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MAIS PODEROSA QUE A ESPADA / Jeffrey Archer
MAIS PODEROSA QUE A ESPADA / Jeffrey Archer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Uma bomba do IRA explode durante uma viagem transatlântica do Buckingham. Quantos passageiros terão perdido a vida?
Quando está de visita à sua editora nova-iorquina, Harry Clifton fica a saber que foi eleito presidente do PEN britânico e começa imediatamente uma campanha para libertar outro escritor, Anatoly Babakov, preso na Sibéria. Por que crime? Por escrever um livro intitulado Uncle Joe, um relato arrasador da sua experiência a trabalhar para Stalin. Harry está tão empenhado em salvar Babakov que arrisca a própria vida.
Emma, presidente da Barrington Shipping, é obrigada a enfrentar as repercussões do ataque do IRA. Alguns membros da direção acham que ela se deve demitir e Lady Virgínia Fenwick não vai descansar até conseguir a queda de Emma.
Uma saga apaixonante, que se estende ao longo do século XX, com toda a intriga, paixão e golpes do destino a que Jeffrey Archer, um dos maiores contadores de histórias da atualidade, nos habituou.

 


 


OUTUBRO 1964
Brendan não bateu à porta da cabina, limitou-se a rodar a maçaneta e a esgueirar-se lá para dentro, olhando para trás enquanto o fazia, para ter a certeza de que ninguém o tinha visto. Não queria ter de explicar o que é que um jovem da segunda classe estava a fazer no quarto de um idoso par do reino àquela hora da noite. Não que alguém fosse tecer comentários.
- Há hipótese de sermos interrompidos? - perguntou Brendan depois de ter fechado a porta.
- Ninguém nos irá incomodar antes das sete da manhã, e nessa altura já não haverá ninguém para incomodar.
- Ótimo! - exclamou Brendan. Caiu de joelhos, abriu a grande arca, levantou a tampa e estudou a máquina complexa que tinha levado mais de um mês a construir. Passou a meia hora seguinte a verificar que não havia fios soltos, que cada mostrador estava devidamente programado e que o relógio começava a contar quando se acionava um interruptor. Só quando comprovou que estava tudo a funcionar na perfeição é que se voltou a levantar.
- Está tudo pronto - disse ele. - Quando é que o queres ativado?
- Três da manhã. E vou precisar de trinta minutos para tirar isto tudo - acrescentou o homem idoso, tocando no seu duplo queixo - e ainda ter tempo suficiente para chegar à minha outra cabina.
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Brendan regressou à arca e programou o temporizador para as três horas.
- A única coisa que precisas de fazer é acionar o interruptor antes de te ires embora e verificar se o ponteiro dos segundos está a andar, a partir daí tens trinta minutos.
- Então e o que é que pode correr mal?
- Se os lírios ainda estiverem na cabina da senhora Clifton, nada. Ninguém neste corredor, e provavelmente ninguém no convés por baixo, conseguirá sobreviver. Há quase três quilos de dinamite enfiados na terra por baixo daquelas flores, muito mais do que precisamos, mas pelo menos dessa forma temos a certeza de receber o nosso dinheiro.
- Tens a minha chave?
- Sim - disse Brendan. - Cabina setecentos e seis. O passaporte novo e o bilhete estão debaixo da almofada.
- Há mais alguma coisa com que me deva preocupar?
- Não. Certifica-te apenas de que o ponteiro dos segundos está a andar antes de te ires embora.
Doherty sorriu.
- Vemo-nos em Belfast.
Harry abriu a porta da cabina e afastou-se para o lado para deixar Emma entrar primeiro.
Ela inclinou-se para cheirar os lírios que a rainha-mãe tinha enviado para comemorar a viagem inaugural do Buckingham.
- Estou exausta - disse ela, endireitando-se. - Não sei como é que a rainha-mãe consegue fazer isto dia sim, dia não.
- É o que ela faz, e é boa nisso, mas aposto que estaria exausta se tentasse ser presidente da Barrington's durante alguns dias.
- Mesmo assim, prefiro o meu trabalho ao dela - disse Emma enquanto tirava o vestido e o pendurava no roupeiro antes de desaparecer na casa de banho.
Harry leu uma vez mais o cartão de SAR, a rainha-mãe. Uma mensagem tão pessoal... Emma já decidira pôr a jarra no seu gabinete quando regressassem a Bristol e enchê-la de lírios todas as segundas-feiras de manhã. Harry sorriu. E porque não?

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Quando Emma saiu da casa de banho, Harry ocupou o lugar dela e fechou a porta atrás de si. Ela despiu o roupão e enfiou-se na cama, demasiado cansada para pensar sequer em ler umas páginas de O Espião que Saiu do Frio, de um autor novo que Harry lhe recomendara. Apagou a luz da sua mesa de cabeceira e disse «Boa noite, querido», embora soubesse que Harry não a podia ouvir.
Quando Harry saiu da casa de banho, já ela estava a dormir profundamente. Ele aconchegou-a como se fosse uma criança, beijou-lhe a fronte e sussurrou «Boa noite, minha querida», depois subiu para a sua cama, divertido com o seu suave ronronar. Nunca se teria atrevido a insinuar que ela ressonava.
Ficou acordado, imensamente orgulhoso dela. O lançamento à água não podia ter corrido melhor. Virou-se de lado, presumindo que adormeceria dentro de momentos, mas, embora sentisse as pálpebras pesadas e estivesse exausto, não conseguia dormir. Havia alguma coisa que não estava bem.
Havia outro homem, agora regressado em segurança à segunda classe, que também estava completamente desperto. Embora fossem três da manhã e o seu trabalho estivesse feito, não estava a tentar dormir. Era quase hora de ir trabalhar.
Sempre as mesmas ansiedades quando era preciso esperar. Teria deixado alguma pista que levasse diretamente à sua pessoa? Teria cometido algum erro que fizesse com que a operação redundasse em fracasso e que o transformasse em motivo de chacota quando voltasse ao seu meio? Não ia conseguir descontrair enquanto não estivesse num barco salva-vidas e, melhor ainda, noutro navio em direção a outro porto.
Cinco minutos e catorze segundos...
Sabia que os seus compatriotas, soldados na mesma causa, estavam tão nervosos quanto ele.
A espera era sempre a pior parte, impossível de controlar, pois já não havia nada que se pudesse fazer.
Quatro minutos e onze segundos...
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Pior do que um jogo de futebol quando se está a ganhar um a zero, mas sabemos que o adversário é mais forte e bem capaz de marcar no tempo de descontos. Lembrou-se das instruções do seu comandante de área: quando o alarme disparar, certifica-te de que estás entre os primeiros a chegar ao convés e a entrar nos salva-vidas, pois amanhã, por esta altura, vão andar à procura de toda a gente com menos de trinta e cinco anos e com sotaque irlandês, portanto mantenham a boca fechada, rapazes.
Três minutos e quarenta segundos... trinta e nove...
Olhou para a porta da cabina e imaginou o pior que podia acontecer. A bomba não explodia, a porta abria-se e uma dúzia de polícias, possivelmente mais, entrava de rompante, agitando os bastões em todas as direções, sem se importar com o número de vezes que o atingiam. Mas a única coisa que ele conseguia ouvir era o trabalhar ritmado do motor à medida que o Buckingham continuava a sua calma travessia do Atlântico em direção a Nova Iorque. Uma cidade onde nunca chegaria.
Dois minutos e trinta e quatro segundos... trinta e três...
Começou a imaginar como seria quando estivesse de volta a Falis Road. Rapazes de calções iriam levantar os olhos com admiração quando passasse por eles na rua, com a única ambição de serem como ele quando crescessem. O herói que fizera o Buckingham ir pelos ares poucas semanas depois de ter sido batizado pela rainha-mãe. Sem qualquer menção às vidas inocentes perdidas; não há vidas inocentes quando se acredita numa causa. Na verdade, nunca encontrara nenhum dos passageiros que viajavam nas cabinas dos conveses superiores. Iria ler tudo sobre eles nos jornais do dia seguinte e, se tivesse feito o seu trabalho como devia ser, o seu nome não seria mencionado.
Um minuto e vinte e dois segundos... vinte e um...
O que é que podia correr mal, agora? Iria o engenho, construído num quarto de um primeiro andar em Dungannon, deixá-lo ficar mal no último minuto? Estaria prestes a sofrer o silêncio do fracasso?
Sessenta segundos...
Começou a sussurrar cada número.
- Cinquenta e nove, cinquenta e oito, cinquenta e sete, cinquenta e seis...19
Seria possível que o homem embriagado que se encontrava refastelado na cadeira da sala estivesse à sua espera? Viriam agora a caminho da sua cabina?
- Quarenta e nove, quarenta e oito, quarenta e sete, quarenta e
seis...
Teriam os lírios sido substituídos, deitados fora, levados dali? Talvez a senhora Clifton fosse alérgica ao pólen...
- Trinta e nove, trinta e oito, trinta e sete, trinta e seis... Teriam entrado no quarto de Lord Glenarthur e descoberto a arca aberta?
- Vinte e nove, vinte e oito, vinte e sete, vinte e seis... Estariam já a revistar o navio, à procura do homem que se tinha
esgueirado da casa de banho da sala de estar da primeira classe?
- Dezanove, dezoito, dezassete, dezasseis...
Teriam... agarrou-se à borda da cama, fechou os olhos e começou a contar em voz alta.
- Nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um...
Parou de contar e abriu os olhos. Nada. Só o silêncio arrepiante que se seguia sempre ao fracasso. Inclinou a cabeça e rezou a um Deus em que não acreditava, e logo a seguir ouviu-se uma explosão de uma ferocidade tal que ele foi projetado contra a parede da cabina como uma folha numa tempestade. Levantou-se cambaleante e sorriu quando ouviu os gritos. Só gostava de saber quantos passageiros teriam conseguido sobreviver na coberta superior.

HARRY E EMMA 1964-1965
1
- SAR - murmurou Harry ao despertar do seu meio sono letárgico.
Sentou-se sobressaltado, acendeu o candeeiro da mesinha de cabeceira e, a seguir, saiu da cama e atravessou rapidamente o quarto até à jarra de lírios. Leu a mensagem da rainha-mãe pela segunda vez.
Obrigada por um dia memorável em Bristol, espero que a viagem inaugural da minha segunda casa seja um sucesso. Estava assinada SAR a Rainha Isabel, a Rainha-Mãe.
- Um erro tão simples - disse Harry. - Como é que deixei escapar isto? - Pegou no roupão e ligou as luzes da cabina.
- Já são horas de levantar? - indagou uma voz sonolenta.
- Sim - disse Harry. - Temos um problema.
Emma olhou de esguelha para o relógio da mesa de cabeceira.
- Mas pouco passa das três - protestou ela, olhando para o marido, que continuava a olhar atentamente para os lírios. - Qual é o problema, então?
- SAR não é o título da rainha-mãe.
- Toda a gente sabe isso - disse Emma, ainda meio a dormir.
- Toda a gente, exceto a pessoa que enviou estas flores. Porque é que não sabiam que a maneira correta de tratar a rainha-mãe é por Sua Majestade e não por Sua Alteza Real? Este título é reservado às princesas.
Emma saiu com relutância da cama, foi ter com o marido e examinou ela própria o cartão.
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- Pede ao capitão que venha ter imediatamente connosco - disse Harry. - Precisamos de descobrir o que está nesta jarra -- acrescentou, antes de se ajoelhar.
- Provavelmente, é apenas água - disse Emma estendendo a mão.
Harry agarrou-lhe o pulso.
- Olha com mais atenção, minha querida. A jarra é demasiado grande para algo tão delicado quanto uma dúzia de lírios. Liga ao capitão - repetiu, desta vez em tom mais urgente.
- Mas a florista pode ter cometido simplesmente um erro.
- Esperemos que sim - disse Harry, começando a dirigir-se para a porta. - Mas não nos podemos dar ao luxo de correr esse risco.
- Onde é que vais? - perguntou Emma, enquanto pegava no telefone.
- Acordar Giles. Ele tem mais experiência com explosivos do que eu. Passou dois anos da sua vida a colocá-los aos pés das tropas avançadas alemãs.
Quando Harry saiu para o corredor, distraiu-se ao ver um homem idoso a desaparecer em direção à escadaria principal. Movia-se demasiado depressa para a idade que aparentava, pensou Harry. Bateu com firmeza à porta da cabina de Giles, mas foi preciso bater uma segunda vez com o punho fechado para ouvir uma voz ensonada dizer:
- Quem é?
- Harry.
A urgência na sua voz fez Giles saltar da cama e abrir a porta de imediato.
- Qual é o problema?
- Vem comigo - disse Harry sem mais explicações.
Giles vestiu o roupão e seguiu o cunhado pelo corredor fora até ao camarote.
- Bom dia, mana - disse ele a Emma, enquanto Harry lhe entregava o cartão e dizia: - SAR.
- Já percebi - disse Giles depois de examinar o cartão. - Não pode ter sido a rainha-mãe a enviar as flores. Mas, se não foi ela, quem foi?
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Inclinou-se e analisou a jarra mais de perto.
- Quem quer que tenha sido pode ter enfiado ali dentro uma data de Semtex.
- Ou umas boas medidas de água - disse Emma. - Têm a certeza de que não estão a preocupar-se sem razão?
- Se é água, porque é que as flores já estão a murchar? - perguntou Giles, ao mesmo tempo que o capitão Turnbull batia à porta antes de entrar na cabina.
- Pediu para falar comigo, senhora presidente?
Emma começou a explicar por que motivo o marido e o irmão estavam ambos de joelhos.
- Há quatro oficiais do SAS a bordo - disse o capitão, interrompendo a presidente. - Um deles deve ser capaz de responder às perguntas que o senhor Clifton possa ter.
- Presumo que não seja coincidência o facto de se encontrarem a bordo - disse Giles. - Não acredito que decidiram todos passar férias em Nova Iorque ao mesmo tempo.
- Estão a bordo a pedido do secretário do Gabinete - replicou o capitão. - Mas Sir Alan Redmayne assegurou-me que era apenas uma medida de precaução.
- Como de costume, esse homem sabe alguma coisa que nós não sabemos - disse Harry.
- Então, talvez esteja na altura de descobrir o que é.
O capitão saiu da cabina e desceu rapidamente o corredor, parando apenas quando chegou à cabina 119. O coronel Scott-Hopkins respondeu ao batimento na porta bastante mais depressa do que Giles fizera minutos antes.
- Tem algum especialista em minas e armadilhas na sua equipa?
- O sargento Roberts. Ele integrou a brigada de minas e armadilhas na Palestina.
- Preciso dele agora na cabina da presidente.
O coronel não perdeu tempo a perguntar porquê. Correu até à escadaria principal e deu de caras com o capitão Hartiey a correr em direção a ele.
- Acabei de ver Liam Doherty a sair dos lavabos da sala de estar da primeira classe.
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- Tens a certeza?
- Sim. Entrou como par do reino e saiu vinte minutos depois como Liam Doherty. Em seguida, desceu para a segunda classe.
- Isso pode explicar tudo - disse Scott-Hopkins enquanto continuava a descer a escadaria com Hartley no seu encalço.
- Qual é o número da cabina do Roberts?
- Setecentos e quarenta e dois - disse Hartley, enquanto saltavam a corrente vermelha para acederem à escadaria mais estreita. Só pararam quando chegaram ao convés número 7, onde o cabo Crann saiu da sombra.
- O Doherty passou por ti nos últimos minutos?
- Bolas! - disse Crann. - Eu sabia que tinha visto esse filho da mãe a pavonear-se em Falis Road. Entrou na setecentos e seis.
- Hartley - disse o coronel enquanto continuava a correr pelo corredor fora -, tu e o Crann fiquem de olho em Doherty. Certifiquem-se de que ele não sai da cabina. Se sair, prendam-no.
O coronel bateu à porta da cabina 742. O sargento Roberts não precisou que batessem segunda vez. Abriu a porta segundos depois e saudou o coronel Scott-Hopkins com um «Bom dia, meu coronel», como se o seu comandante costumasse acordá-lo a meio da noite, de pijama vestido.
- Pega no teu kit de ferramentas, Roberts, e segue-me. Não há tempo a perder - disse o coronel, novamente em movimento.
Roberts só conseguiu alcançar o comandante depois de galgar três lanços de escada. Quando chegaram ao corredor do camarote, Roberts já sabia de qual das suas competências específicas o coronel precisava. Entrou a correr na cabina da presidente e examinou atentamente a jarra por um momento, antes de circundá-la devagarinho.
- Se for uma bomba - disse ele finalmente -, é das grandes. Nem consigo imaginar o número de vidas perdidas se não conseguirmos desarmá-la.
- Mas consegue fazê-lo? - perguntou o capitão, parecendo extraordinariamente calmo. - Porque, se não conseguir, a minha primeira responsabilidade é para com a vida dos meus passageiros. Dispenso comparações com uma outra viagem inaugural desastrosa.
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- Não posso fazer coisa nenhuma, a menos que consiga pôr as mãos no painel de controlo. Tem de estar algures neste navio - disse Roberts -, provavelmente muito perto daqui.
- O meu palpite seria na cabina de sua senhoria - disse o coronel -, porque sabemos agora que era ocupada por um bombista do IRA chamado Liam Doherty.
- Alguém sabe em que cabina estava ele? - perguntou o capitão.
- Número três - disse Harry, lembrando-se do homem idoso que caminhava demasiado lesto. - Ao fundo do corredor.
O capitão e o sargento saíram do camarote para o corredor a correr, seguidos de Scott-Hopkins, Harry e Giles. O capitão abriu a porta da cabina com a sua chave-mestra e afastou-se para o lado para deixar Roberts entrar. O sargento dirigiu-se rapidamente para uma grande arca no meio do quarto. Levantou a medo a tampa e espreitou para o seu interior.
- Meu Deus, está programada para detonar dentro de oito minutos e trinta e nove segundos.
- Não pode desligar simplesmente um desses? - perguntou o capitão Turnbull, apontando para uma miríade de fios de diferentes cores.
- Sim, mas qual deles? - disse Roberts, sem levantar os olhos para o capitão enquanto separava cuidadosamente os fios vermelhos, pretos, azuis e amarelos. -Já trabalhei muitas vezes com este tipo de engenho. É sempre uma hipótese em quatro, e esse não é um risco que eu queira correr. Era capaz de considerar essa possibilidade se estivesse sozinho no meio de um deserto - acrescentou -, mas não num navio no meio do oceano com centenas de vidas em risco.
- Então, vamos arrastar Doherty até aqui o mais depressa possível - sugeriu o capitão Turnbull. - Ele há de saber qual o fio a cortar.
- Duvido - disse Roberts -, porque desconfio que Doherty não é o bombista. Devem ter um especialista a bordo para fazer esse trabalho, e sabe Deus onde andará.
- Estamos a ficar sem tempo - recordou-lhes o coronel, enquanto olhava para o avanço inexorável do segundo ponteiro. - Sete minutos, três, dois, um...
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- Então, Roberts, o que aconselha? - perguntou calmamente o capitão.
- O senhor não vai gostar disto, mas só há uma coisa a fazer, dadas as circunstâncias. E mesmo isso é um risco dos diabos, tendo em conta que temos menos de sete minutos.
- Então, desembucha, homem! - instou o coronel.
- Agarrar nesta maldita coisa, atirá-la borda fora e rezar. Harry e Giles voltaram a correr para o camarote da presidente e
tomaram posição dos dois lados da jarra. Havia várias perguntas que Emma, agora vestida, gostaria de fazer, mas como qualquer presidente sensata sabia quando devia ficar calada.
- Levantem-na devagar - disse Roberts. - Tratem-na como se fosse uma tigela cheia de água a ferver.
Como dois halterofilistas, Harry e Giles agacharam-se e levantaram lentamente a pesada jarra da mesa até ficarem os dois em pé. Assim que se convenceram de que a tinham bem segura, deslocaram-se de lado em direção à porta aberta da cabina. Scott-Hopkins e Roberts trataram de afastar rapidamente quaisquer obstáculos que eles tivessem pela frente.
- Sigam-me - ordenou o capitão quando os dois homens saíram para o corredor e avançaram lentamente para a grande escadaria. Harry nem queria acreditar no peso daquela jarra. Depois, lembrou-se do homem gigantesco que a levara para a cabina. Não admirava que não tivesse ficado à espera da gorjeta. Provavelmente, por esta altura, ia de regresso a Belfast ou estava sentado algures, junto a um rádio, à espera de ouvir a notícia sobre o trágico destino do Buckingham e de saber o número de passageiros que tinham perdido a vida.
Quando chegaram à base da grande escadaria, Harry começou a contar em voz alta enquanto os dois a subiam degrau a degrau. Dezasseis degraus depois, parou para recuperar o fôlego enquanto o capitão e o coronel abriam as portas de vaivém que davam para o convés superior com piscina, a menina dos olhos de Emma.
- Precisamos de ir o mais para trás possível - disse o capitão. - Assim, temos mais probabilidades de evitar danos no casco. - Harry não parecia convencido. - Não se preocupe, já não está muito longe.
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Quão longe seria isso, perguntou-se Harry, que teria largado alegremente a jarra borda fora, ali mesmo. Mas não disse nada enquanto avançavam aos poucos em direção à popa.
- Eu sei exatamente como te sentes - disse Giles, lendo o pensamento do cunhado.
Continuaram a sua caminhada a passo de caracol, passando pela piscina, pelo campo de ténis e pelas espreguiçadeiras muito bem alinhadas, prontas para quando os passageiros agora adormecidos aparecessem, de manhã. Harry tentou não pensar em quanto tempo teriam até...
- Dois minutos - avisou inutilmente o sargento Roberts, olhando para o relógio.
Pelo canto do olho, Harry já conseguia ver a amurada da popa do navio. Estava a poucos passos, mas, tal como na conquista do Evereste, ele sabia que esses últimos seriam os mais demorados.
- Cinquenta segundos - disse Roberts quando pararam junto à amurada que lhes dava pela cintura.
- Lembras-te quando atirámos o Fisher ao rio, no final do período? - recordou Giles.
- Como é que me podia esquecer?
- Então, vamos contar até três e atirá-lo ao mar, para nos livrarmos desse filho da mãe de uma vez por todas! - exclamou Giles.
- Um... - ambos os homens balançaram os braços para trás, mas só fizeram deslocar a jarra alguns centímetros - dois... - mais uns quantos - três... - fizeram-na recuar o mais que conseguiram e, depois, com toda a força que lhes restava, lançaram-na ao ar por cima da amurada.
Ao vê-la cair, Harry estava convencido de que ia atingir o convés ou, na melhor das hipóteses, embater na amurada, mas acabou por transpô-la por alguns centímetros e caiu no mar com um ligeiro chape. Giles ergueu triunfantemente os braços e gritou:
- Aleluia!
Passados segundos, a bomba explodiu, projetando-os a ambos com violência ao longo do convés.
30
2
Kevin Rafferty tinha ligado o sinal de livre assim que vira Martinez sair de sua casa, em Eaton Square. As suas ordens não podiam ser mais claras. Se o cliente tentasse pôr-se a andar, devia presumir que ele não tinha intenção de efetuar o segundo pagamento devido pelo atentado bombista no Buckingham e devia ser punido em conformidade.
A ordem original fora sancionada pelo comandante de área do IRA em Belfast. A única modificação que o comandante de área aceitava era que Kevin podia escolher qual dos dois filhos de Don Pedro Martinez devia ser eliminado. Porém, uma vez que tanto Diego como Luis já tinham fugido para a Argentina e não tencionavam regressar a Inglaterra, Don Pedro era o único candidato disponível para a versão muito particular de roleta russa levada a cabo pelo motorista.
- Heathrow - disse Martinez ao entrar para o táxi.
Rafferty saiu de Eaton Square e desceu Sloane Street em direção a Battersea Bridge, ignorando os protestos ruidosos que vinham lá de trás. Às quatro da manhã e debaixo de chuva torrencial, passou apenas por uma dúzia de carros antes de atravessar a ponte. Passados alguns minutos, parou à porta de um armazém abandonado, em Lambeth. Quando teve a certeza de que não havia ninguém por perto, saiu do táxi, abriu rapidamente o cadeado enferrujado da porta exterior do edifício e levou o carro lá para dentro. Virou o táxi, pronto para uma fuga rápida assim que concluísse o trabalho.
Rafferty correu o ferrolho da porta e ligou a lâmpada nua e coberta de pó suspensa de uma trave no centro do armazém. Tirou uma31
arma de um bolso interior antes de voltar para o táxi. Embora tivesse metade da idade de Martinez e o dobro da sua condição física, não se podia dar ao luxo de correr riscos. Quando um homem pensa que está prestes a morrer, a adrenalina entra em ação e ele pode tornar-se super-homem num derradeiro esforço para sobreviver. Além disso, Rafferty desconfiava que não era a primeira vez que Martinez enfrentava a possibilidade de morrer. Só que, desta vez, já não seria simplesmente uma possibilidade.
Abriu a porta de trás do táxi e brandiu a arma em direção a Martinez para lhe indicar que devia sair.
- Aqui está o dinheiro que eu lhe ia levar - insistiu Martinez, levantando o saco.
- Não me diga que estava à espera de me encontrar em Heathrow... - Se fosse o montante total, Rafferty sabia que não teria outra escolha senão poupar-lhe a vida. - Duzentas e cinquenta mil libras?
- Não, mas estão aqui mais de vinte e três mil. Era apenas um pagamento inicial, compreende? O resto está em casa, por isso, se lá voltarmos...
O motorista sabia que a casa em Eaton Square, juntamente com os outros bens de Martinez, fora retomada pelo banco. Era óbvio que Martinez esperava conseguir chegar ao aeroporto antes que o IRA descobrisse que ele não tencionava cumprir a sua parte do acordo.
Rafferty agarrou no saco e atirou-o para o banco de trás do táxi. Tinha decidido tornar a morte de Martinez ligeiramente mais demorada do que inicialmente planeado. No fim de contas, não tinha mais nada para fazer durante a próxima hora.
Brandiu a arma em direção a uma cadeira de madeira que fora colocada diretamente por baixo da lâmpada. Já estava salpicada de sangue seco de execuções anteriores. Obrigou a vítima a sentar-se empurrando-a com força considerável e, antes que Don Pedro tivesse oportunidade de reagir, já ele lhe amarrara os braços atrás das costas. Não era de estranhar, pois já tinha levado a cabo aquele exercício por diversas vezes. Por último, amarrou as pernas de Martinez e depois recuou para admirar a sua obra.
32
Agora, a única coisa que Rafferty tinha de decidir era quanto tempo de vida concederia à sua vítima, sendo que o seu único constrangimento era ter de estar em Heathrow a tempo de apanhar o primeiro voo da manhã para Belfast. Olhou para o relógio. Gostava sempre de ver aquela expressão no rosto das vítimas, quando pensavam que talvez ainda tivessem alguma hipótese de se safar.
Voltou ao táxi, correu o fecho do saco de Martinez e contou os maços de notas de cinco libras. Pelo menos, tinha dito a verdade em relação a isso, embora faltassem mais de 226 000 libras para o montante total. Voltou a fechar o saco e guardou-o na mala do carro. No fim de contas, Martinez já não ia precisar deles.
As ordens do comandante da área eram claras: assim que o trabalho fosse concluído, devia deixar o cadáver no armazém e outro operacional trataria de se desfazer dele. Rafferty só precisava de fazer um telefonema e transmitir a mensagem «Encomenda pronta para ser recolhida». Depois disso, devia levar o táxi até ao aeroporto e deixá-lo, assim como ao dinheiro, no último piso do parque de estacionamento de longa duração. Outro operacional seria responsável por ir buscá-lo e distribuir o dinheiro.
Rafferty voltou para junto de Don Pedro, que nunca o perdera de vista. Se o motorista pudesse escolher, dava-lhe um tiro no estômago, esperava alguns minutos até a gritaria esmorecer, e a seguir disparava uma segunda bala na virilha. Mais gritos, provavelmente ainda mais estridentes, até acabar por lhe enfiar a arma na boca. Nessa altura, olharia a vítima nos olhos durante vários segundos e depois, sem aviso, puxaria o gatilho. Mas isso implicaria três tiros. Um era capaz de passar despercebido, mas três, a meio da noite, chamariam certamente a atenção. Por isso, ia obedecer às ordens do comandante da área. Um tiro, e nada de gritos.
O motorista sorriu para Don Pedro, que levantou o rosto com ar esperançado até ver a arma que ia direita à sua boca.
- Abra - disse Rafferty, como um dentista simpático a persuadir uma criança relutante. Um fator comum entre todas as suas vítimas era o bater dos dentes.
Martinez resistiu e engoliu um dos dentes da frente naquela luta desigual. O suor começou a escorrer-lhe pelas pregas carnudas da pele33
do rosto. Só teve de esperar mais uns segundos até o gatilho ser premido, mas a única coisa que ouviu foi o estalido do percutor.
Uns desmaiavam, alguns limitavam-se a olhar incrédulos, enquanto outros ficavam violentamente indispostos quando percebiam que ainda estavam vivos. Rafferty odiava os que desmaiavam. Isso significava que tinha de esperar que recobrassem os sentidos para poder iniciar novamente todo o processo. Mas Martinez continuou bem alerta.
Quando Rafferty tirava a arma da boca das vítimas, a sua ideia de fazer um broche, estas muitas vezes sorriam, imaginando que o pior já passara. Mas quando ele girou novamente o cilindro da arma, Don Pedro soube que ia morrer. Faltava apenas saber quando. No fim de contas, o onde e o como já tinham sido decididos.
Rafferty ficava sempre desapontado quando tinha sucesso logo ao primeiro disparo. O seu recorde pessoal era nove, mas a média andava pelos quatro ou cinco. Não que ele ligasse a estatísticas. Enfiou o cano novamente na boca de Martinez e recuou um passo. Não queria ficar coberto de sangue. O argentino foi suficientemente tolo para voltar a resistir e perdeu outro dente no esforço, desta vez um de ouro. Rafferty enfiou-o no bolso antes de premir o gatilho uma segunda vez, mas obteve apenas outro estalido. Tirou o cano para fora, na esperança de tirar outro dente, bem, metade de um dente.
- A terceira é de vez - disse Rafferty enquanto voltava a enfiar a arma na boca de Martinez e puxava o gatilho.
Outro falhanço. O motorista estava a ficar impaciente e tinha agora a esperança de que o seu trabalho ficasse concluído à quarta tentativa. Girou o cilindro com mais entusiasmo desta vez, mas, quando levantou os olhos, Martinez tinha desmaiado. Que desilusão! Ele gostava que as vítimas estivessem bem acordadas quando a bala lhes entrava no cérebro. Embora só vivessem mais um segundo, era uma experiência que ele apreciava. Agarrou Martinez pelos cabelos, abriu-lhe a boca à força e enfiou o cano lá dentro. Preparava-se para premir o gatilho pela quarta vez quando o telefone ao canto da sala começou a tocar. O insistente eco metálico no ar frio da noite apanhou Rafferty de surpresa. Nunca tinha ouvido o telefone tocar. No passado, apenas o usara para marcar um número e transmitir uma mensagem com cinco palavras.34
Tirou relutantemente a arma da boca de Martinez, foi até ao telefone e pegou no auscultador. Não falou, limitou-se a ouvir.
- A missão foi abortada - disse uma voz com um sotaque afetado e educado. - Não precisa de cobrar o segundo pagamento.
Um clique, seguido de um barulho contínuo.
Rafferty pousou o auscultador. Talvez girasse mais uma vez o cilindro e, se fosse bem-sucedido, diria que Martinez já estava morto quando o telefone tocara. Só mentira uma vez ao comandante da área, e tinha menos um dedo na mão esquerda para o provar. Dizia a quem lhe perguntava que fora cortado por um agente policial britânico durante um interrogatório, mas poucas eram as pessoas de ambos os lados que acreditavam nessa história.
Guardou a contragosto a arma no bolso e voltou lentamente para junto de Martinez, que estava curvado na cadeira, com a cabeça entre as pernas. Inclinou-se e desatou a corda que lhe prendia os pulsos e os tornozelos. Martinez caiu redondo no chão. O motorista pô-lo em pé pelos cabelos, carregou-o ao ombro como se fosse um saco de batatas e largou-o no banco de trás do táxi. Por um momento, ainda teve esperança de que ele resistisse e, nesse caso... mas não teve essa sorte.
Tirou o carro do armazém, trancou a porta e partiu em direção a Heathrow, para se juntar a vários outros taxistas nessa manhã.
Estavam a três quilómetros do aeroporto quando Martinez acordou neste mundo, e não no outro. O motorista viu pelo retrovisor quando o seu passageiro começou a voltar a si. Martinez pestanejou por várias vezes antes de olhar pela janela e ver as fiadas de casas suburbanas a passar. Quando começou a cair em si, inclinou-se para a frente e vomitou em cima do banco. O colega de Rafferty não ia ficar nada satisfeito.
Don Pedro lá acabou por conseguir endireitar o corpo flácido. Firmou-se, agarrando-se à borda do banco com ambas as mãos, e olhou fixamente para o seu suposto carrasco. O que é que o teria feito mudar de ideias? Talvez não tivesse mudado. Talvez só tivesse mudado o local. Don Pedro chegou-se mais para a frente, esperando ter uma oportunidade para fugir, mas dolorosamente ciente de que o olhar desconfiado de Rafferty fitava o retrovisor de poucos em poucos segundos.35
Rafferty saiu da estrada principal e seguiu as placas que indicavam o parque de estacionamento de longa duração. Foi até ao último piso e estacionou no canto mais afastado. Saiu do carro, abriu o porta-bagagens e correu o fecho do saco de viagem, satisfeito por rever os maços de notas de cinco libras. Teria gostado de levar o dinheiro consigo, para a causa, mas não se podia arriscar a ser apanhado com aquela quantia, agora que havia tantos agentes de segurança a observar todos os voos para Belfast.
Tirou um passaporte argentino do saco, juntamente com um bilhete só de ida para Buenos Aires e dez libras em dinheiro, e depois largou a arma dentro do saco; outra coisa com que não se podia dar ao luxo de ser apanhado. Fechou a mala do carro, abriu a porta do condutor e pôs as chaves e o bilhete do estacionamento debaixo do banco, para um colega ir buscar mais tarde. A seguir, abriu a porta de trás e afastou-se para o lado para deixar Martinez sair, mas ele não se mexeu. Iria tentar fugir? Não, se tinha amor à vida. No fim de contas, ele não sabia que o motorista já não estava armado.
Rafferty agarrou Martinez com firmeza pelo cotovelo, puxou-o para fora do carro e levou-o até à saída mais próxima. Dois homens passaram por eles na escada, enquanto desciam para o piso térreo. Rafferty não os olhou segunda vez.
Nenhum dos homens falou durante a longa caminhada até ao terminal do aeroporto. Quando chegaram à área de embarque e desembarque, Rafferty entregou a Martinez o seu passaporte, o bilhete e as duas notas de cinco libras.
- E o resto? - resmungou Don Pedro. - Porque é óbvio que os seus colegas não conseguiram afundar o Buckingham.
- Dê-se por muito feliz por estar vivo - disse Rafferty, e depois virou-se rapidamente e desapareceu no meio da multidão.
Por um momento, Don Pedro pensou em voltar ao táxi para recuperar o seu dinheiro, mas foi só por um momento. Em vez disso, dirigiu-se relutantemente ao balcão da British Airways para a América do Sul e entregou o bilhete à mulher que lá estava sentada.
- Bom dia, senhor Martinez - disse ela. - Espero que tenha tido uma estadia agradável em Inglaterra.
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- Como é que arranjou esse olho negro, pai? - quis saber Sebastian quando se juntou à família mais tarde, nessa manhã, na sala de pequeno-almoço do Buckingham.
- A tua mãe bateu-me quando me atrevi a sugerir que ela ressonava - replicou Harry.
- Eu não ressono - disse Emma enquanto punha manteiga noutra torrada.
- Como é que podes saber se ressonas quando estás a dormir? - perguntou Harry.
- E o tio Giles? Também foi a minha mãe que lhe partiu o braço quando sugeriu que ela ressonava? - perguntou Seb.
- Eu não ressono! - repetiu Emma.
- Seb - disse Samantha com firmeza -, nunca deves fazer uma pergunta a alguém que sabes que não vai querer responder.
- Fala como a filha de um diplomata - disse Giles, sorrindo do outro lado da mesa para a namorada de Seb.
- Fala como um político que não quer responder à minha pergunta - replicou Seb. - Mas estou decidido a descobrir...
- Bom dia, fala o vosso capitão - anunciou uma voz cheia de interferências no altifalante. - Navegamos presentemente à velocidade de vinte e dois nós. A temperatura é de vinte graus e não é esperada qualquer alteração das condições meteorológicas durante as próximas vinte e quatro horas. Espero que tenham um dia agradável e não se esqueçam de aproveitar as facilidades maravilhosas que o Buckingham tem para oferecer, sobretudo as espreguiçadeiras e a piscina no convés
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superior, exclusivas deste navio. - Houve uma longa pausa, antes de continuar. - Alguns passageiros indagaram sobre um ruído intenso que os acordou a meio da noite. Parece que, por volta das três da manhã a Esquadra Metropolitana estava a efetuar exercícios noturnos no Atlântico e, embora se encontrasse a várias milhas de distância, numa noite limpa como a de ontem terá dado ideia de estar consideravelmente mais próxima. As minhas desculpas a quem acordou ao som de tiros, mas, tendo estado ao serviço da Royal Navy durante a guerra, sei que os exercícios noturnos são uma necessidade. No entanto, posso assegurar aos passageiros que nunca estivemos em perigo. Obrigado e o resto de um bom dia.
Sebastian teve a sensação de que o capitão estivera a ler um guião e, ao olhar para a mãe, à sua frente, não teve dúvidas de quem o escrevera.
- Quem me dera ser membro do conselho de administração - disse ele.
- Porquê? - perguntou Emma.
- Porque nesse caso - disse ele, olhando diretamente para a mãe - era capaz de descobrir o que aconteceu realmente na noite passada.
Os dez homens permaneceram de pé até Emma ter tomado o seu lugar à cabeceira da mesa, uma mesa com que não estavam familiarizados, mas a verdade é que o salão de baile do Buckingham não fora construído para reuniões de emergência do conselho.
Quando ela olhou em volta para os seus pares, nenhum deles estava a sorrir. A maior parte já tinha enfrentado crises ao longo da vida, mas nada desta envergadura. Até os lábios do almirante Summers estavam contraídos. Emma abriu a pasta de couro azul à sua frente, uma prenda de Harry quando fora nomeada presidente. Tinha sido ele quem a alertara para a crise, pensou, e quem depois lidara com ela.
- Escusado será dizer que tudo o que discutirmos aqui hoje deverá permanecer estritamente confidencial, pois não será exagero lembrar que é o futuro da companhia de navegação Barrington que está38
em risco, assim como a segurança de todos quantos se encontram a bordo - disse ela.
Emma olhou para a ordem de trabalhos que fora preparada por Philip Webster, o secretário da companhia, no dia antes de terem largado de Avonmouth. Já estava desatualizada. Só havia um ponto na ordem de trabalhos revista e seria seguramente o único assunto debatido naquele dia.
- Vou começar - disse Emma - por relatar, confidencialmente, tudo o que aconteceu às primeiras horas da madrugada, e depois temos de decidir qual a estratégia a seguir. Fui acordada pelo meu marido pouco depois das três da manhã...
Vinte minutos mais tarde, Emma voltou a verificar as suas notas. Sentiu que abordara tudo o que acontecera no passado, mas sabia que não tinha forma de predizer o futuro.
- Conseguimos safar-nos sem problemas? - indagou o almirante quando Emma os convidou a fazer perguntas.
- A maioria dos passageiros aceitou sem questionar a explicação do capitão. - Virou uma página no seu dossiê. - No entanto, recebemos reclamações de trinta e quatro passageiros, até agora. Todos eles, exceto um, aceitaram uma viagem gratuita no Buckingham em data a acordar, como forma de compensação.
- E pode ter a certeza de que haverá muitas mais - disse Bob Bingham, com a sua habitual sem-cerimónia nortista a sobrepor-se à atitude aparentemente calma dos membros mais antigos do conselho.
- O que o faz dizer isso? - perguntou Emma.
- Assim que os passageiros descobrirem que basta escrever uma carta de reclamação para obter uma viagem gratuita, a maior parte deles vai direitinha à cabina para pôr mãos ao trabalho.
- Talvez nem toda a gente pense como o senhor - aventou o almirante.
- É por isso que faço parte do conselho de administração - disse Bingham, sem ceder um milímetro.
- A senhora presidente disse-nos que todos os passageiros ficaram satisfeitos com a oferta de uma viagem gratuita, à exceção de um - disse Jim Knowles.
- Sim - respondeu Emma. - Infelizmente, há um passageiro americano que ameaça processar a companhia. Diz que estava cá fora,

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no convés, às primeiras horas da madrugada, e que não havia sinal da presença da Esquadra Metropolitana, mas que ainda assim acabou com uma fratura no tornozelo.
De repente, os membros do conselho começaram a falar todos ao mesmo tempo. Emma esperou que se acalmassem.
- Tenho um encontro com o senhor... - consultou o dossiê -- ... Hayden Rankin, ao meio-dia.
- Quantos mais americanos há a bordo? - perguntou Bingham.
- Cerca de uma centena. Porque pergunta, Bob?
- Esperemos que não haja entre eles muitos advogados sem escrúpulos, caso contrário, teremos de enfrentar ações judiciais para o resto da vida. - Ouviram-se risadas nervosas à volta da mesa. - Assegure-me apenas, Emma, de que o senhor Rankin não é advogado.
- Pior - disse ela. - É político. Um congressista do Louisiana.
- Um verme que deu por si alegremente enfiado num barril de maçãs frescas - disse Dobbs, um membro do conselho que raramente opinava.
- Não estou a acompanhar o seu raciocínio, meu velho - declarou Clive Anscott, do outro lado da mesa.
- Um político local que, provavelmente, pensa que descobriu uma oportunidade de se tornar conhecido no panorama nacional.
- Era só o que nos faltava - exclamou Knowles.
O conselho de administração ficou em silêncio durante algum tempo, até que Bob Bingham afirmou muito prosaicamente:
- Vamos ter de acabar com ele. A única questão é saber quem irá premir o gatilho.
- Terei de ser eu - disse Giles -, já que sou o único outro verme no barril. - Dobbs pareceu convenientemente embaraçado.
- Vou tentar cruzar-me com ele antes do seu encontro com a senhora presidente e ver se consigo resolver a situação. Esperemos que seja um democrata!
- Obrigada, Giles - disse Emma, que ainda não se habituara a que o irmão a tratasse por senhora presidente.
- Quais foram os danos que o navio sofreu com a explosão?
- perguntou Peter Maynard, que não falara até então.
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Todos os olhos se viraram para a outra ponta da mesa, onde estava sentado o capitão Turnbull.
- Não tantos como inicialmente receei - disse o capitão enquanto se levantava do lugar. - Uma das quatro hélices principais foi danificada pela explosão e só poderei substituí-la quando regressarmos a Avonmouth. E também houve alguns danos no casco, mas são apenas superficiais.
- Isso vai atrasar-nos? - perguntou Michael Carrick.
- Não o suficiente para alguém notar que estamos a deslocar-nos a vinte e dois nós por hora, em vez de vinte e quatro. As outras três hélices continuam em perfeitas condições e como sempre planeei chegar a Nova Iorque às primeiras horas do dia 4, só um passageiro muito observador perceberia que temos umas horas de atraso.
- Aposto que o congressista Rankin vai reparar - disse Knowles desnecessariamente. - E como é que explicou os danos à tripulação?
- Não expliquei. Eles não são pagos para fazer perguntas.
- E a viagem de regresso a Avonmouth? - perguntou Dobbs. - Conseguimos voltar a horas?
- Os nossos engenheiros vão trabalhar a todo o vapor na popa danificada durante as trinta e seis horas que estivermos em Nova Iorque, por isso, quando zarparmos, devemos estar em perfeitas condições de navegabilidade.
- Assim é que é falar! - exclamou o almirante.
- Mas esse pode ser o menor dos nossos problemas - disse Anscott. - Não se esqueçam de que temos uma célula do IRA a bordo, e sabe Deus o que mais eles planearam para o resto da viagem.
- Três deles já foram presos - disse o capitão. - Foram literalmente postos a ferros e serão entregues às autoridades assim que chegarmos a Nova Iorque.
- Mas não será possível que haja mais homens do IRA a bordo? - perguntou o almirante.
- Segundo o coronel Scott-Hopkins, uma célula do IRA é normalmente composta por quatro ou cinco operacionais. Por isso, sim, é possível que haja mais dois a bordo; mas o mais provável é que façam o possível por passar despercebidos, agora que três dos seus parceiros foram detidos. A sua missão fracassou claramente, coisa que não41
quererão lembrar às pessoas em Belfast. E posso confirmar que o homem que entregou as flores na cabina da senhora presidente já não está a bordo; deve ter desembarcado antes de partirmos. Desconfio que, se houver outros, não nos farão companhia na viagem de regresso.
- Estou a lembrar-me de algo tão perigoso quanto o congressista Rankin ou mesmo o IRA - disse Giles.
Político experiente como era, o deputado por Bristol Docklands tinha conseguido captar a atenção de todos.
- Em quem ou no que é que estás a pensar? - perguntou Emma, olhando para o irmão.
- No quarto poder. Não te esqueças de que convidaste jornalistas para nos acompanharem nesta viagem, na esperança de conseguires boas críticas. Agora, ficaram com um exclusivo.
- É verdade, mas ninguém fora desta sala sabe o que aconteceu exatamente na noite passada e, de qualquer forma, só houve três jornalistas que aceitaram o nosso convite: são do Telegraph, do Mail e do Express.
- Três a mais do que deviam - disse Knowles.
- O do Express trabalha para o jornal como correspondente de viagem - disse Emma. - É raro ainda estar sóbrio à hora do almoço, por isso certifiquei-me de que tem sempre, pelo menos, duas garrafas de Johnnie Walker e Gordon 's na cabina. O Mail patrocinou doze bilhetes gratuitos nesta viagem, por isso é pouco provável que esteja interessado em denegri-la. Mas Derek Hart, do Telegraph, já andou a investigar, a fazer perguntas.
- «Hartless», como é conhecido no meio - disse Giles. - Vou ter de lhe dar uma história ainda mais importante para o manter ocupado.
- O que é que pode ser mais importante do que o possível afundamento do Buckingham pelo IRA na sua viagem inaugural?
- O possível afundamento da Grã-Bretanha por um governo trabalhista. Estamos prestes a anunciar um empréstimo do FMI no valor de um vírgula cinco mil milhões de libras, num esforço para parar a desvalorização da libra esterlina. O editor do Telegraph encherá alegremente várias páginas com essa notícia.
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- Mesmo que o faça - disse Knowles -, com tanta coisa em jogo, senhora presidente, acho que devíamos preparar-nos para o pior desfecho possível. No fim de contas, se o nosso político americano denunciar publicamente o caso ou se o senhor Hart, do Telegraph, se deparar com a verdade, ou, que Deus não o permita, se o IRA tiver planeado uma sequela, esta pode ser a primeira e última viagem do Buckingham.
Houve outro grande silêncio, antes de Dobbs dizer:
- Bem, prometemos aos nossos passageiros que estas seriam umas férias inolvidáveis...
Ninguém se riu.
- O senhor Knowles tem razão - disse Emma. - Se algum desses três desfechos se vier a concretizar, não haverá viagens gratuitas ou garrafas de gin que nos salvem. A cotação das nossas ações cairia de um dia para o outro, as reservas da companhia esgotar-se-iam e as marcações diminuiriam drasticamente se os potenciais passageiros pensassem que havia a menor hipótese de terem um bombista do IRA na cabina ao lado. A segurança dos nossos passageiros é fundamental. Assim sendo, sugiro que passem o resto do dia a tentar recolher o máximo de informação possível, ao mesmo tempo que vão tranquilizando os passageiros, reafirmando que está tudo bem. Eu estarei na minha cabina, por isso, se descobrirem alguma coisa, saberão onde me encontrar.
- Não é boa ideia - disse Giles com firmeza. Emma pareceu surpreendida. - A presidente deve ser vista no convés superior a relaxar e a divertir-se, pois essa será a melhor forma de convencer os passageiros de que não há motivos para se preocuparem.
- Bem pensado - disse o almirante.
Emma assentiu. Estava prestes a levantar-se do lugar para mostrar que a reunião tinha terminado, quando Philip Webster, o secretário da companhia, murmurou:
- Mais algum assunto?
- Não me parece - afirmou Emma, que estava agora em pé.
- Só mais uma coisa, senhora presidente - disse Giles. Emma voltou a sentar-se. - Agora, que sou membro do governo, não tenho outra alternativa senão demitir-me do conselho de administração,
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uma vez que não me é permitido ter um cargo remunerado estando ao serviço de Sua Majestade. Percebo que possa parecer um pouco pomposo, mas é o compromisso que qualquer novo membro do governo tem de assumir. E, de qualquer forma, só integrei este conselho para garantir que o major Fisher não era eleito presidente.
- Ainda bem que ele já não faz parte do conselho - disse o almirante. - Se fizesse, por esta altura já todo o mundo sabia o que tinha acontecido.
- Talvez fosse por isso que não estava a bordo - insinuou Giles.
- Se assim for, vai ficar de bico calado, a menos que queira ser preso por auxiliar e ser cúmplice de terroristas.
Emma estremeceu, pensando que nem mesmo alguém como Fisher seria capaz de descer assim tão baixo. Contudo, depois das experiências vividas por Giles, tanto na escola como no exército, Emma não devia ficar surpreendida com o facto de Fisher e Lady Virgínia não se terem propriamente juntado para apoiar a sua causa. Virou-se para o irmão.
- Falando de coisas mais agradáveis, gostaria de deixar em ata os meus agradecimentos a Giles por ter sido administrador da companhia numa altura tão crucial. Porém, a sua demissão irá criar duas vagas no conselho de administração, uma vez que a minha irmã, a doutora Grace Barrington, também se demitiu. Será que me podem aconselhar alguns candidatos adequados para os substituir? - perguntou ela, olhando à volta da mesa.
- Se me é permitido fazer uma sugestão... - disse o almirante. Toda a gente se virou para o velho marinheiro. - A Barrington's é uma firma do sudoeste da Inglaterra com ligações locais de longa data. A nossa presidente é uma Barrington, por isso talvez esteja na altura de olhar para a geração seguinte e convidar Sebastian Clifton para o conselho de administração, o que nos permitirá continuar a tradição familiar.
- Mas ele só tem vinte e quatro anos! - protestou Emma.
- Não é muito mais novo do que a nossa adorada rainha, quando subiu ao trono - recordou-lhe o almirante.
- Cedric Hardcastle, que é uma raposa velha e astuta, considerou Sebastian suficientemente bom para ser seu assistente pessoal no44
Farthings Bank - observou Bob Bingham, piscando o olho a Emma.
- E sei que ele foi recentemente promovido a subdiretor da divisão imobiliária do banco.
- E eu posso confidenciar-vos - disse Giles - que, quando entrei para o governo, não hesitei em encarregar Sebastian do porte-fólio de ações da família.
- Nesse caso, a única coisa que me resta fazer - disse o almirante - é propor que Sebastian Clifton seja convidado a juntar-se ao conselho de administração da Barrington's Shipping.
- Terei todo o prazer em apoiar essa proposta - declarou Bingham.
- Confesso que me sinto embaraçada - disse Emma.
- Seria a primeira vez - retorquiu Giles, o que ajudou a desanuviar o clima.
- Devo pedir que procedam à votação, senhora presidente? - perguntou Webster. Emma assentiu e recostou-se na sua cadeira. - O almirante Summers propôs - continuou o secretário da companhia -, e o senhor Bingham apoiou, que o senhor Sebastian Clifton fosse convidado a integrar o conselho de administração da Barrington's.
- Parou por um momento antes de perguntar - Quem é a favor?
- Todas as mãos se levantaram, à exceção das de Emma e Giles. - Quem é contra? - Nenhuma mão se levantou. A salva de palmas que se seguiu deixou Emma muito orgulhosa.
- Assim sendo, declaro que o senhor Sebastian Clifton foi eleito membro do conselho de administração da Barrington's.
- Vamos rezar para que haja um conselho de administração para Seb integrar - sussurrou Emma ao irmão depois de o secretário da companhia ter dado a reunião por encerrada.
- Sempre acreditei que ele estava lá em cima, com Lincoln e Jefferson.
Um homem de meia-idade, vestindo uma camisa de colarinho aberto e um casaco desportivo, levantou os olhos, mas não fechou o livro. As poucas madeixas de cabelo ralo e louro que ainda se viam
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tinham sido penteadas com todo o cuidado, numa tentativa de ocultar a calvície prematura. Tinha uma bengala encostada à cadeira.
- Peço desculpa - disse Giles. - Não queria interrompê-lo.
- Não há problema - retorquiu o homem com um inconfundível sotaque sulista, mas nem assim fechou o livro. - Na verdade -acrescentou - fico sempre envergonhado com o pouco que sabemos sobre a história do vosso país, ao passo que vocês parecem estar tão bem informados sobre a nossa.
- Isso é porque já não governamos metade do mundo - disse Giles - e vocês dão ideia de estar a preparar-se para isso. Por outro lado, pergunto-me se um homem numa cadeira de rodas poderia ser eleito presidente na segunda metade do século vinte - acrescentou, olhando para o livro do homem.
- Duvido - respondeu o americano com um suspiro. - Kennedy derrotou Nixon por causa de um debate televisivo. Se o tivesse ouvido pela rádio, teria concluído que Nixon era o vencedor.
- Pela rádio, ninguém consegue ver uma pessoa a transpirar. O americano ergueu uma sobrancelha.
- Como é que está tão bem informado sobre a política americana?
- Sou deputado. E o senhor?
- Eu sou um congressista de Baton Rouge.
- E como não pode ter mais de quarenta anos, presumo que esteja de olhos postos em Washington.
Rankin sorriu, mas não adiantou nada.
- É a minha vez de lhe fazer uma pergunta. Qual é o nome da minha esposa?
Giles sabia quando tinha sido derrotado.
- Rosemary - disse.
- Então, agora, que comprovámos que este encontro não foi uma coincidência, Sir Giles, em que posso ajudá-lo?
- Preciso de falar consigo sobre a noite passada.
- Não me surpreende, uma vez que não tenho dúvidas de que está entre o punhado de pessoas a bordo que sabem o que aconteceu realmente às primeiras horas da madrugada.
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Giles olhou à sua volta. Convencido de que ninguém poderia ouvi-los, disse:
- O navio foi alvo de um ataque terrorista, mas felizmente conseguimos...
O americano fez um gesto com a mão, para mostrar que isso não lhe interessava.
- Não preciso de saber os pormenores. Diga-me apenas como posso ajudar.
- Tente convencer os seus concidadãos a bordo de que a Esquadra Metropolitana estava realmente ali. Se conseguir isso, sei de alguém que lhe ficará eternamente grato.
- A sua irmã?
Giles assentiu, sem se surpreender.
- Percebi que tinha de haver um problema grave quando a vi há pouco sentada no convés superior, como se não tivesse nada que a preocupasse. Não era o comportamento de uma presidente confiante, que tenho a sensação de não estar assim tão interessada em apanhar banhos de sol.
- Mea culpa. Mas temos de enfrentar...
- Como já disse, poupe-me os pormenores. Tal como ele - disse, apontando para a fotografia da capa do livro - não estou interessado nas manchetes de amanhã. Estou na política para ficar, por isso farei o que me pede. No entanto, Sir Giles, isso significa que fica a dever-me um favor. E pode ter a certeza de que chegará uma altura em que o irei reclamar - acrescentou, antes de voltar à leitura de A Vida de Roosevelt.
-Já aportámos? - perguntou Sebastian quando ele e Samantha se juntaram aos pais para tomar o pequeno-almoço.
- Há mais de uma hora - respondeu Emma. - A maior parte dos passageiros já desembarcou.
- E como é a tua primeira visita a Nova Iorque - disse Sam enquanto Seb se sentava ao lado dela - e só temos trinta e seis horas antes de regressarmos a Inglaterra, não temos tempo a perder.
- Porque é que o navio só vai ficar trinta e seis horas no porto? - perguntou Seb.
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- Só é possível ganhar dinheiro se andarmos de um lado para o outro e, além disso, as taxas portuárias são astronómicas.
- Lembra-se da sua primeira viagem a Nova Iorque, senhor Clifton? - perguntou Samantha.
- Claro que sim - respondeu Harry com convicção. - Fui preso por um homicídio que não cometi e passei os seis meses seguintes numa prisão americana.
- Oh, peço desculpa - exclamou Samantha, recordando a história que Seb lhe contara em tempos. - Foi falta de tato da minha parte lembrar-lhe uma experiência tão terrível.
- Não penses mais nisso - retorquiu Harry. - Certifica-te apenas que Seb não é preso nesta visita, pois não quero que isso se torne uma tradição familiar.
- Não há a menor possibilidade - disse Samantha. -Já planeei visitas ao Metropolitan, Central Park, Sardi's e Frick.
- O museu preferido de Jessica - lembrou Emma.
- Embora nunca o tenha visitado - declarou Seb.
- Não há um dia em que não sinta saudades dela - disse Emma.
- Quem me dera tê-la conhecido melhor - suspirou Sam.
- Eu sempre pensei - continuou Seb - que ia morrer antes da minha irmã mais nova. - Seguiu-se um longo silêncio até que Seb, querendo nitidamente mudar de assunto, perguntou - Então não vamos visitar discotecas?
- Não há tempo para essas futilidades - disse Samantha. - De qualquer forma, o meu pai comprou-nos bilhetes para o teatro.
- O que é que vão ver? - perguntou Emma.
- O musical Hello, Dolly!
- E isso não é uma futilidade? - indagou Harry.
- O meu pai considera o ciclo do Anel de Wagner um bocadinho moderno demais - explicou Seb antes de perguntar: - Onde está o tio Giles?
- Foi dos primeiros a sair do navio - informou Emma, enquanto um empregado de mesa lhe enchia a chávena de café pela segunda vez. - O nosso embaixador levou-o rapidamente para as Nações Unidas, para poderem rever o discurso antes da sessão da tarde.48
- Talvez devêssemos tentar encaixar também as Nações Unidas?
- sugeriu Sam.
- Não me parece - replicou Seb. - Da última vez que assisti a um dos discursos do meu tio, ele teve um ataque cardíaco pouco depois e não conseguiu tornar-se líder do Partido Trabalhista.
- Nunca me tinhas contado isso!
- Ainda há muita coisa que desconheces sobre a nossa família
- admitiu Seb.
- O que me faz lembrar - disse Harry - que ainda não tive oportunidade de te felicitar por teres sido eleito para o conselho de administração.
- Obrigado, pai. E agora, que li a ata da última reunião, estou desejoso - Seb levantou os olhos e viu o ar ansioso da mãe - de conhecer os outros membros do conselho, sobretudo o almirante.
- Uma pessoa fora de série - disse Emma, embora ainda estivesse a pensar se a próxima reunião do conselho seria a sua última, pois, se a verdade viesse a público, não teria outra escolha senão demitir-se. Contudo, à medida que a memória daquela primeira manhã no mar começava a desvanecer-se, sentia-se mais descontraída e também um pouco mais confiante, agora que o huckingham estava ancorado em Nova Iorque. Olhou pela janela. Até onde podia ver, não havia hordas de jornalistas a rondar a prancha de desembarque, a fazer perguntas aos berros enquanto disparavam os flashes. Talvez estivessem mais interessados no resultado das eleições presidenciais. Mas ela não suspiraria de alívio até o Buckingham ter levantado ferro para a viagem de regresso a Avonmouth.
- Então, como pensa passar o dia, pai? - perguntou Seb, interrompendo os devaneios da mãe.
- Vou almoçar com o meu editor, Harold Guinzburg. Vou seguramente ficar a saber o que é que planeou para o meu último livro e o que achou dele.
- Haverá alguma possibilidade de arranjar uma cópia adiantada para a minha mãe? - pediu Samantha. - Ela admira-o tanto!
- Claro - retorquiu Harry.
- São nove dólares e noventa e nove cêntimos - disse Seb, estendendo a mão, e Samantha depositou nela um ovo cozido quente.
- E a mãe? Está a pensar pintar o casco?
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- Não a encorajes - disse Harry, sem se rir.
- Serei a última a sair do navio e a primeira a voltar a bordo. Embora tencione visitar o primo Alistair e pedir desculpa por não ter estado presente no funeral da minha tia-avó Phyllis.
- O Seb estava no hospital, nessa altura - recordou-lhe Harry.
- Então, vamos começar por onde? - perguntou Seb ao mesmo tempo que dobrava o guardanapo.
Sam espreitou pela janela para ver o tempo.
- Vamos apanhar um táxi para Central Park e dar a volta ao parque antes de visitarmos o Met.
- Então, é melhor irmos andando - disse Seb, levantando-se da mesa. - Tenham um bom dia, meus veneráveis pais.
Emma sorriu enquanto os via sair da sala de jantar, de mão dada.
- Quem me dera saber se têm dormido juntos.
- Emma, estamos na segunda metade do século vinte e, diga-se em abono da verdade, não somos propriamente as pessoas mais indicadas para...
- Não, eu não estava a dar uma de moralista - disse Emma. - Era só porque podia ter vendido a cabina extra.

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- Foi muito amável em ter regressado num período de tempo tão curto, coronel - disse Sir Alan Redmayne, como se ele tivesse tido escolha.
O comandante do SAS tinha recebido um telegrama assim que saíra do Buckingham, em Nova Iorque. Um carro levara-o rapidamente ao Aeroporto JFK, onde embarcara no primeiro voo de regresso a Londres. Em Heathrow, havia outro carro com motorista à sua espera, junto à escada do avião.
- O secretário do Gabinete achou que ia gostar de ver os jornais da manhã - foi a única coisa que o motorista lhe disse, antes de partir para Whitehall.
lá no íntimo, sabíamos que ele ia perder era a manchete do Telegraph. O coronel virou lentamente as páginas, mas não havia referência ao Buckingham nem nenhum artigo assinado por Derek Hart, porque, se houvesse, apesar da vitória esmagadora de Lyndon Johnson sobre Barry Goldwater nas eleições presidenciais, teria seguramente honras de primeira página.
O Buckingham figurava nas páginas centrais do Daily Express, com um relato entusiástico do correspondente do jornal a enaltecer os prazeres de atravessar o Atlântico no paquete de luxo mais recente. O Daily Mail tinha fotos dos seus doze afortunados leitores a posar frente à Estátua da Liberdade. Outros doze bilhetes grátis oferecidos para uma data posterior tinham garantido que não havia referência a qualquer inconveniente causado pela Esquadra Metropolitana.
Uma hora depois, sem ter tido oportunidade de mudar de roupa ou fazer a barba, o coronel Scott-Hopkins estava sentado em frente51
do secretário do Gabinete, no seu escritório do número 10 de Downing Street.
O coronel começou por fazer um relatório pormenorizado, antes de responder às perguntas de Sir Alan.
- Bem, pelo menos, isto ainda teve um lado positivo - disse Sir Alan, pegando numa pasta de couro que tinha debaixo da secretária e pondo-a em cima desta. - Graças à iniciativa dos seus colegas do SAS, localizámos um armazém do IRA em Battersea. Também recuperámos vinte e três mil libras em dinheiro do porta-bagagens do táxi que levou Martinez a Heathrow. Desconfio que Kevin «Quatro Dedos» Rafferty passará em breve a ser conhecido por «Três Dedos», se não conseguir explicar ao comandante da área o que aconteceu ao dinheiro.
- E Martinez? Onde está ele agora?
- O nosso embaixador em Buenos Aires assegurou-me que ele frequenta os poisos habituais. Não me parece que o voltemos a ver, a ele ou aos filhos, em Wimbledon ou Ascott.
- E Doherty e os seus compatriotas?
- Estão de regresso à Irlanda do Norte, desta vez não num paquete de luxo, mas num navio da Royal Navy. Quando aportarem em Belfast, serão transportados de imediato para a prisão mais próxima.
- Sob que acusação?
- Isso ainda não foi decidido - respondeu Sir Alan.
- A senhora Clifton avisou-me que um jornalista do Telegraph tinha andado a bisbilhotar e a fazer demasiadas perguntas.
- Derek Hart. O diabo do homem ignorou a história do empréstimo do FMI que Giles lhe contou, levou a sua avante e entregou o artigo sobre o incidente com a Esquadra Metropolitana assim que chegou a Nova Iorque. Porém, o artigo tinha tantas inconsistências que não foi difícil convencer o editor a ignorá-lo, quanto mais não fosse porque estava muito mais interessado em descobrir como é que Leonid Brejnev, um velho elemento da linha dura, tinha conseguido substituir Khrushchev num golpe de Estado inesperado.
- E como é que foi? - perguntou o coronel.
- Sugiro que leia o Telegraph de amanhã.
- E Hart?
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- Segundo me disseram, vai a caminho de Joanesburgo, para tentar entrevistar um terrorista chamado Nelson Mandela, o que pode vir a revelar-se difícil, já que o homem está preso há mais de dois anos e nenhum outro jornalista teve autorização para se aproximar dele.
- Quer isso dizer que a minha equipa pode ser dispensada do serviço de proteção à família Clifton?
- Ainda não - disse Sir Alan. - Quase de certeza que o IRA vai perder o interesse nas famílias Barrington e Clifton, agora que Don Pedro Martinez já não está por cá para pagar as contas. No entanto, ainda preciso de convencer Harry Clifton a ajudar-me noutro assunto. - O coronel ergueu uma sobrancelha, mas o secretário do Gabinete limitou-se a levantar-se e a dar um aperto de mão ao comandante do SAS. - Vou dando notícias - foi a única coisa que ele disse.
- Já te decidiste? - perguntou Seb ao passarem pelo Boafhouse Café, no lado leste de Central Park.
- Sim - disse Samantha, largando-lhe a mão. Seb virou-se para ela e esperou ansiosamente. - Já escrevi para King's College a dizer que gostaria de aceitar a oferta para fazer o meu doutoramento na Universidade de Londres.
Seb deu um salto no ar, sem esconder o seu contentamento, e gritou a plenos pulmões:
- Uau!
Ninguém se dignou olhar para eles uma segunda vez, mas era preciso ver que estavam em Nova Iorque.
- Isso significa que vais morar comigo, assim que eu encontrar um novo apartamento? Até podíamos escolhê-lo juntos - acrescentou, antes que ela pudesse responder.
- Tens a certeza de que é mesmo isso que queres? - perguntou Samantha baixinho.
- Não podia ter mais certeza - afirmou Seb, tomando-a nos braços. - E como vais ficar em Strand, ao passo que eu trabalho na City, talvez devêssemos procurar uma casa num sítio próximo, como Islington, não?
- Tens a certeza? - repetiu Sam.
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- Tanta como a de que os Bristol Rovers nunca irão ganhar a
Taça.
- Quem são os Bristol Rovers?
- Não nos conhecemos suficientemente bem para te sobrecarregar com os meus problemas - disse Seb, enquanto saíam do parque. - Talvez com o passar do tempo te fale sobre os onze casos perdidos que me estragam normalmente as tardes de sábado - acrescentou ao chegarem à Quinta Avenida.
Quando Harry entrou nos escritórios da Viking Press, uma mulher jovem que reconheceu aguardava-o na receção.
- Bom dia, senhor Clifton - disse a secretária de Harold Guinzburg, avançando para o cumprimentar. Não pôde deixar de se perguntar quantos autores receberiam aquele tipo de tratamento. - O senhor Guinzburg está ansioso por vê-lo.
- Obrigado, Kirsty - disse Harry.
Ela levou-o até ao gabinete do editor, forrado a painéis de carvalho e adornado com fotografias de autores do passado e do presente: Hemingway, Shaw, Fitzgerald e Faulkner. Perguntou-se se seria preciso morrer para a sua fotografia ser acrescentada à coleção Guinzburg.
Apesar de ter quase setenta anos, Guinzburg saltou de trás da secretária assim que Harry entrou na sala. Harry teve de sorrir. Com o seu fato de três peças e o relógio de bolso com corrente de ouro, Guinzburg parecia mais inglês do que os ingleses.
- Então, como está o meu autor favorito? Harry riu-se enquanto trocavam um aperto de mão.
- E quantas vezes por semana cumprimenta autores com essas mesmas palavras? - perguntou, ao mesmo tempo que se sentava na cadeira de couro em frente do editor.
- Por semana? - disse Guinzburg. - Pelo menos, três vezes ao dia, às vezes mais, sobretudo quando não me recordo do nome deles. - Harry sorriu. - No entanto, posso provar que no seu caso é verdade, porque depois de ler William Warwick e o Vigário Despradado, decidi que a primeira edição será de oitenta mil cópias.54
Harry abriu a boca, mas não falou. O seu último romance policial com William Warwick tinha vendido 72 mil exemplares, por isso tinha perfeita consciência do empenho do seu editor.
- Esperemos que não haja muitas devoluções.
- As encomendas pré-lançamento sugerem antes que oitenta mil não serão suficientes. Mas queira desculpar - disse Guinzburg - primeiro diga-me como está Emma? E a viagem inaugural foi um triunfo? Não consegui encontrar qualquer referência, apesar de ter passado o New York Times a pente fino.
- Emma não podia estar melhor e manda-lhe cumprimentos. Neste momento, não me surpreenderia se ela estivesse a polir os metais da ponte de comando. Quanto à viagem inaugural, tenho a sensação de que ficará muito aliviada pelo facto de o New York Times não lhe fazer referência, embora toda esta experiência me tenha dado uma ideia para o próximo livro.
- Sou todo ouvidos.
- Nem pensar - replicou Harry. - Terá de ser paciente, embora saiba bem que não é o seu forte.
- Então, esperemos que as suas novas responsabilidades não interfiram com o seu horário de escrita. Muitos parabéns.
- Obrigado. Embora eu só tenha permitido que o meu nome fosse indicado para presidente do PEN inglês por uma razão.
Guinzburg ergueu uma sobrancelha.
- Quero que um russo chamado Anatoly Babakov seja libertado imediatamente da prisão.
- Porque é que leva essa história tão a peito? - perguntou Guinzburg.
- Se tivesse estado preso por um crime que não cometeu, Harold, acredite que também a levaria a peito. E não se esqueça de que eu estava numa prisão americana, o que, muito sinceramente, deve ser um Holiday Inn comparado com um gulag na Sibéria.
- Nem sequer me consigo lembrar de que é que foi acusado.
- Escreveu um livro.
- Isso é crime na Rússia?
- Sim, se decidirmos contar a verdade sobre o nosso patrão, sobretudo se o nosso patrão for Josef Stalin.
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- Uncle Joe, já me lembro - disse Guinzburg -, mas o livro não chegou a ser publicado.
- Foi publicado, mas Babakov foi preso muito antes de qualquer exemplar chegar às prateleiras das livrarias e, depois de um julgamento fantoche, foi condenado a vinte anos de prisão, sem direito a recurso.
- O que nos faz pensar o que estaria nesse livro para os soviéticos estarem tão determinados a que ninguém o lesse.
- Não faço ideia - disse Harry. - Mas sei que todos os exemplares de Unck Joe foram retirados das prateleiras poucas horas depois da sua publicação. A editora foi fechada, Babakov foi preso e não voltou a ser visto depois do julgamento. Se existir um exemplar algures, tenciono descobri-lo quando for à conferência internacional em Moscovo, em maio.
- Se lhe puser as mãos em cima, adorava mandá-lo traduzir e publicá-lo aqui, pois posso garantir que não só seria um best-seler, como também revelaria finalmente Stalin como um homem tão pérfido quanto Hitler. Mas tenha em atenção que a Rússia é um palheiro muito grande para andar à procura dessa agulha em particular.
- É verdade, mas estou decidido a descobrir o que Babakov tem a dizer. Não se esqueça de que ele foi o intérprete pessoal de Stalin durante onze anos, por isso há poucas pessoas que conheçam o regime tão bem quanto ele... embora nem mesmo ele tenha previsto a reação do KGB quando decidiu publicar a sua versão do que testemunhara em primeira mão.
- E agora que os antigos aliados de Stalin afastaram Khrushchev e voltaram ao poder, sem dúvida que alguns deles têm coisas que preferem manter escondidas.
- Como a verdade sobre a morte de Stalin - acrescentou Harry.
- Nunca o tinha visto tão enervado com o que quer que fosse - disse Guinzburg. - Mas talvez não seja sensato da sua parte espicaçar o urso. A linha dura do novo regime parece ter pouca consideração pelos direitos humanos, seja qual for o país de origem.
- De que serve ser presidente do PEN se não puder expressar as minhas opiniões?56
O relógio na prateleira por trás da secretária de Guinzburg bateu as doze horas.
- Porque é que não vamos almoçar no meu clube e aproveitamos para falar de coisas menos controversas? Por exemplo, o que é que Sebastian tem feito.
- Acho que está prestes a pedir uma americana em casamento.
- Sempre soube que aquele rapaz era esperto - disse Guinzburg.
Enquanto Samantha e Seb admiravam as montras das lojas na Quinta Avenida e Harry saboreava um bife de alcatra no Harvard Club com o seu editor, um táxi amarelo parou à porta de uma bonita casa de pedra na esquina da 64th com a Park.
Emma saiu, carregando uma caixa de sapatos com o logótipo «Crockett & Jones» na tampa. Lá dentro, estava um par de sapatos de couro preto tamanho 43, feitos por medida, que ela sabia que serviriam ao primo Alistair na perfeição, pois ele mandava sempre fazer os sapatos em Jermyn Street.
Quando Emma olhou para a aldraba reluzente da porta, lembrou-se da primeira vez que subira aqueles degraus. Uma jovem mulher, ainda mal saída da adolescência, tremia que nem varas verdes e só tinha vontade de fugir. Mas tinha gasto todo o seu dinheiro para chegar à América e não sabia a quem mais recorrer em Nova Iorque se queria encontrar Harry, que estava enfiado numa prisão americana por causa de um homicídio que não cometera. Depois de se ter encontrado com a tia-avó Phyllis, Emma passara mais de um ano sem voltar a Inglaterra, até descobrir que Harry já não estava na América.
Desta vez, subiu os degraus com mais confiança, bateu a aldraba com firmeza, recuou e esperou. Ela não marcara encontro para ver o primo porque não tinha dúvidas de que ele estaria em casa. Embora tivesse abandonado recentemente a posição de sócio principal da Simpson, Albion & Stuart, não era um animal de campo, nem mesmo aos fins de semana. Alistair era genuinamente nova-iorquino. Tinha nascido ali, naquela casa, e seria certamente ali que morreria.
Quando a porta se abriu passados alguns instantes, Emma ficou surpreendida ao ver um homem que reconheceu de imediato, embora
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não o visse há mais de vinte anos. Vestia casaco preto, calças às riscas, camisa branca e gravata cinzenta. Algumas coisas nunca mudam.
- Prazer em vê-la, senhora Clifton - disse ele, como se ela costumasse passar por lá todos os dias.
Emma sentiu-se envergonhada enquanto se esforçava por recordar o nome dele, sabendo que Harry nunca o teria esquecido.
- Igualmente - arriscou ela. - Gostava de pôr a conversa em dia com o meu primo Alistair, se ele estiver em casa.
- Receio que não seja possível, minha senhora - disse o mordomo. - O senhor Stuart foi ao funeral do senhor Benjamin Rutledge, um antigo sócio da firma, e só deve regressar do Connecticut amanhã à noite.
Emma não conseguiu esconder a sua deceção.
- Talvez queira fazer o favor de entrar e eu posso fazer-lhe um chá. Earl Grey, se bem me lembro?
- É muito amável da sua parte - disse Emma -, mas eu tenho de regressar ao navio.
- Claro. Espero que a viagem inaugural do Buckingham tenha sido um sucesso.
- Melhor do que eu podia esperar - admitiu ela. - Poderá fazer-me a gentileza de transmitir os meus melhores votos a Alistair e de lhe dizer o quanto lamento não o ter encontrado?
- Terei muito gosto em fazê-lo, senhora Clifton.
O mordomo fez uma pequena vénia, antes de fechar a porta.
Emma desceu os degraus e começou à procura de um táxi, quando de repente se deu conta que continuava a segurar a caixa de sapatos. Envergonhada, subiu uma segunda vez os degraus e bateu a aldraba um pouco mais timidamente.
Passados instantes, a porta abriu-se de novo e o mordomo voltou a aparecer.
- Minha senhora? - disse ele, brindando-a com o mesmo sorriso caloroso.
- Peço imensa desculpa, mas esqueci-me de lhe dar esta prenda para Alistair.
- Que amabilidade a sua lembrar-se da sapataria preferida do senhor Stuart - disse ele, enquanto Emma lhe entregava a caixa. - Sei o quanto ele vai apreciar a sua gentileza.
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Emma continuou ali especada, ainda a tentar inutilmente recordar-se do nome dele.
- Espero que a viagem de regresso a Avonmouth seja igualmente bem-sucedida, senhora Clifton.
Mais uma vez, fez uma vénia e fechou silenciosamente a porta.
- Obrigada, Parker - disse ela.
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5
Quando Bob Bíngham acabou de se vestir, observou-se no espelho comprido da parte de dentro da porta do guarda-fatos. Era pouco provável que o seu smoking assertoado de lapela larga voltasse a estar na moda num futuro próximo, como a esposa lhe recordava frequentemente. Ele tinha-lhe feito notar que a farpela fora suficientemente boa para o pai, quando este era presidente da Pasta de Peixe Bingham, portanto devia ser suficientemente boa para ele.
Priscilla não concordava, mas a verdade é que ultimamente havia pouca coisa em que estivessem de acordo. Bob continuava a culpar a sua grande amiga, Lady Virgínia Fenwick, pela morte prematura de Jessica Clifton e pelo facto de o filho Clive, que estava noivo de Jessica na altura, não ter voltado a Mablethorpe Hall desde esse dia fatídico. A esposa era ingénua e extasiada com tudo o que tivesse que ver com Virgínia, mas ele ainda vivia na esperança de que Priscilla acabasse por cair em si e ver aquela maldita mulher como realmente era, o que lhes permitiria voltar a ser uma família. Mas receava que isso ainda levasse algum tempo e, de qualquer forma, Bob tinha problemas mais prementes em que pensar. Esta noite, estariam sob escrutínio público, como convidados à mesa da presidente. Receava que Priscilla não fosse capaz de manter um comportamento exemplar por mais de alguns minutos. Só esperava que conseguissem regressar incólumes à cabina.
Bob admirava Emma Clifton, «a Boadiceia de Bristol», como era conhecida tanto pelos amigos como pelos inimigos. Desconfiava que, se ela tivesse conhecimento da alcunha, a usaria como distintivo de honra.
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Emma tinha enfiado um pour mémoire debaixo da porta da cabina deles, naquele mesmo dia, a sugerir que se encontrassem no Queen's Lounge por volta das 19h30, antes de irem jantar. Bob olhou para o relógio. Já faltavam dez para as oito e da esposa nem sinal, embora ouvisse o som de água a correr na casa de banho. Começou a andar de um lado para o outro na cabina, com dificuldade em esconder a sua irritação.
Bob tinha consciência de que Lady Virgínia instaurara um processo por difamação contra a presidente. Não era algo que fosse fácil esquecer, já que estava sentado atrás dela quando se dera a troca de palavras. Durante o tempo reservado às perguntas na assembleia-geral daquele ano, Lady Virgínia usara da palavra para saber se era verdade que um dos diretores da Barrington's tinha vendido todas as suas ações com a intenção de baixar a cotação da companhia. Claro que se referia ao pequeno estratagema de Cedric Hardcastle para salvar a companhia de uma aquisição hostil por parte de Don Pedro Mardnez.
Emma respondera de forma enérgica, recordando a Lady Virgínia que tinha sido o seu representante no conselho de administração, o major Fisher, que vendera as suas ações e as recomprara quinze dias depois com o intuito de manchar a reputação da companhia, ao mesmo tempo que conseguia um bom lucro para a sua cliente.
- Vai ter notícias do meu advogado - foi a única coisa que Virgínia disse sobre o assunto e, passada uma semana, assim aconteceu.
Bob não tinha dúvidas de qual o partido que a esposa tomaria, se a ação alguma vez chegasse a tribunal. Caso Priscilla ficasse a par durante o jantar de alguma informação útil que pudesse ajudar a causa da amiga, tinha a certeza de que ela seria transmitida à equipa de advogados de Virgínia passados instantes de terem desembarcado em Avonmouth. E ambas as partes estavam cientes de que, se Emma perdesse a ação, não seria apenas a sua reputação que ficaria manchada, como também teria seguramente de se demitir da presidência da Barrington's.
Ele não tinha contado nada a Priscilla sobre o IRA ou sobre o que se discutira durante a reunião de emergência naquela primeira manhã da viagem, para além de repetir a história acerca da Esquadra Metropolitana, e, embora fosse óbvio que ela não acreditava nele,
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priscilla apenas ficara a saber que Sebastian tinha sido nomeado para o conselho de administração.
Depois de passar um dia às compras em Nova Iorque, o que iria custar a Bob várias caixas de pasta de peixe, não voltou a falar no assunto. Contudo, Bob receava que ela pudesse falar nisso a Emma durante o jantar e, se o fizesse, ele teria de mudar habilmente de assunto. Graças a Deus que Lady Virgínia não levara a cabo a ameaça de os acompanhar na viagem, caso contrário não teria descansado enquanto não descobrisse exatamente o que tinha acontecido às primeiras horas daquela primeira noite.
Priscilla lá acabou por sair da casa de banho, mas já passavam dez minutos das oito.
- Talvez seja melhor jantarmos - sugeriu Emma.
- Mas os Bingham não vinham jantar connosco? - indagou Harry.
- Sim - respondeu Emma, olhando para o relógio. - Há mais de meia hora.
- Não te abespinhes, querida - disse Harry com firmeza. - Tu és a presidente da companhia e não deves deixar a Priscilla perceber que te deixou aborrecida, pois isso é precisamente o que ela quer. - Emma preparava-se para protestar quando ele acrescentou: - E vê se não dizes nada durante o jantar que Virgínia possa usar em tribunal, pois toda a gente sabe de que lado está Priscilla Bingham.
Com todos os outros problemas que Emma enfrentara na última semana, pusera de parte o possível processo judicial e, como não tinha notícias dos advogados de Virgínia há vários meses, até começara a pensar se ela teria desistido discretamente da ação. O problema era que Virgínia não fazia nada de forma discreta.
Emma estava a fazer o seu pedido ao chefe de mesa quando Harry se levantou.
- Peço imensa desculpa por tê-los feito esperar - disse Priscilla - mas perdi a noção do tempo.
- Não há problema - retorquiu Harry, enquanto puxava a cadeira para trás e esperava até ela estar confortavelmente instalada.62
- Talvez devêssemos fazer os nossos pedidos - disse Emma desejando claramente lembrar à convidada o quanto os fizera esperar.
Priscilla virou demoradamente as páginas da ementa encadernada a pele e mudou de ideias várias vezes até finalmente se decidir. Depois de o empregado de mesa ter anotado o seu pedido, Harry perguntou-lhe se tinha gostado do dia que passara em Nova Iorque.
- Oh, sim, há tantas lojas maravilhosas na Quinta Avenida com muito mais variedade do que em Londres, embora tenha achado a experiência bastante cansativa. Na verdade, quando voltei para o navio, caí simplesmente na cama e adormeci. E o senhor Clifton? Também conseguiu comprar alguma coisa?
- Não, tive uma reunião com os meus editores, enquanto Emma foi à procura de um primo que não via há muito tempo.
- Pois claro. Tinha-me esquecido de que o senhor escreve romances. Eu não consigo ter tempo para ler livros - continuou Priscilla, enquanto lhe punham à frente uma tigela de sopa de tomate fumegante.
- Eu não pedi sopa - ralhou ela, olhando para o empregado. - Pedi salmão fumado.
- Peço desculpa, minha senhora - disse o empregado, que levou a sopa. Enquanto ele ainda estava suficientemente perto para poder ouvi-la, Priscilla disse: - Suponho que deva ser muito difícil recrutar pessoal experiente para um navio de cruzeiro.
- Espero que não se importe que comecemos a comer - disse Emma, enquanto pegava na colher de sopa.
- E encontrou o seu primo? - perguntou Bob.
- Infelizmente, não. Estava de visita ao Connecticut, por isso acabei por ir ter com Harry e tivemos a sorte de arranjar dois bilhetes para um concerto à tarde, no Lincoln Center.
- Quem estava a atuar? - perguntou Bob, enquanto colocavam um prato de salmão fumado à frente de Priscilla.
- Leonard Bernstein, que dirigiu a abertura da sua opereta Candide antes de tocar um concerto para piano de Mozart.
- Não sei como é que arranjam tempo para isso - disse Priscilla entre garfadas.
Emma ia responder-lhe que não passava a vida a fazer compras, mas viu Harry franzir-lhe o sobrolho.
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- Uma vez, vi Bernstein a dirigir a Orquestra Sinfónica de
Londres no Royal Festival Hall - disse Bob. - Brahms. Magnífico.
- E acompanhou Priscilla na sua esgotante ida às compras na Quinta Avenida? - perguntou Emma.
- Não, andei pelo Lower East Side, para ver se valia a pena tentar entrar no mercado americano.
- E qual foi a sua conclusão? - perguntou Harry.
- Os americanos ainda não estão prontos para a pasta de peixe Bingham.
- Então, quais são os países que estão? - perguntou Harry.
- Para dizer a verdade, apenas a Rússia e a índia. E ambos têm os seus problemas.
- Por exemplo? - perguntou Emma, parecendo genuinamente interessada.
- Os russos não gostam de pagar as suas contas e os indianos, muitas vezes, não conseguem fazê-lo.
- Talvez o problema esteja no facto de ter só um produto - sugeriu Emma.
- Pensei em diversificar, mas...
- Será que podemos falar de outra coisa sem ser pasta de peixe? - interrompeu Priscilla. - No fim de contas, estamos de férias.
- Claro - respondeu Harry. - Como está o Clive? - perguntou, arrependendo-se de imediato.
- Está bem, obrigado - disse Bob, intervindo rapidamente. - E vocês devem estar os dois tão orgulhosos por Sebastian ter sido convidado a entrar para o conselho de administração...
Emma sorriu.
- Bem, isso não surpreende ninguém - exclamou Priscilla. - Convenhamos que, quando a nossa mãe é a presidente da companhia e a família detém a maioria do capital, sinceramente, acho que podiam nomear um cocker spaniel para o conselho que os outros diretores ficavam a abanar a cauda.
Harry pensou que Emma estava prestes a explodir, mas felizmente tinha a boca cheia, por isso seguiu-se um longo silêncio.
- Está malpassado? - perguntou Priscilla quando lhe puseram o bife à frente.64
O empregado consultou o pedido.
- Não, minha senhora. Está no ponto.
- Eu pedi malpassado. Não podia ter sido mais clara. Leve este e tente novamente.
O empregado retirou destramente o prato sem qualquer comentário, enquanto Priscilla se virava para Harry.
- Consegue ganhar a vida como escritor?
- É difícil - admitiu Harry -, quanto mais não seja porque há excelentes autores por aí. No entanto...
- De qualquer forma, casou com uma mulher rica, por isso também não é muito importante, pois não?
Isto calou Harry, mas não Emma.
- Bem, finalmente descobrimos alguma coisa em comum, Priscilla.
- Concordo - disse Priscilla, sem hesitar. - Mas eu sou uma mulher antiquada e fui educada para acreditar que a ordem natural das coisas é o homem tomar conta da mulher. De alguma forma, não me parece certo quando sucede o contrário. - Bebeu um gole de vinho e Emma preparava-se para lhe responder quando ela acrescentou com um sorriso amigável: - Vão ver que este vinho sabe a rolha.
- Eu achei-o excelente - disse Bob.
- O querido Robert ainda não é capaz de distinguir entre um clarete e um borgonha. Sempre que damos um jantar, cabe-me a mim selecionar o vinho. Empregado! - gritou ela, virando-se para o escanção. - Precisamos de outra garrafa de Merlot.
- Sim, com certeza, minha senhora.
- Não creio que vá muitas vezes ao norte de Inglaterra - diss Bob.
- Não vou com grande frequência, não - replicou Emma. Mas há um ramo da minha família que é oriundo das Terras Altas.
- A minha também - disse Priscilla. - O meu nome de nas cimento é Campbell.
- Creio que isso fica nas Terras Baixas - corrigiu Emma, enquanto Harry lhe dava um pontapé por baixo da mesa.
- Deve ter razão, como sempre - concordou Priscilla. - Por isso, sei que não se irá importar se lhe fizer uma pergunta pessoal.
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Bob pousou a faca e o garfo e olhou ansiosamente para a esposa. - O que é que aconteceu realmente na primeira noite da viagem?Eu sei muito bem que da Esquadra Metropolitana nem sinal!
- Como é que podes saber isso se estiveste sempre a dormir? - disse Bob.
- Então, o que acha que aconteceu, Priscilla? - perguntou Emma recorrendo a uma tática que o irmão usava frequentemente quando não queria responder a uma pergunta.
- Há passageiros que dizem que uma das turbinas explodiu.
- A casa das máquinas está aberta para que os passageiros a possam inspecionar a qualquer altura - redarguiu Emma. - Na verdade até creio que houve uma visita guiada bastante participada esta manhã.
- Também ouvi dizer que explodiu uma bomba na vossa cabina - disse Priscilla, impávida e serena.
- É muito bem-vinda, se quiser visitar a nossa cabina a qualquer altura, para poder corrigir o boateiro mal informado que sugeriu tal coisa.
- E houve outra pessoa que me disse - persistiu Priscilla - que um grupo de terroristas irlandeses embarcou no navio por volta da meia-noite...
- Acabando por descobrir que estávamos lotados e, como não havia nenhuma cabina disponível, foram obrigados a desembarcar e a regressar a nado até Belfast?
- E também ouviu falar na história dos marcianos que vieram do espaço e aterraram dentro de uma das nossas chaminés? - continuou Harry, ao mesmo tempo que o empregado de mesa voltava a aparecer com um bife malpassado.
Priscilla limitou-se a olhá-lo de relance, antes de se levantar do lugar.
- Estão todos a esconder alguma coisa - disse ela, largando o guardanapo sobre a mesa - e eu tenciono descobrir o que é antes de chegarmos a Avonmouth.
Os três ficaram a observá-la enquanto ela deslizava serenamente para fora da sala de jantar.
- Peço desculpa - disse Bob. - Ainda correu pior do que eu receava.66
- Não se preocupe com isso - assegurou Harry. - A minha mulher ressona.
- Não ressono nada - disse Emma, enquanto os dois homens desatavam a rir.
- Daria metade da minha fortuna para ter a relação que vocês têm.
- Aceito - disse Harry. Desta vez, foi Emma quem lhe deu um pontapé por baixo da mesa.
- Bem, estou grata por uma coisa, Bob - disse Emma, voltando à sua voz de presidente. - É óbvio que a sua esposa não faz ideia do que realmente aconteceu na nossa primeira noite no mar. Mas se ela alguma vez descobrir...
- Gostaria de abrir esta reunião dando as boas-vindas ao meu filho Sebastian Clifton ao conselho de administração.
Ouviram-se ecos de apoiado por todo o salão de baile.
- Embora esteja imensamente orgulhosa do seu feito, alcançado quando ainda é tão jovem, sinto que devo avisar o senhor Clifton de que o resto do conselho irá observar os seus contributos com interesse considerável.
- Obrigado, senhora presidente - disse Sebastian -, tanto pela receção calorosa, como pelos seus úteis conselhos.
As palavras de Seb fizeram sorrir vários membros do conselho. Tinha a confiança da mãe, aliada à simpatia do pai.
- Continuando - disse a presidente -, permitam-me que faça o ponto da situação sobre aquilo que ficou conhecido como o incidente da Esquadra Metropolitana. Embora ainda não nos possamos dar ao luxo de ficar descansados, parece que os nossos piores receios não se concretizaram. Não houve nada de muito importante que chegasse à imprensa dos dois lados do Atlântico, quanto mais não fosse, segundo me disseram, por causa de uma ajudinha do Número Dez. Os três irlandeses que foram presos na madrugada da nossa primeira noite no mar já não se encontram a bordo. Depois de termos aportado e de todos os passageiros terem desembarcado, foram discretamente transferidos para uma fragata da Royal Navy, que vai agora a caminho de Belfast.
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A hélice danificada, embora não tenha voltado à sua capacidade total, ainda conta com cerca de sessenta por cento das rotações e será substituída assim que chegarmos a Avonmouth. A equipa de manutenção trabalhou noite e dia no casco danificado enquanto estávamos parados em Nova Iorque e fez um trabalho excecional. Só um marinheiro experiente seria capaz de detetar sinais de reparação. Quando estivermos em Avonmouth, serão efetuados trabalhos complementares no casco. Prevejo que, quando o Buckingham partir na sua segunda viagem para Nova Iorque, daqui a oito dias, ninguém saberá que tivemos um problema. Contudo, creio que seria imprudente da nossa parte discutir o incidente fora da sala do conselho e, caso sejam questionados sobre o assunto, mantenham-se fiéis à história da Esquadra Metropolitana.
- Vamos participar o sinistro à companhia de seguros? - perguntou Knowles.
- Não - respondeu Emma com firmeza - porque, se o fizéssemos, isso iria sem dúvida suscitar uma série de perguntas a que não quero responder.
- Entendido, senhora presidente - disse Dobbs. - Mas quanto é que o incidente com a Esquadra Metropolitana nos custou?
- Ainda não tenho um número exato para apresentar ao conselho, mas disseram-me que pode chegar às sete mil libras.
- Isso seria um pequeno preço a pagar, dadas as circunstâncias - interveio Bingham.
- Concordo. Contudo, é escusado fazer qualquer referência ao incidente da Esquadra Metropolitana nas atas deste conselho ou revelá-lo aos acionistas.
- Senhora presidente - disse o secretário da companhia -, vou ter de fazer referência ao sucedido.
- Então, fique-se pela explicação da Esquadra Metropolitana, senhor Webster, e não faça circular nada sem a minha aprovação.
- Se assim o diz, senhora presidente.
- Passemos a algumas notícias mais positivas. - Emma virou uma página do seu dossiê. - O Buckingham tem cem por cento de ocupação para a viagem de regresso a Avonmouth e já temos setenta e dois por cento das cabinas reservadas para a segunda viagem a Nova Iorque.68
- Isso são boas notícias - disse Bingham. - No entanto, não devemos esquecer as cento e oitenta e quatro cabinas gratuitas que oferecemos como forma de compensação e que serão certamente ocupadas em alguma ocasião futura.
- Em alguma ocasião futura, é isso que importa, senhor Bingham. Se forem distribuídas uniformemente ao longo dos próximos dois anos, terão pouco efeito no nosso fluxo de caixa.
- Mas receio que haja outra coisa que é capaz de afetar o nosso fluxo de caixa. E o que é pior, não fomos nós que criámos o problema.
- Está a referir-se a quê, senhor Anscott? - perguntou Emma.
- Tive uma conversa muito interessante com o seu irmão à saída e achei-o muito confiante em relação às consequências de o país ter de pedir um empréstimo de mil milhões e meio de libras ao FMI, de forma a parar a depreciação da libra. Ele também mencionou a possibilidade de o governo criar um imposto de setenta por cento sobre todas as empresas, assim como um imposto sobre o rendimento de noventa por cento a quem ganhar mais de trinta mil libras por ano.
- Santo Deus! - disse o almirante. - Será que terei dinheiro para pagar o meu funeral?
- E a última ideia do chanceler do Tesouro - prosseguiu Knowles -, que acho quase inconcebível, é que nenhum empresário ou turista será autorizado a sair do país com mais de cinquenta libras em dinheiro.
- Isso não deixará as pessoas tentadas a viajar para o estrangeiro - concluiu Dobbs de forma algo acalorada.
- Creio que sou capaz de ter encontrado uma forma de contornar o problema - disse Sebastian.
O resto do conselho virou-se para o seu mais recente elemento.
- Tenho feito alguma pesquisa sobre o que os nossos rivais andam a fazer, e parece que os proprietários do barco a vapor New York e do France arranjaram uma solução para os seus problemas fiscais. - Seb tinha captado a atenção do conselho. - O New York já não está registado como sendo propriedade de uma companhia americana, apesar de continuar sediado em Manhattan, juntamente com a grande69
maioria dos seus empregados. Para efeitos fiscais, a companhia está registada no Panamá. Na verdade, se olharem com atenção para esta imagem - disse Seb, pondo uma grande fotografia do New York no centro da mesa -, verão uma pequena bandeira do Panamá arvorada ! à popa, apesar de a bandeira americana continuar presente em tudo o que está a bordo, desde os pratos das salas de jantar aos tapetes dos
camarotes.
- E os franceses estão a fazer a mesma coisa? - perguntou owles.
- Com toda a certeza, mas com uma subtil diferença gaulesa. France arvorou pavilhão argelino, mas desconfio que isso não passa
de uma concessão política.
Outra fotografia, desta vez do grande paquete francês, passou de mão em mão entre os pares de Seb.
- E isto é legal? - perguntou Dobbs.
- Não há nada que qualquer dos governos possa fazer em relação ao assunto - disse Seb. - Ambos os navios estão no mar mais de trezentos dias por ano e, no que aos passageiros diz respeito, tudo
continua exatamente igual ao que sempre foi.
- Isso não me soa bem - declarou o almirante. - Não me parece correto.
- O nosso primeiro dever é para com os acionistas - disse Bob aos seus colegas -, portanto, será que posso sugerir que Clifton apresente um documento escrito sobre o assunto, para podermos discuti-lo de forma mais pormenorizada na próxima reunião do conselho?
- Boa ideia - disse Dobbs.
- Não sou contra a ideia - disse Emma -, mas o nosso diretor financeiro descobriu uma solução alternativa que alguns de vós irão achar mais interessante.
Emma acenou em direção a Michael Carrick.
- Obrigado, senhora presidente. Na verdade, é muito simples. Se avançarmos com a construção de um segundo navio e aproveitarmos a opção de encomenda renovada proposta pela Harland and Wolff dentro do período especificado no contrato, evitaremos pagar IRC nos próximos quatro anos.70
- Deve haver algum senão - disse Knowles.
- Aparentemente, não - retorquiu Emma. - Qualquer companhia pode requerer benefícios fiscais sobre um projeto de capital desde que mantenha o preço acordado no contrato original.
- Porque é que o governo havia de concordar com isso, quando as outras medidas que propõe são tão draconianas? - indagou Maynard.
- Porque ajuda a manter baixos os números do desemprego - respondeu Seb. - Coisa que o Partido Trabalhista prometeu fazer no seu último manifesto.
- Então, prefiro essa solução - disse Dobbs. - Mas quanto tempo temos até decidir se aceitamos, ou não, a proposta da Harland and Wolff?
- Pouco mais de cinco meses - disse Carrick.
- Tempo mais do que suficiente para tomar uma decisão - concluiu Maynard.
- Mas isso não resolve a restrição das cinquenta libras imposta aos nossos passageiros - argumentou Anscott.
Seb não pôde deixar de sorrir.
- O tio Giles chamou-me a atenção para o facto de não haver nada que impeça um passageiro de descontar um cheque enquanto está a bordo.
- Mas nós não temos serviços bancários no Buckingham - lembrou-lhe Dobbs.
- O Farthings teria todo o prazer em abrir uma sucursal a bordo - assegurou Seb.
- Então, sugiro que essa proposta seja igualmente incluída no relatório do senhor Clifton - disse Anscott - e que quaisquer recomendações sejam feitas circular por todos os membros do conselho antes da próxima reunião.
- Concordo - continuou Emma. - Então, a única coisa que precisamos de decidir agora é quando é que essa reunião terá lugar.
Como de costume, perderam um tempo considerável a escolher uma data que fosse conveniente para todos os membros do conselho.
- E esperemos que - disse Emma -, da próxima vez que nos reunirmos, o incidente com a Esquadra Metropolitana não passe de folclore. Mais algum assunto? - perguntou, olhando à volta da mesa.
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- Sim, senhora presidente - disse Knowles. - Pediu-nos que pensássemos em possíveis candidatos para o lugar vago no conselho. -- Quem é que tem em mente?
- Desmond Mellor.
- O homem que fundou a companhia Bristol Bus?
- Esse mesmo, mas vendeu-a à National Buses no ano passado. Conseguiu um lucro considerável e agora não tem nada para fazer.
- E tem um grande conhecimento do setor dos transportes - interveio Anscott, revelando que ele e Knowles estavam a agir em parceria.
- Então, talvez seja melhor convidar o senhor Mellor para vir falar comigo durante a próxima semana - sugeriu Emma, antes que qualquer dos dois pudesse levar o assunto a votação.
Knowles concordou com relutância.
Quando a reunião dispersou, Emma ficou encantada ao ver o número de diretores que iam ter com Sebastian e lhe davam as boas-vindas ao conselho. De tal maneira que teve de esperar algum tempo para poder trocar algumas palavras em particular com o filho.
- O teu plano funcionou na perfeição - sussurrou ela.
- Sim, mas ficou óbvio que a sua ideia é mais apelativa do que a minha para a maior parte do conselho. Mas, mãe, ainda não estou convencido de que devamos arriscar um investimento tão grande a construir outro navio. Se as perspetivas financeiras para a Grã-Bretanha forem tão más quanto o tio Giles sugere, podemos acabar com dois perus nas mãos no próximo Natal. E, se for esse o caso, será o conselho de administração da Barrington's que se verá num grande assado.
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- Foi muito amável da sua parte arranjar tempo para vir falar comigo, senhor Clifton - disse o secretário do Gabinete, conduzindo Harry até à pequena mesa oval, ao centro da sala -, sobretudo sabendo como anda ocupado.
Harry ter-se-ia rido se não estivesse sentado no número 10 de Downing Street, em frente de um dos homens mais ocupados do país. Uma secretária apareceu e pôs uma chávena de chá à frente de Harry, como se ele fosse um cliente que tivesse entrado no café habitual.
- Espero que a sua esposa e o seu filho se encontrem bem...
- Estão bem, obrigado, Sir Alan. - Teria indagado sobre a família do secretário do Gabinete, mas não fazia ideia se ele a tinha. Decidiu dispensar a conversa fiada. - Presumo que tenha sido Martinez quem esteve por trás do ataque bombista, não? - arriscou perguntar, depois de beber um gole de chá.
- Efetivamente, foi, mas como está agora de regresso a Buenos Aires e perfeitamente ciente de que se ele ou qualquer dos filhos voltar a pôr os pés em Inglaterra será imediatamente preso, não creio que volte a incomodá-los.
- E os seus amigos irlandeses?
- Eles nunca foram amigos dele. Só estavam interessados no seu dinheiro e, mal a fonte secou, prepararam-se para o liquidar. Mas como o cabecilha e dois dos seus comparsas estão agora atrás das grades, imagino que não teremos notícias deles durante algum tempo.
- Descobriu se havia outros operacionais do IRA a bordo do navio?
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- Dois. Mas não voltaram a ser vistos. Os serviços secretos dizem que estão escondidos algures em Nova Iorque e que não se espera que regressem a Belfast num futuro próximo.
- Estou muito grato, Sir Alan - disse Harry, presumindo que o encontro terminara.
O secretário do Gabinete fez um aceno de cabeça, mas, quando Harry se preparava para se levantar, disse:
- Devo confessar, senhor Clifton, que não era só por isso que queria falar consigo.
Harry voltou a recostar-se e tratou de se concentrar. Se aquele homem queria alguma coisa, era bom ficar de olhos bem abertos.
- Uma vez, o seu cunhado contou-me algo que me custou a acreditar. Talvez queira fazer a gentileza de me fazer a vontade, para ver se ele estava a exagerar.
- Os políticos têm tendência a fazer isso.
Sir Alan não respondeu, limitando-se a abrir um dossiê à sua frente, de onde tirou uma folha que fez deslizar sobre a mesa, dizendo:
- Quer fazer o favor de ler isto lentamente até ao fim?
Harry olhou para um memorando que tinha cerca de trezentas palavras, contendo vários nomes de locais e pormenores sobre os movimentos das tropas nos condados em torno de Londres, com as patentes de todos os oficiais superiores envolvidos. Leu os sete parágrafos, como solicitado, e quando terminou levantou a cabeça e fez um breve aceno. O secretário do Gabinete recuperou a folha de papel e substituiu-a por um bloco de linhas e uma esferográfica.
- Quer agora fazer a gentileza de escrever o que acabou de ler?
Harry decidiu alinhar no desafio. Pegou na esferográfica e começou a escrever. Quando acabou, entregou o bloco ao secretário do Gabinete, que o comparou com o original.
- Então, sempre é verdade - disse ele passados alguns momentos. - É uma daquelas raras pessoas com memória fotográfica. Embora tenha cometido um erro.
- Godalming em vez de Godmanchester? - perguntou Harry. - Só queria ter a certeza de que estava atento.
Um homem que não se impressionava com facilidade estava impressionado.
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- Então, está a pensar recrutar-me para jogar pela sua equipa no concurso de perguntas e respostas no bar que frequenta? - inquiriu Harry.
Sir Alan não sorriu.
- Não, receio que seja um pouco mais grave do que isso, senhor Clifton. Em maio, vai viajar para Moscovo na qualidade de presidente do PEN inglês. O nosso embaixador lá, Sir Humphrey Trevelyan, entrou na posse de um documento tão sensível que nem sequer pode correr o risco de enviá-lo na mala diplomática.
- Posso perguntar o que contém?
- É uma lista exaustiva do nome e localização de todos os espiões russos que operam no Reino Unido. Sir Humphrey nem sequer a mostrou ao seu encarregado de negócios. Se a pudesse trazer gravada na memória, poderíamos desmantelar toda a rede de espiões soviética neste país, e como não haveria documentos envolvidos, não correria qualquer perigo.
- Estou disposto a fazer isso - disse Harry, sem hesitar. - Mas espero algo em troca.
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance.
- Quero que o ministro dos Negócios Estrangeiros faça um protesto oficial relativamente à detenção de Anatoly Babakov.
- O intérprete de Stalin? Ele não escreveu um livro que foi proibido? Como é que se chamava...
- Uncle Joe - disse Harry.
- Ah, sim, claro. Bem, farei o que puder, mas não posso garantir nada.
- E também tem de fazer uma declaração oficial a todas as agências de imprensa nacionais e estrangeiras no dia antes de eu voar para a Rússia.
- Não posso prometer-lhe isso, mas pode ter a certeza de que vou recomendar que o ministro dos Negócios Estrangeiros apoie a sua campanha a favor da libertação do senhor Babakov.
- Tenho a certeza que sim, Sir Alan. Mas se não me puder ajudar com a situação de Babakov - e aqui fez uma pausa - pode pôr-se a andar e encontrar outra pessoa para ser seu moço de recados.
As palavras de Harry tiveram exatamente o efeito que ele esperava. O secretário do Gabinete ficou atónito.
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Emma levantou os olhos quando a secretária entrou no gabinete acompanhada por um homem de quem soube que não iria gostar assim que lhe apertou a mão. Ela encaminhou o senhor Mellor para duas cadeiras confortáveis junto à lareira.
- É um grande prazer conhecê-la, finalmente, senhora Clifton . - disse ele. - Ouvi dizer e li tanta coisa sobre si ao longo dos anos...
- E eu tenho lido muita coisa sobre si recentemente, senhor Mellor - disse Emma, ao mesmo tempo que se sentava e olhava mais atentamente para o homem sentado à sua frente. Sabia, por um perfil que lera no Financial Times, que Desmond Mellor tinha abandonado a escola aos dezasseis anos e começado a trabalhar como empregado de bilheteira na Cooks Travei. Aos vinte e três anos, fundara a sua própria companhia, que vendera recentemente por cerca de dois milhões de libras, tendo tido várias dificuldades bem documentadas ao longo desse tempo. Mas Emma admitia que isso era o que acontecia com a maior parte dos empresários de sucesso. Estava preparada para o seu charme, mas ficou surpreendida ao ver que ele tinha uma aparência muito mais jovem do que os seus quarenta e oito anos. Estava claramente em forma, sem quilos a mais que precisasse de perder, e tinha de concordar com a sua secretária quando dizia que ele era um homem bem-parecido, mesmo que a maneira de vestir não tivesse acompanhado o seu sucesso financeiro.
- Nem tudo coisas más, espero - disse ele com uma gargalhada autodepreciativa.
- Bem, a fazer fé na sua mais recente oferta de aquisição, senhor Mellor, não há dúvida de que é implacável.
- Presentemente, as coisas estão difíceis, senhora Clifton, como estou certo que saberá, por isso, às vezes, é preciso cobrir a retaguarda, se me permite a expressão.
Emma pensou se poderia arranjar uma desculpa para abreviar o encontro, apesar de ter dado instruções à secretária para não ser incomodada durante trinta minutos, pelo menos.
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- Tenho acompanhado as atividades do seu marido em nome de Babakov - disse Mellor. - Parece que também é capaz de ter de cobrir a retaguarda - acrescentou ele com um sorriso.
- Harry vive intensamente o drama do senhor Babakov.
- Tal como todos nós. Mas tenho de perguntar: será que vale a pena? Esses russos parecem estar-se nas tintas para os direitos humanos!
- Isso não impedirá Harry de lutar por algo em que acredita.
- Ele vai muitas vezes para fora?
- Nem por isso - disse Emma, tentando não mostrar que tinha sido apanhada de surpresa pela mudança de assunto repentina. - Uma digressão literária ou conferência, de vez em quando. Mas quando se é presidente de uma companhia cotada em bolsa, isso às vezes pode ser uma bênção disfarçada.
- Eu sei como é - declarou Mellor, inclinando-se para a frente. - A minha esposa prefere viver no campo, e é por isso que fico em Bristol durante a semana.
- Tem filhos? - perguntou Emma.
- Uma rapariga do primeiro casamento. É secretária em Londres. E outra do segundo.
- E que idade tem ela?
- A Kelly tem quatro anos e é claro que sei que o seu filho Sebastian entrou recentemente para o conselho de administração da Barrington's.
Emma sorriu.
- Então, talvez lhe possa perguntar, senhor Mellor, por que razão quer integrar o nosso conselho de administração?
- Por favor, trate-me por Des. Todos os meus amigos me chamam assim. Como sabe, a minha experiência é sobretudo no setor dos transportes, embora tenha começado a dedicar-me aos negócios imobiliários desde que vendi a companhia. Mas, como ainda tenho tempo livre, pensei que era capaz de ser divertido trabalhar sob a presidência de uma mulher.
Emma ignorou aquilo.
- Se viesse a ser membro do conselho de administração, qual seria a sua atitude para com uma oferta de aquisição hostil?
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- Para começar, fingiria que não estava interessado e via quanto conseguia extorquir-lhes. O segredo é ser paciente.
- Não haveria nenhuma circunstância em que considerasse ficar com a companhia?
- Não, desde que fosse o preço certo.
- Mas quando a National Buses comprou a sua companhia, não ficou preocupado com o que podia acontecer ao seu pessoal?
- Se não estivessem a dormir, há anos que deviam ter percebido o que ia acontecer e, de qualquer forma, não ia ter outra oportunidade como aquela.
- Mas a acreditar no FT, passado um mês da aquisição, metade do seu pessoal, algum do qual estava consigo há mais de vinte anos, foi despedido.
- Com um bónus de seis meses de salário. E houve uma série deles que não tiveram dificuldade em arranjar emprego noutro lado, um ou dois na Barrington's.
- Mas, passado outro mês, a National Buses tinha deixado cair o seu nome da ficha técnica da companhia e, com ele, a reputação por si construída ao longo de muitos anos.
- Também deixou cair o seu nome quando se casou com Harry Clifton - disse Des - e isso não a impediu de se tornar presidente da Barrington's.
- Eu não tive escolha, e desconfio que até isso é bem capaz de mudar no futuro.
- Sejamos francos, quando se trata de dinheiro, não nos podemos dar ao luxo de ser sentimentais.
- Não é difícil perceber como é que se transformou num empresário tão bem-sucedido, Des, e por que motivo, para a firma certa, seria o diretor ideal.
- Ainda bem que é isso que pensa.
- Mas ainda preciso de falar com os meus colegas, para o caso de não concordarem comigo. Depois disso, voltarei a contactá-lo.
- Vou ficar a aguardar ansiosamente, Emma.

