueu os olhos.
- Então, o que querem que eu faça nesse troço?
- Queremos que você fique quieto - disse Jaye. - Nós avisaremos, se a jogada for amanhã à noite.
366
Bosch balançou a cabeça.
- Só tem uma coisa - disse McCaleb. - Você tem acesso às provas materiais que foram juntadas aos autos do julgamento?
- Durante as sessões no tribunal, sim. Fora disso, elas ficam com o auxiliar do juiz. Por quê?
- Porque é óbvio que Storey tinha conhecimento anterior do pintor Hieronymus Bosch. Ele deve ter reconhecido o seu nome durante o interrogatório e percebido o que
podia fazer com isso. Portanto, acho que aquele livro que Betilda Lockett levou até o xadrez só podia ser dele. Ele mandou a assistente trazer o livro.
Bosch balançou a cabeça.
- A fotografia da estante. McCaleb balançou a cabeça.
- É isso aí.
- Eu aviso vocês - disse Bosch, dando uma olhada em torno. - Terminamos?
- Terminamos - disse Jaye. - A gente se fala.
Ela saiu da mesa, seguida por Bosch e McCaleb, deixando duas cervejas e um uísque com gelo intocados. Na porta, McCaleb deu uma olhada para trás e viu um casal de
fregueses habituais avançando para o tesouro. Na vitrola automática, John Fogerty cantava There's a Bad Moon on the Rise...
Capítulo 41
A friagem do mar penetrava nos ossos de McCaleb. Ele meteu as mãos nos bolsos do agasalho e enfiou o pescoço o mais que pôde na gola, enquanto descia cuidadosamente
a rampa para a doca da marina Cabrillo.
Embora o queixo estivesse baixo, seus olhos estavam atentos, perscrutando as docas à procura de qualquer movimento inusitado. Nada lhe chamou a atenção, exceto o
barco a vela de Buddy Lockridge atracado ali. A despeito da tralha que enchia o convés - pranchas de surfe, bicicletas, churrasqueira a gás, um caiaque oceânico,
bagulhos variados e outros equipamentos variados -, ele percebeu que as luzes da cabine estavam acesas. Mas foi em frente, pisando em silêncio nas pranchas de madeira.
Quer Buddy estivesse acordado ou não, já era muito tarde, e McCaleb estava cansado demais e com frio demais para lidar com seu suposto sócio. Ainda assim, ao se
aproximar do Mar que Segue, não pôde deixar de examinar mentalmente a incômoda anomalia na explicação teórica que montara para o caso. Bosch estivera certo lá no
bar, quando deduzira que alguém ligado a Storey devia ter vazado a história da investigação de Gunn para o New Times. McCaleb sabia que sua teoria só poderia se
sustentar se alguém como Tafero, Fowkkes ou até Storey - da cadeia - tivesse sido a fonte de McEvoy. O problema era que Buddy já confessara ter vazado a notícia
sobre a investigação para o tablóide semanal.
McCaleb só enxergava uma possibilidade de sua teoria permanecer de pé: Buddy e alguém do grupo de Storey terem, ao mesmo
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tempo, vazado a mesma informação para a mesma fonte da mídia. E isso, é claro, era uma coincidência que até quem acreditava em coincidências teria dificuldade para
aceitar.
Ele tentou afastar esses pensamentos da mente momentaneamente. Chegou ao barco, olhou novamente em volta e desceu para a cabine. Destrancou a porta corrediça e entrou,
acendendo as luzes. Decidiu que pela manhã interrogaria Buddy mais cuidadosamente sobre o que ele fizera e com quem falara.
Trancou a porta, pondo as chaves e o aparelho de vídeo que estava carregando sobre a mesa de navegação. Entrou imediatamente na cozinha e encheu um copo grande de
suco de laranja. Depois apagou as luzes do convés e desceu com o suco para o convés inferior, dirigindo-se para o camarote da frente e dando início ao ritual vespertino
das pílulas. Enquanto engolia as pílulas e o suco de laranja, ficou olhando para si mesmo no pequeno espelho que havia em cima da pia. Pensou na aparência de Bosch
e no esgotamento claramente estampado nos olhos fundos do detetive. Ficou imaginando se também não teria a mesma aparência dali a poucos anos, depois de mais alguns
casos.
Quando acabou a rotina medicinal, tirou a roupa e tomou uma chuveirada gélida, pois o aquecedor não tinha sido ligado desde que ele cruzara a baía na véspera.
Foi tremendo até o camarote principal, onde vestiu um short e uma camiseta. Estava morto de cansaço, mas assim que se deitou decidiu anotar algumas idéias sobre
a jogada de Jaye em cima de Tafero. Estendeu a mão para a gaveta da mesinha-de-cabeceira, onde mantinha canetas e blocos de rascunho. Quando a abriu, encontrou um
jornal dobrado enfiado no pequeno espaço da gaveta. Tirou-o, desdobrou-o e viu que era o número da semana anterior do New Times. As páginas haviam sido dobradas
para trás, de modo que a seção de anúncios estava na frente. McCaleb ficou olhando para uma página cheia de pequenos anúncios sob o título de MASSAGENS A DOMICÍLIO.
Levantou-se rapidamente e foi até o agasalho, que jogara sobre uma cadeira. Tirou o celular do bolso e voltou para a cama. Nos últimos dias ele se deslocara sempre
com o aparelho, mas geralmente o telefone ficava no carregador instalado no barco. A conta era paga com a renda do negócio e lançada como despesa operacional,
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pois o aparelho era usado pelos clientes durante os passeios, e por Buddy para confirmar reservas e pagamentos via cartão de crédito.
O telefone tinha uma pequena tela digital com um menu que McCaleb examinou. Acionou o programa de chamadas feitas e começou a pesquisar os últimos cem números que
o telefone acessara. Identificou e eliminou rapidamente a maioria dos números. Mas toda vez que não reconhecia um número, comparava-o com os telefones exibidos na
página de anúncios de massagem. Teve sucesso na quarta tentativa. O número pertencia a uma mulher que se anunciava como "Beleza Exótica Nipo-Havaiana" e se chamava
Leilani. O anúncio dizia que ela especializada em "relaxamento completo" e que não era ligada a agências de massagem.
McCaleb fechou o telefone e levantou novamente da cama. Começou a vestir uma calça de malha, enquanto tentava recordar exatamente o que dissera ao acusar Buddy de
vazar a informação para o New Times.
Quando terminou de se vestir, McCaleb já percebera que não chegara a acusar Buddy, especificamente, de ter vazado a informação para o jornal. Ele apenas mencionara
o New Times, e Buddy imediatamente começara a se desculpar. McCaleb percebeu que o pedido de desculpas e o constrangimento de Buddy poderiam ter se originado do
fato de ele ter usado o Mar que Segue na semana anterior, quando o barco estava na marina, para se encontrar com a massagista do relaxamento completo. Isso explicaria
por que ele perguntara se McCaleb contaria a Graciela o que ele fizera.
McCaleb olhou para o relógio. Eram onze e dez da noite. Ele pegou o jornal e foi até o convés. Não queria esperar até a manhã para confirmar aquilo. Achava que Buddy
usara o Mar que Segue para se encontrar com a mulher, porque o barco dele era tão pequeno e cheio de tralhas que parecia uma ratoeira flutuante de aparência sinistra.
Não tinha cabine fechada - apenas um espaço aberto, tão cheio de tralhas quanto o convés de cima. Se Buddy tivesse o Mar que Segue à disposição, ele o teria usado.
No salão nem se deu ao trabalho de acender as luzes. Inclinou-se sobre o sofá e lançou o olhar pela janela para a esquerda da embarcação. O barco de Buddy, o Doubk
Down, estava quatro vagas adiante, e ele viu que as luzes da cabine ainda estavam acesas. Buddy ainda estava acordado, a menos que tivesse desmaiado com as luzes
acesas.
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McCaleb aproximou-se da porta corrediça para destrancá-la, mas percebeu que a porta já estava entreaberta. Havia alguém na embarcação. Provavelmente a pessoa entrara
enquanto ele tomava a chuveirada. Fora por isso que ele não ouvira a tranca se abrir e nem sentira o peso adicional no barco. Afastou rapidamente a porta para o
lado, abrindo-a por completo na tentativa de escapar. Estava justamente atravessando a porta quando foi agarrado por trás. Sentiu um braço passar por cima de seu
ombro direito e pela frente de seu pescoço. Viu o cotovelo se dobrar e sua garganta ficar presa no ângulo assim formado. O outro antebraço do atacante fechou o triângulo
atrás do pescoço de McCaleb, apertando-o como se fosse um torno e comprimindo as carótidas que levavam sangue oxigenado para o cérebro. Com um distanciamento quase
clínico, McCaleb percebeu o que estava acontecendo. Ele estava preso numa chave clássica de estrangulamento. Começou a lutar. Ergueu os braços e tentou enfiar os
dedos embaixo do antebraço e do bíceps que comprimiam seu pescoço, mas sentiu que era inútil. Já estava enfraquecendo.
Viu-se arrastado para longe da porta e de volta ao salão escuro. Ergueu a mão esquerda até o lugar onde a mão direita do atacante agarrava o antebraço esquerdo -
o ponto fraco do triângulo. Mas não tinha alavancagem e estava perdendo rapidamente as forças. Tentou gritar. Talvez Buddy escutasse. Mas sua voz desaparecera, e
nada saiu.
Lembrou-se de outro golpe defensivo. Ergueu o pé direito e lançou o calcanhar na direção do pé do atacante, com as últimas forças que conseguiu reunir. Mas errou.
Seu calcanhar bateu inocuamente no chão, e o atacante deu mais um passo atrás, desequilibrando McCaleb violentamente e deixando-o incapaz de tentar o golpe do pé
novamente.
McCaleb começou a perder a consciência velozmente. Sua visão das luzes da marina através da porta do salão foi sendo tomada por uma treva rodeada de vermelho. Já
quase inconsciente, percebeu que estava preso na chave clássica de estrangulamento que fora ensinada nos departamentos de polícia por todo o país, até provocar um
número excessivo de mortes.
Logo até esse pensamento se esvaiu, e ele deixou de ver as luzes. A treva avançou e o engoliu.
Capítulo 42
McCaleb voltou a si sentindo uma dor terrível nos ombros e nas coxas. Quando abriu os olhos, percebeu que estava deitado de bruços no beliche do camarote principal.
