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A imponente família Campos Real não queria para seu herdeiro Juan uma jovem sem berço ou sobrenome. Mas, o destino tinha seus próprios planos. Ao conhecer Mariana, Juan apaixonou-se e lhe jurou amor eterno.
Seus pais, claro, não gostaram nada da situação. Conseguiram separá-los, mas não contavam que, ao expulsar Mariana da vida de Juan, ela levava consigo o fruto daquele amor proibido.
Capítulo Um
Havia um tipo de fantasma que rondava aquela casa. Não algo realmente sobrenatural, mas alguma coisa maquiavélica que sempre lhe arrepiava os pelos dos braços quando chegava o horário fatídico.
Vinte e duas horas. Era o tempo medido no espaço em que a mãe sempre saía para o trabalho. O horário que ela ficava sozinha na casa com o demônio José Carlos que sempre tentava abrir a porta do seu quarto e molestá-la.
Olhou para o relógio de parede que ficava ao lado do crucifixo em cima da cama. Ouviu a porta da frente batendo.
Começava mais uma sucessão de medo.
A mãe saíra para seu turno noturno num bar. Sentou no chão, não sem antes passar o ferrolho na porta.
Havia colocado a proteção sozinha, escondida. Quem a ensinou a arte da mercearia foi um dos antigos padrastos – um dos bons – Antônio, que era pedreiro e não considerava que aquela profissão era exclusiva dos homens.
Com ele aprendeu o básico para poder pôr trancas fortes na divisa que a separava do abuso. Sentia falta de Antônio, era um dos poucos que nunca tentou nada com ela.
Mas, ele logo foi afastado pela mãe. Afinal de contas, a mãe era do tipo que gostava de diversificar. Era independente, dizia. Tinha direito a ter quem quisesse.
O pai, Mariana nunca conheceu. Mas, padrastos ela teve aos montes. Alguns eram discretos na maneira de olhá-la, mas José Carlos logo no primeiro dia que foi a sua casa, já demonstrou com o olhar que nunca a deixaria em paz.
Ela havia completado dezoito anos no último domingo. Podia sair de casa, mas a incerteza de não saber para onde ir era exatamente o que a angustiava.
A custos, terminou o ensino médio. Todavia, não havia muitos empregos naquela cidade litorânea ao sul do Brasil.
Após a Lagoa Mangueira, um pequeno município chamado Peces fazia divisa com o Uruguai. O local era muito belo, apesar de um tanto isolado. As famílias instaladas naquela faixa de areia sobreviviam da pesca ou dos comércios situados na fronteira.
Uma batida forte na porta. Mariana estremeceu.
— Oh, Mari... Abra a porta, vamos conversar — o homem pediu.
Ela segurou as lágrimas, tentando conter o tremor em todo o corpo.
Céus, como o temia. Antes das trancas, certa vez ele entrou em seu quarto e ela só escapou porque conseguiu pular a janela.
Até tentou contar aquilo para a mãe, mas a mulher estava encantada pelo homem e logo desprezou a palavra da filha.
“ Quer apenas estragar meu namoro, não é? Você tem ciúmes de mim porque ninguém te quer. Nem eu mesmo te queria! ”, a mãe retrucou, o olhar soberano de quem tinha certeza das palavras.
Subitamente, o som de pancadas fortes. Ele estava usando um machado?
Mariana se afastou da porta e se postou do outro lado do quarto. Se ele entrasse, ela teria que fugir pela janela, novamente. Contudo, assim como começou, o som parou.
Seu coração estava aos saltos, um medo irracional a tomou. Aos prantos, decidiu fugir. A imensidão da praia vazia não a apavorava tanto quanto aquela casa.
Abriu a janela. Antes de conseguir ter uma reação, deu de cara com José Carlos na parte externa da casa.
Percebeu o sorriso lascivo e vitorioso. Ela estava perdida.
Enquanto ele entrava pela janela, ela correu para a porta. Tentou tirar as trancas para sair por ali. Conseguiu abrir a porta, no entanto, antes de dar um único passo, sentiu as mãos do padrasto em sua cintura e seu corpo sendo projetado na cama.
Gritou, esperneou, implorou por piedade, mas a boca molhada dele não parou de deslizar pelo seu pescoço, seus ombros, enquanto os dedos sujos tentavam abrir suas pernas.
— O que está acontecendo?
A voz da mãe pareceu um canto divino ecoando na dor de seu abandono.
— Ela me seduziu — o padrasto se explicou, afastando-se do seu corpo, parecendo ser ele a vítima.
Por alguns segundos, Mariana realmente acreditou que ela fosse rir, expulsar o homem de sua casa, dizer que nunca havia visto alguém tão mentiroso. Mas, contudo, a raiva da mãe logo se voltou a ela.
Caminhando em sua direção, lhe desferiu um forte tapa no rosto.
— Nunca quis que eu fosse feliz! — a mãe gritou. — Saía da minha casa, sua puta!
Mariana abriu a boca. Quis explicar-se. Dizer que não era a culpada. Mas, a voz engasgou em meio às lágrimas de dor e decepção.
Sempre soube que não era bem vinda. Sempre soube que a mãe a teve porque não teve escolha. Que nunca a amou. E agora ficava ainda mais claro que não havia espaço para ela no seio materno.
Não juntou suas coisas. Simplesmente se levantou e saiu caminhando em direção à porta de saída.
— Nunca mais volte! — a mãe ordenou.
Mariana jurou a si mesma que nunca mais pisaria naquela casa.
— Sabe realmente qual é o problema?
Peces era uma cidadezinha litorânea sem nada além de uma vila de pescadores e uma praia paradisíaca. Mesmo assim, os Campos Real, uma abastada família uruguaia, mantinha uma mansão na divisa com a cidade, onde se encontravam no verão para tomar sol e curtir o mar.
A família era latifundiária. Milhares de hectares de terras usadas na pecuária e na agricultura. Viviam entre a fronteira do Brasil e do Uruguai, mantendo negócios em ambos os países.
Não que Juan, com seus dezenove anos, estivesse se importando muito com isso. Na verdade, seu único foco era a faculdade de medicina em Rio Grande, na qual ele dedicava quase que atenção exclusiva.
Optar por estudar no Brasil era quase uma afronta à mãe, barreirista, mas ele fez questão. Aquela faculdade era muito respeitada e ele sonhava em formar-se ali.
— Qual é o problema mãe? — questionou, bebendo o suco de laranja e sorrindo para a imponente senhora à sua frente.
Yolanda suspirou alto.
— Nós temos um sobrenome a manter, e a medicina não irá te ajudar em nada disso. Por que não faz agronomia? Seu pai ficaria tão orgulhoso.
Noel Campos Real estava pouco se importando com a faculdade que o filho cursava. Mais importante era viajar com aquele amontoado de modelos famosas, casos extraconjugais que ele não fazia questão de esconder, e ganhar ainda mais dinheiro.
— Curso medicina porque quero ser feliz fazendo algo que realmente me importo — avisou.
A felicidade dele parecia pouco valer para a mãe. Ela não só ignorava as traições frequentes do marido, como também tentava forçar o filho a assumir uma relação com Angelita Vargas, filha de um magnata das telecomunicações.
Deixando o copo de suco em cima da mesa, Juan começou a andar em volta da piscina. No fundo, o mar ecoava. Ele respirou fundo, sentindo a calma aprofundando seu ser.
— Já é tarde — murmurou. — Acho melhor irmos dormir.
E depois rumou para dentro da casa.
Yolanda permaneceu no terraço, a observá-lo enquanto se afastava. Ela tinha propósitos na vida. Casar seu filho com alguém importante como Angelita e fazê-lo desistir da medicina para se dedicar a fortuna da família era parte disso.
E Yolanda Campos Real sempre conseguia o que queria.
Não havia luar naquela noite. Nem mesmo estrelas. Provavelmente choveria em algum momento da madrugada. Mariana sentou-se na areia e tentou conter as lágrimas diante da verdade de que estava completamente sozinha e abandonada naquele mundo temível.
O que faria? Para onde iria? Já tentara conseguir trabalho, mas não havia nada em Peces para alguém sem experiência como ela.
A solução seria ir embora. Mas, como? Pegando carona? E para onde?
Escondeu o rosto nas mãos. Tinha dezoito anos, nunca teve amizades (a mãe não gostava que tivesse!), não tinha um propósito, não tinha um trabalho e não tinha perspectiva de nada. Sabia que precisava dar um passo em direção a alguma estabilidade, mas não sabia como fazer isso.
— Você está bem?
O susto que se seguiu fê-la levantar-se. Encarou a figura que se aproximava e descobriu um jovem praticamente de sua idade. Ele mantinha as mãos nos bolsos e parecia inofensivo.
— Eu...
— Precisa de ajuda? Posso levá-la para casa — ofereceu-se.
Não parecia com os pescadores que costumavam morar naquela região. Ao contrário, era bem vestido e aparentava viver bem.
Ele sorriu. Não algo misterioso e sim franco. Depois, parecendo compreender as marcas de lágrimas em seu rosto, sentou-se na areia e observou o mar escuro.
— Você é algum tipo de sereia que vagueia com pernas à noite?
A pergunta dele seguiu-se a uma risada. Ria da própria piada como se ela realmente fosse engraçada. Subitamente, Mariana sentiu-se tranquila.
— Por que acha?
— Porque uma jovem bonita andando sozinha numa praia isolada nos faz pensar em besteiras.
Uma vez José Carlos lhe disse que ela o fazia pensar em besteiras. A conotação da frase daquele rapaz era completamente diferente.
— Sou Juan — ele se apresentou. — E repito: precisa de ajuda?
— Por que acha isso?
— Não se ofenda, mas parece desesperada.
Mariana suspirou. Por fim, entendeu que o jovem era como o antigo padrasto Antônio, alguém incapaz de praticar o mal. Então, sentou-se ao lado dele.
— Estou sozinha no mundo, sem ter para onde ir... — confessou. — Não sei o que fazer...
— Não tem família?
— Minha mãe me expulsou.
— Por quê?
Contar a ele poderia mudar drasticamente a visão que o rapaz tinha dela. Mariana sabia. Mesmo assim, precisava desabafar.
— Meu padrasto tentou abusar de mim, e ela ficou ao lado dele.
Percebeu o corpo do jovem se enrijecendo.
— Isso é um absurdo! Precisamos chamar a polícia.
— Seria minha palavra contra a deles. E ele não conseguiu seu intento. Isso só me prejudicaria ainda mais. Alguns homens poderiam passar a me ver como...
Calou-se. Sentiu-se um objeto usado.
— Olha, não posso levá-la até minha casa porque sei que minha mãe não aceitaria. Mas, conheço um abrigo em nossas terras. É uma antiga casa de pescador que ninguém mais usa. Poderá passar a noite e amanhã pensaremos em algo. Nunca desista, sei que há esperança.
Ela sorriu. Ele era extremamente confortante.
— Por que vai me ajudar? — perguntou.
— E por que eu não a ajudaria?
Naquela noite Mariana descobriu que sim, havia monstros em forma de gente, capazes de abusarem dos mais fracos ou expulsarem os próprios filhos de casa. Mas, também havia gente boa, que estendia a mão e amparava quem sequer conhecia.
Juan passou a ser sua esperança de um mundo melhor.
