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QUARTA PARTE
CAPÍTULO I
NUMA CHUVOSA MANHÃ DE OUTUBRO do ano de 1920, o desjejum em Broughton Court estava quase terminado. Lá fora, a chuva escorria pelas folhas amarelas das faias, batia
no terraço, o Anel de Chanctonbury estava perdido num nevoeiro, e apesar do calor da sala matutina atapetada em vermelho, do crepitar de um bom fogo, do aroma de
café, do bacon e do fígado grelhado em travessas de prata no aparador, um vago constrangimento começava a pairar, embora parecesse pouco afetar o General Desmonde,
de visita para caçar, e que, empertigado e distinto, passando geléia de Oxford numa torrada crocante, era por natureza imperturbável. Geoffrey rompeu o silêncio.
- Diabo de tempo. Nunca vi uma chuva assim.
- Pode parar depois do almoço - disse Claire, com os olhos voltados para o parque.
- Mesmo se sairmos, os abrigos estarão encharcados e as aves não voarão.
Frustrado no seu orgulho de proprietário - não cessava de fruir a demonstração, especialmente para o seu pai, das qualidades esportivas dos acres que lhe tinham
vindo pelo casamento - Geoffrey recostou-se, com as pernas finas e compridas espichadas embaixo da mesa, e começou a folhear aborrecido as páginas do jornal da manhã.
Claire, com um esforço, abandonou o seu ar de langor e voltou-se para o sogro. Recuperando-se de um recente ataque de influenza, ela tinha dormido mal e, como ainda
sofria da moléstia, recorrente, não tinha comido quase nada.
- Mais café?
- Não, minha querida. - Bateu-lhe na mão, compreensivo. - Quando vai ver o homem na cidade?
- Amanhã.
- Então diga-lhe que lhe dê alguma coisa para abrir o apetite.
Claire sorriu.
- Ficarei boa. Café, Geoffrey?
Geoffrey não respondeu. Subitamente imobilizado, com a atenção presa na folha à sua frente, soltou uma exclamação:
- Com a breca! Ouçam isto. - Com a voz de quem revela uma sensação, leu: "Realizou-se ontem, nas Galerias Maddox, na New Bond Street, a inauguração da mostra de
pinturas de Stephen Desmonde. O Sr. Desmonde, cujo controvertido quadro Circe e Seus Amantes recebeu o Prix de Luxembourg em 1913, é filho do Reverendo Bertram Desmonde,
da Reitoria de Stillwater, Sussex, e recentemente voltou à Inglaterra. Seu irmão mais moço, Tenente David Desmonde, foi morto em ação em Vimy Ridge. Nesta presente
coleção, apresentada na Grã-Bretanha sob o patrocínio de Richard Glyn, o Sr. Desmonde exibe, presumivelmente, os frutos do seu trabalho durante os anos da guerra,
os quais, ao que sabemos, passou em relativa tranquilidade na Península Ibérica. Apesar dessa vantagem, parece-nos que o Sr. Desmonde trabalhou em vão. Achamos as
suas paisagens cruas, a sua composição de figuras tosca e brutal. No seu completo afastamento da tradição, ele perdeu de vista os princípios básicos da proporção,
e confunde-se em perpétua excentricidade. Na verdade, embora não sejam de todo desprovidas de uma tórrida evidência de atmosfera e imaginação, essas telas nos sugerem
apenas um espírito perverso e frustrado. Hesitamos em usar palavras mais fortes, mas outros podem ser menos comedidos. Em suma, não podemos compreender a sua soidisant
arte e não gostamos dela."
Uma pausa de considerável intensidade seguiu-se a essa comunicação, e a seguir Geoffrey acrescentou:
- Há uma fotografia aqui de uma das pinturas. Uma prostituta seminua cercada por um bando dos mais terríveis patifes. A coisa me parece inteiramente decadente.
Atirou longe o jornal. Claire, imóvel, com uma expressão contrafeita, teve que dominar um impulso imediato e quase irresistível para apanhá-lo. Enquanto isso, o
general tinha se levantado e, de costas para o fogo, acendia o seu cachimbo com uma espécie de carrancudo alheamento.
- Como receberão isso na Reitoria?
- Mal. Na certa, vai recomeçar toda a embrulhada.
- Suponho que ele volte para casa.
- Tem que voltar. Não possui um níquel.
O general carregou o sobrecenho meditativamente.
- Receio que Bertram não esteja agora em condições de subsidiá-lo... Pena... grande pena! O que me espanta é esse sujeito ter a coragem de mostrar a cara na Inglaterra.
- A mim, não. Eu sabia que ele voltaria quando a luta acabasse.
Claire, que mantivera silêncio durante essas observações, aventurou:
- Será que as pinturas são tão más como dizem?
- Ora, meu Deus! Você não ouviu o que esse sujeito disse a respeito delas?
- Ouvi, Geoffrey. Mas me pareceu uma crítica tendenciosa. Ele também admite que não pôde compreender o sentido dos quadros. Talvez não esteja qualificado para julgar.
- Qualificado?! Mas o homem é um perito. Ou então não estaria no Post.
- E depois há o Glyn - insistiu Claire brandamente, mas com uma ponta de cor no rosto. - Ele é um artista conhecido. Por que patrocinaria o trabalho de Stephen,
se fosse uma droga?
- Porque ele é amiguinho do meu heróico primo, e além do mais um radical dos diabos. - Geoffrey olhou para a sua esposa, estranhamente irritado pela sua lógica.
- Acho até que eles tramaram a coisa junto em algum antro miserável de Paris.
- Como quer que a tenham arranjado - disse o general, com tranquilo raciocínio - isso é ruim para a família... muito. Quando penso em David... e nisto... - Dirigiu-se
para a porta. - Desculpe-me, Claire. Vou telefonar agora mesmo para Bertram.
- Telefone, papai. - Geoffrey concordou e exprimiu a sua aprovação empurrando a cadeira para trás. - Encontro-o no salão de bilhar. Jogaremos uma partida, e falaremos
sobre o assunto.
Sozinha, Claire apanhou o jornal, encontrou a notícia que procurava, leu-a duas vezes, e ficou sentada, pensativa, mas com os olhos turvados. Então, bruscamente,
levantou-se e subiu as escadas para o quarto das crianças. Mas Nicholas e a pequena Harriet já tinham saído com Jenkins, a ama, para um passeio pelo jardim. Com
qualquer tempo, a ama Jenkins acreditava no "arejamento" matinal, e da janela Claire viu as figurinhas dos seus filhos em impermeáveis amarelos e chapéus sudoeste,
forcejando nas botas de cano alto, de cada lado da gorda babá de japona azul, que, mais por delicadeza do que por proteção, levava um comprido guarda-chuva. Era
uma imagem tranquilizadora, e, sem querer, ela sorriu. Contudo, quase imediatamente, suspirou. Não havia, sem dúvida, a não ser o seu cuidado pela família, nenhuma
causa para ela ficar indevidamente perturbada com a notícia inesperada do reaparecimento de Stephen. Tinha-o, na frase de Geoffrey, riscado havia muito. Reconhecendo
os seus defeitos, como os outros, deplorava-os. No entanto, ainda tinha alguma esperança de que, de uma forma ou de outra, ele reparasse a situação. E o seu senso
de justiça, assim ela o chamava, percebia na notícia da sua mostra uma nota de preconceito, um juízo do homem e não do artista, que a fazia erguer-se em defesa dele
- pelo menos, corrigiu-se, em defesa da sua obra.
A chuva continuou, os homens não foram caçar, e à sombria chegada da tarde o mau humor de Geoffrey aumentou. Claire sabia que ele estava zangado com ela por se achar
indisposto - como se a falta fosse dela - e suspeitava também que ele tinha que resolver um assunto desagradável nesse dia. Mas
embora fosse sensível aos seus humores, e na verdade aos humores dos outros, naquela ocasião a preocupação consigo mesma a protegia. Um impulso, ainda informe, despertava
sob a sua consciência.
Na manhã seguinte, foi até Halborough e tomou o trem para Londres. Sentada sozinha num canto do compartimento, vestindo um costume cinza-escuro, um chapéu acima
da testa bonita e clara, o queixo mergulhado numa gargantilha de pele, as mãos enluvadas cruzadas no colo, olhava com olhos incomumente sombrios e abertos para os
campos verdes e familiares de Sussex, encharcados pela chuva recente, as sebes aparadas e as valas que passavam, o calcário Arun serpeando entre pastos molhados,
as juncas castanho-avermelhadas, os vimeiros que pareciam lanças de púrpura.
Na estação Victoria, tomou um táxi Para a Wimpole Street, onde o Dr. Ennis, retido no hospital, a manteve esperando até as 11:15. Mas a consulta decorreu sem incidentes,
ela foi considerada muito melhor, um pouco repreendida por seu ar pensativo, e depois liberada, pouco antes do meio-dia, com um sorriso e uma pressão fraternal no
braço.
Claire caminhou vagarosamente para West End, com toda a tarde diante dela, olhando o movimento de gente desconhecida, as alegres vitrines e os ônibus acelerados
- sempre lhe eram caros esses dias de liberdade. Iria ao seu clube? Não, decidiu que não estava com disposição para tagarelar. Inconscientemente, talvez, seus passos
a levaram pela Oxford Street a uma pequena pastelaria na parte alta da Bond Street. Entrou, pediu café e um brioche. Geoffrey, na sua qualidade de proprietário rural,
exigia refeições abundantes e suculentas, de sorte que era um alívio almoçar algo menos vitalizador. Depois, muito ao contrário do costume, como se o propósito fosse
apenas retardar a partida, fumou um cigarro... Ennis animara-a a pequenos vícios.
Dali a pouco ela se via novamente na rua e andando, incerta a princípio, com uma espécie de fatalismo, para as Galerias Maddox. Ali estava, com a fachada estreita,
precisando de uma pintura, apertada entre uma loja de antiguidades e o estúdio de um fotógrafo da moda. Ela entrou rapidamente, com o coração batendo, surpreendida
pela aparência modesta e pelo vazio do lugar. Somente duas mulheres estavam presentes, conversando em voz baixa, ao modo do bairro de Surbiton, por trás de um catálogo;
um rapaz comprido, sonolento, de calças listradas e jaqueta com alamares, lendo sentado a uma escrivaninha, parecia ser o único guardião da galeria.
Quando a sua visão clareou, Claire começou a olhar para os quadros, vendo pouco no começo, um audacioso contraste de cores brilhantes, mas se esforçando, apesar
da emoção que a perturbava, para avaliá-los, compreendê-los. Não era qualificada, reconhecendo-se como uma pessoa muito comum, apenas dotada do que se poderia chamar
de gosto artístico. E, admitia, não era imparcial, querendo de todo o coração aprovar os quadros. Não obstante,
malgrado essas desvantagens, tinha consciência, honestamente, de um poderoso impacto, uma impressão de animação, uma intensidade de vida que saltava das telas diante
de si. Via-as na sua originalidade de forma e ideia. Não eram comuns.
Uma, em particular, uma paisagem andaluza, reteve-a por longo tempo. Podia sentir o brilho duro da luz, o sol dardejando as áridas encostas e oliveiras mirradas.
Viu então a figura, uma camponesa descalça, velha, em pé e de perfil, vestida com uma blusa rasgada e uma saia de aniagem, com uma azada de madeira no ombro. Havia
nessa composição uma tal fusão de tristeza e dignidade, uma expressão tão pungente da alma da humanidade oprimida e sofredora, que o coração de Claire foi tocado.
De repente, estando absorvida, uma voz se dirigiu a ela. Voltou-se e viu Stephen. Imediatamente o sangue lhe subiu ao rosto - o choque e a surpresa fizeram-na realmente
empalidecer. Nem por um instante sonhara encontrá-lo ali, pois a sua visita, impremeditada e impulsiva, tinha todos os elementos do segredo. Experimentou, assim,
a sensação de ter sido descoberta, de ter se revelado de uma maneira um tanto vergonhosa.
- Claire! Que bom você ter vindo.
Stephen apertou-lhe a mão calorosamente, reteve-a por um momento entre os seus dedos magros e ásperos. Tornara-se, ela o via através da sua extrema confusão, extremamente
magro, seu rosto era tenso e seco, e parecia não ter um grama de carne. E deixara crescer uma barba, aparada no queixo e nas faces, o que de certo modo acentuava
o comprimento da mandíbula e das têmporas fundas, dando aos planos dos ossos do rosto um emaciamento quase sobressaltante. Contudo, estava moreno e mantinha-se aprumado.
Vestido em veludo cotelê lavado, camisa de flanela e casaco de piloto, tinha uma qualjdade vital que a tranquilizou, desfazendo a impressão de que ele estivesse
doente.
- Você mudou muito pouco - continuou ele. - Vamos sentar aqui, onde poderemos conversar. Naturalmente, você fica o dia inteiro na cidade. Como vão as crianças, e
Geoffrey?
Ela deu-lhe notícia da sua família, não ousando mencionar a dele na Reitoria. Sua maneira, direta e amiga, inteiramente despida daquela timidez juvenil que antes
tanto o atormentava, devia deixá-la à vontade. Contudo, por mais que tentasse, ela não conseguia retomar inteiramente a sua compostura, e mal podia olhar para ele.
- Suponho que tenha dado uma volta pela sala - disse ele com simplicidade, depois de terem conversado por alguns minutos. - Diga-me o que acha dos quadros.
- Gosto deles - respondeu ela sem jeito, como uma colegial.
- Não tenha medo de falar o que pensa - tranquilizou-a ele. - Já me habituei às ofensas.
Ela enrubesceu inesperadamente.
- Vimos a crítica no Post. Senti muito. Era tão... tão injusta.
- Oh, isso! Foi relativamente bondosa. Quase um cumprimento. Você devia ter visto algumas das outras críticas a meu respeito... puro descaramento.. esboços aborígines...
insensatez... perversão... - Sorriu levemente. Ora, quando Peyrat e eu fizemos a nossa primeira exibição, numa salinha da Rue Pigalle, o único crítico que a visitou
aconselhou-nos a queimar as telas e abrir uma salsicharia.
A calma do seu tom afetou-a profundamente. Seus olhos, baixos, viram um remendo grosseiro no joelho das calças de veludo cotelê, e mais particularmente os sapatos,
bem lustrados e precisamente amarrados, mas sapatos grosseiros, de um trabalhador de serviços pesados, com as solas grossas tacheadas. Exclamou involuntariamente.
- Stephen! Não tem sido fácil para você.
Instantaneamente ele rejeitou essa simpatia.
- Estive fazendo o que queria fazer. A única coisa que importa para mim... sem o que, eu não suportaria existir.
- Mas deve ter sido terrivelmente desencorajante ser recebido com insultos, ser privado do sucesso.
- O sucesso material não é tão importante, Claire. Geralmente é medido por falsos padrões. É o trabalho em si, o sentimento que temos por ele, que realmente importa.
Além disso, tenho encontrado certo reconhecimento. Duas das minhas telas estão na Galeria Municipal de Haia, outra em Bruxelas, e uma outra no Museu Estadual de
Oslo. - O seu movimento de surpresa levou-o a rir outra vez. - Isso a admira? Afinal de contas, alguns países compram as obras do artista jovem.
A revelação, tão inesperada, encheu-a de prazer. Seus olhos foram pousar na pintura da espanhola velha.
- Gosto desse... muitíssimo.
- Luisa Méndez. Sim, era uma pessoa bondosa. Quando eu estava com a minha última peseta, ela me acolheu. Tinha muito pouco. Mas era de uma pobreza limpa. - E ajuntou:
- Era cega.
- O acabamento tosco é impressionante.
Ele sorriu.
- Eu não dispunha de uma tela apropriada. Pintei na viagem. ..um pedaço cortado de um saco de batatas.
- Está chegando da Espanha?
- Não, saí de lá há um ano e meio. Havia um homem em Paris com quem eu queria trabalhar. Amédée Modigliani. Um belo pintor. Eu gostava dele.
- Você diz "gostava"?
- Morreu em janeiro, no Hôpital de la Charité. No dia anterior, a moça que vivia com ele se matara.
A calma do seu tom de voz sobressaltou-a. Que abismos não tinha ele sondado naqueles anos intercorrentes? Nervosa, olhou-o outra vez furtivament.e Sim, podia ver
no seu rosto as marcas deixadas pelas privações e expedientes como se durante anos tivesse andado entre os mais pobres e os mais infelizes dos seus semelhantes,
chegando quase ao desespero, e escapasse, não pelo cinismo, mas pela paixão secreta que havia nele. Que sujeito estranho... e no entanto...
Seguiu-se um silêncio. Várias pessoas entraram na galeria com o ar de quem investiga uma curiosidade. O rapaz que estava sentado atrás da escrivaninha penteava os
cabelos para trás. Claire sentiu que ele a olhava.
- Vai ficar em Londres? - perguntou ela.
- Sim. Glyn improvisou uma cama no estúdio. Logo depois da Fulham Road. Ele está fora por algumas semanas. Maddox também foi decente comigo. A propósito, ele estará
aqui às três. Gostaria que você o conhecesse.
Ela se remexeu nervosamente à ideia de um novo envolvimento. Não podia, não devia esperar, e fingiu consultar o relógio.
- Tenho que correr para tomar o meu trem - disse ela, começando a reunir as suas coisas, dobrando o catálogo e colocando-o na bolsa. Então forçou-se a fazer a pergunta
mais importante de todas:
- Você vai à Reitoria, não, Stephen? Houve uma pausa.
- Foi um erro ter ido lá antes. Agora seria um erro pior. Além disso, não é possível que me queiram lá.
- Oh, estou certa de que desejam vê-lo. Falei pelo telefone com Caroline ontem à noite. Eles realmente sentem falta de você.
Uma longa pausa.
- Bem, hesitou ele, se me convidarem...
- Fico tão contente! Então veremos você lá, Stephen. Adeus.
Lá fora, o ar era frio sobre as suas faces quentes, o céu de oeste tinha um fulgor róseo. Ela caminhou rápido, vivamente até pelo declive da St. James e através
de Pall Mall para a estação, com o espírito ainda ocupado com o seu breve e recente encontro. Parecia-lhe notável que tivesse visto e falado com Stephen. O instinto
protetor que sempre tivera para com ele tinha voltado, e no seu calor ela estava feliz - sem o saber, mais feliz do que estivera naqueles últimos meses.
No trem, viajando no crepúsculo outonal, passando por bosques sombrios, árvores rígidas e aldeias não vistas, onde as luzes já faziam halos nos vidros embaçados
das casas de campo, um sorriso de recordação entreabriu-lhe os lábios. E subitamente teve uma ideia, a que poderia chamar inspiração, que
a fez sentar-se com uma exclamação abafada. Que esplêndido, se pudesse realizar-se. Pôs-se então a pensar com toda a calma. Dadas as circunstâncias, teria dificuldades,
mas ela poderia vencê-las. Ao menos tentaria, de todo o coração.
CAPÍTULO II
STEPHEN TINHA CHEGADO À INGLATERRA com menos de três libras no bolso - uma condição de quase insolvência que certamente não era novidade para ele. Feliz por ter
uma casa e usufruir de uma pequena quitinete no estúdio não ocupado de Glyn, tinha no entanto que arranjar provisões, e os preços de pós-guerra da comida assustavam-no.
Um quarto de broa custava agora um xelim e quatro penies, uma libra do açúcar mais barato, que antes custava dois penies, tinha pulado para um xelim e dois penies.
O custo de vida subia vertiginosamente, infligindo privações aos assalariados e dificuldades até maiores aos que, como ele, não estavam ganhando nada.
Às vezes, naqueles anos de ausência, seus pensamentos se voltavam para Londres. Agora mal a reconhecia. O processo de desmobilização, ainda em andamento, a reacomodação
de milhares de seres humanos, causava um ar mutável de deslocamento, dava à cidade a singular impermanência de um posto de troca. No West End, predominava uma alegria
inquieta. Quase um milhão de jovens ingleses tinha morrido na guerra, outro milhão ficara incapacitado. Era para esquecer esse fato, ou porque já o tinha esquecido,
que o povo enchia os lugares de diversão, os teatros, cinemas, restaurantes e clubes noturnos? A tristeza tinha se dissipado como se nunca tivesse existido.
Mas o rio permanecia imutável, e Stephen, desprezando as ruas movimentadas, passava muitas horas vagabundeando pelos diques de Chelsea e Battersea, estudando o jogo
fluido de reflexos, infinitas gradações cinzentas, quebradas por um súbito lampejo de rosa e pérola - a pálida discrição de um sol de outubro. Durante a sua breve
mas proveitosa estada em Stepney, o baixo Tamisa deixara nele um encanto singular, uma necessidade, intensa e insistente, de pintá-lo em todos os seus tons. Uma
ida à Ilha dos Cachorros, não muito longe da Clinker Street, da qual se lembrava especialmente, estimulou-lhe a recordação, uma espécie de nostalgia, aumentando
o seu desejo de renovar as impressões do cenário. E uma manhã, um dia antes do término da mostra, não tendo mais nada para fazer, tomou um ônibus para Stepney.
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O tempo estava bom quando ele partiu, um céu cinzento opaco e um ar calmo e parado, perfeito para os tons que queria. Infelizmente, porém, quando o ônibus entrou
na Seven Sisters Lane, uma chuva fina varreu o estuário, bloqueando a zona portuária. No Leão Vermelho, saltou do ônibus e, com um olhar para o céu fechado e chuvoso,
levantou a gola da jaqueta e amaldiçoou rotundamente o clima. Para pintar, o dia estava morto - ninguém a não ser Monet poderia lidar com aquele borrão que havia
em tudo. Mas ele conhecia o lugar, e a vista da esquina do botequim de peixe e tira-gostos, e da loja onde costumava comprar as suas tintas, restaurou-lhe a boa
disposição. E num impulso seguiu pela Lane, entrou na Clifton Street, subiu as escadas da Sede e apertou a campainha.
Por muito tempo ninguém respondeu - o mesmo de sempre, pensou Stephen - até que um velho empregado com um ar de sargento-instrutor, de calças velhas de coadjutor,
cabeça raspada com uma tira de baeta verde no alto, abriu a porta.
- Sim - fez ele, olhando para Stephen.
- O Sr. Loftus ainda está aqui? Ele era coadjutor do distrito há alguns anos.
- O senhor se refere ao Reverendo Geral Loftus? Costumava estar aqui. Mas arranjou uma vida boa. Veja só, ainda no ano passado fizeram-no vigário de São Barnabé.
- Não diga! Fico contente em saber que ele está tão bem. Havia outro coadjutor mais ou menos na mesma época, o Sr. Geer.
- Oh, Geer... também foi embora. Mas não conseguiu muita coisa. Ainda é coadjutor, acho eu... numa aldeia de mineiros perto de Durham... trabalho duro.
- Sim - fez Stephen, detendo-se por um instante. - O senhor por acaso conhecerá uma moça que trabalhava aqui... chamada Jenny Baines?
- A Sra. Baines! - respondeu o homem imediatamente. - Claro que conheço. Mora bem perto. No 17 da Cable Street. Teve um pouco de má sorte na sua época. Mas é uma
mulherzinha gentil, e está muito bem.
- Má sorte?
- Ela teve um garoto que morreu. Depois perdeu o marido. Ele apanhou uma febre na Austrália e foi enterrado no mar. Por que pergunta? É sua amiga?
- Sim... de certa maneira - respondeu Stephen evasivamente; depois, como o olhar do sargento se tornasse mais inquisidor, disse: - Muito obrigado pela informação.
- Voltou-se e desceu os degraus.
Seu interesse em Geer e Loftus tinha sido meramente académico. Em
10 minutos estava lá, caminhando ao longo de uma fila ligeiramente curva de casas de tijolo aparente de um andar - os números ímpares à direita. Ele se
encontrava quase na frente do 17 quando a porta se abriu e saiu uma mulher, de cabeça descoberta, usando uma capa e carregando uma bolsa de corda trançada. Ele a
reconheceria em qualquer parte.
- Jenny - disse ele. - Não se lembra de mim?
Ela o olhou, olhou atentamente, como se estivesse diante de uma circunstância incrível que realmente a sobressaltava. Então disse, numa voz distante:
- Sr. Stephen Desmonde.
- Sim, Jenny. Você parece que viu um fantasma.
- Oh, não, senhor. O senhor mudou. Está mais magro, mas naturalmente sempre foi pequeno. - A cor tinha voltado novamente às suas faces; ainda atarantada, ela acrescentou:
- Tenho satisfação em vê-lo. Eu estava justamente saindo para fazer compras. Venha à minha casa.
- Não - protestou ele. - Irei com você.
Ela abriu o seu guarda-chuva e o manteve sobre ambos enquanto desciam a Cable Street.
- Quanto tempo faz que não nos vemos?
- Uns oito anos e... deixe ver... sim, oito anos e três meses... mais
ou menos.
A exatidão da sua resposta divertiu-o.
- Uma vez lhe mandei um postal de Paris. Chegou a recebê-lo?
- Sim! Está no consolo da minha cozinha neste momento. A Torre Eiffel. Tem sido muito admirado.
- Estou lisonjeado, Jenny. Então não me esqueceu?
- Isso nunca, Sr. Desmonde - respondeu ela com firmeza.
Estavam agora na rua principal, e como a garoa tivesse aumentado, ele conduziu-a para uma casa de chá que ficava na esquina da Commercial Road.
- Vamos nos abrigar aqui. E tomar uma xícara de chá.
- Chá e torrada amanteigada para dois.
- E veja se é manteiga, moça, por obséquio - acrescentou Jenny secamente, dizendo depois, em tom confidencial, para Stephen: - Conheço esta gente. Trazem margarina
assim que o freguês senta.
O chá foi trazido, quente, fumegante, sendo a torrada devidamente examinada.
- E como vão as coisas com você, Jenny? - Apanhou a xícara e serviu-a. - Senti muito saber... que agora está sozinha.
- Sim, tive as minhas infelicidades. Mas o senhor sabe, a gente passa por cima delas. Nunca fui mulher de ficar desanimada. Empreguei o seguro de Alf numa linda
casinha e não tenho me saído mal.
- Aceita pensionistas?
- De uma maneira muito particular, sim. Tenho um permanente, o velho Capitão Tapley - Sr. John Tapley. Para ser sincera, quando se aposentou
só tinha um batelão, e antes dele uma barcaça. Mas é uma pessoa boa, emhbora muito surdo. Também tenho outro quarto que alugo temporariamente, sempre por recomendação:
oficiais de navios que estão descarregando as docas, maquinistas que chegam para consertos. Na época das missões, havendo necessidade, acomodo até clérigos da Sede.
- Meu Deus, Jenny. Clérigos. Depois de tudo que lhe fizeram. Você é tão magnânima... e tão alegre como sempre.
- E por que não seria, meu senhor? Gosto de estar ocupada. Tenho a minha independência. E tenho a sorte de ter Florrie.
Stephen fez um olhar de curiosidade interessada.
Florrie Baines. Irmã de Alf, é uma pessoa como poucas. Sempre fomos muito amigas. Ela tem um pequeno negócio em Margate. Vou lá muitas vezes para ajudá-la.
- Que espécie de negócio?
- Peixe natural.
O emprego desse adjetivo fez Stephen sorrir.
- Há alguma outra espécie?
- Nunca pensei nisso - riu-se ela. - Natural é como dizem no comércio. Tolo talvez. De qualquer modo, suponho que haja defumados e secos e salgados e coisas assim.
Mas Florrie trabalha principalmente com camarão.
Estudando-a tal como estava sentada ali, de cabeça descoberta, os braços confortavelmente sobre a mesa, a capa aberta no pescoço, os seios redondos sob o corpete
pardo, ele compreendeu por que sempre tinha querido pintá-la. Alguma coisa nela: uma qualidade de feminilidade, a generosidade da sua boca larga e do lábio inferior
cheio, aquela natureza muito viva, a rede de veiazinhas nas faces, a franja de cabelo preto, os olhos suaves mas fogosamente independentes. Podia vê-la agora, reclinada,
de ossos miúdos sob o aspecto rechonchudo, num divã azul, contra o qual os vermelhos da sua pele arderiam e crepitariam.
- E quanto ao senhor? Vai indo bem?
- Oh, muito bem, Jenny - Saiu do seu sonho. - Desgracei-me além das esperanças dos meus piores inimigos. Fugi da guerra, rolei por todas as sarjetas da Europa -
isso é uma citação de uma carta recente - e saí delas um tanto pior, pelo uso.
- Não posso acreditar nisso, Sr. Desmonde. O senhor sempre foi um cavalheiro. - Uma pausa. - Continua pintando?
- Ainda está em mim. Agarrou-me pelo pescoço. Não me solta.
- Sim - concordou com prática condescendência. - E se tem que fazer uma coisa, acho que tem mesmo. É como... ir para o mar, eu queria dizer.
- É como ser atirado pela borda, Jenny. E tendo que nadar para salvar a pele.
- Bem - disse ela vivamente - o senhor sempre gostou da água. Lembro-me que tomava banho frio na Sede todo santo dia.
O seu sorriso seco era irresistível. Ele riu e ela também, um ataque de riso em uníssono que fez a garçonete surgir do fundo com uma cara de desaprovação e colocar
a conta em cima da mesa.
- Que descaramento! - comentou Jenny enxugando os olhos. - Mas eu me sinto melhor. Nada como uma boa risada. Tome outra xícara de chá.
- Chega, Jenny.
- É estranho ver o senhor por estas bandas outra vez, Sr. Desmonde. Ela falava com rara naturalidade. - Suponho... suponho que tenha vindo para ver o pessoal da
Sede.
Ele sacudiu a cabeça.
- Então, para quê?
- Eu queria pintar um pedaço do rio.
- Oh! - exclamou ela, baixando os olhos.
- Conhece o velho molhe Barking?
- Claro que conheço.
- É esse pedaço.
- Aqueles barracos caindo aos pedaços... - Interrompeu-se, mordendo o lábio inferior, e depois perguntou: - Vai ficar muito tempo em Londres?
- Acho que não. Vou-me embora em dois dias.
- Compreendo.
Um silêncio seguiu-se. Ele apanhou a conta.
- Não devo atrapalhar as suas compras.
- Não, acho que não podemos ficar aqui sentados para sempre. - Respirou rápido e perguntou, com um toque de desafio: - Não quer voltar e conhecer o Capitão Tapley?
Eu poderia lhe servir um belo almoço.
A sinceridade da sua voz e a ideia de uma boa comida quente atraíam-no. Mas ele sacudiu bruscamente a tentação.
- Outra vez, Jenny. Quem sabe se eu algum dia não apareço por aqui?
- Se aparecer, não se esqueça de me visitar.
- Prometo.
Ela apanhou a bolsa e o guarda-chuva, e ambos apertaram-se as mãos na porta de vaivém; então, ela foi para o mercado, enquanto ele caminhava na direção oposta, com
a intenção de voltar a pé para a Fulham. Ao chegar na esquina, algo o fez voltar a cabeça. Ela também estava olhando para trás, para ele. O nevoeiro, já uma cerrração
densa, parecia acentuar o seu sentimento de ter perdido calor e companhia.
CAPÍTULO III
A MOSTRA DE STEPHEN encerrou-se no último dia de novembro. Charles Maddox, dono da galeria, temendo que uma forte reação contra Stephen pudesse surgir na imprensa,
tinha-a feito com relutância, e somente por pressão de Richard Glyn, a quem representava com um lucro considerável nos últimos poucos anos. Todavia, para sua surpresa
- se um negociante de arte é capaz de tal emoção - dois dos quadros de maior preço, Caridade e Meio-Dia nos Olivais, foram vendidos para um agente na última semana
da mostra, de sorte que havia mais do que coberto as suas despesas, enquanto Stephen, descontada a sua comissão, recebera um cheque de 300 libras. Apesar da sua
indiferença pelo sucesso material, era um alívio sertão inesperadamente retirado do seu crónico estado de penúria, e, ademais, aquela desacostumada afluência lançava
uma luz melhor sobre a sua visita a Stillwater, em perspectiva. Recebera do pai uma carta breve, mas não indelicada, convidando-o a uma visita à Reitoria, e ele
já tinha respondido aceitando.
Cedo, a 3 de dezembro, arrumou a sua mochila, deixou um bilhete para Glyn no estúdio, dizendo que em breve chegaria a Londres, e embarcou para Sussex. Uma hora mais
tarde, desceu em Gillinghurst, a estação antes de Halborough, a fim de poder fazer a pé a longa travessia pelos campos até Stillwater. Era uma delicada manhã de
inverno. O sol amarelo, pálido, ainda não tinha desfeito a geada enrugada que prateava todas as folhas de relva, todos os ramos de pilriteiros. Nos galhos das faias,
prismas de gelo recebiam a luz, quebrando-a em fragmentos irisados. O ar estava sereno, mas pungente como sidra. Nos campos, as vacas caminhavam no vapor das suas
respirações. Quantas Vezes na Espanha, sofrendo agudamente a tristeza do exílio, errando pelos olivais quentes em consumidora solidão, o pensamento da Inglaterra
o perseguira: a terra molhada, as árvores sem folhas, os prados encharcados, os regatos margeados de vimeiros tinham-no chamado e tornado a chamar.
Ao andar pelas trilhas serpenteantes, o chão duro tinindo como ferro sob os seus Sapatos, cada passo o trazia de volta aos dias em que havia corrido estes bosques
e prados com o seu irmão. À direita estava o bosque cerrado onde tinham juntado avelãs, e mais adiante, o arvoredo que, numa tarde de junho, lhes dera o raro ovo
pintado de uma carriça de crista dourada. Outra curva
da estrada e, através das árvores nuas, podia ver os reflexos do Lago Chillingham. Quantas vezes tinham vindo juntos pescar as percas prateadas que pairavam e corriam
entre as folhas de nenúfar e camadas de agrião naquelas fontes claras. Uma dor de recordação levou-o a apertar os dentes. Aquela sensação de autocensura que, desde
que soubera da morte de Davie, nunca o deixara, agora lhe doía outra vez no peito. Súbita e dolorosamente, ele parecia despido da fé no seu próprio poder criador
que geralmente o sustinha, sentia-se indigno, sua vida não mais do que um pobre e gasto ensaio de futilidade.
Alcançou a aldeia de Stillwater e, com o coração batendo, atravessou as ruas de paralelepípedos por entre as velhas empenas de madeira e alvenaria. Contudo, o lugar
parecia ter crescido na sua ausência, e uma nota moderna era dada pelas lojas estranhas, por um Woolworth de fachada vermelha, um cinema com uma marquise ostentosa
e uma grande casa de bailes, embelezada por anúncios de néon, no lugar da velha casa da troca do milho. Então, ao subir o outeiro fora da cidade, foi bruscamente
detido por uma fileira de novos bangalôs suburbanos de tijolo vermelho, construídos na estrada principal acima da trilha que levava à Reitoria. Seu estilo medonho
e pretensão barata, até os seus nomes - "O Ninho", "Meu Cantinho", "Billacoo" - dourados sobre as frontarias enfeitadas, eram um insulto ao bom gosto. E este alto
espinhaço, oferecendo uma bela vista para a igreja normanda e as ondulações dos Downs, tinha sido um sítio encantador, uma coutada, com tojos e samambaias, desde
quando ele podia se lembrar.
Contristado, pôs-se a andar apressadamente pela trilha abaixo, atalhando à esquerda, pela cancela dos terrenos da Reitoria, no caminho arborizado conhecido como
Canon's Walk. Aqui, também, sentiu um ar de mudança, uma ligeira negligência nas folhas sopradas pelo vento que se amontoavam no caminho musgoso. No pomar, uma antiga
macieira jazia rachada e ainda como os ramos onde tinha caído através do muro telhado do estábulo. A porta lateral, que dava entrada para o abrigo das samambaias,
achava-se aberta. No minuto seguinte estava na casa. Em resposta ao seu chamado, ouviu-se um movimento na copa. Ele entrou e encontrou Caroline, usando um avental
manchado, cabelo enrolado num lenço colorido, sentada à mesa, descascando maçãs.
- Carrie! - exclamou ele.
Ela voltou-se, olhou-o e deixou cair a faca.
- Oh, Stephen. Que bom que você veio!
Sua acolhida comoveu-o. Contudo, via que ela estava desconcertada por ter sido apanhada de surpresa, e que os seus olhos tinham uma expressão preocupada. Não a constrangeu.
- Onde estão todos?
- Papai foi a uma conferência em Charminster. Só voltará à tarde. Nós não o esperávamos antes do fim da tarde.
- E mamãe?
- Ausente. Como sempre. Deixe-me dar-lhe alguma coisa para comer.
- Ele sacudiu a cabeça.
- Não há muita coisa para o lanche.
A isto, as lágrimas começaram a marejar as suas pálpebras. Ele sentou-se ao lado dela, tirou o lenço vermelho de algodão vermelho que sempre trazia consigo e ofereceu-o.
- A culpa é minha?
- Não, não... não é você... é tudo.
- Conte-me.
Ela suspirou e desabafou. As perturbações que a afligiam podiam ser expressas numa única palavra... mudança. . mudança naquele esplêndido mundo que tinham conhecido
na juventude... mudança que viera com tal rapidez, que ela se frustrara e se desnorteara.
A Reitoria nunca fora um estabelecimento fácil de dirigir. Mas agora... as dificuldades eram confrangedoras. Desde que Beasley morrera, pouco depois do Armistício,
ela não tinha uma criada decente na casa. Mulheres adultas, acostumadas aos grandes salários das fábricas de munição, tinham perdido o gosto pelos serviços domésticos.
Uma procissão de moças da aldeia entrava e saía da cozinha. Atrevidas, descuidadas, sem nenhum interesse pelo seu trabalho, não pensavam em outra coisa a não ser
sair para o cinema ou para o novo salão de baile que agora profanava a cidade. Ainda esta manhã fora obrigada a despedir Bessie Gudderby, a filha do colmeiro, porque
a encontrara, tarde da noite, na sala dos criados, dividindo uma garrafa de vinho do Porto do Reitor com um rapaz de Brighton, de pijama.
- Imagine só. De pijama! - declarou Caroline. Foi a guerra que fez tudo isso, essa horrível guerra. - Se eu não tivesse aceito uma imigrante austríaca, vinda diretamente
do Tirol, não teria nesta casa uma única pessoa para me ajudar. Mas Sophie não sabe inglês, e só sabe fazer apfelstrudel e wienerschnitzel!
Stephen poderia ter sorrido, não fosse a expressão abatida do rosto de Caroline. Também notou que as suas mãos estavam vermelhas e gretadas, com as palmas engrossadas
pelo trabalho pesado. Manteve silêncio enquanto ela resumia:
- E não é só aqui dentro, lá fora também. O dinheiro parece andar escasso para papai. Não cultivamos mais a fazenda. Foi deixada para Mathews. Durante a guerra,
tivemos que encostar os arados. Era simplesmente demais fazer com que os prados voltassem a ter pasto, especialmente depois que perdemos Mould.
- Quê! O velho morreu?
Não, foi aposentado.. . pelo seu notável filho. - Enquanto Stephen a
olhava interrogativamente, ela continuou, com uma nota de verdadeira amargura: - Suponho que você tenha visto os novos bangalôs na coutada. Foi Albert Mould que
os construiu. É dono de todos. Albert mostrou ser um furão desde a última vez que você o viu. Durante a guerra, ele se apoderou da velha argileira, explorou-a com
um lucro fantástico. Fez um dinheirão. Agora ele tem toda a sorte de projetos comerciais - e políticos também. Conselheiro do condado... uma verdadeira força no
distrito. Naturalmente, ele nos odeia, como sempre, e no ano passado teve uma violenta discussão com papai sobre os limites de uma gleba. Houve uma pausa.
- E como está papai?
- Ele está bem, nas circunstâncias. Não pode fazer tanto como costumava, mas está com muito boa saúde.
- Ele deve sentir falta de Davie - disse Stephen, ficando de olhos baixos.
- Sim. Mas é de você que ele realmente sente falta. E naturalmente, como o resto de nós, tem as suas preocupações. - Por um instante, Stephen pensou que a referência
era a ele; então Caroline disse, em voz baixa: - Mamãe.
Carrie tinha como regra jamais discutir a sua mãe, mas agora, mais mole, mais comunicativa, revelou, após um momento de hesitação, aquela nova ansiedade. Ultimamente,
a excentricidade de Julia tinha aumentado a tal ponto, que se tornara uma verdadeira preocupação. Como a dificuldade com os trabalhos domésticos impunha uma restrição
às suas comodidades, ela agora ficava menos do que antes em Stillwater, ausentando-se às vezes durante semanas, deixando todos sem saber do seu paradeiro. Antes,
ela somente parecia à vontade nas estações de água, onde, entregue à sua indolência, podia beber água mineral de manhã e de tarde, usando um chapéu de plumas e muitos
colares de contas, sentada como uma estátua, imperturbável, no pátio das palmeiras do Grand Hotel, perto da orquestra, ouvindo Strauss, Bizet e Amy Woodford Finden.
Mas agora a sua hipocondria, como as suas esquisitices, tinham aumentado, de sorte que dos médicos ortodoxos - os quais, embora atendessem os seus caprichos e desejos,
a mantinham dentro de limites razoáveis - passara, aos poucos, para quiropráticos, osteopatas e curandeiros. Agora devia estar instalada em Shepherd's Bush, na casa
de saúde de um místico oriental que expunha alguma forma de teosofia concentrada - supunha Caroline - na palavra Karma. Tudo isso causava terríveis preocupações.
Julia, sem dúvida, tinha um pequeno rendimento seu, contudo deveria ser insuficiente para manter as diversas extravagâncias do seu modo de vida. Mas ninguém podia
descobrir a verdade - ela se tornava mais secreta, ao menos mais serenamente distante do que nunca. Vivia no seu próprio mundo de sonho... do qual a
guerra, a ausência de Stephen, as dificuldades do Reitor, e até a morte de Davie, não a tinham afastado sequer por um único instante.
Ouviu-se uma sineta, e Caroline concluiu. Era hora do almoço. Durante a refeição, a qual, conforme predito, foi simples e ruim, servida sem cerimónia pela ossuda
Sophie, e mais tarde, quando foram andar pelo jardim e ela lhe mostrou como tinha conseguido manter-se com apenas um homem trabalhando meio dia no verão e um rapaz
que vinha aos sábados, Stephen esforçava-se por tirar a irmã daquela depressão. Desde a sua primeira infância, nunca tinha havido muito amor entre Caroline e ele.
Os ciúmes dela, o seu ressentimento pelo amor do pai a ele, abafavam quaisquer aproximações de Stephen. Mas agora a adversidade a tinha abatido, trazendo-lhe a necessidade
de apoio.
Às quatro horas da tarde, chegou o Reitor. Cumprimentou Stephen tranquilamente, olhando-o de perto, depois de longe, como se mal se aventurasse a avaliar os efeitos
daqueles anos de ausência. Não fez perguntas, levando-o em silêncio para a biblioteca, onde Caroline já tinha aprontado o chá com bolinhos ingleses.
- Como é bom ter um fogo nestes dias de inverno. - O Reitor estendeu as mãos para o braseiro, que acentuou os traços de tristeza, até agora não mostrada, em seu
rosto. - Espero que tenha feito uma viagem agradável.
- Muito. Vim andando desde Gillinghurst.
- É mesmo? - Depois de uma pausa: - Nós talvez não estejamos tão bem como antes, mas faremos o melhor que pudermos para lhe dar conforto.
Sua conversação, naturalmente seca, traía o esforço sob o qual laborava o Reitor. O encontro era deveras terrível para ele. Dilacerado entre o desejo paternal e
o medo de novo infortúnio, queria apertar Stephen no coração; contudo, advertido pela última ocorrência, não ousava. Até a aparência do seu filho, a barba e as roupas,
e aquela expressão fixa, como uma máscara afivelada no rosto, despertava as suas preocupações. A esperança continuamente frustrada tinha deixado apenas a expectativa
sombria de alguma coisa nova e imprevista que trouxesse mais descrédito para todos eles.
Estava, contudo, resolvido a se mostrar calmo e natural. Quando a bandeja do chá foi retirada, ele passou os dedos na toalha e esvaziou o vaso azul que ali estava.
- Ultimamente não temos tido muita oportunidade para escavar, mas estas foram achadas outro dia.
Stephen examinou as moedas que ele lhe entregou.
- Parecem muito antigas.
- O harrington de cobre não tem muito valor, mas as outras duas são muito boas.
- Uma é um pêni de cruz comprida? - sugeriu Stephen, lembrando de alguma coisa da sua instrução juvenil. - Século XIII?
- Precisamente. - Satisfeito, o Reitor inclinou-se para a frente. - Henrique III... por volta de 1250. Você vê como os braços da cruz chegam até a borda para impedir
o corte. E este - entregou outra moeda - é o meu último achado. E muito bom... do North Barrow. Pode identificá-lo?
Stephen estudou o disco fino como papel, esperando estar certo.
- Pode ser um xelim rosa?
- Andou perto. Um anjo. Circulou logo depois dos xelins de ouro. Você pode distinguir o navio no reverso, e o anjo é São Miguel. Esta era a peça dada aos atingidos
pela maldade do rei. Foi cunhado para esse fim por Carlos I.
Stephen, mostrando interesse, voltou às moedas. Então, lembrando-se, meteu a mão no bolso fundo da sua jaqueta e tirou dois embrulhos amarrados que, impelido por
algo inexplicável que tinha dentro de si, trouxera de Londres. Deu um ao pai e outro a Caroline.
- Que é isto?
- Nada de especial, papai. Mas espero que goste. E você também, Caroline. Faz muito tempo que não os vejo e por isso quis trazer, ao voltar, alguma coisa... uma
propiciação aos deuses saxões.
Bertram, reprimindo a desconfiança, olhou para Stephen e depois para o pacote, que parecia queimar-lhe a palma da mão. Carrie já estava abrindo o seu, e, com uma
exclamação de prazer e surpresa, retirou dentre a almofada de algodão um broche de águas-marinhas e ouro velho.
- Oh, Stephen, que lindo! Há anos que não vejo uma coisa tão bonita. O olhar do Reitor estava pregado no broche que Caroline já prendia no vestido. Lentamente, como
se temesse o que pudesse descobrir, abriu seu presente. Era um Livro de Horas iluminado, genuinamente do século X, quase certamente um trabalho da escola de Winchester,
o mais original e encantador em toda a gama da arte medieval, uma jóia que ele tinha cobiçado toda a sua vida.
- É... é carolíngio - gaguejou Bertram, e então, sem dizer palavra, olhou para o filho.
- Não me olhe assim, papai - disse Stephen com um sorriso tocado de ironia, quase de amargura. - Juro-lhe que veio honestamente às minhas mãos.
- Você o comprou?
- Naturalmente. Descobri-o no Dobson.
- Mas... como?
- Tive a sorte de vender dois quadros na mostra.
- Meu caro rapaz... alguém compra mesmo as suas telas?
Uma onda de cor, digna de pena na sua intensidade, inundou as faces do Reitor. Seus olhos marejaram, brilharam. Aquele sucesso impensável mesmo no terreno da arte,
que sempre tivera a sua desaprovação, recuperou os restos
derruídos do seu orgulho, gratificou-o além das palavras. Várias vezes tinha repetido consigo: "Você vendeu as suas pinturas." Então, olhando para o presente, acrescentou,
em voz trémula:
- Estou profundamente... profundamente comovido por sua atenção.