Sua cabeça estava apoiada diretamente no colchão, com o lado esquerdo do rosto para baixo, e ele olhava para a cabeceira da cama. Depois de um instante, lembrou-se
que fora atacado por trás quando estava indo visitar Buddy.
Ficou completamente consciente e tentou relaxar os músculos doloridos, mas percebeu que não podia se mexer. Tinha os pulsos atados nas costas e as pernas dobradas
para trás à altura dos joelhos. Alguém estava mantendo-as nessa posição.
Ele ergueu a cabeça do colchão e tentou se virar, mas não achou ângulo para isso. Caiu novamente sobre o colchão e virou a cabeça para a esquerda. Ergueu o corpo
novamente e virou a cabeça, vendo Rudy Tafero parado perto da cama, sorrindo. Com uma mão enluvada, ele segurava os pés de McCaleb, que estavam amarrados nos tornozelos
e dobrados para trás na direção das coxas.
Subitamente, McCaleb compreendeu tudo. Percebeu que estava nu e amarrado, na mesma postura em que vira o corpo de Edward Gunn. Era a posição fetal invertida do quadro
de Hieronymus Bosch. Sentiu um calafrio de terror explodir em seu peito. Instintivamente, flexionou os músculos das pernas, mas Tafero se preparara para aquele movimento.
Os pés de McCaleb quase não
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se mexeram, mas ele ouviu três cliques atrás da cabeça e sentiu a ligadura em torno do pescoço.
- Calma - disse Tafero. - Calma aí. Ainda não.
McCaleb parou de se mexer. Tafero continuava a pressionar os tornozelos dele para baixo, na direção das coxas.
- Você já viu o esquema antes - disse Tafero, em tom objetivo.
- Este aqui é um pouco diferente. Liguei várias algemas plásticas do tipo que todo tira de Los Angeles leva na mala do carro.
McCaleb entendeu o recado. Aquelas fitas de plástico haviam sido inventadas para ligar cabos, mas depois os órgãos policiais haviam descoberto que elas eram úteis
em ocasionais distúrbios de rua, onde havia necessidade de fazer prisões em massa. Um policial podia carregar apenas um par de algemas, mas centenas das algemas
plásticas. Eram enroladas no pulso dos presos, com a extremidade metida no fecho. As pequenas ranhuras na fita plástica se interpenetravam à medida que a pressão
ficava maior. Só podiam ser removidas depois de cortadas. McCaleb percebeu que os cliques que acabara de ouvir eram da algema plástica apertando seu pescoço.
- Portanto, tome cuidado - disse Tafero. - Fique paradinho aí.
McCaleb apoiou o rosto no colchão. Sua mente girava à procura de uma saída. Se pudesse começar uma conversa com Tafero, talvez ganhasse algum tempo. Mas tempo para
o quê?
- Como me encontrou? - disse ele, com a boca no colchão.
- Muito fácil. Meu irmãozinho te seguiu quando você saiu do escritório e anotou a sua placa. Devia olhar mais em volta, pra ver se não está sendo seguido.
- Vou me lembrar disso.
McCaleb compreendeu que o plano era fazer parecer que o assassino de Gunn o pegara quando ele chegara perto demais. Virou a cabeça novamente para poder ver Tafero.
- Isso não vai funcionar, Tafero - disse. - As pessoas já estão sabendo. Não vão cair nessa de pensar que foi Bosch.
Tafero sorriu para ele.
- Está falando de Jaye Winston? Não se preocupe. Vou fazer uma visita a ela quando terminar com você. Rua Willoughby, número oitenta e oito-zero-um, apartamento
seis, West Hollywood. Também foi fácil descobrir isso.
373
Ele ergueu a mão livre e mexeu os dedos, como se estivesse tocando piano ou batendo à máquina.
- Deixe seus dedos caminharem pelas listas de eleitores... Eu tenho tudo em CD-ROM. Ela é uma democrata registrada, acredita? Uma detetive de homicídios que vota
com os democratas. Vivendo e aprendendo.
- Tem mais gente. O FBI está metido nisso. Você...
- Eles estão atrás de Bosch. Não de mim. Vi os caras no tribunal hoje.
Estendeu a mão e prendeu uma das algemas plásticas das pernas de McCaleb ao pescoço dele.
- E tenho certeza que essas algemas apontarão diretamente para o detetive Bosch.
Sorriu com a genialidade do plano. E McCaleb percebeu que o raciocínio dele estava certo. Twilley e Friedman iriam atrás de Bosch como dois cachorros correndo atrás
de um carro.
- Paradinho aí.
Tafero largou os pés de McCaleb e desapareceu de vista. McCaleb esforçou-se para manter as pernas dobradas. Quase imediatamente, sentiu os músculos das pernas começarem
a doer. Percebeu que não teria forças para manter aquela posição por muito tempo.
- Por favor...
Tafero voltou ao campo de visão dele. Segurava uma coruja de plástico nas mãos e tinha um sorriso de satisfação no rosto.
- Peguei esta coruja num dos barcos no ancoradouro. Está um pouco estragada pelo tempo, mas vai funcionar bem. Tenho que arranjar outra para Jaye Winston.
Olhou em torno do camarote como procurando um lugar para a coruja. Colocou-a numa prateleira acima da escrivaninha embutida. Pôs a coruja lá, olhou novamente para
McCaleb e ajustou a posição da ave de plástico, fazendo-a olhar diretamente para o homem deitado.
- Perfeito-disse.
McCaleb fechou os olhos. Sentia os músculos vibrando com o esforço. Uma imagem da filha apareceu em sua mente. Ela estava em seus braços, observando-o por cima da
mamadeira e dizendo-lhe para
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não se preocupar, para não ter medo. Aquilo o acalmou. Ele se concentrou no rosto dela e até achou que conseguia sentir o cheiro do cabelo da menina. Sentiu lágrimas
correrem pelos olhos e as pernas começarem a ceder. Sentiu o clique das algemas se apertando, e... Tafero forçou as pernas dele para baixo.
- Ainda não.
Algo duro bateu na cabeça de McCaleb e caiu com um baque no colchão ao seu lado. Ele virou o rosto, abriu os olhos e viu que era a fita de vídeo que pedira emprestado
a Lucas, o chefe da segurança do correio. Olhou para a etiqueta com o emblema do correio
- uma águia voando - que Lucas colocara na fita para ele.
- Espero que não se importe, mas enquanto você estava se recuperando do estrangulamento, dei uma olhada nessa fita que estava no seu aparelho. Não encontrei nada
aí. A fita está em branco. Porquê?
McCaleb sentiu uma pontada de esperança. Percebeu que só não estava morto ainda por causa da fita que Tafero encontrara. Aquilo levantara muitas questões, e era
uma brecha. Ele tentou pensar num meio de aproveitar aquela chance. A fita tinha mesmo que estar em branco, pois fazia parte de um blefe. Eles haviam planejado usá-la
como isca, quando trouxessem Tafero e armassem a jogada para cima dele. Mostrariam a fita e diriam que ele aparecia enviando a ordem de pagamento. Mas não chegariam
a exibir a fita. McCaleb pensou que talvez ainda pudesse usar aquilo - mas de modo inverso.
Tafero empurrou os tornozelos dele para baixo, com tanta força que quase encostou-os nas nádegas. McCaleb gemeu com o esforço dos músculos. Tafero relaxou a pressão.
- Eu fiz uma pergunta, seu puto, e quero a porra de uma resposta.
- Não é nada. E para estar em branco mesmo.
- Conversa fiada. A etiqueta diz "22 de dezembro". Diz "Vigilância de Wilcox". Por que a fita está em branco?
Tafero aumentou a pressão nas pernas de McCaleb, mas não tanto quanto antes.
- Tá legal, vou contar a verdade. Vou contar.
McCaleb respirou profundamente e tentou relaxar. Assim que
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seu corpo ficou imóvel, com o ar parado nos pulmões, teve a impressão de perceber um movimento do barco fora do ritmo suave da marola na marina. Alguém pisara no
barco. McCaleb só conseguiu pensar em Buddy Lockridge. Se fosse ele, era provável que estivesse caminhando para sua própria morte. McCaleb começou a falar rapidamente
em voz alta, na esperança de que sua voz alertasse Buddy.
- É só um engodo, mais nada. Nós íamos blefar com você, dizendo que você aparecia na fita comprando a ordem de pagamento com que a coruja foi encomendada. O plano
era fazer você se voltar contra Storey. Nós sabemos que ele planejou tudo lá na cadeia. Você só cumpria ordens. Eles querem Storey mais do que querem você. Eu ia...
- Está bem, cale a boca.
McCaleb se calou, pensando que Tafero sentira o movimento diferente do barco ou ouvira alguma coisa. Mas depois viu a fita ser levantada da cama. Percebeu que deixara
Tafero intrigado. Depois de um longo momento de silêncio, Tafero finalmente falou.
- Acho que você está falando merda, McCaleb. Acho que esta fita é daqueles sistemas de vigilância multiplex que eles usam. Não passa num aparelho de vídeo comum.
Se cada músculo do seu corpo não aparentasse estar gritando de dor, McCaleb teria sorrido. Ele fisgara Tafero. Estava amarrado na cama, impotente, mas controlava
seu carcereiro. Tafero estava revendo o próprio plano.
- Quem mais tem cópia disto? - perguntou Tafero. McCaleb não respondeu. Começou a pensar que se enganara a
respeito do movimento do barco. Já se passara muito tempo. Não havia outra pessoa a bordo.
Tafero bateu a fita com força na cabeça de McCaleb.
- Eu disse Quem mais tem cópia disto?
Sua voz já tinha outro tom. Parte da confiança desaparecera, substituída pelo medo de que houvesse uma falha no seu plano perfeito.
- Vá se foder - disse McCaleb. - Pode fazer o que tiver que fazer comigo. De qualquer forma, logo vai descobrir quem mais tem cópia disso.
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Tafero empurrou as pernas dele para baixo e inclinou-se sobre ele. McCaleb sentiu o hálito dele perto do ouvido.
- Escute, seu porra... Ouviu-se um estrondo ao fundo.
- Não se mova, caralho! - anunciou uma voz.