Capítulo Dois
AMIZADE
A cama era velha e de colchão de palha. Mesmo assim, havia muito tempo que Mariana não se sentia tão segura e amparada em um lugar.
— Amanhã trarei cobertores e algo para você comer. — Subitamente a encarou. — Você tem alguma roupa além dessa que está usando?
Ela negou.
— Tudo bem, amanhã também trarei algumas roupas. Não precisa se preocupar, poderá ficar o tempo que quiser até decidir o que fará com seu futuro.
Ela queria agradecê-lo pela bondade, mas, repentinamente, ele afastou-se para a porta.
— Preciso voltar para casa. Minha mãe sequer sabe que saí — explicou-se. — Durma bem. — Parou. Volveu-se. — Não sei seu nome...
— Mariana.
O sorriso dele fez o coração dela acelerar.
— Então durma bem, Mariana. E fique tranquila, está segura aqui.
Não que Mariana duvidasse que ele fosse realmente aparecer no dia seguinte, mas sentiu um profundo alívio ao vê-lo entrando pela porta com uma sacola de roupas e uma cesta com comida.
Nem devia ser certo, aquilo. Confiar tanto em alguém que mal conhecia. Contudo, ele a salvou naquela noite, lhe deu um teto e agora lhe trazia algo para se alimentar.
Seguiu seus instintos. Não havia nenhum tipo de maldade no olhar de Juan. Por isso, provavelmente, não o temeu.
— Você é uruguaio? — A pergunta era porque não havia sotaque no seu tom de voz.
— Castelhano — ele riu, brincando com a palavra que costumavam usar naquele frio Sul.
— Por que está aqui?
— Meus pais têm terras tanto do lado uruguaio quanto do brasileiro. E temos uma casa de praia aqui em Peces.
Uma casa de praia? A única família de posses o suficiente para tal naquele lugar era os Campos Real.
Mariana logo ficou nervosa com a constatação. Na vida dela não era comum receber atenção de gente como Juan.
— Sou gente como você — ele murmurou, percebendo a reação dela.
Mariana enrubesceu.
— Você é um Campos Real?
— Sim.
— Então não é como eu — ela murmurou. — Mas, sou muito grata por tudo que está fazendo.
Juan sorriu novamente. Havia uma doçura nele que Mariana era incapaz de entender.
— Você tem algum sonho?
Naquela semana que se seguiu a chegada dela naquele casebre isolado de praia, os dois jovens passaram a trocar uma amigável conversa sobre o futuro. Tinham muito em comum, especialmente a personalidade gentil.
Ele queria ser médico, lhe contou. Apesar de a família ser contra, pois o queriam administrador. Mesmo assim, seu sonho era ser pediatra. Cuidar de crianças carentes e amparar aqueles que precisavam.
— Sonho? — ela indagou, estranhando a pergunta.
Ao contrário dele, não restava muito para Mariana. Ela apenas batalhou para sobreviver àqueles anos de outrora. Agora que parecia estar livre, temia os passos a serem dados.
— Posso te ajudar a entrar em algum curso, se você quiser.
Ela queria. Mas, qual?
— Posso ser qualquer coisa? — A pergunta era mais para si mesma do que para ele.
— É claro que pode. Você é capaz!
Pela primeira vez em muito tempo, Mariana sorriu, feliz. O ato era tão genuíno e real que Juan sentiu um estranho formigamento em seu íntimo.
Sempre foi diferente dos demais jovens. Enquanto os amigos de faculdade se divertiam e queriam aproveitar os prazeres da vida, tudo que ele buscava era se preparar para atender aos que precisavam.
No âmbito romântico, seus poucos namoros nunca lhe trouxeram emoção, e nunca foi de ficar com qualquer garota apenas para passar o tempo. Sempre soube que havia algo a mais no universo, algo poderoso e incrível, e se não fosse para vivenciar isso, preferia a solidão.
O pai dizia frequentemente que ele não era homem, pois, não aproveitava o que o dinheiro lhe proporcionava. Afinal, homem de verdade pegava mulher o tempo inteiro, e Noel Campos Real tinha vergonha de ter um filho como ele...
Mas, agora observando o rosto pacífico de Mariana, Juan pensou no quanto o pai estava errado.
Um homem de verdade não precisava ter dezenas de mulheres para provar algo a alguém. Bastava que ele tivesse apenas uma, e que ela fosse a pessoa certa.
Romantismos à parte, no momento em que Mariana lhe estendeu uma xícara de chá – como costumava fazer em todas as tardes que ele aparecia na cabana – ele soube que ela era exatamente essa pessoa.
O primeiro passo para realizar um sonho era ter um. Mariana sabia disso. E sabia também que precisava de um emprego. Já haviam decorrido alguns dias em que estava na cabana, e não poderia ficar lá para sempre.
Assim que percebeu que dentro das terras dos Campos Real ninguém entrava sem autorização, soube que estava segura. Deixando a companhia do medo frequente de um estupro, disse a si mesma que precisava de um trabalho.
Como Juan vinha todas as tardes lanchar com ela, decidiu sair cedo naquela manhã e ir até a vila de pescadores. Não sabia exatamente no que poderia ser útil, mas, contanto que não fosse no bar aonde a mãe trabalhava, aceitaria qualquer labor.
A areia estava fofa e o dia ameno. O litoral sul era sempre muito frio naquela época do ano, mas o trabalho fazia com que os pescadores não parassem seus afazeres em nenhum momento.
Ao longe, viu um grupo. Estavam arrumando as redes e pareciam animados numa conversa.
Tirando Juan, ela tinha medo dos homens. Sabia que nem todos eram maus. Seu antigo padrasto Antônio a havia salvado inúmeras vezes de diversos apertos. Estendeu-lhe a mão na época da escola, lhe dando caderno e lápis quando a mãe sequer se importou em lhe dar meios de estudar, e depois a ensinou algumas coisas que poderia usar agora, num trabalho manual.
Mesmo assim, era mulher e estava num lugar isolado. Sentiu as mãos tremerem.
— Olá! — uma voz amigável a sua traseira quase a fez saltar.
Voltou-se e viu um jovem bonito sorrindo em sua direção.
— Olá — respondeu.
Ele parecia indagar sobre a presença dela com o olhar. Não um questionamento duro, e sim algo tranquilo, como se estivesse disposto a ajudá-la.
— Procuro trabalho — ela explicou.
— Hum...
Pareceu pensar. Olhou na direção dos homens ao longe.
— Meu pai é o responsável pelas barcas daqui — apontou. — Se chama Pedro. Sei que ele sempre emprega pessoas, mas uma mulher é mais difícil...
— Eu posso fazer qualquer coisa — insistiu. — Realmente preciso trabalhar.
O rapaz a observou atentamente, como se a estudasse.
— Eu sou Guilherme — apresentou-se. — E você?
— Mariana.
— Bom, não temos muito trabalho, mas seria bom ter uma ajuda com as redes que estão arrebentadas. Posso falar com meu pai...
— Isso seria ótimo — ela quase gritou. — Muito obrigada mesmo.
O rapaz sorriu.
— Então, venha amanhã de manhã e veremos o que poderá fazer, está bem?
Eles apertaram a mão. Não sabiam, selavam uma amizade eterna.
Ele a sentiu antes mesmo de vê-la. Era uma sensação estranha de proximidade que não experimentou com mais ninguém naquela vida.
Havia algo energético no ar, como se Mariana fosse moldada para ele, uma alma ansiosa por desvendá-lo. E talvez por isso fosse tão irresistível vagar todas as tardes a sua procura, querendo dela seu tom de voz e suas conversas, derrubando aos poucos aquele pesado muro de proteção construído para salvar-se da negligência da mãe e do abuso do padrasto.
— Juan! — ela exclamou assim que o viu.
Queria correr até ela, pegá-la nos braços. Beijá-la...
Os pensamentos o assustaram, até porque nunca ocorreram com aquela intensidade. Contudo, eram inevitáveis.
— Eu consegui um emprego — ela avisou.
Sorriu por ela.
— É mesmo? Onde?
Ela segurou seus dedos. Um carinho tão intenso que todo seu corpo se arrepiou.
— Um rapaz da vila — explicou. — Ajudarei a arrumar as redes de pesca. Começo amanhã.
Um rapaz...
Queria ficar feliz por ela, mas pela primeira vez na vida, Juan sentiu aquele sentimento asqueroso do ciúme.
Quem era? Era interessante? Quanto tempo ficariam juntos, trabalhando? Despertaria algo em Mariana?
— Fico feliz por você — mentiu.
Juan a queria inteiramente para ele. Era algo horrível de se pensar, mas extremamente verdadeiro.
Uma das criadas surgiu no terraço da enorme mansão com uma xícara de chá.
Yolanda sempre gostava de ir a casa da praia no outono. Assistir o mar revolto e as ondas escuras ao longe a enchiam de contentamento.
— Onde está meu filho? — indagou à mulher que a servia.
A criada pareceu surpresa.
— Não o vi, senhora.
De modo repentino, Yolanda percebeu que há vários dias não via Juan pela casa. Ele não era muito de andar pela praia, mas agora parecia interessado.
Talvez enfim puxara ao pai e andava se engraçando com alguma pobretona qualquer, que dormiria com ele por qualquer trocado.
O problema é que aquilo, apesar de inofensivo, ia contra os propósitos de Yolanda.
— Mande chamar o administrador — ela ordenou a criada.
Precisava descobrir aonde o filho ia e pará-lo. Juan já lhe dava desgosto suficiente não seguindo o que nascera pra fazer – cuidar da fortuna dos pais. Do jeito que era romântico, poderia se apaixonar por qualquer uma e destruir ainda mais os objetivos que ela havia traçado ao primogênito desde o dia em que nascera.
Capítulo T r ês
A P E R D A
U m dia aquele amor recém descoberto no coração do jovem Juan precisaria ser abafado. E o foi quando ele percebeu que as férias se findavam e ele precisava retornar a faculdade em Rio Grande.
Como Mariana trabalhava em período integral, foi despedir-se dela no final da tarde. A encontrou sorrindo como sempre e, como sempre, ele não tentou nenhuma aproximação mais intensa.
— Fique bem — disse, lhe estendendo a mão. — Fique o tempo que precisar. Ninguém se lembra dessa cabana velha e tenho certeza que ninguém se ofenderá por você usá-la. Caso alguém apareça, diga que eu autorizei — avisou. — Eu vou voltar — prometeu. — Mais um semestre e então virei ver como está.
Mariana sentiu lágrimas nos olhos. Mas, as ignorou. O aperto na mão demorou mais que o habitual. Seu coração parecia se rasgar, mas havia algo que a impelia a recuar.
— Muito obrigada — ela disse, mais uma vez. — Eu nunca poderei recompensá-lo por tudo que fez por mim.
Ele lhe deu as costas e saiu rumando em direção à mansão.
Ambos choraram muito naquele dia. Mas, a vida tinha suas obrigações. Foi dolorido para eles descobrirem aquilo naquela juventude tão emocional.
Céus, como ele sentia falta dela. No mês que se decorreu, seus pensamentos se dividiam entre o estudo do corpo humano e a imagem confortadora daquela garota simples e humilde.
Mariana não usava batom, mas tinha sempre os lábios vermelhos. A pele escondia pequenas sardas, o cabelo tinha mechas claras de sol, e o tom acobreado parecia combinar bem com a sua palidez.