Teria dito mais, mas não disse - podia ver que Stephen queria que abandonassem aquele assunto. Contudo, muitas vezes nessa noite, após o breve jantar, apanhou o
livrinho e folheou carinhosa e meditativamente as suas páginas de pergaminho. Seria possível que as coisas ainda pudessem chegar a bom termo? Sem dúvida, Stephen
se extraviara das maneiras decentes da sua educação. Aquelas terríveis histórias da sua dissipação, trazidas por Hubert, suas passadas perversidades e deplorável
conduta durante a guerra - tudo tornava difícil ter confiança nele. Mas havia, devia haver nele uma parte boa. Sempre fora generoso e de coração aberto, e agora
estava mais velho, e com certeza devia afinal estar pensando em "tomar juízo".
Esperançosamente, quase, o Reitor estudou o pródigo, agora acabando uma partida de xadrez com Caroline. Que bom fora ele ter pensado em jogar com a sua irmã, e não,
como tinha receado, em procurar distrações nas tabernas de Charminster ou Brighton. O relógio bateu 10 horas. Tranquilamente, Bertram levantou-se e fechou as portas
da frente, dos lados e dos fundos - e voltou à biblioteca.
- Você deve estar cansado da viagem.
- Sim, um pouco. Acho que vou me recolher. Boa noite, papai. Boa noite, Carrie.
Lá em cima, Stephen ficou no seu próprio quarto, tão iluminado pelo luar, que não houve necessidade de outra luz. Imóvel sob o teto inclinado, olhou em torno - as
prateleiras acima da escrivaninha, ainda com os seus primeiros livros, no canto do fundo o maltratado armário de botânica, suas primeiras aquarelas, e o mapa da
Paróquia de Stillwater que tinha feito na parede - consciente até do mesmo odor de almíscar, vindo de uma fonte nunca descoberta, que o saudava como um amigo quando
voltava da escola. Lentamente, apanhou uma fotografia, um instantâneo, tirado por Caroline, de Davie jogando críquete na quadra. Olhou-a fixamente, aguentando os
olhos solenes, a nervosa intensidade da sua postura infantil, e mais lentamente a depôs, abriu a janela e esperou o choque do ar frio.
Mergulhada em luar, uma paz angélica descia sobre os Downs. Através das faias sem folhas, a aguda espira da igreja era visível, erguendo-se acima dos teixos escuros,
cujas sombras se alongavam até morrerem na turfa aparada, como arqueiros tombados. Um profundo anseio, vago e insuportável, assenhorou-se dele. Aquela terra baixa
era o seu lar, a sua herança, mas ele a jogara fora voluntariamente. A troco de quê? Pensou nos últimos anos, apuros e pobreza, subterfúgios, expedientes, decepções,
trabalho e mais trabalho, com ardentes
euforias, intervalos fantasmas de esterilidade... que vida, que inferno ele tinha escolhido. Bruscamente virou-se e começou a despir-se, atirando as roupas em cima
de uma cadeira. Na cama, fechou os olhos, como contra o sofrimento, para não ver o lugar e a quietude da doce noite. Não importava como ele se sentisse ou pensasse,
estava agora em poder das forças que o conduziam, predestinadas a fins inescrutáveis e irrevogáveis.
CAPÍTULO IV
DURANTE OS DIAS QUE SE SEGUIRAM, Stephen passou a maior parte do tempo trabalhando no jardim da Reitoria. Sempre gostara do trabalho manual, e havia tanto para ser
feito, que podia entregar-se à sua paixão pela ordem. Podou o pomar, removeu a árvore caída - era, ai! não uma macieira, mas a ameixeira-rainha-cláudia que na sua
juventude produzia frutos amarelo-purpurinos tão saborosos - e rachou-a para lenha. Passou o ancinho nas folhas e fez enormes fogueiras, cuja fumaça azul espiralava
para cima, como fachos de sinalização. Pintou o celeiro. Com Joe, o menino que vinha depois das aulas, consertou o galinheiro de Caroline, que estava em ruínas e
era periodicamente visitado por uma raposa dos matagais de Broughton.
Nas poucas ocasiões em que foi à aldeia, sentiu alguns olhares curiosos dirigidos a ele. Estava habituado a ser olhado nas ruas - sua cabeça descoberta, faces encovadas,
barba aparada, e passos compridos, para não falar das suas roupas descuidadas, suas calças de veludo cotelê e echarpe amarrada no pescoço, tornavam-no uma figura
conspícua - e recebia aquela investigação com completa indiferença. Mas aquelas atenções locais eram mais acentuadas. Várias vezes, comentários abusivos lhe eram
gritados pelo bando que habitualmente se postava na esquina do cinema. E uma tarde, quando saía da oficina do carpinteiro Singleton, onde tinha ido comprar pregos
e tábuas, vinda não se sabe de onde, uma bola de barro passou acima da sua cabeça, acompanhada da pecha "herói de guerra!". Julgou, por conseguinte, com um aperto
nos lábios, que a notícia do seu retorno se espalhara e que o seu conceito entre a população não era alto.
Aquela era uma estranha fase inativa para ele. Não tinha vontade de impor a sua pintura à casa paterna, e o seu único trabalho com pincel fora nas grossas pranchas
de carvalho do celeiro. Mas ocasionalmente, após o almoço,
acima até o Lago Chillingham, onde, parcialmente abrigado do vento pelas sebes que circundavam o lago, sentava-se sobre um toco e enchia o seu bloco de esboços da
água encrespada e pura, das árvores ao vento.
Uma tarde, voltando de uma dessas excursões, tomou pela estrada vicinal acima até a antiga barreira do pedágio conhecida como Canto da Raposa, onde eventualmente
se reuniam os cães. Na verdade, como ficava a meio caminho entre a Reitoria e Broughton Court, muitas vezes servira na sua juvenjtude como ponto de partida para
piqueniques e expedições das quais participavam as casas. Agora, ao aproximar-se, notou à luz do crepúsculo uma mulher, de cabeça descoberta, usando um casaco solto,
e vindo para ele. Era Claire.
- Pensei que podia encontrá-lo aqui! - Se o seu cumprimento tinha algum embaraço, este foi mais do que afastado por uma animação, um transbordamento de espírito
inteiramente incomum em alguém de ordinário tão reservado. Ela sorriu. - Não se espante. Caroline me disse que você estava em Chillingham. Andei para ver se o encontrava.
Começaram a caminhar pela estrada. Uma ligeira névoa começara a subir, uma exalação de terra e folhas caídas, ligeiramente misturada com a acritude de uma distante
fumaça de lenha, inebriante, o próprio alento das planícies e bosques de Sussex.
- Não foi uma tarde perfeita?
- Maravilhosa - concordou ele. Mas a luz se foi muito cedo.
- Esteve trabalhando?
- Sim... não posso fugir disso, como sabe.
- Você fez a sua carreira - disse ela calorosamente. - Ninguém pode censurá-lo por colocar o seu coração nela.
Como ele silenciasse, ela continuou, naquela maneira impulsiva:
- Tivemos muito pouco tempo para conversar, outro dia. Mas agora somos vizinhos. Feliz por estar em casa?
Ele acenou com a cabeça.
- Depois de anos no estrangeiro, não se pode voltar sem se apaixonar de novo pela Inglaterra.
Ela o olhou rapidamente, mas o seu rosto era inexpressivo. Então houve uma breve pausa.
- E você pode pintar aqui?
- Poderia em qualquer parte. Mas na Inglaterra, muito melhor. É uma ilusão juvenil pensar que se deve ir para o estrangeiro a fim de pintar. Os melhores impressionistas
pintaram no subúrbio e do seu próprio quintal.
- Este é o seu quintal, Stephen.
Ele sorria sombriamente.
- Não sou exatamente persona grata nestas vizinhanças. Já não ouviu o falatório... os interessantes mexericos?
- Não ouvi, não. Francamente, a Reitoria seria um... verdadeiro céu para você.
- Como poderia eu voltar ao aprisco do rebanho? - A sua voz, embora contida, era áspera. - Rompi demasiadamente com as crenças e, graças a Deus, com os preconceitos
da minha classe. Não fui feito para viver de renda e ser um pilar da sociedade. Sou um pássaro muito estranho para me empoleirar aqui outra vez.
A expressão dos seus olhos ao olhar para ela, de soslaio, magoou-a, fazendo-a manter com mais determinação o seu ponto de vista.
- Creio que você está enganado, Stephen. Pode achar difícil no começo. Mas se ficar, algo pode surgir para convencê-lo.
Interrompeu-se, brusca e embaraçadamente, deixando as suas palavras inexplicadas e um longo silêncio cair entre eles.
No trem, no dia em que o encontrara na mostra, viera-lhe a inspiração do Memorial Institute. Durante anos passados, na vizinha Charminster, o capítulo da catedral
tinha feito coletas para um salão que atenderia às necessidades de muitas sociedades religiosas e comissões eclesiásticas da diocese e, ao mesmo tempo, serviria
como uma biblioteca de consulta e leitura para a população do distrito. A guerra tinha inevitavelmente delongado tais planos, e logo depois o esquema assumira uma
significação mais grandiosa. Com relicários comemorativos a surgir por todo o campo, ficou decidido fazer do novo instituto um memorial da guerra, que, cumprindo
o seu propósito prático original, fosse também um monumento dedicado à paz. Novas especificações foram traçadas para uma bela construção de pedra em estilo gótico.
Dentro de
12 meses a estrutura ficou acabada, e numa recente reunião da comissão, as sugestões para a decoração do interior foram discutidas. Desde que o Deão fora contra
o uso de mosaicos e vitrais em favor de um tratamento mais vigoroso, pensou-se inicialmente em murais. Mas o arquiteto da construção não os aconselhou, baseado em
que o interior de sarrafos e gesso era impróprio para receber afrescos. A votação, consequentemente, fora em massa a favor de uma série de painéis, apropriados no
tema, e emoldurados em carvalho de Sussex, que seriam pendurados nas cinco paredes principais do edifício. Os nomes de vários pintores tinham sido em princípio sugeridos,
mas como o conhecimento local do assunto era limitado, até agora nada de definitivo fora resolvido.
Tudo isto Claire sabia, e não apenas por causa de sua mãe, amiga íntima do Deão, que tinha feito uma grande contribuição para o fundo original, motivo por que ela,
Claire, se sentia, com um arrepio, em posição de influir na escolha do artista. A sua ansiedade por essa tarefa, que ela mesma se impusera, causou-lhe um escrúpulo
passageiro, mas ela o despachou decidida, e fechou
os ouvidos contra a ligeira nota de cautela que a discrição fizera soar. Não era ela uma esposa e mãe ajuizadas, firmemente estabelecida, aliás quase uma velha senhora
casada? Seu interesse no assunto era puramente ideal, os seus sentimentos por Stephen não mais que uma afeição fraternal. E assim, fortificada e tranquilizada por
tais reflexões, no próprio dia seguinte tomara o carro para Charminster.
O Deão era idoso, uma figura curvada e seca, notável erudito em sânscrito mas uma pessoa cuja crescente surdez e uma enfermidade artrítica crónica o constrangeram
a um afastamento cada vez maior de todos os seus deveres além dos essenciais - já tinha havido boatos, não-desmentidos, da sua próxima aposentadoria! Mas o nome
de Claire era, mesmo durante aquele período de repouso vespertino, um passaporte infalível. Ele a recebeu afetuosamente, ouviu, com a mão em concha na orelha, o
caso que ela apresentou diplomaticamente. Talvez o som mal ouvido do nome de Stephen despertasse um acorde composto de recordações, evocasse um eco ligeiramente
dúbio, mas isso se perdeu rapidamente na senescência benigna do Deão. O rapaz tinha errado, mas evidentemente possuía talento e ainda havia pouco exibira as suas
telas em Londres, e era um homem no qual as tendências eclesiásticas ainda deviam predominar. O Reverendo Bertram era, como ele, um diplomado da Trinity, um excelente
arqueólogo, um digno trabalhador no seu vinhedo, e, recentemente, num sentido material, não fora muito afortunado. E, além disso, quem tinha mais direito a sugerir
um candidato do que a filha de Lady Broughton? O Deão, dando-lhe uma palmadinha na mão, prometeu discutir o assunto com o presidente da comissão.
Do Decanato era, aliás, o presidente com quem Claire foi imediatamente se encontrar no Ninho dos Corvos, uma grande vila de telhas vermelhas nos arredores da cidade,
residência do Contra-Almirante Reginald Tryng, aposentado da Marinha Real. Reggie estava em casa, e, deliciado em vê-la, seus olhos piscavam na face rude, sua calva
brilhava, e a sua figura baixa e corpulenta parecia irradiar uma acolhida naval ao levá-la em seguida para a lareira da biblioteca, insistindo em oferecer-lhe chá.
Ninguém no condado era mais jovial, tinha mais espírito público do que Reggie Tryng. Membro de meia dúzia de comissões, estava infalivelmente à disposição de uma
boa causa, um leal servidor da Igreja, do Estado e do clube de críquete local. Para um sexagenário, tinha uma energia inexaurível. Desnecessário dizer que ele era
um perfeito esportista, jogava golfe e ténis, dançava, caçava, pescava, esquiava na temporada e, apesar dos seus parcos e limitados recursos - ele dizia não ter
mais que a sua pensão - que não lhe permitiam participar das caçadas, acompanhava os cães a pé, energicamente, outeiro acima e abaixo, com qualquer tempo, por quilómetros
e quilómetros em torno.
Embora, sendo tão cordial como era, não pudesse ser propriamente chamado de esnobe, prezava acima de tudo os seus títulos dourados, que lhe permitiam frequentar
ocasionalmente as grandes casas do condado, levando-o, no dia seguinte, a comentar no salão de fumar do Mid-Sussex Club: "Ontem à noite... no Castelo de Ditchley..."
Não apenas admirava e gostava de Claire como mulher, mas ainda como uma anfitriã cujos convites eram extremamente Lisonjeiros para a sua auto-estima. Quando, após
uma conversa fiada introdutória, ela mencionou a decoração do Memorial, o seu interesse intrigou-o, assim como o seu pedido de que ele considerasse o assunto como
confidencial. Mas ele era a última pessoa do mundo para procurar motivos ocultos e, após um momento de perplexidade, pensou: "Esse rapaz Desmonde primo de Geoffrey...
uma espécie de peso morto na família... ela está fazendo o que pode para levantá-lo." Mais tranquilizado por sua referência à visita que fizera ao Decanato, prometeu
conferenciar sobre o assunto com os seus colegas, reencheu a sua xícara de chá e insistiu em que comesse biscoitinhos Bath Oliver.
Seguramente ela tinha feito o suficiente. Contudo, ao voltar para casa, fez uma última visita - à Catedral e ao Banco dos Condados do Sul, uma sensata e reputada
instituição que cuidava das contas dos Broughtons havia mais de 100 anos. Mark Sutton, o gerente, que presidia com Tryng a subcomissão, era fácil de conquistar.
Homenzinho franzino, anêmico, funcionário de colarinho e punhos engomados, infalível modelo de deferência respeitosa, ele aproveitou imediatamente a oportunidade
de obsequiar uma dama tão distinta e uma cliente tão valiosa. Mas apenas "prometeu" de alguma maneira, mas declarou que se sentiria mais do que feliz em apoiar o
candidato dela.
Como tudo fora tão simples! Levada até a porta do banco com reverências, Claire rodou para casa num fulgor de realização. Agora que a semente estava plantada, mal
podia esperar para ver se dava fruto. Passaram-se 10 dias sem resultado. Então Tryng lhe telefonou, cedo, nesta mesma tarde. Tudo tinha corrido satisfatoriamente
- os outros dois membros da subcomissão, Sharp e Cordley, mostraram-se um tanto relutantes, mas Sutton e ele ganharam o dia. Desmonde devia ter uma entrevista com
a comissão e, submetido à sua aprovação, receberia imediatamente a encomenda.
Em seguida Claire experimentou um hausto de triunfo com o sucesso da sua diplomacia. Devia contar a Stephen sem demora. E aqui, após uma espera de quase meia hora
na Foxcross, durante a qual passeara de um lado para outro no fresco e aromático anoitecer, com a doce expectativa de uma moça do campo acudindo a um encontro -
aqui estava ela caminhando ao seu lado, incapaz de dizer uma palavra sobre a sua momentosa notícia. Tinha agido pelos mais elevados motivos, nenhum pensamento impróprio
jamais lhe entrara no espírito; no entanto, agora, ansiosa e trémula, mal podia se mover
com a moleza que tinha no corpo, o crescente langor dos seus membros. As pulsações do seu coração quase a sufocavam. O súbito aparecimento de um carro, surgindo
numa curva, com os faróis acesos incidindo sobre eles com deslumbrante intensidade, fez que respirasse para tomar fôlego e segurasse o braço de Stephen.
- Alguém não está dirigindo bem - comentou ele.
Na escuridão que se seguiu, chegaram aos portões que davam para a Court, e ali Stephen se deteve.
- Não posso ir mais adiante, Claire.
- Por que não? - Hesitou. - Geoffrey está na cidade hoje... mas deve voltar logo.
Stephen sacudiu a cabeça.
- Agora somos gente madrugadora na Reitoria. O jantar é às seis horas.
A desculpa dele, tão palpável, intensificou a irregularidade da sua posição. Lembrava-se de uma observação de Geoffrey: "Não quero esse sujeito em minha casa. Se
eu o encontrar, mato-o. Todo o país sabe que ele é um completo canalha." Talvez por causa disso ela sentiu que não podia ficar mais ali.
- Boa noite, então, Stephen - murmurou ela. - Lembre-se de que eu tenho fé em você. A maré pode virar mais cedo do que você pensa.
No momento seguinte ele a perdeu de vista nas sombras da alameda.
Uma hora mais tarde, apressando-se para não chegar atrasado, Stephen chegou à Reitoria. Luzes incomuns estavam acesas, e no saguão Caroline o aguardava impaciente.
- Finalmente! - saudou-o alvoroçada. - Pensei que nunca mais viesse. Papai quer vê-lo imediatamente.
Na biblioteca, quando Stephen entrou, o Reitor parou os seus movimentos inquietos e, avançando com os olhos úmidos, tomou o filho pela mão.
- Meu querido rapaz, hoje, em Charminster, soube da grande e inteiramente inesperada notícia. - Profundamente comovido, quase se abateu. Você está sendo cogitado,
e pode bem ser escolhido para pintar os painéis do novo Memorial.
CAPÍTULO V
NO DIA SEGUINTE, alguns minutos depois das três horas, os quatro membros da subcomissão do Memorial, o Contra-Almirante Tryng, Sutton, Joseph Cordley e Arnold Sharp
- o Deão não estava presente - tinham se reunido num pequeno escritório da Chancelaria, e Stephen, esperando numa sala lateral, foi chamado perante eles.
Tryng, o presidente, lançou-lhe um rápido olhar inquiridor quando ele entrou, e, tendo receado alguma coisa pior, ficou de imediato apreciavelmente aliviado. Não
dava muita importância ao cabelo tosquiado e à barba, nem aquele ar de independência, mas o sujeito parecia um gentleman, estava bem e decentemente vestido, e no
conjunto não desagradava. Stephen, de fato, fora induzido a abandonar o seu mísero veludo cotelê, e Carrie lhe trouxera uma camisa limpa e um dos seus velhos ternos
cinzentos de clérigo que ainda lhe assentavam razoavelmente bem.
- Boa tarde, Sr. Desmonde. Não quer sentar-se?
A um gesto de Tryng, Stephen sentou-se, consciente do olhar unido que a subcomissão voltava para ele.
- O senhor sabe por que está aqui, de maneira,que não precisamos de rodeios. É o Memorial. Queremos cinco painéis, aproximadamente de 1,80m X 1,20m, que expressarão
apropriadamente o sentimento, a dignidade, o heróico embora trágico propósito para o qual este edifício foi erguido. Estou ciente de que o senhor esteve pintando
alguns anos, ganhou várias distinções internacionais, expôs em várias cidades importantes e, em suma, parece bem qualificado para o trabalho que temos em mente.
- Eu certamente farei o melhor possível.
Houve uma pausa, durante a qual ele olhou discretamente para os quatro homens sentados à comprida mesa. Tão aguda era a sua sensibilidade, que imediatamente viu
que dois lhe eram favoráveis e dois contrários. Dos dois últimos, um agora pigarreava - preliminar para o discurso. Era Arnold Sharp, procurador de Charminster,
um homem de aspecto glacial, franzino, de cabeça alongada e pequena, olhos juntos e argutos. Ciente do interesse de Tryng em Stephen, ressentia-se com isso, principalmente
porque, tendo subido de um começo humilde - seu pai tinha sido um "cavador de valas e plantador
de sebes" - ele detestava a nobreza, sob uma maneira que, com longa prática no County Court, permanecia tão inexpressiva como a sua face. Além disso, adivinhava
que Stephen era patrocinado por alguma fonte mais alta, e embora não pudesse, por política, dissentir abertamente, pretendia tornar as coisas o mais difícil possível
para ele.
- Suponho que trouxe amostras do seu trabalho para nos exibir.
- Lamento, mas não trouxe.
- Posso perguntar por quê?
- A maior parte das minhas telas recentes está nas mãos do meu agente em Londres. Terei muito prazer em lhes mandar algumas, se quiser.
- Acho - atalhou Tryng - que posso responder pela competência do Sr. Desmonde. E o Deão também.
- Mas ele é competente para esta tarefa em especial - murmurou o procurador com um ar de quem raciocina - que trata, de fato, da última guerra?
O vizinho de Sharp, o gorducho Joe Cordley, fabriqueiro da catedral e guarda dos cereais, rebentando as costuras da sua roupa xadrez, voltou para Stephen a sua cara
vermelha obtusa.
- O senhor não esteve na guerra, Sr. Desmonde?
- Não.
- Isento?
- Não.
- Escrúpulos morais ou religiosos?
- Eu estava no estrangeiro.
- Ah! - suspirou Cordley, deixando a sua corpulência afundar na cadeira.
- Acredito - Sharp falava de novo, polidamente, à guisa de recomendação - que seu irmão mais moço esteve no Exército, não?
- Sim. Ele não estava realmente apto para o serviço, mas foi alistado no primeiro mês.
- Ele foi morto, não?
- Foi.
- Em ação?
- Sim.
- Ah! - Cordley, que tinha dobrado o seu capital vendendo forragem para o Exército em Chillingham Camp, repuxou os cantos da boca e revirou os olhos. - Bravo rapaz!
Deu tudo pelo seu país!
A pausa que se seguiu foi mais embaraçosa do que a primeira. Stephen comprimia os lábios. Tinha vindo para a entrevista ansioso, por muitos motivos, para obter a
incumbência; agora, diante daquele interrogatório hostil, sua expressão endureceu.
- Se posso falar... embora eu não tenha tomado parte na guerra, sendo, como o senhor tão precisamente apontou, um mero espectador, tenho,
talvez por causa disso, ideias sobre o assunto que podem me qualificar para este trabalho em especial. Parece-me que, para justificar o seu propósito, o Memorial
deve não apenas representar um tributo àqueles que deram as suas vidas, mas também desestimular quaisquer futuros conflitos. Esses painéis que eu posso fazer para
os senhores devem servir para denunciar a tragédia essencial da guerra e, acentuando o elemento de sacrifício e sofrimento, talvez a influenciar aqueles que os vejam
no sentido de evitar outra calamidade mundial.
- Bravo, Sr. Desmonde - exclamou Tryng, de coração. Gostara daquele breve discurso e da maneira como Stephen olhara diretamente para Sharp ao fazê-lo. O coitado
era um bocado medroso! - mas lá, em serviço, tinha visto até as melhores famílias produzirem um coelho branco. - E agora falemos a respeito de datas.
- Estaria preparado - interrompeu Sharp - para submeter à aprovação da comissão esboços sobre o assunto que acabou de mencionar?
Stephen relanceou os olhos para Tryng.
- Isso é inteiramente contrário ao procedimento usual.
- Quer dizer que temos que aceitá-lo em confiança?
- Todo artista deve ser aceito em confiança - respondeu Stephen com calor. - Um pintor não é um caixeiro viajante andando com uma mala de amostras. Estou disposto
a apresentar os desenhos, se insiste, mas como isso representa a metade, e a parte mais difícil do trabalho, somente se me derem a incumbência antes.
- Não temos tempo a perder - interveio Tryng em tom definitivo.
- A inauguração oficial está marcada para março.
- Quinze de março - murmurou Sutton precisamente, abrindo a boca pela primeira vez.
Um curto silêncio.
- Pode terminar o trabalho até essa data?
- Acho que posso.
- Achar não é bom - interpôs Sharp. - Precisamos estar certos.
- Não é muito tempo para cinco grandes pinturas. Mas quando estou interessado trabalho rapidamente.
- bom. E agora quanto ao pagamento. Os honorários que propomos são 500 guinéus.
- Não tínhamos concordado em libras? - murmurou o fabriqueiro.
- O guinéu, meu caro senhor, é certamente uma moeda de cavalheiros. A nossa quantia seria satisfatória, Sr. Desmonde?
- Inteiramente.
Tryng olhou para os seus colegas.
- Então sugiro que paguemos ao nosso artista 100 guinéus agora. Como arras. O restante, no fim do trabalho.
- Discordo - disse Sharp, com os olhos fixos no teto. - Devíamos pagar contra entrega.
- Mas o Sr. Desmonde terá uma despesa considerável para adquirir telas e outros materiais - argumentou Sutton - para não falar nas molduras.
- Isso é com ele - respondeu Sharp azedamente. - Quem é que nos garante que ele não vai adoecer, ou ir embora, ou por alguma razão deixar de completar o trabalho
em tempo? Toda a sorte de contingências pode surgir. Digo que o pagamento deve ser contra entrega.
- Ah, isso é negócio normal. Aceito a moção. Antes que Tryng pudesse falar, Stephen interveio:
- Em geral, eu não estou em condições de comprar telas e tintas. Mas agora, felizmente, estou. Aceito as suas condições. Gostaria, no entanto, de ter a sua permissão
para trabalhar no próprio saguão. Não tenho estúdio aqui, no momento.
- Acho que isso pode ser concedido. Deve dar uma olhada, em todo caso. Nós lhe arranjaremos uma chave. - Tryng fez uma pausa, e como as suas observações não encontrassem
oposição, concluiu: - Isso é tudo, cavalheiros. Felicito-o, Sr. Desmonde. E sei que o senhor nos dará uma magnífica obra de arte.
Com a chave no bolso, Stephen caminhou diretamente para o novo Instituto, que ficava numa pequena elevação dos Prados da Igreja, adiante de um renque de olmeiros
cujos ramos mais altos abrigavam um antigo viveiro de gralhas, não longe do recinto da catedral. Assim que viu o edifício, ficou favoravelmente impressionado, não
apenas por sua situação e pela maneira admirável com que se harmonizava com a linha e cor da predominante cantaria do século XIV, como também pela pureza e simplicidade
do seu risco. Quando penetrou no portal arqueado, não pôde reprimir um estremecimento de satisfação. O interior, na forma de um pentágono exato, iluminado por um
alto clerestório que não interferia nas paredes lisas e caiadas, era soberbo para a sequência que ele podia planejar. Como as suas cores cintilariam e resplandeceriam
contra aquele fundo inteiramente branco - já as via em sua imaginação - e como era perfeito o espaço, aquelas cinco paredes idênticas, para painéis de dimensões
precisamente similares! Durante um longo tempo, ficou no saguão inteiramente vazio, acocorando-se sobre um joelho, entre a poeira de gesso deixada pelos construtores,
e depois, levantando-se, olhou cuidadosamente para cima e caminhou pela Church Road para a esquina da High Street. Do Javali Azul telefonou para Maddox em Londres,
pedindo-lhe que lhe mandasse imediatamente telas, tintas, tudo de que ele precisava. Então, de cabeça descoberta, com as mãos enfiadas nos bolsos do seu estreito
casaco de clérigo, caminhou para os Downs, esquecido de tudo, menos das formas que já estavam revoluteando na tela da sua visão.
Durante vários dias absteve-se, embora com dificuldade, de encetar o trabalho. Queria refletir profundamente sobre o assunto tão dolorosamente próximo do seu coração.
A perda do seu irmão e todas as áridas privações da Espanha modelavam indevidamente os seus pensamentos. No fundo da sua consciência, uma fonte de vívida inspiração
era os Desastres de la Guerra, que tão profundamente o comovera quando esteve, arrebatado, nas compridas galerias do Prado. Dentro dele fervia a revolta de um espírito
ferido contra a eterna tragédia da violência humana.
Mais ou menos no fim dessa semana, começou a pintar. E à medida que seus desenhos tomavam forma, era cada vez mais arrebatado pelo fervor do seu tema, pelo ardente
desejo de expressar não apenas o heroísmo mas também o medonho estrago da guerra, de sorte que se o mundo ao menos pudesse olhar para as suas pinturas, nunca mais
pudesse ceder a semelhante loucura outra vez.
Tão intenso era o fluxo da sua composição, que ele muitas vezes não saía do Instituto, aonde chegava de manhã cedo, até que lhe faltasse a luz, ao anoitecer. Todos
os dias, Caroline punha um pacote de sanduíches no seu bolso, mas ele não parava para o lanche, senão que, em pé diante do cavalete, mordendo ocasionalmente um pedaço
de pão e queijo, continuava a trabalhar intensamente. A quietude e o isolamento do saguão vazio satisfaziam-no à perfeição, porque nunca pôde suportar ser olhado,
e após ter-se oposto firmemente a várias interrupções no começo, fora deixado em paz. À noite, voltava à Reitoria, exausto do trabalho criativo, mas com uma crescente
sensação de realização.
Para o Reitor, aquela ininterrupta aplicação espartana do seu filho era não apenas uma tremenda surpresa - jamais imaginara que um artista, que supunha, principalmente
pelas páginas de Murguer e du Maurier, um boémio inconstante e indolente, pudesse mostrar aquele pródigo labor - mas também uma fonte de satisfação que, a princípio
incerta, se robusteceu com o passar dos dias. A despeito das desilusões, dos fracassos e desapontamentos que tinha sofrido, a esperança, que ele julgara morta, reavivou-se.
Seu filho estava em casa, levando uma vida regular, decentemente vestido, trabalhando de fato num projeto ligado à Catedral. A que isso não poderia levar no fim!
Tinha havido - era forçado a admitir - uma acentuada reação desfavorável quando a notícia da escolha de Stephen se tornara pública - muito falatório maldoso na aldeia
e na região - mas também uma genuína nota de protesto que Bertram podia sentir nos seus contatos diários, mesmo diante da sua pequena congregação no ofício dominical.
Várias cartas apareceram nos jornais locais, a mais ofensiva de todas uma comunicação assinada "Pró Pátria", publicada com destaque pela County Gazette. Preocupados,
o Reitor e Caroline consultaram-se em voz baixa.
- É um ataque cruel - disse Bertram, de cenho carregado, perturbado. Muito perverso. E, para nossa desgraça, procedente.
- Mas absolutamente injusto, papai. Por que desenterrar tudo isso sobre Stephen não ter estado no Exército? Ele devia ser julgado pelos seus méritos como artista.
- Também acho, Caroline. Ao mesmo tempo, para um memorial da guerra. há justiça na ideia de que deviam ter escolhido um ex-combatente.
- Que podia ser um mau pintor.
- Sim... sim, é claro. Caroline, quem você acha que mandou essa carta?
- Não pode adivinhar, papai?
- Albert Mould?
- E quem mais? O senhor não tem nenhum inimigo no mundo... a não
ser ele.
- Mas, minha querida, ele não é suficientemente culto para ter escrito semelhante carta. E a assinatura, "Pró Pátria".
- Alguém a escreveu para ele. Ele se dá com muita gente que podia tê-la escrito.
O Reitor abanou a cabeça, como que desnorteado por semelhante possibilidade de conspiração.
- Pensar que o bom velho Mould, que trabalhou aqui fielmente, desde pequeno, por mais de 40 anos, fosse capaz de... Deus me perdoe... um reles novo-rico.
- É a época dos novos-ricos, papai. Até o velho Mould está ficando arrogante. Tem o seu próprio rádio, tem mais calefação e mais água quente do que nós, vai ao cinema
duas vezes por semana, e quando eu lhe perguntei outro dia na aldeia se ele queria a sua costumeira perna de porco, disse: "Não, obrigado, senhorita. Albert acaba
de receber um quarto inteiro de veado." E depois me olhou de esguelha e perguntou: "Podemos mandar-lhe um pedaço?"
Houve um breve silêncio.
- Bem - disse o Reitor - devemos impedir que Stephen veja essa carta. Ele merece todo o encorajamento que lhe pudermos dar.
- Ele foi muito encorajado outro dia, papai. O senhor se lembra do seu amigo Glyn... oh, eu sei que nunca o aceitou, mas ele expôs na Academia Real... de qualquer
maneira, veio a Charminster outro dia. E almoçou com Stephen no Javali Azul...
- Sim?
- Bem... Stephen expôs o plano completo da sua obra, mostrou-lhe o que já tinha feito... encheu completamente os seus painéis. E Glyn ficou arrebatado.
O Reitor, um pouco perdido, parecia no entanto satisfeito. Seguiu-se uma pausa, enquanto ele meditava. Depois, olhando para a filha:
- Caroline, você não sente que, se ele fizer sucesso, isto poderá reabrir para ele um verdadeiro caminho espirituai... decoração de igrejas... vitrais... e coisas
assim? Ele ficaria muito à vontade na atmosfera da arte eclesiástica. Ainda é moço. Quem sabe se um dia... sob tal influência... poderá receber as ordens? - Interrompeu-se,
levantou-se e apanhou o seu chapéu. - Estarei de volta daqui a pouco, minha querida.
Da janela, ela o viu subir a trilha, lentamente, um tanto curvado, uma comprida figura preta sob o chapéu de abas largas e retas. Sabia que ia para a igreja a fim
de rezar.
CAPÍTULO VI
ENTRE AS MUITAS EXCELENTES e positivas qualidades que caracterizavam a esposa do General Desmonde, aquela moderada virtude e doçura de temperamento eram menos óbvias
do que o resto. Criada numa atmosfera militar, festejada na sua juventude como a filha do regimento, com o sangue de muitos verdadeiros sahibs nas veias, e durante
os seus primeiros anos de casada, a sua longa estada na Índia tinha intensificado a sua firmeza natural, fortalecido - talvez por alguma ação do fígado - a sua capacidade
de mandar. E naquela manhã de janeiro havia nela uma certa aura de aspereza - lábios apertados, imperceptível dilatação e coloração rósea das narinas, que não pressagiavam
nada de bom para quem quer que a contrariasse. A sua criadagem recebeu ordens para o dia mais breves do que usualmente. Ela avaliou a moça camponesa que - reconhecidamente
com barulho - estava enchendo a caixa de lenha. Sentada à sua escrivaninha de nogueira, sua admirável figura retesada em tweed e blusa, seu pescoço ainda gracioso
rodeado por um colar de pérolas de uma só volta, dava atenção à sua correspondência, que tratava principalmente das suas funções como protetora da Cruz Vermelha,
das Guias de Meninas e do hospital local. Então, imóvel, fitou o mata-borrão de bronze de Benares que tinha à sua frente.
Que devia fazer a tal respeito? - essa era a questão que, desde que acordara, vinha, como um insistente mosquito, zumbindo à sua volta. Após o desjejum, o marido
tinha saído nas suas botas de cano alto, para os estábulos, lembrando-a de que devia passar o dia em Gillinghurst, onde ia tratar do feno para o inverno - de qualquer
maneira, ela tinha resolvido não consultá-lo;
aquele era um assunto que ficaria melhor nas suas mãos capazes. Mas como. como deveria agir?
Naquela tarde suave e fantasma!, algumas semanas atrás, quando um automóvel passara pela entrada do Court, iluminando momentaneamente, mas com brilhante incandescência,
as figuras de Stephen e Claire, era ela sobressaltada testemunha do incidente, quem o dirigia. Tinha, de fato, estado no Court havia apenas uns poucos minutos, soubera
que seu filho se achava em Londres e que Claire não estava em casa. E, depois, aquele clarão fotográfico... como estavam juntos naquela estrada deserta, e com Geoffrey
ausente ? a sequência, reunida à notória reputação "daquele sujeito", era muito alarmante.
Com justiça, a mulher do general reconhecia que Claire tinha um caráter irrepreensível - pelo menos até onde podia julgar; na Índia, ela tinha visto algumas curiosas
rupturas no seu tempo - e resolveu, mantendo os olhos bem abertos, não dizer nada sobre o assunto por enquanto. Contudo, a lembrança da predileção juvenil de Claire
por Stephen não foi facilmente descartada e, voltando com frequência, tornava ainda mais pressaga aquela deslealdade - porque isso era, ainda que sob o aspecto mais
inocente - para com Geoffrey. Produto do quartel, imbuída desde a infância da tradição da compostura, todas as manifestações mais suaves de afeição maternal curvadas
pela palavra cerceadora, pelo gesto controlado, pelas breves exigências da boa forma, Adelaide Desmonde era, contudo, devotada ao seu filho. Seu casamento com os
acres de Broughton, que o elevara da obscura posição de capitão do Exército à de proprietário de terras, causara-lhe uma imensa alegria. Houve, no entanto, dissabores
subsequentes. O grosso da propriedade estava vinculado, o que, embora admirável em si mesmo, empanava o brilho da sensação de posse de Geoffrey. Além do mais, a
maior parte da fortuna de Lady Broughton ficara sob a guarda da sua filha, um fato que trazia para Claire um considerável rendimento particular. Isto, mais do que
independência conjugal, apesar da docilidade da natureza de Claire, muitas vezes aborrecia Adelaide, e agora, após os acontecimentos da tarde anterior, ela considerava
tal fato positivamente perigoso.
Tinha jantado no Gresham Park, e o seu vizinho da esquerda fora Reginald Tryng. Adelaide manteve com o rosado contra-almirante, sua conversa de solteirão, seu limitado
rendimento e vila semi-urbana, uma espécie de tolerância superior. Suas anedotas divertiam-na menos do que as gotas de suor que, depois da sopa quente, brotavam
como esguichos em miniatura na sua calva cor-de-rosa; preconceituosa com o serviço inativo, considerava-o um sujeito inofensivo, de boas intenções, mas um tanto
tolo. Entediada, não compreendeu a princípio a sua jovial conferência com Claire. Então, avivada pela atenção, ouviu-o enquanto ele se gabava, contando com a mais
estrita confidência
a sua diplomacia em conduzir a pequena "incumbência de família" que Claire lhe tinha confiado. Era, concluiu ele, extremamente delicado da sua parte apoiar o primo
de Geoffrey!
Sem falar, Adelaide tomou um convulsivo gole de água. Por esta vez não achou o que dizer. Aquele idiota da Marinha tinha dado corpo às suas piores suspeitas. Claire,
interessando-se sub-repticiamente, embora com gritante indiscrição, por aquele moleque desprezível. Isso tinha que parar, e imediatamente, antes que se tornasse
um escândalo aberto no condado.
Agora, à luz fria da manhã, estava inclinada a pôr toda a culpa no "renegado". Sem dúvida, ele tinha se infiltrado na confiança de Claire, completamente indiferente
ao quanto poderia comprometê-la, e extorquindo a sua ajuda. Inútil, naturalmente, procurá-lo e apelar para o seu sentimento de honra. Por outro lado, sempre era
perigoso intervir entre marido e mulher. Contudo, esse era o único caminho aberto para ela. Tinha confiança no seu tato, seria delicada e discreta. Hoje, sabia,
Claire estaria em Londres. Com decisão, foi ao telefone e, aguentando com tolerância as demoras das ligações locais, conseguiu Stillwater, pedindo a Geoffrey que
viesse tomar chá naquela tarde.
Ele chegou cedo, por volta das quatro horas - não tendo mais nada que fazer - e uma vez que o general ainda estava em Gillinghurst, Adelaide teve-o para si mesma.
Alimentou-o bem, com bolinhos frescos de Sussex e torradas quentes amanteigadas cheias de Patum Paperium - uma relíquia que sempre fora muitíssimo do seu gosto.
Depois, empertigada e tricotando num pufe de couro, deixou a fumaça do cigarro dele subir pelo seu nariz e dirigiu a conversação para assuntos que sabia serem do
seu agrado - a sua bolsa na caçada final em Stillwater, a chance de uma boa corrida na próxima disputa dos cães, as suas possibilidades na corrida de obstáculos
para cavalheiros e a próxima corrida campestre.
O tempo passava agradavelmente para Geoffrey ao som da sua própria voz. A mãe tinha realmente feito um sujeito que entendia tanto de cavalos como qualquer outro,
e gostava dele como ninguém. O relógio bateu as seis. Extinta a ponta do seu último cigarro, ele se levantou da cadeira.
- Um chá muito decente, mamãe. Apreciei muito a nossa tagarelice.
- Eu também, Geoffrey. - Acompanhou-o até o saguão, ajudou-o a enfiar o seu pesado sobretudo e, ficando junto dele sob o ligeiro brilho submerso do candelabro verde,
ajuntou, com ar casual: - A propósito, soube que o seu primo está na Reitoria.
- Sim, que falta de sorte! Não quero nada com ele.
- Muito sensato, Geoffrey. E, se eu fosse você, avisaria Claire que ela deve se afastar do caminho dele.
Geoffrey olhou para ela, enrolando o seu lenço de pequenas flores coloridas.
- Que quer dizer?
- Simplesmente isso... você sabe que o tirou de Claire... isso deve amargurar muito. Depois de todos esses anos nos mais baixos antros de Paris, não se pode confiar
nele.
- Eu o conheço muito bem. Ele é capaz de qualquer coisa.
- Então me tranquilize, avisando Claire.
Ele completou o arranjo do lenço, olhou-se no pequeno espelho do corredor.
- Oh, está bem. Boa noite, mamãe.
- Boa noite, Geoffrey.
Ficou na porta aberta enquanto ele acelerava o motor do seu carro esportivo e, com um ranger de rodas no saibro, afastava-se da alameda. Então, muito satisfeita
com o seu trabalho da tarde, entrou em casa.
Geoffrey dirigia a grande velocidade e com muita perícia. Tinha uma grande opinião sobre si mesmo como motorista, e em solteiro brincara muitas vezes com a ideia
de participar das corridas de Brooklands. Talvez fosse o sibilar do ar fresco que o induzisse a um grau de atividade cerebral além do que Adelaide antecipara. De
qualquer modo, fazia as curvas em alta velocidade, manobrando o pequeno volante da sua máquina, sempre a perguntar de si para si: "Que será que a velha queria?"
Obviamente, fora convidado para o chá por um motivo específico. No passado, na escola e em Sandhurst, quando sua mãe lhe escrevia costumava pôr o verdadeiro assunto
num pós-escrito, de maneira casual. Será que o seu verdadeiro motivo da tarde estava naquelas suas observações finais a respeito de Claire? Por baixo do seu gorro
de xadrez, Geoffrey riu-se. Prejudicado pela pretensão e por uma educação dispendiosa, que lhe ensinara somente a arte de bater em bolas de vários tamanhos, ele
não era especialmente inteligente, mas a sua longa associação com a fraternidade esportiva, com excursionistas, bookmakers e cavalariças dera-lhe uma espécie de
astúcia, e o agudo sentido de que tinha pela frente o que ele chamava de "bom negócio". Sua imediata reação, por conseguinte, foi tomar uma decisão diretamente oposta
à sugerida por sua mãe - não falaria com Claire; continuaria mudo e investigaria a situação descansadamente.
Quando chegou em casa, eram 6:11, e Claire, que normalmente tomava o trem das 5:50 na Estação Victoria, ainda não tinha voltado de Londres. No andar de cima, quando
caminhava pelo corredor a fim de tomar um banho e trocar de roupa para o jantar, deteve-se diante da pequena sala de estar contígua ao dormitório de sua esposa,
que ela usava muito, por causa da sua conveniência geral e exposição ao sol. Uma batida exploratória na porta não obteve resultado, e, após um segundo de hesitação,
Geoffrey entrou. O quarto era encantador, pintado num cinza pálido, com cortinas e coberturas de
chintz de um rosa delicado, e Geoffrey conhecia-o muito bem - aliás, muitas vezes, na ausência de Claire, ele entrava e vagabundeava por ali, tocando nisto e naquilo,
uma carta na escrivaninha, um postal no consolo da lareira, à maneira de um marido solícito, embora inquisidor, um marido para o qual os assuntos da sua esposa,
e particularmente das suas finanças, tinham um interesse natural e considerável.
Agora, porém, a sua inspeção foi menos ao acaso. Dirigiu-se diretamente à escrivaninha e começou a revistá-la sistematicamente. Durante 10 minutos, examinou os documentos
nas gavetas e escaninhos. Não havia nada, simplesmente nada; a inocência do que encontrara - velhos instantâneos seus como cadete em Sandhurst - trouxe-lhe uma ligeira
cor às faces.
Meio envergonhado, ia voltar e sair, quando, no receptáculo de cima, descobriu uma folha de papel dobrada. Era uma fatura na importância de
400 libras, selada e dada por recebida, das Galerias Maddox, 21C, New Bond Street, por dois quadros: Caridade e Meio-Dia nos Olivais, de Stephen Desmonde.
CAPÍTULO VII
NUMA TARDE DO COMEÇO DE MARÇO, a reunião mensal do Conselho do Distrito de Sussex do Oeste chegava ao fim de uma longa discussão, que ia e vinha, sobre a conveniência
de fornecer canos de esgoto para o até agora enterrado povoado de Hetton-in-the-Wold. Entre os 14 membros então presentes, Albert Mould estava incomumente silencioso,
roendo a unha de um polegar, com a sua cabeça de foca enfiada na gola levantada do grande sobretudo, que ele usava contra as correntes de ar frio da primavera que
se coavam pelas fendas dos velhos lambris da sala do conselho. A seu lado sentava-se o seu amigo e colega Joe Cordley, e no outro lado da mesa o assíduo servidor
público Contra-Almirante Tryng.
O martelo bateu pela última vez, o funcionário do distrito resmungou a costumeira fórmula de encerramento da sessão, com data e hora da próxima, e entre um arrastar
de cadeiras e o murmúrio da conversação, o conselho começou a se dispersar. Albert Mould, no entanto, deixou-se ficar. Tendo Cordley a seu lado, parou junto à porta,
e quando Tryng se aproximou, falou-lhe:
- Gostaria de ter uma conversa com o senhor, se não for inconveniente. Não era de modo algum conveniente. Reggie ia afoito para a quadra do
Mid-Sussex a fim de jogar um nove-pontos, mas antes que pudesse oferecer uma desculpa plausível, Mould continuou:
- Detesto trazer isto ao seu conhecimento, mas é meu dever. Trata-se daqueles painéis que estão sendo pintados no Saguão do Memorial.
- Que há com eles? - perguntou Tryng secamente, olhando de propósito para o seu relógio.
- Apenas o seguinte, senhor. Faz agora quase três meses que a pintura começou, e até onde posso saber, e os outros também, ninguém a viu. Sei que várias pessoas
fizeram uma tentativa mas não obtiveram permissão, os painéis continuam trancados a sete chaves. Pois bem, senhor, com a aproximação da inauguração oficial, isso
não parece direito nem correto - ao menos para dois membros da sua subcomissão. Assim, para falar francamente, eles me convidaram a acompanhá-los numa inspeção aos
painéis.