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Sebastian chegou à porta da Embaixada Americana em Grosvenor Square pouco antes das nove horas do dia seguinte, para o encontro marcado com o chef de mission.
Depois de se ter apresentado na receção, um sargento da marinha acompanhou-o ao segundo andar e bateu a uma porta ao fundo do corredor. Seb ficou surpreendido quando a porta foi aberta pelo senhor Sullivan.
- Prazer em ver-te, Seb. Entra.
Seb entrou numa sala que dava para Grosvenor Gardens, mas não apreciou a vista.
- Queres um café?
- Não, senhor, obrigado - disse Seb, que estava demasiado nervoso para pensar noutra coisa que não fosse a sua deixa inicial.
- Então, o que posso fazer por ti? - perguntou o chefde mission enquanto se sentava à secretária.
Seb continuou em pé.
- Gostaria da sua permissão para pedir a sua filha em casamento.
- Que coisa maravilhosamente antiquada - disse o senhor Sullivan. - Fico sensibilizado por te teres dado ao trabalho de perguntar, Seb, e, se é isso que Samantha quer, por mim tudo bem.
- Não sei o que ela quer - admitiu Seb - porque ainda não fiz o pedido.
- Então, boa sorte, pois posso dizer-te que nada daria mais prazer a mim e à mãe.
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- Que alívio - disse Seb.
- Já contaste aos teus pais?
- Ontem à noite.
- E o que é que eles acham?
- A minha mãe não podia ter ficado mais satisfeita, mas o meu paidisse que, se Sam tivesse algum juízo, recusaria o meu pedido.
Sullivan sorriu.
- Mas se ela disser que sim, consegues proporcionar-lhe o estilo de vida a que ela está acostumada? Porque, como sabes, ela espera ser académica, e isso não é muito bem pago.
- Estou a trabalhar nesse sentido. Acabei de ser promovido no banco, e sou agora subdiretor da divisão imobiliária. E, como creio que saberá, entrei recentemente para o conselho de administração da Barrington's.
- Tudo isso parece muito promissor, Seb, e, para ser sincero, Marion já se perguntava por que razão estavas a demorar tanto tempo.
- Quer isso dizer que tenho a sua bênção?
- Com certeza que sim. Mas nunca te esqueças que, tal como a tua mãe, Samantha estabelece padrões que o resto de nós, comuns mortais, tem dificuldade em cumprir, a menos que sejamos guiados pela mesma bússola moral, como o teu pai. Agora, que já resolvemos este assunto, não quererás sentar-te?
Quando Sebastian regressou nessa manhã à City, encontrou uma mensagem de Adrian Sloane em cima da secretária, a pedir-lhe para ir ao seu gabinete assim que chegasse.
Sebastian franziu o sobrolho. O único senão durante os últimos meses tinha sido o seu chefe imediato. Nunca conseguira agradar a Sloane desde o momento em que Cedric Hardcastle o nomeara seu subdiretor na divisão imobiliária. Sloane conseguia sempre dar a sensação de que era eficiente no seu trabalho e, para ser sincero, as receitas e os lucros mensais eram consistentemente impressionantes. No entanto, por alguma razão, parecia não confiar em Seb, nem se esforçava nesse sentido. Na verdade, fazia o possível para o manter na ignorância. Seb
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também sabia por um dos seus colegas que, sempre que o seu nome surgia em qualquer conversa, Sloane não hesitava em torpedeá-lo.
Seb tinha pensado em falar no assunto a Cedric, mas a mãe aconselhara-o a não o fazer, pois Sloane acabaria por descobrir e isso só o tornaria mais hostil.
- De qualquer forma - acrescentara Emma -, tens de aprender a impor-te, e não estar à espera de que Cedric faça de ama-seca sempre que te deparas com um problema.
- Isso é tudo muito bonito - disse Seb -, mas o que mais posso eu fazer?
- Limita-te a fazer o teu trabalho e a fazê-lo bem - aconselhou Emma. - Porque isso é a única coisa que importa a Cedric.
- Isso é exatamente o que faço - insistiu Seb. - Nesse caso, porque é que Sloane me trata desta maneira?
- Posso explicar-te numa palavra - disse Emma. - Inveja. E é melhor que te habitues, se quiseres continuar a subir no meio empresarial.
- Mas eu nunca tive esse problema quando trabalhava para o senhor Hardcastle.
- Claro que não, porque Cedric nunca te viu como uma ameaça.
- Sloane acha que eu sou uma ameaça?
- Sim. Parte do princípio de que andas a ver se lhe tiras o lugar, e isso só o torna mais reservado, inseguro, paranóico, chama-lhe o que quiseres. Mas para usar uma das expressões favoritas de Des Mellor, trata de cobrir bem a tua retaguarda.
Quando Seb se apresentou no gabinete de Sloane, o chefe foi direito ao assunto e nem sequer se pareceu importar com o facto de a secretária estar a ouvir a conversa.
- Como não estava à secretária quando cheguei esta manhã, presumo que tenha ido visitar um cliente.
- Não, estava na Embaixada Americana, a tratar de um assunto particular.
Isto calou Sloane por um momento.

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- Bem, futuramente, quando tratar de assuntos particulares, faça-o fora das horas de serviço. Nós gerimos um banco e não um clube de amigos.
Seb cerrou os dentes.
- Terei isso em conta daqui para a frente, Adrian.
- Durante as horas de serviço, prefiro que me tratem por senhor Sloane.
- Mais alguma coisa... senhor Sloane? - perguntou Seb.
- Não, para já não, mas espero ter o relatório mensal na minha secretária ao fim do dia.
Seb regressou ao seu gabinete, aliviado por se ter antecipado a Sloane, uma vez que já tinha preparado o relatório mensal durante o fim de semana. Os seus números tinham aumentado de novo pelo décimo mês consecutivo, embora tivesse dado conta recentemente de que Sloane somava os seus resultados aos dele e ficava com os louros. Se Sloane estava à espera de que a sua tática acabasse por desgastá-lo e até o levasse a demitir-se, podia esperar sentado. Enquanto Cedric fosse presidente do banco, Seb sabia que o seu lugar estava seguro, e enquanto continuasse a cumprir com as suas obrigações, não precisava de ter receio de Sloane, pois o presidente era bem capaz de ler nas entrelinhas.
A uma da tarde, Seb foi comprar uma sanduíche a um café próximo e comeu-a pelo caminho, algo que a mãe não aprovaria - à secretária, se fosse preciso, mas não em movimento.
Enquanto procurava um táxi, pensou em algumas das lições que tinha aprendido com Cedric no que tocava a fechar um negócio: umas básicas, outras mais subtis, mas a maior parte baseada no tradicional senso comum.
- Tens de saber até onde podes ir, nunca peças demais a ti próprio, e tenta lembrar-te de que a outra parte também está à espera de obter lucro. E cria uma boa rede de contactos, porque eles serão a tua tábua de salvação durante os momentos difíceis, já que na atividade bancária só uma coisa é certa: passarás por momentos difíceis. E, a propósito - acrescentara -, nunca compres a retalho.
- Quem lhe ensinou essas coisas? - perguntara Seb.
- Jack Benny.
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Armado com os bons conselhos de Cedric Hardcastle e Jack Benny, Seb foi à procura de um anel de noivado. O contacto havia sido sugerido por um antigo colega de escola, Victor Kaufman, que trabalhava agora no departamento de operações de câmbio do banco do pai, a poucos quarteirões do Farthings. Aconselhara Seb a fazer uma visita ao senhor Alan Gard, em Hatton Garden.
- Ele vai dar-te uma pedra maior por metade do preço de qualquer joalheiro com casa aberta na rua principal.
Seb ia a comer pelo caminho e tinha apanhado um táxi porque sabia que tinha de estar de volta à secretária dentro de uma hora, se não quisesse desentender-se com Adrian Sloane mais uma vez. Parou junto a uma porta verde que Seb teria passado sem notar se não tivesse o número 47 pintado. Não havia nada que sugerisse os tesouros que se escondiam lá dentro. Seb percebeu que estava a lidar com um homem muito reservado e cauteloso.
Tocou à campainha e, passado um instante, foi cumprimentado por uma figura digna de Dickens, com quipá e longos canudos pretos. Quando Seb disse que era amigo de Victor Kaufman, foi rapidamente convidado a entrar no santuário do senhor Gard.
Um homem seco e nervoso, que não tinha mais de metro e meio, vestido descontraidamente com uma camisa de colarinho aberto e calças de ganga velhas, levantou-se de trás da secretária e brindou o seu potencial cliente com um sorriso. Quando ouviu o nome Kaufman, o sorriso tornou-se mais largo e esfregou as mãos como se estivesse a preparar-se para lançar os dados.
- Se é amigo de Saul Kaufman, provavelmente está à espera de comprar o Koh-I-Noor por cinco libras.
- Quatro - disse Seb.
- E nem sequer é judeu.
- Não - disse Seb -, mas fui ensinado por um homem do Yorkshire.
- Isso explica tudo. Então, em que posso ajudá-lo, meu jovem?
- Estou à procura de um anel de noivado.
- E quem é a felizarda?
- Uma americana chamada Sam.
- Nesse caso, temos de encontrar alguma coisa especial para a Sam, não é verdade?
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O senhor Gard abriu a gaveta da secretária, tirou para fora um grande chaveiro e escolheu uma única chave do molho. Atravessou a sala até um grande cofre embutido na parede, destrancou a pesada porta e abriu-a, deixando à mostra uma dúzia de bandejas empilhadas. Depois de hesitar por um instante, escolheu a terceira a contar do fim, puxou-a para fora e colocou o conteúdo em cima da secretária.
Seb viu vários diamantes pequenos a cintilar. Analisou-os durante alguns momentos, antes de abanar a cabeça solenemente. O gemo-logista não fez comentários. Voltou a pôr a bandeja no cofre e tirou para fora a que estava imediatamente acima.
Seb levou um pouco mais de tempo a analisar as pedras ligeiramente maiores que brilhavam para ele, mas voltou a rejeitá-las.
- Tem a certeza de que tem dinheiro para essa rapariga? - perguntou o joalheiro, enquanto retirava a terceira bandeja a contar de cima.
Os olhos de Seb iluminaram-se assim que viu uma safira rodeada por uma série de diamantes minúsculos que estava no centro do pano de veludo preto.
- Aquele - disse ele sem hesitar.
Gard tirou uma lupa da secretária e analisou o anel mais de perto.
- Esta linda safira veio do Ceilão e tem um quilate e meio. Cada um dos oito diamantes tem meio quilate e foram recentemente comprados na índia.
- Quanto?
Gard não respondeu durante algum tempo.
- Tenho a sensação de que vai ser um cliente de longo prazo - disse ele finalmente -, por isso estou tentado a deixá-lo ficar com este magnífico anel por um preço de lançamento. Vamos dizer umas cem libras?
- Pode dizer o que quiser, mas não tenho cem libras.
- Olhe para isso como um investimento.
- Para quem?
- Eu digo-lhe o que vou fazer - disse Gard, voltando à secretária e abrindo um grande livro-mestre. Virou várias páginas e depois correu uma lista de números com o dedo.84
- Para mostrar como estou confiante de que será um futuro cliente, deixo-o ficar com o anel pelo preço que paguei por ele: sessenta libras.
- Vamos ter de voltar à prateleira de baixo - disse Seb contra vontade.
Gard ergueu os braços no ar.
- Como é que um pobre homem há de lucrar alguma coisa quando tem de negociar com alguém tão esperto como o senhor? A proposta mais baixa que posso fazer é de... cinquenta libras.
- Mas eu só tenho cerca de trinta e oito na minha conta. Gard ficou a pensar no assunto por alguns instantes.
- Então, vamos acordar um depósito de dez libras, mais cinco libras por mês durante um ano.
- Mas isso faz o preço subir novamente às setenta libras!
- Onze meses.
- Dez.
- Temos negócio, meu jovem. O primeiro de muitos, espero eu - acrescentou, enquanto apertava a mão a Seb.
Seb passou um cheque de dez libras, enquanto o senhor Gard escolhia um pequeno estojo de couro vermelho para pôr o anel.
- Foi um prazer fazer negócio consigo, senhor Clifton.
- Uma pergunta, senhor Gard. Quando é que poderei ver a prateleira de cima?
- Só quando for presidente do banco.
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No dia antes de Harry voar para Moscovo, Michael Stewart, o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, chamou o embaixador russo ao seu gabinete em Whitehall e, em nome do governo de Sua Majestade, protestou nos termos mais fortes possíveis contra o tratamento vergonhoso dado a Anatoly Babakov. Chegou ao ponto de sugerir que Babakov fosse libertado da prisão e que a proibição do seu livro fosse levantada de imediato.
A declaração subsequente feita pelo senhor Stewart à imprensa fez as primeiras páginas de todos os jornais do país, com editoriais de apoio no Times e no Guardian, tendo ambos mencionado a campanha montada pelo popular autor, Harry Clifton.
Durante a sessão de perguntas ao primeiro-ministro, nessa tarde, Alec Douglas-Home, o líder da oposição, expressou a sua preocupação com o drama de Babakov e pediu ao PM para boicotar as conversações bilaterais que deviam ter lugar com o líder soviético, Leonid Brejnev, em Leninegrado, no final do mês.
No dia seguinte, perfis de Babakov, juntamente com fotografias da sua esposa Yelena, apareceram em vários jornais. The Daily Mirror descreveu o seu livro como uma bomba-relógio que, se fosse publicada, faria desmoronar o regime soviético. Harry perguntava-se como poderiam saber isso, quando não tinham podido ler o livro. Mas sentiu que Sir Alan não podia ter feito mais para o ajudar e estava decidido a cumprir a sua parte do acordo.
No voo noturno para Moscovo, Harry reviu vezes sem conta o discurso que iria pronunciar na conferência e, quando o avião da

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BOAC aterrou no Aeroporto de Sheremetyevo, estava convencido de que a sua campanha ganhava terreno e de que ia fazer um discurso de que Giles se orgulharia.
Levou mais de uma hora a passar na alfândega, quanto mais não fosse porque lhe tiraram tudo da mala e ele voltou a pôr tudo lá dentro por duas vezes. Era óbvio que não era uma visita bem-vinda. Quando finalmente o libertaram, ele e vários dos seus homólogos foram levados para um velho autocarro escolar que seguiu para o centro da cidade e chegou à porta do Majestic Hotel cerca de cinquenta minutos depois. Harry estava exausto.
A rececionista assegurou-lhe que, enquanto líder da delegação britânica, lhe fora atribuído um dos melhores quartos do hotel. Entregou-lhe a chave e, como o elevador estava avariado e não havia porteiros disponíveis, Harry arrastou a mala até ao sétimo andar. Abriu a porta para entrar num dos melhores quartos do hotel.
O cubículo escassamente mobilado trouxe-lhe recordações dos tempos de escola, em St. Bede's. Uma cama com um colchão fino aos altos e baixos e uma mesa com queimaduras de cigarro e manchas dos copos de cerveja faziam as vezes de mobília. Ao canto, havia um lavatório com uma torneira onde corria um fiozinho de água fria, quer estivesse aberta ou fechada. Se quisesse tomar banho, um aviso informava-o de que a casa de banho ficava na outra ponta do corredor. Lembre-se de levar a sua própria toalha e não deve ficar no banho durante mais de dez minutos ou deixar a torneira aberta. Fazia-lhe lembrar tanto a sua antiga escola que, se batessem à porta, Harry não ficaria surpreendido se visse aparecer a madre superiora para lhe inspecionar as unhas.
Como não havia minibar, nem mesmo indícios de um biscoito amanteigado, Harry voltou a descer e juntou-se aos colegas para jantar. Depois de uma refeição de um prato em regime de self-service, começou a perceber por que razão a pasta de peixe Bingham era considerada um luxo na União Soviética.
Decidiu deitar-se cedo, quanto mais não fosse porque o programa do primeiro dia revelava que iria discursar como orador principal da conferência às onze da manhã seguinte.
Foi para a cama, mas ainda levou algumas horas a adormecer, e não apenas por causa dos altos do colchão, do cobertor fininho ou

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das luzes de néon brilhantes que invadiam todos os recantos do seu quarto através das cortinas de nylon que não cumpriam a sua função. Quando finalmente adormeceu, eram onze horas em Bristol e duas da manhã em Moscovo.
Harry levantou-se cedo no dia seguinte e decidiu dar um passeio pela Praça Vermelha. Era impossível não ver o Mausoléu de Lenine, que dominava a praça e servia para recordar constantemente o fundador do estado soviético. O Kremlin estava guardado por um enorme canhão de bronze, outro símbolo de vitória sobre outro inimigo. Mesmo usando o sobretudo que Emma insistira que levasse, com a gola virada para cima, as orelhas e nariz de Harry rapidamente ficaram vermelhos com o frio. Compreendia agora porque é que os russos usavam aqueles magníficos barretes de pele, acompanhados de cachecóis e casacos compridos. Os habitantes locais passavam por ele a caminho do trabalho, mas poucos se dignavam olhá-lo uma segunda vez, apesar de ele não parar de dar palmadinhas no rosto.
Quando regressou ao hotel, mais cedo do que planeara, o porteiro entregou-lhe uma mensagem. Pierre Bouchard, o presidente da conferência, esperava que pudesse ir tomar o pequeno-almoço com ele na sala de jantar.
- Atribuí-lhe o horário das onze desta manhã - disse Bouchard, que já desistira de um ovo mexido que nunca devia ter visto uma galinha. - É sempre a reunião mais concorrida da conferência. Eu abro a sessão às dez e meia, altura em que darei as boas-vindas aos delegados de setenta e dois países. Um número recorde - acrescentou com petulância gaulesa. - Saberá que cheguei ao fim do meu discurso quando eu lembrar aos delegados que há uma coisa em que os russos são melhores do que todos os outros. - Harry ergueu uma sobrancelha. - O bailado. E temos todos a sorte de poder assistir esta noite ao Lago dos Cisnes, no Teatro Bolshoi. Depois de mencionar isso aos delegados, vou convidá-lo para ir ao palco e pronunciar o discurso de abertura.
- Sinto-me lisonjeado - declarou Harry - e é melhor ficar alerta.
- Não é preciso - disse Bouchard. - A comissão foi unânime ao escolhê-lo como orador principal. Todos admiramos a campanha que organizou a favor de Anatoly Babakov. A imprensa internacional
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tem mostrado um interesse considerável e diverti-lo-á saber que o KGB me perguntou se podia ter uma cópia preliminar do seu discurso.
As palavras de Bouchard provocaram um momento de ansiedade a Harry. Até então, não se apercebera até que ponto a sua campanha tinha sido seguida de forma generalizada no estrangeiro, nem o quanto esperavam dele. Olhou para o relógio, esperando ainda ter tempo de rever o seu discurso, bebeu o café até à última gota, pediu desculpa a Bouchard e voltou rapidamente para o quarto. Foi um alívio descobrir que o elevador já estava a funcionar. Não precisava que lhe lembrassem que podia não voltar a ter uma oportunidade como aquela para promover a causa de Babakov, muito menos em território russo.
Quase correu até ao quarto e abriu a gaveta da mesinha onde deixara o discurso. Já lá não estava. Depois de revirar o quarto, percebeu que o KGB tinha agora em sua posse a cópia preliminar a que tanto queria deitar a mão.
Voltou a olhar para o relógio. Faltavam quarenta minutos para a abertura da conferência, altura em que devia pronunciar o discurso em que trabalhara durante o último mês, mas de que já não tinha qualquer cópia.
Quando as dez badaladas ecoaram na Praça Vermelha, Harry tremia como um aluno levado à presença do diretor para discutir uma composição que só existia na sua cabeça. Não lhe restava alternativa senão testar até que ponto a sua memória era boa.
Desceu lentamente a escada, consciente de como os atores se deviam sentir nos momentos que precediam o levantar da cortina, e juntou-se à série de delegados que se encaminhavam para o centro de conferências. Ao entrar no salão de baile, a única coisa que lhe apetecia fazer era voltar para o quarto e trancar-se lá dentro. As fileiras de autores a conversar intimidavam-no ainda mais do que o avanço das tropas alemãs.
Havia vários delegados à procura de lugar numa sala que já estava cheia. Mas, tal como Bouchard lhe dissera, Harry abriu caminho até à frente e ocupou o seu lugar na ponta da segunda fila. Ao olhar

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em redor do grande salão, os seus olhos pousaram num grupo de homens de rosto inexpressivo e compleição robusta que envergavam casacos compridos pretos e estavam encostados à parede, uniformemente distribuídos à volta da sala. Tinham outra coisa em comum: nenhum deles tinha ar de ter lido um único livro na vida.
Bouchard estava a chegar ao fim do seu discurso quando viu Harry e o brindou com um sorriso caloroso.
- E agora, o momento por que todos aguardavam - disse ele.
A intervenção do nosso distinto colega de Inglaterra, escritor de nove romances policiais de enorme sucesso, cujo herói é o detetive William Warwick. Quem me dera que o meu homólogo francês, o inspetor Benoit, tivesse metade da sua popularidade. Talvez estejamos prestes a descobrir porquê.
Depois de o riso ter esmorecido, Bouchard prosseguiu:
- Tenho a honra de convidar Harry Clifton, presidente do PEN inglês, a dirigir-se ao auditório.
Harry avançou lentamente para a tribuna, surpreendido pelos flashes dos muitos fotógrafos que rodeavam o palco, ao mesmo tempo que os seus passos eram seguidos de perto por uma equipa de televisão.
Deu um aperto de mão a Bouchard antes de tomar o seu lugar atrás do atril. Respirou fundo e levantou os olhos para enfrentar o pelotão de fuzilamento.
- Senhor presidente, permita-me que comece por agradecer as suas amáveis palavras, mas devo avisá-lo de que não irei falar hoje sobre o detetive William Warwick ou sobre o inspetor Benoit, mas sim sobre um homem que não é uma personagem de ficção, mas sim uma pessoa de carne e osso, como todos os que estão nesta sala. Um homem que não pode estar hoje presente nesta conferência porque está preso num local distante, no gulag siberiano. O seu crime? Escrever um livro. Claro que me refiro ao mártir, e uso a palavra judiciosamente, Anatoly Babakov.
Até mesmo Harry ficou surpreendido com a ovação que se seguiu. Normalmente, as conferências literárias têm uma assistência dispersa, constituída por académicos sérios que produzem uma educada salva de palmas depois de o orador se sentar. Mas, pelo menos, a interrupção deu-lhe alguns momentos para pôr as ideias em ordem.

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- Quantos dos que estão nesta sala leram livros sobre Hitler, Churchill ou Roosevelt? Três dos quatro líderes que determinaram o resultado da Segunda Guerra Mundial? Mas, até recentemente, a única narrativa interna sobre Josef Stalin a sair da União Soviética foi um panfleto oficial censurado por um comité de oficiais do KGB. Como todos sabem, o homem que traduziu esse livro para inglês ficou tão desiludido com ele que decidiu escrever a sua própria biografia não autorizada, que nos teria dado seguramente uma perspetiva diferente do homem que todos conhecemos como Uncle Joe. Mas mal o livro foi publicado, todas as cópias foram destruídas, a editora foi encerrada e, na sequência de um julgamento fantoche, o autor desapareceu da face da Terra. Não estou a falar da Alemanha de Hitler, mas da Rússia dos dias de hoje.
»Alguns de vós, assim como eu, poderão ter curiosidade em saber o que terá escrito Anatoly Babakov para fazer com que as autoridades atuassem de forma tão tirânica. No fim de contas, os soviéticos nunca param de proclamar as glórias do seu Estado utópico, que asseguram não ser apenas um modelo para o resto do mundo, mas sim um modelo que, com o passar do tempo, não teremos alternativa senão copiar. Se assim é, senhor presidente, porque é que não podemos ler uma opinião contrária e decidir pela nossa cabeça? Não esqueçamos que Uncle Joe foi escrito por um homem que esteve sempre um passo atrás de Stalin durante mais de onze anos, um confidente dos seus pensamentos mais íntimos, uma testemunha da forma como ele geria a sua vida quotidiana. Mas quando Babakov decidiu escrever a sua própria versão dos acontecimentos, ninguém, incluindo o povo soviético, foi autorizado a conhecer os seus pensamentos. Gostava de saber porquê.
»Não encontrarão um exemplar de Uncle Joe em nenhuma livraria de Inglaterra, América, Austrália, África ou América do Sul, e não o encontrarão certamente na União Soviética. Talvez seja uma obra horrivelmente mal escrita, enfadonha, sem mérito e indigna do nosso tempo, mas pelo menos deixem-nos ser nós a ajuizar isso.
A sala foi percorrida por outra onda de aplausos. Harry teve de reprimir um sorriso quando reparou que os homens de casaco comprido preto continuavam de mãos nos bolsos e que as suas expressões não se alteravam enquanto o intérprete traduzia as suas palavras.

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Esperou que as palmas esmorecessem antes de iniciar a sua peroração.
- A assistir hoje a esta conferência estão historiadores, biógrafos, cientistas e até alguns romancistas. Todos eles tomam por garantido que a sua obra mais recente irá ser publicada, por mais críticas que encerre relativamente ao seu governo, dirigentes ou até ao sistema político. Porquê? Porque vêm de países que sabem lidar com a crítica, a sátira, a zombaria e até com o escárnio, e em que a decisão sobre o mérito de um livro pode ser confiada aos seus cidadãos. Os autores da União Soviética só são publicados se o Estado aprovar aquilo que têm a dizer. Quantos de vós estariam a apodrecer na prisão se tivessem nascido na Rússia?
»Por isso, pergunto aos dirigentes deste grande país: porque não concedem ao vosso povo os mesmos privilégios que nós no Ocidente tomamos por garantidos? Podem começar por libertar Anatoly Babakov e por permitir que o seu livro seja publicado. Isto é, se nada têm a recear do facho da liberdade. Não descansarei até conseguir comprar um exemplar de Uncle Joe na Hatchards, em Piccadilly, na Doubledays na Quinta Avenida, na Dymocks em Sydney e na George's em Park Street, Bristol. Mas, acima de tudo, gostaria de ver um exemplar nas prateleiras da Biblioteca Lenine, na rua Vozdvizhenka, a poucas centenas de metros desta sala.
Embora os aplausos fossem ensurdecedores, Harry continuou com as mãos pousadas no atril, pois ainda não tinha dito o último parágrafo. Esperou até se fazer silêncio absoluto, levantou os olhos e acrescentou:
- Senhor presidente, em nome da delegação britânica, tenho o privilégio de convidar o senhor Anatoly Babakov para ser o orador principal da nossa conferência internacional em Londres, no próximo ano.
Toda a gente que estava na sala e que não usava um casaco comprido preto se levantou para dar a Harry uma ovação de pé. Um oficial do KGB que estava sentado num banco ao fundo da sala virou-se para o seu superior e disse:
- Palavra por palavra. Ele devia ter uma cópia a mais do discurso, cuja existência desconhecíamos.
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- O senhor Knowles na linha um, senhora presidente. Emma premiu uma tecla no seu telefone.
- Boa tarde, Jim.
- Boa tarde, Emma. Pensei em ligar-lhe porque Desmond Mellor me disse que teve uma reunião consigo e que ficou com a sensação de que correu bastante bem.
- Com certeza que sim - concordou Emma - e tenho de admitir que fiquei impressionada com o senhor Mellor. Não há dúvida de que se trata de um empresário competente, com muita experiência nesta área.
- Concordo - disse Knowles. - Então, posso presumir que irá recomendar a sua entrada para o conselho de administração, não é verdade?
- Não, Jim, não pode. O senhor Mellor tem muitas qualidades admiráveis, mas, na minha opinião, tem um defeito fundamental.
- E qual é ele?
- Só está interessado numa pessoa, nele próprio. A palavra «lealdade» é um anátema para ele. Enquanto estava sentada a ouvir o senhor Mellor, ele fez-me lembrar o meu pai, e eu só quero pessoas no conselho que me façam lembrar o meu avô.
- Isso deixa-me numa situação embaraçosa.
- Porquê, Jim?
- Porque fui eu que recomendei Mellor para o conselho e a sua decisão enfraquece a minha posição.
- Lamento saber que é isso que pensa, Jim. - Emma fez uma pausa antes de acrescentar - Claro que compreendo se considerar que deve demitir-se.
Harry passou o resto do dia a apertar a mão a pessoas que não conhecia, várias das quais prometeram promover a causa de Babakov nos seus países. Estes cumprimentos efusivos eram algo que Giles, enquanto político, fazia com muita naturalidade, ao passo que Harry os considerava extenuantes. Contudo, estava satisfeito por ter calcorreado as ruas de Bristol com o cunhado durante as últimas campanhas eleitorais, pois só agora se apercebia do muito que aprendera com ele.
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Quando subiu para o autocarro que ia levar os delegados da conferência ao Teatro Bolshoi, estava tão cansado que receou adormecer durante o espetáculo. Mas assim que a cortina se levantou, ficou expectante, entusiasmado pelos movimentos artísticos dos bailarinos, pela sua técnica, graciosidade e energia, que não o deixavam arredar os olhos do palco. Quando a cortina caiu finalmente, ele não tinha dúvidas de que aquela era uma área em que a União Soviética era líder mundial.
Quando regressou ao hotel, a rececionista entregou-lhe uma mensagem a confirmar que um carro da embaixada iria buscá-lo às dez para as oito da manhã seguinte, para ele poder ir tomar o pequeno-almoço com o embaixador. Isso dar-lhe-ia mais do que tempo para apanhar o voo de regresso a Londres, ao meio-dia.
Havia dois homens sentados em silêncio a um canto do átrio, a observar todos os seus movimentos. Harry sabia que eles tinham lido a mensagem do embaixador muito antes de ele o ter feito. Agarrou na chave, brindou-os com um sorriso rasgado e desejou-lhes uma boa noite antes de apanhar o elevador para o sétimo andar.
Depois de se despir, Harry caiu na cama e depressa mergulhou num sono profundo.

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- Não foi uma boa jogada, mãe.
- Porquê? - quis saber Emma. -Jim Knowles nunca me apoiou e, sinceramente, fico satisfeita se me livrar dele.
- Lembra-se do que Lyndon Johnson disse sobre J. Edgar Hoover? Prefiro tê-lo dentro da tenda a mijar lá para fora do que lá fora a mijar cá para dentro.
- Às vezes, pergunto-me porque é que eu e o teu pai gastámos tanto dinheiro com a tua educação. Mas que mal é que Knowles nos pode fazer?
- Ele tem uma informação que pode derrubar a companhia.
- Ele não se atreveria a tornar público o incidente da Esquadra Metropolitana. Se o fizesse, nunca conseguiria outro trabalho na City.
- Ele não precisa de torná-lo público. Só precisa de almoçar tranquilamente no seu clube com Alex Fisher e meia hora mais tarde Lady Virgínia já saberá todos os pormenores do que realmente aconteceu naquela noite. E pode ter a certeza de que ela vai guardar as partes mais sensacionalistas para o banco das testemunhas, pois isso não só a derrubará a si, como arrastará a companhia consigo. Não, receio que tenha de voltar com a palavra atrás, mãe, se não quiser passar os dias a pensar quando é que a bomba irá cair.
- Mas Knowles já deixou claro que, se Mellor não for diretor, irá demitir-se do conselho.
- Então, teremos de oferecer um lugar no conselho ao senhor Mellor.
- Só por cima do meu cadáver.
- As palavras são suas, mãe, não minhas.

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Toc, toc, toc. Os olhos de Harry abriram-se. Toc, toc, toc. Estava alguém a bater à porta ou era apenas barulho que vinha lá de fora? Toc toc, toc. Era a porta, decididamente. Queria ignorar as pancadas, mas a sua persistência sugeria que não iriam desaparecer. Toe, toe, toe. Pôs relutantemente os pés no chão de linóleo frio, vestiu o roupão e foi até à porta.
Se Harry ficou surpreendido ao abri-la, tentou não o demonstrar.
- Olá, Harry - disse uma voz maliciosa.
Harry fitou incrédulo a rapariga por quem se apaixonara vinte anos antes. A sua frente, estava uma cópia a papel químico de Emma quando tinha vinte e poucos anos, com um casaco de marta vestido e pouco mais, segundo suspeitava. Segurava um cigarro numa mão e uma garrafa de champanhe na outra. Os russos eram espertos, pensou Harry.
- O meu nome é Alina - ronronou ela tocando-lhe no braço. - Estava ansiosa por conhecê-lo.
- Deve ter-se enganado no quarto - disse Harry.
- Não me parece - redarguiu Alina. Tentou passar por ele, mas Harry continuou à porta, bloqueando-lhe a passagem.
- Harry, eu sou a sua recompensa por ter feito um discurso tão genial. Prometi ao presidente que lhe daria uma noite inesquecível.
- Já o fez - disse Harry, perguntando-se para que presidente trabalharia Alina.
- Deve haver alguma coisa que possa fazer por si, Harry...
- Não me ocorre nada, mas faça o favor de agradecer aos seus chefes e diga-lhes simplesmente que não estou interessado.
Alina pareceu desiludida.
- Talvez rapazes?
- Não, obrigado.
- Dinheiro? - sugeriu ela.
- É muito amável, mas já tenho o suficiente.
- Não há nada com que possa tentá-lo?
- Bem, agora que fala nisso, há algo que sempre quis e, se os seus chefes o conseguirem, sou o homem que procuram.96
- E o que é, Harry? - disse ela, parecendo esperançada pela primeira vez.
- O Prémio Nobel da Literatura.
Alina pareceu desconcertada e Harry não conseguiu resistir a inclinar-se para a frente e a dar-lhe um beijo em ambas as faces, como se fosse uma tia favorita. Fechou a porta devagarinho e voltou para a cama.
- Maldita mulher - disse ele, sem conseguir dormir.
- Tenho um tal senhor Vaughan em linha, senhor Clifton - disse a telefonista. - Diz que precisa de falar urgentemente com o senhor Sloane, mas ele está fora, numa conferência em York, e só volta na sexta-feira.
- Passe a chamada à secretária dele e peça-lhe para tratar do assunto.
- A Sarah não atende o telefone, senhor Clifton. Acho que ainda não voltou do almoço.
- Está bem, passe a chamada - disse Seb, contrariado. - Bom dia, senhor Vaughan, em que posso ajudá-lo?
- Sou sócio principal da imobiliária Savills - disse Vaughan - e preciso de falar urgentemente com o senhor Sloane.
- Não pode esperar até sexta-feira?
- Não. Neste momento, tenho duas ofertas em cima da mesa para a Shifnal Farm em Shropshire e, como a licitação termina na sexta-feira, preciso de saber se o senhor Sloane continua interessado.
- Talvez me possa facultar os pormenores, senhor Vaughan - disse Seb, pegando numa caneta - e eu tratarei imediatamente do assunto.
- Será que pode informar o senhor Sloane que o senhor Collingwood está disposto a aceitar a oferta que ele fez de um milhão e seiscentas mil libras, o que significa que vou precisar de um depósito de cento e sessenta mil libras às cinco horas de sexta-feira, se ele ainda quiser fechar o negócio?
- Um milhão e seiscentas mil - repetiu Seb, sem saber se teria ouvido bem o número.
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- Sim, é claro que isso inclui os quatrocentos hectares, assim como a casa.
- Com certeza - disse Seb. - Informarei o senhor Sloane assim que ele telefonar.
O montante era superior ao de qualquer negócio em que ele tivesse estado envolvido por uma propriedade em Londres, quanto mais uma quinta em Shropshire, por isso decidiu confirmar com a secretária de Sloane. Atravessou o corredor para ir ao seu gabinete e deu com Sarah a pendurar o casaco.
- Boa tarde, senhor Clifton, em que posso ajudá-lo?
- Preciso de ver o processo Collingwood, Sarah, para poder informar o senhor Sloane quando ele ligar.
Sarah pareceu desconcertada.
- Não estou familiarizada com esse cliente, mas deixe-me verificar.
Abriu o arquivo identificado como A-H e folheou rapidamente os processos sob a letra C.
- Ele não é cliente do senhor Sloane - disse ela. - Deve haver algum engano.
- Tente pelo nome Shifnal Farm - disse Seb.
Sarah centrou a sua atenção no arquivo S-Z, mas voltou a abanar a cabeça.
- O engano deve ser meu - disse Seb. - Talvez seja melhor não falar no assunto ao senhor Sloane - acrescentou, enquanto ela fechava o arquivo.
Regressou lentamente ao seu gabinete, fechou a porta e pensou durante algum tempo na conversa com o senhor Vaughan antes de pegar no telefone e marcar o número do serviço de informações de listas telefónicas.
Quando uma voz atendeu finalmente, Seb perguntou por um senhor Collingwood em Shifnal Farm, Shropshire. A telefonista levou algum tempo a voltar à linha.
- Tenho um senhor D. Collingwood, Shifnal Farm, Shifnal?
- Deve ser ele. Pode dar-me o número?
- Receio bem que não. Ele retirou o nome da lista.98
- Mas é uma emergência.
- Pode até ser, mas não estou autorizada em circunstância alguma a dar números que tenham sido retirados da lista.
A linha emudeceu.
Seb hesitou por um momento antes de voltar a pegar no telefone e marcar um número interno.
- Gabinete do presidente - disse uma voz familiar.
- Rachel, preciso de quinze minutos com o chefe.
- Cinco e quarenta e cinco, mas não mais de quinze minutos porque ele tem uma reunião com o vice-presidente às seis e o senhor Buchanan nunca se atrasa.
O Rolls-Royce da embaixada, com a bandeira americana a flutuar em ambos os guarda-lamas, estava à espera à porta do Majestic Hotel muito antes de Harry aparecer no átrio às dez para as oito da manhã. Os mesmos dois homens continuavam sentados ao canto, fingindo não reparar nele. Será que alguma vez dormiam?, pensou Harry.
Depois de Harry ter registado a saída, não conseguiu resistir a fazer uma pequena vénia de despedida aos seus guardas, antes de deixar o hotel que nada tinha de majestoso a não ser o nome. Um motorista abriu a porta de trás do Rolls para deixar Harry entrar. Ele recostou-se e pensou na outra razão que o levara a Moscovo.
O carro avançou pelas ruas inundadas da capital, passando pela Catedral de São Basílio, um edifício de rara beleza que se erguia na extremidade sul da Praça Vermelha. O carro atravessou o rio Moskva, virou à esquerda e, passados alguns instantes, os portões da Embaixada Britânica abriram-se, dividindo o escudo real em dois. O motorista entrou no complexo e parou junto à porta principal. Harry ficou impressionado. Uma residência apalaçada, digna de um czar, erguia-se à sua frente, lembrando aos visitantes o antigo império da Grã-Bretanha, em vez do seu estatuto pouco relevante no mundo do pós-guerra.
A próxima surpresa surgiu quando viu o embaixador nos degraus da entrada, à espera para o cumprimentar.
- Bom dia, senhor Clifton - disse Sir Humphrey Trevelyan quando Harry saiu do carro.
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- Bom dia, excelência - disse Harry enquanto trocavam um aperto de mão, o que era apropriado, já que estavam prestes a comum acordo.
O embaixador fê-lo entrar para um enorme átrio circular que exibia uma estátua da rainha Vitória em tamanho real, assim como um retrato de corpo inteiro da sua trineta.
- Não terá lido o Times esta manhã - começou Trevelyan -, mas posso dizer-lhe que o seu discurso na conferência do PEN parece ter tido o efeito desejado.
- Esperemos que sim - disse Harry. - Mas só ficarei convencido quando Babakov for libertado.
- Isso é capaz de levar mais algum tempo - advertiu o embaixador. - Os soviéticos não são conhecidos por decidir de forma precipitada, sobretudo quando a ideia não partiu deles. Talvez seja melhor preparar-se para uma longa batalha. Posso dizer-lhe que o Politburo ficou surpreendido com o apoio que recebeu da comunidade internacional. Contudo, o outro lado da moeda é que agora é considerado... persona non grata.
O embaixador levou o seu convidado ao longo de um corredor de mármore, dominado por retratos de monarcas britânicos que não tinham sofrido o mesmo destino que os seus parentes russos. Uma porta dupla que ia do chão ao teto foi aberta por dois funcionários, embora o embaixador ainda estivesse a vários passos de distância. Este entrou diretamente no seu gabinete, tomou o seu lugar atrás de uma grande secretária desimpedida e fez sinal a Harry para se sentar na cadeira à sua frente.
- Dei instruções para que não nos incomodassem - disse Trevelyan enquanto escolhia uma chave de um chaveiro e abria a gaveta da secretária.
Tirou um dossiê para fora, de onde retirou uma única folha de papel que entregou a Harry.
- Demore o tempo que quiser, senhor Clifton. Não está sujeito às restrições que Sir Alan lhe impôs.
Harry começou a estudar uma lista aleatória de nomes, moradas e números de telefone que não pareciam ter qualquer sequência ou lógica. Depois de a ter percorrido uma segunda vez, disse:100
- Creio que já a memorizei.
O ar incrédulo do embaixador mostrava que não estava convencido.
- Bem, vamos certificar-nos, está bem?
Recuperou a lista e substituiu-a por duas folhas de papel de carta da embaixada e uma caneta de tinta permanente.
Harry respirou fundo e começou a escrever os doze nomes, nove moradas e vinte e um números de telefone. Depois de completar a tarefa, entregou o produto do seu esforço ao embaixador, para ser avaliado. Sir Humphrey comparou-o demoradamente com o original.
- Escreveu Pengelly com um ”l”, em vez de dois. Harry franziu o sobrolho.
- Talvez queira ter a gentileza de repetir o exercício, senhor Clifton - disse o embaixador enquanto se recostava, acendia um fósforo e queimava o primeiro esforço de Harry.
Harry completou a segunda tentativa muito mais depressa.
- Bravo! - disse o embaixador, depois de verificar. - Quem me dera que fosse membro da minha equipa. Agora, como é de calcular que os soviéticos tenham lido a mensagem que lhe deixei no hotel, talvez seja melhor não os desiludir.
Premiu um botão debaixo da secretária e, passados alguns momentos, entraram dois funcionários envergando casacos de linho branco e calças pretas, a empurrar um carrinho.
Durante um pequeno-almoço composto por café quente, torradas de pão escuro, doce de laranja de Oxford e um ovo que tinha sido produzido por uma galinha, os dois homens conversaram sobre tudo, desde as hipóteses da Inglaterra no próximo jogo de apuramento contra a África do Sul (Harry achava que a Inglaterra ia ganhar, mas o embaixador não estava convencido) à abolição do enforcamento (com Harry a favor, e o embaixador contra) e à entrada da Grã-Bretanha para o Mercado Comum (algo em que estavam ambos de acordo). Não tocaram uma única vez na verdadeira razão para estarem a tomar o pequeno-almoço juntos.
Quando o carrinho foi levado e voltaram a ficar sozinhos, Trevelyan disse:101
- Perdoe-me o facto de ser tão maçador, meu caro, mas quer fazer a gentileza de executar o exercício mais uma vez?
Harry voltou à secretária do embaixador e escreveu a lista pela terceira vez.
- Extraordinário. Agora compreendo porque é que Sir Alan o escolheu. - Trevelyan acompanhou o convidado até à porta do gabinete. - O meu carro vai levá-lo ao aeroporto e, embora possa pensar que tem tempo mais do que suficiente, tenho o pressentimento de que os funcionários da alfândega vão partir do princípio de que lhe dei alguma coisa para levar para Inglaterra e, por conseguinte, será sujeito a uma demorada revista. Eles têm razão, é claro, mas felizmente não é algo a que consigam deitar a mão. Portanto, a única coisa que me resta fazer, senhor Clifton, é agradecer-lhe e sugerir que não escreva a lista até as rodas do avião largarem o solo. Até talvez seja aconselhável esperar até já não se encontrar no espaço aéreo soviético. No fim de contas, deve haver alguém a bordo a vigiar todos os seus movimentos.
Sir Humphrey acompanhou o convidado até à porta da rua e trocaram pela segunda vez um aperto de mão antes de Harry subir para a parte de trás do Rolls-Royce. O embaixador ficou no degrau de cima até o carro desaparecer de vista.
O motorista deixou Harry junto ao Aeroporto de Sheremetyevo com duas horas de antecedência em relação ao voo. O embaixador estava certo, pois Harry passou a hora seguinte na alfândega, onde inspecionaram e voltaram a inspecionar tudo o que ele tinha na mala, antes de descoserem o forro do seu casaco e sobretudo.
Quando não conseguiram encontrar nada, foi levado para uma pequena sala, onde lhe pediram para tirar a roupa. Quando os seus esforços voltaram a fracassar, apareceu um médico que procurou em lugares que Harry nunca sequer pensara, mas que não iria seguramente descrever de forma pormenorizada no seu próximo livro.
Passada uma hora, marcaram relutantemente a sua mala com uma cruz a giz, para mostrar que fora libertada pela alfândega, mas nunca chegou a aparecer em Londres. Decidiu não protestar, embora os agentes alfandegários também não lhe tivessem devolvido o sobretudo, um presente de Natal de Emma. Teria de comprar um idêntico102
na Ede & Ravenscroft antes de voltar para Bristol, pois não queria que a esposa descobrisse a verdadeira razão para Sir Alan ter querido falar com ele.
Quando Harry finalmente embarcou, ficou encantado ao descobrir que tinha sido instalado na primeira classe, tal como da última vez que trabalhara para o secretário do Gabinete. Igualmente agradável era o facto de o lugar ao seu lado não ter sido atribuído a ninguém. Sir Alan não deixava nada ao acaso.
Esperou até estar no ar há mais de uma hora para pedir a uma assistente de bordo duas folhas de papel da BOAC. Mas, quando elas chegaram, mudou de ideias. Havia dois homens sentados do outro lado do corredor que tinham olhado demasiadas vezes na sua direção.
Ajustou as costas do banco, fechou os olhos e recordou mentalmente a lista vezes sem conta. Quando o avião aterrou em Heathrow, estava mental e fisicamente esgotado. Ainda bem que não era espião a tempo inteiro.
Harry foi o primeiro a desembarcar e não ficou surpreendido ao ver Sir Alan à espera na pista, ao fundo da escada. Entraram ambos para a parte de trás de um carro, que saiu rapidamente do aeroporto sem ser incomodado por um agente aduaneiro.
Para além de «Bom dia, Clifton», o secretário do Gabinete não disse uma palavra, passando-lhe para a mão o inevitável bloco e caneta.
Harry escreveu os doze nomes, nove moradas e vinte e um números de telefone que estavam guardados na sua mente há várias horas. Verificou a lista antes de a entregar a Sir Alan.
- Estou-lhe extremamente grato - disse. - E achei que gostaria de saber que acrescentei dois parágrafos ao discurso que o ministro dos Negócios Estrangeiros irá fazer na próxima semana nas Nações Unidas, esperando que isso ajude a causa do senhor Babakov. A propósito, deu pela presença dos meus dois guarda-costas, sentados na primeira classe, do outro lado do corredor? Pu-los lá para o proteger, caso tivesse algum problema.
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- Que eu saiba, não há nenhum negócio na forja no valor de um milhão e seiscentas mil libras - disse Cedric - e não é coisa que
esquecesse facilmente. Pergunto-me o que é que Sloane andará a tramar.
- Não faço ideia - disse Sebastian -, mas estou certo de que deve haver uma explicação simples.
- E dizes que ele só volta na sexta-feira?
- Isso mesmo. Está numa conferência, em York.
- Então, isso dá-nos dois dias para investigar o assunto. Provavelmente, tens razão e há uma explicação simples. Mas um milhão e seiscentas mil... - repetiu. - E o senhor Collingwood aceitou a oferta?
- Foi o que disse o senhor Vaughan da Savills.
- Ralph Vaughan é alguém da velha guarda e não comete esse tipo de erro. - Cedric ficou calado durante alguns momentos, antes de acrescentar - É melhor ires até Shifnal amanhã, logo de manhãzinha, e começares a tirar nabos da púcara. Começa pelo pub local. O dono sabe sempre tudo o que se passa na sua aldeia, e um milhão e seiscentas mil libras deve ter posto as más-línguas a trabalhar. Depois de falares com ele, vê nas imobiliárias locais, mas certifica-te que não chegas perto de Collingwood. Se o fizeres, Sloane vai ficar a saber e irá presumir que estás a tentar prejudicá-lo. Acho que é melhor mantermos isto entre nós, para o caso de ele estar totalmente inocente. Quando regressares a Londres, vai direito a Cadogan Place para me pores ao corrente da situação durante o jantar.
Seb decidiu que não era altura de dizer a Cedric que tinha reservado uma mesa no Mirabelle para jantar no dia seguinte com Samantha. O relógio por cima da lareira bateu as sete, o que queria dizer que o vice-presidente, Ross Buchanan, estaria à espera lá fora. Levantou-se para se ir embora.
- Bom trabalho, Seb - disse Cedric. - Vamos esperar que haja uma explicação simples. Mas, de qualquer forma, obrigado por me manteres informado.
Seb acenou com a cabeça. Quando chegou à porta, virou-se para dar as boas-noites e viu Cedric a engolir um comprimido. Fingiu não reparar, enquanto fechava a porta atrás de si.
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Na manhã seguinte, Seb levantou-se, vestiu-se e saiu de casa antes de Sam acordar.
Cedric Hardcastle nunca viajava em primeira classe, mas permitia sempre que os quadros superiores o fizessem quando a viagem era longa. Embora Seb tivesse comprado o Financial Times em Euston, mal olhou para as principais notícias do dia durante a viagem de três horas até Shropshire. Estava preocupado a pensar na melhor forma de usar o seu tempo quando chegasse a Shifnal.
O comboio parou na estação de Shrewsbury pouco depois das onze e meia, e Seb não hesitou em apanhar um táxi para Shifnal, em vez de esperar pelo comboio que fazia a ligação, pois nesta altura tempo era dinheiro. Esperou até terem deixado para trás a capital do condado, antes de fazer a primeira pergunta ao taxista.
- Qual é o melhor pub em Shifnal?
- Depende do que procura, paparoca boa ou a melhor cerveja do condado.
- Eu sou sempre da opinião que se pode julgar um pub pelo seu dono.
- Então, tem de ser o Shifnal Arms, que é propriedade de Fred e Sheila Ramsey. Eles não gerem apenas o pub, mas também a aldeia. Ele é presidente do clube de críquete local e costumava ser o lançador da equipa da aldeia. Até jogou pelo condado em duas ocasiões. E ela faz parte da junta de freguesia. Mas aviso-o já que a comida é uma porcaria.
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- Então, é o Shifnal Arms - disse Seb. Recostou-se e começou a rever a sua estratégia, ciente de que não queria que Sloane descobrisse porque é que ele não estava no escritório.
Passavam poucos minutos do meio-dia quando o táxi parou à porta do Shifnal Arms. Seb teria dado uma gorjeta maior ao taxista, mas não queria que ele se lembrasse dele.
Entrou no pub tentando parecer descontraído, o que não era fácil quando se era o primeiro cliente do dia, e olhou atentamente para o homem que estava atrás do bar. Embora devesse ter mais de quarenta anos e as suas faces e nariz revelassem que gostava do produto que vendia, enquanto a sua pança sugeria que preferia empadas de carne de porco à haute cuisine, não era difícil acreditar que aquele gigante tinha sido o lançador de serviço pela equipa de Shifnal.
- Boa tarde - disse o proprietário. - O que lhe posso servir?
- Pode ser uma caneca da vossa cerveja local - respondeu Seb, que normalmente não bebia durante as horas de serviço, mas hoje fazia parte do trabalho.
O homem tirou uma caneca de Wrekin IPA e colocou-a no balcão do bar.
- Um xelim e seis dinheiros.
Metade do preço que Seb teria de pagar em Londres. Bebeu um gole.
- Não é má - disse ele, antes de lançar a sua primeira bola. - Não é a cerveja de West Country, mas não é nada má.
- Então, não é destas paragens? - indagou o dono do pub.
- Não, sou um rapaz nascido e criado em Gloucestershire - disse Seb, antes de beber outro gole.
- Então, o que o traz a Shifnal?
- A minha firma vai abrir uma filial em Shrewsbury, e a minha esposa só está disposta a mudar-se se eu encontrar uma casa no campo.
- Por acaso, não joga críquete?
- Sou o primeiro batedor dos Somerset Stragglers. Outra razão para não estar muito ansioso por mudar-me.
- Nós temos uma equipa decente, mas estamos sempre à procura de novos talentos.106
Seb apontou para uma fotografia atrás do bar.
- É o senhor que está a segurar a taça?
- Sou, 1951. Quando tinha menos uns quinze anos e era cerca de sete quilos mais magro. Ganhámos a taça do condado nesse ano pela primeira e última vez, lamento dizê-lo. Mas no ano passado chegámos às meias-finais.
Estava na altura de lançar mais uma bola.
- Se eu estivesse a pensar em comprar uma casa por aqui, com quem sugeriria que negociasse?
- Só existe um agente imobiliário minimamente decente por aqui. Charlie Watkins, o meu guarda-postigo. A agência dele fica em High Street, é impossível não dar com ela.
- Então vou ter uma conversa com o senhor Watkins e depois volto para almoçar qualquer coisa.
- O prato do dia é empada de carne de vaca e rim - disse o homem, dando palmadinhas na barriga.
- Até depois - disse Seb depois de ter emborcado a cerveja. Não foi difícil encontrar High Street ou a Agência Imobiliária
Watkins, com o seu garrido letreiro a bater ao vento. Seb demorou algum tempo a analisar as propriedades para venda afixadas na montra. Os preços pareciam ir das setecentas às doze mil libras, portanto, como era possível alguma coisa na área valer 1,6 milhões?
Empurrou a porta, fazendo tilintar uma sineta e, ao entrar, um jovem levantou os olhos da sua secretária.
- O senhor Williams está? - perguntou Seb.
- De momento, está com um cliente, mas não deve demorar - acrescentou, ao mesmo tempo que uma porta atrás dele se abria e saíam dois homens.
- Tenho a papelada pronta na segunda-feira, o mais tardar, por isso, se puder tratar de fazer chegar o sinal ao seu solicitador, isso deve ajudar a acelerar as coisas - disse o mais velho dos dois homens enquanto abria a porta para o seu cliente.
- Este senhor está à espera para falar consigo, senhor Watkins - disse o jovem que se encontrava à secretária.
- Bom dia - disse Watkins, estendendo a mão. - Entre para o meu gabinete. - Abriu a porta e acompanhou o seu potencial cliente.
107
Seb entrou numa pequena sala que ostentava uma secretária grande e três cadeiras. Nas paredes, havia fotografias de antigos triunfos, todos eles marcados com um autocolante vermelho que dizia vendido. Os olhos de Seb pousaram numa grande propriedade com vários hectares. Ele precisava que Watkins percebesse rapidamente qual o tipo de mercado que lhe interessava. Um sorriso caloroso iluminou o rosto do agente imobiliário.
- É esse o género de propriedade de que anda à procura?
- Tinha esperança de encontrar uma grande casa de campo, com vários hectares de terra de cultivo - disse Seb enquanto se sentava em frente de Watkins.
- Receio que esse tipo de coisa não apareça com muita frequência no mercado. Mas tenho uma ou duas propriedades que podem interessar-lhe. - Encostou-se para trás, abriu a gaveta do único arquivo e tirou três pastas. - Mas devo avisá-lo de que o preço da terra de cultivo subiu em flecha desde que o governo decidiu conceder benefícios fiscais a quem quiser investir em terrenos agrícolas.
Seb não fez comentários, enquanto Watkins abria a primeira pasta.
- Asgarth Farm fica situada na fronteira galesa, duzentos e oitenta hectares, essencialmente aráveis, e uma magnífica mansão vitoriana... que precisa de algumas reparações - acrescentou a contragosto.
- E o preço?
- Trezentas e vinte mil libras - disse Watkins, passando-lhe a brochura antes de acrescentar rapidamente - ou perto disso.
Seb abanou a cabeça.
- Esperava encontrar alguma coisa com pelo menos quatrocentos hectares.
Os olhos de Watkins iluminaram-se, como se tivesse ganhado a lotaria.
- Há uma propriedade excecional que chegou recentemente ao mercado, mas eu sou apenas um subagente e, infelizmente, as ofertas têm de ser feitas até às cinco horas desta sexta-feira.
- Se for a propriedade certa, não será isso que me fará desistir. Watkins abriu a gaveta da secretária e propôs pela primeira vez a
Shifnal Farm a um cliente.
- Isto parece mais interessante - disse Seb, virando as páginas da brochura. - Quanto é que estão a pedir?
108
O agente imobiliário hesitou, quase como se não quisesse revelar os números. Seb esperou pacientemente.
- Sei que a Savills recebeu uma proposta de um milhão e seiscentas mil libras - disse Watkins. Foi a sua vez de esperar pacientemente, na expectativa que o cliente a rejeitasse de imediato.
- Talvez eu possa estudar os pormenores durante o almoço e voltar depois, à tarde, para discutir o assunto consigo...
- Entretanto, devo tratar das coisas para ir ver a propriedade? Isso era a última coisa que Seb queria, por isso respondeu rapidamente:
- Tomarei essa decisão depois de ter oportunidade de analisar os pormenores.
- O tempo está contra nós. Verdade, pensou Seb.
- Dir-lhe-ei qual é a minha decisão quando voltar, esta tarde - repetiu ele com um pouco mais de firmeza.
- Sim, claro - disse Watkins enquanto se punha em pé de um salto, acompanhando-o à porta. Depois de novo aperto de mão, acrescentou. - Fico ansiosamente à sua espera.
Seb saiu para High Street e regressou rapidamente ao pub. O senhor Ramsey estava atrás do bar, a limpar um copo, quando Seb se sentou no banco à frente dele.
- Teve sorte?
- Possivelmente - disse Seb, pondo a brochura lustrosa sobre o balcão, para que ele a visse. - Mais outra cerveja, por favor. Não quer acompanhar-me na bebida?
- Obrigado. Vai almoçar?
- Vou comer a empada de carne e rim - disse Seb, analisando a ementa escrita a giz no quadro preto por trás do bar.
Ramsey não tirou os olhos da brochura, mesmo enquanto tirava a cerveja ao cliente.
- Posso dizer-lhe uma ou duas coisas acerca dessa propriedade - declarou ele, enquanto a esposa saía da cozinha.
- A mim, parece-me excessivamente cara - disse Seb, lançando a sua terceira bola.
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- Diria que sim - replicou Ramsey. - Há apenas cinco anos, esteve no mercado por trezentas mil libras e, mesmo por esse preço, o jovem Collingwood não conseguiu vendê-la.
- A razão para o preço podem ser os novos incentivos fiscais
- sugeriu Seb.
- Isso não justificaria o preço que tenho ouvido.
- Talvez o proprietário tenha conseguido um alvará de construção. Habitação ou um desses novos parques industriais de que o governo tanto gosta.
- Nem pensar! - disse a senhora Ramsey, juntando-se a eles.
- A junta de freguesia pode não ter grande poder, mas essa gente da Câmara do Condado tem de nos manter informados se quiser construir o que quer que seja, de uma caixa de correio a um parque de estacionamento com vários pisos. Desde a Magna Carta que temos o direito de apresentar uma contestação e suspender os trabalhos durante noventa dias. Não que eles liguem muito a isso.
- Então, tem de haver petróleo, ouro ou o tesouro perdido dos faraós enterrado naquela terra - exclamou Seb, tentando brincar com o assunto.
- Ouvi sugestões ainda mais incríveis - disse Ramsey. - Um monte de moedas romanas que valem milhões, um tesouro escondido. Mas a minha favorita é que Collingwood era um desses assaltantes de comboios e Shifnal Farm é o local onde eles enterraram o saque.
- E não te esqueças - continuou a senhora Ramsey voltando a aparecer com uma empada de carne de vaca e rim - que o senhor Swann diz que sabe exatamente porque é que o preço disparou, mas que não conta a ninguém, a não ser que façam um donativo substancial para o teatro da escola.
- Senhor Swann? - lançou Seb, enquanto pegava na faca e no garfo.
- Era o diretor da escola secundária local, reformou-se há uns anos e agora dedica o seu tempo a angariar dinheiro para o teatro da escola. Se quer saber, acho que está um bocadinho obcecado com isso.
- Acha que vamos conseguir vencer os sul-africanos? - perguntou Seb, tendo obtido a informação de que precisava e querendo agora mudar de assunto.110
- M. J. K. Smith vai ter muito trabalho com eles - disse o barman - mas se quer saber a minha opinião...
Seb bebericou a sua cerveja, enquanto escolhia cuidadosamente as partes da empada que podia comer sem se preocupar. Decidiu-se pela cobertura queimada, enquanto continuava a ouvir as opiniões do dono do pub sobre tudo, desde os Beatles terem sido condecorados com a Ordem do Império Britânico (Harold Wilson atrás do voto dos jovens) até à possibilidade de os americanos levarem um homem à Lua (para quê?).
Quando um grupo de clientes mais barulhento entrou no pub e Ramsey se distraiu, Seb deixou meia coroa em cima do balcão e escapuliu-se. Já na rua, perguntou a uma mulher que trazia um rapazinho pela mão onde ficava a escola secundária.
- Seguindo pela rua acima, fica a cerca de oitocentos metros - disse ela. - Vai dar logo com ela.
Pareceu-lhe o dobro da distância, mas realmente era impossível não dar com o grande edifício vitoriano de tijolo vermelho, que John Betjeman teria admirado.
Seb nem sequer teve de transpor os portões da escola para ver aquilo que procurava. Um grande cartaz anunciava uma angariação de dez mil libras para construir um novo teatro para a escola. Ao lado, havia o desenho de um enorme termómetro, mas Seb reparou que a linha vermelha só chegava às 1766 libras. Para saber mais sobre o projeto, por favor contacte o senhor Maurice Swann MA (Oxon) em Shifnal 2613.
Seb anotou dois números na sua agenda, 8234 e 2613, depois deu meia-volta e tomou novamente a direção de High Street. Avistou ao longe uma cabina telefónica vermelha e ficou satisfeito ao ver que não estava ocupada. Entrou e ensaiou as suas deixas por um instante, antes de consultar o número na agenda. Marcou 2613, pôs quatro moedas de um dinheiro na ranhura e esperou algum tempo até ser atendido por uma voz idosa.
- Maurice Swann.
- Boa tarde, senhor Swann. O meu nome é Clifton. Sou o responsável pelos donativos do Farthings Bank e estamos a considerar a possibilidade de fazer um donativo para a construção do seu teatro. Queria saber se será possível encontrarmo-nos. É claro que terei todo o gosto em ir ter aí consigo.
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- Não, prefiro que seja na escola - disse Swann com entusiasmo. - Assim, posso mostrar-lhe o que planeámos.
- Com certeza - concordou Seb -, mas, infelizmente, só vou passar o dia em Shifnal e regresso a Londres à noite.
- Então, vou imediatamente para lá. Porque não nos encontramos à porta da escola dentro de dez minutos?
- Fico ansiosamente à sua espera - disse Seb.
Desligou o telefone e refez rapidamente os seus passos até à escola. Não teve de esperar muito para avistar um homem de aspeto frágil a caminhar lentamente em direção a ele, com a ajuda de uma bengala.
Depois de Seb se ter apresentado, Swann disse:
- Como tem tão pouco tempo, senhor Clifton, o melhor é levá-lo diretamente para Memorial Hall, onde lhe posso mostrar o projeto do arquiteto para o novo teatro e responder a qualquer pergunta que me queira fazer.
Seb seguiu o velhote, transpondo os portões da escola, atravessando o pátio até chegar ao espaço em questão, enquanto o ouvia falar sobre a importância de os jovens terem o seu próprio teatro e a diferença que isso faria para a comunidade local.
Seb estudou demoradamente os desenhos pormenorizados do arquiteto que estavam afixados na parede, enquanto Swann continuava a falar com entusiasmo sobre o projeto.
- Como pode ver, senhor Clifton, apesar de irmos ter um arco de proscénio, ainda haverá espaço suficiente nos bastidores para guardar os adereços, ao mesmo tempo que os atores que aí se encontram não ficarão em cima uns dos outros. Além disso, se conseguir angariar a totalidade do montante, rapazes e raparigas poderão ter camarins separados. - Recuou. - O sonho de uma vida - admitiu - que espero ver concretizado antes de morrer. Mas posso perguntar-lhe porque é que o seu banco se interessou por um pequeno projeto em Shifnal?
- Estamos presentemente a adquirir terrenos nesta área para clientes que estão interessados em tirar partido dos últimos incentivos fiscais oferecidos pelo governo. Percebemos que isso não granjeará grande popularidade na aldeia, por isso decidimos apoiar alguns projetos locais.
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- Um desses terrenos será por acaso Shifnal Farm?
Seb foi apanhado de surpresa pela pergunta de Swann e levou algum tempo até conseguir responder:
- Não, vimos a propriedade do senhor Collingwood e, depois de pesar os prós e os contras, decidimos que estava excessivamente cara.
- Quantas crianças acha que ensinei ao longo da vida, senhor Clifton?
- Não faço ideia - disse Seb, desconcertado com a pergunta.
- Mais de três mil, por isso sei quando alguém está a tentar escapar contando-me apenas metade da história.
- Não sei se estou a perceber.
- Está a perceber muito bem, senhor Clifton. A verdade é que veio tirar nabos da púcara e não tem o menor interesse no meu teatro. O que quer realmente saber é porque é que alguém está disposto a pagar um milhão e seiscentas mil libras por Shifnal Farm, quando mais ninguém ofereceu nada que se pareça com esse valor. Estou certo?
- Sim - confessou Seb. - E se eu soubesse a resposta a essa pergunta, tenho a certeza de que o meu banco estaria disposto a fazer um donativo substancial para o seu novo teatro.
- Quando for velho, senhor Clifton, e lá chegará, vai achar que tem demasiado tempo livre, sobretudo se tiver tido uma vida ativa e proveitosa. Por isso, quando alguém fez uma oferta excessiva por Shifnal Farm, a minha curiosidade levou a melhor e decidi passar algum do meu tempo livre a tentar descobrir porquê. Como qualquer bom detetive, comecei à procura de pistas, e posso dizer-lhe que, após seis meses de investigação diligente, seguindo até as dicas mais improváveis, sei agora exatamente porque é que alguém está disposto a pagar muito mais por Shifnal Farm do que o preço solicitado.
Seb sentiu o coração a bater violentamente.
- E se quiser saber o que descobri, não só fará um donativo substancial para o teatro da escola, como financiará todo o projeto.
- E se estiver enganado?
- Esse é um risco que terá de correr, senhor Clifton, pois só faltam dois dias para acabar o prazo de licitação.