Ela era linda. Céus, como ela era linda... Será que quando ele retornasse a Peces ainda a encontraria? Ou ela acabaria por se “ ajuntar ” com algum pescador? Talvez até mesmo com o jovem que lhe deu trabalho...
O ciúme era um péssimo conselheiro, ele sabia. Mas, como evitar? Queria tanto desistir de tudo e ir até ela. Pedi-la em casamento. Tê-la para si. E nunca sequer trocaram um único beijo.
O professor indicou que a aula terminava. Ele nem havia prestado atenção. Mariana passou a se tornar o centro de todos os seus pensamentos.
— Uma moeda por seus pensamentos. — Uma loira aproximou-se de sua mesa.
Encarou Angelita Vargas. A nora perfeita para sua mãe. Sabia que os pais queriam casá-lo com ela, e bem da verdade, qualquer homem teria sorte de ter uma mulher tão bonita e charmosa por esposa. Contudo, Juan não se importava com a aparência. Ele queria Mariana, independente do quanto era bela ou não. Mesmo que Angelita fosse uma tentação difícil de resistir, Juan era do tipo que se encantava pela alma. Aquela casca não lhe causava nenhum sentimento.
— O que faz aqui? — indagou. — Não tem aula?
A mulher cursava jornalismo. Juan nem entendia porque ela estudava, já que deixava claro que o diploma seria apenas um adorno. Não desejava trabalhar, queria apenas posar de esposa de alguém cujo sobrenome fosse nobre e poderoso.
— Eu não vou à aula — ela murmurou. — Porque não vamos curtir um pouco em algum lugar?
Juan levantou-se e pegou os cadernos. Saiu da sala sem responder.
Pessoas vazias sempre o deixavam angustiado.
Yolanda encarou a cabana velha que antigamente servia para o sogro limpar os peixes que pescava naquela faixa litorânea.
Quando descobriu pelo seu caseiro que a casa estava sendo ocupada por uma garota sem eira nem beira, levada lá pelo filho, era enfureceu-se.
Que Juan tivesse sexo fácil em qualquer lugar era problema dele, mas que ele fosse levar vagabundas para as terras da família a incomodava muito.
O marido, ao menos, a poupava do dissabor de vê-lo com piranhas. Aprontava, ela sabia, mas sempre longe de suas vistas.
Uma garota surgiu no horizonte. Yolanda Campos Real aproximou-se com rapidez, e a assustou.
— O que faz aqui? — questionou, de forma grosseira.
A menina devia ter no máximo uns dezoito anos. Cara assustada, mãos de unhas curtas e calejadas, uma pobre coitada sem valor.
Yolanda não gostava sequer de pensar que o filho pudesse ter amizade com alguém assim. O mundo era dividido entre classes e Juan pertencia a mais alta delas.
Aquela ratinha de esgoto no máximo seria uma serva para os Campos Real.
— O que faz nas minhas terras? — repetiu, exigindo uma resposta.
A garota pareceu apavorada.
— Estou vivendo aqui porque o Juan me autorizou.
— E eu estou desautorizando. Pode recolher seus trapos e ir embora.
Mariana tremia tanto diante da soberba daquela mulher que apenas cumpriu o que lhe fora ordenado sem nem pestanejar.
Guilherme tinha seus motivos para morar sozinho. A maior parte deles era incomunicável, mas desde os dezoito anos montou sua própria cabana de madeira e se mostrou independente.
Gostava daquilo. Gostava de ter aquela liberdade latente, não ter nenhum compromisso, nem precisar dizer ao pai que estava saindo ou voltando.
Isso não significava que não respeitasse o senhor Pedro, mas sentia-se livre naquele pequeno espaço onde não havia regras.
Por isso, quando Mariana surgiu naquele final de dia carregando uma trouxa de roupa, ele ficou em dúvida se devia ampará-la ou não. Não que não gostasse da garota. Era inocente e meiga. Mas, temia a reação dela quando percebesse o verdadeiro Guilherme.
Mesmo assim, abriu a porta. Aceitou seu abraço choroso e acariciou suas costas, num conforto fraterno.
— Está tudo bem — murmurou contra os cabelos acobreados.
Era foi expulsa do casebre dos Campos Real como um cachorro sarnento. Pobre Mariana, nunca parecia encontrar um lugar... Primeiro, expulsa pela mãe, agora, pela digníssima Yolanda Campos Real.
Ser pobre naquele mundo egoísta parecia um preço muito alto para uma menina pagar. Mas, infelizmente, era a realidade que não poupava ninguém.
Capítulo Quatro
ETERNO
O casebre permanecia praticamente igual. Mas, era a falta dela que fez Juan logo perceber que havia algo errado.
Aonde estava Mariana?
Sentiu o aperto do peito. Naquele final de semana, deixou tudo para trás em Rio Grande e voltou para Peces porque precisava desesperadamente vê-la.
Não mais negou a si mesmo que havia se apaixonado pela jovem. Queria-a mais que tudo naquela vida infeliz e sem cor.
Cresceu no luxo, comendo do melhor, tendo as roupas mais caras, os bens mais preciosos... E nunca se sentiu feliz.
Entretanto, ali, naquela cabana velha e apodrecida, bebendo chá e conversando com aquela moça sem família, enfim, ele sentia-se em casa.
Nenhuma riqueza no mundo podia se comparar ao amor...
Entrou na cabana. Parecia abandonada há mais tempo. A areia se acumulava em alguns cantos que, antes, Mariana sempre deixava extremamente limpo.
Então, deu a volta e foi em direção à praia. Queria falar com alguém, perguntar se a viram.
E se ela fora embora? Se sumisse e ele nunca mais a visse? Poderia viver com o fantasma de sua presença?
— A Mari? — Um dos pescadores indagou, assim que foi questionado pela garota. — Conheço sim. Ela está vivendo com o filho do Pedro.
Aquela punhalada foi tão forte que ele quase perdeu a estabilidade.
— E onde fica a casa desse homem?
Não era possível que apenas ele sentia aquela emoção ardendo no peito. Não acreditava que não despertara nada naquela garota.
Quando enfim a viu, ela estava lavando roupa em um velho tanque de concreto. Aproximou-se sorrateiramente, e ficou a observá-la sem que ela se desse conta de sua presença.
Por fim, quando Mariana o enxergou, viu os olhos cristalinos da jovem se enuviarem de lágrimas, e então ela correu até ele e o abraçou.
Juan a apertou contra si, lutando contra o desejo e a amargura.
— Por que foi embora? — questionou.
Queria perguntar mais. Quem era o homem que lhe dera abrigo? Por que escolhera a ele?
— Sua mãe me expulsou — ela explicou. — E um amigo me amparou.
Um amigo? Sentiu um alívio tão grande no peito, que se viu a prensá-la contra si e a tomá-la nos lábios.
Mariana pareceu surpresa num primeiro momento, mas logo em seguida deixou-se ser beijada.
— Eu a amo... — ele confessou, num murmuro doce.
Naquela idade, ambos poderiam realmente saber o que era amor? As questões não mais importavam, porque Mariana era tão carente de qualquer sentimento que agarrara-se imediatamente na promessa implícita da afeição.
— Eu sinto muito pelo que minha mãe fez, mas lhe arrumarei um lugar melhor...
Ela recusou.
— Não é preciso, estou bem aqui...
Mas ele não a queria ali, com outro homem!
— Além disso, posso trabalhar em casa, pois as redes estão aqui.
Respeitar a decisão dela era algo importante para Juan. Era uma prova de que era um homem digno de sua confiança. E ele queria tanto isso... Queria tanto que ela o visse como seu porto seguro, onde podia descansar sem medo.
— O que sente por mim? — questionou.
Precisava saber. Precisava desesperadamente sentir que era correspondido.
— Eu... — ela pareceu acanhada. — Eu me sinto bem com você — ela murmurou, envergonhada. — E eu te amo muito... — disse, quase num sussurro, escondendo as lágrimas.
Estava ali, a comprovação. O resto não mais importava para Juan. Se casaria com aquela garota, seria eternamente dela. Ninguém podia separá-los.
— Venha à cabana hoje à tarde — pediu.
Ela sabia o que significava aquele pedido. Ela entendia a urgência latente em ambos. Mesmo assim, soube que era o momento certo.
Eles se amavam, se queriam, e aquilo era bom.
Juan compreendia que ela iria tão logo a deixou na cabana do tal filho do pescador Pedro. Porque reconhecia a urgência de sua alma feminina que, assim como a dele, estava em tormentos.
Precisavam um do outro. Haviam se buscado por toda uma vida, e agora que se encontraram não se permitiriam ficarem separados.
Então, quando ela entrou pela porta, ele apenas sorriu. Lá fora, o barulho de uma garoa fina batia contra o telhado de barro.
Os cabelos de Mariana estavam molhados, mas ela jamais estivera tão bela quanto naquele instante.
Percebeu sua respiração acelerada. Parecia temerosa. Não por ele, mas pelo que se sucederia.
Juan sabia que deveria se conter, tentar acalmar a ambos. Mas seus pés não se moviam e, quando abriu a boca, não conseguia falar. Logo, percebeu que o beijo era inevitável e então a buscou nos lábios, sentindo a incrível ternura do gesto.
Os dedos dele acariciavam o rosto feminino. Instintivamente, Mariana jogou a cabeça para trás e seus olhos começaram a se fechar. Sentia o calor da respiração de Juan misturando-se com a sua, enquanto seus lábios se encontravam mais e mais, atormentando seus sentidos com a promessa dos prazeres que viriam.
Ela estava completamente rendida.
" Aquilo era certo? ", pensou, fascinada pelo efeito mágico que o beijo causava em todo seu ser.
Aquilo não se parecia em nada com as sensações de pânico que a tomavam quando José Carlos tentava subjugá-la. Agora, ela não era objeto, e sim uma força elementar, uma fortaleza, decidida por si mesma a viver cada instante.
“ Eu sou mulher! ”, pensou, como se fosse uma descoberta incrivel. “ Uma mulher com desejos e vontades! ”
Ela queria mais que nunca entregar-se a mais primitiva interação entre um homem e uma mulher. A língua de Juan traçava linhas imaginárias em seus lábios e Mariana gemia, em resposta. Enlaçando-o pelo pescoço, acariciou seus cabelos.
— Você é tão meiga e adorável — ele murmurou. — É tão perfeita...
Mariana estava completamente absorvida por aquele momento perfeito. Percebeu, atônita, que não negaria nada a Juan. Trêmula de antecipação, aceitou que ele deslizasse a alça de seu vestido de algodão pelo ombro.
— Você não precisa fazer nada que não queira... — ele comentou, baixando a cabeça. — Mas, se fizer, saiba que seremos um do outro para sempre.
Quando os lábios quentes e macios a tocaram, Mariana gemeu baixinho. Juan percorreu-lhe o pescoço com a língua, indo de alto a baixo e tomando a subir, aspirando o perfume da pele alva, fazendo-a soltar mais gemidos de prazer.
Mantendo um autocontrole que sequer sabia possuir, Juan obrigou-se a ir devagar. Mariana queimava onde os lábios dele tocavam. Mas, por mais que ela se mostrasse disposta a seguir por aquele caminho, ainda era uma moça virgem e com uma carga dramática arrasadora no passado. Ele não queria feri-la de forma alguma, nem fisicamente, nem psicologicamente.