- Como diabo você poderia inspecioná-los, se estão trancados?
- O Sr. Arnold Sharp me deu uma duplicata da chave.
Tryng expressou no olhar o seu desagrado. Jamais gostara de Mould, menos por ultrapassar os limites da sua classe do que por manter o servilismo e usá-lo como uma
espécie de desdém ao contrário.
- Bem, senhor, para encurtar a história, entramos no saguão ontem ao entardecer. E é meu doloroso dever dizer-lhe que não gostamos do que vimos.
- Ora, ora, Mould. - Tryng assumiu um ar superior. - Você não é nenhum crítico de arte.
- Mas não é apenas o meu julgamento, por humilde que seja. - Por não mais que um segundo, os olhos cor de barro de Mould enfrentaram o olhar do contra-almirante.
- O advogado Sharp e Joe Cordley também são da mesma opinião.
- Somos realmente - disse Cordley com decisão. - Juro sobre a minha Bíblia.
- Longe de mim aconselhá-lo. Mas se eu fosse o presidente da comissão, iria dar uma olhada neles imediatamente.
Tryng sentiu uma ponta de preocupação. Havia no olho de Mould um brilho reprimido de que ele não gostava. Relutantemente, afastou os seus pensamentos agradáveis
sobre golfe, refletiu e depois disse:
- Você tem essa chave?
- Temos; senhor. E Joe e eu estamos livres agora.
- Então vamos.
Deixaram o escritório do conselho, tomaram a estrada no Morris-Cowley do almirante. Em Charminster, por sugestão de Mould, apanharam Sharp e Sutton. Gastou-se tempo
nessa operação, e a escuridão já tinha caído quando
os cinco membros da subcomissão se aproximaram do Memorial. Em silêncio, Mould os fez entrar. O saguão estava vazio - Stephen tinha saído uma hora antes. Com um
ar portentoso, Cordley acendeu as luzes. E, diante deles, lá estavam os painéis.
O primeiro a atrair os olhos de Tryng foi o que Stephen chamava de Oferenda à Paz - uma jovem mulher no primeiro plano, segurando uma criancinha, com um fundo de
trigais dourados e terras frutíferas, densamente povoadas de ceifeiros, colhedores e alegres figuras rústicas. Tryng sentiu a sua ansiedade diminuir, um caloroso
fluxo de alívio. Ora, a coisa era boa, aliás excelente, de uma maneira incomum, impressionante - gostava realmente daquilo. Mas quando se voltou para o segundo painel,
Salve, Armageddon, com a sua concentração mortal de armas e homens uniformizados, enquanto, entre multidões que aplaudiam, bandas tocavam e bandeiras eram agitadas,
todas as suas suspeitas despertaram bruscamente. E se aprofundaram, porque ele foi atingido por uma terrível certeza ao observar apressadamente, com enjoada apreensão,
o terceiro quadro, O Rapto da Paz, e o quarto, Consequências, os quais, com assombrosa força, até onde o seu espírito abalado podia discernir, apresentavam um desenho
entrelaçado com os medonhos incidentes da guerra e outras terríveis consequências que se seguiam - fome, peste, casas incendiadas, aldeias arruinadas, assolamento
daquela terra frutífera, todo o conjunto observado do alto pela figura nua de uma mulher em prantos. O painel final, Ressurreição do Morticínio, fez os seus olhos
saltarem nas órbitas. Em nome do céu, que diabo o sujeito queria dizer com aquelas estranhas formas humanas, cadáveres realmente desfigurados, sem roupas, alguns
sem membros, mulheres também, rebentando os seus túmulos sob um furioso trombetear de uma hoste de anjos? Nunca tinha, nos seus sonhos mais estapafúrdios, esperado
ver aquela aniquiladora derrocada. E fora ele, Contra-Almirante Reginald Tryng, quem tinha patrocinado, praticamente empurrado aquele maldito Desmonde sobre os membros
da sua comissão.
Os outros estavam agora a observá-lo, esperando que ele falasse. Ele aprumou os ombros - coragem nunca lhe faltara.
- Bem, cavalheiros... isto é extremamente decepcionante.
- Decepcionante! - Cordley estava apoplético de indignação. - É um ultraje! Um repulsivo ultraje!
- Veja isto aqui - disse Mould apontando com a cabeça para as figuras do painel final. - Nus, todos eles... nus em pêlo. E o que é mais, com as suas vergonhas à
mostra, homens e mulheres.
Tryng desviou o olhar e voltou-se para Sutton. Mas o submisso banqueiro, mais do que ordinariamente pálido, não estava para suportá-lo.
- Sim, cavalheiros... isso é obviamente lamentável. Devo ver o Deão imediatamente.
Sharp, que estava submetendo as pinturas a um intenso escrutínio, quebrou O Silêncio.
- Posso chamar a sua atenção para este item em particular? - E apontara um detalhe de uma intrincada composição do terceiro painel. - Que é que esses soldados estão
fazendo? Talvez alguém mais artisticamente dotado do que eu possa dizer.
- Meu Deus! - exclamou Tryng contrariado.
Entre um murmúrio geral, Mould ajuntou, maciamente:
- Isso foi o que nos obrigou a chamar a atenção para a coisa toda.
O almirante, com os lábios muito apertados, assumiu o controle da situação. Disse, bruscamente:
- Convoco uma reunião para amanhã. Às nove em ponto. Terei Desmonde lá. Enquanto isso, queiram abster-se bondosamente de qualquer comentário em público. Boa noite.
Na manhã seguinte, na hora especificada, sem nenhuma premonição do desastre, Stephen compareceu perante a comissão. Sem saber do motivo da sua convocação - pelo
telefone Tryng nada lhe dissera - estava com excelente disposição, cansado e um tanto tenso pelas semanas de contínua aplicação, permeadas no entanto por uma sensação
de realização. Seu trabalho estava quase terminado e ele sabia que era bom. Mostraria os painéis à comissão dentro de poucos dias. Sem dúvida, queriam indagar-lhe
sobre esse assunto.
- Sr. Desmonde, devo informá-lo de que vimos os seus quadros. Estamos profundamente chocados com eles.
- O inesperado do ataque apanhou Stephen completamente desprevenido. Tinha sido incapaz de controlar um súbito começo e agora estava ali, muito pálido, com os olhos
sombrios e quase duros. Antes que ele pudesse falar, Tryng continuou:
- Eu, pessoalmente, não posso compreender como o senhor interpretou nossos desejos de maneira tão insultuosa.
Stephen respirou funda e penosamente.
- Que há de insultuoso no meu trabalho?
- Um empreendimento desta natureza pede algo nobre e heróico. Um grupo de soldados unidos avançando com a bandeira... um homem sendo amparado por um companheiro
ou por uma enfermeira da Cruz Vermelha. Stephen piscou os olhos. - Em vez disso, o senhor nos deu uma série de ideias exóticas... e um retrato do sofrimento humano
que é, para dizer o mínimo, mórbido e degradante.
- Eu esbocei as minhas ideias para os senhores antes de começar. Os senhores pareceram aprová-las.
- Ninguém em seu juízo perfeito poderia aprovar aqueles painéis.
- Os senhores são competentes para julgar?
- O senhor nos achou bastante competentes quando o contratamos.
Uma chama de ódio começou a arder em Stephen.
- Nesse caso, queiram ter a bondade de especificar exatamente como as minhas pinturas fracassaram.
- Verrrdade? Vamos especificar! - exclamou Cordley, provocado ao seu mais pronunciado sotaque. - Pensou que íamos quererrr aleijados, e homens cegos, mulheres nuas...
Jezebel... para não falarrr de uma p... a safadeza...?
- Basta - interrompeu Tryng secamente. Nas horas intermediárias, desde a tarde anterior, ele tinha considerado cuidadosamente a sua posição e os meios pelos quais
poderia safar-se do problema. Embora o seu sentimento de injúria pessoal permanecesse agudo, tinha chegado à conclusão de que somente pelo silêncio poderia diminuir
os danos daquele infeliz assunto a si mesmo. Estava determinado, acima de tudo, a impedir naquele encontro qualquer particularização de feições objetáveis nos painéis,
uma vez que a discussão seria, disso ele tinha certeza, repetida em todas as mesas de jantar num raio de muitos quilómetros. Por conseguinte, fixou um olho frio
de sargentão em Stephen e disse:
- A posição da comissão está perfeitamente clara e é de todo inalterável. Não podemos aceitar as suas pinturas. No meu julgamento, para torná-las apresentáveis,
seriam necessárias grandes alterações e três quadros inteiramente novos.
- Não, isso eu não faço - respondeu Stephen sem hesitar. - É um absurdo pedir tal coisa.
- Neste caso, devo pedir-lhe que desista de continuar o trabalho. No devido momento, a decisão da comissão, cancelando o compromisso, lhe será formalmente comunicada.
Uma breve pausa. Então se ouviu a voz da lei num ponto que tinha escapado ao presidente da comissão.
- Gostaria de registrar - disse Sharp - que, como as pinturas foram unanimemente rejeitadas, sob os termos do acordo, nenhum pagamento, nenhum pêni, é devido por
elas.
Stephen permaneceu completamente imóvel, lutando com o tumulto que lhe ia no peito. Nunca antes, nos mais amargos momentos da sua vida, sentira uma amargura como
aquela, um sentimento de sufocação e injustiça. Teve vontade de gritar "Guardem o seu maldito pagamento... os seus 30 dinheiros. Pensam que despejei minha alma pelo
seu dinheiro sujo?" Mas ele sabia que semelhante explosão apenas confirmaria a pior opinião que tinham a seu respeito. O silêncio era o seu único refúgio. Demorou
o olhar em cada uma daquelas faces, tão enevoadas que mal as podia distinguir, e, sem uma palavra, retirou-se da sala.
Embora a cabeça lhe rodasse, seus passos o levaram instintivamente ao Memorial. Estava firmemente determinado a terminar os seus painéis, a despeito daquela injunção.
Não restava muito que fazer, e ele estaria pronto para o vernissage final em dois dias. Por uma afortunada omissão, não o tinham forçado a entregar a sua chave.
Mas quando chegou ao Instituto, encontrou a porta fechada com tranca e cadeado, novo, sólido, resistindo a todos os seus esforços para abri-lo. Passou pela cidade
sem nada ver, com olhos duros e sombrios, subindo os Downs, onde, caminhando com passos largos, uma figura escura e solitária contra o céu, parecia, embora sumido
na vastidão da paisagem, desafiar ainda o universo que se armava contra ele.
CAPÍTULO VIII
NESSA MESMA TARDE, a notícia da rejeição dos painéis era de domínio público. Mas como Tryng controlava firmemente a comissão, e mostrara nos termos mais fortes quão
prejudicial para todos seria uma revelação da "desagradável" natureza das pinturas, pois seriam responsabilizados por terem escolhido Desmonde, seria anunciado simplesmente
que o trabalho apresentado não satisfizera os padrões estabelecidos e era por conseguinte inaceitável. Contudo, o simples fato da rejeição era suficiente para provocar
uma pequena sensação e um coro de autojustificação daqueles que reprovavam Stephen. Para Adelaide, em Simla Lodge, aquilo trouxe uma agradável sensação de vingança.
Geoffrey, alimentando o seu agravo, experimentou uma satisfação de humor variável, intensificada por um boato, agora circulando, de que Stephen tinha desaparecido
e não era achado em parte alguma. Sem dúvida alguma, o pesteado estava caído de bêbado num botequim de Brighton!
Dois dias depois, na tarde de terça-feira da mesma infeliz semana, um silêncio predominava na Reitoria de Stillwater. Após retardar o mais que pôde, Caroline entrou
na biblioteca. O Reitor estava sentado, olhando para o fogo, com o Comentários do Bispo Denton, de onde agora tirava os seus sermões, aberto sobre os joelhos. Por
um momento, ela se deteve, hesitante, como se não quisesse falar.
- Não sei, papai se já poderia fechar as portas.
Bertram não se moveu.
- Nenhum sinal dele ainda?
- Não, papai.
O Reitor endireitou-se, limpou os olhos piscando.
- Não está no quarto dele?
Caroline sacudiu a cabeça.
- Já fui olhar.
- Que horas são?
- Quase 11. Talvez se eu trancar a porta da frente e deixar a dos fundos só com o trinco...
- Não, minha querida... deixe tudo como está. E vá para a cama. Deve estar muito cansada.
- Deixe-me ficar sentada aqui.
- Não, não. Eu tenho trabalho para fazer. E não estou nem um pouco cansado. Boa noite, Carrie.
O emprego do diminutivo - um acontecimento raro - fez vibrar as cordas do seu coração. Mas ela não tinha o dom de mostrar ternura.
- Boa noite, papai.
Relutantemente, com um olhar demorado, subiu as escadas para o seu quarto frio, enquanto Bertram, ereto na sua cadeira e com a expressão atormentada, começou a esperar
o filho. Como se para enganar a si mesmo, fingindo atenção, voltava de vez em quando as páginas do seu livro. Mas a sua mente não se detinha nele. Olhava continuamente
para o relógio, com o ouvido agudamente à escuta de um passo na trilha ao lado da janela.
Mesmo agora ele mal podia acreditar que Stephen, durante semanas um modelo de correção, pudesse ter mergulhado numa onda de dissipação no esforço de afogar os seus
sofrimentos. Era contudo a opinião geral. E que mais poderia explicar aquela prolongada ausência? Extenuado, forçoso era reconhecer que o golpe devia ter sido cruel.
Ele tinha erguido um edifício tão alto, que era angustioso vê-lo tombado em ruínas no chão. Suspirou pesadamente e levou a mão à testa.
Os minutos se arrastavam lentos; bateram 11 horas no relógio do avô; depois, a badalada única da meia-hora. À meia-noite, o último tição do fogo bruxuleou e morreu.
Inútil esperar mais. O Reitor levantou-se, apagou as luzes e subiu vagarosamente a escada.
Na tarde seguinte, por volta das três horas, Caroline, obrigada a levantar cedo devido às fainas domésticas, e que mal tinha pregado olho na noite passada, estava
descansando, parcialmente despida, no seu quarto. Bertram tinha ido fazer uma visita paroquial. De súbito, um som de passos, decididos, familiares, alertou-a, e
ela correu à janela. Seu coração pulou. Era Stephen, aproximando-se com uma alacridade que quase a assustou. Rapidamente, vestiu o seu velho penhoar cor-de-rosa
e foi ao seu encontro quando ele entrava em casa.
- Arranje-me alguma coisa para comer, Carrie, eis aqui o seu querido... falou com tal franqueza que a irritou. - Não demore. Estou faminto.
- Por onde andou? - Embora a sua voz tremesse, tinha uma nota de acusação.
Ele sorriu - ao menos dissipou a sua expressão fixa.
- Não me olhe assim, garota. Lamento o cuidado que dei. Estive ocupado Por três dias e três noites.
- Como pode ter estado ocupado ? Por três dias e três noites?
- Muito facilmente... eu tinha uma chave de fenda.
Tinha ele enlouquecido? O tom dela mudou.
- Não brinque com isso, Stephen. estávamos muito preocupados.
Onde dormiu?
- Onde acha você? No meu habitat natural. Chão liso. E com a roupa no corpo. Vou me lavar e trocar de roupa.
Ela suspirou, aliviada por vê-lo, contudo mistificada e cheia de apreensões. Mas ela mesma fez um bacon com ovos - Sophie tinha sido tão democratizada que nunca
aparecia na cozinha entre três e seis horas da tarde - e preparou um bule de chá forte. Sentada diante dele, ainda de robe, com o queixo apoiado nas mãos, olhava,
dubiamente, enquanto ele comia e bebia à vontade. Durante esse tempo, esquivou-se a todas as perguntas; depois, relaxando, recostou-se na cadeira e olhou para ela.
- Foi tudo muito simples, Carrie. Eu tinha que terminar as minhas pinturas. E como eles trancaram a porta, eu entrei à força.
- À força?
- A princípio, tentei uma escada, mas não deu resultado... assim, desaparafusei a tranca e entrei.
- E você esteve lá... no Instituto. todo esse tempo?
- Praticamente.
- Sem nada para comer... por três dias e três noites? E dormindo... no chão?
- Garanto-lhe, querida Carrie, que isso não me incomodou nem um pouquinho. - Sua voz endureceu. - Eu queria o meu trabalho terminado... e agora está... envernizado
e completo.
Ela guardou silêncio. Ao mesmo tempo que a sua alegria a ajudava a aliviar a própria inquietação, ela não podia deixar de observar que aquele último esforço, imposto
sobre um longo e pródigo trabalho criativo, tinha-o abalado fisicamente. A candura e a gentileza, que eram as suas melhores qualidades, haviam desaparecido, substituídas,
agora pelo que parecia uma terrível Perversidade.
Ele olhou para o relógio.
- Preciso ir.
- Oh, não, Stephen - protestou ela. - Outra vez não. Papai deseja vê-lo.
- Estarei de volta bem cedo - assegurou ele. - Certamente antes das 10. Prometo-lhe.
Suas palavras mostravam convicção, contudo havia algo por trás delas que ela não podia compreender. No minuto seguinte ele tinha saído de casa tão bruscamente como
entrara.
No fim da trilha, após uma breve demora, o ônibus "horário" do Distri. to Rural apareceu e Stephen o fez parar. O velho veículo estava quase vazio, e, quando ele
se sentou, retomou a sua marcha pela estrada em direção a Charminster.
Toda a teimosia do caráter de Stephen tinha se voltado agora contra o tratamento que recebera. Seis anos atrás, ele teria questionado a qualidade do seu trabalho.
Agora, estava convicto de que os painéis eram da mais alta qualidade, não apenas como expressão de um tema universal, mas também como uma obra de arte. Que tivessem
sido recusados tão arbitrariamente, em termos tão objetáveis, e sem recurso à opinião de um entendido, era coisa que lhe fazia o sangue ferver. Pior de tudo fora
a maneira pela qual a comissão tentara suprimir a incumbência, interferindo no seu trabalho, pelo qual não tinham pago nada, proibindo o seu acesso a ele e no abafamento
geral, antes que ele pudesse começar, as suas tentativas de obter uma reparação. Mais uma vez, sentado no ônibus pachorrento, a lembrança de tudo aquilo que tinha
exprimido, e com tamanha boa fé, fazia-o morder os lábios e enclavinhar as mãos. Não podia, não se submeteria, mas, a despeito de tudo, traria o assunto para a luz
do dia. Cuidadosamente, recapitulou os arranjos que tinha feito - embora longe de perfeitos, eram os melhores que ele pudera improvisar, e achava que serviriam.
Que felicidade, desta vez, ter algum dinheiro consigo. Nunca precisara tanto dele.
Quando o ônibus entrou nos arredores de Charminster, sentiu os nervos tensos. O relógio do mercado, iluminado contra as trevas que se aproximavam, indicava 5:45.
Numa parada antes da praça, saltou e, tomando o atalho através de Oak Lane, caminhou rapidamente para a estação ferroviária do condado. Alcançou a plataforma principal
e tomou posição na grade pouco antes do 6:25 de Londres encostar.
Poucos passageiros desceram do trem. E entre eles avistou imediatamente a figura juvenil de Thorpe Maddox, que vinha ao seu encontro, carregando uma mala de mão.
- Que bom você ter vindo - disse Stephen ao apertarem-se as mãos.
- Tenho prazer em ajudar, Sr. Desmonde. O tio manda-lhe lembranças.
- Estou pondo você no Javali Azul. Deve ficar confortável lá - continuou Stephen ao caminharem para a saída da estação. - Mas primeiro temos um trabalho a fazer.
- Arranjou o local?
- Aluguei-o por duas semanas, a começar de amanhã. Vamos lá agora. No centro de Charminster, justamente na Rua do Mercado, situava-se uma loja, originalmente uma
papelaria e uma biblioteca itinerante conhecida como Langlands, que, através de uma série de falências, tinha se tornado uma espécie de "ponto" a curto prazo para
diferentes propósitos, tais como reuniões de escoteiros, centro eleitoral e posto de venda para várias organizações pias do distrito. Diante desse estabelecimento
Stephen deteve-se.
- O lugar é este. Não é lá essas coisas, mas servirá. bom espaço nas paredes. E uma mesa para você. Venha comigo até os fundos. Há um carrinho de mão lá.
Cinco minutos depois, empurrando o carrinho entre ambos, tomaram uma estrada tranquila, que fazia um rodeio por fora da cidade, até o Instituto. Charminster, conhecida
como cidade somente por causa da catedral, era em verdade pouco mais que uma cidade do campo, raramente dada a diversões noturnas. Poucas pessoas andavam na rua
àquela hora, e Stephen observou com satisfação que a sua passagem não fora notada. Em menos de 20 minutos tinham transferido os painéis do edifício para o carrinho;
verificando que o verniz tinha secado, Stephen cobriu-os com um saco. Depois de fechar a porta a chave, como um requinte final, que achava que devia ser apreciado
pela comissão, tornou a aparafusar a tranca com seu cadeado, na posição original.
Seguindo para a praça do mercado com a devida discrição, dali a pouco estavam de volta ao estabelecimento Langlands; encostaram o veículo, descarregaram a carga
e levaram-na para dentro da loja vazia. Após descer todas as cortinas, começaram a pendurar os cinco quadros. Um deles, o O Rapto da Paz, Stephen colocou na janela
fronteira, o segundo, Armageddon, diretamente oposto à entrada; os três restantes foram pendurados na larga sala que outrora abrigara uma biblioteca. Não era uma
tarefa fácil - as molduras eram pesadas e precisavam de um arame forte - mas afinal, pouco depois das nove horas tudo ficou completo, para satisfação de Stephen.
Ele se voltou para o seu companheiro.
- Então, qual é o veredicto?
- O senhor, sabe que sempre apreciei o seu trabalho, Sr. Desmonde, desde o começo. Juro que estes ultrapassam tudo o que já fez. São extraordinários. .. simplesmente
desconcertantes.
- Então você não se importa em ficar aqui umas duas semanas?
- De modo nenhum. Será. . . excitante. - Fez uma pausa. - O tio não as viu?
- Não. Por que pergunta?
- Eu estava só pensando, Sr. Desmonde.. . se ele acharia sensato da sua parte exibi-los em Charminster.
- Ora, que tudo vá para o inferno, Thorpe, é em Charminster que devo mostrá-los. Qual o problema?
- Bem, senhor... este é um lugar pequeno, um tanto atrasado. Aposto que não distinguem entre uma obra de arte e um nabo.
Havia algo mais na mente do jovem Maddox. Stephen esperou.
- Se estes painéis estivessem na Galeria Nacional ou no Louvre, seriam tomados pelo que são. Mas, Sr. Desmonde - fez um gesto que expressava a sua avaliação artística
de toda a região rural, e seus olhos moços se puseram estranhamente sérios - que diabo pensarão deles aqui?
CAPÍTULO IX
A MANHÃ SEGUINTE SURGIU FRESCA e límpida. No Javali Azul, Thorpe Maddox levantou cedo, fez o seu desjejum e saiu para a Langlands, que abriu precisamente às nove
horas, colocando os painéis à vista do público. Quase no mesmo instante, o Sr. Sutton, um homem pontual, vinha pela Rua do Mercado a caminho do seu banco, que ficava
na esquina, poucas casas adiante. Avistou a grande pintura da janela, reconheceu-a, e quase teve um ataque. Quatro minutos depois, estava no seu escritório, telefonando
para Tryng. Logo o almirante estava ao seu lado, declarando, com um gesto de impotência, que lavava as mãos de todo aquele assunto.
- Fiz o melhor que pude, Sutton, para corrigir essa situação tão desagradável. Não no meu próprio interesse, mas no de pessoas pelas quais tenho uma elevada consideração.
Tudo ficou em ordem e bem arrumado. E agora esse maldito sujeito nos arrasa, roubando as pinturas e atirando-as aos olhos do público.
- Naturalmente, os quadros são dele... tem o direito de retirá-los...
- É justamente esse o problema! Se não fosse isso, eu já teria queimado todo o lote há muito tempo.
Uma pausa, durante a qual Tryng reencheu o seu cachimbo.
- Não é melhor ver o Deão? - sugeriu Sutton com infelicidade.
- Eu já tentei. Mas ele estava resfriado e não podia ser visitado. De qualquer modo, ele está fora disto. Nós é que devemos aguentar o rojão.
- Acha que haverá... - nervosamente suprimiu a palavra "escândalo" -... uma reação?
- Você está doido? Meu Deus, homem, essas malditas pinturas causarão o maior rebuliço em Charminster desde o incêndio da cervejaria. Mas eu confirmo a minha posição.
Fui metido nisto em primeiro lugar. Agora não tenho nada com isso.
E Reggie saiu do banco.
Normalmente, uma mostra de pinturas não causaria mais impacto na vida dessa cidade do campo do que um floco de neve caindo numa sepultura. Na verdade, tinha havido
muito poucas dessas exposições, a última, até onde a memória ajudava, antes da guerra, uma mostra de pinturas florais da filha paralítica do velho Major Featherstonhaugh,
cujos vasos de primaveras, amores-perfeitos e coisas parecidas, ao preço de um guinéu cada, eram realmente de primeira qualidade, quando se considerava que tinham
sido feitos por uma deficiente.
Mas esta não era a mesma espécie de exposição nem se tratava de pinturas florais. A sequência dos acontecimentos que precederam a sua apresentação pública, ligada
à conhecida reputação do artista, era o suficiente para envolvê-las de uma horrível fascinação. Em suma, elas atraíam porque eram repelidas - e toda Charminster
foi vê-las, como uma multidão pode acorrer ao necrotério. Assim fazendo, a pequena nobreza, o que quer que reservasse para conversação privilegiada, manteve uma
altivez conveniente - apesar de resmungos desagradáveis ouvidos ocasionalmente, e foi observado que, ao entrar no seu Daimler, a atual titular do Castelo de Dichtley,
senhora idosa e de porte nobre, tinha um olhar de acentuada severidade, aumentando assim a sua semelhança - que ela muito prezava - com a falecida Rainha Victoria.
As classes baixas, por outro lado, principalmente trabalhadores de ambos os sexos das fazendas das cercanias, eram lamentavelmente mal-educadas. Alguns abriam a
boca em silêncio, mas na maior parte os seus comentários eram altos, vulgares, entremeados de humor grosseiro e obscenas interpretações de algumas fases da composição,
que provocavam risinhos divertidos por parte das jovens. Era deixado à seção intermediária dessa cidade da catedral - a burguesia, sólida, respeitável, temente a
Deus e respeitadora da lei - assumir uma atitude apropriada diante daquela incómoda apresentação e sopesar seriamente os seus efeitos sobre a comunidade.
No começo, a reação de tais cidadãos foi de estupefação. Os painéis, no tema e na execução, contradiziam tudo o que haviam esperado, ofendiam o comum, desafiavam
os normais, espezinhavam todas as suas ideias inerentes e tradições. Ficaram escandalizados, a um simples olhar. Então, gradualmente, ao espiarem as composições,
os elementos discernidos pareciam violar inquestionavelmente o decoro do patriotismo, da religião e, acima de tudo, da moralidade.
A objeção era concentrada sobre um detalhe do painel flagrantemente
exibido na janela. Demasiado tarde, lojistas sensatos e comerciantes sóbrios proibiram as filhas e mulheres de ver os tons da carne macia, seios caídos e membros
tensos de uma camponesa, meio despida das suas roupas, que lutava ineficientemente contra os abraços eróticos de um bando de soldados.
O sentimento de ultraje aumentou, a consciência cívica foi despertada, e a imprensa - sempre a guardiã do povo - entrou em ação. Duas folhas serviam o distrito:
a County Gazette e a Charminster Chronicle. Na Chronicle, publicada quarta-feira, apareceu um editorial, seu título: UM ULTRAJE CONTRA A NOSSA BELA CIDADE. Três
dias mais tarde, a Gazette ultrapassou a sua rival com uma chamada na primeira página: ARTE DEVASSA.
Observando o crescente sentimento público, que, embora previsto, foi muito além da sua imaginação, Tryng experimentou uma emoção mista. Tinha sido bem tratado pela
imprensa; na verdade, a comissão, através de influências que ele claramente reconhecia, era apresentada como uma junta de cidadãos ilibados, cuja confiança e magnanimidade
haviam sido tristemente traídas. Mas embora pessoalmente absolvido, tinha consciência, quando a tormenta aumentou, de uma sensação de remorso diante de Claire, que,
afinal de contas, era apenas outra vítima do caso. Então, no domingo seguinte ao do aparecimento do artigo da Gazette, numa reunião do Conselho Rural antes do meio-dia,
onde o tópico do momento era livremente discutido, uma palavra proferida por Sutton o alarmou. Foi comer a sua costeleta em casa com um humor preocupado, e, meditando
enquanto despojava o osso, decidiu agir. Às duas horas, apanhou o telefone e pediu uma ligação para Broughton Court.
- Alô alô! Posso falar com a Sra. Desmonde?
- Quem fala?
- Almirante Reginald Tryng.
- Lamento, mas minha esposa não pode atender no momento.
- Ah, é você, Geoffrey? Que bom ouvir a sua voz, meu caro. Eu devia ter reconhecido. Você está bem?
- Muito bem. Que posso fazer pelo senhor?
- Bem... na verdade era com Claire que eu queria trocar uma palavra... sobre esse, ora! esse assunto da exposição. Mas já que ela não pode atender, posso falar com
você?
Após uma brevíssima pausa.
- Naturalmente.
- bom, eu acho absolutamente imperativo, à luz de algo que ouvi hoje, que o seu primo encerre a exposição e dê o fora com seus malditos borrões... sem um momento
de demora. Não quero dizer mais pelo telefone, mas... você compreende o que eu quero dizer...
- Acho que sim.
- Ótimo. E apresente os meus melhores cumprimentos à sua esposa.
Compreendo perfeitamente que, quando me pediu para conseguir o trabalho para o seu primo, ela não tinha a menor ideia da coisa em que estávamos nos metendo... pobre
moça! Um silêncio.
- Bem... vou desligar, Geoffrey. Adeus e boa sorte.
Geoffrey veio do telefone branco de raiva. A semana já não tinha sido bastante desagradável sem aquilo? Embora as suas suspeitas tivessem estado indubitavelmente
ativas, jamais previra algo tão prejudicial à sua auto-estima. Contudo, devia manter a cabeça fria. Demorou-se no saguão, compondo-se, e então, com uma expressão
cuidadosamente vazia, subiu lentamente as escadas. Geralmente ele batia na porta da sala de estar da sua esposa - agora entrou diretamente.
Claire estava sentada junto à janela, inativa no seu lugar favorito, com um livro aberto sobre os joelhos, e havia olheiras nos seus olhos, como se não tivesse dormido.
- Está ocupada? - perguntou ele calmamente.
- Sim... não, não particularmente.
- Que é isso que está lendo? - Apanhou o livro sem pedir. Intitulava-se Os Pós-Impressionistas.
- Ah! Você ultimamente tem mostrado muito interesse pela arte.
- Tenho?
- É o que parece. - Sentou-se na beira do sofá. - A propósito, quando vamos ver os seus novos quadros?
- Que quadros?
- Os dois que comprou em Londres.
Ela se tornou ainda mais pálida, desviou o olhar e não respondeu. - Não se lembra? Caridade, não é? Título encantador. E Nos Olivais. Sabendo que Geoffrey estava
jogando verde, forçou-se a olhar para ele.
- No momento, estão sendo guardados para mim.
- Mas por que nos negar o prazer de vê-los? Afinal de contas, devem ter-lhe custado uma boa quantia. - A sua voz perdeu o tom de sátira e endureceu de súbito. -
Por que subsidiou esse sujeito?
- Gostei das pinturas.
- Não acredito. O vagabundo não consegue pintar sequer uma parede. Contudo, você presenteou-o com 400 libras, quando eu - nós precisamos do último péni para... manter
a casa. E não contente com isso - o seu temperamento empolgou o melhor dele, - ele se levantou, as palavras lhe vieram de roldão - por trás de mim você andou mexendo
as cordinhas e dispondo as coisas para conseguir o trabalho do Memorial para ele, que naturalmente ele logo atamancou, faltando com as pessoas que o apoiaram e fazendo
de você um prato para o condado. Por que diabo fez isso?
- Eu simplesmente quis ajudá-lo - respondeu ela em voz baixa.
Como um homem do tipo de Geoffrey poderia compreender os reclamos do seu coração?
- Você andou se encontrando com ele?
- Apenas uma vez... por uns poucos minutos e na rua.
- Não acredito. Você tem um caso com ele.
- Não, Geoffrey.
Ele não sabia se ela falava ou não a verdade. De fato, tinha pouca dúvida quanto ao seu corpo, mas queria, também, impedir a conquista do seu espírito. Voltou-se
rapidamente e saiu do quarto, mas logo retornou e estava diante dela.
- Suponho que você o animou a montar essa miserável exposição.
- Não. Mas compreendo por que ele o fez.
- Compreende! - exclamou, lançando-lhe um olhar furioso.
- Você não vê, Geoffrey, que se um artista acredita no seu trabalho, deve defendê-lo? Foi por isso que se instituiu o Salon des Refusés... e pintores como Manet,
Degas, Lautrec, que tiveram seus trabalhos desdenhados no começo mas depois foram reconhecidos como grandes... todos eles expuseram lá.
- Você está muito instruída - escarneceu ele. - Esses sujeitos, ao menos, não causaram nenhum maldito escândalo.
- Aí é que você se engana - respondeu ela rápido. - Quando Manet, Gauguin e Van Gogh exibiram seus primeiros trabalhos, houve um violento protesto. As pessoas se
amontoavam diante das telas, gritando que eram um ultraje, um insulto ao público... quase houve um tumulto. E agora... essas pinturas são consideradas obras-primas.
A sua voz tranquila, o emprego dos nomes estrangeiros e desconhecidos enfureceram-no. Ele avançou e agarrou-a por um braço.
- Eu vou lhe dar essas preciosas obras-primas de génios. Quando eu puser a mão nele, vou quebrar-lhe o pescoço.
- E isso ajudará em alguma coisa?
Os olhos dela, pousando nele de um modo estranho, fizeram-no soltar-lhe o braço.
- Então você não está apaixonada por ele?
Ela não respondeu, apenas levantou-se e dirigiu-se lentamente para a porta. Quando a fechou atrás de si, inexprimivelmente estimulado, ele gritou:
- Você precisa é de uma boa surra! Ela não deu sinais de ter ouvido.
Só, Geoffrey ficou de punhos cerrados, o rosto escuro de raiva, pensando. Uma coisa era clara - alguma coisa tinha que ser feita logo, para que o nome de Desmonde
não continuasse a ser arrastado na lama. De cenho carregado,
reprimiu um impulso de descarregar uma imediata violência sobre o primo - guardaria esta satisfação para um outro dia. Devia tentar incutir um pouco de fibra em
Bertram - induzi-lo a mandar aquele filho canalha para o Canadá, ou para alguma outra colónia distante? Não, lá eles já estavam muito por baixo, o Reitor não era
melhor que um caniço quebrado; quanto a Caroline, havia muito suspeitava que ela andava de língua passada com Claire. Finalmente, decidiu conferenciar com os seus
pais e, indo ao telefone, discou para Simla Lodge.
Foi o pai quem atendeu e, interrompendo as observações preliminares de Geoffrey, disse bruscamente:
- Eu iria lhe telefonar. Estará em casa esta tarde? Quero vê-lo.
- É sobre um certo assunto?
-É.
- Então eu positivamente vou esperá-lo. Traga mamãe.
- Sua mãe não pode ir. Mas eu estarei aí dentro de uma hora.
Esperando no salão de bilhar com agitada impaciência, Geoffrey fumava cigarro após cigarro; tentou umas carambolas, errou, praguejou, desistiu, chegando à janela
uma dezena de vezes. Por fim, o pequeno Standard, com a bandeira inglesa no capô, surgiu por trás dos altos rododendros que marcavam a curva da entrada. O General
Desmonde entrou tranquilo, vestindo, para surpresa de Geoffrey, as suas roupas de jardineiro, uma comprida capa e botas de borracha. Seus olhos azuis com gelo nas
pestanas, e as próprias gotas de chuva no seu bigode, tinham um brilho glacial.
- Que bom vê-lo. Deixe-me tirar a sua capa molhada. Posso lhe servir uma bebida?
- Sim. Um forte uísque com soda. Beba um você também.
Diante do armário de bebidas, Geoffrey preparou o drinque, serviu um copo cheio para o pai e, em pé, tomou um gole.
- Claire está bem, espero.
- Sim... muito bem.
- Isso é um alívio.
Os modos do seu pai o intrigavam, mas Geoffrey foi direto ao assunto.
- A exposição de arte daquele sujeito está ficando demais. Temos que fechá-la.
- Ela já está fechada, Geoffrey.
- Como...?
Um compasso de silêncio se fez na sala. O General depôs o copo vazio.
- O Chefe de Polícia do Condado visitou-me depois do almoço. Mostrou-se muito solidário a respeito, quase se desculpando... As autoridades de Charminster tinham
tomado o assunto nas mãos... mas ele achava que não havia outra coisa a fazer se não confiscar aquelas "obras de arte".
- Eu também acho!
- Também mencionou que faria o melhor para poupar a sua mulher da publicidade.
- Que publicidade?
- Seu primo - disse o General Desmonde, deixando escapar cada palavra como se poluíssem os seus lábios limpos - foi levado esta manhã ao Posto de Polícia de Charminster
e formalmente acusado de expor pinturas obscenas.
- Oh, não... meu Deus!
- Será levado perante a justiça na segunda-feira. - A voz do General era dura como pedra.
CAPÍTULO X
A SALA DE SESSÕES do tribunal de Charminster, onde o caso ia ser ouvido, estava cheia a ponto de sufocar. Raramente antes aquele antigo edifício com a sua galeria
semicircular e alto teto abobadado tinha estado tão cheio, não apenas com os respeitáveis cidadãos da comunidade, mas também com a categoria e nobreza do condado.
Para Stephen, sentado no tribunal com uma espécie de enjoada impaciência, um sargento impassível a seu lado, era como se estivesse cercado, fechado por uma parede
de rostos. Impossível reconhecer alguém na nevoenta assembleia. Sabia que, graças a Deus, ninguém da sua família estava presente, mas Richard Glyn lá estava, e isso
lhe dava uma sensação de apoio.
Subitamente, a uma ordem, o zumbido da conversação cessou. Os magistrados entraram e, com apropriada solenidade, tomaram lugar na mesa. Então, após um momento de
pausa, o nome de Stephen foi chamado, o sargento conduziu-o à barra e os trâmites começaram. Stephen sentiu os nervos lhe tremerem quando o escrivão, numa voz lisa
e quase cantada, começou a ler o papel que tinha na mão.
"Stephen Sieur Desmonde, sois acusado de perturbar a ordem pública por ter, a dezessete de março, no andar térreo do prédio nº 5 da Commarket Street, na cidade de
Charminster, sendo ao mesmo tempo arrendatário e ocupante do dito recinto, exposto voluntariamente três pinturas ou painéis; e incurso ainda na Seção I da Lei das
Publicações Obscenas de 1857, para explicar
o motivo pelo qual as ditas pinturas ou painéis, que, por queixa apresentada à justiça, foram sequestradas e trazidas perante o tribunal por ordem exagerada sob
a dita Seção da dita Lei, não devem ser destruídas."
Quando o escrivão terminou, todos os olhos se voltaram para as três pinturas claramente expostas no recinto do tribunal.
- Declara-se culpado ou inocente? - perguntou o juiz.
- Inocente - respondeu Stephen em voz baixa.
Naquele momento, o olhar do público voltou-se para Stephen, mas quase imediatamente o foco de atenção passou para a figura do procurador, erguendo-se para dirigir-se
à mesa. Era Arnold Sharp.
- Excelências - começou ele numa voz branda, em tom quase lamentoso - se me é dado desde o início introduzir uma nota pessoal, não preciso dizer com que tristeza,
sob as atuais circunstâncias, aceitei a presente incumbência. Mas a minha posição como procurador do Conselho da Cidade não oferecia outra alternativa que não a
de aceitar e cumprir o meu dever.
- Prossiga, por favor. - A observação veio da mesa.
Sharp, com as mãos nas lapelas da sua casaca matinal, curvou-se.
Excelências, os fatos relacionados com o comissionamento desses painéis são ampla e demasiadamente conhecidos para exigirem uma recapitulação. Sob certas recomendações
e o mais solene compromisso pessoal, talvez, também, devido à estima que sempre tem cercado a família Desmonde, o trabalho foi confiado ao acusado. Era, considerando-se
o objetivo do Memorial, um encargo sagrado. Deixo de mencionar os sentimentos da comissão quando descobriu de que maneira esse encargo foi executado, ou como os
seus sensatos e bem-intencionados esforços para silenciar a catástrofe foram inúteis. Eu simplesmente vos peço que examinem, sem ideia preconcebida, quão abjetamente
essa sagrada missão foi traída. A prova está aqui, no recinto deste tribunal - as chamadas obras de arte - diante de todos nós.
Sharp fez um pausa e olhou franzindo o cenho para os painéis.
- No interesse da decência, não é meu propósito demorar-me íntima e completamente na natureza dessas pinturas. Não obstante, em nome da justiça, sou obrigado a indicar
os aspectos essenciais que levaram esta acusação a ser apresentada.
Apanhando o bastão com o qual se armara previamente, Sharp deu um passo à frente. Uma onda de expectativa percorreu os espectadores, quando ele bateu no painel Consequências.
- Aqui - disse ele - no meio de uma cena de destruição que está longe de ser edificante, encontra-se a forma nua, de corpo inteiro, de uma mulher, que, ao que somos
informados pelo acusado, representa a figura da Paz. Ora, não temos preconceitos nem a mente estreita. Em seu lugar apropriado, como as velhas pinturas históricas
italianas, não temos nenhuma objeção ao nu, especialmente
se estiver, como na obra dos grandes pintores, convenientemente velado.
Stephen, ouvindo de lábios apertados, conteve um sorriso amargo.
- Mas esta mulher em particular não está velada, e foi feita com evidente intenção voluptuosa, e com tão ricos detalhes nas partes íntimas, que faz corar de vergonha
o mais inocente dos espectadores.
Sharp fez uma pausa e voltou-se para o painel contíguo.
- Nesta atrocidade que se segue - e eu acho que a palavra é justificada, Excelências - depara-se-nos o que se propõe ser um campo de batalha, com os nossos soldados,
seus uniformes são bem claros, empenhados em combate com o inimigo. Embora nos ocupemos da questão da decência, permiti-me, de passagem, chamar a vossa atenção para
a maneira pela qual são pintados os nossos próprios jovens, jazendo mortos e feridos nas trincheiras, como se, com efeito, estivessem perdendo a guerra, ao invés
de, graças a Deus, a estarem ganhando. Mas deixemos que isso passe - o que desejo é que atenteis, antes de tudo, para as três grandes criaturas de aspecto repugnante,
meio humanas, meio pássaros, pairando sobre as tropas do nosso lado. Ora, todos sabemos a respeito dos Anjos de Mons que apareceram, claramente visíveis, aos nossos
bravos rapazes e os ajudaram a obter a vitória sobre os hunos. Se aqui fôssemos favorecidos com uma reprodução dessa bela visão celestial, mostrando os anjos, de
branco cintilante, teria sido um glorioso e edificante espetáculo. Mas, ao invés disso, recebemos esses medonhos aleijões. E o meu ponto é este, Excelências. Com
essa mesma indecência que marca cada pincelada sua, o acusado transformou a metade humana desses abutres em mulheres nuas, com a idêntica definição do busto e torso
nus, até as penas, que só podem surgir de uma mente decadente e pustulenta. Por que outra causa, pergunto a Vossas Excelências, se não por pura perversão moral,
o acusado teve que inventar essas monstruosidades femininas sem sentido?
Neste ponto, da galeria, uma voz sonora, que Stephen reconheceu como a de Glyn, ergueu-se em furioso e súbito protesto.
- Nunca ouviu falar das Harpias mencionadas por Homero na Odisseia, sua cavalgadura?
Sensação. O presidente da mesa bateu colericamente com o martelo e, não podendo identificar o ofensor, declarou:
- Se quaisquer dessas perturbações tornarem a ocorrer, ordenarei imediatamente a evacuação do tribunal.
Restabelecida a ordem, Sharp, um tanto desconcertado com a interrupção, reiniciou mais acidamente do que antes:
- Ainda não terminei minhas observações sobre essa pintura. Aqui, Excelências, no fundo, mas ainda claramente visíveis - se podeis tolerar a visão
- estão pintados três indivíduos, dois machos e uma fêmea, no ato de serem
fuzilados por um pelotão. Um medonho tema em qualquer época, embora às vezes necessário em tempo de guerra, e neste exemplo tornado mais revoltante pelo fato de
que os três cadáveres em potencial, afora uns poucos farrapos, estão praticamente em estado natural. E de tal maneira, embora em detalhes muito pequenos, que é possível
determinar o sexo ao qual pertencem.
Sharp tomou fôlego, enxugou modestamente o bigode com um lenço limpo, como se a simples menção daquelas palavras o tivesse poluído. E continuou:
- Como se o que já descrevi não bastasse, a prova mais evidente, Excelências, está contida no mesmo painel. Em verdade, como podeis ver, na sua lacerada condição
já provocou a justa indignação de nossos cidadãos. E com razões de sobra. Apontou ominosamente. E as obscenidades não terminaram. Mais uma vez se nos depara outra
mulher semivestida. E como a vemos? Sendo atacada, licenciosamente, por membros das nossas Forças Armadas. Em uma palavra, embora eu hesite em usá-la, é uma violação.
Incrível como possa parecer a um país cristão, esse ato chocante está abertamente pintado, e para tornar as coisas piores, lá está uma criança, olhando, enquanto
eles lutam com ela, no chão.
Um murmúrio percorreu o tribunal e, apoiando-se nele, Sharp deslocou precisamente o bastão para o último painel.
- Excelências, não tenho nem o desejo nem a necessidade de insistir nesta demonstração desagradável. Mas considerai, ainda que por um só instante, esta última bacanal
de nudez. Olhai para estas formas masculinas e femininas erguendo-se, em desavergonhado estado natural, do que parece ser um cemitério. Olhai, suplico-vos, e, antes
de afastardes os olhos, perguntai a vós mesmos se este medonho retrato não cheira, em todo o sentido da palavra, a corrupção.
Sharp soltou o bastão, segurando-se pelas lapelas.
- Excelências, certamente é evidente que do primeiro ao último desses trabalhos existe um ataque, às vezes sutil, às vezes cru, mas sempre diabólico, à moralidade.
Se isto provém de decadência, perversão, ou mera maldade, ou franca pornografia de parte do acusado, não estou em condições de dizer. Eu simplesmente reitero que
as pinturas são não apenas grosseiras, medonhas e desagradáveis, mas, de acordo com a letra e o espírito da lei, claramente indecentes e obscenas. A prova da obscenidade
está em saber se o assunto é de tal caráter que possa corromper aqueles cujas mentes estão expostas a essa influência imoral, como as nossas crianças, nossos moços
e moças, nossas esposas e mães. Reconheço, Excelências, que não podeis ter a menor dificuldade em chegar à conclusão de que estas produções satisfazem, em todos
os aspectos, o sentido da palavra legal "obscenas", que devem ser destruídas antes que poluam ainda mais o ar puro da nossa cidade, e que o seu perpetrador seja
punido em toda a extensão da lei.