113
- Então, também tem de estar disposto a correr o risco - disse Seb -, pois não vou desembolsar mais de oito mil libras, a menos e até que se tenha provado que está certo.
- Antes de concordar com isso, é a minha vez de lhe fazer uma pergunta.
- Claro - disse Seb.
- Por acaso, tem algum parentesco com Harry Clifton, o autor?
- Sim, é meu pai.
- Bem o achei parecido. Embora não tenha lido nenhum dos seus livros, segui com grande interesse a campanha a favor de Anatoly Babakov, e, se Harry Clifton é seu pai, isso para mim é o suficiente.
- Obrigado, senhor - disse Seb.
- Agora, sente-se, meu jovem, porque o tempo está contra nós.
Seb empoleirou-se na beira do palco, enquanto Swann lhe contava lentamente a investigação meticulosa que empreendera durante os últimos seis meses e que o tinha levado a uma única conclusão. Uma conclusão que Seb considerou isenta de falhas. Saltou do palco para o chão.
- Posso fazer-lhe mais uma pergunta antes de me ir embora?
- Claro, meu jovem.
- Porque é que não contou a Collingwood o que descobriu? No fim de contas, não teria perdido um cêntimo se não tivesse de pagar até o senhor provar que estava certo.
- Ensinei Dan Collingwood quando ele andou na escola - disse Swann. - Mesmo em rapaz, era ganancioso e estúpido, e não melhorou grande coisa desde então. Mas ele não estava interessado no que eu tinha para lhe dizer, limitou-se a dar-me um donativo de cinco libras e desejou-me sorte.
- Então, não contou isto a mais ninguém? - perguntou Seb, tentando não parecer demasiado ansioso.
O velhote hesitou por um momento.
- Contei a outra pessoa - admitiu -, mas não voltei a ter notícias dele.
Seb não precisou de perguntar o nome.
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Sebastian bateu à porta do número 37 de Cadogan Place pouco depois das oito da noite. Cedric respondeu ao chamamento e, sem uma palavra, conduziu o seu jovem protegido à sala de estar. Os olhos de Seb pousaram de imediato numa paisagem de Hockney pendurada por cima da lareira, antes de admirar a maquete de Henry Moore sobre o aparador. Seb não tinha dúvidas de que, se Picasso tivesse nascido no Yorkshire, a sua obra também faria parte da coleção de Cedric.
- Não me queres acompanhar num copo de vinho? - perguntou Cedric. - Châteauneuf-du-Pape 1959. Pela expressão do teu rosto, tenho a sensação de que bem o mereces.
- Obrigado, senhor - disse Seb, ao mesmo tempo que se deixava cair na cadeira mais próxima. Cedric entregou-lhe um copo e sentou-se à frente dele.
- Quando tiveres recuperado o fôlego, conta-me o teu dia, devagarinho.
Seb bebeu um gole. Não era um vintage que o senhor Ramsey servisse em Shifnal Arms nessa noite.
Vinte minutos mais tarde, quando Seb chegou ao fim da sua história, Cedric observou:
- Esse Swann parece-me um tipo bastante perspicaz. Tenho a sensação de que ia gostar dele. Mas o que é que aprendeste com esse encontro? - Era uma pergunta que ele fazia com frequência quando Seb era seu assistente pessoal.
- Lá porque um homem está fragilizado fisicamente, isso não significa que a sua mente não continue apurada.
- Ótimo. Mais alguma coisa?
- A importância da reputação.
- Do teu pai, neste caso - recordou-lhe Cedric. - Mas mesmo que não retires mais nada do dia de hoje, Seb, essa lição, só por si, terá feito com que a tua viagem a Shifnal tenha valido a pena. No entanto, agora tenho de enfrentar o facto de que um dos meus mais altos funcionários pode estar a negociar nas minhas costas. - Bebeu um gole de vinho antes de prosseguir. - E claro que é possível que Sloane tenha uma explicação simples, mas, não sei porquê, duvido.
Seb reprimiu um sorriso.
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- Mas não devíamos fazer alguma coisa em relação ao negócio, agora que sabemos o que o governo tem em mente?
- Tudo a seu tempo. Mas, primeiro, preciso de trocar uma palavrinha com Ralph Vaughan, porque ele não vai ficar satisfeito quando eu retirar a oferta do banco e ainda vai ficar mais irritado quando lhe disser o motivo.
- Mas será que ele não vai aceitar simplesmente uma das ofertas mais baixas?
- Não, se pensar que ainda há hipótese de obter um preço mais elevado se esperar mais uns dias.
- E o senhor Swann?
- Estou tentado a dar-lhe as 8234 libras, aconteça o que acontecer. Acho que ele as mereceu. - Cedric bebeu outro gole de vinho antes de acrescentar - Mas como não há mais nada que possamos fazer esta noite, Seb, sugiro que vás para casa. Na verdade, como amanhã vai ser um pandemónio, talvez seja melhor tirares o dia e manteres-te o mais longe possível do escritório. Mas vem ter comigo assim que chegares, na segunda-feira de manhã, pois tenho a sensação que vais ter de voltar a Shropshire.
Depois de saírem da sala e descerem o corredor em direção à porta de casa, Cedric disse:
- Espero que não tivesses nada planeado para esta noite... Nada de especial, pensou Seb. Ia apenas levar Samantha a jantar fora e pedir-lhe que se casasse comigo.
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Quando Sebastian percebeu que só teria de voltar ao escritório na segunda-feira de manhã, começou a planear um fim de semana surpresa para Samantha. Passou a manhã a reservar comboios, aviões, hotéis, e até consultou a hora de abertura do Rijksmuseum. Queria que o fim de semana em Amesterdão fosse perfeito, por isso, quando saíram da alfândega, ignorou a sinalização para os autocarros e comboios e dirigiu-se à praça de táxis.
- O Cedric deve ter ficado satisfeito quando descobriste o que Sloane andava a tramar - disse Sam, enquanto o táxi se juntava ao trânsito que saía do aeroporto. - O que achas que vai acontecer a seguir?
- Espero que Sloane seja despedido por volta das cinco horas desta tarde.
- Porquê às cinco da tarde?
- Era quando ele esperava fechar o negócio de Shifnal Farm.
- Há quase um elemento de tragédia grega nisso tudo - disse Sam. - Então, com um bocadinho de sorte, Sloane já lá não estará quando apareceres para trabalhar na segunda-feira.
- Quase de certeza, porque Cedric me pediu para ir ter com ele assim que chegar.
- Achas que vais ficar com o lugar de Sloane? - perguntou Sam enquanto o táxi entrava na autoestrada.
- Possivelmente. Mas o mais provável é que seja uma nomeação temporária, enquanto Cedric procura alguém mais experiente.
- Mas se conseguires concretizar o negócio em Shifnal, ele é capaz de não se dar ao trabalho de procurar outra pessoa.117
- Também é uma possibilidade, e não ficaria surpreendido se tivesse de apanhar novamente um comboio para Shrewsbury na segunda-feira. Ele contornou a rotunda pela esquerda?
- Não, pela direita - disse Sam, rindo. - Não te esqueças de que estamos no continente. - Virou-se para Seb, que continuava agarrado ao banco da frente, e pôs-lhe uma mão sobre a perna. - Desculpa - disse. - Às vezes, esqueço-me daquele horrível acidente.
- Eu estou bem - assegurou Seb.
- Esse tal senhor Swann agrada-me. Talvez fosse sensato mantê-lo do teu lado.
- O Cedric é da mesma opinião. E se conseguirmos o negócio, provavelmente vamos acabar por ter de construir uma sala de espetáculos na escola dele - acrescentou Seb enquanto entravam nos arredores da cidade.
- Presumo que vamos ficar no Amstel? - indagou Sam quando o luxuoso hotel de cinco estrelas com vista para o rio Amstel surgiu à frente deles.
- Desta vez, não, isso vai ter de esperar até eu ser presidente do banco. Mas, até lá, ficamos na pensão De Kanaal, uma residencial de uma estrela muito conhecida frequentada por gente em ascensão.
Sam sorriu ao mesmo tempo que o táxi parava à porta da pequena residencial entre uma frutaria e um restaurante indonésio.
- Muito melhor do que o Amstel - declarou ela ao entrarem no átrio acanhado.
Depois de se registarem, Seb levou as malas até ao último andar, já que a pensão não tinha elevador nem porteiro. Abriu a porta do quarto e acendeu a luz.
- Sumptuoso - exclamou Sam.
Seb mal podia acreditar que o quarto fosse tão pequeno. Só havia espaço suficiente para ficarem em pé de cada lado da cama.
- Desculpa - disse ele. - Eu queria tanto que este fim de semana fosse perfeito.
Sam abraçou-o.
- Às vezes, és mesmo tolo. Isto é perfeito. Prefiro ser uma pessoa em ascensão. Dá-nos alguma coisa por que ansiar.
Seb caiu de costas sobre a cama.
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- Eu sei aquilo por que anseio.
- Uma visita ao Rijksmuseum? - sugeriu Sam.
- Queria falar comigo? - perguntou Sloane ao entrar no gabinete do presidente. Não esperou que lhe dissessem para se sentar.
Cedric olhou para o diretor da divisão imobiliária, mas não sorriu.
- Acabei de ler o seu relatório mensal.
- Os resultados aumentaram dois vírgula dois por cento no último mês - recordou-lhe Sloane.
- Deveras impressionante. Mas pergunto-me se não poderia ter feito ainda melhor, se...
- Se o quê, senhor presidente? - retorquiu Sloane com brusquidão.
- Se Shifnal Farm tivesse sido incluída no seu relatório - disse Cedric, tirando uma brochura da secretária.
- Shifnal Farm? Tem a certeza de que é uma das minhas propriedades, e não de Clifton? - perguntou Sloane, mexendo nervosamente no nó da gravata.
- Tenho a certeza absoluta de que é uma das suas propriedades, Sloane. Aquilo de que não tenho a certeza é que seja uma das propriedades do banco.
- Onde é que quer chegar? - disse Sloane, subitamente na defensiva.
- Quando telefonei a Ralph Vaughan, o sócio principal da Savills, há uns momentos, ele confirmou que tinha recebido uma oferta sua de um milhão e seiscentos mil libras pela propriedade, com o banco como garante.
Sloane mexeu-se desconfortavelmente na cadeira.
- Tem razão, senhor presidente, mas, como o negócio ainda não foi fechado, só terá todos os pormenores quando eu lhe enviar o relatório do mês que vem.
- Um dos pormenores que precisará de explicação é o porquê de a conta estar registada em nome de um cliente em Zurique.
- Ah, sim! - disse Sloane. -Já me lembro. Tem toda a razão, estamos a trabalhar para um cliente suíço que prefere o anonimato,
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mas o banco cobra três por cento de comissão sobre qualquer negócio que façamos para esse tal cliente.
- E não foi preciso investigar muito - continuou Cedric, batendo com a mão num monte de papéis que tinha na secretária, à sua frente - para descobrir que esse tal cliente efetuou outras seis transações durante o ano passado e que conseguiu um lucro considerável.
- Mas não é isso que o meu departamento deve fazer? - protestou Sloane. - Gerar lucro para os nossos clientes, ao mesmo tempo que conseguimos uma bela comissão para o banco?
- É verdade - disse Cedric, tentando manter a calma. - Só é pena que a conta do cliente suíço esteja em seu nome.
- Como é que pode saber isso - explodiu Sloane - quando as contas dos clientes na Suíça não têm nome, mas sim um número?
- Não sabia, mas acabou de confirmar os meus piores receios, por isso agora terá de sofrer as consequências.
Sloane levantou-se de um salto.
- Consegui vinte e três por cento de lucro para o banco nos últimos dez meses.
- E se os meus cálculos estiverem corretos - ripostou Cedric - conseguiu outros quarenta e um por cento para si durante o mesmo período. E tenho a sensação de que Shifnal Farm ia ser o seu maior retorno financeiro até à data.
Sloane voltou a cair na cadeira, com uma expressão de desespero no rosto.
- Mas...
- Lamento ser portador de más notícias - continuou Cedric -, mas não vai conseguir realizar este negócio para o seu cliente suíço porque telefonei há uns minutos ao senhor Vaughan, da Savills, e retirei a oferta que tínhamos feito por Shifnal Farm.
- Mas nós podíamos ter conseguido um lucro enorme com esse negócio - disse Sloane, olhando agora para o presidente com ar de desafio. - Possivelmente, um milhão de libras.
- Não creio que esteja a falar de nós - disse Cedric. - Acho que está a falar de si. Apesar de ser o dinheiro do banco que estava a apresentar como garantia, e não o seu.
- Mas só conhece metade dos factos.
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- Posso assegurar-lhe, Sloane, que conheço todos os factos, graças ao senhor Swann.
Sloane levantou-se lentamente do lugar.
- Seu velho estúpido - disse ele, cuspindo as palavras. - Está desfasado da realidade e não compreende a atividade bancária moderna. Quanto mais depressa der lugar a um homem mais novo, melhor.
- Sem dúvida de que o farei, a seu tempo - disse Cedric, levantando-se para enfrentar o adversário -, mas de uma coisa tenho a certeza, esse tal homem já não vai ser o Sloane.
- Vai arrepender-se disto - ameaçou Sloane, inclinando-se sobre a secretária e olhando o presidente nos olhos.
- Não perca o seu tempo a ameaçar-me, Sloane. Homens muito maiores do que você já tentaram e fracassaram - disse Cedric, com a voz a subir de tom a cada palavra. - Só lhe falta fazer uma coisa, que é tratar de limpar a sua secretária e estar fora das instalações dentro de trinta minutos, porque, se não o fizer, eu próprio ponho as suas coisas lá fora, no passeio, para todos verem.
- Vai ter notícias dos meus advogados - gritou Sloane, dando meia-volta para se ir embora.
- Não me parece, a menos que esteja a pensar passar os próximos anos na prisão, porque posso assegurar-lhe que, assim que este velho estúpido tiver relatado o seu comportamento à comissão de ética do Banco de Inglaterra, não voltará a trabalhar na City.
Sloane virou-se, branco como a cal, e, tal como um jogador a quem só resta uma ficha, tentou a sorte uma última vez.
- Mas eu ainda podia fazer com que o banco ganhasse uma fortuna, se me...
- Vinte e nove minutos - gritou Cedric, tentando controlar a fúria, enquanto cambaleava para a frente e se agarrava à secretária.
Sloane não se mexeu quando o presidente abriu uma gaveta e tirou um frasquinho de comprimidos. Atrapalhou-se com a tampa de segurança, deixando cair o frasco em cima da secretária. Ambos o viram rolar para o chão. Cedric tentou encher um copo com água, mas já não tinha força para pegar no jarro.
- Preciso da sua ajuda - disse ele em voz arrastada, olhando para Sloane, que ficou ali especado a observá-lo atentamente. 121
Cedric cambaleou, deu um passo para trás e caiu pesadamente no chão, aflito para respirar. Sloane deu a volta à secretária devagarinho, sem nunca deixar de olhar para o presidente caído no chão, a lutar pela vida. Pegou no frasco e desenroscou a tampa. Cedric fitou-o enquanto ele despejava os comprimidos no chão, longe do seu alcance. A seguir, limpou o frasco vazio com um lenço que tirou do bolso do peito e pô-lo na mão do presidente.
Sloane inclinou-se sobre ele e escutou atentamente, percebendo que o presidente já não estava com uma respiração tão pesada. Cedric tentou erguer a cabeça, mas só conseguiu assistir impotente enquanto Sloane juntava todos os papéis que ele tinha na secretária e em que estivera a trabalhar nas últimas vinte e quatro horas. Sloane virou-se e afastou-se lentamente, sem olhar para trás uma única vez, evitando aqueles olhos que o queimavam.
Abriu a porta e espreitou para o corredor. Ninguém à vista. Fechou a porta silenciosamente atrás de si e foi à procura da secretária do presidente. O chapéu e o casaco já não estavam no cabide, por isso presumiu que ela já devia ter ido de fim de semana. Tentou manter a calma enquanto descia o corredor, mas o suor escorria-lhe pela testa e sentia o coração aos pulos.
Parou por um momento e ficou à escuta, como um cão a farejar o perigo. Decidiu tentar a sorte uma vez mais.
- Está aí alguém? - gritou.
A sua voz ecoou no teto alto do corredor, como se fosse uma sala de concertos, mas não obteve resposta. Verificou os gabinetes dos diretores um por um, mas estavam todos fechados à chave. Ninguém naquele piso, exceto Cedric, estaria ainda a trabalhar às seis horas de uma sexta-feira à tarde. Sloane sabia que ainda havia pessoal administrativo no edifício, funcionários que nunca pensariam em se ir embora antes dos chefes, mas nenhum deles iria incomodar o presidente, e as empregadas da limpeza só voltavam às cinco da manhã de segunda-feira. Isso deixava apenas Stanley, o porteiro noturno, que nunca sairia da sua confortável cadeira na receção, a menos que o edifício estivesse em chamas.
Sloane apanhou o elevador para o rés do chão e, ao atravessar o átrio, reparou que Stanley estava calmamente a dormitar. Não lhe perturbou o sono.
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- O Rijksmuseum - disse Sam quando entraram na galeria nacional holandesa - alberga uma das melhores coleções do mundo. Os Rembrandts são empolgantes, mas os Vermeers, os De Wittes e os Steens também estão entre o que de melhor verás dos mestres holandeses.
Avançaram lentamente de mão dada pela grandiosa galeria, com Sam a parar constantemente para mostrar uma personagem ou uma característica de determinada obra, sem nunca ter de consultar o seu guia. Sempre que havia cabeças que se viravam, e faziam-no com frequência, Seb sentia vontade de gritar: «E também é inteligente!»
Ao fundo da galeria, estava uma pequena multidão a admirar uma única obra.
- A Ronda Noturna - disse Sam - é uma obra-prima e, provavelmente, a obra mais conhecida de Rembrandt. Infelizmente, nunca saberemos como era o original porque a câmara municipal cortou os lados do quadro para caber entre duas colunas do edifício camarário.
- Deviam ter deitado abaixo as colunas - disse Seb, incapaz de desviar os olhos do grupo de figuras que rodeava um homem muito bem vestido que segurava uma lanterna.
- Que pena não fazeres parte da câmara municipal - disse Sam, enquanto passavam à sala seguinte. - E aqui está um quadro que vai fazer parte da minha tese de doutoramento - continuou ela, enquanto paravam em frente de uma grande tela. - Custa a acreditar que Rubens tenha pintado esta obra num fim de semana, porque tinha de assistir à assinatura de um tratado de paz entre os ingleses e os espanhóis na segunda-feira seguinte. A maior parte das pessoas desconhece que ele era diplomata, além de artista - disse ela, antes de avançar.
Seb sentia que devia estar a tirar notas, mas tinha o pensamento ocupado com outras coisas.
- Este é um dos meus favoritos - continuou Sam, parando em frente de O Casal Arnolfini.
- Já vi isso noutro lado - disse Seb.
- Ah, então às vezes ouves o que te digo. Viste-o quando visitámos a National Gallery no ano passado.123
- Então, o que está a fazer aqui?
- Provavelmente, está emprestado - disse Sam. - Mas só por mais um mês - acrescentou, depois de analisar mais atentamente a nota informativa na parede, ao lado do quadro. - Mas, mais importante ainda, lembras-te do que te disse sobre ele, na altura?
- Sim, é o casamento de um mercador rico, e Van Eyck deve ter sido encarregado de registar o acontecimento.
- Nada mau - disse Sam. - Por isso, na realidade, Van Eyck estava apenas a fazer o trabalho de um fotógrafo de casamentos nos nossos dias. Seb preparava-se para dizer alguma coisa, mas ela acrescentou:
- Olha só para a textura do vestido da noiva, e para a pele que debrua o casaco do noivo. Quase consegues apalpá-la...
- A noiva parece-me bastante grávida.
- Que observador que tu és, Seb. Mas qualquer homem rico na altura tinha de ter a certeza de que a mulher que escolhera como esposa era capaz de gerar um herdeiro a quem deixar a fortuna.
- Mas que práticos que eram estes holandeses - disse Seb. - E se a pessoa não fosse rica?
- Esperava-se que as classes mais baixas se comportassem mais decentemente.
Seb pôs um joelho no chão em frente do quadro, olhou para Sam e disse:
- Samantha Ethel Sullivan, adoro-te, e sempre te adorarei, e o que mais quero no mundo é que sejas minha mulher.
Sam corou e, inclinando-se, sussurrou:
- Levanta-te, meu idiota. Está toda a gente a olhar para nós.
- Não até teres respondido à minha pergunta.
Um pequeno grupo de visitantes tinha parado de olhar para os quadros e estava à espera de que ela respondesse.
- Claro que caso contigo - disse ela. - Amo-te desde o dia em que fizeste com que me prendessem.
Vários mirones, com ar bastante perplexo, tentavam traduzir as suas palavras.
Seb levantou-se, tirou do bolso do casaco um pequeno estojo vermelho de pele e estendeu-lho. Quando Sam abriu o estojo e viu a124
requintada safira azul rodeada por uma série de pequenos diamantes por uma vez ficou sem palavras.
Seb tirou o anel para fora e colocou-o no terceiro dedo da mão esquerda de Sam. Quando se inclinou para a frente para beijar a noiva, foi saudado por uma salva de palmas. Enquanto se afastavam, de mão dada, Samantha olhou para trás, para o quadro, e perguntou-se se deveria contar-lhe.125
- Posso perguntar-lhe a que horas saiu do escritório na sexta-feira à tarde?
- Deve ter sido por volta das seis, inspetor - disse Sloane.
- E a que horas foi a sua reunião com o senhor Hardcastle?
- Às cinco. Reuníamos sempre às cinco horas da última sexta-fèira do mês, para analisar os números do meu departamento.
- E quando o deixou, ele parecia estar bem-disposto?
- Nunca o vi melhor - disse Sloane. - Os meus resultados mensais tinham subido dois vírgula dois por cento e tive oportunidade de lhe contar os pormenores de um novo projeto em que tenho andado a trabalhar, e que o deixou muito entusiasmado.
- O patologista estimou a hora da morte por volta das seis da tarde de sexta-feira, por isso deve ter sido a última pessoa a vê-lo com vida.
- Se assim foi, quem me dera que a nossa reunião tivesse durado um pouco mais - disse Sloane.
- Pois. O senhor Hardcastle tomou algum comprimido enquanto esteve com ele?
- Não. E embora todos soubéssemos que Cedric tinha um problema cardíaco, ele fazia questão de não tomar a medicação à frente dos funcionários.
- É estranho os comprimidos estarem espalhados ao acaso pelo chão do gabinete, e ele ter o frasco vazio na mão. Porque é que não terá conseguido agarrar pelo menos um deles?
Sloane não disse nada.
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- E Stanley Davis, o porteiro noturno, disse-me que lhe telefonou no sábado de manhã para ver se tinha chegado um envelope.
- Sim, telefonei. Precisava de um documento para uma reunião que ia ter na segunda-feira de manhã.
- E chegou?
- Sim, mas só esta manhã.
- O senhor Davis disse-me que não se lembra de outra ocasião em que lhe tenha ligado a um sábado de manhã.
Sloane não mordeu o isco.
- O patologista emitiu uma certidão de óbito em que conclui que o senhor Hardcastle faleceu de ataque cardíaco, coisa que seguramente o médico-legista irá confirmar na investigação. - Sloane continuou sem dizer nada. - Posso presumir que estará por perto nos próximos dias, senhor Sloane, caso eu tenha mais alguma pergunta?
- Sim, pode, embora estivesse a pensar viajar amanhã até Huddersfield para apresentar as minhas condolências à viúva do senhor Hardcastle e para ver se haverá alguma coisa que eu possa fazer para ajudar nos preparativos para o funeral.
- É muito amável da sua parte. Bem, só tenho mais uma ou duas pessoas para entrevistar, senhor Sloane, e depois vou-me embora.
Sloane esperou que o inspetor saísse do gabinete e fechasse a porta atrás dele antes de agarrar no telefone.
- Preciso daqueles documentos prontos para assinar à hora de encerrar o expediente.
- Tenho uma equipa a trabalhar nisso neste preciso momento. O segundo telefonema de Sloane foi para Ralph Vaughan, na
Savills, que transmitiu os seus pêsames, mas não entrou em todos os pormenores da conversa que tivera com Cedric Hardcastle na sexta- feira à tarde.
- E tal como acontece consigo - disse Sloane - os nossos pensamentos estão com Cedric e com a sua família, neste momento. Mas a última coisa que ele me disse na sexta-feira à tarde foi para me certificar de que fechávamos o negócio da Shifnal Farm.
- Mas com certeza que sabe que ele retirou a oferta do banco na sexta-feira à tarde, o que foi no mínimo constrangedor.127
- Isso foi antes de eu ter oportunidade de o informar acerca de todos os pormenores, e sei que ele tencionava ligar-lhe assim que chegasse, esta manhã.
- Se assim é, estou disposto a prolongar o prazo por mais uma semana, mas não mais - sublinhou Vaughan.
- É muito amável, Ralph. E pode ter a certeza de que o depósito de cento e sessenta mil libras estará consigo ainda hoje, e apenas teremos de esperar para ver se alguém oferece mais.
- Não me parece que alguém o faça - retorquiu Vaughan. - Mas tenho de perguntar se tem autoridade para fazer uma oferta de um milhão e seiscentas mil libras em nome do banco.
- É meu dever zelar para que os últimos desejos de Cedric sejam cumpridos - disse Sloane, antes de desligar o telefone,
O terceiro e quarto telefonemas de Sloane foram para dois dos principais acionistas do banco, que disseram que o apoiariam, mas só se a senhora Hardcastle concordasse com a proposta.
- Terei os documentos na vossa secretária, prontos para assinar, amanhã, à hora de fecho do expediente - assegurou-lhes.
O quinto telefonema de Sloane foi para o Banco de Zurique, na Suíça.
Nessa manhã, Seb telefonou do escritório à mãe e contou-lhe a notícia.
- Tenho tanta pena - disse Emma. - Eu sei quanto admiravas Cedric.
- Não consigo deixar de pensar que os meus dias no Farthings estão contados, sobretudo se Adrian Sloane ocupar o lugar de Cedric.
- Mantém a cabeça baixa e lembra-te de que é muito difícil despedir alguém que está a fazer um bom trabalho.
- É óbvio que não conhece o Sloane. Ele teria despedido Wellington na manhã da Batalha de Waterloo, se isso lhe garantisse que se tornaria general.
- Não te esqueças de que Ross Buchanan continua a ser o vice-presidente e o candidato mais provável para substituir Cedric.
- Espero que tenha razão - suspirou Seb.128
- Tenho a certeza de que Cedric pôs Ross ao corrente das atividades de Sloane. E depois diz-me, por favor, quando e onde se realizará o funeral, pois eu e o teu pai queremos estar presentes.
- Lamento imenso incomodá-la numa altura como esta, senhora Hardcastle, mas ambos sabemos que Cedric não esperaria outra coisa de mim.
Beryl Hardcastle aconchegou o xaile de lã à sua volta com firmeza e chegou-se para trás, quase desaparecendo na grande poltrona de couro.
- O que precisa que eu faça? - murmurou.
- Nada de muito complicado - disse Sloane. - São só uns documentos que precisam de ser assinados, e a seguir sei que o reverendo Johnson está à espera para lhe explicar os passos do serviço religioso. A sua única preocupação é que a igreja não seja suficientemente grande para acomodar a comunidade local, assim como todos os amigos e colegas de Cedric que virão de Londres na quinta-feira.
- Ele não ia querer que eles perdessem um dia de trabalho por causa dele - disse Beryl.
- Não tive coragem de impedi-los.
- É muito gentil da sua parte.
- Não é mais do que ele merece - disse Sloane. - Mas ainda há uma pequena questão que precisamos de tratar. - Tirou três volumosos documentos da pasta. - Só preciso da sua assinatura para o banco poder prosseguir a sua atividade normal.
- Pode esperar até à tarde? - perguntou Beryl. - O meu filho Arnold vem agora a caminho, de Londres. Como provavelmente saberá, ele é advogado e normalmente aconselha-me nos assuntos relacionados com o banco.
- Receio bem que não - disse Sloane. - Vou ter de apanhar o comboio das duas da tarde de regresso a Londres se quiser manter todos os compromissos que o senhor Hardcastle tinha agendado. Se isso ajudar, terei todo o gosto em enviar cópias dos documentos para o escritório de Arnold, assim que chegar ao banco. - Pegou-lhe na mão. - Só preciso de três assinaturas, senhora Hardcastle. Mas faça o favor de ler os documentos, se tiver alguma dúvida.129
- Suponho que não faça mal - disse Beryl, aceitando a caneta que Sloane lhe estendia sem fazer qualquer tentativa para ler a letra miudinha densamente dactilografada. Sloane saiu da sala e pediu ao vigário para se lhes juntar. A seguir, ajoelhou-se ao lado da senhora Hardcastle, virou a última página do primeiro documento e pôs um dedo na linha tracejada. Beryl assinou os três documentos na presença do reverendo Johnson, que testemunhou inocentemente a sua assinatura.
- Fico ansioso por voltar a vê-la na quinta-feira - disse Sloane, pondo-se em pé -, quando recordarmos com admiração e gratidão tudo o que Cedric alcançou ao longo de uma vida notável.
Deixou a velha senhora na companhia do vigário.
- Senhor Clifton, pode dizer-me onde estava às cinco horas da tarde de sexta-feira?
- Estava em Amesterdão com a minha namorada, Samantha, a visitar o Rijksmuseum.
- Quando é que viu o senhor Cedric Hardcastle pela última vez?
- Fui a casa dele, em Cadogan Place, na quinta-feira à noite, pouco passava das oito, depois de ter voltado de Shifnal, em Shropshire.
- Posso perguntar-lhe porque é que o senhor Hardcastle queria que o visitasse fora do horário de trabalho, quando podia estar com ele no escritório na manhã seguinte?
Sebastian perdeu algum tempo a pensar na sua resposta, ciente de que apenas precisava de dizer que era um assunto particular relativo ao banco, e o inspetor teria de avançar.
- Eu estava a investigar um negócio, em que o presidente tinha razões para acreditar que um quadro superior andava a negociar nas suas costas.
- E não descobriu que a pessoa em causa estava a negociar nas costas do senhor Hardcastle?
- Sim, descobri.
- Esse tal quadro superior seria, por acaso, o senhor Adrian Sloane?130
Seb ficou em silêncio.
- Qual foi a atitude do senhor Hardcastle depois de lhe ter contado o que descobrira?
- Avisou-me que pretendia despedir a pessoa em causa no dia seguinte e aconselhou-me a estar o mais longe possível do escritório quando o fizesse.
- Porque ia despedir o seu chefe?
- E era por isso que eu estava em Amesterdão na sexta-feira à tarde - disse Seb, ignorando a pergunta. - Coisa que agora lamento.
- Porquê?
- Porque, se tivesse ido para o escritório nesse dia, era capaz de ter conseguido salvar o senhor Hardcastle.
- Acredita que o senhor Sloane o teria salvado, confrontado com as mesmas circunstâncias?
- O meu pai diz sempre que um polícia nunca deve fazer uma pergunta hipotética.
- Nem todos conseguimos resolver os crimes com tanta facilidade como o inspetor Warwick.
- Acha que Sloane assassinou o senhor Hardcastle? - perguntou Seb.
- Não, não acho - disse o inspetor. - Embora seja possível que ele lhe pudesse ter salvado a vida. Mas até mesmo o inspetor Warwick teria dificuldade em provar uma coisa dessas.
Sua Excelência Reverendíssima Ashley Tadworth, bispo de Huddersfield, subiu a meia dúzia de degraus e tomou o seu lugar no púlpito, durante o último verso de «Abide With Me».
Ele olhou para a igreja apinhada e esperou que toda a gente se acomodasse. Algumas pessoas, que não tinham conseguido encontrar lugar, estavam em pé nas naves laterais, enquanto outras, que tinham chegado tarde, se aglomeravam na parte de trás da igreja. Mostrava bem a importância daquele homem.
- Os funerais são, naturalmente, eventos tristes - começou o bispo. - Mais ainda quando os falecidos pouco mais lograram do
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que levar uma vida sem mácula, o que pode tornar o seu elogio fúnebre uma tarefa difícil. Eu não tive esse problema quando preparei a minha alocução sobre a vida exemplar de Cedric Arthur Hardcastle.
»Se tivéssemos de equiparar a vida de Cedric a um extrato bancário, diríamos que ele deixou este mundo com saldo positivo em todas as contas. Por onde hei de começar, para vos contar a história improvável deste extraordinário homem do Yorkshire?
Cedric deixou a escola aos quinze anos e juntou-se ao pai, no Farthings Bank. Sempre tratou o pai por «senhor», tanto no trabalho como em casa. Na verdade, o pai reformou-se mesmo a tempo de não se ver obrigado a tratar o filho por «senhor».
Ouviram-se algumas risadinhas entre a congregação.
- Cedric iniciou a sua vida profissional como estagiário. Dois anos mais tarde, tornou-se caixa, ainda antes de ter idade suficiente para abrir uma conta bancária. Daí, passou a subgerente, gerente de filial e, mais tarde, chefe de área, antes de se tornar o mais jovem diretor da história do banco. E, sinceramente, ninguém ficou surpreendido quando se tornou presidente do banco aos quarenta e dois anos, cargo que exerceu durante os últimos vinte e três anos. Ao longo desse tempo, fez com que o Farthings passasse de um banco local numa pequena vila no Yorkshire a uma das instituições financeiras mais respeitadas da City londrina.
»Mas uma coisa que não teria mudado, mesmo que Cedric se tivesse tornado presidente do Banco de Inglaterra, era o lema constantemente repetido: «Tomem conta das moedas de dinheiro que as libras tomarão conta de si próprias.»
- Acha que nos safámos? - perguntou Sloane com grande nervosismo.
- Se, com isso, está a perguntar se tudo o que fez nos últimos quatro dias é legal e transparente, a resposta é sim.
- Temos quórum?
- Temos - disse Malcolm Atkins, o chefe do gabinete jurídico do banco. - O diretor-geral, o secretário do banco e seis administradores não executivos estão à sua espera na sala do conselho de administração. Já agora - acrescentou - adoraria saber o que é que lhes
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disse quando eles sugeriram que talvez devessem estar hoje num funeral em Huddersfíeld e não numa reunião do conselho em Londres?
- Disse-lhes muito simplesmente que a escolha era deles. Podiam votar por um lugar neste mundo ou no outro.
Atkins sorriu e olhou para o relógio.
- Vamos ter com eles. São quase dez horas.
Os dois homens saíram do gabinete de Sloane e percorreram silenciosamente o corredor alcatifado. Quando Sloane entrou na sala do conselho, toda a gente se levantou, tal como sempre haviam feito com o falecido diretor.
- Meus senhores - disse o secretário do banco depois de estarem todos sentados. - Esta reunião extraordinária foi convocada com uma finalidade, a saber...
- Sempre que pensarmos em Cedric Hardcastle - continuou o bispo -, devemos lembrar-nos acima de tudo de uma coisa. Ele era por excelência um homem do Yorkshire. Se o Segundo Advento tivesse acontecido em Headingley durante o intervalo de um jogo de críquete entre Yorkshire e Lancashire, ele não teria ficado surpreendido. Cedric tinha uma convicção inabalável de que o Yorkshire era um país e não um condado. Na verdade, ele considerava que o Farthings Bank não se tinha internacionalizado com a abertura de uma filial em Hong Kong, mas sim com a de Manchester.
Esperou que as gargalhadas esmorecessem, antes de continuar.
- Cedric não era um homem vaidoso, mas isso não o impedia de ser orgulhoso. Orgulhoso do banco que serviu todos os dias, e ainda mais orgulhoso do número de clientes e funcionários que prosperaram sob a sua orientação e liderança. Muitos dos que aqui estão hoje, desde o estagiário mais recente ao presidente da Sony International, beneficiaram da sua sabedoria e intuição. Mas ele será sobretudo lembrado pela sua reputação inquestionável: pela sua honestidade, integridade e decência. Qualidades que tomava por garantidas quando negociava com os seus semelhantes. Ele considerava que um bom negócio era aquele em que ambas as partes ficavam a lucrar133
e teriam todo o prazer em se cumprimentar mutuamente quando se vissem na rua.
- O único ponto na agenda de hoje - prosseguiu o secretário do banco - é a eleição de um novo presidente, na sequência da morte trágica de Cedric Hardcastle. Apenas foi proposto um nome, o do senhor Adrian Sloane, diretor da nossa muito rentável divisão imobiliária. O senhor Sloane já obteve o apoio legal de sessenta e seis por cento dos nossos acionistas, mas considerou que a sua nomeação também devia ser ratificada pelo conselho de administração.
Malcolm Atkins interveio no momento certo.
- Tenho o prazer de propor que Adrian Sloane seja o próximo presidente do Farthings Bank, pois sinto que seria isso que Cedric teria querido.
- E eu congratulo-me por apoiar essa proposta - disse Desmond Mellor, um administrador não executivo nomeado recentemente.
- Quem é a favor? - inquiriu o secretário. Levantaram-se oito mãos. - Declaro a proposta aprovada por unanimidade.
Sloane levantou-se devagar.
- Não é fácil ocupar o lugar de Cedric Hardcastle. Vou substituir um homem que nos deixou em circunstâncias trágicas. Um homem que todos pensávamos que ficaria ainda connosco durante muitos anos. Um homem que eu não podia ter admirado mais. Um homem que considerava não só um colega, mas um amigo, o que me deixa ainda mais orgulhoso de pegar no seu testemunho e levá-lo durante a próxima estafeta da corrida do banco. Sugiro respeitosamente que todos nos levantemos e inclinemos a cabeça em memória de um grande homem.
- Mas, em última análise - continuou o bispo - será melhor recordar Cedric Hardcastle como um homem de família. Ele amava Beryl desde o dia em que ela lhe deu mais um decilitro de leite quando era a aluna encarregada de distribuí-lo na escola primária em que134
ambos andavam, em Huddersfield, e não podia ter ficado mais orgulhoso quando o seu único filho, Arnold, se tornou advogado da Coroa. Embora ele nunca tivesse percebido porque é que o rapaz tinha escolhido Oxford, e não Leeds, para completar a sua educação.
»Permitam-me que termine resumindo aquilo que sinto por um dos meus mais antigos e queridos amigos com as palavras do epitáfio de Sir Thomas Fairfax escritas pelo duque de Buckingham:
Ele nunca soube o que era a inveja ou o ódio;
A sua alma estava cheia de merecimento e honestidade,
E de mais outra coisa, completamente fora de moda,
Chamada modéstia.
Malcolm Atkins ergueu um copo de champanhe.
- Ao novo presidente do Farthings - brindou, ao mesmo tempo que Sloane se sentava à secretária de Cedric pela primeira vez. - Então, qual vai ser a sua primeira ação executiva?
- Certificar-me de que fechamos o negócio Shifnal antes que mais alguém perceba porque é que um milhão e seiscentas mil libras é tão barato.
- E a segunda? - perguntou Mellor.
- Despedir Sebastian Clifton - disse ele furioso -, juntamente com quem era próximo de Hardcastle e concordava com a sua filosofia ultrapassada. Este banco está prestes a juntar-se ao mundo real, onde o seu único mantra será o lucro, e não as pessoas. E se alguns clientes ameaçarem transferir a conta de banco, que o façam, sobretudo se forem do Yorkshire. Doravante, o lema do banco será: Se só tem moedas de dinheiro, não se dê ao trabalho de ter conta connosco.
Sebastian inclinou a cabeça quando baixaram o caixão à terra, para ninguém ver as suas lágrimas. Ross Buchanan não tentou esconder os seus sentimentos. Emma e Harry deram a mão. Todos tinham perdido um bom e sábio amigo.
Enquanto se afastavam lentamente da sepultura, Arnold Hardcastle e a mãe juntaram-se-lhes.
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- Porque é que Adrian Sloane não estava aqui? - perguntou Ross. - Já para não falar em meia dúzia de outros diretores?
- O meu pai não teria sentido a falta de Sloane - disse Arnold. - Preparava-se para o despedir antes de morrer.
- Ele disse-lhe isso? - indagou Ross.
- Sim. Telefonou-me na sexta-feira, logo de manhã, para saber qual era a posição jurídica se o diretor de um departamento fosse apanhado a usar o dinheiro do banco para negócios particulares.
- Ele disse qual dos diretores de departamento? - perguntou Ross.
- Nem precisou de dizer.
- Há pouco, falou em seis diretores? - interrompeu Emma.
- Sim - disse Ross. - Que importância tem isso?
- Constitui um quórum. Se Cedric fosse vivo, teria descoberto o que Sloane anda a tramar.
- Oh, meu Deus! Agora, compreendo porque é que ele precisava que eu assinasse aqueles documentos - disse Beryl. - O Cedric nunca me irá perdoar!
- Estou tão chocado como a mãe, mas não se preocupe, pois ainda detém cinquenta e um por cento do banco.
- Será que alguém tem a bondade de me explicar em linguagem clara de que é que estão todos a falar? - pediu Harry.
- Adrian Sloane acabou de se nomear o novo presidente do Farthings - disse Sebastian. - Onde é que fica o telefone mais próximo?136
Sebastian olhou para o relógio. Só tinha tempo suficiente para fazer um telefonema. Ficou aliviado ao descobrir que a única cabina à vista estava desocupada e não se encontrava avariada. Marcou um número que sabia de cor.
- Victor Kaufman.
- Vic, daqui fala Seb.
- Olá, Seb. Parece que estás a falar do outro lado do mundo.
- Nem por isso. Estou na estação de Huddersfield. Vim mesmo agora do funeral de Cedric Hardcastle.
- Eu li o obituário dele no FT de hoje. Trabalhavas para um homem e tanto.
- E não sabes da missa a metade. E é por isso que te estou a ligar. Preciso de falar urgentemente com o teu pai.
- Só precisas de telefonar para a secretária dele e eu faço com que ela te marque uma hora.
- Aquilo que tenho para tratar não pode esperar. Preciso de falar com ele hoje à noite ou amanhã de manhã, o mais tardar.
- Estarei a pressentir um grande negócio?
- O maior que já me passou pelas mãos.
- Então, vou falar imediatamente com ele. Quando é que regressas a Londres?
- O meu comboio deve chegar a Euston às quatro e dez.
- Telefona-me da estação e eu...
Ouviu-se um apito estridente e Seb virou-se e viu uma bandeirola verde a esvoaçar. Largou o telefone, correu até à plataforma e saltou para o comboio em andamento.
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Sentou-se na parte de trás da carruagem e, depois de recuperar o fôlego, pensou em como conhecera Vic em St. Bede's, quando partilhara uma sala de estudo com ele e Bruno Martinez, e em como eles se haviam tornado nos seus melhores amigos; o filho de um imigrante judeu e o filho de um traficante de armas argentino. Com o passar dos anos, tinham-se tornado inseparáveis. A amizade ainda se tornara mais forte quando Seb acabara com um olho negro por defender o seu amigo judeu, embora na altura não soubesse muito bem o que era um judeu. Como um cego, desconhecedor de raça ou religião, depressa descobriu que o preconceito era muitas vezes ensinado à mesa do pequeno-almoço.
Centrou a sua atenção no sábio conselho que a mãe lhe dera antes de ter regressado com o pai a Bristol, após o funeral. Ele sabia que ela tinha razão.
Seb escreveu demoradamente um primeiro rascunho, e depois um segundo. Quando o comboio parou em Easton, já tinha completado a versão definitiva que esperava que contasse com a aprovação tanto da mãe como de Cedric.
Sloane reconheceu imediatamente a caligrafia. Rasgou o envelope para tirar a carta, ficando mais furioso a cada palavra que lia.
Caro senhor Sloane,
Não posso acreditar que mesmo o senhor tenha descido tão baixo a ponto de fazer uma reunião do conselho de administração no dia do funeral de Cedric Hardcastle, com o único propósito de se ver nomeado presidente.
Ao contrário de mim, provavelmente Cedric não teria ficado surpreendido com a sua hipocrisia.
Pode pensar que vai escapar impune, mas posso assegurar-lhe que não, pois não descansarei até que seja desmascarado como impostor, já que ambos sabemos que é a última pessoa que Cedric teria querido ver a sucedê-lo.
Depois de ler esta carta, não ficará surpreendido por saber que não quero continuar a trabalhar para um charlatão amoral como o senhor.
S. Clifton
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Sloane levantou-se de um salto, incapaz de controlar o seu mau génio. Entrou de rompante no gabinete da sua secretária e gritou:
- Ele ainda está no edifício?
- Quem? - perguntou Rachel inocentemente.
- Clifton, quem havia de ser?
- Não o voltei a ver desde que me entregou uma carta e me pediu para a pôr na sua secretária.
Sloane saiu para o corredor, ainda na esperança de encontrar Clifton no seu posto de trabalho, para poder despedi-lo publicamente.
- Onde está Clifton? - exigiu saber ao entrar no gabinete de Sebastian. Bobby Rushton, o jovem assistente de Seb, olhou para o novo presidente e ficou tão petrificado que não conseguiu dizer o que quer que fosse. - É surdo? - gritou Sloane. - Não ouviu o que eu disse? Onde está Clifton?
- Ele arrumou as coisas dele e foi-se embora há uns minutos - disse Rushton. - Disse-nos a todos que se tinha demitido e que não voltaria aqui.
- Apenas uns minutos antes de ter sido despedido - disse Sloane. Olhando para o jovem, acrescentou: - E você pode ir com ele. Quero-o fora das instalações daqui a uma hora, e veja se não deixa nada nesta sala que sugira sequer a existência de Clifton.
Sloane voltou para o seu gabinete e sentou-se à secretária. Havia mais cinco envelopes à espera de ser abertos, todos eles com a inscrição Particular.
- Só estive com Cedric Hardcastle meia dúzia de vezes, sobretudo em ocasiões sociais - disse Saul Kaufman. - Nunca fizemos nenhum negócio, mas eu gostava de ter feito, pois ele era um dos poucos homens na City que continuava a acreditar que era um aperto de mão que fechava um negócio, e não um contrato.
- Com o novo presidente, nem mesmo um contrato fechará necessariamente um negócio...

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- Nunca estive com Adrian Sloane, só o conheço de nome. Era por causa dele que querias falar comigo com tanta urgência?
- Sim, senhor - disse Seb. - Eu andava a investigar um grande negócio que envolvia Sloane quando o presidente sofreu o ataque cardíaco.
- Então, conta-me com vagar tudo o que sabes sobre o negócio, e não deixes nada de fora.
Seb começou por contar ao senhor Kaufman o telefonema que recebera de Ralph Vaughan, da Savills, e que o alertara para o que Sloane andava a tramar. E como na manhã seguinte, por indicação de Cedric, tinha viajado até Shifnal e descoberto, no seu encontro com o senhor Swann ao final do dia, porque é que Sloane estava disposto a pagar muito acima do valor de mercado por uma quinta de quatrocentos hectares em Shropshire.
Quando Seb chegou ao final da sua história, o rosto de Kaufman abriu-se num sorriso enigmático.
- Será possível que o senhor Swann se tenha deparado com algo que passou despercebido a todos nós? Não tardaremos a descobrir, porque o governo deve anunciar as suas conclusões nas próximas semanas.
- Mas nós não temos semanas, apenas dois dias. Não se esqueça de que as propostas têm de dar entrada até às cinco da tarde de amanhã.
- Então, queres que eu cubra a proposta de Sloane, com base na possibilidade de o senhor Swann ter descoberto o que o governo planeou?
- Cedric estava disposto a correr esse risco.
- E, ao contrário de Sloane, Cedric Hardcastle tinha fama de ser um homem cauteloso. - Kaufman juntou as mãos como se estivesse a rezar e, quando a sua prece foi atendida, disse: - Preciso de fazer uns telefonemas antes de chegar a uma decisão definitiva, por isso volta ao meu gabinete amanhã à tarde, às dezasseis e quarenta. Se eu ficar convencido, tratamos do assunto nessa altura.
- Mas já será demasiado tarde!
- Não me parece - disse Kaufman.
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Quando Seb saiu do banco, estava desorientado e nada convencido de que Kaufman levasse o negócio para a frente. Mas não tinha a quem mais recorrer.
Apressou-se a ir para casa. Queria partilhar com Samantha tudo o que acontecera desde que saíra do apartamento, nessa manhã. Ela via sempre as coisas noutra perspetiva, muitas vezes de uma forma invulgar e surpreendente.
Enquanto Sam preparava o jantar, Seb contou-lhe quem tinha ido ao funeral nessa manhã e, mais importante ainda, quem não tinha ido, e o que Sloane e os seus comparsas tinham feito enquanto ele estava em Huddersfield... e porque é que andava agora à procura de emprego.
Quando ele parou finalmente de andar de um lado para o outro na cozinha e se sentou, Sam disse:
- Mas tu sempre soubeste que Sloane era um vigarista, por isso não devias estranhar ele ter convocado uma reunião do conselho quando todos os que lhe podiam fazer frente estavam fora. Aposto que a tua mãe teria percebido o que ele tinha na manga.
- E percebeu, mas nessa altura já era demasiado tarde. Mas continuo a pensar que podemos derrotar Sloane com as suas próprias armas.
- Não com as suas armas - disse Sam. - Tenta pensar no que Cedric teria feito nessas circunstâncias, e não Sloane.
- Mas se o quiser derrotar, tenho de pensar como ele.
- Possivelmente, mas isso não significa que tenhas de proceder como ele.
- Shifnal Farm é uma oportunidade que surge uma vez na vida.
- Isso não é razão suficiente para andar a rastejar na mesma sarjeta que Sloane.
- Mas, Sam, posso não voltar a ter uma oportunidade destas.
- Claro que terás, Seb. Pensa a longo prazo e perceberás a diferença entre Adrian Sloane e Cedric Hardcastle. Porque de uma coisa tenho absoluta certeza: poucas serão as pessoas que irão estar presentes no funeral de Adrian Sloane.
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Sexta-feira foi o dia mais longo da vida de Sebastian. Quase não dormira na noite anterior, a tentar perceber o que é que Kaufman estava a preparar.
Quando Sam saiu para assistir a uma conferência em King's College, ele andou pelo apartamento, fingiu ler o jornal da manhã, passou imenso tempo a lavar a pouca louça do pequeno-almoço, até foi fazer uma corrida no parque, mas quando voltou ainda mal passava das onze.
Tomou um duche, fez a barba e abriu uma lata de feijão. Não parava de olhar para o relógio, mas o ponteiro dos segundos continuava a levar sessenta segundos para dar a volta ao mostrador.
Depois do que passou por um almoço de faca e garfo, subiu para o quarto, tirou o fato mais elegante do roupeiro, vestiu uma camisa branca acabada de passar e pôs a gravata da sua antiga escola. Por fim, puxou o lustro a um par de sapatos até serem motivo de orgulho de qualquer sargento-mor.
As quatro da tarde, estava na paragem de autocarro, à espera de que o número 4 o levasse à City. Saiu em St. Paul's e, embora caminhasse lentamente, às 16h25 já estava à porta do banco de Kaufman. Não lhe restava outra alternativa senão dar um passeio pelo quarteirão. Ao passar por tantas instituições da City que lhe eram familiares, lembrou-se do quanto gostava de trabalhar na «Square Mile». Tentou não pensar muito no facto de estar desempregado.
Às 16h38, Seb entrou no banco e disse à rececionista:
- Tenho hora marcada com o senhor Kaufman.
- Qual deles? - perguntou ela, brindando-o com um sorriso caloroso.
- O presidente.
- Obrigada, senhor. Se quiser sentar-se, vou dizer-lhe que está aqui.
Seb andou de um lado para o outro pelo átrio, a ver um ponteiro dos segundos descrever um círculo maior à volta de um mostrador maior, mas precisamente com o mesmo resultado. Os seus pensamentos foram interrompidos com uma palmadinha no ombro e as palavras:142
- O presidente está à nossa espera no gabinete. Eu levo-te lá acima.
Seb ficou impressionado com o facto de Vic não ter dito «pai». Sentia as palmas das mãos a transpirar e, enquanto o elevador subia vagarosamente até ao último piso, limpou-as às calças. Quando entraram no gabinete do presidente, encontraram o senhor Kaufman ao telefone.
- Preciso de falar com um colega antes de tomar essa decisão, senhor Sloane. Ligo-lhe por volta das cinco. - Seb fez uma expressão horrorizada, mas Kaufman levou um dedo aos lábios. - Se lhe convier.
Sloane pousou o auscultador, voltou a levantá-lo de imediato e, sem passar pela secretária, marcou um número.
- Ralph, é Adrian Sloane.
- Já estava à espera de que fosse - disse Vaughan, olhando para o relógio. - Vai gostar de saber que ninguém ligou por causa de Shifnal Farm durante todo o dia. Portanto, como só faltam quinze minutos, creio que podemos presumir que a propriedade é sua. Eu ligo-lhe assim que forem cinco horas, para podermos combinar a forma de tratar da papelada.
-Por mim, tudo bem - disse Sloane -, mas não estranhe se
a linha estiver ocupada quando ligar, porque estou neste momento a tratar de um negócio ainda mais importante do que Shifnal Farm.
-Mas se alguém fizer uma oferta entre este momento e as cinco da tarde...
- Isso não vai acontecer - atalhou Sloane. - Certifique-se apenas que envia o contrato para o Farthings assim que aí chegar, na segunda de manhã. Terá um cheque a sua espera.
- Faltam dez para as cinco - disse Vic.
- Paciência, rapaz - disse o velhote. - Só há uma coisa que importa quando estamos a tentar fechar um negócio. Sentido de oportunidade.
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Recostou-se e fechou os olhos, embora estivesse bem desperto. Tinha dito à secretária que não devia ser incomodado em circunstância alguma entre as dez para as cinco e as cinco e dez. Nem Vic nem Seb disseram o que quer que fosse.
De repente, os olhos de Saul abriram-se e sentou-se muito direito. Verificou se os dois telefones que tinha na secretária estavam colocados exatamente onde ele os queria. Quando faltavam seis minutos para as cinco, inclinou-se para a frente e pegou no telefone preto. Marcou o número de um agente imobiliário em Mayfair e pediu para falar com o sócio principal.
- Senhor Kaufman, que prazer inesperado - disse Vaughan. - Em que posso ajudá-lo?
- Pode começar por me dizer as horas, senhor Vaughan.
- Faltam cinco minutos para as cinco - disse uma voz desconcertada. - Porquê?
- Porque queria ter a certeza de que ainda é possível fazer uma oferta sobre Shifnal Farm, em Shropshire.
- Claro que sim, mas devo avisá-lo de que já temos uma oferta de outro banco no valor de um milhão e seiscentas mil libras.
- Então, ofereço um milhão, seiscentas e dez mil libras.
- Obrigado - disse Vaughan.
- E que horas são agora?
- Três minutos para as cinco.
- Espere, por favor, tenho alguém na outra linha. Não demoro. Kaufman pousou o auscultador preto na secretária, pegou no vermelho e marcou um número.
Após três toques, uma voz disse:
- Adrian Sloane.
- Senhor Sloane, estou novamente a ligar por causa dos títulos de petróleo nigeriano que o seu banco está a oferecer a investidores selecionados. Como já lhe disse, parece uma oportunidade aliciante. Qual é o montante máximo que permitem investir?
- Dois milhões de libras, senhor Kaufman. Oferecia-lhe mais, mas a maioria das ações já foram adquiridas.
- Pode esperar um bocadinho enquanto consulto um dos meus colegas?
- Com certeza, senhor Kaufman.
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Saul pousou o telefone vermelho na secretária e pegou no preto.
- Desculpe tê-lo feito esperar, senhor Vaughan, mas tenho de voltar a perguntar-lhe as horas.
- Um minuto para as cinco.
- Excelente. Quer fazer agora a gentileza de abrir a porta do seu gabinete?
Kaufman pousou novamente o auscultador preto na secretária e pegou no vermelho.
- O meu colega está a perguntar o seguinte: se quisermos investir os dois milhões, isso dá-nos direito a um lugar no conselho de administração da nova companhia?
- Quase de certeza - disse Sloane. - Na verdade, até vos podia oferecer dois lugares, já que ficariam a deter dez por cento do capital.
- Permita-me que volte a consultar o meu colega.
O telefone vermelho foi novamente colocado na secretária e Kaufman pegou no preto.
- O que é que encontrou quando abriu a porta, senhor Vaughan?
- Um mensageiro que me entregou um envelope que contém um cheque bancário de cento e sessenta e uma mil libras.
- Os dez por cento exigidos para fechar a transação. Que horas são agora, senhor Vaughan?
- Cinco horas e dois minutos.
- Então, o negócio está fechado. E desde que eu pague os restantes noventa por cento dentro de trinta dias, Shifnal Farm é minha.
- Com toda a certeza - disse Vaughan, sem querer admitir como estava ansioso por dizer a Sloane que tinha perdido o negócio.
- Bom fim de semana - disse Kaufman, ao mesmo tempo que colocava o telefone preto no descanso e voltava ao vermelho.
- Senhor Sloane, eu quero investir dois milhões de libras nesse projeto aliciante. - Kaufman só gostava de conseguir ver a expressão no rosto de Sloane. - Mas, infelizmente, não consegui fazer com que os meus colegas concordassem comigo, por isso, lamentavelmente, terei de retirar a minha oferta. Como me assegurou que a maior parte das ações já tinham sido adquiridas, não creio que isso lhe cause um grande transtorno.
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Sebastian não contou a Samantha a tática a que o senhor Kaufman recorrera para fechar o negócio de Shifnal Farm, pois sabia que ela não iria aprovar, mesmo tendo sido Sloane que saíra a perder. O que lhe contou foi que Kaufman lhe tinha oferecido um emprego.
- Mas eu pensava que o banco dele não tinha divisão imobiliária.
- Agora, tem - disse Seb. - Ele pediu-me para criar o meu próprio departamento. Pequenas transações para começar, mas tendo em vista a expansão se eu provar o meu valor.
- Isso são notícias maravilhosas - disse Sam, abraçando-o.
- E não deve ser difícil arranjar uma boa equipa, já que Sloane despediu a minha na totalidade, já para não falar nos que se demitiram, incluindo Rachel.
- Rachel?
- Era a secretária de Cedric, mas só durou uma semana sob o novo regime. Pedi-lhe para trabalhar comigo. Vamos começar do zero, na segunda-feira. Bem, não propriamente do zero, porque Sloane despediu o meu assistente e ordenou-lhe que retirasse do gabinete tudo o que tivesse que ver comigo, por isso ele juntou todos os processos em que eu estava a trabalhar, atravessou para Cheapside e entre gou-mos.
- Isso é legal?
- Quem é que se importa com isso, se Sloane nunca irá descobrir?
- O Farthings Bank não é só Adrian Sloane, e tu ainda tens obrigações para com o banco.

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- Depois da forma como Sloane me tratou?
- Não, depois da forma como Cedric te tratou.
- Mas isso não se aplica a Shifnal Farm, porque Sloane estava a fazer esse negócio nas costas de Cedric.
- E agora estás tu a fazê-lo nas dele.
- Podes crer que sim, se isso nos permitir comprar um apartamento em Chelsea.
- Não devíamos pensar em comprar seja o que for até teres pago todas as tuas dívidas.
- O senhor Kaufman prometeu-me um bónus de quarenta mil libras quando o governo fizer o seu anúncio, por isso nessa altura deixarei de ter dívidas.
- Se o governo fizer o anúncio - disse Sam. - Não comeces a gastar o dinheiro antes de o teres. E mesmo que consigas o negócio, ainda ficas a dever mais de oito mil libras ao senhor Swann, por isso talvez fosse melhor não pensarmos ainda em mudar de casa.
Essa foi outra coisa que Seb decidiu que não ia contar a Sam.
Seb passou as semanas seguintes a trabalhar num horário que teria deixado Cedric impressionado e, com a ajuda de Rachel e da sua antiga equipa no Farthings, tudo ficou operacional muito antes do que o senhor Kaufman julgava possível.
Seb não se contentou apenas em reencontrar-se com os seus antigos clientes, mas, tal como um pirata, começou a roubar vários outros clientes do Farthings, dizendo a si mesmo que Sloane não merecia outra coisa.
Foi cerca de três meses depois de ter começado a trabalhar no Kaufman's que o presidente o chamou ao gabinete.
- Leste o Financial Times esta manhã? - perguntou ele, ainda antes de Seb ter fechado a porta.
- Só a primeira página e a secção de imóveis. Porquê?
- Porque estamos prestes a descobrir se a previsão do senhor Swann estava correta. - Seb não interrompeu a fluência verbal de Kaufman. - Parece que o ministro dos Transportes fará uma declaração no Parlamento às três da tarde. Talvez devesses lá ir com Victor147
e ouvir o que ele tem a dizer, e a seguir ligas-me e dizes-me se ganhei ou perdi uma fortuna.
Assim que Seb regressou ao seu gabinete, ligou ao tio Giles, na Câmara dos Comuns, e perguntou-lhe se ele podia arranjar dois bilhetes na galeria destinada ao público para aquela tarde, de maneira que ele e um amigo pudessem ouvir a declaração do ministro dos Transportes.
- Deixo-os no átrio central - disse Giles.
Depois de desligar, Giles examinou a ordem de trabalhos e perguntou-se por que razão estaria Sebastian interessado numa decisão que só iria afetar um punhado de pessoas que vivia em Shropshire.
Seb e Vic estavam sentados na quarta fila da galeria destinada ao público muito antes de o ministro se levantar para pronunciar a sua declaração. O tio Giles sorriu-lhes das bancadas do governo, ainda perplexo quanto ao que poderia haver naquela declaração que tivesse interesse para o sobrinho.
Os dois jovens banqueiros estavam sentados na borda da bancada de couro verde quando o presidente da Câmara dos Comuns chamou o ministro dos Transportes para fazer a sua declaração ao Parlamento.
- Senhor presidente - começou o ministro, apoiando-se na tribuna -, peço a palavra para informar o Parlamento de qual foi a rota escolhida pelo meu ministério para a extensão da autoestrada que passará pelo condado de Shropshire.
Se a palavra silêncio não figurasse a cheio nas paredes apaineladas a madeira, Seb teria dado um salto quando o ministro se referiu aos arredores de Shifnal, incluindo Shifnal Farm, como uma secção da rota para a nova autoestrada.
Depois de o ministro ter respondido a várias perguntas de deputados locais, retomou o seu lugar na bancada do governo para permitir o início de um debate sobre Negócios Estrangeiros.
Seb e Vic não estavam interessados em saber se o governo pretendia impor sanções económicas à África do Sul, por isso esgueiraram-se silenciosamente da galeria destinada ao público, desceram a escada até148
ao átrio central e saíram para Parlament Square. Foi nessa altura que Seb deu um salto no ar e gritou:
- Conseguimos!
Samantha estava a ler o Guardian quando Sebastian apareceu na manhã seguinte com ar ensonado para tomar o pequeno-almoço.
- Onde foste ontem à noite? - indagou ela. - Nem sequer te ouvi entrar.
- Eu e Vic fomos comemorar. Desculpa. Devia ter-te telefonado a avisar.
- Comemorar o quê? - perguntou Sam, mas Seb não respondeu enquanto enchia uma tigela de flocos de milho. - Será possível que o senhor Swann tenha percebido que a nova autoestrada ia passar pelo meio de Shifnal Farm e, para citar o Guardian - disse Sam, olhando para o artigo que tinha à sua frente -, tenha proporcionado uma pequena fortuna a um punhado de especuladores?
Entregou o jornal a Seb, que apenas olhou de relance para o título.
- Tens de compreender - disse Seb entre colheradas - que isto significa que agora vamos ter dinheiro suficiente para comprar uma casa em Chelsea.
- Mas será que vai sobrar dinheiro suficiente para o senhor Swann construir o seu teatro em Shifnal?
- Isso depende...
- De quê? Tu deste-lhe a tua palavra que, se a informação que ele deu viesse a revelar-se correta, lhe davas as 8234 libras de que ele precisava para concluir o seu teatro.
- Mas eu só ganho quatro mil libras por ano - protestou Seb.
- E estás prestes a receber um bónus de quarenta mil.
- Em relação ao qual terei de pagar imposto sobre rendimentos de capital.
- Em caso de donativo, não terás de pagar imposto nenhum.
- Mas não ficou nada escrito.
- Seb, ouviste o que acabaste de dizer?
- De qualquer forma - acrescentou Seb rapidamente -, o senhor Kaufman é que vai ganhar uma pequena fortuna, e não eu.149
- E foi o senhor Kaufman que correu o risco e que podia ter perdido uma pequena fortuna. Ao passo que tu não tinhas nada a perder e tinhas tudo a ganhar.
- Tu não compreendes... - começou Seb.
- Compreendo demasiado bem - declarou Sam, enquanto Seb empurrava a tigela para o lado e se levantava da mesa.
- Tenho de ir andando - disse ele. - Já estou atrasado e tenho muito que fazer hoje.
- Como, por exemplo, decidir como gastar o dinheiro que o senhor Swann te deu a ganhar?
Ele inclinou-se para a beijar, mas ela virou a cara.
- A verdade é que nunca tiveste intenção de pagar ao senhor Swann, pois não?
Seb não fez qualquer tentativa para responder à pergunta enquanto dava meia-volta e se dirigia rapidamente para a porta.
- Mas tu não percebes que, se não pagares ao senhor Swann, serás tão mau quanto Adrian Sloane? - disse Sam com convicção.
Seb não respondeu. Pegou na pasta e saiu apressadamente do apartamento sem se despedir. Quando chegou à rua, fez sinal a um táxi. Enquanto este seguia por City Road, começou a pensar quanto tempo faltaria para ter o seu próprio carro e motorista, como Saul Kaufman. Mas estava constantemente a lembrar-se de Sam e das suas palavras: «serás tão mau quanto Adrian Sloane».
Ia reservar uma mesa para dois no Mirabelle para aquela noite, onde falariam de tudo menos da atividade bancária. Durante o intervalo do almoço, ia visitar o senhor Gard, em Hatton Garden, e ia comprar aquele alfinete de marcassite. Sem dúvida que, assim, Sam ia começar a apreciar as vantagens de estar noiva de Sebastian Clifton.
- A mesa habitual, senhor Kaufman?
Seb perguntou-se quanto tempo faltaria para o chefe de mesa lhe perguntar: «A mesa habitual, senhor Clifton?»
Durante o almoço no Grill Room, disse ao presidente que já tinha identificado mais uma ou duas propriedades cujos vendedores pareciam desconhecer o seu verdadeiro valor.150
Depois de um almoço em que bebeu um pouco mais do que a conta, apanhou um táxi para Hatton Garden. O senhor Gard abriu o cofre e tirou para fora a terceira bandeja a contar de cima. Seb ficou encantado ao ver que ainda lá estava o alfinete vitoriano em marcassite, rodeado de diamantes, que Sam iria certamente achar irresistível.
No táxi, de regresso a Islington, sentia-se confiante de que durante o jantar no Mirabelle ia conseguir fazê-la concordar com ele.
Quando enfiou a chave na fechadura, o seu primeiro pensamento foi que não ia morar ali por muito mais tempo, mas, quando abriu a porta, ficou perplexo ao dar com as luzes todas apagadas. Teria Sam ido assistir a alguma conferência noturna? Assim que acendeu a luz, sentiu que havia algo de errado. Faltava alguma coisa, mas o quê? Perdeu instantaneamente o entusiasmo quando percebeu que vários objetos pessoais tinham desaparecido, incluindo a fotografia dos dois em Central Park, um dos desenhos de Jessica e a cópia de Sam da Ronda Noturna.
Apressou-se a ir ao quarto e abriu o roupeiro do lado da cama de Sam. Vazio. Espreitou debaixo da cama e viu que as malas dela já lá não estavam.
- Não, não! - gritou, correndo do quarto para a cozinha, onde viu o envelope. Estava encostado a um estojo vermelho de pele e dirigido a Sebastian. Rasgou-o e tirou uma carta escrita com a caligrafia forte e decidida de Sam.
Meu querido Seb,
Esta é a carta mais difícil que alguma vez tive de escrever na minha vida, porque tu eras a minha vida. Mas receio que o homem que entrou na Agnew's Gallery disposto a gastar cada cêntimo que possuía para comprar um dos desenhos da irmã não seja o mesmo homem com quem tomei o pequeno-almoço esta manhã.
O homem que tanto se orgulhava de trabalhar ao lado de Cedric Hardcastle e desprezava tudo o que Adrian Sloane representava não é o mesmo homem que agora sente que não tem nenhuma obrigação para com o senhor Swann, a pessoa que lhe deu a possibilidade de receber um bónus tão chorudo. Será que te esqueceste das palavras do senhor Swann: «Se Harry Clifton é seu pai, isso para mim é o suficiente»?
Se ao menos Cedric ainda estivesse vivo, nada disto teria acontecido, porque sabes que ele se teria certificado de que tu cumprias a tua parte do acordo e, se não o fizesses, ele próprio o cumpriria em teu nome.
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Não tenho dúvidas de que a tua carreira vai continuar a correr cada vez melhor e de que terás um extraordinário sucesso em tudo o que fizeres. Mas eu não quero fazer parte desse tipo de sucesso.
Apaixonei-me pelo filho de Harry e Emma Clifton, pelo irmão de Jessica Clifton, uma das muitas razões por que queria ser esposa de Sebastian Clifton. Mas esse homem já não existe. Apesar de tudo, vou guardar preciosamente para o resto da vida o curto tempo que passámos juntos.
Samantha
Sebastian caiu de joelhos, com as palavras do pai de Sam a ecoar nos ouvidos. Tal como a tua mãe, Samantha estabelece padrões que o resto de nós, comuns mortais, tem dificuldade em cumprir, a menos que sejamos guiados pela mesma bússola moral, como o teu pai.


LADY VIRGÍNIA FENWICK 1966

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- Vou ver se sua senhoria está em casa - disse o mordomo.
Que tirada mais ridícula, pensou Lady Virgínia. Morton está farto de saber que estou em casa. O que ele queria dizer era: «Vou ver se sua senhoria quer falar consigo.»
- Quem é, Morton? - perguntou ela quando o mordomo entrou na sala.
- A senhora Priscilla Bingham, minha senhora.
- Claro que estou em casa para a senhora Bingham - disse Virgínia, pegando no telefone ao lado dela. - Priscilla, querida.
- Virgínia, querida.
- Há tanto tempo...
- Demasiado, e tenho tanta coisa para te contar.
- Porque é que não apareces e passas uns dias aqui, em Londres? Será como nos velhos tempos. Podemos ir às compras, assistir a um espetáculo, experimentar um ou dois restaurantes novos e até visitar o AnnabePs, onde precisamos de ser vistas, minha querida.
- Parece-me uma ideia magnífica. Vou ver a minha agenda e depois já te ligo.
Virgínia pousou o telefone e pensou na amiga. Pouco se tinham visto desde a sua última visita a Mablethorpe Hall, quando o marido de Priscilla, Robert, se comportara tão mal. E, pior ainda, desde essa altura que Robert se tinha passado para o outro lado e juntado ao inimigo. Não só fazia parte do conselho de administração da Barrington Shipping, como também contribuíra para fazer com que o major Fisher, o representante de Virgínia, fosse sumariamente exonerado do156
conselho. Para piorar as coisas, insistira em que Priscilla o acompanhasse na viagem inaugural do Buckingham a Nova Iorque, apesar de Virgínia ter dito à amiga que lhe tinham negado uma cabina na primeira classe.
Quando Priscilla regressou quinze dias depois, contou a Virgínia que alguma coisa correra muito mal na primeira noite da viagem, mas que Robert se recusava a confidenciar-lha. Virgínia jurou que havia de tirar tudo a limpo, mas isso teria de esperar porque, para já, não era Emma Clifton que ela tinha em mira, mas sim Bob Bingham.
Quando Priscilla apareceu no apartamento de Virgínia alguns dias mais tarde, contou uma série de desgraças que tinham ocorrido durante a viagem, incluindo o jantar horrível que tivera de suportar com aquela arrivista social, Emma Clifton. A comida era intragável, o vinho sabia a rolha e o pessoal parecia que tinha vindo do Butlin's. No entanto, Priscilla assegurou a Virgínia que tinha posto a senhora Clifton no lugar por mais de uma vez.
- E descobriste o que aconteceu realmente na primeira noite? - perguntou Virgínia.
- Não, mas ouvi Robert dizer a um dos outros administradores que, se a verdade alguma vez se viesse a saber, a presidente teria de se demitir e a companhia podia até ver-se confrontada com a falência. Isso ajudaria certamente no julgamento da tua ação por difamação.
Virgínia não tinha contado à amiga que o caso estava suspenso porque os seus advogados extremamente dispendiosos consideravam que as suas hipóteses de ganhar não eram muito superiores a cinquenta-cinquenta, e o seu último extrato bancário recordara-lhe que não estava numa situação financeira suficientemente sólida para correr esse risco. Contudo, o que planeara para Bob Bingham não era uma situação de cinquenta-cinquenta. Ele ia acabar por ter de abdicar de pelo menos metade de toda a sua fortuna. E depois de ter tratado dele, centraria então a sua atenção em Emma Clifton e no incidente da Esquadra Metropolitana. Mas se queria que o seu plano para Bob Bingham fosse bem-sucedido, teria mais uma vez de contratar os serviços do major Alex Fisher, alguém que odiava a família Barrington quase tanto como ela.
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Bob Bingham não ficou nada satisfeito quando Priscilla anunciou que ia ficar durante uns dias na casa que eles tinham em The Boltons, para passar um tempinho com Virgínia. Pressentiu que aquela mulher devia estar a tramar alguma, e não era muito difícil perceber o que poderia ter em mente.
A única coisa boa no facto de Priscilla estar fora durante uma semana é que isso lhe dava hipótese de convidar Clive para passar uns dias com ele em Mablethorpe Hall. Clive tinha sido promovido há pouco tempo e já não precisava que Bob o apoiasse financeiramente. Na verdade, a morte trágica de Jessica era capaz de ter sido a razão para se ter tornado tão independente. Bob pouco vira o filho desde aquela noite terrível em que Jessica Clifton tirara a própria vida, e isso nunca teria acontecido se Priscilla não tivesse convidado aquela intriguista para passar o fim de semana com eles. Só mais tarde é que a sua mulher admitiu que Virgínia recusara inicialmente o convite, mas mudara de ideias ao saber que Jessica Clifton estaria entre os convidados e que Clive tencionava pedi-la em casamento nesse fim de semana.
Bob tentou afastar aquela mulher vil do pensamento, já que queria concentrar-se na ata da reunião mais recente do conselho de administração da Barrington's. Concordava com o jovem Sebastian - tinha de deixar de pensar nele nesses termos -, no fim de contas, ele já provara que era um administrador competente e, no conselho, poucos duvidavam de que seria o próximo presidente da companhia. E se o seu novo estilo de vida servisse de referência, não havia dúvida de que se estava a sair bem no Kaufman's, mesmo que o pai tivesse dado a entender que a sua vida pessoal estava uma confusão.
Bob Bingham e Harry Clifton tinham-se tornado amigos durante os últimos anos, coisa que parecia improvável tendo em conta o pouco que tinham em comum, para além de Jessica. Harry era um homem renascentista, um homem das letras, cuja posição firme em defesa de Anatoly Babakov cativara a imaginação do público. Por outro lado, Bob era um homem de negócios, de balanços, que só lia um livro quando estava de férias. Talvez fosse simplesmente o críquete que unia os dois homens, tirando as ocasiões em que o Gloucestershire jogava com o Yorkshire.
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Bob voltou a sua atenção para uma comunicação que iria ser apresentada por Sebastian, a explicar porque é que considerava que a companhia não devia investir num novo paquete de luxo naquela altura.
- Major Fisher - entoou o mordomo antes de fechar a porta.
- Alex, que bom revê-lo - disse Virgínia, enquanto lhe preparava um gin duplo com água tónica. - Espero que as coisas lhe estejam a correr bem.
- Ora para cima, ora para baixo, como a Tower Bridge - retorquiu Alex quando ela lhe passou a bebida, ciente de que Lady Virgínia só o convidava a visitá-lo quando precisava de alguma coisa. Mas não podia queixar-se, pois não andava propriamente a nadar em dinheiro desde que perdera o lugar no conselho da Barrington's. Virgínia não perdeu tempo e foi direta ao assunto.
- Lembra-se da nossa investidazinha bem-sucedida contra Bob Bingham, aqui há uns anos?
- Como é que me podia esquecer? - disse Alex. - Mas atenção que não é algo que queira repetir - acrescentou rapidamente.
- Não, não era isso que tinha em mente. Mas preciso que me faça algum trabalho de investigação. Gostava de saber quanto é que Bingham vale. A sua companhia, as suas ações, propriedades, sobretudo as propriedades, e qualquer outra fonte de rendimento que ele possa ter e que queira manter escondida do fisco. Investigue a fundo e não poupe nos pormenores, por mais insignificantes que eles lhe pareçam.
- E...
- Pago-lhe cinco libras por hora, mais despesas, e um bónus de vinte e cinco libras se ficar satisfeita com o seu trabalho.
Alex sorriu. Virgínia nunca antes lhe pagara os bónus prometidos, e a sua ideia de despesas era viajar em terceira classe e não dormir nenhuma noite fora. Mas, dadas as suas atuais circunstâncias, não podia desprezar as cinco libras por hora.
- Quando é que precisa do meu relatório?
- Daqui a dez dias, Alex. E depois sou capaz de ter outro trabalho para si, mais perto de casa.
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Virgínia tinha planeado a visita de Priscilla Bingham a Londres com precisão militar. Nada foi deixado ao acaso.
Na segunda-feira, foram ambas até Epsom, onde se juntaram a Lord Malmsbury no seu camarote particular junto à meta. Priscilla estava visivelmente satisfeita por ter acesso ao recinto real, onde vários homens lhe elogiaram o figurino Hartnell e o chapéu à «Jackie Kennedy». Há anos que não recebia tantas atenções.
Na terça-feira, a seguir a um almoço leve no Simpson's, passaram por um cocktail em Banqueting House, antes de irem a um jantar de gala no Savoy para ajudar a Cruz Vermelha, onde Matt Monro fez uma serenata para os convidados.
Na quarta-feira, foi a vez do Queen's Club, onde assistiram a uma partida de polo entre uma equipa de Windsor capitaneada pelo jovem príncipe de Gales e uma equipa de argentinos, de quem Priscilla não conseguia arredar os olhos. A noite, tinham lugares reservados para ver Hair, um novo musical que andava a suscitar alguma celeuma.
Na quinta-feira, e sabe Deus como é que Virgínia terá arranjado os bilhetes, foram a uma festa no jardim real, em Buckingham Palace, onde Priscilla foi apresentada à princesa Alexandra. A noite jantaram com o duque de Bridgwater e o seu filho mais velho, Bofie, que não conseguia tirar os olhos de Priscilla. Na verdade, e embora o tivesse incitado a fazê-lo, Virgínia teve de avisá-lo de que era capaz de estar a exagerar.
Na sexta-feira, Priscilla estava tão exausta que passou a manhã na cama, levantando-se apenas a horas de não faltar à marcação no cabeleireiro, antes de ir à noite a Covent Garden para ver uma encenação de Giselle.
No sábado de manhã, presenciaram a saudação à bandeira, tendo assistido à cerimónia no Scottish Office que dava para o Horse Guards. A noite, tiveram um calmo jantar à deux no apartamento de Virgínia.
- Ninguém em Londres sonharia em se arriscar a sair num sábado à noite - explicou ela. - As ruas estão cheias de estrangeiros e hooligans do futebol.
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Mas a verdade é que Virgínia sempre tencionara usar aquela noite para semear as primeiras dúvidas no espírito da amiga.
- Que semana! - exclamou Priscilla quando se sentaram para jantar. - Foi tão divertido, e pensar que amanhã tenho de voltar para Mablethorpe...
- Não tens de voltar - disse Virgínia.
- Mas Robert está à minha espera.
- Estará? Sinceramente, achas mesmo que ele notava se passasses mais uns dias em Londres?
Priscilla pousou a faca e o garfo, claramente a pensar na proposta. Na realidade, Virgínia não queria que ela ficasse nem mais um dia em Londres, pois estava extenuada e não tinha nada planeado para a semana seguinte.
- Alguma vez pensaste em deixar o Robert? - perguntou Virgínia enquanto Morton voltava a encher o copo de vinho a Priscilla.
- Constantemente. Mas como é que eu poderia sobreviver sem ele?
- Bastante bem, desconfio. No fim de contas, tens uma bela casa em The Boltons, para não falar...
- Mas não é minha.
- Podia ser - disse Virgínia, entusiasmando-se com a tarefa.
- O que queres dizer?
- Leste aquele artigo sobre Robert na secção de negócios do Telegraph, há duas semanas?
- Eu nunca leio a secção de negócios de nenhum jornal.
- Bem, era muito esclarecedor. Parece que a Pasta de Peixe Bingham está avaliada em cerca de quinze milhões, sem dívidas e com boas reservas de tesouraria.
- Mas se eu deixasse Robert, não ia querer ter nada que ver com a empresa.
- E não precisavas de ter nada que ver com ela. Mablethorpe Hall, The Boltons e a vossa casa de campo no sul de França, para não falar dos três milhões que estão na conta bancária da empresa, seriam ainda assim menos de cinquenta por cento do que ele vale. E cinquenta por cento é o que podes esperar após vinte e seis anos de casamento e um filho que criaste praticamente sozinha por causa das161
horas todas que o teu marido passava longe de casa, a perseguir a sua carreira.
- Como é que sabes que há três milhões na conta da empresa?
- Vem listado na Companies House, para qualquer pessoa ver.
- Não fazia ideia.
- Mesmo assim, seja qual for a tua decisão, minha querida, estarei sempre aqui para te apoiar.
Até Virgínia ficou surpreendida quando recebeu um telefonema choroso de Mablethorpe Hall na sexta-feira seguinte.
- Sinto-me tão sozinha - lamentou-se Priscilla - e não tenho nada para fazer aqui.
- Então, porque é que não vens até Londres e não me visitas durante uns dias, minha querida? Ainda ontem Bofíe Bridgwater me perguntou quando é que voltavas cá.
Quando Priscilla apareceu à porta de Virgínia na tarde seguinte, a primeira coisa que disse foi:
- Conheces um bom advogado de divórcio?
- A melhor - replicou Virgínia. - No fim de contas, já me representou em duas ocasiões.
Vinte e dois dias mais tarde, Robert Bingham recebeu uma citação de divórcio. Mas nem assim o major Fisher recebeu o seu bónus!
Toda a gente se levantou quando a juíza Havers entrou na sala de audiências. Ela tomou o seu lugar e olhou para as duas partes em conflito. Tinha lido cuidadosamente ambas as hipóteses submetidas à sua apreciação e, após mil divórcios, sabia exatamente o que procurava.
- Doutora Everitt.
A advogada de Priscilla levantou-se de imediato.
- Meritíssima - disse.
- Segundo sei, as duas partes chegaram a acordo, por isso pedia-lhe que fizesse a gentileza de resumir os termos do mesmo.162
- Com certeza, meritíssima. Neste caso, represento a queixosa a senhora Priscilla Bingham, ao passo que o meu douto amigo, o doutor Brooke, representa o arguido, o senhor Robert Bingham. Meritíssima a senhora Bingham foi casada com o arguido durante os últimos vinte e seis anos. Durante esse tempo, foi uma esposa fiel, leal e cumpridora. Teve um filho, Clive, que teve de criar praticamente sozinha devido aos vários compromissos empresariais do marido.
- Com a ajuda de uma ama, de uma cozinheira, de uma criada e de uma mulher a dias - sussurrou Bob, coisa de que o advogado tomou a devida nota.
- Mesmo durante as férias escolares, meritíssima, era raro o senhor Bingham passar mais de uma semana com a esposa e o filho, estando sempre ansioso por voltar à sua fábrica, em Grimsby. Por conseguinte, propomos - continuou a eminente advogada - que a senhora Bingham conserve a casa da família onde viveu nos últimos vinte e seis anos, juntamente com a casa em Londres e a casa de campo perto de Cap Ferrat, no sul de França, onde ela e o filho sempre passaram juntos as férias de verão. A senhora Bingham também pede ao tribunal a soma de três milhões de libras, para poder manter as três casas e o estilo de vida a que se habituou. Devo sublinhar, meritíssima, que isto é muito menos de cinquenta por cento da considerável fortuna do senhor Bingham.
A doutora Everitt sentou-se.
- E o senhor Bingham concorda com os termos do acordo, doutor Brooke?
O advogado de Robert levantou-se lentamente, puxou as lapelas da toga e disse:
- Sim, meritíssima. O senhor Bingham fica com a empresa da família, a Pasta de Peixe Bingham, que foi fundada pelo avô há mais de cem anos. Não faz nenhuma outra exigência.
- Então, assim seja - disse a juíza -, mas, antes de assinar o acordo final, gosto sempre que ambas as partes confirmem que estão satisfeitas com a divisão, para que não haja recriminações posteriores ou qualquer insinuação de que não compreenderam bem o que foi proposto. Senhor Bingham - o advogado de Robert deu-lhe um toque com o cotovelo e Bob pôs-se em pé de um salto. - Está satisfeito com esta divisão dos bens?
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- Sim, meritíssima.
- Obrigada, senhor Bingham. - Virando-se para o outro lado da sala, a juíza fez a mesma pergunta à senhora Bingham.
Priscilla levantou-se, sorriu para a juíza e disse:
- Eu estou satisfeita. Na verdade, satisfeita ao ponto de deixar o meu ex-marido escolher qual dos dois lotes prefere.
- Que magnânimo da sua parte - declarou a juíza, ao mesmo tempo que a consternação se estampava nos rostos de ambos os advogados, uma vez que não estavam preparados para aquela intervenção de improviso.
Embora não fosse seguramente afetar o desfecho, os advogados nunca gostam de ser apanhados de surpresa.
- Nesse caso, vou voltar a fazer a pergunta ao senhor Bingham - disse a juíza. - Mas como merece uma reflexão cuidadosa, vou deixar o senhor Bingham pensar no assunto durante a noite. A audiência fica suspensa até amanhã de manhã, às dez horas.
Bob levantou-se rapidamente.
- É muito gentil da sua parte, meritíssima, mas eu já decidi...
O advogado de Bob puxou-o novamente para baixo, pois a juíza Havers já abandonara a sala.
Se esta tinha sido a primeira surpresa do dia para Bob, a segunda foi ver Sebastian Clifton sentado calmamente ao fundo da sala de audiências, a tirar notas. Ainda ficou mais surpreendido quando Seb lhe perguntou se estava livre para jantar com ele.
- Bem, tinha planeado regressar a Lincolnshire esta noite, mas agora que tenho de voltar amanhã de manhã ao tribunal, terei todo o gosto em aceitar a sua oferta.
Ambos viram Priscilla sair da sala de audiências pelo braço de Virgínia. Estava a chorar baixinho.
- Era capaz de matar aquela mulher - disse Bob - e cumprir alegremente pena perpétua.
- Não creio que isso seja necessário - disse Seb. - Acho que arranjei uma solução muito melhor para lidar com Lady Virgínia.
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Às dez da manhã seguinte, toda a gente estava de volta aos seus lugares quando a juíza Havers entrou na sala de audiências. Depois de se instalar, olhou para o banco dos advogados e disse:
- Só falta resolver um assunto, que é saber por qual dos dois lotes o senhor Bingham se decidiu.
Bob levantou-se.
- Gostava de lhe agradecer, meritíssima, por me dar a oportunidade de refletir sobre a minha decisão durante a noite, pois decidi escolher as três propriedades e os três milhões de libras. Gostava de agradecer à minha mulher pelo seu gesto magnânimo e desejar-lhe os maiores sucessos a gerir a companhia.
O alvoroço tomou conta do tribunal. Para além de Bob Bingham, só duas outras pessoas não pareceram ficar surpreendidas: a juíza e Sebastian Clifton.
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- Que diabo te passou pela cabeça para fazeres isso? - perguntou Virgínia.
- Eu só queria que Robert soubesse até que ponto eu considerava o acordo justo.
- Bem, esse tiro saiu-te pela culatra, e de que maneira!
- Mas eu nunca pensei por um instante que ele ia abrir mão da sua amada empresa.
- E não estou convencida de que o tenha feito - disse Virgínia. - Aqueles dois estão a tramar alguma.
- Aqueles dois?
- Sim, eu devia ter percebido que Sebastian Clifton estava no tribunal com segundas intenções. Desta vez, pode ter-me apanhado de surpresa, mas não volta a acontecer.
- Mas ele é uma criança.
- Uma criança que está rapidamente a ganhar reputação de menino-prodígio na City. E nunca te esqueças de que é filho de Emma e Harry Clifton, por isso não se pode confiar nele.
- Mas o que é que ele ganha com isso?
- Ainda não percebi, mas podes ter a certeza de que anda atrás de alguma coisa. Mas ainda podemos frustrar-lhes os planos se agirmos rapidamente.
- Mas o que posso eu fazer, agora que não tenho um tostão nem um teto?
- Recompõe-te, Priscilla. És dona de uma empresa que vale quinze milhões de libras e que só no ano passado declarou um lucro superior a um milhão.
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- Mas durante quanto mais tempo, agora que Robert já não está por perto para a gerir?
- Não precisas de te preocupar com isso. Eu conheço exatamente a pessoa certa para ocupar o lugar dele. Tem considerável experiência na gestão de pessoal, pois foi administrador de uma empresa privada e, mais importante ainda, está disponível a curto prazo.
Sebastian, Bob e Clive Bingham encontraram-se mais tarde, nessa manhã, no gabinete de Seb para discutir o que fazer a seguir.
- A primeira parte do nosso plano correu sem problemas - disse Seb. - Mas Virgínia não vai levar muito tempo a perceber o que estamos a tramar. Por isso, vamos ter de agir depressa, muito depressa, se quisermos ter tudo pronto a tempo.
- Então, vou ter de me meter no carro e ir até Grimsby, esta tarde - disse Bob.
- Quanto mais depressa melhor - sugeriu Seb - porque precisa de estar de regresso a Londres amanhã à noite, o mais tardar. Quero que toda a gente na Bingham's, desde os diretores aos operários, e todos os seus clientes pelo país fora pensem que a única razão para ir à fábrica é despedir-se do pessoal e desejar-lhe sorte com a nova gerência. Antes de se vir embora, Clive emitirá o comunicado à imprensa em que tem estado a trabalhar.
Clive abriu a pasta e tirou duas folhas de papel.
- O comunicado precisa de ser curto, inequívoco e incisivo - disse ele, passando uma cópia ao pai e a Seb. - Só o irei difundir quando souber que o pai está a caminho de Londres, altura em que enviarei uma cópia ao Grimsby Evening Telegraph. De certeza que fará a primeira página. Depois disso, vou enviá-lo a todos os correspondentes de negócios em Fleet Street.
Bob leu o comunicado devagar e ficou impressionado com o que o filho tinha feito. No entanto, percebia que era preciso fazer muito mais para que o público, e sobretudo Lady Virgínia, acreditasse na sinceridade das suas palavras.
- E quando chegar a Londres, o que é que eu faço?
- Apanha o avião para Nice, vai direto à casa de Cap Ferrat e fica lá sossegado - disse Seb.