Mariana achou que ia enlouquecer sob a tortura das deliciosas carícias. Em seguida, com gestos lentos, carregados de sensualidade, começaram a despir um ao outro.
Nus, deitaram-se naquela cama velha que antes servia de repouso a algum pescador cansado. Mariana deliciou-se explorando todos os contornos do corpo masculino. Juan, por sua vez, acariciava as curvas dos seios, dos quadris e das pernas com uma lentidão que a provocava até o limite da paixão.
Era uma descoberta para ambos. Suas almas haviam se reconhecido no exato momento em que se viram. Mas, seus corpos agora pareciam adquirir o mesmo tato.
Mariana respirava com dificuldade, inebriada de excitação. Não conseguiu conter os gemidos roucos que lhe escamparam da garganta quando os lábios de Juan alcançaram-lhe os mamilos róseos, rijos de prazer.
Juan estava extremamente excitado, mas queria dar-lhe tempo para se acostumar ao seu corpo. Assim, obrigou-se a esperar pela satisfação feminina. Beijou-lhe a pele sensível das coxas e, com a ponta dos dedos, começou a traçar círculos sobre o ventre macio, parando para brincar com os pelos negros, encaracolados. Mariana arqueou os quadris para cima, suspirando, em total abandono.
— Eu te amo — ele murmurou, levantando a cabeça e dirigindo-lhe um olhar ardente. — Eu te amo tanto. — repetiu.
Porque acima da sexualidade, a descoberta do amor era o que mais o inebriava. Era incrível saber que existia alguém para ele, alguém que não importasse as circunstâncias, estaria lá.
Mariana quase perdeu a respiração quando Juan espalmou a mão sobre seu púbis, antes de alcançar-lhe o centro da feminilidade com carícias íntimas, avassaladoras.
— Juan... — gemeu.
Por favor!
O toque másculo despertara-lhe sensações deliciosas, enlouquecedoras. Era como se todos os terminais nervosos de seu corpo estivessem em brasa, incendiados por uma excitação jamais experimentada.
Então ele penetrou-a devagar, e depois começou a mover-se cada vez mais depressa.
O movimento daquele corpo masculino era mais excitante do que qualquer outra coisa que Mariana pudesse ter sonhado. Enlaçou os quadris de Juan com as pernas e passou a mover-se no mesmo ritmo que ele.
Doía, era verdade. Doía muito. Ao mesmo tempo em que o ato parecia preencher um vazio de uma vida inteira.
Atingiram o orgasmo como se tivessem enfim chegado ao paraíso.
Naquela loucura de amor, esqueceram que o próprio Éden foi destruído por uma serpente.
— Nós vamos nos casar — ele jurou.
Lá fora a chuva intensificara. Nus, abraçados naquela velha cama, os dois amantes pareciam esquecidos do mundo ao redor deles.
— Casar?
— Você quer se casar comigo? — ele indagou, na inocência de sua juventude.
Ela sorriu.
— E ficarmos juntos para sempre?
— Sim, para sempre.
— Então, aceito.
Uniram as mãos. Nenhum deles jamais esqueceria aquele momento.
— Uma pobretona qualquer?
Angelita não pode deixar de ficar revoltada em descobrir que Juan, alguém por quem sempre foi apaixonada, a desprezava por uma ninguém que sequer sapatos tinha.
— Mandei o caseiro segui-lo. Ele está indo todos os dias encontrá-la. Já a expulsei das minhas terras, mas agora ele a visita na casa de um pescador.
No telefone, Angelita percebeu o tom desgastado de Yolanda.
— Ela é bonita?
— Quem se importa? — a prometida sogra quase gritou. — Não há comparação com você. É só uma miserável que mal concluiu o segundo grau. Você é uma preparada Vargas, uma universitária de boa família. É claro que quero você como nora.
A jovem sorriu.
— Yolanda, penso em ir passar uns dias na casa de praia. Poderia me convidar?
— É claro.
— Então dê uma festa para me recepcionar. Ah, e não se esqueça de convidar a ratazana de esgoto. Logo a colocaremos no seu devido lugar.
Capítulo Cinco
CONFIDÊNCIAS
Q uando Yolanda descobriu que a relação do filho não era simplesmente um caso passageiro como os quais o esposo costumava ter, ela quase se desesperou.
Porque Juan tinha disso... Ele era romântico e fantasioso. Ele acreditava no amor. E sentimentos eram apenas falácias que passavam com o tempo.
O que não passava era o dinheiro e tudo que os bens materiais podiam proporcionar a uma pessoa. E fazer o filho casar-se com Angelita Vargas era sua melhor chance de perpetuar o sobrenome Campos Real na história.
— Não basta querer fazer medicina para cuidar de pobres, agora está interessado por uma...
Estava sozinha no quarto, reclamando consigo mesmo. Por que o único filho era tão problemático?
Não havia puxado nada pelo pai, nem pela mãe. O primeiro era mulherengo e esbanjador, e ela era completamente obcecada pelo poder e fortuna.
Subitamente deu-se conta de que as amigas iriam rir dela se o filho ousasse casar-se com aquela coisinha de praia.
Respirou fundo.
Era a mãe de Juan e precisava agir.
Mariana estava cantarolando.
Guilherme sorriu diante da visão da garota costurando as redes. Já fazia algumas semanas que ela fora morar em sua casa, e desde então se tornara sua companheira e amiga.
Era estranho para ele ter amizades. Nunca antes tivera. Claro, precisava esconder de todos um segredo grave. Então, nunca deixava ninguém se aproximar. Mas, conforme Mariana foi entrando em sua casa e em sua vida, começou a abrir o coração e a mente para ela.
Assim, soube que precisava confiar em alguém.
— Eu sou gay... — ele murmurou, fazendo-a arregalar os olhos. — Gosto de rapazes. Até tive alguns namorados na cidade vizinha, mas precisei acabar porque meu pai me mata se descobrir.
Ela estendeu a mão e ele firmou-se naquele carinho confortador.
— Seu Pedro é muito bondoso...
— Sim, ele é. E tenho certeza que não desprezaria um homossexual. Mas, a situação muda de figura quando é com o seu filho, não é? Tenho certeza que preferiria me ver morto ao saber que sou gay.
Ela apertou seus dedos.
— Bem, ao menos você tem uma amiga — ela indicou. — Estarei sempre por perto quando quiser conversar.
O sorriso franco de Guilherme a tranquilizou.
— Bendita a hora que te encontrei naquela praia — riu. — Achei que teria que passar a vida toda fingindo ser o que não sou. Ao menos com você poderei ser eu mesmo.
Juan ficou abismado quando percebeu Angelita entrando pela porta. A mãe havia dito que a filha de um dos amigos de seu pai iria passar uns dias com ele, mas Juan esperava que ela só aparecesse no verão.
— Eu vim por sua causa — ela declarou, quando ele lhe questionou o fato.
— Eu amo outra pessoa — Juan devolveu, não querendo ser maldoso.
O jovem Campos Real nem desconfiava que acabava de atiçar um vulcão. Uma mulher desprezada era capaz de tudo.
Capítulo Seis
DOR
M ariana costumava contar os dias de suas regras no calendário de papel pendurado na parede. Tinha um na casa da mãe, e agora usava o da cabana de Guilherme.
Não que se preocupasse muito com a falta da menstruação, mas sempre temia ser pega desprevenida e acabar com a bunda manchada de vermelho.
Assim, quando se encerrava um ciclo, ela contava vinte e oito dias adiante, e aguardava a chegada do sangue.
Contudo, naquele mês, não viera. Lembrou-se um pouco das aulas de educação sexual da escola e começou a ficar abismada. Sabia o que sexo significava e sabia que poderia estar tendo agora um bebê na barriga.
Tentou não se desesperar. Caso isso ocorresse, Juan iria cuidar de tudo. Afinal, ele lhe jurara amor, não é?
Pensava nisso quando uma batida na porta tirou sua concentração das linhas e das redes.
Do outro lado, Yolanda Campos Real surgiu vestida em um conjunto impecável, bem maquiada e com um sorriso que trouxe arrepios na jovem.
— Soube que você e meu filho se tornaram amigos — ela disse.
E seu tom tentava ser amável. Mariana então assentiu, buscando no seu interior a força para tentar ser simpática. Aquela mulher lhe havia tratado muito mal quando se viram a primeira vez, e deixou muito claro o quanto a considerava inferior.
Ao mesmo tempo, era a mãe de Juan. Ela devia muito ao namorado. Sabia que se entender com a mãe dele era um passo muito importante naquela relação.
— Iremos dar uma festa — avisou. — Hoje à noite. Quero que venha.
Mariana pareceu em choque.
— Eu...
— É importante sua presença.
— Não tenho roupa — admitiu, envergonhada. — Sinto muito.
— Mandarei meu caseiro lhe trazer um vestido à tarde. Por favor, não falte.
Então Mariana concordou. Era a mosquinha caindo na teia da aranha.
— Você tem ciência de que é uma armadilha? — Guilherme opinou, observando a amiga arrumando-se com o vestido bonito trazido durante a tarde. — Além disso, a seda não vai esconder que você é diferente deles — apontou. — Não estou gostando dessa situação.
Mariana compreendia. Ela sabia que seus cabelos mal cuidados, sua aparência sofrida e suas mãos aranhadas pelas linhas demonstrariam claramente que ela não fazia parte do universo dos Campos Real. Mesmo assim, precisava ir.
— Preciso ver Juan — apontou. — Preciso falar com ele sobre o atraso na minha menstruação.
— Por que não o espera? Ele vem todos os dias não? Amanhã de manhã com certeza estará aqui.
— Estou nervosa — ela perseverou. — Preciso dizer isso a ele hoje!
— Acha mesmo que está grávida?
Mariana repentinamente pareceu menor. E era difícil para Guilherme vê-la assim, pois a garota, apesar dos modos delicados, era uma pessoa extremamente forte, capaz de suportar o desamor da mãe e o completo abandono de todos.
— Eu acho que sim — ela murmurou. — Eu acho que espero um bebê. Não tenho certeza, mas sinto algo diferente em meu coração.
— Você trouxe?
Angelita riu e puxou da bolsa um vidrinho. Era um remédio antidepressivo dificílimo de conseguir. Precisou subornar um médico para ter a receita.
Yolanda sorriu, alegre. Enfim, aquele pesadelo com a pobretona iria acabar.
Foi a educação que o impeliu a participar daquela festividade. Angelita era uma amiga de infância e se a mãe achava de bom tom preparar um jantar especial para a garota, ele pensou que devia participar.
Mas, a verdade é que estava ansioso para fugir dali.
Nunca se encaixou naquele mundo de aparências. Todos valiam pelas suas contas bancárias e não pela sua integridade de caráter.
Sofria por ser assim, diferente. Por isso não tinha amigos, e o pai parecia desprezá-lo. Achou na medicina um alento, e em Mariana um sentimento avassalador que restaurou sua vontade de viver.
— Juan! — Angelita surgiu no terraço.
Ela segurou sua mão e o levou até a borda, de onde se era possível ver o mar. Depois, lhe estendeu um copo de Martini.
— Não bebo — ele murmurou.