Por entre um murmúrio de aplausos, rapidamente suprimidos, Sharp concluiu o seu discurso de abertura. O sargento que tinha segurado os painéis foi então chamado,
e prestou depoimento formal do que tinha sido feito. Quando terminou, o presidente da mesa, após consultar o oficial de justiça, dirigiu o olhar para Stephen. Era
um homem consciencioso, correto, justo fabriqueiro de uma igreja local, e pai de três filhas solteiras, e que, embora apegado às praxes, orgulhava-se da imparcialidade
de sua atitude no tribunal. E neste caso, dada a prevenção do público contra o acusado, resolveu ser mais do que usualmente atencioso no seu tratamento para com
ele.
O seu tom era moderado e prestimoso quando disse:
- O senhor não está, entendo, legalmente representado e se propõe a conduzir pessoalmente o seu caso.
- Correto.
Agora o momento era dele, Stephen, que tinha suportado o malévolo ataque da acusação com o rosto pálido e tremente, apertando fortemente a guarda da barra. Ainda
que só por suas pinturas, tão injustamente maliciadas, e por todo o trabalho que tinha posto nelas, estava resolvido a dar boa conta de si.
- Devo, agora, dizer-lhe que está autorizado a prestar depoimento sob juramento, caso em que pode ser reinquirido; por outro lado, se preferir, pode fazer uma declaração
de onde se encontra.
- Prestarei depoimento, senhor.
O sargento levou-o à cadeira das testemunhas, e com um peculiar aperto na garganta e fortes pancadas no coração, Stephen prestou juramento e aguardou o julgamento
no banco.
- Queira prosseguir, por obséquio.
- Em primeiro lugar, quero negar, com toda a ênfase de que sou capaz, a acusação apresentada contra mim. Jamais pintei com o baixo objetivo de excitar gente de espírito
obsceno. Meu tratamento da arte sempre foi sério. O propósito definido que animou esses painéis foi um sincero e profundo desejo de simbolizar uma das maiores tragédias
que atingem a humanidade. Foi um esforço máximo tentado em grande escala. E como foi ele julgado? Tomando-se pequenas peças de cada pintura, como se poderia fazer
com as palavras do texto de uma página, e pretender que fossem a representação do todo. Nenhum método de avaliação poderia ser mais absurdo, mais injusto. Se fossem
comigo à Galeria Nacional, eu poderia reunir várias partes componentes das obras-primas que lá estão em uma entidade que, não tenho dúvida, haveria de chocá-los
profundamente. Devo, no entanto, reconhecer, com o devido respeito, que o gosto comum, padrão, seja de um sargento de polícia ou de um denunciante comum, não é competente.
Talvez o meu trabalho seja difícil de compreender. Todavia, existem aqueles cujas faculdades críticas e realizações
pessoais os habilitavam a interpretar e avaliar propriamente quaisquer novos movimentos nas artes plásticas. Em apoio do meu caso, proponho chamar o Sr. Richard
Glyn, um expositor da Academia Real que agora se encontra no tribunal.
Imediatamente, Sharp saltou.
- Protesto, Excelências. Se fosse permitido chamar uma testemunha como o Sr. Glyn, podeis imaginar o volume de provas que eu poderia obter de pessoas iminentes cujas
opiniões fossem em contrário? Claramente esses depoimentos se estenderiam por semanas.
Os magistrados consideraram e, então, depois de falarem com o oficial, acenaram vagarosamente o seu assentimento.
- Não podemos permitir que o Sr. Glyn seja chamado a depor - declarou o presidente. - Os testemunhos em bases puramente artísticas são inteiramente inadmissíveis.
- Mas - exclamou Stephen - de que outra maneira pode ser julgada uma obra de arte?
- É absolutamente irrelevante se se trata ou não de obras de arte - disse o magistrado em tom reprobatório; ele não gostava de ser interrogado. - A mais bela pintura
do mundo pode ser obscena.
Abalado por esta obra-prima de lógica, Stephen ficou mudo por um instante.
- Então não posso convocar o Sr. Glyn para prestar depoimento?
- Não.
Neste ponto, uma figura maciça levantou-se da fila dianteira da galeria e inclinou-se sobre a grade, com o queixo provocantemente espichado sobre o lenço.
- Se não sou chamado, posso pelo menos ser ouvido.
- Silêncio no tribunal!
- Ficarei em silêncio só depois de falar. Na minha ponderada opinião, esses painéis são criações estéticas de primeira ordem. No seu realismo e alcance do tratamento,
rivalizam com as obras de Daumier. No seu ritmo e forma dramática, podem ser comparados com as maiores criações de El Greco. Somente uma mente suja e vulgar poderia
considerá-los indecentes.
- Oficial, retire esse homem.
- Já vou - disse Glyn, movendo-se para a porta. - Se eu ficar, direi alguma coisa obscena. E retirou-se.
A sensação causada por essa explosão durou vários minutos. Quando passou, o presidente, seriamente provocado, olhou para a galeria.
- Se ocorrer tal perturbação outra vez, darei imediatamente voz de prisão por desacato ao tribunal à pessoa que a causar. Voltou-se para Stephen.
- Queira continuar.
- Se não tenho permissão para arrolar testemunhas em apoio de minha alegação, só me resta repeti-la.
- Isso é tudo? - Suprimindo a sua irritação, o magistrado mais uma vez se referiu à assistência. - Certamente tem algo mais a apresentar em sua defesa, não?
- Não.
Quando Stephen disse isso, Sharp pôs-se em pé, sem pressa, como se quisesse dizer que tinham muito tempo pela frente.
- Com a vossa permissão, Excelências. - Apoiando uma mão na lapela, curvou a cabeça meditativamente, depois a ergueu bruscamente e fixou o olhar em Stephen.
- Em tudo o que o senhor nos disse, nem uma só vez nos informou por que se sentiu obrigado a incorporar nesses painéis nada menos que seis figuras nuas em pêlo,
quatro das quais mulheres.
- Fiz isso por várias razões, uma delas a beleza da forma humana nua.
- Mas com certeza o senhor não alega que a forma humana deve ser completamente revelada?
- Se é para estar nua, tem que ser revelada.
- Não me interprete mal de propósito. O pudor não exige que certas partes devam sempre ser mantidas cobertas?
- Se assim fosse, como tomaríamos banho? Os olhos de Sharp fuzilaram.
- Humorismo fora de lugar não o ajudará.
- Afirmo-lhe que estou longe de ser humorístico. Estou apenas tentando mostrar como é ridícula a sua atitude, que me parece nada mais que um resquício da pudicícia
vitoriana. É o mesmo espírito que levou o Déjeneur sur l'Herbe de Manet a ser execrado e cuspido, porque mostrava duas mulheres nuas sentadas na relva. Todos os
supremos artistas pintaram a partir da vida. A grande pintura de Goya, La Maja, mostra a Duquesa de Alba reclinada num divã sem um pedaço de roupa. Sem dúvida isso
o horrorizaria. A Olympia seria para o senhor um nu chocante. Esquece que é a figura ligeiramente velada que é lasciva e sugestiva. A natureza pura e desadornada
nunca é obscena. O simbolismo, o conteúdo dramático dos meus painéis exigia a nudez. Mas é uma nudez casta e não devassa, variedade semi-escondida que o senhor parece
preferir e que eu considero como própria para enfeitar as paredes dos bordéis.
O presidente, pensando nas suas três filhas, franziu a testa em reprovação.
- Devo pedir-lhe que modere a sua linguagem.
- Sem dúvida, Excelência, era a voz da experiência referindo-se a tais lugares. O desdém de Sharp desapareceu e seu tom era sombrio quando se voltou mais uma vez
para Stephen. - Não aceito que seja puro e modesto pintar
exposição pública as partes privadas da anatomia humana. Afirmo-lhe que isso é obsceno.
- Então por que são exibidas nas grandes galerias do mundo? Somente no Museu do Prado o senhor encontrará duas dezenas de estátuas, de mestres como Michelangelo
e Donatello, nas quais as "partes privadas", como o senhor se compraz em chamar, estão publicamente mostradas.
Sharp não levou o argumento avante, mas passou à questão seguinte.
- Acredito que o senhor, há pouco, ao descrever o seu trabalho, usou a palavra "casta". Agora me diga, considera a violação de uma mulher um ato casto?
- Para o violador, não.
- Contudo, deve admitir que nas suas pinturas pintou o ato de... estupro... se posso usar tal palavra.
- Até onde me diz respeito, pode usar a palavra.
- Muito obrigado por sua bondosa permissão. É, no entanto, uma palavra desagradável.
- Está no dicionário.
- E tem a mais desagradável significação. Quer ter a bondade de dizer ao tribunal por que escolheu tema tão indecente?
- Pode ser que eu tenha sido guiado pelos meus antecessores.
- Antecessores, senhor?
- Os velhos pintores italianos, como o senhor tão classicamente os definiu, pelos quais tem tanta admiração e respeito, usaram-no constantemente.
- O senhor espera que acreditemos nisso?
- Não espero nada do senhor, a não ser ignorância e preconceito. Contudo, é a verdade. Ticiano, por exemplo, um dos mais antigos dos velhos italianos - viveu até
os 99 anos, e embora fosse um artista, recebeu um magnífico funeral - usou o tema muitas vezes, e mais notavelmente em O Rapto de Europa. Outro exemplo é O Rapto
das Sabinas, uma das mais famosas pinturas do mundo. E ainda O Arrebatamento de Psique, de Prou'hon. Essas telas estão no Louvre, que sem dúvida o senhor já visitou
e sabe que é uma galeria de grande reputação. Se tomarmos apenas o tema do Rapto de Danae, ele foi tratado por Ticiano, Correggio e Rembrandt, que, embora não fosse
um italiano antigo, foi contudo um pintor de certa distinção e que pintou Danae como uma mulher deitada, despida e completamente sem roupa, na sua cama.
Houve um silêncio. Sharp pareceu inquieto e, com uma mancha de cor no rosto, olhou para a mesa pedindo apoio. O presidente, após consulta aos demais magistrados,
olhou por cima dos óculos para Stephen.
- Quem é essa Danae a quem se referiu?
- A filha do Rei Acrísio.
- E ela foi vítima de... ha... uma violação?
- Sim.
- Por quem?
Finalmente, Stephen viu a chance de lavrar um tento.
- Por Júpiter... baixando numa chuva de ouro.
Ouviram-se risinhos atrás da galeria, mas Glyn, agora postado na entrada apinhada e observando atentamente, não sorriu. Viu o magistrado enrubescer de desagrado
e que Stephen estava prejudicando o seu caso. Sharp foi rápido em se aproveitar da vantagem.
- Excelências, lembro que essas tolices históricas nada têm com o presente caso. Voltando a ele - virou-se para Stephen - o senhor admite que pintou deliberadamente
essas cenas em particular?
- Deliberadamente? Por acaso imagina que foram parar lá por acidente? - Sr, Desmonde - interpôs severamente o presidente - devo adverti-lo de que está sendo muito
inconveniente.
- Então o sou como personagem, Excelência; porque aparentemente é essa a acusação contra mim.
- Prossiga, Sr. Sharp.
- Excelência, estou tentando obter do acusado uma resposta direta sobre o motivo que o levou a pintar essa cena particular de estupro.
- Responderá, senhor?
- Eu queria acentuar as brutalidades e horrores inerentes a qualquer guerra, e que são contudo encobertos e esquecidos, ou, pior ainda, glorificados por nosso patriotismo.
- Devo entender que o senhor acusa os nossos próprios soldados de tais monstruosidades?
- Por acaso eles são diferentes dos outros soldados? O inimigo é sempre o bárbaro, o açougueiro.
- O senhor menciona o inimigo. Mas o senhor não chegou muito perto dele na guerra, não é?
- Não.
- Simplesmente não teve tutano, certo?
- Para sermos artistas, precisamos ter alguma coragem.
- Coragem para quê?
- Para arrostar o desprezo universal do mundo.
- Isso é relevante, Sr. Sharp? - interveio um dos magistrados. - O Sr. Desmonde não está sendo julgado por covardia.
- Excelência - exclamou Sharp - o registro de guerra do acusado, deveria dizer paz, é muito conhecido e fala por si mesmo. Em atenção a Vossa Excelência, porém,
não insistirei mais com o tribunal. Contudo - para Stephen novamente - vou lhe perguntar o seguinte: Que direito tem o senhor de impor à nossa comunidade, pacata,
e temente a Deus, essa sua atitude pervertida?
- Não é apenas minha. Muitos outros criaram obras que são protestos contra a guerra - Callot e Delacroix. Em literatura, Tolstoi, Vereshchagen. Zola. O mesmo ponto
de vista essencial foi expresso por Goya no seu Desastres de la Guerra.
- Goya, um pintor francês, presumo.
- Espanhol, se posso corrigi-lo.
- Dá no mesmo. O senhor parece dedicado a esses estrangeiros.
- Isso é porque, infelizmente, tem havido muito poucos pintores ingleses.
- Exceto o senhor, naturalmente.
- Acredito que tenha considerável talento. Do contrário, não teria assumido a vida supremamente árdua de artista, com todos os seus desesperos e privações, nem,
por falar nisso, estaria nesta posição, obrigado a ouvir os seus desprezos baratos.
- Baratos? Isso pode lhe custar mais do que pensa. Em vez de tentar fazer um mártir de si mesmo, procure manter-se no assunto. O senhor mencionou a palavra "horrores".
Por que introduziu tais coisas?
- Por quê? - Stephen, cansado e aborrecido, como uma lebre encurralada por uma matilha de cães, estava ficando descuidado. - Eu queria chocar as pessoas, despertar
uma permanente resistência à guerra.
- E o senhor adotou meios muito chocantes. Está surpreso com a reação que encontrou?
- Quando estou trabalhando, esqueço tudo, menos o esforço da criação. Agora, todavia, não estou surpreso. Cada período de renovação estética, cada tentativa, tem
sofrido a malevolência do público. Todas as maiores e mais significativas mudanças na história da arte foram acompanhadas de demonstrações em massa de ridículo e
ignorância. Mas eu não lamento nada do que fiz. E faria tudo novamente.
Sharp sorriu sombriamente.
- Excelências, deixo convosco essa declaração impenitente do acusado. Acho que nada mais preciso acrescentar a ela. - Voltou ao seu lugar entre aplausos, que foram
imediatamente reprimidos. O presidente remexeu nos seus papéis e olhou por cima dos óculos para Stephen, agora de uma maneira longe de simpática.
- Tem mais alguma coisa a dizer? Pode se dirigir ao tribunal, se desejar.
- Há muito que eu poderia dizer. Mas seria inútil. Não direi nada.
Subitamente exausto, com uma terrível dor de cabeça, sentiu que precisava repousar, mas quando fez menção de sentar, o sargento bateu-lhe no ombro, indicando-lhe
que devia ficar de pé.
Após consultar as notas que tinha diante de si, e trocar umas poucas palavras com os outros membros da mesa e o seu oficial, o presidente, num silêncio mortal, proferiu
a sentença.
- Ouvimos - disse ele - com extrema atenção e, tendo em mente as indecorosas interrupções ocorridas, com extraordinária paciência, os argumentos que nos foram apresentados.
Também estudamos a relevante prova pictórica com cuidado incomum. Agora, não podemos considerar como compulsória a razão de que, por serem essas produções magníficas
obras de arte, não possam, sob o espírito da lei, ser consideradas obscenas. Em primeiro lugar, quem determinará se elas são ou não magníficas? Seu criador é um
artista obscuro, inteiramente desconhecido no seu próprio país. Não é nenhum Constable, nenhum Landseer. Não é Sir John Joshua Reynolds. E pelo que concerne ao gosto
médio, o gosto, por exemplo, de um cidadão comum como eu, esses trabalhos não são obras-primas. Em verdade, na sua geral violência de cor e composição, na sua falta
de elegância e refinamento, em minha opinião, estão longe de ser obras-primas. Em segundo lugar, como já me dei ao trabalho de indicar, mesmo que fossem obras-primas,
continuariam a ser obscenas. Porque um quadro, ainda que pintado com a mais consumada habilidade, poderia, se relacionado com um ato lascivo e licencioso, ser uma
ofensa contra a lei. Para cunhar uma frase, seria uma obra-prima de obscenidade.
"Ademais, do princípio ao fim, toda a história da produção e desafiante exposição de tais obras é prejudicial ao acusado. Em vez de gratamente atender aos desejos
dos seus patrocinadores, consultando-os de quando em quando, e de se esforçar por conseguir um resultado que lhes fosse definitivamente aceitável, e ao povo decente
desta cidade, para cujo benefício e edificação essas pinturas estavam primariamente designadas, ele voluntariamente concebeu e levou a efeito uma produção que, admite-o
agora, não o surpreendeu por ter imediatamente causado um público protesto. Em termos mais simples, ele se propôs chocar e revoltar, e o conseguiu.
"Tampouco é válido para a defesa argumentar que o motivo por trás de tudo isso era sério, honesto e sincero. Se uma pessoa é inerentemente decadente e depravada,
ainda poderá, com a melhor intenção do mundo, produzir uma pintura viciada e depravada.
"Finalmente, a atitude do acusado não nos impressionou. Ao invés de manifestar um devido senso de respeito e contrição, foi, por turnos, contumaz, irónico e desafiante.
Temos, posso dizer, a mais profunda simpatia por sua família, em particular por seu pai, que goza - e, a despeito do pesado fardo dos trâmites legais de hoje, continuará
gozando - de uma reputação ilibada e brilhante. Não obstante, a justiça deve ser feita, e, sob qualquer luz que se possa considerar este caso, aceitando quaisquer
argumentos, permanece o fato de que, primeiro delineando e depois exibindo publicamente as partes pudendas, tanto de homens como de mulheres, o acusado cometeu um
atentado ao pudor público. Consequentemente, nós o declaramos, Stephen Sieur Desmonde, culpado da acusação que lhe foi feita. Como essa ofensa é um delito,
temos capacidade para detê-lo em prisão. A despeito da seriedade da ofensa, relutamos em impor a completa penalidade da lei. Em vez de condená-lo à prisão, nós,
por conseguinte, o multamos na quantia de 50 libras. Além disso, pagará as custas do processo. Não é necessário acrescentar que é nosso dever, conforme prescreve
a Lei das Publicações Obscenas de 1857, ordenar que os três painéis aqui exibidos sejam imediatamente destruídos.
Tendo sido proferida a sentença, os magistrados levantaram-se, e entre aplausos tumultuosos, que não podiam ser controlados, a sessão do tribunal foi encerrada.
CAPÍTULO XI
QUANDO DEIXOU O POSTO POLICIAL, Stephen foi diretamente à estação da estrada de feno. Glyn tinha combinado esperar por ele no Javali Azul, mas no seu atual estado
de espírito não queria ver ninguém, nada poderia suprimir o seu insopitado instinto para escapar. Na fúria raivosa e no desespero que enchia a sua alma, seu único
desejo era se perder em algum lugar onde fosse desconhecido e ignorado. Jamais voltaria a Stillwater. Este Sussex, e tudo o que ele continha, tornara-se-lhe subitamente
odioso.
O relógio indicava seis horas quando ele entrou na sala de passagens. Parecia deserta. Então, ao dirigir-se para a bilheteria, sentiu um ligeiro toque no seu braço.
- Stephen.
Tão tenso estavam os seus nervos que ele girou num salto. Era Claire, num costume cinza-escuro, de chapéu também escuro e véu, por trás do qual o seu rosto era pálido
e os olhos incomumente luminosos. Falou às pressas.
- Achei que o encontraria aqui... Eu... eu tinha que vê-lo.
- Sim?
- Stephen... - com a voz não natural, ela lutava por mantê-la calma.
- Você deve precisar de alguma coisa... café e um sanduíche... vamos ao bufê.
- Não, Claire, eu não poderia.
- Então vamos sentar aqui por um momento. - Naquela sua maneira incerta e tensa, indicou um canto da sala de espera nua e suja. - Você deve estar morto de cansado.
Ele hesitou, e então foi com ela para o banco.
- Sim, estou - disse ele.
- Isso não admira. Oh, foi terrível para você.
- Você estava lá? - Ele a olhou com surpresa.
- Sim, estava... do princípio ao fim. Imaginou que eu não fosse lá? Oh, Stephen, foi tudo tão estúpido e cruel... tão bestial e horrivelmente injusto. Eu ansiava
por ser capaz de ajudá-lo.
Ele desviou o olhar.
- Você já não me ajudou muito? - Sua voz era lisa, mas não sem amargura. - Do princípio ao fim... quando comprou os meus quadros.
- Então ele veio e lhe disse... Geoffrey?
- Foi parte da nossa entrevista. Antes de me derrubar. Ele afirmou que você o tinha feito por caridade.
- Não foi isso... eu gosto dos quadros. - Falava apaixonadamente. Eu os queria.
- Não, Claire, vamos deixar de fingir. Você simplesmente me deu uma esmola de 300 libras. Como poderia gostar dos quadros, se admitiu que não os compreendia?
- Mas eu gosto - protestou ela um tanto desnorteada. - Estudei, sempre li muitos livros... procurei me educar em arte. Sei o que você procura, e o quanto tem que
lutar contra a ignorância e o preconceito. Por isso é que hoje sofri tanto por você.
- Sim, eles se divertiram. - Seus ombros se encolheram. - Por mim eu não me importo. Quase desejei que me mandassem para a cadeia. Mas juro por Deus que jamais darei
a alguém a chance de fazer isso comigo outra vez.
Ela respirava agitada, com fôlegos curtos, como se estivesse reunindo toda a sua coragem. Suas mãos enluvadas estavam apertadamente cruzadas, sua figura, curvada
para ele, tensa com o esforço para falar estas trémulas e inesperadas palavras:
- Stephen... leve-me com você.
Ele voltou a cabeça e olhou lentamente para ela. Claire tinha levantado o véu e ele viu que ela estivera chorando, que seus olhos novamente se enchiam de lágrimas.
Ficou abalado com a palidez do seu rosto devastado.
- Não, Claire, você já se comprometeu bastante.
- Que me importa? - Segurou-lhe a mão. - Oh, Stephen... querido Stephen... sou tão infeliz. E nunca devia ter casado com Geoffrey. Nunca o amei. E agora... não posso
continuar.
O ardente abandono que se manifestava em sua voz sobressaltou-o. Conhecendo a sua natural reserva, o inveterado comedimento que, por motivos do seu natural temperamento
e educação, distinguia todas as suas ações, podia avaliar a intensidade que a sacudia. E na sua disposição de feroz amargura,
deixou-se momentaneamente tentar por um impulso de aceitar aquela oferta de si mesma, a fim de vingar-se em Geoffrey, para justificar as péssimas opiniões que tinha
granjeado, colocando-se no ostracismo. Tinha sido magoado, tinha recebido um ferimento quase mortal, por que não devia contra-atacar? Não amava Claire, mas ela era
dócil e doce, e sempre fora uma agradável companheira. Podiam viajar juntos por todo o mundo, ele podia pintar quanto quisesse.
Mas quase antes de nascer essa ideia morreu nele.
- Você tem pena de mim, Claire - falou ele sombriamente. - A piedade é uma emoção perigosa. Tira-lhe o equilíbrio. Mas você a vencerá. Você tem os seus filhos, o
seu lar, tantas coisas que não pode abandonar.
- Mas eu podia, Stephen... - Um soluço abalou-a.
- Além disso - continuou ele, como se não a tivesse ouvido - eu gosto demasiado de você para deixar que arruine a sua vida. Você na verdade não me conhece. Nós nunca
nos daríamos bem juntos. Depois de seis meses comigo, você estaria muitíssimo desgraçada.
- Eu seria feliz... só por estar a seu lado.
- Não, Claire, isso é impossível.
Mas ela estava comovida além de toda cautela, todo o amor-próprio.
- Tudo é possível quando a gente ama.
Ele evitou o seu olhar.
- Não sei o que você está dizendo. Nenhum amor poderia sobreviver à espécie de vida que teria de levar comigo... pulando de cá para lá em acomodações pobreS, passando
dias inteiros sozinha enquanto me atiro ao trabalho, aguentando os amigos mal-afamados, passando privações que jamais sonhou.
- Tenho meios para mudar isso tudo, para torná-lo feliz e satisfeito.
Ele a olhou diretamente nos olhos, com uma determinação que ela não podia deixar de entender.
- Isso seria certamente a morte da minha arte. E se você a matasse, Claire, eu só poderia odiá-la.
Houve um silêncio vibrante. Todo o grácil aprumo deixou a sua figura, seu pescoço de cisne dobrou-se, e a face, sombreada por longos cílios claros, estava desolada.
Juntos ali, no banco da sala de espera nua, ela parecia um pássaro ferido, tombado e insignificante. Dali a pouco ela tirou um quadradinho de cambraia da bolsa e
enxugou os olhos. Ele quebrou o longo silêncio, batendo-lhe na manga.
- Um dia você vai me agradecer.
- Talvez - disse ela numa voz distante e estranha.
Os sinos da catedral começaram a tocar as vésperas, em badaladas suaves e límpidas. Suspirando, como se acordasse, ela repôs o lencinho na bolsa e, levantando, movendo-se
como uma mulher num sonho, com um olhar diferente,
não mais cheia de alvoroçada esperança, mas envergonhada e abatida, saiu da sala de espera.
Depois que ela se retirou, Stephen ficou um longo tempo sentado onde estava, esmagado por uma imensa tristeza. Então, o ruído de um trem interrompeu a sua dolorosa
meditação; ele levantou-se e, com um rápido olhar pela janela, apressou-se para a plataforma oposta.
CAPÍTULO XII
QUANDO ELE VINHA DA SALA DE ESPERA, o trem estava partindo. Sem saber do seu destino, pulou no estribo e entrou para um compartimento vazio. O encontro com Claire
tinha-lhe pesado mais do que esperava, e agora, sozinho, onda após onda de miséria vinha quebrar-se nele. A sua cabeça girava, e ele apertou com angústia os olhos.
Tinha chegado ao limite máximo da resistência, ao ponto do qual, certamente, não havia retorno. Seu espírito estava morto dentro dele. Jamais conseguiria, encontraria
alguma coisa além de desconsideração, ou da mesma e brutal má interpretação que o reduzira àquele extremo? Arriscou um olhar aturdido e fascinado pela janela. Naquele
trecho, o terrapleno era alto, através de uma série de bueiros estreitos, com leito de cascalho a uns bons 20 metros, lá embaixo. Mas, rapidamente, com um estremeção,
ele desviou o olhar.
Que fazer então? Sair da Inglaterra - procurar imunidade numa terra com mais sol e menos preconceito? Não. Não podia. Enjoado das suas jornadas no continente, sentia-se
fisicamente incapaz de enfrentar os trambolhões e complicações de uma nova aventura na Europa. A tensão daquelas últimas semanas, rebentada como um colar partido,
deixara-o com uma estranha lassidão. As palmas das mãos estavam úmidas de suor, e quando respirava sentia uma pontada num lado. Afundado no seu canto, estudava uma
imagem pálida e desconhecida no espelho manchado, fixo entre anúncios de laxativos e cerveja, no lado oposto do compartimento. Não estou bem, pensou ele, com uma
estocada de realidade. Se ao menos pudesse encontrar um quarto onde pudesse deitar-se e descansar. Mas onde? Por coisa nenhuma abusaria mais da amizade de Glyn.
Richard estaria à sua espera, o estúdio um admirável refúgio. Mas ele não podia aceitá-lo. Devia, naquela conjuntura, estar escondido e sozinho. Era como uma criança,
doente pela escuridão do útero.
À medida que o trem se arrastava nos trilhos com muitas paradas e partidas com um solavanco, ele viu, pelas estações que passavam, que era um trem para Londres -
um parador. E durante a viagem interminável, que parecia simbolizar exatamente a sua própria incerteza, lutou em crescente confusão mental, com o problema do seu
futuro imediato. O cérebro não funcionava, ele não podia achar nenhuma solução; então, ao chegarem aos subúrbios e a Chapham, lembrou-se do seu encontro com Jenny
Baines. Ela não lhe dissera que tinha um quarto para alugar? Sim, tinha certeza. Se ainda estivesse disponível, o que seria mais apropriado para uma acomodação temporária?
Ninguém sonharia em procurá-lo lá. Sempre gostara do distrito do rio, e agora, no seu recuo de Stillwater, o seu encanto era intensificado.
O seu rosto caído refez-se um tanto, e quando o trem, com prolongado assobio de vapor, finalmente parou com um solavanco na Estação Victoria, ele desceu para a plataforma
e tomou o ônibus de número 25 na parada fora da estação. Uma chuva fina pairava no ar quando o ônibus arrancou e tocou para Whitewall e o Strand. O tráfego àquela
hora era pesado, as ruas estavam oleosas, e a escuridão tinha caído, quando, quase meia hora depois, o ônibus se inclinou e derrapou em Stepney. Olhando pela janela
molhada para as ruas estreitas, onde se alinhavam carrinhos de entrega com seus lampiões, formigando de uma humanidade obscura, Stephen começou a sentir uma apaziguadora
perda da sua identidade. Aqui, pelo menos, não seria reconhecido, ofendido e aviltado. Erguendo-se, desceu e misturou-se imediatamente com a multidão, dirigindo-se,
num passo inexplicavelmente arrastado, para o nº 17 da Cable Street, lembrava-se, e dali a pouco estava nos degraus da porta da estreita casa de tijolos, uma da
longa fila de moradias de operários que ocupavam uma grande extensão da rua.
Com súbita agitação, Stephen tinha erguido a mão para a aldraba brilhantemente polida, sentindo, com o aprofundamento da sua exaustão, que mal sabia para onde se
voltar. Teriam ouvido a sua batida? Ia tentar novamente, quando a porta se abriu e, emoldurada contra a luz amarela do gás, Jenny estava diante dele.
- Boa noite. - Como era difícil fazer que suas palavras soassem com naturalidade. - Será que a senhora tem um quarto vago?
Ela tinha fitado a sua figura sombria com a dubiedade de uma dona-de-casa sujeita aos agravos e importunações de mendigos, vagabundos, clandestinos e aqueles orientais
de roupas compridas que vinham diretamente das docas com tapetes para vender, mas soltou uma exclamação, surpreendida, talvez, mas cheia de calor.
- Sr. Desmonde! Ora, vejam só! Entre, senhor.
Fechou a porta atrás dele e olhou-o no corredor aquecido, brilhante no seu papel de parede envernizado, no qual predominava o amarelo, tornado
menor por um cabide para chapéus de formidável estrutura. Através da pouca luz, ele notou as veias avermelhadas nas suas faces e a verruga acastanhada que vira no
seu malar havia nove anos.
- Que coisa esquisita. O senhor não vai acreditar. - Sorrindo, ela sacudiu a cabeça. - Mas desde que tivemos a nossa conversinha na casa de chá, eu sentia nos ossos,
com todo o respeito, que o senhor queria vir pintar o Stepney outra vez.
- Então tem um quarto?
- Tenho sim senhor. O velho Sr. Tapley, meu hóspede regular, aquele de quem eu lhe falei, ocupa o que fica na frente da escada. Mas o meu lá de cima - e eu só alugo
dois - está vago. Quer subir e dar uma olhada?
- Sim, por favor.
Que alívio, pensou ele, ao segui-la pela escada de madeira quase perpendicular, ela não sabia nada a respeito do que ele tinha passado, aceitando o seu súbito aparecimento,
sem bagagem, na noite molhada, com a calma prosaica que sempre a distinguira.
O quarto de dormir e de estar dos fundos, embora com as dimensões de um caixote, estava limpo e decentemente habitável, com um guarda-roupa de carvalho esfumado,
lavatório, cadeira de bambu com almofada e dois tapetes feitos a mão sobre o linóleo.
- Não tem muito espaço - observou ela com uma inspeção prática de proprietária. - Mas é aconchegante - com o fogo de gás - e limpo. Eu nunca pude suportar a sujeira,
Sr. Desmonde.
- Está muito bem. Ficarei com ele, se permitir.
- O senhor vai querer refeições? Dou ao Sr. Tapley o desjejum e o jantar. Ao meio-dia ele está sempre fora, e acho que o senhor também. O quarto custa 10 xelins
sem e uma libra com.
- Com refeições... creio.
- Muito bem, senhor. Agora, se me desculpa, vou dar um pulo ao Lipton e descobrir alguma coisa gostosa para o seu jantar. Gostaria de uma linda costeleta de vitela
com pão?
- Sim... qualquer coisa, muito obrigado. - Abalado por um frio súbito e um aumento na pontada do lado, Stephen sentiu-se de repente tão estranho que teve de se apoiar
na parede. - Eu gostaria de me lavar agora.
Ela fez um gesto de compreensão, e ajuntou com gravidade discreta, ao se digirir para a porta:
- O banheiro fica no fundo do patamar. Tem um bom chuveiro. Para usar, deposite um pêni na fenda junto à fechadura.
Quando ela saiu, ele sentou-se pesadamente na poltrona, fazendo um esforço para reunir seus pensamentos desarticulados. Que sorte a sua ter achado aquele lugarzinho
decente! E Jenny era tão bondosa. Num momento como
este, ela seria a última pessoa a mexer-lhe com os nervos. Era aborrecido sentir-se tão indisposto, mas, naturalmente, após aquelas últimas semanas, não podia esperar
que estivesse novamente em forma para lutar. E, pensando nisso, não tinha comido nada desde o desjejum - estaria bem depois do jantar. Mas aquele aperto no peito
- era um tanto incómodo - sabia que era a velha bronquite, que sempre parecia surgir inoportunamente quando ele menos esperava. Talvez com um pouco mais de ar pudesse
respirar melhor. Levantou-se e abriu a janela. A guilhotina, no entanto, estava emperrada, meio empenada, e quando ele forcejou para levantá-la, um calor salgado,
fluido e familiar, lhe veio à boca. Tapou a boca com um lenço, e, sabendo o que esperar, olhou-o com revulsão. Oh, meu Deus, pensou, outra vez aquilo não!
Antes que o fluxo borbulhante pudesse escapar das suas mandíbulas cerradas, procurou o banheiro, curvou-se apressadamente sobre a pia e abriu a torneira de água
fria. Pelo menos, era uma satisfação não ter sujado tudo. Mas a hemorragia, espumando escarlate na louça azulada, embora menor do que na última vez na Espanha, era
mais severa do que a que precedera a sua doença na Garonde. A lembrança daquilo, a febre alta subsequente à demorada convalescença, fez com que ardesse de uma raiva
débil. Não podia, não devia adoecer aqui. Que retribuição pela despretensiosa e confiante hospitalidade que tinha recebido! Comprimindo a toalha molhada que colocara
na nuca, desejou desesperadamente que aquele castigo inoportunuo passasse.
Finalmente o fluxo diminuiu e cessou. Stephen endireitou-se e tomou um pequeno e prudente fôlego; suspirou de alívio por nada ter acontecido, limpou a pia e enxugou
a boca dormente com a toalha. Por algum motivo, os seus movimentos pareciam incrivelmente vagarosos, como se efetuados por outra pessoa, parecendo vir de muito longe.
O rosto riscado, terroso, que via no espelho, tinha, notou com fraca exasperação, aquela cor esverdeada que os primitivos pintores espanhóis tanto gostavam de dar
aos seus cadáveres. Sentia a cabeça vazia, leve como o ar; os pés, pesados como chumbo. Sua mente, contudo, estava clara, dominada pela necessidade imperativa de
voltar ao quarto. Sim, se ao menos pudesse alcançar o seu quarto, fechar a porta e ir para a cama - podia recusar o jantar sob qualquer pretexto - então ninguém
precisaria saber do seu repugnante infortúnio. De manhã estaria completamente restabelecido. A sensação da sua própria fraqueza, ao se arrastar ao longo do corredor,
era tão ridícula que lhe trouxe um débil esgar aos lábios brancos. Parecia que ia conseguir. Mas quando estava quase lá, espichando a mão para o trinco da porta,
tudo girou, redemoinhou num arco estonteante, e finalmente se retirou, deixando um buraco negro no qual ele se precipitou, silenciosamente, como se deslizasse num
poço de luz suave e terna.
Quando voltou a si, depois do que pareciam ter sido séculos de oblívio, percebeu que estava na cama, despido, com um jarro de água quente aos pés.
E gradualmente, enquanto os seus olhos retomavam a capacidade de focalizar, configuraram-se diante dele as formas de Jenny Baines e de um velho de suspensórios e
camisa listrada, com o colarinho postiço.
- Está voltando a si. - A observação tradicional, pronunciada a meia voz, causou em Stephen uma enjoativa sensação de acanhamento. Meu Deus, pensou ele, que papel
de tolo andei fazendo, que insuportável castigo fui trazer para esta pobre mulher, e o seu olhar se voltou para Jenny, à guisa de desculpa.
- Estou um pouco tonto... Acho que desmaiei.
- Desmaiou mesmo, senhor. - O tremor na sua voz demonstrava alívio pela recuperação dele. - Se eu não tivesse o Sr. Tapley ao meu lado, não sei como poderia ter
colocado o senhor na cama.
- Lamento causar semelhante incómodo - murmurou ele. - Amanhã estarei de pé.
- Isso veremos, senhor - disse Jenny com uma inclinação de advertência na cabeça. - Vê-se bem que o senhor teve um sério ataque. Estou pensando se não deveria ir
ao médico.
- Não, não. Logo estarei bem.
- Que acha, Capitão Tapley?
- Acho que podemos tratar dele. A cor está voltando. Já teve esses ataques antes, meu rapaz?
- Não... realmente não - mentiu Stephen. - Estive trabalhando demais ultimamente, e isso é tudo.
- Então um pouco de repouso não lhe fará mal. E um pouco de comida no estômago.
- Sim, de fato - disse Jenny afoitamente. - Só não lhe ofereço a costeleta agora... foi sorte não a tê-la trazido. Mas pode comer o que lhe der na telha.
- Eu poderia beber um pouco de leite, por favor? Frio.
- Pode, como não? E vou fazer um caldo de carne para o senhor agora mesmo.
Com isso, ambos deixaram o quarto. Mas em três minutos Jenny estava de volta com uma bandeja de charão, sobre a qual havia um copo e um jarro floreado coberto por
um guardanapo bordado de contas. Colocando a bandeja na cama, serviu-lhe um copo de leite, observando-o beber demoradamente em pequenos goles. Depois, saiu com o
copo e voltou com ele limpo e enxuto, colocando-o na bandeja ao lado dele.
- Deixo a luz acesa?
- Não. Apague-a, por obséquio. - A cabeça começava a latejar, mas o leite frio fizera-o sentir-se menos morto. Acrescentou, insinceramente: Acho que vou dormir um
pouco.
- Tem certeza de que está bem?
- Perfeitamente.
- Boa noite, meu senhor.
- Boa noite, Jenny.
A luz estava apagada, o quarto no escuro, mas ele ainda sentia a presença dela. Então, em voz baixa, ela disse, apressada e respeitosamente, prejudicando um pouco
a sua gramática na determinação de dizer o que pensava:
- Não se preocupe, Sr. Desmonde. Não pense nem um minuto nessas coisas. O senhor foi muito bom comigo, na Clinker Street. Eu nunca esqueci. E até me sinto "mais
melhor" e contente com a oportunidade de retribuir o bem que me fez.
A porta se fechou atrás dela. Lá ficou ele estendido, de costas, naquele quartinho estranho, com a respiração fraca e ansiosa, e embora enrijasse todo o seu corpo
devastado num frenético esforço para abafar os senti-
mentos, duas magras lágrimas lhe escaparam das pálpebras fechadas e rolaram lentamente por suas faces.
CAPÍTULO XIII
A DESPEITO DE SUA ANSIEDADE por se levantar e andar, sob a pressão da sua própria fraqueza e da aflição que lhe pesava, passou-se quase uma semana antes que Stephen
pudesse deixar o quarto. Através da apatia que o dominava, tornou a abençoar o acaso que o trouxera àquela obscura casa da Dockland. Quantas vezes no passado tinha
conhecido a servidão das acomodações miseráveis - a sujeira e o desconforto de apartamentos mal arrumados, a falta de intimidade, a comida abominável, a travessa
graxenta deixada diante da porta com o desjejum, e toda a miséria e sovinice das donas mercenárias, para as quais ele existia apenas para ser explorado e maltratado.
Aqui, o lugar brilhava de asseio. A própria Jenny tinha sempre o rosto sereno e os membros ativos de uma pessoa inteiramente inatingida por humores, depressões e
o medonho estado do mundo, e embora, por natureza, ferozmente independente, parecia perpetuamente contente; agora, ignorando os seus protestos embaraçados, estava
disposta a fazer tudo que pudesse em seu favor.
Todas as tardes, Joe Tapley vinha visitá-lo e, até onde sua surdez e disposição taciturna permitiam, entretinha-o. O velho Joe tinha trabalhado a
maior parte da sua existência no Tamisa, durante muitos anos como proprietário parcial de uma barcaça de carvão, depois como patrão de uma chata, fazendo uma viagem
por semana a Hampton, no Cut. Agora estava aposentado, investira as suas economias num pequeno molhe que oferecia para atracações, mantendo um curioso barco para
alugar, em geral sempre em contato com a beira da água. O rio era, em verdade, o núcleo da sua existência, e todas as manhãs, depois do café, saía para o seu molhe,
onde, abrigado pela estufa na barraca de madeira na sua extremidade absorvia lentamente, palavra por palavra, as colunas de chegadas e partidas do Greenwich Meridian,
observando, a cada momento, por cima dos óculos de aros metálicos, a passagem de uma embarcação, nacional ou estrangeira, e respondendo, mais por instinto que por
audição, à saudação de um arrais amigo.
No primeiro dia de Stephen no andar térreo - experimentara as pernas num curto e um tanto incerto passeio ao longo da Cable Street - o capitão tinha voltado das
suas distrações marítimas. Amigavelmente, como a porta estava aberta e o inquilino seu colega subira lentamente as escadas, visitou-o no seu quarto, onde Jenny,
sentada junto à janela, cerzia umas meias.
- Bem - disse Joe - como é que se sentiu lá fora?
- Muito bem, obrigado. Um pouco sem firmeza.
- O senhor passou por uma boa. Sente-se.
Stephen sentou-se, olhando de um para outro, e sentindo um ar incomum, inquieto ar de cumplicidade.
E na verdade, após uma pausa prolongada, Jenny, ainda obviamente cerzindo, quebrou o silêncio.
- Tenho que ir ver minha cunhada por umas duas semanas, Sr. Desmonde - Florrie Baines, sabe, meu pobre Alf era irmão dela. Sempre vou nesta época do ano, quando
ela está ajeitando a sua banca. E o Sr. Tapley acha que o senhor não deve ficar aqui. - Apressou-se em dizer, à guisa de explicação: - Ele sempre cuida de si mesmo
quando estou fora. Mas com o senhor é diferente... estando doente, como... se arranjaria?
- Compreendo - disse Stephen, com um súbito cansaço, e agora via o que tinha sido combinado. Não podia culpá-los por quererem livrar-se dele.
- Então - continuou Jenny de um só fôlego, antes que ele pudesse falar - o Sr. Tapley acha que o senhor deve vir comigo. Não há lugar como Margate para levantar
uma pessoa. O ar do mar é esplêndido.
- Dr. Margate - confirmou o capitão com um aceno sentencioso. Ele o põe novo em folha num abrir e fechar de olhos.
Um súbito calor substituiu o frio em torno do coração de Stephen. Mas ele ainda estava oprimido e melancólico, esgotado por horas de amargas cogitações - e sem qualquer
disposição para tal plano. Sacudiu a cabeça.
- Nem posso pensar em incomodá-las. Já abusei demais da sua boudade.
- Incómodo nenhum, meu senhor. Florrie vai ficar contente em hospedá-lo na casa dela. O senhor pode pagar a comida... assim como paga a mim.
No seu estado débil e dócil, não havia como resistir à persuasão de ambos, tão bem-intencionados, tão dispostos a vê-lo novamente com saúde. E, de fato, a sua breve
e errática sortida daquela tarde ao agreste Stepney tinha de certo modo rude limitado a sua esperança de começar o trabalho em seguida - se é que poderia trabalhar
de novo.
Nessa tarde, uma carta foi escrita a Florrie Baines, e na segunda-feira seguinte, após o lanche, Stephen e a sua senhoria tomaram um trem paraMargate em Charring
Cross. Jenny, que não tinha papas na língua, estava com uma alegria de feriado e incomumente tagarela, ao rodarem através de Dartford e Chatham, desde os pântanos
salgados do estuário às planuras de Kent. Suas bochechas gretadas tinham um aspecto mais escovado do que de costume, brilhavam, e seus olhos exibiam um vivo fulgor.
Vestia um casaco de veludo verde-escuro, com a felpa um tanto surrada nas bainhas, mas decente, com uma gola de capa guarnecida de trancelins. Nos pés, usava botinhas
pretas, abotoadas, limpas, e as mãos pequenas e engrossadas pelo trabalho estavam metidas em luvas de algodão branco recém-lavadas. O chapéu, contudo, era uma tragédia
de cetim brilhante com uma incrível plumagem, pousado no alto da cabeça como um pássaro fabuloso no seu ninho. Stephen, aliás, não podia afastar os olhos dele, e
tão fascinado estava, que Jenny sorriu, olhando-o meio secretamente.
- Estou vendo que gosta do meu chapéu. Foi um grande negócio na liquidação de janeiro. Vermelho sempre foi a minha cor.
- É um chapéu realmente notável, Jenny. Mas é melhor tirá-lo. Uma fagulha entrando pela janela pode acabar com ele.
Ela o atendeu obedientemente, mostrando os cabelos recém-lavados com a sua franjinha encrespada, e era ela própria outra vez, viva e natural, uma mulherzinha um
tanto rechonchuda, numa blusa branca de algodão, contudo um pouco diferente, pensou ele, da jovem aprumada que arrumava o seu quarto e costurava os seus botões na
sede. Furtivamente, observava-a exibindo em perfil o lábio superior curto e o nariz arrebitado, segurando no colo por delicadeza, mas sem tê-la lido, uma revista
feminina que ele comprara para ela na banca, olhando com excitado interesse a sucessão de moinhos de vento, hospedarias, celeiros de tijolos claros que passavam.
- Olhe, Sr. Desmonde - exclamou ela - essas filas e filas de varas. É para o lúpulo.
- Gosta de lúpulo, Jenny?
- Não recuso um copo de cerveja amarga, reconheço - respondeu ela seriamente, lançando-lhe então um olhar e rindo. - Mas nada de mais forte.
No seu alegre sotaque cockney, ela alimentava a conversação. Dali a pouco levantou-se e, apanhando a sua bolsa trançada no bagageiro, desembrulhou, sem ligar a mínima
atenção para os outros dois ocupantes do compartimento, um pacote de sanduíches de língua e presunto.
- Agora vamos, meu senhor. Não tem nada que ser acanhado - insistiu ela. - Prometi ao capitão que o faria comer. Florrie o obrigará, na certa. Se uma coisa se pode
dizer dela, é que tem uma boa mesa. Espero que goste de peixe.
- Gosto, Jenny - respondeu ele, mastigando o sanduíche. - Quanto a esse assunto, não tenho ansiedade. Mas o que de certa forma me preocupa é se a peixeira, quero
dizer, Florrie, vai gostar de mim.