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- E depois disso? - perguntou Bob. - Nunca consegui passar mais do que uns dias no sul de França sem ficar entediado de morte e ter de voltar para casa!
- Bem, vai ter de fazer muito melhor do que isso - disse Clive - se quiser convencer toda a gente do quanto está a gostar da sua reforma antecipada e que não está minimamente interessado em voltar para Grimsby.
- Note-se que a maioria das pessoas não vai ter dificuldade em acreditar nisso - afirmou Seb.
- Reforma? - perguntou Bob, ignorando o comentário de Seb. - Prefiro morrer a reformar-me. E quanto a divertir-me, não fui feito para o lazer, por isso, Seb, talvez me possas dizer como é que hei de passar os dias...
- Talvez um jogo de golfe de vez em quando, seguido de um longo almoço num dos muitos restaurantes com estrelas Michelin que existem ao longo da Riviera, rematado por uma visita a uma das discotecas mais exóticas de Nice?
- E onde é que eu encontro uma caneca de Bateman's, e peixe e batatas fritas servidos em papel de jornal?
- Não creio que encontre muitas lojas de peixe e batatas fritas em Cap Ferrat - admitiu Seb.
- E não há muita procura de puré de ervilhas na Riviera - acrescentou Clive.
Desataram os três a rir.
- Tenho pena da tua mãe, Clive - disse Bob. - Está prestes a descobrir quem é realmente a sua grande amiga Lady Virgínia Fenwick.
- Bem, pelo menos desta vez, major, vai ser presidente de uma empresa que não tem conselho de administração nem ninguém a quem tenha de prestar contas. Pode começar do zero e estabelecer as suas próprias regras.
- Provavelmente. Mas terá reparado que as ações da companhia caíram ontem, na sequência do comunicado de Bingham à imprensa.168
- Que comunicado? - inquiriu Virgínia.
Fisher tirou um exemplar do Times da mesa de centro e abriu-o no principal artigo da secção de negócios. Virgínia deparou-se com uma fotografia de Bob a apertar a mão a alguns funcionários da fábrica, após o seu discurso de despedida, e depois leu atentamente as suas declarações: «Claro que estou triste por deixar a empresa que o meu avô fundou em 1857, sobretudo depois de ter sido seu presidente nos últimos vinte e três anos. Mas não receio pelo futuro da Bingham's enquanto estiver nas mãos competentes da minha ex-esposa, Priscilla. Espero que todos continuem a apoiá-la, tal como sempre fizeram comigo. Contudo, está na altura de me retirar para a minha bonita casa no sul de França e gozar de um merecido descanso.»
- Não acredito numa palavra - disse Virgínia. - Por isso, major, quanto mais depressa for para Grimsby, melhor. Vai precisar de todas as suas capacidades e experiência como oficial do exército para manter aquela gente no seu lugar.
Quando Clive levou o pai de carro até Heathrow, não conseguiu arrancar-lhe uma palavra.
- Qual é o problema, pai? - acabou ele por perguntar.
- Alguns dos funcionários estavam em lágrimas quando me vim embora. Pessoas com quem trabalhei durante mais de vinte anos. Precisei de toda a minha força de vontade para não enrolar as mangas e começar a carregar os camiões.
- Compreendo o que sente, pai, mas acredite que tomou a decisão certa.
- Espero que sim - disse Bob, quando pararam junto ao terminal.
- E não se esqueça: se vir um fotógrafo, sorria e ponha um ar descontraído. Não queremos que a imprensa pense que está infeliz, pois nesse caso Lady Virgínia irá perceber exatamente o que está a tramar.
- Aposto que já percebeu.
- Pai, nós podemos vencê-la desde que não perca a coragem.169
- Por favor, façam com que fique prisioneiro o menos tempo possível - implorou ele, depois de ter despachado a sua única mala e dado um abraço ao filho.
- Eu telefono todos os dias e ponho-o ao corrente de tudo o que se está a passar por aqui - disse Clive.
- E fica de olho na tua mãe. Vai ter um choque terrível quando se encontrar pela primeira vez com a verdadeira Virgínia.
Quando o major pôs os pés na plataforma da estação de Grisby, sabia exatamente o que tinha de fazer. O seu plano era infalível e a estratégia estava afinada até ao mais ínfimo pormenor.
Já sabia muita coisa sobre Robert Bingham e a forma como ele gerira a companhia por causa do relatório que fizera para Lady Virgínia. E, nesta ocasião, ela nem sequer tentara regatear com ele. Tinha acedido a todas as suas exigências: 20 000 libras por ano mais despesas, incluindo um apartamento no Royal Hotel sempre que tivesse de ficar em Grimsby.
Fisher sentia que não tinha um minuto a perder e deu instruções ao taxista para que o levasse diretamente à fábrica. Durante a viagem, reviu o discurso que preparara, que não deixaria dúvidas aos trabalhadores sobre quem mandava ali. Não devia ser muito difícil gerir uma fábrica de pasta de peixe. No fim de contas, tinha comandado uma companhia em Tobruk, com os alemães a morder-lhe os calcanhares.
O táxi largou-o à porta da fábrica. Um homem mal-arranjado com um boné de pala, camisa aberta e fato-macaco besuntado espreitou o major do outro lado dos portões fechados.
- O que quer? - exigiu saber.
- Sou o major Fisher, o novo presidente da empresa, por isso abra imediatamente, meu bom homem.
O homem levou a mão à pala do boné e abriu o portão.
- Onde é o gabinete do presidente? - quis saber Fisher.
- Bob nunca teve o que se chama um gabinete, mas a direção fica ao cimo daquela escada - disse ele, apontando para o outro lado do pátio.170
O major atravessou o pátio, algo surpreendido pela ausência de atividade, pois sabia que a fábrica empregava mais de duzentos trabalhadores a tempo inteiro e outros cem a tempo parcial. Subiu os degraus de ferro até ao primeiro andar e abriu a porta, deparando-se com um grande escritório em open space com uma dúzia de secretárias embora só duas delas estivessem ocupadas.
Um jovem pôs-se em pé de um salto.
- O senhor deve ser o major Fisher - disse, como se estivesse à espera dele. - Eu sou Dave Perry, o diretor-adjunto. Disseram-me para lhe mostrar a fábrica e responder às perguntas que possa ter.
- Eu estava à espera de me reunir com o diretor-geral, para poder ficar o mais depressa possível ao corrente de tudo.
- Ah, então não sabe?
- Não sei o quê?
- O senhor Jopling entregou ontem a sua demissão. Disse-me que, como só lhe faltavam dois anos para a reforma, esta podia ser uma boa altura para alguém o substituir.
- E é você esse alguém?
- Nem pensar! - exclamou Perry. - Só cá estou há uns meses. E, de qualquer forma, não quero ter mais responsabilidades.
- Então, terá de ser Pollock, o díretor de produção - disse Fisher. - Onde está ele?
- O senhor Jopling despediu-o ontem, por insubordinação. Foi quase a última decisão que tomou antes de se demitir. Mas Steve Pollock não se pode queixar. Foi mandado para casa com o ordenado por inteiro até o sindicato concluir as suas investigações. Ninguém duvida de que será reintegrado. O único problema é que a comissão leva normalmente uns dois meses até chegar a uma decisão.
- Mas ele devia ter um subdiretor - redarguiu Fisher, incapaz de esconder a sua frustração.
- Sim, Les Simkins. Mas ele está num curso sobre tempo e movimento, em Hull Poly. Quanto a mim, uma perda de tempo e sem grande movimento...
Fisher atravessou a sala e olhou lá para baixo, para o piso da fábrica.
- Porque é que as máquinas não estão a trabalhar? Isto não devia operar continuamente, vinte e quatro horas por dia? - perguntou,171
olhando para a dúzia de trabalhadores que andavam por ali de mãos nos bolsos, a conversar ociosamente enquanto um deles enrolava um cigarro.
- Normalmente, trabalhamos em turnos de oito horas - disse Perry -, mas precisamos de um determinado número de operários qualificados antes de poder ligar as máquinas. São as normas, está a perceber? E, infelizmente, há um número invulgar de rapazes com baixa por doença esta semana. - O telefone que ele tinha na secretária começou a tocar. Atendeu e limitou-se a ouvir por um momento.
- Lamento saber disso, mas o nosso novo presidente acabou de chegar, por isso vou passar-lhe o telefone. - Perry tapou o bocal e disse:
- É o capitão do porto, o senhor Borthwick. Parece que há um problema.
- Bom dia, Borthwick, daqui fala o major Fisher, o presidente da empresa. Em que posso ajudá-lo?
- Bom dia, major. Na verdade, é muito simples. Tem o bacalhau descarregado nestes últimos três dias amontoado na minha doca, e gostava que o viessem recolher assim que possível.
- Vou já tratar disso.
- Obrigado, major, porque, se não tiver sido retirado às quatro da tarde, não terei alternativa a não ser deitá-lo novamente ao mar.
O telefone emudeceu.
- Onde é que estão os camiões que vão buscar a captura da manhã?
- Os motoristas estiveram aí até ao meio-dia, mas, como ninguém tinha autoridade para lhes dar ordem para ir ao porto, arrumaram as coisas e foram para casa. Não os encontrou por uns minutos, major. Voltam amanhã, às seis da madrugada. Bob era sempre o primeiro a chegar. Gostava de ir às docas para supervisionar o carregamento. Assim, tinha a certeza de que ninguém lhe impingia a captura do dia anterior.
Fisher refastelou-se numa cadeira e olhou para um monte de cartas por abrir dirigidas ao senhor Bingham.
- Acaso terei uma secretária?
- A Vai. Não há nada que ela não saiba sobre este lugar. Fisher esboçou um ligeiro sorriso.
172
- Então, onde é que ela está?
- Em licença de maternidade e só deve voltar daqui a uns meses. Mas eu sei que ela pôs um anúncio no Grimsby Evening Telegraph a pedir uma trabalhadora temporária - acrescentou, ao mesmo tempo que um homem que parecia um lutador de pesos-pesados entrava na sala.
- Qual dos dois manda aqui? - exigiu saber. Perry apontou para o major.
- Precisamos de alguma ajuda para descarregar, chefe!
- Descarregar o quê?
- Cento e quarenta e oito caixas de frascos de pasta de peixe. Todas as terças, à mesma hora. Se não tiver ninguém para as descarregar, vamos ter de as levar de volta para Doncaster, e isso vai sair-lhe caro.
- Talvez lhes pudesse dar uma mãozinha, Perry.
- Eu sou da direção, major. Bastava verem-me a olhar para uma caixa, e os sindicatos iam fazer greve de braços caídos.
Foi nessa altura que Fisher percebeu que todos eles liam pela mesma cartilha, e não era ele o mestre-escola.
O major durou três dias, tempo durante o qual nenhuma pasta de peixe Bingham saiu da fábrica. Pesando bem as coisas, decidiu que combater os alemães no Norte de África era muito mais fácil do que tentar trabalhar com um monte de delegados sindicais esquerdistas em Humberside.
Na sexta-feira à noite, depois de os duzentos operários terem ido buscar os envelopes com o salário e seguido para casa, a cortina caiu finalmente. O major registou a saída do Humber Royal Hotel e apanhou o último comboio para Londres.
- As ações da Bingham's caíram mais dez por cento - disse Seb.
- Qual é o preço à vista? - perguntou Bob.
Seb consultou o registador automático das cotações que tinha no gabinete.
- Sete xelins e seis dinheiros. Não, sete xelins e quatro dinheiros.173
- Mas ainda há uma semana valiam uma libra!
- Eu sei, mas isso foi antes de o major bater em retirada para Londres.
- Então, deve estar na altura de eu voltar e pôr as coisas em ordem - disse Bob.
- Ainda não. Mas talvez seja bom ter à mão o número de um agente de viagens local.
- Mas o que é que eu hei de fazer entretanto? - resmungou Bob.
- Jogar canasta?
Virgínia e Priscilla mal se tinham falado durante a última semana, e uma observação casual durante o pequeno-almoço iniciou uma discussão que estava em ebulição há algum tempo.
- Bofie Bridgwater disse-me a noite passada que...
- Bofie Bridgwater é uma nulidade e um perfeito idiota! - atalhou Priscilla.
- Que por acaso tem um título e milhares de hectares de terra.
- Não estou interessada no título dele e, antes de isto ter acontecido, eu também tinha milhares de hectares de terra.
- E continuarias a ter - disse Virgínia - se não te tivesses armado em parva em tribunal.
- Como é que eu havia de saber que Robert estava disposto a abdicar da empresa? Estava simplesmente a tentar mostrar o quão generoso achava que ele tinha sido, e agora nem sequer tenho um teto para me abrigar.
- Bem, podes ficar aqui mais um tempinho - disse Virgínia - mas talvez seja melhor começares à procura de casa. No fim de contas, não deves estar à espera de que continue a subsidiar-te indefinidamente.
- Mas tu disseste que podia contar sempre com o teu apoio.
- Não me lembro de ter dito sempre - disse Virgínia, enquanto deitava uma rodela de limão no chá.
Priscilla levantou-se, dobrou o guardanapo e colocou-o sobre a mesa. Saiu da sala sem dizer palavra, subiu a escada até ao quarto de hóspedes e começou a fazer as malas.174
- Pai, pode apanhar o próximo avião para casa.
- Finalmente. Mas porquê agora?
- A mãe caiu finalmente em si. Abandonou o apartamento de Lady Virgínia há cerca de uma hora.
- O que te faz pensar que não irá voltar?
- O facto de trazer três malas e de ter apanhado um táxi para o Mulberry Hotel, em Pimlico.
- Vou a caminho do aeroporto - disse Bob. Clive desligou o telefone.
- Será que devo ir buscar o meu pai a Heathrow para o levar ao Mulberry?
- Não me parece - disse Seb. - Só ias atrapalhar. Espera até ele te telefonar.
Clive juntou-se aos pais nessa mesma noite, para beberem um copo no Savoy.
- Tão romântico - disse Priscilla, que estava de mão dada com Bob. - O teu pai reservou a mesma suite onde passámos a primeira noite da nossa lua de mel.
- Mas vão viver em pecado - brincou Clive.
- Não por muito tempo - replicou Priscilla. - Amanhã de manhã, vamos falar com a juíza Havers. O nosso advogado acha que ela pode resolver a situação.
- Tenho a sensação de que a meritíssima não vai ficar muito surpreendida - observou Clive.
- Quando é que te tornaste tão sagaz, de repente? - perguntou Bob.
- Quando não me deixou outra alternativa senão viver a minha própria vida.
- Tem um senhor Bingham ao telefone, para falar consigo - disse a telefonista.
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- Bob, ainda está em Londres? - perguntou Seb. - Preciso de discutir uma coisa consigo.
- Não, estou de volta a Grimsby, a contratar novamente a maior parte do meu pessoal. Parecem ter gostado tanto das férias prolongadas como eu.
- Já vi que o preço das ações subiu dois dinheiros.
- Sim, mas ainda vai levar algum tempo até estar tudo a correr sobre rodas. Talvez devesses comprar algumas ações enquanto o preço está em baixa.
- Há um mês que as ando a comprar - retorquiu Seb. - Detenho agora cerca de quatro por cento da Pasta de Peixe Bingham.
- Se tivesse conselho de administração - disse Bob -, punha-te lá. Mas ainda estou em dívida para contigo, inclusive pelo teu papel de casamenteiro. Portanto, que tal enviares-me uma conta choruda pelos teus serviços?
- Agora que derrotámos Lady Virgínia, prefiro que me aconselhe em relação a outro problema que enfrento.
- Virgínia Fenwick só será derrotada quando estiver sete palmos abaixo da terra. Mas como é que posso ajudar-te?
- Eu quero adquirir o Farthings Bank e afastar Adrian Sloane de uma vez por todas. Mas não conseguirei fazê-lo sem a sua ajuda.
- Não se pode ganhar sempre - disse Lady Virgínia -, mas, como Wellington lembrou depois de Waterloo, só a batalha final é que realmente importa.
- E quem é que faz de Napoleão nesse campo de batalha?
- Nada mais nada menos que Emma Clifton.
- E qual será o meu papel? - perguntou Fisher.
- Preciso que descubra o que aconteceu realmente na primeira noite da viagem inaugural do Buckingham, porque é óbvio que a história da Esquadra Metropolitana não passou de uma cortina de fumo. Priscilla Bingham ouviu um dos administradores dizer ao marido que, se a verdade alguma vez se viesse a saber, Emma Clifton teria de se demitir e a companhia podia até ver-se confrontada com a falência. Isto seria o ideal para mim, pois não deixaria outra alternativa à

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nossa preciosa presidente senão chegar a acordo relativamente à ação judicial e pagar as minhas custas.
Fisher permaneceu calado durante algum tempo, antes de dizer:
- Há dois membros do conselho que se desentenderam recentemente com a senhora Clifton, e um deles tem tendência para beber um pouco mais do que a conta, sobretudo quando não é ele a pagar. Temos alguma coisa para lhe oferecer em troca, se ele decidir demitir-se?
- Um lugar no conselho de administração do Farthings Bank.
- Isso seria o suficiente, mas o que a leva a pensar que consegue uma coisa dessas?
- O presidente, Adrian Sloane, tem todos os motivos para detestar Sebastian Clifton, e fará qualquer coisa para o derrubar.
- Como é que sabe isso?
- É espantoso o que se consegue ficar a saber em jantares de gala, sobretudo quando o nosso anfitrião pensa que as mulheres não compreendem o que se passa na City.

GILES BARRINGTON
1970

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Giles não tinha perdido tempo a pensar como queria passar o seu quinquagésimo aniversário, mas Gwyneth fizera-o por ele.
Sempre que Giles pensava no seu casamento - e pensava muito nisso -, não era capaz de identificar o momento em que as coisas tinham começado a correr mal. A morte trágica do filho Walter aos três anos e a consciência de que não podia ter mais filhos tinham transformado o espírito alegre de Gwyneth, que iluminava a vida de toda a gente, numa sombra melancólica, perdida no seu próprio mundo. Giles descobriu que a tragédia, em vez de os unir mais ainda, estava a afastá-los lentamente, e para isso também contribuía o horário irregular de deputado e, depois, a exigente agenda ministerial.
Giles tivera esperança de que o tempo sarasse as feridas, mas a verdade é que tinham começado a viver vidas separadas, quase como se não fossem um casal, e ele já nem se lembrava da última vez que tinham feito amor. Apesar disso, estava decidido a permanecer fiel a Gwyneth, pois não queria um segundo divórcio e ainda estava esperançado numa reconciliação.
Sempre que estavam juntos em público, tentavam esconder a verdade, esperando que os eleitores de Giles, os seus colegas e até a sua família não percebesse que o seu casamento era uma farsa. Mas sempre que Giles via Harry e Emma juntos, invejava-os.
Giles presumira que, no seu aniversário, estaria a ir ou a voltar de alguma viagem ao estrangeiro em representação do governo de Sua Majestade. Contudo, Gwyneth insistia para que o marco fosse convenientemente comemorado.180
- O que tens em mente? - perguntou Giles.
- Um jantar, só com a família e alguns amigos mais chegados.
- E onde é que seria?
- Na Câmara dos Comuns. Podíamos reservar uma das salas de jantar privadas.
- Esse é o último lugar onde me quero lembrar que tenho cinquenta anos!
- Giles, não te esqueças de que, para a maior parte de nós, que não vamos todos os dias ao Palácio de Westminster, continua a ser algo muito especial.
Giles sabia quando tinha sido derrotado, por isso os convites foram expedidos no dia seguinte e, três semanas depois, quando olhou à volta da mesa da sala de jantar, percebeu que Gwyneth tinha razão, pois toda a gente parecia estar a divertir-se.
Emma, que se encontrava sentada à sua direita, e a irmã Grace, à sua esquerda, estavam a conversar com os respetivos vizinhos. Giles usou o tempo para pensar no seu discurso, rabiscando algumas notas na parte de trás da ementa.
- Eu sei que não devíamos falar de negócios numa altura como esta - disse Emma a Ross Buchanan -, mas sabe quanto prezo os seus conselhos.
- E um velho fica sempre lisonjeado quando uma mulher jovem lhe pede conselhos - redarguiu Ross.
- Faço cinquenta para o ano que vem - recordou-lhe Emma -, mas o Ross é sempre o mesmo galanteador.
- Que faz setenta para o ano que vem - acrescentou Ross. - Talvez me reforme nessa altura, por isso, enquanto tenho sessenta e nove anos, em que posso ajudar?
- Estou a ter problemas com Desmond Mellor.
- Nunca percebi porque é que lhe deu um lugar no conselho de administração.
- Force majeure - sussurrou Emma. - Mas ele agora está a pressionar para ser vice-presidente.
- Evite-o a todo o custo. Para ele, isso não passa de um trampolim para chegar ao cargo que realmente lhe interessa.
- Mais uma razão para aguentar até achar que Sebastian está preparado para ocupar o meu lugar.
181
- O Seb acha que está preparado para ocupar o seu lugar agora
-disse Ross. - Mas se Mellor viesse a tornar-se seu vice-presidente, a Emma ia passar a vida a espreitar por cima do ombro. É uma regra de ouro para qualquer presidente só nomear um vice que: 1) não ande atrás do nosso lugar; ou 2) tenha sido promovido de forma inquestionável; ou 3) seja demasiado velho para nos substituir.
- Bem pensado - disse Emma -, mas não há muito que possa fazer se ele conseguir convencer a maioria dos membros do conselho a apoiá-lo. Para piorar as coisas, Seb acha que Mellor pode ter estado em contacto com a primeira mulher de Giles.
- Lady Virgínia Fenwick? - perguntou Ross, cuspindo as palavras.
- E possivelmente também com Alex Fisher.
- Então é melhor começar a espreitar por cima dos dois ombros.
- Agora, diga-me, querida tia - disse Seb -, já é reitora da universidade?
- O nosso reitor é o duque de Edimburgo, como muito bem sabes - disse Grace.
- Então, e que tal vice-reitora?
- Nem toda a gente é tão ambiciosa como tu, Seb. Para alguns de nós, fazer um trabalho meritório, embora humilde, é por si só recompensa suficiente.
- Então, já pensou em ser diretora da sua universidade? No fim de contas, não há ninguém mais admirado pelos colegas.
- És muito gentil em dizer isso, Sebastian, e posso dizer-te a título de confidência que, quando Dame Elizabeth se aposentou recentemente do cargo, fui abordada por uma ou duas pessoas. Contudo, deixei bem claro que não nasci para ser administradora, mas sim professora, e estou feliz com a minha sorte.
- Contra isso, não há argumentos - concluiu Seb.
- Mas diz-me, Seb, como estás sozinho esta noite, devo presumir que continua a não haver ninguém especial na tua vida?
- Tia Grace, não houve ninguém especial desde que fui suficientemente estúpido para perder a Samantha.
182
- Concordo que não foi o teu momento mais glorioso. Assim que a conheci, percebi que era uma jovem excecional, e falo com alguma autoridade no assunto.
- E estava certa. Desde então, nunca conheci ninguém que lhe chegasse sequer aos calcanhares.
- Desculpa, Seb, foi uma falta de tato da minha parte tocar nesse assunto, mas tenho a certeza de que, com o tempo, vais encontrar alguém.
- Quem me dera.
- Ainda manténs contacto com Samantha? Haverá a mais pequena hipótese...?
- Nem pensar. Escrevi-lhe várias vezes ao longo dos anos, mas ela não responde.
- Já pensaste em ir à América e admitir que estavas errado?
- Todos os dias.
- Como é que está a progredir a sua campanha para libertar Anatoly Babakov? - perguntou Priscilla.
- Receio que progredir possa não ser a palavra certa - replicou Harry, que estava sentado do outro lado da mesa, à frente de Giles. - O problema é que, com os soviéticos, uma pessoa nunca sabe. Num dia, pensamos que estão a preparar-se para libertá-lo, mas no dia seguinte convencemo-nos de que deitaram fora a chave.
- E poderá acontecer alguma coisa que mude isso?
- Uma mudança de líderes no Kremlin era capaz de ajudar. Alguém que queira que o mundo saiba como é que Stalin era na realidade. Mas não há grandes hipóteses enquanto Brejnev estiver no poder.
- Mas ele deve saber que nós sabemos que ele sabe.
- Sim, mas não está disposto a admitir isso para o exterior.
- Babakov tem família?
- A esposa fugiu da Rússia antes de ele ter sido preso. Vive agora em Pittsburgh. Tenho estado em contacto com ela e espero visitá-la quando voltar aos Estados Unidos.
183
- Espero que seja bem-sucedido - disse Priscilla. - Por favor, não pense sequer por um momento que nós, meros espectadores, nos esquecemos da sua campanha. Longe disso. Sentimo-nos inspirados pelo seu exemplo.
- Obrigado - agradeceu Harry. - A Priscilla e o Bob têm sido um grande apoio ao longo dos anos.
- O Robert é um grande admirador da sua esposa, como seguramente saberá. Eu só levei um pouco mais de tempo a perceber porquê.
- O que é que Bob anda a fazer, agora que a empresa voltou a ficar próspera?
- Está a pensar construir uma fábrica nova. Parece que a maior parte do equipamento que ele tem é da Idade da Pedra.
- Isso não lhe vai sair nada barato.
- Pois não, mas creio que ele não tem alternativa, agora que parece que nos vamos juntar ao Mercado Comum.
- Vi-o em Bristol, a jantar com Seb e Ross Buchanan.
- Sim, andam a tramar alguma, mas só consegui uma ou duas pistas. Se fosse o sargento detetive Warwick...
- Inspetor detetive Warwick - disse Harry, a sorrir.
- Sim, claro, lembro-me de que foi promovido no seu último livro. Sem dúvida que o inspetor Warwick já teria descoberto o que andam eles a tramar.
- Sou capaz de acrescentar uma ou duas coisinhas que eu próprio descobri - sussurrou Harry.
- Então, vamos trocar notas.
- É importante lembrar que Seb nunca perdoou Adrian Sloane por se nomear presidente no dia do funeral de Cedric Hardcastle.
- Em Huddersfield - disse Priscilla.
- Sim, mas porque é que isso é relevante?
- Porque sei que Robert apanhou várias vezes o ferry para atravessar o Humber nos últimos dois meses.
- Poderia ter ido visitar outra mulher, que por acaso detém cinquenta e um por cento do Farthings?
- Possivelmente, porque Arnold Hardcastle passou uma noite lá em casa há pouco tempo e, tirando as refeições, ele e Robert nunca saíram do escritório.184
- Então, o melhor é Adrian Sloane ficar de olhos bem abertos, porque se Bob, Seb e Arnold estão a trabalhar em equipa, que Deus o ajude! - disse ele, olhando de relance para o marido de Priscilla, do outro lado da mesa.
- A Pasta de Peixe Bingham parece ter abandonado as parangonas, ultimamente - disse Gwyneth, virando-se para o presidente da companhia.
- E isso é bom - retorquiu Bob. - Agora, podemos continuar a alimentar a nação, em vez de fazer as delícias dos colunistas de mexericos.
Gwyneth riu-se.
- Tenho uma confissão a fazer - disse ela. - Nunca tivemos um frasco da vossa pasta de peixe lá em casa.
- E eu devo confessar que nunca votei trabalhista, embora fosse capaz de o fazer se morasse em Bristol.
Gwyneth sorriu.
- Quais acha que são as probabilidades de Giles manter o lugar? - perguntou Bob.
- Aguentar-se por uma unha negra parece o resultado mais provável - disse Gwyneth. - Bristol Docklands sempre foi um círculo ganho por escassa maioria de votos, mas as sondagens sugerem que, desta vez, vai ser difícil apontar um vencedor. Por isso, depende muito de quem os conservadores locais escolham como candidato.
- Mas Giles é um secretário de Estado bastante popular, muito admirado por ambos os lados da Câmara. Isso não conta para nada?
- Cerca de um milhar de votos, na opinião de Griff Haskins. Mas o seu mandatário nunca para de me lembrar que, se a tendência nacional estiver contra nós, não há muito que se possa fazer em relação a isso.
- Suponho que tenha de vir à Câmara dos Comuns com muita regularidade - disse Jean Buchanan.
185
- Na verdade, nem por isso - replicou Griff. - Nós, os mandatários, temos tendência para atuar no terreno, garantindo que os eleitores continuam a adorar o deputado.
Naquele momento, a porta da sala de jantar abriu-se e todas as conversas pararam quando ele entrou.
- Não, não, façam o favor de se sentar, eu não queria interromper - declarou um forte sotaque do Yorkshire que não fora afetado pelos vários anos que passara como professor universitário em Oxford.
- Que amabilidade a sua juntar-se a nós, senhor primeiro-ministro! - exclamou Giles, pondo-se em pé de um salto.
- É um grande prazer - disse Harold Wilson. - Deu-me uma desculpa para escapar durante alguns minutos de um jantar com o presidente do Sindicato Nacional dos Mineiros. Atenção, Giles - acrescentou, olhando à sua volta -, que não ficaria surpreendido se estivéssemos em inferioridade numérica em relação aos conservadores nesta sala. Mas não há motivo para preocupações, Griff trata da triagem. - O primeiro-ministro inclinou-se sobre a mesa e trocou um aperto de mão com o mandatário de Giles. - E quem são estas duas encantadoras senhoras?
- As minhas irmãs, Emma e Grace - respondeu Giles.
- Faço uma vénia às duas - disse o primeiro-ministro. - A primeira mulher presidente de uma companhia privada e uma académica inglesa de renome. - Grace corou. - E, se não me engano - acrescentou, apontando com o dedo para o outro lado da mesa -, aquele é Bob Bingham, o rei da pasta de peixe. A minha mãe tinha sempre um frasco da sua pasta na mesa para o que apelidava de lanche ajantarado.
- E em Downing Street? - indagou Bob.
- Não fazemos esse tipo de lanches em Downing Street - disse o primeiro-ministro, enquanto dava lentamente a volta à mesa, distribuindo apertos de mão e autografando ementas.
Giles ficou sensibilizado com o facto de o primeiro-ministro ter lá ficado tanto tempo, indo apenas embora quando um zeloso secretário lhe recordou que era convidado de honra no jantar dos mineiros, onde teria de discursar. Antes de se ir embora, puxou Harry para o lado e sussurrou:186
- Obrigado pela sua ajuda em Moscovo, senhor Clifton. Não pense que nos esquecemos. E não desista de Babakov, porque nós também não desistimos.
- Obrigado, senhor - disse Harry, e todos se levantaram novamente enquanto o primeiro-ministro saía da sala.
Depois de se terem voltado a sentar, Jean Buchanan disse a Griff:
- Deve ser tão divertido ser um velho amigo do primeiro-ministro...
- Só tinha estado com ele uma vez - confessou Griff. - Mas tal como um elefante, ele nunca se esquece - acrescentou, enquanto Harry se levantava, batia no copo de vinho com uma colher e aguardava que se fizesse silêncio.
- Caros convidados, proponho que se juntem a mim num brinde ao meu mais antigo e querido amigo. O homem que me apresentou à sua irmã e é padrinho do nosso filho Sebastian. Queiram fazer o favor de se levantar e de se juntar a mim num brinde ao altamente ilustre Sir Giles Barrington, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do governo de Sua Majestade e um homem que continua a acreditar que devia ser capitão da equipa de críquete de Inglaterra.
Harry esperou que o riso se extinguisse antes de acrescentar:
- E todos esperamos que Giles conserve o lugar nas próximas eleições, e que talvez até consiga concretizar a aspiração de uma vida e tornar-se ministro dos Negócios Estrangeiros.
Aplausos calorosos e gritos de «Apoiado! Apoiado!» ecoaram por toda a sala enquanto Giles se levantava para responder.
- Obrigado, Harry. É maravilhoso ter a minha família e os meus amigos mais chegados e queridos reunidos à minha volta, com o único propósito de me lembrarem como estou velho. Fui abençoado com uma família maravilhosa e amigos verdadeiros, e é claro que um homem sensato não poderia desejar mais do que isso. No entanto, muitos de vós têm tido a simpatia de me perguntar o que é que eu gostava de ter como prenda de aniversário. - Giles olhou lentamente à volta da mesa antes de dizer: - Ser primeiro-ministro, ministro dos Negócios Estrangeiros e ministro das Finanças, tudo ao mesmo tempo. - As gargalhadas e aplausos fizeram-se ouvir espontaneamente,187
antes de ele acrescentar: - Mas, para já, ficava satisfeito se conseguisse segurar o lugar de deputado por Bristol Docklands nas próximas eleições.
Aplausos, agora sem gargalhadas.
- Não, o que quero realmente é que todos os que aqui estão esta noite prosperem e floresçam - Giles fez uma pausa - com um governo trabalhista.
As vaias abafaram os vivas, provando que o primeiro-ministro tinha razão quanto à superioridade numérica dos conservadores na festa de aniversário do próprio Giles.
- Então, deixem-me terminar dizendo que, se não ganhar, vou ficar amuado. - As gargalhadas voltaram. - Um homem sábio disse-me uma vez que o segredo de um grande discurso é o sentido de oportunidade...
Giles sorriu e sentou-se, enquanto toda a gente se levantava e o brindava com uma ovação de pé.
- Então, qual é o próximo sítio onde vais? - perguntou Emma enquanto os empregados de mesa regressavam para servir café e chocolates After Eight aos convidados.
- Berlim Oriental, a uma reunião de secretários de Estado dos Negócios Estrangeiros - retorquiu o irmão.
- Achas que alguma vez irão derrubar aquele muro vergonhoso? - perguntou Grace.
- Não enquanto Ulbricht, esse pau-mandado, estiver no poder e se limitar simplesmente a cumprir as ordens dos seus amos e senhores do Kremlin.
- E aqui, mais perto de nós - disse Emma -, quando é que achas que serão as eleições gerais?
- Harold quer que sejam em maio, quando está confiante de que podemos ganhar.
- Tenho a certeza de que vais conseguir manter a vitória em Bristol, a não ser que haja algum acidente - disse Emma. - Mas continuo a pensar que os conservadores vão ganhar por uma pequena maioria.188
- E tu vais continuar leal ao Partido Trabalhista? - Perguntou Giles, virando-se para a irmã mais nova.
- É claro - respondeu Grace.
- E tu, Emma?
- Nem pensar!
- Há coisas que nunca mudam.
189
18
Gwyneth resmungou quando o despertador começou a tocar e nem se deu ao trabalho de ver que horas eram. Tinha aperfeiçoado a arte de voltar a adormecer poucos minutos depois de Giles sair do quarto. Ele tomava sempre duche na noite anterior e punha a roupa do dia seguinte no quarto de vestir, para não precisar de acender a luz e não a incomodar.
Ele espreitou pela janela que dava para Smith Square. O seu carro já estava parado em frente à porta. Não gostava de pensar a que horas é que o motorista tinha de se levantar para ter a certeza de que não se atrasava.
Depois de se ter barbeado e vestido, Giles desceu para a cozinha, fez uma chávena de café e devorou uma tigela de flocos de milho e fruta. Cinco minutos depois, pegou na mala e dirigiu-se para a porta da rua. Gwyneth só lhe fazia uma pergunta quando ele se ia embora: quantos dias? Dois, dissera-lhe ele desta vez, e ela tinha feito a mala de acordo com isso. Nem sequer teria de verificar antes de a desfazer em Berlim, pois sabia que lá dentro estaria tudo de que precisava.
A sua primeira esposa era uma rameira, ao passo que a segunda se revelara uma virgem. Giles não queria admitir, nem mesmo para si próprio, que gostaria de ter uma subtil combinação das duas. Virgínia no quarto e Gwyneth nos outros sítios. Perguntava-se muitas vezes se os outros homens teriam fantasias semelhantes. Harry não, seguramente, pois ainda estava mais apaixonado por Emma do que no dia em que se tinham casado. Giles invejava aquela relação, embora essa190
fosse outra coisa que nunca admitiria, nem mesmo ao seu melhor amigo.
- Bom dia, Alf- disse Giles ao entrar para o banco de trás do carro.
- Bom dia, senhor - replicou alegremente o motorista.
Alf era motorista de Giles desde o dia em que ele se tornara secretário de Estado, e era muitas vezes uma melhor fonte de informação sobre o que se passava no mundo real do que a maior parte dos seus colegas.
- Então, para onde é que vamos hoje, senhor?
- Berlim Oriental.
- Antes o senhor do que eu.
- Sei como te sentes. Bem, quais são as novidades?
- As eleições vão ser em junho, provavelmente no dia dezoito.
- Mas a imprensa continua a prever que sejam em maio. Onde é que foste buscar essa informação?
- Foi Clarence, o motorista do primeiro-ministro, que me contou.
- Então, preciso de informar Griff de imediato. Mais alguma coisa?
- O ministro dos Negócios Estrangeiros vai anunciar esta manhã que irá abandonar o governo depois das eleições, seja qual for o resultado.
Giles não respondeu, enquanto pensava na bomba que Alf largara casualmente. Se ele conseguisse continuar a ser deputado por Bristol Docklands e se o Partido Trabalhista vencesse as eleições gerais, havia hipótese de lhe oferecerem o Ministério dos Negócios Estrangeiros. O único problema era os dois «ses». Esboçou um sorriso forçado.
- Nada mau, Alf, nada mau mesmo! - acrescentou, enquanto abria a pasta oficial e começava a examinar a documentação.
Ele gostava sempre de pôr as novidades em dia com os seus congéneres pela Europa fora, de trocar opiniões nos corredores, elevadores e bares onde a realpolitik acontecia, em vez de fazê-lo nas reuniões formais e intermináveis cujas atas haviam sido redigidas muito antes do seu início.
191
Alf passou por uma entrada não assinalada para a pista número 3 do Aeroporto de Heathrow e parou junto à escada de embarque para o avião. Se Giles não conservasse o seu lugar no governo depois das eleições, ia sentir a falta de tudo isto. Voltar às filas da bagagem, aos balcões de check-in, ao controlo dos passaportes, às verificações de segurança, às longas caminhadas até à porta de embarque, e depois à espera interminável até alguém dizer finalmente que podia embarcar.
Alf abriu a porta de trás e Giles subiu a escada do avião. Não se habitue, advertira-o em tempos Harold Wilson. Só a rainha se pode dar a esse luxo.
Giles foi o último passageiro a embarcar e a porta foi fechada enquanto ele se sentava no seu lugar na primeira fila, junto ao seu secretário permanente.
- Bom dia - disse Alf. Não era homem que perdesse tempo com conversa fiada. - Embora à primeira vista esta conferência não pareça nada promissora - prosseguiu -, pode haver várias oportunidades para tirar proveito dela.
- Por exemplo?
- O primeiro-ministro precisa de saber se Ulbricht está prestes a ser substituído como secretário-geral. Se assim for, haverá sinais de fumo e nós precisamos de descobrir quem foi escolhido para o substituir.
- E isso fará alguma diferença? - perguntou Giles. - Quem quer que fique no seu lugar irá continuar a ligar para Moscovo antes de poder tomar alguma decisão.
- Ao passo que o ministro dos Negócios Estrangeiros - prosseguiu o funcionário, ignorando o comentário - está desejoso que descubra se seria boa altura para o Reino Unido apresentar outra candidatura para se juntar à CEE.
- Será que De Gaulle morreu e eu não dei por nada?
- Não, mas perdeu influência desde que se aposentou no ano passado, e Pompidou é capaz de achar que chegou a altura de mostrar o seu poder.
Os dois homens passaram o resto do voo a recapitular a agenda oficial e aquilo que o governo de Sua Majestade esperava conseguir da conferência: uma cotovelada aqui, um piscar de olho ali, sempre que fosse alcançado um entendimento.
192
Quando o avião se imobilizou no Aeroporto Tegel em Berlim, o embaixador britânico estava à espera deles ao fundo da escada. Com ajuda de uma escolta policial, o Rolls-Royce levou-os através de Berlim Ocidental, mas parou bruscamente quando chegou ao Checkpoint Charlie, como os aliados ocidentais chamavam ao local de travessia mais conhecido do muro.
Giles olhou para o muro horrível coberto de graffiti e encimado por arame farpado. O Muro de Berlim tinha sido construído em 1961, praticamente de um dia para o outro, para parar com a vaga de emigração da Alemanha Oriental para a Ocidental. A Alemanha Oriental era agora uma prisão gigantesca, o que não constituía grande publicidade para o comunismo. Se fosse mesmo a utopia que os comunistas afirmavam, pensou Giles, teriam sido os alemães ocidentais a ter de construir um muro para impedir os seus infelizes cidadãos de fugir para leste.
- Se tivesse uma picareta... - disse.
- Eu teria de impedi-lo - declarou o embaixador. - A não ser que quisesse provocar um incidente diplomático.
- Seria preciso mais do que um incidente diplomático para impedir o meu cunhado de lutar por aquilo em que acredita - disse Giles.
Depois de os seus passaportes terem sido verificados, puderam deixar o setor ocidental, o que permitiu ao motorista avançar mais duas centenas de metros até ficar parado em terra de ninguém. Giles olhou para cima, para os guardas armados nas suas guaritas, a fitar os convidados britânicos com expressão carregada.
Permaneceram estacionados entre as duas fronteiras, enquanto o Rolls-Royce era inspecionado de uma ponta à outra, como se fosse um tanque Sherman, antes de terem autorização para entrar em Berlim Oriental. Mas sem a ajuda de uma escolta policial, levaram mais uma hora para chegar ao hotel, do outro lado da cidade.
Depois de se terem registado e recebido as chaves dos quartos, a regra de ouro era o secretário de Estado trocar de quarto com o secretário permanente, para não ser incomodado por prostitutas ou ter de controlar cada palavra que dizia por ter o quarto sob escuta. Mas a Stasi tinha percebido o estratagema e agora limitava-se a pôr aparelhos de escuta em ambos os quartos.193
- Se quiser ter uma conversa privada - disse o embaixador -, casa de banho, com as torneiras abertas, é o único lugar seguro.
Giles desfez a mala, tomou um duche e desceu para se juntar a alguns colegas holandeses e suecos para um almoço tardio. Embora fossem velhos amigos, isso não os impedia de tentar arrancar informações uns aos outros.
- Então, diz lá, Giles, o Partido Trabalhista vai ganhar as eleições? - perguntou Stellen Christerson, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros sueco.
- Oficialmente, não podemos perder. Oficiosamente, está demasiado renhido para antever o resultado.
- E se ganharem, será que o senhor Wilson faz de ti ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Oficiosamente, sou capaz de ter hipóteses.
- E oficialmente? - perguntou Jan Hilbert, o congénere holandês.
- Servirei o governo de Sua Majestade na qualidade que o primeiro-ministro achar conveniente.
- E eu vou ganhar o próximo Rali de Monte Carlo - disse Hilbert.
- E eu vou voltar para a minha suite, para verificar os meus documentos - disse Giles, ciente de que só os estreantes naquelas andanças ficavam por ali sentados a beber, acabando por passar o dia seguinte a bocejar. Era preciso estar bem acordado para conseguir captar alguma revelação irrefletida que fizesse valer a pena as horas de negociação.
A conferência abriu na manhã seguinte com um discurso do secretário-geral da Alemanha Oriental, Walter Ulbricht, que deu as boas-vindas aos participantes. Era óbvio que o conteúdo tinha sido escrito em Moscovo, embora as palavras fossem pronunciadas pela marionete dos soviéticos em Berlim Oriental.
Giles recostou-se, fechou os olhos e fingiu escutar a tradução de um discurso que já ouvira várias vezes antes, mas depressa começou a divagar. De repente, ouviu uma voz ansiosa perguntar:

194
- Espero que não haja nada de errado com a minha tradução, Sir Giles.
Giles olhou em volta. O Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha deixado bem claro que, embora cada secretário de Estado tivesse o seu próprio intérprete, estes vinham acompanhados de um alerta. A maioria trabalhava para a Stasi, e qualquer observação infeliz ou falha de comportamento seria seguramente transmitida aos seus chefes no Politburo da Alemanha Oriental.
O que apanhara Giles de surpresa não fora tanto a pergunta preocupada feita pela jovem, mas mais o facto de poder jurar que detetara um ligeiro sotaque do sudoeste de Inglaterra.
- A sua tradução está ótima - disse ele, olhando-a com mais atenção. - É só porque já ouvi várias vezes este discurso ou uma ligeira variante do mesmo.
Ela envergava um vestido cinzento informe que quase lhe chegava aos tornozelos e que só podia ter sido comprado na cooperativa de um camarada. Mas ela possuía uma coisa que nem no Harrods se podia comprar: um luxuriante cabelo arruivado que estava entrançado e preso num carrapito severo para esconder qualquer sugestão de feminilidade. Era como se não quisesse que reparassem nela. Mas os seus grandes olhos castanhos e o seu sorriso cativante fariam com que a maior parte dos homens a olhasse uma segunda vez, incluindo Giles. Era como um desses patinhos feios que surge num filme e que sabemos que se irá transformar num cisne na última cena.
Tresandava a cilada. Giles presumiu imediatamente que ela trabalhava para a Stasi e perguntou-se se conseguiria desmascará-la.
- Tem um ligeiro sotaque do sudoeste de Inglaterra, se não me engano - sussurrou ele.
Ela assentiu e exibiu o mesmo sorriso desarmante.
- O meu pai nasceu em Truro.
- Nesse caso, o que faz aqui?
- Nasci em Berlim Oriental. O meu pai conheceu a minha mãe quando estava aqui estacionado com o exército britânico em 1947.
- Isso não deve ter tido aprovação universal - insinuou Giles.
- Ele teve de renunciar à comissão de serviço e depois aceitou um trabalho na Alemanha para poder estar com ela.
- Um verdadeiro romântico.
195
- Mas receio que a história não tenha um final romântico. Mais John Galsworthy do que Charlotte Brontè, porque quando o muro foi erguido em 1961 o meu pai estava na Cornualha a visitar os pais e nunca mais o vimos desde então.
Giles manteve-se cauteloso.
- Isso não faz sentido, porque, se o seu pai tem nacionalidade inglesa, tanto você como a sua mãe podiam apresentar a qualquer altura um requerimento para visitar a Grã-Bretanha.
- Fizemos trinta e quatro requerimentos nos últimos nove anos, e os que obtiveram resposta voltaram todos com o mesmo carimbo vermelho: «indeferido».
- Lamento saber disso - replicou Giles. Depois, virou-se, ajustou os auscultadores e ouviu o resto do discurso de boas-vindas.
Quando o secretário-geral se sentou finalmente, uma hora e doze minutos mais tarde, Giles era uma das poucas pessoas na sala que continuava acordada.
Saiu da sala de conferências e juntou-se a uma subcomissão para discutir o eventual levantamento de algumas sanções entre os dois países. Ele tinha instruções claras, tal como o seu homólogo, mas durante a reunião ficou com a nítida sensação de que a sua intérprete estava a incluir de vez em quando observações provenientes da Stasi e não do secretário de Estado. Continuava cético e cauteloso em relação a ela, embora tivesse visto, depois de procurar nas notas informativas, que o seu nome era Karin Pengelly. Por isso, parecia que, pelo menos, estava a dizer a verdade em relação à sua ascendência.
Giles depressa se habituou a ser seguido por Karin enquanto passava de reunião em reunião. Ela continuava a transmitir tudo o que o outro lado dizia, sem que a sua expressão se alterasse. Mas as respostas de Giles eram sempre cuidadosamente formuladas, pois ainda não tinha a certeza de que lado estava ela.
No final do primeiro dia, Giles sentiu que a conferência tinha produzido alguns resultados positivos, nomeadamente por causa da sua intérprete. Ou estaria ela simplesmente a dizer o que queriam que ele ouvisse?
Durante o jantar oficial no Palast der Republik, Karin sentou-se atrás dele, traduzindo cada palavra dos discursos intermináveis e repetitivos, até que Giles acabou por fraquejar.196
- Se escrever uma carta para o seu pai, eu remeto-lha quando regressar a Inglaterra e também dou uma palavrinha a um colega do Serviço de Imigração.
- Obrigada, Sir Giles.
Giles centrou a sua atenção no secretário de Estado italiano sentado à sua direita, que estava a empurrar a comida à volta do prato enquanto resmungava sobre ter de trabalhar para três primeiros-ministros diferentes num só ano.
- Porque é que não se candidata ao lugar, Umberto? - sugeriu Giles.
- Nem pensar - retorquiu. - Não estou interessado na reforma antecipada.
Giles ficou encantado quando o último prato da interminável refeição foi servido e os convidados puderam ir embora. Ao sair da sala, deu as boas-noites a alguns dos outros participantes e depois foi ter com o embaixador e foi levado de volta ao hotel.
Foi buscar a chave do quarto e pouco depois das onze já estava na sua suite. Adormecera há cerca de uma hora quando alguém bateu à porta. Alguém obviamente disposto a ignorar a placa Não Incomodar. Mas isso não era surpresa, porque o Ministério dos Negócios Estrangeiros até emitira uma nota a contemplar essa eventualidade. Por isso, ele sabia exatamente o que esperar e, mais importante ainda, como lidar com isso.
Saiu relutantemente da cama, vestiu o roupão e foi à porta, tendo já sido avisado que eles iriam tentar apresentar-lhe uma sósia da mulher, mas com menos vinte anos.
Quando abriu a porta, ficou momentaneamente pasmado. Diante dele, estava uma loura lindíssima, com malares salientes, olhos azul-escuros e a minissaia de cabedal mais curta que ele alguma vez vira.
- Esposa errada - disse Giles depois de se recompor, embora aquilo o fizesse lembrar do porquê de se ter apaixonado perdidamente por Virgínia há todos aqueles anos. - Mas obrigado, minha senhora - disse ele, pegando na garrafa de champanhe. Leu o rótulo.
197
- Veuve Cluquot 1947. Faça o favor de transmitir os meus cumprimentos a quem quer que seja. Um vintage excelente - acrescentou, antes de fechar a porta.
Sorriu enquanto voltava para a cama. Harry teria ficado orgulhoso dele.
O segundo dia de conferência tornou-se cada vez mais frenético, à medida que os participantes tentavam concluir acordos, para não regressarem a casa de mãos vazias. Giles sentiu-se bastante satisfeito quando os alemães orientais concordaram em eliminar as taxas de importação sobre os produtos farmacêuticos, e ficou encantado, embora tentasse não o demonstrar, quando o seu homólogo francês deu a entender que, se o governo britânico fizesse um convite oficial para o presidente francês visitar a Grã-Bretanha no Ano Novo, este seria seriamente ponderado. Escreveu as palavras «seriamente ponderado», para não haver nenhum mal-entendido.
Como sempre acontece nestas ocasiões, as reuniões começaram a atrasar-se e prolongaram-se até à noite; por isso, Giles acabou por marcar uma para antes do jantar, com o secretário de Estado do Comércio alemão oriental, uma durante o jantar com o seu congénere holandês e, finalmente, uma para depois do jantar com Walter Scheel, o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros alemão oriental. Pediu a Karin para jantar com eles, tendo decidido que, se ela trabalhava para a Stasi, era melhor atriz do que Peggy Ashcroft. E se Karin concordasse, esperava que ela aparecesse com o cabelo solto.
Karin recordou-lhe que o secretário de Estado holandês falava inglês fluentemente e sugeriu que talvez preferissem jantar sozinhos. Mas Giles achou que podia ser útil ela estar presente, para o caso de alguma coisa se perder na tradução.
Não pôde deixar de se perguntar se algum dos seus congéneres teria reparado na frequência com que ele se virara para trás durante a sessão da tarde com o secretário de Estado do Comércio para olhar mais de perto para a sua intérprete, fingindo escutar atentamente a sua tradução, enquanto, na verdade, esperava apenas ser recompensado com o seu sorriso. Mas quando ela apareceu para jantar com um198
espantoso vestido de seda vermelho de ombros descaídos, que não tinha sido seguramente comprado na cooperativa de um camarada e com o cabelo arruivado solto sobre os ombros, Giles não conseguia tirar os olhos dela, embora ela continuasse a fingir não dar por isso.
Quando voltou à sua suite para a última reunião da noite, Scheel não perdeu tempo a apresentar as exigências do seu governo.
- O vosso imposto de importação sobre a BMW, Volkswagen e Mercedes está a atingir duramente a nossa indústria automóvel. Se não podem eliminá-lo, será que pelo menos podem baixá-lo?
- Receio que isso não seja possível, Walter, já que estamos a poucas semanas de eleições gerais e o Partido Trabalhista está à espera de grandes donativos da Ford, BMC e Vauxhall.
- Não terão alternativa quando passarem a fazer parte da CEE - disse o alemão, sorrindo.
- Que Deus o ouça - retorquiu Giles.
- Pelo menos, fico grato pela sinceridade da sua resposta.
Os dois homens trocaram um aperto de mão e, quando Scheel se preparava para sair, Giles levou um dedo aos lábios e seguiu-o para fora do quarto. Olhou para um lado e para o outro do corredor, antes de perguntar:
- Quem é que vai substituir Ulbricht como secretário-geral?
- Os soviéticos estão a apoiar Honecker - disse Scheel - e, sinceramente, não vejo quem o possa vencer.
- Mas ele é um homem fraco e velhaco, que nunca teve um pensamento original na sua vida - argumentou Giles - e vai acabar por ser mais um pau-mandado, tal como Ulbricht.
- E é precisamente por isso que o Politburo está a apoiá-lo. Giles pôs as mãos no ar. Scheel limitou-se a esboçar um sorriso forçado.
- Vemo-nos em Londres, depois das eleições - disse ele, antes de se afastar em direção ao elevador.
- Esperemos que sim - murmurou Giles.
Quando voltou para o quarto, ficou contente por ver que Karin ainda lá estava. Ela abriu a mala, tirou um envelope e entregou-lho.
- Obrigada, Sir Giles.
Giles olhou para o nome e morada escritos no envelope, enfiou-o num bolso interior e disse:
199
- Remeto-o ao seu pai assim que regressar a Inglaterra.
- Sei que a minha mãe vai apreciar o seu gesto.
- É o mínimo que posso fazer - disse Giles enquanto ia até à mesa de apoio, pegava na garrafa de champanhe e lha entregava. - Um pequeno sinal de gratidão por todo o seu trabalho. Espero que Karin e a sua mãe o apreciem.
- É muito amável da sua parte, Sir Giles - sussurrou ela, devolvendo-lhe a garrafa -, mas não chegaria à porta principal sem que a Stasi ma tirasse - acrescentou, apontando para o lustre.
- Então, vamos pelo menos beber uma taça juntos.
- Tem a certeza de que isso é sensato, Sir Giles, tendo em conta...
- Agora, que estamos sozinhos, pode tratar-me por Giles - disse ele, enquanto tirava a rolha e enchia duas taças. Ergueu a dele. - Esperemos que não demore muito a reencontrar o seu pai.
Karin bebeu um gole e depois pousou a taça na mesa.
- Tenho de ir - disse ela, e estendeu-lhe a mão.
Giles pegou nela e puxou-a suavemente para si. Ela afastou-o.
- Isto não pode acontecer, Giles, porque nesse caso vai pensar...
Ele começou a beijá-la antes que ela pudesse continuar. Enquanto se beijavam, ele correu o fecho nas costas do vestido e, quando este caiu no chão, recuou um passo, querendo tocar em todas as partes daquele corpo em simultâneo. Tomou-a novamente nos braços e quando voltaram a beijar-se os lábios dela abriram-se enquanto caíam sobre a cama. Ele olhou aqueles olhos castanhos e sussurrou:
- Se trabalhas para a Stasi, não me digas até ter feito amor contigo.200
19
Giles estava sentado na primeira fila da bancada da Câmara dos Comuns, a ouvir o ministro dos Negócios Estrangeiros fazer uma declaração sobre a decisão do Test and County Cricket Board de cancelar a digressão da equipa de críquete da Inglaterra pela África do Sul, quando lhe entregaram um bilhete do líder da bancada. Posso dar-lhe uma palavrinha a seguir à declaração?
Giles sentia sempre que uma convocatória do líder da bancada era mais ou menos como ser chamado ao gabinete do diretor da escola: era mais provável ser para o desancar do que para o elogiar. Embora o líder da bancada não tenha assento no Gabinete, o seu poder é desproporcionado em relação à posição que ocupa. É o sargento-mor da companhia, que está ali para assegurar que as tropas se mantêm na linha de maneira que a vida dos oficiais decorra sem problemas.
Mal o ministro dos Negócios Estrangeiros acabou de responder à última pergunta do deputado por Louth sobre o reforço das sanções do governo contra o regime de apartheid sul-africano, Giles esgueirou-se da câmara para o átrio dos deputados e foi direito ao gabinete do líder da bancada.
Era óbvio que a secretária estava à espera dele, pois foi conduzido imediatamente ao gabinete, sem ter de abrandar o passo.
Assim que Giles entrou, soube pela expressão do interlocutor que ia ser desancado e não elogiado.
- Receio não ter boas notícias - disse Bob Mellish, tirando da gaveta um grande envelope acastanhado e entregando-o a Giles.

201
Giles abriu o envelope com dedos trémulos e tirou uma série de fotografias a preto-e-branco. Analisou-as durante alguns instantes, antes de dizer:
- Isto não faz sentido.
- Não sei se estou a perceber.
- Não acredito que Karin trabalhasse para a Stasi.
- Então, quem mais pode ter sido? - disse o líder da bancada. - Mesmo que não trabalhasse para eles, sabe Deus a pressão a que a terão sujeitado.
- Tem de acreditar em mim, Bob! Karin não era assim. Percebo que fiz figura de parvo e que desiludi gravemente o governo e a minha família. Mas de uma coisa tenho a certeza: a culpa não é de Karin.
- Devo confessar que é a primeira vez que a Stasi usa fotografias. No passado, apenas nos enviou gravações. Vou ter de informar imediatamente o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
- Posso garantir-lhe que não discutimos nenhum assunto do governo - disse Giles. - E, quando muito, ela ainda estava com mais medo de ser apanhada do que eu.
O líder da bancada ergueu uma sobrancelha.
- Seja como for, tenho de lidar com o aqui e agora. Presumo que estas fotografias já estejam nas mãos de um dos tablóides, por isso é melhor preparar-se para um telefonema desagradável. E só tenho um conselho, Giles: diga a Gwyneth antes que a notícia saia.
- Devo demitir-me? - perguntou Giles, enquanto se agarrava à ponta da secretária, para tentar impedir as mãos de tremer.
- Isso não me cabe a mim decidir. Mas não faça nada precipitado. Pelo menos, espere até ter falado com o primeiro-ministro. E diga-me assim que a imprensa entrar em contacto consigo.
Giles deu mais uma olhadela a algumas das fotografias dele e Karin, e mesmo assim recusou-se a acreditar.
- Como é que foste capaz, Giles? Cair numa armadilha tão óbvia - disse Gwyneth. - Sobretudo depois de Harry te ter contado o que lhe tinha acontecido em Moscovo.
202
- Eu sei, eu sei. Não podia ter sido mais estúpido. Lamento imenso o sofrimento que te causei.
- Será que não pensaste por um minuto em mim ou na tua família quando essa prostitutazinha te seduziu?
- Ela não era prostituta - murmurou Giles.
Gwyneth ficou em silêncio durante algum tempo, antes de perguntar:
- Estás a dizer que conhecias essa mulher antes de tudo isso acontecer?
- Ela era a minha intérprete.
- Então, foste tu que a seduziste e não o contrário?
Giles não fez qualquer tentativa para contradizê-la. Teria sido mais uma mentira.
- Se te tivessem montado uma armadilha, se estivesses embriagado ou tivesses simplesmente feito figura de parvo, Giles, era capaz de viver com isso. Mas é óbvio que pensaste no assunto antes de... - Parou a meio e levantou-se da cadeira. - Vou para Gales esta noite. Por favor, não tentes entrar em contacto comigo.
Giles ficou sentado sozinho enquanto a noite caía sobre Smith Square e pensou nas consequências de ter contado a verdade a Gwyneth. Não fazia sentido, caso Karin não passasse de uma prostituta ao serviço da Stasi. Que fácil teria sido dizer à esposa que Karin era apenas uma pega, um caso de uma noite, que nem sequer sabia o nome dela. Então, porque não o fizera? Porque a verdade é que nunca tinha conhecido ninguém como ela. Amável, bem-humorada, ardente, bondosa e inteligente. Oh, tão inteligente! E se ela não sentia o mesmo por ele, por que razão adormecera nos seus braços? E porque é que voltara a fazer amor com ele quando acordaram de manhã, quando podia ter-se escapulido a meio da noite, depois do trabalho feito? Em vez disso, optara por correr um risco tão grande quanto ele e, provavelmente, estava a sofrer as consequências da mesma forma que ele.
De cada vez que o telefone tocava, Giles presumia que ia encontrar um jornalista do outro lado da linha. Estamos na posse de algumas fotografias, Sir Giles, e queríamos saber se gostaria de comentar...203
O telefone tocou e ele atendeu com relutância.
- Tem um tal senhor Pengelly em linha - disse a sua secretária. Pengelly. Tinha de ser o pai de Karin. Também estaria envolvido na tramóia?
- Passe a chamada - disse Giles.
- Boa tarde, Sir Giles. O meu nome é John Pengelly. Estou a ligar para lhe agradecer a amabilidade de ter ajudado a minha filha quando esteve em Berlim Oriental. - O mesmo sotaque do sudoeste de Inglaterra. - Acabei de ler a carta de Karin que fez o favor de me remeter. É a primeira que recebo dela em muitos meses. Já quase perdera a esperança.
Giles não queria dizer-lhe por que motivo essa esperança seria provavelmente de curta duração.
- Escrevo todas as semanas a Karin e à mãe, mas nunca sei quantas cartas lhes chegam. Agora, que a conheceu, sinto-me mais confiante e vou voltar a contactar o Ministério do Interior.
- Já falei com o departamento do Ministério do Interior responsável pela imigração. No entanto...
- É muito gentil da sua parte, Sir Giles. Eu e a minha família ficamos em dívida para consigo, e nem sequer é o meu deputado.
- Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal, senhor Pengelly?
- Sim, com certeza, Sir Giles.
- Acha possível que Karin trabalhe para a Stasi?
- Não, nem pensar. Ela detesta-os ainda mais do que eu. Na verdade, estou sempre a avisá-la de que a sua relutância em cooperar com as autoridades pode ser a razão para não lhe concederem o visto.
- Mas deram-lhe trabalho como intérprete numa conferência internacional.
- Só porque estavam desesperados. Karin disse-me na carta que havia mais de setenta representantes de mais de vinte países, e que teve muita sorte em ter ficado consigo.
- Nem por isso, pois devo avisá-lo que a imprensa pode ter deitado a mão a algumas fotografias em que aparecemos os dois juntos, e que na melhor das hipóteses podem ser descritas como infelizes e na pior...
204
- Não posso crer! - acabou por dizer o senhor Pengelly.-
Normalmente, Karin é tão cautelosa, nunca corre riscos. O que é que lhe deu?
- A culpa não é dela, senhor Pengelly - disse Giles. - O erro foi inteiramente meu, e devo pedir-lhe desculpa pessoalmente, pois, se os jornalistas descobrirem que é pai de Karin, vão fazer a sua vida num inferno.
- Eles fizeram isso quando casei com a mãe dela - declarou Pengelly - e nunca me arrependi.
Foi a vez de Giles ficar em silêncio, enquanto pensava em como responder.
- A verdade é muito simples, senhor Pengelly, e nem sequer fui capaz de partilhá-la com a minha esposa. - Fez nova pausa. - Apaixonei-me pela sua filha. Se pudesse tê-lo evitado, certamente que o teria feito e deixe-me que lhe diga que estou disposto a passar pelo mesmo sofrimento por que deve ter passado só para estar com ela. O pior de tudo é que nem sequer sei o que ela sente por mim.
- Mas eu sei - assegurou Pengelly.

O telefonema chegou num sábado à tarde, pouco depois das quatro da tarde. Depressa ficou claro que o Sunday People tinha um exclusivo, embora Giles calculasse que por volta da meia-noite já a maior parte dos editores estaria a refazer a primeira página.
- Presumo que tenha visto as fotos que temos na nossa posse, senhor secretário de Estado?
- Sim, vi.
- Deseja fazer alguma declaração?
- Não, não desejo.
- Vai demitir-se do governo?
- Sem comentários.
- Como é que a sua esposa reagiu à notícia? Segundo sabemos, foi para casa dos pais, em Gales.
- Sem comentários.
- É verdade que se vão divorciar?
205
Giles desligou o telefone com força. Não conseguia parar de tremer enquanto procurava o número do telefone de casa do líder da bancada.
- Bob, daqui é Giles. A história vai sair no Sunday People de amanhã.
- Lamento, Giles. Se vale de alguma coisa, deixe-me dizer-lhe que foi um secretário de Estado muitíssimo bom e que vai fazer muita falta.
Giles desligou o telefone, com uma única palavra a ecoar nos ouvidos: foi. Foi um secretário de Estado muitíssimo bom. Tirou uma folha de papel da Câmara dos Comuns da papeleira à sua frente e começou a escrever.
Caro Primeiro-Ministro, É com grande pesar...
Giles entrou na sala do Conselho Privado do Rei em Whitehall, para poder evitar o aglomerado de jornalistazecos de Fleet Street que esperavam por ele em Downing Street ou, pelo menos, aqueles que desconheciam a entrada das traseiras para o número 10.
Uma das memórias com que regalaria os seus netos era que, ao entrar na sala do Gabinete, Harold Wilson estava a tentar sem sucesso reacender o seu cachimbo de sarça.
- Giles, que amabilidade a sua em aparecer por cá, tendo em conta o que deve estar a passar. Mas acredite, e falo com alguma experiência nestes assuntos, que tudo acabará por passar.
- Possivelmente, senhor primeiro-ministro. Mas não deixa de ser o fim da minha carreira de político sério, o único trabalho que sempre quis.
- Não sei se estou de acordo consigo - retorquiu Wilson. - Pense nisso, por um momento. Se conseguir segurar o lugar de deputado por Bristol Docklands nas próximas eleições, e continuo convencido de que consegue fazê-lo, o eleitorado terá expressado a sua opinião nas urnas de voto, e quem sou eu para discordar do seu julgamento? E se eu continuar em Downing Street, não hesitarei em pedir-lhe que volte a fazer parte do governo.
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- Isso são dois «ses», senhor primeiro-ministro.
- Ajude-me com um deles, Giles, e eu verei o que posso fazer em relação ao outro.
- Mas, senhor primeiro-ministro, depois daquelas manchetes...
- Concordo que não foram edificantes. Talvez tenha sido pouca sorte ser secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros1. - Giles sorriu pela primeira vez em dias. - Mas vários dos artigos de opinião - prosseguiu Wilson -, assim como um ou dois editoriais, realçaram o facto de o Giles ser um secretário de Estado excecional. O Telegraph lembrou aos leitores que tinha ganhado a Cruz Militar em Tobruk. Arranjou forma de sobreviver àquela horrível batalha, por isso o que o leva a pensar que não sobreviverá a esta?
- É que eu acho que Gwyneth se vai divorciar de mim e, sinceramente, tem boas razões para o fazer.
- Lamento saber disso - replicou Wilson, tentando uma vez mais acender o cachimbo. - Mas continuo a pensar que devia ir até Bristol para apalpar o terreno. Veja se ouve o que Griff Haskins tem a dizer, pois quando lhe telefonei esta manhã ele afiançou-me que continua a querê-lo como candidato.
- Muitos parabéns, major - disse Virgínia. - Foi o responsável por derrubar Giles Barrington.
- Mas a ironia é essa - redarguiu Fisher. - Não fui. Não foi a nossa rapariga que passou a noite com ele.
- Não estou a acompanhá-lo.
- Apanhei o avião para Berlim, como me ordenou, e não foi difícil localizar uma agência de acompanhantes com escritórios de ambos os lados do muro. Foi-me especialmente recomendada uma determinada rapariga. Foi paga generosamente, com a promessa de um bónus se conseguisse facultar fotografias dos dois na cama.
- E aqui está ela - disse Virgínia, apontando para uma seleção dos jornais da manhã que, em circunstâncias normais, não teriam chegado ao apartamento em Cadogan Gardens.
1 A designação ministerial na língua inglesa é «Foreign Affairs», e «affair» também é sinónimo de caso amoroso. (N. da T.)
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- Mas não é ela. Telefonou na manhã seguinte e disse-me que Barrington a «aliviara» da garrafa de champanhe, mas depois tinha-lhe batido com a porta na cara.
- Então, quem é essa?
- Não faço ideia. A agência diz que nunca se cruzou com ela e que deve trabalhar para a Stasi, que tinha instalado equipamento de videovigilância nas suites de todos os representantes durante a conferência.
- Mas porque é que ele rejeitou a sua rapariga e depois se deixou levar por esta?
- Isso não sei explicar - disse Fisher. - A única coisa que sei é que o seu ex-marido não está necessariamente acabado.
- Mas ele demitiu-se esta manhã. Foi a notícia de abertura dos noticiários da manhã.
- Do cargo de secretário de Estado sim, mas não do de deputado. E se conseguir manter o lugar nas próximas eleições...
- Então, vamos ter de garantir que não consegue.
- Como é que fazemos isso?
- Ainda bem que pergunta, major.
- Receio não ter alternativa senão demitir-me das funções de deputado - disse Giles.
- Só porque foste para a cama com uma prostituta? - retorquiu Griff.
- Ela não era uma prostituta - replicou Giles, como fazia com todos quantos faziam essa suposição.
- Se te demitires, é o mesmo que entregar o lugar aos conservadores. O primeiro-ministro não te vai agradecer por isso.
- Mas, a acreditar nas sondagens, os conservadores vão ganhar, de qualquer maneira.
- Já desafiámos as sondagens antes - argumentou Griff. - E os conservadores ainda nem sequer escolheram o seu candidato.
- Não há nada que me vá convencer a mudar de ideias - disse Giles.208
- Mas tu és a única pessoa que pode ganhar o lugar - insistiu Griff, ao mesmo tempo que o telefone que tinha na secretária começava a tocar. Atendeu. - Seja lá quem for, diga-lhe para me desamparar a loja!
- É o editor do Bristol Evening News - disse a secretária.
- E o mesmo se aplica a ele.
- Mas ele diz que tem uma notícia que o senhor vai querer saber sem demora. É a matéria principal do jornal de amanhã.
- Passe a chamada. - Griff escutou durante algum tempo antes de desligar violentamente o telefone. - É tudo o que preciso saber.
- Então, qual é a notícia que não pode esperar?
- Os conservadores anunciaram o seu candidato.
- Alguém conhecido?
- O major Alex Fisher. Giles desatou a rir.
- Não acredito até onde estás disposto a ir para ter a certeza de que não desisto!

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- Bom dia, o meu nome é Giles Barrington e sou o candidato do Partido Trabalhista por Bristol Docklands nas eleições gerais de quinta-feira, 18 de junho. Vote no Partido Trabalhista. Vote Barrington a 18 de junho. Bom dia, o meu nome é...
Giles tinha disputado sete eleições nos últimos vinte e cinco anos e ganhado todas elas, aumentando gradualmente a sua maioria para 2166. As últimas duas resultaram em governos trabalhistas, quando os conservadores não tinham qualquer esperança de ganhar em Bristol Docklands e os liberais sabiam que não conseguiriam fazê-lo.
A última vez que Giles pedira uma recontagem fora quando o seu adversário era o major Alex Fisher, e nessa ocasião Giles vencera apenas por quatro votos, e só ao fim de três novas contagens. Tinha sido uma campanha suja e pessoal do princípio ao fim, com a ex-mulher de Giles, Lady Virgínia, a entrar na disputa quando veio a Bristol apoiar o major, a quem descreveu como «um homem honesto e decente».
Agora, quinze anos mais tarde, Giles enfrentava nova corrida contra o mesmo adversário e rumores de um novo divórcio. Graças a Deus, Gwyneth deixara claro que só entraria com o processo depois das eleições e, embora não fizesse tenção de visitar o círculo eleitoral, não iria sugerir a ninguém que votasse em Fisher.
- Graças a Deus por estas pequenas bênçãos - foi tudo o que Griff Haskins teve para dizer. E não voltou a tocar no assunto.210
Quando o primeiro-ministro pediu à rainha para dissolver o Parlamento, a 29 de maio de 1970, Giles regressou a Bristol no dia seguinte para iniciar a campanha de três semanas para as eleições. Enquanto andava pelas ruas a fazer campanha de porta a porta, ficou agradavelmente surpreendido pela boa receção que teve e pelo escasso número de pessoas que tocavam no tema Berlim ou que perguntavam onde estava a esposa. Os britânicos não são amigos de criticar, observou Griff, embora Giles não confessasse ao seu agente de campanha que Karin raramente lhe saía do pensamento. Escrevia-lhe todas as noites, antes de se deitar e, como um miúdo de escola, via ansiosamente o correio todas as manhãs. Mas nunca havia um envelope com um selo da Alemanha Oriental.
Emma, Harry e Seb, mais a temível apoiante do Partido Trabalhista Miss Parish, que tinha tirado três semanas de férias como fazia para todas as campanhas eleitorais, acompanhavam regularmente Giles quando ele fazia campanha de porta a porta. Emma lidava com as mulheres que expressavam dúvidas acerca de Giles, na sequência da sua demissão do governo, enquanto Seb se concentrava nos jovens de dezoito anos, que iriam votar pela primeira vez.
Mas a surpresa foi Harry, que se revelou popular a vários níveis. Havia aqueles eleitores que queriam saber como é que estava a correr a sua campanha para libertar Anatoly Babakov, ao passo que outros preferiam perguntar o que é que o inspetor Warwick ia fazer a seguir. Sempre que lhe perguntavam em quem ia votar, Harry respondia sempre:
- Como as gentes sensatas de Bristol, vou votar no meu cunhado.
- Não, não - dizia Griff com firmeza. - Diga Giles Barrington, em vez de cunhado. «Cunhado» não consta do boletim de voto.
Havia um terceiro grupo que achava que Harry era o Cary Grant de Bristol, dizendo-lhe que votariam nele com toda a certeza, se fosse ele o candidato.
- Preferia andar descalço sobre uma cama de brasas - respondia Harry, erguendo as mãos horrorizado.
- Não tem ciúmes, mãe?
- Claro que não - disse Emma. - A maior parte são matronas de meia-idade que só querem mimá-lo.

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- Desde que votem no Partido Trabalhista - argumentou Griff - não me importa o que querem fazer com ele.
- Bom dia, o meu nome é Giles Barrington e sou o candidato do Partido Trabalhista por Bristol Docklands nas eleições gerais de quinta-feira, 18 de junho. Vote no Partido Trabalhista...
Todas as manhãs começavam com uma reunião de grupo no escritório de Griff, para que este pudesse fazer o ponto da situação ao candidato e ao núcleo duro da campanha, antes de lhes distribuir as suas tarefas diárias.
Na primeira segunda-feira, Griff abriu a reunião, quebrando uma das suas regras de ouro.
- Acho que devias desafiar Fisher para um debate.
- Mas, antes, sempre disseste que um deputado nunca devia admitir a existência dos seus adversários porque isso lhes daria uma tribuna para difundirem os seus pontos de vista e para se firmarem como candidatos credíveis.
- Fisher é um candidato credível - disse Griff. - Tem um avanço de três por cento nas sondagens para o provar, e precisamos desesperadamente de encontrar uma forma de diminuir esse avanço.
- Mas ele vai aproveitar a oportunidade para me lançar um ataque pessoal e conseguir manchetes sensacionalistas na imprensa.
- Esperemos que sim - disse Griff - porque as nossas sondagens privadas mostram que o que aconteceu em Berlim não é uma alta prioridade para a maior parte dos eleitores, e o nosso correio diário confirma isso mesmo. O público está muito mais interessado no SNS, no desemprego, nas pensões e na imigração. Na verdade, há mais eleitores a queixarem-se do excesso de zelo dos controladores do estacionamento em Broad Street do que dos teus hábitos noturnos quando estás longe de casa. Se quiseres provas disso - disse ele, tirando algumas cartas de um monte que tinha em cima da secretária - basta ouvires qualquer uma destas missivas. Caro Sir Giles, se toda a gente que dormiu com uma prostituta ou teve uma aventura amorosa votasse em si, iria duplicar a sua maioria. Boa sorte.
- Ah, sim, estou a ver: «Se já teve um caso extraconjugal, vote em Barrington!»212
Emma olhou o irmão com ar severo, claramente reprovando a atitude leviana de Griff em relação ao comportamento de Giles.
- E aqui está outra - continuou Griff, ignorando o comentário de Giles. - Caro Sir Giles, nunca votei no Partido Trabalhista, mas preferia votar num pecador do que em alguém como Alex Fisher, que se faz passar por santo. Cumprimentos relutantes, etc. Mas esta é a minha favorita. Caro Sir Giles, devo dizer que admiro o seu gosto em relação a mulheres. Vou viajar para Berlim na semana que vem e queria saber se me poderia dar o número de telefone dela.
Quem me dera saber o número de telefone dela, pensou Giles.
- Ele cometeu o primeiro erro - disse Griff, virando o jornal para todos poderem ver o título na primeira página.
FISHER RECUSA O DESAFIO PARA UM DEBATE.
- Mas é ele que tem três por cento de vantagem nas sondagens - disse Giles. - Isso não é um erro, é apenas senso comum.
- Não podia estar mais de acordo - argumentou Griff - mas o erro consiste na razão que ele dá para recusar. Passo a citar: «Não quero ser visto na mesma sala que aquele homem.» Um erro ridículo. As pessoas não gostam de ataques pessoais, por isso temos de tirar partido disso. Deixar bem claro que irás comparecer e que, se ele não o fizer, o eleitorado poderá tirar as suas próprias conclusões. - Griff continuou a ler o artigo, e não precisou de muito tempo até sorrir pela segunda vez. - Não é muito frequente os liberais virem em nosso socorro, mas Simon Fletcher disse ao News que teria todo o gosto em participar no debate. Se bem que, no caso dele, não tenha nada a perder. Vou já emitir um comunicado de imprensa. Entretanto, voltem todos ao trabalho. Não ganham voto nenhum aqui sentados no meu escritório.
- Bom dia, o meu nome é Giles Barrington e sou o candidato do Partido Trabalhista por Bristol Docklands nas eleições gerais de quinta feira, 18 de junho...
213
Precisamente quando Giles se começava a sentir mais confiante em relação ao resultado, uma sondagem da Gallup no Daily Mail previu pela primeira vez que Edward Heath e os conservadores estavam a caminho de ganhar as eleições com uma maioria de trinta lugares.
- Nós ocupamos a trigésima quinta posição na lista de lugares que os conservadores precisam de conseguir, se quiserem ter maioria absoluta - disse Giles.
- Lê as letras pequeninas - respondeu Griff. - A mesma sondagem diz que Bristol Docklands está demasiado renhido para antecipar um resultado. E, a propósito, viste hoje o Evening News? - indagou, passando o jornal ao candidato.
Giles admirava bastante a posição de neutralidade que o News adotava durante as campanhas eleitorais, só revelando a sua preferência por determinado candidato no dia anterior às eleições e, no passado, nem sempre o apoiara. Mas agora quebrara essa regra quando ainda faltavam duas semanas. Num editorial, o jornal clarificava a sua posição, sob o feroz título:
DE QUE É QUE ELE TEM MEDO?
Prosseguia dizendo que, se o major Fisher não aparecesse no debate da próxima quinta-feira, recomendaria aos seus leitores que votassem no Partido Trabalhista e mandassem Giles Barrington de volta para Westminster.
- Vamos rezar para que ele não apareça - disse Giles.
- Ah, mas ele vai aparecer - retorquiu Griff - porque, se não o fizer, perde as eleições. O nosso próximo problema é saber como lidar com ele nessa altura.
- Mas com certeza que Fisher é que tem razões para estar preocupado - disse Emma. - No fim de contas, Giles é um orador muito mais talentoso, com mais de vinte anos de experiência parlamentar.
- Isso não vai fazer a menor diferença nessa noite - argumentou Miss Parish - se não encontrarmos uma forma de lidar com o elefante na sala.
Griff assentiu.
- Somos capazes de ter de usar a nossa arma secreta.
- O que tens em mente? - perguntou Giles.
214
- Harry. Vamos pô-lo na primeira fila, de frente para o público e fazer com que leia o primeiro capítulo do seu próximo livro. Assim ninguém notará sequer no que está a acontecer no palco.
Toda a gente se riu, exceto Harry.
- O que está a insinuar? - perguntou.
- Bom dia, o meu nome é Giles Barrington e sou o candidato do Partido Trabalhista por Bristol Docklands nas eleições gerais de...
lá estarei, dizia a manchete da primeira página do Bristol Evening no dia seguinte.
Giles leu o artigo que se seguia e aceitou o facto de o debate poder muito bem decidir quem seria o próximo deputado por Bristol Docklands.
Griff pensava o mesmo e sugeriu que ele devia tirar algum tempo para se preparar como se estivesse prestes a ser interrogado por Robin Day, o jornalista político da BBC. Pediu a Seb que fizesse o papel de Alex Fisher.
- Acha que um homem com a sua falta de moral deve candidatar-se ao Parlamento?
- Mas de que lado estás tu, Seb?
- Do teu - respondeu Griff - e é melhor teres uma resposta para essa pergunta na próxima quinta-feira à noite.
- Posso perguntar porque é que não vimos a sua esposa no círculo eleitoral durante a campanha?
- Ela foi visitar os pais, em Gales.
- Isso é pelo menos um milhar de votos que vai pelo cano abaixo - disse Griff.
- Diga-me, Sir Giles, está a pensar fazer outra viagem a Berlim num futuro próximo?
- Isso é um golpe baixo, Seb.
- Que é exatamente o tipo de golpe que Fisher irá desferir - disse Griff. - Portanto, vê se não baixas a guarda.
- Ele tem razão, Seb. Continua!

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- Bom dia, o meu nome é Giles Barrington e sou o candidato do Partido Trabalhista por Bristol Docklands...
- Mudaram o local - disse Griff na reunião de grupo matinal.
- Porquê? - perguntou Giles.
- Tem havido tanta procura de bilhetes que mudaram de Guidhall para o Hippodrome Theatre.
- Mas o Hippo leva duas mil pessoas - protestou Giles.
- Quem me dera que levasse dez mil - replicou Griff. - Nunca mais terás uma oportunidade como esta para falar diretamente com os eleitores.
- E, ao mesmo tempo, desmascarar o impostor do Fisher - disse Seb.
- Quantos lugares nos foram atribuídos? - perguntou Griff, virando-se para Miss Parish.
- Cada candidato tem direito a trezentos.
- Haverá dificuldade em ocupar os nossos lugares com os apoiantes?
- Nenhuma, o telefone não parou de tocar durante a última semana. Até parece um concerto dos Rolling Stones. Na verdade, tenho estado em contacto com a minha congénere no Partido Liberal, para ver se lhes sobram alguns bilhetes.
- Eles não são suficientemente estúpidos para lhos dar!
- Não tem nada a ver com estupidez - disse Miss Parish. - Tenho a sensação de que é algo muito mais pessoal.
- Por exemplo? - inquiriu Griff.
- Não faço ideia, mas vou descobrir antes de quinta-feira.
- E os restantes bilhetes? - indagou Griff. - Quem é que fica com eles?
- Os primeiros a chegar são os primeiros a ser servidos - disse Miss Parish. - Vou ter uma centena dos nossos apoiantes na fila, uma hora antes de subir a cortina.
- O mesmo farão os conservadores - disse Griff. - É melhor pôr lá duzentos, duas horas antes.
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- Bom dia, o meu nome é Giles Barrington e sou o candidato...
Durante a semana seguinte, Giles não descansou um minuto, incluindo o fim de semana. Fez campanha porta a porta, visitou pubs, organizou reuniões à noite e marcou presença em qualquer iniciativa que contasse com mais de meia dúzia de pessoas.
No sábado, pôs a gravata do condado e foi assistir ao jogo de Gloucestershire com o Middlesex em Nevil Road, mas só lá ficou cerca de uma hora. Depois de ter dado lentamente a volta ao campo, garantindo que tinha sido visto pelos cinco mil espectadores, voltou à sede do círculo eleitoral, em Park Street.
No domingo, assistiu às matinas, à comunhão e às vésperas em três igrejas diferentes, mas durante cada sermão os seus pensamentos desviaram-se frequentemente para o debate, testando argumentos, frases e até pausas...
- Em nome do Pai...
Na quarta-feira, as sondagens de Griff mostravam que Giles continuava com uma desvantagem de dois pontos, mas Seb recordou-lhe que o mesmo acontecera a Kennedy antes do seu debate com Nixon.
Todos os pormenores do encontro tinham sido analisados a fundo. O que devia vestir, quando devia ir cortar o cabelo, só fazer a barba quando faltasse uma hora para entrar em palco e, se lhe fosse dado a escolher, falar em último lugar.
- Quem é que vai moderar o debate? - perguntou Seb.
- Andy Nash, o editor do Evening News. Nós queremos ganhar votos, ele quer vender jornais. Toda a gente tem a sua própria perspetiva - disse Griff.
- E vê se te deitas antes da meia-noite - recomendou Emma. - Vais precisar de uma boa noite de sono.
Giles foi para a cama antes da meia-noite, mas só adormeceu depois de rever várias vezes o seu discurso, ensaiando respostas para todas as perguntas que Seb lhe fizera. O facto de Karin estar constantemente a intrometer-se no seu pensamento não o ajudava a concentrar-se. Levantou-se às seis da manhã e meia hora mais tarde já estava junto à estação de Temple Meads, novamente de megafone na mão, pronto a enfrentar as pessoas que iam àquela hora a caminho do trabalho.
- Bom dia, o meu nome é Giles Barrington...
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Boa sorte para esta noite, Sir Giles. Lá estarei para o apoiar.
Não resido no seu círculo eleitoral, lamento.
Qual é a sua posição relativamente à flagelação?
Acho que, desta vez, vou dar uma oportunidade aos liberais.
Não tem um cigarro a mais, não, chefe?
Bom dia...
218
21
Ainda não eram seis horas quando Griff foi buscar Giles a Barrington Hall. Ele não se podia dar ao luxo de chegar atrasado àquele encontro.
Giles envergava um fato antracite, camisa bege e gravata do liceu de Bristol. Desconfiava que Fisher iria usar o habitual fato assertoado às risquinhas azuis, camisa branca com colarinho engomado e a gravata do regimento.
Giles estava tão nervoso que mal falou na viagem até ao Hippodrome, e Griff manteve-se calado. Sabia que o candidato estava a ensaiar silenciosamente o seu discurso.
Trinta minutos depois, pararam à porta que dava para o palco, onde Giles estivera em tempos a seguir a uma matinée de Brief Encoutiter, para conseguir o autógrafo de Célia Johnson. Griff acompanhou o seu candidato aos bastidores, onde foram recebidos por Andy Nash, que iria presidir ao debate. Pareceu aliviado ao vê-los.
Giles andava de um lado para o outro nos bastidores, enquanto esperava impacientemente que a cortina subisse. Embora ainda faltassem trinta minutos para o presidente bater o martelo e pedir silêncio, Giles já conseguia ouvir a agitação da assistência expectante, o que o fez sentir como um atleta em forma à espera de ser chamado para a linha de partida.
Passados alguns minutos, Alex Fisher entrou em cena, rodeado pelo seu círculo mais próximo, todos a falar alto e bom som. Quando se está nervoso, pensou Giles, isso pode manifestar-se de muitas formas diferentes. Fisher passou por ele, sem fazer qualquer tentativa de entabular conversa e ignorando a sua mão estendida.
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Passado um instante, foi a vez de Simon Fletcher, o candidato do Partido Liberal. É muito mais fácil estar descontraído quando não se tem nada a perder. Apertou imediatamente a mão a Giles e disse:
- Queria agradecer-lhe.
- Porquê?
- Por não lembrar constantemente a toda a gente que não sou casado, ao contrário de Fisher, que menciona o facto em todas as oportunidades.
- Muito bem, meus senhores - disse Nash. - Façam o favor de se juntar, pois chegou a altura de determinar a ordem em que cada um falará.
Estendeu o punho cerrado que continha três palhinhas de tamanho diferente. Fisher tirou a mais curta, ao passo que Fletcher tirou a mais comprida.
- É o primeiro a escolher, senhor Fletcher - disse o presidente. O candidato liberal inclinou a cabeça para o lado e perguntou baixinho a Giles:
- Em que lugar quer que fale?
- Segundo - retorquiu Giles.
- Sou o segundo - disse Fletcher. Fisher pareceu surpreendido.
- E o senhor, Sir Giles? Primeiro ou último?
- Último, obrigado, senhor presidente.
- Pronto, está resolvido. O senhor é o primeiro a falar, major Fisher. Vamos lá dar o corpo ao manifesto.
Conduziu os três candidatos até ao palco, e foi a única vez nessa noite que toda a assistência aplaudiu. Giles olhou para o auditório, onde, ao contrário de uma produção teatral, as luzes não iriam diminuir de intensidade. Dois mil leões tinham esperado pacientemente que os cristãos aparecessem.
Quem lhe dera estar em casa, a ver televisão com o jantar num tabuleiro; em qualquer lugar, menos ali. Mas ele sentia-se sempre assim, mesmo quando se dirigia a um pequeno grupo de pessoas. Olhou de relance para Fisher e viu uma gota de suor a aparecer-lhe na testa, que ele enxugou rapidamente com o lenço que tirou do bolso
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do peito. Voltou a olhar para a assistência e viu Emma e Harry sentados na segunda fila, a sorrir para ele.
- Boa noite, senhoras e senhores, o meu nome é Andy Nash e sou editor do Bristol Evening News. Tenho o privilégio de presidir ao encontro esta noite, que é a única ocasião em que os três candidatos aparecerão na mesma tribuna. Agora, permitam-me que explique como é que o debate vai ser conduzido. Cada candidato fará um discurso inicial de seis minutos. A isso, seguir-se-ão trinta minutos de perguntas feitas pelo público. A noite terminará com os três candidatos a resumir os seus pontos de vista durante dois minutos cada um. Vou agora chamar o candidato conservador, o major Alex Fisher, para usar da palavra.
Fisher avançou premeditadamente até ao centro do palco e foi saudado pelos aplausos calorosos de uma parte da assistência. Colocou o discurso no atril e começou imediatamente a lê-lo palavra por palavra, só levantando a cabeça de vez em quando.
Giles estava nervosamente sentado no seu lugar, a escutar atentamente enquanto esperava por um comentário sarcástico ou por uma insinuação mordaz, mas isso não aconteceu. Em vez disso, Fisher concentrou-se na legislação que seria tratada de forma prioritária caso os conservadores formassem o próximo governo. Parecia estar a ler uma lista de compras que entremeava regularmente com as palavras «E tempo de mudar». Nunca mencionou nenhum dos adversários. E nessa altura Giles percebeu o que Fisher estava a tramar. Ele não ia fazer ataques pessoais; isso ficava para os seus sequazes, espalhados uniformemente pela assistência. Quando Fisher voltou ao seu lugar, não foi difícil perceber onde estavam sentados esses apoiantes, pelos seus aplausos entusiásticos.
O candidato liberal abriu o seu discurso agradecendo ao público por ter prescindido de ver a telenovela Coronation Street para vir ouvi-lo, o que foi saudado com mais gargalhadas e aplausos calorosos. Depois, passou os seis minutos seguintes a discutir política local, desde os buracos nas estradas às tarifas dos autocarros nas zonas rurais. Quando voltou ao lugar, outra parte da assistência foi igualmente leal e solidária.
Assim que Fletcher se sentou, Giles foi até ao centro do palco, embora não estivesse tão descontraído como esperava que o seu ar221
desse a entender. Pôs um cartão no atril onde estavam dactilografados sete títulos: Educação, Desemprego, Sindicatos, o SNS, Europa, Defesa e Bristol.
Mal olhou para o cartão enquanto falava com confiança e autoridade sobre cada um dos temas, fitando diretamente a assistência. Quando regressou ao lugar, os seus apoiantes levantaram-se em uníssono e houve um grande número de espectadores indecisos que se lhes juntou. Se o debate tivesse terminado nessa altura, só teria havido um vencedor, mas assim que Giles se sentou o presidente pediu que passassem às perguntas, acrescentando:
- Espero que os contributos sejam dignos de um debate desta importância, e que ninguém recorra a comentários pessoais na esperança de conseguir uma manchete sensacionalista no jornal de amanhã, pois asseguro-vos, como seu editor, que isso não acontecerá.
Esta declaração suscitou uma salva de palmas de tal forma espontânea que Giles começou a descontrair pela primeira vez nessa noite.
- Sim, minha senhora. A senhora na quarta fila.
- Com a população a envelhecer cada vez mais, será que os candidatos nos podem falar sobre os seus planos a longo prazo para a pensão de reforma do Estado?
Giles já estava em pé ainda antes de o presidente ter hipótese de decidir qual dos candidatos devia responder à pergunta em primeiro lugar.
- A pensão de reforma tem subido ano após ano, desde que o Partido Trabalhista está no poder - declarou - pois este governo considera que uma sociedade civilizada é aquela que tanto toma conta dos jovens como dos idosos.
A seguir, Fisher disse a deixa do partido, tal como resumida nas instruções dadas pela sede, após o que o candidato liberal falou sobre a sua mãe se encontrar num lar de idosos.
- Agora é o senhor - disse Nash, apontando para um homem no primeiro balcão, que teve de esperar algum tempo até o microfone lá chegar.
- Todos os candidatos são de opinião que o Reino Unido deve entrar para o Mercado Comum?
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Fisher estava bem preparado para esta pergunta e recordou à assistência o compromisso de longa data que Ted Heath assumira com a Europa, acrescentando que, se os conservadores fossem eleitos, fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para assegurar que a Grã-Bretanha se tornava membro da CEE.
Simon Fletcher lembrou que tinha sido o seu partido o primeiro a defender a ideia da entrada no Mercado Comum, mostrando-se satisfeito com o facto de os outros dois partidos se terem agora juntado à causa liberal.
Giles levantou-se para enfrentar os espectadores. Como teria gostado de lhes dizer que, quando estivera em Berlim, recebera propostas do ministro dos Negócios Estrangeiros francês que deixavam claro que a França estaria recetiva ao diálogo entre os dois países! Mas qualquer referência a Berlim teria sido a provocação que uma parte do público esperava. Por isso, disse simplesmente:
- No que toca à entrada no Mercado Comum, creio poder dizer com toda a segurança que os três partidos estão genericamente de acordo, por isso suspeito que se trate apenas de saber qual o primeiro-ministro que irá finalmente assinar o Tratado de Roma.
Seguiram-se várias perguntas sobre assuntos locais, nacionais e internacionais, sem qualquer golpe baixo, e Giles começava a pensar que se tinha saído bem.
- Vou aceitar mais duas perguntas - disse Nash, olhando para o relógio. - Sim, minha senhora, a senhora que está em pé, lá atrás.
Giles reconheceu-a de imediato.
- Será que os três candidatos nos podem dizer qual o seu estado civil e se as esposas estão com eles esta noite?
Uma pergunta bem ensaiada feita por uma velhota com ar inocente, de quem Giles se lembrava bem do tempo em que fora vereadora do Partido Conservador.
Desta vez, foi Fisher o primeiro a levantar-se, dando uma resposta igualmente bem preparada.
- Infelizmente, estou divorciado há alguns anos, mas isso não me impede de esperar encontrar um dia a companheira certa. Mas, seja qual for o meu estado civil, deixe-me assegurar-lhe que nunca me passaria pela cabeça envolver-me numa relação sexual casual.
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A sala foi percorrida por uma exclamação abafada, e uma parte da multidão aplaudiu de forma entusiástica. O candidato liberal disse:
- Eu tenho tanta dificuldade em encontrar uma namorada como em encontrar pessoas que votem em mim, mas, tal como o major, ainda não desisti.
Isto foi recebido com gargalhadas e aplausos.
Giles sentiu-se triste pelo facto de Fletcher não poder ser franco em relação à sua sexualidade e ansiou pelo dia em que ele pudesse admitir que o seu companheiro estava sentado na primeira fila e que viviam juntos e felizes há muitos anos.
Quando Giles tomou o seu lugar, ficou em pé ao lado do atril, olhou diretamente para a assistência e sorriu.
- Eu não sou nenhum santo.
- Verdade! - gritou um apoiante conservador, mas foi recebido por um silêncio constrangido.
- Admito que saí do bom caminho e, como todos sabem, é por essa razão que Gwyneth não está aqui esta noite, coisa que lamento profundamente. Ela tem sido uma esposa leal e fiel, que tem desempenhado um papel ativo no círculo eleitoral. - Fez uma pausa antes de acrescentar: - Mas quando chegar a altura de votarem, espero que ponham na balança da fragilidade humana os vinte e cinco anos de serviço às pessoas desta grande cidade contra um deslize insensato, pois eu gostava de continuar a servir todos vós durante muitos anos.
Giles reprimiu um sorriso quando a assistência começou a aplaudir e preparava-se para regressar ao lugar quando alguém gritou:
- Não acha que está na altura de nos contar mais sobre Berlim?
Uma corrente de tagarelice ruidosa percorreu a sala e o presidente pôs-se imediatamente em pé, mas Giles já tinha voltado ao atril. Agarrou-se às partes laterais para ninguém conseguir ver como estava nervoso. Duas mil pessoas fitaram-no na expectativa enquanto ele enfrentava o seu inquiridor, que continuava levantado. Giles esperou que se fizesse silêncio.
- Com todo o prazer, senhor. Achei Berlim uma cidade trágica, dividida por um muro de betão com três metros e sessenta de altura encimado por arame farpado. Não foi construído para manter os alemães ocidentais de fora, mas sim para manter os alemães orientais lá224
dentro, criando a maior prisão à face da Terra. Não é propriamente um argumento de peso a favor do comunismo. Mas eu rezo para viver o tempo suficiente para o ver completamente arrasado. E espero que seja algo em que os dois possamos estar de acordo.
O homem voltou a sentar-se enquanto Giles regressava ao seu lugar com o som de aplausos estrondosos a ecoar nos seus ouvidos.
A última pergunta foi acerca do poder dos sindicatos, e tanto a resposta de Giles como a de Fisher foram pouco convincentes; Giles porque perdera a concentração, e Fisher porque ainda não recuperara de o seu lançador ter sido posto fora de jogo.
Giles já se tinha recomposto quando chegou a altura de fazer o seu resumo e levou algum tempo até deixar a sala, pois teve de apertar as muitas mãos que lhe estendiam. Mas foi Griff quem fez a melhor súmula da noite.
- Estamos de volta à corrida.