— Não seja bobo. Apenas um gole, por mim. — Depois, suspirou alto. — Tudo bem, não me quer, já aceitei isso. Mas, podemos ser amigos?
Podiam? Pensando francamente, Angelita nunca fez nada para prejudicá-lo. Nunca o desprezou por ser um rapaz tão sensível.
Aceitou o copo e bebeu um gole.
Dali onde estavam, a praia e o mar eram visíveis e ele confortou-se com a imagem bonita.
— Sua mãe me contou que você se apaixonou por uma moça simples que vive na praia — ela puxou assunto.
— Sim — afirmou.
Bebeu mais gole. Havia um sabor especial naquele Martini. Um gosto adocicado que o fez beber novamente.
— Ela é bonita? — Angelita questionou.
— Sim — confirmou novamente.
Sentiu-se zonzo. Dois goles e já ficava bêbado? Quase riu.
— Fale-me sobre ela — Angelita pediu.
— Ela se chama Mariana — ele murmurou.
A praia e o mar ao longe pareceram se misturar como num quadro abstrato.
— Juan... — a voz de Angelita pareceu ficar longe.
Bebeu mais um gole. Nem queria, mas bebeu. Por quê?
Sentiu a mão de Angelita deslizar pelo seu rosto, num carinho gentil. Repentinamente, ela o beijou. Quis afastá-la, mas não teve forças. Não conseguia se mexer. Estava completamente alto.
— Não é certo — ele murmurou, entre os lábios dela.
— Depende do ponto de vista — Angelita sorriu. — Se a ama realmente, porque aceitou meu beijo?
Porque não tinha forças para se mexer. Estava zonzo e fraco.
— Eu amo Mariana — afirmou mais uma vez.
Angelita riu.
— Na nossa idade, querido, nem sabemos realmente o que é amor.
Mariana ficou parada ali, ao longe, os pés na areia e o olhar para o alto, centrado no terraço onde as duas figuras trocavam um beijo como aqueles que ela via em filmes românticos.
Levou um certo tempo para ela perceber que havia alguém a seu lado, também olhando para o mesmo lugar.
— Você é muito protetor — ela disse, um sorriso embargado pelas lágrimas. — Obrigada Guilherme.
— Eu imaginei que algo aconteceria — o rapaz respondeu. — Porque essa gente sempre nos olha com superioridade. Assim, queria ficar a postos caso precisasse de mim.
O beijo prosseguiu. Juan não fez a menor menção de se afastar da mulher.
— Eu devia saber — ela disse, as lágrimas agora escorrendo pelo rosto sofrido. — Sempre se fala sobre isso, mas nunca acreditamos até sermos as vítimas. Ricos sempre usam pobres. Juan apenas me usou.
Guilherme estendeu a mão e segurou a dela.
— Eu vou embora — Mariana disse a ele.
— Para onde?
— Não sei, mas vou. Irei recolher minhas coisas e partir. Não ficarei aqui para ver os filhos dele crescendo e correndo pela praia, enquanto o meu, por ser bastardo, sendo desprezado e humilhado como eu fui toda a vida.
Um suspiro masculino fez ela volver-se para o melhor amigo.
— Vamos os dois, então.
— Tem certeza?
— Não é a única que sempre quis fugir de Peces. Eu quero ter direito de ser eu mesmo, de me assumir.
Apertaram a mão um do outro.
— Obrigada por existir — murmurou ao amigo.
Ele sorriu.
— Esse agradecimento quem deve fazer sou eu.
Capítulo Sete
ADEUS
A cabeça de Juan parecia que iria explodir. Ele acordou naquela manhã no próprio quarto, ainda vestido com a roupa da noite anterior, sem saber exatamente o que havia acontecido.
Lembrava-se de Angelita e ele conversando no terraço. Lembrava-se do Martini. Depois, apagou.
Era um alívio sentir que não havia feito nada demais, pois o corpo não denotava que havia algo derivado de sexo em suas sensações. Além disso, estava devidamente vestido, com todos os zíperes fechados nos lugares certos.
Decidiu tomar um banho e trocar de roupa. Depois disso, partiu em direção à praia, para ir ver Mariana.
Iria contar a ela sobre aquela noite e todos os detalhes embaralhados em sua mente, porque não era de esconder segredos, e porque realmente não se sentia culpado por nada. Depois, iria até a loira, para tirar qualquer dúvida, e também para reafirmar que nunca haveria nada entre eles.
Seus passos ainda grogues pela noite anterior o fizeram demorar para chegar a cabana. Quando enfim postou-se diante da porta, bateu e aguardou. Porém, sem retorno.
— Mariana! — ele chamou, mas não ouviu nenhum som.
Será que ela havia saído? Talvez ido trabalhar em outro lugar?
Resolveu ir até o grupo de pescadores ao longe.
— Bom dia! — cumprimentou, chegando até eles.
Um dos pescadores, o mais velho, aproximou-se.
— Bom dia, jovem — sorriu. — Por acaso é Juan Campos Real?
— Sim, sou eu.
— Sou Pedro — ele se apresentou. — O pai de Guilherme.
Ah, o pai do amigo da namorada. Ela havia dito o nome num dos dias que viera vê-la, mas ele não preocupou-se em conhecer o rapaz. Só o havia visto de longe, ao chegar a casa para vê-la.
— Estou procurando Mariana.
— Meu filho e ela partiram ontem à noite.
A frase o assustou.
— Partiram? Para onde?
— Não sei o que os jovens procuram, mas sei que quando eles resolveram ir, eles vão — riu. — Mariana deixou uma carta para você — tirou um papel do bolso e lhe estendeu.
Juan aceitou a missiva com as mãos tremulas. Depois, afastou-se dos homens, caminhando tão tropegamente quanto na ida até a cabana.
O efeito do álcool da noite anterior agora parecia ter passado. Ficava o torpor do choque.
Sentou-se na areia, abrindo o papel.
A letra curvilínea dela surgiu diante dos seus olhos. Em frases curtas, sua despedida o arrasou.
“ Juan,
Desejo que seja feliz. Por tudo que fez por mim, jamais te desejaria outra coisa. Por favor, apenas isso, seja feliz. E perdão por não ter sido o suficiente.
Mariana .”
A mulher surgiu no horizonte caminhando sedutoramente até ele. Sentou-se ao seu lado. Diante do silêncio, pegou a carta do rapaz e a leu, rapidamente.
— O que acha que aconteceu? — Angelita indagou, fazendo Juan arfar.
— Guilherme e ela partiram juntos. Provavelmente tinham um romance. Sinto-me tão idiota...
Angelita apertou seus ombros.
— Eu já te disse. Somos muito jovens. Precisamos viver mais, aprender com nossos erros. Não se culpe por ter se apaixonado por essa sem-vergonha. O amor ainda chegará a você.
Ele a encarou. Depois, deixou que ela o puxasse para seu colo. Mitigado, ficou ali, alimentando aquela raiva que parecia sem fim.
Mariana pagou seu amor com traição. E ele nunca a perdoaria por isso.
Capítulo Oito
CINCO ANOS DEPOIS
A garçonete era uma beldade. O homem de meia idade pediu café e quando ela lhe estendeu a xícara, ele segurou suas mãos.
— Que hora você sai? — ele questionou.
Ela deu os ombros.
— Na hora que o namorado dela vem buscá-la — uma voz atrás do homem fê-lo recuar.
Soltou os dedos da mulher e depois volveu-se para um rapaz de quase trinta anos.
— Me desculpe — pediu. — Não sabia... — e levantou-se rapidamente, jogando alguns trocados na mesa e não bebendo o café.
Mariana encarou Guilherme ao ver o cliente indo embora.
— Diga-me, por que eles sempre pedem desculpas para você? Não é em cima de mim que eles se atiram?
— É a minha forte virilidade e masculinidade que os fazem tremer — Guilherme brincou, sentando-se na mesa e aproveitando o café intocável.
A jovem sentou-se diante dele.
— Pode pegar Antônio na creche hoje? Terei aulas extras no cursinho.
— Olha, você tem que lamber o chão que eu piso, viu, diva? — ele reclamou. — Porque eu vou lá cuidar da sua pestinha e irei perder um encontro maravilhoso com um cara lindo que conheci no trabalho.
— Você conhece caras lindos no trabalho todos os dias — ela brincou.
— E você nunca conhece ninguém — devolveu. Vendo os olhos obscurecerem, segurou os dedos da amiga. — Ei, Mari... Já se passou muito tempo. Você tem direito de ser feliz.
— Eu sou — ela recusou. — Sou feliz com meu pimpolho.
Quando chegaram a Porto Alegre, cinco anos antes, ambos encontraram empregos próximos. Guilherme trabalhava num supermercado em frente ao bar onde Mariana atendia.
Assim, eles podiam sempre amparar um ao outro. E foi preciso, realmente, que eles buscassem forças naquela amizade.
Antônio nasceu com sete meses, um tanto doentinho e precisando ficar dias na maternidade. Guilherme ajudou como pôde, mas quando se ofereceu para registrar o menino, Mariana recusou.
— É melhor ele saber quem é o pai biológico, mesmo que esse pai nunca o queira — ela respondeu.
Um dia, quando o filho fosse maior, teria aquela conversa com ele.
Depois, ambos voltaram a estudar. Guilherme conseguiu bolsa integral para administração, e Mariana estava fazendo um cursinho para tentar a mesma coisa.
Eles revezavam no pagamento do aluguel e nas contas. Um ajudava o outro. Criaram um vínculo fraterno que os tornava tão irmãos quanto se tivessem o mesmo sangue.
Algumas pessoas realmente acreditavam que eles tinham algo além da amizade. O pai de Guilherme, por exemplo, gostava de se confortar que o filho era um exemplo de heterossexualidade. Desprezava os boatos, e ignorava onde o destino havia levado o par.
Mas, quem os conhecia, sabia que aquela união era fruto de uma amizade forte e invencível. Mariana e Guilherme eram uma família que foi coroada com a presença de um menino lindo e travesso, Antônio.
— Acha mesmo? — Guilherme não parecia certo. — E se ele quiser conhecer Juan?
— Deixarei claro que é impossível. Juan não quis saber de nós, nunca me procurou. Você sabe que ele apenas me usou...
— E mesmo assim vai dizer isso ao seu filho?
— Nunca soube quem era meu pai — ela defendeu-se. — Sempre pensei que minha mãe foi traída e abandonada por ele e por isso se recusava a falar...
— Mari...
— Não quero que meu filho tenha o mesmo destino. Ao menos o nome do pai ele saberá. É uma prova de amor — explicou. — Porque se minha mãe realmente foi abandonada, ela descontou em mim suas inquietações. Mas, eu sou diferente. Nunca irei desprezar meu filho, a quem amo mais que tudo nessa vida.
Guilherme assentiu, segurando suas mãos.
— Éramos tão jovens — ele murmurou. — Acreditávamos em tantas coisas.
— A realidade nos acordou. A idade também. Hoje, se voltasse no passado, faria tantas coisas diferentes. — Depois afastou os pensamentos. — Mas, o passado é passado, não é? Não tem volta. Então, vivamos o presente que está nas nossas mãos, e deixamos o futuro nas de Deus! — exclamou.
Aquela conversa ainda ecoava na mente de Guilherme.