- Florrie é uma boa pessoa. Tem os parafusos certos na cabeça. Independente, também. Cuida de tudo com um menino - Ernie Wood, seu sobrinho. Teve certos dissabores
no passado. Sofre muito com o frio. Pés e tudo. Vão se dar bem.
- Espero que sim.
- Claro, mas o senhor não deve esperar muito... é uma casa pequena.
- Espero que eu não atrapalhe as acomodações.
- Oh, não, meu senhor - respondeu ela inocentemente. - Eu durmo, com Florrie, e o senhor fica com a minha cama.
Ao olhar para ele, a sua observação pareceu-lhe estranha - um súbito e vivo enrubescimento acendeu-lhe o rosto. Voltou a cabeça e olhou para a janela, num silêncio
constrangido.
Mas já estavam quase chegando. Entraram em Margate às três da tarde, e assim que Stephen pisou na plataforma aberta, sentiu, como um choque elétrico, a picada e
envolvimento daquele ar, que, misturando-se com os eflúvios do rio e do oceano, mariscos, algas maduras e lama sadia, fornece aos humildes visitantes do East End
de Londres um ar purificado, plebeu, sem dúvida, mas sem rival em toda a Inglaterra. Conforme Jenny esperava, Ernie, um menino de 15 anos, pequeno mas esperto, estava
na estação para recebê-los, com um carrinho puxado por um pónei. A bagagem foi acomodada entre duas caixas vazias de hadoque, e os três ocuparam a boleia, saindo
para a velha cidade. -A casa de Florrie ficava no porto, num conjunto arruinado de antigos e meio desmantelados edifícios que cheiravam a alcatrão e salmoura, e
davam para uma confusa vista de mastros, aparelhos, cordames, barris, caixotes e o lodo da maré, com a comprida extensão do molhe e o cinza revolto do Mar do Norte
mais além. A loja de número 49, baixa e inclinada, era pintada de azul brilhante, com um balcão de mármore atrás da janela levantada e uma tabuleta dourada onde
se lia: FLORENCE BAINES: PEIXE NATURAL: ESPECIALIDADE EM CAMARÕES E MARISCOS. Em cima, aonde se chegava por uma escada de pedra, ficava a parte residencial do estabelecimento.
Os visitantes foram introduzidos por Ernie na sala da frente, confortavelmente mobiliada com um conjunto formado de moquete, e já preparada para um chá de cerimónia,
mas sem nenhum ocupante vivo afora uma bela gata amarga. Ernie, contudo, imediatamente se precipitou para a loja a fim de substituir a tia, que logo apareceu, uma
mulher de 40 anos, magra e angulosa, desenrolando as mangas da sua jaqueta de malha sobre os braços nus e frios. Depois de beijar Jenny afeiçoadamente no rosto,
examinou Stephen por cima do seu nariz proeminente e estendeu-lhe a mão mole e fria como um filé de linguado.
- Espero que esteja pronto para o chá. Sente-se, que eu trato de você.
Movendo-se ativamente, trouxe, dos fundos, uma larga bandeja com torradas, bule, e um prato chiante de peixe frito; então, sentando-se à mesa, ereta, começou a servir
os seus hóspedes com uma compostura que não deixava qualquer dúvida quanto ao fato de que estava no seu juízo perfeito.
- E como vão as coisas, Florrie? - perguntou Jenny, provando o chá com um suspiro de apreciação.
- Não tenho queixa. A barraca é que é uma preocupação.
- Sempre é, Florrie.
- Sempre.
- O velho e tonto Conselho da Cidade, suponho.
- E as suas licenças. Acham que podem fazer o que querem com uma mulher.
- Mas você vai acertar tudo em duas semanas.
- Às vezes acho que não.
Florrie abanou a cabeça, desalentada por seus conflitos com a autoridade, deplorando a injusta dominação do homem, parecendo, em verdade, meditar sobre todos os
infortúnios que o seu sexo sofria e aguentava desde a queda de Eva.
Jenny sorriu para Stephen, querendo trazê-lo para a conversação.
- O negócio é ótimo no verão. E Florrie aluga uma barraca junto ao passeio público. Seus camarões e mariscos são famosos.
- Eu pensava que também era famosa por meus linguados - disse Florrie, parecendo magoada pela omissão.
- Naturalmente, minha querida.
- Isto aqui é delicioso - disse Stephen, polidamente.
- É linguado - informou Florrie sombriamente. - Sirva-se à vontade. Há muito mais no mar.
A refeição foi farta e suculenta, o ambiente confortável, o fogo de carvão estalava alegremente, no entanto parecia a Stephen que ele era, tinha sido desde o começo,
objeto de uma aguda suspeita por parte de sua hospedeira. Isto lhe causava uma ligeira preocupação; contudo, mais por Jenny do que
por ele próprio, sentia-se disposto a dissipá-la. A simples delicadeza, adivinhava, não serviria, aliás muito pelo contrário. Mas ele tinha notado a afeição de Florrie
pela gata amarela, que, sentada no braço da sua cadeira, era por ela alimentada de quando em quando com pedaços do seu prato; assim, apanhando o seu bloco e um creiom
no bolso, começou, enquanto as duas mulheres continuavam as suas breves mas íntimas observações, a desenhar o fulvo animal.
Dez minutos e a coisa estava feita. Retirou a folha e entregou-a em silêncio a Florrie.
- Vejam só... francamente! - Surpresa, indecisão, medo de ser envolvida, dúvida, incredulidade, todos esses matizes de sentimentos se refletiam nas suas feições
agudas, até que ela. finalmente cedeu à sua satisfação. - É Ginger sem tirar nem pôr. Então o senhor, afinal de contas, é um artista?
- Se lhe agrada, espero que o aceite.
- O senhor nunca ganhará a vida se der as coisas de mão beijada.
Embora reprovando-o com ligeira acrimônia, estava evidentemente deliciada. Na verdade, após o chá, quando ele disse que gostaria de sair para um breve passeio sozinho,
ela lhe chamou a atenção:
- Tenha cuidado com o vento. Margate dá diretamente para o Pólo Norte.
Isso era um fato geográfico preciso, mas, ao contrário de Florrie, Stephen apreciava o frio - sempre o apreciara. E agora, no passeio público à beira-mar, que, como
a temporada ainda não tinha começado, estava deserto de forasteiros, sentia, através da lassidão da convalescença, as fontes do vigor se moverem dentro dele. O ar
tónico, picante como champanhe gelado, enchia os seus pulmões sem esforço, trazia-lhe um ligeiro sangue às faces, reforçava-o e estimulava-o. No seu primeiro bruxuleio
de otimismo desde o julgamento, resolveu não começar nenhum trabalho nas próximas duas semanas - não fazia sequer esboços, nem tomaria nota de cores, como pretendera,
antes se concentraria em limpar de uma vez por todas os seus brônquios inflamados que tanto o tinham atormentado, em certos intervalos, durante os últimos anos.
Na tarde que escurecia, sozinho naquele cinza universal do céu e da rebentação, com o vento zumbindo e suspirando nos seus ouvidos como uma grande concha do mar,
a areia solta remoinhando e torvelinhando em volta dele, o pulso mais rápido, ergueu a cabeça e pensou, entrecortadamente: "Talvez... eu ainda prove que afinal de
contas... não estou derrotado.
CAPÍTULO XIV
NOS DIAS QUE SE SEGUIRAM, a boa-disposição de Stephen aumentou ainda mais. Como estava feliz entre aquelas pessoas simples que os membros da sua própria classe teriam
olhado como "plebe". Ele, ao contrário, estava à vontade com o seu convívio, sentia-se na verdade uma delas. A vida marítima, salgada, em torno do porto, as idas
e vindas das Sumacas, a descarga do pescado - tudo o interessava, distraía o seu espírito da amargura da reflexão. De manhã cedo, acompanhava Florrie ao mercado
do peixe, notando o vivo sucesso com que ela fazia os seus lances, simplesmente apanhando o olhar dos leiloeiros, cuja voz roufenha estava em perpétua luta com o
chiar dos guinchos. Aumentou a extensão dos seus passeios pelos rochedos, dormia com a janela aberta à brisa. O melhor de tudo eram os banhos. Embora, naquela quadra
prematura do ano, a água ainda sofresse as influências polares a que Florrie se havia contundentemente referido, Stephen não se intimidou. Todas as tardes saía do
molhe, juntando-se aos rijos nativos que formavam Uma espécie de Clube do Ano Inteiro e que, informou-o um associado amigo, iam nadar até quando a neve cobria a
praia. Foi o tónico enérgico dessas imersões salgadas que, mais do que qualquer outra coisa, acelerou a recuperação de Stephen, devolveu-lhe não somente a vontade
de pintar, mas com maior glória, o emergente conhecimento e convicção do poder de criar.
Passava a maior parte do tempo só - Florrie, quando não estava ocupada nas andanças para obter a concessão da Corporação, estava supervisionando o erguimento da
sua barraca; Jenny tinha as mãos cheias no balcão, e Ernie, todas as tardes, fazia as suas "visitas" com o carrinho. Mas na sexta-feira foi proposta uma excursão,
en famille.
- A senhora pode largar o trabalho? - perguntou ele a Florrie.
- Trabalho sem diversão deixa o homem sem razão: - respondeu ela
enigmaticamente, e a seguir, com pena da sua ignorância:
- Fechamos meio dia na sexta-feira. Para ir apanhar os pernudos.
- Apanhar os pernudos?
- O senhor já me ouviu na primeira Vez. Não está sempre me azucrinando com esses camarões arregalados? Pois agora eu vou lhe mostrar onde, quando e como apanhá-los.
E, para seu governo, vou ferver uma chaleira de
água e fazer chá. E se quiser morrer gelado, pode tomar um dos seus banhos do Pólo Norte. Está de acordo, Michelangelo?
- Maravilhoso, Florrie - concordou ele alegremente.
Florrie, pelo tom da voz dele, quase sorriu em retorno. De maneira sempre cautelosa, tinha abrandado ligeiramente com ele. Não podia esquecer o desenho de Ginger,
e embora, estudadamente, não fizesse qualquer referência a ele, tinha-o levado particularmente a W. D. Smith para ser posto num passe partout e emoldurado. Além
disso, o repetido oferecimento de Stephen para trabalhar no balcão, ainda que firmemente recusado, inclinou-a a considerar que ele não era um "presunçoso" - uma
consideração reforçada quando, uma tarde, encontrou-o de mangas arregaçadas lavando os pratos do jantar.
Quarta-feira chegou, nublada mas seca. Pontualmente às duas horas foram colocados os postigos da loja. e o grupo partiu no carrinho, saindo da cidade e tomando a
estrada da costa leste para Cliftonville. Depois de oito quilómetros, Ernie afastou-se da estrada principal para uma trilha que serpeou entre as cercas de pilriteiros
brotados e terminou num pequeno caminho relvado, passando por uma entrada de vimeiros para um campo de bardanas e grama brava. Ali, o pónei foi desarreado e solto
para pastar livremente, enquanto Florrie, com um ar de guia turístico, mostrou o caminho para baixo através das dunas cobertas de moitas até uma baía isolada, protegida
por promontórios rochosos e aberta somente para o mar.
- Que lugar bonito! - exclamou Stephen.
- A maré vai subir agora mesmo - observou o prático Ernie. - É aí que você os apanha.
- Quer dar um mergulho comigo, rapaz?
- Tenho que arranjar varas e desencavar os mariscos - desculpou-se Ernie, afastando-se rapidamente.
- Vamos apostar corrida? - disse Jenny, e, diante do olhar surpreso de Stephen, desatou a rir. - Saia o senhor na frente!
Despiram-se atrás de dois rochedos um tanto separados. A despeito das supostas complexidades da roupa feminina, ela chegou à água antes dele e furou a rebentação.
- Onde aprendeu a nadar? - perguntou Stephen, que se esforçara para alcançá-la.
- No molhe de Joe Tapley. Quando crianças, ficávamos ao largo dele todo o verão.
Voltou se, boiando de costas com os olhos fechados. Redondinha e moça, parecia não ter mudado com aqueles anos passados desde que ele a vira pela primeira vez. O
seu frescor e uma atração natural fizeram-no admirar-se de ela não ter encontrado outro marido. Uma súbita curiosidade venceu a sua natural reserva.
- Jenny... por que você não tornou a se casar?
Ela sentou-se, espadanando a água e soltando um esguicho pela boca. Olhou para ele e abanou a cabeça.
- Nunca tive oportunidade, acho eu. Bem, tive... admito. Alguns sujeitos andaram me cercando. Mas eu nem podia pensar em escolher um deles. - Sorriu subitamente.
- O senhor sabe como é, Sr. Desmonde. Gato escaldado até de água fria tem medo.
Antes que ele pudesse falar, ela já corria para a costa.
Depois de vestirem as roupas, menos os sapatos e meias, caminharam descalços para o lado abrigado da enseada, onde Florrie e Ernie esperavam com as redes de camarão
presas a uma vara comprida com uma empunhadura de madeira.
- Antes tarde do que nunca - disse Florrie, recebendo-os sarcasticamente. - Apanhe a sua rede com Ernie. E se estiverem mesmo prontos, vamos começar.
Apoiando a travessa de madeira no fundo irregular, ela entrou primeiro na água rasa, empurrando a rede diante de si, levantando uma nuvem escura de areia. Ernie
e Jenny colocaram-se em linha, andando vagarosamente atrás, e um pouco mais adiante ia Stephen. Na água límpida, logo à frente, podia discernir os contornos dos
camarões, formas gelatinosas quase invisíveis, com antenas delicadas. Inteiramente translúcidos, transmitindo apenas a cor mosqueada da areia, cada um deles tinha
pequeninos olhos independentes que davam substância ao frágil organismo, parecendo habituá-los àquele perigo comum, que fazia o cardume inteiro fugir em todos os
sentidos, com desesperada mobilidade. Muitos escapavam, mas na extremidade do arrasto, quando se levantavam as varas, a rede apanhava uma boa quantidade.
- Traga o balde, Ernie - ordenou Florrie. - Fique só com os graúdos, jogue na água os miúdos. E vocês três continuem. Vou voltar às rochas, em busca dos mariscos.
O vento soprava brandamente, o sol apareceu como uma laranja lustrosa. Com água pelas cangas, eles exploravam as fendas, e no espaço de uma hora o balde estava cheio.
Então, lá das rochas, onde um fogo de madeira lançada à costa pelo mar fumegava e cintilava, veio o grito de Florrie. Juntaram-se a ela. Uma toalha branca tinha
sido estendida numa saliência seca, segura nos quatro cantos por pedras redondas e listradas, o chá estava pronto, e em cima do fogo havia uma panela de ferro com
água fervente.
- Depois disto, vou ficar com frieiras - disse Florrie, expondo os pés arroxeados ao calor. Então, apontando para os camarões: - E agora meta-os aí dentro!
- Que pena! - murmurou Jenny, estremecendo um pouco quando os crustáceos que se remexiam desapareceram na panela fumegante. - Coitados.
- Eles não sentem nada - tranquilizou-a Ernie. - Não têm nervos como nós. Não é, Sr. Desmonde?
Stephen, olhando para Jenny, mal tinha ouvido a pergunta. Inteiramente distraído, lá estava ela, ainda com a rede no ombro, pernas nuas, e plantadas e separadas,
ligeiramente esboçada, saia arregaçada, deixando ver uma limpa e indiscreta saia de baixo, blusa aberta no pescoço, mangas repuxadas para trás, as faces picadas
pelo mar e cheias de areia, num vivo vermelhão, cabelos embaraçados pelo vento, de um negro azulado, ligeiramente inclinada para a frente, voltada para o poente
baço e decepcionante. Ele não tinha lápis nem papel, mas pensou, com a dor do desejo: "Meu Deus se eu ao menos pudesse pintá-la com aqueles vermelhos e azuis violentos
que a esfumam contra o céu!"
O chá era forte, escuro como carne muito cozida, e escaldante. Florrie insistiu em que bebessem um bule, para tirar o frio dos seus estômagos. Então, com o olho
em Stephen, serviu os mariscos, notando com um entendido aperto nos lábios a surpresa que ele mostrou ao prová-los.
- Nunca pensou que fossem tão bons, hein? - troçou ela. - Beba o sumo também.
- Muito melhor que ostra - concordou Ernie, deitando-se.
Eram deliciosos, cada um em sua concha bivalve, delicados e salinos, frescos frutos do mar, contendo a essência do oceano, talvez o primeiro ato da criação.
A seguir vieram os camarões, diretamente da panela, de um rosa esmaecido, soltando as cascas com um rumor, em forma de meias-luas, suculentos. Comeram-nos com grossas
fatias de um pão caseiro com manteiga do campo. Mais chá. Depois um bolo de queijo que Jenny tinha assado na noite anterior. Seguiu-se um silêncio, intensificado
pelo sussurro lento, rítmico, da maré montante. Ninguém parecia ter vontade de se mexer - numa estranha e morna disposição de indolência, vendo a lua pálida adquirir
substância no céu ainda claro, e Stephen desejava que aquela hora adorável não terminasse rapidamente. Mas por fim Florrie mexeu-se.
- Está escurecendo. É melhor irmos andando.
As coisas do piquenique foram reunidas, o pónei atrelado, as lanternas de vela acesas. Florrie e Ernie tomaram os seus lugares na frente. Stephen, já no carrinho,
estendeu a mão para erguer Jenny ao seu lugar junto dele na traseira. Apertou-lhe os dedos com força e puxou-a. E nesse gesto simples, sentiu, como um raio, a liberação
de uma emoção que brotara nele durante a tarde, uma doçura física na pressão da sua pele seca e quente, uma onda inundante de embriaguez que fez o seu coração pulsar
forte - tão inesperada foi a sua manifestação, tão violenta a sua intensidade - deixando-o sem fala.
Ernie sacudiu as rédeas, e saíram num trote firme. Por causa da cesta, que restringia o espaço, Jenny e Stephen eram obrigados a sentar bem juntos.
Do suave contato com a sua coxa e flanco, ondas de quente vitalidade pareciam fluir para ele. Nunca, em muitos anos, nunca desde o fútil assédio a Emmy Berthelot,
ele tinha olhado para uma mulher com desejo. Isso tinha morrido dentro dele; talvez uma auto-disciplina o tivesse matado, destinando-o a uma existência de perpétuo
celibato. Mas agora, ainda que para salvar a própria vida, sequer poderia dizer uma só palavra coerente. Estaria ela consciente, pensou ele às cegas, do desejo que
subitamente o assaltara? Poderia partilhar a mesma emoção? E aquela emoção latejante, onde os seus membros se encontraram no escuro, era do pulsar do seu sangue?
Ou era o dela que também pulsava?
Entraram na cidade, que os recebeu com um brilho de luzes, refletidas na água oleosa do porto. E ao se aproximarem do cais, Florrie exclamou prosaicamente:
- Não há como camarão para dar sede. Vamos até o Delfim para uma cerveja amarga.
- Vamos - disse Ernie. - Eu tomo uma mineral.
- Por aqui não é permitido, a não ser que você seja maior de 18 anos.
- Mas tia Flo...
- Não - disse Florrie firmemente. - Eu tinha me esquecido de você. Vamos beber alguma coisa em casa.
Chegaram ao fim do casario, onde ficava o estábulo, e Ernie, um tanto impertinente, insistiu com Jenny para que esperasse enquanto ele tirava os arreios do pónei.
Florrie e Stephen prosseguiram sozinhos para a loja. Ao caminharem lentamente pelo cais, Stephen, ainda profundamente perturbado, sentia que a sua companheira o
examinava.
- Foi um dia muito bom - começou ela em tom de conversa.
Ele concordou, com um murmúrio.
- Jenny é uma coisinha linda - reiniciou Florrie, sem continuidade aparente. - É uma mulher sensata, mas simples. Trabalha duro... também teve a sua luta. E que
coração bondoso! Espero que um destes dias ela se arranje com um bom sujeito... Eu a odiaria se ela cometesse um erro. Teria que ser alguém com um bom salário, que
pudesse tomar conta dela.
Houve uma pausa. Então, novamente, com a mesma voz, como se pensasse em voz alta:
- Por exemplo... há um sujeito aqui, chamado Hawkins, dono da metade de uma traineira... talvez um tanto conveniente. Quem sabe não vamos encontrá-lo no Delfim?
É um sujeito sociável, ativo... e está louco por ela.
Ele manteve silêncio, sem saber o que responder. Na cozinha, Florrie voltou-se para ele com uma vivacidade que o convenceu de que as suas observações eram intencionais.
- Que tal um sanduíche? E um gole de cerveja?
Não, naquele momento ele não podia ficar para enfrentar Jenny numa falsa atmosfera de sociabilidade. Forçou um sorriso.
- Estou um tanto cansado. Acho que vou subir. Boa noite, Florrie.
Foi para o seu quarto, fechou a porta e ficou um longo momento com os pensamentos perturbados, dos quais, quase automaticamente, tentou fugir apanhando o seu bloco
de esboços e dizendo para si mesmo que devia registrar aquela impressão na praia enquanto ela ainda estava fresca na sua mente. Usando creiom, fez, durante a hora
seguinte, vários desenhos a pastel, mas nenhum deles o agradou; no fim, com uma espécie de exasperação nervosa, jogou o bloco longe e começou a se despir.
Na cama, apagou a luz e espichou-se ao comprido nos lençóis frios. Através da larga janela aberta, iluminada por uma lua invisível, podia ver uma faixa da via-láctea
da qual pendia Sírio, baixa e plácida. Mas nele não havia placidez. A pele, ardendo com o ar picante, parecia em fogo.
Daí a pouco soaram passos na porta contígua, e pela parede fina ele ouviu os movimentos tranquilos e a conversa em voz baixa das duas mulheres, que se preparavam
para deitar-se. Bruscamente cobriu os ouvidos com o travesseiro. Contudo, não pôde abafar os sons de Jenny se despindo - o clique do espartilho desabotoado, o estalido
de um elástico, o bater dos saltos quando ela tirava a saia - aquela visão do poente que, por uma estranha alquimia, fundindo-se com vento, mar e areia, tinha composto
uma imagem clara e brilhante como um cristal veneziano, que era menos fácil de descartar. Por fim, narcotizado pelo ar, a sua mente anuviou-se e ele adormeceu.
CAPÍTULO XV
AS SUAS DUAS SEMANAS DE ESTADA terminavam no sábado, e ele devia despedir-se às três da tarde. Acreditava que, com um esforço da vontade, e o exercício de autodomínio,
poderia atravessar esse breve período sem se ter na conta de um tolo. Pôs-se então a trabalhar numa série de impressões marinhas. Na terça-feira, apanhou um bloco
de papel feito à mão, de superfície mate com um suave tom amarelo, que achara num sebo local, e foi para o porto interno. Começou um guache, mostrando uma linha
baixa de sumacas amarradas, duas traineiras mais além, e em cada lado, atraindo o olho para dentro, redes secando em estacas velhas. Mas o seu coração não estava
naquilo, e mesmo
quando já se achava a meio do trabalho, sabia que era uma coisa tão insípida como uma folhinha de Natal. Depois de gastar duas folhas do seu precioso papel, entrou
mal-humorado no Delfim e, sentando-se sozinho a um canto, almoçou pão e queijo com um quartilho de cerveja misturada com gengibirra.
A tarde não foi melhor - o sol entrava e saía das nuvens, o seu toque não era suficientemente rápido para apreender o jogo de luzes, e exatamente quando ele começava
a sua quarta tentativa, as traineiras largaram, saindo do porto e deixando um buraco na composição como o de um dente extraído. Desistiu, indignado. Contudo, não
voltaria para a loja; com o bloco embaixo do braço, as mãos nos bolsos e os ombros encolhidos, vagabundeou pela velha cidade, olhando as vitrinas das lojas navais,
presumivelmente avaliando o estoque de velas para embarcações, os moitões e cordame, os motores pesados a querosene, apenas para matar o tempo.
Estaria seriamente apaixonado? A situação parecia tão manifestamente impossível, que ele se viu forçado a rejeitá-la, dizendo-se que chegara aos 30 anos, temporariamente
sadio, talvez, mas sujeito a uma recorrente fraqueza do peito, repudiado pela família, com uns magros xelins no bolso, ligado irrevogavelmente a uma amante sem proveito,
a arte. E Jenny?. ..embora muito da sua fantasia pudesse enganá-lo, ela não era mais uma menina, mas uma mulher da classe operária, próxima da meia-idade, de estatura
baixa, bochechuda, totalmente ignorante, sem mais conhecimento de pintura que um esquimó, e com um gosto medonho quanto a chapéus. Além disso, ele não tinha sido
avisado, com diplomática insistência, por Florrie? Então, em nome da sanidade mental, ele que a tirasse da cabeça. Mas apesar de toda a sua demonstração de lógica,
não podia.
Em desespero, pôs-se a andar rapidamente pela costa. Ao passar pelo Grand Hotel, que ocupava uma posição central no passeio público, um homem de cartola e sobretudo
surrado com gola de veludo, carregando uma mala preta quadrada, emergiu da porta de vaivém e veio ao seu encontro. Alguma coisa na figura, no balanço dos ombros,
era vagamente familiar, e na verdade, ao se aproximarem um do outro, houve um instante de mútuo reconhecimento.
- Ora, ora, se não é o Desmonde! Que surpresa! Imagine só encontrá-lo aqui, meu velho.
Era Harry Chester. Pegando a mão de Stephen, sacudiu-a efusivamente, expressando a sua satisfação pelo encontro e fazendo uma observação sobre a estranheza do acaso
e a pequenez do mundo.
- Eu estava no Grand tomando um trago, pensei que poderia tomar outro, mas não tomei. Se tivesse, nunca o teria encontrado. Providência, meu velho. Nada mais.
Tinha engordado desde o seu último encontro, ganhara um rolo de gordura na nuca, e o seu colete apertado, de um xadrez esportivo, não podia esconder
o começo da corpulência. O rosto, embora ainda muito belo, tornara-se pesado, e os seus olhos, apesar de cintilarem com a mesma cordialidade, tinham uma instabilidade
que seria suspeita até para um estranho.
- Vamos Voltar. Você tem que tomar um trago comigo.
Entraram no bar do hotel, onde Chester sorriu para a garçonete e, com o pé procurando automaticamente a barra de metal, empurrou a cartola para trás.
- Que vai ser? Um copo de bíter? Para mim, um uísque com um esguicho de soda.
- Que veio fazer em Margate? - perguntou Stephen, quando, afinal, teve oportunidade de falar.
- Negócios, meu garoto. A costa sul é meu terreno. Faço todos os hotéis do circuito.
- Deixou de pintar?
- Deus do céu, sim. Há muito. Surge um momento nos negócios dos homens... Shakespeare, meu velho... Tenho um emprego... e muitíssimo bom... - Produziu o arremedo
de um sorriso afável, passando a mão no queixo não barbeado. - Promovo a limpeza da nação.
- De que maneira?
- Vendo sabão, meu velho... para os Irmãos Gluckstein. Firma muitíssimo boa. Estou muito bem nela... a caminho de uma sociedade, de fato. Olhando-se no espelho,
ajustou a gravata, que, Stephen observou agora, anunciava abertamente a melhora da posição de Harry - tinha as velhas listras azul-pálidas de Eton. - É um trabalho
agradável. Eu gosto de viajar.
Houve um silêncio. A despeito da alacridade, do transbordante companheirismo, havia rugas ho canto dos olhos de Chester e seu charme, como a felpa da gola do seu
sobretudo de veludo, estava um tanto gasto e sem vida. Suas unhas, para um homem com a higiene do país no coração, estavam lamentavelmente sujas.
- Sabe alguma coisa de Lambert? - perguntou Stephen.
- Philip? - Chester pareceu pressagioso. - Acabou sendo um fracasso. Elise abandonou-o, você sabe. Foi embora com um oficial australiano durante a guerra. A última
coisa que eu soube a respeito de Philip foi que ele estava desenhando papel de parede para uma firma insignificante de Chantilly. - Fez uma pausa e sacudiu a cabeça.
- Naturalmente, sabe o que aconteceu a Emmiy.
- Não.
- Homem de Deus, você não lê os jornais? Uma noite, uns seis meses depois que você foi embora, ela subiu para fazer o seu número. Disseram no inquérito que a pista
estava molhada, pouco iluminada, mas Emmy tinha saído para jantar, e, na minha opinião, era ela quem não estava bem iluminada. De qualquer modo, ela fez besteira
na largada, perdeu o equilíbrio no ar, caiu de cabeça e quebrou o pescoço.
Stephen ficou silencioso. Embora soubesse que Chester era um mentiroso que gostava de causar sensação, não podia duvidar que aquilo fosse verdade. Contudo, a notícia,
embora o chocasse, tinha uma distância remota, como se meramente marcasse o fechamento de um episódio havia tanto tempo esquecido e enterrado. Nem teve tempo para
pensar nele, porque Chester já tinha recomeçado a falar a seu respeito, menos com uma franca impostura do que com uma curiosa e intrépida ilusão consigo próprio,
que ignorava a sua posição de reles caixeiro viajante que trabalhava por comissão, esquecia de pagar as suas dívidas, cavava empréstimos, filava bebida dos amigos,
desculpava as noites passadas em hotéis baratos, os empregos de que já fora despedido, e quase dava realidade à sua falsa aparência de quem frequentara uma escola
superior com aquela sua gravata e a sua imitação de grande prosperidade. Afora umas poucas perguntas superficiais, ele não mostrou nenhum interesse pelo que Stephen
fazia. De certo modo, havia algo quase para admirar, uma disposição quase heróica, ou perto disso, no seu animado charlatanismo, jamais cedendo, sequer por um instante,
à depressão ou às amargas evidências da verdade. Mas, de súbito, com uma olhadela ao relógio do bar, Chester se interrompeu.
- Meu Deus! - exclamou. Seis e meia. Só tenho sete minutos para pegar o trem de Folkstone. Preciso correr. Foi ótimo encontrá-lo. Obrigado pela bebida. - Repondo
a cartola num ângulo mais inclinado, apertou a mão de Stephen, acenou para a garçonete e, balançando a mala preta de amostras, saiu com ares arrogantes.
De maneira pensativa, Stephen pagou a conta e, no meio da escuridão que caía, pôs-se a caminho de casa. Aquele encontro acidental, com as reminiscências do seu primeiro
período na França, breve talvez, contudo cheio de ilusão consigo próprio, pusera em mais pronunciado relevo a sua realidade presente. Depois da impetuosidade ostentosa
de Chester. seria um alívio contemplar o ramerrão que ia encontrar na calorosa cozinha do nº 49. A sua disposição incerta tinha se dissipado, e ele subiu as.escadas
com uma súbita vivacidade.
Lá dentro, Ernie estava na mesa - Jenny ocupada com a estufa.
- Graças a Deus! - exclamou ela com uma cara alegre. - Estive guardando o seu jantar, e já estava triste pensando que ia se estragar.
O calor da sua acolhida, o fulgor daquela pequena peça aconchegante tocavam-no como uma bênção. Sentou-se ao lado de Ernie, que estava estudiosamente curvado sobre
um semanário de histórias em quadrinhos.
Abrindo a porta do fundo com o pé, Jenny apanhou um pano de prato e pegou uma funda travessa de empadão, colocando-a em cima da metade da mesa que deixara coberta
com uma toalha.
- Cuidado, está quente. Afaste-se um pouco, Ernie, com o seu latim e o seu grego.
Quando Stephen sentou e começou a comer - o empadão estava fumegante e saboroso, com uma espessa camada arruivada de batatas tostadas - ela ocupou a cadeira oposta,
observando o seu apetite com aprovação.
- Esteve trabalhando?
- Tentando... depois dei uma volta pelo porto.
- Fez-lhe bem. O senhor se aprumou aqui.
- Sou um homem novo, Jenny. E devo tudo a você.
- Exagerado. Prove estas cebolas em conserva. Florrie conseguiu a licença. O velho Conselheiro Atolado-na-Lama finalmente foi gentil.
- Essa é uma boa notícia.
- Ela veio às quatro. Deixou-me tomando conta da loja durante a tarde. Foi por isso que eu subi e fiz o seu empadão. Gostou?
Ele respondeu passando-lhe o prato para uma repetição.
- vou ajudar a lavar os pratos.
- Não há pratos para lavar. Só o seu. Não leva nem um minuto. Enquanto ela tirava a mesa, ele foi ao seu quarto e lavou-se, voltando
para a cozinha. Ela terminou de enxugar a louça e, com vapor subindo das suas mãos, estendeu a toalha torcida ao lado da pia. Seu olhar voltou-se para Ernie, que
ria.
- Você vai queimar os miolos, Ernie, se estudar tanto. Como está o nosso vagabundo esta semana?
- Maravilhoso. Estou lendo devagar pra não acabar logo.
- Pensei que você ia ao cinema.
- Eu não. Esta semana não tem bangue-bangue.
Houve uma pausa. Stephen teve uma ideia repentina, sentado com as mãos nos bolsos perto do aparador.
- Não quer ir ao cinema, Jenny?
Ela deu-lhe um sorriso rápido, mas abanou a cabeça.
- Ora, vamos.
- Não gosto muito de filmes, na verdade. Especialmente numa bela noite como esta. - Olhou pela janela. - Está lindo lá fora. Claro e suave.
Acompanhando o seu olhar, ele viu a lua redonda e prateada subindo acima do porto, e, percebendo a vontade dela, disse:
- Então vamos dar um passeio.
O sorriso dela aumentou, e ela pareceu realmente encantada.
- Seria até bom um passeio, depois de ficar engaiolada o dia inteiro. vou apanhar o meu casaco, não demoro.
Deixou-o à espera nem bem um minuto, e então, aproximando-se de Erme, que não prestava a menor atenção, recomendou-lhe que cuidasse da estufa e dissesse a Florrie
que estaria de volta em meia hora. Ela desceu as escadas na frente, e saíram, ao longo do cais, para o passeio público. A noite estava
esplêndida, cálida e límpida, entronizada em planetas cintilantes, no máximo de brilho, a via-látea como um caminho de prata movediço. Ao passarem pelo Delfim, ele
perguntou:
- Quer alguma coisa?
Mas novamente ela fez um gesto negativo.
- Nem sei o que pedir. Está tão bom aqui fora. A lua... e as estrelas Realmente, quando chegaram ao passeio público o cordel de luzes parecia um pálido colar em
competição com o brilho estelar. Nos bancos os namorados não faziam mais que se dar as mãos, como se deslumbrados e divertidos pela ausência de sombra. O mar movia-se
com uma cintilação de lantejoulas, uma grande serpente marinha arrepiando as escamas. Logo chegaram ao fim da esplanada; hesitante, mas não querendo abreviar aqueles
momentos miraculosos e voltar imediatamente para casa, Stephen disse:
- Está tão claro. Vamos andar pela areia?
Ela não fez objeção, e quando pisaram na larga faixa de areia molhada, descoberta pelo refluxo da maré, ele refletiu em voz alta:
- Sabe, Jenny, que esta é a primeira vez que nós estamos juntos sozinhos?
- Engraçado - disse ela rindo-se, incerta. - É que não tivemos a oportunidade. A chance é uma bela coisa.
- Contudo, eu sinto como se a conhecesse a vida inteira.
As palavras, expressando o conforto que ele sentia na sua companhia, foram arrancadas à força. Ela não respondeu. E, em silêncio, continuaram a andar sobre a praia
lisa e firme na qual as conchas brancas, semi-enterradas, brilhavam como estrelas caídas. Atrás deles, a cidade fugia na distância, banhada em luz líquida; estavam
sós na costa deserta.
Finalmente, relutante, ele sentiu que já tinha ido demasiado longe. Contudo, não podia suportar a ideia de voltar. Voltou-se para ela:
- Vamos descansar um pouco e olhar a lua.
Acharam uma depressão abrigada nas dunas, protegida pela relva grossa, aberta ao céu canoro e ao suspiroso mar.
- Você devia ter trazido o seu capote - disse ela. - Pode estar úmido. Aproveite um pedaço do meu. - E, solicitamente, abriu o seu casaco e estendeu-o no chão para
que ele se sentasse numa metade.
- É uma tristeza termos que partir depois de amanhã - murmurou ela dali a pouco. - Margate é linda nesta época do ano!
- Eu gostei muitíssimo.
Houve uma pausa.
- Suponho que já tenha os seus planos.
- Bem... de certa maneira.
Ela não olhou para ele, com o olhar perdido para o alto.
- Não quero parecer intrometida, e o senhor sabe que não é por dinheiro, mas eu estava esperando que o senhor ficasse com o seu quarto por mais uns tempos. Disse
que ia pintar o rio. Com o senhor e o Capitão Tapley em casa, há uma sensação agradável de coisa firme.
- Eu gostaria de ficar um pouco. Mas preciso ir andando.
- É terrível o modo como tem vivido, sozinho, sem casa, viajando por aí, sem ninguém para cuidar do senhor. - Havia tristeza na sua voz. - Precisa mesmo fazer isso?
Ele não respondeu. O calor do corpo dela, tão perto do seu, e tão vivo, era mais do que ele podia suportar. De súbito, uma grande onda de afeto irrompeu nele. Incapaz
de resistir, passou-lhe o braço firmemente pela cintura. Imediatamente o fluxo da sua conversação cessou, e ele sentiu uma súbita e viva tensão no corpo dela.
- Não devia fazer isso, senhor - protestou ela, em voz baixa.
- Por amor de Deus, não me chame de senhor, Jenny.
Ele mal pôde pronunciar essas palavras, e de repente a beijou, com uma violenta pressão da boca. Os lábios dela eram cheios, secos, ligeiramente ásperos, quentes
como uma ameixa ao sol. Sob o seu abraço inesperado, ela curvou-se, perdeu o equilíbrio e caiu de costas. Lá estava ela deitada, na areia macia, como que indefesa,
olhando para cima, com a lua refletida nos olhos.
Seu coração batia como louco, ele nunca tinha sentido tamanho surto de violenta emoção. Qualquer coisa que tivesse conhecido antes, aqueles momentos de afeição por
Claire, o seu insensato enrabichamento por Emmy tudo era nada comparado com aquela doce embriaguez. Acreditara-se um estranho, um ser não natural, para quem a felicidade
do amor correspondido estava eternamente negada. Era falso. Inclinando-se para um lado, enfiou a mão no decote aberto do seu vestido, com a palma em concha sobre
um seio macio. Mais quente que os seus lábios, rico de veias, ele parecia tremer sob os seus dedos como um pássaro aprisionado. Seu toque era suave, mas, com o movimento
do pulso, os botões do corpinho tinham-se aberto; com um suspiro, quase de angústia, ele colocou o rosto contra a fenda branca e macia, como que suplicando o seu
alívio. Oh, Deus, pensou ele, isto era o que eu queria, precisava, ansiava, este o remédio, o Letes eterno, o travesseiro para a minha cabeça, o seio macio, de pomba,
desta mulher, para encontrar o esquecimento nos seus braços.
Agora podia sentir o tremor do seu corpo, sentir com correspondido prazer a languidez entregue dos seus membros. Apoiado no cotovelo, angustiado mas sorvendo o antegosto
do deleite, olhou para baixo, viu que a respiração de Jenny se acelerava, que os seus olhos estavam fechados e apertados. Seu rosto parecia pequeno, como que contraído
pela dor, os cílios lançavam sombras de luar sobre as faces subitamente arrepiadas e ansiosas. Quando tocou os
seus lábios outra vez. ela retribuiu vivamente o seu beijo, e então, com um tremor, num débil, fútil e último protesto, atirou a cabeça para um lado.
- Não não é direito - murmurou ela. - Não numa noite como esta.
- E agora os seus braços se estenderam e entrelaçaram no pescoço dele. Os seus lábios procuraram os dele, abertos, pedindo. A terra girou, a lua desapareceu. Um
instante, inevitável como a morte. E então paz, ternura, silêncio um longo silêncio, no qual ficaram, sem se mover, um nos braços do outro.
Por fim, uma lágrima escorreu da sua face para a dele, fazendo-o erguer a cabeça; segurou-a pela nuca, olhando-a nos olhos.
- O que é, Jenny?
A sua voz, consciente, abafada no ombro dele, chegou-lhe debilmente:
- Esta foi a segunda vez na minha vida. E agora não posso sequer botar a culpa na bebida.
- Mas você não está arrependida, está? Você gosta de mim?
- Você sabe que eu gosto. - Aferrou-se a ele com renovada fereza. Sempre gostei. Sempre... desde a primeira vez que o vi. Até quando estava com o Alf, eu costumava
pensar em você... Pff, eu não devia ter feito naquele tempo... nem agora tampouco... bem-feito, assim eu aprendo... e nem ao menos estou casada.
- Não se preocupe, Jenny. Se você me quer, conseguiremos uma certidão amanhã no cartório. Agora estamos unidos, para o melhor ou pior.
QUINTA PARTE
CAPÍTULO I
NAQUELA MANHÃ DE OUTUBRO do ano de 1928, antes que a primeira pincelada de luz penetrasse a escuridão nos fundos do quarto do andar térreo, na Cable Street, Stephen
acordou. Durante um momento ficou quieto, consciente da sólida forma da mulher ao seu lado, ouvindo a sua respiração regular; então, sem perturbá-la, levantou-se
e vestiu-se em silêncio, sabendo por instinto onde estavam as suas roupas na cadeira; camiseta de flanela, calças de sarja e a grossa camisa azul de malha de lã
que ela tricotara para ele. Então, calçado só com as meias, saiu para o corredor, deu três batidas na porta de Joe e entrou na cozinha.
O círculo de gás explodiu baixinho sob a chaleira, já cheia, sobre a estufa. Na mesa, tudo estava preparado, como de costume. Em 10 minutos, quando o Capitão se
juntou a ele, sentaram-se para o desjejum de chá quente, pão, torresmos, manteiga e salsichas. Comeram sem falar até que estavam quase terminando. Então Tapley disse:
- O vento sopra do oeste.
Stephen acenou a cabeça e curvou-se para a orelha do velho.
- Precisamos apanhar aquele efeito de nuvem esta manhã.
- O mar vai estar picado - espero que o motor de popa aguente. Não confio nessas geringonças.
- Mas poupa o seu lumbago.
- Bah! Qualquer dia pego os remos.
Stephen levantou-se, encheu outra xícara de chá e levou-a para o quarto, tapando-a com o pires e colocando-a na mesinha-de-cabeceira - às vezes a corrente de ar
da porta despertava Jenny. De volta à cozinha, calçou os sapatos e olhou preventivamente para Tapley, que começava a encher o seu cachimbo.
- Temos que nos apressar.
- Estou pronto.
Fechando a porta com o mínimo ruído do trinco, saíram juntos, caminhando livres e desembaraçados - toda a tralha já estava no molhe.
A casa ficou em silêncio atrás deles. Mas às seis e meia o despertador tocou, Jenny abriu os olhos, viu a xícara de chá na mesinha, tocou-a: estava gelada
Reprovadoramente, abanou a cabeça e levantou-se num salto. O quarto ainda estava banhado de um cinza crepuscular - o alpendre que Stephen tinha construído para servir
de estúdio tapava parte da primeira luz - e ao vestir-se, enfiando os braços na camisola, andando nas suas chinelas cor-de-rosa de 13, viva mas habilmente, a despeito
da sua figura baixa, com uma graça inconsciente, esperava que ele chegasse a Greenwich antes da alvorada.
Rapidamente, começou a "botar a casa pra andar" - frase sua - e às oito horas já tinha feito o seu pequeno almoço, acendido o fogo embaixo da caldeira da cozinha
e levado a bandeja matinal da Srta. Pratt. Quarenta e cinco minutos depois, a Srta. Pratt, agora ocupante permanente do quarto dos fundos do sobrado, saiu para o
seu dia de aula no Internato Stephney. Jenny arrumou a casa, fez as camas e, enfiando a cabeça na porta de trás de uma maneira exploratória, notou com satisfação
pessoal a brisa fresca que enxugava as coisas. Hoje, segunda-feira, era o seu dia de lavar roupa.
Ao selecionar as roupas e atirá-las no caldeirão de cobre, sem saber, e sem a menor habilidade, começou a cantar. Era de sua natureza estar feliz. Mas, além disso,
ela se tinha na conta de uma mulher de sorte, pelo privilégio de amar e servir aquele homem extraordinário com quem se casara. Ainda que sem intenção, ela o observava
em todos os seus humores, seus silêncios, exaltações e depressões - tão diferente dela, com seu equilibrado bom senso com terna e possessiva admiração. Sua negligência
a respeito das refeições, das roupas e obrigações convencionais fazia-a abanar a cabeça. Pensar que um homem para o qual ela tinha embrulhado um lanche nutritivo
haveria de esquecê-lo, e, depois, acossado pela fome, entraria numa padaria, compraria um pão e o partiria, comendo pequenos pedaços, era coisa que ultrapassava
o seu entendimento.
Contudo, ela considerava o seu desejo de pintar com bondosa tolerância. Era uma ocupação de cavalheiro que harmonizava com ele, dava-lhe prazer e tranquilidade -
era "algo para ele fazer". A sua preocupação especial com o rio, essa ela aprovava inteiramente, desde que o tirava de casa para o ar livre. Porque, se ela tinha
algum aborrecimento - e em certos momentos ela parava no meio do seu trabalho, com uma ruga ansiosa entre as sobrancelhas - era com a sua saúde... ela não gostava
daquela tosse, agora tão permanente, que parecia fazer parte dele, e que ele na verdade ignorava inteiramente.
Mas hoje ela estava muito atarefada para se preocupar. Quando a sua roupa já estava estendida e balançava alegremente no varal, fez o seu lanche - queijo tostado
no pão e aquela indispensável xícara de chá forte. Então tirou o roupão, vestiu o seu segundo melhor vestido, apanhou um cesto e desceu para a rua. Os Glyns vinham
jantar: ela tinha preparado um lindo cozido de verduras, e após alguma discussão com o açougueiro, e a recusa de vários cortes, obteve uma peça que a satisfez. Depois
visitou o merceeiro e o leiteiro,
apreciando as vitrines das lojas ao passar, examinando de vários ângvlos um conjunto de três peças no empório de East London que ela havia muito cobiçava para a
sua sala. Dali a pouco, estava de volta a casa, tinha cortado a carne e picado as verduras. A ideia do entretenimento da noite agradava-a - gostava de Anne, que
era "do seu tipo" e dirigia como uma verdadeira esposa a pequena casa da Tite Street que Glyn, entrando para a respeitabilidade, tinha comprado havia quatro anos,
após ter regularizado a sua situação e casado com ela. Ela sabia, além disso, que fazia bem Stephen ver Richard, que, afora o Capitão Tapley, era agora o seu único
amigo, na verdade a única pessoa por quem ele consentia em quebrar a sua rotina fixa e solitária.
Até aqui, o dia tinha seguido um curso normal - tranquilo, agradável e supremamente comum. Mas perto das duas horas, quando ela ia recolher a roupa seca, a campainha
da porta da frente tocou. Por um momento, pensou que fosse o carteiro da tarde, com uma carta de Margate - Florrie ultimamente escrevia de modo regular, com notícias
sobre o jovem Ernie, que estava para ser empregado por um advogado.
Todavia, quando atendeu, um táxi ia desaparecendo na esquina e diante dela estava um homem magro, barbeado, com uma capa impermeável meio usada. Ele tirou o chapéu.
- O Sr. Desmonde está em casa?