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O Bristol Evening News fez uma valorosa tentativa para apresentar um relato isento do debate que ocorrera no teatro Hippodrome na noite anterior, mas não era preciso ler nas entrelinhas para perceber quem considerava ter saído vencedor. Embora com algumas reservas, o jornal recomendava que os leitores mandassem Sir Giles Barrington de volta à Câmara dos Comuns.
- Ainda não ganhámos - disse Griff, largando o jornal no cesto de papéis mais próximo. - Portanto, toca a voltar ao trabalho. Ainda faltam seis dias, nove horas e catorze minutos para as urnas fecharem, na próxima quinta-feira.
Toda a gente deitou mãos à tarefa atribuída, fosse ela verificar os resultados da campanha porta a porta, preparar os boletins de voto para o dia das eleições, reconfirmar quem precisava de boleia até uma mesa de voto, responder a perguntas do público, distribuir panfletos de última hora ou certificar-se de que o candidato estava devidamente alimentado e hidratado.
- De preferência em movimento - sugeriu Griff, que regressou ao seu gabinete e continuou a trabalhar na mensagem que seria deixada na caixa de correio de todos os apoiantes trabalhistas registados na noite anterior às eleições.
Às 5h45 do dia das eleições, Giles estava uma vez mais à entrada da estação de Temple Meads a lembrar a toda a gente a quem apertava a mão:226
- Vote em Barrington, hoje!
Griff criara uma agenda que contemplava todos os minutos do dia das eleições até ao fecho das urnas, às dez da noite. Tinha dado dez minutos a Giles para comer uma empada, uma sanduíche de queijo e uma caneca de cidra no pub mais popular do círculo eleitoral.
As 18h30, olhou para o céu e praguejou quando começou a chover. Será que os deuses não sabiam que os picos de votação no Partido Trabalhista se registavam entre as oito e as dez da manhã e as cinco e sete da tarde? O Partido Conservador obtinha sempre os seus votos entre as dez da manhã e as cinco da tarde.
Das sete às dez da noite, altura em que as urnas fechavam, era completamente imprevisível. Os deuses deviam ter ouvido a sua súplica porque o aguaceiro só durou cerca de vinte minutos.
Giles terminou o dia de dezasseis horas junto aos portões do estaleiro naval, certificando-se que quem entrava para o turno da noite já tinha votado. Caso não o tivessem feito, eram enviados de imediato para a mesa de voto do outro lado da rua.
- Mas vou atrasar-me para picar o ponto.
- Eu conheço o presidente - dizia Giles. Aos que estavam de saída e se preparavam para ir ao pub, Giles não se cansava de repetir: - Tratem de votar antes de pedir a primeira cerveja.
Griff e a sua equipa verificavam constantemente os resultados da sua campanha porta a porta, para poderem alertar quem ainda não votara e lembrar-lhes que as urnas só encerravam às dez da noite.
Às dez horas e um minuto, Giles deu o último aperto de mão e, desesperado por beber alguma coisa, desceu a estrada e juntou-se aos operários da doca, no Lord Nelson.
- Uma cerveja - disse, encostando-se ao balcão do bar.
- Desculpe, Sír Giles, mas já passa das dez e sei que não vai querer que perca a minha licença.
Dois homens que estavam sentados no bar pegaram num copo vazio e encheram-no com as suas duas cervejas.
- Obrigado - respondeu Giles erguendo o copo.
- Ambos nos sentimos um bocadinho culpados - confessou um deles. - Refugiámo-nos aqui durante o aguaceiro, por isso não chegámos a votar.
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Giles teria gostado de despejar a cerveja por cima deles. Olhando à sua volta, perguntou-se quantos mais votos teria perdido enquanto chovera.
Harry entrou no Lord Nelson alguns minutos depois.
- Desculpa arrastar-te daqui para fora - disse -, mas Griff ordenou-me que te levasse a casa.
- Não é homem a quem se desobedeça - disse Giles, engolindo a cerveja de um trago.
- Então, o que acontece a seguir? - perguntou Harry, enquanto seguiam para Barrington Hall no seu carro.
- Nada de novo. A polícia local vai recolher as urnas de voto de todo o círculo eleitoral antes de as levar para Guildhall. Os selos serão quebrados na presença do senhor Hardy, o secretário municipal, e assim que os boletins de voto tiverem sido verificados dá-se início à contagem. Portanto, não vale a pena voltar já para a câmara municipal, pois só teremos os resultados lá para as três da manhã. O Griff vem buscar-me por volta da meia-noite.
Giles estava a dormitar no banho quando tocaram à campainha. Saiu lentamente da banheira, vestiu um roupão, abriu a janela da casa de banho e viu Griff especado lá em baixo, na soleira da porta.
- Desculpa, Griff, devo ter adormecido no banho. Entra e arranja uma bebida. Eu desço o mais depressa que conseguir.
Giles vestiu o mesmo fato e gravata que usava em todas as contagens, embora tivesse de admitir que já não conseguia abotoar o botão do meio do casaco. Passados quinze minutos, já ia a descer a escada.
- Não me perguntes, porque não sei - disse Griff, enquanto fazia sair o carro pelo portão. - A única coisa que te posso dizer é que, a acreditar nas sondagens à boca das urnas, os conservadores ganharam por cerca de quarenta lugares.
- Então, estamos de volta à oposição - replicou Giles.
- Isso presumindo que ganhas, e os resultados das nossas sondagens mostram que está demasiado renhido para saber - disse Griff. - É a repetição do que aconteceu em 1951.
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Griff não voltou a dizer palavra até estacionar o carro junto ao edifício da câmara municipal, altura em que três semanas de frustração reprimida e a falta de dormir o levaram a uma explosão repentina.
- O que eu não consigo suportar não é tanto a ideia de perder - disse Griff-, mas mais a desse filho da mãe do major Fisher ganhar!
Às vezes, Giles esquecia-se da forma apaixonada como Griff vivia a causa e da sorte que tinha em tê-lo como mandatário.
- Pronto - disse Griff -, agora que tirei este peso do peito, toca a trabalhar. - Saiu do carro, endireitou a gravata e dirigiu-se para a câmara municipal. Enquanto subiam os degraus lado a lado, Griff virou-se para Giles e disse: - Esforça-te por dar ideia de que estás à espera de ganhar.
- E se isso não acontecer?
- Nesse caso, terás de fazer um discurso que nunca fizeste antes, o que será uma nova experiência para ti.
Giles riu-se enquanto entravam na sala apinhada e ruidosa onde a contagem estava a decorrer.
Uma dúzia de mesas compridas assentes em cavaletes enchiam a sala, com funcionários municipais e representantes dos partidos sentados de ambos os lados, a contar furiosamente ou a observar. Sempre que uma nova urna preta era esvaziada em cima das mesas, uma floresta de mãos esticadas separava rapidamente os nomes dos candidatos em três montes distintos, antes de a contagem poder começar. Pequenos maços de dez boletins depressa se transformavam em maços de cem, altura em que lhes punham um elástico vermelho, azul ou amarelo à volta e os alinhavam como soldados de infantaria na ponta da mesa.
Griff observava cautelosamente o processo. Um simples erro e uma centena de votos podia ser colocado no monte errado.
- O que quer que façamos? - perguntou Seb, vindo com Miss Parish ao seu encontro.
- Encarreguem-se de uma mesa cada um e, se descobrirem algum motivo de preocupação, venham falar comigo.
- Então e tu? - perguntou Giles.
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- Vou fazer aquilo que faço sempre - disse Griff. - A verificação dos votos de Woodbine Estate e de Arcádia Avenue. Depois de conferir esses resultados, conseguirei dizer-lhes quem irá ganhar.
Cada elemento da equipa de Griff encarregou-se de uma mesa e, embora o processo fosse lento, estava a decorrer sem problemas. Depois de Giles ter dado a volta completa à sala, evitando habilmente Fisher, voltou a juntar-se a Griff.
- Tens menos duzentos votos em Arcádia Avenue e cerca de duzentos a mais em Woodbine Estate, por isso o resultado é imprevisível.
Depois de Giles ter dado mais uma volta à sala, só uma coisa era certa: Simon Fletcher ia ficar em terceiro lugar.
Passados alguns minutos, o senhor Hardy bateu no microfone no centro do palco. Fez-se silêncio na sala e toda a gente se virou para o secretário municipal.
- Senhores candidatos, queiram fazer o favor de vir ter comigo para conferirmos os boletins de voto brancos ou nulos.
Uma pequena cerimónia de que Griff sempre gostara.
Depois de os três candidatos e os seus mandatários terem analisado os quarenta e dois boletins suscetíveis de serem considerados brancos ou nulos, todos concordaram em que vinte e dois deles eram válidos: 10 para Giles, 9 para Fisher e 3 para Fletcher.
- Esperemos que seja um presságio - disse Griff - pois, segundo as famosas palavras de Churchill, um é o suficiente.
- Alguma surpresa? - perguntou Seb quando eles deixaram o palco.
- Não - disse Griff-, mas gostei muito de um que o secretário municipal rejeitou e que dizia: Será que a sua namorada em Berlim Oriental vai votar por correspondência? - Giles esboçou um sorriso.
- Vamos voltar ao trabalho. Não podemos cometer nenhum erro e nunca se esqueçam de 1951, quando Seb salvou o dia.
As mãos começaram a levantar-se por toda a sala, para mostrar que a contagem tinha sido concluída numa determinada mesa. Em seguida, um funcionário voltava a conferir os números antes de os levar ao secretário municipal, que por sua vez os introduzia numa máquina230
de calcular. Giles ainda se lembrava do tempo em que o falecido senhor Wainwright introduzia cada número num livro-mestre e depois três dos seus representantes verificavam e voltavam a verificar cada entrada, antes de ele se dispor a declarar o resultado.
Às 2h49 da manhã, o secretário municipal voltou ao microfone e bateu nele uma vez mais. O silêncio momentâneo apenas foi quebrado por um lápis que caiu da mesa e rolou pelo chão. O senhor Hardy esperou que o apanhassem.
- Eu, Leonard Derek Hardy, na qualidade de funcionário responsável pelo ato eleitoral no círculo de Bristol Docklands, declaro que o número total de votos para cada candidato foi o seguinte:
Sir Giles Barrington 18 971
Senhor Simon Fletcher 3586
Major Alexander Fisher 18 -
Assim que Giles ouviu a palavra dezoito, e não dezanove, sentiu-
se confiante de que tinha vencido.
- ... 994.
A fação conservadora explodiu imediatamente de alegria. Griff, tentando fazer-se ouvir sobre o barulho, solicitou uma recontagem ao senhor Hardy, que foi imediatamente concedida. Todo o processo recomeçou, com cada mesa a verificar duas vezes, primeiro os maços de dez boletins, depois os de cem e, finalmente, os de mil, antes de voltarem a dar a informação ao secretário municipal.
Às 3h27 da manhã, ele voltou a pedir silêncio.
- Eu, Leonard Derek Hardy, na qualidade de funcionário responsável pelo ato eleitoral... - as cabeças estavam inclinadas, os olhos fechados, enquanto alguns dos presentes se viravam de costas, incapazes sequer de enfrentar o palco enquanto faziam figas e esperavam que os números fossem anunciados - ... para cada candidato foi o seguinte:
Sir Giles Barrington 18 972
Senhor Simon Fletcher 3586
Major Alexander Fisher 18 993.

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Giles sabia que depois de um resultado tão próximo, podia insistir numa segunda recontagem, mas não o fez. Em vez disso, acenou relutantemente em sinal de reconhecimento do resultado perante o secretário municipal.
- Por conseguinte, declaro que o major Alexander Fisher foi o deputado devidamente eleito pelo círculo de Bristol Docklands.
Houve uma explosão de gritos e vivas em metade da sala, ao mesmo tempo que o novo deputado era levantado em ombros pelos trabalhadores do seu partido e levado à volta da sala. Giles foi ter com eles e apertou a mão a Fisher pela primeira vez durante a campanha.
Depois de terminados os discursos, Fisher vitorioso e triunfante, Giles digno na hora da derrota e Simon Fletcher a assinalar que tinha obtido a votação mais expressiva de sempre, o recém-eleito deputado e os seus apoiantes continuaram a comemorar pela noite fora, enquanto a equipa derrotada dispersava aos pares e trios, com Griff e Giles entre os últimos a sair.
- Teríamos conseguido se a tendência nacional não estivesse contra nós - disse Griff, enquanto levava o antigo deputado a casa.
- Foi só por vinte e um votos - suspirou Giles.
- Onze - disse Griff.
- Onze? - repetiu Giles.
- Se onze eleitores tivessem mudado de ideias...
- E se não tivesse chovido durante vinte minutos às seis e meia da tarde...
- Tem sido um ano de «ses».
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Giles foi finalmente para a cama quando eram quase cinco da manhã. Desligou a luz da mesa de cabeceira, deitou a cabeça na almofada e fechou os olhos precisamente quando o despertador tocou. Resmungou e voltou a acender a luz. Já não precisava de estar na estação de Temple Meads às seis da manhã para cumprimentar as pessoas que iam de madrugada para o trabalho.
O meu nome é Giles Barrington e fui o candidato do Partido Trabalhista nas eleições de ontem... Desligou o despertador e mergulhou num sono profundo, voltando apenas a acordar às onze da manhã.
Após um pequeno-almoço tardio, talvez mais um brunch, tomou duche, vestiu-se, fez uma mala pequena e saiu de carro pelos portões de Barrington Hall depois do meio-dia. Não tinha pressa, uma vez que o seu avião só descolava de Heathrow às 16h15.
Se, outro «se», Giles tivesse ficado em casa durante mais alguns minutos, poderia ter recebido um telefonema de Harold Wilson, que estava a compilar a lista de honrarias a atribuir por altura da sua exoneração. O novo líder da oposição ia oferecer a Giles a possibilidade de ir para a Câmara dos Lordes e sentar-se na bancada da oposição como porta-voz dos Negócios Estrangeiros.
O senhor Wilson tentou novamente nessa noite, mas por essa altura Sir Giles já aterrara em Berlim.
Ainda há poucos meses, o ilustre Sir Giles Barrington tinha sido levado de carro até à pista, em Heathrow, e o avião só descolara depois de ele ter apertado o cinto de segurança na primeira classe.

233
Agora, espremido entre uma mulher que nunca parava de falar com a amiga do outro lado do corredor e um homem que gostava claramente de lhe dificultar a tarefa de virar as páginas do Times, Giles pensou naquilo de que não sentira falta. O voo de duas horas e meia parecia interminável, e quando aterraram teve de correr debaixo de chuva para chegar ao terminal.
Embora estivesse entre os primeiros a desembarcar, foi quase o último a sair da área de recolha da bagagem. Tinha-se esquecido do tempo que podia levar até a bagagem aparecer no tapete rolante. Depois de recuperar a mala, ainda teve de passar pela alfândega, de forma que quando chegou finalmente à fila para o táxi já estava exausto.
- Checkpoint Charlie - foi a única coisa que disse enquanto subia para o banco de trás.
O motorista olhou-o uma segunda vez, decidiu que ele não era louco, mas largou-o a algumas centenas de metros do posto de fronteira. Continuava a chover.
Enquanto Giles corria em direção ao edifício da alfândega, carregando a mala numa mão e segurando o exemplar do Times sobre a cabeça com a outra, não pôde deixar de recordar a sua última visita a Berlim.
Quando entrou, juntou-se a uma curta fila, mas mesmo assim levou muito tempo até chegar a sua vez.
- Boa noite, senhor - disse um compatriota quando Giles lhe entregou o passaporte e o visto.
- Boa noite - retorquiu Giles.
- Posso perguntar-lhe porque é que vai visitar o setor oriental, Sir Giles? - indagou educadamente o guarda enquanto inspecionava os documentos.
- Vou ver uma pessoa amiga.
- E quanto tempo pensa ficar no setor oriental?
- Sete dias.
- O período máximo que o seu visto temporário permite - recordou-lhe o guarda.
Giles assentiu, esperando que sete dias fossem o suficiente para conseguir resposta para todas as suas perguntas e para ficar finalmente234
a saber se Karin sentia a mesma coisa que ele. O guarda sorriu, carimbou-lhe o passaporte e disse «Boa sorte!» com alguma ênfase.
Pelo menos, a chuva já tinha parado quando Giles saiu do edifício. Iniciou a longa caminhada em terra de ninguém entre os dois postos fronteiriços, desta vez não no Rolls-Royce da Embaixada Britânica e na companhia do embaixador, mas como cidadão que apenas se representava a si mesmo.
Quando viu o guarda que se encontrava na fronteira de Berlim Oriental, não precisou que lhe lembrassem que os turistas não eram bem-vindos. Entrou noutro edifício que não via uma demão de tinta desde que o muro fora construído, e onde ninguém tinha pensado em visitantes idosos, cansados ou enfermos que pudessem querer sentar-se. Outra fila, outra espera, desta vez mais longa, antes de acabar por entregar o passaporte a um guarda alfandegário que não o cumprimentou com um «Bom dia, senhor», fosse em que língua fosse.
O guarda folheou lentamente o passaporte, claramente perplexo com o número de países que aquele estrangeiro visitara nos últimos quatro anos. Depois de chegar à última página, pôs a palma da mão no ar, como um polícia de trânsito, e disse «Espere!», claramente a única palavra que sabia em inglês. Depois, foi até ao fundo da sala, bateu a uma porta que dizia kommandant e desapareceu lá dentro.
A porta só se voltou a abrir passado algum tempo e, nessa altura, apareceu um homem baixo e calvo. Parecia ter mais ou menos a mesma idade que Giles, mas era difícil ter a certeza, pois o casaco assertoado que usava era tão fora de moda que podia ser do seu pai. A camisa acinzentada estava esfiapada no colarinho e punhos, e a gravata vermelha tinha ar de já ter levado ferro a mais. Mas a surpresa foi o seu domínio da língua inglesa.
- Talvez queira vir comigo, senhor Barrington - foram as suas primeiras palavras.
O «talvez» revelou-se uma ordem, pois ele girou imediatamente sobre si mesmo e encaminhou-se para o gabinete sem olhar para trás. O jovem guarda levantou o tampo do balcão, para que Giles o pudesse seguir.
O oficial sentou-se à secretária, se é que uma mesa com uma única gaveta podia ser descrita como tal. Giles sentou-se à sua frente, num banco de madeira, sem dúvida proveniente da mesma fábrica.235
- Qual é o objetivo da sua visita a Berlim Oriental, senhor Barrington?
-Venho visitar uma pessoa amiga.
-E o nome dessa pessoa?
Giles hesitou, enquanto o homem continuava a fitá-lo.
- Karin Pengelly.
- É sua familiar?
- Não, como disse, é uma amiga.
- E quanto tempo pretende ficar em Berlim Oriental?
- Como pode ver, o meu visto é por uma semana.
O oficial analisou o visto durante um tempo considerável, como que à espera de encontrar alguma irregularidade, mas Giles tinha pedido a um amigo do Ministério dos Negócios Estrangeiros para verificar o documento e ele confirmara que estava tudo corretamente preenchido.
- Qual é a sua profissão? - perguntou o oficial.
- Sou político.
- O que significa isso?
- Era deputado e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, e é por essa razão que viajei tanto nos últimos anos.
- Mas já não é secretário de Estado nem sequer deputado.
- Não, não sou.
- Um momento, por favor.
O oficial pegou num telefone, marcou três números e aguardou. Quando alguém atendeu, começou uma conversa prolongada da qual Giles não entendeu uma palavra, mas pelo tom deferente do homem estava sem dúvida a falar com alguém que ocupava um cargo muito mais elevado. Se ao menos Karin estivesse ali para traduzir.
O oficial começou a tomar notas no bloco à sua frente, muitas vezes seguidas da palavra Ja. Só depois de vários Jas é que pousou finalmente o telefone.
- Antes de carimbar o seu visto, senhor Barrington, há mais uma ou duas perguntas que precisam de resposta.
Giles esforçou-se por esboçar um ligeiro sorriso enquanto o oficial voltava a olhar para o seu bloco de notas.
- É familiar do senhor Harry Clifton?
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- Sim, sou. Ele é meu cunhado.
- E apoia a campanha por ele promovida para libertar o criminoso Anatoly Babakov da prisão?
Giles sabia que, se respondesse com sinceridade àquela pergunta, o seu visto seria revogado. Será que o homem não percebia que, no último mês, tinha andado a contar as horas que faltavam para voltar a ver Karin? Tinha a certeza de que Harry saberia avaliar o dilema que enfrentava.
- Repito, senhor Barrington, apoia a campanha por ele promovida para libertar o criminoso Anatoly Babakov?
- Sim, apoio - disse Giles. - Harry Clifton é um dos melhores homens que alguma vez conheci e apoio totalmente a sua campanha a favor da libertação de Anatoly Babakov.
O oficial devolveu o passaporte a Giles, abriu a gaveta da secretária e colocou o visto lá dentro.
Giles levantou-se e, sem dizer palavra, virou-se e saiu do edifício para descobrir que tinha recomeçado a chover. Iniciou a longa caminhada de volta ao Ocidente, perguntando-se se alguma vez voltaria a ver Karin.

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Página em branco

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SEBASTIAN CLIFTON 1970

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- Alguma vez fez figura de idiota chapado quando tinha a minha idade? - perguntou Sebastian, enquanto estavam sentados a beber no alpendre.
- Não mais do que uma vez por semana, se a memória não me falha - disse Ross Buchanan. - Note-se que melhorei um bocadinho com os anos, mas não muito.
- Mas alguma vez cometeu um erro tão grande a ponto de lamentá-lo para o resto da vida? - perguntou Seb, sem tocar no brandy ao seu lado.
Ross não respondeu de imediato, pois sabia bem ao que Seb se referia.
- Nada que não tenha conseguido remediar. - Bebeu um gole do seu uísque antes de acrescentar: - Estás absolutamente convencido de que não consegues reconquistá-la?
- Escrevi-lhe várias vezes, mas ela nunca responde. Acabei por decidir que tenho de ir à América para descobrir se ela consideraria sequer a hipótese de me dar uma segunda oportunidade.
- E não houve mais ninguém? - perguntou Ross.
- Não dessa forma - respondeu Sebastian. - O engate ocasional, muitas aventuras de uma noite, mas sinceramente Sam foi a única mulher que amei. Ela não se importava que eu não tivesse um chavo. Mas eu, estupidamente, importava-me com isso. Alguma vez teve esse problema, Ross?
- Não posso fingir que sim. Quando casei com Jean, tinha vinte e sete libras, dois xelins e quatro dinheiros na minha conta pessoal,
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e nessa altura não era possível fazer saques a descoberto se trabalhássemos como empregado de escritório para a Aberdeen Shipping Company. Portanto, seguramente Jean não casou comigo por causa do meu dinheiro.
- É um homem de sorte! Porque é que não aprendi com Cedric Hardcastle? Um aperto de mão devia ser sempre suficiente para fechar um negócio.
- Ah, presumo que agora estejamos a falar de Maurice Swann.
- Sabe do senhor Swann?
- Apenas o que Cedric me contou. Ele estava convencido de que, se fechasses o negócio de Shifnal Farm, cumpririas a tua parte do acordo. Portanto, devo presumir que não o fizeste, certo?
Seb baixou a cabeça.
- Foi por isso que Sam me deixou. Perdi-a porque queria viver em Chelsea, e não percebi que ela se estava nas tintas para o sítio onde morávamos, desde que estivéssemos juntos.
- Nunca é tarde demais para admitir que estávamos errados - disse Ross. - Reza para que o senhor Swann ainda seja vivo. Se for, podes ter a certeza de que ainda estará desesperado para construir o seu teatro. E que tal o Kaufman's? É suficiente para ti? - perguntou Ross, mudando de assunto.
- O que quer dizer com isso de ser suficiente? - perguntou Seb, pegando no seu brandy.
- É só porque tu és o jovem mais ambicioso que já conheci e acho que só vais ficar satisfeito quando fores presidente do banco.
- De que banco? Ross riu-se.
- Sempre presumi que era o Farthings que tinhas debaixo de olho.
- Tem razão, e não tenho estado parado. A conselho de Bob Bingham, tenho adquirido ações ao longo dos últimos cinco anos, investindo sempre cinquenta por cento da comissão que ganho em cada negócio. Já detenho mais de três por cento do capital do Farthings. Quando puser as mãos em seis por cento, o que já não deve demorar muito, tenciono ocupar o meu lugar no conselho de administração e causar estragos.
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- Se fosse a ti, não estaria tão seguro disso, porque podes ter a certeza de que Adrian Sloane já te deve ter no radar e, tal como um submarino, vai atacar quando menos esperares.
- Mas o que pode ele fazer para me impedir? Os estatutos do banco especificam que qualquer empresa ou indivíduo que detenha seis por cento do capital tem automaticamente direito a um lugar no conselho de administração.
- Quando tiveres adquirido os teus seis por cento, ele vai simplesmente reformular os estatutos.
- E ele pode fazer isso?
- Porque não? Ele nomeou-se a si próprio presidente enquanto estávamos no funeral de Cedric, portanto, porque é que não havia de reformular os estatutos do banco se isso significasse que te iria impedir de entrar para o conselho? Lá por ser um homem desprezível, isso não quer dizer que não seja esperto. Mas, sinceramente, Seb, acho que tens um problema muito maior bem mais perto de ti.
- No Kaufman's?
- Não, na Barrington's. Eu avisei a tua mãe de que, se ela permitisse que Desmond Mellor se tornasse administrador, a coisa ia acabar mal. Ele só está no conselho há dois anos e certamente que sabes que já quer ser vice-presidente.
- Ele não podia ser mais claro em relação a isso - afirmou Seb. - Mas enquanto a minha mãe for presidente, mais vale esquecer o assunto.
- Concordo, enquanto a tua mãe for presidente. Mas com certeza que reparaste que ele já começou a estacionar os seus tanques no teu relvado, ou não?
- De que é que está a falar?
- Se leres o Financial Times desta manhã, vais descobrir entre as novas nomeações que Adrian Sloane convidou Mellor para integrar o conselho de administração do Farthings. Agora, diz-me, o que é que esses dois têm em comum?
Isto silenciou Seb pela primeira vez.
- Uma profunda aversão pela tua família. Mas não desesperes - continuou Ross -, pois ainda tens uma carta na manga que ele vai ter dificuldade em cortar.
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- E qual é ela?
- Não qual, mas quem. Beryl Hardcastle e os seus cinquenta e um por cento das ações do Farthings. Beryl não irá assinar mais nenhum documento enviado por Sloane sem antes ter sido cuidadosamente analisado pelo filho.
- Então, o que me aconselha?
- Quando tiveres os seis por cento das ações do banco, podes estacionar o teu tanque no relvado de Sloane e causar estragos.
- Mas se eu conseguisse obter os cinquenta e um por cento de Beryl Hardcastle, podia estacionar um exército inteiro no relvado de Sloane e ele não teria outra hipótese senão bater rapidamente em retirada.
- Boa ideia, desde que conheças alguém com vinte milhões de libras disponíveis.
- E que tal Bob Bingham? - sugeriu Seb.
- Bob é um homem rico, mas creio que vais descobrir que é um valor demasiado alto até mesmo para ele.
- Saul Kaufman?
- No seu presente estado de saúde, desconfio que é mais vendedor do que comprador.
Seb pareceu desapontado.
- Tenta esquecer a ideia de assumires o controlo do banco por agora, Seb. Concentra-te em tornares-te administrador e em fazeres a vida de Sloane num inferno.
Seb assentiu.
- Vou ter com ele assim que voltar dos Estados Unidos.
- Acho que há outra pessoa a quem deves fazer uma visita antes de ires para a América.
- O que tens de perceber, Sarah, é que, embora Macbeth seja um homem ambicioso, Lady Macbeth é a chave para ele pôr as mãos na coroa. Isto passou-se numa época em que os direitos das mulheres não existiam, e a sua única esperança de ter alguma influência na Escócia era convencer o seu marido fraco e indeciso de que devia matar o rei enquanto este estava hospedado em casa deles. Portanto, quero
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que repitas a cena, Sarah. Tenta lembrar-te de que és uma mulher pérfida e intriguista, que está a tentar fazer com que o marido cometa um homicídio. E desta vez vê se me convences, porque se o fizeres também irás convencer o público.
Sebastian sentou-se ao fundo da sala e viu um grupo de alunos jovens e entusiastas a ensaiar sob o olhar atento do senhor Swann. Era uma pena o palco ser tão pequeno e atravancado.
- Muito melhor - disse Swann quando chegaram ao final do ato. - Por hoje, chega. Amanhã, quero começar com a cena do fantasma de Banquo. Rick, não te esqueças de que Macbeth é a única pessoa na sala que consegue ver o fantasma. Os teus convidados no banquete estão temerosos em relação ao que te está a perturbar, alguns até pensam que estás a perder o juízo. E, Sarah, tu estás a convencer esses mesmos convidados de que está tudo bem e que, apesar do estranho comportamento do teu marido, não têm motivo para se preocupar. E faças o que fizeres, nunca olhes para o fantasma, porque se o fizesses, por uma vez que fosse, a magia seria quebrada. Vemo-nos todos amanhã, à mesma hora, e vejam se nessa altura já sabem as vossas deixas. Depois de segunda-feira, ensaiamos sem guião.
Ouviram-se lamentações à medida que os atores abandonavam o palco e voltavam a ser simples alunos, pegando nas mochilas e livros e saindo da sala. Seb ficou divertido ao ver Lady Macbeth dar a mão a Banquo. Não admirava que o senhor Swann tivesse dito a Sarah para não olhar para ele durante a cena do fantasma. Homem perspicaz.
O senhor Swann só desligou as luzes do palco depois de ter os adereços todos no lugar para a cena do banquete. A seguir, pegou no seu guião com sinais de muito uso, enfiou-o na sua maleta velha e dirigiu-se lentamente para a porta. A princípio, não reparou que havia alguém sentado ao fundo da sala e não conseguiu esconder a sua surpresa quando viu quem era.
- Este ano, não vamos representar Otelo - disse. - Mas se fôssemos, não teria de ir muito longe para encontrar quem fizesse de lago.
- Não, senhor Swann, quem vê diante de si é o príncipe Hal, de joelhos, a implorar o perdão do rei, depois de ter cometido um erro terrível do qual poderá não chegar a recuperar.244
O velhote ficou imóvel enquanto Sebastian pegava na carteira, tirava de lá um cheque e entregava-o ao antigo diretor da escola.
- Mas isto é muito mais do que combinámos - disse ele, à procura de palavras.
- Não se continuar a querer aqueles camarins novos, uma cortina digna e não se quiser contentar com o guarda-roupa do ano passado.
- Para não falar num vestiário separado para as raparigas da escola secundária de Shifnal - disse Swann. - Mas posso perguntar-lhe o que queria dizer, senhor Clifton, quando disse que tinha cometido um erro terrível do qual podia não vir a recuperar?
- É uma longa história - disse Seb - e não vou maçá-lo...
- Eu sou um velho com tempo de sobra - retorquiu Swann, sentando-se em frente de Seb.
Sebastian contou ao senhor Swann como vira Samantha pela primeira vez na cerimónia de formatura de Jessica e tinha ficado sem palavras.
- Não me parece que isso lhe aconteça muitas vezes - disse Swann com um sorriso.
- Quando voltei a vê-la, já tinha recuperado o suficiente para a convidar para jantar. Pouco depois disso, percebi que queria passar o resto da vida com ela. - O velhote sabia quando devia ficar calado. - Mas quando ela descobriu que eu não tencionava honrar a promessa que lhe fiz, deixou-me e regressou à América. - Fez uma pausa. - Não a vejo desde então.
- Então, suplico-lhe que não cometa o mesmo erro que eu cometi quando tinha a sua idade.
- Cometeu o mesmo erro?
- De certa forma, ainda foi pior. Quando era jovem, acabado de sair da universidade, ofereceram-me emprego como professor de Inglês numa escola secundária em Worcestershire. Nunca tinha sido tão feliz, até que me apaixonei pela filha mais velha do diretor da escola, mas não tive coragem para lho dizer.
- Porquê?
- Sempre fui tímido, sobretudo com as mulheres, e de qualquer forma receava que o diretor não aprovasse. Agora, deve parecer uma
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patetice, mas o mundo era muito diferente nessa época. Mudei para outra escola e, mais tarde, vim a saber que ela nunca se tinha casado. Podia ter conseguido viver com isso se, no ano passado, quando fui ao seu funeral, a irmã mais nova não me tivesse dito que eu tinha sido o seu primeiro e único amor, mas que o pai lhe tinha dito que ela não devia fazer nada, a menos que eu lhe desse a conhecer os meus sentimentos. Que palerma fui! Um momento desperdiçado, seguido de uma vida de arrependimento. Meu jovem, certifique-se de que não comete o mesmo erro. Dos fracos não reza a história.
- Robert Burns? - perguntou Seb.
- Ainda há esperança para si - replicou Swann. Com a ajuda da bengala, o velhote levantou-se e agarrou Seb pelo braço.
- Obrigado pela sua generosidade. Fico ansioso pela honra de conhecer Miss Sullivan. - Virou-se para olhar diretamente para Seb. - Será que o senhor Clifton pode ter a amabilidade de lhe perguntar se ela está disposta a vir inaugurar o Teatro Samantha Sullivan?
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- Olá, querida mãe, estou a considerar ir à América em trabalho e estava a pensar se...
- Podias ir no Buckingham? Sim, é claro, mas não te esqueças da regra de Bob Bingham em relação aos familiares terem de pagar a sua passagem. Se puderes ir na semana que vem, podes ir com o teu pai. Ele vai a Nova Iorque falar com o editor.
Sebastian virou uma página na agenda.
- Vou ter de remarcar umas reuniões, mas sim, parece-me bem.
- E o que te leva aos Estados Unidos?
- Uma oportunidade de negócio que o senhor Kaufman quer que eu investigue.
Assim que Seb desligou o telefone, sentiu-se culpado por não ter dito à mãe a verdadeira razão da sua viagem, pois receava fazer uma vez mais figura de parvo.
Mas ele não fazia ideia de onde morava Sam nem de como encontrá-la. Estava a pensar nesse problema quando Vic Kaufman entrou no seu gabinete e o apanhou de surpresa.
- Já reparaste que o meu pai anda a repetir-se muito, ultimamente?
- Não, não posso dizer que sim - disse Seb. - De vez em quando, fica um bocadinho esquecido, mas ele já deve ter mais de setenta anos.
- Quando fugiu da Polónia, não trouxe com ele a certidão de nascimento, mas uma vez deixou escapar que se lembrava do funeral da rainha Vitória, por isso já deve andar perto dos oitenta. Tenho de

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confessar que estou um bocadinho preocupado, porque se lhe acontecesse alguma coisa, sinceramente, creio que ainda não estás pronto para assumir o lugar dele e eu não sou suficientemente bom para isso.
Nunca passara pela cabeça de Seb que Saul Kaufman não iria continuar a ser presidente para sempre, e certamente nunca pensara em ocupar o lugar de presidente do banco antes de Vic tocar no assunto.
Seb tinha agora catorze funcionários a trabalhar para ele, a maioria mais velhos do que ele, e o seu departamento era a terceira maior fonte de lucro para o banco, logo atrás do câmbio e das commodities.
- Não te preocupes com isso, Vic - disse Seb, tentando tranquilizá-lo. - Tenho a certeza de que o teu pai ainda tem mais uns aninhos pela frente.
Contudo, na sua reunião semanal com o presidente, o senhor Kaufman perguntou-lhe em três ocasiões diferentes o nome do cliente que representavam num determinado negócio imobiliário, embora Seb soubesse que ele já tinha feito negócio com ele pelo menos duas vezes.
Seb passara tanto do seu tempo livre a pensar no que estava a acontecer noutro banco a poucas ruas de distância que nem lhe passara pela cabeça que o seu futuro no Kaufman's pudesse não estar garantido. Tentou não pensar na pior das hipóteses: o velhote ter de se reformar por causa da saúde precária, o Farthings fazer uma oferta pública de aquisição do Kaufman's e Seb ter de escrever uma segunda carta de demissão dirigida ao novo presidente conjunto dos dois bancos.
Ainda pensou em cancelar a viagem aos Estados Unidos, mas sabia que, se não partisse na última maré de sexta-feira à noite, nunca teria coragem de levar aquilo por diante.
Seb gostou muito da companhia do pai durante a viagem de cinco dias até Nova Iorque, principalmente porque, ao contrário da mãe, Harry não passava o tempo a fazer perguntas intermináveis a que Seb não queria responder.
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Jantavam sempre juntos e, às vezes, também almoçavam. Durante o dia, o pai trancava-se na sua cabina, com a placa não incomodar pendurada na porta. Passava horas e horas a rever a versão final do seu último manuscrito, que entregaria a Harold Guinzburg uma hora depois de o navio atracar.
Por isso, uma manhã, quando Seb estava a dar um passeio pelo convés superior, ficou surpreendido ao ver o pai reclinado numa espreguiçadeira a ler o seu autor favorito.
- Isso significa que já terminou o livro? - perguntou, enquanto se sentava na espreguiçadeira ao lado.
- Sim - disse Harry, pousando Beware ofPity. - Agora, só falta entregar o manuscrito a Harold e esperar pela sua opinião.
- Quer a minha?
- Sobre o meu livro? Não, mas queria sobre outro livro.
- De que livro estamos a falar?
- Uncle Joe - esclareceu Harry. - Harold ofereceu à senhora Babakov um avanço de cem mil dólares pelos direitos a nível mundial contra quinze por cento dos direitos de autor, e não sei como aconselhá-la.
- Mas haverá alguma hipótese de alguém vir a encontrar um exemplar do livro?
- Pensava que não havia praticamente nenhuma, mas Harold disse-me que a senhora Babakov sabe onde existe uma cópia. O único problema é que é na União Soviética.
- Ela disse-lhe onde na União Soviética?
- Não. Disse que só mo diria pessoalmente, e é por isso que vou para Pittsburgh depois de falar com Harold em Nova Iorque.
Harry ficou surpreendido com a pergunta seguinte do filho.
- Cem mil dólares seria uma grande quantia para a senhora Babakov ou ela vive de forma desafogada?
- Ela fugiu da Rússia sem um tostão, por isso essa quantia mudaria toda a sua vida.
- Então, se acha que a oferta do senhor Guinzburg é justa, o meu conselho é que ela a aceite. Sempre que quero fechar um negócio, tento descobrir até que ponto a outra parte precisa do dinheiro, pois isso influenciará sempre a minha forma de pensar. Se estiverem
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desesperados por dinheiro, sou eu quem controla a situação. Caso contrário...
Harry assentiu.
-Mas este caso em particular tem um senão. É que se é a única
pessoa a quem ela está disposta a dizer onde o livro está escondido, pode ter a certeza de que também está à espera de que seja o pai a ir buscá-lo.
- Mas é na União Soviética.
- Onde continua a ser persona non grata. Portanto, faça o que fizer, não prometa nada.
- Não quero desiludi-la.
- Pai, eu sei que deve ser divertido afrontar sozinho o Império Soviético, mas só o James Bond é que triunfa sempre sobre o KGB. Portanto, trate de voltar ao mundo real porque também preciso de conselhos.
- Meus?
- Não, dos do inspetor Warwick.
- Porquê? Estás a planear assassinar alguém?
- Não, estou só à procura de uma pessoa desaparecida.
- E é por isso que vais aos Estados Unidos.
- Sim. Mas não sei onde essa pessoa mora nem como descobrir isso.
- Creio que têm o registo da morada dela neste navio.
- Como é isso possível?
- Ela acompanhou-nos na viagem inaugural e deve ter tido de entregar o passaporte ao comissário de bordo. Por isso, quase de certeza que ele tem a morada dela nos seus registos. Pode ser um tiro no escuro, pois já foi há vários anos, mas pelo menos é um ponto de partida. Em circunstâncias normais, desconfio que ele não estaria disposto a dar informações pessoais sobre outro passageiro, mas como és administrador da companhia, e ela foi tua convidada na viagem, imagino que não haja problema.
- Como é que sabia que a minha pessoa desaparecida era Samantha?
- Foi a tua mãe que me disse.
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- Mas eu não lhe contei!
- Não por tantas palavras. Mas eu aprendi, ao longo dos anos a nunca subestimar aquela mulher. Se bem que, quando é pessoal, até ela pode cometer erros.
- Como Desmond Mellor?
- Nunca pensei que quem viesse a substituir Alex Fisher pudesse revelar-se ainda mais problemático.
- E há uma grande diferença entre Mellor e Fisher - disse Seb. - Mellor é inteligente, o que o torna muito mais perigoso.
- Achas que ele tem alguma hipótese de se tornar vice-presidente?
- Achava que não, até Ross Buchanan me ter convencido do contrário.
- Talvez seja por isso que Emma está a pensar em recorrer à opção nuclear e obrigar Mellor a pôr as cartas na mesa.
- Qual mesa?
- Na mesa do conselho de administração. Ela vai deixá-lo candidatar-se a vice-presidente, mas vai fazer-lhe oposição e apresentar o seu próprio candidato. Se ele perder, não terá outra hipótese senão demitir-se.
- E se ela perder?
- Terá de aprender a viver com isso.
- Quem é o candidato dela?
- Presumi que devias ser tu.
- Nem pensar. O conselho ia sempre apoiar Mellor contra mim, quanto mais não fosse pela minha idade, e isso significaria que a mãe ia acabar por ter de se demitir. O que, agora que penso nisso, até pode fazer parte do plano de Mellor. Vou ter de dissuadi-la. E não é o único problema que ela tem, neste momento.
- Se estás a referir-te a Lady Virgínia e ao seu processo por difamação, creio que isso já não será problema.
- Como pode ter tanta certeza?
- Não posso, mas há algum tempo que não temos notícias relacionadas com isso. Daqui a doze meses, a tua mãe pode requerer ao tribunal que risque a ação da lista, mas eu aconselhei-a a não o fazer.
- Porquê?
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-Quando nos cruzamos com uma cobra adormecida, não a espetamos com um pau afiado na esperança de que se vá embora, porque o mais provável é acordar e morder-nos.
- E a mordida daquela mulher é venenosa - constatou Seb. -Mas eu nem sei por que motivo ela está a processar a mãe.
- Eu conto-te durante o jantar.
O comissário de bordo do navio não podia ter sido mais solícito. Conseguiu dar a Sebastian a morada de Miss Samantha Sullivan: 2043 Cable Street, Georgetown, Washington DC, embora não pudesse ter a certeza se ainda morava ali, já que não voltara a viajar naquele navio desde a viagem inaugural. Seb esperava que o número 2043 fosse um pequeno apartamento onde ela morasse sozinha ou com outras colegas do Smithsonian.
Agradeceu ao comissário, subiu uns quantos lanços de escada até ao Grill Room e juntou-se ao pai para jantar. Só depois de o empregado ter levantado o prato principal é que Seb falou na ação movida por Virgínia.
- Foi uma tirada dramática ou, pelo menos, foi o que todos pensámos na altura - disse Harry, acendendo um charuto Havana que não podia ter comprado num navio americano. - A tua mãe estava a discursar na assembleia-geral anual da companhia e durante as perguntas do público Virgínia perguntou se um dos administradores da Barrington's tinha vendido todas as suas ações com a intenção de destruir a companhia.
- E como é que a mãe respondeu à pergunta?
- Virou-a a seu favor, perguntando se Virgínia se estava a referir às três ocasiões em que Alex Fisher, o seu representante no conselho de administração, vendera e depois recomprara as ações que ela detinha, angariando-lhe assim um bom lucro.
- Mas como isso é a mais pura verdade - disse Seb - dificilmente pode ser considerado uma difamação.
- Concordo, mas a tua mãe não conseguiu resistir a espetar a cobra com um pau bem afiado acrescentando... - Harry pousou o252
charuto, recostou-se e fechou os olhos - ... «Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia, então fracassou, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja bem-sucedida...» Não, não, disse Harry, corrigindo-se. - As suas palavras exatas foram «seja um sucesso». O público aplaudiu e Virgínia saiu da sala a gritar «Vai ter notícias do meu advogado», e na verdade foi o que aconteceu. Mas isso aconteceu há algum tempo, por isso vamos esperar que tenha sido aconselhada a desistir do caso e tenha deslizado para o matagal.
- Se o fez, estará apenas enroscada, à espera para voltar a atacar.
Na última manhã da viagem, Seb juntou-se ao pai para tomar o pequeno-almoço, mas Harry mal disse uma palavra. Era sempre assim antes de entregar um manuscrito aos seus editores. Uma vez, tinha dito a Seb que os três dias mais longos da sua vida eram quando estava à espera de saber a opinião de Harold Guinzburg sobre o seu último livro.
- Mas como pode ter a certeza de que ele está a ser completamente sincero consigo, quando a última coisa que ele quereria seria perdê-lo?
- Eu não ouço uma palavra do que ele diz acerca do livro - admitiu Harry. - Só estou interessado no número de exemplares que ele vai mandar imprimir na primeira tiragem. Ele não pode fazer bluff em relação a isso. Se forem mais de cem mil, significa que ele acha que tem um best-seller.
- E se forem menos de cem mil? - indagou Seb.
- Nesse caso, é porque não tem tanta certeza.
Pai e filho desceram a prancha de desembarque cerca de uma hora mais tarde. Um deles segurava um manuscrito e dirigiu-se para a sua editora em Manhattan, enquanto o outro apanhou um táxi para a Grand Central Station armado apenas com uma morada em Georgetown.

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Sebastian ficou especado do outro lado da rua, a segurar um grande ramo de rosas vermelhas. Olhou fixamente para a porta de uma pequena casa térrea de tijolo vermelho. A frente desta, um quadradinho de relva que podia ter sido cortado com tesoura estava rodeado de begónias. Um caminho limpo de folhas levava a uma porta recém-pintada com uma aldraba de latão que brilhava ao sol do final da manhã. Tão bem arranjado, tão limpo, e tão Samantha...
Porque é que ele era destemido sempre que enfrentava Adrian Sloane ou se travava de razões com alguém por causa de um negócio de um milhão de libras, e bater a uma porta que até podia não ser de Sam o deixava tão apreensivo? Respirou fundo, atravessou a rua, percorreu lentamente o caminho e bateu timidamente à porta. Quando esta se abriu, a sua reação imediata foi dar meia-volta e fugir. Devia ser o marido de Sam.
- Posso ajudá-lo? - perguntou o homem, olhando desconfiado para as rosas.
- A Samantha está? - perguntou Seb, perguntando-se se a desconfiança não se transformaria rapidamente em raiva.
- Não mora aqui há mais de um ano.
- Sabe para onde ela se mudou?
- Não faço ideia. Desculpe.
- Mas ela deve ter deixado uma morada para lhe mandar o correio - disse Seb, desesperado.
- O Smithsonian - replicou o homem -, é aí que ela trabalha.254
- Obrigado - disse Seb, mas a porta já estava fechada.
Este encontro fê-lo sentir-se um pouco mais corajoso e rapidamente voltou à rua e fez sinal ao primeiro táxi que passou. Durante a viagem até ao Smithsonian, deve ter repetido para consigo uma dúzia de vezes: para de ser tão fraco e faz o que tens a fazer. O pior que pode acontecer é ela...
Quando saiu do táxi, deu por si em frente de uma porta muito diferente: um enorme painel de vidro que parecia nunca ficar fechado por mais de alguns segundos de cada vez. Entrou no átrio. No balcão da receção, três mulheres jovens com uniforme azul respondiam às perguntas dos visitantes.
Seb abordou uma delas, que sorriu ao ver as rosas.
- Posso ajudá-lo?
- Estou à procura de Samantha Sullivan.
- Lamento, mas não conheço esse nome, mas também só comecei a trabalhar na semana passada - disse ela, virando-se para uma colega que tinha acabado de desligar o telefone.
- Samantha Sullivan? - repetiu ela. - Ela saiu para ir buscar a filha à escola. Volta amanhã às dez horas.
Filha, filha, filha. A palavra ecoou nos ouvidos de Seb como o estrondo de uma bala. Se ele tivesse sabido, não tinha...
- Quer deixar-lhe uma mensagem?
- Não, obrigado - disse ele, virando-se e começando a caminhar em direção à porta.
- Ainda é capaz de a encontrar na Escola Primária Jefferson - disse a voz atrás dele. - Só saem às quatro horas.
- Obrigado - repetiu Seb enquanto empurrava a porta, mas sem olhar para trás. Saiu do edifício e foi à procura de outro táxi. Houve um que parou imediatamente ao seu lado. Ele entrou e preparava-se para dizer Union Station, mas as palavras que saíram foram Escola Primária Jefferson.
O taxista entrou no trânsito da tarde e ficou atrás de uma longa fila de carros.
- Duplico o valor que estiver no taxímetro se me puser lá antes das quatro horas.
O taxista mudou de faixa, passou um sinal vermelho e seguiu disparado por entre espaços tão exíguos que Seb teve de fechar os
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olhos. Pararam à porta de um enorme edifício em tijolo neogeorgiano quatro minutos antes da hora. Seb olhou para o taxímetro e deu uma nota de dez dólares ao motorista. Saiu do táxi e desapareceu rapidamente atrás de vários grupos de mães que conversavam enquanto esperavam que os filhos saíssem. Escudado por uma árvore, olhou as mães uma por uma, à procura de um rosto conhecido. Mas não a viu.
Às quatro horas, a campainha tocou e as portas abriram-se para deixar sair um bando de meninas de camisa branca, blazer carmesim e saia cinzenta pregueada, com a mala da escola a balouçar ao seu lado. Desceram os degraus a correr e foram direitinhas às suas mães, como que atraídas por um íman.
Seb olhou atentamente para as meninas. Deviam ter cerca de cinco anos, mas como é que podia ser se Sam tinha estado em Inglaterra há menos de seis anos? E nessa altura ele viu a sua irmã mais nova a descer os degraus. O mesmo cabelo preto ondulado, os mesmos olhos escuros, o mesmo sorriso que ele não conseguia esquecer. Apeteceu-lhe correr para ela e tomá-la nos braços, mas ficou pregado ao chão. De repente, ela sorriu ao reconhecer alguém, mudou de direção e correu para a mãe.
Seb olhou para a mulher que o deixara sem palavras quando a conhecera. Mais uma vez, sentiu vontade de gritar, mas mais uma vez não o fez. Limitou-se a ficar ali especado e viu as duas entrar no carro e, tal como todas as outras mães e filhas, arrancar em direção a casa. Passado um instante, tinham desaparecido.
Seb ficou ali, meio aturdido. Porque é que ela não lhe tinha contado? Nunca se tinha sentido tão triste ou tão feliz em toda a sua vida. Tinha de conquistá-las às duas porque sacrificaria qualquer coisa, ou mesmo tudo, para estar com elas.
A multidão dispersou, à medida que as últimas crianças se juntavam às mães, até que finalmente Seb ficou ali sozinho, ainda a segurar o ramo de rosas vermelhas. Atravessou outra rua e entrou noutra porta na esperança de encontrar alguém que lhe pudesse dizer onde moravam.
Percorreu um longo corredor, passando por salas de aula de ambos os lados que estavam decoradas com desenhos e pinturas das alunas. Mesmo antes de chegar à porta que tinha uma placa que dizia
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Doutora Rosemary Wolfe, Diretora, parou para admirar uma pintura que uma criança fizera da sua mãe. Podia ter sido pintada por Jessica, vinte anos antes. A mesma pincelada confiante, a mesma originalidade. Não havia diferença. A sua obra estava num patamar diferente de tudo o mais que se encontrava exposto. Lembrou-se de caminhar ao longo de outro corredor quando tinha dez anos e de sentir exatamente a mesma emoção: admiração, e o desejo de conhecer a artista.
- Posso ajudá-lo? - indagou uma voz severa.
Seb deu meia-volta e deparou-se com uma mulher alta e elegantemente vestida a olhá-lo com ar determinado. Fez-lhe lembrar a sua tia Grace.
- Estava apenas a admirar as pinturas - disse ele, em tom algo desmaiado, esperando que o seu sotaque inglês exagerado a apanhasse desprevenida. Embora ela não parecesse o tipo de mulher que se apanhava desprevenida com facilidade. - E esta - acrescentou Seb, apontando para a minha mãe - é excecional.
- Concordo - disse ela -, mas a Jessica tem um talento raro... Sente-se bem? - perguntou, quando viu Seb ficar branco e cambalear para a frente, firmando-se rapidamente contra a parede.
- Estou bem, estou bem - disse ele, recuperando a compostura. - Jessica, foi o que disse?
- Sim. Jessica Brewer. É a artista mais talentosa que temos na Escola Primária Jefferson desde que sou diretora, e nem sequer se dá conta do talento que tem.
- Típico de Jessica.
- É amigo da família?
- Não, conheci a mãe quando ela estudou em Inglaterra.
- Se me disser o seu nome, eu digo-lhe...
- É melhor não, senhora diretora, mas tenho um pedido invulgar para lhe fazer. - O olhar severo voltou a aparecer. - Gostava de comprar este retrato e levá-lo para Inglaterra, para me lembrar tanto da mãe como da filha.
- Lamento, mas não está à venda - disse a doutora Wolfe com firmeza. - Mas tenho a certeza de que se falar com a senhora Brewer...

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-Isso não é possível - disse Seb, baixando a cabeça.
A expressão da diretora suavizou-se e ela estudou o desconhecido com mais atenção.
- É melhor ir andando - disse Seb -, caso contrário perco o comboio. - Queria fugir, mas as suas pernas estavam tão fracas que mal se conseguia mexer. Quando levantou os olhos para se despedir, a diretora continuava a olhar para ele.
- O senhor é o pai de Jessica.
Seb assentiu enquanto as lágrimas lhe assomavam aos olhos de forma descontrolada. A doutora Wolfe atravessou a sala, tirou o retrato da parede e entregou-o ao desconhecido.
- Por favor, não lhes diga que estive aqui - suplicou. - Será melhor assim.
- Não direi uma palavra - disse a doutora Wolfe, estendendo-lhe a mão.
Cedric Hardcastle teria feito negócio com aquela mulher; alguém que não precisava de assinar um contrato para cumprir a sua palavra.
- Obrigado - disse Seb, entregando-lhe as flores.
Saiu rapidamente, segurando a pintura debaixo do braço. Uma vez lá fora, andou sem destino. Que estúpido fora em perdê-la! Duplamente estúpido. Tal como o vilão de um filme de cowboys, sabia que tinha de abandonar a cidade, e abandoná-la depressa. Só o xerife podia saber que ele lá estivera.
- Union Station - disse ao subir para o banco de trás de outro táxi. Não conseguia parar de olhar para A minha mãe, e não teria visto o letreiro em néon se não tivesse levantado os olhos por um momento.
- Pare! - gritou.
O táxi parou junto ao passeio.
- Pensei que tinha dito Union Station. Ainda faltam dez quarteirões.
- Desculpe, mudei de ideias. - Pagou ao taxista, saiu para o passeio e olhou para o letreiro. Desta vez, não hesitou. Entrou no edifício e foi direitinho ao balcão, rezando para que o seu palpite estivesse certo.
- Qual é a secção que o senhor pretende? - perguntou a mulher que lá estava.258
- Quero comprar a fotografia de um casamento que tenho a certeza que o vosso jornal terá coberto.
- A secção fotográfica fica no segundo piso - disse ela, apontando para uma escada -, mas é melhor apressar-se. Encerra daqui a poucos minutos.
Seb galgou a escada, subindo três degraus de cada vez, e entrou de rompante pelas portas de vaivém que tinham a palavra fotos estampada no vidro biselado. Aqui, estava um rapaz atrás do balcão que olhou para o relógio de pulso. Seb não esperou que ele falasse.
- O vosso jornal cobriu o casamento Brewer e Sullivan?
- Não me diz nada, mas vou ver.
Seb pôs-se a andar de um lado para o outro em frente do balcão, esperançado, a torcer e a rezar para que sim. Finalmente, o jovem voltou a aparecer com uma pasta volumosa na mão.
- Parece que sim - disse ele, largando a pasta em cima do balcão. Seb abriu a capa amarelecida e viu dúzias de fotografias e vários
recortes de imprensa que registavam o feliz enlace: os noivos, Jessica, pais, damas de honor, amigos e até um bispo, num casamento onde o noivo devia ter sido ele.
- Se quiser escolher uma fotografia em particular - disse o jovem -, são cinco dólares cada uma e pode vir buscá-las daqui a dois dias.
- E se eu quisesse comprar todas as fotografias que estão na pasta? Quanto é que isso me custaria?
O homem contou-as devagarinho.
- Duzentos e dez dólares - acabou por dizer.
Seb pegou na carteira, tirou três notas de cem dólares e colocou-as sobre o balcão.
- Eu quero levar essa pasta comigo, agora.
- Receio que isso não seja possível, senhor. Mas, como lhe disse, se voltar daqui a dois dias...
Seb tirou outra nota de cem dólares da carteira e viu o ar desesperado do jovem. Sabia que o negócio estava mais do que fechado. A única questão era saber por quanto.
- Mas eu não estou autorizado... - sussurrou ele.
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Antes que ele pudesse terminar a frase, Seb pôs mais uma nota de cem dólares em cima das outras quatro. O jovem olhou à sua volta e viu que a maior parte dos colegas se preparava para ir embora. Pegou rapidamente nas cinco notas, enfiou-as no bolso e brindou Seb com um sorriso desmaiado.
Seb pegou na pasta, saiu da secção de fotografias, desceu rapidamente a escada, passou pelas portas de vaivém e abandonou o edifício. Sentia-se um ladrãozeco e continuou a correr até ter a certeza de que tinha escapado. Por fim, abrandou, recobrou o fôlego e começou a seguir as placas em direção a Union Station, com a pintura enfiada debaixo de um braço e a pasta debaixo do outro. Comprou um bilhete no expresso da Amtrack para Nova Iorque e, passados alguns minutos, embarcou no comboio estacionado.
Sebastian só abriu a pasta quando o comboio deixou a estação. Quando chegou a Penn Station, não pôde deixar de pensar se, tal como o senhor Swann, também se arrependeria para o resto da vida de não ter falado com ela, porque a senhora Brewer só estava casada há três meses.
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Harold Guinzburg pôs o manuscrito em cima da secretária. Harry sentou-se à frente dele e aguardou pelo seu veredito.
Guinzburg franziu o sobrolho quando a secretária entrou no gabinete e pôs dois cafés fumegantes e um prato de biscoitos à frente deles, e manteve-se calado até ela se ir embora. Estava claramente a gostar de fazer Harry sofrer mais uns instantes de tortura. Quando a porta finalmente se fechou atrás dela, Harry pensou que ia explodir.
Os laivos de um sorriso apareceram no rosto de Guinzburg.
- Sem dúvida que quer saber o que acho do seu último livro - disse ele, aumentando ainda mais a pressão.
Harry tinha vontade de estrangular o maldito homem.
- Será melhor começar por dar uma pista ao inspetor Warwick? E depois acabou com o seu sofrimento.
- Cento e vinte mil cópias. Em minha opinião, é a melhor coisa que já fez e sinto orgulho por ser o seu editor.
Harry ficou tão chocado que desatou a chorar, e, como nenhum dos dois tinha um lenço, ambos começaram a rir. Depois de se terem recomposto, Guinzburg passou algum tempo a explicar porque é que tinha gostado tanto de William Warwick e a Bomba-relógio. Harry depressa se esqueceu que tinha passado os dois últimos dias a calcorrear as ruas de Nova Iorque, angustiado por não saber qual seria a reação do seu editor. Bebeu um gole de café, mas já estava frio.
- Será que posso chamar agora a sua atenção para outro autor? - disse Guinzburg. - A saber, Anatoly Babakov e a sua biografia de Josef Stalin.
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Harry voltou a pousar a chávena no pires.
- A senhora Babakov disse-me que escondeu o livro do marido num lugar onde ninguém o poderá encontrar. Digno de um romance policial de Harry Clifton! - acrescentou. - Mas, como sabe, além de confirmar que está algures na União Soviética, o meu amigo é a única pessoa a quem ela está disposta a revelar a localização exata. - Harry não o interrompeu. - Em minha opinião - continuou Guinzburg -, não se devia envolver nisto, tendo em conta que os comunistas não o consideram propriamente um tesouro nacional. Portanto, se descobrir onde o livro está escondido, talvez fosse melhor ser outra pessoa a ir buscá-lo.
- Se não estivesse disposto a correr esse risco - disse Harry -, então de que teriam valido os anos que passei a tentar que libertassem Babakov? Mas, antes de decidir, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Se eu conseguisse deitar a mão a um exemplar de Uncle Joe, qual seria a sua primeira tiragem?
- Um milhão de cópias - disse Guinzburg.
- E ainda acha que sou eu que estou a correr riscos!
- Não se esqueça de que o livro de Svetlana Stalin, Twenty Leíters to a Friend, esteve na lista dos mais vendidos durante mais de um ano e, ao contrário de Babakov, ela nunca entrou no Kremlin durante o reinado do pai. - Guinzburg abriu uma gaveta da secretária e tirou um cheque de cem mil dólares passado em nome de Yelena Babakov. Entregou-o a Harry. - Se encontrar o livro, ela poderá viver de forma luxuosa para o resto da vida.
- E se eu não o encontrar ou se nem sequer lá estiver? Terá gasto cem mil dólares e não terá nada para mostrar em troca.
- É um risco que estou disposto a correr - disse Guinzburg. - Qualquer editor minimamente decente é um jogador lá no fundo. Agora, falemos de coisas mais agradáveis. Da minha querida Emma, por exemplo, e de Sebastian. Para não falar de Lady Virgínia Fenwick. Mal posso esperar para saber o que tem andado a tramar.
O almoço com o seu editor tinha-se prolongado demasiado e Harry chegou a Penn Station em cima da hora para apanhar o Pennsylvania Flyer. Durante a primeira parte da viagem para Pittsburgh, recapitulou
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todas as perguntas que Guinzburg queria ver respondidas antes de se separar dos seus cem mil dólares.
Mais tarde, enquanto Harry dormitava, o seu pensamento derivou até à última conversa com Sebastian. Esperava que o filho conseguisse reconquistar Samantha, e não apenas por sempre ter gostado dela. Sentia que Seb tinha finalmente amadurecido e que Sam iria redescobrir o homem por quem se apaixonara.
Quando o comboio parou em Pennsylvania Station, Harry lembrou-se de que havia algo que sempre quisera fazer se alguma vez fosse a Pittsburgh. Mas não teria tempo para visitar o Museu de Arte Carnegie, que Jessica lhe dissera em tempos albergar alguns dos melhores Cassatts na América.
Subiu para o banco de trás de um táxi amarelo e pediu ao motorista que o levasse às Brunswick Mansions na parte norte. A morada tinha uma aura de pretensiosismo de classe média, mas, quando pararam vinte minutos depois, Harry descobriu que, na realidade, era um bairro degradado. O táxi arrancou a toda a velocidade assim que ele pagou a corrida.
Harry subiu os degraus gastos de um edifício de apartamentos coberto de graffiti. A tabuleta «Fora de Serviço» pendurada na porta do elevador tinha um ar permanente. Subiu lentamente a escada até ao oitavo andar e foi à procura do apartamento número 86, que ficava na outra ponta do bloco. Os vizinhos espreitavam à porta, desconfiados do homem elegantemente vestido que devia ser com certeza um funcionário do governo.
A leve pancada na porta foi atendida tão depressa que ela devia estar à espera dele. Harry sorriu para a mulher idosa de olhar triste e fatigado e rosto cheio de rugas. Conseguia imaginar quão dolorosa devia ter sido a longa separação do marido pelo facto de, apesar de serem mais ou menos da mesma idade, ela aparentar ter mais vinte anos do que ele.
- Boa tarde, senhor Clifton - disse ela, sem vestígios de sotaque. - Faça o favor de entrar. - Conduziu o seu convidado ao longo de um corredor estreito e sem tapete até à sala de estar, onde uma grande fotografia do marido pendurada por cima de uma prateleira de livros muito usados era o único adorno das paredes pretas.263
- Faça o favor de se sentar - disse ela, apontando para uma das duas cadeiras que eram as únicas peças de mobiliário na sala. - Foi muito gentil da sua parte fazer uma viagem tão longa para me vir ver. E tenho de lhe agradecer pelos seus esforços heróicos para libertar o meu querido Anatoly. Revelou-se um aliado incansável.
A senhora Babakov falava do marido como se ele se tivesse atrasado no regresso a casa e pudesse aparecer a qualquer momento, e não como alguém que estava a cumprir uma pena de prisão de vinte anos a mais de onze mil quilómetros de distância.
- Como é que conheceu Anatoly? - perguntou ele.
- Ambos estudámos no Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscovo. Eu acabei a ensinar Inglês numa escola pública local, ao passo que Anatoly foi para o Kremlin pouco depois de ter ganhado a Medalha Lenine por ser o melhor aluno do seu ano. Quando nos casámos, pensava que tínhamos tudo, que devíamos ter sido abençoados para termos tanta sorte, e para os padrões da maioria das pessoas na Rússia até tínhamos. Mas isso mudou de um dia para o outro quando Anatoly foi escolhido para traduzir os discursos do presidente, para poderem ser usados para fins de propaganda no Ocidente.
Depois, o intérprete oficial do presidente adoeceu, e Anatoly tomou o seu lugar. Uma nomeação temporária, segundo lhe disseram, e quem lhe dera que assim fosse. Mas ele queria impressionar o dirigente do país e deve ter conseguido, pois depressa foi promovido a intérprete principal de Stalin. Se o tivesse conhecido, compreenderia porquê.
- Tempo verbal errado - disse Harry. - Quer dizer que quando o conhecer, vou compreender porquê.
Ela sorriu.
- Ele tornou-se demasiado próximo de Stalin e, embora fosse apenas um apparatchik, começou a presenciar coisas que o fizeram perceber o monstro que ele era. A imagem apresentada ao povo de um tio preferido simpático e bonacheirão não podia estar mais longe da verdade. Anatoly contava-me histórias horrendas quando regressava do trabalho, mas nunca à frente de ninguém, nem mesmo dos nossos amigos mais chegados. Se ele tivesse falado às claras, o seu castigo não teria sido a despromoção; teria desaparecido simplesmente como264
tantos milhares de pessoas. Sim, milhares, bastava levantarem uma sobrancelha em sinal de protesto.
O seu único consolo era a escrita, que sabia que nunca poderia ser publicada até à morte de Stalin e, provavelmente, só depois da sua própria morte. Mas Anatoly queria que o mundo soubesse que Stalin era tão pérfido quanto Hitler. A única diferença era que ele tinha escapado impune. E depois Stalin morreu.
Anatoly começou a ficar impaciente por dar a conhecer ao mundo o que sabia. Devia ter esperado mais, mas, quando encontrou um editor que partilhava os seus ideais, não conseguiu conter-se. No dia da publicação, mesmo antes de Unck Joe ter chegado às livrarias, todos os exemplares foram destruídos. Tão grande era o receio do KGB de que alguém descobrisse a verdade que mesmo o prelo onde as palavras de Anatoly tinham sido impressas foi feito em bocados. No dia seguinte, foi preso e, passada uma semana, tinha sido julgado e condenado a vinte anos de trabalhos forçados no gulag por escrever um livro que nunca ninguém lera. Se ele fosse americano e tivesse escrito uma biografia de Roosevelt ou Churchill, teria estado presente em todos os talk shows e o seu livro teria sido um best-seller.
- Mas a senhora conseguiu fugir.
- Sim, Anatoly tinha previsto o que iria acontecer. Algumas semanas antes da publicação, mandou-me para casa de minha mãe em Leninegrado e deu-me todos os rublos que poupara e uma prova do livro. Consegui atravessar a fronteira para a Polónia, mas só depois de subornar um guarda com a maior parte das poupanças de Anatoly. Cheguei à América sem um tostão.
- E o livro? Trouxe-o consigo?
- Não, não podia correr esse risco. Se tivesse sido apanhada e o confiscassem, a vida de Anatoly não teria tido um propósito. Deixei-o num sítio onde nunca o encontrarão.
Os três homens que estavam à espera dela levantaram-se todos quando Lady Virgínia entrou na sala. Finalmente, a reunião podia começar.
Desmond Mellor sentou-se à frente dela, envergando um fato de xadrez castanho que seria mais apropriado para uma corrida de
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galgos. À esquerda deste, estava o major Fisher, com o seu fato assertoado azul-escuro às risquinhas, que já não era de pronto-a-vestir; no fim de contas, agora era deputado. A frente dele, encontrava-se o homem que era responsável por ter juntado os quatro.
- Convoquei esta reunião em cima da hora - disse Adrian Sloane - porque aconteceu algo que pode muito bem estragar os nossos planos a longo prazo. - Nenhum deles o interrompeu. - Na sexta-feira à tarde, pouco antes de viajar para Nova Iorque no Buckingham, Sebastian Clifton comprou mais vinte e cinco mil ações do banco, elevando a sua posição global para pouco mais de cinco por cento. Como vos avisei há algum tempo, qualquer pessoa que detenha seis por cento das ações da companhia fica automaticamente habilitada a um lugar no conselho de administração e, se isso viesse a acontecer, ele depressa descobriria o que temos andado a planear nos últimos seis meses.
- Quanto tempo acha que temos? - perguntou Lady Virgínia.
- Pode ser um dia, um mês, um ano, quem sabe? - respondeu Sloane. - A única coisa que sabemos ao certo é que ele só precisa de mais um por cento para reclamar o seu lugar no conselho de administração, portanto é melhor presumirmos que isso pode acontecer o quanto antes.
- Quão perto estamos de deitar a mão às ações da velha? - indagou o major. - Isso resolveria todos os nossos problemas.
- Tenho uma reunião com o filho Arnold na próxima terça-feira - disse Des Mellor. - Oficialmente, é para ele me aconselhar relativamente a uma questão jurídica, mas só lhe direi o meu verdadeiro motivo depois de ele assinar um acordo de confidencialidade.
- Porque é que não lhe faz a oferta? - perguntou Virgínia, virando-se para Sloane. - No fim de contas, é o presidente do banco.
- Ele nunca concordaria em fazer negócio comigo - disse Sloane. - Não depois de eu ter conseguido que a senhora Hardcastle renunciasse aos seus direitos de voto no dia do funeral do marido. Mas ele nunca se cruzou com Desmond.
- E depois de ele assinar o acordo de confidencialidade - disse Mellor - vou fazer-lhe uma oferta de três libras e doze xelins por ação pela participação da mãe, o que é trinta por cento acima do valor de mercado.
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- Mas com certeza que ele vai ficar desconfiado, não? No fim de contas, ele sabe que é administrador do banco.
- É verdade - disse Sloane - mas, enquanto curador exclusivo do património do pai, é sua responsabilidade conseguir o melhor negócio possível para a mãe e, presentemente, ela vive dos seus dividendos que tenho mantido no mínimo durante os últimos dois anos.
- Depois de lhe ter recordado isso mesmo - continuou Mellor - vou desferir o golpe de misericórdia e dizer-lhe que a primeira coisa que pretendo fazer é afastar Adrian Sloane da presidência do banco.
- Isso deve firmar o negócio - disse o major.
- Mas o que é que o impede de entrar em contacto com Clifton e pedir simplesmente um preço mais alto?
- Essa é a beleza do acordo de confidencialidade. Ele não pode discutir a oferta com ninguém a não ser a mãe, a menos que queira ser denunciado à Ordem dos Advogados. E esse não é um risco que um advogado da Coroa corra de ânimo leve.
- E o nosso outro comprador continua a postos? - perguntou o major.
- O senhor Bishara não só está a postos - disse Sloane -, como confirmou por escrito a sua oferta de cinco libras por ação e depositou dois milhões de libras com o seu procurador para mostrar a seriedade das suas intenções.
- Porque é que ele está disposto a pagar um preço tão excessivo? - perguntou Lady Virgínia.
- Porque o Banco de Inglaterra rejeitou recentemente o seu pedido de licença para atuar como banqueiro na City de Londres, e ele está tão desesperado por deitar a mão a um banco inglês com reputação impecável que não se parece importar com quanto vai pagar pelo Farthings.
- Mas o Banco de Inglaterra não irá opor-se àquilo que é obviamente uma aquisição? - perguntou Fisher.
- Não se ele mantiver o mesmo conselho de administração durante dois anos e eu continuar como presidente. E é por isso que é tão importante que Clifton não descubra o que estamos a tramar.
- Mas o que acontece se Clifton conseguir adquirir os seis por cento?
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- Também lhe irei oferecer três libras e doze xelins por ação - disse Sloane - e tenho a sensação de que ele não conseguirá resistir à oferta.
- Não tenho tanta certeza - duvidou Mellor. - Notei uma mudança de atitude, recentemente. Parece estar a trabalhar em função de uma agenda completamente diferente.
- Então, terei de reescrever essa agenda.
- O livro está onde um livro deve estar - disse a senhora Babakov.
- Numa livraria? - arriscou Harry. A senhora Babakov sorriu.
- Mas não numa livraria qualquer.
- Se quiser guardar esse segredo, compreendo, sobretudo se a sua descoberta for suscetível de acarretar uma punição ainda maior para o seu marido.
- Que punição poderá ser maior do que esta? As suas últimas palavras ao entregar-me o livro foram: «Arrisquei a minha vida por isto e sacrificá-la-ia alegremente para saber que tinha sido publicado, para que o mundo, e sobretudo o povo russo, possa finalmente saber a verdade.» Por isso, só me resta um objetivo na vida, senhor Clifton, que é ver o livro de Anatoly publicado, sejam quais forem as consequências. Caso contrário, todos os sacrifícios que ele fez terão sido em vão. - Ela agarrou-lhe na mão. - Vai encontrá-lo num alfarrabista especializado em traduções estrangeiras na esquina de Nevsky Prospekt com a rua Bolshaya Morskaya, em Leninegrado - disse ela, continuando a segurar a mão de Harry como uma viúva sozinha agarrada ao seu único filho. - Está na prateleira de cima, no canto mais afastado, entre War and Peace em espanhol e Tess of the d'Ubervilles em francês. Mas não procure Uncle Joe, pois escondi-o na sobrecapa de uma tradução portuguesa de A Tale of Two Cities. Não creio que haja muitos portugueses a visitar aquela loja.
Harry sorriu.
- E se ainda lá estiver e eu conseguir trazê-lo, não se importa que o senhor Guinzburg o publique?
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- Anatoly teria ficado orgulhoso por ser... - Parou, voltou a sorrir e disse: - Anatoly ficará orgulhoso por ser publicado pela mesma editora que Harry Clifton.
Harry tirou um envelope do bolso interior do casaco e entregou-lho. Ela abriu-o lentamente e tirou o cheque. Harry ficou atento para ver a sua reação, mas ela voltou simplesmente a pôr o cheque no envelope e devolveu-lho.
- Mas com certeza que Anatoly ia querer que a senhora...
- Sim, ia - disse ela baixinho. - Mas não é isso que eu quero. Consegue imaginar o sofrimento dele todos os dias? Portanto, até ele ser libertado, não me interessa viver de forma confortável. O senhor, mais do que qualquer outra pessoa, devia perceber isso.
Ficaram sentados em silêncio na pequena sala, de mãos dadas. Quando as sombras invadiram o apartamento, Harry deu-se conta de que não havia luz. Ela estava decidida a partilhar a prisão do marido. Ela mostrava tanta dignidade que foi Harry quem se sentiu envergonhado. Por fim, a senhora Babakov levantou-se.
- Já o retive demasiado tempo, senhor Clifton. Compreendo se decidir não voltar à Rússia, já que tem muito a perder. E se não o fizer, peço-lhe apenas uma coisa: por favor, não diga nada até eu ter encontrado alguém que esteja disposto a desempenhar essa tarefa.
- Senhora Babakov - disse Harry -, se o livro ainda lá estiver, hei de encontrá-lo. Irei trazê-lo e será publicado.
Ela abraçou-o e disse:
- É claro que compreendo se mudar de ideias.
Harry sentiu-se simultaneamente triste e entusiasmado enquanto descia os oito lanços de escadas até ao passeio agora deserto. Teve de caminhar durante vários quarteirões até conseguir fazer sinal a um táxi, e não reparou no homem que o seguia, escondendo-se nas sombras e tirando de vez em quando uma fotografia sub-reptícia.
- Bolas! - murmurou Harry quando o comboio partiu de Union Station e iniciou a sua longa viagem de regresso a Nova Iorque. Tinha estado tão preocupado com a visita à senhora Babakov que se esquecera de visitar o Carnegie. Jessica ia castigá-lo por isso. Tempo verbal errado. Jessica tê-lo-ia castigado por isso.

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Página em branco
LADY VIRGINIA FENWICK
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- Gostava de iniciar esta reunião - disse Adrian Sloane - apresentando as maiores felicitações ao major Fisher por ter sido eleito deputado.
- Apoiado, apoiado - declarou Desmond Mellor, dando palmadinhas nas costas no novo membro do Parlamento.
- Obrigado - replicou Fisher. - Permitam-me que lhes diga que considero um bónus adicional o facto de ter derrotado Giles Barrington.
- E se eu levar a minha avante - disse Sloane -, ele não será o único Barrington a sofrer uma perda. Mas, primeiro, vou pedir a Desmond que nos conte como é que correu a reunião com Arnold Hardcastle.
- Inicialmente, não muito bem, porque era óbvio que ele não estava interessado em vender as ações da mãe, mesmo ao preço inflacionado de três libras e doze xelins. Mas quando eu lhe disse que a minha primeira medida enquanto acionista maioritário ia ser despedir Adrian e tirá-lo do conselho de administração, toda a sua atitude mudou.
- Ele mordeu o isco? - perguntou Fisher.
- Claro que sim - disse Sloane. - Ele odeia-me tanto quanto vocês odeiam Emma Clifton e Giles Barrington, talvez até mais.
- Isso não é possível - replicou Lady Virgínia.
- Mas o argumento decisivo - prosseguiu Mellor - foi quando eu lhe disse quem pretendia nomear presidente do Farthings, em vez de Adrian. Mellor não conseguiu resistir a fazer uma pausa o mais longa possível antes de dizer: - Ross Buchanan.
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- Mas um telefonema a Buchanan e ele vai ficar a saber...
- O major esqueceu-se que Hardcastle assinou um acordo de confidencialidade, por isso não vai telefonar a ninguém. E adorava ver a cara dele quando descobrir que vamos mudar o nome do banco de Farthings para Sloane's.
- E ele ainda pode mudar de ideias se alguém lhe fizer uma oferta mais alta pelas ações? - perguntou Lady Virgínia.
- É demasiado tarde - disse Mellor. - Ele já assinou os certificados de transferência das ações, por isso, desde que eu pague dentro de vinte e um dias, as ações são minhas.
- E vai ficar sem o dinheiro por pouco tempo - acrescentou Sloane. - É só até Hakim Bishara comprar as ações, o que lhe irá render um lucro considerável.
- Mas se Bishara não o fizer, vamos ficar todos em dificuldades
- recordou-lhes Virgínia.
- Ele tem telefonado duas vezes por dia para que o ponha ao corrente de tudo o que se está a passar. Até adiou uma visita a Beirute para um encontro com o presidente libanês. Na verdade, estou a pensar subir o preço de cinco para seis libras, mas só no último minuto.
- Isso não será um pouco arriscado? - perguntou Fisher.
- Acredite que ele está tão desesperado por deitar a mão ao Farthings que irá concordar praticamente com tudo. Vamos passar à segunda parte do nosso plano, que a envolve a si, Lady Virgínia, e a data do julgamento, que é crucial.
- Emma Clifton será notificada na semana que vem, e os meus advogados disseram-me que prevêem que o julgamento comece algures em novembro.
- Não podia ser melhor - disse Mellor, consultando a agenda
- porque a próxima reunião do conselho da Barrington's é daqui a três semanas, e eu vou insistir para que a senhora Clifton abandone a presidência, a bem da companhia, pelo menos até ao final do julgamento.
- E não há prémio para adivinhar quem ocupará o lugar durante esse tempo... - disse Sloane.
- Quando for presidente - declarou Mellor -, considerarei que é meu dever fiduciário informar os acionistas sobre o que realmente aconteceu na primeira noite da viagem inaugural do Buckingham.

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- Mas isso esteve sempre envolto em mistério - disse Fisher, parecendo pouco à vontade.
- Não durante muito mais tempo. Quando entrei para o conselho de administração da Barrington's, Jim Knowles deu a entender que nem tudo correra bem nessa viagem, mas, por mais que eu o pressionasse, ele não entrou em detalhes. É claro que consultei a ata da reunião do conselho realizada a bordo do navio nessa manhã, mas a única coisa que encontrei foi um pedido de desculpas do capitão por uma explosão que ocorreu às primeiras horas da manhã, atribuída à Esquadra Metropolitana que, segundo ele, estaria a realizar exercícios noturnos no Atlântico Norte. Basta olhar para os registos do Almirantado e depressa se percebe que a Esquadra Metropolitana estava, na altura, ancorada ao largo de Gibraltar.
- Então, o que aconteceu realmente? - perguntou Anscott. - Porque eu próprio tentei arrancar a verdade a Knowles e, mesmo depois de uns copos, continuou de boca fechada.
- A única coisa que consegui descobrir - prosseguiu Mellor - foi que ele e outros membros do conselho tinham assinado um acordo de confidencialidade. Pensei que estava num beco sem saída até que, na reunião do conselho do mês passado, a senhora Clifton tomou uma decisão precipitada sem se aperceber das possíveis consequências.
Ninguém fez a pergunta óbvia.
- O capitão do Buckingham tinha reportado ao conselho que, durante a sua última viagem, o terceiro oficial, um tal senhor Jessel, tinha sido encontrado embriagado enquanto estava de serviço na ponte e ficou confinado aos seus aposentos durante o resto da travessia. O almirante Summers exigiu que Jessel fosse imediatamente despedido sem indemnização ou referências. Eu apoiei-o porque ele, tal como todos os outros membros do conselho, se tinha esquecido de que Jessel era o oficial de quarto na primeira noite da viagem inaugural e devia ter testemunhado tudo o que aconteceu.
Fisher enxugou a testa com um lenço.
- Não foi difícil localizar Jessel - prosseguiu Mellor - que não só está desempregado, como admitiu ter três meses de renda em274
atraso. Levei-o ao pub local e não precisei de muito tempo para descobrir que continuava zangado e ressentido com o seu despedimento. Ele afirmou que sabia coisas que podiam derrubar a companhia. Alguns copos mais tarde, começou a falar em que consistiam essas coisas, presumindo que eu tinha sido enviado para me certificar que ele continuava de bico fechado, o que só fez com que o abrisse mais. Contou-me que viu Harry Clifton e Giles Barrington a transportar uma grande jarra de flores de uma das cabinas da primeira classe para o convés superior. Conseguiram atirá-la borda fora momentos antes de ter explodido. Na manhã seguinte, três irlandeses foram presos e o capitão pediu desculpa aos passageiros, contando-lhes a história da Esquadra Metropolitana, quando na verdade tinham estado a poucos segundos de uma grande catástrofe que podia ter morto sabe-se lá quantas pessoas e afundado literalmente a companhia sem deixar rasto.
- Mas porque é que o IRA não divulgou o que aconteceu realmente? - quis saber Fisher, muito nervoso.
- Jessel disse-me que os três irlandeses foram presos ao final da manhã e transportados de volta a Belfast num navio da Royal Navy, antes de serem enfiados numa prisão de Belfast acusados de outros crimes. Foram libertados recentemente, e uma das condições de fiança é que se dissessem uma palavra sobre o Buckingham, voltavam para a solitária no mesmo dia. E convenhamos que o IRA não fala muito sobre os seus fracassos.
- Mas se o IRA não está em situação de corroborar a história e a nossa única testemunha é um bêbedo que foi despedido, porque é que alguém havia de estar interessado nisso quase seis anos depois? - perguntou Fisher. - E quantas vezes já não lemos títulos a afirmar que o IRA planeava pôr uma bomba no Palácio de Buckingham, no Banco de Inglaterra ou na Câmara dos Comuns?
- Concordo consigo, major - disse Mellor -, mas a imprensa pode ter uma atitude muito diferente quando eu decidir, enquanto novo presidente da Barrington's, pôr tudo em pratos limpos a poucas semanas do lançamento do Balmoral e do anúncio da data da sua viagem inaugural.
- Mas o preço das ações iria cair de um dia para o outro.275
- E nós adquirimo-las por uma ninharia com o lucro que vamos ter com o negócio do banco. Com um novo conselho de administração e uma mudança de nome, não tardaremos a conseguir que a companhia recupere o seu antigo estatuto.
- Mudança de nome? - inquiriu Lady Virgínia. Desmond sorriu.
- Mellor Shipping. Adrian fica com o banco e eu com uma companhia de navegação.
- E eu fico com o quê? - perguntou Virgínia.
- Exatamente com o que sempre quis, Virgínia, com o prazer de forçar a família Barrington a ajoelhar-se. E ainda tem um papel vital a desempenhar, pois a escolha do momento adequado é tudo. Outra informação que consegui na última reunião do conselho é que Harry e Emma Clifton vão a Nova Iorque no mês que vem, coisa que ela faz todos os anos, enquanto presidente. Essa será a altura perfeita para dizer aos amigos que tem na imprensa aquilo que podem esperar no julgamento. É importante que conte o seu lado da história enquanto ela estiver presa no meio do Atlântico. Assim, quando a senhora Clifton regressar, terá de se defender em duas frentes: os acionistas vão querer saber por que motivo, enquanto presidente de uma companhia cotada em bolsa, não lhes deu a conhecer o que realmente se passou naquela noite e, ao mesmo tempo, terá de lidar com o processo por difamação intentado por Virgínia. Prevejo que não vá levar muito tempo até se juntar ao pai e não passar de uma nota de rodapé na história da companhia.
- Há um problema - disse Virgínia. - Os meus advogados só me dão cinquenta por cento de probabilidades de ganhar o caso.
- Quando o julgamento começar - continuou Sloane -, Emma Clifton já terá perdido toda a credibilidade que alguma vez teve. O júri ficará do seu lado assim que se sentar no banco das testemunhas.
- Mas se eu não ganhar, vou acabar com uma conta choruda para pagar - insistiu Virgínia.
- Depois de a senhora Clifton se demitir da presidência da Barrington's, não vejo como poderá perder o caso. Mas nessa eventualidade improvável, o banco cobrirá alegremente todos os seus gastos. São tostões em comparação com o resto.276
- Isso não resolve o problema de Sebastian Clifton e dos seus seis por cento - interveio o major Fisher. - Porque se ele conseguir um lugar no conselho de administração, ficará a saber tudo o que nós...
- Já precavi essa situação - disse Sloane. - Vou telefonar a Clifton e sugerir que nos encontremos.
- Talvez ele se recuse a encontrar-se consigo.
- Não vai conseguir resistir e, quando eu lhe oferecer cinco libras por ação, proporcionando-lhe um lucro de cem por cento, vai rebolar de alegria. Por aquilo que me lembro desse rapaz, ele esquece todos os compromissos assim que vê oportunidade de ganhar uma fortuna.
- Mas se ele recusar a sua oferta... - disse Fisher.
- Nesse caso, passamos ao plano B - redarguiu Sloane. - De uma maneira ou de outra, tanto me faz.
- Como expliquei da primeira vez que reunimos, Lady Virgínia, na minha opinião profissional, as suas probabilidades de ganhar este caso não são superiores a cinquenta por cento, por isso talvez fosse mais sensato desistir da ação.
- Obrigada pelo conselho, Sir Edward, mas é um risco que estou disposta a correr.
- Então, assim seja - replicou o advogado. - Mas senti necessidade de deixar registada a minha opinião, para que não haja posteriormente nenhum mal-entendido.
- Deixou a sua posição perfeitamente clara, Sir Edward.
- Nesse caso, vamos começar por analisar a matéria de facto o mais objetivamente possível. É verdade, ou não, que a senhora comprou, vendeu e mais tarde voltou a comprar um grande número de ações da Barrington's com o único propósito de prejudicar a companhia?
- Por que razão havia eu de querer prejudicar a companhia?
- Sim, realmente. Devo mencionar, neste momento, que é à outra parte que cabe a responsabilidade de provar que o fez, e não a nós a de provar que não o fez. Seja como for, em três ocasiões distintas, que coincidiram com momentos em que a companhia teve de
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anunciar más notícias, vendeu as suas ações quando estavam em alta dez dias depois, quando a sua cotação caíra, regressou ao mercado e voltou a adquiri-las. É uma avaliação correta?
-Sim, mas só o fiz depois de me aconselhar com o major Fisher.
-Creio que deve evitar falar no major Fisher quando estiver
sentada no banco das testemunhas.
- Mas ele é deputado!
- Talvez esteja na altura de lhe lembrar, Lady Virgínia, que advogados, agentes imobiliários e deputados só são precedidos pelos cobradores de impostos na má fama que têm junto da maioria dos jurados.
- Mas porque é que não hei de dizê-lo, se é verdade?
- Porque o major Fisher era administrador da Barrington's na altura em que Lady Virgínia vendeu e recomprou as ações e, como ele era o seu representante no conselho de administração, o júri não terá dúvidas de onde é que a senhora foi buscar as suas informações. Com isso em mente, devo aconselhá-la a não chamar o major Fisher a depor, embora talvez seja melhor alertá-lo para a possibilidade de ser chamado pelo advogado de defesa. Se eu estivesse no lugar dele, iria citá-lo como testemunha.
Virgínia pareceu inquieta pela primeira vez.
- E depois, numa data posterior - continuou Sir Edward -, adquiriu um grande lote de ações na Barrington's para poder ocupar o seu lugar no conselho de administração, numa altura em que a companhia estava a escolher um novo presidente.
- Sim. O major Fisher era a minha escolha para presidente do conselho.
- Outra coisa que a aconselho a não mencionar quando estiver no banco de testemunhas.
- Mas porquê? Eu achava que o major Fisher daria um presidente melhor.
- Possivelmente, mas um júri de doze vulgares cidadãos escolhidos aleatoriamente pode muito bem achar que estava a exercer vingança contra a senhora Clifton, e isso sugeriria que o seu objetivo inicial ao comprar e vender as ações era, na verdade, prejudicá-la a ela e à companhia.
278
- Eu só queria a pessoa mais qualificada como presidente. De qualquer forma, continuo a achar que uma mulher não é capaz de exercer essa função.
- Lady Virgínia, tente não se esquecer de que o mais provável é metade do júri ser composto por mulheres, e uma observação como essa não vai granjear-lhe muita simpatia junto delas.
- Isto está a começar a parecer-se mais com um concurso de beleza do que com um julgamento.
- Se pensar nestes termos, Lady Virgínia, terá mais probabilidades de ser bem-sucedida. Agora, também temos de presumir que a outra parte irá arrolar o seu ex-marido, Sir Giles Barrington, como testemunha.
- Porquê? Ele não esteve envolvido de nenhuma forma.
- A não ser pelo facto de todas estas transações terem ocorrido depois do seu divórcio e a sua escolha para presidente ser por acaso o homem que o enfrentou por duas vezes nas eleições gerais, coisa que o júri poderá achar que é coincidência a mais.
- Mas mesmo que chamem Giles, como é que ele pode ajudar a causa deles? Ele é ex-marido, ex-deputado e ex-ministro. Não tem propriamente muita coisa a seu favor.
- Isso tudo pode ser verdade - disse Sir Edward -, mas tenho a sensação de que ele não deixaria de impressionar o júri.
- O que o leva a dizer isso?
- Ele tem muita experiência como orador, e o atril é uma boa preparação para o banco das testemunhas. Por isso, não nos podemos dar ao luxo de subestimá-lo.
- Mas o homem é um falhado! - exclamou Virgínia, incapaz de controlar os seus sentimentos.
- Devo sublinhar que qualquer ataque pessoal à outra parte jogará a favor deles, portanto faça o favor de se manter calma quando estiver a depor e tire partido dos seus pontos fortes. É a parte ofendida, alguém que não compreende o funcionamento da City e que não saberia como destruir uma companhia.
- Mas isso vai fazer-me parecer fraca.
- Não - disse Sir Edward com firmeza -, isso vai fazê-la parecer vulnerável, o que jogará a seu favor quando o júri vir que está a enfrentar uma mulher de negócios dura e sagaz.279
- De que lado está o senhor?
- Do seu, Lady Virgínia, mas tenho o dever de me certificar de que sabe o que vai enfrentar. Assim, tenho de lhe perguntar uma vez mais: tem a certeza de que quer prosseguir com a ação?
- Sim, claro que sim, porque há um elemento de prova de que não lhe falei, Sir Edward, e assim que se tornar público não creio que este caso chegue a tribunal.