Mariana ergueu-se e foi atender um novo cliente que chegava. Guilherme sorriu na recordação das palavras. Sabia que ela era franca no que dizia.
Era um cara sortudo. Juan Campos Real jamais entenderia o quanto perdera quando aquela garota aguerrida saiu de sua vida. Mas, Guilherme não se fez de rogado ao desfrutar daquele amor, mesmo fraterno.
Sentia-se aceito ali, naquele núcleo de amor, aonde eles tiraram forças da família que construíram e do Deus que creram, ser este que aceitava uma mãe solteira e um gay enrustido.
— Juan pode ter dinheiro — murmurou para si mesmo. — Mas, nunca terá a paz que Mariana esbanja.
Nem fazia ideia do quanto estava certo.
— Eu não gosto de cebola.
Mariana riu diante da postura irritável daquele pequeno de quase cinco anos.
— Mas tem que comer.
— Não, e não pode me obrigar.
Naquela idade, Antônio sempre arrumava uma desculpa para não comer. Ou era a cebola, ou a carne, ou o arroz. Naquele dia em que ela fizera risoto, o filho viu um pedacinho minúsculo do vegetal no prato e já reclamou.
— Precisa comer para ficar grande e forte. Assim sempre poderá proteger a mamãe.
Ele fez um bico adorável. Tinha cabelos e olhos escuros. Era muito parecido com Juan na aparência. Mas, a personalidade era o oposto do pai e da mãe.
No fundo do ambiente a voz de uma apresentadora de televisão ecoava. Mariana não estava prestando atenção no programa, já que gostava de aproveitar aquele horário de almoço para conversar com o filho.
— Hum, está chegando o Natal — ela apontou. — O que quer que o papai Noel traga?
— Papai Noel não existe — ele a encarou com o olhar inquieto. — É a mama que quer me dar um presente, né?
Quase riu daquele pestinha.
— Está certo. Você me pegou. O que quer que eu te dê? Um brinquedo especial?
— Um Pokémon — ele apontou.
— O Pikachu? — Mariana indagou. Conhecia os personagens do desenho japonês porque sempre o assistia com o filho.
— A tartaruga azul — ele respondeu.
— Ah, o Squirtle?
Percebeu um riso debochado. Ele ria da forma como ela falava. Deu um leve beliscão em sua barriga e depois riu junto.
Céus, como o amava! Queria pegá-lo no colo e enchê-lo de beijos. Mas, conforme ele ia crescendo, passara a não mais ser tão agarrado a mãe.
Ainda assim, era gentil quando queria. Sempre sorria para ela quando a percebia triste ou abatida pela lida diária. Fazia cada segundo de sua existência valer a pena.
“ Juan Campos Real .”
O nome ecoou na cozinha. Mariana sentiu um sobressalto e voltou o olhar para a televisão pequena.
“ Será um casamento dos sonhos. A herdeira da família Vargas com o herdeiro dos Campos Real do Uruguai. Dizem que a festa de casamento durará três dias e custará alguns milhões ”.
Subitamente, a televisão desligou. Mariana mal percebeu aquilo. Estava completamente atônita, sentada na cadeira como se estivesse flutuando.
Atrás dela, Guilherme baixava o controle remoto. Depois, aproximou-se de Antônio.
— Meu caro senhor, não está quase na hora de você ir para a creche?
Segurando nas mãos da criança, ele o levou até o banheiro para que escovasse os dentes.
Depois, retornou a cozinha. Aproximou-se de Mariana e a abraçou por trás. Sentiu que o rosto dela estava molhado de lágrimas, mas não tentou impedi-la de chorar.
— Tudo tem um propósito, querida — ele apontou. — Agora você pode seguir em frente — insistiu na ideia.
Antônio retornou a cozinha. Percebeu que a mãe chorava, mas não comentou nada. Apenas quando Guilherme o encaminhou até a porta foi que perguntou:
— Por que mamãe está triste?
O rapaz que ele chamava de tio respondeu:
— São coisas de adulto. Mas, irá passar. Você a faz feliz, e é isso que importa.
Não foi fácil ser mãe solteira. Não foi tranquilo batalhar enquanto a barriga crescia desproporcionalmente, as contas se acumulavam, e ela via-se desamparada diante do destino.
Não fosse por Guilherme, nunca conseguiria.
De repente, sentiu raiva. Raiva dos milhões que Juan gastaria em seu casamento, e do fato do filho dele ter que usar creche pública. Raiva de tudo que precisou sofrer, enquanto ele aproveitava a vida.
Afastou os pensamentos.
Não era certo sentir raiva de Juan. Mesmo que ele tenha lhe enganado com juras de amor falsas, ainda assim lhe dera o melhor dos presentes. Antônio era o ar que ela respirava, a pessoa mais importante de sua vida.
— Seja feliz — ela desejou a Juan, abafando as lágrimas.
Dissera na carta que havia lhe deixado que lamentava não ser o suficiente para ele. Mas, descobriu que o era para o filho dele. E aquilo não tinha preço.
Capítulo Nove
SÓ ELA
A ngelita Vargas era uma das mulheres mais admiradas e invejadas do país. Elegante, rica, estudada e, agora, noiva de um homem poderoso, ela causava furor em diversos canais da imprensa.
Ninguém desconfiava, contudo, que era extremamente infeliz. Não podia comer o que queria porque corria o risco de engordar, classificava a própria felicidade a aprovação dos outros. Insegura, precisava sempre de elogios para não cair em desespero.
Nas redes sociais, postava fotos bonitas segurando bebidas caras e em lugares chiques. Um único comentário negativo a abalava tanto que mesmo que tivesse mil comentários positivos, ela se focava apenas no ruim.
Acreditou durante anos que ter um Campos Real como marido seria o ápice de sua vida.
Descobriu que a aparência não trazia felicidade nem a libertava daquele vazio.
Juan, seu noivo, mal a suportava. Havia aceitado aquele casamento porque há tempos não se opunha mais a vontade dos pais.
Contudo, não a buscava. Sequer se preocupava com ela. Parecia mitigado e desgastado com a vida.
Agora, mas vésperas do casamento, ela se perguntava se tudo que fez para ter Juan para si havia valido a pena.
Desceu do táxi e começou a adentrar o hotel onde se hospedaria naquela cidade do centro do Brasil. Havia sido convidada para um desfile de moda, e esperava que a festa a motivasse um pouco, já que quanto mais a data do casamento se aproximava, mais infeliz se tornava.
Sentiu um flash em sua direção. Era um fotógrafo. Sorriu. Logo, uma repórter se aproximou.
— Feliz com o casamento? — indagou.
— Céus! — ela exclamou, cheia de satisfação. — Não poderia me sentir melhor.
O casamento dos sonhos de qualquer mulher. Ao menos, ser invejada ainda lhe trazia algum alento.
Noel de Campos Real franziu a testa, irritado.
Ao seu lado, o filho parecia derrotado. Diante deles um caminhão recebia uma carga de gado que seria levado ao matadouro.
Juan era uma vergonha. Filho de um pecuarista que sequer comia carne. Antes de aceitar estudar agronomia e administração e vir à fazenda no Uruguai para receber seu legado, queria fazer medicina para cuidar de pessoas pobres.
Definitivamente, não sabia qual era o problema daquele jovem. Tinha uma fortuna nas mãos, único herdeiro de um Império, e encarava tudo aquilo como um fardo para carregar.
— E Angelita? — indagou, quando o filho por fim assinou a nota do gado para o encarregado.
Juan passou a andar em direção a Casa da Fazenda. O pai o seguiu.
— Está no Brasil. Um desfile qualquer.
— Por que não foi com ela?
— Não me importo com essas coisas.
Noel resmungou baixo. Naquele instante Juan voltou-se para o pai.
— O que quer de mim? Já não abandonei a medicina? Não estou administrando a fazenda? Não faço tudo que manda?
— Você não é homem! — O pai devolveu. — Um homem de verdade não tem como noiva uma mulher daquelas e a deixa sozinha para ficar suspirando por outra que o encheu de chifres.
Mesmo que os anos passassem, Mariana ainda era jogada em sua face. Sua traição parecia uma ferida que não cicatrizava.
— Ser homem é dormir com uma mulher pela qual você não sente nada?
— E acha que eu amei alguma das vadias que comi? Mulher tem só um propósito na vida de um homem que é abrir as pernas para ele. De todas, você pega a melhorzinha para esposa. E pronto. De resto, devia estar aproveitando a vida e não sendo um celibato.
Juan estava exausto daquelas discussões sem sentindo. Decidiu então deixar o pai falando sozinho.
— Você não honra seu sobrenome! — o pai gritou.
— Vou para a Casa da Praia — retrucou.
Precisava respirar. Aquela família lhe fazia muito mal.
Apesar de tudo, Juan não era mais o mesmo homem que Mariana conheceu. Não era mais um rapaz doce e gentil. Agora, era apenas um descontente ranzinza que andava em passos trôpegos pela vida.
Abandonou seu sonho de medicina porque não teve forças de lutar contra os pais. Aceitou o casamento com Angelita pelo mesmo motivo. Na verdade, antes, mais jovem, ele tinha uma determinação encorajada pelos sonhos. Depois de Mariana, restou nele à mágoa e a raiva.
Parou diante da cabana onde se amaram pela primeira vez. O lugar era isolado e estava nitidamente abandonado há muito tempo.
A areia acumulava-se na varanda de madeira. As beiradas da casa estavam corroídas pelo ar marítimo.
Parecia um cenário de pesadelo. Mas, em algum momento na história, foi o local de encontro de duas almas enamoradas.
Pensou nela. Na pele dela. No calor dos seus beijos. Em como entregou-se para ele, com carinho e doçura. Confiante, acreditando que ficariam juntos para sempre.
Como podia mentir daquela forma?
— Tem que ter acontecido alguma coisa — murmurou para si mesmo. — Ela não faria isso... Tem que ter acontecido algo.
Quando saiu daquele lugar, já estava determinado a buscá-la. Contrataria um detetive e ouviria da boca de Mariana os motivos para tê-lo deixado.
Uma decisão que adiou por anos, mas que agora estava resoluto em cumprir.
Capítulo Dez
A BRIGA
E la estava em Porto Alegre.
Quando o detetive lhe deu o nome do local onde a mulher trabalhava, ele estremeceu. Um bar mediano na zona norte.
Trabalhava durante o dia, e a noite estudava para tentar passar em um curso na universidade.
“ Ela mora com um rapaz ”, o detetive contou.
Aquela punhalada ele sentiu como se tivesse sido desferida direto no seu coração.
E toda a sua esperança de tentar entender o que havia acontecido há cinco anos foi pros ares diante daquela informação.
O automóvel escuro que usava parou diante do bar. Era mais uma lanchonete, que estava cheia. Sentiu o cheiro do café e de lanches.
Desceu e entrou no estabelecimento. Não era grande coisa, nem muito chamativo, mas percebeu que era limpo e organizado. Trabalhadores de redor do local liam jornal e comentavam sobre futebol. A TV num canto estava ligada num programa matutino de culinária.
Olhou para o balcão. Não a viu. Mas, reconheceu outro rosto.
Nunca tivera curiosidade de falar com aquele rapaz, ou vontade de qualquer proximidade. Tinha ciúmes da amizade dele com Mariana. Mas, havia o visto uma ou duas vezes ao longe em Peces, por puro acaso.