No mesmo instante Tafero se levantou e soltou as pernas de McCaleb. A súbita liberação da pressão e o forte barulho fizeram com que McCaleb se assustasse e involuntariamente
flexionasse todos os músculos de uma vez. Ele ouviu o estalido das algemas plásticas se fechando em diversos pontos das amarras. Numa reação em cadeia, a ligadura
em torno de seu pescoço se apertou e se trancou. McCaleb tentou levantar as pernas, mas já era tarde demais. A algema se fechara, penetrando na carne do pescoço.
Ele estava sem ar. Abriu a boca, mas não conseguiu emitir som algum.
Capítulo 43
Harry Bosch parou na porta do camarote do barco e apontou a arma para Rudy Tafero. Seus olhos se arregalaram quando ele viu a cena no aposento. Terry McCaleb estava
nu na cama, com os braços e pernas amarrados às costas. Bosch viu que várias algemas de plástico tinham sido unidas e usadas para atar os pulsos e tornozelos dele,
enquanto outra fileira de algemas saía dos tornozelos, passava embaixo dos pulsos e dava uma laçada em torno do pescoço. Não conseguia ver o rosto de McCaleb, mas
percebeu que o plástico penetrara profundamente na pele do pescoço, que já estava assumindo um tom vermelho-escuro. Ele estava sendo estrangulado.
- Vire e encoste na parede - gritou ele para Tafero. - Ele precisa de ajuda, Bosch. Você...
- Eu disse pra ficar contra a porra da parede! Já!
Ergueu a arma até o nível do peito de Tafero para mostrar que a ordem era para valer. Tafero ergueu as mãos e começou a se virar para a parede.
- Tá legal, tá legal, estou me virando.
Logo que Tafero se virou, Bosch avançou rapidamente e empurrou o homenzarrão contra a parede. Olhou para McCaleb. Já dava para ver o rosto dele, que estava ficando
cada vez mais vermelho. Os olhos estavam abertos e esbugalhados. A boca se abrira numa tentativa desesperada - mas infrutífera - de engolir ar.
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Bosch enfiou o cano da arma nas costas de Tafero e apalpou-o com a outra mão para ver se ele não tinha outra arma. Tirou uma pistola do cinto do sujeito e recuou.
Olhou novamente para McCaleb e viu que não podia perder tempo. O problema era controlar Tafero e chegar a McCaleb para soltá-lo. Subitamente, percebeu o que precisava
ser feito. Recuou e juntou as duas mãos, pondo as armas lado a lado. Ergueu-as acima da cabeça e baixou violentamente as coronhas na parte traseira da cabeça de
Tafero. O homenzarrão foi jogado para a frente, batendo com a cara na parede revestida de madeira e caindo imóvel ao chão.
Bosch virou-se, jogou as duas armas na cama e tirou rapidamente as chaves do bolso.
- Agüenta aí, agüenta aí.
Com os dedos resvalando na lâmina, abriu o canivete preso à argola de chaves. Estendeu a mão para o garrote plástico em torno do pescoço de McCaleb, mas não conseguiu
meter os dedos embaixo da fita. Virou McCaleb de lado e meteu rapidamente os dedos embaixo do plástico na garganta do outro. Enfiou a lâmina ali e cortou a algema.
A ponta do canivete fez um pequeno corte na pele.
Um som horrível saiu da garganta de McCaleb, enquanto ele tentava falar e engolir ao mesmo tempo. As palavras eram ininteligíveis, perdidas na urgência instintiva
de inspirar oxigênio.
- Cale a boca e respire! - gritou Bosch. - Só respire!
A cada respiração de McCaleb ouvia-se um chacoalhar interior. Bosch viu que uma linha em tom vermelho vivo corria em toda a circunferência do pescoço dele. Tocou
levemente naquela região, querendo ver se houvera dano à traquéia, à laringe ou às artérias. McCaleb girou um pouco a cabeça no colchão, tentando se afastar.
- Só... me solte.
As palavras o fizeram tossir violentamente no colchão, com o corpo todo estremecendo pelo trauma sofrido.
Bosch usou o canivete para libertar as mãos e depois os tornozelos. Viu as marcas vermelhas da ligadura em ambos os membros, de um lado e do outro. Afastou todas
as algemas e jogou-as no chão. Olhou em torno e viu as calças de malha e a camiseta no chão. Pegou-as e lançou-as na cama. McCaleb estava se virando vagarosamente
para ele, com o rosto ainda avermelhado.
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- Você... você... me salvou...
- Não fale.
Ouviu-se um gemido no chão, e Bosch viu Tafero começar a se mexer, recobrando a consciência. Avançou e colocou-se com as pernas abertas sobre o corpo. Tirou um par
de algemas do cinto, curvou-se e puxou violentamente os braços de Tafero para trás a fim de algemá-lo. Enquanto fazia isso, foi falando com McCaleb.
- Ei, se quiser levar este cara ali pra fora, amarrar a âncora nele e jogar tudo pela amurada, por mim tudo bem. Não ligo a mínima.
McCaleb não respondeu. Estava reunindo forças para se sentar. Depois de algemar Tafero, Bosch endireitou o corpo e olhou para o prisioneiro, que já abrira os olhos.
Fique parado, seu merda. E pode se acostumar a essas algemas. Você está preso por assassinato, tentativa de assassinato e conspiração geral para ser um babaca.
Acho que já conhece os seus direitos, mas faça um favor a si mesmo e não diga uma palavra antes que eu pegue o cartão e leia a coisa pra você.
Assim que terminou de falar, Bosch ouviu um rangido vindo do corredor. Num segundo percebeu que alguém aproveitara suas palavras para chegar silenciosamente perto
da porta.
As coisas pareceram assumir a nitidez do movimento em câmera lenta. Bosch levou instintivamente a mão esquerda à cintura, mas percebeu que a arma não estava ali.
Ele a deixara na cama. Começou a virar para lá, mas viu McCaleb sentado, ainda nu, apontando uma das armas para a porta.
Os olhos de Bosch seguiram a mira da arma até a porta. Um homem surgira agachado ali, com as duas mãos segurando uma pistola. Mirava na direção de Bosch. Ouviu-se
um tiro que estilhaçou a madeira do umbral da porta. O atirador fez uma careta e semicerrou os olhos. Depois se recuperou e começou a erguer novamente a arma. Ouviu-se
outro tiro, e depois mais um. O barulho era ensurdecedor no pequeno camarote revestido de madeira. Bosch viu que uma das balas acertara a parede. As outras duas
haviam acertado o atirador no peito, jogando-o para trás contra a parede do corredor. Ele escorregara para o chão, mas ainda podia ser visto do camarote. Não! -
gritou Tafero, caído no chão. - Jesse, não!
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O atirador caído ainda se movia, mas estava tendo dificuldade para controlar seus movimentos. Com uma das mãos, ergueu desajeitadamente a arma mais uma vez e fez
uma tentativa patética de apontar para Bosch.
Ouviu-se outro tiro. Bosch viu o rosto do atirador explodir num jorro de sangue, enquanto a cabeça batia com força contra a parede do fundo. O sujeito ficou imóvel.
- Não! - gritou novamente Tafero.
Fez-se um silêncio.
Bosch olhou para a cama. McCaleb ainda segurava a arma apontada para a porta. Uma nuvem azul de pólvora se elevava no centro do camarote. O ar tinha um cheiro acre,
de coisa queimada.
Bosch pegou sua arma na cama e foi até o corredor. Agachou-se perto do atirador, mas nem precisou tocá-lo para saber que estava morto. Durante o tiroteio pensara
ter reconhecido o irmão mais moço de Tafero, que trabalhava no escritório de fianças. A maior parte do rosto do sujeito desaparecera.
Bosch se levantou e foi ao banheiro pegar uma toalha de papel, que usou para tirar a arma da mão do homem morto. Levou-a de volta ao camarote principal e a colocou
na mesinha-de-cabeceira. A arma que McCaleb usara, caída sobre a cama. McCaleb estava de pé do outro lado. Já vestira a calça de malha e estava pondo a camiseta.
Assim que sua cabeça apareceu, ele olhou para Bosch.
Os dois ficaram se encarando por muito tempo. Haviam salvado a vida um do outro. Por fim, Bosch balançou a cabeça.
Tafero conseguiu sentar-se de costas para a parede. Corria sangue do seu nariz e também de ambos os lados da boca. Aquilo parecia um grotesco bigode de Fu Manchu.
Bosch viu que ele quebrara o nariz quando batera de cara na parede. Tafero ficou sentado, derreado contra a parede, olhando horrorizado para o corpo no corredor.
Bosch usou a toalha de papel para pegar a arma na cama e colocá-la perto da outra, na mesinha-de-cabeceira. Depois tirou um celular do bolso e teclou um número.
Enquanto esperava a ligação se completar, olhou para Tafero.
- Você fez com que seu irmãozinho fosse morto, Rudy - disse ele. - Isso é muito ruim.
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Tafero baixou os olhos e começou a chorar.
O telefonema de Bosch foi atendido pela central de polícia. Ele deu o endereço da marina e disse que precisava de uma equipe da Homicídios da unidade encarregada
de tiroteios contra policiais. Precisava também da presença de uma equipe da Divisão Médico-Legal e de técnicos da Divisão de Investigação Científica. Disse à central
para mandar todos os avisos por telefone fixo. Não queria que a mídia soubesse do incidente pelo rádio da polícia, até que chegasse a hora apropriada.
Fechou o telefone e ergueu o aparelho para McCaleb.
- Quer uma ambulância? Você precisa ser examinado.
- Eu estou bem.
- Seu pescoço parece...
- Eu disse que estou bem. Bosch balançou a cabeça.
- Você é que sabe.
Deu a volta na cama e parou diante de Tafero.
- Vou tirar este sujeito daqui e levar até o carro.
Colocou Tafero em pé e empurrou-o para a porta. Quando passou pelo corpo do irmão no corredor, Tafero deixou escapar um gemido alto, feito um bicho. Bosch ficou
surpreso ao ouvir aquilo da parte de um homem tão grande.
- E, que pena - disse Bosch, sem uma gota de compaixão na voz. - O garoto tinha um futuro brilhante pela frente, ajudando você a matar gente e ajudando gente a se
livrar da cadeia.
Empurrou Tafero na direção da escada do salão.
Caminhando pelo passadiço que levava ao estacionamento, Bosch viu um homem parado no convés de um barco à vela repleto de flutuantes, pranchas de surfe e outras
tralhas. O sujeito olhou para Bosch, depois para Tafero e depois para Bosch novamente. Seus olhos se arregalaram, e ficou claro que ele os reconhecera, provavelmente
devido à cobertura que a tevê fazia do julgamento.