280
29
- O senhor Sloane telefonou enquanto o senhor estava a almoçar - disse Rachel.
- Disse o que queria? - indagou Seb.
- Não, apenas que era um assunto pessoal.
- Tenho a certeza que sim. Deve ter percebido que já tenho quase seis por cento das ações do Farthings, por isso de repente tornou-se muito pessoal.
- Ele sugeriu que se encontrassem no gabinete dele, às onze horas de amanhã. Tem tempo livre na agenda.
- Esqueça. Se quer falar comigo, ele que venha aqui!
- Vou telefonar e ver se lhe convém.
- Tenho a sensação que sim, porque desta vez sou eu que tenho o controlo da situação. - Rachel não comentou e deu meia-volta para sair da sala. - Não está convencida, pois não, Rachel? - perguntou Seb antes de ela chegar à porta. Rachel virou-se, mas, antes que ela pudesse dar a sua opinião, ele perguntou: - O que teria feito Cedric?
- Teria dado a Sloane a impressão de que concordava com os seus planos, para que ele baixasse a guarda.
- Ah, sim? - disse Seb. - Então, diga a Sloane que lá estarei às onze horas de amanhã e pode acrescentar que estou ansioso por vê-lo.
- Não, isso já seria exagero. Mas não se atrase.
- Porquê?
- Porque isso seria devolver-lhe a vantagem.
281
Giles não estava ansioso por voltar pela primeira vez à Câmara dos Comuns desde que perdera o lugar. O polícia à entrada de St. Stephen's cumprimentou-o.
Prazer em vê-lo, senhor. Espero que não demore muito a voltar.
Obrigado - disse Giles enquanto entrava no edifício, passava por Westminster Hall e percorria o corredor onde membros do público aguardavam pacientemente, na esperança de conseguir um lugar na galeria a eles destinada, para poderem seguir os trabalhos do dia. Giles passou por eles em direção ao átrio central, caminhando rapidamente para não ser retido por antigos colegas a manifestar o seu pesar e a proferir banalidades que raramente eram sentidas. Passando por outro polícia, pisou a espessa alcatifa verde que percorrera durante tantos anos. Olhou de relance para o telégrafo que mantinha os deputados atualizados em relação ao que estava a acontecer pelo mundo fora, mas não parou para ver o último título. Passou junto à biblioteca, receando esbarrar com um determinado deputado que não queria ver. Quando chegou ao gabinete do chefe da maioria parlamentar, Virou à esquerda e parou à porta de uma sala onde não entrava há anos. Bateu à porta do líder da oposição de Sua Majestade e entrou deparando-se com as mesmas duas secretárias que trabalhavam com o antigo primeiro-ministro, quando este estava em Downing Street.
- É bom voltar a vê-lo, Sir Giles. Pode entrar, o senhor Wilson está à sua espera.
Voltou a bater a outra porta e entrou a tempo de ver a figura familiar de um homem a tentar acender o cachimbo. Desistiu quando
Viu Giles.
- Giles, passei o dia a ansiar por este momento. Que bom voltar a vê-lo.
- Para mim também é um prazer revê-lo, Harold - respondeu Giles sem apertar a mão ao colega no Palácio de Westminster, mantendo uma tradição que era cumprida há séculos.
- Que azar perder por apenas vinte e um votos - disse Wilson. - Não posso fingir que goste muito do seu sucessor.

282
- Este lugar vai pôr a nu o seu verdadeiro carácter - disse Giles. - É sempre assim.
- E como é que está a lidar com a depressão pós-eleições?
- Não muito bem. Sou obrigado a admitir que tenho saudades disto.
- Lamento o que se passou consigo e com Gwyneth. Espero que seja possível continuarem amigos.
- Também o espero, porque a culpa é minha. Receio que nos tenhamos começado a afastar há já algum tempo.
- Este lugar não ajuda - disse Harold. - É preciso ter uma esposa muito compreensiva quando raramente se chega a casa antes das dez da noite.
- E o Harold? Como é que está a dar-se com o facto de voltar a ser líder da oposição?
- Tal como o Giles, não muito bem. Então, diga-me lá, como é que é lá fora, no mundo real?
- Não estou a gostar e não vou fingir que sim. Quando se está na política há um quarto de século, não se está habilitado a fazer muito mais.
- Nesse caso, porque é que não fazemos algo em relação a isso? - disse Wilson, conseguindo acender finalmente o cachimbo. - Eu preciso de um porta-voz dos Negócios Estrangeiros na Câmara dos Lordes, e não consigo pensar em melhor pessoa para essa função.
- Sinto-me lisonjeado, Harold, e já tinha pensado que talvez fosse esse o motivo para querer falar comigo. Refleti bastante e queria saber se lhe posso fazer uma pergunta antes de tomar uma decisão.
- Claro.
- Não creio que Ted Heath se venha a revelar melhor no governo do que era na oposição. O facto de os eleitores o verem como o merceeiro resume bem a situação. E, mais importante ainda, estou convencido de que ainda temos excelentes hipóteses de vencer as próximas eleições.
- Tal como os meus amigos judeus diriam, Deus o ouça.
- E se eu estiver certo, não vai demorar muito tempo até estar de volta ao Número Dez.
- Ainda bem.
283
- E ambos sabemos que o verdadeiro poder está na Câmara dos Comuns, e não na dos Lordes. Sinceramente, é um luxuoso lar de idosos, uma recompensa para membros do partido com um longo currículo e boa conduta.
- Possivelmente, à exceção daqueles que se sentam na primeira bancada e revêem a regulamentação - sugeriu Wilson.
- Mas eu só tenho cinquenta anos, Harold, e não sei se quero passar o resto da vida à espera de ser chamado para voos mais altos.
- Eu punha-o a trabalhar - disse Wilson - e teria lugar no governo-sombra.
- Não sei se é suficiente, Harold. Por isso, preciso de lhe perguntar: se eu disputasse Bristol Docklands nas próximas eleições, e a associação local está a pressionar-me nesse sentido, e o Harold formasse o próximo governo, teria alguma hipótese de vir a ser ministro dos Negócios Estrangeiros?
Wilson fumou o seu cachimbo lançando baforadas de fumo por alguns instantes, algo que fazia frequentemente quando precisava de algum tempo para pensar.
- Não, não de imediato, Giles. Isso não seria justo para Denis, que, como sabe, ocupa atualmente esse lugar no governo-sombra. Mas posso garantir-lhe que lhe seria oferecido um cargo no governo e, caso se saísse bem, estaria entre os favoritos se o lugar ficasse disponível. Mas se aceitasse a minha oferta, pelo menos estaria de volta ao Parlamento. E se tiver razão e ganharmos as eleições, não é segredo que eu teria de procurar um líder para a Câmara dos Lordes.
- Eu sou um homem da Câmara dos Comuns, Harold, e acho que ainda não estou pronto para arrumar as botas. Portanto, é um risco que estou disposto a correr.
- Saúdo a sua determinação - declarou Wilson. - E agora é a minha vez de lhe agradecer, pois sei que não estaria disposto a correr esse risco se não acreditasse que pode reconquistar o seu lugar de deputado e que eu tenho boas hipóteses de regressar ao Número Dez. No entanto, se mudar de ideias, é só dizer, e nesse caso sentar-se-á, como o seu avô, nas bancadas vermelhas como Lord Barrington de...
- Bristol Docklands - disse Giles.
284
Sebastian entrou no Farthings Bank pela primeira vez desde que se demitira cinco anos antes. Foi até à receção e deu o seu nome ao funcionário de serviço.
- Ah, sim, senhor Clifton - disse o homem consultando a sua lista. - O presidente está à sua espera.
Quando ele disse «o presidente», Seb pensou imediatamente em Cedric Hardcastle e não no usurpador que fora o motivo da sua demissão.
- Quer fazer a gentileza de assinar o livro de visitantes?
Seb tirou uma caneta do bolso interior do casaco e desenroscou a tampa devagarinho para ter tempo de analisar a lista das pessoas que tinham visitado recentemente o presidente. Os seus olhos passaram rapidamente pelas duas colunas de nomes, a maior parte dos quais não significava nada para ele. Mas dois deles destacaram-se como se tivessem luzes de néon: Desmond Mellor, que Seb sabia ter sido nomeado administrador não executivo por Sloane meses antes de ter entrado para o conselho de administração da Barrington's, por isso não constituiu grande surpresa. Mas qual poderia ser o motivo para o deputado Alex Fisher ter visitado o presidente do Farthings? Uma coisa era certa, Sloane não lhe iria dizer. Para além destes, o único nome que lhe chamou a atenção foi o de Hakim Bishara. Tinha a certeza de ter lido alguma coisa recentemente sobre o senhor Bishara no Financial Times, mas não se conseguia lembrar do quê.
- O presidente vai recebê-lo agora. O gabinete fica no...
- Último piso - disse Seb. - Muito obrigado.
Quando Seb saiu do elevador no piso executivo, percorreu lentamente o corredor em direção ao antigo gabinete de Cedric. Não reconheceu ninguém, o que não admirava, pois sabia que Sloane não perdera tempo a livrar-se de todos os apoiantes de Cedric.
Não teve de bater à porta de Sloane, pois esta abriu-se quando ele estava a dois passos.
- Prazer em vê-lo, Seb - disse Sloane. - Há quanto tempo... - acrescentou, antes de lhe fazer sinal para entrar, mas não se arriscou a estender-lhe a mão.
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A primeira coisa que notou quando entrou no gabinete do presidente foi que não havia sinal de Cedric. Nenhum reconhecimento pelos trinta anos em que administrara o banco. Nenhum retrato, fotografia ou placa a lembrar a geração seguinte dos seus feitos. Sloane não só o substituíra, como o varrera da existência, à semelhança de um político soviético caído em desgraça.
- Sente-se - disse Sloane, como se estivesse a falar com um funcionário do banco.
Seb olhou mais atentamente para o seu adversário. Tinha ganhado uns quilos desde a última vez que o vira, mas estavam bem disfarçados por um casaco assertoado de bom corte. Uma coisa que não mudara era o sorriso fingido de um homem com que a maior parte das pessoas da City tinham relutância em fazer negócio.
Sloane sentou-se à secretária do presidente e não perdeu tempo com banalidades.
- Seb, inteligente como é, já deve ter percebido por que razão queria falar consigo.
- Presumi que me ia oferecer um lugar no conselho de administração do Farthings.
- Não era exatamente isso que tinha em mente. - Seguiu-se o riso falso, a acompanhar o sorriso fingido. - No entanto, há algum tempo que é óbvio que tem andado a comprar ações do banco no mercado aberto e que agora precisa apenas de mais vinte e duas mil ações para ter automaticamente direito a um lugar no conselho de administração ou a nomear alguém que o represente.
- Pode ter a certeza de que me representarei a mim próprio.
- E era por isso que eu queria falar consigo. Não é segredo que não nos demos bem quando trabalhou sob a minha alçada...
- E foi por isso que me demiti.
- Também é por isso que sinto que seria impróprio envolver-se na gestão quotidiana do banco.
- Não tenho absolutamente nenhum interesse na gestão quotidiana do banco. Presumo que tenha pessoal qualificado para o fazer. Nunca foi essa a minha intenção.
- Nesse caso, qual é a sua intenção? - quis saber Sloane, com dificuldade em esconder a sua irritação.
286
- Desempenhar um papel no sentido de assegurar que este banco volta aos elevados padrões de que gozava nas mãos do seu predecessor, e ter a certeza de que os acionistas são devidamente informados do que é feito em seu nome. - Seb decidiu fazer rolar uma pequena granada de mão sobre a mesa e ver se explodia quando chegasse ao outro lado. - Porque para mim é claro, depois de ler as atas das últimas reuniões do conselho, que não está a contar a história toda aos acionistas.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Sloane com demasiada rapidez.
- Creio que sabe muito bem o que quero dizer.
- Talvez possamos fazer negócio. No fim de contas, sempre foi um negociador brilhante.
E ei-lo que passou de rufião a lambe-botas sem um momento de permeio. Maurice Swann teria escolhido Sloane para fazer de Ricardo III, e ele podia ter representado sem guião.
- Que tipo de negócio tem em mente? - perguntou Seb.
- Ao longo dos últimos cinco anos, deve ter pago uma média de cerca de duas libras e dez xelins por ação. Estou preparado para duplicar esse valor e oferecer-lhe cinco libras por ação. Tenho a certeza de que concordará que é uma proposta generosa.
Demasiado generosa, pensou Seb. Três libras deviam ter sido a oferta inicial, e quatro a final. Porque é que Sloane estava tão interessado em mantê-lo fora do conselho de administração?
- Mais do que generosa - replicou Seb. - Mas continuo a pretender ocupar o meu lugar no conselho de administração. Sabe, é que para mim isto é uma questão pessoal.
- Então, terei de apresentar uma queixa formal ao Banco de Inglaterra, fazendo notar que não tem interesse em apoiar os objetivos a longo prazo do banco.
- Sinceramente, estou apenas interessado em descobrir quais são os objetivos a longo prazo do Farthings. E foi por isso que visitei o Banco de Inglaterra na semana passada e tive uma longa conversa com o senhor Craig, o chefe do gabinete de conformidade. Ele teve a amabilidade de consultar os estatutos do banco e confirmou por escrito
287
que desde que eu detenha uma participação de seis por cento, tenho direito a um lugar no conselho de administração. Mas faça o favor de lhe telefonar.
Se Sloane fosse um dragão, teria lançado chamas pelas narinas.
- E se lhe oferecesse dez libras por ação?
Sloane estava claramente descontrolado, por isso Seb decidiu lançar uma segunda granada.
- Nesse caso, ia começar a pensar que os boatos são verdadeiros.
- Que boatos? - quis saber Sloane. Teria coragem para retirar mais uma cavilha?
- Porque é que não pergunta a Desmond Mellor e a Alex Fisher o que têm andado a tramar nas suas costas?
- Como é que sabia...
A granada de mão explodiu no rosto de Sloane, mas Seb não conseguiu resistir a mais uma surtida.
- O Sloane tem muitos inimigos na Square Mile, e até um ou dois no seu próprio escritório.
- Está na altura de se ir embora, Clifton.
- Sim, tenho a certeza de que tem razão. Mas fico ansioso por vê-lo a si e aos seus colegas na reunião do conselho de administração do mês que vem. Tenho tantas perguntas para lhes fazer, sobretudo ao senhor Mellor, que parece gostar de jogar em ambas as equipas.
Sloane não se mexeu, mas as suas bochechas coradas mostravam que acabara de explodir outra granada de mão.
Seb sorriu pela primeira vez, levantou-se do lugar e virou-se para se ir embora, mas nessa altura Sloane lançou a sua própria granada de mão.
- Receio que não o vá ver durante algum tempo, Sebastian.
- Porquê? - perguntou Seb, dando meia-volta.
- Porque na última reunião do conselho aprovámos uma resolução que diz que qualquer pessoa de fora que queira futuramente fazer parte do conselho de administração terá de deter dez por cento do capital da empresa.
- Não pode fazer isso - disse Seb em tom de desafio.
- Tanto posso que fiz - retorquiu Sloane - e tenho a certeza de que gostará de saber que o senhor Craig, o chefe do gabinete de288
conformidade no Banco de Inglaterra, deu a sua bênção à nossa resolução aprovada por unanimidade. Por isso, vemo-nos daqui a uns cinco anos. Mas não tenha grandes expectativas, Seb, porque, se conseguisse adquirir os dez por cento, teríamos simplesmente de aprovar uma nova resolução.
30
- Quanto tempo pensas estar na Rússia? - perguntou Giles a Harry enquanto se levantava da mesa de jantar e levava os seus convidados até à sala para tomarem o café.
- Apenas algumas horas, no máximo de um dia para o outro.
- O que te faz voltar lá? Ninguém visita aquele lugar segunda vez sem uma razão muito boa.
- Vou às compras.
- Paris, Roma, Nova Iorque... - disse Giles - mas ninguém vai fazer compras à Rússia, a não ser os que lá moram.
- A menos que haja alguma coisa que tenham na Rússia que não seja possível comprar em Paris, Roma ou Nova Iorque, não é verdade? - sugeriu Emma, enquanto servia o café ao irmão.
- Ah, que estúpido que eu sou! Devia ter-me lembrado de que Harry acabou de voltar dos Estados Unidos e Harold Guinzburg não foi a única pessoa que ele visitou. Essa é uma pista que o inspetor Warwick não teria descurado.
- Eu queria adiar a viagem para depois do julgamento de Emma - disse Harry, ignorando a dedução de Giles -, mas o meu visto expira daqui a duas semanas e a Embaixada Russa avisou-me que podia levar seis meses a conseguir um novo.
- Vê se tens cuidado - recomendou Giles. - Os russos podem ter o seu próprio inspetor Warwick sentado à tua espera.
Depois da sua própria experiência em Berlim Oriental, Giles duvidava que Harry conseguisse passar além da alfândega, mas aceitava que não havia forma de dissuadir o cunhado quando ele tomava uma resolução.290
- Vou entrar e sair antes que eles dêem por isso - replicou Harry -, portanto não tens razões para te preocupar. Na verdade, estou muito mais preocupado com os problemas que Emma tem pela frente.
- Quais, especificamente?
- Desmond Mellor vai candidatar-se a vice-presidente na reunião do conselho do mês que vem - esclareceu Emma.
- Estás a dizer que esse charlatão encontrou dois administradores dispostos a propô-lo e a apoiá-lo? - indagou Giles.
- Sim, o seu velho amigo Jim Knowles, ajudado pelo seu ainda mais velho amigo Clive Anscott.
- Mas se não conseguirem elegê-lo - disse Giles - com certeza que os três terão de se demitir, não? Por isso, isto até pode ser uma bênção disfarçada.
- Não é grande bênção se o conseguirem eleger - disse Harry.
- Porquê? Que mal pode Mellor fazer, mesmo que seja eleito vice-presidente? - perguntou Giles.
- Pode sugerir que me demita até ao final do julgamento, para bem da companhia - disse Emma.
- E nesse caso o vice-presidente passava a presidente interino.
- Mas só durante algumas semanas - continuou Harry. - Recuperavas o cargo assim que o julgamento terminasse.
- Não podes dar essa corda toda a Mellor - disse Giles. - Enquanto não puderes assistir às reuniões do conselho de administração, ele vai arranjar maneira de transformar uma situação temporária em definitiva, acredita no que te digo!
- Mas podes recusar demitir-te, Emma, mesmo que ele seja teu vice-presidente - sugeriu Harry.
- Não terei muita escolha se tiver de passar quase um mês no Supremo Tribunal a defender-me.
- Mas quando ganhares... - disse Giles.
- Se ganhar.
- Mal posso esperar para me sentar no banco das testemunhas e contar ao júri algumas verdades sobre Virgínia.
- Não vamos chamar-te a depor, Giles - disse Emma baixinho.291
- Mas eu sei mais sobre Virgínia do que...
- É precisamente com isso que o meu advogado está preocupado. Depois de algumas palavras bem escolhidas por parte do ex-marido, o júri até pode acabar por ter pena dela, e o senhor Trelford, o meu advogado, diz que Sir Edward Makepeace, o advogado dela, não se fará rogado em falar no teu segundo divórcio e nos seus motivos.
- Então, quem vais tu chamar?
- O deputado major Alex Fisher.
- Mas ele não vai ser testemunha da outra parte?
- O senhor Trelford acha que não. Fisher pode ser um risco tão grande para eles como tu és para nós.
- Então, talvez a outra parte me chame, não? - indagou Giles com ar esperançado.
- Esperemos que não.
- Pagava bom dinheiro para ver Fisher no banco das testemunhas - disse Giles, ignorando o remoque da irmã. - Lembra o senhor Trelford que ele tem um pavio muito curto, sobretudo se não for tratado com o respeito que acha que merece, e já era assim ainda antes de ser deputado.
- O mesmo se pode dizer de Virgínia - acrescentou Harry. - Não conseguirá resistir a recordar toda a gente que é filha de um conde! E não deve haver muita gente dessa entre o júri.
- No entanto - disse Giles -, seria igualmente insensato subestimar Sir Edward. Citando Trollope ao descrever outro advogado, ele é «tão brilhante e cortante quanto um diamante, e igualmente não impressionável».
- E eu sou capaz de precisar dessas mesmas qualidades na reunião do conselho do mês que vem, quando subir ao ringue com Mellor.
- Tenho a sensação de que Mellor e Virgínia devem estar a trabalhar em conjunto - disse Giles. - Esta sincronia é demasiado oportuna.
-Já para não falar em Fisher - acrescentou Harry.
-Já decidiste se vais candidatar-te contra ele nas próximas eleições? - perguntou Emma.
292
- Talvez esteja na altura de te dizer que Harold Wilson me ofereceu um lugar na Câmara dos Lordes.
- Parabéns! - exclamou Emma, saltando da cadeira e abraçando o irmão. - Finalmente, uma boa notícia.
- E eu recusei.
- O quê?
- Recusei. Disse-lhe que queria mais uma tentativa em Bristol Docklands.
- É mais uma tentativa contra Fisher, sem dúvida - disse Harry.
- Essa é uma das razões - admitiu Giles. - Mas se ele voltar a ganhar-me, desisto.
- Acho que tu não estás bom da cabeça - disse Emma.
- Foi exatamente o que me disseste quando decidi pela primeira vez, há vinte e cinco anos, que me ia candidatar ao Parlamento.
- Como socialista - recordou-lhe Emma.
- Se te faz sentir melhor - disse Giles -, Sebastian concorda contigo.
- Isso quer dizer que estiveste com Sebastian depois de ele ter voltado de Nova Iorque? - perguntou Harry.
- Sim, e antes que perguntem, fechou-se em copas assim que toquei no assunto.
- É uma pena - disse Harry. - Uma rapariga tão extraordinária!
- Mas o que lhes posso dizer é que, quando passei pelo escritório dele para o levar a almoçar, vi uma pintura de criança na parede, por trás da secretária, que nunca tinha visto antes. Intitulava-se A minha mãe, e podia jurar que tinha sido pintado por Jessica.
- Um retrato meu? - perguntou Emma.
- Não, isso é o mais estranho - disse Giles. - Era o retrato de Samantha.
- Sloane ofereceu-te dez libras por ação? - perguntou Ross Buchanan. - Mas isso não faz sentido. As ações do Farfhings estão a ser transacionadas a duas libras e oito xelins, esta manhã.
293
- Ele estava simplesmente a tentar descobrir qual era o meu limite - disse Seb. - Quando percebeu que eu não estava interessado, atirou a toalha ao chão e perdeu a cabeça.
- Isso não é de estranhar. Mas porque é que ele está tão desesperado por deitar a mão aos teus seis por cento?
- E onde é que entram Mellor e Fisher?
- Uma funesta aliança que não anda a tramar nada de bom, disso podes ter a certeza.
- Havia outro nome no livro de visitantes que talvez seja a resposta. Alguma vez se cruzou com alguém chamado Hakim Bishara?
- Nunca estive com ele - disse Ross. - Mas assisti a uma conferência que deu na London School of Economics e fiquei extremamente impressionado. Ele é turco, mas foi educado em Beirute. Foi o primeiro classificado no exame de admissão a Oxford, mas não lhe ofereceram um lugar.
- Porquê?
- Presumiram que devia ter copiado. No fim de contas, como é que um rapaz chamado Hakim Bishara, filho de um comerciante de tapetes turco e de uma prostituta síria, podia ser melhor do que a nata do sistema de ensino privado inglês? Por isso, foi antes para Yale, e depois de se ter licenciado ganhou uma bolsa para a Harvard Business School, onde é agora professor convidado.
- Então, é um académico?
- Longe disso. Bishara põe em prática a teoria que ensina. Quando tinha vinte e nove anos, armou um golpe para adquirir o Beirut Commerce and Trading Bank. É agora uma das instituições financeiras mais respeitadas do Médio Oriente.
- Então, o que está ele a fazer em Inglaterra?
- Há já algum tempo que tem tentado obter uma licença do Banco de Inglaterra para abrir uma filial do BC and T em Londres, mas até agora tem-lhe sido sempre recusada.
- Porquê?
- O Banco de Inglaterra não precisa de apresentar uma razão, e não te esqueças de que o seu comité é constituído pela mesma raça de nulidades que impediram Bishara de entrar em Oxford. Mas ele não é homem que desista facilmente. Li recentemente na coluna Questor do294
Telegraph que pretende agora contornar o comité e adquirir um banco inglês. E que banco se poderia prestar mais a uma aquisição do que o Farthings?
- Estava mesmo à minha frente e não percebi - disse Seb.
- Quando somamos dois mais dois, normalmente dá quatro.
começou Ross. - Mas ainda não faz muito sentido para mim, pois Bishara tem um casamento feliz e é um muçulmano devoto que levou anos a construir a reputação de ser escrupulosamente honesto e de negociar de forma séria, à semelhança de Cedric. Assim sendo, porque é que havia de estar disposto a negociar com Sloane, que tem reputação de ser uma pessoa sem escrúpulos e desonesta e que negoceia com a ralé?
- Só há uma maneira de descobrir - disse Seb -, que é encontrar-me com ele. Alguma ideia?
- Não, a menos que sejas um jogador de gamão de craveira mundial, pois é esse o seu hobby.
- Sei o que fazer com um 6 e um 1 na jogada inicial, mas pouco mais.
- Bem, sempre que ele está em Londres, joga regularmente no Clermont Club. Faz parte do «grupo Clermont», que engloba Goldsmith, Aspinall e Lucan. Solitários como ele, que não se integram facilmente na sociedade londrina. Mas não o enfrentes, Seb, a menos que queiras ficar na miséria. Muito sinceramente, quando Bishara está envolvido, não tens muito a teu favor.
- Tenho uma coisa a meu favor - disse Seb. - Temos algo em comum.
- Se fosse homem de apostas, senhora Clifton, a resposta à sua pergunta seria probabilidades iguais, mas o único imponderável em qualquer julgamento é a forma como as pessoas atuam quando estão no banco das testemunhas.
- Atuam? Mas não basta sermos nós próprios e contar a verdade?
- Sim, é claro - disse o senhor Trelford. - Contudo, não quero que os jurados sintam que são membros de uma comissão presidida por si.

295
-Mas é isso que eu faço - retorquiu Emma.
- Não enquanto estiver no banco das testemunhas! Quero que todos os homens do júri se apaixonem por si e, se possível, o juiz também.
- E as mulheres?
- Têm de sentir que teve de lutar para alcançar o seu espantoso sucesso.
- Bem, pelo menos isso é verdade. Acha que Sir Edward vai dar o mesmo conselho a Virgínia?
- Sem dúvida. Ele vai querer retratá-la como uma donzela em apuros, perdida no mundo cruel do comércio e da finança, e pisada por uma mandona que está acostumada a levar a sua avante.
- Mas isso não podia estar mais longe da verdade.
- Creio que temos de deixar os doze jurados decidir qual é a verdade, senhora Clifton. Mas, por agora, vamos analisar friamente os factos. Vamos alegar que a primeira parte da sua resposta à pergunta de Lady Virgínia numa reunião aberta ao público e muito participada, e de acordo com o registado na ata da companhia, foi perfeitamente justificada. Vamos salientar que o major Fisher era não só a pessoa escolhida por Virgínia para integrar o conselho de administração, como também foi o conhecimento privilegiado que detinha enquanto administrador que permitiu que ela comprasse e vendesse ações em proveito próprio. Sir Edward vai ter dificuldade em refutar essa alegação, pelo que vai passar por cima disso o mais depressa possível e concentrar-se no que a senhora acrescentou quando ela saía da sala: «Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia, então fracassou, tal como o senhor Martinez, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja um sucesso.» O nosso problema é a menção a «gente comum e decente», pois é essa a imagem que os jurados têm de si próprios e Sir Edward irá afirmar que não só a sua cliente é uma pessoa comum e decente, como a razão para ter continuado a comprar ações da Barrington era ter fé na companhia e que a última coisa que ia querer era derrubá-la.
- Mas sempre que Virgínia vendeu as suas ações, conseguiu um lucro enorme e pôs a estabilidade da companhia em risco.
- Na verdade, pode muito bem ser esse o caso, e espero que Lady Virgínia tente fazer-se de ingénua no que toca a negócios e tente296
convencer o júri de que confiou sempre na competência do seu consultor, o major Alexander Fisher.
- Mas eles estavam a trabalhar em equipa para derrubar a companhia.
- É bem possível, mas, quando Lady Virgínia estiver no banco das testemunhas, Sir Edward irá fazer-lhe a única pergunta que a senhora se furtou a responder. «A quem se estava a referir, Lady Virgínia quando disse...» - O senhor Trelford puxou os óculos em meia-lua mais para cima e consultou as palavras exatas: - «É verdade que um dos vossos administradores vendeu a sua enorme participação acionista durante o fim de semana, numa tentativa de destruir a companhia?»
- Mas Cedric Hardcastle não estava a tentar destruir a companhia. Foi precisamente o oposto. Estava a tentar salvá-la, como ele próprio explicaria se pudesse sentar-se no banco das testemunhas.
- Vou dizer isto da forma mais delicada possível dadas as circunstâncias, senhora Clifton, mas ainda bem que a outra parte não pode chamar o senhor Hardcastle a depor, pois nós nunca o faríamos.
- Mas porquê, se ele era um homem digno e honesto?
- Disso não tenho dúvidas. Mas Sir Edward vai salientar que o senhor Hardcastle estava a fazer exatamente a mesma coisa que a senhora Clifton acusa Lady Virgínia de fazer.
- Com a intenção de salvar a companhia, e não de destruí-la.
- Possivelmente, mas por essa altura já teria perdido o argumento e o caso.
- Mesmo assim, quem me dera que ele ainda estivesse vivo - suspirou Emma.
- Agora, preciso que se lembre da forma como proferiu essas palavras, senhora Clifton, pois é assim que quero que o júri pense em si quando estiver a deliberar sobre o veredito.
- Não estou muito ansiosa por isso - admitiu Emma.
- Então, talvez fosse mais sensato considerar a possibilidade de chegar a acordo.
- Porque é que eu faria uma coisa dessas?
- Para evitar um julgamento mediático com toda a publicidade inerente e para voltar à sua vida normal.
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- Mas isso seria admitir que ela tinha razão.
- O seu comunicado seria redigido com todo o cuidado: «o calor do momento, possivelmente alguma falta de sensatez na altura, e apresentamos as nossas mais sinceras desculpas».
- E as implicações financeiras?
- Teria de pagar as despesas dela, os meus honorários e fazer um pequeno donativo a uma instituição de caridade à sua escolha.
- Acredite no que lhe digo - disse Emma -, se optássemos por essa via, Virgínia interpretá-la-ia como um sinal de fraqueza e ainda ficaria mais decidida a levar a ação para a frente. Ela não quer que o caso desapareça sem fazer ondas, mas sim que o tribunal lhe dê razão, assim como a imprensa, de preferência com parangonas que me humilhem dia após dia.
- É possível, mas também cabe a Sir Edward a responsabilidade profissional de apresentar essa alternativa a Lady Virgínia e dizer-lhe que, se perder o caso, acabará por ter de pagar as suas despesas, assim como as dele, e posso assegurar-lhe que Sir Edward Makepeace é tudo menos barato.
- Ela vai ignorar esses conselhos. Virgínia não acredita que seja possível perder, e posso prová-lo.
O senhor Trelford recostou-se e escutou atentamente o que a sua cliente tinha para dizer. Quando ela terminou, ele acreditou pela primeira vez que talvez tivessem uma hipótese.
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31
Sebastian saiu do carro e entregou as chaves e uma nota de uma libra ao porteiro. Enquanto subia os degraus até à entrada do Clermont, abriram-lhe a porta e ele separou-se de uma segunda nota.
- O senhor é membro? - perguntou o homem elegantemente vestido que estava na recepção.
- Não - respondeu Seb, desta vez passando uma nota de cinco libras ao homem.
- É só assinar aqui - disse o homem, rodando um impresso. Seb assinou no sítio onde ele tinha o dedo e recebeu um cartão
de sócio temporário.
- A principal sala de jogo fica ao cimo da escada, à sua esquerda, senhor.
Seb subiu a grande escadaria de mármore, admirando o lustre resplandecente, os quadros a óleo e a espessa passadeira. Concluiu que era necessário fazer com que os milionários se sentissem em casa, caso contrário não estariam dispostos a separar-se do seu dinheiro.
Entrou na sala de jogo, mas não olhou em volta, pois queria que os mirones pensassem que aquele era o seu habitat natural. Foi até ao bar e subiu para um banco de pele.
- O que lhe posso servir? - perguntou o barman.
- Um Campari com soda - disse Seb, já que aquele não era claramente um clube que servisse cerveja de barril.
Quando a bebida foi posta à frente dele, tirou a carteira para fora e pôs uma libra em cima do balcão.
- Não é nada.
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Os estabelecimentos que não cobram dinheiro pelas bebidas têm de compensar esse prejuízo de outras formas, pensou Seb, deixando a nota onde estava.
- Obrigado, senhor - disse o barman, ao mesmo tempo que Seb rodava e interiorizava lentamente essas «outras formas».
Havia duas mesas de roleta ao lado uma da outra ao fundo da sala e, pelo grande monte de fichas em frente de cada um dos jogadores e pelas suas expressões impassíveis, Seb presumiu que eram clientes habituais. Será que ninguém lhes tinha explicado que estavam a pagar a escadaria de mármore, os quadros a óleo, o lustre e as bebidas grátis? Os seus olhos avançaram para as mesas de vinte-e-um. Pelo menos, ali, as probabilidades eram ligeiramente melhores, porque se conseguissem contar os reis, as rainhas e os valetes, até era possível ganhar, mas só uma vez, porque depois disso nunca mais os deixariam aproximar-se das portas do clube. Os casinos gostam de vencedores, mas não de vencedores regulares.
Os seus olhos pousaram em dois homens que jogavam gamão. Um estava a beber um café, o outro um brandy. Seb virou-se para o barman.
- É Hakim Bishara que está a jogar gamão? O barman olhou para lá.
- É sim, senhor.
Seb olhou mais atentamente para o homem baixo, gordo e corado que dava ideia de ter de fazer visitas regulares ao seu alfaiate. Era careca e o duplo queixo sugeria um maior interesse pela boa mesa do que pela musculação ou pela corrida. Ao seu lado, estava uma loura alta e esbelta, com uma mão sobre o seu ombro. Seb desconfiava que ela se sentia mais atraída pela carteira recheada que ele tinha no bolso do que pelas rugas profundas da sua testa. Não era de estranhar que fosse constantemente rejeitado pelo establishment inglês. O adversário, mais novo, parecia um cordeiro prestes a ser devorado por um pitão.
Seb virou-se para o barman.
- Como é que consigo jogar com Bishara?
- Não é assim tão difícil, se tiver cem libras para esbanjar.
- Ele joga por dinheiro?
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- Não, por diversão.
- E as cem libras?
- É o preço de entrada que tem de doar à instituição de caridade que ele elege.
- Alguma dica?
- Sim, senhor. Faria melhor em dar-me cinquenta libras e ir para casa.
- E se eu lhe ganhar?
- Nesse caso, dou-lhe eu as cinquenta libras e vou para casa. Mas note-se que terá o prazer da sua companhia durante os poucos minutos que o jogo durar. E se ganhar, ele doa mil libras à instituição de caridade que o senhor escolher. Ele é um verdadeiro cavalheiro.
Apesar das aparências, pensou Seb enquanto pedia uma segunda bebida. Olhava de vez em quando para a mesa de gamão, mas foram precisos mais vinte minutos para o barman sussurrar:
- Ele agora está livre, à espera da próxima vítima.
Seb virou-se e viu o homem gordo levantar-se da cadeira e começar a afastar-se com a jovem pelo braço.
- Mas eu pensava...
Olhou mais atentamente para o cordeiro que tinha devorado o pitão. Conseguia ouvir Cedric dizer: «O que é que aprendeste com isto, meu rapaz?» Bishara parecia ter cerca de quarenta anos, talvez um pouco mais, mas o seu ar bronzeado e a sua compleição atlética sugeriam que não precisava de esvaziar constantemente a carteira para atrair uma mulher bonita. Tinha cabelo preto farto e ondulado e uns olhos escuros penetrantes. Se não tivesse dinheiro, podíamos pensar que era um ator desempregado.
Seb saiu do banco e caminhou lentamente em direção a ele, esperando parecer descontraído e controlado, apesar de não ser isso que sentia.
- Boa noite, senhor Bishara, estará por acaso livre para jogar?
- Sim - disse ele, brindando Seb com um sorriso caloroso. - Mas pode sair-lhe caro.
- Sim, eu sei, o barman alertou-me para as suas condições. Mas continuo a querer jogar consigo.
- Ótimo, então sente-se.
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Bishara lançou um dado sobre o tabuleiro.
Após a primeira meia dúzia de jogadas, Seb estava dolorosamente ciente de que aquele homem pertencia a uma categoria diferente. Bishara só precisou de alguns minutos para começar a retirar as suas peças do tabuleiro.
- Diga-me, senhor...
- Clifton, Sebastian Clifton.
Bishara preparou o tabuleiro para novo jogo.
- Como é óbvio que o senhor não é sequer um respeitável jogador de pub, deve ter tido uma boa razão para querer desperdiçar cem libras.
- Sim, tive - admitiu Seb, tirando para fora o livro de cheques. - Precisava de uma desculpa para me encontrar consigo.
- E posso perguntar-lhe porquê?
- Porque temos várias coisas em comum, e uma em particular.
- É óbvio que o gamão não é uma delas.
- Verdade - disse Seb. - A quem devo passar o cheque?
- A Associação de Poliomielite. Não respondeu à minha pergunta.
- Pensei que podíamos trocar informações.
- O que o leva a pensar que tem alguma informação em que eu possa estar interessado?
- O facto de ter visto o seu nome num livro de visitantes e ter pensado que talvez gostasse de saber que detenho seis por cento do Farthings Bank.
Seb não conseguiu ler nada na expressão facial de Bishara.
- Quanto pagou pelas suas ações, senhor Clifton?
- Tenho comprado regularmente ações do Farthings ao longo dos últimos cinco anos, e o preço rondou, em média, duas libras.
- Então, revelou-se um investimento proveitoso, senhor Clifton. Devo presumir que deseja agora vender as suas ações?
- Não. O senhor Sloane já me fez uma oferta de cinco libras por ação, que eu recusei.
- Mas teria conseguido um bom lucro.
- Apenas a curto prazo.
- E se eu lhe oferecesse mais?
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- Não estaria interessado. Continuo a pretender ocupar o meu lugar no conselho de administração.
- Porquê?
- Porque comecei a minha vida profissional no Farthings como assistente pessoal de Cedric Hardcastle. Depois da sua morte, demiti-me e juntei-me ao Kaufman's.
- Um tipo perspicaz, esse Saul Kaufman, e um operador inteligente. Porque é que saiu do Farthings?
- Digamos apenas que houve uma divergência de opiniões sobre quem devia assistir aos funerais.
- Então, Sloane não ficaria satisfeito se o tivesse no conselho de administração?
- Se o homicídio fosse legal, seria um homem morto. Bishara tirou para fora o livro de cheques e perguntou:
- Qual é a sua instituição de caridade favorita?
Esta era uma pergunta para que Seb não estava preparado.
- Os Escuteiros.
- Sim, acredito que sim - disse Bishara sorrindo, enquanto passava um cheque, não de cem libras, mas de mil. - Foi um prazer conhecê-lo, senhor Clifton - disse, enquanto o entregava. - Tenho a sensação de que somos capazes de nos voltar a encontrar.
Seb apertou a mão estendida e estava prestes a ir-se embora quando Bishara acrescentou:
- Qual era a coisa em particular que temos em comum?
- A mais velha profissão do mundo. Só que, no meu caso, foi a minha avó e não a minha mãe.
- Qual é a opinião de Sir Edward em relação às probabilidades que tem de ganhar o caso? - perguntou o major enquanto Virgínia lhe servia um segundo gin tónico.
- Está cem por cento certo de que não vamos perder, as suas palavras exatas foram «é um caso arrumado», e está convencido de que o júri me irá atribuir uma indemnização por danos substanciais, possivelmente de umas cinquenta mil libras.
- Isso são boas notícias - disse Fisher. - Ele vai arrolar-me como testemunha?

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- Não, diz que não precisa de si, embora pense que há uma hipótese remota de a outra parte o poder chamar a depor. Mas é pouco provável.
- Isso podia vir a ser embaraçoso.
- Não, se conseguir limitar-se à deixa de que era o meu consultor no que dizia respeito aos valores de bolsa e que eu não demonstrava grande interesse nos pormenores, uma vez que confiava no seu parecer.
- Mas se eu fizesse isso, alguém poderia insinuar que era eu que estava a tentar derrubar a companhia!
- Se fossem suficientemente estúpidos para tentar essa linha de interrogatório, Sir Edward recordaria ao juiz que não é o senhor que está a ser julgado e, como agora é deputado, o senhor Trelford recuaria rapidamente.
- E diz que Sir Edward tem a certeza de que não vamos perder? - perguntou Fisher, sem parecer muito convencido.
- Desde que todos nós façamos o combinado, ele diz que podemos cantar vitória.
- E ele não acha provável que me chamem a depor?
- Ficaria surpreendido, se o fizessem. Mas se, tal como Sir Edward deu a entender, me atribuírem cinquenta mil libras - prosseguiu Virgínia -, acho que devemos dividir essa quantia a meias. Pedi aos meus advogados que redigissem um contrato para esse efeito.
- Isso é muito generoso, Virgínia. - É mais do que merecido, Alex.

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Sebastian estava sentado no banho quando o telefone tocou. Só havia uma pessoa capaz de lhe telefonar àquela hora da manhã. Deveria sair do banho e correr até à entrada, deixando um rasto de água atrás de si, ou seria melhor acabar de se lavar, já que a mãe voltaria seguramente a telefonar daí a uns minutos? Ficou onde estava.
Tinha razão, o telefone voltou a tocar enquanto ele se estava a barbear. Desta vez, foi até à entrada e pegou no auscultador.
- Bom dia, mãe - disse ele, antes de ela ter oportunidade de falar.
- Desculpa ligar tão cedo, Seb, mas preciso do teu conselho. Como é que achas que devo votar quando Desmond Mellor se candidatar a vice-presidente?
- Não mudei de ideias desde que discutimos esse assunto ontem à noite, mãe. Se votar contra Mellor e ele ganhar, isso vai enfraquecer a sua posição. Se se abstiver e a votação resultar num empate, continuará a ter o voto de qualidade. Mas se votar a favor dele...
- Eu nunca faria isso!
- Então, tem duas opções. Pessoalmente, votaria contra, para que, caso ele perdesse, não tivesse outro remédio senão demitir-se. A propósito, Ross Buchanan não concorda comigo. Ele acha que devia abster-se e manter as suas opções em aberto. Mas não preciso de lhe lembrar o que aconteceu da última vez que a mãe fez isso, quando Fisher se candidatou a presidente.
- Desta vez, é diferente. Mellor deu-me a sua palavra de que não votaria em si próprio.

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- Por escrito?
- Não - admitiu Emma.
- Então, não é palavra digna de confiança.
- Sim, mas se eu...
- Mãe, se não acabar de me barbear, nem sequer terá o meu voto.
- Sim, desculpa. Vou pensar no que disseste. Vemo-nos na reunião do conselho.
Seb sorriu enquanto desligava o telefone. Que pura perda de tempo, quando a mãe já decidira abster-se. Olhou para o relógio. Só tinha tempo suficiente para arranjar uma taça de muesli e cozer um ovo.
- O que é que ele disse? - perguntou Harry enquanto passava uma chávena de chá à esposa.
- Disse que eu devia votar contra, mas que Ross acha que eu devia abster-me. Por isso, fiquei na mesma.
- Mas ainda ontem à noite me disseste que estavas confiante na vitória.
- Por seis votos contra quatro, mesmo que eu me abstenha.
- Então, acho que deves abster-te.
- Porquê?
- Porque concordo com Ross. Se votares contra Mellor e perderes, isso tornaria a tua posição insustentável. No entanto, começo a pensar que devia adiar a minha viagem a Leninegrado até sabermos o resultado.
- Mas se não fores hoje - disse Emma - vais ter de esperar pelo menos seis meses antes de conseguires outro visto. Ao passo que se fores agora, ainda voltas a tempo para o julgamento.
- Mas se perderes hoje a votação...
- Não vou perder, Harry. Seis dos administradores deram-me a sua palavra, portanto não há motivo para preocupação. E tu deste a tua palavra à senhora Babakov, por isso tens de cumpri-la. De qualquer forma, será um triunfo pessoal quando chegares com um exemplar de Uncle joe debaixo do braço. Portanto, começa a fazer a mala.306
Sebastian estava a vestir o casaco e a dirigir-se para a porta quando o telefone tocou pela terceira vez. Ele olhou para o relógio, 7h56 e pensou em ignorá-lo, mas voltou para trás, pegou no telefone e disse:
- Não tenho tempo, mãe!
- Não é a sua mãe - disse Rachel. - Achei que devia saber que recebi um telefonema logo a seguir a ter saído ontem à noite e não o teria incomodado se ela não tivesse dito que era urgente. Já liguei duas vezes esta manhã, mas a linha estava ocupada.
- Ela? - indagou Seb.
- Uma mulher chamada Rosemary Wolfe, a telefonar dos Estados Unidos. Disse que o senhor sabia quem ela era.
- Claro que sim. Deixou algum recado?
- Não, apenas um número, 202 555 0319. Mas, Seb, não se esqueça de que lá são cinco horas a menos, portanto são três da manhã em Washington.
- Obrigado, Rachel. Tenho de me despachar, senão chego atrasado à reunião do conselho de administração da Barrington's.
Jim Knowles juntou-se a Desmond Mellor para tomar o pequeno-almoço no Avon Gorge Hotel.
- Vai ser renhido - disse Knowles enquanto se sentava à frente de Mellor, que parou de falar enquanto a empregada de mesa lhe servia o café. - Da última vez que fiz as contas, são cinco votos para cada um.
- Quem mudou de ideias desde ontem? - perguntou Mellor.
- Carrick. Convenci-o da importância de ter um vice-presidente enquanto a senhora Clifton está ocupada num julgamento que pode durar um mês, ou talvez mais.
- O voto dele está incluído nos cinco?
- Não, porque tenho a certeza de que ela se vai abster.
- Eu não o faria, se estivesse no lugar dela. E se ganharmos a primeira votação, o que acontecerá na segunda?
307
-A segunda deve ser mais fácil, desde que se limite a dizer que não será por mais de um mês. Mesmo os indecisos devem concordar com isso.
- Um mês será mais do que suficiente para garantir que ela não irá voltar.
- Mas, se ela perder o julgamento, tudo se torna irrelevante, pois nesse caso terá de se demitir. Seja como for, aposto que Desmond será presidente daqui a um mês.
- E, nesse caso, o Jim será o meu vice-presidente.
- Teve notícias de Virgínia sobre como está a correr o caso? - perguntou Knowles.
- Telefonou-me ontem à noite. Aparentemente, o advogado assegurou-lhe que não tem hipótese de perder.
- Nunca soube de nenhum advogado que dissesse uma coisa dessas - disse Knowles -, sobretudo quando Alex Fisher pode ser chamado como testemunha, pois posso dizer-lhe por experiências passadas que ele não é bom debaixo de fogo.
- Virgínia disse-me que Sir Edward não tenciona chamá-lo a testemunhar.
- O que só prova o que digo. Mas, depois de ela ganhar o caso, tudo vai correr conforme planeado. Isto pressupondo que pagou a Arnold Hardcastle as ações da mãe.
- Ainda não. Só tenciono pagar no último momento. Nem mesmo eu me posso dar ao luxo de desembolsar esse dinheiro por mais tempo do que o necessário.
- Porque não pede a Sloane que lhe avance um empréstimo a curto prazo para cobrir isso?
- Quem me dera poder fazê-lo, mas é contra a lei um banco fazer um empréstimo com o objetivo de comprar as suas próprias ações. Não, vou recuperar todo o meu dinheiro e fazer um bom lucro assim que Bishara cumprir a sua parte do acordo. Se Sloane fizer as coisas no momento certo, será um duplo golpe, porque ele continuará como presidente do banco e eu serei o novo presidente da Barrington's.
- Isso partindo do princípio de que ganhamos hoje - disse Knowles.308
*
Assim que Sebastian se conseguiu escapar do trânsito da hora de ponta e virou para a A40, olhou para o relógio do seu tablier. Ainda tinha duas horas, mas não precisava de mais atrasos. Nesse momento, acendeu-se uma luz vermelha e o indicador da gasolina começou a tremular, o que significava que tinha entrado na reserva. Uma placa sinalizadora informou-o de que a próxima estação de serviço ficava a 34 quilómetros. Ele bem sabia que havia alguma coisa que devia ter feito na noite anterior!
Passou para a faixa de dentro e manteve uma velocidade de oitenta quilómetros por hora para conseguir fazer durar o que lhe restava no tanque. Começou a rezar. Com certeza que os deuses não iam estar do lado de Mellor...
- A quem estás a telefonar? - perguntou Harry enquanto corria o fecho da pequena maleta.
- A Giles. Gostava de saber se ele concorda com Ross ou com Seb. No fim de contas, continua a ser o maior acionista da companhia.
Harry ficou a pensar se não seria melhor desfazer a mala.
- E não te esqueças do sobretudo - disse Emma.
- Gabinete de Sir Giles Barrington.
- Bom dia, Polly. É Emma Clifton. Posso dar uma palavrinha ao meu irmão?
- Receio que não seja possível, senhora Clifton. Ele está no estrangeiro, de momento.
- Em algum sítio empolgante, espero...
- Não propriamente - respondeu Polly. - Berlim Oriental.
Seb começou a descontrair quando saiu da autoestrada e subiu a rampa até à bomba de gasolina. Depois de encher o depósito, apercebeu-se de que tinha sido por pouco. Entregou uma nota de dez libras pelos 54 litros e esperou pelo troco.

309
Às 9h36, estava de volta à autoestrada. A primeira placa para Bristol dizia 98 quilómetros, por isso estava confiante de que ainda conseguiria chegar antes da hora.
Passou para a faixa de fora, satisfeito por ver um grande troço de estrada livre à sua frente. A sua mente vagueou até à doutora Wolfe e ao que poderia ser suficientemente urgente para ela lhe telefonar, até à mãe e a como ela iria votar, até Desmond Mellor e aos truques de última hora a que iria recorrer e, depois, novamente até Samantha. Seria possível...
Quando ouviu a sirene, presumiu que era uma ambulância e mudou rapidamente para a outra faixa, mas, quando olhou pelo espelho retrovisor, viu um carro da polícia com as luzes a piscar a aproximar-se rapidamente. Abrandou, desejando que ele o ultrapassasse, mas o carro pôs-se ao seu lado e o condutor fez-lhe sinal para parar na berma. Ele obedeceu com alguma relutância.
O carro da polícia parou à sua frente e os dois polícias que de lá saíram vieram lentamente ao seu encontro. O primeiro trazia uma volumosa agenda encadernada a pele, o segundo o que parecia ser uma pasta. Seb baixou o vidro da janela e sorriu.
- Bom dia, senhores agentes.
- Bom dia. O senhor tinha consciência de que vinha quase a cento e quarenta e cinco quilómetros por hora?
- Não, não tinha - admitiu Seb. - Lamento imenso.
- Posso ver a sua carta de condução?
Seb abriu o porta-luvas, tirou a carta e entregou-a ao polícia, que a estudou durante algum tempo antes de dizer:
- Quer fazer a gentileza de sair do carro?
Seb saiu enquanto o outro polícia abria a pasta e tirava um grande saco amarelo parecido com um balão preso a um tubo.
- Isto é um alcoolímetro e tenho de lhe perguntar se está disposto a fazer o teste para ver se está acima do limite legal.
- As dez da manhã?
- É o procedimento normal para a infração por excesso de velocidade. Se optar por não o fazer, terei de lhe pedir para me acompanhar à esquadra mais próxima.
310
- Isso não será necessário, senhor agente, tenho todo o gosto em fazer o teste.
Cumpriu as instruções à risca, ciente de que só tinha tomado dois Camparis com soda na noite anterior. Depois de ter soprado duas vezes para dentro do tubo - pelos vistos, não soprara com força suficiente da primeira vez -, os dois agentes analisaram o indicador laranja durante algum tempo, antes de um deles dizer:
- Não há problema, está muito abaixo do limite.
- Graças a Deus por isso - disse Seb, voltando a entrar no carro.
- Só um momento, ainda não acabámos. Ainda temos dois formulários para preencher. Qual é o seu nome, por favor?
- Mas eu estou com pressa - disse Seb, arrependendo-se das suas palavras assim que as pronunciou.
- Já tínhamos percebido isso.
- Sebastian Clifton.
- Local de residência?
Quando o agente acabou finalmente de preencher a resposta à última pergunta, entregou a Seb uma multa por excesso de velocidade, fez continência e disse:
- Tenha um bom dia e, futuramente, conduza com mais cuidado, por favor.
Sebastian olhou desesperado para o pequeno relógio no tablier, mas este registava fielmente a hora certa. Daí a quarenta minutos, a mãe iria dar início à reunião e não pôde deixar de recordar que a eleição de um novo vice-presidente era o primeiro ponto da agenda.
Lady Virgínia demorou algum tempo a contar a Sir Edward o que realmente acontecera na primeira manhã da viagem inaugural do Buckingham.
- Fascinante - disse ele. - Mas não é algo que possamos utilizar como prova.
- Porquê? A senhora Clifton não poderia negá-lo e assim teria de se demitir da presidência da Barrington's e nós teríamos o caso ganho.
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- É possível, mas o juiz iria considerar a prova inadmissível. E não é a única razão para não a podermos usar.
- De que mais precisa? - perguntou Virgínia.
- De uma testemunha que não tenha sido despedida por estar embriagada durante o horário de trabalho e que não esteja claramente ressentida com a companhia, e de um administrador que esteja disposto a sentar-se no banco das testemunhas e depor sob juramento.
- Mas é a mais pura verdade!
- Pode muito bem ser, mas diga-me, Lady Virgínia, já leu o último romance de Harry Clifton?
- Certamente que não.
- Então, dê graças pelo facto de eu o ter lido, porque no Inspetor Warwick e a Bomba-Relógio, encontrará quase palavra por palavra a história que acabou de me contar. E pode ter a certeza de que pelo menos um ou dois membros do júri também o leram.
- Mas isso só servirá para reforçar o nosso caso, não?
- É mais provável que sejamos ridicularizados fora do tribunal.
Emma olhou lentamente à volta da mesa. Todos os diretores estavam no lugar, exceto Sebastian. Mas nunca durante os seus onze anos como presidente da Barrington's deixara de iniciar uma reunião à hora marcada.
Philip Webster, o secretário da companhia, deu início aos trabalhos lendo a ata da reunião anterior. Com demasiada rapidez, na opinião de Emma.
- Há alguma questão relacionada com a ata? - perguntou ela, esperançada. Não havia.
- Então, vamos passar ao ponto número um, a eleição de um vice-presidente. Desmond Mellor foi proposto por Jim Knowles e secundado por Clive Anscott. Antes de passar à votação, alguém tem alguma pergunta?
Mellor abanou a cabeça e Knowles não disse nada, ambos conscientes de que Sebastian Clifton podia aparecer a qualquer momento. Emma olhou esperançosamente para o almirante, mas ele tinha ar de quem adormecera.
312
- Creio que todos nós tivemos mais do que tempo para pensar na nossa posição - declarou Anscott.
- Concordo - disse Knowles. - Passemos à votação.
- Antes disso - replicou Emma -, talvez o senhor Mellor queira dizer ao conselho por que razão considera ser o homem certo para ocupar o cargo de vice-presidente da Barrington's.
- Não creio que isso seja necessário - disse Mellor, que tinha passado um tempo considerável a preparar um discurso que agora não tinha intenção de pronunciar. - O meu currículo fala por si.
Como Emma já tinha esgotado todas as manobras dilatórias, não teve alternativa senão pedir ao secretário da companhia que levasse a cabo a votação nominal.
Webster levantou-se do lugar e leu o nome de cada administrador, começando pela presidente, a senhora Clifton.
- Abstenho-me - disse Emma.
- Senhor Maynard?
- A favor.
- Senhor Dixon?
- Contra.
- Senhor Anscott?
- A favor.
- Senhor Knowles?
- A favor.
- Senhor Dobbs?
- Contra.
Também ele cumprira a sua promessa. Emma não parava de olhar para a porta.
- Senhor Carrick?
- A favor.
Emma pareceu surpreendida. Da última vez que tinham falado, Carrick tinha-lhe garantido que não iria apoiar Mellor. Perguntou-se quem teria sido a última pessoa a pressioná-lo.
- Almirante Summers?
- Contra.
Não era homem que abandonasse os amigos.
- Senhor Clifton?
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Webster olhou à volta da mesa e, depois de confirmar que Sebastian não estava presente, escreveu «Ausente» junto ao seu nome.
- Senhor Bingham?
- Contra.
Sem surpresas. Detestava Mellor quase tanto como ela.
Emma sorriu. Quatro para cada lado. Como presidente, não hesitaria em exercer o seu voto de desempate para impedir Mellor de se tornar vice-presidente.
- E, finalmente, senhor Mellor? - disse o secretário da companhia.
- A favor - disse ele com firmeza.
Emma ficou momentaneamente aturdida, mas, virando-se para Mellor, acabou por dizer:
- Mas ainda ontem me disse que se iria abster e foi por isso que eu fiz o mesmo. Se tivesse sabido desta mudança de opinião...
- Desde que falei consigo ontem à noite - replicou Mellor -, um ou dois dos meus colegas assinalaram que os estatutos da companhia permitem que um membro do conselho vote em si mesmo quando se candidata. Com alguma relutância, deixei que eles me convencessem a fazê-lo.
- Mas o senhor deu-me a sua palavra!
- Eu telefonei para sua casa várias vezes, esta manhã, senhora presidente, mas a linha estava sempre ocupada.
Não era algo que Emma pudesse contradizer. Ela voltou a afundar-se na sua cadeira.
O senhor Webster verificou cuidadosamente a lista, mas Emma já sabia o resultado e as suas consequências.
- Com uma votação de cinco contra quatro, o senhor Mellor é eleito vice-presidente.
Algumas pessoas à volta da mesa sorriram e disseram «Muito bem!», outras permaneceram caladas.
Seb tinha razão. Ela devia ter votado contra Mellor e, assim, podia tê-lo derrotado com o voto de desempate. Mas onde estaria Seb, cujo voto teria tornado isso desnecessário? Como é que a podia ter abandonado quando ela mais precisava dele? E nessa altura ficou petrificada, deixou de ser presidente de uma companhia privada e voltou314
a ser mãe. Seria possível que o filho se tivesse envolvido noutro horrível acidente? Emma não conseguia suportar a ideia de passar por tudo de novo. Preferia de longe perder a votação a...
- Ponto número dois - disse o secretário da companhia.
Escolher uma data para o lançamento à água do Balmoral e para a abertura do primeiro período de reservas para a viagem inaugural a Nova Iorque.
- Antes de passarmos ao ponto dois - disse Mellor levantando-se do lugar para fazer um discurso que também tinha sido bem preparado -, considero que é meu dever recordar o conselho de administração de que a senhora Clifton está prestes a enfrentar um julgamento muito desagradável que já atraiu uma atenção considerável por parte dos media. É claro que todos esperamos que a nossa presidente seja capaz de refutar as graves acusações que lhe são feitas. Contudo, se Lady Virgínia Fenwick conseguir provar as suas alegações, é óbvio que a senhora Clifton teria de reconsiderar a sua posição. Nessa perspetiva, talvez seja mais prudente renunciar temporariamente, e sublinho a palavra temporariamente, ao cargo de presidente até o julgamento terminar. - Fez uma pausa e olhou alternadamente para cada um dos outros administradores antes de acrescentar - Espero que não seja necessário proceder a uma votação para este fim.
Emma sentiu que, se o assunto fosse a votação, o conselho estaria, com uma ou duas exceções, globalmente de acordo com a proposta do novo vice-presidente. Juntou as suas coisas e saiu discretamente da sala.
Mellor preparava-se para ocupar a cadeira dela quando o almirante Summers se levantou do lugar e o olhou como se ele fosse o comandante de um submarino alemão, antes de dizer:
- Este não é o conselho de administração a que me juntei há vinte anos e não quero continuar a ser seu membro.
Enquanto ele saía da sala, Bob Bingham e David Dixon juntaram-se-lhe.
Quando a porta se fechou atrás deles, Mellor virou-se para Knowles e disse:
- Isto é um bónus com que eu não contava.

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Página em branco

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SEBASTIAN CLIFTON
1970

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33
- O que digo ao teu pai quando ele telefonar e perguntar como é que correu a reunião do conselho?
- A verdade. É o que ele espera de si.
- Mas, se o fizer, ele dá meia-volta e vem direitinho para casa.
- Porquê? Onde é que ele está?
- Em Heathrow, à espera de embarcar num voo para Leninegrado.
- Nem parece dele ir-se embora quando...
- A culpa é minha. Eu disse-lhe que era impossível perdermos a votação e ele acreditou em mim.
- E não teríamos perdido se eu tivesse chegado a tempo.
- É verdade. Talvez tivesse sido mais sensato teres vindo na noite anterior - disse Emma.
- E se a mãe tivesse seguido o meu conselho, nada disto teria acontecido - ripostou Seb.
Ambos ficaram calados durante algum tempo.
- Até que ponto é importante a viagem do pai a Leninegrado?
- Tão importante como a votação desta manhã era para mim. Anda a preparar-se para isto há semanas e, se não for agora, não terá outra oportunidade durante muito tempo, se é que a terá. De qualquer forma, ele só vai estar fora dois dias. - Olhou para o filho. - Talvez pudesses ser tu a atender quando ele telefonar.
- E digo o quê? - perguntou Seb. - Se ele me perguntar como correu a reunião, vou ter de lhe dizer a verdade, caso contrário não volta a confiar em mim. - Parou o carro à porta de Manor House. - A que horas disse que ele devia telefonar?318
- O voo dele é às quatro, por isso suponho que deve ser por volta das três.
Seb olhou para o relógio.
- Não se preocupe. Logo invento alguma coisa, nessa altura.
Harry não precisou de despachar a bagagem porque só levava uma maleta. Sabia exatamente o que precisava de fazer a partir do momento em que aterrasse e teria tempo mais do que suficiente para afinar o seu plano durante o longo voo através do continente. Se tivesse acontecido o impossível e Emma tivesse perdido a votação, também não faria mal, pois nesse caso apanharia o próximo comboio de regresso a Bristol.
- Esta é a primeira chamada para todos os passageiros do voo BOAC 726 para Leninegrado. Queiram fazer o favor de se dirigir à porta número três, onde está a decorrer o embarque.
Harry foi até à cabina telefónica mais próxima, segurando um punhado de moedas. Marcou o número de sua casa e introduziu dinheiro suficiente para uns três minutos.
- Bristol 4313 - disse uma voz que ele reconheceu de imediato.
- Olá, Seb. O que estás a fazer em casa?
- A ajudar a mãe a comemorar. Vou chamá-la para ser ela a dar-lhe as boas notícias.
- Esta é a segunda chamada para os passageiros com destino a Leninegrado no voo BOAC número...
- Olá, querido - disse Emma. - Ainda bem que ligaste, porque...
A linha emudeceu.
- Emma, estás aí? - Não houve resposta. - Emma? - tentou ele de novo, mas continuou sem obter resposta e não tinha moedas suficientes para telefonar segunda vez.
- Esta é a terceira e última chamada para os passageiros do voo BOAC 726 para Leninegrado.
Harry pousou o auscultador, tentando recordar-se das palavras exatas de Seb, «ajudar a mãe a comemorar. Vou chamá-la para ser ela
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dar-lhe as boas notícias». Quando Emma aparecera em linha, parecia estar extraordinariamente alegre. Devia ter vencido a votação, concluiu Harry. Apesar disso, ainda hesitou por um instante.
- Senhor Harry Clifton, queira fazer o favor de se dirigir à porta de embarque número três, que está quase a fechar.
- O que estamos a comemorar? - perguntou Emma.
- Não sei - disse Seb, mas hei de pensar em qualquer coisa até o pai voltar da Rússia. Mas, para já, temos de nos concentrar nos problemas mais imediatos.
- Não há muito que possamos fazer até o julgamento acabar.
- Mãe, tem de parar de se comportar como uma escuteira e começar a pensar como Mellor e Knowles.
- E o que estão eles a pensar neste momento?
- Que as coisas não lhes podiam ter corrido melhor. Não só se livraram de si, como de três dos seus homens de confiança ao mesmo tempo.
- Três homens honestos - disse Emma.
- Tal como Bruto, e veja onde isso o levou.
- Quem me dera estar ainda na sala quando o almirante Summers...
- Voltou ao modo de escuteira, mãe! Agora, deixe-se disso e ouça com atenção. A primeira coisa que tem de fazer é telefonar ao almirante Summers, a Bob Bingham e ao senhor Dixon, e dizer-lhes que em nenhuma circunstância se devem demitir do conselho de administração.
- Mas eles saíram da sala, Seb. Knowles e Mellor não querem saber do motivo por que o fizeram.
- Mas quero eu, pois só me importam os três votos que iríamos sacrificar por causa de um gesto inútil. Se eles continuarem no conselho de administração, com o meu voto, o seu e o de Dobbs, temos seis votos contra os cinco deles.
- Mas eu não volto à presidência até à conclusão do julgamento. Já te esqueceste que abandonei funções?

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- Não, não abandonou. Limitou-se a sair da reunião. Por isso pode voltar a entrar porque, se não o fizer, não voltará a ser presidente depois do julgamento, independentemente de ganhar ou perder.
- És um indivíduo tortuoso, Sebastian Clifton.
- E enquanto Mellor e Knowles não perceberem isso, ainda temos uma hipótese. Mas, primeiro, tem quatro telefonemas para fazer porque pode acreditar que Mellor e Knowles só aceitarão a derrota se ganharmos todas as votações.
- Talvez devesses ser tu o presidente - disse Emma.
- Tudo no seu devido tempo, mãe. Mas o que preciso que faça agora é que telefone imediatamente ao almirante Summers, pois provavelmente ele já escreveu a carta de demissão. Esperemos que ainda não a tenha posto no correio.
Emma pegou na agenda telefónica e começou a folhear o «S».
- E se precisar de mim para alguma coisa, estou na biblioteca a fazer uma chamada interurbana - disse Seb.
Adrian Sloane estava no átrio de entrada do Farthings Bank aos cinco minutos para as onze. Ninguém se lembrava de ter visto o presidente alguma vez descer para receber uma visita.
O Bentley do senhor Bishara parou à porta do banco quatro minutos depois e um porteiro apressou-se a ir abrir a porta de trás do carro. Quando Bishara e os seus dois colegas entraram no edifício, Sloane avançou para o cumprimentar.
- Bom dia, senhor Bishara - disse ele enquanto trocavam um aperto de mão. - Bem-vindo ao seu banco.
- Obrigado, senhor Sloane. Com certeza que se lembra do senhor Moreland, o meu advogado, e do senhor Pirie, o chefe da contabilidade.
- Claro - disse Sloane, apertando a mão a ambos. A seguir, conduziu-os até ao elevador que os aguardava enquanto os funcionários aplaudiam para dar as boas-vindas ao seu novo presidente.
Bishara fez uma ligeira vénia e sorriu para os três jovens porteiros que estavam no balcão da receção.
- Foi assim que comecei a minha carreira bancária - disse ele a Sloane enquanto entrava no elevador.321
- E agora está prestes a tornar-se proprietário de uma das instituições financeiras mais respeitadas da City.
- Há muitos anos que esperava por este dia - confessou Bishara. Afirmação que ainda deixou Sloane mais confiante de que podia avançar com a sua mudança de planos.
- Quando chegarmos ao piso executivo, vamos direitos à sala do conselho, onde os documentos da oferta foram preparados e aguardam a sua assinatura.
- Obrigado - disse Bishara ao sair para o corredor. Quando entrou na sala do conselho, os oito administradores do
banco levantaram-se em uníssono e esperaram que ele tomasse o seu lugar à cabeceira da mesa, antes de voltarem a sentar-se. Um mordomo serviu a Bishara uma chávena do seu café turco preferido, simples e a fumegar, e dois biscoitos McVitie's, também os seus favoritos. Nada fora deixado ao acaso.
Sloane sentou-se na outra ponta da mesa.
- Em nome do conselho de administração, senhor Bishara, permita-me que lhe dê as boas-vindas ao Farthings Bank. Com a sua permissão, irei explicar-lhe o procedimento para a transferência de propriedade.
Bishara sorriu, tirou do bolso a caneta de tinta permanente e colocou-a em cima da mesa.
- A sua frente, tem três cópias do documento relativo à oferta, tal como aprovado pelos seus advogados. Ambas as partes introduziram pequenas emendas, mas nada de significativo.
O senhor Moreland concordou com um aceno de cabeça.
- Pensei que podia ser útil - continuou Sloane - sublinhar as questões mais importantes que acordámos. O senhor tornar-se-á presidente do Farthings Bank e pode nomear três administradores para o representarem no conselho de administração, um dos quais será vice-presidente.
Bishara sorriu. Não iam gostar da pessoa que ele tinha em mente para vice-presidente.
- Eu continuarei como presidente do conselho de administração por um período de cinco anos, e os oito membros aqui presentes também terão os seus contratos renovados por mais cinco anos. E, finalmente, a soma que acordámos para a aquisição é de vinte e nove322
milhões e oitocentas mil libras, o que corresponde a um valor de cinco libras por ação.
Bishara virou-se para o seu advogado, que lhe entregou um cheque com a totalidade do valor. Ele colocou-o em cima da mesa, à sua frente. Essa simples visão quase fez Sloane mudar de ideias.
- No entanto - disse Sloane -, aconteceu uma coisa nas últimas vinte e quatro horas que tornou necessário efetuar um pequeno ajuste ao contrato.
Tanto quanto Sloane podia ver pela expressão de Bishara, este podia muito bem estar a jogar gamão no Clermont.
- Ontem de manhã - prosseguiu Sloane -, recebemos um telefonema de uma respeitável instituição da City, que nos ofereceu seis libras por ação. Para provarem a sua credibilidade, puseram a totalidade da quantia à guarda dos seus advogados. Esta oferta colocou-me a mim e ao conselho numa posição muito difícil, já que não passamos de empregados dos nossos acionistas. No entanto, reunimos o conselho esta manhã e foi deliberado por unanimidade que, se fosse capaz de igualar a oferta de seis libras por ação, deixaríamos cair a proposta rival e honraríamos o acordo inicial. Por conseguinte, adaptámos o documento relativo à proposta para refletir esta alteração e introduzimos o novo número de trinta e cinco milhões, setecentas e sessenta mil libras. - Sloane brindou Bishara com um sorriso untuoso e acrescentou: - Dadas as circunstâncias, espero que considere esta solução aceitável.
Bishara sorriu.
- Em primeiro lugar, senhor Sloane, permita-me que lhe agradeça a cortesia de me dar a oportunidade de igualar a contraproposta efetuada por uma terceira parte. - Sloane sorriu. - Contudo, devo realçar que acordámos o valor de cinco libras por ação há quase um mês e, como efetuei de boa-fé um depósito junto dos meus advogados, isto é um tanto surpreendente.
- Sim, devo pedir desculpa por isso - replicou Sloane. - Mas compreenderá certamente o dilema com que me confrontei, tendo em conta que temos um dever fiduciário para com os nossos acionistas.
- Não sei como é que o seu pai ganhava a vida, senhor Sloane - disse Bishara -, mas o meu era negociante de tapetes em Istambul,

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E uma das muitas coisas que ele me ensinou na juventude foi que, quando se acordava um preço, servia-se café e as partes ficavam sentadas durante algum tempo a fingir que gostavam uma da outra; o equivalente ao aperto de mão de um inglês seguido de um almoço no seu clube. Por isso, a minha oferta de cinco libras por ação continua em cima da mesa e, se decidir aceitá-la, assinarei alegremente o contrato.
Todos os oito membros do conselho se viraram para olhar para o presidente, desejosos de que ele aceitasse a oferta de Bishara. Mas Sloane limitou-se a sorrir, convencido de que o filho do negociante de tapetes estava a fazer bluff.
- Se essa é a sua última oferta, senhor Bishara, receio ter de aceitar a contraproposta. Só espero que possamos ficar amigos.
Os oito administradores viraram a sua atenção para a outra ponta da mesa. Um deles estava a transpirar.
- É óbvio que os princípios morais dos banqueiros da City não são os mesmos que o meu pai me ensinou nos bazares de Istambul. Por conseguinte, senhor Sloane, não me deixou alternativa senão retirar a minha oferta.
Os lábios de Sloane começaram a tremer quando Bishara devolveu o cheque ao seu advogado, se levantou lentamente do lugar e disse:
- Bom dia, meus senhores. Desejo-vos uma longa e bem-sucedida relação com o vosso novo proprietário, seja ele quem for.
Bishara saiu da sala ladeado pelos seus dois consultores. Não voltou a falar até estarem sentados no banco de trás do seu Bentley, altura em que se inclinou para a frente e disse ao motorista:
- Mudança de planos, Fred, preciso de fazer uma visita ao Kaufman's Bank.
- Pode passar a chamada à doutora Wolfe? - perguntou Seb.
- Quem fala?
- Sebastian Clifton.
- Senhor Clifton, que gentileza a sua ter ligado de volta. Só gostava que fosse em circunstâncias mais felizes.

324
As pernas de Seb fraquejaram e ele deixou-se cair na cadeira por trás da secretária do pai, desesperado por saber se tinha acontecido alguma coisa a Samantha ou Jessica.
- Infelizmente - continuou a doutora Wolfe -, o marido de Samantha, Michael, sofreu recentemente um AVC durante um voo de Chicago para Washington.
- Lamento saber disso.
- Quando chegaram com o pobre homem ao hospital, já ele estava em coma. As coisas podiam ter sido muito diferentes se isto tivesse acontecido uma hora antes ou depois... Tudo isto se passou há umas semanas e os médicos não estão otimistas quanto à sua recuperação. Na verdade, não têm forma de saber quanto tempo continuará no estado em que se encontra. Mas o objetivo do meu telefonema não era esse.
- Suponho que me tenha telefonado por causa de Jessica e não do seu padrasto.
- Tem razão. A verdade é que as contas médicas neste país são astronómicas e, embora o senhor Brewer ocupasse um alto cargo no Departamento de Estado e tivesse seguro de saúde, as despesas inerentes à assistência permanente que o seu estado requer fizeram com que Samantha decidisse retirar Jessica da Escola Primária Jefferson no final deste período, pois não pode continuar a pagar as nossas propinas.
- Eu cubro essa despesa.
- Isso é muito generoso da sua parte, senhor Clifton. Contudo, devo dizer-lhe que as nossas propinas são de mil e quinhentos dólares por semestre e que as atividades extracurriculares de Jessica no semestre passado ascenderam a trezentos e dois dólares.
- Eu transfiro-lhe dois mil dólares imediatamente, e talvez queira ter a amabilidade de me remeter a fatura no final de cada semestre. Porém, isto é na condição de que nem Samantha nem Jessica venham alguma vez a saber que estou envolvido nisto.
- Tinha a impressão de que era capaz de dizer isso, senhor Clifton, e acho que arranjei uma estratégia para proteger o seu anonimato. Se quiser criar uma bolsa de estudo no domínio das artes, no valor, digamos, de cinco mil dólares, nesse caso ficaria ao meu critério escolher a aluna beneficiária.
325
-Bela solução - disse Seb.
-Tenho a certeza de que o seu professor de inglês teria aprovado a utilização desse adjetivo.
-O meu pai, na verdade - disse Seb. - O que me lembra que quando a minha irmã precisava de telas, tintas, papel de desenho, nincéis ou mesmo lápis, o meu pai certificava-se sempre de que eram da melhor qualidade. Costumava dizer que, se ela não fosse bem-sucedida, não seria por nossa culpa. Eu quero a mesma coisa para a minha filha. Por isso, se cinco mil libras não forem suficientes, doutora Wolfe, não hesite em dar-lhe tudo o que ela precisar, que eu pago as despesas extra. Mas, volto a repetir, nem mãe nem filha podem vir a saber quem tornou isto possível.
- Não será o primeiro segredo seu que guardo, senhor Clifton.
- As minhas desculpas - disse Seb - assim como pela próxima pergunta. Quando é que se vai reformar, doutora Wolfe?
- Pouco depois de a sua filha ganhar a Bolsa de Estudo Hunter para o American College of Art, o que será uma estreia para a Escola Primária Jefferson.
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Harry estava a verificar os cheques de viagem quando a hospedeira fez a sua última ronda, certificando-se de que os passageiros da primeira classe tinham apertado os cintos de segurança, na altura em que o avião iniciava a sua descida para Leninegrado.
- Desculpe - disse Harry. - Sabe quando é o vosso próximo voo de regresso a Londres?
- Este avião tem um tempo de quatro horas no solo e o seu regresso a Londres está programado para as vinte e uma e dez.
- Isso é um bocadinho duro para vocês, não?
- Não - disse ela reprimindo um sorriso. - Nós ficamos sempre uns dias em Leninegrado. Por isso, se regressar no voo desta noite, terá uma tripulação completamente diferente.
- Obrigado - retorquiu Harry. - Foi uma grande ajuda. - Espreitou pela janela da cabina e viu a cidade favorita de Tolstoi a tornar-se maior a cada segundo, embora desconfiasse que o grande autor teria ficado chocado com a sua mudança de nome. Ao ouvir os sistemas hidráulicos a baixar as rodas do trem de aterragem, perguntou-se se teria tempo suficiente para fazer a sua compra e estar de volta antes de fecharem a porta da cabina.
Quando as rodas tocaram no solo, Harry sentiu uma onda de adrenalina como só experimentara antes quando estivera atrás das linhas inimigas durante a guerra. As vezes, esquecia-se de que tinha sido há quase trinta anos, quando era um pouco mais magro e muito mais ágil. Bem, pelo menos, desta vez não teria de enfrentar um regimento de alemães a avançar na sua direção!

327
Depois de ter saído de casa da senhora Babakov, tinha memorizado tudo o que ela dissera. Não escrevera nada, com medo de que alguém descobrisse o que planeara. Só contara a verdadeira razão para ir a Leninegrado a Emma, embora Giles tivesse percebido que ele devia lá ir buscar o livro, embora «buscar» não fosse o verbo mais adequado.
Enquanto o avião ressaltava ao longo da pista esburacada, calculou que levaria pelo menos uma hora a passar a alfândega e a converter algumas libras em moeda local. Na verdade, levou uma hora e catorze minutos, apesar de só ter uma maleta e de trocar dez libras por vinte e cinco rublos. Depois, teve de se juntar a uma longa fila para o táxi, pois os russos ainda não tinham aprendido o que era a livre iniciativa.
- Esquina de Nevsky Prospekt com a rua Bolshaya Morskaya - disse ele ao taxista na sua língua nativa, esperando que ele soubesse onde era. Todas aquelas horas a aprender russo, quando na verdade só precisaria de umas quantas frases bem aprimoradas, já que tencionava estar de volta a Inglaterra dentro de poucas horas, com a missão cumprida, como diria o seu antigo comandante.
Durante a viagem até à cidade, passaram pelo Palácio Yusupov, altura em que os pensamentos de Harry se voltaram para Rasputine. O arquimanipulador era capaz de ter gostado do seu pequeno subterfúgio. Harry só esperava não acabar envenenado, enrolado num tapete e depois largado num buraco no gelo no rio Malaya Nevka. Harry apercebeu-se de que, se queria estar de volta ao aeroporto a tempo de embarcar no voo das 21h10 para Heathrow, só tinha vinte ou trinta inutos disponíveis. Mas isso devia ser mais do que suficiente.
O taxista parou à porta do alfarrabista e apontou para o taxímetro. Harry tirou uma nota de cinco rublos e entregou-lha.
- Espero não me demorar, importa-se de aguardar?
O taxista embolsou a nota e fez um ligeiro aceno de cabeça.
Assim que Harry entrou na loja, percebeu por que razão a senhora Babakov tinha escolhido aquele estabelecimento em particular para esconder o seu tesouro. Era quase como se não quisessem vender nada. Havia uma velhota sentada atrás do balcão, com a cabeça enfiada num livro. Harry sorriu-lhe, mas ela nem sequer levantou os olhos ao ouvir tocar a sineta por cima da porta.
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Tirou dois livros de uma prateleira próxima e fingiu examiná-los cuidadosamente enquanto ia avançando lentamente para o fundo da loja, com o coração a bater um pouco mais acelerado a cada passo. Ainda estaria ali? Alguém o teria comprado e descoberto, ao chegar a casa, que levara o livro errado? Teria algum outro cliente obtido o prémio e destruído Uncle Joe com medo de ser apanhado com ele? Conseguia pensar numa dúzia de razões para a viagem de ida e volta de quase cinco mil quilómetros redundar numa oportunidade perdida. Mas, para já, a esperança ainda levava a melhor sobre a expectativa.
Quando chegou finalmente à estante onde a senhora Babakov dissera que tinha escondido a obra do marido, fechou os olhos e rezou. Abriu os olhos e descobriu que Tess of the d’Ubervilles já não estava no lugar; havia apenas um espaço vazio coberto por uma fina camada de pó entre A Tale of Two Cities e Daniel Deronda. A senhora Babakov não fizera menção a Daniel Deronda.
Olhou para trás, para o balcão, e viu a velhota virar uma página. Pondo-se em bicos dos pés, esticou-se e tirou A Tale of Two Cities da prateleira de cima, juntamente com uma chuva de poeira que caiu sobre ele. Quando abriu o livro, pensou que ia ter um ataque cardíaco, porque não era um exemplar da obra de Dickens, mas sim um romance pouco volumoso da autoria de Anatoly Babakov.
Não querendo chamar a atenção para o seu prémio, tirou outros dois romances da mesma prateleira, Greenmantle de John Buchan e Jamaica de Daphne du Maurier, e fingiu folheá-los enquanto avançava lentamente para o balcão. Quase se sentiu culpado por interromper a senhora quando colocou os três livros à frente dela, em cima do balcão.
Ela abriu um de cada vez para ver o preço. A senhora Babakov tinha escrito o preço. Se ela tivesse virado mais uma página, ele teria sido apanhado. Mas não o fez. Usando os dedos como máquina de calcular, disse:
- Oito rublos.
Harry entregou-lhe duas notas de cinco rublos, tendo sido avisado quando estivera em Moscovo para a conferência que os lojistas tinham de comunicar sempre que alguém tentasse adquirir bens com moeda estrangeira e, mais importante ainda, que deviam recusar
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A venda e confiscar o dinheiro. Ele agradeceu-lhe quando ela lhe deu o troco. Quando saiu da loja, já ela tinha virado outra página.
- Vamos voltar ao aeroporto - disse Harry ao subir para o táxi que estava à sua espera. O taxista pareceu surpreendido, mas deu obedientemente a volta e iniciou a viagem de regresso.
Harry abriu o livro uma vez mais para ter a certeza de que não fora uma ilusão. A adrenalina da caçada foi substituída por uma sensação de triunfo. Virou as folhas até à primeira página e começou a ler. Todas aquelas horas que passara a estudar russo estavam finalmente a revelar-se proveitosas... Virou a página.
O engarrafamento típico do final da tarde fez com que a viagem de regresso ao aeroporto levasse mais tempo do que originalmente previra. Começou a olhar para o relógio de poucos em poucos minutos, com receio de perder o avião. Quando o táxi o deixou no aeroporto, já ele tinha chegado ao capítulo sete e à morte da segunda mulher de Stalin. Entregou outros cinco rublos ao taxista e não esperou pelo troco. Correu para dentro do aeroporto e seguiu as placas para o balcão da BOAC.
- Consegue pôr-me no avião das vinte e uma e dez para Londres?
- Primeira ou económica? - perguntou a funcionária das reservas.
- Primeira.
- Janela ou corredor?
- Janela, por favor.
- Seis A - disse ela, entregando-lhe um bilhete.
Harry achou graça ao facto de ir fazer a viagem de regresso no mesmo lugar que ocupara à ida para lá.
- O senhor tem alguma bagagem para despachar?
- Não, só isto - disse ele, segurando a sua maleta.
- O voo deve estar quase a partir, por isso talvez seja melhor ir já para a alfândega.
Harry ficou a pensar quantas vezes por dia diria ela aquilo. Tratou de acatar a sugestão e, ao passar por uma série de telefones, os seus pensamentos viraram-se para Emma e para a senhora Babakov, mas teria de esperar até chegar a Londres para lhes poder dar a notícia.330
Estava apenas a dois passos do controlo de passaportes quando sentiu uma mão pousar com firmeza no seu ombro. Virou-se e deu de caras com dois polícias jovens e bem constituídos, um de cada lado.
- Importa-se de vir comigo? - disse um dos agentes, confiante de que Harry falava russo.
- Porquê? - perguntou Harry. - Estou de regresso a Londres e não quero perder o meu voo.
- Só precisamos de verificar a sua maleta. Se não houver nenhuma irregularidade, terá tempo mais do que suficiente para apanhar o seu voo.
Harry rezou para que estivessem à procura de drogas, dinheiro ou contrabando, enquanto eles o agarravam pelo braço com firmeza e o levavam dali. Ainda pensou em desatar a correr. Talvez há vinte anos...
Os polícias pararam junto a uma porta não identificada, abriram-na e empurraram Harry lá para dentro. A porta fechou-se com estrondo atrás dele e ouviu a chave a rodar na fechadura. Olhou à volta da sala. Uma mesinha, duas cadeiras e nenhuma janela. Não havia nada nas paredes além de uma grande fotografia a preto-e-branco do camarada Brejnev, presidente do partido.
Passados uns momentos, ouviu a chave rodar de novo. Harry já tinha uma história mais ou menos preparada sobre ter vindo a São Petersburgo para visitar o Hermitage. A porta abriu-se e entrou um homem. Ao ver aquele oficial alto e elegantemente vestido, Harry sentiu-se apreensivo pela primeira vez. Envergava um uniforme verde-escuro com três estrelas douradas nas dragonas e ostentava demasiadas medalhas ao peito para ser alguém que se deixasse intimidar facilmente. Seguiam-no dois homens muito diferentes, cujo aspeto parecia refutar a teoria da evolução de Darwin.
- Senhor Clifton, eu sou o coronel Marinkin e sou o oficial encarregado desta investigação. Por favor, abra a sua mala.
Harry correu o fecho da mala e recuou.
- Ponha todo o conteúdo em cima da mesa.
Harry tirou para fora um estojo de toilette, umas calças, um par de meias e uma camisa bege, para o caso de ter de lá passar a noite, e três
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livros. O coronel só parecia interessado nos livros, que analisou durante alguns momentos antes de repor dois deles em cima da mesa.
- Pode arrumar as coisas, senhor Clifton.
Harry soltou um longo suspiro enquanto voltava a pôr os seus pertences na maleta. Pelo menos, toda aquela odisseia não tinha sido pura perda de tempo. Sabia agora que o livro existia e até lera sete capítulos, que iria escrever no avião.
- Sabe que livro é este? - perguntou o coronel, segurando-o.
- A Tale of Two Cities - disse Harry. - Está entre os meus favoritos, mas não é considerado a obra-prima de Dickens.
- Não brinque comigo - disse Marinkin. - Nós não somos os idiotas por quem os arrogantes dos ingleses nos tomam. Este livro, como muito bem sabe, é XJncle Joe, da autoria de Anatoly Babakov, a que tenta deitar a mão há alguns anos. Hoje, quase conseguiu. Planeou tudo até ao mais ínfimo detalhe. Primeiro, a sua visita à senhora Babakov, em Pittsburgh, para saber onde é que ela o escondera. Ao regressar a Bristol, tratou de aperfeiçoar o seu russo, deixando a professora impressionada com o seu domínio da nossa língua. A seguir, voou para Leninegrado apenas a alguns dias de o seu visto expirar. Entrou no país carregando apenas uma maleta, cujo conteúdo sugere que nem sequer planeava cá ficar de um dia para o outro, e trocou apenas dez libras em rublos. Pediu ao taxista que o levasse a um alfarrabista obscuro no centro da cidade. Comprou três livros, dois dos quais poderia ter adquirido em qualquer livraria em Inglaterra. Pediu ao taxista que o trouxesse de volta ao aeroporto e fez o check-in para o próximo voo de regresso, ficando inclusivamente com o mesmo lugar. Quem pensa o senhor que engana? Não, senhor Clifton, a sua sorte esgotou-se e eu vou proceder à sua detenção.
- Acusado de quê? - perguntou Harry. - De comprar um livro?
- Guarde isso para o julgamento, senhor Clifton.
- Os passageiros que vão viajar para Londres no voo da BOAC número...
- Tem um senhor Bishara na linha três - disse Rachel. - Posso passar a chamada?
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- Sim - disse Seb, depois pôs a mão em cima do bucal e pediu aos dois colegas que estavam com ele se podiam sair por alguns minutos.
- Senhor Clifton, acho que está na altura de disputarmos mais um jogo de gamão.
- Não sei se tenho dinheiro para isso.
- Em troca de uma lição, não lhe peço mais nada senão algumas informações.
- O que precisa de saber?
- Alguma vez se cruzou com um homem chamado Desmond Mellor?
- Sim.
- E qual é a opinião que tem dele?
- Numa escala de um a dez? Um.
- Estou a ver. E com um tal major Alex Fisher, deputado?
- Menos um.
- Continua a deter seis por cento do Farthings Bank?
- Sete por cento, mas essas ações continuam a não estar à venda.
- Não foi por isso que perguntei. Que tal hoje à noite, às dez horas, no Clermont?
- Pode ser um bocadinho mais tarde? Vou levar a minha tia Grace a ver A Morte de um Caixeiro-Viajante no Aldwych, mas ela gosta sempre de apanhar o último comboio para Cambridge, por isso poderia encontrar-me consigo por volta das onze.
- Fico encantado por ser preterido pela sua tia, senhor Clifton. Fico ansioso por vê-lo às onze, no Clermont, onde podemos discutir A Morte de um Caixeiro-Viajante.
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- Arrogância e ganância são a resposta à sua pergunta - bradou Desmond Mellor. - Tinha um cheque, dinheiro na mão, mas mesmo assim não ficou satisfeito. Queria mais, e por causa da sua estupidez enfrento uma situação de falência.
- Tenho a certeza de que não é assim tão mau, Desmond. Afinal, ainda é dono de cinquenta e um por cento do Farthings, para não falar dos seus outros bens.
- Deixe-me explicar-lhe, Sloane, para não ficar com ilusões quanto à situação que enfrento e, mais importante ainda, ao que espero que faça em relação a isso. Aconselhado por si, adquiri cinquenta e um por cento das ações do banco a Arnold Hardcasde pelo preço de três libras e nove xelins por ação, o que me custou mais de vinte milhões de libras. Para reunir esse montante, tive de contrair um empréstimo de onze milhões no meu banco, usando as ações e todos os meus bens incluindo duas casas, além de ter que assinar uma garantia pessoal. As ações do Farthings estão esta manhã cotadas a duas libras e onze xelins, o que significa que estou com um défice de mais de cinco milhões de libras por causa de um negócio que garantiu que não nos ia escapar. Pode ser que consiga evitar a falência, mas ficarei certamente de rastos se tiver de pôr as minhas ações no mercado neste momento. Coisa que, repito, só se deve à sua arrogância e ganância.
- Isso não é inteiramente justo - argumentou Sloane. - Na reunião do conselho de segunda-feira passada, todos concordaram, incluindo o Desmond, em aumentar o preço solicitado para seis libras.
- É verdade, mas o filho do negociante de tapetes percebeu o seu jogo. Mesmo assim, estava disposto a avançar com o negócio por