Agora, sentado num daqueles bancos altos, Guilherme bebia café e olhava algo no celular.
Cegou-se.
Caminhou reto em direção ao outro homem e antes que Guilherme se desse conta do que ocorria, desferiu nele um soco forte, derrubando-o no chão.
Houve um silêncio perturbador antes de vozes sobressaltadas chegarem até ele.
Foi naquele momento que o olhar dos dois homens se encontraram.
— Juan? — o desgraçado teve o disparate de indagar.
Quis jogar-se contra o cretino quando duas mãos o seguraram forte, empurrando-o para trás.
Foi quando a viu. Estava mais bonita, agora tinha o cabelo bem cuidado e roupas novas. Usava um leve batom rosa nos lábios e um pouco de pó que escondia as sardas.
O olhar dos dois se cruzou, surpreso. Queria dizer tantas coisas a ela, mas a única palavra que saiu de sua boca foi angustiante:
— Vagabunda!
Dessa vez, Guilherme pareceu se recuperar rápido. Logo, era Juan que recebia um soco na face. Ambos se atracaram sobre uma das mesas.
Novamente, Mariana conseguiu separá-los.
— O que faz aqui? — ela gritou. — Vá embora!
— Como pôde ter me trocado por esse sujeito? — Não conseguiu deixar de perguntar.
Ela o observou como se não acreditasse naquelas palavras.
— Você vai se casar — apontou. — Vá embora — ordenou.
Juan secou o sangue do canto dos lábios.
Então recolheu seu resto de dignidade e começou a afastar-se, trombando em curiosos que assistiam o embate.
— Eu vou voltar — a avisou.
Nunca a deixaria em paz. Nunca.
Capítulo Onze
O FILHO
M ariana ficou abalada com a volta obtusa de Juan a sua vida. Todavia, ela tinha compromissos, tanto profissionais, quanto familiares, e não podia se dar ao luxo de ficar sofrendo pelas palavras ditas e pela forma como seu coração ardeu perante a presença dele.
— Como ele teve coragem de te chamar de vagabunda? — Guilherme indagou.
A frase a corroeu.
— Talvez porque eu me entreguei a ele sem precisar pressionar-me — ela murmurou. Estavam afastados dos demais, num dos cantos do bar. Mariana limpava a face do amigo. — Talvez pense que por isso eu dormia com qualquer um...
— Que filho da puta! Eu devia quebrar a cara dele...
Ela sorriu para o amigo. A lealdade de Guilherme era um presente de Deus para sua vida difícil.
— Apesar do que disse, acho que não voltará mais. — apontou. — Até porque está de casamento marcado e caso quisesse uma amante, teria aos montes. Tem muito dinheiro.
Guilherme apertou suas mãos.
— E sobre Antônio? Caso ele retorne, falará a ele?
— No passado Juan me enganou e me fez acreditar que me amava. Temo que faça o mesmo com meu filho. É melhor deixar tudo como está, até porque ele terá outros, não bastardos, com a esposa bonita e rica.
A resposta dela soou embargada, então Guilherme não insistiu,
— Estou aqui — ele avisou, apesar de ela o saber.
— Eu também — ela devolveu.
Amigos de verdade.
Apesar da ameaça implícita de Juan, Mariana tentou seguir em frente. Dois dias após o encontro perturbador, ela já havia aceitado que as palavras eram apenas ameaças, e que ele já devia ter voltado para o Uruguai, onde em breve teria seu casamento de sonhos.
Naquele final de tarde, diante da creche, ela respirou aliviada quando Antônio correu até ela.
— Mama — ele chamou.
Quando o menino estendeu seus braços para ela, Mariana o pegou no colo, apertando-o contra o peito, beijando-o no rosto com todo o carinho.
— Está me sufocando — ele reclamou.
Ela riu.
— É porque te amo muito — respondeu.
Juan tinha dinheiro, tinha uma vida esbanjadora, um casamento de realeza, e nenhuma preocupação com a conta de luz no final do mês. Mas, era Mariana a afortunada. Beijou o rosto do filho mais uma vez quando volveu-se para a rua.
Estancou. Diante dela, Juan a encarava com assombro.
— Por que Guilherme cria o meu filho? — questionou.
Pelos céus, como ele havia descoberto aquilo?
Juan ao menos tivera a decência de não induzir a conversa na frente de Antônio. Sem saída, Mariana o convidou para ir até sua casa, com o propósito de conversarem. Ao chegarem lá, mandou o filho tomar banho, e então preparou-se para enfrentá-lo.
— Juan...
— Não tente negar que é meu. É minha cara. — ele resmungou, antes mesmo de ela conseguir se defender.
— Não estou negando.
— Então me explique. Por que sumiu com um filho meu na barriga?
— É uma longa história que ficou no passado. Não tem importância agora. Apenas, quero que saiba que nunca te cobrarei nada. Se não for de seu agrado , Antônio nem precisa descobrir quem é o pai.
Por que era tão solidária? Por que a boazinha? Juan enfureceu-se.
— Você acha que eu vou desistir do garoto? Por quê? Por que Guilherme não aceita que o pai seja presente na vida dele?
Mariana negou.
— Guilherme é meu amigo. Ele apenas seguiu comigo quando eu descobri sobre você e Angelita.
Juan riu.
— Eu e Angelita o quê? Não faz nem três meses que estamos noivos e você sumiu por cinco anos!
Mariana pareceu confusa.
— Na noite que fui embora... Eu o vi beijando ela.
Por que aquelas palavras soaram como verdadeiras? Juan, subitamente, viu-se sem armas.
— O quê?
— No terraço da sua casa... — ela completou. — Sua mãe me convidou para a festa e quando cheguei vocês estavam se beijando. Você não se lembra? — ela indagou porque a confusão no rapaz era nítida.
Ele recuou, com passos lentos.
— Eu preciso ir — murmurou.
— Nunca te desejei mal — ela insistiu. — Deixei uma carta para você, para que fosse feliz.
Lembrou-se das palavras. “ Perdão por não ser o suficiente... ”.
— Você me ajudou no pior momento da minha vida, Juan. Nunca te quis mal — Mariana ainda conseguiu dizer, antes de ele escapar do apartamento.
Sozinha, enfim ela sentiu os joelhos fraquejarem e sentou-se no chão. A respiração pesada... parecia que havia acabado de correr uma maratona.
— Nunca deixei de te amar — murmurou baixinho porque aquele segredo ela nunca confessou a ninguém. — Nunca te quis mal, porque nunca deixei de te amar... Quero que seja feliz, mesmo que não seja comigo.
Capítulo Doze
VERDADE
A loira soube que o noivo estava na cidade por terceiros. Sorrisos gentis eram destinados a ela, enquanto mulheres invejosas murmuravam o quanto ela era sortuda por ter alguém capaz de viajar apenas porque não conseguia ficar longe da figura linda.
Mesmo sabendo que nada daquilo era verdade, ela congratulou-se pela sorte. Juan estava no hotel onde se hospedara e provavelmente viera para falar dos preparativos do casamento.
Nem a família dela, nem a dele, estava poupando para a cerimônia. Seria o evento do ano, muitos artistas e pessoas influentes estavam na lista de convidados.
Angelita fazia questão de que tudo fosse perfeito.
Assim, quando abriu a porta, focou-se no noivo e lhe sorriu. Esperou pelo sorriso de retorno, mas nem ao menos isso ele se dignava a lhe destinar.
— Há alguns anos você foi a nossa casa de praia fazer uma visita. Na noite de sua chegada minha mãe lhe deu uma festa. Lembra-se disso?
O coração dela acelerou.
— Vagamente — respondeu.
— Você me beijou naquela noite?
Ele havia descoberto? Como?
— Não.
— Diga a verdade! — ralhou. — Você me beijou naquela noite? E por que não me lembro de nada depois de vê-la no terraço?
Sentiu-se apavorada.
— Não sei do que está falando...
— Encontrei Mariana — ele contou. Não sentia vergonha nenhuma disso. — Ela me disse que nos viu aos beijos.
Subitamente, a loira gargalhou.
— Ah, a garota que o deixou por um mero pescador disse que nos viu aos beijos? E você acredita na palavra dela?
Juan não respondeu. Simplesmente deu as costas e preparou-se para sair do quarto.
— Juan — ela o chamou. — Não volte a vê-la. Nós iremos nos casar!
— Não haverá casamento.
— Mas, ela mente.
— Não importa. Eu não te amo — admitiu. — E não vou me casar assim como também não vou assumir as fazendas. Toda essa farsa, para mim, acabou.
Toda vez que Juan entregava uma carga de bois para o abate, ele sentia-se parte daquela carnificina. Sentia como se ele próprio estivesse destinado ao matadouro.
A questão era muito simples. O filho de Noel Campos Real não queria aquela vida regada de sabores superficiais. A única vez que viveu verdadeiramente cada segundo de sua existência foi ao lado daquela pobre jovem abandonada, naquela praia perdida.
Agora, ao reencontrá-la, ele sabia que precisava voltar a respirar o ar puro da liberdade. Não aguentava mais viver uma vida que não desejou, fruto dos desejos egoístas dos genitores.
— Nós vamos nos casar . — Ele comunicou a Mariana naquela manhã, sentando-se diante do balcão sem ao menos cumprimentá-la.
— O quê?
— Independente do que viu anos atrás, ou do que vive agora com esse tal Guilherme, o menino é meu filho. E eu o quero. Você tem duas escolhas. Ou se casa comigo ou entrarei na justiça para ter uma guarda compartilhada.
Ela ficou chocada.
— Esse não é você — pareceu indignada. — Onde está o Juan doce e gentil que eu conheci?
— Você o matou.
Depois disso saiu do local sem ao menos lhe deixar replicar aquelas palavras tão hostis.
— Me odeia — Mariana murmurou. — Nem ao menos sei porquê. Nunca lhe fiz nada.
Guilherme deu os ombros.
— O importante é que você saiba que ninguém tira o filho de uma mãe.
— Antônio é tudo que tenho nessa vida. Desculpe se não confio inteiramente na lei. Imagine o quanto de advogados ele pode contratar. Ele poderia lhe dar a melhor educação, a melhor vida que o dinheiro pode pagar. Eu sequer posso cuidar dele durante o dia, fica na creche para eu trabalhe.
— Como acontece com a maioria das mães do Brasil.
Mariana assentiu.
— A maioria das mães não tem um pai milionário proferindo ameaças.
Quando lhe ligaram da recepção dizendo que alguém chamado Guilherme queria lhe falar, Juan sentiu todo o corpo arder de antecipação.
Disse para que deixasse o homem subir. Queria muito uma briga. Estava ardendo de ódio.
Sentia-se um idiota. A traição ocorrida anos antes ainda fazia seu sangue ferver. Mariana o deixou por aquele homem. Não descansaria até fazê-lo pagar.
— Antes que diga qualquer coisa — antecipou-se ao ver Guilherme entrando pela porta. — Vou exigir um exame de DNA pelo garoto. Sei que é meu, mas farei o exame para que vocês dois não possam negar o fato. Você não vai assumir meu filho.
Guilherme não pareceu armado de argumentos.
— É seu — assumiu. — Nunca tive nada com Mariana.
Uma risada irônica invadiu o ambiente.