- Não - disse ela, estudando-o. - Ele só voltará ao escurecer.
- Eu poderia falar com a senhora por um momento? Meu nome é Maddox. Charles Maddox. A senhora, estou certo, é a esposa do Sr. Desmonde. Sou, ou melhor, fui agente
do seu marido.
Ela hesitava. Estava longe do seu costume admitir cavalheiros estranhos na sua casa, contudo as suas maneiras, francas e diretas, não eram as de quem queria vender
coisas não desejadas.
- Entre, por favor.
Na pequena sala de estar da frente, imaculada e fria, com a sua mobília de moquete, piano de armário e vaso de samambaia na janela, enfrentou-o em guarda, embora
predisposta a seu favor pela maneira cuidadosa com que ele tinha limpado os sapatos no capacho de fora.
- Posso lhe oferecer uma xícara de chá?
- Eu apreciaria, se não fosse muito trabalho.
Sem açodamento, ela lhe trouxe o chá e torradas quentes amanteigadas.
- Muita gentileza sua. Estive andando desde o meio-dia e perdi o almoço. - Fez uma pausa. - Não me acompanha?
- Não, muito obrigada. - Ela recusou afetadamente, pensando que tal informalidade seria ir um pouco longe demais. - O tempo está ficando bom ultimamente.
- Sim, está um belo dia.
Houve uma pausa.
- Sra. Desmonde - falou ele com súbita resolução, após ter aceitado uma segunda xícara de chá. - A senhora parece ser uma pessoa muito sensível, e eu particularmente
desejo ajudar. Vim aqui esta tarde para lhe pedir que persuada o seu marido a deixar que eu cuide do seu trabalho.
- Mas o senhor disse que era agente dele.
- É título nominal, receio eu. Há oito anos que não tenho um único Desmonde na minha galeria. Mas estou certo - lançou um rápido olhar de interrogação - de que no
Seu estúdio deve haver dezenas.
- Sim - disse ela em voz baixa, mas ainda perdida. - Estão todos lá. Mas ele não se separa deles. Depois de terem abusado dele de uma maneira tão brutal, jurou que
jamais exibiria um quadro em sua vida.
- Isso foi há muito tempo, e desde então muita água tem corrido por baixo da ponte, Sra, Desmonde - inclinou-se ligeiramente para a frente - a arte é uma coisa curiosa,
segue uma linha reta por um certo número de anos e depois se afasta numa tangente. Em certa época, as pinturas do seu marido eram praticamente invendáveis. Agora,
segundo uma informação que recebi de Paris, tenho bons motivos para acreditar que encontrariam um mercado seleto e entendido.
Ele esperava provocar nela um estremecimento de satisfação. Em vez disso, ela sorriu sem grande expressão, nem um pouco impressionada, e muito menos pela menção
àquela cidade estrangeira, que lhe pareceu ridícula.
- Isso faria alguma diferença?
- Naturalmente. Ora... financeiramente faria uma diferença muito grande.
- Meu marido - ela articulou a palavra com uma espécie de terno orgulho - meu marido não liga a mínima importância ao dinheiro. E afora o que precisa para as suas
tintas, não gasta um tostão consigo.
- No entanto, como um caráter independente, e isso eu sei que ele é... - Maddox atrapalhou-se ligeiramente mas continuou, decidido a fazer valer o seu argumento
- deve certamente achar um tanto humilhante o fato de... bem... desculpe-me... ser sustentado pela senhora.
- Ele nem pensa nisso - respondeu Jenny firmemente. - E espero que nunca pense. O que eu tenho é tão dele quanto meu, Sr. Maddox, e chega bem para nós dois. Temos
esta casa, comprada e paga, os nossos dois pensionistas regulares, para não falar de umas boas 30 libras que temos na Sociedade Construtora. Não podíamos passar
melhor, nem que quiséssemos.
- Contudo - voltou ele a insistir, embora de maneira pouco convincente - um rendimento maior poderia tornar as coisas mais fáceis. - Relanceou os olhos pela medonha
salinha, perguntando-se ao mesmo tempo como uma pessoa com o gosto e as suscetibilidades de Desmonde conseguia viver ali.
- poderiam ter uma... uma casa maior. E, depois, estou certo de que a senhora trabalha muito. Poderia ter quem a ajudasse nos afazeres domésticos... uma boa criada.
Ela soltou uma risada, alegre, encantadora, como se ele tivesse contado uma boa anedota.
- Eu fui uma criada, Sr. Maddox, e, espero, muito boa. Quanto ao meu trabalho, eu me sentiria desgraçada se não o tivesse. Digo-lhe francamente que não seria feliz
se vivêssemos em lugar diferente deste que temos agora. E o que é mais, garanto-lhe que não seria tão aconchegante.
Completamente vencido, Maddox olhou-a calado, e, apesar da sua derrota, com crescente respeito. Uma horrível imitação de mármore preto, o relógio sobre o consolo
da lareira indicava 2:25.
- Enquanto isso - arriscou ele - talvez eu pudesse dar uma olhadela no estúdio, não?
A recusa foi uma obra-prima de bondosa diplomacia. Na verdade, a maneira hesitante e aparência não próspera de Maddox, que a fizeram considerá-lo como alguém tentando,
um tanto sem esperança, ganhar a vida de modo tão pouco prático, à beira do fantástico, já tinha despertado a sua simpatia.
- Talvez fosse melhor falar com o Sr. Desmónde primeiro.
- Eu já falei com ele. - A sua maneira indicava quão improdutivo fora aquele argumento. - Após um breve silêncio, apanhou o chapéu e levantou-se. - Tenha a bondade
de lhe dizer que eu estive aqui.
- Sem a menor dúvida. Mas se eu fosse o senhor, não esperaria muito disso.
Quando ele foi embora, Jenny voltou à cozinha, ficando um momento intrigada com os seus pensamentos; então, sacudindo a cabeça, despachou o assunto e foi recolher
a roupa seca.
Às cinco horas, a campainha da porta tocou de novo, e, de roupa mudada e pronta, ela foi receber os visitantes.
- Sinto muito - disse ao cumprimentá-los. - Stephen ainda não voltou.
- Estamos adiantados. - Glyn pendurou o chapéu e a echarpe no cabide do corredor. - A propósito, recebeu a visita de um agente chamado Maddox?
- Sim - disse Jenny em guarda. - Sr. Charles Maddox.
- Suponho que tenha lhe dado uns dois quadros do Stephen, não?
- Deus do céu, não. Como é que eu ia fazer isso sem autorização? Sorriu. - Seria ir além do meu modesto lugar.
- Compreendo - disse Glyn, e fez uma pausa. - Bem, vocês mulheres podem ficar juntas para mexericar, enquanto eu vou dar uma olhada no estúdio.
Passou diretamente pela cozinha e pela pequena área embandeirada,
achou a chave embaixo do capacho e entrou na cabana de madeira desconjuntada onde Stephen trabalhava. Inteiramente despido de mobília, a não ser por um sofá vitoriano
de encosto quebrado ao comprido de uma parede, sem ao menos uma estufa, o lugar era desconfortavelmente frio, embora seco, e tinha uma excelente luz do norte. No
centro estava um cavalete com uma grande pintura incompleta do rio, e ao fundo, um estoque de telas de vários tamanhos, todas sem moldura, amontoadas sem cuidado.
Richard olhou bem o trabalho inacabado, enquanto enchia o cachimbo; depois de acendê-lo, retirou a pintura, colocou outra no batente do cavalete e sentou-se no sofá
quebrado para estudá-la. Após cinco minutos, trocou outra vez de tela, tornou a sentar-se e retomou a sua inspeção meditativa - um processo que repetiu várias vezes.
Em todos os movimentos de Glyn havia uma deliberação pensada, um ar de maturidade intensificado pelo seu pesado arcabouço e cabeça maciça. Aos 50, aquela veemente
intensidade, o indomado espírito boémio que o levara a desrespeitar a ortodoxia e desdenhar a autoridade, tinham amainado, ou antes, amadurecido, sendo substituídos
por um genuíno e bem merecido sucesso. O seu trabalho, na sua convicção, sua combinação de liberdade e dignidade, tinha sido aceito, justamente, como uma contribuição
à arte inglesa. Não mais um vagabundo, mas um proprietário estabelecido em Chelsea, casado, membro do conselho da Academia, que tinha chegado a usufruir a sua condição,
estava, num certo sentido, em conflito consigo mesmo. Contudo, agora, ao refletir sobre o trabalho de Stephen na sua opulência e audácia de cor, seu desrespeito
profético pelas regras convencionais da anatomia e da perspectiva, sua riqueza e sutileza de textura - o osso duro escondido por uma magistral execução de esbatidos
e vidrados - no seu sentido de mistério, de algo implícito, sempre contido, ele sabia que, não obstante qualquer mudança que houvesse nele, no coração ainda era
o campeão dos proscritos, o porta-bandeira da revolta. As pinturas daquela cabana de madeira eram, percebia-o, não apenas muito superiores às suas, mas próprias
para serem penduradas, na sua magnífica execução e originalidade, ao lado dos grandes. E ao considerar como, durante aqueles últimos sete anos, Desmonde tinha trabalhado
sem cessar, desconhecido, inédito, levando a vida de um asceta, de um recluso, enterrado naquele cortiço das docas do East End, recusando qualquer contato com o
mundo, alimentando uma sensação de perseguição que, mesmo com a sua base de realidade, não deixava de ser extremamente perigosa, sentiu que era tempo de agir, de
romper finalmente aquele continuado complexo de alheamento. Tinha vindo hoje com a intenção determinada de tomar essa decisão, e devido ao exemplo dos seus próprios
últimos anos, a solidez da sua posição, seus pensamentos inevitavelmente o levaram a uma direção. Reconhecimento - essa era a solução. Isso muito fizera por ele.
E faria tudo por
Desmonde. Inútil, era claro, falar com Stephen. Já o tentara mais de uma vez" sem sucesso. Sabia da visita de Maddox naquela tarde - tinha conferenciado de antemão
com o agente - e agora que tinha obviamente fracassado no seu intento, sentia que devia agir por sua própria iniciativa.
Com um cenho de resolução, apanhou o quadro que já tinha selecionado - Charneca de Hampstead - e embrulhou-a com uma folha de papel pardo. Movendo-se com uma leveza
incomum, fechou o estúdio e, usando a porta da área, caminhou para o corredor do fundo. Em três minutos estava na esquina do bar Good Intent, e depois de beber um
copo de cerveja, pediu ao garçom que guardasse o embrulho até que ele voltasse mais tarde, naquela mesma noite. Ainda não eram seis horas quando ele voltou desapercebido,
entrando pela cozinha.
Stephen, que acabara de chegar, veio recebê-lo. Ao se apertarem as mãos, Glyn não pôde deixar de pensar como fora grande a mudança operada no seu amigo desde os
dias em que o vira pela primeira vez no Slade. Não era somente a magreza, que lhe acentuava os ossos do rosto e tornava mais fundas as têmporas. Ali, em pé, como
se por um esforço da vontade, nas suas grosseiras roupas sujas de tinta, com uma velha echarpe enrolada nos ombros, as compridas mãos ossudas e uma face suja de
fuligem de um rebocador do rio, dava a impressão de um homem apoiado unicamente por sua própria veemência. Mas a cor viva dos malares e o brilho extraordinário dos
olhos salvava-o, dava à sua expressão uma vívida sensação de vida.
- Teve um dia bom? - perguntou Glyn.
- Não foi mau. Estive lá em Greenwich desde cedo.
- Como vai passando o velho pai Tamisa?
- Ando tendo problemas com ele - como sempre. E você, que esteve fazendo ultimamente?
Richard hesitou, brincou com a corrente do relógio - não mais um cordão esfiapado, mas um puro Albert de admirável solidez, aumentado por um encanto comeliano, presente
de um modelo satisfeito.
- Na verdade, estou começando um retrato de Lord Hammerhead.
- Você agora anda fazendo muitos retratos. É uma encomenda?
- É.
- Acho que me lembro do nome. Não é o cervejeiro?
- Bem esse é um dos seus interesses.
- E a arte é outro? São esses os sujeitos quem mantêm a pintura viva.
Debaixo das sobrancelhas, Glyn olhou para um lado, um tanto desconfiado, imaginando se não havia uma levíssima ironia no tom do outro, mas a expressão de Desmonde
permanecia franca e alegre. Seguiu-se uma pausa e então Jenny, com a face vermelha pelo calor da estufa, veio com um prato fumegante, colocando-o na mesa e pedindo-lhes
alegremente que se sentassem-
Foi uma refeição simples mas satisfatória, um saboroso cozido servido com batatas não descascadas, um bolo de ameixas feito em casa e uma funda travessa de apricos
cozidos dando variedade ao prato principal. Glyn, cujo gosto pela boa mesa tinha aumentado com os anos, e que mostrava isso na sua crescente corpulência, comeu à
vontade, mas apesar da sua preocupação não podia deixar de notar como era indiferente o apetite de Stephen. Parecia não saber o que estava comendo, nem se importar
com isso, e somente a atençSo de Jenny mantinha o seu prato abastecido. Mas a sua disposição era extraordinariamente despreocupada, a beleza e a vida nos seus olhos
eram irresistíveis quando ele descreveu com detalhes como, depois que uma chata quase o derrubara no meio do canal, se empenhara numa discussão com o patrão.
- Foi um belo concurso de gíria - concluiu ele alegremente. - Depois disso, perdi completamente a voz.
- O quê? - exclamou Jenny, lançando-lhe um olhar.
- Não foi nada, Quando estou trabalhando, não preciso falar - disse Stephen. voltando-se para Glyn com um sorriso. - Tapley é quase tão surdo como uma porta. Às
vezes não abro a boca desde que saio de casa até voltar.
Glyn, abanando o garfo, fez um gesto de desaprovação.
- Não é natural - disse ele. - Você é como Anna. Às vezes eu mal ouço uma palavra dela durante um dia inteiro.
Anna olhou para ele, submissa, como sempre, séria, mas com enigmático reviramento dos lábios.
- Essa foi a primeira condição que impôs quando fui viver com você.
- Foi viver! Você nunca pode se lembrar que agora é uma respeitável senhora casada?
- Às vezes acho que nos tornamos respeitáveis demais.
- Que quer dizer? Não aprecia ao menos um pouco a sua posição? Veja as pessoas com quem você se encontra.
- Oh, vemos muita gente. Vestimos a roupa indicada, e vamos às recepções, onde ficamos todo o tempo em pé e nem podemos ouvir o que o outro diz. Somos convidados
para banquetes públicos, sentamos sob uma corrente de ar e ouvimos discursos compridos e pomposos. Estamos muito comprometidos. Mas nos divertíamos mais em Paris,
quando você costumava me atirar os sapatos e dizer que eu não passava de uma puta.
Stephen rebentou de rir, mas Jenny pareceu um tanto chocada, e o próprio Glyn meio desconcertado.
- Você é injusta, Anna. Agora estamos mais velhos. Temos uma certa posição, deveres a cumprir, responsabilidades que devem ser aceitas. - Voltou-se para Stephen.
- Este tipo de vida em que você afundou... não é certo. Não é bom para você. Devemos sair dele.
- De verdade? - riu Stephen. - E como você faria isso?
- Cuidando para que você tenha a recompensa que certamente merece.
O tom pedante dessa observação fez Stephen abanar a cabeça.
- Se alguém tivesse dito isso 20 anos atrás, você o teria esmurrado. Eu não quero sucesso. Sucesso, especialmente o sucesso popular, aprisiona o espírito. Agora
que estou livre de desejá-lo, posso me dedicar irrestritamente ao meu trabalho.
- Ora, escute aqui, Desmonde - falou Glyn um tanto acalorado. - Sejamos sensatos a esse respeito, sem afetação. Deixemos o público fora disso... ninguém quer popularizar
a sua arte. Mas você está querendo dizer que é indiferente ao que as pessoas realmente entendidas, os seus colegas artistas, por exemplo, pensam do seu trabalho?
- Nenhum artista deve pintar pelo aplauso ou apreciação dos seus colegas, mas apenas para satisfazer a si mesmo.
- Ora essa! Então você não pretende jamais expor os seus trabalhos?
- Nos meus primeiros anos eu queria, apaixonadamente, exibir as minhas pinturas, para obter reconhecimento, renome. Agora eu simplesmente não me importo. Não quero
vencer. Amo as minhas coisas. Gosto delas perto de mim, tenho prazer em apanhar algumas e retocá-las. É suficiente que eu próprio conheça a sua qualidade.
- Meu Deus! É desumano não querer nenhuma apreciação.
- O elogio ou a censura tem apenas um efeito momentâneo sobre o homem cujo amor à beleza o faz o crítico mais severo dos seus próprios trabalhos. E não me censure
por dizer isso. Foi Keats quem o disse.
Glyn pareceu a ponto de embarcar numa discurseira explosiva, mas conteve-se e começou a encher o seu cachimbo. Contudo, ao riscar um fósforo, com força, disse consigo
que não se daria por vencido, que levaria a sua intenção adiante mais resolutamente do que antes. Dali a pouco, adotando um tom mais sereno e conciliador, disse:
- Pelo menos você admite que ultimamente tem sido um tanto exclusivo. Não é bom para um sujeito ficar muito tempo sozinho.
- Mas eu estou trabalhando.
- Eu também trabalho. Contudo, também tenho que cuidar de muitas outras coisas - nem sempre é conveniente, mas eu cuido, e, francamente, tenho que gostar disso.
Encontro meus colegas uma noite no Frascati, dou uma olhada no Garrick Club, assisto às reuniões da comissão da Academia. Acho que já é tempo de você sair do seu
esconderijo. Agora, por exemplo, tenho duas entradas para o Covent Garden. Don Giovanni. Terça-feira à noite. Foram-me dadas por Madame Lehman - lembra-se de que
eu fiz o retrato dela no ano passado? Virá comigo?
Lentamente, Stephen abanou a cabeça. Aquela palavra, "esconderijo", usada por Glyn, e que ele sentia ser injusta, magoara-o,
- Há 15 anos que não vou ao teatro.
- Você gostava de ir nos velhos tempos.
- Agora estou muito ocupado.
- Que besteira! Insisto. E depois ceará comigo no Café Royal.
- Vá sim, Stephen - secundou Jenny. - Seria uma bela folga para você.
Desmonde olhou de um para o outro, um leve sinal de tensão aparecendo no seu rosto, a expressão de alguém que devia ser sempre livre, para quem no mais leve sinal
de coerção, de associação constrangida com outros, não podia haver senão inquietude. Conhecia-se muito bem, sempre em luta contra uma vaga apreensão, um medo desconhecido
que parecia esperá-lo na volta da esquina, e salvando-se por seu próprio isolamento, que Glyn vituperava, encontrando o esquecimento no seu trabalho, na feliz obscuridade
da sua vida com Jenny. Uma recusa estava na ponta da sua língua, mas ele tinha trabalhado especialmente bem naquele dia. Uma indulgência incomum, o desejo de agradar
a sua mulher e Glyn, levaram-no a quebrar a praxe.
- Muito bem - disse ele. - Eu vou.
- Ótimo - disse Glyn, e acenou com um ar gratificado.
CAPÍTULO II
A RÉCITA NO COVENT GARDEN tinha terminado e a plateia saiu do teatro lírico para o ar frio e claro. Para Stephen, que raramente saía, fora uma noite de pacífica
diversão, menos pelas efervescentes melodias de Mozart - sendo um visual puro, quase não era tocado pela música - do que por observar o seu efeito de elevação em
Glyn, o qual, não desatento aos olhares de reconhecimento dirigidos a ele durante os entreatos, tinha mantido sempre uma atitude que, embora atrativamente boémia
- sua jaqueta de veludo cotelê, sua camisa cinza e gravata vermelha chamavam um tanto a atenção naquele ambiente de preto e branco - era, por outro lado, impregnada
da dignidade de um académico que podia exigir 500 guinéus por retrato de meio-corpo e era sempre mantido em evidência. As mudanças operadas pela fama na robusta
personalidade de Richard não eram tão danosas, mas, não obstante, lá estavam.
Ficaram em pé um momento, diante da entrada para a estação de Bow Street.
- Tem certeza de que não quer ao menos um drinque?
- Não, obrigado. Vou andando pela Oxford para tomar o meu ôribus.
- Eu o verei em breve. E, a propósito, nessa ocasião terei uma notícia interessante para você.
Foi a alusão mais forte que Glyn, durante o decurso da noite, se aventurou a fazer, mas, como as outras, ela pareceu passar acima da cabeça de Stephen. Richard,
porém, achava que um positivo progresso tinha sido feito.
Apertaram-se as mãos. Glyn saiu para o Strand e Stephen tomou a direção oposta. Ao fazê-lo, quase esbarrou numa mulher que saía sozinha do saguão do teatro. Instintivamente,
ele deu um passo atrás, com uma exclamação de desculpa, e no mesmo instante viu que era Claire.
- Você! - A palavra lhe escapou num sussurro.
Por sua expressão sobressaltada, subitamente fixa, ele viu como era doloroso para ela aquele reconhecimento, e em tal situação, na calçada quase deserta, ambos permaneceram
imóveis, olhando um para o outro em silêncio, quase como duas figuras de cera do não muito distante estabelecimento de Madame Tussaud. Essa ideia, aliás, ocorrera
a Stephen, mas antes que ele pudesse romper um silêncio que lhe parecia ridículo, Claire irrompeu num fluxo nervoso de palavras.
- Stephen. Não posso acreditar. Quem teria imaginado encontrar você aqui? Esteve na ópera?
- Que é que você acha?
Ele não pôde resistir a essa resposta irónica, mas a mudança na expressão dela, a um tempo grave e reprimida, ao olhar para a lâmpada azul da polícia, levou-o a
acrescentar:
- Sim, fui, desta vez pelo menos. Suponho que você vá habitualmente, não?
- Todas as noites, durante a temporada. A música é uma grande alegria para mim.
O seu tom não denotava alegria, mas antes consolo, uma emoção confirmada pelo seu rosto sério, que, privado das cores e contornos da juventude, tinha se tornado
quase anguloso, os olhos obscurecidos, o nariz mais proeminente, cheio, um tantinho alongado. O seu vestido preto, também, embora de um gosto admirável, estava desprovido
de qualquer enfeite, e, usado com uma echarpe de renda preta em torno do pescoço, produzia um efeito sóbrio que quase tocava a severidade.
- Está sozinho? - perguntou ela, depois de outra pausa difícil.
- Agora estou. Meu amigo já foi. Ela hesitava, reunia coragem.
- Não quer vir ao meu apartamento? Não podemos ficar aqui na rua. É bem perto, em Knightsbridge.
O convite foi feito numa voz prática, e por causa disso, embora ansioso
por chegar em casa, talvez também porque a mudança nela operada despertasse o seu interesse, fez um gesto de aquiescência. O seu carro, um landolé Daimler, azul,
estava esperando um pouco mais abaixo, e dali a pouco eram levados para oeste a uma boa velocidade pelas ruas desertas.
- Isto é um luxo, Claire - disse ele em tom ligeiro. - Muito melhor que o seu velho De Dion.
- É um carro alugado - respondeu ela. - Não tenho um novo. Arranjei este numa garagem de aluguel. De noite não posso enfrentar o metro. Mas durante o dia eu o uso...
para ir e voltar do trabalho.
A sua aparência de mortificação pessoal, de graça adquirida em arrostar o desconforto do metro londrino, soou esquisitamente nos seus ouvidos. Mas ele apenas disse:
- Você está trabalhando?
Ela inclinou a cabeça.
- Na Instituição São Barnabé para Meninas Indigentes. Sou secretária honorária. Sob as ordens do nosso estimado vigário, Padre Loftus.
- Loftus! - exclamou ele.
- Uma pessoa esplêndida. Tem sido... - hesitou - ... um grande apoio espiritual para mim.
Ele fez menção de falar, mas continuou silencioso. E dali a pouco chegaram ao apartamento dela, situado no último andar de uma casa na Sloane Street. Ela o admitiu
na sala de estar, que era comprida e um tanto estreita, mas repousante, com tapetes macios, decorada em tons prateados, discretamente mobiliada. E nas duas paredes
da extremidade, emoldurados em pinho estriado lavrado, estavam os seus quadros, que ela havia comprado sete anos antes.
- Parecem bem, não? - observou ela, quando Stephen olhou para eles, e antes que ele pudesse responder, pôs-se a falar com uma vivacidade que não parecia verdadeira,
provavelmente para esconder alguma agitação íntima. - Talvez você reconheça algumas das minhas velhas coisas. A maior parte eu trouxe de Broughton. Passo a maior
parte do meu tempo aqui. Exceto durante as férias das crianças. Nicholas está no Wellington, você sabe, e Harriet na Roedean. Lá estão eles, na escrivaninha.
Ela indicou a fotografia na moldura prateada, e enquanto ele a examinava retirou o xale e as luvas, dirigindo-se para uma mesinha com abas laterais sobre a qual
havia um jarro térmico e um prato coberto com um guardanapo.
- Posso lhe oferecer uma bebida? Sente-se, por favor. Há leite quente. Mas talvez você prefira um uísque com soda.
Stephen poderia jurar que ela pareceu aliviada quando ele indicou a sua preferência pelo leite. A despeito da vivacidade da sua maneira, sentia que ela estava muitíssimo
nervosa, inclinada à desconfiança, com um medo desesperado
de se comprometer. Havia linhas de decepção descendo das suas narinas. Falava muito mais do que antes e tinha um jeito curioso de se conduzir. Na escrivaninha havia
fichas anotadas, bloco de notas, uma lista de pedidos, vários documentos de obras de caridade, e acima ao lado da fotografia das crianças, uma grande fotografia
de estúdio de um clérigo - belo, de testa elevada, (irradiando uma serenidade altaneira - indiscutivelmente Loftus. Aproximouse e estudou-a.
- Este é o vigário de São Barnabé?
- Conhece o Padre Loftus?
- Conheci... Ele foi brutal com Jenny... minha mulher... quando ela trabalhava na Sede. - Ausente, acrescentou: - Ele agora parece bem nutrido.
- Oh, Stephen, como pode dizer isso? Veja só a nobreza desse rosto.
- Pode-se fazer qualquer coisa com uma fotografia, Claire. - Sorriu, inteiramente sem malícia. - Se eu o pintasse, penetraria abaixo dessa camada de gordura. - Subitamente
deu uma risada, curta, espasmódica, que terminou num acesso de tosse. Limpou os olhos com um lenço sujo de tinta. - Desculpe-me. Eu só estava pensando em como andei
perto de acabar assim. Como ela não respondeu, nem expressou a ideia óbvia que vinha à mente, ele sentou-se de novo.
- Como está Geoffrey?
Ela corou dolorosamente, mas respondeu de modo calmo.
- Bem, acho eu. Não nos vemos há meses.
Era difícil para ele combinar as peças. Se ela não estava de fato separada de Geoffrey, pelo menos via-o tão raramente quanto possível; além disso, enchia a sua
vida um pouco desesperadamente talvez, com obras pias, reuniões de comissões, filantropia bem alimentada. Contudo, quantos momentos solitários teria ela passado
nesta bela sala, tão fria agora depois do calor do teatro, e cheirando a alfazema?
O silêncio ameaçava tornar-se um constrangimento - que acima de tudo devia ser evitado. Ela aproximou-se, ofereceu-lhe um sanduíche triangular, fino, de pão branco,
as cascas aparadas, contendo creme de queijo e azeitonas [picadas.
- Não é muito substancial, eu acho.
- Não tenho fome - respondeu ele. - Comi uma travessa de dobradinha com cebola antes do teatro.
Ela deu-lhe um rápido olhar de relance, corando ligeiramente. Porque dizia aquela grosseria desnecessária? Era inconsciente ou intencional? E com um esquisito afundamento
interior, um sofrimento quase de consternação, perguntou a si mesma por que o tinha convidado ao retiro que, com tanta dificuldade, tinha criado para si. mas tão
inviolado que nenhum homem, exceto o Padre Loftus - e ele, naturalmente, como ministro de Deus, não precisava ser
considerado no sentido masculino - ultrapassara a soleira da porta? Aquele homem seria Stephen Desmonde? Naquele medonho terno de confecção e naqueles sapatos marrons
baratos - comprados com muita atenção, embora ela não o soubesse, por Jenny no empório de East London - estava vestido exatamente como um trabalhador, um operário
que saiu de noite. A cabeça, aprumada e ereta, guardava uma certa distinção, mas o cabelo cortado rente, acentuando a estrutura óssea do crânio, tinha para ela uma
aparência intimidante, reforçada pela calma irónica dos seus olhos. Suas belas mãos estavam grossas, as unhas descuidadas, rachadas e manchadas de tinta.
Contudo, dominou tais sentimentos, consciente de uma missão para com ele. O desejo de ajudar, de socorrer, robustecido pelo seu trabalho com os desafortunados, subiu
vivamente dentro dela.
- Stephen - falou impulsivamente. - Onde esteve vivendo todos estes anos?
- No East End - respondeu ele vagamente. - Perto do rio.
- Lá nas Docas?
- Sim. Cable Street. Por que não?
Ela o olhou chocada.
- Não acha que é tempo de mudar? Quero dizer... que espécie de vida há para você em tal ambiente.. . misturando-se a essa classe de gente?
- Um artista não pertence a classe alguma. E eu gosto do povo.
- Mas você devia estar entre coisas belas... no campo... mesmo que fosse numa cabana.
- E pintar rosas na porta? Não, Claire, minha inspiração vem da boa lama do Tamisa. Por favor, não tenha pena de nós. Temos os nossos divertimentos. Nas noites de
sábado vamos beber um copo de cerveja no barzinho do bairro. Às vezes vamos ao Heath. E no verão passamos duas semanas em Margate, com a cunhada de minha mulher.
Ela tem uma barraca de peixe, suas enguias em geléia são qualquer coisa de sublime.
Claire mordeu o lábio. Ele estava tentando provocá-la, ou realmente tinha decaído para aqueles padrões vulgares e gostos degradados? A ideia de que vivesse em sórdida
intimidade com aquela criada reles de quem o Padre Loftus falara em termos duros, e cujos instintos soltos eram sem dúvida responsáveis pela decadência de Stephen
e, sim, pela sua desvitalização, causava-lhe uma fria repugnância.
- Eu devia ter imaginado...
Ele sorriu mais ou menos à sua velha maneira.
- Não se preocupe, Claire. Para mim, não faz diferença viver aqui ou ali, desde que eu possa pintar. Somente uma coisa tem importância. Devo ficar livre para trabalhar
como e quando quiser.
- Então - disse ela lentamente, não voltará para Stillwater?
- Jamais.
- Nunca pensa nos que estão lá?
- Isso pode chocá-la... mas não penso.
- Você nem sequer sabe o que tem acontecido... na Reitoria. Ele sacudiu a cabeça.
- Nem uma palavra.
- E se eles estiverem querendo você... precisando de você?
- Impossível.
- Tem havido muitas mudanças, Stephen... e não para melhor.
A solenidade da sua maneira - quase oracular - foi demais para ele, e diante do seu sorriso tranquilo ela corou de novo, magoada e ofendida por sua indiferença.
Seria ele uma prova contra tudo? Ou, na sua existência submersa, vivendo naquele vazio não natural, sem receber cartas, ler jornais - pois, do contrário, com certeza
teria sabido sobre sua mãe - estaria completamente insensível, esquecido de tudo, menos do ato de transmitir cor a um retângulo de tela? Por um momento, esteve tentada
a contra-atacar, a feri-lo, revelando toda a extensão dos infortúnios que tinham desabado sobre Stillwater. Mas uma vez mais conteve-se, menos por caridade cristã
do que por um sentimento de que a responsabilidade não era sua e que, na verdade, semelhante ação de sua parte poderia tornar as coisas piores.
Um relojinho francês bateu suavemente no consolo da lareira, e ao som dele Stephen moveu-se.
- É tarde. Não devo retê-la mais.
Ela não respondeu. Ele se levantou e estendeu-lhe a mão. Quando ela a tomou, uma sensação de tristeza, de algo desperdiçado e de piedade dominou-o. De modo inteiramente
inesperado, pousou uma mão no seu ombro.
- Ainda somos amigos, não é?
A expressão no rosto dela, que ele tinha quase antecipado, chocado, quase em pânico por sua proximidade, fez os seus olhos cintilarem.
- Alegro-me, Claire. Você não sente mais nada. Soltou-a. Entraram no pequeno saguão.
- Deve visitar-me de novo - disse ela debilmente, lutando para exibir uma aparência de normalidade.
Ele sorriu sem responder, e no instante seguinte tinha ido embora. Ela teve a súbita convicção de que nunca mais o veria. Lentamente, de cabeça baixa, entrou no
seu quarto, outra vez branco, tão frescamente virginal como nos dias da sua donzelice, e olhou sem ver para a sua imagem no espelho. Ele parecia tão gasto - física,
emocional e mentalmente sobrecarregado - e em muitos modos tão estranho. Era verdade que tudo o que ela sentira por ele tinha morrido? Não o sabia. Seus olhos se
marejaram de lágrimas, que correram lentamente por suas faces.
- Ao menos sei onde ele vive. Preciso falar com Caroline a seu respeito. Preciso mesmo.
CAPÍTULO III
POR MAIS DE SETE ANOS, nada tinha perturbado a tranquilidade da vida de Stephen, mas agora, posta em movimento pela visita de Glyn, uma série de acontecimentos inesperados
começou a importuná-lo. Uns 12 dias depois do seu encontro com Claire, chegou uma carta a Cable Street com o carimbo de Stillwater. Jenny, que tinha um grande respeito
pelos sentimentos de família, e, sendo despida de qualquer orgulho, às vezes desejava intimamente que ele se reconciliasse com os seus parentes, mesmo que ela própria
fosse excluída, colocou-a junto ao prato que esperava a volta de Stephen do rio.
Quando ele entrou, sentou-se e apanhou a carta, pensando que era de Glyn - porque as insistentes insinuações de Richard tinham-no preparado para uma comunicação
qualquer - mas, observando a letra no envelope, soltou-a com um leve franzir do cenho. No entanto, depois de ter tomado a sopa, abriu-a e então, passados alguns
momentos, notando o olhar de intenso interesse de Jenny, disse:
- É de Caroline. Ela quer que eu vá encontrá-la.
- Você vai, não é?
- Para que diabo servirá isso...?
- Mas com certeza é bom ver a sua irmã.
- Também seria uma perda de tempo.
- Ela é carne da sua carne.
Sua expressão desanuviou-se, teve que sorrir. Não apenas da reprovação, mas da seriedade com que ela a exprimira. Tocou-lhe a mão. Sua sensatez, a aberta simplicidade
da sua natureza sempre pareciam trazê-lo de volta daquele estranho país em que se extraviava solitário. Não pela primeira vez, avaliou o quanto devia não apenas
ao seu génio bom, saudável, alegre e abundante, ao seu autodomínio, mas à sua compreensão, ao seu instintivo conhecimento da natureza humana. A simpatia, não exprimida,
que fluía dela quando ele se sentia deprimido, era como um bálsamo curativo. Seus gostos e ambições modestas, tanto para "uma boa xícara de chá forte" como para
um novo tapete para a estufa, sua ausência de inveja, seu interesse infantil,
sem ressentimento, pelos mais ricos e mais afortunados do que ela, como via nos retratos dos jornais, eram-lhe inteiramente tocantes. E como eram esplêndidas, também,
as suas atividades calmas e eficientes na casa, a sua presença de espírito numa crise! Ela era um verdadeiro romance, o romance do bom senso e da bondade, de uma
mulher com quem se podia dormir numa cama quente. O lar que ela lhe dera, um refúgio, fixo e estável, fazia todas as suas andanças e esforços infelizes parecerem
estúpidos e fúteis.
- Amo você, Jenny. E por causa disso vou. - E acrescentou: - É o que eu mereço por ter ido àquele diabo de ópera.
Ela sorriu para ele com uma simpatia grave, confortável e sensata.
Na quarta-feira da semana seguinte, embora com relutância, ele saiu para a Estação Victoria, onde, sob o relógio central, Caroline disse que o esperaria. A manhã
estava chuvosa e nublada, condições que tornavam o trabalho impossível e temperavam de certo modo a sua relutância em fazer aquela concessão inteiramente desnecessária
ao sentimento de família. Durante os últimos poucos dias, sentira-se inexplicavelmente cansado. O nevoeiro do outono londrino sempre o abatia, e como a tosse o mantinha
acordado parte da noite, sua disposição não era de todo efervescente ao aproximar-se da estação.
Quando saltou do ônibus e abriu caminho na plataforma apinhada, passava das 11, e ele se perguntou se Carrie, a personificação da pontualidade, podia realmente estar
atrasada. Então, junto à banca de livros e jornais, viu uma mulher baixa, de meia-idade, com os cabelos listrados de cinza, vestida num costume de tweed mal assentado,
que feriu uma corda familiar de lembrança. Quando ela o viu, o seu largo rosto ansioso iluminou-se; aproximou-se, tomando fôlego, nervosa, e cumprimentou-o. Embora
ele mal a reconhecesse, era a sua irmã.
- Que manhã"! - exclamou ela, achando segura uma observação sobre o tempo. - A mesma chuvarada de sempre.
- Acho que fez uma viagem com chuva até Halborough.
- Sim, chovia muito. Não havia ônibus e eu tive que andar. Meu guarda-chuva virou do avesso. - Novamente, tentando um sorriso de protesto, tornou aquele fôlego nervoso,
mostrando o guarda-chuva, uma ruína de seda preta rasgada e varetas torcidas, que ela carregava. - Pode ser consertado... acho eu.
Houve uma pausa, e então ele disse:
- Acho que você gostaria de uma xícara de café. Vamos ao bufê?
Ela pareceu encolher-se com o movimento e o vozerio no restaurante da estação.
- Não podemos falar aqui. É muito barulhento. Há um lugar tranquilo... a Chaleira de Cobre... logo do outro lado da rua, perto do Palace.
Saíram para a rua pelo terminal dos ônibus, e atrás da estação, numa área estagnada, entraram num estabelecimento pintado de verde-maçã aguado, onde, na vitrine,
entre alguns potes de geléia e brioches secos, dormia um enorme gato preto. No andar de cima, numa salinha fria, vazia àquela hora, sentaram-se à mesa de carvalho
queimado sobre a qual havia um instável vaso de flores de papel, uma caixa de esmolas para os Lares do Dr. Barnardo e um cincerro suíço. Stephen tocou o cincerro,
que emitiu um som lúgubre, e dali a pouco apareceu uma arrogante mulher de colete de malha de lã, que trouxe duas xícaras de uma beberagem cinzenta e morna, e um
prato de bolinhos descorados.
Na presença da proprietária, Caroline tinha iniciado uma animada conversação fictícia sobre o tempo, a situação da colheita, as possibilidades da temporada de caça
dos filhotes de raposa, mas quando ficaram sós, os seus ombros se abaixaram e ela começou a mexer tristemente o líquido da sua xícara lascada.
- Suponho - disse ela em voz baixa, depois de certificar-se de que não eram ouvidos - que é melhor começar do início. Você não sabe de nada?
- Não.
- Bem... como se já não tivéssemos suficientes dificuldades - respirou fundo para resistir à dor da sua comunicação - estamos deixando a Reitoria.
Ele pareceu não entender.
- Deixando... por quê?
- Fomos forçados a vendê-la.
- Mas se está vinculada à igreja... certamente não pode ser vendida.
- Os comissários eclesiásticos deram permissão a papai... diante das circunstâncias... sob a condição de que moremos perto da igreja.
Houve uma pausa.
- Para onde vão?
- Para uma casinha horrorosa na coutada. Um dos bangalôs de tijolo do Mould, sem jardim, e só com quatro quartos, todos tão pequenos que não dão nem para um gato.
Oh, meu querido, meu querido... é insuportável.
Até no seu infortúnio, as palavras lhe saíam tropeçando, abatendo-a novamente pela sua terrível significação. Ele a considerou em silêncio, com uma calma estranha.
Então:
- Pensei que você gostasse de uma casa pequena. Muitas vezes ouvi você se queixar de que Stillwater era muito grande e antiquada para dirigir. Pode ser que você
ache o bangalô mais cómodo.
- Como pode dizer isso? - exclamou ela com súbito calor. - Stillwater foi o lar dos Desmondes durante 200 anos. Você sabe o quanto papai se orgulha daquela casa.
E como a ama. Isso não significa nada para você?
- Não - respondeu ele após um momento de reflexão. - Em certa época, sim. Mas agora não. - Fez uma pausa. - Quem é que está comprando?
- Não pode adivinhar?
- Mould?
Ela assentiu, e lágrimas amargas começaram a marejar nos seus olhos.
- Ele tem comprado toda terra que pode perto da aldeia. Comenta-se que vai instalar uma fábrica de cimento nos Downs, justamente ao lado da velha pedreira calcária,
diante da casa. É incrível. . . A vista desaparecerá. . . tudo. Quando penso em como Sussex tem mudado, tenho vontade de sentar e chorar. Lugares bonitos estragados,
terrenos loteados, construções de avenidas, cinemas baratos e salões de baile, sem uma criada, e onde a polidez, mesmo a civilidade comum, nas lojas da aldeia, simplesmente
deixou de existir.
Ele a trouxe de volta ao assunto.
- Você não me contou como é que isso foi acontecer.
Ela engasgou-se com um pedaço de bolo seco que, sem notar, tinha posto na boca.
- Foi mamãe. Você sabe como ela sempre foi. . . sem nenhum senso de economia, ou prudência, sem noção do valor do dinheiro. Quando ela saía para aquelas férias,
sempre pensávamos que tinha recursos próprios, um pequeno rendimento que nunca nos mencionara. Mas, oh, meu querido, não era assim. Há exatamente 12 meses, descobrimos
que ela estava nas mãos de agiotas, dois sujeitos da City que um dia apareceram e ameaçaram com um processo se ele não pagasse. . . Você vê. . . - Caroline titubeou.
- Só nos últimos dois anos, ela já tinha assumido dívidas astronómicas.
- Quanto?
- Quase 10 mil libras. Naturalmente - continuou rapidamente Caroline - ela só tinha recebido uma pequena parte dessa quantia, mas, com os juros exorbitantes, esse
foi o montante que eles calcularam como devido. Foi pura extorsão, chantagem se preferir, mas para não enfrentar a série de processos que seriam movidos contra ela,
papai resolveu pagar. Melhor ficar arruinado com honra, disse ele, do que arrostar outra desgraça.. .
- Como a que eu lhe infligi. . . - Como Caroline se interrompera, ele terminou serenamente a frase para ela.
Caroline desviou os olhos, que permaneceram, por alguns momentos, aflitos mas acusadores, voltados para o panorama dos potes na chaminé, grotescamente borrados pelas
vidraças de vidro soprado.
- Hubert não podia ter feito alguma coisa? Ou Geoffrey? Ela abanou a cabeça.
- Eles também enfrentam dificuldades. Impostos e salários altos abalaram Hubert. .. os pomares não estão dando lucro. E acredito que Geoffrey tenha hipotecado Broughton.
Nós agora só nos vemos muito raramente.
- Bem - disse ele por fim - a velha garota se divertiu à grande. De certo modo, sempre a admirei por fazer exatamente o que queria. Onde está ela agora?
Caroline endireitou-se, e depois, numa voz sumida, forçou-se a revelar o desastre final.
- Num hospital particular, em Dulwich.
Ele olhou inexpressivamente para ela, e então, de súbito, soltou uma gargalhada. Estupefata, pálida e aturdida, ela o observou, tão paralisada pela indignação que
não pôde falar. Por que, em nome do céu, ele se comportava daquela maneira vergonhosa? Lembrou-se de que Claire, numa de suas longas discussões, tentando desculpá-lo,
dissera-lhe que nenhum artista era uma pessoa inteiramente equilibrada. Também haveria nele uma ponta de loucura? Agitada e nervosa, curvou-se para ele.
- Não faça isso! Perdeu o juízo?
- Sinto - disse ele, recompondo-se. - Esse me pareceu o fim mais admirável de uma carreira inteiramente divertida.
- Divertida? Você não tem mesmo coração. Tenho... tenho vergonha de você.
- Ora, Carrie, não tenha pena de todo mundo, inclusive de você. Conheci gente com muito maiores dificuldades do que você já teve, e jamais terá. Na Espanha, morei
com uma mulher velha e cega que tinha menos do que nada, nem mesmo o que comer, que se enregelava no inverno e torrava no verão, que conhecia não apenas a mais absoluta
penúria, mas a desolação da completa solidão, e que apesar disso jamais se queixou uma única vez. Você não precisa ficar tão deprimida.
- Que hei de fazer, quando penso no modo como as coisas se perderam? Se você ao menos tivesse sido um bom filho, tivesse ficado em casa, entrando para a Igreja e
ajudando papai a controlar as coisas, e também mamãe, ainda estaríamos todos felizes em Stillwater. Você seria amado e respeitado...
- Em vez de odiado e desprezado...
- Stephen! - Novamente ela se inclinou, mas foi para pousar no seu braço uma mão súplice. - Mesmo agora, ainda não é demasiado tarde. Papai precisa de Você. Ele
ainda...
- Pelo amor de Deus, Carrie - interrompeu ele asperamente. - Você sabe que sou casado. Quer a nós dois no seu bangalô de quatro quartos? Você tem mesmo o dom de
sugerir o impossível.
- Então não há mais nada que dizer. - Suspirou, calçou as luvas de algodão e recolheu os restos do guarda-chuva.
- A propósito - disse ele, pensando em algo que lhe ocorrera. - Esse lugar em Dulwich não é um tanto dispendioso? Como é que vocês estão se arranjando?
- Claire está ajudando. Ela é muito bondosa - ajuntou Carolihe. Vou visitar mamãe agora. Talvez isso não lhe interesse, mas ela às vezes fala em você.
- Então irei com você. Gostaria muito de vê-la.
Enquanto ela olhava para ele, surpreendida, sem saber se ele falava sério ou se aquilo era apenas alguma outra iniquidade da sua natureza incompreensível, decidindo
finalmente que aquela era uma ação louvável, Stephen acrescentou, com um sorriso curioso, destruindo a ligeira aprovação antes mesmo que ela a exprimisse:
- De qualquer modo, hoje a luz não está boa para pintar. Depois que Stephen pagou a conta no balcão do térreo, saíram da loja, atravessaram a estação e, após alguma
espera, tomaram um trem para os subúrbios de South London. Não era uma viagem muito longa, e dali a pouco emergiram da fumaça e fuligem do centro de Londres na atmosfera
mais fresca de Dulwich, onde afortunadamente não estava chovendo. O hospital, situado num trecho aberto não muito longe da estação, era uma mansão de pedra cinzenta
castigada pelo tempo, no último estilo baronial, com torres gémeas, frontão acastelado e janelas pontudas ao gosto gótico, aparentemente uma adaptação de uma casa
de campo do começo do período vitoriano, situada num vasto terreno e cercada por um alto muro de tijolos coroado por uma orla de espigões quebrados. Na guarita do
porteiro, onde Caroline apresentou um cartão de visita, foram admitidos por um atendente que os dirigiu por um caminho ensaibrado, flanqueado de faias. Ao longo
de outra alameda podia-se ver uma procissão de internados, figuras de jaquetas escuras, perfiladas contra o céu cinzento, dando o seu passeio matinal, tranquilamente
e muito à vontade. Outros, aparentemente de categoria mais inferior -, ocupavam-se descansadamente da horta. À direita, distante, numa faixa de relva desenhada contra
uma sebe de teixos, uma partida de ténis entre dois cavalheiros de meia idade se desenrolava preguiçosamente sobre uma rede frouxa. Ao lado, algumas senhoras com
malhos de croque estavam ocupadas em impelir a bola através de uma variedade de arcos. E do primeiro plano, de um grupo de homens e mulheres sentados com uma enfermeira
num abrigo de telhas vermelhas, vinham pequenas lufadas de risos. Uma sensação de afastamento remoto e repouso enchia o ar, o qual, com o odor das folhas apodrecidas,
as plantas em caixas simétricas e a escura plantação de arbustos - cercando uma gruta arruinada onde, por entre fetos, havia uma única estátua grega, infelizmente
quebrada - e, dominando todo o quadro, as torres da mansão, dava ao lugar um caráter não deste mundo, irreal, sereno, majestoso.