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cinco libras por ação, o que me teria livrado deste aperto e ainda nos teria rendido a todos um bom lucro. Por isso, o mínimo que pode fazer é comprar as minhas ações por três libras e oitenta e seis e safar-me de uma situação pela qual é responsável.
- Mas como já expliquei, Desmond, por muito que quisesse ajudar, o que está a sugerir iria infringir a lei.
- Isso não pareceu preocupá-lo quando disse a Bishara que tinha em cima da mesa uma oferta de seis libras de uma «respeitável instituição da City», quando essa terceira parte não existe. Creio que irá descobrir que isso também é contra a lei.
- Repito, todos concordámos...
O telefone começou a tocar na secretária de Sloane. Ele premiu o botão do intercomunicador e rosnou:
- Eu disse-lhe que não queria interrupções!
- É Lady Virgínia Fenwick e disse que era urgente.
- Mal posso esperar para ouvir o que ela tem a dizer - afirmou Mellor.
- Bom dia, Lady Virgínia - disse Sloane, tentando disfarçar a impaciência. - Que bom ter notícias suas.
- Pode não sentir o mesmo quando souber a razão do meu telefonema - começou Virgínia. - Acabei de receber dos meus advogados uma fatura relativa à fase preparatória no montante de vinte mil libras, que tem de ser liquidada antes do primeiro dia do julgamento. Com certeza que se lembra, Adrian, que me deu a sua palavra em como cobriria as despesas da ação. «Tostões em comparação com o resto», se bem me lembro das suas palavras.
- É verdade que disse isso, Lady Virgínia, mas também se há de lembrar que a oferta dependia do sucesso das nossas negociações com o senhor Bishara, por isso receio...
- Mas o major Fisher disse-me que o único culpado é o senhor, pela sua extraordinária falta de bom senso. Pode interpretar isto como quiser, senhor Sloane, mas, se não cumprir a sua palavra e não pagar as despesas de contencioso, deixe-me avisá-lo de que sou uma pessoa influente na City...
- Está a ameaçar-me, Lady Virgínia?
- Como disse, senhor Sloane, pode interpretar isto como quiser.335
Virgínia desligou o telefone e virou-se para Fisher.
- Vou dar-lhe dois dias para arranjar as vinte mil libras, caso contrário...
- Aquele homem não larga um tostão, a não ser que haja um acordo por escrito e, se calhar, nem mesmo assim. Ele trata toda a gente assim. Prometeu-me um lugar no conselho de administração do Farthings, mas, desde que o negócio com Bishara foi por água abaixo, não pronunciou uma palavra sobre o assunto.
- Bem, posso jurar-lhe que, se depender de mim, ele não vai trabalhar na City por muito mais tempo. Mas, desculpe, Alex, estou certa de que não era por isso que queria falar comigo.
- Não, não era. Pensei que devia saber que fui intimado esta manhã pelos advogados da senhora Clifton, notificando-me de que pretendem arrolar-me como testemunha no seu julgamento.
- Desculpe o atraso - disse Seb ao sentar-se no banco do bar. - Quando saímos do teatro, estava a chover e não consegui encontrar um táxi, por isso tive de levar a minha tia a Paddington, para ter a certeza de que ela não perdia o último comboio.
- Digno de um escuteiro - disse Bishara.
- Boa noite, senhor - cumprimentou o barman. - Campari com soda?
Seb ficou impressionado, pois só ali tinha ido uma vez.
- Sim - replicou. - Obrigado.
- E o que é que a sua tia faz em Cambridge? - perguntou Bishara.
- É don de Inglês em Newnham, a blue stocking da família. Temos muito orgulho nela.
- É tão diferente dos seus conterrâneos!
- O que o leva a dizer isso? - perguntou Seb enquanto punham um Campari com soda à sua frente.
- Trata toda a gente de igual para igual, desde o barman à sua tia, e não trata os estrangeiros como eu de forma condescendente. Muitos ingleses teriam dito «a minha tia ensina Inglês na Universidade
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de Cambridge», mas você tomou como certo que eu sabia o que é um don, que Newnham é uma das cinco universidades para mulheres que existem em Cambridge e que blue stocking é uma rapariga que aspira ao conhecimento. Ao contrário daquele idiota do Adrian Sloane, que, como foi para Harrow, tem a mania da superioridade e acha que é uma pessoa muito instruída.
- Tenho a sensação de que detesta Sloane quase tanto como eu.
- Provavelmente mais ainda, depois da sua última tramóia quando tentou vender-me o seu banco.
- Mas o banco não é dele para o vender. Pelo menos, enquanto a viúva de Cedric Hardcastle continuar a deter cinquenta e um por cento das ações.
- Mas ela já não as tem - replicou Bishara. - Desmond Mellor adquiriu recentemente todas as suas ações.
- Isso não é possível - exclamou Seb. - Mellor é um homem abastado, mas não a esse ponto. Ia precisar de pelo menos vinte milhões, antes de poder deitar a mão a cinquenta e um por cento das ações do Farthings, e ele não tem esse dinheiro.
- Será por isso que o homem que estava a transpirar quando eu estava na sala do conselho do Farthings quer falar comigo? - indagou Bishara, quase que a falar consigo mesmo. - Será que Mellor foi além dos seus limites e, agora que a minha oferta já não está em cima da mesa, precisa de se livrar das ações?
- Qual oferta? - perguntou Seb, sem tocar na bebida.
- Concordei em pagar cinco libras por ação pela participação de Arnold Hardcastle ou, para ser mais exato, da mãe de Arnold Hardcasde. Preparava-me para assinar o contrato quando Sloane decidiu aumentar o preço para seis libras. Por isso, retirei a minha oferta, levantei a tenda, juntei os meus camelos e voltei para o deserto.
Seb riu-se.
- Mas a cinco libras ele e Mellor teriam ganhado uma pequena fortuna!
- Aí é que está! O senhor Clifton teria cumprido o acordo e não teria tentado alterar o preço no último momento. Mas Sloane vê-me apenas como um negociante de tapetes de quem se pode aproveitar. Mas se eu conseguir resposta para duas perguntas antes de me encontrar amanhã com Mellor, ainda posso adquirir o Farthings e, ao
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contrário de Sloane, gostaria de contar consigo no conselho de administração.
- O que precisa de saber?
- Se foi Mellor quem comprou as ações da senhora Hardcastle e, se assim foi, quanto pagou por elas.
- A primeira coisa que vou fazer amanhã de manhã é telefonar a Arnold Hardcastle. Mas devo avisá-lo de que ele é advogado e, embora deteste Sloane quase tanto como eu, nunca comprometeria o direito de um cliente à confidencialidade. Mas isso não me impedirá de tentar. A que horas é a sua reunião com Mellor?
- Meio-dia, no meu escritório.
- Telefono-lhe assim que falar com Arnold Hardcastle.
- Obrigado - disse Bishara. - Passemos agora a assuntos mais importantes. A sua primeira lição na arte dúbia do gamão. Um dos poucos jogos que os ingleses não inventaram. A coisa mais importante a ter presente em relação ao gamão é que tem tudo que ver com percentagens. Desde que consiga calcular as probabilidades depois de cada lançamento de dados, nunca será derrotado por um adversário inferior. A sorte só entra na equação quando dois jogadores são de craveira idêntica.
- Não é muito diferente da atividade bancária - comentou Seb enquanto tomavam os seus lugares em lados opostos do tabuleiro.
Quando Harry abriu os olhos, tinha uma dor de cabeça tão forte que levou algum tempo a conseguir focar a vista. Tentou levantar a cabeça, mas não teve força para isso. Deixou-se estar imóvel, sentindo-se como se estivesse a voltar a si depois de uma anestesia. Abriu novamente os olhos e fitou o teto. Um bloco de betão com várias rachas, e de uma delas pingava água, como uma torneira que não foi bem fechada.
Virou a cabeça lentamente para a esquerda. A condensação na parede estava tão perto que ele podia ter-lhe tocado se não estivesse algemado à cama. Virou-se para o outro lado e viu uma porta com uma janela quadrada, através da qual poderia ter fugido, como Alice, se não tivesse três barras de ferro e dois guardas do outro lado.338
Tentou mexer os pés, mas também estavam presos à cama. Porquê tantas precauções em relação a um inglês que tinha sido apanhado com um livro proibido? Embora os primeiros sete capítulos fossem fascinantes, ele pressentia que ainda não descobrira a verdadeira razão para os exemplares terem sido todos destruídos, o que só o deixava mais decidido a ler os restantes catorze capítulos. Eles também poderiam explicar porque é que estava a ser tratado como se fosse um agente duplo ou um assassino em massa.
Harry não tinha forma de saber há quanto tempo estava na cela. Tinham-lhe tirado o relógio e nem sequer tinha a certeza se era noite ou dia. Começou a cantar «God Save the Queen», não como um ato de patriotismo provocador, mas mais porque queria ouvir o som da sua própria voz. Na verdade, se lhe tivessem perguntado, Harry teria admitido que preferia o hino nacional russo.
Dois olhos espreitaram através das barras, mas ele ignorou-os e continuou a cantar. A seguir, ouviu alguém a gritar uma ordem e, passados instantes, a porta abriu-se e o coronel Marinkin voltou a aparecer, acompanhado pelos seus dois rottweilers.
- Senhor Clifton, tenho de pedir desculpa pelo estado do seu alojamento. É só porque não queríamos que ninguém soubesse onde estava antes de o libertarmos.
As palavras «de o libertarmos» soaram a Harry como a trombeta do anjo Gabriel.
- Deixe-me assegurar-lhe que não temos qualquer desejo de retê-lo por mais tempo do que o necessário. Apenas alguma papelada para completar e uma declaração para o senhor assinar, e depois pode ir-se embora.
- Uma declaração? Que tipo de declaração?
- É mais uma confissão - admitiu o coronel. - Mas, assim que a assinar, levam-no de volta ao aeroporto e pode ir para casa.
- E se eu me recusar a assiná-la?
- Isso seria uma tremenda tolice, senhor Clifton, porque nesse caso enfrentaria um julgamento em que a acusação, o veredito e a sentença já foram decididos. Uma vez, descreveu um julgamento fantoche num dos seus livros. Assim, poderá dar uma representação muito mais exata quando escrever o seu próximo romance - fez uma pausa - daqui a doze anos.
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- Então e o júri?
- Doze trabalhadores do partido cuidadosamente selecionados, cujo vocabulário só precisa de abarcar a palavra culpado. E só para que saiba o seu presente alojamento é de cinco estrelas comparado com o sítio onde iria parar. Os tetos não gotejam porque a água está congelada noite e dia.
- Nunca escaparão impunes.
- É tão ingénuo, senhor Clifton. Aqui, não tem amigos em altos cargos para cuidar de si. É um vulgar criminoso. Não haverá advogado para o aconselhar, nem para defender o seu caso frente a um júri imparcial. E, ao contrário do que acontece na América, não há seleção de júri e nem sequer temos de pagar aos juízes para conseguirmos o veredito que queremos. Vou deixá-lo pensar nas opções que tem, mas, na minha opinião, a escolha é simples. Pode regressar a Londres num avião da BOAC, em primeira classe, ou apanhar um comboio de gado para Novaya Uda, que só tem vagões com palha e que mesmo assim terá de partilhar com vários outros animais. E sinto que é meu dever avisá-lo de que se trata de uma prisão de onde nunca ninguém escapou.
Falso, pensou Harry, ao lembrar-se do capítulo 3 de Unck Joe. Era a prisão para onde Stalin fora enviado em 1902 e de onde fugira.
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- Como estás, meu rapaz?
- Bem, obrigado, Arnold. E o senhor?
- Nunca estive melhor. E a tua querida mãe?
- Está a preparar-se para o julgamento na semana que vem.
- Não é uma experiência muito agradável, sobretudo quando está tanta coisa em jogo. Fala-se nos bastidores que é impossível prever quem irá ganhar, mas as probabilidades estão a aumentar para a tua mãe, pois ninguém acha que Lady Virgínia se torne muito simpática aos olhos dos jurados. Há de tratá-los de forma condescendente ou então insultá-los.
- Ambas as coisas, espero eu.
- Bem, porque é que me estás a ligar, Sebastian? É que eu, normalmente, cobro à hora, mas o relógio ainda não está a contar.
Seb ter-se-ia rido, mas desconfiava que Arnold não estava a brincar.
- Diz-se na City que vendeu as suas ações do Farthings Bank.
- As ações da minha mãe, para ser mais exato, e só depois de me terem feito uma oferta que teria sido uma enorme tolice recusar. E mesmo assim só concordei quando me asseguraram que Adrian Sloane seria afastado da presidência e que Ross Buchanan ocuparia o seu lugar.
- Mas isso não vai acontecer - disse Seb. - O representante de Sloane mentiu-lhe e posso prová-lo, se me puder responder a duas perguntas.
- Só se não envolverem um cliente que eu represente.341
- Entendido - disse Seb -, mas esperava que me pudesse dizer quem comprou as ações da sua mãe e quanto é que pagaram por elas.
- Não posso responder a isso, pois isso violaria a obrigação de confidencialidade relativamente ao cliente. - Seb preparava-se para praguejar quando Arnold acrescentou: - No entanto, se sugerires o nome do representante de Sloane e eu ficar calado, podes tirar as tuas próprias conclusões. Mas olha, Sebastian, que fique bem claro: um nome, e apenas um nome. Isto não é uma lotaria.
- Desmond Mellor. - Seb susteve a respiração por vários segundos, mas não houve resposta. - E há alguma hipótese de me dizer quanto é que ele pagou pelas ações?
- Em circunstância alguma - disse Arnold com firmeza. - E agora tenho de me apressar, Seb. Vou ver a minha mãe ao Yorkshire e, se não partir imediatamente, perco o combóio das três e nove para Huddersfield. Dá cumprimentos à tua mãe e votos de boa sorte para o julgamento.
- E, por favor, transmita as minhas saudações à senhora Hardcastle - disse Seb, mas Arnold já não estava em linha.
Olhou para o relógio. Pouco passava das dez, o que não fazia sentido. Seb voltou a pegar no telefone e marcou o número privado de Hakim Bishara.
- Bom dia, Sebastian. Teve alguma sorte a tentar que o nosso distinto advogado respondesse às minhas duas perguntas?
- Sim, acho que sim.
- Estou cada vez mais curioso.
- Ele confirmou que foi Desmond Mellor quem comprou as ações, e eu creio que o preço que ele pagou foi de três libras e nove xelins por ação.
- Porque é que não tem a certeza? Das duas, uma: ou ele disse o preço ou não.
- Nem disse nem deixou de dizer. Mas o que ele disse foi que tinha de sair imediatamente, senão perdia o comboio das três e nove para Huddersfield, e como passa pouco das dez da manhã e Euston fica apenas a vinte minutos de táxi...
- Inteligente, esse tal Hardcastle! Tenho a certeza de que nem precisamos de verificar se existe, ou não, um comboio para Huddersfield
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às três e nove. Parabéns, pois desconfio que nenhuma outra pessoa teria conseguido arrancar-lhe essa informação. Portanto, como dizem no meu país, ficarei eternamente em dívida para consigo, até ter sido totalmente ressarcido.
- Bem, agora que fala nisso, Hakim, há uma coisa em que talvez me possa ajudar.
Bishara escutou atentamente o pedido de Seb.
- Não sei se o chefe dos escuteiros aprovaria o que sugere. Vou ver o que posso fazer, mas não prometo nada.
- Bom dia, senhor Mellor. Acho que já conhece o meu advogado, Jason Moreland, e o chefe da contabilidade, Nick Pirie.
Mellor apertou a mão a ambos os homens antes de se sentar com eles à volta de uma mesa oval.
- Como pertence ao conselho de administração do Farthings - disse Bishara -, presumo que vem aqui na qualidade de emissário do senhor Sloane.
- Então presume mal - respondeu Mellor. - Ele é o último homem que eu estaria disposto a representar fosse em que negociação fosse. Sloane foi um perfeito idiota quando recusou a sua oferta.
- Mas ele disse-me que tinha uma oferta de seis libras em cima da mesa de uma respeitável instituição da City.
- E o senhor sabia que não era verdade e foi por isso que se foi embora.
- E o senhor está disposto a voltar atrás porque, antes de mais, as ações nunca foram dele para as vender.
- A verdade - disse Mellor - é que ele estava a jogar roleta russa com uma bala minha e afinal era um cartucho sem bala. Porém, estou disposto a vender-lhe cinquenta e um por cento das ações do banco pelas cinco libras por ação que ofereceu originalmente.
- Originalmente é a palavra certa, senhor Mellor. Mas essa oferta já não está em cima da mesa. No fim de contas, é possível comprar ações do Farthings no mercado aberto por duas libras e onze xelins por ação, e há várias semanas que ando a fazê-lo.
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- Mas não os cinquenta e um por cento que pretende e que lhe dariam controlo global sobre o banco. De qualquer forma, não posso vendê-las por esse preço.
- Não - disse Bishara -, com certeza que não. Mas pode vendê-las por três libras e nove xelins por ação.
A boca de Mellor abriu-se e não se fechou durante algum tempo.
- Não dá para ser quatro libras?
- Não, não dá, senhor Mellor. Três libras e nove xelins é a minha oferta final. - Bishara virou-se para o chefe da contabilidade e este entregou-lhe um cheque no valor de 20 562 000 libras. Pô-lo em cima da mesa.
- Posso estar enganado, senhor Mellor, mas tenho a sensação de que não se pode dar ao luxo de cometer o mesmo erro duas vezes.
- Onde é que assino?
O senhor Moore abriu uma pasta e pôs três contratos idênticos em frente de Mellor. Depois de os assinar, estendeu a mão à espera de que lhe entregassem o cheque.
- E tal como o senhor Sloane - disse Bishara enquanto tirava a tampa da caneta -, antes de juntar a minha assinatura ao contrato, solicito uma pequena emenda que prometi a um amigo.
Mellor olhou-o com ar de desafio.
- E em que consiste?
O advogado abriu uma segunda pasta, tirou uma carta e pô-la à frente de Mellor. Ele leu-a devagar.
- Eu não posso assinar isto. Nunca!
- Lamento saber disso - replicou Bishara, pegando no cheque e devolvendo-o ao chefe da contabilidade.
Mellor não se mexeu, mas, quando começou a transpirar, Bishara percebeu que era apenas uma questão de tempo.
- Está bem, está bem - disse Mellor. - Eu assino a maldita carta!
O advogado verificou a assinatura antes de voltar a colocar a carta na pasta. Nessa altura, Bishara assinou os três contratos e o chefe da contabilidade entregou a Mellor uma cópia e um cheque de 20 562 000 libras. Mellor saiu sem dizer palavra. Nem sequer agradeceu a Bishara e não apertou a mão a ninguém.
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- Se ele tivesse percebido que eu estava a fazer bluff- disse Bishara ao advogado depois de a porta se fechar -, eu teria feito o negócio sem que ele tivesse de assinar a carta.
Harry analisou a declaração que esperavam que ele lesse em tribunal. Teria de confessar que era um agente britânico que trabalhava para o MI5. Se o fizesse, seria imediatamente libertado e deportado para o seu país, nunca mais sendo autorizado a regressar à União Soviética.
É claro que a família e os amigos não fariam caso da declaração. Outros podiam achar que ele não tivera escolha. Mas a maioria das pessoas não o conhecia. Iam presumir que era verdade e que a sua luta em nome de Babakov não passava de uma cortina de fumo para encobrir a espionagem. Bastava uma assinatura e seria um homem livre, mas a sua reputação ficaria destruída e, mais importante ainda, a causa de Babakov ficaria irremediavelmente perdida. Não, não estava disposto a sacrificar a sua reputação nem Anatoly Babakov com essa facilidade.
Rasgou a confissão e atirou os pedacinhos de papel ao ar como quem lança confetti sobre uma noiva.
Quando o coronel regressou uma hora mais tarde, munido apenas de uma caneta, olhou incrédulo para os papelinhos espalhados pelo chão.
- Só um inglês podia ser tão estúpido - observou, antes de dar meia-volta e sair da cela, batendo com a porta atrás de si.
Ele tem razão, pensou Harry, e depois fechou os olhos. Sabia exatamente como pretendia passar as horas que tivesse livres. Ia tentar recordar o máximo possível dos primeiros sete capítulos de Uncle Joe. Começou a concentrar-se. Capítulo 1...
Josef Stalin nasceu Iossif Vissariónovitch Djugashvili em Gori, Geórgia, a 18 de dezembro de 1878. Em criança, era conhecido por Soso, mas, quando se tornou um jovem revolucionário, adotou o pseudónimo Koba, como uma personagem ficcional inspirada em Kobin Hood com quem queria ser comparado, embora na verdade fosse mais como o xerife de Nottingham. A medida que foi subindo dentro do partido e que a sua influência foi crescendo, mudou o nome para Stalin («Homem de Aço»). Mas...
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- Finalmente, uma boa notícia - disse Emma - e queria que fosses o primeiro a saber.
- Lady Virgínia caiu dentro de uma betoneira e agora faz parte de um arranha-céus em Lambeth? - aventou Seb.
- Não é assim tão boa, mas quase.
- O pai regressou com um exemplar de Unckjoe?
- Não, ainda não voltou, embora tenha prometido que não demorava mais de dois dias.
- Ele disse-me que era capaz de visitar o Hermitage e de ir ver mais algumas atrações locais enquanto lá estava, por isso não precisa de se preocupar. Mas vá lá, mãe, qual é a notícia?
- Desmond Mellor demitiu-se do conselho da Barrington's.
- Deu alguma razão?
- Foi muito vago, limitou-se a dizer que o fazia por motivos pessoais e que desejava o maior sucesso à companhia no futuro. Até fazia votos para que o julgamento corresse pelo melhor.
- Que atencioso!
- Porque é que tenho a nítida sensação de que a minha notícia não te surpreende? - indagou Emma.
- Senhor presidente, o senhor Clifton chegou. Mando-o entrar?
- Sim, mande. - Sloane recostou-se na cadeira, encantado com o facto de Clifton ter finalmente caído em si. Mas ainda tencionava fazê-lo passar um mau bocado.
Passados alguns segundos, a secretária abriu a porta e afastou-se para o lado para deixar Sebastian entrar no gabinete do presidente.
- Deixe-me dizer-lhe desde já, Clifton, que a minha oferta de cinco libras por ação pelos seus seis por cento, já não está em cima da mesa. Mas, como sinal de boa vontade, estou preparado para lhe oferecer três libras por ação, o que ainda é um valor bem acima da cotação desta manhã.
- É verdade, mas as minhas ações continuam a não estar à venda.
- Nesse caso, porque é que me faz perder tempo?
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- Espero não estar a fazê-lo perder tempo, pois, enquanto novo vice-presidente do Farthings Bank, estou aqui para levar a cabo a minha primeira ação executiva.
- De que diabo está você a falar? - perguntou Sloane, pondo-se em pé de um salto.
- Às doze e trinta desta tarde, o senhor Desmond Mellor vendeu a sua participação de cinquenta e um por cento no Farthings ao senhor Hakim Bishara.
- Mas, Sebastian...
- O que também tornou possível ao senhor Mellor cumprir finalmente a sua palavra.
- Onde quer chegar?
- Mellor prometeu a Arnold Hardcastle que o senhor seria destituído do conselho de administração e que Ross Buchanan seria o próximo presidente do Farthings.

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Página em branco

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HARRY E EMMA
1970

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- Onde está Harry? - gritou um dos jornalistas quando o táxi parou à porta do Royal Courts of Justice e Emma, Giles e Sebastian saíram do carro.
A única coisa para que Emma não estava preparada era para os vinte ou trinta fotógrafos alinhados atrás de duas barreiras improvisadas de ambos os lados da entrada do tribunal, a disparar os flashes. Os jornalistas gritavam perguntas, embora não esperassem obter resposta. A mais insistente era: «Onde está Harry?»
- Não respondas - disse Giles com firmeza.
Se eu ao menos soubesse, era o que Emma tinha vontade de lhes dizer enquanto passava entre as duas filas de jornalistas, pois quase não pensara noutra coisa durante as últimas quarenta e oito horas.
Seb correu à frente da mãe e abriu a porta do tribunal para que o seu andamento não fosse entravado. O senhor Trelford estava à espera dela do outro lado da porta dupla, com a sua longa toga preta e uma peruca desbotada. Emma apresentou o irmão e o filho ao ilustre advogado. Se Trelford ficou surpreendido pelo facto de o senhor Clifton não estar presente, não o demonstrou.
O advogado levou-os pela larga escadaria de mármore, explicando a Emma o que aconteceria na primeira manhã do julgamento.
- Depois de os membros do júri terem prestado juramento, a meritíssima juíza Lane falará com eles acerca das suas responsabilidades e, quando terminar, irá convidar-me a fazer uma declaração de abertura em seu nome. Quando eu acabar, chamarei a minha primeira testemunha. Vou começar por si. As primeiras impressões são muito
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importantes. Os jurados decidem-se muitas vezes nos primeiros dois dias de um julgamento, portanto, tal como o batedor que abre um jogo de críquete, se marcar cem pontos, é só disso que se irão lembrar.
Quando Trelford abriu a porta número 14, a primeira pessoa que Emma viu ao entrar na sala de audiências foi Lady Virgínia com o seu advogado, Sir Edward Makepeace, reunidos a um canto, embrenhados na conversa.
Trelford conduziu Emma para o outro lado da sala, onde tomaram os seus lugares no banco da frente, com Giles e Seb na segunda fila, mesmo por trás deles.
- Porque é que o marido não está com ela? - perguntou Virgínia.
- Não faço ideia - respondeu Sir Edward -, mas posso assegurar-lhe que isso não terá influência no caso.
- Eu não teria tanta certeza - disse Virgínia, ao mesmo tempo que o relógio atrás deles batia discretamente as dez horas.
Abriu-se uma porta à esquerda do brasão real e apareceu uma mulher alta e elegante, com uma longa toga vermelha e peruca igualmente comprida, pronta para governar o seu domínio. Toda a gente que estava à sua frente se levantou de imediato e fez uma vénia. A juíza retribuiu a vénia antes de tomar o seu lugar na cadeira de espaldar alto em frente de uma secretária coberta de documentos jurídicos e de volumes encadernados a couro sobre as leis da difamação. Quando toda a gente se aquietou, a juíza Elizabeth Lane centrou a sua atenção no júri.
- Permitam-me que comece por deixar claro desde o início - disse ela, brindando-os com um caloroso sorriso - que vocês são as pessoas mais importantes que se encontram nesta sala. Vocês são a prova da nossa democracia e os únicos árbitros da justiça, pois serão vocês, e só vocês, que irão decidir o desfecho deste caso. Mas deixem-me dar-lhes um conselho. Como não podem deixar de ter reparado, este caso suscitou um interesse considerável por parte da imprensa, portanto evitem os relatos efetuados pelos meios de comunicação. Só a vossa opinião interessa. Eles podem ter milhões de leitores, espectadores e ouvintes, mas não têm um único voto nesta sala. O mesmo se aplica à vossa família e amigos, que não só podem ter351
opiniões sobre o caso, como podem gostar de manifestá-las. Mas, ao contrário de vocês - prosseguiu a juíza, sem nunca deixar de olhar para o júri -, não terão escutado a prova e, por conseguinte, não podem dar uma opinião informada e imparcial.
Agora, antes de explicar o que está prestes a acontecer, quero recordar-lhes a definição da palavra difamação, tal como expressa no Oxford English Dictionary: um descrédito falso e imerecido em relação a uma pessoa ou país. Neste caso, terão de decidir se Lady Virgínia Fenwick sofreu, ou não, tal difamação. O doutor Trelford iniciará o processo fazendo uma declaração de abertura em nome da sua cliente, a senhora Clifton, e, à medida que o julgamento for avançando, manter-vos-ei totalmente informados. Se surgir alguma matéria de Direito, mandarei parar o julgamento e tratarei de explicar-vos a sua importância.
A juíza Elizabeth virou a sua atenção para o banco dos advogados.
- Doutor Trelford, pode prosseguir com a declaração de abertura.
- Muito obrigado, meritíssima.
Trelford levantou-se do lugar, voltando a fazer uma pequena vénia. Tal como a juíza, virou-se para o júri antes de iniciar a sua declaração. Abriu uma grande pasta preta à sua frente, recostou-se, segurou nas lapelas da sua toga e brindou os sete homens e as cinco mulheres com um sorriso ainda mais caloroso do que o que a juíza lhes endereçara poucos minutos antes.
- Membros do júri - começou ele. - O meu nome é Donald Trelford e represento a arguida, a senhora Emma Clifton, ao passo que o meu douto amigo Sir Edward Makepeace representa a queixosa, Lady Virgínia Fenwick. - Fez um rápido aceno de cabeça em direção a eles. - Este - continuou - é um processo por calúnia e difamação. A calúnia surge porque as palavras em causa foram proferidas durante uma conversa acalorada, quando a arguida respondia a perguntas na assembleia-geral anual da Barrington Shipping Company, de que é presidente, e a difamação porque essas ditas palavras foram mais tarde registadas na ata da reunião.
»Lady Virgínia, acionista da companhia, estava sentada entre o público nessa manhã e, quando chegou a altura das perguntas, interpelou a senhora Clifton, dizendo: «É verdade que um dos vossos administradores vendeu a sua enorme participação acionista durante o fim352
de semana, numa tentativa de destruir a companhia?» Na sequência disto, voltou a fazer outra pergunta pouco tempo depois: «Se um dos vossos administradores esteve envolvido nessa operação, não deveria demitir-se do conselho?» A senhora Clifton respondeu: «Se está a referir-se ao major Fisher, pedi-lhe para se demitir na sexta-feira, quando me veio visitar no meu gabinete, como tenho a certeza de que saberá, Lady Virgínia.» A seguir, Lady Virgínia perguntou: «O que é que está a insinuar?» E a senhora Clifton respondeu: «Que em duas ocasiões distintas, quando o major Fisher a representava a si no conselho de administração, permitiu que ele vendesse todas as suas ações durante um fim de semana, e depois, após ter conseguido um belo lucro, recomprou-as durante o período de negociação de três semanas. Quando a cotação das ações recuperou e atingiu um novo máximo, levou a cabo a mesma operação uma segunda vez, conseguindo um lucro ainda maior. Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia, então... fracassou, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja um sucesso.»
Agora, membros do júri, é a resposta da senhora Clifton que é objeto desta ação, e cabe a vós decidir se Lady Virgínia foi difamada ou se as palavras da minha cliente não passaram, como eu defendo, de um comentário justo. Por exemplo - continuou Trelford, ainda a olhar diretamente para o júri - se um de vocês dissesse a Jack, o Estripador, «Você é um assassino», isso seria sem dúvida um comentário justo, mas se Jack, o Estripador, dissesse a qualquer dos membros do júri «Você é um assassino» e se essa alegação viesse depois impressa num jornal, isso seria indubitavelmente calúnia e difamação. Contudo, este caso requer uma apreciação mais cuidada.
»Por conseguinte, vamos olhar novamente para as palavras em causa. «Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia, então... fracassou, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja um sucesso.» Bem, o que é que a senhora Clifton queria dizer quando pronunciou essas palavras? E será possível que Lady Virgínia lhes tenha reagido de forma exagerada? Desconfio que, tendo apenas ouvido essas palavras pela minha boca, não se sintam capazes de chegar a uma conclusão até terem ouvido todas as provas reunidas neste processo e visto
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tanto a queixosa como a arguida no banco das testemunhas. Assim sendo, meritíssima, vou chamar a minha primeira testemunha, a senhora Emma Clifton.
Harry tinha-se habituado à presença contínua dos dois guardas com os seus uniformes verde-garrafa postados à porta da sua cela. Não sabia quanto tempo passara desde que aquela porta se abrira pela última vez, mas já tinha chegado mais ou menos a meio do capítulo 3 e a uma história que continuava a fazê-lo rir.
Yakov Bulgukov, o presidente da câmara de Romanovskaya, enfrentou um problema potencialmente perigoso quando decidiu mandar construir uma enorme estátua em honra de Stalin...
Estava tanto frio que Harry não conseguia parar de tremer. Tentou aproveitar para dormir uns minutos de sono glorioso, mas, precisamente quando estava a adormecer, a porta da cela abriu-se de repente. Por um momento, não teve a certeza se era real ou se fazia parte do seu sonho. Mas, nessa altura, os dois guardas tiraram-lhe as algemas dos braços e pernas, puxaram-no de cima do colchão e arrastaram-no para fora da cela.
Quando chegaram junto de um longo lanço de degraus em pedra, Harry fez um esforço decidido para os subir, mas as suas pernas estavam tão fracas que se foram abaixo muito antes de os três terem chegado ao cimo. Mesmo assim, os guardas continuaram a empurrá-lo para a frente ao longo de um corredor escuro até ele ter vontade de gritar de dor, mas recusou-se a dar-lhes essa satisfação.
De poucos em poucos passos, passava por soldados armados. Não teriam nada melhor para fazer, pensou Harry, do que guardar um homem de cinquenta anos que estava a dar as últimas? E lá continuaram até chegarem finalmente a uma porta aberta. Foi empurrado lá para dentro, aterrando bruscamente de joelhos.
Depois de recuperar o fôlego, Harry tentou pôr-se em pé. Como um animal encurralado, olhou à volta daquilo que devia ter sido uma sala de aula noutros tempos: bancadas de madeira, cadeiras pequenas e uma plataforma elevada numa ponta com uma grande mesa e três354
cadeiras de costas altas atrás dela. O quadro preto na parede do fundo denunciava o seu objetivo original.
Reuniu todas as suas forças e conseguiu ir até uma das bancadas. Não queria que eles pensassem que estava debilitado. Começou a estudar mais atentamente a disposição da sala. A direita do palco, havia doze cadeiras dispostas em duas filas de seis. Um homem que não estava de uniforme, mas envergava um fato cinzento que lhe assentava mal e que qualquer mendigo com amor-próprio teria rejeitado, estava a pôr uma única folha de papel em cada uma das cadeiras. Depois de ter completado a tarefa, sentou-se numa cadeira em frente do que Harry supôs ser a bancada do júri. Harry olhou mais atentamente para o homem e perguntou-se se seria o escrivão do tribunal, mas ele ficou simplesmente ali sentado, claramente à espera de que alguém aparecesse.
Harry virou-se e viu mais guardas com uniformes verdes e pesados sobretudos ao fundo da sala, como se estivessem à espera de que o prisioneiro tentasse fugir. Se ao menos um deles tivesse ouvido falar de São Martinho, podia ser que se condoesse e cortasse o sobretudo ao meio para o partilhar com o homem enregelado vindo de outro país.
Enquanto estava sentado à espera, sem saber de quê, os pensamentos de Harry viraram-se para Emma, tal como acontecera tantas vezes entre momentos de sono. Será que ela ia compreender porque é que ele não podia assinar a confissão? Que isso seria deixá-los martelar mais um prego no caixão de Babakov? Perguntou-se como estaria a correr o julgamento dela e sentiu-se culpado por não estar ao seu lado.
Os seus pensamentos foram interrompidos quando uma porta se abriu do outro lado da sala e sete mulheres e cinco homens entraram e se sentaram nos lugares atribuídos, dando a nítida sensação de que não era a primeira vez que desempenhavam a tarefa.
Não houve um que o olhasse sequer de relance, o que não impediu Harry de olhá-los fixamente. Os seus rostos inexpressivos sugeriam que apenas tinham uma coisa em comum: as suas mentes haviam sido confiscadas pelo Estado e já não se esperava que tivessem opinião própria. Mesmo naquele momento tenebroso, Harry pensou355
na vida privilegiada que tivera. Seria possível que entre aqueles clones desenxabidos houvesse um cantor, um artista, um ator, um músico, até mesmo um autor, que nunca tivera oportunidade de expressar o seu talento?
Passados uns instantes, outros dois homens entraram na sala, dirigiram-se à primeira bancada e sentaram-se de frente para o palco e de costas para ele. Um devia andar na casa dos cinquenta e estava muito mais bem vestido do que qualquer outra pessoa naquela sala. O fato assentava-lhe bem, e tinha um ar confiante que sugeria que era o tipo de profissional que até mesmo uma ditadura necessita se quiser que o regime funcione sem problemas.
O outro homem era muito mais novo e não parava de olhar à volta da sala, como se estivesse a tentar saber onde estava. Se aqueles dois eram os advogados de acusação e defesa, Harry não tinha dificuldade em perceber qual deles o representaria.
Por fim, a porta atrás da plataforma abriu-se, para que os atores principais pudessem entrar: eram três ao todo, uma mulher e dois homens, e sentaram-se atrás da mesa comprida que estava ao centro do palco.
A mulher, que devia andar na casa dos sessenta e tinha o cabelo grisalho apanhado num rolo, podia ser uma professora reformada. Harry até se perguntou se aquela não teria sido em tempos a sua sala de aulas. Era claramente a pessoa mais velha ali presente, pois todos os outros estavam a olhar para ela. Abriu o processo à sua frente e começou a ler em voz alta. Harry agradeceu mentalmente à sua professora russa por tê-lo obrigado a ler os clássicos russos antes de o mandar traduzir capítulos inteiros para inglês.
- O prisioneiro - Harry presumiu que ela se referia a ele, embora nem por uma vez tivesse dado sinal de notar a sua presença - entrou recentemente na União Soviética de forma ilegal - Harry gostaria de tirar notas, mas não lhe tinham dado caneta nem papel, por isso teria de confiar na sua memória, partindo do princípio de que lhe dariam oportunidade de se defender - com o único propósito de infringir a lei. - Virou-se para o júri sem sorrir. - Vocês, camaradas, foram escolhidos para deliberar se o prisioneiro é ou não culpado. As testemunhas irão ajudá-los a formar esse juízo.356
- Senhor Kosanov - disse ela, virando-se para o advogado do Estado -, pode agora apresentar a acusação.
O mais velho dos dois homens sentados na primeira bancada pôs-se lentamente em pé.
- Camarada comissária, este é um caso simples que não deve incomodar o júri por muito tempo. O prisioneiro é um conhecido inimigo do Estado e este não é o seu primeiro delito.
Harry mal podia esperar para saber qual tinha sido o primeiro. Não tardou a descobrir.
- O prisioneiro visitou Moscovo há cerca de cinco anos como convidado do nosso país e aproveitou-se cinicamente do seu estatuto privilegiado. Usou o discurso de abertura numa conferência internacional para lançar uma campanha a favor da libertação de um criminoso confesso que já se havia declarado culpado de sete crimes contra o Estado. A camarada comissária conhece bem Anatoly Babakov como o autor de um livro sobre o nosso venerado líder, o camarada presidente Stalin, pelo qual foi acusado de difamação sediciosa e sentenciado a doze anos de trabalhos forçados.
O prisioneiro repetiu estas difamações, apesar de lhe ter sido feito notar por mais de uma ocasião que estava a infringir a lei - Harry não se lembrava disso, a menos que a jovem vestida sumariamente, que fora ao seu quarto de hotel a meio da noite, tivesse intenção de entregar essa mensagem juntamente com a garrafa de champanhe -, mas a bem das relações internacionais e para demonstrar a nossa magnanimidade, permitimos-lhe que regressasse ao Ocidente, onde este tipo de difamação e calúnia é o pão nosso de cada dia. As vezes, perguntamo-nos se os britânicos se lembrarão que fomos seus aliados durante a última guerra e que o nosso líder na altura era precisamente o camarada Stalin.
»No início do ano, o prisioneiro viajou para os Estados Unidos com o único propósito de estabelecer contacto com a esposa de Babakov, que desertou para o Ocidente dias antes de o marido ser preso. Foi a traidora Yelena Babakov que contou ao prisioneiro onde tinha escondido um exemplar do livro sedicioso do marido. Munido desta informação, o prisioneiro regressou à União Soviética para concluir a sua missão: localizar o livro, levá-lo clandestinamente para o Ocidente e mandá-lo publicar.
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Poderá perguntar, camarada comissária, porque é que o prisioneiro estava disposto a envolver-se numa aventura tão arriscada. A resposta é muito simples. Ganância. Ele esperava fazer uma grande fortuna para si próprio e para a senhora Babakov vendendo essas infâmias a quem as quisesse publicar, mesmo sabendo que o livro era pura invenção do princípio ao fim e que tinha sido escrito por um homem que só tinha estado com o nosso venerado ex-líder uma vez, quando era estudante.
»Mas, graças ao brilhante trabalho de investigação efetuado pelo coronel Marinkin, o prisioneiro foi detido quando tentava fugir de Leninegrado com uma cópia do livro de Babakov na mala. Para que o tribunal possa compreender plenamente até onde é que este criminoso estava disposto a ir para minar a credibilidade do Estado, vou chamar a minha primeira testemunha, o camarada coronel Vitaly Marinkin.
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Emma pensou que as suas pernas iam fraquejar ao percorrer a curta distância até ao banco das testemunhas. Quando o escrivão lhe entregou uma Bíblia, toda a gente pôde ver as suas mãos a tremer. E, a seguir, ouviu a sua própria voz.
- Juro perante Deus dizer a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade.
- Diga por favor o seu nome, para que conste - disse o senhor Trelford.
- Emma Grace Clifton.
- E a sua ocupação?
- Sou presidente da Barrington Shipping Company.
- E há quanto tempo é presidente dessa distinta companhia?
- Há onze anos.
Emma viu a cabeça do senhor Trelford virar-se bruscamente da direita para a esquerda e depois lembrou-se das palavras dele: «Escute cuidadosamente as minhas perguntas, mas dirija sempre as suas respostas ao júri.»
- É casada, senhora Clifton?
- Sim - disse Emma, virando-se para o júri -, há quase vinte e cinco anos.
O senhor Trelford teria gostado que ela acrescentasse: «O meu marido Harry, o nosso filho Sebastian e o meu irmão Giles estão todos presentes no tribunal. Nessa altura, podia virar-se para eles e o júri perceberia que eram uma família feliz e unida. Mas Harry não estava ali, na verdade Emma nem sequer sabia onde ele estava, por isso continuou a olhar para o júri. O senhor Trelford avançou rapidamente:359
- Pode fazer o favor de dizer ao tribunal quando é que conheceu Lady Virgínia Fenwick?
- Sim - disse Emma, voltando ao seu guião. - O meu irmão Giles... Desta vez, olhou para ele e, como um profissional experimentado, Giles sorriu primeiro para a irmã e depois para o júri. - O meu irmão Giles - repetiu - convidou-nos, a mim e ao meu marido Harry, para jantar e conhecer a mulher de quem acabara de ficar noivo.
- E qual foi a sua primeira impressão de Lady Virgínia?
- Deslumbrante. O tipo de beleza que normalmente associamos apenas a estrelas de cinema ou a modelos atraentes. Percebi rapidamente que Giles estava completamente apaixonado por ela.
- E tornaram-se amigas com o tempo?
- Não, mas para ser justa era pouco provável tornarmo-nos amigas do peito.
- Porque diz isso, senhora Clifton?
- Não tínhamos os mesmos interesses. Eu nunca fiz parte do círculo de caça, tiro e pesca. Sinceramente, vimos de contextos sociais diferentes e Lady Virgínia movimentava-se num círculo em que eu normalmente não me integraria.
- Tinha ciúmes dela?
- Só da sua beleza - disse Emma com um sorriso rasgado. Isto foi recompensado com vários sorrisos na bancada do júri.
- Mas, infelizmente, o casamento do seu irmão e de Lady Virgínia acabou em divórcio.
- O que não foi surpresa para ninguém, pelo menos do nosso lado da família - disse Emma.
- E porquê, senhora Clifton?
- Nunca senti que ela fosse a pessoa certa para Giles.
- Então, a senhora e Lady Virgínia não ficaram amigas?
- Nós nunca o tínhamos sido, senhor Trelford.
- Mesmo assim, ela voltou a entrar na sua vida alguns anos mais tarde, certo?
- Sim, mas não foi uma escolha minha. Virgínia começou a comprar um grande número de ações da Barrington's, o que me deixou
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surpreendida, pois ela nunca tinha mostrado interesse na companhia. Não pensei muito no assunto até que o secretário da companhia me informou de que ela detinha sete e meio por cento das ações.
- Porque é que essa percentagem era tão importante?
- Porque lhe dava direito a um lugar no conselho de administração.
- E ela assumiu essa responsabilidade?
- Não, nomeou o major Alex Fisher para a representar.
- Recebeu bem essa nomeação?
- Não, não recebi. Desde o primeiro dia que o major Fisher deixou perfeitamente claro que só lá estava para cumprir os desejos de Lady Virgínia.
- Pode ser mais específica?
- Com certeza. O major Fisher votava quase sempre contra qualquer proposta que eu fizesse ao conselho e, muitas vezes, vinha com ideias que tinha obrigação de saber que só podiam prejudicar a companhia.
- Mas o major Fisher acabou por se demitir.
- Se não o tivesse feito, eu tinha-o despedido.
O senhor Trelford franziu o sobrolho, nada satisfeito com o facto de a sua cliente se ter desviado do combinado. Sir Edward sorriu e tomou uma nota no bloco que tinha à sua frente.
- Gostava, agora, de passar à assembleia-geral anual realizada em Colston Hall, Bristol, na manhã de vinte e quatro de agosto de 1964. A senhora era a presidente, na altura, e...
- Talvez a senhora Clifton nos possa contar pelas suas próprias palavras, doutor Trelford - sugeriu a juíza. - Em vez de ser constantemente conduzida por si.
- Como queira, meritíssima.
- Tinha acabado de apresentar o relatório anual - disse Emma -, que correra bastante bem, quanto mais não fosse porque tinha conseguido anunciar a data para o lançamento à água do nosso primeiro paquete de luxo, o Buckingham.
- E se bem me lembro - disse Trelford - a cerimónia de batismo ia ser efetuada por Sua Majestade, a rainha-mãe...
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- Muito engenhoso, doutor Trelford, mas não teste a minha paciência.
- Peço desculpa, meritíssima, pensei apenas...
- Sei muito bem o que pensou, doutor Trelford. Agora, por favor, deixe a senhora Clifton ser a sua própria porta-voz.
- No final do seu discurso - disse Trelford, virando-se para a sua cliente -, respondeu a perguntas da assistência?
- Sim, respondi.
- E Lady Virgínia Fenwick esteve entre as pessoas que fizeram perguntas. Como o resultado deste julgamento depende dessa conversa, com a sua permissão, meritíssima, vou ler ao tribunal as palavras proferidas pela senhora Clifton e que são a causa deste julgamento. Em resposta a uma pergunta de Lady Virgínia, ela disse: «Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia, então... fracassou, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja um sucesso.» Agora, que voltou a ouvir estas palavras com calma, senhora Clifton, arrepende-se de as ter dito?
- Claro que não! Não eram mais do que uma constatação.
- Então, nunca foi sua intenção difamar Lady Virgínia?
- Longe disso. Queria simplesmente que os acionistas soubessem que o major Fisher, o seu representante no conselho de administração, tinha andado a comprar e a vender as ações da companhia sem me informar a mim ou a qualquer dos seus colegas.
- Absolutamente. Obrigado, senhora Clifton. Não tenho mais perguntas, meritíssima.
- Deseja interrogar esta testemunha, Sir Edward? - perguntou a juíza Lane, ciente de qual seria a resposta.
- Certamente, meritíssima - respondeu Sir Edward, levantando-se lentamente do lugar e ajustando a peruca antiga. Consultou a sua primeira pergunta antes de se encostar para trás e brindar o júri com o seu sorriso mais amigável, na esperança de que o vissem como um respeitado amigo da família a quem toda a gente pede conselho.
- Senhora Clifton - disse ele, virando-se para o banco das testemunhas -, não vamos estar com rodeios. A verdade é que foi contra
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o casamento do seu irmão com Lady Virgínia desde que se conheceram. Aliás, dava-se mesmo o caso de já ter decidido que não gostava dela antes de a conhecer...
Trelford ficou surpreendido. Não esperava que Eddie atacasse tão rapidamente, embora tivesse avisado Emma de que o contrainterrogatório não ia ser uma experiência agradável.
- Como eu disse, Sir Edward, não éramos as melhores amigas.
- Mas é ou não verdade que decidiu desde o início tratá-la como inimiga?
- Não chegaria a esse ponto.
- Foi ao casamento do seu irmão com Lady Virgínia?
- Não fui convidada.
- Ficou surpreendida com isso, depois da forma como a tratara?
- Mais desapontada do que surpreendida.
- E o seu marido - disse Sir Edward olhando demoradamente à volta da sala como se estivesse a tentar encontrá-lo - foi convidado?
- Nenhum membro da família recebeu convite.
- E qual pensa que foi o motivo?
- Terá de perguntar à sua cliente, Sir Edward.
- E pretendo fazê-lo, senhora Clifton. Permita-me que passe agora à morte da sua mãe. Segundo sei, houve um diferendo em relação ao seu testamento.
- Que foi resolvido no Supremo Tribunal, Sir Edward.
- Sim, é verdade. Mas corrija-me se estiver enganado, como estou certo de que fará, senhora Clifton. A senhora e a sua irmã Grace herdaram quase todos os bens, ao passo que o seu irmão, o marido de Lady Virgínia, ficou sem nada.
- Essa escolha não foi minha, Sir Edward. Na verdade, até tentei dissuadir a minha mãe de fazer isso.
- Temos apenas a sua palavra, senhora Clifton. O senhor Trelford levantou-se rapidamente.
- Meritíssima, tenho de protestar.
- Sim, sim, doutor Trelford, concordo. Sir Edward, isso era escusado.363
- Peço desculpa, meritíssima. Posso perguntar-lhe, senhora Clifton, se Sir Giles ficou chocado com a decisão da vossa mãe?
- Sir Edward - disse a juíza, ainda antes do senhor Trelford se poder levantar.
- Peço desculpa, meritíssima. É apenas o velho hábito de procurar a verdade.
- Foi um choque terrível para todos nós - disse Emma. - A minha mãe adorava o Giles.
- Mas, tal como a senhora, é óbvio que não adorava Lady Virgínia, caso contrário tê-lo-ia contemplado no testamento. - Sir Edward acrescentou rapidamente: - Mas avancemos. Infelizmente, o casamento do seu irmão com Lady Virgínia terminou em divórcio devido ao adultério por ele cometido.
- Como bem sabe, Sir Edward - disse Emma, tentando controlar-se -, naquele tempo um homem tinha de passar uma noite num hotel em Brighton com uma mulher contratada para o efeito, se quisesse que o tribunal lhe concedesse o divórcio. Giles fez isso a pedido de Virgínia.
- Lamento imenso, senhora Clifton, mas na ação de divórcio consta apenas adultério. Mas, pelo menos, agora todos sabemos como reage quando leva alguma coisa muito a peito.
Bastou olhar para o júri para ver que Sir Edward tinha conseguido provar o que queria.
- Uma última pergunta em relação ao divórcio, senhora Clifton. Foi motivo de celebração para si e para a sua família?
- Meritíssima - disse Trelford, pondo-se em pé de um salto.
- Sir Edward, está uma vez mais a ultrapassar os limites.
- Vou esforçar-me por não o fazer daqui para a frente, meritíssima.
Mas quando Trelford olhou para o júri, soube que Sir Edward devia ter sentido que a reprimenda servira o seu propósito.
- Senhora Clifton, vamos passar a assuntos mais importantes, nomeadamente àquilo que disse e ao que queria dizer com isso quando a minha cliente lhe fez uma pergunta perfeitamente legítima na364
assembleia-geral anual da Barrington Shipping Company. Por uma questão de rigor, vou repetir a pergunta de Lady Virgínia: «É verdade que um dos vossos administradores vendeu a sua enorme participação acionista durante o fim de semana, numa tentativa para destruir a companhia?» Se me é permitido dizê-lo, a senhora evitou habilmente e de forma brilhante responder a esta pergunta. Talvez o queira fazer agora...
Emma olhou de relance para Trelford. Ele aconselhara-a a não responder à pergunta, por isso ficou em silêncio.
- Permita-me que sugira que a razão para não ter querido responder especificamente a essa pergunta foi porque Lady Virgínia perguntou logo a seguir: «Se um dos vossos administradores esteve envolvido nessa operação, não deveria demitir-se do conselho?» A sua resposta foi: «Se está a referir-se ao major Fisher...», embora não estivesse, como a senhora muito bem sabia. Ela estava a falar do seu amigo e colega Cedric Hardcastle, não é verdade?
- Um dos melhores homens que já conheci - disse Emma.
- Seria mesmo? - indagou Sir Edward. - Bem, nesse caso, vamos examinar essa afirmação com mais atenção, porque me parece que estava a sugerir que quando o seu grande amigo, um dos «melhores homens» que já conheceu, vendeu as suas ações de um dia para o outro, fê-lo para ajudar a companhia, mas quando Lady Virgínia vendeu as dela estava a fazê-lo para prejudicar a companhia. Talvez o júri considere que não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, senhora Clifton, a menos, é claro, que consiga encontrar alguma fragilidade no meu argumento e explicar ao tribunal a distinção subtil entre o que o senhor Hardcastle fez em nome da companhia e o que o major Fisher fez em nome da minha cliente, certo?
Emma sabia que não podia justificar o que Cedric fizera de boa-fé e que a razão para ter vendido as suas ações seria extremamente difícil de explicar ao júri. Trelford aconselhara-a a, quando tivesse dúvidas, abster-se simplesmente de responder, sobretudo se a resposta a fosse prejudicar.
Sir Edward esperou durante algum tempo antes de dizer:
- Bem, como parece não querer responder à pergunta, talvez devamos avançar para o que disse a seguir: «Se era sua intenção derrubar365
a companhia, Lady Virgínia, então... fracassou, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja um sucesso.» É capaz de negar, senhora Clifton, que o que estava a sugerir à assistência apinhada no Colston Hall, em Bristol, nessa manhã era que Lady Virgínia não era uma pessoa comum e decente? - perguntou, marcando bem as últimas três palavras.
- Ela não é seguramente uma pessoa comum.
- Concordo consigo, senhora Clifton, ela é extraordinária. Mas deixo à consideração do júri se a insinuação de que a minha cliente não é uma pessoa decente e que o seu objetivo era derrubar a sua companhia não será difamatória, senhora Clifton. Ou, em sua opinião, isso também é a mais pura verdade?
- Eu quis dizer o que disse - replicou Emma.
- E estava tão convencida da justeza da afirmação que insistiu para que as suas palavras fossem registadas na ata da assembleia.
- Sim, é verdade.
- O secretário da companhia aconselhou-a na altura a não o fazer?
Emma hesitou.
- Posso sempre chamar o senhor Webster a depor - disse Sir Edward.
- Creio que é capaz de o ter feito.
- Ora, porque é que ele havia de fazer uma coisa dessas, pergunto eu? - inquiriu Sir Edward, num tom carregado de sarcasmo. Emma continuou a olhar para ele, ciente de que não esperava uma resposta. - Poderá ter sido porque não queria que juntasse a difamação à calúnia que já cometera?
- Eu queria que as minhas palavras ficassem registadas - disse Emma.
Trelford baixou a cabeça enquanto Sir Edward dizia:
- Queria mesmo? Então, determinámos que antipatizou com a minha cliente desde o dia em que a conheceu, que essa profunda aversão aumentou quando não foi convidada para o casamento do seu irmão e que, anos mais tarde, procurou humilhar Lady Virgínia366
insinuando que ela não era uma pessoa comum e decente, mas sim alguém que queria destruir a companhia. A seguir, decidiu contra a opinião do secretário da companhia, para garantir que as suas palavras caluniosas eram repetidas na ata da assembleia-geral anual. É ou não verdade, senhora Clifton, que estava simplesmente a procurar vingar-se de um ser humano comum e decente, que agora apenas pede que seja punida pelas suas palavras irrefletidas? Creio que o Bardo foi quem melhor resumiu tudo isto quando disse: Quem do meu bom nome me espolia, rouba-me o que não o enriquece e deixa-me verdadeiramente pobre.
Sir Edward continuou a fuzilar Emma com o olhar, enquanto segurava as lapelas da sua toga antiga e gasta. Quando sentiu que tinha criado o efeito desejado, virou-se para a juíza e disse:
- Não tenho mais perguntas, meritíssima.
Quando Trelford olhou para os jurados, pensou que eram capazes de romper em aplausos. Decidiu que tinha de correr um risco, um risco do qual não sabia se a juíza o deixaria escapar sem repreensão.
- Tem mais perguntas para a sua cliente, doutor Trelford? - perguntou a juíza Lane.
- Apenas uma, meritíssima - disse Trelford. - Senhora Clifton, Sir Edward levantou a questão do testamento de sua mãe. Ela alguma vez lhe confidenciou o que sentia em relação a Lady Virgínia?
- Doutor Trelford - interrompeu a juíza antes que Emma pudesse responder -, como bem sabe, isso seria simplesmente diz que disse e como tal inadmissível.
- Mas a minha mãe registou a opinião que tinha de Lady Virgínia no testamento! - disse Emma olhando para a juíza.
- Não sei se estou a compreender, senhora Clifton - disse a juíza.
- Ela explicou claramente no testamento as suas razões para não deixar nada ao meu irmão.
Trelford pegou no testamento e disse:
- Eu posso ler o trecho relevante, meritíssima. Se achar que pode ajudar - acrescentou, tentando parecer um rapazinho inocente.
Sir Edward levantou-se rapidamente.
- Sem dúvida que isto não passa de mais uma difamação, meritíssima - disse ele, farto de saber a que trecho Trelford se referia.367
- Mas isto é um documento público e autenticado por notário -disse Trelford, brandindo o testamento debaixo do nariz dos jornalistas sentados na bancada da imprensa.
- Talvez eu deva ler as palavras em causa antes de me pronunciar - disse a juíza Lane.
- Claro, meritíssima - assentiu Trelford. Entregou o testamento ao escrivão, que por sua vez o passou à juíza.
Como Trelford só sublinhara duas linhas, a juíza Lane deve tê-las lido várias vezes até finalmente dizer:
- Penso que, no geral, este elemento de prova é inadmissível, uma vez que pode estar retirado do contexto. No entanto, doutor Trelford - acrescentou -, se desejar que eu suspenda os trabalhos para poder debater uma questão de Direito, terei todo o prazer em fazer evacuar a sala de audiências para que possa fazê-lo.
- Não, obrigado, meritíssima. Aceito de bom grado a sua decisão - disse Trelford, ciente de que a imprensa da manhã seguinte traria o trecho relevante na primeira página, tanto mais que já via alguns jornalistas a abandonar a sala.
- Então, prossigamos - disse a juíza. - Talvez queira chamar a sua próxima testemunha, doutor Trelford.
- Não posso fazê-lo, meritíssima, pois neste momento está a participar num debate na Câmara dos Comuns. Contudo, o major Fisher dispôs-se a comparecer às dez horas de amanhã.
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Harry observou do seu banco de madeira na terceira fila enquanto o coronel Marinkin entrava na sala de audiências improvisada. Pôs-se em sentido em frente do procurador, fez continência e continuou em pé.
Marinkin envergava um uniforme mais elegante do que aquele que Harry recordava da altura em que fora preso; o uniforme para as ocasiões especiais, sem dúvida. Os seis botões da sua túnica brilhavam, as calças estavam muito bem vincadas e as botas tinham o lustro tão bem puxado que, se ele olhasse para baixo, veria nelas o seu reflexo. As cinco fiadas de medalhas não deixavam ninguém na dúvida de que tinha olhado o inimigo nos olhos.
- Coronel, pode dizer ao tribunal quando é que teve conhecimento do arguido?
- Sim, camarada procurador. Ele veio a Moscovo há cerca de cinco anos como representante britânico numa conferência literária internacional e fez o discurso principal no dia de abertura.
- Ouviu esse discurso?
- Sim, ouvi, e apercebi-me claramente que ele acreditava que o traidor Babakov tinha trabalhado durante muitos anos no Kremlin e era colaborador próximo do falecido camarada Stalin. Na verdade, as suas palavras foram tão persuasivas que, quando ele se sentou, quase toda a gente que estava na sala ficou a acreditar na mesma coisa.
- Tentou estabelecer contacto com o arguido enquanto ele estava em Moscovo?
- Não, porque ele ia regressar a Inglaterra no dia seguinte e confesso que presumi que, à semelhança de muitas campanhas em369
que o Ocidente se envolve, seria apenas uma questão de tempo até aparecer outra que ocupasse as suas mentes impacientes.
- Mas esta causa em particular acabou por não desaparecer.
- Não, o arguido estava claramente convencido de que Babakov dizia a verdade e que, se o seu livro fosse publicado, o resto do mundo também iria acreditar nele. No início deste ano, o arguido viajou para os Estados Unidos num paquete de luxo, propriedade da família da esposa. Ao chegar a Nova Iorque, visitou um editor muito conhecido, sem dúvida para discutir a publicação do livro de Babakov, porque no dia seguinte embarcou num comboio para Pittsburgh com o único propósito de se encontrar com a desertora Yelena Babakov, esposa do traidor. Tenho nesta pasta várias fotografias tiradas durante esta visita a Pittsburgh por um dos nossos agentes.
Marinkin entregou a pasta ao escrivão, que a passou ao presidente do tribunal. Os três juízes estudaram as fotografias durante algum tempo antes de o presidente perguntar:
- Quanto tempo é que o prisioneiro passou com a senhora Babakov?
- Pouco mais de quatro horas. Depois, regressou a Nova Iorque. Na manhã seguinte, visitou novamente o seu editor e mais tarde, nesse mesmo dia, embarcou no paquete que pertence à família da esposa e viajou de regresso a Inglaterra.
- Depois de regressar, continuou a mantê-lo sob vigilância cerrada?
- Sim. Um dos nossos operacionais monitorizou as suas atividades quotidianas e relatou que o arguido se tinha inscrito num curso de língua russa na Universidade de Bristol, não muito longe de onde vive. Um dos meus agentes matriculou-se no mesmo curso e relatou que o acusado era um aluno consciencioso, que estudava muito mais do que qualquer dos seus colegas. Pouco depois de ter concluído o curso, voou para Leninegrado, poucas semanas antes de o seu visto expirar.
- Porque é que não o deteve assim que chegou a Leninegrado e não o pôs no próximo avião de regresso a Londres?
- Porque queria descobrir se ele tinha cúmplices na Rússia.370
- E tinha?
- Não, o homem é um solitário, um romântico, alguém que noutros tempos estaria mais no remanso do lar quando, tal como Jasão decidiu ir à procura do Tosão de Ouro, que para ele, no século XX, era a história igualmente fictícia de Babakov.
- E foi bem-sucedido?
- Sim, foi. É evidente que a esposa de Babakov lhe contou exatamente onde podia encontrar um exemplar do livro do marido, pois, assim que chegou a Leninegrado, apanhou um táxi para o Alfarrabista Pushkin nos arredores da cidade. Levou apenas alguns minutos a localizar o livro que procurava, que estava escondido sob a capa de um outro título e que devia estar precisamente no sítio onde a senhora Babakov lhe dissera. Pagou o livro, juntamente com outros dois, e depois pediu ao taxista que tinha ficado à espera para o levar de volta ao aeroporto.
- E foi aí que o prendeu?
- Sim, mas não de imediato, porque queria ver se ele tinha algum cúmplice no aeroporto a quem tentasse entregar o livro. Mas ele limitou-se a comprar um bilhete para o mesmo avião em que tinha vindo. Prendemo-lo precisamente antes de embarcar.
- E onde está o livro, agora? - perguntou a presidente do tribunal.
- Foi destruído, camarada presidente, mas conservei a página do título para constar do processo. O tribunal poderá ter interesse em saber que parece ser uma primeira prova, portanto é possível que fosse a última cópia que existia.
- Quando prendeu o arguido, como é que ele reagiu? - perguntou o procurador.
- É óbvio que não se apercebeu da gravidade do seu crime, pois não parava de perguntar de que era acusado.
- Entrevistou o taxista e a idosa que trabalhava na livraria, para ver se estavam conluiados com o arguido? - perguntou o procurador.
- Sim. Ambos tinham cartão de membro do partido e depressa ficou claro que não tinham qualquer relacionamento anterior com o arguido. Libertei-os depois de uma curta entrevista, pois achei que quanto menos soubessem sobre as minhas investigações, melhor.

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- Obrigado, coronel. Não tenho mais perguntas - disse o procurador -, mas o meu colega pode ter - acrescentou antes de se sentar.
A presidente olhou em direção ao jovem que estava sentado na outra ponta do banco. Este levantou-se e olhou para a juíza, mas não disse nada.
- Deseja interrogar esta testemunha? - perguntou ela.
- Não será necessário, camarada presidente. Contento-me com as provas apresentadas pelo chefe da polícia. - Dito isto, voltou a sentar-se.
A presidente centrou novamente a sua atenção no coronel.
- Felicito-o, camarada coronel, pelo seu minucioso trabalho de investigação - disse ela. - Mas há alguma coisa que gostasse de acrescentar e que nos possa ajudar a tomar a nossa decisão?
- Sim, camarada. Estou convencido de que o prisioneiro não passa de um idealista ingénuo e crédulo, que acredita que Babakov trabalhou mesmo no Kremlin. Em minha opinião, deviam dar-lhe mais uma oportunidade de assinar uma confissão. Se o fizer, eu próprio supervisionarei a sua deportação.
- Obrigado, coronel, terei isso em conta. Agora, pode voltar ao desempenho das suas importantes funções.
O coronel fez continência. Ao virar-se para sair da sala, olhou de relance para Harry. Passado um instante, tinha desaparecido.
Foi nesse momento que Harry percebeu que aquilo era um julgamento fantoche, com uma diferença. O seu único propósito era convencê-lo de que Anatoly Babakov era uma fraude, para que ele voltasse a Inglaterra e contasse a toda a gente a verdade, tal como representada naquela sala. Mas a farsa cuidadosamente orquestrada ainda exigia que ele assinasse uma confissão, por isso perguntou-se até onde é que eles estariam dispostos a ir para alcançar esse objetivo.
- Camarada procurador - disse a presidente do tribunal -, pode chamar a sua próxima testemunha.
- Obrigado, camarada presidente - disse ele, antes de se voltar a levantar.- Chamo Anatoly Babakov.
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Giles sentou-se para tomar o pequeno-almoço e começou a ver os jornais da manhã. Já ia na segunda chávena de café quando Sebastian se lhe juntou.
- O que é que eles dizem?
- Acho que um crítico de teatro descreveria o dia de abertura como tendo críticas contraditórias.
- Então, talvez seja bom - disse Seb - a juíza ter dito aos jurados para não as lerem.
- Mas eles vão lê-las, acredita! - disse Giles. - Sobretudo, depois de a juíza se ter recusado a deixar Trelford dizer-lhes o que a minha mãe tinha escrito sobre Virgínia no seu testamento. Arranja um café, que eu leio. - Giles pegou no Daily Mail e esperou que Seb voltasse para a mesa do pequeno-almoço antes de voltar a pôr os óculos e começar a ler. - «Deixo o restante património às minhas queridas filhas, Emma e Grace, para disporem dele como lhes aprouver, à exceção da minha gata siamesa, Cleópatra, que deixo a Lady Virgínia Fenwick por terem tanto em comum. São ambas predadoras lindas, bem apresentadas, vaidosas, matreiras e manipuladoras, que presumem que toda a gente veio ao mundo para as servir, incluindo o meu filho, cego de amor, e só posso rezar para que ele quebre o feitiço que ela lhe lançou antes que seja tarde demais.»
- Bravo! - exclamou Seb quando o tio pousou o jornal. - Que senhora formidável. Precisávamos dela no banco das testemunhas. E os jornais sérios? Como é que estão a dar a notícia?
- O Telegraph dá uma no cravo e outra na ferradura, embora elogie Makepeace pelo interrogatório forense e analítico que fez a
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Emma. The Times especula sobre o motivo de ser a defesa, e não a, acusação, a chamar Fisher a depor. Encontras a notícia sob o título «Testemunha Hostil» - disse Giles, fazendo deslizar o Times sobre a mesa.
- Tenho a sensação de que Fisher não vai ter críticas contraditórias.
- Não te esqueças de olhá-lo fixamente enquanto ele estiver no banco das testemunhas. Ele não vai gostar disso.
- Curiosamente - disse Seb -, há um membro do júri do sexo feminino que está sempre a olhar para mim.
- Isso é bom - constatou Giles. - Sorri-lhe de vez em quando, mas não com demasiada frequência, não vá a juíza notar - acrescentou enquanto Emma entrava na sala.
- Que tal? - perguntou ela, olhando para os jornais.
- Quase tão bom quanto seria de esperar - retorquiu Giles. - O Mail transformou o testamento da mãe em folclore e os jornais sérios querem saber porque é que Fisher foi convocado por nós, e não por eles.
- Não tardarão a descobrir - disse Emma, sentando-se à mesa. - Então, devo começar por qual?
- Talvez pelo The Times - recomendou Giles - mas não percas tempo com o Telegraph.
- Não é a primeira vez - disse Emma pegando no Telegraph - que gostava de ler hoje os jornais do dia seguinte.
- Bom dia - disse a juíza Lane assim que o júri se instalou. - Hoje, vamos dar início aos trabalhos com uma ocorrência bastante invulgar. A próxima testemunha do doutor Trelford, o deputado major Alexander Fisher, não vai prestar depoimento por opção, mas sim porque foi citado como testemunha pela defesa. Quando o doutor Trelford requereu esse procedimento, tive de decidir se o seu testemunho era admissível. Acabei por concluir que o doutor Trelford tinha o direito de citar o major Fisher como testemunha, já que o seu nome é mencionado durante a conversa entre a senhora Clifton e Lady Virgínia, que está na base deste caso, e talvez possa lançar alguma luz sobre a situação. No entanto, não devem inferir o que quer
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que seja pelo facto de o major Fisher não ter sido incluído na lista de testemunhas de Sir Edward Makepiece.
- Mas vão fazê-lo - sussurrou Giles a Emma. A juíza olhou para o escrivão.
- O major Fisher já chegou?
- Sim, meritíssima.
- Então, chame-o, por favor.
- Chamo o major Alexander Fisher - berrou o escrivão.
As portas duplas ao fundo da sala abriram-se e Fisher entrou pavoneando-se de uma forma que apanhou Giles de surpresa. Era óbvio que o facto de ser deputado tinha aumentado ainda mais a sua já considerável autoestima.
Pegou na Bíblia com a mão direita e prestou o seu juramento sem olhar uma única vez para o cartão que o escrivão lhe mostrava. Quando o senhor Trelford se levantou do seu lugar, Fisher olhou-o como se tivesse o inimigo na mira.
- Bom dia, major Fisher - cumprimentou Trelford, mas não recebeu resposta. - Quer fazer a gentileza de dizer o seu nome e profissão para os registos do tribunal?
- O meu nome é major Alexander Fisher e sou deputado pelo círculo de Bristol Docklands - disse ele olhando diretamente para Giles.
- Na altura da assembleia-geral anual da Barrington Shipping que é objeto deste processo, o senhor era administrador da companhia?
- Sim.
- E foi a senhora Clifton quem o convidou para integrar o conselho de administração?
- Não, não foi.
- Então, quem é que lhe pediu que o representasse como administrador?
- Lady Virgínia Fenwick.
- E posso perguntar porquê? Eram amigos ou tratou-se simplesmente de uma relação profissional?
- Gostaria de pensar que foi por ambos os motivos - disse Fisher, olhando para Lady Virgínia, que acenou com a cabeça e sorriu.
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- E que competências específicas tinha para oferecer a Lady Virgínia?
- Eu era corretor da bolsa antes de me ter tornado deputado.
- Estou a ver - observou Trelford. - Nesse caso, teve oportunidade de aconselhar Lady Virgínia relativamente ao seu portefólio de ações e, devido aos seus sábios conselhos, ela convidou-o para a representar no conselho de administração da Barrington's.
- Eu não teria dito melhor, doutor Trelford - comentou Fisher, com um sorriso presunçoso no rosto.
- Mas tem a certeza de que foi apenas por essa razão que Lady Virgínia o escolheu, major?
- Sim, tenho a certeza - disse Fisher em tom desabrido, já sem sorrir.
- Só me faz um bocadinho de confusão, major, como é que um corretor da bolsa estabelecido em Bristol se torna consultor de uma senhora que mora em Londres e que deve ter acesso a corretores de primeira linha na City. Por isso, talvez lhe deva perguntar como é que se conheceram.
- Lady Virgínia apoiou-me quando me candidatei pela primeira vez ao Parlamento como candidato conservador pelo círculo de Bristol Docklands.
- E quem foi o candidato trabalhista nessas eleições?
- Sir Giles Barrington.
- O ex-marido de Lady Virgínia e irmão da senhora Clifton?
- Sim.
- Então agora sabemos porque é que Lady Virgínia o escolheu para seu representante no conselho de administração.
- O que está a insinuar? - perguntou Fisher com brusquidão. - Muito simplesmente que, caso se tivesse candidatado ao Parlamento em qualquer outro círculo eleitoral, nunca se teria cruzado com Lady Virgínia. - O senhor Trelford olhou para o júri enquanto esperava pela resposta de Fisher, pois estava confiante de que ela não surgiria. - Agora, que estabelecemos a sua relação com a queixosa, vamos centrar-nos no valor e importância dos seus conselhos profissionais. Por certo recordará, major, que há pouco lhe perguntei se aconselhava Lady Virgínia em relação ao seu portefólio de ações, e o senhor confirmou que sim.