— Jura que quer me convencer disso? Cinco anos e nunca dormiram juntos?
— Se eu não convencê-lo, você pode ir a todas as boates gays de Porto Alegre e irá saber que eu sou homossexual. Vários namorados que, inclusive, conhecem Mariana, irão te atestar isso.
A frase desconcertou tanto Juan que ele viu-se sem palavra.
— O que diabos aconteceu, então? Por que ela me abandonou?
— Você a traiu — Guilherme pareceu estafado. — Não consigo entender porque se faz de ofendido, quando a usou porque ela era apenas uma menina pobre sem defesa.
— Não sei do que fala.
— Eu mesmo o vi aos beijos com aquela que hoje é sua noiva. Mariana foi convidada pela sua mãe para uma festa...
— Ela me disse isso...
— Mariana sempre foi minha amiga. Sabia que não se sentiria bem entre os seus. Mas, quis ir porque desconfiava estar grávida e queria te contar. Estava tão nervosa que não esperou que viesse até ela. Antes de chegar a sua casa, te viu com aquela loira. Eu estava com ela. A apoiei. Na mesma noite fomos embora, pois não restava mais nada a nenhum de nós em Peces.
— Eu não me lembro disso... — suspirou. — Eu só lembro-me de ir até o terraço, e depois de acordar na minha cama no dia seguinte.
Guilherme não parecia acreditar nele.
— Independente do que você lembra, foi o que aconteceu.
Virou-se em direção a porta.
— Se você é o errado, não se atreva a ofendê-la. Saiba que ela não está sozinha.
O telefone tocou naquela casa enorme no norte do Uruguai. Uma das criadas atendeu, mas logo entregou o aparelho para Yolanda.
— Você me drogou?
A pergunta à queima roupa do filho fê-la vacilar.
— O quê?
— Há cinco anos deu uma festa para Angelita. Eu não me lembro de nada naquela época, mas sei que Angelita me beijou. Como um homem poderia esquecer-se disso? Pensei muito e percebi que fui drogado. A pergunta é: foi você ou ela? E, por favor, não minta. Não a perdoarei se o fizer.
Houve um breve silêncio do outro lado da linha.
— Fiz tudo pelo seu bem.
O som de um telefone desligado fê-la entender que, mesmo que o filho houvesse sugerido perdão se fosse sincera, isso jamais aconteceria.
Capítulo Treze
MAIS NINGUÉM
Para Mariana, foi quase inacreditável ver Juan, agora um homem adulto e bem mais imponente que o menino pelo qual ela se apaixonou, aparecer sem o ódio latente diante de sua porta.
— Meu filho se chama Antônio, não é? — ele questionou. — Por que lhe deu esse nome?
— Era o nome de um antigo padrasto que me ensinou a me proteger e a trabalhar — ela apontou. — O que quer?
— Ele está aqui?
— Saiu para brincar com as crianças do prédio — avisou. — O que quer? — insistiu. — Mais ameaças?
— Guilherme me procurou — explicou. — Sempre pensei que gays fossem afeminados.
Era uma desculpa ridícula.
— Você tem a cabeça bem fechada para quem sonhava em ser médico.
— Pois é — deu os ombros. — Um sonho que abandonei e me arrependo muito. — Suspirou alto. — Me permite entrar?
Mariana lhe deu passagem.
— Eu nunca te traí — ele afirmou, de supetão. — Eu não sei como, mas minha mãe e Angelita conseguiram me drogar. O que você viu, eu não vivenciei. Eu não me lembro de nada.
A imagem que destruiu seu coração ainda estava vívida na mente de Mariana. Ela desviou o olhar de Juan e aproximou-se do sofá.
— Eu nunca te traí — ele insistiu. — Eu não poderia. Você se tornou a pessoa mais importante da minha vida desde que a vi pela primeira vez.
— Mas, está noivo agora...
— Foi um casamento armado pelos meus pais. E já desisti dele. Não há mais nada entre Angelita e eu. Desisto de tudo, de todo Campos Real se você me aceitar de volta.
Ela mordeu o lábio inferior.
— Eu também não o traí — murmurou.
— É, seu amigo me explicou que você não faz o tipo dele...
Mariana riu.
— Estamos bem? — ele tocou no braço direito dela. Aquela dúvida parecia corroê-lo. — Eu preciso de você para ser o que realmente sou. Não esse homem fantasma, fantoche, que segue regras nas quais não acredita. Quero voltar a ser alguém que sonha, que tem esperança. Você pode me dar outra chance?
Com lágrimas nos olhos, enfim ela assentiu.
Um dia ele acreditou que há havia perdido. Agora, aquele antigo Juan descrente e imaturo parecia tão longe do homem capaz de qualquer coisa para ter Mariana de volta.
Debruçou-se sobre ela, acolhendo-a abaixo de seu corpo sedento. Um ardor que lhe impulsionava a fazê-la sua. Sentia contra a pele uma leve resistência, como se Mariana temesse deixar-se encurralar-se novamente naquela paixão. Mesmo assim, ele tinha que tentar, por ambos.
Estreitou-a mais fortemente entre seus braços, uma armadilha de músculos salientes que parecia disposta a prendê-la. Embora Mariana pudesse escapar dizendo uma só palavra, fazendo qualquer menção de uma simples negativa, ele estava decidido a não permitir que ela sentisse que devesse.
Suas línguas se tocaram provocando respostas sinceras àquele sentimento que atravessou o tempo.
A entrega foi absurdamente emocional. Não era mais sexo. Era um reencontro de duas almas enamoradas que, enfim, conseguiram estar juntas.
O mal nunca vence no final.
— Antônio — a mãe o chamou.
Aquela pequena miniatura de Juan encarava o par à sua frente com interesse.
— Esse é Juan — ela os apresentou. — Ele é seu pai.
Se a criança ficou incomodada ou surpresa, não demonstrou. Apenas estendeu a mão, como se o cumprimento entre eles pudesse deixar para trás todos os anos em que viveu sem aquela presença.
Juan ajoelhou-se diante do filho. Não conteve as lágrimas. Estendeu a mão, não querendo forçá-lo a nada que não estivesse disposto.
Ele tinha uma vida inteira para conquistar a confiança de Antônio. Aquele primeiro aperto de mãos era o início da sua jornada.
No fundo, sentia-se um senhor idoso deslocado ao chegar para a aula com aquela turma repleta de jovens aspirantes a medicina.
Havia retornado a faculdade porque acreditava que cuidar das pessoas era sua missão de vida.
Com essa decisão, abandonou as fazendas e todo o poder aquisitivo que tinha com os Campos Real.
Agora, era livre.
Mesmo morando de favor no apartamento de Guilherme, trabalhando em turno integral em um laboratório de análises clínicas, e aprendendo o valor de cada centavo, naquele momento ele tinha uma família, uma mulher e um filho, e também um futuro esperançoso à frente.
Portanto, estava mais feliz que nunca.
Assim sendo, não se abalou quando, no final das aulas, viu as figuras sucintas de Yolanda e Noel.
Sabia que os pais viriam atrás dele, e já estava preparado para as ameaças.
— Você será deserdado — o pai bramou, sem se importar com os olhares em sua direção.
— É um favor que estão me prestando — retornou. — Não quero esse dinheiro sujo, a custo da vida de animais, a custo do trabalho mal remunerado de gente simples. Não quero nada dos Campos Real.
— Como se atreve...?
— Nunca mais viverei uma vida de mentira. Sempre foram infelizes e desejam o mesmo para mim. O senhor — encarou o pai — tenta firmar sua masculinidade com um monte de mulheres que não tem valor. O que tem que provar a si mesmo que não pode encarar apenas com sua esposa? — Depois volveu a mãe. — E a senhora se submete a ser traída apenas por ganância. Não tem dignidade, não se dá ao respeito? Se tivesse o mínimo de amor próprio, já tinha encerrado esse casamento há anos.
Talvez tivesse ido longe demais. Mas, havia uma mágoa enorme em seu coração por todos aqueles anos longe do filho, sem ver Antônio nascer e dar seus primeiros passos, chamá-lo de papai pela primeira vez... Ele perdeu muito por conta daquela dupla. Para ele, sua ligação com os pais estava encerrada.
— Vai se arrepender — o pai profetizou.
— Não entende, não é? Não sou como você. Para mim, família é sagrado. E eu tenho a minha, agora. Uma esposa e um filho. E um emprego. E estou batalhando para melhorar, seguir minha vocação. Eu nunca me arrependerei de ser feliz.
Ao cortar aquele laço soube que era a última vez que via os pais.
Três anos depois...
— Tem certeza disso?
Naquela casa confortável na zona norte de Porto Alegre o recém-formado médico Juan Campos Real sorriu para o amigo.
— O que te incomoda nessa ideia?
— Morar no interior é um pouco assustador — admitiu. — Há coisas na cidade grande que são indispensáveis para mim.
Juan bebeu um gole do copo de cerveja.
— Como poder esconder que tem um namorado chamado Ricardo?
O rapaz gay volveu o olhar para o namorado que brincava com um bebê recém-nascido enquanto batia papo com a mamãe da criança, Mariana, num canto do jardim.
— É, isso entre outras coisas.
— Seu pai é um homem muito respeitado em Peces. Você devia ao menos lhe dar a chance de surpreendê-lo. Você já o condena a intolerância sem sequer ver sua reação ao filho homossexual.
Guilherme sabia que aquilo era verdade.
— Não tenho coragem.
— Na vida, temos que ter — Juan contestou.
O assunto foi cortado pela chegada de uma criança. Antônio sentou-se no colo do pai, animado.
— Disse ao tio Gui que nós vamos morar na praia? — indagou o menino.
— Estava contando isso a ele agora.
— E eu estava dizendo que sentirei sua falta — Guilherme fez um cafuné na cabeça do pequeno.
— Papai disse que eu poderei ir à praia todos os dias — parecia animado demais com a novidade. — E poderei aprender a surfar.
Guilherme sorriu animado, enquanto o menino desvencilhava-se do colo do pai e corria até a mãe que segurava o irmão caçula.
— Você sabe que Mariana nunca vai permitir que ele suba numa prancha de surfe, não é?
Juan riu.
— Darei à ela a honra de explicar isso ao nosso garoto.
Guilherme gargalhou alto. Juan também tinha suas garras, às vezes.
Aquela casa de praia era diferente da cabana onde ela viveu tempos outrora e da casa magnífica que os Campos Real mantinham e que agora estava abandonada.
Era uma casa mais simples, no meio do vilarejo, ao lado do posto de saúde onde Juan atenderia as pessoas necessitadas dali.
— Tenho orgulho de você — Mariana disse, segurando a mão masculina enquanto eles, parados diante da residência, pareciam analisá-la.
No carro, os dois filhos no banco de trás pareciam respeitar aquele momento dos pais.
— Não conseguiria sem você — ele retrucou.
E era verdade. Não fosse por ela, ainda estaria infeliz, guiando terneiros para o abate. Talvez até casado com uma mulher que não queria, angustiado com a própria existência até ter coragem de por um fim em tudo com um tiro na boca.
— Mamãe — Antônio chamou.
Mariana soltou sua mão e volveu para o carro. Lá, uma voz infantil dizia que estava com fome.
Juan sorriu.
A vida era, definitivamente, boa.
Josiane Biancon da Veiga
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