Na entrada principal, tocaram a campainha e foram introduzidos, através do vestíbulo, pavimentado de mármore preto e branco, numa sala de espera encortinada, enfeitada
e fora de moda talvez, mas mobiliada com dignidade,
principalmente na marchetaria, com uma fila de quatro cadeiras contra cada parede. Aqui também havia evidência de animação, murmúrio de vozes da porta seguinte,
um alegre tilintar de louça, e do andar superior o som de uma valsa de Strauss, tocada com considerável brio, tão suave e dulçuroso, que Stephen quase podia ver
as teclas amareladas afundando sob aquele animado ataque. E foi entre as notas afinadas de Bosques de Viena que Julia, gentilmente trazida por mãos nas costas, deu
entrada na sala.
Ali estava ela, olhando para um e outro, sorrindo-lhes com o mesmo alheamento inexpressivo que, mesmo nos momentos da mais aguda crise doméstica, a distinguira durante
toda a sua existência. Vestida numa de suas túnicas vaporosas, à qual ela acrescentara algumas rendas, adaptações de sua própria concepção, com uma longa faixa de
tule em volta do pescoço, e em cada um dos punhos um laço de fita cor-de-rosa, o cabelo frisado en pompadour, o rosto coberto de pó-de-arroz, uma máscara branca
na qual os seus olhos de veludo apareciam orlados de negro, tinha uma aparência reconhecidamente excêntrica, mas a um só tempo imponente e elegante.
- Como está hoje, mamãe? - perguntou Caroline.
- Estou muito bem, naturalmente. Como sempre estou em Sagitário.
- Stephen veio ver a senhora.
- Então veio de Paris? - Ignorando Caroline, ela adiantou-se e ocupou uma cadeira ao lado dele, da maneira mais cordial. - O que achou dos franceses?
- Muito amáveis. É muito bom vê-la.
- Obrigada, Stephen. Ainda está morando com aquela mulher de lá? A mulher de quem seu pai tinha medo?
- Não. Estou levando uma vida quase respeitável, para variar.
- Não se lembra, mamãe? - perguntou Caroline com voz magoada e prestativa, para impedir novas indiscrições. - Stephen voltou da França há muito tempo. E desde então
esteve na Espanha.
- Ah, Espanha. Lembro-me que, quando menina, estive em Madri com meu pai, onde ele teve grande trabalho com um garçom que se recusava a ferver a água.
- E agora - persistiu Caroline - ele está trabalhando na sua pintura em Londres.
- Naturalmente - respondeu Julia bruscamente, e outra vez dando o ombro a Caroline, se dirigiu a Stephen. - A sua pintura. Ainda outro dia eu estava lembrando como
você, quando era um menininho, costumava andar pela galeria em Haselton com meu querido pai, antes de ele vender os nossos quadros e se meter com helicópteros. Houve
uma tarde em que pensamos que você se perdera, afogado no lago talvez, um grande rebuliço. E foi encontrado sozinho na galeria, sentado no chão, diante de uma das
pinturas.
- Sim - concordou Stephen. - Um Teniers realmente cadavérico, O Açougue, cheio de carcaças sangrentas de bois. Aquilo me fascinava.
- E foi depois disso - prosseguiu ela com animação - que seu pai lhe deu uma caixa de aquarelas.
- Talvez essa tenha sido a minha desgraça - riu-se ele.
Julia não respondeu. Ela podia ficar profundamente séria em presença do riso; o seu vinha inesperadamente quando os outros estavam sérios.
- Não, não, meu querido. - Sacudiu a cabeça e ergueu um dedo, num gesto de rainha. - O que está em nós, nós faremos, a despeito dos outros.
Ele não respondeu, mas pensou: "Essa é a observação mais sensata que ouvi hoje." Seguiu-se um silêncio, e então, movido menos por curiosidade do que por uma solicitude
incomum, Stephen perguntou:
- Gosta daqui?
- Muitíssimo. Não interfere com o meu conforto nem me cansa em demasia. Parece-me combinar as qualidades de um balneário, que eu sempre apreciei, com uma atmosfera
mais íntima e selecionada. Temos um excelente médico, um homem jovem bem versado na terapêutica da eliminação, que eu acho muito atencioso. As enfermeiras são solícitas
e, coitadas, fazem o melhor que podem pela gente. A vida é descansada, gosto do meu passeio de manhã, à tarde passamos muito tempo sentados, e à noite temos muita
vida social, concertos, bailes ocasionais, um mágico visitante e a nossa própria orquestra de 12 figuras. Acredite-me se quiser, mas fui de fato procurada, muito
justamente sem dúvida, por um dos cavalheiros nossos hóspedes, querendo saber se eu concordaria em cantar. Eu costumava pensar, quando era uma moça romântica e acabava
de passar por um período religioso com o falecido Cónego Pusey, que um dia gostaria de me retirar para um mosteiro... quero dizer - corrigiu-se pedantemente - um
convento. Agora, como parece que devo ficar confinada, isso, garanto-lhe, representa um progresso.
Stephen aprovou com simpatia, impressionado com o espírito de Julia, percebendo mais claramente do que nunca o quanto ele tinha em comum com aquela mulher estranha
que era sua mãe. Dela, inquestionavelmente, lhe viera o seu desrespeito pela convenção e desprezo pelo banal, a sua completa inconsciência pelo que se passava à
sua volta, e também, sem dúvida, aquela tendência hereditária de singularidade, auto-reconhecida, que o fazia sentir-se uma curiosidade, alguém à parte do resto
do mundo. Contudo, embora não tivesse se importado com uma animada aberração, como a de Julia, infelizmente todas as tendências extravagantes da sua natureza levavam-no
a uma direção precisamente oposta. A cabeça dela pairava serenamente nas nuvens, mas a dele estava resolutamente curvada para o abismo.
Enquanto refletia sobre isso, Caroline começara a conversar com sua mãe, em tom baixo e sério, sobre temas mais práticos. Assuntos de roupa de
cama, lavagem, e a necessidade de uma roupa de baixo mais quente para o inverno, foram trazidos à baila, ligeiramente considerados por Julia e aereamente encerrados.
Recados de Bertram foram então comunicados e aceitos com um ar de benigno divertimento. Dali a pouco tocou uma sineta, ecoando por todo o edifício, e um momento
mais tarde ouviu-se uma batidinha na porta, que se abriu parcial e discretamente, para admitir uma voz aduladora.
- Hora do almoço, querida Sra. Desmonde.
Julia, com um olhar confiante, como que para dizer complacentemente "veja como somos atendidos", levantou-se e, alisando a saia e arranjando as fitas dos pulsos,
assumiu uma atitude elegante.
- Gosta do meu vestido? - Tocou coquetemente nos babados extravagantes, pedindo admiração. - A enfermeira foi meio contra a renda, mas eu acho que assenta muito
bem.
- É um vestido esplêndido - disse Stephen. - Assenta-lhe maravilhosamente. E se a senhora não se importar, breve estarei de volta para pintá-la com ele.
- Venha, sim, querido Stephen - murmurou ela na sua velha e cativante maneira, ao sair arrebatadamente do quarto. - Qualquer dia... em Sagitário, se puder... nunca
em Escorpião.
Lá fora, nuvens negras tinham coberto a cidade e começava a chover pesadamente - uma desvantagem considerável, pois Stephen se achava sem sobretudo, apenas com a
echarpe que sempre usava nos ombros, e Caroline, é claro, estava privada da proteção do seu guarda-chuva. Ao descerem a alameda, curvados contra a chuva oblíqua,
nenhum deles falava. Stephen, apesar do seu espírito conturbado, não podia deixar de lamentar o fato de não ter podido fazer um desenho de Julia no seu vestido fantástico,
gracioso, encantadora e absurda. Que efeitos maravilhosos e caprichosos poderia produzir contra o fundo daquele lugar estranho, daquele refúgio de irrealidade, como
parecia, com os estalos das bolas de croque, os ecos dos risos ligeiros, e os ritmos estonteantes daquela tilitante valsa de Strauss. Por fim, ao dobrarem para o
abrigo da estação, ele se afastou dos seus pensamentos.
- Ela não parecia tão mal - comentou ele, injetando uma nota de encorajamento nas suas palavras. Mas Carrie não queria saber de nada disso.
- Você não a viu quando ela está realmente medonha.
Ele mordeu o lábio, aborrecido.
- Pelo menos não está infeliz.
- Não - fez Caroline. - Suponho que não. Mas o médico diz que a mente dela irá enfraquecendo aos poucos. Amolecimento cerebral foi o que disse.
No trem, ao matracolejarem pelos túneis, lampejos intermitentes de luz do dia mostrando vistas de telhados molhados dos subúrbios, de ruas com o
tráfego atravancado e guarda-chuvas escorrendo, movendo-se como târtarugas nas calçadas molhadas, ela mantinha a cabeça voltada num relance subreptício, fingindo
olhar para a janela, ele viu que ela chorava em silêncio, com o lenço úmido apertado na mão. Embora desprezasse aquilo, aquela perpétua lamentação afetou-o. Já se
desfizera a sua animação de antes, deixando-o agora infeliz e abatido, assaltado por dores de autodegradação, uma súbita percepção da sua inutilidade no mundo material.
Afinal de contas, não havia razão na atitude de Caroline? - naquela crise familiar, ela devia naturalmente procurar ajuda nele. Contudo, ele não podia, ou não queria,
ajudá-la. Agora, mais do que nunca, nenhum laço humano, nenhuma força na terra poderiam afastá-lo do rumo que tinha escolhido e que, como um homem obcecado, devia
seguir até o amargo fim. De repente, estremeceu, com uma súbita sensação de tontura. O seu hábito de esquecer a comida - porque tinha algumas moedas no bolso e podia
facilmente ter parado em Dulwich para uma refeição com Caroline - indubitavelmente contribuía para a depressão do seu espírito. Contudo, além disso se sentia confusamente
abatido - os pés úmidos estavam gelados e ele mais do que nunca ciente daquela estranha dormência na garganta.
Em Victoria, desembarcaram e atravessaram a estação principal. A tabuleta de partidas indicava que um trem sairia para Halborough dentro de três minutos.
- Se correr, ainda o apanho - exclamou Caroline nervosamente. Obrigada por ter vindo, Stephen. Adeus.
- Adeus.
Apertaram-se as mãos apressadamente e sem jeito. Já sem fôlego, ela disparou, como um pato mergulhando, pela grade da plataforma. Quando Stephen deixou a estação,
os jornaleiros apregoavam as primeiras edições dos vespertinos. Resolvido, a chegar em casa o mais breve possível, não prestou atenção aos seus gritos, mas, a despeito
da sua preocupação, uma palavra aqui e outra ali penetraram a sua disposição absorta e finalmente atingiram a sua consciência. Estacou e, como em sonho, atordoado,
mas ainda assim com uma enjoada sensação de susto, leu a manchete nos cartazes:
SENSAÇÃO NA ACADEMIA
REABERTO O ESCÂNDALO DOS PAINÉIS DE CHARMINSTER Membro da Academia Real demite-se
CAPÍTULO IV
O BONDE Não ANDAVA depressa o bastante quando, inclinado sobre o jornal, com a testa enrugada, ele lia e relia a folha oscilante. Eram cinco horas quando chegou
à Cable Street, e lá, caminhando para cima e para baixo na parada de ônibus, estava Glyn.
- Achei que podia encontrá-lo aqui. Jenny me disse que você tinha saído. - Glyn fez uma pausa, seu olho, irrequieto e perturbado, fitando o outro e depois se afastando.
- Vamos tomar uma bebida.
- Prefiro ir para casa - disse Stephen secamente.
- Não, não vá ainda. - Glyn olhou significativamente por cima dos ombros para a rua. - Preciso falar com você primeiro.
Stephen hesitou, com o rosto duro, impassível, e depois, sem uma palavra, acompanhou o outro até um bar do outro lado da rua, o Good Intent. A sala baixa, com areia
no chão, estava vazia, e num canto, sob o modelo de um brigue aparelhado que dava à taberna o seu nome, Glyn pediu dois uísques duplos e quentes. Sua maneira, embora
indicasse certo constrangimento, era tensa e truculenta. O rosto estava vermelho, algo da antiga chama cintilava no seu olho. Quando o grogue chegou, ele disse:
- Beba isso. Já tomei dois enquanto estive à sua espera. Estou um tanto tenso, mas não se incomode com isso.
Stephen emborcou um gole do líquido fumegante. Engasgado pelo amargo da bebida, forcejava para manter o domínio dos nervos.
- Então agora você já sabe - disse Glyn de súbito - que eu carreguei o seu Charneca de Hampstead.
- Sem me consultar.
- Se eu consultasse, você teria deixado?
- Não... nunca.
Diante da violência da resposta, Glyn lançou um olhar rápido para Stephen.
- Bem, eu levei. E não foi um ato impensado. Eu já tinha falado com três membros da comissão, Stead, Elkins e Prothero, todos bons sujeitos e uns diabos de bons
pintores. Não me olhe assim. Pelo menos tenha a decência de me deixar explicar o que aconteceu.
- Continue então, pelo amor de Deus.
Glyn, também tenso, ficou ainda mais vermelho, e com esforço controlou uma resposta irritada.
- Pode me censurar o quanto quiser. Mas lembre-se que agi pensando no melhor. - Fez uma pausa por um momento, e recomeçou: - A reunião da comissão de seleção foi
às 11 horas desta manhã. Você provavelmente conhece o procedimento. Os membros se sentam num semicírculo de poltronas, com o presidente no centro, numa das galerias
da Burlington House. Enquanto os quadros são trazidos um de cada vez pelos zeladores, e colocados num trono, eles votam "aprovado", que é indicado por uma mão ou
um dedo levantados, ou "recusado", não levantando as mãos. Bem, este ano o lote era extraordinariamente pobre - além de uma dúzia de telas, nada de notável, o padrão
habitual de paisagens barrentas, arranjos de flores e retratos inexpressivos. Nas circunstâncias, a votação era, tinha que ser, particularmente tolerante, pois de
outro modo não haveria exposição.
Glyn interrompeu-se e enfiou os dedos pelos cabelos.
- Estávamos chegando ao finzinho quando veio o seu Charneca, aliás, eu tinha arranjado isso. E posso lhe dizer que, após o que tinha sido apresentado antes - deu
um murro na mesa - realmente foi um tiro. Houve uma dessas pausas que raramente acontecem naquela sala. Todos se endireitaram nas poltronas e prestaram atenção.
Eu podia dizer imediatamente que os homens sentados à minha volta estavam impressionados. Quando ergui a minha mão, os sujeitos de que lhe falei me acompanharam.
Depois, outra mão se levantou, e uma quinta... todos do novo grupo recém-chegado à Academia, membros que não cospem na arte moderna, que admiram Matisse, Bonnard
e Lurcat, e sabem se uma coisa é bela quando a vêem.
A despeito da determinação de permanecer alheado, Stephen sentiu uma tremura percorrer-lhe os membros. Seus olhos se apertaram quando Glyn continuou.
- Há um outro grupo que senta junto, na frente da sala - o velho Sir Moses Stencil, a Dama Dora Downes, Carrington Woodstock e Munsey Peters. Eles são os antigos,
a velha guarda, e isto é uma classificação abrandada. Stencil não pinta outra coisa a não ser vacas, já pintou mais vacas do que Cooper, mais do que Harpignies pintou
de carneiros; dizem que tem um Holstein de estimação no seu estúdio de Bloomsbury. Woodstock, por outro lado, é um homem canino, o tipo acabado do proprietário rural,
pintou todas as matilhas de lebréus da Inglaterra e comparece às reuniões de culotes e gravata branca; a Dama Dora faz aqueles interiores de Kensington - você deve
tê-los visto reproduzidos nos suplementos de Natal; quanto a Peters, ele é apenas Peters e não se poderia dizer mais do que isso. Eu não esperava que essa turma
gostasse do quadro. E era óbvio que não gostavam. Mas isso não me incomodava.
Há uma convenção de que se um membro da Academia Real votar a favor de um quadro, os outros concordarão automaticamente. Eu estava certo de que você estava aceito
quando Stencil se levantou de repente, manquejou até o cavalete, sacudiu a cabeça e depois se torceu para voltar ao seu lugar.
"- Eu sinceramente espero que a comissão se lembre das suas responsabilidades para com a nação antes de pronunciar um julgamento favorável sobre este trabalho.
"De fato é muito incomum alguém comentar um trabalho e fez-se um esquisito silêncio. Então a Dama Dora interpôs a sua palavra.
"- Sem dúvida, é ultrajantemente moderno.
"- E por que não?, perguntei. Precisamos de sangue novo.
"- Não desta espécie, disse Woodstock. Pertence inteiramente à variedade errada.
"Essa troca de palavras criou uma digressão que deteve a votação, e Stencil, ainda em pé diante da pintura, olhou para mim.
"- O senhor gosta desta pintura, Sr. Glyn?
"- Muitíssimo.
"- O senhor não a acha obscura, ininteligível?
"- De modo nenhum.
"- Então queira ter a bondade de dizer o que são estes inúmeros lambidos de preto na parte inferior do quadro.
"- São pessoas andando.
"- Eu pareço assim quando passeio em Picadilly?
"- Talvez não. Essas pessoas são mais moças que o senhor.
"- Ah, sim? Obrigado por lembrar a minha antiguidade. E este veículo à esquerda do primeiro plano, o que é?
"- Obviamente, o carrinho e o burro de um vendedor ambulante.
"- Impossível, atalhou Woodstock. Nunca vi semelhante animal. As quartelas estão erradas.
"- Certamente não é uma fotografia colorida, se é esse o seu gosto. Mas exprime o seu significado absolutamente, e com grande sentimento.
"- Por meio de um desenho fora de linha?"
"- Executado deliberadamente e com infinita habilidade. Não será isso melhor que a cópia servil da natureza que tantos de nós repetimos, entra ano, sai ano?'
"Stencil deve ter pensado que eu me referira às suas vacas. Lançou-me um olhar furioso.
"- Não serei persuadido a renunciar à gramática do desenho que tem sido aceito desde Giotto."
"- Essa é certamente uma concepção reacionária. Quando alguém se afasta do lugar-comum, o senhor o condena."
"O velho estava perdendo as estribeiras, e embora eu estivesse decidido a manter as minhas, também começava a perdê-las.
"'- Eu certamente condeno isto. Não há aqui uma simples, honesta representação da forma humana natural. Isto não é uma pintura, é um mero salpico de tinta.'
'"- Não obstante, é arte.'
"'- Eu não sei nada a respeito de arte', gritou Stencil. 'Mas sei do que gosto. Com mil raios, não estamos aqui para servir de zombaria ou para permitir que algum
artista aventureiro atire um pote de tinta na cara do público. Nenhum britânico normal seria atraído por essa pintura.'
"- Concordo. E o senhor não poderia lhe prestar maior cumprimento.'
"'- Ah, sim, senhor! Então impugna o gosto nacional?'
"'- Naturalmente, depois de uma dieta das suas vacas e dos cachorros de Woodstock, na certa devem estar sofrendo de indigestão crónica.'
"Eu sabia que estava indo muito longe, mas o meu sangue esquentou, e não pude me conter. O presidente interveio.
"'- Calma, calma, cavalheiros. Tudo isto é muito irregular. Se vamos ter uma discussão sobre esse trabalho, fiquemos dentro dos limites, e sem alusões pessoais,
por favor.'
"Mas Stencil já estava descontrolado e bateu no soalho com aquela sua bengala de ébano. Pensei que ele fosse ter um ataque.
"'- Senhor Presidente, membros da comissão, sou membro da Academia Real há mais de 30 anos. Durante esse tempo, procurei com todo o meu esforço preservar a origem
da arte inglesa em sua fonte. Olhando com severidade para toda influência estrangeira, todas as inovações, novas experiências, expressionismo, e todas as formas
de exotismo, admito, com toda a modéstia, ajudei a manter pura a nossa herança. Sempre fui capaz de olhar para minha consciência de frente e dizer que aqui, nas
exposições da Academia Real, a gente do nosso país veria somente trabalhos que fossem sólidos, honestos e sadios.'
"Houve protestos contra isso, da nossa extremidade. - Glyn fez uma pausa e tomou outro gole de grogue. Mas Stencil continuou.
"'- O que é essa chamada arte moderna? Vou dizer-lhes. Nada mais que um amontoado de simples absurdos. Um novo-rico teve oportunidade de declarar outro dia que Renoir
era maior pintor do que Momney. Digo-lhes que se eu estivesse lá, teria levantado minha bengala contra ele. Que são todos esses borrões fantasistas, senão uma proteção
contra a má técnica? Se devemos pintar um prado, pelo amor de Deus, deixemos que ele se pareça com um prado, e não como uma mancha de verdete. Não façamos esse malabarismo
afetado com a forma e a cor, que nenhum homem sensato pode compreender. Todos sabem a
respeito de certa estátua modernista que foi recentemente
erigida num parque desta cidade. Era supostamente a figura
de uma mulher, e Deus ajude todas as mulheres que tiverem semelhante aspecto. Com efeito, a coisa irritou e revoltou de
tal maneira as pessoas decentes comuns da vizinhança, que uma noite alguns cidadãos honestos a borraram de piche e cobriram de penas e, por obra da Providência,
teve que ser retirada. Ora, este quadro pertence a essa categoria enfermiça. Fere a nossa vista imediatamente como irreal, disforme e pernicioso. Não se parece mais
com a Charneca de Hampstead do que o meu pé. É em todos os detalhes um perigoso desvio de toda a tradição aceita. É puro socialismo. Cavalheiros, não podemos suportar
um declínio da elegância e do bom gosto, que só servirá para confundir e corromper a nossa geração mais jovem de artistas. Nunca se sabe quando pode estourar uma
revolução. É nossa responsabilidade sufocá-la ao nascer.
Com um tamborilar final da bengala no chão, Stencil sentou-se. Por esse tempo eu fervia de raiva. Ali na minha frente estava o seu belo quadro e ali estava aquele...
maníaco das vacas, que não compreendia sequer a primeira pincelada do seu pincel, com os outros conservadores inclinados para ele a darem-lhe parabéns. Levantei-me.
- O senhor diz que a nossa responsabilidade é suprimir. Eu digo que é apoiar e estimular. Meu Deus, nós não somos policiais. Por que havíamos de decidir matar toda
a arte provocadora e arrojada? Todos os artistas originais do século passado foram vítimas desse assassinato. Courbet e Delacroix foram ambos apunhalados pelas costas
- enquanto a escola de Barbizon, produzindo sua droga tradicional, era elevada às nuvens. Ridículo e insultos abafaram os Impressionistas. Cézanne foi chamado de
borrador inepto, van Gogh de mutilador psicopático, Gauguin amador principiante, cujo trabalho exalava cheiro de rato morto. Os Fauves foram vaiados, Braque injuriado,
Seurat e Redon estigmatizados como loucos. Podem verificá-lo, está na história. Há sempre alguns míseros tradicionalistas que se sentem atacados, insultados e minados,
que se erguem, mordidos de inveja, com um riso escarninho nos lábios e um tijolo no punho. Mas, apesar disso, o trabalho desses inovadores vive e o homem do sorriso
escarninho nem sequer é lembrado. E aposto o seguinte - por mais que os senhores rosnem para ele - que este quadro que aqui está diante de nós ainda viverá quando
todos nós aqui reunidos nesta sala já estivermos mortos e esquecidos.
Perdendo um pouco da sua violência, Glyn bebeu de novo, depois abanou a cabeça.
- Foi uma maneira errada de agir, Desmonde, mas, por Deus, não pude evitá-lo. Houve uma espécie de pausa vazia. Depois, como ninguém parecesse ter nada que dizer,
o Presidente, que é um bom sujeito e queria acabar com o bate-boca, sugeriu que se procedesse à votação. E então uma coisa estranha se tornou evidente. Comecei a
sentir que, em geral, a atitude do comitê era favorável. Sim, eu o juro. Eles estavam do seu lado. As mãos já iam levantar-se quando subitamente Peters, que não
abrira a boca durante toda a discussão, disse de repente:
- Um momento por favor.
Todo o mundo olhou para ele enquanto, curvado para a frente, com o pince-nez na ponta do nariz, ele examinava a sua assinatura na tela. Depois recostou-se na cadeira.
- Cavalheiros, abstive-me até agora de entrar nesta controvérsia porque tinha uma vaga suspeita de que já havia topado com trabalho desta natureza alguns
anos atrás. Agora tenho a certeza. Devo informá-los de que o pintor deste quadro é o mesmo homem responsável pelos famosos painéis de Charminster, que foi processado
e condenado por produzir e exibir arte obscena.
Houve uma sensação, naturalmente, e, meu Deus, eu queria que você visse a satisfação na cara de Stencil.
- Eu lhes disse que era degenerada. E é verdade.
Peters continuou:
- Como podemos assumir a responsabilidade de sancionar trabalho de tal fonte? Se o fizermos, nós lhe colocaremos o selo da nossa aprovação.
Eu percebera o que estava para vir e saltei de novo.
- Estamos julgando painéis que foram queimados por ignorância crassa há mais de sete anos ou esta pintura que temos diante de nós?
Não me lembro de tudo o que disse. Estava tão irritado que, na ocasião, não sabia o que me saía da boca. Só posso dizer que foi violento e pesado. Mas não adiantava
e eu o sabia. Mesmo aqueles que, de outro modo, o teriam apoiado tiveram medo de se arriscarem a um escândalo. Só me restava fazer uma coisa. Eu queria fazê-la e,
por Deus, ela me deu alguma satisfação. Demiti-me naquele mesmo instante. E estou bem contente por isso. Eu tenho amolecido nestes últimos anos, Desmonde, fiquei
flácido e pesadão, meu trabalho não é nem de longe o que já foi. Estou farto de produzir retratos sob medida para Hammerhead e sua espécie, farto até aos dentes
de pintar enfiadas de condecorações nos peitos de pombo de pares do reino. VOU tirar para fora o velho carro-habitação e partir para o Norte de Gales com Anna. Talvez
faça algum trabalho de verdade por lá. Agora que contei tudo, espero que você não esteja muito zangado comigo. Admito que procedi mal. Não se pode empurrar uma obra-prima
pela garganta abaixo dum comitê. Rembrandt descobriu isso com a Câmara de Insolvência em Amsterdã. E El Greco com a Comissão Eclesiástica espanhola. Eu só espero
que você não tome a coisa muito a peito. Afinal de contas, que nos importa o que o mísero mundo pensa a nosso respeito? Bebamos outro uísque.
Stephen olhou para o outro em silêncio. Tinha as feições pálidas e impassíveis. A longa e minuciosa narrativa que Glyn lhe tinha feito, talvez, para se justificar
aos próprios olhos, tinha-o conduzido através da cólera e do desânimo até uma indiferença final. Mas a ferida era profunda e ele sabia que tornaria a doer. Se ao
menos Richard o tivesse deixado em paz, sem intervenção, simplesmente o deixasse em paz! Assim mesmo, em seu coração ensombrecido não podia guardar-lhe rancor, nem
lhe revelaria as novas ansiedades que isso havia criado nele. Estendeu-lhe a mão.
Glyn acabou de tomar o seu grogue e, já bastante tocado, pôs a mão no ombro de Stephen com firmeza.
- Vamos, Desmonde. vou levá-lo em casa. E se houver barulho pela frente, por Deus do céu, eu aguentarei.
CAPÍTULO V
ARTE, NO SENTIDO NACIONAL, sempre pode ser considerada como um assunto sério. Surgindo numa temporada em que a matéria era escassa, com não mais do que um enfadonho
assassinato em Glasgow e um divórcio pouco promissor na sociedade para aplacar a avidez do público por notícias, aquele surpreendente incidente na Academia tinha
caído do céu para a imprensa popular. Depois do julgamento de Charminster, a reação tinha sido mais local que geral. Agora, todavia, o assunto recebeu vasta divulgação
- em particular dos jornais de domingo, cujo dever era salvaguardar a decência da Inglaterra, apresentando na íntegra os mais suculentos delitos do dia. Sob esta
luz, o novo escândalo reavivou as cinzas do último. Exemplares do Charminster Chronicle foram esmiuçados nos arquivos, numa busca de notícias interessantes. Um desenho
de Stephen, em pé, nas docas, foi reproduzido pela County Gazette. Archibald Dalgetty, cujos artigos no Universe News eram lidos por milhões, e que, talvez mais
do que qualquer outro homem, podia ser considerado como protetor e paladino da moralidade britânica, tendo, na verdade, acabado de acrescentar ao seu lustre a flagelação
de uma infortunada novelista, por causa do seu livro O Coração Solitário, tomou gravemente o assunto. Sob a fulminante manchete de A ARTE ATACADA DE LOUCURA HOMICIDA,
justa indignação escorregou-lhe da pena. O que tinha acontecido à velha Inglaterra, perguntava ele, quando semelhante insulto podia ser lançado a uma das suas mais
estimadas, acatadas e dignificadas instituições, quando, sob coação, os seus bastiões estéticos eram ameaçados por trabalhos obscuros e revolucionários de um pincel
já experimentado na podridão e no deboche? Nem todos os protestos eram de tom assim elevado. Havia risadas abafadas nas publicações mais
livres, anedotas no palco de variedades, e um dos semanários ilustrados publicou um cartum que mostrava um indivíduo de olhar furtivo abordando um académico de cartola
nos degraus da Burlington House: "Quer comprar um postal picante, senhor?"
Durante os dias que se seguiram, Stephen continuou a trabalhar com aquele descaso pelos acontecimentos exteriores que agora eram tão fortes que já assumiam a forma
de desprezo desdenhoso. Mais uma vez, embora não por culpa sua, estava no pelourinho da publicidade, tido em geral desprezo. Como era possível que ele, quieto por
natureza, despretensioso e reservado, que em toda a sua vida não tinha desejado mais que seguir a sua arte em paz, tivesse atraído tão violentamente para si aquela
onda de condenação? Um jornalista empreendedor tinha achado necessário, no interesse público, apresentar um breve esboço da sua carreira, e era como se esse registro
dos seus anos, sua defecção da Igreja, da família, e acima de tudo do seu país, o mostrasse tão antinatural e desprezível a ponto de merecer inteiramente o ódio
do próximo.
Por sentir profundamente, tinha aprendido a se impor um autodomínio rígido que o habilitava a arrostar o infortúnio com uma calma ao menos aparente. Machucado pela
adversidade, fustigado tantas vezes pela zombaria, tinha lutado para conseguir aquela liberdade de espírito de não ligar nenhuma importância ao que diziam ou faziam
dele. Contudo, havia momentos em que se sentia completamente perdido, quando lhe vinha uma espécie de medo e a vida parecia tão irreal, tão assustadora, que ele
achava que não poderia enfrentá-la. Percebia, também, que tinha perdido algo que muito prezava, a sensação de anonimato, de ser despercebido e ignorado na corrente
comum da humanidade. Por mais que pudesse esconder isso, a tensão o subjugava, e mesmo quando o tumulto começava a ceder, deixava-o fisicamente extenuado e com uma
sensação insólita de presságio.
Vinha ficando até tarde na cabana do molhe de Tapley. Sentava-se lá, de testa caída, olhando para o rio escuro, uma brisa rija enrugando o espelho da água, um rebocador
passando sob a ponte com uma fila de chatas a piscar seus olhos verdes e vermelhos na noite. O chape-chape da água, a beleza, a invisível essência da noite amoleciam-no,
mas ele se proibia a piedade, pensando apenas no trabalho que tinha feito naquele dia e que retomaria no seguinte. Então, na escuridão, caminhava para casa, mantendo-se
nas sombras, como se lutando para permanecer não visto.
Num sábado, por volta do fim do mês, estava mais atrasado do que usualmente. Quando chegou em casa às seis horas, sentiu-se inteiramente acabado, e a garganta, que
o tinha incomodado a intervalos durante todo o dia, estava peculiarmente dormente. Jenny tinha o seu jantar pronto, um empadão, quentinho no forno, e enquanto ele
comia a refeição confortante, ela ficou à mesa, diante dele, olhando-o em silêncio. Via que não tinha vontade de falar.
sua expressão de cansaço preocupava-a, mas Jenny sabia que não convinha mencionar o assunto.
Depois que terminou, Stephen sentou-se na sua cadeira de costume junto da lareira da cozinha e, com o caderno de desenho no joelho, ficou a olhar para o fogo como
que evocando nobres e heróicas formas de seu clarão vermelho. Jenny lavou os pratos, tirou o avental e pegou no seu tricô. Alguns minutos depois Stephen levantou
a cabeça e percebeu a presença dela. Era a hora em que eles geralmente conversavam, evitando o assunto penoso do momento, mas com uma intimidade que Stephen sabia
sua esposa apreciava. Nessa noite sentia-se mais perto de Jenny. Algo nela o atraía, uma qualidade simples de feminilidade, de calor doméstico. Começou a relatar
os acontecimentos do dia. Não ia longe quando sua voz falhou inesperadamente e, em vez do falar no seu tom normal, verificou que suas palavras saíam num murmúrio
sussurrante. Aquilo não era novidade para ele, mas nesse caso aconteceu tão de repente que sua esposa levantou a cabeça do trabalho e o olhou vivamente. Stephen
viu sua fisionomia se transformar, voltar ao normal. Após uma pausa momentânea, articulando com dificuldade, ele disse:
- Outra vez. O dia inteiro senti que ia perder a voz. Agora a perdi.
- Você apanhou friagem.
Jenny falou logicamente e naquele tom de branda acusação de uma pessoa que continuamente o reprovava por se descuidar de si mesmo. Isso, porém, não passava dum disfarce
para encobrir a ansiedade que dela se apoderara.
Stephen abanou a cabeça.
- Eu não tenho nada na garganta.
- Não dói quando engole!
- Não.
- Deixe-me olhar.
Submeteu-se enquanto ela, com uma colher que tirou da gaveta da mesa, lhe apertava a língua e lhe examinava o fundo da garganta olhando em várias direções.
- Não consigo ver nada de anormal. Não está inchada nem vermelha.
- Não é nada.
- Talvez não - respondeu Jenny com firmeza. - Mas você não vai sair para o rio amanhã. Não com o meu conhecimento. Foi lá que você apanhou a friagem. Falarei com
o capitão esta noite.
- Bom... eu tenho bastante que fazer no atelier.
- Só se estiver melhor. E agora deve tomar uma boa bebida quente.
Preparou-lhe, com água fervendo, uma mistura de rum e uma conserva de groselha que tinha em casa sempre - uma panacéia para a garganta. Deu-lhe uma caneca cheia,
muito quente, que produziu nele um agradável suor. Depois convenceu-o a ir se deitar.
Na manhã seguinte a voz tinha voltado e ele trabalhou no seu Tâmisa toda a parte da manhã. Mas depois do almoço teve outro ataque de rouquidão e, quando saiu do
atelier às quatro horas, foi obrigado a admitir, com um gesto constrangido, que o mal, fosse o que fosse, o silenciara completamente.
- Está decidido - declarou Jenny com resolução. -
Precisamos fazer uma consulta.
Na situação desvantajosa em que se encontrava, ele fez tudo o que pôde para protestar, mas Jenny mostrou-se firme.
- Não - arrazoou Jenny. - Precisamos saber o que é. É diferente quando se trata de alguma coisa que nós compreendemos, mas isto está além da nossa compreensão. Vou
procurar o Dr. Perkins agora mesmo.
A sua crescente preocupação fê-la aproveitar a oportunidade para mandá-lo examinar pelo clínico local, coisa que ela desejava fazer há muito tempo e que ele sempre
adiava. Resolutamente, pois, vestiu a capa de chuva, saiu e, num espaço de tempo surpreendentemente breve, voltou com a informação de que o Dr. Perkins havia partido
para umas breves férias. Entretanto, a dona da casa tinha-lhe prometido que o seu substituto iria lá apenas voltasse de suas visitas da tarde.
Mal Jenny havia concluído quando, sem advertência prévia, Stephen pôde falar novamente de maneira normal.
- Está vendo? - disse ele, realmente surpreendido. -
Você se afobou por nada. É um simples resfriado, os nervos ou qualquer outra coisa igualmente sem importância.
Angustiada, Jenny ficou a olhá-lo dubiamente enquanto ele se afastava para ir de novo trabalhar no atelier, perguntando a si mesma se, com efeito, não teria sido
precipitada em seu ato. Nesse estado de espírito de incerteza começou a cortar alguns legumes para a sopa que estava preparando para o jantar. Uma hora se passou
e o médico ainda não tinha chegado. A clientela do Dr. Perkins no sábado à noite era sempre grande, e ela começou a recear que Ele não aparecesse. Justamente nesse
ponto a campainha da porta tocou e, indo atender, encontrou ao limiar um moço que, imediatamente e sem cerimônia, entrou para o vestíbulo.
- Sou o Dr. Gray. Onde está o paciente?
Jenny introduziu-o na cozinha e, tendo chamado Stephen, deixou-os sós. O médico pousou a valise, tirou o chapéu mas não o sobretudo, com o ar de uma pessoa sem nenhum
tempo a perder. Era menos jovem do que à primeira vista parecia, homem de uns trinta anos talvez, e suas feições um tanto
grosseiras, embora não desagradáveis, apresentavam a expressão, atarantada e irritável de uma pessoa completamente esfalfada de trabalho num ambiente supremamente
desagradável para ele.
- Então é o senhor? - disse, com um sotaque acentuadamente setentrional. - Que é que sente?
- Uma coisa completamente absurda e trivial. Mas tem preocupado muito minha mulher. A toda a hora estou perdendo a voz.
- Quer dizer que há períodos em que não pode absolutamente falar?
- Acho que sim. Pelo menos não posso fazer-me ouvir.
- Nos intervalos sua voz é normal?
- Creio que é. Talvez um pouco rouca.
- Sente alguma dor?
- Nenhuma.
- Nenhum outro sintoma?
- Não. Sinto uma ligeira dormência na garganta. Imaginação, sem dúvida.
O Dr. Gray fez um som de impaciência com a língua. Sempre a imaginação, outra neurose danada, suspeitou, afonia histérica provavelmente. Contudo, aquele homem não
parecia um histérico, e o fato de que ele dava pouca importância aos sintomas confirmavam essa opinião.
- Vamos dar uma olhada. - E como Stephen limpasse a garganta, acrescentou bruscamente: - Não, isso não é bom. Tire a camisa e sente-se.
Com uma cor melhor no rosto, Stephen fez como ele pediu. Enquanto isso, o médico tinha tirado da sua maleta um espelho redondo que ajustou na testa, dirigindo um
raio de luz sobre a superfície refletora de um laringoscópio mantido no fundo da garganta do paciente, e fazendo demorada inspeção. Então, sem dizer palavra, pôs
o estetoscópio e auscultou o peito de Stephen. Finalmente, mostrou certo interesse pelas pontas dos dedos de Stephen. Todo o exame, embora fosse complexo, não durou
mais que 15 minutos.
- Pode se vestir agora. - O doutor recolocou os seus instrumentos na maleta, fechou-a com um estalo. - Há quanto tempo tem tosse?
- Tosse?... Bem, tenho uma bronquite que vai e vem e me incomoda há alguns anos.
- Bronquite, hein?
- Sim. Sempre tive um peito fraco.
- Sempre? Pode se lembrar da primeira vez que teve um resfriado muito forte, com uma dor no lado, que se mantinha por certo tempo e simplesmente desaparecia?
Uma súbita lembrança ocorreu a Stephen, e ele pensou no dia chuvoso da travessia do Canal, nas semanas que se seguiram em Netiers.
- Sim - disse ele. - Há cerca de 15 anos.
- E nunca teve uma hemorragia subsequente?
- Sim.
- Seguidamente?
- Duas vezes - respondeu ele, omitindo o acesso que tivera na Espanha.
- Há quantos anos foi a primeira? Digamos, uns 14?
Novamente um vivo quadro do passado se apresentou à mente de Stephen - Dom Arthaud curvado sobre ele no quarto monástico despido e caiado.
- Sim.
- Muito bem. - O médico, tendo lavado as mãos na pia da cozinha, as quais enxugou num pano de prato, ajuntou: - Você teve um distúrbio no peito
e duas hemorragias durante esse tempo? E vem me dizer que nunca se preocupou em saber a causa disso?
- Nunca achei que fosse coisa séria. Eu sempre estava muito ocupado.
- Fazendo o quê?
- Pintando.
- É um artista?
- Sim.
- Ah! - O Dr. Gray, que era da sólida Manchester industrial, comprimiu nessa exclamação uma riqueza de compreensão irónica.
Subitamente uma ideia lhe ocorreu.
- Meu Deus, você não é o sujeito que está nos jornais?
- Isso faz alguma diferença?
Uma pausa.
- Não... não, naturalmente que não.
O Dr. Gray olhou curiosamente para Stephen, e, a despeito da sua insensibilidade profissional, não sem sentimento. Que cadeia de circunstâncias, que negligência
consigo próprio, descuidada, desatenta, persistente, tinha levado aquele sujeito de aspecto esquisito, obviamente um cavalheiro, a semelhante passo sem o saber?
Que se poderia fazer em tal caso? Pior ainda, que se poderia dizer dele?
O médico, que era habilidoso e ambicioso, tinha aceitado a clínica no East End simplesmente para conseguir dinheiro suficiente com vistas a uma graduação médica
mais elevada. Não tinha o menor interesse naquele tipo de prática e conduzia-se nela com uma franqueza quase brutal. Mas neste momento não podia esquecer que ainda
tinha pela frente uma sala de espera fumegante, quase sufocante, com inúmeros clientes. Além disso, não tinha comido nada desde a uma da tarde. Contudo, neste caso,
algo restringia a sua habitual aspereza. Sentou-se no braço de uma cadeira.
- Tenho que lhe dizer: você é um homem muito doente.
- Que é que eu tenho?
Houve uma breve pausa.
- Tuberculose pulmonar adiantada.
- Fala sério?
- Eu bem quisera o contrário. Você tem uma lesão antiga no seu pulmão direito. E agora o esquerdo está com uma infecção aguda. A sua laringe foi atingida... e a
extensão...
Stephen empalideceu. Firmou-se contra a mesa.
- Mas não posso compreender... Sempre fui capaz de fazer tudo. Sempre me senti bem...
- Essa é a maldição dessa praga maldita. - Gray abanou a cabeça numa espécie de aversão sombria. - Insidiosa. As toxinas até induzem uma sensação insidiosa de bem-estar.
Spes physica é como nós lhe chamamos. Pode ficar inativa também, depois, de repente, manifestar-se com violência. Foi isso que aconteceu com o senhor.
- Que se pode fazer?
O médico pôs os olhos no teto.
- O senhor devia mudar-se para um ambiente adequado.
- Para onde exatamente?
- Para ser exato, um sanatório.
- Eu não tenho meios para isso.
- Sempre há meios de arranjar essas coisas... poderia se arrumar... por intermédio de um dos hospitais...
Havia uma nota forçada de estímulo na voz do médico.
- Quanto tempo eu teria de ficar lá?
- Pelo menos um ano, provavelmente mais tempo.
- Um ano! E teria licença para pintar?
Abruptamente o Dr. Gray abanou a cabeça.
- Longe disso. O senhor ficaria na cama, meu amigo, de costas, ao ar livre.
Stephen guardou silêncio, olhando o vazio à sua frente.
- Não - disse - eu não poderia.
- Para o seu próprio bem...
- Não, doutor. Eu preciso pintar. Se não puder continuar com o meu trabalho, morrerei.
- Receio que, se o senhor continuar...
Interrompeu-se, encolheu os ombros ligeiramente e, com uma expressão grave, olhou diretamente para Stephen.
Houve nova pausa. Stephen umedeceu os lábios.
- Diga-me a verdade. Se eu ficar aqui e continuar trabalhando, qual é a perspectiva?
- Nunca se pode dizer. Com sorte, poderá continuar por bastante tempo.
Seguiu-se um silêncio. Com um sobressalto, o médico pareceu voltar a si. Tirou o bloco de receitas do bolso do sobretudo, escreveu rapidamente, destacou a folha
e entregou-a a Stephen.
- Mande aviar isto. Um tônico e uma vaporização de creosoto para a garganta. A vaporização deverá produzir uma melhora local. Tome cuidado com o senhor, beba a maior
quantidade de leite que puder e empurre uma colher de óleo de fígado de bacalhau pela garganta três vezes ao dia. A propósito, o senhor é casado, não é?... Peça
a sua esposa que me procure amanhã de manhã no consultório. A consulta são três xelins e seis pence.
Quando Stephen lhe pagou, ele acenou com a cabeça, apanhou a valise, pôs o chapéu e, observando que não precisava ser acompanhado até à porta, saiu da sala. A porta
da frente fechou-se atrás dele e seus passos soaram no pavimento lá fora. Depois caiu um estranho silêncio. Stephen ficou completamente imóvel. Quando Jenny entrou
saindo da copa, ele voltou a cabeça.
Jenny entrou lentamente e, por sua expressão, parada e assustada, seu esforço desesperado para se dominar, Stephen percebeu que ela ouvira tudo. Olharam um para
o outro.
- Você vai para fora, não é, Stephen?
- Nunca.
- É preciso.
- Não, eu detesto hospitais, não quero deixar você e não posso abandonar o meu trabalho.
Jenny chegou perto dele. Não podia pensar com clareza, a subitaneidade do golpe aturdira-a. Contudo, não tivera ela durante todo o tempo um obscuro pressentimento
dessa calamidade? Ferozmente ela se culpava por aceitar com tanta docilidade a explicação indiferente que ele dava dos sintomas que ora se revelavam como a manifestação
de uma doença grave. Retendo as lágrimas porque sabia quanto Stephen as odiava, suplicou-lhe que fosse sensato. Mas todos os seus apelos foram inúteis.
- Se tenho isso, pouca coisa se pode fazer. Mas estes médicos não sabem tudo. Talvez eu não esteja tão mal como ele diz. De qualquer modo, o médico diz que eu só
preciso de ar puro.
Ao dizer estas palavras, levantou a cabeça como animado por uma súbita inspiração. Margate! Sempre lhe fizera bem. Lá poderia respirar um ar maravilhoso e todo quanto
quisesse. Com efeito, quando estivera tão doente antes, não se havia curado lá completamente? Ele gostava do lugar, tinha as melhores recordações de lá - e poderia
continuar trabalhando tranqüilamente. De repente, aquele otimismo tão característico de seu estado fez seu espírito reagir. Enquanto Jenny o olhava, consumida pela
mais profunda ansiedade, sem saber o que dizer, Ele sorriu vagamente.