- Ei, ouvi uns tiros. Terry está bem?
- Vai ficar bem.
- Posso ir falar com ele?
- É melhor não. A polícia está vindo aí e vai cuidar do caso.
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- Ei, você é Bosch, não é? O cara do julgamento?
- É, eu sou Bosch.
O sujeito não disse mais nada. Bosch seguiu em frente com Tafero.
Quando Bosch voltou à embarcação poucos minutos depois, McCaleb estava na cozinha bebendo um copo de suco de laranja. Atrás dele, esparramadas nos degraus, viam-se
as pernas do homem morto.
- Um vizinho seu perguntou por você lá fora. McCaleb balançou a cabeça.
- Buddy.
Não disse mais nada.
Bosch lançou o olhar pela janela na direção do estacionamento. Achou que estava ouvindo sirenes à distância, mas talvez fosse apenas o vento brincando com sons.
- Eles vão chegar a qualquer minuto - disse ele. - Como está a garganta? Espero que possa falar, porque nós vamos ter muita coisa para explicar.
- Está bem. Por que está aqui, Harry?
Bosch pôs as chaves do carro na bancada. Ficou sem responder por muito tempo.
- Simplesmente adivinhei que você podia estar precisando de ajuda, só isso.
- Como assim?
- Você apertou o irmão dele no escritório hoje de manhã. Calculei que o cara podia ter seguido você e anotado a placa, ou coisa assim. Eles poderiam seguir sua pista
até aqui.
McCaleb lançou-lhe um olhar penetrante.
- E aí você estava à toa na marina e viu Rudy, mas não o irmãozinho dele?
- Não, eu vim de carro e fiquei rodando, na espreita. Vi o velho Lincoln de Rudy estacionado lá em cima e imaginei que podia estar havendo alguma coisa. Em momento
algum vi o irmão... Ele devia estar escondido em algum lugar, vigiando.
- Ele devia estar nas docas, procurando uma coruja que pudesse
tirar de um barco para usar depois com Jaye. Hoje eles estavam improvisando.
Bosch balançou a cabeça.
- Em todo caso, eu estava fuçando por aí e vi a porta do seu barco aberta. Resolvi conferir. Achei que a noite estava fria demais para um cara cuidadoso como você
dormir de porta aberta.
McCaleb balançou a cabeça.
Bosch ouviu o som inconfundível de sirenes se aproximando. Lançou o olhar pela janela para o estacionamento além das docas. Viu duas radiopatrulhas entrarem e pararem
perto do seu carro, onde Tafero estava trancado na traseira. As sirenes foram desligadas, mas as luzes azuis continuaram cintilando.
- É melhor eu ir receber o pessoal - disse ele.
Capítulo 44
Eles passaram a maior parte da noite separados, sendo interrogados incessantemente. Depois os interrogadores trocaram de sala, e eles ouviram as mesmas perguntas
mais uma vez, vindas de bocas diferentes. Cinco horas depois do tiroteio no Mar que Segue, as portas se abriram e McCaleb e Bosch se encontraram no corredor do Parker
Center.
- Você está bem?
- Cansado.
- Pois é.
McCaleb viu o detetive colocar um cigarro na boca mas sem acendê-lo.
- Vou até o gabinete do xerife - disse Bosch. - Quero estar lá. McCaleb balançou a cabeça.
- Vejo você lá.
Eles se apertaram ao lado do operador de câmera, atrás de uma vidraça opaca de um lado e transparente do outro. McCaleb sentiu o hálito de cigarro mentolado de Bosch
e o cheiro da colônia barata que vira o detetive aplicar no corpo dentro do carro, enquanto o seguia na direção de Whittier. Viu o reflexo fraco do rosto de Bosch
na vidraça e percebeu que o detetive observava através daquela superfície o que estava acontecendo na outra sala.
Do outro lado da vidraça havia uma mesa de reunião, onde Rudy Tafero estava sentado com um defensor público chamado
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Arnold Prince. Tafero tinha um esparadrapo branco no nariz e algodão em ambas as narinas. Levara seis pontos no alto da cabeça, que não podiam ser vistos por causa
de sua vasta cabeleira. Os enfermeiros haviam feito o curativo no nariz quebrado e na laceração na cabeça ainda na marina Cabrillo.
Jaye Winston estava sentada do lado oposto a Tafero, com a promotora Alice Short à direita. À sua esquerda viam-se o subchefe do Departamento de Polícia de Los Angeles,
Irvin Irving, e Donald Twilley, do FBI. As primeiras horas da manhã haviam sido gastas numa briga por posição entre todos os órgãos de segurança remotamente envolvidos
na investigação, que queriam tirar vantagem do que todos sabiam ser um caso de grande importância. Já eram seis e trinta da manhã, e chegara a hora de interrogar
o suspeito.
Fora decidido que Jaye conduziria o interrogatório - pois o caso fora dela desde o início -, enquanto os outros três ficariam observando, prontos para assessorá-la.
Ela começou o interrogatório declarando a data, a hora e a identidade dos presentes. Depois leu os direitos constitucionais de Tafero, fazendo-o assinar um formulário
de concordância. O defensor público disse que Tafero não faria pronunciamento algum no momento.
- Muito bem - disse Jaye, com os olhos em Tafero. - Eu não preciso que ele me conte nada. Quero conversar com ele. Quero dar uma idéia do que ele tem pela frente.
Não quero que futuramente ele venha a lamentar alguma falha de comunicação ou ter deixado escapar a única oportunidade de cooperar que terá.
Ela olhou para o dossiê à sua frente e o abriu. McCaleb reconheceu pela folha de rosto que se tratava de um formulário de indiciamento da promotoria.
- Rudy Tafero, quero que saiba que nesta manhã está sendo indiciado por assassinato qualificado de Edward Gunn, no dia
1 de janeiro deste ano, pela tentativa de
assassinato de Terrell McCaleb na data de hoje e pelo assassinato de Jesse Tafero, também na data de hoje. Sei que conhece a lei, mas sou obrigada a lhe explicar
a última acusação. A morte de seu irmão ocorreu enquanto você cometia um crime. Portanto, segundo as leis da Califórnia, você foi cúmplice da morte dele.
Ela esperou um instante, encarando os olhos aparentemente mortos de Tafero. Voltou a ler o indiciamento.
- Além do mais, precisa saber que a promotoria concordou em acrescentar uma acusação de circunstâncias especiais em relação à morte de Edward Gunn, Isto é, assassinato
contratado. O acréscimo de circunstâncias especiais tornará possível a aplicação da pena de morte no caso. Alice?
Alice Short inclinou-se para a frente. Era uma mulher pequena e atraente, à beira dos quarenta anos, com olhos grandes e envolventes. Era a promotora encarregada
dos julgamentos mais importantes. Tratava-se de muito poder num corpo tão pequeno principalmente quando contrastado com o tamanho do homem do outro lado da mesa.
- Rudy Tafero, você foi policial por vinte anos - disse ela. - Mais do que ninguém, conhece a gravidade de seus atos. Não me lembro um só caso que exigisse tanto
a pena de morte. E isso que pediremos que o júri aplique. E não tenho dúvida de que teremos êxito.
Depois de desempenhar seu papel na peça ensaiada, Alice recostou-se na cadeira e passou a palavra a Jaye. Houve um longo silêncio enquanto Jaye olhava para Tafero,
à espera de que ele devolvesse o olhar. Por fim Tafero ergueu o olhar e a encarou.
- Rudy Tafero, você é um homem experiente e já esteve até na posição oposta em salas como esta. Acho que não conseguiríamos enganar você nem que tivéssemos um ano
pra tentar. Portanto, vamos fazer apenas uma oferta. A oferta será feita apenas uma vez, e será rescindida permanentemente quando sairmos desta sala. É o seguinte.
O foco dos olhos de Tafero se dirigira novamente para a mesa. Jaye inclinou-se para a frente e o encarou.
- Você quer viver ou quer arriscar sua sorte com o júri? É, isso. E antes que responda, há algumas coisas a considerar. Número um, os jurados vão ver as provas fotográficas
do que você fez a Edward Gunn. Dois, eles vão ouvir Terry McCaleb descrever o que é sentirse impotente e ver sua vida se esvaindo ao ser estrangulado por você, Rudy
Tafero. Geralmente eu não faço apostas nesse sentido, mas cravaria menos de uma hora para os jurados deliberarem. Aposto que teremos um dos veredictos com sentença
de morte mais rápidos decretados nos tribunais da Califórnia.
Jaye Winston recolheu e fechou o dossiê à sua frente. McCaleb se pegou balançando a cabeça. Ela estava indo muito bem.
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- Nós queremos pegar o seu patrão - disse Jaye. - Queremos provas físicas que liguem Storey ao caso Gunn. Minha intuição diz que alguém como você tomaria precauções
antes de executar um plano desses. Seja o que for, nós queremos o que você tem.
Ela olhou para Alice. A promotora balançou a cabeça à guisa de elogio.
Passou-se quase um minuto. Por fim, Tafero virou-se para o defensor público, prestes a sussurrar uma pergunta. Mas voltou-se para Jaye antes.
- Foda-se, eu mesmo vou perguntar. Não reconheço as acusações feitas aqui, mas o que acontecerá se vocês deixarem de lado as circunstâncias especiais? O que eu pego?
Jaye soltou uma gargalhada e abanou a cabeça. McCaleb sorriu.
- Você está brincando? - perguntou Jaye. - "O que eu pego?" Cara, você vai ser enterrado em concreto e aço. E isso que você vai pegar. Você jamais, nunca mais verá
a luz do dia novamente. Com trato ou sem trato, isso é um fato consumado, e não é negociável.
O advogado de Tafero limpou a garganta.
- Srta. Winston, isso não é um modo profissional de...
- Estou cagando e andando para os meus modos. Esse sujeito é um assassino. É um pistoleiro de aluguel, mas pior. Antigamente ele tinha um distintivo, e por isso
merece mais desprezo ainda. Portanto, é isso que faremos pelo seu cliente, doutor Prince. Aceitaremos que ele se declare culpado pelo assassinato de Edward Gunn
e pela tentativa de assassinato de Terry McCaleb. Prisão perpétua sem condicional por essas duas acusações. Isso não é negociável. Ele não será indiciado pela morte
do irmão. Talvez consiga viver melhor se não for acusado disso. Isso realmente não me interessa. O que me interessa é que ele compreenda que a vida que conheceu
terminou. Ele está acabado. E pode ir para a galeria da morte ou para uma penitenciária de segurança máxima, mas vai pra uma das duas, e não vai voltar.