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- Correto.
- Nesse caso, talvez possa dizer ao júri em relação a que ações para lá das da Barrington Shipping, aconselhou Lady Virgínia. - Uma vez mais, o senhor Trelford aguardou pacientemente antes de voltar a falar. - Desconfio que a resposta seja nenhumas e que o único interesse que ela tinha em si fosse, estando lá dentro, poder dizer-lhe o que se passava na Barrington's, para que ambos pudessem beneficiar de qualquer informação de que tivesse conhecimento enquanto membro do conselho.
- Isso é uma insinuação ultrajante! - disse Fisher, olhando para a juíza, mas esta continuou impassível.
- Se assim é, major, é capaz de negar que em três ocasiões distintas aconselhou Lady Virgínia a vender as suas ações na Barrington's? Tenho as datas, as horas e os montantes à minha frente... E em cada uma dessas ocasiões, passados apenas uns dias, a companhia anunciou alguma má notícia.
- É para isso que os consultores servem, doutor Trelford.
- E a seguir, cerca de três semanas depois disso, voltou a comprar as ações, o que me parece ter acontecido por duas razões. Em primeiro lugar, para obter lucro rapidamente e, em segundo, para ter a certeza de que ela mantinha a participação de sete e meio por cento para o senhor não perder o seu lugar no conselho de administração. Caso contrário, não teria conhecimento de mais nenhuma informação interna, pois não?
- Isso é um ataque vergonhoso à minha reputação profissional - rosnou Fisher.
- Será? - inquiriu Trelford, segurando uma folha de papel para toda a gente ver, antes de ler os números que tinha à sua frente. - Nas três transações em questão, Lady Virgínia obteve lucros de 17 400, 29 320 e 70 100 libras, respetivamente.
- Não é crime obter lucros para os nossos clientes, doutor Trelford.
- Não, com certeza que não, mas porque é que precisou de usar um intermediário em Hong Kong para efetuar essas transações, um tal Benny Driscoll?
- Benny é um velho amigo que já trabalhou na City, e eu sou leal aos meus amigos, doutor Trelford.
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- Tenho a certeza que sim, major, mas tinha conhecimento que, na altura dos vossos negócios, a polícia irlandesa emitira um mandado de captura em nome do senhor Driscoll por fraude e manipulação do mercado?
Sir Edward levantou-se num ápice.
- Sim, sim, Sir Edward - disse a juíza Lane. - Espero, doutor Trelford, que não esteja a sugerir que o major Fisher sabia desse mandado e mesmo assim estava disposto a negociar com o senhor Driscoll?
- Essa teria sido a minha próxima pergunta, meritíssima - disse Trelford, recuperando o ar de menino inocente.
- Não, não sabia - protestou Fisher - e se soubesse com certeza que não tinha continuado a negociar com ele.
- Isso é reconfortante - observou Trelford. Abriu uma grande pasta preta à sua frente e tirou uma única folha coberta de números. - Quando adquiriu ações em nome de Lady Virgínia, como é que lhe pagaram?
- A comissão. Um por cento do preço de compra ou venda, que é a prática corrente.
- Muito correto e apropriado - disse Trelford, voltando a guardar a folha na pasta de forma ostensiva. A seguir, tirou uma segunda folha, que analisou com igual interesse. - Diga-me, major, sabia que de cada vez que pediu ao seu leal amigo Driscoll para efetuar essas transações para Lady Virgínia, ele também comprou ações na Barrington's no seu próprio nome, coisa que devia saber que era ilegal.
- Não fazia ideia de que ele andava a fazer isso e, se soubesse, tê-lo-ia denunciado à bolsa de valores.
- A sério? Então, não fazia ideia de que ele ganhou vários milhares de libras à boleia das suas transações?
- Não, não fazia.
- E que foi recentemente suspenso pela bolsa de Hong Kong por conduta pouco profissional?
- Não sabia disso, mas também há vários anos que não negoceio com ele.378
- Ah, não? - inquiriu Trelford, devolvendo a segunda folha à pasta e retirando uma terceira. Ajustou os óculos e analisou uma fila de números na página que tinha à sua frente antes de dizer: - Será que o senhor também comprou e vendeu ações em seu nome em três ocasiões distintas, conseguindo um bom lucro em cada uma delas?
Trelford continuou a olhar para a folha de papel que segurava na mão, dolorosamente ciente que bastava Fisher dizer «Não, não fiz nada disso» para ser obrigado a provar o seu bluff. No entanto, o major hesitou por um momento, o que permitiu a Trelford acrescentar durante esse breve silêncio:
- Enquanto deputado, não preciso de lhe lembrar que está sob juramento, major, nem das consequências de cometer perjúrio.
Trelford continuou a analisar a fila de números à sua frente.
- Mas eu não lucrei nada na terceira transação - explodiu Fisher. - Na verdade, tive prejuízo.
Uma exclamação de surpresa percorreu a sala, seguida de um burburinho. Trelford esperou que se fizesse silêncio antes de continuar.
- Então, teve lucro nas primeiras duas transações, major, e prejuízo na terceira, certo?
Fisher mexeu-se desconfortavelmente no banco, mas não fez nenhuma tentativa para responder.
- Major Fisher, disse há pouco ao tribunal que não é crime obter lucro para clientes - insistiu Trelford a olhar para a nota rabiscada, para ver as palavras exatas do major.
- Sim, disse - respondeu Fisher, tentando recompor-se.
- Mas enquanto corretor qualificado, deve saber que é crime - prosseguiu Trelford levantando um livro volumoso encadernado a couro vermelho da bancada à sua frente e abrindo-o numa página marcada com uma tira de papel - negociar ações de uma companhia a cujo conselho de administração pertença - Trelford leu as palavras exatas - a menos que tenha informado o presidente dessa companhia e procurado assessoria jurídica. - Deixou que as suas palavras fossem digeridas antes de fechar o livro com força e perguntar calmamente: - Informou a senhora Clifton ou procurou assessoria jurídica?379
Fisher agarrou-se aos lados do banco das testemunhas para impedir as mãos de tremer.
- Pode dizer ao tribunal qual o lucro que obteve quando comprou e vendeu as ações que tinha na Barrington's? - perguntou Trelford enquanto continuava a olhar para uma conta de hotel da sua viagem recente a Hong Kong. Esperou algum tempo antes de voltar a pôr o recibo na pasta, olhou para a juíza e disse: - Meritíssima, como o major Fisher não parece estar disposto a responder a mais nenhuma das minhas perguntas, não vejo qualquer interesse em prosseguir. - Sentou-se e sorriu para Emma.
- Sir Edward - disse a juíza Lane -, deseja interrogar esta testemunha?
- Apenas duas perguntas, se possível - disse Sir Edward, parecendo invulgarmente submisso.
- Major Fisher, há alguma sugestão de que Lady Virgínia Fenwick tivesse conhecimento de que o senhor estava a negociar ações da Barrington's no seu próprio nome?
- Não, senhor.
- Corrija-me se estiver enganado, mas o senhor era simplesmente o seu consultor e todas as transações efetuadas no nome dela foram conduzidas no estrito cumprimento dos rigores da lei?
- Foram, sim, Sir Edward.
- Agradeço-lhe a clarificação. Não tenho mais perguntas, meritíssima.
A juíza escrevia furiosamente enquanto Fisher continuava imóvel no banco das testemunhas, como um coelho encandeado pela luz dos faróis. Por fim, ela pousou a caneta e disse:
- Antes de sair do tribunal, major Fisher, devo dizer-lhe que tenciono enviar uma transcrição do seu depoimento ao Departamento de Ação Penal, para que decidam se devem ser tomadas outras medidas de natureza jurídica.
Quando o major desceu do banco das testemunhas e saiu da sala de audiências, o corpo de imprensa abandonou as suas bancadas e seguiu-o até ao corredor como uma matilha de cães de caça atrás de uma raposa ferida.
Giles inclinou-se para a frente, deu umas palmadinhas nas costas de Trelford e disse:
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- Bom trabalho. Crucificou-o.
- A ele sim, mas não a ela. Graças àquelas duas perguntas cuidadosamente formuladas por Sir Edward, Lady Virgínia sobrevive a tudo isto.
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Havia alguma coisa de errado. Aquele não podia ser Anatoly Babakov. Harry olhou para o frágil esqueleto de um homem que entrou na sala de audiências e se deixou cair no banco em frente do procurador.
Babakov vestia um fato e uma camisa que lhe assentavam como se ele fosse um cabide. Eram ambos vários tamanhos acima do dele, e a primeira coisa que Harry pensou foi que devia tê-los pedido emprestados a alguém nessa manhã. E depois percebeu que eram o fato e a camisa do próprio Babakov, só que ele não os usava desde o dia em que fora mandado para a prisão, há todos aqueles anos. O seu cabelo estava a rarear e as poucas madeixas que lhe restavam eram acinzentadas. Os seus olhos, também cinzentos, tinham-se afundado nas órbitas e a sua pele estava enrugada e ressequida, não devido ao calor do sol, mas às horas intermináveis de exposição aos ventos gélidos das planícies siberianas. Babakov aparentava ter cerca de setenta anos, até mesmo oitenta, embora Harry soubesse que eram contemporâneos, portanto não podia ter muito mais do que cinquenta.
O procurador levantou-se do seu lugar; o sicofanta substituído pelo tiranete. Olhou para Babakov e dirigiu-se-lhe com uma arrogância fria, muito diferente da forma como tratara o camarada coronel quando estivera no banco das testemunhas.
- Diga ao tribunal o seu nome e número - ordenou.
- Babakov, 74 162, camarada procurador.
- Não me trate com essa familiaridade. O prisioneiro baixou a cabeça.382
- Peço desculpa, senhor.
- Antes de ser condenado, Babakov, qual era a sua profissão?
- Era professor no sétimo distrito de Moscovo.
- Quantos anos deu aulas nessa escola?
- Treze anos, senhor.
- E qual era a disciplina que lecionava?
- Inglês.
- Quais eram as suas qualificações?
- Licenciei-me no Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscovo, em 1941.
- Então, depois de se licenciar, o seu primeiro emprego foi como professor. E nunca trabalhou em mais nenhum lado?
- Não, senhor, não trabalhei.
- Durante esses treze anos como professor, alguma vez visitou o Kremlin?
- Não, senhor. Nunca.
A veemência com que Babakov disse «Nunca» foi uma clara indicação para Harry de que ele considerava aquele julgamento fantoche digno apenas de escárnio. Todos os alunos soviéticos tinham visitado o Kremlin em alguma altura para prestar homenagem no túmulo de Lenine. Se Babakov tivesse sido professor, teria até supervisionado tais visitas. Harry não tinha forma de lhe dar a saber que tinha percebido a mensagem sem quebrar a fina película do embuste.
- Alguma vez esteve com o nosso venerado líder, presidente do Presidium, o camarada Stalin? - continuou o procurador.
- Sim, numa ocasião, quando eu era estudante, ele visitou o Instituto de Línguas Estrangeiras para entregar os prémios anuais.
- Ele falou consigo?
- Sim, felicitou-me pela minha licenciatura.
Harry sabia que Babakov tinha ganhado a medalha Lenine e fora o melhor aluno da turma. Porque é que não mencionava isso? Porque não fazia parte do guião que lhe tinham dado e que ele estava a seguir. Provavelmente, as respostas tinham sido escritas pela mesma pessoa que estava a fazer as perguntas.
- Além desse breve encontro, alguma vez voltou a cruzar-se com o camarada Stalin?
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- Não, senhor, nunca.
Mais uma vez, exagerou a palavra «nunca».
Harry estava a começar a congeminar um plano. Para resultar, tinha de convencer aqueles três camaradas de ar impenetrável encarregados de julgar o caso que acreditava em cada palavra que Babakov dizia e que estava chocado com o facto de ele o ter enganado.
- Gostava agora de avançar para 1954, quando tentou publicar um livro em que afirmava que tinha trabalhado na equipa do presidente durante treze anos como seu intérprete pessoal, quando na verdade nunca tinha entrado no Kremlin. O que o levou a pensar que podia safar-se com tal mentira?
- O facto de, tal como eu, não haver ninguém que trabalhasse na Sarkoski Press que tivesse estado alguma vez no Kremlin. Só tinham visto o camarada Stalin ao longe quando revistava as tropas na parada do Dia do Trabalhador. Por isso, não foi difícil convencê-los de que tinha feito parte do seu círculo mais próximo.
Harry abanou a cabeça, profundamente desgostoso, e fez má cara a Babakov esperando não estar a exagerar. Viu a presidente tomar uma nota no bloco que tinha à sua frente. Teria visto nela a sugestão de um sorriso?
- E também é verdade que planeava desertar do país, na esperança de ver o seu livro publicado no Ocidente, com o único objetivo de ganhar muito dinheiro?
- Sim, pensei que, se era capaz de enganar as pessoas da Sarkoski Press, muito mais fácil seria convencer os americanos e os britânicos de que tinha sido um funcionário do partido que trabalhara com o presidente. No fim de contas, quantas pessoas do Ocidente é que alguma vez visitaram a União Soviética, muito menos falaram com o camarada presidente, que não falava uma palavra, de inglês, como toda a gente sabe?
Harry pôs a cabeça entre as mãos e, quando a levantou, olhou para Babakov com desprezo. A presidente fez outra anotação no seu bloco.
- Quando terminou o livro, porque é que não abandonou o país na primeira oportunidade?
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- Não tinha dinheiro suficiente. Tinham-me prometido um avanço no dia da publicação, mas fui detido antes de poder ir buscá-lo.
- Mas a sua esposa fê-lo.
- Sim, mandei-a à minha frente com as nossas poupanças, esperando poder juntar-me a ela mais tarde.
Harry estava espantado com a forma como o procurador misturava meias-verdades com mentiras e perguntou-se como é que eles podiam pensar, por um momento que fosse, que o podiam enganar com aquela pantomima. Mas essa era a sua fraqueza. Era óbvio que todos eles se tinham deixado enganar pela sua própria propaganda, por isso decidiu derrotá-los com as próprias armas.
Acenava afirmativamente sempre que o procurador parecia ter marcado mais um ponto. Mas depois lembrou-se do professor de teatro da escola o ter castigado por mais de uma vez por representar de forma exagerada, por isso decidiu conter-se.
- A sua esposa levou um exemplar do livro com ela? - quis saber o procurador.
- Não. Ainda não tinha sido publicado na altura em que se foi embora e, de qualquer forma, tê-la-iam revistado quando tentasse atravessar a fronteira e, se tivesse o livro consigo, teria sido presa e recambiada para Moscovo.
- Mas graças a um brilhante trabalho de investigação, o senhor foi preso, acusado e condenado antes mesmo de um único exemplar do seu livro ter chegado às livrarias.
- Sim - disse Babakov, baixando novamente a cabeça.
- E quando foi acusado de crimes contra o Estado, como se declarou?
- Culpado de todas as acusações.
- E o tribunal do povo condenou-o a vinte anos de trabalhos forçados.
- Sim, senhor. Tive sorte em receber uma pena tão leve pelo crime desprezível que tinha cometido contra a nação.
Mais uma vez, Harry percebeu que Babakov estava a dizer-lhe que considerava o julgamento uma farsa. Mas continuava a ser importante para Harry dar ideia que estava a deixar-se enganar pela peça dentro da peça.
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- Com isto concluo a inquirição desta testemunha, camarada presidente - disse o procurador, que fez uma vénia e se sentou.
A presidente olhou para o jovem que estava sentado na outra ponta do banco.
- Tem alguma pergunta para esta testemunha? O jovem levantou-se de forma vacilante.
- Não, não tenho, camarada presidente. O prisioneiro Babakov é claramente um inimigo do Estado.
Harry sentiu pena do jovem, que provavelmente acreditava em tudo o que ouvira na sala de audiências naquela manhã. Harry fez um ligeiro aceno para mostrar que concordava, embora a inexperiência do jovem tivesse revelado uma vez mais a estratégia. Se tivesse lido mais Tchekhov, teria percebido que o silêncio pode muitas vezes ser mais poderoso do que a palavra falada.
- Levem-no - disse a presidente do tribunal.
Enquanto Babakov era levado da sala, Harry baixou a cabeça, como se já não quisesse ter nada que ver com ele.
- Camaradas, foi um dia longo - disse a presidente virando-se para o júri. - Como segunda-feira é feriado nacional, dia em que todos recordaremos esses corajosos homens e mulheres que sacrificaram as suas vidas no cerco de Leninegrado, este tribunal só voltará a reunir na manhã de terça-feira, altura em que recapitularei a posição do Estado, para que possam decidir se o prisioneiro é culpado.
Harry teve vontade de rir. Nem sequer iam permitir que prestasse depoimento, mas nesta altura já estava bem ciente de que aquilo era uma tragédia, e não uma comédia, e que ainda tinha de desempenhar o seu papel.
A presidente do tribunal levantou-se da cadeira e conduziu os seus colegas para fora da sala de audiências. Mal a porta se fechou atrás deles, dois guardas prisionais agarraram Harry pelos braços e arrastaram-no dali para fora.
Como tinha praticamente quatro dias de solidão pela frente, estava ansioso pelo desafio de ver até que ponto conseguia lembrar-se de Uncle Joe. Capítulo 3. Começou a articular as palavras em silêncio enquanto o levavam do tribunal.
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Stalin não só fez história, como também teve o prazer de reescrevê-la, e não há melhor exemplo do que a forma como tratou a família. A sua segunda esposa, Nadya, matou-se porque (preferia morrer a continuar casada com um tirano daqueles». Ao saber da sua morte, Stalin deu imediatamente ordem para que o seu suicídio fosse tratado como um segredo de Estado, pois receava que a verdade o desacreditasse, tanto aos olhos dos seus camaradas como dos seus inimigos...
Um dos guardas destrancou a pesada porta da cela e o colega empurrou o prisioneiro lá para dentro.
Mesmo ao cair no chão, Harry sentiu que não estava sozinho na cela. Olhou para cima e viu-o encolhido a um canto, com um indicador sobre os lábios.
- Fale apenas em inglês - foram as primeiras palavras de Babakov.
Harry assentiu e olhou para trás, vendo um dos guardas a espreitar por entre as barras. A farsa continuava a ser representada. Agachou-se a pouca distância de Babakov.
- Eles precisam de acreditar que ficou convencido com tudo o que acabou de presenciar - sussurrou Babakov. - Se assim for, deixam-no voltar para casa.
- Mas em que é que isso o irá ajudar? - perguntou Harry. - Sobretudo se eu tiver de assinar uma confissão a dizer que admito que foi tudo invenção sua?
- Ajuda, porque assim posso dizer-lhe como obter uma cópia de Uncle joe sem ser apanhado.
- Isso ainda é possível?
- Sim - disse Babakov.
Depois de escutar cuidadosamente a explicação sussurrada pelo seu novo companheiro de cela, Harry sorriu.
- Mas porque é que não me lembrei disso?
- Agradeço teres arranjado tempo para me receber - disse Griff -, sobretudo a meio do julgamento da tua irmã.
- Urgente não é palavra que uses muitas vezes - observou Giles - e como apanhaste o primeiro comboio para Londres, presumi que devia ser grave.
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- Só será tornado público daqui a alguns dias - disse Griff-, mas o meu informador na sede do Partido Conservador local disse-me que vai haver uma reunião do comité executivo esta noite e que só há um ponto na agenda. Exigir a demissão do candidato.
- E isso significaria uma eleição complementar - disse Giles com ar pensativo.
- E foi por isso que apanhei o primeiro comboio para Londres.
- Mas o Comité Central do Partido Conservador nunca vai deixar Fisher demitir-se enquanto o governo estiver tão atrás nas sondagens de opinião.
- Não vai ter grande escolha, se a imprensa continuar a chamar a Fisher «o major galopante», e sabes muito bem como é que eles são quando lhes cheira a sangue. Sinceramente, não creio que Fisher vá durar mais do que alguns dias. Por isso, quanto mais depressa voltares para o teu círculo eleitoral, melhor.
- Volto assim que o julgamento terminar.
- E quando é que isso será?
- Daqui a uns dias. Uma semana, no máximo.
- Se pudesses ir lá no fim de semana, ser visto às compras em Broadmead no sábado de manhã, ir ver os Rovers jogar à tarde e depois assistir à missa em St. Mary Redcliffe no domingo, isso lembraria as pessoas que ainda estás vivo e de boa saúde.
- Se houver uma eleição complementar, como é que classificas as minhas hipóteses?
- De voltares a ser escolhido como candidato ou de recuperares o lugar no Parlamento?
- Ambas.
- Continuas a ser praticamente o favorito para candidato, embora várias mulheres do comité executivo estejam sempre a falar no facto de teres tido dois casamentos fracassados. Mas eu estou a trabalhar nisso, e também ajuda teres recusado um lugar na Câmara dos Lordes porque querias disputar novamente este lugar.
- Eu contei-te isso a título confidencial - disse Giles.
- E eu contei aos dezasseis membros do comité executivo a título confidencial - replicou Griff. Giles sorriu.388
- E as minhas hipóteses de voltar a ser eleito deputado?
- Até um caniche com uma roseta vermelha ganharia a eleição complementar se o máximo que Ted Heath consegue é declarar estado de emergência sempre que há uma greve.
- Então, talvez esteja na altura de te contar as outras novidades. Griff ergueu uma sobrancelha.
- Vou pedir Karin em casamento.
- Será que podes fazer isso depois da eleição complementar? - implorou Griff.
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Foi um longo fim de semana para todas as pessoas envolvidas no julgamento por difamação.
Após uma curta reunião com o senhor Trelford imediatamente após a suspensão dos trabalhos, Giles levou Emma de carro a Gloucestershire.
- Não preferes ficar lá em casa durante o fim de semana? O Marsden cuida de ti.
- É uma oferta muito amável - disse Emma -, mas tenho de estar em casa, não vá o Harry telefonar.
- Creio que é pouco provável - murmurou Giles.
- Porquê? - quis saber Emma.
- Visitei Sir Alan no Número Dez antes de o tribunal retomar os trabalhos ontem de manhã, e ele disse-me que Harry tinha reservado lugar sexta-feira à noite num voo da BOAC, mas que não chegou a embarcar.
- Então, devem tê-lo detido.
- Receio que sim.
- Porque é que não me contaste de imediato?
- Momentos antes de te sentares no banco das testemunhas? Não me parece que isso te tivesse ajudado.
- Sir Alan sabia mais alguma coisa?
- Ele disse-me que, se não tivéssemos notícias de Harry até segunda-feira de manhã, o ministro dos Negócios Estrangeiros ia telefonar ao embaixador russo e exigir uma explicação.
- De que é que isso serve?
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- Ele vai perceber que, caso não libertem Harry, ele virá na primeira página dos jornais de todo o mundo no dia seguinte, e isso é a última coisa que os russos querem.
- Então, porque é que o prenderam? - indagou Emma.
- Estão a tramar alguma, mas nem mesmo Sir Alan conseguiu perceber o que será.
Giles não contou a Emma a sua recente experiência quando tentara entrar em Berlim Oriental, quanto mais não fosse porque presumira que era pouco provável que Harry conseguisse passar para lá do controlo dos passaportes e que seria recambiado no próximo avião para Heathrow. Não fazia sentido deterem o presidente do PEN inglês sem uma boa razão. Nem mesmo os soviéticos gostam de má publicidade, se puderem evitá-la. Tal como Sir Alan, não conseguia perceber o que andavam a tramar.
Durante um fim de semana em claro, Emma entreteve-se a responder a cartas, a ler, até a limpar algumas das pratas da família, mas sem nunca se afastar muito do telefone.
Sebastian telefonou no sábado de manhã e, quando ela ouviu a voz dele, pensou por um momento, apenas por um momento, que era Harry.
- Só depende de nós - foi a expressão que Sir Edward usou durante a reunião com Lady Virgínia no seu escritório, na sexta-feira à noite. Aconselhou-a a passar um fim de semana descansado, a não fazer noitadas e a não beber demais. Ela tinha de estar repousada, calma e pronta para a batalha com Trelford quando se sentasse no banco das testemunhas na segunda-feira de manhã.
- Confirme apenas que sempre deixou o major Fisher, o seu consultor, tratar de tudo o que tivesse que ver com a Barrington's. Manteve-se sempre à margem - era a frase que ele não parava de repetir. - Nunca ouviu falar de Benny Driscoll e foi um grande choque quando descobriu que Cedric Hardcastle tinha colocado todas as suas ações no mercado no fim de semana anterior à assembleia-geral anual. Como acionista, sentiu simplesmente que a senhora Clifton devia
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dizer-lhe a verdade, e não responder de forma enganadora com a retórica que mais lhe convinha. Faça o que fizer, não morda o isco de Trelford, porque ele vai tentar atraí-la como se fosse uma truta. Nade em águas profundas e não tenha a tentação de subir à superfície porque, se o fizer, ele vai prendê-la no seu anzol e recolher lentamente a linha. E, finalmente, lá porque as coisas nos correram bem até agora, isso não significa que deva estar excessivamente confiante. Vi muitos casos perdidos no último dia de julgamento por causa de clientes que pensavam que já tinham ganhado. Lembre-se - repetiu -, só depende de nós.
Sebastian passou a maior parte do fim de semana no banco, a tentar pôr em dia a correspondência por responder e dezenas de perguntas «urgentes» que Rachel deixara no seu tabuleiro de entrada. Só para despachar o primeiro monte, levou toda a manhã de sábado.
A escolha inspirada do senhor Bishara enquanto presidente do Farthings tinha sido aclamada na City, o que facilitou muito a vida a Seb. Alguns clientes fecharam as suas contas quando Sloane se foi embora, mas foram muitos mais os que regressaram quando descobriram que o seu sucessor seria Ross Buchanan: um operador experiente e arguto, com uma base sólida, foi assim que o Sunday Times o descreveu.
Sebastian telefonou à mãe no sábado, antes do almoço, e tentou tranquilizá-la, dizendo-lhe que não havia motivo para estar preocupada.
- Provavelmente, ele não consegue ligar. Já imaginou como é que o serviço telefónico russo deve ser?
Mas não ficou convencido com as suas próprias palavras. O pai tinha-lhe dito expressamente que voltaria a tempo do julgamento, e não pôde deixar de se lembrar de uma das máximas favoritas do pai: «Só há uma desculpa para deixar uma senhora à espera: a morte.»
Seb almoçou rapidamente com Vic Kaufman, que estava preocupado com o seu próprio pai, mas por razões diferentes. Foi a primeira vez que ele mencionou a palavra Alzheimer.
- Estou a ficar dolorosamente consciente de que o meu pai é uma banda de um homem só. Ele toca o tambor grande e, de vez em quando, deixa-nos tocar os pratos. Talvez esteja na altura de o Farthings e o Kaufman's pensarem numa fusão.
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Seb não podia fingir que essa ideia não lhe tinha passado já pela cabeça desde que se tornara vice-presidente, mas a sugestão de Vic não podia ter vindo em pior altura, quando ele tinha tanta coisa em que pensar.
- Falamos sobre isso assim que o julgamento terminar. A propósito - acrescentou Seb -, vê se manténs o Sloane debaixo de olho, pois diz-se na City que ele também anda muito interessado na saúde do teu pai.
Seb estava novamente sentado à secretária pouco depois das duas da tarde e continuou a despachar o monte de correspondência por abrir durante o resto do dia. Quando chegou a casa, já passava da meia-noite.
No domingo de manhã, um segurança deixou-o entrar no banco, mas já a tarde ia alta quando se deparou com um envelope creme que dizia particular e confidencial, com seis selos de George Washington no canto superior direito. Abriu-o e leu uma carta de Rosemary Wolfe. Como é que ia conseguir arranjar tempo para ir agora à América? Como é que podia deixar de o fazer?
Giles fez o que lhe tinham dito. Passou a manhã de sábado a andar de um lado para o outro em Broadmead, carregando um grande saco de compras vazio do Marks and Spencer. Apertou a mão a quem quer que parasse para conversar com ele sobre o terrível governo conservador e sobre o detestável Ted Heath. Quando alguém tocava no assunto major Fisher, agia com diplomacia.
- Quem me dera que continuasse a ser o nosso deputado!
- Se soubesse, nunca teria votado nele!
- É um escândalo. O diabo do homem devia demitir-se! Ao que Giles respondia com uma resposta bem preparada:
- Isso é uma decisão que só cabe ao major Fisher e ao seu partido, por isso vamos ter de esperar para ver.
Mais tarde, sentou-se no bar de uva pub sobrelotado e ruidoso e comeu uma refeição fria com Griff, acompanhada por uma caneca de cidra Somerset.
- Se Fisher se demitir e for convocada uma eleição complementar - começou Griff-, já disse ao Bristol Evening News que
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o Partido Trabalhista local não vai entrevistar mais ninguém senão o ex-deputado.
- Saúde! - brindou Giles, erguendo a sua caneca. - Como é que conseguiste isso?
- Torci uns quantos braços, ameacei aqui e ali, ofereci um suborno de vez em quando e prometi uma MBE ao presidente.
- Nada de novo, então?
- A não ser o facto de ter lembrado ao comité que, se o Partido Conservador vai ter um nome novo no boletim de voto, talvez fosse melhor continuarmos com um com que os eleitores já estão familiarizados.
- O que está a fazer em relação ao aumento do ruído das aeronaves que vem do Aeroporto de Filton? É uma vergonha!
- Já não sou vosso deputado - recordou Giles educadamente ao homem que o interpelara enquanto se dirigia para a porta.
- Não sabia. Quando é que isso aconteceu?
Até Griff teve a elegância de se rir. Depois de saírem do pub, ambos puseram os seus lenços azuis e brancos e, juntamente com outros seis mil adeptos, foram ver os Bristol Rovers ganhar ao Chesterfield por 3-2.
A noite, Emma foi jantar a Barrington Hall, mas não era boa companhia. Foi-se embora muito antes de Marsden ter servido o café.
Giles instalou-se na cadeira favorita do avô, na sala de estar, com um brandy numa mão e um charuto na outra. Estava a pensar em Karin quando o telefone tocou. Atendeu, esperando ouvir a voz de Harry do outro lado da linha, mas era Griff. Quem mais lhe ligaria àquela hora da noite? Quando Griff lhe contou as novidades sobre Fisher, Giles sentiu pena do homem pela primeira vez na sua vida.
O senhor Trelford passou o fim de semana a preparar a inquirição de Lady Virgínia. Mas não era tarefa fácil. Ela devia ter aprendido com o erro de Fisher, e ele conseguia ouvir Eddie Makepeace a aconselhá-la a manter a calma o tempo todo e a não o deixar acicatá-la. Por mais que tentasse, não lhe ocorria um estratagema para romper as suas defesas.
O cesto de papéis estava cheio e o bloco A4 que tinha à sua frente estava em branco. Como é que podia mostrar ao júri que a394
mãe de Emma tinha razão quando comparara Virgínia à sua gata siamesa, Cleópatra? São ambas predadoras lindas, bem apresentadas, vaidosas, matreiras e manipuladoras, que presumem que toda a gente veio ao mundo para as servir.
Eram duas da manhã e estava a rever algumas atas antigas do conselho de administração da Barrington's quando lhe ocorreu uma nova linha de interrogatório.
O major Fisher deixara o parque de estacionamento da Câmara dos Comuns pouco depois de o parlamento ter encerrado a sessão, na sexta-feira à tarde. Havia um ou dois colegas que lhe tinham desejado sorte, mas não foram muito convincentes. Enquanto seguia para West Country, pensou na carta que teria de escrever se o seu comité executivo local não o apoiasse.
Permaneceu no apartamento durante todo o dia seguinte, sem virar a primeira página dos jornais da manhã e sem se dar ao trabalho de tomar o pequeno-almoço ou de almoçar à medida que as horas passavam. Muito antes de o Sol descer no horizonte, começou a abrir garrafas e a esvaziá-las. Durante a noite, sentou-se junto ao telefone e esperou impacientemente para saber como é que o comité tinha votado a moção de censura. Voltou para a cozinha, abriu uma lata de sardinhas, mas deixou-as em cima da mesa, intactas. Sentou-se na sala a ver um episódio de Dad's slrmy, mas não se riu. Por fim, pegou no exemplar do Bristol Evening Post de sexta-feira e voltou a olhar para o título da primeira página:
CONSERVADORES LOCAIS DECIDEM DESTINO DO DEPUTADO. VER EDITORIAL NA PÁG. 11
Abriu o jornal na página 11. Ele e o editor sempre se tinham dado bem, por isso esperava... mas não passou do título:
TENHA UMA ATITUDE DIGNA, MAJOR.
Atirou o jornal para o lado e não acendeu a luz quando o Sol desapareceu atrás do edifício mais alto.
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O telefone tocou quando passavam dez minutos das dez da noite. Pegou no auscultador e reconheceu de imediato a voz do presidente do partido local.
- Boa noite, Peter.
- Boa noite, major. Não vou estar com rodeios. Lamento dizer que o comité não o apoiou.
- Foi renhido?
- Receio que não - retorquiu Maynard. - Foi unânime. Por isso, talvez seja melhor escrever uma carta a pedir a demissão em vez de esperar que o comité executivo lhe retire formalmente o seu apoio. É muito mais civilizado dessa forma, não acha? Lamento, Alex.
Mal desligou o telefone, este voltou a tocar. Era um repórter do Post a perguntar se ele queria comentar a decisão unânime de exigir a sua demissão. Nem sequer se deu ao trabalho de dizer «Sem comentários» antes de desligar.
Num torpor alcoólico, dirigiu-se em passo vacilante ao escritório e pôs a cabeça entre as mãos enquanto pensava na redação da carta.
Tirou uma folha da Câmara dos Comuns da papeleira e começou a escrever. Quando terminou, esperou que a tinta secasse antes de dobrá-la, fechá-la num envelope é colocá-la sobre a secretária.
Inclinou-se, abriu a gaveta de baixo da secretária, tirou o seu revólver, enfiou o cano na boca e premiu o gatilho.
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A sala de audiências estava à pinha e os dois combatentes prontos. Só faltava tocar a campainha para que fosse desferido o primeiro soco.
De um lado do ringue encontrava-se o senhor Trelford a rever a ordem das suas perguntas pela última vez. Giles, Emma e Seb estavam sentados atrás dele, a conversar baixinho para não o perturbar.
Giles levantou os olhos quando um polícia entrou na sala, se dirigiu ao banco dos advogados e entregou um envelope ao senhor Trelford. Por baixo do seu nome, estava escrita a palavra urgente. Trelford abriu-o, tirou uma carta e leu-a devagar. Giles não ficou a saber nada pela expressão do seu rosto, mas reconheceu o gradeado de ferro verde do timbre que encimava o papel.
Sir Edward estava sentado sozinho com a sua cliente do outro lado do ringue, dando as últimas instruções.
- Esteja calma, leve o tempo que quiser para responder às perguntas - sussurrou. - Não está com pressa. Olhe para os jurados e nunca se esqueça de que eles são as únicas pessoas na sala que importam.
A multidão calou-se e toda a gente se levantou quando a campainha tocou para o primeiro assalto e o árbitro entrou no ringue. Se a juíza Lane ficou surpreendida por encontrar as galerias destinadas à imprensa e ao público cheias numa segunda-feira de manhã, não o demonstrou. Fez uma vénia, e toda a gente que estava no espaço reservado aos advogados retribuiu o cumprimento. Depois de todos voltarem a sentar-se, à exceção de Sir Edward, ela convidou o ilustre advogado a chamar a sua primeira testemunha.
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Virgínia caminhou lentamente para o banco das testemunhas e a sua voz mal se ouviu quando prestou juramento. Vestia um fato preto de corte justo que realçava a sua figura esbelta, um chapelinho preto, não trazia jóias e usava pouca maquilhagem, querendo claramente lembrar a todos os presentes a morte prematura do major Fisher. Se o júri se tivesse retirado naquela altura para dar em seguida o seu veredito, o resultado teria sido unânime e Sir Edward tê-lo-ia aceitado alegremente.
- Para que conste, importa-se de dizer o seu nome e morada ao tribunal? - pediu Sir Edward enquanto ajustava a cabeleira.
- Virgínia Fenwick. Moro sozinha num modesto apartamento em Cadogan Gardens, SW3.
Giles sorriu. O meu nome é Lady Virgínia Alice Sarah Lucinda Fenwick, única filha do nono conde de Fenwick, e tenho casas na Escócia e na Toscana, e um grande apartamento de três pisos em Knightsbridge, com mordomo, criada e motorista, teria sido uma resposta mais exata.
- Posso confirmar que já foi casada com Sir Giles Barrington, de quem está agora divorciada?
- Infelizmente, sim - disse Virgínia virando-se para o júri. - Giles foi o amor da minha vida, mas a sua família nunca me considerou suficientemente boa para ele.
Giles tê-la-ia esganado de boa vontade, e Emma teve vontade de se levantar para protestar. O senhor Trelford riscou quatro das suas perguntas cuidadosamente preparadas.
- Mas, apesar disso e de tudo aquilo por que passou, não está ressentida com a senhora Clifton, pois não?
- Não, não estou. Na verdade, foi com grande pesar que acabei por lhe mover este processo, pois a senhora Clifton tem muitas qualidades admiráveis e tem sido sem dúvida uma notável presidente de uma companhia privada, o que faz dela um modelo para outras mulheres com aspirações profissionais.
O senhor Trelford começou a escrever algumas perguntas novas.
- Nesse caso, porque é que intentou a ação?
- Porque ela me acusou de tentar destruir propositadamente a companhia da família. Nada poderá estar mais longe da verdade. Eu398
queria simplesmente saber, em nome dos vulgares acionistas como eu, se um dos seus administradores tinha alienado todas as suas ações no fim de semana anterior à assembleia-geral anual, pois em minha opinião isso teria prejudicado gravemente a companhia. Mas em vez de responder à minha pergunta, ela optou por me rebaixar, dando a toda a gente que lá se encontrava a impressão de que eu não sabia do que estava a falar.
- Papel decorado na perfeição - disse Giles baixinho, o que fez o senhor Trelford sorrir. Este virou-se e sussurrou:
- Concordo, mas enquanto é Sir Edwards que está levantado, ela sabe que perguntas esperar. Não terá qualquer cábula a que se agarrar quando for eu a interrogá-la.
- Em particular - prosseguiu Sir Edward -, está a referir-se à resposta da senhora Clifton à pergunta perfeitamente válida que a senhora lhe fez na assembleia-geral anual.
- Sim. Em vez de responder à pergunta, decidiu humilhar-me e manchar a minha reputação em frente de uma sala lotada onde se encontravam muitos amigos meus. Não me restou outra alternativa senão recorrer à justiça.
- E nessa ocasião a senhora não estava a referir-se ao major Fisher, como a senhora Clifton sugeriu erroneamente, mas sim a Cedric Hardcastle, que, tal como disse, vendeu toda a sua participação acionista durante a semana anterior à assembleia-geral anual, colocando dessa forma a companhia em risco.
- Correto, Sir Edward.
- Será que estou a ver bem? Ela pestanejou mesmo? - sussurrou Giles.
- E o falecido major Fisher era um dos seus consultores financeiros?
- Sim, e sempre que ele me recomendava que comprasse ou vendesse ações, eu seguia os seus conselhos. Sempre o considerei um homem honesto, digno de confiança e muito profissional.
Emma nem teve forças para olhar para o júri. Mas Giles fê-lo e percebeu que eles estavam suspensos de cada palavra de Virgínia.
Sir Edward baixou a voz, como um poeta grego a exigir silêncio antes de dizer o último verso.
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- Finalmente, deixe-me perguntar-lhe, Lady Virgínia, se sente algum arrependimento por ter movido este processo por difamação contra a senhora Clifton.
- Sim, sinto, Sir Edward. A morte trágica e desnecessária do meu querido amigo, major Alex Fisher, faz com que o desfecho deste julgamento seja irrelevante. Se ao desistir deste processo lhe pudesse ter salvado a vida, tê-lo-ia feito sem hesitar.
Virou-se para o júri, tirou um lencinho da manga e enxugou uma lágrima imaginária.
- Lamento que tenha de passar por esta provação, Lady Virgínia, tão pouco tempo depois da morte do seu amigo e conselheiro, o major Fisher. Não tenho mais perguntas, meritíssima.
Se estivessem sozinhos, Trelford teria felicitado o seu douto amigo pelo interrogatório magistral. Abriu a sua pasta e viu o conselho de Giles escrito ao cimo da primeira página, faça-a perder a calma. A seguir, olhou para a sua primeira pergunta, recém-formulada.
- Lady Virgínia - disse ele, sublinhando a palavra «Lady» -, falou ao tribunal da admiração que sentia pela senhora Clifton e da devoção que nutria pelo irmão, Sir Giles Barrington, mas apesar disso não convidou um único membro das famílias Barrington ou Clifton para o seu casamento com Sir Giles.
- Essa foi uma decisão conjunta, doutor Trelford. Giles tinha exatamente a mesma opinião que eu.
- Se assim é, Lady Virgínia, talvez possa explicar as palavras do seu pai na altura do casamento, registadas no Daily Express por William Hickey: A minha filha estava pronta para cancelar a cerimónia se Giles não tivesse concordado com as suas exigências.
- Histórias próprias de colunas de mexericos, escritas para vender jornais. Sinceramente, surpreende-me que sinta necessidade de recorrer a tais táticas.
Sir Edward não conseguiu resistir a esboçar um sorriso. Era óbvio que a sua cliente já estava à espera daquela pergunta.
- E mais tarde, no seu depoimento - disse Trelford, avançando rapidamente -, culpou a senhora Clifton pelo seu divórcio.
- Ela consegue ser uma mulher muito determinada - disse Virgínia - como estou certa de que o senhor já terá descoberto.400
- Mas o seu divórcio não teve nada que ver com a senhora Clifton! Deveu-se antes às discussões que teve com o seu marido pelo facto de ele ter sido excluído do testamento da mãe.
- Isso não é verdade, senhor Trelford. A herança de Giles nunca me interessou. Casei com ele «na riqueza ou na pobreza» e, sinceramente, já que fala nisso, eu era mais rica do que ele.
Isto provocou gargalhadas suficientes na sala para a juíza olhar para o público com ar ameaçador.
- Então, não foi a senhora que insistiu que Sir Giles devia processar a própria irmã e contestar a validade do testamento da mãe? Essa foi outra decisão conjunta?
- Não, essa decisão foi de Giles. Creio que o aconselhei a não o fazer, na altura.
- Talvez queira reconsiderar essa resposta, Lady Virgínia, pois posso sempre chamar Sir Giles a depor e pedir-lhe que esclareça esse ponto.
- Bem, admito que senti que Giles fora tratado miseravelmente pela família e que tinha pelo menos o direito de questionar a validade do testamento da mãe, já que fora alterado enquanto a pobre senhora estava no hospital, dias antes de morrer.
- E qual foi a decisão do tribunal, nessa ocasião?
- O juiz decidiu a favor da senhora Clifton.
- Não, Lady Virgínia, não foi assim. Tenho a sentença do juiz Cameron na minha mão. Ele deliberou que o testamento era válido e que a mãe da senhora Clifton estava no seu perfeito juízo quando o executou. E isso é especialmente relevante, tendo em conta o que ela disse sobre si na altura.
Sir Edward pôs-se em pé num ápice.
- Doutor Trelford - disse a juíza bruscamente, antes que Sir Edward pudesse pronunciar-se -, já enveredámos por esse caminho e fomos dar a um beco sem saída. Estou a fazer-me entender?
- Peço desculpa, meritíssima. Tem alguma objeção a que eu pergunte a Lady Virgínia se posso ler em voz alta...
- Tenho, sim, doutor Trelford. Avance - disse a juíza rispidamente.
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Trelford olhou de relance para o júri. Como era óbvio pela expressão dos seus rostos que tinham ignorado a instrução da juíza para não lerem as notícias dos jornais sobre o caso e deviam estar bem cientes do que a mãe da senhora Clifton pensava de Lady Virgínia, obedeceu alegremente aos desejos da juíza e avançou.
- Lady Virgínia, sabe que apesar da sentença do douto juiz a favor da senhora Clifton e da sua irmã, a doutora Grace Barrington, mbas concordaram em que o irmão podia continuar a morar na casa
da família em Gloucestershire, assim como na casa de Londres em Smith Square, enquanto a senhora Clifton e o marido continuavam a residir na mais modesta Manor House?
- Não faço ideia de quais foram as combinações domésticas de Giles depois de me ter divorciado dele por adultério, muito menos daquilo que a senhora Clifton andava a tramar.
- Não fazia ideia do que a senhora Clifton andava a tramar - repetiu o senhor Trelford. - Nesse caso, Lady Virgínia, deve ter uma memória muito curta ou muito seletiva, pois ainda há uns instantes disse ao júri o quanto admirava a senhora Clifton. Permita-me que lhe recorde as suas exatas palavras. - Virou lentamente uma página da sua pasta. - «Emma tem muitas qualidades admiráveis e tem sido sem dúvida uma notável presidente de uma companhia privada, o que faz dela um modelo para outras mulheres com aspirações profissionais.» Nem sempre foi essa a sua opinião, pois não, Lady Virgínia?
- A minha opinião sobre a senhora Clifton não se alterou e mantenho o que disse.
- Comprou sete e meio por cento das ações da Barrington's?
- Foi o major Fisher que o fez em meu nome.
- Com que objetivo?
- Um investimento a longo prazo.
- E não foi por querer um lugar no conselho de administração da companhia?
- Não. Era o major Fisher, como bem sabe, que representava os meus interesses no conselho.
- Não em 1958, porque nesse ano a senhora apareceu numa reunião geral extraordinária da Barrington's, em Bristol, a reclamar402
o direito de fazer parte do conselho de administração e de votar em quem devia ser o próximo presidente. Para que conste, Lady Virgínia, votou em quem?
- Votei no major Fisher.
- Ou quer dizer que votou contra a senhora Clifton?
- Claro que não. Ouvi atentamente ambas as apresentações e decidi-me a favor do major Fisher, em vez da senhora Clifton.
- Ora bem, então é óbvio que se esqueceu do que disse na altura, mas como ficou registado na ata da reunião, permita-me que lho recorde. Não creio que as mulheres tenham sido postas no mundo para presidir a conselhos de administração, enfrentar líderes sindicais, construir paquetes de luxo ou ter de angariar avultadas somas em dinheiro junto dos banqueiros da City londrina. Não é propriamente um apoio vibrante às mulheres com aspirações profissionais.
- Talvez devesse continuar a ler, doutor Trelford, e não ser tão seletivo nas suas citações.
Trelford olhou para lá do parágrafo que sublinhara e hesitou. A juíza Lane incentivou-o.
- Gostava de ouvir o que mais disse Lady Virgínia nessa ocasião.
- E eu também - disse Sir Edward, suficientemente alto para toda a gente no tribunal ouvir.
Relutantemente, Trelford leu em voz alta as duas linhas seguintes.
- Vou apoiar o major Fisher e só espero que a senhora Clifton aceite a generosa oferta do major para ser sua vice-presidente. - O senhor Trelford levantou os olhos.
- Por favor, continue, doutor Trelford - incitou Lady Virgínia.
- Cheguei aqui de mente aberta, disposta a dar-lhe o benefício da dúvida, mas infelizmente ela não esteve à altura das minhas expectativas.
- Creio que irá descobrir, doutor Trelford - disse Virgínia -, que é o senhor quem tem a memória curta ou seletiva, e não eu.
Sir Edward aplaudiu, embora as suas mãos não se chegassem a tocar.
O senhor Trelford mudou rapidamente de assunto.
- Podemos então passar às palavras da senhora Clifton que afirma terem sido difamatórias e destinadas a rebaixá-la?
403
- Com todo o gosto.
- Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia - continuou Trelford como se não tivesse sido interrompido -, então... fracassou, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja um sucesso. Ora, o major Fisher admitiu que transacionou as ações que tinha na Barrington's simplesmente para ganhar dinheiro, o que no caso dele era ilegal...
- No caso dele, mas não no meu - disse Lady Virgínia. - No meu caso, ele estava simplesmente a agir em meu nome. Tanto quanto sei, ele dava exatamente o mesmo conselho a vários outros clientes.
- Então, afinal, o major Fisher não era um grande amigo que a mantinha ao corrente do que acontecia no conselho de administração da Barrington's, mas simplesmente um consultor profissional?
- Mesmo que fôssemos amigos, doutor Trelford, no que dizia respeito aos negócios, tudo o que ele fazia em meu nome era por sua iniciativa. Eu mantive-me sempre à margem.
- A mim parece-me, Lady Virgínia, que no que dizia respeito aos negócios, era mais uma iniciativa conjunta para pôr as mãos na massa e, tal como a senhora Clifton sugeriu, vocês os dois urdiram um plano para tentar destruir a companhia em três ocasiões distintas.
- Doutor Trelford, creio que me está a confundir com o senhor Cedric Hardcastle, um administrador da companhia que vendeu todas as suas ações no fim de semana anterior à assembleia-geral anual. Quando perguntei à senhora Clifton quem era esse administrador, uma pergunta perfeitamente legítima, ela parece ter-se esquecido muito convenientemente do seu nome. Mais outra pessoa com uma memória muito curta ou muito seletiva.
O sorriso de Sir Edward tornava-se mais rasgado a cada minuto, enquanto Trelford parecia cada vez menos seguro de si. Virou rapidamente mais uma página.
- Todos lamentamos a morte trágica do major Fisher...
- Pode crer que lamento - disse Virgínia. - E como já disse, e com certeza terá registado palavra por palavra, doutor Trelford, nunca teria pensado em mover este processo se me tivesse ocorrido,404
por um momento que fosse, que ele podia resultar na morte trágica e desnecessária do meu querido amigo.
- Eu lembro-me bem das suas palavras, Lady Virgínia, mas pergunto-me se terá reparado que, mesmo antes do início da sessão desta manhã, um polícia entrou neste tribunal e me entregou uma carta.
Sir Edward chegou-se mais para a frente no lugar, pronto a atacar.
- Ficaria surpreendida ao saber que me era dirigida e que foi escrita pelo seu querido amigo, o major Fisher?
Se o senhor Trelford tivesse continuado a falar, as suas palavras teriam sido abafadas por uma cacofonia de ruído vindo de todos os cantos da sala de audiências. Só a juíza e o júri continuaram impassíveis. Ele esperou que se fizesse silêncio antes de prosseguir:
- Lady Virgínia, quer que leia em voz alta ao tribunal as últimas palavras que o seu querido amigo, o major Fisher, escreveu momentos antes de morrer?
Sir Edward pôs-se em pé de um salto.
- Meritíssima, não vi essa carta entre as provas e, por conseguinte, não faço ideia se é admissível ou mesmo autêntica.
- A mancha de sangue no envelope sugere a sua autenticidade, meritíssima - argumentou Trelford, brandindo o envelope em frente do júri.
- Também não vi a carta, Sir Edward - disse a juíza -, por isso, é claro que não é admissível como prova até que eu assim a considere.
Trelford não se importava nada que continuassem a discutir os pormenores jurídicos relativos à admissibilidade, ou não, da carta, ciente de que tinha conseguido o que pretendia sem ter de exibir qualquer prova.
Giles estudou a expressão esfíngica do rosto de Trelford e ficou sem saber se o advogado de Emma quereria mesmo que a carta fosse lida em voz alta no tribunal, mas a verdade é que, depois do que havia começado como uma manhã triunfante para Lady Virgínia, ele conseguira lançar uma vez mais a semente da desconfiança na cabeça dos
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jurados. Os olhos de todos quantos se encontravam no tribunal estavam postos nele.
O senhor Trelford voltou a guardar o envelope no bolso interior
do seu casaco. Sorriu para a juíza e disse:
- Não tenho mais perguntas, meritíssima.

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Quando a porta da cela se abriu na terça-feira de manhã, os dois guardas que entraram deram com Harry e Babakov sentados no chão em cantos opostos da cela, sem se falar.
Agarraram em Babakov e, enquanto o arrastavam para fora da cela, Harry baixou a cabeça como se não quisesse ter nada que ver com aquele homem. Passado um momento, apareceram mais dois guardas, que caminhavam com uma passada mais descontraída. Apesar de terem agarrado Harry com firmeza pelos braços, não o empurraram nem arrastaram para fora da cela, o que o fez pensar se seria possível que o plano de Babakov tivesse funcionado. No entanto, os guardas não largaram Harry enquanto o levavam escada acima e ao longo do corredor até à sala de audiências, como se receassem que ele pudesse tentar fugir. Mas para onde fugiria e quão longe imaginavam que chegaria?
Harry insistira em que Babakov dormisse no único colchão fino que existia na sua pequena cela, mas o russo recusara, explicando que não podia habituar-se a tal luxo quando regressaria na terça-feira à noite para um chão de pedra na Sibéria. Dormir na palha espalhada abundantemente pelo chão era luxo suficiente para um fim de semana. A verdade é que nenhum deles tinha dormido um minuto que fosse, o que fez Harry recordar os dias que passara atrás das linhas inimigas. Quando os guardas vieram buscá-los na terça-feira de manhã, estavam ambos mental e fisicamente esgotados, tendo usado todas as horas disponíveis para o desafio a que se tinham proposto.
Quando os dois guardas acompanharam Harry ao tribunal, este ficou surpreendido por encontrar o procurador e o júri já nos seus
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lugares. Mal teve tempo para recuperar o fôlego antes de a porta ao fundo da sala se abrir e os três juízes entrarem e regressarem aos seus lugares no estrado sobrelevado.
Mais uma vez, a presidente do tribunal nem sequer olhou na direção de Harry, virando-se imediatamente para o júri. Abriu uma pasta à sua frente e iniciou o que Harry presumiu ser a recapitulação dos factos. Só falou durante alguns minutos, raramente levantando a cabeça do texto. Harry só se perguntava quem o teria escrito e quando.
- Camaradas, ouviram todos os testemunhos e tiveram tempo mais do que suficiente para pensar no vosso veredito. Haverá alguma dúvida de que o prisioneiro é culpado dos crimes de que foi acusado e que merece ser condenado a uma longa pena de prisão? O júri terá interesse em saber que esta não será a primeira experiência do género vivida pelo prisioneiro. Ele já cumpriu pena por homicídio nos Estados Unidos, mas não deixem que isso vos influencie, porque são vocês, e só vocês, que têm de decidir se ele é culpado.
Harry teve de admirar o facto de os outros dois juízes conseguirem manter uma expressão séria enquanto ela continuava a ler a declaração preparada.
- Camaradas, primeiro deixem-me perguntar-vos se precisam de se retirar para pensar no veredito.
Um homem sentado na ponta do lado direito da primeira fila, como convém a quem tem um papel pequeno, levantou-se e, fiel ao seu guião, disse:
- Não, camarada presidente.
- Já chegaram a um veredito?
- Sim, camarada presidente.
- E esse veredito foi unânime?
- Foi, sim, camarada presidente.
- E qual é o vosso veredito?
Cada um dos doze membros do júri tirou uma folha da cadeira e segurou-a bem alto, revelando a palavra culpado.
Harry teve vontade de observar que só havia uma folha de papel em cada cadeira, mas, tal como Anatoly aconselhara, fez um ar convenientemente contrito quando a camarada presidente se virou para o olhar pela primeira vez.
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- Por unanimidade, o júri - declarou ela - considerou-o culpado de um crime premeditado contra o Estado e eu, por conseguinte, não tenho qualquer dúvida em condená-lo a doze anos de prisão num campo de trabalhos forçados, onde poderá voltar a partilhar uma cela com o seu amigo criminoso Babakov. - Fechou a pasta e fez uma pausa considerável antes de acrescentar: - No entanto, tal como o coronel Marinkin recomendou, vou oferecer-lhe uma última oportunidade para assinar uma confissão a admitir o seu crime e o terrível erro que cometeu. Se o fizer, a sua sentença será suspensa, será extraditado e nunca mais será autorizado a visitar a União Soviética ou qualquer dos seus estados-satélites. Se alguma vez tentar fazê-lo, a sua sentença será automaticamente revalidada. - Após uma curta pausa, disse: - Está disposto a assinar uma confissão?
Harry baixou a cabeça e disse muito baixinho:
- Sim, estou.
Pela primeira vez, os três juízes revelaram uma emoção: surpresa. A presidente não conseguiu esconder o seu alívio, revelando involuntariamente o que os seus superiores sempre haviam pretendido.
- Então, pode aproximar-se do estrado - disse ela.
Harry levantou-se e dirigiu-se aos três juízes. Mostraram-lhe duas cópias da confissão, uma em russo e a outra em inglês, tendo lido ambas com todo o cuidado.
- Agora, irá ler a sua confissão ao tribunal.
Harry leu primeiro a versão russa, o que trouxe um sorriso aos lábios da camarada presidente. A seguir, pegou na versão inglesa e começou a lê-la. Pelos olhares inexpressivos que recebeu, perguntou-se se alguém naquela sala compreenderia uma palavra de inglês. Decidiu arriscar, alterar uma palavra de vez em quando e ver como reagiam.
- Eu, Harry Clifton, cidadão do Reino Unido e presidente do PEN, assinei involuntariamente e sob coerção esta confusão. Passei os últimos três anos com Anatoly Babakov, que deixou bem claro que trabalhou mesmo no Kremlin e que esteve com o Camarada Presidente Stalin em várias ocasiões, incluindo na cerimónia da sua licenciatura. Babakov também admitiu que o livro que escreveu sobre o camarada Stalin era baseado em factos, e não um produto da sua imaginação.
»Vou continuar a exigir a libertação de Babakov da prisão, agora que tenho consciência dos extremos a que este tribunal foi para enganar
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o público com esta fraude. Estou muito grato ao tribunal pela sua letargia nesta ocasião, e por me permitir regressar ao meu país.
A presidente entregou-lhe uma caneta e preparava-se para assinar ambas as cópias quando decidiu correr um segundo risco.
- Membros do júri - disse a juíza Lane. - Cabe-me agora recapitular este caso complexo. A senhora Clifton não nega que, ao falar numa assembleia-geral anual muito concorrida da companhia que é propriedade da sua família, deu a seguinte resposta a uma pergunta efetuada por Lady Virgínia Fenwick, mandando-a registar depois na ata da reunião: Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia, então... fracassou, e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente comum e decente que quer que esta companhia seja um sucesso.
»A arguida, a senhora Clifton, declarou acreditar que as suas palavras eram justificadas, ao passo que a queixosa, Lady Virgínia, afirma que são difamatórias. Este julgamento visa precisamente saber se o são, ou não, e a decisão final é vossa.
»O vosso maior desafio, se me permitem, é formar um juízo sobre as duas mulheres envolvidas neste caso. Viram-nas a ambas no banco das testemunhas e desconfio que terão formado a vossa própria opinião relativamente a qual consideram mais credível. Não se deixem influenciar pelo facto de a senhora Clifton ser presidente de uma companhia e, por conseguinte, dever ter alguma liberdade quando responde a uma pergunta de alguém que considera hostil. O que têm de decidir é se ela difamou, ou não, Lady Virgínia.
»Da mesma forma, não se devem deixar intimidar pelo facto de Lady Virgínia ser filha de um conde. Devem tratá-la da mesma forma como tratariam a vossa vizinha do lado.
»Quando se retirarem para a sala do júri para ponderar o veredito, levem o tempo que for preciso. Eu não tenho pressa. E não se esqueçam de que a decisão que estão prestes a tomar irá afetar estas mulheres para o resto das suas vidas.
»Mas primeiro, devem escolher um porta-voz, que atuará como presidente. Quando tiverem chegado a um veredito, por favor digam ao oficial de diligências que pretendem regressar à sala, para que eu410
possa informar todos aqueles que estão direta e indiretamente envolvidos neste caso que devem voltar para escutar a vossa decisão. Vou agora pedir ao oficial de diligências que vos acompanhe à sala do júri, para que possam iniciar as vossas deliberações.
Um homem alto e elegantemente vestido com porte militar e envergando o que parecia ser o traje de um mestre-escola deu um passo em frente e conduziu os sete homens e cinco mulheres do júri para fora da sala. Passados alguns momentos, a juíza levantou-se do lugar, fez uma vénia e regressou aos seus aposentos.
- O que achou da recapitulação? - perguntou Emma.
- Comedida e justa - assegurou-lhe o senhor Trelford. - Não tem motivo para se queixar.
- E quanto tempo acha que eles vão levar a chegar a uma decisão? - perguntou Giles.
- É impossível de prever. Se estiverem todos de acordo, o que considero altamente improvável, não mais do que duas horas. Se estiverem em desacordo, pode levar dois dias.
- Posso ler a carta que o major Fisher lhe escreveu? - perguntou Sebastian inocentemente.
- Não, não pode, senhor Clifton - disse Trelford, enfiando o envelope mais para dentro do bolso -, nem ninguém pode, a menos e até que a juíza Lane me permita revelar o seu conteúdo. Mas foi uma boa tentativa - disse ele, sorrindo para Seb.
- Quanto tempo temos de esperar? - perguntou Virgínia, que estava sentada com o seu advogado do outro lado da sala de audiências.
- Não faço ideia - retorquiu Sir Edward. - Se tivesse de arriscar um palpite, diria um dia, talvez dois.
- E porque é que o major Fisher dirigiu a sua última carta a Trelford, e não a si?
- Isso não consegui entender. Mas confesso que estou confuso com o facto de Trelford não ter pressionado mais a juíza para que o deixasse ler a carta ao júri, se isso era suscetível de beneficiar a sua cliente.
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- Talvez estivesse a fazer bluff?
- Ou a fingir que estava...
- Será que não há problema em ausentar-me duas horas? - perguntou Virgínia. - Há uma coisa que preciso de fazer.
- E porque não? Não prevejo que o júri volte antes desta tarde.

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Harry não estava à espera de ser levado ao aeroporto por um carro com motorista e ainda ficou mais surpreendido quando viu quem era o motorista.
- Só quero certificar-me de que entra no avião - disse o coronel Marinkin.
- Que atencioso da sua parte, coronel - disse Harry, esquecendo-se de continuar a incarnar a personagem.
- Não se arme em esperto comigo, senhor Clifton. A estação de comboios fica mais perto do que o aeroporto, e ainda não é demasiado tarde para se juntar a Babakov numa viagem sem bilhete para voltar durante mais doze anos.
- Mas eu assinei a confissão - disse Harry, tentando parecer conciliador.
- E sei que ficará contente por saber que já foi enviada para todos os principais jornais do Ocidente, desde o New York Times ao Guardian. Estará na maior parte das suas primeiras páginas antes de aterrar em Heathrow, por isso, mesmo que tentasse negá-la...
- Posso assegurar-lhe, coronel, que, ao contrário de São Pedro, não precisarei de negar nada. Vi Babakov como ele é realmente. E, de qualquer forma, a palavra de um inglês é sagrada.
- Fico contente por saber disso - observou o coronel, enquanto entrava na autoestrada e carregava a fundo no acelerador. Passados segundos, o conta-quilómetros marcava cento e sessenta quilómetros por hora. Harry agarrou-se ao painel de instrumentos enquanto o coronel se escapulia por entre o trânsito e, pela primeira vez desde que
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pusera os pés na Rússia, Harry sentiu-se sinceramente assustado. Ao passarem pelo Hermitage, o coronel não resistiu a perguntar:
- Alguma vez visitou o Hermitage, senhor Clifton?
- Não - disse Harry -, mas sempre quis fazê-lo.
- É pena, porque agora nunca o fará - disse o coronel enquanto ultrapassava dois camiões.
Harry só começou a descontrair quando avistou o terminal do aeroporto e o coronel abrandou para os noventa. Esperava que o avião levantasse voo antes de as primeiras edições chegarem às ruas, caso contrário ainda era capaz de ir parar ao tal comboio para a Sibéria. Como passar pela alfândega devia levar pelo menos duas horas, ia ser muito à tangente.
De repente, o carro saiu da estrada, entrou por um portão aberto por dois guardas e continuou por ali fora até uma pista. O coronel desviava-se dos aviões estacionados com o mesmo à-vontade com que tratara os carros na autoestrada. Parou com um chiar de pneus junto à escada de um avião, onde dois guardas que estavam claramente à espera dele se puseram em sentido e fizeram continência ainda antes de ele sair do carro. Marinkin saltou lá para fora e Harry seguiu-o.
- Não quero demorá-lo - disse o coronel. - Certifique-se apenas de que nunca mais volta, pois se o fizer estarei ao fundo da escada à sua espera.
Não apertaram a mão um ao outro.
Harry subiu a escada o mais depressa que conseguiu, sabendo que só se sentiria seguro depois de o avião descolar. Quando chegou ao último degrau, o chefe de cabina deu um passo em frente e disse:
- Bem-vindo a bordo, senhor Clifton. Deixe-me levá-lo ao seu lugar.
Era óbvio que o esperavam. O comissário de bordo conduziu-o à última fila da primeira classe e Harry ficou aliviado ao ver que o lugar ao lado dele estava vazio. Mal se sentou, a porta do avião foi fechada e o sinal para apertar o cinto iluminou-se. Mesmo assim, ainda não estava pronto para suspirar de alívio.
- Há alguma coisa que lhe possa trazer depois de levantarmos voo, senhor Clifton? - perguntou o comissário.
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- Quanto tempo leva o voo?
- Cinco horas e meia, incluindo uma escala em Estocolmo.
- Um café forte sem açúcar, duas canetas e todo o papel para escrever que conseguir arranjar. E não se importa de me dizer assim que sairmos do espaço aéreo russo?
- Com certeza - disse o comissário, como se lhe pedissem aquilo todos os dias.
Harry fechou os olhos e tentou concentrar-se enquanto o avião começava a rolar até à outra ponta da pista, preparando-se para descolar. Anatoly tinha-lhe explicado que sabia o livro de cor e tinha passado os últimos dezasseis anos a repeti-lo para si mesmo, na esperança de um dia ser libertado e poder publicá-lo.
Mal o sinal do cinto de segurança se apagou, o comissário voltou e entregou a Harry uma dúzia de folhas de papel da BOAC e duas esferográficas.
- Receio que não seja suficiente para o primeiro capítulo - lamentou Harry. - Consegue manter um fornecimento regular?
- Vou fazer o possível - disse o comissário. - E está a pensar dormir algumas horas durante o voo?
- Não, se conseguir evitá-lo.
- Então, permita-me que sugira que deixe a luz de leitura acesa, pois assim quando baixarem as luzes poderá continuar a trabalhar.
- Obrigado.
- Deseja ver a ementa da primeira classe?
- Só se puder escrever na parte de trás.
- Um cocktail, talvez?
- Não, fico-me pelo café, obrigado. E vou dizer-lhe uma coisa que vai parecer incrivelmente grosseira, mas que é tudo menos isso, asseguro-lhe.
- Com certeza, senhor.
- Pode não voltar a dirigir-me a palavra até aterrarmos em Estocolmo?
- Como queira, senhor.
- A não ser para me dizer quando já não estivermos no espaço aéreo russo. - O comissário assentiu. - Obrigado - disse Harry, e depois pegou numa esferográfica e começou a escrever.
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A primeira vez que estive com Josef Stalin foi quando me licenciei no Instituto de Línguas Estrangeiras, em 1941. Eu encontrava-me numa fila de licenciados que iam receber os seus diplomas e, se me tivessem dito nessa altura que ia passar os próximos treze anos a trabalhar para um monstro que fazia Hitler parecer um pacifista, não teria acreditado que isso fosse possível. Mas o único culpado sou eu, pois nunca me teriam oferecido trabalho no Kremlin se não tivesse sido o melhor aluno da turma e ganhado a medalha Lenine. Se tivesse sido o segundo melhor, ter-me-ia juntado à minha esposa Helena, ensinado Inglês numa escola estatal e nem sequer figuraria numa nota de rodapé na história.
Harry fez uma pausa, enquanto tentava recordar um parágrafo que começava assim: Durante os primeiros seis meses...
Durante os primeiros seis meses, trabalhei num pequeno gabinete num dos muitos edifícios secundários que existiam no interior do muro vermelho que circundava os vinte e oito hectares do Kremlin. O meu trabalho era traduzir os discursos do líder de russo para inglês, sem fazer ideia se alguma vez alguém os leria. Mas depois, um dia, dois membros da polícia secreta (NKVD) apareceram junto à minha secretária e ordenaram-me que os acompanhasse. Levaram-me para fora do edifício, atravessámos um pátio e entrámos no Senado, um edifício onde nunca tinha estado. Devem ter-me revistado uma dúzia de vezes antes de me deixarem entrar num grande gabinete, onde me encontrei na presença do camarada Stalin, o secretário-geral do Partido. Eu era muito mais alto que ele, embora apenas meça um metro e setenta e cinco, mas aquilo que melhor recordo são aqueles olhos amarelos a sondar os meus. Esperava que ele não visse que eu estava a tremer. Soube anos mais tarde que ele desconfiava de qualquer funcionário que não estivesse a tremer quando aparecia pela primeira vez diante dele. Porque é que ele me queria ver? Clement Attke acabara de ser eleito primeiro-ministro britânico e Stalin queria saber como é que era possível um homenzinho tão insignificante como aquele (Attlee tinha mais dois centímetros do que Stalin) ir substituir Winston Churchill, pessoa que ele admirava e respeitava. Depois de eu lhe ter explicado os caprichos do sistema eleitoral britânico, a única coisa que ele disse foi: «Essa é a derradeira prova de que a democracia não funciona.»
O comissário trouxe-lhe um café fumegante, o segundo de Harry, e mais folhas de papel de diferentes tamanhos e feitios, sem dizer uma palavra.416

Sebastian apanhou um táxi para o Supremo Tribunal pouco depois das onze. Precisamente quando se preparava para sair do seu gabinete, Rachel deixou o correio da manhã e mais três volumosos dossiês em cima da sua secretária. Ele tentou dizer-lhe que as coisas voltariam ao normal na semana seguinte. Não podia adiar por muito mais tempo dizer a Ross Buchanan que tencionava ir à América e descobrir se tinha a mais pequena hipótese de reconquistar Samantha, embora nem sequer tivesse a certeza se ela concordaria em recebê-lo. Ross tinha conhecido Samantha na viagem inaugural do Buckingham e descrevera-a mais tarde como o melhor ativo que ele deixara escapar.
- Eu não a deixei escapar - tentara explicar Seb - e, se pudesse reconquistá-la, fá-lo-ia. Custasse o que custasse.
Enquanto o táxi abria caminho através do trânsito matinal, ele não parava de olhar para o relógio, esperando lá chegar antes que o júri voltasse à sala.
Estava a pagar a corrida quando avistou Virgínia. Estacou de imediato. Mesmo de costas para ele, não podia ser mais ninguém. Aquele ar confiante de gerações passadas, o estilo, a classe, fá-la-iam destacar-se no meio de qualquer multidão. Mas o que estava ela a fazer escondida numa viela, a conversar com Desmond Mellor? Seb nem sequer sabia que eles se conheciam, mas porque é que isso não o surpreendia? Ia contar imediatamente ao tio Giles e deixá-lo decidir se deviam dizer a Emma. Talvez fosse melhor fazê-lo só depois do julgamento.
Juntou-se à vaga de transeuntes para ter a certeza de que nenhum dos dois o via. Ao entrar no tribunal, subiu a escadaria a correr, desviando-se dos advogados de peruca, assim como das testemunhas e arguidos que desejavam não estar ali, até que finalmente chegou ao átrio da sala de audiências número 14.
- Estamos aqui, Seb - chamou uma voz.
Seb olhou à sua volta e viu Giles e a mãe sentados ao canto do átrio, a conversar com o senhor Trelford para matar o tempo.
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Foi ter com eles. Giles disse-lhe que não havia sinal do regresso do júri. Esperou que a mãe retomasse a sua conversa com Trelford antes de puxar Giles à parte e lhe contar aquilo a que acabara de assistir.
- Cedric Hardcastle ensinou-me a não acreditar em coincidências - rematou.
- Sobretudo quando Virgínia está envolvida. Com ela, tudo é planeado até ao mais ínfimo detalhe. Contudo, não acho que seja a altura certa para contar à tua mãe.
- Mas como é que é possível eles conhecerem-se?
- Alex Fisher tem de ser o denominador comum - disse Giles. - Mas o que me preocupa é que Desmond Mellor é um homem muito mais perigoso e inteligente do que Fisher. Nunca percebi por que razão se demitiu da Barrington's tão pouco tempo depois de se ter tornado vice-presidente.
- Fui eu o responsável - confessou Seb, e explicou o acordo que fizera com Hakim Bishara.
- Foste esperto, mas atenção que Mellor não é tipo para perdoar ou esquecer.
- Todos os envolvidos no caso Fenwick contra Clifton queiram fazer o favor de ir para a sala de audiências número catorze, pois o júri irá regressar nos próximos minutos.
Levantaram-se os quatro ao mesmo tempo e voltaram rapidamente à sala, onde encontraram a juíza já sentada no seu lugar. Toda a gente estava a olhar para a porta por onde o júri iria entrar, como espectadores de teatro à espera de que a cortina se levantasse.
Quando a porta finalmente se abriu, o falatório cessou enquanto o oficial de diligências conduzia os doze jurados de volta à sala e depois se afastava para o lado para que eles se sentassem na respetiva bancada. Depois de devidamente acomodados, pediu ao porta-voz para se levantar.
A primeira vista, o eleito não podia deixar de parecer o líder mais improvável, mesmo de um grupo tão díspar quanto aquele. Devia ter cerca de sessenta anos, não tinha mais de um metro e sessenta, era calvo e envergava um fato de três peças, camisa branca e uma gravata às riscas, que Giles presumiu representar o seu clube ou o seu antigo liceu. Era daquelas pessoas por quem passávamos na rua sem sequer as ver. Mas assim que abriu a boca, toda a gente percebeu porque418
é que tinha sido escolhido. Falava com uma autoridade calma, e Giles não ficaria surpreendido se viesse a saber que era solicitador, professor ou mesmo um alto funcionário público.
- Senhor porta-voz - disse a juíza, inclinando-se para a frente -, chegaram a um veredito com que todos estejam de acordo?
- Não, meritíssima - replicou ele em tom calmo e comedido. - Mas considerei que devíamos informá-la do impasse a que chegámos, na esperança de que nos possa aconselhar quanto ao que fazer a seguir.
- Com certeza que irei tentar - disse a juíza Lane, como se estivesse a falar com um colega de confiança.
- Procedemos à votação uma série de vezes e resultou sempre num impasse de oito contra quatro. Não tínhamos a certeza se valia a pena continuar.
- Não quero que desistam tão cedo - prosseguiu a juíza. - Já se investiu muito tempo, esforço e dinheiro neste julgamento, e o mínimo que qualquer um de nós pode fazer é ter a certeza absoluta de que se fizeram todos os esforços para chegar a um veredito. Se acharem que pode ajudar, estou disposta a aceitar um veredito por maioria de dez contra dois, mas menos do que isso não.
- Nesse caso, vamos tentar novamente, meritíssima - informou o porta-voz e, sem dizer mais nada, levou o seu grupo para fora da sala, com o oficial de diligências a fechar o cortejo de um clube exclusivo onde mais ninguém seria convidado a entrar.
Assim que a porta se fechou atrás deles, levantou-se um enorme burburinho, mesmo antes de a juíza sair da sala.
- Quem tem oito e quem tem quatro? - foi a primeira pergunta de Virgínia.
- A senhora tem os oito - disse Sir Edward - e consigo identificar quase todos eles.
- Como pode ter tanta certeza?
- Por duas razões. Enquanto o porta-voz falava com a juíza, fiquei a observar os outros jurados e a maioria estava a olhar para si. A experiência diz-me que os jurados não olham para os vencidos.
- E a outra razão?
- Olhe para Trelford e verá um homem infeliz, pois ele terá feito o mesmo exercício.
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- Quem tem a maioria? - perguntou Giles.
- Nunca é fácil prever o que faz um júri - disse Trelford tocando no envelope que tinha no bolso interior, embora tivesse a certeza de que não era a sua cliente que precisava de mais dois votos para ganhar a ação. Portanto, talvez estivesse na altura de deixar a senhora Clifton ver a carta do major e decidir se queria que ela fosse lida em tribunal.
Ele ia aconselhá-la a fazê-lo se ainda queria ter esperança de ganhar o processo, mas, tendo ficado a conhecê-la relativamente bem nos últimos meses, não ficaria surpreendido se ela tivesse uma opinião diferente.
Quando Stalin estava a cumprir a sua primeira pena de prisão em 1902, aos vinte e três anos, decidiu aprender alemão, tal como muitos outros membros do partido cheios de ambição, para poder ler Karl Marx no original, mas acabou apenas com um conhecimento superficial da língua. Durante o tempo que esteve na prisão, formou um comité político autonomeado de assassinos e bandidos que mandava nos outros prisioneiros. Quem lhe desobedecesse era espancado até ceder. Em breve, até os guardas se deixavam intimidar por ele e, provavelmente, ficaram aliviados quando fugiu. Uma vez ele disse-me que nunca tinha assassinado ninguém, o que possivelmente é verdade, pois ele só precisava de sugerir, dizer um nome, e essa pessoa não voltava a ser vista.
A pior coisa que fiquei a saber sobre Stalin durante o tempo que estive no Kremlin, e que nunca repeti, nem sequer à minha esposa, com medo de que isso a pusesse em risco, foi que quando era jovem e estivera exilado em Kuneika, na Sibéria, tinha sido pai de dois filhos de uma estudante de treze anos, Udia Pereprygina, e quando deixou Kuneika, não só nunca lá voltou como nunca mais os contactou.
Harry desapertou o cinto de segurança e andou de um lado para o outro na cabina enquanto pensava no próximo capítulo. Recomeçou a escrever assim que voltou para o lugar.
Outro incidente com que Stalin nos brindava regularmente era a história de ter levado a cabo uma série de assaltos a bancos por todo o país, para angariar fundos para Lenin, com vista a apoiar a revolução. Isto explicava certamente a sua rápida promoção, embora Stalin ansiasse ser um político, e não ser visto apenas como um bandido caucasiano. Quando Stalin contou as suas ambições ao amigo, o
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camarada Eeonov, este limitou-se a sorrir e disse: «Não se pode fazer uma revolução com luvas de seda.» Stalin acenou a um dos seus bandidos, que seguiu Eeonov quando este saiu. Eeonov não voltou a ser visto.
-Já não estamos no espaço aéreo russo, senhor Clifton - informou o comissário.
- Obrigado - disse Harry.
A arrogância e insegurança de Stalin atingiram as proporções mais ridículas quando o grande realizador, Sergei Einstein, foi escolhido para fazer um filme chamado «Outubro», a exibir no Teatro Bolshoi para assinalar o décimo aniversário da Revolução de Outubro. Stalin apareceu no dia anterior à estreia e, depois de ver o filme, ordenou a Einstein que eliminasse todas as referências a Trotsky, o homem que o Partido Bolchevique reconhecera como o génio que estivera por trás do golpe, mas agora considerado por Stalin como o seu rival mais perigoso. No dia seguinte, quando o filme foi exibido para o público em geral, o nome de Trotsky não era mencionado do princípio ao fim, pois ficara relegado ao chão da sala onde a película fora cortada. O Pravda descreveu o filme como uma obra-prima e não fez menção ao desaparecimento de Trotsky. O antigo editor do jornal, Sergei Peresky, esteve entre as pessoas que desapareceram de um dia para o outro por terem criticado Stalin.
- Já não temos papel - disse o comissário.
- Quanto tempo falta para chegarmos a Estocolmo? - perguntou Harry.
- Cerca de uma hora. - Hesitou e depois disse - Há outra possibilidade que talvez queira considerar.
- Qualquer coisa é melhor do que perder uma hora.
- Temos duas variedades - disse o comissário. - Primeira classe e económica, mas eu acho que a económica é melhor para aquilo que pretende. Tem uma textura mais grossa e é menos absorvente.
Ambos se riram como meninos de escola quando o comissário de bordo apareceu com um rolo numa mão e uma caixa na outra. Henry seguiu o seu conselho e escolheu económica.
- A propósito, adoro os seus livros.
- Este livro não é meu - disse Harry enquanto continuava a escrever.
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Outro boato persistente que os seus inimigos espalhavam era que, durante a juventude, Stalin tinha sido agente duplo, trabalhando para a polícia secreta do Czar ao mesmo tempo que era um dos homens de confiança de Lenine. Quando os inimigos de Stalin descobriram os seus encontros regulares com a polícia secreta do Czar, ele afirmou simplesmente que estava a convertê-los em agentes duplos para poderem trabalhar para os revolucionários e, sempre que alguém o denunciava, desaparecia misteriosamente pouco depois. Por isso, nunca ninguém conseguiu saber ao certo para que lado trabalhava Stalin; houve um cínico que sugeriu que era para o lado que parecia estar a ganhar. Outra pessoa que não voltou a ser vista.
Harry fez uma pausa enquanto tentava lembrar-se da primeira linha do próximo capítulo.
Por esta altura, estarão a perguntar-se se receava pela minha vida. Não, porque eu era como papel de parede, confundia-me com o cenário, por isso nunca ninguém reparava em mim. Havia muito pouca gente do círculo mais próximo de Stalin que soubesse sequer o meu nome. Nunca ninguém pedia a minha opinião sobre nada, muito menos o meu apoio. Eu era um apparatchik, um funcionário público sem importância, e, se tivesse sido substituído por um papel de parede de cor diferente, teria sido esquecido de imediato.
Trabalhava no Kremlin há pouco mais de um ano quando pensei pela primeira vez em escrever uma biografia do homem de que ninguém falava, nem mesmo pelas costas, a não ser em tom reverente. Mas passou-se mais um ano até arranjar coragem para escrever a primeira página. Três anos depois, à medida que a minha confiança ia aumentando, sempre que voltava à noite para o meu apartamento acanhado, escrevia uma página, talvez duas, sobre o que acontecera naquele dia. E antes de ir para a cama, decorava o que acabara de escrever, como um ator faz com o seu guião, e em seguida destruía-o.
Tinha tanto medo de ser apanhado que Yelena se sentava junto à janela sempre que eu escrevia, para o caso de alguém fazer uma visita inesperada. Se isso tivesse acontecido, estava pronto para lançar ao fogo a página que estava a redigir. Mas nunca ninguém lá foi, pois ninguém me considerava uma ameaça para quem quer que fosse.
- Por favor, apertem os cintos de segurança, pois aterraremos em Estocolmo dentro de poucos minutos.
- Posso ficar no avião? - perguntou Harry.
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- Receio que não, senhor, mas temos uma sala de primeira classe onde servem o pequeno-almoço e onde estou certo de que encontrará uma quantidade infindável de papel.
Harry foi o primeiro a sair do avião e, passados minutos, já se tinha instalado numa mesa da sala de primeira classe com um café, um sortido de biscoitos e resmas de papel de escrever à máquina. Deve ter sido o único passageiro que ficou encantado por saber que o voo estava atrasado por causa de uma avaria mecânica.
Yakov Bulgukov, o presidente da câmara de Romanovskaya, enfrentou um problema potencialmente perigoso quando decidiu mandar construir uma enorme estátua em honra de Stalin, com o dobro do tamanho real, utilizando os reclusos de uma prisão vizinha para o fazer; a estátua seria erguida nas margens do canal Volga-Don. Quando chegava ao trabalho todas as manhãs, o presidente da câmara ficava horrorizado quando via que a cabeça do líder estava coberta de excremento de pássaro. Bulgukov imaginou então uma solução drástica. Deu ordem para que fizessem passar uma corrente elétrica pela cabeça da estátua e um funcionário subalterno foi encarregado de remover os pequenos cadáveres todas as manhãs, antes de o Sol nascer.
Harry concentrou-se antes de iniciar o terceiro capítulo.
Stalin dispunha de uma equipa de agentes de segurança escolhidos a dedo, chefiada pelo general' Nikolai Sidorovich Vlasik, em quem confiava a vida. Precisava disso, pois tinha feito tantos inimigos durante as purgas, quando eliminara todos aqueles que considerava possíveis rivais, fosse nessa altura ou no futuro. Perdi a conta ao número de pessoas que estavam nas suas boas graças um dia e que desapareciam no dia seguinte. Se um membro do seu círculo mais próximo aludisse à possibilidade de alguém estar a conspirar contra ele, essa pessoa desaparecia e nunca mais se ouvia falar dela. Stalin não acreditava na reforma antecipada ou em planos de pensões. Uma vez disse-me que se matássemos uma pessoa éramos assassinos, mas se matássemos milhares tornava-se uma mera estatística.
Stalin gabava-se de possuir uma proteção pessoal muito superior à que o presidente dos Estados Unidos recebia dos serviços secretos americanos, e não custava a acreditar. A noite, quando saía do Kremlin para ir para a sua dacha, e quando regressava ao Kremlin na manhã seguinte, Vlasik estava sempre ao seu lado, pronto a receber a bala de um assassino, embora a rota de nove quilómetros fosse permanentemente patrulhada por três mil agentes armados e a sua limusina Zil à prova de bala raramente andasse a menos de cento e trinta quilómetros por hora.

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Harry tinha chegado à página 79 do manuscrito quando pediram a todos os passageiros do voo com destino a Londres que voltassem a embarcar, altura em que Stalin se via como um cruzamento entre Henrique VIII e Catarina, a Grande. Harry foi até ao balcão do check-in.
- Seria possível alterar o meu voo para um que saia mais tarde?
- Sim, com certeza. Temos um que vai via Amesterdão e parte daqui a duas horas, mas receio que só haja voo de ligação para Londres daí a quatro horas.
- Perfeito.
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Na manhã seguinte, Giles leu a confissão assinada por William Warwick na primeira página do Times e não conseguia parar de rir.
Como é que eles não tinham reparado que não era a assinatura de Harry? Só podia presumir que os russos estavam com tanta pressa para pôr a confissão nas mãos da imprensa internacional antes de ele ter chegado a Inglaterra que tinham feito asneira da grossa. Este tipo de coisa acontecera com alguma frequência quando Giles era secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, mas raramente passava do departamento de imprensa. Por exemplo, quando Churchill visitara a América depois da guerra, tinha pedido à embaixada que combinasse um encontro com o eminente filósofo Isaiah Berlin e tinha acabado a tomar chá com Irving Berlin.
As fotografias de Harry dominavam a maior parte dos jornais da manhã, ao passo que os editoriais e os artigos de opinião sobre o popular autor e a sua longa batalha para libertar Anatoly Babakov da prisão enchiam muitas colunas das páginas interiores.
Os cartoonistas tiveram um dia em grande, representando Harry como São Jorge a matar o dragão ou David a derrubar Golias. Mas o desenho preferido de Giles era o do Daily Express, que mostrava Harry a esgrimir uma caneta contra a espada partida de um urso. O título dizia Mais Poderosa que a Espada.
Giles ainda se estava a rir quando leu a confissão de William Warwick pela segunda vez. Presumiu que iam rolar cabeças na Rússia, talvez literalmente.
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- Qual é a graça? - perguntou Emma quando se juntou a ele para tomar o pequeno-almoço, ainda com ar de precisar de uma boa noite de sono.
- Harry fez mais para embaraçar os russos num dia do que o Ministério dos Negócios Estrangeiros conseguiu num ano. E ainda há melhores notícias. Olha só para o título do Telegraph. - Segurou no jornal para que ela pudesse ver.
W1LLIAM WARWICK ADMITE SER ESPIÃO.
- Isto não tem graça - disse Emma, empurrando os jornais para o lado. - Se ele ainda estivesse na Rússia quando as primeiras edições saíram, o título teria sido completamente diferente.
- Bem, pelo menos vê as coisas pelo lado positivo.
- Há um lado positivo?
- Claro que sim. Até agora, toda a gente tem perguntado porque é que Harry não estava no tribunal para te apoiar. Bem, agora já todos sabem, e isso é capaz de impressionar o júri.
- Só que Virgínia foi brilhante no banco das testemunhas. Muito mais convincente do que eu.
- Mas desconfio que, por esta altura, o júri já deve ter percebido como ela é.
- Caso te tenhas esquecido, tu levaste um pouco mais de tempo. Giles acusou o toque e fez um ar contrito.
- Acabei de falar com ele ao telefone - disse Emma. - Está retido em Estocolmo. Parecia preocupado e não adiantou grande coisa. Disse-me que não espera aterrar em Heathrow antes das cinco horas da tarde.
- E conseguiu trazer o livro de Babakov? - perguntou Giles.
- As moedas acabaram antes de eu ter tempo de lhe perguntar - disse Emma enquanto se servia de café. - De qualquer forma, estava mais interessada em descobrir porque é que tinha levado quase uma semana a fazer uma viagem que a maior parte das pessoas consegue fazer em menos de quatro horas.
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- E qual foi a explicação?
- Nenhuma. Disse que me contava tudo assim que chegasse a casa. - Emma bebeu um gole de café antes de acrescentar: - Há qualquer coisa que ele me está a esconder e que não vem nas primeiras páginas dos jornais.
- Aposto que tem alguma coisa que ver com o livro de Babakov.
- Maldito livro! - resmungou Emma. - O que é que o fez correr um risco destes quando já tinham ameaçado mandá-lo para a prisão?
- Não te esqueças de que estamos a falar do mesmo homem que enfrentou uma divisão alemã armado apenas com uma pistola, um jipe e um cabo irlandês.
- E também teve sorte em sobreviver a isso.
- Tu sabias o tipo de homem que ele era muito antes de teres casado com ele. Para o melhor e para o pior... - disse Giles, pegando na mão da irmã.
- Mas será que ele compreende aquilo por que a família passou durante a última semana, e a sorte que tem em ter sido posto num avião para regressar a Londres e não num comboio para a Sibéria, juntamente com o seu amigo Babakov?
- Desconfio que há uma parte dele que gostaria de estar nesse comboio com Babakov - disse Giles baixinho. - É por isso que ambos o admiramos tanto.
- Nunca mais o deixo ir ao estrangeiro - disse Emma com convicção.
- Bem, desde que só vá para ocidente, não deve fazer mal - murmurou Giles tentando desanuviar o clima.
Emma baixou a cabeça e de repente desatou a chorar.
- Nós não percebemos quanto amamos uma pessoa até pensarmos que podemos não voltar a vê-la.
- Eu sei o que sentes - disse Giles.
Uma vez, durante a guerra, Harry tinha ficado acordado durante
trinta e seis horas, mas era muito mais novo nessa altura.427
Um dos muitos assuntos que ninguém se atrevia a abordar com Stalin era o papel que ele desempenhara durante o cerco de Moscovo, quando o desfecho da Segunda Guerra Mundial ainda era imprevisível. Teria batido rapidamente em retirada para Kuibyshev, junto ao Volga, como a maior parte dos ministros do governo e dos seus funcionários haviam feito, ou ter-se-ia recusado a deixar a capital e ficado no Kremlin a organizar pessoalmente a defesa da cidade, como afirmava? A sua versão tornou-se lenda, parte da história oficial soviética, embora várias pessoas o tivessem visto na plataforma, momentos antes de o comboio partir para Kuibyshev, e não haja relatos fiáveis de alguém o ter avistado novamente em Moscovo até o exército russo ter expulsado o inimigo da cidade. Poucos foram os que expressaram dúvidas sobre a versão de Stalin e que viveram para contar a história.
Com uma esferográfica na mão e uma fatia de queijo Edam na outra, continuou a escrever, página após página. Conseguia ouvir os protestos de Jessica. Como é que é capaz de estar sentado numa sala de aeroporto a escrever o livro de outra pessoa, quando está apenas a uma corrida de táxi da mais bela coleção de Rembrandts, Vermeers, Steens e De Wittes que há no mundo? Não havia um único dia em que não pensasse em Jessica. Só esperava que ela compreendesse porque é que tinha de substituir temporariamente Rembrandt por Babakov. Harry fez nova pausa para pôr em ordem os seus pensamentos.
Stalin afirmou sempre que, no dia do funeral de Nadya, tinha caminhado atrás do caixão. Na verdade, só o fez durante alguns minutos, devido ao medo permanente de ser assassinado. Quando o cortejo chegou aos primeiros edifícios habitados na praça Manege, desapareceu nas traseiras de um carro, enquanto o seu cunhado, Alyoska Svanidze, um homem igualmente baixo e entroncado com um farto bigode preto, tomou o seu lugar. Svanidze usou o sobretudo de Stalin, para que a multidão presumisse que era o viúvo inconsolável.
- Todos os passageiros...
A juíza Lane dispensou toda a gente da sala de audiências número 14 às quatro da tarde, mas só depois de estar convencida de que o júri não conseguiria chegar a um veredito nessa tarde.

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- Vou diretamente para Heathrow - disse Emma, olhando para o relógio. - Com um bocadinho de sorte, chego mesmo a tempo de me encontrar com Harry quando ele sair do avião.
- Queres que vamos contigo? - perguntou Giles.
- Claro que não. Quero-o só para mim durante as primeiras horas, mas trago-o para Smith Square esta noite e podemos jantar todos juntos.
Os taxistas sorriem sempre quando um cliente diz a palavra Heathrow. Emma subiu para o banco de trás do táxi, confiante de que conseguiria chegar ao aeroporto antes de o avião aterrar.
A primeira coisa que fez ao entrar no terminal foi ver o quadro das chegadas. Havia pequenos números e letras que se iluminavam de poucos em poucos momentos, facultando a informação mais recente para cada voo. O quadro indicava que os passageiros que vinham de Amesterdão no voo BOAC 786 estavam agora na zona de recolha de bagagem. Mas, depois, lembrou-se que Harry só tinha levado uma maleta de pernoita, uma vez que não contava ficar em Leninegrado mais do que algumas horas, no máximo uma noite. De qualquer forma, ele era sempre um dos primeiros a desembarcar, pois gostava de já ir na autoestrada de regresso a Bristol antes de os últimos passageiros terem passado pela alfândega. Fazia-o sentir que tinha ganhado tempo.
Quando vários passageiros passaram por ela com etiquetas nas malas a dizer Amesterdão, perguntou-se se seria possível terem-se desencontrado. Preparava-se para ir à procura de um telefone para ligar a Giles quando Harry apareceu finalmente.
- Desculpa - disse ele, abraçando-a. - Não fazia ideia que estarias à minha espera. Pensava que ainda estavas no tribunal.
- A juíza deixou-nos sair porque não havia perspetivas de o júri chegar hoje a um veredito.
Harry soltou-a e disse:
- Posso fazer um pedido estranho?
- Tudo o que quiseres, meu querido.
- Podemos ir para o hotel do aeroporto durante umas horas? - Já não fazemos isso há algum tempo - disse Emma sorrindo.429
- Eu depois explico porquê - disse Harry. Não voltou a falar até ter assinado o registo do hotel e terem entrado no quarto.
Emma deitou-se na cama, a ver Harry sentar-se a uma pequena secretária junto à janela e a escrever como se a sua vida dependesse disso. Ela não podia falar, ligar a televisão ou mesmo requisitar o serviço de quartos, por isso, em desespero de causa, pegou no primeiro capítulo do que presumiu ser a aventura mais recente de William Warwick.
Ficou agarrada desde a primeira frase. Três horas e meia mais tarde, quando Harry pousou finalmente a caneta e se deitou na cama ao lado dela, a única coisa que ela disse foi:
- Não digas nada, dá-me só o próximo capítulo.
Sempre que solicitavam a minha presença na dacha (não com muita frequência), comia sempre na cozinha. Um verdadeiro regalo, porque o chef de Stalin, Spiridon Ivanovich Putin, dava-me a mim e aos três provadores exatamente a mesma comida que era servida a Stalin e aos seus convidados na sala de jantar. Isso não deveria constituir surpresa. Os três provadores eram apenas mais um exemplo da paranóia de Stalin e da sua convicção de que alguém devia andar a tentar envenená-lo. Ficavam sentados em silêncio à mesa da cozinha, sem nunca abrir a boca a não ser para comer. A conversa do chef Putin também era limitada, uma vez que ele pressupunha que quem entrava no seu domínio - pessoal da cozinha, empregados de mesa, guardas e provadores - era seguramente espião, incluindo eu. Quando falava, o que nunca acontecia antes de levantada a mesa e de o último convidado ter deixado a sala de jantar, era sempre sobre a sua família, de quem se orgulhava desmesuradamente, sobretudo do seu neto mais novo, Vladimir.
Assim que os convidados se iam embora, Stalin retirava-se para o seu escritório e lia até altas horas da madrugada. Tinha um retrato de Lenine pendurado por cima da secretária, com um candeeiro a iluminar-lhe o rosto. Adorava ler romances russos, rabiscando muitas vezes comentários nas margens. Se não sentisse sono, esgueirava-se para o jardim, podava as suas rosas e admirava os pavões que por ali se passeavam.
Quando regressava finalmente a casa, só no último momento é que decidia em que divisão ia dormir, incapaz de apagar memórias passadas de quando era um jovem revolucionário, sempre em movimento e sem nunca saber onde iria descansar. A seguir, dormia umas quantas horas num sofá, com a porta trancada e os guardas lá fora, e estes só destrancavam a porta quando ele chamasse. Stalin raramente se levantava antes do meio-dia, altura em que, após um almoço leve, sem álcool, era levado da sua dacha até ao Kremlin num comboio de viaturas, mas nunca no mesmo
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carro. Quando chegava, começava imediatamente a trabalhar com as suas seis secretárias. Nunca o vi bocejar.
Emma virou a página, enquanto Harry mergulhava num sono profundo.
Quando acordou, pouco passava da meia-noite, ela tinha chegado ao capítulo 12 (cujo parágrafo inicial estava escrito na parte de trás de uma ementa de primeira classe). Emma reuniu várias folhas de papel e pô-las o mais direitas possível na maleta de Harry. A seguir, ajudou-o a sair da cama, levou-o para fora do quarto até ao elevador mais próximo. Assim que Emma pagou a conta, pediu ao paquete para mandar parar um táxi. Ele abriu a porta de trás para deixar entrar o velho cansado e a namorada.
- E para onde, menina? - perguntou o taxista.
- Smith Square, número vinte e três.
Durante a viagem de regresso a Londres, Emma pôs Harry ao corrente do que tinha acontecido no julgamento, da morte de Fisher e dos preparativos de Giles para a eleição complementar, da atuação de Virgínia no banco das testemunhas e da carta de Fisher que o senhor Trelford recebera nessa manhã.
- O que dizia? - perguntou Harry.
- Não sei, e nem sequer tenho a certeza de querer saber.
- Mas pode ajudar-te a ganhar o caso!
- Com Fisher envolvido, isso parece pouco provável.
- E só estive fora uma semana... - disse Harry enquanto o táxi parava à porta da casa de Giles, em Smith Square.
Quando a campainha da porta tocou, Giles foi abrir rapidamente e deparou-se com o seu melhor amigo agarrado à irmã com uma mão e ao corrimão com a outra, para ter a certeza de que não caía. Os seus dois novos guardas pegaram-no cada um por um braço, levaram-no para dentro de casa, fizeram-no passar pela casa de jantar e subir a escada até ao quarto de hóspedes, no primeiro andar. Ele não respondeu quando Giles lhe disse «Dorme bem, meu amigo!» e fechou a porta atrás de si.
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Quando Emma acabou de despir o marido e de pendurar o seu fato, estava dolorosamente ciente do cheiro que uma cela russa devia ter, mas ele já estava profundamente adormecido quando ela lhe tirou as meias.
Emma enfiou-se na cama ao lado dele e, embora soubesse que ele não a podia ouvir, murmurou com firmeza:
- Futuramente, o mais para leste que te deixo ir é até Cambridge.
A seguir, acendeu o candeeiro da mesa de cabeceira e continuou a ler Uncle joe. Passou-se mais uma hora até descobrir finalmente porque é que os russos se tinham dado a tanto trabalho para garantir que nunca ninguém punha as mãos no livro.
O septuagésimo aniversário do camarada Stalin foi comemorado em todo o império soviético de uma forma que teria impressionado César. Ninguém que quisesse viver falava em reformar-se. Os jovens receavam a promoção precoce porque isso prenunciava muitas vezes a reforma antecipada e, como Stalin parecia decidido a continuar no poder, qualquer insinuação de mortalidade significava o funeral dessa pessoa, e não o dele.
Enquanto eu estava sentado lá atrás, a assistir às reuniões infindáveis que comemoravam os feitos de Stalin, comecei afazer os meus próprios planos para lograr a minha minúscula parte de imortalidade. A publicação da minha biografia não autorizada. Mas teria de esperar, possivelmente durante anos após a morte de Stalin, para que surgisse o momento certo para abordar um editor, um editor corajoso que estivesse disposto a enfrentar Uncle joe.
O que não tinha previsto era que Stalin se aguentasse durante tanto tempo, e ele não tinha seguramente qualquer intenção de largar as rédeas do poder antes de baixarem o seu caixão à terra, e mesmo assim haveria mais do que um ou dois dos seus inimigos que ficariam calados durante vários dias após a sua morte, não fosse ele ressuscitar.
Harry tentou lembrar-se das palavras mais recentes de Babakov.
Muito se escreveu sobre a morte de Stalin. O comunicado oficial, que eu traduzi para a imprensa internacional, dizia que ele morreu à secretária no Kremlin depois de ter sofrido uma apoplexia, e essa foi a versão aceite durante muitos anos. Na verdade, ele estava na sua dacha e, após um jantar copiosamente regado com o432
seu círculo mais próximo, que incluía Eavrenti Beria, o seu vice-presidente e antigo chefe da polícia secreta, Nikita Khrushchev e Georgy Malenkov, retirou-se para se deitar, mas só depois de todos os seus convidados terem deixado a dacha.
Beria, Malenkov e Khrushchev receavam todos pelas suas vidas, pois sabiam que Stalin planeava substituí-los por acólitos mais jovens e leais. No fim de contas, fora exatamente da mesma forma que eles tinham conseguido o seu posto!
No dia seguinte, ao final da tarde, Stalin ainda não se tinha levantado e um dos seus guardas, com medo de que ele estivesse doente, telefonou a Beria, que ignorou os seus receios e lhe disse que o mais provável era Stalin estar simplesmente a curar uma ressaca. Passou-se mais uma hora até o guarda voltar a telefonar a Beria. Desta vez ele chamou Khrushchev e Malenkov e partiram imediatamente de carro para a dacha.
Beria deu ordem para destrancar a porta do quarto onde Stalin passara a noite, entraram os três a medo e deram com ele deitado no chão, inconsciente, mas ainda a respirar. Khrushchev inclinou-se para verificar o pulso, quando subitamente um músculo se contorceu. Stalin olhou para Beria e agarrou-o com firmeza pelo braço.
Khrushchev caiu de joelhos, pôs as mãos à volta do pescoço de Stalin e estrangulou-o. Stalin ainda se debateu durante alguns minutos, enquanto Beria e Malenkov o seguravam.
Quando se convenceram de que ele estava morto, saíram do quarto e fecharam a porta à chave. Beria emitiu imediatamente uma ordem de fuzilamento dos guardas pessoais de Stalin, dezasseis ao todo, para que não houvesse testemunhas do que acontecera. Ninguém foi informado da morte de Stalin até ser feito o anúncio oficial várias horas depois, o tal anúncio que eu traduzi e afirmava que ele tinha morrido de apoplexia enquanto trabalhava à sua secretária, no Kremlin. Na verdade, foi estrangulado por Khrushchev e deixado estendido durante várias horas numa poça da sua própria urina, antes de o seu corpo ser removido da dacha.
Durante os catorze dias seguintes, o corpo de Stalin esteve exposto em câmara ardente no Salão das Colunas, trajando uniforme militar completo e ostentando as suas medalhas de Herói da União Soviética e de Herói do Trabalho Socialista. Beria, Malenkov e Khrushchev perfilavam-se de cabeça baixa e em silêncio respeitoso ao lado do corpo embalsamado do seu antigo líder.
Estes três homens haviam de vir a ser a troika que tomou o poder no lugar dele, embora Stalin não considerasse nenhum deles digno de lhe suceder, e eles soubessem disso. Khrushchev, que era visto como um simples camponês, tornou-se secretário do partido. Malenkov, que ele uma vez descrevera como um escriba obeso e fraco, foi nomeado primeiro-ministro, ao passo que o impiedoso Beria, que Stalin considerava uma pessoa sórdida e viciada em sexo, assumiu o controlo dos serviços de segurança da nação.
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Alguns meses mais tarde, em junho de 1953, Khrushchev mandou prender Beria e mais tarde, não muito mais tarde, ordenou que fosse executado por traição, passado um ano, destituíra Malenkov e nomeara-se a si mesmo primeiro-ministro, assim como líder supremo. Só poupou a vida a Malenkov quando este concordou em anunciar publicamente que tinha sido Beria quem assassinara Stalin.
Emma adormeceu.
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Quando Emma acordou na manhã seguinte, deu com Harry ajoelhado no chão, a tentar separar pedaços de papel de vários tamanhos e a organizá-los em montinhos: papel da BOAC, o verso de uma dúzia de ementas da primeira classe e até papel higiénico. Juntou-se-lhe, concentrando-se no papel higiénico. Passados quarenta minutos, tinham um livro.
- A que horas temos de estar no tribunal? - perguntou Harry quando desciam a escada para tomar o pequeno-almoço com Giles.
- Teoricamente, às dez - disse Emma -, mas o senhor Trelford não crê que o júri regresse muito antes do meio-dia.
O pequeno-almoço era a primeira refeição a sério que Harry tomava durante quase uma semana, mas apesar disso não conseguiu comer quase nada. A família ficou sentada em silêncio enquanto ele lhes contava tudo o que lhe acontecera desde que o tinham visto pela última vez. Foram apresentados ao taxista, à velhota que estava na livraria, ao coronel do KGB, à presidente do tribunal, ao procurador, ao advogado de defesa, ao júri e, finalmente, a Anatoly Babakov, de quem gostara e que admirava. Contou-lhes como aquele homem verdadeiramente notável tinha passado todas as horas que conseguiu manter-se acordado a contar-lh e a sua história.
- E ele nkkkão irá correr um grande perigo se o livro for publicado? - indagou Giles.
- A resposta é sim, mas ele insistiu em que Uncle Joe fosse publicado antes de morrer, pois isso permitiria à esposa viver de forma confortável para o resto da vida. Por isso, assim que o julgamento terminar, conto apanhar novamente um avião para os Estados Unidos e
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entregar o manuscrito a Harold Guinzburg. A seguir, vou até Pittsburgh para falar com Yelena Babakov e transmitir-lhe várias mensagens do marido - acrescentou, na altura em que o Big Ben dava a primeira das dez badaladas.
- Não pode ser assim tão tarde - disse Emma, levantando-se da mesa de um salto. - Seb, vai arranjar um táxi enquanto eu e o teu pai nos acabamos de arranjar.
Seb sorriu. Perguntou-se quando é que as mães deixavam de tratar os filhos como se tivessem eternamente quinze anos.
Passados dez minutos, estavam todos a subir Whitehall, em direção à Strand.
- Estás ansioso por voltar ao Parlamento? - perguntou Harry quando o carro passou por Downing Street.
- Ainda nem sequer fui escolhido como candidato - disse Giles.
- Bem, pelo menos desta vez Alex Fisher não te irá causar problemas.
- Eu não estaria tão certo disso - replicou Giles.
- Deves ser o favorito.
- Em política, não há favoritos - assegurou-lhe Giles enquanto paravam à porta do tribunal.
As câmaras começaram a disparar ainda antes de Emma ter saído do táxi. Ela e Harry caminharam de braço dado por entre a falange de jornalistas e fotógrafos, a maior parte dos quais parecia mais interessada no marido do que na arguida.
- Sente-se aliviado por estar de volta? - gritou um deles.
- Londres é mais fria do que a Sibéria? - brincou outro.
- É bom tê-lo de volta, senhora Clifton? - berrou um terceiro. Emma quebrou a regra de ouro de Giles.
- Sim, claro que é - disse ela, apertando a mão de Harry.
- Acha que vai ganhar, hoje? - insistiu outro, que ela fingiu não ouvir. Seb estava à espera deles e segurou a enorme porta para os deixar entrar.
- Espera ser o candidato trabalhista na eleição complementar de Bristol, Sir Giles?
Mas Giles limitou-se a acenar e a sorrir, proporcionando-lhes uma fotografia, mas sem pronunciar uma palavra antes de desaparecer dentro do edifício.
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Os quatro subiram a grande escadaria de mármore e encontraram Trelford a ocupar o seu banco de canto favorito, no primeiro andar. Ele levantou-se assim que viu Emma aproximar-se. Ela apresentou-lhe Harry.
- Bom dia, inspetor detetive Warwick - disse Trelford. - Estava ansioso por conhecê-lo.
Harry apertou calorosamente a mão ao advogado.
- As minhas desculpas por não ter aparecido mais cedo, mas...
- Eu sei - disse Trelford - e mal posso esperar para o ler. O altifalante crepitou.
- Todos os envolvidos no caso Lady Virgínia Fenwick contra...
- O júri deve ter chegado a uma decisão - observou Trelford, já em movimento. Olhou à volta para ter a certeza de que iam atrás dele e esbarrou em alguém. Pediu desculpa, mas o jovem não olhou para trás. Sebastian, que fora à frente, segurou a porta da sala de audiências número 14, para a mãe e o seu advogado poderem retomar os seus lugares na primeira fila.
Emma estava demasiado nervosa para falar e, receando o pior, não parava de olhar ansiosamente por cima do ombro para Harry, que estava sentado na fila atrás dela, enquanto esperavam que o júri aparecesse.
Quando a juíza Lane entrou na sala, toda a gente se levantou. Ela fez uma vénia antes de ocupar o seu lugar. Emma transferiu a sua atenção para a porta fechada ao lado da bancada do júri. Não teve de esperar muito tempo para que esta se abrisse e o oficial de diligências voltasse a aparecer, seguido pelos seus doze discípulos, que demoraram algum tempo a encontrar os seus lugares, pisando-se uns aos outros como espectadores de teatro retardatários. O oficial de diligências esperou que eles se instalassem antes de bater três vezes com a sua vara no chão e gritar:
- O porta-voz faça o favor de se levantar.
O porta-voz levantou-se e olhou para a juíza do alto do seu mísero metro e sessenta. A juíza Lane inclinou-se para a frente e disse:
- Chegaram a um veredito com que estejam todos de acordo? Emma pensou que o seu coração ia parar de bater enquanto esperava pela resposta.
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- Não, meritíssima.
- Nesse caso, chegaram a um veredito em que tenham concordado por uma maioria de pelo menos dez contra dois?
- Chegámos, meritíssima - disse o porta-voz -, mas, infelizmente, no último momento, houve uma pessoa que mudou de ideias e isso redundou num impasse durante a última hora, com nove votos contra três. Não estou convencido de que a situação se altere, por isso venho mais uma vez pedir a sua orientação sobre o que devemos fazer a seguir.
- Acredita que podiam chegar a uma maioria de dez contra dois se lhes desse mais algum tempo?
- Sim, meritíssima, porque há uma questão em que estamos os doze de acordo.
- E qual é?
- Se nos fosse permitido conhecer o conteúdo da carta que o major Fisher escreveu ao doutor Trelford, podia ser que chegássemos bastante depressa a uma decisão.
Todos os olhos se fixaram na juíza, exceto os de Sir Edward Makepeace, que estava a olhar atentamente para Trelford. Ou era um jogador de póquer formidável ou não queria que o júri soubesse o que estava naquela carta.
Trelford levantou-se do lugar e enfiou a mão no bolso interior do casaco, acabando por constatar que a carta já lá não estava. Olhou para o outro lado da sala e viu que Lady Virgínia estava a sorrir.
Ele retribuiu-lhe o sorriso.

 

 

                                                   Jeffrey Archer         

 

 

 

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