- Eu lhe digo o que vamos fazer. Arrumamos as
nossas coisas, deixamos que Miss Pratt e Tapley se arranjem sozinhos durante algumas semanas e, se Florrie nos aceitar, iremos para Margate.
Capítulo VI
Às últimas horas da tarde, na pequena cozinha nos fundos do edifício, por cima da venda de peixe, Florrie, debaixo de uma lâmpada com abajur verde, já acesa por
causa do crepúsculo de outono, aquecia os pés na estufa, com o gato sobre o joelho, e olhava Jenny, que ocupava uma cadeira junto da mesa, com uma expressão passiva
mas penetrantemente interrogativa. Na mesa, entre as duas mulheres, havia um bule de chá e um prato de pão cortado, com manteiga. Salvo pelo vagaroso tiquetaque
do relógio, a cozinha estava estranhamente silenciosa. Por fim, com um esforço, Jenny se animou.
- A bichinha está soltando o pêlo - disse.
- Sempre solta nesta época do ano. - Florrie alisou o animal quieto, e depois retirou um tufo de pêlos macios e amarelos dos dedos. - É um amor de gata.
- Flo, há quanto tempo estamos aqui com você? Umas sete semanas, não é?
- Mais ou menos. O tempo voa.
- Você tem sido muito boa. Era mesmo uma emergência. Só que o ar não parece ajudá-lo. - Jenny fez uma pausa. - Você nota alguma melhora, Florrie?
- Noto uma mudança... e grande. - Florrie tomou um lento gole de chá. - E quanto mais cedo você enfrentar isso, melhor para você, minha menina.
- A voz dele está melhor. Já não some tanto.
- Isso é o mínimo.
Jenny abaixou a cabeça, mordendo o lábio inferior - tinha lutado duramente naquelas últimas semanas e continuaria a lutar mais duramente ainda. Contudo, ao lembrar-se
de todos os remédios ineficientes que tinha experimentado, de todo o cuidado que tão prodigamente lhe dispensava, era difícil impedir o crescente desânimo que a
dominava. Que angústias tinha sofrido, noite após noite, ouvindo em silêncio a sua tosse profunda e cava - não queria dormir em cama separada, nada podia abalar
a sua esplêndida saúde, apenas desejava poder dar um pouco de si a Stephen. Corajosamente, procurava sacudir a sua depressão.
- Eu queria que ele viesse tomar chá... - disse ela, olhando para a porta. - Mas não adianta ir buscá-lo.
- Por que motivo um homem no seu estado quereria continuar a pintar, e naquela sala da frente... - Florrie revirou os olhos, um gesto que indicava uma suprema falta
de compreensão. - Ei, você não bebeu nem a metade do seu chá. Deixe-me encher a sua xícara com outro mais fresco.
- Não, Flo.
- Vamos, minha menina, você tem que se alimentar.
- Não tenho vontade. Realmente.
Florrie deteve o bule no ar, estudando curiosamente a sua cunhada, e então tornou a se recostar, aconchegada. Depois de um momento, disse:
- Não quer pão com manteiga? Jenny abanou a cabeça.
- Você está comendo pouco. Esta manhã, mal tocou na comida. E por falar nisso... nas outras manhãs...
Interrompeu-se. Jenny tinha enrubescido dolorosamente, depois, de modo lento, sob o escrutínio da outra, empalideceu, e seus olhos se desviaram, culpados. Seguiu-se
um breve silêncio agourento, durante o qual a expressão de Florrie registrou uma gama de emoção que ia da simples incredulidade a uma chocada desconfiança.
- Não é isso? - perguntou ela, por fim, devagar. Jenny, ainda com a cabeça desviada, não respondeu.
- Oh, não, - disse Florrie numa voz sumida. - Como se já não bastasse. Há quanto tempo não vem?
- Seis semanas. - Foi a resposta apenas audível.
- Meu Deus, quando penso nisso... quando... oh, isso me faz o sangue ferver. Depois dos anos que passou à sua custa. Nunca dando uma mão, um perfeito cavalheiro,
deixando você trabalhar para ele como uma escrava, enquanto ele vagabundeava por aí, fingindo jogar tinta num pedaço de pano. E agora, justamente quando está quase
liquidado, deixa você nesse estado...
- Não diga isso, Flo - interrompeu Jenny vivamente. - Não o censure. Eu é que sou responsável. Foi... foi naquela noite que o médico falou com ele...
Interrompeu-se, inarticulada, tentando conter as lágrimas. Como poderia ela explicar aquela emoção, que transcendia a qualquer outra que ela já tinha experimentado,
veementemente apaixonada, contudo misturada de pena e desespero, que tinha parecido amolentar todo o seu ser, dominar tudo o que havia nela. Sabia, mesmo naquele
momento, que tinha concebido.
- Bem, espero que se divirta - disse Florrie num tom seco e irónico. Mas como é que você vai se arranjar, meu amorzinho, é outra história.
- Não seja dura, Flo. Eu me arranjo. Ainda tenho um bom par de mãos.
- Mãos, sim - concordou Florrie sombriamente. - Mas onde está a sua cabeça, queridinha? - Fez uma pausa. - Já disse a ele?
- Ainda não. Só vou dizer quando estivermos em casa. Lá ele fica mais senhor de si.
Com um esforço contrário a toda a sua natureza, Florrie suprimiu a resposta exasperada que lhe subia aos lábios. A teimosa recusa de Jenny em admitir o que, nas
palavras de Flo, "todo mundo vê na sua cara" foi para ela a suprema exacerbação de um lamentável estado. Stephen parecia, nas palavras de Florrie, "não pior que
o usual", mas cedo tinha começado a piorar, e o seu declínio tornara-se tão rápido que já era precipitado. O próprio médico dela, a quem visitara 15 dias antes,
lhe dissera, em termos não incertos - pronunciando as palavras fatais "tísica galopante" - que o estado dele era sem esperança e que outra hemorragia, que poderia
ocorrer a qualquer momento, poderia ser fatal.
- Como queira. - Abanou a cabeça com resignação.
- Mas por que você há de continuar a se sacrificar, isso está acima da minha compreensão!
- Há qualquer coisa nele que nem você nem ninguém jamais compreenderá.
Florrie exalou um sopro irritado.
- Eu nunca compreenderei o que ele fez por você.
- Ele me fez feliz.
Um ruído no corredor acabou bruscamente com a conversa. Quando Stephen entrou, as duas mulheres já haviam composto a fisionomia.
- Estou atrasado para o chá? - perguntou ele sorrindo.
Ver aquele sorriso no rosto ossudo, com a pele repuxada, foi uma lançada no peito de Jenny. Ele quase não a deixava falar da sua doença. Preferia não lhe dar importância.
Era esse inveterado alheamento, sua capacidade heróica para não se queixar que, mais que tudo, cortava o coração de Jenny. Sabendo, entretanto, quanto ele detestava
isso, ela se reprimia de expressar a menor emoção. Numa voz natural, enquanto lhe servia o chá, ela disse:
- Nós queríamos chamá-lo. Mas eu pensei que você
estivesse terminando.
- O fato é que eu já terminei. Faltam apenas alguns
detalhes. E me agrada realmente.
Esfregou as mãos e, tirando uma fatia de pão com manteiga do prato que ela lhe passou, sentou-se junto da janela.
- Quer dizer que o quadro está pronto? - perguntou Florrie, acariciando o gato.
- Está. Está o melhor que posso fazer. E acho que está muito bom.
- Mas fará bem a alguém?
O olhar de Florrie pousou significativamente em Jenny.
- Quem sabe? - respondeu Stephen alegremente.
Jenny, observando-o da sombra em que seu rosto se escondia, percebeu a excitação contida de que ele estava possuído. Os olhos, fundos nas órbitas, apresentavam pintas
de luz, seus dedos tremiam ligeiramente quando segurou a chávena. Jenny disse compassivamente:
- Você levou bastante tempo a fazer esse.
- Seis meses. Era difícil, tecnicamente, transmitir o sentido das coisas elementais... o fundo do rio... a terra,
o ar e a água... e, não obstante, conservar uma harmonia com o tema central.
Ele tinha por princípio não falar sobre o seu trabalho, mas então, ainda cheio de emoção criadora, continuou por alguns minutos dando expressão aos pensamentos que
tinha em mente.
- E que vai acontecer agora? - perguntou Florrie, comprimindo os lábios, quando ele concluiu.
- Só Deus sabe - respondeu Stephen com indiferença.
- Espero que não provoque outro escândalo como o último.
- Espero que não, Florrie. - Sorriu, decidido a não se ofender. - Este parece um quadro perfeitamente respeitável. E, para tranqüilizá-la completamente, prometo-lhe
que não o exporei.
Em vez de pacificá-la, a resposta irritou-a ainda mais.
- Então, francamente, não entendo! Que adianta, eu lhe pergunto, que adianta ficar aí nessa sala da frente, e pôr tudo numa desordem, aliás... pintando, pintando
o dia inteiro, para depois não apresentar coisa alguma? Não lhe importa o fato de não ganhar um único pêni com esse quadro?
- Não. A única coisa que importa é que eu o fiz. - Levantou-se. - Agora vou dar um passeiozinho.
- Você não devia ir - disse Jenny apressadamente, preocupada. - Faz frio lá fora e já está escurecendo.
- Preciso dar um passeio. - Olhou-a com bondade. - Você sabe que o ar livre me faz bem.
Jenny não discutiu, mas foi com ele até ao corredor e ajudou-o a vestir o grosso capote que lhe tinha comprado, tirou do porta-chapéus e entregou-lhe a bengala que
ele se acostumara a usar. Depois, à porta, enquanto ele descia a escada, ficou a observá-lo com aquela angústia sempre presente, mas ainda revolvendo no espírito
com inesgotável dedicação, embora já quase sem esperança, projetos para o seu restabelecimento.
A marcha de Stephen pela rua era lenta. Uma ladeira, tão suave que era quase imperceptível à vista, fê-lo compreender a extensão de sua debilidade. Caminhando como
se tivesse um peso em cada pé, evitou a parte mais movimentada da cidade e dirigiu-se para a beira-mar. No começo da esplanada havia uma rotunda com espelhos nas
janelas, e, quando passou, viu a sua imagem no vidro, o rosto contraído, incrivelmente macilento, os olhos escuros e arregalados, os ombros curvados como pela velhice.
Instintivamente, fez uma careta e desviou a vista. Ninguém melhor do que ele sabia quanto era absurdo estar de pé e andando para cá e para lá daquela maneira, mas
tinha resistido com firmeza a todas as tentativas para conservá-lo na cama e continuaria a resistir. Não podia suportar a idéia de se ver preso.
Por fim, chegou ao seu objetivo, um banco na curva da baía além do molhe, geralmente desocupado, que permitia uma ampla perspectiva do mar. Aí se sentou, respirando
rapidamente, mas sentindo o ar fresco e claro em redor com uma sensação de alívio.
Era um soberbo pôr de sol pálido, com um traço de salmão sobre o horizonte ocidental, fundindo-se com um amarelo desmaiado e um verde fraco, todas as cores e seus
variados tons claros e delicados contra o mar cinzento e frio pela aproximação do inverno. Não é um dos pôres de sol de Turner, refletiu, observando-o com um prazer
sensual, mergulhado em si mesmo, o queixo enterrado no peito, e por um momento seus pensamentos voltaram-se para aquele pintor de visões, supremo colorista, solitário,
birrento, excêntrico, que, na velhice, se escondera numa imunda casa à beira do Tâmisa, sendo conhecido pelas crianças do bairro como "velho Almirante Booth". Somos
todos loucos ou meio loucos, disse consigo, um bando de almas perdidas, isolados do resto do mundo, perpètuamente em conflito com a sociedade, filhos predestinados
do infortúnio. Pelo menos, ajuntou, com uma reserva mental, todos, a não ser os que transigiram. Ele jamais tinha feito isso. Desde a sua meninice, fora obcecado
pelo desejo de arrebatar uma forma bela que ele sentia aprisionada por baixo da superfície das coisas. Na solidão, através do seu próprio esforço, tinha seguido
o seu destino; contudo, quem jamais compreenderia a solidão, as horas de vazia tristeza interrompidas apenas por surtos de momentânea exultação - que ele suportara
na sua realização? Nada lamentava, de nada se arrependia; na verdade, havia nele uma paz estranha. Somente com dor, tristeza e infelicidade, com toda a hostilidade
do mundo, pudera criar a beleza. E ela era digna do preço que tinha pago.
Enquanto as cores sumiam do céu, as diferentes fases do seu trabalho passaram, em vagarosa revista, à sua frente, culminando na grande tela que agora tinha acabado.
Esta disposição criadora final, ou antes, a sua consumação, produto do estranho nexo entre a sua doença e a sua arte, dava-lhe uma exaltada sensação de estar acima
do tempo e da morte, participando do eterno. Quanto mais doente fora ficando, mais misteriosamente os seus poderes se renovavam. Sabia, contudo, que estava condenado,
a fonte de energia física dentro de si cessara de fluir, um derradeiro cansaço o prostrava. Pensou: Falarei com Jenny esta noite... já é tempo de irmos para casa...
voltaremos para Cable Street no fim da semana. E novamente: Rafael morreu aos 37... por que eu me queixaria?
Tiritou ligeiramente e, como já estava quase escuro, levantou-se, começando a voltar para casa. Ao fazê-lo, ouviu passos rápidos atrás de si, e uma voz alegre que
o chamava. Voltou-se e viu a figura pequena e ativa de um rapaz avançando para ele. Era Ernie, parecendo inteiramente profissional, de terno escuro e cartola, com
um guarda-chuva fechado na mão.
- Imaginei que poderia encontrá-lo aqui. - Diminuiu o passo, ajustando-o, com tato, ao de Stephen. - Como vai passando?
- Muito bem, Ernie. Você está voltando do escritório e indo para casa?
- Não, eu já estive tomando o meu chá. Agora vou para a minha aula noturna.
Meu Deus, pensou Stephen sombriamente, estou tão decrépito que precisam mandar alguém para me guiar os passos? Na verdade, o seu companheiro naquele momento, com
a melhor boa vontade do mundo, tomara o seu braço e ajudava-o a descer os degraus do passeio público. Mas aparentemente a sua suspeita era infundada, porque quase
em seguida Ernie exclamou:
- Não é sempre que o senhor recebe um visitante. E elas querem que o senhor não se desencontre dele.
- Visitante. Quem é?
- Eu é que sei? Um figurão, pelo seu jeito. Veio num carro de luxo. Stephen franziu o cenho, com uma contração nervosa. Que viria agora? -
perguntou-se. O seu pai ou Hubert teria vindo vê-lo? Não, isso parecia muito improvável. Seria talvez um emissário de Claire, trazendo, erradamente algum oferecimento
caridoso de ajuda? Essa possibilidade o aturdia - Talvez seja um médico importante para examiná-lo - especulou Ernie otimistamente. - Um especialista. Na certa,
vai colocá-lo novo em folha. O senhor tem conhecimentos que poderiam ter arranjado as coisas. Isso é ótimo! Com um pouco de sorte, no verão que vem estaremos na
praia desenterrando mariscos, como nos velhos tempos.
Enquanto Ernie tagarelava, com um entusiasmo puramente fictício pretendendo ingenuamente elevar o espírito de Stephen, passaram pela cidade agora quieta, desde que
a maior parte das lojas estava fechada. Então ao dobrarem a esquina no porto, ele viu o carro, um grande landolé, parado diante das cortinas fechadas da barraca
de peixe.
- Aí está o senhor! - exclamou Ernie com um ar de justificação. Agora entre. Chegarei atrasado se não me apressar.
Stephen subiu as escadas, fez uma pausa para recuperar o fôlego mas em seguida a porta se abriu e Florrie o recebeu.- Aí está um homem que quer vê-lo. Um estrangeiro.
- Sua maneira sobressaltada, mas de uma importância esquisita, confirmava a premonição do insólito. - Está na sala - acrescentou ela.
Ele não disse nada, embora Florrie evidentemente esperasse uma pergunta e estivesse preparada para responder a ela. Tirou o casaco - um processo lento, embora desta
vez ela o ajudasse. Quando o pendurou no cabide com o chapéu e a echarpe, voltou-se e entrou na sala da frente. Era uma peça pequena, raramente usada, a não ser
quando se recebia "convidados" e no momento inteiramente desarranjada pelo cavalete de Stephen e uma grande tela em cima dele. Um fogo, aceso às pressas, crepitava
úmido na pequena lareira. Ocupando uma espreguiçadeira, de pernas cruzadas, fazendo Jenny conversar estava um homem baixo, de cara descorada, que se pôs rapidamente
em pé quando Stephen apareceu.
- Sr. Desmonde, tenho um grande prazer em vê-lo.
Sua maneira, polida mas séria, tinha uma contenção que se harmonizava impecavelmente com o terno severo, a pérola negra na gravata, os sapatos de brilho perfeito.
Ele conferia àquela pequena salinha da frente, sem esforço uma distinção que quase rachava os cachorros de louça barata - ganhos por Ernie na Feira de Margate -
que estavam sobre o consolo da lareira. Stephen reconheceu-o imediatamente e mal relanceou os olhos para o cartão de visita que o outro lhe apresentou, enquanto
Jenny, murmurando uma palavra, desculpou-se e saiu da sala.
- Saiba, meu caro Monsieur Desmonde, que é um prazer conhecê-lo por fim.
- Já não nos vimos antes?
- Mas onde, meu caro senhor?
- Em Paris, há uns 15 anos. Eu estava quebrado, de fato faminto, sem um níquel no bolso. Tentei vender-lhe as minhas pinturas. Mas o senhor sequer as olhou.
Os olhos de Tessier piscaram ligeiramente, mas a sua maneira era à prova de qualquer embaraço. Abriu os braços num cativante pedido de desculpa.
- Então eu lhe afirmo que o sapato agora está em outro pé. Porque vim expressamente de Londres para procurá-lo. E posso dizer, tive enorme dificuldade em localizá-lo.
Primeiro, escrevi a Charles Maddox e não recebi satisfação. Depois o visitei. Fomos juntos à sua casa no Stepney, mas o senhor não estava lá. Somente com a maior
perseverança, obtive o seu endereço aqui, de Monsieur Glyn. Vê assim o senhor como eu estava ansioso por este encontro.
- Eu queria que o senhor não tivesse tido todo esse trabalho - disse Stephen.
- Meu caro senhor, não é um trabalho, é um prazer.
Tessier voltou a sentar-se e, equilibrando o chapéu no joelho, estudou Stephen criticamente, mas ao mesmo tempo conseguindo manter uma expressão de velada admiração.
- Mesmo que eu não tivesse visto esta magnífica tela - fez um gesto de reverência para a pintura que estava no cavalete - teria reconhecido o senhor como um artista
em qualquer parte. Essas mãos... a sua cabeça. Mas não percamos tempo.
Interrompeu-se bruscamente e começou:
- Monsieur Desmonde, é meu privilégio informá-lo de que em meses recentes manifestou-se em Paris um crescente interesse por seu trabalho. Há algum tempo, um dos
seus quadros, Freiras Voltando da Igreja, pertencente ao vendedor de tintas e telas Campo, foi exibido na vitrina de Salomon et Cie, uma firma relativamente sem
importância. Lá, entretanto, foi visto por Georges Bernard, talvez o mais notável crítico de arte da França. Bernard gostou muitíssimo da sua pintura - perdoe-me
essa frase inadequada - além disso, desde que alguma coisa de recente condenação do seu trabalho, de par com certos comentários desairosos sobre os impressionistas
franceses, tinha sido publicada pelos jornais de Paris, ele reconheceu o seu nome. Na terça-feira seguinte, na Revue Gauloise, numa coluna inteira, louvou as suas
Freiras nos mais altos termos. E logo na manhã seguinte o quadro foi vendido.
"Acontece que Campo, mesmo sendo um obscuro mercadorzinho com mais de 70 anos de idade, não é de todo um tolo. Tinha, dos seus trabalhos, nada menos que 20 telas,
a maior do seu primeiro período francês, algumas de suas composições de circo, inclusive um glorioso estudo, Cavalos numa Tempestade, e várias do primeiro período
espanhol, que aparentemente o senhor
tinha deixado com ele em penhor, quando trabalhava com Modigliani. Campo levou todas as telas a Bemard, permitiu-lhe que selecionasse uma como sua ele escolheu a
frisa de cavalos. - e pediu-lhe que patrocinasse uma exibição. A exibição teve lugar há dois meses, outra vez, infelizmente, na galeria de Salomon. Uso a palavra
de propósito, porque, como resultado, todos os quadros foram imediatamente vendidos - por preços que, dentro de poucos anos, lhe parecerão irrisórios. Mais ainda,
com o apetite dos conhecedores estimulado em alto grau, não restou em toda Paris uma única tela de Desmonde. Não corrigiu-se ele - estou errado. Imediatamente depois
do frisson inicial, chegou a Paris, mandado logo por uma épicière do campo, da Normandia, um delicioso pastel de duas meninas, sem assinatura, mas evidentemente
da sua mão. Olhou inquisitivamente para Stephen. - Lembra-se do trabalho?
- Perfeitamente. .. são as meninas Cruchot.
- Esse era o nome. E o pastel, se lhe interessa saber, foi vendido por nada menos que 15 mil francos.
- bom - disse Stephen numa voz lisa. - Isso deve ter agradado Madame Cruchot imensamente.
- Agora, Monsieur Desmonde, não quero aborrecê-lo acentuando uma situação tão óbvia. O senhor finalmente chegou aonde queria. Os colecionadores estão pedindo o seu
trabalho, exigindo-o. £ o senhor. . . com praticamente todos os seus trabalhos em suas mãos, tem, como se diz, o mercado no bolso. Assim, se quiser honrar-me, permitindo
que o represente, e acho que a minha posição no mundo da arte é proeminente, posso garantir-lhe que não terá nenhum motivo para lamentá-lo.
Stephen tinha ouvido de pé aquelas observações admiráveis, apoiando-se na lareira com o cotovelo. Sentia-se fraco e sem fôlego, na iminência de um daqueles prolongados
acessos de tosse depois dos quais perdia a voz, expondo assim a extremidade do seu estado. Mas endireitou-se, somente pelo esforço da sua vontade.
- Aprecio o seu interesse. Mas não tenho a necessidade nem o desejo de vender as minhas pinturas.
Apanhado de surpresa por essa resposta tão inesperada, Tessier, mesmo assim, recuperou-se rapidamente. Falou de modo apaziguador.
- Naturalmente, Monsieur Desmonde, não falamos exclusivamente em termos de dinheiro com um artista como o senhor. Há outras considerações. Por exemplo. . . reputação.
Já é tempo do senhor ser conhecido.
- Ser conhecido não é de meu interesse. Semelhante vaidade pode gratificar apenas um talento muito medíocre.
- Mas com certeza. . . o senhor deve desejar a fama, não?
- Ela serviria como um penhor do meu trabalho mais do que a minha atual obscuridade? Jamais quis agradar o público, mas apenas amim mesmo.
- Monsieur Desmonde... permita-me chamá-lo cher maître... o senhor me entristece deveras. O senhor tem algo de grande valor para dar ao mundo. Não pode enterrá-lo.
Lembre-se da parábola da Escritura.
Ante a alusão bíblica vinda de um dos mais astutos marchands de Paris, Stephen, ainda lutando para conter a tosse, mal pôde reprimir um sorriso passageiro, e tão
cansado que distorceu as suas feições tensas e macilentas. Disse serenamente, sem rancor:
- Dei ao mundo algo de valor anos atrás. Queimaram-no.
- Esqueça isso. O mercado - isto é, corrigiu-se ele - o tempo e as circunstâncias são muito mais favoráveis. Vamos, cher maître, dê-me a oportunidade de reunir os
louros para a sua fronte.
Os olhos de Stephen repousaram no outro com uma espécie de ironia contida, mas o seu rosto permaneceu impassível - os músculos duros de expressão, além de uma torção
dos lábios pálidos, pareciam incapazes de relaxar.
- Não. Eu concebi uma certa maneira de pintar. Há uma certa impressão de beleza que eu desejei realizar. Se o meu trabalho for bom, ele um dia achará o seu lugar
- quando, como acontece com a maioria dos artistas, eu não estiver mais aqui. Enquanto isso, tendo vivido com minhas pinturas, proponho-me a morrer com elas.
Seguiu-se uma pausa. Tessier, sentado, sacudia um pé em círculos. A expressão de Desmonde, tensa mas indiferente, era estranhamente desconcertante. É ressentimento,
perguntava-se, ou uma forma de vingança porque eu uma vez recusei o seu trabalho? A maioria dos artistas, na sua opinião particular, era mais ou menos imprevisível.
Não, pensou ele, este homem é sincero. Ele simplesmente não se importa que eu, Tessier, leve ou não os seus quadros. E, cada vez mais advertido dos sinais de doença
e extrema fadiga no rosto de Stephen, veio-lhe uma súbita compreensão.
- Monsieur Desmonde - disse ele afinal - lentamente e sem afetação, não preciso dizer quão profundamente o senhor me magoa. Não desejo importuná-lo. Pode ser que
desconfie de mim como um homem do comércio. Sou, é verdade. Ao mesmo tempo, conheço a beleza, e amo-a. Este quadro aqui, que eu examinei com alvoroço e deleite antes
que o senhor chegasse - permita-me dizer-lhe que é esplêndido. E se deixar que eu o tenha - pelo preço que quiser - dou-lhe a minha parole d'honneur de que dentro
de três meses eu o doarei, por intermédio do Ministro das Belas-Artes, ao Luxemburg. Vamos... o senhor está vendo que eu falo sério, que meus motivos não são inteiramente
indignos.
Enquanto o outro falava, o olhar de Stephen tinha se suavizado, mas a triste intensidade da sua postura não relaxou. Com uma cara imóvel de tristeza, abanou a cabeça
lentamente.
- O senhor deve permitir-me o luxo final de recusar. Ao mesmo tempo
- aquietou o protesto do outro - eu lhe farei uma promessa. O senhor falou em três meses. Volte então, vá a Cable Street, no Stepney... acho que não ficará desapontado.
Houve um longo silêncio. Meu Deus, pensou Tessier, ele está realmente doente, ele vai morrer... e sabe disso. Sentiu um arrepio na espinha - ele era um homem que
amava os prazeres da vida, para quem a própria ideia da morte era aflitiva - mas escondeu-o, sorriu e exclamou:
- Muito bem. Aceito. É uma combinação claramente entendida. Bem, o senhor esteve trabalhando o dia inteiro... está cansado... eu já tomei muito o seu tempo... -
Ele via, na verdade, com profunda intuição, que a sua visita não devia prolongar-se por outro momento sequer. Apanhou a sua pasta, levantou-se, estendeu a mão. -
Au revoir, cher maître.
- Adeus.
Com um último olhar para o quadro, Tessier girou e, involuntariamente, com uma súbita mostra de emoção, talvez teatral, mas estranhamente digna, beijou Stephen em
ambas as faces; então, em silêncio, retirou-se.
Quando o marchand saiu, Stephen, ainda em pé, deixou a cabeça cair sobre a mão, e permitiu a sua tosse manifestar-se. O espasmo durou vários minutos, após o que,
dobrado em dois, lutou para retomar o fôlego. Inclinou-se para trás contra a lareira. Foi nessa atitude que Jenny o encontrou quando, um momento depois, entrou quieta
na sala.
- Quem era, Stephen?
- Um homem que conheci em Paris.
- Nunca vi tanta elegância. Que é que ele queria?
- Uma coisa que poderia ter tido há muito tempo. Ele vai voltar outra vez, Jenny... num prazo de três meses... para comprar os meus quadros. Pode confiar nele. Não
é mau sujeito...
Houve uma pausa. Ela estudou o seu rosto ansiosamente.
- Oh, meu caro, você está arrasado. - Passou um braço em torno dele, para apoiá-lo. - Deixe-me levá-lo para a cama.
Ele ia deixar, mas então, com um esforço sobre-humano, da vontade, forçou-se a ficar ereto.
- Acho... primeiro de tudo... que vou terminar de envernizar o meu Tamisa... - Deu um passo à frente, pôs um braço em torno da cintura de Jenny e ficou olhando o
seu trabalho. A sombra de um sorriso tocou-lhe os lábios. - Você sabe... ele realmente falava a verdade quando disse que era esplêndido.
CAPÍTULO VII
NUMA TARDE DE ABRIL DE 1937, um homem - para Ser exato, um clérigo idoso - e um menino num comprido paletó azul, meias amarelas e sapatos de fivela desceram de um
ônibus no lado norte da Ponte Vauxhall, tomaram a Grosvenor Road, depois o passeio público e entraram no recinto silencioso do Millbank. O ar, frio mas suave, cheirava
deliciosamente a primavera. Nos Jardins de Westminster, os narcisos-dos-prados ondulavam e as tulipas pareciam alegremente atentas; sobre o relvado verde e aparado,
as nogueiras, de flores nevadas, tinham estendido um tapete branco. O Tamisa, brilhando ao sol, deslizava sob as suas pontes, silencioso e majestático, como desde
tempos imemoriais. Contra o azul, pintalgado por um tosão de nuvens, a Abadia se levantava no seu primoroso rendilhado de pedra, além das Casas do Parlamento. Reluzindo
na distância, por entre uma constelação de igrejas Wren, cujas espiras e torres enobreciam a linha do horizonte da cidade, estava o orbe maior, a cúpula da Catedral
de São Paulo. O Palace, embora não visível, ficava à distância de um tiro de flecha. O estandarte flutuava, a família real estava na sua residência. Lentamente o
Big-Ben badalou a hora: três notas baixas. E o Reitor, caminhando com o jovem Stephen Desmonde, estranhamente incitado, erguido, apesar do peso dos anos, pela beleza
do dia, os errantes ares da primavera perfumados de prímulas, presa de muitas recordações, pensava consigo. Aqui bate o pulso da Inglaterra, menos fortemente do
que antes talvez, mas ainda bate.
Quando os dois chegaram ao longo do aterro, num passo descansado, para Bertram, embora a sua figura alta e bem-aprumada fosse retardada pelo reumatismo, sentia-se
nos seus movimentos um ar de hábito, tornado manifesto mais particularmente por uma indicação de tolerância delicada por parte do menino. A cerca de 50 metros do
fim da rua, eles atravessaram, subindo as escadas de um grande edifício atrás de grades e de um pequeno jardim ornamental. Bertram voltou-se, parou um momento, recuperando
o fôlego e olhando o vasto panorama do céu, do rio e dos edifícios majestosos. Então as borboletas rodaram e ambos entraram na Galeria Tate.
Poucas pessoas percorriam as salas compridas, de teto alto, que ecoavam uma quietude bastante agradável a Bertram, e andando, ainda com aquela expressão costumeira,
através da galeria central, passando pelos fulgurantes Turners,
e os prateados Whistlers, os Sargents, Constables e Gainsboroughs, eles tomaram à esquerda e finalmente sentaram-se numa sala, manchada de sol da ala oeste. Da parede,
diretamente na frente, em delicadas molduras, pendiam três quadros. Em silêncio, o menino, como se cumprindo um dever, e seu avô, com uma visão meditativa e remota,
ficaram olhando para eles. Dali a pouco, sem afastar os olhos, Bertram falou:
- Está bem acomodado em Horsham?
- Muito bem, obrigado, senhor.
- Gosta da escola?
- Não é de todo má, senhor.
- Naturalmente, o primeiro ano é sempre difícil. Espero que tenha feito alguns amigos.
- Sim, senhor. Dois meninos, Jones pequeno e Piggot, que são meus companheiros.
- E você não é maltratado?
- Oh, não, senhor. A gente precisa ser esperto quando os monitores nos mandam fazer alguma coisa; se usamos a cabeça e não mexemos com eles, são até meio decentes.
- Ótimo.
A conversação, obsessivamente reminiscente das suas conversas com David e o outro Stephen, tantos anos atrás, trouxe uma estranha dor no coração de Bertram. Sim,
fazia muito tempo - e no entanto parecia que apenas ontem tinham saído para Marlborough, nervosamente tensos com a provação que tinham pela frente, ouvindo apenas
pela metade os seus bons conselhos. Que velho ele estava sendo, um sujeito antiquado, tão dado a sonhar com as coisas de outrora, que misturava o presente e o passado,
olhando para este Stephen, imaginando-se em companhia do seu próprio e querido filho. Os dois eram certamente parecidos - o Stephen vivo tinha as cores delicadas
do outro, testa ampla e olhos muito azuis, o mesmo e orgulhoso aprumo da cabeça sobre os ombros estreitos. Parecia um cavalheiro, graças a Deus, um Desmonde normal.
E Christ's Hospital, embora ele naturalmente tivesse preferido Marlborough, era uma excelente escola e faria dele um homem. Nas circunstâncias, podia dar-se por
feliz em ter colocado o menino numa fundação - eram difíceis de conseguir hoje em dia, quando todos sentiam o rigor da situação. O uniforme, também, era atraente
- hoje, quando almoçaram no Simpson's, no Strand, os olhares dirigidos a eles, interessados, divertidos, todos lisonjeiros, tinham-no aquecido mais, muito mais que
o quartilho de Chablis que, como um regalo, tinha se permitido. Aliás, nenhuma das safras tinha a metade do valor das que saboreara nos velhos tempos.
O desejo de plantar a boa semente, o sentimento de que esse era o seu dever, levou-o, contra a sua vontade, a uma pequena homilia.
- Espero grandes coisas de você, meu menino. Deve perseverar e acreditar no seu nome. Como vão as lições?
- Muito bem, senhor. Tivemos uma prova antes de sairmos para as férias.
- E como se saiu?
- Muito bem em inglês e aritmética.
Uma sombra atravessou a mente de Bertram, e ele mal pôde obrigar-se a fazer a pergunta.
- Eles ensinam desenho?
- Sim, senhor. Mas nisso eu fui mal. Parece que eu não posso mesmo desenhar. - Inconscientemente, Bertram soltou um pequeno suspiro de alívio e relanceou os olhos
para o seu neto, que continuava:
- Mas mamãe mandou eu lhe dizer que tive notas perfeitas no conhecimento da Escritura.
- Muito bem... muito bem - murmurou Bertram. Quem poderia dizer? Talvez até àquela hora tardia, a grande esperança da sua vida pudesse realizar-se, se Nosso Senhor
lhe permitisse sobreviver para vê-lo. Pôs os dedos de veias azuis sobre a mão do menino e bateu nela com aprovação.
Sob essa carícia, Stephen corou e olhou em volta para ver se tinham observado. Embora o seu avô despertasse nele um misto de constrangimento e medo, com uma ponta
de divertimento, que é a triste sorte dos idosos causar nos jovens, ele gostava muito daquelas expedições não infreqüentes que faziam juntos, especialmente durante
as aulas, quando um lanche moderno escolhido por ele, seguido, se o filme era apropriado, de um cinema, e no fim, inevitavelmente, da sua peregrinação à Galeria
Tate, constituíam uma agradável interrupção da rotina escolar. Mas hoje, começo das férias da Páscoa, depois de ter estado fora da escola nove semanas, ele estava
ansioso por ver a mãe, que os encontraria na Estação de Waterloo e o levaria com ela para casa. Várias vezes ele tinha perguntado com muito tato a Bertram que horas
seriam, e estava para perguntar novamente, quando um bando de meninas de colégio entrou na sala, escoltado por sua professora.
Eram mais ou menos uma dúzia, de saias verde-escuras e blusas da mesma cor, com uma tira no bolso, chapéus de palha com uma fita verde, mantidos com um elástico
sob o queixo. Todas usavam luvas de pelica marrons, meias e sapatos pretos. A professora, num tweed discreto, sapatos de salto baixo, era pálida e séria, de cabeça
nua, com óculos, e trazia um pequeno maço de notas, às quais, como um cicerone conduzindo a visita, ela se referia de quando em quando. Exatamente à frente de Bertram
e Stephen, mas sem notar, ela se deteve.
- E agora, meninas - anunciou ela - chegamos aos Desmondes, três quadros representativos adquiridos em 1930. O primeiro, intitulado Circo,
distingue-se por um maravilhoso sentido de cor e composição, e pertence ao período francês do artista. Notem em particular o grupo de palhaços no primeiro plano
e a maneira pela qual é dada uma impressão de movimento à figura da moça na bicicleta.
"A segunda pintura, O Roupão Azul, que estou certa de que já viram reproduzida muitas vezes, é um retrato da mulher do artista. Aqui vocês encontrarão a liberdade
do arranjo e a informalidade da composição que caracterizam toda a obra de Desmonde. Como vêem, o modelo não é nem jovem nem bonito, contudo, por uma coloração sutil
e um fluxo rítmico de linhas simples, um extraordinário sentimento de beleza é criado. Observem, também, que, através da janela junto à qual ela está sentada, há
uma vista delicadamente sugerida da rua lá fora, com algumas crianças pobres jogando futebol. Esse, aliás, foi outro conhecido Desmonde, Crianças Brincando, que
pode ser visto no Luxembourg, em Paris.
"O terceiro, o quadro maior, foi o último trabalho executado pelo artista, e é considerado a sua obra mais completa. É, como estão vendo, uma grande composição do
estuário do Tamisa, mostrando todo o movimento turbulento e atravancado do rio. - Começou a consultar as notas. - Observem, meninas, que esta não é uma simples representação
pictórica. Notem as hábeis deformações, a audácia e sutileza do colorido, os tons divididos expressivos, a projeção sobre a tela de um drama interior do espírito.
Também mostra a luz que parece emanar da tela, vibrante e reluzente, uma luminosidade que dá grande intensidade à obra. De certo modo, lembra a radiância de expressão
encontrada em certas telas de Rubens. Desmonde não era inteiramente um pintor revolucionário. Como os impressionistas se inspiraram em Turner, ele se abeberou, nos
seus primeiros anos, em Manet, Degas e Monet. Alguns estudiosos, na verdade, lembraram recentemente que o período espanhol da sua arte vem de Goya. Mas embora tivesse
estudado os mestres, ele foi além deles. Sabia como reconhecer a beleza em todas as suas formas, e sua consciência forçava-o a rejeitar qualquer técnica que não
a sua. Foi em todo o sentido da palavra um individualista, cuja obra, mesmo quando mais especializada, parece cobrir todo o período da sua existência, um grande
artista original, que, resistindo a todas as tentações de ser repetitivo, abriu uma nova era de expressão. Quando olhamos para essas obras, sabemos que ele não viveu
em vão.
Aqui, a professora guardou as notas e tornou-se novamente humana. Olhando para as suas alunas, perguntou vivamente:
- Alguma pergunta, turma?
Uma das meninas, que estava perto da professora, falou, com o jeito de aluna favorita:
- Ele morreu, senhorita?
- Sim, Doris. Bem jovem, um tanto tragicamente, e quase ignorado.
- Mas a senhorita não acabou de dizer que ele foi um grande pintor?
- Sim, Doris, mas, como muitos outros, teve que morrer para se tornar grande. Não se lembra do que lhes contei sobre a pobreza de Rembrandt, e Hals, enterrado em
cova comum, e Gauguin, que mal conseguia vender uma única pintura quando estava sem dinheiro, e Van Gogh...
- Sim, senhorita... as pessoas não entendiam, estavam enganadas a respeito deles.
- Todos podemos cometer enganos, querida... - Gladys, pare de fungar.
- Desculpe, senhorita, estou resfriada.
- Então use o seu lenço... como eu ia dizendo, Doris, a Inglaterra pode ter errado a respeito de Stephen Desmonde, mas redimiu-se esplendidamente. Aqui estão estes
quadros na Galeria Tate, para todos nós. Agora, venham, sigam-me, não fiquem para trás, meninas, que eu vou falar dos Sargents.
Quando elas se retiraram, tagarelando ao longo da galeria, Bertram, ainda imóvel, continuou a sua baldada contemplação dos quadros. Quantas vezes, naqueles últimos
poucos anos, tinha ouvido, desde o tímido começo, mas sempre crescendo e se tornando um vigoroso coro, as mesmas palavras e frases fastidiosas empregadas pela jovem
professora de arte para as suas alunas? Toda a evidência de fracasso de que ele parecera tão certo, as opiniões terminantes daqueles que presumiam saber, finalmente
desaprovadas; Stephen, seu filho, um grande artista... sim, até a palavra génio estava agora sendo empregada sem reserva. Não havia nele nenhum orgulho com esse
pensamento, nenhum triunfo tardio, mas antes uma estranha e atordoante tristeza, e pensando no sofrimento e decepção de uma existência coroada demasiado tarde, imaginava
se tudo aquilo valera a pena. Uma pintura valia isso - a maior obra-prima jamais produzida? Que era a beleza, no fim de tudo, para que homens se martirizassem à
sua procura, morressem por ela, como os santos de outrora? Parecia-lhe que o conflito entre a vida e a arte nunca poderia ser resolvido. Olhando penetrantemente
para os quadros, procurava discernir neles virtudes antes não aparentes para ele. Lenta e tristemente, abanou a cabeça. Não podia fazer isso. Curvava-se novamente
diante da opinião dos entendidos como se curvara antes, contudo, em realidade, as pinturas permaneciam indecifráveis para ele, assim como o enigma que tinha sido
o seu filho em todas as ações da sua vida, e, acima de tudo, na completa, incompreensível e desinteressada impenitência do seu fim. A última cena de todas, ele jamais
poderia recordar sem uma dor surda no coração, quando, na manhã cinzenta, chamado por Glyn ao quartinho dos fundos da Cable Street, encontrou o filho in extremis,
pálido como um fantasma e mal respirando, com a voz inteiramente perdida, a laringe tão destruída que era impossível engolir, mas ainda com um lápis e um bloco de
esboços na mesinha-de-cabeceira, e, como se isso não fosse
o bastante, uma comprida bengala com um carvão na ponta, com a qual, deitado e inerme, um dia antes tinha tentado traçar desenhos estranhos na parede. Bertram tinha
procurado, com o peito dilacerado, dizer palavras de afeição e consolo, lutado, até a última hora, para levar aquela alma extraviada de volta ao Senhor, mas, enquanto
ele pronunciava uma oração, Stephen escrevendo fracamente, estendeu-lhe uma nota: Que pena, papai... nunca o desenhei .. tem uma bela cabeça. E então, afundado no
travesseiro, começou a traçar o perfil de Bertram no seu bloco. Um retrato final... porque dali a pouco o lápis escapou-lhe, os dedos procuraram-no debilmente, instintivamente
e então, como o resto dele, ficaram imóveis. Enquanto Bertram sentava-se curvado e desfeito, Glyn, com uma firme e dura competência, começava a fazer a máscara mortuária
daquele rosto emaciado e impassível.
- Pelo amor de Deus - gritara ele. - Precisa fazer isso?
- Sim - respondera Glyn, sombriamente - por amor à arte. No futuro isto será, para muitos, uma fonte de fé e perseverança.
Afinal o enterro tinha sido em Stillwater, e Stephen agora lá repousava em paz, dentro da igreja, embalado pelos ventos dos Downs, ao lado do seu ancestral, o Cruzado.
Com um esforço, Bertram recompôs-se... o passado era o passado, não havia proveito em pranteá-lo.
- Vamos tomar um sorvete no Buzzard's, antes de encontrar sua mãe. Apanharam um ônibus no Oxford Circus. Depois, sentados à mesinha com tampo de mármore da antiga
confeitaria, o Reitor observava o seu neto tomar um sorvete de morango.
- bom?
- Colossal! - Levantou os olhos. - O senhor também não quer um? Tocado, Bertram sacudiu a cabeça.
- Eu gostava disso quando tinha a sua idade. Havia um doce de coco que faziam aqui que também era excelente. Eu sempre o comia quando era menino. - Sorriu ligeiramente
ao acrescentar: - Fazem-no há quase um século.
Ao saírem, parou no balcão de mogno e comprou uma caixa de confeitos rosas e brancos. Doce saudável, pensou, recebendo a caixa bem embrulhada - não fará mal nenhum
ao menino.
A estação não era longe. E lá, muito antes da hora aprazada, esperando-os embaixo do relógio, estava a jovem mãe de Stephen, elegante e discreta no seu costume de
sarja preto, uma figura que mal se notaria na multidão. Mas o menino viu-a e correu para ela. Ela curvou-se um pouco, apertou-o fortemente nos braços.
Ficando a pequena distância, o Reitor discretamente olhava para um lado. Contudo, não podia deixar de notar... era um encontro adorável. E a viúva do seu filho...
ela era realmente uma criaturinha decente e modesta,
vivendo agora com a irmã numa casa separada em Cliftonville, a melhor parte de Margate. Havia um firme, aliás, um crescente rendimento com as vendas dos quadros
de Stephen. Ele tinha certeza de que o preto por ela usado ainda era um sinal de luto - devia tê-lo amado muito, sim, muito mais do que ele acreditara. Eles agora
vinham ao seu encontro.
- Espero que Stevie tenha sido um bom menino.
- Muito bom. - Mas ele gostaria que ela não abreviasse o nome daquele modo. - Tivemos bons momentos juntos.
- É muita bondade sua ficar com ele.
- E muita atenção sua deixar que eu o faça.
Conversaram amavelmente por alguns minutos. Então, uma pausa. Jenny olhou significativamente para o filho.
- Muitíssimo obrigada, senhor, pela esplêndida oportunidade. Apertaram-se as mãos. Ele os viu afastarem-se juntos, de braço dado, observando-os até que se perderam
de vista. Suspirou. A despeito do grande relógio acima da sua cabeça, consultou o seu. Seu trem partia em 15 minutos. Caroline muito provavelmente estaria no mercado
de Halborough e o encontraria na estação, voltando com ele para casa de ônibus. Desde a morte de Julia, havia dois anos, ela parecia preocupar-se menos. Tornara-o
confortável na Pequena Reitoria, arrumando-a tão bem que ele agora até gostava do lugar. Embora não passasse de um bangalô, era mais conveniente e quente no inverno.
Sim, uma boa alma, Carrie. Pois se até parecera quase alegre outro dia, quando Claire lhe dera aquele cachorrinho spaniel. Ah, Claire... Claire... Se ao menos...
mas não, ele não devia vaguear naquela terra do podia-ter-sido. Na banca de jornais, demorou-se um pouco - nada digno de leitura agora, tudo Moleiras sensacionais;
por fim, apanhou a Cornhill Magazine. Talvez pudesse achar nela alguma coisa para o seu sermão de domingo. Agora já tinha usado muito o Bispo Denton, respigado o
velho camarada demasiadas vezes, e ideias não ocorriam nitidamente ou tão facilmente como antes.
Encontrou um lugar num canto da terceira classe - passados eram os dias de viajar na primeira - e quando a locomotiva se movimentou, acomodou-se para ler. Mas a
luz do dia estava diminuindo, a sua vista enfraquecida e a iluminação do compartimento fraca. Sentiu-se subitamente cansado, e o almoço que o menino tinha escolhido,
grelhados sortidos, embora compartilhado por ele parcimoniosamente, ou talvez o Chablis, nunca fora um bebedor, dava-lhe uma ligeira sensação de peso. Inclinando-se
para trás, fechou os olhos. Dormia? Ou ouvia o pulsar das rodas, que pareciam repetir, sempre e sempre, o nome do seu filho morto?
A escuridão caiu e o trem continuou matracolejando na noite.
A. J. Cronin
O melhor da literatura para todos os gostos e idades