Ela consultou o relógio.
- Temos cerca de cinco minutos, e depois vamos embora. Se não quiserem aceitar o trato, muito bem, levaremos os dois a julgamento. Storey pode até ter alguma chance,
mas não há dúvida quanto a Rudy Tafero. Vai haver promotores arrombando a porta de Alice, mandando flores e chocolates. Todo dia vai ser Dia dos Namorados,
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o dia de São Valentim... ou de Valentino, no caso. Quem pegar ganha um bilhete premiado para ser escolhido promotor do ano.
Prince pôs uma maleta fina em cima da mesa e guardou o bloco de anotações. Não escrevera uma palavra.
- Muito obrigado pela sua atenção - disse. - Acho que pediremos uma audiência para estipular a fiança e depois trataremos da descoberta do crime e outros assuntos.
Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Tafero ergueu lentamente a cabeça e encarou Jaye, com os olhos fortemente injetados devido à hemorragia no nariz.
- Foi idéia dele fazer a coisa parecer um quadro - disse. - Foi idéia de David Storey.
Houve um momento de silêncio surpreendente. Depois o defensor público sentou-se pesadamente, fechando os olhos de dor.
- Sr. Tafero - disse Prince. - Aconselho fortemente que...
- Cale a boca - rebateu Tafero. - Seu merdinha. Não é você que vai encarar a agulha.
Ele olhou novamente para Jaye Winston.
- Aceito o trato. Desde que eu não seja indiciado pela morte do meu irmão.
Jaye balançou a cabeça.
Tafero virou-se para Alice Short, apontou o dedo para ela e ficou esperando. Alice balançou a cabeça.
- Trato feito - disse ela.
- Só uma coisa - disse Jaye, rapidamente. - Não podemos entrar nisso com a sua palavra contra a dele. O que mais nós temos?
Tafero olhou para ela, e um sorriso sem emoção surgiu no seu rosto.
Na sala de observação, Bosch aproximou-se da vidraça. meCaleb viu o reflexo dele mais nítido no vidro. Os olhos de Bosch não pestanejavam.
- Eu tenho as imagens - disse Tafero.
Jaye prendeu o cabelo atrás da orelha e estreitou os olhos. Inclinou-se sobre a mesa.
- Imagens? Como assim? Fotografias? Fotografias de quê? Tafero abanou a cabeça.
- Não. Imagens. Ele desenhava imagens para mim na sala de visitas da cadeia. Desenhava uma imagem de como queria que a cena do crime ficasse. Assim, a coisa ficaria
parecida com o quadro.
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McCaleb cerrou as mãos em punhos ao lado do corpo.
- Onde estão esses desenhos? - disse Jaye. Tafero sorriu novamente.
- Num cofre particular de um banco, o City National Bank, na esquina do Sunset Boulevard com Doheny. A chave está naquela argola que estava no meu bolso.
Bosch ergueu as mãos e bateu palmas.
- Bingo! - exclamou ele, alto o suficiente para Tafero virar-se e olhar na direção do vidro.
Por favor! - sussurrou o operador de câmera. - Estamos gravando.
Bosch foi até a porta da saleta e saiu, seguido por McCaleb. O detetive virou-se e olhou para ele, balançando a cabeça.
- Storey está acabado - disse ele. - O monstro volta para as trevas de onde veio.
Os dois ficaram se encarando silenciosamente por um momento, e Bosch quebrou o silêncio.
- Preciso ir - disse.
- Para onde?
- Vou me aprontar para o tribunal.
Ele se virou e atravessou a ala de detenção do esquadrão de homicídios do gabinete do xerife, que naquele momento estava deserta. McCaleb viu-o esmurrar uma escrivaninha
e dar um soco no ar.
McCaleb voltou à saleta de observação e ficou assistindo à continuação do interrogatório. Tafero estava contando à equipe reunida na outra sala que David Storey
exigira que Edward Gunn fosse assassinado na primeira manhã do Ano-Novo.
McCaleb ficou ouvindo durante algum tempo, mas lembrou-se de algo. Saiu da saleta de observação e seguiu pela ala de detenção. Os detetives já estavam começando
a chegar ao trabalho. Foi até uma mesa vazia e tirou uma folha de um bloco que estava ali em cima. Escreveu "Perguntar pelo Lincoln" na folha. Dobrou-a e levou-a
até a porta da sala de interrogatório.
Bateu à porta, que depois de um instante foi aberta por Alice Short. McCaleb entregou-lhe o bilhete dobrado.
- Dê isso a Jaye antes do fim do interrogatório - sussurrou.
Ela balançou a cabeça e fechou a porta. McCaleb voltou à saleta de
observação.
Capítulo 45
Barbeado e de banho tomado, Bosch saiu do elevador e foi andando na direção das portas do tribunal da Divisão N. Caminhava com ar decidido. Sentia-se um verdadeiro
príncipe da cidade. Mal tinha dado alguns passos, foi abordado por McEvoy, que saiu de uma alcova como um coiote à espreita da presa desprevenida numa caverna. Mas
nada poderia afetar a pose de Bosch. Ele sorriu quando o repórter passou a acompanhá-lo.
- Detetive Bosch, já pensou mais sobre o que falamos? Preciso começar a escrever minha reportagem hoje.
Bosch não diminuiu o passo. Sabia que não teria muito tempo a partir do momento em que entrasse no tribunal.
- Rudy Tafero - disse ele.
- Desculpe, não entendi.
- Ele foi o seu informante. Rudy Tafero. Descobri isso hoje de manhã.
- Detetive, já disse que não posso revelar...
- É, eu sei. Mas sou eu que estou revelando a coisa, entende? De qualquer forma, isso não interessa.
- Por que não?
Bosch parou de repente. McEvoy ainda deu alguns passos, mas depois voltou.
- Por que não? - perguntou novamente.
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- Hoje é o seu dia de sorte, Jack. Tenho duas dicas boas para
você?
-Tá legal. Quais?
McEvoy começou a tirar um bloco de anotações do bolso traseiro. Bosch pôs a mão no ombro dele, para detê-lo.
- Não tire isso daí. Se os outros repórteres virem isso, vão pensar que eu estou contando alguma coisa pra você.
Ele apontou ao longo do corredor para a porta aberta da sala da imprensa, onde um bando de repórteres esperava o começo da sessão do dia.
- Vão vir até aqui, e eu vou ter que contar pra eles. McEvoy deixou o bloco de anotações no lugar.
- Tá legal. Quais são as dicas?
- Primeiro, sua matéria está furada pra caralho. Na verdade, seu informante foi preso hoje cedo pela morte de Edward Gunn, bem como por tentativa de assassinato
contra Terry McCaleb.
-O quê? Ele...
- Espere. Quero terminar. Não tenho muito tempo. Ele esperou, e McEvoy balançou a cabeça.
- Pois é, Rudy foi em cana. Ele matou Gunn. O plano era pôr a culpa em mim e espalhar isso para o mundo durante a fase da defesa no julgamento.
- Está dizendo que Storey participou de...
- Exatamente. O que nos leva à dica número dois. Se eu fosse você, entraria no tribunal hoje bem antes que o juiz chegue e as coisas comecem. Está vendo aqueles
caras parados ali adiante? Eles vão perder o espetáculo, Jack. Não faça como eles.
Bosch deixou McEvoy parado ali e meneou a cabeça para o policial na porta, que o deixou entrar.
Dois policiais estavam colocando David Storey no seu lugar na mesa da defesa quando Bosch entrou no tribunal. Fowkkes já estava lá, e Janis Langwiser e Roger Kretzler
estavam sentados à mesa da promotoria. Bosch consultou o relógio ao passar pelo portão. Tinha cerca de quinze minutos antes que o juiz entrasse e chamasse o júri.
Foi até a mesa da promotoria, mas permaneceu de pé. Inclinou-se, pôs ambas as mãos sobre a mesa e olhou para os dois promotores.
- Harry, você está pronto? - começou Janis. - Hoje é o grande dia.
- Hoje é o grande dia, mas não pelo que vocês dois pensam. Vocês aceitariam uma confissão de culpa de Storey, não aceitariam? Se ele admitisse ser culpado no caso
de Jody Krementz e de Alicia Lopez, vocês não pediriam a agulha pra ele, certo?
Os dois ficaram olhando para ele com expressão confusa.
- Vem cá, nós não temos muito tempo até o juiz entrar. Querem que eu vá até a mesa da defesa e em cinco minutos dê a vocês dois casos de assassinato? Os parentes
de Alicia Lopez iam adorar. Vocês disseram a eles que não tinham provas para uma acusação.
- Harry, do que está falando? - disse Janis. - Nós já tentamos fazer acordo. Duas vezes. Fowkkes recusou terminantemente.
- E não temos provas no caso de Alicia Lopez - acrescentou Kretzler. - Você sabe disso. O júri de instrução recusou o indiciamento. Ninguém...
- Escutem, vocês querem um acordo ou não? Eu acho que posso ir até ali e conseguir isso. Prendi Rudy Tafero hoje de manhã. A coisa toda foi uma armação orquestrada
por Storey para me pegar. O tiro saiu pela culatra e Tafero aceitou um acordo. Ele está confessando.
-Jesus Cristo! - disse Kretzler.
Falou alto demais. Bosch se virou e olhou para a mesa da defesa. Fowkkes e Storey estavam olhando para eles. Bosch viu meEvoy sentar-se atrás da mesa da defesa,
num espaço reservado à mídia que ficava bem próximo a Fowkkes e aos outros. Nenhum outro repórter entrara e sentara ainda.
- Harry, do que está falando? - disse Janis. - Que assassinato? Bosch ignorou as perguntas.
- Posso ir até lá? - disse Bosch. - Quero olhar nos olhos de Storey quando contar isso a ele.
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Kretzler e Janis se entreolharam. A promotora deu de ombros e ergueu as mãos em sinal de exasperação.
- Vale a pena tentar. Nós só estávamos guardando o pedido de pena de morte como um trunfo.
- Tá legal - disse Bosch. - Veja se o auxiliar do juiz me consegue um pouco mais de tempo.
Bosch foi até a mesa da defesa e parou numa posição que lhe permitia olhar tanto para Fowkkes quanto para Storey. O advogado estava escrevendo alguma coisa no bloco
de anotações. Bosch pigarreou, e depois de alguns instantes Fowkkes ergueu vagarosamente o olhar para ele.
- Pois não, detetive Bosch? Não deveria estar se preparando para...
- Onde está Rudy Tafero?
Bosch ficou olhando para Storey ao fazer a pergunta.
Fowkkes olhou para trás, na direção do lugar encostado na balaustrada que Tafero normalmente ocupava durante a sessão do tribunal.
- Deve estar a caminho - disse ele. - Ainda temos ainda alguns minutos.
Bosch sorriu.
- A caminho? E, ele está a caminho. A caminho daquela penitenciária de segurança máxima em Corcoran, ou talvez Pelican Cove se tiver sorte. Eu realmente detestaria
ser ex-policial e cumprir minha pena em Corcoran.
Fowkkes não pareceu ficar impressionado.
- Detetive, não sei do que está falando. Estou aqui tentando preparar uma estratégia de defesa, porque acho que a promotoria vai encerrar sua parte hoje. Portanto,
se não se importa...
Bosch olhou para Storey ao responder.
- Não há estratégia possível. Não há defesa possível. Rudy Tafero foi preso hoje cedo, acusado de assassinato e tentativa de assassinato. Tenho certeza que seu cliente
pode lhe contar tudo sobre o caso, doutor. Se é que o senhor ainda não sabe.
Fowkkes levantou-se abruptamente, como se fosse apresentar um protesto.
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- Detetive, é altamente irregular aproximar-se da mesa da defesa...
- Ele aceitou um acordo há cerca de duas horas. Está entregando tudo por escrito.
Mais uma vez Bosch ignorou Fowkkes e olhou para Storey ao falar
- Portanto, aqui está o acordo. Você tem cerca de cinco minutos para ir até Janis Langwiser e Kretzler, e aceitar se declarar culpado pelo assassinato de Jody Krementz
e de Alicia Lopez.
- Isso é um absurdo. Vou me queixar ao juiz sobre a sua conduta.
Bosch olhou para Fowkkes.
- Fique à vontade. Mas isso não vai mudar as coisas. Cinco minutos-
Bosch afastou-se e foi até a escrivaninha do auxiliar do juiz, diante da bancada. As provas estavam empilhadas numa mesa lateral. Bosch folheou-as até encontrar
o cartaz que procurava. Retirou-o e levou-o de volta à mesa da defesa. Fowkkes ainda estava de pé, mas curvara-se para que Storey pudesse sussurrar no seu ouvido.
Bosch largou sobre a mesa o cartaz que continha a fotografia ampliada da estante da casa de Storey. Bateu levemente com os dedos em dois dos livros da prateleira
superior. Os títulos nas lombadas eram claramente legíveis. Um título era A arte das trevas, e o outro livro estava meramente intitulado Bosch.
- O seu conhecimento prévio está bem aqui.
Deixou a prova na mesa da defesa e começou a voltar para a mesa da promotoria. Mas depois de dois passos voltou e pôs as palmas das mãos abertas sobre a mesa. Olhou
fixamente para Storey e falou com uma voz suficientemente alta para que McEvoy ouvisse no recinto da imprensa.
- Sabe qual foi seu grande erro, David?
- Não - disse Storey, em tom de sarcasmo. - Por que não me diz, detetive?
Fowkkes segurou imediatamente o braço de seu cliente, num gesto para que ele calasse a boca.
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- Desenhar a cena do crime para Tafero - disse Bosch. - Ele foi até o banco City National e colocou as lindas figuras que você fez num cofre particular. Sabia que
elas poderiam vir a ser úteis, e isso realmente aconteceu. Usou as imagens hoje cedo para escapar da pena de morte. O que você vai usar?
Bosch viu a vacilação e a admissão nos olhos de Storey. Por um breve instante, os olhos dele piscaram sem realmente piscar. E Bosch percebeu que tudo terminara,
porque Storey percebera o mesmo.
Bosch endireitou o corpo e consultou displicentemente o relógio. Depois olhou para Fowkkes.
- Faltam uns três minutos, doutor Fowkkes. A vida do seu cliente está em jogo.
Voltou para a mesa da promotoria e se sentou. Kretzler e Janis se inclinaram em sua direção. Começaram a lhe sussurrar perguntas, mas Bosch as ignorou.
- Vamos só ver o que acontece.
Não olhou uma só vez para a mesa da defesa durante os cinco minutos seguintes. Ouviu murmúrios e algumas palavras em voz abafada, mas não entendeu nada. O tribunal
foi sendo tomado pelos espectadores e pelo pessoal da mídia.
A mesa da defesa não se manifestou.
Precisamente às nove horas, a porta atrás da bancada abriu-se. O juiz Houghton subiu os degraus até seu lugar e se sentou. Olhou para a mesa da promotoria e para
a mesa da defesa.
- Senhoras e senhores, estão prontos para o júri?
- Sim, meritíssimo - disse Kretzler.
Nada veio da mesa da defesa. Houghton ergueu o olhar, com um sorriso curioso no rosto.
- Doutor Fowkkes? Posso mandar entrar os jurados?
Bosch recostou-se no assento e olhou para a mesa da defesa, do outro lado de Janis e Kretzler. Fowkkes estava arriado na cadeira, numa postura que jamais assumira
no tribunal antes. Apoiara o cotovelo no braço da cadeira e tinha a mão levantada, agitando uma caneta nos dedos. Parecia perdido num pensamento profundo e deprimente.
Seu cliente estava sentado junto dele, com o rosto para baixo. i
- Doutor Fowkkes? Estou esperando uma resposta. Fowkkes finalmente olhou para o juiz. Muito vagarosamente,
levantou-se da cadeira e foi até a tribuna.
- Meritíssimo, posso me aproximar da bancada por um instante? O juiz pareceu ficar curioso e aborrecido ao mesmo tempo. A
norma do julgamento fora apresentar todos os pedidos de confabulação particulares às oito e trinta, para que as moções pudessem ser examinadas e discutidas na sala
de audiências, sem entrar pelo tempo destinado ao julgamento propriamente dito.
- Isso não pode ser tratado com o tribunal em sessão, doutor Fowkkes?
- Não, meritíssimo. Pelo menos no momento.
- Muito bem. Podem se aproximar.
Houghton fez sinal com ambas as mãos para os advogados se aproximarem, como se estivesse dando sinal para um caminhão dar marcha a ré.
Os advogados se aproximaram da bancada e reuniram-se ao juiz. De onde estava sentado Bosch podia ver todos os rostos e não precisava ouvir o que estava sendo sussurrado.
Fowkkes estava extremamente pálido, e depois de alguns segundos Kretzler e Janis Langwiser assumiram a postura de vencedores. A promotora chegou até a olhar para
Bosch, e ele sentiu a mensagem da vitória nos olhos dela.
Ele se virou, olhou para o réu e ficou esperando. David Storey voltou-se lentamente para ele, e os olhos dos dois se encontraram uma vez mais. Bosch não sorriu.
Não piscou. Não fez nada, a não ser manter o olhar fixo. Por fim, Storey baixou o olhar para as próprias mãos apoiadas no colo. Bosch sentiu uma vibração perpassar
pelo couro cabeludo. Já sentira aquilo antes ao encarar a face normalmente escondida do monstro.
A confabulação junto à bancada do juiz terminou, e os dois promotores voltaram rapidamente para a mesa, com a empolgação claramente visível nos passos e nos rostos.
Já J. Reason Fowkkes caminhou vagarosamente até a mesa da defesa.
- Já era, Fowkkes - disse Bosch entre dentes. Janis pegou Bosch pelo ombro enquanto se sentava.
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- Ele vai se confessar culpado - sussurrou empolgada. - Jody Krementz e Alicia Lopes. Quando você foi até lá, falou em sentenças consecutivas ou concorrentes?
- Nem uma coisa nem outra.
- Tá legal. Acabamos de concordar com sentenças concorrentes, mas vamos até a sala de audiências para estabelecer os detalhes. Primeiro precisamos acusar Storey
formalmente do assassinato de Alicia Lopez. Quer entrar e fazer a prisão?
- Tanto faz. Se você quer que eu entre.
Bosch sabia que aquilo era apenas uma formalidade legal. Storey já estava sob custódia.
- Você merece, Harry. Nós queremos que você esteja lá.
- Está bem.
O juiz bateu o martelo uma vez e chamou a atenção do tribunal. Os repórteres no recinto da mídia estavam todos inclinados para a frente nas cadeiras. Sabiam que
algo estava acontecendo.
- Ficaremos em recesso até as dez horas - anunciou o juiz. - Vou me reunir com as partes na sala de audiências.
Levantou-se e desceu rapidamente os três degraus que conduziam à porta traseira, antes que o policial tivesse tempo de dizer: "Todos de pé."
Capítulo 46
McCaleb continuou longe do Mar que Segue, mesmo depois que os detetives e peritos especializados terminaram o trabalho. O barco vinha sendo vigiado por repórteres
e equipes de noticiários televisivos desde o início da tarde. O tiroteio a bordo, a prisão de Tafero e a súbita confissão de David Storey haviam transformado a embarcação
na imagem central de uma história que crescera rapidamente durante o dia. Todos os canais locais de televisão, além das redes nacionais, tinham transmitido seus
noticiários diretamente da marina, tendo o Mar que Segue - com a fita amarela da polícia estendida na porta do salão - como cenário.
McCaleb passou a maior parte da tarde escondido no barco de Buddy, permanecendo abaixo do convés. Quando colocava a cabeça para fora da escotilha, a fim de ver o
que estava acontecendo, punha um dos chapéus de pescaria frouxos e caídos do sócio. Os dois já estavam se falando novamente. Logo depois de sair do escritório do
xerife e vir para a marina, antes da chegada da mídia, McCaleb procurara Buddy e pedira desculpas por ter presumido que ele deixara vazar a história. O sócio, por
sua vez, pedira desculpas por ter usado o barco - e o camarote de McCaleb - como ponto de encontro com massagistas eróticas. McCaleb concordara em dizer a Graciela
que se enganara a respeito do fato de Buddy ter vazado a história. O sócio explicara que não queria cair ainda mais no conceito de Graciela.
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Escondidos no barco, os dois ficaram assistindo à pequena televisão de doze polegadas de Buddy, acompanhando minuto a minuto o desenrolar dos acontecimentos. O Canal
9, que vinha transmitindo o julgamento de Storey ao vivo, realizara transmissões contínuas do tribunal de Van Nuys e do gabinete do xerife.
McCaleb estava estupefato e abalado com os acontecimentos do dia. Subitamente, em Van Nuys David Storey se declarara culpado de dois assassinatos. Ao mesmo tempo,
no tribunal central de Los Angeles fora acusado de formação de quadrilha no caso Gunn. O diretor de cinema escapara da pena de morte nos dois primeiros casos, mas
ainda podia ter que encará-la no caso Gunn se não fizesse outro acordo prévio com os promotores.
Uma entrevista coletiva televisada do escritório do xerife colocou Jaye Winston em posição proeminente. Ela respondeu a perguntas dos repórteres depois que o xerife,
flanqueado por figuras importantes do Departamento de Polícia de Los Angeles e do FBI, leu uma declaração descrevendo os acontecimentos do dia do ponto de vista
investigativo. O nome de McCaleb foi mencionado diversas vezes na discussão sobre a investigação e o subseqüente tiroteio a bordo do Mar que Segue. Jaye Winston
também mencionou o nome dele ao final da entrevista para a imprensa, expressando sua gratidão e dizendo que tinha sido o trabalho voluntário dele que conseguiu desatar
o impasse a que o caso chegou.
Bosch também foi mencionado com freqüência, mas não participou da entrevista coletiva. Depois que o juiz acolheu os veredictos de culpa de David Storey em Van Nuys,
o detetive e os advogados envolvidos no caso foram acossados por uma multidão às portas do tribunal. Mas num dos canais McCaleb viu Bosch se recusar a fazer qualquer
comentário, abrir caminho entre os repórteres e câmeras, ir até uma saída de incêndio e desaparecer escada abaixo.
O único repórter que havia falado com McCaleb foi Jack McEvoy, que ainda tinha o número do celular dele. McCaleb conversou rapidamente com ele, mas negou-se a comentar
o ocorrido no camarote principal do Mar que Segue e o perigo mortal por que
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passou. Seus pensamentos sobre o assunto eram pessoais demais, e ele jamais compartilharia aquilo com algum repórter.
McCaleb também falou com Graciela. Telefonou para ela e a informou dos acontecimentos antes que ela soubesse de tudo pelo noticiário. Disse que provavelmente só
chegaria em casa no dia seguinte, pois tinha certeza que a mídia ficaria vigiando o barco até bem depois do escurecer. Ela disse que estava contente por tudo ter
terminado e ele estar voltando para casa. McCaleb percebeu que ainda havia um alto nível de estresse na voz dela e sabia que teria que lidar com aquilo quando voltasse
para a ilha.
No fim do dia ele conseguiu escapulir do barco de Buddy sem ser notado, num momento em que a mídia tinha sido distraída por uma movimentação no estacionamento da
marina. O Departamento de Polícia de Los Angeles estava rebocando o velho Lincoln Continental em que os irmãos Tafero haviam vindo matar McCaleb na noite anterior.
Enquanto as equipes de noticiário filmavam e observavam o prosaico ato de um carro sendo içado e rebocado, McCaleb conseguiu chegar ao Cherokee sem ser notado. Ele
deu a partida ao carro e saiu do estacionamento à frente do caminhão-reboque. Nenhum repórter o viu sair.
Já havia escurecido completamente quando ele chegou à casa de Bosch. Como da vez anterior, a porta da frente estava aberta e a porta de tela fechada. McCaleb bateu
de leve no umbral de madeira e lançou o olhar pela tela na direção da escuridão reinante na casa. Só havia uma luz acesa - um abajur de leitura - na sala de estar.
Dava para ouvir o som de música, e ele achou que era o mesmo CD de Art Pepper que tocara durante sua última visita. Mas não viu Bosch.
McCaleb desviou o olhar da porta para examinar a rua, e quando olhou de volta assustou-se ao ver Bosch parado do outro lado da tela. O detetive abriu o fecho da
porta de tela e a abriu. Usava o mesmo terno com que McCaleb o havia visto nos noticiários. Segurava uma garrafa de Anchor Steam ao lado do corpo.
- Entre, Terry. Achei que talvez fosse um repórter. Eles me
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tiram do sério quando vêm até aqui. Deveria haver pelo menos um lugar aonde eles não pudessem ir.
- É, entendo o que você quer dizer. Eles cercaram o barco. Tive que cair fora.
McCaleb passou por Bosch, entrou no vestíbulo da casa, e foi para a sala.
- Mas, tirando os repórteres, como estão as coisas, Harry?
- Melhor do que nunca. Foi um bom dia para o nosso lado. Como vai o seu pescoço?
- Doendo pra diabo. Mas ainda estou vivo.
- É, isso é que é importante. Quer uma cerveja?
- Hum, seria bom.
Enquanto Bosch ia pegar a cerveja, McCaleb foi para a varanda dos fundos.
Bosch apagara as luzes da varanda para realçar as luzes da cidade à distância. McCaleb ouviu o onipresente ruído da rodovia no fundo do desfiladeiro. Holofotes cruzavam
o céu, vindos de três pontos diferentes na parte baixa do vale. Bosch saiu da casa e passou-lhe uma cerveja.
-Sem copo, não é?
- Sem copo.
Eles ficaram olhando para a paisagem noturna, bebendo as cervejas em silêncio durante algum tempo. McCaleb procurava uma maneira de dizer o que queria dizer. Ainda
estava amadurecendo a coisa.
- A última coisa que vi antes de sair de lá foi o carro de Tafero sendo rebocado - disse depois de algum tempo.
Bosch balançou a cabeça.
- E o barco? Já terminaram o exame? -Já.
- Ficou uma bagunça? Eles sempre deixam as coisas reviradas.
- Provavelmente. Ainda não entrei lá. Vou me preocupar com isso amanhã.
Bosch balançou a cabeça. McCaleb deu um grande gole na cerveja e pôs a garrafa em cima da balaustrada da varanda. Tinha
bebido demais. O líquido regurgitou na sua garganta, fazendo o interior do nariz arder.
- Tudo bem? - perguntou Bosch.
- Tudo bem - disse McCaleb, limpando a boca com as costas da mão. - Harry, vim aqui dizer a você que não posso mais ser seu amigo.
Bosch começou a rir, mas depois parou.
- Porquê?
McCaleb olhou para ele. Mesmo na escuridão, o olhar de Bosch continuava penetrante. Seus olhos haviam capturado um lampejo de luz refletida de alguma parte, e McCaleb
viu-se preso no foco daqueles dois pontos brilhantes.
- Você devia ter continuado lá hoje de manhã, enquanto Jaye interrogava Tafero.
- Eu não tinha tempo.
- Ela perguntou sobre o Lincoln, e ele disse que era o seu carro clandestino. Usava o Lincoln para fazer serviços em que não queria deixar chance de ser rastreado.
O carro tem placas roubadas. E o registro é falso.
- Faz sentido um cara daqueles ter um carro só para negócios sujos.
- Você não sacou, não é?
Bosch terminara a cerveja. Apoiara-se com os cotovelos na balaustrada. Estava arrancando o rótulo colado na garrafa e jogando os pedacinhos na escuridão lá embaixo.
- Não, não saquei, Terry. Por que não me diz logo do que está falando?
McCaleb pegou a cerveja, mas colocou-a novamente na balaustrada sem beber.
- O carro verdadeiro dele, o que ele usa todo dia, é um Mercedes Quatro-trinta C-L-K. Foi com esse carro que ele foi multado por ter estacionado na porta do correio,
quando enviou a ordem de pagamento.
- Tá legal, o cara tinha dois carros. O carro secreto e o carro de exibição. O que isso quer dizer?
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- Quer dizer que você sabia de algo que não deveria saber.
- Do que está falando? Saber de quê?
- Ontem à noite eu perguntei por que você tinha ido até o barco. Você disse que tinha visto o Lincoln de Tafero e que sabia que havia algo de errado. Como sabia
que o Lincoln era dele?
Bosch ficou calado por muito tempo. Olhou para a escuridão e balançou a cabeça.
- Eu salvei a sua vida - disse.
- E eu salvei a sua.
- Então estamos quites. Vamos deixar as coisas assim, Terry. McCaleb abanou a cabeça. Era como se houvesse um punho
fechado no seu estômago, empurrando seu peito e tentando chegar ao seu coração novo.
- Eu acho que você já conhecia aquele Lincoln e percebeu que aquilo significava problemas para mim porque já tinha seguido Tafero antes. Numa noite em que ele usou
o Lincoln, talvez. Na noite em que ele seguiu Gunn e planejou o crime, talvez. Na noite em que ele cometeu o crime, talvez. Você salvou a minha vida porque já sabia
de alguma coisa, Harry.
McCaleb ficou em silêncio por um instante, dando a Bosch a oportunidade de dizer algo em defesa própria.
- Isso é muito talvez, Terry.
- Pois é. Muito talvez e um palpite. Meu palpite é que de alguma forma você soube ou descobriu, quando Tafero combinou tudo com Storey, que eles teriam que ir em
cima de você no tribunal. Você ficou vigiando Tafero e viu quando ele armou pra cima de Gunn. Você sabia o que ia acontecer e deixou que acontecesse.
McCaleb bebeu outro gole grande de cerveja e pôs a garrafa novamente na balaustrada.
- Foi uma jogada perigosa, Harry. Eles quase escaparam. Mas também acho que você teria bolado outro jeito de fazer a coisa se voltar contra eles, mesmo que eu não
tivesse aparecido no caso.
Bosch continuou olhando para a escuridão sem dizer nada.
- Só espero que não tenha sido você que contou a Tafero que Gunn estava em custódia naquela noite. Diga que não foi você que
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deu aquele telefonema, Harry. Diga que você não ajudou Gunn a sair da cadeia para ser assassinado daquele jeito.
Bosch continuou em silêncio. McCaleb balançou a cabeça.
- Se quiser dar os parabéns a alguém, Harry, dê a si mesmo. Bosch baixou o olhar para a escuridão abaixo da varanda.
McCaleb ficou olhando atentamente e viu o detetive balançar vagarosamente a cabeça.
- A gente faz o que tem que fazer - disse Bosch em voz baixa.
- Às vezes pode escolher. Às vezes não tem escolha, só necessidade. A gente vê as coisas acontecerem e sabe que elas estão erradas, mas de alguma forma também estão
certas.
Ele se calou por alguns instantes, e McCaleb ficou esperando.
- Eu não dei aquele telefonema - disse Bosch.
Virou-se e olhou para McCaleb, que viu mais uma vez os dois pontos brilhantes de luz no negrume dos olhos dele.
- Três pessoas... três monstros... se acabaram.
- Mas não assim. A gente não faz as coisas assim. Bosch concordou.
- E a sua jogada de invadir o escritório do irmãozinho dele, Terry? Não achou que aquilo ia dar merda? Você precipitou tudo com aquela jogada, e sabe disso.
McCaleb sentiu seu rosto se acalorar sob o olhar de Bosch. Não respondeu, pois não sabia o que dizer.
- Você também tinha o seu plano, Terry. Portanto, qual é a diferença?
- A diferença? Se você não vê qual é a diferença, é porque já caiu completamente. Está perdido.
- Bom, talvez eu esteja perdido ou talvez eu tenha sido encontrado. Tenho que pensar a respeito. Mas enquanto isso, por que não vai pra casa? Volte para a sua ilhazinha
e sua menininha. Vá se esconder atrás do que você vê nos olhos dela. Finja que o mundo não é o que você sabe que é.
McCaleb balançou a cabeça. Já dissera o que queria dizer. Afastou-se da balaustrada, deixando a cerveja ali, e dirigiu-se para a porta da casa. Mas Bosch ainda o
atingiu com mais algumas palavras, antes que ele entrasse.
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- Só porque deu à sua filha o nome de uma garota que ninguém amava e com quem ninguém se importava, você acha que pode compensar a perda dela? Bom, você está errado,
cara. Vá pra casa e continue sonhando.
McCaleb hesitou na porta e olhou para trás.
- Adeus, Harry.
- É, adeus.
McCaleb atravessou a casa. Quando chegou ao abajur aceso ao lado da poltrona de leitura, viu a cópia do perfil que fizera de Bosch sobre o braço da cadeira. Continuou
andando. Quando passou pela porta da frente, fechou-a atrás de si.
Capítulo 47
Bosch ficou parado, com os braços cruzados sobre a balaustrada e a cabeça baixa. Pensava nas palavras - ditas e escritas - de McCaleb, que pareciam estilhaços de
uma granada atravessando seu corpo. Ele sentia seu revestimento interior rasgando-se profundamente. Parecia que ele fora agarrado por algo interior e que estava
sendo arrastado para um buraco negro. Parecia que estava implodindo e desaparecendo.
- O que eu fiz? - murmurou. - O que eu fiz?
Endireitou o corpo e viu a garrafa sem rótulo na balaustrada. Pegou-a e atirou-a o mais longe que pôde na escuridão. Ficou observando a trajetória, seguindo o vôo
devido ao luar refletido no vidro marrom. A garrafa explodiu no matagal da encosta rochosa lá embaixo.
Ele viu a garrafa meio cheia de McCaleb e a agarrou. Levou o braço para trás, querendo lançá-la na rodovia. Depois parou. Pôs a garrafa na balaustrada e entrou.
Tirou o perfil impresso do braço da cadeira e começou a picotar as duas folhas. Foi até a cozinha, abriu a torneira e pôs os pedaços na pia. Ligou o triturador de
lixo e empurrou os pedaços de papel para o ralo da pia. Ficou esperando até perceber, pelo ruído, que o papel se desmanchara e desaparecera. Desligou o triturador
e ficou observando a água correr pelo ralo.
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Vagarosamente, seus olhos se ergueram e ele lançou o olhar pela janela da cozinha na direção do passo Cahuenga. As luzes de Hollywood brilhavam no desfiladeiro,
espelhando as estrelas de todas as galáxias. Bosch pensou em tudo que havia de ruim lá fora. Uma cidade com mais coisas erradas do que certas. Um lugar onde você
podia ser tragado subitamente pela terra e engolfado no negrume. Uma cidade de luz perdida. A cidade dele. Era tudo isso, e ainda assim, sempre assim, um lugar para
se recomeçar. A cidade dele. A cidade da segunda chance.
Bosch balançou a cabeça e se inclinou. Fechou os olhos, pôs as mãos embaixo da água e levou-as ao rosto. A água estava fria e penetrante, como ele achava que qualquer
batismo, o início de uma segunda chance, deveria ser.
Capítulo 48
Ainda dava para sentir o cheiro de pólvora queimada. McCaleb parou no camarote principal e olhou em volta. Havia luvas de borracha e outras coisas espalhadas no
chão. O pó negro usado para colher impressões digitais cobria tudo por toda parte. A porta do camarote desaparecera, bem como os umbrais, arrancados da parede. No
corredor também fora removido um painel de madeira inteiro. McCaleb seguiu em frente e olhou para o chão, onde o irmão de Tafero morrera baleado por ele. O sangue
coagulara e dei' xaria manchas indeléveis nas tábuas claras e escuras que se alternavam no assoalho. Sempre estariam lá para servir de lembrete.
Olhando para o sangue, ele reviveu os tiros que dera no-sujeito. As imagens em sua mente se deslocavam muito mais devagar do que no tempo real. Pensou no que Bosch
dissera lá na varanda. Que ele deixara que o irmãozinho o seguisse. Pensou na própria culpabilidade. Sua culpa poderia ser menor do que a de Bosch? Ambos tinham
posto as coisas em movimento. Para cada ação há uma reação igual e oposta. Você não entra nas trevas sem que as trevas entrem em você.
- A gente faz o que tem que fazer - disse ele, em voz alta.
Subiu até o salão e lançou o olhar pela porta na direção do estacionamento. Os repórteres ainda estavam por lá com as vans. Ele se esgueirara até o barco sem ser
notado. Estacionara na outra
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extremidade da marina e pegara emprestado o esquife da embarcação de alguém para chegar ao Mar que Segue. Subira a bordo e entrara no barco sem ser visto.
Percebeu que as vans estavam com as antenas de microondas armadas. As equipes já se preparavam para o noticiário das onze horas, com os ângulos das câmeras ajustados
para pegar o Mar que Segue, mais uma vez, em todas as tomadas. McCaleb sorriu e abriu o telefone. Teclou um número gravado na memória, e Buddy atendeu.
- Buddy, sou eu. Escute. Estou no barco e preciso ir pra casa. Quer me fazer um favor?
- Precisa ir hoje? Tem certeza?
- Tenho. Quero que faça uma coisa. Quando ouvir o motor ser ligado, venha até aqui e solte os cabos de amarração. Faça isso depressa. Eu faço o restante.
- Quer que eu vá com você?
- Não é preciso. Pegue uma barca pra lá na sexta-feira. Temos aquele passeio marcado no sábado de manhã.
- Está bem, Terror. Ouvi pelo rádio que o mar está bem calmo e que não há nevoeiro, mas tenha cuidado.
McCaleb fechou o telefone e foi até a porta do salão. A maioria dos repórteres e das equipes estavam atarefados e não olhavam mais para o barco, porque já haviam
verificado que não havia ninguém lá. Ele abriu a porta e saiu. Fechou a porta e subiu rapidamente a escada até a ponte de comando. Abriu a cortina plástica que envolvia
a ponte e se meteu ali dentro. Viu que os dois aceleradores estavam em ponto morto, puxou o afogador e meteu a chave na ignição.
Virou a chave e os motores de partida começaram a gemer alto. Olhando para trás pela cortina de plástico, McCaleb viu que todos os repórteres haviam se virado para
o barco. Os motores finalmente pegaram, e ele acionou os aceleradores para fazer um aquecimento rápido das máquinas. Olhou novamente para trás e viu Buddy vindo
pelo cais até a popa da embarcação. Alguns repórteres já estavam correndo pelo passadiço atrás dele.
Buddy soltou rapidamente os dois cabos da popa e lançou-os sobre o convés. Foi caminhando pelo píer para pegar o cabo da proa. McCaleb perdeu-o de vista, mas depois
ouviu o grito.
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-Livre!
McCaleb tirou os aceleradores da posição neutra e afastou o barco do cais. Ao entrar no canal de navegação, olhou para trás e viu Buddy parado no píer lateral, com
os repórteres atrás.
Uma vez longe das câmeras, abriu as cortinas da ponte e retirou-as. O ar frio varreu a ponte, fazendo com que ele se encolhesse. Avistou as luzes vermelhas piscantes
das bóias que assinalavam o canal e pôs o barco naquela rota. Lançou o olhar para a escuridão à sua frente, além das bóias, mas não conseguiu enxergar nada. Ligou
o Raytheon e viu no radar o que não conseguia enxergar à sua frente. A ilha estava ali na tela do radar.
Dez minutos mais tarde, depois de ter passado da linha de arrebentação da baía, McCaleb tirou o telefone do bolso e teclou o número de casa já gravado. Sabia que
era tarde demais para telefonar e que estava se arriscando a acordar as crianças. Graciela atendeu rapidamente, sussurrando.
- Desculpe, sou eu de novo.
- Terry, você está bem?
- Agora estou. Estou indo pra casa.
- Está cruzando a baía no escuro?
McCaleb refletiu um instante sobre a pergunta.
- Vai dar tudo certo. Eu consigo enxergar no escuro. Graciela não disse nada. Ela conseguia perceber quando ele
estava dizendo uma coisa e falando de outra coisa.
- Ligue a luz do pátio - disse ele. - Vou me orientar por ela quando estiver perto.
McCaleb fechou o telefone e empurrou os aceleradores para a frente. A proa começou a se elevar e depois se nivelou. Ele passou a última bóia do canal, vinte metros
à esquerda. Estava bem no curso. Em quarto crescente, a lua brilhava no céu lá adiante, formando uma cintilante trilha de prata líquida que ele poderia seguir até
chegar em casa. McCaleb segurou firme no volante e pensou no momento em que realmente achara que ia morrer. Lembrou que a imagem da filha lhe aparecera e que aquilo
o confortara. Lágrimas começaram a rolar pelas suas faces. Logo o vento que vinha do mar as secava em seu rosto.
Michael Connelly
O melhor da literatura para todos os gostos e idades